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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A GLORIA DOS TRAIDORES - P.2 / George R. R. Martin
A GLORIA DOS TRAIDORES - P.2 / George R. R. Martin

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

O capitão olhou de relance Nage com a sua bandeira de paz.
  — Vindes dobrar o joelho, quereis vós dizer. Não sois os primeiros. Subi directamente ao castelo, e tratai de não causar sarilhos. — Mandou-os passar com um gesto e voltou a virar-se para as carroças.
  Se Porto Real chorava a morte do seu rei rapaz, Jaime nunca o teria deduzido pelo aspecto da cidade. Na Rua das Sementes um irmão mendicante vestido com uma túnica no fio rezava ruidosamente pela alma de Joffrey, mas os transeuntes não lhe prestavam mais atenção do que teriam prestado a uma portada solta a bater ao vento. Noutros locais, as multidões habituais deslocavam-se dum lado para o outro; homens de mantos dourados e cota de malha negra, ajudantes de padeiros a vender tortas, pães e tartes quentes, prostitutas debruçadas de janelas com os corpetes meio desatados, sarjetas fedendo aos dejectos da noite. Passaram por cinco homens que tentavam arrastar um cavalo morto de uma viela, e, noutro local, por um malabarista que fazia girar facas no ar para deleite de um ajuntamento de soldados Tyrell bêbados e crianças pequenas.
  Percorrendo a cavalo ruas familiares com duzentos nortenhos, um meistre sem corrente e uma mulher fenomenalmente feia a seu lado, Jaime descobriu que quase não atraía um segundo olhar. Não sabia se havia de se sentir divertido ou aborrecido.
  — Eles não me reconhecem — disse ao Pernas d’Aço enquanto atravessavam a Praça dos Sapateiros.
  — O vosso rosto está mudado, e as vossas armas também — disse o nortenho — e agora têm um novo Regicida.

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  Os portões da Fortaleza Vermelha estavam abertos, mas uma dúzia de homens de mantos dourados armados com piques cortavam o caminho. Baixaram as pontas quando o Pernas d’Aço se aproximou a trote, mas
Jaime reconheceu o cavaleiro branco que os comandava.
  — Sor Meryn.
  Os olhos abatidos de Sor Meryn Trant esbugalharam-se.
  — Sor Jaime?
  — Que bom que é ser lembrado. Afastai estes homens.
  Passara-se muito tempo desde que alguém saltara para lhe obedecer tão depressa. Jaime esquecera-se de como o apreciava.
  Depararam com mais dois membros da Guarda Real no pátio exterior, dois homens que não usavam mantos brancos da última vez que Jaime ali servira. É tão típico de Cersei nomear-me Senhor Comandante e
depois escolher os meus colegas sem me consultar.
  — Vejo que alguém me deu dois novos irmãos — disse ao desmontar.
  — Temos essa honra, sor. — O Cavaleiro das Flores brilhava, tão perfeito e puro nas suas escamas e seda brancas que Jaime se sentiu como uma coisa esfarrapada e barata por contraste.
  Jaime virou-se para Meryn Trant.
  — Sor, desleixastes-vos no ensino dos seus deveres aos nossos novos irmãos.
  — Que deveres? — perguntou Meryn Trant num tom defensivo.
  — Manter o rei vivo. Quantos monarcas perdestes desde que deixei a cidade? Dois, não foi?
  Então Sor Balon viu o coto.
  — A vossa mão…
  Jaime obrigou-se a sorrir.
  — Agora luto com a esquerda. Dá mais luta. Onde encontrarei o senhor meu pai?
  — No aposento privado com o Lorde Tyrell e o Príncipe Oberyn.
  Mace Tyrell e a Víbora Vermelha a cortar pão juntos? De estranheza a maior estranheza.
  — A rainha também se encontra com eles?
  — Não, senhor — respondeu Sor Balon. — Ireis encontrá-la no septo, rezando pelo Rei Joff…
  — Vós!
  Jaime viu que o último dos nortenhos desmontara, e agora Loras vira Brienne.
  — Sor Loras. — Ela ficou estupidamente imóvel, segurando o freio.
  Loras Tyrell aproximou-se dela a passos largos.
  — Porquê? — disse. — Ireis dizer-me porquê. Ele tratou-vos com gentileza, deu-vos um manto arco-íris. Porque quereríeis matá-lo?
  — Não o fiz. Teria morrido por ele.
  — E morrereis. — Sor Loras puxou pela espada.
  — Não fui eu.
  — Emmon Cuy jurou que fostes, com o seu último suspiro.
  — Ele estava fora da tenda, não chegou a ver…
  — Não estava ninguém na tenda além de vós e da Senhora Stark. Pretendereis dizer que aquela velha seria capaz de cortar através de aço endurecido?
  — Houve uma sombra. Eu sei como isto soa a demência, mas… estava a ajudar Renly a vestir a armadura, e as velas apagaram-se e apareceu sangue por todo o lado. A Senhora Catelyn disse que foi Stannis.
A sua… a sua sombra. Eu não desempenhei nenhum papel no acto, pela minha honra…
  — Não tendes qualquer honra. Desembainhai a espada. Não quero que se diga que vos matei tendo vós a mão vazia.
  Jaime interpôs-se entre os dois.
  — Guardai a espada, sor.
  Sor Loras rodeou-o.
  — Sereis tão cobarde como assassina, Brienne? Terá sido por isso que fugistes, com o sangue dele nas vossas mãos? Desembainhai a espada, mulher!
  — É melhor terdes esperança que ela não o faça. — Jaime voltou a bloquear-lhe o caminho. — Senão é provável que seja vosso o cadáver que levaremos daqui. A rapariga é tão forte como Sandor Clegane,
embora não seja tão bonita.
  — Isto não vos diz respeito. — Sor Loras empurrou-o para o lado.
  Jaime agarrou o rapaz com a mão boa e obrigou-o a virar-se.
  — Eu sou o Senhor Comandante da Guarda Real, seu cachorrinho arrogante. O vosso comandante, enquanto usardes esse manto branco. E agora embainhai a vossa maldita espada, senão hei-de vo-la tirar e de
vo-la enfiar num sítio que nem mesmo Renly encontrou.
  O rapaz hesitou durante meio segundo, tempo suficiente para que Sor Balon Swann dissesse:
  — Fazei o que o Senhor Comandante diz, Loras. — Alguns dos homens de mantos dourados puxaram então pelo aço, e isso levou alguns dos homens do Forte do Pavor a fazer o mesmo. Magnífico, pensou Jaime,
assim que desço do cavalo temos um banho de sangue no pátio.
  Sor Loras Tyrell devolveu com violência a espada à bainha.
  — Não foi assim tão difícil, por não?
  — Quero-a presa. — Sor Loras apontou. — Senhora Brienne, acuso-vos do assassínio do Lorde Renly Baratheon.
  — Isto vale o que vale — disse Jaime — mas a rapariga tem honra. Mais do que vi em vós. E até pode acontecer que esteja a dizer a verdade. Admito que ela não é aquilo a que se poderia chamar inteligente,
mas até o meu cavalo conseguiria arranjar uma mentira melhor, se é que era uma mentira que ela queria contar. Mas visto que insistis… Sor Balon, escoltai a Senhora Brienne para uma cela de torre e mantende-a
aí sob guarda. E arranjai aposentos adequados para o Pernas d’Aço e para os seus homens, até que o meu pai os possa receber.
  — Sim, senhor.
  Os grandes olhos azuis de Brienne estavam cheios de mágoa quando Balon Swann e uma dúzia de homens de mantos dourados a levaram. Devias estar a soprar-me beijos, rapariga, quis dizer-lhe. Porque haveriam
de entender mal todas as coisinhas que fizesse? Aerys. Tudo tem origem em Aerys. Jaime virou costas à rapariga e atravessou o pátio em passos largos.
  Outro cavaleiro de armadura branca guardava as portas do septo real; um homem alto com uma barba negra, ombros largos e um nariz adunco. Quando viu Jaime, fez um sorriso amargo e disse:
  — E onde pensas tu que vais?
  — Ao septo. — Jaime ergueu o coto para apontar. — Aquele mesmo ali. Pretendo ver a rainha.
  — Sua Graça está de luto. E porque haveria ela de querer ver um tipo como tu?
  Porque sou seu amante e o pai do seu filho assassinado, quis dizer.
  — E quem com os sete infernos és tu?
  — Um cavaleiro da Guarda Real, e é bom que aprendas a ter algum respeito, aleijado, senão corto-te essa outra mão e deixo-te a chupar as papas de manhã.
  — Eu sou irmão da rainha, sor.
  O cavaleiro branco achou aquilo engraçado.
  — Ah fugistes, foi? E também crescestes um bocado, senhor?
  — O outro irmão, cretino. E Senhor Comandante da Guarda Real. E agora afasta-te, senão vais desejar tê-lo feito.
  Daquela vez o cretino olhou-o bem.
  — Sois… Sor Jaime. — Endireitou-se. — Mil perdões, senhor. Não vos reconheci. Tenho a honra de ser Sor Osmund Kettleblack.
  Onde está a honra nisso?
  — Quero passar algum tempo a sós com a minha irmã. Tratai de que ninguém mais entre no septo, sor. Se formos incomodados, mandarei que vos cortem a porcaria da cabeça.
  — Sim, senhor. Às vossas ordens. — Sor Osmund abriu a porta.
  Cersei estava ajoelhada em frente do altar da Mãe. O ataúde de Joffrey fora colocado por baixo do Estranho, que levava os recém-falecidos para o outro mundo. O cheiro a incenso pairava pesadamente no
ar, e havia uma centena de velas a arder, enviando ao alto uma centena de preces. E é provável que Joff precise de todas elas.
  A irmã olhou por sobre o ombro.
  — Quem? — disse, e depois: — Jaime? — Ergueu-se, com os olhos a arder de lágrimas. — És mesmo tu? — Mas não foi ter com ele. Ela nunca veio ter comigo, pensou. Sempre esperou, deixando-me ir ter com
ela. Ela dá, mas tenho de pedir. — Devias ter vindo mais cedo — murmurou, quando ele a tomou nos braços. — Porque não pudeste vir mais cedo, para o manter a salvo? O meu filho…
  O nosso filho.
  — Vim o mais depressa que pude. — Rompeu o abraço e deu um passo para trás. — Lá fora há guerra, irmã.
  — Estás tão magro. E o teu cabelo, o cabelo dourado…
  — O cabelo há-de crescer. — Jaime ergueu o coto. Ela precisa de ver. — Isto não.
  Os olhos de Cersei esbugalharam-se.
  — Os Stark…
  — Não. Isto foi obra de Vargo Hoat.
  O nome não lhe dizia nada.
  — Quem?
  — O Bode de Harrenhal. Durante pouco tempo.
  Cersei virou-se para fitar o ataúde de Joffrey. Tinham vestido o rei morto com armadura dourada, estranhamente semelhante à de Jaime. A viseira do elmo estava fechada, mas as velas reflectiam-se suavemente
no ouro, e o rapaz cintilava, brilhante e bravo, na morte. A luz das velas despertava fogueiras nos rubis que decoravam também o corpete do vestido de luto de Cersei. O cabelo caía-lhe sobre os ombros,
solto e desordenado.
  — Ele matou-o, Jaime. Tal como me avisou que faria. Um dia, quando me julgasse a salvo e feliz, transformar-me-ia a alegria em cinzas na boca, disse ele.
  — Tyrion disse isso? — Jaime não quisera acreditar. O assassínio de familiares era pior do que o de reis, aos olhos dos deuses e dos homens. Ele sabia que o rapaz era meu. Eu amei Tyrion. Fui bom para
ele. Bem, à excepção daquela vez… mas o Duende não conhecia a verdade sobre ela. Ou será que conhece? — Porque haveria ele de matar o Joff?
  — Por uma rameira. — Cersei agarrou-se à sua mão boa e apertou-a bem entre as dela. — Ele disse-me que ia fazê-lo. O Joff sabia. Ao morrer apontou para o assassino. Para o monstrinho retorcido do nosso
irmão. — Beijou os dedos de Jaime. — Vais matá-lo por mim, não vais? Vais vingar o nosso filho.
  Jaime libertou-se dela.
  — Ele continua a ser meu irmão. — Enfiou-lhe o coto em frente do nariz, para o caso de ela não o ter visto. — E não estou em estado de matar seja quem for.
  — Tens outra mão, não tens? Não te estou a pedir para derrotares o Cão de Caça em batalha. Tyrion é um anão, trancado numa cela. Os guardas deixar-te-ão entrar.
  A ideia deu-lhe volta ao estômago.
  — Tenho de saber mais sobre isto. Sobre como aconteceu.
  — Saberás — prometeu Cersei. — Vai haver um julgamento. Quando ouvires contar tudo o que ele fez, irás querer tanto vê-lo morto como eu. — Tocou-lhe o rosto. — Senti-me perdida sem ti, Jaime. Tive medo
que os Stark me enviassem a tua cabeça. Não teria podido suportar tal coisa. — Beijou-o. Um beijo ligeiro, o mais ligeiro roçar dos lábios nos dele, mas sentiu-a tremer quando a envolveu nos braços. —
Não estou inteira sem ti.
  Não havia ternura no beijo com que ele lhe respondeu, só fome. A boca dela abriu-se para a sua língua.
  — Não — disse, com voz fraca, quando os lábios dele começaram a descer o seu pescoço —, aqui não. Os septões…
  — Que os Outros carreguem os septões. — Voltou a beijá-la, beijou-a em silêncio, beijou-a até fazê-la gemer. Então empurrou as velas para longe e ergueu-a para cima do altar da Mãe, puxando-lhe para
cima as saias e a combinação de seda que trazia por baixo. Ela bateu-lhe no peito com punhos débeis, murmurando sobre o risco, o perigo, o pai de ambos, os septões, a ira dos deuses. Ele nem a ouviu.
Desatou as bragas, trepou para cima do altar e afastou-lhe as pernas nuas. Uma mão deslizou pela coxa acima, por dentro da roupa interior. Quando a arrancou, viu que ela estava com a Lua, mas o sangue
não fazia qualquer diferença.
  — Despacha-te — estava ela agora a sussurrar —, depressa, depressa, agora, vem já, toma-me já. Jaime Jaime Jaime. — As mãos ajudaram a guiá-lo. — Sim — disse Cersei quando ele empurrou —, meu irmão,
querido irmão, sim, assim, sim, tenho-te, agora estás em casa, estás em casa, estás em casa. — Beijou-lhe a orelha e afagou-lhe o cabelo curto e hirsuto. Jaime perdeu-se na sua carne. Sentiu o coração
de Cersei batendo em uníssono com o seu, e a humidade do sangue e da semente quando se uniram.
  Mas assim que acabaram, a rainha disse:
  — Deixa-me levantar. Se formos descobertos assim…
  Relutantemente, rolou de cima dela e ajudou-a a sair do altar. O mármore branco estava manchado de sangue. Jaime limpou-o com a manga, após o que se dobrou para apanhar as velas que derrubara. Felizmente
tinham-se todas apagado quando caíram. Se o septo se tivesse incendiado, podia nem ter reparado.
  — Isto foi uma loucura. — Cersei endireitou o vestido. — Com o pai no castelo… Jaime, temos de ter cuidado.
  — Estou farto de ter cuidado. Os Targaryen casavam-se entre irmãos, porque não haveremos nós de fazer o mesmo? Casa comigo, Cersei. Ergue-te perante o reino e diz que é a mim que queres. Teremos o nosso
banquete de núpcias, e faremos outro filho para o lugar de Joffrey.
  Ela recuou.
  — Isso não tem piada.
  — Estás a ouvir-me rir?
  — Deixaste os miolos em Correrrio? — A voz dela trazia um gume. — O trono de Tommen provém de Robert, sabes disso.
  — Teremos Rochedo Casterly, não basta? Que o pai ocupe o trono. Tudo o que quero és tu. — Tentou tocar-lhe o rosto. Os velhos hábitos custam a morrer, e foi o braço direito que ergueu.
  Cersei afastou-se do coto com repugnância.
  — Não… não fales assim. Estás a assustar-me, Jaime. Não sejas estúpido. Uma palavra errada, e custar-nos-ás tudo. O que te fizeram?
  — Cortaram-me a mão.
  — Não, é mais do que isso, estás mudado. — Afastou-se um passo. — Mais tarde falamos. Amanhã. Tenho as aias de Sansa Stark numa cela de torre, tenho de as interrogar… tu devias ir falar com o pai.
  — Atravessei mil léguas para vir ter contigo, e perdi a melhor parte de mim ao longo do caminho. Não me digas para te deixar.
  — Deixa-me — repetiu ela, virando-lhe as costas.
  Jaime atou as bragas e fez o que ela ordenara. Apesar de estar tão cansado, não podia ir em busca de uma cama. Por aquela altura, o senhor seu pai já sabia que regressara à cidade.
  A Torre da Mão encontrava-se guardada por guardas domésticos Lannister, que o reconheceram de imediato.
  — Os deuses são bons, para vos trazer de volta até nós, sor — disse um deles, enquanto lhe abria a porta.
  — Os deuses não desempenharam nisso nenhum papel. Foi Catelyn Stark quem me devolveu. Ela e o Senhor do Forte do Pavor.
  Subiu as escadas e entrou no aposento privado sem se fazer anunciar, indo encontrar o pai sentado junto à lareira. O Lorde Tywin estava só, e Jaime sentiu-se grato por isso. Não tinha qualquer desejo
de exibir naquele momento a mão mutilada perante Mace Tyrell ou a Víbora Vermelha, muito menos perante ambos ao mesmo tempo.
  — Jaime — disse o Lorde Tywin, como se se tivessem visto ao pequeno-almoço. — O Lorde Bolton levou-me a esperar-te mais cedo. Julgava que estarias aqui a tempo da boda.
  — Fui retardado. — Jaime fechou suavemente a porta. — A minha irmã superou-se, segundo ouvi dizer. Setenta e sete pratos e um regicídio, nunca houve uma boda assim. Há quanto tempo sabeis que estou
livre?
  — O eunuco disse-me alguns dias depois da tua fuga. Mandei homens para as terras fluviais à tua procura. Gregor Clegane, Samwell Spicer, os irmãos Plumm. Varys também passou palavra, mas em segredo.
Concordámos que quanto menos pessoas soubessem que estavas livre, menos te perseguiriam.
  — Varys mencionou isto? — Aproximou-se do fogo, para permitir que o pai visse.
  O Lorde Tywin saltou da cadeira, silvando entre dentes.
  — Quem fez isso? Se a Senhora Catelyn julga…
  — A Senhora Catelyn encostou-me uma espada à garganta e obrigou-me a jurar que lhe devolveria as filhas. Isto foi obra do vosso bode. Vargo Hoat, o Senhor de Harrenhal!
  O Lorde Tywin afastou o olhar, repugnado.
  — Já não é. Sor Gregor capturou o castelo. Os mercenários abandonaram o seu antigo capitão quase até ao último homem, e algum do antigo pessoal da Senhora Whent abriu uma poterna. Clegane foi encontrar
Hoat sentado, só, no Salão das Cem Lareiras, meio louco de dor e febre devido a um ferimento que gangrenou. A orelha, diz-se.
  Jaime teve de se rir. Que maravilha! A orelha! Mal podia esperar para contar a Brienne, se bem que a rapariga não veria na coisa metade da piada que ele via.
  — Já está morto?
  — Em breve. Cortaram-lhe as mãos e os pés, mas Clegane parece divertir-se com o modo como o qohorik se baba.
  O sorriso de Jaime coalhou.
  — E os seus Bravos Companheiros?
  — Os poucos que ficaram em Harrenhal estão mortos. Os outros espalharam-se. Vão dirigir-se para portos, aposto, ou tentar perder-se nas florestas. — Os olhos voltaram a dirigir-se ao coto de Jaime,
e a boca retesou-se-lhe de fúria. — Cortar-lhes-emos as cabeças. A todos. Consegues usar uma espada com a mão esquerda?
  Quase nem consigo vestir-me de manhã. Jaime ergueu a mão em questão para que o pai a inspeccionasse.
  — Quatro dedos, um polegar, muito parecida com a outra. Porque não haveria de trabalhar tão bem?
  — Óptimo. — O pai sentou-se. — Isso é óptimo. Tenho um presente para ti. Pelo teu regresso. Depois de Varys me dizer…
  — A menos que seja uma nova mão, que espere. — Jaime ocupou a cadeira à frente do pai. — Como foi que Joffrey morreu?
  — Veneno. A ideia era que parecesse que ele tinha sufocado com um bocado de comida, mas eu mandei abrir-lhe a garganta e os meistres não encontraram qualquer obstrução.
  — Cersei diz que foi Tyrion quem o matou.
  — O teu irmão serviu ao rei o vinho envenenado, com mil pessoas a olhar.
  — Isso foi bastante idiota da parte dele.
  — Prendi o escudeiro de Tyrion. As aias da esposa também. Veremos se têm alguma coisa a dizer-nos. Os homens de mantos dourados de Sor Addam andam à procura da rapariga Stark, e Varys ofereceu uma recompensa.
A justiça do rei será feita.
  A justiça do rei.
  — Executaríeis o vosso próprio filho?
  — Ele está acusado de regicídio e assassínio de um familiar. Se for inocente, nada tem a temer. Primeiro temos de analisar as provas a favor e contra ele.
  Provas. Naquela cidade de mentirosos, Jaime sabia que tipo de provas seriam encontradas.
  — Renly também morreu de forma estranha, quando Stannis precisou que morresse.
  — O Lorde Renly foi assassinado por um dos seus próprios guardas, uma mulher qualquer de Tarth.
  — Essa mulher de Tarth é o motivo porque estou aqui. Atirei-a para uma cela para apaziguar Sor Loras, mas mais depressa acreditarei no fantasma de Renly do que em ela lhe ter feito algum mal. Stannis,
porém…
  — Aquilo que matou Joffrey foi veneno, não feitiçaria. — O Lorde Tywin voltou a relancear os olhos pelo coto de Jaime. — Não podes servir na Guarda Real sem uma mão da espada…
  — Posso — interrompeu. — E é o que farei. Há precedentes. Procurarei no Livro Branco e encontrá-los-ei, se quiserdes. Mutilado ou inteiro, um cavaleiro da Guarda Real serve a vida toda.
  — Cersei acabou com isso quando substituiu Sor Barristan devido à idade. Um presente adequado à Fé persuadirá o Alto Septão a libertar-te dos teus votos. A tua irmã foi tola em destituir Selmy, admito,
mas agora que abriu os portões…
  — …alguém tem de voltar a fechá-los. — Jaime ergueu-se. — Estou farto de ter mulheres de nascimento elevado a pontapear baldes de merda na minha direcção, pai. Nunca ninguém me perguntou se queria ser
Senhor Comandante da Guarda Real, mas parece que o sou. Tenho um dever…
  — Pois tens. — O Lorde Tywin também se ergueu. — Um dever para com a Casa Lannister. És o herdeiro de Rochedo Casterly. Era aí que devias estar. Tommen devia acompanhar-te, como teu protegido e escudeiro.
Será no Rochedo que ele aprenderá a ser um Lannister, e quero-o longe da mãe. Tenciono encontrar um novo marido para Cersei. Oberyn Martell, talvez, depois de convencer o Lorde Tyrell de que a união não
ameaça Jardim de Cima. E já é mais que tempo de te casares. Os Tyrell andam agora a insistir que Margaery se case com Tommen, mas se te oferecer em vez dele…
  — NÃO! — Jaime ouvira tudo o que conseguia aguentar. Não, mais do que conseguia aguentar. Estava farto daquilo, farto de lordes e mentiras, farto do pai, da irmã, farto de toda aquela maldita situação.
— Não. Não. Não. Não. Não. Quantas vezes tenho de dizer não antes que me ouçais? Oberyn Martell? O homem é infame, e não só por envenenar a espada. Tem mais bastardos do que Robert, e deita-se também
com rapazes. E se julgais por um disparatado momento que me vou casar com a viúva de Joffrey…
  — O Lorde Tyrell jura que a rapariga ainda é donzela.
  — E por mim pode morrer donzela. Não a quero e não quero o vosso Rochedo!
  — És meu filho…
  — Sou um cavaleiro da Guarda Real. O Senhor Comandante da Guarda Real! E isso é tudo o que pretendo ser!
  A luz do fogo cintilava, dourada, nos pêlos hirtos que enquadravam a cara do Lorde Tywin. Uma veia latejava no seu pescoço, mas ele não falou. E não falou. E não falou.
  O tenso silêncio prolongou-se até ser mais do que Jaime podia aguentar.
  — Pai… — começou.
  — Vós não sois meu filho. — O Lorde Tywin afastou o olhar. — Dizeis que sois o Senhor Comandante da Guarda Real, e apenas isso. Muito bem, sor. Ide cumprir o vosso dever.

 DAVOS
  As vozes deles erguiam-se como faúlhas, rodopiando na direcção do céu púrpura do princípio da noite.
  — Levai-nos para longe das trevas, oh senhor. Enchei-nos os corações de fogo, para que possamos percorrer o vosso caminho brilhante.
  A fogueira nocturna ardia contra a escuridão que se aprofundava, um grande animal brilhante cuja oscilante luz laranja atirava sombras com seis metros de altura pelo pátio fora. Ao longo das muralhas
de Pedra do Dragão o exército de gárgulas e grotescos animais pareciam agitar-se e mudar de posição.
  Davos olhava de uma janela arqueada na galeria, acima. Observou Melisandre erguer os braços, como que para abraçar as trementes chamas.
  — R’hllor — entoou numa voz sonora e clara —, sois a luz nos nossos olhos, o fogo nos nossos corações, o calor nos nossos rins. É vosso o Sol que aquece os nossos dias, vossas são as estrelas que nos
protegem na escuridão da noite.
  — Senhor da Luz, protegei-nos. A noite é escura e cheia de terrores. — A Rainha Selyse liderava as respostas, com o rosto atormentado cheio de fervor. O Rei Stannis estava a seu lado, com o maxilar
bem cerrado e as pontas da sua coroa de ouro vermelho a cintilar sempre que movia a cabeça. Ele está com eles, mas não é um deles, pensou Davos. A Princesa Shireen encontrava-se entre os pais, com as
manchas cinzentas mosqueadas na cara e pescoço quase negras à luz da fogueira.
  — Senhor da Luz, protegei-nos — cantou a rainha. O rei não respondeu com os outros. Estava a fitar as chamas. Davos perguntou a si próprio o que estaria ele a ver aí. Outra visão da guerra que aí vem?
Ou algo mais perto de casa?
  — R’hllor, que nos destes o sopro, agradecemo-vos — cantou Melisandre. — R’hllor, que nos destes o dia, agradecemo-vos.
  — Agradecemo-vos pelo Sol que nos aquece — respondeu a Rainha Selyse e os outros adoradores. — Agradecemo-vos pelas estrelas que nos vigiam. Agradecemo-vos pelas lareiras e archotes, que mantêm a escuridão
selvagem à distância. — Parecia a Davos que as respostas eram proferidas por menos vozes do que na noite anterior; menos rostos coradas de cor-de-laranja em volta da fogueira. Mas haveria ainda menos
no dia seguinte… ou mais?
  A voz de Sor Axell Florent ressoava, sonora como uma trombeta. Estava em pé, de peito enfunado e pernas arqueadas, com a luz do fogo a lamber-lhe o rosto como uma monstruosa língua cor-de-laranja. Davos
perguntou a si próprio se Sor Axell lhe agradeceria depois. A obra que tinham realizado naquela noite poderia bem fazer do homem Mão do Rei, tal como sonhava.
  Melisandre gritou:
  — Agradecemo-vos por Stannis, pela vossa graça nosso rei. Agradecemo-vos pelo fogo de um branco puro da sua bondade, pela espada vermelha da justiça que empunha, pelo amor que sente pelo seu leal povo.
Guiai-o e protegei-o, R’hllor, e dai-lhe força para derrotar os inimigos.
  — Dai-lhe força — respondeu a Rainha Selyse, Sor Axell, Devan e os outros. — Dai-lhe coragem. Dai-lhe sabedoria.
  Quando era rapaz, os septões tinham ensinado Davos a rezar à Velha por sabedoria, ao Guerreiro por coragem, ao Ferreiro por força. Mas era à Mãe que rezava agora, para que mantivesse o seu querido filho
Devan a salvo do deus demoníaco da mulher vermelha.
  — Lorde Davos? É melhor irmos. — Sor Andrew tocou-lhe suavemente o cotovelo. — Senhor?
  O título ainda lhe ressoava estranho aos ouvidos, mas Davos afastou-se da janela.
  — Sim. É tempo. — Stannis, Melisandre e os homens da rainha permaneceriam nas suas preces durante uma hora ou mais. Os sacerdotes vermelhos acendiam as fogueiras todos os dias ao pôr-do-sol, para agradecer
a R’hllor pelo dia que acabava de terminar e suplicar-lhe que voltasse a enviar o seu Sol de manhã, para banir a escuridão. Um contrabandista tem de conhecer as marés e a altura de as apanhar. No fim
de contas, não passava disso: Davos, o contrabandista. A mão mutilada subiu à garganta em busca da sua sorte, e nada encontrou. Baixou-a bruscamente e apressou-se um pouco mais.
  Os companheiros apressaram-se com ele, ajustando os passos aos seus. O Bastardo de Nocticantiga tinha um rosto devastado pelas bexigas e um ar de cavalaria esfarrapada; Sor Gerald Gower era largo, brusco
e louro; Sor Andrew Estermont era uma cabeça mais alto, com uma barba bicuda e hirsutas sobrancelhas castanhas. Davos pensava que eram todos bons homens, cada um à sua maneira. E todos serão homens mortos
em breve, se a obra desta noite correr mal.
  — O fogo é uma coisa viva — dissera-lhe a mulher vermelha, quando lhe pedira que o ensinasse a ver o futuro nas chamas. — Está sempre em movimento, sempre em mudança… como um livro cujas letras dançam
e se movimentam mesmo enquanto se está a tentar lê-las. São precisos anos de treino para ver as silhuetas por trás das chamas, e mais anos ainda para aprender a distinguir as silhuetas daquilo que irá
acontecer das que mostram o que poderá acontecer ou o que já aconteceu. Mesmo então, é difícil, difícil. Vós, os homens das terras do poente, não o compreendeis. — Davos perguntara-lhe então como era
que Sor Axell aprendera tão depressa o truque, mas ao ouvir isso ela limitara-se a fazer um sorriso enigmático e a dizer: — Qualquer gato pode fitar uma fogueira e ver ratos vermelhos a brincar.
  Não mentira acerca de nada daquilo aos seus homens do rei.
  — Pode ser que a mulher vermelha veja o que pretendemos fazer — avisara-os.
  — Então devíamos começar por matá-la — sugerira o Lewys Peixeira. — Conheço um sítio onde podíamos preparar-lhe uma cilada, quatro de nós com espadas afiadas…
  — Condenar-nos-íeis a todos — dissera Davos. — O Meistre Cressen tentou matá-la, e ela soube-o de imediato. Pelas chamas, suponho. Parece-me que é muito rápida a sentir qualquer ameaça à sua pessoa,
mas certamente que não pode saber tudo. Se a ignorarmos, talvez possamos escapar à sua detecção.
  — Não há honra em nos escondermos e andarmos pela calada — objectara Sor Triston do Monte da Talha, que fora um homem dos Sunglass antes de o Lorde Guncer ser entregue às fogueiras de Melisandre.
  — É assim tão honroso arder? — perguntara-lhe Davos. — Vistes o Lorde Sunglass a morrer. É isso o que quereis? Agora não preciso de homens de honra. Preciso de contrabandistas. Estais comigo ou não?
  Estavam. Pela bondade dos deuses, estavam.
  O Meistre Pylos conduzia Edric Storm pelas suas somas quando Davos abriu a porta. Sor Andrew vinha logo atrás dele; os outros tinham sido deixados a guardar as escadas e a porta da cave. O Meistre interrompeu-se.
  — Por agora chega, Edric.
  O rapaz ficou confuso pela intrusão.
  — Lorde Davos, Sor Andrew. Estávamos a fazer somas.
  Sor Andrew sorriu.
  — Eu detestava somas quando era da tua idade, primo.
  — Não me aborrecem muito. Mas gosto mais de História. Está cheia de histórias.
  — Edric — disse o Meistre Pylos —, agora vai a correr buscar o teu manto. Depois vais com o Lorde Davos.
  — Vou? — Edric pôs-se em pé. — Onde vamos? — A sua boca fez uma expressão obstinada. — Não irei rezar ao Senhor da Luz. Sou um homem do Guerreiro, como o meu pai.
  — Nós sabemos — disse Davos. — Vem, moço, não podemos perder tempo.
  Edric vestiu um espesso manto com capuz de lã não tingida. O Meistre Pylos ajudou a prendê-lo, e puxou o capuz para lhe esconder o rosto.
  — Vindes connosco, meistre? — perguntou o rapaz.
  — Não. — Pylos tocou a corrente de muitos metais que usava em volta do pescoço. — O meu lugar é aqui em Pedra do Dragão. Agora vai com o Lorde Davos, e faz o que ele disser. Lembra-te de que ele é a
Mão do Rei. O que foi que eu te disse acerca da Mão do Rei?
  — A Mão fala com a voz do rei.
  O jovem Meistre sorriu.
  — É assim mesmo. Agora vai.
  Davos sentira-se incerto de Pylos. Talvez nutrisse ressentimento por ele ter ocupado o lugar do velho Cressen. Mas agora só podia admirar a coragem do homem. Isto também pode custar-lhe a vida.
  Fora dos aposentos do Meistre, Sor Gerald Gower esperava junto à escada. Edric Storm olhou-o com curiosidade. Enquanto desciam, perguntou.
  — Onde vamos, Lorde Davos?
  — Para a água. Há um navio à tua espera.
  O rapaz parou de súbito.
  — Um navio?
  — Um dos de Salladhor Saan. Salla é um bom amigo meu.
  — Eu irei contigo, primo — garantiu-lhe Sor Andrew. — Não há nada de que ter medo.
  — Eu não tenho medo — disse Edric, indignado. — É só… a Shireen também vem?
  — Não — disse Davos. — A princesa tem de ficar aqui com o pai e a mãe.
  — Então tenho de a ver — explicou Edric. — Para me despedir. Senão ela fica triste.
  Não tão triste do que ficaria se te visse a arder.
  — Não há tempo — disse Davos. — Eu digo à princesa que estavas a pensar nela. E tu podes escrever-lhe, quando chegares ao sítio para onde vais.
  O rapaz franziu o sobrolho.
  — Tendes a certeza de que tenho de ir? Porque é que o meu tio me enviaria para fora de Pedra do Dragão? Desagradei-lhe? Não quis desagradar-lhe. — Adoptou de novo aquela expressão obstinada. — Quero
falar com o meu tio. Quero falar com o Rei Stannis.
  Sor Andrew e Sor Gerald trocaram um olhar.
  — Não há tempo para isso, primo — disse Sor Andrew.
  — Quero falar com ele! — insistiu Edric, mais alto.
  — Ele não quer falar contigo. — Davos tinha de dizer qualquer coisa para pôr o rapaz em movimento. — Eu sou a sua Mão, falo com a sua voz. Terei de ir ter com o rei e dizer-lhe que não queres fazer
o que te dizem? Sabes como isso o deixará zangado? Já alguma vez viste o teu tio zangado? — Descalçou a luva e mostrou ao rapaz os quatro dedos que Stannis encurtara. — Eu já.
  Era tudo mentira; não houvera qualquer ira em Stannis Baratheon quando cortara as extremidades dos dedos do seu Cavaleiro da Cebola, só um sentido férreo de justiça. Mas Edric Storm ainda não era nascido
nessa altura, e não podia saber. E a ameaça teve o efeito desejado.
  — Ele não devia ter feito isso — disse o rapaz, mas deixou que Davos lhe pegasse na mão e o levasse pelos degraus abaixo.
  O Bastardo de Nocticantiga juntou-se-lhes na porta da cave. Caminharam depressa, atravessando um pátio cheio de sombras e descendo alguns degraus, sob a cauda de pedra de um dragão congelado. O Lewys
Peixeira e Omer Blackberry esperavam na poterna, com dois guardas amarrados e amordaçados aos pés.
  — O barco? — perguntou-lhes Davos.
  — Está lá — disse Lewys. — Quatro remadores. A galé está ancorada logo depois do cabo. Prendos Louco.
  Davos soltou um risinho. Um navio baptizado em honra de um louco. Sim, é adequado. Salla tivera um laivo do humor negro dos piratas.
  Caiu sobre um joelho em frente de Edric Storm.
  — Agora tenho de deixar-te — disse. — Há um barco à espera, para te levar para uma galé. Depois vais atravessar o mar. És filho de Robert, portanto sei que serás corajoso, aconteça o que acontecer.
  — Serei. Só que… — O rapaz hesitou.
  — Pensa nisto como uma aventura, senhor. — Davos tentou soar forte e alegre. — É o início da grande aventura da tua vida. Que o Guerreiro te proteja.
  — E que o Pai vos julgue com justiça, Lorde Davos. — O rapaz saiu com o primo, Sor Andrew, pela poterna. Os outros seguiram-nos, todos menos o Bastardo de Nocticantiga. Que o Pai me julgue com justiça,
pensou Davos com pesar. Mas era o julgamento do rei que o preocupava agora.
  — E estes dois? — perguntou Sor Rolland referindo-se aos guardas, depois de fechar e trancar a poterna.
  — Metei-os numa cave — disse Davos. — Podeis libertá-los depois de Edric estar longe e a salvo.
  O Bastardo fez um aceno brusco. Não houve mais palavras a dizer; a parte fácil estava feita. Davos calçou a luva desejando que não tivesse perdido a sua sorte. Fora um homem melhor e mais corajoso com
aquele saco de ossos pendurado ao pescoço. Passou os dedos encurtados pelo cabelo castanho que se ia rarefazendo, e perguntou a si próprio se precisaria de cortá-lo. Tinha de ter um aspecto aceitável
quando se apresentasse ao rei.
  Pedra do Dragão nunca parecera tão escura e temível. Caminhou lentamente, com os passos a ecoar em paredes negras e dragões. Dragões de pedra que nunca despertarão, espero eu. O Tambor de Pedra ergueu-se,
enorme, à sua frente. Os guardas à porta descruzaram as lanças quando se aproximou. Não para o Cavaleiro da Cebola, mas para a Mão do Rei. Davos era a Mão ao entrar, pelo menos. Perguntou a si próprio
o que seria ao sair. Se chegar a sair…
  Os degraus pareceram mais longos e íngremes do que antes, ou talvez se desse apenas o caso de estar cansado. A Mãe não me fez para tarefas como esta. Subira alto de mais e depressa de mais, e ali na
montanha o ar era demasiado rarefeito para ele respirar. Em rapaz, sonhara com riquezas, mas isso fora muito tempo antes. Mais tarde, crescido, tudo o que desejara resumira-se a alguns acres de boa terra,
uma casa em que envelhecer, uma vida melhor para os filhos. O Bastardo Cego costumava dizer-lhe que um contrabandista inteligente não tentava obter demasiadas coisas, nem chamava a atenção para si. Alguns
acres, um telhado de madeira, um “sor” antes do nome, devia ter ficado satisfeito. Se sobrevivesse àquela noite, levaria Devan e viajaria para casa, para o Cabo da Fúria e para a sua gentil Marya. Choraremos
juntos os nossos filhos mortos, criaremos os vivos para que se tornem homens bons, e não voltaremos a falar de reis.
  A Sala da Mesa Pintada estava escura e vazia quando Davos entrou; o rei ainda devia estar na fogueira nocturna, com Melisandre e os homens da rainha. Ajoelhou e acendeu a lareira, para afastar o frio
do aposento redondo e expulsar as sombras para os seus cantos. Então dirigiu-se às janelas, uma de cada vez, abrindo as pesadas cortinas de veludo e destrancando as portadas de madeira. O vento entrou,
carregado com o cheiro do sal e do mar, e puxou pelo seu manto simples e castanho.
  Na janela norte, encostou-se ao peitoril para inspirar um pouco do ar frio da noite, esperando vislumbrar a Prendos Louco a içar as velas, mas o mar parecia negro e vazio até perder de vista. Já terá
partido? Só podia rezar para que sim, e o rapaz com ela. Uma meia-Lua aparecia e desaparecia por trás de nuvens finas e altas, e Davos via estrelas familiares; Ali estava a Galé, velejando para oeste;
ali a Lanterna da Velha, quatro estrelas brilhantes que rodeavam uma névoa dourada. As nuvens escondiam a maior parte do Dragão de Gelo, exceptuando-se apenas o brilhante olho azul que indicava o rumo
do norte. O céu está cheio de estrelas de contrabandista. Eram velhas amigas, aquelas estrelas; Davos esperava que isso significasse boa sorte.
  Mas quando baixou o olhar do céu para as ameias do castelo, deixou de ter tanta certeza. As asas dos dragões de pedra criavam sombras negras à luz vinda da fogueira nocturna. Tentou dizer a si próprio
que não passavam de esculturas, frias e sem vida. Este foi em tempos o seu lugar. Um lugar de dragões e de senhores de dragões, a sede da Casa Targaryen. Os Targaryen eram do sangue da velha Valíria…
  O vento suspirou pelo aposento, e na lareira as chamas estremeceram e rodopiaram. Ouviu os toros crepitar e soltar faúlhas. Quando Davos saiu da janela, a sua sombra seguiu à sua frente, alta e esguia,
e caiu sobre a Mesa Pintada como uma espada. E aí permaneceu durante muito tempo, à espera. Ouviu as botas deles nos degraus de pedra ao subirem. A voz do rei chegou antes do rei.
  — …não é três — estava Stannis a dizer.
  — Três são três — foi a resposta de Melisandre. — Juro, Vossa Graça, eu vi-o morrer e ouvi os lamentos da sua mãe.
  — Na fogueira nocturna. — Stannis e Melisandre atravessaram juntos a porta. — As chamas estão cheias de truques. O que é, o que será, o que poderá ser. Não me podeis dar a certeza…
  — Vossa Graça. — Davos deu um passo em frente. — A Senhora Melisandre viu a verdade. O vosso sobrinho Joffrey está morto.
  O rei não mostrou sinal de surpresa por encontrá-lo junto da Mesa Pintada.
  — Lorde Davos — disse. — Ele não era meu sobrinho. Embora eu tenha julgado durante anos que era.
  — Sufocou com um bocado de comida no seu banquete de casamento — disse Davos. — Pode ter sido envenenado.
  — É o terceiro — disse Melisandre.
  — Eu sei contar, mulher. — Stannis caminhou ao longo da mesa, passando por Vilavelha e pela Árvore, subindo na direcção das Ilhas Escudo e da foz do Vago. — Os casamentos tornaram-se mais perigosos
do que batalhas, ao que parece. Quem foi o envenenador? Sabe-se?
  — O tio, segundo se diz. O Duende.
  Stannis fez ranger os dentes.
  — Um homem perigoso. Fiquei a saber disso na Água Negra. Como vos chegou este relatório?
  — Os lisenos ainda negoceiam em Porto Real. Salladhor Saan não tem motivos para me mentir.
  — Suponho que não. — O rei percorreu a mesa com os dedos. — Joffrey… lembro-me de uma vez, uma gata de cozinha… os cozinheiros gostavam de lhe dar restos e cabeças de peixe. Um deles disse ao rapaz
que ela tinha gatinhos na barriga, julgando que ele poderia querer um. Joffrey abriu o pobre bicho com um punhal para ver se era verdade. Quando encontrou as crias, levou-as para mostrar ao pai. Robert
bateu no rapaz com tanta força que julguei que o tinha matado. — O rei tirou a coroa e pousou-a na mesa. — Anão ou sanguessuga, este assassino prestou um serviço ao reino. Agora têm de me mandar buscar.
  — Não o farão — disse Melisandre. — Joffrey tem um irmão.
  — Tommen. — O rei proferiu o nome de má vontade.
  — Coroarão Tommen e governarão em seu nome.
  Stannis cerrou o punho.
  — Tommen é mais gentil do que Joffrey, mas nasceu do mesmo incesto. Outro monstro em perspectiva. Outra sanguessuga sobre a terra. Westeros precisa de uma mão de homem, não de criança.
  Melisandre aproximou-se.
  — Salvai-os, senhor. Permiti-me que acorde os dragões de pedra. Três são três. Dai-me o rapaz.
  — Edric Storm — disse Davos.
  Stannis virou-se para ele numa fúria fria.
  — Eu sei como ele se chama. Poupai-me às vossas censuras. Não gosto mais disto do que vós, mas o meu dever é para com o reino. O meu dever… — Voltou a virar-se para Melisandre. — Jurais que não há outra
maneira? Jurai pela vossa vida, porque juro que morrereis devagarinho se me mentirdes.
  — Vós sois quem se tem de erguer perante o Outro. Aquele cuja vinda foi profetizada há cinco mil anos. O cometa vermelho foi o vosso arauto. Vós sois o príncipe que foi prometido, e se cairdes, o mundo
cairá convosco. — Melisandre aproximou-se dele, de lábios entreabertos, com o rubi a latejar. — Dai-me este rapaz — sussurrou — e eu dar-vos-ei o vosso reino.
  — Ele não pode — disse Davos. — Edric Storm partiu.
  — Partiu? — Stannis virou-se. — Que quereis dizer com partiu?
  — Está a bordo de uma galé lisena, em segurança no mar. — Davos observava a cara pálida e em forma de coração de Melisandre. Viu aí o tremeluzir do desânimo, a súbita incerteza. Ela não o viu!
  Os olhos do rei eram pisaduras azuis-escuras nos buracos do seu rosto.
  — O bastardo foi levado de Pedra do Dragão sem a minha autorização? Uma galé, dizeis? Se esse pirata liseno pensa usar o rapaz para me extorquir ouro…
  — Isto é obra da vossa Mão, senhor. — Melisandre deitou a Davos um olhar sabedor. — Ireis trazê-lo de volta, senhor. Ireis fazê-lo.
  — O rapaz está fora do meu alcance — disse Davos. — E fora do vosso também, senhora.
  Os olhos vermelhos da mulher fizeram-no contorcer-se por dentro.
  — Devia ter-vos deixado no escuro, sor. Sabeis o que fizestes?
  — O meu dever.
  — Alguns chamar-lhe-iam traição. — Stannis dirigiu-se à janela e fitou a noite. Estará à procura do navio? — Elevei-vos da lama, Davos. — Soava mais cansado do que irritado. — Seria demasiado esperar
lealdade?
  — Quatro dos meus filhos morreram por vós na Água Negra. Eu próprio podia ter morrido. Tendes a minha lealdade, sempre. — Davos Seaworth pensara dura e longamente sobre as palavras que diria em seguida;
sabia que a sua vida dependia delas. — Vossa Graça, fizestes-me jurar dar-vos conselhos honestos e rápida obediência, defender o vosso reino contra os vossos inimigos, proteger o vosso povo. Não será
Edric Storm um membro do vosso povo? Um daqueles que jurei proteger? Obedeci aos meus votos. Como pode isso ser traição?
  Stannis voltou a fazer ranger os dentes.
  — Nunca pedi esta coroa. O ouro é frio e pesado na cabeça, mas enquanto for o rei, tenho um dever a cumprir… Se tiver de sacrificar uma criança às chamas para salvar um milhão da escuridão… Sacrifício…
nunca é fácil, Davos. Se for, não é um verdadeiro sacrifício. Dizei-lhe, senhora.
  Melisandre disse:
  — Azor Ahai temperou a Luminífera com o sangue do coração da sua esposa amada. Se um homem com mil vacas der uma a deus, isso nada é. Mas um homem que oferece a única vaca que possui…
  — Ela fala de vacas — disse Davos ao rei. — Eu estou a falar de um rapaz, amigo da vossa filha, filho do vosso irmão.
  — O filho de um rei, com o poder do sangue real nas suas veias. — O rubi de Melisandre cintilava como uma estrela vermelha à sua garganta. — Julgais que salvastes este rapaz, Cavaleiro da Cebola? Quando
a longa noite cair, Edric Storm morrerá com os outros, seja onde for que esteja escondido. E os vossos filhos também. As trevas e o frio cobrirão a Terra. Intrometeis-vos em assuntos que não compreendeis.
  — Há muitas coisas que não compreendo — admitiu Davos. — Nunca pretendi que assim fosse. Conheço os mares e os rios, a forma das costas, onde há rochedos e baixios. Conheço angras escondidas onde um
barco pode acostar sem ser visto. E sei que um rei protege o seu povo, caso contrário, não é rei nenhum.
  O rosto de Stannis escureceu.
  — Troçais de mim na minha cara? Será que preciso de aprender quais são os deveres de um rei com um contrabandista de cebolas?
  Davos ajoelhou.
  — Se vos ofendi, cortai-me a cabeça. Morrerei como vivi, um homem que vos é leal. Mas primeiro escutai-me. Escutai-me em nome das cebolas que vos trouxe, e dos dedos que me tirastes.
  Stannis desembainhou a Luminífera. O brilho da espada encheu a sala.
  — Dizei o que quiserdes, mas dizei-o depressa. — Os músculos no pescoço do rei projectavam-se como cordões.
  Davos apalpou dentro do manto e tirou para fora o bocado amarfanhado de pergaminho. Parecia uma coisa pequena e banal, mas era todo o escudo que possuía.
  — Uma Mão do Rei deve saber ler e escrever. O Meistre Pylos tem vindo a ensinar-me. — Alisou a carta no joelho e começou a ler à luz da espada mágica.
 
 JON
  Sonhou que estava de volta a Winterfell, passando a coxear pelos reis de pedra nos seus tronos. Os seus olhos cinzentos de granito viravam-se para segui-lo, e os seus dedos cinzentos de granito apertavam-se
nos cabos das espadas ferrugentas que descansavam sobre as suas coxas. Não és um Stark, ouvia-os resmungar, em pesadas vozes de granito. Não há lugar para ti. Vai-te embora. Caminhou mais profundamente
para o interior das trevas.
  — Pai? — chamou. — Bran? Rickon? — Ninguém respondeu. Um vento gelado soprava-lhe no pescoço. — Tio? — chamou. — Tio Benjen? Pai? Por favor, pai, ajudai-me. — Ouviu o som de tambores vindo de cima.
Estão a banquetear-se no Salão Grande, mas não sou bem-vindo aí. Não sou um Stark, e este não é o meu lugar. A muleta escorregou e ele caiu de joelhos. As criptas estavam a tornar-se mais escuras. Uma
luz apagou-se, algures. — Ygritte? — sussurrou. — Perdoa-me. Por favor. — Mas era apenas um lobo gigante, cinzento e sinistro, salpicado de sangue, com os olhos dourados a brilhar tristemente na escuridão…
  A cela estava escura, e a cama dura por baixo do seu corpo. Lembrou-se de que era a sua cama, a sua cama na sua cela de intendente por baixo dos aposentos do Velho Urso. Deveria ter-lhe trazido sonhos
melhores. Mesmo sob as peles tinha frio. O Fantasma partilhara a sua cela antes de partirem em patrulha, aquecendo-a contra o frio da noite. E depois Ygritte dormira a seu lado. Ambos se foram agora.
Ele próprio queimara Ygritte, como sabia que ela teria desejado, e o Fantasma… Onde estás? Estaria também ele morto, seria esse o significado do seu sonho, o lobo ensanguentado nas criptas? Mas o lobo
no sonho fora cinzento, não branco. Cinzento como o lobo de Bran. Ter-lhe-iam os Thenn dado caça, tê-lo-iam matado após Coroadarrainha? Se fora isso que acontecera, Bran estava perdido para ele, completamente
e para sempre.
  Jon estava a tentar descobrir um sentido naquilo quando o corno soou.
  O Corno do Inverno, pensou, ainda confuso do sono. Mas Mance não chegara a encontrar o corno de Joramun, portanto não podia ser. Seguiu-se um segundo sopro, tão longo e profundo como o primeiro. Jon
tinha de se levantar e ir para a Muralha, bem sabia, mas era tão difícil…
  Empurrou as peles para o lado e sentou-se. A dor na perna parecia mais amortecida, nada que não pudesse suportar. Dormira vestido com as bragas, túnica e roupa interior, para obter mais calor, portanto
tinha apenas de calçar as botas e vestir couro, cota de malha e manto. O corno voltou a soar, dois sopros longos, portanto pôs Garralonga ao ombro, pegou na muleta e manquejou pela escada abaixo.
  Lá fora era noite cerrada, fazia um frio penetrante e o céu estava coberto. Os irmãos jorravam de torres e fortalezas, afivelando os cintos de espada e dirigindo-se para a Muralha. Jon procurou Pyp
e Grenn, mas não os conseguiu encontrar. Talvez fosse um deles a sentinela que soprava o corno. É Mance, pensou. Finalmente chegou. Isso era bom. Travaremos uma batalha, e depois descansaremos. Vivos
ou mortos, descansaremos.
  Onde estivera a escada só restava um imenso monte de madeira carbonizada e gelo quebrado à sombra da Muralha. Agora era o guincho que os içava, mas a gaiola só era suficiente para dez homens de cada
vez, e já subia quando Jon chegou. Teria de esperar o seu regresso. Outros esperaram com ele; o Cetim, Mully, o Bota Extra, o Barricas, o grande e louro Hareth com os seus dentes salientes. Toda a gente
lhe chamava Cavalo. Fora um moço de estrebaria em Vila Toupeira, um dos poucos toupeiras que tinham ficado em Castelo Negro. Os outros tinham corrido de regresso aos seus campos e cabanas, ou para as
suas camas no bordel subterrâneo. Mas o Cavalo queria vestir o negro, o grande palerma do dentuça. Zei, a rameira que se mostrara tão habilidosa com o arco, também ficara, e Noye acolhera três rapazes
órfãos cujos pais tinham morrido na escada. Eram novos — nove, oito e cinco anos — mas ninguém mais parecia querê-los.
  Enquanto esperavam que a gaiola descesse, Clydas trouxe-lhes taças de vinho quente temperado, enquanto o Hobb Três-Dedos distribuía bocados de pão escuro. Jon recebeu dele uma côdea e pôs-se a roê-la.
  — É o Mance Rayder? — perguntou ansiosamente o Cetim.
  — Podemos ter essa esperança. — Havia coisas piores do que selvagens na escuridão. Jon lembrava-se das palavras que o rei selvagem proferira no Punho dos Primeiros Homens, enquanto conversavam na neve
cor-de-rosa. Quando os mortos caminham, muralhas, estacas e espadas nada significam. Não podes lutar com os mortos, Jon Snow. Ninguém o sabe tão bem como eu. Só de pensar naquilo o vento pareceu soprar
um pouco mais frio.
  Por fim a gaiola voltou a descer, retinindo e baloiçando na ponta da longa corrente, e eles aglomeraram-se lá dentro em silêncio e fecharam a porta.
  Mully puxou três vezes pela corda da sineta. Um momento mais tarde, começaram a subir, a princípio aos arrancos, depois mais suavemente. Ninguém falou. No topo, a gaiola descaiu para o lado e saltaram
para fora, um por um. O Cavalo deu a Jon uma ajuda para descer para o gelo. O frio atingiu-o nos dentes como um punho.
  Uma linha de fogos ardia ao longo do topo da Muralha, contidos em cestos de ferro montados em postes mais altos do que um homem. A faca fria do vento agitava e fazia rodopiar as chamas, de modo que
a lúgubre luz cor-de-laranja estava sempre em mudança. Feixes de setas, lanças e dardos para as bestas e as balistas estavam em posição por todo o lado. Havia pilhas de pedras com três metros de altura,
grandes barris de madeira cheios de pez e de óleo de lâmpadas alinhavam-se a seu lado. Bowen Marsh deixara Castelo Negro bem fornecido de tudo menos de homens. O vento chicoteava os mantos negros das
sentinelas-espantalhos montadas ao longo das ameias, de lanças na mão.
  — Espero que não tenha sido um deles a soprar o corno — disse Jon a Donal Noye quando se aproximou dele a coxear.
  — Ouviste aquilo? — perguntou Noye.
  Havia o vento, e cavalos, e algo mais.
  — Um mamute — disse Jon. — Aquilo foi um mamute.
  O hálito do armeiro gelava assim que saía do seu nariz largo e achatado. A norte da Muralha estendia-se um mar de escuridão que parecia estender-se até ao infinito. Jon conseguia distinguir a ténua
cintilação vermelha de fogos distantes em movimento através da floresta. Era Mance, tão certo como a alvorada. Os Outros não acendiam archotes.
  — Como é que lutamos contra eles se não os vemos? — perguntou o Cavalo.
  Donal Noye virou-se para dois grandes trabucos que Bowen Marsh restaurara e pusera em funcionamento.
  — Dai-me luz! — rugiu.
  Barris de pez foram apressadamente carregados nos estropos e incendiados com um archote. O vento soprou as chamas até se transformarem numa viva fúria vermelha.
  — AGORA! — berrou Noye. Os contrapesos precipitaram-se para baixo, os braços de arremesso ergueram-se até baterem com estrondo nas barras transversais almofadadas. O pez a arder partiu a rodopiar pela
escuridão, lançando uma fantasmagórica luz oscilante sobre o terreno, lá em baixo. Jon vislumbrou mamutes que se moviam imponentemente à meia luz, e com a mesma rapidez deixou de os ver. Uma dúzia, talvez
mais. Os barris atingiram a terra e rebentaram. Ouviram uma trombeta a soar num baixo profundo, e um gigante rugiu qualquer coisa no Idioma Antigo, com a voz num trovão antigo que criou arrepios na espinha
de Jon.
  — Outra vez! — gritou Noye, e os trabucos foram de novo carregados. Mais dois barris de pez a arder partiram a crepitar para as sombras e esmagaram-se entre o inimigo. Daquela vez um deles atingiu uma
árvore morta, envolvendo-a em chamas. Não é uma dúzia de mamutes, viu Jon, é uma centena.
  Aproximou-se da borda do precipício. Cuidado, recordou a si próprio, é uma longa queda até lá abaixo. O Alyn Vermelho fez soar uma vez mais o seu corno de sentinela, Aaaaahuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu, aaaaaaahuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu.
E agora os selvagens responderam, não com um corno, mas com uma dúzia, e também com tambores e gaitas. Chegámos, pareciam dizer, chegámos para quebrar a vossa Muralha, para tomar as vossas terras e roubar
as vossas filhas. O vento uivava, os trabucos rangiam e estrondeavam, os barris voavam. Atrás dos gigantes e dos mamutes, Jon viu homens a avançar contra a muralha com arcos e machados. Haveria vinte
ou vinte mil? Na escuridão não havia forma de dizer. Isto é uma batalha de cegos, mas Mance tem mais alguns milhares do que nós.
  — O portão! — gritou Pyp. — Eles estão no PORTÃO!
  A Muralha era grande de mais para ser assaltada por meios convencionais; alta de mais para escadas ou torres de cerco, espessa de mais para aríetes. Nenhuma catapulta era capaz de arremessar uma pedra
suficientemente grande para lhe abrir uma brecha, e se se tentasse incendiá-la, o gelo derretido extinguiria as chamas. Era possível escalá-la, como os assaltantes tinham feito perto de Guardagris, mas
só se os escaladores fossem fortes, estivessem em forma e tivessem mãos seguras, e mesmo assim podiam acabar como Jarl, empalados numa árvore. Eles têm de tomar o portão, caso contrário não poderão passar.
  Mas o portão era um túnel sinuoso através do gelo, mais pequeno do que qualquer portão de castelo dos Sete Reinos, tão estreito que os patrulheiros tinham de levar os garranos em fila indiana. Três
portões de ferro fechavam a passagem interior, todos trancados e acorrentados e protegidos por um alçapão. A porta exterior era de carvalho antigo, com vinte e três centímetros de espessura e tachonada
com ferro, difícil de quebrar. Mas Mance tem mamutes, recordou a si próprio, e também tem gigantes.
  — Deve estar frio lá em baixo — disse Noye. — Que dizeis de os aquecermos, rapazes? — Uma dúzia de potes de óleo para lâmpadas tinham sido alinhados junto ao precipício. Pyp percorreu a fileira com
um archote, incendiando-os. O Owen Idiota seguiu-o, empurrando-os pela borda fora, um por um. Línguas de fogo amarelo-claro rodopiaram em volta dos potes quando mergulharam. Depois de o último ter sido
atirado, Grenn soltou com um pontapé os calços de um barril de pez e fê-lo também cair pela borda da Muralha, rolando e ressaltando. Os sons que vinham de baixo transformaram-se em berros e gritos, doce
música para os seus ouvidos.
  Mas os tambores ainda ressoavam, os trabucos estremeciam e estrondeavam, e o som das gaitas-de-foles veio em baforadas pela noite como se fosse a canção de umas aves quaisquer, estranhas e ferozes.
O Septão Cellador também se pôs a cantar, com a voz trémula e carregada de vinho.
  Gentil Mãe, de clemência fonte,
  nossos filhos livra da disputa,
  pára espadas, pára setas,
  deixa-os ver…
  Donal Noye virou-se para ele.
  — O primeiro homem que aqui pare a espada, despacho-lhe a porcaria das trombas lá p’ra baixo… começando por vós septão. Arqueiros! Temos aí algum maldito arqueiro?
  — Aqui — disse o Cetim.
  — E aqui — disse Mully. — Mas como é que eu encontro um alvo? ‘Tá escuro como se ‘tivéssemos dentro de uma barriga de porco. Onde ‘tão eles?
  Noye apontou para norte.
  — Dispara setas suficientes e pode ser que acertes nuns quantos. Pelo menos vais deixá-los maldispostos. — Olhou em volta do anel de rostos iluminados pelo fogo. — Preciso de dois arcos e de duas lanças
para me ajudar a defender o túnel caso eles consigam partir o portão. — Mais de dez deram um passo em frente, e o ferreiro escolheu os seus quatro. — Jon, a Muralha é tua até ao meu regresso.
  Por um momento Jon julgou ter ouvido mal. Parecera que Noye estava a deixá-lo no comando.
  — Senhor?
  — Senhor? Eu sou um ferreiro. Disse que a Muralha é tua.
  Há homens mais velhos, quis Jon dizer, homens melhores. Ainda estou verde como a erva do Verão. Estou ferido, e fui acusado de deserção. Ficara com a boca seca como um osso.
  — Sim — conseguiu dizer.
  Mais tarde Jon Snow iria ter a sensação de ter sonhado aquela noite. Lado a lado com os soldados de palha, com arcos e bestas apertados em mãos meio geladas, os seus arqueiros atiraram uma centena de
nuvens de setas contra homens que não chegaram a ver. De tempos a tempos uma seta dos selvagens surgia em resposta. Enviou homens para as catapultas mais pequenas e encheu o ar com pedras angulosas do
tamanho de um punho de gigante, mas a escuridão engolia-as como um homem poderia engolir uma mão-cheia de pinhões. Mamutes bramiam nas trevas, estranhas vozes gritavam em línguas ainda mais estranhas,
e o Septão Cellador rezava tão alto e com uma voz tão ébria pela chegada da alvorada que Jon se sentiu tentado a atirá-lo ele mesmo da Muralha. Ouviram um mamute a morrer mesmo por baixo e viram outro
a arremeter pela floresta, ardendo, esmagando tanto homens como árvores. O vento soprava cada vez mais frio. Hobb foi içado com taças de caldo de cebolas e Owen e Clydas serviram-nas aos arqueiros nos
seus postos, para que pudessem emborcá-las entre setas. Zei ocupou um lugar entre eles com a sua besta. Horas de repetidos abalos e choques soltaram qualquer coisa no trabuco da direita, e o seu contrapeso
libertou-se, súbita e catastroficamente, torcendo o braço de arremesso para o lado e estilhaçando-o. O trabuco da esquerda continuou a arremessar, mas os selvagens tinham aprendido depressa a evitar a
zona onde as suas cargas caíam.
  Devíamos ter vinte trabucos, e não dois, e eles deviam estar montados em trenós e bases rotativas para os podermos mover. Era um pensamento fútil. Podia, já agora, desejar mais mil homens e talvez dois
ou três dragões.
  Donal Noye não regressou, nem nenhum dos outros que foram com ele para baixo a fim de defender aquele túnel negro e frio. A Muralha é minha, lembrava Jon a si próprio sempre que sentia as forças a fraquejar.
Pegara também ele num arco e sentia os dedos cheios de cãibras e hirtos, meio congelados. A febre também estava de volta, e a perna punha-se por vezes a tremer descontroladamente, enviando uma incandescente
faca de dor pelo interior do seu corpo. Mais uma seta, e descanso, disse a si próprio meia centena de vezes. Só mais uma. Sempre que a aljava se esvaziava, um dos toupeiras órfãos trazia-lhe outra. Mais
uma seta, e basta. Não podia faltar muito tempo para a alvorada.
  Quando a manhã chegou, a princípio nenhum deles se apercebeu. O mundo continuava escuro, mas o negro transformara-se em cinzento e silhuetas entrevistas começavam a emergir das sombras. Jon baixou o
arco para fitar a massa de pesadas nuvens que cobria o céu oriental. Via um brilho atrás delas, mas talvez estivesse apenas a sonhar. Encaixou mais uma seta.
  Então o Sol nascente penetrou por entre as nuvens e arremessou pálidas lanças de luz sobre o campo de batalha. Jon deu por si a prender a respiração ao ver a meia milha de terra limpa que se estendia
entre a Muralha e o limite da floresta. Em metade de uma noite tinham-na transformado num deserto de erva enegrecida, pez borbulhante, pedra estilhaçada e cadáveres. A carcaça do mamute queimado já começava
a atrair corvos. Havia também gigantes mortos no chão, mas atrás deles…
  Alguém gemeu à sua esquerda, e ouviu o Septão Cellador dizer:
  — Que a Mãe se apiede de nós, oh. Oh, oh, oh, que a Mãe se apiede de nós.
  Por baixo das árvores estavam todos os selvagens do mundo; corsários e gigantes, wargs e troca-peles, homens das montanhas, marinheiros do mar salgado, canibais do rio de gelo, cavernícolas com caras
pintadas, quadrigas puxadas por cães vindas da Costa Gelada, homens de Cornopé com as suas solas semelhantes a couro fervido, todo o estranho povo selvagem que Mance reunira para quebrar a Muralha. Esta
não é a vossa terra, quis Jon gritar-lhes. Não há lugar para vós aqui. Ide-vos embora. Conseguia ouvir Tormund Terror dos Gigantes a rir-se daquilo. “Não sabes nada, Jon Snow”, teria dito Ygritte. Flectiu
a mão da espada, abrindo e fechando os dedos, embora soubesse perfeitamente que as espadas não entrariam em acção ali em cima.
  Estava gelado e febril, e de súbito o peso do arco foi demasiado. Compreendeu que a batalha com o Magnar nada fora, e a luta da noite fora menos que nada, nada mais que uma sonda, um punhal no escuro
para tentar apanhá-los desprevenidos. A verdadeira batalha estava apenas a começar.
  — Não sabia que seriam tantos — disse o Cetim.
  Jon soubera. Já os vira antes, mas não assim, não organizados em ordem de batalha. Durante a marcha, a coluna dos selvagens tinha-se espalhado ao longo de léguas como se fosse um enorme verme, e nunca
era vista toda ao mesmo tempo. Agora…
  — Aí vêm eles — disse alguém em voz rouca.
  Jon viu que mamutes formavam o centro das fileiras dos selvagens, cem ou mais, montados por gigantes armados de malhos e enormes machados de pedra. Mais gigantes corriam ao lado dos animais, puxando
um tronco de árvore assente em grandes rodas de madeira, com a ponta afiada em bico. Um aríete, pensou friamente. Se o portão ainda resistisse, lá em baixo, alguns beijos daquela coisa em breve o transformariam
em lascas. De ambos os lados dos gigantes vinha uma vaga de cavaleiros com arreios de couro fervido e lanças endurecidas pelo fogo, uma massa de arqueiros a correr, centenas de homens com lanças, fundas,
mocas e escudos de couro. As quadrigas de osso da Costa Gelada avançavam a chocalhar nos flancos, ressaltando em pedras e raízes atrás de equipas de enormes cães brancos. A fúria da terra bravia, pensou
Jon ao ouvir o gemido das gaitas-de-foles, o ladrar e latir dos cães, o bramido dos mamutes, os assobios e gritos do povo livre, os rugidos dos gigantes no Idioma Antigo. Os tambores ecoavam no gelo como
trovões.
  Sentia o desespero a toda a volta.
  — Devem ser cem mil — gemeu o Cetim. — Como poderemos parar tantos?
  — A Muralha pára-os — ouviu-se Jon a dizer. Virou-se e voltou a dizê-lo, mais alto. — A Muralha pára-os. A Muralha defende-se. — Palavras ocas, mas precisava de as dizer, quase tanto como os irmãos
precisavam de as ouvir. — Mance quer desencorajar-nos com os seus números. Será que julga que somos estúpidos? — Estava agora a gritar, com a perna esquecida, e todos os homens o escutavam. — As quadrigas,
os cavaleiros, todos aqueles palermas a pé… o que irão fazer-nos aqui em cima? Algum de vós já viu um mamute a escalar uma muralha? — soltou uma gargalhada, e Pyp, Owen e meia dúzia dos outros riram-se
com ele. — Eles não são nada, têm menos utilidade do que aqui os nossos irmãos de palha, não nos podem chegar, não nos podem fazer mal, e não nos assustam, pois não?
  — NÃO! — gritou Grenn.
  — Eles estão lá em baixo e nós cá em cima — disse Jon — e enquanto defendermos o portão, não podem passar. Eles não podem passar! — Estavam já todos a gritar, rugindo-lhe de volta as suas próprias palavras,
brandindo espadas e arcos no ar enquanto as faces se enrubesciam. Jon viu o Barricas ali em pé com um corno de guerra metido debaixo do braço. — Irmão — disse-lhe —, faz soar o toque de batalha.
  Sorrindo, o Barricas levou o corno aos lábios e soprou as duas longas notas que significavam selvagens. Outros cornos imitaram o chamamento até que a própria Muralha pareceu estremecer e o eco daqueles
grandes gemidos guturais afogou todos os outros sons.
  — Arqueiros — disse Jon depois de os cornos se silenciarem —, apontai aos gigantes que trazem o aríete, todos vós. Disparai às minhas ordens, não antes. OS GIGANTES E O ARÍETE. Quero que chovam setas
sobre eles a cada passo, mas esperaremos até estarem ao alcance. Qualquer homem que desperdice uma seta que seja vai ter de descer a Muralha e ir buscá-la, estais a ouvir-me?
  — Eu estou — gritou o Owen Idiota. — Eu estou a ouvir-te, Lorde Snow.
  Jon riu-se, riu-se como um bêbado ou um louco, e os seus homens riram-se com ele. Viu que as quadrigas e os cavaleiros dos flancos estavam agora bem à frente do centro. Os selvagens ainda não tinham
atravessado um terço da meia milha mas já a sua linha de batalha se dissolvia.
  — Carregar o trabuco com estrepes — disse Jon. — Owen, Barricas, virai as catapultas para o centro. Balistas, carregar com lanças incendiárias e disparar às minhas ordens. — Apontou para os rapazes
de Vila Toupeira. — Tu, tu e tu, ficai à espera com archotes.
  Os arqueiros selvagens disparavam ao avançar; precipitavam-se para a frente, paravam, disparavam e depois corriam mais dez metros. Eram tantos que o ar estava constantemente cheio de setas, todas elas
em voos futilmente curtos. Um desperdício, pensou Jon. A sua falta de disciplina está a vir ao de cima. Os arcos de corno e madeira do povo livre, mais pequenos, tinham um alcance menor do que os grandes
arcos de teixo da Patrulha da Noite, e os selvagens estavam a tentar disparar contra homens que se encontravam duzentos metros acima deles.
  — Deixai-os disparar — disse Jon. — Esperar. Aguentar. — Os mantos batiam atrás deles. — Temos o vento na cara, isso irá custar-nos alcance. Esperar. — Mais perto, mais perto. As gaitas-de-foles gemiam,
os tambores trovejavam, as setas dos selvagens esvoaçavam e caíam.
  — PUXAR. — Jon ergueu o seu próprio arco e puxou a seta até à orelha. O Cetim fez o mesmo, e o mesmo fizeram Grenn, o Owen Idiota, o Bota Extra, o Jack Negro Bulwer, Arron e Emrick. Zei levou a besta
ao ombro. Jon observava o aríete que se aproximava cada vez mais, com os mamutes e gigantes a acompanhá-lo pesadamente de ambos os lados. Pareciam ser tão pequenos que Jon os poderia esmagar a todos com
uma mão. Se ao menos a minha mão fosse suficientemente grande. Começaram a atravessar a extensão coberta de mortos. Uma centena de corvos levantou voo da carcaça do mamute morto enquanto os selvagens
passaram trovejando por ela. Mais perto e ainda mais perto até que…
  — DISPARAR!
  As setas negras silvaram para baixo, como serpentes em asas de penas. Jon não esperou para ver onde caíam. Estendeu a mão para uma segunda seta assim que a primeira deixou o seu arco.
  — ENCAIXAR. PUXAR. DISPARAR. — Assim que a seta partiu pegou noutra. — ENCAIXAR. PUXAR. DISPARAR. — E outra vez, e depois outra vez. Jon gritou pelo trabuco, e ouviu um rangido e um pesado tum quando
uma centena de estrepes de aço cheias de espigões partiram a girar pelo ar. — Catapultas — gritou — balistas. Arqueiros, disparar à vontade. — Setas dos selvagens estavam agora a atingir a Muralha, trinta
metros abaixo deles. Um segundo gigante girou e cambaleou. Encaixar, puxar, disparar. Um mamute virou de encontro a outro que seguia a seu lado, deitando gigantes ao chão. Encaixar, puxar, disparar. Viu
que o aríete estava caído e quebrado, com os gigantes que o tinham empurrado mortos ou a morrer. — Setas incendiárias — gritou. — Quero o aríete a arder. — Os berros dos mamutes feridos e os gritos ressonantes
dos gigantes misturavam-se com os tambores e gaitas, criando uma música horrível, mas os seus arqueiros continuavam ainda a puxar e disparar, como se se tivessem todos tornado tão surdos como o falecido
Dick Follard. Podiam ser a escória da ordem, mas eram homens da Patrulha da Noite, ou tão perto disso que não fazia diferença. É por isso que não passarão.
  Um dos mamutes corria, descontrolado, atingindo selvagens com a tromba e esmagando arqueiros debaixo das patas. Jon puxou o seu arco uma vez mais, e lançou outra seta contra o dorso felpudo do animal
para o incentivar a continuar. Para leste e para oeste, os flancos da hoste dos selvagens tinham chegado à Muralha sem oposição. As quadrigas aproximaram-se do centro ou viraram enquanto os cavaleiros
se punham às voltas, sem objectivo, sob a enorme falésia de gelo.
  — No portão! — soou um grito. Talvez o Bota Extra. — Mamute no portão!
  — Fogo — ladrou Jon. — Grenn, Pyp.
  Grenn pôs o arco de lado, derrubou um barril de óleo e rolou-o até à borda da Muralha, onde Pyp fez saltar à martelada a rolha que o selava, enfiou no orifício uma torcida de pano e a incendiou com
um archote. Empurraram-no juntos pela borda fora. Trinta metros abaixo, o barril atingiu a Muralha e rebentou, enchendo o ar com aduelas estilhaçadas e óleo a arder. Grenn estava já a rolar um segundo
barril até ao precipício, e o Barricas também tinha um. Pyp incendiou-os a ambos.
  — Apanharam-no! — gritou o Cetim, esticando tanto a cabeça que Jon teve a certeza de que estava prestes a cair. — Apanharam-no, apanharam-no, APANHARAM-NO! — Ouviu o rugido do fogo. Um gigante em chamas
surgiu no seu campo de visão, tropeçando e rolando no chão.
  Então, de súbito, os mamutes puseram-se em fuga, afastando-se do fumo e das chamas e colidindo no seu terror com os que se encontravam atrás. Esses também recuaram, com os gigantes e selvagens atrás
deles a correr para lhes saírem do caminho. Em meio segundo, o centro inteiro ruía. Os cavaleiros nos flancos deram por si abandonados e decidiram também retirar, sem que nenhum tivesse chegado a ter
o seu baptismo de sangue. Até as quadrigas se afastaram a ribombar, não tendo feito nada além de parecer temíveis e muito barulho. Quando quebram, quebram a sério, pensou Jon Snow enquanto os via a afastar-se.
Todos os tambores se tinham silenciado. Que tal achas essa música, Mance? Que tal te parece a mulher do dornês?
  — Temos alguém ferido? — perguntou.
  — Os malditos filhos da mãe apanharam-me a perna. — O Bota Extra arrancou a seta e brandiu-a por cima da cabeça. — A de madeira!
  Uma aclamação irregular ergueu-se na Muralha. Zei pegou nas mãos de Owen, fê-lo girar em círculo e deu-lhe um longo beijo molhado ali mesmo à vista de todos. Também tentou beijar Jon, mas ele segurou-a
pelo ombro e afastou-a gentilmente mas com firmeza.
  — Não — disse. Acabaram-se os beijos para mim. Subitamente sentiu-se demasiado cansado para se manter em pé, e a perna era uma agonia do joelho à virilha. Procurou a muleta às apalpadelas. — Pyp, ajuda-me
a ir até à gaiola. Grenn, a Muralha é tua.
  — Minha? — disse Grenn.
  — Dele? — disse Pyp. Era difícil dizer qual dos dois estava mais horrorizado.
  — Mas — gaguejou Grenn. — M-mas o que é que eu faço se os selvagens voltarem a atacar?
  — Pára-os — disse-lhe Jon.
  Enquanto desciam na gaiola, Pyp tirou-lhe o elmo e limpou-lhe a testa.
  — Suor congelado. Há alguma coisa mais nojenta do que suor congelado? — soltou uma gargalhada. — Deuses, acho que nunca tive tanta fome. Era capaz de comer um auroque inteiro, juro. Achas que o Hobb
nos cozinhava o Grenn? — Quando viu o rosto de Jon, o seu sorriso morreu. — Que se passa? É a perna?
  — É a perna — concordou Jon. Até as palavras eram um esforço.
  — Mas não é a batalha? Nós ganhámos a batalha.
  — Pergunta-me depois de ter visto o portão — disse Jon sombriamente. Quero um fogo, uma refeição quente, uma cama morna, e qualquer coisa que faça com que a perna pare de me doer, disse a si próprio.
Mas primeiro tinha de ir verificar o túnel e descobrir o que acontecera a Donal Noye.
  Depois da batalha com os Thenn, tinham levado quase um dia a tirar o gelo e os barrotes quebrados do portão interno. O Pate Malhado, o Barricas e alguns dos outros construtores tinham argumentado acaloradamente
que deviam limitar-se a deixar ali os detritos, mais um obstáculo para Mance. Mas isso teria significado o abandono da defesa do túnel, e Noye não quis ouvir falar do assunto. Com homens nos alçapões
e arqueiros e lanças atrás de cada um dos portões interiores, alguns irmãos determinados seriam capazes de repelir cem vezes o seu número de selvagens e atulhar o caminho de cadáveres. Não tencionava
dar a Mance Rayder livre trânsito através do gelo. E assim, com picaretas, pás e cordas, tinham afastado os degraus quebrados e escavado um caminho até ao portão.
  Jon esperou junto das frias barras de ferro enquanto Pyp ia pedir a chave de reserva ao Meistre Aemon. Surpreendentemente, o próprio Meistre regressou com ele, e Clydas também, trazendo uma lanterna.
  — Vem fazer-me uma visita quando te despachares — disse o velho a Jon enquanto Pyp lutava com as correntes. — Tenho de te mudar a ligadura e aplicar um cataplasma fresco, e tu vais querer um pouco de
vinho de sonhos para as dores.
  Jon anuiu debilmente. A porta abriu-se. Pyp entrou à frente, seguido por Clydas e pela lanterna. Jon só foi capaz de acompanhar o passo do Meistre Aemon. O gelo apertava-se em volta deles, e ele sentia
o frio a enfiar-se-lhe nos ossos, o peso da Muralha por cima da sua cabeça. Era como penetrar na goela de um dragão de gelo. O túnel descreveu uma curva e depois outra. Pyp destrancou um segundo portão
de ferro. Avançaram, voltaram a virar, e viram luz mais à frente, ténua e pálida através do gelo. Isto é mau, soube Jon de imediato. Isto é muito mau.
  Então Pyp disse:
  — Há sangue no chão.
  Fora nos últimos seis metros do túnel que eles tinham lutado e morrido. A porta exterior de carvalho tachonado fora atacada e quebrada e por fim arrancada das dobradiças, e um dos gigantes arrastara-se
para dentro através das lascas. A lanterna banhava a macabra cena com uma luz soturna e avermelhada. Pyp virou-se para o lado e vomitou, e Jon deu por si a invejar ao Meistre Aemon a sua cegueira.
  Noye e os seus homens tinham estado à espera dentro do túnel, por trás de um portão de pesadas barras de ferro igual aos dois que Pyp acabara de destrancar. As suas bestas tinham disparado uma dúzia
de dardos enquanto o gigante lutava por chegar até eles. Então os lanceiros deviam ter-se chegado à frente, projectando as lanças através das barras. Mesmo assim, o gigante ainda encontrara forças para
estender as mãos por entre as barras, arrancar a cabeça ao Pate Malhado, agarrar o portão de ferro e afastar as barras. Elos de uma corrente quebrada estavam espalhados pelo chão. Um gigante. Tudo isto
foi obra de um gigante.
  — Estão todos mortos? — perguntou o Meistre Aemon em voz baixa.
  — Sim. Donal foi o último. — A espada de Noye estava profundamente enterrada na garganta do gigante, até meio da lâmina. O armeiro sempre parecera a Jon um homem tão grande, mas preso aos massivos braços
do gigante quase parecia uma criança. — O gigante esmagou-lhe a espinha. Não sei quem morreu primeiro. — Pegou na lanterna e aproximou-se para ver melhor. — Mag. — Eu sou o último dos gigantes. Sentia
a tristeza que ali havia, mas não tinha tempo para tristezas. — Foi Mag, o Poderoso. O rei dos gigantes.
  Sentiu então necessidade do Sol. Dentro do túnel estava demasiado frio e escuro, e o fedor do sangue e da morte era sufocante. Jon devolveu a lanterna a Clydas, esgueirou-se em volta dos corpos e através
das barras torcidas, e caminhou para a luz do dia, para ver o que havia atrás da porta estilhaçada.
  A enorme carcaça de um mamute morto bloqueava parcialmente a passagem. Uma das presas do animal prendeu-lhe o manto e rasgou-o quando passou por ele. Mais três gigantes jaziam lá fora, meio enterrados
por baixo de pedras, gelo sujo e pez endurecido. Via os locais em que o fogo derretera a Muralha, em que grandes lençóis de gelo se tinham desprendido com o calor e estilhaçado no chão enegrecido. Ergueu
os olhos para o local de onde tinham vindo. Quando estamos aqui, parece imensa, como se estivesse prestes a esmagar-nos.
  Jon voltou para dentro, para onde os outros aguardavam.
  — Temos de reparar o portão exterior o melhor possível e depois bloquear esta secção do túnel. Detritos, bocados de gelo, qualquer coisa. Até ao segundo portão, se conseguirmos. Sor Winton terá de assumir
o comando, é o último cavaleiro que resta, mas tem de agir já, que os gigantes estarão de volta antes de darmos por isso. Temos de lhe dizer…
  — Diz-lhe o que quiseres — disse o Meistre Aemon em voz baixa. — Ele sorrirá, fará um aceno, e esquecerá. Há trinta anos, Sor Wynton Stout esteve a uma dúzia de votos de ser Senhor Comandante. Teria
sido dos bons. Há dez anos ainda podia ter sido capaz. Mas já não. Sabes disso tão bem como Donal sabia, Jon.
  Era verdade.
  — Então dai vós a ordem — disse Jon ao Meistre. — Passastes a vida inteira na Muralha, os homens seguir-vos-ão. Temos de fechar o portão.
  — Eu sou um meistre acorrentado e ajuramentado. A minha Ordem serve, Jon. Nós aconselhamos, não comandamos.
  — Alguém tem de…
  — Tu. Tu tens de liderar.
  — Não.
  — Sim, Jon. Não tem de ser por muito tempo. Só até que a guarnição regresse. Donal escolheu-te, e Qhorin Meia-Mão também, antes dele. O Senhor Comandante Mormont fez de ti o seu intendente. És um filho
de Winterfell, sobrinho de Benjen Stark. Tens de ser tu, ou não será ninguém. A Muralha é tua, Jon Snow.
 
 ARYA
  Sentia o buraco dentro de si todas as manhãs ao acordar. Não era fome, embora por vezes também houvesse isso. Era um lugar oco, um vazio onde o coração estivera, onde os irmãos e os pais tinham vivido.
A cabeça também lhe doía. Não tanto como doera a princípio, mas ainda doía bastante. Arya estava habituada a isso, porém, e pelo menos o galo estava a desaparecer. Mas o buraco dentro de si permanecia
na mesma. O buraco nunca ficará melhor, dizia a si própria quando ia dormir.
  Nalgumas manhãs, Arya não queria acordar de todo. Aninhava-se sob o manto com os olhos bem apertados e tentava regressar ao sono pela força da vontade. Se ao menos o Cão de Caça a deixasse em paz, dormiria
todo o dia e toda a noite.
  E sonhava. Essa era a melhor parte, os sonhos. Sonhava com lobos quase todas as noites. Uma grande alcateia de lobos, consigo à cabeça. Era maior do que todos os outros, mais forte, mais ligeira, mais
rápida. Era capaz de correr mais depressa do que cavalos e vencer em luta leões. Quando desnudava os dentes, até os homens fugiam dela, nunca tinha a barriga vazia por muito tempo, e o pêlo mantinha-a
quente mesmo quando o vento soprava frio. E os irmãos e irmãs acompanhavam-na, muitos e muitos mais, ferozes, terríveis e seus. Nunca a abandonariam.
  Mas se as suas noites eram cheias de lobos, os dias pertenciam ao cão. Sandor Clegane obrigava-a a levantar-se todas as manhãs, quer quisesse quer não. Amaldiçoava-a na sua voz arranhada, ou punha-a
bruscamente de pé e sacudia-a. Uma vez despejara um elmo cheio de água fria por cima da sua cabeça. Ela erguera-se de um salto, cuspindo água e tremendo e tentara pontapeá-lo, mas ele limitara-se a rir.
  — Seca-te e dá de comer à merda dos cavalos — dissera-lhe, e ela obedecera.
  Agora tinham dois, o Estranho e uma égua palafrém castanha-avermelhada que Arya baptizara de Cobarde, porque Sandor dissera que o animal provavelmente teria fugido das Gémeas, tal como eles. Tinham-no
encontrado a vaguear sem cavaleiro pelo campo na manhã seguinte ao massacre. Era um cavalo bastante bom, mas Arya não era capaz de amar um cobarde. O Estranho teria lutado. Apesar de tudo, cuidava da
égua o melhor que sabia. Era melhor do que seguir montada no mesmo cavalo do Cão de Caça. E a Cobarde podia tê-lo sido, mas também era jovem e forte. Arya achava que talvez fosse capaz de correr mais
depressa do que o Estranho, se fosse preciso.
  O Cão de Caça já não a vigiava tão atentamente como dantes. Por vezes não parecia importar-se se ela ficava ou se se ia embora, e já não a atava num manto à noite. Uma noite, mato-o enquanto dorme,
dizia a si própria, mas não o fazia. Um dia, vou-me embora com a Cobarde, e ele não conseguirá apanhar-me, pensava, mas também não o fazia. Para onde iria? Winterfell estava destruído. O irmão do avô
estava em Correrrio, mas não a conhecia, tal como ela não o conhecia a ele. A Senhora Smallwood talvez a acolhesse em Solar de Bolotas, mas talvez não. Além disso, Arya nem sequer tinha a certeza de conseguir
voltar a encontrar Solar de Bolotas. Por vezes pensava que podia voltar para a estalagem de Sharna, se as cheias não a tivessem levado. Podia ficar com o Tarte Quente, ou talvez o Lorde Beric a encontrasse
aí. Anguy ensinar-lhe-ia como usar um arco, e ela poderia cavalgar com Gendry e ser uma fora-da-lei, como Wenda, a Cerva Branca das canções.
  Mas isso era uma estupidez, como um sonho que Sansa poderia ter. O Tarte Quente e Gendry tinham-na abandonado assim que puderam, e o Lorde Beric e os foras-da-lei só queriam obter um resgate por ela,
tal como o Cão de Caça. Nenhum deles a queria por perto. Nunca foram a minha alcateia, nem sequer o Tarte Quente e o Gendry. Fui estúpida por pensar que sim, uma rapariguinha estúpida, nem por sombras
uma loba.
  Portanto ficava com o Cão de Caça. Viajavam todos os dias, sem nunca dormir duas vezes no mesmo sítio, evitando vilas, aldeias e castelos o melhor possível. Uma vez perguntara a Sandor Clegane para
onde iam.
  — Para longe — dissera ele. — É tudo o que tens de saber. Agora não vales uma escarreta para mim, e não quero ouvir as tuas lamúrias. Devia ter-te deixado correr para aquele maldito castelo.
  — Pois devias — concordara ela, pensando na mãe.
  — Se tivesse feito isso, estavas morta. Devias agradecer-me. Devias cantar-me uma cançãozinha bonita, como a tua irmã fez.
  — Também lhe bateste com um machado?
  — Bati-te com a parte romba do machado, minha putéfia estúpida. Se te tivesse atingido com a lâmina, havia bocados da tua cabeça a flutuar pelo Ramo Verde abaixo. Agora fecha a merda da boca. Se tivesse
algum juízo, dava-te às irmãs silenciosas. Elas cortam as línguas às raparigas que falam de mais.
  Não era justo ele dizer aquilo. Tirando aquela vez, Arya quase não falava de todo. Passavam-se dias inteiros sem que nenhum dos dois proferisse palavra. Ela estava demasiado vazia para falar, e o Cão
de Caça tinha demasiada ira. Arya sentia a fúria nele; via-a no seu rosto, no modo como a boca se lhe apertava e torcia, nos olhares que lhe deitava. Sempre que pegava no machado para cortar um pouco
de lenha para uma fogueira, enchia-se de uma fúria fria, golpeando violentamente a árvore viva ou morta ou o ramo partido até ficarem com vinte vezes mais lenha do que necessitavam. Por vezes, ficava
tão dorido e cansado depois de cortar a lenha que se deitava e adormecia sem sequer acender a fogueira. Arya detestava quando isso acontecia, e detestava-o também a ele. Eram essas as noites em que fitava
mais intensamente o machado. Parece terrivelmente pesado, mas aposto que era capaz de o brandir. E não o golpearia com a parte romba.
  Por vezes, nas suas deslocações, vislumbravam outras pessoas: camponeses nos seus campos, guardadores de porcos com os seus porcos, uma leiteira a conduzir uma vaca, um escudeiro a levar uma mensagem
por uma estrada sulcada. Também não queria falar com eles. Era como se vivessem nalguma terra distante e falassem uma língua estranha e estrangeira, nada tinham a ver com ela nem ela com eles.
  Além disso, ser visto não era seguro. De tempos a tempos colunas de cavaleiros passavam pelas sinuosas estradas rurais, com as torres gémeas de Frey a esvoaçar à sua frente.
  — À caça de nortenhos desgarrados — dissera o Cão de Caça depois de uma dessas colunas ter passado. — Sempre que ouvires cascos, baixa depressa a cabeça, que não é provável que seja um amigo.
  Um dia, num buraco na terra feito pelas raízes de um carvalho caído, deram de caras com outro sobrevivente das Gémeas. O símbolo que trazia ao peito exibia uma donzela cor-de-rosa que dançava num rodopio
de seda, e ele disse-lhes que era um homem de Sor Marq Piper; um arqueiro, embora tivesse perdido o arco. O ombro esquerdo estava todo inchado e torcido no local em que se juntava ao braço; um golpe de
maça, dissera, tinha-lhe partido o ombro e enterrado profundamente a cota de malha na carne.
  — E foi um nortenho — choramingara. — O símbolo que trazia era um homem ensanguentado, e viu o meu e fez uma piada, homem vermelho e donzela cor-de-rosa, se calhar deviam juntar-se. Eu bebi ao Lorde
Bolton dele, ele bebeu a Sor Marq e bebemos juntos ao Lorde Edmure, à Senhora Roslin e ao Rei no Norte. E depois matou-me. — Os olhos dele tinham um brilho febril quando dissera aquilo, e Arya vira que
era verdade. O ombro estava inchado de forma grotesca, e pus e sangue tinham-lhe manchado todo o lado esquerdo. E também fedia. Cheira a cadáver. O homem suplicara-lhes um trago de vinho.
  — Se tivesse algum vinho, tinha-o bebido eu — dissera-lhe o Cão de Caça. — Posso dar-te água e misericórdia.
  O arqueiro olhara-o longamente antes de dizer:
  — És o cão de Joffrey.
  — Agora sou um cão independente. Queres a água?
  — Sim. — O homem engolira em seco. — E a misericórdia. Por favor.
  Tinham passado por uma pequena lagoa pouco antes. Sandor dera a Arya o elmo e dissera-lhe para o encher, e ela caminhara penosamente até à borda de água. Lama esguichara sobre a ponta das suas botas.
Usara a cabeça do cão como balde. Escorrera água pelos buracos para os olhos, mas o fundo do elmo ainda ficara com muita.
  Quando regressara, o arqueiro virara o rosto para cima e ela despejara-lhe a água na boca. Ele engolira-a tão depressa como ela conseguia despejar, e aquilo que não conseguia engolir escorrera-lhe pelo
rosto indo misturar-se com o sangue castanho que estava incrustado nos pêlos que o cobriam, até que lágrimas de um tom claro de rosa lhe pingaram da barba. Quando a água se esgotara, agarrara-se ao elmo
e lambera o aço.
  — Óptimo — dissera. — Mas preferia que tivesse sido vinho. Queria vinho.
  — Eu também. — O Cão de Caça enfiara o punhal no peito do homem quase com ternura, com o peso do corpo a empurrar a ponta através do sobretudo, da cota de malha e do almofadado que usava por baixo.
Quando voltara a puxar a faca para fora, olhara para Arya. — É ali que fica o coração, rapariga. É assim que se mata um homem.
  Essa é uma maneira.
  — Enterramo-lo?
  — Porquê? — dissera Sandor. — Ele não se importa, e nós não temos pá. Deixa-o para os lobos e os cães selvagens. Os teus irmãos e os meus. — Deitou-lhe um olhar duro. — Mas primeiro roubamo-lo.
  Havia dois veados de prata na bolsa do arqueiro, e quase trinta moedas de cobre. O punhal do homem tinha uma bonita pedra cor-de-rosa no copo. O Cão de Caça sopesara a faca e depois atirara-a a Arya.
Ela apanhara-a pelo cabo, enfiara-a no cinto e sentira-se um pouco melhor. Não era a Agulha, mas era aço. O morto também tinha uma aljava de setas, mas as setas não serviam de muito sem um arco. As botas
eram grandes de mais para Arya e pequenas de mais para o Cão de Caça, portanto deixaram-nas ficar. Ela ficara também com o seu capacete, embora lhe caísse quase até abaixo do nariz, e tivesse de o inclinar
para trás para ver.
  — Ele também devia ter tido um cavalo, senão não tinha fugido — dissera Clegane, olhando em volta — mas acho que já desapareceu. Não há maneira de dizer há quanto tempo ele está aqui.
  Quando chegaram ao sopé das Montanhas da Lua, as chuvas tinham quase parado. Arya conseguia ver o Sol, a Lua e as estrelas, e parecia-lhe que se dirigiam para leste.
  — Para onde vamos? — voltou a perguntar.
  Daquela vez o Cão de Caça respondeu-lhe.
  — Tens uma tia no Ninho de Águia. Talvez queira resgatar esse teu corpinho magricela, embora só os deuses saibam porquê. Depois de acharmos a estrada de altitude, podemos segui-la até ao Portão Sangrento.
  A tia Lysa. A ideia deixou em Arya uma sensação de vazio. Era a mãe que desejava, não a irmã da mãe. Não conhecia melhor a irmã da mãe do que o tio-avô Peixe Negro. Devíamos ter entrado no castelo.
Na verdade não sabiam que a mãe estava morta, ou até Robb. Não os tinham propriamente visto morrer, nem nada parecido. Talvez o Lorde Frey os tivesse apenas capturado. Talvez estivessem acorrentados na
sua masmorra, ou talvez os Frey estivessem a levá-los para Porto Real para que Joffrey lhes pudesse cortar as cabeças. Não sabiam.
  — Devíamos voltar para trás — decidiu de súbito. — Devíamos voltar para as Gémeas e ir buscar a minha mãe. Ela pode não estar morta. Temos de a ajudar.
  — Julgava que era a tua irmã quem tinha a cabeça cheia de canções — rosnou o Cão de Caça. — O Frey podia ter mantido a tua mãe viva para obter um resgate, isso é verdade. Mas não há uma hipótese nos
sete infernos de eu a conseguir arrancar sozinho ao seu castelo.
  — Sozinho não. Eu também ia.
  Ele soltou um som que era quase uma gargalhada.
  — Isso ia fazer o velho mijar-se de susto.
  — Tu só tens medo de morrer! — disse ela com uma expressão de escárnio.
  Agora Clegane riu mesmo.
  — A morte não me assusta. Só o fogo. Agora vê se te calas, senão eu próprio te corto a língua e poupo a chatice às irmãs silenciosas. Para nós é o Vale.
  Não parecia a Arya que ele realmente lhe cortasse a língua; estava apenas a dizer aquilo como o Olho-Vermelho costumava dizer que lhe bateria até fazer sangue. Fosse como fosse, não iria pô-lo à prova.
Sandor Clegane não era nenhum Olho-Vermelho. O Olho-Vermelho não cortava gente ao meio nem lhe batia com machados. Nem mesmo com a parte romba dos machados.
  Naquela noite adormeceu a pensar na mãe, e perguntando a si própria se deveria matar o Cão de Caça enquanto dormia e salvar ela própria a Senhora Catelyn. Quando fechou os olhos, viu a cara da mãe contra
a parte de dentro das pálpebras. Ela está tão perto que quase conseguiria cheirá-la…
  …e então conseguiu cheirá-la. O odor era ténuo sob os outros cheiros, sob o musgo, a lama e a água e o fedor de juncos e homens em putrefacção. Caminhou lentamente pelo terreno mole até à borda do rio
e lambeu um pouco de água, após o que ergueu a cabeça para farejar. O céu estava cinzento e pesado de nuvens, o rio verde e cheio de coisas flutuantes. Os baixios estavam coalhados de mortos, alguns ainda
em movimento quando a água os empurrava, outros encalhados nas margens. Os irmãos e irmãs formigavam em volta dos corpos, devorando a rica carne putrefacta.
  Também lá estavam os corvos, gritando contra os lobos e enchendo o ar de penas. O sangue deles era mais quente, e uma das suas irmãs abocanhou um ao levantar voo, apanhando-o por uma asa. Aquilo fê-la
desejar também um corvo. Queria sentir o sabor do sangue, ouvir os ossos a esmagar-se entre os seus dentes, encher a barriga com carne quente em vez de fria. Tinha fome e havia carne a toda a volta, mas
sabia que não podia comer.
  O cheiro era agora mais forte. Esticou as orelhas e escutou os rosnidos da alcateia, os guinchos de corvos irritados, o sussurro das asas e o som da água corrente. Ouviu sons de cavalos e os gritos
dos vivos vindos de algures à distância, mas não eram eles que importavam. Só o odor importava. Voltou a farejar o ar. Ali estava ele, e agora também via a sua origem, algo pálido à deriva no rio, virando-se
quando roçava por um obstáculo submerso. Os juncos faziam vénias à sua frente.
  Patinhou ruidosamente pelos baixios e atirou-se a águas mais profundas, batendo as patas. A corrente era forte mas ela era mais forte. Nadou, seguindo o nariz. Os cheiros do rio eram ricos e húmidos,
mas não eram esses que a atraíam. Nadou atrás do vivo sussurro rubro do sangue frio, do fedor enfastiante e doce da morte. Perseguiu-os como perseguira frequentemente um veado vermelho por entre as árvores,
e por fim apanhou-os e as mandíbulas fecharam-se-lhe em volta de um braço pálido. Sacudiu-o para o obrigar a mexer-se, mas havia apenas morte e sangue na sua boca. Começava a cansar-se e foi com dificuldade
que puxou o cadáver para terra. Enquanto o arrastava para a margem lamacenta, um dos seus irmãos mais pequenos veio investigar, com a língua a pender-lhe da boca. Teve de rosnar para o afastar, caso contrário
ter-se-ia alimentado. Só então parou para sacudir a água do pêlo. A coisa branca jazia de bruços na lama, com a carne morta enrugada e pálida e sangue frio a pingar da sua garganta. Levanta-te, pensou.
Levanta-te, e vem comer e correr connosco.
  O ruído de cavalos fê-la virar a cabeça. Homens. Vinham contra o vento, e por isso não lhes sentira o cheiro, mas agora estavam quase ali. Homens a cavalo, com asas pretas, amarelas e cor-de-rosa que
batiam ao vento e longas garras brilhantes nas mãos. Alguns dos seus irmãos mais novos descobriram os dentes para proteger a comida que tinham achado, mas ela mordeu-os até fugirem. Era essa a lei da
natureza. Veados, lebres e corvos fugiam perante lobos, e lobos fugiam dos homens. Abandonou a captura fria e branca na lama para onde a arrastara, e fugiu, e não sentiu vergonha.
  Quando a manhã chegou, o Cão de Caça não precisou de gritar ou de abanar Arya para que acordasse. Ela acordara antes dele, para variar, e até dera água aos cavalos. Quebraram o jejum em silêncio, até
que Sandor disse:
  — Aquela conversa da tua mãe…
  — Não importa — disse Arya numa voz baça. — Eu sei que está morta. Vi-a num sonho.
  O Cão de Caça olhou-a por um longo momento, e depois anuiu. Nada mais foi dito sobre o assunto. Continuaram a viagem na direcção das montanhas.
  Nas colinas mais elevadas, chegaram a uma minúscula aldeia isolada rodeada por árvores-sentinela de um cinzento-esverdeado e grandes pinheiros marciais azuis, e Clegane decidiu arriscar entrar.
  — Precisamos de comida — afirmou — e de um telhado sobre as cabeças. Não é provável que eles saibam o que aconteceu nas Gémeas, e com um pouco de sorte não me hão-de reconhecer.
  Os aldeões estavam a construir uma paliçada de madeira em volta das suas casas, e quando viram a largura dos ombros do Cão de Caça, ofereceram-lhes comida e abrigo e até dinheiro em troca de trabalho.
  — Se também houver vinho, aceito — rosnou-lhes ele. Por fim acabou por se contentar com cerveja, e todas as noites bebia até adormecer.
  Mas o seu sonho de vender Arya à Senhora Arryn morreu ali nas colinas.
  — Há geada acima de nós e neve nos passos de altitude — disse o ancião da aldeia. — Se não congelardes ou passardes fome, os gatos-das-sombras apanhar-vos-ão, ou então serão os ursos das cavernas a
fazê-lo. E também há os clãs. Os Homens Queimados andam destemidos desde que o Timett Zarolho voltou da guerra. E há meio ano, Gunthor, filho de Gurn, desceu com os Corvos de Pedra até uma aldeia a menos
de oito milhas daqui. Levaram todas as mulheres e todos os restos de cereais, e mataram metade dos homens. Agora têm aço, espadas boas e lorigões de cota de malha, e vigiam a estrada de altitude… os Corvos
de Pedra, as Serpentes de Leite, os Filhos da Névoa, todos eles. Talvez possais levar alguns convosco, mas por fim matar-vos-ão e ir-se-ão embora com a vossa filha.
  Não sou filha dele, podia ter gritado Arya, se não se sentisse tão cansada. Agora não era filha de ninguém. Não era ninguém. Nem Arya, nem a Doninha, nem Nan, nem Arry, nem a Pombinha, nem sequer o
Cabeça de Grão. Era apenas uma rapariga qualquer que corria de dia com um cão e sonhava à noite com lobos.
  A aldeia era sossegada. Tinham colchões de palha sem demasiados piolhos, a comida era simples mas enchia e o ar cheirava a pinheiros. Mesmo assim, Arya depressa decidiu que a detestava. Os aldeões eram
cobardes. Nenhum deles sequer olhava para a cara do Cão de Caça, pelo menos não por muito tempo. Algumas das mulheres tentaram enfiá-la num vestido e obrigá-la a bordar, mas não eram a Senhora Smallwood
e Arya nem quis ouvir falar do assunto. E havia uma rapariga que se pôs a segui-la, filha do ancião da aldeia. Tinha a idade de Arya, mas não passava de uma criança; chorava se esfolasse um joelho, e
carregava uma estúpida boneca de trapos para todo o lado. A boneca tinha sido feita para se assemelhar a um homem de armas, mais ou menos, e por isso a rapariga chamava-lhe Sor Soldado e gabava-se de
como ele a mantinha a salvo.
  — Vai-te embora — disse-lhe Arya meia centena de vezes. — Deixa-me em paz. — Mas ela não deixava, e Arya acabou por lhe tirar a boneca, rasgou-a, enfiou um dedo na barriga e puxou os trapos que a enchiam.
— Agora parece-se mesmo com um soldado! — disse, antes de atirar a boneca a um riacho. — Depois daquilo a rapariga deixou de a importunar, e Arya passou a gastar os dias tratando da Cobarde e do Estranho
ou a passear pela floresta. Por vezes achava um pau e praticava os seus trabalhos da Agulha, mas então recordava o que acontecera nas Gémeas e batia com ele numa árvore até que se partisse.
  — Se calhar devíamos ficar aqui por algum tempo — disse-lhe o Cão de Caça decorrida uma quinzena. Estava bêbado de cerveja, mas mostrava-se mais pensativo do que sonolento. — Nunca chegaremos ao Ninho
de Águia, e os Frey ainda devem andar à caça de sobreviventes nas terras fluviais. Parece que por aqui precisam de quem saiba manejar uma espada, com os ataques destes clãs. Podíamos descansar e talvez
achar uma maneira de fazer chegar uma carta à tua tia. — A cara de Arya escureceu ao ouvir aquilo. Não queria ficar, mas também não havia para onde ir. Na manhã seguinte, quando o Cão de Caça saiu para
abater árvores e carregar troncos, voltou a enfiar-se na cama.
  Mas quando o trabalho terminou e a grande paliçada de madeira ficou pronta, o ancião da aldeia deixou claro que não havia lugar para eles.
  — Quando chegar o Inverno, vamos ter dificuldade em alimentar os nossos — explicou. — E vós… um homem como vós traz consigo sangue.
  A boca de Sandor apertou-se.
  — Então sabes quem eu sou.
  — Pois. Não nos chegam cá viajantes, é verdade, mas vamos ao mercado e a feiras. Sabemos do cão do Rei Joffrey.
  — Quando esses Corvos de Pedra vierem de visita, podeis ficar contentes por terdes um cão.
  — Pode ser que sim. — O homem hesitou, mas depois reuniu coragem. — Mas dizem que perdestes o estômago para a luta na Água Negra. Dizem…
  — Eu sei o que eles dizem. — A voz de Sandor soava como duas serras de madeira a roçar uma na outra. — Paga-me, e vamo-nos embora.
  Quando partiram, o Cão de Caça tinha uma bolsa cheia de moedas de cobre, um odre de cerveja amarga, e uma espada nova. Era uma espada muito velha, em boa verdade, embora fosse nova para ele. Trocara-a
pelo machado que apanhara nas Gémeas, aquele que usara para fazer nascer o galo na cabeça de Arya. A cerveja desapareceu em menos de um dia, mas Clegane amolava a espada todas as noites, amaldiçoando
o homem de quem a obtivera por cada entalhe e mancha de ferrugem que encontrava. Se ele perdeu o estômago para a luta, porque é que se importa se a espada está afiada? Não era uma pergunta que Arya se
atrevesse a colocar-lhe, mas pensava muito nela. Seria por isso que ele fugira das Gémeas e a levara consigo?
  De volta às terras fluviais, descobriram que as chuvas se tinham atenuado e que as águas da cheia tinham começado a baixar. O Cão de Caça dirigiu-se para Sul, de volta ao Tridente.
  — Vamos para Correrrio — disse a Arya enquanto assavam uma lebre que matara. — O Peixe Negro talvez queira comprar uma loba.
  — Ele não me conhece. Ele nem sequer saberá se eu sou realmente eu. — Arya estava farta de se dirigir a Correrrio. Parecia-lhe que andava a dirigir-se para Correrrio havia anos, sem nunca chegar lá.
Sempre que se dirigia para Correrrio, acabava num sítio pior qualquer. — Ele não te vai dar nenhum resgate. Provavelmente só te vai enforcar.
  — É livre de tentar. — E virou o espeto.
  Ele não fala como alguém que tenha perdido o estômago para a luta.
  — Eu sei para onde podemos ir — disse Arya. Ainda lhe restava um irmão. Jon querer-me-á, mesmo que mais ninguém queira. Há-de chamar-me “irmãzinha” e de me despentear o cabelo. Mas era uma longa viagem,
e não lhe parecia que conseguisse lá chegar sozinha. Nem sequer fora capaz de chegar a Correrrio. — Podíamos ir para a Muralha.
  A gargalhada de Sandor foi um meio rosnido.
  — A pequena loba quer juntar-se à Patrulha da Noite, é?
  — O meu irmão está na Muralha — disse ela obstinadamente.
  A boca dele torceu-se.
  — A Muralha fica a mil léguas daqui. Precisávamos de passar à espadeirada pela merda dos Frey só para chegar ao Gargalo. Nesses pântanos há lagartos-leões que comem lobos todos os dias ao pequeno-almoço.
E se conseguíssemos chegar ao Norte com as peles intactas, há homens de ferro em metade dos castelos, e milhares de cabrões de nortenhos também.
  — Tens medo deles? — perguntou ela. — Perdeste o estômago para lutar?
  Por um momento pensou que ele lhe ia bater. Mas a lebre já estava castanha, com a pele estaladiça e gordura a borbulhar quando pingava na fogueira. Sandor tirou-a do espeto, abriu-a ao meio com as suas
grandes mãos, e atirou metade para o colo de Arya.
  — Não há nada de errado com o meu estômago — disse enquanto arrancava uma pata — mas estou-me a cagar para ti e para o teu irmão. Também eu tenho um irmão.
 
 TYRION
  —Tyrion — disse Sor Kevan Lannister num tom fatigado — se estais realmente inocente da morte de Joffrey, não devíeis ter nenhuma dificuldade em prová-lo em tribunal.
  Tyrion virou costas à janela.
  — A quem cabe julgar-me?
  — A justiça pertence ao trono. O rei está morto, mas o vosso pai continua a ser a Mão. Uma vez que o acusado é o seu próprio filho e que a vítima foi o neto, ele pediu que o Lorde Tyrell e o Príncipe
Oberyn o acompanhassem a julgar.
  Tyrion pouco encorajamento sentiu. Mace Tyrell fora sogro de Joff, embora brevemente, e o Víbora Vermelha era… bem, uma serpente.
  — Serei autorizado a exigir julgamento por batalha?
  — Não o aconselharia.
  — Porque não? — O julgamento por batalha salvara-o no Vale, porque não o salvaria ali? — Respondei-me, tio. Ser-me-á permitido um julgamento por batalha, e um campeão para provar a minha inocência?
  — Certamente, se for esse o vosso desejo. No entanto, é melhor que saibais que a vossa irmã pretende nomear Sor Gregor Clegane como o seu campeão, no caso de um julgamento desses.
  A cabra corta-me as jogadas antes de eu as fazer. Pena que não tenha escolhido um Kettleblack. Bronn trataria facilmente de qualquer um dos três irmãos, mas a Montanha Que Cavalga era outra cantiga.
  — Vou ter de dormir sobre o assunto. — Tenho de falar com Bronn, e depressa. Não queria pensar no que era provável que aquilo lhe custasse. Bronn tinha uma ideia grandiosa do valor da sua pele. — Cersei
tem testemunhas contra mim?
  — Mais a cada dia que passa.
  — Então tenho de ter testemunhas minhas.
  — Dizei-me quem quereis, e Sor Addam enviará a Patrulha para o trazer ao julgamento.
  — Preferia ser eu próprio a procurá-las.
  — Sois acusado de regicídio e assassínio de um familiar. Será que realmente imaginais que vos será permitido ir e vir a vosso bel-prazer? — Sor Kevan fez um gesto na direcção da mesa. — Tendes pena,
tinta e pergaminho. Escrevei os nomes das testemunhas de que necessitais, e eu farei tudo o que estiver ao meu alcance para as apresentar, dou-vos a minha palavra de Lannister. Mas não saireis desta torre,
excepto para serdes julgado.
  Tyrion não se rebaixaria a suplicar.
  — Autorizareis o meu escudeiro a ir e vir? O rapaz, Podrick Payne?
  — Decerto, se for esse o vosso desejo. Mandá-lo-ei cá.
  — Fazei isso. Mais cedo será melhor do que mais tarde, e agora será melhor do que mais cedo. — Bamboleou-se até à mesa de escrever. Mas quando ouviu a porta a abrir-se, virou-se e disse: — Tio?
  Sor Kevan fez uma pausa.
  — Sim?
  — Eu não fiz isto.
  — Gostava de poder acreditar, Tyrion.
  Quando a porta se fechou, Tyrion Lannister içou-se para a cadeira, afiou uma pena e pegou num pergaminho em branco. Quem falará por mim? Molhou a pena no tinteiro.
  A folha continuava virgem quando Podrick Payne apareceu, algum tempo mais tarde.
  — Senhor — disse o rapaz.
  Tyrion pousou a pena.
  — Vai à procura de Bronn e trá-lo cá de imediato. Diz-lhe que vai haver ouro, mais ouro do que alguma vez sonhou, e trata de não voltar sem ele.
  — Sim, senhor. Quero dizer, não. Não vou. Voltar. — E foi.
  Não tinha ainda regressado ao pôr-do-sol, nem ao nascer da Lua. Tyrion adormeceu no banco de janela e acordou perro e dorido à alvorada. Um criado trouxe papas de aveia e maçãs para lhe quebrar o jejum,
com um corno de cerveja. Comeu à mesa, com o pergaminho em branco na sua frente. Uma hora mais tarde, o criado regressou para levar a tigela.
  — Viste o meu escudeiro? — perguntou-lhe Tyrion. O homem abanou a cabeça.
  Suspirando, voltou a virar-se para a mesa e pôs de novo tinta na pena. Sansa, escreveu no pergaminho. Ficou a fitar o nome, com os dentes cerrados com tanta força que doíam.
  Assumindo que Joff não tivesse simplesmente morrido sufocado com um bocado de comida, coisa que até Tyrion achava difícil de engolir, Sansa devia tê-lo envenenado. Joff praticamente pôs-lhe a taça ao
colo, e deu-lhe amplos motivos. Quaisquer dúvidas que Tyrion pudesse ter nutrido desapareceram quando o mesmo acontecera à esposa. Uma carne, um coração, uma alma. A boca torceu-se-lhe. Sansa não perdeu
tempo a mostrar o que esses votos significavam para ela, pois não? Bem, que esperavas, anão?
  E no entanto… onde teria a rapariga arranjado veneno? Não podia acreditar que tivesse agido só. Quererei mesmo encontrá-la? Iriam os juízes acreditar que a esposa-criança de Tyrion tinha envenenado
um rei sem o conhecimento do marido? Eu não acreditaria. Cersei insistiria que eles tinham cometido o acto em conjunto.
  Mesmo assim, deu o pergaminho ao tio no dia seguinte. Sor Kevan franziu o sobrolho ao vê-lo.
  — A Senhora Sansa é a vossa única testemunha?
  — Pensarei em outras a seu tempo.
  — É melhor que penseis nelas já. Os juízes pretendem dar início ao julgamento dentro de três dias.
  — Isso é demasiado cedo. Tendes-me aqui fechado e guardado, como hei-de encontrar testemunhas da minha inocência?
  — A vossa irmã não teve nenhuma dificuldade em encontrar testemunhas da vossa culpa. — Sor Kevan enrolou o pergaminho. — Sor Addam tem homens à procura da vossa esposa. Varys ofereceu cem veados por
notícias sobre o seu paradeiro, e cem dragões pela própria rapariga. Se ela puder ser encontrada, sê-lo-á, e eu trá-la-ei até vós. Não vejo mal algum em marido e mulher partilharem a mesma cela e confortarem-se
um ao outro.
  — É demasiada bondade vossa. Vistes o meu escudeiro?
  — Enviei-o cá ontem. Ele não veio?
  — Veio — admitiu Tyrion — e depois foi-se.
  — Voltarei a mandá-lo vir ter convosco.
  Mas demorou até à manhã seguinte até que Podrick Payne regressasse. Entrou hesitantemente no quarto, com o medo escrito na cara. Bronn vinha atrás. O cavaleiro mercenário trazia um justilho tachonado
de prata e um pesado manto de montar, com um par de luvas de couro bem trabalhadas enfiadas no cinto da espada.
  Uma olhadela à cara de Bronn deu a Tyrion uma sensação de náusea no fundo do estômago.
  — Levaste bastante tempo.
  — O rapaz suplicou, senão nem tinha vindo. Esperam-me no Castelo Stokeworth para o jantar.
  — Stokeworth? — Tyrion saltou da cama. — E, diz-me, que há para ti em Stokeworth?
  — Uma noiva. — Bronn sorriu como um lobo a contemplar um cordeiro tresmalhado. — Deverei casar com Lollys depois de amanhã.
  — Lollys. — Perfeito, perfeito como um raio. A filha idiota da Senhora Tanda arranja um cavaleiro como marido, e uma espécie de pai para o bastardo que traz na barriga, e Sor Bronn da Água Negra trepa
mais um degrau. Aquilo tinha os dedos fedorentos de Cersei por todo o lado. — A cadela da minha irmã vendeu-te um cavalo estropiado. A rapariga é obtusa.
  — Se eu quisesse esperteza, tinha-me casado contigo.
  — Lollys está à espera do filho de outro homem.
  — E quando o puser cá fora, deixo-a à espera de um meu.
  — Ela nem sequer é herdeira de Stokeworth — fez notar Tyrion. — Tem uma irmã mais velha. Falyse. Uma irmã casada.
  — Casada há dez anos, e ainda estéril — disse Bronn. — O senhor seu esposo evita a sua cama. Diz-se que prefere virgens.
  — Podia preferir cabras, que não faria diferença. As terras passarão na mesma para a esposa quando a Senhora Tanda morrer.
  — A menos que Falyse morra antes da mãe.
  Tyrion perguntou a si próprio se Cersei faria alguma ideia do tipo de serpente que dera à Senhora Tanda para amamentar. E se soubesse, importar-se-ia?
  — Então porque estás aqui?
  Bronn encolheu os ombros.
  — Uma vez disseste-me que se alguém me pedisse para te vender, duplicarias o preço.
  Sim.
  — O que queres é duas esposas, ou dois castelos?
  — Um de cada há-de servir. Mas se quiseres que mate Gregor Clegane por ti, é melhor que seja um castelo bestialmente grande.
  Os Sete Reinos estavam cheios de donzelas bem-nascidas, mas até a mais velha, mais pobre e mais feia solteirona do reino recusaria casar-se com escumalha mal-nascida como Bronn. A menos que seja fraca
de corpo e fraca de espírito, com um filho sem pai na barriga, gerado por ter sido violada meia centena de vezes. A Senhora Tanda andara tão desesperada por achar um marido para Lollys que até perseguira
Tyrion durante algum tempo, e isso fora antes de metade de Porto Real desfrutar dela. Sem dúvida que Cersei adoçara um pouco a oferta, e Bronn agora era um cavaleiro, o que fazia dele um partido adequado
para uma filha mais nova de uma Casa menor.
  — Acho-me com uma calamitosa falta tanto de castelos como de donzelas de nascimento elevado, de momento — admitiu Tyrion. — Mas posso oferecer-te ouro e gratidão, tal como antes.
  — Ouro, já tenho. O que é que posso comprar com gratidão?
  — Talvez te surpreendas. Um Lannister paga as suas dívidas.
  — A tua irmã também é uma Lannister.
  — A senhora minha esposa é herdeira de Winterfell. Se eu sair disto com a cabeça ainda assente sobre os ombros, posso vir um dia a governar o Norte em seu nome. Arranjava um grande bocado para ti.
  — Se e quando e pode ser — disse Bronn. — E lá em cima faz frio como o raio. A Lollys é suave, quente e está perto. Posso estar a meter-lho daqui a duas noites.
  — Não é perspectiva que me deliciasse.
  — Ah não? — Bronn fez um sorriso. — Admite, Duende. Se te dessem a escolher entre foder a Lollys e lutar com a Montanha, punhas as bragas em baixo e a picha p’ra fora antes de eu conseguir pestanejar.
  Ele conhece-me bem de mais. Tyrion tentou outra estratégia.
  — Ouvi dizer que Sor Gregor foi ferido no Ramo Vermelho, e de novo em Valdocaso. Os ferimentos irão certamente torná-lo mais lento.
  Bronn pareceu aborrecido.
  — Ele nunca foi rápido. Só brutalmente grande e brutalmente forte. Admito que é mais rápido do que seria de esperar para um homem daquele tamanho. Tem um alcance monstruosamente longo, e parece que
não sente os golpes como um homem normal sentiria.
  — Ele assusta-te assim tanto? — perguntou Tyrion, esperando provocá-lo.
  — Se não me assustasse, eu era um perfeito idiota. — Bronn encolheu os ombros. — Pode ser que conseguisse derrotá-lo. Dançar em volta dele até ele ficar tão cansado de me tentar atingir que já não conseguisse
erguer a espada. Arranjar alguma maneira de o desequilibrar. Quando estão caídos de costas, não importa a altura que têm. Mesmo assim, é um risco. Um tropeção, e estou morto. Porque haveria de arriscar?
Gosto bastante de ti, por mais feio e pequeno filho da puta que sejas… mas se travar a tua batalha, perco seja qual for o resultado. Ou a Montanha me derrama as tripas, ou o mato e perco Stokeworth. Eu
vendo a minha espada, não a dou. Não sou teu irmão.
  — Não — disse tristemente Tyrion. — Não és. — Fez um gesto com uma mão. — Então vai-te embora. Corre para Stokeworth e para a Senhora Lollys. Que encontres mais alegrias na tua cama de homem casado
do que eu encontrei na minha.
  Bronn hesitou à porta.
  — Que vais tu fazer, Duende?
  — Matar Gregor pessoalmente. Não se faria uma alegre canção com isso?
  — Espero ouvir cantá-la. — Bronn sorriu uma última vez, e saiu-lhe do quarto, do castelo e da vida.
  Pod arrastou os pés pelo chão.
  — Lamento.
  — Porquê? Será culpa tua que Bronn seja um patife insolente de coração negro? Ele sempre foi um patife insolente de coração negro. Era isso que me agradava nele. — Tyrion serviu-se de uma taça de vinho
e levou-a para o banco de janela. Lá fora o dia estava cinzento e chuvoso, mas mesmo assim ainda oferecia melhores perspectivas do que as suas. Supunha que podia enviar Podrick Payne em busca de Shagga,
mas havia tantos esconderijos nas profundezas da Mataderrei que era frequente os foras-da-lei levarem décadas sem serem capturados. E Pod tinha às vezes dificuldade em encontrar as cozinhas quando o mandava
lá abaixo buscar queijo. Timett, filho de Timett estava provavelmente de volta às Montanhas da Lua por aquela altura. E apesar do que dissera a Bronn, enfrentar Sor Gregor Clegane em pessoa seria uma
farsa ainda maior do que os anões lutadores de Joffrey. Não tencionava morrer com rajadas de gargalhadas a ressoar-lhe aos ouvidos. E lá se foi o julgamento por combate.
  Sor Kevan fez-lhe outra visita mais tarde nesse dia, e mais uma no dia seguinte. O tio informou-o polidamente de que Sansa não fora encontrada. E nem o bobo Sor Dontos, que desaparecera na mesma noite.
Desejaria Tyrion convocar mais testemunhas? Não desejava. Como raio vou eu provar que não envenenei o vinho, quando mil pessoas me viram encher a taça de Joff?
  Não pregou olho naquela noite.
  Em vez de dormir ficou deitado no escuro, fitando o dossel e contando os seus fantasmas. Viu Tysha a sorrir enquanto o beijava, viu Sansa nua e tremendo de medo. Viu Joffrey a arranhar a garganta, com
o sangue a escorrer-lhe pelo pescoço enquanto o rosto enegrecia. Viu os olhos de Cersei, o sorriso lupino de Bronn, o sorriso malvado de Shae. Nem mesmo pensar em Shae conseguiu animá-lo. Acariciou-se,
pensando que se acordasse a picha e a satisfizesse talvez conseguisse depois descansar mais facilmente, mas de nada serviu.
  E então chegou a alvorada, e a altura do seu julgamento começar.
  Não foi Sor Kevan que o veio buscar naquela manhã, mas Sor Addam Marbrand com uma dúzia de homens de mantos dourados. Tyrion quebrara o jejum com ovos cozidos, bacon queimado e pão frito, e vestira
a sua melhor roupa.
  — Sor Addam — disse. — Julguei que o meu pai enviaria a Guarda Real para me escoltar até ao julgamento. Ainda sou um membro da família real, não sou?
  — Sois, senhor, mas temo que a maior parte da Guarda Real seja testemunha contra vós. O Lorde Tywin considerou que não seria próprio servirem como vossos guardas.
  — Os deuses não permitam que façamos algo de impróprio. Por favor, ide à frente.
  O julgamento teria lugar na sala do trono, onde Joffrey morrera. Quando Sor Addam o escoltou através das altas portas de bronze e pelo longo tapete, sentiu os olhos postos nele. Centenas de pessoas
tinham-se aglomerado dentro da sala para o ver julgado. Pelo menos esperava que tivesse sido por isso que tinham vindo. Tanto quanto sei, são todos testemunhas contra mim. Viu a Rainha Margaery na galeria,
pálida e bela no seu luto. Duas vezes casada, duas vezes viúva, e só dezasseis anos. A mãe estava em pé, alta, de um dos lados, e a avó, baixa, do outro, com as damas de companhia e os cavaleiros do pai
amontoados no resto da galeria.
  O estrado ainda se encontrava por baixo do Trono de Ferro, embora todas as mesas menos uma tivessem sido removidas. Atrás dela sentava-se o robusto Lorde Mace Tyrell com uma capa dourada sobre trajos
verdes, e o esguio Príncipe Oberyn Martell, trazendo leves vestes às riscas laranja, amarelas e escarlate. O Lorde Tywin Lannister sentava-se entre os dois. Talvez ainda haja esperança para mim. O dornês
e o jardineiro desprezavam-se mutuamente. Se conseguir arranjar maneira de usar isso…
  O Alto Septão começou com uma prece, pedindo ao Pai no Céu que os guiasse à justiça. Quando terminou, o pai na Terra inclinou-se para a frente para dizer:
  — Tyrion, matastes o Rei Joffrey?
  Não quer perder um segundo.
  — Não.
  — Bem, isso é um alívio — disse secamente Oberyn Martell.
  — Então foi Sansa Stark que o fez? — quis saber o Lorde Tyrell.
  Eu tê-lo-ia feito, se fosse a ela. Mas estivesse Sansa onde estivesse e fosse qual fosse o papel que desempenhara naquilo, continuava a ser sua esposa. Envolvera-lhe os ombros no manto da sua protecção,
muito embora tivesse sido obrigado a empoleirar-se nas costas de um bobo para o fazer.
  — Os deuses mataram Joffrey. Ele sufocou com a sua tarte de pombo.
  O Lorde Tyrell enrubesceu.
  — Quereis culpar os padeiros?
  — A eles ou aos pombos. Só quero que me deixeis fora disso. — Tyrion ouviu risos nervosos, e compreendeu que cometera um erro. Tento na língua, meu palerminha, antes que te cave a sepultura.
  — Há testemunhas contra vós — disse o Lorde Tywin. — Ouvi-las-emos primeiro. Então, podereis apresentar as vossas testemunhas. Só podeis falar com a nossa licença.
  Nada havia que Tyrion pudesse fazer além de anuir com a cabeça.
  Sor Addam falara verdade; o primeiro homem a ser introduzido na sala foi Sor Balon Swann, da Guarda Real.
  — Senhor Mão — começou, depois de o Alto Septão ter aceitado o seu juramento de dizer apenas a verdade —, tive a honra de lutar ao lado do vosso filho na ponte de navios. Ele é um homem corajoso, apesar
do tamanho, e não quero acreditar que tenha cometido este acto.
  Um murmúrio percorreu a sala, e Tyrion perguntou a si próprio que jogo louco estaria Cersei a jogar. Porquê avançar com uma testemunha que me julga inocente? Em breve ficou a saber. Sor Balon falou
relutantemente de como separara Tyrion de Joffrey no dia do tumulto.
  — Ele bateu em Sua Graça, é verdade. Foi um ataque de fúria, nada mais. Uma tempestade de Verão. A turba quase nos matou a todos.
  — Nos dias dos Targaryen, um homem que batesse em alguém de sangue real perderia a mão que usasse no acto — observou a Víbora Negra de Dorne. — Cresceu uma mãozinha nova ao anão, ou vós, Espadas Brancas,
haveis esquecido o vosso dever?
  — Ele próprio era de sangue real — respondeu Sor Balon. — E além disso, Mão do Rei.
  — Não — disse o Lorde Tyrion. — Ele era Mão do Rei interino, no meu lugar.
  Sor Meryn Trant expandiu alegremente o relato de Sor Balon, quando ocupou o seu lugar como testemunha.
  — Ele atirou o rei ao chão e desatou a pontapeá-lo. Gritou que era injusto que Sua Graça tivesse escapado incólume à turba.
  Tyrion começou a aperceber-se do plano da irmã. Ela começou com um homem sabidamente honesto, e ordenhou-lhe tudo o que ele podia dar. Cada testemunha que se siga contará uma história pior, até que
eu pareça tão mau como Maegor, o Cruel, e Aerys, o Louco, combinados, com uma pitada de Aegon, o Indigno, para dar sabor.
  Sor Meryn seguiu-se para relatar o modo como Tyrion interrompera o castigo de Joffrey a Sansa Stark.
  — O anão perguntou a Sua Graça se ele sabia o que acontecera a Aerys Targaryen. Quando Sor Boros interveio em defesa do rei, o Duende ameaçou mandá-lo matar.
  O próprio Blount veio de seguida, para fazer de eco a essa lamentável história. Apesar de qualquer antipatia que Sor Boros pudesse nutrir por Cersei por o ter demitido da Guarda Real, disse na mesma
as palavras que ela desejava.
  Tyrion não conseguiu dominar mais a língua.
  — Porque não dizeis aos juízes o que Joffrey estava a fazer?
  O grande e queixudo homem trespassou-o com os olhos.
  — Vós dissestes aos vossos selvagens para me matar se eu abrisse a boca, e é isso que lhes vou dizer.
  — Tyrion — disse o Lorde Tywin. — Vós podeis falar apenas quando vo-lo solicitarmos. Que isto sirva de aviso.
  Tyrion calou-se, a ferver.
  Os Kettleblack vieram a seguir, todos os três, um de cada vez. Osney e Osfryd contaram a história do seu jantar com Cersei antes da Batalha da Água Negra, e relataram as ameaças que fizera.
  — Ele disse a Sua Graça que lhe queria fazer mal — disse Sor Osfryd. — Magoá-la.
  O irmão Osney detalhou.
  — Ele disse que esperaria por um dia em que ela estivesse feliz, e faria com que a alegria se transformasse em cinzas na sua boca. — Nenhum dos dois mencionou Alayaya.
  Sor Osmund Kettleblack, um retrato da cavalaria com uma imaculada armadura de escamas e manto branco de lã, jurou que o Rei Joffrey há muito sabia que o tio Tyrion pretendia assassiná-lo.
  — Foi no dia em que me deram o manto branco, senhores — disse aos juízes. — O bravo rapaz disse-me: “Meu bom Sor Osmund, protegei-me bem, pois o meu tio não gosta de mim. Ele quer ser rei no meu lugar”.
  Aquilo era mais do que Tyrion conseguia aguentar.
  — Mentiroso! — Deu dois passos em frente antes que homens de mantos dourados o arrastassem para trás.
  O Lorde Tywin franziu o sobrolho.
  — Terei de vos mandar acorrentar de mãos e pés como a um comum salteador?
  Tyrion rangeu os dentes. Um segundo erro, estúpido, estúpido, anão estúpido. Mantém-te calmo, senão estás perdido.
  — Não. Peço-vos perdão, senhores. As mentiras dele enfureceram-me.
  — As verdades dele, queres tu dizer — disse Cersei. — Pai, peço que o ponhais a ferros, para a vossa protecção. Vedes como ele é.
  — Eu vejo que é um anão — disse o Príncipe Oberyn. — O dia em que temer a fúria de um anão será o dia em que me afogarei num casco de tinto.
  — Não precisamos de grilhetas. — O Lorde Tywin olhou de relance as janelas e ergueu-se. — A hora começa a ficar tardia. Reataremos de manhã.
  Naquela noite, sozinho na sua cela de torre com um pergaminho em branco e uma taça de vinho, Tyrion deu por si a pensar na esposa. Não em Sansa, na sua primeira esposa, Tysha. A esposa rameira, não
a esposa loba. O amor dela por ele fora fingimento, e no entanto ele acreditara e encontrara alegria nessa crença. Dai-me doces mentiras, e ficai com as vossas amargas verdades. Bebeu o vinho e pensou
em Shae. Mais tarde, quando Sor Kevan lhe fez a visita da noite, Tyrion perguntou por Varys.
  — Acreditais que o eunuco irá falar em vossa defesa?
  — Não saberei até ter falado com ele. Mandai-o cá, tio, por gentileza.
  — Como quiserdes.
  Os Meistres Ballabar e Frenken iniciaram o segundo dia do julgamento. Tinham aberto o nobre cadáver do Rei Joffrey, juraram, e não encontraram nenhum bocado de tarte de pombo nem qualquer outro alimento
alojado na real garganta.
  — Foi veneno o que o matou, senhores — disse Ballabar, enquanto Frenken anuía com gravidade.
  Então apresentaram o Grande Meistre Pycelle, apoiando-se pesadamente numa bengala retorcida e tremendo ao caminhar, com um punhado de pêlos brancos a sair do seu longo pescoço de galináceo. Estava demasiado
débil para permanecer em pé, e os juízes permitiram que fosse trazida uma cadeira para ele se sentar, e também uma mesa. Na mesa foram colocados alguns pequenos frascos. Pycelle etiquetou alegremente
cada um deles com um nome.
  — Grisalheira — disse, em voz trémula — obtida do cogumelo. Erva-moira, sonodoce, dança do demo. Isto é olhocego. Esta chama-se sangue de viúva, devido à cor. Uma poção cruel. Faz com que a bexiga e
os intestinos deixem de funcionar, até que a vítima se afoga nos seus próprios venenos. Isto é acónito, isto veneno de basilisco, e isto são lágrimas de Lys. Sim. Conheço-as a todas. O Duende Tyrion Lannister
roubou-as dos meus aposentos, quando me mandou aprisionar sob falsas acusações.
  — Pycelle — gritou Tyrion, arriscando-se à ira do pai — algum desses venenos pode sufocar um homem?
  — Não. Para isso tendes de vos virar para um veneno mais raro. Quando era rapaz, na Cidadela, os meus professores chamavam-lhe simplesmente o estrangulador.
  — Mas este veneno raro não foi encontrado, pois não?
  — Não, senhor. — Pycelle piscou os olhos na sua direcção. — Usaste-lo todo para matar a criança mais nobre que os deuses puseram nesta boa terra.
  A ira de Tyrion sobrepôs-se ao seu bom senso.
  — Joffrey era cruel e estúpido, mas não o matei. Podeis cortar-me a cabeça se quiserdes, mas não participei na morte do meu sobrinho.
  — Silêncio! — disse o Lorde Tywin. — Já vos avisei três vezes. Da próxima, sereis amordaçado e acorrentado.
  Depois de Pycelle veio a procissão, sem fim e cansativa. Senhores, senhoras e nobres cavaleiros, tanto bem-nascidos como humildes, todos tinham estado presentes no banquete nupcial, todos tinham visto
Joffrey sufocar, o seu rosto a tornar-se tão negro como uma ameixa de Dorne. O Lorde Redwyne, o Lorde Celtigar e Sor Flement Brax tinham ouvido Tyrion ameaçar o rei; dois criados, um malabarista, o Lorde
Gyles, Sor Hobber Redwyne, e Sor Philip Foote tinham-no visto encher o cálice nupcial; a Senhora Merryweather jurou que vira o anão deixar cair qualquer coisa no vinho do rei enquanto Joff e Margaery
cortavam a tarte; o velho Estermont, o jovem Peckledon, o cantor Galyeon de Cuy, e os escudeiros Morros e Jothos Slynt relataram como Tyrion pegara no cálice enquanto Joff estava a morrer e despejara
o resto de vinho envenenado no chão.
  Quando foi que eu fiz tantos inimigos? A Senhora Merryweather era praticamente uma estranha. Tyrion perguntou a si próprio se seria cega ou se teria sido comprada. Pelo menos Galyeon de Cuy não pusera
o seu relato em música, senão talvez tivesse setenta e sete versos.
  Quando o tio o visitou naquela noite após o jantar, trazia uma atitude fria e distante. Ele também pensa que o fiz.
  — Tendes testemunhas para nós? — perguntou-lhe Sor Kevan.
  — Não propriamente, não. A menos que tenhais encontrado a minha esposa.
  O tio abanou a cabeça.
  — Aparentemente o julgamento está a correr-vos muito mal.
  — Oh, achais que sim? Não tinha reparado. — Tyrion passou os dedos pela cicatriz. — Varys não veio.
  — Nem virá. De manhã testemunha contra vós.
  Encantador.
  — Estou a ver. — Mexeu-se na cadeira. — Estou curioso. Sempre fostes um homem justo, tio. O que vos convenceu?
  — Para quê roubar os venenos de Pycelle, se não para os usar? — disse Sor Kevan sem rodeios. — E a Senhora Merryweather viu…
  — …nada! Nada havia para ver. Mas como é que eu o provo? Como provo seja o que for, trancado aqui em cima?
  — Talvez seja chegado o tempo de confessardes.
  Mesmo através das espessas paredes de pedra da Fortaleza Vermelha, Tyrion ouvia o cair contínuo da chuva.
  — Perdão, tio? Era capaz de jurar que me instastes a confessar.
  — Se admitísseis a vossa culpa perante o trono e vos arrependêsseis do vosso crime, o vosso pai refrearia a espada. Ser-vos-ia permitido vestir o negro.
  Tyrion riu-se-lhe na cara.
  — Esses eram os mesmos termos que Cersei ofereceu a Eddard Stark. Todos sabemos como isso acabou.
  — O vosso pai não participou nesse assunto.
  Aquilo, ao menos, era verdade.
  — Castelo Negro pulula de assassinos, ladrões e violadores — disse Tyrion — mas não me lembro de conhecer regicidas quando lá estive. Esperais que acredite que se admitir ser um regicida e assassino
de um familiar, o meu pai irá simplesmente fazer um aceno, perdoar-me e enviar-me para a Muralha com roupa interior quente de lã? — soltou uma rude exclamação de menosprezo.
  — Nada se disse sobre perdões — disse severamente Sor Kevan. — Uma confissão poria um fim neste assunto. É por esse motivo que o vosso pai me envia com esta proposta.
  — Agradecei-lhe gentilmente por mim, tio — disse Tyrion —, mas dizei-lhe que não me encontro de momento na disposição de confessar.
  — Se eu fosse a vós, mudaria a disposição. A vossa irmã quer a vossa cabeça, e pelo menos o Lorde Tyrell está inclinado a dar-lha.
  — Então um dos meus juízes já me condenou, sem ouvir uma palavra em minha defesa? — Não era mais do que aquilo que esperara. — Ainda serei autorizado a falar e apresentar testemunhas?
  — Vós não tendes testemunhas — recordou-lhe o tio. — Tyrion, se fordes culpado desta enormidade, a Muralha é um destino mais benevolente do que mereceis. E se estiverdes sem culpa… há luta no Norte,
eu sei, mas mesmo assim será um lugar mais seguro para vós do que Porto Real, seja qual for o resultado deste julgamento. A turba está convencida da vossa culpa. Se fôsseis insensato ao ponto de vos aventurardes
nas ruas, despedaçar-vos-iam membro por membro.
  — Vejo o quanto essa perspectiva vos perturba.
  — Sois filho do meu irmão.
  — Podíeis recordá-lo disso.
  — Julgais que ele vos permitiria vestir o negro se não fôsseis do seu sangue e de Joanna? Tywin parece-vos um homem duro, bem sei, mas não é mais duro do que tem de ser. O nosso pai era gentil e amigável,
mas tão fraco que os vassalos troçavam dele quando estavam com os copos. Alguns acharam por bem desafiá-lo abertamente. Outros senhores pediam-nos ouro emprestado e nunca se incomodavam em pagá-lo. Na
corte gracejava-se acerca de leões sem dentes. Até a amante o roubou. Uma mulher que quase não estava um passo acima de rameira, e meteu ao bolso as jóias da minha mãe! Coube a Tywin devolver a Casa Lannister
ao lugar que lhe é próprio. Tal como lhe coube governar este reino, quando não tinha mais de vinte anos. Suportou esse pesado fardo durante vinte anos e tudo o que lucrou com isso foi a inveja de um rei
louco. Em vez das honrarias que merecia, foi obrigado a suportar um sem-fim de afrontas, e no entanto deu aos Sete Reinos paz, abundância e justiça. É apenas um homem. Faríeis bem em confiar nele.
  Tyrion pestanejou, espantado. Sor Kevan sempre fora sólido, imperturbável, pragmático; nunca antes o ouvira falar com tal fervor.
  — Amai-lo.
  — É meu irmão.
  — Eu… eu pensarei no que dissestes.
  — Então pensai cuidadosamente. E rapidamente.
  Em pouco mais pensou naquela noite, mas ao chegar a manhã não estava mais perto de decidir se podia confiar no pai. Um criado trouxe-lhe papas de aveia e mel para quebrar o jejum, mas o único sabor
que sentiu foi o da bílis ao pensar na confissão. Chamar-me-ão assassino de familiares até ao fim dos meus dias. Durante mil anos ou mais, se for lembrado de todo, será como o monstruoso anão que envenenou
o seu jovem sobrinho no seu banquete de casamento. Aquela ideia deixou-o tão furioso que atirou a tigela e a colher à parede oposta, deixando nela uma mancha de papas. Sor Addam Marbrand olhou-a com curiosidade
quando veio escoltar Tyrion até ao julgamento, mas teve a boa educação de não fazer perguntas.
  — Lorde Varys — disse o arauto —, mestre dos segredos.
  Empoada, enfeitada e cheirando a água de rosas, a Aranha levou todo o tempo que falou a esfregar as mãos uma na outra. A lavar a minha vida, pensou Tyrion, enquanto escutava o fúnebre relato do eunuco
sobre como o Duende maquinara afastar Joffrey da protecção do Cão de Caça e conversara com Bronn acerca dos benefícios de ter Tommen como rei. Meias verdades são mais valiosas do que completas mentiras.
E ao contrário dos outros, Varys tinha documentos; pergaminhos meticulosamente cheios de notas, detalhes, datas, conversas inteiras. Tanto material que a sua récita durou o dia inteiro, e muito dele era
condenatório. Varys confirmou a visita nocturna aos aposentos do Grande Meistre Pycelle e o roubo dos seus venenos e poções, confirmou a ameaça que fizera a Cersei na noite em que jantaram juntos, confirmou
tudo e mais alguma coisa menos o envenenamento propriamente dito. Quando o Príncipe Oberyn lhe perguntou como era possível que soubesse tudo aquilo, sem ter estado presente em nenhum daqueles acontecimentos,
o eunuco limitou-se a soltar uma gargalhadinha e disse:
  — Os meus passarinhos contaram-me. Saber é a sua função, e a minha.
  Como é que eu questiono um passarinho? pensou Tyrion. Devia ter mandado cortar a cabeça ao eunuco no primeiro dia que passei em Porto Real. Maldito seja. E maldito seja eu por toda a confiança que depositei
nele.
  — Já ouvimos tudo? — perguntou o Lorde Tywin à filha enquanto Varys saía da sala.
  — Quase — disse Cersei. — Peço-vos licença para trazer até vós uma última testemunha, amanhã.
  — Como quiserdes — disse o Lorde Tywin.
  Oh, óptimo, pensou Tyrion, furioso. Depois desta farsa de julgamento, a execução será quase um alívio.
  Naquela noite, enquanto bebia junto à janela, ouviu vozes fora da porta. Sor Kevan veio em busca da minha resposta, pensou de imediato, mas não foi o tio quem entrou.
  Tyrion ergueu-se para fazer uma vénia trocista ao Príncipe Oberyn.
  — É permitido aos juízes visitar os acusados?
  — É permitido aos príncipes ir onde bem entendam. Ou pelo menos foi isso que disse aos vossos guardas. — O Víbora Vermelha sentou-se.
  — O meu pai ficará descontente convosco.
  — A felicidade do Lorde Tywin nunca esteve numa posição elevada na minha lista de interesses. É vinho de Dorne que estais a beber?
  — Da Árvore.
  Oberyn fez uma careta.
  — Água vermelha. Envenenaste-lo?
  — Não. E vós?
  O príncipe sorriu.
  — Terão todos os anões línguas como a vossa? Alguém acabará por cortá-la um destes dias.
  — Não sois o primeiro a dizer-me isso. Talvez devesse cortá-la eu, parece arranjar um sem-fim de sarilhos.
  — Tenho reparado. Afinal acho que posso beber um pouco do sumo de uva do Lorde Redwyne.
  — Como quiserdes. — Tyrion serviu-lhe uma taça.
  O homem sorveu um gole, bochechou e engoliu.
  — Servirá por agora. Mandar-vos-ei um pouco do vinho forte de Dorne de manhã. — Bebeu mais um trago. — Descobri aquela rameira de cabelo dourado que esperava encontrar.
  — Então encontrastes a casa de Chataya?
  — Na de Chataya deitei-me com a rapariga de pele preta. Creio que se chama Alayaya. Requintada, apesar das riscas que tem nas costas. Mas a rameira a quem me referia é a vossa irmã.
  — Já vos seduziu? — perguntou Tyrion, sem surpresa.
  Oberyn riu alto.
  — Não, mas seduzirá se eu pagar o seu preço. A rainha até insinuou um casamento. Sua Graça precisa de outro marido, e quem melhor do que um príncipe de Dorne? Ellaria acha que eu devia aceitar. Basta
a ideia de ter Cersei na nossa cama para deixar molhada aquela gata lúbrica. E nem devemos ter de pagar o dinheiro do anão. Tudo o que a vossa irmã quer de mim é uma cabeça, algo grande de mais e com
falta de um nariz.
  — E? — disse Tyrion, expectante.
  Em jeito de resposta, o Príncipe Oberyn fez rodopiar o vinho, e disse:
  — Quando o Jovem Dragão conquistou Dorne, há tanto tempo, deixou o Senhor de Jardim de Cima a governar-nos após a Submissão de Lançasolar. Esse Tyrell foi-se mudando de fortaleza em fortaleza, com a
sua comitiva, perseguindo rebeldes e assegurando-se de que os nossos joelhos permaneciam dobrados. Chegava em força, tomava um castelo como seu, ficava lá uma volta de Lua, e partia para o castelo seguinte.
Era seu costume expulsar os senhores dos seus aposentos e ficar com as camas deles para si. Uma noite deu por si debaixo de um pesado dossel de veludo. Havia um cordão pendurado perto das almofadas, para
o caso de desejar chamar uma moça. Tinha gosto por mulheres de Dorne, este Lorde Tyrell, e quem pode censurá-lo? Portanto puxou o cordão, e quando o fez o dossel rasgou-se e uma centena de escorpiões
vermelhos caiu sobre a sua cabeça. A sua morte acendeu um incêndio que em breve varria Dorne, anulando todas as vitórias do Jovem Dragão numa quinzena. Os homens ajoelhados puseram-se em pé, e nós voltámos
a ser livres.
  — Conheço essa história — disse Tyrion. — E daí?
  — Só isto. Se alguma vez encontrar um cordão ao lado da minha cama e puxar por ele, prefiro que caiam escorpiões sobre a minha cabeça do que a rainha em toda a sua beleza nua.
  Tyrion fez um sorriso.
  — Então temos isso em comum.
  — Decerto que tenho muito a agradecer à vossa irmã. Se não fosse a acusação dela no banquete, podíeis perfeitamente ser vós a julgar-me em vez de ser eu a julgar-vos. — Os olhos do príncipe escureceram
com divertimento. — Quem sabe mais sobre veneno do que a Víbora Vermelha de Dorne, afinal? Quem tem melhores motivos para querer manter os Tyrell longe da coroa? E com Joffrey na sua tumba, pela lei de
Dorne o Trono de Ferro devia passar para a irmã Myrcella, que acontece estar prometida ao meu sobrinho, graças a vós.
  — A lei de Dorne não se aplica. — Tyrion estivera tão enredado nos seus próprios problemas que nem parara para pensar na sucessão. — O meu pai coroará Tommen, contai com isso.
  — Ele realmente pode coroar Tommen aqui em Porto Real. O que não é o mesmo que dizer que o meu irmão não pode coroar Myrcella, lá em baixo em Lançasolar. Irá o vosso pai fazer a guerra à vossa sobrinha
em nome do vosso sobrinho? E a vossa irmã, fá-lo-á? — Encolheu os ombros. — Talvez devesse casar com a Rainha Cersei, afinal de contas, na condição de ela apoiar a filha contra o filho. Parece-vos que
o faria?
  Nunca, quis Tyrion dizer, mas a palavra ficou-lhe atravessada na garganta. Cersei sempre se ressentira de ser excluída do poder devido ao sexo. Se a lei de Dorne fosse aplicada no Ocidente, ela seria
herdeira de Rochedo Casterly. Ela e Jaime eram gémeos, mas Cersei chegara primeiro ao mundo, e isso era quanto bastava. Defendendo a causa de Myrcella, estaria a defender a sua.
  — Não sei como a minha irmã escolheria entre Myrcella e Tommen — admitiu. — Não importa. O meu pai nunca lhe dará essa escolha.
  — O vosso pai — disse o Príncipe Oberyn — pode não viver para sempre.
  Algo no modo como Oberyn disse aquilo fez eriçar os pêlos na nuca de Tyrion. De súbito retomou consciência de Elia, e de tudo o que Oberyn dissera enquanto atravessavam o campo de cinzas. Ele quer a
cabeça que deu as ordens, não só a mão que brandiu a espada.
  — Não é sensato proferir tais traições na Fortaleza Vermelha, meu príncipe. Os passarinhos estão à escuta.
  — Que escutem. Será traição dizer que um homem é mortal? Valar morghulis era como o diziam na Valíria de outrora. Todos os homens têm de morrer. E a Destruição veio provar que era verdade. — O dornês
dirigiu-se à janela e fitou a noite. — Diz-se que não tendes testemunhas para nos apresentar.
  — Estava com esperança de que uma olhadela a esta minha linda cara fosse suficiente para vos persuadir a todos da minha inocência.
  — Enganais-vos, senhor. A Flor Gorda de Jardim de Cima está bem convencida da vossa culpa, e determinada a ver-vos morrer. A sua preciosa Margaery estava também a beber daquele cálice, como ele nos
fez lembrar meia centena de vezes.
  — E vós?
  — Os homens raramente são o que aparentam. Vós pareceis tão culpado que estou convencido da vossa inocência. Apesar disso, é provável que sejais condenado. A justiça é um bem escasso deste lado das
montanhas. Não houve nenhuma para Elia, Aegon, ou Rhaenys. Porque haveria alguma para vós? Talvez o verdadeiro assassino de Joffrey tenha sido comido por um urso. Isso parece acontecer com bastante frequência
em Porto Real. Ah, esperai, o urso estava em Harrenhal, agora me lembro.
  — É esse o jogo que estais a jogar? — Tyrion esfregou o que lhe restava de nariz. Nada tinha a perder por dizer a Oberyn a verdade. — Havia um urso em Harrenhal, e matou Sor Amory Lorch.
  — Que triste para ele — disse o Víbora Vermelha. — E para vós. Pergunto a mim mesmo se todos os homens sem nariz mentem assim tão mal.
  — Não estou a mentir. Sor Amory arrastou a Princesa Rhaenys de debaixo da cama do pai e matou-a à punhalada. Tinha consigo alguns homens de armas, mas não conheço os seus nomes. — Inclinou-se para a
frente. — Foi Sor Gregor Clegane quem esmagou a cabeça do Príncipe Aegon contra uma parede e violou a vossa irmã Elia ainda com o sangue e miolos dele nas mãos.
  — Que é isto agora? A verdade vinda de um Lannister? — Oberyn fez um sorriso frio. — O vosso pai deu as ordens, certo?
  — Não. — Proferiu a mentira sem hesitação, e nem parou para perguntar a si próprio porque deveria fazê-lo.
  O dornês ergueu sobrancelha fina e negra.
  — Um filho tão cioso dos deveres filiais. E uma mentira tão débil. Foi o Lorde Tywin quem apresentou os filhos da minha irmã ao Rei Robert, enrolados nas capas carmim dos Lannister.
  — Talvez devêsseis ter esta discussão com o meu pai. Ele estava lá. Eu estava no Rochedo, e ainda era tão novo que pensava que a coisa que tenho entre as pernas só servia para mijar.
  — Sim, mas agora estais aqui, e em certas dificuldades, diria. A vossa inocência pode ser tão evidente como a cicatriz que tendes no rosto, mas não vos salvará. Tal como o vosso pai não vos salvará.
— O príncipe dornês sorriu. — Mas eu talvez o faça.
  — Vós? — Tyrion estudou-o. — Sois um juiz em três. Como podereis salvar-me?
  — Como vosso juiz, não. Como vosso campeão.
 
 JAIME
  Um livro branco repousava sobre uma mesa branca numa sala branca.
  A sala era redonda, com paredes de pedra caiada cobertas de tapeçarias de lã branca. Constituía o primeiro andar da Torre da Espada Branca, uma esguia estrutura de quatro andares construída num ângulo
da muralha do castelo com vista sobre a baía. A galeria subterrânea guardava armas e armaduras, e o segundo e terceiro andares as pequenas celas de reserva para os seis irmãos da Guarda Real.
  Uma dessas celas fora sua durante dezasseis anos, mas naquela manhã mudara as suas posses para o andar superior, inteiramente dedicado aos aposentos do Senhor Comandante. Essas salas também eram de
reserva, apesar de espaçosas; e erguiam-se acima da muralha exterior, o que significava que teria uma vista sobre o mar. Gostarei disto, pensou. Da vista, e de tudo o resto.
  Tão pálido como a sala, Jaime sentou-se na frente do livro trajando as vestes brancas da Guarda Real, à espera dos seus Irmãos Ajuramentados. Uma espada longa pendia da sua anca. Da anca errada. Antes,
sempre usara a espada à esquerda, puxando-a com a mão oposta quando a desembainhava. Mudara-a para a anca direita naquela manhã, a fim de ser capaz de a puxar da mesma maneira com a mão esquerda, mas
estranhava o peso daquele lado, e quando tentara sacar a lâmina da bainha, todo o movimento parecera desajeitado e pouco natural. A roupa também lhe caía mal. Envergara o trajo de Inverno da Guarda Real,
uma túnica e bragas de lã branqueada e um pesado manto branco, mas tudo parecia pender do seu corpo, largo.
  Jaime passara os dias no julgamento do irmão, em pé bem para trás no salão. Ou Tyrion não o chegara a ver ali, ou não o reconhecera, mas isso não era surpreendente. Metade da corte parecia já não o
conhecer. Sou um estranho na minha própria Casa. Tinha o filho morto, o pai deserdara-o, e a irmã… não lhe permitira ficar só com ela nem uma vez, após aquele primeiro dia no septo real onde Joffrey jazia
entre as velas. Até quando o transportaram através da cidade para a sua sepultura no Grande Septo de Baelor, Cersei manteve uma distância cautelosa.
  Olhou uma vez mais em volta da Sala Redonda. Colgaduras brancas de lã cobriam as paredes, e havia um escudo branco e duas espadas cruzadas montados por cima da lareira. A cadeira atrás da mesa era de
velho carvalho negro, com almofadas em pele branqueada de vaca, com o couro já fino. Desgastado pelo traseiro ossudo de Barristan, o Ousado, e, antes dele, por Sor Gerold Hightower, pelo Príncipe Aemon,
o Cavaleiro do Dragão, Sor Ryam Redwyne, e pelo Demónio de Darry, por Sor Duncan, o Alto, e pelo Grifo Branco, Alyn Connington. Como podia o Regicida estar em tão elevada companhia?
  E no entanto, ali estava.
  A mesa propriamente dita era de velho represeiro, pálido como osso, esculpido na forma de um enorme escudo suportado por três garanhões brancos. Por tradição, o Senhor Comandante sentava-se ao topo
do escudo, e os irmãos aos três de cada lado, nas raras ocasiões em que todos os sete se encontravam reunidos. O livro que repousava junto do seu cotovelo era maciço; sessenta centímetros de altura e
quarenta e cinco de largura, grosso de mil páginas, fino velino branco encadernado em couro embranquecido com charneiras e presilhas de ouro. O seu nome formal era O Livro dos Irmãos, mas era mais habitual
ser chamado simplesmente Livro Branco.
  Dentro do Livro Branco encontrava-se a história da Guarda Real. Todos os cavaleiros que algum dia tinham prestado serviço possuíam uma página, destinada a registar o seu nome e feitos para toda a eternidade.
No canto superior esquerdo de cada página era desenhado o escudo que o homem usara no momento da sua escolha, em tintas de ricas cores. No canto inferior direito estava o escudo da Guarda Real; branco
de neve, vazio, puro. Os escudos superiores eram todos diferentes; os inferiores todos iguais. No espaço entre ambos eram escritos os factos da vida e serviço de cada homem. Os desenhos heráldicos e iluminuras
eram feitos por septões enviados do Grande Septo de Baelor três vezes por ano, mas era dever do Senhor Comandante manter as entradas em dia.
  Dever meu, agora. Ou melhor, seria depois de aprender a escrever com a mão esquerda. O Livro Branco estava bem atrasado. As mortes de Sor Mandon Moore e de Sor Preston Greenfield precisavam de ser acrescentadas,
e o breve e sangrento serviço de Sandor Clegane na Guarda Real também. Novas páginas tinham de ser iniciadas para Sor Balon Swann, Sor Osmund Kettleblack e o Cavaleiro das Flores. Vou ter de convocar
um septão para desenhar os seus escudos.
  Sor Barristan Selmy precedera Jaime como Senhor Comandante. O escudo no topo da sua página mostrava as armas da Casa Selmy: três espigas de milho, amarelas, em fundo castanho. Jaime sentiu-se divertido,
embora não surpreendido, por descobrir que Sor Barristan tivera o cuidado de registar a sua destituição antes de abandonar o castelo.
  Sor Barristan da Casa Selmy. Filho primogénito de Sor Lyonel Selmy de Solar de Colheitas. Serviu como escudeiro de Sor Manfred Swann. Cognominado “o Ousado” no seu 10º ano, quando envergou uma armadura
emprestada para surgir como cavaleiro mistério no torneio em Portonegro, onde foi derrotado e desmascarado por Duncan, o Príncipe das Libélulas. Armado cavaleiro no seu 16º ano pelo Rei Aegon V Targaryen,
após realizar grandes feitos de perícia como cavaleiro mistério no torneio de Inverno em Porto Real, derrotando o Príncipe Duncan, o Pequeno, e Sor Duncan, o Alto, Senhor Comandante da Guarda Real. Matou
Maelys, o Monstruoso, o último dos Pretendentes Blackfyre, em combate singular durante a Guerra dos Reis de Nove Dinheiros. Derrotou Lormelle Lança Longa e Cedrik Storm, o Bastardo de Portabrônzea. Nomeado
para a Guarda Real no seu 23º ano, pelo Senhor Comandante Sor Gerold Hightower. Defendeu a passagem contra todos os pretendentes no torneio da Ponte de Prata. Vencedor do corpo a corpo em Lagoa da Donzela.
Levou o Rei Aerys II até lugar seguro durante o Desafio de Valdocaso, apesar de um ferimento de seta no peito. Vingou o assassínio do seu Irmão Ajuramentado, Sor Gwayne Gaunt. Salvou a Senhora Jeyne Swann
e a sua septã da Irmandade da Mataderrei, derrotando Simon Toyne e o Cavaleiro Sorridente, e matando o primeiro. No torneio de Vilavelha, derrotou e desmascarou o cavaleiro mistério Escudo-Negro, revelando-o
como o Bastardo de Terraltas. Único campeão no torneio do Lorde Steffron em Ponta Tempestade, onde derrubou o Lorde Robert Baratheon, o Príncipe Oberyn Martell, o Lorde Leyton Hightower, o Lorde Jon Connington,
o Lorde Jason Mallister e o Príncipe Rhaegar Targaryen. Ferido por seta, lança e espada na Batalha do Tridente enquanto lutava ao lado dos seus Irmãos Ajuramentados e Rhaegar, Príncipe de Pedra do Dragão.
Perdoado e nomeado Senhor Comandante da Guarda Real pelo Rei Robert I Baratheon. Serviu na guarda de honra que trouxe a Senhora Cersei da Casa Lannister para Porto Real, a fim de desposar o Rei Robert.
Liderou o ataque contra Velha Wyk durante a Rebelião de Balon Greyjoy. Campeão do torneio em Porto Real, no seu 57º ano. Destituído do serviço pelo Rei Joffrey Baratheon no seu 61º ano, por motivo de
idade avançada.
  A parte inicial da lendária carreira de Sor Barristan fora escrita por Sor Gerold Hightower numa letra grande e enérgica. A escrita mais pequena e elegante de Selmy substituía-a com o relato do seu
ferimento no Tridente.
  A página de Jaime era reduzida em comparação.
  Sor Jaime da Casa Lannister. Filho primogénito do Lorde Tywin e da Senhora Joanna de Rochedo Casterly. Serviu contra a Irmandade da Mataderrei como escudeiro do Lorde Summer Crakehall. Armado cavaleiro
no seu 15º ano por Sor Arthur Dayne da Guarda Real, por valor no campo de batalha. Escolhido para a Guarda Real no seu 15º ano pelo Rei Aerys II Targaryen. Durante o Saque de Porto Real, matou o Rei Aerys
II aos pés do Trono de Ferro. De então em diante conhecido por “Regicida”. Perdoado pelo seu crime pelo Rei Robert I Baratheon. Serviu na guarda de honra que trouxe a sua irmã, a Senhora Cersei Lannister,
para Porto Real, a fim de desposar o Rei Robert. Campeão no torneio realizado em Porto Real por ocasião desse casamento.
  Assim resumida, a sua vida parecia uma coisinha bastante limitada e mesquinha. Sor Barristan podia ter registado pelo menos algumas das suas outras vitórias em torneios. E Sor Gerold podia ter escrito
mais algumas palavras acerca dos feitos que realizara quando Sor Arthur Dayne desbaratara a Irmandade da Mataderrei. Jaime salvara a vida do Lorde Sumner no momento em que o Ben Barrigudo se aprestava
a esmagar-lhe a cabeça, muito embora o fora-da-lei lhe tivesse escapado. E resistira contra o Cavaleiro Sorridente, embora tivesse sido Sor Arthur quem o matara. Que luta essa foi, e que adversário. O
Cavaleiro Sorridente era um louco, uma salgalhada de crueldade e cavalaria, mas não conhecia o significado do medo. E Dayne, com a Alvorada na mão… No fim, a espada do fora-da-lei ganhara tantos entalhes
que Sor Arthur parara para permitir que ele fosse buscar outra.
  — A que eu quero é essa vossa espada branca — dissera-lhe o cavaleiro ladrão ao reatar a luta, embora por essa altura já sangrasse de uma dúzia de ferimentos.
  — Então obtê-la-eis, sor — replicara o Espada da Manhã, e pusera fim ao combate.
  Nesses tempos o mundo era mais simples, pensou Jaime, e tanto os homens como as espadas eram feitos de melhor aço. Ou seria apenas dos seus quinze anos? Agora estavam todos nas respectivas tumbas, o
Espada da Manhã e o Cavaleiro Sorridente, o Touro Branco e o Príncipe Lewyn, Sor Oswell Whent e o seu humor negro, o zeloso Jon Darry, Simon Toyne e a sua Irmandade da Mataderrei, o velho e brusco Sumner
Crakehall. E eu, aquele rapaz que era… quando terá ele morrido, pergunto-me? Quando pus o manto branco? Quando abri a goela a Aerys? Aquele rapaz quisera ser Sor Arthur Dayne, mas algures ao longo do
caminho transformara-se no Cavaleiro Sorridente.
  Quando ouviu a porta abrir-se, fechou o Livro Branco e levantou-se para receber os seus Irmãos Ajuramentados. Sor Osmund Kettleblack foi o primeiro a chegar. Ofereceu a Jaime um sorriso, como se fossem
velhos irmãos de armas.
  — Sor Jaime — disse —, se tivésseis esse aspecto na outra noite, ter-vos-ia reconhecido de imediato.
  — Ah sim? — Jaime duvidava. Os criados tinham-lhe dado banho, barbeado, lavado e escovado o cabelo. Quando olhava para um espelho, já não via o homem que atravessara as terras fluviais com Brienne…
mas também não se via a si. O rosto estava magro e cavado e tinha rugas sob os olhos. Pareço um velho qualquer. — Ide para junto do vosso lugar, sor.
  Kettleblack obedeceu. Os outros Irmãos Ajuramentados foram entrando um por um.
  — Sores — disse Jaime num tom formal depois de se reunirem todos os cinco —, quem guarda o rei?
  — Os meus irmãos Sor Osney e Sor Osfryd — respondeu Sor Osmund.
  — E o meu irmão Sor Garlan — disse o Cavaleiro das Flores.
  — Mantê-lo-ão a salvo?
  — Sim, senhor.
  — Então sentai-vos. — As palavras eram rituais. Antes de os sete se poderem reunir, havia que assegurar a segurança do rei.
  Sor Boros e Sor Meryn sentaram-se à sua direita, deixando uma cadeira vazia entre ambos para Sor Arys Oakheart, que se encontrava em Dorne. Sor Osmund, Sor Balon e Sor Loras ocuparam as cadeiras da
sua esquerda. Os velhos e os novos. Jaime perguntou a si próprio se aquilo quereria dizer alguma coisa. Tinham havido alturas durante a sua história em que a Guarda Real se dividira contra si própria,
e a mais notável e amarga dessas ocasiões fora durante a Dança dos Dragões. Seria isso algo que teria também de temer?
  Parecia-lhe estranho sentar-se no lugar do Senhor Comandante, onde Barristan, o Ousado, se sentara durante tantos anos. E ainda mais estranho é sentar-me aqui mutilado. Fosse como fosse, era o seu lugar,
e aquela era agora a sua Guarda Real. Os sete de Tommen.
  Jaime servira durante anos com Meryn Trant e Boros Blount; lutadores capazes, mas Trant era dissimulado e cruel, e Blount um saco de ar rosnador. Sor Balon Swann era mais digno do seu manto, e claro
que o Cavaleiro das Flores era suposto ser tudo o que um cavaleiro devia ser. O quinto homem, aquele Osmund Kettleblack, era-lhe um estranho.
  Perguntou a si próprio o que Sor Arthur Dayne teria a dizer daquele grupo. “Como foi que a Guarda Real caiu tão baixo?”, provavelmente. “Foi obra minha”, teria eu de responder. “Eu abri a porta, e nada
fiz quando a ralé começou a entrar”.
  — O rei está morto — começou Jaime. — O filho da minha irmã, um rapaz de treze anos, assassinado no seu próprio banquete de casamento, no seu próprio salão. Todos os cinco de vós se encontravam presentes.
Todos os cinco estavam a protegê-lo. E no entanto ele está morto. — Esperou para ver o que eles responderiam àquilo, mas nenhum chegou sequer a pigarrear. O rapaz Tyrell está zangado, e Balon Swann envergonhado,
notou. Nos outros três, Jaime sentiu apenas indiferença. — Foi o meu irmão que fez isto? — perguntou-lhes sem rodeios. — Tyrion envenenou o meu sobrinho?
  Sor Balon mexeu-se desconfortavelmente na cadeira. Sor Boros cerrou um punho. Sor Osmund encolheu indolentemente os ombros. Foi Meryn Trant quem acabou por responder.
  — Ele encheu a taça de Joffrey de vinho. Deve ter sido então que despejou lá o veneno.
  — Tendes a certeza de que era o vinho que estava envenenado?
  — Que mais poderia ser? — disse Sor Boros Blount. — O Duende despejou o depósito no chão. Porquê, se não para se livrar do vinho que poderia ter provado a sua culpa?
  — Ele sabia que o vinho estava envenenado — disse Sor Meryn.
  Sor Balon Swann franziu o sobrolho.
  — O Duende não estava sozinho no estrado. Longe disso. Com o banquete tão avançado, tínhamos pessoas em pé e movendo-se de um lado para o outro, mudando de lugar, saindo para ir à latrina, havia criados
a ir e vir… o rei e a rainha tinham acabado de cortar a tarte nupcial, todos os olhos estavam postos neles e naquelas três vezes malditas pombas. Ninguém estava a vigiar a taça de vinho.
  — Quem mais se encontrava no estrado? — perguntou Jaime.
  Sor Meryn respondeu.
  — A família do rei, a família da noiva, o Grande Meistre Pycelle, o Alto Septão…
  — Aí está o vosso envenenador — sugeriu Sor Oswald Kettleblack com um sorriso manhoso. — Muito mais santo do que devia ser, aquele velho. Pessoalmente, nunca gostei do ar dele. — Soltou uma gargalhada.
  — Não — disse o Cavaleiro das Flores, sem se mostrar divertido. — Sansa Stark foi a envenenadora. Todos vos esqueceis de que a minha irmã estava a beber também daquele cálice. Sansa Stark era a única
pessoa no salão que tinha motivo para querer ver tanto Margaery como o rei mortos. Ao envenenar a taça nupcial, podia esperar matá-los a ambos. E porque terá fugido depois, a menos que seja culpada?
  O rapaz faz sentido. Tyrion pode até estar inocente. Mas ninguém se mostrava perto de encontrar a rapariga. Talvez Jaime devesse investigar aquilo pessoalmente. Para começar, seria bom saber como teria
ela saído do castelo. Varys pode ter uma ideia ou duas acerca disso. Ninguém conhecia a Fortaleza Vermelha melhor do que o eunuco.
  Aquilo podia esperar, porém. Naquele momento Jaime tinha preocupações mais imediatas. Dizeis que sois o Senhor Comandante da Guarda Real, dissera o pai. Ide cumprir o vosso dever. Aqueles cinco não
eram os irmãos que teria escolhido, mas eram os irmãos que tinha; chegara a altura de lidar com eles.
  — Seja quem for que tenha cometido o acto — disse-lhes —, Joffrey está morto, e o Trono de Ferro pertence agora a Tommen. Pretendo que o ocupe até que o cabelo embranqueça e os dentes lhe caiam. E não
devido a veneno. — Jaime virou-se para Sor Boros Blount. O homem tornara-se corpulento nos últimos anos, embora tivesse ossos suficientemente grandes para transportar o peso. — Sor Boros, pareceis ser
um homem que aprecia a comida. De hoje em diante, provareis tudo o que Tommen comer ou beber.
  Sor Osmund Kettleblack riu alto e o Cavaleiro das Flores sorriu, mas Sor Boros enrubesceu até um profundo tom de beterraba.
  — Eu não sou nenhum provador! Sou um cavaleiro da Guarda Real!
  — Lamento dizê-lo, mas sois. — Cersei nunca devia ter tirado ao homem o seu manto branco. Mas o pai só tornara a vergonha maior ao devolvê-lo. — A minha irmã falou-me da prontidão com que cedestes o
meu sobrinho aos mercenários de Tyrion. Ireis achar as ervilhas e cenouras menos ameaçadoras, espero. Quando os vossos Irmãos Ajuramentados estiverem no pátio a treinar com escudo e espada, podeis treinar
com a colher e a bandeja. Tommen adora bolos de maçã. Tentai evitar que algum mercenário desapareça com eles.
  — Falais-me assim? Vós?
  — Devíeis ter morrido antes de permitir que Tommen fosse capturado.
  — Tal como vós morrestes a proteger Aerys, sor? — Sor Boros pôs-se em pé e agarrou-se ao cabo da espada. — Eu não… eu não aturarei isto. Devíeis ser vós o provador, parece-me. Para que mais serve um
aleijado?
  Jaime sorriu.
  — Concordo. Sou tão indigno de guardar o rei como vós. Portanto puxai dessa espada que estais a acariciar, e veremos como as vossas duas mãos se aguentam contra a minha. No fim, um de nós estará morto
e a Guarda Real será melhorada. — Ergueu-se. — Ou, se preferirdes, podeis regressar aos vossos deveres.
  — Bah! — Sor Boros puxou um globo de muco verde, escarrou-o para os pés de Jaime, e saiu, com a espada ainda na bainha.
  O homem é cobarde, e ainda bem. Apesar de gordo e envelhecido e de nunca ter sido mais que medíocre, Sor Boros ainda teria sido capaz de o desfazer em bocados sangrentos. Mas Boros não sabe disso, e
os outros também não podem saber. Eles temiam o homem que eu era; o homem que sou desperta-lhes piedade.
  Jaime voltou a sentar-se e virou-se para Kettleblack.
  — Sor Osmund. Não vos conheço. Acho tal facto curioso. Participei em torneios, em lutas corpo a corpo e em batalhas por todos os Sete Reinos. Conheço todos os pequenos cavaleiros, cavaleiros livres
e escudeiros possuidores de alguma capacidade e que tenham alguma vez ousado quebrar uma lança nas liças. Assim, como é que nunca ouvi falar de vós, Sor Osmund?
  — Não o saberei dizer, senhor. — Ele tinha um largo sorriso no rosto, aquele Sor Osmund, como se ele e Jaime fossem velhos camaradas de armas a jogar um qualquer joguinho divertido. — Mas sou um soldado,
não um cavaleiro de torneios.
  — Onde prestastes serviço antes de a minha irmã vos encontrar?
  — Aqui e ali, senhor.
  — Eu estive em Vilavelha no Sul e em Winterfell no Norte. Estive em Lannisporto no Oeste, e em Porto Real no Leste. Mas nunca estive em Aqui. Nem em Ali. — Por falta de um dedo, Jaime apontou com o
coto para o nariz em forma de bico de Sor Osmund. — Vou voltar a perguntar. Onde prestastes serviço?
  — Nos Degraus. Um pouco nas Terras Disputadas. Aí há sempre luta. Acompanhei os Homens Galantes. Lutámos por Lys e um pouco por Tyrosh.
  Lutaste por quem quer que te pagasse.
  — Como acabastes armado cavaleiro?
  — No campo de batalha.
  — Quem vos armou?
  — Sor Robert… Stone. Já morreu, senhor.
  — Com certeza. — Supunha que Sor Robert Stone podia ter sido algum bastardo vindo do Vale, que tivesse andado a vender a espada nas Terras Disputadas. Por outro lado, podia não ser mais do que um nome
que Sor Osmund talhara a partir de um rei morto e de uma muralha de castelo. Em que estava Cersei a pensar quando deu a este tipo um manto branco?
  Pelo menos Kettleblack provavelmente saberia como usar uma espada e um escudo. Os mercenários raramente eram os mais honrosos dos homens, mas tinham de possuir uma certa perícia com as armas para continuarem
vivos.
  — Muito bem, sor — disse Jaime. — Podeis ir.
  O sorriso do homem regressou. Saiu a pavonear-se.
  — Sor Meryn. — Jaime sorriu ao azedo cavaleiro de cabelo cor de ferrugem e olheiras sob os olhos. — Ouvi dizer que Joffrey vos usou para castigar Sansa Stark. — Virou o Livro Branco com uma mão só.
— Tomai, mostrai-me onde está escrito nos nossos votos que juramos espancar mulheres e crianças.
  — Fiz o que Sua Graça me ordenou. Juramos obedecer.
  — De hoje em diante, ireis temperar essa obediência. A minha irmã é rainha regente. O meu pai é Mão do Rei. Eu sou Senhor Comandante da Guarda Real. Obedecei-nos a nós. A mais ninguém.
  Sor Meryn pôs uma expressão obstinada.
  — Estais a dizer-nos para não obedecer ao rei?
  — O rei tem oito anos. O nosso primeiro dever é protegê-lo, o que inclui protegê-lo de si próprio. Usai essa feia coisa que mantendes dentro do elmo. Se Tommen quiser que lhe seleis o cavalo, obedecei-lhe.
Se vos disser para lhe matar o cavalo, vinde ter comigo.
  — Sim. Às vossas ordens, senhor.
  — Destroçar. — Enquanto ele saía, Jaime virou-se para Sor Balon Swann. — Sor Balon, vi-vos tomar parte em justas muitas vezes, e lutei quer convosco, quer contra vós em lutas corpo a corpo. Disseram-me
que demonstrastes cem vezes o vosso valor durante a Batalha da Água Negra. A Guarda Real é honrada pela vossa presença.
  — A honra é minha, senhor. — Sor Balon parecia desconfiado.
  — Existe apenas uma questão que gostaria de vos colocar. Servistes-nos com lealdade, é certo… mas Varys disse-me que o vosso irmão acompanhou Renly e depois Stannis, enquanto o senhor vosso pai decidiu
não convocar os vassalos e permaneceu atrás das muralhas de Pedrelmo durante toda a guerra.
  — O meu pai é um homem idoso, senhor. Já passou há muito os quarenta anos. Os dias das suas batalhas terminaram.
  — E o vosso irmão?
  — Donnel foi ferido na batalha e rendeu-se a Sor Elwood Harte. Foi depois resgatado e jurou lealdade ao Rei Joffrey, tal como muitos outros cativos.
  — É verdade — disse Jaime. — Mas mesmo assim… Renly, Stannis, Joffrey, Tommen… como foi que ele conseguiu pôr de parte Balon Greyjoy e Robb Stark? Podia ter sido o primeiro cavaleiro no reino a jurar
lealdade a todos os seis reis.
  O incómodo de Sor Balon era evidente.
  — Donnel errou, mas agora é de Tommen. Dou-vos a minha palavra.
  — Não é Sor Donnel, o Constante, que me preocupa. Sois vós. — Jaime inclinou-se para a frente. — O que fareis se o bravo Sor Donnel entregar a sua espada a outro usurpador, e um dia invadir a sala do
trono? E aí estais vós, todo de branco, entre o vosso rei e o vosso sangue. O que fareis?
  — Eu… senhor, isso nunca acontecerá.
  — Aconteceu-me a mim — disse Jaime.
  Swann limpou a testa com a manga da sua túnica branca.
  — Não tendes resposta?
  — Senhor. — Sor Balon pôs-se em pé. — Pela minha espada, pela minha honra, pelo nome do meu pai, juro… não farei o que fizestes.
  Jaime riu-se.
  — Óptimo. Regressai aos vossos deveres… e dizei a Sor Donnel para acrescentar um cata-vento ao seu escudo.
  E então ficou sozinho com o Cavaleiro das Flores.
  Esguio como uma espada, ágil e em forma, Sor Loras Tyrell usava uma túnica de linho branca como a neve e bragas brancas de lã, com um cinto dourado em volta da cintura e uma rosa de ouro a prender-lhe
o manto de seda fina. O cabelo era um suave desarranjo castanho, e os olhos eram também castanhos, e brilhantes de insolência. Ele julga que isto é um torneio, e que acabaram de anunciar a sua justa.
  — Dezassete anos, e um cavaleiro da Guarda Real — disse Jaime. — Deveis sentir-vos orgulhoso. O Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão, tinha dezassete anos quando foi nomeado. Sabíeis disso?
  — Sim, senhor.
  — E sabíeis que eu tinha quinze?
  — Isso também, senhor. — E sorriu.
  Jaime odiou aquele sorriso.
  — Eu era melhor do que vós, Sor Loras. Era maior, era mais forte, e era mais rápido.
  — E agora sois mais velho — disse o rapaz. — Senhor.
  Teve de rir. Isto é absurdo de mais. Tyrion riria de mim sem misericórdia se me ouvisse agora, a comparar pichas com este rapazinho verde.
  — Mais velho e mais sábio, sor. Devíeis aprender comigo.
  — Tal como vós aprendestes com Sor Boros e Sor Meryn?
  Aquela seta aproximou-se demasiado do alvo.
  — Aprendi com o Touro Branco e Barristan, o Ousado — disse bruscamente Jaime. — Aprendi com Sor Arthur Dayne, a Espada da Manhã, que conseguiria matar-vos aos cinco com a mão esquerda enquanto mijava
com a direita. Aprendi com o Príncipe Lewyn de Dorne, com Sor Oswell Whent e Sor Jonothor Darry, todos eles homens bons.
  — Todos eles homens mortos.
  Ele é eu, compreendeu Jaime de súbito. Estou a falar comigo próprio tal como era, cheio de uma arrogância repleta de confiança e cavalaria sem substância. Isto é o que nos faz ser-se bom de mais demasiado
novo.
  Tal como na esgrima, por vezes é melhor experimentar um golpe diferente.
  — Diz-se que lutastes magnificamente na batalha… quase tão bem como o fantasma do Lorde Renly ao vosso lado. Um Irmão Ajuramentado não tem segredos para com o Senhor Comandante. Dizei-me, sor. Quem
estava a usar a armadura de Renly?
  Por um momento Loras Tyrell pareceu poder recusar-se a responder, mas por fim lembrou-se dos seus votos.
  — O meu irmão — disse, de mau humor. — Renly era mais alto do que eu, e mais largo de peito. A armadura dele ficava-me larga de mais, mas servia bem a Garlan.
  — A mascarada foi ideia vossa ou dele?
  — Foi o Lorde Mindinho que a sugeriu. Ele disse que assustaria os homens de armas ignorantes de Stannis.
  — E assustou-os. — E também alguns cavaleiros e fidalgos. — Bem, destes aos cantores algo para inspirar rimas, suponho que isso não se deva desprezar. O que fizestes com Renly?
  — Enterrei-o com as minhas próprias mãos, num lugar que me mostrou um dia quando era escudeiro em Ponta Tempestade. Nunca ninguém o encontrará aí para perturbar o seu descanso. — Olhou para Jaime em
desafio. — Protegerei o Rei Tommen com todas as minhas forças, juro. Darei a minha vida pela sua se for necessário. Mas nunca trairei Renly, por palavras ou por actos. Ele era o rei que devia ter sido.
Era o melhor de todos.
  O mais bem vestido, talvez, pensou Jaime, mas por uma vez não o disse. A arrogância saíra de Sor Loras no momento em que começara a falar de Renly. Ele respondeu honestamente. É orgulhoso, imprudente
e cheio de mijo, mas não é falso. Ainda não.
  — Como queirais. Mais uma coisa, e podereis regressar aos vossos deveres.
  — Sim, senhor?
  — Ainda tenho Brienne de Tarth numa cela de torre.
  A boca do rapaz endureceu.
  — Uma cela negra seria melhor.
  — Estais certo de que é isso que ela merece?
  — Ela merece a morte. Eu disse a Renly que uma mulher não tinha lugar na Guarda Arco-Íris. Ela ganhou o corpo a corpo com um truque.
  — Parece-me recordar um outro cavaleiro que gostava de truques. Uma vez montou uma égua em cio contra um oponente montado num garanhão de mau temperamento. Que tipo de truque usou Brienne?
  Sor Loras corou.
  — Ela saltou… não importa. Ganhou, concedo-lhe isso. Sua Graça pôs um manto arco-íris em volta dos seus ombros. E ela matou-o. Ou deixou-o morrer.
  — Há aí uma grande diferença. — A diferença entre o meu crime e a vergonha de Boros Blount.
  — Ela jurara protegê-lo. Sor Emmon Cuy, Sor Robar Royce, Sor Parmen Crane, eles também o tinham jurado. Como podia alguém atingi-lo com ela dentro da tenda e os outros à porta? A menos que participassem
no acto.
  — Havia cinco de vós no banquete de casamento — fez notar Jaime. — Como pôde Joffrey morrer? A menos que participásseis no acto?
  Sor Loras endireitou-se rigidamente.
  — Não houve nada que pudéssemos fazer.
  — A rapariga diz o mesmo. Ela chora por Renly, tal como vós. Garanto-vos que nunca chorei por Aerys. Brienne é feia, e teimosa como um jumento. Mas falta-lhe a esperteza para ser uma mentirosa, e é
leal para lá do bom senso. Prestou um juramento de me trazer para Porto Real, e aqui estou eu. Esta mão que perdi… bem, isso foi tanto obra minha como dela. Pesando tudo o que fez para me proteger, não
tenho qualquer dúvida de que teria lutado por Renly, se tivesse havido um inimigo com quem lutar. Mas uma sombra? — Jaime abanou a cabeça. — Puxai pela espada, Sor Loras. Mostrai-me como lutaríeis vós
com uma sombra. Gostaria de ver isso.
  Sor Loras não fez qualquer movimento para se erguer.
  — Ela fugiu — disse. — Ela e Catelyn Stark, abandonaram-no num charco do seu sangue e fugiram. Porque haveriam de fugir, se não fosse obra sua? — Fitou a mesa. — Renly atribuiu-me a vanguarda. De outro
modo teria sido eu a ajudá-lo a envergar a armadura. Era frequente confiar-me essa tarefa. Nós tínhamos… tínhamos rezado juntos naquela noite. Deixei-o com ela. Sor Parmen e Sor Emmon guardavam a tenda,
e Sor Robar Royce também lá se encontrava. Sor Emmon jurou que Brienne tinha… embora…
  — Sim? — instou Jaime, detectando uma dúvida.
  — O gorjal tinha sido atravessado. Um golpe limpo, através de um gorjal de aço. A armadura de Renly era do melhor, do mais fino aço. Como conseguiria ela fazer aquilo? Eu próprio tentei, e não foi possível.
Ela é anormalmente forte para uma mulher, mas até a Montanha teria precisado de um machado pesado. E porquê vestir-lhe a armadura e só depois cortar-lhe a garganta? — Deitou a Jaime um olhar confuso.
— Mas se não foi ela… como pode ter sido uma sombra?
  — Perguntai-lhe. — Jaime tomou uma decisão. — Ide à sua cela. Fazei as vossas perguntas e escutai as respostas que ela der. Se ainda estiverdes convencido de que ela assassinou o Lorde Renly, fá-la-ei
responder por isso. A decisão será vossa. Acusai-a, ou libertai-a. Tudo o que peço é que a julgueis com justiça, pela vossa honra de cavaleiro.
  Sor Loras pôs-se em pé.
  — Fá-lo-ei. Pela minha honra.
  — Então terminámos.
  O homem mais novo dirigiu-se à porta. Mas aí virou-se para trás.
  — Renly pensava que ela era absurda. Uma mulher vestida de cota de malha de homem, fingindo ser um cavaleiro.
  — Se alguma vez a tivesse visto dentro de cetim cor-de-rosa e renda de Myr, não se teria queixado.
  — Perguntei-lhe porque a mantinha por perto, se a achava assim tão grotesca. Ele disse que todos os seus outros cavaleiros queriam coisas dele, castelos, honrarias ou riquezas, mas que tudo o que Brienne
queria era morrer por ele. Quando o vi todo ensanguentado, com ela fugida e os outros três incólumes… se ela for inocente, então Robar e Emmon… — Não parecia ser capaz de articular as palavras.
  Jaime não parara para reflectir naquele aspecto do assunto.
  — Eu teria feito o mesmo, sor. — A mentira chegou-lhe fácil, mas Sor Loras pareceu grato por ouvi-la.
  Quando o outro saiu, o Senhor Comandante sentou-se sozinho na sala branca, cheio de questões. O Cavaleiro das Flores sentira-se tão louco de dor por Renly que abatera dois dos seus próprios Irmãos Ajuramentados,
mas nunca ocorrera a Jaime fazer o mesmo aos cinco que tinham falhado a Joffrey. Ele era meu filho, meu filho secreto… Que coisa sou eu, se não ergo a mão que me resta para vingar o meu próprio sangue
e semente? Devia pelo menos matar Sor Boros, só para se ver livre dele.
  Olhou para o coto e fez uma careta. Tenho de fazer qualquer coisa a este respeito. Se o falecido Sor Jacelyn Bywater podia usar uma mão de ferro, ele devia ter uma de ouro. Cersei pode gostar. Uma mão
dourada para afagar o seu cabelo dourado, e apertá-la bem contra mim.
  Mas a mão podia esperar. Havia outras coisas a tratar primeiro. Havia outras dívidas a pagar.
 
 SANSA
  A escada que levava ao castelo de proa era íngreme e cheia de lascas, por isso Sansa aceitou uma ajuda de Lothor Brune. Sor Lothor, teve de recordar a si própria. O homem fora armado cavaleiro pelo
valor demonstrado na Batalha da Água Negra. Embora nenhum cavaleiro como deve ser usasse aquelas bragas castanhas remendadas e aquelas botas gastas, nem aquele justilho de couro fendido e manchado pela
água. Atarracado, com uma cara quadrada, um nariz metido para dentro e um emaranhado de forte cabelo grisalho, Brune raramente falava. Mas é mais forte do que parece. Ela apercebeu-se disso pela facilidade
com que a ergueu no ar, como se não pesasse nada.
  À proa do Rei Bacalhau estendia-se uma costa nua e pedregosa, varrida pelo vento, desprovida de árvores e pouco convidativa. Mesmo assim, era uma visão bem-vinda. Há bastante tempo que esgravatavam
o caminho de volta ao rumo certo. A última tempestade tinha-os varrido para longe de vista da terra, e atirara tamanhas ondas contra os flancos da galé que Sansa tivera a certeza de que iam todos afogar-se.
Ouvira o velho Oswell dizer que dois homens tinham sido arrastados borda fora, e outro caíra do mastro e partira o pescoço.
  Ela raramente se aventurara até ao convés. A sua pequena cabina era húmida e fria, mas Sansa passara a maior parte da viagem doente… doente de terror, doente de febre, ou doente de enjoo… não conseguia
manter nada no estômago, e até o sono custava a vir. Sempre que fechava os olhos, via Joffrey a rasgar o colarinho, a arranhar a suave pele da garganta, a morrer com flocos de crosta de tarte nos lábios
e nódoas de vinho no gibão. E os lamentos do vento no cordame faziam-lhe lembrar o terrível e agudo som de sugar que ele fizera enquanto lutava por inspirar ar. Por vezes sonhava também com Tyrion.
  — Ele nada fez — dissera uma vez ao Mindinho quando ele fizera uma visita à sua cabina para ver se se estava a sentir melhor.
  — Ele não matou Joffrey, é verdade, mas as mãos do anão estão longe de estar limpas. Teve uma esposa antes de vós, sabíeis?
  — Ele contou-me.
  — E disse-vos que quando se fartou dela a presenteou aos guardas do pai? Podia ter feito o mesmo convosco, a seu tempo. Não derrameis lágrimas pelo Duende, senhora.
  O vento fez correr dedos salgados pelo seu cabelo, e Sansa estremeceu. Até tão perto da costa, os balanços do barco deixavam-lhe a barriga maldisposta. Precisava desesperadamente de um banho e de uma
muda de roupa. Devo parecer tão descomposta como um cadáver, e cheiro a vómito.
  O Lorde Petyr surgiu a seu lado, alegre como sempre.
  — Bom-dia. O ar salgado é tonificante, não vos parece? Aguça-me sempre o apetite. — Rodeou-lhe os ombros com um braço compreensivo. — Estais bem? Pareceis tão pálida.
  — É só a minha barriga. O enjoo.
  — Um pouco de vinho será bom para isso. Vamos arranjar-vos uma taça, assim que estivermos em terra. — Petyr apontou para o local onde uma velha torre de pederneira se delineava contra o céu cinzento
sem vida, com as ondas a esmagar-se nas rochas em baixo. — Animado, não é? Temo que aqui não haja ancoradouro seguro. Iremos para terra num bote.
  — Aqui? — Não queria ir para terra ali. Ouvira dizer que os Dedos eram um sítio lúgubre, e havia algo de abandonado e desolado na pequena torre. — Não podia ficar no navio até zarparmos para Porto Branco?
  — Aqui, o Rei vira para leste rumo a Bravos. Sem nós.
  — Mas… senhor, dissestes… dissestes que íamos para casa.
  — E aqui está ela, por miserável que seja. A minha casa ancestral. Temo que não tenha nome. A sede de um grande senhor devia ter um nome, não concordais? Winterfell, o Ninho de Águia, Correrrio, esses
são castelos. Agora Senhor de Harrenhal, isso soa bem, mas o que era eu antes? Senhor da Bosta de Ovelha e dono do Forte Triste? Falta-lhe qualquer coisa. — Os seus olhos cinzentos-esverdeados olharam-na
inocentemente. — Pareceis perturbada. Julgáveis que nos dirigíamos a Winterfell, querida? Winterfell foi tomado, queimado e saqueado. Todos os que conhecíeis e amáveis estão mortos. Os nortenhos que não
caíram perante os homens de ferro estão a fazer guerra uns aos outros. Até a Muralha está sob ataque. Winterfell foi o lar da vossa infância, Sansa, mas já não sois uma criança. Sois uma mulher feita,
e tendes de criar o vosso lar.
  — Mas aqui não — disse ela, consternada. — Parece tão…
  — …pequena, sem vida e insignificante? É tudo isso, e ainda pior. Os Dedos são um sítio adorável para quem calha ser uma pedra. Mas nada temais, não nos demoraremos mais de uma quinzena. Calculo que
a vossa tia esteja já a caminho para vir ao nosso encontro. — Sorriu. — A Senhora Lysa e eu vamos casar-nos.
  — Casar? — Sansa estava aturdida. — Vós e a minha tia?
  — O Senhor de Harrenhal e a Senhora do Ninho de Águia.
  Disseste que era a minha mãe que amavas. Mas claro que a Senhora Catelyn estava morta, portanto mesmo se tivesse amado secretamente Petyr e lhe tivesse entregado a virgindade, agora não importava.
  — Tão silenciosa, senhora? — disse Petyr. — Estava certo que me quereríeis dar a vossa bênção. É coisa rara que um rapaz nascido para herdar pedras e caganitas de ovelha case com a filha de Hoster Tully
e viúva de Jon Arryn.
  — Eu… eu rezo para que passeis longos anos juntos, tenhais muitos filhos, e sejais muito felizes um com o outro. — Tinham-se passado anos desde que Sansa vira a irmã da mãe. Ela será gentil comigo,
certamente. É do meu sangue. E o Vale de Arryn era belo, todas as canções o diziam. Talvez não fosse assim tão terrível ficar ali durante algum tempo.
  Lothor e o velho Oswell levaram-nos para terra à força de remos. Sansa aconchegou-se à proa sob o seu manto com o capuz puxado para lhe proteger a cabeça do vento, interrogando-se sobre o que a esperava.
Criados saíram da torre ao encontro do grupo; uma velha magra e uma outra gorda de meia-idade, dois anciãos de cabelo branco, e uma rapariga com dois ou três anos e um terçol num olho. Quando reconheceram
o Lorde Petyr, ajoelharam-se nas pedras.
  — O meu pessoal — disse ele. — Não conheço a criança. Outro dos bastardos de Kella, suponho. Ela põe um cá fora a cada dois ou três anos.
  Os dois velhos meteram-se na água até às coxas para erguer Sansa do barco para não molhar as saias. Oswell e Lothor chapinharam até terra, e o mesmo fez o próprio Mindinho. Este deu à velha um beijo
na bochecha e sorriu à mais nova.
  — Quem é o pai desta, Kella?
  A gorda riu-se.
  — Nã sei bem, senhor. Nã sou mulher p’ra lhes dizer que não.
  — E todos os moços da terra estão gratos por isso, tenho a certeza.
  — É bom ter-vos em casa, senhor — disse um dos velhos. Parecia ter pelo menos oitenta anos, mas usava uma bergantina tachonada e uma espada longa presa ao flanco. — De quanto tempo será a vossa estadia?
  — O menos possível, Bryen, tão tenhas medo. Dirias que o sítio está habitável neste momento?
  — Se soubéssemos que vínheis a caminho, tínhamos posto esteiras novas, senhor — disse a velha. — Há um fogo de esterco a arder.
  — Nada diz “casa” como o cheiro de esterco a arder. — Petyr virou-se para Sansa. — Grisel foi a minha ama-de-leite, mas agora toma conta do meu castelo. Umfred é o meu intendente, e Bryen… não te nomeei
capitão da guarda da última vez que estive cá?
  — Nomeastes, senhor. Dissestes também que íeis arranjar mais alguns homens, mas não o fizestes. Eu e os cães fazemos todas as vigias.
  — E muito bem, tenho a certeza. Ninguém fugiu com nenhuma das minhas pedras e caganitas de ovelha, vejo-o claramente. — Petyr indicou com um gesto a gorda. — Kella cuida dos meus vastos rebanhos. Quantas
ovelhas tenho de momento, Kella?
  Ela teve de pensar por um momento.
  — Vinte e três, senhor. Havia vinte e nove, mas os cães de Bryen mataram uma e abatemos algumas das outras p’ra salgar a carne.
  — Ah, carneiro frio de salmoura. Devo estar mesmo em casa. Quando quebrar o jejum com ovos de gaivota e sopa de algas, terei a certeza.
  — Se quiserdes, senhor — disse a velha chamada Grisel.
  O Lorde Petyr fez uma careta.
  — Vinde, vejamos se o meu palácio é tão lúgubre como o recordo. — Subiu a margem à frente dos outros, por rochas tornadas escorregadias por algas em putrefacção. Um punhado de ovelhas vagueava em volta
da base da torre de pederneira, pastando a escassa erva que crescia entre o curral e o estábulo de telhado de colmo. Sansa teve de ter cuidado com o sítio que pisava; havia caganitas por todo o lado.
  Lá dentro, a torre parecia ainda mais pequena. Uma escada aberta de pedra corria em volta da parede interior, desde a galeria subterrânea até ao telhado. Cada piso não era mais do que uma única divisão.
Os criados viviam e dormiam na cozinha, no piso térreo, partilhando o espaço com um enorme mastim malhado e meia dúzia de cães-pastores. Por cima havia um pequeno salão, e ainda mais acima o quarto de
dormir. Não existiam janelas, mas havia seteiras embutidas a intervalos na parede exterior, ao longo da curvatura da escada. Por cima da lareira pendia uma espada longa quebrada e um desgastado escudo
de carvalho, com a tinta fendida e a lascar.
  Sansa não conhecia o símbolo pintado no escudo: uma cabeça de pedra cinzenta com olhos de fogo em fundo verde-claro.
  — O escudo do meu avô — explicou Petyr quando a viu a fitá-lo. — O pai dele nasceu em Bravos e veio para o Vale como mercenário contratado pelo Lorde Corbray, e por isso o meu avô escolheu a cabeça
do Titã como símbolo quando foi armado cavaleiro.
  — É muito feroz — disse Sansa.
  — Feroz de mais, para um tipo amigável como eu — disse Petyr. — Prefiro de longe o meu tejo.
  Oswell fez mais duas viagens até ao Rei Bacalhau para descarregar provisões. Entre as cargas que trouxe para terra havia vários cascos de vinho. Petyr serviu uma taça a Sansa, como prometido.
  — Aqui tendes, senhora, isso deve ajudar a vossa barriga, espero eu.
  Ter terreno sólido debaixo dos pés já ajudara, mas Sansa ergueu obedientemente o cálice com ambas as mãos e bebeu um golinho. O vinho era muito bom; uma bela colheita da Árvore, pensou. Sabia a carvalho,
fruta e noites quentes de Verão, fazendo desabrochar os sabores na sua boca como flores abrindo-se ao Sol. Só esperava conseguir mantê-lo na barriga. O Lorde Petyr estava a ser tão gentil que não queria
estragar tudo vomitando-lhe em cima.
  Ele estava a estudá-la por sobre o seu próprio cálice, com os brilhantes olhos cinzentos-esverdeados cheios de… seria divertimento? Ou outra coisa? Sansa não tinha a certeza.
  — Grisel — gritou ele para a velha —, traz cá acima alguma comida. Nada pesado de mais, que a senhora tem uma barriga fraca. Um pouco de fruta poderá talvez servir. Oswell trouxe algumas laranjas e
romãs do Rei.
  — Sim, senhor.
  — Seria possível também tomar um banho quente? — perguntou Sansa.
  — Eu mando Kella ir buscar água, senhora.
  Sansa bebeu outro gole de vinho e tentou pensar em algo polido para dizer, mas o Lorde Petyr poupou-lhe o trabalho. Quando Grisel e os outros criados se foram embora, disse:
  — Lysa não virá sozinha. Antes de ela chegar, temos de esclarecer quem sois.
  — Quem sou… não compreendo.
  — Varys tem informadores por todo o lado. Se Sansa Stark for vista no Vale, o eunuco sabê-lo-á dentro de uma volta de Lua, e isso criaria lamentáveis… complicações. Não é seguro ser-se Stark neste momento.
Portanto diremos ao pessoal de Lysa que sois minha filha ilegítima.
  — Ilegítima? — Sansa estava horrorizada. — Quereis dizer uma bastarda?
  — Bem, dificilmente poderíeis ser minha filha legítima. Nunca tomei esposa, isso é bem sabido. Como vos chamaríeis?
  — Eu… podia usar o nome da minha mãe…
  — Catelyn? Um pouco óbvio de mais… mas o da minha mãe serviria. Alayne. Agrada-vos?
  — Alayne é bonito. — Sansa esperava conseguir lembrar-se. — Mas não podia ser filha legítima de algum cavaleiro ao vosso serviço? Podia ter morrido galantemente na batalha, e…
  — Não tenho cavaleiros galantes ao meu serviço, Alayne. Uma história dessas atrairia tantas perguntas indesejáveis como um cadáver atrai corvos. Porém, é má educação bisbilhotar as origens dos filhos
ilegítimos de um homem. — Ergueu a cabeça. — Então, quem sois?
  — Alayne… Stone, é? — Quando ele confirmou com a cabeça, ela disse: — Mas quem é a minha mãe?
  — A Kella?
  — Não, por favor — disse ela, mortificada.
  — Estava a brincar. A vossa mãe era uma senhora de Bravos, filha de um príncipe mercador. Conhecemo-nos em Vila Gaivota quando estive a cargo do porto. Ela morreu ao dar-vos à luz e confiou-vos à Fé.
Tenho alguns livros devocionais sobre os quais podeis passar os olhos. Aprendei a citá-los. Nada desencoraja mais as perguntas indesejadas do que uma torrente de palavreado piedoso. Seja como for, na
vossa floração decidistes que não era vosso desejo ser uma septã e escrevestes-me. Foi então que soube da vossa existência. — Afagou a barba. — Achais-vos capaz de vos lembrardes de tudo isto?
  — Espero que sim. Será como jogar um jogo, não é?
  — Gostais de jogos, Alayne?
  Ia ter de habituar-se ao novo nome.
  — Jogos? Eu… suponho que dependeria de…
  Grisel reapareceu antes de poder dizer mais, equilibrando uma grande bandeja. Pousou-a entre ambos. Havia maçãs, peras e romãs, um punhado de uvas de ar tristonho, uma enorme laranja de sangue. A velha
trouxera também uma rodela de pão, e um boião de manteiga. Petyr cortou uma romã em duas com o seu punhal, oferecendo metade a Sansa.
  — Devíeis tentar comer, senhora.
  — Obrigada, senhor. — As sementes de romã sujavam tanto; Sansa preferiu uma pêra, e deu uma pequena dentadinha delicada. Estava muito madura; o sumo escorreu-lhe pelo queixo.
  O Lorde Petyr desalojou uma semente com a ponta do punhal.
  — Deveis sentir terrivelmente a falta do vosso pai, eu sei. O Lorde Eddard era um homem corajoso, honesto e leal… mas um jogador bastante incapaz. — Levou a semente à boca com a faca. — Em Porto Real
há dois tipos de pessoas. Os jogadores e as peças.
  — E eu sou uma peça? — Receou a resposta.
  — Sim, mas não deixeis que isso vos perturbe. Ainda sois quase uma criança. Todos os homens começam por ser peças, e todas as donzelas também. Mesmo alguns que julgam que são jogadores. — Comeu outra
semente. — Cersei, para começar. Julga-se astuta, mas na verdade é completamente previsível. A sua força reside na beleza, nascimento e riqueza. Só a primeira dessas coisas é realmente sua, e em breve
a abandonará. Nessa altura terei pena dela. Deseja o poder, mas não tem ideia alguma do que fazer com ele quando o obtém. Toda a gente quer qualquer coisa, Alayne. E quando ficardes a saber o que um homem
quer, sabereis quem ele é, e como jogar com ele.
  — Tal como jogastes com Sor Dontos para envenenar Joffrey? — Concluíra que tinha de ter sido Sor Dontos.
  O Mindinho soltou uma gargalhada.
  — Sor Dontos, o Tinto, era um odre de vinho com pernas. Nunca lhe poderia ser confiada uma tarefa de tal magnitude. Ele, se não a estragasse, ter-me-ia traído. Não, tudo o que Dontos teve de fazer foi
tirar-vos do castelo… e assegurar-se de que trazíeis a rede de prata para o cabelo.
  As ametistas negras.
  — Mas… se não foi Dontos, quem? Tendes outras… peças?
  — Poderíeis virar Porto Real do avesso e não encontraríeis um único homem com um tejo cosido sobre o coração, mas isso não significa que eu não tenho amigos. — Petyr dirigiu-se até junto da escada.
— Oswell, vem cá acima e deixa que a Senhora Sansa olhe para ti.
  O velho apareceu alguns momentos mais tarde, sorrindo e fazendo uma vénia. Sansa examinou-o, indecisa.
  — Que é suposto que eu veja?
  — Não o conheceis? — perguntou Petyr.
  — Não.
  — Olhai melhor.
  Sansa estudou a cara enrugada e queimada pelo vento do velho, o seu nariz adunco, o cabelo branco, e as enormes mãos nodosas. Havia algo de familiar nele, mas Sansa teve de sacudir a cabeça.
  — Não o conheço. Nunca vi Oswell antes de entrar no seu barco, tenho a certeza.
  Oswell sorriu, mostrando uma boca cheia de dentes tortos.
  — Não, mas a senhora se calhar conheceu os meus três filhos.
  Foram os “três filhos” e também aquele sorriso.
  — Kettleblack! — Os olhos de Sansa esbugalharam-se. — Sois um Kettleblack!
  — Sim, senhora, às vossas ordens.
  — Ela está fora de si com alegria. — O Lorde Petyr mandou-o embora com um gesto, e regressou à romã enquanto Oswell descia os degraus. — Dizei-me, Alayne… o que é mais perigoso, o punhal brandido por
um inimigo, ou o punhal escondido encostado às vossas costas por alguém que não chegais a ver?
  — O punhal escondido.
  — Aí está uma rapariga esperta. — Ele sorriu, com os lábios finos tornados vermelhos pelas sementes de romã. — Quando o Duende mandou os seus guardas embora, a rainha mandou Sor Lancel contratar-lhe
mercenários. Lancel encontrou os Kettleblack, o que deliciou o pequeno senhor vosso esposo, visto que os rapazes eram pagos por ele através do seu homem, Bronn. — Petyr soltou um risinho abafado. — Mas
fui eu quem disse a Oswell para mandar os filhos para Porto Real quando soube que Bronn andava à procura de espadas. Três punhais escondidos, Alayne, agora perfeitamente posicionados.
  — Então um dos Kettleblack pôs o veneno na taça de Joff? — Lembrou-se de que Sor Osmund passara a noite inteira perto do rei.
  — Terei dito tal coisa? — O Lorde Petyr cortou a laranja de sangue em duas com o punhal e ofereceu metade a Sansa. — Os rapazes são muito mais traiçoeiros do que teriam de ser para participarem numa
tal maquinação… e Osmund tornou-se especialmente indigno de confiança desde que entrou para a Guarda Real. Acho que aquele manto branco faz coisas aos homens. Até a homens como ele. — Inclinou o queixo
para trás e espremeu a laranja de sangue para que o sumo lhe escorresse para a boca. — Adoro o sumo, mas abomino os dedos peganhentos — lamentou-se, limpando as mãos. — Mãos limpas, Sansa. Façais o que
fizerdes, assegurai-vos de que as vossas mãos estão limpas.
  Sansa levou à boca um pouco de sumo da sua laranja com uma colher.
  — Mas se não foram os Kettleblack e não foi Sor Dontos… nem sequer estáveis na cidade, e não pode ter sido Tyrion…
  — Não quereis fazer outra tentativa, querida?
  Ela abanou a cabeça.
  — Eu não…
  Petyr sorriu.
  — Aposto que a dada altura durante a noite alguém vos disse que a rede para o cabelo estava torta e vo-la endireitou.
  Sansa levou uma mão à boca.
  — Não podeis querer dizer… ela queria levar-me para Jardim de Cima, para me casar com o neto…
  — O gentil e piedoso Willas Tyrell, com a sua boa índole. Ficai grata por terdes sido poupada, ele ter-vos-ia aborrecido até à náusea. Mas a velha não é aborrecida, admito. Uma feroz velha bruxa, e
que não é nem de perto tão débil como finge ser. Quando cheguei a Jardim de Cima para regatear a mão de Margaery, ela deixou que o senhor seu filho fanfarronasse enquanto fazia perguntas mordazes acerca
da natureza de Joffrey. Elogiei-o até aos céus, com certeza… enquanto os meus homens espalhavam histórias perturbadoras entre os criados do Lorde Tyrell. É assim que o jogo se joga.
  »Também plantei a ideia de Sor Loras vestir o branco. Não que o tenha sugerido, isso teria sido demasiado rude. Mas homens na minha comitiva disseminaram medonhas histórias sobre o modo como a turba
matara Sor Preston Greenfield e violara a Senhora Lollys, e fiz chegar algumas moedas de prata ao exército de cantores do Lorde Tyrell para que cantassem sobre Ryam Redwyne, Serwyn do Escudo Espelhado
e o Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão. Uma harpa pode ser tão perigosa como uma espada, nas mãos certas.
  »Mace Tyrell pensou mesmo que a ideia de fazer da inclusão de Sor Loras na Guarda Real parte do contrato de casamento era sua. Quem melhor para proteger a filha do que o seu magnífico irmão cavaleiro?
E aliviou-o da difícil tarefa de tentar encontrar terras e uma noiva para um terceiro filho, que nunca é fácil, e se torna duplamente difícil no caso de Sor Loras.
  »Mas seja como for. A Senhora Olenna não estava disposta a permitir que Joff fizesse mal à sua preciosa querida neta, mas ao contrário do filho, também compreendeu que, sob as suas flores e trajos finos,
Sor Loras é tão temperamental como Jaime Lannister. Atirai Joffrey, Margaery e Loras para uma panela, e tendes os ingredientes para um guisado de regicida. A velha compreendeu também outra coisa. O filho
estava decidido a fazer de Margaery uma rainha, e para isso precisava de um rei… mas não precisava de Joffrey. Teremos em breve outro casamento, esperai e vereis. Margaery casará com Tommen. Manterá a
sua coroa de rainha e a sua virgindade, nenhuma das quais deseja por aí além, mas que importa isso? A grande aliança ocidental será preservada… pelo menos por algum tempo.
  Margaery e Tommen. Sansa não sabia o que dizer. Gostara de Margaery Tyrell, e também da sua pequena avó de língua afiada. Pensara com anseio em Jardim de Cima, com os seus pátios e músicos, e as barcaças
de prazer no Vago; a uma distância enorme daquela costa desolada. Pelo menos aqui estou a salvo. Joffrey está morto, já não me pode magoar, e agora sou só uma bastarda. Alayne Stone não tem marido e não
tem pretensões. E além disso a tia estaria ali em breve. O longo pesadelo de Porto Real tinha ficado para trás, e a sua caricatura de casamento também. Podia criar para si um novo lar ali, tal como Petyr
dissera.
  Passaram-se oito longos dias até Lysa Arryn chegar. Choveu em cinco desses dias, enquanto Sansa permanecia sentada, aborrecida e inquieta junto à lareira, ao lado do velho cão cego. O animal estava
demasiado doente e desdentado para montar guarda com Bryen, e o que fazia era principalmente dormir, mas quando ela lhe fez festas, ele ganiu e lambeu-lhe a mão, e depois disso tornaram-se bons amigos.
Quando as chuvas pararam, Petyr percorreu com ela o perímetro da sua propriedade, o que demorou menos de meio dia. Ele possuía um monte de pedras, tal como dissera. Havia um local onde a maré saltava
de uma furna, projectando-se dez metros no ar, e um outro onde alguém esculpira a estrela de sete pontas dos novos deuses num pedregulho. Petyr disse que aquilo marcava um dos locais onde os ândalos tinham
desembarcado, quando vieram do outro lado do mar para arrancar o Vale das mãos dos Primeiros Homens.
  Mais para o interior, uma dúzia de famílias vivia em cabanas de pedras empilhadas ao lado de uma turfeira.
  — A minha plebe — disse Petyr, embora só o mais velho parecesse conhecê-lo. Havia também uma gruta de eremita nas suas terras, mas sem eremita. — Ele agora está morto, mas quando eu era rapaz, o meu
pai levou-me a visitá-lo. O homem não se lavava há quarenta anos, portanto podeis imaginar o cheiro, mas supostamente tinha o dom da profecia. Apalpou-me por um bocado e disse que eu seria um grande homem,
e por isso o meu pai deu-lhe um odre de vinho. — Petyr fungou. — Eu ter-lhe-ia dito a mesma coisa por meia taça.
  Por fim, numa tarde cinzenta e ventosa, Bryen correu de volta à torre com os cães a ladrar logo atrás, para anunciar que se aproximavam cavaleiros vindos de sudoeste.
  — Lysa — disse o Lorde Petyr. — Vinde, Alayne, vamos ao seu encontro.
  Envergaram os mantos e esperaram lá fora. Os cavaleiros não eram mais de uma vintena; uma escolta muito modesta, para a Senhora do Ninho de Águia. Acompanhavam-na três aias, bem como uma dúzia de cavaleiros
envergando cota de malha e placa de aço. Trouxera também um septão, e um cantor bem-parecido com um bigode fino e longos caracóis cor de areia.
  Poderá aquela ser a minha tia? A Senhora Lysa era dois anos mais nova do que a mãe, mas aquela mulher parecia dez anos mais velha. Grossas tranças ruivas caíam-lhe abaixo da cintura, mas sob o dispendioso
vestido de veludo e corpete decorado com pedras preciosas, o corpo mostrava descaimentos e protuberâncias. O rosto vinha rosado e pintado, os seios eram pesados, os membros grossos. Era mais alta do que
o Mindinho, e também mais pesada; e não mostrou qualquer graça no modo desajeitado com que desceu do cavalo.
  Petyr ajoelhou para lhe beijar os dedos.
  — O pequeno conselho do rei ordenou-me que vos cortejasse e conquistasse, senhora. Julgais que podereis aceitar-me como vosso senhor e esposo?
  A Senhora Lysa projectou os lábios e pô-lo em pé para lhe plantar um beijo na bochecha.
  — Oh, talvez possa ser convencida. — Soltou um risinho. — Trouxestes presentes para me derreter o coração?
  — A paz do rei.
  — Oh, nas tintas para a paz, que mais me trouxestes?
  — A minha filha. — O Mindinho fez sinal com uma mão a Sansa para avançar. — Senhora, permiti-me que vos apresente Alayne Stone.
  Lysa Arryn não pareceu grandemente satisfeita por vê-la. Sansa fez uma profunda vénia, com a cabeça baixa.
  — Uma bastarda? — ouviu a tia dizer. — Petyr, fostes maroto? Quem era a sua mãe?
  — A rapariga está morta. Tinha a esperança de levar Alayne para o Ninho de Águia.
  — Que farei eu com ela lá?
  — Tenho algumas ideias — disse o Lorde Petyr. — Mas neste momento estou mais interessado no que farei convosco, senhora.
  Toda a severidade derreteu na cara redonda e rosada da tia, e por um momento Sansa pensou que Lysa Arryn estava a ponto de chorar.
  — Querido Petyr, tive tantas saudades tuas, não fazes ideia, não podes fazer ideia. Yohn Royce tem andado a instigar todos os géneros de sarilhos, exigindo que eu convoque os vassalos e parta para a
guerra. E todos os outros enxameiam à minha volta, o Hunter, o Corbray e aquele horrendo Nestor Royce, todos desejando desposar-me e tomar o meu filho como protegido, mas nenhum deles me ama realmente.
Só tu, Petyr. Sonhei contigo durante tanto tempo.
  — E eu convosco, senhora. — Passou um braço pelas costas dela e beijou-a no pescoço. — Quando podemos casar-nos?
  — Já — disse a Senhora Lysa, suspirando. — Trouxe o meu próprio septão e um cantor, e hidromel para o banquete de casamento.
  — Aqui? — Aquilo não lhe agradou. — Preferiria casar convosco no Ninho de Águia, com toda a corte presente.
  — Nas tintas para a corte. Esperei durante tanto tempo que não aguento esperar nem mais um momento. — Envolveu-o com os braços. — Quero partilhar a tua cama esta noite, meu querido. Quero que façamos
outro filho, um irmão para Robert ou uma doce filhinha.
  — Eu também sonhei com isso, querida. Mas há muito a ganhar com uma grande boda pública, com todo o Vale…
  — Não. — Lysa bateu com o pé. — Quero-te agora, nesta mesma noite. E devo prevenir-te de que depois de todos estes anos de silêncio e sussurros, pretendo gritar quando me amares. Vou gritar tão alto
que me hão-de ouvir no Ninho de Águia.
  — Talvez possa dormir contigo agora e casarmos mais tarde?
  A Senhora Lysa soltou gargalhadinhas como se fosse uma rapariga.
  — Oh, Petyr Baelish, és tão maroto. Não, não, eu sou a Senhora do Ninho de Águia, e ordeno-te que te cases comigo neste preciso momento.
  Petyr encolheu os ombros.
  — Nesse caso, seja como a senhora ordena. Sou impotente perante vós, como sempre.
  Proferiram os seus votos menos de uma hora depois, em pé sob um dossel azul-celeste enquanto o Sol se afundava a oeste. Depois, mesas foram montadas junto da pequena torre de pederneira, e banquetearam-se
com codorniz, veado e javali assado, empurrando tudo com um bom e leve hidromel. Archotes foram acesos quando o ocaso se instalou. O cantor de Lysa tocou “O Voto não Proferido”, “Estações do Meu Amor”
e “Dois Corações que Batem Como Um Só”. Vários jovens cavaleiros até pediram a Sansa para dançar. A tia também dançou, fazendo rodopiar as saias quando Petyr a fez girar nos seus braços. O hidromel e
o casamento tinham tirado anos de cima da Senhora Lysa. Ria-se de tudo desde que segurasse a mão do marido, e os olhos pareciam cintilar sempre que o olhava.
  Quando chegou a altura de os levarem para a cama, os cavaleiros levaram-na para a torre, despindo-a no caminho e gritando gracejos lascivos. Tyrion poupou-me a isto, recordou Sansa. Não teria sido assim
tão mau ser despida para um homem que amasse, por amigos que os amassem a ambos. Mas por Joffrey… Estremeceu.
  A tia só tinha trazido três senhoras consigo, por isso insistiram com Sansa para que ajudasse a despir o Lorde Petyr e a empurrá-lo para a sua cama de núpcias. Ele submeteu-se com boa disposição e uma
língua maliciosa, devolvendo o que recebia. Quando o conseguiram pôr dentro da torre e fora da roupa, as outras mulheres estavam coradas, com ataduras desapertadas, vestidos tortos, saias em desarranjo.
Mas o Mindinho só sorria a Sansa enquanto o levavam para o quarto onde a senhora sua esposa esperava.
  A Senhora Lysa e o Lorde Petyr tinham o quarto do terceiro andar para si, mas a torre era pequena… e cumprindo a promessa que fizera, a tia gritou. Começara a chover lá fora, levando os convivas para
o salão um piso mais abaixo, e assim ouviram quase todas as palavras.
  — Petyr — gemeu a tia de Sansa. — Oh, Petyr, Petyr, querido Petyr, oh oh oh. Aí, Petyr, aí. É aí o teu lugar. — O cantor da Senhora Lysa lançou-se numa versão lasciva de “O Jantar da Senhora”, mas nem
mesmo a sua voz e o som do instrumento foram capazes de abafar os gritos de Lysa. — Faz-me um bebé, Petyr — gritou —, faz-me outro bebezinho querido. Oh, Petyr, meu precioso, meu precioso, PEEEEEEEEEETYR!
— O último guincho foi tão alto que pôs os cães a ladrar, e duas das damas da tia quase não conseguiram conter o riso.
  Sansa desceu a escada e penetrou na noite. Caía uma chuva ligeira sobre os restos do banquete, mas o ar cheirava a fresco e a limpo. A memória da sua noite de núpcias com Tyrion não a largava. No escuro,
sou o Cavaleiro das Flores, dissera ele. Poderia ser bom para ti. Mas aquela fora apenas mais uma mentira Lannister. Um cão consegue farejar uma mentira, sabes?, dissera-lhe em tempos o Cão de Caça. Quase
conseguia ouvir a aspereza rude da sua voz. Olha em volta e dá uma boa fungadela. Aqui são todos mentirosos… e todos eles são melhores do que tu. Perguntou a si própria o que teria acontecido a Sandor
Clegane. Saberia que Joffrey tinha sido morto? Importar-se-ia? Ele fora durante anos o escudo ajuramentado do rei.
  Ficou na rua durante bastante tempo. Quando por fim foi em busca da sua cama, molhada e enregelada, só o ténuo clarão de um fogo de esterco iluminava o salão escurecido. Não se ouvia um som vindo de
cima. O jovem cantor estava sentado a um canto, tocando uma canção lenta para si próprio. Uma das aias da tia beijava um cavaleiro no cadeirão do Lorde Petyr, ambos com as mãos atarefadas debaixo das
roupas do outro. Vários homens tinham bebido até adormecer, e um estava na latrina, vomitando ruidosamente. Sansa foi encontrar o velho cão cego de Bryen na sua pequena alcova debaixo da escada e deitou-se
a seu lado. Ele acordou e lambeu-lhe a cara.
  — Meu velho e triste cão de caça — disse, afagando-lhe o pêlo.
  — Alayne. — O cantor da tia estava em pé acima dela. — Querida Alayne. Chamo-me Marillion. Vi-te entrar vinda da chuva. A noite está gelada e húmida. Deixa-me aquecer-te.
  O velho cão ergueu a cabeça e rosnou, mas o cantor deu-lhe um tabefe e o cão escapuliu-se, ganindo.
  — Marillion? — Disse ela, insegura. — Sois… bondoso por pensardes em mim, mas… peço que me desculpeis. Estou muito cansada.
  — E muito bela. Tenho passado toda a noite a fazer canções para ti na cabeça. Um lai para os teus olhos, uma balada para os teus lábios, um dueto para os teus seios. Mas não as cantarei. Eram fracas
coisas, indignas de tal beleza. — Sentou-se na sua cama e pôs-lhe a mão na perna. — Deixa-me em vez disso cantar para ti com o meu corpo.
  Um pouco do seu hálito chegou-lhe ao nariz.
  — Estais bêbado.
  — Eu nunca fico bêbado. O hidromel só me deixa alegre. Estou em fogo. — A mão deslizou-lhe pela coxa acima. — E tu também.
  — Tirai as mãos de cima de mim. Estais fora de vós.
  — Misericórdia. Há horas que canto canções de amor. Tenho o sangue agitado. E o teu também está, eu sei… não há raparigas que tenham metade da luxúria das que nasceram bastardas. Estás molhada para
mim?
  — Eu sou uma donzela — protestou.
  — Deveras? Oh, Alayne, Alayne, minha bela donzela, dá-me o presente da tua inocência. Irás agradecer aos deuses por tê-lo feito. Pôr-te-ei a cantar mais alto do que a Senhora Lysa.
  Sansa afastou-se dele com um sacão, assustada.
  — Se não me largardes, a minha, o meu pai enforcar-vos-á. O Lorde Petyr.
  — O Mindinho? — Ele soltou um risinho abafado. — A Senhora Lysa gosta bastante de mim, e eu sou o favorito do Lorde Robert. Se o teu pai me ofender, destruí-lo-ei com um verso. — Pousou uma mão no seu
peito, e apertou. — Vamos tirar-te essa roupa molhada. Não a vais querer rasgada, eu sei. Vinde, doce senhora, cedei o coração…
  Sansa ouviu o som suave do aço a raspar em couro.
  — Cantor — disse uma voz rude —, é melhor saíres daqui, se quiseres voltar a cantar. — A luz era fraca, mas ela viu o ténuo brilho de uma lâmina.
  O cantor também a viu.
  — Arranja mulher para ti… — A faca relampejou, e ele gritou. — Cortaste-me!
  — E faço coisa pior, se não te fores embora.
  E, num instante, Marillion desapareceu. O outro deixou-se ficar, erguendo-se acima de Sansa na escuridão.
  — O Lorde Petyr disse para vos vigiar. — Apercebeu-se de que era a voz de Lothor Brune. Não, não é a do Cão de Caça, como poderia ser? Claro que tinha de ser Lothor…
  Naquela noite, Sansa quase não dormiu; em vez disso agitou-se e virou-se como fizera a bordo do Rei Bacalhau. Sonhou com a morte de Joffrey, mas quando ele arranhou a garganta e o sangue lhe escorreu
pelos dedos, Sansa viu com horror que era o irmão Robb. E sonhou também com a sua noite de núpcias, com os olhos de Tyrion a devorá-la enquanto se despia. Só que então ele tornou-se maior do que Tyrion
tinha direito a ser, e quando se meteu na cama, tinha cicatrizes só de um lado do rosto. “Quero que me cantes uma canção”, rouquejou ele, e Sansa acordou e deu com o velho cão cego de novo a seu lado.
  — Gostava que fosses a Lady — disse.
  Ao chegar a manhã, Grisel subiu até ao quarto para servir ao senhor e à senhora uma travessa de pão matinal, com manteiga, mel, frutos e natas. Regressou para dizer que Alayne era chamada. Sansa precisou
de um momento para se lembrar de que a Alayne era ela.
  A Senhora Lysa ainda se encontrava deitada, mas o Lorde Petyr estava a pé e vestido.
  — A vossa tia quer falar convosco — disse a Sansa enquanto puxava por uma bota. — Disse-lhe quem sois.
  Deuses, sede bons.
  — Eu… agradeço-vos, senhor.
  Petyr enfiou a outra bota.
  — Já aguentei o máximo do lar que sou capaz de suportar. Partimos para o Ninho de Águia esta tarde. — Beijou a senhora sua esposa e lambeu um resto de mel dos seus lábios, após o que desceu a escada.
  Sansa ficou em pé aos pés da cama enquanto a tia comia uma pêra e a estudava.
  — Agora vejo — disse a Senhora Lysa, ao pôr de parte o caroço. — Pareces-te tanto com Catelyn.
  — É bondade vossa dizê-lo.
  — Não foi dito como elogio. Em boa verdade, pareces-te demasiado com Catelyn. Algo tem de ser feito. Vamos escurecer-te o cabelo antes de te levarmos para o Ninho de Águia, parece-me.
  Escurecer-me o cabelo?
  — Se isso vos agrada, tia Lysa.
  — Não me podes chamar isso. Não podemos permitir que nenhuma palavra sobre a tua presença aqui chegue a Porto Real. Não tenciono deixar que o meu filho corra perigo. — Mordiscou um canto de um favo.
— Mantive o Vale fora desta guerra. A nossa colheita foi abundante, as montanhas protegem-nos, e o Ninho de Águia é inexpugnável. Mesmo assim, não será bom atrair sobre nós a ira do Lorde Tywin. — Lysa
pousou o favo e lambeu mel dos dedos. — O Petyr diz que estiveste casada com Tyrion Lannister. Esse nojento anão.
  — Obrigaram-me a desposá-lo. Eu nunca o desejei.
  — Tal como eu — disse a tia. — Jon Arryn não era anão, mas era velho. Podes não acreditar ao ver-me agora, mas no dia em que casámos, estava tão linda que envergonhei a tua mãe. Mas tudo o que Jon desejava
era as espadas do meu pai, para ajudar os seus queridos rapazes. Devia tê-lo recusado, mas era um homem tão velho, quanto tempo poderia viver? Já não tinha metade dos dentes, e o hálito cheirava a queijo
de má qualidade. Não consigo suportar um homem com mau hálito. O hálito de Petyr é sempre fresco… mas ele foi o primeiro homem que beijei, sabias? O meu pai disse que o nascimento dele era baixo de mais,
mas eu sabia como ele havia de subir alto. Jon entregou-lhe a alfândega de Vila Gaivota para me agradar, mas quando ele aumentou os lucros dez vezes, o senhor meu esposo apercebeu-se da sua inteligência
e deu-lhe outros cargos, até o levou para Porto Real para ser mestre da moeda. Isso foi duro, vê-lo todos os dias e continuar casada com aquele velho frio. Jon cumpria o seu dever no quarto, mas não era
mais capaz de me dar prazer como foi capaz de me dar filhos. A sua semente era velha e fraca. Todos os meus bebés morreram, à excepção de Robert, três meninas e dois rapazes. Todos os meus queridos bebés
mortos, e aquele velho durava e durava com o seu hálito malcheiroso. Portanto, como vês, eu também sofri. — A Senhora Lysa fungou. — Sabes que a tua pobre mãe está morta?
  — Tyrion disse-me — disse Sansa. — Disse que os Frey a assassinaram nas Gémeas, com Robb.
  Lágrimas jorraram de súbito dos olhos da Senhora Lysa.
  — Somos agora mulheres sós, tu e eu. Tens medo, filha? Sê brava. Nunca me recusaria a acolher a filha de Cat. Estamos ligadas pelo sangue. — Chamou Sansa para mais perto com um gesto. — Podes vir beijar-me
na cara, Alayne.
  Obedientemente, Sansa aproximou-se e ajoelhou junto à cama. A tia estava ensopada num odor doce, embora por baixo houvesse um cheiro amargo e leitoso. A bochecha sabia a tinta e pó.
  Quando Sansa se afastou, a Senhora Lysa pegou-lhe no pulso.
  — E agora diz-me — disse em tom penetrante. — Esperas bebé? Quero a verdade, saberei se me mentires.
  — Não — disse Sansa, sobressaltada pela pergunta.
  — És uma mulher já florescida, não és?
  — Sim. — Sansa sabia que a verdade sobre a sua floração não podia ser escondida por muito tempo no Ninho de Águia. — Tyrion não… ele nunca… — Sentiu o rubor subir-lhe pelo rosto acima. — Sou ainda uma
donzela.
  — O anão era incapaz?
  — Não. Ele era só… era… — Gentil? Não podia dizer isso, não podia dizê-lo ali, àquela tia que o odiava tanto. — Ele… ele tinha prostitutas, senhora. Ele próprio mo disse.
  — Prostitutas. — Lysa largou-lhe o pulso. — Claro que sim. Que mulher se deitaria com tal criatura, se não por ouro? Devia ter matado o Duende quando esteve em meu poder, mas ele ludibriou-me. Está
cheio de baixa astúcia, esse. O seu mercenário matou o meu bom Sor Vardis Egen. Catelyn não o devia ter trazido para cá, eu disse-lho. E ainda se foi embora com o meu tio. Foi um gesto errado. O Peixe
Negro era o meu Cavaleiro do Portão, e desde que nos deixou, os clãs da montanha têm-se tornado muito ousados. Mas Petyr porá em breve tudo isso como deve ser. Farei dele Senhor Protector do Vale. — A
tia sorriu pela primeira vez, quase com calor. — Ele pode não ser tão alto ou forte como certos homens, mas vale mais do que todos eles. Confia nele e faz o que te disser.
  — Farei, tia… senhora.
  A Senhora Lysa pareceu agradada com aquilo.
  — Eu conheci o rapaz, o Joffrey. Costumava chamar nomes cruéis ao meu Robert, e uma vez esbofeteou-o com uma espada de madeira. Um homem dir-te-á que o veneno é desonroso, mas a honra de uma mulher
é diferente. A Mãe talhou-nos para protegermos os nossos filhos, e a nossa única desonra reside no falhanço. Sabê-lo-ás quando tiveres um filho.
  — Um filho? — disse Sansa com incerteza.
  Lysa fez um gesto negligente com a mão.
  — Não será antes de se passarem muitos anos. És nova de mais para seres mãe. Mas um dia quererás filhos. Tal como quererás casar-te.
  — Eu… eu sou casada, senhora.
  — Sim, mas em breve serás viúva. Fica feliz por o Duende preferir as suas rameiras. Não teria sido adequado que o meu filho recebesse as sobras daquele anão, mas visto que nunca te tocou… Que tal achavas
de te casares com o teu primo, o Lorde Robert?
  A ideia abateu Sansa. Tudo o que sabia de Robert Arryn era que se tratava de um rapazinho, e enfermiço. Não é comigo que ela quer que o filho case, é com a minha pretensão. Ninguém casará comigo por
amor. Mas mentir era-lhe agora fácil.
  — Eu… mal posso esperar para o conhecer, senhora. Mas ele ainda é uma criança, não é?
  — Tem oito anos. E não é robusto. Mas é um rapaz tão bom, tão vivo e inteligente. Será um grande homem, Alayne. A semente é forte, disse o senhor meu esposo antes de morrer. Foram as suas últimas palavras.
Os deuses deixam-nos por vezes vislumbrar o futuro quando estamos a morrer. Não vejo motivo para que não te possas casar assim que saibas que o teu marido Lannister está morto. Um casamento secreto, claro.
Não se pode pensar que o Senhor do Ninho de Águia se casaria com uma bastarda, isso não seria próprio. Os corvos devem trazer-nos a nova de Porto Real quando a cabeça do Duende rolar. Tu e Robert podereis
casar-vos no dia seguinte, não seria isso uma alegria? Será bom para ele ter uma pequena companheira. Ele brincava com o filho de Vardis Egen quando regressou ao Ninho de Águia, e também com os filhos
do meu intendente, mas sempre foram duros de mais, e não tive alternativa a mandá-los embora. Lês bem, Alayne?
  — A Septã Mordane tinha a gentileza de dizer que sim.
  — Robert tem olhos fracos, mas gosta que lhe leiam coisas — confidenciou a Senhora Lysa. — Gosta de histórias sobre animais, principalmente. Conheces aquela cançãozinha sobre a galinha que se vestiu
de raposa? Ando sempre a cantar-lha, e ele nunca se farta. E gosta de brincar ao salto das rãs, ao gira a espada, e ao entra no meu castelo, mas tens de deixar que ganhe sempre. É apropriado, não te parece?
Afinal de contas, ele é o Senhor do Ninho de Águia, não podes nunca esquecer-te disso. És bem-nascida, e os Stark de Winterfell sempre foram orgulhosos, mas Winterfell caiu, e agora na realidade não passas
de uma pedinte, portanto põe esse orgulho de lado. A gratidão ficar-te-á melhor, nas actuais circunstâncias. Sim, e a obediência. O meu filho terá uma esposa grata e obediente.
 
 JON
  Os machados ressoavam dia e noite.
  Jon já não se lembrava da última vez que dormira. Quando fechava os olhos, sonhava com a luta; quando acordava, lutava. Mesmo na Torre do Rei ouvia o incessante tunc do bronze, pederneira e aço roubado
a morder a madeira, e ouvia-o mais alto quando tentava descansar na cabana para aquecimento no topo da Muralha. Mance também tinha martelos a trabalhar, bem como longas serras com dentes de osso e pederneira.
Uma vez, estava Jon a deslizar para um sono exausto, ouviu-se uma grande série de estalidos vinda da floresta assombrada e uma árvore-sentinela caiu numa nuvem de poeira e agulhas.
  Quando Owen veio buscá-lo, estava acordado, tentando sem sucesso arranjar posição numa pilha de peles espalhada sobre o chão da cabana para aquecimento.
  — Lorde Snow — disse Owen, abanando-lhe o ombro —, a alvorada. — Estendeu uma mão a Jon para ajudar a pô-lo em pé. Outros homens estavam também a acordar, acotovelando-se uns aos outros enquanto calçavam
as botas e afivelavam os cintos das espadas no apertado confinamento da cabana. Ninguém falava. Estavam todos demasiado cansados para falar. Por aqueles dias, eram poucos os que chegavam a descer da Muralha.
Demorava demasiado tempo subir e descer na gaiola. Castelo Negro fora abandonado ao Meistre Aemon, a Sor Wynton Stout, e a mais alguns homens, demasiado velhos ou enfermos para lutar.
  — Sonhei que o rei tinha vindo — disse Owen num tom feliz. — O Meistre Aemon enviou um corvo, e o Rei Robert veio com todas as suas forças. Sonhei que via os seus estandartes dourados.
  Jon obrigou-se a sorrir.
  — Isso seria uma visão bem-vinda, Owen. — Ignorando a pontada de dor na sua perna, pôs um manto negro de peles sobre os ombros, apanhou a muleta e saiu para a Muralha, a fim de enfrentar mais um dia.
  Uma rajada de vento enfiou-lhe finas gavinhas geladas no longo cabelo castanho. A meia milha para norte, os acampamentos dos selvagens acordavam, com as fogueiras a erguerem dedos fumarentos para coçar
o pálido céu da alvorada. Tinham erguido as suas tendas de peles ao longo do limite da floresta, incluindo mesmo um rude edifício feito de troncos de árvores e ramos entretecidos; havia linhas de cavalos
a leste, mamutes a oeste, e homens por todo o lado, afiando as espadas, pondo pontas em lanças toscas, envergando armaduras improvisadas de peles, corno e osso. Por cada homem que conseguia ver, Jon sabia
que havia uma vintena de outros invisíveis na floresta. A vegetação emprestava-lhes algum abrigo contra os elementos e escondia-os dos olhos dos odiados corvos.
  Os seus arqueiros já avançavam, empurrando os manteletes rolantes.
  — Aí vêm as nossas setas para o pequeno-almoço — anunciou Pyp alegremente, tal como fazia todas as manhãs. É bom que ele possa fazer disso um gracejo, pensou Jon. Alguém tem de o fazer. Três dias antes,
uma dessas setas do pequeno-almoço atingira o Alyn Vermelho da Mata de Rosas na perna. Quem se debruçasse o suficiente ainda conseguia ver o seu corpo junto à base da Muralha. Jon tinha de pensar que
era melhor eles sorrirem do gracejo de Pyp do que cismarem acerca do cadáver de Alyn.
  Os manteletes eram escudos de madeira inclinados, suficientemente largos para esconder cinco membros do povo livre. Os arqueiros empurravam-nos para perto da Muralha, e depois ajoelhavam-se atrás deles
para disparar as suas setas através de fendas abertas na madeira. Da primeira vez que os selvagens os tinham feito sair, Jon gritara por setas incendiárias e incendiara meia dúzia, mas depois disso Mance
começara a cobri-los com peles por curtir. Nem todas as setas incendiárias do mundo seriam capazes de os incendiar agora. Os irmãos tinham até começado a fazer apostas sobre qual das sentinelas de palha
coleccionaria mais setas antes do fim. O Edd Doloroso ia à frente com quatro, mas Othell Yarwyck, Tumberjon e Watt do Lago Longo tinham três cada. Também fora Pyp que começara a baptizar os espantalhos
com os nomes dos irmãos desaparecidos.
  — Faz com que pareça que há mais de nós — dissera.
  — Mais de nós com setas espetadas na barriga — protestara Grenn, mas o hábito parecia dar ânimo aos irmãos, e assim Jon permitira que os nomes ficassem e as apostas prosseguissem.
  Na borda da Muralha, um ornamentado olho de Myr em latão apoiava-se em três longos pés. O Meistre Aemon usara-o em tempos para espreitar as estrelas, antes de os olhos lhe falharem. Jon virou o tubo
para baixo, a fim de observar o inimigo. Até àquela distância a enorme tenda branca de Mance Rayder, feita com peles de ursos das neves, era inconfundível. As lentes de Myr traziam os selvagens para tão
perto que Jon conseguia distinguir os rostos. Do próprio Mance não viu sinal naquela manhã, mas a sua mulher, Dalla, estava cá fora a cuidar da fogueira, enquanto a irmã Val ordenhava uma cabra junto
à tenda. Dalla parecia tão inchada que era um espanto que conseguisse mover-se. O bebé deve estar a chegar muito em breve, pensou Jon. Girou o olho para leste e procurou entre as tendas e árvores até
encontrar a tartaruga. Aquilo também deve estar a chegar muito em breve. Os selvagens tinham esfolado um dos mamutes mortos durante a noite e estavam a amarrar firmemente a pele por curtir e ensanguentada
à armação da tartaruga, mais uma camada por cima das peles de ovelhas e outros animais. A tartaruga tinha um topo arredondado e oito enormes rodas, e sob as peles havia uma robusta armação de madeira.
Quando os selvagens tinham começado a construí-la, o Cetim julgara que estavam a fazer um barco. Não se enganou por muito. A tartaruga era um casco virado ao contrário e aberto à frente e atrás; um edifício
sobre rodas.
  — Está acabada, não está? — perguntou Grenn.
  — Quase. — Jon afastou o olho. — Virá hoje, provavelmente. Encheste os barris?
  — Todos. Congelaram bem durante a noite, o Pyp verificou.
  Grenn tornara-se muito diferente do grande e desajeitado rapaz de pescoço vermelho com quem Jon travara amizade. Crescera quinze centímetros, o peito e ombros tinham-se alargado e não cortava o cabelo
e a barba desde o Punho dos Primeiros Homens. Isso dava-lhe um aspecto tão enorme e hirsuto como se fosse um auroque, a alcunha trocista que Sor Alliser Thorne lhe atribuíra durante o treino. Agora parecia
cansado, porém. Quando Jon o disse, ele anuiu.
  — Ouvi os machados deles a noite toda. Não consegui dormir com todas as machadadas.
  — Então vai dormir agora.
  — Não preciso…
  — Precisas. Quero-te descansado. Vai lá, não te deixo dormir durante a luta. — Obrigou-se a sorrir. — És o único que consegue mover estes malditos barris.
  Grenn foi-se embora a resmungar, e Jon regressou ao óculo, perscrutando o acampamento dos selvagens. De tempos a tempos, uma seta passava por cima da sua cabeça, mas aprendera a ignorá-las. Os tiros
eram longínquos e o ângulo mau, logo as hipóteses de se ser atingido eram pequenas. Continuou sem ver sinal de Mance Rayder no acampamento, mas viu Tormund Terror dos Gigantes e dois dos seus filhos em
volta da tartaruga. Os filhos lutavam com a pele de mamute enquanto Tormund roía uma perna assada de cabra e berrava ordens. Noutro local, detectou o troca-peles selvagem, Varamyr Seis-Peles, caminhando
entre as árvores com o seu gato-das-sombras a roer-lhe os calcanhares.
  Quando ouviu o chocalhar das correntes do guincho e o gemido férreo da porta da gaiola a abrir-se, soube que seria Hobb a trazer-lhes o pequeno-almoço, tal como fazia todas as manhãs. A visão da tartaruga
de Mance roubara a Jon o apetite. Já quase não tinham óleo, e o último barril de pez fora atirado da Muralha havia duas noites. Em breve começariam também a escassear as setas, e não havia ninguém a fazer
mais. E na noite antes da última chegara um corvo do oeste, de Sor Denys Mallister. Bowen Marsh perseguira os selvagens até à Torre Sombria, aparentemente, e ainda mais para diante, penetrando nas sombras
da Garganta. Na Ponte das Caveiras defrontara o Chorão e trezentos selvagens e vencera uma sangrenta batalha. Mas a vitória saíra cara. Mais de cem irmãos mortos, entre os quais Sor Endrew Tarth e Sor
Aladale Wynch. A própria Velha Romã fora levada de regresso à Torre Sombria gravemente ferida. O Meistre Mullin estava a tratá-lo, mas passar-se-ia algum tempo até estar em condições de regressar a Castelo
Negro.
  Quando lera aquilo, Jon despachara Zei para Vila Toupeira no melhor cavalo que possuíam, a fim de suplicar aos aldeões que ajudassem a guarnecer a Muralha. A mulher não regressara. Quando enviara Mully
à sua procura, este voltara relatando que a aldeia inteira estava deserta, incluindo o bordel. O mais certo era que Zei os tivesse seguido, pela Estrada de Rei fora. Talvez devêssemos todos fazer o mesmo,
reflectiu Jon sombriamente.
  Obrigou-se a comer, com fome ou sem ela. Já era suficientemente mau que não conseguisse dormir, não poderia prosseguir se também não se alimentasse. Além do mais, pode ser que esta seja a minha última
refeição. Pode ser a última refeição para todos nós. E assim foi que Jon tinha uma barriga cheia de pão, bacon, cebolas e queijo quando ouviu o Cavalo gritar:
  — A coisa vem aí!
  Ninguém precisou de perguntar o que “a coisa” era. E Jon também não precisou do olho de Myr do Meistre para a ver a sair de entre as tendas e as árvores.
  — Afinal não se parece lá muito com uma tartaruga — comentou o Cetim. — As tartarugas não têm pêlo.
  — A maior parte também não tem rodas — disse Pyp.
  — Faz soar o corno de guerra — ordenou Jon, e o Barricas deu dois longos sopros, para acordar Grenn e os outros homens adormecidos, que tinham estado de vigia durante a noite. Se os selvagens iam atacar,
a Muralha iria precisar de todos os homens. E os deuses sabem como temos poucos. Jon olhou para Pyp, Barricas e Cetim, Cavalo e Owen Idiota, Tim Língua-Enredada, Mully, Bota Extra e os outros, e tentou
imaginá-los a avançar, lado a lado, espada contra espada, contra uma centena de selvagens aos gritos na escuridão gelada do túnel, sem mais do que algumas barras de ferro entre uns e outros. Seria a esse
ponto que se chegaria, a menos que conseguissem parar a tartaruga antes de ela abrir uma brecha no portão.
  — É grande — disse o Cavalo.
  Pyp deu um estalo com os lábios.
  — Pensa em toda a sopa que vai dar. — O gracejo nasceu morto. Até Pyp tinha uma voz fatigada. Ele parece meio morto, pensou Jon, mas todos nós o estamos. O Rei-para-lá-da-Muralha tinha tantos homens
que podia atirar sempre contra eles atacantes frescos, mas era a mesma mão-cheia de irmãos negros que tinha de aguentar todos os assaltos, e isso deixara-os no limite.
  Jon sabia que os homens por baixo da madeira e das peles estariam a puxar com força, pondo nisso os ombros, esforçando-se por manter as rodas a girar, mas depois da tartaruga instalada contra a Muralha,
trocariam as cordas por machados. Pelo menos Mance não tinha mandado os mamutes naquele dia. Jon sentiu-se satisfeito por isso. A espantosa força dos animais era desperdiçada na Muralha, e o seu tamanho
só os transformava em alvos fáceis. O último demorara um dia e meio a morrer, soltando bramidos fúnebres terríveis de se ouvir.
  A tartaruga aproximou-se lentamente por entre pedras, tocos de árvores e arbustos. Os ataques anteriores tinham custado ao povo livre uma centena de vidas ou mais. A maior parte dos mortos ainda jazia
no local onde caíra. Nos momentos de acalmia, os corvos vinham fazer-lhes companhia, mas agora as aves fugiam aos guinchos. Não gostavam mais do aspecto daquela tartaruga do que ele.
  Jon sabia que o Cetim, o Cavalo e os outros estavam a olhá-lo, à espera de ordens. Sentia-se tão cansado que já quase não conseguia pensar. A Muralha é minha, lembrou a si próprio.
  — Owen, Cavalo, para as catapultas. Barricas, tu e o Bota Extra para as balistas. Os outros ponham as cordas nos arcos. Setas incendiárias. Vejamos se conseguimos incendiá-la. — Jon sabia que seria
provavelmente um gesto fútil, mas tinha de ser melhor do que ficar impotente.
  Pesada e lenta, a tartaruga era um alvo fácil, e os arqueiros e besteiros rapidamente a transformaram num enorme ouriço de madeira… mas as peles húmidas protegeram-na, tal como tinham protegido os manteletes,
e as setas incendiárias apagavam-se quase assim que atingiam o alvo. Jon praguejou em surdina.
  — Balistas — ordenou. — Catapultas.
  Os dardos das balistas penetravam profundamente nas peles, mas não fizeram mais danos do que as setas incendiárias. As pedras ressaltavam no topo da tartaruga, deixando amolgadelas nas espessas camadas
de peles. Uma pedra de um dos trabucos talvez a tivesse conseguido esmagar, mas uma das máquinas continuava avariada, e os selvagens tinham passado bem longe da área que a segunda atingia.
  — Jon, continua a avançar — disse o Owen Idiota.
  Ele conseguia ver isso com os seus próprios olhos. Centímetro a centímetro, metro a metro, a tartaruga aproximava-se, rolando, retumbando e balançando enquanto atravessava o campo de morte. Uma vez
que os selvagens a instalassem contra a Muralha, dar-lhes-ia todo o abrigo de que necessitavam enquanto os seus machados abriam caminho através dos portões exteriores reparados à pressa. Lá dentro, debaixo
do gelo, não levariam mais do que algumas horas a retirar os detritos soltos do túnel, e então nada haveria para os parar além de dois portões de ferro, alguns cadáveres meio congelados e os irmãos que
Jon quisesse atirar-lhes ao caminho, para lutar e morrer nas trevas.
  À sua esquerda, a catapulta soltou um tunc e encheu o ar de pedras a girar. Estas metralharam sobre a tartaruga como granizo, e carambolaram inofensivamente para o lado. Os arqueiros selvagens continuavam
a disparar setas de detrás dos seus manteletes. Uma delas atingiu com um ruído surdo o rosto de um homem de palha, e Pyp disse:
  — Quatro para o Watt de Lago Longo! Temos um empate! — Mas a seta seguinte assobiou-lhe junto à orelha. — Fora! — gritou ele para baixo. — Eu não estou no torneio!
  — As peles não ardem — disse Jon, tanto para si como para os outros. A única esperança que lhes restava era tentar esmagar a tartaruga quando atingisse a Muralha. Para isso, precisavam de pedregulhos.
Por mais robusta que fosse a construção da tartaruga, um enorme bocado de pedra que a atingisse em cheio vindo de uma altura de duzentos metros tinha de fazer algum estrago. — Grenn, Owen, Barricas, está
na hora.
  Junto da cabana para aquecimento havia uma fila de robustos barris de carvalho. Estavam cheios de rocha esmagada; a gravilha que os irmãos negros costumavam espalhar nos caminhos para obterem melhor
apoio para os pés no topo da Muralha. Na noite anterior, depois de ver que o povo livre cobria a tartaruga de peles de ovelha, Jon dissera a Grenn para despejar água nos barris, tanta quanta eles pudessem
conter. A água infiltrar-se-ia por entre a pedra esmagada, e durante a noite tudo aquilo estaria congelado. Era a coisa mais parecida a um pedregulho que teriam.
  — Porque é que temos de congelar isto? — perguntara-lhe Grenn. — Porque é que não nos limitamos a fazer rolar os barris lá para baixo tal como estão?
  Jon respondera:
  — Se eles baterem contra a Muralha durante a descida vão rebentar, e gravilha solta ia espalhar-se por todo o lado. Não queremos fazer chover pedrinhas sobre os filhos da puta.
  Encostou o ombro a um dos barris com Grenn, enquanto o Barricas e o Owen lutavam com outro. Juntos fizeram-no balançar de um lado para o outro, a fim de o libertar do gelo que se formara em volta da
base.
  — O cabrão pesa uma tonelada. — disse Grenn.
  — Deita-o e rola-o — disse Jon. — Cuidado, que se te rolar por cima do pé, acabas como o Bota Extra.
  Depois de o barril estar deitado, Jon pegou num archote e brandiu-o sobre a superfície da Muralha, de um lado para o outro, apenas o suficiente para derreter um pouco o gelo. A fina película de água
ajudou o barril a rolar mais facilmente. Demasiado facilmente, na verdade; quase o perderam. Mas por fim, com quatro homens a somar o seu esforço, fizeram rolar o pedregulho até à borda e voltaram a pô-lo
em pé.
  Tinham já quatro dos grandes barris de carvalho alinhados por cima do portão quando Pyp gritou:
  — Temos uma tartaruga a bater-nos à porta! — Jon assentou bem a perna ferida e debruçou-se para dar uma olhadela. Vedações. Marsh devia ter construído vedações. Havia tantas coisas que deviam ter feito.
Os selvagens estavam a arrastar os gigantes mortos para longe do portão. O Cavalo e Mully atiravam-lhes pedras, e Jon pensou ver um homem cair, mas as pedras eram pequenas de mais para ter algum efeito
sobre a tartaruga propriamente dita. Perguntou a si próprio o que faria o povo livre com o mamute morto que se encontrava no caminho, mas então viu a resposta. A tartaruga era quase tão larga como um
salão, e limitaram-se a içá-la por cima da carcaça. A perna estremeceu-lhe, mas o Cavalo agarrou-lhe no braço e puxou-o para sítio seguro.
  — Não devíeis debruçar-vos assim — disse o rapaz.
  — Devíamos ter construído vedações. — Jon julgou que conseguia ouvir o bater de machados na madeira, mas isso era provavelmente apenas o medo a ressoar-lhe nos ouvidos. Olhou para Grenn. — Agora.
  Grenn pôs-se atrás de um barril, encostou-lhe o ombro, grunhiu, e começou a empurrar. Owen e Mully foram ajudá-lo. Empurraram o barril trinta centímetros, e depois mais trinta. E de súbito, desapareceu.
  Ouviram o tump que o barril soltou ao atingir a Muralha na queda e então, muito mais alto, o estrondo da madeira estilhaçada, seguido por berros e gritos. O Cetim soltou um grito de vitória, e o Owen
Idiota pôs-se a dançar aos círculos, enquanto Pyp se debruçava para fora e gritava:
  — A tartaruga estava recheada de coelhos! Vede-os a fugir aos saltos!
  — Outra vez! — ladrou Jon, e Grenn e o Barricas encostaram os ombros ao barril seguinte e atiraram-no, rodopiando, pelo ar.
  Quando terminaram, a parte da frente da tartaruga de Mance era uma ruína esmagada e lascada e havia selvagens a fugir pela outra extremidade e a esforçar-se por regressar ao acampamento. O Cetim pegou
na sua besta e disparou alguns dardos contra eles, para os pôr a correr mais depressa. Grenn sorria abertamente através da barba, Pyp gracejava, e nenhum deles morreria naquele dia.
  Amanhã, porém… Jon olhou de relance para a cabana. Restavam oito barris de gravilha onde houvera doze alguns momentos antes. Apercebeu-se então da fadiga que sentia e do quanto lhe doía o ferimento.
Tenho de dormir. Pelo menos algumas horas. Podia ir pedir um pouco de vinho de sonhos ao Meistre Aemon, isso ajudaria.
  — Vou até lá abaixo à Torre do Rei — disse-lhes. — Chamai-me se Mance preparar alguma. Pyp, a Muralha é tua.
  — Minha? — disse Pyp.
  — Dele? — disse Grenn.
  Sorrindo, deixou-os naquilo e desceu na gaiola.
  Uma taça de vinho de sonhos realmente ajudou. Assim que se estendeu na estreita cama da sua cela, foi tomado pelo sono. Os sonhos foram estranhos e sem forma, cheios de estranhas vozes, gritos e choros,
e do som do corno de guerra, a soar grave e ruidoso, uma única nota trovejante que pairava no ar.
  Quando acordou, o céu fora da seteira que lhe servia de janela mostrava-se negro, e quatro homens que não conhecia encontravam-se em pé acima dele. Um trazia uma lanterna.
  — Jon Snow — disse bruscamente o mais alto dos quatro —, enfia as botas e vem connosco.
  O primeiro pensamento atordoado que teve foi que de algum modo a Muralha caíra enquanto dormia, que Mance Rayder enviara mais gigantes ou outra tartaruga e que tinha aberto caminho através do portão.
Mas quando esfregou os olhos, viu que os estranhos estavam todos vestidos de negro. São homens da Patrulha da Noite, compreendeu Jon.
  — Vou para onde? Quem sois vós?
  O homem alto fez um gesto e dois dos outros arrancaram Jon da cama. Com a lanterna a iluminar o caminho levaram-no da cela e subiram uma meia volta de escada, até ao aposento privado do Velho Urso.
Viu o Meistre Aemon em pé junto da lareira, com as mãos fechadas em volta do punho de uma bengala de espinheiro-negro. O Septão Cellador estava meio bêbado, como era hábito, e Sor Wynton Stout dormia
num banco de janela. Os outros irmãos eram-lhe estranhos. Todos menos um.
  Imaculado no seu manto forrado de peles e botas polidas, Sor Alliser Thorne virou-se para dizer:
  — Aí está o vira-casacas, senhor. O bastardo de Ned Stark, de Winterfell.
  — Não sou nenhum vira-casacas, Thorne — disse friamente Jon.
  — Veremos. — Na cadeira de couro por trás da mesa onde o Velho Urso escrevia as suas cartas, estava sentado um homem grande, largo e queixudo que Jon não conhecia. — Sim, veremos — voltou a dizer. —
Não ireis negar que sois Jon Snow, espero? O bastardo do Stark?
  — Ele gosta de chamar a si mesmo Lorde Snow. — Sor Alliser era um homem magro, esguio, compacto e vigoroso, e naquele momento os seus olhos de pedra estavam escuros de divertimento.
  — Fostes vós quem me apelidou de Lorde Snow — disse Jon. Sor Alliser gostara de dar alcunhas aos rapazes que treinava, durante os tempos passados como mestre-de-armas de Castelo Negro. O Velho Urso
enviara Thorne para Atalaialeste do Mar. Os outros devem ser homens de Atalaialeste. A ave chegou a Cotter Pyke e ele enviou-nos ajuda. — Quantos homens trouxestes? — perguntou ao homem sentado atrás
da mesa.
  — Quem faz perguntas sou eu — respondeu o queixudo. — Fostes acusado de quebra de votos, cobardia e deserção, Jon Snow. Negais ter abandonado os vossos irmãos à morte no Punho dos Primeiros Homens e
negais ter-vos juntado ao selvagem Mance Rayder, este autoproclamado Rei-para-lá-da-Muralha?
  — Abandonado…? — Jon quase se engasgou com a palavra.
  O Meistre Aemon interveio então.
  — Senhor, Donal Noye e eu discutimos estes assuntos quando Jon Snow regressou para junto de nós, e ficámos satisfeitos com as explicações de Jon.
  — Bem, eu não estou satisfeito, Meistre — disse o queixudo. — Vou ouvir com os meus ouvidos essas explicações. Ah, pois vou!
  Jon engoliu a ira.
  — Não abandonei ninguém. Deixei o Punho na companhia de Qhorin Meia-Mão para bater o Passo dos Guinchos. Juntei-me aos selvagens sob ordens. O Meia-Mão temia que Mance pudesse ter encontrado o Corno
do Inverno…
  — O Corno do Inverno? — Sor Alliser soltou um risinho. — Também te foi ordenado que contasses os snarks deles, Lorde Snow?
  — Não, mas contei os seus gigantes o melhor que pude.
  — Sor — exclamou o queixudo. — Ireis dirigir-vos a Sor Alliser como sor, e a mim como senhor. Sou Janos Slynt, Senhor de Harrenhal, e comandante aqui em Castelo Negro enquanto Bowen Marsh não regressar
com a sua guarnição. Ireis tratar-nos com cortesia, ah pois. Não admito ouvir um cavaleiro ungido como o bom Sor Alliser ser escarnecido pelo bastardo de um traidor. — Ergueu uma mão e espetou um dedo
carnudo na cara de Jon. — Negais terdes levado uma mulher selvagem para a vossa cama?
  — Não. — O luto de Jon por Ygritte estava demasiado fresco para a negar agora. — Não, senhor.
  — Suponho que também tenha sido o Meia-Mão que te ordenou que fodesses esta puta suja? — perguntou Sor Alliser com um sorriso afectado.
  — Sor. Ela não era puta nenhuma, sor. O Meia-Mão disse-me para não me recusar, fosse o que fosse que os selvagens me pedissem, mas… não negarei que fui além do que tinha de fazer, que… gostava dela.
  — Então admitis que quebrastes os vossos votos — disse Janos Slynt.
  Jon sabia que metade dos homens de Castelo Negro visitavam Vila Toupeira de tempos a tempos para escavar em busca de tesouros enterrados no bordel, mas não desonraria Ygritte igualando-a às prostitutas
de Vila Toupeira.
  — Quebrei os meus votos com uma mulher. Isso admito. Sim.
  — Sim, senhor! — Quando Slynt franzia o sobrolho, os seus queixos estremeciam. Era tão largo como o Velho Urso fora, e sem dúvida tornar-se-ia igualmente calvo se vivesse até à idade de Mormont. Metade
do seu cabelo tinha já desaparecido, embora não pudesse ter mais de quarenta anos.
  — Sim, senhor — disse Jon. — Cavalguei com os selvagens e comi com eles, como o Meia-Mão me ordenou que fizesse, e partilhei as peles com Ygritte. Mas juro-vos que nunca virei a casaca. Fugi ao Magnar
assim que pude, e nunca levantei armas contra os meus irmãos ou o reino.
  Os pequenos olhos do Lorde Slynt estudaram-no.
  — Sor Glendon — ordenou. — Trazei o outro prisioneiro.
  Sor Glendon era o homem alto que arrancara Jon da cama. Mais quatro homens acompanharam-no quando saiu da sala, mas regressaram pouco depois com um cativo, um homem pequeno, pálido, maltratado e agrilhoado
de mãos e pés. Tinha as sobrancelhas unidas, o cabelo muito recuado nas têmporas e um bigode que parecia uma mancha de sujidade no lábio superior, mas o rosto estava inchado e manchado de nódoas negras,
e perdera a maior parte dos dentes da frente.
  Os homens de Atalaialeste atiraram rudemente o cativo ao chão. O Lorde Slynt olhou-o, de cenho franzido.
  — É este o novo de que falaste?
  O cativo pestanejou olhos amarelos.
  — É. — Foi só nesse instante que Jon reconheceu o Lorigão de Chocalho. É um homem diferente sem a armadura, pensou. — É — repetiu o selvagem —, é o cobarde que matou o Meia-Mão. Lá em cima nos Colmilhos
de Gelo, pois, depois de a gente ter caçado os outros corvos e matado todos. Queríamos tam’ém tratar da saúde deste, mas ele pedinchou p’la sua vida inútil, ofereceu-se p’ra se juntar à gente se o aceitássemos.
O Meia-Mão jurou que antes disso ia ver o cobarde morto, mas o lobo quase que desfazia Qhorin aos bocados, e este tipo abriu-lhe a goela. — Então concedeu a Jon um sorriso de dentes quebrados e cuspiu-lhe
sangue sobre os pés.
  — E então? — perguntou Janos Slynt a Jon num tom duro. — Ireis negá-lo? Ou ireis dizer que Qhorin vos ordenou que o matásseis?
  — Ele disse-me… — As palavras custaram a vir. — Ele disse-me para fazer o que quer que me pedissem.
  Slynt olhou em volta do aposento privado, para os outros homens de Atalaialeste.
  — Será que este rapaz pensa que eu caí de cabeça de cima de uma carroça de nabos?
  — As tuas mentiras não te vão salvar agora, Lorde Snow — preveniu Sor Alliser Thorne. — Obteremos de ti a verdade, bastardo.
  — Eu disse-vos a verdade. Os nossos garranos estavam a fraquejar, e o Lorigão de Chocalho estava próximo. Qhorin disse-me para fingir juntar-me aos selvagens. “Não podes recusar-te, seja o que for que
te seja solicitado”, disse ele. Ele sabia que me iam obrigar a matá-lo. O Lorigão de Chocalho ia matá-lo de qualquer forma, e ele também sabia isso.
  — Então agora dizeis que o grande Qhorin Meia-Mão temia esta criatura? — Slynt olhou para o Lorigão de Chocalho e resfolegou.
  — Todos os homens temem o Senhor dos Ossos — resmungou o selvagem. Sor Glendon pontapeou-o e ele calou-se.
  — Eu não disse isso — insistiu Jon.
  Slynt atirou um punho contra a mesa.
  — Eu ouvi-vos! Sor Alliser avaliou-vos bem, segundo parece. Mentis com quantos dentes de bastardo tendes na boca. Bem, não o tolerarei. Não tolerarei! Podeis ter enganado esse ferreiro aleijado, mas
não enganais Janos Slynt! Oh, não. Janos Slynt não engole mentiras assim tão facilmente. Achais que o meu crânio está recheado de couves?
  — Não sei do que é que está recheado o vosso crânio. Senhor.
  — O Lorde Snow é um grande arrogante — disse Sor Alliser. — Assassinou Qhorin, da mesma forma que os outros vira-casacas assassinaram o Lorde Mormont. Não me surpreenderia ficar a saber que tinha tudo
feito parte do mesmo terrível plano. Benjen Stark pode bem ter também um dedo metido nisto. Tanto quanto sabemos, ele pode estar sentado na tenda de Mance Rayder neste preciso momento. Conheceis estes
Stark, senhor.
  — Conheço — disse Janos Slynt. — Conheço-os bem de mais.
  Jon descalçou a luva e mostrou-lhes a mão queimada.
  — Queimei a mão protegendo o Lorde Mormont de uma criatura. E o meu tio era um homem de honra. Nunca teria traído os seus votos.
  — Tal como tu? — troçou Sor Alliser.
  O Septão Cellador pigarreou.
  — Lorde Slynt — disse —, este rapaz recusou-se a proferir os votos no septo, como deve ser, e em vez disso foi para lá da Muralha para proferir os votos perante uma árvore-coração. Os deuses do pai,
disse ele, mas são também deuses dos selvagens.
  — São os deuses do Norte, septão. — O Meistre Aemon foi cortês, mas firme. — Senhores, quando Donal Noye foi morto, foi este jovem Jon Snow quem subiu à Muralha e a defendeu, contra toda a fúria do
Norte. Demonstrou ser valente, leal e cheio de recursos. Se não fosse ele, teríeis encontrado Mance Rayder aqui sentado quando chegastes, Lorde Slynt. Estais a fazer-lhe uma grande injustiça. Jon Snow
era o intendente e escudeiro do próprio Lorde Mormont. Foi escolhido para esse dever porque o Lorde Comandante viu nele grande promessa. Tal como eu.
  — Promessa? — disse Slynt. — Bem, a promessa pode revelar-se falsa. Tem o sangue de Qhorin Meia-Mão nas mãos. Mormont confiava nele, dizeis, mas e daí? Eu sei o que é ser-se traído por homens em quem
se confia. Oh, sim. E conheço também os costumes dos lobos. — Apontou para a cara de Jon. — O vosso pai morreu como traidor.
  — O meu pai foi assassinado. — Jon já passara o ponto de importar-se com o que lhe fariam, mas não admitiria mais mentiras sobre o pai.
  Slynt ficou púrpura.
  — Assassínio? Seu cachorro insolente. O Rei Robert ainda nem tinha arrefecido quando o Lorde Eddard começou a mover-se contra o filho. — Pôs-se de pé; mais baixo do que Mormont, mas largo de peito e
braços, e com uma barriga a condizer. Uma pequena lança de ouro com esmalte vermelho na ponta prendia-lhe o manto no ombro. — O vosso pai morreu pela espada, mas era bem-nascido, uma Mão do Rei. Para
vós, uma corda chegará. Sor Alliser, levai este vira-casacas para uma cela de gelo.
  — O senhor é sensato. — Sor Alliser agarrou no braço de Jon.
  Jon libertou-se com um sacão e agarrou-se à garganta do cavaleiro com uma tal ferocidade que o ergueu no ar. Tê-lo-ia esganado, se os homens de Atalaialeste não o tivessem afastado de Thorne. Este cambaleou
para trás, esfregando as marcas que os dedos de Jon lhe tinham deixado no pescoço.
  — Vedes com os vossos próprios olhos, irmãos. Este rapaz é um selvagem.
 
 TYRION
  Quando a alvorada rebentou, descobriu que não era capaz de enfrentar a ideia de comida. Ao cair da noite, posso estar condenado. Tinha o estômago ácido de bílis, e sentia comichão no nariz. Tyrion coçou-o
com a ponta da faca. Aguentar uma última testemunha, e depois é a minha vez. Mas o que fazer? Negar tudo? Acusar Sansa e Sor Dontos? Confessar, na esperança de passar o resto dos seus dias na Muralha?
Fazer os dados voar e rezar para que a Víbora Vermelha consiga derrotar Sor Gregor Clegane?
  Tyrion apunhalou com indiferença uma salsicha gordurosa e cinzenta, desejando que fosse a irmã. Faz um frio dos demónios na Muralha, mas pelo menos ficaria isolado de Cersei. Não lhe parecia que pudesse
dar um patrulheiro por aí além, mas a Patrulha da Noite precisava tanto de homens inteligentes como de homens fortes. O Senhor Comandante Mormont dissera isso mesmo, quando Tyrion visitara Castelo Negro.
Mas há aqueles votos inconvenientes. Significaria o fim do seu casamento e de qualquer pretensão que pudesse ter sobre Rochedo Casterly, mas em qualquer caso não parecia estar destinado a desfrutar de
qualquer uma dessas coisas. E julgava recordar que havia um bordel numa aldeia próxima.
  Não era a vida com que sonhara, mas era vida. E tudo o que tinha de fazer para a conquistar era confiar no pai, erguer-se nas suas pequenas pernas deformadas, e dizer: “Sim, eu fi-lo, confesso”. Essa
era a parte que lhe dava nós nas entranhas. Quase desejava realmente ter cometido o acto de que era acusado, uma vez que parecia que teria de sofrer por ele fosse como fosse.
  — Senhor? — disse Podrick Payne. — Eles estão aqui, senhor. Sor Addam. E os homens de mantos dourados. Estão à espera lá fora.
  — Pod, diz-me a verdade… achas que eu fiz aquilo?
  O rapaz hesitou. Quando tentou falar, não conseguiu soltar mais do que um fraco perdigoto.
  Estou perdido. Tyrion suspirou.
  — Não precisas de responder. Foste um bom escudeiro para mim. Melhor do que eu merecia. Aconteça o que acontecer, agradeço-te pelos teus leais serviços.
  Sor Addam Marbrand esperava à porta com seis homens de mantos dourados. Nada tinha a dizer naquela manhã, aparentemente. Outro homem bom que julga que sou um assassino de familiares. Tyrion armou-se
de toda a dignidade que conseguiu arranjar e bamboleou-se pelas escadas abaixo. Sentia todos a observá-lo enquanto cruzava o pátio; os guardas nas muralhas, os palafreneiros junto aos estábulos, os ajudantes
de cozinha, as lavadeiras e as criadas. Dentro da sala do trono, cavaleiros e fidalgos afastaram-se para os deixar passar, e murmuraram aos ouvidos das suas senhoras.
  Assim que Tyrion ocupou o seu lugar perante os juízes, outro grupo de homens de mantos dourados introduziu Shae na sala.
  Uma mão fria apertou-se-lhe em volta do coração. Varys traiu-a, pensou. Então lembrou-se. Não. Eu próprio a traí. Devia tê-la deixado com Lollys. Claro que iriam interrogar as aias de Sansa, eu faria
o mesmo. Tyrion esfregou a cicatriz lisa que tinha onde estivera o nariz, perguntando a si próprio porque se teria Cersei dado ao trabalho. Shae não sabe nada que me possa prejudicar.
  — Eles planearam o acto juntos — disse ela, aquela rapariga que amava. — O Duende e a Senhora Sansa planearam-no depois de o Jovem Lobo ter morrido. Sansa queria vingança pelo irmão e Tyrion tencionava
ficar com o trono. Ia matar a irmã de seguida, e depois o senhor seu pai, para poder tornar-se Mão do Príncipe Tommen. Mas um ano ou dois mais tarde, antes de Tommen crescer demasiado, ia matá-lo também,
para pôr a coroa na cabeça.
  — Como podeis saber tudo isto? — perguntou o Príncipe Oberyn. — Porque iria o Duende contar esses planos à aia da esposa?
  — Ouvi uma parte, senhor — disse Shae — e a senhora também deixou escapar algumas coisas. Mas a maior parte ouvi dos lábios dele. Não era só aia da Senhora Sansa. Fui a rameira dele, durante todo o
tempo que passou em Porto Real. Na manhã do casamento, ele arrastou-me p’ró sítio onde guardam os crânios de dragão e fodeu-me ali, com os monstros a toda a volta. E quando eu gritei, ele disse que devia
ser mais grata, que não era qualquer moça que podia tornar-se rameira do rei. Foi aí que ele me contou como tencionava tornar-se rei. Disse que o pobre rapaz do Joffrey nunca ia conhecer a noiva como
ele ‘tava a conhecer-me a mim. — A rapariga começou então a soluçar. — Nunca quis ser uma rameira, senhores. Estava noiva. Ele era um escudeiro, um rapaz bom e corajoso, de bom nascimento. Mas o Duende
viu-me no Ramo Verde e pôs o rapaz com quem eu queria casar na primeira fila da vanguarda, e depois de ele ser morto ordenou aos selvagens que me levassem à sua tenda. Shagga, o grande, e Timett, com
o olho queimado. Ele disse que se não lhe desse prazer, me entregava a eles, e portanto eu dei. Depois trouxe-me p’rá cidade, p’ra ficar por perto quando ele me quisesse. Obrigou-me a fazer coisas tão
vergonhosas…
  O Príncipe Oberyn pareceu curioso.
  — Que tipo de coisas?
  — Coisas indescritíveis. — Enquanto as lágrimas rolavam lentamente por aquela cara bonita, não havia dúvida de que todos os homens presentes no salão desejavam tomar Shae nos braços e confortá-la. —
Com a boca e… outras partes do corpo, senhor. Todas as partes. Ele usou-me de todas as maneiras que há, e… costumava obrigar-me a dizer-lhe como ele era grande. O meu gigante, tinha eu de lhe chamar,
o meu gigante de Lannister.
  Oswald Kettleblack foi o primeiro a rir. Boros e Meryn juntaram-se-lhe, e depois foi Cersei, Sor Loras e mais senhores e senhoras do que conseguia contar. A súbita rajada de hilaridade fez as vigas
ressoar e sacudiu o Trono de Ferro.
  — É verdade — protestou Shae. — O meu gigante de Lannister. — As gargalhadas tornaram-se duas vezes mais ruidosas. As bocas deles estavam torcidas de divertimento, as barrigas abanavam. Alguns riam-se
tanto que expeliam ranho das narinas.
  Salvei-vos a todos, pensou Tyrion. Salvei esta cidade vil e todas as vossas vidas sem valor. Havia centenas de pessoas na sala do trono, todas elas a rir, menos o pai de Tyrion. Ou pelo menos era o
que parecia. Até a Víbora Vermelha riu alto, e Mace Tyrell parecia a ponto de rebentar, mas o Lorde Tywin Lannister permanecia sentado no meio deles como se fosse feito de pedra, com os dedos juntos por
baixo do queixo.
  Tyrion avançou.
  — SENHORES! — gritou. Tinha de gritar, para ter alguma esperança de ser ouvido.
  O pai ergueu uma mão. Pouco a pouco, o salão regressou ao silêncio.
  — Levai esta rameira mentirosa para longe da minha vista — disse Tyrion — e eu dar-vos-ei a vossa confissão.
  O Lorde Tywin anuiu, fez um gesto. Shae pareceu meio aterrorizada quando os homens de mantos dourados formaram em volta dela. Os seus olhos encontraram-se com os de Tyrion quando a levaram do salão.
Teria sido vergonha que viu neles, ou medo? Perguntou a si próprio o que Cersei lhe teria prometido. Receberás o ouro ou as jóias, o que quer que tenhas pedido, pensou enquanto via as costas dela a afastar-se,
mas antes da volta da Lua, ela ter-te-á a entreter os homens de mantos dourados nas suas casernas.
  Tyrion ergueu o olhar para os olhos duros e verdes do pai, com as suas manchas de ouro frio e brilhante.
  — Sou culpado — disse —, tão culpado. É isto o que quereis ouvir?
  O Lorde Tywin nada disse. Mace Tyrell anuiu. O Príncipe Oberyn pareceu moderadamente desapontado.
  — Admitis terdes envenenado o rei?
  — Nada que se pareça — disse Tyrion. — Da morte de Joffrey sou inocente. Sou culpado de um crime mais monstruoso. — Deu um passo na direcção do pai. — Nasci. Sobrevivi. Sou culpado de ser um anão, confesso.
E independentemente de quantas vezes o meu bondoso pai me tenha perdoado, persisti na minha infâmia.
  — Isto é uma loucura, Tyrion — declarou o Lorde Tywin. — Falai do assunto que aqui nos traz. Não estais a ser julgado por serdes um anão.
  — É aí que errais, senhor. Estive a ser julgado por ser um anão durante toda a minha vida.
  — Não tendes nada a dizer em vossa defesa?
  — Nada a não ser isto: não o fiz. Mas agora desejava tê-lo feito. — Virou-se para enfrentar o salão, aquele mar de rostos pálidos. — Gostaria de ter veneno suficiente para todos vós. Fazeis-me lamentar
não ser o monstro que gostaríeis que fosse, mas aí tendes. Estou inocente, mas aqui não obterei justiça. Não me deixais alternativa que não seja apelar aos deuses. Exijo julgamento pela batalha.
  — Perdeste o juízo? — disse o pai.
  — Não, encontrei-o. Exijo julgamento pela batalha!
  A sua querida irmã não podia estar mais satisfeita.
  — Ele tem esse direito, senhores — lembrou aos juízes. — Deixai que os deuses julguem. Sor Gregor Clegane lutará por Joffrey. Ele regressou à cidade anteontem à noite, a fim de colocar a sua espada
ao meu serviço.
  O rosto do Lorde Tywin estava tão escuro que por meio segundo Tyrion perguntou a si próprio se também ele teria bebido vinho envenenado. Atingiu a mesa com um punho, demasiado furioso para falar. Foi
Mace Tyrell quem se virou para Tyrion e fez a pergunta.
  — Tendes um campeão para defender a vossa inocência?
  — Tem, senhor. — O Príncipe Oberyn de Dorne pôs-se em pé. — O anão conseguiu convencer-me.
  A algazarra foi ensurdecedora. Tyrion sentiu especial prazer na súbita dúvida que vislumbrou nos olhos de Cersei. Foi preciso que cem homens de mantos dourados batessem com os cabos das lanças no chão
para que a sala do trono se voltasse a aquietar. Por essa altura, o Lorde Tywin Lannister recuperara o domínio sobre si próprio.
  — Que o assunto seja decidido amanhã — declarou, num tom férreo. — Lavo daí as minhas mãos. — Deitou ao filho anão um olhar frio e zangado, e depois saiu da sala a passos largos, pela porta do rei que
se abria por trás do Trono de Ferro, com o irmão Kevan a seu lado.
  Mais tarde, de volta à cela da torre, Tyrion serviu-se de uma taça de vinho e mandou Podrick Payne em busca de queijo, pão e azeitonas. Duvidava ser capaz de manter no estômago fosse o que fosse de
mais pesado. Achavas que eu iria docilmente, pai?, perguntou à sombra que as velas desenhavam na parede. Tenho em mim demasiado de ti para isso. Sentia uma estranha paz, agora que tirara o poder de vida
e morte das mãos do pai e o depositara nas mãos dos deuses. Assumindo que existem deuses, e que eles não se estão nas tintas. Se não, então estou em mãos dornesas. Acontecesse o que acontecesse, Tyrion
tinha a satisfação de saber que fizera em fanicos os planos do Lorde Tywin. Se o Príncipe Oberyn ganhasse, isso iria inflamar ainda mais Jardim de Cima contra os dorneses; Mace Tyrell veria o homem que
lhe aleijara o filho ajudar o anão que quase lhe envenenara a filha a escapar à justa punição. E se a Montanha triunfasse, Doran Martell poderia perfeitamente querer saber por que motivo o irmão fora
brindado com a morte em vez da justiça que Tyrion lhe prometera. Dorne podia acabar mesmo por coroar Myrcella.
  Quase valia a pena morrer para saber de todos os sarilhos que causara. Virás ver o fim, Shae? Ficarás lá com os outros, a observar enquanto Sor Ilyn corta esta minha feia cabeça? Sentirás falta do teu
gigante de Lannister quando ele estiver morto? Esvaziou a taça, atirou-a ao chão, e cantou com vigor.
  Cavalgou pelas ruas da cidade,
  desde o alto da sua colina,
  por becos e degraus e calçadas,
  para os braços da sua menina.
  Porque ela era o secreto tesouro,
  a sua vergonha e seu prazer.
  E corrente e forte nada são,
  comparados com beijos de mulher.
  Sor Kevan não o visitou naquela noite. Provavelmente estava com o Lorde Tywin, a tentar aplacar os Tyrell. Receio bem que não voltarei a ver o meu tio. Serviu-se de outra taça de vinho. Uma pena que
tivesse mandado matar o Symon Língua de Prata antes de aprender toda a letra daquela canção. Não era uma má canção, em boa verdade. Especialmente se comparada com aquelas que seriam escritas sobre si
futuramente.
  — Porque mãos de ouro são sempre frias, mas há calor numas mãos de mulher… — cantou. Talvez devesse escrever ele mesmo os outros versos. Se vivesse tempo suficiente.
  Naquela noite, surpreendentemente, Tyrion Lannister dormiu longa e profundamente. Acordou à primeira luz da aurora, bem repousado e com um robusto apetite, e quebrou o jejum com pão frito, morcela,
bolinhos de maçã, e uma dose dupla de ovos cozidos com cebolas e pimenta picante de Dorne. Depois pediu licença aos guardas para visitar o seu campeão. Sor Addam consentiu.
  Tyrion foi encontrar o Príncipe Oberyn a beber uma taça de vinho tinto enquanto envergava a armadura. Era servido por quatro dos seus fidalgos dorneses mais novos.
  — Um bom-dia para vós, senhor — disse o príncipe. — Aceitais uma taça de vinho?
  — Devíeis beber antes da batalha?
  — Eu bebo sempre antes das batalhas.
  — Isso poderá levar à vossa morte. Pior, poderá levar à minha morte.
  O Príncipe Oberyn riu.
  — Os deuses protegem os inocentes. Vós sois inocente, espero?
  — Só de matar Joffrey — admitiu Tyrion. — Espero que saibais o que vos preparais para enfrentar. Gregor Clegane é…
  — …grande? Ouvi dizer que sim.
  — Ele tem quase dois metros e quarenta de altura e deve pesar cento e noventa quilos, e tudo de músculo. Luta com uma espada de duas mãos, mas só precisa de uma para a manejar. Soube-se que cortou homens
ao meio com um único golpe. A sua armadura é tão pesada que nenhum homem menor do que ele seria capaz de suportar o peso, quanto mais mexer-se lá dentro.
  O Príncipe Oberyn não se mostrou impressionado.
  — Já antes matei homens grandes. O truque é desequilibrá-los. Assim que caiam, estão mortos. — O dornês parecia tão jovialmente confiante que Tyrion se sentiu quase tranquilizado, até o outro se virar
e dizer: — Daemon, a minha lança! — Sor Daemon atirou-lha, e a Víbora Vermelha apanhou-a no ar.
  — Pretendeis enfrentar a Montanha com uma lança? — Aquilo deixou Tyrion de novo intranquilo. Em batalha, fileiras de lanças juntas faziam uma dianteira formidável, mas combate singular contra um espadachim
habilidoso era algo de muito diferente.
  — Em Dorne gostamos de lanças. Além disso, é a única forma de me opor ao seu alcance. Olhai, Lorde Duende, mas assegurai-vos de não tocar. — A lança era freixo torneado com dois metros e meio de comprimento,
com o cabo liso, grosso e pesado. Os últimos sessenta centímetros eram de aço: uma esguia ponta de lança em forma de folha, que se estreitava para formar um perigoso espigão. As arestas pareciam suficientemente
aguçadas para fazer a barba. Quando Oberyn fez girar o cabo entre as palmas das mãos, cintilaram com um brilho negro. Óleo? Ou veneno? Tyrion decidiu que preferia não saber.
  — Espero que sejais bom com isso — disse com tom de dúvida.
  — Não tereis razões de queixa. Embora Sor Gregor talvez as venha a ter. Por espessa que seja a sua placa, haverá fendas nas articulações. Do lado de dentro do cotovelo e do joelho, por baixo dos braços…
Hei-de encontrar um sítio para lhe fazer cócegas, prometo-vos. — Pôs a lança de lado. — Diz-se que um Lannister paga sempre as suas dívidas. Talvez queirais regressar comigo a Lançasolar depois de o derramamento
de sangue do dia terminar. O meu irmão Doran ficaria muito satisfeito por conhecer o legítimo herdeiro de Rochedo Casterly… especialmente se ele trouxesse a sua adorável esposa, a Senhora de Winterfell.
  Será que a cobra julga que tenho Sansa enfiada nalgum sítio, como uma noz que estivesse a guardar para o Inverno? Se assim era, Tyrion não iria desenganá-lo.
  — Uma viagem até Dorne poderá ser muito agradável, agora que reflicto sobre o assunto.
  — Fazei planos para uma visita longa. — O Príncipe Oberyn beberricou do vinho. — Vós e Doran tendes muitos assuntos de interesse mútuo a discutir. Música, comércio, história, vinho, o dinheiro do anão…
as leis de herança e sucessão. Sem dúvida que os conselhos de um tio beneficiariam a Rainha Myrcella nos árduos tempos que o futuro nos reserva.
  Se Varys tivesse passarinhos à escuta, Oberyn estava a dar-lhes uma abundante colheita.
  — Creio que vou aceitar essa taça de vinho — disse Tyrion. Rainha Myrcella? Teria sido mais tentador se tivesse Sansa escondida por baixo do manto. Se ela declarasse apoio a Myrcella no lugar de Tommen,
iria o Norte segui-la? O que a Víbora Vermelha estava a sugerir era traição. Seria Tyrion realmente capaz de pegar em armas contra Tommen, contra o seu próprio pai? Cersei cuspiria sangue. Bastava isso
para fazer com que talvez valesse a pena.
  — Lembrais-vos da história que vos contei quando nos encontrámos pela primeira vez, Duende? — perguntou o Príncipe Oberyn, enquanto o Bastardo de Graçadivina ajoelhava à sua frente para lhe atar as
grevas. — Não foi apenas devido à vossa cauda que eu e a minha irmã fomos a Rochedo Casterly. Andávamos numa espécie de demanda. Uma demanda que nos levou a Tombastela, à Árvore, a Vilavelha, às Ilhas
Escudo, a Crakehall e por fim a Rochedo Casterly… mas o nosso verdadeiro destino era o casamento. Doran estava prometido à Senhora Mellario de Norvos, portanto foi deixado para trás, como castelão de
Lançasolar. A minha irmã e eu ainda não estávamos comprometidos.
  » Elia achou tudo aquilo excitante. Estava nessa idade, e a sua saúde delicada nunca lhe permitira muitas viagens. Eu preferia divertir-me troçando dos pretendentes da minha irmã. Houve o Pequeno Senhor
Vesgo, o Escudeiro Boca-de-Esguicho, um a quem chamei a Baleia Que Caminha, esse tipo de coisa. O único minimamente apresentável foi o jovem Baelor Hightower. Era um rapaz bonito, e a minha irmã andou
meio apaixonada por ele até que ele teve o infortúnio de se peidar uma vez na nossa presença. Imediatamente o apelidei de Baelor Cu-roto, e depois disso Elia não conseguia olhá-lo sem se rir. Era um tipo
brutalmente novo, alguém devia ter cortado aquela minha perversa língua.
  Sim, concordou Tyrion em silêncio. Baelor Hightower já não era jovem, mas continuava a ser o herdeiro do Lorde Leyton; rico, bem-parecido e um cavaleiro de magnífica reputação. Agora chamavam-lhe Baelor
Sorriso Resplandecente. Se Elia se tivesse casado com ele em vez de Rhaegar Targaryen, podia estar em Vilavelha com os filhos a crescer à sua volta. Perguntou a si próprio quantas vidas teriam sido apagadas
por aquele traque.
  — Lannisporto era o fim da nossa viagem — prosseguiu o Príncipe Oberyn, enquanto Sor Arron Qorgyle o auxiliava a envergar uma túnica almofadada de couro e se punha a atá-la nas costas. — Sabíeis que
as nossas mães eram antigamente conhecidas uma da outra?
  — Julgo recordar que tinham estado juntas na corte em meninas. Companheiras da Princesa Rhaella?
  — Exactamente. Eu estava convencido de que as mães tinham cozinhado aquela trama entre si. O Escudeiro Boca-de-Esguicho e os da sua laia, e as várias jovens donzelas borbulhentas que me tinham sido
exibidas eram as amêndoas antes do banquete, destinando-se apenas a abrir-nos os apetites. O prato principal deveria ser servido em Rochedo Casterly.
  — Cersei e Jaime.
  — Que anão tão esperto. Elia e eu éramos mais velhos, certamente. Os vossos irmãos não podiam ter mais de oito ou nove anos. Em todo o caso, uma diferença de cinco ou seis anos é bastante pequena. E
havia uma cabina vazia no nosso navio, uma cabina muito boa, o género de cabina que poderia destinar-se a uma pessoa de nascimento elevado. Como se a intenção fosse levarmos alguém para Lançasolar. Um
jovem pajem, talvez. Ou uma companheira para Elia. A senhora vossa mãe pretendia prometer Jaime à minha irmã, ou Cersei a mim. Talvez ambos.
  — Talvez — disse Tyrion —, mas o meu pai governava os Sete Reinos, mas era governado em casa pela senhora sua esposa, ou pelo menos era o que dizia sempre a minha mãe.
— O Príncipe Oberyn ergueu os braços para que o Lorde Dagos Manwoody e o Bastardo de Graçadivina lhe pudessem enfiar um longo lorigão de cota de malha pela cabeça. — Em Vilavelha ficámos a saber da morte
da vossa mãe, e do filho monstruoso que ela dera à luz. Podíamos ter voltado aí para trás, mas a minha mãe decidiu prosseguir. Já vos contei o acolhimento que encontrámos em Rochedo Casterly.
  »O que não vos contei foi que a minha mãe esperou o tempo que era decente, e então abordou o vosso pai com aquilo que nos levara ali. Anos mais tarde, no seu leito de morte, contou-me que o Lorde Tywin
nos recusara bruscamente. Informou-a de que a filha estava destinada ao Príncipe Rhaegar. E quando ela perguntou por Jaime, para desposar Elia, ele ofereceu-lhe a vossa pessoa.
  — Oferta essa que ela recebeu como um ultraje.
  — E era. Até vós podeis ver isso, certamente.
  — Oh, certamente. — Tudo vem de trás e mais de trás, pensou Tyrion, das nossas mães e pais e antes dos deles. Somos marionetas a dançar, presos aos cordéis daqueles que chegaram antes de nós, e um dia
os nossos filhos tomarão os nossos cordéis e dançarão no nosso lugar. — Bem, o Príncipe Rhaegar casou-se com Elia de Dorne, não com Cersei Lannister de Rochedo Casterly. Portanto parece que a vossa mãe
ganhou essa justa.
  — Ela achou que sim — concordou o Príncipe Oberyn — mas o vosso pai não é homem para esquecer tais desfeitas. Ensinou em tempos essa lição ao Senhor e à Senhora Tarbeck, e aos Rheyne de Castamere. E
em Porto Real, ensinou-a à minha irmã. O elmo, Dagos. — Mandwoody entregou-lho; um elmo elevado e dourado com um disco de cobre montado na testa, o Sol de Dorne. Tyrion viu que a viseira fora removida.
— Elia e os filhos há muito que esperam justiça. — O Príncipe Oberyn calçou luvas flexíveis de couro vermelho e voltou a pegar na lança. — Mas hoje obtê-la-ão.
  Para o combate fora escolhido o pátio exterior. Tyrion teve de saltar e correr para acompanhar as longas passadas do Príncipe Oberyn. A serpente está impaciente, pensou. Esperemos que ele também esteja
venenoso. O dia estava cinzento e ventoso. O Sol lutava para abrir caminho por entre as nuvens, mas Tyrion não seria mais capaz de indicar quem iria vencer essa luta do que aquela da qual a sua vida dependia.
  Pareciam um milhar, as pessoas que tinham vindo ver se ele iria sobreviver ou morrer. Aglomeravam-se ao longo dos adarves do castelo e acotovelavam-se nos degraus de torres e fortalezas. Observavam
a partir de portas de estábulos, de janelas e pontes, de varandas e telhados. E o pátio estava repleto de gente, tanta que os homens de mantos dourados e os cavaleiros da Guarda Real tinham de a empurrar
para trás, a fim de abrir espaço suficiente para o combate. Alguns tinham trazido cadeiras para assistir com mais conforto, enquanto outros se empoleiravam em barris. Devíamos ter feito isto na Arena
dos Dragões, pensou amargamente Tyrion. Podíamos ter cobrado um dinheiro por cabeça, e arranjaríamos o suficiente para pagar quer a boda, quer o funeral de Joffrey. Alguns dos assistentes até tinham crianças
pequenas encavalitadas ao ombro, para verem melhor. Gritavam e apontavam ao ver Tyrion.
  A própria Cersei parecia quase uma criança ao lado de Sor Gregor. Na sua armadura, a Montanha parecia maior do que qualquer homem tinha direito a ser. Sob um longo sobretudo amarelo ostentando os três
cães negros de Clegane, usava armadura pesada por cima de cota de malha, com o baço aço cinzento amolgado e riscado em batalha. Por baixo daquilo haveria couro fervido e uma camada almofadada. Um elmo
de topo chato estava afivelado ao seu gorjal, com buracos para respirar em volta da boca e nariz e uma estreita ranhura para ver. A figura no topo do elmo era um punho de pedra.
  Se Sor Gregor vinha a sofrer de ferimentos, Tyrion não via sinal de tal coisa desde o outro lado do pátio. Ele, ali em pé, parece ter sido esculpido em pedra. A espada estava espetada no chão à sua
frente, um metro e oitenta de metal riscado. As enormes mãos de Sor Gregor, revestidas por manoplas articuladas de aço, estavam apoiadas no guarda-mão de ambos os lados do cabo. Até a amante do Príncipe
Oberyn empalideceu ao vê-lo.
  — Vais lutar com aquilo? — disse Ellaria Sand num tom segredado.
  — Vou matar aquilo — respondeu descuidadamente o seu amante.
  Tyrion tinha as suas próprias dúvidas, agora que se encontravam à beira do combate. Quando olhou para o Príncipe Oberyn deu por si desejando ter Bronn a defendê-lo… ou melhor ainda, Jaime. A Víbora
Vermelha tinha uma armadura ligeira; grevas, braçais, gorjal, espaldar e bragadura de aço. Fora isso, Oberyn vestia couro flexível e sedas leves. Sobre o lorigão usava as suas escamas brilhante de cobre,
mas cota de malha e escamas, em conjunto, não lhe dariam um quarto da protecção da placa pesada de Gregor. Com a viseira removida, o elmo do príncipe não passava efectivamente de um meio-elmo, faltando-lhe
até uma protecção para o nariz. O seu escudo redondo de aço era brilhantemente polido, e ostentava o Sol e a lança em ouro vermelho, ouro amarelo, ouro branco e cobre.
  Dançar em volta dele até ficar tão cansado que quase não consiga erguer o braço, e depois derrubá-lo de costas. A Víbora Vermelha parecia ter a mesma ideia de Bronn. Mas o mercenário não tivera rodeios
quanto ao risco de uma tal táctica. Espero, com os sete infernos, que saibas o que estás a fazer, serpente.
  Fora erigida uma plataforma ao lado da Torre da Mão, a meio caminho entre os dois campeões. Era aí que se sentava o Lorde Tywin com o irmão, Sor Kevan. O Rei Tommen não estava visível; por isso, pelo
menos, Tyrion sentia-se grato.
  O Lorde Tywin deitou um breve relance ao seu filho anão, e então ergueu a mão. Uma dúzia de trombeteiros soprou uma fanfarra para aquietar a multidão. O Alto Septão avançou com passinhos curtos e a
sua grande coroa de cristal, e rezou para que o Pai no Céu os ajudasse naquele julgamento, e para que o Guerreiro emprestasse a sua força ao braço do homem cuja causa era justa. Esse sou eu, quase gritou
Tyrion, mas eles limitar-se-iam a rir, e estava mortalmente farto de risos.
  Sor Osmund Kettleblack trouxe a Clegane o seu escudo, uma coisa massiva de pesado carvalho reforçado com ferro negro. Enquanto a Montanha enfiava o braço esquerdo nas correias, Tyrion viu que fora pintado
outro símbolo por cima dos cães de Clegane. Naquela manhã, Sor Gregor usava a estrela de sete pontas que os ândalos tinham trazido para Westeros quando cruzaram o Mar Estreito e esmagaram os Primeiros
Homens e os seus deuses. Muito pio da tua parte, Cersei, mas duvido que os deuses se deixem impressionar.
  Havia cinquenta metros entre os dois. O Príncipe Oberyn avançou rapidamente, Sor Gregor de um modo mais sinistro. O chão não treme quando ele caminha, disse Tyrion a si próprio. Isso é só o meu coração
a bater. Quando os dois homens chegaram a uma distância de dez metros, a Víbora Vermelha parou e gritou:
  — Disseram-vos quem eu sou?
  Sor Gregor soltou um grunhido através dos buracos para respirar.
  — Um morto qualquer. — E avançou, inexorável.
  O dornês deslizou para o lado.
  — Sou Oberyn Martell, um príncipe de Dorne — disse, enquanto a Montanha se virava para o manter no seu campo de visão. — A Princesa Elia era minha irmã.
  — Quem? — perguntou Gregor Clegane.
  A longa lança de Oberyn saltou numa estocada, mas Sor Gregor parou-lhe a ponta com o escudo, empurrou-a para o lado, e investiu contra o príncipe, com a grande espada a relampejar. O dornês rodopiou
para longe, intocado. A lança saltou em frente. Clegane golpeou-a com a espada, Martell puxou-a, após o que voltou a atirá-la em frente. Metal guinchou contra metal quando a ponta da espada deslizou no
peito da Montanha, cortando o sobretudo e deixando um longo arranhão brilhante no aço que se encontrava por baixo.
  — Elia Martell, Princesa de Dorne — sibilou a Víbora Vermelha. — Violaste-la. Assassinaste-la. Matastes os seus filhos.
  — Vieste conversar ou lutar?
  — Vim ouvir a vossa confissão. — A Víbora Vermelha atirou um rápido golpe contra a barriga da Montanha, sem qualquer efeito. Gregor tentou golpeá-lo e falhou. A longa lança dardejou por cima da sua
espada. Qual língua de serpente, volteava para a frente e para trás, fintando em baixo e batendo em cima, em estocadas dirigidas às virilhas, ao escudo, aos olhos. A Montanha dá um alvo grande, pelo menos,
pensou Tyrion. O Príncipe Oberyn dificilmente falharia, embora nenhum dos seus golpes tivesse conseguido penetrar a placa pesada de Sor Gregor. O dornês não parava de rodear o adversário, de lançar estocadas
e de voltar a saltar para trás, forçando o homem maior a virar-se e virar-se de novo. Clegane está a perdê-lo de vista. O elmo da Montanha tinha uma viseira estreita, que lhe limitava severamente a visão.
Oberyn estava a fazer bom uso desse facto, e do comprimento da lança e da sua rapidez.
  A luta prosseguiu naqueles moldes durante aquilo que pareceu um longo período. Deslocaram-se de um lado para o outro pelo pátio fora, e rodaram e voltaram a rodar, descrevendo espirais, com Sor Gregor
a golpear o ar enquanto a lança de Oberyn atingia os braços e as pernas e duas vezes as têmporas. O grande escudo de madeira de Gregor também recebeu a sua conta de golpes, até uma cabeça de cão espreitar
de debaixo da estrela e noutros pontos ser o carvalho nu a surgir. Clegane soltava um grunhido de vez em quando, e uma vez Tyrion ouviu-o resmungar uma praga, mas fora isso lutava num silêncio carrancudo.
  Mas Oberyn Martell não.
  — Violaste-la — gritava, fintando. — Assassinaste-la — dizia, esquivando-se a um golpe em arco da espada de Gregor. — Matastes os seus filhos — berrava, atingindo a garganta do gigante com a ponta da
lança, apenas para a ver deslizar pelo espesso gorjal de aço com um guincho.
  — Oberyn está a brincar com ele — disse Ellaria Sand.
  Isso é brincadeira de tolos, pensou Tyrion.
  — A Montanha é grande de mais para ser brinquedo seja para quem for.
  Em torno do pátio, a multidão de espectadores aproximava-se lentamente dos dois combatentes, avançando centímetro a centímetro para ver melhor. A Guarda Real tentava contê-los, empurrando com força
os basbaques com os seus grandes escudos brancos, mas havia centenas de basbaques e só seis dos homens da armadura branca.
  — Violaste-la. — O Príncipe Oberyn parou um violento golpe com a ponta da lança. — Assassinaste-la. — Atirou a ponta da lança contra os olhos de Clegane, tão depressa que o enorme homem vacilou para
trás. — Matastes os seus filhos. — A lança cintilou para o lado e para baixo, raspando na placa de peito da Montanha. — Violaste-la. Assassinaste-la. Matastes os seus filhos. — A lança era sessenta centímetros
mais longa do que a espada de Sor Gregor, mais do que o suficiente para o manter a uma distância incómoda. A Montanha golpeava a haste sempre que Oberyn saltava sobre ele, tentando cortar a ponta da lança,
mas era como se estivesse a tentar cortar de um golpe as asas de uma mosca. — Violaste-la. Assassinaste-la. Matastes os seus filhos. — Gregor tentou investir, mas Oberyn esquivou-se para o lado e rodeou-o
pelas costas. — Violaste-la. Assassinaste-la. Matastes os seus filhos.
  — Está calado. — Sor Gregor parecia estar a mover-se um pouco mais lentamente, e a sua espada já não se erguia tanto como quando a luta começara. — Fecha a merda da boca.
  — Violaste-la — disse o príncipe, deslocando-se para a direita.
  — Basta! — Sor Gregor deu dois longos passos e fez cair a espada sobre a cabeça de Oberyn, mas o dornês recuou uma vez mais.
  — Assassinaste-la — disse.
  — CALA-TE! — Gregor arremeteu de cabeça, mesmo a direito contra a ponta da lança, que atingiu com violência a parte direita do seu peito e depois deslizou para o lado com um hediondo guincho de aço.
De súbito a Montanha encontrava-se suficientemente perto para atacar, com a sua enorme espada a relampejar numa confusão de aço. A multidão também gritava. Oberyn esquivou-se ao primeiro golpe e largou
a lança, inútil agora que Sor Gregor penetrara no seu raio de acção. O segundo golpe foi aparado pelo escudo do dornês. Metal colidiu com metal com um estrondo ensurdecedor, pondo a Víbora Vermelha a
cambalear para trás. Sor Gregor seguiu-o, berrando. Ele não usa palavras, limita-se a rugir como um animal, pensou Tyrion. A retirada de Oberyn transformou-se numa impetuosa fuga para trás, a meros centímetros
da espada que lhe atacava o peito, os braços, a cabeça.
  O estábulo encontrava-se atrás dele. Espectadores gritaram e empurraram-se para sair do caminho. Um deles tropeçou e caiu contra as costas de Oberyn. A Víbora Vermelha atirou-se para o lado, rolando.
O infeliz moço de estrebaria que estava atrás dele não foi assim tão rápido. No momento em que o seu braço se erguia para lhe proteger o rosto, a espada de Gregor cortou-o entre o cotovelo e o ombro.
  — Cala-TE! — berrou a Montanha em resposta ao grito do moço de estrebaria, e desta vez brandiu a lâmina de lado, fazendo voar a metade superior da cabeça do rapaz por sobre o pátio, numa chuva de sangue
e miolos. Centenas de espectadores pareceram perder de súbito todo o interesse na culpa ou inocência de Tyrion Lannister, ajuizando pelo modo como se puxaram e empurraram uns aos outros para fugir do
pátio.
  Mas a Víbora Vermelha de Dorne estava de novo em pé, com a sua longa lança na mão.
  — Elia — gritou para Sor Gregor. — Violaste-la. Assassinaste-la. Matastes os seus filhos. E agora, dizei o seu nome.
  A Montanha rodopiou. Elmo, escudo, espada, sobretudo, estava salpicado de sangue e entranhas da cabeça aos pés.
  — Falas de mais — resmungou. — Fazes-me doer a cabeça.
  — Quero ouvir-vos dizê-lo. Ela era Elia de Dorne.
  A Montanha fungou de desprezo, e atacou… e nesse momento o Sol rompeu por entre as nuvens baixas que escondiam o céu desde a alvorada.
  O Sol de Dorne, disse Tyrion a si próprio, mas quem primeiro reagiu para colocar o Sol nas costas foi Gregor Clegane. Este homem é obtuso e brutal, mas tem os instintos de um guerreiro.
  A Víbora Negra agachou-se, semicerrando os olhos, e voltou a fazer saltar a lança em frente. Sor Gregor tentou golpeá-la, mas a estocada fora apenas uma finta. Desequilibrado, deu um passo trôpego em
frente.
  O Príncipe Oberyn inclinou o seu escudo amolgado de metal. Um raio de luz do Sol reflectiu-se, cegante, em ouro e cobre polido, e penetrou na estreita fenda do elmo do adversário. Clegane ergueu o seu
escudo para se proteger do brilho. A lança do Príncipe Oberyn dardejou como um relâmpago e descobriu a brecha na pesada placa de aço, a articulação por baixo do braço. A ponta mergulhou através de cota
de malha e couro fervido. Gregor soltou um grunhido estrangulado quando o dornês torceu a lança e a libertou.
  — Elia. Dizei o nome! Elia de Dorne! — Descrevia um círculo, com a lança preparada para outra estocada. — Dizei o nome!
  Tyrion tinha a sua prece privada. Cai e morre, eram as palavras que a compunham. Maldito sejas, cai e morre! O sangue que pingava do sovaco da Montanha era agora o seu, e devia estar a sangrar ainda
mais dentro da armadura. Quando tentou dar um passo, um joelho cedeu. Tyrion julgou que ele ia cair.
  O Príncipe Oberyn tinha dado a volta por trás dele.
  — ELIA DE DORNE! — gritou. Sor Gregor começou a virar-se, mas com demasiada lentidão e tarde de mais. A ponta da lança penetrou daquela vez na parte de trás do joelho, através de camadas de cota de
malha e couro entre as placas, penetrando na coxa e na barriga da perna. A Montanha cambaleou, oscilou e depois caiu de cara no chão. A sua enorme espada saltou-lhe da mão. Lenta e pesadamente, rolou
sobre as costas.
  O dornês deitou fora o seu escudo arruinado, pegou na lança com ambas as mãos, e afastou-se lentamente. Atrás dele, a Montanha soltou um gemido e ergueu-se sobre um cotovelo. Oberyn rodopiou com a rapidez
de um gato e correu contra o adversário caído.
  — EEEEELLLLLIIIIIAAAAA! — gritou, ao empurrar a lança com todo o peso do seu corpo. O crac da haste de freixo a partir-se foi um som quase tão delicioso como o lamento de fúria de Cersei, e por um instante
o Príncipe Oberyn teve asas. A serpente saltou à vara sobre a Montanha. Metro e vinte de lança partida projectavam-se da barriga de Clegane quando o Príncipe Oberyn rolou, se ergueu e sacudiu a poeira.
Deitou fora a lança estilhaçada e pegou na espada do adversário. — Se morrerdes antes de dizer o nome dela, sor, perseguir-vos-ei por todos os sete infernos — prometeu.
  Sor Gregor tentou erguer-se. A lança quebrada trespassara-o por completo e estava a prendê-lo ao chão. Fechou ambas as mãos em volta da haste, grunhindo, mas não foi capaz de a puxar. Por baixo dele
espalhava-se uma poça vermelha.
  — Estou a sentir-me mais inocente a cada instante — disse Tyrion a Ellaria Sand, a seu lado.
  O Príncipe Oberyn aproximou-se do adversário.
  — Dizei o nome! — Pôs um pé no peito da Montanha e ergueu a espada com ambas as mãos. Tyrion nunca saberia se ele pretendia cortar a cabeça a Gregor ou enfiar a ponta através da sua viseira.
  A mão de Clegane saltou e agarrou o dornês atrás do joelho. A Víbora Vermelha fez cair a espada num golpe selvagem, mas estava desequilibrado, e o gume não fez mais do que deixar mais uma amolgadela
no braçal da Montanha. Então a espada foi esquecida quando a mão de Gregor se apertou e torceu, fazendo cair o dornês por cima dele. Lutaram no meio da poeira e do sangue, com a lança quebrada a bandear
de um lado para o outro. Tyrion viu com horror que a Montanha envolvera o príncipe num enorme braço, apertando-o com força contra o peito, como se fosse um amante.
  — Elia de Dorne — ouviram todos Sor Gregor dizer, quando os dois ficaram suficientemente próximos para se beijar. A sua voz profunda retumbava dentro do elmo. — Matei a sua criazinha chorona. — Atirou
a mão livre contra a cara sem protecção de Oberyn, enfiando-lhe dedos de aço nos olhos. — E depois violei-a. — Clegane esmagou o punho na boca do dornês, transformando-lhe os dentes em lascas. — E depois
esmaguei-lhe a puta da cabeça. Assim. — Quando puxou para trás o enorme punho, o sangue na sua manopla pareceu fumegar no ar frio da alvorada. Ouviu-se um crunch nauseante. Ellaria Sand uivou de terror
e o pequeno-almoço de Tyrion subiu-lhe borbulhando até à boca. Deu por si de joelhos, a vomitar bacon, salsicha e bolinhos de maçã, e aquela dose dupla de ovos estrelados feitos com cebolas e pimenta
picante de Dorne.
  Não chegou a ouvir o pai proferir as palavras que o condenavam. Talvez não houvesse necessidade de palavras. Pus a minha vida nas mãos da Víbora Vermelha, e ele deixou-a cair. Quando se lembrou, tarde
de mais, de que as serpentes não tinham mãos, Tyrion desatou a rir histericamente.
  Já tinha descido metade da escada em espiral quando se apercebeu de que os homens de mantos dourados não o estavam a levar de volta à sua sala de torre.
  — Fui mandado para as celas negras — disse. Não obteve resposta. Para quê gastar saliva com os mortos?
 
 DAENERYS
  Dany quebrou o jejum à sombra do diospiro que crescia no jardim do terraço, observando os dragões que se perseguiam uns aos outros em volta do cume da Grande Pirâmide onde se erguera outrora a enorme
harpia de bronze. Meereen tinha uma vintena de pirâmides menores, mas nenhuma chegava sequer a metade da altura daquela. Dali conseguia ver toda a cidade: as estreitas vielas sinuosas e as largas ruas
de tijolo, templos e celeiros, choupanas e palácios, bordéis e casas de banhos, jardins e fontanários, os grandes círculos vermelhos das arenas de luta. E para lá das muralhas estendia-se o mar de peltre,
o sinuoso Skahazadhan, as secas colinas castanhas, pomares queimados e campos enegrecidos. Ali em cima no seu jardim, Dany sentia-se por vezes como um deus, vivendo no topo da montanha mais alta do mundo.
  Sentir-se-ão todos os deuses assim tão sozinhos? Alguns deviam sentir, certamente. Missandei contara-lhe a história do Senhor da Harmonia, adorado pelo Pacífico Povo de Naath; era o único deus verdadeiro,
dissera a sua pequena escriba, o deus que sempre existira e sempre existiria, que fizera a Lua, as estrelas e a Terra, e todas as criaturas que viviam sobre elas. Pobre Senhor da Harmonia. Dany apiedava-se
dele. Devia ser terrível estar só para todo o sempre, servido por hordas de mulheres-borboletas que se podia criar e destruir com uma palavra. Westeros ao menos tinha sete deuses, embora Viserys lhe tivesse
dito que alguns septões afirmavam que os sete eram apenas aspectos de um deus único, sete facetas de um único cristal. Isso era uma confusão. Os sacerdotes vermelhos acreditavam em dois deuses, segundo
ouvira dizer, mas os dois estavam eternamente em guerra. Dany gostava ainda menos daquilo. Não quereria estar eternamente em guerra.
  Missandei serviu-lhe ovos de pato e salsicha de cão, e meia taça de vinho adoçado misturado com o sumo de uma lima. O mel atraía moscas, mas uma vela odorífera afastava-as. Descobrira que as moscas
não eram tão incómodas ali em cima como no resto da cidade, mais uma coisa que lhe agradava na pirâmide.
  — Tenho de me lembrar de fazer qualquer coisa a propósito das moscas — disse Dany. — Há muitas moscas em Naath, Missandei?
  — Em Naath há borboletas — respondeu a escriba no Idioma Comum. — Mais vinho?
  — Não. Tenho uma audiência em breve. — Dany passara a gostar muito de Missandei. A pequena escriba com os grandes olhos dourados era possuidora de uma sabedoria bem para lá da idade. E também é corajosa.
Teve de o ser, para sobreviver à vida que viveu. Um dia esperava ver essa legendária ilha de Naath. Missandei dizia que o Pacífico Povo fazia música em vez de guerra. Não matavam, nem sequer animais;
comiam apenas frutos e nunca tocavam em carne. Os espíritos borboletas sagrados para o seu Senhor da Harmonia protegiam-lhes a ilha contra aqueles que desejavam fazer-lhes mal. Muitos conquistadores tinham
velejado para Naath a fim de molharem as espadas em sangue, só conseguindo adoecer e morrer. As borboletas não os ajudam quando os navios dos escravos fazem surtidas, porém. — Um dia levo-te para casa,
Missandei — prometeu Dany. Se tivesse feito a mesma promessa a Jorah, ter-me-ia vendido na mesma? — Juro.
  — Esta está contente por ficar convosco, Vossa Graça. Naath estará lá sempre. Vós sois boa para est… para mim.
  — Tal como tu para mim. — Dany deu a mão à rapariga. — Vem ajudar-me a vestir.
  Jhiqui ajudou Missandei a dar-lhe banho enquanto Irri lhe preparava as roupas. Hoje usaria uma veste de samito púrpura e uma faixa de prata, com a coroa do dragão de três cabeças que a Irmandade Turmalina
lhe dera em Qarth. Os chinelos também eram prateados, com tacões tão altos que ela tinha sempre algum receio de cair. Quando acabou de se vestir, Missandei trouxe-lhe um espelho de prata polida para se
poder mirar. Dany fitou-se em silêncio. Será este o rosto de um conquistador? Pelo que podia ver, ainda parecia uma rapariguinha.
  Ninguém lhe chamava ainda Daenerys, a Conquistadora, mas talvez viessem a fazê-lo. Aegon, o Conquistador, vencera Westeros com três dragões, mas ela tomara Meereen com ratazanas de esgoto e uma picha
de madeira, em menos de um dia. Pobre Groleo. Dany sabia que o homem ainda andava desgostoso por causa do navio. Se uma galé de guerra podia abalroar outro navio, porque não um portão? Fora essa a sua
ideia quando ordenara aos capitães para encalhar os navios. Os mastros tinham-se transformado nos seus aríetes, e uma multidão de libertos desfizera os cascos para construir manteletes, tartarugas, catapultas
e escadas. Os mercenários tinham baptizado os aríetes com nomes obscenos, e fora o mastro principal da Meraxes — anteriormente chamada Partida de Joso — que fendera o portão oriental. Chamavam-lhe Picha
de Joso. A luta encarniçara-se, amarga e sangrenta, durante a maior parte de um dia e entrara pela noite dentro antes de a madeira começar a lascar e a figura de proa da Meraxes, uma cara de bobo a rir,
a trespassar.
  Dany quisera ser ela mesma a liderar o ataque, mas todos os seus capitães, sem excepção, disseram que isso seria loucura, e os seus capitães nunca concordavam em coisa alguma. Em vez de liderar, permanecera
na retaguarda, montada na sua prata, envergando um longo lorigão de cota de malha. Mas ouvira a cidade cair de uma distância de meia légua, quando os gritos de desafio dos defensores se transformaram
em gritos de medo. Nesse momento, os dragões tinham rugido como se fossem um só, enchendo a noite de chamas. Os escravos estão a rebelar-se, compreendeu de imediato. As minhas ratazanas de esgoto roeram-lhes
as grilhetas.
  Depois de os últimos restos de resistência terem sido esmagados pelos Imaculados e o saque terminar, Dany entrara na sua cidade. A pilha de mortos perante o portão principal era tão alta que os seus
libertos precisaram de quase uma hora para abrir um caminho para a sua prata. A Picha de Joso e a grande tartaruga de madeira que a protegera, coberta de peles de cavalo, estavam abandonadas lá dentro.
Passara por edifícios incendiados e janelas quebradas, através de ruas de tijolo cujas sarjetas estavam entupidas com os mortos, rígidos e inchados. Escravos gritando vivas erguiam para si ao passar mãos
manchadas de sangue e chamavam-lhe “Mãe”.
  Na praça em frente da Grande Pirâmide, os meereeneses tinham-se amontoado sem esperança. Os Grandes Mestres pareciam tudo menos grandes à luz da manhã. Despojados das jóias e dos seus tokars debruados,
eram desprezíveis; uma manada de velhos com tomates engelhados e pele manchada e de jovens com penteados ridículos. As suas mulheres eram ou moles e carnudas ou secas como paus velhos, com a tinta facial
riscada por lágrimas.
  — Quero os vossos líderes — dissera-lhes Dany. — Entregai-os, e os demais sereis poupados.
  — Quantos? — perguntara uma velha, entre soluços. — Quantos quereis para nos poupardes?
  — Cento e sessenta e três — respondera.
  Ordenara que fossem pregados a postes de madeira em volta da praça, cada um a apontar para o seguinte. A ira ardia feroz e quente dentro dela quando dera a ordem; fizera-a sentir-se como um dragão vingador.
Mas mais tarde, quando passara pelos moribundos nos postes, quando ouvira os seus gemidos e cheirara as suas entranhas e sangue…
  Dany pôs o espelho de lado, franzindo o sobrolho. Foi justo. Foi mesmo. Fi-lo pelas crianças.
  A câmara de audiências ficava no piso imediatamente abaixo, uma sala cheia de ecos, de tecto elevado e com paredes de mármore púrpura. Era um lugar gelado, apesar de toda a sua grandiosidade. Houvera
ali um trono, uma coisa fantástica de madeira esculpida e dourada, com a forma de uma harpia selvagem. Deitara-lhe um longo olhar e ordenara que fosse transformado em lenha.
  — Não me sentarei ao colo da harpia — dissera-lhes. Em vez disso, sentava-se num simples banco de ébano. Servia, embora tivesse ouvido os meereeneses a resmungar que não era adequado para uma rainha.
  Os companheiros de sangue estavam à sua espera. Campainhas de prata tilintavam nas suas tranças oleadas, e usavam o ouro e as jóias de homens mortos. Meereen fora rica para lá do que era possível imaginar.
Até os mercenários pareciam saciados, pelo menos para já. Do outro lado da sala, Verme Cinzento usava o uniforme simples dos Imaculados, com o capacete de bronze provido de espigão debaixo de um braço.
Naqueles, pelo menos, podia confiar, ou assim esperava… e no Ben Castanho Plumm também, no sólido Ben com o seu cabelo cinzento-esbranquiçado e cara desgastada, tão enamorado pelos seus dragões. E Daario,
a seu lado, cintilando de ouro. Daario e Ben Plumm, Verme Cinzento, Irri, Jhiqui, Missandei… enquanto os olhava, Dany deu por si a perguntar a si própria qual deles seria o próximo a traí-la.
  O dragão tem três cabeças. Há no mundo dois homens em que posso confiar, se os conseguir encontrar. Então já não estarei só. Seremos três contra o mundo, como Aegon e as irmãs.
  — A noite foi tão calma como pareceu? — perguntou Dany.
  — Parece que sim, Vossa Graça — disse o Ben Castanho Plumm.
  Ficou contente. Meereen fora saqueada de forma selvática, como sempre acontecia às cidades acabadas de cair, mas Dany estava determinada a que isso terminasse, agora que a cidade lhe pertencia. Decretara
que os assassinos seriam enforcados, que os saqueadores perderiam uma mão e os violadores os seus membros viris. Oito homicidas pendiam das muralhas, e os Imaculados tinham enchido um cesto de trinta
e cinco litros com mãos ensanguentadas e vermes moles e vermelhos, mas Meereen estava de novo calma. Mas por quanto tempo?
  Uma mosca zumbiu em volta da sua cabeça. Dany enxotou-a, irritada, mas o insecto regressou quase imediatamente.
  — Há demasiadas moscas nesta cidade.
  Ben Plumm soltou uma gargalhada.
  — Havia moscas na minha cerveja hoje de manhã. Engoli uma.
  — As moscas são a vingança dos mortos. — Daario sorriu, e afagou a parte central da sua barba. — Os cadáveres geram vermes, e os vermes geram moscas.
  — Então livrar-nos-emos dos cadáveres. Começando por aqueles que estão lá em baixo na praça. Verme Cinzento, tratarás disso?
  — A rainha ordena, estes obedecem.
  — É melhor levares tanto sacas como pás, Verme — aconselhou o Ben Castanho. — Aqueles já estão bem para lá de maduros. Andam a cair daqueles postes aos bocados e estão cheios de…
  — Ele sabe. E eu também. — Dany recordou o horror que sentira quando vira a Praça da Punição em Astapor. Criei um horror igualmente grande, mas decerto que o mereceram. Justiça dura é na mesma justiça.
  — Vossa Graça — disse Missandei —, os ghiscari enterram os seus mortos de honra em criptas por baixo das suas mansões. Se fervêsseis os ossos e os devolvêsseis às famílias, seria uma bondade.
  As viúvas amaldiçoar-me-ão na mesma.
  — Que assim se faça. — Dany fez um sinal para Daario. — Quantos pretendem hoje uma audiência?
  — Apresentaram-se dois para se aquecer sob a vossa radiância.
  Daario servira-se de um guarda-roupa inteiramente novo durante o saque de Meereen, e para condizer com ele voltara a pintar a barba cortada em tridente e o cabelo encaracolado com um profundo e rico
tom de púrpura. Aquela coloração fazia com que os olhos parecessem também quase púrpura, como se ele fosse algum valiriano perdido.
  — Chegaram durante a noite na Estrela Índigo, uma galé mercante de Qarth.
  Um navio traficante de escravos, queres tu dizer. Dany franziu o sobrolho.
  — Quem são?
  — O mestre da Estrela e um homem que diz falar por Astapor.
  — Receberei primeiro o enviado.
  Este revelou-se um homem pálido com cara de furão e pesados cordões de pérolas e fio de ouro pendurados do pescoço.
  — Vossa Reverência! — gritou. — O meu nome é Ghael. Trago saudações para a Mãe de Dragões do Rei Cleon de Astapor, Cleon, o Grande.
  Dany ficou hirta.
  — Deixei um conselho a governar Astapor. Um curandeiro, um erudito e um sacerdote.
  — Vossa Reverência, esses patifes manhosos traíram a vossa confiança. Revelou-se que estavam a maquinar a devolução do poder aos Grandes Mestres e das grilhetas ao povo. O Grande Cleon expôs os seus
planos e cortou-lhes as cabeças com um cutelo, e o grato povo de Astapor coroou-o pelo seu valor.
  — Nobre Ghael — disse Missandei, no dialecto de Astapor —, será este o mesmo Cleon em tempos propriedade de Grazdan mo Ullhor?
  A voz dela era franca, mas era claro que a pergunta deixara o enviado ansioso.
  — Ele mesmo — admitiu. — Um grande homem.
  Missandei inclinou-se para Dany.
  — Era carniceiro na cozinha de Grazdan — segredou-lhe a rapariga ao ouvido. — Dizia-se que conseguia matar um porco mais depressa do que qualquer outro homem em Astapor.
  Dei a Astapor um rei carniceiro. Dany sentiu-se doente, mas sabia que não podia deixar que o enviado se apercebesse disso.
  — Rezarei para que o Rei Cleon governe bem e sabiamente. Que quer ele de mim?
  Ghael esfregou a boca.
  — Talvez devêssemos conversar com maior privacidade, Vossa Graça?
  — Não tenho segredos para os meus capitães e comandantes.
  — Como desejardes. O Grande Cleon pede-me para declarar a sua devoção pela Mãe de Dragões. Os vossos inimigos são os seus inimigos, diz ele, e acima de todos encontram-se os Sábios Mestres de Yunkai.
Propõe um pacto entre Astapor e Meereen, contra os yunkaitas.
  — Jurei que nenhum mal aconteceria a Yunkai se libertasse os escravos — disse Dany.
  — Esses cães yunkaitas não são dignos de confiança, Vossa Reverência. Neste preciso momento conspiram contra vós. Foram feitos novos recrutas e podem ver-se escavações fora das muralhas da cidade; estão
a ser construídos navios de guerra, foram enviadas embaixadas a Nova Ghis e Volantis, no ocidente, para fazer alianças e contratar mercenários. Até enviaram cavaleiros para Vaes Dothrak para fazer cair
um khalasar sobre vós. Cleon, o Grande, pediu-me que vos diga para não terdes medo. Astapor tem memória. Astapor não vos abandonará. A fim de demonstrar a sua lealdade, o Grande Cleon oferece-se para
selar a aliança com um casamento.
  — Um casamento? Comigo?
  Ghael sorriu. Os seus dentes eram castanhos e podres.
  — O Grande Cleon dar-vos-á muitos filhos fortes.
  Dany deu por si privada de palavras, mas a pequena Missandei veio em seu auxílio.
  — A sua primeira esposa deu-lhe filhos?
  O enviado olhou-a com descontentamento.
  — O Grande Cleon teve três filhas da sua primeira esposa. Duas das suas esposas mais recentes esperam bebé. Mas ele pretende pô-las a todas de parte se a Mãe de Dragões consentir em desposá-lo.
  — Que nobre da sua parte — disse Dany. — Reflectirei em tudo o que dissestes, senhor. — Ordenou que fossem arranjados aposentos para Ghael passar a noite, algures num dos andares inferiores da pirâmide.
  Todas as minhas vitórias se transformam em escórias entre os meus dedos, pensou. Faça o que faça, tudo o que produzo é morte e horror. Quando a notícia do que acontecera a Astapor chegasse às ruas,
como certamente chegaria, dezenas de milhares de escravos meereeneses recém-libertados iriam sem dúvida decidir segui-la quando partisse para oeste, temendo o que os esperava se ficassem… mas podia bem
acontecer que o que os esperava na marcha fosse pior. Mesmo se esvaziasse todos os celeiros da cidade e entregasse Meereen à fome, como conseguiria alimentar tanta gente? O caminho à sua frente estava
pleno de dificuldades, derramamento de sangue e perigos. Sor Jorah prevenira-a disso. Prevenira-a de tantas coisas… ele… Não, não pensarei em Jorah Mormont. Que espere um pouco mais.
  — Receberei agora esse capitão mercador — anunciou. O homem talvez tivesse melhores novas.
  Essa expectativa revelou-se sem esperança. O mestre da Estrela Índigo era qarteno, de modo que chorou copiosamente quando foi interrogado a respeito de Astapor.
  — A cidade sangra. Mortos apodrecem nas ruas, por enterrar, cada pirâmide é um acampamento armado, e os mercados não têm nem comida nem escravos para vender. E as pobres crianças! Os rufias do Rei Cutelo
capturaram todos os rapazes de nascimento elevado de Astapor para fazer novos Imaculados para vender, embora faltem ainda anos até estarem treinados.
  O que mais surpreendeu Dany foi até que ponto não se surpreendeu. Deu por si a recordar Eroeh, a rapariga lhazarena que um dia tentara proteger, e aquilo que lhe acontecera. Será igual em Meereen quando
me puser em marcha, pensou. Os escravos das arenas de luta, criados e treinados para o massacre, já se estavam a revelar indisciplinados e conflituosos. Pareciam julgar que a cidade agora lhes pertencia,
bem como todos os homens e mulheres que nela viviam. Dois deles estavam entre os oito que enforcara. Nada mais posso fazer, disse a si própria.
  — Que quereis de mim, capitão?
  — Escravos — disse ele. — Os meus porões estão cheios até rebentar de marfim, âmbar cinzento, peles de zebralo e outros produtos de boa qualidade. Quero trocá-los aqui por escravos, para vender em Lys
e em Volantis.
  — Não temos escravos para vender — disse Dany.
  — Minha rainha? — Daario deu um passo em frente. — A margem do rio está cheia de meereeneses, pedindo licença para se venderem a este qarteno. São mais do que as moscas.
  Dany estava chocada.
  — Eles querem ser escravos?
  — Aqueles que vieram são bem falantes e de bom nascimento, querida rainha. Escravos assim são estimados. Nas Cidades Livres serão tutores, escribas, escravos de cama, e até curandeiros e sacerdotes.
Dormirão em camas fofas, comerão alimentos ricos, e habitarão em mansões. Aqui perderam tudo, e vivem no medo e na miséria.
  — Estou a ver. — Talvez não fosse assim tão chocante, se as histórias de Astapor fossem verdadeiras. Dany reflectiu por um momento. — Qualquer homem que deseje vender-se a si próprio para a escravatura
pode fazê-lo. Ou qualquer mulher. — Ergueu uma mão. — Mas não podem vender os filhos, e um homem não pode vender a esposa.
  — Em Astapor a cidade ficava com um décimo do preço, de todas as vezes que um escravo trocava de mãos — disse-lhe Missandei.
  — Nós faremos o mesmo — decidiu Dany. As guerras eram ganhas com espadas mas também com ouro. — Um décimo. Em moedas de ouro ou prata ou em marfim. Meereen não tem necessidade de açafrão, cravinho ou
peles de zebralo.
  — Far-se-á conforme ordenais, gloriosa rainha — disse Daario. — Os meus Corvos de Pedra colectarão a vossa décima.
  Dany sabia que se os Corvos de Pedra supervisionassem a colecta, metade do ouro iria arranjar maneira de se extraviar. Mas os Segundos Filhos eram igualmente maus, e os Imaculados eram tão incorruptíveis
como iletrados.
  — Terão de ser mantidos registos — disse. — Procurai entre os libertos homens que saibam ler, escrever e fazer somas.
  Com os seus assuntos tratados, o capitão da Estrela Índigo fez uma vénia e retirou-se. Dany mexeu-se desconfortavelmente no banco de ébano. Receava aquilo que teria de seguir-se, mas sabia que já o
adiara por demasiado tempo. Yunkai e Astapor, ameaças de guerra, propostas de casamento, a marcha para oeste a pairar sobre tudo… Preciso dos meus cavaleiros. Preciso das suas espadas, e preciso dos seus
conselhos. Mas a ideia de voltar a ver Jorah Mormont deixou-a como se tivesse engolido uma colherada de moscas; zangada, agitada, agoniada. Quase as sentia a zumbir-lhe na barriga. Sou do sangue do dragão.
Tenho de ser forte. Tenho de ter fogo nos olhos quando os enfrentar, não lágrimas.
  — Dizei a Belwas para trazer os meus cavaleiros — ordenou Dany, antes de ter tempo de mudar de ideias. — Os meus bons cavaleiros.
  Belwas, o Forte, bufava por causa da subida quando os fez atravessar as portas, com uma mão carnuda enrolada em torno de um braço de cada homem. Sor Barristan caminhava com a cabeça bem erguida, mas
Sor Jorah fitava o chão de mármore ao aproximar-se. Um traz orgulho, o outro culpa. O velho escanhoara a barba branca. Parecia dez anos mais novo sem ela. Mas o seu urso meio calvo parecia mais velho
do que antes. Pararam defronte do banco. Belwas, o Forte, deu um passo atrás e cruzou os braços sobre o seu peito coberto de cicatrizes. Sor Jorah pigarreou.
  — Khaleesi…
  Sentira tantas saudades da voz dele, mas tinha de ser severa.
  — Calai-vos. Eu dir-vos-ei quando falar. — Pôs-se em pé. — Quando vos enviei para os esgotos, parte de mim esperava não voltar a ver-vos. Morrer afogado na porcaria de esclavagistas parecia um fim adequado
para mentirosos. Pensei que os deuses tratassem de vós, mas em vez disso regressastes para mim. Os meus galantes cavaleiros de Westeros, um informador e um vira-casacas. O meu irmão ter-vos-ia enforcado
a ambos. — Pelo menos teria sido essa a atitude de Viserys. Não sabia o que Rhaegar faria. — Admito que me ajudastes a conquistar esta cidade…
  A boca de Sor Jorah apertou-se.
  — Fomos nós que conquistámos esta cidade. Nós, as ratazanas do esgoto.
  — Calai-vos — repetiu ela… se bem que havia verdade no que ele dissera. Enquanto a Picha de Joso e os outros aríetes arremetiam contra os portões da cidade e os arqueiros disparavam nuvens de setas
incendiárias por sobre as muralhas, Dany enviara duzentos homens pelo rio a coberto da escuridão para incendiar os cascos que havia no porto. Mas isso servira apenas para esconder o seu verdadeiro propósito.
Enquanto os navios em chamas atraíam os olhares dos defensores nas muralhas, um punhado de nadadores semi-loucos dirigiu-se à desembocadura dos esgotos e soltou uma ferrugenta grade de ferro. Sor Jorah,
Sor Barristan, Belwas, o Forte, e vinte bravos tolos esgueiraram-se por baixo da água castanha e pelo túnel de tijolo acima, uma força mista de mercenários, Imaculados e libertos. Dany dissera-lhes para
escolherem apenas homens sem família… e de preferência sem olfacto.
  Tinham tido tanta sorte como coragem. Passara-se uma volta de Lua desde a última chuvada forte, e a água nos esgotos só chegava às coxas. O oleado em que tinham enrolado os archotes manteve-os secos,
e por isso tinham luz. Alguns dos libertos assustaram-se com as enormes ratazanas até que Belwas, o Forte, apanhou uma e a cortou em duas com uma dentada. Um homem foi morto por um grande lagarto de cor
pálida que se ergueu da água escura e o arrastou, preso pela perna, mas da vez seguinte em que foram vistas ondulações, Sor Jorah matou a fera com a sua lâmina. Seguiram algumas vezes caminhos errados,
mas assim que encontraram a superfície, Belwas, o Forte, levou-os para a arena de luta mais próxima, onde surpreenderam alguns guardas e rebentaram as grilhetas dos escravos. Uma hora mais tarde, metade
dos escravos lutadores de Meereen tinha-se revoltado.
  — Vós ajudastes a conquistar esta cidade — repetiu com obstinação. — E servistes-me bem no passado. Sor Barristan salvou-me do Bastardo do Titã, e do Homem Pesaroso em Qarth. Sor Jorah salvou-me do
envenenador em Vaes Dothrak, e voltou a salvar-me dos companheiros de sangue de Drogo depois da morte do meu sol-e-estrelas. — Tantas pessoas a queriam ver morta, que por vezes perdia a conta. — E no
entanto mentistes, enganastes-me, traístes-me. — Virou-se para Sor Barristan. — Vós protegestes o meu pai por muitos anos, lutastes ao lado do meu irmão no Tridente, mas abandonastes Viserys ao exílio
e dobrastes o joelho ao Usurpador. Porquê? E falai verdade.
  — Há verdades que são difíceis de ouvir. Robert era… um bom cavaleiro… cavalheiresco, corajoso… poupou-me a vida, e as vidas de muitos outros… o Príncipe Viserys era apenas um rapaz, passar-se-iam muitos
anos até estar preparado para governar, e… perdoai-me, minha rainha, mas pedistes a verdade… até em criança, era frequente o vosso irmão Viserys parecer ser filho do seu pai de maneiras que Rhaenys nunca
parecia.
  — Filho do seu pai? — Dany franziu o sobrolho. — Que quer isso dizer?
  O velho cavaleiro não hesitou.
  — O vosso pai é conhecido em Westeros como “o Rei Louco”. Nunca ninguém vo-lo disse?
  — Viserys disse. — O Rei Louco. — O Usurpador chamava-lhe isso, o Usurpador e os seus cães. — O Rei Louco. — Era mentira.
  — Para quê pedir a verdade — disse Sor Barristan em voz baixa — se lhe fechais os ouvidos? — Hesitou, mas depois prosseguiu. — Já vos tinha dito que usei um nome falso para que os Lannister não soubessem
que me tinha juntado a vós. Isso foi menos de metade do motivo, Vossa Graça. A verdade é que queria observar-vos durante algum tempo antes de vos jurar a minha espada. Para me certificar de que não éreis…
  — …filha do meu pai? — Se não era filha do pai, quem seria?
  — …louca — concluiu ele. — Mas não vejo em vós a mácula.
  — A mácula? — irritou-se Dany.
  — Não sou um meistre para vos citar história, Vossa Graça. A minha vida foram as espadas, não os livros. Mas qualquer criança sabe que os Targaryen sempre dançaram demasiado perto da loucura. O vosso
pai não foi o primeiro. O Rei Jaehaerys disse-me um dia que a loucura e a grandeza eram dois lados da mesma moeda. Sempre que um novo Targaryen nasce, disse ele, os deuses atiram uma moeda ao ar e o mundo
sustém a respiração para ver para que lado cai.
  Jaehaerys. Este velho conheceu o meu avô. A ideia obrigou-a a reflectir. A maior parte daquilo que sabia de Westeros viera do irmão, e o resto de Sor Jorah. Sor Barristan devia ter esquecido mais do
que os outros dois alguma vez souberam. Este homem pode falar-me daquilo que levou até mim.
  — Então eu sou uma moeda nas mãos de um deus qualquer, é isso o que estais a dizer, sor?
  — Não — respondeu Sor Barristan. — Sois a legítima herdeira de Westeros. Até ao fim dos meus dias, permanecerei vosso leal cavaleiro, se me achardes digno de voltar a pegar numa espada. Se não, contento-me
em servir Belwas, o Forte, como seu escudeiro.
  — E se eu decidir que sois digno apenas de ser o meu bobo? — perguntou Dany num tom escarninho. — Ou talvez o meu cozinheiro?
  — Ficaria honrado, Vossa Graça — disse Selmy com calma dignidade. — Sou capaz de assar maçãs e cozer carne de vaca tão bem como qualquer homem, e já assei muitos patos em fogueiras de acampamentos.
Espero que gosteis deles gordurosos, com a pele chamuscada e ossos cheios de sangue.
  Aquilo fê-la sorrir.
  — Teria de estar louca para comer comida como essa. Ben Plumm, vinde entregar a Sor Barristan a vossa espada.
  Mas o Barba-Branca recusou-se a aceitá-la.
  — Atirei a minha espada aos pés de Joffrey e desde então não toquei em nenhuma outra. Só das mãos da minha rainha voltarei a aceitar uma espada.
  — Como quiserdes. — Dany tirou a espada ao Ben Castanho e ofereceu-a com o cabo para a frente. O velho pegou-lhe com reverência. — Agora ajoelhai — disse-lhe ela — e ajuramentai-a ao meu serviço.
  Ele caiu sobre um joelho e pousou a lâmina na frente dela enquanto proferia as palavras. Dany quase não as ouviu. Este foi o mais fácil, pensou. O outro será pior. Quando Sor Barristan terminou, virou-se
para Jorah Mormont.
  — E agora vós, sor. Dizei-me a verdade.
  O pescoço do grande homem estava vermelho; se de ira ou de vergonha, Dany não sabia.
  — Tentei dizer-vos a verdade meia centena de vezes. Disse-vos que Arstan era mais do que parecia ser. Preveni-vos de que Xaro e Pyat Pree não eram de confiança. Preveni-vos…
  — Prevenistes-me contra todos menos contra vós. — A insolência dele enfureceu-a. Devia ser mais humilde. Devia suplicar o meu perdão. — Não confieis em ninguém, a não ser em Jorah Mormont, dissestes…
e durante todo esse tempo éreis uma criatura da Aranha!
  — Não sou criatura de ninguém. Sim, recebi o ouro do eunuco. Soube de algumas coisas sem importância e escrevi algumas cartas, mas foi tudo…
  — Tudo? Espiastes-me e vendestes-me aos meus inimigos!
  — Durante algum tempo. — Ele disse-o de má vontade. — Parei.
  — Quando? Quando foi que parastes?
  — Enviei um relatório de Qarth, mas…
  — De Qarth? — Dany esperara que tivesse parado muito antes. — Que foi que escrevestes de Qarth? Que éreis agora um dos meus homens, que não queríeis mais fazer parte das maquinações deles? — Sor Jorah
não lhe enfrentava o olhar. — Quando Khal Drogo morreu, pedistes-me para ir convosco para Yi Ti e para o Mar de Jade. Esse desejo era vosso ou de Robert?
  — Isso era para vos proteger — insistiu ele. — Para vos manter longe deles. Eu sabia que serpentes eles eram…
  — Serpentes? E que sois vós, sor? — Ocorreu-lhe algo de indizível. — Contastes-lhes que eu esperava o filho de Drogo…
  — Khaleesi…
  — Que nem penseis em negá-lo, sor — disse em tom penetrante Sor Barristan. — Eu estava presente quando o eunuco o contou ao conselho, e Robert decretou que Sua Graça e o seu filho tinham de morrer.
Vós fostes a fonte, sor. Até se falou que poderíeis realizar o acto, em troca de um perdão.
  — Mentira. — O rosto de Sor Jorah escureceu. — Eu nunca… Daenerys, fui eu quem impediu que bebêsseis o vinho.
  — Sim. E como foi que soubestes que o vinho estava envenenado?
  — Eu… eu apenas suspeitava… a caravana tinha trazido uma carta de Varys, prevenindo-me de que haveria atentados. Ele queria-vos vigiada, é certo, mas não magoada. — Caiu de joelhos. — Se não lhes tivesse
dito nada, alguém o teria feito. Sabeis disso.
  — O que eu sei é que me traístes. — Tocou a barriga, onde o filho Rhaego perecera. — O que sei é que um envenenador tentou matar o meu filho graças a vós. É isso que eu sei.
  — Não… não. — Ele abanou a cabeça. — Eu nunca quis… perdoai-me. Tendes de perdoar-me.
  — Tenho? — Era tarde de mais. Ele devia ter começado por suplicar perdão. Não podia perdoá-lo como tencionara. Arrastara o vendedor de vinhos preso ao cavalo até nada restar dele. Não mereceria o mesmo
o homem que o trouxera? Este é Jorah, o meu urso feroz, o braço-direito que nunca me falhou. Estaria morta sem ele, mas… — Não posso perdoar-vos — disse. — Não posso.
  — Perdoastes o velho…
  — Ele mentiu-me a respeito do nome. Vós vendestes os meus segredos aos homens que mataram o meu pai e roubaram o trono ao meu irmão.
  — Protegi-vos. Lutei por vós. Matei por vós.
  Beijaste-me, pensou ela, traíste-me.
  — Entrei nos esgotos como se fosse uma ratazana. Por vós.
  Poderia ter sido uma bondade se tivesses aí morrido. Dany nada disse. Nada havia a dizer.
  — Daenerys — disse ele —, eu amei-vos.
  E aí estava. Três traições conhecerás. Uma vez por sangue, uma vez por ouro e uma vez por amor.
  — Os deuses nada fazem sem um objectivo, segundo dizem. Não morrestes em batalha, portanto isso deverá querer dizer que ainda tendes uma utilidade qualquer para eles. Mas para mim, não. Não vos quero
perto de mim. Estais banido, sor. Regressai para junto dos vossos chefes em Porto Real e recebei o vosso perdão, se puderdes. Ou ide para Astapor. O rei carniceiro irá sem dúvida precisar de cavaleiros.
  — Não. — Ele estendeu a mão para ela. — Daenerys, por favor, escutai-me…
  Ela afastou-lhe a mão com uma palmada.
  — Nunca tenhais a ousadia de voltar a tocar-me ou proferir o meu nome. Tendes até à alvorada para juntar as vossas coisas e abandonar esta cidade. Se fordes encontrado em Meereen após o raiar do dia,
ordenarei a Belwas, o Forte, que vos arranque a cabeça. E fá-lo-ei. Acreditai no que vos digo. — Virou-lhe as costas, fazendo rodopiar as saias. Não suporto ver o seu rosto. — Tirai este mentiroso da
minha vista — ordenou. Não posso chorar. Não posso. Se chorar, perdoá-lo-ei. Belwas, o Forte, pegou no braço de Sor Jorah e arrastou-o para fora da sala. Quando Dany deitou um relance para trás, o cavaleiro
caminhava como se estivesse bêbado, aos tropeções e lentamente. Afastou o olhar até ouvir o abrir e fechar das portas. Então voltou a afundar-se no banco de ébano. Então ele partiu. O meu pai e a minha
mãe, os meus irmãos, Sor Willem Darry, Drogo, que era o meu sol-e-estrelas, o filho dele que morreu dentro de mim, e agora Sor Jorah…
  — A rainha tem bom coração — ronronou Daario através da sua barba de um profundo tom de púrpura — mas aquele homem é mais perigoso do que todos os Oznaks e Meros combinados num só. — As fortes mãos
do mercenário acariciaram os cabos das suas armas idênticas, aquelas sensuais mulheres douradas. — Nem precisais de dizer uma palavra, minha radiância. Fazei apenas o menor dos acenos, e o vosso Daario
trazer-vos-á a sua feia cabeça.
  — Deixai-o em paz. Os pratos da balança estão agora equilibrados. Deixai-o ir para casa. — Dany imaginou Jorah a deslocar-se por entre velhos carvalhos nodosos e grandes pinheiros, passando por espinheiros
em flor, pedras cinzentas barbadas de musgo, e pequenos ribeiros a correr, gelados, por vertentes íngremes. Viu-o a entrar num salão feito de enormes troncos de árvores, onde cães dormiam junto à lareira
e o cheiro da carne e do hidromel pairava, pesado, no ar cheio de fumo. — Por agora terminámos — disse aos seus capitães.
  Foi com dificuldade que não subiu a correr as amplas escadas de mármore. Irri ajudou-a a despir o trajo para audiências e a vestir vestuário mais confortável; bragas largas de lã, uma túnica solta de
feltro, um colete pintado dothraki.
  — Estais a tremer, Khaleesi — disse a rapariga ao ajoelhar-se para atar as sandálias de Dany.
  — Tenho frio — mentiu Dany. — Traz-me o livro que estava a ler ontem à noite. — Desejava perder-se nas palavras, noutros tempos e noutros lugares. O grosso volume encadernado a couro estava cheio de
canções e histórias dos Sete Reinos. Histórias infantis, em boa verdade; demasiado simples e fantasiosas para serem histórias verdadeiras. Todos os heróis eram altos e bem-parecidos, e podia-se identificar
os traidores pelos seus olhos matreiros. Mas adorava-as mesmo assim. Na noite passada estivera a ler a história das três princesas na torre vermelha, trancadas pelo rei pelo crime de serem belas.
  Quando a aia trouxe o livro, Dany não teve dificuldade em encontrar a página em que interrompera a leitura, mas não valia a pena. Deu por si a ler a mesma passagem meia dúzia de vezes. Sor Jorah deu-me
este livro como presente de casamento, no dia em que desposei Khal Drogo. Mas Daario tem razão, não o devia ter banido. Devia tê-lo conservado a meu lado, ou morto. Representava o papel de rainha, mas
por vezes sentia-se ainda como uma rapariguinha assustada. Viserys andava sempre a dizer como eu era estúpida. Seria realmente louco? Fechou o livro. Ainda podia chamar Sor Jorah, se quisesse. Ou mandar
Daario matá-lo.
  Dany fugiu da decisão para o terraço. Foi dar com Rhaegal adormecido junto à piscina, um novelo verde e brônzeo a tostar ao Sol. Drogon estava empoleirado no topo da pirâmide, no local onde a enorme
harpia de bronze estivera antes de ela ordenar que fosse derrubada. Abriu as asas e rugiu quando a viu. Não se via sinal de Viserion, mas quando se dirigiu ao parapeito e perscrutou o horizonte, viu asas
pálidas à distância, a pairar sobre o rio. Anda à caça. Tornam-se mais ousados a cada dia que passa. Mas ainda ficava ansiosa quando voavam até demasiado longe. Um dia, um deles pode não regressar, pensou.
  — Vossa Graça?
  Virou-se para deparar com Sor Barristan atrás de si.
  — Que mais quereis de mim, sor? Poupei-vos, aceitei-vos ao meu serviço, dai-me agora alguma paz.
  — Perdoai-me, Vossa Graça. É só que… agora que sabeis quem eu sou… — O velho hesitou. — Um cavaleiro da Guarda Real está na presença do rei dia e noite. Por esse motivo, os nossos votos exigem que protejamos
os seus segredos tal como protegeríamos a sua vida. Mas os segredos do vosso pai são agora por direito vossos, bem como o seu trono, e… pensei que talvez tivésseis questões a colocar-me.
  Questões? Tinha um cento de questões, um milhar, dez milhares. Porque não se conseguia lembrar de nenhuma?
  — O meu pai era realmente louco? — perguntou antes de o conseguir evitar. Porque é que eu pergunto isto? — Viserys dizia que essa conversa de loucura era uma manobra do Usurpador…
  — Viserys era uma criança, e a rainha protegeu-o o máximo que pôde. Agora creio que o vosso pai sempre teve em si um pouco de loucura. Mas era também encantador e generoso, de modo que as suas pequenas
faltas eram esquecidas. O seu reinado começou com tanta promessa… mas à medida que os anos iam passando, as faltas tornaram-se mais frequentes, até que…
  Dany fê-lo parar.
  — Será que eu quero ouvir isto agora?
  Sor Barristan reflectiu por um momento.
  — Talvez não. Agora não.
  — Agora não — concordou. — Um dia. Um dia deveis contar-me tudo. O bom e o mau. Há algo de bom a ser contado acerca do meu pai, certamente?
  — Há, Vossa Graça. Acerca dele, e acerca dos que vieram antes dele. O vosso avô Jaehaerys e o irmão, o pai deles, Aegon, a vossa mãe… e Rhaegar. Acima de tudo acerca dele.
  — Gostaria de ter podido conhecê-lo. — A sua voz estava melancólica.
  — Gostaria que ele vos pudesse ter conhecido a vós — disse o velho cavaleiro. — Quando estiverdes pronta, contar-vos-ei tudo.
  Dany beijou-o na cara e mandou-o embora.
  Naquela noite, as aias trouxeram-lhe carneiro, com uma salada de passas e cenouras ensopadas em vinho, e um pão quente e pouco consistente que pingava de mel. Não conseguiu comer nem uma migalha. Ter-se-á
Rhaegar alguma vez sentido tão fatigado?, perguntou a si própria. Ou Aegon, após a sua conquista?
  Mais tarde, quando chegou o momento de dormir, Dany levou Irri consigo para a cama, pela primeira vez desde o navio. Mas mesmo enquanto estremecia de escape e enredava os dedos no espesso cabelo negro
da aia, fazia de conta que era Drogo que tinha nos braços… só que de algum modo o seu rosto não parava de se transformar no de Daario. Se desejar Daario, só tenho de o dizer. Ficou deitada com as pernas
de Irri entrelaçadas nas suas. Os olhos dele pareciam quase púrpura, hoje…
  Levantou-se, deixando Irri adormecida ao luar. Jhiqui e Missandei estavam a dormir nas suas camas. Dany envergou uma túnica e atravessou descalça o chão de mármore, dirigindo-se ao terraço. O ar estava
gelado, mas gostou da sensação da relva entre os dedos dos pés e do som das folhas a sussurrar umas para as outras. Ondulações provocadas pelo vento perseguiam-se pela superfície da pequena piscina para
banhos e faziam o reflexo da Lua dançar e tremeluzir.
  Encostou-se a um parapeito baixo de tijolo para olhar para baixo, para a cidade. Meereen também dormia. Perdida em sonhos sobre dias melhores, talvez. A noite cobria as ruas como uma manta negra, escondendo
os cadáveres e as ratazanas cinzentas que saíam dos esgotos para se banquetearem com eles, os enxames de moscas que picavam. Archotes distantes cintilavam, vermelhos e amarelos, no local onde as sentinelas
faziam as suas rondas, e aqui e ali viu o ténuo clarão de lanternas a oscilar ao longo de uma viela. Talvez uma delas fosse Sor Jorah, levando lentamente o cavalo pela arreata na direcção do portão. Adeus,
velho urso. Adeus, traidor.
  Ela era Daenerys Filha da Tormenta, a Não-Queimada, Khaleesi e rainha, Mãe dos Dragões, matadora de feiticeiros, quebradora de correntes, e não havia ninguém neste mundo em quem pudesse confiar.
  — Vossa Graça? — Missandei estava junto ao seu cotovelo enrolada num roupão, com sandálias de lã nos pés. — Acordei e vi que tínheis saído. Dormistes bem? Para onde estais a olhar?
  — Para a minha cidade — disse Dany. — Estava à procura de uma casa com uma porta vermelha, mas de noite todas as portas são negras.
  — Uma porta vermelha? — Missandei estava baralhada. — Que casa é essa?
  — Não é casa nenhuma. Não importa. — Dany pegou na mão da rapariga mais nova. — Nunca me mintas, Missandei. Nunca me traias.
  — Nunca o farei — prometeu Missandei. — Vede, a alvorada chega.
  O céu tinha-se posto de um tom azul-cobalto do horizonte ao zénite, e por trás da linha de colinas baixas, a leste, via-se um clarão, de ouro pálido e cor de ostra. Dany ficou a ver o Sol subir no céu,
de mãos dadas com Missandei. Todos os tijolos cinzentos se tornaram vermelhos, amarelos, azuis, verdes e cor-de-laranja. As areias escarlate das arenas de luta transformaram-se em chagas a sangrar perante
os seus olhos. Noutro local, a cúpula dourada do Templo das Graças refulgia brilhantemente, e estrelas de bronze tremeluziam ao longo das muralhas nos locais onde a luz do Sol nascente tocava os espigões
dos capacetes dos Imaculados. No terraço, um punhado de moscas agitou-se indolentemente. Uma ave pôs-se a gorjear no diospiro, logo seguida por mais duas. Dany inclinou a cabeça para escutar a sua canção,
mas não demorou muito até que os ruídos da cidade que acordava a submergissem.
  Os ruídos da minha cidade.
  Naquela manhã convocou os seus capitães e comandantes para o jardim, em vez de descer à sala de audiências.
  — Aegon, o Conquistador, trouxe fogo e sangue a Westeros, mas depois deu-lhe paz, prosperidade e justiça. Mas tudo o que eu trouxe à Baía dos Escravos foi morte e ruína. Fui mais khal do que rainha,
esmagando e saqueando, e depois seguindo viagem.
  — Não há nada por que valha a pena ficar — disse o Ben Castanho Plumm.
  — Vossa Graça, os esclavagistas fizeram cair a perdição sobre si próprios — disse Daario Naharis.
  — Trouxestes também a liberdade — fez notar Missandei.
  — Liberdade para passar fome? — perguntou Dany em tom penetrante. — Liberdade para morrer? Serei eu um dragão ou uma harpia? — Serei louca? Terei a mácula?
  — Um dragão — disse Sor Barristan num tom que não admitia dúvida. — Meereen não é Westeros, Vossa Graça.
  — Mas como serei eu capaz de governar sete reinos, se não conseguir governar uma única cidade? — Ele não tinha resposta para aquela pergunta. Dany virou-lhes as costas para voltar a olhar para a cidade.
— Os meus filhos precisam de tempo para sarar feridas e aprender. Os meus dragões precisam de tempo para crescer e testar as suas asas. E eu preciso das mesmas coisas. Não permitirei que esta cidade vá
pelo caminho de Astapor. Não permitirei que a harpia de Yunkai volte a acorrentar aqueles que eu libertei. — Voltou a virar-se para observar os rostos deles. — Não me porei em marcha.
  — Então o que fareis, Khaleesi? — perguntou Rakharo.
  — Ficarei — disse ela. — Governarei. E serei uma rainha.
 
 JAIME
  O rei estava sentado à cabeceira da mesa, com uma pilha de almofadas debaixo do traseiro, assinando cada documento que lhe era apresentado.
  — Só mais alguns, Vossa Graça — garantiu-lhe Sor Kevan Lannister. — Este é um decreto de proscrição contra o Lorde Edmure Tully, despojando-o de Correrrio e de todas as suas terras e rendimentos, por
rebelião contra o seu legítimo rei. Este é um decreto semelhante, contra o tio, Sor Brynden Tully, o Peixe Negro. — Tommen assinou-os um após o outro, mergulhando cuidadosamente a pena na tinta e escrevendo
o seu nome numa letra grande e infantil.
  Jaime observava do fundo da mesa, pensando em todos aqueles senhores que aspiravam a um lugar no pequeno conselho do rei. Podem ficar com a porcaria do meu. Se aquilo era o poder, porque saberia a tédio?
Não se sentia particularmente poderoso, a ver Tommen mergulhar de novo a pena no tinteiro. Sentia-se aborrecido.
  E dorido. Doía-lhe cada músculo do corpo, e as costelas e ombros estavam cheios de nódoas negras, da pancada que tinham apanhado, cortesia de Sor Addam Marbrand. Estremecia só de pensar nisso. Só podia
ter esperança de que o homem mantivesse a boca fechada. Jaime conhecia Marbrand desde rapaz, quando estivera ao serviço como pajem em Rochedo Casterly; confiava tanto nele como em qualquer outro. O suficiente
para lhe pedir para pegar em escudos e espadas de torneio. Quisera saber se seria capaz de lutar com a mão esquerda.
  E agora sei. O conhecimento era mais doloroso do que a surra que Sor Addam lhe dera, e a surra fora tão má que quase não se conseguira vestir naquela manhã. Se tivessem estado a lutar a sério, Jaime
teria morrido duas dúzias de mortes. Trocar de mão parecia tão simples. Não era. Todos os seus instintos estavam errados. Tinha de pensar sobre tudo, quando em tempos se limitara a mover-se. E enquanto
estava a pensar, Marbrand batia-lhe. A mão esquerda nem sequer parecia capaz de segurar numa espada longa como devia ser; Sor Addam desarmara-o três vezes, pondo-lhe a arma a rodopiar pelo ar.
  — Este concede as ditas terras, rendimentos e castelo a Sor Emmon Frey e à senhora sua esposa, a Senhora Genna. — Sor Kevan apresentou ao rei outro maço de pergaminhos. Tommen mergulhou a pena no tinteiro
e assinou. — Isto é um decreto de legitimação para um filho ilegítimo do Lorde Roose Bolton, do Forte do Pavor. E este nomeia o Lorde Bolton como o vosso Protector do Norte. — Tommen punha tinta na pena
e assinava, punha tinta na pena e assinava. — Este atribui a Sor Rolph Spicer direitos sobre o castelo de Castamere e eleva-o à categoria de lorde. — Tommen garatujou o seu nome.
  Devia ter ido ter com Sor Ilyn Payne, reflectiu Jaime. O Magistrado do Rei não era um amigo como Marbrand, e teria sido bem capaz de o espancar até fazer sangue… mas sem língua, não era provável que
se vangloriasse disso depois. Não seria preciso mais do que um comentário casual de Sor Addam, com os copos, e o mundo inteiro saberia em breve como ele se tornara incapaz. Senhor Comandante da Guarda
Real. Isso era uma piada cruel… embora não tanto como o presente que o pai lhe enviara.
  — Este é o vosso real perdão para o Lorde Gaven Westerling, a senhora sua esposa e a filha Jeyne, aceitando-os de volta à paz do rei — disse Sor Kevan. — Isto é um perdão para o Lorde Jonos Bracken
de Barreira de Pedra. Este é para o Lorde Goodbrook. Este para o Lorde Mooton, de Lagoa da Donzela.
  Jaime pôs-se em pé.
  — Pareceis ter estes assuntos bem controlados, tio. Deixarei Sua Graça convosco.
  — Como quiserdes. — Sor Kevan também se pôs em pé. — Jaime, devíeis ir ter com o vosso pai. Esta zanga entre vós…
  — …é obra dele. E não irá remediá-la enviando-me presentes trocistas. Dizei-lhe isso, se conseguirdes descolá-lo dos Tyrell durante tempo suficiente.
  O tio fez uma expressão angustiada.
  — O presente foi sincero. Achámos que poderia encorajar-vos…
  — …a fazer crescer uma mão nova? — Jaime virou-se para Tommen. Embora tivesse os caracóis dourados e os olhos verdes de Joffrey, o novo rei pouco mais partilhava com o seu falecido irmão. Tinha tendência
a engordar, o seu rosto era rosado e redondo, e até gostava de ler. Ainda não tem nove anos, este meu filho. O rapaz não é o homem. Passar-se-iam sete anos até que Tommen governasse de seu pleno direito.
Até lá, o reino permaneceria firmemente nas mãos do senhor seu avô. — Senhor — perguntou —, tenho a vossa autorização para sair?
  — Como quiserdes, sor tio. — Tommen voltou a olhar para Sor Kevan. — Posso selá-los agora, tio-avô? — Pressionar o selo real contra a cera quente era a parte de ser rei que preferia até agora.
  Jaime saiu a passos largos da sala do conselho. À porta foi encontrar Sor Meryn Trant, hirto e de guarda, na sua armadura de escamas brancas e manto alvo de neve. Se este tipo ficar a saber como eu
sou fraco, ou o Kettleblack ou o Blount ouvirem alguma coisa sobre isso…
  — Ficai aqui até Sua Graça acabar — disse — e depois escoltai-o de volta a Maegor.
  Trant inclinou a cabeça.
  — Às ordens, senhor.
  O pátio exterior estava cheio de gente e ruídos naquela manhã. Jaime dirigiu-se aos estábulos, onde um grande grupo de homens selava os cavalos.
  — Pernas d’Aço! — chamou. — Ides-vos embora?
  — Assim que a s’nhora esteja montada — disse o Pernas d’Aço Walton. — O senhor de Bolton espera-nos. Aí está ela.
  Um palafrém conduzia uma bela égua cinzenta através da porta do estábulo. No dorso do animal vinha montada uma rapariga magricela de olhos encovados, envolta num manto pesado. Era cinzento, tal como
o vestido que trazia por baixo, e forrado de cetim branco. O pregador que lho prendia ao peito estava trabalhado na forma de uma cabeça de lobo com olhos fendidos de opala. O longo cabelo castanho da
rapariga era violentamente soprado pelo vento. Achou que ela tinha uma cara bonita, mas os olhos eram tristes e cautelosos.
  Quando o viu, inclinou a cabeça.
  — Sor Jaime — disse, numa voz fina e ansiosa. — Fostes gentil em virdes despedir-vos de mim.
  Jaime estudou-a de perto.
  — Ah, conheceis-me?
  Ela mordeu o lábio.
  — Talvez não vos recordeis, senhor, pois eu era pequena nessa altura… mas tive a honra de vos conhecer em Winterfell quando o Rei Robert veio visitar o meu pai, o Lorde Eddard. — Baixou os seus grandes
olhos castanhos e murmurou: — Sou Arya Stark.
  Jaime nunca prestara muita atenção a Arya Stark, mas parecia-lhe que aquela rapariga era mais velha.
  — Segundo ouvi dizer, ireis casar-vos.
  — Deverei casar-me com o filho do Lorde Bolton, Ramsay. Ele era um Snow, mas Sua Graça fez dele um Bolton. Dizem que é muito corajoso. Estou muito feliz.
  Então porque é que pareces tão assustada?
  — Desejo-vos felicidades, senhora. — Jaime voltou a virar-se para o Pernas d’Aço. — Tendes o dinheiro que vos foi prometido?
  — Sim, e distribuímo-lo. Tendes os meus agradecimentos. — O nortenho sorriu. — Um Lannister paga sempre as suas dívidas.
  — Sempre — disse Jaime, com um último relance à rapariga. Perguntou a si próprio se haveria muitas semelhanças. A verdadeira Arya Stark estava, com toda a probabilidade, enterrada nalguma sepultura
anónima no Fundo das Pulgas. Com os irmãos mortos, bem como ambos os pais, quem se atreveria a chamar fraude àquela rapariga? — Boa viagem — disse ao Pernas d’Aço. Nage ergueu a sua bandeira de paz, e
os nortenhos formaram uma coluna tão irregular como os seus mantos de peles e trotaram através do portão do castelo. A rapariga magra montada na égua cinzenta parecia pequena e desamparada no meio deles.
  Alguns dos cavalos ainda recuavam perante a mancha escura no chão de terra batida, no local onde a terra bebera o sangue vital do moço de estrebaria que Gregor Clegane matara tão desajeitadamente. Aquela
visão pôs Jaime de novo furioso. Dissera à Guarda Real para manter a multidão afastada, mas aquele palerma do Sor Boros deixara-se distrair pelo duelo. O idiota do rapaz partilhava parte da culpa, com
certeza; e o dornês morto também. E acima de tudo Clegane. O golpe que cortara o braço do rapaz fora um infortúnio, mas aquele segundo golpe…
  Bem, Gregor está agora a pagar por ele. O Grande Meistre Pycelle andava a tratar os ferimentos do homem, mas os uivos que ressoavam nos aposentos do Meistre sugeriam que a cura não estava a correr tão
bem como poderia correr.
  — A carne gangrena e as feridas deitam pus — dissera Pycelle ao conselho. — Nem mesmo as larvas querem tocar em tal imundície. As suas convulsões são tão violentas que tive de o amordaçar para evitar
que cortasse a língua com os dentes. Removi o máximo de tecido que me atrevi a cortar, e tratei a putrefacção com vinho a ferver e bolor de pão, mas sem resultado. As veias do seu braço estão a tornar-se
negras. Quando o sangrei, todas as sanguessugas morreram. Senhores, tenho de saber qual a maligna substância que o Príncipe Oberyn usou na lança. Detenhamos os outros dorneses até se tornarem mais cooperativos.
  O Lorde Tywin recusara.
  — Já haverá problemas suficientes com Lançasolar por causa da morte do Príncipe Oberyn. Não pretendo tornar as coisas piores prendendo os seus companheiros.
  — Então temo que Sor Gregor possa morrer.
  — Sem dúvida que sim. Jurei que morreria na carta que enviei ao Príncipe Doran com o corpo do irmão. Mas tem de ser visto que foi a espada do Magistrado do Rei a matá-lo, e não uma lança envenenada.
Curai-o.
  O Grande Meistre Pycelle pestanejara, desalentado.
  — Senhor…
  — Curai-o — voltara a dizer o Lorde Tywin, enfadado. — Estais consciente de que o Lorde Varys mandou pescadores para as águas que rodeiam Pedra do Dragão. Eles relatam que só resta uma força simbólica
para defender a ilha. Os lisenos desapareceram da baía, e a maior parte das forças do Lorde Stannis desapareceu com eles.
  — Boas e melhores novas — anunciara Pycelle. — Que Stannis apodreça em Lys, digo eu. Estamos livres do homem e das suas ambições.
  — Transformastes-vos num completo idiota quando Tyrion vos cortou a barba? Estamos a falar de Stannis Baratheon. O homem lutará até ao fim, e para lá dele. Se desapareceu, isso só pode querer dizer
que pretende reatar a guerra. O mais provável é que desembarque em Ponta Tempestade e tente inflamar os senhores da Tempestade. Se assim for, está acabado. Mas um homem mais ousado poderia jogar os dados
com Dorne. Se ele conquistasse Lançasolar para a sua causa, poderia prolongar esta guerra durante anos. Portanto não iremos ofender mais os Martell, seja por que motivo for. Os dorneses são livres de
partir, e vós ireis curar Sor Gregor.
  E assim a Montanha gritava, de dia e de noite. O Lorde Tywin Lannister até conseguia intimidar o Estranho, aparentemente.
  Enquanto Jaime subia os degraus em espiral da Torre da Espada Branca, ouvia Sor Boros a ressonar na sua cela. A porta de Sor Balon também estava fechada; tivera o rei naquela noite, e dormiria o dia
inteiro. À parte os roncos de Blount, a torre estava muito silenciosa. Isso convinha bastante a Jaime. Devia descansar. Na noite anterior, depois da sua dança com Sor Addam, sentira-se demasiado dorido
para dormir.
  Mas quando entrou no quarto, encontrou a irmã à sua espera.
  Ela estava junto da janela aberta, olhando para lá das muralhas exteriores, para o mar. O vento da baía rodopiava à sua volta, encostando-lhe o vestido ao corpo de um modo que acelerou o pulso de Jaime.
Era branco, aquele vestido, como as colgaduras que pendiam da parede e os cortinados da cama. Turbilhões de minúsculas esmeraldas alegravam as pontas das suas largas mangas e espiralavam pelo corpete
abaixo. Esmeraldas maiores estavam embutidas na teia dourada que lhe prendia o cabelo dourado. O vestido tinha um corte baixo, desnudando-lhe os ombros e a parte de cima dos seios. Ela é tão bela. Nada
desejava mais do que tomá-la nos braços.
  — Cersei. — Fechou a porta sem fazer barulho. — Porque estás aqui?
  — Para onde mais podia ir? — Quando se virou para ele, havia lágrimas nos seus olhos. — O pai deixou claro que já não sou desejada no conselho. Jaime, não podes falar com ele?
  Jaime tirou o manto e pendurou-o num cabide na parede.
  — Falo todos os dias com o Lorde Tywin.
  — Tens de ser assim tão teimoso? Tudo o que ele quer…
  — …é forçar-me a sair da Guarda Real e mandar-me de volta para Rochedo Casterly.
  — Isso não tem de ser assim tão terrível. Ele também me vai mandar de volta para Rochedo Casterly. Quer-me longe, para que possa ter a mão livre com Tommen. Tommen é meu filho, não dele!
  — Tommen é o rei.
  — Ele é um rapaz! Um rapazinho assustado que viu o irmão a ser assassinado no seu próprio casamento. E agora dizem-lhe que tem de casar. A rapariga tem o dobro da idade dele e é duas vezes viúva!
  Jaime deixou-se cair numa cadeira, tentando ignorar a dor de músculos magoados.
  — Os Tyrell são insistentes. Não vejo mal nisso. Tommen tem-se sentido sozinho desde que Myrcella foi para Dorne. Ele gosta de ter Margaery e as suas senhoras por perto. Que se casem.
  — Ele é teu filho…
  — Ele é da minha semente. Nunca me chamou pai. Tal como Joffrey nunca o fez. Avisaste-me mil vezes para nunca mostrar um interesse indevido por eles.
  — Para os manter a salvo! E a ti também. O que pareceria se o meu irmão fizesse de pai com os filhos do rei? Até Robert podia ter começado a desconfiar.
  — Bem, ele agora já está para lá da desconfiança. — A morte de Robert ainda deixava um sabor amargo na boca de Jaime. Devia ter sido eu a matá-lo, e não Cersei. — Só desejaria que ele tivesse morrido
às minhas mãos. — Quando ainda tinha duas. — Se tivesse deixado o regicídio tornar-se um hábito, como ele gostava de dizer, poderia ter-te tomado como esposa para o mundo inteiro ver. Não me envergonho
de te amar, mas apenas das coisas que fiz para o esconder. Aquele rapaz em Winterfell…
  — Eu disse-te para o atirares da janela? Se tivesses ido caçar como te supliquei, nada teria acontecido. Mas não, tinhas de me possuir, não podias esperar até regressarmos à cidade.
  — Já tinha esperado tempo suficiente. Odiava ver Robert a entrar aos tropeções na tua cama todas as noites, sempre sem saber se naquela noite decidiria reivindicar os seus direitos de marido. — Jaime
lembrou-se de súbito de outra coisa que o perturbava relativamente a Winterfell. — Em Correrrio, Catelyn Stark parecia convencida de que eu tinha mandado um salteador qualquer cortar a garganta ao filho.
Que eu lhe tinha dado um punhal.
  — Isso — disse ela em tom de escárnio. — Tyrion fez-me perguntas sobre isso.
  — Houve um punhal. As cicatrizes nas mãos da Senhora Catelyn eram bem reais, ela mostrou-mas. Tu…?
  — Oh, não digas disparates. — Cersei fechou a janela. — Sim, tive esperança de que o rapaz morresse. E tu também. Até Robert pensou que teria sido melhor assim. “Matamos os cavalos quando partem uma
perna, e os cães quando cegam, mas somos fracos de mais para mostrar a mesma misericórdia por crianças aleijadas”, disse-me ele. Ele próprio estava cego nessa altura, da bebida.
  Robert? Jaime protegera o rei durante tempo suficiente para saber que Robert Baratheon dizia coisas quando estava com os copos que teria negado furiosamente no dia seguinte.
  — Estava alguém presente quando Robert disse isso?
  — Espero que não julgues que ele o disse a Ned Stark. Claro que estávamos sós. Nós e as crianças. — Cersei tirou a rede para o cabelo e enrolou-a numa das colunas da cama, após o que sacudiu os seus
caracóis dourados. — Talvez tenha sido Myrcella a enviar esse homem com o punhal, parece-te que é possível?
  Aquilo pretendera ser uma zombaria, mas Jaime compreendeu de imediato que ela acertara em cheio no coração do problema.
  — Myrcella, não. Joffrey.
  Cersei franziu o sobrolho.
  — Joffrey não simpatizava com Robb Stark, mas o rapaz mais novo não lhe dizia nada. Ele próprio não passava de uma criança.
  — Uma criança ansiosa por uma palmadinha na cabeça dada por esse bêbado que permitiste que ele acreditasse ser seu pai. — Teve uma ideia desconfortável. — Tyrion quase morreu por causa daquele maldito
punhal. Se soubesse que tudo fora obra de Joffrey, podia ser esse o motivo…
  — Não me interessa o motivo — disse Cersei. — Ele pode levar os seus motivos consigo para o inferno. Se tivesses visto como Joff morreu… ele lutou, Jaime, ele lutou por cada golfada de ar, mas era como
se algum espírito maligno tivesse as mãos em volta da sua garganta. Tinha um terror tão grande nos olhos… Quando era pequeno, corria para mim quando estava assustado ou magoado, e eu protegia-o. Mas naquela
noite não houve nada que eu pudesse fazer. Tyrion assassinou-o na minha frente, e não houve nada que eu pudesse fazer. — Cersei caiu sobre os joelhos à frente da cadeira de Jaime e tomou a sua mão boa
entre as dela. — Joff está morto e Myrcella em Dorne. Tommen é tudo o que me resta. Não podes deixar que o pai o afaste de mim. Jaime, por favor.
  — O Lorde Tywin não pediu a minha aprovação. Posso falar com ele, mas não me escutará…
  — Escutará, se concordares em abandonar a Guarda Real.
  — Não vou abandonar a Guarda Real.
  A irmã tentou reprimir lágrimas.
  — Jaime, és o meu reluzente cavaleiro. Não me podes abandonar quando mais preciso de ti! Ele está a roubar-me o filho, mandando-me embora… e a menos que o impeças, o pai vai forçar-me a voltar a casar!
  Jaime não devia ter ficado surpreendido, mas ficou. As palavras foram um golpe no estômago mais forte do que qualquer um dos que Sor Addam Marbrand lhe dera.
  — Quem?
  — E isso importa? Um lorde ou outro qualquer. Alguém de que o pai pense que precisa. Não me interessa. Não aceitarei outro marido. És o único homem que eu quero na minha cama no futuro.
  — Então diz-lhe isso!
  Ela afastou as mãos.
  — Estás outra vez a dizer loucuras. Queres ver-nos afastados, como a mãe fez daquela vez que nos apanhou a brincar? Tommen perderia o trono, Myrcella o seu casamento… eu quero ser tua esposa, pertencemos
um ao outro, mas isso nunca poderá acontecer, Jaime. Somos irmão e irmã.
  — Os Targaryen…
  — Nós não somos Targaryen!
  — Calminha — disse ele em tom trocista. — Assim tão alto vais acordar os meus Irmãos Ajuramentados. Não pode ser, pois não? As pessoas poderiam ficar a saber que tinhas vindo visitar-me.
  — Jaime — soluçou ela —, julgas que eu não o desejo tanto como tu? Não importa o homem com quem me casarem, quero-te a meu lado, quero-te na minha cama, quero-te dentro de mim. Nada mudou entre nós.
Deixa-me provar-to. — Ela puxou-lhe a túnica para cima e pôs-se a remexer nas ataduras das suas bragas.
  Jaime deu por si a responder.
  — Não — disse —, aqui, não. — Nunca o tinham feito na Torre da Espada Branca, e muito menos nos aposentos do Senhor Comandante. — Cersei, este não é o local adequado.
  — Tomaste-me no septo. Aqui não é diferente. — Tirou-lhe a picha para fora e inclinou a cabeça por cima dela.
  Jaime empurrou-a com o coto da mão direita.
  — Não. Aqui não, já disse. — Forçou-se a levantar-se.
  Por um instante viu confusão nos brilhantes olhos verdes da irmã, e também medo. Então a raiva substituiu-os. Cersei recompôs-se, pôs-se em pé, alisou as saias.
  — Foi a mão que te cortaram em Harrenhal, ou a virilidade? — Quando abanou a cabeça, o cabelo caiu-lhe em volta dos alvos ombros nus. — Fui uma tola por vir. Faltou-te a coragem para vingar Joffrey,
porque iria eu pensar que protegerias Tommen? Diz-me, se o Duende tivesse matado todos os teus três filhos, ter-te-ia isso irritado?
  — Tyrion não vai fazer mal a Tommen ou Myrcella. Ainda não tenho a certeza de que matou Joffrey.
  A boca dela torceu-se de fúria.
  — Como podes dizer isso? Depois de todas as suas ameaças…
  — Ameaças não querem dizer nada. Ele jura que não o fez.
  — Oh, ele jura, então é isso? E os anões não mentem, é isso o que pensas?
  — A mim, não. Tal como tu.
  — Seu grande palerma dourado. Ele mentiu-te mil vezes, e eu também. — Voltou a prender o cabelo, e tirou a rede para o cabelo da coluna da cama onde a pendurara. — Pensa o que quiseres. O monstrinho
está numa cela negra, e em breve Sor Ilyn cortar-lhe-á a cabeça. Talvez queiras ficar com ela como recordação. — Deitou um relance à almofada. — Ele pode vigiar-te enquanto dormes sozinho naquela cama
branca e fria. Até que os olhos apodreçam, pelo menos.
  — É melhor ires-te embora, Cersei. Estás a zangar-me.
  — Oh, um aleijado zangado. Que coisa aterradora. — Soltou uma gargalhada. — Pena que o Lorde Tywin Lannister nunca tenha tido um filho. Eu podia ter sido o herdeiro que ele queria, mas faltava-me a
picha. E, a propósito, é melhor meteres a tua para dentro, mano. Tem um ar bastante tristonho e pequenino, assim pendurada das bragas.
  Depois de ela se ir embora, Jaime aceitou o seu conselho, lutando com uma mão só com as ataduras. Sentia uma dor nos dedos fantasma que lhe chegava aos ossos. Perdi uma mão, um pai, um filho, uma irmã
e uma amante, e em breve perderei um irmão. E no entanto, não param de me dizer que a Casa Lannister ganhou esta guerra.
  Jaime envergou o manto e desceu, indo encontrar Sor Boros Blount a beber uma taça de vinho na sala comum.
  — Quando terminardes a bebida, dizei a Sor Loras que estou pronto para a receber.
  Sor Boros era demasiado cobarde para fazer muito mais do que mostrar má cara.
  — Estais pronto para receber quem?
  — Limitai-vos a dizer isso a Loras.
  — Sim. — Sor Boros esvaziou a taça. — Sim, Senhor Comandante.
  Levou o seu tempo a tratar do assunto, porém, ou então foi o Cavaleiro das Flores que se mostrou difícil de achar. Tinham-se passado várias horas quando chegaram, o magro e bem-parecido jovem e a grande
donzela feia. Jaime estava sentado sozinho na sala redonda, folheando ociosamente o Livro Branco.
  — Senhor Comandante — disse Sor Loras —, desejáveis receber a Donzela de Tarth?
  — Sim. — Jaime fez-lhes um gesto com a mão esquerda para que se aproximassem. — Falastes com ela, suponho?
  — Conforme ordenastes, senhor.
  — E?
  O rapaz ficou tenso.
  — Eu… as coisas podem ter acontecido como ela diz, sor. Pode ter sido Stannis. Não posso ter a certeza.
  — Varys diz-me que o castelão de Ponta Tempestade também pereceu de forma estranha — disse Jaime.
  — Sor Cortnay Penrose — disse Brienne num tom triste. — Um bom homem.
  — Um homem teimoso. Um dia pôs-se firmemente no caminho do Rei de Pedra do Dragão. No seguinte saltou de uma torre. — Jaime ergueu-se. — Sor Loras, conversaremos sobre isto mais tarde. Podeis deixar
Brienne comigo.
  A rapariga parecia tão feia e desajeitada como sempre, decidiu Jaime quando o Tyrell os deixou. Alguém voltara a vesti-la com roupa de mulher, mas aquele vestido servia-lhe muito melhor do que aquele
hediondo trapo cor-de-rosa que o bode a obrigara a usar.
  — Azul é uma cor que vos fica bem, senhora — observou Jaime. — Combina bem com os vossos olhos. — Ela realmente tem uns olhos espantosos.
  Brienne olhou-se de relance, e perturbou-se.
  — A Septã Donyse almofadou o corpete, para lhe dar esta forma. Disse que ma mandastes. — A rapariga permanecia junto à porta, como se tencionasse fugir a qualquer segundo. — Estais…
  — Diferente? — Conseguiu fazer um meio sorriso. — Mais carne sobre as costelas e menos piolhos no cabelo, é tudo. O coto é o mesmo. Fechai a porta e vinde cá.
  Ela fez o que lhe pediu.
  — O manto branco…
  — …é novo, mas tenho a certeza de que o sujarei bem depressa.
  — Não era isso… eu ia dizer que vos caía bem.
  Brienne aproximou-se, hesitante.
  — Jaime, faláveis a sério quando dissestes aquilo a Sor Loras? Sobre… sobre o Rei Renly e a sombra?
  Jaime encolheu os ombros.
  — Eu teria matado pessoalmente Renly se nos tivéssemos encontrado em batalha, que me importa quem lhe cortou a garganta?
  — Dissestes que eu tinha honra…
  — Eu sou o maldito Regicida, esqueceste-vos? Quando digo que tendes honra, isso é como terdes uma rameira a assegurar a vossa virgindade. — Encostou-se para trás e ergueu os olhos para ela. — O Pernas
d’Aço vai a caminho do Norte, para entregar Arya Stark a Roose Bolton.
  — Entregaste-la a ele? — gritou ela, consternada. — Prestastes um juramento à Senhora Catelyn…
  — Com uma espada encostada à garganta, mas ponhamos isso de lado. A Senhora Catelyn está morta. Não lhe poderia devolver as filhas mesmo se as tivesse em meu poder. E a rapariga que o meu pai mandou
com o Pernas d’Aço não é Arya Stark.
  — Não é Arya Stark?
  — Ouvistes-me. O senhor meu pai encontrou uma nortenha magricela mais ou menos da mesma idade com mais ou menos as mesmas cores. Vestiu-a de branco e cinzento, deu-lhe um lobo de prata para prender
o manto e pô-la a caminho para se casar com o Bastardo de Bolton. — Ergueu o coto para apontar para ela. — Quis dizer-vos isto antes que partísseis a galope para a salvar e vos fizésseis matar inutilmente.
Não sois nada má com uma espada, mas não sois suficientemente boa para derrotar sozinha duzentos homens.
  Brienne abanou a cabeça.
  — Quando o Lorde Bolton souber que o vosso pai lhe pagou com moeda falsa…
  — Oh, ele sabe. Os Lannister mentem, lembrais-vos? Não importa, a rapariga serve o seu propósito igualmente bem. Quem irá dizer que ela não é Arya Stark? Toda a gente de que a rapariga era próxima está
morta, excepto a irmã, que desapareceu.
  — Porque me contaríeis tudo isto, se fosse verdade? Estais a trair os segredos do vosso pai.
  Os segredos da Mão, pensou ele. Já não tenho pai.
  — Eu pago as minhas dívidas, como todos os outros leõezinhos bons. Prometi as filhas à Senhora Stark… e uma delas continua viva. O meu irmão pode saber onde se encontra, mas se sabe não o diz. Cersei
está convencida de que Sansa o ajudou a assassinar Joffrey.
  A boca da rapariga fez uma expressão obstinada.
  — Não acreditarei que aquela rapariga gentil é uma envenenadora. A Senhora Catelyn disse que ela tinha um coração afectuoso. Foi o vosso irmão. Houve um julgamento, disse Sor Loras.
  — Na verdade houve dois. Tanto as palavras como as espadas lhe falharam. Uma porcaria sangrenta. Assististes da janela?
  — A minha cela dá para o mar. Mas ouvi os gritos.
  — O Príncipe Oberyn de Dorne está morto, Sor Gregor Clegane moribundo, e Tyrion condenado perante os olhos dos deuses e dos homens. Têm-no numa cela negra até o matarem.
  Brienne olhou-o.
  — Não acreditais que ele o tenha feito.
  Jaime concedeu-lhe um sorriso duro.
  — Vês, rapariga? Conhecemo-nos bem de mais. O Tyrion tem desejado ser eu desde que deu o primeiro passo, mas nunca me seguiria no regicídio. Foi Sansa Stark quem matou Joffrey. O meu irmão guardou silêncio
para a proteger. Ele tem estes ataques de galanteria de vez em quando. O último custou-lhe um nariz. Desta vez custar-lhe-á a cabeça.
  — Não — disse Brienne. — Não foi a filha da minha senhora. Não pode ter sido ela.
  — Aí está a rapariga teimosa e estúpida que eu recordo.
  Ela enrubesceu.
  — O meu nome é…
  — Brienne de Tarth. — Jaime suspirou. — Tenho um presente para ti. — Estendeu a mão por baixo da cadeira do Senhor Comandante e tirou-a para fora, envolta em dobras de veludo carmesim.
  Brienne aproximou-se como se a trouxa pudesse morder-lhe, estendeu uma enorme mão sardenta, e afastou uma dobra de tecido. Rubis cintilaram à luz. Pegou cuidadosamente no tesouro, enrolou os dedos em
volta do cabo de couro, e libertou lentamente a espada da sua bainha. As ondulações brilharam de sangue e negrume. Um dedo de luz reflectida correu, vermelho, ao longo do gume.
  — Isto é aço valiriano? Nunca vi cores assim.
  — Nem eu. Houve um tempo em que teria dado a mão direita para brandir uma espada como essa. Agora parece que o fiz, portanto a lâmina é desperdiçada em mim. Aceita-a. — Antes que ela pudesse pensar
em recusar, prosseguiu. — Uma espada tão boa tem de ter um nome. Agradar-me-ia se chamasses a esta Cumpridora de Promessas. Mais uma coisa. A lâmina tem um preço.
  O rosto dela escureceu.
  — Eu disse-vos, nunca servirei…
  — …criaturas tão malvadas. Sim, eu lembro-me. Ouve-me até ao fim, Brienne. Ambos prestámos juramentos a propósito de Sansa Stark. Cersei pretende assegurar-se de que a rapariga seja encontrada e morta,
seja onde for que ela se tenha enterrado…
  A cara simples de Brienne torceu-se de fúria.
  — Se julgais que eu faria mal à filha da minha senhora em troca de uma espada, vós…
  — Cala-te e ouve — exclamou ele, irritado pelas suposições dela. — Quero que encontres Sansa primeiro, e que a leves a salvo para qualquer lado. De outro modo, como iremos nós cumprir os estúpidos juramentos
que prestámos à tua preciosa e morta Senhora Catelyn?
  A rapariga pestanejou.
  — Eu… eu pensei…
  — Eu sei o que pensaste. — De súbito, Jaime ficou farto de olhar para ela. Bale como uma porcaria duma ovelha. — Quando Ned Stark morreu, a sua espada foi oferecida ao Magistrado do Rei — disse-lhe.
— Mas o meu pai achou que uma lâmina tão boa era desperdiçada num mero carrasco. Deu uma nova espada a Sor Ilyn, e mandou fundir a Gelo e voltar a forjá-la. Havia metal suficiente para duas lâminas novas.
Tens uma delas na mão. Portanto irás proteger a filha de Ned Stark com o aço do próprio Ned Stark, se é que isso faz alguma diferença para ti.
  — Sor, eu… eu devo-vos um pedido de desc…
  Jaime interrompeu-a.
  — Pega na porcaria da espada e vai-te embora, antes que eu mude de ideias. Há uma égua baia nos estábulos, tão feia como tu mas um pouco mais bem treinada. Vai em perseguição do Pernas d’Aço, vai em
busca de Sansa, ou vai para casa, para a tua ilha de safiras, não me interessa. Não quero olhar mais para ti.
  — Jaime…
  — Regicida — relembrou-lhe. — É melhor que uses essa espada para limpar a cera dos ouvidos, rapariga. A nossa conversa acabou.
  Teimosamente, ela insistiu.
  — Joffrey era vosso…
  — Meu rei. Deixa as coisas assim.
  — Dizeis que Sansa o matou. Porquê protegê-la?
  Porque Joff não me era mais do que um esguicho de semente na cona de Cersei. E porque merecia morrer.
  — Fiz reis e desfi-los. Sansa Stark é a minha última oportunidade de honra. — Jaime fez um ligeiro sorriso. — Além disso, é suposto que os regicidas se juntem. Nunca mais te vais embora?
  A grande mão dela fechou-se com força em volta da Cumpridora de Promessas.
  — Vou. E vou encontrar a rapariga e mantê-la a salvo. Pela senhora sua mãe. E por vós. — Fez uma vénia rígida, virou-se, e saiu.
  Jaime ficou sentado à mesa, sozinho, enquanto as sombras iam enchendo a sala. Quando o ocaso começou a instalar-se, acendeu uma vela e abriu o Livro Branco na sua página. Encontrou pena e tinta numa
gaveta. Por baixo da última linha escrita por Sor Barristan, escreveu numa letra desajeitada que poderia ter sido elogiada numa criança de seis anos que estivesse a aprender as primeiras letras com o
Meistre:
  Derrotado no Bosque dos Murmúrios pelo Jovem Lobo Robb Stark durante a Guerra dos Cinco Reis. Mantido cativo em Correrrio e resgatado em troca de uma promessa não cumprida. Capturado de novo pelos Bravos
Companheiros e mutilado por ordem de Vargo Hoat, o seu capitão, perdendo a mão da espada às mãos de Zollo, o Gordo. Devolvido em segurança a Porto Real por Brienne, a Donzela de Tarth.
  Quando terminou, ainda restava encher mais de três quartos da sua página, entre o leão de ouro no escudo carmesim ao topo e o escudo branco e vazio no fundo. Sor Gerold Hightower começara a sua história,
e Sor Barristan Selmy continuara-a, mas o resto teria de ser escrito pelo próprio Jaime Lannister. Dali em diante, poderia escrever o que quer que decidisse escrever.
  O que quer que decidisse…
 
 JON
  O vento soprava forte do leste, tão forte que a pesada gaiola balançava sempre que uma rajada a apanhava nos seus dentes. Uivava ao longo da Muralha, reflectindo-se, tremendo, no gelo, fazendo o manto
de Jon esvoaçar de encontro às barras. O céu estava de um cinzento de ardósia, o Sol nada mais era do que uma ténua mancha brilhante por trás das nuvens. Para lá do campo de morte, via a cintilação de
mil fogueiras a arder, mas as suas luzes pareciam pequenas e impotentes contra uma tal escuridão e frio.
  Um dia carregado. Jon Snow envolveu as barras com mãos enluvadas e segurou-se bem, enquanto o vento vergastava a gaiola mais uma vez. Quando olhou para baixo, por entre os pés, viu o chão perdido em
sombras, como se estivesse a ser baixado para um qualquer poço sem fundo. Bem, a morte é uma espécie de poço sem fundo, reflectiu, e quando a obra deste dia estiver concluída, o meu nome ficará para sempre
envolto em sombras.
  Os homens diziam que as crianças bastardas nasciam da luxúria e da mentira; a sua natureza era libertina e traiçoeira. Em tempos, Jon pretendera provar que isso era um erro, mostrar ao senhor seu pai
que podia ser um filho tão bom e leal como Robb. Atamanquei bem esse trabalho. Robb transformara-se num rei herói; se Jon fosse recordado de todo, sê-lo-ia como vira-casacas, perjuro e assassino. Estava
feliz por o Lorde Eddard não estar vivo para assistir à sua vergonha.
  Devia ter ficado naquela gruta com Ygritte. Se houvesse uma vida para além daquela, esperava dizer-lhe isso. Ela arranhar-me-á a cara como a águia, e amaldiçoar-me-á como cobarde, mas dir-lho-ei na
mesma. Flectiu a mão da espada, como o Meistre Aemon lhe ensinara a fazer. O hábito tornara-se parte de si, e precisaria dos dedos flexíveis para ter nem que fosse meia hipótese de assassinar Mance Rayder.
  Tinham-no tirado para fora naquela manhã, depois de quatro dias passados no gelo, fechado numa cela de metro e meio por metro e meio, baixa de mais para se pôr em pé, demasiado apertada para se deitar
de costas. Os intendentes tinham há muito descoberto que a comida e a carne duravam mais tempo nos armazéns de gelo esculpidos na base da Muralha… mas os prisioneiros não.
  — Morrerás aqui, Lorde Snow — dissera Sor Alliser imediatamente antes de fechar a pesada porta de madeira, e Jon acreditara nele. Mas naquela manhã tinham vindo tirá-lo de lá, e tinham-no levado, cheio
de cãibras e a tremer, para a Torre do Rei, para comparecer uma vez mais perante o queixudo Janos Slynt.
  — Aquele velho Meistre diz que não vos posso enforcar — declarara Slynt. — Escreveu a Cotter Pyke, e até teve o maldito descaramento de me mostrar a carta. Diz que não sois nenhum vira-casacas.
  — Aemon viveu demasiado tempo, senhor — garantira-lhe Sor Alliser. — Os seus miolos tornaram-se tão escuros como os olhos.
  — Pois — dissera Slynt. — Um cego com uma corrente em volta do pescoço, quem julga ele que é?
  Aemon Targaryen, pensara Jon, filho de um rei e irmão de um rei e um rei que poderia ter sido. Mas nada dissera.
  — Mesmo assim — dissera Slynt — não quero que se diga que Janos Slynt enforcou um homem injustamente. Não quero. Decidi dar-vos uma última hipótese de demonstrar que sois tão leal como dizeis ser, Lorde
Snow. Uma última hipótese de cumprir o vosso dever, sim! — Levantara-se. — Mance Rayder quer parlamentar connosco. Sabe que não tem hipótese, agora que Janos Slynt chegou, portanto quer conversar, este
Rei-para-lá-da-Muralha. Mas o homem é cobarde, e não quer vir até nós. Sem dúvida que sabe que o enforcava. Enforcava-o pelos pés do topo da Muralha, na ponta de uma corda com sessenta metros de comprimento!
Mas ele não vem. Pede que lhe mandemos um enviado.
  — Vamos mandar-te a ti, Jon Snow. — Sor Alliser sorrira.
  — A mim? — A voz de Jon não tinha vida. — Porquê a mim?
  — Acompanhaste estes selvagens — dissera Thorne. — Mance Rayder conhece-te. Estará mais inclinado a confiar em ti.
  Aquilo era tão errado que Jon poderia ter rido.
  — Entendestes as coisas ao contrário. Mance suspeitou de mim desde o início. Se aparecer no seu acampamento de novo com um manto negro e a falar pela Patrulha da Noite, saberá que o traí.
  — Ele pediu um enviado, e nós vamos enviar um — dissera Slynt. — Se fordes demasiado cobarde para enfrentar este rei vira-casacas, podemos devolver-vos à vossa cela de gelo. Desta vez sem as peles,
parece-me. Sim.
  — Não há necessidade disso, senhor — dissera Sor Alliser. — O Lorde Snow fará o que nós pedimos. Ele quer mostrar-nos que não é nenhum vira-casacas. Quer mostrar que é um membro leal da Patrulha da
Noite.
  Jon apercebera-se de que Thorne era, de longe, o mais inteligente dos dois; aquilo fedia a obra dele por todo o lado. Estava preso numa armadilha.
  — Eu vou — dissera, numa voz apertada e seca.
  — Senhor — lembrara-lhe Janos Slynt. — Tratar-me-eis por…
  — Eu vou, senhor. Mas estais a cometer um erro, senhor. Estais a mandar o homem errado, senhor. Bastará ver-me para enfurecer Mance. O senhor teria uma melhor hipótese de conseguir um acordo se enviasse…
  — Um acordo? — Sor Alliser soltara um risinho.
  — Janos Slynt não faz acordos com selvagens sem lei, Lorde Snow. Não, não faz.
  — Não te estamos a enviar para falar com Mance Rayder — dissera Sor Alliser. — Estamos a enviar-te para o matares.
  O vento assobiou por entre as barras, e Jon Snow estremeceu. Tinha a perna a latejar, e a cabeça também. Não estava em condições de matar um gatinho, mas ali estava. A armadilha tinha dentes. Com o
Meistre Aemon a insistir na inocência de Jon, o Lorde Janos não se atrevera a deixá-lo no gelo para morrer. Aquilo era melhor.
  — A nossa honra não significa mais do que as nossas vidas, desde que o reino fique em segurança — dissera Qhorin Meia-Mão nos Colmilhos de Gelo. Tinha de se lembrar daquilo. Quer matasse Mance, quer
apenas tentasse e falhasse, o povo livre matá-lo-ia. Até a deserção era impossível, se estivesse inclinado a tal coisa; para Mance, ele era um comprovado mentiroso e traidor.
  Quando a gaiola parou com uma sacudidela, Jon saltou para o chão e sacudiu o cabo de Garralonga para que a lâmina bastarda ficasse solta dentro da bainha. O portão estava a alguns metros para a sua
esquerda, ainda bloqueado pelos restos estilhaçados da tartaruga, com a carcaça de um mamute a apodrecer lá dentro. Havia também outros cadáveres, espalhados entre barris quebrados, pez endurecido e manchas
de erva queimada, tudo ensombrado pela Muralha. Jon não tinha qualquer desejo de se demorar ali. Pôs-se a caminhar na direcção do acampamento dos selvagens, passando pelo corpo de um gigante morto cuja
cabeça fora esmagada por uma pedra. Um corvo estava a arrancar bocados de cérebro do crânio estilhaçado do gigante. Olhou para cima quando ele passou. “Snow”, gritou-lhe. “Snow, snow.” Então abriu as
asas e partiu a voar.
  Assim que começou a avançar, um cavaleiro solitário emergiu do acampamento dos selvagens e dirigiu-se na sua direcção. Perguntou a si próprio se Mance viria parlamentar na terra de ninguém. Isso podia
tornar as coisas mais fáceis, se bem que nada as tornará fáceis. Mas quando a distância entre ambos diminuiu, Jon viu que o homem era baixo e largo, com anéis de ouro a cintilar em braços grossos e uma
barba branca que se espalhava pelo seu peito maciço.
  — Ha! — trovejou Tormund quando se encontraram. — Jon Snow, o corvo. Tive receio de não te vermos mais.
  — Não sabia que tinhas receio de alguma coisa, Tormund.
  Aquilo fez o selvagem sorrir.
  — Bem dito, moço. ‘Tou a ver que tens o manto de volta. O Mance não vai gostar disso. Se vieste mudar de lado outra vez, é melhor subires ali a tua Muralha de volta.
  — Enviaram-me para tratar com o Rei-para-lá-da-Muralha.
  — Tratar? — Tormund riu. — Mas que palavra. Ha! Mance quer conversar, lá isso é verdade. Mas não sei lá muito bem se quer conversar contigo.
  — Foi a mim que enviaram.
  — ‘Tou a ver isso. Então é melhor vires daí. Queres montar?
  — Posso ir a pé.
  — Deste-nos boa luta aqui. — Tormund voltou o garrano para o acampamento dos selvagens. — Tu e os teus irmãos. Tenho de admitir. Duzentos mortos e uma dúzia de gigantes. O próprio Mag entrou naquele
vosso portão e não voltou a sair.
  — Ele morreu pela espada de um homem valente chamado Donal Noye.
  — Ah sim? Era algum grande senhor, este Donal Noye? Um dos vossos cavaleiros brilhantes com as suas roupas de baixo em aço?
  — Um ferreiro. Só tinha um braço.
  — Um ferreiro maneta matou Mag, o Poderoso? Ha! Isso deve ter sido uma luta digna de ser vista. O Mance há-de fazer dela uma canção, vais ver. — Tormund desprendeu um odre da sela e tirou-lhe a rolha.
— Isto vai aquecer-nos um bocado. A Donal Noye, e a Mag, o Poderoso. — Bebeu um trago e passou o odre a Jon.
  — A Donal Noye, e a Mag, o Poderoso. — O odre estava cheio de hidromel, mas um hidromel tão potente que encheu os olhos de Jon de água e pôs-lhe gavinhas de fogo a serpentear pelo peito fora. Depois
da cela de gelo e da fria descida na gaiola, o calor era bem-vindo.
  Tormund recuperou o odre e emborcou mais um trago, após o que limpou a boca.
  — O Magnar de Thenn jurou à gente que ia ter o portão escancarado, p’ra que tudo o que tivéssemos de fazer fosse passear por ele a cantar. Que ia mandar a Muralha inteira abaixo.
  — Mandou abaixo parte dela — disse Jon. — Em cima da sua cabeça.
  — Ha! — disse Tormund. — Bem, nunca vi grande utilidade no Styr. Quando um homem não tem nem barba, nem cabelo, nem orelhas, não se pode pegar bem nele quando se luta. — Mantinha o cavalo a passo lento,
para que Jon pudesse ir coxeando ao seu lado. — Que é que se passou com essa perna?
  — Uma seta. Uma das de Ygritte, acho eu.
  — Isso é que é uma mulher. Um dia ‘tá-te a beijar, no outro enche-te de setas.
  — Está morta.
  — Ah sim? — Tormund abanou tristemente a cabeça. — Uma pena. Se eu fosse dez anos mais novo, se calhar tinha-a raptado. Aquele cabelo que ela tinha… Bem, as fogueiras mais quentes são as que ardem mais
depressa. — Ergueu o odre de hidromel. — À Ygritte, beijada pelo fogo! — Bebeu um longo trago.
  — À Ygritte, beijada pelo fogo — repetiu Jon quando Tormund lhe entregou o odre. Bebeu um trago ainda mais longo.
  — Foste tu que a mataste?
  — Foi um irmão meu. — Jon nunca soubera qual, e esperava nunca saber.
  — Malditos corvos. — O tom de Tormund era duro, mas estranhamente gentil. — Aquele Lança-Longa tirou-me a filha. Munda, a minha maçãzinha de Outono. Raptou-a mesmo da minha tenda, com os quatro irmãos
dela por lá. Toregg passou o tempo todo a dormir, o grande palhaço, e Torwynd… bem, Torwynd, o Manso, isso diz tudo o que há a dizer, não diz? Mas os mais novos deram luta ao moço.
  — E Munda?
  — Ela é do meu sangue — disse Tormund com orgulho. — Rachou-lhe o lábio e arrancou-lhe metade duma orelha à dentada, e ouvi dizer que ele tem tantos arranhões nas costas que não consegue pôr um manto.
Mas gosta bastante dele. E porque não havia de gostar? Ele não luta com lança, sabes? E nunca lutou. De modo que de onde achas tu que lhe veio aquele nome? Ha!
  Jon teve de se rir. Mesmo naquela altura, mesmo naquele local. Ygritte gostara do Lança-Longa Ryk. Jon esperava que ele tivesse encontrado alguma alegria com a Munda de Tormund. Alguém tinha de encontrar
alegria em algum sítio.
  — Não sabes nada, Jon Snow — ter-lhe-ia dito Ygritte. Sei que vou morrer, pensou. Pelo menos isso sei. — Todos os homens morrem — quase que conseguia ouvi-la dizer — e as mulheres também, e todos os
animais que voam, nadam ou correm. Não é quando se morre que importa, é como, Jon Snow. — É fácil para ti dizeres isso, pensou em resposta. Morreste bravamente em batalha, a assaltar o castelo de um inimigo.
Eu vou morrer como vira-casacas e assassino. E a sua morte também não seria rápida, a menos que viesse na ponta da espada de Mance.
  Em breve estavam entre as tendas. Era o acampamento selvagem habitual; a vasta confusão de fogueiras e fossas, crianças e cabras a vaguear livremente, ovelhas a balir entre as árvores, peles de cavalo
penduradas para secar. Não tinha um plano, não tinha ordem, não tinha defesas. Mas havia homens, mulheres e animais por todo o lado.
  Muitos ignoraram-no, mas por cada um que prosseguia com a sua vida, havia dez que paravam para o fitar; crianças acocoradas junto às fogueiras, velhas em carros de cães, cavernícolas com caras pintadas,
corsários com garras, serpentes e cabeças cortadas pintadas nos seus escudos, todos se viraram para ver. Jon também viu esposas de lanças, com longos cabelos soprados pelo vento que cheirava a pinheiro
e suspirava por entre as árvores.
  Ali não havia verdadeiras colinas, mas a tenda de peles brancas de Mance Rayder fora erguida num local de terreno elevado e pedregoso mesmo no limite das árvores. O Rei-para-lá-da-Muralha esperava à
porta, com o esfarrapado manto vermelho e negro a esvoaçar ao vento. Jon viu que Harma Cabeça-de-Cão se encontrava com ele, regressada dos ataques e fintas desferidos ao longo da Muralha, e Varamyr Seis-Peles
também, rodeado pelo seu gato-das-sombras e dois esguios lobos cinzentos.
  Quando viram quem a Patrulha enviara, Harma virou a cabeça e cuspiu, e um dos lobos de Varamyr mostrou os dentes e rosnou.
  — Deves ser muito valente ou muito estúpido, Jon Snow — disse Mance Rayder — para voltares para junto de nós vestindo um manto negro.
  — Que mais vestiria um homem da Patrulha da Noite?
  — Mata-o — instou Harma. — Manda o corpo de volta naquela gaiola que eles têm e diz-lhes que nos mandem outro. Eu fico com a cabeça dele como estandarte. Um vira-casacas é pior que um cão.
  — Eu preveni-te que ele era falso. — O tom de Varamyr era brando, mas o seu gato-das-sombras estava a fitar Jon com uma expressão faminta nos olhos inclinados e cinzentos. — Nunca gostei do cheiro dele.
  — Recolhe as garras, animal. — Tormund Terror dos Gigantes saltou do cavalo. — O moço ‘tá aqui p’ra ouvir. Se pões uma pata nele, pode ser que eu arranje esse manto de gato-das-sombras que tenho andado
a querer.
  — Tormund Ama-Corvos — escarneceu Harma. — És um grande saco de vento, velho.
  O troca-peles tinha um rosto cinzento, ombros redondos e era calvo, um homem que mais parecia um rato com olhos de lobisomem.
  — Depois de um cavalo se habituar à sela, qualquer homem o pode montar — disse ele em voz baixa. — Depois de um animal se juntar a um homem, qualquer troca-peles pode entrar nele e montá-lo. Orell estava
a definhar dentro das suas penas, por isso fiquei com a águia. Mas a junção funciona nos dois sentidos, warg. O Orell agora vive dentro de mim, a murmurar como te odeia. E eu posso pairar por cima da
Muralha e ver com olhos de águia.
  — Por isso sabemos — disse Mance. — Sabemos como vós éreis poucos quando detivestes a tartaruga. Sabemos quantos vieram de Atalaialeste. Sabemos como os vossos abastecimentos minguaram. Pez, óleo, setas,
lanças. Até a escada desapareceu, e aquela gaiola só pode içar uns quantos. Nós sabemos. E agora tu sabes que sabemos. — Abriu a aba da tenda. — Entra. O resto de vós, esperai aqui.
  — O quê, até eu? — disse Tormund.
  — Especialmente tu. Sempre.
  Lá dentro fazia calor. Uma pequena fogueira ardia sob os buracos para o fumo, e um braseiro incandescia junto da pilha de peles onde Dalla jazia, pálida e a suar. A irmã estava a segurar-lhe na mão.
Val, recordou Jon.
  — Tive pena quando Jarl caiu — disse-lhe.
  Val olhou-o com olhos cinzentos-claros.
  — Ele sempre escalou depressa de mais. — Era tão bonita como ele a recordava, esguia, com seios cheios, graciosa até em repouso, com malares elevados e pronunciados e uma grossa trança de cabelo cor
de mel que lhe caía até à cintura.
  — O tempo de Dalla está a chegar ao fim — explicou Mance. — Ela e Val ficarão. Elas sabem o que eu quero dizer.
  Jon manteve o rosto imóvel como gelo. Já é suficientemente mau matar um homem na sua própria tenda debaixo de tréguas. Terei também de o assassinar à frente da sua mulher enquanto lhe nasce um filho?
Fechou os dedos da mão da espada. Mance não trazia armadura, mas tinha a espada embainhada junto à anca esquerda. E havia outras armas na tenda, punhais e adagas, um arco e uma aljava cheia de setas,
uma lança de ponta de bronze no chão ao lado do grande e negro…
  …corno.
  Jon prendeu a respiração.
  Um corno de guerra, um corno de guerra grande como um raio.
  — Sim — disse Mance. — O Corno do Inverno, que Joramun soprou um dia para despertar os gigantes da Terra.
  O corno era enorme, com dois metros e quarenta ao longo da curvatura e tão largo na base que podia ter enfiado o braço lá dentro até ao cotovelo. Se isto veio de um auroque, era o maior que já existiu.
A princípio julgou que as tiras de metal em volta dele eram de bronze, mas quando se aproximou, apercebeu-se de que eram de ouro. Ouro velho, mais castanho do que amarelo, e gravado com runas.
  — Ygritte disse que não chegaste a encontrar o corno.
  — Julgas que só os corvos sabem mentir? Eu gostei bastante de ti, para um bastardo… mas nunca confiei em ti. Um homem tem de ganhar a minha confiança.
  Jon encarou-o.
  — Se tinhas o Corno de Joramun desde o início, porque foi que não o usaste? Para quê incomodares-te com a construção de tartarugas e com o envio de Thenns para nos matar enquanto dormíamos? Se este
corno for tudo o que as canções dizem que é, porque não simplesmente soprá-lo e pronto?
  Foi Dalla quem lhe respondeu, a Dalla da enorme barriga, jazendo na sua pilha de peles ao lado do braseiro.
  — Nós, o povo livre, sabemos coisas que vós, os que ajoelham, já esqueceram. Às vezes a estrada mais curta não é a mais segura, Jon Snow. O Senhor Chifrudo disse um dia que a feitiçaria é uma espada
sem cabo. Não há maneira segura de lhe pegar.
  Mance percorreu com uma mão a curvatura do grande corno.
  — Ninguém vai à caça só com uma seta na aljava — disse. — Tive a esperança que Styr e Jarl apanhassem os teus irmãos desprevenidos e nos abrissem o portão. Afastei a vossa guarnição com fintas, incursões
e ataques secundários. Bowen Marsh engoliu essa isca, como eu sabia que engoliria, mas o vosso bando de órfãos e aleijados mostrou-se mais teimoso do que eu estava à espera. Mas não penses que nos detiveste.
A verdade é que vós sois muito poucos e nós demasiados. Podia continuar com o ataque aqui e ainda mandar dez mil homens atravessar a Baía das Focas em jangadas e tomar Atalaialeste pela retaguarda. Também
podia assaltar a Torre Sombria, conheço tão bem os acessos como qualquer outro homem vivo. Podia mandar homens e mamutes escavar os portões dos castelos que abandonastes, todos ao mesmo tempo.
  — Então porque não o fazes? — Jon podia ter puxado Garralonga naquele momento, mas queria ouvir o que o selvagem tinha a dizer.
  — Sangue — disse Mance Rayder. — No fim venceria, sim, mas vós iríeis sangrar-me, e o meu povo já sangrou o suficiente.
  — As vossas perdas não foram assim tão pesadas.
  — Às vossas mãos, não. — Mance estudou o rosto de Jon. — Viste o Punho dos Primeiros Homens. Sabes o que aconteceu aí. Sabes o que enfrentamos.
  — Os Outros…
  — Eles ficam mais fortes à medida que os dias vão ficando mais pequenos e as noites mais frias. Primeiro matam-te, depois mandam os teus mortos contra ti. Os gigantes não foram capazes de lhes resistir,
nem os Thenn, os clãs do rio de gelo ou os Cornopés.
  — Nem tu?
  — Nem eu. — Havia ira naquela admissão, e uma amargura demasiado profunda para ser expressa por palavras. — Raymun Barba-Vermelha, Bael, o Bardo, Gendel e Gorne, o Senhor Chifrudo, todos eles vieram
para Sul para conquistar, mas eu vim com o rabo entre as pernas para me esconder atrás da vossa Muralha. — Voltou a tocar no corno. — Se fizer soar o Corno do Inverno, a Muralha cairá. Pelo menos é o
que as canções me querem fazer crer. Há alguns entre o meu povo que não desejam nada com mais força…
  — Mas depois de a Muralha cair — disse Dalla — o que irá parar os Outros?
  Mance concedeu-lhe um sorriso dedicado.
  — É uma mulher sensata, esta que encontrei. Uma verdadeira rainha. — Voltou-se de novo para Jon. — Volta e diz-lhes para abrirem o portão e deixar-nos passar. Se o fizerem, dar-lhes-ei o corno, e a
Muralha ficará em pé até ao fim dos tempos.
  Abrir o portão e deixá-los passar. Fácil de dizer, mas o que se seguiria? Gigantes acampados nas ruínas de Winterfell? Canibais na Mata de Lobos, quadrigas a varrer as terras acidentadas, povo livre
a raptar as filhas de construtores navais e ourives em Porto Branco, e peixeiras ao largo da Costa Pedregosa?
  — És um verdadeiro rei? — perguntou Jon de súbito.
  — Nunca tive uma coroa na cabeça nem sentei o cu na porcaria de um trono, se é isso que estás a perguntar — respondeu Mance. — O meu nascimento é tão baixo como poderia ser, nenhum septão me besuntou
a cabeça com óleos, não sou dono de castelos, e a minha rainha usa peles e âmbar, e não seda e safiras. Sou o meu próprio campeão, o meu próprio bobo, e o meu próprio harpista. Não te tornas Rei-para-lá-da-Muralha
por causa de quem foi o teu pai. O povo livre não seguirá um nome, e não se importam com qual dos irmãos nasceu primeiro. Seguem lutadores. Quando abandonei a Torre Sombria, havia cinco homens a fazer
ruído acerca de como podiam ser do material de que são feitos os reis. Tormund era um, o Magnar outro. Matei os outros três, quando tornaram claro que preferiam lutar a seguir-me.
  — Podes matar os teus inimigos — disse Jon sem rodeios — mas serás capaz de governar os teus amigos? Se deixarmos o teu povo passar, és suficientemente forte para os fazer manter a paz do rei e obedecer
às leis?
  — Às leis de quem? Às leis de Winterfell e de Porto Real? — Mance soltou uma gargalhada. — Quando quisermos leis, faremos as nossas. Podes ficar também com a tua real justiça e os teus reais impostos.
Estou a oferecer-te o corno, não a nossa liberdade. Não nos ajoelharemos perante vós.
  — E se recusarmos a proposta? — Jon não tinha dúvida de que recusariam. O Velho Urso poderia pelo menos ter escutado, embora recusasse perante a ideia de deixar trinta ou quarenta mil selvagens à solta
nos Sete Reinos. Mas Alliser Thorne e Janos Slynt afastariam a ideia à partida.
  — Se recusardes — disse Mance Rayder —, Tormund Terror dos Gigantes fará soar o Corno do Inverno dentro de três dias, à alvorada.
  Levaria a mensagem para Castelo Negro e falar-lhes-ia do corno, mas se deixasse Mance vivo, o Lorde Janos e Sor Alliser pegariam nisso como prova de que era um vira-casacas. Mil pensamentos voltearam
pela cabeça de Jon. Se puder destruir o corno, esmagá-lo aqui e agora… mas antes de poder começar a pensar bem nisso, ouviu o gemido grave de outro corno qualquer, atenuado pelas paredes de peles da tenda.
Mance também o ouviu. Franzindo o sobrolho, dirigiu-se para a porta. Jon seguiu-o.
  O corno de guerra era mais sonoro lá fora. O seu chamamento agitara o acampamento dos selvagens. Cavalos relinchavam e resfolegavam, gigantes rugiam no Idioma Antigo, e até os mamutes estavam inquietos.
  — Corno de batedor — disse Tormund a Mance.
  — Alguma coisa vem aí. — Varamyr estava sentado de pernas cruzadas no chão meio gelado, com os lobos a descrever círculos agitados em volta dele. Uma sombra pairou-lhe por cima, e Jon ergueu o olhar
para ver as asas azuis-acinzentadas de uma águia. — Vem do leste.
  Quando os mortos caminham, muralhas, estacas e espadas nada significam, recordou. Não podes lutar com os mortos, Jon Snow. Ninguém o sabe tão bem como eu.
  Harma carregou as sobrancelhas.
  — De leste? As criaturas deviam estar atrás de nós.
  — De leste — repetiu o troca-peles. — Alguma coisa vem aí.
  — Os Outros? — perguntou Jon.
  Mance abanou a cabeça.
  — Os Outros nunca vêm quando o Sol está no céu. — Quadrigas chocalhavam através do campo de morte, a transbordar de guerreiros que brandiam lanças de osso aguçado. O rei gemeu. — Onde porra pensam eles
que vão? Quenn, leva aqueles idiotas de volta às suas posições. Alguém que me traga o cavalo. A égua, não o garanhão. Também vou querer a minha armadura. — Mance deitou um relance suspicaz à Muralha.
No topo das ameias geladas, os soldados de palha mantinham-se em pé, coleccionando setas, mas não havia sinal de mais nenhuma actividade. — Harma põe em campo os teus batedores. Tormund, vai à procura
dos teus filhos e arranja-me uma linha tripla de lanças.
  — Sim — disse Tormund, afastando-se a passos largos.
  O pequeno troca-peles com ar de rato fechou os olhos e disse:
  — Estou a vê-los. Aproximam-se ao longo dos ribeiros e trilhos de caça…
  — Quem?
  — Homens. Homens a cavalo. Homens vestidos de aço e homens vestidos de negro.
  — Corvos. — Mance transformou a palavra numa praga. Virou-se para Jon. — Será que os meus antigos irmãos julgaram que me apanhavam com as bragas em baixo se atacassem enquanto estivéssemos a conversar?
  — Se planearam um ataque, não me falaram dele. — Jon não acreditava. O Lorde Janos não tinha homens suficientes para atacar o campo dos selvagens. Além disso, encontrava-se do lado errado da Muralha,
e o portão estava selado com detritos. Ele tinha um tipo diferente de traição em mente, isto não pode ser obra sua.
  — Se estás outra vez a mentir-me, não sais vivo daqui — preveniu Mance. Os guardas trouxeram-lhe o cavalo e a armadura. Noutros pontos do acampamento, Jon viu gente a correr sem coordenação, com alguns
homens a formar como se fossem assaltar a Muralha enquanto outros se esgueiravam para a floresta, mulheres a conduzir carros de cães para leste, mamutes a vaguear para oeste. Estendeu a mão por sobre
o ombro e puxou pela Garralonga, precisamente no momento em que uma fina linha de patrulheiros emergia do limite da floresta a trezentos metros de distância. Usavam cota de malha negra, meios-elmos negros,
e mantos negros. Com a armadura meio envergada, Mance puxou pela espada. — Com que então não sabias nada disto? — disse friamente a Jon.
  Lentos como mel numa manhã fria, os patrulheiros caíram sobre o acampamento dos selvagens, abrindo caminho por entre maciços de giestas e pequenos bosques, por sobre raízes e pedras. Selvagens voaram
ao seu encontro, berrando gritos de guerra e brandindo mocas, espadas de bronze e machados de pederneira, galopando temerariamente contra os seus velhos inimigos. Um grito, um golpe e uma boa morte valente,
era como Jon ouvira os irmãos referir-se à maneira de lutar do povo livre.
  — Acredita no que quiseres — disse Jon ao Rei-para-lá-da-Muralha — mas nada sabia de ataque algum.
  Harma passou por eles a trovejar antes de Mance poder responder, à cabeça de trinta corsários. O seu estandarte seguia à sua frente; um cão morto empalado numa lança, fazendo chover sangue a cada passo.
Mance observou enquanto ela se esmagava contra os patrulheiros.
  — Pode ser que estejas a dizer a verdade — disse. — Estes parecem homens de Atalaialeste. Marinheiros a cavalo. Cotter Pyke sempre teve mais coragem do que juízo. Apanhou o Senhor dos Ossos em Monte
Longo, pode ter pensado fazer o mesmo comigo. Se sim, é um idiota. Não tem homens suficientes, ele…
  — Mance! — soou o grito. Era um batedor, irrompendo de entre as árvores num cavalo coberto de espuma. — Mance, há mais, estão todos à nossa volta, homens de ferro, ferro, uma hoste de homens de ferro.
  Praguejando, Mance saltou para a sela.
  — Varamyr, fica e trata de que nenhum mal aconteça a Dalla. — O Rei-para-lá-da-Muralha apontou a espada a Jon. — E mantém uns quantos olhos extra neste corvo. Se ele fugir, corta-lhe a goela.
  — Sim, eu trato disso. — O troca-peles era uma cabeça mais baixo do que Jon, baixo e mole, mas aquele gato-das-sombras era capaz de o esventrar com uma pata. — Também vêm do norte — disse Varamyr a
Mance. — É melhor ires.
  Mance colocou o elmo com as suas asas de gralha. Os seus homens também tinham montado.
  — Ponta de lança — gritou Mance —, a mim, formar em cunha. — Mas quando deu com os calcanhares na égua e voou pelo campo fora ao encontro dos patrulheiros, os homens que correram a acompanhá-lo perderam
qualquer semelhança com uma formação.
  Jon deu um passo para a tenda, pensando no Corno do Inverno, mas o gato-das-sombras bloqueou-o, com a cauda a oscilar. As narinas da fera dilataram-se e escorreu-lhe saliva dos dentes curvos da frente.
Ele cheira o meu medo. Sentiu então mais do que nunca a falta do Fantasma. Os dois lobos estavam atrás dele, rosnando.
  — Estandartes — ouviu Varamyr murmurar —, vejo estandartes dourados, oh… — Um mamute passou pesadamente por eles, bramindo, com meia dúzia de arqueiros na torre de madeira que levava sobre o dorso.
— O rei… não…
  Então o troca-peles atirou a cabeça para trás e berrou.
  O som era chocante, ensurdecedor, pesado de agonia. Varamyr caiu, contorcendo-se, e o gato também estava a gritar… e alto, alto no céu oriental, contra a muralha de nuvens, Jon viu a águia a arder.
Durante um segundo brilhou mais do que uma estrela, engrinaldada de vermelho, dourado e laranja, batendo violentamente as asas como se fosse capaz de fugir da dor. E subiu, e subiu, e subiu ainda mais
alto.
  O grito fez Val sair da tenda, pálida.
  — Que foi, que aconteceu? — Os lobos de Varamyr estavam a lutar um com o outro e o gato-das-sombras fugira para o meio das árvores, mas o homem continuava a torcer-se no chão. — Que se passa com ele?
— quis saber Val, horrorizada. — Onde está o Mance?
  — Ali. — Jon apontou. — Foi lutar. — O rei levava a sua cunha esfarrapada na direcção de um grupo de patrulheiros, fazendo relampejar a espada.
  — Foi? Não pode ter ido, agora não. Começou.
  — A batalha? — Jon viu os patrulheiros espalhar-se perante a sangrenta cabeça de cão de Harma. Os corsários gritaram, golpearam e perseguiram os homens de negro até às árvores. Mas havia mais homens
a sair da floresta, uma coluna de cavalaria. Cavaleiros em cavalaria pesada, viu Jon. Harma teve de reagrupar e dar a volta para ir ao seu encontro, mas metade dos seus homens tinha-se adiantado demasiado.
  — O nascimento! — estava Val a gritar-lhe.
  Soavam trombetas por todo o lado, sonoras e metálicas. Os selvagens não têm trombetas, têm só cornos de guerra. E sabiam disso tão bem como ele; o som pôs o povo livre a correr numa confusão, alguns
na direcção da luta, outros para longe. Um mamute estava a espezinhar um rebanho de ovelhas que três homens tentavam levar para oeste. Os tambores batiam enquanto os selvagens corriam a formar quadrados
e linhas, mas tarde de mais e com demasiada desorganização e lentidão. O inimigo emergia da floresta, de leste, de nordeste, de norte; três grandes colunas de cavalaria pesada, toda revestida de aço escuro
e cintilante e sobretudos claros de lã. Não eram os homens de Atalaialeste, esses não tinham passado de uma linha de batedores. Um exército. O rei? Jon sentia-se tão confuso como os selvagens. Poderia
Robb ter regressado? Ter-se-ia o rapaz no Trono de Ferro finalmente posto em movimento?
  — É melhor que voltes para a tenda — disse a Val.
  Do outro lado do campo de batalha, uma coluna submergira Harma Cabeça-de-Cão. Outra esmagara-se contra o flanco dos lanceiros de Tormund enquanto ele e os filhos tentavam desesperadamente virá-los.
Mas os gigantes estavam a subir para os seus mamutes, e os cavaleiros nos seus cavalos albardados não gostaram nada disso; Jon viu como os corcéis e cavalos de batalha gritavam e debandavam ao ver aquelas
pesadas montanhas. Mas também havia medo do lado dos selvagens, com centenas de mulheres e crianças a fugir da batalha, indo-se algumas meter cegamente sob os cascos dos garranos. Viu o carro de cães
de uma velha pôr-se na frente de três quadrigas, fazendo-as chocar umas com as outras.
  — Deuses — sussurrou Val —, deuses, porque é que estão a fazer isto?
  — Volta para a tenda e fica com Dalla. Aqui não estás em segurança. — A segurança não seria muito maior lá dentro, mas ela não precisava de ouvir isso.
  — Tenho de encontrar a parteira — disse Val.
  — A parteira és tu. Eu fico aqui até ao regresso de Mance. — Perdera Mance de vista, mas agora encontrara-o, a abrir caminho à espadeirada pelo meio de um agrupamento de homens a cavalo. Os mamutes
tinham estilhaçado a coluna central, mas as outras duas aproximavam-se como tenazes. Na borda oriental dos acampamentos, um grupo de arqueiros disparava setas incendiárias contra as tendas. Viu um mamute
arrancar um cavaleiro da sela e atirá-lo doze metros ao ar com um golpe de tromba. Selvagens passaram por ali a gritar, mulheres e crianças que fugiam da batalha, algumas acompanhadas de homens que as
apressavam. Uns quantos deitaram a Jon olhares escuros, mas ele tinha Garralonga na mão, e ninguém o incomodou. Até Varamyr fugiu, gatinhando sobre as mãos e os joelhos.
  Mais e mais homens jorravam das árvores, já não apenas cavaleiros mas também cavaleiros livres, arqueiros a cavalo e homens de armas com jaquetas e capacetes redondos, dúzias de homens, centenas de
homens. Um deslumbramento de estandartes voava por cima deles. O vento sacudia-os com demasiada violência para que Jon visse os símbolos, mas vislumbrou um cavalo-marinho, um campo de aves, um anel de
flores. E amarelo, tanto amarelo, estandartes amarelos com um símbolo vermelho, de quem eram aquelas armas?
  A leste, norte e nordeste, viu bandos de selvagens a tentar tomar posição e lutar, mas os atacantes passavam-lhes por cima. O povo livre ainda tinha a vantagem dos números, mas os atacantes possuíam
armaduras de aço e cavalos pesados. Na parte mais densa da refrega, Jon viu Mance erguer-se nos estribos. O seu manto vermelho e negro e o elmo alado tornavam-no fácil de distinguir. Tinha a espada erguida,
e os homens reuniam-se a ele quando uma cunha de cavaleiros caiu sobre eles com lanças, espadas e machados longos. A égua de Mance empinou-se, escoiceando, e uma lança espetou-se-lhe no peito. Então a
maré de aço submergiu-o.
  Acabou, pensou Jon, eles estão a quebrar. Os selvagens fugiam, deitavam as armas fora, homens de Cornopé, cavernícolas e Thenns revestidos de escamas de bronze, fugiam. Mance desaparecera, alguém brandia
a cabeça de Harma na ponta de uma haste, as linhas de Tormund tinham quebrado. Só os gigantes nos seus mamutes ainda resistiam, ilhas peludas num rubro mar de aço. Os fogos saltavam de tenda em tenda
e alguns dos grandes pinheiros também começavam a incendiar-se. E outra cunha de cavaleiros couraçados surgiu por entre o fumo, montados em cavalos albardados. Flutuando sobre eles viam-se os maiores
estandartes vistos até então, estandartes reais grandes como lençóis; um amarelo com longas pontas, que exibia um coração flamejante, e um outro que era como uma folha de ouro martelado, com um veado
negro a cabriolar e a ondular ao vento.
  Robert, pensou Jon durante um momento louco, recordando o pobre Owen, mas quando as trombetas voltaram a soar e os cavaleiros carregaram, o nome que gritaram foi: “Stannis! Stannis! STANNIS!”
  Jon virou-se, e entrou na tenda.
 
 ARYA
  À porta da estalagem, pendurados de uma forca desgastada pelos elementos, os ossos de uma mulher torciam-se e chocalhavam a cada rajada de vento.
  Conheço esta estalagem. Mas não houvera forca à porta quando dormira ali com a irmã Sansa, sob o olhar vigilante da Septã Mordane.
  — Não queremos entrar — decidiu subitamente Arya —, pode haver fantasmas.
  — Sabes quanto tempo passou desde que eu bebi uma taça de vinho? — Sandor saltou da sela. — Além do mais, temos de ficar a saber quem controla o vau rubi. Fica com os cavalos se quiseres, por mim ‘tou
a cagar.
  — E se te reconhecerem? — Sandor já não se incomodava em esconder o rosto. Já não parecia importar-se com quem o reconhecesse. — Podem querer prender-te.
  — Que experimentem. — Soltou a espada na bainha e empurrou a porta.
  Arya nunca teria melhor hipótese de fugir. Podia afastar-se, montada na Cobarde, e levar também o Estranho. Mordeu o lábio. Depois levou os cavalos para os estábulos e entrou atrás dele.
  Eles conhecem-no. Foi o silêncio que lho disse. Mas isso não era o pior. Ela também os conhecia. Não o estalajadeiro magricela, nem as mulheres, nem os trabalhadores rurais que estavam junto da lareira.
Mas os outros. Os soldados. Ela conhecia os soldados.
  — À procura do teu irmão, Sandor? — A mão de Polliver estivera enfiada no corpete da rapariga que tinha ao colo, mas agora tirara-a para fora.
  — À procura de uma taça de vinho. Estalajadeiro, um jarro de tinto. — Clegane atirou uma mão-cheia de moedas de cobre para o chão.
  — Não quero problemas, sor — disse o estalajadeiro.
  — Então não me chames sor. — A boca torceu-se-lhe. — Estás surdo, palerma? Pedi vinho. — Quando o homem fugiu, Clegane gritou-lhe para as costas. — Duas taças! A rapariga também tem sede!
  São só três, pensou Arya. Polliver deitou-lhe uma breve olhadela e o rapaz que estava a seu lado nem chegou a olhá-la, mas o terceiro fitou-a longa e duramente. Era um homem de altura e constituição
medianas, com uma cara tão comum que era difícil saber que idade tinha. O Cócegas. O Cócegas e Polliver juntos. O rapaz era um escudeiro, ajuizando pela idade e vestuário. Tinha uma grande borbulha branca
junto ao nariz e algumas vermelhas na testa.
  — Este é o cachorro perdido de que Sor Gregor falou? — perguntou ao Cócegas. — Aquele que fez xixi nos juncos e fugiu?
  O Cócegas pousou uma mão no braço do rapaz, num aviso, e abanou vivamente a cabeça. Arya compreendeu aquilo com bastante clareza.
  Mas o escudeiro não, ou então não se importou.
  — O Sor disse que o seu irmão cachorro enfiou o rabo entre as pernas quando a batalha aqueceu demasiado em Porto Real. Disse que fugiu a ganir. — Dirigiu ao Cão de Caça um estúpido sorriso de troça.
  Clegane estudou o rapaz e não proferiu palavra. Polliver tirou rudemente a rapariga de cima de si e pôs-se em pé.
  — O moço ‘tá bêbado — disse. O homem de armas era quase tão alto como o Cão de Caça, embora não fosse tão musculoso. Uma barba arredondada cobria-lhe o queixo e as maxilas, espessa, negra e bem cortada,
mas a cabeça era mais calva do que outra coisa. — Ele não aguenta o vinho, é só isso.
  — Então não devia beber.
  — O cachorro não assusta… — começou o rapaz, mas o Cócegas torceu-lhe casualmente a orelha entre o indicador e o polegar. As palavras transformaram-se num guincho de dor.
  O estalajadeiro regressou apressadamente trazendo duas taças de pedra e um jarro numa bandeja de peltre. Sandor levou o jarro à boca. Arya via os músculos do seu pescoço a trabalhar enquanto ele engolia.
Quando bateu com ele na mesa, metade do vinho tinha desaparecido.
  — Agora já podes servir. E é melhor que apanhes aqueles cobres, que são as únicas moedas que deves ver hoje.
  — Nós pagamos quando acabarmos de beber — disse Polliver.
  — Quando acabares de beber, vais fazer cócegas ao estalajadeiro para saber onde ele guarda o ouro. Como fazes sempre.
  O estalajadeiro lembrou-se de súbito de algo que tinha na cozinha. Os homens da terra também estavam a sair, e as raparigas já tinham desaparecido. O único som que se ouvia na sala comum era o ténuo
crepitar do fogo na lareira. Também devíamos ir embora, compreendeu Arya.
  — Se andas à procura do Sor, vens tarde de mais — disse Polliver. — Ele esteve em Harrenhal, mas já não está. A rainha mandou-o buscar. — Arya viu que o homem trazia três lâminas à cintura; uma espada
longa na anca esquerda, e na direita um punhal e uma lâmina mais esguia, longa de mais para ser uma adaga e curta de mais para ser uma espada. — O Rei Joffrey está morto, sabes? — acrescentou. — Envenenado
durante o banquete do seu próprio casamento.
  Arya penetrou um pouco mais na sala. Joffrey está morto. Quase conseguia vê-lo, com os caracóis louros, o sorriso maldoso e os lábios grossos e moles. Joffrey está morto! Sabia que aquilo devia deixá-la
feliz, mas de algum modo ainda se sentia vazia por dentro. Joffrey estava morto, mas se Robb o estava também, que importava?
  — Lá se foram os meus bravos irmãos da Guarda Real. — O Cão de Caça soltou uma fungadela de desprezo. — Quem foi que o matou?
  — O Duende, pensa-se. Ele e a mulherzinha.
  — Que mulher?
  — Esquecia-me de que tens estado escondido debaixo de uma pedra. A nortenha. A filha de Winterfell. Ouvimos dizer que ela matou o rei com um feitiço, e que depois se transformou num lobo com grandes
asas de couro, como as de um morcego, e voou por uma janela de torre. Mas deixou o anão para trás e Cersei quer cortar-lhe a cabeça.
  Isso é estúpido, pensou Arya. Sansa só sabe canções, e não feitiços, e nunca casaria com o Duende.
  O Cão de Caça sentou-se no banco mais próximo da porta. A boca torceu-se-lhe, mas só do lado queimado.
  — Ela devia mergulhá-lo em fogovivo e cozê-lo. Ou fazer-lhe cócegas até a Lua ficar negra. — Ergueu a taça de vinho e esvaziou-a.
  Ele é um deles, pensou Arya quando viu aquilo. Mordeu o lábio com tanta força que lhe soube a sangue. É igualzinho a eles. Devia matá-lo quando se deixasse dormir.
  — Então Gregor tomou Harrenhal? — disse Sandor.
  — Não foi preciso tomar muito — disse Polliver. — Os mercenários fugiram assim que souberam que íamos a caminho, todos menos uns quantos. Um dos cozinheiros abriu uma poterna para a gente entrar, para
se vingar de Hoat por lhe ter cortado o pé. — Soltou um risinho. — Ficámos com ele para cozinhar para nós, umas quantas raparigas para nos aquecer as camas, e passámos todos os outros pela espada.
  — Todos os outros? — disse Arya antes de se conseguir refrear.
  — Bem, o Sor ficou com Hoat como passatempo.
  Sandor disse:
  — O Peixe Negro ainda está em Correrrio?
  — Não por muito tempo — disse Polliver. — Está cercado. O velho Frey vai enforcar Edmure Tully se ele não render o castelo. O único sítio onde se luta a sério é à volta de Corvarbor. Os Blackwood e
os Bracken. Os Bracken agora são dos nossos.
  O Cão de Caça serviu uma taça de vinho a Arya e outra a si mesmo, e bebeu-a enquanto fitava o fogo na lareira.
  — O passarinho voou, foi? Bem, ainda bem para ela. Cagou na cabeça do Duende e voou.
  — Hão-de encontrá-la — disse Polliver. — Nem que seja preciso metade do ouro de Rochedo Casterly.
  — Uma miúda bonita, segundo ouvi dizer — disse o Cócegas. — Doce como o mel. — Fez estalar os lábios e sorriu.
  — E cortês — concordou o Cão de Caça. — Uma senhorinha como deve ser. Ao contrário da porcaria da irmã.
  — Também a encontraram — disse Polliver. — A irmã. Ouvi dizer que é para o Bastardo de Bolton.
  Arya beberricou o vinho para que não lhe vissem a boca. Não compreendia o que Polliver estava a dizer. Sansa não tem mais nenhuma irmã. Sandor Clegane riu alto.
  — O que é que tem assim tanta piada? — perguntou Polliver.
  O Cão de Caça não deitou nem um relance a Arya.
  — Se quisesse que soubesses, tinha-te dito. Há navios em Salinas?
  — Salinas? Como é que eu hei-de saber? Os mercadores voltaram a Lagoa da Donzela, segundo ouvi dizer. Randyll Tarly tomou o castelo e trancou Mooton numa cela de torre. Não ouvi a ponta dum corno acerca
de Salinas.
  O Cócegas inclinou-se para a frente.
  — Irias fazer-te ao mar sem te despedires do teu irmão? — Arya sentiu arrepios ao ouvi-lo fazer uma pergunta. — O Sor ia preferir que voltasses a Harrenhal com a gente, Sandor. Aposto que sim. Ou a
Porto Real…
  — Quero que isso se foda. Que ele se foda. Que tu te fodas.
  O Cócegas encolheu os ombros, endireitou-se e esticou uma mão para trás das costas a fim de esfregar a parte de trás do pescoço. Então tudo pareceu acontecer ao mesmo tempo: Sandor pôs-se em pé, Polliver
puxou pela espada e a mão do Cócegas chicoteou em arco, numa névoa, para enviar qualquer coisa prateada a relampejar pela sala comum. Se o Cão de Caça não estivesse em movimento, a faca podia ter arrancado
o caroço à maçã da sua garganta; em vez disso, limitou-se a roçar-lhe pelas costelas, e acabou espetada, a tremer, na parede perto da porta. Ele então riu-se, uma gargalhada tão fria e vazia como se tivesse
saído do fundo de um poço profundo.
  — Eu tinha esperança que fizesses qualquer coisa estúpida. — A espada deslizou para fora da bainha mesmo a tempo de desviar para o lado a primeira estocada de Polliver.
  Arya deu um passo para trás quando a longa canção de aço se iniciou. O Cócegas saltou do banco com uma espada curta numa mão e um punhal na outra. Até o atarracado escudeiro se erguera, procurando o
cabo da espada às apalpadelas. Arya pegou na sua taça de vinho que estava sobre a mesa e atirou-lha à cara. A pontaria foi melhor do que fora nas Gémeas. A taça atingiu-o mesmo em cheio na grande borbulha
branca e ele estatelou-se sobre o traseiro.
  Polliver era um lutador sombrio e metódico, e empurrou firmemente Sandor para trás, movendo a sua pesada espada longa com brutal precisão. Os golpes do Cão de Caça eram mais desleixados, as paradas
apressadas, os pés lentos e desajeitados. Ele está bêbado, compreendeu Arya com consternação. Bebeu depressa de mais, sem comida na barriga. E o Cócegas estava a deslizar ao longo da parede para se pôr
atrás dele. Arya pegou na segunda taça de vinho e atirou-lha, mas o homem foi mais rápido do que o escudeiro e desviou a cabeça a tempo. O olhar que lhe deitou foi frio e cheio de promessas. Há ouro escondido
na aldeia?, conseguia ouvi-lo a perguntar. O estúpido do escudeiro estava a agarrar-se à borda duma mesa, apoiando-se nela para se pôr de joelhos. Arya sentiu o sabor do início do pânico no fundo da garganta.
O medo golpeia mais profundamente que as espadas. O medo golpeia mais profundamente…
  Sandor soltou um grunhido de dor. O lado queimado do seu rosto escorria, vermelho, da têmpora à bochecha, e o coto de orelha desaparecera. Aquilo pareceu zangá-lo. Empurrou Polliver para trás com um
ataque furioso, flagelando-o com a velha espada amolgada que arranjara nas colinas. O homem barbudo cedeu terreno, mas nenhum dos golpes chegou sequer a tocá-lo. E então o Cócegas saltou sobre um banco,
rápido como uma cobra, e golpeou a parte de trás do pescoço do Cão de Caça com a aresta da sua espada curta.
  Estão a matá-lo. Arya não tinha mais taças, mas havia algo melhor para atirar. Puxou do punhal que tinham roubado ao arqueiro moribundo e tentou arremessá-lo ao Cócegas da mesma maneira que ele fizera.
Não era o mesmo que atirar uma pedra ou uma maçã, porém. A faca balançou e atingiu-o no braço com o cabo. Ele nem sequer a sentiu. Estava demasiado concentrado em Clegane.
  Enquanto apunhalava, Clegane torceu-se violentamente para o lado, conquistando para si uma pausa de meio segundo. Corria-lhe sangue pela cara e do golpe no pescoço. Ambos os homens da Montanha o atacaram
duramente, com Polliver a golpear-lhe a cabeça e ombros enquanto o Cócegas se precipitava para apunhalar as costas e barriga. O pesado jarro de pedra continuava sobre a mesa. Arya agarrou-o com ambas
as mãos, mas no momento em que o erguia alguém lhe agarrou no braço. O jarro escorregou-lhe dos dedos e caiu com estrondo ao chão. Obrigada a girar com um sacão, deu por si à distância de um nariz do
escudeiro. Sua estúpida, esqueceste-te completamente dele. Viu que a grande borbulha branca tinha rebentado.
  — És o cachorro do cachorro? — Ele tinha a espada na mão direita e o braço dela na esquerda, mas as mãos dela estavam livres, portanto puxou a faca do rapaz da sua bainha e voltou a embainhar-lha na
barriga, torcendo-a. Ele não trazia cota de malha e nem mesmo couro fervido, portanto a faca penetrou facilmente, como a Agulha penetrara quando Arya matara o moço de estrebaria em Porto Real. Os olhos
do escudeiro abriram-se muito e ele largou-lhe o braço. Arya girou na direcção da porta e arrancou a faca do Cócegas da parede.
  Polliver e o Cócegas tinham encostado o Cão de Caça a um canto, por trás de um banco, e um deles acrescentara aos seus outros ferimentos um feio golpe vermelho na coxa superior. Sandor apoiava-se na
parede, sangrando e respirando ruidosamente. Parecia quase não conseguir manter-se em pé, quanto mais lutar.
  — Deita a espada fora, e levamos-te de volta para Harrenhal — disse-lhe Polliver.
  — Para que Gregor possa acabar comigo em pessoa?
  O Cócegas disse:
  — Talvez te dê a mim.
  — Se me queres, anda apanhar-me. — Sandor desencostou-se da parede e pôs-se semiagachado atrás do banco, com a espada cruzada em frente do corpo.
  — Achas que não apanhamos? — disse Polliver. — Estás bêbado.
  — Pode ser que sim — disse o Cão de Caça — mas tu estás morto. — O pé projectou-se-lhe para a frente e apanhou o banco, atirando-o com força contra as canelas de Polliver. De algum modo, o barbudo conseguiu
manter o equilíbrio, mas o Cão de Caça baixou-se sob a sua violenta estocada e atirou a espada para cima num traiçoeiro golpe para trás. Sangue esguichou para o tecto e paredes. A lâmina ficou presa a
meio da cara de Polliver, e quando o Cão de Caça a soltou com uma sacudidela, metade da cabeça do outro veio atrás.
  O Cócegas recuou. Arya conseguia cheirar o seu medo. A espada curta que tinha na mão pareceu de súbito quase um brinquedo, comparada com a longa lâmina que o Cão de Caça brandia, e além disso não tinha
armadura. Moveu-se rapidamente, ligeiro de pés, sem nunca tirar os olhos de Sandor Clegane. Foi a coisa mais simples do mundo para Arya aproximar-se dele por trás e apunhalá-lo.
  — Há ouro escondido na aldeia? — gritou enquanto lhe enfiava a lâmina nas costas. — Há prata? Pedras preciosas? — Apunhalou-o mais duas vezes. — Há comida? Onde está o Lorde Beric? — Então já estava
em cima dele, ainda a dar-lhe punhaladas. — Para onde foi ele? Quantos homens o acompanhavam? Quantos cavaleiros? Quantos arqueiros? Quantos, quantos, quantos, quantos, quantos, quantos? Há ouro na aldeia?
  Tinha as mãos vermelhas e pegajosas quando Sandor a arrastou de cima dele.
  — Basta — foi tudo o que disse. Ele próprio sangrava como um porco na matança, e arrastava uma perna ao caminhar.
  — Há mais um — relembrou-lhe Arya.
  O escudeiro puxara a faca da barriga e estava a tentar parar o sangue com as mãos. Quando o Cão de Caça o pôs direito, gritou e desatou a choramingar como um bebé.
  — Misericórdia — chorou —, por favor. Não me mateis. Mãe, misericórdia.
  — Eu pareço-me com a merda da tua mãe? — O Cão de Caça não se parecia com nada de humano. — Também mataste este — disse a Arya. — Furaste-lhe as tripas, e isso é o fim dele. Mas vai levar muito tempo
a morrer.
  O rapaz não pareceu ouvi-lo.
  — Eu vim por causa das raparigas — choramingou. — …fazer de mim um homem, disse o Polly… oh, deuses, por favor, levai-me para um castelo… um meistre, levai-me a um meistre, o meu pai tem ouro… foi só
por causa das raparigas… misericórdia, sor.
  O Cão de Caça deu-lhe um estalo na cara que o fez gritar outra vez.
  — Não me chames sor. — Voltou a virar-se para Arya. — Este é teu, loba. Trata dele.
  Arya sabia o que ele queria dizer. Dirigiu-se a Polliver e ajoelhou no seu sangue tempo suficiente para lhe desafivelar o cinto da espada. Pendurada junto ao punhal estava uma lâmina mais esguia, longa
de mais para ser uma adaga, curta de mais para ser uma espada de homem… mas ajustava-se perfeitamente à sua mão.
  — Lembras-te de onde fica o coração? — perguntou o Cão de Caça.
  Ela anuiu. O escudeiro rolou os olhos.
  — Misericórdia.
  A Agulha deslizou entre as suas costelas e deu-lhe misericórdia.
  — Óptimo. — A voz de Sandor estava pesada de dor. — Se estes três estavam aqui nas putas, Gregor deve controlar o vau, além de Harrenhal. Podem aparecer mais dos seus animais de estimação a qualquer
momento, e já matámos suficientes desses cabrões por um dia só.
  — Para onde vamos? — perguntou ela.
  — Salinas. — Pousou uma grande mão no seu ombro para evitar cair. — Arranja algum vinho, loba. E leva também o dinheiro que eles tiverem, que vamos precisar dele. Se houver navios em Salinas, podemos
chegar ao Vale por mar. — A boca torceu-se para ela, enquanto mais sangue escorria de onde tivera a orelha. — Pode ser que a Senhora Lysa te case com o seu pequeno Robert. Isso era uma união que eu gostava
de ver. — Começou a rir, mas em vez disso gemeu.
  Quando chegou o momento de partir, precisou da ajuda de Arya para voltar a subir para o Estranho. Atara uma tira de tecido em volta do pescoço e outra em torno da coxa, e tirara o manto do escudeiro
do cabide junto à porta. O manto era verde, com uma seta verde numa banda branca, mas quando o Cão de Caça o enrolou e o comprimiu contra a orelha, rapidamente se tornou vermelho. Arya teve receio que
ele caísse no momento em que se puseram em movimento, mas de algum modo permaneceu na sela.
  Não podiam arriscar-se a um encontro com quem quer que controlasse o vau rubi, portanto em vez de seguirem a Estrada de Rei, desviaram-se para sueste, cruzando campos repletos de ervas daninhas, bosques
e pântanos. Passaram-se horas até chegarem à margem do Tridente. Arya viu que o rio regressara docilmente ao seu canal costumeiro, com toda a sua húmida raiva castanha desaparecida com as chuvas. Também
ele está cansado, pensou.
  Perto, junto à borda de água, encontraram um grupo de salgueiros que cresciam numa confusão de pedras desgastadas. Juntas, as pedras e as árvores formavam uma espécie de forte natural onde se podiam
esconder tanto do rio como do trilho.
  — Isto aqui serve — disse o Cão de Caça. — Dá água aos cavalos e arranja lenha para uma fogueira. — Quando desmontou, teve de se apoiar num ramo para evitar cair.
  — O fumo não será visto?
  — Se alguém nos quiser encontrar, só tem de seguir o meu sangue. Água e lenha. Mas traz-me primeiro esse odre de vinho.
  Depois de acender a fogueira, Sandor equilibrou o elmo sobre as chamas, despejou lá para dentro metade do odre, e caiu contra uma projecção de pedra coberta de musgo como se não tencionasse voltar a
levantar-se. Obrigou Arya a lavar o manto do escudeiro e a cortá-lo em faixas. Essas foram também metidas no elmo.
  — Se tivesse mais vinho, bebia-o até ficar morto para o mundo. Talvez te devesse mandar de volta àquela maldita estalagem para trazeres mais dois ou três odres.
  — Não — disse Arya. Ele não o faria, pois não? Se o fizer, eu limito-me a abandoná-lo e a ir-me embora.
  Sandor riu-se do medo na cara dela.
  — Um gracejo, lobita. Uma merda dum gracejo. Arranja-me um pau, para aí deste tamanho e não muito grosso. E lava-lhe a lama. Detesto o sabor de lama.
  Não gostou dos primeiros dois paus que ela lhe trouxe. Quando encontrou um que lhe agradou, as chamas já tinham enegrecido a cabeça de cão até aos olhos. Lá dentro, o vinho fervia furiosamente.
  — Tira o púcaro do meu rolo de dormir e enche-o até metade — disse-lhe. — Tem cuidado. Se virares aquela porcaria, eu mando-te mesmo buscar mais. Pega no vinho e despeja-o sobre as minhas feridas. Achas
que consegues fazer isso? — Arya anuiu. — Então estás à espera de quê? — rosnou.
  Os nós dos dedos roçaram no aço da primeira vez que encheu o púcaro, fazendo-lhe uma queimadura tão grande que ficou com bolhas. Arya teve de morder o lábio para evitar gritar. O Cão de Caça usou o
pau para o mesmo fim, prendendo-o entre os dentes enquanto ela despejava. Tratou primeiro do golpe na coxa dele, e depois da ferida menos profunda na parte de trás do pescoço. Sandor cerrou a mão direita
num punho e esmurrou o chão quando ela lhe tratou da perna. Quando foi a vez do pescoço, mordeu o pau com tanta força que se partiu, e ela teve de lhe arranjar outro. Conseguia ver o terror nos olhos
dele.
  — Vira a cabeça. — Deixou pingar o vinho sobre a rubra carne viva que assomava de onde tivera a orelha, e dedos de sangue castanho e vinho tinto escorreram-lhe sobre o maxilar. Então gritou mesmo, apesar
do pau. E depois desmaiou devido às dores.
  Arya descobriu o resto sozinha. Pescou do fundo do elmo as faixas que tinham feito com o manto do escudeiro e usou-as para ligar os cortes. Quando chegou ao ouvido, teve de lhe envolver metade da cabeça
para parar a hemorragia. Por essa altura, já o ocaso caía sobre o Tridente. Deixou os cavalos pastar, após o que os prendeu para a noite e instalou-se o mais confortavelmente que pôde num nicho entre
duas pedras. A fogueira ardeu durante algum tempo e extinguiu-se. Arya observou a Lua por entre os ramos, por cima da sua cabeça.
  — Sor Gregor, a Montanha — disse em voz baixa. — Dunsen, Raff, o Querido, Sor Ilyn, Sor Meryn, Rainha Cersei. — Deixar de fora Polliver e o Cócegas deu-lhe uma sensação estranha. E Joffrey também. Sentia-se
contente por ele estar morto, mas gostaria de ter estado lá para o ver morrer, e talvez ser ela a matá-lo. Polliver disse que Sansa o matou, com o Duende. Poderia isso ser verdade? O Duende era um Lannister,
e Sansa… Gostava de me poder transformar em lobo e ganhar asas e voar para longe.
  Se Sansa também tinha desaparecido, já não havia Starks além dela. Jon estava na Muralha a mil léguas de distância, mas era um Snow, e aqueles vários tios e tias a quem o Cão de Caça a queria vender,
esses também não eram Starks. Não eram lobos.
  Sandor gemeu, e ela rolou sobre o flanco para o observar. Apercebeu-se de que também deixara de fora o nome dele. Porque teria feito isso? Tentou pensar em Mycah, mas era difícil lembrar-se do seu aspecto.
Não o conhecera por muito tempo. Tudo o que ele fez foi jogar comigo à espada.
  — O Cão de Caça — sussurrou, e: — Valar morghulis. — Ele talvez estivesse morto de manhã…
  Mas quando a pálida luz da aurora chegou, filtrada pelas árvores, foi ele que a acordou com a ponta da bota. Arya sonhara de novo que era um lobo, perseguindo um cavalo sem cavaleiro por uma colina
com uma alcateia atrás de si, mas o pé dele trouxe-a de volta precisamente no momento em que se aproximavam para a matança.
  O Cão de Caça continuava fraco, com todos os movimentos lentos e desajeitados. Afundou-se na sela e desatou a suar, e a orelha começou a sangrar através da ligadura. Precisou de todas as suas forças
para evitar cair do Estranho. Se os homens da Montanha tivessem vindo no seu encalço, Arya duvidava que ele fosse capaz sequer de erguer uma espada. Arya deitou um relance por sobre um ombro, mas nada
havia atrás deles além de um corvo que voava de árvore em árvore. O único som era o do rio.
  Muito antes do meio-dia, Sandor Clegane cambaleava. Ainda restavam horas de luz do dia quando ele decidiu fazer alto.
  — Preciso de descansar — foi tudo o que disse. Daquela vez, quando desmontou, caiu mesmo. Em vez de tentar voltar a erguer-se, gatinhou debilmente para baixo de uma árvore e encostou-se ao tronco. —
Maldito inferno — praguejou. — Maldito inferno. — Quando viu Arya a fitá-lo, disse: — Era capaz de te esfolar viva por uma taça de vinho, miúda.
  Em vez disso, Arya trouxe-lhe água. Ele bebeu um pouco, queixou-se de que sabia a lama, e deixou-se cair num sono ruidoso e febril. Quando Arya lhe tocou, a pele ardia. Arya cheirou as ligaduras como
o Meistre Luwin fazia por vezes quando lhe tratava os golpes ou arranhões. Fora da cara que sangrara mais, mas foi o ferimento na coxa que pareceu a Arya ter um cheiro esquisito.
  Perguntou a si própria a que distância estaria aquele lugar, Salinas, e se seria capaz de o encontrar sozinha. Não teria de o matar. Se me limitasse a ir-me embora e o abandonasse, ele morreria sozinho.
Morreria de febre, e ficaria ali debaixo daquela árvore até ao fim dos tempos. Mas talvez fosse melhor se o matasse. Matara o escudeiro na estalagem e ele nada fizera a não ser agarrar-lhe no braço. O
Cão de Caça matara Mycah. Mycah e mais gente. Aposto que ele matou cem Mycahs. E provavelmente tê-la-ia matado também, se não fosse o resgate.
  A Agulha cintilou quando a desembainhou. Polliver mantivera-a limpa e afiada, pelo menos. Pôs o corpo de lado, numa pose de dançarina de água, sem sequer pensar em fazê-lo. Folhas mortas estalaram sob
os seus pés. Rápida como uma cobra, pensou. Suave como seda de Verão.
  Os olhos dele abriram-se.
  — Lembras-te de onde fica o coração? — perguntou num sussurro rouco.
  E ela ficou imóvel como pedra.
  — Eu… eu estava só…
  — Não mintas — rosnou ele. — Odeio mentirosos. E odeio ainda mais fraudes sem tomates. Vá, trata disso. — Quando Arya não se mexeu, ele disse: — Eu matei o teu filho de carniceiro. Cortei-o quase ao
meio e depois ri-me dele. — Soltou um som estranho, e Arya precisou de um momento para se aperceber de que o homem estava a soluçar. — E o passarinho, a tua irmã bonita, fiquei lá com o meu manto branco
e deixei que a espancassem. E arranquei-lhe a maldita canção, ela não ma deu. Também queria possuí-la. Devia ter feito isso. Devia tê-la fodido até fazer sangue e devia ter-lhe arrancado o coração antes
de a deixar com aquele anão. — Um espasmo de dor contorceu-lhe o rosto. — Queres obrigar-me a suplicar, cadela? Trata disso! A dádiva da misericórdia… vinga o teu pequeno Michael…
  — Mycah. — Arya afastou-se dele. — Tu não mereces a dádiva da misericórdia.
  O Cão de Caça ficou a vê-la selar a Cobarde com olhos brilhantes de febre. Nem uma vez tentou erguer-se e impedi-la. Mas quando Arya montou, disse:
  — Um verdadeiro lobo acabaria com um animal ferido.
  Talvez alguns lobos verdadeiros te encontrem, pensou Arya. Talvez te farejem quando o Sol se puser. Então ficaria a saber o que os lobos faziam aos cães.
  — Não me devias ter batido com aquele machado — disse. — Devias ter salvado a minha mãe. — Virou o cavalo e afastou-se dele, e não olhou para trás nem uma vez.
  Numa manhã luminosa seis dias depois, chegou a um sítio onde o Tridente se começava a alargar e o ar cheirava mais a sal do que a árvores. Permaneceu perto de água, passando por campos de cultivo e
quintas, e um pouco depois do meio-dia uma vila apareceu na sua frente. Salinas, pensou, esperançada. Um pequeno castelo dominava a vila; não passava de uma fortaleza, na verdade, uma única fortificação
quadrada com um cercado e uma muralha exterior. A maior parte das lojas, estalagens e cervejarias em volta do porto tinham sido saqueadas ou queimadas, embora algumas parecessem ainda habitadas. Mas o
porto estava lá, e para leste estendia-se a Baía dos Caranguejos, com águas que cintilavam azuis e verdes ao Sol.
  E havia navios.
  Três, pensou Arya, há três. Dois eram apenas galés fluviais, barcos de pequeno calado e fundo raso concebidos para percorrer as águas do Tridente. O terceiro era maior, um navio mercante do mar salgado
com duas fileiras de remos, uma proa dourada e três grandes mastros com velas dobradas de cor púrpura. O casco também estava pintado de púrpura. Arya levou a Cobarde até às docas para ver melhor. Estranhos
não eram tão estranhos num porto como são nas pequenas aldeias, e ninguém pareceu importar-se com quem ela era ou com o motivo porque se encontrava ali.
  Preciso de prata. A conclusão fê-la morder o lábio. Tinham encontrado um veado e uma dúzia de cobres em Polliver, oito moedas de prata no escudeiro borbulhento que ela matara, e não mais do que um par
de dinheiros na bolsa do Cócegas. Mas o Cão de Caça dissera-lhe para lhe tirar as botas e cortar as roupas ensopadas em sangue, e ela descobrira um veado em cada pé, e três dragões de ouro cosidos no
forro do seu gibão. Mas Sandor ficara com tudo. Não foi justo. Era tanto meu como dele. Se lhe tivesse oferecido a dádiva da misericórdia… mas não tinha. E não podia voltar para trás, tal como não podia
suplicar ajuda. Nunca se consegue ajuda suplicando-a. Teria de vender a Cobarde, e esperar conseguir dinheiro suficiente.
  Ficou a saber por um rapaz junto às docas que o estábulo tinha sido queimado, mas a mulher que fora sua dona continuava a fazer negócio por trás do septo. Arya encontrou-a sem dificuldade; uma mulher
alta e robusta com um bom cheiro a cavalo. Gostou da Cobarde à primeira vista, perguntou a Arya como a arranjara, e sorriu com a resposta que esta lhe deu.
  — É um cavalo de boa linhagem, isso é bem evidente, e não duvido que pertenceu a um cavaleiro, querida — disse. — Mas o cavaleiro não era nenhum irmão teu que morreu. Já faço negócio ali com o castelo
há muitos anos, e sei com o que se parecem os fidalgos. Esta égua é bem-nascida, mas tu não és. — Espetou um dedo no peito de Arya. — Ou a encontraste, ou a roubaste, não importa o quê, foi o que foi.
É a única maneira de uma coisinha mal vestida como tu acabar montada num palafrém.
  Arya mordeu o lábio.
  — Isso quer dizer que não o compras?
  A mulher soltou um risinho.
  — Quer dizer que aceitas o que eu te der, querida. Senão vamos ao castelo, e se calhar ficas sem nada. Ou até acabas enforcada, por roubares um bom cavalo de cavaleiro.
  Meia dúzia de outras pessoas de Salinas andavam por ali, cuidando dos seus assuntos, portanto Arya sabia que não podia matar a mulher. Em vez disso teve de morder o lábio e deixar que a aldrabassem.
A bolsa que recebeu era deploravelmente achatada, e quando pediu mais pela sela, freios e manta, a mulher limitou-se a rir na sua cara.
  Ela nunca teria aldrabado o Cão de Caça, pensou durante a longa caminhada de regresso às docas. A distância parecia ter aumentado milhas desde que a percorrera a cavalo.
  A galé púrpura ainda se encontrava no mesmo sítio. Se o navio tivesse zarpado enquanto estava a ser assaltada, isso teria sido demasiado insuportável. Um casco de hidromel estava a ser rolado pela prancha
acima quando chegou. Quando tentou segui-lo, um marinheiro no convés gritou-lhe numa língua que não conhecia.
  — Quero falar com o capitão — disse-lhe Arya. Ele limitou-se a gritar mais alto. Mas a agitação atraiu a atenção de um homem robusto e grisalho vestido com um casaco de lã púrpura, e ele falava o Idioma
Comum.
  — Eu sou aqui capitão — disse ele. — Que desejas? Despacha-te, pequena, temos de apanhar a maré.
  — Quero ir para norte, para a Muralha. Olha, posso pagar. — Deu-lhe a bolsa. — A Patrulha da Noite tem um castelo junto ao mar.
  — Atalaialeste. — O capitão despejou a prata na palma da mão e franziu o sobrolho. — Isto é tudo o que tens?
  Não é suficiente, compreendeu Arya sem que lho dissessem. Conseguia vê-lo no rosto do homem.
  — Não ia precisar de uma cabina, nem nada disso — disse. — Podia dormir no porão, ou…
  — Aceita-a como moça de cabina — disse um remador que passava por ali, com um fardo de lã ao ombro. — Ela pode dormir comigo.
  — Tento na língua — exclamou o capitão.
  — Eu podia trabalhar — disse Arya. — Podia esfregar as cobertas. Em tempos esfreguei os degraus de um castelo. Ou podia remar…
  — Não — disse ele —, não podias. — Devolveu-lhe as moedas. — E não faria diferença se pudesses, pequena. O Norte não tem nada para nós. Gelo, guerra e piratas. Vimos uma dúzia de navios piratas a rumar
para norte quando virámos a Ponta da Garra Rachada, e não tenho nenhuma vontade de voltar a encontrá-los. Daqui, apontamos os remos para casa, e eu sugiro que tu faças a mesma coisa.
  Não tenho casa, pensou Arya. Não tenho alcateia. E agora nem sequer tenho um cavalo.
  O capitão estava a virar-se quando ela disse:
  — Que navio é este, senhor?
  Este parou tempo suficiente para lhe conceder um sorriso cansado.
  — Esta é a galeota Filha do Titã, da Cidade Livre de Bravos.
  — Espera — disse de súbito Arya. — Tenho mais uma coisa. — Enfiara-a na roupa de dentro para a manter em segurança, por isso teve de procurar bem fundo para a achar, enquanto os remadores se riam e
o capitão esperava com óbvia impaciência.
  — Mais uma moeda de prata não fará diferença, pequena — disse por fim.
  — Não é prata. — Os seus dedos fecharam-se sobre ela. — É ferro. Toma. — Enfiou-lha na mão, a pequena moeda negra de ferro que Jaqen H’ghar lhe dera, tão desgastada que o homem cuja cabeça mostrava
não tinha feições. Provavelmente não tem qualquer valor, mas…
  O capitão virou-a, pestanejou, e então voltou a olhá-la.
  — Isto… como…?
  Jaqen disse para dizer também as palavras. Arya cruzou os braços contra o peito.
  — Valar morghulis — disse, tão alto como se soubesse o que aquilo queria dizer.
  — Valar doaheris — respondeu o homem, tocando a testa com dois dedos. — Claro que terás uma cabina.
 
 SAMWELL
  —Ele suga com mais força do que o meu. — Gilly afagou a cabeça do bebé enquanto a segurava junto do mamilo.
  — Tem fome — disse a loura chamada Val, aquela a que os irmãos negros chamavam a princesa selvagem. — Viveu até agora de leite de cabra, e das poções daquele meistre cego.
  O rapaz ainda não tinha nome, tal como o de Gilly. Era assim o costume dos selvagens. Nem mesmo o filho de Mance Rayder teria um nome até ao seu terceiro ano, aparentemente, embora Sam tivesse ouvido
os irmãos chamar-lhe “principezinho” e “nascido-em-batalha”.
  Observou a criança a alimentar-se do seio de Gilly, e então apanhou Jon a observar. Jon está a sorrir. Um sorriso triste, ainda, mas decididamente uma espécie de sorriso. Sam sentiu-se contente por
o ver. É a primeira vez que o vejo sorrir desde que regressei.
  Tinham caminhado de Fortenoite até Lago Profundo, e de Lago Profundo até Portão da Rainha, seguindo um estreito trilho de um castelo até ao seguinte, sem nunca perder de vista a Muralha. A um dia e
meio de Castelo Negro, enquanto caminhavam penosamente com pés cobertos de calos, Gilly ouvira cavalos atrás deles, e virara-se para ver uma coluna de cavaleiros negros que vinha de oeste.
  — Irmãos meus — assegurara-lhe Sam. — Ninguém usa esta estrada a não ser a Patrulha da Noite. — Acabara por ser Sor Denys Mallister da Torre Sombria, com o ferido Bowen Marsh e os sobreviventes da batalha
na Ponte das Caveiras. Quando Sam vira Dywen, o Gigante e o Edd Doloroso Tollett, descontrolara-se e chorara.
  Fora através deles que ficara a saber da batalha à sombra da Muralha.
  — Stannis desembarcou os seus cavaleiros em Atalaialeste, e Cotter Pyke levou-os pelos caminhos dos patrulheiros, para apanhar os selvagens desprevenidos — dissera-lhe o Gigante. — Esmagou-os. Mance
Rayder foi capturado, mil dos seus melhores guerreiros foram mortos, incluindo Harma Cabeça-de-Cão. O resto dispersou-se como folhas antes de uma tempestade, segundo ouvimos dizer. — Os deuses são bons,
pensara Sam. Se não se tivesse perdido enquanto se dirigia para Sul vindo da Fortaleza de Craster, ele e Gilly podiam ter esbarrado com a batalha… ou com o acampamento de Mance Rayder, pelo menos. Isso
podia ter sido bom para Gilly e o rapaz, mas não para ele. Sam ouvira todas as histórias sobre aquilo que os selvagens faziam com corvos capturados. Estremecera.
  Mas nada do que os irmãos lhe tinham dito o preparara para o que fora encontrar em Castelo Negro. A sala comum ardera até ao chão e a grande escada de madeira era um monte de gelo partido e vigas carbonizadas.
Donal Noye estava morto, bem como Rast, o Dick Surdo, o Alyn Vermelho e tantos outros, e no entanto o castelo tinha mais gente do que Sam alguma vez vira; não irmãos negros, mas soldados do rei, mais
de mil homens. Havia um rei na Torre do Rei pela primeira vez desde que havia memória, e flutuavam estandartes na Lança, na Torre de Hardin, na Fortaleza Cinzenta, no Salão dos Escudos e noutros edifícios
que se tinham mantido vazios e abandonados durante longos anos.
  — O grande, o dourado com o veado preto, é o estandarte real da Casa Baratheon — dissera a Gilly, que nunca antes tinha visto bandeiras. — A raposa e as flores são da Casa Florent. A tartaruga é de
Estermont, o peixe-espada é de Bar Emmon e as trombetas cruzadas pertencem aos Wensington.
  — São todos brilhantes como flores. — Gilly apontara. — Gosto daqueles amarelos, com o fogo. Olha, e alguns dos guerreiros têm a mesma coisa nas blusas.
  — Um coração flamejante. Não sei de quem é esse símbolo.
  Descobrira bastante depressa.
  — Homens da rainha — dissera-lhe Pyp (depois de soltar um grito e berrar “Fugi e barrai as portas, rapazes, é Sam, o Matador, que voltou da sepultura”, enquanto Grenn abraçava Sam com tanta força que
este julgou que as costelas se lhe iam quebrar) — mas é melhor que não andes por aí a perguntar onde está a rainha. Stannis deixou-a em Atalaialeste, com a filha e a frota. Não trouxe mulher nenhuma além
da vermelha.
  — A vermelha? — perguntara Sam, com incerteza.
  — Melisandre de Asshai — dissera Grenn. — A feiticeira do rei. Dizem que queimou um homem vivo em Pedra do Dragão para que Stannis tivesse ventos favoráveis para a sua viagem para norte. E também cavalgou
a seu lado na batalha, e deu-lhe a espada mágica. Chamam-lhe Luminífera. Espera até a veres. Brilha como se tivesse um bocado do Sol lá dentro. — Voltara a olhar para Sam e fizera um grande, abandonado
e estúpido sorriso. — Ainda não consigo acreditar que estás aqui.
  Jon Snow também sorrira ao vê-lo, mas fora um sorriso cansado, como aquele que mostrava agora.
  — Afinal conseguiste voltar — dissera. — E também trouxeste Gilly. Bom trabalho, Sam.
  O próprio Jon fizera mais do que um bom trabalho, a acreditar no que Grenn contara. Mas nem mesmo a captura do Corno do Inverno e de um príncipe selvagem era o bastante para Sor Alliser Thorne e os
amigos, que continuavam a chamar-lhe vira-casacas. Embora o Meistre Aemon dissesse que o seu ferimento estava a sarar bem, Jon tinha outras cicatrizes, mais profundas do que aquelas que lhe rodeavam o
olho. Ele chora pela sua rapariga selvagem, e pelos irmãos.
  — É estranho — disse ele a Sam. — Craster não tinha nenhuma amizade por Mance, nem Mance por Craster, mas agora a filha de Craster está a alimentar o filho de Mance.
  — Eu tenho o leite — disse Gilly, com uma voz suave e acanhada. — O meu só tira um pouco. Não é tão insaciável como este.
  A selvagem chamada Val virou-se para eles.
  — Ouvi os homens da rainha dizer que a mulher vermelha quer oferecer Mance ao fogo, assim que ele esteja suficientemente forte.
  Jon deitou-lhe um olhar fatigado.
  — Mance é um desertor da Patrulha da Noite. A pena por esse crime é a morte. Se tivesse sido a Patrulha a capturá-lo, já tinha sido enforcado, mas é cativo do rei, e ninguém sabe o que o rei tem na
ideia além da mulher vermelha.
  — Quero vê-lo — disse Val. — Quero mostrar-lhe o filho. Ele merece isso, antes que o mateis.
  Sam tentou explicar.
  — Ninguém está autorizado a vê-lo excepto o Meistre Aemon, senhora.
  — Se estivesse nas minhas mãos, Mance poderia pegar no filho ao colo. — O sorriso de Jon desaparecera. — Lamento, Val. — Virou-lhe as costas. — Sam e eu temos deveres a que regressar. Bem, Sam tem,
pelo menos. Perguntaremos se podes visitar Mance. É tudo o que posso prometer.
  Sam ficou tempo suficiente para dar um apertão à mão de Gilly e prometer regressar depois do jantar. Depois correu atrás de Jon. Havia guardas à porta, homens da rainha com lanças. Jon já ia a meio
da escada, mas esperou quando ouviu Sam a bufar atrás de si.
  — És mais do que amigo de Gilly, não és?
  Sam enrubesceu.
  — Gilly é boa. É boa e gentil. — Estava feliz por o seu longo pesadelo ter terminado, feliz por estar de volta aos seus irmãos em Castelo Negro… mas certas noites, sozinho na cela, pensava no calor
de Gilly quando se enrolavam sob as peles com o bebé entre ambos. — Ela… ela tornou-me mais corajoso. Não corajoso, mas… mais corajoso.
  — Sabes que não podes ficar com ela — disse Jon com gentileza — tal como eu não podia ficar com Ygritte. Proferiste as palavras, Sam, tal como eu. Tal como todos nós.
  — Eu sei. Gilly disse que seria uma esposa para mim, mas… eu contei-lhe acerca das palavras, e do que elas significavam. Não sei se isso a deixou triste ou feliz, mas contei-lhe. — Engoliu nervosamente
e disse: — Jon, pode haver honra numa mentira, se for dita com… uma boa intenção?
  — Suponho que isso dependa da mentira e da intenção. — Jon olhou para Sam. — Eu não o aconselharia. Não foste feito para mentir, Sam. Coras, guinchas e gaguejas.
  — É verdade — disse Sam — mas podia mentir numa carta. Sou melhor com uma pena na mão. Tive uma… uma ideia. Quando as coisas ficarem mais assentes por aqui, pensei que talvez a melhor coisa para Gilly…
pensei que a podia enviar para Monte Chifre. Para junto da minha mãe e irmãs e… e p-p-pai. Se a Gilly dissesse que o bebé era m-meu… — Estava de novo a corar. — A minha mãe quereria ficar com ele, eu
sei. Arranjaria algum lugar para Gilly, uma espécie qualquer de serviço, não seria tão duro como servir Craster. E o Lorde R-Randyll, ele… ele nunca o diria, mas podia ficar satisfeito se acreditasse
que eu tinha feito um bastardo numa rapariga selvagem qualquer. Pelo menos provaria que sou homem que chegue para dormir com uma mulher e gerar um filho. Ele disse-me uma vez que eu iria de certeza morrer
donzel, que nenhuma mulher alguma vez… tu sabes… Jon, se eu fizesse isto, se escrevesse esta mentira… isso seria uma boa coisa? A vida que o rapaz teria…
  — Crescendo como bastardo no castelo do avô? — Jon encolheu os ombros. — Isso depende em grande medida do teu pai, e do tipo de rapaz que este é. Se sair a ti…
  — Não sairá. O seu verdadeiro pai é Craster. Tu viste-o, ele era duro como um velho toco de árvore, e Gilly é mais forte do que parece.
  — Se o rapaz mostrar alguma habilidade com a espada ou a lança, deve ter pelo menos um lugar na guarda doméstica do teu pai — disse Jon. — Não é inédito que bastardos sejam treinados como escudeiros
e elevados à condição de cavaleiros. Mas é melhor que tenhas a certeza de que Gilly consegue jogar este jogo de forma convincente. Por aquilo que me disseste do Lorde Randyll, duvido que aceite bem ser
enganado.
  Mais guardas estavam colocados nos degraus fora da torre. Aqueles eram homens do rei, porém; Sam rapidamente aprendera a diferença. Os homens do rei eram tão terra-a-terra e ímpios como quaisquer outros
soldados, mas os da rainha eram fervorosos na sua devoção a Melisandre de Asshai e ao seu Senhor da Luz.
  — Vais outra vez para o pátio de treinos? — perguntou Sam quando atravessaram o pátio. — Será sensato treinar tanto antes de a perna acabar de sarar?
  Jon encolheu os ombros.
  — Que mais há para eu fazer? Marsh afastou-me dos meus deveres, com receio que eu ainda seja um vira-casacas.
  — São poucos os que acreditam nisso — garantiu-lhe Sam. — Sor Alliser e os amigos. A maior parte dos irmãos sabem que não é verdade. O Rei Stannis também sabe, aposto. Trouxeste-lhe o Corno do Inverno
e capturaste o filho de Mance Rayder.
  — Tudo o que fiz foi proteger Val e o bebé contra saqueadores quando os selvagens fugiram, e mantê-los lá até que os patrulheiros nos encontrassem. Não capturei ninguém. O Rei Stannis mantém bem os
seus homens na mão, isso é evidente. Deixa-os saquear um pouco, mas só ouvi falar de três selvagens violadas, e os homens que o fizeram foram todos castrados. Suponho que me devia ter posto a matar o
povo livre enquanto fugia. Sor Alliser tem andado a dizer por aí que a única vez que desembainhei a espada foi para defender os nossos inimigos. Diz que não matei Mance Rayder porque estava aliado a ele.
  — Isso é só o Sor Alliser — disse Sam. — Toda a gente sabe que tipo de homem ele é. — Com o seu nobre nascimento, o seu grau de cavaleiro e os muitos anos passados na Patrulha, Sor Alliser Thorne podia
ter sido um forte pretendente ao título de Senhor Comandante, mas quase todos os homens que treinara durante os seus anos como mestre-de-armas o desprezavam. O seu nome fora sugerido, claro, mas depois
de ter acabado num fraco sexto lugar após o primeiro dia e de ter perdido votos no segundo, Thorne retirara-se em apoio do Lorde Janos Slynt.
  — O que toda a gente sabe é que Sor Alliser é um cavaleiro de nobre linhagem, e legítimo, enquanto que eu sou o bastardo que matou Qhorin Meia-Mão e dormiu com uma esposa de lanças. Ouvi-os chamarem-me
warg. Como posso eu ser warg sem um lobo, pergunto-te? — A boca torceu-se-lhe. — Já nem sequer sonho com o Fantasma. Todos os meus sonhos são sobre as criptas, sobre os reis de pedra nos seus tronos.
Por vezes ouço a voz de Robb, e a do meu pai, como se estivessem num banquete. Mas há uma parede entre nós, e sei que não foi posto nenhum lugar para mim.
  Os vivos não têm lugar nos banquetes dos mortos. Despedaçou o coração a Sam manter então o silêncio. Bran não está morto, Jon, quis dizer. Está com amigos, e vão para norte num alce gigante à procura
de um corvo de três olhos nas profundezas da floresta assombrada. Aquilo parecia uma loucura tão grande que por vezes Sam Tarly pensava que devia ter sonhado tudo, que teria evocado toda a história a
partir da febre, do medo e da fome… mas tê-la-ia contado na mesma, se não tivesse dado a sua palavra.
  Três vezes jurara manter o segredo; uma ao próprio Bran, outra àquele estranho rapaz, Jojen Reed, e por fim ao Mãos-Frias.
  — O mundo acredita que o rapaz está morto — dissera o seu salvador quando partira. — Que os seus ossos não sejam perturbados. Não queremos ninguém a farejar no nosso encalço. Jura, Samwell da Patrulha
da Noite. Jura pela vida que me deves.
  Infeliz, Sam mudou o peso de uma perna para a outra e disse:
  — O Lorde Janos nunca será escolhido como Senhor Comandante. — Era o melhor conforto que podia dar a Jon, o único conforto. — Isso não acontecerá.
  — Sam, és um tolo de bom coração. Abre os olhos. Está a acontecer há dias. — Jon tirou o cabelo dos olhos e disse: — Eu posso não saber nada, mas sei isso. Agora peço que me dês licença, tenho de bater
em qualquer coisa com muita força com uma espada.
  Nada havia que Sam pudesse fazer, a não ser ficar a vê-lo caminhar a passos largos na direcção do armeiro e do pátio de treinos. Era aí que Jon Snow passava a maior parte das horas em que não dormia.
Com Sor Endrew morto e Sor Alliser desinteressado, Castelo Negro não tinha mestre-de-armas, por isso Jon encarregara-se de trabalhar com os recrutas mais verdes; o Cetim, o Cavalo, o Robin Saltitão com
a sua perna de pau, Arron e Emrick. E quando eles tinham deveres a cumprir, treinava-se sozinho durante horas com espada, escudo e lança, ou defrontava qualquer um que quisesse lutar com ele.
  Sam, és um tolo de bom coração, conseguiu ouvir Jon a dizer ao longo de todo o caminho de regresso à torre do Meistre. Abre os olhos. Está a acontecer há dias. Poderia ele ter razão? Um homem precisava
dos votos de dois terços dos Irmãos Ajuramentados para se tornar Senhor Comandante da Patrulha da Noite, e após nove dias e nove votações ninguém estava sequer perto disso. O Lorde Janos tinha vindo a
ganhar votos, era verdade, ultrapassando Bowen Marsh e depois Othell Yarwyck, mas ainda estava bem atrás de Sor Denys Mallister da Torre Sombria e de Cotter Pyke de Atalaialeste do Mar. Um deles será
o novo Senhor Comandante, com certeza, disse Sam a si próprio.
  Stannis colocara também guardas à porta do Meistre. Lá dentro, os aposentos estavam quentes e cheios com os feridos da batalha; irmãos negros, homens do rei, e homens da rainha. Clydas andava de um
lado para o outro, entre eles, com jarros de leite de cabra e de vinho de sonhos, mas o Meistre Aemon ainda não regressara da sua visita matinal a Mance Rayder. Sam pendurou o manto num cabide e foi ajudar.
Mas mesmo enquanto ia buscar coisas, servia leite ou vinho e mudava ligaduras, as palavras de Jon continuaram a importuná-lo. Sam, és um tolo de bom coração. Abre os olhos. Está a acontecer há dias.
  Passou-se uma boa hora até que conseguisse retirar-se para ir alimentar os corvos. Na subida até à colónia parou para verificar o registo que fizera da contagem da noite anterior. No início da votação,
mais de trinta nomes tinham sido sugeridos, mas a maior parte fora retirada assim que se tornou claro que não tinham hipótese de ganhar. Depois da noite passada, restavam sete. Sor Denys Mallister reunira
duzentos e treze penhores, Cotter Pyke cento e oitenta e sete, o Lorde Slynt setenta e quatro, Othell Yarwyck sessenta, Bowen Marsh quarenta e nove, o Hobb Três-Dedos cinco, e o Edd Doloroso Tollett um.
O Pyp e os seus estúpidos gracejos. Sam verificou as contagens anteriores. Sor Denys, Cotter Pyke e Bowen Marsh tinham todos vindo a descer desde o terceiro dia, Othell Yarwyck desde o sexto. Só o Lorde
Janos Slynt subia, dia após dia após dia.
  Ouvia as aves a crocitar na colónia, portanto guardou os papéis e subiu os degraus para as ir alimentar. Viu com prazer que mais três corvos tinham chegado. “Snow”, gritaram-lhe. “Snow, snow, snow”.
Fora ele que lhes ensinara aquilo. Mesmo com os recém-chegados, a colónia parecia tristemente vazia. Poucas das aves que Aemon enviara tinham regressado até agora. Mas uma chegou a Stannis. Uma encontrou
Pedra do Dragão, e um rei que ainda se importava. Sam sabia que, mil léguas para Sul, o pai unira a Casa Tarly à causa do rapaz no Trono de Ferro, mas nem o Rei Joffrey, nem o pequeno Rei Tommen tinham
feito alguma coisa quando a Patrulha gritara por ajuda. De que serve um rei que não quer defender o seu reino?, pensou irritado, recordando a noite no Punho dos Primeiros Homens e a terrível viagem até
à Fortaleza de Craster através da escuridão, do medo e dos nevões. Os homens da rainha deixavam-no inquieto, era verdade, mas pelo menos tinham vindo.
  Nessa noite ao jantar, Sam procurou por Jon Snow, mas não o viu em sítio nenhum, na cavernosa cave de pedra onde os irmãos tomavam agora as refeições. Por fim ocupou um lugar no banco, junto dos seus
outros amigos. Pyp estava a falar ao Edd Doloroso do concurso que tinham feito para ver qual dos soldados de palha juntaria mais das setas dos selvagens.
  — Tu estiveste à frente a maior parte do tempo, mas o Watt de Lago Longo apanhou com três no último dia e ultrapassou-te.
  — Nunca ganho nada — lamentou-se o Edd Doloroso. — Mas os deuses sempre sorriram ao Watt. Quando os selvagens o derrubaram da Ponte das Caveiras, de algum modo conseguiu aterrar numa boa e profunda
lagoa cheia de água. Já vistes a sorte, não acertar em nenhuma daquelas pedras?
  — A queda foi longa? — quis Grenn saber. — Cair na lagoa salvou-lhe a vida?
  — Não — disse o Edd Doloroso. — Já estava morto, da machadada que apanhou na cabeça. Mesmo assim, foi bastante sorte não acertar nas pedras.
  O Hobb Três-Dedos prometera aos irmãos quadril de mamute assado para aquela noite, talvez na esperança de mendigar mais alguns votos. Se era essa a sua ideia, devia ter arranjado um mamute mais novo,
pensou Sam, enquanto tirava um fio de cartilagem de entre os dentes. Suspirando, afastou de si a comida.
  Haveria outra votação em breve, e a tensão no ar era mais densa do que o fumo. Cotter Pyke estava sentado junto ao fogo, rodeado de patrulheiros de Atalaialeste. Sor Denys Mallister encontrava-se perto
da porta com um grupo mais pequeno de homens da Torre Sombria. Janos Slynt tem o melhor lugar, apercebeu-se Sam, a meio caminho entre as chamas e as correntes de ar. Sentiu-se alarmado por ver Bowen Marsh
a seu lado, pálido e descomposto, com a cabeça ainda envolta em linho, mas à escuta de tudo o que o Lorde Janos tinha a dizer. Quando fez notar isso aos amigos, Pyp disse:
  — E olha ali, aquele é Sor Alliser aos segredos com Othell Yarwyck.
  Após a refeição, o Meistre Aemon ergueu-se para perguntar se algum dos irmãos desejava falar antes de depositarem os seus penhores. O Edd Doloroso levantou-se, com o rosto de pedra e sombrio de sempre.
  — Só quero dizer a quem quer que esteja a votar em mim que de certeza que daria um horrível Senhor Comandante. Mas estes outros também. — Foi seguido por Bowen Marsh, que se ergueu com uma mão no ombro
do Lorde Slynt.
  — Irmãos e amigos, peço que o meu nome seja retirado desta escolha. O ferimento ainda me causa problemas, e temo que a tarefa seja grande de mais para mim… mas não aqui para o Lorde Janos, que comandou
os homens de mantos dourados em Porto Real durante muitos anos. Que todos lhe demos o nosso apoio.
  Sam ouviu resmungos irritados vindos do canto da sala onde estava Cotter Pyke, e Sor Denys olhou para um dos seus companheiros e abanou a cabeça. É tarde de mais, o mal está feito. Perguntou a si próprio
onde Jon estaria, e por que motivo se mantivera afastado.
  A maior parte dos irmãos era iletrada, portanto segundo a tradição a escolha era feita deitando penhores para um grande caldeirão de ferro de fundo redondo que o Hobb Três-Dedos e o Owen Idiota tinham
arrastado das cozinhas. Os barris de penhores estavam a um canto por trás de uma pesada cortina, de modo que os votantes pudessem fazer as suas escolhas sem serem vistos. Era permitido pedir-se a um amigo
para votar em nosso nome, caso se tivesse deveres a cumprir, e alguns homens tiravam dois, três ou quatro penhores, e Sor Denys e Cotter Pyke votavam pelas guarnições que tinham deixado para trás.
  Quando o salão ficou finalmente vazio além deles, Sam e Clydas viraram o caldeirão de pernas para o ar à frente do Meistre Aemon. Uma cascata de conchas, pedras e dinheiros de cobre cobriu a mesa. As
mãos enrugadas de Aemon ordenaram-nas com surpreendente rapidez, movendo as conchas para aqui, as pedras para ali, os dinheiros para um lado, e a ocasional ponta de lança, prego e bolota para os montinhos
respectivos. Sam e Clydas contaram as pilhas, mantendo cada um o seu registo.
  Naquela noite era a vez de Sam dizer primeiro os resultados.
  — Duzentos e três para Sor Denys Mallister — disse. — Cento e sessenta e nove para Cotter Pyke. Cento e trinta e sete para o Lorde Janos Slynt, setenta e dois para Othell Yarwyck, cinco para o Hobb
Três-Dedos, e dois para o Edd Doloroso.
  — Eu tinha cento e sessenta e oito para Pyke — disse Clydas. — Temos dois votos a menos, pela minha contagem, e um pela de Sam.
  — A contagem de Sam está correcta — disse o Meistre Aemon. — Jon Snow não votou. Não importa. Ninguém está perto.
  Sam estava mais aliviado do que desapontado. Até com o apoio de Bowen Marsh, o Lorde Janos era ainda apenas terceiro.
  — Quem são estes cinco que continuam a votar pelo Hobb Três-Dedos? — perguntou a ninguém em especial.
  — Irmãos que o querem fora das cozinhas? — disse Clydas.
  — O Sor Denys desceu dez votos desde ontem — fez notar Sam. — E Cotter Pyke desceu quase vinte. Isso não é bom.
  — Não é bom para as suas esperanças de se tornarem Senhor Comandante, com certeza — disse o Meistre Aemon. — Mas no fim de contas pode ser bom para a Patrulha da Noite. Não nos cabe a nós decidir. Dez
dias não é um tempo excessivo. Houve uma vez uma escolha que durou quase dois anos, algumas setecentas votações. Os irmãos chegarão a uma decisão a seu tempo.
  Sim, pensou Sam, mas que decisão?
  Mais tarde, sobre taças de vinho aguado na privacidade da cela de Pyp, a língua de Sam soltou-se e deu por si a pensar em voz alta.
  — Cotter Pyke e Sor Denys Mallister têm vindo a perder terreno, mas entre eles ainda têm quase dois terços — disse a Pyp e a Grenn. — Qualquer um poderia ser um bom Senhor Comandante. Alguém tem de
convencer um deles a retirar-se e a apoiar o outro.
  — Alguém? — disse Grenn em tom de dúvida. — Que alguém?
  — O Grenn é tão estúpido que acha que alguém podia ser ele — disse Pyp. — Talvez quando alguém acabar de tratar de Pyke e Mallister, devesse convencer também o Rei Stannis a casar-se com a Rainha Cersei.
  — O Rei Stannis já é casado — objectou Grenn.
  — Que vou eu fazer com ele, Sam? — suspirou Pyp.
  — Cotter Pyke e Sor Denys não gostam muito um do outro — argumentou obstinadamente Grenn. — Discutem sobre tudo.
  — Sim, mas só porque têm ideias diferentes sobre o que é melhor para a Patrulha — disse Sam. — Se nós explicássemos…
  — Nós? — disse Pyp. — Como foi que alguém se transformou em nós? Eu sou o macaco do saltimbanco, lembras-te? E Grenn é, bem, Grenn. — Sorriu a Sam e abanou as orelhas. — Agora tu… tu és filho de um
lorde, e intendente do Meistre…
  — E Sam, o Matador — disse Grenn. — Mataste um Outro.
  — Foi o vidro de dragão que o matou — disse-lhe Sam pela centésima vez.
  — Filho de um lorde, intendente do Meistre e Sam, o Matador — meditou Pyp. — Tu podias falar com eles, talvez…
  — Podia — disse Sam, soando tão melancólico como o Edd Doloroso — se não fosse demasiado cobarde para os encarar.
 
 JON
  Jon rodeou o Cetim num lento círculo, de espada na mão, obrigando-o a virar-se.
  — Levanta o escudo — disse.
  — É pesado de mais — protestou o rapaz de Vilavelha.
  — Tem o peso que precisa de ter para parar uma espada — disse Jon. — E agora levanta-o. — Deu um passo em frente, golpeando. O Cetim ergueu o escudo a tempo de apanhar a espada na borda, e brandiu a
sua espada contra as costelas de Jon. — Boa — disse Jon, quando sentiu o impacto no seu escudo. — Isso foi bom. Mas tens de colocar o corpo no movimento. Põe o teu peso no aço e conseguirás fazer mais
estragos do que apenas com a força do braço. Vá, tenta outra vez, ataca-me, mas mantém o escudo erguido, senão faço-te ressoar a cabeça como se fosse um sino…
  Em vez disso, o Cetim deu um passo para trás e ergueu a viseira.
  — Jon — disse, numa voz ansiosa.
  Quando se virou, ela estava em pé atrás dele, rodeada de meia dúzia de homens da rainha. Pouco admira que o pátio tenha ficado tão silencioso. Vira Melisandre nas suas fogueiras nocturnas, e nas idas
e vindas pelo castelo, mas nunca de tão perto. É bela, pensou… mas havia algo mais do que um pouco perturbador nos olhos vermelhos.
  — Senhora.
  — O rei deseja falar convosco, Jon Snow.
  Jon espetou a espada de treino no solo.
  — Talvez me possa ser permitido que troque de roupa? Não estou em estado digno de comparecer perante um rei.
  — Esperar-vos-emos no topo da Muralha — disse Melisandre. Nós, ouviu Jon, e não ele. É como dizem. Esta, e não aquela que deixou em Atalaialeste, é que é a sua verdadeira rainha.
  Pendurou a cota de malha e a armadura no armeiro, regressou à sua cela, desembaraçou-se das roupas manchadas de suor e envergou um conjunto lavado de vestes negras. Sabia que faria frio e vento na gaiola,
e ainda mais frio e vento no topo do gelo, portanto escolheu um pesado manto com capuz. Por último recolheu a Garralonga e pôs a espada bastarda às costas.
  Melisandre esperava-o na base da Muralha. Mandara embora os homens da rainha.
  — Que quer Sua Graça de mim? — perguntou-lhe quando entraram na gaiola.
  — Tudo o que tiverdes para dar, Jon Snow. Ele é um rei.
  Jon fechou a porta e puxou a corda do sino. O guincho começou a girar. Subiram. O dia estava luminoso e a Muralha chorava, com longos dedos de água a escorrer-lhe pela superfície e a cintilar ao Sol.
No apertado confinamento da gaiola de ferro, sentia-se vivamente consciente da presença da mulher vermelha. Até cheira a vermelho. O odor lembrou-lhe a forja de Mikken, o modo como o ferro cheirava quando
incandescente; o odor era fumo e sangue. Beijada pelo fogo, pensou, recordando Ygritte. O vento penetrou no interior das longas vestes vermelhas de Melisandre e fê-las bater contra as pernas de Jon, a
seu lado.
  — Não tendes frio, senhora? — perguntou-lhe.
  Ela riu-se.
  — Nunca. — O rubi na garganta parecia pulsar, em uníssono com o bater do seu coração. — O fogo do Senhor vive dentro de mim, Jon Snow. Sente-lo. — Pôs a mão no rosto dele, e manteve-a ali enquanto ele
sentia como ela estava quente. — É esta a sensação que a vida deve ter — disse-lhe ela. — Só a morte é fria.
  Foram encontrar Stannis Baratheon em pé, sozinho, na borda da Muralha, cismando virado para o campo onde vencera a sua batalha e a grande floresta verde que se estendia para diante. Estava vestido com
as mesmas bragas, túnica e botas negras que um homem da Patrulha da Noite usaria. Só o seu manto o distinguia; um pesado manto dourado forrado de peles negras, e preso com um broche com a forma de um
coração flamejante.
  — Trouxe-vos o Bastardo de Winterfell, Vossa Graça — disse Melisandre.
  Stannis virou-se para o estudar. Sob a sua pesada testa estavam olhos que eram como lagoas azuis sem fundo. O seu rosto encovado e forte maxilar estavam cobertos com uma barba negra-azulada cortada
curta que pouco fazia para esconder a magreza da sua cara, e os dentes estavam retesados. O pescoço e ombros também estavam retesados, bem como a mão direita. Jon deu por si a lembrar-se de uma coisa
que Donal Noye dissera em tempos sobre os irmãos Baratheon. Robert era o verdadeiro aço. Stannis é puro ferro, negro, duro e forte, mas quebradiço, como o ferro se torna. Quebrará antes de se dobrar.
Inquieto, ajoelhou, perguntando a si próprio porque teria aquele rei quebradiço necessidade de si.
  — Erguei-vos. Ouvi muitas coisas e mais ainda acerca de vós, Lorde Snow.
  — Eu não sou um lorde, senhor. — Jon ergueu-se. — Sei o que ouvistes dizer. Que sou um vira-casacas e um cobarde. Que matei o meu irmão Qhorin Meia-Mão para que os selvagens me poupassem a vida. Que
acompanhei Mance Rayder, e tomei uma selvagem como esposa.
  — Sim. Tudo isso e mais coisas. Também sois um warg, dizem eles, um troca-peles que de noite caminha como lobo. — O Rei Stannis tinha um sorriso duro. — Quanto disto é verdade?
  — Eu tinha um lobo gigante, o Fantasma. Abandonei-o quando escalei a Muralha perto de Guardagris, e não voltei a vê-lo desde então. Qhorin Meia-Mão ordenou-me que me juntasse aos selvagens. Ele sabia
que me obrigariam a matá-lo para provar a minha deserção, e disse-me para fazer tudo o que me pedissem. A mulher chamava-se Ygritte. Quebrei os votos com ela, mas juro-vos em nome do meu pai que nunca
virei a casaca.
  — Acredito em vós — disse o rei.
  Aquilo surpreendeu-o.
  — Porquê?
  Stannis fungou.
  — Conheço Janos Slynt. E também conheci Ned Stark. O vosso pai não era amigo meu, mas só um idiota duvidaria da sua honorabilidade ou da sua honestidade. Sois parecido com ele. — Um homem grande, Stannis
Baratheon erguia-se bem mais alto do que Jon, mas era tão magro que parecia dez anos mais velho do que era. — Sei mais do que podeis pensar, Jon Snow. Sei que fostes vós quem encontrou o punhal de vidro
de dragão que o filho de Randyll Tarly usou para matar o Outro.
  — Foi o Fantasma que o encontrou. A lâmina estava enrolada no manto de um patrulheiro e enterrada no sopé do Punho dos Primeiros Homens. Havia também outras lâminas… pontas de lança, pontas de seta,
tudo de vidro de dragão.
  — Sei que defendestes aqui o portão — disse o Rei Stannis. — Se não o tivésseis feito, eu teria chegado tarde de mais.
  — Foi Donal Noye quem defendeu o portão. Morreu lá em baixo no túnel, lutando contra o rei dos gigantes.
  Stannis fez uma careta.
  — Noye fez a minha primeira espada, e também o martelo de guerra de Robert. Se o deus tivesse achado por bem poupá-lo, daria um melhor Senhor Comandante para a vossa ordem do que qualquer um daqueles
idiotas que andam agora a contender pelo cargo.
  — Cotter Pyke e Sor Denys Mallister não são idiotas, senhor — disse Jon. — São homens bons e capazes. Othell Yarwyck também, à sua maneira. O Lorde Mormont confiava em todos eles.
  — O vosso Lorde Mormont confiava com demasiada facilidade. Se assim não fosse, não teria morrido como morreu. Mas estávamos a falar de vós. Não esqueci que fostes vós quem nos trouxe este corno mágico
e quem capturou a esposa e o filho de Mance Rayder.
  — Dalla morreu. — Aquilo ainda entristecia Jon. — Val é a sua irmã. Ela e o bebé não exigiram grande captura, Vossa Graça. Havíeis posto os selvagens em debandada, e o troca-peles que Mance deixara
a guardar a sua rainha enlouqueceu quando a águia ardeu. — Jon olhou para Melisandre. — Há quem diga que foi obra vossa.
  Ela sorriu, com o longo cabelo de cobre a cair-lhe sobre o rosto.
  — O Senhor da Luz tem garras flamejantes, Jon Snow.
  Jon acenou com a cabeça e voltou-se de novo para o rei.
  — Vossa Graça, falastes de Val. Ela pediu para ver Mance Rayder, para lhe levar o filho. Seria uma… uma gentileza.
  — O homem é um desertor da vossa ordem. Os vossos irmãos estão todos a insistir na sua morte. Porque lhe faria eu uma gentileza?
  Jon não tinha resposta para aquilo.
  — Se não por ele, então por Val. Em nome da irmã, a mãe da criança.
  — Gostais desta Val?
  — Quase não a conheço.
  — Dizem-me que é agradável à vista.
  — Muito — admitiu Jon.
  — A beleza pode ser traiçoeira. O meu irmão aprendeu essa lição com Cersei Lannister. Ela assassinou-o, não duvideis. E também ao vosso pai e a Jon Arryn. — Franziu o sobrolho. — Acompanhastes estes
selvagens. Achais que há alguma honra neles?
  — Sim — disse Jon —, mas o seu próprio tipo de honra.
  — E em Mance Rayder?
  — Sim. Penso que sim.
  — No Senhor dos Ossos?
  Jon hesitou.
  — Nós chamávamos-lhe Lorigão de Chocalho. Traiçoeiro e sedento de sangue. Se há honra nele, esconde-a por baixo da sua armadura de ossos.
  — E naquele outro homem, aquele Tormund de muitos nomes que nos fugiu após a batalha? Respondei-me com verdade.
  — Tormund Terror dos Gigantes pareceu-me ser o tipo de homem que daria um bom amigo e um mau inimigo, Vossa Graça.
  Stannis sacudiu secamente a cabeça.
  — O vosso pai era um homem de honra. Não era amigo meu, mas eu conhecia o seu valor. O vosso irmão era um rebelde e um traidor que pretendia roubar metade do meu reino, mas não há homem que possa questionar
a sua coragem. E vós?
  Será que ele quer que diga que o adoro? A voz de Jon soou hirta e formal quando disse:
  — Eu sou um homem da Patrulha da Noite.
  — Palavras. Palavras são vento. Porque julgais que abandonei Pedra do Dragão e velejei para a Muralha, Lorde Snow?
  — Eu não sou um lorde, senhor. Viestes porque vos chamámos, espero. Embora não possa dizer por que motivo levastes tanto tempo a vir.
  Surpreendentemente, Stannis sorriu ao ouvir aquilo.
  — Sois suficientemente ousado para ser um Stark. Sim, devia ter vindo mais cedo. Se não fosse o meu Mão, poderia não ter vindo de todo. O Lorde Seaworth é um homem de nascimento humilde, mas recordou-me
do meu dever, quando tudo aquilo em que conseguia pensar era nos meus direitos. Tinha posto a carroça antes dos bois, disse Davos. Estava a tentar conquistar o trono para salvar o reino, quando devia
estar a tentar salvar o reino para conquistar o trono. — Stannis apontou para norte. — É ali que encontrarei o inimigo que nasci para defrontar.
  — O seu nome não pode ser proferido — acrescentou Melisandre em voz baixa. — Ele é o Deus da Noite e do Terror, Jon Snow, e essas silhuetas na neve são as suas criaturas.
  — Dizem-me que matastes um desses cadáveres caminhantes para salvar a vida do Lorde Mormont — disse Stannis. — Pode ser que esta guerra também seja vossa, Lorde Snow. Se me quiserdes ceder a vossa ajuda.
  — A minha espada está ao serviço da Patrulha da Noite, Vossa Graça — respondeu cautelosamente Jon Snow.
  Aquilo não agradou ao rei. Stannis fez ranger os dentes e disse:
  — De vós preciso mais do que uma espada.
  Jon não estava a entender.
  — Senhor?
  — Preciso do Norte.
  O Norte.
  — Eu… o meu irmão Robb era Rei no Norte…
  — O vosso irmão era o legítimo Senhor de Winterfell. Se tivesse ficado em casa e cumprido o seu dever, em vez de se coroar e partir à conquista das terras fluviais, poderia estar hoje vivo. Mas seja
como for. Vós não sois Robb, tal como eu não sou Robert.
  As palavras ríspidas tinham afastado qualquer simpatia que Jon pudesse ter sentido por Stannis.
  — Eu amava o meu irmão — disse.
  — E eu o meu. Mas eram como eram, e nós também. Eu sou o único rei legítimo em Westeros, no Norte ou no Sul. E vós sois o bastardo de Ned Stark. — Stannis estudou-o com aqueles olhos azuis-escuros.
— Tywin Lannister nomeou Roose Bolton o seu Protector do Norte, como recompensa por trair o vosso irmão. Os homens de ferro estão a lutar entre si desde a morte de Balon Greyjoy, mas ainda controlam Fosso
Cailin, Bosque Profundo, Praça de Torrhen e a maior parte da Costa Pedregosa. As terras do vosso pai sangram, e eu nem tenho forças nem tempo para estancar as feridas. O que é necessário é um Senhor de
Winterfell. Um Senhor de Winterfell leal.
  Está a olhar para mim, pensou Jon, atordoado.
  — Winterfell já não existe. Theon Greyjoy passou-o pelo archote.
  — O granito não arde facilmente — disse Stannis. — O castelo pode ser reconstruído, a seu tempo. Não são as muralhas que fazem um senhor, é o homem. Os vossos nortenhos não me conhecem, não têm motivos
para nutrir por mim amizade, mas vou precisar das suas forças para as batalhas que temos pela frente. Preciso de um filho de Eddard Stark para os conquistar para o meu estandarte.
  Ele quer fazer de mim Senhor de Winterfell. O vento soprava em rajadas, e Jon sentiu a cabeça tão leve que quase teve receio de ser soprado da Muralha abaixo.
  — Vossa Graça — disse —, vós esqueceis-vos. Eu sou um Snow, não um Stark.
  — Quem se está a esquecer sois vós — respondeu o Rei Stannis.
  Melisandre pousou-lhe uma mão tépida no braço.
  — Um rei pode remover de um golpe a mácula da bastardia, Lorde Snow.
  Lorde Snow. Sor Alliser Thorne dera-lhe essa alcunha, para troçar do seu nascimento bastardo. Muitos dos irmãos tinham-se habituado a usá-la também, alguns com afecto, outros para magoar. Mas de súbito
ela tinha um som diferente aos ouvidos de Jon. Soava… real.
  — Sim — disse, hesitante —, já houve casos de reis que legitimaram bastardos, mas… eu continuo a ser um irmão da Patrulha da Noite. Ajoelhei perante uma árvore-coração e jurei não possuir terras nem
gerar filhos.
  — Jon. — Melisandre estava tão próxima que conseguia sentir o calor do seu hálito. — R’hllor é o único deus verdadeiro. Um juramento prestado a uma árvore não tem mais poder do que um juramento prestado
aos vossos sapatos. Abri o coração e deixai que a luz do Senhor nele entre. Queimai esses represeiros e aceitai Winterfell como presente do Senhor da Luz.
  Quando Jon fora muito novo, novo de mais para compreender o que significava ser bastardo, costumava sonhar que um dia Winterfell poderia ser seu. Mais tarde, mais crescido, sentira-se envergonhado por
esses sonhos. Winterfell passaria para Robb e depois para os filhos dele, ou então para Bran e Rickon, caso Robb morresse sem filhos. E depois deles vinham Sansa e Arya. Até ter sonhos diferentes parecia
desleal, como se estivesse a traí-los no coração, desejando as suas mortes. Nunca desejei isto, pensou, em pé perante o rei de olhos azuis e a mulher vermelha. Amei Robb, amei-os a todos… nunca desejei
que algum mal lhes acontecesse, mas aconteceu. E agora só resto eu. Tudo o que tinha de fazer era dizer uma palavra, e seria Jon Stark, nunca mais um Snow. Tudo o que tinha a fazer era jurar lealdade
a este rei, e Winterfell seria seu. Tudo o que tinha a fazer…
  …era abjurar de novo os seus votos.
  E desta vez não seria um estratagema. Para reivindicar o castelo do pai, teria de se virar contra os deuses do pai.
  O Rei Stannis voltou a olhar para norte, com o manto dourado a esvoaçar dos seus ombros.
  — Pode ser que me engane convosco, Jon Snow. Ambos sabemos o que se diz dos bastardos. Poder-vos-á faltar a honra do vosso pai, ou a perícia do vosso irmão com as armas. Mas sois a arma que o Senhor
me deu. Encontrei-vos aqui, tal como vós haveis encontrado o esconderijo de vidro de dragão à sombra do Punho, e pretendo usar-vos. Nem Azor Ahai venceu sozinho a sua guerra. Matei mil selvagens, capturei
outros mil, e dispersei os restantes, mas ambos sabemos que eles regressarão. Melisandre viu-o nos seus fogos. Este Tormund Punho de Trovão está provavelmente a reuni-los de novo neste preciso momento,
e a planear algum novo assalto. E quanto mais nos sangrarmos uns aos outros, mais fracos estaremos todos quando o verdadeiro inimigo cair sobre nós.
  Jon chegara à mesma conclusão.
  — É como dizeis, Vossa Graça. — Perguntou a si próprio onde queria chegar aquele rei.
  — Enquanto os vossos irmãos tentam decidir quem deve liderá-los, eu tenho falado com este Mance Rayder. — Fez ranger os dentes. — Um homem teimoso, esse, e orgulhoso. Não me vai deixar outra hipótese
a não ser entregá-lo às chamas. Mas capturámos outros também, outros líderes. Aquele que chama a si mesmo Senhor dos Ossos, alguns dos chefes de clã deles, o novo Magnar de Thenn. Os vossos irmãos não
gostarão disso, não mais do que os senhores do vosso pai, mas eu pretendo permitir que os selvagens atravessem a Muralha… aqueles que me jurarem lealdade, que garantam manter a paz do rei e cumprir as
leis do rei, e acolher o Senhor da Luz como seu deus. Até os gigantes, se aqueles grandes joelhos que eles têm puderem dobrar-se. Instalá-los-ei na Dádiva, depois de a arrancar ao vosso novo Senhor Comandante,
Quando os ventos frios se erguerem, sobreviveremos ou morreremos juntos. É tempo de fazermos uma aliança contra o nosso inimigo comum. — Olhou para Jon. — Concordaríeis?
  — O meu pai sonhou em repovoar a Dádiva — admitiu Jon. — Ele e o meu tio Benjen costumavam conversar sobre isso. — Nunca pensou em povoá-la com selvagens, porém… mas também nunca viveu com selvagens.
Não se iludia, o povo livre daria súbditos insubmissos e vizinhos perigosos. Mas quando punha num prato da balança o cabelo ruivo de Ygritte e no outro os frios olhos azuis das criaturas, a escolha era
fácil. — Concordo.
  — Óptimo — disse o Rei Stannis — pois a maneira mais segura de selar uma nova aliança é através de um casamento. Tenciono casar o meu Senhor de Winterfell com esta princesa selvagem.
  Jon talvez tivesse vivido demasiado tempo com o povo livre; não conseguiu impedir-se de rir.
  — Vossa Graça — disse —, cativa ou não, se julgais que podeis simplesmente dar-me Val, temo que tenhais bastante a aprender sobre as mulheres selvagens. Quem quer que se case com ela é bom que esteja
preparado para escalar até à sua janela de torre e levá-la na ponta da espada…
  — Quem quer que case? — Stannis deitou-lhe um olhar avaliador. — Isso significa que não quereis casar com a rapariga? Previno-vos de que ela faz parte do preço que tendes de pagar, se quiserdes o nome
do vosso pai e o seu castelo. Esta união é necessária, para ajudar a garantir a lealdade dos meus novos súbditos. Estais a recusar-me, Jon Snow?
  — Não — disse Jon, com demasiada rapidez. Era de Winterfell que o rei estava a falar, e Winterfell não era algo que se pudesse recusar com ligeireza. — Isto é… tudo isto surgiu muito de súbito, Vossa
Graça. Posso suplicar-vos algum tempo para pensar?
  — Como quiserdes. Mas pensai depressa. Não sou um homem paciente, como os vossos irmãos negros estão prestes a descobrir. — Stannis pousou uma mão magra e descarnada no ombro de Jon. — Não digais nada
sobre aquilo de que falámos aqui hoje. A ninguém. Mas quando regressardes, necessitareis apenas de dobrar o joelho, depositar a vossa espada aos meus pés e colocar-vos ao meu serviço, e voltareis a erguer-vos
como Jon Stark, o Senhor de Winterfell.
 
 TYRION
  Quando ouviu ruídos através da espessa porta de madeira da sua cela, Tyrion Lannister preparou-se para morrer.
  Já é mais que tempo, pensou. Vá lá, vá lá, ponde fim a isto. Pôs-se em pé com dificuldade. Tinhas as pernas adormecidas de estarem dobradas por baixo do corpo. Dobrou-se e esfregou-as, afastando as
facas. Não irei para o cepo aos tropeções e aos bamboleios.
  Perguntou a si próprio se o matariam ali no escuro ou se o arrastariam pela cidade para que Sor Ilyn Payne pudesse cortar-lhe a cabeça. Após a farsa que fora o seu julgamento, a sua querida irmã e dedicado
pai podiam preferir ver-se livres dele discretamente, em vez de se arriscarem a uma execução pública. Podia dizer à populaça umas quantas coisinhas bem escolhidas, se me deixarem falar. Mas seriam eles
assim tão tolos?
  Quando as chaves tilintaram e a porta da cela se abriu para dentro, rangendo, Tyrion encostou-se à humidade da parede, desejando ter uma arma. Ainda posso morder e pontapear. Morrerei com o sabor do
sangue na boca, isso sempre é alguma coisa. Desejou ter sido capaz de arranjar umas últimas palavras que fossem vibrantes. “Ide-vos todos foder” não era coisa que servisse para conquistar lugar de relevo
nas histórias.
  Luz de archote caiu-lhe sobre o rosto. Protegeu os olhos com uma mão.
  — Vá lá, tens medo de um anão? Trata disso, seu filho de uma puta bexigosa. — A voz tornara-se-lhe roufenha com a falta de uso.
  — Isso é maneira de falar da senhora nossa mãe? — O homem avançou, com um archote na mão esquerda. — Isto ainda é mais pavoroso do que a minha cela em Correrrio, embora não tão húmido.
  Por um momento, Tyrion não conseguiu respirar.
  — Tu?
  — Bem, a maior parte de mim. — Jaime estava magro, e tinha o cabelo cortado curto. — Deixei uma mão em Harrenhal. Trazer os Bravos Companheiros do outro lado do Mar Estreito não foi uma das melhores
ideias do pai. — Ergueu o braço, e Tyrion viu o coto.
  Uma gargalhada histérica saltou-lhe dos lábios.
  — Oh, deuses — disse. — Jaime, desculpa, mas… pela bondade dos deuses, olha para nós dois. Maneta e Narigueta, os rapazes Lannister.
  — Houve dias em que a minha mão cheirava tão mal que desejei não ter nariz. — Jaime baixou o archote, para que a luz banhasse a cara do irmão. — Uma cicatriz impressionante.
  Tyrion afastou-se do clarão.
  — Obrigaram-me a travar uma batalha sem o meu irmão mais velho para me proteger.
  — Ouvi dizer que quase queimaste a cidade.
  — Uma mentira imunda. Só queimei o rio. — Abruptamente, Tyrion lembrou-se de onde estava, e porquê. — Estás aqui para me matar?
  — Isso agora já é ingratidão. Talvez devesse deixar-te aqui a apodrecer, se vais ser assim tão descortês.
  — Apodrecer não é o destino que Cersei tem em mente para mim.
  — Bem, não, em boa verdade. Deverás ser decapitado amanhã de manhã, no antigo terreiro de torneios.
  Tyrion voltou a soltar uma gargalhada.
  — Haverá comida? Vais ter de me ajudar com as últimas palavras, que os meus miolos têm andado aos círculos, como uma ratazana numa cave.
  — Não vais precisar de últimas palavras. Estou a salvar-te. — A voz de Jaime estava estranhamente solene.
  — Quem disse que eu precisava de ser salvo?
  — Sabes, quase me tinha esquecido do homenzinho irritante que tu és. Agora que mo lembraste, acho que afinal vou deixar que Cersei te corte a cabeça.
  — Ah, não vais, não. — Bamboleou-se para fora da cela. — É dia ou noite lá em cima? Perdi todo o sentido do tempo.
  — Passam três horas da meia-noite. A cidade dorme. — Jaime voltou a enfiar o archote na arandela, na parede entre as celas.
  O corredor estava tão mal iluminado que Tyrion quase tropeçou no carcereiro, estatelado no frio chão de pedra. Empurrou-o com a ponta do pé.
  — Está morto?
  — A dormir. Os outros três também. O eunuco misturou-lhes sonodoce no vinho, mas não o suficiente para os matar. Pelo menos foi o que me jurou. Está à espera na escada, vestido com uma túnica de septão.
Vais descer aos esgotos, e daí vais para o rio. Está uma galé à espera na baía. Varys tem agentes nas Cidades Livres que se assegurarão de que não te faltem fundos… mas tenta não te fazer notar. Cersei
mandará homens no teu encalço, não duvido. Pode ser boa ideia adoptares outro nome.
  — Outro nome? Oh, certamente. E quando os Homens Sem Rosto vierem matar-me, direi: “Não, enganaste-vos no homem, eu sou outro anão com uma hedionda cicatriz na cara.” — Ambos os Lannister se riram do
absurdo de tudo aquilo. Então Jaime caiu sobre um joelho e deu-lhe um rápido par de beijos nas bochechas, fazendo roçar os lábios na fita pregueada de tecido cicatricial.
  — Obrigado, irmão — disse Tyrion. — Pela minha vida.
  — Era… uma dívida que tinha para contigo. — A voz de Jaime soava estranha.
  — Uma dívida? — Inclinou a cabeça. — Não compreendo.
  — Ainda bem. Há portas que é melhor que fiquem fechadas.
  — Ora, ora — disse Tyrion. — Haverá algo de sinistro e feio atrás disto? Será possível que alguém tenha dito um dia algo de cruel acerca de mim? Tentarei não chorar. Conta-me.
  — Tyrion…
  Jaime está com medo.
  — Conta-me — repetiu Tyrion.
  O irmão afastou o olhar.
  — Tysha — disse em voz baixa.
  — Tysha? — O estômago apertou-se-lhe. — Que há com ela?
  — Não era uma rameira. Não fui eu que ta trouxe. Aquilo foi uma mentira que o pai me ordenou que dissesse. Tysha era… era o que parecia ser. Filha de um caseiro, encontrada por acaso na estrada.
  Tyrion conseguia ouvir o ténuo som da sua própria respiração a assobiar através da cicatriz do nariz. Jaime não era capaz de o encarar. Tysha. Tentou lembrar-se do aspecto dela. Uma rapariga, era apenas
uma rapariga, não tinha mais anos do que Sansa.
  — A minha esposa — crocitou. — Ela casou comigo.
  — Pelo teu ouro, disse o pai. Era mal-nascida, e tu um Lannister de Rochedo Casterly. Tudo o que ela queria era o ouro, o que fazia com que não fosse diferente de uma rameira, portanto… portanto não
seria uma mentira, não o seria por completo, e… ele disse que tu precisavas de uma lição dura. Que aprenderias com ela, e me agradecerias mais tarde…
  — Agradecer-te? — A voz de Tyrion estava estrangulada. — Ele deu-a aos guardas. Uma caserna cheia de guardas. E obrigou-me… a ver. — Sim, e a mais do que ver. Também a possuí… à minha esposa…
  — Eu não sabia que ele ia fazer isso. Tens de acreditar em mim.
  — Oh, tenho, é? — rosnou Tyrion. — Porque hei-de acreditar em ti sobre seja o que for, seja quando for? Ela era minha esposa!
  — Tyrion…
  Tyrion bateu-lhe. Foi uma estalada, dada com as costas da mão, mas colocou nela todas as suas forças, todo o seu medo, toda a sua raiva, toda a sua dor. Jaime estava acocorado, desequilibrado. O golpe
fê-lo tropeçar e cair de costas.
  — Eu… suponho que mereci isso.
  — Oh, tu mereceste mais do que isso, Jaime. Tu e a minha querida irmã e o nosso dedicado pai, sim. Nem consigo começar a dizer-te o que merecestes. Mas tereis o que mereceis, isso posso jurar-te. Um
Lannister paga sempre as suas dívidas. — Tyrion afastou-se, bamboleando, quase voltando a tropeçar no carcereiro com a pressa. Antes de percorrer uma dúzia de metros deu um encontrão num portão de ferro
que fechava a passagem. Oh, deuses. Por pouco não gritou.
  Jaime surgiu atrás dele.
  — Eu tenho as chaves do carcereiro.
  — Então usa-as. — Tyrion abriu-lhe passagem.
  Jaime destrancou o portão, abriu-o e atravessou-o. Olhou para trás por sobre o ombro.
  — Tu vens?
  — Contigo não. — Tyrion atravessou o portão. — Dá-me as chaves e vai-te embora. Eu encontro Varys sozinho. — Inclinou a cabeça e fitou o irmão com os seus olhos desiguais. — Jaime, consegues lutar com
a mão esquerda?
  — Bastante pior do que tu — disse amargamente Jaime.
  — Óptimo. Nesse caso estaremos bem equilibrados se alguma vez nos voltarmos a encontrar. O aleijado e o anão.
  Jaime entregou-lhe a argola cheia de chaves.
  — Ofereci-te a verdade. Deves-me o mesmo. Foste tu? Mataste-o?
  A pergunta era outra faca, torcendo-se nas suas tripas.
  — Tens a certeza que queres saber? — perguntou Tyrion. — Joffrey teria sido pior rei do que Aerys alguma vez foi. Ele roubou o punhal do pai e deu-o a um salteador para que cortasse a goela de Brandon
Stark, sabias disso?
  — Eu… achei que o pudesse ter feito.
  — Bem, um filho sai ao pai. Joff ter-me-ia matado também a mim, uma vez que estivesse na posse de todos os seus poderes. Pelo crime de ser baixo e feio, do qual sou tão obviamente culpado.
  — Não respondeste à minha pergunta.
  — Meu pobre, estúpido, cego, mutilado idiota. Terei de soletrar tudo para que tu entendas? Muito bem. Cersei é uma puta mentirosa, e tem andado a foder Lancel e Osmund Kettleblack e provavelmente até
o Rapaz Lua, tanto quanto sei. E eu sou o monstro que todos dizem que sou. Sim, matei o teu abjecto filho. — Obrigou-se a sorrir. Devia ter sido uma visão hedionda, ali na escuridão iluminada a archote.
  Jaime virou-se sem uma palavra e afastou-se.
  Tyrion ficou a vê-lo partir, com passos largos das suas pernas fortes, e parte de si desejou chamá-lo, dizer-lhe que não era verdade, pedir-lhe perdão. Mas então pensou em Tysha, e manteve o silêncio.
Ficou à escuta dos passos que se afastavam até já não conseguir ouvi-los, e depois foi à procura de Varys, bamboleando-se.
  O eunuco estava escondido na escuridão de uma escada em espiral, vestido com uma túnica castanha e comida pelas traças com um capuz que escondia a palidez do seu rosto.
  — Demorastes tanto, que temi que algo estivesse errado — disse ele quando viu Tyrion.
  — Oh, não — sossegou-o Tyrion com veneno na voz. — O que poderia estar errado? — Torceu a cabeça para trás para olhar para cima. — Mandei-vos buscar durante o julgamento.
  — Não pude vir. A rainha tinha-me sob vigilância, noite e dia. Não me atrevi a ajudar-vos.
  — Mas agora estais a ajudar-me.
  — Ah estou? Ah. — Varys soltou um risinho. O som parecia estranhamente deslocado naquele lugar de pedra fria e escuridão cheia de ecos. — O vosso irmão consegue ser muito persuasivo.
  — Varys, sois tão frio e viscoso como uma lesma, já alguém vo-lo disse? Fizestes o melhor que pudestes para me matar. Talvez devesse devolver o favor.
  O eunuco suspirou.
  — O cão fiel é pontapeado, e não importa o modo como a aranha teça a teia, nunca ninguém gosta dela. Mas se me matardes aqui, temo por vós, senhor. Podeis nunca encontrar o caminho de regresso à luz
do dia. — Os olhos cintilaram à oscilante luz do archote, escuros e húmidos. — Estes túneis estão cheios de armadilhas para os confiantes.
  Tyrion soltou uma fungadela.
  — Confiante? Eu sou o homem mais desconfiado dos Sete Reinos, vós ajudastes a garantir que assim fosse. — Esfregou o nariz. — Portanto dizei-me, feiticeiro, onde está a minha inocente e donzela esposa?
  — Não encontrei sinal da Senhora Sansa em Porto Real, lamento dizê-lo. Nem de Sor Dontos Hollard, o qual normalmente já teria aparecido bêbado em algum sítio, por esta altura. Foram vistos juntos na
escada em espiral na noite em que ela desapareceu. Depois disso, nada. Houve muita confusão naquela noite. Os meus passarinhos estão em silêncio. — Varys deu um leve puxão na manga do anão e puxou-o para
a escada. — Senhor, temos de ir andando. O vosso caminho é para baixo.
  Ao menos isso não é mentira nenhuma. Tyrion bamboleou-se na peugada do eunuco, raspando com os calcanhares na pedra áspera à medida que iam descendo. Fazia muito frio na escadaria, um frio húmido de
enregelar ossos que o pôs imediatamente a tremer.
  — Que parte das masmorras é esta? — perguntou.
  — Maegor, o Cruel, decretou a construção de quatro pisos de masmorras para o seu castelo — respondeu Varys. — No piso superior, há celas grandes onde os criminosos comuns podem ser confinados juntos.
Têm janelas estreitas, abertas no topo das paredes. O segundo piso tem as celas mais pequenas onde os cativos de nascimento elevado são mantidos. Não têm janelas, mas archotes nos corredores enviam luz
suficiente através das barras. No terceiro piso as celas são mais pequenas e as portas são de madeira. Chamamos-lhes as celas negras. Foi aí que fostes mantido, bem como Eddard Stark antes de vós. Mas
há um piso ainda mais profundo. Uma vez que um homem seja levado para o quarto piso, não volta a ver o Sol nem a ouvir uma voz humana nem a respirar sem estar sujeito a uma dor agonizante. Maegor mandou
construir as celas do quarto piso para o tormento. — Tinham chegado ao fundo dos degraus. Uma porta não iluminada abria-se na sua frente. — Este é o quarto piso. Dai-me a mão, senhor. Aqui é mais seguro
caminhar na escuridão. Há coisas que não desejaríeis ver.
  Tyrion hesitou por um momento. Varys já o traíra uma vez. Quem saberia que tipo de jogo estava o eunuco a jogar? E que melhor local para assassinar um homem do que no meio das trevas, num lugar que
ninguém sabia que existia? O seu corpo podia nunca ser encontrado.
  Por outro lado, que alternativa tinha? Voltar a subir as escadas e sair pelo portão principal? Não, isso não serviria.
  Jaime não teria medo, pensou, antes de se lembrar do que Jaime lhe fizera. Deu a mão ao eunuco e deixou-se conduzir através do negrume, seguindo o suave raspar do couro na pedra. Varys caminhava depressa,
sussurrando de vez em quando, “Cuidado, há aqui três degraus”, ou, “O túnel inclina-se aqui para baixo, senhor”. Cheguei cá como Mão do Rei, atravessando os portões a cavalo, à frente dos meus próprios
homens, reflectiu Tyrion, e saio como uma ratazana, numa correria na escuridão, de mãos dadas a uma aranha.
  Uma luz surgiu à frente deles, demasiado ténua para ser a luz do dia, e cresceu à medida que se apressavam na sua direcção. Passado algum tempo, Tyrion viu que se tratava de uma porta em arco, fechada
por outro portão de ferro. Varys apresentou uma chave. Atravessaram a porta e entraram num pequeno aposento redondo. Havia mais cinco portas na sala, todas fechadas por ferro. Havia também uma abertura
no tecto, e uma série de degraus montados na parede por baixo da abertura, levando para cima. Um ornamentado braseiro encontrava-se a um lado, esculpido com a forma de uma cabeça de dragão. O carvão dentro
da boca escancarada da fera tinha-se já reduzido a brasas, mas ainda brilhava com uma lúgubre luz alaranjada. Embora tão fraca, e luz era bem-vinda depois do negrume do túnel.
  Além do braseiro, a sala encontrava-se vazia, mas o chão exibia um mosaico de um dragão de três cabeças, feito com ladrilhos vermelhos e negros. Algo perturbou Tyrion por um momento. Então ocorreu-lhe
o que era. Este é o lugar de que Shae me falou, quando Varys a levou pela primeira vez à minha cama.
  — Estamos por baixo da Torre da Mão.
  — Sim. — Dobradiças geladas gritaram em protesto quando Varys descerrou uma porta há muito fechada. Partículas de ferrugem caíram lentamente ao chão. — Isto levar-nos-á ao rio.
  Tyrion dirigiu-se lentamente para a escada, percorreu com a mão o degrau inferior.
  — Isto levar-me-á ao meu quarto de dormir.
  — Agora é o quarto do senhor vosso pai.
  Ergueu os olhos para o alçapão.
  — Quanto terei de subir?
  — Senhor, estais demasiado fraco para tais loucuras, e além disso não há tempo. Temos de ir.
  — Tenho assuntos a tratar lá em cima. Quão longa é a subida?
  — Duzentos e trinta degraus, mas seja o que for que tencioneis…
  — Duzentos e trinta degraus, e depois o quê?
  — O túnel à esquerda, mas escutai-me…
  — A que distância está do quarto? — Tyrion pôs um pé no degrau mais baixo da escada.
  — Não passa de vinte metros. Mantende uma mão na parede enquanto avançardes. Detectareis as portas pelo tacto. O quarto é na terceira. — Suspirou. — Isto é uma loucura, senhor. O vosso irmão devolveu-vos
a vida. Quereis deitá-la fora, e à minha também?
  — Varys, a única coisa que prezo menos do que a minha vida neste momento é a vossa. Esperai-me aqui. — Virou costas ao eunuco e começou a subir, contando em silêncio.
  Degrau a degrau, penetrou na escuridão. A princípio conseguia ver o ténuo contorno de cada degrau quando o agarrava, bem como a áspera textura da pedra atrás dele, mas à medida que ia subindo, a escuridão
cerrava-se. Treze catorze quinze dezasseis. Ao chegar aos trinta, os braços tremiam com a tensão de puxar. Fez um momento de pausa para ganhar fôlego e olhou para baixo. Um círculo de luz ténuo brilhava
muito em baixo, meio obscurecido pelos seus pés. Tyrion reatou a subida. Trinte e nove quarenta quarenta e um. Ao chegar a cinquenta, as pernas ardiam-lhe. A escada era infinita, entorpecedora. Sessenta
e oito sessenta e nova setenta. Ao chegar aos oitenta, tinha as costas numa agonia surda. Mas continuou a subir. Não poderia ter explicado porquê. Cento e treze cento e catorze cento e quinze.
  Ao chegar a duzentos e trinta, o poço estava negro como breu, mas ele conseguia sentir o ar quente que saía do túnel à sua esquerda, como se fosse o hálito de alguma grande fera. Apalpou desajeitadamente
com um pé e saiu com cuidado da escada. O túnel ainda era mais apertado do que o poço. Qualquer homem de estatura normal teria sido obrigado a gatinhar, mas Tyrion era suficientemente baixo para caminhar
direito. Finalmente, um lugar feito para anões. As suas botas raspavam suavemente contra a pedra. Caminhou lentamente, contando os passos, apalpando as paredes em busca de descontinuidades. Em breve começou
a ouvir vozes, abafadas e indistintas a princípio, mas depois mais claras. Escutou com mais atenção. Dois dos guardas do pai estavam a trocar gracejos acerca da rameira do Duende, dizendo como seria bom
fodê-la, e como ela devia ansiar por uma picha como deve ser em vez da coisinha atrofiada do anão.
  — O mais certo é ser torta — disse Lum. Isso levou-os a uma discussão sobre o modo como Tyrion morreria na manhã seguinte. — Ele vai chorar como uma mulher e suplicar misericórdia, vais ver — insistia
Lum. Lester achava que enfrentaria o machado com a coragem de um leão, sendo como era um Lannister, e estava disposto a apostar nisso as botas novas. — Ah, cago nas tuas botas — disse Lum. — Sabes que
nunca hão-de servir-me aqui nestes pés. Olha, se eu ganhar, podes limpar-me a merda da cota de malha durante uma quinzena.
  Ao longo de um a dois metros, Tyrion conseguiu ouvir cada palavra do regateio entre os dois, mas quando prosseguiu, as vozes desvaneceram-se rapidamente. Pouco admira que Varys não tivesse querido que
eu subisse a maldita escada, pensou Tyrion, sorrindo no escuro. Passarinhos, pois.
  Chegou à terceira porta e tacteou em volta durante bastante tempo até que os dedos lhe roçaram num pequeno gancho de ferro instalado entre duas pedras. Quando o puxou para baixo, ouviu-se um ruído surdo
e fraco, que no silêncio pareceu o estrondo de uma avalanche, e um quadrado de ténua luz alaranjada abriu-se trinta centímetros à sua esquerda.
  A lareira! Quase se riu. A lareira estava cheia de cinza quente e tinha um madeiro negro com um quente coração alaranjado a arder por dentro. Atravessou-a cautelosamente, dando passos rápidos para não
queimar as botas, esmagando suavemente as cinzas quentes debaixo dos calcanhares. Quando deu por si naquilo que fora em tempos o seu quarto, ficou imóvel por um longo momento, bebendo o silêncio. Teria
o pai ouvido? Estenderia a mão para a espada e daria o alarme?
  — Senhor? — chamou uma voz de mulher.
  Isto podia ter-me magoado em tempos, quando ainda sentia dor. O primeiro passo foi o mais duro. Quando chegou à cama, Tyrion afastou as cortinas e ali estava ela, virando-se para ele com um sorriso
sonolento nos lábios. Morreu quando o viu. A rapariga puxou os cobertores até ao queixo, como se isso a protegesse.
  — Estavas à espera de alguém mais alto, querida?
  Grandes lágrimas molhadas encheram-lhe os olhos.
  — Eu não queria dizer aquelas coisas que disse, a rainha obrigou-me. Por favor. O vosso pai assusta-me tanto. — Sentou-se, deixando o cobertor deslizar até ao regaço. Por baixo encontrava-se nua, à
excepção da corrente que trazia à garganta. Uma corrente de mãos de ouro ligadas, cada uma a segurar na seguinte.
  — Minha senhora Shae — disse Tyrion em voz baixa. — Todo o tempo que fiquei na cela negra à espera de morrer, não parava de me lembrar da vossa beleza. Vestida de seda ou tecido grosseiro, ou de coisa
nenhuma…
  — O senhor deve estar de volta daqui a nada. Devíeis ir, ou… viestes buscar-me?
  — Alguma vez gostaste? — Rodeou-lhe o rosto com as mãos, lembrando-se de todas as vezes que o fizera antes. De todas as vezes que fizera deslizar as mãos em torno da cintura dela, que lhe apertara os
pequenos e firmes seios, lhe afagara o curto cabelo escuro, lhe tocara os lábios, as bochechas, as orelhas. De todas as vezes que a abrira com um dedo para sondar a sua doçura secreta e a fazer gemer.
— Alguma vez gostaste do meu toque?
  — Mais do que tudo — disse ela —, meu gigante de Lannister.
  Isso foi a pior coisa que podias ter dito, querida.
  Tyrion enfiou uma mão por baixo da corrente do pai, e torceu. Os elos apertaram-se, enterrando-se no pescoço dela.
  — Porque mãos de ouro são sempre frias, mas há calor numas mãos de mulher — disse. Deu às mãos frias outra torção enquanto as quentes lhe batiam, limpando-lhe as lágrimas.
  Depois, encontrou o punhal do Lorde Tywin na mesa-de-cabeceira e enfiou-o no cinto. Uma maça com cabeça de leão, uma alabarda e uma besta tinham sido montadas nas paredes. A alabarda seria uma arma
incómoda de usar dentro de um castelo, e a maça estava alta de mais para que ele lhe chegasse, mas uma grande arca de madeira e ferro tinha sido encostada à parede logo por baixo da besta. Trepou para
cima da arca, despendurou a besta e uma aljava de couro repleta de dardos, enfiou um pé no estribo e puxou-o para baixo até que a corda do arco engatilhou. Então enfiou um dardo na ranhura.
  Jaime pregara-lhe mais do que um sermão acerca das desvantagens das bestas. Se Lum e Lester surgissem de onde quer que estivessem a conversar, nunca teria tempo de recarregar, mas pelo menos levaria
um para o inferno consigo. O Lum, se tivesse hipótese de escolher. Vais ter de limpar tu a cota de malha, Lum. Perdeste.
  Bamboleando-se até à porta, escutou por um momento, após o que a abriu lentamente. Uma lâmpada ardia num nicho de pedra, deitando uma pálida luz amarela sobre o corredor. Só a chama se movia. Tyrion
deslizou para fora do quarto, mantendo a besta em baixo, encostada à perna.
  Foi encontrar o pai onde sabia que encontraria, sentado nas sombras do poço das latrinas, com o roupão enrolado em volta das coxas. Ao ouvir o som de passos, o Lorde Tywin ergueu os olhos.
  Tyrion concedeu-lhe uma meia vénia trocista.
  — Senhor.
  — Tyrion. — Se estava assustado, Tywin Lannister não mostrou qualquer sinal. — Quem te libertou da tua cela?
  — Adoraria dizer-vos, mas prestei um juramento sagrado.
  — O eunuco — decidiu o pai. — Isto custar-lhe-á a cabeça. Isso é a minha besta? Põe-na para baixo.
  — Punir-me-eis se eu recusar, pai?
  — Esta fuga é uma loucura. Não vais ser morto, se é isso que temes. Ainda é minha intenção enviar-te para a Muralha, mas não o podia fazer sem o consentimento do Lorde Tyrell. Baixa a besta, e vamos
até aos meus aposentos conversar.
  — Podemos perfeitamente conversar aqui. Eu talvez não queira ir para a Muralha, pai. Faz um frio dos diabos lá em cima, e creio que já aguentei frio suficiente vindo de vós. Por isso, dizei-me uma coisa,
e eu vou-me embora. Uma simples pergunta, deveis-me isso.
  — Não te devo nada.
  — Destes-me menos do que isso, toda a minha vida, mas isto dar-me-eis. O que fizestes com Tysha?
  — Tysha?
  Ele nem sequer se lembra do seu nome.
  — A rapariga com quem casei.
  — Oh, sim. A tua primeira rameira.
  Tyrion apontou para o peito do pai.
  — Da próxima vez que disserdes essa palavra, mato-vos.
  — Não tens coragem suficiente.
  — Vamos descobrir? É uma palavra curta, e parece vir tão facilmente aos vossos lábios. — Tyrion fez um gesto impaciente com a besta. — Tysha. Que fizestes com ela, depois da minha liçãozinha?
  — Não me lembro.
  — Tentai com mais força. Mandaste-la matar?
  O pai franziu os lábios.
  — Não havia motivo para isso, ela já tinha aprendido qual era o seu lugar… e foi bem paga pelo trabalho do dia, se bem me lembro. Suponho que o intendente a tenha mandado embora. Nunca pensei em perguntar.
  — Mandado embora para onde?
  — Para onde quer que as rameiras vão.
  O dedo de Tyrion apertou-se. A besta soltou um uang precisamente no momento em que o Lorde Tywin começava a levantar-se. O dardo atingiu-o acima do púbis e ele voltou a sentar-se com um gemido. O dardo
penetrara profundamente, mesmo até às penas. Sangue jorrou em redor da haste, pingando sobre os pêlos púbicos e coxas nuas do Lorde Tywin.
  — Atingiste-me — disse ele, incrédulo, com os olhos vidrados de choque.
  — Sempre fostes rápido a aperceber-vos das situações, senhor — disse Tyrion. — Deve ser por isso que sois Mão do Rei.
  — Vós… não sois… não sois meu filho.
  — É precisamente aí que vos enganais, pai. Ora, eu creio que sou vós em letra pequena. E agora fazei-me a bondade de morrer depressa. Tenho um navio a apanhar.
  Por uma vez, o pai fez o que Tyrion lhe pediu. A prova foi o súbito fedor, quando as tripas se lhe soltaram no momento da morte. Bem, estava no sítio certo, pensou Tyrion. Mas o fedor que encheu a latrina
forneceu ampla evidência de que o frequentemente repetido gracejo acerca do seu pai era apenas mais uma mentira.
  No fim de contas, o Lorde Tywin Lannister não cagava ouro.
 
 SAMWELL
  O rei estava zangado. Sam viu-o de imediato.
  Enquanto os irmãos negros entravam, um a um, e ajoelhavam na sua frente, Stannis afastou o pequeno-almoço de pão duro, carne de vaca salgada e ovos cozidos, e olhou-os friamente. A seu lado, a mulher
vermelha, Melisandre, parecia achar a cena divertida.
  Não tenho lugar aqui, pensou Sam com ansiedade, quando os olhos vermelhos dela caíram sobre si. Alguém tinha de ajudar o Meistre Aemon a subir os degraus. Não olhes para mim, eu sou só o intendente
do Meistre. Os outros eram candidatos ao posto do Velho Urso, todos menos Bowen Marsh, que se retirara da eleição mas continuava a ser castelão e Senhor Intendente. Sam não compreendia porque Melisandre
havia de parecer tão interessada em si.
  O Rei Stannis manteve os irmãos negros de joelhos durante um tempo extraordinariamente longo.
  — Erguei-vos — disse por fim. Sam ofereceu o ombro ao Meistre Aemon para o ajudar a voltar a pôr-se em pé.
  O som do Lorde Janos Slynt a limpar a garganta quebrou o tenso silêncio.
  — Vossa Graça, permiti-me que exprima o nosso agrado por sermos aqui convocados. Quando vi os vossos estandartes da Muralha, soube que o reino estava salvo. “Aí vem um homem que nunca esquece o seu
dever”, disse eu ao bom Sor Alliser. “Um homem forte, e um verdadeiro rei.” Posso felicitar-vos pela vossa vitória sobre os selvagens? Os cantores farão grandes coisas dela, eu sei…
  — Os cantores podem fazer o que entenderem — interrompeu Stannis. — Poupai-me à vossa adulação, Janos, que não vos servirá de nada. — Pôs-se em pé e mostrou a todos o cenho carregado. — A Senhora Melisandre
disse-me que ainda não escolhestes um Senhor Comandante. Estou descontente. Quanto tempo mais tem esta loucura de durar?
  — Senhor — disse Bowen Marsh em tom defensivo —, ninguém conquistou ainda dois terços dos votos. Só se passaram dez dias.
  — Nove dias a mais. Tenho cativos cujo destino há que decidir, um reino que há que pôr em ordem, uma guerra a travar. Têm de ser feitas escolhas, decisões que envolverão a Muralha e a Patrulha da Noite.
Pelo direito, o vosso Senhor Comandante deveria ter algo a dizer nessas decisões.
  — Deveria, sim — disse Janos Slynt. — Mas há que dizê-lo. Nós, os irmãos, somos simples soldados. Soldados, sim! E Vossa Graça saberá que os soldados se sentem mais confortáveis obedecendo a ordens.
Eles beneficiariam da vossa real orientação, parece-me. Para bem do reino. Para os ajudar a escolher sabiamente.
  A sugestão indignou alguns dos outros.
  — Também quereis que o rei nos limpe os cus? — disse irritadamente Cotter Pyke.
  — A escolha de um Senhor Comandante cabe aos Irmãos Ajuramentados, e apenas a eles — insistiu Sor Denys Mallister.
  — Se escolherem sabiamente, não me escolherão a mim — gemeu o Edd Doloroso. O Meistre Aemon, calmo como sempre, disse:
  — Sua Graça, a Patrulha da Noite escolhe o seu próprio líder desde que Brandon, o Construtor, ergueu a Muralha. Até Jeor Mormont, tivemos novecentos e noventa e sete Senhores Comandantes em sucessão
ininterrupta, todos eles escolhidos pelos homens que iriam liderar, uma tradição velha de muitos milhares de anos.
  Stannis fez ranger os dentes.
  — Não é meu desejo imiscuir-me nos vossos direitos e tradições. E quanto a real orientação, Janos, se a vossa ideia é que eu devia dizer aos vossos irmãos que vos devem escolher a vós, tende a coragem
de o afirmar.
  Aquilo surpreendeu o Lorde Janos. Sorriu com incerteza e começou a suar, mas Bowen Marsh, a seu lado, disse:
  — Quem será mais adequado para comandar os homens de mantos negros do que um homem que em tempos comandou os de mantos dourados, senhor?
  — Qualquer um de vós, julgo eu. Até o cozinheiro. — O olhar que o rei deitou a Slynt era frio. — Janos dificilmente terá sido o primeiro homem de manto dourado a aceitar um suborno, admito, mas pode
ter sido o primeiro comandante a engordar a bolsa através da venda de posições e promoções. Nos últimos tempos, deve ter tido metade dos oficiais na Patrulha da Cidade a pagar-lhe parte dos seus salários.
Não é verdade, Janos?
  O pescoço de Slynt estava a tornar-se púrpura.
  — Mentiras, tudo mentiras! Um homem forte faz inimigos, a Vossa Graça sabe disso, eles murmuram mentiras atrás das vossas costas. Nunca foi nada provado, nem um homem testemunhou…
  — Dois homens que estavam preparados para testemunhar morreram subitamente durante as suas rondas. — Stannis estreitou os olhos. — Não brinqueis comigo, senhor. Eu vi as provas que Jon Arryn apresentou
ao pequeno conselho. Se o rei tivesse sido eu, vós teríeis perdido mais do que o vosso cargo, garanto-vos, mas Robert encolheu os ombros aos vossos pequenos lapsos. “Todos eles roubam”, lembro-me de o
ouvir dizer. “É preferível um ladrão que conhecemos do que um que desconhecemos, o homem seguinte pode ser pior.” Palavras do Lorde Petyr na boca do meu irmão, aposto. O Mindinho tinha faro para o ouro,
e estou certo de que arranjou as coisas por forma a que a coroa lucrasse tanto com a vossa corrupção como vós.
  O maxilar do Lorde Slynt tremia, mas antes de ele ter tempo de preparar mais protestos, o Meistre Aemon disse:
  — Vossa Graça, segundo a lei, os crimes e transgressões anteriores são limpos quando um homem profere as suas palavras e se torna um Irmão Ajuramentado da Patrulha da Noite.
  — Estou consciente disso. Se acontecer que aqui o Lorde Janos é o melhor que a Patrulha da Noite tem a oferecer, farei ranger os dentes e engolirei esse facto. Nada me importa qual dos vossos homens
é escolhido, desde que façais uma escolha. Temos uma guerra a travar.
  — Vossa Graça — disse Sor Denys Mallister, num tom de cuidadosa cortesia. — Se estais a falar dos selvagens…
  — Não estou. E vós sabeis disso, sor.
  — E vós deveis saber que, embora nos sintamos gratos pela ajuda que nos destes contra Mance Rayder, não vos podemos fornecer auxílio na vossa disputa pelo trono. A Patrulha da Noite não participa nas
guerras dos Sete Reinos. Ao longo de oito mil anos…
  — Eu conheço a vossa história, Sor Denys — disse bruscamente o rei. — Dou-vos a minha palavra, não vos pedirei para erguer as espadas contra nenhum dos rebeldes e usurpadores que me atormentam. Mas
espero que continueis a defender a Muralha como sempre fizestes.
  — Defenderemos a Muralha até ao último homem — disse Cotter Pyke.
  — Que provavelmente serei eu — disse o Edd Doloroso em tom resignado.
  Stannis cruzou os braços.
  — Também precisarei de mais algumas coisas de vós. Coisas que podereis não dar com tanta prontidão. Quero os vossos castelos. E quero a Dádiva.
  Aquelas palavras sem rodeios rebentaram entre os irmãos negros como um frasco de fogovivo atirado para um braseiro. Marsh, Mallister e Pyke, todos tentaram falar ao mesmo tempo. O Rei Stannis deixou-os
falar. Quando terminaram, disse:
  — Eu tenho três vezes mais homens do que vós. Posso ocupar as terras, se quiser, mas preferiria fazer isto legalmente, com o vosso consentimento.
  — A Dádiva foi perpetuamente oferecida à Patrulha da Noite, Vossa Graça — insistiu Bowen Marsh.
  — O que significa que não pode ser legalmente capturada, adquirida ou tomada de vós. Mas o que pode ser oferecido uma vez pode voltar a ser oferecido.
  — O que fareis com a Dádiva? — quis saber Cotter Pyke.
  — Dar-lhe-ei melhor uso do que vós. Quanto aos castelos, Atalaialeste, Castelo Negro e a Torre Sombria continuarão a ser vossos. Guarnecei-os como sempre fizestes, mas tenho de ficar com os outros para
as minhas guarnições, se queremos defender a Muralha.
  — Vós não tendes homens suficientes — objectou Bowen Marsh.
  — Alguns dos castelos abandonados pouco mais são do que ruínas — disse Othell Yarwyck, o Primeiro Construtor.
  — Ruínas podem ser reconstruídas.
  — Reconstruídas? — disse Yarwyck. — Mas quem fará o trabalho?
  — Isso é problema meu. Necessitarei que me forneçais uma lista, detalhando o estado actual de cada castelo e o que pode ser necessário para o restaurar. Pretendo tê-los todos guarnecidos de novo dentro
de um ano, com fogueiras nocturnas a arder perante os seus portões.
  — Fogueiras nocturnas? — Bowen Marsh deitou a Melisandre um olhar hesitante. — Agora devemos acender fogueiras nocturnas?
  — Sim. — A mulher ergueu-se num turbilhão de seda escarlate, com o longo cabelo acobreado a cair em volta dos seus ombros. — As espadas, sozinhas, não podem suster esta escuridão. Só a luz do Senhor
consegue fazê-lo. Não vos iludais, bons sores e valentes irmãos, a guerra que viemos travar não é uma querela mesquinha a propósito de terras e honrarias. A nossa é uma guerra pela própria vida, e se
falharmos, o mundo morre connosco.
  Sam viu que os oficiais não sabiam como entender aquilo. Bowen Marsh e Othell Yarwyck trocaram um olhar de dúvida, Janos Slynt estava furioso, e o Hobb Três-Dedos tinha a expressão de quem preferia
estar a cortar cenouras naquele momento. Mas todos pareceram surpreendidos ao ouvir o Meistre Aemon murmurar:
  — A guerra de que falais é a guerra pela alvorada, senhora. Mas onde está o príncipe que foi profetizado?
  — Ele está na vossa frente — declarou Melisandre — embora não tenhais olhos para ver. Stannis Baratheon é Azor Ahai regressado, o guerreiro do fogo. Nele, as profecias cumprem-se. O cometa vermelho
ardeu no céu para anunciar a sua vinda, e ele brande a Luminífera, a espada vermelha dos heróis.
  Sam viu que as palavras dela pareceram deixar o rei desesperadamente desconfortável. Stannis fez ranger os dentes, e disse:
  — Chamastes e eu vim, senhores. Agora tendes de sobreviver comigo, ou morrer comigo. É melhor que vos habitueis a isso. — Fez um gesto brusco. — É tudo. Meistre, ficai por um momento. E vós também,
Tarly. Vós outros podeis ir.
  Eu?, pensou Sam, aflito, enquanto os irmãos faziam vénias e se dirigiam para a porta. Que quer ele comigo?
  — Sois aquele que matou a criatura na neve — disse o Rei Stannis, depois de só restarem os quatro na sala.
  — Sam, o Matador. — Melisandre sorriu.
  Sam sentiu a cara a ficar vermelha.
  — Não, senhora. Vossa Graça. Quer dizer, sou, sim. Sou Samwell Tarly, sim.
  — O vosso pai é um soldado capaz — disse o Rei Stannis. — Derrotou uma vez o meu irmão, em Vaufreixo. Mance Tyrell reclamou alegremente as honras dessa vitória, mas o Lorde Randyll decidira o assunto
antes de Tyrell sequer encontrar o campo de batalha. Ele matou o Lorde Cafferen com aquela sua grande espada valiriana e mandou a cabeça dele a Aerys. — O rei esfregou o queixo com um dedo. — Não sois
o tipo de filho que eu esperaria que um homem assim tivesse.
  — Eu… eu não sou o tipo de filho que ele desejava, senhor.
  — Se não tivésseis vestido o negro, daríeis um refém útil — devaneou Stannis.
  — Ele vestiu o negro, senhor — fez notar o Meistre Aemon.
  — Estou bem consciente desse facto — disse o rei. — Estou consciente de mais do que julgais, Aemon Targaryen.
  O velho inclinou a cabeça.
  — Sou apenas Aemon, senhor. Abandonamos os nomes das nossas Casas quando forjamos as correntes de meistre.
  O rei respondeu àquilo com um aceno seco, como quem diz que sabia e não se importava.
  — Matastes aquela criatura com um punhal de obsidiana, segundo me dizem — disse ele a Sam.
  — S-sim, Vossa Graça. Foi Jon Snow quem mo deu.
  — Vidro de dragão. — O riso da mulher vermelha era música. — Fogo congelado, na língua da antiga Valíria. Pouco admira que seja anátema para aqueles frios filhos do Outro.
  — Em Pedra do Dragão, onde tinha a minha sede, vê-se muita desta obsidiana nos velhos túneis por baixo da montanha — disse o rei a Sam. — Grandes bocados, pedregulhos, saliências. A maior parte é negra,
se bem me lembro, mas havia também alguma verde, alguma vermelha, até púrpura. Mandei dizer a Sor Rolland, o meu castelão, para começar a miná-la. Não controlarei Pedra do Dragão durante muito mais tempo,
temo bem, mas o Senhor da Luz talvez nos permita obter suficiente fogo congelado para nos armarmos contra essas criaturas, antes de o castelo cair.
  Sam pigarreou.
  — S-senhor. O punhal… o vidro de dragão limitou-se a estilhaçar-se quando tentei apunhalar uma criatura.
  Melisandre sorriu.
  — É a necromancia que anima essas criaturas, mas elas não deixam de ser apenas carne morta. O aço e o fogo servirão para elas. Aqueles a que chamais os Outros são algo mais.
  — Demónios feitos de neve, gelo e frio — disse Stannis Baratheon. — O antigo inimigo. O único inimigo que importa. — Voltou a fitar Sam. — Disseram-me que vós e aquela rapariga selvagem passastes por
baixo da Muralha, através de um portão mágico qualquer.
  — O P-Portão Negro — gaguejou Sam. — Por baixo de Fortenoite.
  — Fortenoite é o maior e mais antigo dos castelos na Muralha — disse o rei. — É aí que pretendo instalar-me, enquanto travo esta guerra. Vós ireis mostrar-me esse portão.
  — Eu — disse Sam — eu m-mostro, se… — Se ainda lá estiver. Se se abrir para um homem que não vista de negro. Se…
  — Mostrareis — exclamou Stannis. — Eu dir-vos-ei quando.
  O Meistre Aemon sorriu.
  — Vossa Graça — disse —, antes de irmos, pergunto a mim próprio se nos poderíeis fazer a grande honra de mostrar essa maravilhosa lâmina de que tanto ouvimos falar.
  — Quereis ver a Luminífera, vós? Um cego?
  — Sam será os meus olhos.
  O rei franziu o sobrolho.
  — Toda a gente já viu a coisa, porque não um cego? — O seu cinto da espada e a bainha estavam pendurados de um cabide perto da lareira. Despendurou o cinto e desembainhou a espada. Aço roçou em madeira
e couro, e uma radiância encheu o aposento privado; cintilando, ondulando, uma dança de luz dourada, alaranjada e vermelha, todas as cores brilhantes do fogo.
  — Conta-me, Samwell. — O Meistre Aemon tocou-lhe o braço.
  — Ela brilha — disse Sam, em voz abafada. — Como se estivesse em fogo. Não há chamas, mas o aço é amarelo, vermelho e cor-de-laranja, a relampejar e tremeluzir como o Sol na água, só que mais bonito.
Gostaria que a pudésseis ver, Meistre.
  — Agora estou a vê-la, Sam. Uma espada cheia da luz do Sol. Uma beleza de se admirar. — O velho fez uma hirta vénia. — Vossa Graça. Minha senhora. Foi muita amabilidade vossa.
  Quando o Rei Stannis embainhou a espada cintilante, a sala pareceu ficar muito escura, apesar da luz do Sol que entrava pela janela.
  — Muito bem, já a vistes. Podeis regressar agora aos vossos deveres. E lembrai-vos do que eu disse. Os vossos irmãos escolherão um Senhor Comandante esta noite, caso contrário eu fá-los-ei desejar que
o tivessem feito.
  O Meistre Aemon manteve-se perdido em pensamentos enquanto Sam o ajudava a descer a estreita escada em espiral. Mas na altura em que atravessavam o pátio, disse:
  — Não senti nenhum calor. Tu sentiste, Sam?
  — Calor? Vindo da espada? — Tentou lembrar-se. — O ar em volta dela estremecia, como faz por cima de um braseiro quente.
  — Mas não sentiste nenhum calor, pois não? E a bainha em que a espada estava guardada, é de madeira e couro, não é? Ouvi o som quando Sua Graça puxou pela espada. O couro estava chamuscado, Sam? A madeira
parecia queimada ou enegrecida?
  — Não — admitiu Sam. — Que eu visse, não.
  O Meistre Aemon anuiu. De volta aos seus aposentos pediu a Sam para acender a lareira e para o ajudar a sentar-se na cadeira junto a ela.
  — É difícil ser tão velho — suspirou enquanto se instalava na almofada. — E ainda mais difícil ser tão cego. Tenho saudades do Sol. E dos livros. Acima de tudo tenho saudades dos livros. — Aemon fez
um gesto com uma mão. — Não precisarei mais de ti até à votação.
  — A votação… Meistre, não há algo que possais fazer? O que o rei disse do Lorde Janos…
  — Eu lembro-me — disse o Meistre Aemon — mas Sam, eu sou um meistre, acorrentado e ajuramentado. O meu dever é aconselhar o Senhor Comandante, seja ele quem for. Não seria adequado que eu fosse visto
a favorecer um candidato em detrimento de outro.
  — Eu não sou um meistre — disse Sam. — Poderia eu fazer alguma coisa?
  Aemon virou os seus alvos olhos cegos para a cara de Sam, e sorriu suavemente.
  — Ora, não sei, Samwell. Poderias?
  Poderia, pensou Sam. Tenho de o fazer. E tinha de o fazer imediatamente. Se hesitasse, perderia de certeza a coragem. Eu sou um homem da Patrulha da Noite, lembrou a si próprio enquanto se apressava
a cruzar o pátio. Pois sou. Posso fazer isto. Tinha havido uma altura em que estremeceria e guincharia se o Lorde Mormont se limitasse a olhá-lo, mas esse era o velho Sam, de antes do Punho de Ferro e
da Fortaleza de Craster, de antes das criaturas e do Mãos-Frias e do Outro montado no seu cavalo morto. Ele agora era mais corajoso. Gilly tornou-me mais corajoso, dissera a Jon. Era verdade. Tinha de
ser verdade.
  Cotter Pyke era o mais assustador dos dois comandantes, portanto Sam foi primeiro falar com ele, enquanto ainda tinha a coragem quente. Foi encontrá-lo no antigo Salão dos Escudos, a jogar aos dados
com três dos seus homens de Atalaialeste e um sargento ruivo que viera de Pedra do Dragão com Stannis.
  Mas quando Sam pediu licença para falar com ele, Pyke ladrou uma ordem, e os outros pegaram no dado e nas moedas e deixaram-nos sós.
  Ninguém chamaria algum dia bem-parecido a Cotter Pyke, embora o corpo que se encontrava sob a sua brigantina tachonada e bragas de tecido grosseiro fosse esguio, duro e forte. Os olhos eram pequenos
e juntos, tinha o nariz partido, e o cabelo recuado nas têmporas formava um bico tão aguçado como a ponta de uma lança. As bexigas tinham-lhe devastado violentamente a cara, e a barba que deixara crescer
para esconder as cicatrizes era fina e irregular.
  — Sam, o Matador! — disse ele, em jeito de saudação. — Tens a certeza de que apunhalaste um Outro, e não um cavaleiro de neve de algum miúdo?
  Isto não está a começar bem.
  — Foi o vidro de dragão que o matou, senhor — explicou debilmente Sam.
  — Pois, sem dúvida. Bem, desembucha, Matador. Foi o Meistre que te mandou vir ter comigo?
  — O Meistre? — Sam engoliu em seco. — Eu… eu estive agora com ele, senhor. — Aquilo não era realmente uma mentira, mas se Pyke quisesse ler a informação da maneira errada, podia deixá-lo mais inclinado
a escutar. Sam respirou fundo e lançou-se na sua súplica.
  Pyke interrompeu-o antes de dizer vinte palavras.
  — Queres que me ajoelhe e beije a bainha do lindo manto do Mallister, é isso? Devia ter imaginado. Vós, os fidalgos, formais rebanhos como se fôsseis ovelhas. Bem, diz a Aemon que desperdiçou a tua
saliva e o meu tempo. A retirar-se alguém, devia ser o Mallister. O homem é velho de mais para o raio do cargo, e se calhar devias dizer-lhe isso. Nós escolhemo-lo, e se calhar estamos aqui de volta dentro
de um ano, a escolher outro qualquer.
  — Ele é velho — concordou Sam — mas tem muita ex-experiência.
  — De se sentar na sua torre e remexer em mapas, talvez. O que é que ele planeia fazer? Escrever cartas às criaturas? Ele é um cavaleiro, muito bem, mas não é um lutador, e eu estou-me perfeitamente
a cagar para quem ele derrubou do cavalo num torneio de idiotas qualquer há cinquenta anos. O Meia-Mão travou todas as batalhas dele, até um velho cego devia ser capaz de ver isso. E, mais do que nunca,
nós precisamos de um lutador, com este maldito rei em cima de nós. Hoje é ruínas e campos vazios, muito bem, mas o que irá Sua Graça querer amanhã? Achas que o Mallister tem estômago para enfrentar Stannis
Baratheon e aquela cadela vermelha? — soltou uma gargalhada. — Eu não acho.
  — Então não o ireis apoiar? — disse Sam, desalentado.
  — És o Sam, o Matador, ou o Dick Surdo? Não, não o irei apoiar. — Pyke sacudiu-lhe um dedo em frente da cara. — Vê se entendes isto, rapaz. Eu não quero a porcaria do cargo, e nunca quis. Luto melhor
com um convés debaixo de mim, não com um cavalo, e Castelo Negro fica longe de mais do mar. Mas prefiro ser enrabado por uma espada em brasa a entregar a Patrulha da Noite àquela águia peralta da Torre
Sombria. E tu podes correr de volta para junto do velho e contar-lhe o que eu disse, se ele perguntar. — Pôs-se em pé. — Desaparece da minha vista.
  Sam precisou de toda a coragem que lhe restava para dizer:
  — E… e se houvesse outra pessoa? Poderíeis a-apoiar outra pessoa?
  — Quem? Bowen Marsh? O homem conta colheres. Othell é um seguidor, faz o que lhe dizem, e fá-lo bem, mas não passa disso. Slynt… bem, os seus homens gostam dele, admito, e quase valia a pena enfiá-lo
no real papo e ver se Stannis se engasgava, mas não. Há demasiado de Porto Real nesse tipo. Um sapo ganha asas e julga que é a merda dum dragão. — Pyke soltou uma gargalhada. — Ficou quem? Hobb? Podíamos
escolhê-lo, suponho, só que depois quem é que ia cozer o teu carneiro, Matador? Tu pareces ser um homem que gosta do seu carneiro.
  Nada mais havia a dizer. Derrotado, Sam só pôde gaguejar os seus agradecimentos e retirar-se. Terei mais sucesso com Sor Denys, tentou dizer a si próprio enquanto atravessava o castelo. Sor Denys era
um cavaleiro, bem-nascido e bem-falante, e tratara Sam com toda a cortesia quando o encontrara com Gilly na estrada. Sor Denys escutar-me-á, tem de escutar.
  O comandante da Torre Sombria nascera à sombra da Torre Ressonante de Guardamar, e cada centímetro do seu corpo se parecia com um Mallister. Zibelina forrava-lhe o colarinho e realçava as mangas do
seu gibão de veludo negro. Uma águia prateada prendia as garras nas dobras do seu manto. A barba era branca como neve, o cabelo quase desaparecera, e o rosto exibia profundas rugas, era certo. Mas ele
ainda possuía graça nos movimentos e dentes na boca, e os anos não lhe tinham enevoado nem os olhos azuis-acinzentados nem a cortesia.
  — Senhor de Tarly — disse, quando o seu intendente lhe levou Sam, na Lança, onde os homens da Torre Sombria estavam alojados. — Agrada-me ver que recuperastes da vossa provação. Posso oferecer-vos uma
taça de vinho? A senhora vossa mãe é uma Florent, se bem me lembro. Um dia tenho de vos contar como derrubei ambos os vossos avôs no mesmo torneio. Mas não hoje, sei que temos assuntos mais prementes
a tratar. Vindes da parte do Meistre Aemon, com certeza. Ele tem conselhos a dar-me?
  Sam bebeu um gole de vinho e escolheu as palavras com cuidado.
  — Um meistre acorrentado e ajuramentado… não seria adequado que fosse visto a influenciar a escolha do Senhor Comandante…
  O velho cavaleiro sorriu.
  — Motivo pelo qual não veio pessoalmente falar comigo. Sim, compreendo bastante bem, Samwell. Aemon e eu somos ambos velhos, e sábios em tais assuntos. Dizei o que viestes dizer.
  O vinho era doce, e Sor Denys escutou a súplica de Sam com grave cortesia, ao contrário de Cotter Pyke. Mas quando terminou, o velho cavaleiro abanou a cabeça.
  — Concordo que seria um dia escuro na nossa história se um rei nomeasse o nosso Senhor Comandante. Este rei, especialmente. Não é provável que mantenha a coroa por muito tempo. Mas realmente, Samwell,
devia ser Pyke a retirar-se. Tenho mais apoio do que ele, e sou mais adequado ao cargo.
  — É verdade — concordou Sam — mas Cotter Pyke poderia servir. Diz-se que provou frequentemente o seu valor em batalha. — Não pretendia ofender Sor Denys elogiando o seu rival, mas de que outra forma
poderia convencê-lo a retirar-se?
  — Muitos dos nossos irmãos demonstraram o seu valor em batalha. Não basta. Há assuntos que não podem ser decididos com um machado de guerra. O Meistre Aemon compreenderá esse facto, embora Cotter Pyke
não compreenda. O Senhor Comandante da Patrulha da Noite é um senhor, acima de tudo. Tem de ser capaz de lidar com outros senhores… e também com reis. Tem de ser um homem merecedor de respeito. — Sor
Denys inclinou-se para a frente. — Nós os dois somos filhos de grandes senhores. Conhecemos a importância do nascimento, do sangue e desse treino inicial que nunca pode ser substituído. Eu fui escudeiro
aos doze anos, cavaleiro aos dezoito, campeão aos vinte e dois. Sou comandante na Torre Sombria há trinta e três anos. O sangue, o nascimento e o treino tornaram-me apto a lidar com reis. O Pyke… bem,
ouviste-lo esta manhã, a perguntar se Sua Graça lhe limparia o traseiro? Samwell, não é meu hábito falar mal dos meus irmãos, mas sejamos francos… os homens de ferro são uma raça de piratas e ladrões,
e Cotter Pyke já andava a violar e a assassinar ainda pouco mais era do que um rapaz. O Meistre Harmune lê e escreve as suas cartas, e tem-no feito há anos. Não, por mais relutância que sinta em desapontar
o Meistre Aemon, não poderia de forma honrosa afastar-me pelo Pyke de Atalaialeste.
  Daquela vez, Sam estava preparado.
  — E poderíeis fazê-lo por outra pessoa? Se houvesse alguém mais adequado?
  Sor Denys reflectiu por um momento.
  — Nunca desejei a honra em si mesma. Na última eleição, afastei-me, grato, quando o nome do Lorde Mormont foi sugerido, tal como tinha feito pelo Lorde Qorgyle na eleição anterior. Desde que a Patrulha
da Noite permaneça em boas mãos, estou satisfeito. Mas Bowen Marsh não está à altura da tarefa, e Othell Yarwyck também não. E este dito Senhor de Harrenhal é uma cria de carniceiro promovida pelos Lannister.
Pouco admira que seja venal e corrupto.
  — Há outro homem — proferiu Sam muito depressa. — O Senhor Comandante Mormont confiou nele. E Donal Noye e Qhorin Meia-Mão também. Embora o seu nascimento não seja tão nobre como o vosso, provém de
sangue antigo. Nasceu e foi educado num castelo, e aprendeu a manejar espada e lança com um cavaleiro e as letras com um meistre da Cidadela. O pai era um senhor, e o irmão um rei.
  Sor Denys afagou a sua longa barba branca.
  — Talvez — disse, após um longo momento. — É muito jovem, mas… talvez. Poderá servir, admito, se bem que eu fosse mais adequado. Não tenho qualquer dúvida. Eu seria a escolha mais sensata.
  Jon disse que podia haver honra numa mentira, se fosse dita pelos motivos certos. Sam disse:
  — Se não escolhermos um Senhor Comandante esta noite, o Rei Stannis tenciona nomear Cotter Pyke. Ele disse-o ao Meistre Aemon esta manhã, depois de todos vós terdes saído.
  — Estou a ver. — Sor Denys ergueu-se. — Tenho de pensar sobre isto. Obrigado, Samwell. E dai os meus agradecimentos também ao Meistre Aemon.
  Sam estava a tremer quando saiu da Lança. Que fiz eu?, pensou. Que disse eu? Se o apanhassem a mentir… fariam o quê? Enviar-me-iam para a Muralha? Extirpar-me-iam? Transformar-me-iam numa criatura?
De súbito, tudo aquilo lhe pareceu absurdo. Como podia sentir-se tão assustado com Cotter Pyke e Sor Denys Mallister, depois de ter visto um corvo comer a cara do Paul Pequeno?
  Pyke não se mostrou satisfeito com o seu regresso.
  — Tu outra vez? Despacha-te, começas a aborrecer-me.
  — Só preciso de mais um momento — prometeu Sam. — Vós dissestes que não vos retirareis por Sor Denys, mas podereis retirar-vos por outro homem.
  — Quem é desta vez, Matador? Tu?
  — Não. Um lutador. Donal Noye entregou-lhe a Muralha quando os selvagens chegaram, e era escudeiro do Velho Urso. O único problema é que é bastardo.
  Cotter Pyke soltou uma gargalhada.
  — Oh, inferno. Isso ia enfiar uma lança pelo cu do Mallister acima, não ia? Pode valer a pena só por isso. O rapaz não pode ser muito mau, pois não? — Fungou. — Mas eu era melhor. Eu sou quem precisamos,
qualquer idiota consegue ver isso.
  — Qualquer idiota — concordou Sam — até eu. Mas… bem, eu não vos devia dizer, mas… o Rei Stannis tenciona obrigar-nos a aceitar o Sor Denys, se não escolhermos um homem esta noite. Ouvi-o a dizê-lo
ao Meistre Aemon, depois de o resto de vós terdes sido mandados embora.
 
 JON
  O Emmett de Ferro era um jovem patrulheiro alto e esgalgado cuja resistência, força e habilidade com a espada eram o orgulho de Atalaialeste. Jon saía sempre das suas sessões hirto e dorido, e no dia
seguinte acordava coberto de nódoas negras, o que era precisamente o que queria. Nunca conseguiria aperfeiçoar-se defrontando gente como o Cetim, o Cavalo ou até o Grenn.
  Jon gostava de pensar que na maior parte dos dias dava tanto quanto levava, mas não naquele. Quase não dormira na noite anterior, e após passar uma hora a virar-se na cama, num desassossego, desistira
até de tentar, vestira-se e percorrera o topo da Muralha até o Sol nascer, lutando com a oferta de Stannis Baratheon. A falta de sono estava agora a fazer-se sentir, e Emmett malhava nele sem misericórdia
pelo pátio fora, mantendo-o sobre os calcanhares com um longo golpe em arco após outro, e batendo-lhe de tempos a tempos com o escudo, para variar. O braço de Jon ficara dormente com o choque dos impactos,
e a espada de treino sem gume parecia tornar-se mais pesada a cada momento.
  Estava quase pronto a baixar a lâmina e pedir para pararem quando Emmett fez uma finta baixa e arremeteu por cima do seu escudo com um violento golpe directo que atingiu Jon num lado da cabeça. Cambaleou,
com o elmo e a cabeça a ressoar com a força do ataque. Durante meio segundo o mundo para lá da sua viseira foi uma mancha indistinta.
  E então os anos desapareceram, e ele estava uma vez mais de volta a Winterfell, usando um casaco de couro almofadado em vez de cota de malha e placa de aço. A espada era feita de madeira, e era Robb
quem o defrontava, e não o Emmett de Ferro.
  Tinham treinado juntos todas as manhãs, desde que tiveram idade suficiente para andar; Snow e Stark, rodopiando e golpeando-se pelos pátios de Winterfell, gritando e rindo, e por vezes chorando quando
ninguém estava a ver. Quando lutavam, não eram rapazinhos, mas sim cavaleiros e poderosos heróis. “Eu sou o Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão”, gritava Jon, e Robb gritava em resposta: “Bem, eu sou
Florian, o Bobo”. Ou então Robb dizia: “Eu sou o Jovem Dragão”, e Jon respondia: “Eu sou Sor Ryam Redwyne.”
  Naquela manhã fora ele a gritar primeiro.
  — Eu sou o Senhor de Winterfell — gritara, como gritara cem vezes antes. Só que daquela vez, daquela vez, Robb respondera:
  — Tu não podes ser Senhor de Winterfell, és um bastardo. A senhora minha mãe diz que nunca poderás ser Senhor de Winterfell.
  Julgava que tinha esquecido isto. Jon sentia sangue na boca, do golpe que sofrera.
  No fim, Halder e o Cavalo tiveram de o afastar do Emmett de Ferro, cada um dos homens a segurar-lhe um braço. O patrulheiro estava sentado no chão, atordoado, com o escudo meio feito em lascas, a viseira
do elmo torta, e a espada a seis metros de distância.
  — Jon, basta — estava Halder a gritar —, ele caiu, tu desarmaste-o. Basta!
  Não. Não basta. Nunca basta. Jon deixou cair a espada.
  — Desculpa — murmurou. — Emmett, estás ferido?
  O Emmett de Ferro tirou o seu elmo amolgado.
  — Houve alguma parte de rendo-me que não conseguiste entender, Lorde Snow? — Mas aquilo foi dito de forma amigável. Emmett era um homem amigável, e adorava a canção das espadas. — Que o Guerreiro me
proteja — gemeu — agora sei o que Qhorin Meia-Mão deve ter sentido.
  Aquilo foi demasiado. Jon libertou-se dos amigos e retirou para o armeiro, sozinho. Ainda tinha os ouvidos a ressoar do golpe que Emmett lhe dera. Sentou-se no banco e afundou a cabeça nas mãos. Porque
estou tão zangado?, perguntou a si próprio, mas era uma pergunta estúpida. Senhor de Winterfell. Podia ser Senhor de Winterfell. Herdeiro do meu pai.
  Mas não foi o rosto do Lorde Eddard que viu a flutuar na sua frente; foi o da Senhora Catelyn. Com os seus profundos olhos azuis e a boca dura e fria, parecia-se um pouco com Stannis. Ferro, pensou,
mas quebradiço. Ela estava a olhá-lo daquela maneira como costumava olhá-lo em Winterfell, sempre que ele se sobrepunha a Robb nas espadas, nas somas, ou em qualquer outra coisa. Quem és tu?, sempre lhe
parecera que aquele olhar dizia. Este não é o teu lugar. Porque estás aqui?
  Os amigos ainda estavam no pátio de treinos, mas Jon não se encontrava em estado de os encarar. Saiu do armeiro pelas traseiras, descendo uma íngreme escada de pedra até aos caminhos de minhoca, os
túneis que ligavam por baixo da terra as fortalezas e torres do castelo. Foi uma caminhada curta até à casa de banhos, onde deu um mergulho frio para lavar o suor do corpo e se enfiou numa quente banheira
de pedra. O calor levou alguma da dor dos músculos e fê-lo pensar nas lagoas lamacentas de Winterfell, que fumegavam e borbulhavam no bosque sagrado. Winterfell, pensou. Theon deixou-o queimado e quebrado,
mas eu podia restaurá-lo. Certamente que o pai teria querido que isso acontecesse, e Robb também. Nunca teriam desejado que o castelo fosse abandonado à ruína.
  Tu não podes ser Senhor de Winterfell, és um bastardo, ouviu de novo Robb a dizer. E os reis de pedra rosnavam-lhe com línguas de granito. Não pertences aqui. Este não é o teu lugar. Quando Jon fechou
os olhos, viu a árvore-coração, com os seus ramos claros, folhas vermelhas e rosto solene. O Lorde Eddard sempre dissera que o represeiro era o coração de Winterfell… mas para salvar o castelo Jon teria
de arrancar esse coração até às suas antigas raízes e entregá-lo ao faminto deus de fogo da mulher vermelha. Não tenho o direito, pensou. Winterfell pertence aos deuses antigos.
  O som de vozes a ecoar no tecto abobadado trouxe-o de volta a Castelo Negro.
  — Não sei — estava um homem a dizer, numa voz pesada de dúvidas. — Talvez se conhecesse melhor o homem… o Lorde Stannis não tinha muito de bom a dizer dele, isso digo-te eu.
  — Quando teve Stannis Baratheon muito de bom a dizer de alguém? — A voz pétrea de Sor Alliser era inconfundível. — Se permitirmos que Stannis escolha o nosso Senhor Comandante, transformamo-nos em seus
vassalos em tudo menos no nome. Não é provável que Tywin Lannister o esqueça, e tu sabes que será o Lorde Tywin a ganhar no fim. Já derrotou Stannis uma vez, na Água Negra.
  — O Lorde Tywin é favorável a Slynt — disse Bowen Marsh, numa voz inquieta e ansiosa. — Posso mostrar-te a carta dele, Othell. Chamou-lhe “o nosso fiel amigo e servidor”.
  Jon Snow ergueu-se de súbito, e os três homens imobilizaram-se ao ouvir o som da água a escorrer.
  — Senhores — disse, com fria cortesia.
  — Que estás tu a fazer aqui, bastardo? — perguntou Thorne.
  — A tomar banho. Mas não deixeis que eu vos estrague as maquinações. — Jon saiu de dentro de água, secou-se, vestiu-se e deixou-os a conspirar. Lá fora, descobriu que não fazia nenhuma ideia para onde
ir. Passou pelo esqueleto da Torre do Senhor Comandante, onde um dia salvara o Velho Urso de um morto; passou pelo local onde Ygritte morrera com aquele sorriso triste no rosto; passou pela Torre do Rei,
onde ele, o Cetim e o Dick Surdo Follard tinham esperado pelo Magnar e os seus Thenn; passou pelos restos empilhados e carbonizados da grande escada de madeira. O portão interior estava aberto, e Jon
penetrou no túnel, começando a atravessar a Muralha. Sentia o frio à sua volta, o peso de todo o gelo por cima da sua cabeça. Passou pelo local onde Donal Noye e Mag, o Poderoso, tinham lutado e morrido
juntos, atravessou o novo portão exterior, e saiu para a luz pálida e fria do Sol.
  Só então se permitiu parar, respirar, pensar. Othell Yarwyck não era um homem de fortes convicções, excepto naquilo que dizia respeito a madeira, pedra e argamassa. O Velho Urso soubera-o. Thorne e
Marsh irão fazê-lo mudar de opinião, Yarwyck irá apoiar o Lorde Janos, e o Lorde Janos será escolhido Senhor Comandante. E isso deixa-me o quê, além de Winterfell?
  Um vento rodopiava contra a Muralha, puxando-lhe pelo manto. Sentia o frio que vinha do gelo tal como o calor vem de uma fogueira. Jon puxou o capuz para cima e recomeçou a andar. A tarde encaminhava-se
para o fim, e o Sol estava baixo a oeste. Cem metros mais à frente ficava o acampamento onde o Rei Stannis confinara os seus cativos selvagens dentro de um anel de valas, estacas aguçadas, e altas vedações
de madeira. Para a esquerda havia três grandes fossos para fogueiras, onde os vencedores tinham queimado os corpos de todos os membros do povo livre que tinham morrido à sombra da Muralha, fossem enormes
gigantes cobertos de pêlo, fossem pequenos homens de Cornopé. O terreno de matança ainda era uma desolação de ervas chamuscadas e pez endurecido, mas o povo de Mance deixara sinais da sua passagem por
todo o lado; uma pele rasgada que podia ter feito parte de uma tenda, um malho de gigante, a roda de uma quadriga, uma lança quebrada, uma pilha de bosta de mamute. Na borda da floresta assombrada, onde
as tendas se tinham erguido, Jon encontrou um toco de carvalho e sentou-se.
  Ygritte queria que eu fosse um selvagem, Stannis quer que seja o Senhor de Winterfell. Mas eu quero o quê? O Sol gatinhou pelo céu e foi mergulhar atrás da Muralha, no local onde esta descrevia uma
curva através dos montes a ocidente. Jon ficou a observar, enquanto essa altíssima extensão de gelo adoptava os tons vermelhos e rosados do poente. Preferiria ser enforcado como vira-casacas pelo Lorde
Janos, ou abjurar os meus votos, casar com Val, e tornar-me Senhor de Winterfell? Parecia uma escolha fácil quando pensava nela nesses termos… se bem que, se Ygritte ainda fosse viva, pudesse ter sido
ainda mais fácil. Val era uma estranha para si. Não era dura para os olhos, com certeza, e fora irmã da rainha de Mance Rayder, mas mesmo assim…
  Teria de a raptar se quisesse o seu amor, mas ela poderia dar-me filhos. Eu poderia um dia segurar nos braços um filho do meu próprio sangue. Um filho era algo com que Jon Snow nunca se atrevera a sonhar,
desde que decidira viver a sua vida na Muralha. Podia chamar-lhe Robb. Val quereria ficar com o filho da irmã, mas podíamos criá-lo em Winterfell, e o filho de Gilly também. Sam nunca teria de contar
a sua mentira. E também encontraríamos lugar para Gilly, e Sam podia vir visitá-la uma vez por ano, ou assim. O filho de Mance e o de Craster cresceriam como irmãos, como eu fiz em tempos com Robb.
  Jon compreendeu então que o desejava. Desejava-o tanto como algum dia desejara alguma coisa. Sempre o desejei, pensou, sentindo-se culpado. Que os deuses me perdoem. Era uma fome que trazia dentro de
si, aguçada como uma lâmina de vidro de dragão. Uma fome… conseguia senti-la. Era de comida que necessitava, de presas, de um veado vermelho que fedesse a medo ou de um grande alce, orgulhoso e desafiador.
Desejava matar e encher a barriga de carne fresca e sangue quente e escuro. A boca começou a encher-se-lhe de saliva ao pensar nisso.
  Passou-se um longo momento até compreender o que estava a acontecer. Quando o fez, pôs-se em pé de um salto.
  — Fantasma? — Virou-se para a floresta, e ali estava ele, a saltar em silêncio do interior da obscuridade verde, com a respiração a sair quente e branca das suas mandíbulas abertas. — Fantasma! — gritou,
e o lobo gigante desatou a correr. Estava mais esguio do que fora em tempos, mas também estava maior, e o único som que fazia era o suave estalar de folhas mortas sob as patas. Quando chegou junto de
Jon, saltou, e lutaram entre a erva verde e as longas sombras, enquanto as estrelas surgiam por cima deles. — Deuses, lobo, onde estiveste? — disse Jon quando o Fantasma parou de lhe mordiscar o braço.
— Julgava que me tinhas morrido, como Robb e Ygritte e os outros todos. Não te consegui sentir desde que escalei a Muralha, nem mesmo em sonhos. — O lobo gigante não tinha resposta a dar, mas lambeu a
cara de Jon com uma língua que era como lixa húmida, e os seus olhos capturaram a última luz e brilharam como dois grandes sóis vermelhos.
  Olhos vermelhos, apercebeu-se Jon, mas não como os de Melisandre. O lobo tinha olhos de represeiro. Olhos vermelhos, boca vermelha, pêlo branco. Sangue e osso, como uma árvore-coração. Este pertence
aos deuses antigos. E só ele, entre todos os lobos gigantes, era branco. Tinham encontrado seis lobitos nas neves do fim do Verão, ele e Robb; cinco que eram cinzentos, negros e castanhos, para os cinco
Stark, e um branco, tão branco como a neve. Snow.
  Então obteve a sua resposta.
  Sob a Muralha, os homens da rainha estavam a acender a sua fogueira nocturna. Viu Melisandre emergir do túnel com o rei a seu lado, para liderar as preces que acreditava que manteriam a escuridão afastada.
  — Vem, Fantasma — disse Jon ao lobo. — Comigo. Tu tens fome, eu sei. Consegui senti-lo. — Correram juntos para o portão, dando uma volta larga em torno da fogueira nocturna, na qual altas chamas espetavam
as garras na barriga negra da noite.
  Os homens do rei encontravam-se em grande evidência nos pátios de Castelo Negro. Paravam quando Jon passava por eles, e ficavam a olhá-lo de boca aberta. Compreendeu que nenhum deles vira alguma vez
um lobo gigante, e o Fantasma era duas vezes maior do que os lobos comuns que patrulhavam as suas florestas do Sul. Enquanto se dirigia ao armeiro, Jon olhou casualmente para cima e viu Val em pé, na
sua janela de torre. Lamento, pensou, não sou o homem que te raptará daí.
  No pátio de treinos deparou com uma dúzia de homens do rei com archotes e longas lanças nas mãos. O sargento olhou para o Fantasma e franziu o sobrolho, e dois dos seus homens baixaram as lanças até
que o cavaleiro que os liderava disse:
  — Afastai-vos e deixai-os passar. — E dirigindo-se a Jon disse: — Estais atrasado para o jantar.
  — Então saí do meu caminho, sor — respondeu Jon, e foi o que o outro fez.
  Ouviu o ruído antes mesmo de chegar ao fundo das escadas; vozes alteradas, pragas, alguém a esmurrar uma mesa. Jon entrou na cave praticamente sem ser notado. Os irmãos enchiam os bancos e as mesas,
mas eram mais os que estavam em pé e aos gritos do que aqueles que se encontravam sentados, e ninguém comia. Não havia comida. Que está aqui a acontecer? O Lorde Janos Slynt berrava qualquer coisa sobre
vira-casacas e traições, o Emmett de Ferro encontrava-se em pé sobre uma mesa com uma espada desembainhada na mão, o Hobb Três-Dedos amaldiçoava um patrulheiro da Torre Sombria… um homem qualquer de Atalaialeste
bateu com o punho uma e outra vez na mesa, exigindo silêncio, mas tudo o que conseguiu foi somar esse ruído ao burburinho que ecoava no tecto abobadado.
  Pyp foi o primeiro a ver Jon. Sorriu ao ver o Fantasma, levou dois dedos à boca e assobiou como só um filho de saltimbanco sabia assobiar. O som estridente cortou o clamor como uma espada. Enquanto
Jon caminhava na direcção das mesas, mais dos irmãos reparavam nele e se silenciavam. Um silêncio espalhou-se pela cave, até que os únicos sons que se ouviram eram os calcanhares de Jon a soltar estalidos
do chão de pedra, e o suave crepitar da lenha na lareira.
  Sor Alliser Thorne estilhaçou o silêncio.
  — O vira-casacas agracia-nos finalmente com a sua presença.
  O Lorde Janos estava ruborizado e a tremer.
  — A fera — arquejou. — Olhai! A fera que arrancou a vida do Meia-Mão. Um Warg caminha entre nós, irmãos. Um Warg! Esta… esta criatura não é digna de nos liderar! Este lobisomem não é digno de viver!
  O Fantasma mostrou os colmilhos, mas Jon pousou-lhe uma mão na cabeça.
  — Senhor — disse —, quereis dizer-me o que aconteceu aqui?
  O Meistre Aemon respondeu do outro lado da sala.
  — O teu nome foi sugerido para Senhor Comandante, Jon.
  Aquilo era tão absurdo que Jon teve de sorrir.
  — Por quem? — disse, em busca dos amigos. Aquilo tinha de ser um dos gracejos de Pyp, com certeza. Mas Pyp encolheu os ombros, e Grenn abanou a cabeça. Foi o Edd Doloroso Tollett quem se levantou.
  — Por mim. Sim, fazer isto a um amigo é terrivelmente cruel, mas antes tu do que eu.
  O Lorde Janos recomeçou a falar furiosamente.
  — Isto, isto é um ultraje. Nós devíamos enforcar este rapaz. Sim! Enforcai-o, enforcai-o por ser um vira-casacas e warg, com o amigo Mance Rayder. Senhor Comandante? Não o aceitarei, não o admitirei!
  Cotter Pyke pôs-se em pé.
  — Tu não o admites? Pode ser que tenhas treinado aqueles homens de mantos dourados para te lamber a merda do cu, mas agora estás a usar um manto preto.
  — Qualquer irmão pode pôr qualquer nome à nossa consideração, desde que o homem tenha proferido os seus votos — disse Sor Dennis Mallister. — Tollet está inteiramente no seu direito, senhor.
  Uma dúzia de homens desatou a falar ao mesmo tempo, cada um tentando sobrepor a sua voz às dos outros, e não tardou muito que metade da sala estivesse de novo aos gritos. Daquela vez foi Sor Alliser
Thorne quem saltou para cima da mesa e ergueu as mãos a exigir silêncio.
  — Irmãos! — gritou. — Não lucramos nada com isto. Sugiro que votemos. Este rei que ocupou a Torre do Rei colocou homens em todas as portas para se assegurar de que não comamos nem saiamos até que tenhamos
a escolha feita. Seja! Votaremos, e voltaremos a votar, a noite inteira se necessário, até termos o nosso comandante… mas antes de deitarmos os penhores, creio que o nosso Primeiro Construtor tem algo
a dizer-nos.
  Othell Yarwyck ergueu-se lentamente, de cenho franzido. O grande construtor esfregou o seu queixo protuberante e disse:
  — Bem, eu vou retirar o meu nome. Já houve dez hipóteses de me escolherdes, e não o fizestes. Não os suficientes de vós, pelo menos. Eu ia dizer que aqueles que estavam a deitar um penhor por mim deviam
escolher o Lorde Janos…
  Sor Alliser fez um aceno.
  — O Lorde Slynt é a melhor escolha…
  — Não tinha acabado, Alliser — protestou Yarwyck. — O Lorde Slynt comandou a Patrulha da Cidade em Porto Real, todos sabemos, e era Senhor de Harrenhal…
  — Ele nem sequer viu Harrenhal — gritou Cotter Pyke.
  — Bem, isso é verdade — disse Yarwyck. — Seja como for, agora que estou aqui em pé, não me lembro porque foi que pensei que Slynt seria uma escolha assim tão boa. Isso seria assim como dar um pontapé
na boca do Rei Stannis, e não estou a ver como é que isso nos é útil. Pode ser que o Snow seja melhor. Está há mais tempo na Muralha, é sobrinho de Ben Stark, e serviu o Velho Urso como escudeiro. — Yarwyck
encolheu os ombros. — Escolhei quem quiserdes, desde que não seja eu. — E sentou-se.
  Jon viu que Janos Slynt, que já estava vermelho, ficara púrpura, mas Sor Alliser Thorne empalidecera. O homem de Atalaialeste estava de novo a bater na mesa com o punho, mas agora gritava pelo caldeirão.
Alguns dos seus amigos adoptaram o grito.
  — Caldeirão! — rugiram eles, como um só. — Caldeirão, caldeirão, CALDEIRÃO!
  O caldeirão estava no canto junto à lareira, uma grande coisa negra de fundo redondo com duas enormes pegas e uma pesada tampa. O Meistre Aemon disse algo a Sam e Clydas, e eles foram pegar nas pegas
e arrastaram o caldeirão para a mesa. Alguns dos irmãos já estavam a fazer fila junto aos barris de penhores quando Clydas tirou a tampa e quase a deixou cair em cima de um pé. Com um grito roufenho e
um bater de asas, um enorme corvo saltou de dentro do caldeirão. Voou para cima, talvez em busca das vigas, ou de uma janela por onde escapar, mas não havia vigas na cave e também não havia janelas. O
corvo estava encurralado. Crocitando ruidosamente, voou aos círculos pela sala, uma, duas, três vezes. E Jon ouviu Samwell Tarly gritar:
  — Eu conheço aquela ave! É o corvo do Lorde Mormont!
  O corvo pousou na mesa mais próxima de Jon. “Snow”, crocitou. Era uma ave velha, suja e enlameada. “Snow”, voltou a dizer, “Snow, snow, snow”. Caminhou até à borda da mesa, abriu de novo as asas e voou
para o ombro de Jon.
  O Lorde Janos Slynt sentou-se tão pesadamente que fez tum, mas Sor Alliser encheu a cave com uma gargalhada trocista.
  — O Sor Porquinho julga que somos todos tolos, irmãos — disse. — Ele ensinou à ave este truquezinho. Todos eles dizem snow, ide à colónia e escutai com os vossos ouvidos. A ave de Mormont sabia mais
palavras além dessa.
  O corvo inclinou a cabeça e olhou para Jon. “Grão?” disse com ar esperançoso. Quando não obteve nem grão nem uma resposta, soltou um cuorc e resmungou: “Caldeirão? Caldeirão? Caldeirão?”
  E o resto foi pontas de seta, uma torrente de pontas de seta, um dilúvio de pontas de seta, pontas de seta suficientes para afogar as últimas pedras e conchas, e também todos os dinheiros de cobre.
  Quando a contagem terminou, Jon deu por si rodeado. Alguns deram-lhe palmadas nas costas, enquanto outros se dobravam para ajoelhar perante si como se fosse um senhor de verdade. O Cetim, o Owen Idiota,
Halder, o Sapo, o Bota Extra, o Gigante, Mully, o Ulmer da Mataderrei, o Donnel Doce Hill e meia centena de outros comprimiram-se em seu redor. Dywen fez estalar os deus dentes de madeira e disse:
  — Pela bondade dos deuses, o nosso Senhor Comandante ainda usa cueiros. — O Emmett de Ferro disse:
  — Espero que isto não queira dizer que já não posso dar-vos uma surra de criar bicho da próxima vez que treinarmos, senhor. — O Hobb Três-Dedos quis saber se ele continuaria a comer com os homens, ou
se iria querer as refeições enviadas para o aposento privado. Até Bowen Marsh se aproximou para dizer que ficaria feliz por continuar a ser Senhor Intendente se fosse essa a vontade do Lorde Snow.
  — Lorde Snow — disse Cotter Pyke —, se estragares isto, eu arranco-te o fígado e como-to cru com cebolas.
  Sor Denys Mallister foi mais cortês.
  — Foi coisa difícil, aquela que o jovem Samwell me pediu — confessou o velho cavaleiro. — Quando o Lorde Qorgyle foi eleito, eu disse a mim próprio: “Não importa, ele está na Muralha há mais tempo do
que tu, o teu momento chegará”. Quando foi o Lorde Mormont, pensei: “Ele é forte e feroz, mas é velho, o teu momento ainda pode chegar”. Mas vós pouco mais sois do que um rapaz, Lorde Snow, e agora tenho
de regressar à Torre Sombria sabendo que o meu momento nunca virá. — Fez um sorriso cansado. — Não me façais morrer arrependido. O vosso tio era um grande homem. O senhor vosso pai e o pai dele também.
Esperarei de vós precisamente o mesmo.
  — Sim — disse Cotter Pyke. — E podes começar por dizer àqueles homens do rei que está feito, e que queremos a porcaria do jantar.
  “Jantar”, gritou o corvo. “Jantar, jantar.”
  Os homens do rei saíram da porta quando lhes falaram da eleição, e o Hobb Três-Dedos e meia dúzia de ajudantes dirigiram-se a trote para as cozinhas a fim de ir buscar a comida. Jon não esperou para
comer. Atravessou o castelo, perguntando a si próprio se estaria a sonhar, com o corvo ao ombro e o Fantasma logo atrás. Pyp, Grenn e Sam seguiram-no, tagarelando, mas quase não ouviu uma palavra até
que Grenn sussurrou:
  — O Sam conseguiu isto.
  E Pyp disse:
  — O Sam conseguiu isto! — Pyp trouxera consigo um odre de vinho, e bebeu um longo trago e entoou: — Sam, Sam, Sam, o feiticeiro, Sam, o prodígio, Sam Sam, o homem-maravilha, ele conseguiu. Mas quando
foi que escondeste o corvo no caldeirão, Sam, e como, com os sete infernos, podias ter a certeza de que ele voaria para o Jon? Se o pássaro tivesse decidido empoleirar-se na cabeça gorda de Janos Slynt,
tinha estragado tudo.
  — Não tive nada a ver com o corvo — insistiu Sam. — Quando voou de dentro do caldeirão, quase me molhei todo.
  Jon soltou uma gargalhada, meio espantado por ainda se lembrar de como se fazia.
  — Sois todos um bando de idiotas loucos, sabeis disso?
  — Nós? — disse Pyp. — Chamas-nos idiotas a nós? Não fomos nós que fomos escolhidos como o nonocentésimo nonagésimo oitavo Senhor Comandante da Patrulha da Noite. É melhor que tomes algum vinho, Lorde
Snow. Acho que vais precisar de muito vinho.
  E Jon Snow tirou-lhe o odre da mão e bebeu um trago. Mas só um. A Muralha era sua, a noite era escura, e tinha um rei a enfrentar.
 
 SANSA
  Acordou de repente, com cada nervo a titilar. Por um momento não se lembrou de onde estava. Sonhara que era pequena, partilhando ainda um quarto com a irmã Arya. Mas fora a aia que ouvira a mexer-se
no sono, não a irmã, e aquilo não era Winterfell, mas sim o Ninho de Águia. E eu sou Alayne Stone, uma bastarda. O quarto estava frio e negro, embora ela se sentisse quente sob os cobertores. A alvorada
ainda não chegara. Por vezes sonhava com Sor Ilyn Payne e acordava com o coração aos saltos, mas aquele sonho não fora assim. O lar. Estava a sonhar com o meu lar.
  O Ninho de Águia não era lar algum. Não era maior do que a Fortaleza de Maegor, e fora das suas abruptas muralhas brancas ficava apenas a montanha e a longa e traiçoeira descida que passava por Céu,
Neve e Pedra e levava aos Portões da Lua, no fundo do vale. Não havia sítio para onde ir e pouco havia que fazer. Os criados mais velhos diziam que aqueles salões ressoavam de risos na época em que o
seu pai e Robert Baratheon eram protegidos de Jon Arryn, mas esses dias tinham passado havia muitos anos. A tia mantinha pouco pessoal, e raramente permitia que as visitas subissem para lá dos Portões
da Lua. Além da sua idosa aia, o único companheiro de Sansa era o Lorde Robert, com oito anos, quase a fazer três.
  E Marillion. Há sempre Marillion. Quando tocava para eles ao jantar, o jovem cantor parecia frequentemente estar a cantar directamente para Sansa. A tia não ficava nada satisfeita. A Senhora Lysa tinha
um fraco por Marillion, e banira duas criadas e até um pajem por dizerem mentiras acerca dele.
  Lysa estava tão solitária como ela. O seu novo esposo parecia passar mais tempo no sopé da montanha do que no seu cume. Agora andava por longe, já partira havia quatro dias, para um encontro com os
Corbray. A partir de bocadinhos e fragmentos de conversas que ouvira, Sansa sabia que os vassalos de Jon Arryn se ressentiam do casamento de Lysa e só de má vontade concediam a Petyr a sua autoridade
como Senhor Protector do Vale. O ramo principal da Casa Royce estava perto da revolta aberta devido à recusa da tia de Sansa em ajudar Robb na guerra, e os Waynwood, Redfort, Belmore e Templeton davam-lhes
todo o apoio. Os clãs da montanha também andavam a causar problemas, e o velho Lorde Hunter morrera de forma tão súbita que os dois filhos mais novos andavam a acusar o irmão mais velho de o ter assassinado.
O Vale de Arryn podia ter sido poupado ao pior da guerra, mas estava longe de ser o local idílico pelo qual a Senhora Lysa o queria fazer passar.
  Não vou voltar a adormecer, apercebeu-se Sansa. Tenho a cabeça num tumulto. Afastou relutantemente a almofada, atirou os cobertores para trás, dirigiu-se à janela, e abriu as portadas.
  Nevava no Ninho de Águia.
  Lá fora, os flocos pairavam com a suavidade e o silêncio da memória. Teria sido isto que me acordou? A neve já jazia numa camada espessa sobre o jardim, lá em baixo, cobrindo a erva, salpicando de branco
os arbustos e as estátuas e pesando nos ramos das árvores. A cena levou Sansa de volta a noites frias de há muito, no longo Verão da sua infância.
  A última vez que vira neve fora no dia em que partira de Winterfell. Esse foi um nevão mais ligeiro do que este, recordou. Robb tinha flocos a derreter no cabelo quando me abraçou, e a bola de neve
que Arya tentou fazer não parava de se desfazer nas suas mãos. Doía-lhe lembrar-se de como se sentira feliz naquela manhã. Hullen ajudara-a a montar, e ela partira a cavalo com os flocos de neve a turbilhonar
à sua volta, partira para ver o grande e vasto mundo. Pensei que a minha canção estava a começar naquele dia, mas tinha quase terminado.
  Sansa deixou as portadas abertas enquanto se vestia. Sabia que estaria frio, embora as torres do Ninho de Águia rodeassem o jardim e o protegessem do pior dos ventos de montanha. Vestiu roupa interior
em seda e uma combinação de linho e, por cima, um vestido quente de lã de carneiro azul. Dois pares de meias para as pernas, botas que eram atadas nos joelhos, pesadas luvas de couro, e por fim um manto
com capuz de suave pele de raposa branca.
  A aia enrolou-se melhor no seu cobertor quando a neve começou a entrar pela janela. Sansa entreabriu a porta e desceu pela escada em caracol. Quando abriu a porta do jardim, ele estava tão lindo que
susteve a respiração, sem desejar perturbar uma beleza tão perfeita. A neve caía e caía, tudo num silêncio fantasmagórico, e acumulava-se numa camada grossa e contínua no chão. Todas as cores tinham fugido
do mundo exterior. Era um lugar de brancos, negros e cinzentos. Torres brancas, neve branca e estátuas brancas, sombras negras e árvores negras, tudo coberto pelo céu cinzento-escuro. Um mundo puro, pensou
Sansa. Este não é o meu lugar.
  Mas saiu na mesma. As botas rasgaram buracos até aos tornozelos na superfície alva e lisa da neve, mas não fizeram nenhum som. Sansa pôs-se a vaguear, passando por arbustos congelados e esguias árvores
escuras, e perguntou a si própria se estaria ainda a sonhar. Flocos de neve que caíam roçavam-lhe no rosto com a leveza dos beijos de um amante, e derretiam-se-lhe nas bochechas. No centro do jardim,
ao lado da estátua da mulher chorosa que jazia no chão, quebrada e meio enterrada, virou o rosto para o céu e fechou os olhos. Sentiu a neve nas pestanas, saboreou-a nos lábios. Era o sabor de Winterfell.
O sabor da inocência. O sabor dos sonhos.
  Quando Sansa voltou a abrir os olhos, estava de joelhos. Não se lembrava de ter caído. Parecia-lhe que o céu tomara um tom mais claro de cinzento. A alvorada, pensou. Outro dia. Outro novo dia. Era
dos dias antigos que tinha fome. Era por eles que rezava. Mas a quem podia rezar? Sabia que em tempos o jardim se destinara a um bosque sagrado, mas o solo era demasiado fino e pedregoso para que um represeiro
ganhasse raízes. Um bosque sagrado sem deuses, tão vazio como eu.
  Pegou numa mão-cheia de neve e apertou-a entre os dedos. Pesada e húmida, a neve comprimia-se com facilidade. Sansa pôs-se a fazer bolas de neve, dando-lhes forma e alisando-as até ficarem redondas,
brancas e perfeitas. Recordou um nevão de Verão em Winterfell, durante o qual Arya e Bran a emboscaram ao sair da fortaleza, uma bela manhã. Cada um deles tinha uma dúzia de bolas de neve à mão, e ela
nenhuma. Bran estava empoleirado no telhado da ponte coberta, fora de alcance, mas Sansa perseguira Arya pelos estábulos e em volta das cozinhas até ambas ficarem sem fôlego. Até podia tê-la apanhado,
mas escorregara num pouco de gelo. A irmã regressara para ver se se teria magoado. Quando dissera que não, Arya atingira-a na cara com outra bola de neve, mas Sansa agarrara-lhe a perna e puxara-a para
baixo e estava a esfregar-lhe neve no cabelo quando Jory aparecera e as separara, rindo.
  Que faço eu com bolas de neve? Olhou para o seu pequeno e triste arsenal. Não há ninguém a quem as atirar. Deixou que a que estava a fazer lhe caísse das mãos. Podia fazer em vez disso um cavaleiro
de neve, pensou. Ou até…
  Juntou duas das bolas de neve, acrescentou uma terceira, comprimiu mais neve em volta delas e deu a tudo a forma de um cilindro. Quando ficou pronto, pô-lo em pé e usou a ponta do mindinho para lhe
fazer os buracos das janelas. As ameias em volta do topo precisaram de um pouco mais de cuidado, mas quando ficaram prontas, tinha uma torre. Agora preciso de muralhas, pensou Sansa, e depois de uma fortaleza.
Pôs mãos à obra.
  A neve caía e o castelo erguia-se. Duas muralhas que lhe davam pelo joelho, a interior mais alta do que a exterior. Torres e torreões, fortalezas e escadarias, uma cozinha redonda, um armeiro quadrado,
os estábulos ao longo do interior da muralha ocidental. Quando começou, era apenas um castelo, mas não muito depois Sansa soube que era Winterfell. Encontrou gravetos e ramos caídos por baixo da neve
e quebrou-lhes as extremidades para fazer as árvores do bosque sagrado. Para as lápides do cemitério usou bocados de casca de árvore. Em breve tinha as luvas e as botas cobertas por uma crosta branca,
as mãos num formigueiro, e os pés ensopados e frios, mas não fazia mal. O castelo era tudo o que importava. Algumas coisas eram difíceis de recordar, mas a maior parte chegava-lhe com facilidade, como
se tivesse lá estado apenas no dia anterior. A Torre da Biblioteca, com a íngreme escada de pedra enrolada à sua volta, pelo exterior. A casa do portão, dois enormes baluartes, o portão arqueado entre
eles, ameias ao longo do topo…
  E durante todo o tempo a neve não parou de cair, empilhando-se em montículos em volta dos seus edifícios tão depressa como ela os erguia. Estava a compactar o telhado do Grande Salão quando ouviu uma
voz, e ergueu os olhos para deparar com a aia a chamá-la da janela. A senhora estava bem? Desejava quebrar o jejum? Sansa abanou a cabeça, e regressou à escultura de neve, acrescentando uma chaminé a
uma das pontas do Grande Salão, no local onde a lareira estaria lá dentro.
  A alvorada esgueirou-se para o jardim como uma ladra. O cinzento do céu ficou ainda mais claro, e as árvores e arbustos tomaram um tom de verde-escuro sob as suas estolas de neve. Alguns criados saíram
e observaram-na durante algum tempo, mas não lhes prestou atenção, e eles rapidamente voltaram para dentro, para onde fazia mais calor. Sansa viu a Senhora Lysa a olhá-la da sua varanda, enrolada num
roupão de veludo azul forrado com pele de raposa, mas quando voltou a olhar, a tia tinha desaparecido. O Meistre Colemon espetou a cabeça da colónia de corvos e espreitou para baixo durante algum tempo,
esgalgado e a tremer, mas curioso.
  As pontes não paravam de ruir. Havia uma ponte coberta entre o armeiro e a fortaleza principal, e outra que ligava o quarto andar da torre sineira ao segundo andar da colónia de corvos, mas por mais
cuidadosa que fosse a esculpi-las, não resistiam. A terceira vez que uma delas ruiu, soltou uma praga em voz alta e sentou-se, numa frustração impotente.
  — Comprime a neve em volta de um pau, Sansa.
  Não sabia há quanto tempo ele estava a observá-la, ou quando regressara do Vale.
  — Um pau? — perguntou.
  — Isso dar-lhe-á suficiente resistência para se manter, julgo eu — disse Petyr. — Posso entrar no vosso castelo, senhora?
  Sansa estava desconfiada.
  — Não o quebreis. Sede…
  — …gentil? — Ele sorriu. — Winterfell resistiu a inimigos mais ferozes do que eu. Isto é Winterfell, não é?
  — Sim — admitiu Sansa.
  Ele caminhou ao longo do exterior das muralhas.
  — Costumava sonhar com ele, naqueles anos que se seguiram a Cat ter ido para norte com Eddard Stark. Nos meus sonhos era sempre um lugar escuro e frio.
  — Não. Sempre foi quente, mesmo quando nevava. Água das nascentes quentes é canalizada através das paredes para as aquecer, e dentro dos jardins de vidro era sempre como o mais quente dia de Verão.
— Pôs-se em pé, erguendo-se acima do grande castelo branco. — Não consigo imaginar como fazer o telhado de vidro por cima dos jardins.
  O Mindinho afagou o queixo, onde a barba estivera antes de Lysa lhe pedir para a cortar.
  — O vidro estava preso em molduras, não estava? A tua resposta são gravetos. Tira-lhes a casca e cruza-os, e usa casca de árvore para os atar uns aos outros e formar molduras. Eu mostro-te. — Deslocou-se
pelo jardim, recolhendo paus e gravetos e sacudindo-lhes a neve. Quando obteve os suficientes, passou por cima de ambas as muralhas com um longo passo e acocorou-se no meio do pátio. Sansa aproximou-se
para ver o que ele estava a fazer. As mãos de Petyr eram hábeis e seguras, e não muito depois tinha um gradeado de gravetos, muito parecido com aquele que servia de telhado aos jardins de vidro de Winterfell.
— Vamos ter de imaginar o vidro, certamente — disse quando lho entregou.
  — Isto é perfeito — disse ela.
  Ele tocou-lhe o rosto.
  — E isto também.
  Sansa não compreendeu.
  — Isto o quê?
  — O vosso sorriso, senhora. Faço-vos outro?
  — Se quiserdes.
  — Nada me agradaria mais.
  Ela ergueu as paredes dos jardins de vidro enquanto o Mindinho os cobria, e quando terminaram essa tarefa, ele ajudou-a a prolongar as muralhas e a construir o edifício dos guardas. Quando usou paus
para as pontes cobertas, elas resistiram, tal como ele dissera que resistiriam. A Primeira Fortaleza era bastante simples, uma antiga torre redonda e atarracada, mas Sansa voltou a ficar sem saber o que
fazer quando chegou a altura de pôr as gárgulas ao longo do topo. De novo, ele tinha a solução.
  — Tem estado a nevar no vosso castelo, senhora — fez notar. — Com que se parecem as gárgulas quando estão cobertas de neve?
  Sansa fechou os olhos para as ver na sua memória.
  — São só protuberâncias brancas.
  — Muito bem. Gárgulas são difíceis, mas protuberâncias brancas devem ser fáceis. — E eram.
  A Torre Quebrada foi ainda mais simples. Fizeram juntos uma torre alta, ajoelhando-se lado a lado para a rolar até ficar lisa, e quando a ergueram, Sansa enfiou os dedos no topo, agarrou numa mão-cheia
de neve e atirou-lha em cheio à cara. Petyr soltou um ganido quando a neve se lhe enfiou no colarinho.
  — Isso não foi nada cavalheiresco, senhora.
  — Tal como não o foi trazer-me para aqui, quando jurastes que me levaríeis para casa.
  Perguntou a si própria de onde lhe teria vindo a coragem, para lhe falar com tanta franqueza. De Winterfell, pensou. Sou mais forte dentro das muralhas de Winterfell.
  O rosto dele ficou sério.
  — Sim, enganei-vos acerca disso… e acerca de outra coisa também.
  Sansa sentiu o estômago a agitar-se.
  — Que outra coisa?
  — Disse-vos que nada me agradaria mais do que ajudar-vos com o vosso castelo. Temo que também tenha sido uma mentira. Há outra coisa que me agradaria mais. — Aproximou-se. — Isto.
  Sansa tentou afastar-se, mas ele puxou-a para si e de súbito estava a beijá-la. Debilmente, tentou contorcer-se, mas só conseguiu apertar-se mais contra ele. A boca dele estava sobre a sua, engolindo-lhe
as palavras. O Mindinho sabia a menta. Durante meio segundo, Sansa cedeu ao seu beijo… antes de virar o rosto para o lado e se arrancar ao seu abraço.
  — O que estais a fazer?
  Petyr endireitou o manto.
  — Estou a beijar uma donzela de neve.
  — É suposto que a beijeis a ela. — Sansa olhou de relance para a varanda de Lysa, mas estava agora vazia. — À senhora vossa esposa.
  — E beijo. Lysa não tem razões de queixa. — Sorriu. — Gostaria que pudésseis ver-vos, senhora. Sois tão bela. Estais coberta de neve como uma pequena cria de urso, mas o rosto está corado e quase não
conseguis respirar. Há quanto tempo estais aqui? Deveis ter muito frio. Deixai-me aquecer-vos, Sansa. Descalçai as luvas, dai-me as vossas mãos.
  — Não dou. — Ele soava quase como Marillion, na noite em que o cantor se embebedara tanto durante o casamento. Só que desta vez Lothor Brune não surgiria para a salvar; Sor Lothor era um homem de Petyr.
— Não devíeis ter-me beijado. Eu podia ser vossa filha…
  — Podíeis — admitiu ele, com um sorriso triste. — Mas não sois, pois não? Sois filha de Eddard Stark, e de Cat. Mas acho que talvez sejais ainda mais bela do que a vossa mãe, quando tinha a vossa idade.
  — Petyr, por favor. — A voz soava tão fraca. — Por favor…
  — Um castelo!
  A voz era sonora, estridente e infantil. O Mindinho virou-se.
  — Lorde Robert. — Esboçou uma vénia. — Devíeis estar na neve sem as vossas luvas?
  — Fostes vós que fizestes o castelo de neve, Lorde Mindinho?
  — A Alayne fez a maior parte, senhor.
  Sansa disse.
  — Pretende ser Winterfell.
  — Winterfell? — Robert era pequeno para oito anos, um espeto de rapaz com pele manchada e olhos que andavam sempre a lacrimejar. Debaixo de um braço trazia o puído boneco de pano que levava para todo
o lado.
  — Winterfell é a sede da Casa Stark — disse Sansa ao seu futuro marido. — O grande castelo do Norte.
  — Não é assim tão grande. — O rapaz ajoelhou perante a casa do portão. — Olha, aqui vem um gigante para o deitar abaixo. — Pôs o boneco em pé na neve e moveu-o sacudidamente. — Tumba tumba sou um gigante,
sou um gigante — cantarolou. — Ho ho ho abri os portões, senão trituro-os e esmago-os. — Brandindo o boneco pelas pernas, derrubou o topo de uma das torres da casa do portão, e depois da outra.
  Aquilo foi mais do que Sansa podia suportar.
  — Robert, parai com isso. — Mas em vez de parar, ele voltou a brandir o boneco e trinta centímetros de muralha explodiram. Ela tentou agarrar-lhe na mão, mas só logrou pegar no boneco. Ouviu-se um sonoro
ruído de rasgar quando o fino pano se abriu. De súbito, ela tinha a cabeça do boneco, Robert tinha as pernas e o corpo, e o enchimento de trapos e serradura estava a derramar-se na neve.
  A boca do Lorde Robert estremeceu.
  — Mataaaaaaaaaaaaaste-o — berrou. Então desatou a tremer. Começou com uma pequena tremura apenas, mas poucos segundos depois tinha caído sobre o castelo, agitando violentamente os membros. Torres brancas
e pontes de neve estilhaçaram-se e caíram por todos os lados. Sansa ficou horrorizada, mas Petyr Baelish pegou nos pulsos do primo e gritou pelo Meistre.
  Guardas e criadas chegaram instantes depois para ajudar a segurar o rapaz, e o Meistre Colemon pouco mais tarde. A doença das tremuras de Robert Arryn não era nada de novo para as pessoas do Ninho de
Águia, e a Senhora Lysa treinara-os a todos para virem a correr ao primeiro grito do rapaz. O Meistre segurou a cabeça do pequeno lorde e deu-lhe meia taça de vinho de sonhos, murmurando palavras calmantes.
Lentamente, a violência do ataque pareceu reduzir-se, até nada restar além de um pequeno tremor nas mãos.
  — Ajudai-o a subir aos meus aposentos — disse Colemon aos guardas. — Uma sangria ajudará a acalmá-lo.
  — Foi culpa minha. — Sansa mostrou-lhes a cabeça do boneco. — Eu rasguei o boneco dele em dois. Não queria fazê-lo, mas…
  — Sua senhoria estava a destruir o castelo — disse Petyr.
  — Um gigante — sussurrou o rapaz, chorando. — Não fui eu, foi um gigante que fez mal ao castelo. Ela matou-o! Odeio-a! É uma bastarda e eu odeio-a! Não quero ser sangrado!
  — Senhor, o vosso sangue precisa de ser refinado — disse o Meistre Colemon. — É o sangue mau que vos deixa zangado, e a raiva que traz os tremores. Agora vinde.
  E levaram o rapaz. O senhor meu esposo, pensou Sansa, enquanto contemplava as ruínas de Winterfell. A neve parara de cair, e fazia mais frio do que antes. Perguntou a si própria se o Lorde Robert passaria
a boda toda a tremer. Pelo menos Joffrey era saudável de corpo. Uma raiva enlouquecida tomou conta dela. Pegou num ramo partido e enfiou-o na cabeça rasgada do boneco, após o que a espetou no topo da
destruída casa do portão do seu castelo de neve. Os criados pareceram ficar horrorizados, mas quando o Mindinho viu o que ela fizera, riu-se.
  — Se as histórias forem verdadeiras, esse não é o primeiro gigante cuja cabeça acabou nas muralhas de Winterfell.
  — Isso são só histórias — disse ela, e abandonou-o ali.
  De volta ao seu quarto, Sansa despiu o manto e as botas húmidas e sentou-se junto da lareira. Não duvidava de que seria obrigada a responder pelo ataque do Lorde Robert. Talvez a Senhora Lysa me mande
embora. A tia era rápida a banir quem quer que lhe desagradasse, e nada lhe desagradava mais do que aqueles que suspeitava de lhe maltratarem o filho.
  Sansa teria acolhido de bom grado o banimento. Os Portões da Lua eram muito maiores do que o Ninho de Águia, e também mais animados. O Lorde Nestor Royce parecia rude e severo, mas a filha Myranda governava
o castelo em seu nome, e todos eram unânimes em chamar-lhe folgazã. Até a suposta bastardia de Sansa poderia não contar muito contra si lá em baixo. Uma das filhas ilegítimas do Rei Robert estava ao serviço
do Lorde Nestor, e dizia-se que ela e a Senhora Myranda eram grandes amigas, tão próximas como irmãs.
  Direi à minha tia que não quero casar com Robert. Nem o próprio Alto Septão podia declarar uma mulher casada se ela se recusasse a proferir os votos. Não era uma pedinte, dissesse a tia o que dissesse.
Tinha treze anos, era uma mulher florescida e casada, a herdeira de Winterfell. Sansa por vezes sentia pena do seu pequeno primo, mas não era capaz de imaginar que alguma vez desejasse ser sua esposa.
Preferiria voltar a estar casada com Tyrion. Se a Senhora Lysa soubesse disso, certamente a mandaria para longe… para longe dos beicinhos, tremores e olhos lacrimejantes de Robert, para longe dos olhares
demorados de Marillion, para longe dos beijos de Petyr. Vou dizer-lhe isso. Vou mesmo!
  Foi ao fim da tarde que a Senhora Lysa a mandou chamar. Sansa passara todo o dia a reunir coragem, mas assim que Marillion surgiu à sua porta, todas as suas dúvidas regressaram.
  — A Senhora Lysa requer a vossa presença no Alto Salão. — Os olhos do cantor despiam-na enquanto falava, mas Sansa já se habituara a isso.
  Marillion era bonito, não havia como negá-lo; arrapazado e esguio, com pele lisa, cabelo cor de areia, um sorriso encantador. Mas tornara-se bastante odiado no Vale, por todos excepto a tia e o pequeno
Lorde Robert. Acreditando na conversa dos criados, Sansa não era a primeira donzela a sofrer o seu assédio, e as outras não tinham tido Lothor Brune a defendê-las. Mas a Senhora Lysa não queria ouvir
queixas contra ele. Desde que chegara ao Ninho de Águia, o cantor tornara-se seu favorito. Cantava até que o Lorde Robert adormecesse todas as noites, e torcia os narizes aos pretendentes da Senhora Lysa
com versos que troçavam dos seus pontos fracos. A tia fizera chover sobre ele ouro e presentes; roupas caras, um anel para o braço em ouro, um cinto incrustado de pedras de Lua, um bom cavalo. Até lhe
dera o falcão preferido do falecido marido. Tudo aquilo servia para tornar Marillion impecavelmente cortês na presença da Senhora Lysa, e impecavelmente arrogante longe dela.
  — Obrigada — disse-lhe rigidamente Sansa. — Eu conheço o caminho.
  Ele não quis ir-se embora.
  — A senhora disse para vos levar.
  Levar-me? Não gostou de como aquilo soava.
  — Agora sois um guarda? — O Mindinho demitira o capitão da guarda do Ninho de Águia e colocara Sor Lothor Brune no seu lugar.
  — Precisais de guarda? — disse Marillion com ligeireza. — Devíeis saber que ando a compor uma nova canção. Uma canção tão doce e triste que derreterá até o vosso coração gelado. Tenciono chamar-lhe
“A Rosa da Beira da Estrada”. É sobre uma rapariga ilegítima tão bela que enfeitiçava todos os homens que pousassem nela os olhos.
  Eu sou uma Stark de Winterfell, ansiou Sansa por dizer-lhe. Mas em vez disso fez um aceno e permitiu que a levasse ao longo da escada da torre e por uma ponte. O Alto Salão estivera fechado durante
todo o tempo que passara no Ninho de Águia. Sansa perguntou a si própria por que motivo a tia o teria aberto. Normalmente preferia o conforto do seu aposento privado, ou o calor aconchegante da sala de
audiências do Lorde Arryn, com a sua vista sobre a queda de água.
  Dois guardas com mantos azuis-celeste flanqueavam as portas de madeira esculpida do Alto Salão, de lanças na mão.
  — Ninguém deve entrar enquanto Alayne estiver com a Senhora Lysa — disse-lhes Marillion.
  — Entendido. — Os homens deixaram-nos passar, após o que cruzaram as lanças. Marillion fechou as portas e trancou-as com uma terceira lança, mais longa e mais grossa do que as que os guardas usavam.
  Sansa sentiu uma picada de desconforto.
  — Porque fizestes isso?
  — A senhora espera-vos.
  Ela olhou em volta hesitantemente. A Senhora Lysa estava no estrado, sentada num cadeirão de espaldar alto feito de represeiro esculpido, sozinha. À sua direita encontrava-se um segundo cadeirão, mais
alto do que o seu, com uma pilha de almofadas azuis sobre o assento, mas o Lorde Robert não se encontrava lá sentado. Sansa esperava que ele tivesse recuperado. Mas não era provável que Marillion lho
dissesse.
  Sansa percorreu a passadeira de seda azul entre fileiras de pilares canelados esguios como lanças. Os soalhos e paredes do Alto Salão eram feitos de mármore de um branco leitoso, com veios azuis. Raios
de pálida luz do Sol caíam em diagonal, provenientes de estreitas janelas arqueadas abertas na parede oriental. Entre as janelas encontravam-se archotes, montados em altas arandelas de ferro, mas nenhum
deles estava aceso. Os seus passos caíam suavemente sobre a passadeira. Lá fora, o vento soprava, frio e solitário.
  No meio de tanto mármore branco, até a luz do Sol parecia de certo modo gelada… embora nem de perto tão gelada como a tia. A Senhora Lysa envergara um vestido de veludo de cor creme e pusera um colar
de safiras e pedras de Lua. O seu cabelo ruivo fora penteado numa grossa trança e caía-lhe sobre um ombro. Estava sentada no cadeirão observando a aproximação da sobrinha, com o rosto rubro e entumecido
por baixo da tinta e do pó. Da parede, atrás dela, pendia um enorme estandarte, a Lua e falcão da Casa Arryn em creme e azul.
  Sansa parou perante o estrado, e fez uma vénia.
  — Senhora. Mandastes-me chamar. — Ainda ouvia o ruído do vento, e os suaves acordes que Marillion estava a tocar ao fundo do salão.
  — Eu vi o que fizeste — disse a Senhora Lysa.
  Sansa alisou as dobras da saia.
  — Confio que o Lorde Robert esteja melhor? Não tencionava rasgar o seu boneco. Ele estava a esmagar o meu castelo de neve, só…
  — Vais fazer de recatada comigo? — disse a tia. — Não estava a falar do boneco de Robert. Eu vi-te a beijá-lo.
  O Alto Salão pareceu ficar um pouco mais frio. As paredes, o chão e as colunas podiam perfeitamente ter-se transformado em gelo.
  — Foi ele que me beijou a mim.
  As narinas de Lysa dilataram.
  — E porque haveria ele de fazer isso? Tem uma esposa que o ama. Uma mulher feita, não uma rapariguinha. Não tem necessidade de gente como tu. Confessa, menina. Atiraste-te a ele. Foi assim que as coisas
se passaram.
  Sansa deu um passo para trás.
  — Não é verdade.
  — Onde vais? Tens medo? Um comportamento impúdico como esse tem de ser punido, mas não serei dura contigo. Temos um verdugo para o Robert, como é costume das Cidades Livres. A sua saúde é demasiado
delicada para ser ele a brandir o látego. Arranjarei uma rapariga comum qualquer para levar as tuas chicotadas, mas primeiro tens de assumir o que fizeste. Não posso tolerar uma mentirosa, Alayne.
  — Eu estava a construir um castelo de neve — disse Sansa. — O Lorde Petyr estava a ajudar-me, e depois beijou-me. Foi isso que vistes.
  — Não tens honra alguma? — disse a tia em tom penetrante. — Ou será que me tomas por uma idiota? Tomas, não tomas? Tomas-me por uma idiota. Sim, agora o vejo. Não sou uma idiota. Pensas que podes ter
qualquer homem que queiras porque és jovem e bela. Não julgues que não vi os olhares que deitas a Marillion. Sei de tudo o que se passa no Ninho de Águia, senhorinha. E também já antes conheci gente da
tua laia. Mas enganas-te, se achas que grandes olhos e sorrisos de prostituta te servirão para conquistares o Petyr. Ele é meu. — A tia pôs-se em pé. — Todos tentaram afastá-lo de mim. O senhor meu pai,
o meu esposo, a tua mãe… principalmente a Catelyn. Ela também gostava de beijar o meu Petyr, oh se gostava.
  Sansa recuou mais um passo.
  — A minha mãe?
  — Sim, a tua mãe, a tua preciosa mãe, a minha querida irmã Catelyn. Que nem penses em fazer de inocente comigo, sua nojenta mentirosazinha. Levou todos aqueles anos em Correrrio a brincar com Petyr
como se ele fosse o seu pequeno brinquedo. Provocou-o com sorrisos, palavras suaves e olhares lascivos, e fez das suas noites um tormento.
  — Não. — A minha mãe está morta, quis gritar. Ela era a tua própria irmã, e está morta. — Ela não fez isso. Não o faria.
  — Como podes saber? Estavas lá? — Lysa desceu do cadeirão, fazendo rodopiar as saias. — Vieste com o Lorde Bracken e o Lorde Blackwood, daquela vez que nos visitaram para pôr a sua disputa à consideração
do meu pai? O cantor do Lorde Bracken cantou para nós, e Catelyn dançou seis danças com o Petyr naquela noite, seis, eu contei-as. Quando os lordes começaram a discutir, o meu pai levou-os para a sua
sala de audiências, de modo que deixou de haver quem nos impedisse de beber. Edmure embebedou-se, apesar de ser tão novo… e Petyr tentou beijar a tua mãe, só que ela afastou-o. Riu-se dele. Ele pôs uma
expressão tão magoada que eu julguei que o meu coração ia rebentar, e depois bebeu até perder os sentidos em cima da mesa. O tio Brynden levou-o para a cama antes que o meu pai o encontrasse naquele estado.
Mas não te lembras de nada disto, pois não? — Olhou para baixo, zangada. — Pois não?
  Ela está bêbada, ou louca?
  — Eu não era nascida, senhora.
  — Tu não eras nascida. Mas eu era, portanto não ouses dizer-me o que é verdade. Eu sei o que é verdade. Beijaste-o!
  — Foi ele que me beijou a mim — voltou a insistir Sansa. — Eu nunca quis…
  — Silêncio, não te dei licença para falar. Seduziste-o, tal como a tua mãe fez naquela noite em Correrrio, com os seus sorrisos e a sua dança. Achas que eu me esqueceria? Foi essa a noite que me esgueirei
para a sua cama para o confortar. Sangrei, mas foi a mais doce das dores. Ele disse-me então que me amava, mas chamou-me Cat, logo antes de voltar a adormecer. Mesmo assim, fiquei com ele até o céu começar
a iluminar-se. A tua mãe não o merecia. Ela nem sequer lhe quis dar um favor para usar quando lutou com Brandon Stark. Eu ter-lhe-ia dado o meu favor. Dei-lhe tudo. Ele agora é meu. Não de Catelyn, e
não teu.
  A resolução de Sansa murchara perante o ataque da tia. Lysa Arryn estava a assustá-la tanto como a Rainha Cersei alguma vez a assustara.
  — Ele é vosso, senhora — disse, tentando soar submissa e contrita. — Tenho a vossa licença para me ir embora?
  — Não, não tens. — O hálito da tia cheirava a vinho. — Se fosses outra pessoa, banir-te-ia. Mandar-te-ia para baixo, para os Portões da Lua do Lorde Nestor, ou de volta para os Dedos. Gostavas de passar
a vida naquela costa desolada, rodeada de mulheres porcas e caganitas de ovelha? Era isso que o meu pai queria para Petyr. Toda a gente pensou que foi por causa daquele estúpido duelo com Brandon Stark,
mas não é verdade. O pai disse que eu devia agradecer aos deuses por um senhor tão grande como Jon Arryn estar disposto a aceitar-me manchada, mas eu sabia que era só por causa das espadas. Tinha de casar
com Jon, senão o meu pai expulsar-me-ia como fez com o irmão, mas era a Petyr que eu estava destinada. Estou a contar-te isto tudo para que compreendas como nos amamos um ao outro, quanto tempo sofremos
e sonhámos um com o outro. Fizemos juntos um bebé, um precioso bebezinho. — Lysa encostou as mãos à barriga, como se a criança ainda aí estivesse. — Quando mo roubaram, prometi a mim mesma que nunca deixaria
que voltasse a acontecer. O Jon queria mandar o meu querido Robert para Pedra do Dragão, e aquele rei bebedolas queria entregá-lo a Cersei Lannister, mas eu não permiti… tal como não vou permitir que
me roubes o meu Petyr Mindinho. Estás a ouvir-me, Alayne, ou Sansa, ou o que quer que chames a ti própria? Estás a ouvir o que te estou a dizer?
  — Sim. Juro, nunca mais o beijarei ou… ou o seduzirei. — Sansa achou que era aquilo que a tia quisera ouvir.
  — Então agora já admites? Foste tu, tal como eu pensava. És tão libertina como a tua mãe. — Lysa agarrou-lhe no pulso. — Vem comigo. Há uma coisa que te quero mostrar.
  — Estais a magoar-me. — Sansa contorceu-se. — Por favor, tia Lysa, eu não fiz nada. Juro.
  A tia ignorou os seus protestos.
  — Marillion! — gritou. — Preciso de ti, Marillion! Preciso de ti!
  O cantor ficara discretamente ao fundo da sala, mas acorreu de imediato ao grito da Senhora Arryn.
  — Senhora?
  — Toca-nos uma canção. Toca “A Falsa e a Bela”.
  Os dedos de Marillion roçaram as cordas.
  — O senhor chegou a cavalo num dia de chuva, tralolé, tralolé, tralolélolá…
  A Senhora Lysa puxou pelo braço de Sansa. Era andar ou ser arrastada, portanto decidiu andar, percorrendo meio salão e passando entre um par de pilares, até uma porta de represeiro instalada na parede
de mármore. A porta encontrava-se firmemente fechada, com três pesadas trancas de bronze para a manter no lugar, mas Sansa ouvia o vento lá fora a morder as suas arestas. Quando viu o crescente de Lua
esculpido na madeira, plantou os pés no chão.
  — A Porta da Lua. — Tentou libertar-se, às sacudidelas. — Porque estais a mostrar-me a Porta da Lua?
  — Agora estás a guinchar como um rato, mas no jardim foste bastante ousada, não foste? Foste bastante ousada na neve.
  — A senhora fazia costura num dia de chuva — cantava Marillion — tralolé, tralolé, tralolélolá…
  — Abre a porta — ordenou Lysa. — Estou a dizer-te para a abrires. Vais abri-la, senão mando chamar os meus guardas. — Empurrou Sansa em frente. — A tua mãe, pelo menos, era corajosa. Levanta as trancas.
  Se eu fizer o que ela diz, vai largar-me. Sansa agarrou numa das barras de bronze, soltou-a com um puxão, e atirou-a ao chão. A segunda barra retiniu no mármore, seguida pela terceira. Mal tocara no
trinco quando a pesada porta de madeira voou para dentro e bateu com estrondo na parede. Empilhara-se um monte de neve na soleira, e todo ele foi soprado contra elas, trazido numa explosão de ar frio
que deixou Sansa a tiritar. Tentou dar um passo para trás, mas aí encontrava-se a tia. Lysa pegou-lhe no pulso e pôs-lhe a outra mão entre as omoplatas, empurrando-a à força para a porta aberta.
  Atrás da porta havia céu branco, neve a cair e nada mais.
  — Olha para baixo — disse a Senhora Lysa. — Olha para baixo.
  Tentou libertar-se, mas os dedos da tia enterravam-se-lhe no braço como garras. Lysa deu-lhe outro empurrão, e Sansa soltou um guincho. O pé esquerdo atravessou uma crosta de neve e soltou-a. Nada havia
à sua frente além de ar vazio, e um castelo intermédio cento e oitenta metros mais abaixo, agarrando-se ao flanco da montanha.
  — Não! — gritou Sansa. — Estais a assustar-me! — Atrás dela, Marillion continuava a tocar a harpa e a cantar “tralolé, tralolé, tralolélolá.”
  — Ainda queres licença para te ires embora? Queres?
  — Não. — Sansa fez pressão com os pés no chão e tentou contorcer-se para trás, mas a tia não se moveu. — Desta maneira não. Por favor… — Ergueu uma mão, esgravatando com os dedos a soleira da porta,
mas não conseguiu encontrar um apoio, e os pés estavam a escorregar no chão húmido de mármore. A Senhora Lysa empurrava-a inexoravelmente para a frente. A tia tinha mais de vinte quilos a mais do que
ela.
  — A senhora trocava beijos num monte de feno — estava Marillion a cantar. Sansa torceu-se para o lado, histérica de medo, e um pé escorregou-lhe por sobre a borda. Gritou. — Tralolé, tralolé, tralolélolá.
— O vento ergueu-lhe as saias e mordeu-lhe as pernas nuas com dentes frios. Sentia flocos de neve a derreter nas bochechas. Sansa esbracejou, encontrou a grossa trança ruiva de Lysa e agarrou-se-lhe bem.
  — O meu cabelo! — guinchou a tia. — Larga-me o cabelo! — Estava a tremer, a soluçar. As duas vacilaram na borda do precipício. Muito longe, ouviu os guardas a baterem na porta com as lanças, exigindo
que os deixassem entrar. Marillion interrompeu a canção.
  — Lysa! Que significa isto? — O grito cortou através dos soluços e da respiração pesada. Passos ecoaram ao longo do Alto Salão. — Recua daí. Lysa, que estás tu a fazer? — Os guardas continuavam a bater
à porta; o Mindinho entrara pelas traseiras, pela entrada do senhor que se abria atrás do estrado.
  Quando Lysa se virou, as suas mãos fraquejaram o suficiente para que Sansa se libertasse. Caiu sobre os joelhos, e Petyr Baelish viu-a. Parou de súbito.
  — Alayne. Que se passa aqui?
  — É ela. — A Senhora Lysa agarrou uma madeixa do cabelo de Sansa. — O que se passa é ela. Ela beijou-te.
  — Dizei-lhe — suplicou Sansa. — Dizei-lhe que estávamos só a construir um castelo…
  — Cala-te! — gritou a tia. — Não te dei licença para falar. O teu castelo não interessa a ninguém.
  — Ela é uma criança, Lysa. A filha de Cat. Que julgavas tu que estávamos a fazer?
  — Eu ia casá-la com Robert! Não tem gratidão. Não tem… não tem decência. Tu não és dela para que te beije. Não és dela! Estava a dar-lhe uma lição, só isso.
  — Estou a ver. — O Mindinho afagou o queixo. — Acho que ela agora compreende. Não é verdade, Alayne?
  — Sim — soluçou Sansa. — Compreendo.
  — Não a quero aqui. — Os olhos da tia estavam brilhantes de lágrimas. — Porque foi que a trouxeste para o Vale, Petyr? Este não é o seu lugar. Não pertence a este sítio.
  — Sendo assim, mandamo-la embora. De volta a Porto Real, se quiseres. — Deu um passo na direcção delas. — Agora larga-a. Deixa-a afastar-se da porta.
  — NÃO! — Lysa deu à cabeça de Sansa outro puxão. Neve rodopiou em volta delas, fazendo com que as saias esvoaçassem ruidosamente. — Não podes desejá-la. Não podes. Ela é uma rapariguinha estúpida de
cabeça oca. Não te ama como eu te tenho amado. Eu sempre te amei. Já o demonstrei, não foi? — Lágrimas escorreram pela cara inchada e vermelha da tia. — Eu dei-te o presente da minha virgindade. Ter-te-ia
dado também um filho, mas eles assassinaram-no com chá de Lua, com tanásia, menta e absinto, uma colher de mel e uma gota de poejo. Não fui eu, eu nunca soube, só bebi o que o pai me deu…
  — Isso passou e está feito, Lysa. O Lorde Hoster está morto, e o seu velho meistre também. — O Mindinho aproximou-se. — Meteste-te outra vez no vinho? Não devias falar tanto. Não queremos que Alayne
saiba mais do que devia, pois não? Ou Marillion?
  A Senhora Lysa ignorou aquilo.
  — A Cat nunca te deu nada. Fui eu quem te arranjou o primeiro posto, quem fez com que Jon te trouxesse para a corte para podermos ficar perto um do outro. Prometeste-me que nunca o esquecerias.
  — E não esqueci. Estamos juntos, tal como sempre desejaste, tal como sempre planeámos. Mas larga o cabelo de Sansa…
  — Não largo! Vi-vos aos beijos na neve. Ela é exactamente como a mãe. A Catelyn beijou-te no bosque sagrado, mas nunca foi a sério, ela nunca te quis. Porque foi que a amaste mais? Era eu, sempre fui
eeeeeu!
  — Eu sei, amor. — Ele deu mais um passo. — E estou aqui. Tudo o que tens de fazer é pegar-me na mão, vá lá. — Estendeu-lha. — Não há motivo para todas essas lágrimas.
  — Lágrimas, lágrimas, lágrimas — soluçou ela histericamente. — Não há necessidade de lágrimas… mas não foi isso que disseste em Porto Real. Disseste-me para pôr as lágrimas no vinho de Jon, e foi o
que eu fiz. Por Robert, e por nós! E escrevi a Catelyn e contei-lhe que os Lannister tinham matado o senhor meu esposo, tal como disseste para fazer. Isso foi tão inteligente… sempre foste inteligente,
eu disse-o ao pai, disse o Petyr é tão inteligente, subirá bem alto, subirá, subirá, e é doce e gentil e tenho o seu bebé na barriga… Porque foi que a beijaste? Porquê? Agora estamos juntos, estamos juntos
após tanto tempo, tanto, tanto tempo, porque é que havias de querer beijá-la a eeeeeela?
  — Lysa — Petyr suspirou —, depois de todas as tempestades que aguentámos, devias confiar mais em mim. Juro, nunca mais sairei do teu lado, enquanto ambos formos vivos.
  — A sério? — perguntou ela, chorando. — Oh, a sério?
  — A sério. Vá, solta a rapariga e anda cá dar-me um beijo.
  Lysa atirou-se aos braços do Mindinho, soluçando. Enquanto eles se abraçavam, Sansa afastou-se a gatinhar da Porta da Lua, e envolveu o pilar mais próximo nos braços. Sentia o coração aos saltos. Havia
neve no seu cabelo e o sapato direito desaparecera. Deve ter caído. Estremeceu, e abraçou com mais força o pilar.
  O Mindinho deixou Lysa soluçar contra o seu peito por um momento, e depois pôs-lhe as mãos nos braços e deu-lhe um pequeno beijo.
  — Minha querida, pateta, ciumenta esposa — disse ele com um risinho. — Eu só amei uma mulher, garanto-te.
  Lysa Arryn fez um sorriso trémulo.
  — Só uma? Oh, Petyr, juras? Só uma?
  — Só a Cat. — E deu-lhe um curto e forte empurrão.
  Lysa tropeçou para trás, com os pés a escorregar no mármore húmido. E depois desapareceu. Não chegou a gritar. Durante o mais longo dos momentos, não se ouviu som algum a não ser o vento.
  Marillion arquejou.
  — Vós… vós…
  Os guardas estavam a gritar fora da porta, batendo-lhe com as hastes das suas pesadas lanças. O Lorde Petyr pôs Sansa em pé.
  — Não te magoaste? — Quando ela abanou a cabeça, ele disse: — Então corre, deixa os guardas entrar. Depressa, não há tempo a perder. Este cantor matou a senhora minha esposa.
 
 EPÍLOGO
  A estrada que levava a Pedravelhas rodeava duas vezes o monte antes de chegar ao cume. Cheia de vegetação e pedregosa, teria originado um avanço lento mesmo no melhor dos tempos, mas o nevão da noite
anterior deixara-a também lamacenta. Neve no Outono nas terras fluviais, não é natural, pensou sombriamente Merrett. Não fora grande nevão, era certo, só o suficiente para atapetar o solo durante uma
noite. A maior parte começara a derreter assim que o Sol surgira. Mesmo assim, Merrett considerara-o um mau presságio. Entre chuvas, inundações, fogo e guerra, tinham perdido duas colheitas e uma boa
parte de uma terceira. Um Inverno prematuro significaria a fome por todas as terras fluviais. Muitas pessoas passariam fome, e algumas morreriam. Merrett só esperava não ser uma dessas pessoas. Mas posso
vir a ser. Com a minha sorte, posso mesmo. Nunca tive sorte nenhuma.
  À sombra das ruínas do castelo, as vertentes inferiores do monte estavam cobertas por uma floresta tão densa que meia centena de foras-da-lei podia perfeitamente estar aí escondida. Podem estar a observar-me
agora mesmo. Merrett olhou em volta, e nada viu além de tojo, fetos, cardos, junça e amoreiras silvestres entre os pinheiros e sentinelas cinzentas-esverdeadas. Noutros pontos, ulmeiros e freixos despidos
de folhas e carvalhos enfezados sufocavam o terreno como ervas daninhas. Não viu nenhum fora-da-lei, mas isso pouco queria dizer. Os foras-da-lei eram melhores a esconder-se do que os homens honestos.
  Em boa verdade, Merrett odiava a floresta, e ainda odiava mais foras-da-lei. “Os foras-da-lei roubaram-me a vida”, fora ouvido a barafustar quando estava com os copos. Estava com demasiada frequência
com os copos, dizia o pai, frequente e ruidosamente. É bem verdade, pensou, pesaroso. Nas Gémeas havia que arranjar uma distinção qualquer, caso contrário eram capazes de se esquecer da nossa existência,
mas descobrira que uma reputação como o maior bebedor do castelo pouco fizera para melhorar as suas hipóteses. Em tempos esperei vir a ser o maior cavaleiro que algum dia baixou uma lança para o ataque.
Os deuses roubaram-me isso. Porque não haveria de beber uma taça de vinho de vez em quando? Ajuda-me com as dores de cabeça. Além disso, a minha mulher é uma megera, o meu pai despreza-me, os meus filhos
são incapazes. Que tenho eu que me leve a ficar sóbrio?
  Mas agora estava sóbrio. Bem, bebera dois cornos de cerveja quando quebrara o jejum, e uma pequena taça de tinto quando se pusera a caminho, mas isso fora apenas para evitar que a cabeça latejasse.
Merrett sentia a dor de cabeça a preparar-se atrás dos olhos, e sabia que se lhe desse meia hipótese, em breve se sentiria como se tivesse uma trovoada entre as orelhas. Por vezes, as dores de cabeça
eram tão fortes que até chorar doía demasiado. Então tudo o que conseguia fazer era jazer na cama numa sala escura com um pano húmido por cima dos olhos, e amaldiçoar a sorte e o fora-da-lei anónimo que
lhe fizera aquilo.
  Só de pensar nisso ficava ansioso. Agora não se podia dar ao luxo de ter uma dor de cabeça. Se trouxer o Petyr de volta em segurança, a minha sorte mudará. Levava o ouro; tudo o que tinha a fazer era
subir ao topo de Pedravelhas, encontrar-se no castelo arruinado com os malditos foras-da-lei, e fazer a troca. Um simples resgate. Nem ele podia estragar aquilo… a menos que tivesse uma dor de cabeça,
uma tão má que o deixasse incapaz de montar a cavalo. Era suposto estar até ao pôr-do-sol nas ruínas, não a choramingar enrolado sobre si próprio à berma da estrada. Merrett esfregou as têmporas com dois
dedos. Mais uma volta ao monte e lá estarei. Quando a mensagem chegara e ele se oferecera para levar o resgate, o pai olhara-o de través e dissera:
  — Tu, Merrett? — e desatara a rir pelo nariz, aquele hediondo heh heh heh que fazia quando ria. Merrett fora praticamente obrigado a suplicar antes de lhe darem o maldito saco de ouro.
  Algo se moveu na vegetação rasteira ao longo da berma da estrada. Merrett puxou as rédeas com força e levou a mão à espada, mas era apenas um esquilo.
  — Estúpido — disse a si próprio, voltando a enfiar a espada na bainha sem ter chegado a desembainhá-la por completo. — Os foras-da-lei não têm caudas. Maldito inferno, Merrett, controla-te. — Tinha
o coração aos saltos no peito como se fosse um rapazinho verde na sua primeira campanha. Como se esta fosse a Mataderrei e eu me preparasse para enfrentar a antiga Irmandade, em vez do patético bando
de salteadores do senhor do relâmpago. Por um momento sentiu-se tentado a dar meia volta e trotar pelo monte abaixo, em busca da cervejaria mais próxima. Aquele saco de ouro compraria um monte de cerveja,
a suficiente para que se esquecesse por completo de Petyr Borbulha. Que o enforquem, foi ele que fez com que isto lhe acontecesse. Não é mais do que merece, depois de ir atrás de uma seguidora de acampamentos
qualquer como se fosse um veado no cio.
  A cabeça começara a doer-lhe; por enquanto pouco, mas sabia que pioraria. Merrett esfregou a ponta do nariz. Na realidade não tinha nenhum direito de pensar tão mal de Petyr. Eu próprio fiz o mesmo
quando era da idade dele. No seu caso, tudo o que o acto lhe custara fora um esquentamento, mas apesar disso não devia condenar o outro. As prostitutas tinham encantos, especialmente se se tivesse uma
cara como a de Petyr. O pobre moço tinha uma esposa, com certeza, mas ela era metade do problema. Não só tinha o dobro da sua idade, como andava a dormir também com o irmão Walder, se o que se contava
fosse verdade. Havia sempre muito falatório nas Gémeas, e só uma pequena parte era verdadeira, mas naquele caso Merrett acreditava. O Walder Negro era um homem que tomava aquilo que desejava, mesmo se
fosse a mulher do irmão. Também possuíra a mulher de Edwyn, isso era conhecimento comum. Sabia-se que a Bela Walda se enfiava na sua cama de tempos a tempos, e havia até quem dissesse que ele conhecera
a sétima Senhora Frey bastante melhor do que seria devido. Pouco admirava que se recusasse a casar. Para quê comprar uma vaca quando havia úberes por todo o lado a suplicar que os mungissem?
  Praguejando em surdina, Merrett espetou os calcanhares no flanco do cavalo e retomou a subida. Por tentador que fosse estoirar o ouro em bebida, sabia que se não regressasse com o Petyr Borbulha, melhor
seria não regressar de todo.
  O Lorde Walder faria noventa e dois anos em breve. Os seus ouvidos tinham começado a fraquejar, os olhos já quase não funcionavam, e a gota estava tão má que tinha de ser levado para todo o lado. Todos
os filhos concordavam que não era possível que durasse muito mais tempo. E quando ele se for, tudo mudará, e não para melhor. O pai era quezilento e teimoso, com uma vontade de ferro e uma língua viperina,
mas acreditava em cuidar dos seus. De todos os seus, mesmo daqueles que lhe desagradaram e o desapontaram. Até daqueles de cujos nomes não se consegue lembrar. Mas quando ele se fosse…
  Quando Sor Stevron fora o herdeiro, as coisas não eram muito más. O velho passara sessenta anos a treinar Stevron, e enfiara-lhe na cabeça que sangue era sangue. Mas Stevron morrera em campanha com
o Jovem Lobo no Oeste — “da espera, sem dúvida”, gracejara o Lothar Coxo quando o corvo lhes trouxera a novidade — e os seus filhos e netos eram um tipo diferente de Frey. Agora o herdeiro era o filho
de Stevron, Sor Ryman; um homem obtuso, teimoso e ganancioso. E depois de Ryman vinham os filhos, Edwyn e o Walder Negro, que eram ainda piores.
  — Felizmente — dissera uma vez o Lothar Coxo — odeiam-se ainda mais um ao outro do que nos odeiam a nós.
  Merrett não tinha a certeza de que isso fosse uma fortuna, e, já agora, o próprio Lothar podia ser mais perigoso do que qualquer dos outros dois. O Lorde Walder ordenara o massacre dos Stark no casamento
de Roslin, mas fora o Lothar Coxo quem o planeara com Roose Bolton, até ao ponto de escolher que canções seriam tocadas. Lothar era um tipo muito divertido para uma bebedeira em conjunto, mas Merrett
nunca seria tolo o suficiente para lhe virar as costas. Nas Gémeas aprendia-se bem cedo que só se podia confiar nos irmãos de pai e mãe, e mesmo nesses não até muito longe.
  Era provável que, quando o velho morresse, fosse cada filho por si, e cada filha também. O novo Senhor da Travessia manteria sem dúvida nas Gémeas alguns dos seus tios, sobrinhos e primos, aqueles de
que calhasse gostar ou em quem confiasse, ou, o que era mais provável, aqueles que achasse que lhe seriam úteis. O resto de nós será posto fora, para nos desembaraçarmos sozinhos.
  A perspectiva preocupava Merrett mais do que as palavras podiam exprimir. Faria quarenta anos dentro de menos de três, era velho de mais para adoptar a vida de cavaleiro andante… mesmo se fosse um cavaleiro,
o que acontecia não ser. Não possuía terras nem riquezas que fossem suas. Possuía as roupas que trazia no corpo mas não muito mais, nem mesmo o cavalo que montava. Não era suficientemente inteligente
para ser um meistre, não era suficientemente piedoso para septão ou selvagem o bastante para mercenário. Os deuses não me deram nenhum dom além do nascimento, e mesmo aí limitaram-me. De que servia ser-se
filho de uma Casa rica e poderosa, se se era o nono filho? Quando se tomavam em conta os netos e bisnetos, Merrett tinha mais hipóteses de ser escolhido Alto Septão do que de herdar as Gémeas.
  Não tenho sorte nenhuma, pensou amargamente. Nunca tive nenhuma maldita sorte. Era um homem grande, largo de peito e ombros, apesar de não passar de uma altura mediana. Ao longo dos últimos dez anos
tornara-se mole e carnudo, bem o sabia, mas quando fora mais novo, Merrett fora quase tão robusto como Sor Hosteen, o seu irmão verdadeiro mais velho, que era habitualmente considerado o mais forte dos
filhos do Lorde Walder Frey. Em rapaz, fora enviado para Crakehall para servir a família da mãe como pajem. Quando o velho Lorde Sumner fizera dele escudeiro, todos assumiram que se tornaria Sor Merrett
em não mais do que alguns anos, mas os foras-da-lei da Irmandade da Mataderrei tinham limpado os rabos nesses planos. Enquanto o seu colega escudeiro Jaime Lannister se cobria de glória, Merrett começara
por apanhar um esquentamento de uma seguidora de acampamentos, e depois conseguira ser capturado por uma mulher, aquela a que chamavam a Cerva Branca. O Lorde Sumner resgatara-o aos foras-da-lei, mas
na batalha seguinte fora derrubado com um golpe de maça que lhe quebrara o elmo e o deixara sem sentidos durante uma quinzena. Disseram-lhe mais tarde que todos julgaram que morreria.
  Merrett não morrera, mas os seus dias de luta tinham terminado. Até a mais leve pancada na cabeça lhe causava uma dor que cegava e o reduzia às lágrimas. Sob tais circunstâncias, a cavalaria estava
fora de questão, dissera-lhe o Lorde Sumner, não sem gentileza. Fora enviado de volta às Gémeas para enfrentar o venenoso desdém do Lorde Walder.
  Depois disso a sorte de Merrett só piorara. O pai conseguira de algum modo arranjar-lhe um bom casamento; casou-se com uma das filhas do Lorde Darry, na época em que os Darry ainda se mantinham numa
posição elevada nos favores do Rei Aerys. Mas parecia que assim que desflorara a sua noiva, Aerys perdera o trono. Ao contrário dos Frey, os Darry tinham sido proeminentes lealistas Targaryen, o que lhes
custara metade das terras, a maior parte da fortuna, e quase todo o poder. E quanto à senhora sua esposa, achara-o uma grande desilusão desde o primeiro momento, e insistira em levar anos a não pôr cá
fora nada mais do que raparigas; três vivas, uma nada-morta e outra que morrera na infância, antes de finalmente gerar um filho. A filha mais velha revelara-se uma devassa, a segunda uma glutona. Quando
Ami fora apanhada nos estábulos com nada menos do que três palafreneiros, fora forçado a casá-la com um maldito cavaleiro andante. Essa situação não podia tornar-se pior, pensara… até Sor Pate decidir
que poderia ganhar renome derrotando Sor Gregor Clegane. Ami regressara a correr, transformada em viúva, para consternação de Merrett e indubitável deleite de todos os moços de estrebaria das Gémeas.
  Merrett atrevera-se a esperar que a sua sorte estivesse finalmente a mudar quando Roose Bolton escolhera casar-se com a sua Walda, em vez de alguma das suas primas mais magras e mais agradáveis à vista.
A aliança Bolton era importante para a Casa Frey e a filha ajudara a garanti-la; julgara que aquilo certamente contaria para alguma coisa. O velho rapidamente o desenganara.
  — Ele escolheu-a porque é gorda — dissera o Lorde Walder. — Pensas que o Bolton não se esteve a cagar por ela ser cria tua? Achas que ele se sentou a pensar: “Heh, Merrett Cabeça de Carneiro, é mesmo
esse o homem de que preciso para meu genro”? A tua Walda é uma porca vestida de seda, foi por isso que ele a escolheu, e eu não te vou agradecer por isso. Teríamos obtido a mesma aliança por metade do
preço, se a tua porquinha pousasse a colher de vez em quanto.
  A humilhação final fora entregue com um sorriso, quando o Lothar Coxo o chamara para discutir o seu papel no casamento de Roslin.
  — Todos temos de desempenhar o nosso papel, de acordo com os nossos dons — dissera-lhe o meio-irmão. — Tu terás uma tarefa e só uma, Merrett, mas creio que estás bem apetrechado para ela. Quero que
te assegures de que o Grande-Jon Umber fique tão bêbado que quase não consiga manter-se em pé, quanto mais lutar.
  E mesmo nisso falhei. Levara o enorme nortenho a beber vinho suficiente para matar três homens normais, mas depois de Roslin ter sido levada para a cama, o Grande-Jon ainda conseguira tirar a espada
ao primeiro homem que o abordara, partindo-lhe o braço ao fazê-lo. Tinham sido precisos oito homens para o pôr a ferros, e o esforço deixara dois homens feridos, um morto e o pobre e velho Sor Leslyn
Haigh com uma orelha a menos. Quando deixara de conseguir lutar com as mãos, o Umber lutara com os dentes.
  Merrett fez um momento de pausa e fechou os olhos. Tinha a cabeça a latejar como aquele maldito tambor que fora tocado no casamento, e durante um momento foi com dificuldade que conseguiu manter-se
na sela. Tenho de continuar, disse a si próprio. Se pudesse trazer de volta o Petyr Borbulha, isso decerto o poria nas boas graças de Sor Ryman. Petyr podia ser um ramo do lado sem Sol, mas não era tão
frio como Edwyn nem tão quente como o Walder Negro. O rapaz ficará grato pelo meu papel, e o seu pai verá que sou leal, um homem que vale a pena ter por perto.
  Mas só se estivesse lá com o ouro até ao pôr-do-sol. Merrett olhou para o céu de relance. Mesmo a tempo. Precisava de algo para lhe firmar as mãos. Puxou pelo odre que pendia da sela, tirou-lhe a rolha,
e bebeu um longo trago. O vinho era espesso e doce, tão escuro que era quase negro, mas, deuses, sabia bem.
  A muralha exterior de Pedravelhas rodeara outrora o cume do monte como uma coroa rodeia a cabeça de um rei. Só restavam as fundações e algumas pilhas de pedras partidas e manchadas de líquenes que lhe
davam pela cintura. Merrett avançou ao longo da linha da muralha até chegar ao local onde a casa do portão se teria erguido. As ruínas eram ali mais abundantes, e ele teve de desmontar para as atravessar
com o palafrém. A oeste, o Sol desaparecera atrás de um banco de nuvens baixas. Tojo e fetos cobriam as vertentes, e dentro das muralhas desaparecidas as ervas daninhas chegavam-lhe à cintura. Merrett
desprendeu a espada dentro da bainha e olhou em volta com cautela, mas não viu foras-da-lei. Poderei ter vindo no dia errado? Parou e esfregou as têmporas com os polegares, mas isso em nada contribuiu
para aliviar a pressão por trás dos seus olhos. Sete malditos infernos…
  De algures, bem dentro do castelo, uma música ténua chegou-lhe por entre as árvores.
  Merrett deu por si a tremer, apesar do manto. Abriu o odre e bebeu outro gole de vinho. Podia simplesmente voltar para trás, cavalgar para Vilavelha, e estoirar o ouro em bebida. Nunca veio nada de
bom de tratar com foras-da-lei. Aquela vil cadela da Wenda marcara-lhe a nádega com uma cerva quando o tivera cativo. Não admirava que a mulher o desprezasse. Tenho de levar isto até ao fim. O Petyr Borbulha
poderá ser um dia Senhor da Travessia, o Edwyn não tem filhos e o Walder Negro só tem bastardos. Petyr lembrar-se-á de quem veio buscá-lo. Bebeu outro gole, devolveu a rolha ao odre e levou o palafrém
através de pedras quebradas, tojo e árvores esguias chicoteadas pelo vento, seguindo os sons até ao que tinha de ter sido o pátio do castelo.
  Folhas caídas jaziam em grande número no chão, como soldados após alguma grande matança. Um homem vestido de verde remendado e desbotado estava sentado de pernas cruzadas num desgastado sepulcro de
pedra, dedilhando as cordas de uma harpa. A música era suave e triste. Merrett conhecia a canção. No alto dos salões dos reis que partiram, Jenny dançava com os seus fantasmas…
  — Sai daí — disse Merrett. — Estás sentado em cima de um rei.
  — O velho Tristifer não se vai importar com o meu traseiro ossudo. Chamavam-lhe o Martelo da Justiça. Há muito tempo que não ouve novas canções. — O fora-da-lei saltou para o chão. Saudável e magro,
tinha um rosto estreito e feições de raposa, mas a boca era tão larga que o sorriso parecia tocar-lhe as orelhas. Algumas madeixas de cabelo castanho eram sopradas sobre a sua testa. Empurrou-as para
trás com a mão livre e disse: — Lembrais-vos de mim, senhor?
  — Não. — Merrett franziu o sobrolho. — Porque haveria de me lembrar?
  — Cantei no casamento da vossa filha. E julgo que bastante bem. Aquele Pate com quem ela casou era meu primo. Somos todos primos em Seterrios. Isso não o impediu de se tornar forreta quando chegou a
altura de me pagar. — Encolheu os ombros. — Porque é que o senhor vosso pai nunca me chamou para tocar nas Gémeas? Será que não faço barulho suficiente para sua senhoria? Segundo o que tenho ouvido, ele
gosta da coisa barulhenta.
  — Trazes o ouro? — perguntou uma voz mais ríspida, atrás de si.
  A garganta de Merrett estava seca. Malditos foras-da-lei, sempre escondidos nos arbustos. Fora a mesma coisa na Mataderrei; julgava-se que se tinha apanhado cinco deles, e outros dez saltavam de sítio
nenhum.
  Quando se virou, rodeavam-no por todos os lados; um infeliz bando de velhos com rostos de couro e rapazes de faces lisas, mais novos do que o Petyr Borbulha, todos eles vestidos de farrapos de tecido
grosseiro, couro fervido e bocados de armaduras pertencentes a homens mortos. Havia uma mulher com eles, enrolada num manto com capuz que era três vezes maior do que devia ser para lhe servir. Merrett
estava demasiado perturbado para os contar, mas pareciam ser pelo menos uma dúzia, talvez uma vintena.
  — Eu fiz uma pergunta. — Quem falou foi um homem grande e barbudo com dentes tortos e verdes e um nariz partido; mais alto do que Merrett, embora não tão pesado na barriga. Um meio-elmo cobria-lhe a
cabeça e um remendado manto amarelo os ombros largos. — Onde está o teu ouro?
  — No alforge. Cem dragões de ouro. — Merrett pigarreou. — Recebê-los-eis quando eu vir que Petyr…
  Um fora-da-lei atarracado e zarolho avançou antes de ele conseguir terminar, estendeu a mão para o alforge com uma ousadia que só visto, e encontrou o saco. Merrett fez um movimento para agarrá-lo,
mas depois pensou duas vezes. O fora-da-lei abriu o cordel, tirou uma moeda e mordeu-a.
  — Tem o sabor certo. — Só pesou o saco. — E também tem o peso certo.
  Eles vão roubar o ouro e ficar também com Petyr, pensou Merrett num súbito pânico.
  — Isso é o resgate completo. Tudo o que pedistes. — As palmas das mãos suavam. Limpou-as nas bragas. — Qual de vós é Beric Dondarrion? — Dondarrion fora um senhor antes de se tornar fora-da-lei, podia
ainda ser um homem de honra.
  — Ora, sou eu — disse o zarolho.
  — És um raio dum mentiroso, Jack — disse o barbudo grande com o manto amarelo. — É a minha vez de ser o Lorde Beric.
  — Isso quer dizer que eu tenho de ser Thoros? — O cantor riu-se. — Senhor, lamento dizer, mas o Lorde Beric foi preciso noutro sítio. Os tempos que correm são difíceis, e há muitas batalhas a travar.
Mas nós lidaremos convosco tal como ele lidaria, nada temeis.
  Merrett temia muitas coisas. E a cabeça latejava. Muito mais daquilo, e estaria a soluçar.
  — Tendes o vosso ouro — disse. — Dai-me o meu sobrinho, e eu vou-me embora. — Petyr era na realidade um meio-sobrinho-neto, mas não havia necessidade de entrar nesses detalhes.
  — Ele está no bosque sagrado — disse o homem com o manto amarelo. — Levar-te-emos até ele. Notch, segura-lhe no cavalo.
  Merrett entregou relutantemente o arreio. Não via que outra hipótese teria.
  — O meu odre — ouviu-se a dizer. — Um gole de vinho, para sossegar a minha…
  — Nós não bebemos com tipos como tu — disse bruscamente o do manto amarelo. — É por aqui. Segue-me.
  Folhas esmagaram-se sob os calcanhares do grupo, e cada passo espetou um agulhão de dor nas têmporas de Merrett. Caminharam em silêncio, com o vento a soprar em rajadas à volta deles. Tinha nos olhos
a última luz do Sol poente enquanto ia tropeçando nos montículos cobertos de musgo que eram tudo o que restava da fortaleza. Atrás dela ficava o bosque sagrado.
  O Petyr Borbulha pendia do ramo de um carvalho, com um nó corredio bem apertado em volta do seu pescoço longo e esguio. Os olhos projectavam-se de uma cara negra, olhando acusadoramente para Merrett.
Chegaste tarde de mais, pareciam dizer. Mas não chegara. Não chegara! Viera quando lhe tinham dito para vir.
  — Mataste-lo — coaxou.
  — Inteligência aguçada como uma agulha, a deste — disse o zarolho.
  Um auroque trovejava na cabeça de Merrett. Mãe, misericórdia, pensou.
  — Eu trouxe o ouro.
  — Isso foi bom da vossa parte — disse amigavelmente o cantor. — Certificar-nos-emos de que lhe seja dado bom uso.
  Merrett afastou os olhos de Petyr. Sentia o sabor da bílis na garganta.
  — Vós… vós não tínheis direito de fazer isto.
  — Tínhamos uma corda — disse o do manto amarelo. — Isso é direito suficiente.
  Dois dos foras-da-lei agarraram nos braços de Merrett e ataram-lhos bem por trás das costas. Estava num choque demasiado profundo para oferecer resistência.
  — Não — foi tudo o que conseguiu dizer. — Eu só vim resgatar o Petyr. Dissestes que se tivésseis o ouro até ao pôr-do-sol, não lhe faríeis mal…
  — Bem — disse o cantor —, com essa apanhastes-nos, senhor. Acontece que isso foi uma espécie de mentira.
  O fora-da-lei zarolho avançou com um longo rolo de corda de cânhamo. Enrolou uma ponta em volta do pescoço de Merrett, apertou-a bem, e atou um nó forte por baixo da sua orelha. A outra ponta foi atirada
por cima do ramo do carvalho. O grandalhão do manto amarelo apanhou-a.
  — Que estais a fazer? — Merrett sabia como aquilo parecia estúpido, mas não conseguia acreditar no que estava a acontecer, mesmo então. — Nunca vos atreveríeis a enforcar um Frey.
  O do manto amarelo soltou uma gargalhada.
  — Aquele outro, o rapaz borbulhento, disse a mesma coisa.
  Ele não fala a sério. Não pode falar a sério.
  — O meu pai pagar-vos-á. Eu valho um grande resgate, mais do que Petyr, duas vezes mais.
  O cantor suspirou.
  — O Lorde Walder pode estar meio cego e gotoso, mas não é tão estúpido que morda o mesmo isco duas vezes. Temo que da próxima vez envie uma centena de espadas em vez de uma centena de dragões.
  — E enviará mesmo! — Merrett tentou soar severo, mas a voz traiu-o. — Enviará um milhar de espadas, e matar-vos-á a todos.
  — Tem de nos apanhar primeiro. — O cantor olhou de relance para o pobre Petyr. — E não nos pode enforcar duas vezes, pois não? — Arrancou um acorde melancólico das cordas da sua harpa. — Vá, não sujeis
a roupa interior. Tudo o que tendes de fazer é responder-me a uma pergunta, e eu dir-lhes-ei para vos deixarem partir.
  Merrett dir-lhes-ia qualquer coisa se isso quisesse dizer que salvaria a vida.
  — Que quereis saber? Dir-vos-ei a verdade, juro.
  O fora-da-lei dirigiu-lhe um sorriso encorajador.
  — Bem, acontece que andamos à procura de um cão que fugiu.
  — Um cão? — Merrett não estava a entender. — Que tipo de cão?
  — Ele responde pelo nome de Sandor Clegane. Thoros diz que se dirigia às Gémeas. Encontrámos os barqueiros que fizeram com ele a travessia do Tridente, e o pobre diabo que assaltou na Estrada de Rei.
Por acaso tê-lo-eis visto no casamento?
  — No Casamento Vermelho? — Merrett sentia-se como se o crânio estivesse prestes a explodir, mas fez o melhor que pôde para se lembrar. Houvera tanta confusão, mas certamente alguém teria falado do Cão
de Joffrey se o tivessem visto a farejar em volta das Gémeas. — Ele não estava no castelo. Pelo menos no banquete principal… podia ter estado no banquete bastardo, ou nos acampamentos, mas… não, alguém
teria dito…
  — Ele estaria acompanhado por uma criança — disse o cantor. — Uma rapariga magricela, com cerca de dez anos. Ou talvez um rapaz da mesma idade.
  — Acho que não — disse Merrett. — Que eu saiba, não.
  — Não? Ah, que pena. Bem, toca a subir.
  — Não — guinchou Merrett sonoramente. — Não, não façais isso, eu dei-te a tua resposta, disseste que me deixavas partir.
  — Parece-me que o que eu disse foi que lhes diria para vos deixarem partir. — O cantor olhou para o do manto amarelo. — Limo, deixa-o partir.
  — Vai-te foder — replicou bruscamente o fora-da-lei grande.
  O cantor ofereceu a Merrett um encolher impotente de ombros e pôs-se a tocar “O Dia em que Enforcaram o Robin Negro”.
  — Por favor. — O resto da coragem de Merrett escorria-lhe pela perna abaixo. — Eu não vos fiz mal. Trouxe-vos o ouro, como dissestes. Respondi à pergunta. Tenho filhos.
  — Que o Jovem Lobo nunca terá — disse o fora-da-lei zarolho.
  Merrett quase não conseguia pensar devido ao latejar na sua cabeça.
  — Ele envergonhou-nos, o reino inteiro estava a rir, tínhamos de limpar a mancha na nossa honra. — O pai dissera tudo aquilo e mais ainda.
  — Talvez. Que sabe uma porcaria dum bando de camponeses da honra de um lorde? — O do manto amarelo deu três voltas à mão com a ponta da corda. — Mas sabemos umas coisas acerca de assassínio.
  — Não foi assassínio. — Tinha a voz esganiçada. — Foi vingança, nós tínhamos direito à nossa vingança. Foi a guerra. Aegon, nós chamávamos-lhe Guizo, um pobre idiota que nunca fez mal a ninguém, a Senhora
Stark cortou-lhe a goela. Perdemos meia centena de homens nos acampamentos. Sor Garse Goodbrook, marido de Kyra, e Sor Tytos, filho de Jared… alguém lhe esmagou a cabeça com um machado… o lobo gigante
do Stark matou quatro dos nossos lobeiros e arrancou o braço do mestre dos canis do seu ombro, mesmo depois de o enchermos de dardos…
  — E por isso cosestes-lhe a cabeça ao pescoço de Robb Stark depois de os dois estarem mortos — disse o do manto amarelo.
  — Foi o meu pai que fez isso. Tudo o que eu fiz foi beber. Não mataríeis um homem por beber. — Merrett lembrou-se então de uma coisa, uma coisa que podia ser a sua salvação. — Dizem que o Lorde Beric
concede sempre um julgamento, que não mata nenhum homem a menos que algo seja provado contra ele. O Casamento Vermelho foi obra do meu pai, e de Ryman e do Lorde Bolton. Lothar armadilhou as tendas de
maneira a caírem e pôs os besteiros na galeria com os músicos, o Walder Bastardo liderou o ataque aos acampamentos… são eles que quereis, não eu, eu só bebi um pouco de vinho… não tendes testemunhas.
  — Pois acontece que aí enganais-vos. — O cantor virou-se para a mulher encapuzada. — Senhora?
  Os foras-da-lei afastaram-se quando ela avançou, sem dizer palavra. Quando baixou o capuz, algo se apertou dentro do peito de Merrett, e por um momento não conseguiu respirar. Não. Não, eu vi-a morrer.
Ela esteve morta durante um dia e uma noite antes de a despirem e atirarem o seu corpo ao rio. O Raymund abriu-lhe a garganta de orelha a orelha. Ela estava morta.
  O manto e o colarinho escondiam o golpe que a lâmina do irmão fizera, mas o seu rosto estava ainda em pior estado do que ele recordava. A carne tornara-se esponjosa na água e tomara a cor do leite coalhado.
Metade do cabelo desaparecera e o resto tornara-se tão branco e quebradiço como o de uma velha. Sob o couro cabeludo destroçado, a cara era feita de pele rasgada e sangue negro, nos locais em que a rompera
com as unhas. Mas os olhos eram aquilo que tinha de mais terrível. Os olhos viam-no, e odiavam.
  — Ela não fala — disse o homem grande do manto amarelo. — Vós, malditos bastardos, cortastes-lhe a garganta fundo de mais para isso. Mas lembra-se. — Virou-se para a morta e disse: — Que dizeis, senhora?
Ele participou?
  Os olhos da Senhora Catelyn não o deixaram um instante. Anuiu com a cabeça.
  Merrett Frey abriu a boca para suplicar, mas o nó corredio afogou-lhe as palavras. Os seus pés deixaram o chão, enquanto a corda cortava profundamente a carne mole por baixo do seu queixo. Subiu, esperneando
e torcendo-se, subiu, subiu, e subiu.
 
 APÊNDICE
  AS CRÓNICAS DE GELO E FOGO
  OS REIS E AS SUAS CORTES
 O REI NO TRONO DE FERRO
  JOFFREY BARATHEON, o Primeiro do Seu Nome, um rapaz de treze anos, filho mais velho do Rei Robert I Baratheon e da Rainha Cersei, da Casa Lannister,
  — a sua mãe, RAINHA CERSEI, Rainha Regente e Protectora do Reino,
  — a sua irmã, PRINCESA MYRCELLA, uma menina de nove anos,
  — o seu irmão, PRÍNCIPE TOMMEN, um rapaz de oito anos, herdeiro do Trono de Ferro,
  — os seus tios, do lado do pai:
  — STANNIS BARATHEON, Senhor de Pedra do Dragão, autoprocla-mado Rei Stannis Primeiro,
  — RENLY BARATHEON, senhor de Ponta Tempestade, autoprocla-mado Rei Renly Primeiro,
  — os seus tios, do lado da mãe:
  — SOR JAIME LANNISTER, o Regicida, Senhor Comandante da Guarda Real, cativo em Correrrio,
  — TYRION LANNISTER, Mão do Rei interino,
  — o escudeiro de Tyrion, PODRICK PAYNE,
  — os guardas e espadas ao serviço de Tyrion:
  — BRONN, um mercenário, de cabelo e coração negros,
  — SHAGGA, FILHO DE DOLF, dos Corvos de Pedra,
  — TIMETT, FILHO DE TIMETT, dos Homens Queimados,
  — CHELLA, FILHA DE CHEYK, dos Orelhas Negras,
  — CRAWN, FILHO DE CALOR, dos Irmãos da Lua,
  — a concubina de Tyrion, SHAE, uma seguidora de acampamentos de dezoito anos,
  — o seu pequeno conselho:
  — GRANDE MEISTRE PYCELLE,
  — LORDE PETYR BAELISH, chamado MINDINHO, mestre da moeda,
  — LORDE JANOS SLYNT, comandante da Patrulha da Cidade de Porto Real (os “homens de mantos dourados”),
  — VARYS, um eunuco, chamado Aranha, mestre dos segredos,
  — a sua Guarda Real:
  — SOR JAIME LANNISTER, chamado REGICIDA, Senhor Comandante, cativo em Correrrio,
  — SANDOR CLEGANE, chamado CÃO DE CAÇA,
  — SOR BOROS BLOUNT,
  — SOR MERYN TRANT,
  — SOR ARYS OAKHEART,
  — SOR PRESTON GREENFIELD,
  — SOR MANDON MOORE,
  — a sua corte e servidores:
  — SOR ILYN PAYNE, o Magistrado do Rei, um carrasco,
  — VYLARR, capitão dos guardas Lannister em Porto Real (os “homens de mantos vermelhos”),
  — SOR LANCEL LANNISTER, ex-escudeiro do Rei Robert, recente-mente armado cavaleiro,
  — TYREK LANNISTER, ex-escudeiro do Rei Robert,
  — SOR ARON SANTAGAR, mestre-de-armas,
  — SOR BALON SWANN, segundo filho do Lorde Guilan Swann de Pedrelmo,
  — SENHORA ERMESANDE HAYFORD, um bebé de peito,
  — SOR DONTOS HOLLARD, chamado o VERMELHO, um bêbado,
  — JALABHAR XHO, um príncipe exilado das Ilhas do Verão,
  — RAPAZ LUA, um bobo,
  — SENHORA TANDA STOKEWORTH,
  — PALYSE, a sua filha mais velha,
  — LOLLYS, a sua filha mais nova, uma donzela de trinta e três anos,
  — LORDE GYLES ROSBY,
  — SOR HORAS REDWYNE e seu irmão gémeo, SOR HOBBER REDWYNE, filhos do Senhor da Árvore,
  — o povo de Porto Real:
  — A Patrulha da Cidade (os “homens de mantos dourados”):
  — JANOS SLYNT, Senhor de Harrenhal, Senhor Comandante,
  — MORROS, seu filho mais velho e herdeiro,
  — ALLAR DEEM, sargento-chefe de Slynt,
  — SOR JACELYN BYWATER, chamado MÃO-DE-FERRO, capitão do Portão do Rio,
  — HALLYNE, O PIROMANTE, um sábio da Guilda dos Alquimistas,
  — CHATAYA, dona de um bordel dispendioso,
  — ALAYAYA, DANCY, MAREI, algumas das suas raparigas,
  — TOBHO MOTT, um mestre armeiro,
  — SALLOREON, um mestre armeiro,
  — PANÇA DE FERRO, um ferreiro,
  — LOTHAR BRUNE, um cavaleiro livre,
  — SOR OSMUND KETTLEBLACK, um cavaleiro menor de má reputação,
  — OSFRYD e OSNEY KETTLEBLACK, os seus irmãos,
  — SYMON LÍNGUA DE PRATA, um cantor.
  A bandeira do Rei Joffrey ostenta o veado coroado dos Baratheon, negro sobre dourado, e o leão dos Lannister, dourado sobre carmesim, combatente.
 
 O REI NO MAR ESTREITO
  STANNIS BARATHEON, o Primeiro de Seu Nome, o mais velho dos irmãos do Rei Robert, anteriormente Senhor de Pedra do Dragão, filho segundo do Lorde Steffron Baratheon e da Senhora Cassana da Casa Estermont,
  — a sua esposa, SENHORA SELYSE, da Casa Florent,
  —SHIREEN, sua única filha, uma menina de dez anos,
  — o seu tio e primos:
  — SOR LOMAS ESTERMONT, um tio,
  — o seu filho, SOR ANDREW ESTERMONT, um primo,
  — a sua corte e servidores:
  — MEISTRE CRESSEN, curandeiro e tutor, um velho,
  — MEISTRE PYLOS, o seu jovem sucessor,
  — SEPTÃO BARRE,
  — SOR AXELL FLORENT, castelão de Pedra do Dragão, e tio da Rainha Selyse,
  — CARA-MALHADA, um bobo louco,
  — SENHORA MELISANDRE DE ASSHAI, chamada a MULHER VERMELHA, uma sacerdotisa de R’hllor, o Coração de Fogo,
  — SOR DAVOS SEAWORTH, chamado o CAVALEIRO DAS CEBOLAS e por vezes MÃO-CURTA, antigo contrabandista, capitão da Betha Negra,
  — a sua esposa MARYA, filha de um carpinteiro,
  — os seus sete filhos:
  — DALE, capitão do Espectro,
  — ALLARD, capitão da Senhora Marya,
  — MATTHOS, imediato da Betha Negra,
  — MARIC, mestre dos remadores da Fúria,
  — DEVAN, escudeiro do Rei Stannis,
  — STANNIS, um rapaz de nove anos,
  — STEFFON, um rapaz de seis anos,
  — BRYEN FARRING, escudeiro do Rei Stannis,
  — os senhores seus vassalos e espadas ajuramentadas,
  — ARDRIAN CELTIGAR, Senhor da Ilha da Garra, um velho,
  — MONFORD VELARYON, Senhor das Marés e Mestre de Derivamarca,
  — DURAM BAR EMMON, Senhor de Ponta Aguda, um rapaz de catorze anos,
  — GUNCER SUNGLASS, Senhor do Canal de Portodoce,
  — SOR HUBARD RAMBTON,
  — SALLADHOR SAAN, da Cidade Livre de Lys, chamado Príncipe do Mar Estreito,
  — MOROSH DE MYR, um almirante mercenário.
  O Rei Stannis escolheu como símbolo o coração em chamas do Senhor da Luz, um coração vermelho rodeado por chamas cor-de-laranja sobre um fundo amarelo-vivo. No interior do coração encontra-se retratado
o veado coroado da Casa Baratheon, de negro.
 
O REI EM JARDIM DE CIMA
  RENLY BARATHEON, o Primeiro de Seu Nome, o mais novo dos irmãos do Rei Robert, anteriormente Senhor de Ponta Tempestade, filho terceiro de Lorde Steffron Baratheon e da Senhora Cassana, da Casa Estermont,
  — a sua nova noiva, SENHORA MARGAERY, da Casa Tyrell, uma donzela de quinze anos,
  — o seu tio e primos:
  — SOR ELDON ESTERMONT, um tio,
  — o filho de Sor Eldon, SOR AEMON ESTERMONT, um primo,
  — o filho de Sor Aemon, SOR ALYN ESTERMONT,
  — os senhores seus vassalos:
  — MACE TYRELL, Senhor de Jardim de Cima e Mão do Rei,
  — RANDYLL TARLY, Senhor de Monte Chifre,
  — MATHIS ROWAN, Senhor de Bosquedouro,
  — BRYCE CARON, Senhor da Marca,
  — SHYRA ERROL, Senhora de Solar de Montefeno,
  — ARWYN OAKHEART, Senhor da Fortaleza de Águas Claras,
  — LORDE SELWYN DE TARTH, chamado ESTRELA DA TARDE,
  — LEYTON HIGHTOWER, Voz de Vilavelha, Senhor do Porto,
  — LORDE STEFFRON VARNER,
  — a sua Guarda Arco-Íris:
  — SOR LORAS TYRELL, o Cavaleiro das Flores, Senhor Comandante,
  — LORDE BRYCE CARON, o Laranja,
  — SOR GUYARD MORRIGEN, o Verde,
  — SOR PARMEN CRANE, o Roxo,
  — SOR ROBAR ROYCE, o Vermelho,
  — SOR EMMON CUY, o Amarelo,
  — BRIENNE DE TARTH, a Azul, também chamada BRIENNE, A BELEZA, filha de Lorde Selwyn, a Estrela da Tarde,
  — os seus cavaleiros e espadas ajuramentadas:
  — SOR CORTNAY PENROSE, castelão de Ponta Tempestade,
  — o protegido de Sor Cortnay, EDRIC STORM, um filho bastardo do Rei Robert e da Senhora Delena, da Casa Florent,
  — SOR DONNEL SWANN, herdeiro de Pedrelmo,
  — SOR JON FOSSOWAY, dos Fossoway da maçã verde,
  — SOR BRYAN FOSSOWAY, SOR TANTON FOSSOWAY e SOR EDWYD FOSSOWAY, dos Fossoway da maçã vermelha,
  — SOR COLEN DE LAGOAS VERDES,
  — SOR MARK MULLENDORE,
  — RONNET VERMELHO, o Cavaleiro de Poleiro do Grifo,
  — o pessoal de sua casa:
  — MEISTRE JURNE, conselheiro, curandeiro e tutor.
  A bandeira do Rei Renly é o veado coroado da Casa Baratheon de Ponta Tempestade, negro sobre fundo dourado, a mesma bandeira usada pelo irmão, o Rei Robert.
 
 O REI NO NORTE
 
  ROBB STARK, Senhor de Winterfell e Rei no Norte, filho mais velho de Ned Stark, Senhor de Winterfell e da Senhora Catelyn, da Casa Tully, um rapaz de quinze anos,
  — o seu lobo gigante, VENTO CINZENTO,
  — a sua mãe, SENHORA CATELYN, da Casa Tully,
  — os seus irmãos:
  — PRINCESA SANSA, uma donzela de doze anos,
  — o lobo gigante de Sansa, Lady, morto no Castelo de Darry,
  — PRINCESA ARYA, uma menina de dez anos,
  — o lobo gigante de Arya, NYMERIA, afastado um ano antes,
  — PRÍNCIPE BRANDON, chamado Bran, herdeiro de Winterfell e do Norte, um rapaz de oito anos,
  — o lobo gigante de Bran, VERÃO,
  — PRÍNCIPE RICKON, um rapaz de quatro anos,
  — o lobo gigante de Rickon, CÃO-FELPUDO,
  — o seu meio-irmão, JON SNOW, um bastardo de quinze anos, membro da Patrulha da Noite,
  — o lobo gigante de Jon, FANTASMA,
  — os seus tios e tias:
  —BRANDON STARK, o irmão mais velho de Lorde Eddard, assassinado por ordem de Aerys II Targaryen,
  — BENJEN STARK, o irmão mais novo de Lorde Eddard, um homem da Patrulha da Noite, perdido para lá da Muralha,
  — LYSA ARRYN, a irmã mais nova da Senhora Catelyn, viúva do Lorde Jon Arryn, senhora do Ninho de Águia,
  — SOR EDMURE TULLY, irmão mais novo da Senhora Catelyn, herdeiro de Correrrio,
  — SOR BRYNDEN TULLY, chamado PEIXE NEGRO, tio da Senhora Catelyn,
  — as espadas a ele ajuramentadas e companheiros de batalha:
  — THEON GREYJOY, protegido de Lorde Eddard, herdeiro de Pyke e das Ilhas de Ferro,
  — HALLIS MOLLEN, capitão dos guardas de Winterfell,
  — JACKS, QUENT, SHADD, guardas sob o comando de Mollen,
  — PATREK MALLISTER, herdeiro de Guardamar,
  — DACEY MORMONT, filha mais velha da Senhora Maege e herdeira da Ilha dos Ursos,
  — JON UMBER, chamado PEQUENO-JON,
  — ROBIN FLINT, SOR PERWYN FREY, LUCAS BLACKWOOD
  — o seu escudeiro, Olyvar Frey, de dezoito anos,
  — o seu pessoal em Correrrio:
  — MEISTRE VYMAN, conselheiro, curandeiro e tutor,
  — SOR DESMOND GRELL, mestre-de-armas,
  — SOR ROBIN RYGER, capitão da guarda,
  — UTHERYDES WAYN, intendente de Correrrio,
  — RYMUND, O RIMADOR, um cantor,
  — o seu pessoal em Winterfell:
  — MEISTRE LUWIN, conselheiro, curandeiro e tutor,
  — SOR RODRIK CASSEL, mestre-de-armas,
  — BETH, a sua jovem filha,
  — WALDER FREY, chamado GRANDE WALDER, protegido da Senhora Catelyn, com oito anos,
  — WALDER FREY, chamado PEQUENO WALDER, protegido da Senhora Catelyn, também com oito anos,
  — SEPTÃO CHAYLE, guardião do septo e da biblioteca do castelo,
  — JOSETH, mestre dos cavalos,
  — BANDY e SHYRA, as suas filhas gémeas,
  — FARLEN, mestre do canil,
  — PALLA, aprendiz do canil,
  — VELHA AMA, contadora de histórias, antiga ama-de-leite,
  — HODOR, o seu bisneto, um moço de estrebaria simplório,
  — GAGE, o cozinheiro,
  — NABO, uma latrineira e ajudante de cozinha,
  — OSHA, uma selvagem, aprisionada na Mata de Lobos, a trabalhar como servente de cozinha,
  — MIKKEN, ferreiro e armeiro,
  — HAYHEAD, SKITTRICK, POXY TYM e ALEBELLY, guardas,
  — CALON, TOM, filhos de guardas,
  — os senhores seus vassalos e comandantes:
  — (com Robb em Correrrio)
  — JON UMBER, chamado o GRANDE-JON,
  — RICKARD KARSTARK, Senhor de Karhold,
  — GALBART GLOVER, de Bosque Profundo,
  — MAEGE MORMONT, Senhora da Ilha dos Ursos,
  — SOR STEVRON FREY, filho mais velho do Lorde Walder Frey e herdeiro das Gémeas,
  — o filho mais velho de Sor Stevron, SOR RYMAN FREY,
  — o filho de Sor Ryman, WALDER NEGRO FREY,
  — MARTYN RIVERS, filho bastardo de Lorde Walder Frey,
  — (com a hoste de Roose Bolton, nas Gémeas)
  — ROOSE BOLTON, Senhor do Forte do Pavor, comandando a maior parte da hoste do Norte,
  — ROBETT GLOVER, de Bosque Profundo,
  — WALDER FREY, Senhor da Travessia,
  — SOR HELMAN TALLHART, de Praça de Torrhen,
  — SOR AENYS FREY,
  — (prisioneiros de Lorde Tywin Lannister)
  — LORDE MEDGER CERWYN,
  — HARRION KARSTARK, único filho sobrevivente de Lorde Rickard,
  — SOR WYLIS MANDERLY, herdeiro de Porto Branco,
  — SOR JARED FREY, SOR HOSTEEN FREY, SOR DANWELL FREY e o seu meio-irmão bastardo, RONEL RIVERS,
  — (em campo, ou nos seus castelos)
  — LYMAN DARRY, um rapaz de oito anos,
  — SHELLA WHENT, Senhora de Harrenhal, despojada do seu castelo pelo Lorde Tywin Lannister,
  — JASON MALLISTER, Senhor de Guardamar,
  — JONOS BRACKEN, Senhor de Barreira de Pedra,
  — TYTOS BLACKWOOD, Senhor de Corvarbor,
  — SOR KARYL VANCE,
  — SOR MARQ PIPER,
  — SOR HALMON PAEGE,
  — os senhores seus vassalos e castelões no Norte:
  — WYMAN MANDERLY, Senhor de Porto Branco,
  — HOWLAND REED, da Atalaia da Água Cinzenta, um cranogmano,
  — a filha de Howland, MEERA, uma donzela de quinze anos,
  — o filho de Howland, JOJEN, um rapaz de treze anos,
  — SENHORA DONELLA HORNWOOD, uma viúva e mãe de luto,
  — CLEY CERWYN, herdeiro do Lorde Medger, um rapaz de catorze anos,
  — LEOBALD TALLHART, irmão mais novo de Sor Helman, castelão em Praça de Torrhen,
  — a esposa de Leobald, BERENA, da Casa Hornwood,
  — o filho de Leobald, BRANDON, um rapaz de catorze anos,
  — o filho de Leobald, BEREN, um rapaz de dez anos,
  — o filho de Sor Helman, BENFRED, herdeiro de Praça de Torrhen,
  — a filha de Sor Helman, EDDARA, uma donzela de nove anos,
  — SENHORA SYBELLE, esposa de Robett Glover, governando Bosque Profundo na sua ausência,
  — o filho de Robett, GAWEN, de três anos, herdeiro do Bosque Profundo,
  — a filha de Robett, ERENA, uma bebé de um ano,
  — LARENCE SNOW, um filho bastardo de Lorde Hornwood, com doze anos, protegido de Galbart Glover,
  — MORS CROWFOOD e HOTHER TERROR-DAS-RAMEIRAS, da Casa Umber, tios do Grande-Jon,
  — SENHORA LYESSA FLINT, mãe de Robin,
  — ONDREW LOCKE, Senhor de Castelovelho, um velho.
  A bandeira do Rei no Norte permanece igual ao que foi durante milhares de anos: o lobo gigante cinzento dos Stark de Winterfell, correndo por um campo branco de gelo.

 A RAINHA NO OUTRO LADO DO MAR
  DAENERYS TARGARYEN, chamada Daenerys Filha da Tormenta, a Não-Queimada, Mãe dos Dragões, Khaleesi dos Dothraki, e Primeira do Seu Nome, única filha sobrevivente do Rei Aerys II Targaryen e da sua irmã/esposa,
a Rainha Rhaella, uma viúva com catorze anos,
  — os seus dragões recém-nascidos, DROGON, VISERION, RHAEGAL,
  — os seus irmãos:
  — RHAEGAR, Príncipe de Pedra do Dragão e herdeiro do Trono de Ferro, morto pelo Rei Robert no Tridente,
  — RHAENYS, filha de Rhaegar e de Elia de Dorne, assassinada durante o Saque de Porto Real,
  —AEGON, filho de Rhaegar e de Elia de Dorne, assassinado durante o Saque de Porto Real,
  —VISERYS, autoproclamado Rei Viserys, o Terceiro do Seu Nome, chamado o Rei Pedinte, morto em Vaes Dothrak às mãos de Khal Drogo,
  — o seu esposo DROGO, um khal dos dothraki, morto de ferimentos não curados,
  — RHAEGO, filho nado-morto de Daenerys e Khal Drogo, morto no ventre por Mirri Maz Duur,
  — a sua Guarda Real:
  — SOR JORAH MORMONT, um cavaleiro exilado, em tempos Senhor da Ilha dos Ursos,
  — JHOGO, ko e companheiro de sangue, o chicote,
  — AGGO, ko e companheiro de sangue, o arco,
  — RAKHARO, ko e companheiro de sangue, o arakh,
  — as suas aias:
  — IRRI, uma rapariga dothraki,
  — JHIQUI, uma rapariga dothraki,
  — DOREAH, uma escrava lisena, ex-prostituta,
  — os três investigadores:
  — XARO XHOAN DAXOS, um príncipe mercador de Qarth,
  — PYAT PREE, um mago de Qarth,
  — QUAITHE, uma umbromante mascarada de Asshai,
  — ILLYRIO MOPATIS, um magíster da Cidade Livre de Pentos, que arranjou o casamento de Daenerys com Khal Drogo e conspirou para que Viserys recuperasse o Trono de Ferro.
  A bandeira dos Targaryen é a de Aegon, o Conquistador, que conquistou seis dos Sete Reinos, fundou a dinastia, e fez o Trono de Ferro com as espadas dos inimigos conquistados: um dragão de três cabeças,
vermelho sobre fundo negro.
 
 OUTRAS CASAS, GRANDES E PEQUENAS

 CASA ARRYN
  A Casa Arryn não se declarou apoiante de nenhum dos pretendentes rivais no início da guerra, e reteve as suas forças a fim de proteger o Ninho de Águia e o Vale de Arryn. O selo dos Arryn é a lua e
o falcão, de branco, em campo azul-celeste.
  O lema dos Arryn é: Tão Alto Como a Honra.
  ROBERT ARRYN, Senhor do Ninho de Águia, Defensor do Vale, protector do Leste, um rapaz enfermiço de oito anos,
  — a sua mãe, SENHORA LYSA, da Casa Tully, terceira esposa e viúva do Lorde Jon Arryn, falecido Mão do Rei, e irmã de Catelyn Stark,
  — o pessoal da sua casa:
  — MEISTRE COLEMON, conselheiro, curandeiro e tutor,
  — SOR MARWYN BELMORE, capitão da guarda,
  — LORDE NESTOR ROYCE, Supremo Intendente do Vale,
  — o filho de Lorde Nestor, SOR ALBAR,
  — MYA STONE, uma rapariga bastarda ao seu serviço, filha do Rei Robert,
  — MORD, um carcereiro brutal,
  — MARILLION, um jovem cantor,
  — os senhores seus vassalos, pretendentes e servidores:
  — LORDE YOHN ROYCE, chamado BRONZE YOHN,
  — o filho mais velho de Yohn, SOR ANDAR,
  — o segundo filho de Lorde Yohn, SOR ROBAR, ao serviço do Rei Renly, Robar, o Vermelho, da Guarda Arco-Íris,
  — o filho mais novo de Lorde Yohn SOR WAYMAN, um homem da Patrulha da Noite, perdido para lá da Muralha,
  — LORDE NESTOR ROYCE, primo de Lorde Yohn, Supremo Intendente do Vale,
  — o filho e herdeiro de Lorde Nestor, SOR ALBAR,
  — a filha de Lorde Nestor, MYRANDA,
  — SOR LYN CORBRAY, pretendente da Senhora Lysa,
  — MYCHEL REDFORT, o seu escudeiro,
  — SENHORA ANYA WAYNWOOD,
  — o filho mais velho e herdeiro da Senhora Anya, SOR MORTON, pretendente da Senhora Lysa,
  — o segundo filho da Senhora Anya, SOR DONNEL, o Cavaleiro do Portão,
  — LORDE EON HUNTER, Senhor de Solar de Longarco, um velho e pretendente da Senhora Lysa.
 
 CASA FLORENT
 
  Os Florent da Fortaleza de Águas Claras são vassalos de Jardim de Cima e seguiram os Tyrell na proclamação pelo Rei Renly. No entanto, mantiveram também um pé no outro campo, uma vez que a rainha de
Stannis é uma Florent, e o tio dela é castelão de Pedra do Dragão. O selo da Casa Florent exibe uma cabeça de raposa rodeada por um círculo de flores.
  ALESTER FLORENT, Senhor de Águas Claras,
  — a sua esposa, SENHORA MELARA, da Casa Crane,
  — os seus filhos:
  — ALEKYNE, herdeiro de Águas Claras,
  — MELESSA, casada com o Lorde Randyll Tarly,
  — RHEA, casada com o Lorde Leyton Hightower,
  — os irmãos:
  — SOR AXELL, castelão em Pedra do Dragão,
  —SOR RYAM, morto ao cair de um cavalo,
  — a filha de Sor Ryam, RAINHA SELYSE, casada com o Rei Stannis,
  — o filho mais velho e herdeiro de Sor Ryam, SOR IMRY,
  — o segundo filho de Sor Ryam, SOR ERREN,
  — SOR COLIN,
  — a filha de Sor Colin, DELENA, casada com SOR HOSMAN NORCROSS,
  — o filho de Delena, EDRIC STORM, um bastardo do Rei Robert,
  — o filho de Delena, ALESTER NORCROSS,
  — o filho de Delena, RENLY NORCROSS,
  — o filho de Colin, MEISTRE OMER, ao serviço em Carvalho Velho,
  — o filho de Colin, MERRELL, um escudeiro na Árvore,
  — a sua irmã, RYLENE, casada com Sor Rycherd Crane.
 
 CASA FREY
 
  Poderosos, ricos e numerosos, os Frey são vassalos da Casa Tully, com as espadas ajuramentadas ao serviço de Correrrio, mas nem sempre foram diligentes em desempenhar o seu dever. Quando Robert Baratheon
defrontou Rhaegar Targaryen no Tridente, os Frey só chegaram depois da batalha terminada, e, de então em diante, o Lorde Hoster Tully chamava sempre ao Lorde Walder “o Atrasado Lorde Frey”. O Lorde Frey
só concordou em apoiar a causa do Rei no Norte depois de Robb Stark concordar com um noivado, prometendo desposar uma das suas filhas ou netas após o fim da guerra. O Lorde Walder conheceu noventa e um
dias do seu nome, mas foi recentemente que tomou a sua oitava esposa, uma rapariga com menos setenta anos do que ele. Diz-se dele que é o único senhor dos Sete Reinos que poderia tirar um exército dos
calções.
  WALDER FREY, Senhor da Travessia,
  — da sua primeira esposa, SENHORA PERRA, da Casa Royce:
  — SOR STEVRON, herdeiro das Gémeas,
  — c. Corenna Swann, morta de uma doença debilitante,
  — o filho mais velho de Stevron, SOR RYMAN,
  — o filho de Ryman, EDWYN, casado com Janyce Hunter,
  — a filha de Edwyn, WALDA, uma menina de oito anos,
  — o filho de Ryman, WALDER, chamado WALDER NEGRO,
  — o filho de Ryman, PETYR, chamado PETYR BORBULHA,
  — c. Mylenda Caron,
  — a filha de Petyr, PERRA, uma menina de cinco anos,
  — c. Jeyne Lydden, morta numa queda de um cavalo,
  — o filho de Stevron, AEGON, um idiota chamado GUIZO,
  — a filha de Stevron, MAEGELLE, morta de parto,
  — c. Sor Dafyn Vance,
  — a filha de Maegelle, MARIANNE, uma donzela,
  — o filho de Maegelle, WALDER VANCE, um escudeiro,
  — o filho de Maegelle, PATREK VANCE,
  — c. Marsella Waynwood, morta de parto,
  — o filho de Stevron, WALTON, c. Deana Hardyng,
  — o filho de Walton, STEFFON, chamado O DOCE,
  — a filha de Walton, WALDA, chamada BELA WALDA,
  — o filho de Walton, BRYAN, um escudeiro,
  — SOR EMMON, c. Genna, da Casa Lannister,
  — o filho de Emmon, SOR CLEOS, c. Jeyne Darry,
  — o filho de Cleos, TYWIN, um escudeiro de onze anos,
  — o filho de Cleos, WILLEM, um pajem em Cinzamarca,
  — o filho de Emmon, SOR LYONEL, c. Melesa Crakehall,
  — o filho de Emmon, TION, um escudeiro cativo em Correrrio,
  — o filho de Emmon, WALDER, chamado WALDER VERMELHO, um pajem em Rochedo Casterly,
  — SOR AENYS, c. Tyana Wylde, morta de parto,
  — o filho de Aenys, AEGON NASCIDO-EM-SANGUE, um fora-da-lei,
  — o filho de Aenys, RHAEGAR, c. Jeyne Beesbury,
  — o filho de Rhaegar, ROBERT, um rapaz de treze anos,
  — a filha de Rhaegar, WALDA, uma rapariga de dez anos, chamada WALDA BRANCA,
  — o filho de Rhaegar, JONOS, um rapaz de oito anos,
  — PERRIANE, c. Sor Laslyn Haigh,
  — o filho de Perriane, SOR HARYS HAIGH,
  — o filho de Harys, WALDER HAIGH, um rapaz de quatro anos,
  — o filho de Perriane, SOR DONNEL HAIGH,
  — o filho de Perriane, ALYN HAIGH, um escudeiro,
  — da sua segunda esposa, SENHORA CYRENNA, da Casa Swann:
  — SOR JARED, o seu filho mais velho, c Alys Frey,
  — o filho de Jared, SOR TYTOS, c. Zhoe Blanetree,
  — a filha de Tytos, ZIA, uma donzela de catorze anos,
  — o filho de Tytos, ZACHERY, um rapaz de doze anos, em treino no Septo de Vilavelha,
  — a filha de Jared, KYRA, c. Sor Garse Goodbrook,
  — o filho de Kyra, WALDER GOODBROOK, um rapaz de nove anos,
  — a filha de Kyra, JEYNE GOODBROOK, seis anos,
  — o SEPTÃO LUCEON, ao serviço no Grande Septo de Baelor em Porto Real,
  — da sua terceira esposa, SENHORA AMAREI, da Casa Crakehall:
  — SOR HOSTEEN, o seu filho mais velho, c. Bellena Hawick,
  — o filho de Hosteen, SOR ARWOOD, c. Ryella Royce,
  — a filha de Arwood, RYELLA, uma rapariga de cinco anos,
  — os filhos gémeos de Arwood, ANDROW e ALYN, com três anos,
  — SENHORA LYTHENE, c. Lorde Lucias Vypren,
  — a filha de Lythene, ELIANA, c. Sor Jon Wylde,
  — o filho de Elyana, RICKARD WYLDE, de quatro anos,
  — o filho de Lythene, SOR DAMON VYPREN,
  — SYMOND, c. Betharios de Bravos,
  — o filho de Symond, ALESANDER, um cantor,
  — a filha de Symond, ALYX, uma donzela de dezassete anos,
  — o filho de Symond, BRADAMAR, um rapaz de dez anos, criado em Bravos como protegido de Oro Tendyris, um mercador dessa cidade,
  — SOR DANWELL, c. Wynafrei Whent,
  — muitos nados-mortos e abortos,
  — MERRETT, c. Mariya Darry,
  — a filha de Merrett, AMEREI, chamada AMI, uma viúva de dezasseis anos, c. Sor Pate do Ramo Azul,
  — a filha de Merrett, WALDA, chamada WALDA GORDA, uma donzela de quinze anos,
  — a filha de Merrett, MARISSA, uma donzela de treze anos,
  — o filho de Merrett, WALDER, chamado PEQUENO WALDER, um rapaz de oito anos, criado em Winterfell como protegido da Senhora Catelyn Stark,
  — SOR GEREMY, afogado, c. Carolei Waynwood,
  — o filho de Geremy, SANDOR, um rapaz de doze anos, escudeiro de Sor Donnel Waynwood,
  — a filha de Geremy, CYNTHEA, uma rapariga de nove anos, protegida da Senhora Anya Waynwood,
  — SOR RAYMUND, c. Beony Beesbury,
  — o filho de Raymund, ROBERT, com dezasseis anos, em treino na Cidadela em Vilavelha,
  — o filho de Raymund, MALWYN, de quinze anos, aprendiz de um alquimista em Lys,
  — as filhas gémeas de Raymund, SERRA e SARRA, donzelas de catorze anos,
  — a filha de Raymund, CERSEI, de seis anos, chamada PEQUENA ABELHA,
  — da sua quarta esposa, SENHORA ALYSSA, da Casa Blackwood:
  — LOTHAR, o seu filho mais velho, chamado LOTHAR COXO, c. Leonella Lefford,
  — a filha de Lothar, TYSANE, uma rapariga de sete anos,
  — a filha de Lothar, WALDA, uma rapariga de quatro anos,
  — a filha de Lothar, EMBERLEI, uma rapariga de dois anos,
  — SOR JAMMOS, c. Sallei Paege,
  — o filho de Jammos, WALDER, chamado GRANDE WALDER, um rapaz de oito anos, criado em Winterfell como protegido da Senhora Catelyn Stark,
  — os filhos gémeos de Jammos, DICKON e MATHIS, com cinco anos,
  — SOR WHALEN, c. Sylwa Paege,
  — o filho de Whalen, HOSTER, um rapaz de doze anos, escudeiro de Sor Damon Paege,
  — a filha de Whalen, MERIANNE, chamada MERRY, uma rapariga de onze anos,
  — SENHORA MORYA, c. Flement Brax,
  — o filho de Morya, ROBERT BRAX, de nove anos, criado em Rochedo Casterly como pajem,
  — o filho de Morya, WALDER BRAX, um rapaz de seis anos,
  — o filho de Morya, JON BRAX, um bebé de três anos,
  — TYTA, chamada TYTA, A DONZELA, uma donzela de vinte e nove anos,
  — da sua quinta esposa, SENHORA SARYA da Casa Whent:
  — nenhuma prole,
  — da sua sexta esposa, SENHORA BETHANY, da Casa Rosby:
  — SOR PERWYN, o seu filho mais velho,
  — SOR BENFREY, c. Jyanna Frey, uma prima,
  — a filha de Benfrey, DELLA, chamada DELLA SURDA, uma rapariga de três anos,
  — o filho de Benfrey, OSMUND, um rapaz de dois anos,
  — MEISTRE WILLAMEN, ao serviço em Solar de Longarco,
  — OLYVAR, um escudeiro ao serviço de Robb Stark,
  — ROSLIN, uma donzela de dezasseis anos,
  — da sua sétima esposa, SENHORA ANNARA, da Casa Farring:
  — ARWYN, uma donzela de catorze anos,
  — WENDEL, o filho mais velho, um rapaz de treze anos, criado em Guardamar como pajem,
  — COLMAR, prometido à Fé, com onze anos,
  — WALTYR, chamado TYR, um rapaz de dez anos,
  — ELMAR, prometido a Arya Stark, um rapaz de nove anos,
  — SHIREI, uma rapariga de seis anos,
  — a sua oitava esposa, SENHORA JOYEUSE, da Casa Erenford,
  — ainda sem prole,
  — filhos naturais de Lorde Walder, de mães diversas,
  — WALDER RIVERS, chamado WALDER BASTARDO,
  — o filho do Walder Bastardo, SOR AEMON RIVERS,
  — a filha do Walder Bastardo, WALDA RIVERS,
  — MEISTRE MELWYS, ao serviço em Rosby,
  — JEYNE RIVERS, MARTYN RIVERS, RYGER RIVERS, RONEL RIVERS, MELLARA RIVERS, e outros.
 
 CASA GREYJOY
  Balon Greyjoy, Senhor das Ilhas de Ferro, liderou em tempos uma rebelião contra o Trono de Ferro, subjugada pelo Rei Robert e pelo Lorde Eddard Stark. Embora o seu filho Theon, criado em Winterfell,
fosse um dos apoiantes e mais próximos companheiros de Robb Stark, o Lorde Balon não se juntou aos homens do Norte quando marcharam para as terras fluviais.
  O selo dos Greyjoy é uma lula gigante dourada em campo negro. O seu lema é Nós Não Semeamos.
  BALON GREYJOY, Senhor das Ilhas de Ferro, Rei do Sal e da Rocha, Filho do Vento Marinho, Senhor Ceifeiro de Pyke, capitão da Grande Lula Gigante,
  — a sua esposa, SENHORA ALANNYS, da Casa Harlaw,
  — os seus filhos:
  —RODRIK, morto em Guardamar durante a rebelião Greyjoy,
  —MARON, morto em Pyke durante a Rebelião Greyjoy,
  — ASHA, capitã do Vento Negro,
  — THEON, protegido de Lorde Eddard Stark em Winterfell,
  — os seus irmãos:
  — EURON, chamado OLHO DE CORVO, capitão do Silêncio, um fora-da-lei, pirata e corsário,
  — VICTARION, Senhor Capitão da Frota de Ferro, mestre da Vitória de Ferro,
  — AERON, chamado Cabelo-Molhado, um sacerdote do Deus Afogado,
  — o seu pessoal em Pyke:
  — DAGMER, chamado BOCA-FENDIDA, mestre-de-armas, capitão do Bebedor de Espuma,
  — MEISTRE WENDAMYR, curandeiro e conselheiro,
  — HELYA, governanta do castelo,
  — pessoas de Fidalporto:
  — SIGRIN, um carpinteiro naval,
  — os senhores seus vassalos:
  — LORDE BOTLEY, de Fidalporto,
  — LORDE WYNCH, de Bosque de Ferro,
  — LORDE HARLAW, de Harlaw,
  — STONEHOUSE, de Velha Wyk,
  — DRUMM, de Velha Wyk,
  — GOODBROTHER, de Velha Wyk,
  — GOODBROTHER, de Grande Wyk,
  — LORDE MERLYN, de Grande Wyk,
  — SPARR, de Grande Wyk,
  — LORDE BLACKTYDE, de Pretamare,
  — LORDE SALTCLIFFE, de Salésia,
  — LORDE SUNDERLY, de Salésia.
 
 CASA LANNISTER
  Os Lannister de Rochedo Casterly permanecem como o principal apoio da pretensão do Rei Joffrey ao Trono de Ferro. O seu selo é um leão dourado num campo de carmim.
  O lema Lannister é Ouvi-me rugir!
  TYWIN LANNISTER, Senhor de Rochedo Casterly, Protector do Oeste, Escudo de Lannisporto, e Mão do Rei, ao comando da hoste Lannister em Harrenhal,
  — a sua esposa, SENHORA JOANNA, uma prima, morta de parto,
  — os seus filhos:
  — SOR JAIME, chamado Regicida, Protector do Leste e Senhor Comandante da Guarda Real, irmão gémeo da Rainha Cersei,
  — RAINHA CERSEI, viúva do Rei Robert, gémea de Jaime, Rainha Regente e Protectora do Território,
  — TYRION, chamado DUENDE, um anão,
  — os seus irmãos:
  — SOR KEVAN, seu irmão mais velho,
  — a esposa de Sor Kevan, DORNA, da Casa Swyft,
  — o pai da Senhora Dorna, SOR HARYS SWYFT,
  — os seus filhos:
  — SOR LANCEL, antigo escudeiro do Rei Robert, feito cavaleiro após a sua morte,
  — WILLEM, gémeo de Martyn, um escudeiro, feito cativo no Bosque dos Murmúrios,
  — MARTYN, gémeo de Willem, um escudeiro,
  — JANEI, uma menina de dois anos,
  — GENNA, sua irmã, casada com Sor Emmon Frey,
  — o filho de Genna, SOR CLEOS FREY, feito cativo no Bosque dos Murmúrios,
  — o filho de Genna, TION FREY, um escudeiro, feito cativo no Bosque dos Murmúrios,
  —SOR TYGETT, o seu segundo irmão, morto de varíola,
  — a viúva de Tygett, DARLESSA, da Casa Marbrand,
  — o filho de Tygett, TYREK, escudeiro do rei,
  —GERION, o seu irmão mais novo, perdido no mar,
  — a filha bastarda de Gerion, JOY, com onze anos,
  — o seu primo, SOR STAFFORD LANNISTER, irmão da falecida Senhora Joanna,
  — as filhas de Sor Stafford, CERENNA e MYRIELLE,
  — o filho de Sor Stafford, SOR DAVEN,
  — os senhores seus vassalos, capitães e comandantes:
  — SOR ADDAM MARBRAND, herdeiro de Cinzamarca, comandante dos batedores de Lorde Tywin,
  — SOR GREGOR CLEGANE, a Montanha Que Cavalga,
  — POLLIVER, CHISWYCK, RAFF, O QUERIDO, DUNSEN e CÓCEGAS, soldados ao seu serviço,
  — LORDE LEO LEFFORD,
  — SOR AMORY LORCH, um capitão dos destacamentos logísticos,
  — LEWIS LYDDEN, Senhor de Toca Funda,
  — GAWEN WESTERLING, Senhor do Despenhadeiro, feito cativo no Bosque dos Murmúrios e mantido em Guardamar,
  — SOR ROBERT BRAX e o irmão, SOR FLEMENT BRAX,
  — SOR FORLEY PRESTER, do Dente Dourado,
  — VARGO HOAT, da Cidade Livre de Qohor, capitão da companhia de mercenários chamada Bravos Companheiros,
  — MEISTRE CREYLEN, o seu conselheiro.
 
 CASA MARTELL
  Dorne foi o último dos Sete Reinos a jurar lealdade ao Trono de Ferro. Tanto o sangue, como os costumes, como a história distinguem os homens de Dorne dos outros reinos. Quando rebentou a guerra de
sucessão, o Príncipe de Dorne manteve o silêncio e não participou.
  O estandarte Martell é um sol vermelho trespassado por uma lança dourada. O seu lema é Insubmissos, não curvados, não quebrados.
  DORAN NYMEROS MARTELL, Senhor de Lançasolar, Príncipe de Dorne,
  — a sua esposa, MELLARIO, da Cidade Livre de Norvos,
  — os seus filhos:
  — PRINCESA ARIANNE, a filha mais velha, herdeira de Lançasolar,
  — PRÍNCIPE QUENTYN, o filho mais velho,
  — PRÍNCIPE TRYSTANE, o filho mais novo,
  — os seus irmãos:
  — a sua irmã, PRINCESA ELIA, casada com o Príncipe Rhaegar Targaryen, morta durante o Saque de Porto Real,
  — a filha de Elia, PRINCESA RHAENYS, uma rapariguinha, assassinada durante o Saque de Porto Real,
  — o filho de Elia, PRÍNCIPE AEGON, um bebé, morto durante o Saque de Porto Real,
  — o seu irmão, PRÍNCIPE OBERYN, o Víbora Negra,
  — o pessoal da sua casa:
  — AREO HOTAH, um mercenário morvoshi, capitão dos guardas,
  — MEISTRE CALEOTTE, conselheiro, curandeiro e tutor,
  — os senhores seus vassalos:
  — EDRIC DAYNE, Senhor de Tombastela.
  As principais casas vassalas de Lançasolar incluem as seguintes: Jordayne, Santagar, Allyrion, Toland, Yronwood, Wyl, Fowler e Dayne.

 CASA TYRELL
  O Lorde Tyrell de Jardim de Cima declarou o seu apoio ao Rei Renly após o casamento de Renly com a filha Margaery, e trouxe a maior parte dos seus principais vassalos para a causa de Renly. O símbolo
dos Tyrell é uma rosa dourada em campo verde-relva. O seu lema é: Crescendo fortes.
  MACE TYRELL, Senhor de Jardim de Cima, Protector do Sul, Defensor das Marcas, Supremo Marechal da Campina e Mão do Rei,
  — a sua esposa, SENHORA ALERIE, da Casa Hightower de Vilavelha,
  — os seus filhos:
  — WILLAS, o filho mais velho, herdeiro de Jardim de Cima,
  — SOR GARLAN, chamado GALANTE, o segundo filho,
  — SOR LORAS, o Cavaleiro das Flores, o filho mais novo, Senhor Comandante da Guarda Arco-Íris,
  — MARGAERY, a sua filha, uma donzela de quinze anos, recentemente casada com Renly Baratheon,
  — a sua mãe viúva, a SENHORA OLENNA, da Casa Redwyne, chamada RAINHA DOS ESPINHOS,
  — as suas irmãs:
  — MINA, casada com Lorde Paxter Redwyne, Senhor da Árvore,
  — os seus filhos:
  — SOR HORAS REDWYNE, gémeo de Hobber, escarnecido como Horror,
  — SOR HOBBER REDWYNE, gémeo de Horas, escarnecido como Babeiro,
  — DESMERA REDWYNE, uma donzela de dezasseis anos,
  — JANNA, casada com Sor Jon Fossoway,
  — os seus tios:
  — GARTH, chamado o GROSSO, Senhor Senescal de Jardim de Cima,
  — os seus filhos bastardos, GARSE e GARRETT FLOWERS,
  — SOR MORYN, Senhor Comandante da Patrulha da Cidade de Vilavelha,
  — MEISTRE GORMON, um erudito da Cidadela,
  — o pessoal da sua casa:
  — MEISTRE LOMYS, conselheiro, curandeiro e tutor,
  — IGON VYRWELL, capitão da guarda,
  — SOR VORTIMER CRANE, mestre-de-armas,
  — BOSSAS-DE-MANTEIGA, bobo, enormemente gordo.
 
 OS HOMENS DA PATRULHA DA NOITE
  A Patrulha da Noite protege o reino, e jurou não tomar parte em guerras civis e competições pelo trono. Tradicionalmente, em épocas de rebelião, honram todos os reis e não obedecem a nenhum.

  EM CASTELO NEGRO
  JEOR MORMONT, Senhor Comandante da Patrulha da Noite, chamado o VELHO URSO,
  — o seu intendente e escudeiro, JON SNOW, o bastardo de Winterfell, chamado LORDE SNOW,
  — o lobo gigante branco de Jon, FANTASMA,
  — MEISTRE AEMON (TARGARYEN), conselheiro e curandeiro,
  — SAMWELL TARLY e CLYDAS, os seus intendentes,
  — BENJEN STARK, Primeiro Patrulheiro, desaparecido para lá da Muralha,
  — THOREN SMALLWOOD, patrulheiro chefe,
  — JARMEN BUCKWELL, patrulheiro chefe,
  — SOR OTTYN WYTHERS, SOR ALADALE WYNCH, GRENN, PYPAR, MATTHAR, ELRON, LARK, chamado HOMEM DAS IRMÃS, patrulheiros,
  — OTHELL YARWYCK, Primeiro Construtor,
  — HALDER, ALBETT, construtores,
  — BOWEN MARSH, Senhor Intendente,
  — CHETT, intendente e tratador de cães,
  — EDDISON TOLLETT, chamado EDD DOLOROSO, um escudeiro severo,
  — SEPTÃO CELLADAR, um devoto ébrio,
  — SOR ENDREW TARTH, mestre-de-armas,
  — irmãos de Castelo Negro:
  — DONAL NOYE, armeiro e ferreiro, sem um braço,
  — HOBB TRÊS-DEDOS, cozinheiro,
  — JEREN, RAST, CUGEN, recrutas ainda em treino,
  — CONWY, GUEREN, “corvos errantes”, recrutadores que recolhem rapazes órfãos e criminosos para a Muralha,
  — YOREN, o chefe dos “corvos errantes”,
  — PRAED, CUTJACK, WOTH, REYSEN, QYLE, recrutas a caminho da Muralha,
  — KOSS, GERREN, DOBBER, KURZ, DENTADAS, RORGE, JAQEN H’GHAR, criminosos a caminho da Muralha,
  — LOMMY MÃOS-VERDES, GENDRY, TARBER, TARTE QUENTE, ARRY, rapazes órfãos a caminho da Muralha.

  EM ATALAIALESTE DO MAR
  COTTER PYKE, Comandante, Atalaialeste,
  — SOR ALLISER THORNE, mestre-de-armas,
  — irmãos de Atalaialeste:
  — DAREON, intendente e cantor.

  NA TORRE SOMBRIA
  SOR DENYS MALLISTER, Comandante, Torre Sombria,
  — QHORIN, chamado MEIA-MÃO, patrulheiro chefe,
  — EBBEN, STONESNAKE, patrulheiros.
 
 Leia nas próximas páginas um excerto do 7º Volume da série As Crónicas de Gelo e Fogo

  O Festim dos Corvos
  Continuando a saga mais ambiciosa e imaginativa desde O Senhor dos Anéis, As Crónicas de Gelo e Fogo prosseguem após o violento triunfo dos traidores.
  Enquanto os senhores do Norte lutam incessantemente uns contra os outros e os Homens de Ferro estão prestes a emergir como uma força implacável, a rainha regente Cersei tenta manter intacta a força
dos leões em Porto Real.
  Os jovens lobos, sedentos por vingança, estão dispersos pela terra, cada um envolvido no perigoso jogo dos tronos. Arya abandonou Westeros rumo a Bravos, Bran desapareceu na vastidão enigmática para
além da Muralha, Sansa está nas mãos do ambicioso e maquiavélico Mindinho, Jon Snow foi proclamado comandante da Muralha mas tem que enfrentar a vontade férrea do rei Stannis e, no meio de toda a intriga,
começam a surgir histórias do outro lado do mar sobre dragões vivos e fogo…
  Numa terra onde muitos se proclamaram como reis e rainhas, todos estão convidados para O Festim dos Corvos. Venha descobrir quem serão os sobreviventes!
  Mais informações em
  www.saidadeemergencia.com

 DEDICATÓRIA
  Para Stephen Boucher

  feiticeiro do Windows, dragão do DOS

  sem o qual este livro teria sido

  escrito a lápis
 
 PRÓLOGO
  –Dragões — disse Mollander. Pegou numa maçã estragada que estava no chão e fê-la saltar de mão em mão.
  — Atira a maçã — pediu Alleras, o Esfinge. Puxou uma seta da aljava e prendeu-a na corda do arco.
  — Eu gostava de ver um dragão. — Roone era o mais novo do grupo, um rapaz atarracado ainda a dois anos de se fazer homem. — Gostava mesmo muito.
  E eu gostava de dormir com os braços da Rosey à minha volta, pensou Pate. Mexeu-se inquieto no banco. De manhã a rapariga podia bem ser sua. Vou levá-la para longe de Vilavelha, para o outro lado do
mar estreito até uma das Cidades Livres. Lá não havia meistres, não existia ninguém que o acusasse.
  Ouvia as gargalhadas de Emma, vindas de uma janela de portadas fechadas, por cima da sua cabeça, misturadas com a voz mais profunda do homem que estava a receber. Era a mais velha das mulheres que serviam
no Pena e Caneca, tinha pelo menos quarenta anos, mas ainda era bonita ao seu jeito carnudo. Rosey era sua filha, com quinze anos e acabada de florir. Emma decretara que a virgindade de Rosey custaria
um dragão de ouro. Pate poupara nove veados de prata e um cântaro de estrelas e dinheiros de cobre, mas isso de nada lhe serviria. Teria tido mais hipóteses de trazer ao mundo um dragão verdadeiro do
que de poupar moedas suficientes para uma de ouro.
  — Nasceste tarde demais para dragões, moço — disse a Roone Armen, o Acólito. Armen usava uma tira de couro em volta do pescoço, amarrada com elos de peltre, estanho, chumbo e cobre, e tal como a maioria
dos acólitos parecia pensar que os noviços tinham nabos a crescer entre os ombros no lugar das cabeças. — O último pereceu durante o reinado do Rei Aegon Terceiro.
  — O último dragão em Westeros — insistiu Mollander.
  — Atira a maçã — voltou a pedir Alleras. Era um jovem bem-parecido, aquele Esfinge. Todas as criadas tinham um fraco por ele. Até Rosey lhe tocava por vezes no braço quando lhes trazia vinho, e Pate
tinha de ranger os dentes e fingir não ver.
  — O último dragão em Westeros foi o último dragão — disse Armen com teimosia. — Isso é bem sabido.
  — A maçã — disse Alleras. — A menos que queiras comê-la.
  — Toma lá. — Arrastando a perna de pau, Mollander deu um curto salto, rodopiou e arremessou horizontalmente a maçã para as névoas que pairavam sobre o Vinhomel. Se não fosse o pé, teria sido um cavaleiro
como o pai. Tinha a força necessária naqueles braços grossos e ombros largos. A maçã voou para longe e lesta…
  … mas não tão lesta como a seta que assobiou no seu encalço, um metro de haste de madeira dourada com penas escarlates. Pate não viu a seta atingir a maçã, mas ouviu-a. Um tchunc suave ecoou por sobre
o rio, seguido por um esparrinhar de água.
  Mollander assobiou.
  — Mesmo em cheio. Boa.
  Nem de perto tão boa como Rosey. Pate adorava os seus olhos cor de avelã e os seus seios em botão, e o modo como ela sorria sempre que o via. Adorava as covinhas no seu rosto. Ela por vezes andava descalça
enquanto servia, para sentir a erva sob os pés. Também adorava isso. Adorava o cheiro limpo e fresco que ela exalava, o modo como o cabelo se lhe curvava sob as orelhas. Até adorava os seus dedos dos
pés. Uma noite deixara-o esfregar-lhe os pés e brincar com eles, e ele inventara uma história divertida para cada dedo, a fim de a pôr aos risinhos.
  Talvez fizesse melhor em permanecer deste lado do mar estreito. Podia comprar um burro com o dinheiro que poupara, e ele e Rosey podiam montá-lo por turnos enquanto vagueavam por Westeros. Ebrose podia
não o achar merecedor da prata, mas Pate sabia como endireitar um osso e curar uma febre com sanguessugas. O povo ficaria grato pela sua ajuda. Se conseguisse aprender a cortar cabelo e a fazer barbas,
podia mesmo tornar-se barbeiro. Isso seria o bastante, disse a si próprio, desde que tivesse a Rosey. A Rosey era tudo o que desejava no mundo.
  Nem sempre fora assim. Em tempos sonhara em ser um meistre num castelo, ao serviço de um qualquer senhor generoso que o honrasse pela sua sabedoria e lhe concedesse um belo cavalo branco a fim de lhe
agradecer pelos seus serviços. E quão alto o montaria, quão nobremente, concedendo sorrisos aos plebeus quando passasse por eles na estrada…
  Uma noite na sala comum do Pena e Caneca, após a segunda caneca de uma cidra terrivelmente forte, Pate gabara-se de que não seria noviço para sempre.
  — É bem verdade — gritara o Leo Preguiçoso. — Vais ser um antigo noviço, a criar porcos.
  Deixou a seco as borras na caneca. A varanda iluminada a archote do Pena e Caneca era naquela manhã uma ilha de luz num mar de névoa. A jusante, o distante sinal luminoso da Torralta flutuava no relento
da noite como uma lua alaranjada e brumosa, mas a luz pouco fez para lhe melhorar o estado de espírito.
  O alquimista já devia ter chegado por esta hora. Teria sido tudo alguma partida cruel, ou teria algo acontecido ao homem? Não seria a primeira vez que a fortuna cobria Pate de amargura. Uma vez achara-se
afortunado por ter sido escolhido para ajudar o velho Arquimeistre Walgrave com os corvos, sem sonhar que em breve estaria também a ir buscar as refeições do homem, a varrer os seus aposentos e a vesti-lo
todas as manhãs. Todos diziam que Walgrave esquecera mais da criação de corvos do que a maior parte dos meistres chegavam a saber, portanto Pate assumira que um elo negro de ferro era o mínimo que poderia
esperar, mas acabara por descobrir que Walgrave não lho poderia dar. O velho continuava a ser arquimeistre apenas por cortesia. Por maior que tivesse sido como meistre, agora o mais frequente era que
as suas vestes escondessem roupa interior emporcalhada, e meio ano antes um grupo de acólitos tinha-o encontrado a chorar na Biblioteca, sem ser capaz de encontrar o caminho de regresso aos seus aposentos.
Era o Meistre Gormon que se sentava sob a máscara de ferro no lugar de Walgrave, o mesmo Gormon que um dia acusara Pate de roubo.
  Na macieira, junto à água, um rouxinol começou a cantar. Era um som doce, uma pausa bem-vinda nos gritos roucos e no crocitar sem fim dos corvos de que cuidara o dia inteiro. Os corvos brancos conheciam
o seu nome, e resmungavam-no uns para os outros sempre que o vislumbravam, “Pate, Pate, Pate”, até o deixar a ponto de gritar. As grandes aves brancas eram o orgulho do arquimeistre Walgrave. Desejava
que o comessem quando morresse, mas Pate andava meio desconfiado de que também pretendiam comê-lo a ele.
  Talvez fosse a cidra terrivelmente forte — não viera para beber, mas Alleras estivera a pagar, para festejar o seu elo de cobre, e a culpa dera-lhe sede — mas quase soava como se o rouxinol estivesse
a trinar ouro por ferro, ouro por ferro, ouro por ferro. O que era muitíssimo estranho, pois fora isso o que o estranho dissera na noite em que Rosey os juntara.
  — Quem sois? — quisera saber Pate, e o homem respondera:
  — Um alquimista. Sei transformar ferro em ouro. — E então tinha a moeda na mão, dançando sobre os nós dos dedos, fazendo brilhar o suave ouro amarelo à luz das velas. De um lado tinha um dragão de três
cabeças, do outro a cabeça de um qualquer rei morto. Ouro por ferro, recordou Pate, não conseguirás melhor. Deseja-la? Ama-la?
  — Não sou nenhum ladrão — dissera ao homem que se designava por alquimista. — Sou um noviço da Cidadela. — O alquimista inclinara a cabeça e dissera:
  — Se reconsiderares, voltarei aqui dentro de três dias, com o meu dragão.
  Tinham-se passado três dias. Pate regressara ao Pena e Caneca, ainda incerto do que seria, mas em vez do alquimista encontrara Mollander, Armen e o Esfinge, com Roone a reboque. Teria levantado suspeitas
se não se lhes juntasse.
  O Pena e Caneca nunca fechava. Havia seiscentos anos que se erguia na sua ilha no Vinhomel, e nem por uma vez tivera as portas fechadas ao negócio. Embora o alto edifício de madeira se inclinasse para
sul como os noviços por vezes se inclinavam após beberem uma caneca, Pate supunha que a estalagem continuaria em pé por mais seiscentos anos, vendendo vinho, cerveja e cidra terrivelmente forte a homens
do rio e do mar, a ferreiros e cantores, a sacerdotes e príncipes, e aos noviços e acólitos da Cidadela.
  — Vilavelha não é o mundo — declarou Mollander, alto demais. Era filho de um cavaleiro, e não poderia estar mais bêbado. Desde que lhe tinham trazido a notícia da morte do pai na Água Negra, embebedava-se
quase todas as noites. Até em Vilavelha, longe da refrega e em segurança atrás das suas muralhas, a Guerra dos Cinco Reis tocara-os a todos… embora o Arquimeistre Benedict insistisse que nunca houvera
uma guerra de cinco reis, uma vez que Renly Baratheon fora morto antes de Balon Greyjoy se ter coroado.
  — O meu pai sempre disse que o mundo era maior do que o castelo de qualquer senhor — prosseguiu Mollander. — Os dragões devem ser a menor das coisas que um homem poderá encontrar em Qarth, Asshai e
Yi Ti. Estas histórias dos marinheiros…
  — … são histórias contadas por marinheiros — interrompeu Armen. — Marinheiros, meu caro Mollander. Vai lá abaixo às docas, e aposto que hás-de encontrar marinheiros que te falarão das sereias com que
dormiram, ou de como passaram um ano na barriga de um peixe.
  — Como é que sabes que não passaram? — Mollander bateu os pés pela relva fora, à procura de mais maçãs. — Tinhas de estar tu próprio na barriga para jurar que não passaram. Um marinheiro com uma história,
está bem, um homem podia rir-se dela, mas quando remadores vindos de quatro navios diferentes contam a mesma história em quatro línguas diferentes…
  — A história não é a mesma — insistiu Armen. — Dragões em Asshai, dragões em Qarth, dragões em Meereen, dragões dothraki, dragões a libertar escravos… todos os contos são diferentes uns dos outros.
  — Só nos detalhes. — Mollander ficava mais teimoso quando bebia, e até sóbrio era obstinado. — Todos falam de dragões, e de uma bela jovem rainha.
  O único dragão que interessava a Pate era feito de ouro amarelo. Perguntou a si próprio o que teria acontecido ao alquimista. Ao terceiro dia. Ele disse que estaria aqui.
  — Há outra maçã junto do teu pé — gritou Alleras a Mollander — e eu ainda tenho duas setas na aljava.
  — Que se foda a tua aljava. — Mollander apanhou o fruto caído. — Esta tem bicho — protestou, mas atirou-a na mesma. A seta atingiu a maçã quando ela começava a cair e cortou-a ao meio. Uma metade caiu
no telhado de um torreão, tombou até um telhado mais baixo, saltou, e não acertou em Armen por meio metro.
  — Se cortardes um verme em dois, criareis dois vermes — informou-os o acólito.
  — Se ao menos acontecesse o mesmo com as maçãs, nunca ninguém precisaria de passar fome — disse Alleras com um dos seus sorrisos suaves. O Esfinge andava sempre a sorrir, como se conhecesse algum gracejo
secreto. Isso dava-lhe um aspecto malicioso que combinava bem com o queixo pontiagudo, com o bico que a linha do cabelo formava a meio da testa, e com o denso matagal de caracóis negros de azeviche cortados
curtos.
  Alleras chegaria a meistre. Só estava na Cidadela há um ano, mas já forjara três elos da sua corrente de meistre. Armen podia ter mais, mas levara um ano a ganhar cada um dos seus. Mesmo assim, ele
também chegaria a meistre. Roone e Mollander continuavam a ser noviços de pescoço rosado, mas Roone era muito novo e Mollander gostava mais de beber do que de ler.
  Mas Pate…
  Estava na Cidadela há cinco anos, tendo chegado com não mais de treze, mas o seu pescoço permanecia tão rosado como fora no dia em que viera das terras ocidentais. Julgara-se pronto por duas vezes.
Da primeira apresentara-se ao Arquimeistre Vaellyn para demonstrar o seu conhecimento dos céus. Em vez disso ficara a saber como fora que o Vinagre Vaellyn ganhara esse nome. Pate levara dois anos a reunir
coragem para voltar a tentar. Dessa vez, submetera-se ao velho e amável Arquimeistre Ebrose, famoso pela sua voz suave e mãos gentis, mas os suspiros de Ebrose revelaram-se tão dolorosos como as farpas
de Vaellyn.
  — Uma última maçã — prometeu Alleras — e eu conto-vos as minhas suspeitas acerca desses dragões.
  — Que poderás tu saber que eu não saiba? — resmungou Mollander. Localizou uma maçã num ramo, saltou, arrancou-a e arremessou-a. Alleras puxou a corda do arco até à orelha, virando-se habilmente para
seguir o alvo em voo. Largou a seta precisamente no momento em que a maçã começava a cair.
  — Falhas sempre o último tiro — disse Roone.
  A maçã mergulhou no rio, intacta.
  — Vês? — disse Roone.
  — No dia em que acertares todos é o dia em que paras de melhorar. — Alleras desprendeu a corda do arco e enfiou-o no seu estojo de couro. O arco fora esculpido em amagodouro, uma madeira rara e lendária
das Ilhas do Verão. Pate tentara uma vez dobrá-lo, e falhara. O Esfinge parece franzino, mas há força naqueles braços magros, reflectiu, enquanto Alleras fazia passar uma perna por sobre o banco e estendia
a mão para a taça de vinho. — O dragão tem três cabeças — anunciou, na sua arrastada pronúncia dornesa.
  — Isso é um enigma? — quis saber Roone. — Nas histórias, as esfinges falam sempre por enigmas.
  — Não é enigma nenhum. — Alleras beberricou do vinho. Os outros emborcavam canecas da cidra terrivelmente forte pela qual o Pena e Caneca era afamado, mas ele preferia os estranhos vinhos doces do país
da mãe. Mesmo em Vilavelha, tais vinhos não se obtinham a baixo preço.
  Fora o Leo Preguiçoso quem alcunhara Alleras como “o Esfinge”. Uma esfinge é um pouco disto, um pouco daquilo: uma cara humana, o corpo de um leão, as asas de um falcão. Alleras era igual: o pai era
dornês, a mãe uma mulher de pele negra das Ilhas do Verão. A sua pele era escura como teca. E, tal como as esfinges de mármore verde que flanqueavam o portão principal da Cidadela, Alleras tinha olhos
de ónix.
  — Nunca nenhum dragão teve três cabeças, excepto em escudos e bandeiras — disse Armen, o Acólito, com firmeza. — Isso é um símbolo heráldico, nada mais. Além disso, os Targaryen estão todos mortos.
  — Nem todos — disse Alleras. — O Rei Pedinte tinha uma irmã.
  — Julgava que a cabeça dela tinha sido esmagada contra uma parede — disse Roone.
  — Não — disse Alleras. — Foi a cabeça do jovem filho do Príncipe Rhaegar que foi atirada contra uma parede pelos bravos homens do Leão de Lannister. Estamos a falar da irmã de Rhaegar, nascida em Pedra
do Dragão antes do castelo cair. Aquela a quem chamaram Daenerys.
  — A Nascida na Tormenta. Agora lembro-me. — Mollander ergueu bem alto a caneca, agitando a cidra que restava. — A ela! — Emborcou, bateu com a caneca vazia na mesa, arrotou, e limpou a boca com as costas
da mão. — Onde está a Rosey? A nossa legítima rainha merece outra rodada de cidra, não vos parece?
  Armen, o Acólito, fez uma expressão de alarme.
  — Baixa a voz, palerma. Nem devias brincar com essas coisas. Nunca se sabe quem poderá estar a ouvir. A Aranha tem ouvidos por todo o lado.
  — Oh, não mijes as bragas, Armen. Estava a propor uma bebida, não uma rebelião.
  Pate ouviu um risinho abafado. Uma voz suave e zombeteira gritou atrás dele.
  — Sempre soube que tu eras um traidor, Salto de Rã. — O Leo Preguiçoso estava encostado à base da antiga ponte de pranchas, envolto em cetim listado de verde e dourado, com uma meia capa de seda negra
presa ao ombro por uma rosa de jade. O vinho que deixara pingar na parte da frente do trajo fora um robusto tinto, ajuizando pela cor das manchas. Uma madeixa do seu cabelo louro-cinza caía-lhe por sobre
um olho.
  Mollander irritou-se ao vê-lo.
  — Que se lixe isso. Vai-te embora. Não és bem-vindo aqui. — Alleras pousou-lhe uma mão no braço para o acalmar, enquanto Armen franzia o sobrolho.
  — Leo. Senhor. Julgava que estáveis ainda confinado à Cidadela durante…
  — … mais três dias. — O Leo Preguiçoso encolheu os ombros. — O Perestan diz que o mundo tem quarenta mil anos. Mollos diz que tem quinhentos mil. Que são três dias, pergunto-vos? — Embora houvesse uma
dúzia de mesas vazias na varanda, Leo sentou-se na deles. — Compra-me uma taça de dourado da Árvore, Salto de Rã, e eu talvez não informe o meu pai sobre o teu brinde. As pedras viraram-se contra mim
na Sorte Xadrez, e desperdicei o meu último veado no jantar. Leitão com molho de ameixas, recheado de castanhas e trufas brancas. Um homem tem de comer. O que comestes vós, rapazes?
  — Carneiro — resmungou Mollander. Não soava nada satisfeito com isso. — Partilhámos um quarto de carneiro cozido.
  — Estou certo de que vos saciou. — Leo virou-se para Alleras. — O filho de um senhor devia ser generoso, Esfinge. Soube que ganhaste o teu elo de cobre. Bebo a isso.
  Alleras sorriu-lhe.
  — Eu só pago aos amigos. E não sou nenhum filho de senhor, já te tinha dito. A minha mãe era uma mercadora.
  Os olhos de Leo eram cor de avelã, brilhantes de vinho e malícia.
  — A tua mãe era uma macaca das Ilhas do Verão. Os dorneses fodem qualquer coisa que tenha um buraco entre as pernas. Sem ofensa. Podes ser castanho como uma noz, mas pelo menos tomas banho. Ao contrário
do nosso criador de porcos malhado. — Indicou Pate com um aceno de mão.
  Se lhe bater na boca com a caneca, podia partir-lhe metade dos dentes, pensou Pate. Pate Malhado, o criador de porcos, era o herói de mil histórias libertinas: um rústico de bom coração e cabeça vazia
que conseguia sempre levar de vencida os fidalgos gordos, os altivos cavaleiros, e os septões pomposos que lhe criavam dificuldades. De algum modo, a sua estupidez revelava ser uma espécie de astúcia
rude; as histórias terminavam sempre com o Pate Malhado sentado no cadeirão de um lorde ou a dormir com a filha de um cavaleiro. Mas isso eram as histórias. No mundo real, os criadores de porcos nunca
se davam tão bem. Pate por vezes achava que a mãe o devia ter odiado, para lhe dar o nome que dera.
  Alleras já não estava a sorrir.
  — Vais pedir desculpa.
  — Ah vou? — disse Leo. — Como serei capaz de tal, com a garganta tão seca…
  — Envergonhas a tua Casa com cada palavra que dizes — disse-lhe Alleras. — Envergonhas a Cidadela por seres um de nós.
  — Eu sei. Portanto paga-me um pouco de vinho, para que eu possa afogar a minha vergonha.
  Mollander disse:
  — Eu gostava de te arrancar a língua pela raiz.
  — A sério? Então como é que eu vos contaria sobre os dragões? — Leo voltou a encolher os ombros. — O mestiço tem razão. A filha do Rei Louco está viva, e conseguiu fazer nascer três dragões.
  — Três? — disse Roone, espantado.
  Leo deu-lhe palmadinhas na mão.
  — Mais do que dois e menos do que quatro. Eu se fosse a ti não tentava ganhar o elo dourado por enquanto.
  — Deixa-o em paz — avisou Mollander.
  — Que Salto de Rã tão cavalheiresco. Como queiras. Todos os homens de todos os navios que velejaram a menos de cem léguas de Qarth estão a falar desses dragões. Alguns até vos dirão que os viram. O
Mago está inclinado a crer neles.
  Armen apertou os lábios com desaprovação.
  — Marwyn é insano. O Arquimeistre Perestan seria o primeiro a dizer-vos isso.
  — O Arquimeistre Ryam diz o mesmo — disse Roone.
  Leo bocejou.
  — O mar é molhado, o sol é quente, e os animais enjaulados odeiam o mastim.
  Ele tem um nome trocista para toda a gente, pensou Pate, mas não podia negar que Marwyn se parecia mais com um mastim do que com um meistre. É como se quisesse morder-nos. O Mago não era como os outros
meistres. Dizia-se que ele se fazia acompanhar de prostitutas e de feiticeiros andantes, que falava com ibbeneses peludos e ilhéus do verão negros como breu nas suas próprias línguas, e fazia sacrifícios
a deuses estranhos nos pequenos templos dos marinheiros que se erguiam junto aos molhes. Os homens falavam de o terem visto na parte esconsa da cidade, em arenas de ratazanas e bordéis negros, na companhia
de saltimbancos, cantores, mercenários, até pedintes. Alguns chegavam mesmo a sussurrar que ele uma vez matara um homem com os punhos.
  Quando Marwyn regressara a Vilavelha, depois de passar oito anos no leste a mapear terras distantes, em busca de livros perdidos, e a estudar com feiticeiros e umbromantes, o Vinagre Vaellyn apelidara-o
de “Marwyn, o Mago”. O nome espalhara-se rapidamente por toda a Vilavelha, para grande aborrecimento de Vaellyn.
  — Deixa os feitiços e as preces para os sacerdotes e os septões, e vira a inteligência para a aprendizagem de verdades em que um homem possa confiar — aconselhara o Arquimeistre Ryam uma vez a Pate,
mas o anel, bastão e máscara de Ryam eram de ouro amarelo, e a sua corrente de meistre não incluía um elo de aço valiriano.
  Armen olhou ao longo do nariz para o Leo Preguiçoso. Tinha o nariz perfeito para isso, longo, estreito e pontiagudo.
  — O Arquimeistre Marwyn acredita em muitas coisas curiosas — disse — mas não tem mais provas sobre os dragões do que Mollander. Só tem mais histórias de marinheiro.
  — Enganas-te — disse Leo. — Há uma vela de vidro a arder nos aposentos do Mago.
  Um silêncio caiu sobre a varanda iluminada por archotes. Armen suspirou e abanou a cabeça. Mollander pôs-se a rir. O Esfinge estudou Leo com os seus grandes olhos negros. Roone pareceu não compreender.
  Pate sabia das velas de vidro, embora nunca tivesse visto uma a arder. Eram o segredo mais mal guardado da Cidadela. Dizia-se que tinham sido trazidas de Valíria para Vilavelha mil anos antes da Perdição.
Ouvira dizer que havia quatro; uma era verde e três negras, e todas eram altas e retorcidas.
  — O que são essas velas de vidro? — perguntou Roone.
  Armen, o Acólito, pigarreou.
  — Antes de um acólito proferir os seus votos, tem de passar a noite anterior de vigília na cave. Não lhe é permitida lanterna, archote, lâmpada ou círio… só uma vela de obsidiana. Tem de passar a noite
na escuridão, a menos que seja capaz de acender essa vela. Alguns tentam. Os tolos e os teimosos, aqueles que estudaram os ditos mistérios superiores. É frequente cortarem os dedos, pois diz-se que as
arestas das velas são afiadas como navalhas. Então, com mãos ensanguentadas, têm de esperar a alvorada, cismando sobre o seu falhanço. Homens mais sensatos vão simplesmente dormir, ou passam a noite em
oração, mas todos os anos há sempre alguns que têm de tentar.
  — Sim. — Pate ouvira as mesmas histórias. — Mas de que serve uma vela que não dá luz?
  — É uma lição — disse Armen — a última lição que temos de aprender antes de pormos as nossas correntes de meistre. A vela de vidro pretende representar a verdade e a aprendizagem, coisas raras, belas
e frágeis. Tem a forma de uma vela para nos lembrar de que um meistre deve iluminar o lugar em que prestar serviço, e é cortante para nos lembrar de que o conhecimento pode ser perigoso. Os sábios podem
tornar-se arrogantes da sua sabedoria, mas um meistre deve permanecer sempre humilde. A vela de vidro lembra-nos também disso. Mesmo depois de ter proferido os votos, colocado a corrente e partido para
servir, um meistre recordará a escuridão da sua vigília e lembrar-se-á de que nada do que fizera conseguira fazer com que a vela ardesse… pois mesmo com o conhecimento, algumas coisas não são possíveis.
  O Leo Preguiçoso desatou à gargalhada.
  — Não são possíveis para ti, queres tu dizer. Eu vi a vela a arder com os meus próprios olhos.
  — Vistes uma vela a arder, não duvido — disse Armen. — Uma vela de cera negra, talvez.
  — Eu sei o que vi. A luz era estranha e brilhante, muito mais brilhante do que a de qualquer vela de cera de abelha ou de sebo. Gerava sombras estranhas e a chama nunca oscilava, nem mesmo quando uma
brisa soprou pela porta aberta atrás de mim.
  Armen cruzou os braços.
  — A obsidiana não arde.
  — Vidro de dragão — disse Pate. — O povo chama-lhe vidro de dragão. — Não sabia porquê, mas aquilo parecia-lhe importante.
  — Pois chama — meditou Alleras, o Esfinge — e se houver de novo dragões no mundo…
  — Dragões e coisas mais escuras — disse Leo. — As ovelhas cinzentas fecharam os olhos, mas o mastim vê a verdade. Velhos poderes acordam. Sombras agitam-se. Uma era de maravilha e terror cairá em breve
sobre nós, uma era para deuses e heróis. — Espreguiçou-se, exibindo o seu sorriso indolente. — Isto vale uma rodada, julgo eu.
  — Já bebemos o suficiente — disse Armen. — A manhã chegará mais depressa do que gostaríamos, e o Arquimeistre Ebrose irá falar sobre as propriedades da urina. Aqueles que tencionam forjar um elo de
prata fariam bem em não perder a sua palestra.
  — Longe de mim afastar-vos da prova de mijo — disse Leo. — Cá por mim, prefiro o sabor do dourado da Árvore.
  — Se a escolha for entre ti e o mijo, eu bebo o mijo. — Mollander afastou-se da mesa. — Vem, Roone.
  O Esfinge estendeu a mão para o estojo do arco.
  — Para mim também é cama. Imagino que sonharei com dragões e velas de vidro.
  — Todos? — Leo encolheu os ombros. — Bem, a Rosey fica. Talvez acorde a nossa pequena doçura e faça dela uma mulher.
  Alleras viu a expressão no rosto de Pate.
  — Se ele não tem um cobre para uma taça de vinho, não pode ter um dragão para a rapariga.
  — Pois — disse Mollander. — Além disso, é preciso ser-se homem para fazer duma rapariga uma mulher. Vem connosco, Pate. O Velho Walgrave há-de acordar quando o sol nascer. Ele vai precisar que o ajudes
a ir à latrina.
  Se hoje se lembrar de quem sou. O Arquimeistre Walgrave não tinha dificuldade em distinguir os corvos uns dos outros, mas não era tão bom com as pessoas. Havia dias em que parecia pensar que Pate era
alguém chamado Cressen.
  — Ainda não — disse aos amigos. — Vou ficar por algum tempo. — A alvorada ainda não rompera, não propriamente. O alquimista podia ainda vir, e Pate tencionava estar ali se ele viesse.
  — Como queiras — disse Armen. Alleras deitou a Pate um olhar demorado, após o que pendurou o arco num ombro magro e seguiu os outros na direcção da ponte. Mollander estava tão bêbado que tinha de caminhar
com uma mão no ombro de Roone para evitar cair. A Cidadela não ficava a uma grande distância em voo de corvo, mas nenhum deles era um corvo, e Vilavelha era um verdadeiro labirinto, cheia de ruelas, vielas
entrecruzadas e ruas estreitas e tortuosas.
  — Cuidado — ouviu Armen dizer quando as névoas do rio engoliram os quatro — a noite está húmida, e as pedras vão estar escorregadias.
  Quando desapareceram, o Leo Preguiçoso observou amargamente Pate por cima da mesa.
  — Que tristeza. O Esfinge escapuliu-se com toda a sua prata, abandonando-me ao Pate Malhado, o criador de porcos. — Espreguiçou-se, bocejando. — Como anda a nossa adorável Roseyzinha, diz lá?
  — Está a dormir — disse Pate secamente.
  — Nua, de certeza. — Leo fez um sorriso. — Achas que ela vale mesmo um dragão? Suponho que um dia tenho de verificar.
  Pate sabia que não era boa ideia dar resposta àquilo.
  Leo não precisava de resposta.
  — Suponho que uma vez que eu rasgue a rapariga, o preço dela caia de forma que até criadores de porcos consigam pagá-la. Devias agradecer-me.
  Devia matar-te, pensou Pate, mas estava longe de se encontrar suficientemente bêbado para deitar a vida fora. Leo recebera treino de armas, e tinha fama de ser mortífero com espada de sicário e punhal.
E se Pate de algum modo conseguisse matá-lo, isso custar-lhe-ia também a cabeça. Leo tinha dois nomes, enquanto que Pate não possuía mais do que um, e o segundo era Tyrell. Sor Moryn Tyrell, comandante
da Patrulha da Cidade de Vilavelha, era pai de Leo. Mace Tyrell, Senhor de Jardim de Cima e Protector do Sul, era primo de Leo. E o Velho de Vilavelha, o Lorde Leyton da Torralta, que incluía “Protector
da Cidadela” entre os seus muitos títulos, era vassalo ajuramentado à Casa Tyrell. Deixa estar, disse Pate a si próprio. Ele diz estas coisas só para me ferir.
  As névoas estavam a iluminar-se a leste. A alvorada, compreendeu Pate. A alvorada chegou, e o alquimista não. Não sabia se havia de rir ou de chorar. Ainda serei um ladrão se devolver tudo e ninguém
souber de nada? Era outra pergunta para a qual não tinha resposta, como aquelas que Ebrose e Vaellyn em tempos lhe tinham feito.
  Quando se afastou do banco e se pôs em pé, a cidra terrivelmente forte subiu-lhe à cabeça toda ao mesmo tempo. Teve de pousar uma mão na mesa para se equilibrar.
  — Deixa a Rosey em paz — disse, em jeito de despedida. — Deixa-a em paz, senão pode ser que te mate.
  Leo Tyrell afastou o cabelo do olho num movimento rápido.
  — Não travo duelos com criadores de porcos. Vai-te embora.
  Pate virou-se e atravessou a varanda. Os seus calcanhares ressoaram nas pranchas desgastadas da velha ponte. Quando chegou ao outro lado, o céu oriental estava a tornar-se rosado. O mundo é grande,
disse a si próprio. Se comprasse o tal burro, ainda podia vaguear pelas estradas e atalhos dos Sete Reinos, sangrando o povo e catando-lhe lêndeas dos cabelos. Podia oferecer-me num navio qualquer, puxar
um remo, e velejar para Qarth, a dos Portões de Jade, para ver esses malditos dragões com os meus próprios olhos. Não tenho de voltar para o velho Walgrave e os corvos.
  Mas sem saber como, os pés levaram-no na direcção da Cidadela.
  Quando o primeiro raio de sol perfurou as nuvens a leste, os sinos matinais começaram a repicar no Septo do Marinheiro, junto ao porto. O Septo do Senhor juntou-se-lhe um momento mais tarde, seguido
pelos Sete Santuários nos seus jardins do outro lado do Vinhomel, e por fim o Septo Estrelado, que fora a sede do Alto Septão durante os mil anos que antecederam o desembarque de Aegon em Porto Real.
Faziam uma música poderosa. Embora não tão doce como um pequeno rouxinol.
  Também ouvia cantos, sob o repique dos sinos. Todas as manhãs, à primeira luz da aurora, os sacerdotes vermelhos reuniam-se para dar as boas-vindas ao sol no exterior do seu modesto templo erguido junto
aos molhes. Pois a noite é escura e cheia de terrores. Pate ouvira-os gritar aquelas palavras uma centena de vezes, pedindo ao seu deus R’hllor para os proteger da escuridão. Os Sete eram deuses suficientes
para ele, mas ouvira dizer que Stannis Baratheon orava agora às fogueiras nocturnas. Até pusera o coração flamejante de R’hllor nos seus estandartes, em vez do veado coroado. Se ele conquistar o Trono
de Ferro, vamos todos ter de aprender a letra da canção dos sacerdotes vermelhos, pensou Pate, mas isso não era provável. Tyrion Lannister esmagara Stannis e R’hllor na Água Negra, e em breve acabaria
com eles e espetaria a cabeça do pretendente Baratheon num espigão por cima dos portões de Porto Real.
  À medida que as névoas da noite se dissipavam, Vilavelha ia tomando forma à sua volta, emergindo fantasmagoricamente das sombras que antecediam a alvorada. Pate nunca vira Porto Real, mas sabia que
era uma cidade de taipa, uma extensão de ruas lamacentas, telhados de colmo e telheiros de madeira. Vilavelha era construída em pedra, e todas as suas ruas eram empedradas, até a mais esconsa das vielas.
A cidade nunca era tão bela como ao romper da aurora. A oeste do Vinhomel, as sedes das Guildas orlavam a margem como uma fileira de palácios. A montante, as cúpulas e torres da Cidadela erguiam-se de
ambos os lados do rio, ligadas por pontes de pedra repletas de casas e edifícios públicos. A jusante, sob as muralhas de mármore negro e janelas arqueadas do Septo Estrelado, as mansões dos piedosos aglomeravam-se
como crianças reunidas em torno dos pés de uma velha viúva rica.
  E mais para diante, onde o Vinhomel se alargava e mergulhava na Enseada dos Murmúrios, erguia-se a Torralta, com as suas fogueiras de aviso brilhantes contra o fundo da aurora. Desde o local onde ela
se erguia no topo das escarpas da Ilha da Batalha, a sua sombra cortava a cidade como uma espada. Os nascidos e criados em Vilavelha sabiam dizer as horas pelo ponto onde a sombra caía. Alguns diziam
que do topo da torre se conseguia ver tudo, até à Muralha. Talvez fosse por isso que o Lorde Leyton não descia havia mais de uma década, preferindo governar a sua cidade a partir das nuvens.
  A carroça de um açougueiro passou por Pate a trovejar ao longo da estrada do rio, levando cinco leitões que guinchavam numa aflição. Afastando-se do seu caminho, evitou por pouco ser salpicado quando
uma mulher esvaziou um balde de dejectos nocturnos de uma janela por cima de si. Quando for um meistre num castelo terei um cavalo para montar, pensou. Então tropeçou numa pedra e perguntou a si próprio
quem estaria a enganar. Para ele não haveria corrente, não haveria lugar à mesa de honra de um senhor, não haveria nenhum alto cavalo branco para montar. Os seus dias seriam passados a ouvir o cuorc dos
corvos e a lavar manchas de merda da roupa interior do Arquimeistre Walgrave.
  Estava apoiado num joelho, tentando limpar a lama da sua veste quando uma voz disse:
  — Bom dia, Pate.
  O alquimista estava em pé a seu lado.
  Pate ergueu-se.
  — O terceiro dia… dissestes que estaríeis no Pena e Caneca.
  — Estavas com amigos. Não desejei intrometer-me na vossa camaradagem. — O alquimista trazia um manto de viajante com capuz, castanho e incaracterístico. O sol nascente espreitava por sobre os telhados
atrás do seu ombro, tornando difícil distinguir o rosto dentro do capuz. — Já decidiste o que és?
  Será que ele tem de me obrigar a dizê-lo?
  — Suponho que sou um ladrão.
  — Achei que talvez o fosses.
  A parte mais difícil fora pôr-se de gatas para puxar a caixa-forte de debaixo da cama do Arquimeistre Walgrave. Embora a caixa fosse robusta e reforçada com ferro, tinha a fechadura quebrada. O Meistre
Gormon suspeitara que fora Pate a quebrá-la, mas isso não era verdade. Fora o próprio Walgrave quem quebrara a fechadura, depois de perder a chave que a abria.
  Lá dentro, Pate encontrara um saco de veados de prata, uma madeixa de cabelo amarelo atada com uma fita, uma miniatura pintada de uma mulher que se assemelhava a Walgrave (até no bigode), e uma manopla
de cavaleiro feita de aço articulado. A manopla pertencera a um príncipe, segundo Walgrave afirmava, embora já não parecesse ser capaz de recordar qual deles. Quando Pate a sacudira, a chave caíra ao
chão.
  Se apanhar aquilo, sou um ladrão, lembrava-se de ter pensado. A chave era velha e pesada, feita de ferro negro; supostamente, abria todas as portas da Cidadela. Só os arquimeistres possuíam chaves daquelas.
Os outros transportavam as suas consigo ou escondiam-nas nalgum local seguro, mas se Walgrave tivesse escondido a sua, nunca mais ninguém a veria. Pate apanhara a chave e percorrera metade do caminho
até à porta antes de voltar para trás para apanhar também a prata. Um ladrão era um ladrão, quer roube muito, quer roube pouco. “Pate”, chamara um dos corvos brancos, “Pate, Pate, Pate”.
  — Tendes o meu dragão? — perguntou ao alquimista.
  — Se tu tiveres o que eu quero.
  — Dai-mo cá. Quero ver. — Pate não tencionava permitir que o enganassem.
  — A estrada do rio não é lugar para isso. Vem.
  Não teve tempo de pensar, de pesar as suas hipóteses. O alquimista estava a afastar-se. Pate tinha de o seguir ou perderia tanto Rosey como o dragão, e para sempre. Seguiu-o. Enquanto caminhavam, enfiou
a mão na manga. Conseguia sentir a chave, em segurança dentro do bolso escondido que cosera aí. As vestes de meistre tinham bolsos por todo o lado. Pate sabia disso desde rapaz.
  Tinha de se apressar para conseguir acompanhar os passos mais longos do alquimista. Desceram por uma viela, viraram uma esquina, atravessaram o antigo Mercado dos Ladrões, percorreram a Ruela do Trapeiro.
Por fim, o homem virou para outra viela, mais estreita do que a primeira.
  — Já chega — disse Pate. — Não há ninguém à nossa volta. Fá-lo-emos aqui.
  — Como queiras.
  — Quero o meu dragão.
  — Com certeza. — A moeda surgiu. O alquimista fê-la caminhar por sobre os nós dos dedos, como fizera quando Rosey os juntara. À luz da manhã, o dragão cintilava enquanto se movia, e dava aos dedos do
alquimista um brilho dourado.
  Pate tirou a moeda da mão do outro. O ouro parecia-lhe morno contra a pele da mão. Levou-o à boca e trincou-o, como vira os homens fazer. Em boa verdade, não tinha a certeza de qual era suposto ser
o sabor do ouro, mas não queria parecer um tolo.
  — A chave? — inquiriu educadamente o alquimista.
  Algo levou Pate a hesitar.
  — É algum livro que quereis? — Dizia-se que alguns dos velhos pergaminhos valirianos trancados nas caves eram as únicas cópias que sobreviviam no mundo.
  — O que eu quero não é da tua conta.
  — Não. — Está feito, disse Pate a si próprio. Vai. Corre de volta ao Pena e Caneca, acorda Rosey com um beijo e diz-lhe que te pertence. Mas ainda se deixou ficar. — Mostrai-me o rosto.
  — Como queiras. — O alquimista baixou o capuz.
  Era apenas um homem, e o seu rosto era apenas um rosto. Um rosto de jovem, comum, com faces cheias e a sombra de uma barba. Uma ténua cicatriz entrevia-se na bochecha direita. Tinha um nariz adunco,
e uma densa cabeleira preta que se encaracolava, bem apertada, em volta das orelhas. Não era um rosto que Pate reconhecesse.
  — Não vos conheço.
  — Nem eu a ti.
  — Quem sois?
  — Um estranho. Ninguém. A sério.
  — Oh. — Pate ficara sem palavras. Puxou da chave e pô-la na mão do estranho, sentindo a cabeça leve, sentindo-se quase com vertigens. Rosey, recordou a si próprio. — Então é tudo.
  Já tinha percorrido metade da viela quando o empedrado começou a mover-se por baixo dos seus pés. As pedras estão escorregadias e húmidas, pensou, mas não era isso. Sentia o coração a martelar no peito.
  — Que está a acontecer? — disse. As pernas tinham-se-lhe transformado em água. — Não compreendo.
  — E nunca compreenderás — disse uma voz num tom triste.
  O empedrado saltou para o beijar. Pate tentou gritar por ajuda, mas a voz também lhe estava a falhar.
  O seu último pensamento foi para Rosey.
 
 O PROFETA
  O profeta estava a afogar homens em Grande Wyk quando lhe vieram dizer que o rei estava morto.
  Era uma manhã ventosa e fria, e o mar mostrava o mesmo tom plúmbeo do céu. Os primeiros três homens tinham oferecido sem temor as suas vidas ao Deus Afogado, mas o quarto era fraco na fé e começou a
debater-se quando os pulmões gritaram por ar. Mergulhado até à cintura na rebentação, Aeron segurou o rapaz nu pelos ombros e empurrou-lhe a cabeça para baixo quando ele tentou inspirar um pouco de ar.
  — Tem coragem — disse. — Viemos do mar, e ao mar temos de regressar. Abre a boca e bebe profundamente a bênção de deus. Enche os pulmões de água, para que possas morrer e renascer. Lutar não adianta
nada.
  Ou o rapaz não o conseguia ouvir com a cabeça submersa nas ondas, ou a fé tinha-o abandonado por completo. Desatou a espernear e a sacudir-se com tamanha violência que Aeron teve de pedir ajuda. Quatro
dos seus afogados entraram na água para segurar o desgraçado e mantê-lo submerso.
  — Senhor Deus que te afogaste por nós — orou o sacerdote, numa voz profunda como o mar — permite que Emmond, teu servo, renasça do mar, tal como tu. Abençoa-o com sal, abençoa-o com pedra, abençoa-o
com aço.
  Por fim, terminou. Não havia mais bolhas de ar a sair-lhe da boca, e toda a força se sumira dos membros do rapaz. Emmond flutuava de cabeça para baixo no mar pouco profundo, branco, frio e em paz.
  Foi então que o Cabelo-Molhado se apercebeu de que três cavaleiros se tinham juntado aos seus afogados na costa pedregosa. Aeron conhecia o Sparr, um velho com cara de machadinha e olhos aguados, cuja
voz trémula era lei naquela parte de Grande Wyk. O filho Steffarion acompanhava-o, com outro jovem, cujo manto vermelho-escuro e forrado a peles estava preso ao ombro com um ornamentado broche que mostrava
o corno de guerra negro e dourado dos Goodbrother. Um dos filhos de Gorold, decidiu o sacerdote num relance. A esposa do Goodbrother dera tardiamente à luz três filhos altos, após uma dúzia de filhas,
e dizia-se que não havia homem capaz de distinguir um filho dos demais. Aeron Cabelo-Molhado não se dignou a tentar. Fosse aquele Greydon, Gormond ou Gran, o sacerdote não tinha tempo para ele.
  Rosnou uma ordem brusca, e os seus afogados pegaram no rapaz morto pelos braços e pernas para o levar até acima da linha da maré. O sacerdote seguiu-os, vestido apenas com uma tanga de pele de foca
que lhe cobria as partes podengas. Com pele de galinha e a pingar, voltou para terra, atravessando areia molhada e fria e seixos polidos pelo mar. Um dos seus afogados entregou-lhe uma veste de pesado
tecido grosseiro, tingido com tons variados de verde, azul e cinzento, as cores do mar e do Deus Afogado. Aeron envergou a veste e libertou o cabelo. Negro e molhado, esse cabelo; nenhuma lâmina lhe tocara
desde que o mar o erguera. Envolvia-lhe os ombros como um manto esfarrapado e filamentoso, e caía-lhe até abaixo da cintura. Aeron entrançava nele cordões de algas, e fazia o mesmo à barba emaranhada
e por cortar.
  Os seus afogados formavam um círculo em volta do rapaz morto, orando. Norjen trabalhava com os seus braços, enquanto Rus estava sentado às cavalitas do rapaz, comprimindo-lhe ritmicamente o peito, mas
todos se afastaram para deixar Aeron passar. Este afastou com os dedos os lábios frios do rapaz e deu a Emmond o beijo da vida, e voltou a dá-lo, e de novo o deu, até que o mar jorrou da sua boca. O rapaz
pôs-se a tossir e a cuspir, e os olhos abriram-se-lhe, cheios de medo.
  Outro que regressou. Era um sinal do favor do Deus Afogado, diziam os homens. Todos os outros sacerdotes perdiam alguém de vez em quando, até Tarle, o Triplamente-Afogado, que fora um dia considerado
tão santo que fora escolhido para coroar um rei. Mas Aeron Greyjoy, nunca. Ele era o Cabelo-Molhado, aquele que vira os salões aquáticos do próprio deus e regressara para falar deles.
  — Ergue-te — disse ao rapaz ofegante enquanto lhe dava uma palmada nas costas nuas. — Afogaste-te e foste-nos devolvido. O que está morto não pode morrer.
  — Mas volta. — O rapaz tossiu violentamente, cuspindo mais água. — Volta a erguer-se. — Cada palavra era arrancada com dor, mas o mundo era assim; um homem tinha de lutar para viver. — Volta a erguer-se.
— Emmond pôs-se instavelmente em pé. — Mais duro. E mais forte.
  — Agora pertences ao deus — disse-lhe Aeron. Os outros afogados reuniram-se em volta do rapaz e todos lhe deram um murro e um beijo para lhe dar as boas-vindas à irmandade. Um deles ajudou-o a envergar
uma veste de tecido grosseiro tingido com tons variados de verde, azul e cinzento. Outro presenteou-o com uma moca feita de madeira trazida pelo mar. — Agora pertences ao mar, e por isso o mar armou-te
— disse Aeron. — Oramos para que manejes a tua moca com ferocidade, contra todos os inimigos do nosso deus.
  Só então o sacerdote se virou para os três cavaleiros que observavam de cima das selas.
  — Viestes ser afogados, senhores?
  O Sparr tossiu.
  — Fui afogado em rapaz — disse — e o meu filho no dia do seu nome.
  Aeron soltou uma fungadela. Que Steffarion Sparr fora entregue ao Deus Afogado pouco depois de nascer não duvidava. Também conhecia o modo como isso acontecera, um rápido mergulho numa tina de água
do mar que quase não molhava a cabeça do bebé. Pouco admirava que os homens de ferro tivessem sido conquistados, eles que em tempos tinham dominado todos os locais onde o som das ondas se conseguisse
ouvir.
  — Isso não foi um verdadeiro afogamento — disse aos cavaleiros. — Aquele que não morre de verdade não pode esperar erguer-se da morte. Porque viestes, se não foi para demonstrar a vossa fé?
  — O filho do Lorde Gorold veio à vossa procura, com notícias. — O Sparr indicou o jovem do manto vermelho.
  O rapaz parecia não ter mais de dezasseis anos.
  — Sim, e qual deles és tu? — quis saber Aeron.
  — Gormond. Gormond Goodbrother, se aprouver ao senhor.
  — É ao Deus Afogado que devemos aprazer. Foste afogado, Gormond Goodbrother?
  — No dia do meu nome, Cabelo-Molhado. O meu pai mandou-me procurar-vos e levar-vos até ele. Precisa de vos ver.
  — Aqui estou eu. Que o Lorde Gorold venha e banqueteie os olhos. — Aeron pegou num odre de couro que Rus lhe entregou, acabado de encher com água do mar. O sacerdote tirou a rolha e bebeu um gole.
  — Devo levar-vos até à fortaleza — insistiu o jovem Gormond, de cima do seu cavalo.
  Ele tem medo de desmontar, não vá ficar com as botas molhadas.
  — Tenho o trabalho do deus a fazer. — Aeron Greyjoy era um profeta. Não admitia que pequenos senhores lhe ordenassem o que fazer como se fosse algum servo.
  — Gorold recebeu uma ave — disse o Sparr.
  — Uma ave de meistre, vinda de Pyke — confirmou Gormond.
  Asas escuras, palavras escuras.
  — Os corvos voam sobre sal e pedra. Se há novas que me dizem respeito, dai-mas já.
  — Novas como aquelas que trazemos são apenas para os vossos ouvidos, Cabelo-Molhado — disse o Sparr. — Estes não são assuntos de que eu queira falar aqui, perante estes outros.
  — Estes outros são os meus afogados, servos do deus, tal como eu. Não tenho segredos para eles, nem para o nosso deus, junto a cujo mar me encontro.
  Os cavaleiros trocaram um olhar.
  — Dizei-lhe — disse o Sparr, e o jovem do manto vermelho reuniu coragem.
  — O rei está morto — disse, com toda a simplicidade. Quatro pequenas palavras, e no entanto o próprio mar tremeu quando as pronunciou.
  Havia quatro reis em Westeros, mas Aeron não precisou de perguntar sobre qual se falava. Balon Greyjoy, e nenhum outro, governava as Ilhas de Ferro. O rei está morto. Como pode ser? Aeron vira o irmão
mais velho ainda não havia uma volta de lua, quando regressara às Ilhas de Ferro depois de assolar a Costa Pedregosa. O cabelo grisalho de Balon tornara-se quase branco enquanto o sacerdote andara por
fora, e a inclinação dos seus ombros tornara-se mais pronunciada do que quando os dracares partiram. Mas apesar disso, o rei não parecera enfermo.
  Aeron Greyjoy construíra a sua vida sobre dois poderosos pilares. Aquelas quatro pequenas palavras tinham derrubado um deles. Só me resta o Deus Afogado. Que me torne tão forte e incansável como o mar.
  — Contai-me o modo como o meu irmão morreu.
  — Sua Graça estava a atravessar uma ponte em Pyke quando caiu e foi atirado contra as rochas, em baixo.
  O castelo Greyjoy erguia-se sobre um promontório quebrado, e as suas torres e fortalezas tinham sido construídas no topo de maciças colunas de pedra que se projectavam do mar. Pontes uniam Pyke; pontes
em arco de pedra esculpida e pontes oscilantes de corda de cânhamo e tábuas de madeira.
  — A tempestade soprava quando ele caiu? — perguntou-lhes Aeron.
  — Sim — disse o jovem — soprava.
  — O Deus da Tempestade derrubou-o — anunciou o sacerdote. Havia um milhar de milhares de anos que o mar e o céu estavam em guerra. Do mar tinham vindo os homens de ferro, e os peixes que os sustentavam
mesmo no pino do Inverno, mas as tempestades traziam apenas angústia e desgosto. — O meu irmão Balon tornou-nos de novo grandes, o que atraiu a ira do Deus da Tempestade. Agora banqueteia-se nos salões
aquáticos do Deus Afogado, com sereias a obedecer ao seu mínimo desejo. Caberá a nós, que ficamos para trás neste vale seco e sombrio, terminarmos a sua grande obra. — Voltou a enfiar a rolha no odre.
— Falarei com o senhor teu pai. A que distância estamos de Cornartelo?
  — Seis léguas. Podeis cavalgar comigo.
  — Um cavalga mais depressa do que dois. Dá-me o teu cavalo, e o Deus Afogado abençoar-te-á.
  — Levai o meu cavalo, Cabelo-Molhado — ofereceu Steffarion Sparr.
  — Não. A montada dele é mais forte. O teu cavalo, rapaz.
  O jovem hesitou por meio segundo, após o que desmontou e entregou as rédeas ao Cabelo-Molhado. Aeron enfiou um pé descalço e negro num estribo e içou-se para a sela. Não gostava de cavalos — eram criaturas
das terras verdes e ajudavam a tornar os homens fracos — mas a necessidade obrigava à cavalgada. Asas escuras, palavras escuras. Preparava-se uma tempestade, ouvia-o nas ondas, e as tempestades nada traziam
que não fosse maligno.
  — Encontrai-vos comigo em Seixeira, sob a torre do Lorde Merlyn — disse aos seus afogados, enquanto virava a cabeça do cavalo.
  O caminho era duro, por montes, florestas e desfiladeiros pedregosos, ao longo de um trilho estreito que parecia com frequência desaparecer sob os cascos dos cavalos. A Grande Wyk era a maior das Ilhas
de Ferro, tão vasta que alguns dos seus senhores tinham propriedades que não confinavam com o mar sagrado. Gorold Goodbrother era um desses homens. A sua fortaleza ficava nos Montes Pedradura, o mais
longe dos domínios do Deus Afogado que se podia estar nas ilhas. O povo de Gorold labutava nas minas de Gorold, na escuridão rochosa por baixo da terra. Alguns viviam e morriam sem pôr os olhos em água
salgada. Pouco admira que uma tal gente seja complicada e estranha.
  Enquanto Aeron cavalgava, os pensamentos viraram-se-lhe para os irmãos.
  Nove filhos tinham nascido das virilhas de Quellon Greyjoy, o Senhor das Ilhas de Ferro. Harlon, Quenton e Donel tinham nascido da primeira mulher do Lorde Quellon, uma mulher de Pedrarbor. Balon, Euron,
Victarion, Urrigon e Aeron eram os filhos da segunda mulher, uma Sunderly de Salésia. Para terceira esposa, Quellon escolhera uma rapariga das terras verdes, que lhe deu um rapaz enfermiço e idiota chamado
Robin, o irmão que era melhor esquecer. O sacerdote não tinha memória de Quenton ou Donel, que tinham morrido na infância. Recordava Harlon apenas vagamente, sentado de rosto cinzento e imóvel numa sala
de torre sem janelas, e falando em sussurros que se iam tornando mais ténuos a cada dia que passava, à medida que a escamagris lhe ia transformando a língua e os lábios em pedra. Um dia banquetear-nos-emos
juntos com peixe, nos salões aquáticos do Deus Afogado, nós os quatro, e Urri também.
  Nove filhos tinham nascido das virilhas de Quellon Greyjoy, mas só quatro tinham sobrevivido até à idade adulta. Era assim este mundo frio, no qual os homens pescavam no mar, escavavam o solo e morriam,
enquanto as mulheres davam à luz crianças de vida breve em camas de sangue e dor. Aeron fora a última e a menor das quatro lulas gigantes, e Balon o mais velho e o mais ousado, um rapaz feroz e destemido
que vivia apenas para devolver aos homens de ferro a sua antiga glória. Aos dez anos, escalara os Penhascos de Pederneira até à torre assombrada do Senhor Cego. Aos treze conseguia governar os remos de
um dracar e dançar a dança dos dedos tão bem como qualquer homem das ilhas. Aos quinze velejara com Dagmer Boca-Fendida até aos Degraus, e passara um verão na ceifa. Matara aí o primeiro homem, e tomara
as duas primeiras esposas de sal. Aos dezassete Balon capitaneava o seu primeiro navio. Era tudo aquilo que um irmão mais velho devia ser, embora nunca tivesse mostrado a Aeron nada a não ser desprezo.
Eu era fraco e cheio de pecado, e desprezo era mais do que merecia. Era melhor ser desprezado por Balon, o Bravo, do que ser amado por Euron Olho de Corvo. E se a idade e o desgosto tinham tornado Balon
amargo com os anos, tinham-no também deixado mais determinado do que qualquer outro homem vivo. Ele nasceu como filho de um lorde, e morreu como um rei, assassinado por um deus ciumento, pensou Aeron,
e agora a tempestade está a chegar, uma tempestade tal como estas ilhas nunca conheceram.
  Já escurecera há muito quando o sacerdote vislumbrou as pontiagudas ameias de ferro de Cornartelo, que tentavam agarrar o crescente da lua. A fortaleza de Gorold tinha um aspecto desajeitado e pesado,
e fora feita com grandes pedras cortadas ao monte que se erguia por detrás. Sob as muralhas, as entradas de grutas e antigas minas abriam-se como bocas negras e desdentadas. Os portões de ferro de Cornartelo
tinham sido fechados e trancados para a noite. Aeron bateu neles com uma pedra até que o clangor acordou um guarda.
  O jovem que o deixou entrar era a imagem de Gormond, cujo cavalo tomara.
  — Qual deles és tu? — quis saber Aeron.
  — Gran. O meu pai espera-vos lá dentro.
  O salão era escuro e amplo, cheio de sombras. Uma das filhas de Gorold ofereceu ao sacerdote um corno de cerveja. Outra espevitou um fogo sombrio que gerava mais fumo do que calor. O próprio Gorold
Goodbrother estava a conversar em voz baixa com um homem magro que envergava uma veste de bom tecido cinzento e usava em volta do pescoço uma corrente de muitos metais que o identificava como um meistre
da Cidadela.
  — Onde está Gormond? — perguntou Gorold quando viu Aeron.
  — Regressa a pé. Mandai embora as mulheres, senhor. E o meistre também. — Não gostava de meistres. Os seus corvos eram criaturas do Deus da Tempestade, e desde Urri que não confiava nas suas curas.
Nenhum homem verdadeiro escolheria uma vida de escravatura, nem forjaria uma corrente de servidão para usar em volta da garganta.
  — Gysella, Gwin, deixai-nos — disse Goodbrother secamente. — Tu também, Gran. O Meistre Murenmure ficará.
  — Ele sairá.
  — Este salão é meu, Cabelo-Molhado. Não vos cabe a vós dizer quem deve ir e quem deve ficar. O meistre fica.
  O homem vive longe demais do mar, disse Aeron a si próprio.
  — Então vou-me eu embora — disse a Goodbrother. Esteiras secas estalejaram sob os seus pés descalços e negros quando se virou e se dirigiu à porta. Parecia que tinha cavalgado muito tempo para nada.
  Aeron estava quase junto da porta quando o meistre pigarreou e disse:
  — Euron Olho de Corvo ocupa a Cadeira de Pedra do Mar.
  O Cabelo-Molhado virou-se. O salão arrefecera de um momento para o outro. O Olho de Corvo está a meio mundo de distância. Balon mandou-o embora há dois anos, e jurou que se regressasse isso lhe custaria
a vida.
  — Contai-me — disse, com voz rouca.
  — Entrou em Fidalporto no dia seguinte ao da morte do rei, e reclamou o castelo e a coroa na condição de irmão mais velho de Balon — disse Gorold Goodbrother. — Agora está a enviar corvos, convocando
a Pyke os capitães e os reis de todas as ilhas, para dobrarem os joelhos e lhe prestarem homenagem como o seu rei.
  — Não. — Aeron Cabelo-Molhado não pesou as palavras. — Só um homem devoto pode sentar-se na Cadeira da Pedra do Mar. O Olho de Corvo não adora nada a não ser o seu próprio orgulho.
  — Estivestes em Pyke não há muito tempo e vistes o rei — disse Goodbrother. — Balon disse-vos alguma coisa acerca da sucessão?
  Sim. Tinham conversado na Torre do Mar, enquanto o vento uivava do lado de fora das janelas e as ondas se esmagavam sem descanso em baixo. Balon abanara a cabeça, em desespero, quando ouvira o que Aeron
tinha a dizer-lhe sobre o último filho que lhe restava.
  — Os lobos fizeram dele um fraco, tal como eu temia — dissera o rei. — Rezo ao deus para que o tenham morto, para que não se possa atravessar no caminho de Asha. — Era essa a cegueira de Balon; revia-se
na filha selvagem e obstinada, e acreditava que ela podia suceder-lhe. Nisso enganava-se, e Aeron tentara dizer-lho.
  — Nenhuma mulher governará algum dia os homens de ferro, nem mesmo uma mulher como Asha — insistira, mas Balon sabia ser surdo para aquilo que não desejava ouvir.
  Antes que o sacerdote tivesse tempo de responder a Gorold Goodbrother, a boca do meistre abriu-se uma vez mais.
  — Pelo direito, a Cadeira da Pedra do Mar pertence a Theon, ou a Asha, se o príncipe estiver morto. A lei é essa.
  — Lei da terra verde — disse Aeron com desprezo. — Que nos interessa isso? Somos homens de ferro, os filhos do mar, os escolhidos do Deus Afogado. Nenhuma mulher pode governar-nos, tal como nenhum homem
sem deus o pode fazer.
  — E Victarion? — perguntou Gorold Goodbrother. — Ele tem a Frota de Ferro. Irá Victarion avançar com uma pretensão, Cabelo-Molhado?
  — Euron é o irmão mais velho… — começou o meistre.
  Aeron silenciou-o com um olhar. Fosse em pequenas vilas piscatórias, fosse em grandes fortalezas de pedra, um olhar assim do Cabelo-Molhado fazia com que donzelas perdessem a força nas pernas e punha
crianças aos gritos a correr para junto das mães, e era mais do que o suficiente para dominar o servo com a corrente ao pescoço.
  — Euron é mais velho — disse o sacerdote — mas Victarion é mais devoto.
  — Chegar-se-á à guerra entre eles? — perguntou o meistre.
  — Os homens de ferro não devem derramar o sangue de homens de ferro.
  — Um sentimento piedoso, Cabelo-Molhado — disse Goodbrother — mas não é algo que o vosso irmão partilhe. Mandou afogar Sawane Botley por dizer que a Cadeira de Pedra do Mar pertencia por direito a Theon.
  — Se ele foi afogado, nenhum sangue foi derramado — disse Aeron.
  O meistre e o lorde trocaram um olhar.
  — Tenho de mandar uma mensagem a Pyke, e em breve — disse Gorold Goodbrother. — Cabelo-Molhado, gostaria de obter o vosso conselho. O que será, homenagem ou desafio?
  Aeron puxou pela barba e reflectiu. Vi a tempestade, e o seu nome é Euron Olho de Corvo.
  — Por agora, enviai só silêncio — disse ao lorde. — Tenho de rezar sobre isto.
  — Rezai tudo o que quiserdes — disse o meistre. — Isso não muda a lei. Theon é o legítimo herdeiro e Asha vem depois.
  — Silêncio! — rugiu Aeron. — Foi demasiado o tempo passado pelos homens de ferro a ouvir os meistres de correntes ao pescoço a tagarelar sobre as terras verdes e as suas leis. É tempo de voltarmos a
escutar o mar. É tempo de escutarmos a voz de deus. — A sua própria voz ressoou no salão fumacento, tão cheia de poder que nem Gorold Goodbrother nem o seu meistre se atreveram a responder. O Deus Afogado
está comigo, pensou Aeron. Ele mostrou-me o caminho.
  Goodbrother ofereceu-lhe o conforto do castelo para a noite, mas o sacerdote declinou. Raramente dormia sob o tecto de um castelo, e nunca o fazia tão longe do mar.
  — O conforto, conhecê-lo-ei nos salões aquáticos do Deus Afogado, sob as ondas. Nascemos para sofrer, para que o nosso sofrimento nos faça fortes. Não preciso mais do que um cavalo repousado para me
levar até Seixeira.
  E isso, Goodbrother sentiu-se feliz por fornecer. Enviou também o filho Greydon, a fim de mostrar ao sacerdote o caminho mais curto através dos montes, até ao mar. A aurora ainda tardava uma hora quando
partiram, mas as montadas eram resistentes e de patas seguras, e fizeram um bom tempo, apesar da escuridão. Aeron fechou os olhos e proferiu uma prece silenciosa, e passado algum tempo pôs-se a dormitar
na sela.
  O som chegou ténuo, o grito de uma dobradiça enferrujada.
  — Urri — murmurou, e acordou, temeroso. Não há aqui dobradiças, não há porta, não há Urri. Um machado voador levara metade da mão de Urri quando ele tinha catorze anos e brincava à dança dos dedos,
enquanto o pai e os irmãos mais velhos estavam longe, na guerra. A terceira esposa do Lorde Quellon fora uma Piper do Castelo de Donzelarrosa, uma rapariga com grandes seios fofos e olhos castanhos de
corça. Em vez de curar a mão de Urri pelo Costume Antigo, com fogo e água do mar, entregara-o ao seu meistre das terras verdes, que jurara que conseguiria voltar a coser os dedos em falta. Fizera-o, e
depois usara poções, cataplasmas e ervas, mas a mão gangrenara e Urri apanhara uma febre. Quando o meistre lhe serrara o braço, era tarde demais.
  O Lorde Quellon nunca regressara da sua última viagem; o Deus Afogado, na sua bondade, concedera-lhe uma morte no mar. Fora o Lorde Balon quem voltara, com os irmãos Euron e Victarion. Quando Balon
ouvira contar o que acontecera a Urri, removera três dos dedos do meistre com um cutelo de cozinheiro e mandara-lhe a mulher Piper do pai para que lhos cosesse. Cataplasmas e poções funcionaram tão bem
para o meistre como para Urrigon. O homem morrera em delírio, e a terceira esposa do Lorde Quellon seguira-o pouco depois, quando a parteira removera uma filha nada-morta do seu ventre. Aeron sentira-se
feliz. Tinha sido o seu machado que cortara a mão de Urri, enquanto dançavam juntos a dança dos dedos, como os amigos e irmãos costumavam fazer.
  Ainda o envergonhava recordar os anos que se seguiram à morte de Urri. Aos dezasseis intitulava-se de homem, mas na verdade fora um saco de vinho com pernas. Cantava, dançava (mas não a dança dos dedos,
essa nunca mais), gracejava, palrava e fazia troça. Tocava gaita, fazia malabarismo, montava a cavalo e era capaz de beber mais do que todos os Wynch e os Botley e também metade dos Harlaw. O Deus Afogado
concede a todos os homens um dom, até a ele; nenhum homem era capaz de mijar por mais tempo ou até mais longe do que Aeron Greyjoy, coisa que ele provava em todos os banquetes. Uma vez, apostara o seu
novo dracar contra uma manada de cabras que seria capaz de apagar uma lareira sem recorrer a nada mais do que a picha. Aeron banqueteara-se com cabra durante um ano, e chamara ao navio Tempestade Dourada,
embora Balon tivesse ameaçado enforcá-lo no mastro do navio quando lhe contaram que tipo de esporão o irmão tencionava montar na sua proa.
  No fim de contas, o Tempestade Dourada fora ao fundo ao largo da Ilha Bela durante a primeira rebelião de Balon, cortado ao meio por uma enorme galé de guerra chamada Fúria quando Stannis Baratheon
apanhara Victarion na armadilha que montara e esmagara a Frota de Ferro. Mas o deus ainda não se cansara de Aeron, e levara-o para terra. Um grupo de pescadores tomara-o cativo e levara-o agrilhoado para
Lanisporto, e ele passara o resto da guerra nas entranhas de Rochedo Casterly, provando que as lulas gigantes eram capazes de mijar durante mais tempo e até mais longe do que os leões, os javalis ou as
galinhas.
  Esse homem está morto. Aeron afogara-se e renascera do mar, como o profeta do próprio deus. Não havia mortal que fosse capaz de o assustar, e o mesmo se podia dizer da escuridão… e das memórias, os
ossos da alma. O som de uma porta a abrir-se, o grito de uma dobradiça ferrugenta de ferro. Euron regressou. Não importava. Ele era o sacerdote Cabelo-Molhado, o amado do deus.
  — Chegar-se-á à guerra? — perguntou Greydon Goodbrother quando o sol iluminou os montes. — Uma guerra de irmão contra irmão?
  — Se o Deus Afogado o desejar. Nenhum homem sem deus pode sentar-se na Cadeira da Pedra do Mar. — O Olho de Corvo lutará, isso é certo. Nenhuma mulher seria capaz de derrotá-lo, nem mesmo Asha; as mulheres
eram feitas para travar as suas batalhas na cama de partos. E Theon, se ainda vivesse, era igualmente impotente, um rapaz de amuos e sorrisos. Em Winterfell demonstrara o seu valor, aquele que tinha,
mas o Olho de Corvo não era nenhum rapaz aleijado. Os conveses do navio de Euron estavam pintados de vermelho, para melhor esconder o sangue que os ensopava. Victarion. O rei tem de ser Victarion, senão
a tempestade matar-nos-á a todos.
  Greydon deixou-o depois do sol nascer, para ir levar a notícia da morte de Balon aos primos, nas suas torres em Covabaixa, no Forte do Espigão do Corvo e no Lago do Cadáver. Aeron prosseguiu sozinho,
subindo montes e descendo vales ao longo de um trilho pedregoso que se ia tornando mais largo e mais nítido à medida que se ia aproximando do mar. Em todas as aldeias fazia uma pausa para pregar, e o
mesmo fazia nos pátios dos pequenos senhores.
  — Nascemos do mar, e ao mar voltaremos — dizia-lhes. A sua voz era profunda como o oceano, e trovejava como as ondas. — O Deus da Tempestade, na sua ira, arrancou Balon ao seu castelo e derrubou-o,
e ele agora banqueteia-se sob as ondas nos salões aquáticos do Deus Afogado. — Ergueu as mãos. — Balon está morto! O rei está morto! Mas um rei voltará! Pois o que está morto não pode morrer, mas volta
a erguer-se, mais duro e mais forte! Um rei erguer-se-á!
  Alguns daqueles que o escutavam largavam as enxadas e as picaretas para o seguir, de modo que quando ouviu o bater das ondas uma dúzia de homens caminhava atrás do seu cavalo, tocados pelo deus e desejosos
de se afogar.
  Seixeira era o lar de vários milhares de pescadores, cujas cabanas se aglomeravam em volta da base de uma casa-torre quadrada com um torreão em cada canto. Duas vintenas dos afogados de Aeron esperavam-no
aí, acampados ao longo de uma praia de areia cinzenta em tendas de peles de foca e abrigos construídos com madeira trazida pelo mar. As suas mãos tinham sido endurecidas pela maresia, marcadas pelas redes
e linhas, tinham ganho calos devido a remos, picaretas e machados, mas agora essas mãos empunhavam mocas duras como ferro, feitas de madeira trazida pelo mar, pois o deus armara-os com o seu arsenal submarino.
  Tinham construído um abrigo para o sacerdote logo acima da linha das marés. Enfiou-se lá dentro de bom grado, depois de afogar os seus mais recentes seguidores. Meu deus, orou, fala-me com o estrondo
das ondas, e diz-me o que fazer. Os capitães e os reis esperam a tua palavra. Quem será nosso rei no lugar de Balon? Canta-me na língua do leviatã, para que eu possa saber o seu nome. Diz-me, oh Senhor
sob as ondas, quem tem força para combater as tempestades em Pyke?
  Embora a cavalgada até Cornartelo o tivesse deixado fatigado, Aeron Cabelo-Molhado não conseguiu ficar quieto no seu abrigo de madeira trazida pelo mar, com tecto de algas negras. As nuvens chegaram
para esconder a lua e as estrelas, e a escuridão caiu tão densa sobre o mar como sobre a sua alma. Balon favorecia Asha, a filha do seu corpo, mas uma mulher não pode governar os homens de ferro. Tem
de ser Victarion. Nove filhos tinham nascido das virilhas de Quellon Greyjoy, e Victarion era o mais forte de todos, um autêntico touro, destemido e obediente. E é aí que se encontra o perigo. Um irmão
mais novo deve obediência a um irmão mais velho, e Victarion não era homem que velejasse contra a tradição. Mas ele não tem qualquer simpatia por Euron, não a tem desde que a mulher morreu.
  Lá fora, sob o ressonar dos seus afogados e os lamentos do vento, ouviu o rebentar das ondas, o martelo do seu deus a chamar para a batalha. Aeron gatinhou para fora do seu pequeno abrigo, e penetrou
no frio da noite. Pôs-se em pé, nu, pálido, descarnado e alto, e nu caminhou até ao negro mar salgado. A água estava gelada, mas a carícia do seu deus não o fez vacilar. Uma onda esmagou-se-lhe contra
o peito, fazendo-o cambalear. A seguinte quebrou-se por cima da sua cabeça. Sentiu o sabor do sal nos lábios e a presença do deus à sua volta, e os ouvidos ressoaram-lhe com a glória da sua canção. Nove
filhos nasceram das virilhas de Quellon Greyjoy, e eu fui o último, tão fraco e assustado como uma menina. Mas já não. Esse homem afogou-se, e o deus fez-me forte. O frio mar salgado rodeou-o, abraçou-o,
avançou através da sua carne fraca de homem e tocou-lhe os ossos. Ossos, pensou. Os ossos da alma. Os ossos de Balon, e os de Urri. A verdade encontra-se nos nossos ossos, pois a carne decompõe-se e o
osso resiste. E no monte de Nagga, os ossos do Palácio do Rei Cinzento…
  E descarnado, pálido e a tremer, Aeron Cabelo-Molhado lutou por regressar a terra, mais sábio do que fora quando entrara no mar. Pois encontrara a resposta nos seus ossos, e o caminho que tinha em frente
era-lhe claro. A noite estava tão fria que o corpo pareceu fumegar quando regressou em silêncio ao abrigo, mas havia uma fogueira a arder no seu coração, e por uma vez o sono chegou facilmente, sem ser
quebrado pelo grito de dobradiças de ferro.
  Quando acordou, o dia estava soalheiro e ventoso. Aeron quebrou o jejum com um caldo de amêijoas e algas marinhas cozinhado numa fogueira de madeira trazida pelo mar. Tinha acabado de terminar quando
Merlyn desceu da sua casa-torre com meia dúzia de guardas, à sua procura.
  — O rei está morto — disse-lhe o Cabelo-Molhado.
  — Sim. Recebi uma ave. E agora outra. — O Merlyn era um homem calvo, redondo e carnudo que se chamava a si próprio “lorde” ao jeito das terras verdes, e se vestia de peles e veludos. — Um corvo convoca-me
a Pyke, e outro às Dez Torres. Vós, as lulas gigantes, tendes demasiados tentáculos, despedaçais um homem. Que dizeis, sacerdote? Para onde devo enviar os meus dracares?
  Aeron franziu o sobrolho.
  — Dez Torres, dizeis? Que lula gigante vos chama aí? — Dez Torres era a sede do Senhor de Harlaw.
  — A Princesa Asha. Virou as velas para casa. O Leitor envia corvos, convocando todos os seus amigos a Harlaw. Diz que Balon tencionava que fosse ela a ocupar a Cadeira da Pedra do Mar.
  — Será o Deus Afogado a decidir quem ocupa a Cadeira da Pedra do Mar — disse o sacerdote. — Ajoelhai, para que possa abençoar-vos. — O Lorde Merlyn caiu sobre os joelhos, e Aeron tirou a rolha ao odre
e despejou-lhe um ribeiro de água do mar na careca. — Senhor Deus que te afogaste por nós, permite que Meldred, teu criado, renasça do mar. Abençoa-o com o sal, abençoa-o com a pedra, abençoa-o com o
aço. — A água escorria pelas gordas bochechas de Merlyn e ensopava-lhe a barba e a capa de pele de raposa. — O que está morto não pode morrer — terminou Aeron — mas volta a erguer-se, mais duro e mais
forte. — Mas quando Merlyn se ergueu, disse-lhe. — Ficai e escutai, para que possais espalhar a palavra de deus.
  A um metro da borda de água as ondas rebentavam em volta de um pedregulho redondo de granito. Foi aí que Aeron Cabelo-Molhado subiu, para que todo o seu cardume pudesse vê-lo e ouvir as palavras que
tinha a dizer.
  — Nascemos do mar, e ao mar regressaremos — começou, como começara cem vezes antes. — O Deus da Tempestade, na sua ira, arrancou Balon ao seu castelo e derrubou-o, e ele agora banqueteia-se sob as ondas.
— Ergueu as mãos. — O rei de ferro está morto! Mas um rei voltará a surgir! Pois o que está morto não pode morrer, mas volta a erguer-se, mais duro e mais forte!
  — Um rei erguer-se-á! — gritaram os afogados.
  — Erguer-se-á. Tem de se erguer. Mas quem? — O Cabelo-Molhado escutou por um momento, mas apenas as ondas lhe responderam. — Quem será o nosso rei?
  Os afogados puseram-se a bater com as mocas umas nas outras.
  — Cabelo-Molhado! — gritaram. — Cabelo-Molhado Rei! Aeron Rei! Dai-nos o Cabelo-Molhado!
  Aeron abanou a cabeça.
  — Se um pai tem dois filhos e dá a um um machado e ao outro uma rede, qual deles pretende que seja o guerreiro?
  — O machado é para o guerreiro — gritou Rus em resposta — a rede para um pescador dos mares.
  — Sim — disse Aeron. — O deus levou-me até às profundezas sob as águas e afogou a coisa imprestável que eu era. Quando voltou a atirar-me para terra deu-me olhos para ver, orelhas para ouvir, e uma
voz para espalhar a sua palavra, para que eu pudesse ser o seu profeta e ensinar a sua verdade àqueles que a esqueceram. Não fui feito para me sentar na Cadeira da Pedra do Mar… tal como Euron Olho de
Corvo não o foi. Pois eu escutei o deus, que diz: Nenhum homem sem deus pode sentar-se na minha Cadeira da Pedra do Mar!
  O Merlyn cruzou os braços ao peito.
  — Então é Asha? Ou Victarion? Dizei-nos, sacerdote!
  — O Deus Afogado dir-vos-á, mas não aqui. — Aeron apontou para a gorda face branca de Merlyn. — Não olheis para mim, nem para as leis do homem, mas sim para o mar. Içai as velas e estendei os remos,
senhor, e levai-vos até Velha Wyk. Vós, e todos os capitães e reis. Não ides para Pyke, baixar a cabeça perante o infiel, nem para Harlaw, ligar-vos a mulheres intriguistas. Apontai a proa a Velha Wyk,
onde se erguia o Palácio do Rei Cinzento. Em nome do Deus Afogado vos convoco. Convoco-vos a todos! Deixai os vossos salões e cabanas, os vossos castelos e as vossas fortalezas, e regressai ao monte de
Nagga para uma assembleia de homens livres!
  O Merlyn olhou-o de boca aberta.
  — Uma assembleia de homens livres? Não há uma verdadeira assembleia há…
  — … demasiado tempo! — gritou Aeron numa angústia. — Mas na alvorada dos dias, os homens de ferro escolhiam os seus próprios reis, promovendo os mais valorosos de entre eles. É tempo de regressarmos
ao Costume Antigo, pois só isso nos devolverá a grandeza. Foi uma assembleia de homens livres que escolheu Urras Pé-de-Ferro para Rei Supremo, e lhe pôs uma coroa de madeira trazida pelo mar na cabeça.
Sylas Nariz-Chato, Harrag Hoare, a Velha Lula Gigante, foi a assembleia que os ergueu a todos. E desta assembleia emergirá um homem capaz de terminar o trabalho que o Rei Balon iniciou e de nos devolver
a liberdade. Não ides para Pyke, nem para as Dez Torres de Harlaw, mas para a Velha Wyk, repito. Demandai o monte de Nagga e os ossos do Palácio do Rei Cinzento, pois nesse lugar sagrado, quando a lua se afogar e renascer, elegeremos um rei respeitável, um rei devoto. — Voltou a erguer bem alto as mãos ossudas. — Escutai! Escutai as ondas! Escutai o deus! Ele está a falar-nos, e diz: Não teremos rei a menos que seja escolhido pela assembleia de homens livres!
  Ergueu-se um rugido em resposta àquilo, e os afogados bateram as suas mocas umas nas outras.
  — Uma assembleia de homens livres! — gritaram. — Uma assembleia, uma assembleia. Não há rei sem ser pela assembleia! — E o clamor que fizeram foi tão trovejante que certamente que o Olho de Corvo ouviu os gritos em Pyke, bem como o maligno Deus da Tempestade no seu salão de nuvens. E Aeron Cabelo-Molhado soube que agira bem.

 

 

                                                                  George R. R. Martin

 

 

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