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A GLÓRIA QUE PASSOU - P.3 / Taylor Caldwell
A GLÓRIA QUE PASSOU - P.3 / Taylor Caldwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Terceira Parte PÉRICLES E ASPÁSIA
"Não são as casas de tetos impecáveis ou as pedras de muros bem construídos, os canais ou ancoradouros, que formam a Cidade, mas sim os homens capazes de aproveitarem as oportunidades que se lhes oferecem."
ALCACUS (611-580 a.C.)
Capítulo 1
Dédalo, pai de Dejanira, estava parado diante do Rei-Arconte, tremendo de raiva histérica. E gritou:
— É uma infâmia! Um homem na posição dele, que leva uma meretriz notória, uma cortesã declarada, para o seu leito, muitas vezes para sua casa, deve ser removido pelos cidadãos virtuosos! No mínimo, os óstraços devem ser usados contra ele. É uma afronta ao público. Ele é um perdulário, insidioso e inacessível. Está despojando o tesouro acumulado à custa do trabalho do povo, com suas fantasias em arquitetura e proteção a pintores e escultores insignificantes, a filósofos descalços!
Dédalo quase engasgou de raiva; perdera totalmente as estribeiras. Conseguiu com dificuldade recuperar o fôlego e lançou-se a nova explosão de ódio:
— Uma meretriz, uma mulher notória e infame, que afronta a modéstia e a decência feminina e se comporta da maneira mais indecorosa possível, uma mulher que se compraz em corromper as moças! Não há uma só mulher de moral ilibada que não desvie o olhar à menção do nome ímpio dessa meretriz! O povo despreza Péricles e exige uma reparação e o seu afastamento!
O Rei-Arconte cofiou a barba e refletiu: Como é possível que homens como Dédalo possam exigir a todo instante o respeito às virtudes cívicas, ao mesmo tempo em que continuam a ter seus vícios secretos e repulsivos. Tanta raiva assim seria por inveja, por algum tormento interior? Os que proclamavam sua humildade, como Dédalo, eram muitas vezes excessivamente orgulhosos, mesmo quando tinham bem poucos motivos para orgulho. O Rei-Arconte, sempre procurando conhecer as fraquezas e os caracteres dos homens, sabia que, ao final das contas, o que um homem denunciava era a sua própria corrupção. Ao denunciá-la nos outros, absolvia-se de sua própria culpa. Dédalo devia ser observado.

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Em tom ostensivamente moderado, para expressar sua desaprovação aos excessos de Dédalo, o Rei-Arconte disse:
— Não há um único homem de alguma distinção ou riqueza que não tenha uma hetera, e isto já se tornou aceitável. Não nos casamos todos com mulheres estúpidas ou ignorantes, de boa família e dinheiro, para gerar-nos filhos, aumentar nossa fortuna e governar nossas casas? E todos nós, para escaparmos às mulheres com que casamos, não tratamos de arrumar alguma mulher bonita, amorosa e inteligente, para apaziguar nossos sentidos exacerbados? E quem nos pode culpar? O costume nos impõe esposas menos que deleitáveis, com inteligência inferior à dos asnos, mas que conhecem à medida de cada cântaro, as mil maneiras de cozinhar favas e manter os registros das despesas. Elas podem ser virtuosas... mas, pelos deuses, como são tediosas!... e talvez seja esse o pecado imperdoável da virtude. Podemos estar certos de que os filhos que nos dão são realmente nossos filhos; afora isso, as mães de nossos filhos são insuportáveis. E os nossos sacerdotes ficam apregoando a "constante elevação da humanidade através de cada geração"! Não passam de mentirosos e tolos. Um asno gera um asno. Não haverá qualquer "elevação" da humanidade enquanto um homem não puder escolher cuidadosamente uma esposa que tenha algo mais além de dinheiro ou aptidões para a cozinha, que tenha também alguma inteligência. Quando isso acontecer, poderemos gerar filhos e filhas superiores, não animais mundanos, incapazes de distinguir entre a luz do sol e as trevas. Até agora, a raça humana reconhece a escuridão apenas quando esta lhe proporciona um sono tranquilo e a luz do sol quando lhe aumenta as colheitas.
"Péricles é como todos nós. Procurou escapar das mulheres apáticas, de suas lamúrias servis, de seus histéricos acessos de raiva. Por que então se deve culpá-lo? Seria uma hipocrisia. Acusá-lo é trair as nossas próprias iniquidades.
O Rei Arconte sorriu ironicamente para Dédalo, cujas feições esqueléticas se tornaram vermelhas, e continuou:
— Pode deplorar Aspásia. Pelo menos ela está educando moças que não irão apenas cheirar a cozinha, a celeiro, a cercados de procriação. Serão uma alegria para seus maridos. É possível até que façam com que os maridos fiquem tão fascinados que acabem por se abster de heteras ou mesmo de meretrizes. Como Péricles costuma dizer, as mulheres também pertencem à raça humana, algo que muitos homens podem pôr em dúvida, ao pensarem em suas esposas. Na melhor das hipóteses, mulheres inteligentes podem proporcionar-nos filhos aptos a serem chamados membros da humanidade e filhas que não terão apenas beleza, mas também conhecimentos, e que serão companheiras. Diga-me uma coisa, Dédalo: acha que sua esposa é fascinante?
Dédalo ficou subitamente atordoado. Mas sua fúria aumentou, a boca se abria e fechava espasmodicamente, sem que saísse dela qualquer som, o que o Rei-Arconte considerou uma bênção.
— Chamou Aspásia de ímpia, Dédalo. De que forma? Ela está ensinando as moças de sua escola a questionarem e não simplesmente aceitarem. Se isso é impiedade, então que tenhamos mais, especialmente entre nossos filhos.
"Deploramos publicamente o amor entre homens e homens e temos penas para puni-lo, embora ele floresça. Alguma vez pensou no motivo para que isso aconteça? Não resta a menor dúvida de que se trata de uma fuga às nossas mulheres, que nada têm a dizer de qualquer relevância, falando somente de escravas, modas, cuidados domésticos, crianças ou outros assuntos sem a menor importância. Por acaso prefere a perversão do amor entre os que são do mesmo sexo à preferência aberta pelo que a natureza ordena, que é o amor entre um homem e uma mulher? Confesso que prefiro este. E tenho a minha própria hetera.
"Disse que o povo despreza e odeia Péricles, o nosso Chefe de Estado, e que exige seu afastamento do cargo ou ostracismo. Mas qual é esse povo de que está falando, Dédalo? As turbas do mercado, que não querem monumentos à glória, à história e aos deuses, mas apenas a satisfação de seus apetites? Devemos descer às pocilgas que infestam nossa sociedade ou erguer nossos olhos para os sonhos de Péricles? Um mendigo gordo e bem-alimentado, que vive do trabalho dos outros, é preferível a um homem de visão, um homem que trabalha honradamente, que ama seu país não apenas pelo que seu país pode fazer por ele, mas pelo que pode fazer por seu país? Os que encaram seu país apenas como um cocho fétido em que se podem espojar e devorar o que lhes é oferecido constituem um perigo para todos nós. Um homem deve justificar seu nascimento pela vida que leva, pelas coisas que realiza, por mais humildes que sejam. O mundo não lhe pediu para nascer. Assim, ele deve provar que tem o direito de viver, não pelo que os pais fizeram no leito, mas pela qualidade de sua própria existência.
"Os que amam Péricles e o defenderiam até a morte não são apenas aristocratas intelectuais, mas homens que ganham a vida com orgulho, trabalho e dedicação, nos teares ou nos campos, nas oficinas, lojas ou vinhedos. A esses não nos atrevemos a ofender, pois são a própria vida de nossa nação, de nossa cidade-estado. São a nossa esperança de sobrevivência através dos tempos. Mas as turbas do mercado representam a nossa morte.
Dédalo engoliu em seco com extrema dificuldade e finalmente recuperou a voz:
— Sempre podemos recorrer aos óstracos contra autoridades ou pessoas como Péricles.
O Rei-Arconte suspirou, tanto de exasperação como de repulsa.
— Se fosse possível e dependesse exclusivamente do meu julgamento, eu não permitiria que os óstracos fossem utilizados por homens que não sabem ler nem escrever, que não têm nenhuma compreensão do significado de seus votos. Só permitiria que votasse o cidadão com um mínimo de inteligência, algum conhecimento, a consciência do por quê e em quem está votando. Votar é um dever da maior importância, um privilégio imenso. Deve ser limitado aos homens responsáveis, que pensam menos no proveito próprio do que no proveito do país. Infelizmente, porém, receio que esse seja um sonho impossível.
Ele percebeu que Dédalo ainda sentia dificuldade para falar e ficou esperando, com uma paciência óbvia. Percebeu também que Dédalo não havia escutado o que acabara de falar, preocupado apenas com sua fúria e emoções. Por isso, o Rei-Arconte, que era um homem benevolente, apesar dos seus firmes princípios, acrescentou:
— Deixe-me tornar a encher a sua taça com este excelente vinho do meu próprio vinhedo. O vinho é o sangue da velhice.
— Não sou bêbado! — gritou Dédalo, com um gesto ofensivo.
O Rei-Arconte tornou a encher a sua própria taça e disse, em tom sereno que não chegava a encobrir totalmente a sua irritação:
— Também não sou. Moderação em todas as coisas. Não é o que nós, gregos, estamos sempre dizendo? Jamais sou imoderado.
Olhou sugestivamente para Dédalo, que não se considerava imoderado e por isso não foi afetado pela censura.
Cerrando os punhos sobre a mesa à sua frente, Dédalo disse:
— Estão dizendo que Péricles tenciona casar-se com essa mulher... a mulher por quem promoveu a anulação do seu casamento com a minha filha! Se isso não é um escândalo público, então nada mais poderá ser!
O Rei-Arconte sorriu.
— Não tenha receio de um casamento. O próprio Péricles não determinou, há poucos anos, com a aprovação da Assembleia, que nenhum cidadão ateniense pode casar-se com mulher estrangeira? Aspásia é jônia. Assim sendo, Péricles não pode desposá-la. Ele é um estadista prudente; se repudiasse a sua própria lei, iria provocar com toda justiça um clamor de protesto, pois muitos são os atenienses que não se podem casar com as mulheres a quem amam por serem estrangeiras. Péricles deve obedecer à lei. Quando os governantes desrespeitam as leis que pessoalmente promoveram não passam de criminosos. E Péricles não é um criminoso.
Uma pausa e o rosto do Rei-Arconte se tornou subitamente firme e resoluto.
— Temos também que falar sobre seu neto, Calías. Ele foi proscrito das mesas de jogo e tavernas, até das mais reles, assim como de quase todos os estabelecimentos da Agora. E isso aconteceu por causa de seu comportamento arrebatado e violento, arrogância, confiança nas riquezas que possui...
— Mas ele não passa de um jovem! — gritou Dédalo, esquecido por um momento da posição superior do Rei-Arconte. — Tem apenas a exuberância juvenil!
— A juventude é época para a disciplina, para o exercício do autocontrole — disse o Rei-Arconte, os olhos sombrios. — Se um homem não aprende isso na juventude, jamais irá aprender. Fala em exuberância juvenil. Foi o que levou Calías a quase matar um homem numa taverna? Se não fosse rico e não houvesse a sua intervenção, Calías certamente iria para a prisão. Pela honra de seus próprios filhos, meios-irmãos de Calías, Péricles também interveio, embora com relutância. — Ele sacudiu a cabeça. — Foi uma das poucas atitudes de Péricles que me deixou irritado.
— Mas sempre declarou que o tem em alta conta! — gritou Dédalo, esquecendo a prudência por um momento.
— Não tenha jamais a menor dúvida quanto a isso. Péricles é um homem de justiça pública e virtude cívica em todas as questões mais importantes, E admito que eu próprio teria assumido a mesma posição que ele.
O Rei-Arconte estava cansado da presença de Dédalo, que o percebeu e levantou-se, explodindo impulsivamente:
— Hei-de me vingar!
E saiu quase correndo da sala, mesmo sem permissão, dominado por uma raiva intensa, as vestimentas a flutuarem em torno do corpo emaciado. O Rei-Arconte sorriu e chamou seus escribas e advogados, para tratar de questões mais importantes.
— Foi o Arconte Dédalo que saiu daqui como Bóreas, meu senhor? — indagou um jovem advogado.
— Era ele mesmo — disse outro. — É um velho, mas saiu desta sala como se fosse perseguido por Nêmesis.
— E acho que era isso mesmo o que estava acontecendo — disse o Rei-Arconte, sorrindo.
Ele pensou em Calías, cujos crimes mesquinhos, maldades e presunções absurdas, astúcia e vulgaridade, prazer em cometer crueldades, arrogância e brutalidade já lhe haviam valido uma fama pessoal de dissoluto em Atenas. Somente a fortuna e a família é que o resguardavam da ira de muitos homens. Calías andava frequentemente embriagado pelas ruas, espancando os escravos que lhe carregavam a liteira ornamentada, matando cachorros sem dono ou cambaleando atrás de donzelas acompanhadas apenas por outras mulheres. Tinha má fama e era evitado, e isto o enfurecia.
O Rei-Arconte comentou:
— Não são poucas as ocasiões em que a ruína de um homem provém dos seus descendentes.
Calías só encontrava alguma tolerância junto à mãe e aos avós, na casa de Dédalo. Na aparência rude, no corpo volumoso e no semblante apático era excepcionalmente parecido com a mãe; só que ele não possuía a mesma docilidade e capacidade de amar e suportar de Dejanira. Calías ouvia os lamentos da mãe pela perda dos outros dois filhos, Xantipo e Paralo; e odiava os irmãos, pois queria que toda atenção e afeição fossem fixadas nele, embora nada tivesse para dar.
Sabia que Dejanira preferia os outros filhos, gerados por Péricles. Muitas vezes, à noite, entregara-se a fantasias de assassiná-los. Ficava escutando as diatribes meio incoerentes do avô contra Péricles, as acusações lamurientas da avó. E não parava de pensar. Odiava Péricles e invejava os irmãos pela beleza que exibiam, não esquecia a aversão que o padrasto sempre lhe demonstrara enquanto tinham vivido sob o mesmo teto. Sua vaidade era imensa; estava absolutamente convencido de que tinha a aparência de um príncipe e a inteligência superior à de qualquer outro homem de Atenas. Embora os preceptores se houvessem desesperado por sua causa e os companheiros o tivessem expulso das colunatas da Agora, onde ficavam escutando os filósofos, Calías os considerava tolos lamentáveis e não os perdoava por seus gritos desdenhosos. Sua língua estava sempre proferindo blasfêmias e ameaças. Já matara dois escravos inofensivos, um velho e uma criança. Embora os atenienses não considerassem os escravos como humanos, mas apenas como coisas, tinham ficado assustados. Calías achava que todos os invejavam, e isto o enchia de satisfação, Transformava-se no mais encarniçado inimigo de todo aquele que se atrevesse a menosprezá-lo ou rir à sua custa. E encontrara ambos os crimes contra a sua pessoa na casa de Péricles, através do próprio Péricles e de seus meios-irmãos.
O seu ódio mais profundo concentrava-se no altivo Chefe de Estado. Estava convencido de que Péricles não apenas era seu inimigo, mas também que Péricles era o homem mais odiado de Atenas. Assim, punha-se noites a fio a pensar em Péricles, depois de ouvir as imprecações do avô contra o ex-genro. O que causaria a Péricles a agonia que ele merecia? Erguer a mão contra o Chefe de Estado ou qualquer outra autoridade do governo significava a pena de morte. Até mesmo uma ameaça aberta era passível de punição. Calías considerava-se tão invencível quanto Hércules, tamanho era o seu egocentrismo. Mas algo o advertia a não falar de Péricles com ódio e ira, em público ou em particular, entre os seus companheiros de devassidão. Péricles era famoso por ser implacável.
Assim, Calías concentrava a atenção em Péricles, escutando os clamores de Dédalo contra ele e contra a meretriz chamada Aspásia, que conquistara o Chefe de Estado, em detrimento de sua mãe, como fora condicionado a acreditar. A vergonha de Dejanira passou a ser também de Calías. Como uma mulher daquelas podia sentar-se nas mesmas cadeiras em que a mãe se sentara, partilhar o leito de Péricles? A degradação de Dejanira era também a dele. Não era Aspásia a ignomínia de Atenas, uma cortesã notória, a respeito de quem se contavam as histórias mais libidinosas? Era também ímpia, pelo que todos diziam, a humilhação de todas as mulheres puras de Atenas, Péricles a amava. E só isso era suficiente.
Calías começou a tramar. Se causasse a morte de Aspásia, estaria não apenas assestando um golpe mortal em Péricles, mas também receberia os aplausos dos atenienses. De um só golpe, vingar-se-ia de Péricles e se tornaria o herói de Atenas. Péricles não se atreveria a vingar-se dele, por mais importante que fosse a sua posição. Ou pelo menos era o que Calías acreditava.
Mas como encontrar uma oportunidade de assassinar Aspásia? Ela tinha guardas em torno de sua casa e da abominável escola, que despertara a indignação de todos os bons cidadãos. Aspásia jamais saía sem estar acompanhada. Os atenienses virtuosos podiam achá-la desprezível, os poetas sardônicos podiam fustigá-la com versos satíricos nos palcos e nas tavernas, muitas vezes diante do próprio Péricles. Mas nem por isso ela deixava de ser temida, como amante do poderoso Chefe de Estado. Aspásia era também cortejada e admirada pelos frequentadores de seus jantares. Ninguém, nem mesmo os seus inimigos mais acirrados, podiam denegrir-lhe a beleza, que era famosa em toda Atenas.
A beleza de Aspásia... Destruir essa beleza era destruir a própria mulher, torná-la repulsiva a Péricles, provocar-lhe sofrimento e desespero, fazer com que os mais devotados se afastassem dela, com compaixão e repulsa. Embora fosse lerda a inteligência de Calías, tinha por companheiras a astúcia e a obstinação. Encapuzado e sozinho, Calías foi à habitação de uma velha famosa por suas misturas e poções. Muitos chamavam-na de Hécata, ela se apropriara do nome e dele achava graça. Sua casa era evitada, não apenas à noite, mas também durante o dia, pois se dizia que ela podia lançar encantamentos maléficos. Apesar disso, tinha fregueses que iam procurá-la em busca de poções de amor, amuletos e maldições contra os inimigos. As mulheres estéreis visitavam-na e se tornavam férteis. Lia a sorte e o povo sussurrava que era uma vidente. As autoridades consideravam-na louca e por isso não ordenavam a sua prisão, pois haviam sido informadas de que era uma mulher generosa em suas oferendas aos templos. Era uma mulher rica, embora não honrada. Havia quem dissesse que era uma das Sibilas disfarçada. Sua casa ficava num bosque de plátanos, guardada por ferozes cães acorrentados, que ela podia soltar num relance, ao que se dizia, pronunciando uma única palavra gutural. A casa era pequena, mas luxuosa, repleta de tesouros que lhe haviam sido dados por clientes agradecidos. Dédalo, que se proclamava acima de qualquer superstição, execrava-a, dizendo que se tratava do escândalo de Atenas.
Calías não confiava em ninguém e por isso não mandou um escravo avisar a Hécata que estava prestes a receber a visita de um aristocrata. Os escravos sempre podiam falar. Se o avô soubesse que o neto fora procurar uma mulher tão sinistra, certamente ficaria furioso, até mesmo com ele, declarando-o desonrado. Além do mais Dédalo era um arconte, com responsabilidades públicas, e também um homem cauteloso. Calías sabia que Dédalo tentara injuriar Péricles através de Aspásia, mas apenas pelos caminhos legais, e isso mesmo de maneira furtiva.
Era realmente necessário ser furtivo, para que ninguém desconfiasse de que tudo fora feito pelo filho de uma casa aristocrática.
Calías era parcimonioso, apesar de rico. Pensava em intimidar Hécata com ameaças, ao entrar na casa dela, ainda encapuzado, as feições ocultas, obrigando-a a aceitar apenas uma ou duas moedas de ouro, em troca de seus serviços. Mas ela insistiu em cobrar cinquenta moedas de ouro; quando Calías reclamou, alegando que era um homem pobre, ela riu-se e ameaçou soltar um dos seus cães-lobo, que estavam sempre a rosnar, a fim de expulsá-lo. Calías vestira roupas humildes, mas Hécata percebera imediatamente que aquelas mãos grandes jamais haviam trabalhado, pois eram gordas e macias. Ouvira-lhe também a voz, que podia ser vulgar, mas não era de camponês ou de pequeno mercador.
Ela empurrou para trás os cabelos sujos e desgrenhados, que tinham o aspecto de serpentes, e disse:
— Não é apenas o ácido que está comprando, mas também o meu silêncio. Que nunca antes foi quebrado, apesar de já me terem ameaçado com torturas.
Ela sorriu para Calías, como se tivesse afivelada no rosto uma daquelas máscaras maléficas usadas no teatro, e estalou os dedos esqueléticos. A casa cheirava a incenso e as paredes estavam cobertas por murais impressionantes de harpias, fúrias, górgonas, serpentes e dragões, tudo iluminado por lampiões de latão, que acentuavam as cores sombrias e assustadoras. Calías pensara em assassiná-la com sua adaga, depois de receber o ácido, assim recuperando sua bolsa e não deixando testemunhas. Mas, como se adivinhasse os pensamentos dele, Hécata soltou dois cães, que se sentaram diante dela, emitindo os ruídos mais sinistros, os olhos vermelhos fixados em Calías. Ele se encolheu todo e Hécata soltou uma risada, percebendo que adivinhara as malignas intenções de Calías.
Uma grande arca de latão, toda lavrada, estava ao lado da cadeira em que ela se sentou. Calías, soltando uma imprecação, jogou-lhe a bolsa nos joelhos ossudos. Hécata abriu-a e contou o dinheiro. Assentiu satisfeita, abriu a arca e tirou um frasco de vidro cheio de um espesso líquido vermelho.
— Jogue isto na cara de seu inimigo e ele nunca mais tornará a ver; e ninguém mais tornará a lhe contemplar o semblante, de tanto horror. Ficará ainda pior que o rosto da Medusa. O ácido queimará como fogo e consumirá tudo que tocar. Fuja imediatamente, assim que lançar o ácido.
Calías, sem dizer mais nada, partiu exultante, o frasco envolto em pergaminho e depois em couro. Agora, precisava apenas providenciar um encontro com Aspásia, chegar perto dela o suficiente para lançar-lhe o ácido no rosto. Ela não morreria, mas passaria a rezar para que a morte viesse libertá-la de seu sofrimento e desespero. Era uma vingança apropriada contra Péricles, que a adorava, ao que se dizia, como se fosse uma deusa que condescendera em amá-lo e partilhar seu leito.
Por alguns dias, Calías rondou a casa e a escola de Aspásia, atento aos guardas, vestido humildemente como um simples trabalhador ou um homem dos campos, o rosto encapuzado, o corpo encurvado, a cabeça baixa servilmente. Em determinada ocasião, avistou a liteira de Aspásia, mas estava também guardada, as cortinas fechadas contra o sol quente que poderia afetar-lhe a pele tão decantada. Comentava-se na cidade que Aspásia exibia o seu rosto à noite, sem qualquer constrangimento, os olhos fitando a tudo e a todos impavidamente, sem jamais se desviarem. Mas Calías sabia que ela estava sempre cercada por admiradores, que poderiam agarrá-lo no mesmo instante e matá-lo.
Era impossível entrar na casa de Aspásia, que estava sob vigilância permanente. Obrigado a esperar, Calías foi-se sentindo cada vez mais frustrado e desesperado, propenso mesmo a ser descuidado. Pensou em tornar-se o herói de Atenas mesmo que tivesse de morrer no processo. Mas a perspectiva sempre o assustava e ele sabia, no fundo de si mesmo, que o ato teria de ser anônimo. E isto deixava-o ainda mais furioso contra Aspásia. Desejava a glória, mas o preço era alto demais, embora não tivesse a menor dúvida de que seu ato seria aplaudido. Perdeu o interesse em tornar-se herói, se não pudesse estar presente para ser aclamado. E sabia também que Aspásia tinha muitos amigos poderosos, que iriam vingá-la, por mais que os cidadãos de Atenas pudessem aprovar o ato dele.
Disse a si mesmo que devia ser intrépido, pela honra da família. Mas tinha medo. Viu-se forçado a pensar de verdade, concentrado, pela primeira vez em sua vida, angustiando-se com o trabalho monstruoso.
Depois de muitos dias tortuosos, finalmente formulou um plano, que era pura loucura, mas que poderia dar certo, pela própria audácia. O que fora mesmo que ouvira Dédalo dizer amargamente uma noite?
— O dinheiro é tudo e com dinheiro pode-se até mesmo seduzir os deuses... que o criaram.
Calías já descobrira que isso era verdade; durante uma hora inteira, atormentou-se em suplicar a si mesmo que deixasse de ser tão frugal, como era seu hábito, desprendendo-se de uma parcela considerável de seu ouro.
Foi ao bairro de pior fama da cidade, onde viviam e por onde perambulavam os mais perigosos e audaciosos marginais que se escondiam da lei, dispostos a qualquer coisa por dinheiro e tão indiferentes à compaixão quanto os abutres, com os quais se pareciam. Eram homens sanguinários, armados em seus espíritos de um mal congênito. Não apenas o dinheiro iria atraí-los, como também a própria maldade, pois era esse o ambiente em que vicejavam.
Calías conhecia-lhe as tavernas e as frequentava. Não lhe sabiam o nome, pois jamais o revelara, com medo do avô, a quem temia mais que a qualquer outro homem. Para eles, tinha o nome de Heitor. Divertia-se com esses criminosos, bebia em sua companhia; reconheciam-no como um dos seus e por isso não o roubavam, nem assassinavam. Imaginavam que não tivera o mesmo nascimento baixo, e se sentiam lisonjeados, ao verem que lhes procurava a companhia. Além do mais, Calías pagava-lhes vinho, sentindo-se grato pelo fato de eles aceitarem. Alguns achavam que, em caso de dificuldade, ele poderia ajudá-los, através de amigos influentes. O que Calías frequentemente insinuava, gabando-se. Todos sabiam que se muitos deles fossem presos seriam imediatamente executados, pois eram assassinos fugitivos da justiça, além de ladrões.
Calías entrou na taverna frequentada por eles, iluminada por velas, imunda além de qualquer imaginação, e cheirando a suor, vício, vermes, vinho ordinário. A taverna, como sempre, estava repleta de velhacos, os rostos contorcidos, as adagas sempre soltas e prontas para serem usadas, as vestimentas sujas, empoeiradas e rasgadas, os pés imundos metidos em sandálias. Tinham o hálito fétido, os dentes amarelados e quebrados, as feições abomináveis. Saudaram Calías com evidente satisfação, cercando-o, passando os braços por seus ombros. Ele respondeu não com aversão, mas com uma quase afeição. Eram da sua própria laia, embora não tivessem dinheiro.
Calías jogou uma bolsa cheia de ouro sobre a mesa diante do mercador de vinhos, que era tão malévolo quanto seus fregueses. E gritou:
— Não poupe vinho esta noite! Tenho planos de grandeza e fortuna para muitos de vocês!
Todos gritaram de alegria e lutaram pelas moedas de ouro, enquanto Calías observava, satisfeito. Depois perguntou por Iô, uma meretriz que servia àqueles homens, garota de não mais de treze anos, o rosto de uma dríade, tão inocente quanto um lírio, os olhos azuis. Iô era uma favorita de Calías, que frequentemente ia para seu leito miserável. Gostava dele porque lhe dava uma moeda de ouro, ao invés da moeda de cobre habitual. Mandaram chamá-la imediatamente, tirando-a do leito, onde estava deitada com um malfeitor. Trazia uma túnica curta, que lhe deixava à mostra as coxas roliças e muito brancas, os braços igualmente brancos e uma parte dos seios ainda em formação. Tinha os cabelos muito pretos, a boca macia e rosada, o semblante virginal. Iô era também passiva e desprovida de inteligência, tão obediente quanto um cachorrinho. Ninguém jamais a ouvira falar, embora ela soubesse escutar; os únicos ruídos que podia emitir eram gemidos, ofegos, gritinhos estridentes. Sua aparência era extremamente cativante. Podia ter sido a filha de um aristocrata, pois possuía as feições estranhamente delicadas, apesar da sujeira na carne, roupas e pés.
Calías contemplou-a, constatando que sua memória e julgamento não lhe haviam falhado. Iô servia perfeitamente para o seu propósito. Não faria perguntas, pois não tinha curiosidade nem compreensão. Possuía apenas uma beleza impecável, intacta apesar das suas vis atividades e seu rosto era imaculado. Transbordava de ternura, apesar da corrupção do ambiente em que vivia. Fora encontrada em criança a vaguear pelas ruas ruidosas e movimentadas, sendo apanhada como escrava pelo mercador de vinhos.
— Iô, meu amor — disse Calías, acariciando-lhe os seios impúberes. — Você está prestes a ganhar lindas roupas, sabonetes e perfumes.
Capítulo 2
Naqueles dois anos em que Aspásia era sua amante — ou, como diziam os atenienses mais revoltados, "sua rameíra" — Péricles jamais se cansara dela por um instante sequer; ao contrário, vivia em constante estado de espanto e alegria, pois ela sempre lhe apresentava um novo semblante, uma nova variedade de caráter, uma nova e surpreendente revelação. Péricles a deixava soturna e compenetrada; na próxima vez em que a encontrava, ela estava transbordando de malícia e humor. Ou se estava alegre, na ocasião seguinte se mostrava séria e compenetrada, a recordar-lhe permanentemente que não era uma mulher leviana e inconsequente, mas sim de vida interior. Havia momentos, especialmente quando estava cansada, em que Aspásía lhe apresentava um rosto quase modesto, pálido, pensativo, até mesmo aparentando mais idade, para no dia seguinte ser um braseiro de paixão, exuberante e animada, tão jovem quanto uma donzela intacta. Uma noite, passava boras a discutir com Péricles os planos de Fídias para Atenas. Na noite seguinte, abraçava-o assim que chegava e dizia:
— Beije-me! Esta é uma noite para o amor!
Péricles tinha a sensação de que possuía um harém de mulheres inteiramente diversas, que o idolatravam e satisfaziam sempre, embora de maneiras diferentes.
Aspásia sabia combinar as artes deliciosas de uma cortesã, o arrebatamento, o êxtase e o fascínio, com a ternura, a devoção e a solicitude de uma esposa amada. Mas tinha sempre o cuidado, diligentemente instruída que fora por Targélia, de jamais entediá-lo, de jamais se empenhar numa conversa aborrecida ou de queixas, e de jamais se entregar totalmente a qualquer criatura humana. Entre ela e Péricles flutuava um véu fragrante; quando ele a perseguia ardentemente, o véu esvoaçava em seu rosto. Péricles achava isso ao mesmo tempo torturante e excitante, especialmente quando afastava o véu por breves instantes e descobria que estivera perseguindo uma estranha, que dele ria suavemente. Aspásia sabia ser jocosa e engraçada como uma menina, para no instante seguinte tornar-se uma mulher serena e compenetrada, a discutir filosofia.
Ela era realmente, sob todos os aspectos, a mulher da estatueta, mas também uma mulher de carne e osso, ao mesmo tempo complacente e resistente. Mas não importava o quanto Aspásia pudesse mudar de um momento para outro, Péricles sabia que ela o amava tão profundamente quanto ele a amava. Muitas vezes, no momento mesmo em que estava falando à Assembleia, aos arcontes ou à Eclésia, lembrava-se dela com um sobressalto interior, uma saudade intensa, um desejo quase incontrolável, absolutamente convencido da integridade e firmeza de Aspásia.
Quanto a Aspásia, fora ensinada por Targélia que, para proteger-se, não devia amar totalmente, se é que sequer devia amar, porque os homens se cansam facilmente das mulheres e procuram novidades, sendo tão irrequietos quanto lebres na primavera ou cervos na época do acasalamento. Assim, uma mulher que amava era vulnerável e quando dispensada ficava condenada à morte ou à velhice, jamais voltando a encontrar a alegria ou felicidade. Os homens, apesar das afirmações dos poetas, amavam as mulheres, mas jamais uma mulher, dizia sempre Targélia; as mulheres, no entanto, criaturas infelizes, amavam um homem e jamais todos os homens. Uma mulher dominada pela paixão deve amar, mesmo que por pouco tempo e sempre pessoalmente — antes de poder entregar-se; mas para os homens qualquer mulher atraente era desejável e o amor não era levado em consideração numa nova ligação. As mulheres, por sua própria natureza, queriam o certo, o seguro, enquanto os homens sentiam-se irrequietos permanentemente.
Mais de um ano se passara antes que Aspásia pudesse sentir-se segura no amor de Péricles, antes que pudesse confiar nele, amá-lo plenamente, o que constituía para ela uma alegria secreta, uma felicidade intensa. Podia falar-lhe do fundo de seu coração, conforme se estivesse sentindo no momento, sem a preocupação obsessiva de agradá-lo invariavelmente; podia falar-lhe de uma alma, humana para outra, confiante na proteção, compreensão, ternura e segurança. Sabia que tal amor entre um homem e uma mulher, jamais temeroso de engano ou traição, era o mais precioso presente dos deuses e tinha de ser devidamente apreciado e mantido sempre aceso, como um fogo vestal, pois era sagrado e abençoado. E ela se abrigava prazerosa no refúgio do amor de Péricles, sem qualquer medo, sem qualquer ansiedade, sem se entregar a tolas simulações, embora sempre tomasse o cuidado de fazê-lo acreditar que ainda tinha mais a oferecer-lhe do que já revelara até aquele momento.
Percebia que o maior desejo de Péricles era satisfazê-la, tê-la sempre perto; na presença dela, Péricles podia ser totalmente ele próprio. Aspásia o satisfazia em retribuição e o que ele dizia, quando estavam no leito, jamais chegava aos ouvidos de outra pessoa. Aspásia estava a par dos fardos do governo, dos inimigos de Péricles, suas lutas, frustrações, desejos, ódios, fúrias intensas. Ambos sabiam que as confissões e explosões dele jamais sairiam daquele aposento em que se deitavam nos braços um do outro, de mãos dadas, os lábios se encontrando no calor fragrante da noite. Ah, pensava Aspásia, como é bom confiar e em quão poucos podemos confiar! Se tivermos uma única pessoa em quem possamos confiar já é o bastante. É mais do que bastante; é a água da vida, por toda uma existência. É alimento para os nossos espíritos, abrigo contra as vissitudes do destino, contra a precariedade do viver.
Certa ocasião, Péricles disse a ela:
— Vou revogar a lei que promulguei, pela qual nenhum cidadão ateniense pode casar-se com uma mulher estrangeira.
Acima de tudo, ele a desejava para esposa, temendo a inconstância dos seres humanos. Mas Aspásia protestou:
— Isso equivaleria a oferecer uma lança mortal a seus inimigos, especialmente aos homens que amam, mas não se podem casar com estrangeiras.
A si mesma, Aspásia disse: "Muitos homens são mais fiéis às amantes do que às próprias esposas, para as quais inventam defeitos como desculpas para suas traições. Mas uma mulher livre pode deixá-los a qualquer momento; eles sabem disso e é o que os torna mais fiéis, para que as mulheres amadas não os troquem por homens mais ternos, atenciosos e generosos. "Se tais reflexões lhe pareciam cínicas, sabia também que eram relevantes e baseadas na realidade e na natureza humana. Para manter Péricles, que no final das contas era apenas um homem, ela precisava também se conter. Pensando mais um pouco a respeito, Aspásia chegou à conclusão de que isso se aplicava a todos os relacionamentos humanos. Entregar-se totalmente, a não ser talvez a Deus, era lançar-se no caminho do desastre.
Assim, em seus lindos jardins, Aspásia mandou construir um altar simples de mármore, sob um teto de mármore, cercado por colunas de mármore, no suave estilo dórico, sem paredes. O altar ficava no centro e tinha uma inscrição: "Ao Deus Desconhecido". Era um templo pequeno, mas com a pureza da neve e o silêncio repousante; em todos os lados havia fontes iridescentes, com golfinhos no interior, esguichando o arco-íris, de tal forma que as colunas estavam sempre matizadas por cores suaves, quer brilhasse o sol, quer a lua estivesse no céu. Cercando tudo, havia canteiros de lírios, rosas e jasmins, um caminho circular de cascalho vermelho. Aspásia não sabia por que, já que lhe parecia uma mera fantasia, mas aquele local proporcionava-lhe uma sensação de paz e tranquilidade, uma promessa de refúgio e eternidade, tudo acentuado pelos ciprestes altos e escuros, além dos canteiros de flores e do caminho. Era como uma pequena clareira sagrada, a ser procurada apenas por aqueles que a estavam desejando e eram dominados pelo respeito e reverência. Era um dos lugares prediletos das moças da escola, embora elas raramente se aventurassem a subir os degraus para o chão de mármore do pequeno templo. Ficavam paradas a distância, imóveis, em silêncio. Não faziam perguntas. Parecia até que compreendiam perfeitamente, no fundo de seus jovens corações. Fídias é que projetara o templo, com amor e paixão, comentando:
— Um dia Ele terá milhares de altares e milhares de templos e todos saberão quem Ele é.
Havia também no jardim, num ponto isolado, um plinto simples de mármore, com algumas palavras gravadas: "Al Talif, que me ensinou a mim, Aspásia, muitas coisas de alegria e muitas coisas de sofrimento. Quem pode discernir a diferença?" Péricles deparara um dia com esse plinto e fora dominado por uma ira intensa, um ciúme atroz. Mas jamais falara a respeito com Aspásia. Ele tinha os seus segredos, Aspásia tinha os dela — e ambos respeitavam os segredos um do outro. Era outra daquelas coisas ocultas que os unia, muito mais do que se tudo tivesse sido exposto à luz amarga do dia. A exposição podia acarretar o tédio, e a revelação total, como a nudez, podia deixar de ser atraente. O mistério, como as sombras da lua, podia criar visões e despertar a Poesia. Acima de tudo, ele achava Aspásia misteriosa, uma mulher a quem jamais poderia possuir totalmente.
Recebiam os amigos na casa de Aspásia e não na de Péricles. É que a casa de Aspásia, embora fosse menor, era mais bonita, num estilo austero e elegante. Ela estava eternamente em revolta contra a opulência e as complexidades do Oriente, gostava da aparência de paredes de mármore sem qualquer adorno, refletindo a luz rósea do pôr-do-sol ou as copas das palmeiras. Mas suas estátuas eram incomparáveis, muitas delas criadas por Fídias, embora este preferisse trabalhar em marfim, ouro e bronze. Possuíam também a grandiosidade da simplicidade, uma dignidade incontestável. Acima de tudo, havia uma paz espiritual, uma serenidade inigualável.
A casa ficava ao lado da escola, uma construção quadrada, cercada por colunatas, onde as moças podiam estudar, ler, conversar, andar e contemplar a beleza dos jardins. As jovens viviam nos dormitórios da escola, sob a orientação de suas mestras e a vigilância de guardas. Ao pôr-do-sol, os jardins ressoavam com suas risadas, enquanto jogavam bola, praticavam o arco e flecha, lançavam o disco ou mergulhavam nas piscinas. Para Aspásia, era um som maravilhoso e muitas vezes ela acompanhava as moças nas brincadeiras. Apesar de já estar com vinte e cinco anos, ela ainda possuía milagrosamente a agilidade e rapidez da juventude. As donzelas reverenciavam-na; a ambição de cada uma era tornar-se parecida com Aspásia, sob todos os aspectos.
— Jamais se pode alcançar totalmente a excelência, mas deve-se sempre procurá-la com diligência e devoção — dizia Aspásia. — Jamais nos devemos contentar com a mediocridade, que é a complacência das mentes inferiores. É preciso empenhar-se sempre. E competir sempre, como nos Grandes Jogos Olímpicos. Somente isso agrada a Deus.
Zênon de Eleia dissera muitas vezes a Péricles que a felicidade era o sonho do gado e não podia ser alcançada por homens que pensassem, pois o pensamento acarretava a compreensão da trágica condição humana. Ele comentara certa ocasião:
— Dizem que Prometeu trouxe o fogo do Olimpo para a humanidade e por isso foi brutalmente punido. Mas estou convencido de que se trata de uma alegoria; o que ele trouxe para os homens foi o pensamento, que certamente é como o fogo. Ao fazê-lo, transformou os homens em criaturas conscientes. Talvez tivesse sido melhor que permanecêssemos como macacos.
— A maioria da humanidade ainda está no estágio do macaco — respondera Péricles. — Sou democrata, mas não tão idiota que acredite que todos os homens nascem iguais, sob todos os aspectos.
Ele encontrara a única felicidade verdadeira que jamais conhecera ao lado de Aspásia. O que não a impedia de ser uma felicidade irrequieta e apreensiva. Vivia dominado pelo terror que todos aqueles que amam experimentam; o terror de perder a pessoa amada, pela morte ou algum outro desastre. Anaxágoras dissera:
— Desfrute o momento presente, aproveite-o ao máximo, pois já perdemos o ontem, e o amanhã ainda não nos pertence. Não pense em coisas ruins para os dias vindouros. Isso azeda o presente, assim como o vinho saboroso se transforma em vinagre.
Mas não estava na natureza de Péricles simplesmente desfrutar o presente. O futuro é formado pelo presente, refletia ele; não pensar a respeito acarretaria a estagnação, nada poderia ser construído ou criado, viveríamos como bestas selvagens. Era verdade que pensar no futuro podia acarretar angústias indescritíveis. Mas pelo menos ficava-se preparado para o que pudesse acontecer. Por isso, ele insistiu em postar mais guardas na casa e escola de Aspásia. Ela não queria que se erguessem muros em torno, mas Péricles insistira. Nos portões de ferro, sempre trancados, havia de guarda homens corpulentos, dia e noite.
Calías examinara meticulosamente os muros e os portões. Seu desejo de destruir Aspásia, e com isso a Péricles, tornava-se mais intenso a cada dia. Seu primeiro plano fora o de pessoalmente lançar o ácido no rosto de Aspásia. Mas, como todos os homens fisicamente forte, arrogantes e cruéis, Calías era covarde. Estudara todas as possibilidades e finalmente formulara um plano detalhado, pois tinha a mente astuciosa dos estúpidos e maus. Fora informado de que Péricles passava pelo menos três noites por semana na casa de Aspásia. Quando seus amigos assassinos comunicaram que Péricles não dormiria naquela noite com Aspásia, pois que passara a noite anterior em companhia dela e na manhã seguinte iria falar à Assembleia, Calías concluiu seus planos. Não sabia que Aspásia e Péricles haviam recebido convidados naquela noite. Péricles, inebriado pela conversa e pelo vinho, acabara ficando na casa de Aspásia, de onde seguiria diretamente para a acrópole.
Naquela manhã, como de hábito, os dois saíram juntos para um passeio pelos jardins, pouco depois do raiar do dia. Embora fosse verão, era ainda agradavelmente fresco antes de o sol subir pelo céu, o orvalho matizava a relva como o arco-íris, as flores desprendiam uma suave fragrância. Os ciprestes escuros apontavam para o céu, que ainda era de um azul muito pálido. As fontes sussurravam para si mesmas. As colinas ao redor da cidade haviam-se tornado sépia e sobre elas subiam as oliveiras prateadas. Os templos dispersos pela acrópole pareciam formados por delicados ossos brancos contra o fundo mais escuro, e já recebiam os primeiros raios dourados. O pequeno templo ao Deus Desconhecido erguia-se no meio do jardim em toda a sua beleza, o altar sem qualquer adorno à espera. Os pássaros chilreavam animadamente nos plátanos, murtas e palmeiras, as notas musicais ressoando pelo ar. Era a hora que mais agradava a Péricles, embora Aspásia preferisse a noite.
— Recebi há alguns dias uma carta de um jovem muito rico que vive em Corinto — disse Aspásia, segurando a mão de Péricles entre seus dedos macios, como se fosse uma criança confiante. — Os pais dele morreram recentemente, deixando-o com uma irmã menor, de treze anos. Como ele está quase sempre ausente, teme pela segurança da irmã. O nome dela é Iô. Ele tem escravos para atendê-la, mas está bastante preocupado com o bem-estar da irmã. Ouviu falar da minha escola e deseja conversar comigo. Virá até aqui com a irmã. Na carta, disse que ela era muito tímida e vulnerável, e que excepcionalmente protegida, muito acima do normal, até mesmo entre os gregos. Disse ainda que ela teve preceptores e é considerada muito inteligente, apesar de sua juventude e incapacidade de conversar com estranhos.
— Espero que ela seja mais bonita do que a maioria das suas discípulas — comentou Péricles.
Aspásia riu.
— Minhas donzelas não são escolhidas por sua aparência, mas pela inteligência. Minha escola não se destina a preparar cortesãs. Contudo, muitas das minhas moças são bonitas. O problema é que não ensino como se adornar pessoalmente, insistindo na austeridade dos trajes e, dos cabelos, para que elas não se deixem distrair. As artes de seduzir um homem são melhor ensinadas pelas mães.
— O que pode ser mais atraente do que beleza com inteligência? — indagou Péricles, inclinando a cabeça coroada pelo elmo para beijar ligeiramente os lábios de Aspásia.
— Ah, mas eu sou um vaso raro!
Aspásia sentiu-se dominada por uma paz imensa. A mão de Péricles, segurando a sua, era forte, firme e protetora. Ela suspirou. Não duvidava do amor de Péricles, de sua intensa preocupação pela felicidade dela, de sua devoção. Sonhara com ele durante os anos que passara com Al Talif, o homem inexplicável cujo ânimo jamais era tranquilizante, que podia mostrar-se furioso num momento e extremamente terno no seguinte, deixando-a sempre num estado de apreensão e incerteza. Havia ocasiões em que se sentia contente por jamais ter sabido que Al Talif a amava, pois nesse caso teria ficado com ele, o que seria uma calamidade para si mesma. Havia outras ocasiões em que se recordava dele com um pesar suave e um anseio distante, mesmo quando estava com Péricles. Um coração de mulher, uma vez dado, não pode ser tomado de volta, a não ser com muito sofrimento e angústia.
O sol estava subindo pelo céu. Era o momento de Péricles partir. Aspásia jamais lhe perguntava quando iria voltar, pois tal pergunta deixava os homens impacientes e lhes proporcionava uma constrangedora sensação de repressão, fatal para o amor. Ao ir visitar Aspásia, Péricles levava apenas dois guardas, montados como ele. Foi ao encontro deles, depois de um último abraço a Aspásia, desaparecendo atrás da escola. Ela permaneceu onde estava, apreciando a manhã, contemplando os jardins com prazer e satisfação. Mesmo quando fosse velha, pensou ela, iria amar tudo aquilo e recordar. Olhou distraidamente para os portões e muros distantes. Dois guardas estavam postados no lado de dentro dos portões, bem armados. Ela sorriu. Péricles fazia questão de protegê-la daquela maneira, não porque realmente pensasse que ela corria algum perigo, mas porque tais providências lhe inspiravam confiança.
Um carro parou diante dos portões; tinha um toldo e conduzia um rapaz e uma moça. Estava acompanhado por quatro cavaleiros, todos armados e com elmos. Sentavam-se nos cavalos como soldados; o sol do início da manhã incidia sobre os arreios e elmos de prata, faiscando, e tornava ainda mais lustrosos os pêlos dos animais. Devia ser a moça, Iô, que chegava com o irmão, em grande pompa. Aspásia foi-se aproximando lentamente pelo caminho de cascalho vermelho, e parou logo adiante. Os guardas estavam conversando com os recém-chegados e um deles veio ao seu encontro.
— Senhora, o senhor de Corinto, um certo Nereu, acaba de chegar, com sua irmã Iô. Pedem para falar-lhe.
— Pode deixá-los entrar.
Aspásia continuou parada, esperando. O guarda voltou aos portões e abriu-os. Os ocupantes do carro desceram. O carro, puxado por cavalos brancos, e os guardas que o acompanhavam ficaram do lado de fora. O rapaz e a moça entraram sozinhos nos jardins, o que Aspásia, distraidamente, julgou ser um pouco estranho. Olhou cordialmente para os jovens que se aproximavam. O irmão, Nereu, era alto e louro, vestido ricamente, se bem que também discretamente, com uma túnica escarlate de seda, com um cinturão e uma manta igualmente escarlate. Os cabelos dourados não eram cacheados como os atenienses usavam. A atenção de Aspásia concentrou-se na moça. Viu a sua frente uma criança com um semblante absolutamente puro, suave como um lírio, a tez branca, os cabelos pretos soltos, um véu azul, da mesma cor que os olhos muito grandes. O vestido era branco, bordado a prata, a manta azul. Os pés delicados estavam metidos em sandálias de prata, cravejadas de pedras preciosas. Tinha na mão um pequeno objeto, envolto por uma seda vermelha e azul.
Calías, a cavalo do lado de fora dos portões, observou exultante que Aspásia estava sozinha, não havia sequer um escravo ou um jardineiro nas proximidades. Seus homens superavam em número os guardas; apesar disso, como covarde que era, ficara com medo de entrar no terreno da escola e da casa. Mas, se os guardas, depois do terrível atentado, quisessem agarrá-lo e a seus companheiros, seriam impiedosamente massacrados. Quanto aos dois que haviam penetrado nos jardins, não tinha a menor importância o que lhes pudesse acontecer. Talvez conseguissem fugir e juntar-se ao grupo. Caso contrário, que morressem. É claro que Calías não dissera isso ao espúrio Nereu, que fora informado de que os homens aguardariam e levariam os dois para um lugar seguro.
Nereu, que era ladrão e assassino, apesar de jovem e de sua cara de inocente, já ouvira falar da beleza de Aspásia. Mas nem por isso deixou de ficar aturdido com a altivez daquela mulher, que parecia uma estátua de mármore, delicadamente pintada. Os cabelos, entre dourados e prateados, não estavam presos e flutuavam em torno dela como uma nuvem radiosa, à brisa matutina. Por um instante, o nefando coração de Nereu hesitou, pensando na iminente devastação daquele rosto deslumbrante. Tivera uma boa criação, mas acabara sendo expulso da casa do pai por seu comportamento digno. Calías soubera escolher, pois Nereu tinha maneiras patrícias e uma língua bem-educada.
Nereu cumprimentou Aspásia com uma mesura elegante e disse, em sua voz refinada:
— Senhora, é muita generosidade sua receber-nos e somos humildemente gratos. Esta é minha irmã, Iô, sobre quem lhe escrevi. Peço que a receba em sua escola e a eduque, embora seja tímida e raramente fale. Ela irá manter o seu silêncio infantil.
Aspásia abaixou a cabeça e sorriu ternamente para a moça, pois sempre a comovia a juventude. Percebeu os olhos fixos e hesitou, pois não havia neles qualquer brilho de inteligência, apenas uma expressão vazia, que a cor deslumbrante e a forma perfeita não conseguiam ocultar.
— Não disse que ela teve bons preceptores, Nereu?
— E é verdade. Mas até hoje Iô não esteve exposta à atenção pública e por isso praticamente não fala com estranhos.
Com a mão esquerda, ele apertou o braço de Iô. Era o sinal, tantas vezes ensaiado, sob a brutal orientação de Calías. Iô começou a desenrolar a seda que cobria o frasco letal de ácido. Não desviou os olhos de Aspásia, que disse:
— Vamos para o pórtico exterior, onde poderemos conversar mais à vontade. Depois vou-lhe mostrar minha escola, Nereu.
A intenção de Aspásia era interrogar Iô, a respeito de quem se tornara indecisa. A moça tinha olhos infantis, impassíveis e vazios. Fazia Aspásia recordar-se de Cléo, que apesar da falta de inteligência era agora a amante tirana de um intimidado Cadmus, algo que sempre a deixava divertida. Os estúpidos eram invariavelmente os mais exigentes e rígidos em todas as coisas. A cada momento que passava, Aspásia ficava mais convencida de que Iô não era uma candidata à sua escola, infelizmente. Mas já se havia enganado antes. Não iria despachar os dois senão após estar absolutamente convencida da incompatibilidade de Iô.
Ela virou-se para seguir na frente em direção ao pórtico exterior, mas Nereu disse:
— Minha irmãzinha trouxe um presente para lhe oferecer, senhora. E quer entregá-lo agora.
Aspásia virou-se novamente na direção deles, sorrindo. A última dobra de seda caiu de cima do frasco. Iô segurou-o firmemente, com os olhos fixos em Aspásia. Tirou a tampa num movimento rápido.
Nesse instante, uma vespa zumbindo passou diante do rosto de Aspásia, que prontamente deu um passo para o lado, sacudindo a mão para o inseto ameaçador. Foi isso que a salvou, pois nesse mesmo instante Iô arremessou o conteúdo do frasco para o lugar em que ela estivera um momento antes.
O ácido faiscou ao sol da manhã, com um clarão vermelho, caindo na relva, perto de Aspásia, irrompendo em chamas e exalando um cheiro quase insuportável. Aspásia recuou, soltando um grito de terror.
Nereu recebera ordens expressas. Se por algum imprevisto o ácido não surtisse efeito, deveria apunhalar Aspásia no coração, o mais depressa possível. Ele olhou para o ácido em chamas na relva, uma delgada serpente de fogo a se afastar de Aspásia. Tirou a adaga e avançou furiosamente contra a trêmula e horrorizada mulher, enquanto Iô continuava parada no mesmo lugar, os olhos inexpressivos. Nesse momento, Péricles e seus homens contornaram o lado do prédio. Nereu percebeu a aproximação deles. Mas era um assassino dotado de bravura e teria concluído a sua missão se a própria Aspásia não lhe segurasse o pulso, erguendo-lhe o braço e desferindo uma joelhada contra a sua virilha. Ela soltou um grito desesperado, enquanto Nereu largava a adaga e se curvava, uivando de dor. Péricles chicoteou o cavalo e saiu correndo na direção dos três, avistando a serpente de fogo na relva e a luta de Aspásia. É que Nereu, embora sentindo uma dor intensa, agarrara um dos tornozelos dela e o torcia, tencionando derrubá-la, a fim de poder mais facilmente cometer o crime.
Calías contemplava toda a cena da segurança além dos portões. Fez um sinal e o carro vazio e os cavaleiros prontamente começaram a se afastar, ruidosamente. Os homens de Péricles correram atrás deles, embora estivessem em inferioridade numérica. Mas tinham uma vantagem que ainda ignoravam: os homens de Calías não eram soldados e não tinham a menor habilidade no uso das espadas que portavam. Por isso, todos trataram de fugir. Os cavaleiros de Péricles foram-lhes ao encalço; os guardas dos portões também partiram em perseguição, com as espadas desembainhadas.
Péricles gritou por mais guardas, ao mesmo tempo em que agarrava Nereu pelos cabelos e o afastava de Aspásia. Iô sentou-se na relva e pôs-se a dobrar e desdobrar o lenço de seda, olhando ao redor com a expressão sempre impassível. Péricles não tinha intenção de matar Nereu, que era um homem mais baixo e mais franzino; por isso, teve que dominar-lhe a fúria homicida, pois queria informações sobre os instigadores do atentado. Agarrou Nereu pela garganta e sufocou-o até a submissão. Depois jogou-o no chão e pôs o pé sobre seu peito. Olhou por cima do ombro para Aspásia, que, com os braços passados em torno de si mesma, estava tremendo e chorando. E disse, a voz calma;
— Já está tudo acabado. Não tenha medo, meu amor. Volte para a casa e espere-me lá.
— Eles queriam-me destruir! — balbuciou Aspásia.
— Sei disso. E vou descobrir por quê. Pode estar certa de que os culpados serão punidos.
Aspásia ficou repetindo, chocada:
— Eles queriam-me destruir... Por quê? Por quê?
— Vá para casa! — ordenou Péricles, com uma firmeza terrível.
Ela obedeceu, a cabeça abaixada, as mãos cobrindo o rosto, os cabelos esvoaçando ao vento. O rosto de Péricles estava todo contraído, numa expressão assustadora. Debilmente, Nereu tentou mexer-se, livrar-se daquele pé inexorável que o comprimia contra o solo. Péricles desferiu-lhe um pontapé na têmpora, Nereu ficou inerte, inconsciente.
Guardas da casa se aproximaram, correndo pelo gramado, as espadas desembainhadas. O ácido parara de rastejar pela relva, era agora apenas uma linha de fumaça, sem fogo, algumas fagulhas aqui e ali. Péricles disse:
— Levem esse assassino e o tranquem em algum cômodo da casa, sob constante vigilância. Não o machuquem. Vamos precisar interrogá-lo.
Péricles ficou sozinho, esperando. Olhou para o rastro negro do ácido na relva e começou também a tremer, tanto de raiva quanto de horror. Estava angustiado. Olhou para a moça sentada na relva, Iô, que começara a cantarolar baixinho para si mesma, enrolando o lenço colorido de seda no pulso e levantando-o de vez em quando para contemplar os reflexos. O primeiro impulso de Péricles fora o de matá-la, mas depois percebera o vazio no rosto juvenil, os olhos inexpressivos. Ela era tão culpada daquela atrocidade quanto os passarinhos nas árvores, pensou Péricles. Contendo a aspereza da voz, disse a ela:
— Quem a mandou até aqui, rapariga?
Iô ouviu-o, através do véu que lhe envolvia a mente. Ergueu o rosto e contemplou-o. Sabia apenas que ali estava um homem e que lhe haviam ensinado a ser sedutora. Inclinou a cabeça e fitou-o com olhos azuis tão rasos quanto uma poça deixada por uma chuva rápida. E disse, em sua voz infantil:
— Heitor... Quer ir para a cama, meu senhor?
A voz era indecisa, como a de uma criança pequena. Ela começou a balbuciar incoerentemente e Péricles franziu o rosto. A imbecilidade da moça impressionava-o terrivelmente; mais parecia que ela era um elemental e não um ser humano. Compreendeu que a moça não tinha a menor ideia da enormidade do que tentara fazer. Estava além do bem e do mal, pois não tinha alma. O próprio Péricles sentiu-se na presença de algo inocentemente assustador, ao mesmo tempo que sobrenatural, diante do qual o espírito humano devia recuar.
Uma escrava apareceu no pórtico exterior e Péricles chamou-a. A escrava velo correndo.
— Leve esta criança para os seus alojamentos — ordenou Péricles, indicando Iô.
A escrava levou Iô, que a acompanhou docilmente, sem fazer qualquer pergunta, nem oferecer resistência. Péricles estremeceu. Os jardins ao seu redor eram serenos e solitários, brilhando intensamente ao sol que escalava o céu. Mas, em seu coração, havia apenas tumulto e fúria. Os jardins pareciam escarnecer dele e Péricles pensou que a natureza era completamente indiferente ao turbilhão da humanidade, a suas tragédias. Infelizmente, pensou ele, desejamos que a natureza partilhe nossas paixões, desesperos e temores e ficamos confusos e alarmados quando isso não acontece. Somos insignificantes diante das forças e dos desígnios brutais da natureza, totalmente destituídos de pensamento e emoção. O Destino tece as suas teias sem tremores e hesitações, sem compaixão, sem qualquer compromisso com aqueles a quem cria ou destrói. É tão indiferente quanto Iô e justamente por isso deve ser ainda mais temido. Quanta presunção da nossa parte pensar que nas profundezas abismais há uma imensa consciência desconhecida que se preocupa conosco!
Ele olhou para o templo ao Deus Desconhecido e sentiu-se invadido por uma terrível amargura. Era como se fosse traído. E ainda não tinha coragem de pensar naquilo de que Aspásia escapara por pouco. Por enquanto, sua mente estava totalmente concentrada na vingança.
Os soldados e os guardas, ofegantes e empoeirados, voltaram somente com um homem, que estava ligeiramente ensanguentado e desgrenhado. Esse homem era Calías, cognominado "O Rico". Os outros haviam sido mortos, depois de uma luta encarniçada. E os guardas só não tinham matado Calías também porque ele gritara:
— Sou Calías, neto do Arconte Dédalo. Se me matarem, vão pagar com a última gota de seu sangue! Levem-me à presença de Péricles, pois minha mãe foi casada com ele!
Até o fim, Calías era um covarde, pensando exclusivamente em sua própria vida, jamais se preocupando com o avô e a mãe, que poderiam ser destruídos pelo escândalo e tentativa de assassinato ou algo ainda pior. Julgava-se acima da lei, como todos os estúpidos, convencido de que tinha privilégios. E estava igualmente certo de que Péricles iria poupar-lhe a vida.
Péricles ficou espantado com a sua própria ausência de surpresa ao ver Calías sendo arrastado à sua presença, no átrio, sangrando de diversos ferimentos superficiais, tão sujo quanto um camponês. O rosto dele era bestial, a atitude de desafio, embora os olhos hesitassem ao se fixarem em Péricles.
Péricles contemplou-o como se contempla a algo indescritivelmente obsceno e disse aos guardas;
— Levem-no e ponham a marca da escravidão em sua fronte.
Calías gritou estridentemente e se debateu inutilmente. Os guardas dominaram-no facilmente, arrastando-o dali. Péricles sentiu-se dominado por uma náusea súbita. Abaixou a cabeça entre os joelhos por um momento, depois aceitou o vinho gelado que um escravo lhe ofereceu em silêncio. Descobriu que estava suando frio; as paredes do átrio ao seu redor pareciam mexer-se como velas brancas. Pensou em Dédalo e Dejanira com um ódio intenso, imaginou o prazer que sentiria quando os soldados arrojassem Calías a seus pés, com a vergonhosa marca da escravidão na fronte. Calías ficaria para sempre marcado como uma coisa e não como um homem. Era uma punição pior que qualquer outra.
Aspásia, ainda mortalmente pálida, saiu para o átrio e ficou parada diante dele, em silêncio, contemplando-lhe a raiva muda, o ódio implacável, a emoção intensa. Péricles estava agora recostado na cadeira, os olhos fechados. Depois de algum tempo, apercebeu-se da presença dela e levantou a cabeça. Fitando-o atentamente, Aspásia disse;
— Tomei a liberdade, meu senhor, de cancelar a sua ordem para marcar Calías como um escravo.
Péricles continuou sentado, em silêncio por um longo momento. Aspásia nunca antes vira o rosto que ele agora exibia, a expressão ameaçadora e impiedosa. Deu um passo para trás, assustada. Mas, quando Péricles falou, a voz era bastante calma e controlada:
— Como se atreveu a fazer uma coisa dessas, Aspásia? Como se atreveu a me desobedecer?
— Achei que era melhor assim, meu senhor.
Ela cruzou as mãos sobre os seios, sentindo pela primeira vez medo de Péricles. Nunca antes ele lhe parecera tão perigoso, tão autoritário, na curta túnica branca, o elmo na cabeça, os olhos fixos. Muitas vezes, Aspásia sentira medo de Al Talif; em comparação, aquele medo antigo nada significava. Ela tremia visivelmente, mas manteve as feições o mais serenas que podia.
— Certamente tem alguma explicação para essa afronta mortal, não é mesmo, mulher?
Nunca antes Péricles lhe falara com aquela voz, deliberadamente insultuosa. Aspásia abaixou a cabeça e murmurou, a voz quase inaudível:
— Tenho, sim, meu senhor. Tem dois filhos, que são irmãos de Calías. Gostaria de que Xantipo e Paralo fossem irmãos de um escravo?
Péricles não pensara nisso. Aturdido, ficou pensando no que Aspásia acabara de dizer. E ela acrescentou:
— E gostaria também de que por toda Atenas ficassem escarnecendo que foi casado com a mãe de um escravo?
Ele levantou-se, começou a andar de um lado para outro do átrio, lentamente, as mãos cruzadas atrás das costas, a cabeça abaixada. Aspásia não desviava os olhos dele e murmurou, a voz trêmula:
— Seria uma desgraça terrível. Além do mais, meu senhor, a punição que determinou está abaixo da sua posição,
Péricles parou de andar, de costas para ela, indagando em tom impregnado de desdém:
— O que sugere, ó Sibila?
Aspásia se aproximou dele, tocou-lhe o braço num gesto suplicante. Péricles não se virou e ela ficou a contemplar-lhe o perfil inflexível.
— Sugiro que ele seja rudemente espancado por meu capataz, na presença de todos os escravos, e depois levado, acorrentado, à presença do Rei-Arconte, que é seu amigo. Que Calías seja exilado pelo resto da vida. Não é o Chefe de Estado, acima até mesmo do Rei-Arconte? Certamente ele não irá negar seu pedido.
— Calías é pestilento — disse Péricles. Mas ele estava pensando no que seria melhor; coçou o queixo, olhando para a frente fixamente. — Ele merece a morte. Não seria melhor que fosse executado e depois sepultado em algum lugar ignorado?
— É uma ação indigna de meu senhor.
Péricles pensou em Turnus e sorriu sombriamente. Sabia que Aspásia estava fazendo um apelo a seu orgulho e não à sua justiça. Era mulher e pensava como mulher. Por mais sensata que fosse, jamais poderia compreender plenamente um homem.
— Se aquela vespa não a tivesse salvado, Aspásia, estaria agora deformada pelo resto de sua vida, com uma aparência horrenda. Ou teria sido assassinada. Apesar disso, faz um apelo de misericórdia para o assassino que tramou tudo isso.
— Não sou insensível ao perigo de que escapei, meu senhor. — Aspásia fez um esforço para que Péricles a fitasse, mas foi em vão. — Também tenho imaginação. E não sou tão debilmente compassiva como pode pensar. Mas a verdade é que a vítima principal não era eu. Calías desejava atingi-lo, através da minha destruição. Por acaso eu o tinha ofendido diretamente em alguma coisa? Claro que não. Pelo que ele tentou fazer-lhe, meu senhor, a morte é uma punição insuficiente. Minha sugestão é muito pior. Quando ele for levado à presença do Rei-Arconte, exija que Dédalo esteja presente. Dédalo é seu inimigo, assim como meu também. Jamais poderá sobreviver à vergonha, à tentativa de assassinato executada pelo neto, ao fato de que Calías é um demônio indesculpável, que merece o desprezo total dos homens honrados, que foi levado a uma reunião acorrentado, como um criminoso comum.
Péricles finalmente fitou-a e Aspásia viu que havia um sorriso impiedoso estampado no rosto dele.
— É uma mulher astuta, minha amada. Não obstante, há muito mérito no que acabou de dizer. Que assim seja feito.
Ele bateu palmas e o capataz entrou no átrio. Lentamente, Péricles deu-lhe as ordens. O capataz abaixou a cabeça em sinal de obediência. Péricles acrescentou:
— Traga-me o homem chamado Nereu, que ficou sob a sua guarda.
Nereu foi arrastado até o átrio, acorrentado, e jogado no chão, diante de Péricles, que o cutucou com o pé. Nereu se levantou em seguida, com a dignidade tranquila do aristocrata nato, apesar de ter o rosto todo escoriado e ensanguentado. Olhou por um momento para Aspásia, que o fitava com desdém.
— O que tem a dizer em sua defesa, ó filho de uma Ciclope? — indagou Péricles.
Nereu não disse nada, limitando-se a limpar o sangue da boca, com a mão acorrentada. Péricles contemplou-o em silêncio por um momento, os olhos se estreitando, antes de finalmente acrescentar:
— Conheço seu pai. É um dos meus amigos, de uma nobre família, um homem de probidade e honra. Reconheço-o em seu rosto. Eu o conheci quando era apenas uma criança. O pai expulsou-o de casa, com angustia e desespero, levado por uma ira justa. Conheço os seus crimes.
Aspásia estava aturdida, escutando em silêncio as palavras de Péricles, que continuou:
— É mais nefando que Calías, o qual não passa de um porco, um tolo, uma criatura brutal. Pois você escolheu deliberadamente o mal. E assim maculou a casa de seu pai. Ele ainda sofre da infâmia. Como deverei puni-lo, para que todos os homens saibam quem é e o evitem pelo resto de sua vida?
Péricles olhou para Aspásia e ela disse:
— Que ele seja marcado como escravo, pelo que nem mesmo seu pai irá sentir qualquer sofrimento. E que depois o entreguem a um mercador de escravos, que o mande para longe da Grécia. Ele guardará silêncio, pois é um homem de nobre nascimento e jamais haverá de denegrir o pai ainda mais.
A boca de Nereu tremeu ligeiramente, mas ele continuou em silêncio. Quando o capataz o puxou pelas correntes, ele se afastou com um porte orgulhoso. Péricles disse:
— Ele jamais dirá seu nome, nunca saberão quem é seu pai. Há alguma vantagem em ser aristocrata. Pelo menos consegue-se suportar a punição sem lamúrias e clamores.
Péricles se aproximou de Aspásia e abraçou-a, beijando-a gentilmente na testa e nos lábios. Ela repousou a cabeça no peito dele, ainda temerosa, recordando a reação de Péricles ao censurá-la. Como que para consolá-la, Péricles disse:
— Seu conselho foi excelente e sinto-me profundamente grato, minha amada.
Aspásia perdeu inteiramente o medo, pensando que Al Talif jamais falaria assim com mulher alguma; ele não sentiria a menor gratidão diante daquela ofensa a seu orgulho, por mais judiciosa que tivesse sido a intervenção. Aspásia apertou Péricles com toda força e pela primeira vez, naquele dia de horrores, desatou a chorar. Ele acariciou-a ternamente e murmurou:
— Mandarei que Fídias faça uma vespa gigante em mármore para os seus jardins. Os olhos serão de turquesa, E será uma advertência para você, minha doce amada, de que jamais deve confiar num desconhecido. Na verdade, jamais deve confiar em absolutamente ninguém.
— Nem mesmo em você, Péricles? — indagou Aspásia, sorrindo por entre as lágrimas.
Ele tornou a beijá-la.
— Nem mesmo em mim... talvez. — Por um momento, Aspásia ficou desolada. Péricles levantou-lhe a mão, comprimiu os lábios contra a palma. — Pois algum dia irei morrer e terei de deixá-la.
— Rezo para que eu morra primeiro.
— Nunca me falou tão cruelmente — respondeu ele, a expressão profundamente grave. — Pois o que poderá ser a vida para mim sem você, Aspásia?
Alguns dias depois, o Rei-Arconte foi visitar Péricles.
— Foi feito com Calías o que determinou, Péricles — disse ele, sentando-se. — Mas isso não aumentou a sua popularidade entre as turbas e até mesmo os aristocratas estão revoltados. — Ele hesitou por um momento, antes de continuar: — Muitos acham que Calías estava plenamente justificado... em querer vingar-se do repúdio da mãe por você. Além do mais, dizem que Aspásia...
Como o Rei-Arconte não terminasse a frase, Péricles disse:
— É um escândalo. E que ela foi preparada para ser uma cortesã. Já ouvi tudo que estão dizendo. E nada tem a menor importância para mim.
O Rei-Arconte era um homem idoso e já amara muitas mulheres. Isso não o impedia de pensar que nem mesmo alguém como Péricles era imune a Eros, o que o tornava igual a incontáveis outros homens. Muitos impérios já haviam sido derrubados pelas mãos suaves de uma mulher. Muitos homens já haviam abandonado a honra, posição e até mesmo a vida pelas mulheres a quem amavam. Talvez haja alguma procedência na teoria de certos filósofos, pensou o Rei-Arconte, de que um homem em posição superior deve ser privado de seus testículos, a fim de que seu povo não pereça por isso!
Capítulo 3
— Talvez fosse melhor que eu tivesse morrido para que Péricles não fosse vítima das calúnias e ataques injuriosos que está sofrendo agora — disse Aspásia para sua amiga Helena, sentada no pórtico exterior da casa desta. — Eu não daria minha vida por ele? O que é a minha vida em comparação com a benevolência dele, o amor por sua terra e o desejo de criar beleza para ela, seu império da lei e da justiça, inteligência e compreensão, ódio aos indignos e hipócritas, julgamento sereno, patrocínio das artes e ciências, repulsa altiva a tudo que é emocional e histérico, aversão aos fervorosos e fanáticos, desprezo por políticos, governos e burocratas... em suma, tudo isso é Péricles. É a coroa de Atenas. Mas eu não sou nada.
Helena viu as lágrimas da amiga, mas não pôde resistir à tentação de comentar ironicamente:
— Faz com que Péricles seja superior a Zeus. Tome cuidado para que Zeus não a escute. Não se esqueça de que os deuses odeiam, acima de tudo, o orgulho nos seres humanos, punindo-o severamente.
Apesar da sua ansiedade e angústia, Aspásia foi forçada a rir. Helena continuou:
— Os deuses nos fariam rastejar na lama da terra, despejariam poeira e cinzas sobre nossas cabeças, jamais nos permitiriam contemplar as estrelas. Cometemos o crime de orgulho e pairamos acima das bestas dos campos... uma terrível afronta aos deuses. Sempre falei, repetindo o meu querido mentor, que sem orgulho um homem é simplesmente um animal, mas se torna heróico quando desafia os deuses. Mas basta. Péricles é tão implacável quanto generoso. Se achasse que somente afastando-a poderia manter o domínio de Atenas, não tenha a menor dúvida de que não hesitaria em livrar-se de você.
— Não acredita, minha cara Helena, que um homem é capaz de sacrificar a si mesmo e a seus sonhos por uma mulher?
— Não, não acredito. Sei que houve alguns exemplos na história, mas os homens eram tolos, dominados por seus órgãos genitais e não pelas mentes... o que é algo imperdoável, tanto nos homens como nas mulheres. Um pênis ativo ou uma vagina em uso não são substitutos para o conteúdo da alma de um ser humano, não importa o que digam os hedonistas e os adoradores de Dionísio.
Também não podem confortar um homem na noite escura da alma, que envolve a todos nós, exceto aos felizes e sorridentes membros das turbas do mercado, que são menos que humanos. Uma noite no leito com uma mulher jamais pode consolar um homem pela perda de sua honra e posição... e dos proveitos daí advindos. Portanto, você não tem o que temer. Péricles a ama. Irá mantê-la ao seu lado não por indiferença e descaso por sua vida, mas porque sabe que ele é mais forte que seus inimigos e pode desafiá-los. Nunca, minha cara amiga, deifique um homem. Admire-o, se ele é digno de admiração, mas jamais o adore.
— Você é realmente uma protegida de Targélia — comentou Aspásia, com algum ressentimento. — Eu pensava que Péricles seria capaz de renunciar a toda a sua vida por mim!
E ela desatou a rir, assim como Helena. Depois, voltou a falar, com mais apreensão:
— Mas a verdade é que ele está em perigo, não apenas pelo que é, mas também por minha causa.
— Ele está em perigo também por causa de suas ligações com filósofos e cientistas, acusados de impiedade, como Anaxágoras, Zênon, Fídias e Sócrates, para citar apenas alguns. Os arcontes, a Eclésia, a Assembleia e toda a horrível ralé do governo odeiam-no por usar o tesouro público para melhorar e glorificar Atenas. Preferiam ficar com o ouro ou promover o que chamam de bem-estar público, que significa, na realidade nua e crua, comprar votos para si próprios. Não seja orgulhosa, Aspásia. Péricles não destruiria Atenas e a si próprio por você ou qualquer outra mulher. E deve sentir orgulho dele por isso, por não ser um homem afeminado, vítima e escravo de emoções e do que o vulgo chama de amor.
Helena continuava tão otimista e vigorosa como dantes, seus conselhos eram sempre sensatos, se bem que impregnados de ceticismo. Aspásia, apesar de suas próprias experiências, reconhecia que Helena era menos vulnerável, com um espírito mais firme e resoluto, e amava-a por isso. Ao invés de se sentir triste pela exposição que Helena acabara de fazer do caráter e ambições de Péricles, Aspásia sentiu-se confortada. Era importante saber que Péricles não seria destruído só porque Aspásia era sua amante. Ela era simplesmente o pretexto passageiro para as exigências das turbas arruaceiras, infelizmente dotadas do direito de voto, para que Péricles fosse afastado do cargo. Viam em Péricles uma ameaça à sua esperança de uma vida mais fácil e mais abundante, à custa dos contribuintes. Odiavam-no porque ele declarava que um homem devia ganhar seu pão com o trabalho e não com a mendicância. Sabiam que Péricles os desprezava abertamente e os considerava um perigo para a nação.
As turbas sabiam que Péricles respeitava e apoiava a nova classe média, a qual acreditava que o trabalho era honroso e sagrado, que um homem preguiçoso, embora livre, era inferior a um escravo diligente. As turbas também não tinham o direito de viver? Indagavam aos arcontes. Ao que Péricles respondera:
— Não... a menos que justifiquem esse direito de viver, o que ainda não fizeram.
Atacavam Aspásia, logo eles, os mais repulsivos fornicadores e adúlteros, como um exemplo tanto de impiedade como de lascívia. Clamavam que ela influenciava Péricles em seu cargo. E era uma mulher aviltada, uma cortesã, jamais uma matrona. Era escandalosa, na medida em que corrompia moças com o saber. Recebia filósofos suspeitos, que desdenhavam dos deuses, e cientistas, que debatiam a existência dos deuses, em sua própria casa. Dizia-se que tinha em seus jardins um templo dedicado a uma divindade oriental, sobre o qual fora lançado um encantamento; todo aquele que se aproximasse do seu altar tornava-se impotente, irracional, frenético ou blasfemo, desafiador do próprio Olimpo. Seria o Deus Desconhecido, de que falavam alguns sacerdotes e filósofos? Ele era desconhecido porque não possuía atributos sagrados nem adeptos. Zeus não o reconhecera. Portanto, Péricles e Aspásia insultavam Zeus. Se Péricles não fosse deposto, os deuses se vingariam de Atenas.
Dédalo disse ao Rei-Arconte, com uma fúria histérica:
— Ele queria marcar como escravo o meu próprio neto, que é de uma casa ilustre! Se não fosse por alguns escravos misericordiosos, que o tiraram da casa daquela mulher abominável, teria ficado desfigurado pelo resto da vida! E agora meu amado neto Calías está exilado, conforme determinou Aspásia, a prostituta de Atenas, que nos governa sob o nome de Péricles. Não é monstruoso que uma rameira seja mais importante do que o próprio governo?
Como o Rei-Arconte não respondesse, Dédalo gritou:
— Quem é Aspásia, essa mulher que domina as nossas vidas? Meu neto estava apenas tentando redimir a mim, a casa, o orgulho de família, a posição. Se a tivesse matado ou deformado, estaria apenas fazendo justiça. Por suas corajosas intenções, em defesa de tudo que preza, Calías é agora um vagabundo em Chipre, não pode mais voltar para a sua amada família, para a mãe desesperada. Em nome de uma rameira vil, Péricles aviltou minha família, minha filha, meu neto, seus próprios filhos. Difamou sua casa. E desonrou seu cargo, toda a Grécia está-se rindo dele. Os poetas satíricos compõem pentâmetros para ridicularizá-lo e à sua rameira, as peças sobre os dois são hilariantes.
O Rei-Arconte ficou em silêncio por um momento, pensativo, cofiando a barba, antes de dizer:
— Já conheço. "Para encontrar-lhe uma Juno, a deusa da luxúria criou aquela rameira sem-vergonha, de nome Aspásia." Infinitamente hilariante, não acha? Pois saiba que não penso assim. Dédalo, você e eu somos homens já idosos, muitas vezes a memória nos falha, ao contrário dos preconceitos, que se vão tornando cada vez mais intensos e apaixonados. Se eu estiver enganado, corrija-me: se bem me lembro, seu neto não foi tirado da casa de Aspásia por escravos virtuosos e misericordiosos. Foi levado à Assembleia, acorrentado, depois de ser açoitado, pelos soldados de Péricles. A Assembleia não gosta de Aspásia, assim como também não gosta de Péricles, mas seus membros são homens geralmente justos... embora possa parecer em determinadas ocasiões que tomam decisões impulsivas e não pensadas e deliberadas. Ficaram impressionados com o ataque a uma mulher que não fizera nada contra seu neto e que, apesar de seus defeitos e convicções, é uma mulher não apenas bonita, mas também culta. Não a admiro, porque as mulheres já são belicosas e polêmicas o bastante sem terem qualquer educação e vão-se tornar ainda mais desagradáveis se aprenderem alguma coisa.
Ele tornou a afagar a barba, fixando Dédalo com seus olhos brilhantes.
— Fui informado de que foi Aspásia quem impediu que Calías fosse marcado como escravo. Não obstante, ela havia sido enganada por um estratagema tramado por seu neto. Ele tencionava assassiná-la, através de seus companheiros, ou pelo menos mutilar e desfigurar uma mulher indefesa. Um momento, por favor!
O Rei-Arconte levantou a mão, para deter o fluxo de palavras iradas que já começava a sair da boca de Dédalo.
— Deixe-me continuar. Péricles pediu o divórcio da esposa muito antes de conhecer Aspásia. Como Dejanira recusasse, ele providenciou a anulação do casamento. Quanto ao fato de Péricles "difamar" seu nome, casa, família e posição, ao proteger uma hetera... qual de nós já não amou uma mulher assim?
Ele ficou observando as faces encarquilhadas e encovadas de Dédalo tornarem-se vermelhas, antes de acrescentar:
— Devemos acusar em Péricles as nossas próprias... peculiaridades? Qual o patrício ateniense que é capaz de suportar a esposa? Há bem poucos casamentos de amor. E pelo menos Péricles é fiel à sua Aspásia. Queria inclusive casar-se com ela, mas não vai infringir a sua própria lei. É um homem honrado.
"Dédalo, seu neto não tinha qualquer motivo de rancor contra Aspásia, exceto talvez por ser naturalmente perverso. Estava atacando Péricles. Foi o próprio Péricles quem pediu que esse fato não fosse considerado pela Assembleia, pelos arcontes e pela Eclésia. Sabe qual é a punição para um atentado contra Chefe de Estado, não é mesmo?
Era um comentário meio capcioso e o Rei-Arconte sabia disso. Sabia também que a fúria de Dédalo iria impedi-lo de perceber o sutil argumento. Dédalo ficou parado onde estava, tremendo de raiva, os punhos cerrados nos lados do corpo, olhando furioso para o Rei-Arconte, com uma mistura de medo e ódio cego. Inclinou o rosto para a frente, como se não estivesse conseguindo ver direito, fixou os olhos nas feições do Rei-Arconte, como se quisesse gravá-las era sua mente.
Recuperando finalmente a voz, ele quase gritou:
— Senhor, todos falam, em Atenas e na Grécia inteira, até mesmo em Esparta, que Aspásia é ímpia, que ensina às moças iludidas em sua escola que os deuses não existem! Ou, se existem, não dão a menor atenção ao homem e por isso qualquer honra que lhes seja dada não passa de uma ilusão!
O Rei-Arconte assumiu uma expressão grave.
— Quem lhe disse isso, Dédalo?
— É do conhecimento comum, meu senhor!
— Na minha experiência, Dédalo, o que é "conhecimento comum" não passa de mentira comum. Somos homens ou velhas que passam seu tempo a caluniar? Quando tiver alguma prova genuína contra Aspásia, pode vir-me procurar e lhe dedicarei plena atenção. Agora, é melhor que se retire. Tenho assuntos realmente importantes a tratar!
E assim ele dispensou Dédalo. Contudo, estava mais preocupado do que aparentava. Admirava Péricles e conhecera o pai dele, Xantipo, quando era jovem. Até mesmo alguns membros da devotada classe média estavam expressando críticas a Péricles. Uma coisa era manter uma hetera; outra muito diferente, para um homem tão poderoso e famoso quanto Péricles, era exibi-la em público. E Péricles parecia estar sempre exibindo Aspásia. Era um fato conhecido que suas novas leis, proporcionando às mulheres mais liberdade em Atenas, mais direitos de propriedade, mais consideração e privilégios, haviam sido inspiradas por Aspásia, a da escola notória. (Os que afirmavam conhecer a escola, diziam que ali ocorriam coisas escandalosas.) Péricles, como político, devia saber mais sobre a hipocrisia das pessoas do que parecia conhecer. Em todas as ocasiões, os governos deviam estar conscientes dessa hipocrisia e respeitá-la, devendo proclamar ser uma virtude e não uma simulação desprezível. O que os inimigos estavam comentando a respeito de Péricles era indubitavelmente agradável às línguas servis e abjetas dos homens, que desejavam acreditar em todas as enormidades que se falavam dos vultos públicos. Mais homens de bem já haviam sido destruídos por mentirosos virtuosos do que os mais sensíveis gostavam de admitir.
O velho Rei-Arconte disse em voz alta:
— Ah, virtude! Quantas virtudes já não foram condenadas à morte em teu nome!
Particularmente, o Rei-Arconte achava que Péricles teria sido muito mais sensato se tivesse mandado matar Calías imediatamente, enterrando o corpo em local desconhecido. Não haveria então qualquer escândalo público, coisa que nenhum político podia suportar. O Rei-Arconte suspirou. Havia ocasiões em que a honra podia ser muito bem confundida com a loucura, e frequentemente era menos desculpável, E era também extremamente perigosa.
Fídias estava sentado no átrio da casa de Péricles, cuja fonte central emitia um som plangente no silêncio da noite, entremeado de vez em quando pelo canto triste dos rouxinóis. Até mesmo as árvores estavam imóveis e o luar parecia vir de uma esfera de alabastro parada no céu. A relva ressequida pelo verão exalava um odor de poeira aromática, tão penetrante quanto fumaça. A hora era avançada e até mesmo os ruidosos atenienses já estavam deitados e, para Péricles, felizmente quietos.
Os dois homens estavam sentados a uma mesa sobre a qual pendia um lampião, inclinados para a frente, examinando os pergaminhos que Fídias abrira. O rosto gentil do tímido escultor brilhava de ansiedade. Péricles tirara o elmo e o crânio comprido e os cabelos louros estavam úmidos com o suor da excitação. Contudo, não deixava transparecer essa excitação, nem mesmo para Fídias; anos de controle consciente haviam-se transformado num hábito involuntário. De vez em quando, Péricles tornava a encher a taça do escultor com um vinho excelente; ele próprio estava tomando cerveja gelada. Péricles não estava usando a toga do cargo, apenas uma túnica curta, de linho marrom, e tinha os pés descalços. Há muito que já esquecera que estava cansado. Em menos de duas horas, a cidade estaria de novo voltando à vida, quando a aurora lançasse os seus primeiros clarões sobre as colinas a leste. A casa dormia; não havia sequer um escravo de serviço e apenas os soldados se moviam por ali, elmos, espadas e cinturões faiscando ao luar estagnado.
— É uma sorte, Péricles, que a superestrutura para o Partenon tenha sido concluída há algum tempo, embora para outro templo — disse Fídias. — Assim, não haverá necessidade de muito esforço para os reparos e conclusão dos suportes. Aqui estão os planos para o Partenon dos meus arquitetos, Ictinus e Calicrates. — Ele sorriu suavemente. — No momento, um não está falando com o outro. Ah, os artistas! Ictinus insiste em que o templo para Atena deve ser consideravelmente menor no comprimento e consideravelmente mais largo, enquanto Calicrates insiste obstinadamente no oposto. Há muita discussão sobre proporções, perspectivas, aspectos particulares, projeções de sombras. Falei a eles, num esforço de pacificação, que o templo não devia ser construído exclusivamente para exaltar o espírito do homem, mas também para agradar aos olhos dos deuses em sua moradia mais grandiosa, ao contemplarem o mundo aqui embaixo. Pelo menos por algum tempo, eles ficaram tão ativos em desdenharem minhas opiniões e escarnecerem do meu misticismo, como o chamaram, que se tornaram irmãos em armas contra um inimigo comum e pérfido: eu próprio.
Péricles ficou admirado, como invariavelmente acontecia, com a genuína humildade do gênio. Não se podia dizer que um homem talentoso considerava o seu poder criativo como algo sem importância, mas apenas que ele próprio não passava de um sacerdote sem valor no altar do seu sagrado talento. Ele servia a seu gênio com profunda objetividade, ao mesmo tempo que lhe proporcionava todos os seus atributos de subjetividade. Era apenas o homem medíocre, de talento inferior, que se mostrava pomposo e arrogante, exigindo honrarias e homenagens pelos escassos dotes que possuía. Contudo, refletiu Péricles, não eram poucas as vezes em que o mundo dos homens não homenageava o possuidor do gênio verdadeiro e imenso, só porque este era dominado por uma sagrada humildade, a qual convencia os outros de que era intrinsecamente sem valor e seu gênio não passava de um inacreditável acidente da natureza. Mas o homem arrogante e presunçoso de pouco talento, que ruidosamente atraía atenção para si mesmo com excentricidades e orgulho, era geralmente homenageado. Afinal, ele tinha tanta admiração por si mesmo! Assim, naquela noite, Péricles tornou-se por algum tempo mais absorto pelo rosto radiante de Fídias, as descrições animadas e o ardor apaixonado do que com os planos propriamente ditos. O coração frio e ponderado de Péricles ficou profundamente comovido, como raramente acontecia.
Fídias suspirou de satisfação.
— Será perfeito, um exemplo glorioso da ordem dórica. — Ele hesitou por um momento. — Estou lembrado, senhor, de que disse preferir as colunas coríntias.
— Agora estou em dúvida. E tenho quase certeza de que não podiam ser outra coisa que não dórícas. — Péricles também hesitou por um momento. — A cela... Há uma base nos planos para uma estátua gigantesca de Atena Pártenos. Ainda está convencido de que a estátua deve ser de marfim e ouro?
O rosto de Fídias perdeu um pouco do brilho.
— Não consigo encontrar a perfeição quando trabalho com o mármore. Possui uma rigidez que exige certa desumanidade. Um homem deve dominar completamente os materiais com que trabalha. O mármore me intimida. Apresenta um desafio monumental, que somente os mais fortes podem enfrentar, com um desafio ainda maior. Os materiais mais suaves, no entanto, mais dóceis, parecem ter vida sob minhas mãos, nossas almas se entendem. Contudo, meu senhor, tenho discípulos de grande talento que poderão trabalhar o mármore, sob minha orientação, fazendo inclusive a estátua de Atena Pártenos.
Ele não entendeu o ligeiro sorriso de Péricles.
— Não, Fídias, a estátua será como a deseja, em ouro e marfim.
Fídias voltou a ficar alegre. Mas no instante seguinte tornou a assumir uma expressão desolada.
— O custo será muito maior que o de uma estátua de mármore, pois será uma obra de grandes proporções e o preço do ouro é elevado. O tesouro pode recusar.
— Fique tranquilo que não me irão recusar — declarou Péricles, com aquela atitude altiva e autoritária que seus inimigos tanto detestavam.
Continuaram a discutir cada métopa em detalhes, o carro da deusa, os frisos pintados. Havia momentos em que Péricles estremecia, pensando no custo, nos miseráveis homenzinhos do tesouro que iriam uivar como lobos para a lua cheia de avareza pública. Mas quando a primeira claridade do amanhecer surgiu a leste, ele fora subjugado pelos sonhos de Fídias. Podia contemplar os terraços, fontes e jardins que iriam adornar a acrópole, até o imenso templo de Atena Pártenos e os templos menores, espalhados ao redor e abaixo. Ficaria parecida com uma cidade-fortaleza na montanha, em mármore, cores alegres, flores e ciprestes escuros, resplandecendo não apenas sobre Atenas, mas sobre o mundo inteiro. As escadarias brancas, amplas e polidas, conheceriam os feitos dos grandes homens, que ali iriam para ver e adorar, aturdidos entre as colunatas douradas faiscando ao sol, refrescando-se na profusão de fontes, olhando lá embaixo a cidade prateada e o mar violeta. Multidões ali acorreriam ao longo dos séculos, para conhecerem a glória que era Atenas. A visão dominou Péricles inteiramente, era como se ele tivesse ouvido uma profecia solene.
— Será quase digno de Deus — murmurou ele. — Ele saberá que é a mais gloriosa oferenda que uma raça pode humildemente apresentar-Lhe. E não irá desprezá-la.
— Aquele que ama a pequena papoula vermelha da primavera não despreza nada — disse Fídias, comovido com a paixão intensa do céptico Péricles. — Mas não é verdade que a papoula contém todos os mistérios e possui uma grandeza acima do mármore, ouro, marfim, pedras preciosas ou estátuas? Pois contém a Vida de Deus, enquanto a pedra contém apenas os sonhos dos homens. A papoula se renova eternamente, mesmo nos lugares áridos; o que criamos, a partir do momento da concepção está condenado à deterioração. Mas o esplendor que a papoula possui é permanente, apesar de singelo, enquanto tudo que fazemos com as nossas mãos é mortal e paira sobre o deserto e o silêncio.
Fídias olhou para o espaço, os olhos arregalados e radiantes.
— Quando o Partenon for apenas a poeira branca do mármore e suas colunatas estiverem caídas sob a lua indiferente, a papoula irá renascer nos campos mortos da primavera, a proclamar a Glória de Deus, tornando o coração do homem feliz com seu sinal de imortalidade, sua força sagrada e invencível de a tudo resistir.
Ele ficou esperando um comentário, mas Péricles permaneceu calado e por isso continuou:
— Mas quem pode competir com Deus? Até mesmo os nossos sonhos mais nobres são enviados por Ele. O homem que contempla a papoula nos campos e não fica dominado pela reverência, esse homem tem o espírito morto. Pode reverenciar a nós que erguemos estátuas e templos, mas estará apenas reverenciando o que é transitório e inevitavelmente condenado a desaparecer.
Fídias percebeu a melancolia que se estampou no rosto de Péricles e tocou-lhe a mão num gesto de consolo.
— Por algum tempo, os homens saberão que Péricles tornou possíveis os nossos pequenos sonhos e jamais o esquecerão.
— Fídias é que jamais será esquecido, pois nunca haverá outro como ele.
Fídias sacudiu a cabeça,
— Os homens podem-se distinguir apenas na imitação. Somente Deus cria. — Ele fez uma pausa, tentou reanimar o amigo. — Anime-se... pois Deus também nunca se repete no homem. Somos todos singulares. Portanto, somos tão valiosos quanto Ele. Somos tão amados por Ele quanto Ele ama a papoula. E assim somos imortais e criados com o mesmo carinho.
Capítulo 4
Os meninos, Xantipo e Paralo, filhos de Péricles, amavam Aspásia. Péricles ficou satisfeito ao constatá-lo, pois isso significava que os filhos jamais se casariam com mulheres inferiores ou estúpidas, exigindo de uma mulher não apenas um corpo e um semblante atraentes, mas também uma mente superior. Na verdade, o último atributo era o mais desejável, pois qualquer moça, a menos que deformada ou com um apetite insaciável, podia apresentar ao mundo um rosto bonito e um corpo atraente, ainda que apenas por alguns anos. Péricles desejava que seus amados filhos fossem tão felizes quanto simples mortais podiam ser, o que era muito pouco. A beleza passava tão depressa quanto a primavera. No verão, outono ou inverno da vida a mulher inteligente era infinitamente protéica, variável e fascinante, não importando a idade. Mantinha uma eterna juventude do espírito, tinha humor, jamais se mostrava mesquinha ou histérica. Péricles já conhecera mulheres de setenta e até oitenta anos, antigas heteras, que atraíam homens de todas as idades, por seu espírito, conversa, conhecimentos e sabedoria. Eram como ouro que fora usado e gasto ao longo dos anos, adquirindo uma pátina luminosa.
Péricles estava convencido de que os homens que vagueavam com fome e insatisfação crescentes entre muitas mulheres, particularmente as mais jovens, é porque se tinham casado com mulheres materialistas, de pouca inteligência, mundanas, gananciosas e impertinentes. Mas um homem jamais se cansava de uma mulher superior, mesmo que frequentemente brigasse com ela... o que raramente acontecia com uma mulher estúpida. A pederneira precisava de aço para atear faíscas e fogo. Mas jamais o fazia em contato com o algodão. Ele próprio discutia muitas vezes com Aspásia, dizendo que ela era uma mulher briguenta e que não encontrava paz em sua companhia. Mas quando se afastava dela, sentia-se desamparado, a recordá-la constantemente; e mesmo quando a culpa era de Aspásia e não dele, Péricles sempre voltava com um presente e uma alegria renovada. Encontrava nos braços de Aspásia não apenas a paixão intensa, mas também uma renovação do espírito e da ambição. Sabia que ao lado de Aspásia jamais se tornaria velho, senil e apático, apesar de se queixar de que ela lhe proporcionava pouca tranquilidade, uma das coisas mais apreciadas pelos homens, conforme a todo instante declarava, furioso.
— Se é isso o que está querendo, pode ir aos cemitérios — dizia Aspásia, com alguma aspereza. — Enquanto eu viver, meu querido, jamais serei um cadáver.
Quando estava bem-disposto, Péricles ria e respondia:
— Vim ao seu encontro como as cinzas a que os homens me reduziram, mas em seus braços renasci como a Fênix, pois muitas vezes você tem a língua como uma víbora. Ou quando os tristes homens do governo me castram ou sobrecarregam como a um mulo, volto a ser potente em seu leito, para me erguer como Pégaso pela manhã e novamente enfrentar o sol.
A verdadeira paz e tranquilidade que encontrava com Aspásia não eram coisas da sepultura.
Antes inabalável e até mesmo implacável, obstinado e intolerante em muitas coisas, Péricles passou a ser, sob a influência de Aspásia, menos inflexível, menos impaciente, menos rude com os inferiores. Adquiriu a reputação de um homem suave e acessível. Homens que antes o temiam e evitavam, descobriam-no surpreendentemente mais cordial, mais disposto a escutar, menos sardônico e amargo. Até mesmo os desprezíveis burocratas falavam dele com alguma admiração. Os arcontes, com exceção de Dédalo, já não sentiam medo de sua arrogância aristocrática. A Assembleia, que outrora ficava sentada em silêncio, como escravos ressentidos, quando ele falava, passou a aguardar com ansiedade e prazer os seus discursos e sugestões. Contudo, a partir do momento em que se tornava um inimigo, Péricles jamais hesitava ou se desviava de seu ódio. E também não suportava os tolos.
— Deviam ser castrados — dizia frequentemente — pois transmitem a insensatez aos filhos. São mais terríveis que os hilotas, são como os dentes do dragão.
Consequentemente, os tolos no governo -— e estavam em maioria, como era inevitável — odiavam-no, com o ódio mortal dos simplórios. Riam abertamente de seu poder, escarneciam dele, mesmo sabendo que era o mesmo poder que detinham; combatiam-no implacavelmente e muitas vezes alcançavam algum sucesso.
Por tudo isso, Péricles ficou extremamente satisfeito ao constatar que seus filhos amavam e respeitavam Aspásia, achavam a companhia dela irresistível. Ela podia reprimir o espírito cético e às vezes cruel de Xantipo, torná-lo mais ponderado e atencioso com os outros, pois ele a respeitava e queria contar com a sua estima. Ela podia também moldar o caráter inflexível de Paralo, tornando-o menos intolerante.
— É ótimo ter convicções sólidas e princípios nobres — dizia-lhe Aspásia. — Mas a maioria dos homens não possui convicções sólidas, sequer tem princípios. São confusos, sofrem as angústias da condição humana, na medida em que ficam aturdidos pelo mundo em que vivem. Tenha compaixão deles. Mas seja também cauteloso, pois a compaixão indiscriminada não apenas é perigosa, mas também nociva e muitas vezes o atributo dos que se propõem secretamente a destruir a humanidade. De qualquer forma, tenha compaixão dos seus semelhantes e procure conduzi-los com ternura e compreensão, mas jamais com a convicção de saber o que é melhor para eles. Somos todos apenas humanos. Acreditar que sabemos mais que o nosso irmão é a suprema arrogância.
— Mas certamente meu pai sabe mais que seus colegas — protestava Paralo, para alegria de Xantipo.
Aspásia sorria ao ouvir tal declaração e os dois rapazes ficavam encantados. E ela respondia:
— Seu pai é de fato um homem muito raro. Ele próprio o admite.
Aspásia amava a ambos como mãe. Muitas vezes sentia-se preocupada por Xantipo, cuja língua era como uma espada de dois gumes, indiferente aos ferimentos que infligia, sem dar importância aos que sofria em consequência. Xantipo nascera para enfurecer as mentes inferiores e o compreendera muito cedo, com algum entusiasmo.
— Não é necessário apaziguar os tolos — dizia-lhe Aspásia. — Simplesmente evite-os. Mas ferir os amigos em potencial e transformá-los em inimigos, apenas pelo epigrama sarcástico de um momento, é uma tolice rematada. Um dito espirituoso é um preço alto demais para se pagar pela perda de um amigo. Um homem sempre precisa de todos os amigos devotados que puder encontrar.
— Meu pai tem poucos amigos — dizia Xantipo, com um brilho nos olhos, zombeteiro, mas afetuoso.
— Ah, mas são amigos de verdade! Seriam capazes de morrer por seu pai. Escolha seus amigos como se estivesse escolhendo uma joia de grande valor. Aquele que diz possuir muitos amigos e deles se gaba é ridículo e merece a nossa compaixão, pois está-se enganando a si mesmo. Uma presença agradável em sua mesa, bebendo-lhe o vinho copiosamente e assegurando o seu amor, muitas vezes escarnece dele em particular, considerando-o um tolo ingênuo, e está sempre pronto a despejar-lhe a calúnia, a inveja e a maldade.
Quando Xantipo se aproximou da idade de casar, já com dezessete anos, Aspásia apresentou-o a algumas donzelas que estudavam em sua escola, nos jardins de sua casa. Atenas declarou-se afrontada com esse ato tão impróprio. Um rapaz de família não escolhia a sua noiva. Isso era uma prerrogativa dos pais dele e dos pais da moça. Contudo, os pais das discípulas de Aspásia não fizeram qualquer objeção; afinal, Xantipo não era o filho de Péricles? Além do mais, os próprios pais não eram também esclarecidos? Ainda por cima, Aspásia jamais permitia que Xantipo e suas discípulas ficassem a sós. Agia assim não por uma questão de decoro, mas porque conhecia a natureza humana e não se esquecia de Talías. A juventude já era ardente o bastante para que se lhe proporcionassem oportunidades estimulantes e as donzelas haviam sido confiadas aos seus cuidados.
Dédalo, tomando conhecimento através de rumores entre os escravos de que seus netos estavam aprendendo a impiedade e a corrupção com Aspásia, decidiu ter um encontro com Péricles, na casa deste. O primeiro impulso de Péricles fora o de recusar-lhe uma audiência, mas acabou cedendo e recebeu Dédalo com uma cortesia fria, oferecendo-lhe refrescos. Dédalo, cada vez mais rabugento com a idade, recusou-os, furioso.
— Não quero nada nesta casa infame! Já me rebaixei o bastante vindo até aqui, pelo bem dos meus netos! A vontade que eu tenho neste momento é a de vomitar!
— Pois vá fazer uma visita às latrinas — respondeu Péricles. — Ficarei esperando. Sou o Chefe de Estado e você não passa de um arconte, a quem polidamente concedi permissão para falar-me.
Ambos estavam de pé no átrio, pois Dédalo se recusara a sentar-se. A sua palidez era doentia. Péricles não pôde deixar de sentir alguma compaixão daquele velho e por isso continuou de pé, em atitude de espera, os braços cruzados sobre o peito.
— Meu neto, Xantipo, visita as jovens cortesãs na casa daquela mulher inqualificável, Aspásia! E corre até o rumor de que vai-se casar com uma delas!
A boca de Péricles tornou-se tão firme quanto o mármore.
— As jovens da escola de Aspásia possuem nomes aristocráticos e são de casas impecáveis. Devo informar aos pais daquelas donzelas que você as caluniou, chamando-as de concubinas e rameiras? Os pais são homens poderosos, mais do que você, Dédalo. Poderiam facilmente destruí-lo.
Dédalo tremeu de medo. Esticou os braços e balbuciou:
— Não me estou referindo às discípulas. Dizem que Xantipo foi induzido a ter relações com escravas naquela casa!
— É uma mentira e você sabe disso perfeitamente, Dédalo.
— Eu acreditaria em qualquer coisa daquela mulher!
Péricles teve que fazer um tremendo esforço para controlar-se..
— Aspásia permitiu que Xantipo conhecesse as filhas de ilustres famílias e escolhesse pessoalmente a sua noiva. E se ele terminar escolhendo uma donzela que seja discípula de Aspásia, não irá cometer a loucura rematada de se casar com uma mulher estúpida e feia. Não terá um filho como Calías, cujo nome goza de má fama em Atenas, a tal ponto que nenhum homem o considera marido digno para sua filha, apesar de todas as riquezas herdadas.
— O nome dele não é infame! Calías foi simplesmente vítima de pessoas repulsivas! E se cometeu atos tolos, foi simplesmente porque estava desvairado com a desonra infligida a sua família! Acha que ele não tem emoções, que não pode ser dominado pela vergonha e sofrimento? E as riquezas funcionaram contra ele! Mas não importa, Calías está agora vivendo na solidão e tristeza em Chipre e essa é a única razão pela qual não pode casar-se com uma donzela ateniense. Afinal, qual o pai que permitiria que sua filha fosse partilhar o exílio?
Péricles riu jovialmente.
— Sei que ele está vivendo no luxo em Chipre. Lá, é cortejado e adulado. Não é nenhum vagabundo errante. Tem uma casa magnífica, com muitos escravos. E recebe suntuosamente. Muitas donzelas atenienses de grandes casas receberiam permissão para casar-se com ele, com o maior entusiasmo. Mas Calías não quer casar. Prefere as concubinas que tem. Mandei emissários a Chipre para avisar que ele poderia receber autorização para voltar a Atenas, se assim o desejasse. Mas ele repeliu-os. É que pode cometer em Chipre as licenciosidades que aqui não lhe seriam permitidas. Será que ainda não sabia disso?
— Não acredito! — gritou Dédalo. — Recebemos cartas pesarosas dele, manchadas de lágrimas de sua saudade da família!
— Acha que estou mentindo?
A voz de Péricles era ameaçadora e Dédalo se encolheu, dando um passo para trás.
— Talvez ele esteja exagerando... Mas qual é o homem que não deseja voltar para o seio da família que o ama?
— Calías.
Dédalo baixou os olhos, o corpo todo a tremer. Ao levantar a cabeça, viu nos olhos de Péricles uma mistura de desdém e com paixão.
— O que acabei de lhe dizer é verdade, Dédalo. Ele pode-se casar... se assim o desejasse. — Uma pausa. — E poderia voltar em breve também, se assim o desejasse. Mas acontece que Calías não quer.
Dédalo estava confuso. Abriu os braços, num gesto de desespero.
— Chamou minha filha, Dejanira, de estúpida e feia. Ela é virtuosa e fiel. Não acha que são qualidades favoráveis?
Péricles fechou os olhos por um momento, já cansado.
— Reconheço que Dejanira possui virtudes. Mas não me atraem. Sou grato a ela pelos filhos que me deu. Respeito-lhe o nome. Jamais tivemos brigas. Mas tudo isso pertence ao passado. Dispensei-lhe algum tempo, que é precioso para mim. Devo pedir-lhe agora que .se retire.
Dédalo começou a se afastar, mas virou-se alguns passos adiante, os trajes agitados pelo vento.
— Não esquecerei! — exclamou ele, erguendo a mão num juramento. — Não esquecerei! Imploro a vingança dos deuses... nos quais você e aquela mulher não acreditam! Eles não serão escarnecidos!
Ele atravessou o átrio e o pórtico externo, onde sua liteira o esperava. Assim que ficou atrás das cortinas, desatou a chorar, a boca a se mexer em imprecações silenciosas. Não era totalmente destituído de poder e Péricles tinha muitos inimigos. Começou a tramar. O rosto encovado e encarquilhado estava contorcido de ódio.
Aspásia pegou a mão de Péricles ao pôr-do-sol e conduziu-o à tranquilidade de seus jardins. Ali, perto do altar ao Deus Desconhecido, estava a imensa estátua de mármore de uma vespa, que Fídias pessoalmente projetara, dois anos antes. Ao vê-la, Péricles sentiu-se novamente perturbado, recordando-se daquilo a que Aspásia •escapara. Abraçou-a ternamente e murmurou:
— Eu a defenderei, minha amada, contra todo mal.
— Está esperando mais algum mal? — indagou ela, fitando-o nos olhos.
Péricles hesitou.
— O homem é intrinsecamente mau... todos os homens. Os judeus dizem que o homem é mau desde o berço e perverso a partir da juventude. Quem assim falou foi o fabuloso Salomão e acredito em suas palavras. Um homem que não está permanentemente alerta à maldade de seus semelhantes é um tolo. Os homens são iníquos por natureza. Praticam o mal não porque dele foram vítimas, mas porque isso lhes proporciona prazer e satisfação. Se não têm inimigos, tratam de inventá-los. E isso se aplica tanto à humanidade quanto às nações.
Aspásia contemplou as murtas, cujas folhas estavam douradas ao pôr-do-sol. E murmurou:
— É um mundo lindo e maravilhoso... Por que somente o homem é irrecuperável?
— Porque é essa a sua natureza. — Péricles fez uma pausa. — Os judeus dizem que Deus nascerá neste mundo daqui a quase um século. — Ele soltou uma risada. — Não tenho a menor dúvida de que os homens irão matá-lo, assim como mataram Osíris. A virtude é o único crime que os homens não podem suportar.
Aspásia assumiu uma expressão triste.
— Não tem a menor fé nos seus semelhantes, meu amado.
— É porque os conheço muito bem. Até demais. Os planos para a acrópole já estão prontos. O mármore está disponível. Dei ordens para que apenas homens livres construíssem os templos, pois abomino os templos erguidos por escravos. Deus jamais pretendeu que homens se tornassem escravos. Sólon deplorava a escravidão. E eu também deploro. Mas já me ocorreu que há multidões incontáveis de homens que anseiam por se tornarem escravos do governo, a fim de não serem obrigados a pensar e agir com responsabilidade, para não terem que prover suas próprias vidas. É mais fácil ficar de joelhos e ser alimentado pelo governo do que permanecer ereto e lutar sozinho pelo próprio sustento. Não foi Anaxágoras quem disse que a natureza segue o caminho por onde encontra menor resistência? É o que fazem os homens. Resistir ao governo é árduo e perigoso. Obedecer é alimentar-se no sossego da escravidão, ser esquecido por burocratas. O que não deixa de ser uma vantagem.
Aspásia formulou a mesma pergunta que já fizera várias vezes antes:
— Por que é então que continua a ser o Chefe de Estado?
Péricles deu a mesma resposta que já apresentara tantas vezes antes:
— Devo permanecer no cargo, pelo meu sonho de uma Grécia unida. As cidades-estado estão sempre correndo perigo, especialmente uma das outras. E podem ser também divididas por inimigos externos, ansiosos por tesouros. Uma nação unida é sempre forte. Não admiro Esparta, nem a Macedônia, mas homens sensatos podem fazer concessões e chegar a acordos, não importa quais sejam as suas diferenças. No passado não nos unimos para combater os persas? Se pudemos fazê-lo naquela emergência, poderemos fazê-lo novamente como homens racionais. Os atenienses ficaram ao lado de Leônidas, o Espartano, embora desprezássemos os espartanos por sua disciplina rigorosa e determinação implacável de ordenar as vidas de todos os seus habitantes, homens e mulheres, velhos e crianças. Quem dentre nós não se riu das donzelas espartanas, que competiam com seus irmãos no atletismo e no trabalho? Elas usam túnicas masculinas, têm músculos, as peles ásperas, curtidas pelo sol. Seus semblantes são sempre ferozes. Por mais que os escarneçamos, no entanto, não devemos esquecer que os deuses não nos concederam o poder de cuidar dos assuntos internos de outras nações. Trata-se de uma suposição pretensiosa. Que cada nação viva em paz com o governo que deseja. O que não impede a união contra os inimigos ou para o comércio.
Há sempre guerras, pensou Aspásia. As cidades-estado gregas viviam permanentemente em disputas com suas irmãs. Seria exaustivo recordar todas as guerras, que podiam ter sido fúteis e de pequenas proporções, mas que haviam sido invariavelmente cruéis. Que Homero as glorificasse e falasse das artes da guerra. São apenas tragédias. Mas só as mulheres com filhos e maridos é que o percebem. Ela pensou em Lisístrata e suas mulheres, que haviam recusado seus leitos aos maridos, a menos que fizessem a paz. Pensou nas bárbaras mulheres romanas, capturadas pelos sabinos, dos quais tiveram filhos, e que jogaram as crianças diante das patas dos cavalos romanos e sabinos, desafiando-os a pisotearem aquela carne infantil. O que contivera os homens, exaltados pela perspectiva da batalha? No final das contas, teria sido o poder das mulheres? perguntou-se Aspásia. Targélia dizia que a esperança do mundo estava nas mãos das mulheres. Aspásia não acreditava muito em tal afirmação, achando apenas que os homens podiam ser seduzidos nos leitos femininos, se as mulheres fossem suficientemente ardilosas. Mas não restava a menor dúvida de que os homens não eram bastante misericordiosos para pouparem os filhos. Aspásia suspirou. Amava Péricles com uma paixão e devotamento que não experimentara por Al Talíf. Não obstante, como ele era um homem, não esperava que fosse capaz de compreender os impulsos e necessidades de um coração de mulher. Mas ela logo sorriu. O pai dos deuses e dos homens, Zeus, tinha medo de sua esposa, Hera, que o governava, enquanto ele governava o mundo.
— Por que está sorrindo, minha adorada? — indagou Péricles.
— Estou pensando em nosso filho.
Atônito, Péricles segurou-a pelo braço.
— Nosso filho?
Aspásia abaixou a cabeça.
— Esperei até agora para contar-lhe, meu senhor. Estou com criança. E tenho certeza de que será um filho... seu filho e meu.
Como Péricles continuasse em silêncio, os olhos claros arregalados, Aspásia acrescentou:
— Vamos dar-lhe o nome de Péricles, em homenagem ao pai ilustre.
Ele franziu o rosto, largou-lhe o braço, afastou-se um passo.
— Não será um filho legítimo.
Aspásia tocou-lhe o braço.
— Pode adotá-lo, meu senhor. E ele será então realmente seu.
Ela sentia alguma ansiedade. Será que Péricles não estava satisfeito? Estaria irritado porque ela fora descuidada numa noite de amor intenso?
Mas quando Péricles se virou novamente para ela, tomando-a nos braços, tinha no rosto uma expressão radiante.
-— Estou pensando no perigo que corre, meu amor. Afinal, entrou na casa dos trinta anos. Já consultou Helena?
— Já, sim. — Aspásia estava comovida. Julgara-o erroneamente, como ambos os sexos fazem mutuamente. Pandora não soltara aquela confusão, assim como outras confusões e distrações? — Apesar da minha idade, Helena diz que estou com excelente saúde. Vai cuidar pessoalmente de mim. Tem recebido muitas instruções do jovem Hipócrates, que visitou sua escola e hospital.
— Tenho que conhecer esse Hipócrates — disse Péricles, novamente com o rosto franzido, alarmado por causa de Aspásia.
— Não precisa preocupar-se, meu senhor. Tudo vai correr bem. Mas diga-me uma coisa: está satisfeito porque lhe vou dar um filho?
— Pode ser uma filha. — Péricles riu. — Se ela sair parecida com a mãe, vou adorá-la.
— E... se for um filho?
— Vou ensinar-lhe a disciplina necessária. Será um valoroso filho de Atenas.
O que um homem estava querendo dizer ao falar em "valoroso"? Afinal, o valor também era uma coisa subjetiva.
— Uma mulher já na casa dos trinta anos, velha bastante para ser avó, não deveria ter filhos. Não suspire, meu Péricles. Nosso filho será como um deus.
Os dois ficaram ternamente abraçados. Mas não somos realmente um só, pensou Aspásia. Os pensamentos de uma mulher estão muito distantes dos pensamentos de um homem. Quem teria determinado que assim fosse, por malícia ou talvez por sabedoria?
Olharam para o alto da acrópole. As grandes colunas dóricas do Partenon estavam matizadas de rosa pelo sol poente. Eram como torres, ainda sem teto, erguendo-se contra o céu escarlate. Nos níveis inferiores da acrópole havia grupos de colunas menores. Muros se erguiam como muralhas. Escadarias brancas e amplas não levavam a parte alguma, apenas para cima; à espera de que o grande templo fosse concluído. Os lados da acrópole já estavam escorados e dispostos em terraços, os ciprestes já plantados, a terra pronta para os jardins e fontes. Canos longos de chumbo, para conduzir a água, desciam pela colina como serpentes sinuosas, ainda descobertos. Nas outras colinas, as oliveiras eram prateadas, sob a luz intensa e translúcida. O teatro lá embaixo estava repleto de sombras púrpuras, os assentos vazios, o palco —: outrora um altar — silencioso e deserto. Rouxinóis começavam a cantar e algumas gaivotas, voando do mar, refletiam nas asas os últimos raios dourados. As murtas, plátanos e ciprestes dos jardins de Aspásia haviam ficado mais escuros e começavam a sussurrar, sob uma brisa que soprava. O templo ao Deus Desconhecido reluzia debilmente nas sombras. A lua em quarto crescente, a se elevar no céu, era como uma unha de pérola a leste.
Havia uma paz profunda nos jardins. Péricles contemplou a acrópole, as mãos nos quadris, as pernas musculosas ligeiramente separadas, a cabeça com o elmo erguida. Havia agora sombras prateadas em seus cabelos, mas o rosto ainda era grave, bonito e distinto, os olhos estavam agora sonhadores.
Aspásia sabia que ele a esquecera momentaneamente. Estava entregue às suas visões, escavadas em pedra na colina alta, um sorriso exultante nos lábios. Não estava pensando em guerras ou problemas de Estado. O que Péricles via naquele momento era mais esplêndido que qualquer vitória militar, mais espetacular que tesouros incontáveis. Era como se contemplasse as obras dos deuses. Os homens não podem deixar de criar, pensou Aspásia; um dia, muito em breve, a acrópole irá reluzir em branco e dourado, povoada de templos, apinhada de colunatas como uma floresta de mármore, repleta de estátuas e de vultos alados no alto de colunas a se erguerem para o céu. A glória inata da humanidade estava emergindo, saindo de sua carne tenebrosa e ignóbil, como um pássaro a se erguer de um pântano em que florescem todas as coisas maléficas. O homem era um demônio; mas era também como os deuses, tão glorioso quanto vil.
Como se tivesse ouvido os pensamentos de Aspásia, Péricles comentou:
— Atenas está agora alegre ao verificar que um sonho se converte em realidade, está orgulhosa do que está sendo criado ali. Mas esquece que há poucos Sócrates, bem poucos homens como Fídias, Zênon e Anaxágoras, não muitos Sófocles. Contudo, o homem comum acredita que vê a si mesmo nesses homens, está convencido de que partilha a glória deles. Ele diz "Somos extraordinários" e não "Ele é extraordinário". Assume pessoalmente, para cobrir a sua carne miserável, os trajes dos imortais, fica empertigado e clama: "Como somos gloriosos!" Não compreende que Sócrates, Protágoras, Fídias, Zênon, Anaxágoras, Heródoto e Sófocles, para citar só alguns, são como estreIas que brilharam por um momento e raramente nos céus escuros do mundo... e não são absolutamente deste mundo.
— Mesmo assim — disse Aspásia — esses poucos são uma inspiração pata o resto da humanidade e uma esperança de que o homem pode tornar-se perfeito e heróico. Sem um sonho, somos apenas animais; sendo assim, meu senhor, deixe-nos sonhos.
E ela sorriu. Péricles retribuiu o sorriso, indulgentemente. Sua túnica branca ia-se tornando ainda mais clara, à medida que a noite se adensava e a lua em quarto crescente subia pelo céu, como o arco de Ártemis refletindo o sol tombado. Os templos da acrópole tornaram-se fantasmagóricos e irreais.
Aspásia recostou-se contra o peito de Péricles, que a envolveu com os braços vigorosos, beijando-a no alto da cabeça. Os pensamentos dela eram inquietos. Péricles estava sendo agora chamado o homem a cavalo, o ditador, os poetas satíricos tornavam-se cada vez mais ousados e sarcásticos nos ataques que lhe faziam. Assim como fugira de Al Talif para o seu próprio bem, Aspásia pensava frequentemente em fugir de Péricles para o bem dele.
Ela era odiada, escarnecida, acusada de coisas horríveis, e sabia que isso acontecia por causa de sua ligação com Péricles, porque ele a amava.
— Por que suspira, meu amor? — indagou Péricles, afastando uma mecha de cabelos e semicerrando os olhos na escuridão crescente para contemplar-lhe o rosto.
— Eu suspirei? Está na natureza das mulheres o suspirar; afinal, não amamos os homens, muito embora vocês não mereçam? Os dois riram, pois Aspásia jamais esquecera as palavras de Targélia, segundo as quais uma mulher melancólica não era vista com bons olhos pelos homens e acabava sozinha com seus pesares; uma mulher devia sempre fingir que seus suspiros eram de prazer, provocação ou triviais, não tinham qualquer significado. Mesmo sabendo que Péricles a amava e que a defenderia com sua própria vida, confortando-a frequentemente, Aspásia também sabia que não se devia deixar dominar pela tristeza por tempo demasiado. Os homens podiam ficar comovidos pelas lágrimas de uma mulher, mas não se estas eram crônicas. E, no final das contas, Péricles era um homem.
Foram para a casa, de mãos dadas, para jantar e depois se retirarem para os aposentos de Aspásia, onde se amariam e dormiriam sob a lua. E quando Péricles estava dormindo ao seu lado, saciado, Aspásia pensou novamente no destino das mulheres, sentiu despertar outra vez a sua antiga rebeldia. Seus novos temores retornaram e ela ficou olhando, insone, para a escuridão. Era impossível saber se o destino de uma mulher era determinado pelos costumes ou pela própria natureza.
Capítulo 5
— O verdadeiro objetivo da educação — explicava Aspásia pacientemente aos que a interrogavam — não é permitir a um homem ou uma mulher ganharem dinheiro, galgarem um alto cargo, conquistarem a glória. É simplesmente o de ampliar a alma, alargar a mente, estimular a curiosidade, proporcionar uma nova visão e compreensão do mundo, despertar a inteligência e todas as faculdades latentes, para imenso prazer e exultação de quem as possui. Em suma, é revelar novas perspectivas de pensamento e compreensão, a fim de que se possa melhor desfrutar a vida. Um homem ou uma mulher ignorante são meio cegos, não ouvem realmente, sua existência é estreita e limitada.
Depois de uma breve pausa, para deixar que a pessoa absorvesse o que acabara de dizer, Aspásia acrescentava:
— Infelizmente, a verdade é que os deuses concedem a poucos homens mentes extraordinárias, talento e gênio. Os deuses são parcimoniosos com suas graças e não as conferem a torto e a direito. Isso é um mistério profundo. A maioria dos homens nasce com uma compreensão restrita, uma inteligência limitada. No caso desses homens, a educação intensiva não apenas seria inútil, mas serviria para confundi-los e frustrá-los, levá-los ao ódio e ressentimento. Na educação, como em tudo, devemos ser misericordiosos e reconhecer que os homens não nascem igualmente dotados de inteligência, saúde e caráter. Contudo, todos os homens nascem com um potencial pessoal e têm condições de se tornarem melhores do que são, até os seus próprios limites de capacidade. Assim, a educação, como a roupa, deve ser ajustada ao indivíduo. É o que faço na minha escola, embora não aceite uma discípula que inequivocamente tenha escassa inteligência e pouca capacidade de aprender. Ela estará melhor sob os cuidados da mãe, que poderá prepará-la com toda a simplicidade.
E ela concluía:
— Mas não vamos desprezar essa vasta maioria que não é bem-dotada e possui inteligência limitada. Eles também têm a sua hierarquia na natureza e essa nada tem de inferior. É mais valiosa do que imaginamos. Os humildes e industriosos devem ser respeitados e honrados. Sem eles, os intelectuais não poderiam existir, pois morreriam de fome ou por falta de abrigo e roupa. Iriam sufocar por insuficiência de tempo para se desenvolverem a si próprios. — Ela sorria. — O trabalhador humilde pode perfeitamente viver sem nossa arte e ciência, sem nossas filosofias e livros. Mas nós não podemos viver sem ele!
Diversas discípulas de Aspásia tornaram-se discípulas de Helena e foram treinadas em seu hospital, sob a orientação da nova escola de Hipócrates. Tornaram-se médicas, mas a maioria teve que partir para o Egito, depois de se formarem, para se tomarem sacerdotisas. É que no Egito somente os sacerdotes e sacerdotisas podiam exercer a medicina. Contudo, umas poucas ficaram com Helena, a fim de ensinarem a outros, tanto homens como mulheres. Outras se tornaram professoras de matemática, ciência e literatura em novas escolas, que rapidamente se multiplicavam sob a inspiração de Aspásia, que pelo menos nisso tinha influência junto a Péricles.
Por isso é que o nome de Aspásia se tornara infame para as mulheres ultrajadas de Atenas, que alegavam que as heteras emancipadas estavam corrompendo suas filhas, quer essas filhas estivessem ou não sendo educadas ou mantidas na ignorância, como determinavam os costumes. Para elas, os costumes eram quase tão sagrados quanto a religião. Eram estimuladas nessa ilusão pelos sacerdotes, que detestavam, acima de todas as coisas, a efervescência provocada pelo conhecimento. Desejavam uma sociedade estável que não contestasse coisa alguma. Desejavam tão-somente a serenidade. Compreendendo isso, Aspásia comentava desdenhosamente:
— É a serenidade e a ordem do túmulo.
Os inimigos de Péricles estavam divididos. Muitos afirmavam que eram secretamente governados não por Péricles, mas por uma mulher indigna. Outros declaravam que Aspásia era simplesmente a arma de Péricles contra o povo.
Péricles estava convencido de que, através da Liga de Delos, composta de cidades-estado, poderia promover uma Grécia unida, invencível, contra, seus inimigos. Ele despachou muitos colonos para as cidades-estado e reconheceu francamente que também tinha o propósito de consolidar pontos estratégicos para Atenas e garantir terras para os trabalhadores diligentes das cidades. Assim o fez pela isenção de tributos e taxas. Os contingentes mais numerosos de colonos foram para Naxos, Imbros, Brea, na Trácia, Lemnos, Andros, Creu e Erétria.
Se os inimigos de Péricles tivessem pensado primeiro em tais medidas, teriam exigido para si a gratidão e honrarias públicas, como patriotas e estadistas eminentes. Mas, como a iniciativa fora de Péricles, seus adversários tiveram súbitos acessos do que classificaram de consciência do mundo e consideração pela autonomia dos outros estados. Não importava que a própria Atenas se estivesse fortalecendo e que fossem excepcionais os benefícios para os membros da Liga. Os inimigos clamavam que Péricles não apenas desejava governar Atenas em absoluto despotismo e ditadura, mas também estender as fronteiras do seu império da cobiça. Era o pior tirano que já afligira Atenas. Com suas ambições, iria destruir o país; estava no mínimo doido. Sua preocupação com os trabalhadores livres e com a nova classe média em ascensão não passava de hipocrisia. Procurava apenas votos e a aprovação pública, desejava iludir e confundir. Não apenas levar o tesouro à falência, com seus planos absurdos e exorbitantes para a acrópole, mas tinha também a intenção de conquistar a glorificação pessoal. Diziam abertamente que Péricles em breve se iria declarar um deus, para a adoração blasfema do povo. Nessas acusações, eram apoiados pelos sacerdotes, que temiam acima de tudo o esclarecimento do povo, o que ameaçaria suas próprias posições. Temiam a expansão do poder benévolo. Até mesmo as instituições militares e os oficiais navais de Péricles sofreram ataques de seus inimigos. A paz não resultaria de alianças e ajuda mútua a outras cidades-estado, não importava o que Péricles pudesse dizer. Ele desejava a força militar e naval apenas para consumar suas ambições secretas e sujeitar os aliados a seu poder imperial. O egotismo de Péricles devia estar enfurecendo os deuses, que se mostravam muito pacientes, respeitando-o até aquele momento. Citavam o provérbio antigo segundo o qual os deuses primeiro levavam à loucura aqueles a quem depois destruíam.
Mas, apesar de todas as exortações — que eram proferidas na Assembleia e entre os arcontes, na Eclésía e nos Nove — a grande maioria dos atenienses se mostrava irritantemente complacente com Péricles. O povo confiava nele. Quando lhe pediam que decidisse o afastamento de Péricles, o povo permanecia calmo, recusava-se a ser incitado.
— Imbecis! — gritavam os arcontes entre si, dominados por acessos de fúria e ódio.
O Rei-Arconte fez alguns epigramas satíricos sobre as declarações públicas de amor ao povo feitas pelos arcontes e sobre os comentários destes em particular. Mostrou-se particularmente irônico entre os arcontes quando Péricles determinou que até mesmo os cidadãos mais pobres deveriam ser beneficiados pelo fundo theorikon, que lhes permitiria assistirem aos dramas apresentados nas Dionisíacas.
— A cultura e a beleza devem ficar limitadas àqueles que têm condições de pagá-las? — indagou o Rei-Arconte. — Deus certamente quis que todos os homens tomassem conhecimento da glória das artes e a festejassem em seus altares, de acordo com a capacidade de cada um de apreciar o banquete.
Os inimigos aristocratas de Péricles declararam que ele estava blasfemando contra todo o significado das Dionisíacas, estimulando as massas a invadirem, "como asnos selvagens", os recintos sagrados. Outros alegaram que ele era no fundo um anarquista e desejava criar apetites falsos e vorazes no povo, a fim de que este fosse incitado a apreender o que não lhe pertencia legalmente, levando-o em seguida ao trono como rei, por gratidão. Sófocles, que em circunstâncias normais não era apreciado pelos inimigos de Péricles, não assegurara que "não existe demônio pior que a Anarquia, que arruina os estados e provoca o tumulto nas casas"? Ele chegara mesmo a pedir uma remuneração de dois óbolos por dia para todos os jurados, uma atitude cínica de pura conquista de votos; afinal, por que os jurados deveriam ser pagos, se era um privilégio servir nos júris? A honra já era suficiente. Ao que Péricles respondera:
— Os homens não podem comer honra. Quando se convoca o serviço de jurados, eles estão sendo afastados dos campos e oficinas, onde ganham a vida, ficando assim privados do seu sustento.
Por isso, ele era chamado de materialista.
Os atenienses naturalmente detestavam Esparta, que era sua aliada ou inimiga, dependendo das circunstâncias políticas e dos interesses próprios. Consideravam hilariante a maneira pela qual os espartanos viviam. Afinal, os espartanos não eram um tanto obtusos e ainda exigiam das mulheres que trabalhassem tanto quanto os homens? E não desprezavam a cultura, embora tivessem pretensões a exibi-la? Eram pouco mais que animais, com seu militarismo e seu interesse apenas pela mecânica de viver. Contudo, quando Péricles lutou contra a agressividade e as usurpações dos "bárbaros", o governo teve outro dos seus ataques periódicos de consciência e declarou que o Chefe de Estado era apenas ambicioso e desejava desviar a atenção do povo dos problemas internos, levando-o a se empenhar em guerras no exterior. Não estava realmente protegendo Atenas e seus legítimos interesses. Estava simplesmente protegendo o próprio poder e a expansão deste, através de envolvimentos navais e militares em regiões que nada tinham a ver com a segurança e o bem-estar de Atenas. Estava implacavelmente assassinando a "flor da juventude de Atenas".
Em suma, não importava o que pudesse fazer, Péricles era sempre acusado por seus inimigos.
— Não se pode apaziguar um tigre que está decidido a nos devorar — disse ele um dia a Aspásia. — Todos os governos são tigres e o povo é a presa. Se os povos descobrissem esse fato terrível, passariam a vigiar seus governos noite e dia, sabendo que são os seus inimigos naturais,
O rosto de Péricles foi-se tornando mais tenso a cada dia que passava, mais dominado pela raiva. Apesar do seu autocontrole, frequentemente ficava exasperado, não apenas por causa das acusações que lhe eram feitas, mas também pela maldade, estupidez e determinação em arruiná-lo. O que o irritava acima de tudo era a hipocrisia de seus inimigos. Certa ocasião, Aspásia comentou:
— Al Talif era o governador de sua província e jamais seus funcionários se atreveram a contestá-lo, denegri-lo ou desafiá-lo, nem a difamar seu nome entre o povo. Pelo menos a posição dele oferecia algumas vantagens.
Péricles riu sombriamente.
— Mas o regime de Al Talif era o despotismo sob um déspota maior. Nós, atenienses, temos uma democracia... relativa. E é melhor essa confusão de vozes malevolentes e invejosas do que o despotismo. É um sinal de considerável liberdade de expressão, o que constitui, acima de tudo, a própria essência da liberdade. Deus sabe que as nossas liberdades estão-se tornando a cada dia mais restritas. Mas mesmo as poucas restantes ainda são rubis acima de qualquer preço. Portanto, deixemos que meus inimigos gritem. Se eles parassem suas imprecações, eu ficaria seriamente preocupado e procuraria descobrir de que maneira lhes reprimi a liberdade de criticar, praguejar e censurar. E trataria de revogar essa repressão.
— Mas eles não permitirão que tenha a mesma liberdade que lhes concede — disse Aspásia.
Péricles deu de ombros.
— Os traidores clamam por liberdade... para si mesmos. Mas atacarão vigorosamente os oponentes que desejarem a mesma liberdade. É a velha história da tirania.
Tremendo de raiva contra um povo que não dava atenção às suas exortações contra Péricles, o governo procurou outro meio de destruí-lo ou feri-lo mortalmente. Há anos que o procurava. Novamente investigaram seus amigos, especialmente Anaxágoras, Sócrates, Zênon e Fídias. E investigaram também a Aspásia. Não eram todos ímpios, hereges, uma ameaça à ordem estabelecida do Estado? Uma hetera de reputação desprezível, filósofos descalços e contestadores da religião ortodoxa! Mereciam prisão, morte ou exílio. Estavam incitando o povo a se rebelar contra os sacerdotes e a autoridade constituída, o que era um crime capital. A classe média estava exigindo reduções nos tributos -e taxas. Os trabalhadores exigiam uma participação maior no governo. Os próprios escravos encontravam-se agitados. Atenas estava em situação perigosa e o governo se mostrava determinado a salvá-la. A virtude deles era inflamada, mas Péricles se limitava a rir. Ignorava-os também ou publicamente escarnecia dos burocratas, dizendo ironicamente na Assembleia que os burocratas eram o excremento da sociedade. Talvez fossem algumas vezes necessários, para que uma nação não ficasse com prisão de ventre, mas não se devia jamais esquecer que não passavam de fezes, com uma fétida função.
Seu amigo Jasão observou:
— Mas quem se iria encarregar de manter os registros e cuidar dos papéis, já que a ordem é indispensável em qualquer governo?
— Eis algo que não posso contestar — respondeu Péricles. — Mas os burocratas sempre dão um jeito de proliferarem, aumentando seu poder e importância. Mas quando se tornam mais onerosos do que o próprio governo, está na hora de contê-los e mostrar-lhes a verdade, isto é, que não passam de subalternos e não nos governam, apesar de suas pernas sempre atarefadas e de seus fluxos intermináveis de interpretações.
Em retaliação, algo que normalmente desprezava, Péricles determinou que todas as autoridades reduzissem imediatamente a um terço os burocratas a seu serviço.
— Atenas não pode desperdiçar tanto dinheiro e permitir o afastamento de trabalhadores de empreendimentos privados, onde são mais necessários. — Assumindo uma expressão virtuosa, em imitação e escárnio de seus inimigos, Péricles acrescentou: — Acima de tudo, vamos economizar nas despesas. Não é justamente isso que vocês estão exigindo?
Somente uma parte do povo dava atenção ao que dizia o governo: eram as turbas do mercado, que odiavam Péricles por se atrever a chamá-las de menos do que escravos, exortando-as a trabalharem. Entre essas turbas, achavam-se os criminosos profissionais, incendiários, assassinos e ladrões, sempre dispostos a serem contratados pelo governo para quaisquer manifestações — o que também era uma história antiga. Os governos, através da história, haviam recorrido a essa gente para intimidar os cidadãos que se mostravam indignados, assim como sempre tinham usado os burocratas.
Aquilo de que carecia em poder pessoal Dédalo compensava em injúrias a Péricles, a quem agora odiava cegamente, com um frenesi incontrolável. Os outros arcontes começaram a se cansar dele, embora concordassem com suas invectivas e odiassem Péricles quase tão intensamente. Mas, enquanto Dédalo simplesmente espumava de raiva, os outros conversavam sobre a melhor maneira de depor Péricles e impor seu exílio, como um Chefe de Estado arrogante e ditatorial. Ele não era invulnerável. Os arcontes ainda não se atreviam, é verdade, a apresentar resoluções contra Péricles e a conspirar abertamente com outros setores do governo para derrubá-lo. Limitavam-se a discutir insidiosamente a situação, deblaterando contra os excessos de Péricles, o seu desprezo pelo pêndulo abalizado do governo, suas confusões e vacilações. E diziam:
— É verdade que ele é o Chefe de Estado, mas isso não o torna um deus, pelo menos em nossa forma democrática de governo! E tampouco lhe concede o poder de um déspota. Ele é responsável perante nós...— E depois de uma pausa, como se se lembrassem de algo mais, acrescentavam: — e perante o povo que nos elegeu.
Afirmavam que Péricles queria ser rei, com poderes absolutos. E o próprio Sólon não advertira contra homens ambiciosos?
Dédalo insistia com sua filha, Dejanira, para que se casasse de novo, pois ela tinha muitos pretendentes mercenários, de famílias nobres, mas empobrecidas. Dejanira, no entanto, recusava-se obstinadamente, declarando que amava apenas a Péricles e continuava a se considerar esposa dele; se ele permitisse, voltaria a rastejar até seus pés, como um cachorro. Dédalo amava a filha e por isso ficou ainda mais escandalizado e envergonhado com a abjeção de Dejanira. Censurava-a vigorosamente, obtendo como única resposta soluços desesperados e o torcer das mãos. Certa ocasião, Dejanira disse ao pai:
— Calías mereceu seu destino. Não tenho pena dele, embora o ame como meu filho. Ele obteve uma justiça piedosa. Qualquer outro homem em seu lugar teria sido executado.
Dédalo não percebeu a nobreza nas palavras da filha, poís Dejanira há muito que já perdera qualquer vestígio de dignidade. Ficou simplesmente furioso, acusando-a de ser uma mãe desnaturada.
Dejanira julgava-se inocente pela dissolução de seu casamento. Afinal, na noite de núpcias Péricles não declarara a sua paixão por ela e não a abraçara com um desejo intenso? O que ela fizera para merecer a expulsão da casa de Péricles? O que não a impediu de dizer ao pai:
— Desprezo uma mulher como Aspásia, mas Péricles já me havia repelido de seu leito muito antes de conhecê-la. Ela é apenas uma hetera e Péricles é de uma casa ilustre. Não acredito que ele a ame. Como uma mulher dissoluta pode ser respeitada por um homem como meu marido? Tenho certeza de que ela não passa de uma fantasia passageira; haverá outras.
Dédalo, fora de si, gritou para a filha:
— Será que ainda não ouviu o rumor de que Aspásia está com um filho de Péricles?
Dejanira fechou os olhos subitamente, de dor e angústia. Dédalo continuou, implacável:
— Ele não se limita a não sentir a menor vergonha por ferir a sensibilidade dos homens decentes, mas gaba-se do estado de Aspásia para todos os que estiverem dispostos a escutá-lo. Sei perfeitamente que as heteras frequentemente dão filhos a seus amantes, mas isso é algo abominável para os virtuosos. A única diferença é que seus amantes não se gabam de sua torpeza, como faz Péricles.
Dejanira abriu os olhos, cheios de lágrimas.
— Não está na natureza de Péricles gabar-se de qualquer coisa, meu pai.
— E como pode saber disso? Péricles talvez estivesse falando a verdade quando me disse que você era estúpida!
Vendo a filha tremer, vendo a angústia dela, Dédalo sentiu algum remorso. Mas, no momento seguinte, voltou a ficar furioso com Péricles, por levar Dejanira a tamanho desespero. Quando Xantipo e Paralo foram novamente visitar sua casa, ele lhes disse:
— Não se sentem envergonhados por seu pai ter gerado um filho ilegítimo com a sua hetera, a sua rameira? Já pensaram no que isso significará para vocês, a prole legítima?
— O que poderá significar? — indagou Xantipo.
A expressão de Xantipo era suave e irônica. Paralo cutucou-o, percebendo a ironia nos olhos do irmão. Era mais compassivo que o implacável Xantipo. Mas nem com isso Xantipo deixou de acrescentar:
— Respeitamos Aspásia, que é não apenas a mulher mais bonita de Atenas, mas também generosa e nos ama profundamente. Ela adora nosso pai e lhe proporciona momentos de alegria e conforto. A situação dela é bastante comum e ninguém protesta contra outras mulheres que se encontram na mesma contingência.
— Não se importa com as humilhações de sua mãe?
Paralo interveio, com a mesma seriedade do pai:
— Minha mãe não é mais a esposa de meu pai. O que ele faz não a injuria perante os outros, pois ela nada mais tem a ver com a vida dele.
Dédalo teve um lampejo de esperança.
— Quer dizer que não aprova o que seu pai faz?
Paralo tinha mais respeito pelo avô do que o jovem sátiro, Xantipo. E por isso respondeu:
— Não disse isso. Perdoe-me se foi o que pensou. O que estou querendo dizer é que qualquer coisa que meu pai ou minha mãe possam fazer não é da conta um do outro. Eles não mais têm uma vida em comum.
Xantipo assumiu uma atitude de orador e citou Homero:
— Não há nada mais forte e mais nobre que um homem e uma mulher um só coração e mente na mesma casa. É o pesar dos inimigos, a alegria dos amigos. Mas seus corações é que mais se alegram.
— Xantipo sorriu para Dédalo e acrescentou: — É o que melhor descreve meu pai e nossa amada Aspásia.
Paralo não gostou dessa provocação ao idoso Dédalo, que ficou imóvel, aturdido, procurando compreender, com a mente já senil.
Por isso, franziu o rosto para Xantipo e naquele momento disse, num jeito muito parecido com o do pai:
— Não dê importância a Xantipo, Avô. Ele adora provocar os outros. O que acabou de falar não tem a menor importância.
— Eu não disse uma única palavra que não fosse conveniente — reagiu Xantipo, cerrando os punhos afetuosamente na direção do irmão e assumindo a atitude de pugilista.
Depois de Calías, o neto preferido de Dédalo era Paralo. Ele tinha medo de Xantipo e de seu espírito mordaz e por isso não o apreciava, embora não deixasse de amá-lo.
— Píndaro disse: "Não se empenhe por tornar-se um deus. Os objetivos mortais são os que convêm a homens mortais. — Dédalo ouvira a citação na Assembleia, no dia anterior. Depois de uma pausa, ele acrescentou: — Seu pai quer-se tornar um deus perante o povo, para que o idolatrem. Os homens são apenas mortais; perante os deuses, não passam de poeira, algo que seu pai não consegue compreender.
Xantipo sacudiu a cabeça num gesto brejeiro e, imitando a solenidade de Paralo, declarou:
— Sófocles disse: "As maravilhas são muitas, mas nenhuma é mais maravilhosa que o homem." Meu pai é uma maravilha. Portanto, é tão maravilhoso quanto os deuses.
— Falta alguma coisa em seu silogismo — disse o comedido Paralo. — Meu pai não é louco; está acima da loucura de se considerar divino e suas decisões não são infalíveis. — Ele sorriu antes de acrescentar: — Não se devem citar os filósofos como a autoridade suprema, pois eles divergem entre si e em geral são muito controvertidos, Também não são inteiramente sãos, em nossa obtusa interpretação da sanidade.
— É verdade que você é em geral obtuso, meu irmão — disse Xantipo, ambos rindo um para o outro com os olhos. — Devia enfrentar Pã!
Dédalo não estava acompanhando o rápido diálogo. Voltou a falar nesse momento, com amargura:
— O pai de vocês está tentando levar-nos novamente à guerra. E quem lucra com a guerra, exceto os tiranos como ele?
— Essa não! — gritou Xantipo. — Homero disse: "A face terrível da guerra brilha de forma terrível, mas enche de alegria o coração dos bravos".
Paralo apressou-se em dizer:
— Os poetas também discordam frequentemente entre si... assim como os deuses. Duvido muito, Avô, de que nosso pai seja propenso à guerra, embora seja um soldado. Está tentando unificar a Grécia e, mesmo que pareça tortuoso de vez em quando, devemos confiar nele.
Dédalo mostrava-se incrédulo, os olhos esbugalhados.
— Confiar em seu pai? Prefiro confiar nas harpias!
— É uma questão de gosto — comentou Xantipo.
E no instante seguinte ele foi empurrado para fora da sala por Paralo, mais forte, para irem falar com a mãe. Enquanto caminhavam pelo corredor, Paralo disse ao irmão:
— Por que atormenta aquele pobre velho, que nada tem além do seu ódio para alimentá-lo na velhice?
— O ódio é o pão do Hades, ao qual ele está destinado — disse Xantipo, que não tinha muita misericórdia e achava a vida ridícula.
Ele não possuía o mesmo controle que o pai ou o irmão. Tinha apenas espírito e inteligência, um imenso senso de humor, que os outros achavam irritante. Acima de tudo, Xantipo detestava a estupidez e não podia perdoá-la, embora Paralo frequentemente lhe dissesse:
— Atribula a culpa pela estupidez não à natureza intransigente daquele que a possui, mas sim aos pais que a legaram e aos deuses que a determinaram. Um porco escolhe voluntariamente seu focinho, o macaco a seus piolhos e o abutre a seu mau cheiro? Somos o que somos, não por desejo próprio, mas em decorrência do que havia na virilha de nossos pais e nos ventres de nossas mães. É algo que nada pode mudar, nem o governo, nem esmolas, nem o conhecimento, nem as preces. Recebemos a nossa natureza no momento da concepção e não podemos escapar ao destino que nos foi imposto.
— Podemos sempre tentar — respondia Xantipo. — Temos pelo menos a capacidade de comandar as partes mais repulsivas de nós mesmos. Por acaso defecamos nas ruas? Não, procuramos as latrinas. Pois que os estúpidos procurem as suas latrinas e aprendam a discrição, a fim de não ofenderem os outros.
— Talvez possamos ensinar os estúpidos — dizia Paralo, suspirando. — É bem verdade que eles costumam destruir aqueles que lhes ensinam alguma coisa.
Ao que Xantipo discordava:
— Está refutando o seu próprio argumento.
Os dois se amavam profundamente, embora fossem tão diferentes. Entraram nos aposentos da mãe alegremente, de braços dados. Dejanira ficou na maior alegria ao vê-los. Xantipo e Paralo visitavam-na pelo menos uma vez por semana, mas ela acolheu-os como se não os visse há anos, com abraços e lágrimas sorridentes. Dejanira não indagou imediatamente sobre a saúde deles, mas indagou pela do pai, com uma ansiedade que os filhos acharam comovente. A avó estava em segundo plano, num silêncio mal-humorado, com um ar de crônica desaprovação. Ficou escutando a conversa, resmungando de vez em quando; como outras mulheres gregas, não admitia a ociosidade e por isso estava costurando diligentemente. Os olhos pretos e pequenos, no entanto, moviam-se incessantemente, como baratas. Tinha alguma afeição pelos filhos de Péricles, embora seu amor se concentrasse no neto mais velho, Calías. Por isso, era um tanto intratável em relação a Xantipo e Paralo, que não se pareciam absolutamente com ela ou com a filha. A hostilidade que sentia contra Pericles se estendia aos filhos dele, embora não lhes tivesse ódio. O conflito de emoções deixava-a irascível e os resmungos sempre se tornavam muito altos na presença dos rapazes. Embora ambos lhe demonstrassem a cortesia que ela merecia como avó, passaram a ignorá-la depois dos cumprimentos iniciais.
Os rapazes conversaram com a mãe num clima de descontração e amor. Dejanira lhes afagava os braços, contemplava-lhes os semblantes, à procura de sinais de Péricles. Perguntou-lhes pela academia. Ouvira dizer que Xantipo estava para casar com a filha de uma grande casa, Xantipo deu de ombros.
— Conheci a donzela na escola de Aspásia. Ela é bonita e meiga. Mas, por que é necessário que um homem se case? Será que o casamento é tudo que existe?
A mãe respondeu:
— É realmente tudo!
Xantipo estava prestes a começar o serviço militar; fingia achar que era um transtorno, mas era filho de Péricles e neto de Xantipo e sempre pensava nisso com um orgulho que tomava extremo cuidado em esconder. Conversou um pouco com a mãe. Mas, como rapidamente se cansava das pessoas que tinham mentes inferiores à sua, logo começou a bocejar, apesar dos olhares severos de Paralo. Finalmente, apesar das súplicas de Dejanira, os rapazes alegaram que precisavam voltar para a casa do pai, pois já era tarde e tinham uma guarda militar à espera no pátio. A pobre mulher abraçou-os, beijou-os, molhando-os com suas lágrimas, implorando que voltassem a visitá-la o mais depressa possível.
Xantipo e Paralo montaram em seus cavalos. Uma lua alaranjada, anormalmente grande, sobressaía no céu escuro, projetando uma estranha iluminação sobre a terra, de tal forma que todas as colunas e muros brilhavam com uma cor de açafrão e todas as sombras eram definidas e mais escuras. As colinas estavam banhadas por uma claridade amarela, as colunas dos templos da acrópole pareciam feitas de ouro. Lá embaixo, Atenas reluzia com os clarões avermelhados de tochas, lanternas e lampiões, irrequieta e insone. O ar do outono era penetrante, o vento frio. As folhas caídas farfalhavam na estrada e corriam diante dos cavalos, como se fossem pequenos e frágeis animais. Xantipo começou a cantar a mais nova canção obscena das ruas, para divertimento dos guardas, acrescentando alguns versos de sua própria lavra, ainda mais obscenos. Os cavalos estavam um pouco irrequietos, e os seus cascos ressoavam no calçamento de pedras. Xantipo estava animado, como sempre, enquanto o irmão se limitava a sorrir, deixando escapar de vez em quando algumas palavras de censura, que não eram totalmente sinceras.
A guarda militar carregava tochas e seguia perto dos irmãos, observando cada porta e viela. Olhavam também para os telhados, pois a luz da lua a tudo iluminava. Mas não avistaram o arqueiro que estava aguardando a passagem da comitiva, agachado num telhado, oculto pelas sombras. Só se ergueu quando o grupo se achava diretamente abaixo; ficou imóvel por um instante, como um demônio negro e sem rosto do Hades, recortado pela lua alaranjada. Um guarda soltou um grito. Mas o arqueiro, rápido e Hábil, já havia definido seu alvo.
Houve um zunido no ar, tão mortal quanto o de um gavião atacando a presa, e a flecha foi-se cravar no olho direito de Paralo, que caiu na frente do cavaleiro que vinha logo atrás.
No mesmo instante, tudo era confusão e gritos, os cavalos relinchando, a tochas caindo e despejando uma chuva de fagulhas. Os cavalos giravam freneticamente, empinavam. Xantipo, indiferente ao perigo, desmontou rapidamente e ajoelhou-se ao lado do corpo do irmão, sendo atingido no braço esquerdo pelo casco de um cavalo, A confusão era total, homens e cavalos se chocavam. Um cavaleiro conseguira dominar sua montaria e galopou na direção da casa às escuras e fechada, de onde o arqueiro atirara a flecha. Mas ele já desaparecera, como um fantasma.
Capítulo 6
Helena não permitia visitantes a seus pacientes no hospital, a fim de evitar as confusões e o barulho. Dizia sempre aos parentes, ansiosos:
— O bem-estar do paciente é mais importante que a sua curiosidade ou mesmo amor. Ele precisa descansar, para poder-se recuperar. Quem sabe que novas doenças você não poderá transmitir-lhe involuntariamente? Tenho estudado com Hipócrates, que afirma que os sadios podem portar infecções que irão subjugar os doentes ou fracos.
Tinha uma sala aconchegante para amigos e parentes, fora da enfermaria propriamente dita, com flores, uma fonte fragrante e cadeiras confortáveis. Ali conversava com os visitantes e transmitia-lhes as boas ou más notícias. Seus médicos de vez em quando acompanhavam-na, com uma atitude de deferência quando ela falava. Naquela sala, a voz de Helena era sempre firme e forte. Quando os visitantes lamentavam, o destino do doente, ela dizia:
— Sófocles disse que seria melhor jamais ter sequer nascido neste mundo. Por que lamentamos se alguém morre? Sócrates diz que um homem de bem nada tem a temer neste mundo ou no outro... se é que existe. E se a morte é apenas o sono, quem não deseja dormir? A morte é nosso fado; vem ao encontro de todos nós mais cedo ou mais tarde, ninguém pode escapar. Devemos aceitá-la, assim como aceitamos a vida. O sábio legislador de Atenas, Sólon, aconselhou-nos a jamais dizer que a vida de um homem é feliz antes que esteja terminada. Pensem nessas coisas e talvez passem a invejar os agonizantes.
Por esses comentários, feitos para os parentes de pacientes em agonia, Helena era tida por desalmada e sem compaixão. Comentava com os amigos, suspirando, que se um médico se une emocionalmente aos pacientes não é mais capaz de exercer sua arte e passará os dias a derramar lágrimas inúteis. Era todas as ocasiões, o médico deve permanecer tão apartado quanto o Olimpo, para que sua mente e inteligência não sejam ofuscadas pela emoção; ao mesmo tempo, deve ser capaz de compreender a angústia e o sofrimento humanos. Mas deve ser sempre objetivo, jamais subjetivo, para que o paciente não sofra.
Não permitia que supostos feiticeiros ou curandeiros tivessem acesso a seu hospital, como também não deixava que os pescoços dos pacientes fossem adornados com amuletos. Costumava dizer;
— É verdade que a mente governa o corpo mais do que o corpo governa a mente e que algumas vezes a superstição é tão forte quanto um medicamento. Mas cabe a mim e a meus outros médicos decidirem se um homem ou uma mulher está doente da alma ou do corpo. Se é da alma, podem trazer os amuletos... pois a alma é facilmente persuadida e é subjetiva. Mas, se a doença é do corpo, um amuleto não vai curar um câncer nem ajudar um parto difícil. O corpo é objetivo e não acredita em amuletos.
Mesmo assim, Helena estava começando a acreditar, cada vez mais, que a vontade de um homem de sobreviver era um elemento extremamente poderoso. E disse a Péricles:
— Seu filho vai viver, mas perdeu uma vista e nada poderá restaurá-la, nem mesmo os deuses. É um milagre que ele não tenha morrido nem ficado paralítico, pois a ponta da flecha atingiu o cérebro. É um jovem vigoroso e de extrema bravura. Está decidido a viver e não passa as horas de seu sofrimento a lamentar que sua visão será agora apenas parcial. Está contente por não ter ficado totalmente cego. Quanto a Xantipo, já pode levá-lo para casa, pois ele teve apenas o braço e ombro fraturados. Sentirá um pouco de dor por algum tempo e mais nada. Contudo, está mais desesperado por causa do irmão que o próprio Paralo e jura vingança.
A cor intensa de Helena se desvaneceu e o seu rosto, geralmente jovial, assumiu uma expressão sombria,
— O atacante está sendo procurado — disse Péricles, a voz serena, o que a tornava ainda mais terrível. — O ataque contra meu filho não foi uma vingança particular ou um súbito impulso. Visava a atingir-me. Não tenho inimigos a não ser os políticos. E o responsável, mesmo que seja o próprio Rei-Arconte, irá pagar caro.
Paralo era a primeira pessoa de família ilustre a internar-se no hospital de Helena, pois todas as casas importantes possuíam seus médicos particulares. Mas Péricles estava convencido de que Helena era a melhor que existia. Paralo fora levado para lá a pedido de Péricles, quase em estado extremo. Ficou internado num dos quartos particulares de Helena, sob constante vigilância, tanto no próprio aposento como fora, com homens armados, as espadas desembainhadas, em todos os corredores. Nenhuma porção de comida ou taça de vinho ou água podia chegar-lhe à boca sem ser antes testada, em busca de veneno. O cão predileto de Paralo dormia ao seu lado, tão alerta quanto os guardas a qualquer ruído que não reconhecesse. Xantipo fora alojado no aposento ao lado. Os irmãos ali estavam há uma semana. Péricles disse a Helena:
— Aspásia suplica permissão para visitar Paralo.
— Claro que minha querida amiga pode visitar alguém a quem ama tão profundamente, que é como um filho para ela.
— Receio que o sofrimento possa afetar a gravidez dela.
Helena deu uma risada breve,
— Uma mulher grávida está duplamente protegida e é tão forte quanto uma parelha de cavalos. A natureza protege a vida que vai desabrochar mais do que a vida já nascida. Pode deixar Aspásia fazer a visita, para aliviar a ansiedade dela. E sua presença irá acalmar e deliciar Paralo. — Helena fez uma pausa, hesitando um pouco, antes de indagar: — Aspásia também está bem guardada?
— Dobrei a guarda... em minha casa: Levei-a para lá. Ela não respira sem ser ouvida. Deito-me ao seu lado, com a espada desembainhada.
Helena disse:
— O ataque contra Aspásia foi uma maldade particular, embora dirigida contra a sua pessoa. O ataque a seu filho foi indubitavelmente um atentado político, como acabou de dizer. Ou seja, muito mais perigoso e terrível. Não creio que seus inimigos políticos tentem atingi-lo por intermédio de Aspásia, pois consideram as mulheres banais e insignificantes, não importa quem as ame. Proteja seu filho Xantipo, tão rigorosamente quanto Paralo está sendo protegido. E, acima de tudo, proteja-se a si mesmo.
— Ah, os cães indignos! — exclamou Péricles. — Não se atreveram a me atacar pessoalmente! Sabiam que isso provocaria a ira dos que confiam em mim. Por isso, procuraram atingir-me através do meu filho, num esforço para me assustar e intimidar, para fazer com que eu desvie a atenção dos negócios públicos, encare o atentado como uma advertência. Desejam que eu me retire da vida pública por temer pela segurança da família, porque podem falar de impedimento e do meu afastamento do cargo, mas sabem que o povo me apoia. Pois não me vou retirar! Descobrirei os responsáveis pelos atentados e tratarei de destruí-los!
— Talvez sejam muitos — comentou Helena, pensando que a retaliação poderia levar a nação a uma guerra civil. — Permita que lhe aconselhe, meu caro Péricles. Não clame publicamente que o atentado foi uma questão política, para não abrir assim os portões do inferno, em detrimento de Atenas. Diga sempre que foi algum vil criminoso, que desejava roubar ou tinha algum rancor particular contra você. Exija abertamente que Atenas empregue mais guardas de rua, para que os cidadãos inocentes possam ficar a salvo de assassinatos e assaltos.
— Mas que conselho pusilânime! — protestou Péricles.
Helena sorriu.
— É possível. Mas pense um pouco. Meu conselho é sensato. Levará seus inimigos a um estado de despreocupação, enquanto os procura ativamente. Um ataque aberto contra eles irá apenas provocar um ataque aberto contra si mesmo, quaisquer que possam ser as consequências, pois eles estão desesperados.
Péricles pensou por um momento. Como raramente se deixava levar pela emoção, se é que alguma vez isso acontecia, começou a perceber a sensatez do conselho de Helena, embora a ideia o irritasse profundamente.
Observando atentamente o rosto pálido de Péricles, Helena acrescentou:
— Sugiro que anuncie uma alta recompensa pela descoberta do "criminoso que agiu sozinho". Anuncie uma recompensa tão elevada que o assassino contratado se sinta mais do que tentado a trair aqueles que o empregaram. Ofereça-lhe salvaguarda se ele for procurá-lo, o que provavelmente acontecerá. O dinheiro não constitui uma tentação se vem acompanhado pela morte. Enquanto isso, não deixe transpirar o que realmente suspeita. Aceite as condolências e o falso apoio que o governo está-lhe oferecendo, não olhe ansiosamente para cada rosto à procura do responsável. Eles de nada devem desconfiar. Mas é bem possível que a probabilidade de culpa seja maior quanto maior for a veemência da indignação demonstrada.
Franzindo o rosto e passando os dedos pelos cabelos, Péricles disse:
— Alguns dos meus cavaleiros juram que não viram apenas um arqueiro, mas sim vários, espalhados pelos tetos, esperando para ver se o primeiro falhava. Sei que foram encontradas flechas no flanco do cavalo de Xantipo. Se ele não tivesse desmontado imediatamente para socorrer Paralo, teria sido assassinado. Somente essas outras flechas é que me convenceram de que meus homens não estavam histéricos.
— Isso é mais um motivo para declarar publicamente que foi apenas um criminoso que atacou o grupo, e seus inimigos serão enganados. Mas aposto que, depois de sua oferta de uma recompensa, vão ser encontrados nos becos escuros inúmeros criminosos mortos. Seus inimigos não se atreverão a deixá-los com vida.
— Ah, o que é ser político! — disse Péricles, com amargura, — Se um homem procura ajudar e enaltecer sua terra, torná-la mais forte diante dos inimigos, seu próprio povo se vira contra ele, chamando-o de malfeitor, ladrão, charlatão, mentiroso! Melhor é sorrir, sempre para o povo, exibindo um sorriso radiante, do que tentar elevá-lo acima da lama.
— Mas não é essa a antiga história dos heróis? — Helena tornou a encher a taça de Péricles. Estavam sentados no pórtico exterior, ao crepúsculo, o céu muito azul; embora fosse outono, o dia fora quente e ensolarado. — Meu caro Péricles, deve estar lembrado do provérbio antigo, referente aos homens poderosos: "Caminhe suavemente entre os seus inimigos... com a espada adormecida." Deseja o destino dos homens nobres? Quer o exílio ou a morte, as maledicências, o desprezo ou o ódio? O heroísmo é maravilhoso, mas um homem não pode deixar de ter prudência e sensatez em todas as coisas... se quer servir a seu país da melhor forma possível,
Como Péricles não respondesse, Helena soltou uma risada e pôs a mão no joelho dele.
— É o que sempre me disse, meu caro Péricles. Não sou uma boa discípula? Estou-lhe repetindo as suas próprias palavras. Mostre-se a seu povo como um homem justo e indignado e todos haverão de rir de você.
Péricles teve alguma dificuldade em tirar Xantipo do hospital, pois o rapaz não confiava nem mesmo nos guardas mais antigos do pai. Péricles foi obrigado a exercer toda a sua autoridade paterna a fim de levar o filho para casa.
Helena, apesar de suas convicções, permitira que a desesperada Dejanira visitasse os filhos feridos. Em lágrimas, falando sem parar, Dejanira interrogou Helena sobre a identidade do assassino. Quem poderia querer ferir seus filhos? Que poder tinha Péricles no final das contas, se podiam atacar seus próprios filhos daquele jeito, no meio de guardas armados? Atenas se transformara num covil de ladrões que desafiavam a lei, num santuário de assassinos que matavam à vontade. Onde estavam os guardas da cidade, que não haviam aparecido no momento do atentado? Helena, reprimindo sua impaciência, respondeu:
— Estamos vivendo dias fatídicos, pois o mundo sempre teve e terá dias assim. É algo que não podemos deixar de reconhecer. A humanidade é uma raça de bárbaros, de animais primitivos.
— Meu pai diz que Péricles tem-se mostrado muito brando com os criminosos e que os juízes são muito misericordiosos — declarou Dejanira, o rosto vermelho e inchado de tanto chorar. — Afirma que precisamos de um homem mais forte como Chefe de Estado. Meu pobre pai está profundamente abalado e teve que ficar acamado.
Helena era generosa demais para explicar àquela mulher infeliz e estúpida que as acusações furiosas e incessantes de seu pai é que tinham estimulado o ataque a Paralo. Limitou-se a dar de ombros e a repetir que estavam atravessando dias sombrios e fatídicos, e acrescentou;
— Ninguém está seguro neste mundo. Aqueles que procuram a segurança estão-se apenas iludindo, assim como aqueles que lutam pela paz terão inevitavelmente que enfrentar a guerra.
Amigos e inimigos no governo apresentaram a Péricles palavras de indignação e condolências. Péricles examinava-lhes atentamente os rostos, tanto dos amigos como dos adversários, à procura daqueles que haviam tramado a morte de seu filho.
— É uma afronta inominável! — declararam os arcontes.
Péricles sorriu ceticamente, mas aceitou os comentários com aparente gratidão. Deram-lhe os parabéns por ter oferecido uma alta recompensa pela captura do assassino. Muitos ofereceram uma quantia adicional para aumentar a recompensa. Era um paradoxo, apreciado somente por Zênon, que os piores inimigos de Péricles fossem os mais generosos em suas ofertas, os mais clamorosos em suas manifestações de ira e indignação. Mas Péricles sabia perfeitamente que, entre si, os inimigos estavam satisfeitos, riam-se de seu desespero, criticavam-no intensamente.
Ele disse a Aspásia:
— Minha querida, vou mandá-la, antes do nascimento do nosso filho, para uma das minhas fazendas mais segregadas, perto de Atenas, com guardas para protegê-la.
— Não quero — respondeu Aspásia. — Prefiro permanecer ao seu lado, para que o medo não me destrua. Estou bem protegida aqui. — Ela fitou-o com uma expressão desesperada, antes de acrescentar: — Tenho uma participação na perseguição que lhe estão movendo. Não seria melhor que nunca mais tornasse a me ver?
Péricles ficou ao mesmo tempo irritado e comovido.
— Os leões devem fugir diante dos chacais? Devem ficar-se lamuriando nas sombras? Deve obedecer-me, Aspásia, por minha paz de espírito. Partirá para minha fazenda amanhã, ao nascer do sol. Ninguém deverá saber onde você está, a não ser Helena e eu.
Péricles não se atreveu a acompanhá-la até a fazenda remota e sossegada, com receio de chamar atenção. Aspásia partiu ao nascer do sol, quando havia poucas pessoas nas estradas. Era acompanhada por escravos e soldados, fortes e de toda confiança, que deveriam permanecer a seu lado. Péricles disse aos homens:
— Se algum mal acontecer à Senhora Aspásia, vou exigir a pena suprema, não contra um apenas, mas contra todos. Portanto, devem vigiá-la e um ao outro, dia e noite, comunicando-me imediatamente qualquer falha, por menor que seja.
Helena prometeu-lhe que, quando fosse iminente a hora do nascimento da criança, iria ficar ao lado da Aspásia, embora ostensivamente viajasse para Epidauro, a fim de rezar no templo de Asclépio, o filho de Apolo que fora educado por Quirón, o centauro. Ali, iria também comparecer a uma reunião dos adeptos de Hipócrates, estudando-lhe os métodos e ensinamentos.
— Hipócrates tirou a medicina do reino da magia e da taumaturgia — disse ela a Péricles. — É muito melhor do que qualquer mestre egípcio. Alguma vez já se perguntou, meu caro Péricles, por que tantos gênios têm surgido na Grécia neste breve período de tempo? Se eu fosse uma mulher devota e acreditasse nos deuses, diria que eles resolveram olhar-nos lá do Parnaso e cumular-nos com as suas bênçãos. Pois o que está acontecendo atualmente é de fato um milagre.
Zênon também acreditava no milagre.
— Deus escolheu a Grécia para um destino superior e majestoso — disse ele a Péricles. — Que outra raça, em nossa história e memória, foi tão cumulada de glória, efervescência e gênio?
O próprio Péricles, embora furioso, amargurado e cansado, não podia deixar de admitir que algo misterioso ocorrera para fazer com que os raios atingissem aquela pequena terra com tanta inteligência e tantos talentos concentrados. E comentou:
— Anaxágoras tem declarado que a Mente Universal não é remota e indiferente, mas prefere não ao acaso, abrir suas mãos em bênçãos sobre uma nação ou raça, para atingir seus próprios objetivos. E Fídias assegura que esta é a hora da Grécia e que seu espírito dominará o mundo, mesmo depois que Atenas estiver em ruínas.
— Apesar do nosso lamentável governo — disse Anaxágoras. — Mas o que têm os governos a ver com uma nação? São catástrofes, ao invés de promotores do esplendor da nação.
Péricles ficou desolado depois da partida de Aspásia. Visitou Helena, à procura de conforto e estímulo. Para acalmá-lo, como era inevitável, Helena levou-o para a cama. Era uma mulher sensata; sabia que não estava violando o amor dele por Aspásia e que os homens precisavam de consolo, de palavras suaves e as mãos de uma mulher, em suas angústias. Além do mais, não estava temerosa por ele, como acontecia com Aspásia.
— O amor transforma os homens mais valentes em covardes —• disse ela a Péricles. — Aspásia é uma mulher de valor e jamais conheceu antes o medo de verdade. Agora, no entanto, mostra-se débil e frágil, como a margarida dos campos, de temor por você. Mas escrevo constantemente a ela, dizendo que você está muito bem. — Ela sorriu, antes de acrescentar: — Só não a informo de que encontra o alívio em meus braços. Você e eu somos velhos amigos, Péricles. Mas Aspásia, como uma mulher perdidamente apaixonada por você, jamais poderia compreender o que estamos fazendo, apesar de toda a sua inteligência. Não podemos explicar-lhe que não gostamos um do outro, exceto como amigos, e que nossos festivais no leito não possuem um significado mais profundo.
Um dia, Péricles recebeu uma missiva lacrada, entregue por um homem encapuzado, que a deixou nas mãos de um escriba e depois fugiu, misturando-se com a multidão na Agora. O escriba disse a Péricles, em tom de indulgência:
— Senhor, o vagabundo se mostrou esquivo e furtivo. Tinha a voz um tanto empostada. Certamente está querendo esmolas. Ou então a carta contém acusações contra a sua pessoa.
Péricles sorriu e abriu a carta. Era escrita numa letra estranha, quase ilegível, mas o fraseado era de um homem instruído: "Se o nobre Péricles desejar receber notícias sobre aqueles que instigaram o atentado a seu filho, Paralo, deve ir à meia-noite de hoje a uma determinada taverna, que estará fechada e trancada, mas que lhe será aberta depois de cinco batidas, repetidas três vezes, a curtos intervalos. Pode trazer guardas, se assim o desejar, mas não deve permitir-lhes que entrem na taverna. O nobre Péricles deve entrar sozinho. Encontrará a taverna silenciosa e deserta, mas com uma vela acesa na mesa do centro. Como é um homem honrado, deixará uma bolsa cheia de ouro, conforme o prometido, depois de recolher a carta a ele endereçada, que encontrará em cima da mesa." A taverna era indicada; ficava perto do mar, num bairro desolado e de má fama, em que poucos se atreviam a ir, à exceção de criminosos.
Péricles, tremendo interiormente, leu e releu a carta. Seria uma armadilha para atraí-lo à morte? Ou uma cilada para privá-lo do seu dinheiro? Seria apenas uma fraude? Um criminoso poderia indicar uns poucos nomes. Mas seriam realmente os nomes daqueles que haviam pago o atentado contra seu filho, a fim de atingi-lo em seu ponto mais vulnerável? Péricles examinou a carta interminavelmente, mordiscando a língua, coçando a fronte. Sentiu o súbito impulso de destruir a carta. Mas, no instante seguinte, tornou a lê-la. Nada teria a perder, a não ser algum dinheiro. Por outro lado, tinha muito a ganhar. Mandaria que seus soldados cercassem a taverna; assim, se fosse atacado, eles poderiam imediatamente capturar os criminosos. Não haveria possibilidade de fuga para o traidor ou ladrão. Além do mais, saberia que a mensagem era fraudulenta se o nome de Dédalo fosse indicado. A maldade já fizera coisa pior do que atribuir culpa a um homem inocente.
Outra ideia ocorreu-lhe em seguida. Mandou chamar o seu oficial de maior confiança, um jovem de extremo valor, cuja bravura e honra já haviam sido comprovadas em inúmeras ocasiões. Chamava-se Ífis e era um soldado excepcional, baixo e maciço, de olhos castanhos e brilhantes, o rosto quadrado por baixo do elmo. Por causa das pernas curtas, mas vigorosas, bamboleava-se ao andar e pousava os pés no chão pesadamente. Mas era capaz de se mover com a mesma rapidez de uma espada.
Ífis saudou Péricles e ficou parado diante dele, esperando. Péricles fitou-o em silêncio por um momento, pensativo, antes de dizer;
— Meu caro Ífis, tenho certeza de que já sabe que ofereci uma recompensa para quem indicar o nome do criminoso que atacou meu filho Paralo.
— Já sabia, sim, nobre Péricles.
Péricles estendeu a carta para Ífis, que a pegou e leu. O rosto do jovem soldado tornou-se tão impassível quanto se tivesse sido esculpido, tão duro quanto pedra. Ficou em silêncio por um longo momento, com a carta nas mãos, depois colocou-a cuidadosamente na mesa, diante de Péricles.
— O que acha? — indagou Péricles finalmente.
— Pode ser uma emboscada, meu senhor. Não pode ir. — Ele fitou Péricles nos olhos. — Irei em seu lugar. Não tenho a mesma estatura, mas usarei um manto com capuz e estarei em seu cavalo, cercado por meus homens, também a cavalo. Obedecerei a todas as instruções contidas nessa carta.
Péricles levou um dedo contra os próprios lábios e olhou para a carta. Ífis disse firmemente:
— É importante demais para Atenas, meu senhor. É o Chefe de Estado, o único em quem o povo confia. Ir pessoalmente, como a carta determina, seria um riso não apenas para a sua pessoa, mas também para Atenas.
Péricles era sempre franco com seus soldados, que por isso confiavam nele, sem fazerem perguntas. Podia ser severo num momento, extremamente generoso no seguinte.
— Esperava que apresentasse essa sugestão, Ífis. Mas eu jamais a faria. Pode correr um grave perigo de vida, indo no meu lugar. Sabe disso, não é mesmo?
— Sei, nobre Péricles. Mas estarei armado e mandarei meus homens cercarem a taverna. Além disso, sou bom na luta com a espada.
Ífis tinha a pele bronzeada pelo sol, com a textura e as rugas do couro, apesar de sua juventude, e seus olhos se fixavam em Péricles, claros e penetrantes. Tinha ele um ar de determinação inexorável. E acrescentou:
— Não tenho esposa, nem filhos, nem quaisquer outros parentes. Nada tenho a perder. Mas você tem que pensar em sua família e seu país. Quem sou eu, em comparação?
Péricles levantou-se e abraçou-o, profundamente comovido. Retirou um anel faiscante do dedo e disse:
— Este anel é famoso em Atenas e nunca fui visto sem ele. Quando seguir para a taverna, à meia-noite, ponha-o no dedo e faça com que todos o vejam, a fim de enganar a quem possa estar observando. Vá para a minha casa agora mesmo. Será visto saindo pelos portões a cavalo, perto da meia-noite. Eu próprio também sairei, na mesma hora, indo para a casa de Helena, a médica, a fim de que até mesmo os escravos de maior confiança saibam que não estou em casa.
Ele fez uma pausa, antes de arrematar:
— Não volte para minha casa depois que se apossar da prometida carta. Vá procurar-me na casa de Helena, onde estarei à sua espera.
Ífís saudou-o formalmente,
— O que devo dizer ao mordomo de sua casa, meu senhor?
— Diga-lhe que tem uma mensagem a entregar, mas só pode ser a mim pessoalmente. Parta à meia-noite com seus soldados, bocejando e simulando impaciência, dizendo que voltará ao amanhecer.
Depois que Ífís se retirou, Péricles ficou andando de um lado para outro, sacudindo a cabeça, os lábios contraídos. Ífis era de fato um notável espadachim, enquanto que ele, Péricles, há quase dois anos que não se exercitava. Ífis era também jovem, enquanto ele estava na meia-idade. Se houvesse perigo, não poderia deixar de ser muito grande. Ífis era cauteloso e estava devidamente alertado. Não entregaria a vida facilmente e seus homens lá estavam para protegê-lo.
Antes de conhecer Aspásia, pensou Péricles, eu jamais permitiria que outro homem tomasse o meu lugar num momento de perigo. Mas o amor nos torna fracos, mesmo quando somos poderosos, deixa-nos covardes, mesmo quando somos bravos. O que representam até mesmo os meus filhos em comparação com Aspásia? Ífis estava certo. Devo pensar também em Atenas. Aqueles que confiam em mim ficariam inconsoláveis e meus inimigos se regozijariam se eu fosse assassinado. Sou o único que se interpõe entre eles e o país. E não posso esquecer também que os generais não se expõem negligentemente ao perigo, para que seus exércitos não fiquem desbaratados.
Não obstante, ele continuava perturbado. Helena disse-lhe, quando chegou à casa dela:
— Agiu com sabedoria. Ífis é um homem intrépido. Atenas é mais importante do que você e está sob os seus cuidados. Não deve ficar tão inseguro. Vamos. Tenho um jantar delicioso esta noite e irei distraí-lo até a volta de Ífis.
— Você é sempre sensata — comentou Péricles, começando a sorrir.
Helena fitou-o com uma expressão grave, sem retribuir o sorriso.
— Quando tiver os nomes... e podem ser nomes ilustres do governo... o que pretende fazer? Já pensou nisso? Não poderá punir esses homens abertamente, pois assim faria com que seus inimigos se tornassem mais unidos e rancorosos.
— Já pensei bastante a respeito, Helena. E tenho certeza de que encontrarei um meio de eliminá-los, sem acusações públicas. De qualquer forma, precisarei estar absolutamente convencido. Não sou de agir com precipitação e você sabe disso muito bem.
Capítulo 7
Pouco depois da meia-noite, no auge das apreensões de Péricles, Ífis chegou à casa de Helena, onde todos os lampiões estavam acesos. Fez uma mesura profunda diante de Péricles e outra mais ligeira para Helena, como uma amiga tão-somente do Chefe de Estado, que não devia ser levada muito a sério, embora fosse médica de renome.
— Nobre Péricles, tudo transcorreu de acordo com o que estava escrito na carta. Bati cinco vezes, três vezes seguidas, conforme o determinado. Ninguém atendeu. Empurrei a porta, que se abriu silenciosamente. Não havia ninguém lá dentro. Numa mesa ao centro, havia uma vela acesa, com uma carta ao lado. A carta está em meu poder. Uma revista da taverna foi inútil. Procuramos meticulosamente, mas não havia o menor sinal de vida, nem de ocupação recente. — Ífis sorriu sombriamente. — Era evidente que não confiavam em nós. Deixei a bolsa com o ouro em cima da mesa.
Ele entregou a carta, que estava lacrada. Péricles abriu-a e leu, atônito com o que estava escrito. Havia quatro nomes. O primeiro era do Arconte Filêmon, o segundo do Arconte Leandro, o terceiro de um membro do Supremo Tribunal (chamado Helieia), Titonos, e o quarto de outro membro do Supremo Tribunal, Polites.
Esses quatro homens pareciam ser os mais generosos e devotados amigos de Péricles, sempre sérios e compenetrados. Filêmon, Leandro, Titonos e Polites! Era inacreditável, era impossível! Mas nada era impossível, recordou-se Péricles, naquele que era o pior entre todos os mundos possíveis. Os inimigos de um homem eram frequentemente descobertos entre os amigos, os amigos entre os inimigos. Ele estava esperando encontrar o nome do Rei-Arconte, que sempre o saudava formalmente, um tanto friamente, embora com respeito. O fato de o nome dele ter sido omitido, assim como o de Dédalo, dava alguma credibilidade à mensagem. Péricles antecipava os nomes daqueles que eram seus inimigos declarados. Mas não foram esses os que descobrira.
Tinha quase certeza de que iria encontrar o nome de Tucídides, seu arquiinimigo. Mas o nome dele não fora indicado.
Mostrou a mensagem a Helena, que a leu cuidadosamente e depois disse:
— Acredito em tudo que está escrito. Esses homens frequentam a minha casa. Sempre fizeram questão de expressar sua devoção e lealdade a você. O que me deixou desconfiada desde o início. Quanto mais um homem reafirma a sua posição, mais devemos desconfiar dele. — Ela fez uma pausa, antes de acrescentar: — O homem que escreveu esta carta não era um mentiroso ou simples vagabundo. Ele conhecia a verdade.
— Tenho dossiês sobre todos eles — comentou Péricles, sentindo um aperto no coração. — Vou estudá-los amanhã. E pensar que ontem mesmo Polites esteve em minha casa para visitar Paralo, levando-lhe alguns presentes! E os outros me cercaram, lamentando o atentado e declarando que era preciso de qualquer maneira justiçar o covarde assassino! Suplicaram-me que aceitasse a ajuda deles!
— O que era mais uma razão para desconfiar deles, Péricles — disse Helena.
— E se o autor da carta tem algum ressentimento contra esses homens e está apenas querendo vingar-se deles?
— Deve estudar os dossiês sobre eles. Talvez ali encontre a verdade. Se me lembro, são homens desembaraçados e distintos, com rostos sinceros e ares de integridade. Deve-se sempre desconfiar e vigiar homens assim.
Péricles estava bastante abalado. Ficou olhando para a carta e murmurou:
— Confio no seu julgamento, Helena, mas nem sempre. Convivi com esses homens na juventude, na infância e no início da vida adulta.
— O que é mais uma razão para que eles tenham inveja de você. Acompanharam a sua ascensão, viram sua popularidade aumentar, E certamente perguntaram a si mesmos: "Por que ele é Chefe de Estado e eu não sou? Por acaso ele se distinguiu mais do que eu na academia? Por acaso foi mais elogiado pelos mestres? Por acaso foi mais diligente nos estudos e recebeu mais prêmios do que eu? Porventura a sua casa é mais ilustre? Ele é mais rico? Não! Por que então ele é o Chefe de Estado? Subornou eleitores e políticos? Gastou fortunas para ser eleito, quando eu mereço muito mais? É claro que foi isso que aconteceu. Portanto, ele comprou o cargo que ocupa, algo que eu, um homem honesto, jamais faria. Sou um homem cheio de virtudes. Ele é um homem abominável. Portanto, merece ser punido."
— Eles foram meus companheiros de armas! — disse Péricles, experimentando uma nova angústia.
— O que significa que eles acreditam que são pelo menos iguais a você — insistiu a cética Helena, implacavelmente. — Não defecou e urinou juntou com eles, não trocaram os rudes gracejos do acampamento militar, não dormiram lado a lado? Quem é você então para se mostrar superior? É esse o raciocínio deles. Descobri no curso da vida que um homem acessível e amável com os companheiros está-se rebaixando na estima deles. Passa a ser considerado como alguém no mesmo nível, possivelmente inferior. E quando por acaso se ergue acima deles, está cometendo um crime imperdoável. E se eles desconfiam de que existe uma superioridade inerente, então perdem o sono de tanto ódio.
Péricles ficou calado. Mas disse a si mesmo: Uma mulher pode ser mais sábia do que um homem? Ela possui aquilo de que Sócrates falou: uma sensibilidade inata, uma intuição excepcional, os dons concedidos pelos deuses às mulheres! Não é de admirar, portanto, que os homens tanto as temam! Todas são sibilas. O próprio Zeus trata de ocultar suas aventuras amorosas, mas Hera invariavelmente as descobre. Como? Não sei. Ele olhou para Helena, que o fitava com seus imensos olhos azuis e um sorriso terno, como uma mulher a contemplar uma criança, Péricles pôs a mão no ombro dela e disse:
— Vou pensar em tudo que me disse. Infelizmente, tenho a impressão de que está certa.
Ele pensou em sua amada Aspásia, que lia seus discursos antes, que os pronunciasse, censurando-os, pondo alguma ênfase aqui, retirando a ênfase ali. E acrescentou, para Helena:
— Não odeio homem algum, a não ser o que é mau e estúpido. Como foi possível que esses homens se tornassem meus inimigos? A explicação que deu é um ferimento profundo no meu coração, ó sábia Helena!
— Pois então não deixe jamais de pensar em seus ferimentos. Não apenas são válidos, como também sangram.
Os ferimentos que recebemos pelo simples fato de vivermos! pensou Péricles. Os ferimentos que não provocamos, mas que mesmo assim nos são infligidos... pelos homens, nossos irmãos. Não era de admirar que a Justiça tivesse sido a última deusa a deixar este mundo e ainda não houvesse retornado. E talvez jamais voltasse. A mais terrível ofensa aos outros homens era mostrar-lhes que o superior não era um deles, que tinha outros impulsos e objetivos. Devemos sempre mostrar-nos gentis e democráticos, fingir que somos apenas animais entre outros animais. Mas, se assim nos comportamos, estamos insultando a Deus, que nos deu esses talentos. Se não o fazemos, ofendemos ao nosso semelhante. Mas é melhor servir a Deus do que ao homem, embora seja mais perigoso e corramos o risco de destruição nas mãos de nossos irmãos. Meu irmão... meu inimigo. Jamais meu amigo. Somente meu inimigo.
No dia seguinte, Péricles chamou o Rei-Arconte para um encontro em seu gabinete. O Rei-Arconte veio com a sua comitiva, tranquilo e tão alerta quanto o pássaro velho com que se parecia. Péricles recebeu-o com toda pompa, fê-lo sentar-se e ofereceu-lhe refrescos. O Rei-Arconte sabia que a ocasião era extremamente importante e grave e ficou esperando pacientemente, a olhar para Péricles com uma expressão pensativa, que nada deixava transparecer. Péricles, por sua vez, estudava o velho, por quem não tinha muito respeito, da mesma forma como tampouco tinha em alta conta todos os outros membros do seu governo. Mas descobria agora que o Rei-Arconte possuía uma aparência imponente e que provavelmente era um homem de verdade. Como é singular, pensou Péricles, encontrar um homem de probidade num governo!
Ele levantou um maço de papéis que estavam sobre a mesa entre os dois. Depois, fitou o Rei-Arconte com seus olhos claros, que podiam assumir uma expressão maléfica.
— Meu filho, Paralo, foi ferido quase mortalmente por um assassino... ou assassinos. Mas já sabe disso. Tenho aqui quatro nomes que supostamente são os dos homens que pagaram aos criminosos para•matarem meu filho. Tenho também os dossiês deles.
O Rei-Arconte inclinou a cabeça.
— Já ouvi falar de seus dossiês, Péricles, filho de Xantipo. — Ele fez uma pausa. — Não me teria chamado aqui se não confiasse em mim.
Péricles baixou os olhos.
— Não confio totalmente em homem algum, nem mesmo em mim próprio. Mas confio em você tanto quanto posso, o que posso assegurar-lhe... — Péricles fez uma pausa, sorrindo ligeiramente. — ... não é muita coisa.
O Rei-Arconte também sorriu e novamente inclinou a cabeça. Tomou um gole de vinho e comeu um figo maduro. Péricles entregou-lhe a carta que Ífis trouxera. O Rei-Arconte leu-a. Franziu o rosto, as faces barbadas ficaram lívidas com o choque. Finalmente levantou a cabeça e fitou Péricles, visivelmente consternado, em silêncio.
— Não fez nenhum protesto — comentou Péricles.
O Rei-Arconte sacudiu a cabeça.
— Posso acreditar em qualquer coisa que a humanidade seja capaz de fazer. Diga-me uma coisa: o que mostram os seus dossiês?
— O Arconte Filêmon, por exemplo, é marido de sua prima. Há alguns anos, foi acusado de subornar os condutores de carros de Atenas nos Jogos Olímpicos. Ele investira muito dinheiro em apostas. Nossos carros perderam para Esparta. Embora acusado, Filêmon jamais foi levado a julgamento, por causa do seu alto cargo e do nome de sua casa. O escândalo foi prontamente abafado. Pode constatar que•os condutores de carros confessaram, sob juramento sagrado. Poderá verificar que tenho amplas confirmações.
Ele ficou à espera de um comentário, mas o Rei-Arconte não fez nenhum. Péricles acrescentou:
— Ah, estou vendo que não sabia! — O Rei-Arconte tentou falar, mas não conseguiu. Péricles assumiu uma expressão de simpatia, — Afinal, é considerado um crime terrível subornar algum participante dos Grandes Jogos.
O Rei-Arconte permaneceu calado. Péricles suspirou e continuou:
— O Arconte Leandro está incumbido da supervisão dos estrangeiros. Por uma quantia vultosa, providenciava a preparação de documentos falsos para mostrar que muitos jônios, sem falar de persas, estavam inscritos em nossos registros públicos, como atenienses nascidos em Atenas. Assim agiu para poder devolver o dote da esposa. Além do mais, havia investido muito dinheiro em empreendimentos, insensatos, que se derreteram como manteiga ao sol. É curioso, mas ele tem-se mostrado extremamente rigoroso em seus ataques aos estrangeiros que eram pobres e desejavam ficar em Atenas para trabalhar, praticar suas artes, viver virtuosamente. Muitos deles, homens, pobres, mas pessoas de bem, foram obrigados a deixar nossa cidade, perdendo tudo que tinham e que era muito pouco no início. Assim se comportou para mostrar aos seus conterrâneos atenienses que considera nossa cidade inviolável, não podendo permitir que seja poluída por estrangeiros.
O Rei-Arconte manteve a compostura, embora seus olhos piscassem, numa reação de angústia. Péricles olhou para os papéis em suas mãos, antes de continuar:
— Titonos é um membro respeitado da Helieia, o tribunal do qual não há apelação. Tem persuadido muitos dos seus companheiros de tribunal, todos inocentes, através de seu voto e sua oratória, de que diversos criminosos perigosos não eram culpados, se pertenciam a famílias ricas ou tinham influência política. Chorava pelos "erros" cometidos, dizia que os criminosos eram jovens, temerários, e não pretendiam realmente transgredir as leis. Atribuía aos pais a culpa, pela situação em que os filhos se encontravam. Conseguiu fazer com que muitos criminosos recuperassem a liberdade. E por isso recebeu quantias vultosas de pais agradecidos.
O Rei-Arconte fechou os olhos, como se não pudesse suportar ter que escutar tudo aquilo, embora não houvesse alternativa. Péricles acrescentou, a voz sempre tranquila:
— Polites também é membro do Supremo Tribunal. Sua esposa, de quem ele se cansou, morreu em circunstâncias misteriosas. É um homem rico e poderoso. Pode verificar no dossiê os nomes daqueles, que juraram que Polites estava em sua companhia quando a esposa foi apunhalada em seus aposentos. Não prestaram tal juramento por venalidade, mas porque lhes era inconcebível que um homem de caráter tão impoluto e semblante tão sério pudesse ter tramado o assassinato da esposa. Mas, como poderá também verificar, recebi cartas dos próprios assassinos, do refúgio em que se encontram, na Síria. Parece que até mesmo os assassinos de vez em quando têm consciência. Ou talvez tenham recebido menos dinheiro do que esperavam. Seja como for, as cartas que enviaram não deixam qualquer margem a dúvidas. Descrevem o assassinato como somente os participantes do•crime poderiam fazer, pois falam de muitos dos fatos mais hediondos, que só eram conhecidos das autoridades policiais.
Houve um longo silêncio na sala. O Rei-Arconte pôs as mãos em cima da mesa, as palmas viradas para baixo, num gesto de desespero. E depois disse:
— Péricles, você próprio não é totalmente destituído de culpa. Esses homens deveriam ter sido levados à justiça. Mas você se calou, não os denunciou.
Péricles recostou-se na cadeira.
— Sou político. Além disso, esses homens não cometeram crimes adicionais. Denunciá-los implicaria na possibilidade de destruir a confiança que nossos cidadãos depositam nos políticos... e eu sou um político.
— Eles não cometeram crimes adicionais porque temiam que alguém descobrisse a verdade.
Péricles alteou as sobrancelhas.
— Tem razão. Mas eles não sabiam que eu estava a par de tudo. Perguntou-me por que fiquei calado. E devo repetir que sou político e tenho mantido estes dossiês para o dia em que pudesse precisar deles. Pois este dia chegou.
O Rei-Arconte cobriu o rosto com as mãos encarquilhadas, os cotovelos em cima da mesa. Péricles não pôde deixar de sentir alguma compaixão, pois se tratava de um velho honrado. O Rei-Arconte•declarou:
— Também sou político, mas pode estar certo de que os teria •denunciado.
— Não duvido. Mas talvez ame Atenas menos do que eu. É verdade também que os políticos procuram manter seus companheiros na ordem, sob ameaça de denúncia. Procuramos resguardar-nos mutuamente.
O Rei-Arconte baixou as mãos, com um brilho intenso nos•olhos claros e juvenis.
— Não está interessado em resguardar ninguém, Péricles, assim como ninguém quer saber de resguardá-lo. Há anos que o venho observando. Conheci seu pai muito bem. Ele era um herói.
Péricles desviou os olhos.
— Pois eu não sou herói e não tenho pretensões a sê-lo. Minha vida pública tem sido a mais limpa possível. Não sou culpado de crimes contra o meu país. Mesmo assim, sou político.
O Rei-Arconte levantou-se, começou a andar lentamente de um lado para outro. Parou de repente, diante de Péricles, e indagou em tom amargurado:
— O que gostaria que eu fizesse?
— Chame esses homens, diga-lhes que está a par dos crimes capitais que cometeram e que devem partir imediatamente para o exílio, pelo resto da vida.
— Deseja que eu lhes fale dos seus dossiês?
Péricles inclinou a cabeça.
— Se assim achar melhor. Diga-lhes que, se partirem sem qualquer incidente, discretamente, sem falarem, os dossiês jamais serão revelados. Diga que lhe mostrei os dossiês movido apenas por um espírito de serviço público.
— Eles saberão que é vingança.
— Não têm a menor possibilidade de descobrirem como obtive a informação, nem que desconfio de que contrataram assassinos para matar meu filho. Como podem saber? Vamos deixar que fiquem desconfiando, no exílio. Eles não têm qualquer prova.
— Por que não os enfrenta pessoalmente, Péricles?
O sorriso de Péricles foi amargo e arrogante.
— Sou o Chefe de Estado. Não me iria rebaixar a acusar outros políticos, de posição inferior. Essa é uma função sua, não minha. Repito que deve dizer que fui levado a informá-lo só porque minha consciência começou a me atormentar... e porque só recentemente obtive as informações.
— O que não é verdade, Péricles.
— Não, não é. Mas não lhes estará mentindo. Afinal, não sabe há quanto tempo disponho das informações. — Ele fez uma pausa.•— Peço que espace as sentenças de exílio voluntário. E repito, voluntário. Deve haver um intervalo de pelo menos trinta dias entre os convites para que cada criminoso deixe Atenas para sempre.
Péricles empurrou os papéis na direção do Rei-Arconte.
— Leve isso. São cópias. Ficarei com os originais.
O Rei-Arconte olhou para os papéis, como um homem a olhar para víboras.
— Não seria melhor se eu não revelasse a fonte desses dossiês?
Péricles deu de ombros.
— Talvez. Mas sou apenas humano. Gostaria que eles ficassem pensando pelo resto de suas vidas, perguntando-se se as informações lhe foram transmitidas porque eu descobri que contrataram assassinos para matar meu filho... — Péricles fez uma pausa, sorrindo friamente. — ... ou se fui levado a assumir a atitude por virtude cívica. Isso fará com que os anos de exílio deles se tornem um pouco mais interessantes.
— Conhecendo você, Péricles, creio que eles vão pensar que foi por virtude cívica.
— É possível. Afinal, eles foram meus companheiros de armas. Vamos deixar que acreditem que Nêmesis finalmente os alcançou. Jamais conhecerei os pensamentos deles, o que é para mim, de certa forma, lamentável.
O Rei-Arconte pegou os papéis.
— Sou um homem velho. Amo meu país. Não o prejudiquei jamais, não transgredi suas leis. Isso é terrivelmente angustioso para mim. Se eu tivesse recebido antes essas informações, há muito que os criminosos estariam no exílio.
— O que significa que não é um político.
O Rei-Arconte abaixou a cabeça, sacudindo-a lentamente.
— Já ouvi isso antes, da minha amada hetera. Garantiu-me que nenhum homem honesto se mete em política.
— Pois então vamos encorajar os homens honestos. Vamo-nos esforçar para que homens honrados, mesmo que sejam pobres, entrem para a política. Mas reconheço que isso é apenas o sonho de um estado perfeito. E, infelizmente, nenhum estado é perfeito.
O Rei-Arconte suspirou.
— Penso frequentemente em Sólon.
— Eu também. E na medida em que o povo me permite, tento cumprir as leis que ele nos legou. Mas não podemos também esquecer que temos de lidar com o povo, sempre caprichoso e volúvel.
— E temos medo do povo, Péricles. Vou procurar agir o mais depressa e discretamente que for possível. Esses homens serão exilados... pelo crime que cometeram contra seu filho... embora pensem que seja por outras razões. — Ele fez uma pausa. — Por que não é possível acusá-los publicamente do atentado contra a vida de Paralo?
— Com base na palavra sem assinatura de um delator? Quem poderia acreditar que tão insignes e ostensivamente virtuosos servidores públicos seriam capazes de tal crime?
— E não deseja aumentar a desconfiança dos nossos cidadãos em relação ao governo.
— Exatamente. Nem todos os políticos são venais. Por mais incrível que possa parecer, alguns são homens honrados. É muito difícil para um homem permanecer honrado diante de cidadãos traiçoeiros, que são tão fraudulentos quanto seus líderes.
Como o Rei-Arconte ficasse calado, Péricles acrescentou:
— Eu poderia mandar assassinar esses homens e eles bem que merecem a morte. Mas, como pode ver, sou um homem misericordioso.
O Rei-Arconte sorriu estranhamente.
— Não penso assim. Constato apenas que ama seu país e não gostaria de vê-lo mergulhado no caos por causa de homens indignos. — Ele ficou olhando em silêncio para Péricles por um longo tempo, antes de arrematar: — Também contemplo a acrópole ao luar. Pelo bem de Atenas, por sua glória e beleza, você seria capaz de fazer qualquer coisa... exceto o que for desonroso.
O Rei-Arconte se retirou, em passos um tanto trôpegos, como um velho doente. Péricles ficou a observá-lo, com uma expressão sombria. E pensou: O Rei-Arconte está enganado. Eu seria capaz de fazer qualquer coisa por meu país, honrosa ou desonrosa.

Capítulo 8
Péricles pensava que o Rei-Arconte não fosse seu amigo, nem inimigo, mas apenas um homem justo. A frieza e o formalismo do Rei Arconte eram ainda mais acentuados que a dele. Jamais fora pomposo. Tinha poucos conhecidos e ainda menos amigos. Jamais revelava o que pensava em particular, nem mesmo a sua hetera.
Sozinho em seu gabinete, com os dossiês malditos à sua frente, o Rei-Arconte ficou pensando por um longo tempo, intensamente. Péricles teria ficado surpreso se soubesse o quanto o Rei-Arconte o respeitava e admirava, quantas vezes censurara os arcontes que manifestavam raiva, ódio ou inveja do Chefe de Estado. O Rei-Arconte não considerava sensato fazer amigos entre os políticos. Levava inevitavelmente a dependências e à proteção mútua, constituindo uma traição da justiça e do povo que confiava neles. Justiça e amizade, pensava ele frequentemente, são o que Sócrates chamaria de uma contradição em termos. Aqueles que serviam à justiça publicamente deviam-se manter afastados dos envolvimentos humanos. Por isso, ele era um velho solitário, distante e frio até mesmo em relação aos filhos e filhas. Se um de seus filhos cometesse um crime, iria puni-lo tão severamente quanto qualquer outro criminoso, sem o menor sinal exterior de angústia.
Sentado sozinho em seu gabinete, ele pensou: Péricles, no final das contas, é apenas humano. Gostaria que aqueles homens, que estavam para ser exilados, soubessem que era ele o vingador e instigador. Ou melhor, que desconfiassem disso pelo resto de suas vidas. Mas isso é mais perigoso para Atenas, para Péricles e sua família. Aqueles homens tinham muitos amigos poderosos, muitos parentes valorosos; estes iriam vingar os quatro e acabariam encontrando meios de destruírem Atenas, através da destruição de Péricles. O que não podia acontecer.
Ele mandou chamar Polites, que mandara assassinar a esposa tão suave, Polites, que era membro do Supremo Tribunal. O Rei-Arconte não acreditava na necessidade e conveniência de acusações e explicações prolongadas. Além do mais, precisava certificar-se de que era verdade o que fora revelado na carta. Assim, quando Polites chegou, um homem de cinquenta anos, o rosto aristocrático, as maneiras perfeitas, a expressão franca, o Rei-Arconte, em silêncio, colocou o dossiê respectivo diante dele e pôs-se a observá-lo atentamente. Polites assumiu uma palidez doentia, as pálpebras a tremerem, e pareceu envelhecer rapidamente. Então é verdade, pensou o Rei-Arconte, em desespero. Polites finalmente levantou a cabeça para fitá-lo e disse:
— Senhor, acredita nessa calúnia?
— Acredito — respondeu prontamente o Rei-Arconte. — Mas sou também misericordioso. Em vez de passar essas informações para as autoridades devidas, manterei silêncio, contanto que deixe Atenas para sempre, dentro de duas semanas.
Polites soltou um grito de angústia. O Rei-Arconte levantou a mão.
— Seu julgamento pelos trâmites legais pode ser prolongado, mas o povo acreditaria nas acusações, já que está propenso a acreditar em qualquer ato das autoridades públicas. A verdade acabaria porvir à tona, mesmo que muitos se recusassem a crer. Por isso é que eu disse que sou um homem misericordioso. Se contestar esse dossiê, será inevitavelmente arruinado. É acusado de um crime capital. Seria condenado à morte, seus bens seriam confiscados. Portanto, é melhor ficar calado. Diga a seus amigos que está deixando a cidade por um período considerável... por problemas de saúde. Neste caso, poderá manter suas propriedades e a família poderá permanecer ao seu lado.
— Quem preparou esse dossiê? — indagou Polites.
— Isso não vem ao caso. Por misericórdia, aconselho-o a não contestá-lo. Se o fizer, prometo que outras acusações serão formuladas contra você e não conseguirá escapar à justiça, como o fez antes.
Quase fora de si, Polites enunciou rapidamente os nomes de diversos homens que eram seus inimigos, execrando-os. O nome de Péricles não foi incluído, o que levou o velho Rei-Arconte a assumir uma expressão irônica. Ele limitou-se a ficar sacudindo a cabeça e repetindo interminavelmente:
— Não vou contar quem foi o autor do dossiê.
Ele dispensou Polites, que se retirou quase a cambalear. Chamou em seguida os outros três homens, um de cada vez. Todos protestaram inocência, chegando a fazer o juramento mais sagrado, o de Castor e Pólux. Em cada caso, o Rei-Arconte fechava os olhos com uma expressão de cansaço, sacudia a mão e murmurava:
— Que esse juramento não o condene perante os deuses. Se deseja retirá-lo, deve fazê-lo agora.
Depois de alguma hesitação, o juramento era sempre retirado. O Rei-Arconte, que acalentara a esperança de que pelo menos um dos homens tivesse sido acusado falsamente, sentiu-se enojado. Eles sempre haviam manifestado o seu profundo amor por Péricles, eram seus companheiros de armas. Haviam votado em seu apoio quase que invariavelmente. Eram homens de famílias ilustres, orgulhosos de sua cidade, haviam aprovado o Partenon e outros templos dispendiosos na acrópole. Haviam-se banqueteado frequentemente, com prazer e harmonia, na casa de Péricles, o qual também os visitara diversas vezes em suas próprias casas. Dois eram de sua própria tribo. Por que então haviam tentado matar o filho de Péricles, levando-o ao desespero e amargura? Por maldade e inveja, crimes tão antigos quanto a humanidade, pensou o velho Arconte. Um homem, até mesmo o melhor dos amigos, é capaz de perdoar tudo, menos que um amigo se eleve acima dele e conquiste a fama. Péricles compreendera isso perfeitamente. O Rei-Arconte pensou na própria amargura de Péricles por descobrir que fora traído pelos amigos, que haviam tentado sufocar seu coração com desespero, sem qualquer justificativa, exceto o fato de ele ter comprovado ser naturalmente superior. Somos uma raça perversa e incorrigível, pensou o Rei-Arconte; é um grande mistério o motivo pelo qual os deuses nos suportam.
Ele pensou no paradoxo do amor e ódio habitando simultaneamente as mentes daqueles homens. Amavam Péricles, mas também o odiavam. Se Péricles tivesse lutado ao lado deles nos campos de batalha, teriam sacrificado as próprias vidas para defendê-lo, como heróis. Mas, quando se tratava de uma questão de poder e aclamação pública, estavam dispostos a destruí-lo, não ao amigo Péricles, mas ao símbolo do ciúme que os torturava. O amor que sentiam por Péricles é que os impedira de mandar assassinar diretamente a ele. O ódio deles escolhera um objetivo menor, mas cuja perda deixaria Péricles profundamente desolado. Interminavelmente, o Rei-Arconte sacudia a cabeça, triste, mas ao mesmo tempo estupefato. Como amigos, concordando plenamente em todas as questões políticas, eles preservariam a vida de Péricles com todo empenho. Mas, como inimigos, iriam regozijar-se com o sofrimento de Péricles. Iriam considerá-lo como uma justa retribuição. Ah, os incontáveis meandros da mente humana! pensou o velho arconte, Nem mesmo Penélope seria capaz de desenredar a meada confusa da mente humana. Os padrões do mais diligente tecelão jamais poderiam abranger o espírito de um homem e representá-lo por inteiro.
O Rei-Arconte, ainda mais discreto que o próprio Péricles, não comunicou ao Chefe de Estado os resultados de suas acusações. As notícias chegariam rapidamente aos ouvidos de Péricles. Um homem disse que teria de deixar Atenas em breve para cuidar de suas propriedades em Chipre; outro alegou que o ar de Atenas afetara-lhe os pulmões e teria que partir para cuidar da saúde; o terceiro declarou que estava cansado da vida pública e ia-se aposentar, retirando-se para a vida sossegada no campo; o último afirmou que sua amada esposa desejava viver junto da família, em Cós. Ninguém sequer insinuou que sua ausência constituía um exílio, que lhe fora imposto sob ameaça. O Rei-Arconte, ao saber disso, ficou profundamente deprimido, não mais tendo qualquer dúvida de que os quatro homens eram culpados.
Todos os quatro homens foram procurar Péricles, para anunciar em lágrimas a sua partida iminente de Atenas. Confidenciaram que haviam sido forçados ao exílio, por causa de falsas acusações, "que poriam o Estado em risco, se eu a contestasse". Péricles, que se condicionara como político a ser também um ator, contra todos os seus princípios, disse em aparente tom de espanto e preocupação:
— Mas, se você é inocente, por que não tenta prová-lo?
O silêncio de cada um e os suspiros angustiados encheram-no de ódio, a tal ponto que mal conseguiu controlar-se.
— Deixe-me ajudá-lo.
Nenhum percebeu o tom frio de ameaça por baixo de suas palavras. E todos deram a mesma resposta:
— Isso iria pô-lo em perigo, meu caro amigo.
Péricles compreendeu que havia alguma sinceridade na resposta e ficou aturdido. Estavam falando a sério. Ele desconfiou, com um humor amargo, que o Rei-Arconte em momento nenhum mencionara o seu nome aos quatro homens.
Quase sentiu compaixão deles, especialmente de Polites, que fora um bravo tenente sob o comando de Péricles e que por diversas vezes demonstrara sua lealdade e amor, nas mais terríveis circunstâncias. Mas Péricles precisava apenas contemplar o olho direito afundado do seu lindo filho, Paralo, para sentir o retorno do ódio intenso. Paralo lhe disse:
— Eu vivo. E posso ver, se bem que as imagens estejam achatadas. Sou feliz por estar vivo e ter alguma visão. Por algum tempo, o outro olho esteve também ameaçado. Mas Helena salvou-me tanto a vida como a visão. Infelizmente, porém, jamais poderei ser um soldado como você foi, meu pai.
— E também não terá companheiros de armas — comentou Péricles.
Paralo, que julgava conhecer o pai melhor até do que Aspásia, ficou desconcertado com o tom de amargura profunda da voz de Péricles e a expressão de raiva terrível. Ao dizer palavras assim, Péricles desviava o rosto do filho e ficava com o olhar perdido no espaço.
Xantipo, o arguto, disse ao irmão:
— Nosso pai sabe de alguma coisa que ignoramos e jamais nos irá contar.
Mas Paralo sacudiu a cabeça.
— Nada há para se saber. Meus atacantes jamais serão descobertos.
Xantipo, já curado, declarou seu descontentamento por ter que servir dois anos no exército. Fê-lo em benefício do irmão, que tanto ansiava por ser um soldado. Mas Paralo disse:
— O tempo passa depressa. E você deverá pensar que está tomando o meu lugar e precisará ter a força de dois homens.
O irmão, agora comprometido com a donzela que conhecera na casa de Aspásia, iria casar-se em breve. E sentia-se imensamente feliz. Xantipo suspirou e disse:
— Preferia não casar, mas é esse o meu dever. Sou como uma novilha virgem que está sendo levada ao sacrifício.
Mas, ao pronunciar tais palavras, a expressão dele era radiante.
Helena comunicou a Péricles que chegara o momento do nascimento do filho dele com Aspásia. Ele insistiu, contra o conselho de Helena, em ficar ao lado de Aspásia no momento crítico, na fazenda remota para onde a enviara. Helena partiu certa manhã, acompanhada apenas por dois jovens médicos que iriam assisti-la no parto. Péricles viajou no dia seguinte. Levou consigo apenas Ífis e um subordinado totalmente devotado a Ífis, pois não queria atrair qualquer atenção. A fazenda, embora isolada, ficava a apenas quatro horas de viagem a cavalo. As estradas eram péssimas, pois os atenienses achavam que não havia necessidade de bons caminhos fora da cidade. Em tom solene, costumavam comentar:
— Não precisamos viajar. Afinal, onde existe um lugar mais bonito, importante ou famoso do que Atenas? Se quisermos conhecer o mundo e empenhar-nos no comércio com outras nações, o mar é nossa estrada.
Assim, uma viagem por terra, a cavalo, que deveria levar no máximo uma hora, durava muito mais do que isso, por trilhas de gado, subindo colinas e muitas vezes passando por bosques densos. O sol da primavera estava quente, incendiando o céu azul e se refletindo em nuvens de poeira prateada. A pequena papoula vicejava abundante nos campos e colinas, um tapete vermelho a ondular suavemente à brisa que soprava. As frondes murchas e escuras das palmeiras estavam caindo, enquanto outras nasciam no seu lugar, de um verde intenso. Os plátanos achavam-se envoltos por uma neblina esmeralda, os botões de murta pareciam uma chuva purpúrea, as árvores frutíferas nos pomares haviam explodido numa profusão de rosa e branco. Os cabritos e cordeirinhos corriam inocentemente e sem qualquer medo pelas campinas, os potros se aproximavam da beira das deploráveis estradas e acompanhavam os cavaleiros por algum tempo, sacudindo as crinas e relinchando. As oliveiras brilhavam com uma nova camada prateada de folhas, o milho exibia as pontas verdes a saírem do solo, à procura do sol. Crianças brincavam diante das pequenas casas brancas e as trepadeiras que subiam pelos lados das casas expandiam-se em novos tentáculos. O céu se refletia nos córregos, os pequenos lagos e rios pululavam de peixes.
É uma estação favorável para o nascimento, pensou Péricles, cuja pele clara já começara a arder com o calor e o sol. É uma promessa. Ele desejava outro filho, mas até mesmo uma filha seria bem-vinda, uma filha que se parecesse com Aspásia. Ele alcançou seus próprios campos e campinas e experimentou o orgulho de possuir terras; pensou que cada homem deveria possuir um trato de terra, a bem de sua própria natureza. Nenhum homem devia ser desprovido de terras, como acontecia com tantos atenienses. Como Sócrates dissera, as pequenas aldeias e os campos geravam homens nobres, enquanto as cidades geravam criaturas impotentes, criminosos e mercadores. Mas um homem precisava de um refúgio onde pudesse pôr-se a salvo de tudo que era artificial, febril e apaixonado, a fim de poder contemplar sua alma em silêncio, a fim de admirar a luz do sol e o luar, sem ser distraído pelas atrações, e tumultos das cidades.
— Quem contempla as estrelas na cidade? — perguntara Sócrates a Péricles. — Nos campos, à noite, não há mais nada para se olhar. O homem sente-se intimidado e descobre a sua pequenez, sente-se inclinado a venerar o que é maior do que ele. Com a compreensão de sua pequenez e insignificância, vem a sabedoria e a lucidez do pensamento.
Péricles foi invadido por algo que agora raramente experimentava: uma sensação de paz. Avistou a casa branca de sua fazenda a distância, cercada por ciprestes e plátanos. Contemplou as suas oliveiras, carneiros e cabras, os bois e os cavalos, sentiu por isso mais orgulho do que nas ocasiões em que falava na Assembleia, quando todos se erguiam à sua entrada e faziam-lhe uma reverência. Ali, podia até mesmo esquecer o ódio e a náusea terrível que frequentemente o acometia. Acima de tudo, os políticos precisavam de um refúgio, onde pudessem compreender a sua insignificância e sentir, mesmo que vagamente, a Presença de Deus, não na atitude submissa à Divindade que deles se esperava em público, mas com o coração aberto e o espírito inundado pela verdade, como só se podia encontrar na solidão.
Aspásia, com Helena ao seu lado, recebeu Péricles alegremente. Ele abraçou-a com ânsia e prazer, tomando extremo cuidado com seu corpo volumoso. O rosto de Aspásia brilhava como a lua; nunca antes Péricles a vira tão linda, tão jovem, tão radiante. Aspásia pegou-lhe a mão, beijou-a, comprimiu-a contra o seio. Fitou-o com uma expressão de adoração. Estava extasiada. Jogou para trás os cabelos dourados e riu, as lágrimas aflorando-lhe aos olhos castanhos. Chegou mesmo a balbuciar algo incoerentemente, o que Péricles nunca antes a ouvira fazer. Abraçou-a novamente, como a alguém que lhe era mais precioso que a sua própria vida. Helena ficou a observá-los com uma expressão afetuosa, indulgente e divertida. Ali estavam uma cortesã treinada e experiente e o homem mais poderoso da Grécia. Contudo, eram agora simplesmente marido e mulher, à espera do primeiro filho, pais tão simples quanto os camponeses, igualmente inocentes e ignorados.
Comeram juntos o que a própria fazenda produzia: queijo fresco, pão preto, pequenas cenouras e alface com azeite e vinagre, cordeiro assado, peixe fresco do rio próximo, galinha frita em azeite e tenra como manteiga, sopa de ervilhas verdes com toucinho e o inevitável vinho, da safra de outono das encostas da fazenda. Os alimentos possuíam um gosto que não se encontravam na cidade, apesar de simples e sem molhos picantes. Eram como a própria vida, fragrantes, apetitosos e saborosos, ao mesmo tempo altamente nutritivos. Péricles pensou: Foi uma boa ideia mandá-la para cá, onde se vive a vida, onde há saúde e simplicidade. Ele podia até esquecer que era o Chefe de Estado, naquele refúgio tranquilo. Sentia-se como um robusto camponês, que trabalhara a terra com as mãos calejadas e dela extraíra uma generosa colheita. Apreciou o vaso de papoulas e flores de macieira sobre a mesa de madeira sem toalha, contemplou os últimos raios do sol que a tudo iluminavam com um manto entre rosa e dourado, ouviu o silêncio ameno que o envolvia. Esqueceu até que era um político. Agora, não passava de um homem do campo, sob o seu teto branco. Um rouxinol começou a cantar e Júpiter se elevou ao zênite em esplendor resplandecente. Um cavalo relinchou; retiniam os sinos das vacas entrando nos currais. Péricles sentiu-se invadido por uma serenidade excepcional. Havia tirado o elmo. Em sua túnica marrom, era apenas um camponês; mas possuía aquelas terras, o que o tornava um rei. Eu deveria vir aqui com mais frequência, pensou ele, a fim de escapar aos bafos fétidos dos homens e a suas exigências exorbitantes.
Estava acostumado a conversar com Aspásia sobre política e negócios de Estado. Naquele momento, com a mesma tranquilidade, falou de colheitas e pomares, dos animais de criação e do tempo. Aspásia sorriu-lhe, como uma esposa de camponês, contente por ter o marido de volta dos campos, partilhando os frutos de seu trabalho. Sentiram-se dominados por um contentamento intenso, uma paz incomparável. As faces de Helena estavam coradas; o rosto de Aspásia desabrochava como uma flor, vermelho e branco. Disse a Péricles que colhera pessoalmente os legumes e as flores. Exibiu com orgulho as mãos adoráveis, com terra por baixo das unhas, que ela não conseguira remover, Quando Péricles fez uma libação aos deuses, os olhos dela brilhavam de lágrimas reverentes.
— Deus está perto de nós em Sua terra — disse ela. — Mas é muito difícil discerni-Lo na cidade.
— Ele é abafado pelas vozes dos homens — disse Helena, a cética. — Fídias contou-me que precisa refugiar-se em seu jardim a fim de evocar o sublime, para poder pensar, contemplar a glória. Não pode fazê-lo na Ágora. Ao que parece, a filosofia e as artes desenvolvem-se, com a rapidez dos rabanetes, nos campos.
Ela riu. Péricles e Aspásia fitavam-na afetuosamente, de mãos dadas.
Mais tarde, retiraram-se para seu aposento rude, as paredes de madeira não envernizada, de um dourado claro. O chão de pedras não estava coberto por tapetes, era frio ao contato dos pés. Os lençóis eram comuns, o linho espetava. Péricles deitou-se com Aspásia em seus braços, pondo de vez em quando a mão na barriga dela, para sentir a criança que se movia. Era como se jamais tivesse tido outra esposa, como se jamais tivesse tido filhos. As janelas sem cortinas estavam abertas e eles podiam sentir o cheiro de paixão carnal da terra fértil, podiam ouvir o canto do rouxinol, os zumbidos dos insetos, a brisa noturna. Péricles apagara o lampião. As estrelas contemplavam-nos através das janelas.
Aspásia adormeceu, a cabeça no ombro de Péricles, as mãos entrelaçadas, as pernas a se procurarem, os seios dela, cheios e quentes, preparados para o aleitamento. Os cabelos de Aspásia tinham o aroma de relva e sol. A túnica era de linho, a mais simples possível. Não usava perfume. Péricles podia sentir-lhe os cabelos macios sob seu queixo. Beijou-os. Aspásia suspirou de felicidade, sem acordar, murmurando, como uma donzela despertada para o amor. Atenas tornou-se irreal para Péricles; seus problemas e angústias já não tinham o menor significado. Tinha o mundo inteiro em seus braços, o mundo da vida, do trabalho, da verdadeira alegria. Um cachorro latiu, sonolento; uma vaca mugiu no estábulo. Um cavalo relinchou. O único ruído discordante foi a voz de um guarda falando com outro. A lua em quarto crescente espiou pela janela. Péricles também adormeceu.
Na manhã seguinte, vestido como um camponês, Péricles percorreu as suas propriedades com seus homens e escravos. Aquela não era a sua fazenda mais lucrativa; na verdade, era uma propriedade típica de camponês, inclusive a casa. As outras fazendas eram quase opulentas em comparação, com villas suntuosas para as visitas do proprietário. Mas Péricles preferia aquela, que lhe possibilitava um retorno à simplicidade.
Aspásia estava na cozinha, descascando cebolas para uma sopa, quando Helena entrou. Esta sorriu um tanto zombeteiramente da ocupação humilde da amiga. Aspásia disse, com uma alegria quase infantil:
— Ah, se Péricles e eu pudéssemos viver aqui para sempre, nesta paz total, nesta simplicidade, sem qualquer afetação tenho certeza de que seríamos imensamente felizes.
— Não diga bobagem — declarou Helena, escolhendo uma cidra numa cesta de junco em cima da mesa e começando a descascá-la. — Isso é apenas novidade para você, minha cara. Já pensou no que iria perder? Não mais teria a Agora, lojas, vendedores de livros, música, jantares com filósofos e artistas, dança, os luxos tão agradáveis, joias e roupas elegantes, os serviços solícitos de escravas no banho, as conversas, emoções, estímulos ao pensamento, política, discussões sobre arte... Perderia tudo isso e muito mais. Concordo em que todo homem deve ter uma propriedade no campo, onde possa refugiar-se para renovar a paz de espírito, livrar-se por algum tempo do fardo de pensar. — Ela riu, os olhos azuis falseando. — Ah, posso perfeitamente imaginar você e Péricles vivendo aqui para sempre, até começarem a roer as unhas de desespero, de tanto tédio, falta do que fazer, excesso de tranquilidade!
Aspásia a princípio ficou ofendida, mas depois desatou a rir e enxugou os olhos com as costas da mão, exclamando:
— Ah, como fingimos para nós mesmas! Durante toda a minha vida não conheci senão opulência e luxo, comidas e vinhos excelentes. Admito que não desprezo nada disso. Mas é bom passar algum tempo levando uma vida como esta. Que Péricles e eu nos empenhemos agora neste simulacro!
Aspásia indagou em seguida como estavam os seus amigos em Atenas.
— Anaxágoras está sendo bastante atacado e receio por ele — disse Helena. — Todos os amigos de Péricles estão sendo investigados, inclusive eu.
Aspásia parou de sorrir.
— Você, Helena, que tem dedicado sua vida a salvar os outros e a mitigar os sofrimentos causados pelas doenças?
Ela não podia acreditar.
— Ah, mas acontece que sou uma mulher dissoluta. Minha falta de virtude é incontestável. Sou um péssimo exemplo para as esposas e filhas recatadas. Sou impudica e ímpia. Vou pessoalmente ao mercado, sem qualquer acompanhante. Sou a companheira de muitos homens. Não uso os véus da discrição. Não solto risadinhas reprimidas, não baixo os olhos, não digo coisas infantis, como as outras mulheres. Portanto, sou uma desgraça, a vergonha de Atenas.
Helena fez uma pausa.
— Quanto a Anaxágoras e outros amigos de Péricles, também são considerados ímpios. Contestam não apenas o governo, mas a religião e a superstição. Estão levando a juventude de Atenas ao desastre e à rebelião contra a autoridade; pedem à juventude para pensar, ao invés de simplesmente obedecer. E não resta a menor dúvida de que isso constitui um crime capital.
Ela deu uma mordida na cidra, os olhos tornando-se subitamente sombrios.
— Por um lado, ouvimos falar do esplendor e glória de Atenas, o que devemos reverenciar. Por outro lado, estamos querendo destruir aqueles que trouxeram a glória e o esplendor a nosso país. O que não é uma novidade. É a história de todas as nações. Só que nunca aprendemos. Depois que matamos os heróis, nós os elevamos às estrelas. Mas os deuses também fazem a mesma coisa. Sendo assim, o que podemos esperar dos homens?
Aspásia olhou pela janela para o céu azul, para a paz dos campos amplos, os ciprestes escuros, os pomares, o gado, ovelhas, cabras e cavalos, para a plena exuberância sob o ar da primavera. Os pássaros voavam como flechas coloridas. Ela estava prestes a dizer alguma coisa, mas percebeu à expressão zombeteira de Helena e ficou calada.
— De uma coisa tenho certeza, Aspásia: um homem que pensa será infeliz para sempre. Afinal, quem pode aceitar este mundo a não ser o estúpido? Mesmo assim, é melhor pensar, fazer conjeturas e ser infeliz, ao invés de viver feliz na ignorância. O descontentamento divino... é o que cria a glória. O contentamento, a plena satisfação? É o túmulo!
Pensando na amiga querida, Aspásia indagou:
— Não teme por si mesma, Helena?
A médica deu de ombros.
— De que adianta ter medo? Quem fica pensando a respeito por muito tempo, acaba por se tornar cauteloso. E a cautela já cegou, deixou surdas e impotentes muitas pessoas que deveriam ser audaciosas. Desprezo a prudência... até certo ponto. Não cortejo a morte ou qualquer outra punição. Mas tenho de viver como posso, de acordo com a minha natureza. Ou acabarei expirando, de um jeito ou de outro.
Ela fez uma pausa, com um sobressalto, apressando-se em indagar:
— Mas o que está acontecendo?
É que Aspásia subitamente levara a mão à barriga e arquejara. O rosto empalidecera, gotas de suor surgiram-lhe na testa.
— Uma dor, uma dor muito forte...
Aspásia balbuciava, subitamente apavorada. Mas Helena permaneceu calma.
— A criança deve estar para nascer. Vamos para o seu aposento, onde guardei o banco do parto e meus instrumentos. Mande que uma escrava continue a preparar o almoço.
— Péricles... — murmurou Aspásia, invadida por outro acesso de dor, tão intenso que a fez dobrar-se.
— Não há por que chamá-lo — disse Helena, rispidamente. — Em que ele poderia ajudar? Os homens só servem para atrapalhar quando as mulheres estão dando à luz. Ficam histéricos, tremendo de medo. Vamos deixá-lo a contemplar seus rabanetes e repolhos, a conversar com os escravos sobre adubos. Vamos deixá-lo a contemplar o milho novo que surge nos campos e rezar para que não chegue tão cedo.
Ela levou Aspásia para o aposento austero e ordenou às escravas que preparassem toalhas, peças de linho, óleos, água quente e vinho. Pôs Aspásia no banco de parto e sentou-se ao lado dela, placidamente. Se estava preocupada com a idade de Aspásia, já com trinta e quatro anos, e o fato de ser aquele o primeiro filho, não deixou transparecer. Falou jovialmente sobre Atenas, os amigos comuns, política, embora sempre atenta, contando as contrações. Ainda não estavam ocorrendo com o ritmo apropriado. De vez em quando, Helena se levantava e enxugava o suor do rosto de Aspásia, com um pano frio, mergulhado em água de nardo. Não fazia qualquer comentário a respeito. Sempre conversando, verificou o pulso de Aspásia. A conversa era descontraída, em momento algum Helena falava sobre o parto iminente. Ao ver Aspásia dominada por uma dor intensa, contava uma piada obscena, fazendo-a rir. Os raios do sol entravam pela janela, trazendo a fragrância da terra exultante. Um pássaro, de penas azuis e douradas, pousou no peitoril da janela e cantou. Helena comentou:
— É um bom presságio.
Aspásia começou a se contorcer. Helena disse:
— Não é bom para uma mulher em trabalho de parto ficar deitada. Você deve ficar de pé e andar um pouco.
Ela pegou o braço de Aspásia e começou a levá-la de um lado para outro do aposento. Duas escravas achavam-se agachadas num canto, fitando-as com os olhos arregalados. Os escravos do jardim estavam cantando, uma fragrância de relva e lilás entrava pela janela. Uma abelha entrou no aposento, zumbindo contra uma parede. Uma escrava fez menção de matá-la, mas Helena não deixou:
— Não quero que haja morte aqui. A abelha é uma criatura diligente e devemos honrá-la.
Helena permitiu que Aspásia se deitasse na cama por algum tempo, enquanto a examinava. E declarou, com evidente satisfação:
— A cabeça já está quase saindo. Há alguns médicos que apressam o parto. Acho que não se deve fazê-lo. A natureza sabe mais do que nós. Em seu caso, minha querida, não haverá muita dificuldade.
Aspásia arquejou.
— Ah, o que as mulheres têm de sofrer!
Helena forçou um bocejo.
— Não é nenhuma tragédia. Não somos todos obrigadas a suportar o trabalho de parto pelo menos uma vez na vida? E no caso de dar à luz, as mulheres não têm exclusividade do sofrimento. Outras fêmeas animais também passam pela mesma coisa, sem darem maior importância ao fato.
Apesar de suas palavras tranquilizadoras, Helena estava um pouco preocupada. A cabeça da criança já se estava realmente apresentando no colo do útero, mas a bolsa d’água ainda não se rompera.
Ela obrigou Aspásia a andar novamente. Depois, tornou a deitá-la na cama, forçou suas pernas a ficarem o mais abertas possível. Tinha um pequeno instrumento na mão, que inseriu no canal do nascimento. Furou com ele a bolsa dágua. Aspásia soltou um grito e um esguicho de fluido, misturado com sangue, saiu de dentro dela. Helena ficou satisfeita. Agora, o parto podia continuar. Pôs Aspásia novamente no banco e ajoelhou-se diante dela, os instrumentos a seu lado, inclusive o fórceps que Hipócrates inventara. A uma ordem sua, uma escrava trouxe um balde de água quente e sabão. Como Hipócrates lhe ensinara, Helena lavou os instrumentos e as mãos, meticulosamente, enxugando-os depois em toalhas limpas. Estava ficando cada vez mais quente. A própria Helena parecia uma camponesa robusta e animada, ajoelhada daquele jeito, diante de sua paciente, o rosto úmido de suor, os cabelos brilhando. A uma contração mais forte, ela apertou suavemente a barriga de Aspásia, pressionando-a para baixo. Os ofegos e gemidos de Aspásia eram cada vez mais altos.
— Procure não respirar fundo, Aspásia. Isso atrasa o parto. Faça força para baixo no momento em que eu comprimir sua barriga, mesmo que isso aumente a dor.
Aspásia estava extremamente pálida, o rosto todo contraído. Helena contemplou-a atentamente por um instante. Depois misturou um líquido escuro numa taça de vinho.
— Beba isto, Aspásia. Vai aliviar as dores.
Aspásia, já sem poder falar qualquer coisa, bebeu obedientemente. A boca se contorceu. Helena disse:
— É ópio. Raramente o dou a uma paciente, pois pode atrasar o parto e a criança também é afetada. Pelo menos é o que diz Hipócrates. Mas você está prestes a dar à luz e por isso não vai afetá-la nem à criança.
O ópio não demorou a produzir efeitos em Aspásia, que ficou com a sensação de que estava sonhando. Num momento, tudo estava banhado por uma claridade dolorosa, de tal forma que cada objeto no aposento, até mesmo a própria Helena, possuía contornos de um brilho intenso, cada partícula de pó parecia um sol incandescente; no momento seguinte, tudo parecia parado, quieto, distante. A mente de Aspásia ficou inteiramente confusa. Não estava separada de sua dor; era a própria agonia, não mais uma personalidade distinta. A escuridão caía às vezes diante dos olhos cansados. Alguém estava arquejando no aposento... ou será que estaria na eternidade e não num aposento? Pequenas luas brilhantes flutuavam diante dela; tentou acompanhar-lhe os movimentos; eram também a sua angústia física. Desejou que as luas se deslocassem mais depressa, a fim de deixá-la em paz. Mas simplesmente zombaram dela, aumentando de volume, deslocando-se mais freneticamente. Em determinada ocasião, Aspásia pensou — e até mesmo seus pensamentos pareciam vir do espaço distante — ah, como é alto o preço que se paga por uma hora de prazer! Teve a impressão de que encontrara uma verdade profunda que ninguém mais aparentemente descobrira antes, o que a deixou exultante por um momento. Deveria escrever e depois conversar a respeito com Péricles, que certamente ficaria admirado.
Agora, na escuridão à sua frente, descobriu uma estrela distante e brilhante; ficou observando-a mover-se, aumentar, diminuir. Subitamente, disse a si mesma que estava agora possuída por toda a sabedoria do mundo, que a estrela era uma revelação do Ser infinito e imortal, com o qual sua própria alma se fundira. Nada lhe estava oculto. Possuía todo o conhecimento, um estranho êxtase invadiu-a. Pensou que estava falando as palavras das sibilas, mas estava apenas balbuciando ininteligivelmente. Podia agora ver Helena, envolta por uma neblina. Tinha de transmitir o que sabia àquela mulher, sua amiga, antes que desaparecesse para sempre.
A voz de Helena chegou a seus ouvidos, firme e autoritária:
— Não durma! Faça força com a barriga para baixo!
Mas o que tenho a ver com minha carne? Perguntou Aspásia a si mesma, divertida. Ficou espantada por Helena poder ser tão obtusa. Uma dor súbita e insuportável percorreu-lhe o corpo, mas ainda parecia fora dela. Contemplou novamente a estrela. Sentiu mãos a segurarem-na rudemente, levantarem-na, deitarem-na na cama. Houve uma terrível convulsão, que se foi lentamente desvanecendo numa noite escura. Aspásia adormeceu.
Era o pôr-do-sol, de um vermelho intenso, quando ela despertou, inerte e exausta. Estava no leito e Péricles se inclinava sobre ela, sorridente, a segurar-lhe a mão. Aspásia fitou-o e disse:
— Vi todas as coisas...
Ouviu Helena soltar uma risada. E Péricles disse:
— Tivemos um filho, um filho lindo, com os cabelos de ouro, olhos azuis, muito gordo. E é perfeito.
Aspásia apertou-lhe a mão e balbuciou:
— Péricles...
E ela falou tanto do seu amor como do seu filho. Dormiu novamente, o rosto encostado na palma da mão de Péricles, suspirou de alegria pela dor que terminara, por seu leito ser macio, por saber que seu amado jamais a deixaria.
Para Aspásia, o filho era um milagre. Nenhuma outra mulher jamais dera à luz a um menino tão bonito, tão excepcional! Estava aturdida com ele, examinava-o com reverência. Era manhã e Péricles sentou-se ao lado dela, em sua túnica marrom de camponês, os joelhos já queimados pelo sol, o rosto severo com um aspecto juvenil.
— Nunca houve tamanha maravilha — disse-lhe Aspásia.
Péricles sorriu. Helena, de pé ao lado dele, comentou:
— A vida é sempre uma maravilha e repleta de mistério.
Aspásia sentiu alguma compaixão por sua amiga, que jamais tivera um filho. Sentiu a sucção forte do filho no seio e foi invadida por uma felicidade intensa. Disse para Helena:
— Ah, minha querida, não faz ideia como é maravilhoso ter um filho!
— Os deuses foram generosos comigo — disse Helena, em tom irônico, apertando o ombro de Péricles.
Os dois saíram do aposento para a luz lírica da manhã.
— O que aconteceu? — perguntou ela a Péricles. — Ouvi um mensageiro chegar a cavalo pouco antes do amanhecer e estou vendo que você ficou extremamente preocupado.
— Acabei de ser informado de que Anaxágoras foi preso, sob a acusação de que estava ensinando impiedade e heresia. Pediram a pena de morte para ele.
Helena deixou escapar uma exclamação de protesto furioso.
— O que vai fazer, Péricles?
— Tenho que voltar imediatamente a Atenas para salvá-lo.
— Tem razão. Volte o mais depressa possível. E não precisa temer por Aspásia. Tema pela Grécia.
— Não é o que sempre faço? Os deuses contemplaram-na com a luz e a glória, mas há sempre que pensar nos homens! Precisamos invariavelmente combater nossos irmãos, a fim de que possam sobreviver e não sejam vítimas de seus próprios crimes e estupidez.
Helena pôs a mão no braço dele e disse afetuosamente:
— Parta agora mesmo. Não volte a ver Aspásia, para que ela não fique preocupada. Contarei tudo a ela mais tarde.
Capítulo 9
Péricles foi encontrar Anaxágoras na mesma prisão em que Íctis fora encarcerado e na qual morrera. Mas Anaxágoras não estava numa cela confortável, pois era pobre, apenas um filósofo. Uma lanterna fraca pendurada na parede úmida do corredor projetava uma claridade hesitante na cela, onde Anaxágoras estava deitado numa enxerga de palha. Péricles seguira diretamente da estrada para aquela prisão fétida e estava exausto, coberto de poeira. Antes mesmo de falar com o amigo, ordenou aos guardas, com uma raiva intensa:
— Levem o meu amigo imediatamente para uma cela maior, com uma janela, sirvam-lhe vinho, frutas, queijo e pão.
Ele vira uma tigela no chão, diante da porta, com uma mistura repulsiva, que Anaxágoras se recusara a comer.
Quando a porta da cela foi aberta, Anaxágoras estremeceu e contemplou Péricles com os olhos azuis muito grandes e uma expressão de prazer, soerguendo-se num cotovelo. O rosto magnífico estava esquelético e contraído, mas ele conservara o seu semblante de extrema serenidade. Levantou-se lentamente. Péricles segurou-o pelo braço e, com os guardas na frente, seguiram todos para uma cela maior, mais quente, mais arejada. Um guarda foi buscar os alimentos determinados e voltou pouco depois, colocando tudo sobre uma mesa de madeira. Durante esse intervalo, Anaxágoras e Péricles não falaram, limitando-se a trocar olhares sorridentes.
Depois que os guardas atônitos, mas respeitosos se retiraram, fazendo uma saudação, Anaxágoras abraçou Péricles e disse:
— Sinto a maior alegria por vê-lo, meu amigo querido. Mas não deveria ter vindo. Isso poderá acarretar-lhe um grande perigo.
— Chegou o momento em que não se deve pensar no perigo, mas sim em como preservar a pouca liberdade que ainda possuímos. Agora, quero que me diga quais são as acusações.
Péricles sentou-se à mesa e serviu vinho para Anaxágoras, partindo o pão e cortando o queijo para ele. Começaram a comer e beber juntos. Anaxágoras ficou por um momento imerso em seus pensamentos, olhando para a parede, até que finalmente disse:
— Não sei exatamente quais são. Estava ensinando em minha pequena academia quando os guardas do governo subitamente apareceram e me prenderam. Declararam que cometi um crime contra o Estado, de impiedade, heresia e corrupção da juventude. Por isso, eu era um inimigo do povo. Fiz algumas perguntas e explicaram que as acusações contra mim foram apresentadas por Dédalo, o Arconte.
— Ahn... — Péricles tirara o manto coberto de poeira e o elmo. A luz da lanterna incidia sobre o rosto severo, a testa alta. — Vou à Assembleia amanhã para defendê-lo.
— Eu lhe suplico que não faça isso! — Os olhos de Anaxágoras estavam dominados por uma ansiedade intensa. — Seu ex-sogro não se deterá diante de nada. E tem amigos poderosos no governo.
— Em suma, estão tentando atingir-me através de você. — O rosto cansado de Péricles estava vermelho de raiva, mas a voz permanecia sob controle. — Neste caso, estarei fazendo a minha defesa e a de meu cargo contra esses patifes.
Ele pensou em seu filho Paralo e em Aspásia, vítimas de brutais ataques que visavam a atingi-lo pessoalmente.
— Não proteste, Anaxágoras. Se não me conhecesse, não estaria agora nessa situação.
Anaxágoras sacudiu a cabeça.
— Está enganado, meu amigo. Isso me teria acontecido, mais cedo ou mais tarde, mesmo que não o conhecesse, como já aconteceu com muitos outros antes de mim.
Mas Péricles já estava pensando em outras coisas, com o cenho carregado,
— Eles têm testemunhas contra você?
Anaxágoras abriu os braços.
— Quem pode saber? Meus discípulos? Meus amigos, com os quais tenho frequentemente conversado? É simplesmente impossível saber.
— Pode estar certo de que eles arrumaram testemunhas que ajudarão ansiosamente a exilá-lo, encarcerá-lo ou matá-lo. E não tenha a menor dúvida de que são amigos confessos.
Anaxágoras fitou-o com uma expressão de compaixão. Péricles continuou:
— Diga-me uma coisa: formulou recentemente alguma nova teoria que entre em conflito com os dogmas religiosos aceitos?
Anaxágoras pensou por algum tempo, antes de responder:
— As novas teorias não passavam de extensões do que eu já havia ensinado antes. Mas recentemente voltei a afirmar que não havia intervenções mágicas, sobrenaturais ou divinas em eclipses, meteoros, arco-íris ou cometas. Eram apenas manifestações da ordem eterna, criada por Deus, e que podiam ser previstas. Deve estar lembrado de que previ um eclipse da Lua três semanas antes de ocorrer e declarei que não passava da sombra da Terra entre a Lua e o Sol. As autoridades ficaram furiosas, pois convocaram o povo, no eclipse, a rezar para que a Lua não fosse apagada. Despacharam pregoeiros pelas ruas, gritando, munidos de tochas e carregando estátuas dos deuses. Meus discípulos riram. O que certamente foi imperdoável. Os sacerdotes ficaram particularmente furiosos. Se fossem um pouco, mais estúpidos, teriam declarado que eu, Anaxágoras, é que causei o eclipse, através da bruxaria. Neste caso, porém, o povo teria rido.
Ele próprio riu, suavemente. Mas Péricles permaneceu sombrio.
— Escrevi uma tese — acrescentou Anaxágoras.
Péricles estremeceu. A palavra escrita era muito mais perigosa que a falada.
— Disse estar convencido de que todas as coisas que existem agora sempre existiram desde a eternidade e continuariam a existir, quer fosse a matéria das estrelas e seus planetas, quer fosse a vida de organismos vivos. Não em suas manifestações atuais, mas sob outras formas. Embora tudo seja movimento e mutação os padrões inatos permanecem, mesmo dando origem a manifestações mais complexas ou mais simples em relação às matrizes originais. Era por isso, escrevi, que toda matéria, fosse de estrelas ou de uma folha de relva, não passava de uma ilusão de forma, pois todas as coisas são compostas por partículas infinitas, que não são absolutamente matéria, mas apenas energia. Em suma, todas as coisas, sóis, planetas, galáxias, poeira, árvores, a própria Terra, constelações, flores, homens, pássaros, insetos, trigo, água, vinho, casas e templos, montanhas e mármore, móveis, estátuas e murais, oceanos e continentes, são apenas uma força dinâmica e indicações de um padrão interminável de energia, que pode mudar a si mesma... talvez por acaso ou pela vontade de Deus. Há apenas uma unidade em tudo que vemos, ouvimos, sentimos, tocamos, provamos e cheiramos, apesar da diversidade aparente. Por isso, a variedade de objetividades aparentes não passa de uma ilusão. Cheguei mesmo a dizer que nada realmente existe além da Mente de Deus, que contém todas as manifestações e aparências e, portanto, é subjetiva.
Como Péricles não fizesse qualquer comentário, Anaxágoras acrescentou:
— Para pôr as coisas em termos mais claros, tudo que existe está apenas na Mente de Deus e em Seus sonhos, não havendo mais nada além de Sua Mente.
Péricles pôs a cabeça entre as mãos, suspirando.
— Ou seja, descartou-se dos deuses, que os nossos sacerdotes declaram que são manifestos e materiais. — Ele sorriu tristemente. — Em suma, como você supõe, os próprios deuses são subjetivos.
Anaxágoras estava deprimido.
— Foi provavelmente essa a conclusão dos sacerdotes. Mas minha tese por acaso era blasfema? Deus contém tudo e todas as coisas. É o que revela a Sua majestade. Pois Ele é tudo e não existe mais nada. Ele é a própria energia e tece, como um tecelão, padrões intermináveis, efetuando mudanças, embora tudo continue a ser a mesma coisa. Ele não pode desobedecer às Suas próprias leis divinas, que estabeleceu por toda a eternidade. Se Ele desobedecesse uma vez sequer às Suas próprias Leis, então tudo seria o caos e a escuridão. Se a Lei se desintegrasse, nada mais existiria.
— Estou entendendo, Anaxágoras. Nossos deuses constantemente desobedecem às leis da decência, moral, justiça e misericórdia. Portanto, não existem... exceto em partículas de energia irracional.
Péricles soltou uma risada, sem qualquer divertimento.
— É essa a interpretação dos sacerdotes ao que eu ensinei. Mas não é a minha.
— Esperava realmente que o homem comum pudesse compreender a sua tese?
— Podemos apenas tentar. O dever daqueles que ensinam é falar a verdade, embora todos os mestres saibam apenas uma pequena parcela do que ensinam. Mas há uma coisa que se chama integridade.
— E que é tão rara de se encontrar.
Anaxágoras baixou os olhos para as mãos elegantes, as veias salientes.
— Também escrevi, nessa tese, que existe um único Deus e não uma variedade de antagonistas masculinos e femininos.
— Ah, como se descartou meticulosamente de todas as nossas deusas e da maioria dos deuses!
— Que foram criados à nossa própria imagem... pelos homens. — Anaxágoras olhou novamente para o espaço. — Só há um Deus, em Quem existem todas as coisas. Escrevi na minha tese que todas as cores e formas intermináveis da natureza, tanto na terra como no mar, existem porque Ele passou pelo mundo em música e das diversidades de Sua música surgiram as variedades que discernimos e que são incontáveis. — Os olhos azuis faiscavam de fervor. — Quem pode limitar Deus às dimensões dos homens? Somente os blasfemos.
— Tem toda razão, E, portanto, deve repudiar a verdade.
— Se eu o fizer, estarei destruído e minha existência não mais terá qualquer sentido. — Os olhos luziram novamente. — Creio em um único Deus, eterno e imutável, mesmo que Suas manifestações pareçam mudar, como um alaúde, uma lira e um tambor mudam o ritmo, embora permaneçam inalteráveis, como entidades.
Ele fez uma pausa, olhando ansiosamente para Péricles.
— Compreende o que estou dizendo?
— Não sou filósofo, Anaxágoras. Sou apenas um político. Compreendo vagamente o que está querendo dizer, mas apenas vagamente. Zênon o compreenderia melhor.
Anaxágoras suspirou.
— Os filósofos são também egotistas. Negam todas as filosofias que não a sua, que acreditam ser a revelação divina.
— Inclusive a sua?
Anaxágoras riu.
— Inclusive a minha. — No instante seguinte, seu rosto voltou a ser grave. — Creio, no entanto, que as eras futuras compreenderão o que digo. Talvez para a sua glória, talvez para a sua morte. Quando os homens perceberem que todas as coisas não passam de energia e que a energia pode ser manipulada... talvez seja o fim. — Ele fez uma pausa, a expressão tornando-se ainda mais grave. — Não posso contestar Deus. Mas será sensato dar ao homem o segredo do universo?
— Talvez. Deus está cansado do homem, de sua estupidez e maldade. Portanto, Ele dará o segredo, a fim de que o homem possa escolher entre a vida e a morte.
Péricles levantou-se e começou a andar de um lado para outro da cela.
— É uma escolha terrível e séria, considerando as limitações da capacidade humana. É como se entregássemos nas mãos de crianças o segredo de guiar uma frota. — Ele parou, olhando para o amigo. — Nossas mentes se aproximam do universal, mas nossas línguas ainda são como as línguas rudes de macacos. Nós nos comunicamos uns com os outros na linguagem deficiente da selva, muito embora nossos pensamentos estejam em chamas. É essa a tragédia da humanidade.
— Neste caso, Péricles, temos de encontrar um meio de comunicação diferente. De mente para mente e não de língua para língua. Pois, apesar do que Sócrates diz, não há definição de termos que seja relevante para todos os homens. Nossas emoções estão-se intrometendo sempre. — Ele sorriu debilmente. — No meio das discussões, muitas vezes inflamadas e exaltadas, meus discípulos precisam ir às latrinas. E, quando cuidam de suas necessidades animais, são abandonados pela chama divina.
— Talvez seja essa a maldição que Deus infligiu ao homem. — Péricles riu. — É possível também que o próprio Deus não queira que completemos a descoberta do conhecimento e por isso os intestinos exigem a nossa atenção.
— Certa ocasião, no meio de uma conversa elevada, derramei uma travessa de favas no colo. Com isso, acabou-se a discussão, pois os discípulos prontamente me cercaram, recolhendo as favas, murmurando palavras de comiseração, limpando-me as vestes.
— Foi provavelmente um alívio para eles. Estava limitando o conhecimento deles.
Péricles tornou a encher a taça de Anaxágoras e recostou-se na cadeira. Os amigos estavam agora bastante reanimados, não só pelo vinho e comida, mas também pela conversa, Péricles acrescentou:
— Se eu ficar de braços cruzados e deixar que o exilem ou matem, serei culpado de trair meu país. Por isso, não vou ficar de braços cruzados. — Ele olhou firmemente para o amigo, que fazia menção de protestar. — Presumo que, mesmo em nome da paz, por sua vida e liberdade, não pretende retratar-se e suplicar o perdão do governo, não é mesmo?
— Mas claro que não! — exclamou Anaxágoras, atônito. — Não posso negar a verdade que eu conheço!
— Hum... Está lembrado do que Sófocles nos disse? "Mentir não é honroso, mas quando a verdade acarreta uma terrível ruína, falar desonrosamente é perdoável," Concordo plenamente. Não se esqueça de que não é você que está em julgamento, Anaxágoras, mas sim a liberdade de Atenas.
— Acredita realmente que Atenas e a liberdade podem ser salvas através de mentiras?
Péricles deu de ombros.
— Quando eu era mais jovem, teria negado isso com toda a veemência. Agora, a juventude já está longe, sou um homem de meia-idade e sei que as mentiras são algumas vezes necessárias na causa da verdade, por mais paradoxal que isso possa parecer.
— Disse isso a Íctis?
— Disse, sim. Mas ele era emocional demais para escutar e compreender.
— E assim morreu pela verdade.
Péricles tornou a dar de ombros.
— Teria sido melhor que ele vivesse, por uma mentira, a fim de poder mais tarde enunciar a verdade, talvez com impunidade.
Anaxágoras pensou por um momento. Não era um jovem arrebatado como Íctis. Péricles indagou:
— Poderia pelo menos refrear sua língua, enquanto eu o defendo?
O homem mais velho sorriu.
— Pode ser uma boa comédia,
— O que não é nesta vida? — Péricles começava a sentir-se aliviado. — Se a verdade lhe é tão cara, então não tem o direito de condená-la à morte. Ela merece viver... para florescer em outra era. Não é um trágico, Anaxágoras, a fazer um gesto sublime diante dos deuses, a lançar-lhes o supremo desafio. É mais comedido. Por isso, não posso deixar de insistir: viva, em nome da verdade.
— Você é extremamente eloquente e persuasivo, meu querido amigo. Talvez Sófocles esteja certo. Os gestos podem ser heróicos, mas provavelmente é melhor permanecer em silêncio. Os gestos devem ficar confinados aos palcos, — Ele suspirou fundo. — Não desejo tornar-me um mártir e muito menos um touro sacrifical para os sacerdotes e o governo,
Ele fez uma pausa, o rosto se entristecendo.
— Mas será que poderei continuar a viver comigo mesmo? Meus discípulos não mais acreditariam no que eu dissesse. Pensariam que os traí e que minhas palavras foram inconsequentes.
— Os verdadeiros discípulos compreenderão. Os outros simplesmente ficarão satisfeitos e a autossatisfação dos patifes é por si mesma divertida. Pois, de qualquer forma, eles jamais acreditaram em você.
Anaxágoras explodiu:
— A pureza moral do corrupto imoral! É justamente isso o que estamos combatendo! A hipocrisia dos indignos!
Péricles pegou sua manta e sacudiu-a.
— Ainda não lhe contei a novidade, Anaxágoras. Tenho mais um filho, tão jovem quanto esta manhã e igualmente deslumbrante.
Anaxágoras levantou-se e abraçou-o.
— Ele será uma glória para você e Aspásia.
— Quem pode saber? Como está vendo, sinto-me novamente dominado pela melancolia. As tenebrosas Irmãs do Destino têm em suas mãos os fios da vida de meu filho, para o bem ou para o mal. Quem pode saber qual o padrão que estão tecendo para o meu filho? — Ele fez uma pausa, antes de acrescentar: — Ou para mim? Ou para você?
Péricles retirou-se um pouco mais animado do que chegara. Anaxágoras era um homem sensato. Percebera imediatamente que não precisava negar a verdade. Tinha apenas que se manter calado, A verdade não devia ser gritada dos telhados; devia esgueirar-se com a sutileza da serpente, frequentemente em silêncio. E, quando assim fazia, era extremamente poderosa.
Depois que Péricles se retirou, Anaxágoras continuou sentado, pensando. Anos atrás, censurara Péricles pelo plano que ele propusera para salvar Íctis. Mas a idade lhe trouxera mais hesitação, uma análise mais criteriosa dos fatos, o pensamento no futuro e suas consequências. Íctis ter-se-ia condenado abertamente perante a Assembleia e a Eclésia, o que deixaria Péricles em perigo, além de qualquer esperança. O próprio Péricles, na ocasião, não era um homem imune a gestos! Anaxágoras não pôde deixar de sorrir, um tanto tristemente.
Antes de partir para o local em que seria realizado o julgamento, perante o Rei-Arconte, Péricles foi a seu gabinete e estudou alguns dossiês. Fez algumas anotações, guardando-as no bolso da túnica. Vestira-se sobriamente para a ocasião, uma túnica azul, a toga cinza, sapatos pretos. O elmo fora diligentemente polido. Gargarejara com água e mel, a fim de que não ficasse prejudicada a potência de sua voz sonora e eloquente. Fazendo um esforço para controlar-se, pois de vez em quando sua raiva amarga tornava-se excepcionalmente intensa, seguiu para o local do julgamento. Sabia que o Rei-Arconte, homem nobre e justo, escutaria com atenção e imparcialidade a acusação e defesa de Anaxágoras. Mas, se ficasse convencido de que Anaxágoras era realmente inimigo do povo e do Estado e corruptor da juventude, não hesitaria em ordenar até mesmo a pena capital. Péricles raramente vira o Rei-Arconte sorrir, pois se tratava de um homem que levava tudo a sério.
O imenso júri já estava reunido. Péricles, um tanto desolado, descobriu que muitos membros da Assembleia, dos Onze e da Eclésia estavam presentes, ávidos e ansiosos, como homens no teatro à espera de um drama sangrento. O dia de primavera mostrava-se quente. O salão do julgamento estava apinhado e sufocante, as janelas pequenas e altas deixavam entrar os raios do sol e os eflúvios da Agora. Quando o imponente Péricles entrou, todos os olhos se concentraram nele. Ele sabia, como já adivinhara antes, que Anaxágoras não era o principal acusado. Que era ele próprio. Alguns de seus amigos também estavam presentes, de pé, ao longo das paredes pintadas de ocra, muitos prevendo sombriamente o dia, mais cedo ou mais tarde, em que seriam também acusados e sofreriam o ostracismo ou a morte. Ficaram observando ansiosamente Péricles encaminhar-se para o estrado elevado em que estava o Rei-Arconte.
Ali já estava Dédalo. Péricles virou-se lentamente e examinou-o, como alguém diante de uma visão repulsiva, com uma expressão de incredulidade, espanto e aversão. O idoso arconte, encurvado e ainda mais esquelético do que por ocasião do casamento de Péricles com Dejanira, retribuiu o olhar com ódio, o rosto se contorcendo, de tal forma que parecia um macaco envelhecido com icterícia. Os olhos fundos eram belicosos, vingativos, quase insanos, a boca se contorcia como se desejasse cuspir, mas a garganta estivesse ressequida. Tremia visivelmente de ódio, as mãos não paravam por um instante sequer. Todos olhavam para os dois homens, alguns exultantes e esperançosos, outros alarmados. Anaxágoras tornava-se insignificante diante daqueles dois antagonistas mortais, que se detestavam mutuamente.
A um gesto silencioso do Rei-Arconte, Anaxágoras foi trazido ao salão, caminhando tão ereto e altivo quanto um rei, apesar das correntes que pendiam de seus pulsos. A cabeça deslumbrante estava erguida. Movia-se com a serenidade e dignidade que somente os homens que não temem a morte podem exibir, e que o revestiam de uma armadura invencível. Foi empurrado até o estrado, ficando entre Péricles e Dédalo. Fez uma mesura cortês para o Rei-Arconte, sorriu gentilmente para Péricles e não lançou um único olhar a Dédalo, seu acusador. Todos ficaram em silêncio, ligeiramente inclinados para a frente, não querendo perder uma única palavra ou gesto. O Rei-Arconte falou:
— Dédalo, apresentou acusações contra o mestre e filósofo Anaxágoras, que está diante de nós. Repita as acusações que me apresentou.
O Rei-Arconte cruzou as mãos à sua frente. Dédalo sacudiu-se como se um vento o atingisse. Alguns pensaram que ele fosse cair. Outros imaginaram que fora acometido de um súbito acesso e se iria jogar ao chão, espumando e contorcendo-se. Sua roupa flutuava em torno do corpo emaciado. O Rei-Arconte ficou esperando, num silêncio impenetrável. Péricles simulou que nada via. Estava examinando suas anotações. Rapidamente, olhou para alguns membros do governo, que sabia que o odiavam e ali tinham ido para um massacre.
O rosto assumira uma expressão terrível e muitos se remexeram, apreensivos. Eram todos homens poderosos.
Dédalo finalmente encontrou a voz, surpreendentemente aguda. Apontou um dedo para Anaxágoras e disse:
— Acuso esse homem de impiedade e heresia, de corrupção da nossa juventude! Tenho ouvido falar muito dele, dos rapazes inocentes e outros discípulos que ele vem corrompendo! Meu coração e minha alma ficam abalados de raiva e ultraje e também de temor dos deuses que ele tanto tem insultado!
— Deve ser mais específico — disse o Rei-Arconte, em voz firme. — O que sabe ter sido dito pelo prisioneiro?
— Que os deuses não existem, que são fantasias de neblina, que não possuem um ser! — A voz estridente descera agora para um balbucio. — Ele negou a verdade dos deuses! Ouvi com os meus ouvidos e juro pelos nomes sagrados de Castor e Pólux!
Os inimigos de Péricles simularam horror e um gemido alto se espalhou pelo salão, com homens a se entreolharem, atônitos e revoltados. Péricles sorriu ligeiramente, com um desprezo óbvio por essas criaturas.
O Rei-Arconte fez um sinal para Péricles, que lançou um olhar fulminante a Anaxágoras, o qual parecia prestes a falar. Depois, Péricles sorriu e sacudiu a cabeça, como se achasse que a acusação era tão absurda que só servia para provocar boas risadas.
Sua voz, forte, firme e nítida, alteou-se quando ele se virou inteiramente para Dédalo. As sobrancelhas se ergueram, numa reação simulada de surpresa, e o sorriso era indulgente, como o que se costuma oferecer a uma criança ou a um velho senil. Todos estavam atentos.
— Meu caro Dédalo, meu honrado Dédalo, certamente não acredita que os deuses sejam de carne e osso, feitos de matéria, não passem de homens ampliados, não é mesmo? Ou será que acha que os deuses são mortais e sofrerão a morte?
— Não! — gritou Dédalo, freneticamente.
— Não? — repetiu Péricles, em tom de surpresa. — Mas é justamente o que acaba de insinuar. Homero disse que os deuses cavalgam nos ventos, são frequentemente invisíveis e impalpáveis, podem passar através de matéria e substância, como se matéria e substância não existissem, podem trocar de forma e tamanho. São proteicos. Nega isso?
— Não! — gritou Dédalo, furioso.
— Não? Então concorda com Anaxágoras em que a Divindade é Mente imaterial e que todas as coisas aparentes nela estão contidas. Pois é isso o que Anaxágoras diz e devo declarar que também já o ouvi muitas vezes.
Dédalo não podia falar. Péricles acrescentou, gentilmente:
— Concorda com Anaxágoras nisso?
Dédalo continuava sem poder falar, estava novamente tremendo. O Rei-Arconte disse firmemente:
— Responda, Dédalo.
Dédalo retorcia as mãos. Os olhos corriam de um lado para outro, freneticamente. Péricles disse:
— Por acaso você, meu caro amigo, difama os deuses e estaria querendo rebaixá-los à sarjeta terrena onde todos nós nos espojamos?
Dédalo falou então, com a voz rouca:
— Se é isso o que Anaxágoras diz, não posso deixar de concordar com ele.
— Foi isso o que pensou quando Anaxágoras comparou os deuses a uma neblina radiante, com a mais profunda e subjetiva adoração que um homem pode sentir, e quando ele deixou implícito que não estão em nosso contexto de existência? Achou que ele estava negando a existência dos deuses?
Como Dédalo novamente não conseguisse falar, Péricles sorriu-lhe gentilmente.
— É tudo uma questão de semântica. Não é culpado de nada, meu caro amigo. Todos nós interpretamos erroneamente uns aos outros, pois as palavras são como pedras incômodas em nossas bocas.
— Deseja retirar a acusação de impiedade, Dédalo? — indagou o Rei-Arconte, a barba por cima da boca movendo-se ligeiramente, como num sorriso.
— Somente nesse caso — murmurou Dédalo, as faces encovadas ainda mais pálidas do que normalmente.
Péricles deixou que o silêncio no salão se acentuasse, enquanto parecia meditar gentilmente sobre Dédalo, que o fitava com um ódio impotente, se bem que intenso. O Rei-Arconte disse ao júri:
— A acusação de impiedade... de que os deuses não existem... foi retirada. — Virou-se então para Dédalo, indagando com alguma rispidez: — Pretende manter as outras acusações?
Dédalo fez um esforço para se recuperar, como um abutre prestes a atacar a carniça. Apontou para Anaxágoras, que parecia estar muito longe dali, meditando.
— Essa criatura declarou que os eclipses não são manifestações sobrenaturais dos deuses, mas apenas fenômenos naturais. Por isso, não são presságios, como nossos mestres religiosos ensinaram! Chegou mesmo a declarar que podem ser previstos!
Os olhos claros de Péricles se arregalaram de espanto. Olhou para Dédalo, com a expressão de quem está ouvindo coisas incríveis. E disse:
— Mas Anaxágoras previu recentemente um eclipse da Lua.
Dédalo gritou estridentemente:
— Quem pode encontrar uma explicação para isso? Teria sido por acaso? Ou alguma magia tenebrosa? Será que algum demônio maligno sussurrou-lhe a informação? Somente ele nos pode dizer!
Péricles sacudiu a cabeça, mantendo a mesma expressão de incredulidade. Virou-se para o Rei-Arconte.
— Senhor, nós, gregos, nos gabamos, com alguma razão, de que vivemos numa era nova e grandiosa, não apenas das artes e da filosofia, mas também da ciência. Peço a Deus, com a devida reverência por Atenas, que os egípcios e caldeus não tomem conhecimento deste julgamento e das palavras de Dédalo! Certamente se ririam do que classificariam de nossa presunção de glória e razão!
Murmúrios irados percorreram o salão, olhos furiosos se concentraram em Péricles, homens trocaram olhares ultrajados. O Rei-Arconte permaneceu calmo. Cofiou a barba, pensativo, e disse:
— Nobre Péricles, gostaríamos que esclarecesse melhor o que acabou de dizer.
O silêncio voltou a reinar. Centenas de olhos furiosos estavam fixados em Péricles.
— Senhor, os egípcios e caldeus, através de seus sábios e cientistas, vêm prevendo eclipses, com exatidão praticamente total, há centenas de anos. Antes de vir para Atenas, Anaxágoras estudou com esses cientistas.
Anaxágoras fez um movimento rápido, como se fosse protestar. Mas Péricles ignorou o gesto e alteou a voz, agora grave, quase confidencial, um tanto suplicante:
— Vamos rezar para que não ouçam falar deste absurdo. Já se mostram invejosos de tudo que estamos realizando aqui. Não vamos dar-lhes razões para escarnecerem de nós, chamarem-nos de bárbaros, como tantas vezes fizeram no passado. Seus cientistas ficariam impressionados com a ignorância... de Dédalo. Mas devemos desculpá-lo. É um homem idoso, que não pôde usufruir os proveitos de uma educação mais ampla em ciências.
O Rei-Arconte sorriu quase imperceptivelmente. O salão estava em silêncio. Péricles continuou:
— Por isso, não vamos espalhar o que foi dito nesta augusta câmara, pois certamente todos os gregos ficariam embaraçados, e com toda a razão.
Ele baixou os olhos, como se estivesse envergonhado, enquanto um murmúrio intenso se elevava dos homens reunidos, um tanto irritados, mas também apreensivos.
— Bruxaria! — gritou Dédalo, estridentemente. — É apenas bruxaria!
Péricles sacudiu a cabeça, tristemente.
— É o que têm dito, ao longo dos tempos, os homens incultos, quando confrontados com qualquer coisa que vai de encontro a seus preconceitos, sua ignorância. Mas nós somos gregos. Alcançamos a Era do verdadeiro Esclarecimento e o que nossos antepassados consideravam como verdade vemos agora como superstição ou obtusidade.
— Heresia! — gritou Dédalo, sacudindo os braços.
Péricles voltou a falar, com uma extrema firmeza:
— O que é heresia? Será o clamor impotente daqueles que não sabem o que é a verdadeira heresia? A verdadeira heresia é a que se recusa a aceitar a verdade, a que limita a capacidade de pensar do homem, a que subestima nossa natureza, a que nega que somos mais do que mero animais, a que está disposta a nos fazer cegos para qualquer conhecimento e nos impedir de aumentar nossa estatura, a que se posta diante dos portais do conhecimento com uma espada selvagem, a que não nos permite entrar nos templos para contemplar as manifestações da Divindade, e que teme a luz e declara que é escuridão e uma ilusão! Na verdade, a heresia é a negação do próprio Deus! Tudo que inibe e estorva a expansão do conhecimento humano, a sabedoria humana, a reverência humana, a realização humana, a consciência humana de Deus e a glória humana é heresia! Heresia é o que reprime a alma e o espírito do homem, coisas que emergem da respiração de Deus! Heresia é o que nos força a rastejar na alma e a não levantar a cabeça para os céus! Heresia é o que preenche as pegadas dos deuses com lama e declara que todas as coisas estão mortas, que nada tem consciência, muito menos a mente humana! Heresia é o que nos leva a adorar a pedra e não o que a pedra representa, o Ser Divino!
A voz eloquente de Péricles mantinha a todos imobilizados, como a pedra de que ele falara. Ele virou-se para Dédalo, com um gesto de repúdio, como se se esforçasse a fundo para controlar sua indignação.
— É você, Dédalo, quem se está mostrando um herege, pelas palavras que aqui pronunciou! Está querendo envolver a alma da Grécia em argila e destruir todas as suas características! Se isso não é heresia contra Deus e contra o homem...
Péricles parou de falar de súbito, obviamente extenuado. Podia-se ouvir a sua respiração ruidosa em todo o salão. Dédalo encolheu-se todo. Não compreendera a maior parte do que Péricles dissera, mas sentia que estava agora correndo algum perigo, podia perceber olhos irritados e desconfiados que se fixavam nele, de todos os lados. O Rei-Arconte alisou a barba, o olhar posto no velho.
— Fale, Dédalo.
Péricles ergueu a mão, numa atitude respeitosa.
— Senhor, ele é um ancião e sua mente está confusa, não é capaz de reconhecer o que é heresia. Não vamos esquecer a misericórdia, nem a compreensão. Ele não conta com os proveitos da era em que vivemos em Atenas. Sua juventude foi reprimida e estreita. Aceitou a palavra de homens ignorantes como a verdade, as informações de mestres estúpidos como conhecimentos sólidos. Devemos condená-lo pelo que ele não sabia, pelo que não lhe foi ensinado? Se ele ofendeu a Deus, podemos estar certos de que Deus tem compaixão, compreendendo os limites da mente de Dédalo.
Dédalo cerrou os punhos encarquilhados e gritou, inclinando-se na direção de Péricles:
— Cuspo em você, seu mentiroso ignóbil, que pode confundir com palavras as mentes dos homens de bem!
Péricles nunca pareceu tão distinto e altivo quanto no momento em que limpou a saliva do rosto. Lançou um olhar suplicante para o Rei-Arconte, que esfregou os lábios para conter o sorriso involuntário que começara a entreabri-los e disse em seguida a Dédalo, com extrema severidade:
— O que acabou de fazer é imperdoável. Somos homens racionais. Estamos aqui reunidos para ouvir argumentos e não para cuspir nos outros como crianças mal-educadas. Se isso acontecer novamente. Dédalo, ordenarei à polícia que o prenda.
Como todos respeitavam o Rei-Arconte, não puderam deixar de sentir alguma irritação contra Dédalo, embora relutantemente. Até mesmo os adversários de Péricles sentiram alguma admiração por sua habilidade e eloquência. Dédalo voltou a se encolher, as veias roxas latejando-lhe visivelmente nas têmporas. Quase choramingou:
— Ó Rei-Arconte, perdi o controle na minha ira sincera contra esse Anaxágoras e contra aquele que se atreve a ocupar o mais alto cargo de Atenas, ao mesmo tempo em que profana seu nome e seus deuses.
Um ligeiro murmúrio divertido espalhou-se entre os membros do júri, sorrisos se estamparam em muitos rostos. O Rei-Arconte decidiu:
— Vamos continuar. Qual é a sua próxima acusação, Dédalo?
O frágil peito de Dédalo arfou violentamente. Ele parecia prestes a expirar. Mas o olhar que lançou a Anaxágoras era estranhamente violento.
— Ouvi-o dizer, com meus próprios ouvidos, que na Grécia os homens sábios falam, mas são os tolos que decidem! Difamou nosso governo...
Péricles estremeceu de maneira tão exagerada e assumiu uma expressão tão irritada que Dédalo parou de falar. Péricles virou-se então para Anaxágoras, com uma expressão de censura. Todos ficaram imediatamente atentos.
— Meu caro amigo — disse ele a Anaxágoras — não posso acreditar que tenha feito uma coisa dessas, não posso crer que não tenha dado o crédito por essas palavras notáveis a seu autor, Anaxarsis, o filósofo cítio, que por elas recebeu elogios de seu querido amigo Sólon, o sagrado pai de nossas leis incomparáveis! Pois Sólon concordou plenamente, embora com profunda tristeza, com as palavras pronunciadas por Anaxarsis. Como é possível que não tenha atribuído tais palavras a Anaxarsis?
— E de fato dei-lhe o crédito — declarou Anaxágoras, um brilho extremamente divertido nos olhos azuis, — Mas é provável que Dédalo jamais tenha ouvido falar de Anaxarsis.
Péricles cobriu os olhos com a mão, sacudindo a cabeça num gesto pesaroso. Quando baixou a mão, havia lágrimas de verdade em seus olhos. Olhou para o júri e depois para toda a Assembleia, que já apresentava sinais de intenso constrangimento.
— Infelizmente — disse ele — essa augusta Assembleia recebeu outro sinal de lamentável ignorância. E mais uma vez suplico que sejamos compassivos!
Dédalo ficou quase louco de raiva. Chegou mesmo, a bater nas próprias faces com os punhos cerrados. Alguns membros do júri riram, involuntariamente, até serem detidos por um olhar severo do Rei-Arconte.
— Não vamos permitir nenhuma leviandade aqui. Este é um tribunal de justiça. — Ele olhou para Péricles e acrescentou: — E que foi fundado pelo sagrado pai de nossas leis incomparáveis.
Os amigos de Péricles sufocaram risadas de alegria, enquanto os membros do júri e do governo assumiam expressões graves, muitos com uma intensa raiva interior contra Péricles e Anaxágoras.
O Rei-Arconte deixou patente o seu cansaço, antes de dizer para Dédalo:
— Apresente sua próxima acusação.
— Pederastia! — gritou Dédalo, em voz esganiçada. — O pior dos crimes contra a natureza!
Ninguém se mexeu. Mas Péricles virou-se e, lentamente, com olhares gelados, fixou um homem após outro; cada homem que recebia o seu olhar parecia encolher-se visivelmente. E nenhum deles foi capaz de desviar-se do olhar frio e implacável de Péricles. Muitos ficaram quase tremendo de terror.
— A pederastia... — murmurou Péricles, com extrema repulsa. — Não resta a menor dúvida de que cada homem aqui reunido se sente horrorizado só de ouvir a palavra, recordando a sua própria virtude. Não resta a menor dúvida de que cada homem presente é inocente de um ato desses e estremece só de ouvir falar dele.
O próprio Péricles estremeceu ostensivamente. Depois, pegou suas anotações e examinou-as cuidadosamente, alteando as sobrancelhas até a beira do elmo e deixando escapar entre os lábios semicerrados murmúrios de choque e repulsa. E cada homem, observando-o, sentia seu terror aumentar, imaginando quais os nomes que constariam daquelas anotações nas mãos de Péricles, rezando para que o seu próprio não estivesse ali incluído. O Rei-Arconte contemplou os rostos desses homens e rugas de tensão surgiram-lhe em torno dos olhos.
Péricles levantou finalmente a cabeça e olhou para Dédalo, indagando:
— E quem foi o eromenos (amante masculino adolescente) de Anaxágoras?
Os olhos frenéticos de Dédalo imediatamente se fixaram num dos arcontes, que tinha dois amantes adolescentes masculinos. O que viu no rosto do amigo fê-lo estremecer, pois o outro arconte era um homem de vingança implacável, quando ofendido.
Péricles repetiu a pergunta pacientemente e depois acrescentou:
— Acusou Anaxágoras de corromper nossa juventude e disse que ele é o erastes (amante masculino mais velho de um adolescente) de pelo menos um jovem. É verdade que nossas leis proíbem a pederastia, a qual floresce abertamente em Esparta. Mas somos atenienses e não admitimos perversões. Contudo, tenho ouvido rumores... Mas vamos continuar com Anaxágoras. Disse que ele é o erastes de um jovem ou jovens. Mas não enunciou qualquer nome, Dédalo, apesar de toda a nossa paciência. E não será possível que conheça outros entre nós que pratiquem a pederastia? Se assim é, tem a obrigação de indicá-los imediatamente!
Ele olhou para o Rei-Arconte, com extrema seriedade.
— Não é dever dele acusar também os outros do crime de que acusa Anaxágoras?
— É de fato um dever dele — confirmou o Rei-Arconte.
O medo quase levou Dédalo a desmaiar ali mesmo, pois sentia pelo menos uma dúzia de olhos ameaçadores fixados nele. Tentou umedecer os lábios pálidos, mas não conseguiu falar.
— Se um homem acusa outro homem de um crime e enuncia seu nome, sabendo que o mesmo crime foi também cometido por outros de suas relações, então deve indicar a todos, por uma questão de justiça — disse Péricles. — Não é isso mesmo, senhor?
— É a lei — declarou o Rei-Arconte, olhando para Dédalo e acrescentando: — Se conhece o nome de qualquer eromenos de Anaxágoras, fale agora... e diga também os nomes de todos aqueles que são culpados do mesmo crime.
A cabeça de Dédalo baixou de encontro ao peito.
— É possível que se trate apenas de um rumor...
— Um tribunal de justiça não é lugar para rumores — disse o Rei-Arconte, — Formulou uma calúnia infame contra Anaxágoras, o que não pode deixar de ser punido. Por isso, está multado em cinco talentos, Dédalo.
Dédalo ficou totalmente atordoado e o Rei-Arconte acrescentou:
— Estive observando o seu semblante. Acompanhei seus olhos e tive a impressão de que conhece homens aqui presentes que são culpados do crime de que acusou Anaxágoras. Pois diga agora os nomes deles.
Foi nesse momento que o arconte de vingança implacável se levantou os trajes a farfalhar, e fez uma reverência para o Rei-Arconte.
— Senhor, meus companheiros arcontes e eu chegamos à conclusão de que tudo que Dédalo disse aqui não passa de calúnia, tolices absurdas de um velho senil e patético.
O Rei-Arconte fitou-o em silêncio por um longo tempo, depois olhou para diversos outros, que tentaram evitar-lhe o olhar. E finalmente disse:
— Concordo plenamente, Hipérbolo. Desperdiçamos horas preciosas de nosso tempo aqui. Mas, quando alguém na posição de Dédalo faz acusações imprudentes contra outro homem, somos compelidos a escutá-lo. Afinal, ele não é um arconte? — Fez uma pausa, antes de dizer, insinuantemente: — E não somos todos homens honrados?
Ele deixou que o olhar percorresse lentamente os membros do júri, antes de indagar:
— A que conclusão chegaram?
Diversos membros do júri se levantaram e disseram com visível relutância:
— Concordamos em que Anaxágoras não é culpado de nenhuma das acusações formuladas por Dédalo. Não aprovamos a conduta de Anaxágoras, mas ele não cometeu qualquer crime,
O Rei-Arconte virou-se em seguida para Péricles:
— Tem mais alguma coisa que gostaria de dizer, Péricles, filho de Xantipo?
Péricles suspirou, enxugando o suor inexistente da testa. Dava a impressão de estar exausto. Dirigiu-se a toda a Assembleia, mas somente o Rei-Arconte e Anaxágoras perceberam a ironia em sua voz ressoante:
— Sempre tive o maior orgulho, como Chefe de Estado, da nobreza e do julgamento equilibrado e imparcial dos homens de Atenas. Somos todos apenas humanos, mas de vez em quando nos erguemos a alturas grandiosas, assim como a acrópole se está agora elevando. O que lá existe agora, o que está sendo construído, é apenas um reflexo débil, se bem que bonito, da alma ateniense, a glória dessa alma. Que nenhum homem, agora ou no futuro, queira denegrir Atenas, sua integridade, sua paixão e reverência sagrada pela beleza, por suas artes, seus cientistas e filósofos. Mas, acima de tudo, vamos fazer com que admirem, em todas as partes deste mundo, o espetáculo de nossa inigualável imparcialidade, de nosso apego aos processos ordenados da lei e da justiça, que nos foram legados por Sólon. Onde mais existem tais processos, em qualquer lugar deste mundo? Que nação pode ser comparada à nossa? Abundam os despotismos, as tiranias que não permitem a um homem falar a verdade ou erguer a cabeça como um homem de verdade e não como um escravo, extorquindo até a última moeda em tributos do seu povo impotente.
"Mas em Atenas um homem é livre. Suas opiniões podem não ser acatadas ou levadas em alta conta, mas ele pode enunciá-las... como permitiram que Anaxágoras o fizesse. Refutaram as calúnias com esse vigoroso sonho de justiça que somente os atenienses possuem. Reconheço que há alguns entre nós que possuem a mácula dos impulsos e anseios de um déspota. Mas são apenas uns poucos. Bem poucos mesmo. Mas que os deuses nos livrem desses poucos!
Até mesmo seus adversários sentiram os corações se inflarem de emoção diante daquela lisonja sutil, experimentando alguma gratidão por Péricles, que assim o elevara na própria estima de cada um. Por um breve momento, chegaram a amá-lo e esquecer sua inimizade. Quanto aos homens que haviam conhecido o terror, sentiram-se aliviados e agradecidos por livrá-los das acusações abertas. Alguns disseram para si próprios: "Aquele idiota do Dédalo quase nos destruiu. Temos que adverti-lo para refrear sua língua daqui por diante."
O Rei-Arconte ordenou que as correntes fossem retiradas dos pulsos e tornozelos de Anaxágoras, que olhava para Péricles com um sorriso um tanto estranho. O Rei-Arconte levantou-se em seguida e todos lhe fizeram uma reverência, até o próprio Péricles, que era o Chefe de Estado. O Rei-Arconte retirou-se e no salão se levantou um zumbido de vozes, como se fosse uma tempestade de abelhas. Ninguém prestou atenção a Dédalo, que se retirou, como uma sombra esquelética, a cambalear.
Péricles saiu junto com Anaxágoras.
— Vamos até o meu gabinete para bebermos alguma coisa, Anaxágoras. Estou sentindo a garganta ressequida.
— Não duvido, meu caro amigo, você tem condições de desempenhar os papéis mais difíceis em qualquer palco.
— Essa não! Não falo sempre a verdade?
— Não — respondeu Anaxágoras, sorrindo, para no instante seguinte voltar a ficar sério e acrescentar: — Mas tenho a impressão de que, infelizmente, o caso ainda não terminou de todo.
Naquela noite, o infeliz Dédalo, consumido pela raiva e frustração, teve um ataque, vindo a morrer antes do amanhecer. E amaldiçoou Péricles até o fim.
Dejanira escreveu para o seu filho que estava em Chipre: "Meu querido Calías, quanta calamidade se abateu sobre esta casa! Meu amado pai, seu avô, morreu em seu leito, em nossos braços, chorando. Infelizmente, foi a fúria dele contra Péricles que o matou." Ela relatou em seguida o que Dédalo balbuciara, incoerentemente, antes de sucumbir.
Ao receber a carta, Calías ergueu a mão num juramento e disse — Seremos vingados! Aconteça o que acontecer, seremos vingados!
Capítulo 10
Sócrates disse a Péricles:
— É claro que isso não é o fim.
— Mas não vamos ficar pensando nos problemas antes de surgirem. Cada dia que vivemos é um dia a mais que ganhamos.
— Nós, seus amigos, estamos preocupados por você, Péricles.
— Pois eu também estou — disse Péricles, rindo.
— Você é um orador — comentou Zênon de Eleia.
— Não tive um excelente mestre... você?
— Ah, mas que mundo! — exclamou Fídias.
— E quando não foi assim? Sempre foi e sempre será um planeta perigoso e precário, invadido pelo mal e pela competição acirrada, inveja, morte, fúria, devastação, mentiras e ódio. A natureza humana é, sempre foi e sempre será, detestável e inalterável. Somos uma espécie monstruosa.
Péricles olhou para os amigos e acrescentou:
— Com raras exceções. Só que vocês estão neste mundo, mas não pertencem a ele. Há uma diferença. As eras futuras haverão de aclamar os nomes de vocês, esquecendo que foram proscritos entre seus contemporâneos, assim como irão perseguir seus próprios contemporâneos que lhes forem superiores, deixando-os para serem louvados pelas gerações subsequentes.
Zênon de Eleia comentou, tristemente:
— Está-se tornando mais cáustico e amargurado com o tempo, meu caro Péricles. Mas também não é um filósofo.
— Graças aos deuses! É justamente por causa disso que não vou perecer!
Os inimigos dele no governo recusaram-se a sancionar o nome de seu filho ilegítimo, o pequeno Péricles, negando a inscrição desse nome nos registros.
Aspásia era uma mulher inteligente o bastante para não tentar apaziguar Péricles com o substituto metafórico de uma teta com mel, como se acalma um bebê irritado ou assustado. Ela disse:
— Nosso filho é Péricles, em nossas mentes e corações; assim será chamado, entre nós, em nossas casas. A maldade do governo é inevitável, está sempre tentando punir os adversários ou aqueles que o criticam. Mas não devemos permitir que isso influa em nossas vidas. Não podemos esquecer quem e o que é desprezá-lo.
— Infelizmente, o governo tem o poder de difamar, exilar, depor e até mesmo matar.
Péricles sentia-se ao mesmo tempo humilhado e furioso com o insulto. Sabia agora por que alguns homens como ele desejavam tornar-se ditadores, quando mortificados, irritados ou desafiados em sua paciência por funcionários inferiores do governo. Sabia que seu próprio governo e muitos homens das turbas estavam-no acusando de conspirar para se tornar um monarca ou pelo menos um ditador. Contou o fato a Aspásia. Ela acariciou-lhe o rosto com a mão suave e sorriu.
— Isso também tem seu valor, pois somente quando funcionários subalternos do governo e as turbas se unem para adular um homem é que se pode chegar ao despotismo.
Péricles riu.
— Ou seja, estou sendo salutarmente contido! É verdade que sinto às vezes um impulso quase irresistível de passar por cima das leis e regulamentos dos funcionários e burocratas com uma atitude firme e implacável, que certamente iria intimidá-los. Mas os adversários não apenas podem ser irritantes e insultuosos, mas também podem levar um homem a fazer uma pausa para se avaliar e controlar, por mais desagradável que isso possa ser.
Aspásia vivia agora quase que o tempo todo na Casa de Péricles, que temia pela segurança dela, desde o nascimento do filho. Voltaram a oferecer jantares para os amigos, com as conversas prolongadas e estimulantes que os caracterizavam. Somente Aspásia percebeu que Anaxágoras andava agora estranhamente silencioso e estremecia de vez em quando, num sobressalto, quando alguém lhe dirigia a palavra. Desde o julgamento e absolvição que Anaxágoras se tornara melancólico, embora continuasse a manter sua academia e a falar nas colunatas. Mas era como se alguma virtude vital dele houvesse sido fatalmente atingida ou se tivesse perdido, A cada vez que o via, Aspásia se tornava mais preocupada e aflita, pois Anaxágoras estava envelhecendo rapidamente. Havia ocasiões em que suas mãos tremiam. Corriam rumores de que vinha sendo escarnecido e ameaçado nas ruas mais do que habitualmente, que sua pequena e modesta casa fora apedrejada. Se era verdade, Anaxágoras não fez qualquer comentário.
Xantipo, soldado entusiasta, e Paralo, ávido estudante, amavam o irmão menor e brincavam com ele em todas as oportunidades, comentando sempre o quanto se parecia com o pai adorado. O menino tinha um temperamento alegre, como Aspásia, possuindo também a altivez do pai. Era forte e vigoroso e Xantipo disse:
— Ele será um grande atleta para os Jogos Olímpicos. E também um grande soldado.
Os rapazes tinham agora permissão para participar dos jantares e conversas na casa do pai. Descobriram que compareciam não apenas heteras bonitas e inteligentes, mas também as esposas mais esclarecidas de muitos amigos de Péricles. Os jantares, porque Aspásia os presidia, estavam-se tornando cada vez mais famosos em toda Atenas. Centenas de esposas se rebelaram contra os maridos que as mantinham na subserviência e centenas de filhas exigiram que lhes fosse dada uma educação igual à dos irmãos. As jovens que tinham cursado a escola de Aspásia frequentemente recusavam os maridos que lhes eram escolhidos e reivindicavam o direito de fazerem essa escolha pessoalmente. Mas não encontraram muita oposição; afinal, seus pais já haviam demonstrado que estavam dispostos a aceitar as inovações ao mandarem-nas para a escola de Aspásia. A influência dessas jovens, no entanto, estendeu-se às amigas, que não haviam tido as mesmas oportunidades, o que deixou ultrajados os pais mais conservadores.
No teatro, Péricles estava sendo dissimuladamente atacado, para divertimento até mesmo dos seus partidários, Cratinus, o poeta e teatrólogo, fez um ator declamar:
"Eis que chega Péricles, nosso Zeus de cabeça de cebola.
Onde terá comprado o chapéu? Qual o pretexto?
É a nova cobertura, ao estilo Odeon,
Que as tempestades de censura destelharam."
Não foi a única ocasião em que ele comparou Péricles a Zeus, zombeteiramente, como estavam fazendo muitos outros poetas e teatrólogos. Em Chiron, Cratinus escarneceu:
"A discórdia e o velho pai Cronos foram para a cama
E geraram o mais poderoso dos tiranos,
A quem os deuses chamam Cabeça-de-nós-todos."
(Era uma referência à cabeça comprida e ao elmo que Péricles sempre usava.)
Péricles, por mais que desprezasse seus companheiros de aristocracia e as turbas do mercado (os quais pareciam ter muitas coisas em comum), não tinha o menor desejo de se tornar um tirano, nem mesmo para esmagar seus adversários e os que dele escarneciam. Em sua raiva secreta, podia sentir vontade de atacá-los e ordenar que se abstivessem de suas iniquidades, dominando-os por completo. Mas suas emoções jamais se convertiam em ação. Sempre as controlava. Se muitos achavam estranho que os aristocratas de Atenas, exigentes e discriminadores, e as turbas malcheirosas estivessem de acordo, o mesmo não acontecia com Péricles. Os aristocratas (embora figurativamente e às vezes literalmente tapassem os narizes) associavam-se em particular às turbas. Fingiam deplorar a "tirania" de Péricles, que se opunha a todas as leis que concedessem gratuitamente pão, carne, queijo e habitação às turbas, exigindo que todos trabalhassem para ganhar o sustento.
— Ele não tem compaixão dos infelizes — diziam os aristocratas aos líderes das turbas. — Não tem misericórdia dos despojados e humildes. Despreza os que enfrentam necessidades e gostaria que morressem de fome. O que é o tesouro e todo o ouro de um povo em comparação com uma única vida humana? Os impostos não devem ser usados para reduzir os sofrimentos, doenças e fome do povo? Não somos todos iguais em nossa humanidade? O que aflige Péricles, na carne e na barriga, também aflige todo o povo de Atenas. Ele, porém, tem médicos à sua disposição, todos os medicamentos, boa comida, abrigo sólido. Mas vocês, pobres amigos, não têm nada. Ele constrói templos espetaculares e com isso desperdiça o dinheiro que deveria ser usado para minorar os sofrimentos do povo. Enquanto uma estátua de ouro e marfim está sendo erguida no Partenon, os filhos de vocês choram por pão e vocês desejam satisfazer as mais comezinhas necessidades da vida e não o conseguem. Quem pode comparar a casa de Péricles com as choupanas de vocês? Nossos corações choram por vocês.
Nenhum membro das turbas aparentemente notava que seus amigos, os aristocratas, não se separavam de um único dracma para aliviar o suposto estado de miséria. Quando a influência de Hipócrates persuadiu os médicos de que se deviam abrir enfermarias para os pobres, os "amigos dos humildes" se opuseram, pois isso lhes iria custar dinheiro em aumento de impostos. Quando Péricles propôs que as choupanas infectas dos pobres fossem destruídas e em seu lugar construídas habitações mais decentes, os aristocratas levantaram um tremendo clamor contra a sua "prodigalidade e o desejo hipócrita de ser conhecido injustamente como humanitário".
Péricles, amargurado, compreendia perfeitamente os motivos das objeções dos aristocratas ricos. Estavam usando as turbas contra ele, para removê-lo do cargo. Se aqueles traidores pomposos alcançassem seu objetivo e se tornassem onipotentes, ele costumava dizer, iriam imediatamente escravizar e subjugar os pobres, pelos quais fingiam ter respeito e compaixão. Eles, os amantes dos pobres, os defensores dos humildes, ansiavam pelo poder acima de qualquer coisa. Em suas almas, detestavam o povo e o desprezavam.
Dia a dia, a fúria das turbas aumentava e se tornava mais clamorosa contra Péricles. Os aristocratas sorriam de felicidade. A classe média estava alarmada com a crescente hostilidade contra o homem que ela admirava e em que confiava tão profundamente. Sabia que Péricles era o homem que se interpunha entre ela e a exploração pelos indolentes e inúteis, entre ela e seus inimigos naturais, os ricos patrícios. Por isso enviava-lhe delegados, para manifestar o amor, a confiança e a fé que nele depositava. Embora não possuíssem grandes conhecimentos, os membros da classe média sentiam, através de seus instintos mais profundos, que sua destruição estava sendo tramada pelos aristocratas, por intermédio dos seus lacaios, as turbas. Se não sabiam que os aristocratas os chamavam de "arrivistas, inimigos da glória da Grécia e que iriam subjugá-la ao domínio de obtusos mercadores e lojistas", desconfiavam vagamente da verdade. Mas sentiam também, em seus espíritos fortes e resolutos, que se desaparecessem e os aristocratas assumissem a autoridade total, tendo as turbas como escravas, a Grécia passaria a ser dominada pelo despotismo.
Havia ocasiões em que Péricles indagava:
— Quem disse que o despotismo significava lobos por cima e chacais por baixo?
Ao que Aspásia respondia:
— Acho que foi você mesmo, querido.
Sombriamente, Péricles murmurava:
— Parece mesmo uma frase minha.
Os seus problemas intermináveis com Esparta e outras cidades-estado estavam aumentando, mas não tinha muito tempo para pensar neles, de tão obcecado que estava agora pela salvação de Atenas, a construção da acrópole e o dilema de seus amigos intelectuais. Seu governo mostrava-se apático e não oferecia sugestões nem ajuda, o que o deixou desconfiado. Esparta, julgando que ele se tornara fraco, ficava a cada dia mais agressiva e incitava outras cidades irmãs contra Atenas. Aspásia, que não sofria o tormento diário a que Péricles era submetido pelo governo hostil e pelos aristocratas, ouviu falar dos esforços de Esparta para se apropriar do comércio de Atenas e subjugá-la. Como Péricles se apresentava a ela e ao filho com sorrisos, abraços e gracejos, Aspásia tentou acreditar que ele tinha o controle seguro de todas as coisas. Targélia certamente teria sorrido ao saber disso e diria:
— As mulheres atribuem presciência aos homens a quem amam, o que pode ser um erro fatal.
Em meio a todas as suas preocupações, Péricles recebeu a visita de uma delegação da jovem cidade-estado da Itália, Roma, composta de representantes do seu Senado. Eram três romanos ansiosos e compenetrados, que desejavam uma "orientação para a criação de uma República perfeita e justa, como a que foi instituída pelo grande legislador, Sólon, e que transformou a Grécia na maravilha do mundo". Ao receber a mensagem comunicando a chegada iminente dos romanos, Péricles reagiu com amarga e cética hilaridade. Mas Aspásia disse:
— Por que desiludir esses homens honestos com a verdade? Deixe-os criarem sua república nos termos propostos por Sólon e talvez possam realizar o sonho que Atenas jamais conseguiu, talvez o sonho possa ser convertido por outras nações numa gloriosa realidade.
— Mas esses bárbaros romanos também são homens e inevitavelmente, apesar de todos os seus esforços, acabarão por se tornar corruptos e instituirão uma democracia, o primeiro passo para o despotismo.
Secretamente, Péricles sentia uma profunda compaixão pelos romanos e uma tristeza imensa diante das esperanças deles. Preparou-se para recebê-los com um respeito solene, a cerimônia devida. Isso provocou a inquietação e o desdém dos aristocratas, que comentaram:
— Ele se dispõe a homenagear bárbaros sem a menor tradição aristocrática, recebendo-os suntuosamente à custa dos dinheiros públicos, que provêm do bolso dos pobres,
Péricles assim falou à Assembleia:
— Estamo-nos rindo dessa pequena e ambiciosa cidade-estado da Itália. Mas quem sabe o que o futuro poderá trazer? Podem ser no momento apenas pequenos agricultores, fabricantes de vinhos e mercadores. Mas é possível que amanhã, se permanecerem diligentes, devotados, se honrarem a Deus, à humanidade, ao patriotismo e à justiça, adquiram também uma grande estatura.
Tais palavras divertiram intensamente muitos membros da Assembleia, dos arcontes, dos Onze e da Eclésía. Comentaram entre si:
— Ele está ficando senil. Os valores que exalta são os absurdos mesquinhos da classe média. Aparentemente não sabe que o mundo é agora sofisticado e que quase todos nós já nos conseguimos livrar das supostas virtudes que não passavam de preconceitos dos nossos humildes pais, os quais não desfrutavam de privilégios e não contavam com as vantagens de um amplo saber.
Com suprema complacência, consentiram em receber os bárbaros romanos com alguma deferência; afinal, não eram fidalgos educados e indulgentes? Como homens cultos, não poderiam insultar nem mesmo estrangeiros selvagens, que ansiavam por imitá-los.
— Ouvimos dizer que a aldeia deles é de merceeiros — comentou um homem.
Ao que Péricles respondeu:
— Os merceeiros são dignos de respeito. Não vamos desprezar os homens que trabalham. Nós, de Atenas, passamos a menosprezar o trabalho como algo apropriado apenas para os escravos. Mas posso garantir-lhes que mãos macias, sem calos, jamais construíram uma nação ou a mantiveram. O trabalho é o fundamento da grandeza e aquele que o nega não vale o pão que come.
Péricles foi pessoalmente receber os romanos no porto, em traje de cerimônia, com uma guarda de honra sob o comando de seu oficial de confiança, Ífis. Quando os três romanos deixaram a embarcação, ouviu-se o rufar de tambores e o soar de numerosas trombetas. Péricles adiantou-se, fez uma reverência e depois estendeu a mão a cada um dos romanos. Seus olhos argutos prontamente os examinaram e ele sentiu um impulso afetuoso de aprovação. Eram homens baixos, mas corpulentos, não eram gordos, embora fossem musculosos, em torno dos quarenta anos. Tinham os rostos fortes e o semblante compenetrado, nariz grande, olhos escuros, lábios firmes e cheios, as mãos calosas de homens acostumados ao trabalho. Os cabelos estavam cortados rente, os trajes eram sóbrios, não usavam adornos. Pareciam camponeses, pois os rostos estavam curtidos pelo sol e os ombros eram fortes. Usavam sapatos simples de couro, toscamente fabricados, mas resistentes. Péricles percebeu a inteligência evidente nos olhos deles, embora constatasse também, pelas expressões sinceras, que careciam do humor refinado dos atenienses. Cada um carregava um pequeno baú e não tinham séquitos. Andavam em passos firmes, como homens que trabalhavam a terra, que suavam no labor honesto, guiando charruas e construindo casas. Eram homens imbuídos de propósito e determinação e Péricles imediatamente sentiu confiança neles. Era óbvio que se tratava de camponeses.
Levou-os para sua casa em seu carro grande, provido de toldo e puxado por quatro cavalos árabes brancos, com arreios de prata. Os três romanos a tudo observavam com olhos sérios e alerta, não procuraram fingir que não estavam impressionados enquanto o carro passava por casas espetaculares e elaborados prédios do governo. Ao vislumbrarem a acrópole e o recém-concluído Partenon, brilhando intensamente ao sol da manhã, deixaram escapar murmúrios audíveis de admiração. Não conheciam o grego muito bem e suas vozes soavam ásperas e roucas, como as vozes de homens acostumados a chamar o gado e os porcos. Possuíam a dignidade genuína de homens simples que se estimam a si próprios, sem qualquer vaidade, que honram a si próprios e a seu país. Péricles gostava deles cada vez mais, a cada momento que passava. Ia apontando os locais de interesse histórico. A princípio, os romanos se mostraram um tanto reservados com ele, como se sentissem estar na presença de um homem superior. Mas a atitude de Péricles, a gentileza, o respeito óbvio por eles como homens dignos que eram, tranquilizou-os rapidamente e passaram a falar-lhe num espírito de igualdade, como membros de um governo. Não eram ignorantes. Em frases curtas e objetivas, demonstraram seu conhecimento da história de Atenas; estavam igualmente a par das civilizações do Egito e de outras nações orientais.
Em suma, eram como os homens que tinham outrora vivido na Grécia, orgulhosos e resolutos. Infelizmente, pensou Péricles, a tribo deles vai desaparecer, assim como também desapareceu a nossa tribo de agricultores; os filhos dos filhos deles irão desonrar-lhes a memória e os chamarão de simplórios.
Conheciam muita coisa a respeito de Esparta e fizeram perguntas. Péricles sorriu.
— Esta é uma ocasião auspiciosa e agradável para mim. Peço que não a anuviem.
Os romanos riram ruidosamente, uma risada franca, de quem sabia qual era o problema. E comentaram:
— Nós, romanos, também temos problemas com pequenas cidades-estado da Itália. Desejamos viver em paz e prosperar com o comércio, mas elas estão sempre a nos desafiar.
— É o que acontece com todos os homens — sentenciou Péricles, sem qualquer originalidade.
Falaram a Péricles de Cincinato, o Pai da Pátria, que deixara seus rebanhos e campos para defender Roma e dar-lhe um governo que todos pudessem reverenciar e respeitar.
— Ele saiu das campinas coberto de poeira, caminhando descalço por nossas ruas, a nobre cabeça bem erguida, a barba com pedaços de palha, o porte determinado de um homem que não se deixa desviar de seus princípios. Quando falava, era como se uma trombeta soasse, pois era um homem da verdade. Mesmo os homens malignos foram silenciados pelo som de sua voz, a voz da convicção e do fervor patriótico. Honrava os deuses com devoção, como deve fazer um homem de integridade. Afinal, o que pode destruir uma nação, se Deus estiver com ela?
Péricles tinha uma resposta mordaz para tal pergunta, mas absteve-se de formulá-la, por misericórdia.
— Somos um povo tribal — comentou um dos romanos, com evidente orgulho.
— Nós também o fomos — respondeu Péricles. — Mas agora somos complexos e urbanos. Em Atenas, cada homem é seu próprio filósofo.
Os romanos perceberam o sarcasmo na voz de Péricles e ficaram preocupados. Mas o sorriso dele novamente os tranquilizou. Acharam-no parecido com um deus e sua gentileza despertou uma reação de fraternidade em seus corações de lavradores. Sentiram uma simpatia imediata por Péricles, embora não soubessem explicar por quê. Começaram a falar dos filhos, dos pais a quem reverenciavam, até mesmo das esposas, que Péricles imaginou serem também frugais, simples e resolutas. Pensou no pai, Xantipo, na elegância dele, pensou na mãe, Agariste, que teria desprezado aqueles homens, pelo menos quando era mais jovem.
Os romanos perguntaram, com um interesse sincero, pela família de Péricles, que lhes falou então de seus filhos.
— O mais moço tem o meu nome e é ainda um bebê.
Ele ficou subitamente pensativo. Não podia falar de Aspásia como sua amante e de seu filho como ilegítimo, pois isso chocaria profundamente os romanos. Censurou a si mesmo por não haver pensado antes naquela emergência, pois já sabia que os romanos, embora respeitassem e amassem suas esposas, mantinham-nas segregadas e as amantes em segredo. Como era possível explicar-lhes Aspásia? Os romanos não ficariam na ignorância da existência dela por muito tempo, já que manteriam contato também com outros membros do governo. Assim, ele resolveu dizer:
— Tenho uma esposa maravilhosa, de inteligência excepcional. Mas os atenienses não a consideram minha esposa, pois é uma estrangeira, nascida em Mileto.
Péricles ficou ao mesmo tempo surpreso e satisfeito quando os romanos riram jovialmente e falaram das mulheres sabinas, que seus pais haviam sequestrado, levando-as para Roma e fazendo delas suas esposas.
— Até hoje — disseram eles — muitos romanos não reconhecem os que têm ascendência sabina como seus iguais. Os homens não são uns tolos?
— Mas claro! — exclamou Péricles.
Ele sentiu-se aliviado. Mas o que pensariam aqueles romanos de Aspásia, quando participassem de um de seus jantares? Como as esposas atenienses, as esposas romanas só podiam comer junto com os maridos quando estavam a sós. Como poderia explicar-lhes as heteras, pois certamente ouviriam falar das cortesãs ornamentais e instruídas? E saberiam também que Aspásia pertencera a essa adorável companhia. Péricles resolveu comentar:
— Minha amada esposa foi cumulada com o dote da inteligência e por isso teve uma educação esmeralda. Em consequência, tornou-se suspeita como uma mulher de caráter imoral.
Um romano hesitou e depois disse, com toda a franqueza:
— Tenho quatro filhos, pelos quais meu coração se regozija. Mas tenho também uma filha, que é a própria essência do meu coração. Meus filhos são bravos e valorosos, são soldados impávidos, mas suas mentes não têm muita profundidade. Minha filha tem o espírito de um homem e providenciei um preceptor para ela, embora minha esposa desaprove, sendo, como é, uma romana imbuída dos costumes antigos. Calábria, minha filha, jura que só se casará com o homem que escolher. Embora isso seja repreensível numa criança... — Ele fez uma pausa, com um brilho de orgulho nos olhos. — ... concordo plenamente com ela. Vi a mãe dela no mercado e amei-a imediatamente. Pedi o consentimento dela, depois que seus pais deram sua calorosa aprovação. Se minha esposa me tivesse repelido, eu me teria afastado, apesar do amor profundo que sentia e apesar de sua aparência deslumbrante. Mas Vênus foi generosa e seu filho, Cupido, alvejou o coração de minha esposa com a flecha do amor.
Péricles sabia que os romanos haviam mudado os nomes dos deuses gregos e compreendeu que seu hóspede estava-se referindo a Afrodite e Eros. Como anfitrião, ele disse:
— Sua esposa foi afortunada e sua filha deve ser uma verdadeira Minerva.
O semblante curtido de camponês corou de satisfação, mas o romano disse, um tanto timidamente:
— Ela não passa de uma criança...
Mas o que pensariam eles quando Aspásia os recebesse no átrio? Iriam considerá-la uma afronta, uma mulher avançada demais, a quem nenhum homem podia respeitar? Ao se aproximar da acrópole, os romanos soltaram exclamações de espanto e admiração, à visão da Atena Pártenos de Fídias, refulgindo com um fogo dourado, em augusta majestade, ao sol da manhã. Ficaram dominados por uma reverência profunda. Péricles comentou:
— É Minerva, a padroeira da nossa cidade.
Eles assentiram solenemente. A guarda de honra, a cavalo, trotava em torno do carro. As multidões paravam para aclamar o cortejo e muitos saudavam a Péricles, jovialmente, enquanto outros permaneciam em silêncio, as expressões irritadas. Isso surpreendeu os romanos, que estavam acostumados a ver o chefe do governo tratado com todo o respeito e reverência. Percebendo-o, Péricles disse:
— Nós, atenienses, somos sempre vigorosos e exuberantes em nossos sentimentos. É comum tratarmos abusivamente o Chefe de Estado, pelo menos em palavras. Mas não deixamos atormentar por isso, aceitando-o como uma prova de liberdade.
Contudo, era evidente que os romanos não aprovavam tal comportamento. Não se podia deixar de honrar o homem que fora eleito para o cargo mais alto da nação e somente um comportamento odioso podia negar-lhe tal honra. Um deles comentou, com certa severidade:
— Não se pode confundir liberdade com abuso. Se um cidadão não respeita seu governo, eleito por seus compatriotas, mesmo que não tenha sido com o seu voto, quem irá respeitar?
Como Péricles tinha uma atitude paradoxal em relação ao governo, especialmente o seu, limitou-se a assentir. A complexidade de seus pensamentos não seria entendida por aqueles homens de integridade total. Mas, infelizmente, pensou ele, os filhos de seus filhos terão outras opiniões. Isso é inevitável.
Ao chegarem à sua casa, que os romanos consideraram um palácio magnífico, possivelmente opulento demais, a julgar pelas suas expressões, Péricles ficou feliz ao constatar que Aspásia não estava no átrio. Ali estavam apenas o capataz e os escravos mais bem-dotados fisicamente, todos impecavelmente vestidos. Ah, não dei a Aspásia o crédito merecido por sua reserva, discrição e sensatez, pensou ele, com imensa ternura. A casa fora enfeitada com folhas de louros e coroas de flores, em homenagem aos hóspedes; podia-se ouvir a música e o canto suave de escravas invisíveis. Mais uma vez, ficou patente que os romanos julgavam tal recepção um tanto afetada. Péricles sorriu interiormente. O capataz conduziu os romanos aos aposentos que lhe haviam sido reservados. Péricles ficou imaginando qual seria a reação deles diante das cobertas de seda das camas, as delicadas estátuas de alabastro, os lampiões de vidro egípcios, os mosaicos maravilhosos, os tapetes persas, para não falar das fragrâncias exóticas e das paredes pintadas, mostrando ninfas e sátiros era poses um tanto livres. Na parede de um dos aposentos podia-se ver Afrodite e Adônis, unidos voluptuosamente, ambos nus. Péricles seguiu para os seus aposentos, rindo. Como desejaria ouvir os comentários escandalizados dos romanos.
Quando os romanos deixaram os aposentos que lhes haviam sido designados para virem novamente ao seu encontro, Péricles teve que fazer um tremendo esforço para não rir, pois as expressões deles eram visivelmente embaraçadas. Mas eram homens de boas maneiras, embora só recentemente adquiridas, e agradeceram a hospitalidade, apesar de num tom ligeiramente constrangido e por algum tempo evitando fitarem-se mutuamente nos olhos. No fundo do seu coração, Péricles não podia desdenhá-los como fazendeiros ingênuos, pois os seus próprios ancestrais também haviam sido assim, antes de se corromperem. Disse a si mesmo que não devia, mesmo sob os efeitos do vinho, contar-lhes piadas obscenas das ruas de Atenas. Tinha que impressioná-los como um homem compenetrado e sincero, pois era isto que esperavam dele.
Conduziu-os ao salão de jantar. Os romanos ficaram contemplando, impressionados, a suntuosidade, embora de bom gosto. Mas desviavam rapidamente os olhos das cenas lascivas pintadas nas paredes, como se elas não existissem. Um deles apalpou furtivamente, com uma desaprovação que mal conseguia disfarçar, a rica textura da toalha da mesa; outro examinou as facas e colheres, maravilhosamente lavradas; o terceiro ficou olhando para as travessas de prata. Mas, sendo essencialmente corteses, como a maioria dos homens que têm raízes na terra, não trocaram olhares sugestivos. Péricles quase podia ouvir os pensamentos deles: este é um luxo indesculpável, que nós, romanos, não aprovamos. Contudo, não se pode esquecer que os gregos não são romanos e que os romanos não são ricos. Que os deuses impeçam que os filhos dos nossos filhos se tornem tão decadentes! Ah, pensou Péricles, é justamente o que vai acontecer, inevitavelmente, quando se tornarem ricos, através de seus esforços. Até lá, que Deus abençoe a austeridade dessa gente, pois é como o ar puro das montanhas sobre uma cidade sombria.
Um dos romanos comentou, sem saber que estava formulando os pensamentos de Péricles:
— Já estive no Egito e achei uma terra muito depravada, extravagante... e sensual.
Como ele ficasse vermelho, julgando imperdoável a crítica velada, Péricles apressou-se em dizer:
— Assim é a história das nações, quando se tornam ricas e corrompidas. Nós, na Grécia, ainda não nos tomamos assim, mas receio que isso acabará acontecendo. — Ele sacudiu a cabeça, tristemente. — Não tenho a menor dúvida de que é inevitável.
Péricles fez uma pausa, pensativo, antes de acrescentar.
— Quando uma nação é agrícola e de cidades pequenas, o povo é virtuoso e ascético. Temos um filósofo em Atenas, Sócrates, que declara que as cidades geram homens infames, enquanto a terra produz heróis.
— Já ouvimos falar do seu Sócrates — disse um dos romanos, aliviado ao constatar que Péricles não encarara o comentário anterior como uma ofensa. — Gostaríamos de conhecê-lo e ouvi-lo, pois certamente é um homem respeitado e honrado em Atenas.
Péricles contraiu os lábios ligeiramente.
— Sócrates é um homem enclausurado, por vontade própria. É bastante difícil encontrá-lo. — Ele podia ouvir a risada estridente de Sócrates em sua própria mente ao pronunciar tais palavras. — Mas ele é mesmo um homem honrado e respeitado, embora poucos o compreendam, inclusive os seus discípulos. Ele costuma dizer que a vida que não é esmiuçada e examinada não vale a pena ser vivida.
Os romanos sacudiram a cabeça em assentimento.
— Examinamos nossas vidas todas as manhãs, ao fazermos as preces, vasculhando nossas consciências. Não é o mesmo dever para com Deus e para com os nossos semelhantes?
— Tem toda a razão — disse Péricles, com uma expressão solene.
Ele ficou satisfeito ao ver a simplicidade da refeição que a sensata Aspásia ordenara. Contudo, as taças eram ornadas, cravejadas de pedras preciosas e os romanos se mostraram obviamente desconcertados, tocando-as com alguma desconfiança. Foi servida cerveja fria nas taças e Péricles novamente pensou em Aspásia com gratidão. O vinho servido a seguir era do tipo que Dejanira, em sua mesquinhez, aprovaria com louvor. Péricles se perguntou onde Aspásia o teria encontrado, enquanto bebia comedidamente.
Não foram servidos travessas com molhos delicados e fragrantes. O peixe era cozido com simplicidade, a carne dura havia sido guisada, os legumes estavam temperados apenas com bastante alho, e havia favas com carne de porco. Péricles achou toda a refeição execrável e lembrou-se outra vez da frugal Dejanira. Aspásia, ao contrário dele, adivinhara exatamente o que os hóspedes iriam apreciar, o que deixou Péricles impressionado. Ele viu que os romanos gostaram intensamente de todos os pratos servidos. Era uma refeição que correspondia a seus gostos e a suas vidas. Podia ouvir-lhes os pensamentos: Nosso anfitrião não é ostentoso nem depravado. Sua mesa e louvável, embora não se possa dizer o mesmo de sua casa. Além do mais, não tem um apetite voraz. Come apenas o necessário.
Os romanos se tornaram mais expansivos. Olhavam para Péricles afetuosamente. Apesar da casa em que vivia, consideravam-no como um dos seus, um homem ascético e prudente. Não resta a menor dúvida de que houve indulgência excessiva na educação de sua esposa e foi ela quem escolheu tudo que vimos. Ou possivelmente lhe trouxe um dote enorme e coisas licenciosas da casa de seu pai. Talvez ele a ame demais, talvez seja por isso que este imponente Chefe de Estado permita que a esposa imponha assim as suas preferências. É provável que ela seja muito jovem e voluntariosa ainda por cima, além de extremamente bonita. É muito difícil resistir e opor-se a mulheres assim.
Eles sorriram jovialmente para Péricles, como para um irmão. E começaram a fazer-lhe perguntas.
Capítulo 11
Péricles levou seus amigos romanos à Agora, para um encontro com a Assembleia e os arcontes. Disse-lhe antes:
— Estão falando de um governo perfeito, que atenda a todas as necessidades e aspirações dos cidadãos. Em teoria, um governo perfeito é possível. Mas não é possível na realidade. Jamais nos podemos esquecer da natureza humana, que não é absolutamente exemplar.
— Mas, se uma nação está assentada sobre uma Constituição sólida, respeitada por seus líderes, que não se atrevem a desobedecê-la, o que pode acontecer de mal a uma república assim? — perguntou um dos romanos.
— Sempre se haverá de encontrar um político com uma interpretação pessoal e singular da Constituição, uma interpretação que sirva aos seus objetivos e aos de seus amigos ou que atenda a qualquer outra exigência.
— Mas, se a Constituição estiver redigida de tal forma a não deixar margem a dúvidas e sua linguagem for tão clara e objetiva que não permita interpretações errôneas, isso jamais poderá acontecer — comentou outro romano.
Embora Péricles duvidasse de tal possibilidade, recordou a si mesmo que Atenas não possuía uma Constituição como a que os romanos julgavam indispensável para a fundação de uma república. E disse:
— É possível que a Constituição que imaginam possa ser tão objetivamente escrita, sobre pedra imortal, que ninguém se atreverá a interpretá-la de outra forma. Ou seja, a própria lei teria uma penalidade severa para qualquer manipulação da Constituição, a fim de realizar os objetivos de qualquer homem ou grupo de homens. Mas vamos supor que Roma crie hoje uma Constituição assim. Outras eras podem surgir em que homens venais usariam essa mesma Constituição, à luz de suas ambições de então.
Os romanos ficaram um tanto aturdidos e ele acrescentou:
— Vamos supor que a Constituição que estão agora planejando determine a pena capital para certos crimes. E vamos supor que gerações futuras de políticos digam: "Não foi exatamente isso o que nossos antepassados tencionavam ao redigirem essa lei." Ou então: "Eles na verdade tencionavam isto e aquilo." Quem poderá refutá-los? Qual de vocês estaria vivo para declarar que o objetivo era precisamente o que foi enunciado? Em suma, épocas diferentes dariam interpretações diferentes, para atender a seus próprios objetivos.
Um dos romanos sacudiu a cabeça, vigorosamente.
— Isso não seria possível.
Péricles mostrou-se um pouco impaciente.
— Vamos supor que a Constituição de vocês determine a pena de morte para o crime de traição. Mas políticos e juízes de eras futuras poderão indagar: "Qual era a definição de traição de nossos antepassados? O que é, na verdade, traição? Temos que defini-la, no sentido atual do termo."
Os romanos ficaram em silêncio, pensativos, esquecendo-se por um momento de contemplarem as vistas de Atenas. Finalmente, um deles comentou:
— Entendo perfeitamente a profundidade do seu argumento. Outras eras, outras interpretações.
— Exatamente — disse Péricles. — O patriotismo de hoje pode ser traição amanhã, se servir aos desígnios de qualquer juiz ou político. E o mesmo acontece com qualquer estatuto que possam definir hoje, não importa quão explícitos sejam os termos. Vamos supor que um futuro Chefe de Estado romano seja um conspirador, um homem extremamente ambicioso, um mentiroso. Ele só se pode tornar todo-poderoso se for um traidor de seu país. Mas ele pode muito bem dizer ao povo: "Amo o meu país e em nome desse amor proponho tais e tais emendas à Constituição, certo de que nossos antepassados iriam aprová-las, em vista das necessidades de hoje e das circunstâncias diferentes. Na verdade, a Constituição formulada por nossos antepassados realmente tencionava isto ou aquilo." Tenho certeza de que, ao falar assim, ele já contará com um bando de outros traidores a apoiá-lo, contribuindo para confundir o povo. E, se algum patriota se opuser, o traidor irá acusá-lo de traição! Podem estar certos de que, se isso acontecer, o infeliz patriota sofrerá a punição pelo suposto crime.
Os romanos ficaram deprimidos. Péricles sentiu pena deles e acrescentou:
— Mas não devem esquecer que Atenas não é uma república, com uma Constituição escrita e imutável, como Sólon pretendia. É uma democracia, e as democracias podem ser manipuladas à vontade por qualquer demagogo ou traidor. As democracias contêm as sementes de sua própria morte; não são governadas por homens judiciosos e virtuosos, mas pelas turbas indisciplinadas, que não são judiciosas nem virtuosas, mas inspiradas exclusivamente pelo próprio estômago, apetite e ganância.
— Está querendo insinuar que as democracias são o caos, Péricles?
— Exatamente. É por isso que nunca podem sobreviver por muito tempo.
Um dos romanos estava olhando ao redor. Contemplou a acrópole e comentou:
— Mas veja o que a sua democracia criou aqui em Atenas, onde existe liberdade e uma reverência pela beleza e pela lei, entre os homens comuns.
Péricles não conseguiu mais conter sua amargura.
— A democracia, como tal, não criou essa beleza, nem qualquer reverência pela lei. A beleza e a lei derivam das almas de uns poucos homens em qualquer nação do mundo. Constituem visitações de Deus, através de Seus súditos escolhidos.
— Mesmo que seja verdade — disse um romano — a beleza e a lei não podem florescer num ambiente hostil. Portanto, o clima de Atenas não é hostil.
Ah, meu pobre e inocente amigo! pensou Péricles. Seu silogismo não é apropriado, nem válido, nem verdadeiro. Na maioria das vezes, suas tão decantadas belezas e lei sobrevivem não por causa, mas apesar dos governos e das turbas. E frequentemente são pisoteadas e desprezadas. O fato de persistirem não pode ser atribuído a qualquer resquício de bondade na natureza humana, pois tal bondade é muito duvidosa, mas sim aos desígnios imortais da Divindade.
— Somente numa república ou numa monarquia constitucional é que a beleza e a luz podem realmente expandir-se e continuar a existir e a ser reverenciada — disse Péricles.
Ele riu um pouco, ao recordar o conselho de Aspásia, e acrescentou:
— Na sua Constituição, devem determinar a pena máxima para qualquer homem que queira trocar sequer uma vírgula dela, não importando as suas alegações de amor pelo país ou "tempos diferentes".
— É o que vamos fazer — disse um dos romanos, em voz firme e determinada. — Como Sólon disse, deve haver o domínio da lei e não o domínio dos homens, com seus caprichos e exigências.
Péricles, a conselho de Aspásia, escrevera uma mensagem para o Rei-Arconte. Estava começando a pensar, ainda hesitantemente, que o velho arconte não lhe era hostil. Escrevera o seguinte:
"Nossos amigos de Roma estão querendo conhecer nosso governo. Demonstram a maior reverência pelas leis de Sólon... as quais, lamentavelmente, não respeitamos. Os romanos estão com a impressão equivocada de que possuímos um governo perfeito, baseado nas leis de Sólon. As aspirações que têm para seu próprio governo são bastante elevadas e eles sonham com uma república excelente e inigualável. Seria da maior crueldade desiludi-los, enquanto se encontram em Atenas. Se os iludirmos bastante bem, voltarão a Roma e fundarão uma república digna de homens honrados. O mais velho se chama Diodorus e pertence ao Senado Romano. Todos são homens de princípios e convicções firmes, de uma probidade a toda prova. O Senador Diodorus manifestou o desejo de dirigir-se oficialmente ao nosso governo em sessão solene. Peço que a Assembleia não se mostre por demais turbulenta e controle qualquer acesso de hilaridade diante desses homens simples mais dignos, respondendo às perguntas que formularem com a devida sobriedade, jamais esquecendo que são nossos hóspedes.
E estou rezando para que isso aconteça, pensou ele, no caminho.
Os romanos sentiram-se atraídos pela Agora, apesar de julgarem-na um tanto ruidosa e turbulenta. Era evidente que estavam acostumados a práticas mais decorosas e comedidas de comércio nos mercados e lojas. Ao perceber isso, Péricles comentou:
— Os atenienses, como já falei antes, são muito exuberantes, efusivos e veementes. Se parecem estar discutindo, é porque só assim sabem tratar de seus negócios e barganhar.
Com uma expressão de espanto e admiração, o Senador romano disse:
— Não é o que acontece com você, Péricles. O próprio Jove não poderia ser mais firme, sério e resoluto.
Péricles pensou em Zeus, a quem os romanos chamavam de Jove ou Júpiter. Achou divertido que os romanos, aparentemente, ao adotarem os deuses gregos, não tivessem também tolerado os aspectos mais exuberantes de Zeus, em relação às donzelas sedutoras. Ou seria possível que os homens virtuosos preferissem desviar os olhos das implicações, querendo considerar o pai dos deuses e dos homens tão imaculado quanto as neves macedônias? O que tornaria a vida no Olimpo extremamente enfadonha, pensou Péricles. A virtude, como a verdade, deve ter seus limites. Esses homens virtuosos estão fazendo com que me sinta um verdadeiro réprobo e sibarita, disse Péricles a si mesmo. Só espero que eles possam retornar a Roma com suas ilusões intactas!
O Rei-Arconte, os arcontes, a Assembleia e a Eclésia receberam Péricles e os romanos com toda a cerimônia e serenidade. Foram trocados cumprimentos elaborados. Em determinado momento, Péricles fitou os olhos do Rei-Arconte, um homem que raramente sorria. Mas havia agora um brilho divertido e paternal nos olhos dele, que Péricles apreciou intensamente, mas torceu para que os romanos não percebessem.
Péricles desejou que Aspásia tivesse cuidado do banquete que foi oferecido aos romanos. Estes ficaram atônitos e um tanto intimidados com os pratos suntuosos, a profusão de vinhos diferentes, o uísque sírio, as taças de vidro egípcias, com os pés cravejados de pedras preciosas. Observaram tudo atentamente, as túnicas e togas elegantes dos outros homens, as pulseiras, os anéis e colares de pedras preciosas. Diversos homens exibiam um único brinco de ouro, com pedras preciosas, ao estilo egípcio. Muitos estavam perfumados. Os romanos ficaram sem saber o que fazer com as tigelas de prata cheias de água morna e pétalas de rosa que foram colocadas à sua frente, para que molhassem os dedos. Observavam os atenienses e faziam as mesmas coisas que estes, entreolhando-se com expressões taciturnas. Escravas cantoras, vestidas da maneira mais indecorosa possível, tocavam alaúdes, liras e flautas, sorrindo abertamente para qualquer homem que as fitasse. Péricles percebeu que os romanos estremeceram. O Rei-Arconte comentou com ele:
— Não é da minha conta, mas nossos amigos desejam impressionar os romanos, a quem consideram camponeses rudes.
— Tenho a impressão de que os romanos receiam, infelizmente, que estejamos decadentes — disse Péricles.
— E, de certa forma, não é isso mesmo o que acontece? — Péricles não tinha resposta a dar e o Rei-Arconte acrescentou: — Talvez tivesse sido melhor que eles visitassem Esparta em vez de Atenas.
Os romanos comeram comedidamente a refeição lauta e excelente, beberam muito pouco vinho e não tomaram uma gota de uísque. Os vizinhos à mesa conversaram com eles em frases polidas, fazendo muitas perguntas a respeito de Roma e inclinando a cabeça quando eles respondiam. Os romanos relaxaram um pouco diante de tanta amabilidade e falaram da laboriosa Roma, da nobreza do trabalho e comércio. Sentiam orgulho de seus engenheiros e dos novos aquedutos que haviam construído, da arcada que tinham aperfeiçoado. Em nenhum momento se referiram à música ou estátuas, poesia ou filosofia. Os atenientes olharam para as mãos calosas deles, para as unhas arrebentadas no esforço de um trabalho produtivo, franzindo as sobrancelhas em desaprovação. Para os atenienses, os trabalhos manuais eram da competência de escravos e não de homens livres, que preferiam discutir política, teorias, filosofias, o teatro e as Olimpíadas. Mas os esportes, para os romanos, não constituíam uma busca estética, onde se admirava a beleza da precisão, a perfeição física e a habilidade. Encaravam os esportes como um espetáculo vigoroso, em que venciam os mais fortes e não os mais artísticos e habilidosos. Pior ainda, para os atenienses, era o hábito romano de admirar os sangrentos espetáculos de gladiadores,
Péricles sentiu-se aliviado quando chegou o momento da fala do Senador Diodorus. Este levantou-se, em seus trajes austeros, olhou ao redor, de maneira serena. Os atenienses haviam-se tornado um tanto exuberantes com o vinho, mas assumiram um silêncio razoável ao verem o semblante sóbrio e sério do romano. O Senador falou sem grandiloquência:
— Nós, romanos, fundamos uma república de acordo com o que ouvimos falar do venerável Sólon. Nosso conhecimento era reduzido, até que chegamos à sua gloriosa cidade. — Ele lançou um olhar para Péricles, que fez uma mesura em sua cadeira. — Agora, nosso conhecimento foi consideravelmente expandido e aumentou ainda mais o respeito e admiração que já sentíamos.
"Nossa Constituição ainda não está completa. Mas estamos instituindo um sistema de equilíbrio. Tencionamos difundir o poder a tal ponto que nenhum corpo de romanos possa assumir a tirania sobre outros. Em palavras mais objetivas: tencionamos proteger todos, os romanos contra seu governo, criando agentes nesse governo que se irão vigiar mutuamente, a fim de que nenhum grupo se torne poderoso demais.
Os atenienses trocaram olhares divertidos, se bem que cuidadosos, como adultos quando uma criança imatura está falando. Mas se controlaram ao perceberem que o Rei-Arconte os fitava severamente.
— Nessa Constituição, que se acha no processo de conclusão, haverá grande ênfase para a unidade e caráter sagrado da vida familiar, para o patriotismo, a necessidade de se incutir nas crianças a reverência e o respeito pelos pais. Daremos uma posição inviolável à palavra solenemente empenhada de um homem. Acima de tudo, imporemos o respeito pelo relacionamento profundo entre o homem e Deus.
"Nós, romanos, acreditamos que o homem que trabalha é a base de toda sociedade justa; por trabalho referimo-nos a qualquer empenho em que um homem utiliza a mente e as mãos, respeitando a terra da qual tiramos o sustento e a vida. Em hipótese alguma, um homem poderá oprimir seu próximo, explorá-lo, difamá-lo, aviltá-lo. Em todas as ocasiões, haveremos de nos esforçar por alcançar a grandeza em nossas vidas públicas e particulares, assim como a justiça. Mas o que almejamos não é a grandeza das riquezas, mas sim a grandeza das virtudes familiares. Pois aquele que é um homem de bem, por mais humilde que seja, merece ser mais honrado do que um rei.
"Sabemos que todos os homens nascem livres e que é um dever sagrado do governo proteger essa liberdade perante Deus. É a primeira e mais importante obrigação do governo. Quando essa obrigação é desprezada ou esquecida, tudo mais está perdido, pois nada pode florescer na ausência da liberdade. Nossos tribunais receberão apelos de qualquer cidadão que tenha seus direitos ameaçados. Ensinaremos a nosso povo que a autodeterminação e o auto sacrifício são as características de um homem digno, que reverencia seu Deus, seu país e sua humanidade. O homem que não possui tais coisas não é absolutamente um homem.
"Prezamos o trabalho e o comércio honesto. Vamo-nos empenhar por viver em paz com os nossos vizinhos e não pretendemos entrar em guerra, a menos que sejamos atacados. Não faremos alianças estrangeiras que possam levar a guerras, discórdias e miséria. Trataremos os outros estados com toda deferência, mas evitaremos envolvimentos danosos. Não permitiremos que nenhum político ou outro homem inescrupuloso roube um setor dos nossos cidadãos em benefício de outro, através do confisco de bens que os primeiros adquiriram através do trabalho árduo e honesto, para dar a outros que foram menos prudentes e diligentes. Se um homem não quer trabalhar, então deve passar fome. Nenhum político poderá atenuar o seu estado de penúria, em detrimento dos outros. Pois acreditamos que tudo aquilo que um homem ganha com o seu trabalho pertence-lhe exclusivamente e não deverá ser-lhe tirado. Não pertence ao governo, não pertence a seu vizinho. Os direitos de propriedade serão protegidos em todas as circunstâncias. Se for necessário que o governo use as terras de um homem, para a construção de aquedutos ou aproveitamento em outros serviços públicos, então deve pagar a esse homem um preço justo. E, se o homem por acaso não concordar, terá permissão para levar o caso aos tribunais.
"Recordando que nações antigas foram destruídas por impostos exorbitantes e opressivos, vamos recolher do nosso povo apenas o que for necessário para os serviços militares, a guarda de nossa cidade através de um regime de polícia, proporcionar água e ruas limpas, sustentar os tribunais, serviços sanitários, a construção de prédios mais sólidos, o sistema de proteção contra incêndio. Os estipêndios para aqueles que estiverem no serviço público serão sempre modestos; a honra é quase o bastante.
Ele olhou ansiosamente para a audiência; muitos examinavam ostensivamente as mãos cheias de joias.
— As riquezas não devem ser desprezadas, se adquiridas através do trabalho e da inteligência. Mas o homem que se torna rico através do roubo e de malversação em cargos púbicos ou por negociatas as lutas, deverá ser tratado com o devido desprezo e rigor. Tal homem constitui uma desgraça para a nação.
"Em conclusão, vamos construir um estado baseado nas leis de Sólon e teremos a Constituição que ele desejava. Ensinaremos a nossos filhos a frugalidade, parcimônia, respeito pelos vizinhos. E também ensinaremos que a lei e a ordem devem prevalecer, para que não pareçamos todos num tumulto de crime e para que políticos venais não se tornem nossos senhores.
Ele sentou-se, depois de fazer uma reverência para seus ouvintes. Todos olharam para o Rei-Arconte, à espera de um sinal. Os que estavam mais perto viram lágrimas em seus olhos idosos. Ele ergueu as mãos e bateu-as, em aplauso. A audiência, embora relutante e bastante divertida, acompanhou-o.
O Rei-Arconte virou-se em seguida para os romanos e disse:
— Peço a Deus que a sua cidade floresça e que os filhos de vossos filhos vos lembrem com devoção, gratidão e a honra devida, que jamais esqueçam o que vós ireis escrever em vossa Lei das Doze Tábuas, Profetizo que a vossa república se transformará na maravilha do mundo. Enquanto vosso povo respeitar essas Tábuas, jamais recuará, a poeira não o sufocará, homens indignos não ascenderão ao poder, nenhum homem justo será escravo do vizinho ganancioso.
Virou-se então para Péricles, que se levantou, fez uma reverência para os romanos e disse, numa voz que nunca ninguém antes ouvira, de tão comovida que estava:
— Vão com Deus!
Depois que os romanos deixaram Atenas, carregados de presentes, Péricles disse a Aspásia.
— Não, não os apresentei a nossos filósofos, nem mesmo a Anaxágoras, a quem teriam admirado por sua própria aparência, senão por suas teorias. Também não os apresentei a Sócrates. Mas Fídias visitou-os e foram juntos à acrópole, que os deixou mudos de espanto por algum tempo. Minha querida, fiz questão de mantê-los afastados de nossos filósofos, que apenas pensam e ensinam atividades certamente respeitáveis, mas não do tipo que seria apreciado por nossos amigos romanos, que reverenciam o trabalho quase tanto quanto a seus deuses e desconfiam das teorias e ideias abstratas. Não sei dizer se eles vão ou não produzir artistas no futuro. Mas tenho certeza de que são homens de um caráter diferente do nosso. Quem pode saber o que vai acontecer? Eles podem-se tornar os soberanos do mundo, o que beneficiaria a maior parte de nós... desde que continuem a manter e respeitar sua Constituição.
Capítulo 12
Péricles dissera aos romanos:
— Indagaram-se a respeito de Esparta. Os espartanos devotam suas vidas à guerra, os atenienses à política.
— Mas os espartanos são diligentes e ativos — comentara o Senador Diodorus.
— São também sombrios, inflexíveis, desconfiados, não usam a imaginação em suas vidas. O governo deles é todo-poderoso, uma oligarquia, o povo é formado por virtuais escravos, sempre no terror daqueles que o governam com extrema prepotência. Reconheço que são valorosos e patriotas, mais a existência deles é de monotonia, de trabalho interminável, sem a recompensa do riso e de amenidades. A rudeza deles é famosa. As mulheres fazem trabalho de homens, as crianças jamais têm permissão para serem apenas crianças. São atormentados pela convicção de que o resto da Grécia está conspirando contra eles. Mas a verdade é que eles próprios estão permanentemente conspirando para dominarem toda a nossa terra. Há uma espécie de loucura em suas almas, uma escuridão do espírito. Acreditam que são superiores a todos os outros gregos e feitos de ferro. Não possuem qualquer senso de humor e confesso que os homens assim taciturnos me assustam. São perigosos. O senhor falou da liberdade como o próprio sopro da vida. Os espartanos não consideram a liberdade como algo desejável para seus cidadãos ou para qualquer outro estado. Se prezam intensamente alguma convicção, é a de que têm a missão de impor pela força a sua maneira de viver ao mundo inteiro.
Ele pensara em Esparta por um momento e depois acrescentara:
— Eu os temo, não tanto pela força das armas, mas por sua filosofia. São tão brutais como frugais e costumam punir com extrema barbaridade as menores infrações a suas leis insensíveis e rigorosas. Estão-se tornando cada vez mais agressivos. Descobriram que podem melhor conquistar o mundo através do comércio e a isso estão agora devotando todas as suas energias, que são vastas. Possuem uma determinação única, que é assustadora,
— Mas disse antes, Péricles, que os espartanos dedicavam suas vidas à guerra.
— E é verdade. Mas há outros meios de fazer guerra a vizinhos invejados que não pela força das armas. Foi o que os espartanos aprenderam agora. Respeito e prezo o trabalho, assim como vocês, mas não o trabalho opressivo que os espartanos estão dirigindo contra nós.
Havia já alguns anos que Péricles sabia não ser Esparta a única a invejar e se ressentir da supremacia marítima de Atenas. Corinto e Megara, que pertenciam à Confederação do Peloponeso, estavam convencidas de que Atenas tencionava expulsá-las dos mares e por isso se deixavam influenciar pela propaganda de Esparta sobre a ganância dos atenienses. A própria Esparta não tinha o menor desejo de entrar em guerra com os atenienses naquele momento, mas incitava seus aliados a isso, preferindo recolher os despojos de qualquer conflito, resguardando sua crescente riqueza, sua cidade e seus homens. Sabendo disso, Péricles comentara certa ocasião:
— Faz-me lembrar a velha fábula do cão cujo dono rigoroso lhe proibia o livre acesso ao cercado onde estavam os gordos coelhos. Por outro lado, os lobos da floresta haviam expulsado o cão de seu território de caça. Assim, o cachorro tramou uma conspiração. Foi procurar o dono e lhe disse: "Amo, ontem à noite, quando a lua estava cheia, fiquei escutando os lobos, que são os senhores da floresta. E eles estavam conspirando contra a sua pessoa, tencionando atacá-lo e matá-lo quando sair para os campos, fim de se apoderarem de seus domínios." O cão foi em seguida procurar os lobos, todo encolhido e servil. E disse ao líder dos lobos: "Senhor, sou da mesma espécie, embora viva no canil do homem. Ouvi-o conspirando com a mulher. Quando a lua estiver minguando, ele virá a seus domínios armado de arco e flecha, espada e lança, para matá-lo e apoderar-se de sua floresta." Assim, quando o homem partiu com suas armas para matar os lobos, estes o estavam esperando para liquidá-lo. O homem foi morto, assim como o rei dos lobos. Os outros lobos fugiram. O cão apoderou-se então do cercado de gordos coelhos e dos domínios do homem, expulsando a mulher. Esse cão é Esparta.
A história foi inevitavelmente repetida para os espartanos e a oligarquia que os dominava ficou enfurecida. Os espartanos mais velhos ainda se regozijavam com a recordação da derrota de Atenas em Tanagra, vencida por Esparta e seus aliados, quando Péricles ainda era jovem. A oligarquia, o grupo opressor que dominava Esparta, começou a dirigir-se ao povo em linguagem inflamada. Até os mais jovens, que ainda não haviam nascido por ocasião de Tanagra ou eram ainda crianças muito pequenas, puseram-se a arder de fúria contra Atenas, embora esta também pertencesse à Confederação do Peloponeso. A oligarquia havia acusado Péricles, então mais jovem, de sonhar com o domínio de todos os membros da Confederação, declarando que era um tirano sanguinário, dono de uma ambição desmedida. Não apenas os cidadãos espartanos haviam acreditado, sem a menor sombra de dúvida, como também outras cidades-estado haviam acreditado, por causa da inveja que sentiam. Os espartanos diziam a seus aliados:
— Se derrotamos Atenas antes, podemos fazê-lo novamente, para esmagar suas aspirações de conquista de uma vez por todas.
E assim havia começado a sequência terrível de guerras irregulares, mas desesperadas contra Atenas, por outros membros da Confederação, que por muitos anos tinham atormentado Péricles. A própria Esparta limitara-se a incursões esporádicas pela África, quase que anualmente, enquanto continuava a incitar seus aliados contra Atenas. Corinto e Megara foram implacavelmente derrotadas. Com o passar do tempo, Atenas acabara por se retirar da Confederação. Enquanto isso, Esparta, que pouco sofrera durante esses longos anos, sonhava em expulsar Atenas dos mares, não pela guerra, mas assumindo a ascendência ateniense no comércio.
Com esse objetivo, Esparta requisitara todas as energias de seus cidadãos, exigindo-lhes trabalho e sacrifícios intermináveis, um treinamento físico rigoroso, uma abnegação total. Várias gerações atrás, Esparta fora reconhecida como a líder da Hélade por causa de sua superioridade militar sobre as cidades-estado irmãs e o valor incomparável de seus guerreiros. O povo espartano jamais conhecera a liberdade no sentido pretendido por Sólon para Atenas. Em determinado momento, a oligarquia proibira aos espartanos a posse de ouro e prata e instituíra o ferro como elemento de troca. Inevitavelmente, a riqueza se concentrara nas mãos de uns poucos homens mais astuciosos e tencionada igualdade de propriedade se tornara um tremendo fracasso. As oligarquias haviam sido derrotadas pela natureza humana e isso se tornara motivo de risos em Atenas. Zênon de Eleia, ao instruir o jovem Péricles, chamara enfaticamente a atenção do discípulo para esse ponto:
— Devia ser uma lição para os governos, mas acontece que os governos nada aprendem e nada recordam. Não se podem igualar os homens, a menos que se eliminem os de inteligência superior ou se elevem indiscriminadamente os de estatura mental inferior. O único problema é que ambos os esforços são fatais.
O que não impedia que as oligarquias posteriores continuassem a sonhar com os velhos tempos, quando havia uma proibição para o legado e doação de terra e quando os hilotas trabalhavam a terra para uns poucos espartanos privilegiados e poderosos. Ainda lamentavam o fato de muitos cidadãos possuírem agora metais preciosos. Como os membros da oligarquia eram também apenas humanos, não tinham objeções a adquirirem riquezas para si próprios, embora desejassem ser os únicos a possuí-las.
— Somos por acaso uma nação que adora bancos, como os atenienses, e as vastas acumulações de riquezas, também com eles... e como os persas, para não falar dos egípcios, que revestem os seus mortos de ouro? Não! Somos um povo austero e justo. Acreditamos na igualdade entre os homens, contanto que sejam sadios de corpo e mente. Por que um homem deve aspirar a se elevar acima de seus semelhantes e adquirir maiores recompensas? Seria uma injustiça inominável.
Ao tomar conhecimento de tais coisas, o Péricles mais velho recordou-se do que Zênon lhe ensinara, que os homens nascem desiguais por natureza, embora devam ser iguais perante o governo, de forma que nenhum seja condenado pelo simples fato de ser pobre e nenhum homem, por mais rico que seja, escape à punição reservada pela lei a seus crimes. Não se pode proibir a oportunidade aos que são superiores em alma e caráter, assim como não se podem conceder falsas oportunidades aos inferiores, que prefeririam não ter que assumir a responsabilidade.
Os espartanos estavam agora concentrando toda a sua determinação contra o Péricles mais velho, que tinha muito mais poder do que no tempo em que atraíra pela primeira vez a atenção de Esparta e transformara Atenas na rainha soberana dos mares. Escarneciam do desejo de Péricles de transformar Atenas também na soberana da inteligência, graças à ajuda de seus pintores, escultores, arquitetos e filósofos.
— Não se diz que os deuses primeiro levam à loucura aqueles que pretendem destruir? — comentavam os espartanos. — Péricles é um louco, um ditador e tirano arrogante.
Assim, os espartanos estavam agora obcecados pela ideia fixa, como homens teimosos e de mentalidade estreita, de assumirem o poderio marítimo de Atenas. O trabalho, antes reservado apenas aos hilotas, tornou-se uma obrigação de todos os homens... exceto, é claro, da oligarquia e de uns poucos aristocratas.
Era essa a maior preocupação de Péricles no momento, pois ele estava cansado das guerras e escaramuças de pequenas proporções, mas dispendiosas e enervantes. Sabia que havia atenienses ricos e poderosos que estavam enviando emissários e espiões a Esparta, simplesmente por ódio a ele. Sabia que estavam também, secretamente, incitando as turbas contra ele, a fim de que pudessem assumir a autoridade com a sua destruição. Em particular, eram muitos os que falavam constantemente em sua remoção do cargo. No caminho de tais homens estava apenas a amaldiçoada classe média, de pequenos comerciantes e mercadores, de artesãos, homens diligentes e trabalhadores, que amavam Péricles. Abertamente, Péricles chamava seus adversários de traidores, mas estes escarneciam dele.
Preocupada, Aspásia disse-lhe:
— Não há possibilidade de se chegar a um acordo com Esparta o mostrar-lhe que há comércio e negócios suficientes no mundo para todas as cidades?
— Não. Esparta jamais renunciou à sua ambição e propósito de hegemonia na Hélade, assim como foi outrora através do poderio militar. Os sonhos assumem várias formas e a guerra é apenas uma delas. A forma agora é a do comércio... o domínio do mundo através do comércio. O objetivo é o mesmo: a conquista.
Numas poucas ocasiões, Péricles enviou seus emissários de confiança a Esparta, em busca de uma conciliação, para assegurar que Atenas não tinha desígnios imperialistas e que ele estava convencido de que homens racionais podiam chegar a um acordo amigável, em nome da paz. Esparta recebeu esses emissários com o que se podia classificar de cortesia brutal e com uma rudeza mal disfarçada. As exigências espartanas para um acordo eram tão absurdas que Péricles foi forçado a recusar. E, com uma mistura de ira e desespero, comentou:
— Essas pequenas guerras sem sentido vão continuar. Esparta está determinada a subjugar Atenas, assim como já subjugou seus aliados. Nosso tesouro está lamentavelmente exaurido e talvez precisemos em breve desvalorizar nossa moeda. E a desvalorização da moeda inevitavelmente representa o declínio de uma nação. Mas Esparta está-nos compelindo a isso.
— Quer dizer que é inevitável um confronto final com Esparta? — indagou Aspásia.
— Temo que sim. Mas tentaremos evitar esse confronto, pelo tempo que pudermos. Rezo para que não ocorra durante a minha vida.
Mas Péricles desconfiava de que o confronto final ocorreria mais cedo do que gostaria e frequentemente passava as noites a andar de um lado para outro de seu aposento, procurando inutilmente um meio de conciliar o inconciliável ou de ameaçar Esparta num desafio aberto e exasperado.
Seus inimigos estavam agora acusando-o de "atrair" Esparta ao ataque ou incitá-la através de suspeitas injustas quanto aos motivos espartanos, que eram franca e sistematicamente proclamados pelos próprios espartanos. Seus inimigos diziam às turbas:
— Acima de tudo, ele é um soldado e os soldados não são conhecidos por odiarem a guerra. Ao contrário, amam a guerra pela guerra. Suas ambições imperialistas aumentam a cada dia e Esparta sabe disso e nos teme. Se fizermos a guerra contra Esparta, esta irá reagir com violência igual ou superior e a paz em nosso mundo será uma visão perdida.
Apelavam para a pusilanimidade das turbas, para o seu egoísmo e medo. As turbas escreviam mentiras, ameaças e calúnias nos muros de Atenas. Quando avistavam Péricles na Agora, mantinham-se num silêncio soturno ou gritavam insultos, antes de fugirem.
Os inimigos de Péricles atacavam-no incessantemente por intermédio de Aspásia. Diziam que ela era o verdadeiro poder por trás de Péricles, que estava insistindo para que Esparta fosse atacada ou tornada subserviente, que sua escola não passava de um disfarce para atrair mulheres livres com propósitos inomináveis, que induzia moças a se empenharem em perversões com Péricles e que — o pior de tudo — era ímpia. O poeta satírico Hermípus acusou-a publicamente de tudo isso. Péricles disse a Aspásia:
— Se eu fosse um tirano, como meus inimigos e Esparta afirmam que sou, mandaria matá-lo ou o jogaria na prisão.
— Não tenho medo de mentiras — declarou Aspásia.
Péricles franziu as sobrancelhas, numa expressão divertida.
— Se assim é, minha querida, devo dizer que continua a ser uma inocente, o que muito me espanta. As mentiras são muito mais poderosas do que a verdade e também mais perigosas. Já causaram a morte de mais homens de bem do que qualquer verdade fatal. A natureza humana é intrinsecamente perversa e prefere as mentiras, deliciando-se com o sofrimento dos justos por elas afetados.
— Mas devemos permanecer serenos e indiferentes ao mal, assim como Anaxágoras, apesar de todo o sofrimento que lhe é infligido pelas turbas. — Perturbada com a súbita expressão sombria de Péricles, Aspásia acrescentou: — As eras futuras haverão de honrá-lo, assim como a você, querido.
— Infelizmente, nem Anaxágoras nem eu estaremos vivos para saber disso.
Anaxágoras estava rapidamente envelhecendo e ficando cada vez mais cansado. Estava-se tornando esgotado e desesperado com os repetidos apedrejamentos de sua pequena casa, com as interrupções de suas preleções na academia e nas colunatas. Sua voz já não possuía o vigor para se erguer acima dos insultos e dos gritos escarninhos, e a serenidade e indiferença que os amigos tanto lhe haviam admirado estavam cedendo lugar a uma profunda tristeza interior e ao desejo de paz de espírito, por mais precária que fosse.
Um dia, ele foi visitar Péricles no gabinete deste. A dignidade natural que sempre o distinguira ainda não havia desaparecido, assim como o olhar sereno e a compostura. Mas os cabelos e a barba estavam brancos, os olhos azuis haviam perdido o brilho, as mãos delicadas estavam trêmulas. Péricles não o via há três semanas e ficou alarmado com o aspecto de Anaxágoras, pois lhe pareceu que o filósofo-cientista envelhecera consideravelmente numa questão de dias. Anaxágoras sorriu-lhe com sua ternura habitual e abraçou-o. Aturdido e temeroso, Péricles descobriu que havia lágrimas nos olhos do amigo.
Serviu vinho a Anaxágoras, que recusou outras bebidas, gentilmente. Demorou a falar, balançando o vinho na taça e contemplando-o distraidamente. Péricles ficou ainda mais alarmado.
— Está trazendo más notícias, meu amigo?
Anaxágoras hesitou. Percebendo-o, Péricles acrescentou:
— Não hesite em me contar. Atualmente, não há uma só manhã que me chegue com esperanças. Todas elas surgem impregnadas de adversidade. Todos os dias, tenho que me revestir com uma couraça por um esforço da vontade.
— Acontece que é muito mais jovem do que eu, Péricles.
— Mas deve-se recordar também de que sou um político. — Péricles ensaiou uma risada. — Conte-me tudo. Posso assegurar-lhe que meus inimigos ainda não me castraram, por mais que estejam tentando.
Anaxágoras ainda hesitou. Mas acabou suspirando e disse:
— Tenho que deixar Atenas.
Péricles fitou-o com uma expressão de espanto.
— Vai fugir de seus inimigos?
Anaxágoras suspirou novamente.
— Chega um momento na vida de um homem em que ele se cansa de lutar... quando descobre que é muito difícil resistir e fica cansado de viver. Esse momento chegou para mim.
— Está cansado de viver?
Anaxágoras levantou a cabeça e fitou Péricles nos olhos.
— Estou. Para não chegar à conclusão desesperada de que nenhuma vida vale a pena ser vivida, devo deixar Atenas, por mais profundamente que a ame. — Vendo a angústia de Péricles, ele acrescentou: — É a idade, meu caro amigo. Eu gostaria de gozar um pouco de paz nos meus últimos anos de vida.
— Nunca foi um covarde.
Péricles esperava, com o comentário, perturbar a serenidade e restaurar o vigor de espírito de Anaxágoras. Mas o amigo limitou-se a sorrir.
— Por acaso o desejo de tranquilidade num velho pode ser considerado covardia? Mesmo um velho soldado acaba por se retirar dos campos de batalha e o barulho dos tambores não mais faz seu sangue correr depressa pelas veias.
Como Péricles nada dissesse, Anaxágoras inclinou-se e pôs a mão sobre a dele.
— Não se aflija por mim. Os deuses não nos concederam a eterna juventude e o ânimo dos jovens inevitavelmente se arrefece com o passar dos anos. Gostaria que eu me tornasse um cético e falasse com ácido na boca? Não acha que isso seria pior do que... a fuga? Quando eu não mais estiver em Atenas, posso voltar a acreditar que estou com Deus e que Sua paz está em mim, que os homens se irão tornar com o tempo verdadeiramente humanos.
— Não posso aceitar a ideia de que nunca mais tornarei a vê-lo — disse Péricles. — Todos os seus amigos ficarão desolados.
— Devo explicar-lhes tudo. Também tenho os meus limites de resistência. Só revelei minha decisão a você. Se eu procurar os outros e ouvir-lhes as súplicas, posso ceder em minha determinação e permanecer em Atenas. E isto seria uma espécie de morte para mim, o fim de toda e qualquer esperança.
— Para onde vai? — indagou Péricles, cada vez mais angustiado.
Anaxágoras sacudiu a cabeça ligeiramente.
— Não vou revelar, pois poderá procurar-me e, ao vê-lo, inevitavelmente irei sofrer e sentir o desejo de voltar.
Péricles esfregou os olhos subitamente cansados, coçou o queixo e a boca.
— Pelo que sei, tem pouco dinheiro. Vai ao menos permitir que eu lhe dê uma bolsa cheia de talentos como presente? Gostaria que me proporcionasse essa pequena satisfação.
— Preciso de muito pouco dinheiro — disse Anaxágoras, contemplando o amigo com profunda compaixão. — Mas aceito, se isso lhe causa alguma satisfação.
Péricles foi até uma arca de ferro trancada e tirou uma bolsa pesada. Colocou-a diante do amigo. Ambos ficaram olhando para a bolsa. Um silêncio profundo reinava entre os dois. Fazia muitos anos, tempo demais para se contar, que Péricles sentira pela última vez o desejo de chorar. Mas voltava a senti-lo agora, juntamente com uma crescente amargura, um crescente desespero. Estava-se esforçando sempre para conter o ódio em si mesmo, até mesmo contra seus inimigos. Mas sentiu agora que o ódio começava a escapar-lhe ao controle.
Anaxágoras estava ficando de pé e Péricles levantou-se também. Anaxágoras pôs as mãos nos ombros do amigo e suplicou:
— Dê-me paz. E peço, meu querido amigo, que a paz de Deus esteja com você.
— Vá em paz — murmurou Péricles, a expressão ainda angustiada.
— Não lamente por mim, Péricles. Minha hora de silêncio chegou, assim como a sua, infelizmente, também chegará. Não podemos escapar à nossa mortalidade.
Depois que Anaxágoras partiu, Péricles experimentou uma dor intensa na alma, um tremendo vazio, uma sensação de perda irreparável. A razão dizia-lhe que a perda de amigos queridos e o vazio subsequente não podiam ser evitados, mas o coração se rebelava. Por que Anaxágoras não podia viver os poucos anos que lhe restavam em tranquilidade, entre seus discípulos e aqueles que o amavam? Fora expulso pelo mal, apesar de sua explicação de que simplesmente estava velho e cansado.
Aspásia chorou quando Péricles a informou da partida de Anaxágoras.
— Quem poderá substituí-lo? — indagou ela.
— Ninguém. Um homem de bem nunca pode ser substituído.
— Temos pelo menos isso para nos consolar, Péricles. Os homens que não prestam morrem e ninguém os lamenta.
Péricles falou a Aspásia impacientemente, algo que só raras vezes acontecia:
— Mas o mal que eles causam perduram após sua morte. Está esquecendo a história? Os bons baixam à sepultura lamentados apenas pelos amigos; se a história os registra, é apenas de passagem. Mas a memória dos maus muitas vezes é glorificada. Quantas estátuas já foram erigidas aos homens de bem? Mas florestas de estátuas são erigidas aos conquistadores impiedosos.
— É um triste comentário sobre a natureza humana.
Péricles deu de ombros.
— Mas verdadeiro. — Ele fez uma pausa, antes de acrescentar: — O fato de alguém como Anaxágoras ter sido finalmente compelido a fugir já é um comentário mais do que suficiente.
Os amigos de Anaxágoras ficaram desolados. Somente Sócrates manteve a serenidade.
— Pelo menos não o assassinaram — disse ele, sorrindo. — Anaxágoras escapou a essa honra. — Ele riu, a sua risada esganiçada, e acrescentou: — Tenho o pressentimento de que um dia merecerei tal honra, pelo que desde já estou grato.
Todos tentaram consolar-se com o pensamento de que Anaxágoras provavelmente encontrara a paz que desejava tão profundamente. Mas a ausência dele torturava-os. Um elemento vital se afastara de suas existências e nunca mais retornaria. Estavam mais pobres. Uma moeda de ouro saíra de suas bolsas para sempre; a luz de suas vidas se ofuscara consideravelmente. O sol nunca mais voltaria a brilhar como antes para eles, suas esperanças estavam reduzidas.
Nunca mais tornaram a ver Anaxágoras, nem receberam qualquer mensagem dele que pudesse confortá-los, assim como também não souberam onde estava ou quando havia morrido. Mas, um dia, Sócrates disse a Péricles:
— Nosso amigo querido, Anaxágoras, deixou este mundo ontem ou no dia anterior.
— Como sabe?
Os olhos de sátiro de Sócrates estavam profundamente tristes.
— Como sei? Simplesmente não sei. Terei sonhado e esqueci o sonho? Ou será que o espírito de Anaxágoras parou ao meu lado uma noite para despedir-se? Não sei como, apenas tenho certeza de que sei.
Péricles não duvidou. Lágrimas amargas afloraram a seus olhos e Sócrates fitou-o com compaixão.
— Mas a morte não chega sempre para todos nós? Volto a lhe dizer agora, como já disse antes, que um homem de bem não precisa temer a morte, pois o sono eterno não é um sono agradável? Se ele vive além da sepultura então certamente Deus haverá de recebê-lo com amor e o acolherá em seu seio.
Como a expressão desesperada de Péricles não se atenuasse, Sócrates acrescentou:
— Vamos comparar a morte com um navio repleto de passageiros. O navio deixa o porto, nós choramos e comentamos: "Leva consigo os amigos que nunca mais tornaremos a ver." Mas talvez, em outro porto, um grito de alegria se levante e os que estão à espera comentem: "Lá vem o navio trazendo os nossos amigos!"
Foi nesse momento que Péricles não mais conseguiu conter-se e desatou a soluçar, chorando como nunca mais o fizera desde a morte do pai.
Sócrates pensou: Quando um grande homem fica comovido até as lágrimas, o mundo também deveria comover-se. Mas, infelizmente, isso nunca acontece. Poupamos nossas lágrimas para os charlatães, mentirosos e opressores, quando morrem, aclamando-os como salvadores e heróis.
Capítulo 13
Tucídides, filho de Melésias, era chamado de Velho Oligarca, por causa de seu dogmatismo insistente e belicoso e da perseguição implacável àqueles a quem odiava. Mesmo que Péricles não tivesse mandado processá-lo algumas vezes pela prática da usura, ele odiaria de qualquer forma o Chefe de Estado. Péricles era tudo que ele desprezava. O caráter de Péricles enfurecia-o. Entre os seus amigos, escarnecia da altivez de Péricles, da sua dignidade, da aversão ao que era inferior e mesquinho, do intenso patriotismo, da proteção aos artistas, e filósofos, de Aspásia, da ilegitimidade de seu filho. Embora avarento, Tucídides gastava seu dinheiro generosamente para incitar explosões entre as turbas contra Péricles, sabendo que o populacho adorava o ridículo dos homens proeminentes e poderosos, especialmente dos nobres. E sabendo também que as turbas eram naturalmente histéricas e acreditavam em quaisquer rumores perniciosos, Tucídides acusou Péricles não apenas de prolongar desnecessariamente a hostilidade entre Esparta e Atenas, mas também de aproveitar essa hostilidade para "ocultar seus malfeitos e a situação de nosso tesouro, totalmente exaurido", Sabia que as massas ignorantes eram femininamente excitáveis e sempre preocupadas consigo mesmas; quaisquer que fossem os males que pudessem acontecer a Atenas, estavam sempre prontas a acreditar que toda a culpa era de seu líder. Tucídides subornou poetas satíricos e oradores para que atribuíssem os problemas de Atenas à suposta indiferença de Péricles pelos deuses, "o que permanece impune". Não era um fato conhecido que Péricles negligenciava os deuses? Não dissera que "só existe um Deus", quando todos sabiam que existiam muitos deuses e deusas? O amparo a Fídias e sua aprovação da imensa estátua de ouro e marfim de Atena Partenos na acrópole não era uma decorrência de sua devoção, pois a obra já estava concluída há algum tempo e ainda não fora consagrada. Além do mais, era vergonhosamente dispendiosa.
— Olhem só para todas as outras estátuas, templos extravagantes, jardins e terraços na acrópole! — dizia Tucídides. — Não, não é devoção. É a vontade de Péricles de se enaltecer a si mesmo. E ele queria também enriquecer seus amigos escultores, especialmente Fídias. A associação de Péricles com vagabundos pestilentos como Sócrates é uma desgraça para Atenas. Onde está a nossa antiga sobriedade em questões financeiras, onde estão a nossa prudência e responsabilidade? Péricles a tudo corrompeu com sua vaidade e desejo de ser conhecido como líder da cultura e filosofia em Atenas. Mas vamos voltar ao sacrilégio dele: permitiu que Fídias o representasse no escudo de Atenas Pártenos, pronunciado o bastante para que o olho possa discernir! Se Atena não destruir Atenas com um terremoto, igual ao que afligiu Esparta anos atrás, é apenas por ser misericordiosa ou porque espera que os atenienses vinguem o insulto que lhe foi feito!
As turbas invejosas, que já estavam persuadidas de que Péricles deveria ter gasto o ouro do tesouro "em suas necessidades mais humildes e louváveis aspirações por uma vida melhor", foram-se tornando cada dia mais revoltadas. Péricles vivia no luxo. Por que não deveriam eles também ter residências melhores e um sustento mais farto? Para eles, Péricles personificava todos os ricos e aristocratas. Ele, somente ele, era acusado de deliciar-se com o "sofrimento dos pobres". Era um homem egoísta, ambicioso, que detestava os humildes; era um ditador insaciavelmente ganancioso; indubitavelmente desviara recursos do tesouro — para o qual jamais haviam contribuído com o pagamento de impostos — para o enriquecimento pessoal. As joias de Aspásia eram famosas. O dinheiro com que as comprara não teria vindo das bolsas dos humildes? Péricles saqueara Atenas para adornar uma rameira de hábitos vergonhosos e conhecida por sua impiedade. E estava agora tentando desviar a atenção dos cidadãos para seus crimes fazendo tudo para atrair Esparta a uma guerra. Tucídides dizia:
— Todos sabem que, na história das nações, essa tem sido uma tática frequentemente usada pelos tiranos.
Como investidor em diversos empreendimentos envolvidos na fabricação de material de guerra, com os quais enriquecera, Tucídides tomava a precaução de jamais atacar tais empreendimentos ou seus amigos ricos, que também lucravam no mesmo setor.
Como as massas não pensavam, foram facilmente persuadidas de que Péricles possuía um imenso tesouro pessoal, adquirido pela guerra e por investimentos na guerra. Ansiavam por esse tesouro imaginário. Não pensavam sequer por um momento que havia outros homens em Atenas muito mais ricos do que Péricles. Afinal, muitos deles não concordavam tristemente com Tucídides e também acusavam Péricles dos mesmos crimes? E não estavam constantemente proclamando seu amor aos "humildes e explorados"? Onde estava o herói que iria salvá-los daquele homem cruel e implacável?
Por ocasião da morte de Dédalo, Péricles permitira aos filhos, Xantipo e Paralo, o comparecimento aos funerais do avô. Mais do que isso, encorajara-os a comparecerem. Mandara condolências para Dejanira, o que a fizera chorar mais copiosamente do que pela morte do pai. Escrevera depois para Péricles, implorando-lhe que deixasse seu filho mais velho, Calías, voltar do exílio, sem saber que ele já fora convidado a fazê-lo em diversas ocasiões, pelos agentes de Péricles. Há muitos anos que Calías se regozijava com o exílio, que lhe permitira escapar à sua reputação em Atenas e fazer o que bem lhe aprouvesse sem ficar cercado por um mar de rostos desaprovadores. Para a mãe, no entanto, em cartas tristes, fingia estar definhando no exílio. De alguma forma, descobrira que Péricles, de pura compaixão por Dejanira, não a informara da recusa do filho em voltar para Atenas. O que o deixara na maior alegria.
Mas agora ele tomou conhecimento dos ataques violentos ao odiado Péricles, à amante deste e a seus amigos. O desejo de vingança de Calías aumentou ainda mais. Permitiu que o persuadissem a voltar a Atenas. A mãe, muito gorda e pálida, os movimentos pesados e desajeitados, recebeu-o com uma intensa alegria e uma efusão de abraços.
— Tenho-me sentido tão solitária e triste! — lamentou-se ela, cobrindo de beijos o rosto do filho.
— Sei disso. E não lhe vou falar dos meus próprios sofrimentos, ó maís querida das mães! Não sabe quanto eu sonhava em voltar para esta casa, passando as noites em lágrimas. Mas agora estou de volta e nunca mais a deixarei... a não ser que seja novamente forçado ao exílio.
Alguns dias depois de voltar a Atenas, Calías foi à casa de Tucídides, que era quase tão frugal quanto a de Dédalo. Pôs à disposição de Tucídides seu dinheiro e seus talentos, a fim de ajudar a destruir Péricles ou pelo menos compeli-lo ao exílio, "com sua rameira". Ficou exultante ao constatar que o ódio de Tucídides e dos amigos deste quase superava o seu. Os aristocratas ricos envolvidos na conspiração achavam Calías pessoalmente abominável, mas simularam alegria e satisfação pela adesão dele. Calías regozijou-se com as falsas manifestações de admiração por ele, com os protestos de amizade.
Tornou-se mais enfatuado do que nunca. Quando era jovem, aqueles patrícios o evitavam, demonstravam publicamente seu desprezo por ele, abertamente torcia o nariz quando o encontravam. Nunca antes fora admitido em suas casas, jamais se sentara a mesa em companhia deles. Até mesmo suas riquezas não eram suficientes para que lhe oferecessem as filhas em casamento.
— Ele causou a morte do meu amado avô — disse-lhes Calías, com lágrimas espúrias nos olhos, levando todos a assentirem solenemente, embora se estivessem rindo por dentro. — Exilou-me, manteve-me longe da afeição da mais querida das mães...
E Calías continuou a falar nesse mesmo tom, enquanto os outros assentiam solenemente, numa falsa demonstração de compaixão e simpatia. Ao final, ele arrematou:
— Serei vingado dos crimes contra a minha casa e contra a minha cidade.
Todos se mostraram intensamente interessados. Que sugestões ele tinha a oferecer? Não se podia esquecer, afinal, como Péricles salvara Anaxágoras.
— Que agora está morto, depois de ter sido forçado a fugir de Atenas — disse Calías.
— Péricles está mais poderoso do que nunca entre a sua detestável classe média — comentaram os seus novos amigos.
Calías apresentou uma sugestão, que a princípio revoltou seus amigos pela torpeza. Mas, depois que ele se retirou, alguém comentou:
— O próprio fato de o plano ser tão insólito e torpe pode propiciar o seu sucesso. O velho Rei-Arconte está morto e o novo odeia Péricles tanto quanto nós. Neste momento, em pleno verão, Péricles está ausente de Atenas, em uma de suas propriedades no campo, junto com sua concubina. Vamos pensar um pouco na sugestão e agir com o máximo de discrição, para que ele de nada desconfie. Calías é astucioso, mas também extremamente estúpido. Se alguma coisa sair errada, vamos dar um jeito para que toda a culpa recaia somente nele.
Os mais influentes foram escolhidos para apresentar as acusações de peculato contra Fídias, que era agora o amigo mais íntimo de Péricles, desde a fuga e morte de Anaxágoras. Além disso, era culpado da blasfêmia de ter representado a si mesmo e a Péricles no escudo da sagrada Atena Pártenos. Todos sabiam perfeitamente que Péricles insistira em que a imagem de Fídias fosse esculpida no escudo. O tímido escultor recusara, a menos que Péricles — "afinal, você não é maior do que eu?" — também permitisse que seu perfil ficasse gravado no escudo. Péricles acabara cedendo, como um gracejo, apesar de toda a sua relutância.
Era bem mais difícil provar os supostos peculatos de Fídias. Dois dos aristocratas conspiradores foram procurar o guardião dos registros públicos. Sob coação e um suborno vultoso, dinheiro de Calías, ele concordou em falsificar diversos registros, mostrando que Fídias não apenas recebera enormes estipêndíos por seu trabalho e pelo de seus discípulos na acrópole, estipêndíos tão elevados que eram até inacreditáveis, como também exigira frequentemente, com extrema arrogância, mais dinheiro, declarando que o próprio Chefe de Estado o aprovara e apresentando prova em várias cartas.
— Não podemos provar também que Péricles enriqueceu através de peculatos similares? — perguntou Calías.
Embora Tucídídes e os aristocratas muitas vezes insinuassem às turbas que Péricles enriquecera ilicitamente, sabiam muito bem que uma acusação formal de crime acabaria voltando-se contra si mesmos, expondo-os à punição merecida. Estavam bem a par da ira fria e implacável de Péricles. Sabiam que ele era impiedoso na perseguição àqueles que o havia ofendido imperdoavelmente. Assim, persuadiram Calías de que tal ato seria politicamente errado, pelo menos naquela ocasião. Os ataques aos amigos de Péricles eram uma coisa, os ataques a ele pessoalmente eram outra muito diferente, e bem mais perigosa.
— Pelo menos por enquanto não— disseram a Calías, que ficou bastante desapontado.
Os conspiradores se reuniram. Os estipêndíos pagos a Fídias e seus discípulos haviam sido bem pequenos, pela própria insistência do escultor. Além dos registros falsificados, como poderiam provar que ele roubara o ouro do povo? Onde o teria escondido? Era um grande problema, pois todos sabiam como o escultor levava uma vida humilde.
Calías apresentou outra sugestão, que fez os conspiradores prenderem a respiração de espanto. Pensaram e conversaram a respeito e finalmente concordaram em que tinha alguns méritos e era exequível.
Assim, enquanto o exausto Péricles repousava numa de suas mais remotas propriedades rurais, sentindo-se feliz na companhia de Aspásia, do filho do casal e de Paralo, Fídias foi preso sob a acusação de peculato, depois que os registros falsificados foram apresentados ao Rei-Arconte, que era primo de Dédalo e, assim, parente do próprio Péricles. Homem inteligente, se bem que taciturno, rígido e orgulhoso, jamais, perdoara a Péricles o "ataque contra a minha casa, que era também a dele". Pior ainda, tentara persuadir Dejanira a desposá-lo, pois ela era muito rica. Mas Dejanira o rejeitara, através de seu kyrios, declarando que ninguém jamais poderia substituir Péricles em seu afeto.
Fídias foi preso abertamente, no meio dos seus discípulos e assistentes, quando planejava os frontões de mármore para as estátuas que havia projetado. Ele ficou olhando para os guardas, incrédulo, em silêncio total. Depois, ainda aturdido, entregou os planos a um dos discípulos e acompanhou os guardas, sem dizer uma única palavra, a cabeça calva e rosada subitamente pálida, o rosto inerte do choque, os largos ombros vergados. Os pés metidos em sandálias estavam cobertos de poeira do mármore, assim como as roupas simples. As multidões paravam para vê-lo passar, desconcertadas, todos se entreolhando com expressões inquisitivas. Roubo? Peculato? Nunca alguém tivera tão pouca aparência de ladrão.
Um dos discípulos de Fídias, jovem de considerável fortuna pessoal, pegou o melhor cavalo do seu estábulo e partiu imediatamente para a propriedade rural de Péricles, embora já fosse o pôr-do-sol e se estivesse aproximando a noite quente e sem lua. Estava quase amanhecendo quando ele chegou à propriedade. Acordou os escravos e insistiu em falar com Péricles imediatamente. Até mesmo os soldados que guardavam a propriedade ficaram impressionados com seu desespero e súplicas de urgência.
Péricles foi acordado, o rosto pálido e vincado pelas preocupações crônicas. Levantou-se do leito de Aspásia, onde estava dormindo tranquilamente, vestiu uma túnica e saiu para o pequeno átrio da casa. O discípulo de Fídias, extenuado, caiu de joelhos diante de Péricles, a quem adorava, e desatou a chorar, mal conseguindo falar. Passaram-se alguns momentos antes que Péricles pudesse entender o que acontecera. E ficou totalmente incrédulo quando soube.
— Eu estava de pé ao lado de meu mestre Fídias quando o prenderam! — gritou o rapaz, segurando a bainha da túnica de Péricles. — Juro por Deus que é verdade!
Péricles virou-se para o lado, o rosto pálido se contraindo. Quem poderia ser o culpado daquela enormidade? Esfregou os olhos, ainda incapaz de aceitar a triste notícia. O caso de Anaxágoras já fora bastante terrível. Aquele era muito pior, pois Fídias nunca lançara dúvida alguma sobre qualquer dogma, em particular ou publicamente. Ao contrário, era o mais devoto dos homens, o menos controverso, o menos capaz de provocar alguma hostilidade. Era acima de tudo tímido e retraído, jamais o tinham ouvido dizer qualquer palavra impaciente. Era sempre gentil e compassivo. Não podia passar nem mesmo pelo mais repulsivo dos mendigos sem lhe dar uma moeda de sua pequena bolsa. Os mendigos sabiam disso e bastava que Fídias aparecesse nas ruas para que prontamente o cercassem, estendendo as mãos, em súplica. Não se podia acreditar que um homem assim, com um gênio tão estupendo, pudesse ser acusado de blasfêmia e roubo. Reconhecia-se amplamente que Fídias era a glória de Atenas, acima de todos os outros, as multidões o reverenciavam abertamente, ilustres visitantes estrangeiros faziam questão de visitá-lo. Todos se impressionavam com a sua modéstia, a ternura de seu caráter, os olhos reluzentes, em que não havia qualquer maldade, mas apenas caridade.
Sou uma calamidade para aqueles a quem amo, pensou Péricles. Ele disse a Ífis, que quase sempre o acompanhava naqueles dias:
— Se houve realmente alguma blasfêmia, foi cometida por aqueles que acusaram Fídias. Vou partir imediatamente em socorro dele e providenciarei sua defesa. — Com uma expressão terrível, como Ífis nunca antes vira, ele acrescentou; — Desta vez, os ignóbeis acusadores receberão o que merecem. É o que juro, perante Deus! Jamais descansarei enquanto não forem levados à justiça!
Péricles partiu a cavalo com Ífis, dois soldados e o discípulo de Fídias, no momento em que o amanhecer lançava pálidas sombras púrpuras sobre os campos. Tinha uma premonição de desastre, mais forte do que qualquer outra coisa que experimentara antes. Não disse uma só palavra durante todo o percurso, nem mesmo quando entraram em Atenas. Seguiu direto para sua casa e tomou um banho, pois estava coberto de poeira e suado. Vestiu seus trajes oficiais, comeu alguma coisa e foi para o seu gabinete.
Ali chegando, chamou imediatamente seu primo, o Rei-Arconte, Políbio, para uma reunião. Sentia a cabeça latejar sob o capacete aquecido, tinha a impressão de que o coração a qualquer momento iria explodir dentro do peito. Não tinha a menor dúvida de que poderia salvar Fídias e inocentá-lo completamente. Afinal, todos o amavam, menos as turbas e uns poucos aristocratas, não apenas por seu gênio, mas também por sua bondade e falta de ostentação.
Para Péricles, o verdadeiro crime eram as acusações e calúnias. Fídias não corria perigo. Amanhã, seus acusadores seriam alvo do escárnio de Atenas. Sofreriam a vingança do Chefe de Estado pelo insulto que haviam feito a Fídias.
O antigo Rei-Arconte tinha mais de noventa e cinco anos quando morrera. O atual Rei-Arconte, Políbio, tinha menos de sessenta anos; era um homem baixo e magro, o rosto pálido e encarquilhado, os olhos pequenos e opacos, o nariz grande, a boca larga, os cabelos grisalhos bem ralos. As mãos eram também encarquilhadas, as atitudes precisas, formais, rígidas. Apertou a mão de Péricles, que cortesmente convidou-o a sentar-se e lhe perguntou se desejava vinho ou qualquer outra coisa,
— Não — disse o Rei-Arconte, bruscamente. — Chamou-me, Péricles, filho de Xantipo. O que deseja?
Péricles recordou-o em sua própria juventude; jamais houvera qualquer simpatia mútua. A beleza de Péricles sempre provocara ressentimento em Políbio. Além disso, o pai dele quisera casar-se com a mãe de Péricles, Agariste, depois da morte de Xantipo, mas ela recusara firmemente. Assim, tanto Políbio quanto o pai, haviam sido repudiados por mulheres da família. Por alguma razão obscura, totalmente irracional, Políbio estava convencido de que Péricles era culpado.
Péricles disse:
— Fui informado de que meu amigo, o glorioso artista Fídias, foi preso sob acusações tão absurdas que os próprios cães vadios das ruas estão achando graça.
Políbio respirou fundo, fixando Péricles com um olhar frio.
— As acusações não são absurdas. Estão baseadas em provas.
Péricles recostou-se na cadeira, com um sorriso negligente, enquanto fervia de raiva por dentro.
— Que provas, Políbio?
O homem mais velho sacudiu a cabeça.
— Conhece perfeitamente a lei, Péricles, melhor que qualquer outro. As provas não devem ser apresentadas ou reveladas senão quando o criminoso comparecer perante o juiz e o júri. Por isso, nada posso dizer-lhe. Mas uma coisa lhe adianto: estou convencido da veracidade das acusações. Ví as provas pessoalmente.
Políbio podia ser extremamente antipático, pelo menos para Péricles, mas era conhecido por sua integridade; se seu julgamento era severo, pelo menos era também justo. A incredulidade de Péricles não era simulada.
— Acredita realmente que Fídias é culpado de blasfêmia e peculato?
— Acredito.
— Sei o quanto foram ridiculamente modestos os honorários que Fídias recebeu. Ele próprio os fixou, embora eu tivesse insistido em que aceitasse mais. Muitos dos seus discípulos e associados não aceitaram coisa alguma. Para eles, era suficiente ajudarem o mestre.
Ele parou de falar, fazendo um esforço para controlar a raiva intensa. Políbio insistiu:
— Examinei as provas pessoalmente.
— Pois então eram provas falsificadas e os miseráveis que as providenciaram serão descobertos e punidos! Posso-lhe garantir isso, com toda certeza!
Até mesmo o Rei-Arconte sentiu-se intimidado com o olhar de fúria implacável de Péricles e remexeu-se na cadeira, nervosamente.
— Está-me ameaçando, Péricles?
— Não, não a você. Conheço muito bem o seu caráter. Mas foi terrivelmente enganado por provas fraudulentas, apresentadas por homens que não têm quaisquer escrúpulos. É o que irei provar e que eles se acautelem, pois nada me impedirá de levá-los à justiça!
— Se puder provar, pode estar certo de que contará com toda a minha atenção.
— Jamais tive qualquer dúvida quanto a isso, Políbio. A única coisa que me espanta é que tenha acreditado, com base em provas falsificadas, que Fídias é culpado de qualquer outra coisa que não possuir a mais terna e gentil das naturezas. É um homem inteligente e instruído, não é um tolo que possa ser persuadido por mentiras inconcebíveis. É por isso que me confesso aturdido.
Políbio examinou cuidadosamente suas mãos pálidas, ficando em silêncio por um momento. Depois disse, com evidente relutância:
— Se eu não tivesse visto as provas pessoalmente e não escutasse o juramento do homem que não podia deixar de saber de sua veracidade, não teria acreditado. Confesso que fiquei consternado, até ser finalmente convencido. Reconheço que não sinto qualquer amor por Fídias, mas as provas me forçaram a determinar sua prisão, E há também a questão da blasfêmia.
— E qual foi a blasfêmia?
Políbio olhou para Péricles com uma hostilidade óbvia.
— Ele pôs o seu rosto e o dele no escudo de Atena Pártenos.
Péricles sorriu.
— Por insistência minha. — Ele fez uma pausa, antes de acrescentar: — Está-me acusando também de blasfêmia, Políbio?
— Não estou a julgá-lo.
— Prefere ser evasivo. Os juízes são famosos por isso e não vou censurá-lo. Mas não acha que um artista como Fídias merece ter seu nome ou rosto num lugar tão insignificante quanto o escudo? Está ali para ser reverenciado pelas eras futuras.
— Seu rosto também lá está.
Nesse momento, apesar das emoções intensas que o dominavam, Péricles não pôde deixar de rir.
— Fídias insistiu. Se acha que é melhor, mandarei apagá-lo, para que as eras futuras não se lembrem de mim, apenas de Fídias concedendo-lhe a honra que merece.
Como Políbio não fizesse qualquer comentário, Péricles continuou:
— Deve admitir que a estátua é a criação mais exaltada e prodigiosa de Atenas.
— Foi dispendiosa demais.
O homem mais velho era obstinado. Péricles lembrou-se de que Políbio era tão avaro quanto o primo Dédalo, talvez ainda mais. E disse, em voz suave:
— Meu caro Políbio, não acha que a nossa deusa padroeira é digna de qualquer custo?
O rosto encarquílhado de Políbio ficou vermelho.
— Ela não gostaria de que Atenas fosse à falência por sua causa.
— O custo da estátua não passou de uma ínfima moeda de cobre em comparação com o que temos gasto e continuamos a gastar nas pequenas guerras e escaramuças com Esparta e seus aliados.
O Rei-Arconte já ouvira o rumor de que Péricles criara diversões com aquelas guerras, a fim de desviar a atenção das turbas do mercado e de outros das suas próprias negligências e falcatruas. O Rei-Arconte não acreditava nisso, mas gostaria de que fosse verdade.
— Mesmo assim — disse ele — nestes tempos difíceis e dolorosos, foi uma loucura gastar tanto na estátua... mesmo que seja em homenagem à nossa deusa protetora. Os deuses não apreciam a extravagância nos homens.
— Se Atena sabe da estátua que lhe foi erigida, o que certamente acontece, vai ficar tão satisfeita por termos feito tamanhos sacrifícios em sua homenagem que nos irá trazer a paz ou pelo menos castigar Esparta.
— É um sofisma para desculpar a extravagância da qual é culpado, Péricles.
Os olhos pequenos começaram subitamente a brilhar.
— É que sou um homem arrojado. Desejo apenas o melhor e o mais bonito para a nossa deusa! E me confesso culpado de devoção em excesso!
— É uma devoção um tanto estranha — comentou Políbio, sorrindo.
Péricles sorriu também e o Rei-Arconte acrescentou;
— Não existe amor entre nós, Péricles. Mas lhe asseguro que Fídias terá um julgamento justo.
— Não precisava dizer isso, Políbio. Eu já sabia, mesmo sem qualquer declaração sua. Não receio o julgamento. Minha raiva não é motivada por preocupação ou apreensão por Fídias, mas sim pelo absurdo cruel das acusações que formularam contra ele, pelas calúnias monstruosas.
O Rei-Arconte permaneceu em silêncio. Péricles tornou a encher sua própria taça, antes de perguntar:
— Não me vai mesmo dizer quem apresentou as acusações?
— Não. Isso só será revelado no julgamento.
Péricles contemplou-o por um longo momento, pensativo.
— Sabe quem são os homens?
O Rei-Arconte não respondeu. Os olhos de Péricles se estreitaram.
— Pode pelo menos dizer-me se são homens honrados?
— Posso assegurar-lhe que são.
Pela primeira vez, Péricles sentiu um calafrio de alarme. Os homens eram, portanto, seus inimigos poderosos e não se deteriam diante de nada para feri-lo, por intermédio dos seus amigos. Repassou mentalmente os nomes desses inimigos. Subitamente, sem que houvesse qualquer razão aparente, seus pensamentos se concentraram num único nome: o de Calías, o desprezível, o porco, o brutal. Disse a si mesmo, porém, que Calías podia ser maligno, mas não possuía inteligência suficiente para conseguir enganar um homem como Políbio. O Rei-Arconte podia ser tudo mais e Péricles sentia por ele uma antipatia profunda, mas tinha certeza de que jamais se deixaria subornar, embora não renunciasse a qualquer possibilidade de prejudicar Péricles, em circunstâncias irrepreensíveis. Era evidente que Políbio, sem o saber, fora completamente iludido, não apenas pelos homens que haviam apresentado as falsas acusações contra Fídias, mas também por suas posições elevadas, que na mente do Rei-Arconte os tornava incapazes de mentiras e perjúrio.
Péricles jamais soube o que o levou a dizer abruptamente:
— O filho de Dejanira, Calías, faz parte da conspiração contra Fídias?
— Não vejo Calías desde que ele voltou do exílio.
— Não respondeu à minha pergunta, Políbio — disse Péricles, com extrema firmeza.
— Acha que homens honrados se iriam associar a Calías? — indagou o Rei-Arconte, indignado. — Acredita mesmo que eu, apesar de parente, poderia acreditar nas palavras de um patife como Calías?
Dominado pela indignação, Políbio levantou-se bruscamente, o rosto tão furioso quanto o de Péricles. Era como se ele tivesse sido mortalmente insultado.
Péricles disse:
— Não, você jamais acreditaria em Calías. Mesmo assim, há algo de nebuloso em minha mente com relação a Calías, ligando-o a este caso,
— Nenhum homem de integridade ou família jamais receberia Calías.
— Concordo plenamente. Mas um homem é capaz de pegar até mesmo a pedra mais imunda para arremessar, se isso serve a seus propósitos.
O Rei-Arconte fez uma mesura rígida.
— Se me permite, vou sair agora, pois há três casos à minha espera para julgamento esta manhã e já estou atrasado.
Péricles dispensou-o. Depois, chamou sua guarda e seguiu para a prisão, onde encontrou Fídias numa cela relativamente limpa. O escultor recebeu-o com afeição, mas disse:
— Está correndo perigo ao vir visitar-me, meu amigo.
— Não diga bobagem. Vou defendê-lo e transformarei seus inimigos e os meus no alvo das risadas de toda a Grécia.
Fídias não estava com medo. Franziu o rosto por um momento, pensativo.
— Há momentos em que também tenho de rir. Mas homens melhores do que eu já foram assassinados por mentiras, Péricles. Como ofendi ao povo de Atenas?
A expressão dele era ingênua e aturdida. Péricles ficou profundamente comovido e a raiva novamente o dominou.
— Não fez nada de mais, a não ser dedicar sua vida a Atenas. Portanto, nada precisa temer, Fídias.
— E nada temo. — Fídias sentou-se no banco, abaixou a cabeça. — Não consigo entender. Deve ter havido algum erro.
— Que será rapidamente retificado.
Fídias levantou a cabeça e sorriu.
— Quanto a isso, não tenho a menor dúvida. Mas sinto-me profundamente magoado de que alguém tenha suspeitado de que fui capaz de cometer qualquer mal.
Péricles pôs a mão no ombro dele.
— Para atenuar, essa mágoa, trouxe duas garrafas do meu melhor vinho e alguns dos meus queijos mais refinados, além de uma deliciosa galinha assada. Vou ordenar que seja julgado amanhã, o mais tardar... e estarei presente para defendê-lo... a fim de que possa voltar prontamente a seu trabalho na acrópole, sob os aplausos de toda Atenas.
O rosto de Fídias ficou radiante.
— Isso é ótimo! Temos de encomendar o mármore para os frontões. Estava procurando determinar as dimensões quando fui preso.
Os guardas da prisão olharam inquisitivamente pelas barras da cela, enquanto Péricles punha sobre a mesa as provisões de primeira qualidade que trouxera para Fídias. Também trouxera facas e lençóis de sua própria casa. Fídias ficou olhando para tudo aquilo com uma ingenuidade infantil e depois comentou, em tom de surpresa:
— Só agora me estou lembrando de que ainda não comi nada hoje. Mas já estou sentindo o apetite despertar.
Péricles, tendo que tratar de outros problemas, deixou-o a desfrutar a refeição, depois de abraçá-lo.
Péricles sentia-se menos animado do que demonstrara a Fídias; não que realmente temesse pela vida ou segurança do amigo, mas por causa de sua ira contra aqueles que haviam acusado o escultor. Saberei os nomes deles amanhã, disse a si mesmo, e terei uma confrontação com esses homens "honrados"! Vão descobrir, para seu pesar, o que realmente é a justiça!
Ele voltou para sua casa ao crepúsculo, cansado e preocupado. A casa estava vazia da beleza de Aspásia, da alegria de seu filho pequeno, da companhia de Paralo, que se casara recentemente com a filha de uma casa notável. Paralo se tornara um jovem e respeitado filósofo, sob a tutela de Sócrates. Estava escrevendo uma tese sobre seus estudos, que até mesmo o pai cético achara ser original e extremamente lúcida. A presença do jovem era tão encantadora que poucos notavam as pálpebras encolhidas por cima do olho cego. Péricles amava-o profundamente e sentia o maior orgulho dele.
Xantipo era agora capitão do Exército e estava constantemente empenhado em combater na Ática contra os espartanos. Volta e meia escrevia para o pai, comentando que os espartanos podiam ser ridículos, mas eram também bravos e valorosos.
Péricles chegou a casa temendo a solidão que o esperava. Acalentou a esperança de que houvesse pelo menos uma carta de Xantipo. No átrio, teve uma surpresa: foi recebido pelos gritos alegres do pequeno Péricles e pelos sorrisos e abraços da radiante Aspásia, ainda deslumbrante, apesar dos cabelos cobertos de poeira e das rugas em torno dos olhos cor de topázio. Paralo também ali estava, sorrindo; abraçou o pai, assim que Péricles conseguiu desvencilhar-se dos braços vigorosos de seu filho mais moço.
— Acha que não viríamos ficar a seu lado numa situação como esta, querido? — perguntou Aspásia. Ela contemplou ansiosamente o rosto de Péricles, antes de acrescentar: — Partimos imediatamente, depois que os escravos informaram que tinha voltado para Atenas.
— Devem estar exaustos — comentou Péricles.
Ele beijou-a afetuosamente, como sempre fazia ao entrar ou sair de casa, para desaprovação dos atenienses, que tinham ouvido falar desse costume e não o aprovavam.
— Não, não estamos. Até que foi uma viagem agradável.
— Mas-a cidade está agora muito quente e fétida.
— O que representa isso para nós, se assim temos a oportunidade de ficar a seu lado?
Mais tarde, Péricles contou-lhe o que acontecera com Fídias„ Como ele próprio, Aspásia mostrou-se incrédula, a cor desaparecendo inteiramente de suas faces. Paralo disse:
— Mas é incrível demais! Como podem acusar Fídias de peculato e blasfêmia?
— A princípio, também não acreditei, Paralo. Mas estamos vivendo dias inacreditáveis. Declaramos que vivemos numa democracia livre, mas descobri há muito tempo que não há liberdade numa democracia, apesar de ser considerada como o governo de um estado por homens livres, através de autoridades eleitas. O suborno e a traição são as características das democracias, cujo suicídio é inevitável.
Naquela noite, Péricles passou muito tempo em sua biblioteca-, pensando e preparando a defesa de Fídias. A intervalos, levantava-se. e andava de um lado para outro, sacudindo a cabeça. Agora estava, realmente temeroso, não por Fídias, mas por sua cidade; se coisas assim podiam acontecer a alguém como o escultor, então nenhum homem estava seguro e não havia, uma justiça verdadeira, mas apenas, emoções caóticas e falsidades, as piores venalidades.
Capítulo 14
Na manhã seguinte, Péricles chegou a seu gabinete muito cedo, quando os primeiros raios do sol ainda invisível mal começavam a incidir sobre o imenso rosto dourado de Atena Pártenos. Os olhos altivos e serenos da deusa estavam voltados para leste, o elmo iluminado, a mão segurando a lança, A ponta da lança parecia estar em chamas. Mas o corpo de ouro e marfim ainda se achava mergulhado nas sombras. O trabalho estupendo de Fídias jamais deixava de impressioná-lo. Era uma criação imortal. Mesmo que a deusa se desintegrasse com o tempo, o que era inevitável, as eras futuras iriam recordar sua existência e que fora criada por um homem simples e modesto. Quem seria então o deus, Fídias ou Atena?
Atenas se estendia sob toda aquela imponência, ainda no escuro e amorfa, nos braços de suas colinas. O grande rosto dourado muito acima da cidade, incendiado pelos primeiros raios do sol, desafiava o próprio sol.
A Agora, jamais vazia a qualquer momento do dia ou da noite, tinha apenas uns poucos homens a se deslocarem de um lado para outro apressadamente, carregando lanternas, que ainda não haviam apagado. O barulho dos cascos dos cavalos de Péricles e seus soldados provocou sobressaltos em alguns desses homens. Uns poucos gritaram em cumprimento. Péricles saudou-os distraidamente. Entrou em seu gabinete e começou imediatamente a examinar seus dossiês. Mas o Rei-Arconte insinuara que Fídias seria julgado apenas perante ele e o júri, tão grave eram os seus supostos crimes. O que significava que, se considerado culpado, seria condenado à morte e não simplesmente ao exílio.
Se ao menos eu soubesse os nomes dos acusadores! pensou Péricles. Ele estava fervendo de raiva, sentado à sua mesa. Em breve saberia. Estudou inúmeros dossiês, tomando vinho e comendo azeitonas e queijo. Dormira muito pouco naquela noite, a mente em turbilhão, dominada por uma ira intensa. Dissera a Aspásia que naquela noite levaria Fídias para jantar em sua casa e que deveria despachar escravos para convidar outros amigos, a fim de que todos pudessem regozijar-se com o escultor por sua libertação.
Os escribas e burocratas estavam começando a chegar. Péricles podia ouvir-lhes os passos e vozes sonolentas. Ainda reinava uma semi-escuridão, cinzenta e difusa. O sol em breve estaria acima das colinas a leste. O frio não muito intenso da noite desapareceria rapidamente e ondas de calor entrariam pela janela, a cidade estaria novamente pulsando de vida. Um raio de sol entrou na sala de Péricles, como se fosse uma flecha de luz.
O caso de Fídias, por ser muito importante, seria levado ao Rei-Arconte e ao júri antes do meio-dia, quando o calor já estaria intenso. Os casos menos importantes seriam julgados primeiro. Enquanto esperava, Péricles tinha que cuidar dos diversos pergaminhos e outros documentos em sua mesa, um trabalho tedioso, mas necessário, preparado meticulosamente pelos burocratas. Péricles já estava começando a suar. Tirou o elmo e colocou-o ao alcance da mão, pois raramente era visto com a cabeça, descoberta fora de sua casa. Depois de tantos anos, ainda era sensível à testa alta e crânio comprido. Os cabelos fulvos estavam grisalhos nas têmporas e logo acima da testa havia uma mecha de cabelos brancos. Parecia agora mais leonino e mais terrível do que na juventude. A impressão de vigor era acentuada pelo rosto, que se tornara mais pálido e vincado nos últimos anos, mais sombrio também, perdendo toda a suavidade anterior.
Faltando menos de duas horas para o meio-dia, um dos burocratas entrou na sala para anunciar que o Rei-Arconte solicitava uma audiência imediata com Péricles. Ah, pensou Péricles, exultante, ele veio-me dizer que Fídias nem será julgado, que todas as acusações foram retiradas e que ele está livre! Sorrindo, Péricles levantou-se para receber Políbio, que foi introduzido cerimoniosamente na sala. Deu um passo na direção dele, mas logo viu a expressão do homem mais velho e estacou abruptamente, sentindo o coração contrair-se de angústia.
O rosto do Rei-Arconte estava mais pálido do que nunca. Ele parecia terrivelmente nervoso e seus lábios se moviam silenciosamente. Numa das poucas vezes em toda a sua vida, Péricles começou a tremer. Segurou o Rei-Arconte pelo braço, levou-o a uma cadeira, gritando:
— O que aconteceu? Por que me veio procurar?
Políbio afundou na cadeira. Pôs as mãos sobre o rosto, esfregando-o, enquanto Péricles continuava de pé à sua frente, gritando:
— Conte o que aconteceu! Tem que me contar!
Políbio mostrava-se ofegante. Esfregou os olhos com as pontas dos dedos. Baixou as mãos em seguida e Péricles viu que as pálpebras dele estavam vermelhas e ressequidas, como se ardessem intensamente. Subitamente, tornara-se muito velho e débil. Balbuciou:
— Vinho, em nome dos deuses...
Com mãos que tremiam violentamente, Péricles serviu-lhe vinho e levou a taça a seus lábios, dominado por uma terrível impaciência e presságio. O Rei-Arconte bebeu, tossiu, quase engasgou. Segurou a taça, largou-a pela metade sobre a mesa; a taça virou, rolou sobre a mesa, derramando o vinho por toda parte, e caiu ao chão estrepitosamente. O vinho impregnou a sala com um odor acre.
— Fale! — ordenou Péricles, agora com um pavor quase insuportável.
— Fídias... — murmurou, Políbio, em voz tão fraca que Péricles quase não pôde ouvi-lo. — Ele está morto...
— Morto... — repetiu Péricles.
Naquele momento, a palavra não tinha qualquer significado para ele, pois fora invadido por um terrível calafrio, apesar de todo o calor. O suor frio rolava-lhe pelo rosto, corpo, braços e pernas.
— Envenenado — acrescentou Políbio.
Péricles não pôde mais aguentar. Desabou em sua cadeira, olhando atordoado para o parente.
— Envenenado... — repetiu ele. — Quando? Por quem?
Péricles estava dominado por uma incredulidade total. Não era possível. Estava murmurando palavras alucinadas, palavras que lhe eram transmitidas por um louco mais velho. Fídias, a glória de Atenas, não podia estar morto. Não podia ter sido... assassinado! Não, não era possível, Era tudo uma loucura total.
Péricles, perdendo todo o controle, inclinou-se sobre a mesa e agarrou o pulso frágil de Políbio, sacudindo-o tão violentamente que todo o braço do Rei-Arconte balançava como o de um boneco. A violência fez inclusive com que seu corpo inerte se deslocasse, afundando ainda mais na cadeira. Somente a mão firme de Péricles impediu-o de cair no chão. Políbio via o rosto de Péricles como se fosse um pesadelo e se encolheu de pavor.
A voz de Políbio, tão frágil quanto o crepitar de uma folha caída sendo esmagada sob o pé, saiu-lhe dos lábios inteiramente brancos:
— Ele foi encontrado morto pouco antes do amanhecer, pelos guardas especiais. Havia algum vinho na mesa e restos de comida. — Políbio fez uma pausa, fitando Péricles com uma expressão assustada. — A comida foi dada a um cachorro... que morreu. Continha cicuta.
A sala ficou escura e começou a oscilar em torno de Péricles. Girando dentro dela, ele ficou repetindo para si mesmo, interminavelmente: Não, estou sonhando. Ou morrendo. Como se fosse de uma distância enorme, ouviu Políbio dizer:
— Recebi a notícia há cerca de uma hora. E vim procurá-lo assim que consegui recuperar-me.
Assassinado, pensou Péricles. Sentia uma dor insuportável entre as têmporas, passando pela testa em ondas intoleráveis de angústia. Não sabia que tinha fechado os olhos e estava tremendo.
— Sou um homem justo — disse Políbio. — E sei que você não foi o culpado. Afinal, não amava Fídias e não tratou de correr em sua ajuda assim que soube de sua prisão? É incapaz de um ato desses. E é também... meu parente. Mas quem pôs o veneno na comida do infeliz Fídias? Já interroguei os guardas.
Péricles abriu os olhos; sentia as pálpebras tão pesadas que teve de fazer um tremendo esforço para descerrá-las. Seu rosto era o de um homem às portas da morte. A garganta estava tão ressequida que teve de engolir em seco várias vezes, para molhá-la com um pouco de saliva. E finalmente murmurou:
— Comi pessoalmente daquela comida, em minha casa. Minha velha cozinheira é que arrumou a cesta que levei para a prisão. Nada estava envenenado, nem o vinho, nem o queijo, nem a galinha.
A angústia em sua cabeça estava agora na garganta, desferindo pontadas no coração. O rosto de Políbio avançava e recuava diante dele, em meio a uma neblina. Sentiu mais quando viu Políbío ter um sobressalto.
— Vinho? Queijo? Galinha? E o peixe assado e pastéis que mandou para Fídias pouco antes do amanhecer?
A voz do homem mais velho estava aturdida, embora já um pouco mais firme.
— Não mandei nada — balbuciou Péricles. — Foi só ontem que levei comida a Fídias, pessoalmente, vinho, queijo e galinha, para o jantar dele.
Políbío pôs-se a fitá-lo em silêncio. Esperou por um momento, até achar que Péricles já estava mais calmo:
— Mas um dos seus escravos levou o peixe e os pastéis, dizendo aos guardas que eram ordens suas. Falou também que você desejava que o ilustre Fídias estivesse descansado e revigorado para enfrentar o julgamento.
Péricles começou a sacudir a cabeça, desesperado, sem conseguir parar.
— Não mandei ninguém. Meus escravos estão em minha casa há muitos anos e confio em todos. Nenhum deles teria motivos para assassinar Fídias.
Péricles desferiu um murro violento na mesa. Um escriba entrou correndo na sala e Péricles mandou que fosse chamar seus soldados, para virem imediatamente à sua presença. O escriba fez uma reverência, depois de olhar para Péricles com espanto. E saiu correndo. Os dois homens ficaram sentados em silêncio. Os ombros largos de Péricles não paravam de tremer.
Os soldados entraram apressadamente e Péricles disse-lhes:
— Alguém deixou minha casa a qualquer hora da noite ou da madrugada?
Ífís respondeu:
— Não, meu senhor, ninguém deixou a casa. Encarreguei-me pessoalmente da patrulha muito antes do amanhecer e meus homens informaram que, antes disso, ninguém se havia aproximado ou afastado da casa. Nem mesmo um rato poderia ter passado sem o nosso conhecimento.
Os outros soldados assentiram categoricamente e fizeram uma saudação. Ífís ficou alarmado com a palidez e expressão de Péricles, indagando:
— Deve acreditar em mim, meu senhor. Aconteceu alguma calamidade?
Políbío falou, pois Péricles parecia naquele momento incapaz de dizer qualquer coisa:
— Confia nos escravos da casa de Péricles, Capitão?
— Claro que confio. Conheço a todos, há muitos anos. Não há nenhum novo, macho ou fêmea.
— Não há nenhum jovem de aspecto agradável, de boa altura, com uma voz cativante e maneiras simpáticas, como se tivesse considerável educação?
— Não, senhor. O mais jovem já passou dos trinta anos e é parcialmente aleijado. Péricles quis conceder-lhe a liberdade, com um estipêndio vitalício, mas o escravo suplicou que não o mandasse embora da casa e recusou a liberdade.
Péricles já podia agora falar, aos arrancos:
— Fídias foi encontrado envenenado esta manhã, Ífis. A comida que continha o veneno foi levada por alguém que disse ser da minha casa e estava ali por ordens minhas. O desconhecido declarou que era meu escravo.
Ífis deixou escapar uma exclamação estrangulada, uma imprecação mal disfarçada.
— Impossível! — gritou ele, a voz alteada, os olhos castanhos esbugalhados, fixados em Péricles. — Não acredito!
— É verdade — disse Políbio. — Os guardas descreveram-no quando os interroguei. Estavam tão consternados quanto eu. E não são os guardas regulares da prisão, Capitão. São soldados da sua própria companhia. Não tenho motivos para acreditar que estejam mentindo. Foram-me mandados por seu oficial superior, a meu pedido, pois eu estava convencido... — Ele fez uma pausa, olhando rapidamente para Péricles. — ... pois estava convencido de que Fídias era inocente das acusações apresentadas contra ele e queria que estivesse bem protegido.
Péricles prontamente se agitou:
— Por que estava temendo, Políbio, que alguém pudesse querer matar Fídias antes do julgamento, levando-o a providenciar os guardas especiais?
Políbio hesitou por um instante.
— Vamos dizer que foi uma intuição de velho, uma dúvida de velho, depois que conversamos ontem, Péricles. Nunca antes eu havia tomado tal providência para qualquer prisioneiro. Disse a mim mesmo que a medida era um absurdo e, como regra geral, não sou homem de absurdos. Mas continuei apreensivo, sem conseguir determinar por quê.
— Mas por que haveriam de querer assassinar Fídias, meu senhor? — indagou Ífis, aproximando-se mais de Péricles, numa atitude protetora. — As acusações contra ele eram graves. Foi o que me disseram na cidade e o que me falou o próprio Péricles. Ele podia ser condenado à morte ou exilado. Portanto, por que precisariam assassiná-lo?
Políbio hesitou novamente.
— Não tenho provas, mas posso dizer uma coisa: Alguém estava com medo de que Fídias fosse absolvido e libertado. Ou alguém odiava Péricles a tal ponto que quis feri-lo dessa maneira, garantindo a morte de Fídias. Ou...
— Ou o quê, senhor?
Políbio desviou os olhos.
-— Ou alguém desejava espalhar o rumor de que o próprio Péricles desejava a morte de Fídias.
— Mas por quê? — gritou Ífis. — Todos sabem que eram grandes amigos, mais íntimos que irmãos!
O rosto vigoroso do soldado estava atônito.
— Sei disso, — Políbio pensou por um momento, passando a mão pelo rosto, antes de acrescentar: — Como Esopo diria, eles mataram dois pássaros com uma só pedra. Privaram Péricles de seu melhor amigo e assim o feriram quase mortalmente. E podem também espalhar o rumor de que Péricles mandou envenenar Fídias, a fim de torná-lo amaldiçoado aos olhos de todos os cidadãos de Atenas.
Ífís estremeceu. Seus pensamentos concentravam-se agora em seu general, Péricles, quase esquecendo inteiramente a Fídias.
— Mas será fácil provar que não existe na casa de Péricles nenhum escravo como o que apareceu na prisão.
— Poderão dizer que o desconhecido era um assassino contratado. Se puderem convencer Atenas disso, então o desastre do que aconteceu a Fídias será menor que o desastre que poderão infligir a Péricles.
— Ó deuses! — sussurrou Ífis.
Ele serviu algum vinho para Péricles e forçou-o a beber. Pôs a taça outra vez em cima da mesa e cerrou os punhos. Os olhos brilhavam de ira.
— Ah, como eu gostaria de ter esses homens na minha frente agora!
— Tenho outra ideia — disse Políbio. — É possível que muitos homens pensassem que Fídias seria levado a julgamento e incriminaria Péricles nos crimes de peculato e heresia.
— Mas o povo jamais acreditaria nisso!
Políbio suspirou.
— Sou um velho e jamais fiz tal declaração antes: mas a verdade é que o povo acreditará em qualquer coisa a respeito de alguém como Péricles.
Péricles despertou outra vez de sua letargia e olhou para Políbio com uma expressão fulminante:
— Diga-me agora, Políbio, meu parente: quem foram os homens que apresentaram as acusações contra Fídias?
Políbio ergueu as mãos.
— Como Fídias está morto, não há mal algum em contar-lhe, pois as provas já não servem para mais nada. Tucídides, o agiota, veio-me procurar em companhia de Polícrates, o guardião do tesouro, em Atenas. Tucídides declarou que Polícrates fora falar-lhe, como um velho amigo, mostrando os registros de que Fídias recebera somas vultosas por seu trabalho na acrópole. Em diversas ocasiões, Fídias teria exigido o dinheiro afirmando que eram ordens suas. Chegou a exibir cartas que supostamente teriam sido escritas por você, Péricles. Mas sempre ficou com as cartas. Fiz Polícrates prestar o mais solene dos juramentos e depois ele repetiu todas as acusações. Disse que o caso o afligia intensamente, pois era seu amigo e você é que o tinha designado para o cargo de guardião do tesouro. Implorou-me que não lhe falasse coisa alguma, pois não desejava fazê-lo sofrer. Mas acrescentou que já não podia calar-se a respeito dos atos de Fídias, pois a consciência o estava atormentando cada vez mais. Estava convencido de que as cartas apresentadas por Fídias não haviam sido escritas por você. Mas precisava revelar a verdade, em defesa própria.
Políbio fez uma breve pausa.
— Ele insistiu novamente em que não acreditava que você estivesse a par do roubo, do peculato. Implorou-me novamente que não lhe contasse coisa alguma. E eu, infelizmente, não tive a menor dúvida de sua sinceridade. Achei que a angústia dele era genuína.
Outra pausa e ele acrescentou, quase se lamentando:
— Afinal, Polícrates não é de uma grande e ilustre família? Por que eu deveria duvidar da palavra dele?
— Ou da palavra do velho agiota Tucídides?
Políbio abriu os braços.
— Sei que ele sempre o odiou e jamais perdeu qualquer oportunidade de se queixar de sua extravagância, entre outras coisas. Mas é amigo de Polícrates.
Péricles levantou-se subitamente; para não cair, amparou-se no encosto da cadeira. Foi depois até o armário num canto e voltou com um pergaminho. Sentou-se novamente e começou a ler, o rosto extremamente pálido suando outra vez. E depois disse:
— Polícrates, filho de Arriano. Uma família grande e ilustre. Mas eles perderam toda a fortuna, através de investimentos malogrados e em decorrência de incêndios, ateados pelos persas, que destruíram muitas de suas propriedades. Jamais se recuperaram da calamidade, pois são orgulhosos demais para pedirem ajuda. Foi para ajudar Polícrates que o designei para o tesouro, a fim de que pudesse contar com uma boa fonte de rendimento. Deve ter sido isso que o fez odiar-me.
Ele levantou a cabeça para fitar Políbio.
— Polícrates foi certamente subornado. Além do mais, a esposa dele, não é ateniense de nascimento, embora somente eu soubesse disso. De alguma forma, anos atrás, os guardiães dos registros foram induzidos a inscrever o nome dela, embora humilde, nos arquivos de nossa cidade, como uma ateniense. Ela era muito bonita. Não vem ao caso como descobri. Mantive silêncio, por uma questão de compaixão,
Péricles empurrou o pergaminho para longe.
— Aparentemente, meu silêncio não foi suficiente. Outros devem ter descoberto a fraude e usaram-na contra Polícrates.
Políbio, que tinha uma jônia como hetera, amando-a profundamente, apesar de sua idade, sentiu um dos primeiros impulsos de compaixão que já experimentara na vida. E comentou:
— Infelizmente, Polícrates foi submetido a uma coação forte demais. Sua esposa... e dinheiro. Amor... e avidez. Não se podem subestimar tais coisas. Não absolvo Polícrates, é claro, mas posso perfeitamente compreender por que ele agiu dessa maneira.
Péricles disse a Ífis:
— Pegue alguns dos seus homens e vá imediatamente buscar Polícrates. E traga-me Tucícides também.

Capítulo 15
Polícrates, um homem quase da idade de Péricles, era alto e atlético, aparência aristocrata, o rosto pálido e comprido, os olhos grandes e castanhos, uma expressão estética. Vestia-se sobriamente, como convinha a um homem em sua posição, o que levara Péricles a comentar certa ocasião:
— As pessoas consideram o dinheiro mais sagrado do que Deus. Que os filósofos digam, em sua ingenuidade, que o dinheiro não tem qualquer importância. As pessoas sabem que não é bem assim e os que se empenham na conquista do dinheiro comportam-se com a mesma reverência de sacerdotes.
Como guardião do tesouro e o homem que insistira para que Atenas cunhasse a sua própria moeda de ouro, ao invés de deixar que a Pérsia o fizesse, Polícrates jamais permitira em sua presença qualquer gracejo de menosprezo ao dinheiro ou à sua posição. Para ele, isso era sacrilégio.
Tucídides, que não deve ser confundido com o historiador do mesmo nome, era um homem que devia ser respeitado, na opinião de Polícrates, apesar de agiota e de fazer negócios escusos. Era um homem extremamente rico. Apesar de sua linhagem ilustre, Polícrates tinha alguma deferência pelo velho, embora Tucídides não tivesse qualquer ancestral de que pudesse gabar-se. Tucídides era baixo, de ombros largos, corpo esguio, cabelos brancos, barba também branca, que brilhava como seda. Era a sua única característica física favorável, pois tinha olhos pequenos e ardilosos, o nariz de um abutre, no que se pareciam muito os homens que costumavam emprestar dinheiro.
Os dois homens foram mantidos em separado pelos guardas, a fim de que não pudessem comunicar-se entre si; isso não os impediu de trocarem olhares de medo, ao serem conduzidos à presença de Péricles. Nenhum dos dois estava a par da morte de Fídias, pois não haviam participado da conspiração para matá-lo. É que seus companheiros na trama para prender e levar Fídias a julgamento haviam achado melhor não lhes mencionar essa parte do plano. Em primeiro lugar, porque achavam que Polícrates, aristocrata como eles, tornara-se prudente demais desde que fora designado para guardião do tesouro; embora odiasse Péricles pelo que chamava de "saquear o dinheiro do povo" e por ter-lhe estendido a mão num momento de extrema necessidade, era cauteloso e circunspecto demais para se tornar um assassino. Tucídides podia odiar Péricles por motivos pessoais, assim como a de tê-lo processado por usura, podia desejar que Péricles fosse removido do cargo e seus amigos aprisionados ou exilados. Mas, por natureza, era cauteloso demais, covarde demais, para concordar com qualquer crime mais ousado e arriscado. Quando jovem, fora expulso do Exército logo no primeiro mês, por essas duas falhas de caráter, que os oficiais julgaram totalmente antimilitares, inclusive os corteses oficiais atenienses, que não davam tanta importância à disciplina rígida.
Tanto Polícrates como Tucídides pensavam que estavam sendo levados à presença de Péricles porque este, de alguma forma, tomara conhecimento da trama para aprisionar Fídias, submetê-lo a julgamento e eventual exílio ou condenação à morte, pelas autoridades legais. Nenhum dos dois tinha ânimo suficiente para cometer um assassinato particularmente ou aprová-lo ilegalmente e a sangue-frio. Contudo, estavam convencidos de que haviam agido da maneira correta, o que acontecia até mesmo com Polícrates, que falsificara os documentos contra um homem inocente. Polícrates passara mesmo a acreditar que Péricles estava saqueando o tesouro para realizar seus planos grandiosos em Atenas, entregando uma parte dos despojos a Fídias. Afinal, a extravagância dele não estava levando Atenas à falência? Sendo assim, a falsificação dos registros contra Fídias era plenamente justificada. Havia muitos meios de punir os criminosos, quando a lei era impotente.
Polícrates, sendo mais inteligente do que Tucídides, chegara a diversas conclusões, pouco antes de ser levado à presença de Péricles: Não resta a menor dúvida de que Fídias blasfemou contra Atena Pártenos e certamente recebeu vultosas quantias do tesouro, das mãos de Péricles, o que será provado no julgamento; Péricles pretende intimidar-me, mas tenho amigos que são quase tão poderosos quanto ele e que não me irão abandonar. Tucídides não se sentia tão confiante e estava aterrorizado. Disse para si mesmo: Se nossos amigos nos traíram, vou envolvê-los inapelavelmente. Assim, os dois haviam-se preparado na medida do possível para o confronto, conseguindo dissipar em parte o terror inicial, quando entraram na sala de Péricles.
Ficaram atônitos ao depararem com o Rei-Arconte. Ele não deveria presidir o julgamento de Fídias, que seria realizado de qualquer maneira, apesar do atraso da testemunha principal, Polícrates? O próprio Péricles não podia impedir o julgamento e seria obrigado a soltar Polícrates, mesmo com todas as acusações que viesse a formular, nenhuma das quais poderia provar. Era preciso apenas ser firme e bravo, disse a si mesmo o menos bravo dos homens, Polícrates. Mas não, seria também possível que o Rei-Arconte desejasse, antes do julgamento, ouvir o testemunho dele, para certificar-se de que era válido? Pensando nisso, Polícrates olhou para o Rei-Arconte com um sorriso incipiente. Ficou consternado e assustado quando Políbio desviou os olhos. Quanto a Tucídides, sua reação foi apenas de espanto, pois não possuía uma mente tão ágil quanto a de Polícrates e já era um velho.
Os dois culpados atreveram-se então a olhar para Péricles, que estava sentado em sua cadeira, ereto e rígido. Tiveram um sobressalto ao verem a expressão dele, e novamente, se encolheram de terror. Péricles contemplou os dois homens. Conhecia a ambos muito bem, especialmente a Polícrates, a quem tão generosamente ajudara. Como era um homem perceptivo e compreendia a natureza humana, em todas, as suas variedades e venalidades, experimentava as primeiras dúvidas. Polícrates era capaz de ceder sob pressão, mas não era um homem violento. Tucídides era um agiota avarento, um trapaceiro, um plebeu pelo lado da mãe. Portanto, era também um covarde. Podia participar de uma campanha de calúnias e difamações, aderir a ataques dissimulados, sendo um homem notoriamente rancoroso. Amava o dinheiro como outro tipo de homem podia amar à mulher dos seus sonhos; não iria pôr esse dinheiro em risco, embora fosse capaz de arriscar a vida para obtê-lo, com a cumplicidade num assassinato. A morte cruel e premeditada de Fídias não condizia com o caráter de nenhum dos dois. Péricles perguntou-se se por acaso saberiam que seus companheiros de conspiração haviam tramado também o assassinato do escultor. Duvidava muito. Era mais provável que não tivessem sido informados pelos traiçoeiros cúmplices.
Não obstante, disse aos dois, em voz calma e aterrorizante:
— O que vocês dois, assassinos, têm a dizer em sua defesa?
Percebeu que ambos ficaram aturdidos. Falara quando ambos ainda estavam fazendo a reverência. Polícrates e Tucídides ficaram como que paralisados, meio inclinados, os rostos contorcidos pelo choque, as bocas entreabertas, os olhos esbugalhados. Fitaram-no fixamente, sem piscar os olhos, como se ele fosse uma serpente. Os olhos frios de Tucídides não se desviaram, os de Polícrates estavam aturdidos.
— Por que assassinaram Fídias, o grande artista? — disse Péricles, pois ambos pareciam incapazes de falar, dando a impressão de que nem sequer estavam respirando.
Polícrates, o homem que tinha condições de recuperar o controle mais depressa, por uma questão de nascimento, balbuciou:
— Assassinar Fídias? Está brincando, meu senhor!
— Brincando... — repetiu Tucídides, quase cambaleando.
Péricles disse, numa voz assustadoramente controlada:
— Não, não estou brincando, Fídias foi envenenado esta madrugada, em sua cela. — Ele alteou a voz, que ressoou pela sala, ao acrescentar: — O que ele fez contra vocês para que conspirassem assim para destruí-lo e depois o matassem?
— Ó deuses! — murmurou Polícrates. Ele virou-se debilmente para o Rei-Arconte e estendeu as mãos, como a pedir por socorro. Mas o semblante do Rei-Arconte era tão implacável quanto o de Péricles. Polícrates virou-se novamente para Péricles e gritou, dominado por uma terrível angústia: — Se ele foi assassinado, eu não sabia de nada e não tive a menor participação! Perante os deuses, juro que é verdade!
— Perante os deuses, também juro que não sabia de nada! — balbuciou Tucídides, piscando os olhos rapidamente, como se estivesse prestes a desmaiar.
Tucídides começou a soluçar, em meio a ânsias de vômito. Olhou para Polícrates e depois segurou-lhe o braço, para não cair. Os cabelos brancos pareciam levantar-se em sua cabeça, no pior medo que já sentira em toda a vida.
— Por que alguém haveria... — Por um momento, ele não conseguiu continuar a falar. — Por que alguém haveria de assassinar Fídias?
— Não sei — disse Péricles, a voz tão terrível como nunca ninguém jamais ouvira antes. — Mas como vocês dois participaram da conspiração para destruí-lo, são também perfeitamente capazes de um assassinato, se isso servir a seus propósitos.
Péricles conseguira o que desejava: deixar os dois profundamente abalados, debilitados, aterrorizados, impotentes. Perjúrio e suborno eram uma coisa, assassinato era outra muito diferente. Antes que pudessem recuperar algum senso de preservação e começarem a mentir, Péricles disse:
— Podem ver meu capitão e meus soldados. Sabem que é legal executar assassinos sumariamente, se eles confessarem. Por que então não confessam logo de uma vez e morrem rapidamente, ao invés de enfrentarem o julgamento, a ignomínia pública e a morte na presença de uma multidão? Você, Polícrates, é um homem de uma ilustre casa. Certamente vai preferir a execução particular a ser denunciado perante o populacho. Ífis!
Ífis adiantou-se. Polícrates fitou-o com um terror incontrolável e recuou um passo. Péricles ergueu a mão, como se pedisse ao capitão que se contivesse.
— E antes de sua morte, Polícrates, será revelado publicamente que mandou incluir falsamente o nome de sua esposa nos registros públicos como ateniense. Sendo assim, ela não é sua esposa, apenas uma concubina, seus filhos não são legítimos. Nada irão herdar de você e sua família irá depois escorraçá-los.
Foi nesse momento que a última resistência de Polícrates desmoronou. Caiu de joelhos diante de Péricles, erguendo as mãos cruzadas num gesto suplicante, as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto.
— Senhor, tenha misericórdia dos desamparados, mesmo que não tenha de mim... que sou inocente do assassinato, não sabia de nada! Morrerei feliz, se poupar aqueles a quem amo da infâmia e da vergonha...
— Não poupou Fídias, a quem eu amava. Por que então eu deveria poupar a você, que matou Fídias?
Polícrates soluçava desesperadamente. Inclinou-se, ainda de joelhos, bateu com a cabeça no chão de pedra, até que começou subitamente a sangrar. Péricles fez um sinal para Ífis. O soldado agarrou Polícrates pelo pescoço e trouxe-o para perto de si. Lágrimas e sangue escorriam-lhe pelo rosto. Repetia incessantemente:
— Sou inocente do assassinato! Faça o que quiser comigo, mas poupe minha esposa e meus filhos! Não tenho medo de morrer, temo apenas pelo destino de minha família. Também tem filhos, senhor, não pode ser insensível ao destino deles...
Tucídídes continuava de pé, tremendo incontrolavelmente, soluçando, retorcendo as mãos. Péricles lançou-lhe um olhar de profundo ódio e repulsa, mas falou apenas para Polícrates:
— É possível que não tenha assassinado Fídias, nem dado as ordens para que o matassem. É possível também que não soubesse que a morte dele havia sido tramada. Vou aceitar suas alegações por um momento. Mas falsificou os registros públicos do tesouro mostrando que Fídias era um ladrão, que havia recebido quantias imensas e exorbitantes pelo trabalho glorioso que realizou. Aceitou um suborno para fazer um trabalho tão indigno e vil. Foi ameaçado com a denúncia da verdadeira situação de sua esposa e filhos.
Polícrates limpou o sangue, suor e lágrimas do rosto, com as costas da mão trêmula. E disse, em tom desesperado:
— É verdade, meu senhor. Eu poderia ter resistido ao suborno, por mais que cobice o dinheiro. E confesso que, ao final, havia-me até mesmo convencido de que era verdade, que Fídias saqueara o tesouro com o seu consentimento. Afinal, não foram enormes as quantias aplicadas na construção da acrópole? Tive primeiro que dominar minha consciência, antes de ceder à coação. Se fosse somente o suborno... eu poderia ter resistido. Mas fui ameaçado com a denúncia do casamento ilegal com minha amada esposa, algo a que não podia resistir.
Os lábios pálidos de Péricles se contraíram. A agonia óbvia de Polícrates estava começando a afetá-lo. Por isso, virou-se para Tucídides.
— Qual foi o papel que desempenhou nessa conspiração monstruosa, velho senil e miserável?
Tucídides choramingou:
— Eu não sabia de nada! Misericórdia, senhor! Confesso que fui levado à loucura por seu esbanjamento! Confesso que o odiava! Por isso, aderi à conspiração contra você, para feri-lo através de Fídias! Mas assassinato? Os deuses são testemunhas de que não tramei o assassinato de ninguém!
Péricles recostou-se na cadeira e ficou pensando por um momento, dominado por um ódio intenso.
— Se Fídias fosse considerado culpado, graças aos documentos forjados de Polícrates e às suas acusações, teria sido executado. Isso não teria sido também assassinato?
Tucídides sacudiu a cabeça, soluçando.
— Não! Acho que não teria sido assassinato! Seria apenas uma execução! Mas asseguraram que Fídias seria no máximo exilado, talvez preso, cairia em desgraça pública. Eu não tinha nada contra Fídias, como homem ou como artista. Estava agindo simplesmente contra os seus absurdos. Digo novamente: eu odiava você. Já me havia processado como usurário...
Tucídides não mais conseguiu falar direito, passando a emitir ganidos e ruídos incompreensíveis. Péricles disse então;
— Portanto, a vítima visada era eu, não é mesmo?
O silêncio dos dois homens era uma confissão de culpa muito maior que quaisquer palavras.
O Rei-Arconte falou pela primeira vez, dirigindo-se aos culpados:
— Você, Polícrates, de uma família aristocrática, iria hoje jurar solenemente em minha presença que Fídias era culpado de peculato. E você, Tucídides, iria declarar que Fídias era também culpado de sacrilégio, muito embora nem as turbas do mercado tivessem podido chegar a tal conclusão. Vocês dois não se atreveram a tentar direta e abertamente o assassinato do Chefe de Estado, preferindo conspirar para atingi-lo por intermédio de Fídias. Na minha opinião, isso é pior do que assassinato. Infelizmente, não há uma punição apropriada para o que fizeram!
O Rei-Arconte levantou-se, com toda a dignidade de suas vestes oficiais, e disse aos dois, em tom firme e amargurado:
— Sou o juiz de ambos, perante os deuses. Na minha presença, Polícrates, você cometeu perjúrio contra um homem inocente, tramando a sua destruição. É mais culpado do que seu companheiro, Tucídides, que é muito velho e considera o dinheiro sagrado, além de ser de origem mais baixa, por parte da mãe. Assim, eu lhes dou agora ordem de prisão. Ficarão encarcerados enquanto aguardam um julgamento público, onde tudo será revelado e nada será escondido!
— Um momento, por favor — disse Péricles, — Preciso saber os nomes dos outros conspiradores, pois eles não escaparão ao meu próprio julgamento. Fale, Polícrates. Não tem mais nada a perder agora.
Mas Polícrates hesitou, pois era de uma casa aristocrática. Foi Tucídides quem deu um passo trêmulo na direção de Péricles e gritou:
— Darei os nomes de todos, meu senhor, se tiver misericórdia de mim! Sou um velho, de barba e cabelos brancos, morreria na prisão. Tenha misericórdia!
Péricles declarou:
— Não vou prometer nada, mas levarei em consideração que fez uma confissão de culpa completa e não ocultou os nomes, dos outros culpados.
Ele levantou a pena e puxou um pergaminho para a sua frente.
— E então?
Tucídides lançou um olhar rápido para Polícrates, que permaneceu imóvel, em silêncio, o sangue a escorrer-lhe pelo rosto.
E Tucídides revelou os nomes de todos os conspiradores. O Rei-Arconte ficou escutando num silêncio horrorizado, pois vários eram seus amigos e um deles era casado com sua sobrinha. Por umas poucas vezes, fez um gesto de desespero e repugnância. Péricles foi escrevendo cada nome que Tucídides murmurava, sempre retorcendo as mãos. Quando Tucídides parou de falar, Péricles contemplou os nomes que escrevera; seus olhos tinham a expressão impassível de uma estátua a olhar para o sol. E a voz era muito calma quando falou:
— Eu pensava, Polícrates, que era o único a saber de seu casamento ilícito. Nunca lhe contei que sabia. Tive compaixão, o que não teve comigo, assim como também não demonstrou qualquer gratidão por sua designação para guardião do tesouro. Se continuar vivo e for levado a julgamento, seu casamento ilícito passará a ser do conhecimento público. É algo que lhe posso assegurar. Se não for levado a julgamento, seus companheiros guardarão silêncio, pois são da sua classe. Pensarão que você não os traiu e por isso jamais falarão.
Ele fez uma pausa, virando-se para Tucídides:
— Também não desejo que seja levado a julgamento, Tucídides, pois pode revelar o segredo patético de Polícrates. Isso mesmo, eu o considero patético. Afinal, não amo também a uma mulher estrangeira? Não confio em sua contenção num julgamento público, Tucídides. Assim, deve deixar Atenas imediatamente, para um exílio voluntário, pelo resto de sua vida. E... — Péricles fez outra pausa, a voz se tornando fria e ameaçadora. — ... se algum dia revelar o segredo de Policrates e sua família, mesmo no exílio, pode estar certo de que meus agentes saberão encontrá-lo e será um homem morto.
Tucídides, dominado por uma alegria frenética, cruzou as mãos, levando-as ao queixo barbado.
— Senhor, que os deuses abençoem sua misericórdia! Partirei hoje, imediatamente, sem dizer nada a ninguém, nem mesmo à minha família!
Lágrimas de exaustão e alívio brotaram de seus olhos. Péricles assumiu uma expressão de total repugnância e disse:
— Não me disse quem foi o homem que subornou Policrates.
O próprio Tucídides hesitou, pois se abstivera de dizer o nome de Calías por medo de Péricles. Afinal, Calías não era o filho da esposa rejeitada de Péricles? Calías podia odiar Péricles e Péricles detestar Calías, mas Calías continuava a ser o irmão dos filhos de Péricles. Estava num terrível dilema e novamente lançou um olhar para Policrates. Mas Policrates abaixara a cabeça e parecia estar meditando.
— Foi você mesmo, Tucídides? — insistiu Péricles.
Novamente aterrorizado, temendo que a misericórdia concedida fosse retirada, se Péricles o considerasse culpado, o velho exclamou:
— Senhor, não deve ficar furioso. Não confessei tudo e dei os nomes dos outros? Senhor, o homem que subornou Policrates e o ameaçou foi... foi... Calías, irmão de seus filhos.
Houve um silêncio prolongado na sala, todos ficando imóveis como estátuas, até mesmo Ífis e os soldados. Depois, Péricles falou, sem qualquer emoção aparente:
— Eu deveria ter imaginado. Isso mesmo, eu já devia saber.
Ele pôs a pena em cima da mesa, a mão firme. Começou a enrolar o pergaminho, como se não estivesse consciente da presença dos outros. Olhou finalmente para Policrates, que sustentou o olhar firmemente; o sangue em sua testa já estava agora coagulando.
— É um bravo, Policrates, apesar de toda a sua venalidade e dos crimes que cometeu contra um homem de bem, inocente e ilustre. Tinha razão. Podia ter resistido ao suborno, mas não à vergonha de sua família. Como está vendo, no final das contas sou um homem misericordioso.
Policrates fez uma ligeira reverência e a sua expressão era de um homem morto.
— Está entendendo tudo perfeitamente, Policrates?
— Estou, meu senhor.
O sorriso de Policrates era ímensamente triste, mas determinado. Tucídides estava aturdido. Policrates era mais culpado do que ele, mas Péricles o estava poupando. Ele franziu o rosto. Policrates nem mesmo seria condenado ao exílio!
— Os dois podem retirar-se agora — disse Péricles, virando a sua cadeira para o outro lado. Um instante depois, acrescentou para Policrates: — Vá em paz. E apresente os meus respeitos à sua família.
Depois que eles saíram, o Rei-Arconte disse, em voz trêmula e espantada:
— Eu também estava profundamente enganado, Péricles, e peço-lhe perdão por isso. É um homem nobre e digno. — Ele fez uma pausa, sorrindo ligeiramente. — Apesar de ser também um pródigo incontrolável!
Mas Péricles nada disse. Depois de fitá-lo por um momento, com uma expressão compadecida, o Rei-Arconte também se retirou.
Polícrates abraçou ternamente toda a sua adorada família naquela noite e depois retirou-se para seus aposentos, sozinho. Com a mão firme, mergulhou uma adaga no coração, morrendo discretamente. O suicídio jamais foi explicado.
Calías foi seguido algumas noites depois, quando se dirigia para uma das tavernas de má fama, perto do mar, que costumava frequentar, como sempre envolto num manto, um capuz a esconder-lhe o rosto. Mataram-no num beco escuro. Os assassinos jamais foram descobertos, mas chegou-se à conclusão de que haviam sido ladrões, pois a bolsa dele desaparecera.
Os outros conspiradores ficaram com a ilusão de que Polícrates morrera sem denunciá-los; por isso, em gratidão, não o traíram depois de sua morte. Quanto a Tucídides... onde se metera o velho avarento? Ninguém mais tornou a vê-lo. Ele fugira, concluíram todos, ao saber do suicídio de Polícrates. Assim, as duas únicas testemunhas que poderiam incriminá-los e levá-los a julgamento haviam desaparecido. Mas, quando Calías foí assassinado, ostensivamente por ladrões, imaginaram um pouco da verdade, se bem que apenas um pouco. Quanto ao estranho que envenenara Fídias, iria permanecer desconhecido.
Um a um, discretamente, os conspiradores deixaram Atenas, para ausências prolongadas, alguns para não mais voltar. Mas o rumor que haviam lançado, de que Péricles mandara envenenar Fídias, mereceu o crédito das turbas do mercado.
Capítulo 16
Paralo pediu permissão, através de um escravo, para falar com o pai, na biblioteca de Péricles. Concedida a permissão, Paralo entrou na biblioteca, onde Péricles estava estudando, o rosto branco como mármore, alguns mapas de guerra e planos de estratégia. A cabeleira raiada de branco dava-lhe uma aparência implacável, caindo sobre a testa e as orelhas. Não era mais, na aparência, o Chefe de Estado, mas sim novamente um soldado invencível pois a guerra com Esparta e outras cidades-estado irrompera subitamente, com uma trágica violência. Atenas jamais fora tão perigosamente ameaçada, desde as guerras pérsicas.
Péricles levantou a cabeça à entrada de Paralo, quase como se não o visse, apontando para uma cadeira. Voltou a concentrar sua atenção nos mapas. Usava um grosso roupão de lã, vermelho. Havia um braseiro a seu lado, pois era inverno e a neve caía nas distantes montanhas macedônias, o ar em Atenas era frio e cortante, e o céu se mostrava constantemente nublado. Péricles tinha os pés metidos em botas de cano alto, revestidas de pele. As mãos estavam enregeladas e ele as esfregou por um momento, distraidamente, sem desviar os olhos claros dos mapas.
Paralo não se sentou. Ficou simplesmente esperando, a olhar para o pai, o rosto estranhamente parecido com o de Péricles. O cenho cerrado, Péricles continuou a estudar os mapas. Achava-se, no entanto, perfeitamente consciente da presença do filho de pé à sua frente, em silêncio. Estava pensando. Podia ouvir o barulho das botas com pontas de ferro sobre as pedras lá fora, enquanto seus soldados vigiavam a casa, andando de um lado para outro. A chama do lampião tremulou por um momento, devido a uma lufada de ar que entrou pela janela entreaberta. Naquele momento, a lua saiu de trás de uma nuvem e iluminou debilmente a janela.
Desde o verão anterior, quando Fídias e Calías haviam sido assassinados, algo mudara em Paralo. Ele nunca fora loquaz, como o seu exuberante irmão, agora no comando de uma imensa guarnição, que protegia o acesso a Atenas. Paralo não era sujeito a bruscas mudanças de temperamento, como acontecia com Xantipo. Seu humor era um tanto ponderado, se bem que eficaz. Era firme em suas opiniões e um tanto lento em tomar decisões, em contraste com a natureza volátil e espirituosa de Xantipo. Jamais se mostrava esfuziante e falava apenas quando tinha algo a dizer. Desde o último verão que se tornara cada vez mais calado e retraído; sua seriedade natural se tornara ainda maior e frequentemente parecia distante e distraído. Péricles, apesar de assoberbado por tremendos problemas, finalmente se apercebera do comportamento do filho, embora não fizesse qualquer comentário. Como Paralo, jamais se intrometia nos pensamentos secretos dos outros, exceto no caso de Aspásia, que para ele representava um segundo coração, uma segunda mente, um segundo espírito. Mesmo os seus queridos filhos jamais haviam sido tão íntimos dele quanto Aspásia; ela era, para Péricles, a sua própria carne.
Péricles finalmente levantou a cabeça, fitou Paralo e disse:
— Pediu para me ver, meu filho. Devo pedir-lhe que seja o mais breve possível, pois já é bem tarde e ainda tenho que estudar mais alguns mapas.
Paralo falou com a voz firme e retumbante da juventude de Péricles:
— Quero pedir sua permissão para visitar minha mãe por algum tempo, até que o sofrimento dela se desvaneça. Ela está sozinha, exceto pela mãe muito idosa, que já não pode deixar o leito.
Péricles fitou-o atentamente, antes de dizer:
— Não é mais uma criança, nem mesmo um rapazinho, Paralo. Já é um homem. Cabe a você decidir.
Paralo inclinou-se ligeiramente. Os olhos de pai e filho se encontraram, por um longo momento. Péricles finalmente suspirou e acrescentou:
— Sei que algo o está perturbando, meu filho. Não lhe peço que me conte, pois é um homem e tem os problemas de um homem. Seria um erro que eu me intrometesse em seus pensamentos. Tenho o destino de Atenas em minhas mãos. Nem mesmo a família deve sobrepor-se ao meu dever para com Atenas.
— Compreendo perfeitamente — disse Paralo. — Não sou uma mulher impertinente, exigindo atenção, quando questões mais sérias e importantes devem ser consideradas. Sou filho de um soldado, irmão de um soldado. E deveria tornar-me também um soldado. Mas não importa. Achei, por uma questão de cortesia, que deveria pedir sua permissão para visitar minha mãe solitária, por algum tempo, pois ainda estou vivendo sob o seu teto.
Péricles fitou-o ainda mais atentamente. Recostou-se na cadeira, os olhos claros estranhamente ensombreados, embora faiscassem à luz do lampião. Era como se fitasse o filho através de gelo transparente e não de membranas. A mão bateu lentamente nos mapas. Ainda fitando Paralo nos olhos, ele disse, a voz diferente, um pouco mais dura e lenta:
— Meu filho, Atenas jamais haverá de recuperar a glória que possuía em meu querido amigo Fídias, tão brutalmente assassinado. Parte da alma de Atenas morreu com ele. Fídias tinha a estatura de um deus. Quando os homens morrem, a família e os amigos os lamentam. Quando um deus morre, os próprios céus ficam abalados.
O rosto de Paralo contraiu-se ligeiramente, mas ele permaneceu calado. Por um momento, desviou os olhos, mas logo voltou a fixar o semblante do pai.
— Como sabe muito bem, meu filho, Fídias foi assassinado não porque o odiassem. Quem poderia odiar uma alma como a de Fídias? Foi assassinado para me atingirem, deixarem-me desolado. Havia também uma conspiração contra mim, para depor-me ou exilar-me.
— Eu já sabia, meu pai. Tenho ouvido rumores na cidade, Atenas está sempre fervilhando de rumores
Subitamente, Péricles quase explodiu de impaciência.
— Já chega! Fico satisfeito ao constatar que possui alguma devoção filial por sua mãe, que está realmente muito sozinha. Volte, se e quando quiser!
Péricles pensou: Qual o pai que chega a conhecer o filho ou consegue romper a barreira da mesma carne e alcançar o espírito profundo da compreensão total? Não damos aos nossos filhos as suas almas, damos apenas os corpos materiais. Não somos unidos a nossos filhos como somos a uma mulher amada. Há algo de misterioso nisso, algo transcendentalmente ordenado. Os frutos dos nossos corpos são estranhos, podem às vezes ser até mesmo nossos inimigos mortais.
No instante seguinte, Péricles voltou a sentir-se enternecido em relação a Paralo e estendeu-lhe a mão.
— É um adeus, meu filho?
Paralo apertou a mão do pai; sua própria mão estava extremamente fria.
— Não, meu pai, não é um adeus. Mas pode ser uma separação prolongada.
Péricles tentou sorrir. Continuou a segurar a mão do filho e disse:
— Há muitas coisas que não pode compreender, Paralo, muitas coisas que devem permanecer um segredo para mim. Há outras que exigem o meu silêncio, uma necessidade maior que as suas, maior que as minhas. Pode ir, Paralo. Console sua mãe, que chora pelo filho morto. Ela tem em você e Xantipo consolos mais profundos do que pode imaginar.
Paralo inclinou-se novamente e depois saiu da sala, com a mesma altivez do pai. Péricles ficou observando-o retirar-se, com o coração amargurado. Voltou a estudar os mapas e pergaminhos. Subitamente, sentiu-se exausto e triste. A morte de Fídias não lhe deixava os pensamentos. Bruscamente, a sua dor era tão intensa e insuportável como se Fídias tivesse sido assassinado naquele instante. Voltou a sentir também a antiga incredulidade. Não podia acreditar que Fídias estivesse morto. Furioso, empurrou para longe um pergaminho, que caiu no chão de mármore. Apesar do grosso tapete persa e das botas, Péricles ainda podia sentir o frio do chão. Estremeceu. Piscou os olhos cansados, percebendo que uma película se formava sobre eles, afetando-lhe a visão. Pela primeira vez, sentiu uma raiva amargurada de Paralo, que era obstinado e possuía, apesar do seu autocontrole, uma ternura imensa. Jamais daria um soldado de primeira, pensou Péricles. Não era muito implacável. Sinto-me um tanto desapontado, assim como triste, por constatar que sua juventude o impede de compreender que um homem deve fazer o que é necessário. Paralo não pensa nas coisas até sua conclusão inevitável, aceitando-as como são. E estranho que eu nunca antes tenha percebido isso, o que me deixa bastante triste.
Xantipo, apesar de toda a sua aparente frivolidade em muitas ocasiões, apesar do riso fácil e temperamento irreverente, dos gracejos joviais e da sua extrema elegância, era um homem mais forte do que o irmão. E, acima de tudo, era um soldado. Assim escrevera a respeito de Calías: "Fico contente por saber que tamanho monstro encontrou o seu destino justo, pois semeava o desastre assim como as crianças pequenas espalham migalhas de pão e os pássaros despejam seus excrementos. O mundo se tornou um lugar mais limpo depois que assassinos desconhecidos o despacharam para o Hades. Eu gostaria que Chilon o afogasse no Estige! Ou que Cérbero o devorasse. Se eu conhecesse os assassinos, iria mandar-lhes meus cumprimentos e parabéns."
O coração amargurado de Péricles voltou a se animar. Esqueceu que Xantipo discordara da última estratégia do pai e lhe escrevera recentemente para dizer isso, num protesto veemente e eloquente. Xantipo não sabia ser exteriormente calmo e controlado, como Paralo. Mostrava-se sempre jovial ou furioso, deprimido ou exultante. Mas era sempre um soldado. Quando a esposa lhe dera o primeiro filho, manifestara o seu prazer e gratidão numa carta apaixonada, que ela guardava com extrema emoção. Mas sob o exterior jovial havia a camada de ferro de um soldado e um homem devotado a seu país, embora frequentemente escarnecesse do patriotismo por demais fervoroso. Apesar da aparência superficial alegre e despreocupada, dos gracejos em relação aos que se mostravam por demais compenetrados e pomposos, Xantipo era no fundo tão inexorável e inflexível quanto o pai, quando se tratava de questões importantes. Péricles não podia deixar de sentir uma profunda gratidão ao pensar no filho mais velho.
Ele apagou o lampião e foi para o seu aposento. Aspásia ainda não estava dormindo, embora já fosse bem tarde. Parecia saber quando Péricles estava perturbado e inquieto, embora nunca falasse a respeito. Ela estendeu os braços e Péricles caiu de joelhos ao lado do leito, repousando a cabeça nos seios dela. Aspásia apertou-o contra si. A carne de Aspásia era quente, macia, fragrante, os cabelos caíam-lhe sobre os ombros, descendo pelas costas. O contato dela era de conforto e ternura. Os olhos faiscavam em muitos pontos luminosos, como vinho tinto ao sol.
Deleitando-se sob o abraço dela, Péricles murmurou;
— Paralo pediu-me permissão para deixar esta casa em visita à mãe... por um longo tempo.
— Eu já imaginava que ele faria isso. Há vários meses que vinha esperando que Paralo lhe comunicasse tal decisão.
Péricles ficou atônito.
— Mas não me disse nada!
— Não podia. Você estava muito preocupado e aflito, com a eclosão dessa guerra que há muitos anos vinha fermentando. Achei que era melhor deixá-lo esperar até o momento em que Paralo finalmente se decidisse. Antes disso, seria um fardo a mais, desnecessário, em suas costas.
Péricles apertou-a.
— Alguma vez já lhe disse que a amo, minha querida?
Aspásia encostou o rosto no alto da cabeça dele e riu, para não chorar.
— Não! Nunca me disse!
O corpo de Péricles estava frio e ele estremeceu novamente. Tirou o roupão e meteu-se sob as cobertas, ao lado de Aspásia. Fizeram amor como se fosse a noite de núpcias, como se fossem amantes jovens e ardentes, exultando com seus corpos, numa união total, uma carne, uma alma, consumidos pela paixão, nela encontrando o descanso e a felicidade.
Entre os companheiros de Xantipo, havia um jovem dissoluto e muito rico, de inteligência excepcional, e que era general do Exército. Era também aparentado com a família de Péricles, por ser da casa dos Alomeônidas. Era conhecido por sua extrema beleza e amor aos cavalos, mas de má fama por sua libertinagem. Chamava-se Alcíbíades e era bem mais novo que Xantipo. Quando se decidia a demonstrá-la, o que não acontecia com muita frequência, sua inteligência era extraordinária. Parecia-se um tanto com Xantipo e era intensamente apreciado por seus homens e pelo populacho. É que possuía uma língua suave e raramente ofendia alguém com um gracejo revestido de crueldade polida, como Xantipo sorridentemente era capaz de fazer. Os homens gracejavam com ele, mas sabiam que não deviam ir muito longe. Amavam-no como não amavam a Xantipo, capaz às vezes de demonstrar subitamente a altivez fria e a autoridade implacável do pai. Alcíbíades e Xantipo não eram amigos, embora fossem corteses o bastante para se tratarem como colegas oficiais, e não demonstravam qualquer afinidade.
Xantipo nutria algum ressentimento contra Péricles, seu pai, porque este gostava do jovem parente e apreciava-lhe as qualidades como soldado e como político em potencial, capaz de seduzir uma estátua de mármore e fazê-la deitar-se de costas, transformada em carne ardente, segundo dizia o Chefe de Estado. Em todas as ocasiões, mesmo no campo de batalha, Alcíbíades estava sempre com uma aparência impecável, até mesmo perfumado, os gestos lânguidos, parecendo efeminado, embora fosse inequivocamente viril. Xantipo se irritava profundamente com a admiração do pai pelo jovem Alcíbíades. É que sentia um ciúme secreto do pai e se irritava até mesmo quando Péricles demonstrava sua afeição por Paralo, a quem Xantipo amava profundamente. Assim, Xantipo muitas vezes surpreendia o pai com queixas de Alcibíades em suas cartas, queixas que nem sempre eram justificadas.
Tal fato deixava aturdido e aumentava suas preocupações, pois ele era sempre sensível aos problemas dos membros de sua família. O pai de Calías fora casado com outra mulher antes de desposar Dejanira. Nascera uma filha desse primeiro casamento. Pouco antes de ser assassinado, Calías dera-a em casamento a Alcibíades. Xantipo começou a se referir a esse fato em suas cartas irritadas para Péricles. Este mostrou as cartas a Aspásia, que lhe disse:
— Xantipo sente ciúmes de você, meu amor. Gostaria que não amasse a mais ninguém tanto quanto o ama. Houve ocasiões em que ele sentiu ciúmes até mesmo de sua afeição por mim.
— Não diga bobagem — respondeu Péricles, irritado. — O que está dizendo não passa de uma interpretação feminina.
A perplexidade dele permaneceu. Em outra ocasião, Aspásia sugeriu-lhe:
— Ao escrever para Xantipo, não se refira com muita frequência a Alcibíades.
Era um sábio conselho, mas Péricles ignorou-o. As queixas de Xantipo contra o parente, que já era general, assumiram um tom amargo. Nem sempre as reclamações eram explícitas. Em certa ocasião, ele escreveu: "Não tenho a menor dúvida, meu pai, de que sua afeição por Alcibíades deriva do fato de ele haver salvo um dia a vida do seu amigo Sócrates no campo de batalha. Mas não deve esquecer que Sócrates retribuiu o favor.
Foi nessa altura que Aspásia escreveu para Xantipo, sem que Péricles soubesse: "Seu pai sente-se grato a Alcibíades porque ele salvou a vida de Sócrates. Alcibíades é também muito divertido e seu pai precisa de toda distração que puder encontrar nestes tempos angustiosos". Ao que Xantipo respondeu: "Sou bastante sutil, minha querida amiga Aspásia, para compreender que deseja atenuar meu ressentimento natural contra Alcibíades, que está corrompendo a moral dos nossos homens. Ele frequentemente bebe e se embriaga junto com os soldados, suas risadas e gritos obscenos não condizem com a verdadeira tradição militar". Aspásia sorriu ao ler tal comentário, pois o próprio Xantipo muitas vezes falava de maneira obscena, ao conversar com ela e com a esposa. Ela respondeu: "Seu pai fala constantemente de você, pois Paralo ainda não voltou para casa e raramente faz uma visita, embora já tenha partido há bastante tempo, Você é o representante de Péricles nos campos de batalha e o orgulho que ele sente por você é imenso."
Por algum tempo, Xantipo sentiu-se apaziguado e não mencionou o parente. Mas, quando Péricles começou a fazer cada vez mais indagações a respeito de Alcibíades, o ressentimento de Xantipo elevou-se a níveis explosivos. Suas cartas se tornaram mais espaçadas e mais formais, o que deixou Péricles desolado. Aspásia suspirava, impotente. Já era bastante terrível que a grande guerra estivesse sendo travada, com Atenas correndo perigo. Os atenienses, que há muito se haviam cansado das constantes escaramuças e pequenos combates anteriores, encaravam aquele conflito de proporções crescentes com intensa apreensão e crescente revolta. O tesouro fora exaurido nas pequenas guerras intermitentes e estava agora sendo levado aos últimos limites por aquele conflito de proporções maiores. Os jovens atenienses estavam morrendo em grande quantidade. A Guerra do Peloponeso aproximava-se de um clímax perigoso e muitos diziam que nem mesmo as guerras pérsicas haviam sido tão terríveis e devastadoras. Para agravar ainda mais a situação, uma aliada de Atenas, Egina, membro relutante do império ateniense, estava protestando contra os elevados impostos que Atenas lhe impusera para aquela guerra e pelo fato de Péricles ter-se recusado a conceder-lhe a autonomia política, prevista em tratado. Não era segredo para ninguém que Egina iria em breve revoltar-se não apenas contra o governo de Atenas, mas também contra a guerra. Recentemente, começara a encaminhar sugestões, não muito secretamente, a Esparta e seus aliados. Esparta, embora fosse uma cidade-estado de guerreiros, preferira no passado deixar que seus aliados entrassem em choque com Atenas, contentando-se com as incursões na Ática. Agora, mostrava-se ansiosa demais em combater Atenas num confronto decisivo, querendo destruir o império ateniense e sua supremacia nos mares. Outra aliada de Atenas, Potideia, que era mais uma súdita-aliada, estava apresentando sinais alarmantes de traição. Muitos de seus habitantes haviam adotado o grito de guerra de Esparta:
— Libertemos os helenos do domínio do déspota Péricles!
Nas ruas de Potideia, os jovens frequentemente gritavam:
— Liberdade ou morte!
E eram muitos os que preferiam fugir para não terem que combater contra Esparta.
Tudo isso, agravado pela hostilidade de muitos atenienses, especialmente os mais jovens, constituía um pesado fardo para Péricles.
— Será que nosso povo e nossos aliados não percebem que estamos lutando pela própria sobrevivência? — indagava ele, aturdido. — Se Esparta sair vitoriosa, não apenas nos transformará num estado-súdito, como também irá escravizar o povo e impor-Ihe a sua filosofia sombria e bárbara. Atenas se transformará num vasto campo de prisioneiros, onde todos terão que trabalhar incessantemente e nunca mais se ouvirá uma canção.
Os inimigos de Péricles comentavam:
— O leão está finalmente acuado.
Exultavam com isso, embota pudessem perder as próprias vidas, se Atenas fosse conquistada. Muitos aristocratas ricos escarneciam do alarma de Péricles e de sua determinação de salvar Atenas a qualquer custo. Esses aristocratas em particular não haviam participado da antiga conspiração contra Péricles e tinham lamentado sinceramente o assassinato de Fídias. Preferiam ocupar seu tempo com banquetes e testas, os Grandes Jogos, o teatro, as polêmicas. Mas agora que suas próprias fortunas estavam sendo reduzidas pelos impostos para a guerra, queriam apenas a paz com Esparta. Esqueciam que Péricles, por muitos anos, tentara inutilmente chegar a um acordo de paz, que esbarrava na determinação de Esparta de dominar toda a Grécia e impor-lhe seu modo de vida.
— Será que esses indolentes sibaritas não compreendem que serão os primeiros a serem eliminados se Esparta vencer? — dizia Péricles aos amigos. — Os bárbaros detestam homens assim. Mas os nossos indolentes traidores querem que nos rendamos a Esparta ou façamos concessões inadmissíveis, pelo que chamam de "paz e amizade".
Com uma raiva intensa, Péricles acrescentava:
— Se minha cidade pudesse depois livrar-se do jugo espartano, eu gostaria de ver o que Esparta faria com esses elegantes dissidentes.
Aspásia comentou um dia:
— Eles estão-se iludindo, pensando que Esparta lhes entregará o governo de Atenas, com todo despotismo.
Péricles não pôde deixar de concordar.
— Eles não apenas querem conservar seu dinheiro, mas também desejam conquistar o poder. O poder é o supremo anseio daqueles que têm muito dinheiro, lazer e prazeres. Gostariam de ter uma autoridade absoluta sobre nossa diligente classe média e aboli-la, formando uma nação de escravos dóceis e mudos.
Começaram a ouvir-se, então, novamente, mais alto, publicamente, as alegações antigas de que Aspásia persuadira Péricles a se lançar naquela guerra, que os deuses estavam-se vingando, furiosos com a impiedade dela, que corrompia as jovens de Atenas, e cuja casa era um covil de cortesãs e encontros ilícitos. As turbas fervilhavam de ódio, inspiradas pelos aristocratas inimigos de Péricles e pelo dinheiro deles. Diziam que Aspásia, como estrangeira, não sentia o menor amor por Atenas e gostaria de ver a sua queda.
Um dia, quando Péricles estava ausente, visitando a guarnição de Atenas em companhia do filho Xantipo, Aspásia foi presa, "pelos muitos crimes que essa mulher estrangeira cometeu contra Atenas, inclusive traição".
Capítulo 17
Sob o pretexto de que precisava do conselho de um médico excelente, Políbio concedeu permissão a Helena para visitá-lo em sua casa. Ele ficou no leito e nem mesmo sua querida hetera foi admitida. Políbio era viúvo. Quando Helena entrou, ele não pôde conter sua admiração ao constatar que o tempo quase não a afetara. Embora ela admitisse francamente que seus cabelos avermelhados eram agora pintados para conservarem a cor original e apesar de os anos terem-na engordado um pouco, tornando-a ainda mais robusta, rosada e vigorosa, Helena ainda tinha os mesmos olhos azuis com seu brilho vital, ainda transbordava de entusiasmo e expectativa juvenil, ainda apresentava a intensa exuberância animal que os homens achavam fascinante.
Políbio, o Rei-Arconte, fora outrora um dos amantes de Helena. Quando ela o repelira, afetuosamente, Políbio passara muitas noites a chorar. Como era generosa com seus amantes rejeitados, Helena acabava encontrando uma hetera mais jovem e mais complacente para eles; Políbio não fora exceção. A hetera que Helena lhe arrumara era jovem, gentil, inteligente, atenta a todas as suas necessidades. Por isso, o Rei-Arconte sentia uma gratidão profunda para com Helena.
Ele estava fazendo uma refeição ligeira de anchovas, sardinhas, pão de trigo, queijo de cabra, frutas, cebolas fritas com alho, carne de porco assada, peixe cozido, azeitonas e vinho quando Helena chegou, acompanhada por duas assistentes, que ficaram esperando do lado de fora do aposento. Ela olhou para a refeição na mesa e comentou:
— Vejo que atualmente se alimenta de maneira bem frugal, meu caro Políbio.
— Poupe o sarcasmo, do qual não me esqueço, querida Helena. Afinal, não estou realmente doente. A sugestão foi sua. Não me quer acompanhar?
— E privá-lo do seu minguado sustento? — indagou Helena, com um espanto simulado. Ela pegou uma anchova e acrescentou: — Tem sal demais. Já o adverti contra isso, meu querubim, mas você prefere ignorar. Hipócrates ensinou que o sal é nocivo na meia-idade e deve ser usado comedidamente. Está querendo morrer subitamente nos braços de Dafne?
Os amigos de Políbio teriam ficado surpresos com o sorriso dele e com o seu comentário bem humorado:
— Não seria a mais desejável das mortes?
Helena deu de ombros, sentando-se à mesa ao lado dele e aceitando uma taça de excelente vinho, a única verdadeira extravagância de Políbio em matéria de amenidades. Embora fosse um homem austero, de conversa prudente, que preferia escutar, sem fazer comentários, Políbio adorava saber dos rumores e intrigas da cidade. Helena contou-lhe as últimas histórias mais picantes, arrancando risadas estrondosas de Políbio, ouvidas por escravos espantados nas partes mais distantes da casa.
Finalmente, Políbio voltou a ficar sério e fitou Helena com seus olhos penetrantes e sagazes:
— Agora que já nos divertimos, minha cara Helena, devo dizer que sei por que pediu esta visita. Foi por causa de Aspásia.
A expressão dele tornou-se extremamente sombria.
— Claro que foi — confirmou Helena, tomando um gole do vinho, as faces rosadas adquirindo uma cor vermelha, pelo muito que já bebera. — O que mais poderia ser? Sabe muito bem que as acusações contra ela são ridículas, Políbio.
Ele a contemplou em silêncio por um longo momento, antes de dizer:
— Não sinto o menor amor por Péricles, que é um perdulário, assim como não aprovo a sua estratégia de guerra, que está custando muito dinheiro e as vidas de atenienses demais. Mas isso não importa. Respeito-o profundamente e sei que é um homem justo. Por isso, atraiu muitos inimigos. Jamais conheci um patife que não tivesse uma legião de amigos devotados. O que nunca acontece com um homem de bem. Assim como os inimigos de Péricles atacaram-no antes por intermédio de Fídias, estão agora a atacá-lo através de Aspásia. Pensaram que podiam pô-lo em fuga com as acusações contra Fídias, mas Péricles foi mais forte. Sabem que Aspásia é o calcanhar-de-aquiles mais vulnerável de Péricles. E estão convencidos de que ele concordará, para salvá-la, em ser deposto ou banido.
— E acha mesmo que ele vai concordar?
— Você sabe perfeitamente que isso jamais acontecerá, Helena. A ideia nem lhe passaria pela cabeça. Para Péricles, Atenas está acima de tudo, Aspásia, os filhos, os amigos, até mesmo a própria vida.
Helena ficou pensativa, sabendo que era tudo verdade. O Rei-Arconte acrescentou:
— O problema é extremamente delicado. As acusações contra Aspásia foram apresentadas não apenas pelo Arconte Epônímo, que julga os casos civis, mas também pelo Arconte Polemarco, que preside os casos que envolvem estrangeiros, e pelo Arconte Tesmoteta, que protege os interesses materiais da cidade. — Uma pausa e ele acrescentou, secamente: — Não me apresentaram qualquer acusação de homicídio, pois isso teria sido absurdo demais.
— Sabe que ela não é culpada de nenhuma das acusações, Políbio.
A prudência mais uma vez prevaleceu e o Rei-Arconte franziu o rosto, comentando:
— O que você, eu ou qualquer outra pessoa possamos pensar, Helena, não é pertinente. As acusações foram-me encaminhadas. Devem ser decididas em julgamento público, perante um júri. Não tenho alternativa.
— Não me pode dar os nomes daqueles que apresentaram as acusações contra Aspásia, que seriam cômicas, se não fossem monstruosas?
Políbio fitou-a com uma expressão de censura.
— Sabe muito bem que não posso fazer isso antes do julgamento, Helena. — Ele hesitou por um instante. — Já avisou a Péricles? Sei que o seu próprio governo, infelizmente, jamais o informaria.
— Imediatamente, assim que tomei conhecimento da prisão de Aspásia.
O Rei-Arconte girou a taça entre os dedos, contemplando o vinho.
— Os inimigos de Péricles desejam que Aspásia seja julgada, condenada e punida, antes que ele tenha tempo de voltar para socorrê-la. Não é uma pena, para eles, que o Rei-Arconte, o principal magistrado, o único que pode presidir um julgamento assim, tenha adoecido subitamente? Já sou um velho, tenho palpitações do coração, um ataque de indigestão, uma indisposição geral. E ninguém pode tomar meu lugar, pois a minha doença não é fatal.
Helena levantou-se, enlaçou-o pelo pescoço e beijou-o várias vezes, sonoramente, com lágrimas nos olhos. Políbio enfiou a mão por baixo do peplo de Helena, que se encostou toda nele.
— Sei que não é por sua magnanimidade que se atreve a me acariciar e que eu permito. É por sua justiça, o que me atrai irresistivelmente.
Helena foi trancar a porta e depois apagou o lampião. Os dois foram para a cama. O Rei-Arconte iria recordar-se daquela noite pelo resto de sua vida, pois Helena lhe devolveu a paixão da juventude, que ele julgava ter perdido para sempre. Até mesmo a sua jovem hetera era desajeitada e inexperiente, em comparação com aquela mulher deliciosamente hábil e conhecedora dos segredos do amor, a quem ele jamais esquecera.
Helena, como fazia todos os dias, foi visitar Aspásia, levando um cesto de iguarias e um bom vinho. Ela já havia notado antes que a prisão estava guarnecida por guardas militares especiais e não pelos guardas comuns. Os guardas obrigavam-na a comer parte da comida que levava, antes de liberá-la para o consumo de Aspásia. Haviam informado a Helena:
— São ordens expressas do Rei-Arconte.
Em cada ocasião, Helena sentia o coração expandir-se de ternura por Políbio. Prometeu a si mesma que iria ocasionalmente conceder-lhe os seus favores, sempre que ele a desejasse. Quase o amava. Um homem de bem, um homem justo, refletia ela, é uma joia rara entre os políticos ou mesmo entre os outros homens e devia ser reverenciado pelo seu país. Contudo, é mais frequentemente desprezado, rejeitado ou pelo menos difamado. A humanidade não é capaz de tolerar justiça, honra e integridade,
A cela de Aspásia era na verdade um confortável aposento; Helena podia perfeitamente adivinhar de quem fora a iniciativa para tanto. Aspásia levara seus móveis, livros e ornamentos prediletos. Havia uma janela grande, que deixava entrar luz e ar, embora estivesse gradeada. Além disso, recebera permissão para que uma de suas escravas, de absoluta confiança, estivesse presente para ajudá-la no que fosse necessário.
Helena pôs o cesto, que também continha pratos, uma taça cravejada de pedras preciosas, talheres de prata e guardanapos de linho, em cima da mesa, preparando tudo para a refeição de Aspásia. E disse, firmemente:
— Deve comer tudo. Acha que Péricles, ao voltar, vai querer salvar uma megera?
Aspásia estava confinada há apenas uma semana, mas seu rosto já se mostrava extremamente pálido e encovado. Os cabelos maravilhosos estavam agora mais misturados com prata, de tal forma que a luz tinha alternadamente reflexos dourados e pálidos. Helena acrescentou:
— Trouxe também o meu cosmético predileto, uma mistura de amêndoas e mel, que deve usar várias vezes por dia nessas rugas desprezíveis que insiste em adquirir. Trouxe também um pote de leite de amêndoas e limão, perfumado com óleos, que deve esfregar todos os dias nos braços, corpo e mãos. E há ainda essência de rosas, o perfume predileto de Péricles. Como teve coragem de negligenciar-se dessa maneira, minha tola querida? Acha que um homem ama uma mulher apenas por sua inteligência e solicitude? Por ser homem, ele deseja também os atrativos físicos. Por acaso já esqueceu?
— O que mais me angustia — murmurou Aspásia — é que o arruinei por completo.
Helena ficou revoltada.
— Se é o que pensa, o mesmo se pode dizer de Fídias, Anaxágoras, Sócrates e incontáveis outros amigos de Péricles. Pode-me incluir também. E não vamos esquecer o velho Rei-Arconte, assim como a classe média, que Péricles está tentando desesperadamente salvar. Há ainda Zênon de Eleia. Devemos todos que ainda estamos neste mundo e os outros que já se encontram nas Ilhas Bem-Aventuradas, conforme espero, cobrir a cabeça com cinzas e lamentar nossa culpa?
Aspásia, apesar de seu terror, desespero e angústia em relação a Péricles, não pôde conter uma risada. E disse, com uma humildade simulada:
— Médica, obedecerei às suas ordens. — Fazendo um esforço, começou a comer o que Helena lhe trouxera. — Como está meu filho Péricles?
— Está em minha casa. É um garoto de temperamento autoritário, como o pai. Dá ordens a meus escravos, como se fosse um rei, pelo que tenho de censurá-lo de vez em quando. Preciso recordar-lhe constantemente que é um hóspede em minha casa e ainda jovem, que deve respeitar-me. Zombeteiramente, ele começou a me chamar de "mamãe", logo a mim, que nunca tive um filho, graças aos deuses. As crianças não são uma bênção, como os lavradores outrora acreditavam. Podem tornar-se inimigos mortais, piores que quaisquer outros.
Aspásia, ainda comendo, comentou:
— Pelo que tenho ouvido falar das filosofias orientais, os mais terríveis inimigos do Deus Desconhecido, quando ele nascer, serão os de Sua própria casa.
— Quanto a isso, não tenho a menor dúvida — disse Helena, mastigando uma cidra. — Quem mais poderia ser tão rancoroso quanto um irmão, filho ou mesmo pai, se um homem atinge a eminência? "Quem é ele para se elevar acima de nós?", dirão eles. "Não é meu parente, do meu próprio sangue? Portanto, não pode ser superior."
— Os deuses escolhem entre os homens, para seus sagrados desígnios, e os parentes não têm qualquer participação — disse Aspásia.
— Esse problema deve ser levado à consideração dos parentes invejosos.
— Helena, minha amiga querida, não quero que Péricles ponha sua posição em risco para me defender.
Helena levantou os braços.
— Ah, minha tola querida! Será que vou precisar repetir que você não passa de um pequeno instrumento nas mãos dos inimigos de Péricles? Por que insiste em pensar que esses inimigos vão suspender os ataques a Péricles com a sua morte? O objetivo deles é o despotismo. Usam as turbas irracionais para alcançarem esse objetivo. Ao defendê-la, minha doce idiota, Péricles estará defendendo a dignidade dos homens, dos trabalhadores, da classe média, dos artistas e cientistas, a liberdade de expressão, as leis de Sólon, a própria civilização, a glória da Grécia, a lei e a ordem, a segurança nacional... tudo, enfim, que é odiado pelos ricos e poderosos, pelos sequiosos de poder, No fundo de suas almas, eles são tiranos e só sentem desprezo e aversão pelos que trabalham e amam seu país.
Aspásia jamais esqueceu as palavras da amiga. Nunca mais tornaria a vê-la. Ao voltar para casa em sua liteira, Helena foi assassinada por um bando desconhecido de membros das turbas, enlouquecidos pelo ópío, distribuído pelos aristocratas conspiradores. Eles sabiam que as drogas constituíam a melhor maneira de controlar rebeldes em potencial, tornando-os impotentes, entre sonhos impossíveis. A liteira foi atacada, as escravas massacradas. Helena, que amava a vida, apesar de todos os monstros que se consideram homens, foi morta porque era uma mulher compadecida, que considerava a humanidade digna de viver, apesar dos seus erros. Ela, que prezava o mundo e acreditava na dignidade dos homens, foi finalmente refutada, para satisfação dos que ansiavam pelo despotismo e haviam ordenado o seu assassinato.
O Rei-Arconte, ao ser informado do assassinato de sua amada Helena, ficou desolado, e pôs-se a chorar sozinho. Disse para si mesmo: "Ao final, minha lustrosa romã, acabou sendo vitoriosa. Pois, se os deuses são justos, haverão de reconhecer aqueles que morreram na defesa da liberdade. Mas somente Deus pode conceder-lhes toda a reverência que merecem."
Como homem prudente, tomou uma decisão inabalável, resolvendo que, pelo menos por uma vez, a justiça deveria prevalecer, apesar das turbas.
Não se iludiu a si mesmo julgando-se um homem excepcional. A história hoje, assim como amanhã, provaria que ele estava certo. Mas, infelizmente, isso só ficaria plenamente comprovado depois que todos os heróis fossem massacrados, o mundo inteiro mergulhado no desastre e as ansiosas multidões escravizadas, como mereciam ser.
A verdade, refletiu o Rei-Arconte, estava sempre em julgamento, sempre sendo assassinada, difamada e escarnecida. Os que viviam pela verdade sofriam com os grilhões, eram interminavelmente oprimidos. Valeria a pena buscar a verdade? Só Deus sabia.
Quando Aspásia e Péricles se encontraram na cela, ficaram aturdidos com a aparência um do outro, pois haviam envelhecido consideravelmente, naquele curto período de separação. Péricles ficou desolado com a palidez e os olhos fundos de Aspásia. Esta, por sua vez, mostrou-se angustiada com a extrema exaustão de Péricles, a sua expressão abatida e a palidez de seu rosto, onde se viam rugas profundas. Estavam muito mais brancos os seus cabelos.
Ela chorou nos braços de Péricles, balbuciando:
— Eu só lhe trouxe calamidade.
Ao que Péricles respondeu, afagando-lhe os cabelos:
— Proporcionou-me a vida. Mesmo que jamais a tivesse conhecido, eu estaria na situação em que me encontro atualmente. Somente você me trouxe algum conforto.
Péricles não falou do afastamento dos seus filhos, nem da peste misteriosa vinda do Oriente e que começava a se espalhar por Atenas, já estando a dizimar os soldados nos campos de batalha. Sentou-se com Aspásia na cama, segurando firmemente as mãos dela, tentou sorrir para o rosto angustiado de sua amada, enquanto esta sondava o desespero dele.
— Helena foi assassinada somente porque era minha amiga — disse Aspásia, soluçando.
— Já fui informado desse assassinato. Mandei anunciar uma recompensa enorme pela captura dos criminosos. Mas não foi por sua causa, meu amor. Não seja tão egoísta. — Ele tentou rir, mas ficou num arremedo. — Helena há muito que é odiada em Atenas, por causa de sua filantropia, esclarecimento, ausência de sentimentalismo, coragem, horror à mentira, apoio declarado à liberdade e amizade por mim. Já era odiada e escarnecida antes mesmo que você chegasse a Atenas. O destino final dela era inevitável. E nenhuma das incontáveis pessoas às quais ela salvou e livrou do sofrimento foi capaz de dizer uma única palavra de protesto contra o seu assassinato, sequer um grito de indignação.
A amargura na voz de Péricles era letal e impregnada de ódio.
— Eu preferia estar morta também — murmurou Aspásia, desesperada.
— Não diga bobagem. Gostaria de me deixar sozinho entre meus inimigos, sem ninguém para me consolar? Seria muito egoísmo da sua parte.
— Não deve defender-me! — suplicou Aspásia, abraçando-o vigorosamente.
— Iria pedir-me para não defender a minha própria vida?
Conversaram sobre o futuro em comum, quando tudo tivesse acabado, falaram do filho que tinham, Péricles, que tinha voltado para a casa do pai.
— Ele me declarou hoje, o garoto atrevido, que seu nome será maior que o do pai — disse Péricles, com uma expressão afetuosa, quase divertida, — Respondi que ele não precisaria esforçar-se muito, pois não serei famoso na história.
Conversaram sobre a escola de Aspásia, que estava sob a orientação firme de suas competentes leais mestras. Depois, a expressão de Péricles alterou-se sutilmente, tornando-se mais sombria.
— De que valeria este mundo de selvagens sem os mestres? E como os recompensamos? Com estipêndios miseráveis, se é que algum, com desprezo. Contudo, eles detêm em suas mãos altruístas o futuro dos homens. — Ele fez uma pausa. — Está lembrada, meu tesouro, de uma das suas jovens discípulas, chamada Iona, filha de Glauco, que é juiz em um tribunal secundário?
Aspásia, aturdida por Péricles estar falando de banalidades, em meio a tantos problemas e preocupações, respondeu:
— Lembro-me perfeitamente da moça. A mãe era uma mulher inteligente e, antes de morrer de uma hemorragia, fez o marido prometer que mandaria Iona para minha escola. Infelizmente, a moça não possuía a inteligência e o autocontrole da mãe. Dispensei-a. Isso aconteceu há um ano. Mas por que pergunta?
— Fale-me sobre o caráter da moça, não sobre a sua falta de inteligência.
Cada vez mais espantada, Aspásia disse:
— Além de ser extremamente dissimulada e maldosa, ela vivia criando casos. Descobrindo que não podia competir com as colegas e ressentida com as censuras das mestras, inventou escândalos que as envolviam. Sei que parece estranho, mas os escândalos eram astuciosamente engendrados, a tal ponto que cheguei a acreditar em uma de suas histórias, de tão detalhada que era e apresentada com uma aparência de sinceridade impressionante. Iona tinha o rosto de uma ninfa, a alma de um demônio, fala suave, atitudes gentis, era aparentemente recatada, tinha um jeito pudico de passar a língua pelos lábios. Enganou a muitas pessoas, por um tempo considerável. O que é a suprema arte dos hipócritas.
— O que disse a ela quando a dispensou, Aspásia?
Mais desconcertada do que nunca, Aspásia disse:
— Por que está querendo falar de uma criatura que não merece a mínima atenção? Mas, se quer mesmo saber, acho que posso lembrar o que disse a Iona: "Você não serve para conviver com as minhas donzelas, tendo espalhado calúnias a respeito de muitas delas. Além do mais, sua inteligência nada tem de excepcional, a não ser nas coisas do mal. Assim, deve deixar-nos e voltar para a casa de seu pai."
Aspásia calou-se por um momento, o rosto sério, pensativa, antes de acrescentar:
— O pai dela, Glauco, com quem Iona se parece, veio-me procurar, furioso, exigindo que lhe explicasse por que a filha havia sido dispensada. Como eu tinha sido amiga da mãe dela, quis poupar-lhe a memória. E disse a Glauco que não acreditava que sua filha possuísse os talentos necessários para se distinguir. Ele se retirou, ainda furioso. — Aspásia fez outra pausa, fitando Péricles nos olhos, — Não estou compreendendo. O que essa moça ou o pai dela representam para você?
Péricles desviou os olhos, esquivando-se a uma resposta.
— Ouvi dizer que Glauco quer-se candidatar a um posto superior e queria saber se é um homem digno de ser apresentado aos eleitores.
— Ele possui integridade suficiente... para um burocrata, se é que eles têm alguma integridade. É um homem muito cuidadoso e tem uma inteligência que não pode ser desprezada.
— Um homem iníquo dotado de inteligência é apenas um pouco menos perigoso que um homem iníquo completamente estúpido. Acho que vou-me opor à indicação dele.
Um dos guardas militares entrou na cela com o jantar de Aspásia, que era bem preparado e apetitoso. Fora guardado num forno, para manter-se quente, tendo sido trazido pelo próprio Péricles. O guarda saudou Péricles respeitosamente, hesitou por um instante, mas acabou falando:
— Por ordem do Rei-Arconte, meu senhor, toda pessoa que trouxer alguma comida para a Senhora Aspásia deve comê-la primeiro, antes que ela o faça.
Péricles sorriu em gratidão por esse cuidado com sua amada e disse:
— Não tenho palavras para agradecer ao Rei-Arconte por isso.
Ele tirou um pouco de cada prato, enquanto o guarda observava com uma expressão constrangida. Péricles piscou para Aspásia, que sorriu pela primeira vez desde que ele ali chegara.
— Não seria uma inspiração para os grandes poetas, Aspásia, se morrêssemos envenenados juntos?
Ela não achou o comentário engraçado. Nem o guarda. Para agradar a Péricles, Aspásia fez um grande esforço e comeu e bebeu. Embora a primavera já estivesse pela metade e o ar lá fora se mostrasse bastante quente, estava agradavelmente fresco na cela. Pelo menos, pensou Péricles, minha querida está segura aqui, graças ao Rei-Arconte. Não corre perigo de ser assassinada, como aconteceu com Helena.
Aspásia interrogou-o sobre a guerra entre Atenas e seus aliados e Esparta e os aliados desta. Péricles mostrou-se novamente evasivo, para poupar-lhe mais preocupações.
— Estamos indo bem, Xantipo está otimista. Mas, diga-se de passagem, quando foi que ele deixou de ser otimista? Eu gostaria, porém, que ele não se mostrasse tão hostil com nosso parente, o réptobo Alcíbíades, que é um soldado extraordinário. Paralo? — Péricles hesitou. — Ele acha que o desespero da mãe ainda não diminuiu o bastante para que possa deixá-la.
Ele não contou a Aspásia que sua guarda militar fora mais que triplicada, pois as turbas do mercado estavam-se tornando perigosamente hostis e excepcionalmente vociferantes, quando o viam na Ágora ou nas ruas. Embora as detestasse, Péricles sabia que não se podia culpá-las. Estavam sendo incitadas por seus inimigos, a um ponto de violência.
Ao deixar Aspásia, depois de avisá-la firmemente de que falaria em sua defesa de qualquer maneira, apesar dos protestos e lágrimas dela, Péricles foi encontrar seus soldados bastante apreensivos. Ífis disse:
— General e senhor, as turbas parecem extremamente irrequietas hoje, depois do seu retorno. Recebi informações de que muitos estão armados e proferindo ameaças.
Péricles não era homem de não dar atenção a ameaças, mesmo partidas das turbas. Assim, manteve o capuz abaixado sobre o rosto e empunhou a espada, enquanto a guarda o cercava, em formação compacta. Havia tirado o elmo, para tornar mais difícil seu reconhecimento. Mesmo assim foi reconhecido, pois uma vasta multidão estava à sua espera perto da prisão. Gritos frenéticos e irados chegaram-lhe aos ouvidos, saídos de centenas de gargantas:
— Tirano! Déspota! Provocador de guerras! Saqueador do tesouro! Malfeitor! Mentiroso! Ladrão! Difamador dos deuses! Herege! Vergonha de Atenas! Traidor! Renuncie!
E vozes mais altas se fizeram ouvir:
— Vamos tirá-lo do cargo! Vamos exilá-lo!
— Isso mesmo! — berrava a multidão.
Ífis disse:
— Dê-me autorização para investir contra eles, meu general.
— Não, Ífis. Não são eles que estão gritando. São outros, que se acham seguros neste momento, escondidos em suas casas luxuosas, reunindo-se em segredo, a conspirar contra Atenas. Quem se atreve a acusá-los ou tocá-los? São ricos demais, poderosos demais.
Mas Péricles se perguntou, silenciosamente, por quanto tempo ainda conseguiria suportar aquela infâmia, a separação de seus filhos, o esforço para salvar o país, a ingratidão do povo e todos os fardos que a liderança lhe impunha, transformando-o no mais solitário dos homens, isolado, com poucos amigos.
Naquele momento, porém, o mais importante era seu receio por Aspásia; não podia pensar em mais nada.
Experimentou uma momentânea recuperação do ânimo ao levantar os olhos para a acrópole, a floresta de estátuas e colunas, templos, jardins e fontes, e para o Partenon, onde a enorme imagem de ouro e marfim de Atena Pártenos faiscava ao sol. O rosto imenso da deusa parecia fitá-lo e Péricles disse a si mesmo: "Acima de tudo, proteja minha cidade e meu povo." Teve a impressão de que a estátua tinha o rosto de Helena e ficou com os olhos úmidos.
Capítulo 18
O Rei-Arconte recuperou-se milagrosamente. É verdade que, ao aparecer no tribunal, perante toda a Assembleia e os arcontes, todos notaram que parecia um tanto perturbado e distante, os olhos vermelhos, como se tivesse passado a noite a chorar. Afora isso, estava controlado como sempre, apresentando a imensa dignidade pessoal do costume, apesar de ser um homem pequeno. Por alguns dias, circulara o rumor de que ele fora acometido pela peste, que já havia chegado a Atenas, embora sem causar muito alarma entre os médicos, que ocultavam ao povo a informação de que o mal estava causando muitas baixas entre os soldados,
O dia era quente, o salão estava sufocante, todos os rostos se mostravam ávidos de sangue, exceto os dos amigos de Péricles. Estes, encostado na parede, fitavam-no com uma profunda angústia. Mas Péricles avançou com uma atitude confiante, usando os trajes do cargo, empunhando o bastão de marfim, símbolo de autoridade, a cabeça, com o elmo mais alta que todas as demais, o rosto envelhecido mostrando um ar de dignidade, os olhos firmes. Ele recusara a presença de qualquer guarda, exceto os que ficavam nas portas, que não lhe pertenciam. Mas estava com a espada por baixo do manto.
— Se eu deixo transparecer a eles que estou com medo, saltam-me à garganta — disse Péricles ao ansioso Ífis. — Não se pode recuar diante de cães raivosos. É incitá-los o ataque.
Ele parou então diante do Rei-Arconte, cujo rosto pálido se contraiu involuntariamente, mas cujos olhos se encontraram com os de Péricles com uma expressão firme. Cumprimentaram-se formalmente. O Rei-Arconte ordenou aos guardas:
— Tragam a prisioneira, Aspásia de Mileto.
Antes da chegada de Aspásia, Péricles examinou os rostos dos arcontes que haviam apresentado acusações contra ela, de traição, vício, corrupção, impiedade e diversos crimes menores contra Atenas e seu povo. Eles retribuíram o seu olhar, impassíveis. Não eram seus amigos. Péricles não acreditava que qualquer deles fosse essencialmente corrupto ou que houvesse sido subornado; tinham sido compelidos, pela lei, a determinarem a prisão de Aspásia, "por informações". Contemplou em seguida os jurados. Aqueles homens cumpririam seu dever, tomando uma ou outra decisão, depois de receberem as instruções imparciais do Rei-Arconte.
Todos suavam profusamente sob o calor sufocante, à exceção de Péricles. Este sentia um frio intenso, de medo. As acusações contra Aspásia eram terríveis, muito mais graves do que as acusações formuladas contra Anaxágoras e Fídias, pois ela era uma mulher estrangeira e os estrangeiros eram sempre suspeitos.
Péricles avisara a Aspásia, antes de deixá-la em sua última visita, que devia mostrar-se serena e tranquila perante a audiência, que devia cuidar de sua aparência negligenciada e assumir uma atitude de orgulho e destemor. Ele virou-se na direção da porta pela qual Aspásia iria entrar. Quando ela apareceu, Péricles experimentou um alívio intenso. Aspásia parecia uma rainha, alta e esguia, vestida graciosa, mas discretamente com uma túnica lilás e um manto branco, o rosto calmo e puro, os cabelos presos no alto da cabeça com fitas brancas, à moda ateniense, os pés em sandálias de couro, a atitude serena. Ela não colorira os lábios ou as faces, que pareciam mármore, assim como não usara pintura nos olhos. Não trazia joias, a pedido de Péricles, que comentara:
— Não há nada tão irritante quanto joias em outra pessoa para alguém que não tem condições de possuí-las.
Ele sabia que a inveja era a emoção mais poderosa dos homens, a mais perigosa e fatal.
Quando Aspásia chegou ao seu lado, era como se fossem meros conhecidos, como se ele fosse simplesmente o defensor que lhe fora designado. Ela fez-lhe uma ligeira reverência, em silêncio, depois cruzou as mãos à sua frente e ficou esperando. Todos observavam o encontro, a maioria com hostilidade, uns poucos com compaixão e ira.
Péricles disse ao Rei-Arconte:
— Que os acusadores desta mulher se pronunciem, Senhor.
O Arconte Epônimo, que julgava casos civis, levantou-se solenemente. Dirigiu-se ao Rei-Arconte:
— A mulher é acusada de corrupção de moças em sua casa, que alega ser uma escola, de aliciá-las para propósitos vis, a fim de ganhar dinheiro com isso. A testemunha, o pai de uma moça que resistiu à corrupção e por isso foi afastada da casa de Aspásia de Mileto, está presente para prestar depoimento. Foi a mim que ele apresentou as acusações. Deseja uma compensação, três mil talentos de ouro, porque sua filha foi possuída à força por três homens na casa de Aspásia de Mileto e está doente desde então, na casa do pai, angustiada pela vergonha.
Um rugido abafado de ira se elevou da multidão. O Rei-Arconte alteou a voz para dizer:
— Não haverá demonstrações, pois estamos num tribunal de justiça. — Ele virou-se para o arconte e acrescentou: — Apresente sua testemunha, o pai da moça, um certo Glauco, magistrado da cidade.
O arconte fez sinal para um homem entre a multidão, que se levantou e se encaminhou para a bancada do Rei-Arconte. Parou a alguma distância de Péricles e Aspásia, com uma expressão rancorosa no rosto. Era um homem magro e nervoso, o rosto instável demais, até mesmo para um ateniense, a cabeça calva.
O Rei-Arconte fitou-o sem qualquer expressão.
— Repita as palavras de sua filha, sob juramento.
Glauco prestou o juramento solene. Não desviou os olhos malignos de Aspásia, exceto para lançar um olhar rápido a Péricles, que sorria discretamente. Aspásia parecia totalmente atordoada, mas somente suas mãos tremiam visivelmente.
Glauco disse:
— Minha filha foi dispensada da escola da mulher estrangeira. Tinha sido enviada para lá a pedido de minha querida esposa agonizante. Eu não podia negar o último desejo de minha esposa, embora fizesse objeções ao que me fora pedido. Minha filha voltou para casa em lágrimas, sofrendo visivelmente. Foi diretamente para o leito, sem dizer nada nessa ocasião, pois estava envergonhada demais pelo que lhe acontecera naquela casa infame. Sem entender o que havia acontecido, fui visitar a mulher estrangeira que está aqui presente. Ela me olhou com desprezo e informou que minha filha fora dispensada porque não se adaptava aos estudos e à escola. Embora estivesse satisfeito pelo fato de minha filha ter voltado para casa, pois não aprovo a educação para as mulheres, observei que a doença de Iona parecia cada vez mais óbvia. Interroguei-a mais insistentemente.
Ele fechou os olhos, como se não pudesse suportar a desgraça da filha. Depois de um momento, voltou a falar, a voz mais fraca:
— Ela informou-me então que fora possuída à força, por homens desconhecidos, na casa de Aspásia de Mileto, e que agora queria morrer. Avisei às suas escravas que não a deixassem sozinha por um momento sequer, pois temo que tente cometer suicídio. Iona é uma moça virtuosa. Por seu nome desonrado, exijo uma reparação, não apenas em dinheiro... não sou um homem rico... mas também a punição dessa mulher depravada.
Era raro uma mulher ter permissão para falar em sua própria defesa, perante uma reunião de homens. Mas Péricles abriu o precedente, dizendo a Aspásia, em voz fria;
— Fale, Aspásia de Mileto, diga-nos tudo o que sabe sobre a acusação.
Os olhos de Péricles advertiam-na a manter o controle. Mas, por um momento, Aspásia não conseguiu. Recuperou-se, porém, rapidamente e disse, em voz clara e suave, que tremia apenas ligeiramente:
— A acusação, Senhor, é falsa, maldosa e inverídica. Tive dúvidas em aceitar Iona na minha escola, pois já sabia que ela não tinha condições de frequentá-la. Contudo, a mãe dela fora minha amiga, era uma mulher boa e generosa, dotada de grande inteligência. Por isso, acabei aceitando Iona.
Aspásia respirou fundo, audivelmente. Fixou os olhos no Rei-Arconte, que viu os olhos castanhos dela cintilarem como se fossem pedras preciosas.
— Iona não apenas era mentalmente incapaz de absorver os estudos, mas também mentiu, caluniou, causou grandes problemas na escola, entre mestras e discípulas. Tinha uma aparência inocente, que enganou a muitas durante quase um ano, inclusive a mim. Investiguei meticulosamente as suas calúnias e finalmente me convenci de que Iona era uma mentirosa. Dispensei-a da escola. Não contei a seu pai os crimes que ela cometera contra mestras e colegas, pois respeitava a memória de sua mãe.
Novamente houve um rugido de indignação contra Aspásia e o Rei-Arconte protestou. Ele perguntou a Aspásia:
— Não há qualquer verdade na acusação de que providenciou homens para violentarem a moça?
— Absolutamente nenhuma, Senhor. — Aspásia hesitou por um instante, depois acrescentou: — Se a moça não é virgem, posso assegurar que não sofreu a perda da virgindade em minha casa.
Glauco gritou:
— Ela mente contra minha criança! Exijo...
Péricles interveio:
— Iona não é uma criança. Tem quatorze anos, está em idade de se casar. Diga-me uma coisa, Glauco: providenciou para que sua filha fosse examinada por um médico competente, que pudesse determinar se ela sofreu ou não a perda da virgindade?
— Não! Minha criança já não sofreu bastante para ter ainda que suportar o exame brutal de um médico? Ela é uma criança recatada!
O Rei-Arconte contraiu os lábios. Aspásia disse:
— Iona não era tão recatada na hora de atribuir as perversões, mais indignas e atos inomináveis a suas colegas e mestras. Não sei onde ela aprendeu tais coisas, talvez das escravas dos aposentos das mulheres da casa de seu pai.
O Rei-Arconte cerrou o cenho para Aspásia, pois era inadmissível que uma mulher falasse sem que um homem lhe dirigisse primeiro a palavra. Ele olhou em seguida para Glauco e disse:
— É minha decisão que um médico seja imediatamente enviado à sua casa, a fim de examinar sua filha. Escolherei o médico, para que não seja subornado. Não consente, Glauco? Pois neste caso as suas acusações contra Aspásia de Mileto ficarão sumariamente canceladas.
Glauco apressou-se em declarar:
— Concordo com sua decisão, Senhor. Escolha o médico e mande-o imediatamente à minha casa.
Isso significa, pensou Péricles, que o pai também foi enganado pela astúcia da filha. Apesar de tudo, Péricles não pôde deixar de sentir alguma compaixão por Glauco. O Rei-Arconte chamou um guarda e sussurrou-lhe algo ao ouvido; o guarda afastou-se correndo. Outro pensamento ocorreu subitamente a Péricles: E se a corrompida moça foi realmente privada da virgindade por algum desconhecido? Não devia ter acontecido, pois ela fora constantemente vigiada na escola de Aspásia e o mesmo devia ter acontecido em sua casa. Contudo, a luxúria sempre encontra um jeito de superar todos os obstáculos, conseguindo entrar até mesmo numa prisão.
— A próxima testemunha contra Aspásia de Mileto — disse o Rei-Arconte.
O Arconte Tesmoteta, que protegia os interesses da cidade, levantou-se e disse:
— Aspásia de Mileto foi acusada de traição, de estar fornecendo ajuda e conforto aos nossos inimigos, pondo em risco a nossa própria existência.
— Apresente o acusador — determinou o Rei-Arconte.
O Arconte Tesmoteta fez um sinal e o acusador se adiantou. Era um homenzinho gordo e já idoso, de expressão ansiosa, Aspásia teve um sobressalto ao vê-lo, pois o homem ensinara História em sua escola. Fora obrigada a dispensá-lo, pois ele fizera propostas obscenas a diversas discípulas.
— O que tem a dizer perante o Rei-Arconte? — perguntou-lhe o Arconte Tesmoteta.
Para um homem gordo, ele possuía uma voz insolitamente fina e estridente.
— Ensinei na suposta escola dessa mulher — disse ele, apontando para Aspásia. — Saí de lá há um ano. Sou mestre de História e patriota. Um dia, ela entrou em minha sala de aula, o que costumava fazer frequentemente, com todos os mestres, e ficou escutando os meus elogios fervorosos à nossa história. Havia um sorriso desdenhoso em seus lábios. Ela interrompeu-me subitamente e disse: "Não é suficiente fazer elogios. É necessário também contar a verdade". Perguntei-lhe então o que era a verdade. Ela deu de ombros e respondeu: "Só Deus sabe. Os historiadores, tenho certeza, ignoram."
Ele fez uma breve pausa, antes de continuar rapidamente:
— E isso não é tudo. Confesso que fiquei chocado, mas ela sempre foi enigmática. Um outro dia, eu estava passando por uma colunata quando a ouvi falar em voz baixa com um desconhecido, um homem de aparência estrangeira. Ela entregou-lhe uma bolsa grande e disse: "Dê isto a meu parente, o espartano, e diga que lhe desejo a vitória". Isso aconteceu pouco antes de eu ser dispensado.
O Rei-Arconte olhou para Aspásia, cuja aparência aturdida fazia com que parecesse inconsciente, embora as pernas se mantivessem firmes, Ele esperou por um momento, antes de dizer, quase gentilmente:
— O que tem a dizer sobre isso, Aspásia de Mileto?
A voz de Aspásia era um mero sussurro:
— Dispensei esse homem porque ele tinha feito propostas obscenas às minhas donzelas inocentes, que vieram queixar-se a mim. Eu lhe disse certa ocasião: "É também necessário contar a verdade". Não estou afirmando que esse homem mente em tudo que diz. Mas há muitos historiadores que enfeitam a história com seus preconceitos pessoais e eu queria que minhas discípulas conhecessem os fatos e não simples fábulas. De que adianta o estudo, Senhor, se tudo fica baseado numa simples opinião e não na verdade?
Aspásia concentrou todo o brilho recuperado dos seus olhos castanhos no acusador, antes de acrescentar:
Mas ele mente, deliberadamente, quando afirma que entreguei uma bolsa de ouro a algum estrangeiro e pronunciei as supostas palavras que me atribuiu. Sou jônia, não sinto qualquer amor pelos espartanos. Nasci em Mileto, vivi na Pérsia e depois em Atenas. Não tenho qualquer parente em Esparta, jamais conheci qualquer espartano e espero nunca conhecer!
Murmúrios de risadas se espalharam pelo salão, até mesmo o Rei-Arconte sorriu. E ele disse:
— Aspásia de Mileto, também espero jamais conhecer um espartano. — Ele fez uma pausa, olhou para o mestre. — É apenas a sua palavra contra a dessa mulher e você é homem. Ela acusou-o de comportamento obsceno com jovens inocentes e disse que foi por isso que o dispensou. Se ainda insiste em que ela mente, então minha desagradável obrigação é convocar as moças que o acusaram perante Aspásia de Mileto. E aqui, na sua presença, pedirei a elas que contem a verdade. Como deve saber, o comportamento obsceno com jovens inocentes e indefesas é um crime muito grave.
O mestre de História tremeu visivelmente. Depois, abriu os braços e se inclinou na direção do Rei-Arconte.
— Senhor, não é meu desejo submeter essas moças inocentes à curiosidade pública. Respeito as jovens, que merecem toda a minha consideração. Assim, embora seja tudo verdade, retiro as acusações contra essa mulher.
— Retira as acusações de traição?
O mestre se inclinou humildemente.
— Isso mesmo, Senhor. Devo proteger as moças, a qualquer custo para mim e para minha honra.
— Está mentindo! — explodiu o Rei-Arconte, numa rara demonstração de emoção. — Foi apanhado numa armadilha. Mentiu sob o mais solene dos juramentos. Acusou essa mulher de traição e depois, quando as garras de ferro da armadilha o ameaçaram, tentou habilmente escapar. Assim, absolvo Aspásia de Mileto da acusação de traição, mas não o absolvo da acusação de mentir sob juramento. E o condeno a um ano de prisão.
O homenzinho gordo, tremendo de terror, virou-se como se pensasse em fugir. Mas os guardas agarraram-no e levaram-no dali. Ele saiu gritando incoerentemente, a agitar as pernas no ar, freneticamente. Foi nesse momento que o médico designado pelo Rei-Arconte entrou no salão. O Rei-Arconte fez-lhe um sinal para que se adiantasse. Inclinou a cabeça e o médico sussurrou-lhe algo no ouvido. O rosto do Rei-Arconte ficou tenso. Ele chamou Glauco, que se aproximou, rapidamente, uma expressão de expectativa no rosto.
O Rei-Arconte inclinou-se para a frente e disse a Glauco, em voz tão baixa que somente Aspásia e Péricles puderam ouvir também:
— O médico declara que sua filha jamais conheceu um homem. Mas ele encontrou sinais de atividades pervertidas. Interrogou sua filha insistentemente e ela confessou que não apenas tem-se submetido aos desejos sexuais de suas escravas, como ela própria as tem instigado. Como o médico não é o seu nem de sua filha, tendo sido designado por mim para investigar a verdade, não violou qualquer segredo. E devo acrescentar que é um médico famoso por sua capacidade e probidade.
O rosto de Glauco tornou-se extremamente pálido, de vergonha e medo, um brilho de raiva surgiu-lhe nos olhos. O Rei-Arconte continuou a falar, em voz baixa:
— Se for seu desejo, farei esse médico prestar juramento e -exigirei seu depoimento.
Glauco cobriu o rosto por um momento com as mãos trêmulas. Quando as baixou, tinha os olhos cheios de lágrimas.
— Não é meu desejo, Senhor.
O Rei-Arconte, que também sentia alguma compaixão por aquele pai enganado, disse em voz mais alta:
— Vamos prosseguir com o julgamento. Glauco, ainda insiste na acusação e exige a reparação em dinheiro e uma punição para Aspásia de Mileto?
Glauco engoliu em seco. Olhou para Aspásia, ainda com um ódio profundo, como se ela é que o tivesse levado àquela situação. Mas disse em voz bastante alta:
— Retiro as acusações, no interesse do recato de minha filha.
Não era suficiente para o Rei-Arconte, que disse:
— Responda, Glauco: Retira inteiramente as acusações de que sua filha foi forçada a se empenhar em ações obscenas com três homens na casa de Aspásia de Mileto?
Glauco debateu-se consigo mesmo. Todos estavam no mais absoluto silêncio. Ele cerrou a descerrou os punhos, nos lados do corpo, olhando para Aspásia, como se desejasse estrangulá-la.
— Retiro completamente as acusações. — Ele engoliu em seco. — Como minha filha é uma criança inocente, provavelmente usou sua imaginação, como fazem todas as mulheres nos aposentos de mulheres, por falta de ocupação melhor.
O Rei-Arconte inclinou a cabeça.
— É um fato bem conhecido que a libidinagem floresce nos aposentos das mulheres.
Ele olhou para o júri e acrescentou:
— Aspásia de Mileto está absolvida das acusações que foram apresentadas por Glauco, em nome de sua filha. — Ele fez uma pausa, a expressão tornando-se mais rigorosa. — Mas há um outro problema que deve ser tratado, Aspásia. Não comunicou as propostas obscenas que seu mestre de História fez às moças sob os seus cuidados. Seu silêncio é repreensível. Por isso, eu a multo em seis talentos de ouro.
Aspásia abaixou a cabeça, sem fazer qualquer comentário. O Rei-Arconte ficou a olhá-la, com uma expressão genuína de reprovação. Enquanto isso, o infeliz Glauco deixava o salão, de cabeça baixa, não percebendo assim os olhares desdenhosos dos amigos de Péricles.
Um silêncio tenso envolveu o salão, pois era chegado o momento em que seria apresentada a mais grave das acusações contra Aspásia. Políbio fitava-a atentamente, Péricles chegou mais perto, como se desejasse protegê-la. O rosto do Rei-Arconte perdeu toda a expressão, salvo os seus olhos, que estudavam Aspásia como se lhe lessem -a alma. Sócrates, perto da parede, inclinou-se para a frente, prendendo a respiração, os olhos radiantes fixados no rosto de Políbio, como se sentisse algum presságio em relação a seu próprio futuro. O calor no salão aumentou. Os raios de sol que entravam pelas janelas altas eram de uma tremenda intensidade, fortes demais para que se pudesse olhá-los. Muitas pessoas piscavam os olhos, procurando resguardar-se da claridade terrível.
O Rei-Arconte finalmente disse:
— Aspásia de Mileto, foi absolvida das acusações apresentadas até agora perante este tribunal. Contudo, ainda resta a mais terrível de todas as acusações... a de que é culpada de impiedade. Devo julgá-la, pois sou o Rei-Arconte e tenho nas mãos o poder de vida ou morte para a heresia, o maior dos crimes contra os deuses e o povo de Atenas.
Aspásia ergueu a cabeça e ficou imóvel, alta e empertigada, os olhos abertos e graves, a luz se refletindo neles.
O Rei-Arconte contemplou-a em silêncio e pensou: Essa mulher não apenas é linda, mas também brava e orgulhosa, como a minha Helena, a quem jamais esquecerei. Por um instante, ele comprimiu os olhos vigorosamente, de dor e tristeza. Ao abri-los, fingiu estar examinando um documento à sua frente, pois naquele instante achava-se totalmente incapaz de continuar a falar. Depois, olhou novamente para Aspásia, que ficou espantada ao descobrir que os olhos dele estavam úmidos e as pálpebras tremiam ligeiramente. Péricles também o percebeu e seu temor aumentou, sem qualquer razão específica.
— Deve responder-me com a verdade, Aspásia de Mileto — disse o Rei-Arconte, a voz tão alta e firme quanto antes. — Foi-me dito que é herege, que escarnece dos deuses, que nega a existência deles. Não preciso apresentar testemunhas, pois eu próprio já ouvi tais acusações muitas vezes. Pense bastante antes de responder, procure ordenar os pensamentos, pois sua vida dependerá das palavras que disser.
Novamente um silêncio tenso envolveu o salão, a tal ponto que parecia estar vazio. Todos se inclinavam para a frente, olhando para Aspásia. Umas poucas abelhas e vespas haviam entrado pelas janelas e seus zumbidos ressoavam pelo salão, como se estivessem impregnados de raiva. Péricles aproximava-se ainda mais de Aspásia, a mão agarrando convulsivamente o cabo da espada, por baixo do manto.
Mas Aspásia não se virou para ele. Toda a sua atenção era exclusivamente para o Rei-Arconte. Ela não sentia qualquer hostilidade nele, nenhum desdém, nenhuma ameaça. Ele era o juiz e iria julgá-la com base no que ela dissesse nos momentos seguintes. Se o coração dela batia um pouco mais depressa, ninguém sabia disso. Aspásia ergueu a cabeça ainda mais alto. Não havia qualquer vestígio de medo ou evasiva em seus olhos.
— Senhor — disse ela — não sei o que tem ouvido, quais as calúnias e falsidades. Interrogou-me a respeito de minha heresia, posso apenas dizer que, desde a infância, tenho sentido a Presença da Divindade em todas as coisas, que minha alma se sente abalada como um lírio nos campos ao pensar Nele, que contemplo tudo o que Ele criou com espanto, admiração, prazer e reverência e que, na medida das minhas poucas possibilidades, tenho procurado servi-Lo, Sua Lei é mais doce para o meu espírito que o mel, Sua generosidade já me fez chorar de alegria. Vejo Sua sombra nas montanhas, Seu reflexo na água, Seus arautos nos céus, Sua majestade na menor das flores em uma fenda. Porque Ele está em tudo que existe, não há feiura, a não ser aos olhos pervertidos dos homens. As próprias pedras O proclamam, as estrelas cantam o Seu poder, as chuvas sussurram a Sua misericórdia. O que está aparentemente morto desabrocha diante de Seu olhar, os ventos falara Dele à meia-noite. Diante Dele, não há desespero, há apenas bem-aventurança e esperança. Ouço Sua voz, vejo Sua grandeza pela manhã, ao meio-dia, à tarde. Quando estou triste, Ele me conforta. Quando rio, ouço também o Seu riso. Quando vejo um cordeiro saltando na primavera, meu coração também salta, pois o cordeiro em sua dança celebra a Deus e eu celebro junto, O mundo está cheio do brilho de Deus e somente os homens vêem a escuridão.
"Senhor, se alguém com toda a autoridade me convencer de que não existe Deus, então eu devo morrer, pois o que é a vida sem Ele e o prazer sem Sua graça? É apenas morte e nessa morte eu não posso viver. Ele é tudo e não há mais nada.
Aspásia fez uma pausa, antes de acrescentar, com extrema simplicidade:
— Se isso é heresia, Senhor, pode-me condenar. Deus será então meu Juiz.
No silêncio que se seguiu, um dos amigos de Péricles e Aspásia soltou um grito de alegria, um grito de elogio reverente; muitos olhos estavam subitamente úmidos. O rosto do Rei-Arconte mostrava-se inescrutável, impassível. Fitou Aspásia e disse:
— Ouvi dizer que tem um pequeno templo em seus jardins, Aspásia de Mileto, com um altar vazio, sem estátuas. A quem esse templo foi erigido e por que o altar está vazio?
Aspásia sorriu, como uma criança enternecida.
— O templo foi construído para Ele, a quem nossos sacerdotes reverenciam sem saberem por que estão reverenciando; mas seus espíritos sabem, mesmo que as mentes ignorem. O templo foi erigido para Aquele que sentimos em nossos corações. Aquele que ainda não tem nome que já tenhamos ouvido. Contudo, os gregos erguem templos a Ele, com altares de espera, neles inscrevendo as palavras: "Ao Deus Desconhecido". O altar está vazio porque ainda estamos esperando por Ele, por Aquele que foi prometido ao longo dos tempos para todas as nações e todos os homens.
O Rei-Arconte inclinou a cabeça, como se estivesse meditando, e todos ficaram esperando por suas palavras. Depois de mais de um minuto, ele levantou a cabeça e disse ao júri:
— Essa mulher não é culpada de heresia. Se acham que ela é, mesmo depois de ouvirem suas palavras, digam-no agora ou calem-se para sempre.
O silêncio que se seguiu foi mais tenso e expectante do que antes. Os homens do júri se entreolharam furtivamente. Alguns assentiram, outros sacudiram a cabeça, alguns estavam sombrios, outros tinham expressões ameaçadoras, alguns estavam furiosos, outros comovidos, alguns ressentidos, outros impacientes, alguns com lágrimas a correrem-lhes pelas faces. Péricles observava-os atentamente. Começou a tremer. A vida de Aspásia estava nas mãos daqueles homens, apesar de tudo que dissera o Rei-Arconte.
Ele já não podia conter-se. Virou-se bruscamente e encarou o júri, o rosto alterado, mais apaixonado do que jamais o tinham visto antes:
— Meus compatriotas! Sou Péricles, filho de Xantipo, o grande guerreiro cujo nome é honrado por todos! Sou o vosso Chefe de Estado, porque foi essa a vontade do nosso povo, apesar dos esforços dos meus inimigos. Não é Aspásia de Mileto que está neste momento aguardando o vosso julgamento. Sou eu! Pois tenho sido condenado pelos vis e invejosos, pelos sequiosos de poder, por aqueles que desejam escravizar-vos. Por causa da vossa força, meus compatriotas, eles não se atreveram a me atacar diretamente, a matar-me.
"Mas atacaram, mataram ou exilaram aqueles a quem eu amava. Procuraram matar meu filho, Paralo, porque é meu filho. Mataram Helena, a médica. Assassinaram Fídias, embora ele fosse a glória da Grécia. Levaram um cientista extraordinário, um homem gentil, Anaxágoras, a fugir diante de tanta perseguição. Meu filho Xantipo está combatendo para salvar nossa amada cidade e está disposto a dar sua vida por Atenas. Ele está lutando como eu lutei, como meu pai lutou antes de mim, não por dinheiro, não por honrarias, não por poder, não por aclamações. Lutamos e continuaremos a lutar pelo amor que sentimos em nossas almas por nosso país. Se um homem não ama seu país, então não é um homem. Nem mesmo é um traidor, pois para se tornar traidor um homem precisa primeiro ter amado, para depois mudar de lado. É simplesmente um animal que não sabe que é um animal. Um cocho em qualquer lugar é apenas um cocho para ele, para a sua alimentação. Para ele, um amo não é diferente de outro. Pede apenas para continuar levando sua vida animal.
"Para que vive um homem? Vive por seu Deus, seu país, sua família. Ou então não vive absolutamente. Vive pela verdade, vive pela liberdade que Deus lhe concedeu ao nascer. Mas nossos inimigos, os vossos e os meus, odeiam todas essas coisas abençoadas, pois enquanto as prezarmos não nos poderão reduzir à escravidão, não poderão forçar-nos a ficar de joelhos, não poderão compelir-nos a curvar-nos diante deles como senhores, não nos poderão sufocar com grilhões, não poderão privar-nos de nosso valor como homens, não nos poderão transformar em menos do que animais dos campos.
"Deus impôs um preço à nossa liberdade. Esse preço é a vigilância, a guarda permanente, para que a liberdade não nos seja tomada. Sempre haverão de nos oferecer altas recompensas por nossa obediência, por nossa subserviência, pela aceitação de uma vida que é realmente a morte. Se aceitarmos, por uma lisonja passageira, por uns poucos dracmas nas mãos, por uma paz vergonhosa, seremos amaldiçoados perante Deus, que detesta os covardes... os verdadeiros traidores de sua humanidade, os homens sem dignidade e orgulho de seu ser perante o Deus que os criou. Um homem assim cometeu a traição absoluta contra tudo que vive, tudo que representa resistência, grandeza e verdade.
"Muitos dos que aqui estão conhecem os nomes desses homens abomináveis, que não estão presentes! Eles mentem entre suas mulheres insinuantes, jantam no luxo, contam seu dinheiro, enfeitam-se de joias, criam cavalos para os Jogos, constroem palácios para seu prazer. Dizem que seus corações sangram por vós, que fariam de vós reis entre os homens, que irão ajudar-vos a andar em carros, a viver sob o mármore, a nunca mais conhecer a fome ou a dor. Pois eles mentem! Um homem nasce para o trabalho e para se regozijar com o trabalho, pois aquele que se recusa ao trabalho está condenado à morte, não pelos homens, mas por Deus e pela natureza. Servir a Deus e a seu país, sob qualquer forma que Deus ordene, é a mais alta das servidões e a mais alta das liberdades.
"Homens de Atenas! Filhos das leis de Sólon! Nós, gregos, pela primeira vez na história conhecida, trouxemos um sonho à humanidade, o sonho da liberdade, da lei a que todos os homens devem obedecer, tanto governados como governantes, de juízes e júris, de punições justas de acordo com o crime, de ordem não imposta mas assumida, do direito de votar e do direito de procurar reparações sob um governo imparcial, até mesmo contra o próprio governo, de taxação igual ao invés dos tributos arbitrários que outros governantes arrancam de seus povos impotentes, do direito de protestar e discordar, do direito de exigir justiça se houver opressão, prejuízos ou difamação e, acima de tudo, de cada um ser livre em sua pessoa, propriedade, casa e opiniões.
"Pois vossos inimigos estão querendo privar-vos e a mim de tudo isso. Expulsariam a justiça de seus altares. Transformariam nosso país num vasto campo de prisioneiros, em que todos teriam de trabalhar e ninguém jamais teria qualquer recompensa, num país em que nenhum de nós jamais voltaria a ser homem!
Ninguém se mexia e já então eram bem poucos os que ainda exibiam expressões iradas ou desdenhosas. Diante daquele semblante imponente que se erguia diante deles, diante daquela eloquência incomparável, a maioria estava profundamente comovida.
Péricles segurou a mão de Aspásia e apertou-a. Subitamente, pôs-se a chorar, as lágrimas a correrem-lhe pelas faces, o que nunca antes fora visto. Um suspiro coletivo se ergueu da audiência.
Péricles puxou Aspásia para o seu lado e passou o braço pelos ombros dela.
"Vede esta mulher, a quem eu amo, como sempre o soubestes. Ela é um símbolo para vós, nas acusações torpes que foram apresentadas contra ela, do que vos aguarda se nossos inimigos prevalecerem. Procuraram a morte dela, não porque tivesse cometido algum mal, mas porque é inocente e brava, não se curva diante da tirania e de mentiras. Mais do que isso, porém, eles queriam matá-la porque eu a amo. Iam tirar de mim, assim como tirariam de todos vós, tudo aquilo que prezamos, por puro ódio. Lançariam as turbas contra nós, as turbas cobiçosas que se apoderariam dos frutos do nosso trabalho, que conspurcariam a glória dos nossos antepassados com sua inveja asquerosa, as turbas que não têm honra, não têm alma e não têm virilidade, mas apenas cobiças, desprezo e apetites insaciáveis. E fariam isso a fim de vos esmagarem, silenciarem e dominarem a vós pelo terror, pois uma turba armada é mais terrível que um exército com estandartes e lanças ensanguentadas. Eles dariam armas às turbas para destruir-vos, subjugar-vos.
"A opção é vossa: ficardes de pé como homens ou cairdes de joelhos como escravos. O sonho de Sólon pode perdurar ou morrer. A escolha é vossa, pois compareceis agora ao tribunal da história e Deus é o Juiz!
Permaneceu o silêncio, muito embora as paredes brancas parecessem ainda vibrar com a força das palavras de Péricles. Cada homem o fitava e a Aspásia a seu lado, via-lhe as lágrimas e a expressão determinada no rosto, a força nos olhos, desafiando a todos, não com raiva ou desprezo, mas com a fraternidade mútua.
O Rei-Arconte finalmente falou:
— Perante este júri de homens iguais, absolvo Aspásia de Mileto de todas as acusações que foram formuladas contra ela. Se algum homem deseja falar, que fale agora.
Mas nenhum jurado falou. O Rei-Arconte contemplou um a um. Embora muitos ainda apresentassem expressões rancorosas, suas línguas permaneceram silenciosas. O Rei-Arconte disse para Aspásia:
— Vá em paz, absolvida de todas as acusações.
Péricles fez uma reverência para o Rei-Arconte, Aspásia inclinou a cabeça. Péricles pegou a mão de Aspásia e juntos caminharam no meio do público. Os guardas abriram as pesadas portas de bronze e o sol irrompeu bruscamente no salão, envolvendo os dois em sua luz.

Prólogo
"O passado é apenas prólogo." — SÓCRATES
A Grande Peste invadiu Atenas e esmagou seus cidadãos já desmoralizados. Atingiu em particular as mulheres na idade de terem filhos e os jovens, dizimou igualmente os velhos e os de meia-idade. Uma multidão de vozes clamou que os deuses estavam se vingando do insulto à sua dignidade por parte de Péricles e seus amigos e daquela "infame rameira, Aspásia de Mileto". Poucos deram atenção ao fato de que os dois filhos de Péricles, Paralo e Xantipo, também morreram, sem chegarem a se reconciliar inteiramente com o pai, e que muitos dos seus amigos iam visitá-lo num dia e no seguinte estavam mortos.
O clamor contra Péricles aumentou ainda mais quando, das muralhas da cidade, os atenienses puderam ver o inimigo saqueando os campos ao redor. A maior parte da marinha ateniense fora destruída. Não adiantou Péricles recordar ao governo haver este permitido que Esparta se tornasse tão forte a ponto de poder atacar, com suas aliadas, e conquistar vitórias esmagadoras.
— Não vos preveni de que devíamos aumentar nossos armamentos? — indagou ele na Assembleia. — Mas falastes de "paz", de uma atitude mais benevolente em relação a Esparta, que sempre nos odiou. Como se poderia chegar a um acordo com uma nação determinada a nos destruir e dominar toda a Grécia? Nós, de Atenas, éramos um povo próspero, engordamos e tornamo-nos complacentes, desdenhando os que nos advertiam do conflito iminente. Não há qualquer substituto para o exército e a marinha neste mundo perigoso, repleto de homens ambiciosos. Não há substituto para a liberdade, que tantos de vós escarnecestes. A natureza humana nunca muda. Assim sendo, aqueles que desejam a paz devem resolutamente preparar-se para a guerra, por mais terrível que isso possa parecer. Somente um homem forte pode resistir a seu inimigo. Apaziguarmos esse inimigo, assegurarmos-lhe que nossas intenções são pacíficas e que desejamos apenas comerciar, é um convite para que ele nos ataque.
"Mas quando vos adverti, insistentemente, gritastes-me que eu desejava tornar-me rei, ter o poder absoluto, que era um ditador, um tirano, um déspota. Dissestes que eu não queria um exército e marinha fortes porque temia por Atenas. Afirmastes que, ao contrário, eu queria ter forças armadas poderosas para empregá-las contra vós!
Nas ruas, o povo gritava:
— Queremos a paz! Nossos filhos estão morrendo nos campos de prisioneiros e nas pedreiras de Siracusa!
O próprio Péricles foi acometido pela peste, mas recuperou-se, sob os cuidados dedicados de Aspásia. Apesar da saúde recuperada, no entanto, Péricles parecia estar com o espírito abalado, mostrando-se sempre triste. Seu estado físico fora afetado, jamais voltaria a ter o mesmo vigor de antes. Era como se algo tivesse morrido dentro dele, assim como morrera em Atenas: a vontade de resistir. Os grandes navios de Atenas achavam-se quase totalmente destruídos, seus exércitos estavam em fuga, enquanto os espartanos, um povo disciplinado, taciturno e guerreiro, proclamavam que haviam expulsado os atenienses dos mares e da terra. Não tinha a menor importância para Esparta o fato de ter ela própria sofrido também imensas perdas em homens, armamentos e navios. Somente a vitória e o poder constituíam seu sonho, enquanto Atenas desejava apenas a prosperidade e o comércio. A Pérsia, jamais esquecendo sua derrota diante de Atenas, aliou-se a Esparta. Os inimigos internos de Péricles subitamente se ergueram triunfantes em Atenas e a traíram, dizendo que a "experiência de liberdade geral fracassou" e que aquele era o momento para uma oligarquia assumir o poder. Entraram em negociações com Esparta, principalmente os que mais odiavam a liberdade, Antifonte, Peisandro e Frínico. O fato de terem sido derrotados depois, esmagados por Alcibíades e Terâmenes, que instituíram a Constituição dos Cinco Mil e continuaram a guerra contra Esparta, nada significou para Péricles.
Pois ele havia morrido de exaustão e da debilidade provocada pela peste. Seu devotado parente, Alcibíades, comentou com amargura, a respeito de Péricles, que este havia morrido de coração partido, "por um povo ingrato".
Alcibíades disse:
— A glória da Grécia não foi a glória de toda a cidade-estado. Foi a glória de um punhado de grandes homens, embora seus concidadãos estivessem incessantemente em guerra contra esses heróis, assassinando-os ou exilando-os. Atenas despejou infâmia sobre Péricles e somente ao final permitiu-lhe inscrever o nome de seu filho, Péricles, nos registros públicos de fraternidade. Se o nome de Atenas sobreviver aos tempos, não será porque todos os atenienses foram homens de grandeza, patriotas, artistas, cientistas e filósofos, homens de extraordinária estatura. Somente uns poucos trabalharam e amaram e foram odiados por essas qualidades. Eles não eram como o resto de nós. Eram visitas dos deuses. E nós os levamos à morte.
Uma letargia imensa dominou Aspásia, misericordiosamente, depois que Péricles exalou o último suspiro, em seus braços, numa noite de calor. A letargia não desapareceu. Ela abriu mão de sua escola e isolou-se em sua casa, com o filho, Péricles, até que este foi chamado para o serviço ativo na guerra. Aspásia ficou então sozinha, raramente recebendo amigos.
Só os tolos é que dizem que se pode viver de recordações felizes, lamentava Aspásia para si mesma, os olhos secos, porque não podia chorar e não chorara nem mesmo quando Péricles morrera. A dor que ela sentia era profunda demais, imutável.
Seria melhor ter vivido uma existência de tristeza e dor, jamais entremeada de alegria, paz e felicidade, pensava Aspásia. Pois então a pessoa se aproxima da morte com alívio e gratidão. Mas as recordações alegres de um amor que se foi, de braços outrora cheios, de jardins que não mais desabrocham, é um tormento pior que todos os tormentos do Hades. Ah, se eu pudesse apagar da memória as recordações do meu amor, talvez me fosse possível a conformação e a serenidade, para pensar no amanhã. Mas sou agora uma mulher desconsolada, a memória é a maldição de Hécate. Seria melhor que eu jamais tivesse vivido!
Seu único consolo — mas que nem sempre a consolava — era quando contemplava a glória branca e dourada da acrópole, ao pôr-do-sol ou ao amanhecer, vendo a incomparável majestade dos templos e terraços, colunas e colunatas. Era a coroa de Atenas e parecia a Aspásia que era eterna, que os homens sempre recordariam o que ali se erguia e curvariam a cabeça em admiração e reverência.
Péricles fora sepultado perto da Academia. Mas para Aspásia ele continuava a caminhar: sob o sol e a lua em companhia dos amigos, pelas colunatas, com Fídias, Anaxágoras e todos os outros que haviam tornado Atenas gloriosa e que eram eternamente jovens, com os rostos eternamente iluminados. Enquanto andavam e conversavam, eles às vezes paravam para contemplar a cidade, bendizê-la e amá-la novamente.
— Ah, meu amado, meu querido, meu amor e meu Deus — murmurava Aspásia, erguendo os braços para a glória acima dela. — Espera por mim. E não me esqueças.
Havia ocasiões em que Aspásia sentia um suave consolo, uma promessa.

 

 

                                                                 Taylor Caldwell

 

 

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