Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A GRANDE AMEAÇA
Foi Curry quem atendeu:
—Alô... Sim, é da Delegacia do FBI em Miami. Pode falar...
— Bem, se é tão importante... Um momento, por favor.
Encostou o fone no peito e fez sinal para o inspetor Wharton, na mesa ao lado.
— Chefe...
Wharton, no seu franzido de testa habitual:
— Não me vai dizer que é o Edgar na linha?!
Curry contrabalançava o mau humor do chefe. Estava sempre risonho.
— Um sujeito quer falar com o manda chuva daqui... Diz que é altamente confidencial! Nem me deu tempo de dizer que poderia falar comigo mesmo. Foi logo pedindo o chefe...
Wharton concedeu.
— Altamente confidencial? Espero que não me venha com a conversa de que o barbado vai desembarcar na Flórida...
Curry já estava na sua frente, entregando-lhe o fone.
— Alô! — quase gritou.
— Sim, sim, é o inspetor chefe. Ele mesmo! Henry Wharton. Pode dizer...
Curry ficou de curioso, olhando o chefe, observando-lhe as reações que o misterioso telefonema ia provocando. Wharton escutando em silêncio, assombrando-se, de vez enquanto dizendo um "sim", um "e daí", coisas assim, mais para demonstrar atenção, que estava ouvindo. E cada vez mais impressionado com o longo informe, ou coisa semelhante. Curry não conseguia pescar nada. Mas alarmava-se com a palidez do chefe. Até o fim.
Curry, tomando o aparelho de volta:
— Alguma coisa grave, chefe?
Henry Wharton olhou-o, ainda no ar. E como em transe:
— Curry... Você... Já ouviu falar em Ivan Guriev?
— Que pergunta chefe! E o senhor... Já ouviu falar em Abraham Lincoln?
Wharton só fez dizer:
— Vem pra cá...
— Mesmo chefe? Então vamos ter muito trabalho. Dizem que esse Ivan Guriev é muito bom. Pelo menos, é o mais hábil dos espiões soviéticos. Mas o senhor acredita que ele seja enviado pra cá, pra dentro do nosso país...?
— Especificamente, para Miami! — e resoluto: — Depressa, providencie Leacock e Sanding... Antes de tudo, precisamos ver se esse nosso Keenan McHale não está sofrendo das faculdades mentais.
— Keenan McHale?
— O sujeito que telefonou. Está hospedado no Atlantic Hotel, Avenida das Palmeiras, nº 2088. Disse que...
— Caiu a ligação chefe?
Henry Wharton passou a mão pela testa:
— Vamos Curry, me traga aqui Leacoek e Sanding. Mas é pra já! Não importa que estejam com a barba pelo meio, ainda de camiseta e chinelo... O negócio é pra já, Curry!
— Bem, já vou indo, mas acho que não precisa tanto só porque Guriev está se mandando pra Miami...
— Rapaz, você está perdendo um tempo enorme com esses seus comentários! Vamos logo! Já devia estar dando partida no carro...
E Curry, da porta:
— O chefe manda!
Vinte minutos depois, dois tipos, altos, um ruivo e o outro moreno, penetravam impetuosamente no gabinete do chefe, senhores da situação. Ainda jovens, atléticos, com uma expressão de grande vivacidade nos olhos.
— Curry disse que era urgente chefe. Que acontece?
— Eu tinha uma entrevista, esta tarde...
Wharton nem ouvia, apalpando as axilas esquerdas dos agentes, constatando que estavam devidamente armados. E preparados, escanhoados, não de chinelos, nem de camiseta.
O ruivo era Paul Leacock e o moreno Owen Sanding, pelo visto, os melhores do quadro de agentes do FBI destacados em Miami.
— Andem rapazes...
— Ouça chefe...
— Mas...
Henry Wharton, sentando-se à mesa, finalmente disse:
— O caso é o seguinte, garotos gostariam de botar a mão em Ivan Guriev?
Entreolharam-se, sorrindo. Paul fazendo o líder:
— É uma brincadeira engraçada, chefe...
— Não se trata de nenhuma brincadeira. Guriev está a caminho de Miami e... Com o propósito de desencadear a guerra. Nada menos! A coisa é tão séria, que a quarentena de Cuba vai parecer isto sim, brincadeira de criança. Não vão esperar que os soviéticos respondessem ao ultimato para a retirada dos foguetes das mãos de Castro. Será a guerra imediata, aberta e... Com o maior desprestígio para os Estados Unidos. Não vamos perder tempo. No carro, eu explicarei melhor. Enquanto corremos ao Atlantic Hotel... Queira Deus seja troça de algum louco!
Muito bonita Palms Avenue. Fazia jus ao nome. Palmeiras de um lado e doutro. Belas construções. E tudo na base do tropical, com violento brilho colorido de musical tecnicolor de Hollywood. O Atlantic Hotel, então, cristais e aço de alto a baixo, dá bem a imagem do cenário. A partir do sexto andar, vista para o mar. Mas ao lado da entrada, uma piscina com um verde de doer.
Só que naquele momento, em frente à entrada, um grupo de curiosos cercava alguma coisa nada bonita.
Quando o carro do FBI estacionou, o trio foi logo se encaminhando para a roda formada.
Chefe Wharton indagou:
— Que aconteceu?
— Um acidente. Alguém caiu de uma janela do hotel... Um homem. Matou-se.
O inspetor foi abrindo passagem até o miolo, sendo barrado por um dos policiais. Mostrou o distintivo.
— Ah! Está bem senhor.
— Afaste os curiosos.
— Sim senhor.
Wharton inclinou-se sobre o corpo, já coberto com uma manta com a marca do hotel. Suspendeu uma ponta para espiar o rosto do acidentado. Bastante estragado, mas quem o conhecesse não teria dificuldade em identificá-lo.
Com todo cuidado, o inspetor revistou os bolsos do morto e encontrou a carteira.
— Não é possível!
O pressentimento foi confirmado. Era mesmo o tal Keenan McHale, o que telefonara meia hora antes para a Delegacia.
Wharton levantou-se, com um sinal para Sanding.
— Fique de olho Owen. Não quero que ninguém toque no cadáver. Nem que se aproxime. Se a viatura chegar antes da nossa saída do hotel, que levem o corpo, mas você irá junto. Permaneça no necrotério ao lado do morto! Não se afaste nem por um segundo, aconteça o que acontecer.
— Ciente.
Henry Wharton segurou o braço de Leacock.
— Venha comigo Paul. Há muita coisa a fazer... Assim espero.
Os dois entraram e o inspetor dirigiu-se diretamente à recepção, mostrando a placa:
— A chave do nº 612, de Keenan McHale, por favor.
— Sim senhor. Ah! Mas... O senhor McHale...
O funcionário da portaria olhava para a rua, angustiado. Wharton quis certificar-se:
— É o morto?
— Sim senhor...
— Em todo o caso, dê-me a chave. Onde é a mesa telefônica? Quero falar com a telefonista.
O PRBX ficava numa saleta próxima, a prova de som. A telefonista era uma loura muito bonita, com olhos azuis que plagiavam a piscina e que logo se derramaram sobre a figura atlética do atraente Leacock. O empregado tratou-a de "Senhorita Blake".
— Posso ajuda-los? — a voz da moça não decepcionava.
O inspetor fez a pergunta:
— Por favor, quantas chamadas pediu o ocupante do nº 612?
A senhorita Blake refletiu um instante, deixando Paul em paz e fitando o teto.
— Nenhuma.
Wharton franziu o cenho.
— Pense bem jovem. Pelo menos uma foi feita. E é fácil lembrar, foi pedida a Delegacia do FBI.
A moça balançava a cabeça:
— Não senhor, não há nenhuma ligação para o FBI. Nem hoje, nem nunca. Estou bem certa disso.
— E também tem certeza de que o ocupante do nº 612 não falou com outra pessoa qualquer?
— Por esta mesa, garanto senhor! E estou dobrando serviço para uma colega. Até agora, nenhum pedido do nº 612. Pensei até que nem estava ocupado.
— Neste caso... Bem, deve ter chamado de outro lugar. Obrigado senhorita. Vamos, Paul.
Voltaram ao vestíbulo. Todos os presentes comentavam o acidente.
“Acidente... Aposto a cabeça”! Wharton pensou. Viu uns aparelhos ao fundo. Observou que dois eram de linha direta. E Leacock sempre atento.
— Que ninguém se aproxime destes dois, Paul.
— Okay, chefe.
Wharton foi indo para a rua. O carro do necrotério já estava de saída, apenas aguardando a entrada de Owen Sanding. Wharton acenou para que esperassem.
— Escute Owen, vou mandar um rapaz tomar as digitais do cadáver. Só isso. E não esqueça, nem um segundo longe! O legista é lógico, pode fazer o serviço. Pegue os pertences do morto, roupa, sapato, tudo.
— E que devo fazer com isso?
— Leve pra Delegacia... Quando eu ordenar.
— Mais alguma coisa?
— Nada... Isto é... Se alguém aparecer pra olhar deixe... E observe.
— Compreendo.
— Firme Owen.
— Até logo chefe.
Wharton entrou de novo no hotel, dirigindo-se ao balcão da recepção, em que havia um aparelho certamente ligado a mesa telefônica. Quando estava prestes a levantar o fone, olhando para Paul Leacock, que permanecia junto aos dois telefones de linha direta, um homem lhe impediu a visão, colocando-se a sua frente.
— Sou o tenente Beecham, da Delegacia de Homicídios. Posso ver sua placa do FBI?
Wharton tirou a mão do fone e mostrou a placa.
— Convencido tenente?
— De sua identidade, sim. Mas acho que este não é seu setor. Um simples acidente...
— Tenente Beecham — cortou, secamente, Henry Wharton. — Não foi um simples acidente.
— Não? Está certo disso?
— Completamente — o inspetor mentiu com perfeito aprumo ao afirmar. — O homem chamava-se Keenan McHale e há menos de meia hora telefonou para a Delegacia pedindo a proteção do FBI. Acha que o caso não é nosso?
Beecham diminuiu os olhos.
— Bem, desta maneira... Que faremos?
— Os senhores podem retirar-se — apontou para o telefone. — Vou chamar a Delegacia. Cuidaremos de tudo... Absolutamente de tudo.
— De acordo — Beecham encolheu os ombros. — Neste caso, retirarei meus homens e avisarei do carro para que ninguém venha.
— Perfeito. Até a vista.
— Adeus.
— Apertaram as mãos. Mal Beecham virou as costas, Wharton retirou o fone.
— Senhorita Blake, quer, por favor, ligar para a Delegacia do FBI?
— Oh! É o senhor!... Um momento pode me dizer o número?
— Obrigado — e Henry Wharton sorrindo, informou. Ao que parecia, a moça não conhecia o número da Delegacia. É claro que ainda na suposição de que houvesse mentido e antes tivesse procurado esse número, não tinha por que lembrá-lo...
— Delegacia do FBI.
— É você Brandt? Ligue já para a antessala. Quero falar com Curry.
— Sim senhor.
Curry atendeu poucos segundos depois.
— Alô?
— Curry...
— Chefe! Aconteceu alguma coisa?
— Ouça, quero que me envie imediatamente um equipamento completo de impressões e fotografias ao Atlantic Hotel, e outro para o necrotério, com um legista.
— Que aconteceu?
— Vá para o diabo! Quero tudo isso agora mesmo!
Quase duas horas depois, o inspetor Wharton se achava em seu gabinete, sentado à mesa. Ao lado, de pé, Curry, em frente, sentados em poltronas, Paul Leacock e Owen Sanding fumando.
— Eis o que parece lógico sobre o acontecido, Keenan McHale reserva um quarto no Atlantic Hotel e alguém se inteira disso; McHale chega ao hotel, não telefona de seu quarto dado à importância do que tem a nos dizer e se serve de um dos aparelhos do vestíbulo, de linha direta; isso ficou provado pelas impressões deixadas no fone, coincidindo com as trazidas do necrotério.
— Mas ninguém o viu telefonar...
— Por que veriam? Keenan McHale foi esperto... À sua maneira. Entrou no hotel deixando as maletas no carro. Deste modo ninguém notaria nele. Telefonou-nos. Então se dirigiu ao balcão e se apresentou pedindo que pegassem as malas deixadas no carro. Enquanto um dos "boys" buscava a bagagem, ele se registrava. Se houvesse se registrado antes de nos telefonar, o "boy", o porteiro ou qualquer outro empregado teria notado. Em troca, sem maletas, confundiu-se com as outras pessoas que havia no vestíbulo.
— De acordo — disse Owen. — Mas por que, em vez de telefonar, não veio aqui pessoalmente?
— Porque, se o vigiavam como ele devia estar temendo, o matariam quando vissem que ele se dirigia a Delegacia. E então não teria a oportunidade de nos telefonar... Como tampouco se atreveu a fazer, em sua viagem de carro, desde Cabo Canaveral a Miami. Deve ter vindo a toda velocidade, sem se deter para nada. Entretanto, suas precauções foram inúteis. A coisa continuou, ou devia continuar assim, depois de nos telefonar, McHale sobe a seu quarto; o "boy" deixa a bagagem, recebe gorjeta e se vai. Keenan McHale fica só. Então, alguém entra e o atira pela janela do quarto. Seis andares, a morte.
— Isso faz supor que ele tenha deixado alguém entrar, o que não condiz com a hipótese de estar assustado, chefe.
— Como não? Quem o atirou certamente não teve de bater na porta para entrar. Acaso você não saberia obter uma chave de qualquer quarto, em qualquer hotel, Paul?
— Já fiz isso algumas vezes...
— Pois quem matou Keenan McHale também usou o mesmo processo. Talvez o tenham seguido desde Cabo Canaveral. Mas acredito o contrário, que o esperavam aqui... No quarto do hotel, inclusive.
— O fato é que nos tiraram das mãos...
— Sim, e é uma lástima. Entretanto, falou o suficiente. Se o que disse é certo, teremos de andar muito depressa.
— O que lhe disse ele ao telefone?
Henry Wharton fez uma careta.
— Quase nada... Santo Deus!
— Diga de uma vez homem!
— Isto é o que deduzi de acordo com o que ele me contou muito rapidamente. Temos em Miami um grupo de russos com nomes americanos. Espiões naturalmente, e isso não é de se estranhar muito — um tom amargo na voz de Wharton. — Também os temos por aí, em que pese à oposição da C.I.A., que quer fazer tudo sozinha...
— Resumindo chefe...
— Os Estados Unidos têm Cuba bloqueada por causa dos projéteis ofensivos, vocês já sabem. De modo algum, podemos permitir que os russos enchessem Cuba de projéteis que, naturalmente, estariam visando nossas próprias bases e cidades importantes. Se os russos não cederem, não levando todo o armamento perigoso para a segurança de nossa nação, haverá guerra.
— Levarão.
— É possível. Mas acontece que nem todos os projéteis russos estão em Cuba... Segundo me disse Keenan McHale.
Curry, Owen e Paul se olharam. Owen sussurrou:
— Acho que nenhum dos três compreendeu isso, chefe.
— Temos um projétil russo metido nos Estados Unidos!
Owen e Paul pularam. Tanto eles quanto Curry intensamente pálidos.
— Ma... Mas...
— Sentem-se. Isso não tem importância. Para alcançar nos pontos vitais, basta aos russos ter projéteis em Cuba. Esse projétil não nos faria mais dano que os outros. Possivelmente, alguns dos que estão montados em Cuba teriam maior alcance do que o que os que colocaram aqui. Segundo Keenan McHale, é um M.R.M.B.* Quero dizer que com ele disparado "de nossa casa", poderia ser alcançado de qualquer modo e mais tranquilamente, com um I.R.M.B. de Cuba.
— Mas, então... Por que introduziram esse M.R.M.B. em nosso pais?
— Supondo que tudo não passe de um ataque de loucura de Keenan McHale, esse projétil chegou desmontado, em um submarino que o desembarcou em nossas costas.
— Em que ponto? — quase gritou Leacock.
— Não sei... Nem McHale sabia, evidentemente. O que ele informou é que Ivan Guriev viria aqui para dirigir a operação de disparo. Não precisamente na parte técnica. Disso se encarregariam Keenan McHale e outro compatriota nosso que entende dessa coisa, uma vez que também trabalha em Cabo Canaveral.
— Deus meu!... E quem é esse outro homem?
— O outro traidor, o companheiro de Keenan McHale?
— Sim.
— McHale não me disse. Assegurou-me que contaria tudo, nos mínimos detalhes, no hotel, mas... O que me disse é que o projétil cairia em...
Olhou seus homens com um brilho irônico nos olhos, sem acabar a frase.
Curiy crispou os punhos. Por um momento, parecia que ia se lançar contra seu chefe.
— Em Corralillo!
Houve uns Instantes de estupefação. A voz de Owan Sandlng foi apenas audível:
— Em Corralillo?!
— Isto mesmo, Corralillo Cuba.
A estupefação se transformou em pasmo absoluto. As línguas dos agentes paralisadas, no mais completo assombro.
Por fim, Curry perguntou, roucamente:
— Quer dizer que os russos disparariam um projétil atômico contra a própria Cuba? Mas isso é uma loucura!...
— É, Curry. Mas leve em conta que o projétil partiria dos Estados Unidos. Isso seria divulgado no mundo inteiro. O que não se saberia é que esse projétil levaria as letras URSS e uma estrela vermelha. Os russos gritariam com todas as suas forças em todo o mundo. Parece pouco provável que ainda que digamos a verdade, alguém estivesse disposto a nos acreditar. Seríamos taxados de assassinos em todas as línguas, inclusive inglês USA. Os americanos, em grande número, acreditariam que o projétil era nosso. Transformaríamos o povoado de Corralillo, segundo a versão consagrada, em outro Pearl Harbor, e muito mais terrível! Como é natural, não poderíamos nem sonhar com a ajuda de nossos aliados atuais, que se inclinariam, sentimentalmente, para os cubanos mortos, assassinados pelos Estados Unidos, sem prévia declaração de guerra, com abuso de poder, com o bloqueio atual, cercada a ilha pela nossa Armada, Forças Aéreas...*.
— Mas ninguém pode fazer isso!
— Assim deveria ser Curry. Entretanto... — Wharton sorriu friamente — Afinal de contas, só vai morrer gente, só se vai destroçar material humano.
— Que quer dizer?
— Que se escolheu Corralillo para o caso, porque está convenientemente afastado dos pontos onde o U-Z localizaram fotograficamente as plataformas de projéteis russos em Cuba, não podemos duvidar disso.
— Nem que os russos respondam imediatamente ao "nosso ataque". Isso é o que farão, não?
— Hum... Talvez os russos prefiram fazer-se de bonzinhos e sair de Cuba, dizendo que não queriam, por sua causa, ocasionar mais mortes. Fariam isso porque sabem do nosso potencial atômico, muito maior que o deles: Atlas, Titãs, Júpiter, Thor, e os submarinos Polaris. Mas, ainda que o fizessem por isso, não cometeriam a estupidez de dizer. Dariam uma de bons meninos, mantenedores da paz... Um grande golpe de efeito!
Quase um minuto de silêncio, até que Owen perguntou:
— E que vamos fazer?
— Isso será decidido por Edgar Hoover. Estou esperando que o localizem em Washington para falar com ele pela linha direta de serviço.
— E enquanto não o localizam?
— Esperaremos. Afinal de contas, tudo que sabemos é que o tal Ivan Guriev chegará a Miami num navio chamado "Pearl", ainda esta noite.
— Se continuarmos supondo que há algo de verdade e de sensato no que disse Keenan McHale pelo telefone... Ah, também me disse que ele e seu companheiro de traição conseguiriam a carga atômica para o projétil soviético em Cabo Canaveral, pois consideravam muito perigoso trazê-la de Cuba. De modo que, neste momento, é possível que já tenha sido roubada essa carga atômica em Cabo Canaveral, e que esteja em Miami, nas mãos de nosso desconhecido traidor.
— Oxalá também ele se arrependa, como fez McHale, e nos chame pelo telefone!
— Quem dera Paul!
Todos em silêncio até que, minutos depois, apareceu na porta um homem excitado:
— Edgar Hoover no telefone privado, inspetor!
Wharton levantou-se de um salto.
Regressou quase vinte minutos depois e encontrou os três agentes tais como antes, fumando sem parar. Os três olharam, ansiosamente.
— Falou com ele?
— Sim...
— E...?
Henry Wharton deixou-se cair na poltrona, consultando o relógio.
— Dentro de uma hora, mais ou menos, chegará a Miami, em um avião a jato, um de nossos homens, o agente especial Clarence Hadaway. Suponhamos que demore quase duas horas... São seis, de modo que o teremos aqui às oito. O "Pearl" onde, segundo parece, viaja Ivan Guriev tem sua chegada prevista para meia-noite. Esperamos que Clarence Hadaway tenha instruções e planos concretos.
— Quem é esse Hadaway? E por que essa história de especial?
— Bem... Pelo que me disse Edgar Hoover, parece que nosso Clarence Hadaway nada fica a dever, em astúcia e inteligência, ao famoso Ivan Guriev. Traz um retrato de Ivan Guriev conseguido pelos famosos desenhistas de Washington, com base em descrições mais ou menos fidedignas. Além do mais, Hadaway só age sob a ordem direta de Hoover e fala quatorze idiomas, inclusive o russo.
Curry, Paul e Owen olharam-se, sorridentes.
— Parece que nós também temos bons elementos, hem?
— Sim — Wharton acariciou pensativamente a ponta do queixo. — É curioso...
— O que, chefe?
— Edgar Hoover pareceu muito alegre quando eu lhe disse que esse Ivan Guriev, o espião vermelho, estava nisso...
— Terá seus motivos, não? Que faremos? Vamos esperar esse nosso querido Clarence Hadaway, no Miami International?
— Não. Ele virá aqui.
Pouco antes das oito, um homem de costas ligeiramente encurvado, abundante cabeleira grisalha, de aproximadamente cinquenta anos, foi introduzido no gabinete de Henry Wharton, que ainda estava acompanhado por Owen Sanding e Paul Leacock.
Atrás do visitante, que se encaminhou até a mesa de Wharton apoiado em uma bengala, vinha Curry, com um ar de profunda decepção estampado em suas simpáticas feições. Wharton levantou-se.
— Então, Curry?
Curry apontou o visitante com o polegar.
— Apresento-lhe Clarence Hadaway, senhor.
Owen e Paul levantaram-se de um salto. Os três olharam incredulamente para o visitante, que por sua vez, percorria o olhar de um a outro, com olhos claros, mal visíveis através das lentes.
Depois de uns segundos de vacilação, Henry Wharton estendeu a mão.
— Bem-vindo Hadaway. Estes são Young Curry, Owen Sanding e Paul Leacock. Eu sou Henry Wharton.
Depois, Hadaway sorriu um pouco ironicamente e disse:
— Suponho que estamos seguros aqui, inspetor.
Wharton com o cenho franzido.
— Espero que sim — respondeu secamente.
— Bem. Nesse caso...
Clarence Hadaway endireitou-se, tirou os óculos e deixou a bengala sobre a mesa. Em seguida, arrancou a cabeleira grisalha que encobria seus longos cabelos louros. As costas pareceram dilatar-se, o pescoço engrossar, as pernas endireitarem... Num instante, Clarence Hadaway ficou transformado num homem de trinta anos, largo de ombros, alto, 1,83 de estatura... Longos cabelos louros e olhos escuros que de modo algum precisariam de óculos.
Curry foi o único a demonstrar seu assombro, sua maneira:
— Papagaio! Que farsante!
Hadaway tirou um maço de cigarros e o estendeu a Wharton, sorrindo:
— Reajam todos — disse continuando a sorrir. — Temos muito trabalho pela frente.
Todos aceitaram os cigarros. Clarence acendeu um para si e guardou o maço. Depois, tirou do bolso um envelope branco, de tamanho comum.
— Trago aqui...
— Um momento Hadaway — sussurrou Wharton. — Posso ver seu cartão de identidade do Serviço?
Clarence olhou com expressão divertida.
— Claro inspetor. Pensa que eu não sou Clarence Hadaway?
Owen, Paul e Curry abriram a bocam, admirados.
— Apenas queria ver seu cartão, Hadaway — insistiu Wharton amavelmente.
— Bem... Posso tirá-lo disto aqui? É um envelope especial que costumamos utilizar às vezes... E que suponho não lhe seja desconhecido. Ê o "Farrago".
— Permite-me?
Clarence colocou o envelope na mão que Wharton estendia para ele. O inspetor tomou-o, olhou atentamente e depois apalpou cuidadosamente seu centro com a unha do polegar. Por fim, mantendo apertado entre o polegar e o coração o centro do envelope, justamente ali onde seu tato havia notado a presença de uma pequeníssima saliência que teria passado despercebida a quem não esperasse achá-la, apanhou um corta papéis e rasgou a parte superior. Fez o mesmo com os três outros lados, deixando o envelope transformado em duas partes separadas que só se mantinham unidas pela pressão de seus dedos.
— Desligue você mesmo, Hadaway.
— Com prazer...
Clarence inclinou-se para o envelope e puxou uma das pontas da metade que ficava em cima. Havia ali um pequeno fio incolor que o agente especial rompeu cuidadosamente. Depois, rompeu outros três, cada um dos quais, como o primeiro, era unido dos quatro lados do envelope a um pequeno botão, também incolor, apertadíssimo, que Henry Wharton fez saltar em sua mão.
— Carga já inofensiva — sorriu. — Foi uma boa precaução, Hadaway. Teria sido muito desagradável que alguém lhe tirasse este envelope sem estar provido de "Farrago". E agora, uma vez aberto sem que se haja incendiado de modo fulminante, vejamos o que você traz aqui.
A primeira coisa que viu foi o cartão de identidade de Clarence Hadaway como agente do FBI. Depois, colocou na mesa as três fotografias, do tamanho de um maço de cigarros, que pertenciam ao mesmo homem, mas colocado nos dois perfis e de frente. As fotografias eram reproduções de um retrato feito à mão com habilidade admirável. Mostravam um homem de cerca de trinta anos, cabelos louros, olhos escuros, rosto agradável.
Henry Wharton deixou seus três agentes consultando as fotografias e olhou vivamente para Clarence Hadaway.
— Gostaria de conhecer a estatura e o peso de Ivan Guriev Hadaway.
Clarence sorriu.
— Acertou em cheio, inspetor. Será um prazer trabalhar a seu lado. Já observou que Ivan Guriev e eu nos parecemos bastante. E, segundo os informes, sua estatura é aproximadamente igual a minha. Quanto a seu peso, calcularam 74 quilos. Eu peso mais ou menos 77 quilos.
Henry Wharton acariciou o queixo.
— Bem... Um homem pode perder ou engordar essa diferença. Agora compreendo por que nosso diretor se alegrou quando mencionei o nome de Ivan Guriev. Você vai caça-lo, tomar o seu lugar, fazendo-se passar por ele...
— Vamos tentar. Seria uma peça formidável... Mas o caso é muito sério para ser levado na troça. Não devemos esquecer que o mais importante é impedir o lançamento desse foguete do nosso território. Nisso não devemos falhar. O mais, ou seja, a captura de Guriev e dos russos incrustados em Miami, é secundário, assim como descobrir a personalidade do traidor que virá do Cabo Canaveral com a carga atômica. Tudo isso é uma insensatez terrível, que duvido chegasse a concretizar-se, mesmo sem nossa intervenção... Mas nossa obrigação é intervir.
— De acordo, naturalmente — suspirou Wharton. — Você e Hoover planejaram algo... Por onde começaremos?
— Além de vocês quatro, preciso de dois homens mais.
— Agora?
— Imediatamente.
Wharton olhou para seu ajudante.
— Traga-os, Curry. Os melhores disponíveis.
— Não! — exclamou Clarence. — Que sejam os piores, quero dizer, os menos “hábeis e fortes”. Se possível, alguém que tenha fracassado alguma vez... Como todos — sorriu cortesmente.
Wharton, mais uma vez, franziu o cenho.
— Bem Curry, que espera? Não ouviu?
— Oh, sim!...
Curry saiu apressadamente do gabinete e regressou cinco minutos depois com dois rapazes de olhar amável. Um deles parecia forte a primeira vista. O outro deveria ser, mas não se notava tanto.
Wharton apresentou-os.
— Estes são Wynn e Fischer. Rapazes Clarence Hadaway de Washington.
— Olá, garotos.
— Como vai?
Clarence estreitou as mãos, sorrindo.
— Vamos ao assunto — disse depois. — Wynn e Fischer sabem de que se trata?
— Não. — disse Wharton.
— É melhor assim. Eles terão uma parte independente... Tem um substituto, Curry?
— Junto ao inspetor Wharton?
— Exato.
— Sim, tenho.
— Terá de chamá-lo para que venha aqui a fim de atender a qualquer chamada de Washington... Você irá com Fischer e Wynn ao porto. Vamos ver as fotografias... Onde estão?
Owen passou as fotos. Clarence mostrou-as aos dois agentes que iriam com Curry ao porto.
— Conhecem este homem?
— Bem — murmurou Fischer — Digamos que se pareça com você, não?
— É Ivan Guriev.
— Salve! — Clarence sorriu.
— É preciso caçá-lo. Seguramente o conseguiremos, o inspetor, Sanding e Leacock e eu. Mas vocês, Curry, Wynn e Fischer, esperarão por ele no cais. Discretamente. Pela ponte de desembarque, verão descer um homem que tanto poderia ser eu como poderia ser Ivan Guriev. Se for eu, virarei a cabeça em direção ao navio duas vezes, enquanto estiver descendo. Se o homem que estiver descendo não virar a cabeça duas vezes, será Ivan Guriev, ou seja, terá escapado... Não pode ser menosprezado. Se até agora não foi agarrado, por algum motivo será. É uma pena que não saibamos o nome que utiliza a bordo do "Pearl"... Enfim, devemos tentar a todo o custo. Não sabemos se Ivan Guriev sabe para onde ir quando chegar a terra ou se será esperado por alguém. Se for, não podemos duvidar que esse homem seja o mais perigoso inimigo, para nossos planos, já que logicamente conhece Ivan Guriev e eu não poderia enganá-lo facilmente. Portanto, quando esse homem aproximar-se de mim ao descer pela passarela, vigiem-no logo e o prendam.
— E a você? — perguntou Curry.
— Conseguirei escapar de vocês — sorriu Clarence Hadaway, ironicamente. — Não se esqueçam de que serei o famoso Ivan Guriev.
— Ou seja, se voltar duas vezes à cabeça para o barco, saberemos que é você. Agarraremos quem se aproximar, mas o deixaremos fugir.
— Exato. Mas façam o serviço bem. Golpeiem-me, disparem contra mim se virem que é conveniente...
— Saberemos fazer. Suponhamos agora que o homem que desça pela passarela não vire duas vezes a cabeça.
— Então será Ivan Guriev. Se alguém o espera, um de vocês irá por esse alguém. Se ninguém o espera, os três se dirigirão para ele.
— E se tentar escapar?
— Não deve conseguir. Mas se for tão hábil como diz sua fama e vocês virem que tem a mais insignificante oportunidade de escapar, disparem contra ele. Primeiro, para feri-lo. Mas se, mesmo assim, receiam que possa escapar de qualquer maneira, matem-no.
A última palavra foi pronunciada secamente, com dureza que traía a pouca indiferença pela vida de Ivan Guriev. Ninguém perguntou mais nada.
— Não se esqueçam de que o homem que descer do "Pearl", se for eu, deve escapar. Vamos torcer para que alguém vá ao porto esperar Ivan Guriev!
— Por quê? — perguntou Fischer.
Foi o inspetor Wharton quem esclareceu:
— Porque isso significa que Ivan Guriev não sabe para onde dirigir-se. Quando Clarence Hadaway, fingindo ser Guriev, escapar, nossos inimigos teriam de procurá-lo. Se não o procuram, a pista fica cortada.
— Talvez Ivan Guriev saiba para onde se dirigir...
— Neste caso a coisa nos irá bastante mal, já que eu duvido que em menos de duas horas consigamos fazer Guriev falar. Nesse caso, quando Hadaway chegar ao porto não saberia para onde ir. O melhor seria que alguém esperasse Guriev no cais.
— De qualquer modo — a voz de Clarence Hadaway soou firme — esse projétil não será disparado dos Estados Unidos!
— Que projétil? — saltou Fischer.
— Que diabo é isso? — acompanhou Wynn.
— Falaremos sobre isto depois. Agora não temos tempo a perder. Que conseguiu da autópsia do cadáver de McHale, inspetor?
— Nada. Quero dizer, morreu da queda. Não tinha nenhum sinal de luta nem de nada.
Hadaway permaneceu pensativo uns segundos. Depois, murmurou:
— Parece absurdo o suicídio, inspetor?
— Não. — sorriu Wharton. — Já pensei nisso. Nada de absurdo. Mas continuo achando que o atiraram de lá.
Hadaway encolheu os ombros.
— Bem, já veremos... Podem ir andando, Curry. Os três. Mas não apareçam no cais até que o barco já esteja atracado, pronto para desembarcar os passageiros.
Curry consultou seu relógio.
— São apenas nove... Que faremos durante estas três horas por ai?
— Passear, exercitar a vista, tomar café. Até logo.
— Bem...
Wharton, Leacock, Sanding e Hadaway permaneceram no gabinete.
— E nós? — perguntou Owen.
— Espero os três no armazém dezesseis. Verão uma lancha da Vigilância Costeira. Deverão tomá-la. Já os estarão esperando.
— Não vamos juntos?
— Hadaway entrou só na Delegacia — disse Wharton — e terá de sair só. A encenação da peruca e dos óculos e bengala terá sido por algum motivo, Owen.
— Claro...
Clarence sorriu, começando a colocar a peruca e os óculos. Tomou a bengala e se encurvou. Seu rosto até pareceu envelhecer, com algumas rugas junto aos olhos e a boca um pouco aberta.
— Até logo — riu.
Saiu, apoiando-se na bengala de um modo convincente. Paul Leacock cocou uma orelha.
— Bem... Ao que parece, nosso diretor sabe sempre o que faz não é?
O capitão do "Pearl" respondeu a saudação do oficial da lancha costeira que acabava de avisá-lo que parasse o barco.
— Está acontecendo alguma coisa? — perguntou.
— O de sempre — sorriu o oficial visitante. — Uma inspeção rotineira... Ainda que não o devesse ser tanto, tendo em conta as circunstâncias. Suponho que para o Norte tudo esteja mais tranquilo.
— Com certeza.
— Muitos passageiros?
— Sim...
Vários guarda costas subiram a bordo. Junto ao "Pearl", a lancha oscilava suavemente.
— Deseja ver a documentação?
— Apenas trâmites legais... Obrigado. Vamos ao seu camarote.
Uma vez lá, o capitão do "Pearl" preparava-se para mostrar a documentação do barco e pessoal, mas o oficial da patrulha atalhou:
— Não é preciso, capitão. Antes de tudo, comunique a seguinte ordem à cabina de comando, que desçam uma escada de corda pela popa, de modo que nenhum passageiro perceba. Será fácil, pois os que agora estão na coberta se distraem olhando meus homens.
O capitão Kyster conseguiu reagir, por fim:
— Uma escada de corda?
— Sim. Vai ter quatro clandestinos... Que em absoluto não deverão incomodar. São três homens do FBI à procura de um delinquente. Este...
Kyster olhou para a foto que o oficial da Vigilância Costeira lhe exibia.
— Bem... Mas podiam ter subido com o senhor...
— Desconhecem o nome que este homem utiliza a bordo do "Pearl". E, segundo me disseram, é terrivelmente escorregadio. Isto requer a máxima discrição, capitão.
— Bem — Kyster se dirigiu ao fone e o levantou. — Ouça Calow, quero que deite uma escada de corda pela popa do "Pearl"... Sim, você está ouvindo bem? Faça você, pessoalmente, com um homem de confiança. Logo subirão quatro homens do FBI. Que ninguém perceba a manobra. Sim, já lhe direi. De acordo. Voltou-se para o guarda.
— Bem, já está feito. Que mais?
— Fique com esta fotografia, capitão. Quanto tempo calcula que levará para chegar ao porto?
— Não sei exatamente... Uma hora...
— Pois bem, dentro de meia hora o senhor irá à popa esperar os quatro homens que subirão pela escada... E lhes dirá o nome deste cavalheiro e o número de seu camarote.
— Mas eu não sei como se chama este homem!
— Dispõe de meia hora para dar uma volta pelo barco e localizá-lo. Peça a alguém de confiança que o ajude. Uma vez localizado, sempre discretamente, procure saber o número de seu camarote e o seu nome.
— Farei o possível, claro.
Poucos minutos depois, os dois homens se saudavam junto a borda do "Pearl" e o oficial da guarda costeira descia para reunir-se a seus homens na lancha. Rapidamente, meteu-se em sua cabina. Quatro homens se adiantaram até ele.
— Que tal? — perguntou o inspetor Wharton.
— Fiz tudo que me disseram. O capitão Kyster está de acordo, naturalmente.
— Bom trabalho — aprovou Hadaway. — Fizeram tudo discretamente, de modo rotineiro?
— Não creio que alguém suspeite alguma coisa. Talvez exagerassem um pouco na vigilância devido à quarentena de Cuba e a tensão do momento...
— Muito bem. Dê ordens para que a lancha se aproxime da popa do "Pearl".
O oficial saiu da cabina. Segundos depois, a lancha se dirigia para a popa do navio lentamente. A escada foi logo vista. O primeiro a saltar, agilíssimo, foi Clarence Hadaway, que logo subiu pela escada. Depois, saltou Sanding, em seguida Leacock e, por último, Wharton, quando a lancha já deixava a escada para trás. O inspetor era o menos ágil por sua idade, superior à dos agentes e se houvesse saltado em primeiro lugar não poderia ceder à escada com a mesma rapidez dos outros.
Leacock içou seu chefe pela lapela.
— Para cima, chefe — murmurou.
Poucos segundos depois, Wharton já se agarrava às cordas, a menos de dois passos da água agitada sob a ação da hélice potente. Cair ali significava morte certa e horrível.
A popa estava completamente às escuras, naquele ponto. Por cima deles, o resplendor do barco e, mais além, a luz da lancha de guarda costeira, que se afastava a boa velocidade. A água branqueava continuamente agitada.
— Santo Deus — pensou Henry Wharton. — Teremos de ficar aqui pendurados nada menos de meia hora!
***
A casinha era de estilo espanhol, um tanto antiga, mas muito bonita, com telhado vermelho e fachada branca. Rodeada de buxos e relva bem recortados. Na relva, algumas palmeiras oscilavam suavemente. A casinha tinha umas janelas quase quadradas, agradáveis, com guilhotina. A porta da casa dava para um terraço protegido por um apêndice do telhado vermelho. Havia outras casas bastante próximas, todas parecidas, formando a pequena "Garden Miami", próximo de San Jacinto Road, que levava diretamente a Miami. As ruas de grandes lousas que separavam a relva recortada das diversas propriedades, apenas teriam seis pés de largura.
Mas tudo era bonito e agradável ali, de dia. De noite não se podia apreciar tão bem.
E eram aproximadamente onze da noite, quando Valerian Yukoff disse:
— Teremos de ir esperar Guriev.
— Certamente.
Havia dois homens mais. E uma mulher. Os outros dois homens se chamavam Boris Kailovich Leon Yoderian e se vestiam e falavam e se comportavam como qualquer cidadão norte-americano comum. Valerian Yukoff, o chefe do grupo, fazia-se chamar David Berwick. Kailovich, Hyman Fels, Yoderian, Carl Randell.
A mulher chamava-se Sacha Bosorin, mas nos Estados Unidos atendia pelo nome de Maureen Diamant. Formavam um grupo de aspecto pacífico, tranquilo, amável. Os homens nada tinham no aspecto físico que pudesse chamar atenção.
A mulher, sim. Sacha Bosorin, ou Maureen Diafnant, era muito bonita. Cabelos escuros, olhos amendoados, boca rosada redonda... Sua pele de um branco dourado maravilhoso, como se tivesse luminosidade própria. O corpo era perfeito, delicado mas com curvas generosas...
Os suaves formatos de seus seios apareciam na borda do decote, um tanto exagerado. Estava meio deitada num sofá, mostrando as pernas até 12 centímetros acima do joelho. Mas nem ela se preocupava com esse detalhe nem os três homens pareciam dar alguma importância ao belo espetáculo.
Yukoff disse:
— Esperemos que Guriev tenha alguma ideia que não tenha ocorrido a nenhum de nós. A morte de Keenan McHale complicou muito as coisas.
Yoderian retrucou:
— Você é quem manda, no momento. E você me ordenou que o matasse.
— Não o estou criticando, Yoderian. Ao contrário, você fez bem. Não é muito fácil atirar um homem por uma janela, sem deixar vestígios de luta... E você não deixou nenhum, não é assim?
— Creio que não.
Yukoff permaneceu pensativo uns segundos
— Por sorte, Machiner nos avisou de Cocoa o que ocorria e nos informou o hotel a que se dirigia McHale em Miami, depois de tentar convencê-lo a abandonar o plano.
— Não me surpreenderia que Adair W. Machiner também tentasse algo, Yukoff. Já lhe disse que não era conveniente fazer tratos com americanos... Nunca são suficientemente traidores de sua pátria. Poderíamos ter trazido á carga de Cuba...
— Por certo — grunhiu Yukoff, causticamente. — Se não da Rússia.
A bonita Sacha Bosorin deu uma risada ligeira, cristalina.
— Já verão como Ivan Guriev resolve tudo... Tenho vontade de conhecê-lo pessoalmente.
— Todos têm vontade. O único de nós que o conhece pessoalmente é Kailovich. Terá de ir buscá-lo no porto... E me parece que já é hora, Boris Kailovich.
— Guriev sabe do nosso endereço...
— E daí? Acaso você quer que ele venha sozinho até aqui? Não conhece Miami, perderia tempo... E, em caso de alguma dificuldade, você poderá orientá-lo na cidade.
— Eu acho — disse Yoderian — que nós todos deveríamos mudar imediatamente de casa. Qualquer dia, alguém começará a perguntar quem são os homens que periodicamente visitam a casinha da formosa novelista nova iorquina Maureen Diamant... E até será possível que procurem alguma obra de sua autoria...
— Por acaso não a encontrariam? — riu Sacha Bosorin.
— Sim, mas...
Yukoff atalhou:
—Todos estão bem instalados aqui, Yoderian. Sacha escreve e publica, e nós três temos nosso trabalho e vivemos separados uns dos outros. Mas estou de acordo com você. Quando acabarmos este caso, procuraremos outra casa. Embora eu creia que Ivan Guriev deve trazer certas instruções.
— Acredita que teremos de regressar à Rússia? — riu Sacha.
Yukoff encolheu os ombros.
— Ivan Guriev nos dirá.
Sacha Bosorin olhou para os três homens, divertida.
— Ivan Guriev, Ivan Guriev, Ivan Guriev... Parece que tudo vai depender dele. Pergunto que acontecerá se ele for mais estúpido do que vocês... Não quero dizer que vocês o sejam, mas que Ivan Guriev não seja tão esperto como achamos.
— Você pensa isso?
— Penso, e que cada dia me aborrece mais, querido Valerian Yukoff. Se não fosse pela atividade a que o caso de Cuba nos tem forçado, Já teria morrido de tédio.
— Daqui a pouco ninguém se aborrecerá no mundo — opinou Yukoff. Olhou para Kailovich. — Vá buscar Ivan Guriev, Boris Kailovich. Já está na hora.
— Bem...
Sacha Bosorin levantou-se preguiçosamente.
— Eu irei com Boris Kailovich.
Yukoff a olhou rapidamente.
— Por quê?
— Acabei de dizer, morro de tédio. Um passeio de carro me distrairá.
Valerian Yukoff vacilou.
— Ouça, Sacha, Boris Kailovich tem já as instruções, em caso de perigo. Não devemos esquecer que talvez Keenan McHale tenha dito alguma coisa a alguém e que talvez esperem Ivan Guriev no cais...
— Vamos, vamos, Valerian Yukoff querido... Vocês viram McHale entrar no hotel enquanto Leon Yoderian o esperava lá em cima, no quarto... E Leon Yoderian já nos disse que pôde atirar McHale pela janela justamente quando se dirigia para o telefone? Era quando iria falar com alguém... Mas não pôde. Vocês, do carro em que estavam do outro lado de Palms Avenue, viram-no sair pela janela e estatelar-se, pouco depois de ter entrado no hotel.
— Eu estou de acordo com Sacha Bosorin — apoiou Kailovich.
Leon Yoderian, o assassino, deu uma risadinha.
— Eu também estaria, se o prêmio fosse levá-la comigo a dar um passeio de automóvel, Boris Kailovich.
— Não se trata de um passeio. Vamos buscar Ivan Guriev.
— Sim, já sei. Mas se não há perigo... Que é isso senão um passeio com Sacha Bosorin?
Sacha deu uma gargalhada.
— Pois a mim não me desgostará ir com Boris Kailovich. E como não há perigo... Além disso, se houvesse perigo, eu talvez fosse de alguma utilidade, não?
Valerian Yukoff aceitou não muito convencido.
— Vá dar esse passeio, Sacha Bosorin. Mas acho que, depois de tantos anos nos Estados Unidos, sem um só tropeço, estamos confiando excessivamente. Qualquer dia...
— Oh, não quero ouvi-lo! — disse Sacha. — Vamos embora, Boris Kailovich.
— Tampouco deveríamos chamar-nos Boris, nem Sacha, nem Leon... Para isso temos uma documentação ianque.
— De vez em quando dá gosto falar em russo — pareceu irritar-se Sacha Bosorin. — Eu já falo inglês durante todo o mês, Valerian Yukoff. Um dia podemos todos falar russo.
Valerian moveu pensativamente a cabeça.
— Oxalá Ivan Guriev não ordene voltar para a Rússia... Ou nos envie para outro lugar, onde tenhamos de estar de novo alerta e com mais precauções. Se continuarmos assim, acabara por sermos caçados.
Sacha Bosorin irritou-se de vez:
— Valerian Yukoff, você é um sujeito insuportável. Ainda não percebeu que os americanos são uns bobocas?
Yukoff encolheu um só ombro dessa vez.
— Bobocas? Sim, é possível... Mas eu já noto que o chão começa a esquentar debaixo de meus pés. Muito tempo nos Estados Unidos, muito tempo em Miami, embora seja tempo de paz...
— De paz? — riu Kailovich.
Sacha Bosorin tomou o braço do único dos presentes que conhecia pessoalmente Ivan Guriev.
— Vamos embora, Boris Kailovich. Se eu ficar um minuto mais ouvindo Valerian Yukoff, começarei a chorar.
Rindo, os dois se dirigiram até a porta da casinha. Mas ainda puderam ouvir Valerian:
— Não se esqueçam, estamos relaxando, nos debilitando...
Uma batida da porta foi à resposta para o chefe do grupo de espiões soviéticos em Miami.
Henry Wharton começava a sentir frio quando, mais acima, na escada de corda, Clarence Hadaway sussurrou a ordem:
— Subamos.
Deu o exemplo, percorrendo a pequena distância que o separava da borda. Logicamente, foi o primeiro a saltar para o interior do barco, na popa. Imediatamente, encontrou-se com um homem sentado na coberta, apoiando as costas no casco e que perguntou num sussurro:
— FBI?
— Sim,
— Sou o capitão Kyster, do "Pearl". Localizamos seu homem.
Clarence interpretou o gesto na relativa obscuridade daquela parte do barco.
— Tem certeza?
— Absoluta. É bastante digno de atenção, se o olhar bem... Ouça... Sabe que se parece muito com o senhor?
Hadaway soltou uma risadinha.
— Agora estou certo de que o localizou, capitão. Um momento...
Voltou-se para a borda, estendendo a mão a Sanding, que pulou para o interior do barco em completo silêncio. Leacock também demonstrou que cuidava do físico ao saltar por cima da borda e cair na coberta sem nenhum ruído. Wharton não quis desmerecer a seus homens e sua atuação foi francamente ágil, apesar do grande cansaço e esgotamento que sentia.
— Este é o capitão Kyster — ciciou Hadaway. — E vai levar-nos já onde se encontra Ivan Guriev... Este é o homem da fotografia, capitão Kyster. Que nome está adotando?
— John Halsey.
— Muito vulgar... Muito esperto. Camarote número...?
— Oitenta e seis C, no segundo tombadilho. Quando eu vim para cá, há uns três minutos, esse homem se achava em seu camarote.
— Pois vamos para lá.
Caminharam tranquilamente pela coberta, separados em dois grupos. No da frente, iam Kyster, Wharton e Hadaway. No de trás, Leacock o Sanding, com absoluta despreocupação... Aparente.
O espião russo Ivan Guriev ouviu a batida na porta de seu camarote quando fechava a pequena maleta em que levava escasso vestuário. Na verdade, era apenas um pretexto, naquela fraude de espionagem.
Mal ouviu, meteu a mão debaixo do paletó e empunhou uma pistola. Mas sorriu logo e voltou a guardar a arma. Por que, diabo suspeitaria sempre de todos?
— Quem é?
— O telegrafista, senhor Halsey. Telegrama de Miami para o senhor. Acabamos de recebê-lo.
— Um momento, por favor.
O soviético apertou as mandíbulas, com uma expressão sombria nos olhos. Um telegrama? Mentira, claro... Ninguém poderia mandar um telegrama a John Halsey viajando no "Pearl". E menos ainda as pessoas que o esperavam em Miami. Era simplesmente absurdo.
A batida voltou a repetir-se na porta do camarote.
— Senhor Halsey...
— Um momento, por favor. Estou mudando de roupa...
Seu inglês era corretamente americano, intrinsecamente ianque. Supor que iriam mandar a Miami um homem que não pudesse passar por americano seria uma insensatez. Uma insensatez que, como sempre, os americanos estavam cometendo.
— Quer que deixe o telegrama por debaixo da porta, senhor Halsey?
— Não é preciso. Já vou abrir.
Tirou a pistola e destravou-a. Estava tudo bem, perfeito... Isto é, no que se referia ao seu comportamento pessoal. Os outros... Alguém dos outros havia falhado... Como das outras vezes.
Ivan Guriev soltou uma praga impublicável. Guardou a pistola e se dirigiu até a vigia de seu camarote, que dava para o outro lado do corredor de onde o chamavam para entregar o telegrama.
Haveria alguém julgando que ele era um estúpido completo. Quando o quisessem convencer disso, Ivan Guriev estaria nadando até o cais do Miami...
Sabia que não deixava nada de comprometedor na maleta. De modo que abriu tranquilamente a vigia e suspendeu-se com um hábil impulso, a fim de saltar para o corredor deserto. Todos deviam estar na coberta, contemplando Miami ao longe. Afinal de contas, chegar a Miami era algo certamente interessante...
Encolheu o estômago e acabou de passar. Suas fortes mãos continuaram alçadas à borda do respiradouro.
Girou sobre si mesmo, apoiando-se na nuca, e se encontrou no corredor, mas com as mãos presas à borda da vigia.
— Como vai, Ivan Guriev?
O espião russo ficou petrificado pelo assombro. Não pelo assombro natural por encontrar ali um homem, depois de ter olhado o corredor vazio, mas porque esse homem podia ser seu irmão gêmeo. Boa estatura, ombros largos, olhos escuros, cabelos louros, boca firme, expressão agradável... Apenas um brilho de dureza, que teria estremecido outro homem que não fosse Ivan Guriev, havia na boca daquele tipo assombroso. De pasmar.
Ivan Guriev soltou as mãos da borda do respiradouro e cometeu uma das poucas torpezas que às vezes prejudicam os homens que vivem uma ou várias vidas falsas. Em vez de confiar em sua força para lutar, deu preferência à pistola que trazia debaixo do braço esquerdo.
Mal se soltara do respiradouro e já sua mão direita voava para a axila esquerda. Foi um erro definitivo.
Enquanto fazia isso, o "outro Ivan Guriev" se aproximou mais dele, de mãos desarmadas. Mas suas mãos eram precisamente muito mais terríveis que qualquer arma porque, quando Ivan Guriev tirava sua pistola; algo que podia ter sido uma barra de aço golpeou sua mão. A pistola saltou, longe, até a outra ponta do corredor.
Imediatamente, um punho de aço afundou no estômago do espião soviético... Mas também o estômago de Ivan Guriev era de aço. Instintivamente retesou o abdome e o golpe, que teria sido decisivo para uma pessoa comum, ressoou com força nos músculos. Foi como se uma couraça o protegesse.
Por isso, Clarence Hadaway ficou paralisado durante um segundo, o que bastou a Guriev para golpeá-lo com dureza aniquiladora no peito. Por um momento Clarence Hadaway viu tudo escuro, girando brutalmente a seu redor. Ivan Guriev não havia conseguido sua fama sem razão. Iria escapar...
Um novo soco no queixo empurrou Clarence Hadaway para trás. Teria querido gritar, advertir Wharton, Leacock e Sanding, que, entretanto deveriam estar diante da porta do camarote, fazendo-se passar por telegrafistas, porque Ivan deveria estar lá, como ele havia previsto. Teria gritado com todas as forças... Com suas últimas forças.
Mas Ivan Guriev era um homem implacável, seguro de si, disposto a conseguir seu objetivo, fosse como fosse.
Mal Clarence Hadaway começava a se recuperar, tudo muito rapidamente, o pé direito de Guriev subiu até a entre perna. Em um golpe quase mortal... Pelo menos decisivo para o resultado final da luta.
Clarence Hadaway o pressentiu. Suas mãos baixaram até aquele lugar tão vulnerável. Sentiu em seus dedos o duro contato do sapato do espião russo. As mãos sentiram a esfoladura do golpe... Mas o golpe, embora amortecido, causou seus efeitos. Uma nuvem negra surgiu diante dos olhos de Hadaway, o homem que só trabalhava sob as ordens diretas de John Edgar Hoover.
Por entre as escuras brumas julgou ver-se a si mesmo num espelho, o rosto tenso, os olhos brilhantes... Em um espelho de escassa reflexão de imagens. Viu aquele punho vindo ao encontro de seu rosto... E não pôde evitá-lo.
Caiu de joelhos.
Um golpe estalante, luminoso, encheu seus olhos de pontinhos brilhantes quando um joelho de Ivan Guriev se chocou, com terrível violência contra seu nariz. Sentiu na parte posterior de sua cabeça o choque contra o chão do corredor... Seu inimigo, forçosamente, teria de ser Ivan Guriev, o melhor homem com que contava a M.V.D.*.
A lembrança de que ele era considerado um dos melhores agentes especiais do FBI para a segurança interna dos Estados Unidos foi como uma ducha fria para Clarence Hadaway, que o reanimou e não lhe deu tempo de se desvanecer.
Aquilo era quase uma questão pessoal, como um presságio. Se um dos melhores espiões soviéticos vencesse um dos melhores contraespiões norte americano, a coisa parecia decidir de um daqueles lados, o do vencedor, naturalmente.
Sem saber como, Clarence Hadaway viu-se de pé, correndo atrás de Ivan Guriev, que já estava no meio da escada que o levaria à coberta. Se conseguisse chegar lá, poderia lançar-se ao mar, ao vasto mar. E a lancha da Guarda Costeira não estava ali. Ivan Guriev seria, oficialmente, absorvido pelas águas atlânticas.
E isso seria falso!
Enquanto corria, cambaleante, na direção das pernas que ainda se via na escada, Clarence Hadaway pensou em si mesmo: era capaz de nadar durante toda uma noite na mais completa escuridão, e chegar ao ponto que lhe interessasse.
Por que pensar que o homem que momentaneamente o havia vencido não seria capaz de fazer o mesmo, ou mais? Não era uma presunção pensar que só os homens do FBI eram capazes de tais façanhas.
Quando agarrou desesperadamente as pernas de Ivan Guriev, todo o espírito do FBI se achava entre as mãos de Clarence Hadaway. Todo o espírito e plena confiança de John Edgar Hoover, o homem que lhe dava diretamente as ordens.
Um dos pés de Ivan Guriev subiu para descer rapidamente no rosto de Clarence Hadaway. Era o normal, mesmo para um lutador como Ivan Guriev.
E Clarence Hadaway lançou uma exclamação de alegria ao verificar que seus reflexos funcionavam muito bem, esquivando daquele golpe que poderia ser decisivo.
O pé de Guriev bateu no vazio. O forte impulso o fez perder o equilíbrio e sua mão deslizou nos brilhantes degraus metálicos, até que caiu nos braços do agente do FBI.
— Agora!
Hadaway golpeou Guriev no pescoço, em um impressionante golpe de canto com a mão rígida. Mas Ivan Guriev encolheu os ombros um milésimo de segundo antes, de modo que o golpe perdeu oitenta por cento de sua eficácia.
Clarence Hadaway sentiu-se fora de si, instável, apesar da sua reconhecida serenidade.
Seria possível que aquele homem iria fugir de suas mãos, das mãos mais destruidoras, efetivas, vitoriosas, daquelas mãos que Edgar Hoover havia escolhido especialmente?
Ia ser possível.
Ivan Guriev, dolorido, aplicou um golpe estranho com um pé, elevando sua perna ao máximo. Hadaway recebeu a pontada no peito e Julgou desfalecer. Outro golpe, dessa vez com a mão, o acertou na garganta, muito próximo do peito, e não fez o efeito que teria produzido, talvez mortal, se a mão rígida de Guriev tivesse atingido seu pomo de Adão.
Clarence foi lançado violentamente contra a parede dos camarotes daquele corredor. Escorregou duramente, caindo de braços no chão.
— Hadaway!
Era a voz de Henry Wharton que, com Leacock e Sanding, vinham correndo pelo passadiço. Não podia nem devia esperá-los. Todo o prestígio de seis anos no FBI, todo o prestígio de um número um na promoção, toda a confiança de John Edgar Hoover pesavam sobre suas costas cansadas. Levantou-se de um salto e teve a impressão de que o “Pearl" entrava em cheio numa tempestade, no mais violento tufão.
— Corram para a outra escada!
Wharton, Leacock e Sanding quase deixaram a pele, ao tentarem subir os três de uma só vez.
Hadaway galgou os degraus com uma velocidade impressionante, embora sentindo aquelas repugnantes náuseas no estômago. Mas pôde ver Ivan Guriev, que acabava de tirar o paletó e se dirigia a toda à pressa para a borda do navio.
Um surpreendente "mergulho" de mais de quatro metros levou Clarence à cintura de Ivan Guriev no momento exato em que ia saltar. Os dois se chocaram contra a borda...
O rebote foi favorável ao agente especial do FBI que viu diante dele a mandíbula do espião russo.
Um gancho, com toda a sua alma, quase levantou Guriev ajoelhado que rodou pela coberta.
Quando quis levantar-se, Clarence Hadaway já estava de novo ao seu lado e seu punho direito deu outro golpe, desta vez entre os seus olhos.
Ivan Guriev pareceu enfraquecido, perdendo todas as forças. Mas quando Hadaway se inclinou sobre ele, um pontapé no estômago o convenceu de seu erro.
Havia mais de doze horas que o federal não comia nada, a náusea lhe subia, à boca. Sentia-se mareado, vencido. O rosto de Ivan Guriev já lhe parecia um pesadelo monstruoso, que lhe dava calafrios aterradores.
E o russo voltou a surgir diante dele, crispado, marcado por seus golpes.
Um punho não muito grande, mas com uma clara aparência de ser de aço, fechou-se sobre o rosto de Clarence Hadaway.
Uma visão fugaz.
Um instinto.
Um grito de alarme em seu íntimo.
Encolheu-se e socou, não soube exatamente onde. A sombra de Ivan Guriev pareceu encolher...
Voltou a esmurrar. Em seu punho notou algo duro, dolorosamente duro.
E outra vez. E mais outra...
Diante de si, via agora o crispado rosto de Ivan Guriev escorrendo sangue do nariz. Outra vez. Outra...
Os punhos de Clarence Hadaway sentiam agora, não uma dura couraça, mas um corpo mole que recebia amortecendo os terríveis golpes: peito, boca, estômago, estômago, estômago, boca, peito, nariz, boca, peito, estômago, queixo...
Ivan Guriev dobrou-se sobre os rins, por cima da balaustrada. Era uma massa de carne macerada, vencida. Clarence Hadaway queria saltar atrás dele, agarrá-lo, tirá-lo vivo do mar, torturá-lo, submetê-lo ao detector de mentiras, aos golpes do bastão de borracha, a focos de luz ofuscantes, a sede, a fome, a ânsia de fumar um cigarro...
Mas sentia as pernas fracas, frouxas, como se os joelhos estivessem derretendo.
Antes de cair sentado, apoiando bruscamente as costas nas paredes dos camarotes da coberta, Hadaway viu um corpo que saltava agilmente pela borda, atrás do corpo de Ivan Guriev.
— Sente-se bem, Hadaway? Era uma voz amável, conhecida. Clarence levantou-se bruscamente.
— Ivan Guriev?
— Acalme-se. Leacock tirou-o da água. Guriev está em nosso poder. Foi uma boa luta, Hadaway.
A seu lado, ouviu uma respiração ofegante. Virou a cabeça e viu Paul Leacock com as roupas encharcadas.
Sorriu.
— Tirou Paul?
— Se-seguro... Clarence...
— Ele está bem? Digo bem guardado?
— Aí está.
Hadaway olhou para onde seu companheiro indicava. Ivan Guriev jazia na coberta, com o rosto voltado para o céu estrelado, e já limpo por efeito da água do mar. Suas mãos, evidentemente, dada a sua posição, haviam sido amarradas as costas. Também seus pés estavam convenientemente amarrados.
Clarence Hadaway resfolegou. Sentia em todo o corpo o efeito dos duríssimos golpes do russo.
— Quanto tempo para chegar ao porto?
— Uns dez minutos — informou Wharton.
— Dez minutos! Depressa, uma ducha fria, um trago de uísque, alguma coisa que me reanime!
Sentia-se arrasado, bamboleado. Dois minutos depois, completamente nu, recebia em seu corpo a confortadora sensação da água fria.
Quando saiu do banheiro da cabina do capitão Kyster, este, Wharton, Leacock e Sanding estavam fumando. Num canto ainda mais fortemente amarrado, estava Ivan Guriev, ainda inconsciente, mas quase nu.
Henry Wharton mostrou as roupas do espião.
— Essa é sua nova roupa, Hadaway.
Clarence suspirou. Olhou para as roupas, para os presentes... Por fim, para Henry Wharton, que sorriu abertamente. Havia uma expressão divertida, em seu rosto inteligente.
Disse:
— Clarence, O "Pearl" atracará dentro de dois minutos. Que lhe parece se vestisse as roupas do muito perigoso Ivan Guriev. Faz tempo que não vou a um baile à fantasia...
Hadaway sorriu.
Sem deixar de fumar, sentados, o capitão Kyster e os agentes do FBI Sanding e Leacock também sorriram.
O FBI quase sempre era como uma grande família... Um pouco perigosa, claro, mas uma grande família.
Henry Wharton deu uma gargalhada ao pensar nisso, mas quando todos o olharam surpreso, não deu nenhuma explicação.
E era que... A família, sem dúvida, dava trabalho.
0"Pearl," atracou quase meia hora além da estipulada, quando já Kailovich começava a ficar impaciente. Ele e Sacha Bosorin estavam dentro do carro, bastante próximo do local onde o barco atracou.
A bela mulher olhou zombeteiramente para Kailovich.
— Em minha opinião, Boris Kailovich, vocês todos estão ficando um pouco nervosos.
— Acho que você tem razão — admitiu Kailovich de má vontade. — Estou há muito tempo neste país estúpido e, todavia não consegui acostumar-me as situações inesperadas. Sempre temendo alguma coisa...
— Certamente — riu Sacha. — Valerian Yukoff tem razão. Estamos relaxando, nos definhando... Olhe os passageiros, já começam a descer. Poderá daqui reconhecer Ivan Guriev?
— E de mais longe ainda. Ivan Guriev é inconfundível, Sacha Bosorin.
— Feio ou...?
Kailovich olhou de revés a mulher. Há muito tempo obedecia às suas ordens, não havia homens nem mulheres, somente espiões, que deviam ajudar-se, ter contatos prudentes, não se deixar levar por sentimentos pessoais...
Ele estava cumprindo aquelas ordens, apesar da perturbadora presença daquela beleza.
E algo havia intrigado Boris Kailovich. Sacha Bosorin se mostraria tão fria e impessoal... Depois de conhecer Ivan Guriev?
— Feio? — grunhiu. — Não saberia dizer... Isso tem alguma importância?
— Nenhuma — continuou ela, rindo. — É somente curiosidade.
— Logo poderá satisfazer essa curiosidade... Mas, em minha opinião, Ivan Guriev é um homem... Interessante.
— Interessante? Então é velho?
Agora foi a vez de Boris Kailovich rir.
— Velho? Bem... Isso depende do ponto de vista. Veja. Ele vem descendo pela passarela.
Sacha Bosorin dirigiu seu olhar para lá. Havia quatro pessoas descendo a escada de bordo, naquele momento.
— O gordinho de óculos? — perguntou.
— Não! — riu Kailovich. — É o que vem atrás, levando apenas uma pequena maleta...
— O dos ombros largos? Esse que agora se virou para trás?
— Exato. Agora se vire para olhar... Vê-o bem, Sacha?
— Perfeitamente — sussurrou a mulher. — É jovem, aposto. Parece forte...
— Ninguém jamais conseguiu vencer Ivan Guriev numa luta. E quem conseguir será, na verdade, um inimigo perigosíssimo. Vou buscá-lo.
— Está seguro de que é Ivan Guriev?
— Não lhe vejo bem a cara... Mas seu corpo e o contorno de seu rosto são de Ivan Guriev. É ele, claro. Espere aqui, Sacha.
Boris Kailovich desceu do carro e começou a caminhar até Ivan Guriev, confiantemente. Perguntou-se por um instante por que Guriev havia olhado duas vezes para trás, para o barco... Talvez receasse estar sendo seguido, localizado por alguém que o tivesse descoberto?
Ivan Guriev trazia um chapéu de cor clara, um pouco caído sobre os olhos. Da distância de uns oito passos, Kailovich lhe fez um ligeiro sinal. Então Guriev levantou um pouco mais a cabeça e o olhou fixamente. Seu rosto permaneceu impassível, apenas os olhos fixos em Boris Kailovich.
Boris começou a sorrir. Desde logo, jamais se poderia acusar Ivan de ser um homem que revelasse seus pensamentos por meio da expressão. Havia reconhecido seu velho amigo Boris e se limitava a olhá-lo fixamente.
Boris Kailovich chegou quase a tocar em Guriev, plantando-se diante do famoso espião soviético.
— Siga-me, Ivan. Vamos para... Um momento... Ouça você não...
O russo teve, de repente, a sensação de uma enorme bola de estopa na garganta. O homem que tinha diante dele, olhando-o fixamente, podia se passar por Ivan Guriev, olhando do carro, mas da distância de um passo, aqueles traços não correspondiam a...
Uma mão dura caiu sobre um ombro de Boris Kailovich.
— É melhor não se mover, amigo.
***
Do carro, Sacha Bosorin viu Boris Kailovich se aproximar confiante de Ivan Guriev. Viu-o parar muito próximo do esperado companheiro que devia solucionar todos os problemas.
E viu os três que os cercavam, fechando a passagem para a saída do cais. Um daqueles homens pôs a mão no ombro de Boris e disse algo. Os outros dois se dirigiram diretamente para Ivan Guriev...
Viu Kailovich bruscamente sacudir a mão que pousava em seu ombro, dar meia volta e começar a correr em direção do carro, com o rosto tenso, completamente crispado pelo sobressalto o medo, a raiva... A raiva, sim...
O homem que havia posto a mão no ombro de Boris desequilibrou-se ligeiramente quando o espião russo se esquivou. Imediatamente levou a mão direita a axila esquerda e tirou uma pistola. Sem contemplação de nenhuma espécie atirou contra as costas de Kailovich, que saltou com muito mais impulso para frente, na direção de sua fuga.
Sacha Bosorin viu como Boris Kailovich se chocava de cara contra as pedras do calçamento do cais e pendia, brandamente, inerte. Mas de repente se pôs de joelhos e também quis tirar sua pistola. O homem que lhe havia posto a mão no ombro tornou a disparar com frieza impressionante.
Boris Kailovich estremeceu fortemente. Seu corpo se dobrou para trás, sobre seus próprios joelhos, vacilou um pouco e pareceu impulsionado para frente. Desta vez seu rosto chocou-se contra as pedras e não se moveu mais.
Sacha Bosorin desviou seu olhar aflito para o grupo formado por Ivan Guriev e os outros dois homens que se haviam dirigido a ele.
Um daqueles homens estava no chão, encolhido como se quisesse meter sua cabeça entre as pernas. Era a mais clara imagem da dor, do homem vencido no primeiro golpe.
O outro homem tinha a mão metida na axila, mas Ivan Guriev a mantinha apertada contra aquela parte de seu corpo com uma de suas mãos, enquanto com a outra dava golpes curtos no esôfago de seu inimigo. A cada golpe, o outro se encolhia, estremecia, dobrava um pouco mais os joelhos.
Sacha viu a mão direita de Guriev descer sobre o nariz do antagonista... Viu o sangue que brotou do nariz, o desfalecimento do homem, a flacidez do seu corpo já vencido.
Ivan Guriev moveu-se agilmente, voltando às costas para o ponto de onde Sacha assistia à luta. Uma das pernas de Guriev se moveu. O pé atingiu o rosto do adversário, quase o levantando... Meio caído, o homem recuou penosamente até a borda do cais... E desapareceu na água.
Tudo se passava com a rapidez do relâmpago.
O que havia matado Kailovich pôde, enfim, apontar com tranquilidade para o agilíssimo Ivan Guriev. Apertou o gatilho... Mas Ivan Guriev já estava de joelhos, esquivando-se da bala como se adivinhasse sua trajetória. Dessa posição saltou em ponte contra o homem que acabava de disparar. A cabeça de Guriev incrustou-se no estômago enquanto a mão agarrou a de seu inimigo, torcendo-a cruelmente. Um grito... A pistola no chão...
Ivan Guriev não soltou a mão, apesar de desarmada. Ao contrário, agarrou-a com mais força, passou-a por debaixo do braço de seu contendor e o atirou para cima. O outro devia conhecer alguma coisa daquele tipo de luta porque seguiu o movimento de ombro, girando sobre si mesmo e caindo de lado contra o chão. Entretanto, se recuperou imediatamente e quis buscar o corpo a corpo...
Ivan Guriev o golpeou com a mão aberta sobre os dois olhos e o homem, com um gemido, recuou, tropeçando. Guriev o seguiu, e socou seu estômago duas vezes, de modo fulminante... E quando o homem se inclinava, com a respiração cortada pela dor, pareceu querer decapitá-lo com o canto da mão. O homem caiu como morto.
Naturalmente, ouviam-se apitos da polícia. A estupefação inicial já havia passado e a gente estava começando a reagir. Dois agentes uniformizados corriam para lá...
Sacha Bosorin teve a impressão de despertar de um longo estupor, de um sonho absurdo em que um só homem de ombros largos se livrava de três homens armados.
Esse mesmo homem, Ivan Guriev, corria na direção das primeiras casas da zona portuária, cheias de tabernas. Corria a toda velocidade, uma velocidade incrível, fantástica, que parecia impossível de ser conseguida por um homem.
Atrás, apitando sem parar, os dois agentes de polícia pareciam correr em sentido contrário, tal era a velocidade do perseguido.
Sem dúvida alguma, Ivan Guriev era um inimigo respeitável, um atleta, o homem desarmado mais perigoso que Sacha já vira.
A mulher pôs o carro em movimento, atrás do perseguido Guriev. Ela e os dois policiais eram os únicos que haviam conseguido reagir.
Sacha conduziu o carro pela rua na qual Guriev havia entrado perseguido pelos dois agentes. A mulher acendeu os faróis e todo o local ficou iluminado. No outro extremo, longe, a figura, inconfundível de Ivan Guriev...
Quase no início, os dois policiais, viraram-se para o carro, um tanto desconcertados.
Estavam no meio da rua. Sacha pisou no acelerador e o carro pareceu dar um salto, inesperadamente. Um dos policiais gritou e se atirou na calçada, num salto acrobático. O outro, atingido de cheio pela luz de um dos faróis, abriu muito os olhos, atrapalhado. Quando compreendeu que aquele carro não ia a seu favor e sim contra, quis afastar-se. Saltou...
Sacha Bosorin sentiu a batida no para lama esquerdo, mas, naturalmente, seguiu em frente, sem tirar o pé do acelerador. Em menos de três segundos estava na saída da rua. Atrás, as pessoas deixavam as casas, as tabernas, gritando, correndo...
Na parte traseira do carro soaram dois golpes que provocaram uma breve vibração na estrutura do veículo. Sacha não fez caso das balas, certamente disparadas pelo policial que conseguira salvar-se.
Ao dobrar a esquina, viu a figura esbelta, larga de ombros, correndo sem cessar a uma velocidade que obrigava Sacha a morder os lábios para não soltar uma exclamação de assombro, de admiração...
O carro chegou rapidamente à altura do fugitivo, com as luzes dos faróis em suas costas. Sacha quase gritou quando, depois de frear secamente junto a Ivan Guriev, este desaparecera de sua vista, sob o para brisa do carro.
Mas ainda estava no ar o rangido dos freios, quando a moça viu Ivan, rodando sobre si mesmo na calçada. Viu-o pôr-se em pé e procurar entrar naquela casa, sem importar de quem fosse...
— Ivan Guriev! — chamou.
O perseguido virou-se como uma centelha. Em sua mão direita a pistola refletiu a luz dos combustores daquela rua. Sempre com surpreendente rapidez e agilidade, Guriev saltou para o estribo do carro. Sua pistola se apoiou na garganta de Sacha Bosorin, sob o queixo.
— Quem é você? — arquejou Guriev.
"Estamos relaxando..." As palavras de Valerian Yukoff ressoaram inesperadamente nos ouvidos de Sacha, ao estremecer diante daquela visão. Ivan Guriev, machucando-a com a pistola que apoiava em sua garganta, tinha o rosto cheio de suor e o sangue brotava do nariz. Sacha teria jurado que ele não havia recebido nenhum golpe na luta contra os três homens, no porto, mas, pelo visto, devia estar equivocada... No que não se enganava era que o escuro olhar de Ivan Guriev, fixo nela, evidenciava uma claríssima ameaça de morte. Os olhos do espião, um pouco dilatados, pareciam capazes de perfurá-la. O peito largo arfava com força. O sangue do nariz já lhe chegava à boca. Era uma visão dura, viril e repelente a um só tempo.
Tudo isso em menos de um segundo, o que Sacha demorou em responder:
— Sacha Bosorin — falou rapidamente em russo. — Kailovich e eu viemos buscá-lo. Vamos, suba depressa!
A pistola que Guriev empunhava se cravou mais dolorosamente em sua garganta. O homem sibilou, em russo:
— Algo vai mal aqui, Sacha Bosorin. Mataram Kailovich e você vem me ajudar. Se for uma cilada, matarei você.
— Suba no carro, Ivan Guriev — repetiu Sacha.
Guriev tirou, enfim, a pistola da garganta da bela moça que suspirou profundamente. Entrou no carro e então cravou a pistola nas belas costas da mulher.
— Saiamos daqui agora mesmo — chiou sua voz. — E me diga já com quem eu tinha de me encontrar em Miami.
— Mas...!
A pistola quase deslocou uma costela da moça. E a voz de Ivan quase rebentou seus ouvidos.
— Diga!
— Eram... Valerian Yukoff, Leon Yoderian, Boris Kailovich e eu... Sacha Bosorin...
O carro rodava a toda a velocidade, afastando-se daquele lugar. A pistola de Ivan se cravou ainda mais fortemente nos flancos de Sacha.
— Nomes dos norte americanos que trarão a carga.
Sacha olhou Guriev pelo espelho retrovisor. Só pôde ver meio rosto, mas o suficiente para compreender que aquela expressão era a de um homem decidido a tudo:
— Adair VV. Miehener e Keenan McHale — quase gemeu ela.
A pistola deixou de comprimir as costelas. Ivan a guardou na axila esquerda. Suspirando de cansaço, deixou-se cair nas costas do assento. Tirou um lenço do bolso e, depois de virar um pouco o espelho retrovisor, começou a tirar o sangue que chegava a seus lábios.
— Diminua a marcha — grunhiu. — Já não é preciso correr tanto. E não convém chamar atenção. Agora sei que você não está me enganando.
— O que você mandar, Ivan Guriev. Para onde vamos?
Guriev olhou-a, com fúria nos olhos.
— Parece-lhe boa a Delegacia do FBI — sua voz adotou um tom sarcástico. — Tenho muitos bons amigos lá.
Sacha Bosorin mordeu os lábios.
— Bom...
— Deixe-se de estupidez, Sacha Bosorin! — a mulher teve a impressão que as palavras em russo se chocavam violentamente contra seus ouvidos. — Vamos ao lugar combinado, e rápido!
— Como terá acontecido isto...
Ivan Guriev parecia uma fera. Rudemente agarrou o volante e conduziu o carro até a beira da calçada. Lá freou e, mal se voltara para a mulher, sua mão esquerda, estalou na face dela.
— Isto é algo que você terá de explicar, Sacha Bosorin! — a moça parecia prestes a gritar, mas a forte mão de Guriev a agarrou pelo vestido, entre os seios, e atraiu para ele, fazendo-a emudecer de susto. — Isto é algo que vocês todos terão de explicar, e não só a mim! Que significava a presença daqueles homens me esperando no cais? Responda, Sacha Bosorin!
O queixo da moça começou a tremer. Certamente, os anos de paz tranquilidade vividos em Miami talvez estivessem relaxando a todos, mas não Ivan Guriev, cuja mão apertava com dureza brutal.
— Não... Não sei... Tivemos de matar um homem... Talvez antes de morrer dissesse algo... Não sei... Valerian Yukoff lhe explicará tudo!
Ivan Guriev soltou-a tão bruscamente que um ombro da espiã bateu contra a portinhola.
— Valerian Yukoff! Vocês todos são uns inúteis!
Sacha levou lentamente a mão à face dolorida.
— Você não me devia bater Ivan Guriev...
— Cale-se! E vamos de uma vez a esses estúpidos que pretendem, nada menos, que disparar um foguete... Que poderiam fazer se eu não tivesse vindo? Vamos, arranque!
Sacha Bosorin olhou fixa, atentamente, durante uns segundos, para o crispado rosto de Ivan Guriev. Enrugado pela fúria, pela raiva que lhe produzia o cerco a que havia sido submetido. O sangue já não brotava do nariz nem o suor colava os cabelos louros na face, nem o peito arfava com força. Ivan Guriev era um homem de feições duras, intratável, de mau gênio... Mas incrivelmente fascinante.
Um russo. Gostava dele...
Sacha Bosorin suspirou profundamente.
— Iremos para minha casa, Ivan Guriev. Estão nos esperando.
—Dá no mesmo se for sua casa, ou qualquer outro lugar. Pouco me importa o lugar combinado, ou outro qualquer. O que quero é ver logo esses estúpidos.
Valerian Yukoff e Leon Yoderian pestanejaram um tanto admirados, quando Ivan Guriev se plantou, de cenho carregado, diante deles. Antes de permitir-lhes abrir a boca, quase rugiu:
— E agora, me expliquem por que três homens me esperavam no cais. Digam-me por que Kailovich caiu morto, lá.
Os dois espiões russos olharam para a porta que Sacha estava fechando. Ela os olhava com uma estranha luz irônica nos olhos... E tinha um sinal avermelhado na face esquerda.
Ivan Guriev havia entrado como uma bomba na casa e se havia plantado diante deles, formulando rapidamente a pergunta. Os dois russos estarreceram.
Por fim, Yukoff, pálido, disse:
— Esperavam-no Ivan Guriev?
—Sim, me esperavam! Três homens armados! Um deles matou Kailovich e esteve prestes a me matar também. Pergunto como isso é possível, como podiam saber que eu chegaria no "Pearl", sob o nome de John Halsey, como podiam saber que Kailovich vinha me buscar? São várias perguntas. Alguma delas tem resposta? — elevou a voz. — Tem?
Yoderian e Yukoff perderam o sangue do rosto. O segundo olhou para a mulher, que continuava perto da porta.
— Podemos acreditar que esse homem é Ivan Guriev, Sacha Bosorin?
Sacha encolheu os ombros.
— Boris Kailovich viu-o descer pela passarela e me apontou. Disse que era ele e foi ao seu encontro. Quando chegava diante dele, os três homens armados quiseram prendê-los. Jamais vi ninguém escapar como o fez Ivan Guriev. Jamais vi ninguém golpear com tanta segurança e tamanha força. Não estranharia se um daqueles homens estivesse morto agora.
Yukoff tornou a olhar para Guriev, que o tinha sob sua mira, com um sorriso irônico.
— Também eu — falou Guriev — poderia querer certificar-me de que vocês são Valerian Yukoff e Leon Yoderian. Pelas falhas, poderia deduzir que não.
Yukoff apontou uma poltrona, diante do sofá em que eles estavam sentados.
— Sente-se, Ivan Guriev. Descanse. Beba alguma coisa enquanto lhe explicamos as possíveis causas pelas quais três homens o estavam esperando no cais.
Ivan Guriev fez um gesto. Tirou um cigarro e um isqueiro. Encarando Yukoff fez funcionar o isqueiro para acender o cigarro.
— Está bem. — Voltou-se para Sacha: — Traga alguma coisa para beber, Sacha Bosorin.
A voz dela estava prestes a estrangular-se:
— Uísque?
— Por que não? Traga o que quiser, mas que seja forte. E você, Valerian Yukoff, fale rápido e claro.
Yukoff começou a relatar o acontecido com Keenan McHale, desde o momento em que Adair VV. Machiner, o outro traidor, os avisou de Cocoa, até que Leon atirou Keenan McHale pela janela.
Quando terminou o relato ficou esperando um comentário do Ivan Guriev. Este, com o copo na mão, permaneceu pensativo durante quase dois minutos, como se estivesse sozinho ali.
Quando falou, sua voz foi suave.
— Estou inclinado a acreditar que Keenan McHale pode dizer alguma coisa antes que Yoderian o atirasse pela janela. Não sei como, mas se me esperavam no cais, isso quer dizer que falou alguma coisa... Do contrário, teria de haver entre nós um traidor, ou traidora.
Leon Yoderian vacilou.
— Bem... Talvez Keenan não tenha morrido na ocasião e pôde dizer alguma coisa a polícia.
— É uma possibilidade — aceitou Ivan Guriev. — Mas, seja como for, por ter Kailovich morrido e eu escapado, eles perderam a pista. De modo que seguiremos adiante com o plano. Quando chegar a carga...
— Tenho pensado — cortou Yukoff — que você poderia ser encarregado de receber o homem que vai trazê-la, Ivan Guriev. Se os ianques sabem de alguma coisa, como parece mostrar o incidente do cais, é mais que possível que conheçam o homem que nos vai trazer a carga para o projétil. E, portanto, o vigiarão.
— E a mim, não? — perguntou Guriev com raiva.
— A você?
— Valerian Yukoff, esquece de que pelo menos três homens me viram no cais quando Kailovich vinha a meu encontro? Há essas horas esses homens estarão dando minha descrição aos desenhistas do serviço de contraespionagem americano. Em pouco tempo, centenas de fotografias minhas estarão sendo distribuídas por Miami. Porto, estações ferroviárias, aeroportos... Toda a documentação aceitável que tenho está em nome de John Halsey — tirou de um bolso interno e, ao mover o paletó, viu-se a culatra do revólver que trazia — Agora já devem saber que o homem que fugiu no cais usava esse nome. Acredita que deva ser eu a efetuar contato com esse homem?
— Se Keenan McHale falou, esse homem, Adair W. Machiner estará sendo vigiado. Ao seu redor se terão preparado enorme armadilha, Ivan Guriev. Quem melhor do que você para escapar dela? Eu estou inclinado a crer, depois desta conversa, que o cientista Machiner estará sendo vigiado no próprio Cabo Canaveral. E estará ainda mais quando amanhã saltar aqui em Miami, com essa carga imprescindível para carregar o projétil de Corralillo.
Ivan Guriev acariciou o queixo.
— Certamente, estamos numa situação difícil, Valerian Yukoff.
— Difícil, mas não desesperada. Contamos com você, Guriev. Esse é um trunfo de que os ianques não devem suspeitar.
Guriev acendeu outro cigarro, encarando Leon Yoderian nesse momento.
— Não devemos subestimar nenhum homem, Yukoff. Qualquer um pode falhar. — Fez uma pausa. — Eu irei buscar Adair W. Machiner. Como normal, os ianques terão mais interesse em segui-lo do que em agarra-lo. Querem saber onde, quando, como e com quem Machiner se encontrara levando essa carga. E todos saberão quando eu me aproximar dele.
— Aí entra a sua habilidade para a fuga, Ivan Guriev. Atualmente, só podemos contar, pelo menos em uma semana, com a carga atômica que Machiner nos arranjou. Tem de ser essa carga. Se esperarmos que nos enviem uma da Rússia, ou de Cuba, na suposição de que chegasse a oportunidade teria passado o projétil já seria destruído, ou atirado ao mar. Deve ser amanhã, Ivan Guriev. Eu lhe direi tudo o que quiser. Depois, você tomará uma decisão, tal como sugeriu. Você veio para dirigir tudo, não é assim?
— Está bem, Yukoff. Vá explicando tudo que eu não saiba deste assunto.
— Não sei exatamente o que é que você ignora Ivan Guriev.
— Você vá falando. Eu farei as perguntas quando julgar necessário.
— Está bem...
Durante dez minutos os dois homens foram elaborando o plano a seguir, baseando-se na informação e série de detalhes que Valerian Yukoff foi expondo. Quando terminou seu relato, Ivan Guriev sorria duramente.
— Será uma boa lição para os americanos. Mas você esqueceu um detalhe, Yukoff, não disse onde o projétil está montado.
Um relâmpago de alarma passou pelos olhos de Valerian Yukoff.
— Como! Acaso você não sabe?
O sorriso de Ivan Guriev adquiriu um tom quase sinistro.
— Eu sei Yukoff. Mas quero saber se você também sabe... Nunca apreciei as confusões... E me pergunto...
Yukoff levantou-se.
— Nós dois o sabemos, Ivan, segundo parece. Você consiga a carga. Já sabe aonde tem de encontrar-se amanhã com Adair W. Machiner e o que tem de lhe dizer. Depois, quando tivermos a carga em nosso poder, iremos juntos até o local onde o projétil está montado.
— Está bem.
— Então, de acordo. E agora, adeus...
— Um momento. Para onde vai?
— Para nossas casas — estranhou Yukoff. — Não está bem?
— Bem... Keenan McHale conhecia o endereço da casa de vocês?
— O meu — admitiu Yukoff. — Para lá Machiner telefonou advertindo-me que Keenan McHale vinha a Miami disposto a nos delatar.
— Então vocês não vão para suas casas. Se Keenan pôde dizer que eu chegaria no "Pearl" esta noite, é possível que também mencionasse o seu domicilio, Yukoff... E talvez o estejam esperando lá agora.
Leon Yoderian acrescentou:
— Ivan tem razão, Valerian, venha a meu apartamento esta noite. Lá...
— Lá também não. — cortou Guriev secamente. — Quero que cada um de vocês vá para um lado e se aloje em qualquer hotel ou casa de cômodos. Amanhã, na hora combinada, chamem Sacha Bosorin. Ela será nossa intermediária e se comunicará comigo.
Ela se sentou ao seu lado, no sofá. Estendeu uma mão e tomou a de Guriev, que descansava no sofá depois de guardar o isqueiro.
— Ivan.
— Sim?
— Você pode realmente esquecer de que é homem... E que eu sou uma mulher?
— Sim.
— Por que, Ivan?
— Temos coisas para fazer.
— Mas não nesta noite.
— Não... Certamente, nesta noite, não.
— Restam-nos várias horas até que chegue o momento de fazer algo, Ivan,
— Assim é.
Sacha Bosorin se juntou mais a Ivan. Levantou seu braço direito e o passou ao redor do pescoço do homem. Ivan Guriev pareceu comover-se.
Sacha passou também o outro braço ao redor do pescoço dele. Seus seios ficaram colados de encontro ao duro peito masculino.
— Ivan Guriev — sussurrou. — Faz tempo que eu o estava esperando. Nem sequer sabia, mas o estava esperando. E você chegou... Você sabe que nada tem importância. Estamos a sós, você e eu, e o que se passar entre nós, se você quiser, será esquecido. Mas eu queria que algo se passasse Ivan...
— Compreendo, Sacha Bosorin — o sangue do homem começou a circular muito mais rapidamente. — Mas não sei se você deseja recordar... Ou esquecer algo meu...
— Desejo. Não devia ter me batido, Ivan... Porque nesse momento eu soube que quem eu esperava era você...
Os olhos negros de Sacha Bosorin brilhavam intensamente, fixos nos de Ivan Guriev, nos vigorosos lábios do homem, no queixo firme. Pouco a pouco, Sacha foi chegando sua boca a boca de Ivan, apertando-se mais contra ele. Por fim, as duas bocas se encontraram, uniram-se.
Ivan Guriev sentiu sobre os seus uns lábios ternos, suaves, frescos. Um hálito jovem, vigoroso, limpo, chegou até ele.
Sacha Bosorin beijava com todas as forças, com toda a sua alma posta em seus lábios. Foi um beijo longo, que se foi relaxando lenta, suave, docemente... Até que a cabeça da mulher caiu, apoiada no ombro de Ivan Guriev.
— Isto é amor mesmo, Ivan?
— Você deve saber, Sacha.
— Você sente alguma coisa por mim?
— Não sou sempre de pedra.
— Mas... Não me ama?
— O amor é uma coisa que talvez nas mulheres surja de repente, como parece acontecer com você. Mas nos homens, em homens como eu, o amor é algo que se vai formando... Que a mulher vai formando com seus atos no coração do homem. Vi muitas mulheres lindas em minha vida Sacha.
— Como eu?
— Não sei se eram mais... Ou menos. Mas já vi muitas.
— Não cedeu a nenhuma, Ivan?
— Não lhes disse que as amava se é isso que quer saber.
Sacha Bosorin voltou a beijar os lábios do homem. Depois, levantou-se, puxando Ivan Guriev com as mãos.
— Venha comigo, Ivan — sussurrou lentamente. — Amanhã você me dirá.
O telefone tocou como se estivesse muito distante.
Sacha Bosorin, abriu os olhos e piscou repetidamente, quando a forte luz deslumbrou suas pupilas. Quase em seguida, inclinado sobre ela, viu Ivan Guriev a seu lado, apoiado na cama com um cotovelo. O telefone continuava tocando... E o famoso espião Ivan Guriev parecia não ouvi-lo.
— Bom dia, Ivan... — sorriu docemente a mulher.
— Sacha Bosorin — disse ele: — Te amo.
A mulher levantou sua mão até o queixo de Ivan.
— Sabia que diria isso. Está acordado há muito tempo?
— Há pouco. O suficiente para tomar banho e me barbear... A quem você amou antes de mim, Sacha?
Ela levantou as sobrancelhas.
— Você sabe que a ninguém, Ivan Guriev.
— E a maquininha elétrica de barbear?
— Não acha que uma mulher pode precisar, em certo momento, de uma maquininha elétrica? Ivan está com ciúmes?
Ivan sorriu veladamente. Levantou-se e se encaminhou para o pequeno "living" da casa. Por trás dele, entrando por um lado da janela do dormitório de Sacha Bosorin, um raio de sol se arrastava pelo chão.
Guriev levantou o fone.
— Alô?
— John Halsey?
— Perfeitamente.
— Sou David Berwick. O senhor está lembrado de que esta manhã, as onze, tem de ir ao encontro de nosso representante, que vem do Norte?
— Lembro-me perfeitamente, senhor Berwick. Tudo sairá bem, não se preocupe. Mais alguma novidade?
— Nenhuma Halsey. Já sabe onde estaremos esperando o senhor e nosso representante.
— Estaremos lá na hora prevista.
— Magnífico. A comissão será excelente para o senhor, Halsey. Felicito-o.
— Obrigado senhor Berwick.
Ivan Guriev desligou, sorrindo disfarçadamente, dando as costas para o dormitório de Sacha Bosorin. Virou-se quando ouviu o roçar de pés no chão. Sacha se limitara a cobrir os ombros com uma leve bata e caminhava lentamente para ele.
Enlaçou-lhe o pescoço e o beijou nos lábios, devagar, com paixão reprimida.
— Ivan Guriev — sussurrou ela, com ternura. — Que será de nós, depois?
— Não vai perguntar quem telefonou?
— Ouvi pronunciar o nome de Berwick... Então, só pode ter sido David Berwick.. Ou seja, Valerian Yukoff. Acaso alguém mais poderia telefonar para Ivan Guriev... Ou John Halsey?
— Não sei...
— Você está inquieto, Ivan?
— Sim... É um assunto muito importante... E já houve uma falha. Tenho que ir buscar Adair W. Machiner Sacha... Que acontecerá? Talvez... Não possa voltar para o seu lado.
Sacha Bosorin apoiou sua cabeça no peito do espião.
— Você voltará Ivan... E, então, talvez queira responder minha pergunta, que será de nós, mais tarde?
Ivan Guriev afastou Sacha delicadamente, para acariciar-lhe as faces com a mão um tanto trêmula.
— Não posso saber o que será de nós Sacha. Mas seja o que for, acho que continuarei amando-a... Sempre!
— Meu coração diz que você está sendo sincero Ivan.
— Seu coração não se engana, Sacha. Juro que não sei o que vai acontecer. Mas seja o que for meu amor será sempre seu. Encontrei em poucas horas o que jamais tive em muitos anos. E não poderei nem quero esquecer, Sacha Bosorin.
— Ivan, beije-me. Eu lhe suplico. E se não nos virmos mais, lembre-se de que tampouco quero, nem poderei esquecê-lo...
Ivan Guriev estreitou contra seu peito o corpo perfeito de Sacha Bosorin. Fechou os olhos quando seus lábios encontraram os dela. Após o beijo, Sacha apoiou o rosto em seu peito, e o rosto de Ivan se crispou num ricto amargo. Quando alguém sabe, dolorosamente, que deverá perder irremissivelmente, o que está tão próximo de si... Por muito que ame...
— Vou tomar uma ducha e me vestir, Ivan. A que horas sairemos?
— Às dez e meia.
— Estarei com você o tempo todo?
— Até que entremos em contato com Adair W. Machiner, sim. Depois iremos encontrar Yukoff e Yoderian.
— Quisera saber agora mesmo o que será de nós Ivan.
— Não se preocupe. Vá tomar a ducha...
Voltaram a beijar-se. Depois Sacha Bosorin entrou em seu dormitório para ir ao banheiro.
Ivan Guriev esperou até ouvir o ruído da água do chuveiro. Aproximou-se cautelosamente da porta do banheiro e ficou escutando durante uns segundos. Por fim, voltou ao "living" e se dirigiu ao telefone. Devagar, cuidadosamente, discou um número.
— Alô?
— Flowers Lane, 600 — falou Ivan Guriev. — E depois, entrada Norte de Miami, "Great Sun Parador". Finalmente, em Everglades, já de noite em princípio Island Road para o Sul,
— De acordo.
— Tudo bem, não?
— Tudo.
Ivan Guriev desligou o telefone. Acendeu um cigarro e foi para o quarto de Sacha Bosorin. Aproximou-se da janela e apoiou a testa no vidro. Lá fora, via-se o ambiente alegre do jardim, as palmeiras, as valetas brancas... Era um lindo dia de sol, apesar de outubro.
Olhando mais para o lado, viu a pequena garagem próxima da casa. Sacha Bosorin devia ter um automóvel de brinquedo, talvez conversível... Na verdade, em Miami, exceto por ocasião das chuvas, podia-se sempre andar de conversível. E cismava...
Sacha Bosorin. Tinha os olhos muito escuros, brilhantes e grandes. Pestanas muito compridas. Sua pele era de um delicioso tom branco dourado, raro. Quando beijava, a alma vibrava naqueles lábios frescos, cheios. Ivan Guriev considerava até onde poderia chegar à maldade, ou a crueldade da indiferença, em uma mulher como Sacha Bosorin. Até onde?
— Até muito longe — murmurou. — Se não fosse assim, ela não estaria em Miami. Pode amar com todas as suas forças, eu sei... E também seria capaz de matar-me se fosse para o bem de seu grupo, de sua missão. Seria capaz de matar-me. E, no entanto, Sacha Bosorin, sinto que a amo como se estas horas fossem anos.
Nem você nem eu tivemos sorte, Sacha.
Sacha Bosorin saiu do banheiro dez minutos depois, dirigindo-se ao quarto de vestir. A bata ficara no banheiro. Olhou para Ivan Guriev, sorridente, e assustou-se ao captar aquela expressão de profundo desalento nos olhos do espião.
— Aborreço-o Ivan Guriev?
Ele não respondeu. Aproximou-se.
***
Saíram de casa uma hora depois, as dez e vinte e cinco. Sacha Bosorin tirou o carro, que era efetivamente um pequeno conversível, e ambos entraram nele. Ela conduziu o veículo para a esquerda da garagem, tomou à alamedazinha do centro e passou em frente da casa.
Teve de subir com as rodas da direita no canteiro para não esbarrar em outro carro que encontraram a muito pouca distância de sua casa e cujo motor um homem metia a cabeça, à procura do defeito.
Quando o pequeno conversível se perdeu na distância, o homem tirou a cabeça de dentro do capô. Pôs-se a caminhar até a casa, seguindo o mesmo trajeto do pequeno conversível desde que saíra da garagem. Ia olhando para ambos os lados, aparentemente indiferente.
Mas, encontrou o isqueiro, brilhando, escondido na borda do canteiro que rodeava a casinha de Sacha Bosorin. O homem tirou um cigarro e um isqueiro. Quando ia acender o cigarro, o isqueiro caiu de sua mão sobre a grama. O homem se inclinou, apanhou o isqueiro e acendeu o cigarro.
Fumou-o rapidamente, passeando de um lado para outro. Quando apagou a ponta, três minutos depois, voltou para junto do carro, esfregou as mãos furiosamente, como quem diz: "Não posso deixar de consertar a avaria”.
De fato, dois minutos depois, o motor começava a funcionar. O homem baixou rapidamente a tampa do capô, correu para seu lugar e o carro se afastou.
Logo em seguida aquele homem parava o carro diante do primeiro estabelecimento com telefone que achou em seu caminho. Saltou.
Segundos depois, obtinha resposta de sua chamada.
— Fale.
— Sou eu, Corbert. Saíram, ele e uma mulher há menos de dez minutos. Tenho o acendedor. Que faço?
— Venha para cá. Temos de obter imediatamente estas fotos, fazer cópias ampliadas e enviar uma série delas a Washington, pela radiofoto.
— E eles dois?
— Você fez a sua parte, Corbert. Venha para cá.
— Muito bem.
— Mas a toda velocidade!
— Lá vou eu.
Pousou o fone e saiu tranquilamente para a rua. Mas, uma vez no carro, já não agiu com tanta tranquilidade nem calma, pisando fundo o acelerador.
Algumas vezes o FBI, por motivos óbvios, ia estendendo, demorando um caso. Outras vezes o êxito ou o fracasso podia depender talvez de uns poucos segundos.
O carrinho conversível parou dez e quarenta cinco da manhã, junto a um carro grande, escuro, fechado, cuja roda dianteira esquerda estava vazia.
— Aí está o carro — murmurou Sacha Bosorin. Ivan Guriev consultou seu relógio.
— Mas ainda não são onze. Esperaremos... Vamos tomar uma xícara de café.
Desceram. A pequena esplanada diante do Great Sun Parador continha um número regular de carros, embora houvesse espaço suficiente para estacionar onde se desejasse. Mal estacionou, Ivan Guriev apertou os olhos para ocultar sua expressão quase homicida. Uma das primeiras pessoas que viu sentada em uma mesa, e que justamente consultava o relógio, era um homem de seus cinquenta anos, bem vestido, aspecto de intelectual... Não olhava para ninguém.
Aproximaram-se os dois do balcão. Ivan olhou para os pés do homem, dissimuladamente. Junto deles viu uma pequena valise quadrada que parecia de pele.
— Café — pediu Ivan Guriev.
— Okay, amigo.
Apoiou-se no balcão. Por trás do barman, como nos filmes de faro West, havia um espelho, comprido e um tanto estreito. Ivan e Sacha se olharam em silêncio. Depois olharam através do espelho para o homem da valise, que se levantou um minuto mais tarde, disposto a ir embora após deixar uma nota sobre a mesa. Na mão esquerda levava a maleta, que parecia bastante pesada, mais do que aparentava.
Sacha olhou para Ivan.
— Que está acontecendo?
Ivan sorriu. Havia gotas de suor em sua fronte e custou-lhe um terrível esforço engolir a saliva parecendo uma enorme bola na garganta, quando olhou para a valise.
— Faz calor — disse amavelmente. Sacha Bosorin pestanejou.
— Calor? Bem... Sim, um pouco... Bem, pague John, ou vamos chegar tarde.
Ivan Guriev estendeu uma nota ao barman que se aproximou o suficiente para ouvi-los falar.
Saíram para a esplanada. Muito próximo da estrada, um homem lia o jornal, sentado no volante do seu carro. No banco traseiro, dois homens mostravam papéis um ao outro, conversando animadamente. Ivan Guriev conteve um sorriso que, de qualquer outro modo, teria sido ocioso.
Dirigiram-se para o conversível. Quando iam subir, viram o homem da valise de pé, diante da roda vazia do carro escuro, grande e fechado, com expressão de contrariedade.
— Alguma avaria? — perguntou Guriev amavelmente.
— Deve ter furado. — O homem apontou para a roda. — É esquisito... Quando cheguei aqui não havia notado nada.
— Ou talvez — sorriu Sacha Bosorin — alguém tenha esvaziado a roda para que o senhor viesse conosco para Miami.
— Seria uma tolice, senhorita.
— Depende. Há tolices que valem um milhão de dólares...
O homem da valise sorriu astutamente.
— Está bem, irei com os senhores. O senhor é Ivan Guriev?
O espião fez uma careta.
— Suba — sussurrou. — Cabemos os três.
— Um momento. Primeiro quero a garantia dos dois milhões e meio de dólares que me prometeram. E não sei se deveria pedir também os dois milhões e meio de Keenan McHale. Afinal de contas, se eu não tivesse telefonado para Yukoff...
Que estúpido era aquele homem? Sabia coisas demais. Como poderia esperar que, uma vez entregue a carga lhe permitissem continuar com vida?
— Haverá tempo para tudo, Machiner.
— Escute Guriev, quero uma ordem bancária para a América do Sul.
— Se gritar tanto e continuar me chamando de Guriev, o que o senhor conseguirá será um tipo de garantia, para um cemitério. E o pior é que também nos levará, a mim e a Sacha, para esse lugar.
— Quero a garantia bancária, a documentação falsa e a passagem de avião... Quero isso agora! Irei com os senhores para terminar de cumprir o combinado, mas quero isso agora.
— Suba para o carro, Machiner.
A voz de Ivan Guriev foi como um jato gelado que fez Adair W. Machiner empalidecer.
— Está bem.
Ivan Guriev cravou seu olhar na valise.
— E me dê isso — ordenou.
As mãos de Machiner se crisparam na alça da valise.
— Não! Eu vou leva-la.
Novamente surgiram gotas de suor na fronte de Ivan Guriev. Ali estava a carga. E mais além o carro em que um homem lia o jornal e outros dois pareciam falar de negócios. Guriev passou a língua nos lábios. Uma luta pela posse da valise...
— De acordo. Leve o senhor. Mas vamos já. Estão nos esperando.
Cabiam muito justos no único banco do pequeno conversível. Guriev estava numa extremidade e Machiner na outra, tendo Sacha ficado entre os dois, já que cedera o volante a Ivan Guriev.
Antes de sair do estacionamento e tomar a estrada de novo em direção a Miami, Ivan Guriev dirigiu outro olhar para o carro onde estavam os três homens. Nenhum deles parecia haver notado nada. Além disso, dada a distância entre um carro e outro, dificilmente teriam ouvido alguma coisa.
O pequeno conversível chegou a Miami, deu umas voltas pela cidade e lá por uma hora da tarde, saiu para Coral Gables, sempre em marcha moderada, parecendo um passeio de amigos.
De Coral Gables, o conversível tomou a estrada de Everglades, um povoado situado do outro lado da península, muito próximo das Ten Thousand Islands.
Ten Thousand Islands (Dez mil ilhas) era, provavelmente, um nome simbólico, pois não deveria ser tão numeroso o pequeno arquipélago. Não, certamente não haveria ali dez mil ilhas...
Mas, uma que fosse já bastaria.
Não havia cento e sessenta quilômetros entre Miami e Everglades. Apesar disto e da estrada ser bem conservada, o conversível levou quase três horas.
Quatro da tarde, quando entraram em Everglades. O calor era forte e inclusive a luminosa Sacha Bosorin dava mostras evidentes de cansaço, de aborrecimento.
Entretanto, quem mais suava, sempre em pequenas gotas, era Ivan Guriev, cujos olhos pestanejavam nervosamente, cada vez que, de modo discreto, pousavam na esquisita valise de couro, de Adair W. Machiner. Afinal de contas, aquela valise era falsa e dentro protegendo algo aterrador, havia uma conveniente capa de chumbo...
O conversível parou junto a um motel chamado "Everglades", e seus ocupantes lá permaneceram quase duas horas, sentados em uma mesa estrategicamente situada em frente ao aparelho de televisão.
Comeram despreocupadamente, ao que parecia. Sacha Bosorin foi a que prestou mais atenção ao programa de TV. À estrada, Island Road, não tinha o tráfego intenso da que levava a Miami, do norte da península, mas, de vez em quando, a enervantes intervalos quase regulares, o motor de um caminhão, ou de um automóvel, abafava as palavras dos atores do vídeo.
Adair W. Machiner mostrou-se o mais nervoso. Depois de haver consultado o relógio pelo menos umas dezena de vezes, murmurou:
— Logo serão seis horas.
Ivan Guriev começou a levantar.
— Nesse caso...
Sacha Bosorin pôs uma de suas delicadas mãos no antebraço do famoso espião russo.
— Oh, esperem... Vejamos como acaba aquilo — apontou para o televisor.
— Como quiser, Sacha.
Ivan Guriev tornou a sentar-se e um estranho calafrio o fez estremecer. Porem seu rosto parecia uma máscara petrificada.
Cinco minutos depois, Sacha levantou-se, rindo.
— Gostei! Foi uma bobagem divertidíssima... Machiner quase gaguejou:
— Vamos agora?
— Claro! O programa terminou...
Sacha e Machiner se dirigiram para a porta enquanto Guriev deixava uma generosa quantia sobre a mesa. Foi atrás dele e chegou junto do carro quando ambos já estavam sentados.
— Continue dirigindo você — pediu Sacha Bosorin.
— Certamente.
Primeiro deram uma volta por Everglades. Naquela ocasião, toda precaução era pouca...
Quando, por fim, depois de haver deixado Everglades para trás, chegaram ao cruzamento de Island Road com a estrada que levava para o norte, Ivan Guriev parou o carro, junto à margem da direita.
Consultou seu relógio.
— Sete. Fomos pontuais...
Um carro, de estranha cor de berinjela, apareceu de repente num extremo de um dos caminhos laterais. Fez uma manobra diante do conversível e depois entrou por outro caminho, dessa vez à direita.
— Aí está Ivan — advertiu Sacha.
— Já vi...
O conversível seguiu o carro de cor berinjela pelo caminho lateral, saltando pelas saliências de terra. O ruído do mar começou a chegar até eles como um sussurro obsessivo. Dez minutos depois, o carro cor de berinjela parava relativamente perto de um canto escarpado da praia, em frente de uma pequena esplanada. Algumas gaivotas, um tanto assustadas, estendiam suas amplas asas sobre o mar, que começava a tomar o tom cor de amora do ocaso.
Ivan Guriev freou a muito pouca distância do outro carro. Viu Sacha Bosorin abrir o porta luvas, mas não lhe deu nenhuma importância até ver na mão direita da mulher uma pequena pistola, brilhante, expressiva.
— Sacha que é isso... ?
Sacha Bosorin não respondeu. Sem olhar para Ivan Guriev, virou-se graciosamente para Adair W. Machiner, que estava prestando toda a sua atenção no outro carro.
Fora um erro.
Fora um erro por parte de Machiner. Um erro, ainda que não houvesse sido cometido, dificilmente teria mudado o curso dos acontecimentos.
Adair W. Machiner estava condenado à morte. De um modo ou de outro, em mãos de um ou de outro, teria morrido.
Mas foi Sacha Bosorin quem apontou com estranha delicadeza, a pequena pistola na sua fronte. Machiner sentiu o frio aço naquele lado de sua cabeça e quis virar-se, com um princípio de exclamação nos lábios...
O estampido da pequena pistola soou um tanto apagado, abafado. A fronte de Machiner se chamuscou, tomou um tom avermelhado por um instante. Depois, o tom se apagou, passando a um indescritível violáceo, com um filete de sangue.
Adair W. Machiner inclinou-se para Sacha Bosorin. Sua cabeça chocou brandamente contra os seios da mulher, que se apressou em afastar o cadáver, empurrando-o indiferente pela portinhola.
— Aí está, Ivan Guriev — disse num tom aborrecido.
Ivan Guriev afrouxou apressadamente as mãos que se haviam crispado no volante azul. Esforçou-se para não olhar para a pequena valise, cuja capa externa de couro havia uma outra de chumbo.
Apesar das inevitáveis gotas de suor na testa, Ivan conseguiu fazer um gesto inexpressivo, indiferente.
— Bom trabalho, Sacha. Vamos para...
Não disse mais nada, pois do carro cor de berinjela, haviam descido três homens que corriam para lá de pistola em punho. Ivan viu-se logo sob a mira das três pistolas.
Quem as empunhavam eram Valerian Yukoff, Leon Yoderian e um homem desconhecido para Ivan Guriev.
Quando este estava prestes a protestar por aquela exibição de armas, Valerian Yukoff, sorriu, olhando para Sacha.
— Está morto? — perguntou.
— Certamente — disse ela. — Tire-o logo daqui.
— Agora mesmo, querida Sacha Bosorin — riu Yukoff. Olhou para o homem desconhecido de Ivan Guriev: — Zukor pegue a valise.
Zukor obedeceu prontamente. O suor aumentou na ampla testa de Ivan Guriev. De soslaio, notou que a pistola de Yoderian não se afastava um milímetro da linha mortal que se dirigia até seu coração.
Apesar da revelação que significava aquela ameaça de tiro, Ivan Guriev conseguiu dizer friamente, entre dentes:
— Não percamos tempo, Valerian Yukoff.
Este se voltou muito sorridente para Guriev.
— Certamente que não, amado Ivan Guriev. Desça do carro. Temos coisas a fazer. Sacha fará sua parte. Alguma objeção Sacha Bosorin?
— Nenhuma Valerian Yukoff.
— Adiante, então. Não pensa em descer, Ivan Guriev?
Guriev obedeceu. Em seu flanco esquerdo a pistola parecia abrasar-lhe as costelas. Em sua mão direita a quentura era terrível. Em seu coração, as pulsações haviam duplicado de velocidade.
Quando ambos estavam fora do carro, Yukoff disse:
— Zukor, ajude Sacha. Ela é a encarregada do cadáver de Adair W. Machiner.
Guriev passou a língua pelos lábios. Aquele era um mau dia. Seguramente, acabaria mal... Pelo menos para ele. Entretanto, teria de chegar ao fim. Haveria um fim... Um fim possivelmente inesperado para alguém. Mas um fim. Seria inesperado para Ivan Guriev?
Fosse como fosse, Leon Yoderian não afastava nem um décimo de polegada a direção do cano de sua pistola.
Zukor e Sacha havia colocado novamente o cadáver de Adair W. Machiner no assento do carro, junto ao volante, depois que a moça, entediada, o tinha empurrado para o chão. Sacha Bosorin rodeou o conversível pela frente e passou diante de Ivan Guriev.
Não se atreveu a beijá-lo. Aquilo era algo tão... Íntimo. Nem sequer deviam os seus companheiros saber, adivinhar...
Sacha Bosorin sentou-se ao volante.
— Até já.
— Há tempo Sacha — riu Valerian Yukoff. — Não se apresse. Faça as coisas bem feitas.
O conversível adiantou uns metros, parou, girou nas rodas traseiras, recuou, girou mais nas rodas traseiras... Pouco depois saía da pequena esplanada, cujos pés o mar rugia, indiferente.
As gaivotas pareciam ter as cores do arco íris ao refletir na plumagem esbranquiçada o por do sol.
Ivan Guriev suspirou profundamente.
— Acho que chegou o momento...
Quis mover-se, caminhar para qualquer lado.
O motor do pequeno conversível já não era ouvido. O ruído do mar o absorvia...
Leon Yoderian adiantou-se um passo, cravou a ponta de sua pistola no estômago de Ivan Guriev e, com a mão esquerda, tirou habilmente a pistola de sua axila.
Ivan Guriev franziu a testa e sua mão direita, como uma garra, quis agarrar o paletó de Yoderian.
— Ouça estúpido, que está...?
— Cale-se, Ivan Guriev — cortou Yukoff. — A farsa está terminada. Já não é útil.
Ivan Guriev quis enrubescer de raiva, para simular, para levar seu papel até às últimas consequências. Mas suas emoções físicas não responderam aos seus desejos cerebrais.
Empalideceu intensamente.
Entretanto, suas palavras mostraram um grande domínio de seu estado de ânimo, ate sua coragem:
— Já não lhe sou útil, Valerian Yukoff? Pode explicar isto de um modo satisfatório? Receio que você esteja esquecendo de que está lidando com Ivan Guriev, o homem mais...
— Ivan Guriev! — riu Yukoff. Seus olhos voltaram-se para Zukor. — Diga-lhe quem é Zukor. Diga a verdade.
Zukor também mirava Ivan Guriev com sua pistola. Disse:
— Um agente da C.IA... Ou do FBI. Só pode ser uma destas duas coisas. Quase me inclino a favor do FBI. Sua função consiste na segurança interna dos Estados Unidos. Uma missão como essa de evitar tão hábil manobra russa, só pode ser encomendada a um agente do FBI que, de acordo com nossos cálculos, usurpou a personalidade de Ivan Guriev, o melhor homem da Rússia.
Valerian Yukoff riu sonoramente.
— Agora, Zukor, diga o nome. Não perca mais tempo. Vamos, diga.
Zukor sorriu.
— Clarence Hadaway. E, exatamente, pertence ao FBI.
O até então Ivan Guriev notou que suas pernas perdiam consistência. Sentiu nos joelhos uma brandura estranha, um tremor terrível, incontrolável, irreprimível...
— Ouça Yukoff...
— Eu ouço atentamente Clarence Hadaway — riu Yukoff. — Nós admiramos homens como você, homens como nós mesmos, homens como o verdadeiro Ivan Guriev. Na verdade, Clarence Hadaway, você merece o nosso maior respeito. Por seu valor, inteligência, audácia, pela dedicação a sua pátria, por seus conhecimentos do mais perfeito idioma russo, matizado do mais puro acento. Por sua serenidade, força física, seus nervos de aço, por sua constância nos estudos, pelo número um de sua promoção em Quântico, pela habilidade para falar, mentir, tramar, adivinhar, intuir, para manter o rosto na mais inescrutável das expressões... Admiramos você por tudo isso, Clarence Kadaway. Mas você tem de morrer... E esperamos que compreenda que nós, lamentemos no que se refere à solidariedade profissional, sejamos quem o tenha de matar.
Ivan Guriev pôs os ombros para trás e ergueu o queixo.
— E se estiverem enganados? E se eu for Ivan Guriev?
A resposta foi claríssima. Três pares de olhos atentos estavam fixos nele. Três amplos sorrisos indescritíveis nos lábios dos três russos.
— Clarence Hadaway — sussurrou quase ternamente Yukoff. — A farsa está terminada... Quer dizer, falta um só detalhe, sua morte. Mostre sua inteligência e sua coragem não insistindo em sua falsa personalidade. Não vai nos convencer.
— De acordo — o falso Guriev pareceu ampliar-se, crescer — sou Clarence Hadaway e pertenço ao FBI. Agente especial número um, sob as ordens diretas de John Edgar Hoover, enviado de Washington a Miami. Quero dizer uma coisa, esse projétil não será disparado contra Corralillo.
Houve um breve brilho de admiração nos olhos dos espiões soviéticos.
— Será disparado — assegurou Yukoff. — Temos o foguete em uma das ilhas. Temos a carga — apontou para a valise que Zukor segurava. — Temos tudo, Clarence Hadaway. Por que não há de sair o projétil atômico?
— Eu, Clarence Hadaway, o impedirei.
Zukor e Yoderian deram uma gargalhada. Mas Valerian Yukoff era um pouco mais inteligente.
— Você vai impedir Clarence Hadaway? Como o fará?
Clarence Hadaway sorriu.
— Posso fumar?
— Sim. Mas será Yoderian quem lhe dará o cigarro... E quem o acenderá. Faça-o, Leon.
— Ouça Valerian, este homem...
— Dê-lhe um cigarro!
Leon Yoderian atirou aos pés de Clarence Hadaway um maço de cigarros americanos, certamente, assim como um isqueiro. O agente especial do FBI tirou um cigarro, acendeu e olhou para Valerian Yukoff.
Deu um longo trago e disse:
— Informação contra informação, Yukoff. E podemos falar em russo, para maior comodidade...
— Falo o inglês quase melhor que o russo.
— Todavia, falaremos em russo. Diga como chegou à verdade a meu respeito. Se você não falar primeiro, nada feito.
Valerian Yukoff consultou o relógio.
— De acordo, Hadaway. Então, aqui vai. Nós sabíamos que havia um agente do FBI chamado Clarence Hadaway que se parecia extraordinariamente com Ivan Guriev. Não se admire... Por acaso vocês não sabiam da existência de Ivan Guriev? Pois bem, quando o lançamento do projétil a Corralillo foi planejado, sentimos que a coisa ia ser difícil. Não poderíamos trazer a carga atômica da Rússia. Trazê-la de Cuba seria uma temeridade. A única solução era carga ter de provir daqui mesmo, deste país.
— E encontraram dois homens que, por cinco milhões e meio de dólares, lhes arranjariam a carga.
— Exatamente. Seus nomes são... Eram Keenan McHale e Adair W. Machiner. Você sabe perfeitamente o que aconteceu com eles.
— Sei.
— O que não sabe é que, o tempo todo, embora enganados, esses homens seguiram nossas instruções.
— Acho que não estou compreendendo, Yukoff.
— Compreenderá logo, Clarence Hadaway. Keenan McHale cumpriu parte de sua tarefa ao telefonar do hotel e enganar o inspetor Wharton. O que McHale não sabia era que, depois de cumprir sua parte, seria jogado por uma janela. Ele acreditava que subiria ao seu quarto, deixaria lá as malas e poderia fugir tranquilamente, depois de dizer a Henry Wharton o suficiente para que ele entrasse em ação. Entretanto, McHale devia morrer... E Yoderian se encarregou disso.
— E isso tudo?
— E isso tudo foi para dar crédito ao caso. Um caso tão grave, Clarence Hadaway, que forçosamente o inspetor chefe da Delegacia do FBI em Miami, Wharton, se veria obrigado a entrar em contato com Edgar Hoover.
— E assim fez.
— Naturalmente — sorriu Yukoff. — Tudo estava saindo bem. O assassinato de Keenan McHale pareceu uma represália nossa quando, na realidade, não era mais do que uma parte de nosso plano. A fase seguinte do plano seria você, Hadaway, quase o sósia perfeito de Ivan Guriev, entrando em ação. Tínhamos esperanças que, baseados nas informações de Keenan McHale, você tentaria se passar por Ivan Guriev. E assim aconteceu.
— Vocês sempre souberam que eu era Clarence Hadaway?
— Naturalmente. E lhe direi mais, Hadaway, tudo estava calculado para lhe dar toda a facilidade de substituir Ivan Guriev.
— Tudo?
— Tudo. Desde o começo, a nossa intenção era que você ocupasse o lugar de Ivan Guriev. Para atingir esse fim nada foi esquecido, "o serviço" de Keenan McHale, a prisão do verdadeiro Ivan Guriev, a morte de Boris Kailovich... E tudo deu excelente resultado.
Clarence Hadaway teve a impressão de que seu coração se transformava num pedaço de gelo.
— Devo... Devo entender que vocês sacrificaram Ivan Guriev e Boris Kailovich, o homem que foi me esperar no porto de Miami, com o único fim de que eu pudesse aparecer como Ivan Guriev?
— Exato Clarence Hadaway.
— Mentira!
— Não é mentira. Ouça: Keenan McHale, tentado por dois e meio milhões de dólares, cumpriu sua parte. Adair W. Machiner, também. Os dois estavam condenados à morte, como é natural. Mas resta Boris Kailovich. Ele não sabia que quando foi ao cais buscar Ivan Guriev ia ao encontro de sua morte. Kailovich havia perdido a utilidade e não poderia lhe dizer, para que tudo saísse bem para a Rússia, ele devia morrer. Por isso não lhe foi dito nada. Foi para o porto acreditando que, o autêntico Ivan Guriev chegaria. E morreu.
— Vocês... Vocês sabiam que ele ia morrer...
— Sim, certamente.
— E o enviaram para lá?
— Não só o enviamos como Yoderian e eu conversamos diante dele e de Sacha Bosorin, como se tudo fosse verdade, como se fosse certo que o autêntico Ivan Guriev fosse chegar a Miami para orientar-nos.
— Sacha Bosorin também não sabia da verdade?
— Não. Mas ela sabia que devia ajudá-lo.
— Então... Ivan Guriev sabia da verdade?
— Sim. Era nosso melhor homem. E, por ser, soube sacrificar-se, deixar-se prender para que você ocupasse seu lugar, de acordo com as instruções que havia recebido. Ivan Guriev encerrou a carreira com a melhor de suas atuações.
— Deixou prender-se de propósito?
— Sim.
— Mas, para quê? — Hadaway quase gritou.
— Para que você ocupasse seu lugar.
— Que... Que ganhariam com isso?
— Que ganharíamos? — riu Yukoff outra vez. — Já vai entender. Todos os cientistas de Cabo Canaveral estão vigiados. Seria impossível a qualquer deles sair da base com uma carga atômica... A menos que o FBI determinasse. E assim aconteceu no caso de Adair W. Machiner. E sabe por que o deixaram sair, fazendo-se de ingênuos, com uma carga atômica? Porque sabiam que eram ordens superiores, que deixando Machiner sair com a carga, cumpriam ordens superiores, em benefício da atuação do FBI! Serei mais claro, se você não tivesse ocupado o lugar de Ivan Guriev, Adair W. Machiner jamais teria saído de Cabo Canaveral com a carga atômica. Mas, sabendo que aquilo era colaborar com o trabalho do FBI, o deixaram sair. Sabiam que o FBI estava na pista de Machiner e que, para poder segui-lo, convinha deixá-lo com a carga. Confiavam em você, Clarence Hadaway, no falso Ivan Guriev.
— É claro — admitiu Hadaway pesaroso. — Se Machiner pôde sair de Cabo Canaveral com essa carga atômica, era porque convinha aos planos do FBI, que confiavam que eu venceria Ivan Guriev. Eu devia seguir Machiner, saber quem e onde entregaria a carga e prender todos. Todos...
— Isso foi o que nós pensamos. Se fosse o verdadeiro Ivan Guriev a encarregar-se de tudo, nada teríamos conseguido. Mas, sendo você, Clarence Hadaway, sabíamos que deixariam a carga em poder de Machiner... E que essa carga chegaria ao nosso poder. Agora, já sabe por que Ivan Guriev se deixou prender, a fim de que você ocupasse seu lugar e a carga atômica que estava sob a sua vigilância viesse parar em nossas mãos.
— Quer dizer que Ivan Guriev se sacrificou voluntariamente...
— Sim.
— Mas, em compensação, Boris Kailovich e Sacha Bosorin não sabiam que eu substituiria Ivan Guriev, de acordo com a informação que nos forneceu Keenan McHale.
— É isso. Guriev sabia da verdade. Mas Kailovich e Sacha não. Tampouco Keenan McHale, que se limitou a cumprir nossas instruções. E, finalmente, Clarence Hadaway, graças ao sacrifício involuntário de Kailovich e ao voluntário de Ivan Guriev, nós temos a carga, para ser utilizada. Reconheça nossa inteligência, graças a você, a havermos nós temos a carga. Como barrariam a passagem dessa carga, vigiada por um dos melhores homens do FBI? Esses foram nossos planos. Por isso, morreram Kailovich, McHale, Machiner... Por isso Sacha Bosorin está agora afastada daqui, ignorando a verdade. Por isso, Ivan Guriev veio até Miami para deixar-se prender e você pudesse passar por ele... Por isso, finalmente, Clarence Hadaway, você vai morrer. Uma troca perfeita, Ivan Guriev por Clarence Hadaway. Uma troca quase igual. Digo quase porque o que Ivan Guriev fez, ou seja, deixar-se prender voluntariamente para glória da Rússia, você não teria feito para glória dos Estados Unidos.
Clarence Hadaway engoliu saliva. Por certo, só a ideia de procurar uma solução para sua delicadíssima situação seria um absurdo.
Disse:
— Há algo com que vocês não contaram Yukoff. Quem disparará o projétil?
Yukoff arqueou as sobrancelhas.
— Quem?
— Sim. Quem fará, agora que não têm nem Keenan McHale, nem Adair W. Machiner, os dois malditos traidores de sua pátria?
Valerian Yukoff soltou uma grotesca gargalhada.
— Clarence Hadaway!... Realmente acredita que confiaríamos nos dois americanos para lançar o foguete contra Cuba?
— Acreditava — Hadaway estava cada vez mais pálido.
— Que estupidez! Do mesmo modo que nós, Yoderian, Zukor, Kailovich, Sacha e eu, há nos Estados Unidos muitos agentes russos. Alguns deles sabem como se maneja um projétil desses. Três desses homens estão esperando, em uma das ilhas, pela carga atômica. Quando a tiverem, o foguete sairá com destino a Corralillo, Cuba...
— Ma... Mas... Um projétil não se dispara assim... É preciso uma plataforma, uma orientação...
— Tivemos meses e submarinos para montar tudo isso em uma das Ten Thousand Islands, Clarence Hadaway. Existe a plataforma e seu mecanismo para o disparo do foguete. Está tudo magistralmente camuflado num dos subterrâneos da ilha. Também a torre da carga atômica... Tudo! E lhe direi mais, há uma carga especial que destruirá todo o local logo depois de disparado o projétil, de tal modo que os Estados Unidos jamais poderão provar diante de qualquer comissão investigadora que o projétil foi montado por nós, os russos. E também deve saber Clarence Hadaway, que disparando ou não o projétil, a plataforma e qualquer outro indício serão destruídos. Jamais, em momento algum, seja ou não disparado o projétil, poderão provar que era um dos nossos. O mundo inteiro acreditará que o projétil criminoso saiu de uma das bases norte-americanas. Isso é tudo, Clarence Hadaway.
— Não. — falou Yoderian. — Isso não é tudo, Valeriam Pergunte-lhe como pensa impedir nossos planos.
— Não seja estúpido, Leon. Clarence Hadaway não está em condições de impedir nada nem ninguém. E se eu lhe revelei todos os nossos planos, foi para convencê-lo, antes de morrer, de que ninguém jamais poderá deter a Rússia. Não pode haver dois gigantes no mundo. E não existirão, pois um deles terá de se humilhar ante o mais completo desprestígio. Dispararemos o projétil. Mas, por que está tardando a lancha, Zukor?
— Combinamos que viria cinco minutos depois do anoitecer. E já está passando da hora...
Clarence Hadaway levantou os olhos para o céu, um tanto azul, um tanto pálido. Para o lado do leste se mostrava mais escuro. Dentro de pouco, talvez uns três ou quatro minutos, aquele lugar adquiriria o negro da noite... Uma noite fechada, para Clarence Hadaway... Quando uma daquelas pistolas vomitasse, em meio a uma pincelada de cor laranja, cor violeta, cor de amora, de morte, um chumbo certeiro no coração de um dos melhores homens do FBI...
Por que não admitir, um ou dois minutos antes de morrer, que os soviéticos haviam sido fantasticamente mais inteligentes? Havia sacrificado um de seus melhores homens, Ivan Guriev. No entanto, o triunfo bem valia um homem.
O zumbido do motor de uma lancha cortou o silêncio da noite, primeiro muito vago, depois com mais força, mais clareza.
— Mato ele agora? — perguntou Yoderian, com indiferença.
— Sim.
Um consentimento, mais frio do que a proposta. Havia um plano a cumprir e a vida de outro homem não teria importância. Se não havia tido a de Ivan Guriev, como podia ter a de Clarence Hadaway?
Yoderian olhou fixamente para Clarence Hadaway. Na obscuridade da noite próxima, os olhos escuros do eslavo nada expressavam. Olhos da morte, sua tarefa, sua missão. Clarence Hadaway não poderia criticá-lo, censurá-lo, chamá-lo assassino... No mais profundo de seu coração admitia que ele, nas mesmas circunstâncias, teria feito igual. Por que não dizer a si mesmo a verdade? Ele, Clarence Hadaway, teria sido capaz de matar friamente outro homem, se disso dependesse um plano em benefício de sua pátria.
Nem sequer poderia sentir raiva de Leon Yoderian.
Mas podia gemer:
— Não! Não! Yoderian... Não...!
Leon Yoderian não se deixou enganar:
— Deixe de bobagens, ianque. Sei que não está com medo de morrer. Só lamenta o fracasso, morrer sem haver triunfado nesta missão. Mas alguém tem de perder. Hoje é você, amanhã serei eu... Por muito que gema, que chore, não conseguirá convencer-me de que teme por sua vida somente... Morra... Bang, bang!...
Os dois estampidos soaram quase juntos no tranquilo anoitecer. Já não havia gaivotas no ar, já não havia pinceladas de sol no céu, já não havia uma luz para a qual dirigir os olhos. Sacha Bosorin já não estava ao lado dele para dizer-lhe que a amava, que seu último pensamento era para ela.
Só o negro mortal da noite.
Leon Yoderian viu Clarence Hadaway cair para trás, para o abismo, levando ao peito as mãos... Viu-o retorcer no ar por um momento. Viu-o cair nas rochas mais abaixo, onde o mar arrebentava furiosamente, em uma espuma branca, brilhante.
Quando olhou para baixo, com a potente pistola fumegante em sua mão, um punhado daquela branquíssima espuma brilhando na noite, salpicou seus lábios.
Lá embaixo, nada... Somente a água, indiferente, sinistra.
— Matou-o?
Leon Yoderian provou a água salgada. Era agradável. E lá embaixo, nada, Só aquela água deliciosa.
— Claro. O mar o tragou.
— Vamos para a lancha. Estão nos esperando.
— Bem. E Sacha?
— Ela já sabe que deve voltar para casa no seu carro e esperar lá nossas instruções.
Yoderian olhou para Yukoff na obscuridade.
— O que acha que aconteceu entre ela e Hadaway? Vi que olhava para ele de uma maneira...
— De que maneira?
— Eu diria que Sacha Bosorin amava quem ela acreditava ser Ivan Guriev... O que pensa que se passou esta noite, na casa de Flowers Lane entre eles?
— Isso não nos importa Leon. Depois de vários anos de permanência nos Estados Unidos nos foi dada uma incumbência. Tudo que temos a fazer é cumpri-la... Acima de tudo. Vamos para a lancha.
O assassino Leon Yoderian guardou sua pistola.
— Não me importa matar, Valerian, eu lhe juro. Fomos treinados para isso desde os dez anos. Mas, na verdade, digo que sinto alguma pena de Sacha Bosorin. O que vi nos seus olhos quando olhava para esse Clarence Hadaway...
— Vamos para a lancha, Leon.
— Sim... Vamos.
Clarence Hadaway sentiu o contato brutal do chumbo em seu ombro esquerdo. Girou no ar, sobre si mesmo, nem sequer soube que Leon Yoderian lhe havia dado dois tiros e não um.
De uma altura que não pôde determinar, seu corpo, ferido caiu na borbulhante espuma.
Em sua perna esquerda surgiu, de repente, uma dor intensa, um choque brusco, como quando jogava "rúgbi". Sentiu suas costas ralar nas rochas. Depois, seus lábios pareceram beijar a pedra. Não era como os lábios de Sacha Bosorin...
Por um momento ficou preso num rebordo, agarrado desesperadamente ali com ambas às mãos, sentindo como a esquerda ia perdendo as forças rapidamente. Era como se fosse adormecendo, mas as dores seriam menos intensas.
A água o empapou, pulverizada, depois de se chocar, doze pés abaixo, com a rocha na qual se sustentava.
Ouviu que dizia lá em cima:
—Matou-o?
— Claro. O mar o tragou.
Depois ouviu mais algumas coisas, que não soube ou não pode entender. Eram as vozes... Abaixo, perto de suas pernas, o mar rugia incessantemente.
A noite era total.
Um estupor gelado o invadiu. Sua mão esquerda parecia morta. A direita começava a doer horrivelmente. A água maldita continuava seu movimento borbulhante. Pouco depois se ouviu o motor da lancha.
Clarence Hadaway olhou para o céu. Havia muitas estrelas. Entre elas, uma, muito grande, a sua...
— Espere "Darling"... Vou para aí... Para cima...
Poderia conseguir? Um milhão de dores nasceu em seu corpo. Ele era Clarence Hadaway, entretanto...
— Para ci... Ma, Clarence...
Não soube quanto tempo levou. Apenas que, algum tempo depois, estava caído, de bruços, sobre a rocha na qual se havia agarrado. Durante uns minutos, respirou sossegadamente, esforçando-se para recuperar o fôlego, se acalmar e controlar a dor.
Dois minutos?
Talvez dez talvez vinte... Talvez horas ou dias.
Por cima dele, um motor rugia fortemente a alguma distância. Uma hélice longa, brilhante, lançava brisa marinha para o céu...
Clarence Hadaway tirou os sapatos e os colocou diante de si. Quebrou as unhas ao arrancar, nervosamente, os saltos, ocos. Nos dois sapatos havia umas peças... Juntou-as, espalmou e encaixou. Depois aproximou de sua boca algo que parecia um diminuto chiclete.
— Aqui... Hadaway... Ferido... Possivelmente perna esquerda fraturada... Caído rocha próximo do... Do mar... Sabiam... O tempo todo... Que eu era Clarence Hadaway... E não... E não... Ivan Guriev... Lancha a motor... Vai para... Base foguete... Dispõem de técnicos russos, espiões infiltrados... No país. Machiner, morto por eles... Dispõem de carga atômica... Lancha a motor...
De repente sua cabeça caiu sobre as peças, bamboleando. Não pôde ouvir a resposta:
— Ouvido, Clarence. Localizada a lancha. Em perseguição. Parece dirigir-se para uma das pequenas Ten Thousand Islands. Não se mova daí... Não se mova daí... Fala Henry Wharton, do helicóptero. Recebemos mensagem, fotos estão circulando, costas estão cercadas. Aviões da força aérea vigiam saída do projétil... Clarence! A lancha está debaixo de nós... Vamos soltar uma carga... Atenção, Clarence soltamos a carga!...
No céu escuro brotou um clarão vermelho, quase três milhas além do ponto onde se encontrava Clarence Hadaway Por um momento, o clarão pareceu encher o céu todo de luz. Mas, quase de repente, tudo voltou a ser negro escuro.
— Clarence, demos com a lancha!... Esperamos localizar logo a ilha onde o projétil está camuflado... A carga que Machiner lhes devia proporcionar, do Cabo Canaveral, deve estar descendo ao fundo do mar... Nossos "homens-rã" a recuperarão... Não sabemos qual é a ilha, Clarence... Você sabe? Clarence! Clarence!
Um clarão muito mais intenso, muito maior, brotou de repente de uma das pequenas ilhas da costa ocidental da península da Flórida. A explosão foi muito mais forte do que a anterior, pedaços de pedra e punhados de terra saltaram para o ar... O mar se encheu de pequenas crateras invertidas, quando os pedaços de pedra foram caindo na água...
— Clarence, uma das ilhas explodiu. Uma explosão que abalou até o helicóptero. Nada nem ninguém podem ter sobrevivido nessa ilha. Na verdade, toda ela desapareceu. Acho que tudo estava preparado para isso, para que toda a ilha desaparecesse. Vou dar-lhe as primeiras, Clarence, garotão, essa ilha era a que continha o projétil sem carga, onde os técnicos soviéticos estavam à espera e estava pronta para voar pelos ares ao menor sinal de perigo que pudesse comprometer os russos... Fizeram-na explodir ao perceber que a lancha que levava a carga fora detida. Não sobraram nem homens nem aço do projétil... Cessou a grande ameaça, Clarence. Não me ouve, Clarence? Cessou a grande ameaça... Clarence! Clarence!
Sacha Bosorin descolou seus lábios dos de seu Ivan.
— Disse-lhe tudo quanto sei de nossa rede, Ivan Guriev. Não omiti nenhum nome, nenhum endereço, dos poucos que conhecia. Agora você está com a perna fraturada e com ferimento em um dos ombros... Mas se conseguir escapar saberá para onde se dirigir para que o ajudem.
Ivan Guriev olhou para o gesso que cobria sua perna. Depois, de soslaio, dirigiu um olhar para seu ombro ferido.
— Não creio que possa escapar, Sacha minha vida.
Ela se ajoelhou diante dele.
— Oh, eu sei Ivan... Jogamos e perdemos... Despedaçaram a lancha. Depois os homens que esperavam naquela ilha a fizeram voar quando compreenderam que os ianques poderiam descobrir o foguete e mostrar ao mundo os nossos planos. Tudo se perdeu. Depois, vieram dois homens me buscar em casa, em Flowers Lane. E hoje me trazem para vê-lo, vencido, ferido, engessado... Nada poderão provar nada sobre os planos de nosso país. Mas pegaram-nos, Ivan, a você e a mim. Não diremos nada. Ainda que me matem, eu nada direi Ivan. Deixaram-me sozinha neste quarto, permitiram que eu viesse vê-lo... Beije-me, Ivan.
Foi Sacha Bosorin quem posou sua boca sobre os pálidos lábios de Ivan Guriev, quem pôs a alma toda em seu beijo... Recebeu um beijo no qual havia também a alma de um homem que amava com todas as suas forças a uma mulher... Que não era para ele, que jamais poderia ser para ele. Uma espiã, uma mulher que matara friamente um homem com um tiro na face... Entretanto o coração de Ivan Guriev só pulsaria com calor se alguma vez voltasse a encontrar Sacha Bosorin. Nunca mais a encontraria...
— Ivan, diga que me ama... Diga antes que nos separem. Diga que pensará só em mim até morrer... Eu só pensarei em você, Ivan... Diga-me...
— Sacha Bosorin, jamais, enquanto eu viver, meu coração pulsará com força por outra mulher.
Ela, ainda ajoelhada junto dele, acariciou-lhe tremulamente o rosto, com os olhos rasos de lágrimas.
— Ivan, Ivan...
A porta do quarto se abriu bruscamente.
— Acabou — falou, asperamente, Henry Wharton. — Levem Sacha Bosorin rapazes.
Ivan Guriev, lívido, viu Paul Leacock e Owen Sanding levarem Sacha Bosorin cada um por um braço. Sacha Bosorin se virava para ele, com olhos chorosos, braços estendidos e mãos trêmulas...
— Ivan... Meu Ivan...
Ivan Guriev fechou os olhos... Suas mandíbulas estavam apertadas, angustiadamente... De repente, ouviu:
— Ei, Clarence
Curry olhava-o, sorridente, enquanto retirava o microfone dissimulado na parede.
— Foi um bom trabalho, Clarence — prosseguiu Young Curry. — Com o que gravamos nomes, endereços e tudo o mais, vai cair em nossas mãos mais de duas dezenas de espiões... Meus parabéns, Clarence. Você é bom mesmo... Ah, escute! Edgar telefonou, pelo fio exclusivo. Em Washington espera-o a nomeação de inspetor — Curry riu. — Às ordens, chefe!... Ouça, não fica contente com o acesso? Por que faz essa cara!
Clarence Hadaway olhava fixamente diante de si, sem ver, cada vez mais pálido, mais triste, mais apagado o seu olhar.
Young enrubesceu levemente.
— Bem, se você está mal...
Henry Wharton, com seus quase cinquenta anos de vida, desviou seu olhar de Clarence Hadaway e o pousou em Curry, com raiva:
— Cale essa boca Curry, e peça a Deus que a vitória nunca lhe seja amarga.
— Mas...
— Já não lhe disse que se calasse?
Young Curry olhou para Clarence Hadaway com mais atenção. Havia vencido, apesar de sua perna engessada, seu braço ferido. Havia vencido, mas...
Young Curry engoliu saliva.
— Sim... Sim, senhor. Acho que não vou dizer mais nada.
Lou Carrigan
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