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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A GRANDE AMEAÇA / Lou Carrigan
A GRANDE AMEAÇA / Lou Carrigan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A GRANDE AMEAÇA

  

 

Foi Curry quem atendeu:

—Alô... Sim, é da Delegacia do FBI em Miami. Pode falar...

— Bem, se é tão importante... Um momen­to, por favor.

Encostou o fone no peito e fez sinal para o inspetor Wharton, na mesa ao lado.

— Chefe...

Wharton, no seu franzido de testa habitual:

— Não me vai dizer que é o Edgar na li­nha?!

Curry contrabalançava o mau humor do chefe. Estava sempre risonho.

— Um sujeito quer falar com o manda chuva daqui... Diz que é altamente confidencial! Nem me deu tempo de dizer que poderia falar comi­go mesmo. Foi logo pedindo o chefe...

Wharton concedeu.

— Altamente confidencial? Espero que não me venha com a conversa de que o barbado vai de­sembarcar na Flórida...

Curry já estava na sua frente, entregando-lhe o fone.

— Alô! — quase gritou.

— Sim, sim, é o inspetor chefe. Ele mesmo! Henry Wharton. Pode dizer...

Curry ficou de curioso, olhando o chefe, observando-lhe as reações que o misterioso telefo­nema ia provocando. Wharton escutando em si­lêncio, assombrando-se, de vez enquanto dizen­do um "sim", um "e daí", coisas assim, mais para demonstrar atenção, que estava ouvindo. E cada vez mais impressionado com o longo in­forme, ou coisa semelhante. Curry não conse­guia pescar nada. Mas alarmava-se com a palidez do chefe. Até o fim.

Curry, tomando o aparelho de volta:

— Alguma coisa grave, chefe?

Henry Wharton olhou-o, ainda no ar. E como em transe:

— Curry... Você... Já ouviu falar em Ivan Guriev?

— Que pergunta chefe! E o senhor... Já ou­viu falar em Abraham Lincoln?

Wharton só fez dizer:

— Vem pra cá...

— Mesmo chefe? Então vamos ter muito tra­balho. Dizem que esse Ivan Guriev é muito bom. Pelo menos, é o mais hábil dos espiões sovié­ticos. Mas o senhor acredita que ele seja envia­do pra cá, pra dentro do nosso país...?

— Especificamente, para Miami! — e resolu­to: — Depressa, providencie Leacock e Sanding... Antes de tudo, precisamos ver se esse nosso Keenan McHale não está sofrendo das faculdades mentais.

— Keenan McHale?

— O sujeito que telefonou. Está hospedado no Atlantic Hotel, Avenida das Palmeiras, nº 2088. Disse que...

— Caiu a ligação chefe?

Henry Wharton passou a mão pela testa:

— Vamos Curry, me traga aqui Leacoek e Sanding. Mas é pra já! Não importa que este­jam com a barba pelo meio, ainda de camiseta e chinelo... O negócio é pra já, Curry!

— Bem, já vou indo, mas acho que não precisa tanto só porque Guriev está se mandando pra Miami...

— Rapaz, você está perdendo um tempo enor­me com esses seus comentários! Vamos logo! Já devia estar dando partida no carro...

E Curry, da porta:

— O chefe manda!

 

Vinte minutos depois, dois tipos, al­tos, um ruivo e o outro moreno, penetravam impetuosamente no gabinete do chefe, senhores da situação. Ainda jovens, atlé­ticos, com uma expressão de grande vivacidade nos olhos.

— Curry disse que era urgente chefe. Que acontece?

— Eu tinha uma entrevista, esta tarde...

Wharton nem ouvia, apalpando as axilas es­querdas dos agentes, constatando que estavam devidamente armados. E preparados, escanhoados, não de chinelos, nem de camiseta.

O ruivo era Paul Leacock e o moreno Owen Sanding, pelo visto, os melhores do quadro de agentes do FBI destacados em Mia­mi.

— Andem rapazes...

— Ouça chefe...

— Mas...

Henry Wharton, sentando-se à mesa, final­mente disse:

— O caso é o seguinte, garotos gostariam de botar a mão em Ivan Guriev?

Entreolharam-se, sorrindo. Paul fazendo o lí­der:

— É uma brincadeira engraçada, chefe...

— Não se trata de nenhuma brincadeira. Gu­riev está a caminho de Miami e... Com o pro­pósito de desencadear a guerra. Nada menos! A coisa é tão séria, que a quarentena de Cuba vai parecer isto sim, brincadeira de crian­ça. Não vão esperar que os soviéticos respondessem ao ultimato para a retirada dos foguetes das mãos de Castro. Será a guerra imediata, aberta e... Com o maior desprestígio para os Estados Unidos. Não vamos perder tempo. No carro, eu explicarei melhor. Enquanto corremos ao Atlantic Hotel... Queira Deus seja troça de algum louco!

 

Muito bonita Palms Avenue. Fazia jus ao nome. Palmeiras de um lado e doutro. Belas constru­ções. E tudo na base do tropical, com violen­to brilho colorido de musical tecnicolor de Hollywood. O Atlantic Hotel, então, cristais e aço de alto a baixo, dá bem a imagem do ce­nário. A partir do sexto andar, vista para o mar. Mas ao lado da entrada, uma piscina com um verde de doer.

Só que naquele momento, em frente à en­trada, um grupo de curiosos cercava alguma coisa nada bonita.

Quando o carro do FBI estacionou, o trio foi logo se encaminhando para a roda formada.

Chefe Wharton indagou:

— Que aconteceu?

— Um acidente. Alguém caiu de uma janela do hotel... Um homem. Matou-se.

O inspetor foi abrindo passagem até o miolo, sendo barrado por um dos policiais. Mostrou o distintivo.

— Ah! Está bem senhor.

— Afaste os curiosos.

— Sim senhor.

Wharton inclinou-se sobre o corpo, já coberto com uma manta com a marca do hotel. Sus­pendeu uma ponta para espiar o rosto do aci­dentado. Bastante estragado, mas quem o co­nhecesse não teria dificuldade em identificá-lo.

Com todo cuidado, o inspetor revistou os bol­sos do morto e encontrou a carteira.

— Não é possível!

O pressentimento foi confirmado. Era mes­mo o tal Keenan McHale, o que telefonara meia hora antes para a Delegacia.

Wharton levantou-se, com um sinal para Sanding.

— Fique de olho Owen. Não quero que ninguém toque no cadáver. Nem que se aproxi­me. Se a viatura chegar antes da nossa saída do hotel, que levem o corpo, mas você irá junto. Permaneça no necrotério ao lado do morto! Não se afaste nem por um segundo, aconteça o que acontecer.

— Ciente.

Henry Wharton segurou o braço de Leacock.

— Venha comigo Paul. Há muita coisa a fazer... Assim espero.

Os dois entraram e o inspetor dirigiu-se dire­tamente à recepção, mostrando a placa:

— A chave do nº 612, de Keenan McHale, por favor.

— Sim senhor. Ah! Mas... O senhor McHa­le...

O funcionário da portaria olhava para a rua, angustiado. Wharton quis certificar-se:

— É o morto?

— Sim senhor...

— Em todo o caso, dê-me a chave. Onde é a mesa telefônica? Quero falar com a telefonista.

O PRBX ficava numa saleta próxima, a prova de som. A telefonista era uma loura muito bo­nita, com olhos azuis que plagiavam a pis­cina e que logo se derramaram sobre a figura atlética do atraente Leacock. O empregado tra­tou-a de "Senhorita Blake".

— Posso ajuda-los? — a voz da moça não decepcionava.

O inspetor fez a pergunta:

— Por favor, quantas chamadas pediu o ocupante do nº 612?

A senhorita Blake refletiu um instante, dei­xando Paul em paz e fitando o teto.

— Nenhuma.

Wharton franziu o cenho.

— Pense bem jovem. Pelo menos uma foi fei­ta. E é fácil lembrar, foi pedida a Delegacia do FBI.

A moça balançava a cabeça:

— Não senhor, não há nenhuma ligação para o FBI. Nem hoje, nem nunca. Estou bem certa disso.

— E também tem certeza de que o ocupante do nº 612 não falou com outra pessoa qualquer?

— Por esta mesa, garanto senhor! E estou dobrando serviço para uma colega. Até agora, nenhum pedido do nº 612. Pensei até que nem esta­va ocupado.

— Neste caso... Bem, deve ter chamado de outro lugar. Obrigado senhorita. Vamos, Paul.

Voltaram ao vestíbulo. Todos os presentes co­mentavam o acidente.

“Acidente... Aposto a cabeça”! Wharton pen­sou. Viu uns aparelhos ao fundo. Observou que dois eram de linha direta. E Leacock sempre atento.

— Que ninguém se aproxime destes dois, Paul.

— Okay, chefe.

Wharton foi indo para a rua. O carro do ne­crotério já estava de saída, apenas aguardando a en­trada de Owen Sanding. Wharton acenou para que esperassem.

— Escute Owen, vou mandar um rapaz to­mar as digitais do cadáver. Só isso. E não es­queça, nem um segundo longe! O legista é ló­gico, pode fazer o serviço. Pegue os per­tences do morto, roupa, sapato, tudo.

— E que devo fazer com isso?

— Leve pra Delegacia... Quando eu ordenar.

— Mais alguma coisa?

— Nada... Isto é... Se alguém aparecer pra olhar deixe... E observe.

— Compreendo.

— Firme Owen.

— Até logo chefe.

Wharton entrou de novo no hotel, dirigindo-se ao balcão da recepção, em que havia um apa­relho certamente ligado a mesa telefônica. Quan­do estava prestes a levantar o fone, olhando para Paul Leacock, que permanecia junto aos dois telefones de linha direta, um homem lhe impediu a visão, colocando-se a sua frente.

— Sou o tenente Beecham, da Delegacia de Homicídios. Posso ver sua placa do FBI?

Wharton tirou a mão do fone e mostrou a placa.

— Convencido tenente?

— De sua identidade, sim. Mas acho que este não é seu setor. Um simples acidente...

— Tenente Beecham — cortou, secamente, Henry Wharton. — Não foi um simples acidente.

— Não? Está certo disso?

— Completamente — o inspetor mentiu com perfeito aprumo ao afirmar. — O homem cha­mava-se Keenan McHale e há menos de meia hora telefonou para a Delegacia pedindo a pro­teção do FBI. Acha que o caso não é nosso?

Beecham diminuiu os olhos.

— Bem, desta maneira... Que faremos?

— Os senhores podem retirar-se — apontou para o telefone. — Vou chamar a Delegacia. Cuidaremos de tudo... Absolutamente de tudo.

— De acordo — Beecham encolheu os ombros. — Neste caso, retirarei meus homens e avisa­rei do carro para que ninguém venha.

— Perfeito. Até a vista.

— Adeus.

— Apertaram as mãos. Mal Beecham virou as costas, Wharton retirou o fone.

— Senhorita Blake, quer, por favor, ligar para a Delegacia do FBI?

— Oh! É o senhor!... Um momento pode me dizer o número?

— Obrigado — e Henry Wharton sorrindo, in­formou. Ao que parecia, a moça não conhecia o número da Delegacia. É claro que ainda na suposição de que houvesse men­tido e antes tivesse procurado esse número, não tinha por que lembrá-lo...

— Delegacia do FBI.

— É você Brandt? Ligue já para a antessala. Quero falar com Curry.

— Sim senhor.

Curry atendeu poucos segundos depois.

— Alô?

— Curry...

— Chefe! Aconteceu alguma coisa?

— Ouça, quero que me envie imediatamente um equipamento completo de impressões e foto­grafias ao Atlantic Hotel, e outro para o necro­tério, com um legista.

— Que aconteceu?

— Vá para o diabo! Quero tudo isso agora mesmo!

 

Quase duas horas depois, o inspetor Wharton se achava em seu gabinete, sentado à mesa. Ao lado, de pé, Curry, em frente, sentados em poltronas, Paul Leacock e Owen Sanding fu­mando.

— Eis o que parece lógico sobre o acontecido, Keenan McHale reserva um quarto no Atlantic Hotel e alguém se inteira disso; McHale chega ao hotel, não telefona de seu quarto dado à importância do que tem a nos dizer e se serve de um dos aparelhos do vestíbulo, de linha dire­ta; isso ficou provado pelas impressões deixadas no fone, coincidindo com as trazidas do necro­tério.

— Mas ninguém o viu telefonar...

— Por que veriam? Keenan McHale foi esper­to... À sua maneira. Entrou no hotel deixando as maletas no carro. Deste modo ninguém nota­ria nele. Telefonou-nos. Então se dirigiu ao bal­cão e se apresentou pedindo que pegassem as malas deixadas no carro. Enquanto um dos "boys" buscava a bagagem, ele se registrava. Se houvesse se registrado antes de nos telefonar, o "boy", o porteiro ou qualquer outro empregado teria notado. Em troca, sem maletas, confundiu-se com as outras pessoas que havia no vestíbulo.

— De acordo — disse Owen. — Mas por que, em vez de telefonar, não veio aqui pessoalmente?

— Porque, se o vigiavam como ele devia es­tar temendo, o matariam quando vissem que ele se dirigia a Delegacia. E então não teria a oportunidade de nos telefonar... Como tampou­co se atreveu a fazer, em sua viagem de car­ro, desde Cabo Canaveral a Miami. Deve ter vin­do a toda velocidade, sem se deter para nada. Entretanto, suas precauções foram inúteis. A coisa continuou, ou devia continuar assim, de­pois de nos telefonar, McHale sobe a seu quar­to; o "boy" deixa a bagagem, recebe gorjeta e se vai. Keenan McHale fica só. Então, alguém entra e o atira pela janela do quarto. Seis an­dares, a morte.

— Isso faz supor que ele tenha deixado al­guém entrar, o que não condiz com a hipótese de estar assustado, chefe.

— Como não? Quem o atirou certamente não teve de bater na porta para entrar. Acaso você não saberia obter uma chave de qualquer quar­to, em qualquer hotel, Paul?

— Já fiz isso algumas vezes...

— Pois quem matou Keenan McHale também usou o mesmo processo. Talvez o tenham seguido desde Cabo Canaveral. Mas acredito o contrário, que o esperavam aqui... No quarto do hotel, inclusive.

— O fato é que nos tiraram das mãos...

— Sim, e é uma lástima. Entretanto, falou o suficiente. Se o que disse é certo, teremos de andar muito depressa.

— O que lhe disse ele ao tele­fone?

Henry Wharton fez uma careta.

— Quase nada... Santo Deus!

— Diga de uma vez homem!

— Isto é o que deduzi de acordo com o que ele me contou muito rapidamente. Temos em Miami um grupo de russos com nomes america­nos. Espiões naturalmente, e isso não é de se estranhar muito — um tom amargo na voz de Wharton. — Também os temos por aí, em que pese à oposição da C.I.A., que quer fazer tudo sozinha...

— Resumindo chefe...

— Os Estados Unidos têm Cuba bloqueada por causa dos projéteis ofensivos, vocês já sabem. De modo algum, podemos permitir que os russos enchessem Cuba de projéteis que, naturalmente, esta­riam visando nossas próprias bases e cidades importantes. Se os russos não cederem, não le­vando todo o armamento perigoso para a segu­rança de nossa nação, haverá guerra.

— Levarão.

— É possível. Mas acontece que nem todos os projéteis russos estão em Cuba... Segundo me disse Keenan McHale.

Curry, Owen e Paul se olharam. Owen sussurrou:

— Acho que nenhum dos três compreendeu isso, chefe.

— Temos um projétil russo metido nos Esta­dos Unidos!

Owen e Paul pularam. Tanto eles quanto Cur­ry intensamente pálidos.

— Ma... Mas...

— Sentem-se. Isso não tem importância. Para alcançar nos pontos vitais, basta aos russos ter projéteis em Cuba. Esse projétil não nos fa­ria mais dano que os outros. Possivel­mente, alguns dos que estão montados em Cuba teriam maior alcance do que o que os que coloca­ram aqui. Segundo Keenan McHale, é um M.R.M.B.* Quero dizer que com ele disparado "de nossa casa", poderia ser al­cançado de qualquer modo e mais tranquilamente, com um I.R.M.B. de Cuba.

— Mas, então... Por que introduziram esse M.R.M.B. em nosso pais?

— Supondo que tudo não passe de um ataque de loucura de Keenan McHale, esse projétil che­gou desmontado, em um submarino que o desembarcou em nossas costas.

— Em que ponto? — quase gritou Leacock.

— Não sei... Nem McHale sabia, evidente­mente. O que ele informou é que Ivan Guriev viria aqui para dirigir a operação de disparo. Não precisamente na parte técnica. Disso se encarregariam Keenan McHale e outro com­patriota nosso que entende dessa coisa, uma vez que também trabalha em Cabo Canaveral.

— Deus meu!... E quem é esse outro homem?

— O outro traidor, o companheiro de Keenan McHale?

— Sim.

— McHale não me disse. Assegurou-me que contaria tudo, nos mínimos detalhes, no hotel, mas... O que me disse é que o projétil cairia em...

Olhou seus homens com um brilho irônico nos olhos, sem acabar a frase.

Curiy crispou os punhos. Por um momento, pa­recia que ia se lançar contra seu chefe.

— Em Corralillo!

Houve uns Instantes de estupefação. A voz de Owan Sandlng foi apenas audível:

— Em Corralillo?!

— Isto mesmo, Corralillo Cuba.

A estupefação se transformou em pasmo abso­luto. As línguas dos agentes paralisadas, no mais completo assombro.

Por fim, Curry perguntou, roucamente:

— Quer dizer que os russos disparariam um projétil atômico contra a própria Cuba? Mas isso é uma loucura!...

— É, Curry. Mas leve em conta que o projé­til partiria dos Estados Unidos. Isso seria divul­gado no mundo inteiro. O que não se saberia é que esse projétil levaria as letras URSS e uma estrela vermelha. Os russos gritariam com todas as suas forças em todo o mundo. Parece pouco provável que ainda que digamos a verdade, alguém estivesse disposto a nos acreditar. Seríamos taxados de assassinos em todas as línguas, inclusive inglês USA. Os americanos, em grande número, acreditariam que o projétil era nosso. Transformaríamos o povoa­do de Corralillo, segundo a versão consagrada, em outro Pearl Harbor, e muito mais terrível! Como é natural, não poderíamos nem sonhar com a ajuda de nossos aliados atuais, que se inclina­riam, sentimentalmente, para os cubanos mor­tos, assassinados pelos Estados Unidos, sem pré­via declaração de guerra, com abuso de poder, com o bloqueio atual, cercada a ilha pela nossa Armada, Forças Aéreas...*.

— Mas ninguém pode fazer isso!

— Assim deveria ser Curry. Entretanto... — Wharton sorriu friamente — Afinal de contas, só vai morrer gente, só se vai destroçar material humano.

— Que quer dizer?

— Que se escolheu Corralillo para o caso, por­que está convenientemente afastado dos pontos onde o U-Z localizaram fotograficamente as pla­taformas de projéteis russos em Cuba, não po­demos duvidar disso.

— Nem que os russos respondam imediatamen­te ao "nosso ataque". Isso é o que farão, não?

— Hum... Talvez os russos prefiram fazer-se de bonzinhos e sair de Cuba, dizendo que não queriam, por sua causa, ocasionar mais mortes. Fariam isso porque sabem do nosso potencial atômico, muito maior que o deles: Atlas, Titãs, Júpiter, Thor, e os submarinos Polaris. Mas, ain­da que o fizessem por isso, não cometeriam a es­tupidez de dizer. Dariam uma de bons meninos, man­tenedores da paz... Um grande golpe de efeito!

Quase um minuto de silêncio, até que Owen perguntou:

— E que vamos fazer?

— Isso será decidido por Edgar Hoover. Estou esperando que o localizem em Washington para falar com ele pela linha direta de serviço.

— E enquanto não o localizam?

— Esperaremos. Afinal de contas, tudo que sa­bemos é que o tal Ivan Guriev chegará a Miami num navio chamado "Pearl", ainda esta noite.

— Se continuarmos supondo que há algo de verda­de e de sensato no que disse Keenan McHale pelo telefone... Ah, também me disse que ele e seu companheiro de traição conseguiriam a carga atômica para o projétil soviético em Cabo Cana­veral, pois consideravam muito perigoso trazê-la de Cuba. De modo que, neste momento, é possí­vel que já tenha sido roubada essa carga atômi­ca em Cabo Canaveral, e que esteja em Miami, nas mãos de nosso desconhecido traidor.

— Oxalá também ele se arrependa, como fez McHale, e nos chame pelo telefone!

— Quem dera Paul!

Todos em silêncio até que, minutos depois, apa­receu na porta um homem excitado:

— Edgar Hoover no telefone privado, inspe­tor!

Wharton levantou-se de um salto.

 

Regressou quase vinte minutos depois e en­controu os três agentes tais como antes, fuman­do sem parar. Os três olharam, ansiosamente.

— Falou com ele?

— Sim...

— E...?

Henry Wharton deixou-se cair na poltrona, consultando o relógio.

— Dentro de uma hora, mais ou menos, che­gará a Miami, em um avião a jato, um de nossos homens, o agente especial Clarence Hadaway. Suponhamos que demore quase duas horas... São seis, de modo que o teremos aqui às oito. O "Pearl" onde, segundo parece, viaja Ivan Gu­riev tem sua chegada prevista para meia-noite. Esperamos que Clarence Hadaway tenha instru­ções e planos concretos.

— Quem é esse Hadaway? E por que essa his­tória de especial?

— Bem... Pelo que me disse Edgar Hoover, parece que nosso Clarence Hadaway nada fica a dever, em astúcia e inteligência, ao famoso Ivan Guriev. Traz um retrato de Ivan Guriev conseguido pelos famosos desenhistas de Was­hington, com base em descrições mais ou menos fidedignas. Além do mais, Hadaway só age sob a ordem direta de Hoover e fala quatorze idio­mas, inclusive o russo.

Curry, Paul e Owen olharam-se, sorridentes.

— Parece que nós também temos bons elemen­tos, hem?

— Sim — Wharton acariciou pensativamente a ponta do queixo. — É curioso...

— O que, chefe?

— Edgar Hoover pareceu muito alegre quan­do eu lhe disse que esse Ivan Guriev, o espião vermelho, estava nisso...

— Terá seus motivos, não? Que faremos? Va­mos esperar esse nosso querido Clarence Hada­way, no Miami International?

— Não. Ele virá aqui.

 

Pouco antes das oito, um homem de costas ligeiramente encurvado, abundante cabelei­ra grisalha, de aproximadamente cinquenta anos, foi introduzido no gabinete de Henry Whar­ton, que ainda estava acompanhado por Owen Sanding e Paul Leacock.

Atrás do visitante, que se encaminhou até a mesa de Wharton apoiado em uma bengala, vi­nha Curry, com um ar de profunda decepção es­tampado em suas simpáticas feições. Wharton levantou-se.

— Então, Curry?

Curry apontou o visitante com o polegar.

— Apresento-lhe Clarence Hadaway, senhor.

Owen e Paul levantaram-se de um salto. Os três olharam incredulamente para o visitante, que por sua vez, percorria o olhar de um a ou­tro, com olhos claros, mal visíveis através das lentes.

Depois de uns segundos de vacilação, Henry Wharton estendeu a mão.

— Bem-vindo Hadaway. Estes são Young Cur­ry, Owen Sanding e Paul Leacock. Eu sou Hen­ry Wharton.

Depois, Hadaway sorriu um pouco ironicamen­te e disse:

— Suponho que estamos seguros aqui, inspe­tor.

Wharton com o cenho franzido.

— Espero que sim — respondeu secamente.

— Bem. Nesse caso...

Clarence Hadaway endireitou-se, tirou os óculos e deixou a bengala sobre a mesa. Em seguida, arrancou a cabeleira grisalha que encobria seus longos cabelos louros. As costas pareceram di­latar-se, o pescoço engrossar, as pernas endireitarem... Num instante, Clarence Hadaway ficou transformado num homem de trinta anos, largo de ombros, alto, 1,83 de estatura... Longos cabelos louros e olhos escuros que de modo algum precisariam de óculos.

Curry foi o único a demonstrar seu assom­bro, sua maneira:

— Papagaio! Que farsante!

Hadaway tirou um maço de cigarros e o es­tendeu a Wharton, sorrindo:

— Reajam todos — disse continuando a sor­rir. — Temos muito trabalho pela frente.

Todos aceitaram os cigarros. Clarence acen­deu um para si e guardou o maço. Depois, tirou do bolso um envelope branco, de tamanho co­mum.

— Trago aqui...

— Um momento Hadaway — sussurrou Whar­ton. — Posso ver seu cartão de identidade do Serviço?

Clarence olhou com expressão divertida.

— Claro inspetor. Pensa que eu não sou Clarence Hadaway?

Owen, Paul e Curry abriram a bocam, admira­dos.

— Apenas queria ver seu cartão, Hadaway — insistiu Wharton amavelmente.

— Bem... Posso tirá-lo disto aqui? É um en­velope especial que costumamos utilizar às ve­zes... E que suponho não lhe seja desconhecido. Ê o "Farrago".

— Permite-me?

Clarence colocou o envelope na mão que Whar­ton estendia para ele. O inspetor tomou-o, olhou atentamente e depois apalpou cuidadosamente seu centro com a unha do polegar. Por fim, man­tendo apertado entre o polegar e o coração o centro do envelope, justamente ali onde seu tato havia notado a presença de uma pequeníssima saliência que teria passado despercebida a quem não esperasse achá-la, apanhou um corta papéis e rasgou a parte superior. Fez o mesmo com os três outros lados, deixando o envelope trans­formado em duas partes separadas que só se mantinham unidas pela pressão de seus dedos.

— Desligue você mesmo, Hadaway.

— Com prazer...

Clarence inclinou-se para o envelope e puxou uma das pontas da metade que ficava em cima. Havia ali um pequeno fio incolor que o agente especial rompeu cuidadosamente. Depois, rompeu outros três, cada um dos quais, como o primeiro, era unido dos quatro lados do envelope a um pequeno botão, também incolor, apertadíssimo, que Henry Wharton fez saltar em sua mão.

— Carga já inofensiva — sorriu. — Foi uma boa precaução, Hadaway. Teria sido muito de­sagradável que alguém lhe tirasse este envelope sem estar provido de "Farrago". E agora, uma vez aberto sem que se haja incendiado de modo fulminante, vejamos o que você traz aqui.

A primeira coisa que viu foi o cartão de iden­tidade de Clarence Hadaway como agente do FBI. Depois, colocou na mesa as três fo­tografias, do tamanho de um maço de cigarros, que pertenciam ao mesmo homem, mas coloca­do nos dois perfis e de frente. As fotografias eram reproduções de um retrato feito à mão com habilidade admirável. Mostravam um ho­mem de cerca de trinta anos, cabelos louros, olhos escuros, rosto agradável.

Henry Wharton deixou seus três agentes con­sultando as fotografias e olhou vivamente para Clarence Hadaway.

— Gostaria de conhecer a estatura e o peso de Ivan Guriev Hadaway.

Clarence sorriu.

— Acertou em cheio, inspetor. Será um pra­zer trabalhar a seu lado. Já obser­vou que Ivan Guriev e eu nos parecemos bas­tante. E, segundo os informes, sua estatura é aproximadamente igual a minha. Quanto a seu peso, calcularam 74 quilos. Eu peso mais ou menos 77 quilos.

Henry Wharton acariciou o queixo.

— Bem... Um homem pode perder ou engor­dar essa diferença. Agora compreendo por que nosso diretor se ale­grou quando mencionei o nome de Ivan Guriev. Você vai caça-lo, tomar o seu lugar, fa­zendo-se passar por ele...

— Vamos tentar. Seria uma peça formidá­vel... Mas o caso é muito sério para ser levado na troça. Não devemos esquecer que o mais im­portante é impedir o lançamento desse foguete do nosso território. Nisso não devemos falhar. O mais, ou seja, a captura de Guriev e dos rus­sos incrustados em Miami, é secundário, assim como descobrir a personalidade do traidor que virá do Cabo Canaveral com a carga atômica. Tudo isso é uma insensatez terrível, que duvido chegasse a concretizar-se, mesmo sem nossa in­tervenção... Mas nossa obrigação é intervir.

— De acordo, naturalmente — suspirou Whar­ton. — Você e Hoover planejaram algo... Por onde começaremos?

— Além de vocês quatro, preciso de dois ho­mens mais.

— Agora?

— Imediatamente.

Wharton olhou para seu ajudante.

— Traga-os, Curry. Os melhores disponíveis.

— Não! — exclamou Clarence. — Que sejam os piores, quero dizer, os menos “hábeis e fortes”. Se possível, alguém que tenha fracassado alguma vez... Como todos — sorriu cortesmente.

Wharton, mais uma vez, franziu o cenho.

— Bem Curry, que espera? Não ouviu?

— Oh, sim!...

Curry saiu apressadamente do gabinete e re­gressou cinco minutos depois com dois rapazes de olhar amável. Um deles parecia forte a pri­meira vista. O outro deveria ser, mas não se notava tanto.

Wharton apresentou-os.

— Estes são Wynn e Fischer. Rapazes Clarence Hadaway de Washington.

— Olá, garotos.

— Como vai?

Clarence estreitou as mãos, sorrindo.

— Vamos ao assunto — disse depois. — Wynn e Fischer sabem de que se trata?

— Não. — disse Wharton.

— É melhor assim. Eles terão uma parte in­dependente... Tem um substituto, Curry?

— Junto ao inspetor Wharton?

— Exato.

— Sim, tenho.

— Terá de chamá-lo para que venha aqui a fim de atender a qualquer chamada de Was­hington... Você irá com Fischer e Wynn ao porto. Vamos ver as fotografias... Onde estão?

Owen passou as fotos. Clarence mostrou-as aos dois agentes que iriam com Curry ao porto.

— Conhecem este homem?

— Bem — murmurou Fischer — Digamos que se pareça com você, não?

— É Ivan Guriev.

— Salve! — Clarence sorriu.

— É preciso caçá-lo. Seguramente o consegui­remos, o inspetor, Sanding e Leacock e eu. Mas vocês, Curry, Wynn e Fischer, esperarão por ele no cais. Discretamente. Pela ponte de desem­barque, verão descer um homem que tanto po­deria ser eu como poderia ser Ivan Guriev. Se for eu, virarei a cabeça em direção ao navio duas vezes, enquanto estiver descendo. Se o ho­mem que estiver descendo não virar a cabeça duas vezes, será Ivan Guriev, ou seja, terá escapado... Não pode ser menosprezado. Se até agora não foi agarrado, por algum mo­tivo será. É uma pena que não saibamos o nome que utiliza a bordo do "Pearl"... Enfim, devemos tentar a todo o custo. Não sa­bemos se Ivan Guriev sabe para onde ir quando chegar a terra ou se será esperado por alguém. Se for, não podemos duvidar que esse homem seja o mais perigoso inimigo, para nos­sos planos, já que logicamente conhece Ivan Guriev e eu não poderia enganá-lo facilmente. Portanto, quando esse homem aproximar-se de mim ao descer pela passarela, vigiem-no logo e o prendam.

— E a você? — perguntou Curry.

— Conseguirei escapar de vocês — sorriu Clarence Hadaway, ironicamente. — Não se es­queçam de que serei o famoso Ivan Guriev.

— Ou seja, se voltar duas vezes à cabeça para o barco, saberemos que é você. Agarraremos quem se aproximar, mas o deixaremos fugir.

— Exato. Mas façam o serviço bem. Golpeiem-me, disparem contra mim se virem que é conve­niente...

— Saberemos fazer. Suponhamos agora que o homem que desça pela passarela não vire duas vezes a cabeça.

— Então será Ivan Guriev. Se alguém o es­pera, um de vocês irá por esse alguém. Se nin­guém o espera, os três se dirigirão para ele.

— E se tentar escapar?

— Não deve conseguir. Mas se for tão hábil como diz sua fama e vocês virem que tem a mais insignificante oportunidade de escapar, disparem contra ele. Primeiro, para feri-lo. Mas se, mesmo assim, receiam que possa escapar de qual­quer maneira, matem-no.

A última palavra foi pronunciada secamente, com dureza que traía a pouca indiferença pela vida de Ivan Guriev. Ninguém perguntou mais nada.

— Não se esqueçam de que o homem que des­cer do "Pearl", se for eu, deve escapar. Vamos torcer para que alguém vá ao porto esperar Ivan Guriev!

— Por quê? — perguntou Fischer.

Foi o inspetor Wharton quem esclareceu:

— Porque isso significa que Ivan Guriev não sabe para onde dirigir-se. Quando Clarence Ha­daway, fingindo ser Guriev, escapar, nossos inimigos teriam de procurá-lo. Se não o procuram, a pista fica cortada.

— Talvez Ivan Guriev saiba para onde se di­rigir...

— Neste caso a coisa nos irá bas­tante mal, já que eu duvido que em menos de duas horas consigamos fazer Guriev falar. Nesse caso, quando Hadaway chegar ao porto não saberia para onde ir. O melhor seria que alguém esperasse Guriev no cais.

— De qualquer modo — a voz de Clarence Ha­daway soou firme — esse projétil não será dis­parado dos Estados Unidos!

— Que projétil? — saltou Fischer.

— Que diabo é isso? — acompanhou Wynn.

— Falaremos sobre isto depois. Agora não temos tempo a perder. Que conseguiu da autópsia do cadáver de McHale, inspetor?

— Nada. Quero dizer, morreu da queda. Não tinha nenhum sinal de luta nem de nada.

  Hadaway permaneceu pensativo uns segundos. Depois, murmurou:

— Parece absurdo o suicídio, inspetor?

— Não. — sorriu Wharton. — Já pensei nisso. Nada de absurdo. Mas continuo achando que o atiraram de lá.

Hadaway encolheu os ombros.

— Bem, já veremos... Podem ir andando, Cur­ry. Os três. Mas não apareçam no cais até que o barco já esteja atracado, pronto para desem­barcar os passageiros.

Curry consultou seu relógio.

— São apenas nove... Que faremos durante estas três horas por ai?

— Passear, exercitar a vista, tomar café. Até logo.

— Bem...

Wharton, Leacock, Sanding e Hadaway permaneceram no gabinete.

— E nós? — perguntou Owen.

— Espero os três no armazém dezesseis. Ve­rão uma lancha da Vigilância Costeira. Deverão tomá-la. Já os estarão esperando.

— Não vamos juntos?

— Hadaway entrou só na Delegacia — disse Wharton — e terá de sair só. A encenação da peruca e dos óculos e bengala terá sido por al­gum motivo, Owen.

— Claro...

Clarence sorriu, começando a colocar a pe­ruca e os óculos. Tomou a bengala e se encurvou. Seu rosto até pareceu envelhecer, com algumas rugas junto aos olhos e a boca um pouco aberta.

— Até logo — riu.

Saiu, apoiando-se na bengala de um modo convincente. Paul Leacock cocou uma orelha.

— Bem... Ao que parece, nosso diretor sabe sempre o que faz não é?

 

O capitão do "Pearl" respondeu a saudação do oficial da lancha costeira que acabava de avisá-lo que parasse o barco.

— Está acontecendo alguma coisa? — pergun­tou.

— O de sempre — sorriu o oficial visitante. — Uma inspeção rotineira... Ainda que não o devesse ser tanto, tendo em conta as circunstân­cias. Suponho que para o Norte tudo esteja mais tranquilo.

— Com certeza.

— Muitos passageiros?

— Sim...

Vários guarda costas subiram a bordo. Junto ao "Pearl", a lancha oscilava suavemente.

— Deseja ver a documentação?

— Apenas trâmites legais... Obrigado. Vamos ao seu camarote.

Uma vez lá, o capitão do "Pearl" preparava-se para mostrar a documentação do barco e pes­soal, mas o oficial da patrulha atalhou:

— Não é preciso, capitão. Antes de tudo, co­munique a seguinte ordem à cabina de comando, que desçam uma escada de corda pela popa, de modo que nenhum passageiro perceba. Será fácil, pois os que agora estão na coberta se dis­traem olhando meus homens.

O capitão Kyster conseguiu reagir, por fim:

— Uma escada de corda?

— Sim. Vai ter quatro clandestinos... Que em absoluto não deverão incomodar. São três ho­mens do FBI à procura de um delinquente. Es­te...

Kyster olhou para a foto que o oficial da Vi­gilância Costeira lhe exibia.

— Bem... Mas podiam ter subido com o se­nhor...

— Desconhecem o nome que este homem uti­liza a bordo do "Pearl". E, segundo me disse­ram, é terrivelmente escorregadio. Isto requer a máxima discrição, capitão.

— Bem — Kyster se dirigiu ao fone e o levan­tou. — Ouça Calow, quero que deite uma es­cada de corda pela popa do "Pearl"... Sim, você está ouvindo bem? Faça você, pessoal­mente, com um homem de confiança. Logo su­birão quatro homens do FBI. Que ninguém perceba a manobra. Sim, já lhe direi. De acordo. Voltou-se para o guarda.

— Bem, já está feito. Que mais?

— Fique com esta fotografia, capitão. Quanto tempo calcula que levará para chegar ao porto?

— Não sei exatamente... Uma hora...

— Pois bem, dentro de meia hora o senhor irá à popa esperar os quatro homens que subi­rão pela escada... E lhes dirá o nome deste ca­valheiro e o número de seu camarote.

— Mas eu não sei como se chama este ho­mem!

— Dispõe de meia hora para dar uma volta pelo barco e localizá-lo. Peça a alguém de con­fiança que o ajude. Uma vez localizado, sempre discretamente, procure saber o número de seu camarote e o seu nome.

— Farei o possível, claro.

Poucos minutos depois, os dois homens se sau­davam junto a borda do "Pearl" e o oficial da guarda costeira descia para reunir-se a seus ho­mens na lancha. Rapidamente, meteu-se em sua cabina. Quatro homens se adiantaram até ele.

— Que tal? — perguntou o inspetor Wharton.

— Fiz tudo que me disseram. O capitão Kys­ter está de acordo, naturalmente.

— Bom trabalho — aprovou Hadaway. — Fi­zeram tudo discretamente, de modo rotineiro?

— Não creio que alguém suspeite alguma coi­sa. Talvez exagerassem um pouco na vigilância devido à quarentena de Cuba e a tensão do momento...

— Muito bem. Dê ordens para que a lancha se aproxime da popa do "Pearl".

O oficial saiu da cabina. Segundos depois, a lancha se dirigia para a popa do navio lentamen­te. A escada foi logo vista. O primeiro a saltar, agilíssimo, foi Clarence Hadaway, que logo su­biu pela escada. Depois, saltou Sanding, em se­guida Leacock e, por último, Wharton, quando a lancha já deixava a escada para trás. O inspe­tor era o menos ágil por sua idade, superior à dos agentes e se houvesse saltado em primeiro lugar não poderia ceder à escada com a mesma rapidez dos outros.

Leacock içou seu chefe pela lapela.

— Para cima, chefe — murmurou.

Poucos segundos depois, Wharton já se agar­rava às cordas, a menos de dois passos da água agitada sob a ação da hélice potente. Cair ali significava morte certa e horrível.

A popa estava completamente às escuras, na­quele ponto. Por cima deles, o resplendor do barco e, mais além, a luz da lancha de guarda costeira, que se afastava a boa velocidade. A água branqueava continuamente agitada.

— Santo Deus — pensou Henry Wharton. — Teremos de ficar aqui pendurados nada menos de meia hora!

***

A casinha era de estilo espanhol, um tanto antiga, mas muito bonita, com telhado verme­lho e fachada branca. Rodeada de buxos e relva bem recortados. Na relva, algumas palmeiras os­cilavam suavemente. A casinha tinha umas ja­nelas quase quadradas, agradáveis, com guilho­tina. A porta da casa dava para um terraço protegido por um apêndice do telhado vermelho. Havia outras casas bastante próximas, todas parecidas, formando a pequena "Garden Miami", próximo de San Jacinto Road, que levava direta­mente a Miami. As ruas de grandes lousas que separavam a relva recortada das diversas pro­priedades, apenas teriam seis pés de largura.

Mas tudo era bonito e agradável ali, de dia. De noite não se podia apreciar tão bem.

E eram aproximadamente onze da noite, quan­do Valerian Yukoff disse:

— Teremos de ir esperar Guriev.

— Certamente.

Havia dois homens mais. E uma mulher. Os outros dois homens se chamavam Boris Kailovich Leon Yoderian e se vestiam e falavam e se comportavam como qualquer cidadão norte-americano comum. Valerian Yukoff, o chefe do grupo, fazia-se chamar David Berwick. Kailovich, Hyman Fels, Yoderian, Carl Randell.

A mulher chamava-se Sacha Bosorin, mas nos Estados Unidos atendia pelo nome de Maureen Diamant. Formavam um grupo de aspecto pací­fico, tranquilo, amável. Os homens nada tinham no aspecto físico que pudesse chamar atenção.

A mulher, sim. Sacha Bosorin, ou Maureen Diafnant, era muito bonita. Cabelos escuros, olhos amendoados, boca rosada redonda... Sua pele de um branco dourado maravilhoso, como se ti­vesse luminosidade própria. O corpo era perfeito, delicado mas com curvas generosas...

Os suaves formatos de seus seios apareciam na borda do decote, um tanto exagerado. Estava meio deitada num sofá, mostrando as pernas até 12 centímetros acima do joelho. Mas nem ela se preocupava com esse detalhe nem os três ho­mens pareciam dar alguma importância ao belo espetáculo.

Yukoff disse:

— Esperemos que Guriev tenha alguma ideia que não tenha ocorrido a nenhum de nós. A mor­te de Keenan McHale complicou muito as coisas.

Yoderian retrucou:

— Você é quem manda, no momento. E você me ordenou que o matasse.

— Não o estou criticando, Yoderian. Ao contrário, você fez bem. Não é muito fácil atirar um homem por uma janela, sem deixar vestígios de luta... E você não deixou nenhum, não é assim?

— Creio que não.

Yukoff permaneceu pensativo uns segundos

— Por sorte, Machiner nos avisou de Cocoa o que ocorria e nos informou o hotel a que se dirigia McHale em Miami, depois de tentar con­vencê-lo a abandonar o plano.

— Não me surpreenderia que Adair W. Machiner também tentasse algo, Yukoff. Já lhe dis­se que não era conveniente fazer tratos com americanos... Nunca são suficientemente trai­dores de sua pátria. Poderíamos ter trazido á carga de Cuba...

— Por certo — grunhiu Yukoff, causticamente. — Se não da Rússia.

A bonita Sacha Bosorin deu uma risada ligei­ra, cristalina.

— Já verão como Ivan Guriev resolve tudo... Tenho vontade de conhecê-lo pessoalmente.

— Todos têm vontade. O único de nós que o conhece pessoalmente é Kailovich. Terá de ir buscá-lo no porto... E me parece que já é hora, Boris Kailovich.

— Guriev sabe do nosso endereço...

— E daí? Acaso você quer que ele venha so­zinho até aqui? Não conhece Miami, perderia tempo... E, em caso de alguma dificuldade, você poderá orientá-lo na cidade.

— Eu acho — disse Yoderian — que nós to­dos deveríamos mudar imediatamente de casa. Qualquer dia, alguém começará a perguntar quem são os homens que periodicamente visitam a casinha da formosa novelista nova iorquina Maureen Diamant... E até será possível que pro­curem alguma obra de sua autoria...

— Por acaso não a encontrariam? — riu Sa­cha Bosorin.

— Sim, mas...

Yukoff atalhou:

—Todos estão bem instalados aqui, Yode­rian. Sacha escreve e publica, e nós três temos nosso trabalho e vivemos separados uns dos ou­tros. Mas estou de acordo com você. Quando acabarmos este caso, procuraremos outra casa. Embora eu creia que Ivan Guriev deve trazer certas instruções.

— Acredita que teremos de regressar à Rús­sia? — riu Sacha.

Yukoff encolheu os ombros.

— Ivan Guriev nos dirá.

Sacha Bosorin olhou para os três homens, divertida.

— Ivan Guriev, Ivan Guriev, Ivan Guriev... Parece que tudo vai depender dele. Pergunto que acontecerá se ele for mais estúpido do que vocês... Não quero dizer que vocês o sejam, mas que Ivan Guriev não seja tão esperto como achamos.

— Você pensa isso?

— Penso, e que cada dia me aborrece mais, querido Valerian Yukoff. Se não fosse pela ativi­dade a que o caso de Cuba nos tem forçado, Já teria morrido de tédio.

— Daqui a pouco ninguém se aborrecerá no mun­do — opinou Yukoff. Olhou para Kailovich. — Vá buscar Ivan Guriev, Boris Kailovich. Já está na hora.

— Bem...

Sacha Bosorin levantou-se preguiçosamente.

— Eu irei com Boris Kailovich.

Yukoff a olhou rapidamente.

— Por quê?

— Acabei de dizer, morro de tédio. Um passeio de carro me distrairá.

Valerian Yukoff vacilou.

— Ouça, Sacha, Boris Kailovich tem já as instruções, em caso de perigo. Não devemos esquecer que talvez Keenan McHale tenha dito alguma coisa a alguém e que talvez esperem Ivan Guriev no cais...

— Vamos, vamos, Valerian Yukoff querido... Vocês viram McHale entrar no hotel enquanto Leon Yoderian o esperava lá em cima, no quar­to... E Leon Yoderian já nos disse que pôde atirar McHale pela janela justamente quan­do se dirigia para o telefone? Era quando iria falar com alguém... Mas não pôde. Vocês, do carro em que estavam do outro lado de Palms Avenue, viram-no sair pela jane­la e estatelar-se, pouco depois de ter entrado no hotel.

— Eu estou de acordo com Sacha Bosorin — apoiou Kailovich.

Leon Yoderian, o assassino, deu uma risadinha.

— Eu também estaria, se o prêmio fosse le­vá-la comigo a dar um passeio de automóvel, Boris Kailovich.

— Não se trata de um passeio. Vamos buscar Ivan Guriev.

— Sim, já sei. Mas se não há perigo... Que é isso senão um passeio com Sacha Bosorin?

Sacha deu uma gargalhada.

— Pois a mim não me desgostará ir com Boris Kailovich. E como não há perigo... Além disso, se houvesse perigo, eu talvez fosse de alguma utilidade, não?

Valerian Yukoff aceitou não muito convencido.

— Vá dar esse passeio, Sacha Bosorin. Mas acho que, depois de tantos anos nos Estados Unidos, sem um só tropeço, estamos confiando excessivamente. Qualquer dia...

— Oh, não quero ouvi-lo! — disse Sacha. — Vamos embora, Boris Kailovich.

— Tampouco deveríamos chamar-nos Boris, nem Sacha, nem Leon... Para isso temos uma documentação ianque.

— De vez em quando dá gosto falar em russo — pareceu irritar-se Sacha Bosorin. — Eu já falo inglês durante todo o mês, Valerian Yukoff. Um dia podemos todos falar russo.

Valerian moveu pensativamente a cabeça.

— Oxalá Ivan Guriev não ordene voltar para a Rússia... Ou nos envie para outro lugar, onde tenhamos de estar de novo alerta e com mais precauções. Se continuarmos assim, acabara por sermos caçados.

Sacha Bosorin irritou-se de vez:

— Valerian Yukoff, você é um sujeito insu­portável. Ainda não percebeu que os americanos são uns bobocas?

Yukoff encolheu um só ombro dessa vez.

— Bobocas? Sim, é possível... Mas eu já noto que o chão começa a esquentar debaixo de meus pés. Muito tempo nos Estados Unidos, muito tem­po em Miami, embora seja tempo de paz...

— De paz? — riu Kailovich.

Sacha Bosorin tomou o braço do único dos presentes que conhecia pessoalmente Ivan Gu­riev.

— Vamos embora, Boris Kailovich. Se eu ficar um minuto mais ouvindo Valerian Yukoff, co­meçarei a chorar.

Rindo, os dois se dirigiram até a porta da ca­sinha. Mas ainda puderam ouvir Valerian:

— Não se esqueçam, estamos relaxando, nos debilitando...

Uma batida da porta foi à resposta para o chefe do grupo de espiões soviéticos em Miami.

 

Henry Wharton começava a sentir frio quando, mais acima, na escada de corda, Clarence Hadaway sussurrou a ordem:

— Subamos.

Deu o exemplo, percorrendo a pequena distân­cia que o separava da borda. Logicamente, foi o primeiro a saltar para o interior do barco, na popa. Imediatamente, encontrou-se com um ho­mem sentado na coberta, apoiando as costas no casco e que perguntou num sussurro:

— FBI?

— Sim,

— Sou o capitão Kyster, do "Pearl". Locali­zamos seu homem.

Clarence interpretou o gesto na relativa obscuridade daquela parte do barco.

— Tem certeza?

— Absoluta. É bastante digno de atenção, se o olhar bem... Ouça... Sabe que se parece mui­to com o senhor?

Hadaway soltou uma risadinha.

— Agora estou certo de que o localizou, capitão. Um momento...

Voltou-se para a borda, estendendo a mão a Sanding, que pulou para o interior do barco em completo silêncio. Leacock também demons­trou que cuidava do físico ao saltar por cima da borda e cair na co­berta sem nenhum ruído. Wharton não quis des­merecer a seus homens e sua atuação foi fran­camente ágil, apesar do grande cansaço e esgo­tamento que sentia.

— Este é o capitão Kyster — ciciou Hadaway. — E vai levar-nos já onde se encontra Ivan Gu­riev... Este é o homem da fotografia, capitão Kyster. Que nome está adotando?

— John Halsey.

— Muito vulgar... Muito esperto. Camarote número...?

— Oitenta e seis C, no segundo tombadilho. Quando eu vim para cá, há uns três minutos, esse homem se achava em seu camarote.

— Pois vamos para lá.

Caminharam tranquilamente pela coberta, se­parados em dois grupos. No da frente, iam Kys­ter, Wharton e Hadaway. No de trás, Leacock o Sanding, com absoluta despreocupação... Aparente.

 

O espião russo Ivan Guriev ouviu a batida na porta de seu camarote quando fechava a peque­na maleta em que levava escasso vestuário. Na verdade, era apenas um pretexto, naquela fraude de espionagem.

Mal ouviu, meteu a mão debaixo do paletó e empunhou uma pistola. Mas sorriu logo e vol­tou a guardar a arma. Por que, diabo suspeitaria sempre de todos?

— Quem é?

— O telegrafista, senhor Halsey. Telegrama de Miami para o senhor. Acabamos de recebê-lo.

— Um momento, por favor.

O soviético apertou as mandíbulas, com uma expressão sombria nos olhos. Um telegrama? Mentira, claro... Ninguém poderia mandar um telegrama a John Halsey viajando no "Pearl". E menos ainda as pessoas que o esperavam em Miami. Era simplesmente absurdo.

A batida voltou a repetir-se na porta do ca­marote.

— Senhor Halsey...

— Um momento, por favor. Estou mudando de roupa...

Seu inglês era corretamente americano, intrinsecamente ianque. Supor que iriam mandar a Miami um homem que não pudesse passar por americano seria uma insensatez. Uma insensatez que, como sempre, os americanos estavam come­tendo.

— Quer que deixe o telegrama por debaixo da porta, senhor Halsey?

— Não é preciso. Já vou abrir.

Tirou a pistola e destravou-a. Estava tudo bem, perfeito... Isto é, no que se referia ao seu com­portamento pessoal. Os outros... Alguém dos ou­tros havia falhado... Como das outras vezes.

Ivan Guriev soltou uma praga impublicável. Guardou a pistola e se dirigiu até a vigia de seu camarote, que dava para o outro lado do corre­dor de onde o chamavam para entregar o tele­grama.

Haveria alguém julgando que ele era um es­túpido completo. Quando o quisessem convencer disso, Ivan Guriev estaria nadando até o cais do Miami...

Sabia que não deixava nada de compromete­dor na maleta. De modo que abriu tranquilamente a vigia e suspendeu-se com um hábil impulso, a fim de saltar para o corredor deserto. Todos deviam estar na coberta, contemplando Miami ao longe. Afinal de contas, chegar a Miami era algo certamente interessante...

Encolheu o estômago e acabou de passar. Suas fortes mãos continuaram alçadas à borda do res­piradouro.

Girou sobre si mesmo, apoiando-se na nuca, e se encontrou no corredor, mas com as mãos presas à borda da vigia.

— Como vai, Ivan Guriev?

O espião russo ficou petrificado pelo assom­bro. Não pelo assombro natural por encontrar ali um homem, depois de ter olhado o corredor vazio, mas porque esse homem podia ser seu irmão gêmeo. Boa estatura, ombros largos, olhos escuros, cabelos louros, boca firme, expressão agradável... Apenas um brilho de dureza, que teria estremecido outro homem que não fosse Ivan Guriev, havia na boca daquele tipo assom­broso. De pasmar.

Ivan Guriev soltou as mãos da borda do res­piradouro e cometeu uma das poucas torpezas que às vezes prejudicam os homens que vivem uma ou várias vidas falsas. Em vez de confiar em sua força para lutar, deu preferência à pis­tola que trazia debaixo do braço esquerdo.

Mal se soltara do respiradouro e já sua mão direita voava para a axila esquerda. Foi um erro definitivo.

Enquanto fazia isso, o "outro Ivan Guriev" se aproximou mais dele, de mãos desarmadas. Mas suas mãos eram precisamente muito mais terrí­veis que qualquer arma porque, quando Ivan Guriev tirava sua pistola; algo que podia ter sido uma barra de aço golpeou sua mão. A pistola saltou, longe, até a outra ponta do cor­redor.

Imediatamente, um punho de aço afundou no estômago do espião soviético... Mas também o estômago de Ivan Guriev era de aço. Instintivamente retesou o abdome e o golpe, que teria sido decisivo para uma pessoa comum, ressoou com força nos músculos. Foi como se uma cou­raça o protegesse.

Por isso, Clarence Hadaway ficou paralisado durante um segundo, o que bastou a Guriev para golpeá-lo com dureza aniquiladora no peito. Por um momento Clarence Hadaway viu tudo es­curo, girando brutalmente a seu redor. Ivan Gu­riev não havia conseguido sua fama sem razão. Iria escapar...

Um novo soco no queixo empurrou Clarence Hadaway para trás. Teria querido gritar, adver­tir Wharton, Leacock e Sanding, que, entretanto deveriam estar diante da porta do camarote, fa­zendo-se passar por telegrafistas, porque Ivan deveria estar lá, como ele havia previsto. Teria gritado com todas as forças... Com suas últimas forças.

Mas Ivan Guriev era um homem implacável, seguro de si, disposto a conseguir seu objetivo, fosse como fosse.

Mal Clarence Hadaway começava a se recupe­rar, tudo muito rapidamente, o pé direito de Guriev subiu até a entre perna. Em um golpe quase mortal... Pelo menos decisivo para o re­sultado final da luta.

Clarence Hadaway o pressentiu. Suas mãos bai­xaram até aquele lugar tão vulnerável. Sentiu em seus dedos o duro contato do sapato do espião russo. As mãos sentiram a esfoladura do golpe... Mas o golpe, embora amortecido, cau­sou seus efeitos. Uma nuvem negra surgiu diante dos olhos de Hadaway, o homem que só trabalhava sob as ordens diretas de John Edgar Hoover.

Por entre as escuras brumas julgou ver-se a si mesmo num espelho, o rosto tenso, os olhos brilhantes... Em um espelho de escassa reflexão de imagens. Viu aquele punho vindo ao encontro de seu rosto... E não pôde evitá-lo.

Caiu de joelhos.

Um golpe estalante, luminoso, encheu seus olhos de pontinhos brilhantes quando um joelho de Ivan Guriev se chocou, com terrível violência contra seu nariz. Sentiu na parte posterior de sua cabeça o choque contra o chão do corredor... Seu inimigo, forçosamente, teria de ser Ivan Guriev, o melhor homem com que contava a M.V.D.*.

A lembrança de que ele era considerado um dos melhores agentes especiais do FBI para a segurança interna dos Estados Uni­dos foi como uma ducha fria para Clarence Ha­daway, que o reanimou e não lhe deu tempo de se desvanecer.

Aquilo era quase uma questão pessoal, como um presságio. Se um dos melhores espiões soviéticos vencesse um dos melhores contraespiões norte americano, a coisa parecia decidir de um daqueles lados, o do vencedor, natural­mente.

Sem saber como, Clarence Hadaway viu-se de pé, correndo atrás de Ivan Guriev, que já estava no meio da escada que o levaria à coberta. Se conseguisse chegar lá, poderia lançar-se ao mar, ao vasto mar. E a lancha da Guarda Costeira não estava ali. Ivan Guriev seria, oficialmente, absorvido pelas águas atlânticas.

E isso seria falso!

Enquanto corria, cambaleante, na direção da­s pernas que ainda se via na escada, Cla­rence Hadaway pensou em si mesmo: era capaz de nadar durante toda uma noite na mais com­pleta escuridão, e chegar ao ponto que lhe inte­ressasse.

Por que pensar que o homem que momenta­neamente o havia vencido não seria capaz de fazer o mesmo, ou mais? Não era uma presun­ção pensar que só os homens do FBI eram capazes de tais façanhas.

Quando agarrou desesperadamente as per­nas de Ivan Guriev, todo o espírito do FBI se achava entre as mãos de Clarence Hadaway. Todo o espírito e plena confiança de John Edgar Hoover, o homem que lhe dava diretamente as ordens.

Um dos pés de Ivan Guriev subiu para descer rapidamente no rosto de Clarence Hadaway. Era o normal, mesmo para um lutador como Ivan Guriev.

E Clarence Hadaway lançou uma exclamação de alegria ao verificar que seus reflexos fun­cionavam muito bem, esquivando daque­le golpe que poderia ser decisivo.

O pé de Guriev bateu no vazio. O forte im­pulso o fez perder o equilíbrio e sua mão deslizou nos brilhantes degraus metálicos, até que caiu nos braços do agente do FBI.

— Agora!

Hadaway golpeou Guriev no pescoço, em um impressionante golpe de canto com a mão rígida. Mas Ivan Guriev encolheu os ombros um milésimo de segundo antes, de modo que o golpe perdeu oitenta por cento de sua eficácia.

Clarence Hadaway sentiu-se fora de si, instável, apesar da sua reconhecida serenidade.

Seria possível que aquele homem iria fugir de suas mãos, das mãos mais destruidoras, efetivas, vi­toriosas, daquelas mãos que Edgar Hoover havia escolhido especialmente?

Ia ser possível.

Ivan Guriev, dolorido, aplicou um golpe estra­nho com um pé, elevando sua perna ao máximo. Hadaway recebeu a pontada no peito e Julgou desfalecer. Outro golpe, dessa vez com a mão, o acertou na garganta, muito próximo do peito, e não fez o efeito que teria produzido, talvez mor­tal, se a mão rígida de Guriev tivesse atingido seu pomo de Adão.

Clarence foi lançado violentamente contra a parede dos camarotes daquele corredor. Escorregou duramente, caindo de braços no chão.

— Hadaway!

Era a voz de Henry Wharton que, com Leacock e Sanding, vinham correndo pelo passadiço. Não podia nem devia esperá-los. Todo o prestígio de seis anos no FBI, todo o prestígio de um número um na promoção, toda a confiança de John Edgar Hoover pesavam sobre suas costas cansadas. Levantou-se de um salto e teve a impressão de que o “Pearl" entrava em cheio numa tem­pestade, no mais violento tufão.

— Corram para a outra escada!

Wharton, Leacock e Sanding quase deixaram a pele, ao tentarem subir os três de uma só vez.

Hadaway galgou os degraus com uma velo­cidade impressionante, embora sentindo aquelas repugnantes náuseas no estômago. Mas pôde ver Ivan Guriev, que acabava de tirar o paletó e se dirigia a toda à pressa para a borda do navio.

Um surpreendente "mergulho" de mais de qua­tro metros levou Clarence à cintura de Ivan Gu­riev no momento exato em que ia saltar. Os dois se chocaram contra a borda...

O rebote foi favorável ao agente especial do FBI que viu diante dele a mandíbula do espião russo.

Um gancho, com toda a sua alma, quase le­vantou Guriev ajoelhado que rodou pela coberta.

Quando quis levantar-se, Clarence Hadaway já estava de novo ao seu lado e seu punho direito deu outro golpe, desta vez entre os seus olhos.

Ivan Guriev pareceu enfraquecido, perdendo todas as forças. Mas quando Hadaway se incli­nou sobre ele, um pontapé no estômago o con­venceu de seu erro.

Havia mais de doze horas que o federal não comia nada, a náusea lhe subia, à boca. Sentia-se mareado, vencido. O rosto de Ivan Guriev já lhe parecia um pesadelo mons­truoso, que lhe dava calafrios aterradores.

E o russo voltou a surgir diante dele, crispado, marcado por seus golpes.

Um punho não muito grande, mas com uma clara aparência de ser de aço, fechou-se sobre o rosto de Clarence Hadaway.

Uma visão fugaz.

Um instinto.

Um grito de alarme em seu íntimo.

Encolheu-se e socou, não soube exatamente onde. A sombra de Ivan Guriev pareceu encolher...

Voltou a esmurrar. Em seu punho notou algo duro, dolorosamente duro.

E outra vez. E mais outra...

Diante de si, via agora o crispado rosto de Ivan Guriev escorrendo sangue do nariz. Outra vez. Outra...

Os punhos de Clarence Hadaway sentiam ago­ra, não uma dura couraça, mas um corpo mole que recebia amortecendo os terríveis golpes: pei­to, boca, estômago, estômago, estômago, boca, peito, nariz, boca, peito, estômago, queixo...

Ivan Guriev dobrou-se sobre os rins, por cima da balaustrada. Era uma massa de carne macerada, vencida. Clarence Hadaway queria saltar atrás dele, agarrá-lo, tirá-lo vivo do mar, torturá-lo, submetê-lo ao detector de mentiras, aos golpes do bastão de borracha, a focos de luz ofuscantes, a sede, a fome, a ânsia de fumar um cigarro...

Mas sentia as pernas fracas, frouxas, como se os joelhos estivessem derretendo.

Antes de cair sentado, apoiando bruscamente as costas nas paredes dos camarotes da coberta, Hadaway viu um corpo que saltava agilmente pela borda, atrás do corpo de Ivan Guriev.  

— Sente-se bem, Hadaway? Era uma voz amável, conhecida. Clarence levantou-se bruscamente.

— Ivan Guriev?

— Acalme-se. Leacock tirou-o da água. Gu­riev está em nosso poder. Foi uma boa luta, Hadaway.

A seu lado, ouviu uma respiração ofegante. Virou a cabeça e viu Paul Leacock com as rou­pas encharcadas.

Sorriu.

— Tirou Paul?

— Se-seguro... Clarence...

— Ele está bem? Digo bem guardado?

— Aí está.

Hadaway olhou para onde seu companheiro indicava. Ivan Guriev jazia na coberta, com o rosto voltado para o céu estrelado, e já limpo por efeito da água do mar. Suas mãos, eviden­temente, dada a sua posição, haviam sido amar­radas as costas. Também seus pés estavam con­venientemente amarrados.

Clarence Hadaway resfolegou. Sentia em todo o corpo o efeito dos duríssimos golpes do russo.

— Quanto tempo para chegar ao porto?

— Uns dez minutos — informou Wharton.

— Dez minutos! Depressa, uma ducha fria, um trago de uísque, alguma coisa que me reanime!

Sentia-se arrasado, bamboleado. Dois minutos depois, completamente nu, recebia em seu corpo a confortadora sensação da água fria.

Quando saiu do banheiro da cabina do capitão Kyster, este, Wharton, Leacock e Sanding es­tavam fumando. Num canto ainda mais fortemente amarrado, estava Ivan Guriev, ainda inconsci­ente, mas quase nu.

Henry Wharton mostrou as roupas do espião.

— Essa é sua nova roupa, Hadaway.

Clarence suspirou. Olhou para as roupas, para os presentes... Por fim, para Henry Wharton, que sorriu abertamente. Havia uma expressão divertida, em seu rosto in­teligente.

Disse:

— Clarence, O "Pearl" atracará dentro de dois minutos. Que lhe parece se vestisse as roupas do muito perigoso Ivan Guriev. Faz tempo que não vou a um baile à fantasia...

Hadaway sorriu.

Sem deixar de fumar, sentados, o capitão Kyster e os agentes do FBI Sanding e Leacock tam­bém sorriram.

O FBI quase sempre era como uma grande família... Um pouco perigosa, claro, mas uma grande família.

Henry Wharton deu uma gargalhada ao pen­sar nisso, mas quando todos o olharam surpreso, não deu nenhuma explicação.

E era que... A família, sem dúvida, dava tra­balho.

 

0"Pearl," atracou quase meia hora além da estipulada, quando já Kailovich começava a ficar impaciente. Ele e Sacha Bosorin esta­vam dentro do carro, bastante próximo do local onde o barco atracou.

A bela mulher olhou zombeteiramente para Kailovich.

— Em minha opinião, Boris Kailovich, vocês todos estão ficando um pouco nervosos.

— Acho que você tem razão — admitiu Kai­lovich de má vontade. — Estou há muito tem­po neste país estúpido e, todavia não consegui acostumar-me as situações inesperadas. Sempre temendo alguma coisa...

— Certamente — riu Sacha. — Valerian Yukoff tem razão. Estamos relaxando, nos definhando... Olhe os passageiros, já começam a descer. Poderá daqui reconhecer Ivan Guriev?

— E de mais longe ainda. Ivan Guriev é in­confundível, Sacha Bosorin.

— Feio ou...?

Kailovich olhou de revés a mulher. Há muito tempo obedecia às suas ordens, não havia homens nem mulheres, somente es­piões, que deviam ajudar-se, ter contatos pru­dentes, não se deixar levar por sentimentos pes­soais...

Ele estava cumprindo aquelas ordens, apesar da perturbadora presença daquela beleza.

E algo havia intrigado Boris Kailovich. Sacha Bosorin se mostraria tão fria e impessoal... Depois de conhecer Ivan Guriev?

— Feio? — grunhiu. — Não saberia dizer... Isso tem alguma importân­cia?

— Nenhuma — continuou ela, rindo. — É so­mente curiosidade.

— Logo poderá satisfazer essa curiosidade... Mas, em minha opinião, Ivan Guriev é um homem... Interessante.

— Interessante? Então é velho?

Agora foi a vez de Boris Kailovich rir.

— Velho? Bem... Isso depende do ponto de vista. Veja. Ele vem descendo pela passa­rela.

Sacha Bosorin dirigiu seu olhar para lá. Ha­via quatro pessoas descendo a escada de bordo, naquele momento.

— O gordinho de óculos? — perguntou.

— Não! — riu Kailovich. — É o que vem atrás, levando apenas uma pequena maleta...

— O dos ombros largos? Esse que agora se virou para trás?

— Exato. Agora se vire para olhar... Vê-o bem, Sacha?

— Perfeitamente — sussurrou a mulher. — É jovem, aposto. Parece forte...

— Ninguém jamais conseguiu vencer Ivan Gu­riev numa luta. E quem conseguir será, na ver­dade, um inimigo perigosíssimo. Vou buscá-lo.

— Está seguro de que é Ivan Guriev?

— Não lhe vejo bem a cara... Mas seu corpo e o contorno de seu rosto são de Ivan Guriev. É ele, claro. Espere aqui, Sacha.

Boris Kailovich desceu do carro e começou a caminhar até Ivan Guriev, confiantemente. Per­guntou-se por um instante por que Guriev havia olhado duas vezes para trás, para o barco... Talvez receasse estar sendo seguido, localizado por alguém que o tivesse descoberto?

Ivan Guriev trazia um chapéu de cor clara, um pouco caído sobre os olhos. Da distância de uns oito passos, Kailovich lhe fez um ligeiro sinal. Então Guriev levantou um pouco mais a cabeça e o olhou fixamente. Seu rosto permaneceu im­passível, apenas os olhos fixos em Boris Kailo­vich.

Boris começou a sorrir. Desde logo, jamais se poderia acusar Ivan de ser um homem que reve­lasse seus pensamentos por meio da expressão. Havia reconhecido seu velho amigo Boris e se limitava a olhá-lo fixamente.

Boris Kailovich chegou quase a tocar em Gu­riev, plantando-se diante do famoso espião so­viético.

— Siga-me, Ivan. Vamos para... Um momen­to... Ouça você não...

O russo teve, de repente, a sensação de uma enorme bola de estopa na garganta. O homem que tinha diante dele, olhando-o fixamente, po­dia se passar por Ivan Guriev, olhando do carro, mas da distância de um passo, aqueles traços não correspondiam a...

Uma mão dura caiu sobre um ombro de Boris Kailovich.

— É melhor não se mover, amigo.

***

Do carro, Sacha Bosorin viu Boris Kailovich se aproximar confiante de Ivan Guriev. Viu-o parar muito próximo do esperado compa­nheiro que devia solucionar todos os problemas.

E viu os três que os cercavam, fechando a passagem para a saída do cais. Um daqueles homens pôs a mão no ombro de Boris e disse algo. Os outros dois se dirigiram diretamente para Ivan Guriev...

Viu Kailovich bruscamente sacudir a mão que pousava em seu ombro, dar meia volta e come­çar a correr em direção do carro, com o rosto tenso, completamente crispado pelo sobressalto o medo, a raiva... A raiva, sim...

O homem que havia posto a mão no ombro de Boris desequilibrou-se ligeiramente quando o espião russo se esquivou. Imediatamente levou a mão direita a axila esquerda e tirou uma pisto­la. Sem contemplação de nenhuma espécie ati­rou contra as costas de Kailovich, que saltou com muito mais impulso para frente, na dire­ção de sua fuga.

Sacha Bosorin viu como Boris Kailovich se chocava de cara contra as pedras do calçamento do cais e pendia, brandamente, inerte. Mas de repente se pôs de joelhos e também quis tirar sua pistola. O homem que lhe havia posto a mão no ombro tornou a disparar com frieza impressio­nante.

Boris Kailovich estremeceu fortemente. Seu corpo se dobrou para trás, sobre seus próprios joelhos, vacilou um pouco e pareceu impulsionado para frente. Desta vez seu rosto chocou-se contra as pedras e não se moveu mais.

Sacha Bosorin desviou seu olhar aflito para o grupo formado por Ivan Guriev e os outros dois homens que se haviam dirigido a ele.

Um daqueles homens estava no chão, encolhi­do como se quisesse meter sua cabeça entre as pernas. Era a mais clara imagem da dor, do homem vencido no primeiro golpe.

O outro homem tinha a mão metida na axila, mas Ivan Guriev a mantinha apertada contra aquela parte de seu corpo com uma de suas mãos, enquanto com a outra dava golpes curtos no esôfago de seu inimigo. A cada golpe, o outro se encolhia, estremecia, dobrava um pouco mais os joelhos.

Sacha viu a mão direita de Guriev descer so­bre o nariz do antagonista... Viu o sangue que brotou do nariz, o desfalecimento do homem, a flacidez do seu corpo já vencido.

Ivan Guriev moveu-se agilmente, voltando às costas para o ponto de onde Sacha assistia à luta. Uma das pernas de Guriev se moveu. O pé atingiu o rosto do adversário, quase o levantando... Meio caído, o homem recuou penosa­mente até a borda do cais... E desapareceu na água.

Tudo se passava com a rapidez do relâmpago.

O que havia matado Kailovich pôde, enfim, apontar com tranquilidade para o agilíssimo Ivan Guriev. Apertou o gatilho... Mas Ivan Guriev já estava de joelhos, esquivando-se da bala como se adivinhasse sua trajetória. Dessa posição sal­tou em ponte contra o homem que acabava de disparar. A cabeça de Guriev incrustou-se no es­tômago enquanto a mão agarrou a de seu inimi­go, torcendo-a cruelmente. Um grito... A pistola no chão...

Ivan Guriev não soltou a mão, apesar de desarmada. Ao contrário, agarrou-a com mais força, passou-a por debaixo do braço de seu contendor e o atirou para cima. O outro de­via conhecer alguma coisa daquele tipo de luta porque seguiu o movimento de ombro, girando sobre si mesmo e caindo de lado contra o chão. Entretanto, se recuperou imediatamente e quis buscar o corpo a corpo...

Ivan Guriev o golpeou com a mão aberta so­bre os dois olhos e o homem, com um gemido, recuou, tropeçando. Guriev o seguiu, e socou seu estômago duas vezes, de modo fulminante... E quando o homem se inclinava, com a respiração cortada pela dor, pareceu querer decapitá-lo com o canto da mão. O homem caiu como morto.

Naturalmente, ouviam-se apitos da polícia. A estupefação inicial já havia passado e a gente estava começando a reagir. Dois agentes unifor­mizados corriam para lá...

Sacha Bosorin teve a impressão de despertar de um longo estupor, de um sonho absurdo em que um só homem de ombros largos se livrava de três homens armados.

Esse mesmo homem, Ivan Guriev, corria na direção das primeiras casas da zona portuária, cheias de tabernas. Corria a toda veloci­dade, uma velocidade incrível, fantástica, que pa­recia impossível de ser conseguida por um ho­mem.

Atrás, apitando sem parar, os dois agentes de polícia pareciam correr em sentido contrário, tal era a velocidade do perseguido.

Sem dúvida alguma, Ivan Guriev era um inimigo respeitável, um atleta, o homem desarmado mais perigoso que Sacha já vira.

A mulher pôs o carro em movimento, atrás do perseguido Guriev. Ela e os dois policiais eram os únicos que haviam conseguido reagir.

Sacha conduziu o carro pela rua na qual Guriev havia entrado perseguido pelos dois agen­tes. A mulher acendeu os faróis e todo o local ficou iluminado. No outro extremo, longe, a fi­gura, inconfundível de Ivan Guriev...

Quase no início, os dois policiais, viraram-se para o carro, um tanto desconcertados.

Estavam no meio da rua. Sacha pisou no ace­lerador e o carro pareceu dar um salto, inespe­radamente. Um dos policiais gritou e se atirou na calçada, num salto acrobático. O outro, atin­gido de cheio pela luz de um dos faróis, abriu muito os olhos, atrapalhado. Quando compreen­deu que aquele carro não ia a seu favor e sim contra, quis afastar-se. Saltou...

Sacha Bosorin sentiu a batida no para lama esquerdo, mas, naturalmente, seguiu em frente, sem tirar o pé do acelerador. Em menos de três segundos estava na saída da rua. Atrás, as pes­soas deixavam as casas, as tabernas, gritando, correndo...

Na parte traseira do carro soaram dois golpes que provocaram uma breve vibração na estrutu­ra do veículo. Sacha não fez caso das balas, cer­tamente disparadas pelo policial que conseguira salvar-se.

Ao dobrar a esquina, viu a figura esbelta, lar­ga de ombros, correndo sem cessar a uma velo­cidade que obrigava Sacha a morder os lábios para não soltar uma exclamação de assombro, de admiração...

O carro chegou rapidamente à altura do fu­gitivo, com as luzes dos faróis em suas costas. Sacha quase gritou quando, depois de frear se­camente junto a Ivan Guriev, este desaparecera de sua vista, sob o para brisa do carro.

Mas ainda estava no ar o rangido dos freios, quando a moça viu Ivan, rodando sobre si mes­mo na calçada. Viu-o pôr-se em pé e procurar en­trar naquela casa, sem importar de quem fos­se...

— Ivan Guriev! — chamou.

O perseguido virou-se como uma centelha. Em sua mão direita a pistola refletiu a luz dos combustores daquela rua. Sempre com surpreendente rapidez e agilidade, Guriev saltou para o estribo do carro. Sua pistola se apoiou na garganta de Sacha Bosorin, sob o queixo.

— Quem é você? — arquejou Guriev.

"Estamos relaxando..." As pa­lavras de Valerian Yukoff ressoaram inespera­damente nos ouvidos de Sacha, ao estremecer diante daquela visão. Ivan Guriev, machucando-a com a pistola que apoiava em sua gargan­ta, tinha o rosto cheio de suor e o sangue bro­tava do nariz. Sacha teria jurado que ele não havia recebido nenhum golpe na luta contra os três homens, no porto, mas, pelo visto, devia estar equivocada... No que não se enganava era que o escuro olhar de Ivan Guriev, fixo nela, evidenciava uma claríssima ameaça de morte. Os olhos do espião, um pouco dilatados, pare­ciam capazes de perfurá-la. O peito largo arfava com força. O sangue do nariz já lhe chegava à boca. Era uma visão dura, viril e repelente a um só tempo.

Tudo isso em menos de um segundo, o que Sacha demorou em responder:

— Sacha Bosorin — falou rapidamente em rus­so. — Kailovich e eu viemos buscá-lo. Vamos, suba depressa!

A pistola que Guriev empunhava se cravou mais dolorosamente em sua garganta. O homem sibilou, em russo:

— Algo vai mal aqui, Sacha Bosorin. Mata­ram Kailovich e você vem me ajudar. Se for uma cilada, matarei você.

— Suba no carro, Ivan Guriev — repetiu Sa­cha.

Guriev tirou, enfim, a pistola da garganta da bela moça que suspirou profundamente. Entrou no carro e então cravou a pistola nas belas cos­tas da mulher.

— Saiamos daqui agora mesmo — chiou sua voz. — E me diga já com quem eu tinha de me encontrar em Miami.

— Mas...!

A pistola quase deslocou uma costela da moça. E a voz de Ivan quase rebentou seus ouvidos.

— Diga!

— Eram... Valerian Yukoff, Leon Yoderian, Boris Kailovich e eu... Sacha Bosorin...

O carro rodava a toda a velocidade, afastando-se daquele lugar. A pistola de Ivan se cravou ainda mais fortemente nos flancos de Sacha.

— Nomes dos norte americanos que trarão a carga.

Sacha olhou Guriev pelo espelho retrovisor. Só pôde ver meio rosto, mas o suficiente para com­preender que aquela expressão era a de um ho­mem decidido a tudo:

— Adair VV. Miehener e Keenan McHale — quase gemeu ela.

A pistola deixou de comprimir as costelas. Ivan a guardou na axila esquerda. Suspirando de can­saço, deixou-se cair nas costas do assento. Tirou um lenço do bolso e, depois de virar um pouco o espelho retrovisor, começou a tirar o sangue que chegava a seus lábios.

— Diminua a marcha — grunhiu. — Já não é preciso correr tanto. E não convém chamar atenção. Agora sei que você não está me enga­nando.

— O que você mandar, Ivan Guriev. Para on­de vamos?

Guriev olhou-a, com fúria nos olhos.

— Parece-lhe boa a Delegacia do FBI — sua voz adotou um tom sarcástico. — Tenho mui­tos bons amigos lá.

Sacha Bosorin mordeu os lábios.

— Bom...

— Deixe-se de estupidez, Sacha Bosorin! — a mulher teve a impressão que as palavras em russo se chocavam violentamente contra seus ouvidos. — Vamos ao lugar combinado, e rápido!

— Como terá acontecido isto...

Ivan Guriev parecia uma fera. Rudemente agarrou o volante e conduziu o carro até a beira da calçada. Lá freou e, mal se voltara para a mulher, sua mão esquerda, es­talou na face dela.

— Isto é algo que você terá de explicar, Sa­cha Bosorin! — a moça parecia prestes a gritar, mas a forte mão de Guriev a agarrou pelo ves­tido, entre os seios, e atraiu para ele, fazendo-a emudecer de susto. — Isto é algo que vocês to­dos terão de explicar, e não só a mim! Que sig­nificava a presença daqueles homens me espe­rando no cais? Responda, Sacha Bosorin!

O queixo da moça começou a tremer. Certa­mente, os anos de paz tranquilidade vividos em Miami talvez estivessem relaxando a todos, mas não Ivan Guriev, cuja mão apertava com dureza brutal.

— Não... Não sei... Tivemos de matar um homem... Talvez antes de morrer dissesse algo... Não sei... Valerian Yukoff lhe explica­rá tudo!

Ivan Guriev soltou-a tão bruscamente que um ombro da espiã bateu contra a portinhola.

— Valerian Yukoff! Vocês todos são uns inú­teis!

Sacha levou lentamente a mão à face dolo­rida.

— Você não me devia bater Ivan Guriev...

— Cale-se! E vamos de uma vez a esses estú­pidos que pretendem, nada menos, que disparar um foguete... Que poderiam fazer se eu não tivesse vindo? Vamos, arranque!

Sacha Bosorin olhou fixa, atentamente, duran­te uns segundos, para o crispado rosto de Ivan Guriev. Enrugado pela fúria, pela raiva que lhe produzia o cerco a que havia sido submetido. O sangue já não brotava do nariz nem o suor co­lava os cabelos louros na face, nem o peito arfava com força. Ivan Guriev era um homem de feições duras, intratável, de mau gênio... Mas incrivelmente fascinante.

Um russo. Gostava dele...

Sacha Bosorin suspirou profundamente.

— Iremos para minha casa, Ivan Guriev. Es­tão nos esperando.

—Dá no mesmo se for sua casa, ou qualquer outro lugar. Pouco me importa o lugar combina­do, ou outro qualquer. O que quero é ver logo esses estúpidos.

 

Valerian Yukoff e Leon Yoderian pestanejaram um tanto admirados, quando Ivan Gu­riev se plantou, de cenho carregado, diante deles. Antes de permitir-lhes abrir a boca, quase rugiu:

— E agora, me expliquem por que três homens me esperavam no cais. Digam-me por que Kailo­vich caiu morto, lá.

Os dois espiões russos olharam para a porta que Sacha estava fechando. Ela os olhava com uma estranha luz irônica nos olhos... E tinha um sinal avermelhado na face esquerda.

Ivan Guriev havia entrado como uma bomba na casa e se havia plantado diante deles, for­mulando rapidamente a pergunta. Os dois russos estarreceram.

Por fim, Yukoff, pálido, disse:

— Esperavam-no Ivan Guriev?

—Sim, me esperavam! Três homens armados! Um deles matou Kailovich e esteve prestes a me matar também. Pergunto como isso é possí­vel, como podiam saber que eu chegaria no "Pearl", sob o nome de John Halsey, como po­diam saber que Kailovich vinha me buscar? São várias perguntas. Alguma delas tem resposta? — elevou a voz. — Tem?

Yoderian e Yukoff perderam o sangue do ros­to. O segundo olhou para a mulher, que conti­nuava perto da porta.

— Podemos acreditar que esse homem é Ivan Guriev, Sacha Bosorin?

Sacha encolheu os ombros.

— Boris Kailovich viu-o descer pela passarela e me apontou. Disse que era ele e foi ao seu en­contro. Quando chegava diante dele, os três ho­mens armados quiseram prendê-los. Jamais vi ninguém escapar como o fez Ivan Guriev. Ja­mais vi ninguém golpear com tanta segurança e tamanha força. Não estranharia se um daque­les homens estivesse morto agora.

Yukoff tornou a olhar para Guriev, que o ti­nha sob sua mira, com um sorriso irônico.

— Também eu — falou Guriev — poderia que­rer certificar-me de que vocês são Valerian Yu­koff e Leon Yoderian. Pelas falhas, poderia de­duzir que não.

Yukoff apontou uma poltrona, diante do sofá em que eles estavam sentados.

— Sente-se, Ivan Guriev. Descanse. Beba algu­ma coisa enquanto lhe explicamos as possíveis causas pelas quais três homens o estavam espe­rando no cais.

Ivan Guriev fez um gesto. Tirou um cigarro e um isqueiro. Encarando Yukoff fez funcionar o isqueiro para acender o cigarro.

— Está bem. — Voltou-se para Sacha: — Tra­ga alguma coisa para beber, Sacha Bosorin.

A voz dela estava prestes a estrangular-se:

— Uísque?

— Por que não? Traga o que quiser, mas que seja forte. E você, Valerian Yukoff, fale rápido e claro.

Yukoff começou a relatar o acontecido com Keenan McHale, desde o momento em que Adair VV. Machiner, o outro traidor, os avisou de Cocoa, até que Leon atirou Keenan McHale pela janela.

Quando terminou o relato ficou esperando um comentário do Ivan Guriev. Este, com o copo na mão, permaneceu pensativo durante quase dois minutos, como se estivesse sozinho ali.

Quando falou, sua voz foi suave.

— Estou inclinado a acreditar que Keenan McHale pode dizer alguma coisa antes que Yoderian o atirasse pela janela. Não sei como, mas se me esperavam no cais, isso quer dizer que falou alguma coisa... Do contrário, teria de haver entre nós um traidor, ou traidora.

Leon Yoderian vacilou.

— Bem... Talvez Keenan não tenha morrido na ocasião e pôde dizer alguma coisa a polí­cia.

— É uma possibilidade — aceitou Ivan Guriev. — Mas, seja como for, por ter Kailovich morrido e eu escapado, eles perderam a pista. De modo que seguiremos adiante com o plano. Quando chegar a carga...

— Tenho pensado — cortou Yukoff — que você poderia ser encarregado de receber o homem que vai trazê-la, Ivan Guriev. Se os ianques sa­bem de alguma coisa, como parece mostrar o incidente do cais, é mais que possível que co­nheçam o homem que nos vai trazer a carga para o projétil. E, portanto, o vigiarão.

— E a mim, não? — perguntou Guriev com raiva.

— A você?

— Valerian Yukoff, esquece de que pelo me­nos três homens me viram no cais quando Kai­lovich vinha a meu encontro? Há essas horas es­ses homens estarão dando minha descrição aos desenhistas do serviço de contraespionagem ame­ricano. Em pouco tempo, centenas de fotografias minhas estarão sendo distribuídas por Miami. Porto, estações ferroviárias, aeroportos... Toda a documentação aceitável que tenho está em nome de John Halsey — tirou de um bolso interno e, ao mover o paletó, viu-se a culatra do revólver que trazia — Agora já devem saber que o homem que fugiu no cais usava esse nome. Acredita que deva ser eu a efetuar contato com esse homem?

— Se Keenan McHale falou, esse homem, Adair W. Machiner estará sendo vigiado. Ao seu redor se terão preparado enorme armadilha, Ivan Gu­riev. Quem melhor do que você para escapar dela? Eu estou inclinado a crer, depois desta conversa, que o cientista Machiner estará sendo vigiado no próprio Cabo Canaveral. E estará ainda mais quando amanhã saltar aqui em Miami, com essa carga imprescindível para carregar o projétil de Corralillo.

Ivan Guriev acariciou o queixo.

— Certamente, estamos numa situação difícil, Valerian Yukoff.

— Difícil, mas não desesperada. Contamos com você, Guriev. Esse é um trunfo de que os ianques não devem suspeitar.

Guriev acendeu outro cigarro, encarando Leon Yoderian nesse momento.

— Não devemos subestimar nenhum homem, Yukoff. Qualquer um pode falhar. — Fez uma pausa. — Eu irei buscar Adair W. Machiner. Como normal, os ianques terão mais interesse em segui-lo do que em agarra-lo. Que­rem saber onde, quando, como e com quem Machiner se encontrara levando essa carga. E to­dos saberão quando eu me aproximar dele.

— Aí entra a sua habilidade para a fuga, Ivan Guriev. Atualmente, só podemos contar, pelo me­nos em uma semana, com a carga atômica que Machiner nos arranjou. Tem de ser essa carga. Se esperarmos que nos enviem uma da Rússia, ou de Cuba, na suposição de que chegasse a opor­tunidade teria passado o projétil já seria destruído, ou atirado ao mar. Deve ser amanhã, Ivan Guriev. Eu lhe direi tudo o que quiser. De­pois, você tomará uma decisão, tal como suge­riu. Você veio para dirigir tudo, não é assim?

— Está bem, Yukoff. Vá explicando tudo que eu não saiba deste assunto.

— Não sei exatamente o que é que você igno­ra Ivan Guriev.

— Você vá falando. Eu farei as perguntas quando julgar necessário.

— Está bem...

Durante dez minutos os dois homens foram elaborando o plano a seguir, baseando-se na in­formação e série de detalhes que Valerian Yu­koff foi expondo. Quando terminou seu relato, Ivan Guriev sorria duramente.

— Será uma boa lição para os americanos. Mas você esqueceu um detalhe, Yukoff, não dis­se onde o projétil está montado.

Um relâmpago de alarma passou pelos olhos de Valerian Yukoff.

— Como! Acaso você não sabe?

O sorriso de Ivan Guriev adquiriu um tom qua­se sinistro.

— Eu sei Yukoff. Mas quero saber se você também sabe... Nunca apreciei as confusões... E me pergunto...

Yukoff levantou-se.

— Nós dois o sabemos, Ivan, segundo parece. Você consiga a carga. Já sabe aonde tem de en­contrar-se amanhã com Adair W. Machiner e o que tem de lhe dizer. Depois, quando tivermos a carga em nosso poder, iremos juntos até o lo­cal onde o projétil está montado.

— Está bem.

— Então, de acordo. E agora, adeus...

— Um momento. Para onde vai?

— Para nossas casas — estranhou Yukoff. — Não está bem?

— Bem... Keenan McHale conhecia o endere­ço da casa de vocês?

— O meu — admitiu Yukoff. — Para lá Ma­chiner telefonou advertindo-me que Keenan McHale vinha a Miami disposto a nos delatar.

— Então vocês não vão para suas casas. Se Keenan pôde dizer que eu chegaria no "Pearl" esta noite, é possível que também mencionasse o seu domicilio, Yukoff... E talvez o estejam espe­rando lá agora.

Leon Yoderian acrescentou:

— Ivan tem razão, Valerian, venha a meu apartamento esta noite. Lá...

— Lá também não. — cortou Guriev secamen­te. — Quero que cada um de vocês vá para um lado e se aloje em qualquer hotel ou casa de cômodos. Amanhã, na hora combinada, chamem Sacha Bosorin. Ela será nossa intermediária e se comunicará comigo.

Ela se sentou ao seu lado, no sofá. Estendeu uma mão e tomou a de Guriev, que descansava no sofá depois de guardar o isqueiro.

— Ivan.

— Sim?

— Você pode realmente esquecer de que é ho­mem... E que eu sou uma mulher?

— Sim.

— Por que, Ivan?

— Temos coisas para fazer.

— Mas não nesta noite.

— Não... Certamente, nesta noite, não.

— Restam-nos várias horas até que chegue o momento de fazer algo, Ivan,

— Assim é.

Sacha Bosorin se juntou mais a Ivan. Levan­tou seu braço direito e o passou ao redor do pescoço do homem. Ivan Guriev pareceu como­ver-se.

Sacha passou também o outro braço ao redor do pescoço dele. Seus seios ficaram colados de encontro ao duro peito masculino.

— Ivan Guriev — sussurrou. — Faz tempo que eu o estava esperando. Nem sequer sabia, mas o estava esperando. E você chegou... Você sabe que nada tem importância. Estamos a sós, você e eu, e o que se passar entre nós, se você quiser, será esquecido. Mas eu queria que algo se pas­sasse Ivan...

— Compreendo, Sacha Bosorin — o sangue do homem começou a circular muito mais rapidamente. — Mas não sei se você de­seja recordar... Ou esquecer algo meu...

— Desejo. Não devia ter me batido, Ivan... Porque nesse momento eu soube que quem eu esperava era você...

Os olhos negros de Sacha Bosorin brilhavam intensamente, fixos nos de Ivan Guriev, nos vi­gorosos lábios do homem, no queixo firme. Pou­co a pouco, Sacha foi chegando sua boca a boca de Ivan, apertando-se mais contra ele. Por fim, as duas bocas se encontraram, uniram-se.

Ivan Guriev sentiu sobre os seus uns lábios ternos, suaves, frescos. Um hálito jovem, vigo­roso, limpo, chegou até ele.

Sacha Bosorin beijava com todas as forças, com toda a sua alma posta em seus lábios. Foi um beijo longo, que se foi relaxando lenta, sua­ve, docemente... Até que a cabeça da mulher caiu, apoiada no ombro de Ivan Guriev.

— Isto é amor mesmo, Ivan?

— Você deve saber, Sacha.

— Você sente alguma coisa por mim?

— Não sou sempre de pedra.

— Mas... Não me ama?

— O amor é uma coisa que talvez nas mulhe­res surja de repente, como parece acontecer com você. Mas nos homens, em homens como eu, o amor é algo que se vai formando... Que a mu­lher vai formando com seus atos no coração do homem. Vi muitas mulheres lindas em minha vida Sacha.

— Como eu?

— Não sei se eram mais... Ou menos. Mas já vi muitas.

— Não cedeu a nenhuma, Ivan?

— Não lhes disse que as amava se é isso que quer saber.

Sacha Bosorin voltou a beijar os lábios do ho­mem. Depois, levantou-se, puxando Ivan Guriev com as mãos.

— Venha comigo, Ivan — sussurrou lentamen­te. — Amanhã você me dirá.

 

O telefone tocou como se estivesse muito dis­tante.

Sacha Bosorin, abriu os olhos e piscou repetidamente, quando a forte luz deslumbrou suas pupilas. Quase em seguida, inclinado sobre ela, viu Ivan Guriev a seu lado, apoiado na cama com um cotovelo. O telefone continuava tocan­do... E o famoso espião Ivan Guriev parecia não ouvi-lo.

— Bom dia, Ivan... — sorriu docemente a mulher.

— Sacha Bosorin — disse ele: — Te amo.

A mulher levantou sua mão até o queixo de Ivan.

— Sabia que diria isso. Está acordado há muito tempo?

— Há pouco. O suficiente para tomar banho e me barbear... A quem você amou antes de mim, Sacha?

Ela levantou as sobrancelhas.

— Você sabe que a ninguém, Ivan Guriev.

— E a maquininha elétrica de barbear?

— Não acha que uma mulher pode precisar, em certo momento, de uma maquininha elétri­ca? Ivan está com ciúmes?

Ivan sorriu veladamente. Levantou-se e se encaminhou para o pequeno "living" da casa. Por trás dele, entrando por um lado da janela do dormitório de Sacha Bosorin, um raio de sol se arrastava pelo chão.

Guriev levantou o fone.

— Alô?

— John Halsey?

— Perfeitamente.

— Sou David Berwick. O senhor está lembrado de que esta manhã, as onze, tem de ir ao encon­tro de nosso representante, que vem do Norte?

— Lembro-me perfeitamente, senhor Berwick. Tudo sairá bem, não se preocupe. Mais alguma novidade?

— Nenhuma Halsey. Já sabe onde esta­remos esperando o senhor e nosso representante.

— Estaremos lá na hora prevista.

— Magnífico. A comissão será excelente para o senhor, Halsey. Felicito-o.

— Obrigado senhor Berwick.

Ivan Guriev desligou, sorrindo disfarçadamente, dando as costas para o dormitório de Sacha Bosorin. Virou-se quando ouviu o roçar de pés no chão. Sacha se limitara a cobrir os ombros com uma leve bata e caminhava lentamente para ele.

Enlaçou-lhe o pescoço e o beijou nos lábios, devagar, com paixão reprimida.

— Ivan Guriev — sussurrou ela, com ternura. — Que será de nós, depois?

— Não vai perguntar quem telefonou?

— Ouvi pronunciar o nome de Berwick... Então, só pode ter sido David Berwick.. Ou seja, Valerian Yukoff. Acaso alguém mais poderia te­lefonar para Ivan Guriev... Ou John Halsey?

— Não sei...

— Você está inquieto, Ivan?

— Sim... É um assunto muito importante... E já houve uma falha. Tenho que ir buscar Adair W. Machiner Sacha... Que acontecerá? Tal­vez... Não possa voltar para o seu lado.

Sacha Bosorin apoiou sua cabeça no peito do espião.

— Você voltará Ivan... E, então, talvez quei­ra responder minha pergunta, que será de nós, mais tarde?

Ivan Guriev afastou Sacha delicadamente, para acariciar-lhe as faces com a mão um tanto trê­mula.

— Não posso saber o que será de nós Sacha. Mas seja o que for, acho que continuarei amando-a... Sempre!

— Meu coração diz que você está sendo sin­cero Ivan.

— Seu coração não se engana, Sacha. Juro que não sei o que vai acontecer. Mas seja o que for meu amor será sempre seu. Encontrei em poucas horas o que jamais tive em muitos anos. E não poderei nem quero esquecer, Sacha Bosorin.

— Ivan, beije-me. Eu lhe suplico. E se não nos virmos mais, lembre-se de que tampouco que­ro, nem poderei esquecê-lo...

Ivan Guriev estreitou contra seu peito o corpo perfeito de Sacha Bosorin. Fechou os olhos quan­do seus lábios encontraram os dela. Após o beijo, Sacha apoiou o rosto em seu peito, e o rosto de Ivan se crispou num ricto amargo. Quando alguém sabe, dolorosamente, que deverá perder irremissivelmente, o que está tão próximo de si... Por muito que ame...

— Vou tomar uma ducha e me vestir, Ivan. A que horas sairemos?

— Às dez e meia.

— Estarei com você o tempo todo?

— Até que entremos em contato com Adair W. Machiner, sim. Depois iremos encontrar Yu­koff e Yoderian.

— Quisera saber agora mesmo o que será de nós Ivan.

— Não se preocupe. Vá tomar a ducha...

Voltaram a beijar-se. Depois Sacha Bosorin en­trou em seu dormitório para ir ao banheiro.

Ivan Guriev esperou até ouvir o ruído da água do chuveiro. Aproximou-se cautelosamente da porta do banheiro e ficou escutando durante uns segundos. Por fim, voltou ao "living" e se dirigiu ao telefone. Devagar, cuidadosamen­te, discou um número.

— Alô?

— Flowers Lane, 600 — falou Ivan Guriev. — E depois, entrada Norte de Miami, "Great Sun Parador". Finalmente, em Everglades, já de noi­te em princípio Island Road para o Sul,

— De acordo.

— Tudo bem, não?

— Tudo.

Ivan Guriev desligou o telefone. Acendeu um cigarro e foi para o quarto de Sacha Bosorin. Aproxi­mou-se da janela e apoiou a testa no vidro. Lá fora, via-se o ambiente alegre do jardim, as palmeiras, as valetas brancas... Era um lindo dia de sol, apesar de outubro.

Olhando mais para o lado, viu a pequena ga­ragem próxima da casa. Sacha Bosorin devia ter um automóvel de brinquedo, talvez conver­sível... Na verdade, em Miami, exceto por oca­sião das chuvas, podia-se sempre andar de con­versível. E cismava...

Sacha Bosorin. Tinha os olhos muito escuros, brilhantes e grandes. Pestanas muito compridas. Sua pele era de um delicioso tom branco dourado, raro. Quando beijava, a alma vibrava naqueles lábios frescos, cheios. Ivan Guriev considerava até onde poderia chegar à maldade, ou a cruel­dade da indiferença, em uma mulher como Sa­cha Bosorin. Até onde?

— Até muito longe — murmurou. — Se não fosse assim, ela não estaria em Miami. Pode amar com todas as suas forças, eu sei... E também seria capaz de matar-me se fosse para o bem de seu grupo, de sua missão. Seria capaz de matar-me. E, no entanto, Sacha Bosorin, sinto que a amo como se estas horas fossem anos.

Nem você nem eu tivemos sorte, Sacha.

Sacha Bosorin saiu do banheiro dez minutos depois, dirigindo-se ao quarto de vestir. A bata ficara no banheiro. Olhou para Ivan Guriev, sorridente, e assustou-se ao captar aque­la expressão de profundo desalento nos olhos do espião.

— Aborreço-o Ivan Guriev?

Ele não respondeu. Aproximou-se.

***

Saíram de casa uma hora depois, as dez e vinte e cinco. Sacha Bosorin tirou o carro, que era efetivamente um pequeno conversível, e am­bos entraram nele. Ela conduziu o veículo para a esquerda da garagem, tomou à alamedazinha do centro e passou em frente da casa.

Teve de subir com as rodas da direita no can­teiro para não esbarrar em outro carro que encontraram a muito pouca distância de sua casa e cujo motor um homem metia a cabeça, à procura do defeito.

Quando o pequeno conversível se perdeu na distância, o homem tirou a cabeça de dentro do capô. Pôs-se a caminhar até a casa, seguindo o mesmo trajeto do pequeno conversível desde que saíra da garagem. Ia olhando para ambos os lados, aparentemente indiferente.

Mas, encontrou o isqueiro, brilhando, escondido na borda do canteiro que ro­deava a casinha de Sacha Bosorin. O homem tirou um cigarro e um isqueiro. Quando ia acen­der o cigarro, o isqueiro caiu de sua mão sobre a grama. O homem se inclinou, apanhou o isqueiro e acendeu o cigarro.

Fumou-o rapidamente, passeando de um lado para outro. Quando apagou a ponta, três minu­tos depois, voltou para junto do carro, esfregou as mãos furiosamente, como quem diz: "Não posso deixar de consertar a avaria”.

De fato, dois minutos depois, o motor come­çava a funcionar. O homem baixou rapidamente a tampa do capô, correu para seu lugar e o carro se afastou.

Logo em seguida aquele homem parava o car­ro diante do primeiro estabelecimento com tele­fone que achou em seu caminho. Saltou.

Segundos depois, obtinha resposta de sua chamada.

— Fale.

— Sou eu, Corbert. Saíram, ele e uma mulher há menos de dez minutos. Tenho o acendedor. Que faço?

— Venha para cá. Temos de obter imediata­mente estas fotos, fazer cópias ampliadas e enviar uma série delas a Washington, pela radiofoto.

— E eles dois?

— Você fez a sua parte, Corbert. Venha para cá.

— Muito bem.

— Mas a toda velocidade!

— Lá vou eu.

Pousou o fone e saiu tranquilamente para a rua. Mas, uma vez no carro, já não agiu com tanta tranquilidade nem calma, pisando fundo o acele­rador.

Algumas vezes o FBI, por motivos óbvios, ia estendendo, demorando um caso. Outras vezes o êxito ou o fracasso podia depender talvez de uns poucos segundos.

 

O carrinho conversível parou dez e quarenta cinco da manhã, junto a um carro gran­de, escuro, fechado, cuja roda dianteira esquerda estava vazia.

— Aí está o carro — murmurou Sacha Bosorin. Ivan Guriev consultou seu relógio.

— Mas ainda não são onze. Esperaremos... Vamos tomar uma xícara de café.

Desceram. A pequena esplanada dian­te do Great Sun Parador continha um número regular de carros, embora houvesse espaço su­ficiente para estacionar onde se desejasse. Mal estacionou, Ivan Guriev apertou os olhos para ocultar sua expressão quase homicida. Uma das primeiras pessoas que viu sentada em uma mesa, e que justamente consultava o relógio, era um homem de seus cinquenta anos, bem vestido, as­pecto de intelectual... Não olhava para ninguém.

Aproximaram-se os dois do balcão. Ivan olhou para os pés do homem, dissimuladamente. Junto deles viu uma pequena valise quadrada que pa­recia de pele.

— Café — pediu Ivan Guriev.

— Okay, amigo.

Apoiou-se no balcão. Por trás do barman, como nos filmes de faro West, havia um espelho, compri­do e um tanto estreito. Ivan e Sacha se olharam em silêncio. Depois olharam através do espelho para o homem da valise, que se levantou um mi­nuto mais tarde, disposto a ir embora após deixar uma nota sobre a mesa. Na mão esquerda levava a maleta, que parecia bastante pesada, mais do que aparentava.

Sacha olhou para Ivan.

— Que está acontecendo?

Ivan sorriu. Havia gotas de suor em sua fron­te e custou-lhe um terrível esforço engolir a sa­liva parecendo uma enorme bola na garganta, quando olhou para a valise.

— Faz calor — disse amavelmente. Sacha Bosorin pestanejou.

— Calor? Bem... Sim, um pouco... Bem, pa­gue John, ou vamos chegar tarde.

Ivan Guriev estendeu uma nota ao barman que se aproximou o suficiente para ouvi-los falar.

Saíram para a esplanada. Muito próximo da estrada, um homem lia o jornal, sentado no vo­lante do seu carro. No banco traseiro, dois ho­mens mostravam papéis um ao outro, conversan­do animadamente. Ivan Guriev conteve um sorri­so que, de qualquer outro modo, teria sido ocioso.

Dirigiram-se para o conversível. Quan­do iam subir, viram o homem da valise de pé, diante da roda vazia do carro escuro, grande e fechado, com expressão de contrariedade.

— Alguma avaria? — perguntou Guriev amavelmente.

— Deve ter furado. — O homem apontou para a roda. — É esquisito... Quando cheguei aqui não havia notado nada.

— Ou talvez — sorriu Sacha Bosorin — al­guém tenha esvaziado a roda para que o senhor viesse conosco para Miami.

— Seria uma tolice, senhorita.

— Depende. Há tolices que valem um milhão de dólares...

O homem da valise sorriu astutamente.

— Está bem, irei com os senhores. O senhor é Ivan Guriev?

O espião fez uma careta.

— Suba — sussurrou. — Cabemos os três.

— Um momento. Primeiro quero a garantia dos dois milhões e meio de dólares que me prometeram. E não sei se deveria pedir também os dois milhões e meio de Keenan McHale. Afinal de con­tas, se eu não tivesse telefonado para Yukoff...

Que estúpido era aquele homem? Sabia coisas demais. Como poderia esperar que, uma vez entre­gue a carga lhe permitissem continuar com vida?

— Haverá tempo para tudo, Machiner.

— Escute Guriev, quero uma ordem bancária para a América do Sul.

— Se gritar tanto e continuar me chamando de Guriev, o que o senhor conseguirá será um tipo de garantia, para um cemitério. E o pior é que também nos levará, a mim e a Sacha, para esse lugar.

— Quero a garantia bancária, a documentação falsa e a passagem de avião... Quero isso agora! Irei com os senhores para terminar de cumprir o combinado, mas quero isso agora.

— Suba para o carro, Machiner.

A voz de Ivan Guriev foi como um jato gelado que fez Adair W. Machiner empalidecer.

— Está bem.

Ivan Guriev cravou seu olhar na valise.

— E me dê isso — ordenou.

As mãos de Machiner se crisparam na alça da valise.

— Não! Eu vou leva-la.

Novamente surgiram gotas de suor na fronte de Ivan Guriev. Ali estava a carga. E mais além o carro em que um homem lia o jornal e outros dois pareciam falar de negócios. Guriev passou a lín­gua nos lábios. Uma luta pela posse da valise...

— De acordo. Leve o senhor. Mas vamos já. Estão nos esperando.

Cabiam muito justos no único banco do peque­no conversível. Guriev estava numa extremidade e Machiner na outra, tendo Sacha ficado entre os dois, já que cedera o volante a Ivan Guriev.

Antes de sair do estacionamento e tomar a estrada de novo em direção a Miami, Ivan Guriev dirigiu outro olhar para o carro onde estavam os três homens. Nenhum deles parecia haver notado nada. Além disso, dada a distância entre um carro e outro, dificilmente teriam ouvido algu­ma coisa.

O pequeno conversível chegou a Miami, deu umas voltas pela cidade e lá por uma hora da tarde, saiu para Coral Gables, sempre em marcha moderada, parecendo um passeio de amigos.

De Coral Gables, o conversível tomou a estra­da de Everglades, um povoado situado do outro lado da península, muito próximo das Ten Thousand Islands.

Ten Thousand Islands (Dez mil ilhas) era, pro­vavelmente, um nome simbólico, pois não deve­ria ser tão numeroso o pequeno arquipélago. Não, certamente não haveria ali dez mil ilhas...

Mas, uma que fosse já bastaria.

Não havia cento e sessenta quilômetros entre Miami e Everglades. Apesar disto e da estrada ser bem conservada, o conversível levou quase três horas.

Quatro da tarde, quando entraram em Ever­glades. O calor era forte e inclusive a luminosa Sacha Bosorin dava mostras evidentes de cansa­ço, de aborrecimento.

Entretanto, quem mais suava, sempre em pe­quenas gotas, era Ivan Guriev, cujos olhos pestanejavam nervosamente, cada vez que, de modo discreto, pousavam na esquisita valise de couro, de Adair W. Machiner. Afinal de contas, aquela valise era falsa e dentro protegendo algo ater­rador, havia uma conveniente capa de chumbo...

 

O conversível parou junto a um motel cha­mado "Everglades", e seus ocupantes lá permaneceram quase duas horas, sentados em uma mesa estrategicamente situada em frente ao aparelho de televisão.

Comeram despreocupadamente, ao que parecia. Sacha Bosorin foi a que prestou mais atenção ao programa de TV. À estrada, Island Road, não tinha o tráfego intenso da que levava a Miami, do norte da península, mas, de vez em quando, a enervantes intervalos quase regulares, o motor de um caminhão, ou de um auto­móvel, abafava as palavras dos atores do vídeo.

Adair W. Machiner mostrou-se o mais nervoso. Depois de haver consultado o relógio pelo menos umas dezena de vezes, murmurou:

— Logo serão seis horas.

Ivan Guriev começou a levantar.

— Nesse caso...

Sacha Bosorin pôs uma de suas delicadas mãos no antebraço do famoso espião russo.

— Oh, esperem... Vejamos como acaba aqui­lo — apontou para o televisor.

— Como quiser, Sacha.

Ivan Guriev tornou a sentar-se e um estranho calafrio o fez estremecer. Porem seu rosto parecia uma máscara petrificada.

Cinco minutos depois, Sacha levantou-se, rindo.

— Gostei! Foi uma bobagem divertidíssima... Machiner quase gaguejou:

— Vamos agora?

— Claro! O programa terminou...

Sacha e Machiner se dirigiram para a porta enquanto Guriev deixava uma generosa quantia sobre a mesa. Foi atrás dele e chegou junto do carro quando ambos já estavam sentados.

— Continue dirigindo você — pediu Sacha Bosorin.

— Certamente.

Primeiro deram uma volta por Everglades. Na­quela ocasião, toda precaução era pouca...

Quando, por fim, depois de haver deixado Ever­glades para trás, chegaram ao cruzamento de Island Road com a estrada que levava para o norte, Ivan Guriev parou o carro, junto à margem da direita.

Consultou seu relógio.

— Sete. Fomos pontuais...

 

Um carro, de estranha cor de berinjela, apare­ceu de repente num extremo de um dos caminhos laterais. Fez uma manobra diante do conversí­vel e depois entrou por outro caminho, dessa vez à direita.

— Aí está Ivan — advertiu Sacha.

— Já vi...

O conversível seguiu o carro de cor berin­jela pelo caminho lateral, saltando pelas saliên­cias de terra. O ruído do mar começou a chegar até eles como um sussurro obsessivo. Dez minu­tos depois, o carro cor de berinjela parava rela­tivamente perto de um canto escarpado da praia, em frente de uma pequena esplanada. Algumas gaivotas, um tanto assustadas, estendiam suas amplas asas sobre o mar, que começava a tomar o tom cor de amora do ocaso.

Ivan Guriev freou a muito pouca distância do outro carro. Viu Sacha Bosorin abrir o porta luvas, mas não lhe deu nenhuma im­portância até ver na mão direita da mulher uma pequena pistola, brilhante, expressiva.

— Sacha que é isso... ?

Sacha Bosorin não respondeu. Sem olhar para Ivan Guriev, virou-se graciosamente para Adair W. Machiner, que estava prestando toda a sua atenção no outro carro.

Fora um erro.

Fora um erro por parte de Machiner. Um erro, ainda que não houvesse sido cometido, dificilmen­te teria mudado o curso dos acontecimentos.

Adair W. Machiner estava condenado à morte. De um modo ou de outro, em mãos de um ou de outro, teria morrido.

Mas foi Sacha Bosorin quem apontou com es­tranha delicadeza, a pequena pistola na sua fron­te. Machiner sentiu o frio aço naquele lado de sua cabeça e quis virar-se, com um princípio de exclamação nos lábios...

O estampido da pequena pistola soou um tanto apagado, abafado. A fronte de Machiner se cha­muscou, tomou um tom avermelhado por um ins­tante. Depois, o tom se apagou, passando a um indescritível violáceo, com um filete de sangue.

Adair W. Machiner inclinou-se para Sacha Bo­sorin. Sua cabeça chocou brandamente contra os seios da mulher, que se apressou em afastar o cadáver, empurrando-o indiferente pela portinhola.

— Aí está, Ivan Guriev — disse num tom abor­recido.

Ivan Guriev afrouxou apressadamente as mãos que se haviam crispado no volante azul. Esforçou-se para não olhar para a pequena valise, cuja capa externa de couro havia uma outra de chumbo.

Apesar das inevitáveis gotas de suor na testa, Ivan conseguiu fazer um gesto inexpressivo, indiferente.

— Bom trabalho, Sacha. Vamos para...

Não disse mais nada, pois do carro cor de berin­jela, haviam descido três homens que corriam para lá de pistola em punho. Ivan viu-se logo sob a mira das três pistolas.

Quem as empunhavam eram Valerian Yukoff, Leon Yoderian e um homem desconhecido para Ivan Guriev.

Quando este estava prestes a protestar por aquela exibição de armas, Valerian Yukoff, sor­riu, olhando para Sacha.

— Está morto? — perguntou.

— Certamente — disse ela. — Tire-o logo daqui.

— Agora mesmo, querida Sacha Bosorin — riu Yukoff. Olhou para o homem desconhecido de Ivan Guriev: — Zukor pegue a valise.

Zukor obedeceu prontamente. O suor aumen­tou na ampla testa de Ivan Guriev. De soslaio, notou que a pistola de Yoderian não se afastava um milímetro da linha mortal que se dirigia até seu coração.

Apesar da revelação que significava aquela ameaça de tiro, Ivan Guriev conseguiu di­zer friamente, entre dentes:

— Não percamos tempo, Valerian Yukoff.

Este se voltou muito sorridente para Guriev.

— Certamente que não, amado Ivan Guriev. Desça do carro. Temos coisas a fa­zer. Sacha fará sua parte. Alguma objeção Sa­cha Bosorin?

— Nenhuma Valerian Yukoff.

— Adiante, então. Não pensa em descer, Ivan Guriev?

Guriev obedeceu. Em seu flanco esquerdo a pistola parecia abrasar-lhe as costelas. Em sua mão direita a quentura era terrível. Em seu coração, as pulsações haviam duplicado de veloci­dade.

Quando ambos estavam fora do carro, Yukoff disse:

— Zukor, ajude Sacha. Ela é a encarregada do cadáver de Adair W. Machiner.

Guriev passou a língua pelos lábios. Aquele era um mau dia. Seguramente, acabaria mal... Pelo menos para ele. Entretanto, teria de chegar ao fim. Haveria um fim... Um fim possivelmen­te inesperado para alguém. Mas um fim. Seria inesperado para Ivan Guriev?

Fosse como fosse, Leon Yoderian não afasta­va nem um décimo de polegada a direção do cano de sua pistola.

Zukor e Sacha havia colocado novamente o cadáver de Adair W. Machiner no assento do carro, junto ao volante, depois que a moça, en­tediada, o tinha empurrado para o chão. Sacha Bosorin rodeou o conversível pela frente e pas­sou diante de Ivan Guriev.

Não se atreveu a beijá-lo. Aquilo era algo tão... Íntimo. Nem sequer deviam os seus companheiros saber, adivinhar...

Sacha Bosorin sentou-se ao volante.

— Até já.

— Há tempo Sacha — riu Valerian Yukoff. — Não se apresse. Faça as coisas bem feitas.

O conversível adiantou uns metros, parou, gi­rou nas rodas traseiras, recuou, girou mais nas ro­das traseiras... Pouco depois saía da pequena esplanada, cujos pés o mar rugia, indiferente.

As gaivotas pareciam ter as cores do arco íris ao refletir na plumagem esbranquiçada o por do sol.

Ivan Guriev suspirou profundamente.

— Acho que chegou o momento...

Quis mover-se, caminhar para qualquer lado.

O motor do pequeno conversível já não era ouvido. O ruído do mar o absorvia...

Leon Yoderian adiantou-se um passo, cravou a ponta de sua pistola no estômago de Ivan Gu­riev e, com a mão esquerda, tirou habilmente a pistola de sua axila.

Ivan Guriev franziu a testa e sua mão direita, como uma garra, quis agarrar o paletó de Yode­rian.

— Ouça estúpido, que está...?

— Cale-se, Ivan Guriev — cortou Yukoff. — A farsa está terminada. Já não é útil.

Ivan Guriev quis enrubescer de raiva, para si­mular, para levar seu papel até às últimas consequências. Mas suas emoções físicas não res­ponderam aos seus desejos cerebrais.

Empalideceu intensamente.

Entretanto, suas palavras mostraram um gran­de domínio de seu estado de ânimo, ate sua co­ragem:

— Já não lhe sou útil, Valerian Yukoff? Pode explicar isto de um modo satisfatório? Receio que você esteja esquecendo de que está li­dando com Ivan Guriev, o homem mais...

— Ivan Guriev! — riu Yukoff. Seus olhos voltaram-se para Zukor. — Diga-lhe quem é Zukor. Diga a verdade.

Zukor também mirava Ivan Guriev com sua pistola. Disse:

— Um agente da C.IA... Ou do FBI. Só pode ser uma destas duas coisas. Quase me inclino a favor do FBI. Sua função consiste na segurança interna dos Estados Unidos. Uma mis­são como essa de evitar tão hábil manobra russa, só pode ser encomendada a um agente do FBI que, de acordo com nossos cálculos, usur­pou a personalidade de Ivan Guriev, o melhor homem da Rússia.

Valerian Yukoff riu sonoramente.

— Agora, Zukor, diga o nome. Não perca mais tempo. Vamos, diga.

Zukor sorriu.

— Clarence Hadaway. E, exatamente, perten­ce ao FBI.

O até então Ivan Guriev notou que suas per­nas perdiam consistência. Sentiu nos joelhos uma brandura estranha, um tremor terrível, incontrolável, irreprimível...

— Ouça Yukoff...

— Eu ouço atentamente Clarence Hadaway — riu Yukoff. — Nós admiramos homens como você, homens como nós mesmos, homens como o verdadeiro Ivan Guriev. Na verdade, Clarence Hadaway, você merece o nosso maior respeito. Por seu valor, inteligência, audácia, pela dedicação a sua pátria, por seus conhecimentos do mais per­feito idioma russo, matizado do mais puro acen­to. Por sua serenidade, força física, seus nervos de aço, por sua constância nos estu­dos, pelo número um de sua promoção em Quântico, pela habilidade para falar, men­tir, tramar, adivinhar, intuir, para manter o rosto na mais inescrutável das ex­pressões... Admiramos você por tudo isso, Clarence Kadaway. Mas você tem de morrer... E espe­ramos que compreenda que nós, lamen­temos no que se refere à solidariedade profis­sional, sejamos quem o tenha de matar.

Ivan Guriev pôs os ombros para trás e ergueu o queixo.

— E se estiverem enganados? E se eu for Ivan Guriev?

A resposta foi claríssima. Três pares de olhos atentos estavam fixos nele. Três amplos sorrisos indescritíveis nos lábios dos três rus­sos.

— Clarence Hadaway — sussurrou quase ternamente Yukoff. — A farsa está terminada... Quer dizer, falta um só detalhe, sua morte. Mos­tre sua inteligência e sua coragem não insistin­do em sua falsa personalidade. Não vai nos con­vencer.

— De acordo — o falso Guriev pareceu am­pliar-se, crescer — sou Clarence Hadaway e per­tenço ao FBI. Agente especial número um, sob as ordens diretas de John Edgar Hoover, envia­do de Washington a Miami. Quero dizer uma coisa, esse projétil não será disparado contra Corralillo.

Houve um breve brilho de admiração nos olhos dos espiões soviéticos.

— Será disparado — assegurou Yukoff. — Te­mos o foguete em uma das ilhas. Temos a carga — apontou para a valise que Zukor segurava. — Temos tudo, Clarence Hadaway. Por que não há de sair o projétil atômico?

— Eu, Clarence Hadaway, o impedirei.

Zukor e Yoderian deram uma gargalhada. Mas Valerian Yukoff era um pouco mais inteligente.

— Você vai impedir Clarence Hadaway? Co­mo o fará?

Clarence Hadaway sorriu.

— Posso fumar?

— Sim. Mas será Yoderian quem lhe dará o ci­garro... E quem o acenderá. Faça-o, Leon.

— Ouça Valerian, este homem...

— Dê-lhe um cigarro!

Leon Yoderian atirou aos pés de Clarence Ha­daway um maço de cigarros americanos, cer­tamente, assim como um isqueiro. O agente especial do FBI tirou um cigarro, acendeu e olhou para Valerian Yukoff.

Deu um longo trago e disse:

— Informação contra informação, Yukoff. E podemos falar em russo, para maior comodidade...

— Falo o inglês quase melhor que o russo.

— Todavia, falaremos em russo. Diga como chegou à verdade a meu respeito. Se você não falar primeiro, nada feito.

Valerian Yukoff consultou o relógio.

— De acordo, Hadaway. Então, aqui vai. Nós sabíamos que havia um agente do FBI chamado Clarence Hadaway que se parecia extraordina­riamente com Ivan Guriev. Não se admire... Por acaso vocês não sabiam da existência de Ivan Guriev? Pois bem, quando o lançamento do pro­jétil a Corralillo foi planejado, sentimos que a coisa ia ser difícil. Não poderíamos trazer a car­ga atômica da Rússia. Trazê-la de Cuba seria uma temeridade. A única solução era carga ter de pro­vir daqui mesmo, deste país.

— E encontraram dois homens que, por cinco milhões e meio de dólares, lhes arranjariam a carga.

— Exatamente. Seus nomes são... Eram Ke­enan McHale e Adair W. Machiner. Você sabe perfeitamente o que aconteceu com eles.

— Sei.

— O que não sabe é que, o tempo todo, em­bora enganados, esses homens seguiram nossas instruções.

— Acho que não estou compreendendo, Yukoff.

— Compreenderá logo, Clarence Hadaway. Ke­enan McHale cumpriu parte de sua tarefa ao te­lefonar do hotel e enganar o inspetor Wharton. O que McHale não sabia era que, depois de cum­prir sua parte, seria jogado por uma janela. Ele acreditava que subiria ao seu quarto, deixaria lá as malas e poderia fugir tranquilamente, depois de dizer a Henry Wharton o suficiente para que ele entrasse em ação. Entretanto, McHale devia morrer... E Yoderian se encarregou disso.

— E isso tudo?

— E isso tudo foi para dar crédito ao caso. Um caso tão grave, Clarence Hadaway, que forçosamente o inspetor chefe da Delegacia do FBI em Miami, Wharton, se veria obrigado a entrar em contato com Edgar Hoover.

— E assim fez.

— Naturalmente — sorriu Yukoff. — Tudo es­tava saindo bem. O assassinato de Keenan McHale pareceu uma represália nossa quan­do, na realidade, não era mais do que uma par­te de nosso plano. A fase seguinte do plano se­ria você, Hadaway, quase o sósia perfeito de Ivan Guriev, entrando em ação. Tínhamos es­peranças que, baseados nas informações de Keenan McHale, você tentaria se passar por Ivan Guriev. E assim aconteceu.

— Vocês sempre souberam que eu era Claren­ce Hadaway?

— Naturalmente. E lhe direi mais, Hadaway, tudo estava calculado para lhe dar toda a facilidade de substituir Ivan Guriev.

— Tudo?

— Tudo. Desde o começo, a nossa intenção era que você ocupasse o lugar de Ivan Guriev. Para atingir esse fim nada foi esquecido, "o serviço" de Keenan McHale, a prisão do verdadeiro Ivan Guriev, a morte de Boris Kailovich... E tudo deu excelente resultado.

Clarence Hadaway teve a impressão de que seu coração se transformava num pedaço de gelo.

— Devo... Devo entender que vocês sacrifica­ram Ivan Guriev e Boris Kailovich, o homem que foi me esperar no porto de Miami, com o único fim de que eu pudesse aparecer como Ivan Guriev?

— Exato Clarence Hadaway.

— Mentira!

— Não é mentira. Ouça: Keenan McHale, ten­tado por dois e meio milhões de dólares, cum­priu sua parte. Adair W. Machiner, também. Os dois estavam condenados à morte, como é na­tural. Mas resta Boris Kailovich. Ele não sabia que quando foi ao cais buscar Ivan Guriev ia ao encontro de sua morte. Kailovich havia perdido a utilidade e não poderia lhe dizer, para que tudo saísse bem para a Rússia, ele devia morrer. Por isso não lhe foi dito nada. Foi para o porto acreditando que, o autêntico Ivan Gu­riev chegaria. E morreu.

— Vocês... Vocês sabiam que ele ia morrer...

— Sim, certamente.

— E o enviaram para lá?

— Não só o enviamos como Yoderian e eu conversamos diante dele e de Sacha Bosorin, como se tudo fosse verdade, como se fosse certo que o autêntico Ivan Guriev fosse chegar a Mia­mi para orientar-nos.

— Sacha Bosorin também não sabia da ver­dade?

— Não. Mas ela sabia que devia ajudá-lo.

— Então... Ivan Guriev sabia da verdade?

— Sim. Era nosso melhor homem. E, por ser, soube sacrificar-se, deixar-se prender para que você ocupasse seu lugar, de acordo com as instruções que havia recebido. Ivan Guriev en­cerrou a carreira com a melhor de suas atua­ções.

— Deixou prender-se de propósito?

— Sim.

— Mas, para quê? — Hadaway quase gritou.

— Para que você ocupasse seu lugar.

— Que... Que ganhariam com isso?

— Que ganharíamos? — riu Yukoff outra vez. — Já vai entender. Todos os cientistas de Cabo Canaveral estão vigiados. Seria impossível a qualquer deles sair da base com uma carga atômica... A menos que o FBI determinasse. E assim aconteceu no caso de Adair W. Machiner. E sabe por que o deixaram sair, fazendo-se de ingênuos, com uma carga atô­mica? Porque sabiam que eram ordens superio­res, que deixando Machiner sair com a carga, cumpriam ordens superiores, em benefício da atuação do FBI! Serei mais claro, se você não tivesse ocupado o lugar de Ivan Guriev, Adair W. Machiner jamais teria saído de Cabo Cana­veral com a carga atômica. Mas, sabendo que aquilo era colaborar com o trabalho do FBI, o deixaram sair. Sabiam que o FBI estava na pista de Machiner e que, para poder segui-lo, convinha deixá-lo com a carga. Confiavam em você, Clarence Hadaway, no falso Ivan Guriev.

— É claro — admitiu Hadaway pesaroso. — Se Machiner pôde sair de Cabo Canaveral com essa carga atômica, era porque convinha aos planos do FBI, que confiavam que eu vence­ria Ivan Guriev. Eu devia seguir Machiner, sa­ber quem e onde entregaria a carga e prender todos. Todos...

— Isso foi o que nós pensamos. Se fosse o verdadeiro Ivan Guriev a encarregar-se de tudo, nada teríamos conseguido. Mas, sendo você, Cla­rence Hadaway, sabíamos que deixariam a carga em poder de Machiner... E que essa carga che­garia ao nosso poder. Agora, já sabe por que Ivan Guriev se deixou prender, a fim de que você ocupasse seu lugar e a carga atômica que estava sob a sua vigilância viesse parar em nossas mãos.

— Quer dizer que Ivan Guriev se sacrificou voluntariamente...

— Sim.

— Mas, em compensação, Boris Kailovich e Sacha Bosorin não sabiam que eu substituiria Ivan Guriev, de acordo com a informação que nos forneceu Keenan McHale.

— É isso. Guriev sabia da verdade. Mas Kai­lovich e Sacha não. Tampouco Keenan McHale, que se limitou a cumprir nossas instruções. E, finalmente, Clarence Hadaway, graças ao sacri­fício involuntário de Kailovich e ao voluntário de Ivan Guriev, nós temos a carga, para ser utilizada. Reconheça nossa inteligência, gra­ças a você, a havermos nós temos a carga. Co­mo barrariam a passagem dessa carga, vigiada por um dos melhores homens do FBI? Esses foram nossos planos. Por isso, morreram Kailovich, McHale, Machiner... Por isso Sacha Bosorin está agora afastada daqui, ignorando a verdade. Por isso, Ivan Guriev veio até Miami para deixar-se prender e você pudesse passar por ele... Por isso, finalmente, Claren­ce Hadaway, você vai morrer. Uma troca per­feita, Ivan Guriev por Clarence Hadaway. Uma troca quase igual. Digo quase porque o que Ivan Guriev fez, ou seja, deixar-se prender volunta­riamente para glória da Rússia, você não teria feito para glória dos Estados Unidos.

Clarence Hadaway engoliu saliva. Por cer­to, só a ideia de procurar uma solução para sua delicadíssima situação seria um absurdo.

Disse:

— Há algo com que vocês não contaram Yukoff. Quem disparará o projétil?

Yukoff arqueou as sobrancelhas.

— Quem?

— Sim. Quem fará, agora que não têm nem Keenan McHale, nem Adair W. Machiner, os dois malditos traidores de sua pátria?

Valerian Yukoff soltou uma grotesca garga­lhada.

— Clarence Hadaway!... Realmente acredita que confiaríamos nos dois ameri­canos para lançar o foguete contra Cuba?

— Acreditava — Hadaway estava cada vez mais pálido.

— Que estupidez! Do mesmo modo que nós, Yoderian, Zukor, Kailovich, Sacha e eu, há nos Estados Unidos muitos agentes russos. Alguns deles sabem como se maneja um projétil des­ses. Três desses homens estão esperando, em uma das ilhas, pela carga atômica. Quando a tiverem, o foguete sairá com destino a Corralillo, Cuba...

— Ma... Mas... Um projétil não se dispara assim... É preciso uma plataforma, uma orien­tação...

— Tivemos meses e submarinos para mon­tar tudo isso em uma das Ten Thousand Islands, Clarence Hadaway. Existe a plataforma e seu mecanismo para o disparo do foguete. Está tudo magistralmente camuflado num dos subterrâneos da ilha. Também a torre da carga atômi­ca... Tudo! E lhe direi mais, há uma carga es­pecial que destruirá todo o local logo depois de disparado o projétil, de tal modo que os Estados Unidos jamais poderão provar diante de qual­quer comissão investigadora que o projétil foi montado por nós, os russos. E também deve sa­ber Clarence Hadaway, que disparando ou não o projétil, a plataforma e qualquer outro indício serão destruídos. Jamais, em momento algum, seja ou não disparado o projétil, poderão provar que era um dos nossos. O mundo inteiro acreditará que o projétil criminoso saiu de uma das bases norte-americanas. Isso é tudo, Claren­ce Hadaway.

— Não. — falou Yoderian. — Isso não é tudo, Valeriam Pergunte-lhe como pensa impedir nos­sos planos.

— Não seja estúpido, Leon. Clarence Hada­way não está em condições de impedir nada nem ninguém. E se eu lhe revelei todos os nossos planos, foi para convencê-lo, antes de morrer, de que ninguém jamais poderá deter a Rússia. Não pode haver dois gigantes no mundo. E não exis­tirão, pois um deles terá de se humilhar ante o mais completo desprestígio. Dispararemos o pro­jétil. Mas, por que está tardando a lancha, Zu­kor?

— Combinamos que viria cinco minutos depois do anoitecer. E já está passando da hora...

Clarence Hadaway levantou os olhos para o céu, um tanto azul, um tanto pálido. Para o lado do leste se mostrava mais escuro. Dentro de pou­co, talvez uns três ou quatro minutos, aquele lugar adquiriria o negro da noite... Uma noite fechada, para Clarence Hadaway... Quando uma daquelas pistolas vomitasse, em meio a uma pincelada de cor laranja, cor vio­leta, cor de amora, de morte, um chumbo cer­teiro no coração de um dos melhores homens do FBI...

Por que não admitir, um ou dois minutos an­tes de morrer, que os soviéticos haviam sido fantasticamente mais inteligentes? Havia sacrificado um de seus melhores homens, Ivan Guriev. No entanto, o triunfo bem valia um homem.

O zumbido do motor de uma lancha cortou o silêncio da noite, primeiro muito vago, depois com mais força, mais clareza.

— Mato ele agora? — perguntou Yoderian, com indiferença.

— Sim.

Um consentimento, mais frio do que a proposta. Havia um plano a cumprir e a vida de outro homem não teria importância. Se não havia tido a de Ivan Guriev, como podia ter a de Clarence Hadaway?

Yoderian olhou fixamente para Clarence Ha­daway. Na obscuridade da noite próxima, os olhos escuros do eslavo nada expressavam. Olhos da morte, sua tarefa, sua missão. Clarence Hadaway não poderia criticá-lo, censurá-lo, chamá-lo assassino... No mais profundo de seu coração admitia que ele, nas mesmas circunstân­cias, teria feito igual. Por que não dizer a si mesmo a verdade? Ele, Clarence Hadaway, teria sido capaz de matar friamente outro homem, se disso dependesse um plano em benefício de sua pátria.

Nem sequer poderia sentir raiva de Leon Yo­derian.

Mas podia gemer:

— Não! Não! Yoderian... Não...!

Leon Yoderian não se deixou enganar:

— Deixe de bobagens, ianque. Sei que não está com medo de morrer. Só lamenta o fracas­so, morrer sem haver triunfado nesta missão. Mas alguém tem de perder. Hoje é você, ama­nhã serei eu... Por muito que gema, que chore, não conseguirá convencer-me de que teme por sua vida somente... Morra... Bang, bang!...

Os dois estampidos soaram quase juntos no tranquilo anoitecer. Já não havia gaivotas no ar, já não havia pinceladas de sol no céu, já não havia uma luz para a qual dirigir os olhos. Sa­cha Bosorin já não estava ao lado dele para di­zer-lhe que a amava, que seu último pensamento era para ela.

Só o negro mortal da noite.

Leon Yoderian viu Clarence Hadaway cair para trás, para o abismo, levando ao peito as mãos... Viu-o retorcer no ar por um momento. Viu-o cair nas rochas mais abaixo, onde o mar arrebentava furiosamente, em uma espuma branca, brilhante.

Quando olhou para baixo, com a potente pis­tola fumegante em sua mão, um punhado da­quela branquíssima espuma brilhando na noite, salpicou seus lábios.

Lá embaixo, nada... Somente a água, indife­rente, sinistra.

— Matou-o?

Leon Yoderian provou a água salgada. Era agradável. E lá embaixo, nada, Só aquela água deliciosa.

— Claro. O mar o tragou.

— Vamos para a lancha. Estão nos esperando.

— Bem. E Sacha?

— Ela já sabe que deve voltar para casa no seu carro e esperar lá nossas instruções.

Yoderian olhou para Yukoff na obscuridade.

— O que acha que aconteceu entre ela e Hadaway? Vi que olhava para ele de uma maneira...

— De que maneira?

— Eu diria que Sacha Bosorin amava quem ela acreditava ser Ivan Guriev... O que pensa que se passou esta noite, na casa de Flowers Lane entre eles?

— Isso não nos importa Leon. Depois de vá­rios anos de permanência nos Estados Unidos nos foi dada uma incumbência. Tudo que temos a fazer é cumpri-la... Acima de tudo. Vamos para a lancha.

O assassino Leon Yoderian guardou sua pis­tola.

— Não me importa matar, Valerian, eu lhe juro. Fomos treinados para isso desde os dez anos. Mas, na verdade, digo que sinto alguma pena de Sacha Bosorin. O que vi nos seus olhos quando olhava para esse Clarence Hadaway...

— Vamos para a lancha, Leon.

— Sim... Vamos.

 

Clarence Hadaway sentiu o contato brutal do chumbo em seu ombro esquerdo. Girou no ar, sobre si mesmo, nem sequer soube que Leon Yoderian lhe havia dado dois tiros e não um.

De uma altura que não pôde determinar, seu corpo, ferido caiu na borbulhante espuma.

Em sua perna esquerda surgiu, de repente, uma dor intensa, um choque brusco, como quan­do jogava "rúgbi". Sentiu suas costas ralar nas rochas. Depois, seus lábios pareceram beijar a pedra. Não era como os lábios de Sacha Bosorin...

Por um momento ficou preso num rebordo, agarrado desesperadamente ali com ambas às mãos, sentindo como a esquerda ia perdendo as forças rapidamente. Era como se fosse adorme­cendo, mas as dores seriam menos intensas.

A água o empapou, pulverizada, depois de se chocar, doze pés abaixo, com a rocha na qual se sustentava.

Ouviu que dizia lá em cima:

—Matou-o?

— Claro. O mar o tragou.

Depois ouviu mais algumas coisas, que não sou­be ou não pode entender. Eram as vozes... Abaixo, perto de suas pernas, o mar rugia in­cessantemente.

A noite era total.

Um estupor gelado o invadiu. Sua mão esquer­da parecia morta. A direita começava a doer horrivelmente. A água maldita con­tinuava seu movimento borbulhante. Pouco de­pois se ouviu o motor da lancha.

Clarence Hadaway olhou para o céu. Havia muitas estrelas. Entre elas, uma, muito grande, a sua...

— Espere "Darling"... Vou para aí... Para cima...

Poderia conseguir? Um milhão de dores nas­ceu em seu corpo. Ele era Clarence Hadaway, entretanto...

— Para ci... Ma, Clarence...

Não soube quanto tempo levou. Apenas que, algum tempo depois, estava caído, de bruços, sobre a rocha na qual se havia agarrado. Du­rante uns minutos, respirou sossegadamente, esforçando-se para recuperar o fôlego, se acalmar e controlar a dor.

Dois minutos?

Talvez dez talvez vinte... Talvez horas ou dias.

Por cima dele, um motor rugia fortemente a alguma distância. Uma hélice longa, brilhante, lançava brisa marinha para o céu...

Clarence Hadaway tirou os sapatos e os colo­cou diante de si. Quebrou as unhas ao arrancar, nervosamente, os saltos, ocos. Nos dois sapatos havia umas peças... Juntou-as, espalmou e en­caixou. Depois aproximou de sua boca algo que parecia um diminuto chiclete.

— Aqui... Hadaway... Ferido... Possivel­mente perna esquerda fraturada... Caído rocha próximo do... Do mar... Sabiam... O tempo to­do... Que eu era Clarence Hadaway... E não... E não... Ivan Guriev... Lancha a motor... Vai para... Base foguete... Dispõem de técnicos russos, espiões infiltrados... No país. Machiner, morto por eles... Dispõem de carga atômica... Lancha a motor...

De repente sua cabeça caiu sobre as peças, bamboleando. Não pôde ouvir a resposta:

— Ouvido, Clarence. Localizada a lancha. Em perseguição. Parece dirigir-se para uma das pequenas Ten Thousand Islands. Não se mova daí... Não se mova daí... Fala Henry Wharton, do helicóptero. Recebemos men­sagem, fotos estão circulando, costas estão cerca­das. Aviões da força aérea vigiam saída do projé­til... Clarence! A lancha está debaixo de nós... Vamos soltar uma carga... Atenção, Clarence soltamos a carga!...

No céu escuro brotou um clarão vermelho, quase três milhas além do ponto onde se encontrava Clarence Hadaway Por um momento, o clarão pareceu encher o céu todo de luz. Mas, quase de repente, tudo voltou a ser negro escuro.

— Clarence, demos com a lancha!... Espera­mos localizar logo a ilha onde o projétil está camuflado... A carga que Machiner lhes devia proporcionar, do Cabo Canaveral, deve estar des­cendo ao fundo do mar... Nossos "homens-rã" a recuperarão... Não sabemos qual é a ilha, Clarence... Você sabe? Clarence! Clarence!

Um clarão muito mais intenso, muito maior, brotou de repente de uma das pequenas ilhas da costa ocidental da península da Flórida. A ex­plosão foi muito mais forte do que a ante­rior, pedaços de pedra e punhados de terra sal­taram para o ar... O mar se encheu de pequenas crateras invertidas, quando os pedaços de pedra foram caindo na água...

— Clarence, uma das ilhas explodiu. Uma explosão que abalou até o helicóptero. Nada nem ninguém podem ter sobrevivido nessa ilha. Na verdade, toda ela desapareceu. Acho que tudo estava preparado para isso, para que toda a ilha desaparecesse. Vou dar-lhe as primeiras, Clarence, garotão, essa ilha era a que continha o projétil sem carga, onde os técnicos soviéticos estavam à espera e estava pronta para voar pelos ares ao menor sinal de perigo que pudesse comprometer os russos... Fizeram-na explodir ao perceber que a lancha que levava a carga fora detida. Não sobraram nem homens nem aço do projétil... Cessou a grande ameaça, Clarence. Não me ouve, Clarence? Cessou a grande ameaça... Clarence! Clarence!

 

Sacha Bosorin descolou seus lábios dos de seu Ivan.

— Disse-lhe tudo quanto sei de nossa rede, Ivan Guriev. Não omiti nenhum nome, nenhum endereço, dos poucos que conhecia. Agora você está com a perna fraturada e com ferimento em um dos ombros... Mas se conseguir escapar saberá para onde se dirigir para que o ajudem.

Ivan Guriev olhou para o gesso que cobria sua perna. Depois, de soslaio, dirigiu um olhar para seu ombro ferido.

— Não creio que possa escapar, Sacha minha vida.

Ela se ajoelhou diante dele.

— Oh, eu sei Ivan... Jogamos e perdemos... Despedaçaram a lancha. Depois os homens que esperavam naquela ilha a fizeram voar quando compreenderam que os ianques poderiam desco­brir o foguete e mostrar ao mundo os nossos planos. Tudo se perdeu. Depois, vieram dois homens me buscar em casa, em Flowers Lane. E hoje me trazem para vê-lo, vencido, ferido, engessado... Nada poderão pro­var nada sobre os planos de nosso país. Mas pegaram-nos, Ivan, a você e a mim. Não diremos nada. Ainda que me matem, eu nada direi Ivan. Deixaram-me sozinha neste quarto, permitiram que eu viesse vê-lo... Beije-me, Ivan.

Foi Sacha Bosorin quem posou sua boca sobre os pálidos lábios de Ivan Guriev, quem pôs a alma toda em seu beijo... Recebeu um beijo no qual havia também a alma de um homem que amava com todas as suas forças a uma mulher... Que não era para ele, que jamais poderia ser para ele. Uma espiã, uma mulher que matara friamente um homem com um tiro na face... Entretanto o coração de Ivan Guriev só pul­saria com calor se alguma vez voltasse a encon­trar Sacha Bosorin. Nunca mais a encontraria...

— Ivan, diga que me ama... Diga antes que nos separem. Diga que pensará só em mim até morrer... Eu só pensarei em você, Ivan... Diga-me...

— Sacha Bosorin, jamais, enquanto eu viver, meu coração pulsará com força por outra mulher.

Ela, ainda ajoelhada junto dele, acariciou-lhe tremulamente o rosto, com os olhos rasos de lágrimas.

— Ivan, Ivan...

A porta do quarto se abriu bruscamente.

— Acabou — falou, asperamente, Henry Whar­ton. — Levem Sacha Bosorin rapazes.

Ivan Guriev, lívido, viu Paul Leacock e Owen Sanding levarem Sacha Bosorin cada um por um braço. Sacha Bosorin se virava para ele, com olhos chorosos, braços estendidos e mãos trêmu­las...

— Ivan... Meu Ivan...

Ivan Guriev fechou os olhos... Suas mandíbulas estavam apertadas, angustiadamente... De repente, ouviu:

— Ei, Clarence

Curry olhava-o, sorridente, enquanto retirava o microfone dissimulado na parede.

— Foi um bom trabalho, Clarence — prosse­guiu Young Curry. — Com o que gravamos no­mes, endereços e tudo o mais, vai cair em nossas mãos mais de duas dezenas de espiões... Meus parabéns, Clarence. Você é bom mesmo... Ah, escute! Edgar telefonou, pelo fio exclusivo. Em Washington espera-o a nomeação de inspetor — Curry riu. — Às ordens, chefe!... Ouça, não fica contente com o acesso? Por que faz essa cara!

Clarence Hadaway olhava fixamente diante de si, sem ver, cada vez mais pálido, mais triste, mais apagado o seu olhar.

Young enrubesceu levemente.

— Bem, se você está mal...

Henry Wharton, com seus quase cinquenta anos de vida, desviou seu olhar de Clarence Hadaway e o pousou em Curry, com raiva:

— Cale essa boca Curry, e peça a Deus que a vitória nunca lhe seja amarga.

— Mas...

— Já não lhe disse que se calasse?

Young Curry olhou para Clarence Hadaway com mais atenção. Havia vencido, apesar de sua perna engessada, seu braço ferido. Havia vencido, mas...

Young Curry engoliu saliva.

— Sim... Sim, senhor. Acho que não vou dizer mais nada.

                                                                                Lou Carrigan  

 

 

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