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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A GRANDE CRUZADA / Rob MacGregor
A GRANDE CRUZADA / Rob MacGregor

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

INDIANA JONES

A Grande Cruzada

 

Indiana Jones, o incrível arqueólogo aventureiro, está de volta para uma nova expedição que o conduzirá, uma vez mais, ao longo de um desenfreado combate contra as forças do mal.

 Mas primeiro tem de cumprir uma missão pessoal: deve descobrir o paradeiro do pai, o Dr. Henry, conceituado historiador que foi raptado porque alguém pensa que ele sabe onde se encontra o Sagrado Graal, o cálice de ouro que contém o segredo da vida eterna.

 Dos canais de Veneza até às alturas estonteantes dos castelos alemães, passando pelas terras áridas dos desertos orientais, Indiana Jones tudo fará para salvar o pai. Juntos, irão combater a força mais poderosa do século: o nazismo.

 Contudo, existe o nazi disposto a tudo para alcançar a imortalidade...

 - Como pode ver, Dr. Jones, íamos prestes a concluir uma demanda grandiosa que começou à quase dois mil anos. Estamos apenas a um passo de encontrar o Graal.

 Indy sorriu.

 - É então que quase sempre as coisas se começam a complicar.

 Donovan inspirou o ar por entre os dentes e voltou a expeli-lo, um suspiro que revelava um qualquer inconveniente menor que, de uma forma ou de outra, se transformara num fardo. - É capaz de estar mais perto da verdade do que aquilo que pensa.

 - Como assim?

 - Chegámos a um beco sem saída. O indivíduo que chefiava o nosso projecto, desapareceu. O mesmo se passou com o produto das suas investigações. Recebemos um telegrama do colega dele, um tal Schneider. Este não tem qualquer ideia quanto ao seu paradeiro, nem quanto ao que lhe aconteceu... Quero que retome as coisas no ponto onde ele as deixou. Encontre-o e terá encontrado o Graal. É capaz de pensar num desafio maior que este?

 - Veio ter com o Jones errado, Mr. Donovan. Por que razão não tenta o meu pai? Tenho a certeza de que ele ficaria fascinado com a ideia e pronto a ajudá-lo no que fosse possível.

 - Já tentei. O homem que desapareceu é o seu pai...

 

            

 

Colorado: 1912

PERSEGUIÇÄO NO DESERTO

 O comando carregou através do deserto, os cavalos deixaram atrás de si um barulho semelhante ao trovejar, uma nuvem de poeira que se elevava no seu rasto. Cavalgaram bastante depressa, como que para escaparem ao sol que se elevara por sobre uma montanha estéril. A paisagem árida já começava a ser iluminada por uma luz violenta, e não faltava muito para que o deserto se transformasse num forno.

 Mesmo à frente encontrava-se o local para onde se dirigiam, um antigo pueblo rochoso. Os cavaleiros vestidos de uniforme pararam os cavalos assim que viram o comandante levantar a mão.

 - Des-montar - gritou.

 O primeiro a saltar da montada foi um cavaleiro com um tufo de cabelos cor de palha. Deu uma olhadela aos membros do grupo. Pensou que, vistos à distância, talvez lembrassem uma companhia de soldados de cavalaria. No entanto, as coisas eram diferentes de perto. Até mesmo a sua melhor tentativa de os imaginar como soldados fracassava. Era bastante óbvio que se tratava apenas de um batalhão de escuteiros. æ excepção de Mr.

Havelock, ninguém ultrapassava os 13 anos.

 Viu um rapazinho gorducho afastar-se do cavalo. Sabia que o miúdo se chamava Herman, mas não o conhecia bem. Ouvira alguns rapazes dizerem que o Herman tinha problemas em casa. Não tinha a certeza do tipo de problemas, mas era evidente que também tinha problemas aqui. Este dobrou-se, cambaleou, e fez um ar de quem vai cair e bater com a cara no chão. Acabou por parar, encostar as mãos aos joelhos, e começar a vomitar.

 Todos os que estavam perto dele rugiram. Acotovelavam-se e apontavam para aquele escuteiro patético.

 - O Herman enjoou - gritou um deles.

 - Sim, e também molhou a sela - uivou um outro alegremente.

 O escuteiro louro, cujo uniforme ostentava um cinto Hopi, encaminhou-se para Herman e perguntou-lhe se estava bem.

O seu rosto ostentava um ar preocupado e compreensivo, sem vestígio de troça. Era evidente que era menos imaturo que os outros, e ninguém se atreveu a abrir a boca quando ele levou o outro consigo.

 Mr. Havelock gritou aos rapazes que o seguissem com os cavalos. Estes conduziram as montadas na direcção do rochedo e, deixaram os cavalos à sombra do pueblo. Os rapazes reuniram-se à volta do chefe.

 - Agora não se ponham a vadiar por aí. Algumas destas passagens têm várias milhas.

 æ medida que o batalhão marchava atrás do guia, os escuteiros iam conversando em voz baixa.

 - É bom que as coisas melhorem - disse um deles.

 - Sim, o circo chega hoje - murmurou outro. - Podíamos vê-los montar as tendas.

 Iam a subir um trilho antigo que escalava o rochedo. Era poeirento, quente e íngreme. Estavam todos demasiado embrenhados na subi da para prestarem atenção á Herman ou ao rapaz louro que seguia no fim da fila. Um ou dois minutos mais tarde estavam dentro da primeira habitação. Dentro das paredes de adobe estava escuro e o ar era fresco. Depois continuaram a avançar, seguindo um caminho bastante mais frequentado.

 Apesar de ser o último, o miúdo louro era o mais atento de todo o grupo, Era quase como se ele estivesse a sentir o que aquele local deveria ter sido quando era habitado por um qualquer povo antigo. De repente, quando o batalhão virou uma esquina, agarrou Herman por um braço.

 - Chiu! Escuta!

 Herman conteve a respiração, interrogando-se sobre o que poderia ter despertado a atenção do seu novo amigo. Olhou à volta pouco à vontade.

 Partindo do caminho onde estavam, via-se um outro trilho, e, dentro da passagem escura, ouviam-se vozes. Apesar de serem baixas, ouviam-se com nitidez. O rapaz louro fez sinal a Herman para que o seguisse.

 - Anda. Vamos dar uma olhadela.

 Herman olhou para trás, na direcção onde os outros tinham ido. Parecia pouco seguro sobre o que deveria fazer, até que se decidiu e seguiu em frente.

 - Okay, Júnior, lá vou eu.

 Teias de aranha agarravam-se aos cabelos. Esta passagem era mais escura e mais fria, e era óbvio que não era tão movimentada.

 - Para onde vamos? - perguntou Herman.

 O rapaz louro, Júnior, virou-se e levou o indicador aos lábios. As vozes ouviam-se agora com mais nitidez. As paredes à sua frente iluminaram-se subitamente, e viam-se sombras enormes e fantasmagóricas aí projectadas. Os dois rapazes encostaram-se à parede. Sustinham a respiração à medida que avançavam.

 Foi então que o Júnior viu quatro figuras que cavavam, servindo-se de pás e picaretas. Soube de imediato que não se tratava de fantasmas. Tinha a certeza de que eram ladrões e sabiam o que estavam a fazer. Estavam a arrombar uma das

kivas, os aposentos secretos do pueblo.

 O pai era professor de arqueologia e dava aulas na universidade. Sabia tudo a respeito das kivas, e também sobre muitas outras coisas. Tentara fazer que o pai se juntasse hoje aos escuteiros e lhes falasse dos pueblos e do povo que ali vivera. Mas, como sempre, o pai estava demasiado ocupado para se incomodar com um grupo de garotos. Para além disso, dissera ele, esta não era a sua especialidade.

 Júnior examinou os quatro homens o melhor que podia. Um deles era mais pequeno que os outros, e acabou por reparar que não se tratava de um homem. Era apenas um miúdo, não muito mais velho que qualquer um deles. Contudo, tinha algo de duro.

 - Roscoe, levanta a lanterna - disse-Lhe um dos homens.

 O homem que acabara de falar vestia um casaco de cabedal com franjas. Usava um chapéu com a aba levantada de um dos lados, e tinha ar de ser um cavaleiro dos diabos. O homem que se encontrava do outro lado de Roscoe tinha cabelo preto e basto que lhe chegava até aos ombros. Um índio. Não. Um mestiço.

 O último deles estava afastado dos outros três, na sombra.

Usava um casaco de cabedal e um chapéu de feltro castanho, do tipo fedora.

 Sem fazer barulho, o rapazinho louro avançou mais alguns passos para ver melhor. Fez sinal a Herman. Ouviu respirar alto e olhou para trás para o acalmar. Herman tinha a boca aberta e da testa corria-lhe suor.

 "Espero que ele não volte a vomitar. Pelo menos aqui.”

 Herman escorregou numa pedra solta. Esta fez um barulho abafado e o rapaz teve de se agarrar à parede para recuperar o equilíbrio.

 Júnior agachou-se, tentando fazer-se o mais pequeno que podia, colando-se às sombras. Herman seguiu lhe o exemplo.

 - Desculpa - murmurou.

 Júnior pestanejou e mandou calar com um gesto.

 O homem do chapéu voltou-se devagar, levantou a lanterna e olhou na direcção de ambos. Viram-lhe o rosto pela primeira vez.

 - Pensei ter ouvido qualquer coisa - murmurou, voltando de novo as costas.

 Os rapazes estavam simultaneamente assustados e hipnotizados. æ medida que o Fedora deitava água do cantil sobre um objecto envolvido em lama, eles observaram-no atentamente. æ luz da lanterna, Júnior pôde ver que se tratava  de uma cruz de ouro cravejada de pedras preciosas.

 Os amigos do Fedora aproximaram-se.

 - Olhem para aquilo! Estamos ricos! - Rugiu Roscoe.

 - Pouco barulho. Não fales tão alto - ralhou o Mestiço.

 - Espera para ver. Não falta muito para que essa preciosidade renda uns bons dólares - murmurou o Cavaleiro dos Diabos com dureza.

 Fedora pegou na cruz, louvando em silêncio o seu valor e a sua beleza. Dava a sensação de estar afastado dos outros, de lhes ser superior de alguma forma.

 Júnior tocou no ombro de Herman, incapaz de conter quer a

excitação quer a preocupação que sentia.

 - É a Cruz de Coronado! - murmurou. - Fernando Cortes ofereceu-lha em 1520! Prova que Cortes enviou Francisco Coronado procurar as Sete Cidades de Ouro.

 Herman estava espantado.

 - Como é que sabes isso tudo, Júnior?

 O rapaz louro voltou a olhar na direcção dos homens, observando-os durante um bom bocado.

 - Aquela cruz é uma peça importante. O lugar dela é num museu. E faz-me um favor, não me chames Júnior.

 - É assim que Mr. Havelock te chama.

 - O meu nome é Indy.

 Detestava que o tratassem por Júnior. Fazia-o parecer-se com um miúdo de calções. Contudo, e sempre que Lhe falava no problema do nome, o pai ignorava-o.

 Ficaram a observar durante mais uns minutos, até que a expressão de Indy endureceu, exactamente como se tivesse acabado de se decidir. Voltou-se para Herman.

 - Ouve, volta atrás e vai ter com os outros. Diz a Mr.

Havelock que há homens a saquear o pueblo. Diz-lhe que traga o xerife.

 Herman parecia não ter ouvido. Estava a mexer a boca, mas dapoque olhava aterrorizado para uma cobra que Lhe escorregara para o colo, não saía qualquer palavra.

 - É só uma cobra - disse Indy, apanhando-a e atirando-a para o lado. - Ouviste o que eu te disse, Herman? É importante.

 - Certo. Voltar atrás. Mr. Havelock. O xerife. - Fez um gesto de assentimento, e o seu olhar seguiu para lá de Indy.

 - Que vais fazer Jún... Indy? na direcção dos homens.

 - Não sei. Hei-de lembrar-me de alguma coisa. É melhor ires andando.

 Herman desapareceu pela passagem, recapitulando o caminho 1 que fizera, isto enquanto Indy se voltava a ocupar dos ladrões.

 Estes tinham posto a cruz de lado e andavam à procura de mais 12 peças. Devagar, sempre junto à parede, foi avançando até se encontrar muito perto da cruz. Apesar de sujas, asjóias brilhavam à luz da lanterna, chamando-lhe a atenção.

 Aproximou-se, agarrou-a, e quando o fez viu que estava um escorpião agarrado à cruz. Tentou tirá-lo dali, mas a criatura mortífera parecia estar colada ao objecto. Praguejou entre dentes e continuou a abanar a mão. O escorpião caiu, mas ele traíra-se. Os ladrões viraram-se ao mesmo tempo e descobriram-no.

 - Essa coisa é nossa - gritou Roscoe. - Ele tem a nossa coisa.

 - Apanhem-no - gritou o Mestiço. Indy precipitou-se às cegas pela passagem, agarrando-se à cruz, o coração a bater de encontro às costelas. A certa altura olhou para trás e viu um dos ladrões tropeçar e cair, e dois deles chocarem um de encontro ao outro enquanto o tentavam alcançar. Mirou por um momento para ver se o iam deixar em paz. No entanto, não teve essa sorte. Viu o Fedora lançar um olhar enjoado na direcção dos companheiros, e seguir pelo túnel atrás dele. "Raios! Se ao menos o pai ali estivesse", pensava ele enquanto avançava pela escuridão. O pai saberia lidar com aqueles tipos.

imaginou o pai a apontar um dedo acusador aos ladrões e estes a encolherem-se. Sim, ele faria uma coisa desse tipo. Indy

arfava quando saiu da escuridão do pueblo e encontrou a luz quente e clara do dia. Parou, perscrutou o horizonte, e, sustendo a respiração, protegeu os olhos com as mãos. Olhou em todas as direcções. Descobriu que se encontrava no telhado de um nível de pueblos.

 - Herman! Mr. Havelock! Quem quer que seja! Onde estão? - Abanou a cabeça. - Raios, perderam-se todos menos eu - resnungou entre dentes.

 Ouviu passos atrás de si e viu o Fedora aparecer vindo do pueblo. O Cavaleiro dos Diabos, o Mestiço e Roscoe seguiam imediatamente atrás. Indy atravessou o telhado até chegar a uma escada que levava ao nível inferior e ouviu Roscoe gritar quando o viu. Em vez de descer a escada, calculou a distância que o separava do próximo pueblo, pegou na escada, tomou balanço e saltou para o telhado seguinte.

 Três dos ladrões correram até à beira do telhado e pararam bruscamente. Confusos, olharam à volta, tentando descobrir como apanhar o miúdo.

 Entretanto, Indy chegara à beira do telhado e não tinha a certeza do que faria a seguir. Desta vez não havia ali qualquer escada e o solo estava a cerca de vinte pés mais abaixo. Foi então que viu os cavalos a descansar à sombra, no local onde os escuteiros os tinham deixado. Levou os dedos à boca e assobiou, chamando a sua montada. O cavalo abanou a crina e foi ter com ele a trotar.

 Indy olhou para trás e viu Fedora passar pelos companheiros e saltar o abismo. Assim que chegou ao outro lado, parou  durante o tempo suficiente para olhar para os outros com desdém. Então, abanando a cabeça, atirou a escada na direcção onde estes se encontravam.

 Indy agachou-se, para se deixar cair na sela, mas o cavalo não parava quieto; mas ouviu o som de passos ressoar no telhado.

 - Fica quieto. Não te mexas. Porta-te bem.

 Saltou, e foi precisamente nesse momento que o cavalo deu um passo em frente e Indy não conseguiu aterrar na sela. Bateu com os pés no chão, e depois atirou-se para o solo tentando amortecer a queda. O impacte fez-lhe estremecer o corpo, sacudindo-o dos pés à cabeça. A cruz caiu-lhe do bolso, indo parar ao pé. Ele apanhou-a, enfiou-a no alforge e montou a cavalo.

 Enquanto se afastava, olhou para trás e viu Fedora parado à beira do telhado, observando-o. Sorriu e esporeou o cavalo, incentivando-o a seguir. Tinha de chegar junto do xerife o mais depressa que pudesse, de forma a evitar que os ladrões fugissem.

 Fedora levou dois dedos à boca e assobiou. Nenhum dos cavalos se mexeu. Em vez disso, apareceram dois automóveis vindos da parede do pueblo seguinte. Um deles, um descapotável, descreveu um círculo e fez uma paragem adruptajunto de Fedora, que saltou do telhado formando uma nuvem de pó. Assim que o ar clareou, o automóvel partiu, levando Fedora instalado no banco de trás.

 Com uma expressão satisfeita, este compós o chapéu e gritou - Força!

 O condutor carregou no acelerador e o automóvel de imediato ganhou velocidade. A segunda viatura deixou-se ficar para trás pois o motorista estava à espera que Roscoe, o Mestiço e o Cavaleiro dos Diabos o alcançassem. Indy corria pelo deserto, cortando o ar seco do mesmo modo que uma faca corta manteiga.

O sol bri lhava impiedosamente, fustigando a terra e fazendo sentir-se assado. Atrás de si, os dois automóveis díminuíam a distância ra pidamente.

 A montanha desolada que se erguia à sua frente não havia maneira de se aproximar. Era como se o cavalo estivesse a galopar no mesmo sítio. As únicas coisas que se moviam eram os automóveis, dos quais emergiam um de cada lado. Indy sentiu-se como se fizesse parte de uma sandes, e ele e o cavalo fossem a carne.

 Olhou para a sua direita e viu um homem com um chapéu largo a conduzir um Sedan cor de creme. Vestia um fato de linho branco que dava a ideia de ser bastante caro; e o rosto estava escondido pela enorme aba do chapéu.

Através da janela do assento traseiro, Roscoe fez-lhe uma careta e abanou o pulso na sua direcção. Dado que o condutor tentou agarrar-lhe a perna, Indy esporeou a montada, e, se bem que por breves instantes, ganhou uma certa vantagem.

 No entanto, o seu esforço extraordinário não surtiu efeito.

Os automóveis não tardaram muito a recuperar a margem por ele conseguida. Não se limitavam apenas a manter o mesmo andamento dele, mas apertavam-no como se fosse um torno gigantesco e com rodas. Apenas o vento quente e o pó o separavam dos veículos.

Indy baixou-se o mais que podia e inclinou-se para a frente, numa tentativa para escapar. O coração batia-lhe com força, os níveis de adrenalina subiram em flecha, e ele precipitou-se para a frente.

 æ sua esquerda, Fedora passou para um dos lados do descapotável e desceu para o estribo. Indy olhou no rosto. O homem sorriu-lhe, como para dizer que estava a gostar da perseguição. Então, e com graciosidade, saltou para o cavalo de Indy.

 Contudo, o rapaz era tão rápido e ousado quanto ele. Antes de Fedora o poder agarrar elevou-se na direcção da capota do Sedan que se encontrava à sua direita. Aterrou de joelhos, e manteve o equilíbrio agarrando-se à borda do tejadilho. O Cavaleiro dos Diabos e Roscoe emergiram das janelas e tentavam agarrá-lo quando, subitamente, Indy se apercebeu de que já não tinha a cruz consigo. A sua cabeça moveu-se na direcção do cavalo. Viu-a, meio a sair do alforge.

 No entanto, Fedora não sabia que a cruz estava a algumas polegadas do seu alcance. Fez um ar irritado e subiu para o tejadilho do Sedan. Estendeu um braço na direcção de Indy, mas o rapaz voltou a saltar para o cavalo, impedindo que o agarrassem, e fazendo que o Cavaleiro dos Diabos e Roscoe batessem com as cabeças uma na outra quando o tentaram agarrar.

 Indy puxou as rédeas com força, fazendo o cavalo abrandar, tudo enquanto os dois automóveis passavam por ele a grande velocidade. Envolto numa nuvem de pó, virou-se numa outra direcção e galopou no sentido da linha do caminho-de-ferro, na qual se via aproximar um comboio a toda a velocidade. Atrás de

si, os automóveis descreveram duas voltas largas e retomaram a

 perseguição.

 Quando Indy se aproximou dos trilhos, o comboio estava mesmo ao seu lado e fazia um barulho enorme. Este tinha algo de estranho. Em vez de serem castanhas e cinzentas, como era costume, as carruagens eram bastante coloridas. No entanto, e dado que os dois automóveis estavam quase a alcançá-lo, não teve tempo para pensar nesse pormenor. Só lhe restava uma alternativa.

 Enfiou a cruz no cinto, elevou-se na sela e agarrou-se à escada da carruagem mais próxima. Começou a subi-la, mas mudou de ideias assim que viu uma janela aberta ali perto. Como se fosse uma aranha, arranjou maneira de a alcançar. Olhou por cima do ombro e viu os automóveis acercarem-se do comboio.

 Indy alcançou a janela e deixou-se cair através dela.

Aterrou em algo macio, grande, mais ou menos como um canteiro de melões. Contudo, tratava-se de um melão humano. Afundou-se numa série de dobras e pregas de carne.

 Afastou-se, e viu que a sua cabeça aterrara numa mulher copiosamente obesa.

 Admirado e embaraçado, Indy levantou-se de um salto. A enorme criatura estava sentada num assento suficientemente grande para acnmodar os seus mais de duzentos quilos. Recuou, sorrindo, Indy ouviu alguém soltar uma gargalhada e voltou-se.

Ficou de boca aberta.

 Conversando, encontrava-se o grupo de pessoas mais estranhas que Indy vira em todos os seus 13 anos. Aquele era composto por indivíduos com cabeças de alfinete, uma dama barbuda, anões, um homem de borracha, e um rapaz com pés em forma de barbatana, Claro! Era a caravana do circo que se dirigia para a cidade.

 - Olá! Espero que não se importem que eu tenha caído aqui assim. - æ medida que falava, Indy continuava a olhar em volta.Não pôde ser de outra maneira. Eu tinha um cavalo, mas...

 Parou assim que o anão se aproximou dele.

 - Queres dizer que saltaste para o comboio vindo de um cavalo... tal como num número de circo? - A voz do homem era fininha , a condizer com o tamanho.

 Indy sorriu.

 - Sim.

 - Não vejo cavalo nenhum.

 - Ele está a mentir - disse alguém.

 - Aposto que te queres juntar ao circo - disse o anão, espetando-lhe um dedo no estômago.

 - É demasiado normal - resmungou o homem de borracha.

 - Deixem o miúdo em paz - disse a mulher barbada passando os dedos pelos pêlos que lhe cresciam no rosto.

 O anão, que tinha os olhos à altura do cinto de Indy, inclinou-se para a frente e examinou a cruz.

 - Que é isso? - perguntou, franzindo um pouco a testa.

 - Nada.

 - Dás-ma?

 - Não. - Pronunciara esta frase demasiado alto e demasiado depressa. - Vou levá la para o museu. É lá que é o seu lugar.

 - Para o museu - repetiu o anão. - Estou a ver.

 Indy sentou-se numa caixa para evitar que o anão continuasse a olhar para a cruz. Pensou que talvez descesse do comboio quando passassem perto de sua casa. Assim que chegassem à cidade, os ladrões não Teriam coragem de o incomodar. Teriam medo de ser apanhados. Se tentassem alguma coisa, ele só teria de gritar por socorro. E, assim que chegasse a casa, explicaria tudo ao pai.

 Disse a si próprio que iri a fi car tudo bem. O pai ficaria orgulhoso dele. Estava sempre a queixar-se a propósito das pessoas que saqueavam os locais de interesse arqueológico.

E agora o seu filho, Júnior - "Indy, o meu nome é Indy" -, apanhara quatro indivíduos com a boca na botija.

 Sentiu que alguém lhe tocava o ombro, e voltou-se para encarar o anão, que agora tinha o nariz à mesma altura do seu.

 - Tenho uma pergunta a fazer-te.

 - Qual?

 O anão apontou para lá do local onde se encontrava.

 - Aquele ali também veio a cavalo?

 Indy deu meia volta e viu que Fedora o observava através da janela.

 

NÚMEROS DE CIRCO

 - A fazer novos amigos? - perguntou Fedora com um sorriso.

 Indy levantou-se e recuou alguns passos.

 - Claro que sim. - Continuava a fitar Fedora, mas falava para os outros. - Cuidado com este homem. É um ladrão.

 Fedora entrou pela janela e tentou passar pela senhora gorda.

 - Espere um minuto - disse ela, levantando-se e bloqueando o caminho de Fedora. - Neste comboio não queremos gente da sua laia.

 Indy aproveitou a oportunidade e dirigiu-se para a porta que se encontrava no fundo da carruagem. Abriu-a e saltou para um vagão. No meio deste encontrava-se um monstro impressionante, composto por filas de apitos brilhantes movidos a vapor, os quais se elevavam a partir de um teclado cor de pérola.

Escondeu-se atrás dele e olhou para trás, mesmo a tempo de ver Fedora entrar pela porta com a mulher barbada agarrada à sua garganta. Ele deu-lhe um empurrão e saltou para o atrelado.

 Indy agarrou-se a uma alavanca que se encontrava num dos lados do objecto, tentando equilibrar-se, mas aquela moveu-se e o monstro despertou para a vida. Dos tubos saíam vagas de vapor e ruído. Os companheiros de Fedora, que haviam abalroado o vagão, vindos do automóvel, pararam subitamente e taparam os ouvidos, protegendo-se contra aqueles pavorosos roncos e silvos. Recuaram, e uma explosão de vapor quase que os deitou para fora do comboio.

 Enquanto isso, Indy elevara-se para o telhado do vagão

seguinte, e escalou até atingir um alçapão. Abriu o trinco e elevou-se até chegar a uma passagem que se encontrava suspensa do tecto do vagão. Alguns centímetros mais abaixo encontravam-se uma série de caixotes que pareciam conter todos  os tipos de cobras, la gartos, crocodilos e jacarés. Era uma autêntica Arca de Noé carregada de répteis.

 Indy ficou a olhar para os caixotes, fascinado e horrorizado. A última coisa que queria era cair lá em baixo. A sua única esperança era que os outros não dessem por aquela porta e se dirigissem para o próximo vagão. Mas, precisamente quando assim pensava, a porta abriu-se e o Mestiço e Roscoe precipitaram-se para a passagem.

 "E agora?”

 Indy dirigiu-se à pressa para o fundo do vagão, interrogando -se sobre o que faria quando chegasse ao fim da passagem. Por muito corajoso e forte que fosse, sabia que não podia aguentar com os outros dois. Raios, até mesmo Roscoe era capaz de criar problemas só por si. Era o tipo de miúdo capaz de fazer jogo sujo, capaz de coisas como render-se, e, depois, quando os outros estivessem de costas, saltar sobre eles.

 Reparou que havia um outro alçapão mesmo por cima dele, no fundo da passagem. Fugiria antes que o agarrassem, claro. Era canja. Contudo, antes de poder dar mais um passo, um som metálico elevou-se nos ares. A passagem começou a abanar.

Levantou os olhos, e o medo invadiu-o como se de um gás venenoso se tratasse. O peso dos três era demasiado para a passagem, e um dos parafusos que a seguravam ao tecto começara a soltar-se. O pequeno corredor abanava e gemia, ameaçando lançar os três nas caixas dos répteis que rastejavam.

 Os três ficaram como que petrificados nos lugares onde se encontravam, receando que um simples gesto fizesse que se despenhassem. Indy olhou para o alto, na direcção da porta.

Estava a cerca de um passo de distância, e a seu lado havia uma pega. Conseguiu agarrá-la, elevou-se, abriu a porta a pontapé e içou-se para o cimo do vagão.

 - E agora, Espertalhão? É quase certo que os outros dois ladrões estão lá fora à tua espera." Não sabia o que ia fazer, mas não havia tempo para pensar a esse respeito.

 Agachou-se e deu um salto na direcção do puxador. Os seus dedos tocaram-Lhe ao de leve, mas não o conseguiu agarrar.

Desequili brado, aterrou apenas em cima de um dos pés. A passagem balouçou, e ouviu uma série de estalidos à medida que vários parafusos se soltavam. Roscoe e o Mestiço gritaram, mas o que caiu foi o lado da passagem onde Indy se encontrava.

Este mergulhou no chão do vagão, aterrando com uma pancada seca dentro de uma plataforma de madeira.

 Não se mexeu durante um momento. Tinha medo de ter partido alguma coisa - as pernes, talvez os braços, talvez mesmo o pesCoço. No entanto, a escuridão era algo pior que o medo de ter partido um membro. Não conseguia ver. O pânico fervia-lhe na garganta; e estava prestes a soltar um grito quando descobriu que fechara os olhos quando caíra. Riu-se de mansinho de si para si, mas, quando os abriu, a sua gargalhada

transformou-se em algo estranho, desesperado, quase um cacarejo. Estava frente a frente com uma enorme anacõnda.

 Acabeça do animal era tão grande que este mais parecia um tyrannosaurus rex que uma cobra. Tinha a língua de fora, quase que de encontro ao seu rosto. Um arrepio gelado percorreu-Lhe a espinha. Aterrorizado, arregalou os olhos. Rolou sobre si mesmo, pôs-se em pé e afastou-se. Tinha medo de que, ao desviar os olhos da anaconda, esta o atacasse. Não via para onde se dirigia, e um dos pés atingiu os limites da plataforma. Vacilou por um momento e depois inclinou-se para trás. Aterrou com suavidade. Não se tinha aleijado. Foi então que se apercebeu de onde estava. Caíra numa caixa de cobras.

 De súbito, tinha centenas de répteis a rastejar por debaixo e por cima dele. Toda aquela massa em movimento o envolvia como se de areia movediça se tratasse. Só que aquilo era pior que areia movediça, muito pior. As cobras estavam a tirar-lhe o fôlego, a vida. Por instantes, quando levantou a cabeça daquele pesadelo, viu o Mestiço e Roscoe tentando manter-se na passagem pouco segura situada por cima dele.

 Roscoe agarrara-se a uma das pernas do Mestiço, mas o ladrão de cabelos negros queria ver-se livre do rapazinho. Chegara ao alçapão e abanava a perna, tentando afastar-se do outro, que gritava, apavorado, receando aterrar nas mandíbulas de qualquer jacaré ou crocodilo que rastejavam por debaixo de si.

 Foi então que as serpentes voltaram a cobrir Indy e este deixou de ver fosse o que fosse. No entanto, não desistiu.

Estava a lutar pela vida. Tanto por baixo como por cima dele se empilhavam serpentes, e isto impedia-o de se voltar a pôr em pé. Assim, foi forçado a fazer a única coisa que podia fazer: pontapear a parede do caixote.

 Depois de vários pontapés no mesmo local, a parede da caixa estalou. Servindo-se de toda a energia que ainda possuía, deu mais um pontapé. Desta feita, a parede partiu-se, e toda aquela massa de cobras rastejantes escorregou para fora da caixa, levando Indy junto com elas.

 Levantou-se, procurando recuperar o fôlego. Sacudiu as cobras dos ombros e das pernas. Para ele, aqueles animais jamais seriam os mesmos. Por cima de si ouviu estalidos de metal, bem assim como as pragas que os dois ladrões soltavam à medida que tentavam atingir o alçapão. Contudo, a sua atenção concentrava-se agora na porta que estava no chão, e que talvez  fosse usada quando limpavam o vagão.

 Indy abriu-a, e foi de imediato bombardeado pelo barulho metálico que os vagões faziam a bater de encontro aos carris.

As traves dos carris passavam por debaixo de si. Hesitou. O pai seria capaz de o matar se soubesse aquilo que estava prestes a tentar.

 Já era suficientemente mau ter entrado num comboio em movimento a partir de um cavalo, junto com o facto de ter caído num caixote cheio de cobras, mas agora estava prestes a tentar o impossível.

 Apesar disso, não estava disposto a permanecer no chão no vagão perto das cobras e dos jacarés. Não havia outra saída.

Para mais, tinha de se afastar dos ladrões.

 Respirou fundo e baixou a cabeça, passando-a pela porta. A todo o comprimento do vagão corria uma barra de aço. Baixou-se e segurou-a com uma mão. Esta estava quente mas não a escaldar, e estava colocada acima dos carris a altura suficiente para nela se instalar, isto desde que a mantivesse junto ao peito.

 Apenas alguns centímetros. Esta era a distância que tinha de rastejar.

 "Uns quantos centímetros não são uma coisa impossível, pois não? Posso rastejar durante alguns centímetros. Sei que o posso fazer.", Com cuidado, baixou-se através da porta, agarrando-se à barra de metal, primeiro com as mãos, depois com os braços e as pernas. Começou a avançar. Os embates do comboio vibravam por todo o seu corpo, ameaçando atirá-lo dali para fora.

 "Merda! Para que foi que me meti nesta?" Disse a si mesmo para se concentrar. Sabia que, desde que se concentrasse e usasse toda a força de que dispunha, seria capaz de aguentar.

 "Vou conseguir. Vou conseguir", repetia ele à medida que avançava.

 Finalmente, acabou por chegar ao fim e descobriu que não pensara na maneira de sair da barra. A frente do vagão estendia-se alguns centímetros para lá do fim da barra. Talvez ficasse bem se se deixasse ficar onde estava.

 No entanto, quanto tempo seria capaz de aguentar antes que os seus braços se cansassem? As vibrações faziam-no estremecer até aos ossos.

 Pensou por um momento na cruz que enfiara no cinto. Se esta escorregasse e se esmagasse de encontro aos carris, todos os seus esforços teriam sido inúteis. Soltou uma das mãos e estendeu-a em direcção ao fim da carruagem. Tacteou o limite mais baixo da parede da frente, tentando encontrar algo a que se agarrar. Contudo, nada encontrou.

Foi então que se lembrou do cabo de segurança que ligava as carruagens. Onde estaria? Estendeu o braço o mais possível. Os dedos tocaram em algo antes de escorregarem. Tentou outra vez e desta feita agarrou o cabo.

 "E agora?”

 Estava estendido entre o cabo e a barra, e tinha de se decidir por um dos dois. A indecisão paralisou-o momentaneamente. "Que devo fazer? Será que importa?" Fechou os olhos, deixou a outra mão soltar-se da barra, e, às cegas, tentou agarrar o cabo. Segurou-o com força e deixou os pés escorregarem pelos últimos centímetros da barra. As pernas ficaram então a balouçar no ar, e, servindo-se das mãos, ia avançando. Abriu os olhos e viu a atrelagem mesmo por cima de si. Segurou-se a ela com um braço, e depois passou-lhe uma perna por cima, tal como se estivesse a montar a cavalo.

Conseguira. Ia montado na atrelagem que unia os dois vagões.

 Inclinou-se para a frente na direcção da outra carruagem.

Esta era uma espécie de jaula sobre rodas. Lá dentro estava um enorme tigre de Bengala. Tentou alcançar a grade mais próxima,

e subiu para a atrelagem, ganhando balanço. Foi então que saltou para o lado de fora da jaula.

 Começou a caminhar através da estreita borda do vagão,

 agarrando-se àjaula. Parou por um momento quando sentiu algo a rastejar ao longo de uma das pernas. Torceu o nariz, tirou uma cobra de dentro das calças. Reajustou a cruz ao cinto e continuou a andar. Dentro dajaula, o tigre observava-o, andando de um lado para o outro. Indy olhou também para ele. æ medida que se aproximava da parte da frente da jaula, o tigre andava cada vez mais perto. Agachou-se para descansar, na esperança de que aquele enorme gato não fizesse caso dele.

Apesar de entre ele e o tigre existirem grades, se a criatura estendesse as garras para fora das grades, esta brincadeira seria mortal.

 Contudo, aquilo de que ele não se apercebeu foi de que um outro perigo o espreitava. O Cavaleiro dos Diabos conseguira chegar quase à frente dajaula, vindo do lado oposto. Tal como o tigre, também o ladrão tinha os olhos fixos na sua presa.

 Quando sentiu uma mão agarrar-lhe o pescoço, Indy olhava para o tigre e dizia-lhe mentalmente para se afastar.

 - Apanhei-te - gritou o Cavaleiro dos Diabos.

 Nesse instante o tigre aproximou-se das grades. Estendeu uma das patas, cravando as garras no ombro e nas costas do Cavaleiro dos Diabos, rasgando-Lhe o casaco. O ladrão soltou um grito de dor e de surpresa, agarrando o ombro. Vacilou durante alguns momentos, e depois caiu do comboio.

 Indy olhou para trás a tempo de ver o outro rolar pelos carris. Voltou-se para a parte da frente da carruagem e sentiu um punho enterrar-se-lhe no estómago, cortando-lhe a  respiração. Dobrou-se, arfando, certo de que ia morrer.

Levantou os olhos e viu Roscoe inclinando-se para ele.

 - Maricas. - O garoto fez um sorrisinho de desprezo, e voltou a preparar o punho para bater.

 Contudo, Indy enterrou o tacão da bota no pé de Roscoe.

Deu-lhe um murro no olho e mordeu-lhe a mão. O outro soltou um grito de dor e Indy ultrapassou-o. Saltou para um atrelado e subiu a escada que levava ao tejadilho.

 Roscoe foi rápido a recuperar e, enquanto o perseguia, ia-o amaldiçoando. Indy acabara de chegar lá acima quando o outro lhe agarrou o tornozelo. Caiu no tejadilho e os dois rapazes rolaram perigosamente para perto da beira.

 O barulho dos carris martelava os ouvidos de Indy, e este viu Roscoe elevar uma faca no ar. A ponta da lâmina faiscava.

Roscoe desferiu o golpe. Indy rebolou-se mesmo a tempo de evitar a lâmina. Afastou-se a rastejar, mas o outro foi atrás dele, impedindo de se levantar.

 "Seja o que for que está neste atrelado, deve ser coisa grande!”

 Sempre que ele ou Roscoe se moviam, havia algo que se atirava de encontro ao atrelado, abanando-. Contudo, não tinha tempo para meditar sobre o assunto. Estava demasiado ocupado a tentar manter-se vivo.

 - Dá-me essa cruz! - gritou Roscoe, exibindo a lâmina por

sobre Indy. - Já!

 Indy agarrou o pulso de Roscoe, dobrando para trás de forma a fazê-lo guardar a faca.

 De repente, a presa de um rinoceronte atravessou a parede de madeira, falhando a cabeça de Indy por um triz. Ele rebolou-se para um dos lados e o pulso de Roscoe ficou livre de novo.

Indy empurrou-o, mas o rapaz lançou-se sobre ele, apontando-lhe a faca à garganta. Indy levantou a cabeça e a lâmina espetou-se na madeira, falhando-lhe a orelha por pouco.

 Enquanto Roscoe tentava libertar a faca, o rinoceronte voltou a atacar, e desta vez o corno apareceu exactamente entre as pernas de Indy. Roscoe levantou a faca e atirou-a ao peito de Indy. Este viu a lâmina faiscar à luz. Levantou as pernas e atirou-as contra o peito de Roscoe, fazendo recuar. O rapaz vacilou por um instante, agitando os braços para recuperar o equilíbrio, e pouco faltou para que caísse da carruagem.

 Indy rebolou sobre o estômago e olhou para trás mesmo a tempo de ver Roscoe atirar a faca na sua direcção. O mais provável era esta cravar-se no seu rosto, mas, naquele momento, o corpo do rinoceronte apareceu no tejadilho, mesmo ao lado da cabeça de Indy, e a faca acertou-lhe.

Indy conseguiu pór-se de pé e viu um tanque de água ao lado dos carris imediatamente à frente. A goteira surgia mesmo à sua frente, e elevava-se por cima do comboio. Soube de imediato como se podia escapar. Correu para um dos lados do vagão, calculou a distância e cronometrou o salto.

 Não teve problemas em se agarrar à goteira, mas a velocidade a que o comboio seguia fez que aquela girasse em torno do tanque.

 Ele continuou a agarrar-se, fechou os olhos, e, assim que sentiu a goteira abrandar, deixou-se cair. A queda foi bastante pequena, facto que o fez compreender que dera uma volta completa e que estava de novo no comboio. Desta feita, aterrara no tejadilho de um outro atrelado, e de pronto colidiu com o Mestiço, que se desequilibrou e caiu.

 Confuso com o que acontecera, Indy deu meia volta. O que sucedeu a seguir confundiu-o ainda mais. Caiu por uma abertura no tejadilho.

 Assim que chegou ao chão, uma nuvem de pó elevou-se à sua volta. Os raios de sol penetravam no vagão através dos intervalos das tábuas, mas demorou algum tempo até que os seus olhos se habituassem à escuridão. No ar pairava um cheiro pesado a animal, e ele torceu o nariz. Foi então que viu a fonte do odor. No lado oposto do compartimento, um leão africano levantava-se lentamente.

 Era mais que óbvio que pretendia investigar a criatura que caíra no seu covil.

 O animal rugiu e as paredes do atrelado pareceram estremecer. O pó elevava-se em torno do leão à medida que este olhava para ele como se de uma presa se tratasse.

 - Caramba! - Indy engoliu em seco e recuou até ao canto da viatura.

 Viu que um raio de luz se reflectia em qualquer coisa caída no chão, e de repente compreendeu o que era. A cruz tinha-se solto quando caíra, e agora encontrava-se aos pés do leão.

 Olhou em volta e continuou a recuar até que, com as costas, sentiu a parede do fundo do vagão. æ medida que o leão continuava a olhá-lo, preparado para dar o seu salto mortífero, Indy pressionou as mãos contra a parede. A sua mão esquerda foi ao encontro de um prego. Por debaixo dele estava qualquer coisa de pele. Pensando tratar-se de outra cobra, virou a cabeça. Em vez disso viu um chicote-o chicote do domador de leões. Cuidadosamente, pegou nele pela pega. O animal reconheceu o chicote e rugiu baixinho. Indy engoliu em seco, deu um esticão ao chicote. Este desenrolou-se desastradamente, e a ponta voou para trás, atingindo no rosto e fazendo-lhe um golpe no queixo.

 Agora o leão rugia mais alto.

 Com alguma rapidez, Indy levantou o chicote, humedeceu os lábios, tentou de novo. Desta vez o instrumento fez um barulho cortante, tal como era suposto acontecer, exactamente como ele vira no circo quando o domador de leões,  de chicote em riste, andava à volta do rei dos animais.

 O bicho rugiu e depois encolheu-se. A experiência dizia-lhe o que o estalar do chicote significava.

 Surpreendido e encantado com o seu feito, Indy sorriu.

Voltou a estalar o chicote e o leão encolheu-se ainda mais.

Indy avançou alguns centímetros até a cruz se encontrar mesmo na sua frente. O animal encontr ava-se a pouca distância.

Devagar, o rapaz baixou-se. Sem desviar os olhos do leão, apanhou a cruz.

 Foi então que recuou, apercebendo-se de que tinha as mãos a tremer e que o suor lhe escorria pelo rosto. Inspirou profundamente, expirou e tentou recompor-se. Agora, como poderia ele sair dali?

 Levantou os olhos para a abertura de onde caíra, e viu que Fedora o observava. Fedora fez-lhe um sinal, sorriu, e estendeu-lhe a mão.

 Era tudo o que ele precisava. Indy decidiu que era preferível enfrentar Fedora que permanecer por mais um minuto que fosse dentro dajaula do leão. Atirou uma das pontas do chicote na direcção do buraco, e Fedora agarrou-a.

 O homem içou-o lentamente enquanto ele subia pela parede.

 Ainda olhou para trás, e viu o leão agachado e pronto a saltar se ele caísse. Voltou a cabeça de repente, e concentrou a sua atenção em sair dali. Quando chegou à beira da abertura Fedora estendeu o braço e puxou-o para fora, depositando-o no tejadilho. Ele caiu de joelhos. Custava-lhe a respirar. Estava exausto. O leão conseguira arrasá-lo.

 - Sou obrigado a dizer que tens coragem, miúdo - disse Fedora. Apontou para a cruz. - No entanto, isso pertence-me.

 Indy levantou os olhos e viu que tinha mais companheiros:

tanto Roscoe como o Mestiço estavam ali. Ficou a olhar para Fedora.

 - Isto pertence a Coronado.

 - Coronado está morto. E os seus netos também. - O homem estendeu o braço com a palma virada para cima. - Vá lá, miúdo, não há outra saída.

 - Atira lá isso - ladrou Roscoe, agarrando a cruz. Indy continuava a segurar a outra ponta, recusando-se a largá-la.

Deu-se início a uma espécie de braço-de-ferro. No decorrer deste, uma cobra esgueirou-se pela manga da camisa de Indy e enroscou-se em torno da mão de Roscoe.

 - Tirem-na daqui - gritou. Largou a cruz e abanou o braço até se ver livre do animal. A seus pés, o leão rugiu. Indy aproveitou-se desta confusão, e, passando por entre as pernas do Mestiço, saltou para o vagão seguinte. O Mestiço estava prestes a lançar-se atrás dele, mas Fedora fez-lhe sinal para parar.

- Fica quieto! Não o deixes voltar atrás. - Deu meia volta e foi atrás do rapaz.

 Indy desceu a escada que se encontrava entre as carruagens, e entrou numa pequena carruagem destinada ao pessoal. Esta estava cheia de roupas e continha também o equipamento do mágico. Olhou em volta à procura de um local para se esconder.

Ouviu Fedora descer as escadas e esgueirou-se até desaparecer de vista.

 Fedora entrou calmamente na carruagem e inspeccionou-a.

Dirigiu-se para uma enorme caixa preta e, como quem não quer a coisa, destapou-a. Um a um, os quatro lados da caixa caíram, nada revelando.

 Quando viu a parte superior de uma outra caixa mexer-se ligeiramente, sorriu com confiança.

 - Vá lá, miúdo. Acabou-se. Sai daí.

 Abriu a caixa e uma série de pardais saiu lá de dentro, espalhando-se pela carruagem. Estava a começar a ficar farto daquele miúdo fujão. Abriu caminho através das roupas e dos apetrechos mágicos. Pegou numa vara e dirigiu-se para um dos cantos, mas esta estremeceu e transformou-se num lenço.

 - Raios, onde é que...

 Foi então que viu alguns pardais voarem pela porta das traseiras da carruagem, porta esta que balouçava na brisa.

Compreendendo o sucedido, correu até à varanda das traseiras.

æ medida que se aproximava do seu destino, o comboio ia abrandando, e, à distância, viu Indy desaparecer por uma rua formada por modestas construções de madeira.

 

 A FRENTE INTERNA

Ofegante, mas levando consigo a cruz de Coronado, Indy dirigiu-se para casa. Trancou todas as portas, e correu da cozinha para a sala, espreitando pelas janelas. A costa estava livre.

 Precipitou-se pelo corredor e entrou noutra divisão para voltar a observar a rua. A boca mantinha ainda o sabor a pó.

Os seus pensamentos falaram-lhe de água. Precisava de um enorme copo de água. No entanto, tinha coisas a fazer antes disso. O pai. Precisava de falar com o pai.

 - Pai?

Não houve resposta, mas Indy sabia que o pai estava noescritório. Desde que a mãe de Indy morrera que o pai parecia viver para os estudos, sempre debruçado sobre livros velhos e pergaminhos.

 Para ele, o passado remoto era bem mais real que o presente.

 "Olhem só para a casa", pensou Indy. Os quartos diziam tudo:

 não havia aí qualquer mão feminina, nada de suave, colorido, apenas livros e coisas velhas. Era ele o único que limpava a casa. Por vezes, Indy tinha a sensação de que era só no escritório que o pai vivia. Para ele, aquele era o único local onde a sua presença era real.

 Abriu a porta do escritório. As prateleiras estavam cheias de livros, e também os havia amontoados pelo chão. As paredes estavam cobertas com mapas de terras antigas e quadros de belos castelos e catedrais. Tudo naquele quarto parecia ter um significado, isto apesar de Indy não saber qual. Tudo aquilo reflectia uma enorme paixão pelos estudos sobre a Europa medieval.

 Indy pigarreou.

 - Pai?

 Em frente a uma secretária de mogno, o pai, o professor Henry Jones, estava embrenhado no trabalho. Havia livros e papéis espalhados à sua volta. Indyficou a olhar para a curva que as costas do pai faziam, desejoso de que ele falasse, que fizesse um sinal, que reconhecesse a sua presença de qualquer modo. Sabia que o pai o ouvira, mas o facto de não o ter saudado, de nem mesmo se ter voltado, significava que não queria ser perturbado.

 Nunca queria que o perturbassem.

 Mesmo assim, tratava-se de um assunto importante.

Aproximou-se da secretária, deitou uma olhadela ao pergaminho que o pai estudava, e disse:

 - Pai, preciso de falar contigo.

 - Fora! - gritou Henry sem mesmo se ter voltado.

 - Mas é muito importante!

 Henry continuou a trabalhar.

 - Espera. Conta até vinte.

 - Não, ouve...

 - Júnior - avisou Henry, em voz baixa, ameaçadora e dura.

 Indy engoliu em seco, acenou e deu um respeitoso passo atrás. Sabia que o pai estava aborrecido com ele. Tinha pouco por onde escolher. Começou a contar em voz baixa e, à medida que o fazia olhava para o pai por cima do ombro.

 Viu que a página da frente do manuscrito continha uma ilustração representando aquilo que parecia ser um vitral ostentando vários numerais romanos. O pai estava ocupado a copiar o desenho no bloco-notas.

 - Isto também é importante... e não pode ser apressado...

foram precisos novecentos anos para que saísse de um caixote esquecido, encontrado no Sepulcro de Santa Sofia, em Constantinopla, e chegassem à secretária do único homem do mundo que os pode entender.

 "- ... dezanove ... vinte - Isto é mesmo importante. Presta atenção.”

 Indy tirou a Cruz de Coronado de dentro da camisa e voltou a levantar a voz e a falar depressa. - Estive no pueblo com os escuteiros e...

 - Agora podes contar em grego - ordenou Henry, continuando a não se desviar do trabalho nem a ouvir o filho.

 "Ele nunca me ouve." Indy detestou-o por isso.

 Numa voz zangada e bastante elevada Indy começou a contar em grego. Fazìa de conta que cada número era um palavrão destinado ao seu teimoso pai.

 Ouviu um carro parar em frente à casa. Ainda a contar, saiu do escritório. Viu uma viatura da polícia.

 "E agora? Que devo fazer?" Sabia que se o pai visse os polícias ficaria a pensar que Indy voltara a meter-se em trabalhos. Ele jamais lhe daria oportunidade para se explicar.

A experiência dizia-Lhe isso.

 Voltou a olhar para o pai, que continuava a trabalhar no esboço. Ouviu-o falar baixinho para consigo próprio.

 - Que aquele que iluminou isto me ilumine a mim.

 Indy susteve a respiração à medida que, com todos os cuidados , fechava a porta do escritório e se dirigia para o vestíbulo. Quando a porta da entrada se abriu e Herman entrou na sala, já ele voltara a enfiar a cruz debaixo da camisa.

 - Trouxe-o comigo, Indy! Trouxe-o comigo!

 A porta voltou a abrir-se e o xerife entrou em casa, não sem antes ter olhado à volta.

 - Senhor xerife! Eram para aí cinco ou seis! Quase me apanharam, mas...

 - Tudo bem, filho. - O xerife levantou a mão. - Ainda a tens?

 - Sim senhor, mesmo aqui.

 Voltou a tirar a cruz e entregou-a ao xerife, que lhe deitou um olhar distraído sem sequer se importar em a examinar de perto.

 Assim que a cruz saiu da sua mão, Indy sentiu que havia ali algo de errado a respeito da forma como o xerife actuava. Se ao menos ele soubesse tudo aquilo por que passara!

 - ?ptimo, rapaz. ?ptimo... o legítimo dono da cruz disse que, se colaborasses, não apresentaria queixa contra ti.

 Indy ficou desorientado. Abriu a boca. Encolheu os dedos.

 - Apresentar queixa... De que é que está a falar?

 Fedora entrou em casa e tirou o chapéu. Cumprimentou Indy com um aceno amigável e fez uma festa na cabeça de Herman.

- De roubo - retorquiu o xerife. - Ele tem testemunhas, umas quatro ou cinco.

 O xerife e Fedora estavam feitos um com o outro. Que mais poderia ser? Nem sequer estava a prestar-lhe atenção. Nem mesmo quisera saber como as coisas se tinham passado.

 - E nós não queremos que a tua mãezinha ande às voltas na tumba, pois não?

 O xerife entregou a cruz a Fedora, que a colocou numa bolsa de pele que trazia pendurada à cintura. Quando o xerife se afastou , Indy deu uma olhadela através dajanela e viu um Sedan creme , aquele que o perseguira no deserto. Estava estacionado atrás da viatura do xerife, coberto por uma pequena camada de poeira do deserto. Ao volante, esperando pacientemente, estava o homem do chapéu largo.

 Depois de o xerife ter partido, Fedora deixou-se ficar para trás.

 Quando falou, fê-lo no tom irónico de quem está a falar com outro homem.

 - Bom, miúdo, hoje ficaste a perder, mas isso não quer dizer que tenhas gostado.

 Tirou o chapéu, e, durante breves instantes, segurou-o pela copa. Depois deu um passo em frente e estendeu o braço como se estivesse prestes a colocar o chapéu na cabeça de Indy em sinal de respeito e admiração. Mas retraiu-se assim que o rapaz falou.

 - A Cruz de Coronado tem quatrocentos anos e um longo caminho à sua frente. Faço tensões de ficar por perto. Pode ter a certeza disso.

 Fedora sorriu, deixou cair o chapéu na sua própria cabeça, e deu meia volta.

 - Vou comunicar ao patrão - disse, soltando uma gargaLhada.

 Quando chegou à porta, parou ainda por um momento e olhou para trás, fitando-o.

 - Hoje foste bastante bom com o chicote, miúdo. Gosto do teu estilo.

 Indy deu um pontapé na porta, fechando-a atrás de si.

 Ouviu Fedora rir enquanto descia o passeio.

 Correu para ajanela e viu o homem entrar no Sedan creme, levando a cruz na mão. Viu-o passar a preciosa peça ao homem que estava ao volante e depois afastarem-se.

 Disse para si mesmo que voltaria a recuperar a cruz, independentemente do tempo que tivesse de esperar.

 No mar alto: 1938

 

 A TRAVESSIA DO ATLÅNTICO

 Vagas enormes abatiam-se sobre o convés do velho cargueiro, levando consigo tudo o que não estivesse amarrado. A chuva caía , vinda de todos os lados. O vento soprava. A madeira do velho cargueiro gemi a como se estivesse a ser separada a partir das junções.

 Era um som terrível, o som de algo que está com dores, e Indy não o conseguia ignorar.

 Agarrou-se à beira da tarimba, na certeza de que nos próximos segundos uma vaga se abateria contra a madeira, esmagando-a, e arrastando-o para longe. Mantinha os olhos fechados à medida que a tempestade atirava o barco para a direita, para a esquerda, e novamente para a direita. Agora as vagas abatiam-se sobre a popa. Agora submergia a parte traseira do navio. Agora ia de um lado para o outro. Agora subia e descia.

 "Vou vomitar.”

 No entanto, quando abriu os olhos, a escuridão que se avistava dajanela fê-lo ficar sem respiração. Foi então que uma enorme parede de água se abateu sobre esse lado do navio e se esmagou de encontro ao vidro. O impacte fê-lo cair da tarimba. Aterrou no chão e, durante um ou dois segundos, deixou-se ficar ali deitado a gemer.

 "Levanta-te, homem. Faz aquilo que tinhas planeado.”

 Claro. O plano. Ele tinha um plano, não tinha?

 Levantou-se apoiado nas mãos, abanou a cabeça para aclarar as ideias, e tentou agarrar-se a qualquer coisa que não se movesse. "Põe-te de pé, homem. Agora. Faz o que tens a fazer enquanto o capitão está na ponte.", Sim, o capitão. O capitão e a cruz. "Consegui!”

 Agarrou-se à beira da tarimba e içou-se até estar de pé.

Apertou o casaco de cabedal com uma das mãos, enfiou o chapéu na cabeça, certificou-se de que o chicote continuava preso à cintura, e depois dirigiu-se para a porta.

 "Força, companheiro." Direita, esquerda, outra vez direita.

Optimo, mas óptimo mesmo.”

 Ia conseguir chegar à porta, sair do quarto, dirigir-se ao convés, e depois descer até ao compartimento do capitão. Era lá que se encontrava a cruz.

 Indy reservara passagem neste cargueiro depois de lhe terem dado uma informação sobre o paradeiro da Cruz de Coronado. Um homem telefonara para o seu gabinete na universidade, dizendo-lhe que, se estava interessado na cruz, deveria encontrar-se com ele em Lisboa, Portugal. Quando lhe perguntara quem era, o homem descreveu-se como sendo aquela pessoa que Indy vira apenas durante breves momentos enquanto criança, o homem que ficara em poder da cruz, o homem que perseguia hájá vários anos.

 Quando Indy lhe perguntou qual era o preço da informação, o indivíduo disse-lhe que apenas se queria vingar. O possuidor da cruz era o seu patrão, e só muito recentemente descobrira que o homem tinha um caso com a sua mulher. Indy ficou com a sensação de que tudo isto fazia sentido, e na altura podia dispor de vários dias. Já seguira pistas menos prováveis, e esta parecia-lhe ser a oportunidade pela qual esperara. Já por várias vezes estivera quase a alcançar o homem cuja imagem de marca era o chapéu largo, mas já há alguns anos que não tinha qualquer pista.

 Quando chegou a Lisboa, o seu informador disse-lhe que a

cruz havia desaparecido e que devia esperar por mais informações. Passaram oito dias, e estava prestes a desistir e a voltar para os Estados Unidos. Já estava atrasado para iniciar mais um semestre de aulas. Nesse mesmo dia, o informador contactara-o dizendo-lhe que a cruz seria enviada para a América no dia seguinte a bordo de um cargueiro, e que esta se encontrava na posse do capitão do navio.

 Agora Indy encontrava-se no barco, e esta era a sua primeira oportunidade de passar revista aos alojamentos do capitão.

Dado que o tempo estava como estava, tinha a certeza de que o capitão se encontraria na ponte.

 "pode ser a primeir a e a última oportunidade que tens, companheiro.", Abriu a porta e o vento veio ao seu encontro.

Avançou contra ele segurando o chapéu com uma das mãos, enquanto que a outra se agarrava à ombreira da porta.

 O barco rolou para a esquerda. Indy rolou com ele e quase se desequilibrou. Para se agarrar à outra ombreira teve de largar o chapéu, e o vento que lhe passou por debaixo da aba tirou-Lho da cabeça, atirando-o para o quarto. Ele deixou ir.

Avançou de encontro ao vento, contr a a sua força, e abriu caminho até ao convés, fechando a porta atrás de si.

 O barco elevou-se na crista de uma vaga, gemendo e chiando, e Indy agarrou-se ao corrimão, à espera de que o barco descesse.

Quando isso aconteceu, a água precipitou-se para o convés, quase o fazendo largar o seu ponto de apoio. Isto durou apenas alguns segundos, e ele precipitou-se para afrente, opondo-se a toda aquela violência. O vento uivava à sua volta. O sal cobria-lhe os lábios e fazia-lhe arder os olhos, obrigando-os a fecharem-se até estes terem o aspecto de ranhuras.

 "O capitão está na ponte e é agora ou nunca.”

 Continuou a avançar. Atempestade atirava obarco de um lado para o outro como se fosse um pedaço de madeira à deriva.

Pensou na cruz. Esta ardia-lhe o pensamento, mais brilhante que mercúrio, mais quente que o Sol. Depois de um bocado, já não sentia o vento, a tempestade, nem os movimentos do mar.

Andava ao sabor do navio, tal como se fizesse parte dele e formassem um todo. As pernas pareciam-lhe mais fortes, mais seguras. Ganhou novas forças. A imagem da cruz ardia e ardia.

 Quando chegou aos alojamentos do capitão estava ensopado até aos ossos. A água escorria-lhe pelo rosto em catadupas. O sal agarrava-se-Lhe aos lábios e à língua. Pegou num instrumento de metal, longo e esguio, que mais lembrava uma pinça de gelo, sendo contudo feito de um metal mais maleável. Era uma peça usada por ladrões, e não por arqueólogos. Agarrou o puxador da porta e tentou manter a mão o mais firme que podia. Empurrou a ponta do instrumento na direcção dafechadura, mas o barco oscilou, e o seu braço vacilou como se fosse o maestro de uma orquestra e empunhasse uma batuta. Tentou mais uma vez, e desta feita aleijou-se no pulso.

 "Raios!" Abanou a mão. "Calma. Calma.”

 Fez mais duas tentativas antes de ter conseguido enfiar o aparelho na fechadura. Guiou-o até ao trinco e abanou-o até

este estar no lugar. Respirou fundo e girou a maçaneta com cuidado. Sorriu quando a porta se abriu.

 A porta fechou-se assim que ele entrou, afastando a tempestade. Olhou em volta para se certificar de que estava sozinho. Só então se dirigiu para a tarimba do capitão. A lâmpada que se encontrava na parede estremeceu, apagou-se, e o navio moveu-se para o seu lado. Agarrou-se à borda da tarimba e esperou que o barco voltasse a endireitar-se.

 O seu informador garantira-lhe que o capitão guardaria a cruz no cofre do navio. Não se limitara apenas a dizer-lhe onde este se encontrava, mas chegara mesmo a entregar-lhe um pedaço de papel contendo a combinação do cofre. Quando lhe perguntara onde a arranjara, o homem sorrira e dissera-Lhe para não questionar a sua boa estrela.

 Desconfiava do sujeito. Não gostava dele. Mas esta fora a melhor pista que seguira nos últimos anos, e ninguém é obrigado a gostar de toda a gente com quem trabalha.

Agora estava a um passo de verificar que tal estava a sua boa estrela. Talvez tudo aquilo não passasse de uma intrujice.

 Meteu as mãos por debaixo do colchão e levantou-o. O cofre estava mesmo ali, construído a partir do chão e encostado à cama.

 Agarrou na trave da cama e arrancou-a.

 "Até aqui tudo bem.”

 O próximo passo era saber se conseguia abrir o cofre. Se a combinação não funcionasse, então estaria tão longe da cruz como se tivesse ficado em casa. Moveu o disco para trás e para diante, tentando compreender como funcionava. Tinha decorado a combinação. Marcou o primeiro número, ao qual se seguia uma sequência de mais cinco.

 Parou por um momento quando acabou, e só então, bastante devagar, girou o braço. O cofre abriu-se. Lá dentro estava escuro.

 æs cegas, enfiou lá o braço. Tacteou uma série de caixas, caixas de jóias, sem dúvida. Os seus dedos foram ao encontro de um maço de papéis. Meteu a mão por debaixo deles e sentiu que lá no fundo estava um objecto embrulhado em tecido - um objecto com a forma de uma cruz.

 Sentindo-se cada vez mais excitado, puxou- para fora. Desfez o nó que o atava, e depois desembrulhou o tecido. Lá dentro estava a Cruz de Coronado. Não tinha esquecido a sua beleza, mas a visão do objecto, simplesmente maravilhosa, ainda o fez admirar-se.

 Era algo de frio e pesado nas suas mãos. Era algo de bom.

Enfiou no casaco, por debaixo do cinto, quase no mesmo ponto em que o escondera há vinte e dois anos.

 Fechou o cofre, rodou o disco, e voltou a colocar a cama no lugar. Assim que se viu cá fora, o local onde a cruz descansava por debaixo da sua camisa molhada parecia-lhe quente, espesso, protegido. Estava tonto devido ao cansaço, ao alívio que sentia, e ainda a uma sensação de triunfo. "Vinte e dois anos, minha filha da mãe" pensou. "Vinte e dois anos.”

 Sentia que estava preocupado com qualquer coisa, algo em que

não se conseguia concentrar, qualquer coisa de importante.

Tentou agarrá-la, analisá-la, mas estava tão cansado e o vento soprava tão alto que... "Mais tarde, penso nisso mais tarde.”

 Quando levantou os olhos viu um marinheiro corpulento que olhava para ele com má cara, e que o esperava no fundo do corredor. Virou-se, e viu um outro marinheiro no lado oposto.

Foi então que compreendeu tudo. "Uma armadilha. Não é para admirar que tenha sido tudo tão fácil. Não admira que o informador soubesse a combinação. Foi tudo fácil de mais.", E era isto que o tinha atormentado.

 Vindos de ambos os lados, os marinheiros avançavam.

 Estava prestes a desferir um murro, mas o barco oscilou e ele foi cair nos braços do segundo marinheiro. Agarraram-lhe nas mãos por detrás das costas e arrastaram-no até ao fundo do corredor, depois do que entraram no convés. Foi então que uma terceira figura saiu de entre as sombras e lhe deu um murro no estômago.

 Indy arquejou. Sentiu as pernas perderem a força. Um dos marinheiros levantou-o e empurrou-o para a direita, para debaixo de um avançado que oferecia alguma protecção à tempestade. Foi então que Indy viu o filho da mãe que o esmurrara. Era um homem que tinha um chapéu largo enfiado na cabeça. Era o mesmo homem que se encontrava por detrás do roubo primitivo, e, sem qualquer dúvida, o responsável pela cilada. Estava mais velho, mas, mesmo na escuridão, Indy pôde ver-lhe os olhos, azuis e gelados, brilhantes como duas luas gémeas.

 - Como o mundo é pequeno, dr. Jones! Demasiado pequeno para ambos. Vejo que não alterou o seu estilo - comentou, olhando para o chapéu.

 - Muito observador. Contudo, talvez seja melhor passarmos aos negócios.

 O homem levantou-lhe o casaco com tanta força que Indy pensou que o cabedal ia rasgar. O outro estendeu a mão na direcção do cinto e tirou-lhe a cruz.

 - Como é do seu conhecimento, esta é a segunda vez que tenho de lhe pedir o que é meu, mas o facto de nos termos encontrado esta noite não é fruto de nenhuma coincidência.

 - Eu sei. Montou-me uma armadilha.

 - Você é a presa, dr. Jones.

 Contou a Indy que sabia tudo a respeito da sua persistência no que respeitava à cruz, o melhor objecto da sua colecção.

Desde que a Depressão lhe fizera perder dinheiro, que ele a tentava vender. Por fim, tinham acabado por lhe oferecer uma quantia razoável que poria fim aos seus problemas financeiros.

Contudo, o contrato continha uma cláusula estipulando que o metediço do dr. Indiana Jones deveria desaparecer antes de o negócio estar concluído.

 - Foi então que arranjei maneira de o atrair. Fiz jogo limpo. Até lhe dei mais uma oportunidade de roubar a cruz. - Endereçou-lhe um sorriso. - É pena ter voltado a ser apanhado.

 - O lugar dessa cruz é num museu.

 - O seu também. - Deitou uma olhadela aos marinheiros. - Atirem-no borda fora.

 Indy foi projectado através do convés até atingir a amurada.

Foi quando passavam por um amontoado de barris de combustível que ele viu maneira de se aproveitar da tempestade. Usando os marinheiros como alavanca, deu um pontapé nas barras de metal que mantinham os barris unidos, abrindo-as.

 De súbito, os barris ficaram soltos e começaram a rolar pelo  convés. Indy espetou os cotovelos nos estômagos dos espantados marinheiros e precipitou-se para o seu inimigo.

 Chapéu Largo viu-o aproximar-se e avançou para a escada que dava acesso à ponte. Contudo, antes de lhe poder chegar, um enorme barril de combustível foi abater-se de encontro à escada, bloqueando-lhe o caminho. O barril começou a rolar na sua direcção. Desviou-se para o lado e, à medida que o fazia, a cruz soltou-se da sua mão e caiu no chão.

 Indy inclinou-se na direcção da cruz, mas um dos marinheiros bloqueou-lhe o caminho, atirando-lhe uma barra de metal à cabeça. Abaixou-se mesmo a tempo, desferindo um soco de baixo para cima que apanhou o marinheiro exactamente na parte inferior do queixo.

 Freneticamente, Indy olhou em volta à procura da cruz. Viu que esta se encontrava ali perto. Atirou-se a ela e escorregou pelo convés de barriga para baixo e com os braços estendidos, tal como se de asas se tratassem. Agarrou a cruz no preciso momento em que uma vaga se abateu sobre o convés, submergindo-o.

 Escorregou mais alguns metros, e viu um enorme barril de combustível rolando ao seu encontro. Deu um salto mas desequilibrou-se. Escassos momentos antes de ser esmagado, atirou-se para o chão e começou a rebolar. O barril passou-lhe ao lado.

 Levantou os olhos e viu que uma série de barris vinha ao seu encontro. Pôs-se de pé e evitou-os. Foi por pouco! Voltou-se e viu o outro marinheiro brandindo um gancho de estivador. A criatura caminhava na sua direcção.

 Soltou o chicote que trazia preso à cintura e começou por esticar o braço para trás, só depois o inclinando na direcção inversa.

 O chicote estalou. Atingiu o alvo, enrolando-se em torno do tornozelo do marinheiro. Puxou o chicote e o navio agitado fez o resto:

 o marinheiro estatelou-se no convés.

 Indy parou para admirar o seu bom trabalho. Nesse preciso momento foi envolvido por uma rede, e Chapéu Largo caiu sobre ele aos murros. Era óbvio que o homem estava a divertir-se com o que fazia, batendo-lhe repetidas vezes, sempre com bastante força. Indy tentou amortecer os golpes e livrar-se da rede, mas não foi bem sucedido.

 Todos os barris que Indy evitara quando rolavam de bombordo para estibordo haviam mudado de direcção, acompanhando os movimentos do navio. Agora dirigiam-se outra vez de encontro a ele, só que desta feita também se dirigiam de encontro a uma série de objectos que estavam junto de si e que estavam

marcados com as letras "ToT - PEruGo.”

 Indy gritou quando um dos barris se dirigiu para ele. Chapéu Largo virou-se, viu o barril e precipitou-se pelo convés. Indy desviou-se na direcção oposta, pouco faltando para ser atingido.

 Tentou libertar-se da rede, mas a cruz estava presa nela. A única maneira de se escapar seria largar a cruz, coisa que não fazia tensões de fazer. Foi então que levantou os olhos mesmo a tempo de ver um outro barril de combustível avançar na direcção dos explosivos.

 Havia apenas uma coisa a fazer, e ele fê-la. Elevou-se por sobre a amurada, aterrando no mar encapelado. No preciso momento em que atingiu a água, o navio explodiu, partindo-se.

Do ar caía toda a espécie de pequenos objectos, exactamente como se também pertencessem à tempestade, e aquilo que restava do navio não demorou muito tempo a afundar-se nas águas.

 A água e a explosão haviam feito que se libertasse da rede.

Rolou de um lado para o outro na água, até que acabou por aparecer à superfície como se de um pedaço de cortina se tratasse. Continuava a agarrar a cruz. Agitava as pernas furiosamente, tentando manter a cabeça fora de água.

 Procurava arranjar alguma coisa a que se agarrar. Mergulhou e voltou à superficie, tossindo e cuspindo água. A sua mão tocou em algo - uma bóia. Agarrou-a com ambos os braços.

 Foi então que, a flutuar mesmo ao seu lado, viu algo que lhe pareceu familiar. Estendeu um braço e apanhou aquilo, chegando perto do rosto. Tratava-se dos restos de um chapéu de abas largas.

 æ distância, um cargueiro americano fez soar o apito. Indy acenou, tentando chamar a atenção dos tripulantes do navio, e foi então que viu que agitava a cruz no ar. Perguntou-se como diabo poderia explicar o facto de ter uma cruz. "Sou padre.

Salvei a cruz. A cruz salvou-me.”

 Que interesse tinha isso? Tinha vontade de rir e chorar ao mesmo tempo. Raios, sabia que ia conseguir. E, caramba, a cruz estava consigo.

 

 Nova Iorque: alguns dias mais tarde

NO "CAmpUS”

 A tarde, por ser quente e primaveril, fizera que os estudantes se precipitassem para o exterior, jovens de vestidos curtos e I homens de gravata percorriam os caminhos de tijolo ladeados de árvores frondosas que serpenteavam pelo campus, para lá dos edifícios de tijolo cobertos de hera.

Levavam os livros debaixo dos braços, os lápis atrás da orelha, e nenhum deles parecia ter muita pressa.

 Um corvo negro pairou silenciosamente por sobre os alunos e

aterrou no parapeito de uma janela do segundo piso de um edifício coberto de hera. Lá dentro, um professor que usava um casaco de tweed e óculos com aros de metal, olhou na direcção dajanela, momentaneamente distraído com a ave, e depois voltou a concentrar a sua atenção na turma. Os estudantes olhavam-no com atenção, à espera de que continuasse.

 Apesar do seu ar profissional, havia nele algo de duro.

Ficava-se com a impressão de que quando tirava o casaco e a gravata e passava à acção, procurando objectos antigos, tudo podia acontecer, facto este que era bem capaz de ser verdade.

Era este ar misterioso -bem assim como uma certa timidez -que faziam que a sua turma se enchesse de alunas. Pela parte que lhe tocava, nunca se queixava da enorme quantidade de jovens atraentes que iam assistir às suas aulas.

 Aqueles que o conheciam de perto sabiam que costumava minimizar as suas próprias experiências. Isto talvez se devesse ao facto de sentir que vivia à sombra do seu famoso pai, conhecido perito da época medieval, o dr. Henry Jones.

Fosse por que razão fosse, costumava dizer uma coisa a seu respeito e a respeito da sua carreira, mas, simultaneamente, e servindo-se de outros meios - gestos, olhares furtivos e sorrisos misteriosos - dava a entender que tudo o que dizia era apenas parte da história.

Com as mãos enfi adas nos bolsos das calças, passou os olhos pela sala.

 - Bom, esqueçam essas histórias de cidades perdidas, viagens exóticas e escavações em todo o mundo. Setenta por cento do trabalho arqueológico é feito na biblioteca. Para nós, a mitologia não é uma coisa que possa ser levada à letra, nem seguimos mapas de tesouros escondidos, principalmente porque o "X" nunca marca o lugar certo! O continente perdido de Atlântida! Os Cavaleiros da Távola Redonda! Nada disto passa de uma série de disparates românticos.

 Parou por um momento, sentindo o peso da cruz de ouro que trazia no bolso do casaco. Olhou para baixo, coçou a orelha e continuou.

 -A arqueologia significa a procura de factos... Não da verdade. Se, minhas senhoras e meus senhores, estão interessados na verdade, as aulas de filosofia do dr. Peterman são um bom começo.

 A turma soltou uma gargalhada e o professor Indiana Jones olhou para uma aluna bastante bonita que estava sentada ao pé da porta, e sorriu.

 - Próxima semana: Egiptologia. Vamos começar com a escavação de Naukratis, levada a cabo por Flinders Petrie em 1885. A Jenoy, perdão, Miss Appleton, tem a lista das leituras para este semestre. Porfavor, quando saírem levem um exemplar. - Dado que esperava que uma série de alunos se precipitasse para o estrado, acrescentou: - Se têm mais perguntas vão ter comigo ao meu gabinete.

 æ medida que os estudantes iam saindo, Indy desviou os olhos na direcção do lado oposto da sala, onde Marcus Brody, director do museu da Antiguidade e amigo de longa data de seu

pai, o esperava. Contornou o estrado e encaminhou-se para junto dele.

 Brody, indiscutivelmente britânico, andava à volta dos 60.

Tratava-se de um indivíduo permanentemente dividido entre os relatórios de contas dos contabilistas do museu e os caprichos dos beneméritos endinheirados. Já por várias vezes dissera a Indy que o via como uma luz na escuridão, um homem de princípios disposto a enfrentar aqueles que viam nos objectos antigos apenas uma maneira de conseguir lucro.

 Tinha um rosto bastante expressivo, cheio de rugas profundas, cada uma das quais contava uma história. Tinha quase sempre um ar preocupado, e Indy sentia-se sempre tentado a dar-lhe uma palmadinha no ombro e a afirmar-lhe que as coisas acabariam por se compor.

 - Marcus! - Indy bateu no bolso. - Consegui.

 Os olhos de Brody iluminaram-se.

 - Quero que me contes tudo.

 - Vamos andando.

 Quando deixaram a sala e tomaram o caminho do átrio, Indy tirou a Cruz de Coronado do bolso do casaco e estendeu-a para que Brody visse.

 - Tem-la mesmo contigo. Bravo. Estou contente. Estou mais que contente. Estou feliz.

 - Como é que achas que me sinto? Sabes há quanto tempo andava atrás dela?

 - Desde sempre.

 - Desde sempre.

 Falaram ao mesmo tempo, e ambos se riram.

 - Muito bem, Indy. Muito bem, mesmo! Agora conta-me como conseguiste.

 Indy encolheu os ombros.

 - Não foi preciso muito. Somente um pouco de persuasão amigável, mais nada.

 - Mais nada? - perguntou Brody como se não acreditasse.

 - Bom, quando as coisas azedaram tive de recorrer a outros métodos.

 - Estou a ver. - Brody acenou. Era mais que óbvio que estava interessado em ouvir mais. No entanto, preocupava-o o facto de poder ouvir algo que estivesse fora dos cânones do museu que representava.

 Contudo, antes que Indy pudesse começar a contar a sua história, foi abordado no corredor por dois colegas.

 - Jones, por onde andaste? - perguntou o mais alto. - As férias do semestre acabaram há uma semana.

 O outro colega colocou uma deusa da fertilidade feita de louça à frente de Indy.

 - Dá uma olhadela a isto, Jones. Descobri-a numa viagem ao México. É provável que ma consigas datar. Que dizes?

 Indy revirou a peça de cerâmica nas mãos. Um sorriso forçado subiu-lhe aos lábios.

 - Datá-la?

 Pouco à vontade, o homem compôs a gravata e encarou-o.

Depois, servindo-se de um falso tom de autoconfiança, acrescentou:

 - Paguei quase duzentos dólares por ela. O homem garantiu-me que era précolombiana.

 - Pré-Outubro ou Novembro. É difícil de saber. Bom, o melhor é dar-lhe uma olhadela. - Antes que o espantado professor

tivesse tempo de dizer alguma coisa, Indy partiu a figurinha em duas. - Vês, podes ver a partir do corte transversal. Não vale nada.

 - Não vale nada?

 - É isso mesmo. - Devolveu ambos os pedaços da figura ao professor, e afastou-se com Brody.

 - Devia ter-lhes mostrado qual o aspecto de um objecto valioso - disse Brody, segurando a cruz.

Indy encolheu os ombros.

 - Para quê tamanho incómodo?

 Alguns minutos mais tarde pararam em frente do gabinete de Indy.

 - Esta peça será colocada num lugar de honra entre as nossas aquisições espanholas - assegurou-lhe Brody.

 - ?ptimo. Os meus honorários podem ser discutidos mais tarde, com uma garrafa de champanhe.

 - Quando posso esperar por ti?

 Indy ficou um momento pensativo. Ainda não fora ao gabinete e não estava com muita vontade de se embrenhar na papelada que deveria estar à sua espera devido ao facto de ter faltado à primeira semana do semestre.

 - Dentro de meia hora.

 Brody sorriu, enfiou a cruz dentro da pasta, e, à medida que se afastava, continuava a exibir o seu ar satisfeito.

 Indy abriu a porta do gabinete e pestanejou. O vestíbulo estava apinhado de estudantes que de imediato o rodearam.

 - Professor Jones, não se importa...

 - Dr. Jones, eu preciso...

 - Olha lá, eu cheguei primeiro. Professor...

 æ força, Indy abriu caminho até à secretária. A funcionária, uma professora assistente chamada Irene, parecia estar em estado de choque. Não olhava para lado nenhum, ignorando o bombardeamento de alunos. Foi então que viu Indy e voltou de súbito à actividade.

 - Dr. Jones! Por amor de Deus, estou tão contente por ter voltado. Tem o correio na secretária. As suas mensagens telefónicas estão aqui. A agenda com as entrevistas é esta.

Estão aqui alguns trabalhos que ainda não foram classificados.

 Indy acenou, pegou nos trabalhos e virou-se para a entrada do seu gabinete privado. Os alunos tentavam ainda atrair a atenção.

 - Dr. Jones!

 - Espere, dr. Jones. Tem aqui o meu trabalho.

 - Assine a minha caderneta.

 - Oiça, dr. Jones. Se eu pudesse ter...

 Indy levantou a mão e a turma ficou de súbito silenciosa e atenta.

 - Irene... faça uma lista com os nomes dos alunos conforme a ordem de chegada. Atenderei um de cada vez.

 Irene desviou os olhos de Indy e encarou os alunos.

Semelhante a uma nuvem de mosquitos, a horda precipitou-se sobre ela.

 - Bom, vou tentar - murmurou.

 - Eu cheguei primeiro.

 - Não, eu cheguei antes de ti...

- Tenho a certeza que fui o segundo...

 - Tu aí, vê lá onde é que estás a pisar.

 Indy enfiou-se no escritório, e, com alguma impaciência, começou a vasculhar o correio. Este constava de inúmeros boletins de faculdade, circulares arqueológicas, o último número de Esquire and Colliers, e um sobrescrito volumoso que exibia um selo estrangeiro.

 Olhou durante um momento.

 - Hum... Veneza. - Tentou lembrar-se se conhecia aí alguém, mas não chegou a nenhuma conclusão. Antes de ter oportunidade de abrir o sobrescrito, a voz perturbada de Irene soou através do intercomunicador.

 - Dr. Jones... parece que há uma pequena discussão sobre quem chegou primeiro e eu...

 - Está bem - cortou Indy. - Faça o melhor que puder. Estarei pronto dentro de um minuto.

 "O diabo é que estarei.”

 Enfiou o correio nos bolsos do casaco, deu uma olhadela em redor, abriu ajanela e passou através dela. Respirou fundo, enchendo os pulmões com o ar daquela tarde primaveril, e deu consigo no jardim que havia ali perto. Rosas, gardénias, erva.

Era maravilhoso.

 - Que lindo dia! - disse para consigo, afastando-se do gabinete e atravessando o jardim. Caminhava confiante e decidido. Sorria, gozando a liberdade, ao mesmo tempo que ignorava toda e qualquer responsabilidade. Depois do que passara para conseguir a cruz, merecia descansar um pouco.

 Se alguém se queixasse, bom... nunca dissera ser tão responsável quanto o pai. Tinha consciência de que a reputação do pai era uma lâmina de dois gumes. Por um lado, servia para lhe assegurar o lugar na universidade. Por outro, fazia-o sentir-se como um estudioso de segunda ordem, incapaz de igualar o pai.

 Talvez fosse por isso mesmo que era irresponsável e se arriscava tanto. æ sua maneira, queria chamar as atenções.

Aquilo que não conseguia igualar em sabedoria ultrapassava na prática. E a prática fornecia-Lhe um enorme campo de acção, cheio de aventuras.

 Quando chegou à curva situada fora do edifício, na extremidade do campus, um Packard enorme e negro foi ao seu encontro.

 Indy olhou lá para dentro e estava prestes a seguir o seu caminho quando a porta de trás se abriu e saiu de lá um homem.

Vestia um fato escuro de três peças, e usava o chapéu tão enterrado na cabeça que a aba deste lhe deixava os olhos na sombra. Nada indicava que estivesse a brincar. Aquilo que viu fez Indy pensar que se tratava de um detective federal.

 - Dr. Jones?

 Indy olhou-o nos olhos.

- Sim? Posso ajudá-lo em alguma coisa?

 - Temos algo de bastante importante para discutir consigo.

 Gostaríamos que viesse connosco.

 Indy hesitou, observando o homem de perto. "Um chumaço no casaco. ?ptimo. Era disto que eu precisava." Como que parajustificar as suas suspeitas, o homem deixou que o casaco se abrisse , revelando que trazia uma pistola presa ao ombro.

Indy fitou a arma, depois os três homens que estavam dentro do carro. Tinham sido todos feitos pelo mesmo molde que fizera o que estava à sua frente.

 Não sabia o que queriam, mas não se deu ao trabalho de procurar saber.

 - Não sei se agora tenho tempo - disse, num tom hesitante tentando descobrir uma maneira de sair daquela.

 -Não tem de pensar em mais nada, dr. Jones. Receio ter de insistir para nos acompanhar.

 Durante a meia hora que se seguiu, Indy viu-se sentado no assento traseiro do Packard, entalado entre dois guarda-costas corpulentos. Tentou saber o que se passava por diversas vezes, mas disseram-lhe que não faltava muito para descobrir. Quando fez um qualquer comentário sobre a temperatura primaveril, o homem que estava à sua esquerda grunhiu. O que estava à direita limitou-se a olhar em frente.

 "Bastante simpáticos.”

 Lembrou-se de que nenhum deles lhe mostrara a identificação.

Virou-se para o indivíduo que estava sentado a seu lado e pediu que Lhe mostrasse o cartão. O homem fez de conta que não o ouviu.

 - Vocês são polícias, não são?

 - Somos moços de recados - respondeu um deles, e todos riram.

 Pouco à vontade, Indy também riu. As coisas estavam a ficar engraçadas.

 

 A PLACA DO CRUZADO

 Estava quase a escurecer quando o Packard parou em frente de um luxuoso edifício privado da 5ª Avenida, a partir do qual se avistava o Central Park. Indy saiu do carro e foi acompanhado até ao edifício por dois dos homens. Conduziram-no através do átrio e enfiaram-no num elevador particular. Desceu quando a porta se abriu, e ficou impressionado com o luxo que o rodeava.

 - Vá lá - resmungou um dos homens. - Lá dentro pode ocupar-se da paisagem.

 Fizeram-no entrar num apartamento - Art Deco que fora

construído no telhado, e deixaram-no numa sala decorada com inúmeros objectos dignos de serem expostos num museu. Indy começou a andar por ali, examinando-os um por um. Fosse quem fosse o dono da casa, este tinha dinheiro e bom gosto, com especial incidência para o primeiro. Pegou num vaso de cerâmica que tinha o desenho de um pavão de um dos lados.

Reconheceu que era originário da Grécia, e, apesar de ter mais de dois mil e quinhentos anos, o brilho das suas cores estava muitíssimo bem conservado.

 Quando se abriu uma porta à sua frente, Indy interrompeu a inspecção. Ouviu música de piano e vozes, e, por alguns momentos , antes de a porta se ter enchido com a figura de um homem alto, de ombros largos, vestido de smoking, reparou que ali decorria um cocktail. O maxilar inferior era quadrado, e o cabelo louro começava a escassear. Apesar de aparentar ter mais de 50 anos, o corpo era esbelto e musculoso, como se de umjovem se tratasse. Enquanto atravessava a sala, a sua figura apresentava um porte régio, e Indy não teve qualquer dúvida de que estava prestes a conhecer o dono do apartamento. Achou que o conhecia, mas de onde? Foi então que se lembrou. Tratava-se de um dos maiores doadores do Museu da Antiguidade. Vira-o por diversas vezes em acontecimentos sociais relacionados com o museu, e ouvira Brody falar muito a seu respeito. Chamava-se Walter... Walter Donovan. Era isso.

 - Repare nos olhos que estão na cauda do pavão - disse Donovan, apontando para o vaso que Indy continuava a segurar.

 Com todo o cuidado, voltou a pôr a peça no lugar.

 - Sim, são bem bonitos.

 - Sabe a quem pertencem?

 Indy sorriu.

 - Claro. São os olhos de Argo. Tratava-se de um gigante com cem olhos. Hermes matou-o e Hera colocou os seus olhos na cauda dos pavões.

 Donovan fitou-o por um instante.

 - Devia ter calculado que sabia alguma coisa sobre mitologia grega.

 Ele encolheu os ombros.

 - Um pouco.

 O estudo da mitologia grega fora o suplício da sua infância, e só o aceitara devido à insistência do pai. Gostara de alguns dos contos, principalmente dos que se referiam a Herácles e às sortes, mas demonstrara sempre o seu desprezo pelo pai por lhos ter obrigado a ler e a decorar. Agora, no entanto,  admirava-se por, trinta anos mais tarde, se lembrar tão bem dos heróis e das histórias. Era como se as tivesse lido a semana passada.

 - Espero que tenha feito boa viagem, dr. Jones - sorriu Donovan, exalando confiança e poder. - Espero que os meus assistentes não o tenham alarmado.

 Ele esteve quase para fazer um comentário sobre os incríveis diálogos que travara durante o caminho, mas Donovan estendeu-lhe a mão e apresentou-se.

 - Já o conheço, Mr. Donovan - disse ele quando o outro Lhe

soltou a mão que apertara com firmeza. - As suas contribuições para o Museu da Antiguidade têm sido extremamente generosas.

 - Obrigado.

 - Algumas das peças da sua colecção impressionam bastante - acrescentou Indy, olhando em seu redor.

 "Bom, que negócio queres tu comigo?”

 - Ainda bem que reparou.

 Donovan encaminhou-se para uma mesa onde se encontrava um objecto coberto por um pedaço de tecido. Era uma das peças que Indy ainda não examinara. Donovan puxou o pano, deixando à vista uma placa de pedra com apenas alguns centímetros quadrados.

 - Gostava bastante que observasse esta, dr. Jones.

 Indy aproximou-se e viu que a placa continha inscrições compostas por letras e símbolos. Tirou os óculos do bolso, pô-los no nariz, inclinou-se com vista a observar mais perto a antiga placa.

 - Símbolos cristãos primitivos. Caracteres góticos.

Inscrições bizantinas. Diria que de meados do século XII.

 Donovan cruzou os braços.

 - Coincide com a nossa avaliação.

 - Onde foi que encontrou isto?

 - Os meus engenheiros desenterraram-na nas regiões montanhosas do norte de Ankara, enquanto escavavam para obter cobre. - Parou por um instante, examinando Indy pelo canto dos olhos. - Dr. Jones, é capaz de traduzir a inscrição?

 Indy recuou um passo. Continuava a fixar a placa. Explicou que não seria fácil traduzir as inscrições, até mesmo para alguém como ele, conhecedor do período e das línguas.

 - Mas por que não tenta mesmo assim? - perguntou Donovan num tom persuasivo.

 "Por que diabo o hei-de fazer?”

 - Gostaria bastante - acrescentou o outro.

 "Aposto que sim.”

 Indy franziu a testa e olhou para a inscrição. Por fim, pigarreou e começou a falar devagar, com uma voz hesitante, mais ou menos como uma criança que está a aprender a ler.

"...Quem beber a água que lhe dou, diz o Senhor, terá uma nascente dentro de si... brotando para a vida eterna. Deixem que me conduzam à vossa montanha mágica, ao lugar onde habitas.

 Através do deserto e através da montanha, até ao desfiladeiro da Lua em Quarto Crescente, que tem espaço para apenas um homem. Até ao Templo do Sol, suficientemente sagrado para todos os homens...”

 Indy parou, olhou para Donovan com uma expressão de surpresa, não viu qualquer reacção e continuou a ler a última linha.

 "... onde o cálice que contém o sangue de Jesus Cristo, nosso Senhor, repousa para sempre.”

 - O Santo Graal, dr. Jones. - A voz de Donovan mal se elevara, reverente. Era óbvio que ficara impressionado com o que Indy lera. - O Cálice de que Cristo se serviu durante a

ûltima Ceia. A taça que recolheu o seu sangue durante a cruxificação e que foi confiada a José de Arimateia. Uma taça de grande poder para quem a encontrar.

 Indy coçou o queixo e olhou para Donovan de um modo duvidoso.

 - Já ouvi essa história antes.

 - A vida eterna, dr. Jones. - Escolhia as palavras como se Indy não o tivesse ouvido. - A dádiva dajuventude para quem beber do Graal.

 Tudo levava a crer que Donovan levava a inscrição à letra em vez de a considerar no seu contexto mitológico. Acenou, mas nada disse, pois não queria encorajar o homem a lançar-se numa busca que já consumira diversas vidas. Sabia bem de mais como a demanda pelo Cálice do Graal se transformara numa obsessão, até mesmo para os estudiosos mais racionais.

 - Trata-se de uma história da carochinha que eu gostaria de trazer à luz - continuou Donovan.

 - O sonho de um velho.

 - O sonho de todos os homens - contrapôs Donovan. - Incluindo o seu próprio pai, creio.

 Indy endireitou-se ligeiramente quando ouviu falar do pai.

 - A ciência do Graal é o seu passatempo. - Falava sem revelar qualquer emoção, encobrindo o desconforto que sentia sempre que o Graal e o pai eram mencionados um a seguir ao outro, como partes de um verso ou de uma adivinha.

 - É muito mais que um simples passatempo - continuou Donovan. - Há quase vinte anos que o seu pai ocupa a cátedra de literatura medieval em Princeton.

 - É professor de literatura medieval. O tipo de professor que os alunos esperam nunca vir a ter.

 - Faça justiça ao homem. Trata-se do maior estudioso do Graal que existe no mundo.

 Indy lançou um olhar turvo a Donovan, e estava prestes a dar-Lhe uma resposta quando a porta se abriu.

 A sala foi subitamente invadida por música e o som de vozes, e ambos os homens se voltaram quando uma mulher com ar de matrona e que envergava um vestido de noite bastante caro, entrou na sala.

 - Walter, estás a esquecer-te dos convidados - disse ela, num tom que não escondia o aborrecimento. Os seus olhos desviaram-se do marido e fixaram-se em Indy, voltando depois ao ponto de partida.

 - Já vou, querida.

 Quando se tornou evidente que Donovan não o ia apresentar à

 mulher, Indy voltou a concentrar-se na placa.

 Mrs. Donovan suspirou, um suspiro que dizia estar já habituada a coisas deste tipo, e voltou para a festa, o vestido a roçagar à medida que se afastava.

 Apesar dos seus comentários cépticos, Indy estava fascinado com a placa do Graal. Não punha as mãos no fogo, mas tinha quase a certeza de que esta era aquilo que aparentava ser. A sua existência era já uma descoberta importante. Aquilo a que esta podia conduzir era algo em que por agora não queria

pensar.

 Esquecera-se do modo como o tinham tirado da rua. Era inconsequente. Tudo o que interessava era a placa e aquilo que esta dizia.

 - É difícil resistir, não é? - comentou Donovan, certo do interesse que despertara em Indy. - O local onde o Santo Graal repousa descrito em pormenor. Simplesmente espantoso.

 Indy encolheu os ombros e recuperou a sua atitude céptica e científica, a que dominava a personalidade que exibia nas aulas.

 - E depois? A placa fala de desertos, montanhas e desfiladeiros. Há muitos desertos no mundo... o Sahara, o deserto da Arábia, o Kalahari. E também cordilheiras... os Urais, os Alpes, Atlas...

 Por onde começar?

 Depois fez notar a falha evidente que existia na descoberta.

 - Talvez que se a placa estivesse completamente intacta pudéssemos avançar um pouco mais. Contudo, a parte superior desapareceu completamente.

 Donovan não tinha ar de quem ia desistir facilmente. Segundo Indy, agia como alguém que sabia mais que aquilo que dizia - algo bastante importante.

 - Mesmo assim, dr. Jones, já está em marcha uma tentativa para recuperar o Graal.

 Indy franziu a testa e abanou a cabeça.

 - Quer dizer que a placa já foi traduzida?

 Donovan fez que sim com a cabeça.

 - Então por que razão me arrastou do campus se só queria uma segunda opinião? Posso acusá-lo de rapto. - Era de propósito  que falava com dureza.

 Donovan levantou uma mão.

 - Podia fazê-lo, mas não creio que o faça. Vou explicar porquê.

 Mas deixe-me primeiro contar-lhe mais uma história da carochinha, dr. Jones. Depois de o Graal ter sido con fiado a José de Arimateia, desapareceu e esteve perdido durante cerca de mil anos até ter voltado a ser encontrado pelos cavaleiros

 da primeira cruzada. Para ser mais preciso, por três irmãos.

 - Também já conheço essa - interrompeu Indy, acabando ele mesmo por concluir a história. - Cento e cinquenta anos depois de o Graal ter sido encontrado, dois dos irmãos abandonaram o deserto e deram início à viagem de regresso. Contudo, apenas um foi bem sucedido, e, antes de ter morrido muito, muito, velhinho, contou a sua história a um frade franciscano.

 Visivelmente satisfeito por Indy saber a história, Donovan acenou.

 - Excelente. Agora deixe-me mostrar-lhe uma coisa. - Atravessou a sala e regressou trazendo um livro com uma capa de pele. Abriu com cuidado. Era evidente que as páginas eram extremamente frágeis.

 - Este é o manuscrito do frade franciscano. - Fez uma pausa, deixando o facto actuar plenamente. - Não revela a localização do Graal, mas o cavaleiro declarou que haviam sido deixados

dois "marcos" que ajudariam a encontrar o caminho.

 Donovan apontou para a placa de pedra.

 - Este, dr. Jones, é um dos "marcos". Esta placa prova que a história é verdadeira. Mas, como fez notar, está incompleta.

 Passaram alguns segundos. Indy quase que os podia ouvir encher a sala, e sentiu que tinha o corpo tenso, à espera que Donovan continuasse.

 - O segundo marco está enterrado junto com os restos mortais do irmão do cavaleiro. O chefe da nossa expedição, depois de ter passado anos sem fim a estudar este assunto, acredita que o túmulo está localizado em Veneza, Itália.

 - E quanto ao terceiro irmão, aquele que ficou no deserto? O frade diz qualquer coisa a seu respeito no manuscrito?

 - O terceiro irmão ficou para trás para se transformar no guardião do Graal. - Donovan fechou o velho manuscrito com todo o cuidado. - Como pode ver, dr. Jones, estamos prestes a concluir uma demanda grandiosa que começou há quase dois mil anos. Estamos apenas a um passo de encontrar o Graal.

 Indy sorriu.

 - E é aqui que, quase sempre, as coisas começam a complicar-se.

 Donovan inspirou o ar por entre os dentes e voltou a expeli-lo, um suspiro que revelava um qualquer inconveniente menor que, de uma forma ou de outra, se transformara num fardo.

- É capaz de estar mais perto da verdade que aquilo que julga.

 - Como assim?

 - Chegámos a um beco sem saída. O indivíduo que chefiava o nosso projecto desapareceu. O mesmo se passou com o produto das suas investigações. Recebemos um telegrama do colega dele, um tal Schneider, que não tem qualquer ideia do seu paradeiro nem do que lhe aconteceu.

 Donovan baixou os olhos para o manuscrito antigo, e depois voltou a encarar Indy. Tinha um olhar distante, quase fixo, como se uma parte de si estivesse tão perdida como o colega de Schneider.

 - Quero que retome as coisas no ponto onde ele as deixou.

Encontre-o e terá encontrado o Graal. É capaz de pensar num desafio maior que este?

 Indy levantou as mãos e abanou a cabeça. Soltou uma pequena gargalhada, não muito firme. Um desafio era uma coisa, a estupidez outra. "Para além disso", pensou, tinha um compromisso com a universidade. Não podia deixar tudo e partir, principalmente porque acabara de regressar de uma outra viagem de trabalho.

 - Veio ter com o Jones errado, Mr. Donovan. Por que razão não tenta o meu pai? Tenho a certeza de que ficaria fascinado com a ideia, e pronto para o ajudar no que fosse possível.

 - Já tentei. O homem que desapareceu é o seu pai.

 

O DIåRIO DO GRAAL

 Indy percorria a grande velocidade uma alameda rodeada de árvores que seguia por uma zona residencial bastante antiga.

 Quando fez a curva, girou de tal forma o volante do Ford Coupé, que quase atropelou um homem que ia a atravessar a rua.

 - Indy, pelo amor de Deus, e pelo meu pobre coração, abranda - gritou Brody.

 Parou no quarteirão seguinte, junto à curva. Durante breves momentos, olhou através do vidro da frente para uma casa parcialmente escondida por uma sebe e algumas árvores.

 Tratava-se de uma construção de dois andares, com muitasjanelas e um jardim bastante bonito. Era o tipo de casa que poderia ter pertencido a uma família vulgar, com crianças e animais de estimação, o género de família que faz churrascos, ao fim-de-semana, a família que Indy nunca tivera.

Em nada se parecia com o local onde ele e o pai tinham vivido há muitos anos. Contudo, emanava o mesmo sentimento de desconforto, apesar de ele já lá não ir há pelo menos dois anos.

 Mas agora nada do que acontecera entre ele e o pai interessava.

 Saltou do Ford, e já tinha percorrido metade do caminho que o separava da porta principal quando Brody o alcançou. Este estava sem fôlego devido à violência do exercício e tinha a testa franzida.

 - O teu pai e eu somos amigos de longa data. Vi-te crescer, Indy. Também os vi irem-se separando. - Subiu os degraus que davam para a varanda um passo atrás de Indy. - E nunca antes te vi tão preocupado com ele como agora.

 Indy atravessou a varanda.

 - Ele é um académico. Um rato de biblioteca, não um homem de acção, Marcus. Claro que estou preocupado...

 A porta da frente estava aberta e isto fez que ele se calasse. Brody e ele entreolharam-se, e Indy aproximou-se com cautela, com os músculos comprimidos. Abriu a porta e esta abriu-se completamente, chiando um pouco. O ar que o atingiu no rosto era frio - e vazio.

 - Pai?

 - Henry? - chamou Brody quando entrou, depois de Indy.

 As suas vozes ecoaram no vazio. Os receios de Indy acentuaram-se. Voltou a chamar o pai e precipitou-se pelo corredor, metendo a cabeça em quartos vazios, quartos que não tinham conhecido grandes modificações desde que se haviam mudado do Colorado, tinha ele 15 anos. A mobília era mais bonita, havia mais coisas, mas o ar aqui era tão estéril e sem personalidade como o fora na outra casa depois da morte da mãe.

 O tiquetaque do relógio fazia-se ouvir no silêncio. O

frigorífico zumbia. O silêncio parecia estar a rir-se dele.

"Foi-se", pensou Indy e desviou a cortina que separava o hall de entrada da sala de estar.

 Fez uma careta, e Brody murmurou:

 - Meu Deus!

 A sala não se limitara a ser revirada. Fora dizimada. Os armários haviam sido virados e atirados ao chão. Tinham esvaziado as prateleiras. As almofadas do sofá tinham sido arrancadas e depois atiradas para longe. Por todo o lado se viam livros, cartas e sobrescritos.

 Indy ficou parado durante alguns instantes, olhando de um lado para o outro à procura de algo, de qualquer coisa que lhe pudesse fornecer uma pista.

 Abaixou-se e apanhou um álbum de fotografias que havia sido deixado de lado. Caíram algumas fotos e ele apanhou-as, ficando a olhar para a que estava em cima. Esta mostrava um rapazinho acompanhado por um indivíduo mais velho,  bastante sisudo, cuja barba ainda não embranquecera por completo. Tanto o homem como o rapaz estavam rígidos. Como quem está pouco à-vontade. E ambos tinham ar de quem queria estar em todo o lado menos ali.

 "E isso", pensou ele, fora sempre o problema entre ele e o pai, até mesmo na altura em que a fotografia fora tirada.

Nunca se tinham sentido à vontade um com o outro, e agora, à medida que os velhos sentimentos voltavam, Indy sentiu que qualquer coisa lhe doía no peito.

 A fotografia fora tirada no ano a seguir à morte da mãe. O pai estivera de luto durante todo esse ano. Indy sabia que ele pensava muito na mulher, que formara uma espécie de ponte entre o pai e o filho. A ponte desapareceu aquando da sua morte. O pai nunca lhe falava a respeito dela. Se ele mencionasse a mãe ou qualquer assunto relacionado com ela, o pai deitava-Lhe um olhar frio e mudava de assunto, ou então, como alternativa, dava-Lhe um trabalho para fazer.

 E depois havia as ameaças. Lembrou-se das inúmeras vezes em que lhe diziam que não podia competir com o velhote. Não possuía a disciplina, a determinação e a inteligência necessárias. É claro que o pai reconhecia que ele tinha uma certa curiosidade.

 Mas de que é que isso lhe servia? Tudo o que fazia era meter-se em sarilhos.

 æ medida que cresceu, o ressentimento e a raiva que sentia em criança aumentaram. Certo dia, Indy disse ao pai que ele havia de ver. Também seria arqueólogo e dos bons. A vontade que tinha de ser tão conhecido como o pai parecia crescer proporcionalmente com a teimosia e a insistência demonstradas pelo homem mais veLho em que ele não chegaria a lado nenhum.

 O som dos passos de Brody nas escadas fizeram-no voltar ao presente. Os seus mal-entendidos com o pai foram prontamente substituídos por um enorme sentimento de culpa pelas vezes em que desejara nunca mais o ver. E também pelas vezes em que o desejara ver morto. Apesar da teimosia e da obstinação demonstradas pelo pai, agora que ele desaparecera, as coisas

mudavam de figura. Naquele preciso momento não havia ninguém no mundo que Indy tivesse tanta necessidade de ver.

 - Aqui dentro não está em lado nenhum - disse Brody.

 - Já calculava isso.

 O rosto de Brody estava distorcido devido à preocupação que sentia.

 - Em que será que aquele idiota se meteu desta vez?

 - Não sei. Mas, seja no que for, de certeza que perdeu a cabeça.

 - Não consigo imaginar o Henry a meter-se com pessoas em quem não confiasse. Repara, até a correspondência lhe revistaram.

Indy olhou para o amontoado de papéis e sobrescritos, e foi então que reparou de que se esquecera do seu próprio correio.

 - As cartas. É isso, Marcus!

 Meteu a mão ao bolso e tirou de lá aquele sobrescrito bastante grosso que transportava desde que saíra do gabinete.

Voltou a olhar para o selo estrangeiro e abanou a cabeça.

 - Veneza, Itália. Como é que pude ser tão estúpido?

 Brody parecia surpreendido.

 - Estás a falar de quê, Indy?

 Abriu um sobrescrito e tirou lá de dentro um pequeno bloco-notas. Deu uma olhadela rápida a várias páginas. Parecia tratar-se de um registo, de um diário. As páginas estavam cobertas de notas escritas à mão e de desenhos.

 Brody olhou para o bloco por cima do ombro de Indy.

 - É da parte do Henry?

 - Sim. O diário que o meu pai escreveu a respeito do Graal.

 - Mas por que razão to foi ele mandar?

 - Não sei. - Deu uma olhadela à sua volta e depois voltou a desviar os olhos para o diário. - Tenho o pressentimento que era disto que eles andavam à procura. Parece que há para aí alguém que o quer a todo o custo.

 Passou a mão ao de leve pela capa de pele do diário. "Ele confiou em mim. Finalmente fez alguma coisa mostrando que confia e acredita em mim.”

 - Posso vê-lo? - perguntou Brody.

 - Claro. Está tudo aí. Todo o trabalho de uma vida.

 æ medida que Brody virava as páginas do diário, as rugas do seu rosto iam-se acentuando.

 - A pesquisa sempre foi a sua paixão, Indy.

 - Eu sei. Mas tu acreditas nesse conto de fadas, Marcus?

Acreditas mesmo na existência do Graal?

 Brody parou de virar as páginas assim que descobriu uma gravura que fora copiada para o diário. Representava Cristo na cruz, e José de Arimateia recolhia o seu sangue num cálice de ouro.

 Levantou os olhos e falou com convicção.

 - A demanda do cálice de Cristo representa a busca do divino que existe em todos nós.

 Indy acenou com a cabeça e tentou esconder o cepticismo que sentia. Contudo, Brody não deixou passar o seu sorriso indulgente.

 - Eu sei. Tu queres factos. Só que não tenho nada para ti, Indy. Quando se chega à minha idade está-se pronto a aceitar algumas coisas inexplicáveis. Sinto isso mas não o consigo provar.

 Indy nada disse. O seu olhar estava cravado num quadro colocado na parede. Representava alguns cavaleiros do século XI que encontravam a morte mergulhando do alto de um enorme rochedo. No entanto, um deles flutuava no ar em segurança, pois segurava o Graal nas mãos.

 Lembrou-se de como o pai o obrigara a ler o Parzival, de Wolfram von Eschenbach - A história do Graal. Tinha apenas 13 anos e não conseguia imaginar pior forma de passar as tardes de Verão - pelo menos até ao ano seguinte, altura em que o pai o obrigou a voltar a ler tudo aquilo, desta vez na versão alemã original. A Isso seguiu-se a ópera de Richard Wagner, Parsifal, baseada no trabaLho de Eschenbach.

 Todos os dias o pai lhe fazia perguntas a respeito da história para se certificar de que ele a compreendera. Se não soubesse a resposta para alguma das perguntas ordenava que voltasse atrás e lesse outra vez a parte correspondente. Como incentivo, o pai prometera-lhe uma recompensa quando estivesse a par do trabalho de Wagner.

 Costumava pensar a respeito da recompensa que o pai lhe daria, e desejava que fosse uma viagem ao Egipto para ver as pirâmides, ou talvez a Atenas para ver o Parténon, ou ao México, a Yucatan e às ruínas maias. Na pior das hipóteses, achava que merecia uma visita ao museu do capitólio e às múmias que ali estavam. Em vez disso, o prémio que recebeu foram as lendas do rei Artur a propósito do Graal. Primeiro, a Morte De Arthur, de Sir Thomas Malory, que começou por ler em francês e só depois em inglês. Depois disso foi Idylls of the King, de Lord Tennyson. "Uma bela recompensa", pensou, lugubremente. Apesar do ódio que nutria por aqueles livros difíceis que falavam de Parzival, e da raiva silenciosa que sentira pela recompensa, nunca esquecera as aventuras dos cavaleiros Parzival, Gawain e Feirifs - os heróis do Parzival de von Eschenbach -o u Perceval, Galahad, Bars e Lancelot, todos protagonistas da lenda de Malory. De facto, agora que pensava nisso, era provável que esses livros tivessem influenciado consideravelmente a forma como vivia a vida.

 Dado que Indy não falava, Brody pigarreou e continuou.

 - Se o teu pai acredita que o Graal existe, o mesmo se passa comigo.

 Indy não estava certo daquilo em que devia acreditar, a não ser que precisava de agir, de começar a procurar.

 - Marcus, telefona ao Donovan. Diz-Lhe que quero um bilhete para Veneza imediatamente. Vou à procura de meu pai.

 - ?ptimo. Vou dizer-lhe que queremos dois bilhetes. Eu também vou.

 Dirigiram-se para o aeroporto sentados no banco de trás de uma limusina, sendo acompanhados pelo dono desta, Walter

Donovan. Indy conseguira uma autorização de emergência para se ausentar da universidade. A princípio, quando fizera o pedido, o reitor olhara-o de soslaio. Como poderia ele estar a pedir uma autorização para partir, quando acabara de faltar à primeira semana do semestre. Foi então que Indy lhe forneceu pormenores, e, à menção do nome do pai, a atitude do reitor mudou imediatamente.

 Este acenou solenemente, olhou pela janela, e contou-lhe uma história em que o pai era protagonista. Já a tinha ouvido, mas desta vez o fim deu uma outra volta. Tratava-se de um incidente que ocorrera quando um colega particularmente arrogante do dr. Jones montara uma exposição sobre os seus mais recentes achados arqueológicos. Dado que era um indivíduo importante e possuidor de bastante poder no meio académico, a recepção registava a presença de estudiosos e arqueólogos vindos de várias universidades de leste. Estavam ali não porque admirassem o indivíduo, mas sim porque o receavam.

 Quando chegou a hora de mostrar o achado mais significativo da colecção, o dr. Jones dirigiu-se para a parte da frente da sala e retirou a cobertura que tapava uma peça de cerâmica supostamente mais antiga que qualquer outra que fora descoberta no Novo Mundo. Depois disto esmagou-a de encontro ao pedestal onde esta se encontrava, e declarou que não passava de uma fraude. Os guardas levaram-no dali o mais depressa possível, mas as provas que deixou atrás de si confirmaram que a razão estava do seu lado, e o reinado de terror do tal professor ficou por ali.

 O reitor afastara-se da janela e fitava Indy nos olhos.

 - Esse professor fora meu conselheiro e quase me expulsara porque não concordei com ele no que respeitava à datagem de uma peça. Sem o saber, aquilo que o seu pai fez salvou-me a carreira. Sim, com certeza que vai encontrar o dr. Jones. O mundo precisa de homens como ele.

 Indy levou a viagem até ao aeroporto meditando naquilo que sabia a respeito do desaparecimento do pai. O facto de saber ainda tão pouco constituía o principal problema. Suspeitava que a excessiva paixão que o pai nutria pelo Graal o tivesse levado a aceitar participar numa expedição pouco convencional.

Tendo em conta a sua idade, era provável que tivesse pensado que esta seria a sua única oportunidade de encontrar o Graal e de terminar a demanda de uma vida.

 "Raios partam o velhote e a sua obsessão!”

 Se as relações entre ambos fossem melhores, nada disto teria acontecido. Culpou-se a si próprio. Tivera sempre uma atitude pouco positiva a propósito de tudo o que se relacionava com o pai. No entanto, de uma forma ou de outra, iria compensar todos os mal-entendidos do passado e rectificar as coisas.

Mal a limusina deu a curva à entrada do aeroporto, Donovan apertou a mão de Brody.

 - Bom, Marcus, boa sorte.

 "Como se a sorte tivesse alguma coisa a ver com isto.”

Pensou Indy.

 - Obrigado, Walter. - Brody acenou, com algum nervosismo. -

Assim que chegarmos a Veneza...

 - Não te preocupes - retorquiu Donovan. - Schneider estará lá para vos receber. Tenho um apartamento em Veneza. Está à vossa disposição.

 - Ainda bem, Walter.

 Brody abandonou a viatura e Indy estava prestes a segui-lo, quando Donovan lhe tocou no ombro.

 - Tenha cuidado, dr. Jones. Não confie em ninguém.

Compreende?

 Indy olhou-o de frente.

 - Farei tudo o que for necessário para encontrar o meu pai.

 O avião avançava à luz do sol, passando por nuvens que se agarravam ao céu como se de pequenas vírgulas brancas se tratasse. Por debaixo deles estendia-se o Atlântico, uma mancha infinita, um deserto azul, brilhante e que quase cegava. Mas Indy não viu nada disto. Durante a maior parte da viagem esteve ocupado com o diário que o pai escrevera sobre o Graal.

 Leu-o com cuidado, anotando todas as entradas, todas as páginas, procurando encontrar dados. "A palavra Graal deriva de graduale, o que significa a passo e passo, degrau a degrau", lia-se logo ao princípio. "Existem seis etapas, ou níveis de consciência, na demanda do Graal, e cada uma delas é representada por um animal.”

 O diário explicava que o corvo simboli zava a primeira etapa, representando o mensageiro do Graal e o Hdedo do destino" , o qual iniciava a demanda.

 A segunda fase era representada pelo pavão, o símbolo da busca da imortalidade. Sugeria igualmente a natureza brilhante e imaginativa da demanda.

 O animal que correspondia à terceira fase era o cisne, pois aquele que aceitasse ir procurar o Graal teria de fazer como o cisne, e não ligar qualquer importância às suas ambições pessoais.

 Para se ter sucesso era preciso ultrapassar as fraquezas do espírito e da carne, e passar para lá de todos os desejos e aversões mesquinhas.

 A quarta etapa encontrava correspondência no pelicano,  a ave que estava disposta a ferir o próprio peito para que a sua cria se alimentasse. Simbolizava o auto-sacrifício e a disponibilidade para enfrentar o perigo, salvando com isso a sua gente.

 O símbolo do quinto grau era o leão. Significava liderança, conquista, e a realização de objectivos elevados.

 O sexto, e o mais importante de todos os níveis, era representado pela águia. Somente no fim da demanda se atingia esse estado.

 Nesta fase, aquele que buscava o Graal teria conquistado o poder e os conhecimentos suficientes para entender totalmente o significado da busca.

 Indy levantou os olhos do livro e mudou de posição. Era típico do pai representar as coisas através de símbolos e de metáforas. Como estudioso, trabalhava com conceitos abstractos. Tinha a sensação de que o diário do Graal era uma mistificação quase tão grande como a do próprio Cálice.

 O facto de terem sido mencionados animais lembrou-lhe algo em que há muito não pensava. Quando tinha 18 anos, regressara às regiões do sudeste e tentara alcançar a visão, sendo para tal guiado por um velho índio Navajo. Subira a um pequeno planalto, uma mesa, do Novo México, sozinho e sem levar comida. Então construíra um abrigo e ficara à espera.

 O índio dissera-lhe que deveria esperar até que um animal se aproximasse dele. A partir de então este seria o seu protector, o seu guia espiritual. Passaram dois dias e sentia o estômago vazio e a garganta seca. Queria descer e encontrar água. Levantou-se, foi até à beira do planalto e olhou para baixo, perguntando a si mesmo que foi que lhe dera para fazer algo tão louco.

 Estava prestes a iniciar a descida quando julgou ouvir a voz do velho índio dizendo-lhe para esperar. Surpreendido, voltou-se. Não estava ali ninguém. Pensou que a fome e a sede estavam a provocar-lhe alucinações. Contudo, em vez de descer, voltou para trás, para o abrigo.

 Não dera mais que uma dúzia de passos quando, de repente, apareceu uma águia no céu, pairando por sobre aquela superfície lisa e rochosa. A majestosa criatura acabou por poisar numa das paredes do abrigo. Encontrara o seu protector.

Quando lhe contou a história, o velho Navajo fez sim com a cabeça, e disse que a águia o guiaria sempre nas suas viagens, dando-lhe poderes para alcançar tudo aquilo que queria.

 Indy saiu do seu sonho quando a hospedeira lhe bateu no ombro e lhe perguntou se queria uma bebida. Ele assentiu, e, quando se sentava melhor, caiu do diário um pedaço de papel dobrado. A hospedeira apanhou-o e devolveu-lho junto com a bebida. Ele colocou o copo no tabuleiro que estava à sua frente e desdobrou o papel.

 Tratava-se de um decalque que de imediato reconheceu como sendo a cópia da placa do Graal que estava na posse de Donovan.

A parte superior revelava um espaço em branco, tal como se tivesse ficado assim para receber o que faltava da placa.

 - Dá uma olhadela a isto, Marcus.

 Estendeu o papel a Brody, mas foi então que descobriu que o seu companheiro de viagem dormia profundamente.

 Voltou a dobrar a folha e estava prestes a enfiá-la no diário, quando reparou no desenho que a página onde o livro se abrira ostentava.

 Era o esboço daquilo que parecia ser um vitral. Por baixo encontravam-se uma série de números. "Qual o significado disto?”

 Não faltava muito para o descobrir.

 

Veneza

OS NUmERAIS ROMANOS

 - Ah, Veneza! - suspirou Indy, olhando em volta e acenando para si mesmo, retirando algum consolo daquilo que o rodeava.

Veneza era uma cidade única no mundo, o perfeito antídoto para o seu mau humor. æ medida que, junto com Brody, atravessava a cidade de barco, a nuvem negra que pairava sobre ele desde que soubera do desaparecimento do pai, esfumara-se.

 O ar tinha um cheiro doce a água, o céu era uma almofada suave e azul, e o espírito de Indy elevou-se. "Vai ficar tudo bem", disse, de si para si. Acabaria por encontrar o pai.

 - Repara - disse Brody. - Uma cidade construída numa lagoa e em cento e dezoito ilhas.

 Indy acenou.

 - E vê só o que eles construíram.

 Em cada rua e canal se podia ver a herança de Veneza. A cidade era um porto de cultura e saber, de história e de romance, e, sem qualquer dúvida, de intriga e aventura.

 Assim que ele e Brody desembarcaram no cais, o sentimento de euforia que dominava Indy desfez-se subitamente. A milícia fascista conduzia um suspeito em direcção à cidade. Quando viu o barco, o homem tentou escapar-se a todo o custo. Os homens que constituíam a milícia reagiram com dureza. Bateram-lhe com os bastões, pontapearam-no com aquelas botas pesadíssimas, e o pobre gemia e gritava, tentando escapar-se. Acabou por cair nas pedras da calçada com o rosto cheio de sangue e o corpo tão quieto como se de um morto se tratasse.

 Não havia palavras para descrever o quanto Indy se sentiu preocupado com aquilo. A atitude dos homens da milícia cheirava-lhe a vingança, algo que excedia os códigos militares. Era mais que evidente que gostavam do que faziam, e lembrou-se dos marinheiros que se tinham afundado junto com o cargueiro.

 - Ah, Veneza? - voltou ele a dizer. Contudo, desta vez a voz era mais grave, mais pesada, reflectindo a preocupação que sentia pelo que se passava em Itália e em toda a Europa. Os fascistas e os nazis tinham lançado a confusão no continente.

 Quem poderia saber onde esta terminaria? Ou quando. Ou como.

Ou se teria fim.

 Parte das apreensões que sentira estavam agora de volta.

 - Considero este tipo de coisas bastante perturbador - comentou Brody à medida que atravessavam o cais. - Espero não encontrar mais violência durante esta viagem.

 Indy encarou-o. Brody voltara a ostentar a sua expressão preocupada.

 - É, eu também não. - Contudo, tinha a impressão de que não seria assim.

 Olharam em volta, e Indy perguntou em voz alta como iriam reconhecer Schneider quando o vissem. Donovan não lhes tinha fornecido qualquer descrição do colega do pai. Limitara-se a dizer que estaria à espera deles.

 - Talvez tenha um letreiro - sugeriu Brody, esperançado.

 De repente, uma mulher surgiu do meio da multidão e sorriu-lhes. Era uma loura bastante atraente, de maçãs do rosto elevadas, e uma figura esbelta. Os olhos eram muito azuis, brilhantes e inteligentes.

 - Dr. Jones?

 - Sim. - Indy sorriu. Schneider devia ter mandado a secretária esperá-los, e ele não se importava nem um bocadinho.

 - Já calculava. - A sua atitude era bastante provocante. - Tem os olhos do seu pai.

 Indy sentiu-se de imediato atraído por ela.

 - E as orelhas da minha mãe. Mas o resto é todo seu.

 Esperava que ela se zangasse. Em vez disso, soltou uma gargaLhada. Era um som bastante bonito, leve, cheio de vida, e, por alguns segundos pensou que ela se estava a rir de si.

"E depois?", pensou. "Que interesse tinha isso?" Só para a ouvir rir mais uma vez era capaz de voltar a repetir a piada.

 - Parece que as partes melhores são aquelas de que já falámos - retorquiu ela.

 Divertido com o comentário, Indy sorriu.

 A mulher voltou-se para Brody.

 - Marcus Brody?

 - Certo.

 - O meu nome é Elsa Schneider.

 O sorriso de Indy desapareceu.

 Brody tentou disfarçar a surpresa que sentia, mas não foi bem sucedido.

 - Ah, pois, dr.a Schneider...

 Apertaram as mãos. Ele pigarreou e olhou para Indy à espera que ele retomasse a conversa, voltando-se depois de novo para ela.

 - Prazer em conhecê-la. O Walter não, ah...

Ela sorriu e voltou-se.

 - Já calculava. Acho que o Walter gosta de surpreender as pessoas. Por aqui, meus senhores.

 Entraram na enorme Piazza di San Marco, e ela tratou de dirigir a conversa para aquilo que interessava.

 - A última vez que vi o seu pai estávamos na Biblioteca Marciana. É para lá que vamos. Ele estava prestes a descobrir o túmulo do cavaleiro. Nunca o tinha visto tão animado. Andava alegre como um rapazinho. Estava certo que o túmulo continha o mapa que o levaria ao Graal.

 "O Dr. Henry Jones - o professor åtila - alegre como um

rapazinho." Desconhecia esta faceta do pai.

 - Ele nunca foi alegre, nem mesmo quando era um rapazinho.

 Talvez o facto de trabalhar com Elsa Schneider tivesse desorientado o velhote. Indy não conseguia desviar os olhos dela, e teve de confessar que também ele se sentia um pouco eufórico. Enquanto caminhavam reparou que havia ali um vendedor de flores com uma padiola. Voltou atrás e tirou um cravo vermelho de um dos ramos da esquina. O homem estava ocupado com uma cliente e não deu por nada.

 Estendeu a flor na direcção de Elsa e sorriu.

 - Dá-me licença, Fraulein?

 Ela olhou para a flor e depois para Indy.

 - Não costumo dar.

 - Eu também não costumo fazer isto.

 Ela fitou-o mais um pouco.

 - Nesse caso dou-lhe licença.

 Pegou no cravo.

 - Já me estou a sentir triste... amanhã já estará murcho.

 - Nesse caso, amanhã terei de roubar outro. É tudo o que posso prometer.

 Ela voltou a rir, aquela gargalhada bonita que ficou gravada na memória de Indy a partir daquele instante. Ia para dizer qualquer coisa, mas Brody interrompeu-o.

 - Desculpem, detesto interromper, mas a razão porque estamos aqui...

 - Claro - disse Elsa numa voz séria. Depois disso abriu a mala. - Tenho uma coisa para mostrar aos dois. Como eu estava a dizer, deixei o dr. Jones a trabalhar na biblioteca. Ele mandara-me à secção dos mapas buscar uma planta antiga da cidade. Quando voltei para junto da mesa ele desaparecera, e o mesmo se passara com os papéis em que trabalhava. Sobrou apenas uma coisa.

 Pegou num pedaço de papel e fitou-os a ambos.

 - Descobri isto perto da cadeira em que se encontrava.

 Indy pegou no papel e desdobrou-o. A única coisa que lá estava escrita eram os numerais romanos III, VII e X.

 Ficou a meditar sobre este assunto.

Elsa apontou para a direita com a sua mão enluvada.

 - A biblioteca é já aqui.

 Subiram os degraus da entrada e Elsa foi a primeira a entrar.

 Os sapatos deles faziam barulho ao bater no chão de mármore polido. Indy calculou tratar-se de um daqueles lugares onde uma pessoa se sente forçada a baixar a voz, a falar com alguma reverência.

 - Tenho andado a semana toda a descobrir o signi ficado desses números - murmurou ela -, três, sete e dez. Não parece tratar-se de uma referência bíblica. Verifiquei todas as combinações de versículos e capítulos dos Evangelhos.

 Indy levantou os olhos para o tecto, o qual se situava a cerca de cinquenta pés de altura, e para as paredes de pedra cobertas de vitrinas. Abiblioteca era sombria e enorme, suficientemente grande para uma pessoa se perder lá dentro.

 Pensou na probabilidade de o pai ainda ali se encontrar, absorvido nalgum manuscrito antigo, e sem saber que fora dado como desaparecido.

 - Agora ando a estudar as crónicas medievais de Jean Froissart - prosseguiu Elsa. - A biblioteca tem cópias dos textos originais. Talvez que o três, o sete e o dez representem os números de alguns dos volumes.

 Indy acenou. Estava impressionado com a biblioteca, mas também não se sentia muito à vontade, pois sabia que fora ali que o pai desaparecera.

 De certo modo, as coisas eram um pouco irónicas. Lembrou-se do professor Henry Jones a dar-lhe lições sobre as bibliotecas.

 "Depósitos do saber, Júnior. Quanto mais tempo passares numa biblioteca, mais culto ficas.”

 O pai adorava bibliotecas. Mergulhava nos livros, mas nunca se perdia. Indy tinha a certeza disso. O seu desaparecimento era algo forçado, não voluntário. Não pertencia ao tipo dos que fogem dos problemas. Era demasiado teimoso para isso.

 Caminhavam entre dois enormes pilares de granito e acabaram por entrar numa sala contendo enormes filas de estantes cheias de livros. Elsa conduziu-os até um dos cantos da divisão, e paroujunto a uma mesa, passando a mão com ternura por cima de uma série de livros com capas de pele.

 - Os seus olhos estão a brilhar - comentou Indy.

 - As grandes bibliotecas quase me fazem chorar. Até mesmo um simples livro. É qualquer coisa de sagrado, um tijolo no templo de toda a nossa história.

 - É. Gosto de um bom livro - troçou Indy.

 - Diria que é como estar numa igreja - acrescentou Brody, compreensivo.

- Neste caso, isso é a pura das verdades. Estamos em chão sagrado. Esta era a capela de um mosteiro franciscano. - Ela apontou na direcção de uma série de colunas de mármore. - Estas colunas foram devolvidas na condição de despojos de guerra depois do saque de Bizâncio, durante as Cruzadas.

 Indy olhou para as colunas, mas na altura estava mais interessado najanela que se situava por cima da mesa.

Tratava--se de um vitral e representava um cavaleiro das Cruzadas. Contornou a mesa, observou-o mais de perto, e depois voltou-se para Elsa.

 - É esta a mesa onde viu o meu pai pela última vez?

 Ela acenou, passando os dedos pelas arestas da mesma.

 - Estava a trabalhar mesmo aqui. A propósito, tenho de ir falar com o funcionário. Deixei-lhe um retrato do Henry. Ele disse que ficaria atento caso o seu pai voltasse a aparecer.

 Assim que Elsa desapareceu, Indy pegou no braço de Brody e apontou para o vitral.

 - Marcus, já vi aquela janela antes.

 Brody franziu a testa.

 - Onde?

 O outro puxou do diário do Graal e abriu-o no esboço em que reparara durante o voo. Bateu no livro.

 - Mesmo aqui.

 Brody observou o esboço, levantou os olhos para a janela, voltou a poisá-los no desenho, e acenou, devagar.

 - Bom trabalho, Indy. É o mesmo.

 - Estás a ver?

 - Sim, os números romanos pertencem ao desenho dajanela.

 - O meu pai andava à procura de qualquer coisa aqui.

 Brody devolveu o diário a Indy.

 - Sim, mas de quê? Sabemos de onde vêm os números, mas não sabemos o que significam.

 Indy viu que Elsa se aproximava, e enfiou o diário no bolso o mais rápido que podia.

 - O meu pai mandou-me isto por alguma razão. Portanto, e até a termos descoberto, acho melhor guardarmos isto só para nós.

 - Concordo.

 Elsa abanou a cabeça.

 - Não há sinais dele. - Franziu a testa, olhando ora para Indy ora para Brody. - Estão com cara de quem descobriu alguma coisa. O quê?

 - É assim tão evidente?

 De momento estava a observar as paredes e o tecto. Algures, em alguma parte, tinha de haver uma pista, tinha a certeza disso. Nunca na vida estivera tão certo de uma coisa.

 Brody apontou para a janela.

 - Três, sete e dez. Lá está, a fonte dos números romanos.

 - Meu Deus, tem toda a razão.

- O meu pai não andava à procura de um livro, mas sim do túmulo do cavaleiro. Andava à procura do próprio túmulo.

 A expressão de Elsa era completamente vazia. Por fim, abanou a cabeça.

 - Que quer dizer com isso?

 - Não compreende, Elsa? O túmulo está aqui, algures, nesta biblioteca. Você mesma disse que este lugar era uma igreja.

 Os olhos de Indy pousaram nas colunas de mármore.

 - Ali. - Apontou um dedo e atravessou o aposento à medida que Elsa e Brody o seguiam.

 - Ali. - Indy apontou para os números romanos gravados nas colunas, e sorriu triunfantemente. - Aposto que estão todas numeradas. Espalhem-se. Vamos encontrar as outras... a sete e a dez.

 Afastaram-se em diferentes direcções, cada um seguindo o caminho mais curto na direcção a uma coluna. Minutos mais tarde Brody fez sinal a Indy. Encontrara o número VII.

 Continuaram a procurar, mas ninguém conseguia descobrir a última coluna-a X.

 Juntaram-se de novo no centro da sala, a cerca de meio caminho entre a III e a VII.

 - Raios, tem de estar aqui - murmurou Indy. - Tem de estar aqui. Tenho a certeza.

 Subiu a escada que levava a uma galeria, chegou lá acima e olhou para baixo, esperançado de que esta nova perspectiva lhe fornecesse uma pista. Isso não demorou muito a acontecer. Era bastante óbvio. O local onde Elsa e Brody tinham os pés era um

padrão de mosaico bastante complicado, onde apenas a partir da perspectiva superior se podia ver um X.

 - O X marca o local preciso - disse, e sorriu. Desceu a escada a correr e encontrou-se no meio do X, no local onde se juntava.

 Baixou-se apoiado num joelho, e começou a levantar o mosaico com a faca.

 - Que está a fazer? - murmurou Elsa, olhando à volta, não fosse alguém estar a observar aquele estrangeiro maluco que estava a levantar o soalho.

 - Vou encontrar o túmulo do cavaleiro. - As palavras saíram-lhe por entre os dentes, cerrados devido ao esforço que fazia. - Que coisas está para aí a pensar?

 Depois de alguns momentos o mosaico soltou-se, revelando um buraco com cerca de dois pés, o que provava que tinha razão.

Da cavidade escura elevava-se um vento gelado e um cheiro húmido e desagradável.

 Indy levantou os olhos para Elsa e Brody, e sorriu abertamente.

 - Bingo!

 

 O TûMULO DO CRUZADO

 - Você não desaponta ninguém, dr. Jones - disse Elsa à medida que alinhava uma madeixa de cabelo louro. - É bastante parecido com o seu pai.

 - Só que ele está perdido e eu não.

 Indy espreitou para a escuridão, tirou uma moeda do bolso e deixou-a cair. Um segundo mais tarde ouvia-se um ruído abafado. O buraco não era muito fundo.

 - Volto já.

 Estava quase a saltar para dentro do buraco quando Elsa lhe tocou no ombro.

 - Primeiro as senhoras, Indiana Jones. Por favor, desça-me.

 Indy levou a mão ao chapéu, impressionado com a coragem daquela mulher. Ela sentou-se, passou as pernas por cima do buraco, levantou a cabeça e olhou-o.

 - Está pronto? - perguntou.

 - Pronto - respondeu ele.

 Elsa levantou os braços acima da cabeça. Ele segurou-lhe as mãos e ela afastou-se da beira. Durante um ou dois segundos ficou a balouçar no centro da escuriddão, depois do que Indy a foi baixando devagar, até ao momento em que ela lhe disse para a largár. Ele fez o que lhe mandavam, e ouviu-a chegar ao chão.

 Olhou para Brody por cima do ombro.

 - Fica a tomar conta das coisas, Marcus.

 Brody acenou.

 - Vou voltar a pôr o mosaico no lugar para não chamar as

atenções.

 - Boa ideia. - Meteu a mão no bolso, puxou o diário do Graal, e tirou de lá o pedaço de papel que estava dobrado.

Enfiou-o na camisa, e só depois passou o diário a Brody.

 - Toma conta dele.

 - Claro.

 Indy olhou para dentro do buraco, depois de novo para Brody.

 - Voltarei em breve. Espero...

 Deixou-se cair na abertura e o mosaico voltou a ser colocado no lugar certo. Nesse mesmo instante, a escuridão envolveu-o.

Lá em cima ouviu-se um bater de pés. Que raio estaria Brody a fazer? A sapatear?

 - Elsa? - murmurou.

Ela acendeu o isqueiro. Aquela pequena luz amarela parecia- se com um insecto estranho, luminoso. Pestanejou e viu que ela o olhava.

 - Ouviu aquilo? - perguntou.

 - O quê?

 Ele levantou o olhar, indeciso sobre se deveria voltar atrás ou seguir em frente. Talvez o bibliotecário ou um qualquer polícia tivessem encontrado Brody a mexer no mosaico. Se voltassem lá agora, talvez nunca mais voltassem a ter a oportunidade de procurar o cavaleiro e o segundo marco.

 - Nada, acho.

 Tirou-lhe o isqueiro.

 - Venha daí. Vamos acabar com isso.

 Fazia frio, não corria uma aragem, e o ar cheirava a meias molhadas. Caminhavam ao longo de um corredor com paredes de pedra, e Indy ia protegendo a chama com a palma da mão. Esta não dava muita luz, e, uma vez por outra, tinha de olhar, ora para a esquerda ora para a direita, de forma a poder ver o que estava à sua frente. Parou e olhou por um momento na direcção de um nicho escavado na parede. Avançou alguns passos, não acreditando no que via àquela luz tremeluzente. Segurou o isqueiro de lado e olhou em frente, na direcção de uma caveira que estava presa aos restos enegrecidos de um esqueleto coberto com faixas de linho podre.

 - Acho que estamos numa espécie de catacumbas - disse Elsa.

- Na outra parede há um outro sujeito igual a este.

 Indy olhou por cima do ombro.

 - ?ptimo. Vamos continuar. Acho que nenhum destes rapazes simpáticos é o nosso cavaleiro.

 Continuaram a avançar, passando por vários túmulos semeLhantes, antes de Elsa apontar para alguns símbolos gravados na parede ao lado dos esqueletos.

 - Olhe para isto - disse. - São símbolos pagãos. Do quarto ou do quinto século.

 Indy levantou o isqueiro e deu alguns passos em frente para examinar as marcas.

 - Certíssimo. Cerca de seiscentos anos antes das Cruzadas.

 - Os cristãos devem ter escavado as suas próprias passagens e câmaras funerárias alguns séculos mais tarde - acrescentou ela.

 Sabia que ela estava com a razão e declarou-lho.

 e há um cavaleiro da Primeira Cruzada aqui enterrado, é lá que o vamos encontrar.

 Passaram para o túnel seguinte.

 - Nós também estamos numa Cruzada, não estamos? - Avoz de Elsa revelava sentimento e sinceridade.

 "Engraçado", pensou. Ela levava essa história do Graal tão a sério como o pai dele.

 - Acho que sim. Pode dizê-lo. - Parou. - Dê-me a mão.

 - Porquê?

 Achou que ela não se mostrava muito entusiasmada, mas, e depois?

 - Não quero cair.

 Elsa soltou uma gargalhada e os seus dedos tocaram nos dele.

Indy agarrou-lhe a mão.

 A passagem virava para a esquerda e seguia durante cerca de cem metros, desembocando depois numa secção onde as catacumbas eram maiores e mais húmidas. Dentro em pouco estavam mergulhados até aos tornozelos numa água escura e pegajosa.

 Indy reparou em algo parecido com coágulos. Passou-lhe os dedos por cima e esfregou-os uns de encontro aos outros.

 - Petróleo. Podia abrir um poço aqui em baixo e reformar-me.

 - Indy, olhe. - Elsa apontou para um outro sinal gravado na parede. - Um símbolo judeu. Veneza foi palco de uma enorme comunidade judaica durante o século X.

 - Acho que isso quer dizer que estamos na direcção certa.

 Elsa parou em frente a outro símbolo.

 - Não conheço este.

 Indy olhou para a parede e soube imediatamente do que se tratava. Não apenas vira como também perseguira por todo o mundo aquilo que ele representava, tendo estado perto da morte por mais de uma vez.

 - É a Arca da Aliança.

 - Tem a certeza?

 Ele olhou-a de esguelha com um sorriso irónico a bailar-lhe nos lábios.

 - Absoluta.

 Continuaram a embrenhar-se nas catacumbas. A passagem era agora mais estreita. A água chegava-lhes aos joelhos. Indy parou. Ouviu algo cair à água, seguido de um som parecido com um guincho. Levantou o isqueiro.

 - Ratazanas.

 Duas, três, quatro. Nada de extraordinário. Depois de ter minimizado o problema, viu mais algumas. e depois outras ainda. Dúzias de ratos saltavam dos parapeitos para a água.

Avançou com cautela, e viu que a água estava cheia de ratazanas. Voltou a fazer as contas. Eram centenas, talvez milhares, todas a mergulharem no corredor.

 Começou a ficar preocupado.

 Olhou para Elsa. Luz e sombra reflectiam-se no seu rosto.

 Parecia estar enojada, mas não enjoada, facto pelo qual se sentiu grato. A última coisa que queria era ter junto de si   uma mulher capaz de desmaiar assim que visse um rato. Sugeriu que subissem para o parapeito, sugestão esta que foi prontamente aceite.

 O parapeito era suficientemente largo para se equilibrarem.

 Estava húmido e escorregadio, e eles avançavam de mãos dadas, com as costas encostadas à parede. A seus pés, a corrente de ratos que guinchava continuava a avançar, e, uma vez por outra, Indy dava com as botas naqueles que saíam ao seu caminho. Pelo menos não eram cobras. Desde que, enquanto adolescente, caíra num caixote de cobras, nunca mais as pudera ver. Alguns anos antes, durante a busca da Arca da Aliança, ficara preso num antro de cobras, e ainda hoje tinha pesadelos por causa disso.

 Os níveis de adrenalina subiam à medida que avançava pelo parapeito. O perigo era uma experiência com duas faces: num dos lados o medo, no outro a emoção. Apertou a mão de Elsa e sorriu para consigo. Se tinha de andar por uma catacumba infestada de ratos, Elsa Schneider era a melhor companhia de que se podia lembrar. Era inteligente, amorosa, e não parecia mais perturbada que ele a propósito das circunstâncias precárias em que se encontravam. Gostava disto. Para mais, sabia que o facto de estarem a partilhar esta experiência só os unia mais, e ele gostava de pensar no que poderia sair dali - isto desde que sobrevivessem ao passeio.

 Na sua profissão, os encontros com mulheres belas em circunstâncias exóticas e perigosas não eram experiências do dia a dia.

 Não chegavam a ser merecedores de menção nas aulas que dava.

 Bom, mas talvez um dia escrevesse um livro e transformasse os encontros de campoH mais interessantes numa aventura de pasmar.

 A passagem dava uma volta e desembocava numa câmara de grandes dimensões, inundada de água negra e brilhante, mas, e ao que parecia, livre de ratos. Os olhos de ambos já se tinham acostumado à escuridão, e ele já não precisava do isqueiro.

Pararam por um momento, olhando em silêncio para o centro da caverna.

 Elevando-se acima da água estava uma plataforma de pedra com algumas urnas antigas.

 "Uma ilha-altar", pensou Indy.

 Avançaram em direcção aos caixões, e repararam que a água pútrida ia ficando mais profunda. Já lhes dava pelos joelhos e ainda faltava bastante para lá chegarem.

 - Cuidado - disse Indy. - Fique atrás de mim. O fundo é escorregadio.

 Palavras não eram ditas, escorregou e caiu de joelhos.

 - Está a ver o que quero dizer? - Levantou-se, sorriu estupidamente, deu outro passo, e nesse mesmo instante a água chegou-lhe ao peito.

- Não passa de água. Vamos.

 Seguiram em frente com cuidado, a água ainda à altura do peito de Indy e dos ombros de Elsa. Ela avisou-o.

 - Se a água se tornar mais profunda vou ter de saltar para as suas costas.

 - ?ptimo. Mas e eu? Vou saltar para cima das costas de quem?

 Quando chegaram ao centro da câmara, subiram para a plataforma, e de imediato se esqueceram dos ratos e da água.

Os dois estudiosos começaram a examinar as urnas, antigas e decoradas com embutidos, as quais eram feitas de carvalho, e se mantinham juntas devido ao uso de peças de bronze.

 - Tem de ser uma destas - disse Indy.

 - Esta - replicou Elsa.

 Indy acenou. Não tinha a certeza de que ela estivesse certa, mas Elsa parecia tão confiante quanto à sua escolha!

 - Não confia em mim? Repare na perfeição dos embutidos e nos arabescos. Trata-se de um trabalho de indivíduos que acreditavam que a sua devoção a Deus e à beleza eram a mesma coisa - retorquiu, tocando suavemente no caixão.

 Indy inclinou-se e tentou abrir o fecho. Elsa juntou-se a ele. A tampa gemia à medida que ia sendo erguida devagar. Foi então que se soltou do caixão e bateu de encontro à plataforma de pedra.

 Espreitou lá para dentro e viu uma armadura enferrujada e um escudo cheio de arabescos.

 A viseira do elmo estava levantada e, lá dentro, fitavam-no os olhos vazios de uma caveira.

 - É este o cavaleiro - declarou Elsa. - Repare no trabalho de gravação do escudo. É semelhante ao da placa do Graal que pertence a Donovan.

 Indy exultava. Agarrou-lhe num dos braços, e as palavras saíram-Lhe de jacto. - O escudo é o segundo marco, e nós descobrimo-lo.

 - Gostava que ele estivesse aqui para ver.

 - Quem, o Donovan?

 - Não, claro que não. O seu pai. Ficaria tão entusiasmado.

 Indy deu uma olhada em volta e tentou imaginar o pai ali.

Não conseguiu. Como objectivo de uma excursão, as bibliotecas eram tudo o que conseguia imaginar.

 - Sim, mortalmente entusiasmado.

 Inclinou-se sobre o caixão e afastou o pó e a ferrugem que estavam depositados no escudo do cavaleiro. Apesar de todo o entusiasmo que sentia, o passado e a relação difícil que mantinha com o pai nunca estavam longe do seu pensamento.

 - Nunca teria aqui chegado com estes ratos todos. Detesta ratos, tem medo deles. - Lembrou-se de algo que acontecera durante a sua infância. - Acredite-me. Sei o que digo. Certa vez apareceu um na cave e imagine quem é que o foi matar?

 Eu, claro, e tinha apenas 6 anos.

 Indy meteu a mão na camisa e tirou o papel com as inscrições da placa. Desdobrou-o, colocando a seguir sobre o escudo. A parte que ali faltava estava impressa no escudo.

 - Uma combinação perfeita. Temos o que queríamos.

 - Onde foi que arranjou isso?

 - Segredo de Estado.

 - Oh, estava convencida de que éramos sócios.

 Parecia zangada, e ele, que começara a copiar a parte que faltava da placa do Graal, parou durante o tempo suficiente

para levantar os olhos e sorrir.

 - Sem ofensa, Elsa, mas acabamos de nos conhecer. - Dito isto, voltou ao trabalho.

 - Esta não é a altura própria para rivalidades profissionais, dr. Jones. O seu pai desapareceu. É bem possível que esteja em perigo, e aqui...

 Ele levantou a cabeça.

 - Espere! - Não fora nada do que ela dissera que o tinha feito dar-lhe um grito.

 Olhou à volta e levantou a cabeça, à escuta. Havia ali qualquer coisa errada. Ouviu um chiar distante. Estava a aproximar-se e a tornar-se mais alto. Outra vez os ratos.

 Foi então que viu o brilho de lume a dançar nas paredes da catacumba. Um minuto mais tarde viu os ratos. Milhares chiavam na passagem estreita, invadiam a câmara, e dirigiam-se para a plataforma de pedra.

 Dentro de poucos segundos os ratos começaram a invadir a plataforma e as urnas, uma torrente que chiava e escorregava.

Foi nessa altura que Indy viu o que os fazia fugir. Ao virar da esquina, uma enorme bola de fogo rugia. Utilizava óleo como combustível, e alimentava-se de oxigénio, um monstro que devorava tudo o que encontrava no caminho. Estava a espalhar-se através da câmara, dirigindo-se ao encontro de ambos.

 Elsa gritou.

 Indy en fiou a cópia que fizera do escudo dentro da camisa, encostou as costas ao altar, e empurrou o caixão com os pés.

Este esmagou-se de encontro ao chão e foi cair dentro de água.

Afundou-se, para logo voltar à superfície.

 - Salte! - gritou ele.

 Elsa não se mexeu durante alguns segundos. Indy agarrou-lhe a mão e puxou-a atrás de si. Caíram na água a escassos centímetros da urna flutuante. Línguas de fogo estendiam-se pela água, devorando enor-mes quantidades de ratazanas.

 Indy agarrou-se ao caixão.

- Vá para debaixo dele, depressa. Há poços de ar.

 Dado que ela hesitava, pôs-Lhe uma mão na cabeça, mergulhou-a e arrastou-a para debaixo da urna. Elsa veio à tona em pleno poço de ar, a cuspir e a tossir, afastando o cabelo dos olhos para poder ver. Ficou sem respiração quando se viu frente a frente com a fantasmagórica caveira do cavaleiro do Graal, que deixara a armadura presa ao esquife.

 Indy emergiu ao lado dela, fez uma careta à caveira, e tentou tirar o esqueleto do caixão. Levantou e empurrou-o para baixo. Contudo, a armadura continha poços de ar, e a caveira voltou a emergir, fitando-os com os seus olhos cegos.

 - Desaparece. - Indy bateu no topo do crânio com o punho, como se este fosse um martelo. Desta vez a caveira afundou-se devagar ao lado deles. Deu um pontapé na armadura, e esta afastou-se.

 O calor subia. Centenas de ratos percorriam a parte superior da urna e o barulho que as suas unhas faziam, junto com os guinchos, criava um barulho ensurdecedor. O caixão balouçava

de um lado para o outro, e, devido ao peso dos ratos, começou a afundar-se. Alguns deles apareceram dentro do caixão, guinchando sempre.

 - Indy por amor de Deus!

 Elsa enxotou um rato que nadava na sua direcção, depois enxotou outro que lhe subira para o ombro. Os ratos pareciam estar em todo o lado, e nunca mais acabavam. Estavam apavorados e mordiam em tudo o que encontravam à frente.

 Todos os ratos que se aproximavam de Indy eram recebidos com um murro no focinho. Por cima deles caía uma chuva de serradura, pois os animais tentavam passar pela tampa do caixão. Uma das ratazanas caiu por um buraco. Outras se lhe seguiram, caindo por cima deles. Alguns dos ratos estavam a arder e assobiavam assim que caíam à água. A urna tresandava a pêlo e a carne queimada. O calor adensava-se, consumindo todo o oxigénio. Ele tossiu e esfregou os olhos.

 Elsa gritou quando foi mordida.

 "Isto não pode durar muito mais. Não pode.”

 - O caixão está a arder. - Elsa elevara a voz por cima do chiar dos ratos.

 - Lá se vão os bichos - retorquiu Indy, o mais calmamente possível.

 Contudo, sabia que a situação era desesperada.

 - Sabe nadar?

 - Fui a campeã de natação da åustria. 1932. Olimpíadas de Verão. Medalha de prata nos cinquenta metros livres.

 - Um simples sim ou não teriam bastado. Respire fundo. Vamos ter de nadar debaixo do fogo.

 Encheram os pulmões e mergulharam. æ medida que iam nadando,  Indy interrogava-se sobre o que poderia ter causado o fogo.

Talvez que uma faísca do isqueiro o tivesse ateado. Mas teriam dado por ele muito antes.

 "Trinta segundos." E se alguém os tivesse seguido? Se assim fosse, que teria acontecido a Brody?

 "Quarenta e cinco segundos." Indy sentiu que chegavam a um dos extremos da câmara. Viu uma luz fraca à sua esquerda, e dirigiu-se nessa direcção.

 "Um minuto." A luz filtrava-se através de um escoadouro que entrava pela parede.

 Indy parou e olhou para trás, para Elsa. Aquilo onde a luz entrava devia dar para o exterior. Mas será que caberiam pela abertura? Nadou na direcção do escoadouro, e ainda não avançara muitos metros quando reparou num buraco que se elevava por cima deste. Um raio de luz passava através dele, e a abertura era suficientemente larga para o seu ombro passar.

 Voltou a olhar para Elsa, apontou para o buraco, e fez-Lhe

 sinal para subir. Ela abanou a cabeça e pediu-lhe para ír primeiro.

 Ele não estava para discutir. Estava debaixo de água há pelo menos minuto e meio, talvez mais, e sentia os pulmões prontos a rebentar. Impulsionou as pernas com força, elevou-se, e a sua cabeça apareceu à superfície. Aspirou o ar com força.

Nunca nada lhe soubera tão bem.

 Pouco depois, Elsa emergiu ao seu lado. Para sua surpresa, ela nem sequer parecia cansada.

 Levantou os olhos. Um respiradouro com vinte pés de altura separava-o da luz do dia. Indy encostou as costas a uma das paredes deste, pressionou os pés contra a outra, e foi subindo desta maneira.

 Elsa imitou-o.

 - Não caia em cima de mim, Indy - gritou.

 - Longe de mim tal ideia.

 Só olhou para baixo uma vez. Elsa parecia uma espécie de caranguejo, subindo atrás de si, o cabelo louro molhado e embaraçado. Sentiu que estava a ser observada e levantou a cabeça. Sorriu, e Indy soltou uma gargalhada, continuando a subir.

 Quando chegou lá acima levantou um dos lados da grade. Esta subiu apenas alguns milímetros, e voltou a cair. Tentou outra vez e não foi mais bem sucedido. Viu que por ali passavam uns pés e gritou. Alguém olhou para baixo, e ele pediu ao homem que puxasse a grade.

 O extranho fez o que lhe pedira, e estendeu lhe a mão.

 Assim que dali saiu, deu meia volta e meteu-se no escoadouro, gritando para Elsa se agarrar à sua mão. Ela seguiu os seus conselhos, e ele elevou-a até ao passeio.

 O homem olhou-os, e, em italiano, perguntou-lhes se estavam bem.

 Elsa respondeu-lhe num tom convincente, garantindo-lhe que estava tudo bem.

 Indy olhou à volta. Estavam a uma das esquinas da Praça de São Marcos, a alguns passos de uma esplanada onde as pessoas abriam a boca de espanto e conversavam animadamente umas com as outras.

 Indy fez um sorriso de orelha a orelha quando encarou com aquela cena digna de um postal ilustrado.

 - Ah, Veneza!

 No entanto, o seu humor foi de pouca dura.

 

 AGENTES MORTíFEROS

 Indy deixou de prestar atenção aos basbaques do café e voltou-se para o homem que o ajudara a sair do sorvedouro.

Estava prestes a agradecer-lhe quando reparou que ali havia qualquer coisa errada. Ao contrário do resto das pessoas, o homem não lhes ligava nenhuma. Olhava através da praça, na direcção da biblioteca. Ele seguiu-lhe o olhar e viu quatro homens correndo na direcção em que se encontravam. Reparou que um deles usava um fez. Foi então que viu outra coisa. Um deles trazia uma metralhadora.

 - Oh, oh!

 Subitamente uma série de coisas passou afazer sentido: os ruídos que ouvira depois de Brody ter baixado o mosaico, as

dúvidas que tivera quanto à origem do fogo, não esquecendo o local de onde os homens vinham a correr. Indy ficou com a nítida sensação de que estavam a ser perseguidos. Pegou na mão de Elsa e começou a correr na direcção oposta, para a zona do Grande Canal.

 Elsa arrastava-se atrás dele, confundida com aquela corrida abrupta na direcção da água.

 - Que está a fazer? Ficou maluco?

 Ele deu-lhe uma palmadinha na mão.

 - Vem gente atrás de nós.

 Ela olhou para trás, e, de um momento para o outro, passou para a frente de Indy.

 - Tem razão.

 Ele saltou para um barco a motor. Tentou ligar o motor. Este fez um ruído e ficou na mesma.

 Voltou a tentar e desta vez foi bem sucedido. Colocou no piloto automático, e, nesse preciso momento, o barco balouçou  violentamente, e Elsa soltou um grito.

 Indy baixou a válvula reguladora e olhou para trás, mesmo a tempo de apanhar um murro. Um dos homens embarcara na altura em que o barco começara a trabalhar. Este rodopiava à medida que os dois homens trocavam murros. Elsa passou por eles a rastejar, agarrou o volante, e voltou bruscamente a direcção do barco, falhando algumas gôndolas por pouco. Enquanto avançavam ao longo do canal, os gondoleiros pararam de cantar e mostraram-Lhes os punhos. Uma gôndola virou-se devido ao impacto da água levantada pelo barco.

 - Desculpe - gritou Elsa.

 Entretanto, e a bordo daquele barco, Indy batia-se o melhor que podia. Levou um enorme soco no estômago e dobrou-se, agarrado a uma costela. O atacante elevou-se, encolheu o braço, preparado para desferir o golpe final, mas Indyfoi mais rápido que ele. Atingiu-o em cheio no rosto, atirando-o pela borda fora.

 Satisfeito, esfregou as mãos uma na outra. Gostaria que o homem tivesse ficado por ali para o poder interrogar, mas este não parecera muito pronto a cooperar.

 - Pronto, acho que resolvemos o assunto - gritou para Elsa.

 - Acha que sim?

 Um par de barcos a motor seguia-os de perto, estando quase a alcançá-los. Ele avançou para o volante.

 - Deixe-me ser eu a tratar disto.

 - Espere até que...

 Indy levantou os olhos e o espanto paralisou-o. Mesmo à sua frente estava um enorme barco a vapor. O navio dirigia-se para a doca, e a distância que os separava dele era cada vez mais curta.

 - Está doida - gritou. - Não se meta entre eles. Nunca conseguiremos...

 No entanto, Elsa apanhou apenas fragmentos do que dissera.

 - Meter-me entre eles? Está doido?

 Confuso, abanou a cabeça. Deu um passo na direcção do volante, mas Elsa já se encarregara de tomar o rumo perigoso

entre o barco a vapor e a doca. Desesperado, agitou as mãos.

 - Não Elsa, eu disse para os contornar.

 - Você disse para passar por entre eles.

 - Não disse nada.

 Nesta alturajá nada disso interessava. Tanto o casco do navio como a parede da doca se elevavam à sua volta, mais ou menos como as paredes de uma caverna. Indy agachou-se, agarrou-se a um dos lados do barco, e fechou os olhos, à espera de sentir o impacte do choque.

 Ouviu o som agudo provocado pelo metal. Contudo, ainda estavam inteiros. Abriu os olhos e olhou para trás. Mesmo atrás deles, um dos outros barcos esmagara-se contra o casco.

 Indy suspirou de alívio. Mas, logo a seguir, viu o outro barco aparecer vindo do outro extremo do vapor.

 - Deixe-me ser eu a tratar disto - disse, agarrando o volante. - Você assusta-me.

 Mal acabou de dizer isto, virou para a direita, tentando despistar os outros. O barco fez uma curva apertada, mas o que os perseguia fez o mesmo. Continuava a aproximar-se, vindo do lado esquerdo.

 - Tudo bem, rapazes - murmurou ele -, vejamos o material de que são feitos.

 Voltou o volante para a esquerda, tentando com isto que o outro barco fosse de encontro à margem do canal. Subitamente, fez-se ou- vir uma metralhadora, e elevaram-se algumas lascas do casco do barco.

 "Okay. Estou a perceber.”

 Mudou rapidamente de direcção, ziguezagueando à frente dos perseguidores. Contudo, a metralhadora acertou no motor. Este fez uma série de ruídos e parou.

 Indy agarrou na pistola e disparou contra o outro barco até ficar sem balas.

 - Indy, olhe!

 - O quê?

 Elsa apontou para fora do barco. Estavam a mover-se contra as lâminas rotativas de um outro barco a vapor.

 O barco que os perseguia acercou-se deles. Um dos homens apontou-lhes uma metralhadora. O outro, o que estava ao volante, levantou-se e sorriu para Indy. Era moreno, bem entrado nos 30, com bigode e cabelo preto, encaracolado, que aparecia por debaixo do fez. Os seus olhos escuros e penetrantes pareciam atravessá-lo. O barco foi bater de encontro a eles, empurrando-os para junto das pás propulsoras.

 Indy estava demasiado cansado para pensar. Decifrara o código antigo, lutara contra os ratos naquela água escorregadia, e escapara por pouco ao incêndio. Depois de tudo isto seguira-se a fuga e a batalha aquática. Agora, ao encontrar-se frente a frente com o homem, queria apenas saber o que diabo se estava a passar.

 Foi então que se lembrou de Brody.

 - Que foi que fizeram ao meu amigo lá na biblioteca?

 O homem riu alto. Os seus olhos eram agora dois poços negros que nada revelavam.

 - O seu amigo vai ficar bem. É melhor preocupar-se consigo.

 Indy olhou por cima do ombro e viu que se tinham aproximado ainda mais das pás.

 - E já agora, quem são vocês e o que querem?

- O meu nome é Kazim, e ando atrás do mesmo que você, amigo.

 - Não preciso de amigos do seu tipo. E não sei de que está a falar.

 - Oh, aposto que sim, dr. Jones.

 O barco andava de um lado para o outro nas águas turbulentas perto do propulsor. Indy voltou-se para Elsa e fez-lhe sinal com os olhos que estava na hora de agir.

 - Chega de conversa - gritou Kazim por sobre o ruído que as pás faziam quando batiam na água. - Desejo-lhe melhor sorte lá no outro mundo. - Fez sinal ao homem da metralhadora para os abater.

 Elsa saltou para o outro barco, e isto distraiu por momentos o homem da arma. Indy ergueu o braço e levantou a metralhadora, que disparou para o ar. Enquanto lutavam pela posse da arma, o motor começou a trabalhar.

 O barco começou a andar e Indy desequilibrou-se. Caiu borda fora, arrastando consigo o homem da metralhadora. Indy soltou o outro homem e começou a nadar o mais depressa que podia para se afastar das lâminas propulsoras. O outro indivíduo, desesperado e em pânico, gritava por socorro.

 Atrás de si, ouvia o enorme barulho feito pelo outro barco à medida que ia sendo arrastado para debaixo de água. De súbito, com um estrondo ensurdecedor, as pás do barco a vapor esmagaram-no violentamente, como se de umajangada se tratasse, espalhando os bocadinhos do barco por toda a superfície.

 Kazim fez virar o barco e aproximou-se o mais que podia do vapor. Indy nadou na sua direcção e Elsa estirou-se borda fora, estendendo-lhe a mão para que se agarrasse.

 O homem da metralhadora não foi tão feliz. Já se debatia no meio do redemoinho, a escassos metros das lâminas. Voltou a gritar para Kazim, mas era tarde de mais. Indy olhou para trás e viu o homem desaparecer no meio das pás.

 A água ficou subitamente vermelha.

 Kazim acelerou, e o barco afastou-se do redemoinho. Andava aos ziguezagues, tentando fazer que Indy caísse. Contudo, Elsa agarrava-lhe o braço com força. Finalmente, num último assomo de energia, elevou-se da água e deixou-se cair dentro do barco, tentando a todo o custo recuperar o fôlego.

 Levantou os olhos e viu que Kazim tentava carregar a arma e conduzir o barco ao mesmo tempo. Gatinhou na sua direcção e empurrou-o de encontro ao volante, fazendo que o barco descrevesse um ângulo de cento e oitenta graus, voltando a dirigir-se para junto do barco a vapor.

- Indy, estamos outra vez a andar para trás...

 Antes de Elsa ter tido tempo para acabar a frase, desligou a ignição e tirou a chave. Encostou um dedo à garganta do homem.

 - Okay, Kazim, tu e eu vamos ter uma conversinha.

 Dado que Indy Lhe carregava na garganta, Kazim era forçado a gaguejar.

 - Você está doido. - Tentava manter uma voz calma e digna. -

Que está a fazer, dr. Jones? Está louco?

 - Onde está o meu pai?

 - Deixe-me, por favor?

 - Onde... está... o... meu... pai?

 - Dr. Jones, se não me deixar morreremos ambos. Estamos a dirigir-nos para o barco a vapor.

 Indy reparou no ruído que as lâminas faziam ao bater na água.

 Não se deu ao trabalho de olhar para trás. Tinha os olhos esbugalhados,e a voz revelava sinais de histeria.

 - Optimo. Então morreremos juntos.

 - A minha alma está preparada, dr. Jones. - A voz de Kazim não se alterara, era suave como natas. - E quanto à sua, Doutor?

 A sua alma está preparada?

 Indy agarrou pela frente da camisa.

 - Raios, esta é a sua última oportunidade!

 A camisa de Kazim abriu-se, revelando uma tatuagem que este tinha no peito, a qual tinha a forma de uma cruz cristã afunilada em baixo, tal como as lâminas das espadas.

 Imperturbável, ele olhava para Indy.

 - Que é isso? - perguntou Indy.

 Kazim levantou a cabeça.

 - É um símbolo antigo da minha família. Os meus antepassados foram os príncipes de um império que se estendia desde Marrocos ao mar Cáspio.

 - Alá seja louvado - retorquiu o outro calmamente.

 - Obrigado, e que Deus o salve a si também. No entanto, estava a referir-me ao Império Cristão de Bizâncio.

 Indy sorriu.

 - Claro. E por que razão tentou matar-me?

 Elsa bateu-lhe no ombro.

 - Indy, vai matar-nos a todos se não sair daqui.

 - Espere. - Ele parecia irritado. - Continue, Kazim. As coisas estão a tornar-se interessantes.

 - O segredo do Graal esteve a salvo durante mil anos. E durante todo esse tempo a Irmandade da Espada Cruciforme tem estado preparada para fazer tudo de modo a mantê-lo a salvo.

 - A Irmandade da Espada Cruciforme? - Elsa parecia ter-se esquecido da situação precária em que se encontravam, e mostrava-se bastante curiosa.

Indy voltou a olhar para a tatuagem do peito de Kazim e estreitou os olhos. Quando o encarou de novo, susteve o olhar.

O ruído das pás era agora muito alto. O barco abanava violentamente em frente a elas.

 - Pergunte a si próprio por que razão procura o Cálice de Cristo: para glória Dele, ou para a sua? - disse Kazim.

 - Não vim atrás do Cálice de Cristo. Vim à procura do meu pai.

 Kazim acenou, e olhou por cima do ombro de Indy na direcção do barco.

 - Nesse caso, que Deus o acompanhe na sua demanda. O seu pai está preso no castelo de Brunwald, na fronteira entre a

åustria e a Alemanha.

 Indy empurrou Kazim e enfiou a chave na ignição. Quando a girou, sentiu que as pás do vapor o empurravam com força. O motor rugiu, depois parou.

 - Vá lá! Pega!

 Voltou a tentar. Desta vez foi bem sucedido, e afastaram-se apenas alguns segundos antes de as lâminas os terem esmagado de encontro ao casco.

 - Você é perigoso! - gritou-lhe Elsa, o seu bonito rosto bastante vermelho, tal como se tivesse apanhado um escaldão. - Podia ter-nos morto.

 Sorriu.

 - Eu sei. Mas consegui o que queria. Pergunte ao Kazim onde o podemos largar.

 Os pensamentos de Indy já estavam a milhas dali.

 

 A CASA DE DONOVAN

Depois de um duche quente, de comida, e de nove horas de sono, Indy estava em condições de explorar o apartamento que Donovan lhe permitira utilizar durante a sua estada em Veneza.

Contudo, a palavra apartamento não era a mais adequada.

Tratava-se de um autêntico palácio.

 Os tectos eram abobadados, e o chão estava coberto por grossas placas de mármore. Os móveis antigos valiam uma fortuna. Havia um pátio e várias varandas, e pelo menos uma dúzia de quartos. As paredes estavam cobertas com alguns dos melhores quadros dos artistas venezianos seiscentistas:

Veronese, Tintoretto e Ticiano, para já não se mencionar uma série de trabalhos de importância histórica. Indy achava óbvio que a maioria das pinturas havia sido concebida para exaltar os egos dos aristocratas do século XVI, que passavam a maior parte do tempo a exibir as riquezas dos seus estados aos dignatários estrangeiros. Sorriu, achando que o Donovan era feito da mesma massa, um patrício do século XX.

 Indy estava impressionado com tudo aquilo, mas ao mesmo tempo achava pretencioso de mais para uma residência particular. Alguns dos trabalhos deveriam estar em museus para poderem ser apreciados por um maior número de pessoas. De certo modo, era até um pouco obsceno pensar que tanta beleza era apenas desfrutada pelas pessoas que visitavam aquelas salas.

 Entrou na biblioteca. Em todas as paredes as estantes elevavam-se do chão ao tecto. Pensou que era qualquer coisa de impressionante. O pai teria adorado. Enfiou o nariz nos livros e pegou num volume chamado The Commonwealth of Oceania, de James Harrington. Tratava-se de uma edição original, e fora publicada em 1656. Abriu numa página marcada e leu uma frase que descrevia Veneza. "Nenhuma outra República é tão calma,

tão tranquila, tão em paz consigo mesma, que Veneza.”

 - Certíssimo - riu Indy. Paz e tranquilidade: as coisas tinham mudado um pouco em três séculos. Veio-lhe à ideia a imagem dos fascistas brutais que vira. Distraidamente, esfregou uma das costelas doridas, e tentou não pensar demasiado a respeito das experiências menos tranquilas por que passara na cidade.

 Talvez que esta ainda se apresentasse calmaH para algumas pessoas, mas ele não pertencia a esse grupo. i Era o segundo dia que passava em Veneza, e qualquer um dos três estava a recuperar dos incidentes do dia anterior. Brody tinha um alto do tamanho de um ovo na parte de trás da cabeça, no lugar onde fora atingido. Indy estava a recuperar de uma estranha combinação composta pelos combates que travara e pelo cansaço da viagem. Doía-lhe o maxilar inferior, e tinha duas costelas magoadas devido aos socos que recebera. Enquanto isso, Elsa queixava-se de algumas mordidelas de ratos e de uma ligeira queimadura num dos braços, e que fora causada pelo incêndio ocorrido nas catacumbas.

 Indy ficara impressionado com o facto de ela só ter mencionado as queimaduras e as mordidelas depois de terem encontrado Brody a vaguear pela biblioteca, e de terem chegado ao apartamento. Agora estava pensativa e olhava-o como se quisesse dizer qualquer coisa, mas, sempre que ele tentava dar início à conversa, arranjava sempre uma desculpa para fazer outra coisa.

 - Indy!

 Brody estava à porta da biblioteca. Numa das mãos segurava um saco de gelo que apertava de encontro à cabeça, e na outra uma folha de papel amarrotado.

 - Como é que vai a cabeça, Marcus.

- Agora, depois de ter visto isto, melhor. Acabou de secar.

Tens de lhe dar uma olhadela.

 Apesar do saco de gelo, Brody estava animado como Indy nunca vira. Entrou todo apressado na biblioteca, e deixou cair o pedaço de papel na enorme secretária de mogno que dominava a sala.

 O papel era aquilo que restava do decalque do escudo do cavaleiro.

 A molha que levara no túnel fizera que secasse manchado e pouco nítido, mas ainda estava inteiro. Agora que secara, Indy pôde ver que era legível.

 - Sabemos que aquilo que faltava na placa do Graal que Donovan tem é o nome de uma cidade, não é?

 Indy acenou.

 Brody apontou para as letras antigas e Indy aproximou-se. No entanto, Brody não se conseguiu conter.

 - Estás a ver? Trata-se de Alexandretta.

 - Tens a certeza?

 - Absoluta.

 Indy dirigiu-se para uma das estantes e começou à procura de um atlas.

 - Que estás a fazer? - perguntou o outro.

 - æ procura de um mapa de Hatay.

 Indy sabia que os cavaleiros da Primeira Cruzada tinham cercado Alexandretta durante mais de um ano, e que a cidade fora completamente destruída. Actualmente, acidade de Iskendenrun, na costa mediterrânica de Hatay, estava construída sobre as suas ruínas.

 Encontrou a página que queria e apontou para ela.

 - Aqui. Olha, Marcus, este é o deserto e esta a cordilheira.

É tal e qual o caminho que a placa do Graal descreve. Algures nestas montanhas deve estar o desfiladeiro da Lua em Quarto Crescente. - Parou por um momento, estudando o mapa. - Mas onde?

 Onde, no meio de todas estas montanhas?

 - O teu pai deve saber - disse Brody com calma.

 - Deve?

 - Deixa-me dar uma olhadela ao diário.

 Ele entregou-lho.

 - O teu pai sabe. Sabe tudo menos o nome da cidade por onde começar. Elaborou um mapa que não contém um único nome.

 Aqui está ele.

 Colocou o diário na mesa, e abriu-o no ponto onde se via um mapa feito a lápis que ocupava duas páginas. Indy vira de passagem no avião, mas, dado que não tinha nomes, nada lhe dissera.

 Os dedos de Brody moviam-se através dele.

 - É provável que o Henry tenha recolhido estes dados de uma  centena de fontes diferentes ao longo dos últimos quarenta anos.

 - De que se trata? - perguntou Indy, apesar de fazer uma ideia do que queria.

 - Trata-se da descrição de uma rota que segue para leste, afastando-se da cidade, seguindo pelo deserto até chegar a um oásis. Depois vira para sul, para um rio que segue na direcção de uma cordilheira, e depois para um desfiladeiro. Mas, como ele não tinha nomes, não sabia que cidade, que deserto, ou que rio.

 E agora, para grande alegria que, por certo, causariam ao pai, possuiam-no.

 - De certeza que aqui existem pormenores suficientes para o encontrar. Indy, vou atrás dele.

 Sentindo o bom humor voltar depois desta descoberta, Brody levantou os olhos.

 - Espero que venhas comigo.

 Indy abanou a cabeça e fechou o diário do Graal.

 - Vou à procura do meu pai. Amanhã de manhã parto para a åustria.

 Compreensivo, Brody acenou.

 - Claro. Que estava eu para aqui a dizer? Acho melhor...

 - Não. Tu vais à frente, Marcus. Eu... Nós depois vamos ter; contigo.

 - De certeza?

 - Sim.

 Brody ficou calado por um momento, tal como se estivesse a perguntar a si mesmo se fizera a opção certa. Depois animou-se.

 - Bom, temos ainda algumas horas para passar em Veneza.

 Vamos aproveitá-las o melhor que podemos. Gostaria imenso de ir visitar as galerias da Academia. Têm a melhor colecção de pintura veneziana existente. Vamos, está bem?

 - Tens a certeza de que te sentes bem?

 Ele tirou o saco do gelo da cabeça.

 - Sinto-me lindamente. Sabias que nessa colecção estão "A Tempestade" de Giorgion, "O Ciclo de Santa ûrsula", de Carpaccio, e "AApresentação da Virgem", de Ticiano? Estálá tudo - disse Brody -, desde os primeiros mestres do século xIv, até às grandes peças de meados do século XVIII.

 Indy encolheu os ombros.

 - Vamos. Vou perguntar à Elsa se quer fazer-nos companhia.

 Elsa parecia não conseguir decidir-se sobre se os devia acompanhar ou não. Era como se estivesse a sofrer os efeitos retardados do choque, a ressaca das suas experiências tumultuosas. Ou talvez que se tratasse de uma espécie de depressão.

 - Acho que não vou às galerias - acabou ela por dizer. - Vou sair para comprar algumas coisas para o jantar. Não se importa, pois não?

 - Quer companhia?

- Não se importaria nada de passar o resto da tarde sozinho com ela, enquanto Brody andasse pelos museus. Raios, até a ajudaria a fazer o jantar.

 Ela abanou a cabeça.

 - Vá você e o Marcus. Voltaremos a encontrar-nos no apartamento.

 "Lá se vai um jantar romântico,", pensou, e saiu para se vestir.

 Depois de terem caminhado durante cinco minutos, Indy e Brody chegaram à ponte da Academia, uma estrutura de madeira que atravessava o Grande Canal. Em Veneza havia quatrocentas pontes, mas apenas três atravessavam o Grande Canal. Aponte de madeira fora construída há cinco anos, durante a Depressão, e era suposto tratar-se de uma estrutura provisória.

 Pararam mesmo lá no alto para olhar em volta. æ esquerda podiam alcançar a Basílica de São Marcos, e à direita o Palácio Balbi.

 - Estive a pensar, Marcus. Não gosto de saber que vais viajar sozinho.

 - Indy, tenho a certeza de que o teu pai concordaria. Se esperarmos mais tempo, é possível que as pessoas dessa irmandade estranha o encontrem, e quem sabe o que poderá acontecer ao Cálice do Graal.

 - Não te vou impedir. Mas, antes de partires, contacta o Sallah. Diz-lhe para se encontrar contigo em Iskendenrun.

 Brody acenou afirmativamente. Sallah era um velho amigo de ambos. Quando Indy andara atrás da Arca da Aliança, no Egipto,

Sallah salvara-lhe a vida por mais de uma vez. Sentir-se-ia bastante melhor a respeito de Brody e da demanda do Graal, se soubesse que Sallah estava com ele.

 Os dois homens passaram a hora que se seguiu passeando pelas salas da Academia. Brody era um guia turístico entusiasta e conhecedor, chamando a atenção para o significado dos quadros, um a seguir ao outro. Indy achava-os interessantes, mas tinha menos entusiasmo que Brody. Costumava dizer aos alunos que havia uma relação entre a arte e a arqueologia, mas, no que respeitava à última, os restos de sedimentos bem conservados podiam ser tão interessantes como peças de cerâmica pintada, ou certos trabalhos em ouro.

 æ medida que a hora se aproximava do fim, Indy pôde dizer ao amigo que este se estava a cansar, lembrando-lhe também que a ferida que este tinha na cabeça ainda estava fresca, e que era melhor ter cuidado.

 - Eu estou bem, Indy. Trata-se apenas de uma ferida de pouca importância, e de uma pequena dor de cabeça. Amanhã de manhã já estou bom.

 No entanto, concordou em como eram horas de partirem.

 A medida que se aproximavam do apartamento, Indy sentia-se cada vez mais inquieto. Era como se lhe estivessem a espetar dezenas de agulhinhas na nuca. A experiência ensinara-lhe a tomar esta sensação em linha de conta. Era uma espécie de sinal de aviso, e já lhe fora útil por mais de uma vez.

 Assim que chegaram ao apartamento soube que a sua intuição não o enganara. A porta estava entreaberta. Espreitou lá para dentro, entrou com todas as cautelas, e olhou em volta.

 - Elsa? - chamou.

 O silêncio devolveu-lhe a voz, mais ou menos como se de um eco vazio se tratasse.

 - Elsa? - desta vez levantara a voz. Voltou a não obter qualquer resposta.

 Tal e qual como o pai. Um arrepio gelado percorreu-Lhe a coluna.

 - Vou ver à cozinha - disse Brody.

 Indy foi a correr até ao seu quarto e abriu a porta. O quarto fora revistado. O colchão estava no chão, e as prateleiras tinham sido despejadas.

 "Oh, meu Deus! Que lhe terá acontecido?”

 Desceu o corredor e foi até ao quarto de Elsa. Parou, respirou fundo, e abriu a porta devagar. O quarto dela fora igualmente revistado. O invasor atirara as coisas das prateleiras, arrancara as roupas dos cabides, afastara os lençóis do colchão.

 Mas onde raio estaria ela?

 Saiu do quarto e ouviu uma voz, distante e abafada.

Lançou-se a correr pelo corredor. A voz aumentava de volume, tornava-se mais distinta. Era uma voz de mulher, estava a cantar, e vinha da casa de banho.

 Abriu a porta de rompante.

 - Elsa?

 - Olá, Indy.

 Estava dentro de uma banheira cheia de espuma, e sorria-lhe.

As bolhas rodeavam-lhe o pescoço como se fossem pérolas de um colar transparente. Por entre a espuma elevava-se um ombro liso e branco.

 - Ouve, miúda, há quem queira dormir. - Retirou-se, aliviado

por ela estar bem. Deixá-la-ia tomar banho descansada.

 Voltou para o seu quarto e observou toda aquela confusão.

Fosse quem fosse que tivesse vasculhado a casa, devia ter-se escondido quando Elsa regressara das compras, e fugira quando ela entrara na casa de banho.

 Ficou à espera quando ouviu Elsa cantar enquanto caminhava pelo corredor, a caminho do quarto. Olhou para o relógio, calculando quanto tempo levaria até ela mudar de tom.

Ouviu um grito e sorriu. Esperava que ela se precipitasse para o seu quarto. Ouviu passos. Elsa abriu a porta de par em par. Tinha um roupão vestido e o cabelo ainda estava molhado.

 Ostentava um ar verdadeiramente surpreendido.

 - Indy, o meu quarto...

 - Sim, o meu também.

 Ela abanou a cabeça.

 - Que será que procuravam.

 - Isto.

 Tirou o diário do Graal do bolso, e atirou-o para cima de uma mesa.

 - O diário de seu pai. Estava consigo?

 - Uhm, uhm.

 - Não me tinha dito nada. - Abanou a cabeça. - Não confia em mim.

 Por sobre o ombro de Elsa, Indy viu Brody a espreitar para dentro do quarto, e fez-lhe sinal de que estava tudo bem.

Brody, sentindo que as coisas tinham tomado uma feição íntima, recuou rapidamente, desaparecendo de vista.

 - Não te conhecia. - Olhou bem no meio daqueles olhos azuis.

Desejava com toda a força traçar-lhe o contorno da boca. Céus, era difícil resistir-Lhe. - Ou talvez desejasse apenas conhecer-te melhor.

 - Passou-se o mesmo comigo.. - Falava a custo. - Desde o momento em que te vi.

 - Este tipo de coisas acontece-te com frequência?

 - Não. Nunca. É um sentimento agradável.

 Ele aproximou-se e tocou lhe no ombro.

 - Não confies nisso, Elsa.

 - Que queres dizer?

 - Termos partilhado o perigo e saído dele com vida. Foi isso que provocou tudo.

 - Sim? - Sorriu timidamente, e Indy aproximou-se mais, tocou-lhe no queixo, levantou-o, e beijou-a ao de leve. A boca dela sabia vagamente a pasta de dentes. O cheiro a sabonete na pele dela entontecia-o. Ela moveu-se na sua direcção, e, subitamente, deu consigo a beijá la com força, e Elsa respondia com paixão, deixando-se levar.

 - Toma conta de mim, Indy - murmurou ao ouvido dele.

 As suas mãos pousaram no cinto do roupão dela.

 - Ontem tomaste conta de ti bastante bem. Pelo menos para uma licenciada em História de Arte.

 - Dr. Jones, o senhor não sabe nada a respeito de licenciadas em História de Arte, pois não?

 - Mas gosto daquilo que conheço.

- Ainda bem que gostas, Indiana Jones.

 Agarrou-o pela nuca e puxou-lhe a cabeça contra si. Beijou-o com força durante muito tempo, mantendo-se abraçada a ele. O beijo foi tão forte que Indy cortou o lábio num dos seus dentes.

 Limpou o sangue com a parte de trás da mão.

 - És perigosa.

 - Talvez. Tal como tu.

 Os olhos dela brilharam. Estava ofegante, à espera de um gesto da parte dele. A forma dos seus lábios foi alterada por um sorriso. A brisa nocturna que entrava pela janela fazia-lhe ondular o cabelo. Lá fora, um gondoleiro cantava.

 - Ah, Veneza - disse Indy a meia voz, fechando a porta do quarto.

 

 Àustria-Alemanha

O CASTELO DE BRUNWALD

 O Mercedes-Benz que Indy alugara deslizava suavemente pelas curvas das montanhas dos Alpes austríacos. Quando partiram, o céu estava limpo, de um azul suave. Mas, ao fim da tarde, quando ele e Elsa se aproximavam da fronteira alemã e dos terrenos pertencentes ao castelo de Brunwald, ohorizonte estava totalmente enevoado, e ao longe ouviam-se trovões.

 "Um dia óptimo para visitas", pensou, olhando de soslaio para Elsa.

 Ela mantinha o olhar fixo na estrada. Tinha o cabelo louro atado atrás, e a luz do sol que esmorecia batia-lhe nos pontos salientes do rosto - as maçãs do rosto elevadas devido ao frio. Lembrou-se daquela vez, em Veneza, em que tinham feito amor apaixonadamente e esticou o braço, tocando-lhe na parte de trás do pescoço. A sua pele estava fixa e seca, e ela virou a cabeça e sorriu distraidamente, como se tivesse muito em que pensar.

 "Quando tudo isto terminar", pensou, "eu e Elsa poderemos..." Bom, não sabia de mais nada. Haveria de se lembrar de alguma coisa. Ela fizera-lhe perguntas sobre a universidade, sobre os programas de História de Arte e de Arqueologia, e sugerira que talvez estivesse interessada em o visitar. Quem sabe o que poderia acontecer?

 Entrou no pátio. Visto da janela da frente, aquele local tinha um aspecto ameaçador e inexpugnável. As janelas escuras situadas nos andares superiores nada revelavam. Tratava-se de

uma construção inexpugnável, mais ou menos como um bloco de pedra.

 Interrogou-se sobre qual seria o quarto do pai. Mas seria que este tinha mesmo quarto? Talvez estivesse acorrentado nas masmorras. Talvez já nem estivesse vivo. Mas não. Tratava-se de maus pensamentos.

 Aquela não era a altura própria para isso. Não fazia ideia de como iria descobrir onde o pai estava preso, e muito menos de como o salvaria. Talvez ele nem ali estivesse. Talvez aquilo tudo não passasse de uma mentira de Kazim para o desviar da pista do Cálice do Graal.

- Chegámos - disse ele calmamente. Sentia umas picadas bastante familiares na nuca, avisando-o de que se encontrava em perigo. Sim, o pai estava ali. Tinha a certeza.

 - Impressionante, não? - perguntou Elsa.

 - Sabes alguma coisa a respeito deste lugar?

 - Pertence à família Brunwald há várias gerações. São muito poderosos aqui na região, mas não são particularmente estimados.

 Reparou que havia um lago ao lado do castelo, e que, deslizando pela superfície, estava um cisne solitário. O seu longo pescoço estava graciosamente arqueado, e as suas penas muito brancas, em contraste com as águas escuras do lago, pareciam luminosas.

 Lembrou-se do cisne que estava mencionado no diário do pai.

Representava um dos níveis de consciência na demanda do Graal, e significava algo sobre a superação das fraquezas do coração e da mente.

 Elsa era a sua fraqueza. Saciara os seus desejos como homem que anda há vários dias no deserto sem levar água consigo, e que de repente encontra um oásis. Agarrara-a com força, e ela satisfizera os seus desejos. Por que razão é que ele, ou outra pessoa qualquer, haveria de prescindir destes prazeres?

 - Que estás a pensar? - perguntou ela.

 - Nada.

 - Sim, estou a ver.

 Ele franziu a testa, furioso por ver que os seus sentimentos eram tão transparentes.

 Elsa colocou a mão por debaixo do cabelo e afastou-o da gola.

 Indy sentiu que se tratava de um gesto que significava o afastar de um qualquer pensamento, ou então apenas um sinal para avançarem. Estendeu o braço para o assento de trás, pegou no chicote e concentrou-se no que interessava. Assim que saiu do carro, amarrou-o ao cinto.

 - Que vais fazer? - perguntou ela assim que se encaminharam para o castelo.

 - Não sei. Hei-de arranjar alguma coisa.

 Bateu à porta e ficou à espera. Os relâmpagos iluminavam o céu. Quase no mesmo instante ouviu-se um trovão e começou a chover. As gotas de água corriam pelo casaco comprido e bem talhado de Elsa.

 - Empresta-me o teu casaco, está bem?

 - Tens frio? - gracejou ela.

 - Tenho uma ideia.

 Ela despiu o casaco e ele colocou-o de imediato sobre os ombros, cobrindo o casaco de cabedal e o chicote mesmo na altura em que a pesada porta de madeira se abriu.

Um mordomo de uniforme disse Sim com uma voz capaz de gelar o mais valente.

 Indy adoptara a expressão arrogante de um advogado da classe superior inglesa, e olhou o mordomo com uma expressão a condizer com o seu aspecto.

 - Já não era sem tempo! Era sua intenção deixar-nos ficar nas escádas durante todo o dia? Estamos completamente encharcados!

 æ medida que falava empurrava o espantado mordomo, arrastando Elsa consigo. Espirrou.

 - Veja só! Constipei-me.

 Assoou-se furiosamente, e Elsa, espantada, ficou a olhar para ele.

 - Estão à vossa espera? - A voz do mordomo continuava gelada e dura.

 - Não fale assim comigo, meu bom homem! Desapareça e diga ao barão de Brunwald que lorde Clarence Chumley e a sua assistente estão aqui para ver as tapeçarias.

 - Tapeçarias?

 Indy olhou para Elsa.

 - Meu Deus, o homem é estúpido. Acha que ele me ouviu?

 Voltou a olhar para o mordomo e continuou.

 - Isto é um castelo, não é? Tem tapeçarias, não tem?

 - Isto é um castelo, sim senhor. Claro que tem tapeçarias, e se você é um lorde inglês, eu sou o Jesse Owens.

 - Que descaramento! - respondeu Indy com voz de falsete, esmurrando o outro no queixo com toda a força.

 O mordomo caiu no chão como se fosse um brinquedo que de repente se precipita no chão. Indy sacudiu as mãos.

 - Que descaramento! - continuava a falar com a sua voz afectada. - Ouviu-o falar comigo daquela maneira, a duvidar da minha estirpe, da minha honra, do meu dom de causar uma boa impressão?

 Elsa riu e abanou a cabeça, ajudando-o a arrastar o mordomo para um armário.

 - Inacreditável. Meu caro lorde, o senhor é muito convincente.

 Ele parou de representar, agarrou na mão de Elsa e conduziu-a ao longo de um enorme corredor abobadado.

 - Okay, vamos lá ao que interessa.

 æ medida que atravessavam a sala, desembaraçou-se do casaco dela. Ela vestiu-o e começou a murmurar qualquer coisa, mas ele levou um dedo à boca.

 - Vozes.

 Pararam. Ele deitou uma rápida olhadela em redor, e enfiaram-se ambos num nicho situado por detrás de uma peça de escultura. Um par de soldados nazis passou por eles.

 - São SS, deveria ter calculado - segredou a Elsa quando os

homens desapareceram.

Saíram do esconderijo e começaram a descer o corredor.

 - Onde é que achas que prenderam o meu pai?

 - Nas masmorras?

 - Muito engraçado. - Andava demasiado perto daquilo que ele calculara.

 Apareceu uma criada no corredor, empurrando um enorme carrinho contendo as sobras de um banquete. Indy e Elsa esconderam-se por detrás de uma escada, e ficaram a ver. Hájá algumas horas que não comiam, e os olhos de ambos dilataram-se com todos aqueles restos. Indy colocou a mão no estômago para o impedir de fazer barulho. Perguntou-se se aquilo teria sido ojantar do pai. Esperava que sim. Pelo menos não estaria a passar fome.

 Ficaram ali escondidos durante muito tempo. Ele queria saber ao certo o que ali se passava. Precisava de ter uma ideia a respeito da quantidade de pessoas que ali trabalhavam, quais eram os hábitos da casa, se a casa tinha hábitos, e, no caso de isso acontecer, o modo como poderia tirar partido deles.

 Ouviu-se um trovão, e depois a chuva abateu-se sobre ajanela situada por cima das suas cabeças...

 A fome fez que o estômago de Elsa fizesse barulho.

 O mesmo se passou com o de Indy.

 Entreolharam-se e sorriram em silêncio.

 O som de passos na escada chamou a atenção de Indy. Uma criada, escoltada por um soldado alemão armado, ia a descer carregando uma travessa barata. Esta continha uma tijela de metal à qual estava acorrentada uma colher. "O pai acabou de jantar.”

 - Aquilo tinha mais ar de comida de presos - murmurou, assim que os outros desapareceram de vista.

 - Receio bem que sim.

 Estava na hora de agir. Saíram do esconderijo onde estavam e começaram a subir as escadas. Contudo, assim que chegaram ao primeiro piso viram aproximar-se mais nazis. Desta vez esconderam-se atrás de uma enorme coluna, e esperaram até deixar de ouvir o som agudo provocado pelas botas dos soldados.

 Precipitaram-se para a frente, e quando chegaram ao andar seguinte pararam e olharam nos dois sentidos. Ali perto estava uma porta aberta. Indy ouviu vozes dentro da sala e espreitou lá para dentro. Alguns nazis estavam muito ocupados a examinar obras de arte. "Trata-se de material arranjado ilegalmente", pensou.

 Hitler estava interessado em conseguir todos os objectos de arte e instrumentos primitivos que pudesse, mas não apenas pelo valor material dos antigos tesouros. Indy sabia muito bem que Hitler tinha um interesse especial na obtenção de objectos místicos que o ajudassem a reforçar o seu poder, expandindo assim o império.

 Tinham sido os nazis quem se opusera a Indy na demanda da Arca da Aliança. De facto, ele encontrara a Arca apenas para descobrir que os esbirros do Führer o esperavam para lha roubar. Só compreendera os motivos de Hitler quando experimentara o poder da Arca, algo que ainda não conseguia explicar. Muito embora tivesse acabado por a levar para os Estados Unidos, o misterioso objecto fora confiscado pelos burocratas. Calculava que devia estar enfiado nalgum armazém poeirento, à espera.

 Também ouvira dizer que Hitler andava atrás da Lança do Destino, a mesma que trespassara o flanco de Jesus Cristo. E, sem qualquer dúvida, o chefe do Terceiro Reich gostaria bastante de deitar as mãos ao Cálice do Graal, que continha o sangue de Jesus. Sabia que era por isso que o pai estava ali preso.

 Saiu de ao pé da frincha, e, junto com Elsa, afastou-se pelo corredor. Havia três portas ao fundo deste. Indy olhou para todas elas, e depois apontou com o indicador para a da esquerda.

 - É esta.

 - Como é que sabes? - murmurou Elsa.

 Apontou para um fio eléctrico.

 - Porque é a única que está ligada à corrente. Tenho de descobrir uma outra maneira de entrar. -Recuou, examinou a situação durante alguns instantes, e depois decidiu tentar a porta do lado.

 Girou a maçaneta. A porta estava fechada. Meteu a mão na bolsa que trazia pendurada no cinto, e tirou o tal instrumento de abrir fechos. Parecia ter passado uma eternidade desde que se servira dele para abrir a porta do capitão e chegar ao cofre com a Cruz de Coronado. Contudo, fora há menos de duas semanas. Enfiou o instrumento esguio e comprido no fecho, abanou-o durante um momento, e depois girou a maçaneta. A porta chiou e abriu-se.

 O quarto era pouco iluminado e estava vazio, tirando uma cama e um guarda-fatos. Assim que Elsa entrou, voltou a fechar a porta.

 - Que é isso? - perguntou ela quando o viu enfiar a gazua na bolsa.

 - É segredo.

 - Ah, queres dizer que não dizes nada a esse respeito aos teus alunos? - perguntou, fingindo-se surpreendida.

 - Só aos mais adiantados - disse, dirigindo-se para a janela.

 A chuva batia furiosamente de encontro ao rosto, ensopando-lhe o cabelo. Pestanejou, tentando aclarar a vista.

æfrente dajanela do outro quarto havia um parapeito estreito.

Terminava abruptamente apenas a uns escassos centímetros.

 Indy voltou a meter a cabeça para dentro e soltou o chicote.

 - Que vais fazer? - perguntou Elsa.

 - Tomar duche.

Ela foi espreitar à janela.

 - Não queres dizer que vais... - Viu-o desenrolar o chicote.

- Não acredito.

 - Pois então toma nota. É canja.

 Enfiou-se na janela e atirou a ponta do chicote na direcção

da figura de pedra que se salientava da parede do castelo, mesmo por cima da janela do lado. Foi um lançamento perfeito.

O chicote enrolou-se mesmo em torno do grosso pescoço da figura. Puxou com força, certificando-se de que este aguentava com o seu peso.

 Passou uma perna pela janela e olhou para Elsa através do vidro.

 - Fica aqui. Não me demoro.

 - Indy, isto é uma loucura. Não podes...

 Levantou uma mão.

 - Não te preocupes. É uma brincadeira de crianças. Volto já.

 Indy deixou-se escorregar dajanela e ficou com as pernas a baloiçar no vazio. Tinha razão. Era bastante fácil. Mas esquecera-se de uma coisa. A chuva ensopara o parapeito, e, quando aterrou, os pés deslizaram através da superfície escorregadia. Um dos pés saiu de fora do parapeito, o joelho dobrou-se, e, por momentos, perdeu o equilíbrio. Foi então que puxou o chicote e recuperou o equilíbrio.

 O passo seguinte era tentar descobrir como havia de abrir as persianas, as quais estavam fechadas. Tentou levantá-las, mas estas não se moveram. Estava prestes a tentar de novo quando ouviu barulho, olhou para baixo e viu dois guardas nazis acompanhados de cães e lanternas.

 Encontraram o mordomo.

 Uma das luzes brilhava contra a parede do castelo, dirigindo-se na sua direcção. Encostou-se ao vão da janela e deixou-se ficar muito quieto. O chicote. Poderia tê-lo solto, mas agora era tarde de mais. O feixe de luz passou por ele.

Ficou à espera, contendo a respiração. Depois ouviu os nazis afastarem-se. Não tinham dado por ele nem pelo chicote.

 Voltou a concentrar-se na persiana. Meteu os dedos nos intervalos desta, e puxou com toda a força que tinha. Mesmo assim ela não se mexeu. Tentou servir-se do ombro, mas a alavanca não funcionou.

 Pronto, era preciso tomar medidas mais drásticas. Contudo, tinha de calcular o tempo com toda a precisão. Ficou à espera de ver um relâmpago, e reparou que já não chovia tanto. Quando este apareceu, contou os segundos que decorreram até ouvir o trovão correspondente.

 Esperou que o relâmpago seguinte iluminasse o céu. Agarrou o chicote com ambas as mãos, contou baixinho para si mesmo, e de pois afastou-se da parede do castelo. Acrescentou mais uns quantos números aos seus cálculos, partindo do princípio de que a tempestade estava a afastar-se. Inclinou-se para trás, curvou as pernas, e partiu a persiana com os pés. O barulho que fez estava em perfeita sincronia com o trovão.

 Entrou no quarto atabalhoadamente, caindo de gatas. A chuva e o vento entravam no quarto pelas persianas partidas. Pôs-se de pé e olhou em volta. Quando compreendeu que o pai não estava à vista, algo de pesado atingiu-o na nuca, partindo-se.

 Indy vacilou e caiu apoiado num joelho. Tonto, sem conseguir focar a vista, olhou para cima desamparado, e foi então que viu alguém sair da sombra.

 - Júnior!

 - Sim, senhor - disse, respondendo da mesma forma que costumava fazer em criança. Esfregou a cabeça e focou o olhar no pai.

 - És tu, Júnior?

 As ideias de Indy voltaram a ficar claras. Agora estava aborrecido.

 - Pára de me chamar assim.

 - Que raio estás tu aqui a fazer?

 Interrogou-se sobre se os nazis tinham feito alguma coisa ao cérebro do pai.

 - Que é que achas? Vim tirar-te daqui.

 Henry baixou os olhos para a mão, subitamente distraído e alarmado com o que viu.

 - Espera um minuto.

 Indy conteve a respiração, bastante tenso, e olhou em volta.

 - Que se passa?

 - Fins do século xIv, dinastia Ming - murmurou o pai para consigo.

 Quando compreendeu que todo aquele barulho era por causa de um vaso partido, Indy franziu o sobrolho.

 - É de cortar o coração - exclamou Henry.

 - E a cabeça também - interrompeu ele. - Bateste-me com ele, pai.

 Ainda a olhar para o vaso, Henry continuou.

 - Nunca me perdoarei.

 Indy interpretou mal o pai, que falava ainda a respeito do vaso.

 - Esquece. Eu estou bem.

 - Graças a Deus.

 Enquanto examinava a extremidade partida do vaso, Henry fez um ar aliviado.

 - É falso. Vês? Dá uma olhadela, pode ver-se pelas...

 ... junções - disseram ambos ao mesmo tempo.

Olharam um para o outro e sorriram.

 - Desculpa ter-te batido - disse Henry, franzindo a testa ligeiramente, tal como se tivesse acabado de ver o filho. - Pensei que eras um deles.

 - Eles entram pela porta - retorquiu Indy. - Não precisam de usar a janela.

 - Bem pensado, mas é melhor prevenir que remediar. Desta vez estava errado. Mas graças a Deus fiz bem em te ter mandado o diário. Senti que ia acontecer alguma coisa. Recebeste-o?

 Indy acenou.

 - Recebi e usei-o. Descobri a entrada das catacumbas.

 Henry ficou subitamente excitado.

 - Através da biblioteca. Descobriste-a?

 - É verdade. - Indy sorriu, satisfeito por ver o pai impressionado com alguma coisa que ele fi zera.

 - Eu sabia. - Desferiu um soco para o ar. - Eu sabia. E quanto ao túmulo de sir Richard?

 - Também o descobri.

 Henry ficou sem respiração.

 - Ele estava mesmo ali. Viste-o?

 - O que sobrava dele.

 Henry baixou a voz até esta não ser mais que um murmúrio excitado, e começou a tremer de nervoso.

 - E o escudo... a inscrição no escudo de sir Richard?

 Indy voltou a acenar, parou por um momento e acabou por responder usando uma só palavra.

 - Alexandretta.

 Henry ficou de boca aberta. Recuou, coçou a barba, e passou em revista tudo o que tinha acabado de ouvir. Perdido em pensamentos, murmurava para si mesmo:

 - Claro, Alexandretta. Estava na rota das peregrinações do Império do Oriente. - Ostentando uma expressão de felicidade, voltou-se para o filho. - Júnior...

 Indy estremeceu e estava tentado a interromper o pai por ter voltado a chamá-lo usando o nome de infância, mas calculou que não fosse a altura apropriada.

 O outro continuou.

 ... Conseguíste.

 - Não, foi o pai que conseguiu. Quarenta anos de estudo e de pesquisa.

 Os olhos de Henry brilhavam, fixos num qualquer ponto mesmo acima do ombro do filho.

 - Se ao menos eu lá estivesse. - Voltou a olhá-lo. - Como foi?

 - Havia ratos.

 - Ratos? - parecia que, de repente, deixara de estar interessado em ouvir pormenores da aventura.

- Sim. Ratazanas.

 - Estou a ver.

 - A propósito de ratos... Como é que os nazis te têm tratado?

 - Até agora nada mal. Deram-me mais um dia para falar, e então tornar-se-ão duros. Só que eu não ia dizer nem uma palavra, Júnior. Achava que, se morresse, tu continuarias a busca. Sabia que podia ter a certeza de que manterias o livro o mais longe possível dos nazis.

 Ele levou a mão ao bolso. Os seus dedos traçaram os contornos do diário.

 - Imagina só, pai. Não está assim tão longe.

 - Sim, acho que sim. - De repente sentiu-se pouco à vontade.

 - É melhor irmos andando...

 Um ruído surdo fez com que ficasse silencioso. Voltou a cabeça para a porta a tempo de a ver abrir-se com violência, e três nazis entraram no quarto. Dois deles traziam metralhadoras. O terceiro era um o ficial SS.

 - Dr. Jones! - gritou o oficial.

 - Sim. - Indy e Henry responderam ao mesmo tempo.

 - Quero esse livro agora.

 - Que livro? - perguntaram em uníssono.

 O oficial voltou-se para Indy e fez um sorriso escarninho.

 - Tem o diário no seu bolso.

 A gargalhada que Henry soltou vinha mesmo lá de dentro, e

Indy pensou que ia ficar doente.

 - Cretino! Acha mesmo que o meu filho seria tão estúpido a ponto de trazer o diário para o local exacto onde...

 Henry parou e voltou-se devagar para o filho.

 - Não o fizeste, pois não, Júnior?

 Pouco à vontade, Indy sorriu. - Ah... bem... - Pois não? - gritou Henry.

 - Acontece que...

 - Trouxeste mesmo! Meu Deus!

 - Podemos discutir isso mais tarde, pai? Acho que agora não é a altura...

 - Deveria tê-lo mandado aos irmãos Marx - encolerizou-se o pai.

 Levantou uma mão e disse:

 - Pai, por favor, acalme-se.

 - Por que razão é que achas que o mandei para casa? - Apontou na direcção dos nazis. - Para o manter longe das mãos deles!

 - Vim aqui para o salvar - disse Indy em voz baixa, olhando para as metralhadoras.

 - E quem é que te vai vir salvar, Júnior? - rugiu Henry, vermelho como um pimento.

 O que aconteceu a seguir foi tão rápido, que, quando chegou ao fim, Indy mal acreditava no que tinha feito.

 Os seus olhos deitavam faíscas, as narinas estremeciam de raiva. Parecia estar prestes a esmurrar o pai, e tinha um ar tão convincente que Henry recuou, antecipando um soco.

Contudo, Indy estendeu o braço e tirou a metralhadora a um dos espantados guardas. Deu um rápido pontapé ao cano da segunda metralhadora, virando-o para o ar. O tecto ficou cravejado de balas.

 Segundos depois, o dedo de Indy apertava o gatilho da arma.

 - Já te disse antes... - gritou, enquanto os três nazis recuavam devido ao choque, indo cair no chão. - Não me chames Júnior.

 Incrédulo, Henry viu os três nazis sangrar e morrer. Estava chocado e horrorizado.

 - Vê só o que fizeste! Mataste-os!

 Indy agarrou-lhe num braço e puxou-o para fora do quarto.

Colocou a mão na maçaneta da porta do quarto seguinte, onde Elsa estava à espera, e girou-a.

 - Não consigo acreditar no que fizeste - murmurou Henry com os olhos completamente esbugalhados: - Mataste aqueles homens!

 Indy parou junto à entrada.

 - Que raio achas tu que eles nos iam fazer!

 O pai franziu a testa, tal como se estivesse a justificar para si mesmo a violêncía do filho.

 Indy abriu a porta e levantou a mão para dar a entender a Elsa que estava na hora de saírem dali. Ficou gelado. Estava a olhar para um nazi. Um dos braços musculosos do homem estava enrolado à cintura de Elsa, como se de uma cobra grossa se tratasse. Com a outra mão segurava uma Lugger, e o cano da

arma estava encostado ao ouvido da rapariga.

 - Já foi longe de mais, dr. Jones.

 Era um homem importante. Um coronel. Tinha o queixo quadrado, era pequeno, e tinha os olhos escuros, olhos de insecto. Tratava-se de uma outra versão da palavra "bruto", sem qualquer margem para dúvida.

 - Largue a arma imediatamente - ordenou o coronel. O seu sotaque era carregado, mas não ridículo. - A menos que queira ver a sua amiguinha morta.

 - Não lhe dês ouvidos - disse Henry.

 - Largue a arma - ordenava o coronel.

 - Não - dizia o pai. - Ela está feita com eles.

 - Indy, por favor - implorava Elsa, os olhos muito abertos devido ao medo.

 - Ela é nazi - contrapôs Henry.

 - O quê? - confuso, Indy abanou a cabeça. Não sabia o que fazer. Olhou para Elsa, depois para o pai. Toda a gente gritava ao mesmo tempo.

- Confia em mim - gritou Henry.

 - Indy, não - pediu ela.

 - A frulein vai morrer - ladrou o coronel por entre dentes.

 - Força - disse-lhe Henry.

 - Não a mate - gritou Indy.

 - Ele não a mata - retorquiu Henry.

 - Indy, por favor! - implorou Elsa. - Por favor, fáz o que ele diz.

 - Por amor de Deus, não lhe dês ouvidos. - era a voz de Henry.

 - Já chega. Vou matá-la.

 - O coronel encostou o cano da Lugger ao pescoço de Elsa.

 Apavorada, ela gritou.

 - Espere. - Indy atirou a metralhadora ao chão e deu-lhe um pontapé.

 Henry rugiu.

 O coronel libertou a rapariga e empurrou-a na direcção de Indy. Ele recebeu-a nos braços, e abraçou-a com força à medida que ela enterrava o rosto no seu peito.

 - Desculpa, Indy.

 Ele confortou-a.

 - Não faz mal.

 - Tenho muita pena.

 Elsa enfiou a mão no bolso do casaco dele e tirou o diário do Graal.

 Sorriu-lhe tristemente.

 - Devias ter dado ouvidos ao teu pai.

 - Nunca deu - disse Henry num tom irritado. - Nunca deu.

 

TRAiçãO

 Elsa afastou-se dele e voltou para junto do coronel nazi.

Indy limitou-se a ficar ali, siderado, sem fala, detestando o sorriso escarninho que via no rosto do nazi, e a doce inocência dos olhos de Elsa. Queria agarrá-la pelo ombro e abaná-la até que ela lhe explicasse tudo. Tinha de saber.

 Contudo, o coronel levantou a Lugger ameaçadoramente, e Indy deixou-se ficar onde estava, limitando-se a olhar. "Como foi que me pudeste fazer isto!", pensou.

 Ela sorriu ligeiramente, como se tivesse ouvido o seu pensamento, e Indy acabou por desviar os olhos dela e encarar o pai.

 Desejou não o ter feito.

A expressão que Henry ostentava era capaz de transformar a pedra em pó. "Não admira que ainda me chames Júnior." Indy estava tão espantado com o que acontecera ali como o pai estivera há alguns minutos atrás, quando Indy dizimara a oposição no quarto ao lado.

 - É melhor virem os dois comigo e com o coronel Vogel.

Imediatamente.

 A voz de Elsa era fria e dura, a voz de uma desconhecida.

Até o seu rosto parecia diferente. Dava a sensação de ter o queixo quadrado, a pele parecia ainda mais clara, imaculada, como se fosse de loiça, e os olhos eram cubos de gelo que nunca derreteriam.

 O coronel levantou a pistola, e Indy disse:

 - Sim, é melhor irmos andando.

 - Como se tivéssemos por onde escolher - murmurou o pai em tom acusador.

 æ medida que iam avançando pelo castelo com a arma apontada

 às costas, Indy podia sentir o desapontamento do pai.

Irradiava dele como se fosse calor, ou então como um odor sufícientemente forte para deixar rasto. Este não diminuiu até à altura em que entraram numa enorme sala senhorial situada ao fundo do mesmo piso.

 Ali as paredes estavam decoradas com armaduras e tapeçarias antigas. Na lareira, o lume crepitava e assobiava, lançando enormes sombras que se estendiam pelas paredes e pelo tecto.

Reparou que Elsa se afastava, abrindo espaço para dois guardas nazis que se lhes tinham juntado.

 Os guardas amarraram-lhes as mãos atrás das costas. Quando sentiu as cordas cortarem-lhe dolorosamente os pulsos, Indy pensou que era óbvio tratar-se de profissionais. Enquanto os guardas se ocupavam das cordas, e Elsa conferenciava com o coronel Vogel, Indy olhava furtivamente à sua volta. Havia ali algumasjanelas, mas estavam no terceiro andar. Para além do mais, desde que tivessem as mãos amarradas e os esbirros os estivessem a vigiar, as suas hipóteses de fugir eram mínimas.

Mesmo assim, nunca era de mais exercitar a imaginação.

 Quando se lhe esgotaram as ideias pensou em Elsa e no que gostaria de lhe fazer se ficasse livre. Viu-a atravessar a sala e dirigir-se para uma cadeirinha baixa colocada em frente ao lume. Parou perto da cadeira e estendeu o diário do Graal.

Quando uma mão se estendeu para o agarrar, Indy reparou que a cadeira estava ocupada. Quando Henry se chegou a ele, os seus olhos pousaram no pai.

 - Como foi que soubeste que ela era nazi? - perguntou, num murmúrio.

- Ela fala durante o sono.

 - O quê? - voltou a cabeça na direcção do pai. - Queres dizer que tu... tu e aquela mulher... eram...

 - Silêncio! - gritou Vogel.

 "Elsa e o meu velhote..." As peças começavam ajuntar-se.

Elsa vasculhara o seu quarto em Veneza, à procura do diário, e depois desarrumara o quarto dela para dar a ideia de que alguém entrara no apartamento.

 "E eu caí na esparrela.”

 - Nunca confiei nela. Por que razão tu o foste fazer? - murmurou o pai, inclinando a cabeça na sua direcção.

 O homem que estava sentado na cadeira levantou-se e respondeu à pergunta de Henry.

 - Porque não seguiu os meus conselhos. Foi só por isso.

 Indy arquejou quando viu Walter Donovan dirigir-se na direcção em que estavam, o porte tão régio e aristocrático como a própria sala. "Jesus! Não podia acreditar.”

 - Não lhe disse para não confiar em ninguém, dr. Jones? - Donovan sorria benevolentemente enquanto folheava o diário.

 Indy não conseguiu responder. Limitou-se a ficar calado.

Estava em presença do homem que lhe dissera que o pai desaparecera, o homem que lhe dissera para se ir encontrar com a dr.a Schneider a Veneza, o filho da mãe que estava por detrás de tudo aquilo. Que poderia dizer num caso destes?

 As coisas estavam a andar depressa de mais. Nos últimos minutos fora traído por Elsa e por Donovan. Para cúmulo, descobrira que ela fora para a cama com o pai, e que este, se bem que inadvertidamente, lhe dera com um vaso na cabeça.

 Henry resmungou, indignado, mas quando falou a sua voz era velha e cansada.

 - Não te tinha compreendido totalmente, Walter. Sabia que por um vaso etrusco eras capaz de vender a tua mãe. Só não sabia que eras capaz de vender o teu país e a tua alma a este punhado de loucos.

 Donovan ignorou. A ruga que tinha na testa aprofundava-se à medida que ia folheando o diário cada vez mais depressa.

 - Dr.a Schneider! - gaguejou.

 Ela precipitou-se para ele.

 - Que se passa?

 Donovan levantou o diário e abanou-o em frente da cara dela.

 - Este livro tinha um mapa... um mapa sem nomes, mas que continha as indicações precisas a respeito da tal cidade desconhecida, e do caminho para o desfiladeiro do santo Graal.

 - Sim - respondeu ela. - É conhecido pelo Desfiladeiro da Lua em Quarto Crescente.

 - Onde está o mapa?

 Elsa encolheu os ombros e parecia pouco à vontade. Respondeu que não sabia, que achava que devia estar no diário. Donovan, vermelho de raiva, olhava ora para Elsa ora para Indy.

 - Bom, onde estão as páginas que aqui faltam? Temos de as ter connosco.

 Henry olhou para o filho, visivelmente surpreendido e satisfeito.

 Este sorriu.

 - Não vale a pena perguntar-lhe - retorquiu Elsa. - Ele nada dirá. E também não vale a pena. É mais que evidente onde as páginas estão.

 Sorriu triunfantemente para Indy, e voltou-se para Donovan.

 - Entregou-as ao Marcus Brody.

 Henry fechou os olhos como que para afastar de si aquilo que acabara de ouvir. Quando os abriu de novo, voltou-se para o filho.

 - Marcus? Meteste o pobre Marcus nisto? Por amor de Deus, Júnior, ele não está à altura do desafio!

 - Acabaremos por descobrir - disse Donovan, afastando-se deles.

 - Não tenha tanto a certeza - gritou-lhe Indy. - Leva-lhe dois dias de vantagem, bastante mais do que é preciso.

 Donovan parou, meditando sobre o que acabara de ouvir. Indy prosseguiu.

 - Brody tem amigos em todas as cidades e aldeias que se estendem daqui ao Sudão. Fala uma dúzia de línguas e conhece todos os costumes regionais. Estará protegido. Nunca mais o verá. Com um pouco de sorte, é bem provável que já tenha encontrado o Cálice do Graal!

 Henry sorriu.

 - Muito interessante - murmurou. - Espero que estejas certo.

 Donovan aproximou-se de Indy, e observou-o como se andasse à procura de defeitos numa obra de arte.

 - Dr. Jones, já é pouca sorte saber que não vão estar vivos para descobrir o que vai acontecer. Que nenhum dos dois estará vivo.

 A forma como olhava para ele fez que Indy sentisse que Donovan sabia mais a seu respeito que aquilo que deixava transparecer.

 Talvez soubesse. Perguntou-se subitamente se ele tivera alguma coisa a ver com a Cruz de Coronado. Lembrou-se de que o homem do chapéu largo lhe dissera que o comprador o queria ver morto.

 Talvez que a razão não se tivesse ficado apenas a dever ao facto de não querer que ele encontrasse a cruz, mas também para o impedir de procurar o pai. Então, quando as coisas tinham dado para o torto, quando o díário desaparecera, e ele aparecera vivo, tudo mudara de figura.

 Contudo, nada disto passava de especulação.

 Tinha a certeza de que, se lhe perguntasse, Donovan negaria tudo. O homem era demasiado arrogant para admitir que alguém

lhe levara a melhor.

 - Está a pensar em alguma coisa, dr. Jones?

 Indy devolveu-lhe o olhar e continuou silencioso.

 Donovan voltou-se para os guardas.

 - Levem-nos.

 Indy e Henry foram amarrados de costas um para o outro sentados em duas cadeiras, ficando dois enormes guardas nazis a vigiá-los. Estavam agora num outro compartimento do castelo apetrechado com enormes cortinas penduradas das janelas, as quais chegavam até ao chão e deixavam lá fora a noite húmida.

Tal como no quarto em que Donovan o condenara, uma das paredes era dominada por uma enorme lareira. Mas, ao contrário do que acontecia na outra sala, aqui não crepitava lume nenhum. O quarto estava escuro e frio.

 Estavam já amarrados há algumas horas, quando Elsa e Donovan entraram na sala. Donovan dirigiu-se aos guardas em alemão, perguntando-lhes se os prisioneiros se tinham portado bem.

 - Temos de ficar assim amarrados? - queixou-se Henry, depois de um dos guardas ter respondido que os prisioneiros não podiam ir a lado nenhum. - Somos cavalheiros, não presos de delito comum.

 Donovan riu.

 - Vi o trabalho do seu filho lá em cima e os guardas também.

 Não chamaria àquilo o comportamento próprio de um cavalheiro.

 E você, Henry?

 - Tendo em conta os sócios que tem, eu não falaria muito.

 Donovan cruzou os braços.

 - Já não falta muito para que deixem de estar amarrados.

Então, estará tudo acabado.

 Indy não gostou do tom de voz do outro. Também não gostou da gargalhada alegre que este soltou, algo que revelava uma exaltação louca, facto que o fez compreender que, à sua maneira, Donovan estava bem para os nazis. Não lhe era difícil imaginar este homem a conversar com Hitler sobre preciosidades de obras antigas, os seus valores e utilizações.

 Concentrou-se em Elsa. Estava de lado, por entre as sombras.

 Havia apenas luz suficiente para ver que ela tinha os olhos fixos nele. Achou que tinha um ar triste, apagado, introspectivo, mas talvez isto fosse apenas o que ele desejava. Para além disso, que lhe interessava o que ela sentia? Enganara-o. Usara-o. Traíra-o. E dormira com o pai.

 "Talvez seja por isso que ela não está muito satisfeita consigo mesma.”

Abriu-se uma porta e Indy ouviu a voz do coronel Vogel.

 - Dr.a Schneider, uma mensagem de Berlim. Tem de voltar imediatamente; amanhã há uma reunião no Instituto de Cultura Ariana.

 - E então?

 - A mesa convocou a sua presença - aclarou a voz. - Ao mais alto nível.

 - Obrigada, Herr coronel.

 Os seus olhos pousaram em Indy, depois afastaram-se de novo,

e ela dirigiu a palavra a Donovan.

 - Vou ter consigo a Iskenderun assim que me for possível.

 Ele entregou-lhe o diário do Graal.

 - Leve consigo. Sem o mapa não tem qualquer utilidade, mas eles poderão ver que estamos a fazer progressos. Leve-o para o museu do Reich. Será uma óptima recordação.

 Vogel interpôs-se entre Donovan e os prisioneiros.

 - Autorize-me a matá-los. Depois não teremos mais acidentes como o que aconteceu lá em cima.

 - Não - respondeu Elsa. - Se não conseguirmos tirar as páginas ao Brody, precisaremos deles vivos.

 Inseguro, Donovan hesitou. Olhou para Indy e para o pai como se eles fossem objectos interessantes, e, possivelmente, valiosos. Virou-se para Vogel e disse:

 - Faça sempre o que a sr.a doutora lhe diz. Ficaremos à espera. Depois eles são meus.

 O coronel franziu a testa, fitou Indy com frieza, e depois, sem qualquer comentário, acenou afirmativamente para Donovan.

Era óbvio que achava que eles deveriam ser mortos imediatamente. Era provável que estivesse mais preocupado com a punição dos responsáveis pela morte dos seus homens que pela demanda do Graal.

 - Venham - disse Donovan, dirigindo-se para a lareira.

Entrou lá dentro e abriu uma porta secreta. Vogel e os guardas seguiram-no. Donovan deixou-os ir à frente, e olhou na direcção de Elsa. - Também vem?

 - Tenho uma série de coisas a fazer antes de partir. Estarei pronta dentro de minutos.

 Donovan acenou, sorriu para Indy e para o pai como se estes fossem apenas seus amigos ou sócios num qualquer negócio.

Quando desapareceu, Indy ficou a pensar que se tratava de um doido.

 Elsa ficou a olhar para a lareira até ter a certeza de que os outros tinham desaparecido. Voltou-se para Indy, e ele reparou que a sua expressão era uma réplica perfeita da que ostentara nos momentos mais íntimos que haviam passado em Veneza. Que estaria ela a tramar?

Ele desviou os olhos.

 - Indy, é verdade quando impedi o coronel de vos matar.

 Levantou os olhos e sorriu.

 - Sim? Deves então ser a tal nazi de bom coração de que tenho ouvido falar.

 - Não olhes para mim assim. Ambos queríamos o Cálice do Graal. Eu faria tudo por isso, e tu terias feito o mesmo.

 - É mau que pense assim, Doutora. - A sua voz era fria como uma pedra de gelo.

 Elsa passou-lhe uma mão pelo rosto, mas Indy desviou a cabeça. Ela inclinou-se para ele e falou-lhe devagar, respirando contra o seu ouvido. A pele dela cheirava-lhe vagamente a sabonete e a perfume, lembrando-lhe coisas que ele preferia esquecer.

 - Sei que estás zangado e eu lamento. Contudo, quero que saibas que nunca esquecerei o bom que foi.

 Henry, que não podia ver o que ela estava a fazer mas que a podia ouvir, respondeu-lhe como se ela estivesse a falar para ele.

 - Sim, foi maravilhoso, obrigado.

 Ignorou.

 - Indy, tens de compreender a minha situação.

 Ele queria cuspir-lhe no rosto, mas, em vez disso, acenou, entrando no jogo na esperança de que ela lhes soltasse as cordas e lhes desse uma oportunidade de fuga.

 Elsa inclinou-se e beijou-o apaixonadamente, acariciando-lhe a cabeça.

 - Dr.a Schneider!

 Ela levantou-se abruptamente e voltou-se para a lareira.

Vogel voltara através da passagem secreta.

 - Sim, Herr coronel? - Voltara a cabeça, mas mantinha as costas viradas para o nazi.

 - O seu carro está à espera.

 - Obrigado. - Sorriu para Indy e afastou alguns cabelos que lhe tinham caído para o rosto. - É assim que os austríacos se despedem.

 Elsa encaminhou-se para Vogel.

 - Estou pronta - disse, e desapareceu pela porta da lareira.

 Desta vez o coronel ficou para trás. Marchou até junto de Indy. Como bom soldado que era, o seu ritmo era perfeito.

Contorceu a boca num esgar.

 - É assim que dizemos adeus na Alemanha, dr. Jones.

 Levantou o braço e esmurrou-o no queixo. Com força. A sua cabeça recuou, o sangue jorrou-lhe do canto da boca e do nariz. Vogel voltou-se e desapareceu pela lareira.

 Indy pestanejou, recuperando a lucidez.

 - Gosto mais da maneira austríaca.

- Pára de palrar! - ralhou Henry. - Preciso de tempo para pensar.

 - Optimo! E enquanto vais pensando é melhor tentarmos desfazer estes nós. Temos de encontrar o Marcus antes que os nazis o façam.

 - Julguei que tinhas dito que o Marcus levava dois dias de avanço, e que, se fosse caso disso, poderia desaparecer.

 - Estás a brincar? Inventei isso tudo.

 Conheces o Marcus.

 Uma vez perdeu-se no seu próprio museu.

 Henry praguejou entredentes.

 - Fantástico! Já é bom termos o monstro do Vogel desejoso de nos matar, mas ainda vamos deixar que matem o Marcus e que os nazis fiquem com o Cálice do Graal.

 - Dá bastante em que pensar, não? - perguntou Indy, atrapalhado com as cordas.

 O pai também começou a puxar. Mas quanto mais puxavam mais apertados ficavam os nós e mais a corda lhes cortava os pulsos.

 Acabaram por parar. Assim era melhor. No entanto, se ficassem ali sentados como duas múmias, não chegariam a lado nenhum.

 Caía-lhe sangue do nariz para o lábio superior, e da boca para o queixo. Um dos lados do maxilar estava dormente. Sentia comichão no nariz, e os pulsos latejavam. Sentia uma enorme dor de cabeça.

 "Pensa. Pensa." Era bem provável que houvesse guardas nazis do lado de fora da porta e para lá da lareira. No entanto, isso agora não interessava. Sabia que tinha de haver um modo de se libertar das cordas.

 O silêncio que reinava no quarto parecia não ter fim.

Perguntou-se se o pai não teria adormecido. Foi então que Henry se endireitou na cadeira e inclinou a cabeça até esta tocar na de Indy.

 - Júnior, que aconteceu àquela cruz de que andavas à procura?

 A Cruz de Coronado constituía um dos grandes problemas entre pai e filho desde que Indy era um garoto. Henry recusara-se a acreditar na história que o filho lhe contara sobre a forma como tirara a famosa cruz aos ladrões e a levara para casa, voltando depois a perdê-la. Indy prometera ao pai que a recuperaria, nem que para isso precisasse de toda a vida.

Durante todos aqueles anos o pai tratara do assunto como se este fosse uma brincadeira. Se queria aborrecer o filho, perguntava-lhe onde estava a cruz.

 Indy costumava ficar irritado e dizer que nada daquilo era mais engraçado que a demanda do Cálice do Graal. Porém, desta vez tinha uma resposta para dar.

- Entreguei-a ao Museu do Marcus antes de deixarmos Nova Iorque. Acabei por a recuperar. - E acrescentou: - Tal como te tinha dito.

 Henry ficou calado por um momento. Quando falou, a sua voz tinha um tom conciliatório.

 - O Marcus estava muito interessado nessa tua busca. Posso imaginar como ele deve ter ficado feliz. Mas agora... agora se o Donovan o apanha, nunca terá a oportunidade de a ver exposta.

 - Isso é o que menos o preocupa.

 "E o que menos me preocupa a mim." Pensou em contar ao pai a sua teoria sobre Donovan e a cruz. Mas isso podia esperar.

Agora precisava era de arranjar maneira de sair dali.

 Donovan e o coronel Vogel estavam junto a uma passagem situada num depósito subterrâneo situado na montanha que estava por debaixo do castelo. Viram Elsa desaparecer, instalada num carro nazi. Apareceu um segundo carro, e Donovan estava prestes a entrar para o assento traseiro, quando parou para trocar algumas palavras com Vogel.

 - Acabaremos por encontrar o Brody. Não há problema. Vá em frente e mate-os.

 

 DESEJOS ArDENTES

 In dy levantou a cabeça. Finalmente descobrira a maneira de se libertar das cordas.

 "Raios! Não percebo porque não pensei nisso antes.”

 Como fora possível ter sido tão estúpido? Se não tivesse as mãos amarradas teria dado umas boas palmadas na cabeça.

 - Pai, consegues chegar ao bolso do meu casaco?

 Henry ficou de sobreaviso.

 - Para quê?

 - Não faças perguntas.

 - Está bem. Está bem.

 Indy torceu-se o mais que podia, de forma a fazer que o seu bolso direito ficasse o mais perto possível do pai. Demorou alguns minutos antes de Henry conseguir lá chegar. Finalmente, depois de algumas contorsões suplementares, deixou os dedos escorregarem lá para dentro.

 - De que ando à procura?

 - Do meu amuleto.

- Parece-me ser um isqueiro.

 Não respondeu, à espera que o pai comprendesse qual era o plano.

 - É isso! Júnior, és levado da breca.

 Indy sentia-se cada vez mais impaciente.

 - Pai, tenta queimar as cordas, está bem?

 Henry tentou abrir a tampa do isqueiro, praguejou quando não o conseguiu, e voltou a tentar.

 Exasperado, Indy disse:

 - Não o deixes cair, pai. Por favor.

 - Confia em mim, Júnior. Onde foi que arranjaste isto? Não fumas.

 - É da Elsa. Esqueci-me de lho devolver depois de termos saído das catacumbas.

 A tampa abriu-se aquando da tentativa seguinte. O polegar de Henry fez girar o propulsor. Indy sentiu que este faiscava, mas o isqueiro não produziu lume.

 - Maldita coisa - resmungou o pai. - Acho que precisa de gás.

 "?ptimo."

 - Vá lá, trabalha. - Henry abanou o isqueiro e voltou a tentar. - Já está. Consegui.

 Nesse mesmo instante, Indy sentiu a chama a queimar-lhe os dedos.

 - Pai queima a corda, não os meus dedos.

 Nos minutos que se seguiram, Henry manteve o isqueiro contra a corda. Houve uma altura em que este se foi abaixo, e o pai teve de voltar a acendê-lo. Indy sentia uma forte dor nas costas por estar há tanto tempo naquela posição. Rangeu os

dentes e tentou manter as mãos quietas. O ar estava saturado

 com o cheiro a corda queimada, facto que lhe fazia arder o nariz.

 Quando a corda começou a derreter e a arder, ouviu o pai praguejar.

 - Que aconteceu? - perguntou.

 - Deixei-o cair.

 Ele torceu o pescoço, mas não foi capaz de ver onde o isqueiro caíra. Sabia que a única forma de o recuperarem era virarem as cadeiras. Depois teriam de ficar deitados no chão.

Foi isso que comunicou ao pai.

 - Estás disposto a tentar?

 Henry não respondeu.

 - Pai?

- Júnior, há uma coisa que tens de saber.

 Indy interpretou mal o tom de quem pede desculpas usado pelo pai.

 - Deixa-te de sentimentalismos. Depois de sairmos daqui falamos, está bem?

 Sentiu um cheiro qualquer.

 - Que raio estará a queimar?

 - Era isso que eu ia dizer. O chão, ah, o chão está a arder.

 - O quê?

 Indy inclinou a cabeça o mais que podia e viu as línguas de fogo.

 - Está bem, vamos andando. Balança a cadeira. Faz o que eu faço.

 Devagar, começaram a avançar pelo quarto, afastando-se da carpete em chamas. As cadeiras moviam-se com dificuldade, e quase voltaram.

 - Vamos para a lareira.

 Balançavam na direcção do único lugar que era seguro. Atrás dele, o lume parecia alimentar-se a si mesmo, alastrando a grande velocidade, correndo pelo tapete.

 Indy movia as mãos para cima e para baixo, tentando libertá-las das cordas. æ medida que, quase virando as cadeiras, se iam aproximando da lareira, Indy estendeu um pé, e, inadvertidamente, atingiu a alavanca que abria a porta secreta. O chão da lareira começou a girar, foram parar numa sala de comunicações. Quatro radiotelegrafistas nazis, usando auscultadores, estavam sentados à frente de um enorme painel composto por discos, cavilhas, e contadores. Estavam de costas para eles, e, durante alguns minutos, não se aperceberam das suas presenças.

 - A nossa situação não melhorou em nada. - Henry exprimira os seus sentimentos num murmúrio, mas, mesmo assim, falara alto de mais.

 Um dos radiotelegrafistas olhou por cima do ombro, e ficou espantadíssimo por ver dois homens amarrados de costas um para o outro, sentados nas suas respectivas cadeiras.Henry gemeu.

 - E agora, Júnior? Tens mais alguma ideia brilhante?

 Desesperado, Indy olhava para a alavanca que os poderia levar ao ponto de partida. O homem já estava a levantar-se e a

avisar os companheiros. Descobriu uma alavanca mesmo à frente deles, e estendeu uma perna. Contudo, aquela estava demasiado elevada para lhe chegar com o pé. Restava apenas uma outra maneira de a fazer funcionar.

 - Faz força com os pés - gritou.

 O mais depressa que podia, inclinou-se para a frente com toda a força. Atingiu a alavanca com a cabeça, e o chão voltou a girar, precisamente na altura em que o radiotelegrafista puxava de um revólver e disparava vários tiros.

 As balas foram bater contra a porta que se fechava.

Indy e Henry saltaram da frigi deira e foram cair no fogo. A carpete, as cortinas e a mobília, tudo isto ardia. As grossas colunas de fumo que se elevavam faziam-lhe vir lágrimas aos olhos. O fogo estendia-se para o tecto. Indy tossia. Mal podia respirar.

 - Estávamos melhor lá atrás - disse Henry, elevando a voz por cima do barulho das chamas.

 Ele não perdeu tempo a responder-lhe. Estivera ocupado com as cordas queimadas que lhe rodeavam os pulsos, e, de repente, soltou-se. Levantou-se da cadeira e correu a soltar as cordas que prendiam os pulsos do pai.

 Olhou à sua volta. Descobriu que dentro da chaminé havia uma grade, e testou-a com a mão. A lareira voltou a girar.

 - Depressa, aqui para cima. - Subiu para uma das cadeiras, agarrou a grade e elevou-se através da abertura do centro.

Firmou-se entre as paredes, baixou-se, e pegou no pai por um braço.

 Puxou através da abertura, no momento preciso em que os quatro operadores de rádio se precipitavam pelo quarto.

 Tinham as pistolas baixas. Olharam para as cadeiras vazias, e foi então que dois deles voltaram à sala de comunicações. O outro par protegeu os olhos, e avançou na direcção das chamas.

Indy sabia que não seriam capazes de permanecer na chaminé durante muito tempo.

 Para além de estarem numa posição incómoda, era para lá que se dirigia o calor do local do incêndio. Passou um minuto, e os outros dois homens voltaram da sala de comunicações. Assim que eles se aventuraram para longe da lareira, Indy e Henry saltaram do seu esconderijo.

 Naquele mesmo instante, Indy puxou a alavanca que fazia girar a lareira. Assim que começaram a mover-se, viram que a porta da sala se abria revelando o rosto espantado do coronel Vogel. Quando o ar vindo do corredor invadiu o aposento, as chamas moveram-se ao encontro do nazi. O coronel recuou, escapando por pouco ao lume e ao fumo.

 - Parem! - gritou um dos operadores de rádio quando viu Indy e Henry desaparecerem por detrás da lareira.

 - Eles vão voltar - avisou o pai assim que entraram na sala de comunicações.

 - Eu sei. Eu sei.

 Indy atirou com um banco de madeira de encontro ao chão, arrancando-lhe uma perna. A porta começava a abrir-se quando ele levantou os braços acima da cabeça esmagando a perna da

madeira contra a aparelhagem que controlava os movimentos da porta.

 A porta parou depois de se ter aberto apenas algumas polegadas.

 Os radiotelegrafistas ficaram fechados no quarto em chamas.

 Henry ficou a olhar para a porta, escutando os gritos dos  homens. Indy sabia que o pai estava horrorizado com aquilo que ele acabara de fazer. No entanto, não tivera outra hipótese.

A realidade era essa. Matar ou ser morto.

 Deu meia volta e começou à procura de uma saída. Tinha de haver outra saída, outra porta secreta, umajanela, qualquer coisa. Correu as mãos pelas paredes, batendo-lhes ao de leve, à procura de uma qualquer cavidade.

 - Dessa maneira nunca hás-de encontrar a saída - disse-lhe o pai. - É melhor sentarmo-nos e pensarmos em alguma coisa.

 - Sentarmo-nos? - Indy esbugalhou os olhos. - Estás doido?

 - Não entres em pânico. Já descobri que, se me sentar calmamente, acabo por descobrir uma solução para os problemas.

 Henry afundou-se num sofá cheio de coisas. Quando o fez, este começou a mexer-se, inclinando-se para a frente à medida que o chão se abria.

 Ao perceber que o pai encontrara a saída, Indy atirou-se para o sofá.

 - Já percebi o que querias dizer - gritou, enquanto desciam uma rampa que se estendia por algumas centenas de metros, até serem depositados numa espécie de doca. Estavam dentro de uma enorme caverna que cobria uma passagem subterrânea. Era óbvio que a caverna fora transformada num armazém nazi.

 Precipitaram-se na direcção de uma enorme quantidade de barcos.

 - Devemos estar mesmo dentro da montanha, por debaixo do castelo - murmurou Henry.

 Indy observou aquela enorme quantidade de barcos a motor, de barcos próprios para transportar armas, de barcos de transporte de mercadorias.

 - Optimo! Mais barcos!

 Esperaram até que uma patrulha nazi se afastasse, e depois atravessaram a doca, precipitando-se para um dos barcos. Indy pôs o motor a funcionar no preciso momento em que Vogel aparecia lá em baixo.

 Quando o motor começou a fazer barulho, o coronel parou e deu uma olhadela na direcção dos barcos. Junto com mais alguns nazis, correu para o veículo mais próximo e subiu para bordo.

Um minuto mais tarde, o barco tripulado por Vogel abandonava a doca, seguindo atrás dos dois Jones.

 Indy e Henry já tinham abandonado o barco, apropriando-se de uma mota com sidecar. Era Indy quem ia conduzir, seguindo o pai no carrinho lateral.

 - És capaz de dizer que este foi um dos teus típicos dias? - gritou Henry à medida que saíam da doca.

 - Melhor que a maioria - respondeu o filho, acelerando na direcção de um círculo de luz que esperava representar a saída  da montanha. Se não se tratasse de uma saída, então não estava certo de qual seria o próximo passo.

 Talvez não chegasse sequer a existir um próximo passo.

 Subitamente, a estrada e apassagem aquática fundiram-se na enseada. Vindo de um dos barcos, fez-se ouvir o som de disparos de metralhadora.

 - Abaixa-te! - gritou para o pai, que lhe obedeceu sem protestar.

 Indy inclinou-se sobre a mota, e no momento seguinte saíram ao encontro da luz brilhante da manhã. A estrada inclinava-se abruptamente para longe do canal, e, claro, do perigo imediato que os aguardava.

 Indy olhou para Henry, que espreitava por cima da viatura , certificando-se de que a costa estava livre.

 - E acabámos agora de começar um novo dia.

 Quando a mota se acercou de um cruzamento, a tabuleta de sinalização indicava que Budapeste ficava para a direita e Berlim para a esquerda. Indy abrandou e voltou para a direita.

 - Pára! - gritou o pai. - Pára!

 - Que se passa? - abrandou a mota e encarou o outro.

 Este continuava a fazer sinais para que parasse, e ele acabou por sair da estrada e por se ocultar entre os arbustos, fora do alcance de olhares indiscretos.

 Saiu da mota e espreguiçou-se. Henry seguiu-lhe o exemplo e saltou do sidecar.

 - Por que razão é que estavas a abanar as mãos?

 - Volta atrás. Temos de seguir para Berlim.

 Indy apontou na outra direcção.

 - Mas o Brody está daquele lado, pai.

 - E o meu diário deste - respondeu Henry, apontando na direcção oposta.

 - Não precisamos do teu diário.

 - Ah, isso é que precisamos. Não arrancaste páginas suficientes, Júnior. - Deitou-Lhe um olhar de desafio.

 - Está bem, conta-me. Que se passa?

 - Aquele que encontrar o Cálice do Graal tem de enfrentar o desafio final... uma provação que pode mesmo ser fatal.

 - Queres dizer que isso pode ser perigoso?

 - Há oito anos que descobri as pistas que nos podem fazer passar as armadilhas com segurança. Estavam nas Crónicas de São Anselmo.

 - Bom, não te consegues lembrar delas?

- Escrevi-as no diário para não ter de me lembrar.

 Indy ouviu um barulho, e olhou para a estrada mesmo a tempo de ver duas motos nazis dirigirem-se para Budapeste.

 - Tanto a Gestapo como metade da Wehrmacht de Hitler andam a perseguir-nos, e tu queres ir meter-te direitinho na boca do lobo?

 - Sim. A única coisa que me interessa é o Santo Graal.

 - E quanto ao Marcus?

 - Tenho a certeza de que o Marcus concordaria comigo.

 Indy revirou os olhos. Ouvira este credo tantas vezes que já o sabia de cor e salteado.

 - Vocês os estudiosos! Orgulho e pilhagem! Meu Deus!

 Henry esbofeteou o filho. O golpe não foi forte mas apanhou-o de surpresa. Não falara a sério mas era mais que evidente que o pai se ofendera. Levou uma das mãos ao rosto e franziu o sobrolho.

 - Foi o castigo pela tua blasfémia. Não te lembras de nada do que leste no Parcifal? Não aprendeste nada com Richard Wagner ou Wolfram Von Eschenbach? Nas mãos de Sir Perceval, o Graal é um talismã sagrado que cura. Mas, debaixo do controlo do malvado Klingsor, não é mais que um instrumento de magia negra.

 Abanou a cabeça e olhou para o filho com ar de desprezo.

 - A demanda pelo cálice não pertence ao capítulo da arqueologia. É uma corrida contra o mal. Se o Graal ficar na posse dos nazis os exércitos do mal cobrirão a face da terra.

- Fitou-o, - Estás a compreender?

 O mundo do pai comportava mito e realidade. Ambos os termos eram inseparáveis. Vivia no mito.

 - Nunca entendi esta tua obsessão. Nem eu nem a mãe.

 Ficou a olhar para o pai. O facto de ter mencionado a mãe constituía um desafio. E, pela primeira vez em mais de trinta anos o pai falou a seu respeito.

 - Ela compreendia. Bem de mais. Foi por causa disso, porque não me queria preocupar, que me escondeu que estava doente e eu não pude fazer outra coisa senão chorá-la.

 Os seus olhos encontraram-se e, durante esses breves segundos, Indy soube que eram iguais. Finalmente, o pai falara-Lhe a respeito da morte da mãe, contara-Lhe os seus sentimentos, admitira as suas culpas. O simples facto de a ter mencionado sarou uma velha ferida que existia entre ambos.

 Os seus dedos crisparam-se no ombro do pai.

 - Vá lá, paizinho, vamos para Berlim.

 

 OS FOGOS DE BERLIM

 Bandeiras, pendões e estandartes exibindo a suástica eram agitados freneticamente para trás e para diante, num movimento rítmico que reflectia a agitação crescente de uma enorme multidão. No centro do ajuntamento estava uma fogueira alimentada por uma tremenda montanha de livros. æ volta do lume encontravam-se estudantes universitários e Camisas Castanhas que atiravam cada vez mais livros para a fogueira.

Muitas das obras eram clássicos que os nazis e os seus simpatizantes tinham considerado blasfemos ou antipatrióticos.

 Indy atravessou a Praça ao mesmo tempo que apertava os botões de um uniforme alguns números acima do seu. Assim que chegaram a Berlim, tinham andado por ali às voltas até

encontrarem um soldado que se havia separado da unidade a que pertencia. Henry fingira que estava doente, indo cair a apenas alguns passos do soldado. Quando o homem parara para ver o que se passava, Indy pedira-lhe para levar o pai para um sítio calmo.

 Quando se encontravam no recanto de um edifício, Indy atacara o nazi, roubando-lhe o uniforme.

 Henry, ainda vestido à civil, seguia ao lado do filho, pasmado com o caos que o rodeava.

 - Meu rapaz, somos uma espécie de peregrinos em solo demoníaco.

 - Sim, e é pena que tudo isto seja real, e não apenas um filme - disse ele, apontando para o operador de câmara que filmava a cena.

 Foi então que parou como que fulminado por um raio e ficou a olhar para a plataforma à sua frente.

 - Que foi? - perguntou Henry.

 Indy apontou com a cabeça na direcção do estrado. Este era ocupado por oficiais de alta patente do Terceiro Reich, os quais olhavam por sobre a multidão como se fossem reis a inspeccionar os súbditos.

 Entre eles, encontravam-se dois rostos familiares: Adolph Hitler e Elsa Schneider.

 - Oh, meu Deus - gemeu Henry, abanando a cabeça. - Mesmo à direita do próprio diabo. Acreditas agora que ela é nazi?

 Ele nada respondeu. Continuou a abrir caminho através da multidão, e chegou-se o mais perto possível da plataforma.

Como se fosse uma sombra, Henry seguia a seu lado.

 Junto do operador de câmara, que tentava conseguir um bom  plano de Hitler, Elsa, e dos outros oficiais, estava uma mulher. Indy pensou tratar-se da directora, pois ela gritava e abanava as mãos com vista a atrair as atenções dos que se encontravam na plataforma. O barulho e a confusão eram tão grandes, que ela estava a passar um mau bocado.

 - Por favor, mein führer, dê um passo em frente - pediu ela em alemão.

 Hitler deu um passo atrás.

 - Pronto. Assim está bem. Agora os outros. Dêem todos um passo atrás.

 Em vez disso, todos deram um passo em frente e Hitler quase nem se via.

 A directora deitou as mãos à cabeça e abanou-a.

 - Por favor, por favor! Estão a bloquear o fúhrer.

 Indy riu para consigo.

 - Parece que compreendo alemão melhor que o Alto Comando - comentou ele com o pai, que o obrigara a aprender várias línguas antes dos 18 anos, facto que na altura detestara mas que agora apreciava. - E graças a ti - acrescentou, acotovelando amigavelmente o flanco do pai.

 Henry grunhiu.

 - Mas é só agora que me agradeces. É só agora que me dás ouvidos.

 Indy soltou uma gargalhada.

 A turba começava a debandar, e ele tentou abrir caminho através da força de nazis que transportavam archotes. Os zelotas repeliram-no, mas, e ao nível das aparências, continuava a manter um ar indiferente. Deitou um olhar à plataforma e meteu-se por entre os oficiais nazis e os seus automóveis. Observou a multidão que dispersava e viu Elsa caminhando sozinha, o cabelo dourado e lustroso à luz do sol.

 Henry seguia a uma determinada distância. Concordara em como devia ser Indy a abordar Elsa, tendo ambos combinado encontrarem-se dali a meia hora perto de um dos extremos da plataforma.

 Indy precipitou-se para ela, aproximando-se por detrás.

 Abrandou quando já estava bastante perto esperando que ela estivesse suficientemente distante de todos os que os pudessem ouvir.

 - Sr.a Doutora!

 - Indy!

 A voz dele era calma e dura, os olhos frios de quem não perdoa.

 - Onde é que ele está?

 - Seguiste-me.

 Estas palavras foram pronunciadas de um modo tal, que o fizeram perguntar-se se ela ainda se sentia atraída por ele.

 Era como se as suas emoções a levassem numa determinada direcção, ao passo que a lógica a fazia seguir outro curso - um curso que poderia ser mortal para ele e para o pai. A sua mão tocou no rosto dele, a boca abriu-se ligeiramente e os olhos pareciam brilhar de desejo.

 - Tive muitas saudades tuas, Indy.

 Ele afastou-lhe a mão e começou a tactear-Lhe o corpo, revistando-lhe os bolsos enquanto tentava encontrar o diário do Graal.

 - Quero-o de volta. Onde é que ele está?

 A voz dele e a forma rude como conduzia a busca fizeram-na voltar à realidade. Por breves instantes pensou que ela lhe ia pedir para a perdoar. A sua boca tremia, e o rosto parecia ter perdido a compostura. Foi então que algo mudou - podia mesmo ver as coisas acontecerem -, como se dentro dela tudo tivesse voltado ao lugar. A resposta que deu foi fria e ríspida.

 - Nada mudou de sítio desde a última vez em que me viste.

 Indy continuava a procurar, ignorando-a. Passou-lhe uma mão pelas pernas e parou quando sentiu qualquer coisa. Deu uma olhadela à sua volta, e foi então que lhe levantou o vestido e tirou o diário do Graal, que Elsa amarrara à perna.

 - Peço-lhe desculpa pelo incómodo.

 Ela abanou a cabeça, confundida com a busca urgente que Indy levara a cabo.

 - Não compreendo. Voltaste atrás por causa do livro. Porquê?

 - O meu pai não quer que o queimem numa das vossas festinhas.

 Ela devolveu-lhe o olhar.

 - É essa a ideia que fazes de mim? Que eu sou um desses Camisas Castanhas?

 - Não sei porque hei-de pensar de outro modo - respondeu com frieza.

 - Acredito no Graal, não na suástica.

 - Claro. - Apontou para a plataforma. - Foi por isso que ali estavas, junto com os inimigos de tudo o que o Graal representa.

 Quem é que está preocupado com aquilo em que acreditas?

 - retorquiu.

 Indy estendeu a mão e apertou-lhe o pescoço.

 - Só preciso de apertar.

 - E eu só preciso de gritar.

 Tratava-se de uma situação de impasse e ele sabia-o. Uma relação de amor e ódio, uma espécie de braço-de-ferro. Ele era incapaz de cumprir a ameaça e ela sabia, exactamente da mesma maneira que ele sabia que Elsa não gritaria. Apesar de tudo, a presença e o fascínio que dela emanavam eram tão fortes como sempre.

 Indy soltou-a e recuou. Trocaram um olhar que dizia tudo, que falava de amantes que se haviam encontrado e separado devido a questões que os transcendiam. Contudo, ao mesmo tempo, algo nele dizia-lhe que se haviam aproximado porque o tinham querido, e seria essa mesma vontade que os separaria.

 - Indy - chamou ela.

 Ele deu mais um passo atrás, depois deu meia volta e foi-se embora. Encontrou o pai à sua espera, perto da plataforma.

 - Vamos embora daqui.

 - E então, conseguiste? - perguntou Henry assim que começaram a andar.

 - Sim, consegui.

 - Fantástico. Como foste capaz de o tirar a essa pega nazi?

 O comentário irritou-o. Por qualquer razão desconhecida, sentia-se tentado a defendê-la. Estava prestes a dar uma resposta torta ao pai, quando se apercebeu de que a multidão com quem agora se cruzavam era composta por Hitler e a sua comitiva. O Führer estava rodeado por cerca de cinquenta miúdos que Lhe pediam para assinar os seus livros de autógrafos.

 Hitler parou para os assinar, e encarou com Indy que era bastante mais alto que os garotos. Os seus olhos encontraram-se. O contacto durou apenas alguns segundos, mas foi o bastante para que Indy sentisse o apelo do carisma do Führer. Pela primeira vez entendeu a atracção e a lealdade que este homem despertava nos seus seguidores. Só que ele sabia mais que isso. Sabia o horror que o regime de Hitler representava, a devastação e o sofrimento, não esquecendo o seu terrível potencial para gerar o caos à escala mundial.

Tudo isto fez que aquele apelo se tornasse ainda mais assustador.

 Hitler quebrou o encanto quando tirou o diário das mãos de Indy para o autografar. Abriu-o antes que ele pudesse reagir, mas o pai fez um ruído que se ouviu bastante bem. Hitler autografou uma das páginas e devolveu-lhe o livro. Indy não demorou muito a recuperar o sangue frio. Juntou os calcanhares

e fez a saudação nazi. Enquanto assim procedia, esconjurava secretamente o seu acto de lealdade. Escondeu a outra mão atrás das costas e cruzou os dedos.

 Quando desfez a saudação e recuou, já Hitler fora conduzido ao assento traseiro de uma limusina que ali estava à espera.

No entanto, o seu encontro com o Führer arranjara-lhe inimigos entre os outros nazis que haviam presenciado o incidente. Um deles, um oficial SS cuja obesidade se escondia por detrás de sobretudo deixou-se ficar por ali para castigar aquele oficial subalterno.

 - Que estás aqui a fazer? - perguntou com maus modos. - Esta área está reservada. Volta imediatamente para o teu posto.

 Indy endireitou-se e levantou a mão para uma saudação "eil Hitler". Vendo que não estava mais ninguém ali perto encolheu o braço, fechou a mão e desferiu um potente soco no rosto do oficial.

Henry voltou a resmungar qualquer coisa.

 - A partir de agora vamos fazer as coisas à minha maneira - anunciou ele ao pai.

 - Que queres dizer com isso?

 - Que vamos sair da Alemanha.

 Indy chegou ao terminal mais importante do aeroporto de Berlim, e estacionou a moto. Quando saltou de cima dela, ajustou o sobretudo que tirara ao obeso oficial SS.

 - Se vais continuar a roubar roupa às outras pessoas - disse Henry quando entravam no terminal -, por que razão não escolhes alguém do teu tamanho?

 - Para a próxima, espero lembrar-me disso.

 Colocaram-se na fila que se formara junto de um dos portões de embarque, e ficaram à espera de comprar os bilhetes.

 - Com alguma sorte, estaremos fora deste país dentro de uma hora, e amanhãjá teremos encontrado o Marcus - disse Indy com con fiança.

 - Oh, oh! - Henry acenou na direcção de uma área perto do balcão onde se vendiam os bilhetes. Todos os passageiros que estavam a comprar bilhetes eram interrogados por agentes da Gestapo.

 Indy pegou no braço do pai e afastaram-se da fila. Tinham dado apenas meia dúzia de passos quando pressentiram mais complicações. O coronel Vogel acabara de entrar no terminal.

 - Olha só quem aqui está.

 Ambos os homens levantaram as golas dos casacos e baixaram as pálas dos bonés. Depois desviaram-se de Vogel. Indy olhou para trás e viu mostrar uma fotografia a um dos agentes da Gestapo.

 - Não deve ser um retrato de família - resmungou para si mesmo quando saíram dali. O edifício adjacente era também um terminal, mas mais pequeno, de construção mais recente, decorada ao estilo Art Deco.

 Dirigiram-se para o balcão e colocaram-se atrás de uma série de homens e mulheres muito bem vestidos. Indy calculou que se

devia tratar do balcão destinado à primeira classe.

 - Porquê esta linha?

 - Porque não está ninguém a inspeccioná-la.

 A fila avançava devagar. Os minutos iam passando. Indy continuava a olhar em volta, sentindo-se cada vez mais ansioso. Detestava este tipo de coisas. Detestava ficar à espera que as coisas acontecessem. Sentia-se melhor a enfrentar o perigo e a vencê-lo.

 Começou a achar que estava a dar nas vistas e obrigou-se a olhar para baixo durante um bocado. Só depois levantou os olhos e tornou a olhar à volta, desta vez mais devagar,  como se fosse um viajante aborrecido que pergunta a si mesmo quando acabará por se sentar, depois de ver o voo con firmado. Para se impedir de olhar em volta, começou a ler uma placa que estava pendurada num pilar ali perto. Comemorava o voo do dirigível de Hindenburg, que partira de Lakehurst, New Jersey e chegara a Fiedrichshafen, na Alemanha, demorando quarenta e duas horas e cinquenta e três minutos, facto que constituía um record mundial. O acontecimento dera-se entre 9 e 11 de Agosto de 1936.

 Voltou a olhar para os sapatos, batendo o pé com impaciência.

 Decidiu que já não aguentava mais e deixou os olhos vaguearem pelo terminal, famintos, curiosos. Uma mulher corpulenta que estava atrás dele olhou-o fixamente. Ele voltou a olhar para a placa e leu a última linha: Certificado pela Federação Internacional de Aeronáutica.

 - Que estás a fazer? - rugiu Henry.

 Indy levantou a cabeça e viu que a fila avançara e que o pai estava à espera perto dajanela. Compraram os bilhetes, pedindo para seguir no próximo voo. Enquanto se dirigiam para a porta do terminal, Indy perguntou ao pai se sabia qual era o destino do voo.

 Henry rolou os olhos como se achasse que aquela era uma pergunta estúpida, mas, e para surpresa de Indy, disse:

 - Por acaso não, e tu?

 Naquele momento não lhes interessava muito saber para onde iam, desde que saíssem da Alemanha. Mesmo assim consultou os bilhetes.

 - Atenas. Não se pode dizer que esteja a um passo de Iskenderun, mas vamos no caminho certo.

 - Atenas, claro - repetiu o pai, acenando como para aprovar o destino em que seguia. - As coisas estão a melhorar.

 Indy parou assim que viu o desenho que estava no bilhete, e foi então que compreendeu que não iam apanhar o avião para Atenas.

 - Pai, olha!

 Henry continuara a andar, e não ouviu. Indy correu ao seu encontro. Saíram para a pista e viram aquilo que os ia levar para Atenas estacionado mesmo à sua frente.

 - Ora bem - disse Henry.

 Um dirígível com uma altura superior a dez andares, e a largura de dois campos de futebol estava estacionado na pista.

Não se tinham limitado a ignorar para onde iam, mas também nenhum deles se dera ao trabalho de descobrir que iam viajar de dirigível.

 Quando se aproximaram das escadas de embarque, pai e filho entreolharam-se. Estavam ambos surpreendidos e excitados com a reviravolta que se dera nos acontecimentos.

 - Olha só para aquilo - disse Indy, apontando para um par de bimotores que estavam suspensos por dois enormes ganchos colocados na parte inferior da viatura. -Gostavas de dar uma volta ali dentro?

 A resposta de Henry foi bastante curta.

 - Não, obrigado.

 Descobriram um compartimento vazio e puseram-se à vontade, esperando a largada do dirigível. Indy afundou-se no assento , cruzou os braços e respirou fundo.

 - Conseguimos, pai.

 Henry pegou num lenço e passou pela testa.

 - Quando nos encontrarmos no ar e a Alemanha estiver longe, então farei minhas as tuas palavras.

 Indy espreitou pela janela.

 - Relaxa. Dentro de algumas horas estaremos em Atenas Prontos para seguir até Iskenderun e para encontrarmos o Marcus. Chega-te para trás e desfruta o cenário.

 Assim que acabou de falar, viu uma figura que se tornara demasiado familiar, e que ia a atravessar a pista. Era Vogel, seguido por um dos agentes da Gestapo que Indy vira no aeroporto. O seu corpo ficou rígido quando viu que os dois homens estavam a entrar no dirigível.

 Teve a sensação de que a viagem não ia ser para brincadeiras.

 

ACROBACIAS AÉrEAS

 - É aqui - disse ele ao pai.

 Saiu do compartimento antes que Henry tivesse tempo de dizer alguma coisa, pensando a toda a velocidade enquanto tentava arranjar um plano. A sua única vantagem era saber que Vogel estava a bordo. Não fazia ideia de como usar este tipo de informação, mas tinha a certeza de que haveria de descobrir alguma coisa antes que fosse tarde de mais. Sempre o fizera, por que não agora?

 Era como os gatos, tinha sete vi das. "Sete vidas!" Será que já não as esgotei todas?

 Mal acabou de sair do compartimento avistou Vogel avançando pelo corredor. O homem vinha ao seu encontro. Entrou numa porta que ostentava uma tabuleta indicando que era apenas destinada aos membros da tripulação. Quando o coronel nazi

passou em frente à porta, Indy ouviu um criado de bordo dizer-lhe que o dirigível estava prestes a descolar e que deveria arranjar um lugar

Abriu uma nesga da porta e viu Vogel atrás de dois outros passageiros retardatários, dirigindo-se para o mesmíssimo compartimento que acabara de deixar.

 - Oh, meu Deus! - murmurou, interrogando-se sobre a forma como o pai iria lidar com Vogel.

 Antes de poder fazer alguma coisa, o criado de bordo escancarou a porta e quase foi ao seu encontro.

 - Que está a fazer? - perguntou o homem em voz alta, falando alemão. - Está na sala da tripulação, não sabia? Estamos prestes a descolar. Por favor...

 Indy apontou para o tecto e o homem levantou os olhos.

Quando isto aconteceu, Indy aplicou-Lhe um murro nos queixos.

Detestava atacar indivíduos inocentes, mas, com Vogel sentado ali perto, sabia que tinha de tratar do homem o mais depressa que podia.

 Ao contrário do mordomo, o criado limitou-se a recuar um pouco. Com a preocupação de não o magoar, não lhe batera com força suficiente. O homem endereçou-lhe um olhar esgazeado, e depois esmurrou-o. Indy aparou o golpe, e desta vez deu-lhe um murro poderoso no rosto. O indivíduo caiu no chão, inconsciente.

 Alguns minutos mais tarde, quando o dirigível se elevou na pista, Indy regressou ao compartimento onde o pai se encontrava. Contudo, envergava o chapéu e o casaco do criado.

Para variar, as roupas emprestadas caíam-lhe a matar.

 - Os bilhetes, por favor. Podem mostrar-me os vossos bilhetes? - disse ele em alemão.

 Henry espreitou por cima da revista que estava a ler, e esbugalhou os olhos quando viu quem era o revisor. Indy fez um sinal com a cabeça quando o pai lhe entregou o bilhete.

 - O seu bilhete, cavalheiro - disse para Vogel, ao mesmo

 tempo que estendia a mão.

 O coronel olhou para cima, reconheceu-o e meteu a mão no bolso, procurando a pistola. No entanto, Indy agarrou-lhe o braço, segurou-lhe os colarinhos e levantou-o do assento.

Tirou-lhe a pistola, e, ajudado pelo pai, atirou Vogel dajanela. O coronel aterrou na pista.

 Os outros passageiros que estavam no compartimento recuaram, espantados e assustados com o comportamento agressivo do revisor de pronúncia estranha.

 Ele sorriu e encolheu os ombros.

 - Não tinha bilhete.

 Nesse mesmo instante todos os que se encontravam no compartimento puxaram dos bilhetes, e colocaram-nos debaixo do nariz de Indy.

 æ medida que os recolhia, olhou pela janela e viu Vogel de gatas vendo o dirigível elevar-se.

 - Para a próxima veja se arranja bilhetes antes - gritou-lhe.

Saiu do compartimento e olhou para a sala da tripulação.

Ainda não sabia o que iria fazer a seguir. Vogel não estava sozinho.

 Alguns minutos mais tarde, o agente da Gestapo precipitou-se pelo corredor. Passou pela cabina da tripulação e parou alguns passos mais à frente. Parecia preocupado e de mau humor, e não era preciso ser-se um génio para descobrir porquê. Ao fim e ao cabo, o pobre diabo não fora capaz de o encontrar a ele e ao pai e agora nem sequer conseguia encontrar Vogel.

 Indy saiu de onde estava e deu-lhe uma palmadinha no ombro.

 Estava pronto a agredi-lo com o punho da Luger, quando um dos passageiros que o vira atirar Vogel pela janela saiu do compartimento vizinho. Indy pediu o bilhete ao agente da Gestapo.

 - Não preciso de bilhete - resmungou ele.

 O passageiro continuou a avançar, dirigindo-se para a casa de banho.

 - Vai arrepender-se - murmurou ele ao agente.

 - Pode ter a certeza - disse Indy, atingindo o agente com a Luger. O homem caiu. Indy arrastou-o para o compartimento da tripulação, tirou-Lhe a arma e abriu o armário. Lá dentro estava o criado de bordo amarrado e amordaçado.

 - Companhia. - Colocou o agente num dos cantos.

 O criado estava completamente consciente e tentava gritar.

Indy abanou a pistola por cima da sua cabeça e ele acalmou imediatamente.

 Reparou no amontoado de fios que partiam de um transmissor de rádio e arrancou-os. Foi então que viu um casaco de cabedal pendurado num cabide. Não conseguiu resistir e experimentou-o.

 Assentava-lhe como uma luva.

 No bar do dirigível, Indy entretinha-se a escutar as façanhas de um ás da aviação que combatera na primeira guerra mundial.

 Alguns ouvintes interessados iam-lhe fornecendo bebidas atrás de bebidas, e as histórias tornavam-se cada vez mais fantásticas.

 O criado chegou, trazendo as bebidas para ele e para o pai, que se encontrava a algumas mesas de distância do aviador, agora já completamente bêbado. Ambos tinham optado por bebidas não alcoólicas. Nenhum deles tinha a certeza de terem despachado os nazis. Se assim fosse, óptimo. Mas se tinham ainda de enfrentar complicações, queriam permanecer o mais alerta possível.

 Henry estava tão embrenhado no diário do Graal, que nem reparou que as bebidasjá tinham chegado. Ocupava-se das páginas que descreviam as armadilhas mortais que defendiam o Graal. De vez em quando murmurava qualquer coisa para si mesmo, e tudo isto fazia Indy lembrar-se da infância, do pai encerrado no escritório, perdido num passado remoto.

Disse para consigo que havia coisas que nunca mudariam.

 Olhou para fora dajanela e viu que vários farrapos de nuvens brancas e brilhantes passavam pelo dirigível. Pensou em Elsa, no que esta poderia estar a fazer, se se lembraria dele.

Apesar de a ter visto com Hitler, acreditava que o seu interesse principal fosse o Graal, uma obsessão que compreendia perfeitamente, dado que era uma característica que ela tinha em comum com o pai. No entanto, não podia aceitar a sua ligação com o homem que, depois de Ghengis Khan, era o ser humano mais odioso que pisava a face da terra.

 Voltou-se, tentando esquecer os seus desejos secretos. Olhou para o diário, e concentrou a sua atenção na caligrafia miúdinha do pai, a qual transcrevia olatim medieval. Estavam ali representados três diagramas complexos que não tinham qualquer sentido para ele. As únicas coisas que entendia eram os títulos. O primeiro chamava-se O Pêndulo, o segundo Os Godos, e o terceiro A Ponte Invisível.

 Estava prestes a pedir uma explicação ao pai, quando este o encarou.

 - Partilhar as tuas aventuras é uma experiência interessante.

 - Não são tudo o que temos partilhado - retorquiu Indy, de novo a pensar em Elsa. - A propósito, que foi que ela disse durante o sono?

 - Mein Führer.

 - Dá para tirar conclusões. - Voltou a pensar nos últimos momentos que passara com ela em Berlim. Tinha a certeza de que ela estava a ser sincera, e no entanto...

 - Desiludido, não? Bom, tratava-se de uma mulher muito bela, e eu sou tão humano como qualquer um.

 - Sim, e eu fui um "qualquer um" que se seguiu.

 Henry sorriu como se estivesse a pensar na sua própria experiência com ela.

 - Amores passageiros. Será que podemos beber a isso?

 Levantou o copo e Indy fez o mesmo. Encostaram os copos.

 - Aos amores passageiros - repetiu Indy.

 O pai pigarreou e endireitou os ombros.

 - Bom, vamos voltar ao trabalho.

 Inclinou-se sobre o diário e começou a ler. "Os desafios são três. Primeiro, o sopro de Deus, e só o penitente o passará.

Segundo, a palavra de Deus, e só aquele que seguir as pisadas de Deus terá sucesso. Terceiro, o caminho de Deus, e só quem o passar saltando da cabeça do leão, provará o seu valor.”

 - Que quer isso dizer?

 Henry bateu ao de leve na página.

 - Acho que o descobriremos quando chegar a altura.

A luz do Sol filtrava-se pelas nuvens, lançando um raio através dajanela, dividindo a mesa em partes iguais de sombra e luz.

 Quando Indy estendeu a mão para agarrar uma bebida, reparou que o raio se movia no sentido dos ponteiros do relógio.

Bastante intrigado, ficou a observar o fenómeno. Foi então que, de repente, compreendeu o seu significado.

 - Pai!

 - O quê?

 - Estamos a dar a volta. Estão a levar-nos de novo para a Alemanha.

 Levantaram-se da mesa imediatamente e precipitaram-se para os alojamentos da tripulação. O armário fora arrombado , e tanto o agente da Gestapo como o criado de bordo tinham desaparecido. Olhou em volta e reparou que os fios eléctricos haviam sido reparados.

 - Merda.

 - Ah... Júnior. Acho que temos um problema.

 - Eu sei. Eu sei. Não precisas de mo dizer - retorquiu, tentando descobrir o que deveria fazer.

 - Não, não estás a compreender. Deixei o diário no bar.

 - o quê?

 Henry fez um sorriso apagado e gaguejou.

 - É verdade, receio bem que sim.

 "Boa malha, pai.”

 - Está bem, deixa-te ficar aqui. Eu volto já. - Precipitou-se pelo corredor, de volta ao bar. Começou a empurrar a porta, mas ouviu vozes e parou. Olhou lá para dentro e viu o agente e uma série de membros da tripulação bem no meio da sala, perto da mesa que ele e Henry haviam acabado de abandonar. O diário estava lá em cima, mas ninguém parecia reparar.

 O agente pediu para todos prestarem atenção.

 - Temos espiões a bordo! Aqueles que são leais ao führer, ao Reich e à Alemanha que me sigam imediatamente.

 Alguns passageiros blazzé levantaram a cabeça, voltando depois a ocupar-se das suas conversas e cocktails, ignorando as ordens do agente. O único que respondeu ao apelo foi o aviador da primeira guerra, que se levantou a custo do banco que ocupava frente ao balcão do bar, e seguiu em frente a cambalear.

 Indy sabia que tinha de agir rapidamente. Levantou a gola do casaco de cabedal, e pegou num lenço. Quando entrou na sala, fingiu ocultar um espirro no lenço, mantendo sempre a cabeça baixa.

 Ouviu o agente a dar ordens.

 - É aí - apontou para Indy. - E vens connosco. Andamos à procura de espiões americanos.

 Ele mantinha o lenço junto ao nariz.

 - Estou constipado - respondeu, em alemão. - Desculpem.

 -Estendeu a mão e enfiou o diário no bolso. Identificou o homem que estava junto ao agente como sendo o criado de bordo que agredira. Estava agora de camisola interior, e, à medida que examinava Indy, o seu rosto tinha uma expressão intrigada.

 - Vou montar guarda no meu compartimento - disse, avançando na direcção da porta.

 - É ele - gritou o criado. - Façam-no parar!

 Contudo, Indy já abandonara a sala e corria pelo corredor.

 Voltou a entrar no compartimento da tripulação, e olhou em volta à procura de Henry.

 - Pai, onde estás?

 Henry pôs a cabeça de fora do armário.

 - Conseguiste?

 - Sim, mas acho que consegui muito mais que isso. - Indy vasculhava à sua volta à procura de um esconderijo.

 - Sarilhos, queres tu dizer?

 - Não mais que o costume.

 Bastante depressa, pegou numa cadeira, subiu-lhe para cima, e elevou-se através de uma escotilha. Voltou-se para trás com vista a ajudar o pai.

 - Mais outra chaminé não - queixou-se este.

 Indy elevou através da abertura, e depois trepou até ao cimo da escotilha. Rastejaram através da parte superior desta, e encontraram-se na "barriga" do dirigível. A sua pele estava ligada a uma estrutura de metal bastante elaborada, e o hélio era transportado através de estreitos canais que partiam de enormes bilhas de gás.

 Maravilhado, Henry parou por um instante. Indy espreitou pela escotilha e viu o agente e o criado de bordo a olhar para cima. Pegou no pai pelo braço e começaram a correr, seguindo por um dos canais. Contudo, não foram suficientemente rápidos.

 O agente puxou de uma pequena arma que guardava presa ao tornozelo e apontou-a a Indy. Estava prestes a disparar, quando o criado de bordo lhe empurrou o braço.

 - Nein! Nein!

 Indy olhou por cima do ombro e viu o criado apontar para uma bolsa de gás, fazendo depois um gesto com os braços:

 - Kaboom!

 O canal terminava junto a duas portas que davam para o exterior do dirigível. Atrás deles ouvia-se o som de passos.

Abriu uma das portas e agarrou-se à ombreira assim que o vento o atingiu. Estava frente a frente com um céu muito azul e nuvens brancas.

 A alguns pés mais abaixo viu os bimotores suspensos dos ganchos, que, por seu turno, estavam agarrados a uma armação de metal. Indy apontou para o que estava mais próximo, o que tinha na fuselagem a figura de um pelicano com as asas abertas.

 - Pai, é melhor desceres. Vamos dar uma volta.

Quando espreitou pela porta, Henry fez um ar horrorizado. - Não sabia que eras capaz de pilotar um avião.

 "Pilotar, sim. Aterrar não.”

 - Vamos andando.

 Henry aventurou-se a sair do dirigível, e começou a descer uma escada de metal que levava ao aparelho. Com o coração nas mãos, Indy ficou a observá-lo. Foi então que desviou os olhos.

Se o pai caísse, não o poderia ajudar, e não queria presenciar a cena.

 Olhou para trás e viu que o pai chegara ao bimotor são e salvo.

 Estava prestes a segui-lo quando o agente da Gestapo o

agarrou por um braço e o tentou puxar para trás. Conseguiu escapar-se e empurrou o homem. Estava prestes a concluir a descida, quando o criado de bordo desceu as escadas e se deixou cair em cima dele, enrolando-lhe o braço em torno do pescoço.

 Agarrou-se às escadas e, para sua surpresa, viu que o pai subia ao seu encontro. Henry agarrou o outro pela parte de trás do colarinho, e empurrou-o dali.

 O criado perdeu o equilíbrio e precipitou-se no espaço, os braços abertos, tentando encontrar algo que o impedisse de cair.

 Agarrou-se a um suporte que se elevara por cima do gancho que segurava o avião. Ficou com as pernas suspensas no ar.

 Espantado, Indy ficou a olhar para o pai.

 - Olha só o que fi zeste - gritou.

 Henry desceu até ao cockpit da retaguarda, e Indy deu um salto que o fez aterrar no da frente. Encontrou a ignição e ligou-a. O propulsor fez um ruído, gaguejou um pouco e começou a trabalhar.

 Enquanto Indy procurava a alavanca para se soltar do gancho, o pai gritou-lhe qualquer coisa. Levantou a cabeça, e viu que o agente estava junto à porta, apontando-Lhe a arma, ao mesmo tempo que a tentava resguardar do vento. Disparou, mas o tiro falhou. Indy encontrou a alavanca e puxou-a, soltando o aparelho.

 Subitamente, afastaram-se do dirigível, deixando atrás deles o agente e o funcionário pendente.

 Indy olhou à sua volta e viu o piloto da primeira grande guerra mover-se na direcção de uma passagem colocada no exterior do dirigível e descer para o segundo avião. Fez sinal ao agente da Gestapo para que o seguisse.

 O agente, tentando imitar Indy, saltou do canal para o cockpit da retaguarda. Caiu com toda a força, e os seus pés atravessaram o fundo da fuselagem, ficando ele com metade do corpo suspenso no ar.

 O ás da aviação não se apercebeu do que se passara e libertou o avião dos ganchos. Estava tão bêbado que se esqueceu de ligar o motor. Nesse mesmo instante, o aparelho começou a descrever círculos na direcção do solo. Indy sabia que, apesar de toda a sua experiência, o piloto não seria capaz de ligar o motor e recuperar daquele tombo. Em menos de um minuto, o avião abateu-se contra a encosta de uma montanha, soltando chamas e desperdícios.

 O plano de Indy consistia em se afastarem da Alemanha o mais depressa que o bimotor permitisse e aterrar o mais perto possível de Iskenderun. Não estava muito entusiasmado com a aterragem. Decidira realizá-la num campo e não num aeroporto, pois queria evitar que lhe fizessem perguntas. A última coisa que queria era chamar as atenções e fazer que os nazis lhes voltassem a seguir o rasto.

 Ouviú o pai gritar-lhe qualquer coisa. Virou-se, e viu Henry baixar e levantar o polegar. Indy sorriu e levantou o polegar, pleno de confiança. Contudo, o outro abanou a cabeça.

 Foi então que compreendeu. O pai estava a apontar para cima, e a gritar qualquer coisa que ele não compreendia. No entanto, aquilo que lhe chegava aos ouvidos era tanto um rugido como um gemido. Não via nada à sua frente, mas o som era cada vez mais forte. Voltou a inclinar a cabeça para trás.

 Aparecéram dois bombardeiros de combate Messerschmitt, vindos das nuvens, e riscaram o céu. Indy e Henry afundaram-se nos assentos quando os pilotos passaram por eles a gritar.

 - Dispara a metralhadora - gritou Indy.

 Henry olhou para a arma, tentando descobrir como esta funcionava.

 Indy voltou-se e apontou para a metralhadora.

 - Afasta essa patilha e puxa o gatilho.

 O facto de o aparelho ser pequeno e lento, era algo que funcionava a seu favor. Os dois Messerschmitt ultrapassaram-nos e desapareceram nos ares. Indy sabia que ia demorar algum tempo até eles estarem de volta. Mas também sabia que os pilotos o voltariam a encontrar. æ segunda passagem Henry fez pontaria a um dos bombardeiros. Carregou no gatilho e disparou de encontro ao que passou em primeiro lugar. A arma explodiu com uma força tal que quase o atirou para fora do assento. O Messerschmitt inclinou-se para a esquerda, e Henry rodou a metralhadora.

 Continuou a disparar, falhou o alvo e, sem querer, destruiu o estabilizador da retaguarda do seu próprio avião.

 - Fomos atingidos? - gritou Indy.

 - Mais ou menos.

 Indy olhou por cima do ombro, e viu a parte que faltava na cauda do avião. Depois encarou o pai. O coração caiu-Lhe aos pés, mas não demorou muito a voltar ao lugar. "Más notícias, pai. Mesmo más.”

 - Filho, desculpa. Apanharam-nos.

Indy tentava controlar o avião enquanto este ia descendo a toda a velocidade.

 - Aguenta-te. Ainda não nos fomos abaixo.

 Cerca de quinhentos pés mais abaixo, Indy viu uma estrada pavimentada. Era a única esperança que tinham. Para falar com franqueza, e dado que era para lá que o avião se dirigia, era a sua única saída. Fez o melhor que podia para estabilizar o avião, e aterraram de barriga para baixo. O aeroplano descontrolou-se e foi esmagar-se no parque de estacionamento de um restaurante.

 Indy sentiu-se abanar devido ao impacte, mas mesmo assim conseguiu rastejar para fora do aparelho. Ajudou o pai a fazer o mesmo.

 - Pai, estás bem?

 - Acho que ainda estou inteiro - respondeu, enquanto se afastava do avião.

 Ele sabia que tinham de sair dali o mais depressa possível.

Avistou um cliente que estava prestes a partir, e acenou-lhe.

Quando o homem saiu do automóvel, saltou para trás do volante.

Contornou o parque, apanhou o pai, e carregou a fundo no acelerador.

 O homem perseguiu-os, a gritar e a abanar o punho. Minutos mais tarde, apareceram os Messerschmitt, voando a baixa altitude e a fazer fogo. Pelo retrovisor, Indy viu o dono do carro mergulhar de cabeça na estrada, e deixar-se escorregar para a berma, isto enquanto os pilotos alvejavam o parque, cobrindo os carros de buracos.

 Indy carregou no acelerador e agarrou-se ao volante com ambas as mãos. Concentrou a sua atenção na estrada, enquanto Henry andava de um lado para o outro aos solavancos.

 - Já estamos a salvo?

 - Espero que sim.

 Ouviu um zumbido característico dos Messerschrnitt, e deitou uma olhadela ao retrovisor. Um dos pilotos dirigia-se ao seu encontro.

 - Merda!

 - Que foi?

 O carro foi copiosamente metralhado, mas eles escaparam quase que por milagre. Quando o avião se afastou, os buracos que as balas haviam deixado no telhado permitiam a entrada dos raios de sol.

 - Meu Deus - gemeu Henry. - Levem-me para Princeton.

 Isto não é forma de viver.

 O ruído provocado pelo Messerschmitt fez que Indy ficasse arrepiado.

 - Lá vem o outro.

Foi então que viu um túnel que se estendia por uma das encostas da montanha. Voltou a carregar no acelerador e precipitou-se para ele. Contudo, os pilotos não os largavam, sempre a fazer fogo.

 Entraram no túnel e saíram do alcance das armas.

 - É melhor ficarmos aqui - disse Henry.

 Mas nem mesmo o túnel era um local seguro. Minutos mais tarde, ouviram um estrondo enorme. O avião não conseguira elevar-se a tempo. Fora de encontro à estrada do túnel, perdendo as asas. A fuselagem entrou por ali dentro como se fosse uma bala no cano de uma pistola. Elevaram-se chispas à medida que o aparelho riscava o chão e as paredes do túnel.

Depois afuselagem incendiou-se.

 O retrovisor mostrava uma enorme bola de fogo que se aproximava cada vez mais. O carro seguia à velocidade máxima, não era possível ir mais depressa. Indy atirou-se para a frente, exactamente como se o peso do seu corpo pudesse aumentar a velocidade da viatura. Apertava o volante com tanta força que asjunções dos dedos estavam brancas.

 No preciso momento em que a bola de fogo os ia atingir, o carro saiu do túnel. Indy guinou para a berma da estrada, e tentou a custo manter o controlo da viatura. A fuselagem em chamas passou por eles a toda a velocidade, atingiu uma árvore e explodiu.

 Indy voltou a tomar a estrada e foi ao encontro de uma coluna de chamas e fumo oleoso. Passou a toda a velocidade, e chegou ao outro lado com os olhos esbugalhados e o coração a bater de encontro ao peito.

 Henry estava com ar de quem ia ter um ataque.

 - Já não podem chegar mais perto.

 - Não contes muito com isso - respondeu-lhe o filho quando viu o outro avião rugir ao encontro deles.

 O piloto deixou cair uma bomba. Esta explodiu mesmo em frente a eles, falhando apenas por alguns metros. Indy guinou o volante para a direita. A viatura passou através de uma cancela ferroviária e precipitou-se por um aterro abaixo.

Ficaram suspensos no ar durante uns segundos. Indy pensou que tudo aquilo chegara ao fim, e fechou os olhos.

 Quase no mesmo instante em que deixou a estrada, o carro aterrou com um baque na areia macia de uma praia mediterrânica deserta. Os dois homens saíram do veículo. Indy levou a mão à cabeça no local onde batera de encontro ao volante. Não se via ninguém numa extensão de quilómetros e quilómetros. A praia estava cheia de gaivotas que tinham transformado a areia num campo de corpos brancos e cheios de penas.

 Indy voltou a ouvir aquele som agoirento, e olhou para trás mesmo a tempo de ver um Messerschmitt aproximar-se para mais um reencontro. Pai e filho trocaram um olhar mudo. Nem sequer pensaram em fugir. Não havia ali local onde se pudessem esconder.

 Indy pegou na arma. Estava vazia.

 O piloto começou a descer. Estava apenas a alguns metros da zona de rebentação das ondas.

 De súbito, Henry correu para as gaivotas, agitando as mãos.

 Parecia louco, gritando desalmadamente.

 Assustadas, as aves elevaram-se em massa. Eram milhares delas a bater as asas, e, nesse preciso momento, o avião apareceu à frente deles. Os projécteis lançados pelas metralhadoras levantavam colunas de areia.

 Foi então que se deu o encontro entre o artilheiro e as gaivotas. Registou-se um massacre. Centenas de aves foram rasgadas pelas lâminas propulsoras do aparelho. Uma papa composta por penas vermelhas e brancas colou-se ao vidro da frente do avião, e entupiu o motor.

 O Messerschmitt parou de disparar a apenas a alguns passos de Indy e de Henry. Os motores pararam. O aparelho despenhou-se para lá de um talude.

 Momentos mais tarde, o silêncio foi abalado por uma explosão. æ distância, elevaram-se chamas e fumo.

 Completamente esgotado, Indy deixou-se cair na areia. Henry foi ter com ele e sentou-se ao seu lado.

 - Lembrei-me de Carlos Magno. "Que o meu exército seja composto por rochas, árvores, e também pelas aves do céu.”

 Ele olhou na direcção do bombardeiro em chamas.

 - Já nessa altura era uma boa máxima. Hoje continua a sê-lo.

 

 Hatay

FORÇAS CONVERGENTES

 No mesmo dia em que Indy e Henry fugiam da Alemanha, Marcus Brody chegava de comboio a Iskenderun. Estava completamente exausto, e o seu maior desejo era estar de novo em Nova Iorque, na segurança do seu museu. Os problemas que enfrentava no quotidiano não eram nada quando comparados com as frustrações por que passara. E quem poderia saber o que ainda o esperava, a ele e a Sallah.

 Isto se chegasse a encontrar Sallah.

 Deveria ter chegado com pelo menos um dia de antecedência, mas apanhara o comboio errado à saída de Veneza, e, antes de poder dar-se conta do engano, estava em Budapeste. Aí, perdera mais um dia antes de embarcar no comboio certo. Viajara sem parar durante todo o dia e toda a noite, sem esquecer cerca de metade do dia seguinte. Acabara por chegar ao seu destino, e, assim que desembarcou, pressentiu que a afirmação que fizera de que iria encontrar o Graal fora precipitada e bastante irrealista.

 Os olhos ardiam-lhe à medida que caminhava ao longo da plataforma, por entre uma multidão de hatais e árabes. Corpos vestidos com roupas flamejantes misturavam-se numa massa compacta. Pareciam estar empenhados numa qualquer actividade misteriosa, e apenas ele, Marcus Brody, estava de fora, confundido e deslocado. Esfregou os olhos. Aquilo que lhe apetecia mesmo era um duche quente, uma boa refeição, e cerca de vinte horas de sono.

 Sentia-se enervado e deprimido por ter deixado Indy e Henry ficarem mal. Já deveria ter encontrado o Graal, ou pelo menos ter chegado perto. Em vez disso, não conseguia sequer encontrar Sallah. Mas ele era um estudioso que dirigia um museu, e não um geógrafo. Nem sequer era um explorador. E, de maneira nenhuma, um aventureiro.

 Precisava de um guia.

 - Mr. Brody! Marcus Brody!

 Levantou os olhos, espantado por ver Sallah atravessar a multidão e dirigir-se ao seu encontro.

Ficou tão aliviado por ver um rosto familiar, que quase se atirou de braços abertos para o outro. Aqui estava algo que nunca faria nem em Nova Iorque, nem na sua Londres natal.

 - Meu bom amigo, gosto tanto de te voltar a ver. - "Nem calculas quanto, Sallah.”

 Apertaram as mãos e depois Sallah abraçou-o. Brody deu-lhe uma palmada nas costas. Os braços mal rodeavam as costas do outro. Corou e sorriu estupidamente, embaraçado com aquela demonstração pública de afecto.

 - Marcus, por onde tens andado? - O outro afastou-se ligeiramente e observou-o de alto a baixo. - Tenho estado à tua espera. Tenho estado preocupado.

 Sallah era um homem enorme, de olhos e cabelos pretos e com feições nitidamente mediterrânicas. A sua voz de barítono e as gargalhadas profundas que o caracterizavam, junto com a sua reputação de lealdade, fizeram Brody sentir-se melhor.

Tratava-se de um homem conhecido pela feroz dedicação que nutria pelos amigos, e por ser um inimigo declarado de todos os que se Lhes opunham.

 - Atrasei-me. O Indy já chegou?

 Sallah abanou a cabeça.

 - Não, achei que viria contigo.

 Brodyjá não se sentiu tão mal. Mesmo assim, conseguira chegar antes de Indy.

 - Atrasou-se.

 - Ah, sim. Atrasou-se. - Riu. Pegou nabagagem do outro com uma facilidade tal que poderia pensar-se que as malas estavam vazias.

 - Tipicamente britânico - acrescentou, sorrindo.

 Deixaram a estação e encontraram-se num mercado ao ar livre.

As bancas dos vendedores estavam por toda a parte, e as pessoas gritavam e abanavam os seus produtos. O cheiro a fruta madura e a vegetais a cozer ao sol elevou-se em torno de Brody, o que o fez sentir-se enjoado e tonto. Sentia-se como se tivesse chegado a outro planeta, e fazia-lhe falta o seu museu, o silêncio frio das peças que lhe estavam confiadas. O mundo em que estavam não era o seu. Nada tinha a ver consigo.

 Sallah informou-o de que tudo o que tinham discutido quando Brody lhe telefonara do Cairo estava pronto, e que se encontrava desejoso de que a viagem começasse.

 - Assim... - Parou a meio da frase. Dois matulões de casacos canelados estavam a bloquear-lhes o caminho.

 - Os papéis, por favor - disse um deles num tom ameaçador, e estendeu a mão.

 - Os papéis? - Sallah acenou. - Claro. Tenho alguns mesmo aqui. Acabei agora de os ler.

 Tirou o jornal de debaixo do braço, e exibiu-o frente à cara dos agentes.

 - Corre - murmurou para Brody.

 Voltou-se para os homens, sorriu, e abanou o jornal.

 - O Cairo Express. A edição da manhã. Traz montanhas de notícias interessantes.

 Brody franziu o sobrolho.

 - Importas-te de repetir?

 - Corre! - desta vez, foi obrigado a gritar.

 Brody voltou-se, mas não chegara a dar um passo quando um dos homens o agarrou pelo colarinho e o puxou para trás.

Sallah atirou-se aos rufiões, esmurrando-os com força. Os transeuntes dispersaram-se, e assim que a escaramuça se estendeu pelo mercado, as bancadas dos vendedores começaram a voltar-se. Rolos de seda bastante cara e de algodão colorido espalhavam-se na lama.

 Brody abriu caminho através da multidão excitada e faladora.

Tentava descobrir uma forma de ajudar Sallah, mas não se conseguia lembrar de nada. Não tinha força suficiente para

enfrentar ambos os homens, e, para mais, o outro dissera-Lhe para fugir. Avançara através de tendas e vendedores, e acabou por se refugiar no patamar de uma escada.

 Continuava a poder observar aluta, e acabou por descobrir Sallah no preciso momento em que ia chocar de encontro a um camelo. O impacte pô-lo fora de combate o tempo suficiente para que os outros o alcançassem. No entanto, não demorou

 muito para recuperar do choque, e esmurrou o camelo no nariz.

O animal inclinou a cabeça para trás e cuspiu uma enorme bola de saliva. Esta atingiu um dos rufiões no rosto. Sallah afastou-se a correr, e Brody abanou um dos braços, na esperança de ser notado.

 Sallah levantou a mão como para dizer que o reconhecera, e avançou ao seu encontro, apontando com o dedo para uma porta escura situada ao cimo de uma rampa. A entrada estava tapada por uma cortina.

 - Afasta-te, depressa! Sai daí!

 Brody não se sentia particularmente disposto a esconder-se ali, mas o outro continuava a gritar. Assim, ele deixou o esconderijo, e subiu a rampa a correr. Ocultou-se atrás da cortina, e pós a cabeça de fora. Sallah deixara de prestar atenção aos homens que o seguiam, e estes acabaram por o apanhar. Caíram sobre ele como se de animais se tratassem, batendo-lhe com os punhos e pequenos tacos de madeira.

Contudo, Sallah não oferecia qualquer resistência. Continuava a agitar as mãos freneticamente,e a gritar qualquer coisa que Brody não compreendia.

 Um grupo de soldados nazis que ali estava perto foi socorrer os rufiões. Brody sabia que o amigo não tinha hipóteses.

Hesitou, desejando fazer alguma coisa por ele, mas sabia que era escusado. Não quis continuar a olhar para aquilo.

Escondeu-se atrás da cortina, e deu meia volta. Antes de poder compreender onde estava, ouviu uma porta fechar-se atrás de si. Estava dentro de um camião, e na parede podia ver-se um estandarte nazi, vermelho e preto.

 Sallah levantou a cabeça. Doía-lhe o corpo todo. Sangrava.

As narinas estavam cheias de pó. Os matulões tinham-se ido embora, mas haviam capturado a sua presa. Brody compreendera-o mal, correndo direitinho para as mãos dos nazis, ao invés de se afastar. O camião acabara por desaparecer, e Marcus Brody estava lá dentro.

 No outro dia, no centro de um pátio a várias milhas de Iskenderun, o sultão da região estava sentado no trono. Este era vermelho e de espaldar alto, facto que conferia uma enorme imponência ao sultão, um homem reservado cujos olhos definiam de certa forma o seu sangue real. Tinha uma enorme barba branca que lhe descia até ao peito. Vestia um casaco vermelho-escuro bordado a ouro nas mangas e na frente, e dragonas nos ombros. æ cintura, tinha uma faixa vermelha e dourada, e usava um chapéu cilíndrico que condizia com o casaco.

 Estava rodeado pelas escravas do harém, e à sua frente estava um americano com quem já se encontrara por mais de uma vez durante as suas viagens.

 - Que posso fazer por si, Mr. Donovan? Conforme lhe disse da última vez que conversámos, não estou interessado em vender objectos de arte.

 Donovan acenou.

 - Compreendo. Majestade, tenho aqui algo que gostaria de lhe mostrar.

 Entregou-lhe as páginas que faltavam do diário do Graal.

 - Estas páginas foram tiradas do diário do professor Henry Jones. Incluem um mapa que dá a localização precisa do Cálice do Graal.

 O sultão observou o mapa com um interesse superficial. O facto de o cálice se encontrar no seu território não o surpreendia Para falar com franqueza, desde que, em criança, descobrira que nascera no seio de uma família rica e poderosa, numa terra em que a maior parte das pessoas nasciam em famílias com muito pouco ou mesmo nada, nada mais o surpreendera. Era um privilegiado e aceitava esse facto.

 Enrolou o mapa e devolveu-o. - E onde foi que o obteve?

Donovan virou-se e acenou na direcção do grupo que estava junto à entrada do pátio. Encontravam-se ali várias pessoas, entre as quais Elsa Schneider, vários guardas nazis, e Marcus Brody. Era evidente que este último estava a ser guardado.

 - O homem que está no meio é um emissário do dr. Jones. Foi Indiana Jones, o filho do dr. Jones, quem Lhe deu as páginas.

 - E que estava ele a fazer com elas?

 - Capturámo-lo em Iskenderun. Estava prestes a roubar a taça do Graal do seu território.

 - Estou a ver.

 O cálice não significava muito para si. Claro que já ouvira falar dele, e sabia de uma história antiga que dizia que este tinha poderes especiais. Contudo, não acreditava em superstições. Tratava-se apenas de mais uma taça de ouro destinada a um museu ou a uma colecção particular. Ele era um homem moderno, muito mais interessado em coisas novas e actualizadas, objectos com um poder real e imediato.

 No entanto, estava igualmente consciente das leis da oferta e da procura. Era óbvio que Donovan estava interessado no Cálice do Graal. Dado que mais de um grupo mostrava interesse pelo cálice, o valor deste era maior do que o seria se apenas um grupo o quisesse. Sabia exactamente qual a posição que ocupava no assunto - estava mesmo no centro - e se Walter Donovan queria ir para o deserto e encontrar o velho cálice, o facto ia sair-lhe caro. Não tinha quaisquer dúvidas a este respeito.

 - E que pretende fazer? - perguntou, como se já não soubesse.

 O outro pigarreou.

 - Tal como pode ver, o Graal não está na nossa posse.

Contudo, Majestade, não seríamos capazes de entrar no vosso território sem que nos désseis autorização, nem levaríamos o

cálice das vossas fronteiras sem vos recompensarmos devidamente.

 O sultão olhou para lá de Donovan.

 - Que foi que me trouxeram?

 O americano voltou-se e fez sinal aos soldados nazis.

 - O baú, por favor.

 Dois dos homens transportaram um enorme baú até aos pés do sultão. Donovan fez-Lhes sinal para abrirem o fecho.

 Os guardas seguiram as suas ordens e levantaram a tampa.

 Dado que o sultão não fez qualquer movimento para inspeccionar o que este continha, o americano pediu aos soldados que o esvaziassem. Nos minutos que se seguiram, os homens movimentaram uma grande quantidade de objectos de ouro e prata. Havia taças e candelabros, tijelas, pratos, chávenas, caixas preciosas dos mais variados tamanhos, bem assim como espadas e facas.

 - Todos estes bens, Majestade, foram doados por algumas das melhores famílias da Alemanha.

 O sultão levantou-se do trono e passou pelo baú e pelas doações. Dirigiu-se directamente para um carro nazi que estava estacionado numa das esquinas do pátio, e começou a inspeccionar.

 - Daimler Benz 320 L. - Levantou a capota e observou o motor. - Ah, 3,4 litros, cento e vinte cavalos, seis cilindros. Passa de zero a cem quilómetros em apenas quinze segundos.

 Voltou-se para Donovan, que o seguira, e sorriu.

 - Até da cor gosto.

 O americano compreendeu tudo imediatamente. Era evidente que o sultão não se ia contentar com o ouro e a prata, e, dado que precisava da sua ajuda, a escolha era apenas uma. Contudo, ainda podia regatear o preço.

 - As chaves, Majestade, estão na ignição, e à vossa disposição também. É vosso, juntamente com os outros tesouros.

Só vos peço que nos empresteis algvns dos vossos homens e equipamento.

 O sultão sorriu apreciativamente.

 - Arranjar-vos-ei camelos, cavalos, uma escolta armada, provisões, veículos próprios para o deserto, e até mesmo um tanque.

 Donovan acenou, satisfeito com o acordo.

 Elsa correu para junto do nazi americano.

 - Não temos tempo a perder. Estou certa de que o Indiana Jones e o pai estão a caminho.

 As negociações ocorridas na corte do sultão não haviam sido ignoradas por um outro grupo interessado no Cálice do Graal.

Um pouco desviado, por debaixo de uma arcada, estava o homem que estivera prestes amatar Indy e Elsa em Veneza, o homem que contara a Indy o local onde o pai estava prisioneiro.

 Kazim colocou uma mão dentro da túnica, e passou o dedo por sobre a Espada cruciforme que tinha tatuada no peito. Enquanto

estivesse vivo, ninguém tiraria o cálice do seu esconderijo.

 O comboio chegou a Iskenderun ao amanhecer. Apesar da hora matinal, a plataforma estava cheia de passageiros que iam e vinham. Indy olhou em volta. Esperava encontrar Marcus à sua espera, mas sabia que era pouco provável. Mesmo que estivesse em Iskenderun, não faria ideia de que tinham chegado àquela hora.

 Aparentemente, Henry estava a pensar o mesmo.

 - Será que vamos encontrar o Marcus?

 - Não há sinais dele... Olha!

 Indy apontou para uma enorme figura barbada que avançava ao encontro de ambos.

 - Indy - gritou Sallah. - Senti a tua falta. - Abraçou-o, levantando do chão. Pousou e voltou-se para Henry. - É o pai de Indy?

 - Ah... Sim.

- Muito bem, cavalheiro! O seu filho iluminou a minha vida.

É um homem maravilhoso. - Pôs os braços em torno de Henry, que aparentava não saber o que fazer no que tocava a Sallah. - Estou muito satisfeito por o conhecer.

 Indy reparou nos arranhões e nas escoriações do rosto de Sallah.

 - Que aconteceu? Parece que um camelo te pisou a cara.

 - Foi parecido. Não falta muito para ficares a saber tudo.

 Indy franziu o sobrolho, e quase desejou não ter de perguntar onde estava Marcus Brody.

 - Aqui não podemos falar, Indy - murmurou, chegando-se mais para eles. - Depressa. Vamos para o carro. - Sallah apontou para um velho coupé que se encontrava estacionado num dos extremos do mercado.

 Depois de terem entrado, o dono da viatura ligou o motor e o carro disparou em frente. Momentos mais tarde, corriam através de ruas estreitas e cheias de gente, avançando por cima de animais e viaturas, bicicletas, carroças e magotes de gente.

Sallah businava, acelerava, abrandava, e guinava o carro.

 Henry estava mudo de terror. Agarrou-se a uma das pegas do acento traseiro, certo de que em qualquer segundo Sallah se iria esmagar de encontro a uma carroça, ou passar mesmo no meio de um ajuntamento, matando tudo e todos.

 Acabou por recuperar a fala e inclinou-se para a frente.

 - Por favor abrande. Já tive de aguentar uma condução completamente louca até chegar aqui.

 - Desculpe, pai do Indy.

 Agitou a mão com frenesim, e enfi ou a cabeça de fora da janela.

 - Tire daí essa cabra - gritou ele para uma qualquer pessoa que ali se encontrava.

 A cabra foi-se embora, eles avançaram a toda a velocidade, e Sallah olhou para Indy.

 - A propósito do Marcus. Eram de mais e não cheguei para todos.

 - Cuidado? - gritou Henry lá do acento de trás.

 Sallah meteu travões a fundo, e praguejou quando viu um homem atravessar-se no seu caminho com uma carroça.

 - Arranja um camelo! - gritou, enfiando a cabeça pela janela.

 O homem ignorou, e ele ultrapassou a carroça, voltando a ganhar velocidade, e a ocupar-se do assunto que respeitava Brody.

 - A minha cara dir-te-á que fiz o que pude com aquilo que tinha. - Levantou um punho aleijado. - Não sou o único que não se está a sentir bem.

 - E quanto ao Brody?

 - Partiram esta tarde para o deserto, depois de um qualquer sultão lhes ter fornecido soldados e provisões. Receio bem que tenham levado o Brody com eles.

Henry endireitou-se, inclinando-se sobre o banco da frente.

 - Isso quer dizer que têm o mapa, e que já vão a caminho.

Vão encontrar o cálice antes de nós.

 - Acalma-te, pai. Nós vamos encontrá-los - assegurou-lhe Indy. Simultaneamente, interrogou-se sobre se não teriam chegado demasiado tarde, tanto pelo que tocava a Marcus como pelo Graal.

 - Nesta corrida, o segundo classificado não ganha qualquer medalha, meu rapaz. - Henry mudara subitamente de ideias a respeito da condução de Sallah, e tocou-lhe no ombro. - Mais depressa, por favor. Vá mais depressa.

 Sallah sorriu, carregou na busina, e voltou a pôr a cabeça fora da janela.

 - Eh, meu vendedor de tapetes cego, sai do caminho.

 Henry desceu a sua janela, e começou também a chamar nomes.

 - Toca a andar vagabundo.

 Indy estava pensativo. Sabia que assim que Donovan e o seu bando de nazis tivessem a certeza de estar no caminho certo, a vida de Marcus deixaria de ter valor.

 - Será que os podemos alcançar?

 Sallah dirigiu-lhe um sorriso conhecedor.

 - Bom, sempre existem os atalhos.

 Encostou a mão à buzina, abanou a cabeça, e começou a praguejar em três idiomas.

 - Vais ver.

 

CONFRONTOS

 Marcus Brody enfiou a cabeça através da escotilha do tanque da primeira guerra, e deu uma olhadela àquele sol escaldante.

 Limpou a testa com um lenço, e murmurou:

 - Raios e coriscos!

 Estavam a atravessar o desfiladeiro deserto, idêntico ao que o antecedera. Para Brody, que sempre vivera em ambientes urbanos, aquilo era o fim do mundo - estéril, duro, e quente, muito quente. A ironia da situação não lhe passara ao lado:

havia uma forte possibilidade de que aquela terra fantasma e abandonada fosse o fim do seu mundo.

 - Queres molhar o bico, Marcus?

Brody voltou-se quando ouviu o som da voz de Donovan. O tanque era seguido por um descapotável. Sentados ao lado de Donovan estavam Elsa Schneider, a traidora, e um nazi a quem Elsa chamava coronel Vogel. O resto da caravana seguia atrás do automóvel -camelos transportando soldados do exército particular do sultão, cada um deles armado com um sabre e uma carabina, cavalos de reserva, um camião carregando provisões, um Sedan alemão, um jipe, e um par de camiões de carga cheios de soldados nazis.

 Donovan atirou-Lhe o cantil e sorriu. Brody teve vontade de lhe cuspir no rosto em vez de aceitar a sua oferta. Mas, dado que não tinha saliva, pegou no cantil e deu uma golada. Há cerca de quatro horas tinham parado num oásis, mas ele já se encontrava preso. O sol transformara o interior do tanque num forno, e estar lá dentro era como estar a assar.

 A água correu-lhe pela garganta abaixo, e ele lembrou-se de que já há muito tempo não saboreava algo tão bom. Respirou fundo, voltou a levar o cantil à boca, e bebeu com gosto.

 Donovan estendeu a mão para o cantil, evidentemente preocupado com o facto de Brody o poder esvaziar.

 - De acordo com o teu mapa, Marcus, estamos apenas a três ou quatro milhas de distância da maior descoberta da história.

 Brody limpou a boca com a mão, e pensou em atirar o cantil à cara daquele filho da mãe. Contudo, sabia que isso tornaria mais escassas as suas possibilidades de sobrevivência. Em vez disso, limitou-se a entregar-lhe o objecto.

 - Estás a meter-te com poderes que não poderás controlar, Walter.

 Donovan começou a dizer qualquer coisa a respeito do poder, mas parou.

 Brody seguiu-Lhe o olhar. æ distância, algures nas colinas, avistou um reflexo. Sabia bem do que se tratava, e calculou que o outro também o soubesse.

 æ medida que Indy espiava a caravana que se movia pelo sopé do desfiladeiro, os seus binóculos emitiam reflexos. Sallah e Henry estavam ao seu lado, e o carro que continha as suas provisões estava estacionado ao lado de uma excrescência de rocha situada a cerca de trinta jardas atrás deles.

 - Têm um tanque... e um canhão de seis libras. Estou a ver o Brody. Está com bom aspecto.

 Henry protegeu os olhos com as mãos e semicerrou-os.

 - Tem cuidado para que não te vejam.

 - Estamos fora do alcance deles.

 Nesse mesmo instante, viram um clarão precipitar-se ao seu encontro. O canhão disparara um morteiro contra eles. Indy atirou-se para o chão e cobriu a cabeça.

Os outros fizeram o mesmo. O morteiro passou por eles a assobiar, e explodiu a apenas alguns metros de distância.

Foram atingidos por pequenos pedaços do carro de Sallah, que fora destruído.

 Este gemeu.

 - O automóvel era do meu cunhado.

 - Mesmo em cheio - gritou Vogel. - Vamos buscar os corpos.

 Elsa pegou nos binóculos e pôs-se a observar por si própria.

 Uma parte de si mesma sentia vontade de chorar só de pensar que Indy poderia estar morto. Mas a outra parte sentia-se aliviada: se ele estivesse morto, o seu conflito interno terminaria. Poderia continuar a procurar o Graal sem estar constantemente a debater-se consigo mesma. Desde o momento em que conhecera Indy que se encontrava envolvida num dilema emocional. Num dado momento odiava-o, no mnmento seguinte não queria viver sem ele. Tanto melhor se Indy tivesse morrido.

 Recordou-se de que o Graal era a sua única paixão. Os homens e a política eram apenas meios para atingir o que queria.

Andava com Donovan, mas só até determinado ponto. Precisava dele para que a levasse até ao Graal, mas tinha de afastar o cálice das suas mãos. As maravilhas que o Graal prometia eram demasiado fantásticas para delas abdicar. Teriam de ser suas, ou então morreria ao tentar conquistá-las.

 Quando chegaram ao local onde a viatura explodira, Elsa viu que não havia ali qualquer cadáver. Por muito estranho que parecesse, sentiu-se melhor. Indy estava vivo.

 Enquanto Vogel organizava os soldados para darem início a uma busca, Donovan foi até junto dela.

 - Bom, talvez nem fosse o Jones.

 - Não. Era ele, sim senhor. Ele está aqui. - Deu uma olhadela à sua volta, sentindo que estava a ser observada. - Está aí algures. Tenho a certeza.

 O outro devia sentir o mesmo. Olhou em redor com alguma ansiedade, e depois disse a um dos soldados para pôr Brody no tanque. Voltou-se para Elsa.

 - No meio deste calor, sem qualquer meio de transporte, é o mesmo que estar morto.

 De repente, uma bala fez ricochete numa pedra que estava ali perto, e o estampido do disparo encheu o ar. Esquecendo-se de Elsa, Donovan correu para um abrigo. Ela seguiu- aos tombos, mais irritada com a possibilidade de Indy estar a disparar contra ela que com o facto de Donovan estar apenas preocupado em salvar a pele.

- É o Jones - gritou o americano. - Está armado.

 Quando o tiroteio começou, Indy estava escondido atrás de uma enorme rocha. Viu Elsa e Donovan procurarem abrigo, e os soldados abrirem fogo.

 Seguiu-se uma troca de olhares intrigados entre ele, o pai e Sallah. Quem poderia estar a disparar contra eles?

 - Vamos. É melhor irmos ver.

 Desceram do esconderijo, e, alguns minutos mais tarde, chegaram a uma rocha a partir da qual se podia ver uma cena caótica, na qual os nazis e os soldados do sultão trocavam tiros com o inimigo invisível, posicionado nas grutas existentes nas paredes do desfiladeiro. Sallah pegou nos binóculos e espreitou, depois entregou-os a Indy.

 Uma das figuras emergiu da entrada escura de uma gruta, e In dy reparou que o homem tinha um símbolo na camisa, uma espécie de espada. O homem lançou-se ousadamente no descampado, desafiando a morte. Indy fitou-lhe o rosto e reconheceu. Era Kazim.

 Sendo assim, a Irmandade da Espada Cruciforme era mais que apenas o fanatismo de um homem.

 Voltou a passar os binóculos a Sallah, e depois pôs-se a conferenciar com o pai. Os três homens chegaram a um acordo quanto ao plano a seguir, e Henry afastou-se na direcção do tanque onde Brody estava preso. Entretanto, Indy e Sallah rastejaram atéjunto dos limites do caótico acampamento de Donovan.

 Do ponto onde se encontravam podiam ver os cavalos e Indy descobriu aquele que queria. Ficaram à espera do momento oportuno para começarem a correr através daquele espaço vazio.

 - Olha - disse Sallah, apontando para a parede do desfiladeiro.

 Kazim descia a superfície rochosa, e, à medida que ia saltando de uma pedra para a outra, continuava a disparar.

 - Agora - disse Indy, fazendo-lhe um sinal.

 Estavam a meio caminho entre as rochas e os cavalos, quando um dos soldados nazis que estivera a disparar se voltou para recarregar a arma. Viu-os, e estava prestes a lançar o alerta quando Kazim correu para a frente e disparou, matando o soldado. Depois disto, Kazim começou a andar à roda, disparando como um louco, até que uma chuva de balas o atingiu.

 Indy e Sallah agacharam-se entre os cavalos. Donovan correu de encontro ao ferido. Este estava apenas a alguns passos.

 - Quem é você? - perguntou, enquanto Kazim sangrava até à morte.

 - Um mensageiro de Deus. Para os que não são justos, o Cálice do Graal representa uma maldição eterna.

Estas foram as últimas palavras que pronunciou.

 De repente, foram disparados mais tiros a partir das grutas, e Donovan correu a refugiar-se à medida que os projécteis levantavam nuvens de pó não muito longe dele.

 Indy e Sallah subiram para cima de dois cavalos e saíram

dali sem que ninguém desse por eles.

 Brody sufocava no interior do tanque. Tinham-no deixado sozinho, e ele estava à procura de uma chave. Não estava certo de saber como manobrar o tanque, mas sabia que precisava de uma chave antes de poder fazer qualquer coisa. Ouviu a escotilha abrir-se, e afastou-se rapidamente da porta da frente do tanque.

 - Marcus!

 Tratava-se de uma voz familiar. Surpreendido, levantou os olhos para a escotilha, e, antes de poder responder Henry deixou-se cair ao seu lado.

 Sorriu-lhe, e recitou uma velha saudação universitária:

 - Génios da Restauração...

 ... ajudem a nossa ressurreição! - terminou Brody.

 Caíram nos braços um do outro.

 - Espero que não te importes por ter caído aqui desta maneira, sem ter avisado - disse Henry, soltando uma gargalhada.

 - De maneira nenhuma. É um prazer ver-te vivo, meu velho.

 Que estás aqui a fazer?

 - Vim numa missão de salvamento, meu bom homem. Pensaste que vinha tomar chá?

 - Chegaste tarde de mais.

 Sem aviso prévio, um nazi deixou-se escorregar pela escotilha, e apontou uma Luger aos dois homens.

Juntaram-se-lhe mais dois nazis, seguidos por Vogel.

 - Revistem-no - ordenou o coronel.

 Um dos homens ocupou-se de Henry, mas não encontrou nem armas nem o diário do Graal. Vogel ficou furioso. Esbofeteou Henry.

 - Onde está o livro? Esse livrinho miserável, que tem ele?

 Como o outro não respondeu, a mão do coronel voltou a abater-se sobre o seu rosto.

 - Temos o mapa. O livro é inútil. E, contudo, vocês foram até Berlim para o reaver. Diga-me porquê, dr. Jones.

 Henry permaneceu mudo, e Vogel agrediu-o no rosto uma terceira vez.

 - Que está a esconder? Que coisas Lhe diz o diário que não nos diz a nós?

O olhar do outro estava carregado de desprezo.

 - Diz-me que indivíduos tão estúpidos como você deviam tentar ler os livros antes de os queimar.

 Vogel voltou a bater-lhe, desta vez com mais força, e, devido ao impacte, Henry recuou.

 - Apanharam o teu pai no tanque - disse Sallah, passando os binóculos a Indy. - Vi os soldados segui-lo.

 Indy amaldiçoou-se. "Não devia ter dado ouvidos ao pai.

Deveria ter ido ao encontro de Brody, e só depois preocupar-me com os cavalos.”

 Olhou para o tanque, depois desviou os olhos na direcção de Donovan e dos outros soldados. Viu que ainda estavam ocupados a combater os membros que restavam do grupo de Kazim.

 - Vamos buscá-los antes que seja tarde de mais.

 - Herr coronel!

 Um dos soldados, o que se colocara no lugar do condutor, fez sinal a Vogel para que fosse espreitar à viseira.

 Este olhou lá para fora e viu Indy e Sallah carregarem de encontro ao tanque, montados em cavalos envoltos numa nuvem de pó. Voltou-se para o homem que estava de guarda a Henry e a Brody.

 - Mata-os se se mexerem.

 Tomou posse do canhão do tanque.

 - Cuidado, Indy. Os canhões!

 Indy viu a arma de seis libras girar e ficar apontada na sua direcção. Compreendeu subitamente que atacar o tanque não era uma ideia assim tão boa. Puxou as rédeas com força, e voltou-se para uma outra direcção - desta vez longe do tanque.

 Sallah seguia imediatamente atrás, gritando o mais alto que podia.

 - Boa manobra, Indy. Cavalos contra tanques não são grande coisa. Concordo plenamente.

 Ziguezaguearam através do deserto, sempre perseguidos pelo tanque que continuava a disparar. Dado que os tiros falharam, Indy e Sallah conseguiram sair da nuvem de poeira que se formara.

 Indy virou a cabeça. O tanque estava a ganhar terreno. Foi então que reparou que tinha companhia. Um pequeno carro alemão dirigia-se ao encontro de ambos. Contudo, eram precisos bastantes mais homens que aqueles dois para o impedir. Tinha a certeza disso.

 Dispararam um outro morteiro, e Indy quase foi atingido.

- Raios!

 - Foi por pouco, Indy. Foge.

 Sallah seguia à frente, mas o outro estava a fi car irritado. Franziu o sobrolho, olhou para trás, e apercebeu-se de que a arma que disparava contra eles só era eficaz àquela distância. Isso deu-lhe uma ideia. I Puxou as rédeas e voltou o cavalo. O tanque virou-se e seguiu-o, só que agora estava em rota de colisão com a viatura que transportava os dois soldados nazis. O condutor do automóvel tentou evi tar o tanque, mas Vogel não o vira e estava preocupado em manter Indy ao alcance do canhão.

 Com um chiar metálico, o carro foi atingido de lado, indo alojar-se entre as rodas da frente. A colisão não se limitou a provocar a paragem do tanque. A viatura mais pequena bloqueara a viseira da frente e amolgara a torre do canhão de seis libras. i Entretanto, Indy fez parar o cavalo. Baixou-se, apanhou um braçado de pedras de uma parede que existia ali perto, e só depois esporeou o animal. Galopou até junto do canhão posterior, e enfiou algumas das pedras no cano da arma.

Depois deu uma volta ao cavalo para que este ficasse mesmo em frente do canhão, suficientemente perto para constituir um alvo fácil.

 - Estou a vê-lo. - Henry levantou a cabeça quando ouviu o grito excitado do artilheiro.

 Sabia que o nazi estava a falar do filho.

 - Bom, abate-o - ordenou Vogel.

 - Não - gritou Henry, precipitando-se para o soldado. No entanto, o guarda bloqueou-lhe o caminho, empurrando com força. Apontou a Luger entre os olhos de Henry, no preciso momento em que o artilheiro fazia pontaria e disparava contra Indy.

 O tiro saiu pela culatra, mesmo contra o rosto do homem que disparara. Este caiu para trás, o rosto completamente desfeito devido à explosão. Estava morto antes de ter chegado ao chão.

 O tanque ficou cheio de fumo. Henry e os outros engasgaram-se e começaram a tossir. Vogel passou por cima do cadáver do soldado, elevou-se e abriu a escotilha para deixar sair o fumo.

 - Disparem a arma da torre - gritou ele ao condutor, preferindo não se arriscar.

 Henry agarrou o braço de Brody e rastejaram ambos até se encontrarem por debaixo da escotilha. Henry estava prestes a elevar-se e a sair dali para fora, quando foi de encontro ao guarda, que também se encontrava no fundo do tanque. O homem levantou a Luger e pressionou-a contra a testa de Henry.

 O condutor da pequena viatura tivera morte instantânea aquando do choque com o tanque, mas o passageiro sobrevivera e estava a tentar sair através do tejadilho de lona. Conseguiu cortar uma aba, e puxou-a. Enfiou a cabeça no buraco, e ficou frente a frente com o canhão de seis libras.

 Nesse mesmo instante, este disparou, rebentando com tudo o que estava no caminho, cuspindo pedaços de automóvel numa distância de vários metros.

 Indy estava atrás do tanque e acabara de ver Sallah a galopar ao seu encontro, quando o canhão fizera ir o carro pelos ares.

Vários pedaços da viatura aterraram perto de Sallah. O cavalo empinou-se e o homem caiu.

 Voltou a montar, olhou na direcção do tanque e afastou-se na direcção oposta.

 Indy ficou com a sensação de que Sallah não o ia ajudar muito.

 Livre do automóvel, o tanque voltou a avançar.

 Vogel ocupou-se do canhão da torre e fê-lo girar, sempre à procura de Indy. Contudo, a arma só podia descrever um arco de noventa graus. Tinha a certeza de que Indy estava atrás do tanque, e se o outro cavaleiro se lhe juntasse eram bem capazes de tentar a abordagem.

 Se o fi zessem, ele mataria o Jones pai mesmo em frente ao filho.

 No entanto, precisava de reforços. Pegou no microfone do rádio e chamou Donovan.

 - Esqueça esses doidos das colinas - disse, com dureza. - Preciso de reforços.

 Seguiu-se um momento de silêncio, depois do que Donovan ladrou:

 - Está a querer dizer-me que não conseguiu tratar do Jones?

Nem mesmo com o canhão?

 Vogel ficou vermelho de cólera, e falou por entre dentes.

 - Ainda não.

 Espreitou por cima do canhão da torre, voltando a procurar Indy. Viu um desfiladeiro estreito e teve uma ideia. Sorriu para si mesmo, e ordenou ao condutor do tanque para se dirigir na direcção do desfiladeiro.

 Voltou a ligar o rádio.

 - Quando aqui chegar, já terei tratado do Jones.

 Quando entraram no desfiladeiro, girou a arma o mais que podia. Apontou contra a parede daquele, e esperou pela altura certa. Descobriu uma rocha projectada por sobre a parede e ajustou o canhão. Disparou um projéctil mesmo contra ela, e, subitamente, deu-se uma grande avalancha.

 Vogel sorriu. Aquilo devia tratar dele.

 

 UM CONTRA MUITOS

 Momentos antes da avalancha, Indy andava atrás do tanque, de novo à procura de pedras. O seu plano era entupir o cano do outro canhão, na esperança de que lhe acontecesse o mesmo que ao outro. Desta vez, quando a escotilha se abrisse para deixar sair o fumo, dominaria Vogel passando a controlar a viatura.

Um plano bastante simples. Contudo, o primeiro passo era fazer que o alemão caísse.

 Mas o tanque dirigira-se para um desfiladeiro estreito, e ele não conseguia encontrar as pedras apropriadas. Havia ali seixos e pedregulhos, muitos deles com cerca de metade do tamanho do tanque inteiro, ou talvez até mais. E este não era o único problema. O desfiladeiro afastara-o de Sallah, que galopara para longe do alcance dos canhões existentes na viatura. Era bastante provável que não soubesse o que acontecera a ele e ao tanque.

 Concentrou-se no solo. "Pedras. Preciso de pedras.”

 Foi então que o canhão disparou de encontro ao rochedo, e, de repente, viu uma enorme quantidade de pedras, muitas mais que as que precisava. Todas elas vinham ao seu encontro. Puxou as rédeas com força, deu meia volta e afastou-se a galope da avalancha.

 As pedras caíam à sua volta, e pouco faltou para que o atingissem.

 Mas conseguiu escapar ileso.

 Não teria tido tanta sorte se seguisse demasiado perto do tanque. Não tinha qualquer dúvida de que estaria morto.

 Contudo, tinha de enfrentar um outro problema. O caminho através do desfiladeiro estreito ficara cortado. Se quisesse alcançar o tanque, teria de voltar atrás e contornar o desfiladeiro, facto que levaria muito tempo, talvez horas.

 Ele não dispunha de horas.

 Foi então que viu um caminho alternativo. A avalancha trabalhara em seu proveito, criando um trilho rochoso que se

estendia pela parede da elevação. "Está na hora de seguir pela estrada principal.”

 Começou a subida o mais depressa que podia, conduzindo o cavalo por entre o cascalho. Descobriu que esta não só lhe permitia atravessar o desfiladeiro, mas que também se tratava de um atalho. Não levou muito tempo a aproximar-se do tanque a partir de cima. Ultrapassou-o, e estava a interrogar-se sobre o modo como poderia chegar à base da montanha, quando, sem que disso estivesse à espera, a sua sorte acabou. O trilho terminava numa parede de pedra.

 Olhou para baixo à medida que o tanque passava por si. Teria de voltar a trás ou... Deixou-se cair da sela, e, antes de poder mudar de ideias, correu até à beira do rochedo e saltou.

Aterrou de pé em cima do tanque, e depois deixou-se ficar de gatas. Conseguira, mas... e agora?

 O veículo saiu do desfiladeiro, e à direita encontrava-se de novo o deserto. Indy olhou para trás e viu uma nuvem de pó que se elevava no deserto. Fez os possíveis para ver o que se passava através daquela luz brilhante. Um jipe aproximava-se a toda a velocidade. Atrás dele, e a alguma distância, viam-se dois camiões cheios de soldados nazis.

 Estava a chegar companhia.

 - Seja bem-vindo, Jones.

 Voltou-se e viu o rosto de Vogel a espreitar pela escotilha.

Os seus olhos pequenos e brilhantes fulminavam-no. Indy devolveu-lhe o olhar. Sentia um ódio sem limites pela criatura, mas recusava-se a desviar o olhar e a deixá-lo ganhar este jogo.

 Subitamente, sentiu umas picadas familiares na nuca - um aviso. Voltou-se e viu um soldado rastejar atrás de si.

Percebeu que Vogel o estava a tentar distrair, enquanto o soldado vindo do jipe passava para o tanque. O homem deu um salto semelhante ao dos sapos, e ficou em cima dele, prendendo-o de encontro ao tanque.

 Tentou libertar-se, mas tinha o rosto colado ao metal quente.

 A posição em que se encontrava permitia-lhe ver um dos camiões a avançar junto à viatura onde seguia. Tal como se fossem piratas a abalroar um galeão, um punhado de soldados saltou para o tanque. As coisas não estavam com bom aspecto.

 Indy empurrou o soldado e tentou apoderar-se da Luger.

 Começaram a rebolar, e encostou o outro ao tanque, com a arma posicionada entre ambos. Voltaram a rolar, e o cano da Luger aproximou-se da sua cabeça. Agarrou-se à alavanca do tanque e forçou a pistola a afastar-se de si, até se encontrar virada para o soldado.

 Fez toda a força que podia, e obrigou o homem a disparar contra si mesmo. Abala atravessou-lhe o pescoço, e seguiu através do estômago de um outro soldado e da virilha de um terceiro. Os três corpos caíram, tombando para fora do tanque.

"Já lá vão três. Faltam ainda muitos.”

 Viu que Vogel tinha subido a escotilha, e se juntara aos nazis que o rodeavam.

 - É mesmo assim, filho, dá-lhes!

Indy ouviu a voz do pai, e viu-o a espreitar pela escotilha.

Levou a mão ao chicote que trazia à cintura, mas apercebeu-se de que ali havia gente a mais. No entanto, a falta de espaço favorecia. Os soldados atacavam-no vindos de todos os lados, empunhando facas e pistolas, mas ele era um alvo difícil de agarrar. Escapou-se à lâmina de uma faca que não lhe acertou no flanco e se foi cravar na coxa de um outro nazi. Um murro atingiu-o no queixo, e ele girou sobre si mesmo, acabando por dar um pontapé na mão de outro soldado, arrancando-lhe a arma e atirando para fora do tanque. Um outro nazi disparou contra ele, falhou, e atingiu um seu camarada. "Mais um que se foi.”

 - Dá-lhes, Júnior - gritou o pai.

 De repente, Indy ficou completamente fora de si. Ferveu de raiva, e toda a fúria que sentia subiu por ele como se fosse uma injecção de adrenalina. Desfechou o punho contra o queixo do soldado mais próximo. O homem caiu de costas para cima de outro soldado, e ambos foram projectados para fora da viatura.

Deu um pontapé ao que se encontrava a seguir, que se precipitou para o trilho do tanque, arrastando um outro consigo. Os dois rebolaram em frente, chegaram ao chão, e foram automaticamente esmagados pelas rodas.

 Ainda enraivecido, Indy olhou para a escotilha.

 - Nunca mais voltes a chamar-me Júnior!

 Palavras não eram ditas, e já Vogel arremessara uma corrente contra ele, a qual deu duas voltas em torno dos seus ombros.

Sentiu-se dominado por uma enorme dor. Deixou-se cair de joelhos, a gemer. Ainda assim, conseguiu não perder a consciência. Viu a Luger que o primeiro soldado deixara cair, e pontapeou-a na direcção da escotilha. Tratou-se de um remate que faria as delícias de um campeão de futebol. A arma atravessou o tanque, e caiu no colo de Henry.

 Indy levantou-se, pronto a enfrentar Vogel e o soldado que ainda ali estava. A corrente continuava a envolver-lhe os ombros, mas conseguia mexer os braços, e nenhum dos seus adversários estava armado. Sorriu para Vogel com um ar matreiro. Depois de ter vencido todos os outros, tinha a certeza de poder tratar destes dois.

 Mas o alemão devolveu-lhe o sorriso, e foi então que Indy viu o motivo que levava o outro a estar confiante. Um segundo

 camião estava prestes ajuntar-se ao tanque, trazendo consigo mais reforços, bastantes mais que aqueles que poderia aguentar. "Raios, para falar verdade, estavam ali mais homens que aqueles que uma dúzia de duplos seus seria capaz de combater.”

 Quando a arma lhe caiu no colo, Henry agarrou-a pelo cano mesmo no momento preciso.

Brody gritou-Lhe para ter cuidado. Ouviu um som abafado que

significava que o amigo tinha caído ao chão. O guarda passou os braços em torno da cintura de Henry, tirando-o da escotilha.

 - Largue-me - gritou ele.

 Dado que o outro não lhe deu ouvidos, Henry foi forçado a agir.

 - Eu avisei-te.

 Atingiu na cabeça com o cano da pistola, e o guarda caiu no chão, mesmo ao lado de Brody. Voltou a subir a escotilha, e estava prestes a juntar-se ao filho quando viu o camião. Nunca conseguiria vencer aquela horda de nazis! Precisava de ajuda, de muita ajuda.

 Voltou atrás, e correu para a canhoneira da torre, no preciso instante em que o guarda se punha de pé. Henry apontou o canhão ao camião carregado de soldados, e começou a procurar o gatilho. Acabara de o descobrir quando o alemão levantou o braço e o puxou para longe da torre.

 Brody começou a gatinhar, e o guarda foi ao seu encontro.

Henry conseguiu libertar-se, e voltou a precipitar-se para junto do canhão. Fez pontaria de novo, e apertou o gatilho.

 Teve a sorte de todos os principiantes: o tiro atingiu o depósito de gasolina e a viatura explodiu, lançando soldados e desperdícios no ar aquecido.

 A explosão atirou Indy, Vogel, e o último soldado para fora do tanque. O soldado caiu directamente no solo, mas Indy e o coronel aterraram na lagarta. Começaram a avançar rapidamente, e estavam prestes a ser esmagados quando rebolaram na direcção do suporte do canhão.

 Os pés de Vogel abateram-se sobre Indy, obrigando-o a agarrar-se a uma pega de metal, e a voltar para a lagarta.

Indy estendeu uma mão para o canhão, e depois passou obraço à suavolta. Enquanto tentava evitar a queda, os pés balouçavam muito perto da borda da lagarta.

 Entretanto, Vogel foi ao seu encontro e deu-lhe um pontapé nas mãos.

 Dentro do tanque, o guarda pegara em Brody e empurrara-o de encontro ao tabique, batendo-lhe com a cabeça de encontro a este. Brody caiu redondo no chão, ficando naquele estado em que se está prestes a perder os sentidos, ao mesmo tempo que lutava para afastar a escuridão que subia por si, como se de um pesadelo se tratasse. Tinha a vaga sensação de que o guarda estava a apontar-Lhe a Luger. Fechou os olhos, incapaz de ver mais. Ficou à espera da explosão e da morte.

 Henry saltou sobre o guarda, afastando-lhe o braço. A arma disparou, e a bala fez ricochete por mais de uma vez.

 De súbito, quando o condutor, mortalmente atingido, se deixou cair sobre o volante, o tanque descontrolou-se.

 Henry continuava a lutar. Estava sem fôlego. O poderoso braço do guarda estava enrolado ao seu pescoço, e ele começava a fraquejar. Agarrava o braço do soldado com ambas as mãos, tentando manter a arma afastada. Tentava manter-se consciente a todo o custo. Se desmaiasse era um homem morto.

 Quando o tanque passou por cima de uma pedra bastante grande,

Brody ficou completamente desperto. Sentia-se como se tivesse despertado da morte. O corpo doía-lhe numa dúzia de sítios e sentia a cabeça a latejar como se lhe tivessem espetado uma lança. Mas, apesar da dor, conseguiu pôr-se em pé, e viu Henry lutar com o guarda pela posse da arma. Deu um pontapé na mão do homem, e a pistola escorregou pelo chão da viatura.

 O tanque voltou a passar por cima de outra rocha, e Brody caiu.

 - Quem será que está a conduzir isto? - murmurou.

 Quando Brody pontapeou a arma, Henry meteu a mão ao bolso. Os seus dedos estavam lá dentro, movendo-se, à procura de uma caneta de tinta permanente. O outro braço continuava agarrado ao guarda, que tentava agora a todo o custo recuperar a Luger.

Puxou da caneta e agrediu o guarda por mais de uma vez, mas o homem parecia não dar por isso. Conseguiu tirar-lhe a tampa, levantou o braço, e espremeu a borracha. O guarda foi atingido nos olhos por uma chuva de tinta.

 Levando as mãos à vista, o homem recuou e soltou um grito.

 Henry inspirou, encheu o peito de ar, e depois esmurrou o nazi em pleno rosto. Este deixou cair a cabeça para trás, atingindo o tabique. A força da pancada trouxe-o ao ponto de partida, mas agora estava morto.

 "A caneta tem mais poder que a espada". Henry baixou-se e ajudou Brody a levantar-se. Todo este disparate estava a milhas de distância do estudo das línguas e dos objectos antigos. Contudo, começava a sentir a adrenalina correr-lhe pelas veias.

 Ambos os homens subiram a escotilha, e encontraram-se em cima do tanque. Não se via vivalma, nem Indy, nem qualquer soldado. Foi então que Henry espreitou para fora da viatura.

Vogel e o filho estavam em cima do suporte do canhão, ligados pela corrente do nazi num abraço mortal.

 A cabeça de Indy estava apenas a alguns centímetros da lagarta. Com toda a cautela, deixou-se escorregar pelo lado do tanque, disposto a ajudar o filho de um modo que nunca sonhara ser possível. Ia compensar todas as falhas que tivera enquanto pai. E quando tudo isto terminasse, ficaria em frente ao filho, e pedir-lhe-ia desculpa pelos seus erros, tal como deveria ter feito há muitos anos.

 "Sou um velho teimoso cuja maneira de ser nunca fez bem a ninguém. Era isto que iria dizer-lhe", pensou. Já estava mais que na altura de o admitir.

 Sallah afastara-se do tanque depois de os destroços do carro destruído quase o terem morto. Dissera vezes sem conta para si mesmo que um cavalo não estava em condições de enfrentar um tanque. Mas onde é que estava Indy? Tanto ele como a viatura haviam desaparecido. Voltara atrás e descobrira o desfiladeiro estreito, mas a avalancha deixara-o sem palavras. Receando que Indy ali estivesse enterrado, começou a vasculhar por entre as pedras.

 Por fim, certo de que o amigo não poderia ser encontrado,

voltara a recuar e vira o tanque à distância. Quando se aproximou, soube que ali estava qualquer coisa errada. O tanque seguia directamente para uma escarpa situada a pouco mais de cem metros, e continuava sem ver Indy. Esporeou o cavalo e precipitou-se para a viatura. Quando já estava a galopar ao seu lado, viu que Brody estava lá em cima.

 - Salta! - gritou. - Salta, homem!

 Brody ouviu Sallah gritar. Virou a cabeça e viu a escarpa pela primeira vez. Deixou-se escorregar para o canhão mais perto do local onde o outro galopava.

 - Salta - rugiu Sallah.

 Apercebeu-se de que ia morrer e acabou por saltar. Aterrou em cima do cavalo, metade dentro, metade fora, e agarrou-se ao pescoço do outro. Este esticou-se para trás e puxou-lhe o tornozelo.

 - Aguenta-te, Marcus.

 - Do outro lado - gritou Brody. - Eles estão do outro lado.

 Em pleno impasse, Indy e Vogel continuavam presos à corrente. Se qualquer um deles empurrasse o outro, ambos cairiam do tanque.

 Foi então que Indy viu a escarpa. Esta estava apenas a cerca de cem metros. "Quem é que está a conduzir o tanque?”

 Tentou afastar a corrente do peito no preciso momento em que Vogel, que também vira a escarpa, tentava saltar. Mas, para sua surpresa, o pai aparecera vindo não se sabe de onde, e agarrou uma das pernas do alemão. Vogel virou-se, e depois deu um pontapé no rosto de Henry, atirando-o para a lagarta. Indy viu o pai rebolar na direcção da parte dianteira do tanque e reagiu de pronto. Desenrolou o chicote e atirou-o de encontro ao pai. O chicote enrolou-se com força no tornozelo de Henry, no preciso momento em que este estava prestes a ser esmagado.

 Indy puxou o chicote com todas as forças que ainda lhe restavam, e Henry arrastava-se atrás da lagarta, como se de um enorme peixe pendurado na linha se tratasse.

 Sallah encostou o cavalo ao tanque.

 - Despacha-te, Indy. Sai daí.

 Indy olhou-o.

 - Dá-me uma mãozinha. - Passou-lhe o chicote.

 O outro agarrou, puxou as rédeas da montada e afastou-se da viatura.

 Henry caiu e rebolou no pó. Sallah estava prestes a desmontar para o ajudar, quando levantou a cabeça e viu Indy e Vogel correrem para a parte de trás do tanque. Continuavam presos na corrente, e ambos saltaram ao mesmo tempo. Tudo indicava que iam ser bem sucedidos. Contudo, uma das pontas da corrente ficou presa no tanque, e os dois homens foram arrastados na direcção da rocha.

 - Oh, não! Indy! - gritou Sallah.

 Num último acto de desespero, Indy tentou libertar-se da corrente. Mas esta agora estava presa à sua perna. Desabotoou as calças e começou a despi-las. Sentia-se uma espécie de mágico que executa um truque sensacional com vista a escapar à

morte. No entanto, isto não era um truque, pelo menos nunca antes o realizara.

 A seu lado, Vogel gritava, desesperado, tentando libertar-se da corrente.

 Indy já quase despira as calças quando o tanque atingiu a escarpa, capotou, e mergulhou no desfiladeiro profundo.

 æ distância, Elsa viu uma nuvem de fumo negro elevar-se do precipício. Baixou os binóculos, e ordenou ao motorista que ligasse o motor.

 - O tanque está arrumado - disse, dirigindo-se a Donovan.

 - Todos estão arrumados.

 - E quanto ao Vogel?

 - E quanto a ele, Herr Donovan? - A sua voz era dura e incrivelmente fria. Conseguira ocultar as suas preocupações emocionais. Despira-se delas. O Graal era tudo o que lhe interessava. Não esperava que Indy estivesse vivo, mas, e se assim fosse? Que coisas poderia isso mudar?

 Nada.

 Donovan acenou e juntou-se a ela no carro.

 - Acho que estava escrito que seríamos só nós dois aencontrar o Graal.

 Elsa continuava em silêncio, a olhar em frente, vendo o calor ondular sobre o solo do deserto. "Morto. O Indy está morto. Já nada interessa a não ser o Graal.”

 - Certifique-se que o camião das provisões e os outros estão a postos - acabou por dizer. - Temos trabalho pela frente.

 Henry não desviava os olhos dos destroços em chamas do tanque, lutando contra uma vaga de emoção que ameaçava submergi-lo. Estava ferido, arranhado, amassado, mas nada disso interessava. Perdera o seu único filho, perdera antes de ter tido a oportunidade de endireitar as coisas, de o compensar por todos aqueles anos de mal entendidos.

 - Tenho de ir procurá-lo - disse Sallah. - É meu amigo. - Começou a correr na direcção do rochedo, mas Brody agarrou-lhe um braço, impedindo-o de partir.

 - Não serve de nada, Sallah.

 Aquele homem enorme afastou-se de Brody, deixou-se cair de joelhos e enterrou o rosto nas mãos. Henry olhava para os dois homens, ora para um ora para outro, e não sabia o que dizer, incapaz de racionalizar o desgosto que sentia, quanto mais o dos outros.

 Brody tentou confortá-lo. Passou-lhe um braço em torno dos ombros e deu-lhe os pêsames. Os olhos de Henry ardiam devido às lágrimas. O sol continuava a escaldar.

 "Nunca o abracei", pensou ele, sentindo-se pessimamente.

"Nunca lhe disse que gostava dele.”

 Atordoado e confundido, Indy apareceu a cambalear vindo de trás de uma pilha de rochas. Levava as calças nas mãos, pois estas haviam sido rasgadas. Podiam ver-se pedaços delas

agarrados às botas.

 Juntou-se aos outros e olhou para a escarpa, na direcção dos destroços. Um por um, eles foram-se apercebendo da sua presença. Primeiro Brody, depois Sallah, e por último Henry.

 Indy abanou a cabeça e assobiou baixinho.

 - Foi por pouco.

 - Júnior! - gritou Henry. Passou os olhos à volta do filho, abraçando-o com força. - Pensei que te tinha perdido - repetia vezes sem conta, dizendo baixinho que gostava muito dele.

Demorou um bocado até que Indy se apercebesse de que o pai o estava a abraçar e a dizer que gostava dele. Tratava-se de algo que já não ouvia há muito. Para falar com franqueza, não se lembrava de alguma vez o ter ouvido, nem de o pai o abraçar.

 Também se abraçou a ele, abraçou-se com força, tal como se fosse um rapazinho pequeno arrastado numa vaga de ternura para com o pai.

 - Também pensei que te tinha perdido - murmurou.

 Brody estava comovido com esta súbita reconciliação, mas Sallah estava confuso.

 - Júnior? És tu o Júnior?

 Indy fez uma cara feia. Não tinha vontade de falar sobre esse assunto. Recuou, e fez o melhor que podia para improvisar uma forma de vestir as calças.

 Foi Henry quem respondeu à pergunta.

 - O nome dele é esse... Henry Jones Júnior.

 - Gosto mais de Indiana - disse ele com firmeza.

 - Indiana era o nome do cão! - ripostou o pai. - A ti chamamos-te Henry, Júnior.

 Brody sorriu e Sallah soltou uma gargalhada.

 - O cão? - exclamou este.

 Até mesmo Indy foi forçado a sorrir.

 - Tenho óptimas recordações desse cão.

 Sallah riu ainda mais alto, e deu-lhe uma palmada nas costas, fazendo que as calças lhe caíssem aos pés.

 

O TRILHO DO GRAAl

 , O Sol do meio da tarde queimava as rochas estéreis que os rodeavam. Elsa fechou os olhos por um momento, tentando acalmar a raiva que sentia. Fazia o melhor que podia para ignorar o calor, mas Donovan era outra história. Já lidara com homens arrogantes e prepotentes que preferiam tratá-la como uma espécie de adorno ao invés de cientista, mas Donovan era o pior de todos. Até mesmo o führer, apesar de todas as suas excentricidades, acabara por reconhecer as suas capacidades intelectuais.

 - Devia estar aqui - disse ela, apontando para a parede de rocha que se elevava à sua frente.

 - Aqui não há nada - respondeu Donovan num tom de voz desinteressado e condescendente.

- Confirmei os marcos por mais de uma vez, Walter - disse. - Se o mapa está certo, o desfiladeiro escondido está mesmo atrás dessa parede. E é lá que o iremos encontrar.

 Donovan encolheu os ombros.

 - Já tentámos todos os caminhos possíveis. Não há qualquer entrada. Trata-se de rocha sólida.

 Para alguém tão conivente como ele, Donovan não dava uma grande ajuda quando se tratava de questões práticas. Elsa pensou que talvez fósse melhor ele deixar que os outros encontrassem o Cálice do Graal e depois roubá-lo.

 - Sendo assim, acho que devemos criar a nossa entrada.

 - Qual é a sua proposta nesse sentido?

 - Nunca trabalhou com explosivos?

 Ele fitou-a por alguns instantes com um olhar tão gelado que nem mesmo o calor do deserto era capaz de derreter.

 - Acho que não.

 "Já sabia.", Elsa virou-se e encaminhou-se para o camião de apoio. Sentiu os olhos dele na sua nuca. "Ele que se preocupasse", pensou. Levá-lo-ia até ao Graal, depois ficaria a vigiar, e, na altura certa, passaria à acção. O Graal seria seu ou então morreria. Não tinha outra alternativa.

 Indy, tal como os seus três companheiros, usava um chapéu enrolado num pano branco e tentava habituar-se ao modo como o camelo andava. Não se parecia nada com o andar a cavalo ou andar de elefante. Era algo completamente único - ia-se abaixo, acima, outra vez abaixo, e outra vez acima, mas os balanços do camelo nunca eram iguais. Não conseguia apanhar o ritmo, e suspeitava que se devia ter de nascer nómada e viver sempre no deserto para sentir algum conforto em cima dessas criaturas.

 O pano branco dos chapéus ajudava a afastar o calor, mas não lhe mitigava a sede. Pensou em água, garrafas de água, rios de água, fresca e sem fim. Imaginava-se a mergulhar numa piscina, a empapar os pés em lama fresca e húmida.

 Sallah recuperara o cavalo de Indy, e os quatro - dois em cada cavalo - tinham voltado atrás, até ao local onde haviam visto a caravana de Donovan pela última vez. Não havia sinais nem de Donovan nem de Elsa. Contudo, encontraram vários pneus, vários camelos abandonados, e até mesmo um par de cantis de água.

 Indy insistira para que o pai e Brody ficassem para trás, à espera, enquanto ele e Sallah perseguiam os inimigos montados nos cavalos. Mas nenhum deles lhe deu ouvidos. Ambos insistiram em dizer que estavam bem, e que podiam continuar.

Henry sugerira que podiam ir todos nos camelos.

 Descansaram apenas durante um curto espaço de tempo, tratando dos seus golpes, arranhões e moléstias. Indy encontrou um par de calças entre as coisas que haviam sido deixadas para trás, e tinham fabricado os seus chapéus. Por fim, subiram para os camelos, e lançaram-se através do deserto.

 Indy pensou que, sem o mapa, nunca seriam capazes de localizar o sítio onde o Graal estava escondido. No entanto, os veículos da caravana haviam deixado marcas na estrada. Indy calculou que tanto Elsa como Donovan deviam achar que ele e o seu grupo deviam estar mortos, caso contrário não teriam sido tão descuidados no que tocava aos rastos. Deixá-los pensar assim. O facto só Lhe trazia vantagens.

 Uma explosão distante ecoou através do desfiladeiro, chamando a atenção de Indy.

 - Que foi isto? - perguntou Brody.

 - O desfiladeiro secreto! - exclamou Henry. - Encontraram-no.

 Indy lembrou-se das palavras da placa do Graal. "Através do deserto e da montanha até ao Desfiladeiro da Lua em Quarto Crescente, que tem espaço apenas para um homem. Até ao Templo do Sol, suficientemente sagrado para todos os homens.", Instigou o camelo a estugar o passo.

 - Vamos continuar a avançar.

 Quando chegaram ao local da explosão, havia rochas por todo o lado, e um enorme buraco existente na escarpa dava acesso a um desfiladeiro estreito. As paredes deste eram altas e íngremes, e tinham uma cor ocre.

 Indy passou o cantil aos outros. Estavam todos cansados, encalorados e magoados, mas sabiam que não havia tempo a perder.

 Henry, em mangas de camisa, conduziu-os até ao desfiladeiro.

Tinha o colarinho desapertado, e a aba do chapéu caía-lhe para os olhos. Indy achou que, naquele momento, o pai tinha ar de tudo menos de estudioso medieval. Parecia-se mais com um aventureiro idoso que vivia a maior aventura da sua vida, procurando alcançar com galhardia o objectivo de toda uma vida.

 Quando Henry entrou no desfiladeiro, o camelo em que seguia parou, resfolegou, e tentou recuar. Ele amaldiçoou o animal, deu-lhe uma palmada na garupa, e acabou por convencê-lo a avançar.

 Todos experimentaram o mesmo tipo de resistência pela parte dos camelos à medida que seguiam em fila indiana atrás de Henry.

 Amontada de Brody revelou-se como sendo a mais teimosa, e Indy acabou por ter de ser obrigado a desmontar e a puxar o animal.

 Uma vez dentro do desfiladeiro, os camelos acalmaram. Eram os seres humanos que se sentiam estranhos, fora do seu elemento.

 æ medida que avançavam, as paredes tornavam-se mais estreitas e íngremes. Tratava-se de um local estranho, demasiado silencioso, demasiado apertado, demasiado quente. Os cascos dos camelos ecoavam pelas paredes, e Indy achou que este som tinha uma qualidade estranha, muito embora não soubesse dizer exactamente qual.

 O ar era mais rarefeito, como se estivessem a uma maior altitude. Indy sentia a cabeça muito leve, e também o martelar

de uma dor aguda nas têmporas. A luz também era diferente, menos dura, conferindo reflexos dourados às paredes que os rodeavam.

 Não gostava de estar ali. Não gostava da sensação que emanava do local. Nenhum deles gostava. A não ser Henry, claro. Era o optimista do grupo, e não tinha razões para deixar de ser. O projecto que dominara a sua vida estava prestes a tornar-se realidade. O Graal ainda não estava nas suas mãos, mas estava muito perto, e ele podia partir do princípio de que já o segurava. Dava a sensação de que se estava a divertir bastante.

 - Marcus - disse ele -, somos como os quatro heróis da lenda do Graal. Tu és Perceval, o santo inocente. Sallah é Bors, o homem comum. O meu filho é Galahad, o valente cavaleiro. E o pai dele... o velho cruzado, Lancelote, rejeitado por não ser suficientemente digno, como talvez eu também não o seja.

 - Sou apenas um velho tonto que preferiria estar em casa com um copo de uísque na mão, em segurança - retorquiu Brody.

Agarrava-se com força à sela, tentando equilibrar-se, e todas as suas rugas revelavam um sentimento de incerteza. Indy achou que a expressão preocupada que o caracterizava estava de volta.

 Mas Henry parecia não ter ouvido. Acenou para si mesmo, pensando nas comparações que acabara de fazer. Depois virou-se para o filho.

 - Mas lembra-te, foi Galahad que conseguiu o que o pai não foi capaz.

 "?ptimo", pensou. Tratava-se do tipo de responsabilidade que não queria.

 - Nem mesmo sei qual o aspecto do Graal, pai.

 - Ninguém sabe - retorquiu Henry. - Aquele que o merecer, reconhecerá o Graal.

 "Tal como o rei Artur e Excalibur." Como se isto fosse uma demanda gloriosa e não uma situação perigosa. O facto aborreceu-o.

 Na idade do pai, tinham passado à situação de cruzados.

 Enquanto que, na expectativa, Henry olhava em frente, Indy olhava para baixo, para o solo. Já não precisavam dos trilhos deixados pelos veículos, mas o facto de ali estarem, a escassos centímetros da parede, não o deixava esquecer que não estavam sós.

 - Olhem! - exclamou Sallah, e estendeu um dedo.

 Pararam.. e olharam. O desfiladeiro estreito levava-os até uma enorme área a descoberto, uma espécie de arena, e, esculpida numa das rochas situadas no extremo estava uma fachada grego-romana. Uma série de degraus largos levava a uma espécie de átrio povoado de colunas maciças, e, para lá

 destas, encontrava-se a entrada de uma câmara escura.

Indy calculou tratar-se do Templo do Sol.

 - Vamos - disse Henry, ansioso.

 Os camelos voltaram a protestar, mas os homens esporearam-nos e eles lá avançaram, atravessando a área a descoberto, acabando por parar em frente dos degraus do

templo. Indy dirigiu um olhar furtivo ao pai: a sua expressão era de êxtase, mais ou menos como uma criança maravilhada. Até mesmo ele estava deslumbrado com a visão, se bem que não tanto como o pai. A admiração de Henry emanava dele em ondas, tal como um perfume era contagiante.

 - Monumental - disse Brody.

 - Construído pelos deuses - tartamudeou Sallah.

 Indy compreendeu tudo. Na presença de uma estrutura tão grandiosa era fácil concluir-se que fora construída por seres imortais, com duas vezes o seu tamanho e força.

 Ninguém se mexeu durante muito tempo. O templo tinha esse tipo de magia. Mas Indy acabou por quebrar o encanto. Voltou a olhar para o solo, e viu que os rastos se entrecruzavam atrás deles.

 Que teria acontecido aos veículos?

 Desviou o olhar para oeste, onde o Sol se projectava nas paredes da arena. Entre as sombras, distinguiu as formas de um carro de transporte de tropas, de um camião de apoio, de um automóvel, e de vários cavalos.

 Fez um sinal na direcção do templo.

 - Vá lá. Vamos espreitar. Mas não podemos fazer barulho.

 Colocou-se à frente, seguido por Henry, Sallah e Brody.

Devagar, subiram os degraus que levavam à entrada escura.

Quando chegaram lá acima Indy olhou para trás, certificando-se de que os outros continuavam a segui-lo. Depois dirigiu-se para o templo.

 Os olhos demoraram algum tempo a habituarem-se à escuridão.

 Foi então que viu que estava alguém mesmo à sua frente - um cavaleiro vestido com uma armadura, uma figura hercúlea, cerca de duas, três vezes maior que ele.

 Indy parou, recuou, e quando compreendeu o que se passava sorriu. O cavaleiro estava gravado num enorme bloco de pedra.

 O interior do templo estava cheio de cópias precisas do sentinela de pedra, e, para lá deles estava um anel de pilares maciços.

 Indy relaxou e apontou para os cavaleiros. Depois ouviu qualquer coisa, um som vindo do interior do templo, e de imediato os seus sentidos se puseram alerta. Os músculos ficaram tensos. O nervoso fê lo estremecer. A fascinação que sentira pelo templo fizera esquecer o facto de que Donovan e Elsa estavam algures à sua frente.

 Fez sinal aos outros para que o seguissem e continuassem o mais silenciosos possível.

Foram-se escondendo atrás dos pilares até se aproximarem o suficiente para ver o que estava a passar-se no centro do templo.

 Um dos soldados do exército do sultão, empunhando uma espada, subia cuidadosamente uma escadaria que levava a uma abertura abobadada existente na parede posterior do templo. Na base dos degraus, a observar o soldado, estavam Donovan e Elsa. Atrás deles encontravam-se mais nazis, e vários homens do sultão.

 "Elsa.", Indy ficou a olhá-la.

 Reparou no modo como ela se concentrava na progressão do soldado. Calculou que ela partisse do princípio de que ele se encontrava morto. Era apenas mais um homem no seu passado.

Usado, esquecido. Apesar de tudo o que ela lhe dissera, era óbvio que o único romance que mantinha era com o Graal, com as suas histórias e lendas. Os homens representavam apenas meios para atingir um fim.

 Mas isso não bastava. Havia mais qualquer coisa. Tinha de haver. "Algo que eu não conseguia ver." Depois concluiu que talvez fosse mais simples que aquilo que parecia. Talvez ela acreditasse nas lendas. Talvez se tivesse convencido de que o Cálice do Graal era mesmo uma fonte de imortalidade.

 E quanto a Donovan? Este conversara com Indy a respeito do mito. Mas será que acreditava mesmo nele? Tinha de acreditar.

Ao cabo e ao resto, ele não precisava de pôr a vida em perigo para obter uma peça. Claro que trabalhava em conjunto com Elsa, mas não a deixaria ficar com o Graal. Tinha a certeza disso.

 Levantou os olhos para o soldado que estava a aproximar-se do cimo dos degraus, e viu algo diferente. Apenas a alguns passos do homem, estava outro dos soldados do sultão, e, perto do cadáver, havia outra coisa. Tentando descobrir o que seria, Indy inclinou-se.

 "Meu Deus!", Tratava-se da cabeça do soldado.

 - Continua a avançar. - Era Donovan quem encorajava o homem.

- Continua a avançar. Estás quase lá.

 Elsa abanou a cabeça.

 - Não é possível.

 O soldado parou apenas a um passo do cadáver.

 - Continua a avançar - gritou Donovan.

 O homem deu um passo na direcção do arco, e foi o último que deu. Um som sibilante, parecido com uma rajada de vento, varreu o templo, e, sem mais nem menos, a cabeça do turco foi-lhe arrancada do pescoço. Caiu para junto dos degraus, começou a baloiçar, e caiu por eles abaixo, rolando ao encontro de Elsa e Donovan.

 Este fez sinal a um dos soldados, que se apressou a apanhar a cabeça. Atirou-a na direcção onde Indy e os outros estavam escondidos.

A cabeça ficou apenas a uns escassos centímetros deles.

Tinha a boca aberta e uma expressão de horror gravada no rosto.

 Indy desviou os olhos.

 - O sopro de Deus - disse Henry, devagar.

 A princípio, não entendeu o que o pai queria dizer. Depois lembrou-se dos três desafios descritos no diário do Graal. O sopro de Deus... Quais eram os outros dois? De momento não conseguia raciocinar com clareza. Levou a mão ao bolso onde o diário se encontrava. Ainda lá estava. Precisaria dele para conseguir o Graal. Contudo, e parajá, precisava de arranjar maneira de passar por Donovan e o seu séquito.

 Foi então que ouviu o americano ordenar a um dos guardas nazis para arranjar mais um dos soldados do sultão.

 - Helmut, traz um voluntário.

 O nazi apontou para um dos soldados, mas o homem abanou a cabeça e recuou. Dois dos nazis pegaram nele e arrastaram-no.

 - Não... Não... Não! - gritava, lutando para se libertar.

 Empurraram-no, e ele foi forçado a subir os primeiros degraus. Voltou-se: os seus olhos mostravam todo o terror que sentia. O guarda que dava pelo nome de Helmut puxou da Luzger e apontou-a ao soldado.

 Relutante, este voltou-se e deu início à escalada mortal até ao topo.

 Pelo canto do olho, Indy viu Brody desviar os olhos, incapaz de presenciar mais uma decapitação. Quanto a ele, estava tão interessado em testemunhar a chacina como o próprio Brody o estava.

 Sentia-se como um dos espectadores de um circo romano, mas não sabia o que havia de fazer. Precisava de um plano de ataque, mas...

 Brody deu-lhe uma pancadinha no ombro.

 - Indy!

 Os vincos do rosto do homem eram tão profundos que mais pareciam sombras. Indy levou um dedo aos lábios, mas foi então que viu o que o outro vira. Aalguns metros de distância, um soldado nazi apontava-Lhes um revólver.

 - Raus! Raus! - gritou, acenando freneticamente com a arma, dando a entender que se deviam mexer.

 Nesse momento, foram rodeados por mais três soldados nazis, todos eles armados. Indy compreendeu que era provável que tivessem estado escondidos perto da entrada, a observá-los desde o momento em que tinham entrado no templo. O nazi com a pistola revistou-os à procura de armas e confiscou as que estavam com Indy e Sallah.

 Empurraram-nos até ficarem à vista de todos, com as mãos levantadas acima das cabeças. Os soldados do sultão voltaram-se, apontando-lhes as espingardas. Indy viu Elsa girar os calcanhares e encará-lo.

 Abriu a boca e pareceu tremer ligeiramente. Donovan dirigiu-se ao seu encontro, escondendo a surpresa que sentia por detrás de um sorriso rasgado. Dava a sensação de que tinham chegado alguns amigos seus, convidados para o jantar. E que ele era o anfitrião.

 - Ah, os Jones... E mesmo na hora. Sejam bem-vindos. Podemos fazer uso dos vossos conhecimentos. Estou muito feliz por ainda estarem vivos.

 - Nunca conseguirão o Graal - explodiu Henry. - Está para lá do vosso entendimento e capacidade.

 - Não tenha tanto a certeza, dr. Jones. - Donovan falava por entre dentes. - O senhor não é o único perito do Graal que existe no mundo.

 Fez sinal aos guardas para que os levassem até aos degraus.

Empurraram-nos para a frente, e alinharam-nos no lado oposto ao dos soldados do sultão. Indy pensou que se pareciam com alvos numa carreira de tiro.

 Elsa saiu de detrás dos soldados e dirigiu-se para Indy.

 - Não esperava voltar a ver-te.

 - Erva ruim nunca morre.

 Donovan colocou uma mão em cima do ombro de Elsa.

 - Venha para trás, dr.a Schneider. - A sua voz era desdenhosa, como se estivesse a questionar a lealdade dela. - Deixe o Indiana respirar.

 Ela ignorou por um momento, não se mexendo. Os seus olhos estavam presos em Indy, como se não acreditasse no que estava na sua frente.

 Indy desviou o olhar. Não era altura para renovar velhos conhecimentos, especialmente com ela.

 - O dr. Jones vai trazer-nos o Graal - declarou Donovan.

 Indy virou a cabeça na direcção dos cadáveres decapitados e soltou uma gargalhada. O terceiro soldado parara a meio dos degraus, e começara a descer devagar, procedendo como se ninguém o estivesse a ver.

 - Achou graça? Esta é a sua oportunidade de passar para a história no caso de ser bem sucedido. Que diz a isto, Indiana Jones?

 - Passar para a história como, Donovan? Um esbirro nazi como você?

 O outro olhou durante instantes, e Indy não foi capaz de dizer se este estava zangado ou divertido. Foi então que Donovan sorriu e abanou a cabeça, tal como se ele fosse uma criança que acabara de dizer uma estupidez.

 - Os nazis - cuspiu. - Não consegue ir além disso?

 Indy não se incomodou a responder.

 - Os nazis querem fazer parte da lenda do Graal, e conquistar o mundo - continuou. - São bem-vindos. Eu e a dr.a Schneider queremos o próprio Graal, o cálice que garante a vida eterna. Hitler pode conquistar o mundo, mas não o pode levar consigo.

 Aproximou-se de Indy, esticando o queixo quadrado.

 - Continuarei a beber à minha saúde, mesmo depois de ele ter ido desta para melhor.

 Tirou a pistola do bolso e apontou-a entre os olhos de Indy.

Recuou um passo.

 - O Graal é meu, e é você quem o vai buscar.

 Indy sorriu, fingindo indiferença.

 - Não se está a esquecer da dr.a Schneider?

 Donovan sorriu.

 - Ela vem junto com o Graal. Azar o seu.

 Os olhos dele desviaram-se para Elsa, que se encontrava alguns passos atrás do americano. O seu rosto era uma máscara suave e meiga -, uma charada.

 Donovan destravou a arma.

 - Avance.

 Indy apontou para a pistola.

 - Não vai conseguir nada com ameaças.

 O outro sabia que ele falara verdade. Por instantes, não Lhe deu resposta. Foi então que desviou os olhos para Henry, e depois de novo para Indy. Um sorriso velhaco iluminou-lhe o rosto.

 - Sabe uma coisa, dr. Jones? Concordo plenamente. Tem toda a razão.

 Voltou-se para Henry e apontou-lhe a arma.

 - Não - gritaram Elsa e Indy ao mesmo tempo.

 Contudo, Donovan disparou, atingindo-o no estômago à queima-roupa.

 Henry cobriu o estômago com as mãos. Cambaleou, e virou-se para o filho.

 - Pai!

 Elsa correu para ele. Donovan agarrou-a e atirou-a para trás.

 - Não se meta nisto.

 Henry desmaiou nos braços do filho. Enquanto Indy o colocava suavemente no chão, Brody e Sallah corriam para ele. Sallah começou a embalar a cabeça de Henry, e Brody ajoelhou-se a seu lado.

 Indy rasgou a camisa do pai. A ferida quase o fez soltar um grito. Brody passou-lhe um lenço para a mão, e ele pressionou contra a ferida, tentando fazer parar o sangue. Foi então que reparou que a bala saíra pelo flanco, onde havia mais sangue.

Falava-Lhe devagar, dizendo que tudo ia ficar bem, e pedia a Deus para que a sua voz fosse convincente.

 - Levante-se, Jones - ordenou o nazi americano.

Indy virou a cabeça, os olhos a faiscar de raiva, e levantou-se, deixando Brody a cuidar do pai. Estava prestes a atirar-se ao pescoço do outro, mas hesitou quando este destravou a arma.

 - Se estiver morto não o poderá salvar - disse, apontando-lhe a pistola ao coração. - O poder do Graal é a única coisa que pode salvar o seu pai. - Parou por um momento.

- Duvida? Está na hora de perguntar a si mesmo em quem é que acredita.

 Henry gemeu e tossiu.

 - Indy - chamou Sallah. - Ele não está nada bem.

 Deu meia volta, e voltou a ajoelhar-se ao lado do pai. Brody segredou-lhe que Henry estava muito ferido. Acenou. Ele sabia.

Sabia muito bem. Tinha olhos na cara.

 - O Graal é a única hipótese que lhe resta - disse Donovan a sorrir, pois tinha a certeza de que o outro aceitaria o desafio. Não tinha outra alternativa.

 Indy olhou para Brody.

 - Ele tem razão. O Graal pode salvá-lo. Eu acredito que sim.

também deves acreditar.

 Se as circunstâncias fossem outras, é provável que a ideia o tivesse feito rir a bandeiras despregadas. Mas tratava-se do pai, e o pai estava a morrer. Fez um sinal a Brody, e depois levou a mão à bolsa, à procura do diário. Estava prestes a levantar-se, quando a mão de Henry lhe tocou o punho.

 - Lembra-te... o Sopro de Deus.

 - Claro, pai. E hei-de trazer-te o Graal.

 

OS TRëS DESAFIOS

 Indy agarrou o diário e olhou para a escada. Lá no cimo havia um arco, bem assim como uma passagem escura. Respirou fundo, e começou a subir devagar na direcção dos dois corpos sem cabeça.

 Parou a meio caminho.

 O silêncio foi quebrado pelo som feito pelos soldados do sultão quando carregaram as armas. O ruído ecoou através do templo. Donovan ordenara aos soldados que disparassem, caso ele tentasse fugir. Era evidente que estavam a cumprir as ordens recebidas.

 Abriu o diário do Graal, e olhou para as páginas. A luz era fraca, a caligrafia mal se via. Contudo, tinha de poder passar o arco - o sopro de Deus. O pai estava deitado no chão a esvair-se em sangue. Tinha de o ajudar. Tinha de conseguir chegar ao cálice, e trazê-lo de volta o mais depressa possível.

Em termos racionais, sabia que nenhum cálice antigo podia curar uma ferida provocada por uma bala, mas isso não interessava. Já passara por várias experiências estranhas ao longo da vida, e sabia que por vezes acontecem coisas que à partida são impossíveis. Talvez que nunca se pudessem provar os poderes curativos do Graal, talvez que estes nunca pudessem ser produzidos de um modo científico, mas ele estava disposto a tentar. Tudo o que o Graal tinha a fazer era resultar. Nem que fosse só por uma vez.

 Deu mais dois passos. Podia ouvir o pai chamá-lo. Voltou-se, e viu que os olhos mortiços do pai o fitavam. Procurou ouvir.

Henry repetia sempre a mesma frase.

 - Só o penitente passará. Só o penitente passará. Só o penitente passará.

 Indy repetiu-a para si, e subiu os últimos degraus com todo o cuidado. Os corpos estavam apenas a alguns passos. Os degraus de cima estavam cheios de sangue.

 Deu um passo na direcção do arco, e depois mais um. Podia ver a passagem que estava para lá do arco. Parou, sentindo que estava na eminência de ser decapitado.

 - O penitente... Só o penitente passará - murmurou. - Só o penitente passará. Só o penitente passará.

 Repetia-a como se fosse um mantra, uma oração, e, de cada vez que a dizia, sentia-se cada vez mais consciente daquilo que o rodeava. Consciente de que aquilo que procurava não era um objecto normal. Consciente de que a demanda do pai não era a sua.

 Lembrou-se das palavras que este pronunciara quando passara o desfiladeiro. "Foi Galahad que conseguiu o que o pai não foi capaz.", Reparou numa enorme teia de aranha que se estendia pelo arco, apenas alguns passos à sua frente. Por que razão

não a tinha visto antes? Nenhum dos homens conseguira lá chegar. Sabia que fosse o que fosse que dava pelo nome de O Sopro de Deus, isso estava entre ele e a teia.

 - Só o penitente passará. O penitente... penitente. Um penitente.

 Começou a dar mais um passo, mas ficou com o pé parado no ar, mais ou menos como uma ave a descansar. "O penitente é humilde perante Deus. O penitente ajoelha-se perante Deus.

Ajoelha!”

 Voltou a baixar o pé, e deixou-se cair de joelhos. Quando o fez, ouviu um enorme ruído sobre a sua cabeça e atirou-se para o chão instintivamente. Deixou-se ficar deitado de barriga para baixo durante um bocado, e depois rebolou devagar, virando-se. Levantou os olhos e viu o que estava por cima - um pêndulo tríplice com uma lâmina afiada, que continuava a girar a apenas alguns centímetros da sua cabeça. O pêndulo estava ligado a duas roldanas de madeira, que, por sua vez, tinham ligação com o interior do arco de pedra.

Era bastante provável que fosse activado pela mais pequena deslocação de ar provocada pela presença de uma pessoa, parando depois de atingir o alvo.

 O pêndulo estava ali há vários séculos, e mesmo assim funcionava na perfeição como se debaixo de um encantamento.

Mas pelo menos compreendia esta parte. Sabia que eram precisos milénios para que alguma coisa se desintegrasse naquele deserto. Já vira cadáveres com centenas de anos que haviam sido descobertos nas areias. A pele continuava agarrada aos ossos, as roupas estavam intactas, e os fios davam a sensação de terem sido tecidos há pouco.

 Indy viu uma corda pendurada numa das roldanas, e passou para o outro lado do arco. Pegou na corda e passou uma das pontas por cima de um dos raios da roldanamais próxima. Nesse mesmo instante, o mecanismo parou e as lâminas ficaram bloqueadas. Conseguira passar. Deixou-se ficar à entrada do arco, com a teia de aranha agarrada às roupas. Fez sinal a Brody e a Sallah de que tudo estava bem. Viu Elsa sorrir-Lhe.

Parecia satisfeita. Quanto mais tempo vivesse, mais perto ela estaria do Graal.

 - A isto chama-se um amor verdadeiro -, a sua voz estava carregada de ironia.

 Por um instante, os seus olhos cruzaram-se com os de Donovan. Coçou o pescoço e deu meia volta.

 Brody tocou no ombro de Henry.

 - Ele conseguiu, meu velho. O Indy conseguiu.

 Henry acenou, dando a entender que tinha compreendido, mas Brody pôde ver o quanto lhe custara fazer um movimento tão pequeno. Foi então que o ouviu murmurar qualquer coisa.

 Olhou para Sallah, que continuava a segurar-lhe a cabeça.

 - Que foi que ele disse?

 Preocupado, o outro abanou a cabeça.

 - As dores e o sangue que perdeu estão a fazê-lo delirar.

 Henry voltou a falar, e desta vez Brody compreendeu algumas palavras.

 - No alfabeto latino, começa...

 - O quê? - inclinou-se para ouvir melhor.

 - ... Com um "I".

 - No alfabeto latino começa com um I - repetiu. - Está bem, mas o quê? - confuso, abanou a cabeça e reconheceu que Sallah tinha razão. Henry estava a delirar.

 Levantou a cabeça na direcção da passagem, desejando boa sorte a Indy. Só depois reparou que Donovan, seguido de Elsa, ia a subir os degraus. Os desgraçados.

 - É perfeitamente revoltante - murmurou.

 De repente, Henry ergueu-se ligeiramente, com uma voz rouca.

 - A Palavra de Deus... A Palavra de Deus...

- Não, Henry. Vê se não falas - disse-lhe Brody.

 O corpo do outro foi percorrido por um espasmo doloroso, e Brody receou que estivessem prestes a perdê-lo.

 - O nome de Deus - repetiu. Descontraiu-se um pouco quando a dor aliviou. - Jeová -, murmurou. - Contudo, no alfabeto latino, Jeová começa com "I".

 O corpo contorceu-se devido a outro espasmo.

 - Oh, Meu Deus - arquejou, tentando respirar.

 Sallah pôs-lhe uma mão no ombro e deitou uma olhadela à passagem.

 - Está tudo bem, Henry.

 Indy acendeu um fósforo, colocou-o por sobre o diário e traduziu as frases em latim.

 - O segundo desafio. A palavra de Deus, só seguindo os passos de Deus ele conseguirá.

 O fósforo apagou-se.

 Indy ficou às escuras e olhou em frente, interrogando-se sobre o significado das palavras. Esperava descobri-lo a tempo de salvar a vida quando tivesse de enfrentar o desafio. Pelo menos no que respeitava ao primeiro, o pêndulo, beneficiara da vantagem das duas tentativas falhadas que o tinham antecedido.

 - Só seguindo os passos de Deus ele conseguirá - repetiu, decorando as palavras. - A palavra de Deus... a palavra de Deus.

 "Que quererá isto dizer?”

 Acendeu outro fósforo e leu o resto da secção.

 - Conseguirá, seguindo os passos da palavra. No nome de Deus - Jeová.

 Ouviu um ruído e voltou-se, encarando com Donovan e Elsa.

 Estavam ambos para lá da entrada da passagem, à espera que ele desse o próximo passo.

 "Parasitas", pensou.

 - Não pare agora, dr. Jones - disse Donovan ironicamente. - Acabou mesmo agora de começar.

 Indy lembrou-se de que a única razão que tinha para estar ali era o pai. Nada tinha a ver com Donovan. Nem com Elsa.

 Virou-se e continuou a avançar através da passagem até chegar a um tabuleiro composto por pedras arredondadas.

 - Godos. - Lembrou-se da palavra que estava no diário.

 Encontrava-se na página dos diagramas. O pêndulo. Os Godos.

 Havia também qualquer coisa a respeito de uma ponte.

 Acendeu outro fósforo e voltou a página do livro. Acabou por compreender que o tabuleiro era constituído pelos próprios Godos.

 Levantou o fósforo para poder ver melhor o padrão das pedras.

Tal como no diagrama, cada uma delas estava marcada com uma letra.

 - A palavra de Deus. Avança segundo os passos da palavra de Deus. Jeová.

 æ laia de tentativa, pôs o pé na letra "J". Subitamente, enfiou o pé num buraco, e quase que se desequilibrou. Voltou a endireitar-se, e puxou a perna para fora. Quando o fez, sentiu algo a rastejar pelo tornozelo. Sacudiu o pé, e depois enxotou uma enorme aranha peluda. Esta, algo gordo e horrendo, rastejou pela passagem e não demorou muito para que Elsa soltasse um grito.

 "portou-se melhor com os ratos da biblioteca.”

 Voltou a olhar para o diagrama e abanou a cabeça, desgostoso com o erro que cometera. "Está bem. Acorda. Presta atenção, não estamos a trabalhar em inglês. o Jeová latino começa com "I".

 Acendeu um outro fósforo e deu uma rápida vista de olhos aos godos. Então, dizendo as letras em voz alta, começou a saltar de pedra em pedra. Quando aterrou no "O" o pé escorregou para a pedra que tinha a letra "P". Nesse mesmo instante, esta caiu. Ele vacilou, recuperou o equilíbrio, e passou pelas letras que faltavam. Conseguira.

 Olhou para trás e viu que Donovan e Elsa se aproximavam do tabuleiro. Não estava disposto a fornecer-lhes quaisquer pistas, mas, a partir do que ouvira dizer a respeito das entradas do diário, e pelo que o vira fazer em relação às pedras, Elsa já compreendera tudo.

 Enviou-lhe um sorriso, e avançou como se estivesse a jogar à macaca. - I-E-H-O-V-A Jeová.

 Indy arrancou algumas teias de aranha do chapéu, virou-se, e continuou a andar. Atrás de si, ouviu Donovan gritar para Elsa para que continuasse, que o mantivesse debaixo de olho, que ele seguia mesmo atrás dela.

 Sallah sabia que Henry se apagava lentamente. Já nem sequer se movia nem delirava. A sua respiração era tão fraca que mal se ouvia.

 Levou a mão ao pescoço do amigo, tentando medir-lhe as pulsações, depois olhou para Brody e abanou a cabeça.

 - Receio bem que ele...

 - Não. Ele não pode morrer - retorquiu o outro. Olhou para os degraus. - Vou à procura do Indy. Ele tem de se apressar.

Não há tempo a perder.

 Sallah ficou a vê-lo subir as escadas, achando que este estava a delirar tanto como Henry.

 - Pai do Indy. Fique connosco um pouco mais. O seu filho chegará em breve. O seu filho chegará.

 Levantou os olhos para o céu e murmurou uma oração.

Quando acabou, ouviu uma voz. Era Henry. Inclinou-se, satisfeito por Deus 1he ter respondido tão depressa.

 - Pai do Indy. Que está a dizer?

 - Tens de acreditar, filho... Tens de acreditar. Tens de acreditar... Acredita... Tens de o fazer.

 Indy encontrava-se à beira do abismo, agarrado a uma rocha que Lhe servia de ponto de apoio. A passagem terminara abruptamente. Do lado de lá do golfo estava uma abertura triangular, e, na superfície rochosa que se elevava a partir dali, estava gravada a cabeça de um leão.

 - O caminho de Deus.

 Olhou para o alto, viu uma cabeça de leão igual à outra, e depois voltou a olhar para o diário.

 - Saltando da cabeça do leão poderá ele provar o seu valor.

 Espreitou para o abismo, depois para a superficie rochosa.

Não, estava longe de mais para saltar. Ninguém o conseguiria.

 Foi então que se lembrou da página dos diagramas, e procurou-a no diário. O Pêndulo. Os Godos. A Ponte Invisível.

 O terceiro diagrama tinha a forma de uma cunha com uma série de linhas a tracejado que se estendiam até à parte superior da cunha. Analisou-o durante um momento, depois fechou o livro.

 É inútil. Nada fazia sentido. Não acreditava em pontes invisíveis.

 - Indy?

 Voltou-se quando ouviu avoz de Brody elevar-se do interior da passagem.

 - Marcus? - respondeu.

 - Indy, tens de te apressar.

 Voltou a estender a cabeça na direcção da parede rochosa e fechou os olhos. Podia voltar atrás e assistir à morte do pai.

Ou então, podia saltar e esperar... Isto muito embora não houvesse esperança. Lembrou-se de repente de algo que se passara quando tinha 10 anos, e perguntou-se como era possível poder assistir à sua vida passada, quando nem sequer tinha saltado ainda.

 Quando fizera 10 anos, o pai oferecera-lhe um arco e colocara um alvo no pátio das traseiras.

 - Fica atrás desta linha, Júnior, e pratica. Quando tiveres acertado na mouche, chama-me. Mas não faças batota. Mantém-te atrás desta linha.

 - Sim senhor. - Estava feliz e excitado, e, acima de tudo, queria agradar ao pai. Praticou o resto da tarde, mas nunca conseguiu acertar mesmo no meio do alvo. A maior parte das vezes, falhou por completo o alvo e foi obrigado a ir procurar as setas no meio dos arbustos que se encontravam no outro extremo do quintal.

O Sol já estava a pôr-se, quando o pai voltou a sair de casa.

 - Então, Júnior?

 - Não consigo, pai. - Os seus olhos estavam rasos de água.

Estava zangado e frustrado. - Não consigo acertar na mouche.

Estou demasiado longe.

 - Não, não estás, Júnior. Não estás longe de mais. O teu problema é que não acreditas. Quando acreditares que o conseguirás fazer, então sim, serás capaz. Acredita, Júnior.

Acredita.

 Fizera-lhe notar que o facto de acreditar não o iria tornar melhor. O pai apontava-lhe o dedo.

 - Não te transformes num cínico quando cresceres, Indy. O cínico é uma pessoa assustada que nada consegue realizar.

 Baixara o arco e ficara a olhar para o centro do alvo, repetindo vezes sem conta que tinha de acreditar que o podia atingir. Levantou o arco, mas sentiu que as suas dúvidas voltavam. Voltou a baixá-lo.

 "Eu acredito. Eu acredito. Acredito que o posso atingir. Vou ser capaz. Sou capaz de atingir o alvo. Acredito. Vou conseguir.”

 E conseguira-o. Indy abriu os olhos. A recordação fora tão real que quase se sentira outra vez com 10 anos. Voltou a olhar para o outro lado do abismo. Quando crescera, achara que aquilo tudo não passara de coincidência. Contudo, agora não era o momento para questionar os poderes da fé. "Tenho de acreditar. É a única saída. Posso conseguir. Tenho de acreditar nisso.”

 Enfiou o diário na bolsa, e concentrou as suas atenções na parede de rocha que se erguia do outro lado, repetindo sempre

 que acreditava. "Se não acreditar, não salto. Salto só se acreditar.”

 Afastou as dúvidas, concentrando-se e repetindo a sua crença, até que sentiu que isso começava a ser verdade.

Respirou fundo.

 "Posso fazê-lo, pai. Posso fazê-lo e fá-lo-ei.”

 Agachou-se à beira do abismo. Com todas as forças que tinha, tomou balanço e saltou como um leão.

 Foi um salto forte, o melhor que podia fazer. Mas é evidente que não foi suficiente. O fosso era demasiado largo.

 Estava prestes a morrer. Contudo, sabia que nada disso se passaria. Nesse preciso momento aterrou em qualquer coisa, e caiu para a frente, apoiado nas mãos e nos joelhos.

 Olhou para baixo e viu que estava num parapeito de pedra que começava a alguns metros abaixo da passagem. Mas por que razão não o tinha visto antes? Era óbvio que sempre ali estivera.

 Inclinou-se para trás ligeiramente, tentando ver o parapeito a partir da parede oposta. Só então reparou que as pedras tinham algo de estranho. Tratava-se de uma coisa engenhosa. O parapeito fora pintado para se confundir com as rochas que se encontravam no fundo do canal. Tendo como ponto de partida a parede oposta, parecia não existir qualquer parapeito.

Até à altura em que saltara, a camuflagem era perfeita.

 Riu-se em voz alta. Acreditara, e tinha descoberto o

impossível. A Ponte Invisível. Se não tivesse acreditado que podia sobreviver nunca teria saltado, e nunca teria encontrado a ponte.

 Pôs-se em pé, oscilou um pouco e olhou para trás, para o lado do abismo. Viu que Elsa e Donovan o olhavam, espantados.

Voltou a rir, sabendo que a partir do ponto em que estavam, ele dava a impressão de estar a pairar no ar.

 Alegremente, avançou pelo parapeito à medida que este subia, formando uma rampa suave que terminava ao lado da cabeça do leão. Estava mesmo por debaixo da abertura existente na parede de pedra.

 Foi então que se lembrou de uma coisa. O leão era um dos símbolos da demanda do Graal -quinto nível de consciência.

Representava a liderança, a conquista e a realização dos objectivos elevados.

 Vencera os três desafios. Alcançara um objectivo elevado.

Agora estava pronto a avançar e a descobrir o cálice. Apesar disso, tinha a sensação de que o desafio mais duro de todos ainda estava à sua frente.

 

 O TERCEIRO CAVALEIRO

 Antes de prosseguir, olhou para trás e viu Elsa atirar pedras e poeira de encontro ao abismo e à ponte invisível.

 "É uma mulher inteligente. Inteligente e perigosa.”

 æ medida que ia avançando, a passagem tornava-se mais estreita, e o tecto estava cada vez mais baixo. Já batia com a cabeça no tecto, e os ombros roçavam as paredes. Foi obrigado a rastejar, mas o facto não adiantou muito: a cabeça continuava a bater lá em cima.

 "Por amor de Deus, se isto se tornar mais apertado terei de começar a acreditar que sou um coelho.”

 A escuridão envolvia-o como uma capa espessa. Abria caminho com os dedos, penetrando na escuridão que se estendia à sua frente. Preocupava-se com o facto de poder chegar ao fim e encontrar uma parede de rocha. "E depois?" Não ultrapassara todos os desafios para constatar que o Graal não existia, era apenas um beco sem saída. Não era altura para piadas cómicas.

 Bateu com a testa em qualquer coisa, e, receando o pior, estendeu o braço e bateu na parede com as mãos, tentando definir os contornos do túnel. Apercebeu-se de que este descrevia uma curva, e que não chegara ao fim. Avançou devagar, e reparou que agora existia ali uma luz desmaiada.

 Avançou mais alguns metros. Lá à frente estava uma luz.

Começou a andar mais depressa. Aluz tornava-se mais forte, mais brilhante. Pestanejou quando um raio de sol entrou pelo túnel. Então, abrindo caminho à força pela abertura estreita, chegou ao fim. Sentiu-se envolvido por uma lufada de ar fresco e doce. Os seus olhos não demoraram muito a habituar-se à luz do dia. Levantou-se, sacudiu o pó dos ombros, e estendeu os

braços e as pernas. Estava dentro de um outro templo, se bem que mais pequeno que o primeiro. A sua atenção foi de imediato atraída para um altar que estava no centro. Estava envolvido em linho violeta, e em cima dele estavam dúzias de cálices de vários tamanhos. Alguns eram de ouro, outros de prata, uns estavam decorados com pedras preciosas, outros eram mais simples. Mas todos eles brilhavam e faiscavam, e Indy ficou paralisado com o espectáculo.

 Sabia que tinha chegado ao seu destino.

 Aproximou-se para os observar melhor, e foi então que viu um outro altar, mais pequeno, e também qualquer coisa mais. Uma figura envergando uma túnica e um toucado de malha estava ajoelhada em frente a este altar, com as costas voltadas para ele. Indy chegou-se mais perto. As mãos magras e ossudas do homem estavam unidas, e tinha a cabeça baixa, como que em oração. A pele dos seus dedos era muito fina, quase transparente, contornando o desenho dos ossos. Avançou um pouco mais, e viu que um raio de luz iluminava a cruz que estava bordada na túnica do homem.

 Acabou por compreender quem era aquele para quem estava a olhar: tratava-se do Terceiro Cavaleiro do Graal, o irmão que ficara para trás para guardar o cálice.

 Baixou-se e espreitou para o rosto do Cavaleiro. Este tinha os olhos fechados. Os lábios ressequidos estavam ligeiramente entreabertos, tal como se estivesse prestes a dizer qualquer coisa. O rosto apresentava umas enormes sobrancelhas brancas e um nariz comprido. O tempo e o deserto haviam tornado o corpo seco e quebradiço, mas muito bem conservado, em muito melhores condições que os restos macabros do irmão, que estavam nas catacumbas de Veneza.

 Inclinou-se e franziu a testa. Por instantes, pensou ver o cavaleiro pestanejar. Sorriu e abanou a cabeça. No altar em frente estava uma vela, e a luz que dela emanava estava a pregar partidas aos seus olhos.

 Indy levantou a cabeça. "Uma vela. Quem a terá acendido?”

 Levantou os olhos e examinou o templo à sua volta, perguntando-se se não estaria a ser vigiado.

 - Vá lá, velhote, quem é que acendeu a vela?

Sem que o esperasse, o cavaleiro levantou a cabeça.

 Espantado, Indy recuou.

 - Que é isto?

 Sem poder acreditar no que via, observou o cavaleiro levantar-se e agarrar numa enorme espada com ambas as mãos.

Antes de ter tempo para compreender o que se passava, a espada faiscou no ar. O cavaleiro esgrimiu a arma com destreza e velocidade, e a ponta desta rasgou a parte da frente da camisa de Indy e cortou a correia da sua bolsa, a qual caiu para o chão. Quando viu o Cavaleiro levantar de novo a espada e apontá-la contra si, deu um salto para trás. Contudo, desta vez o peso da arma foi demasiado, e o homem desequilibrou-se.

Recuou até bater de encontro ao altar , e ouviu-se um ruído quando a espada caiu de encontro à pedra.

 Indy foi ao encontro do cavaleiro e ajudou-o a levantar-se.

Apesar de velho, este possuía uma vitalidade enorme, que Lhe fazia os olhos brilhar. Abriu a boca, mas não saiu qualquer palavra. Era como se ele já não soubesse falar. Por fim, acabou por o fazer em voz baixa.

 - Sabia que ias chegar - disse, olhando-o de cima a baixo, enquanto o comparava com uma qualquer imagem existente no seu espírito. - Mas a força abandonou-me. Canso-me facilmente.

 - Quem és tu? - perguntou Indy devagar.

 - Tu sabes quem sou. O último dos três irmãos que juraram encontrar e proteger o Graal.

 - Mas isso foi há mais de oitocentos anos.

 - Uma espera bastante longa.

 Indy sorriu. O velhote estava senil.

 - Quando foi a primeira cruzada?

 A princípio, pensou que o velhote não tivesse ouvido. Depois seguiu-se a resposta.

 - No ano do Senhor de 1095, no Concílio de Clermonte.

Proclamada pelo papa Urbano II.

 - E quando foi que as cruzadas terminaram?

 O cavaleiro mimoseou-o com um olhar de desprezo que lhe fez lembrar o pai.

 - Ainda não acabaram. A última cruzada está diante dos teus olhos.

 Indy acenou. Apesar de tudo, não tinha tempo para o interrogar. Precisava de agir. Se este sujeito era real, e ainda estava vivo, então o Cálice do Graal poderia salvar o pai.

 Ouviu vozes vindas do túnel, e começou a virar-se, mas o velho cavaleiro agarrou na aba do seu chapéu.

 - Estás vestido de uma forma muito estranha... para cavaleiro. - Passou os dedos pelo chicote que o outro trazia.

 - Bem, não sou exactamente... um cavaleiro.

- Eu acho que és.

 Indy encolheu os ombros.

 - Fui escolhido por ser o mais corajoso e o mais digno. A honra de guardar o Graal seria minha até que um outro cavaleiro valoroso me desafiasse para o combate. - Levantou o punho da espada. - Entrego-ta a ti que me venceste.

 - Deixa-me explicar. Preciso que me emprestes o Cálice do Graal. O meu pai...

 - Quieto, Jones.

 Indy voltou-se a tempo de ver Donovan sair do túnel e apontar-lhe a pistola.

 - Não se mexa. - Donovan olhou à sua volta, viu o altar dos cálices, e dirigiu-se para lá. Elsa saiu do túnel e não demorou muito a juntar-se-lhe.

 Ainda com a pistola apontada para Indy, o homem encarou o cavaleiro, e perguntou-lhe:

 - Vamos lá, qual deles é o certo?

 O cavaleiro deu um passo à frente, e, enquanto fitava

 Donovan, empertigou-se todo.

 - Já não sou mais o guardião do Graal. - Apontou com a cabeça na direcção de Indy. - É ele quem deverá responder ao

desafio. Eu não ajudarei em nada, nem dificultarei em nada.

 O outro sorriu para Indy.

 - Não é ele quem me vai impedir.

 - Então escolhe acertadamente - aconselhou o cavaleiro. - Porque, tal como o verdadeiro Graal te dará a vida, o falso Graal a levará.

 Indy fez um sorriso de esguelha.

 - Escolha, Donovan. Boa sorte.

 Elsa aproximou-se do altar.

 - Está a vê-lo? - perguntou-lhe ele em voz baixa.

 - Sim.

 - Qual é?

 Ela tirou o chapéu, e, com todo o cuidado, pegou num cálice brilhante, cravejado de pedras preciosas. Donovan tirou-lho imediatamente das mãos e estendeu-o para a luz.

 - Ah, sim. É muito mais belo que aquilo que eu imaginava. E é meu.

 Indy ficou à espera de que ela protestasse, mas Elsa ficou silenciosa. O rosto do cavaleiro nada revelava.

 Donovan olhou para uma fonte, e levou o cálice até junto dela. Elsa seguiu-o.

 Indy sabia que, de acordo com a lenda, quem bebesse água do cálice atingiria a imortalidade.

 O nazi americano voltou a admirar o cálice.

 - De certeza que este é um cálice digno do rei dos reis. E agora é meu. - Encheu-o de água e elevou-o bem alto.

 Deitou um olhar de triunfo a Indy e ao cavaleiro. Continuava a segurar a pistola, mas, devido à excitação que sentia, já não a apontava para Indy.

 - A vida eterna. - Deu uma golada bastante profunda. Baixou o cálice à altura do peito. Tinha os olhos fechados, e um sorriso de beatitude espalhava-se-lhe pelo rosto.

 Naquele momento, Indy poderia tê-lo empurrado e poderia ter-lhe tirado o objecto das mãos. Mas algo em si dizia-lhe para esperar e ver o que se passaria a seguir. Não teve de esperar muito.

 Subitamente, Donovan esgaziou os olhos. A mão que segurava o cálice começou a tremer. Voltou-se, e dobrou-se para a frente.

O rosto estava contorcido com dores. O corpo tremia. Deixou

 cair a arma.

 Com um esforço enorme, afastou-se da fonte e foi aos tropeções até ao altar. Parou a apenas alguns centímetros de distância, incapaz de dar um passo.

 - Que... me... está... a... acontecer? - perguntou, ofegante.

 As feições contorceram-se numa máscara medonha. As maçãs do rosto projectaram-se para a frente. A pele começou a encarquelhar. Quando se voltou para Elsa, ainda agarrado à taça, parecia muito velho e frágil. Os olhos pareciam ter-se afundado nas faces e tinha um aspecto de velhas pedras, bem lá no fundo das órbitas.

 Só depois avançou para Elsa, enterrando-Lhe as mãos no ombro.

 - Que... está... a.... acontecer?

 Ela gritou e tentou afastá-lo, à medida que o outro ia repetindo a pergunta, a voz cada vez mais fraca, o corpo a deteriorar-se rapidamente. O cabelo estava mais comprido, cinzento e crespo.

 O rosto afundava-se, e a pele começava a cair.

 - Não. Não. Não. Não. Não. Não - murmurou. Abanou a cabeça, ao que se seguiu uma chuva de pele a cair.

 Aterrorizada, Elsa gritou.

 As unhas de Donovan encaracolaram. Os olhos estavam cheios de cataratas leitosas. A pele que ainda lhe restava ficou castanha e dura, e esticou-se sobre o rosto até rebentar e ficar em tiras.

 Só então caiu ao chão, um esqueleto muito, muito antigo, que o tempo escurecera.

 Indy passou rapidamente para o lado de Elsa, e afastou-a daqueles restos que continuavam a encolher. Deu um pontapé num monte de ossos e pó, e os braços esqueléticos de Donovan voaram , caíram, e transformaram-se em pó.

 Elsa agarrou-se a Indy com o rosto escondido na sua camisa , soluçando. Enquanto isso, o templo era percorrido por uma rajada de vento frio, que desapareceu lentamente. Ele espreitou por cima do ombro de Elsa, fitando o monte de pó que fora Donovan. Quando ela se acalmou um pouco, largou-a, e voltou-se para o cavaleiro com uma expressão interrogativa.

 - Escolheu mal - disse o velho homem, ao mesmo tempo que encolhia os ombros, tal como se a morte de Donovan o não tivesse afectado. Ele avisara.

 Indy olhou para Elsa e apanhou a arma que o outro deixara cair, enfiando-a no cinto. Depois correu para o altar. Estava a pensar no pai, no pai que estava moribundo, no pai que sangrava e sentia dores.

 Deixou-se ficar em frente aos cálices, respirou fundo várias vezes e desfocou o olhar. Sentia-se dominado por um sentimento, uma estranha percepção. Começou a ficar tonto.

Fechou os olhos por um momento, concentrando-se, dizendo a si próprio que seria capaz, que seria capaz de escolher o verdadeiro Graal, aquele que haveria de salvar o pai.

 Abriu os olhos e deitou uma olhadela rápida a todas aquelas filas de cálices enfeitados de jóias. Foi então que os seus olhos pousaram num que era diferente de todos. Era um cálice

 simples, e, quando comparado com os outros, pouco bonito. Não sabia porquê, mas parecia-lhe ser aquele. Pegou nele e olhou-o com cuidado. Não sabia o que esperava encontrar. Sabia que este não teria qualquer marca comprovativa de autenticidade.

 - É esse? - perguntou Elsa.

 - Acho que só há uma maneira de o sabermos.

 Dirigiu-se para a fonte e encheu-o de água. Respirou fundo, deu uma golada, e ficou à espera, perguntando se iria acontecer alguma coisa, se iria enfrentar os últimos segundos da sua vida. Não se sentia diferente, nem para melhor nem para pior.

 Depois viu tudo enevoado. Estava tonto. Pestanejou, e fechou os olhos. Pelo amor de Deus, teria escolhido mal?

 Por muito estranho que parecesse, sabia que continuava a ver. Contudo, era uma outra forma de ver. O cálice que estava nas suas mãos era maior e diferente. Tinha asas, uma cabeça e um bico. Era uma águia, estendendo as suas enormes asas,

tentando voar. Era a águia da sua demanda pessoal, e a águia que assinalava o sexto, e o último, nível de consciência na busca do Graal.

 - Indy?

 Ao ouvir a voz de Elsa, pestanejou e abanou a cabeça.

Continuava a segurar o cálice. Olhou-a. Pela expressão do seu rosto, sabia que ela não partilhara a experiência que tivera.

Olhou para o cavaleiro, que lhe sorriu.

 - Escolheste bem.

 Era esta a confirmação de que precisava. Não esperou nem mais um segundo. Dirigiu-se para o túnel e rastejou através dele. Avançava o mais depressa que podia, ao mesmo tempo que tentava equilibrar o cálice cheio de água. Preocupava-o o facto de poder bater com ele no tecto ou nas paredes, mas também o preocupava saber que podia ir demasiado devagar, e encontrar o pai morto quando chegasse junto dele. Mas quando o túnel alargou, levantou-se e começou a correr, primeiro de cócoras, depois, e de modo gradual, até se poder endireitar completamente.

 Abrandou quando chegou ao parapeito que se estendia sobre o abismo. Este estava agora salpicado de terra, e podia ver-se bem. Compreendeu que se tratava mesmo de uma ponte que ligava as duas cabeças de leão. Agora era fácil. Avançava pela ponte o mais depressa que podia, segurando o cálice à sua frente.

 Estava com pressa, a pensar no pai, e não prestava a devida atenção ao que fazia. Ia a meio do caminho quando o pé direito escorregou nos seixos e na areia. Uma das pernas deslocou-se, ele começou a baloiçar para a frente e para trás, e o Cálice do Graal a abanar por cima do abismo. Quando já recuperara o equilíbrio, foi a vez de o outro pé escorregar, e, sem qualquer cerimónia, caiu de costas. Milagrosamente, apenas algumas gotas saltaram do cálice. Levantou-se com todo o cuidado, e seguiu até ao outro lado com todas as cautelas.

 Brody estava ao cimo das escadas, repartindo o olhar entre Sallah e Henry de um lado, e a passagem escura do outro.

Continuava a não haver sinais de Indy, e Henry não iria aguentar muito mais.

 - Marcus!

 Levantou os olhos, espreitou pela passagem, e viu Indy caminhar ao seu encontro, apertando o Graal com ambas as mãos.

Abriu muito os olhos, e o rosto iluminou-se-lhe. Desviou-se quando Indy passou por ele a correr e se precipitou pelas escadas abaixo.

 Deu um passo à frente e estava prestes a seguir Indy, quando quase chocou com Elsa, que vinha a sair da passagem. Quando chegou ao fundo dos degraus, Indy estava ajoelhado ao lado do pai, rodeado pelos soldados do sultão. Abriu caminho por entre eles. Estes agora estavam sem chefe, e observavam tudo aquilo por pura curiosidade.

 Brody ajoelhou-se e ajudou Sallah a levantar a cabeça de Henry. Indy chegou o cálice aos lábios do pai. Henry estava

demasiado fraco para abrir os olhos. Ele inclinou o recipiente, mas a água limitou-se a rolar pela boca do doente.

 - Vá lá, pai. Por favor bebe.

 Brody olhou para Indy com ansiedade, e viu que este tinha uma expressão preocupada. Tinha de fazer alguma coisa.

Inclinou-se, e ajudou a abrir a boca de Henry. Sentiu que a garganta deste se mexia. Estava a beber. Engolira parte da água. Tinha a certeza.

 Depois disso, Indy tirou o penso improvisado de cima da ferida de Henry e atirou-lhe água para cima. Voltou a colocar o Cálice do Graal junto aos lábios do pai, e deu-Lhe mais água a beber.

 Ficaram à espera.

 , Indy estava certo de que o pai respirava com mais força.

Inclinou-se por sobre ele e escutou-lhe o coração. A batida era firme e regular. Quase que podia ver que o pai ia voltar a si.

 De súbito, Henry abriu os olhos. Focaram-se primeiro em Sallah, depois em Brody, e em seguida no filho. Por fim, pousaram no Cálice do Graal.

 Indy sorriu, certo de que o pai estava livre de perigo. Era bem provável que nunca conseguisse convencer os seus colegas cépticos de que a água proveniente de um velho cálice curara o pai, e haveria uma enorme controvérsia a respeito de saber se este era, ou não, o verdadeiro cálice sagrado.

 Mas e depois? Ele sabia. Era isso que interessava. Vira e experimentara a beleza e o poder do Graal. Ao fazê-lo, e na sua demanda pessoal, passara do cinismo à dúvida, e da dúvida ao conhecimento. Cumprira-se a demanda, e a ûltima Cruzada estava a aproximar-se do fim.

 - Pai, vais ficar bom. Acredito. Sei.

 

O FIM DA DEMANDA

 æ medida que Henry estendia as mãos na direcção do cálice, estas tremiam, só que desta feita de excitação e não de fraqueza. O rosto voltara a ganhar cor, os olhos estavam bem abertos, claros, lúcidos. A ferida voltara a ser coberta, mas já deixara de sangrar e parecia que não lhe provocava muitas dores. Com a ajuda de Sallah, fora capaz de se levantar apoiado no cotovelo.

 Quando, orgulhoso, Indylhe passou o cálice, ouviu um barulho atrás de si. Virou a cabeça e viu que os soldados do sultão deixavam cair as armas e recuavam, assustados. A sua curiosidade transformara-se em medo. Já não queriam guardar os feiticeiros que haviam praticado uma cura milagrosa, e, de repente, todos eles fugiram do templo. æ excepção de dois, todos os guardas nazis que ali se encontravam foram atrás deles, aos gritos, ameaçando matá-los a todos. Mas eles continuaram a fugir. Sallah aproveitou a situação ao máximo.

Quando os dois homens que tinham ficado para trás chamaram os companheiros, ele abriu caminho até à espingarda mais próxima. Levantou-a, deu meia volta e ordenou aos nazis que ali estavam para largarem as armas.

 - Die Gewehr herunter - repetiu depois de os ter visto hesitar.

 - Façam o que ele diz - ordenou-lhes Elsa.

 Hesitaram, mas não por muito tempo.

 Contudo, Sallah não se apercebera de que um outro nazi tinha ficado para trás, e que estava apenas a alguns passos de Elsa.

 Quando ele levou a mão à pistola, Indy mergulhou na direcção das suas pernas, fazendo-o cair. O nazi rebolou e apontou a arma ao outro. Estava prestes a disparar quando Elsa lhe deu um pontapé na mão, afastando a arma.

 Indy levantou-se apoiado num joelho. Era incapaz de desviar os olhos da rapariga, surpreendido pelo que ela fizera. O nazi aproveitou-se disso e deu-lhe um murro. Indy levou a mão ao queixo, franziu o sobrolho, agarrou o outro pelo colarinho e aplicou-lhe um soco forte e directo. O soldado caiu ao chão e rebolou umas quantas vezes. Indy pôs-se de pé e sorriu para Elsa. Não sabia o que fazer com ela. Por um lado, tinha provas suficientes de que ela o enganara, contudo, acabara de lhe salvar a vida. Subitamente, a expressão complacente dela transformou-se numa expressão horrorizada. Abriu a boca e estremeceu durante um segundo.

 - Cuidado! Atrás de ti!

 Indy voltou-se mesmo a tempo de segurar o braço do nazi, enquanto este carregava sobre ele segurando uma enorme faca.

 Sallah ordenou-lhe que a largasse. O homem olhou para o cano da espingarda, lançou um olhar ameaçador a Sallah, e depois largou a faca.

 Indy agarrou-a e fez o nazi girar.

 - Vai ter com os teus amiguinhos - disse, empurrando-o na direcção dos outros dois guardas.

 Olhou para o pai, e compreendeu que quando Sallah o deixara ele continuara sentado apertando o cálice de encontro ao estômago. Ia para Lhe perguntar como se sentia, mas viu que Henry olhava para além dele, com os olhos vítreos e a expressão estática.

 "Que se passa?”

 Devagar, voltou-se e viu que o cavaleiro do Graal se encontrava ao cimo das escadas.

 - Eu conheço-te - disse Henry para o cavaleiro. - Sim, conheço-te.

 - Teremos sido camaradas de armas?

 - Não, pelos livros. És o terceiro cavaleiro, o que ficou para trás. Mas, não compreendo. Tinhas o Cálice do Graal. Por que razão és tão velho?

O homem desceu os degraus.

 - Por vezes o meu espírito vacila e não consigo beber do cálice. É por isso que envelheço um ano por cada que não bebo.

Mas agora estou livre e posso morrer honrado, pois este valente cavaleiro andante veio ter comigo.

 Indy olhou para o pai, e começou a não se sentir muito à vontade.

 - Pai, há aqui um mal entendido qualquer. Eu não...

 - Ele não é um cavaleiro andante - troçou Henry -, é apenas o meu filho que tem levado uma vida impura. Indigno da honra que lhe concedes.

 Indy acenou.

 - Sim, uma vida impura.

 - Totalmente indigna. Filho, faz alguma coisa de valor e ajuda o teu pai a levantar-se.

 Henry colocou o cálice no chão, e passou um braço por cima do ombro de Indy.

 - Tens a certeza de que queres experimentar, pai?

 - Claro. Já me sinto bastante bem.

 Brody colocou-se do outro lado, e ambos levantaram Henry com cuidado. Indy esperava que as melhoras do pai não fossem temporárias, provocadas pela visão do cálice e pela crença de que este o poderia curar. Queria que a cura fosse real.

 - Vês? - O pai encolheu-se por um instante. Depois, com toda a coragem, endireitou-se. - Não foi assim tão mau.

 - Pai, estás mesmo curado?

 Henry franziu o sobrolho como se o filho fosse uma criança que fizesse perguntas tolas. Retirou os braços de cima de Henry e Brody.

 - Quantas vezes já te disse, Júnior, que a crença cria a realidade? Eu acreditava, eu sabia, que o Cálice do Graal podia curar, e ele fê-lo. Fê-lo.

 Depois de tudo o que lhe acontecera, Indy não vira qualquer razão para duvidar. Voltou a lembrar-se do que o velho índio lhe dissera depois de ter descido da mesa e lhe contar que vira uma águia. "Agora já sabes que tens dentro de ti o poder que te permitirá atingir tudo o que procurares, por muito difícil que seja o desafio.", As águias e o Cálice do Graal. O

 cavaleiro e o índio. Era tudo uma grande trapalhada. Mas o pai estava vivo, e agora conheciam-se como nunca o haviam feito.

Viu que o cavaleiro se aproximava e perscrutava o rosto de Henry.

 - Então és tu, irmão? És tu o cavaleiro que me vem libertar?

 - Não. Sou apenas um estudioso.

 O homem fez um gesto na direcção de Brody.

 - És tu, irmão?

 - Eu? Eu sou inglês.

O cavaleiro parecia admirado e encaminhou-se para Sallah, que levara o nazi para longe dos outros, e continuava a vigiá-lo. Colocou-lhe a mão no ombro, aparentemente confiante de que encontrara o substituto.

 - Ah, bom cavaleiro!

 Sallah não compreendeu. Olhou para Indy.

 - Ele disse "Bom cavaleiro." - Sallah acenou para o velho.

 - Sim sim. Gosto muito de andar a cavalo.

 Indy baixou-se e pegou no chapéu, nas luvas, e no relógio de Henry. Ficou gelado quando, pelo canto dos olhos, viu que Elsa se aproximava devagarinho do cálice. De repente, deu dois passos apressados, pegou no objecto com ambas as mãos e levantou-o.

 Olhava como se estivesse em transe. Os olhos fixavam-se nele com tamanha intensidade, que Indy acabou por compreender que nada mais lhe interessava verdadeiramente. Nem ele. Nem oFührer. Nem ninguém. Estava obcecada com o Graal.

 Colocando-se à sua frente, o velho cavaleiro distraiu-o.

 - Por que razões estes estranhos cavaleiros aqui vieram - murmurou -, se não foi para me desafiar? - Abanou a cabeça, admirado, e levantou-se quando Indy se pôs de pé.

 - Por isto, velho tonto - respondeu Elsa. Apertou o Graal de encontro ao peito, e precipitou-se para a entrada.

 Indy estava prestes a segui-la quando ela parou e se virou.

Estava apenas a alguns passos da entrada, e a luz do fim da tarde projectava-lhe a sombra nas paredes. Ficou com a sensação de que ele se apercebera de que, sozinha ali no deserto, não chegaria muito longe.

 - Já o temos connosco. Vamos.

 - Não! - gritou o cavaleiro. - O Graal nunca poderá sair deste sítio! Nunca!

 Olhava ora para Henry ora para Indy.

 - O preço da imortalidade é ter de aqui permanecer.

 Indy encarou-a.

 - Ouve o que ele diz. Ele sábe. Se o levares para longe do templo, o Graal passará a ser mais uma taça velha.

 - Não acredito nele.

 - Não pode passar para lá da marca - avisou o cavaleiro, apontando para um ponto para lá dela.

 Elsa deu meia volta e ensaiou alguns passos desafiadores na direcção da entrada.

 - Vai pagar caro por isso - disse o cavaleiro.

 - Espera - gritou Indy, precipitando-se atrás dela. Ainda se lembrara bem do que acontecera a Donovan.

 - Elsa, espera. Não te mexas.

 Ela aproximou-se de um enorme selo de metal que estava cravado no chão, mas não lhe prestou atenção. Não se limitava a estar impressionada com o Graal. Estava extasiada, e não conseguia desviar os olhos dele.

 - Elsa! - chegou junto a ela mesmo a tempo, e agarrou-lhe por um braço. Ela fitou-o com aqueles olhos incrivelmente azuis e ele sentiu que algo se mexia no seu peito.

 - Isto é nosso, Indy - disse ela suavemente. - Nosso. Não compreendes? É teu e meu. Já mais ninguém interessa. Donovan está morto. Havemos de arranjar maneira de o manter longe do Führer.

 Ele abanou a cabeça.

 - Isto tem de ficar aqui.

 Com um puxão forte e inesperado, ela libertou-se. Agarrou-se ao Graal como se fosse uma criança agarrada a um boneco de peluche, e, em jeito de desafio, pôs os pés em cima do selo.

Depois passou-lhe por cima e saiu do templo.

 Passaram dois ou três minutos, depois ouviu-se um som semelhante a um trovão que se elevou vindo debaixo do templo.

As paredes do desfiladeiro começaram a tremer. æ medida que as paredes se começaram a desfazer, elevou-se uma nuvem de pó.

Elsa voltou-se, aterrorizada, e deu alguns passos na direcção do templo. Quando o chão abriu uma fenda aos seus pés, Indy foi obrigado a afastar-se dela. Virou-se, e viu que um dos enormes cavaleiros de pedra estava a abanar. Os pilares balouçavam. Quando um capitel se soltou e quase caiu sobre ele, foi obrigado a afastar-se.

 Henry mantinha um braço por cima da cabeça, tentando proteger-se das pedras que caíam. Dado que o chão continuava a tremer, Brody caiu apoiado numjoelho, e acabou por se desequilibrar. Sallah pegou em ambos os homens pelos braços, e afastou-os dos lugares onde se encontravam, no preciso momento em que um dos pilares ali se abateu. Entretanto, o cavaleiro subiu as escadas a correr, dirigindo-se para a passagem, para o seu santuário interior.

 Indy fez sinal aos outros para que corressem para a entrada.

Deu meia volta e encarou com Elsa. Esta estava a olhar para uma das colunas de pedra que não paravam de abanar, e tinha os olhos abertos devido ao medo. A terra voltou a deslocar-se, e ela desequilibrou-se. Deu um salto para a frente, e o Cálice do Graal caiu lhe das mãos. æ medida que este se afastava dela, uma enorme fenda dividiu o solo em dois e espalhou-se pelo templo. Elsa tentava a todo o custo manter-se em pé.

Tinha um pé em cada um dos lados da fenda, a qual aumentava de largura aos poucos.

 A fenda dividiu os degraus que levavam à passagem, e fez que o cavaleiro caísse. Caiu de costas, e desceu a escada a rebolar. Uma outra fenda, perpendicular à primeira, espalhou-se pelo chão do templo. Henry balançou como se fosse um dos pilares, e Brody, que estava ao seu lado, cambaleou como um bêbado. Sem saber para onde haviam de ir, Sallah e Indy estavam petrificados. Atrás deles, o cavaleiro subiu os degraus de rastos.

 Os nazis correram para a entrada e saltaram por cima da fenda onde Elsa tentava equilibrar-se. Nesse mesmo instante, ela levantou um pé, mas, quando o fez, o solo elevou-se no preciso local que ela escolhera para se pousar. Desesperada, estendeu as mãos à procura de um ponto de apoio.

 Os nazis estavam na mesma situação. Já quase tinham subido a inclinação, quando escorregaram e caíram no abismo. Muito depois de terem encontrado a morte no fundo do precipício, as paredes ainda ecoavam os seus gritos.

 Elsa agarrou-se a uma pedra que saía de um dos lados da abertura. Por debaixo de si podia ver o Graal, pousado numa rocha que se destacava da parede da fenda. Em vez de subir e se afastar do abismo, baixou-se e tentou agarrar o cálice.

 Indy compreendeu o perigo em que ela se encontrava, e atirou-se ao encontro dela. Rastejou alguns metros e estendeu os braços, gritando-lhe para que se agarrasse às suas mãos. Os dedos de ambos tocaram-se, depois ele avançou um pouco mais e agarrou-lhe as mãos, que continuavam a usar luvas. Puxou com toda a força que tinha,.mas esta não era suficiente e ele começou também a ser arrastado.

 - Júnior, Júnior - gritou Henry.

 - Indy - gritou Sallah.

 Enquanto ele a puxava, Elsa soltou uma das mãos. Estendeu-a na direcção do Graal que andava de cá para lá apenas a alguns centímetros do abismo. Os seus dedos tocaram-no ao de leve, mas foi incapaz de o agarrar.

 - Elsa! - gritou ele. Com a mão que estava livre, agarrou-se a uma rocha.

 - Posso chegar-lhe - arquejou ela. - Posso.

 A mão que a agarrava começou a escorregar. Ela estendeu-se mais na direcção do cálice e estava prestes a agarrá-lo quando a luva se soltou da sua mão. Ficaram ambos agarrados à luva sem que as suas mãos se tocassem. A luva esticou. Começou a rasgar-se.

 - Indy! - A voz dela era alarmada. - Não me largues. Por favor! - A luva rasgou-se um pouco mais.

 - Elsa!

 Largou a rocha, e tentou agarrar-lhe o pulso. Contudo, era tarde de mais. Os dedos dela escorregaram e ela caiu para trás, para o abismo, para aquele buraco negro que existia no solo. Os seus gritos ecoaram através do templo.

 Indy escorregou, enterrando as mãos na terra numa tentativa desesperada de não cair atrás dela. Estava prestes a despenhar-se na escuridão quando sentiu que lhe agarravam os tornozelos.

 - Indy ! - gritou Sallah. - Apanhei-te. Vou tirar-te daí para fora...

 - espera. - Esticou-se na direcção do Graal, mas ainda faltava um pouco para lá chegar. - Baixa mais um bocadinho.

 - Não sejas doido, Indy - grunhiu Sallah, fazendo os possíveis para não o deixar fugir. Sentia que estava a avançar, e não era porque estivesse a descer o amigo para junto do cálice.

 - Só mais um bocadinho - arfou.

 - Não, Indy, por favor!

 - Júnior, volta para cima. - A voz de Henry vinha atrás de Sallah.

 - Posso agarrá-lo. Posso lá chegar.

 - Indiana.

 - Pai? - Era a primeira vez que o pai lhe chamava por aquele nome.

 - Deixa-o cair - disse ele, calmamente.

 Indy abandonou o cálice e foi-se apoiando à parede à medida que Sallah o puxava pelos tornozelos. A terra que ia soltando caía em cima do Graal. Olhou para ele mais uma vez, mesmo a tempo de ver o cálice escorregar e cair no abismo junto com Elsa.

 Sallah deu um grunhido final, gemendo em voz alta à medida que puxava Indy para a borda da fenda. Indy deixou-se ficar de barriga para baixo, a olhar para aquele buraco escuro que engolira Elsa e o Graal. A expressão horrorizada que ela ostentara ao cair, ficara-lhe gravada na mente. Se tivesse feito o mesmo que o pai, se lhe tivesse dito para esquecer o cálice, era bem capaz de a ter salvo.

 Henry colocou-lhe a mão no ombro. A sua voz revelava que estava apressado.

 - Vamos! Temos de sair daqui.

 Indy acenou, pegou no chapéu e olhou mais uma vez para o abismo.

 Sallah guiou.

 - Onde está o Marcus? - gritou Henry, alarmado.

 - Estou aqui - respondeu uma voz vinda de ali perto.

 æ sua volta caía cada vez mais lixo. Indy tentou afastar o sentimento de culpa que o atormentava, a certeza de que a poderia ter salvo se tivesse tentado um pouco mais, se tivesse agido de modo diferente. Ao fim e ao cabo, devia-lhe a vida.

Ela salvara-o, dando um pontapé na pistola do soldado, e também o avisara de que o homem se preparava para atacar. E ele tinha falhado.

 Contudo, sabia que, pelo menos em parte, ela era culpada da sua própria morte. Não se teria ido embora sem o Graal. Nada mais podia fazer a não ser atirar a culpa para trás das costas, e salvar a sua vida. Sabia que era assim que ela teria querido.

 Seguiu os outros, e reparou que o pai parara e estava a olhar para os degraus. Ele seguiu-Lhe o olhar e viu o cavaleiro do Graal, impassível, de pé em cima das escadas, a apenas alguns passos da fenda. A seu lado caíam pedras e poeira, mas ele parecia não dar por isso.

 O cavaleiro levantou a mão. Tratava-se de uma despedida. Era como se estivesse a dizer que a ûltima Cruzada estava no fim, e que o Graal estava a salvo. Tudo isto fazia sentido para Indy. Acabara por compreender que o Graal era muito mais que um cálice antigo e sagrado. Era mesmo mais que um meio para atingir a imortalidade, e muito mais que uma forma de efectuar curas milagrosas.

 Bebera as águas de ambrósia do Cálice, e sabia o que o Graal representava. Era a essência de um estado de consciência mais elevado que existia em si, e em todos aqueles que se dessem ao trabalho de o procurar. Prometeu a si mesmo que, de ali em diante, faria o melhor que pudesse com a compreensão e os sentimentos que adquirira.

 Henry sorriu para o cavaleiro, e acenou.

 - Pai.

 Indy puxou-lhe o braço e conduziu-o para longe daquelas enormes pedras que caíam à sua volta, e dos pilares que estavam no chão. As paredes estavam a desmoronar-se, e das fendas elevavam-se jactos de vapor. No entanto, Indy sabia que conseguiriam escapar. Haviam-no feito até ali. Conseguiriam dar os últimos passos.

 Minutos depois estavam no topo da escadaria exterior. Indy olhou mais uma vez para dentro do templo e julgou ver ainda o cavaleiro no cimo dos degraus.

 - Henry, Indy. Despachem-se - gritou Brody, já de fora do templo e montado num cavalo. - Conheço o caminho. Agarrem num cavalo e sigam-me.

 Esporeou a montada. O animal disparou e deu uma volta em

torno deles, quase atropelando Sallah. Brody tentou não se desequilibrar, mas acabou por dominar o animal, e partiu a galope rumo ao des filadeiro.

 Henry abanou a cabeça e passou a perna por cima da garupa de um cavalo.

 - É melhor irmos atrás dele. Uma vez perdeu-se no seu próprio museu.

- Eu sei.

 Henry fez um sinal ao filho.

 - Depois de ti, Júnior.

 - Sim, senhor - respondeu ele com um sorriso. Já não se importava com o que o pai lhe chamasse. A demanda chegara ao fim.

 Não só para Henry, mas principalmente para Indy.

 Bateu no cavalo com as rédeas, e galopou atrás de Brody.

 

                                                                                            Rob MacGregor

 

 

                      

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