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A Grande Hora de Gucki / Kurt Brand
A Grande Hora de Gucki / Kurt Brand

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Grande Hora de Gucki

 

O fato de Perry Rhodan ter descoberto uma espaçonave arcônida encalhada na Lua foi, há muitos anos, o ponto de partida para a unificação da Humanidade e a pedra angular do fabuloso Império Solar, o domínio absoluto da Terra sobre todo o sistema.

Este Império, ridiculamente pequeno em comparação com as muitas potências do Universo, se ainda existia e ainda não se transformara num pandemônio atômico ou não se degradara à condição humilhante de colônia de Árcon, devia este fato somente às jogadas magistrais dos terranos, aglutinados em torno de Perry Rhodan, no xadrez complicado das Galáxias. E também, em parte, à sorte, que, quando se torna permanente, não é outra coisa senão a conjugação da prudência com a intrepidez.

Mas não há bem que sempre dure e o que Perry Rhodan, o administrador do Império Solar, ajudado pela Nova Humanidade, conseguiu evitar até hoje, acabou acontecendo: a posição do sistema solar no âmbito das Galáxias, já não é mais segredo, como comprovou cabalmente O Caso Columbus.

O ataque da numerosa frota dos druufs poderia, talvez, ser debelado sem o socorro dos arcônidas, mas o pedido de auxílio ao Grande Império teve uma grave conseqüência: também os ávidos comerciantes das Galáxias descobriram o caminho para o sistema solar. A presença incômoda de Cokaze, o mais opulento patriarca dos saltadores, iniciou para Perry Rhodan um período das mais graves dificuldades políticas, até mesmo na administração interna da Terra.

Porém, no momento em que as coisas se tornam amargas para Rhodan, surge A Grande Hora de Gucky.

 

                                     

 

O baixote, de cabelos ruivos, que nervoso andava de um lado para o outro no gabinete de Rhodan, sobraçava o volumoso New World Press, apontando com a mão esquerda para o artigo que ocupava toda a primeira página.

— Isto é uma pouca-vergonha, Perry, uma sujeira. Não tenho nem palavras para classificar esta monstruosidade — disse ele.

— É, mas até hoje você sempre deu muito valor ao editorial deste jornal — disse Rhodan calmamente. — Por que que depois de terminar a leitura do artigo, você não passa para a ordem do dia, Bell?

— Porque não consigo, Perry. Ninguém pode ir contra sua própria natureza. Auto-domínio é coisa muito bonita, mas também tem seus limites e este jornal de sarjeta já está passando da conta.

— O New World Press é reconhecidamente o melhor jornal do sistema solar — corrigiu Rhodan.

— Que está pretendendo com uma calma, que você realmente não tem? — perguntou Bell.

— Até que enfim observou algo certo, gorducho — disse Rhodan num tom irônico. — Custou muito hoje, hein? Mas agora podemos nos preocupar com o artigo de fundo.

— Como assim? Quer dizer que tenho que ler de novo esta porcaria cheia de maldade e mentira, para ficar com o sistema nervoso em pandarecos?

— Se for este realmente o caso, meu caro Reginald, então está confirmada minha dúvida de que você necessita de umas férias até...

Bell assustou-se. Sua respiração estava acelerada. Com movimentos lentos sentou-se ao lado de Perry. Levou bastante tempo para se refazer do choque causado pelas palavras de Rhodan.

— Eu... eu... tirar férias? Neste ano complicado, em que nada dá certo e tudo sai cem por cento errado. Perry, você não está falando sério, não é?

A pergunta tinha um ressaibo de desânimo. Passou as duas mãos nos cabelos.

— Estou sim — respondeu Rhodan seco. — Não estou brincando, não, meu amigo. O momento não está para isto. Olhe aí — e apontou para o artigo de fundo do New World Press. — Você já refletiu um pouco nas conseqüências que poderão advir desta publicação? Não é um jornal qualquer que nos ataca, é o jornal do Império Solar. Lança-nos no rosto incompetência, traição e interesse particular. Você leu os pontos em que sua crítica está bem expressa. Está em condições de provar que o senhor Nicktown, o autor do artigo de fundo, cometeu algum erro?

Neste instante, Reginald Bell deu um salto da cadeira. Seu rosto estava pegando fogo. Batendo com a mão fechada na mesa de Rhodan, repetia a frase:

— Este jornalista de meia-tigela...

— Bell — interrompeu-o Rhodan com severidade — pela amizade que lhe tenho, não chame Nicktown de jornalista de meia-tigela. Seu artigo de fundo foi escrito com o mais profundo senso de responsabilidade. O homem está certo, pois vê as coisas do nosso ponto de vista, isto é, como nós, os responsáveis, expusemos a ele e a todos os outros. Nós é que somos os culpados, Bell, nós e mais ninguém...

O baixote havia voltado ao seu lugar na poltrona. O que Perry estava dizendo não lhe agradou:

— Que bonito, você dá razão a este Nicktown? Com isto confirma que somos incompetentes para dirigir o Império Solar, não é?

Rhodan se enfureceu ao notar que Bell, de propósito, se encastelava naqueles argumentos.

— Que aconteceu com você hoje? Será que este artigo o assustou tanto assim?

— Assustar não é bem o termo certo, Perry. Não consigo me libertar do pressentimento de que, com isto, vai desabar sobre nós uma tempestade, que desta vez não vem do espaço, mas daqui de dentro da Terra mesmo. Vai nos trazer muitos aborrecimentos. Olha aqui... escuta apenas esta frase.

E antes que Rhodan tivesse tempo de impedi-lo, Bell começou a leitura do New World Press:

— “Temos o direito de saber que tenciona o administrador com a prorrogação da Lei de Calamidade Pública: Quer ele, com isso, ter mãos livres para transformar o Império Solar numa colônia arcônida ou para estreitar maiores laços de amizade com os comerciantes das galáxias, chefiados pelo patriarca Cokaze?” Somente desta frase, Perry, pode explodir uma insurreição interna. Haverá então combustível suficiente para dez revoluções...

— Você é muito “otimista” — interrompeu-o Rhodan.

Surpreso, Bell ficou calado. Não havia, de início, compreendido bem a frase de Rhodan. Depois perguntou com cautela:

— Você parece que vê o perigo com maior gravidade do que eu?

Rhodan apenas confirmou com a cabeça.

— Nos últimos dez anos, cometemos erros muito grandes e hoje não estamos em condições de exterminá-los. Hoje temos que agüentar as conseqüências, e não é necessário ser profeta para agora se afirmar que o Império Solar terá em breve seus primeiros grandes debates parlamentares...

— Mas e a Lei de Calamidade Pública... — atalhou subitamente Bell, para silenciar logo depois, com um breve mas expressivo gesto de Rhodan.

— Mas nem mesmo a Lei de Calamidade Pública poderia desativar o Parlamento, e eu seria o último a ter algum interesse em transformá-lo numa reunião de fantoches. Quando os senadores acharem conveniente expor suas dúvidas ao governo, eu jamais os haveria de impedir a fazer isto.

— Santo Deus! — exclamou Bell. — Tais debates, além de tudo transmitidos pelo rádio e pela televisão, haveriam de centuplicar nossas dificuldades. Estamos desta maneira espalhando, nós mesmos, o material explosivo, Perry.

— Você acha que seria melhor deixarmos o material explosivo acumular num lugar só?

— Sua comparação valeria algum dinheiro — disse Bell descontente — porém não é muito bonita. Mas eu gostaria de quebrar o pescoço deste Nicktown...

— Incrimine a si mesmo, mas deixe este Nicktown fora do jogo — falou Rhodan com certa dureza na voz. — Por muitos decênios, não informamos devidamente os habitantes de nossa Terra. Quantas vezes lhes ocultamos por semanas e meses situações da maior periculosidade? Jamais os deixamos perceber quantas dificuldades tivemos para ocultar perante o cérebro positrônico de Árcon a posição galáctica da Terra. Nada disso foi publicado. Mantivemos a Humanidade como que dopada em face da realidade... e depois vieram os druufs com quase dez mil naves para o sistema solar, a seguir, veio Árcon com sua frota robotizada para nos socorrer e, com os arcônidas, o patriarca dos saltadores Cokaze trazendo quatro mil naves cilíndricas.

Fez uma pausa e depois prosseguiu:

— Bell, o que tudo isto significa para os homens que, de uma hora para outra, despertam de seu sono tranqüilo? Para muitos, ocorre uma espécie de fim do mundo. Já deu uma olhada nas últimas estatísticas demográficas? Não? Já reparou no gráfico dos suicídios? Notou que com a pretensa invasão dos druufs a porcentagem aumentou sensivelmente, e esta onda de desespero continua até hoje?

“Sob este ponto de vista, nós fracassamos. E hoje ninguém se interessa em saber por que assim agimos. Nicktown se vê no papel de procurador da raça humana. Tem razão de nos taxar de incompetentes.”

— Agora, vamos acabar com isto — falou Bell irritado. — Conforme você disse, nós não fizemos outra coisa a não ser erros!

— Devagar! Nem o próprio Nicktown afirmou uma coisa desta. Ele nos acusa de traição, mas nunca de termos feito o papel de ditador. Diz até textualmente que meus auxiliares e eu jamais utilizamos em proveito particular o poder que nos foi outorgado pela Lei de Calamidade Pública. Porém, não recua diante da acusação de traição.

— Traição...! Traição! — disse Bell indignado. — Isto é a maior mentira, porém tal mentira é por demais perigosa para nós.

— ...sim, exatamente porque, neste sentido, não soubemos informar convenientemente a população. E é por isso que me alegro, de um lado, pelo fato de os deputados e senadores se lembrarem de que dispõem do direito de nos convocar para o Congresso. De outro lado, porém, receio que isto contribua para fomentar a latente revolução.

Bell olhou para ele.

— “Latente”? Será que eu o compreendi bem? A revolução já está por aí?

— Tome, sirva-se...! — dizendo isto, esticou o braço para a esquerda, pegou um jornal, entregando-o ao surpreso gorducho.

Quanto mais ele lia, mais horrorizado ficava.

— Para mim chega — disse Bell, finalmente. — E todas as notícias são de hoje e todas fazem referência ao artigo de fundo de Nicktown. Então eu não tive razão, quando no réveillon deste famigerado ano de 2.044, para evitar acontecimentos azarentos, quebrei em mil pedaços meu copo de cristal numa rodada de champanha...

— Pare com isto! — ordenou Rhodan. Mas, no seu entusiasmo, Bell não conseguiu parar.

— Não adiantou nada. As coisas até pioraram de lá para cá. Com os cacos de cristal, cortei o dedo. Então, chega-se à conclusão de que...

— Você lucraria muito mais se dedicasse seus esforços mentais aos problemas que temos a resolver, meu caro gorducho — disse Rhodan, um tanto sério. — Por favor, chame Kank Donneld, do Departamento de Informações. A partir de hoje, temos que modificar nossa política informativa, fundamentalmente, ou daqui a pouco tempo, teremos novas encrencas. E o que pode então acontecer... é imprevisível.

— Será que com isto, Nicktown não tirou toda possibilidade de publicarmos a prorrogação da Lei de Calamidade Pública? Pois, se juntamente com a imprensa, também a indústria pesada começa a protestar e, com ela, os bancos tentam tirar o corpo fora, é natural que também os consumidores, o povo, entrem nesta confusão. Enquanto este cigano das Galáxias, Cokaze, andar por Terra, Marte e Vênus, como se estivesse em sua casa, estaremos caminhando para uma revolução.

— Até que enfim, Bell — disse Rhodan espreguiçando-se e encostando-se na poltrona. Sorriu calmamente e continuou. — Até que enfim, seus pensamentos estão entrando nos eixos. É um dos motivos por que tenho de ser grato ao senhor Nicktown, por ele ter escrito um artigo tão agressivo...

— Um momento, por favor! — disse Bell, mostrando que ainda estava confuso. — Hoje, você está falando uma linguagem diferente, Rhodan, ou será que eu não compreendo mais nada? O que disse agora pouco? Que meus pensamentos entraram nos eixos e que você deve gratidão a Nicktown?

— Sim, nós precisamos da prorrogação da Lei de Calamidade Pública, para termos mais liberdade de ação. Se a publicarmos no Diário Oficial, o que é legal, estamos com isto convocando os homens do sistema solar para as lutas de rua, para a revolução.

Mas se conseguirmos que esta lei seja votada pelo Parlamento, teremos então legalmente uma base para agir muito melhor do que nos foi possível até agora.

— Nem assim chego a compreender por que razão você deve gratidão a este Nicktown — disse ele, meneando a cabeça.

— Este artigo de fundo obrigará o Parlamento a se reunir em sessão plenária. Está obrigando os deputados a pensarem nos direitos que possuem, e mesmo que haja muita animosidade e muita divergência entre eles, é bem melhor que uma luta mais ou menos escondida nos bastidores, para vencermos a todo custo, dando-nos a pecha de querermos ser ditadores...

O alto-falante do intercomunicador deu o ruído típico.

Quando, há uma hora atrás, os dois se reuniram para discutirem os assuntos pendentes, Rhodan havia proibido terminantemente qualquer interrupção. Os únicos que não estavam incluídos nesta proibição eram o Marechal Allan D. Mercant, chefe supremo da Defesa Solar, e John Marshall, chefe do Exército de Mutantes.

A tela do videofone começou a cintilar. Desapareceu o cinza inicial e surgiram as cores, em movimentos de vaivém, estabilizando-se em seguida. Apareceu Allan D. Mercant.

— Sir, estão chegando notícias muito importantes. Infelizmente a mais importante é ainda um boato. Patrik O’Neil de Washington anuncia que facções de deputados do bloco euro-americano estão, no momento, em ligação com os blocos asiáticos e africanos. Desejam uma convocação do Congresso do Império Solar em Terrânia, para daqui a três dias. Ainda de acordo com os boatos circulantes, o ponto central da ordem do dia será o voto de confiança, com a respectiva votação, sendo que o bloco euro-americano se recusa a debater a prorrogação da Lei de Calamidade Pública. Rhodan ouvia tudo de fisionomia fechada. Depois falou no microfone do intercomunicador:

— Mercant, reúna todos os homens que for possível, imediatamente. Eles devem fazer tudo para que os deputados possam mesmo estar em Terrânia dentro de três dias.

Allan D. Mercant, que conservava o vigor de sua juventude, graças à ducha celular do planeta Peregrino, levou um susto e logo a seguir mostrou-se surpreso, chegando ao ponto de interromper o administrador.

— Sir — disse com voz nervosa — ainda não ouviu as demais notícias. Todas elas se referem ao artigo de Nicktown no New World Press e são...

— É a isto que me estou referindo, Mercant — falou, esboçando um leve sorriso. —

A atmosfera política está tão envenenada, que somente uma limpeza geral será capaz de restabelecer um ambiente respirável. O artigo de Nicktown nos veio alertar de que realmente está na hora desta limpeza. É por isso que estou ansioso para comparecer, dentro de três dias, perante o Congresso do Império Solar.

Allan D. Mercant — depois de Rhodan e Bell, o homem mais bem informado do Império Solar, verdadeiro gênio no âmbito da defesa e a tudo com ela relacionado — falou muito apreensivo:

— Sir, haverá cerrados debates. A votação em todo o Império é uma coisa problemática. Principalmente depois da luta contra a invasão da Terra, sua simpatia decresceu muito...

Rhodan não o deixou terminar. Em tom mais duro do que até então, perguntou:

— Mercant, seus homens estão ou não estão em condições de prepararem tudo para que haja uma reunião plenária do Parlamento, em três dias?

Não só o Ministro da Defesa, mas também Bell ficaram perplexos. Os olhos de Perry Rhodan voltaram a ter aquele brilho de aço, que surgia sempre que estavam em jogo decisões de grande monta. Não era o olhar de um aventureiro, que arrisca mais do que pode. Era um olhar indescritível e inesquecível para quem o visse, uma vez que fosse. Um olhar que empolgava e arrastava quem o sentisse.

E Allan D. Mercant, como também Bell, sentiam-se impressionados e o marechal, automaticamente, se empertigou e respondeu:

— Sir, creio poder lhe assegurar que o Parlamento será convocado em Terrânia, dentro de três dias.

— Obrigado, Mercant — respondeu Perry Rhodan. — Não podia esperar outra resposta.

Com isto, desligou-se o intercomunicador.

 

Milhões de pessoas assistiam pela televisão aos debates travados no Congresso Solar de Terrânia. Estava sendo realmente muito pior do que os palpites pessimistas, previstos por Bell. Este virava-se a toda hora para John Marshall, que com seus maravilhosos dons telepáticos, auscultava o íntimo dos deputados.

— Continua tudo na mesma, Sir — repetiu o mutante já pela décima vez — mas, por favor, estou na pista de algo novo...

Isto queria dizer que não se devia perturbar a atenção de Marshall. Bell atendeu ao pedido do telepata e passou a concentrar toda atenção no que Rhodan estava dizendo, da tribuna ao grande plenário, em resposta a uma pergunta circunstancial.

De repente, surgiu da delegação africana o aparte:

— Até quando estaremos obrigados a financiar com nossos pesados impostos sua milícia particular? Nem mesmo a Lei de Calamidade Pública lhe dá o direito de esbanjar o dinheiro público com este bando de aleijados mentais, que recebe o pomposo nome de Exército de Mutantes. O que o senhor tem a dizer sobre isto, administrador?

Por dois ou três segundos, o silêncio foi tão profundo, que se poderia ouvir o zumbido de uma mosca voando. A questão levantada pelo deputado africano, Onablunanga, fez com que um grande número de deputados olhasse mais detidamente o administrador.

Milhões de espectadores, diante de suas televisões, no mundo inteiro, notaram que a fisionomia de Perry Rhodan se anuviou e seus lábios se fecharam num risco horizontal.

A televisão mostrou como Reginald Bell se levantou e sussurrando alguma coisa nos ouvidos de Rhodan, se encaminhou para a tribuna, substituindo seu chefe e amigo.

— Senhores deputados e senadores! — soou a voz possante de Bell. — Minhas senhoras e meus senhores. Em lugar do administrador do Império Solar, gostaria de responder à pergunta do senhor Onablunanga, mas antes quero, em nome do administrador e de seus auxiliares, expressar meu protesto contra a formulação e as insinuações da pergunta.

“Tomo a liberdade de lembrar ao senhor Onablunanga que não nos encontramos nas Minas de Ferro Cimberley, mas que nós, e ele também, estamos na sessão plenária do Congresso.”

Quando Allan D. Mercant ouviu esta referência às Minas de Ferro Cimberley, empertigou-se todo. Sua fantástica memória despertou para todos os detalhes de um famoso escândalo, referente às minas. Onablunanga somente não tinha ainda sofrido processo penal, porque, como deputado, gozava das imunidades parlamentares.

O que estava acontecendo na África não podia ser chamado de negócios escusos, mas alguma coisa mais do que escândalo. E exatamente agora, Reginald Bell, destemidamente, abordava a questão do ferro africano.

Mais forte que o barulhão, provocado pela delegação africana, era a voz de Bell, pois estava ampliada pelos alto-falantes do intercomunicador. Com toda empolgação, começou a elogiar os abnegados mutantes que o deputado africano chamara de “aleijados mentais”. A forma temperamental como Bell falava, seus conceitos precisos e o arrolamento dos fatos, onde os mutantes expunham a vida para salvar os interesses do Império Solar, obrigaram o plenário a ouvir com crescente interesse sua exposição.

Rhodan estava feliz, vendo e ouvindo seu amigo defender o grande patrimônio humano: os mutantes. De repente, seu micro comunicador deu o sinal de chamada, exatamente o alarme de urgência. Ergueu o braço esquerdo, levando o pulso até encostar no ouvido. Terminado o sinal de alarme, Rhodan ouviu atentamente a mensagem.

Segundos depois, seu rosto empalideceu, dando a impressão de um homem envelhecido repentinamente. E foi neste momento que as câmaras de televisão passaram da figura empolgante de Bell para o esquálido e abatido Rhodan.

Milhões e milhões de homens estavam agora olhando para Rhodan, o administrador do Império Solar, que passava um dos piores momentos de sua vida.

Rhodan estava envolto numa onda de desespero. Foi grande nele a vontade de desligar seu micro comunicador, mas muito mais forte foi a resolução de ouvir até o fim a mensagem.

Thomas Cardif, tenente da Frota Solar, lotado em Plutão, tinha abandonado clandestinamente o planeta num destróier. O filho de Perry Rhodan desertara. Thomas, que recebera a pena de degredo para Plutão, já havia tentado desertar durante a guerra contra a invasão dos druufs. Nutria verdadeiro ódio pelo pai...

Sua fuga do planeta Plutão fora conhecida há poucos minutos. Contrariando a rotina, a guarnição de Plutão revezou a tripulação da Estação de Relê III, cinco dias antes do prazo normal. Aí foi que se constatou que Cardif havia fugido, já há alguns dias.

— Para onde dirigiu-se o desertor Tenente Cardif, ninguém sabe — foi o final da mensagem.

Era claro que, neste momento, Rhodan não era senhor de si. Perdera primeiro sua esposa, Thora, e agora também seu filho. Fez questão de que o filho crescesse entre pessoas estranhas para não passar a ser conhecido apenas pela expressão o filho de Rhodan. Queria criar sua própria personalidade. Mas, ainda como tenente recém-formado, chegou a saber em Silico V quem eram seus pais. Foi então que explodiu nele o sangue arcônida de sua mãe Thora. Com o orgulho e a tenacidade, característicos de um puro arcônida, passou a odiar o pai. Todo seu amor ficou voltado para a mãe. Para o pai, sobrou apenas ódio e desprezo.

“Como ele deve me odiar”, pensava Rhodan em seu desespero.

Compreendeu então como um homem, que paira em alturas inacessíveis para os demais, pode se transformar num infeliz solitário.

Não sabia que um sorriso amargo se esboçava em seus lábios. Não sabia que, neste momento, milhões de pessoas olhavam para ele, pessoas que se lembravam do dia em que Thora fora enterrada em seu mausoléu na Lua.

— Perry...

Bell se sentara ao lado dele. Fora substituído na tribuna por Allan D. Mercant, que começou a falar para um plenário que parecia não querer perder uma só de suas palavras. Inicialmente exigiu que seu discurso não fosse transmitido para o público em geral, mas só para o ambiente do Congresso. Sua solicitação não era uma coisa estranha e estava dentro das normas parlamentares. Allan D. Mercant iria abordar um assunto de extrema gravidade. Iria expor ao poder legislativo do Império Solar o fato de vinte e um deputados estarem abusando de suas prerrogativas, a fim de se enriquecerem ilicitamente. Todos estes deputados pertenciam à delegação africana e eram inimigos figadais de Rhodan.

Neste momento, milhões de televisões no Império Solar se apagaram. O voto da maioria determinara parar toda transmissão, até que o Ministro da Defesa Solar tivesse apresentado todos os documentos, comprovando suas acusações, seria, também, dado tempo aos parlamentares, para que estes verificassem a autenticidade das provas apresentadas.

Inclinando-se levemente para frente, John Marshall sussurrou no ouvido de Bell:

— Pela indignação dos deputados sobre o escândalo das Minas de Ferro Cimberley, fica cada vez mais evidente de que eles foram vítimas de uma fraude na votação. Mas seu descontentamento sobre a informação deficiente, por parte da administração, ainda continua agindo. A delegação africana não sabe o que fazer.

Bell pretendia passar estas informações para Perry. Tocou-o de leve e só então é que notou como seu rosto estava pálido.

— O que você tem, Perry? O que houve?

E Rhodan, virando a cabeça como um autômato:

— Thomas desertou com um destróier, Bell...

— Não... — respondeu Bell, surpreso. — Não acredito numa coisa desta.

No íntimo, Bell podia ter certeza de que isto era verdade.

O Parlamento foi rígido para com os vinte e um deputados. Robôs e policiais os tocaram para fora do recinto. Os robôs haviam recebido a ordem de que os vinte e um deputados, não podiam se afastar de Terrânia. Depois disso, procedeu-se à ordem do dia. E o artigo de fundo de Nicktown ainda continuou sendo o ponto de apoio do debate.

A transmissão para fora do recinto foi reiniciada, e os milhões de aparelhos da Terra acompanhavam curiosos toda a discussão.

A administração da Terra foi duramente atacada. Rhodan não fez rodeios para enganar ninguém. Somente quando a acusação de traição veio à baila, ele protestou:

— Os druufs não são fantasmas que inventamos para assustar a Humanidade. São talvez um perigo muito maior para a Terra, do que o cérebro robotizado fora. O desenvolvimento das ações é uma coisa que não podemos deter. Por este motivo, a posição da Terra, mais cedo ou mais tarde teria de ser descoberta, e foi assim que ficamos gratos a estes quatro mil aparelhos cilíndricos dos mercadores galácticos, quando vieram em nosso auxílio na hora mais trágica do ataque dos druufs. Mas não se pode falar em traição, a menos que os senhores preferissem viver escravos dos druufs e não como terranos livres.

— Livres sob a “guarda” dos saltadores! — gritou alguém.

— E por que motivo as naves robotizadas dos arcônidas ainda não se retiraram da Terra, administrador? — perguntou outro.

Estavam agora aparecendo os grandes inconvenientes de Rhodan não haver usado de mais franqueza com o público e de não ter prestado maiores esclarecimentos. Explicou com paciência, ou tentou fazê-lo, por que razão as naves cilíndricas dos saltadores ainda se encontravam nos espaçoportos da Terra, Marte e Vênus e por que outras naves ainda continuavam circulando no sistema solar. Mas, quanto mais tentava explicar, menos era compreendido.

A estes deputados, que de maneira alguma podiam ser incriminados por sua atitude, faltava uma visão do conjunto para compreenderem mais profundamente os motivos alegados por Rhodan. Tinham, pois, que extravasar sua incompreensão.

Mas, de um lado que ninguém esperava, houve uma mudança sensível!

Rhodan continuava falando que ele mesmo se assustara com o teor do artigo do jornalista Nicktown. Assinalou os pontos, devido aos quais, por motivos de estratégia, não podia prestar contas diretas ao público.

— ...durante os turbulentos acontecimentos nas Galáxias e também no sistema solar, não tínhamos tempo de cientificá-los, e isto não é uma desculpa vazia, como lhes posso provar.

E durante cinco minutos citou fatos e dados que deixaram os deputados boquiabertos.

— Nunca agimos com imprudência ou falta de capacidade.

E citou muitos exemplos. Depois concluindo disse:

— Mesmo uma administração que possua grande liberdade de ação, dentro da lei, não pode apresentar um trabalho profícuo e duradouro, se não contar com o apoio do Congresso. E, por este motivo, como administrador do Império Solar, faço aos senhores e a todos os habitantes deste nosso diminuto império a seguinte pergunta: contamos ou não com a confiança de todos?

Meia hora depois, se soube do resultado da votação. Não foi um voto de confiança estrondoso para Rhodan, mas era o que podia esperar naqueles dias conturbados e de grande confusão política.

Ao voltar à tribuna, disse simplesmente:

— Agradeço ao Plenário o voto de confiança dado a mim e a meus colaboradores.

Neste instante soou um aplauso relativamente fraco. Mas vinha de todos os lados, e este fato era, para Rhodan, mais importante do que uma votação maciça, de maioria absoluta.

As muralhas erguidas contra Perry Rhodan começavam a abrir brechas em todos os pontos. Mas Bell ainda não estava vendo o quadro assim. Ao chegar ao seu lugar, Rhodan percebeu que Bell, com olhar pessimista, lhe dizia em voz baixa:

— Tomara que este ano pesado já tivesse acabado.

Era o dia 5 de junho de 2.044.

 

Somente depois que a sessão plenária do Congresso do Império Solar terminou, foi que Cokaze se levantou de sua poltrona em frente à televisão.

O velho patriarca, o único da raça dos comerciantes da Galáxia que havia presenciado, desde o início, a carreira fulminante de Perry Rhodan, balançou, contente, a cabeça, quando a transmissão terminou. Levou aos lábios a taça que estava ao seu lado.

— À nossa saúde — disse, olhando em volta.

Mais de vinte pessoas, todas de sua estirpe, sentadas de acordo com o posto de cada um, repetiram-lhe a saudação.

Eram, mais ou menos, semelhantes, não apenas no vestuário, não apenas na barba aparada, em flagrante contraste com os longos cabelos, mas acima de tudo pela estatura: dois metros.

Para o clã de Cokaze só havia um chefe: o próprio patriarca Cokaze. Suas ordens eram leis, suas opiniões eram normas. Não era apenas o mais velho, era também o mais experiente entre os saltadores, nos assuntos que diziam respeito a Rhodan.

Desde que Topthor, o superpesado, havia morrido em combate com os druufs, ele era o único que havia conhecido Perry Rhodan, ainda com poucos recursos tecnológicos, nos primeiros dias de sua vertiginosa carreira.

O poder do administrador do Império Solar era agora bem maior. Cokaze e seus auxiliares imediatos sentiram tal poderio pela televisão.

Apesar disso, Cokaze acreditava ter razão de sobra para um brinde à vitória dos saltadores. Pois, não apenas estava informado sobre o potencial bélico de Rhodan, mas sabia, de primeira mão, como a posição política do administrador estava periclitante.

Os outros saltadores apanharam seus copos e beberam à saúde de seu chefe, sem dizer uma palavra.

Com a mão esquerda, Cokaze limpou a barba, fez uma inclinação vagarosa e se dirigiu depois a seu filho mais velho Olsge, que residia com sua família na espaçonave esférica Cok-III

— Você voará amanhã para o planeta Vênus, Olsge, e reunirá os capitães.

Virou-se depois para Oktag, seu filho predileto.

— Você vai aterrissar amanhã na Cidade de Marte, e reunirá nossa gente. Não há muita coisa para discutir, mas temos muita coisa para fazer.

Fez uma pausa.

— Nós ficaremos aqui! Ficaremos aqui até que Rhodan nos garanta por contrato o monopólio do comércio em todo o sistema solar.

“Depois, talvez, poderemos até deixar a Terra. Isso se Rhodan me pedir... porque nós, os saltadores, somos seres humanos, não somos selvagens, podemos dialogar... se nos oferecerem grandes vantagens.”

Deu uma estrondosa gargalhada e seus olhos brilhavam.

Cokaze nunca passou por mau comerciante e sua reputação no meio dos seus era muito grande. Prova disso era sua enorme frota espacial, de mais ou menos quatro mil unidades, de naves modernas. Uma parte desta frota estava em reparos nos estaleiros de Marte e de Vênus. A batalha contra os druufs lhe saíra cara. Mas os aparelhos, que estavam nos aeroportos da Terra, não tinham nenhum defeito e podiam voar a qualquer momento. Em quase todos os espaçoportos, havia naves dos saltadores.

E isto não foi por acaso. Cokaze era também um estrategista, além de ser um grande comerciante, que só fazia negócio quando se tratava de lucro de centenas de milhões. Tinha que manter uma frota de quatro mil naves cilíndricas, e isso lhe exigia diariamente uma pequena fortuna.

Surgiu, porém, uma objeção, cortês e reticente, como convinha aos severos costumes dos comerciantes das Galáxias.

— Senhor, será que o grande regente não criará nenhuma dificuldade? Sua frota é muito maior que a nossa...

Novamente a gargalhada estrondosa do velho patriarca e sua expressão de superioridade.

— Krako, parece que você andou dormindo o tempo todo, enquanto os deputados terranos martirizavam o pobre Rhodan com suas perguntas. Acho que Rhodan fará tudo para que o regente de Árcon chame de volta suas naves robotizadas. Se nós...

Naquele instante, tocou o sinal do intercomunicador. Do posto central da Cok-I, o radiotelegrafista transferiu a ligação diretamente para o camarote do patriarca. A tela iluminou-se e Cokaze virou-se para o lado. Sua intenção era sentar-se bem em frente ao vídeo. Quando a imagem se estabilizou, o rosto tranqüilo de Rhodan estava olhando para o chefe dos saltadores.

— Cokaze, suponho que você e seus capitães tenham assistido aos debates no Parlamento Terrano — começou Rhodan, depois de curta saudação. — Isto me dispensa de explicações mais detalhadas. Acabo de falar com o grande regente de Árcon. Dentro de duas horas as naves robotizadas, que ainda permanecem no sistema deixarão nosso setor, para voltarem a Árcon ou para a frente de bloqueio dos druufs. O regente robotizado não fez nenhuma objeção ao meu pedido de retirar sua frota. O mesmo pedido gostaria de fazer agora a você, Cokaze. Posso lhe perguntar quando você vai retirar do sistema solar as naves que estão em Marte, na Terra e em Vênus, bem como as que se encontram nos satélites dos grandes planetas?

— Rhodan — respondeu o patriarca com expressão de amabilidade na voz, esforçando-se para falar a língua arcônida com perfeição. — É com tristeza que tenho de constatar que a gratidão não é uma virtude característica dos terranos. Eu...

Neste momento, o operador de rádio da

Cok-I, que se esgueirou na ponta dos pés por entre as filas de cadeiras dos capitães saltadores que não perdiam uma palavra do diálogo de seu chefe, tinha chegado até o patriarca. Inclinou-se para ele e, com muito cuidado, lhe sussurrou no ouvido:

— Senhor, o filho de Perry Rhodan o espera na Cok-CCCXXII, que está em Vênus.

O tremendamente ladino Cokaze não deixou transparecer nada do impacto que recebera. Fez apenas um aceno de cabeça para o jovem operador de rádio, desculpando-se a Rhodan da pequena interrupção. Depois apontou na direção de seus auxiliares mais próximos, e continuou:

— Rhodan, como você vê, estamos reunidos em conselho. Peço que me dê três horas terranas, para que nós lhe possamos transmitir nossa decisão.

— Cokaze, você vai ligar para mim, ou terei que chamá-lo de novo? — disse Rhodan com a mesma educação de sempre.

— Eu ligo para você, Rhodan.

— Obrigado, saltador. Tomo a liberdade de declarar neste instante, mais uma vez, que nós, os terranos, nunca faltamos na gratidão para com nenhum dos nossos amigos.

— Se esta gratidão se traduz em números bem contabilizados, terrano — respondeu Cokaze na sua linguagem imediatista

— então seremos nós, os comerciantes das Galáxias, os últimos a menosprezar esta grande virtude. Poderíamos fazer um contrato em que se estipule para meu clã o monopólio comercial do sistema solar. Afinal de contas, se o Império Solar ainda existe, deve-o ao meu auxílio. Mas, sobre isto falaremos depois, terrano. Vou desligar agora.

 

— Sujeito sem-vergonha! — exclamou Bell irritado, quando o rosto de Cokaze desapareceu da tela.

Assistira com atenção ao diálogo entre Rhodan e Cokaze.

— Acho que não lhe resta outro meio a não ser apelar de novo para Atlan, para que ele explique a Cokaze que nós não aceitamos chantagem. A referência ao monopólio comercial é uma deslavada chantagem, ou melhor, uma verdadeira extorsão.

— Não é à toa que eles se chamam comerciantes das Galáxias — respondeu Rhodan. — E não é isto que me preocupa no momento. Quero saber que notícia foi sussurrada ao ouvido de Cokaze, no momento em que ele me respondia. Jamais vi um saltador cujos olhos brilhassem tanto como os de Cokaze, naquele instante. Embora seu rosto continuasse o mesmo, os olhos traíam uma grande alegria.

Intuitivamente, Bell pegou os pensamentos de Rhodan. Este deu um leve sorriso para o amigo.

— Perry, você está ficando louco. Rhodan olhou demoradamente para Bell.

— Gostaria mesmo de ficar louco, Bell. Você sempre passou a mão sobre os erros de Thomas. Há pouco tempo, numa transação um pouco escusa, você o livrou de uma corte marcial...

Mas Rhodan parou por aí. Sempre que, entre os dois, o assunto era o filho de Rhodan, as opiniões divergiam diametralmente. Bell acreditava no bom caráter de Thomas Cardif, quase que cegamente, não podendo compreender a posição de Rhodan, desanimada e desesperançada, vendo tudo de errado nas ações do rapaz.

Bell fez com que Rhodan se afastasse do hipercomunicador.

— Se você não o quer fazer, eu chamarei a estação de Plutão. Thomas, talvez, jamais fugisse com um destróier.

A tecla estalou com o ruído de encaixe. Imediatamente se apresentou o telegrafista da central de Terrânia e Bell ordenou uma ligação urgente para o chefe da guarnição de Plutão.

Levou três minutos até que o major aparecesse na tela do escritório de Rhodan.

— Sir, às suas ordens!

Bell entrou diretamente no assunto.

— Major, o que lhe foi informado sobre a fuga de Thomas Cardif? O senhor está a par dos motivos?

— Sir... — podia-se perceber o esforço que o major fazia para se expressar e responder bem a estas perguntas. — Sir, correm boatos por aí, o senhor sabe como os soldados são linguarudos...

Bell não parecia hoje estar disposto a exercícios de paciência.

— Major, fiz-lhe uma pergunta bem clara e exijo também uma resposta clara. Portanto...

— Não posso fazer outra coisa do que transmitir os boatos que circulam por aí.

— Com os diabos, pois então transmita estes boatos — disse Bell com voz alterada. — Ou será que eu lhe disse para chupar os dedos?

No gélido planeta Plutão, a algumas centenas de milhões de quilômetros da Terra, o chefe da guarnição, tremendo diante da descompostura de seu superior, automaticamente tomou a posição de sentido.

— Sir, na minha guarnição corre o boato de que o administrador, há tempo, determinou, em flagrante desobediência ao parecer dos médicos, que sua esposa recebesse a incumbência de viajar para Árcon III, a fim de negociar a aquisição de cem naves esféricas...

— O quê?! — gritou Bell, de rosto vermelho. — O que o chefe fez mesmo?

— Sir, sua ordem foi para eu narrar boatos, e foi o que acabou de ouvir.

Reginald Bell tirou um cigarro, acendeu-o e deu umas tragadas. Olhou depois para o lado. A três passos dele, diante da janela, estava Rhodan, sem mostrar a menor reação. Parecia petrificado e não reagiu ao olhar inquiridor de Bell.

Depois de mais algumas tragadas nervosas, Bell amassou o cigarro no cinzeiro.

— Obrigado, major! É só.

E com isso interrompeu a ligação.

— Perry!

Rhodan não se mexeu.

— Com os diabos — esbravejou o gorducho. — Será que todo o sistema solar virou um inferno? Antes nunca tivesse botado a mão em política. “Em flagrante desobediência ao parecer dos médicos...” Se eu pegar este sujeito que espalhou este boato... este canalha...

E o resto foram palavras não muito elegantes.

 

No mesmo instante, na espaçonave cilíndrica Cok-CCCXXII, Thomas Cardif ouvia que o patriarca Cokaze havia anunciado sua chegada para as 3,30 da madrugada, hora de Vênus.

Tsathor, parente afastado do chefe do clã, parecendo com ele fisicamente, mediu Thomas de alto a baixo, com vivo interesse. Não podia atinar bem o que pretendia o jovem tenente, ainda usando o uniforme do Império Solar. Não era a primeira vez que estava diante de um desertor ou traidor, mas nunca tivera um encontro como este do Tenente Thomas Cardif.

Seu destróier já estava alojado no hangar 8 da Cok-CCCXXII. Já tinha sido transportado, há uma hora, sob o manto da escuridão, pela Cok-DV, para a nave.

— Pode ficar com o destróier, se quiser — disse Thomas Cardif, indiferente — não vou mais precisar dele.

Tsathor fez apenas um gesto de assentimento, ocultando sua alegria.

— Cardif, você não tem necessidade alguma de se explicar. Você parece muito com Perry Rhodan, quando jovem.

— Sou arcônida, Tsathor — interrompeu-o bruscamente o tenente. — Não sou terrano.

Suas palavras tinham um tom frio. Mas os olhos de um brilho avermelhado, característico dos arcônidas, certamente por parte de sua mãe, demonstravam nervosismo.

— Como arcônida, você não poderá falar em nome dos terranos — ponderou Tsathor. — Ou será que não o compreendi direito?

Thomas Cardif sorriu.

— Quem são estes terranos, Tsathor? Nesta Galáxia só existe uma raça, à qual pertencemos você e eu. Isto é, os arcônidas. O grande regente haverá de me reconhecer, e com ele e com a estirpe de Cokaze haveremos de reduzir a Terra ao que ela realmente é. Haveremos de transformá-la numa colônia de Árcon e todo o comércio será exercido exclusivamente pela estirpe de Cokaze.

— Será formidável quando tudo isto se realizar, Cardif — disse Tsathor, visivelmente impressionado com as palavras do jovem tenente — mas o que você espera ganhar com isto?

— O aniquilamento de Rhodan. Sua morte. Só isto me basta.

O saltador estava intimamente abalado. A resposta, que acabara de ouvir, o deixou estonteado. Palavras frias, pronunciadas sem a menor comoção. Tsathor perguntou espantado:

— Mas, Perry Rhodan não é seu pai, terrano?

— Saltador, nem sou terrano, nem Rhodan é meu pai. Apenas não posso negar que ele me gerou. Mas encerremos este assunto até a chegada do patriarca Cokaze.

Um gesto do comandante Tsathor fez com que os olhos de Cardif se iluminassem de novo.

— Qual é a dúvida que ainda tem? Com esta pergunta, feita num tom de superioridade, Cardif se portava de novo como um legítimo arcônida.

Sem o querer, Tsathor continuava impressionado e perguntou com a maior simplicidade:

— Por que você odeia Rhodan a este ponto, Cardif?

Thomas Cardif colocou suas mãos bem tratadas sobre a mesa. Era um gesto mais do que claro de que esta seria a última pergunta que responderia.

— Contra o parecer de todos os médicos, Rhodan obrigou minha mãe, já desenganada, a executar uma missão perigosa em Árcon III. Queria ficar livre dela, porque minha mãe envelhecera de repente e ele in-tencionava enviuvar-se para casar de novo com uma mulher jovem. Mandou minha mãe para Árcon, sem ela saber de nada. Ela estava completamente por fora de tudo, não sabia nem de seu estado de saúde, nem dos perigos de sua missão. E isso posso provar porque ela nem se despediu de mim, quando partiu.

“Quando a vi de novo, estava morta, a única criatura que sempre me amou. Também quero ver Rhodan morto. Eu o odeio, desde o dia em que fiquei sabendo que ele é meu pai. O Universo todo só tem espaço ou para Perry Rhodan, ou para Thomas Cardif. Para os dois, é demasiadamente pequeno.”

 

A imprensa do Império Solar se dividiu, parte a favor de Rhodan, parte como adversária irreconciliável do administrador. O pouco expressivo voto de confiança do Congresso serviu de ponto de partida para novos ataques. Os jornais africanos não perdoaram a Reginald Bell, por haver, durante os debates, trazido à baila o escândalo das Minas de Ferro Cimberley. Afirmavam peremptoriamente que, desta forma, o assunto Cimberley havia influído no resultado final da votação, pois os vinte e um deputados, a quem seria movido um processo imediatamente, eram todos contra Rhodan.

A retirada repentina da frota arcônida foi saudada com satisfação. O New World Press, principalmente o artigo de fundo de Nicktown, de apenas 30 linhas, tentaram acalmar um princípio de agitação. E seu teor mais conciliador contribuiu muito para fazer com que grande parte dos terranos perdesse todo interesse em novas escaramuças. No entanto, sob uma camada de aparente tranqüilidade, havia ainda qualquer coisa e o Serviço de Segurança de Allan D. Mercant acompanhava atentamente todos os movimentos.

Vinte e quatro horas depois dos debates ainda restavam uns grupinhos procurando causar desordem. Não sabiam, porém, que cada um de seus movimentos era vigiado e não podiam fazer tanto mal como pensavam.

Neste meio tempo, Rhodan mantivera uma longa conversa com Atlan por hiper-rádio. O almirante arcônida estava preocupado com as dificuldades de Rhodan na Terra e colocou à disposição do amigo qualquer tipo de auxílio.

— Almirante, agradeço-lhe pela generosa oferta, mas no momento me é necessário mais tempo do que propriamente demonstração de força.

— Está bem, Perry, vou então anunciar através do cérebro positrônico para toda a Galáxia que o Império Solar está sob a proteção de Árcon. Você está de acordo com esta nova formulação?

Rhodan refletiu por uns instantes e, depois de receber de Bell, de Mercant e de Freyt um aceno de confirmação, respondeu:

— De acordo, almirante. Creio que a formulação sob a proteção de Árcon vai me arranjar uma pausa para respirar, o que nos é indispensável na situação atual. Não lhe quero ocultar que minha situação nunca esteve tão crítica, como nas últimas vinte e quatro horas.

Uma risada de pouca alegria chegou até a Terra pelo hiper-rádio.

— Então, dois homens se apertam as mãos, Perry. Pelos deuses imortais de Árcon!... Estou com medo da hora em que o Grande Império souber que eu estou exercendo o poder em lugar do regente robotizado. Você está atolado até o pescoço com as questões de política interna, enquanto eu ainda estou aguardando por tudo isto e, independente de nossa amizade, terrano, tenho de ajudá-lo agora, para que você me possa ajudar, quando chegar a minha hora difícil. Gostaria milhões de vezes mais de ser Perry Rhodan, pois seu nome tem prestígio enorme na Via-Láctea. Representa uma força, simboliza um fator simplesmente inacreditável. Quem é que conhece o nome Atlan? Sou um nada em comparação com você, terrano. Veja como nossos destinos estão intimamente ligados. Perry, é realmente maravilhoso tê-lo como amigo.

Antes que Rhodan estivesse em condições de responder qualquer coisa, Atlan, a 34 mil anos-luz, sob a proteção da enorme cúpula eletrônica, desligou o hiper-rádio.

Rhodan não estava nada animado.

— Não estou gostando deste jogo de xadrez, principalmente desta última jogada. Sim, eu sei... — e levantou as mãos, como para se defender, quando viu os protestos de Bell, Mercant e de Freyt — sei que não há outro meio. Agora, tenho minhas dúvidas sobre se este contrato de misericórdia vai nos livrar da forca, isto é, se vai nos ajudar a vencer as dificuldades internas. Quisera ser profeta. Falando com franqueza, como será a opinião pública sobre estas mudanças? Para mim, é mistério...

— Para mim, não é tão mistério assim — observou Bell. — Todos têm medo de que a batalha recomece, apesar de a pergunta ser repetida a toda hora: para onde fugiram os druufs? A questão é esta, estamos numa situação infernal e temos que ser o bode expiatório de todo mal que nos acontece. Para a visão curta do povo, nós somos os culpados por este estado de ameaça permanente contra a Terra. E numa situação desta, nem Atlan nos pode mais ajudar.

— Para mim, o grande enigma é o patriarca dos saltadores, Cokaze — disse Allan D. Mercant, dando vazão a seu pessimismo.

— Cokaze evacuou todos os espaçoportos da Terra, mas se encastelou em Vênus e Marte. Será que o saltador ainda quer especular conosco o pretendido monopólio comercial?

— Sou eu ou você, Mercant, o chefe da segurança? — perguntou Rhodan, um tanto áspero.

— Sir — a expressão de Mercant denotava calma e firmeza. — O Serviço de Segurança Solar nunca esteve tão sobrecarregado como nos dias atuais. Há uma avalancha de incumbências intermináveis. Onde deveria empregar dez por cento de todo o pessoal, dou-me por feliz se conseguir dois ou três homens disponíveis. Dizer que a Segurança Solar está falhando ou falhou é não querer reconhecer as convulsões políticas por que passamos ou subestimá-las.

— Obrigado — disse Rhodan com sarcasmo. — É ótimo poder ouvir a verdade. Onde se encontra o tenente desertor Thomas Cardif, senhor Marechal Mercant?

— Só nos faltava mesmo uma pergunta deste tipo — protestou Bell em voz bem alta, sendo interrompido por Rhodan.

Bell o fitou com estranheza. Mas seu pensamento estava desenhado em seu rosto.

Que aconteceu com ele? Era a pergunta muda.

O rosto de Rhodan parecia de pedra.

— Por favor, marechal, estou esperando sua resposta.

Bell estava de respiração ofegante. Freyt, imóvel como uma estátua. Allan D. Mercant, respirando profundamente. Ninguém se lembrava de ter vivido semelhante situação em toda a vida. Mas os três sabiam que havia só um chefe, Perry Rhodan.

Não era o pai que estava perguntando pelo paradeiro de seu filho, mas o administrador, responsável pelo Império Solar.

— Sir, não estou em condições de lhe fornecer novos dados sobre o paradeiro de Thomas Cardif. Não sabemos ainda para onde ele foi, após a fuga de Plutão, nem onde se encontra atualmente. Recomendo para este fim o emprego do Exército de Mutantes.

 

Thomas Cardif estava sentado em frente de Cokaze.

O velho e experimentado saltador e o jovem tenente, desertor do Império Solar, tratavam-se mutuamente como dois sócios com direitos iguais.

O camarote de Cokaze na Cok-I, que havia aterrissado em Vênus, ao lado da Cok-CCCXXII, foi o local onde se travaram as primeiras conversações com o objetivo de expurgar do mapa das Galáxias um diminuto reino estelar.

Era com admiração e, ao mesmo tempo com um certo mal-estar, que Cokaze olhava constantemente para o jovem desertor.

Fascinava-o a lógica fria do tenente, mas assustava-o também seu ódio selvagem contra Rhodan.

— Cokaze, você jamais obterá o monopólio comercial de Rhodan, enquanto ele for o administrador do sistema solar — explicava Cardif. — E não vai também conseguir nada de seu sucessor, se não destruir Perry. O novo, ou os novos administradores que vierem haverão de considerá-los como mercenários. No entanto, você e sua estirpe serão reconhecidos como arcônidas, se o novo administrador for um arcônida.

Cokaze coçou a barba.

— Deixe-me algum tempo para pensar, Cardif.

Thomas Cardif já estava no terceiro cigarro, quando o patriarca, inclinando-se levemente para frente, lhe perguntou afinal:

— O que se deve fazer para minar ainda mais a posição de Rhodan?

— O que você está disposto a fazer para provocar a queda de Rhodan, saltador? — perguntou Cardif como um sócio inteligente. — Você espera por um contrato que lhe dê o direito exclusivo de trazer para o sistema solar todo e qualquer tipo de mercadoria e de exportar os produtos fabricados na Terra. Já percebeu que com este contrato você e sua estirpe se tornarão o povo mais rico da Via-Láctea. Naturalmente, um presente deste tem seu preço. O que você pretende investir?

Pela primeira vez, Cokaze se mostrou surpreso.

— Cardif, você é tão frio e calculista como seu pai e tão arrogante como um arcônida. Ainda mais quando penso que você é tão jovem, ficaria com receio, caso não se tratasse de um grande negócio que...

O alto-falante do hiper-rádio deu o sinal de chamada. A tela começou a acender, até que Cokaze e Thomas Cardif levaram um susto, ao aparecer o emblema do grande regente de Árcon.

O cérebro robotizado comunicava uma resolução.

A confusão de linhas, conhecida em toda a Galáxia, deu lugar a um pedaço da cúpula gigantesca de Árcon. Simultaneamente com a imagem da cúpula, ouviu-se a voz metálica e inanimada do cérebro positrônico.

Cokaze e Cardif se entreolharam com ar de triunfo.

A gigantesca positrônica de Árcon acabara de anunciar que o sistema solar estava, a partir deste instante, sob a proteção de Árcon.

Ambos interpretavam a mensagem do seguinte modo: viam pura e simplesmente uma anexação do Império Solar por parte de Árcon.

— Cardif, estou pronto a investir alguma coisa, como você estava falando há pouco. Minha frota não vai sair nem de Marte nem de Vênus. O poder bélico de minhas naves continua inalterado. Rhodan não vai ter força suficiente para me expulsar e dois planetas de seu sistema em minhas mãos já são uma boa base para entrarmos em conversação sobre o tratado de concessão do monopólio comercial.

“Mas você, Cardif, vai ter também o que fazer. Como legítimo arcônida e filho de Rhodan, logicamente você é o sucessor natural do administrador e, com esta declaração do regente robotizado de Árcon III, estou convencido de que ele o escolheu para ser o novo administrador do pequeno reino estelar.”

— Saltador, não cabe a você me obrigar a assumir um cargo pelo qual ainda não me decidi.

Todo o orgulho dos arcônidas se manifestava nesta frase. Thomas Cardif olhava frio para o patriarca, que dispunha de quase quatro mil espaçonaves e era um dos homens mais ricos da Galáxia. Cokaze se assustou diante da irrupção de orgulho do jovem tenente, vendo-o como um legítimo arcônida.

Uma formação histórica, que abrangeu um período de mais de 15 mil anos, tinha que deixar sinais em cada saltador e para cada um deles, mesmo na posição de um rico patriarca, um arcônida seria sempre O Senhor.

Automaticamente, sem perceber o que estava fazendo, sob o impacto da admoestação de Cardif, Cokaze tentou uma retirada ou uma modificação de seu modo de agir, mudando inclusive sua linguagem do intercosmo para a língua arcônida:

— Senhor, creio não haver outra alternativa para sua pessoa.

— Não estou pensando em tirar das mãos do regente o poder de decidir quem vai ser o novo administrador do Império Solar — respondeu Thomas Cardif com firmeza. — Antes de me preocupar com estes problemas, saltador, vou entrar primeiro em entendimento com o cérebro positrônico em Árcon III.

— Quando isto? — perguntou Cokaze. O patriarca dos saltadores depois de ter esolvido intervir com a força de sua estirpe nas lutas internas deste sistema solar, estava naturalmente apressado em conseguir o mais cedo possível seu cobiçado contrato de monopólio comercial.

— Imediatamente, Cokaze. Arranje-me uma ligação direta na hiperfreqüência do regente de Árcon.

 

Atlan ficou perplexo quando o alto-falante do telecomunicador anunciou o nome de Thomas Cardif.

A gigantesca central de rádio da não menos gigantesca positrônica de Árcon recebia centenas e centenas de chamados simultâneos, que eram armazenados e, depois de classificados e examinados, iam sendo distribuídos para Atlan, segundo o grau de prioridade. Todo este processo, naturalmente, se fazia eletronicamente. Mas esta mensagem oriunda de Vênus era endereçada diretamente a Atlan.

“O filho de Perry Rhodan”, pensava ele. “Santos deuses de Árcon... será que o rapaz ficou louco?”

Com a respiração tensa, Atlan escutava o jovem. Mas quem estava falando só podia ser um arcônida e não um homem da Terra! Tão orgulhoso e exigente, só podia ser um arcônida!

E Atlan pensou em Thora, a arcônida descendente da estirpe real e se lembrou do que Rhodan já lhe havia dito a respeito de seu filho. Thora era a mãe de Thomas. Ela, que tivera a força de conseguir dominar as más qualidades de seu povo, as havia transmitido para seu filho único, que agora era dominado por estes traços hereditários.

Thomas Cardif queria destruir seu pai e fazer do Império Solar uma simples colônia arcônida. Queria, numa palavra, quebrar a espinha dorsal da Humanidade e entregar o monopólio comercial aos saltadores.

E agora era a vez de a positrônica responder, o cérebro robotizado era apenas um órgão executivo e Atlan não se manifestava.

Atlan ligou o setor de armazenamento jurídico e a mensagem de Thomas Cardif foi transmitida a este departamento. Ao mesmo tempo, a central recebeu a ordem para que Cardif aguardasse o resultado.

Atlan foi prudente demais e não usou, neste julgamento, seus sentimentos pessoais.

Era necessário que agora, como antes, se mantivesse na Via-Láctea a certeza de que quem governava o sistema estelar M-13 era o grande cérebro positrônico. Por este motivo, Atlan se afastou completamente, deixando o julgamento para o setor jurídico do grande cérebro.

A voz metálica do grande cérebro ainda estava transmitindo a ordem para que Cardif esperasse, quando o resultado já estava nas mãos de Atlan.

A legislação arcônida vedava qualquer intromissão de Árcon. Ao mesmo tempo o cérebro constatou que o procedimento de Cardif estava em flagrante oposição com as leis arcônidas.

— Puxa! — exclamou Atlan descontente. — Acho que Bell haveria de comparar esta fundamentação jurídica com algo parecido com chiclete. Mas se eu tentar dar uma forma mais técnica, é capaz de surgir um jurista para afirmar que o cérebro positrônico fez um julgamento errado. O que devo fazer é informar Rhodan do acontecido.

 

Cokaze expôs ao melhor jurista de sua estirpe a resposta do cérebro de Árcon.

Seus olhos febricitavam de expectativa. Frio, Cardif estava sentado ao lado do patriarca.

O jurista Zutre, especialista neste assunto, estava em situação de dar na hora seu comentário a respeito.

— Senhor — disse ele num leve sorriso — os deuses talvez podem ter aprovado e ratificado estes parágrafos que impedem o cérebro de intervir na política interna. Mas, o mais interessante nesta resposta é a alegação de que Thomas Cardif, aliás, de que o procedimento de Thomas Cardif está em contradição com as leis de Árcon. Esta afirmativa é uma frase vazia e, na realidade, diz apenas que a tutela de Árcon, sobre este pequeno reino estelar, representa nada mais que uma declaração para fins imediatistas, sem maiores riscos de responsabilidade.

Cokaze se afastou do jurista. Quando se defrontou novamente com Cardif, havia nos olhos do saltador uma pergunta visível.

— Saltador — disse Thomas Cardif, ainda com o mesmo tom inflexível de voz — preciso de um local onde, sem ser perturbado, possa transmitir minha proclamação para o Império Solar. Seus transmissores de hipercomunicação têm a potência suficiente para cobrir com bom volume todas as estações da Terra?

— Senhor — disse Cokaze cofiando sua barba semi-aparada — a Terra vai ouvir perfeitamente sua proclamação.

 

Quando a proclamação de Thomas Cardif chegou à Terra, a estação de hiper-rádio de Terrânia pensou que se tratasse de uma brincadeira, mas o chefe da estação, alarmado, viu a coisa com outros olhos e estabeleceu contato com Rhodan, via ligação direta de alarme.

— Senhor — disse ele nervoso, sem ao menos esperar que a figura de Rhodan aparecesse — neste momento Thomas Cardif acaba de transmitir uma proclamação, através da qual se apresenta como o novo administrador da Terra.

Apareceu então o rosto de Rhodan na tela, seus olhos tinham a expressão da tranqüilidade.

— Por que você está assim tão excitado? — foi a pergunta que Rhodan lhe fez. — Por favor, dê-me a proclamação toda, quando Thomas Cardif a tiver terminado. Estou esperando.

Rhodan apertou o botão especial, desligando o aparelho de videofone. Bell, Freyt e Mercant olhavam ansiosos para ele.

— As frentes de combate começam a se definir — foi seu comentário.

 

O sistema solar teve duas grandes sensações.

A primeira: a proclamação de Cardif estourou como uma bomba e horas mais tarde, quando já havia escoado a sensação do impacto, irrompe a segunda sensação:

O administrador não reagira!

O governo do Império Solar não tomou conhecimento oficial das alterações verificadas em Marte e Vênus.

Oito horas e cinco minutos depois que Thomas Cardif havia se proclamado o novo administrador, a grande barragem do Amazonas, perto de Manaus, voou pelos ares.

Vinte minutos depois disso, explodiram as usinas do Niger. Bombas de porte médio, carregadas com T.N.T. arrancaram tudo do lugar. Três minutos depois desses atos de sabotagem, duas instalações de laminação também foram destruídas na Lua.

A partir daí, era um atentado após outro. A última notícia era sempre pior do que a anterior. A Terra, a Lua, até mesmo o gélido Plutão e os satélites dos grandes planetas haviam se transformado num pandemônio. Não somente as instalações governamentais de todo o sistema solar, mas mesmo os edifícios civis eram destruídos. Fábricas particulares, centrais elétricas, instalações estatais, centros de alta pesquisa... nada escapava à onda de loucura.

Os jornais se transformaram em panfletos. Os telejornais pareciam filmes de terror... As catástrofes desfilavam perante a Humanidade perplexa.

Até mesmo o cidadão mais comodista e preguiçoso perdia seu marasmo e começava a pedir socorro. Por toda a parte as sabotagens seguiam trazendo desespero.

Apenas em Marte e em Vênus havia relativa calma, embora também aí as bombas explodissem e milhares de pessoas perdiam tudo que possuíam. Apesar disso, a situação nesses dois planetas era bem melhor que em outra parte.

Quatorze horas depois da dinamitação das ciclópicas barragens no rio Amazonas, perto de Manaus, os alicerces do Império Solar estavam já bastante abalados!

Todos se levantaram contra Rhodan. A população desvairada exigia sua cabeça e aplaudia o advento de Thomas Cardif.

A era de Rhodan já havia passado. Ele, que não queria envelhecer, tinha de desaparecer, sair de cena. Esta era a voz geral em toda a parte, não apenas em Terrânia.

Em Terrânia havia censura nos meios de informação. Ninguém podia sair ou entrar na cidade. O imenso espaçoporto estava vazio. Não se via uma só das naves esféricas. Há três horas atrás, decolara a última espaçonave, a Drusus. Estava agora dando voltas em torno da Terra, acompanhada de outras cem naves. Os aparelhos do tipo Estado, de apenas cem metros de diâmetro, voavam todos a cinco mil metros de altura, podendo assim ser muito bem reconhecidos do chão.

Era a primeira resposta de Perry Rhodan à insensatez da população que, de uma hora para outra, saiu de suas cavernas, ameaçando meio mundo.

A imprensa, com exceção de pequenos jornais da situação, chamavam a esta demonstração de ditadura rhodaniana.

Mas Perry Rhodan, o homem de expressão marcante e de olhos castanhos de incrível magnetismo pessoal, manteve estóico silêncio para com a opinião pública. Ficara realmente impressionado com a inaudita onda de sabotagem, que o pegou de surpresa. Quando se sentia apto para enfrentá-la, aconteceu outra coisa inaudita: a sabotagem desapareceu como que a toque mágico.

Cokaze, o patriarca dos saltadores, havia se comunicado com Rhodan, exigindo autorização para aterrissagem às 14 horas e 30 minutos.

— Ele “exige” a autorização — disse Bell. — Veja como estão as coisas...!

Havia sempre uma ponta de malícia, quando Reginald Bell se expressava assim com reticências.

Sentado à sua escrivaninha, Rhodan examinava as pilhas de mensagens recém-chegadas. O nervoso vaivém de Bell no escritório não o perturbava. Apenas uma vez, Rhodan disse em tom fraternal:

— Você também pode trabalhar um pouco, gorducho. Não se sente muito bem hoje, não é?

O primeiro ímpeto de Bell foi dar uma resposta bem dura, mas ainda teve tempo de compreender o que Rhodan queria dizer. Dominando-se disse apenas:

— O que há de novo? Será que teremos finalmente uma notícia boa?

— Exatamente, olhe, leia aqui, por favor — disse Rhodan passando-lhe uma das mensagens.

Bell, de olhos arregalados e fungando terrivelmente, meteu o dedo entre o colarinho engomado e o pescoço, como se lhe faltasse ar.

— Puxa! A isso você chama de boa notícia, Perry? Depois de amanhã, convocação extraordinária do Parlamento, através do Conselho dos Senadores?

— Perfeitamente! E não me interessa nem hoje nem depois de amanhã saber que alguns deputados estão se encantando com o pensamento de verem Thomas Cardif como novo administrador. Aconteça o que acontecer, teremos nossos deveres a cumprir, e estes deveres exigem que estejamos à altura das maiores crises e dificuldades. Antes de mais nada, vou tomar todas as providências para que depois de amanhã seja votada a prorrogação da Lei de Calamidade Pública.

— Você não perde o bom humor, hein, Perry?

— Pelo contrário, não resta em mim mais nada de humor. Estou falando com objetividade. Precisamos desta prorrogação do estado de emergência e, desta vez, vou consegui-la do Parlamento, Bell. Não tenha dúvida.

Reginald não disse nada. Apenas fez um aceno de cabeça.

Rhodan foi lembrado de que já eram 14 horas e 30 minutos. Acompanhado dos três filhos mais velhos, Cokaze já estava esperando na ante-sala.

John Marshall, o mais competente dos mutantes, introduziu os quatro saltadores. Rhodan os convidou a sentar nas poltronas em volta da mesa redonda. Sentaram sem pressa nenhuma, nunca perdendo de vista os olhos de Rhodan. Conforme suas informações, era ele o mais importante. Em contrapartida, não davam nenhuma atenção a Bell, muito menos a John Marshall que estava lendo seus pensamentos, como num livro aberto.

No momento, estava Marshall instruindo Rhodan, que possuía forças telepáticas, embora em menor escala, sobre as intenções de Cokaze. Foi por esta troca telepática que Rhodan ficou sabendo que seu filho se encontrava a bordo da Cok-I.

— Sim, terrano, nossa vida difere muito pouco da de vocês — começou o patriarca dos saltadores. — Um dia, somos visitados pela sorte, outro, somos vítimas do azar. Parece que as coisas não andam muito boas para o Império Solar, nem para seu governo, mas minha estirpe estaria disposta a tudo fazer para ajudá-los, caso cheguemos a um acordo quanto ao monopólio comercial. Temos mais ou menos quatro mil espaçonaves cilíndricas em Marte e Vênus, Rhodan. São aparelhos bem equipados com tripulação de alta especificação e experiência. Com nosso apoio, seu governo ficaria resguardado de uma iminente destruição.

Foi a exposição mais cínica e petulante que Rhodan e Bell tiveram que ouvir. Sem o mínimo escrúpulo, Cokaze fazia suas proposições.

Os filhos de Cokaze meneavam a cabeça em sinal de apoio às palavras do pai. Nenhum deles ainda havia se externado sobre o assunto. Para isto seria necessário que o chefe do clã desse consentimento. Mas do que qualquer outro povo, os mercadores galácticos eram muito rigorosos na manutenção destes velhos costumes.

— Saltador — começou Rhodan impassível, enquanto Bell tamborilava com as pontas dos dedos no espaldar da poltrona — em toda a minha longa vida, sempre pautei minhas relações com outros povos numa amizade sincera e respeitosa, e por isso me alegro em ver na estirpe de Cokaze bons amigos. Foi-me grato avaliar o grau de sua estima, pelo fato de seu interesse em me apoiar, como administrador do Império Solar, de uma deposição através do Parlamento. Gostaria de poder lhes mostrar minha gratidão pela forma como vocês o desejam. Mas, como o senhor mesmo acaba de salientar, minha posição é muito melindrosa. E unicamente por este motivo, não estou em condições, no momento, de manter conversações sobre a questão do monopólio comercial. E mais ainda: minha posição como administrador foi seriamente abalada por esta série doida, suicida e inexplicada de atos de sabotagem, pois o governo não conseguiu prender um único terrorista. Saltador, lamento profundamente não lhe poder dizer outra coisa.

Neste momento, Marshall entrou em contato telepático com Rhodan:

— O saltador está fervendo de raiva, Sir. Pensa em não sair deste aposento sem levar o contrato assinado. Está refletindo se já está na hora de nos dizer que Marte e Vênus estão praticamente em seu poder.

— Rhodan, vou deixar de lado, por enquanto, sua pouca disposição para entrar em conversação com nossa gente, os comerciantes das Galáxias — respondeu Cokaze, num tom mais ríspido. — Não lhe resta outra alternativa, administrador. Não menospreze o perigo que irrompeu contra você na pessoa de Thomas Cardif...

— Um simples desertor — falou Rhodan, serenamente.

— Seu filho, Rhodan! — gritou Cokaze bem alto.

— Meu filho, saltador? — Rhodan deu um sorriso amargo. — Você se engana Cokaze. Um Rhodan nunca será um desertor. Portanto Thomas Cardif não pode ser um Rhodan, talvez, porém, um arcônida degenerado. Isto eu não posso nem quero discutir.

— Sua esposa não foi uma arcônida? — perguntou o atrevido saltador.

Bell, de um salto, se levantou da poltrona, Marshall fez a mesma coisa. Somente Rhodan foi quem não mostrou a menor reação. Ele, o modelo perfeito do autodomínio, apenas sorriu. Mas seus olhos castanhos cintilavam. Inclinou-se levemente para frente. Veio depois o surpreendente aceno da cabeça.

— Sim — disse confirmando — minha mulher era arcônida. Que bom você ter me lembrado isto, saltador Cokaze.

Os quatro mercadores galácticos estremeceram, como se cada um deles tivesse levado uma forte chicotada. Rhodan também não lhes deixou tempo para se desculparem.

Levantou-se.

— Saltador, já são 14 horas e 48 minutos. Meus robôs vão levá-los de volta ao espaçoporto. Às 15 horas e 10 minutos receberá permissão para decolagem, em vigência até 15 horas e 15 minutos. Desejo-lhe tudo de bom, Cokaze.

De braços cruzados no peito, ficou olhando para eles, que cabisbaixos e calados deixavam o escritório, até que a porta se fechou.

 

Os agentes de Cokaze não dormiam no ponto...

O patriarca, depois de seu insucesso com Perry Rhodan, de quem se tornara o maior inimigo, só tinha em mente uma coisa: anexar o Império Solar à Federação dos Estados de Árcon e fazer com que sua estirpe fosse a única privilegiada a ter o direito de exportação e de importação no sistema solar.

Thomas Cardif era-lhe apenas uma peça no jogo, um meio para um fim. Enquanto este rapaz lhe podia ser útil, tratava-o com deferência e fingia dar muita atenção às suas propostas. Na realidade, porém, toda a atividade de Cokaze visava apenas ao próprio interesse.

Após a curta audiência com Rhodan, voltou Cokaze numa viagem relâmpago para Vênus. Mobilizou todos os agentes que possuía na Terra. A série de sabotagens, com o intuito de minar o prestígio de Rhodan, continuaria com uma violência dez vezes maior. Pelo menos esta era a vontade de Thomas Cardif.

— Mas isto é assunto meu, terrano — disse-lhe desembaraçadamente o patriarca dos saltadores.

Cokaze simplesmente não podia compreender ou não podia se acostumar com a idéia de que um rapaz, sem ser perguntado, tinha sempre que dar seus palpites.

Cardif sorria com ar de zombaria e aí é que mostrava grande semelhança com seu pai.

— Claro que é assunto seu, é coisa que você já devia saber, mas não sabe, infelizmente. Por exemplo: nem sabe por que Rhodan mantém em quatro lugares distintos da Terra cerca de cem mil homens aquartelados e prontos para entrar em ação. Por acaso, seus agentes já descobriram o que Rhodan tenciona com esta enorme reserva?

— Rhodan, Rhodan e sempre de novo Rhodan. Já não consigo mais ouvir este nome — esbravejou o patriarca. — Este Rhodan é a maior desgraça e o maior perigo para o Universo.

— Por que você fica tão nervoso assim, Cokaze? — perguntou Cardif com toda calma. — Basta para você apenas um hiper-rádio e dentro de dois ou três dias muitos milhares de espaçonaves de outras estirpes se juntarão a você e então ninguém mais falará deste Império Solar. Por que você não os chama em seu auxílio?

— Porque só um terrano pode pensar numa bobagem desta — respondeu o velho líder do clã.

Caso convocasse outras estirpes para ajudá-lo, teria que dividir com eles sua preciosa presa e isto não agradava a Cokaze.

— Bem — disse Cardif tranqüilo, pagando na mesma moeda — digamos que sou um terrano bobo. Mas, ao invés desta série de sabotagens, que não levam a nada, poderia tentar influenciar os deputados e senadores para que eles...

— Nem todos se chamam Thomas Cardif!

Esta frase, dita num ímpeto de raiva, Cokaze não podia mais desfazer.

— Você quer dizer que nem todos são traidores como eu, não é, saltador? Mas o fato é que os mais responsáveis, os parlamentares, principalmente, não estão muito contentes com Rhodan. Com um trabalho bem inteligente e uma propaganda bem articulada consegue-se muito mais que com esta estúpida onda de violência. Você nunca me perguntou por que motivo eu desertei. Vou contar-lhe, embora você não se tenha interessado em saber.

“Contra o parecer oficial dos médicos, Perry Rhodan mandou minha mãe para Árcon, a fim de tratar com o regente robotizado da compra de cem cruzadores. Nesta missão, ela, que já estava desenganada pelos médicos, acabou morrendo.

“Cokaze, isto bem espalhado na Terra, numa campanha de hábil propaganda, vai custar a cabeça de Rhodan. Com isto, ele será destituído do cargo de administrador e talvez processado. Um assunto deste mexe muito com os homens e principalmente com as mulheres, e a influência das mulheres na Terra é muito maior do que vocês possam imaginar.

“Só com estes meios é que se pode combater Rhodan. Temos que atacá-lo exatamente onde ele é vulnerável, no seu calcanhar de Aquiles.”

— Mas, Cardif, sua afirmação de que Rhodan tenha mandado sua esposa conscientemente para a morte não pode ser verdade.

— Não pode ser verdade? Não pode ser verdade, como, saltador? Foi este exatamente o motivo que me levou a quebrar meu juramento de fidelidade ao Império Solar. Por este motivo me insurgi contra tudo e contra todos, para destruir o assassino de minha mãe. Este é o único sentido de minha vida, é a única coisa que quero conseguir. Somente quando tiver destruído Perry Rhodan, poderei morrer tranqüilo.

O saltador afastou de sua frente a pilha de papel que estava na mesa. Fitou o jovem desertor com mais atenção. Sentiu um arrepio, diante daquela expressão de ódio, acumulada nos olhos de Thomas Cardif. Era um homem carregado de ódio, da cabeça aos pés, como jamais havia visto. E este homem havia feito a maior acusação contra seu pai: a de ter assassinado sua mãe.

— Não, Cardif, não posso acreditar numa acusação desta. Não consigo me libertar dos olhos castanhos de Rhodan, neles não se pode aninhar sentimento de ódio, muito menos de morte, mas, de qualquer maneira... — e um sorriso repugnante aflorou em seu resto — de qualquer maneira, a idéia é muito boa. Sim, vai acabar arruinando Rhodan. Está certo, Cardif, vinte e quatro horas antes da reunião plenária do Congresso, meus agentes vão fazer circular na Terra estes boatos.

— E mais uma coisa! Não se esqueçam dos mutantes de Rhodan, estes homens dotados de poderes incríveis. Há alguns que conseguem passar através de paredes, outros desaparecem repentinamente num lugar e surgem no mesmo instante a milhares e milhares de quilômetros dali.

— Só isto? — disse Cokaze com um sorriso zombeteiro. — Já ouvi falar nisso, mas acho que noventa por cento é exagero.

— Não há nenhum exagero, Cokaze. Dou-lhe até um conselho muito sério: não fique com a sua Cok-I aqui em Vênus. Vá com ela para bem longe no espaço. Mesmo lá, não estará cem por cento garantido contra a ação dos mutantes de Perry Rhodan.

Mais uma vez, Cokaze estava profundamente impressionado com as palavras de Cardif. No íntimo, ele percebia que o jovem desertor conhecia muito melhor as condições do diminuto Império Solar do que todos os seus bem pagos técnicos.

E o que se sabia até hoje do Império Solar?

Enquanto ninguém conseguia descobrir a posição da Terra, a Galáxia inteira vivia assustada com incríveis exageros. Muitos acreditavam piamente que Rhodan era muito mais poderoso que todo o Império Arcônida.

— E você, Cardif, não tem medo dos onipotentes mutantes de Rhodan? — era patente a ironia do saltador.

— Medo é isto aqui! — gritou Cardif, fazendo com que Cokaze se levantasse de um salto.

Num gesto rápido, o jovem desertor sacou duas pistolas de raios energéticos, apontando-as na direção do assustado patriarca.

— É assim que me preparo para enfrentar os mutantes de Rhodan. Felizmente, conheço pessoalmente alguns deles e os que não conheço, percebo logo pelo jeito e pela aparência. Aí então será eu ou ele. Pois não tenho dúvida de que Rhodan tudo fará para me pegar vivo. Sou mais importante para ele do que você com seus quatro mil aparelhos...

— Complexo de inferioridade, você não tem felizmente, não é, Thomas? — disse o patriarca sorrindo.

Thomas parece que não deu importância à indireta, mas certamente não a esqueceu. Abstraído em seus pensamentos, olhava para o chão. Sentia o olhar penetrante do velho saltador, mas fez como se não visse.

— Cokaze — recomeçou ele — somente espalhando boatos, não venceremos Rhodan. Por que você está deixando suas quatro mil naves enferrujando em Marte e Vênus? Somente o comércio de mercadorias entre Marte e Vênus haveria de lhe dar tanto lucro, que seria suficiente ao menos para cobrir as despesas da manutenção imediata.

— Arcônida...!

Pela primeira vez, Cokaze chamara o tenente desertor pelo nome de arcônida. Este rapaz, que pretendia usar mais como um meio para seus fins, revelava-se cada vez mais um estrategista frio e inteligente, descobrindo não apenas as vantagens para seu lado, mas explorando principalmente os pontos fracos e vulneráveis do adversário.

Cardif não reparou na expressão de surpresa no rosto de Cokaze.

— Vou dar minha contribuição para a queda de Rhodan — disse com a maior calma. — Duas horas antes da reunião do Congresso em Terrânia, vou fazer importantíssima proclamação à Terra, através do hipercomunicador. Cokaze, você me empresta seu transmissor de hiper-rádio?

— É claro, mas tenho que exigir, saber antes do conteúdo de sua mensagem, arcônida...

Os olhos avermelhados de Cardif se encheram de um brilho diferente. Em tom de voz diferente, chegou bem perto do patriarca.

— Acho que já lhe dei provas mais do que suficientes de que não trabalho contra seus interesses, embora não consiga me libertar da suspeita de que a estirpe de Cokaze só vê em mim um meio para seus objetivos. Saltador, não permita que esta suspeita se transforme em realidade. Sou arcônida e estou certo de que o cérebro robotizado me dará razão. Conte com este fato como coisa certa, e oriente todos os seus atos neste sentido. Assim ficaremos amigos.

Virou-se de repente, deixando o grande camarote de Cokaze, antes que o velho patriarca, surpreso e assustado, estivesse em condições de responder às palavras marcantes de Cardif.

“Santos deuses do espaço!”, pensou ele preocupado. “Será que este jovem desertor consegue ler meus pensamentos?”

 

A Frota Solar não estava mais voando em torno da Terra. Havia tomado posição próximo a Marte, Terra e Vênus.

No momento, Marte e Vênus estavam praticamente perdidos. Quem quisesse dizer o contrário, estaria mentindo a si mesmo. Os senhores de Marte e de Vênus eram, sem dúvida alguma, os mercadores galácticos da estirpe de Cokaze. Mas a Terra não lhes pertencia, e a Frota Solar ainda existia e continuava a ser um instrumento mortífero supereficiente, contra qualquer inimigo.

A ordem que a frota do Império Solar recebera determinava expressamente que não se impedisse o tráfego entre Marte e Vênus, mas que fosse cortada, com todos os meios, toda tentativa de aproximação da Terra por parte de qualquer nave cilíndrica.

Rhodan ainda era senhor absoluto de sua Frota Espacial, bem como da Segurança Solar e do Exército de Mutantes. Estes últimos ainda não se haviam esquecido de como foram tratados nos debates parlamentares. Seus sentimentos para com os deputados não podiam ser dos mais amistosos, no entanto, nenhum deles tivera a idéia de agir por conta própria para lavar a honra denegrida.

Seguindo o exemplo da Segurança Solar, que estava agindo sob o comando do Marechal Allan D. Mercant, os mutantes entraram também de corpo e alma na defesa perigosa do diminuto Império Solar. Seu primeiro dever era descobrir o que Cokaze tencionava fazer nos próximos dias e até que ponto ia a influência de Thomas Cardif, nos acontecimentos. Receberam de Perry Rhodan a missão especial de tomarem conta de Thomas Cardif e de trazer o desertor para a Terra.

Gucky, o rato-castor, estava nesta missão especial. Aliás, ao menos neste comando, era o único teleportador e telecineta. Os dons de John Marshall se concentravam no âmbito da telepatia, enquanto Fellmer Lloyd era o superespecialista em orientação e localização.

Apenas ouvindo, Reginald Bell estava sentado num canto, com cara de tristonho. Não podia acompanhar o comando, pois tinha que, com Rhodan e os colaboradores mais íntimos, estar presente aos debates no Congresso.

— Perry — falou Gucky, interrompendo, sem muita cerimônia, o administrador. — Será que o gorducho não pode participar do comando até amanhã? Prometo-lhe devolvê-lo são e salvo para a operação matadouro, sem nenhum atraso.

— Que negócio é este de operação matadouro, Gucky? — perguntou-lhe Rhodan meio surpreso.

Perry estava demasiadamente preocupado com as medidas que tinha que tomar.

— Também não sei não, chefe. O gorducho não pára de pensar em matadouro e quando fala a respeito usa nomes tão horríveis que fico vermelho de vergonha...

Neste momento, Reginald Bell deu um pulo de sua poltrona, procurando atingir Gucky. Porém, no meio do caminho ficou pregado no chão, não conseguindo mais nem levantar um pé.

Gucky estava se divertindo com suas forças telecinéticas e escolhera como vítima exatamente seu amigo Bell.

— Mas Perry, francamente não entendo o que Bell quer dizer com a palavra matadouro, mas acho que se refere à sessão do Parlamento, temendo que vocês todos levem na cabeça no meio destes deputados malucos. Será que vai ser tão perigoso assim?

Perry fitou os olhos sinceros de Gucky. O inteligente ser não estava agora brincando, como costumava fazer. Apreensivo e muito sério, o rato-castor continuava ao lado de Rhodan. Mantinha uma amizade muito profunda não só para com Rhodan, mas também para com Bell. Estaria pronto, a qualquer momento, a dar sua vida por eles, como já dera provas evidentes disso, mais de uma vez.

— Não, Gucky — respondeu Rhodan. — Não se pode desistir de uma hora para outra de uma obra de mais de setenta anos. Lutaremos para poder continuar cumprindo nossos deveres. Nós todos juntos já travamos muitas batalhas amargas e vamos agüentar mais esta do Parlamento...

Neste instante, uma das muitas instalações de alarme com ligação direta das centrais para o escritório de Rhodan deu o sinal de urgência. Do alto-falante soou a voz do Marechal Allan D. Mercant.

— Sir, comunicados simultâneos das agências noticiosas de Berlim, Oslo, Nova Iorque, Tóquio, Xangai, Sidney, Calcutá e Cidade do Cabo dão conta de que, de um momento para outro, irrompeu uma onda de boatos. Em tais boatos, o administrador é acusado por ter enviado sua esposa para Árcon, em flagrante oposição ao parecer dos médicos... e outras coisas mais, Sir.

Rhodan empalideceu. Por muitos segundos manteve os olhos cerrados.

— Obrigado, Mercant, está bem. Neste momento, Reginald Bell já estava conseguindo mover-se. O rato-castor o havia liberado da força de sua telecinese. Devagar, Bell se aproximou de seu amigo, botando-lhe a mão no ombro.

— Escute aqui — disse Bell muito pausado e em tom muito íntimo — estamos ainda em condições de nos defender e vamos nos defender, Perry. Permita que eu me encarregue de responder a esta calúnia. Acho que não está precisando de mim no momento, não é? Você me poderá achar facilmente através das centrais, que certamente sabem onde me encontro. E você Gucky, capriche, traga Thomas para cá, mas para mim, ouviu? Você está lendo meus pensamentos, não é?

Gucky interrompeu seu amigo que estava muito abatido.

— Se foi Cardif quem engendrou tudo isto, Bell, acho então que não é bom trazê-lo para você. O desertor deve ser tratado imediatamente por uma junta médica.

De repente, Rhodan se ergueu.

— Ninguém vai pôr a mão nele. A ação contra Thomas Cardif está cancelada. Também não vou responder ao que ele espalhou pelo mundo como boato.

— Mas eu vou — atalhou-o Bell. — E neste particular, não aceito nenhuma ordem sua, Perry. Até hoje sempre me abstive de mexer com Cardif, esperando e sempre esperando inutilmente. A mesma mão, que até hoje o protegeu, vai levá-lo agora para onde ele deve ir. E eu lhe prometo que Thomas chegará ao ponto certo. Estamos claros neste ponto, Perry?

Rhodan, o homem mais poderoso no Império Solar, não deu nenhuma resposta. Era um pai desesperado.

Nesta hora, ninguém estava prestando atenção em Gucky. Nos seus olhos se lia estupefação. Ele que superava em inteligência a quase todos os homens, sentia em seu instinto que, aqui, onde os fatos concretos deviam ser analisados com toda clareza, ainda restavam muitas sombras. Não podia dizer ao certo o que o inquietava, mas seu desassossego era tão grande que uma resolução desesperada tomava corpo dentro dele. Deixou o escritório de Rhodan em companhia de Reginald Bell, de John Marshall e de Fellmer Lloyd.

E logo depois, Gucky se teleportou. O fato não causou espanto a nenhum dos três, pois o rato-castor não gostava nada de andar a pé, e todos sabiam disso. Mas ninguém podia imaginar que fosse rematerializar-se na central do espaçoporto.

Seu inesperado aparecimento assustou a todos. Em qualquer outra situação, Gucky começaria com suas brincadeiras, mas desta vez nem pensou nisso.

— Quando parte a primeira nave para Vênus? — perguntou.

— Vênus e Marte estão fechados para qualquer vôo — foi a resposta que recebeu. — A Don-4, uma nave cargueira, foi a última a partir, exatamente há oito minutos, em direção a Vênus, com um carregamento especial de medicamentos...

— Onde estará esta Don-4 neste instante? — interrompeu Gucky. — Depressa, mostre-me esta nave na tela.

O controle de medição ligou a tela de ampliação e no mesmo instante surgiu um minúsculo ponto luminoso, que pela posterior ampliação se transformou num disco. A aparelhagem de medição calculou com exatidão de metros a distância entre a Don-4 e o espaçoporto de Terrânia. A Don-4 havia passado dos 15 mil quilômetros...

— Como, onde está ele? — perguntou o oficial que estava prestando informações, quando virou para falar com Gucky.

Mas até a cintilação do ar já tinha desaparecido.

E Gucky agora estava na Don-4, no posto de comando, ao lado do Capitão Eyk.

— Oba... — mais do que isto o capitão não conseguiu dizer.

Sua respiração estava ofegante e o suor lhe escorria da testa.

— Para onde está voando, capitão? — Gucky era para todos os efeitos tenente do Exército de Mutantes.

— Para a Califórnia, tenente. O senhor quer...

— A que distância de Vênus está a Califórnia?

— Um momento, tenente, isto eu não sei de cor. Brothers, pergunte à positrônica de bordo.

Um oficial, muito jovem, fez três movimentos no computador e quase no mesmo instante levou a mão para a fenda de saída. Seu trabalho deve ter sido perfeito pois o jovem, com um pouco de orgulho na voz, disse:

— Por favor, aqui está o resultado — e entregou a tira perfurada para Gucky.

Era realmente um quadro singular ver um rato-castor, metido num vistoso uniforme da Frota Solar, de pé no posto de comando da Don-4, concentrando-se com seus grandes e belos olhos para poder entender a tira perfurada do computador.

Aos poucos, o único dente roedor de Gucky começou a aparecer.

— Vai ser um sucesso!

Foi o que ouviram os oficiais da central da Don-4.

— Vai ser mesmo um recorde — continuou ele.

Depois, erguendo a cabeça e enfiando no bolso a tira de papel, disse:

— Quando é que entramos em transição?

— Como? — perguntou Eyk assustado. — Entrar em transição só para estes poucos milhões de quilômetros? Além disso, tenente, as transições estão terminantemente proibidas.

Gucky estava de fato arriscando tudo nesta operação. Quis dar a impressão de ser maior do que era. A grossa cauda, em que se apoiava ajudava um pouco nesta tentativa. Mas mesmo assim o seu tamanho pouco aumentava.

— Missão especial, capitão! Tenho que chegar a Vênus pelo caminho mais curto. Entre em transição. É uma ordem de um tenente do Exército de Mutantes. Tenho que apresentar minhas credenciais?

Se havia alguém que não tinha necessidade de credenciais, era o rato-castor. E os serviços que prestara à causa do Império Solar eram fora de série.

Se alguma coisa fracassasse, nem mesmo sua grande amizade com Rhodan e Bell o haveria de salvar de uma deprimente expulsão do Exército de Mutantes.

— O senhor tem que ir para Vênus, tenente? — o Capitão Eyk ainda continuava perplexo. — Mas, já estamos nos aproximando de Vênus e...

Com um gesto espalhafatoso, Gucky o interrompeu.

— Que diferença faz? Então vou me teleportar, capitão.

— Mas não nesta distância toda.

— Por que não? Posso sentar nesta poltrona, capitão? Gostaria de tirar uma soneca, antes.

Gucky tirou mesmo sua soneca e continuou dormindo até mesmo durante a transição, que fora realizada dentro do sistema solar e registrada por todas as estações em atividade.

Na Terra estavam todos zangados e não menos zangados também estavam todos em Plutão, no satélite Ganimedes e em meia centena de espaçonaves da Frota Solar. Palavrões eram ouvidos, inclusive através dos canais do intercomunicador. A instalação do hipercomunicador da Don-4 estava em atividade.

— Eu sabia disso — respondia o Capitão Eyk, acordando o rato-castor que cochilava tranqüilamente. — Alô, tenente, ouça um pouco o que estão dizendo através das freqüências do hiper-rádio.

Gucky ouviu por algum tempo e depois, com muita euforia, começou a falar:

— Missão especial, isto justifica tudo. Capitão, você ainda mantém a simples velocidade da luz?

Esta última frase era do vocabulário de Bell. Gucky gostava do modo de falar de Bell, um tanto rude, principalmente quando não havia nenhuma razão para usá-lo.

Mas o Capitão Eyk não estava com disposição para piadas. Estava prevendo complicações. O que se ouvia no hiper-rádio deixava antever o pior.

— Não, tenente, não estamos mais voando com a velocidade da luz. Estamos brecando fortemente. Mas terei que mandá-lo para os quintos dos infernos se, devido a suas ordens, tiver mais aborrecimentos.

— De acordo! — disse Gucky chiando.

Pouco depois, o lugar, onde estivera o singular mutante, achava-se vago. As lamúrias do Capitão Eyk, ele não as ouviu.

Da instalação da positrônica, perguntava Brothers:

— Não estará ele já em Vênus... este terrível rato-castor?

— Pergunte a ele mesmo — respondeu Eyk, zangado. — E agora, por favor, desligue este desgraçado aparelho de hiper-rádio. Não suporto mais esta gritaria de todos os lados. Chame-me somente se for uma ligação de Terrânia.

 

Gucky procurou cair de pé. Mas só o conseguindo, porém, na quarta tentativa, deixando-se arrastar pelo chão.

— Nunca mais farei isto — disse ele quase gemendo. — É meu primeiro e último recorde em salto de distância por teleportação.

Mas Gucky gozava de uma excelente constituição física. Enquanto a chuva da noite se abatia sobre ele, notou que as forças dispendidas no perigosíssimo salto de teleportação se refaziam paulatinamente.

Meia hora após sua chegada a Vênus, estava pronto para qualquer coisa. Para ele, não tinha importância alguma o local onde se achava. Era questão de somenos importância. Agora procurava, por via telepática, localizar Thomas Cardif, o filho de Perry. Rhodan.

Era sua missão especial.

Apesar de procurar muito, não o achou.

— Devia ter trazido Harno — dizia se lamentando e desejando ter a seu lado o singular ser esférico, o magnífico televisor vivo.

Harno, porém, estava na Terra, não podendo por isto ouvir seu apelo devido à grande distância.

A chuva continuava forte. Gucky olhou para seu cronômetro e viu as horas. Faltavam ainda quatro horas para a alvorada.

Quando, apesar da chuva torrencial, começou a clarear o dia, Gucky estava sentado sob a copa de uma frondosa palmeira, cujas folhas em leque, de mais de um metro, lhe serviram de abrigo. O rato-castor já não media mais um metro de comprimento. Todo encolhido, dava uma impressão deprimente.

— Tomei esta iniciativa e tenho que arcar com as conseqüências.

Tinha que se lamentar realmente... Suas forças não eram suficientes para se concentrar e poder ativar seus dons telepáticos. A procura de Thomas Cardif não lhe estava rendendo quase nada, era um esforço inútil.

De repente, teve um calafrio e seu corpo estremeceu todo. Soltou um guincho curto e penetrante, como que horrorizado consigo mesmo.

— Agüentar firme! — foi o comando que deu a si mesmo.

No mesmo instante, o rato-castor era apenas um telepata. Reduziu a um mínimo todas as outras funções mentais, concentrando suas forças disponíveis nos dons telepáticos. Sentiu então como era enorme a distância que o separava de Cardif e foi então que lhe veio ao consciente que o filho de Rhodan não se encontrava mais em Vênus, mas que tinha que estar no espaço, muito acima deste planeta.

Para os leigos, parecia sempre uma brincadeira, quando um teleportador, usando de seus dons, se transportava para bem longe. Poucos, porém, sabiam que esforços ingentes eram necessários para se teleportar e quais eram as condições indispensáveis para se atingir o objetivo colimado, evitando assim um salto errado, quase sempre de conseqüências desastrosas.

Thomas Cardif se encontrava a bordo de uma espaçonave. Se esta nave se movia a grande velocidade ou não, isto pouco lhe interessava, mas tinha que fazer uma idéia mais nítida do espaço em que se encontrava o filho de Rhodan, no momento.

O rato-castor teve sorte, pois neste momento, os pensamentos de Thomas Cardif se preocupavam exatamente com a pobre instalação de seu camarote, principalmente com o fato de que não existia ali nenhum meio de se comunicar com o resto da nave.

E foi neste exato momento que Gucky se teleportou para uma nave cilíndrica que dava voltas em torno de Vênus.

 

Allan D. Mercant, chefe da Segurança Solar, foi o primeiro na Terra a saber da curta transição realizada pela Don-4. As transições achavam-se suspensas, principalmente, dentro do sistema solar.

Mesmo antes que a Don-4 chegasse até a Califórnia, para entregar um medicamento especial para um de seus tripulantes em estado grave, Eyk era chamado ao tele-comunicador.

— Será que você bebeu demais? — disse Mercant severamente para o capitão. — Não pode haver outra explicação para sua pequena, mas irregular e altamente nociva transição?

O nervosismo tomou conta do pobre Capitão Eyk. Gucky o deixara em má situação. Seu ódio contra o rato-castor não tinha mais medidas. Protestando, tentou defender a pele.

— Gucky, o tenente do Exército de Mutantes...

— Um momento, capitão — interrompeu-o muito cortesmente Mercant — o rato-castor está a bordo de sua nave e...

— Esteve, Sir, já deixou a Don-4 há tempo. Se é verdade o que disse, queria ir para Vênus...

— Para Vênus?... — repetiu Mercant horrorizado. — Quanto tempo faz que ele desapareceu da Don-4?

O Capitão Eyk perguntou o tempo exato na central de sua nave.

— Obrigado! — disse o Marechal Mercant, desligando o telecomunicador.

— Que coisa horrível... — disse para si mesmo o Capitão Eyk.

Porém, no íntimo, estava contente, pois este incidente já havia passado.

 

Com uma única ordem, Reginald Bell mandou interromper toda a programação de televisão do sistema solar, pelo menos das estações oficiais. Estas emissoras perfaziam mais de cinqüenta por cento da cadeia de televisão que, dia e noite, alimentava o Império Solar com notícias, e programas educativos e recreativos.

Em resposta ao boato de que Perry Rhodan, tivesse mandado sua esposa, contrariando o conselho dos médicos, para uma perigosa missão em Árcon, com o intuito de ficar livre dela, Reginald Bell havia determinado a retransmissão inteira das cerimônias do sepultamento de Thora no mausoléu da Lua.

Quem se lembrasse daqueles momentos angustiantes, tinha que reconhecer que o nojento boato tinha apenas o objetivo de difamar Rhodan, com a imputação de um assassinato moral.

Esta apresentação, de duas em duas horas, da solene cerimônia fúnebre não deixava de ser um terrível golpe para Thomas Cardif. A câmara mostrava, numa cena comovente, como Perry Rhodan, tremendamente abatido pela morte da esposa, estendia a mão para o filho, que estava a seu lado...

E a equipe dos operadores de televisão foi realmente sensacional na técnica que usou durante a filmagem. Os homens atrás das câmaras, num instinto de repórteres, devem ter sentido a importância deste gesto de Rhodan, pois com suas possantes teleobjetivas, fizeram a cena ser presenciada bem de perto.

E estas cenas foram transmitidas, na época, para milhões de seres humanos, mostrando como Thomas Cardif, retrato fiel de seu pai, Rhodan, recusou a mão que lhe fora estendida. Mas o operador filmou também quando o temperamental Reginald Bell avançou de repente e afastou Thomas Cardif de junto de seu pai, ficando ele, Bell, ao lado do amigo desesperado, enquanto Thomas recuava uma fila para trás.

O próprio Bell estava recebendo as confirmações dos horários de retransmissão das diversas estações, quando chegou um chamado de Allan D. Mercant.

— ...já falei também com John Marshall. Está tão surpreso quanto eu. Gucky deve estar de fato em Vênus.

— E o que pretende ele em Vênus? — perguntou Reginald Bell, que não estava em condições de selecionar as notícias mais importantes para ter uma visão geral dos acontecimentos.

— Ora essa, Bell! Que pretende Gucky em Vênus? Ele meteu na cabeça que tem de pegar Thomas Cardif e trazê-lo para Terrânia — respondeu Mercant.

Bell conhecia Gucky muito melhor do que Mercant. O gorducho, de cabelos ruivos, balançou a cabeça.

— Não, não acredito, Mercant, mas... em todo caso... — qualquer um podia perceber como Bell mudara um pouco de atitude. — Mas, por favor, dê-me a distância exata do local de onde Gucky saltou para Vênus.

A resposta veio logo, mas seguiu-se imediatamente a contrapergunta de Bell:

— Será que você não entendeu mal? E Gucky saltou sem o uniforme espacial? Mercant, não estou duvidando de suas faculdades mentais, mas tudo isto parece tão utópico, não é?

— Tudo parece utópico neste episódio, Sir. Já é estranho o fato de ele ter ordenado ao capitão da Don-4 que executasse uma transição dentro do sistema solar. Os estremecimentos estruturais provocaram uma confusão tão grande nas medições, que todos os valores, nestes poucos segundos, estão alterados.

— Bom, isto é um assunto que diz respeito mais às estações — Bell não queria perder tempo com coisas secundárias. — Para mim, é da maior importância saber o que pretende este malandro. O chefe está a par desta saída clandestina e proibida de Gucky?

— Não, ainda não. Mas vou agora colocá-lo ciente de tudo.

— Este trabalho, Mercant, você deixa comigo — atalhou-o Bell. — Chame-me se tiver outras notícias importantes, marechal.

— Certamente, Sir — respondeu Mercant, desligando.

Estava convencido de que Bell não ia falar nada com Rhodan a respeito das travessuras de Gucky. Se havia quem sempre estendia a mão para encobrir as peraltices de Gucky, era exatamente Reginald Bell.

 

Não se ouvia o menor ruído, quando Gucky rematerializou-se no corredor do camarote de Cardif, na Cok-I. Olhou imediatamente para os lados. O amplo convés da nave cilíndrica estava bem iluminado, não havia ninguém. Atrás do mutante, uma porta. A tabuleta indicava que era ali a entrada para um depósito. Gucky era um exemplo vivo da preguiça. Não gostava nada de andar, preferindo sempre usar seus dons de teleportador. Estava agora com tanta preguiça de abrir a porta com a força de seus músculos, que pôs em ação seu dom de telecinese. E, como num passe de mágica, a porta se abriu com suavidade e Gucky desapareceu no interior do depósito.

Ali também estava tudo bem iluminado. O compartimento era um depósito médio, lotado até os dois terços com mercadorias. Curioso como era, queria saber o que havia nos recipientes de plástico. Mais uma teleportação de poucos metros e ele estava no ponto mais alto do grande empilhamento. Daí, via bem os fundos do depósito e foi olhando para lá que avistou algo...

Assustou-se com a visão de tantas bombas, que estavam bem empilhadas no fundo, tendo na frente, para despistar, os recipientes de plástico.

— Puxa! E a gente acredita sempre que os comerciantes das Galáxias só fazem transação com goma de mascar, botões de camisa, pílulas para o fígado e outras bugigangas. Mas, quando se olha atrás das cortinas, encontram-se estas bombas, das quais uma só bastaria para arrasar meio planeta. Mas, espere um pouco, seu Cokaze, que você não terá muita “alegria” com estas bombas!

O rato-castor estava, tal qual um ser humano, em cima da grande pilha de bombas. O movimento de suas patas dianteiras, Gucky havia conseguido, imitando o andar dos homens. Aliás, tinha uma grande queda para imitar e representar. Podia-se dizer que sua grande paixão era brincar. Mas, conforme ele mesmo dizia, quase não tinha oportunidade para isto, e poucas vezes dava cordas ao seu instinto brincalhão. Mas aqui estava uma ótima oportunidade para isto.

E ele pensou:

“Onde há bomba, tem de haver também detonador por perto. Uma bomba sem o dispositivo de disparo é um simples ferro velho. E essas bombas vão mesmo ser reduzidas a simples ferro velho.”

Ouviu um ruído. A porta, que ele havia fechado, foi aberta por cima. No mesmo instante, Gucky captou os pensamentos de dois saltadores. Além disso, captou também ondas de computação. Mas não as conseguia entender, até que percebeu que eram vibrações incompletas de uma máquina positrônica, que deviam originar-se de algum robô.

Num rápido movimento, Gucky desapareceu atrás de um recipiente de plástico. O que os dois saltadores estavam falando era de pouco interesse para ele. Muito mais rendoso era pegar seus pensamentos e o que conseguiu captar, obrigou-o a sorrir com o dente roedor à mostra.

O patriarca Cokaze tinha dado ordens a sua gente de levar para a escotilha de descarga um terço das grandes bombas, acompanhadas dos respectivos detonadores, a fim de distribuir este perigoso material, nas próximas horas, para as naves de sua frota, que formariam fila ao lado da grande Cok-I.

Num mal falado intercosmo, Gucky ouviu um dos saltadores:

— Eu acho que nosso chefe quer extorquir o contrato de monopólio comercial destes terranos, sob a ameaça de milhares de bombas atômicas.

Os robôs dos comerciantes das Galáxias começaram a remover os recipientes de plástico que camuflavam as terríveis bombas nucleares. Gucky preferiu abandonar o recinto, antes que fosse visto por algum saltador.

Apesar de sua inclinação natural para a brincadeira, Gucky — sem deixar de ser prudente — era um estrategista ousado, que dificilmente arriscava tudo.

Controlando o pensamento dos dois saltadores, conseguiu saber onde estavam os detonadores. O espaço interno de uma nave cilíndrica, como a de Cokaze, era dominado por Gucky tão bem como o de um aparelho arcônida. A fabricação em série destas naves cilíndricas exigia que todas fossem rigorosamente iguais, como dois ovos.

Gucky não correu nenhum risco, quando, dois andares mais para baixo, teleportou-se e rematerializou-se no convés superior.

Lá estava ele, pairando no ar, enquanto a seus pés, um saltador controlava o trabalho de três robôs que embalavam, em recipientes especiais, à prova de choque, os pesados detonadores das bombas nucleares.

Enquanto suas forças telecinéticas o mantinham pairando no ar, Gucky estava refletindo de que maneira poderia anular melhor a ação dos detonadores. Não queria agir com violência, mas, talvez fosse obrigado a isso!

Gucky estava abusando de seus poderes paranormais. Neste momento, fazia uso de seu mais novo poder: a hipnose...

O mercador galáctico nem reparou que dois de seus três robôs de serviço haviam “recebido” de repente a ordem de tirarem os detonadores da caixa de plástico, onde já estavam acondicionados, colocando-os onde estavam antes.

Foi um trabalho de poucos minutos. Gucky, flutuando pouco abaixo da cobertura, sorria feliz com seu dente roedor.

Depois veio a segunda ordem do saltador hipnotizado. Cada robô saiu carregando uma caixa com os detonadores, deixando o depósito, que normalmente era trancado três vezes. Atrás dos dois robôs, vinha o saltador hipnotizado, enquanto o terceiro robô fechou a porta, travando-a novamente, sem perceber a presença de uma sombra de mais ou menos um metro, que se assemelhava a um grande rato.

Gucky rematerializou-se junto da escotilha de carga, esperando pelo saltador hipnotizado e pelos dois robôs com as duas caixas contendo os detonadores.

Gucky estava preparado para qualquer incidente e para estender seu domínio hipnótico também sobre outros saltadores. Mas felizmente não foi preciso, não houve nenhum contratempo. O próprio saltador hipnotizado acionou a escotilha, cuja porta interna se abriu lentamente. Apareceram os robôs com as duas caixas.

— Mais depressa! — ordenou Gucky ao saltador, que ainda estava sob total domínio hipnótico.

Enquanto isto, apesar de sua concentração, Gucky não se esqueceu de que o simples movimento de abrir uma comporta haveria de produzir na central da nave cilíndrica um alarme automático, luminoso ou sonoro.

Gucky ativou suas forças telepáticas, para controlar o que se passava na central da Cok-I. Até o momento, o sinal de alarme ainda não tinha tocado.

Abriu-se então a comporta externa da escotilha de carga, depois que duas bombas sugaram o ar no espaço entre as duas comportas.

Pela tela de visão direta, o rato-castor viu quando os dois robôs atiraram ao espaço, com toda força, as duas caixas com os detonadores nucleares.

Mas as duas caixas com a perigosa carga ainda não haviam saído totalmente. A nave cilíndrica Cok-I, tinha, como todas as demais espaçonaves, o envoltório de proteção.

De repente, Gucky sentiu telepaticamente que o alarme havia soado na central da Cok-I. Viu, de baixo para cima, o saltador hipnotizado que estava ao lado dele, com uma expressão abobalhada, sem nenhum movimento, sem mesmo ouvir o alarme.

O alarme fez com que a comporta externa se fechasse no mesmo instante. Gucky dispunha de poucos segundos para destruir os detonadores atômicos. Suas poderosas forças telecinéticas entraram em ação, pegaram as duas caixas que estavam caindo normalmente no envoltório de proteção e as atiraram com uma velocidade inaudita de encontro ao mencionado envoltório.

Estes campos magnéticos de proteção, construídos principalmente com o objetivo de aparar o choque de asteróides de pequenas dimensões, reagiram normalmente ao impacto das duas caixas. Apenas não se podia saber onde se localizavam as duas caixas de plástico. Quando o comandante converteu em gás os dois invólucros retidos nos campos magnéticos de proteção, foram os detonadores que se dissolveram. Simultaneamente, este envoltório magnético, feito para suportar os mais terríveis raios energéticos térmicos ou nucleares, foi solicitado até o limite de seu poder de resistência.

Bem rente da Cok-I, surgiram dois pontos minúsculos, de incandescência amarelada, espalhando fortes raios de luz para todos os lados.

A confusão surgida na central da Cok-I atingiu o próprio patriarca Cokaze, que estava ali casualmente. Do posto de radiogoniometria vinham gritos desesperados, dando conta de que os instrumentos de medição não estavam funcionando. Através das telas panorâmicas irrompiam os lampejos ofuscantes dos dois pontos de incandescência amarelada. Ninguém conseguia saber o que tinha sido atirado de dentro da Cok-I e o alarme deixava todo mundo nervoso.

Entre os muitos que acorreram para a central, estava Thomas Cardif.

— Para fora, para fora — ouviu o patriarca berrando.

Quatro ou cinco saltadores deixaram a central correndo, menos Thomas Cardif.

— Para fora, terrano — gritou o chefe da estirpe dos Cokaze, na cara de Thomas.

Neste momento, ali estava de novo o arcônida Thomas Cardif.

Um simples gesto bastaria para lembrar

Cokaze de que a mãe de Cardif era uma princesa arcônida.

— O que está acontecendo?

E esta pergunta não saiu dos lábios de Cokaze, mas de Thomas Cardif.

O rato-castor não estava mais nas proximidades da escotilha de carga, escondera-se numa cabina afastada da sala de comando da Cok-I e “ouvia” o que se passava na sala de comando.

— Todos os comerciantes das Galáxias são tão nervosos assim? — continuou Cardif, em tom de zombaria, depois de Cokaze não lhe responder. — Então só me resta recomendar-lhes um curso na Academia Espacial da Terra. Lá vocês podem aprender como não perder a cabeça numa hora difícil. Meu Deus, quanto tempo vai levar ainda até que vocês sejam donos dos seus cinco sentidos?

Com uma fúria insana, que se confundia com ódio, o patriarca encarava o jovem terrano. Soltou um palavrão em arcônida, fazendo o sangue subir à cabeça de Thomas Cardif, que no primeiro rompante teve ânsias de sacar sua pistola energética para atingir Cokaze. Mas acabou controlando-se.

Do seu esconderijo, Gucky estava recebendo tudo de primeira mão.

— Agradeço-lhe pela “fina” expressão, saltador — disse Thomas, frio e duro como aço. — Como desertor, não espero receber outra coisa. Mas, já recuperou seus cinco sentidos?

— Não foi nenhum ataque — afirmou o saltador que estava de serviço na goniometria. — Foi algo que não veio de fora. Tive impressão de serem dois invólucros que flutuavam no envoltório magnético...

— E eu venho ouvir isto somente agora? — interrompeu-o Cokaze gritando. — Você disse dois invólucros... tem certeza de que eram dois...?

— Perfeitamente, senhor, duas peças e acho que vinham da escotilha maior de carga.

— Arcônida, venha comigo.

Dizendo isto, o patriarca saiu correndo na frente.

Agachado e imóvel em seu esconderijo, Gucky sorria feliz. A brincadeira lhe dava ótima disposição e quando pensava que as terríveis bombas, que estavam três andares abaixo, seriam agora totalmente inofensivas, sentia vontade até de assobiar de alegria.

Continuou mantendo contato com Cokaze e Cardif. A suspeita do patriarca tinha razão de ser. Cokaze temia pelos detonadores de suas bombas atômicas.

Já estavam chegando ao depósito camuflado, garantido por três sistemas de travamento, onde se guardavam as bombas e os detonadores, Cokaze na frente e Cardif atrás.

— Vazio, vazio... pelos deuses do espaço, tudo vazio! Não pode ser verdade! Onde está Foggzi, com seus três robôs? Foggzi, Foggzi!

Mas Foggzi não estava em condições de responder. Ainda estava sob forte controle hipnótico, parado diante da escotilha de carga. Seus olhos petrificados encaravam a comporta interna, sem nada ver. Atrás dele, os dois robôs de serviço esperavam rígidos, como era natural em máquinas automatizadas.

Alguns minutos mais tarde, localizaram Foggzi em seu estado hipnótico. A notícia chegou até o patriarca que, ofegante de tanto correr, foi até a escotilha maior. O estado de Foggzi lhe era um mistério.

Gucky, em seu esconderijo, se contorcia de rir.

Neste mesmo tempo, Thomas Cardif tentava fazer com que o patriarca compreendesse que, dentro de sua Cok-I, devia haver um dos elementos do Exército de Mutantes de Perry Rhodan.

Cokaze não se atrevia mais a zombar dos mutantes, e recebeu com certo temor as ponderações do terrano.

— Então vamos procurá-lo, arcônida — disse resoluto.

— Permita-me perguntar-lhe antes, o que você pretendia fazer com estas bombas atômicas, saltador?

— Queria dar um ultimato a Rhodan: ou o monopólio comercial para minha estirpe ou a destruição total da Terra, Vênus e Marte. Mas acho que isto não vai agradar muito a você, terrano, não é? — indagou Cokaze, ao ver a cara fechada de Cardif, diante de tamanho horror.

— Não, saltador, não pode agradar nem ao diabo. Mas uma coisa eu lhe digo: com estes meios não dominará Rhodan. Vocês, comerciantes galácticos, são e continuarão sendo leigos em tudo que diz respeito aos terranos. Ainda estão muito longe de conhecerem este grande povo da Terra. A raça terrana é a mais firme e determinada do Universo.

— Por que você não ficou com os terranos, se os aprecia tanto? — disse o velho patriarca, meio admirado, meio enraivecido.

— Será que você precisa ouvir mais uma vez, patriarca? Já se esqueceu de que Perry Rhodan é o assassino de minha mãe?

— Acabe de uma vez com esta história sem cabimento — atalhou Cokaze em tom de irritado. — Qual destes mutantes você acha que está a bordo de minha nave?

— Procurem vocês mesmos! — disse Thomas Cardif, tremendamente decepcionado. — Se acha, saltador, que eu ando atrás de uma quimera ou de um fantasma, por que você finge então estar do meu lado? Não se esqueça de quem foi minha mãe e também não se esqueça de que você não passa de um mercador galáctico, Cokaze.

O arcônida estava de novo se confrontando com o saltador. E mais uma vez, o comerciante das Galáxias se curvou perante o orgulhoso arcônida. Um jovem, nascido para líder, com determinação e inteligência, apenas ainda não bem amadurecido, estava ali de pé, diante do velho e experimentado patriarca, olhando para o saltador, como se fosse seu servo.

— Não estique o arco demais, arcônida — disse o patriarca.

Gucky estava ouvindo tudo isto telepaticamente. O fato de quererem procurá-lo, não o assustava. Vênus não estava tão longe assim. Um salto bastaria para o teleportar ao planeta. Não tinha mais nada que fazer aqui.

O chefe havia proibido expressamente levar Thomas Cardif para Terra de maneira violenta e Gucky não ia desobedecer a uma ordem de Rhodan.

Concentrou-se e partiu de volta para Vênus.

 

Quatro horas antes do início dos debates no Parlamento, Gucky aparece de repente ao lado de Rhodan.

— O que você quer? — perguntou admirado. Não sabia nada da fuga de Gucky para Vênus, pois Bell não lhe contara nada a respeito. — E como vai você? Está doente?

O rato-castor que brincava com todos e não respeitava nem a presença de Perry Rhodan, ajeitou-se na poltrona mais próxima.

— Não estou nada doente, Perry, apenas um pouco cansado. Mas isto não tem importância. Estou voltando da espaçonave de Cokaze. Este malandro tencionava lançar centenas de bombas atômicas sobre a Terra, Vênus e Marte, caso você não lhe concedesse o monopólio comercial sobre o sistema solar. Mas eu lhe estraguei este prazer, jogando fora todos os detonadores...

— Quem foi que mandou você para Vênus e depois para a Cok-I, Gucky? Foi Marshall, por acaso?

— Ninguém, chefe. Eu...

— Como é que você é capaz de se afastar assim, por conta própria, Tenente Guck, numa situação como esta em que estamos?

— Perry, por favor, não use este tom comigo. Foi unicamente por sua causa que arrisquei a vida e passei por maus momentos...

Os olhos de Rhodan começaram a cintilar de um modo diferente.

— Tenente Guck, não me agrada que, ultimamente, venha tomando certas liberdades que não se coadunam com os deveres de um tenente do Exército de Mutantes...

— Por favor, Perry — implorou Gucky com a coragem do desespero — você não pode falar comigo menos formalmente? Chefe, controlei os pensamentos de Thomas Cardif... Seu filho crê cegamente que você enviou Thora, já desenganada pelos médicos, para morrer em Árcon e...

O resto ficou preso na garganta, não teve coragem de dizer.

Rhodan esticou o braço para Gucky, pousando-lhe a mão no lombo, em sinal de reconhecimento.

— O que você está dizendo? Como?

— Sim — disse sem medo — ele crê exatamente o que é espalhado por aí neste boato nojento.

— E o que mais, Gucky? Você ainda tem alguma coisa para falar. Não tenha receio.

— Não tenho mais nada, não, mas uma pessoa que procede erradamente baseada na sua convicção, deve ser julgada muito diferentemente da que age com má intenção.

— Quer dizer então que devo deixar o desertor Thomas Cardif fazer o que quer? Você também já pertence ao grupo dos que me vêm pedir para perdoá-lo, só porque é meu filho?

Gucky não agüentou mais e fazendo uso de seus poderes telecinéticos, tomou, pela primeira vez na vida, uma atitude quase hostil para com Rhodan...

Todos sabiam que o melhor amigo do administrador era Gucky, igualando ou mesmo superando Reginald Bell. Porém, pela força telecinética de Gucky, o braço de Rhodan foi lançado para o lado e o rato-castor se afastou um pouco, por medida de segurança, tomando a seguir a posição de sentido.

— Administrador... Tenente Gucky se apresenta, de volta de sua missão espontânea. Nesta operação, por conta e risco do operante, pude constatar que Thomas Cardif não se colocou do lado dos saltadores por motivos condenáveis. O desertor, Tenente Thomas Cardif, está convencido de que o senhor condenou sua mãe à morte. E mesmo que o senhor me mande para os quintos dos infernos, tenho de perguntar: quem é o maior culpado das coisas chegarem a este ponto, o senhor ou seu filho, Thomas Cardif? Perry, por que razão ele se chama Cardif e não Rhodan? E agora, se quiser pode me mandar embora.

O rato-castor, mantendo sempre a posição de sentido com o tronco apoiado nas patas traseiras e na volumosa cauda, mirava firme Rhodan, demonstrando sinceridade. Esperava pela decisão. Percebeu que o grande homem, sentado à sua frente, travava uma verdadeira batalha íntima, pesando agora tudo que ouvira.

De repente seu corpo deu um leve galeio para trás, como se estivesse despertando de um sonho, e seus olhos revelaram um brilho, afetuoso. Aflorou-lhe o primeiro sorriso. Respirou profundamente e vieram-lhe as primeiras palavras:

— Desapareça, Gucky, você é um sujeito extraordinário, mas não beba todo o conhaque de Bell.

— Não estou com sede não, chefe — chilreou e no mesmo instante estava lá em cima.

— Oh! O gorducho está vindo... Havia captado os pensamentos de Bell, que realmente chegou instantes depois. Parecia tresnoitado e sobrecarregado de aborrecimentos. Só quando passou a seu lado, foi que notou a presença de Gucky.

— Oh!... Você por aqui? — disse olhando demoradamente para o rato-castor, que, como sinal de grande contentamento, exibiu seu dente roedor.

— É claro que estou aqui, felizmente, e não mais na nave de Cokaze.

— Que bobagem que você está dizendo, Gucky?

Bell não estava com a consciência tranqüila de haver ocultado a Rhodan a missão empreendida pelo rato-castor. Gucky naturalmente estava lendo todo o pensamento do amigo.

— Gorducho, todos nós estamos muito cansados, mas não tanto como o malandro do Cokaze, lá na Cok-I.

Bell lhe chamou a atenção para que não usasse tais expressões, pois Rhodan se aproximava. Mas o rato-castor não deu muita importância. Estava contente demais, para modificar seu modo de falar.

— Chefe, onde é que parei mesmo? Ah! É verdade, estava falando de Cokaze. Ele estava preparado para lançar bombas atômicas sobre a Terra, Vênus e Marte, caso não conseguisse o contrato do monopólio comercial. Como é que você acha que ele se sentiu ao saber que os fogos de artifícios, no envoltório de proteção da Cok-I, foram causados pelas caixas de detonadores atiradas da escotilha? E depois, quando Cokaze já estava quase desanimando, Cardif o obrigou a se levantar para continuar a luta. Cardif está com o patriarca dos saltadores da estirpe dos...

— O nome não tem importância, Gucky — interveio Rhodan — mas não venha nos contar histórias de fadas, hein?

Bell olhou admirado para Gucky, mas mais admirado ainda para Rhodan. Pela primeira vez, desde a fuga de Thomas Cardif para Plutão, o administrador do Império Solar não demonstrava nenhum constrangimento ao ouvir o nome de Cardif.

— Chefe — continuou Gucky entusiasmado — o mais arrogante arcônida não poderia criticar o patriarca Cokaze, como Thomas Cardif o fez. E antes, na sala de comando da Cok-I, quando os saltadores estavam em pânico, tremendo de medo, devido às grandes faíscas dos detonadores no envoltório energético, Thomas lhes disse que precisavam fazer um curso na Academia Espacial de Terrânia, para aprenderem a se dominar na hora do perigo... Pois é — disse o rato-castor, completando seu relato — Cokaze será um osso duro de roer.

— Concordo com você, Gucky — falou Rhodan, entregando a Bell uma tira de papel com um hiper-radiograma.

Seu rosto se anuviou ao ler a mensagem.

— O quê? O maluco do Cokaze está exigindo o contrato sobre o monopólio comercial à base de antigas leis das Galáxias? E este radiograma foi também enviado para o Parlamento?

— Não, Bell, este radiograma, não. O Parlamento recebeu dele uma informação. Nossa estação a captou e decifrou. Aqui está ela:

Bell passou os olhos.

— Uma raposa esperta e um péssimo sujeito. Tenta seduzir o Parlamento, apresentando Thomas Cardif como novo administrador.

Viu o gesto confirmativo de Rhodan como também o brilho de seus olhos, indicando disposição para a luta.

— Já estão em andamento operações contra a frota dos saltadores? — perguntou Bell com cautela.

— Sim, mas quem está em atividade é somente o Exército de Mutantes e estas operações serão simultâneas em Marte e Vênus, e vão deixar os saltadores de cabelos brancos.

 

Se havia alguém que sabia tirar grandes proveitos de pequenas vantagens, era Perry Rhodan.

A Frota Espacial do Império Solar estava de prontidão. Unidades pesadas e superpesadas circunvoavam Marte e Vênus em queda livre. A cem mil quilômetros, caças e destróieres do Comando Espacial patrulhavam os dois planetas ocupados pelos saltadores. Ao aparecimento de uma espaçonave cilíndrica, mergulhavam na imensidão do espaço.

A Frota Espacial tinha ordem de abrir fogo só se as naves dos saltadores saíssem dos planetas para atacar a Terra.

Os comandantes de Rhodan não tinham nada a ver com as confusões políticas. Obedeciam apenas as ordens de Perry Rhodan e estavam voltados exclusivamente para os problemas da Frota Espacial Solar. Quantas vezes, Perry, em pessoa, a guiou em lutas renhidas e quantas provas deu de ter sido seu competente comandante.

A vida em comum nas horas difíceis era o grande elo de união de toda a Frota Espacial. E por mais abalada que estivesse a posição de Rhodan nos assuntos políticos, tanto mais estreitos eram os laços que uniam a pequena, mas bem preparada força terrana.

Uma parte dos radiogramas, trocados entre as unidades pesadas, vinham em código simples. O patriarca Cokaze devia estar em condições de decifrá-los e realmente as decifrava.

As mensagens davam conta de que Rhodan havia dado ordem à frota para que abrissem fogo sobre qualquer nave dos saltadores que apenas tentasse se aproximar da Terra.

Numericamente, a frota de Cokaze era muito maior do que o conjunto das unidades terranas, embora os saltadores não possuíssem nada para enfrentar os gigantescos encouraçados esféricos de 1.500 metros de diâmetro, com sua tremenda potência de fogo. Estas ponderações impediam, no momento, uma operação relâmpago das naves cilíndricas dos saltadores contra os pontos estratégicos da Terra. Quando, há dias atrás, deixara espontaneamente a Terra e se contentara com a ocupação de Marte, Vênus e de alguns satélites dos planetas maiores, Cokaze cometera um grande erro.

A frota dos saltadores estava também de prontidão. Os saltadores, a bordo de suas naves cilíndricas, estavam habituados a impor sua vontade a todos. Achavam, portanto, um fato inaudito que este diminuto reino estelar pudesse lhes opor resistência. A maioria dos saltadores não compreendia a hesitação de seu patriarca, mas ninguém se atrevia a protestar contra sua tática.

Cokaze já havia, há mais tempo, entrado em contato com todas as naves de sua frota. Havia dado instruções curtas mas precisas, para cada comandante, indicando-lhes o que tinham de fazer ou de deixar de fazer. Mas, quando irrompeu um incêndio no mecanismo de propulsão da Cok-CXXX, o comandante saltador Solam ordenou de uma maneira muito singular que deixassem a nave pegar fogo, devendo a tripulação abandoná-la.

Nenhum dos trezentos e cinqüenta saltadores a bordo estranhou a ordem de Solam. Com incrível serenidade, cada um reuniu seus pertences e abandonou o aparelho. Ao chegarem ao ar livre, viram a um quilômetro, outra nave de sua frota em chamas. E os incêndios foram se multiplicando. Era um atrás do outro. Mas ninguém se preocupava com a repetição do fenômeno.

No espaçoporto de emergência K-f 3, aconteceram outras coisas misteriosas. Não foram apreciadas em toda a sua extensão por grande parte da frota, em compensação, imperava entre as tripulações de trinta outras naves uma verdadeira situação de pânico.

Em sua Cok-I, o velho patriarca estava mais do que alarmado.

Zugan, comandante da Cok-DV, gaguejava no telecom, o telecomunicador, seu desconexo relatório:

— ...Senhor, há dez minutos, a Cok-CXVI decolou deste sistema e não responde mais a nenhum chamado. O Capitão Gudin, com toda a tripulação, entrou nos aparelhos auxiliares, dizendo que ia explorar as matas virgens de Vênus. Procuramos retê-los à força, mas os homens da nave de Gudin responderam com as armas de raios hipnóticos. No momento...

A estação central da Cok-I interrompeu a transmissão. O telegrafista de bordo informou com voz nervosa a seu patriarca que seu neto Kacozel pedia com urgência para ligar para Marte, onde aconteciam coisas terríveis.

— Como? Também lá? Não ouviu o que está se passando em Vênus? Ligue-me com meu neto Kacozel, mas focalize bem seu rosto na tela, melhor do que a última imagem de Zugan.

Cokaze, um modelo vivo de autocontrole, sentia que os nervos lhe iam estourar. Via-se completamente desarmado e impotente diante destes acontecimentos inexplicáveis. Para ele, o realista, que nunca se deparara com fenômenos parapsicológicos, tudo parecia uma monstruosidade sem nenhuma explicação.

A tela do hipercom tremeluziu, mostrando o rosto de seu neto que comandava um grupo de aparelhos no espaçoporto da Cidade de Marte.

— Senhor — começou Kacozel com voz suplicante — não me julgue um louco, se eu...

O chefe da estirpe de Cokaze não tinha mais nervos suficientes para agüentar longos rodeios.

— Que aconteceu? Quero ouvir fatos. O que houve?

Enquanto o patriarca falava, Thomas Cardif entrou no posto de comando. O desertor ouviu tudo que Kacozel tinha para contar sobre os fatos misteriosos no espaçoporto da Cidade de Marte. Oito naves ali estacionadas ou foram misteriosamente incendiadas ou tiveram suas turbinas destruídas.

— ...conjuntos mecânicos ou eletrônicos foram arrancados da sustentação, portas se entortaram e peças metálicas pesadas foram atiradas como bombas contra conversores e transformadores. E, pior ainda, senhor! Quatro tripulações abandonaram simplesmente suas naves e foram para a cidade. É como se os maus espíritos do espaço se abatessem de repente contra nós e...

Aí interveio Thomas Cardif:

— Os maus espíritos do espaço são os mutantes de Rhodan, saltador.

Kacozel, em Marte, como que petrificado diante do aparelho de hipercom, silenciou completamente, enquanto que o patriarca dos saltadores, circunvoando à grande altura o planeta Vênus, olhava estarrecido para o jovem terrano.

— Sim, Cokaze, este é o contra-ataque de Rhodan — repetiu, calmamente, Thomas Cardif. — Está usando seus melhores hipnos e telecinetas contra sua frota, e, se você não conseguir se livrar deste terrível grupo de assalto, em breve haverá de presenciar uma explosão que mandará pelos ares sua Cok-I, como aconteceu há poucas horas com os detonadores que explodiram de encontro ao envoltório magnético.

— Mutantes... Mutantes! — exclamou Cokaze alarmado.

Parecia-lhe impossível imaginar algo de real em tudo isto. Mas quando se lembrou do relato de seu neto, e também da destruição do mecanismo de propulsão de uma espaçonave, começou a ver uma relação entre tudo isto e a explosão dos detonadores de suas bombas atômicas.

— ...quer dizer então que aqui esteve também um telecineta, não é, Cardif?

O desertor lhe riu em pleno rosto, demonstrando de novo sua arrogância arcônida.

— O mutante que esteve a bordo da Cok-I não era somente um telecineta, mas também um teleportador, saltador, e ainda por cima um hipno. E talvez nem fosse um só, não podemos saber, pois os mutantes não deixam rastros... Talvez este mutante nem tivesse a aparência humana... podia ser Gucky, o rato-castor.

— Podia ser o quê? Um rato-castor, rato-castor... que é isto? — perguntou o patriarca gaguejando, assustado.

— Parece com um animal, uma mistura de rato com castor. Saltador, caso um dia se depare com um ser assim e não puder destruí-lo imediatamente, aconselho-o então a não querer entrar em luta com ele. Fatalmente, você será derrotado. Este ser inteligente que domina bem a língua terrana, o intercosmo e o clássico arcônida, é telecineta, teleportador, telepata e já andam dizendo que também é hipno...

Num impulso violento, Thomas Cardif deu um pulo para o lado e queria acionar suas duas pistolas energéticas que sacou rapidamente, quando uma força irresistível as arrancou de suas mãos, projetando-o para o teto do posto de comando. Ao lado de Thomas Cardif, ouviu-se um ruído no forro do teto. Era o patriarca Cokaze que ia fazer companhia ao terrano...

Alguns metros abaixo, estava Gucky, com sua voz chilreante:

— Thomas Cardif, você é o maior boateiro das Galáxias. Mas, quando olho para você assim, sinto-me realmente feliz por não pertencer à raça do Homo Sapiens. Fora disso, está gostando do ar aí em cima? E o cacique dos saltadores, já compreendeu agora o que é um mutante? Mas acho que não compreendeu ainda que a sua Cok-I será um montão de ferro velho em cinco minutos. Repare bem que confusão doida reina em sua nave. Recomendo a vocês, saltadores, que, antes de programarem uma nova série de roubos, passem uma temporada na Academia Espacial Solar, para ficarem um pouco mais corajosos.

“Cardif, é pena que minhas mãos estejam atadas, por uma promessa que fiz a Rhodan. Prometi não maltratá-lo e, infelizmente, não posso arranjar o pretexto de sofrer de falta de memória, senão vocês dois iam me pagar a sujeira que fizeram na Terra.”

Cokaze, o patriarca da mais rica estirpe dos saltadores, os mercadores galácticos, não estava nem mais em condições de rezar para seus deuses estelares. Estava vivendo os minutos mais cruciantes de sua vida. Seu sistema nervoso estava caminhando rapidamente para a pane total. E não era para menos, pois não havia mesmo nenhuma explicação pelo fato de, após uma leve cintilação do ar, surgir de repente um animal e, no mesmo instante, ser atirado para o teto da sala de comando e lá ficar pairando, sem poder descer...

Horrorizado e cheio de medo, olhava para o estranho animal abaixo dele. Viu que, de vez em quando, passava a língua no único dente roedor que possuía. Os olhos brilhantes do rato-castor, que se dirigiam no sentido dele e de Thomas Cardif, pareciam ir além, vendo outras coisas muito distantes.

Passou-se mais um minuto angustiante e nada aconteceu, até que, no telecomunicador de bordo, se ouviu um estalo diferente. O rato-castor desapareceu no mesmo instante, para surgir, após um rápido cintilar, atrás da tela de televisão do intercomunicador.

— Senhor... — alguém estava chamando o patriarca no telecomunicador — os geradores de onze a quatorze estão escapando de suas bases e...

O resto perdeu-se numa enorme gritaria e num estrondo infernal. Contente com os acontecimentos, Gucky falou através do telecomunicador:

— Este foi o primeiro golpe e o segundo não vai demorar.

Depois de se achar preso ao teto, Thomas Cardif não fez nenhuma tentativa para se mover. Sabia que qualquer resistência seria inútil. Mas já o velho patriarca não agia assim. Gemia o resfolegava. Tentava, sempre inutilmente, pegar uma de suas pistolas de raios energéticos. Porém não conseguia nem mover um dedo.

Neste meio tempo, Gucky empregou a maior parte de suas energias telecinéticas nos motores e transformadores da Cok-I.

Nada escapou da destruição. Diante dos olhos estupefatos do último saltador que ainda estava de serviço no setor das máquinas de propulsão e que, tolhido de pavor, não conseguia dar um passo, como se fosse uma terrível bomba, o gerador do campo antigravitacional rebentou a parede divisória de duas polegadas. A tubulação principal de distribuição da energia das turbinas fora destruída.

Uma faísca do curto-circuito atingiu no mesmo instante o teto de material plástico, derretendo-o por completo.

As centelhas e estampidos livraram do estarrecimento nervoso o pobre saltador, que ainda se encontrava no setor das máquinas e que via com olhos arregalados o desastre em volta dele. Soltando um grito lancinante, pulou para fora, como que acuado por mil cães furiosos.

As sirenes começaram a soar na Cok-I. Apitavam, alternando-se em agudo e grave que mesmo os saltadores mais viajados, jamais tinham ouvido. Esta alternância significava que todos tinham que abandonar a grande nave em aparelhos auxiliares. Também Cokaze ouviu os apitos da sirene em sua cabina e sabia seu significado.

Os olhos de Gucky brilhavam felizes.

— Devia deixar os senhores esturricarem aí em cima — disse cheio de desprezo. — Fosse eu um ser humano como vocês, este seria seu destino: morrerem carbonizados. Felizmente, porém, não pertenço à laia de vocês, como Cardif mesmo já frisou minutos atrás. Assim poderão ainda escapar no último aparelho auxiliar. Mas isto vai demorar um pouquinho e vocês ainda terão de esperar mais alguns instantes, aí em cima.

Ouviram-se, no convés superior, passos rápidos e pesados. Desesperados, os tripulantes que se encaminhavam para as naves auxiliares, procuravam também por seu chefe. Três homens irromperam no posto de comando, lugar onde ficava geralmente Cokaze.

— Também não está aqui! — exclamou o primeiro deles, depois de dar uma rápida olhada no ambiente.

Os três saltadores davam a entender que já haviam procurado o patriarca em outros lugares.

Ninguém viu Gucky, pois, quando a porta da central de comando se abriu, procurou abrigo atrás de um armário. Mas nenhum dos três saltadores teve a idéia de olhar para cima. No entanto, o próprio Cokaze alertou-os.

E no mesmo instante, os três receberam um safanão na nuca! Os jovens saltadores, homens de boa constituição, ficaram atônitos. Um deles gritou e correu. Os outros saíram atrás, como se a morte os perseguisse.

Do seu esconderijo no armário, veio a ironia de Gucky:

— Sempre imaginei os heróis de outra maneira.

Cessara o barulho ensurdecedor da sirene, mas os fortes estrondos, o fogo e os abalos produzidos pelas explosões eram cada vez mais intensos. O rato-castor saiu de sua toca improvisada.

— Dentro de três minutos, sua nave vai explodir e sair de órbita, saltador. Vou tomar a liberdade de fazer uma regulagem nos instrumentos para que ela caia exatamente em Vênus, o mais depressa possível. E porque não quero ter a fama de ser um monstro, dou-lhe a oportunidade de vestir seu uniforme espacial, patriarca. Não se esqueça, porém, de que estou lendo seus pensamentos e de que um raio energético desta pistola não é brincadeira. Preste atenção e não queira bancar o esperto.

Cokaze soltou um grito, quando sentiu que estava caindo do forro. Mas no meio do caminho, as forças telecinéticas de Gucky o apararam e o conduziram para a direita, libertando-o depois. A cadeira, onde o patriarca caiu, espatifou-se.

— Você...! — exclamou o patriarca depois de se levantar com dificuldade e nos seus olhos, junto com o pavor, havia o ódio indomável.

Neste momento, Gucky captou as ondas cerebrais de uma meia dúzia de saltadores que, vindos da escotilha principal, se aproximavam da sala de comando, em passo acelerado. O rato-castor não tinha nenhum interesse em se mostrar a esta gente.

— Cardif, pule — disse para o filho de Rhodan, deixando-o descer um terço da distância do solo, e depois o libertou da telecinese.

Thomas Cardif, muito bem treinado na Academia Espacial, desceu corretamente, como se tivesse molas nas pernas. Fez questão de não dar pela presença de Gucky, que lendo seus pensamentos, disse:

— Você ainda tem traços de terrano, Cardif e também traços de boa educação. É pena que você pensa tão erradamente a respeito de seu pai...

Não teve mais tempo de continuar sua conversa. O grupo de saltadores, que viera para salvar seu chefe, já estava perto.

Gucky se concentrou, fechou o capacete de seu uniforme espacial e desmaterializou-se exatamente no momento em que o primeiro mercador irrompeu pela porta da cabina de comando, dando de cara com o patriarca de pé, no meio da sala.

— Senhor, acho que três guardas foram vítimas de alucinação e...

— Não — atalhou Cokaze, ríspido — aqui ninguém foi vítima de alucinações. Fiquei preso com Cardif lá em cima, dependurado como roupa no varal. Ah!... se eu pudesse pegar este rato-castor!

Cokaze percebeu como os homens, que vieram para libertá-lo daquela situação incrível, se afastaram assustados, deixando a cabina de comando. Compreendeu logo qual a razão de seu pânico. Acreditavam que seu chefe havia enlouquecido. Tinha falado de um rato-castor e viram nisso o indício claro de insanidade mental.

Foi aí que Cokaze deu mais uma prova de sua personalidade. Não prestou nenhum esclarecimento, era de fato o senhor absoluto da grande estirpe. Perguntou secamente:

— Em que nave auxiliar ainda há lugar para mim e para Cardif?

— Na nave seis, senhor — balbuciou um dos homens.

— Então esperem por nós e...

A frase parou por aí. Na nave parcialmente destruída houve no momento uma alteração sensível. Os instrumentos de absorção de pressão falharam. Além disso, a Cok-I devia ter saído de órbita e aumentado muito a velocidade. Os dois fatores da lei da gravidade se abateram sobre eles, fazendo com que cada movimento, que tentassem fazer, se transformasse num suplício.

— Que é isto? — gemeu Cokaze, num esforço de suas últimas energias. — Será que ainda podemos controlar o aparelho?

Mas um estrondo ensurdecedor, vindo da parte traseira da Cok-I, fê-lo compreender que o rato-castor, com suas inauditas forças, estava fazendo o que prometera: converter a Cok-I num montão de ferro velho.

Thomas Cardif reconheceu que a situação em que estavam era muito perigosa. Sabia também que Gucky não estava ali para brincadeira, que lhes havia dado um prazo mais do que suficiente para chegarem até os aparelhos auxiliares. O rato-castor não estaria disposto a lhes dar possibilidade de um contra-ataque.

Cardif, que já havia posto o capacete do uniforme espacial, exigiu que Cokaze abandonasse a Cok-I o mais rápido possível.

— ...ou vamos esperar até que a pressão seja tão intensa, que não consigamos nos movimentar?

Mas Cokaze, que aos poucos estava se refazendo do choque, não quis perder a oportunidade de dar uma boa resposta a Thomas Cardif:

— Terrano — disse com desdém — você está com medo, acho que precisa voltar para a Academia Espacial de Terrânia para aprender a enfrentar o perigo e...

A Cok-I que até então circunvoava Vênus a uma altura de cinqüenta mil quilômetros, mudou de repente de direção. Eram novamente as forças telecinéticas do rato-castor, que pairando no espaço, a uns dez quilômetros da nave de Cokaze, a conduzia diretamente para a queda, acabando de destruir o que ainda restava dela.

A partir daí, Gucky não se preocupou mais com a Cok-I, que irremediavelmente se projetava com aceleração crescente de encontro ao planeta. Teleportou-se e chegou com cinco minutos de atraso ao local combinado com John Marshall, que já o esperava impaciente à beira do espaçoporto de Vênus, para “fazer uns consertos” em outras grandes naves dos saltadores.

 

No curto espaço de três horas e sob a proteção da noite, cem mil homens, todos especialistas em vôo espacial, embarcaram no supercouraçado Titan e em outras naves gigantescas.

Cokaze, que através de seus agentes estava a par do aquartelamento destes cem mil homens selecionados, apesar de todas as suas indagações, não conseguia compreender por que razão Perry Rhodan os mantinha enclausurados nos quartéis.

Somente os auxiliares imediatos de Rhodan sabiam qual a missão que estava reservada a esta gente.

O Marechal Freyt, meia hora antes da decolagem, reunira na cabina de sua Titan os oficiais superiores, inculcando-lhes que somente poderiam comunicar a seus comandados o destino da missão, quando estivessem já aterrissando.

Três horas depois da partida, os cinco gigantescos transportes esféricos já tinham alcançado a velocidade necessária para a transição. Com os absorvedores de vibrações ligados, o pequeno grupo de supernaves desapareceu entre os astros, para abandonar novamente o hiperespaço já no centro da nebulosa esférica M-13.

Um radiograma de um quinto de milésimo de segundo, captado através do hiper-comunicador, contendo três mensagens importantes, informava Perry Rhodan de que o Marechal Freyt, com seus cem mil homens selecionados, estava prestes a aterrissar em Árcon III.

Recebeu esta mensagem uma hora após terminarem os debates no Congresso, debates estes encerrados por uma votação.

Com 365 votos a favor e 198 contra, ao lado de numerosas abstenções e votos nulos, Rhodan foi confirmado como administrador, não obstante toda a especulação do Parlamento.

 

Allan D. Mercant e John Marshall trabalhavam de mãos dadas.

A Segurança Solar e o Exército de Mutantes não deixavam um minuto de descanso aos saltadores, que haviam se instalado principalmente em Vênus e em Marte. Não eram grandes operações bélicas, levadas a cabo contra a numerosa frota de Cokaze, mas eram suficientes para desnortear toda sua estratégia. E, pela primeira vez na vida, aconteceu que o grande poder do riquíssimo patriarca não foi bastante para acalmar seus comandados.

Aqui e ali, eram destruídos constantemente, pelos meios mais misteriosos, os grandes aparelhos cilíndricos dos saltadores, sem que com isso as famílias, que residiam nestas naves, fossem feridas ou mortas. Era freqüente o fato de tripulações inteiras serem dominadas por forças hipnóticas, agindo como inofensivos débeis mentais.

Porém, quando se tratou de impedir que os saltadores desvendassem o cérebro positrônico de Vênus, os homens de Allan D. Mercant e os mutantes de Marshall tiveram que fazer uso dos direitos de guerra. Foi realmente um verdadeiro milagre que este computador ultrapotente, com suas amplas instalações, demorou a ser descoberto pelos homens de Cokaze. Somente depois das primeiras horas estafantes, Rhodan conseguiu tomar as providências necessárias para que estas instalações continuassem ignoradas pelos ávidos saltadores.

Após a destruição da Cok-I, sua nave capitania, Cokaze aterrissou em Vênus com as sete naves auxiliares, como um verdadeiro náufrago, enquanto os restos da Cok-I se espalhavam como fumaça na densa atmosfera do planeta. Uma hora depois de sua chegada a Vênus, já havia se transladado para a Cok-II. Já era o terceiro dia em que se reunia com seus parentes. Em confabulações ininterruptas, traçavam planos de batalha para a conquista da Terra.

Desta vez, Cokaze seguiu as orientações de Cardif e por este motivo, a Cok-II agora pousada tranqüilamente a 3.460 metros de profundidade, no fundo do oceano de Vênus, permanecia protegida contra qualquer ataque por parte dos mutantes.

O resultado da votação no Parlamento Solar decepcionou tanto a Cardif como a Cokaze. Ambos estavam crentes de que com os boatos espalhados maldosamente, causariam, no mínimo, tanta dificuldade ao administrador, que este se veria obrigado a assinar o contrato de monopólio com a estirpe de Cokaze. Por confiarem demais nestes boatos, não deram importância ao contragolpe de Reginald Bell, que havia ordenado a todas as emissoras de TV do governo que transmitissem de duas em duas horas as cerimônias do sepultamento de Thora no mausoléu da Lua. Assim, não era sem razão que estranhavam o resultado da votação e não podiam compreender como Rhodan obteve tão facilmente a prorrogação da Lei de Calamidade Pública.

— Saltadores, temos que ocupar a Terra!

Era a palavra-chave de Thomas Cardif, sempre repetida. E na sua voz vibrava o ódio.

Thomas Cardif tornou-se o “advogado do diabo”, o porta-voz e, simultaneamente, o conselheiro número um do patriarca. A admiração de Cokaze, sempre crescente, pelo amplo saber do jovem terrano, por sua lógica concludente, por sua capacidade de persuadir, era um fato inegável.

O plano estabelecido foi o de ocupar a Terra num assalto-relâmpago e não deixar pedra sobre pedra de sua brilhante capital. Estavam ali sentados para dar os últimos retoques na ação e resolver detalhes do plano de ataque.

Cokaze achava-se mesmo disposto a sacrificar no ataque um quinto de sua frota, se necessário fosse.

Duzentas espaçonaves cilíndricas deveriam não somente entrar em combate com as belonaves terranas, mas também tentar levá-las para bem longe da Terra.

O estrategista Thomas Cardif estava mostrando assim, na elaboração deste plano, que era filho de Perry Rhodan. O próprio experimentado administrador do Império Solar não faria um planejamento melhor. O velho patriarca, no seu íntimo, dava graças a Deus de contar no seu ataque à Terra com este fantástico conselheiro: o tenente desertor da Frota Espacial Terrana.

Mas Perry Rhodan já havia alcançado o pensamento de Cokaze e, há dez horas, ordenara à Frota Espacial para que não se deixassem encurralar, quer por um ataque simulado, quer por um ataque parcial de alguns grupos de aparelhos dos saltadores, pois a Terra não podia ficar sem a cobertura dos supercouraçados.

Concomitantemente a estes preparativos, prosseguia com urgência urgentíssima a construção, na Lua, de um grande parque industrial bélico para armas espaciais. Com os debates no Parlamento, surgira um novo problema, de solução aparentemente impossível. Foi levantada a grande questão do paradeiro das três mil naves dos druufs que, com quase absoluta certeza, não conseguiram regressar às suas plagas, após a pretensa invasão da Terra.

Sem olhar para interesses particulares, Rhodan deu ordem de que se tomassem todas as providências para a solução deste inquietante problema. Pessoalmente, acreditava que os druufs ainda vagavam pelo Universo de Einstein e uma boa parte dos técnicos estava a favor de sua opinião.

Tanto antes como agora, estas três mil naves druufs representavam um perigo latente, não apenas para o sistema solar, mas também para o próprio Império de Árcon, cuja frota gigantesca continuava ainda na zona de superposição, tentando impedir a invasão dos druufs. Árcon não iria permitir que aquelas três mil naves continuassem vagando em nosso Universo, pois correria o risco de sofrer um ataque de surpresa. Atlan, o administrador do Grande Império, apesar da aprovação incondicional do cérebro positrônico, não gozava ainda de uma boa posição, e era obrigado a dirigir o Império praticamente no anonimato, pois toda a Galáxia estava crente de que quem dava as ordens era o cérebro positrônico.

Para dar um apoio substancial ao amigo Atlan e ajudá-lo na difícil missão de combater o ímpeto invasor dos druufs, era indispensável que Rhodan descobrisse o paradeiro das três mil naves.

 

Tanaka Seiko, o mutante japonês, especialista em auscultar ondas magnéticas, estava em Marte, com o único objetivo de interceptar as comunicações de hiper-rádio dos mercadores galácticos, comunicações estas que eram transmitidas exclusivamente para Vênus.

Depois de ter observado que as grandes estações de goniometria do Império Solar ainda estavam intactas, Tanaka estranhou que, a partir das 14 horas e 45 minutos, tempo de Marte, o movimento de hiper-rádio com Vênus havia subitamente aumentado em mais de cem vezes. Não estava, porém, em condições de decifrar nem um só destes constantes rádios, pois vinham codificados, fragmentados e retorcidos. Somente com aparelhamento apropriado lhe seria possível entendê-los.

Durante dez minutos, Tanaka ficou ouvindo aquela confusão toda no hiper-rádio, até sentir um certo mal-estar. Resolveu então fazer uso de seu hipercomunicador portátil.

A central do Exército de Mutantes de Terrânia respondeu no mesmo instante. Na tela em miniatura de seu aparelho, reconheceu o rosto do Major Shenk, que devia também estar vendo o rosto alongado de Tanaka Seiko.

Tanaka não se apresentou nem com seu nome, nem com seu número de código.

— 165 745-Lb-876/56 — disse ele em perfeito arcônida.

Quem captasse esta mensagem, haveria de pensar que se tratava de um sol gigantesco no catálogo sideral de Árcon. Para a Terra, porém, este número significava alarme de primeiro grau. Quase simultaneamente com a combinação numérica de Tanaka, John Marshall, que dirigia as operações dos mutantes em Vênus, recebeu notícias alarmantes.

Observava-se nos espaçoportos de Vênus uma atividade muito intensa dos saltadores, pessimamente camuflada. Os mutantes repararam freqüentemente que os saltadores, de uma hora para a outra, não estavam mais se preocupando com as catástrofes ocorridas em certos aparelhos de suas frotas. Era evidente que tinham recebido ordens do patriarca para não darem mais importância a estes fenômenos desconcertantes. Isto significava que uma grande ação estava em andamento.

John Marshall, que estava na beira da mata virgem, com dois homens da Segurança Solar, transmitiu para a Terra, através de seu hipercomunicador, estas novidades, naturalmente em código. Sua mensagem chegou poucos segundos após o aviso de alarme de Tanaka Seiko.

Até a Frota Espacial tinha reparado em coisas estranhas.

Todas as naves cilíndricas, em menos de meia hora, abandonaram a órbita em que estavam há muito tempo e se preparavam para aterrissar em Vênus e Marte.

Perry Rhodan e Reginald Bell estavam sentados, estudando as últimas mensagens.

— São os passos finais para o ataque — disse Bell convicto, esticando o dedo da mão direita que ele, no réveillon havia ferido com os cacos de uma taça.

— Não precisa mostrar o dedo, gorducho — disse Rhodan sorrindo — nas próximas horas Cokaze vai se dar mal. E, por favor, me dê aí uma ligação para o hiper-rádio.

— Por que não? Mas diga-nos antes que pretende fazer.

— Você vai ver logo. A tela já está acendendo, obrigado.

Perry Rhodan estava falando no grande microfone.

Bell ia arregalando os olhos cada vez mais. De repente deixou escapar a frase:

— ... sem-vergonhice deslavada. Foram dez as frases de Rhodan, cada uma mais grave do que a outra. Sua mensagem fora endereçada a Cokaze, no planeta Vênus. Perry Rhodan dera ao patriarca dos saltadores um ultimato para abandonar Marte e Vênus incondicionalmente dentro de cinco horas, e desaparecer no espaço.

A mensagem terminava com a ameaça de destruição total da estirpe de Cokaze.

— ... a partir deste momento, todas as naves terranas receberam ordens de, ao avistarem um aparelho dos saltadores, abrir fogo incontinenti, com todos os meios possíveis.

Um fraco estalo indicou que a ligação do escritório de Rhodan para a central de hiper-rádio estava desfeita. Bell ria à bandeira despregada, até que, de repente, sua expressão se transformou, dando sinais de apreensão.

— Thomas Cardif está com Cokaze, Perry, e conhece muito bem seus truques.

— Tanto pior para Cokaze e para sua estirpe — respondeu Rhodan laconicamente, sem contra-argumentar. — Quero ver se o patriarca se atreve a atacar ou se depois de cinco horas...

— Perry — interrompeu Bell excitado — para mim, você não precisa expor seus truques e golpes. E se o chefe do clã resolve mesmo atacar dentro de meia hora, com toda sua frota? Que vai ser então? Em duas horas o velho chegaria à Terra com a maioria de suas naves e transformaria nosso planeta numa grande fogueira. Com os diabos! Eu e você sabemos melhor do que ninguém que nossa frota não suportaria um ataque sério.

Reginald Bell estava nervoso. Acompanhara suas palavras com fortes murros na mesa de Rhodan. Mas nem isto impressionou o ponderado administrador. Olhou pensativo para seu amigo de todas as horas e, fazendo um gesto com a mão direita, lhe entregou uma tira de papel.

Sua fisionomia mudou, os olhos lhe começaram a brilhar. Excitado, passou uma das mãos pelos cabelos, depois bateu com a outra estrondosamente nas coxas e disse sorrindo:

— Gostaria agora de ver a cara de Cokaze. Acho que o momento deve ser celebrado com um trago de conhaque.

A ligação direta de emergência do hiper-rádio fez acender a luz vermelha.

— Sir, nossa frota já travou combate em cinco lugares de Marte e em três outros de Vênus. Perdemos com toda certeza um destróier do Grupo de Caças Espaciais. Das naves cilíndricas que nos atacaram, três ficaram fora de combate, as restantes se retiraram.

— Obrigado — disse Rhodan, secamente.

Sentado ao lado de Rhodan, Bell estava assobiando baixinho, mas muito desafinado. Não havia mais otimismo no semblante do gorducho.

— Perry, seu plano não deu certo e eu apostaria qualquer coisa que por trás da resposta de Cokaze ao seu ultimato, deve haver certamente o dedo de Thomas Cardif.

— Não precisa apostar. Tenho certeza de que Thomas Cardif haverá de influenciar e já influenciou o velho patriarca.

Sua voz soava tão naturalmente como se estivesse dizendo que o sol lá fora estava bem forte. Reginald Bell, porém, resfolegava inquieto.

— Perry, às vezes, você me parece meio misterioso. Gostaria mesmo de acreditar que ainda conseguiremos salvar alguma coisa, mas quando olho para a ponta do meu polegar ferido com o... e quando penso em todo o azar que nos vem perseguindo neste ano pesado, desde primeiro de janeiro de 2.044...

— Por que você não estudou astrologia, seu gorducho? Tem tudo para um astrólogo, inclusive o físico baixo e arredondado.

Podia ter sido uma brincadeira, mas o olhar firme e sério de Rhodan indicava o contrário. É que já estava saturado com esse tipo de agouro. Bell estava tomado por um exagerado pessimismo. Desde o último réveillon que Bell vinha aterrorizando todo mundo, devido ao acidente com a taça de champanha. Daí deduzia um ano de desgraças para o Império Solar. É verdade que o gorducho não era supersticioso, mas estava cismado com aquele incidente sem nenhuma importância.

Assim foi que não deu a mínima à observação de Rhodan, e continuou com seu pessimismo:

— Perry, Thomas vai destruir todo seu plano.

Novamente o ruído de alarme do hiper-rádio. Era John Marshall, falando de Vênus:

— Já estão ligados os motores de propulsão de todas as naves e as comportas já estão fechadas. Calculo a partida de Vênus, no máximo para dentro de meia hora. Fim. Marshall.

— Como está otimista, este Marshall — disse Bell. — Em dez minutos eles vão para o espaço. Perry, você tem um filho diabolicamente inteligente. Parece que Thomas conhece-o melhor do que eu. Não quero mais apostar. Digo apenas que, atrás desta pressa, está o dedo de Thomas.

Não havia mais dúvida de que o plano de Rhodan tinha ido água abaixo. A própria expressão de Rhodan o demonstrava.

Bateram à porta. A comissão técnica dos relatores, composta de quatro homens, entrou. Eram os maiores especialistas em direito arcônida de que dispunha o Império Solar. Seus conhecimentos no assunto eram realmente mais amplos do que tudo que estava armazenado no grande conjunto de computação da Terra.

— Por favor, senhores, sejam sucintos — pediu Rhodan.

Era um fato muito singular quando ele não oferecia lugar para os visitantes sentarem-se. Tinham muito pouco para falar e este pouco não iria agradar a Rhodan.

Tratava-se da resposta à pergunta, se o cérebro positrônico de Árcon estava autorizado a dar ordens expressas à estirpe de Cokaze para que abandonasse imediatamente o Império Solar e, no futuro, jamais importunasse seus habitantes com qualquer tipo de exigência.

O parecer técnico da comissão de juristas foi negativo.

— ... se o almirante arcônida Atlan não quiser ser prematuramente descoberto na função de mandatário do Império Arcônida, terá que dar plena liberdade de ação ao patriarca Cokaze. As leis obrigam a positrônica a isto e, concomitantemente, também o Almirante Atlan.

Com simples aceno de cabeça, despediu os integrantes da comissão. De pé, calado, ao lado da janela, Bell não se manifestou. Mas assim que a porta se fechou atrás dos juristas, ele disse:

— É mais uma esperança que desaparece diante de nossos olhos sofredores. Dá vontade de a gente arrancar os fios de cabelo. Perry, por que você foi tão afobado com seu ultimato de apenas cinco horas? Se meu polegar...

— Pare de uma vez por todas com esta bobagem de polegar — gritou na cara do amigo, dando um forte soco na mesa.

Este rompante de raiva em Rhodan foi uma novidade. Ninguém jamais o vira tão nervoso assim. O homem ponderado, modelo da serenidade, perdera o cavalheirismo por causa de uma bagatela. Mas o verdadeiro motivo foi o fato de que, pelo ultimato, havia imobilizado a si mesmo e não dispunha mais da possibilidade de ganhar tempo.

Chegou então uma mensagem de Marte:

— A frota dos mercadores galácticos está decolando.

Dois minutos depois veio outro rádio de Vênus:

— A frota dos saltadores está decolando.

Bell ainda acrescentou com sarcasmo:

— E a nossa vassoura de ferro precisará ainda de três horas para estar em condições de começar a varrer os saltadores para fora do sistema solar. Santa Via-Láctea, quantos reveses teremos que agüentar ainda este ano de 2.044.

Mais um rádio e, desta vez, com bem mais volume:

— A frota dos saltadores, num fogo cruzado de curtos e indecifráveis rádios, fica agora parada a uma altura de três a cinco mil quilômetros acima de Vênus.

Antes que Bell pudesse dizer qualquer coisa, manifestou-se também o quartel-general dos agentes em Marte. Ali se dera a mesma coisa:

— As naves cilíndricas de Cokaze, após receberem o alarme de decolagem, ficaram de repente paradas no espaço.

Bell e Rhodan se entreolharam, com a mesma pergunta nos olhos. O gorducho de cabeleira ruiva parecia atônito.

— Por que nossos telepatas não conseguem ler os pensamentos de Cokaze?

— Você esqueceu ou quer esquecer que nossos telepatas até agora não descobriram onde se encontram o patriarca Cokaze e Thomas Cardif. Sabemos apenas que fizeram uma aterrissagem forçada em Vênus.

— Não sabia disso não — respondeu Bell com tranqüilidade. — No espaço não podem estar, isto é mais do que certo. Também não podem andar por Vênus, senão já teriam sido descobertos. Temos que tirar da cabeça a idéia de ver Thomas Cardif apenas como desertor. O desgraçado do rapaz é seu filho, Perry, e acho que ele é muito ladino... Conclusão: o jovem tenente e o velho patriarca devem ter se escondido debaixo d’água, ou melhor, nas profundezas do oceano de Vênus. Pois somente aí é que estariam a salvo dos nossos mutantes.

— Está bem. Mas nada disso explica o fato de os saltadores terem retido sua frota, de um momento para o outro, em volta de Vênus e de Marte.

— Gostaria de saber também a razão disso, Perry.

 

Foi com uma leve cintilação nos olhos que Cokaze ouviu a notícia do ultimato dado por Perry Rhodan. Olhou em volta e se deteve contemplando a figura tranqüila de Thomas Cardif. Era o único que conseguia falar francamente com o temido patriarca.

— Ocupe a Terra, saltador! Ataque imediatamente. Conheço muito bem a tática de Rhodan. A finalidade de seu ultimato é apenas ganhar tempo. Transcorrido o prazo do ultimato, você não terá mais chance. Isso, eu lhe posso garantir. Ou agora ou nunca.

O modo de argumentar de Cardif fascinava e aterrorizava ao mesmo tempo. Falava sempre sem nenhuma excitação, frio e racional como um computador. Sua voz não era impulsiva, pelo contrário, dava a impressão de total desinteresse. Porém, atrás de todos seus pensamentos, tudo convergia para um ponto: destruir o homem que assassinara sua mãe.

Nada mais lhe interessava. Se depois da destruição de Rhodan, ele seria ou não seu sucessor, como administrador do Império Solar, isto não tinha nenhuma importância. Seu orgulho, ou melhor, sua ambição política, ainda não tinha nascido. Neste particular, Cardif não se conhecia ainda.

Agüentou serenamente o olhar penetrante do patriarca. Depois de seu breve apelo para que Cokaze atacasse, Cardif silenciou. Não podia supor o que os demais saltadores estavam pensando:

Estavam vendo o jovem Perry Rhodan sentado com eles. Nunca o filho estivera tão semelhante com o pai.

— Saltador, você se esqueceu de que Rhodan até hoje sempre sofreu derrotas, uma após a outra, quer dos saltadores, quer dos aras. Vocês foram sempre os mais fortes. Rhodan nunca foi forte e todos já sabem qual é a potência de sua frota. No entanto, sempre conseguiu tapeá-los e continua conseguindo hoje, Cokaze.

Com seus olhos de arcônida, Thomas fitou o patriarca com altivez, com a altivez de sangue real.

— Bem — disse Cokaze resoluto — darei ordem para minhas naves atacarem. Mas você, terrano — e nos seus olhos acenderam-se chispas ameaçadoras — você viverá num permanente inferno se ficar positivado que Rhodan o mandou para cá como um simples espião ou quinta-coluna.

— Velho estúpido! — atreveu-se Thomas a dizer, fazendo como se não tivesse ouvido o soluço de espanto dos demais saltadores.

Levantou-se lentamente, depondo as duas pistolas de raios energéticos, com gestos comedidos, sobre a mesa.

— Você deve estar agora mais ou menos contente, não é, saltador? — perguntou cheio de ironia. — Resolva suas coisas sem mim, já que sabe tudo melhor que os outros. Vou interrogar os dois prisioneiros terranos que se salvaram do destróier abatido. Com passadas largas, saiu pelo convés central afora, pegando o elevador antigravitacional que o levou três andares para baixo. Diante da porta do camarote, onde estavam detidos os dois prisioneiros terranos, postava-se um robô de combate, que automaticamente lhe permitiu entrada.

— Sir!... — com esta exclamação, um jovem que estava sentado na cama, deu um salto.

Mas logo reconheceu que não era Perry Rhodan quem estava entrando, porém o filho do administrador.

O segundo terrano, também vestido com o uniforme da Frota Espacial, se levantou de trás da mesa tosca, olhando para Thomas com desdém, mantendo nos lábios um sorriso de ironia.

— Meus senhores... — começou Cardif e não conseguiu ir além.

O primeiro rapaz, Val Douglas, que havia dado um salto pensando tratar-se de Perry Rhodan, interrompeu-lhe as palavras.

— Com desertores nós não falamos. Livre-nos de sua incômoda presença, traidor.

Imperturbável, Thomas Cardif nem piscou.

— Desapareça daqui, seu malandro! — exclamou o outro cheio de selvagem desprezo.

Com a palavra malandro, Thomas se curvou involuntariamente. Seus olhos arcônidas se afoguearam.

— Os senhores dois serão os primeiros que, por ordem do regente robotizado, terão de obedecer-me.

— Que regente robotizado o quê... — disse Val Douglas sorrindo sarcasticamente. — Este negócio não existe mais. O Almirante Atlan haverá de entregá-lo ao chefe, como traidor.

Os caminhos tortuosos do destino quiseram que este jovem fosse um dos cento e cinqüenta terranos que tomaram parte na campanha, comandada por Rhodan, Atlan e Bell, em Árcon III, contra o regente robotizado.

Thomas Cardif, que não era apenas externamente o retrato do pai, mas era-lhe a cópia fiel também em suas qualidades psíquicas, não se deixou trair, dominando a grande surpresa que a notícia lhe causou.

— Atlan não pode agir contra a vontade do cérebro positrônico — revidou drástico.

O jovem terrano da Frota Espacial não percebeu a malícia de Thomas Cardif. O desertor o provocava para obter informações. Sorrindo com desprezo, o prisioneiro disse:

— O que Atlan pode ou não pode, ele haverá de mostrar a vocês todos, principalmente aos traidores de sua laia. A enorme positrônica de Árcon não tem mais nada para dizer. Silenciou totalmente, já no tempo em que estávamos em Árcon não havia mais o grande cérebro positrônico. E não tenho dúvida nenhuma de que Atlan o pegará, seu desertor.

Os pensamentos ferviam na cabeça de Thomas. Deixou a cabina sem dizer uma palavra, voltando para seu camarote. Neste momento, ainda não estava em condições de comunicar esta grande novidade a Cokaze. Tinha que refletir um pouco.

Neste meio tempo, Cokaze havia enviado duas sondas de rádio da Cok-II, que ainda estava submersa no oceano de Vênus, sondas estas que, com seus sinais, dariam a ordem de decolar para todas as naves, que esperavam em torno de Marte e de Vênus. Esta ordem de partir incluía a de ataque à Terra com o grosso da frota, enquanto um grupo de mais ou menos duzentas espaçonaves tinha a incumbência de manter a Frota Solar em combate no espaço, impedindo-a de defender a Terra.

Tocado por súbita intranqüilidade, coisa que nunca sentira antes, Cardif procurou o camarote do Cokaze. A Cok-II, que durante muitas horas estivera parada, sem nenhum ruído, achava-se agora em grande agitação, com os transformadores zumbindo e os motores aquecendo. A nave capitania estava prestes a deixar seu esconderijo no fundo do oceano.

Thomas Cardif irrompeu subitamente na cabina de Cokaze, que encontrava-se sentado com seus parentes mais próximos, diante do receptor de hipercomunicação. Estavam ouvindo as mensagens oriundas de Marte e de Vênus.

— Qual é a novidade? — perguntou Cokaze, virando-se para o lado e dando com o rosto transtornado do tenente desertor.

Atrás de Cokaze ainda havia um lugar livre. Thomas o ocupou.

— O que há de novo, terrano? — perguntou novamente o patriarca, dando vazão à pressão nervosa que o oprimia.

Num gesto de orgulho, Thomas ergueu a cabeça e sorriu forçado, disfarçando sua inquietação:

— Saltador, ganhamos a guerra! O regente robotizado de Árcon foi substituído pelo Almirante Atlan. Para conservar as aparências, Atlan ainda se oculta sob o manto do antigo cérebro positrônico.

— Ficou louco, terrano? — disse-lhe com rispidez o velho patriarca.

Pegou Cardif pelos ombros e o sacudiu.

— Então vá perguntar aos dois terranos aprisionados. Quando Atlan desligou o computador gigante em Árcon III, o cabo estava presente.

Cokaze se levantou de um pulo e correu para o microfone direto da central de radiotelegrafia da Cok-II:

— Para toda a frota: cancelar a partida para o espaço. Permanecer em posição de espera, aguardando novas ordens. Mas atenção, transmitam esta ordem em código.

Meia hora mais tarde, o cabo Val Douglas despejou, sob a coação do soro da verdade dos aras, tudo que ele e mais cento e cinqüenta terranos, em companhia de Atlan, haviam presenciado em Árcon III. Mais de trinta saltadores ouviram fascinados e quase de respiração presa o relato gaguejado e muitas vezes confuso do cabo Val Douglas. Cokaze insistia nas mesmas perguntas, de maneira que lhes ficou cada vez mais claro, pela repetição, o momento decisivo em que Atlan desligou o gigantesco conjunto positrônico de Árcon III.

Tão fascinante era tudo, que os saltadores não sentiram o tempo passar. O espetáculo terminou quando Douglas, sob a atuação das terríveis drogas dos aras, dando um grito lancinante, desfaleceu. O patriarca ainda demonstrou algum sentimento de humanidade, ordenando ao médico de bordo que cuidasse do jovem terrano, administrando-lhe todos os antídotos necessários.

Foi aí que o patriarca reparou o avançado da hora. Com um palavrão, partiu apressado para a sala de comando. Lá estava Thomas Cardif diante do hipercomunicador.

— Algo de novo? — foi a pergunta de Cokaze.

— Nada de importante, saltador. Suas naves esperam pela ordem de ataque. A Cok-II está a uma altura de dez quilômetros de...

— Está bem! — disse o velho, batendo-lhe no ombro. — Jovem inexperiente!

Cardif já estava com uma pergunta na ponta da língua, mas Cokaze não lhe deu tempo.

— Vocês só enxergam o hoje, o imediato e se esquecem do amanhã. O regente robotizado está extinto e então chega este Atlan e declara-se imperador. Oh! Deuses do espaço! Esta é a hora sideral dos comerciantes das Galáxias.

O velho patriarca juntou as palmas das mãos, como se faz para rezar, ergueu-as na direção do céu, dando a impressão de estar mesmo numa prece de ação de graças.

Thomas Cardif não entendia mais nada. E Cokaze notou que o terrano não o estava compreendendo.

— Jovem inexperiente! — repetiu com certo ar de triunfo — esta é a nossa hora, a hora dos mercadores galácticos. Este ridículo Império Solar de Perry Rhodan não me interessa mais. Ele que viva em paz por aqui. Retiro-me do Império Solar sem exigir nada, para... para fazer o que, terrano? Você acha que, por causa de um miserável contrato comercial, iria perder a oportunidade de, junto com meus irmãos e os aras, conquistar o imenso, riquíssimo Império de Árcon? Quem é este Atlan?

— Senhor — ouviu-se do alto-falante do intercomunicador de bordo — estamos registrando inúmeros estremecimentos estruturais. Está se aproximando uma frota gigantesca do hiperespaço. Já conseguimos contar duas mil naves.

— Cale a boca! — gritou o patriarca, encobrindo a voz forte e nervosa de seu telegrafista. — Comunique a Rhodan que eu aceito seu ultimato e estou dando ordens à minha frota para que entre em transição na direção de 45 GH 32. Preste atenção para não cometer nenhum erro.

Para Cardif, ordenou apenas:

— Venha comigo.

Dirigiram-se à sala de comando. A Cok-II deixara o esconderijo nas profundezas do oceano de Vênus e estava agora a dez quilômetros do solo de Vênus.

Os saltadores, que estavam em volta do rastreador estrutural, foram se retirando assim que viram seu patriarca entrar. Por sobre os ombros de Cokaze, Thomas Cardif olhava para a tela, cheia de diagramas. O dispositivo de contagem, ao lado, que registrava os estremecimentos estruturais, pulara no momento de 2.185 para 2.318. Isto queria dizer que, a partir dos últimos cinco minutos, isto é, a contar do primeiro estremecimento, 2.318 supernaves já haviam saltado do hiperespaço para o sistema solar.

— Isto é a ajuda de Atlan para Perry Rhodan — disse Cardif nas costas de Cokaze, esbravejando de cólera.

O velho patriarca enxugou o suor do rosto.

— Deuses do espaço! — disse com voz rouca. — Eu vos agradeço. Agradeço também a você Cardif.

Batia afavelmente com a mão direita nos ombros de Thomas.

— Não fosse você, terrano, que teve a idéia de interrogar os dois prisioneiros do destróier abatido, esta novidade chegaria tarde demais para nós. Teríamos atacado a Terra e seríamos destroçados por esta frota recém-chegada, até o último aparelho. Obrigado, terrano. Você merecerá a eterna gratidão da estirpe de Cokaze.

Acoplado ao rastreador, o totalizador estrutural estava, no momento, parado exatamente no número 2.500. Duas mil e quinhentas naves apareceram em poucos minutos, para se unirem à Frota Solar e resguardarem o pequeno sistema.

— Soltem os dois prisioneiros e os coloquem numa nave auxiliar — foi a última ordem de Cokaze, antes que a Cok-II iniciasse a aceleração, para se afastar do sistema solar com toda a frota dos saltadores.

Cerca de quatro mil naves tinham o mesmo destino: iam para 45 GH 32, um local qualquer no espaço, que não devia ser identificado facilmente.

Uma hora e quarenta e oito minutos antes de esgotar o prazo dado pelo ultimato, o espaço, nas proximidades do sistema solar, foi fortemente abalado por intensos estremecimentos, indicando que as naves de Cokaze estavam desaparecendo.

Os cem mil homens de esmerada formação, que deixaram a Terra secretamente na Titan e em cinco outras supernaves de carga, estavam voltando com mil novas belonaves arcônidas, novinhas em folha. Traziam também uma frota de mil e quinhentas naves robotizadas.

Foi o máximo em auxílio militar que Atlan podia fornecer à Terra. Mas foi também um verdadeiro milagre da técnica o fato de cem mil especialistas em espaçonáutica chegaram a Árcon e não terem outra coisa a fazer a não ser entrar nas supernaves, já prontas, e voltar para a Terra. Os cem mil especialistas se sentiam à vontade nestas moderníssimas criações arcônidas, e, abstraindo-se de pequenos incidentes normais em grandes transições, tudo correu com perfeição.

O repentino aparecimento deste auxílio de Árcon poderia causar a impressão de que Cokaze tivesse mudado de opinião em vista desta força imensa que vinha em socorro da Terra. Mas Rhodan e Bell sabiam perfeitamente que o velho saltador dera ordem de sustar a decolagem para o ataque, muito antes de chegarem as duas mil naves de Árcon.

— Perry — disse Bell — meu dedo polegar da mão direita está comichando. Creio que temos de passar ainda por surpresas desagradáveis. Antes já tivesse acabado este carregado ano 2.044.

— Prefiro que você me diga por que razão Cokaze sustou a decolagem de suas naves, já prontas para o ataque da Terra. É melhor do que esta bobagem do seu dedo polegar.

— Estou quebrando a cabeça há muito tempo com isto. É exatamente este o motivo por que meu polegar está...

— Bell! Por favor, somos amigos, não somos?

— Claro que somos amigos — disse Bell distraído. — Mas tenho que lhe explicar que...

— Então conservemos nossa amizade, Bell, ponha uma pimenta bem forte na boca, quando pensar em falar do seu dedo polegar. Você vai me prometer isto, não é?

— Posso prometer sim. Mas neste exato momento meu polegar esta comichando demais.

Rhodan deu um suspiro e sacudiu a cabeça resignado.

 

                                                                                            Kurt Brand

 

                      

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