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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A GRANDE LIQUIDAÇÃO / Vicki Baum
A GRANDE LIQUIDAÇÃO / Vicki Baum

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

   

VALHA ME Deus! Lá está ela outra vez! -exclamou intimamente Nina, ao ver a cliente que, às seis horas menos cinco, entrava a porta envidraçada que separava os novos dos velhos armazéns, e a secção de alimentação da das porcelanas.
Na secção dos alimentos era hoje o dia do peixe a preço único: cada qualidade a 20 cents o arrátel. Sentia-se o cheiro em todo o andar! Quanto à senhora, vinha pela quarta vez e, justamente uns minutos antes de fechar o armazém, Pertencia a essa categoria de pessoas que chegam sempre tarde. Embora os cinco degraus, que se seguiam à porta envidraçada, fossem assinalados por um letreiro, dizendo: "Atenção aos degraus!" a senhora tropeçou, deixou cair um embrulho e apertou a malinha de mão contra o seio frouxo. com o chapéu um pouco ao lado, as faces afogueadas, pertencia também a essa espécie de clientes que andam sempre à procura do que for mais barato.
Blusas manchadas, cafeteiras amachucadas, sacos de coiro desbotados pelo sol, meias de seda quási artificial, de ocasião - tais eram as suas compras. São mulheres de pequenos empregados, cheias de preocupações e de trabalho, mulheres que nunca, na sua vida, possuíram uma coisa, tendo-a pago pelo seu preço normal.
Agora era o serviço de porcelana para doze pessoas, guarnecido a rosas, que tinha dado volta à cabeça da boa senhora. Estava em cima da segunda mesa: pratos, travessas, chávenas de café -tudo. Porcelana já não muito branca, rosas de cor bastante carregada, folhas excessivamente verdes, com os bordos ligeiramente mordiscados, pouco doirados. " 39.80" anunciava a etiqueta; e esse preço, só por si, era uma obra de arte, uma sugestão que tornava o serviço ainda mais barato do que 40 dólares. Desde a fábrica, até esta mesa de armazém, centenas de pessoas tinham sido lesadas nos seus salários, para que o preço desse serviço pudesse ser calculado vinte cêntimos abaixo de quarenta dólares. Exposto agora, com todas as suas rosas e o seu luxo de segunda classe, atraía os clientes.

 

 

 

 

 

 

A mulher parou diante do serviço: viram-na reflectir e calcular, emquanto que, com o olhar, procurava uma empregada.
"A mim não, Senhor, a mim não!"-implorou mentalmente Nina, tentando parecer desagradável - "Ao menos uma vez, miss Drivot pode muito bem atender a última cliente."
- pensava ela, quási zangada -Três rugas cruzaram-lhe a pequena testa. Erik pretendia que ela parecia um pequeno cão basset, assim que tinha qualquer preocupação...
Dizia também que era tão pequena e tão nova que devia ainda "precisar de crescer dentro da pele, dessa pele fina, brilhante e aveludada de rapariga de dezanove anos.
E quando Nina recordava as coisas que o seu amigo lhe dizia, essas coisas que mais ninguém no mundo podia inventar, sentia sempre um aperto angustioso e doce, no
coração. Agora, no seu trabalho, cinco-não, dois minutos e meio-antes de fechar, e com uma cliente desagradável à vista, sentia-o também, mas sem doçura.
- Está livre, menina?-preguntou a senhora, diante do serviço de porcelana - E Nina abandonou-se ao seu destino.
E devia ser esse o seu destino, pois toda a clientela
desagradável se lhe dirigia. Não sei o que tenho... as clientes caem em cima de mim como moscas -lamentava-se ao seu amigo Erik e à sua camarada Liliana.
-Oh! Tu tens com certeza qualquer atracção, pardal, pardalinho, pardalito - dizia ele.
Os clientes só servem para nos maçar! -replicava Liliana, sem dar atenção ao pedido de conselho que a queixa de Nina ocultava.
Isso é certo. - concordava Nina, sem verdadeira convicção.
com os cabelos brilhantes, cor de avelã, o olhar sério e interrogador, tudo nela parecia tão simples e era tão simpático, que não se tornava necessária muita psicologia
para compreender que, quem quisesse comprar um serviço de porcelana ou uma fruteira de cristal, se dirigisse a ela e não à magra e seca miss Drivot.
- Trinta e nove dólares ?-preguntou a senhora, parada diante do serviço de rosas - Eram então seis horas e um minuto; a sineta já tinha acabado de tocar.
- Trinta e nove dólares e oitenta.-rectificou polidamente Nina, fazendo soar, com uma pancada do dedo, uma chávena de onde saiu um lindo som - É uma bela porcelana.
Artigo de primeira qualidade.
Seis horas e dois! Erick devia já estar à espera em baixo, na escada 5. Drivot, naturalmente, já estava pronta, há que tempos! Cobria com panos os animais de vidro
e preparava-se para sair.
- Tão caro! Não se poderia... emfim, não se poderia fazer um abatimento ?
- Infelizmente não é possível. É pintado à mão, artigo de primeira qualidade.
- Não posso gastar tanto! É pintado à mão? E se se partir alguma peça, poderão substituí-la ?
- com certeza, minha senhora, com certeza.- respondeu Nina.
Esta conversa tinha lugar pela quarta vez; a mulher estava louca pelo serviço, mas não tinha o dinheiro preciso.
Seis horas e quatro! No meio da sua cólera e da sua impaciência, Nina experimentava como que um sentimento de compreensão por essa senhora, sentimento que era piedade,
embora ela não o reconhecesse como tal.
- É que eu festejo em breve as minhas bodas de prata ... - explicou a cliente.
- Ah! Sim?-interessou-se amavelmente Nina - Eu também estou para casar em breve, teria acrescentado de boa vontade. Mas a sua vida privada nada tinha que ver com
o trabalho. Seis horas e cinco, indicava o relógio sobre a porta envidraçada. Na secção musical, próxima, o último gramofone tinha-se calado. Erik esperava. Drivot,
evidentemente, havia-se eclipsado. Somente no fundo da galeria, na caixa 24, trabalhavam ainda. Era aí que a sr.a Bradley empacotava, mecanicamente, como uma máquina.
A sr.a Bradley era também uma espécie de vítima; era sempre a última a sair.
- Deve resolver-se. - tornou Nina - é uma ocasião
única...
O sr. Berg, chefe da secção, percorria pela última vez o seu domínio. Involuntariamente, Nina lançou lhe um olhar de submissa súplica. Experimentava pelo sr. Berg
o sentimento respeitoso que um jovem escritor pode sentir por um prémio Nobel. O sr, Berg possuia, com certeza, coração: toda a secção estava de acordo sobre este
ponto - coração e coragem. Veio em auxílio da empregada.
- O elevador não trabalha já, minha senhora. lembrou, cortesmente - Fechamos às seis horas. Esta senhora terá que descer a escada, quando tiver terminado a sua compra.
- Não posso resolver hoje. - disse a cliente - Volto cá noutra ocasião. E foi-se embora.
Nina tinha ainda de arrumar. A porcelana tilintava-lhe nas mãos, tão nervosa se sentia. Erik estava em baixo, na escada 5. O elevador reservado ao pessoal já não
funcionava. Era preciso descer a pé a escada 8 e seguir o longo corredor da cave até ao vestiário onde estavam os armários estreitos e alinhados, como no quartel.
Nina lavou as mãos, mirou-se um segundo ao espelho do toucador e, em seguida, pôs um sopro de pó no rosto e um traço de rouge nos lábios.
-Então? Tens pressa?-preguntou Liliana que arranjava as unhas e as sobrancelhas, pausadamente.
- Tenho. - respondeu Nina, com um braço já metido na manga do casaco -A sr.a Bradley já saiu?
- Não a vi - respondeu Liliana, pintando cuidadosamente os lábios.
- Tanto pior, eu não posso esperar, -retorquiu Nina, saindo.
- Espera um instante! Eu vou contigo! -gritou Liliana atrás dela; mas com as suas três rugas na testa, Nina fingiu não ouvir. Embora Liliana fôsse sua amiga, não
gostava que se lhe agarrasse todas as tardes. Muitas vezes Liliana e Erik entregavam-se a brincadeiras a que Nina, com a melhor boa vontade deste mundo, não podia
achar graça.
Transpôs, correndo, as portas da cave, deslisou entre as caixeiras que subiam, cujo grupo foi detido no antigo pátio de controle. Do portão vinha uma corrente de
ar: recebia-se aí uma poeirada no rosto e nos olhos, de fazer chorar. Nina ia meia cega quando conseguiu chegar à escada 5. Erik lá estava: tinha o ar de verdadeiro
gentleman, com a gravata de seda e o chapéu de coco. Havia já algum tempo que deixara crescer um pequeno bigode. Enlaçou amorosamente Nina.
- Então Spurv? Lille Spurv! - murmurou, arrastando-a. Isto era dinamarquês e significava: pardal, pardalinho. Pois Erik - Erik Bengtson era dinamarquês. Viera para
a América muito novo e frequentemente, evocava ainda os bosques de vidoeiros e as baías tranquilas do seu país. Diferia em muita coisa da espécie de rapazes que
Nina costumava conhecer. Ele parecia-lhe um estrangeiro que tivesse acabado de desembarcar no último
barco e não compreendesse bem o que representava New-York. Era muito mais alto do que Nina; uma expressão impertinente flutuava-lhe no rosto: dir-se-ia que tudo
quanto ele via o divertia loucamente.
Nina apertou com mais força o braço contra o do companheiro, e caminhou sem dizer palavra. Como exprimir a sua felicidade sempre que este Erik tinha o braço metido
no seu ombro junto à sua fronte? Ela regulava o mais possível o seu passo pelo dele e levantava, quanto podia, o rosto para o ver.
Era o rosto da tarde de todas as mulheres de grande cidade: a face jovem e fina, de pele frágil e delicada, de quem apanha pouca luz e pouco sol. Muito nova, terna,
um tudo-nada de petulância e algum cepticismo. "Estar cansada, sim, às vezes, mas não o mostrar nunca." Um leve círculo em redor dos olhos e o clarão agudo das lâmpadas
e dos reclamos luminosos sobre as faces e sobre a boca entreaberta.
- Um pouco atrasada, an ? - disse ele.
- Sim... À última hora apareceu-me uma velha maçadora...
- Não te rales, podemos ainda passar dez minutos no "Rivoldi" - e deu grandes passadas.
Não podiam avançar; era a hora em que a capital enlouquecia, em que de todas as casas de comércio saía gente, ondas de gente. Caça aos automóveis, aos metros, aos
eléctricos, filas de carros parados, mendigos, floristas tentando vender os últimos ramos, carritos de fruta voltando para casa, homens que querem apanhar uma rapariga
com quem passar a tarde, mulheres procurando um homem com quem passar a noite; gente casada que volta para casa, maridos que perdem tempo para não terem de recolher,
solitários parados às esquinas a seguir os namorados com o olhar.
- Ao "Rivoldi"? Não vamos para casa? É pena!...
- lamentou Nina, mergulhando rapidamente, o rosto na sombra.
- Que queres, tem que ser! E posso dar-me por feliz se tiver acabado amanhã de manhã, às seis horas.
- Trabalho extraordinário ? E que vais fazer ? - preguntou a rapariga.
- Pôr. Pôr ovos toda a noite. - disse Erik, não sem dignidade, empurrando a porta do pequeno restaurante italiano. Lá dentro cheirava a cebola e a cigarros ordinários;
o ar estava todo azul, Erik tinha um fraco por esse lugar fumarento; já fora à Itália, no tempo em que esperava tornar-se pintor célebre, e conhecia um pouco o italiano.
- Pôr ovos ? Para quê ? - preguntou Nina, rindo.
- Para as festas da Páscoa. - respondeu Erik, instalando-a num canto.
Ela encaixou-se atrás da mesita de tampo de mármore, olhando-o num ar encantado.
- Dá-me um cigarro. - disse, para não deixar ver muito a sua admiração - E deixa o meu joelho em paz. Não dês nas vistas.
Na verdade, Erik, esse grande maluco, não se comportava bem. Que ele era um grande maluco, lá nisso toda a gente estava de acordo,
- Raviolis, café, torta de damasco, - encomendou ao criado.
- Para mim também-resolveu Nina, que não percebera nada.
Erik tinha, mais uma vez, o lápis na mão e desenhava qualquer coisa no mármore da mesa, entre as rodelas que as chávenas de café, anteriormente servidas, haviam
deixado.
- Que é isso ? - preguntou Nina, aspirando profundamente a sua primeira fumaça.
Erik levantou os olhos um instante, quando o fumo saía pelas narinas pálidas e finas da sua companheira. Estava loucamente apaixonado por ela. - "Faz anéis".
- disse-lhe - Nina aspirou o cigarro e fez anéis. Erik contemplava o espectáculo, como se fosse um bom numero
de musiC'hall. Depois, continuou a desenhar. "Parece-me que tenho uma idea"... - murmurou, distraído.
- A respeito dos ovos ?
- Sim. Trata-se da decoração para a Páscoa.
- Que o demónio leve a decoração se tu tens que ficar lá todas as noites por causa disso. Parece-me que o teu chefe te apanhou mais uma vez.
- Apanhou-me bem, o velho rinoceronte. A ele não lhe vem outra coisa à cabeça senão pôr uma lebre e um vidoeiro em cada vitrina.
-E tu?
- Eu ? Oh! eu vou achar, com certeza, qualquer
coisa melhor.
- com certeza. - confiou Nina. Desde que conhecera este Erik, descobrira que ele era um génio. Um génio em montras e em todo o género de coisas: publicidade, desenhos,
balões fora dos novos edifícios, esboços para catálogos - sim, um génio em tudo e para tudo. Mas, por mais recente que fosse a sua experiência no que respeitava
a génios, ela já tinha compreendido que não é sempre fácil viver com eles.
- Fico outra vez sozinha esta noite! Estava tão contente pensando que a passaria ao pé de ti... - disse timidamente.
- Mete-te no teu ninho e dorme, Lille Spurv. - respondeu ele - Tens o ar de quem está um pouco cansada ... Eu vou despachar-me e talvez amanhã te vá dar os bons-dias
antes de tu saíres.
- Sim senhor... isto vai dar um bonito casamento! exclamou ela. - Quando eu sair do armazém, tens tu que entrar e quando tu saíres, entrarei eu!
- Um casamento de primeira qualidade. Garantido. - brincou ele abandonando, emfim, o desenho. Nina observava-o emquanto mastigava a sua dose de raviolis... Tinha
outra vez o ar de não estar ali ao pé dela, à mesa do "Rivoldi", mas Deus sabia lá onde...
Tu não te sentes cansado, dize ? - preguntou ela.
Nem nada - respondeu o rapaz.
Nina bebeu o seu café e comeu o seu bolo. Estava desiludida e triste. A noite, sem Erik, alongava-se na sua frente, sem fim, vazia como um deserto.
- Poderia talvez ir ao cinema... - arriscou, hesitante.
- Isso não! - retorquiu Erik - Ao cinema só vamos
juntos. Não quero que vejas sem mim todos os bons films. -Egoísta!
- Sou-o horrivelmente, quando se trata de ti. - afirmou Erik. Mas estava a brincar.
- Quando iremos ao cinema, os dois ? - preguntou Nina, meia consolada.
- Amanhã. - respondeu ele - E chamou o criado, murmurando palavras em italiano. A conta chegou pouco depois. Erik pagou.
A mesa estava coberta de garatujas, mas Nina não chegava a perceber do que se tratava. O criado trazia já uma rodilha molhada e apagou tudo.
- Agora vamos, pequenina, avante! Preciso voltar à loja - disse Erik, metendo o braço no da rapariga.
Lá fora, tiveram que afrontar o primeiro vento da primavera que desembocava da esquina. Só agora ela sentia a que ponto estava fatigada e só o pensar na sua cama,
causou-lhe prazer. Maquinalmente dirigiu-se para a estação do metro, mais próxima, mas Erik reteve-a no momento em que ela ia atravessar a rua.
- Anda, - disse - vamos tomar um táxi, dou-te um thaler para pagar e vais até casa. Ele disse thaler e isso parecia estrangeiro, dinamarquês.
- Meu Deus, como és gastador! E pensa isto em casar...
- Pst! Pare primeiro na Central Warehouse. A senhora vai mais-longe - disse Erik, empurrando Nina para o táxi, que acabava de parar ao seu sinal.
Para ir do "Rivoldi" à Central, de táxi, bastava minuto e meio, compreendendo duas paragens nos cruzamentos,
Durante esse minuto e meio a boca de Erik foi colada à de Nina.
- Boas-noites, Lille Spurv. - disse, descendo - Aqui
tens o teu thaler.
- Dá saudades â lebre da Páscoa,-recomendou ela e põe os teus ovos com todo o cuidado.
Na primeira esquina fêz parar o carro, deu ao motorista trinta cêntimos, meteu na sua carteira o dólar que tinha aquecido na mão, e depois meteu-se na boca do metro.
A Central Warehouse ocupava um quarteirão inteiro de casas no centro da cidade, com doze montras gigantescas, em cada uma das quatro fachadas e doze andares cheios
de mercadorias e de actividade. No meio, erguia-se um arranha-céus de dezoito andares, no qual estavam instalados os escritórios e aposentos da direcção.
Erik seguiu pelo lado oeste do edifício: todas as vitrinas estavam iluminadas. Na fachada norte, estores, atrás dos quais se agitavam sombras, velavam as montras
números 1 a 6, cuja decoração devia ser renovada durante a noite. O relógio monumental do edifício do centro, de disco luminoso, indicava sete horas menos dez.
- Adeus, Joé - disse o rapaz passando diante da casa do porteiro, que ficava à entrada 4 do pessoal.
- Trabalha de noite, sr. Bengtson ? - informou-se Joé, aparecendo à porta.
Ele tinha um olho de vidro. Depois do armistício, fôra uma idea fixa do sr. Crosby, o deus invisível que, reinava sobre todo o armazém, empregar cinquenta feridos
de guerra. Os jornais tinham falado muito e citado o sr. Crosby como um grande patriota. Sete ou oito desses veteranos estavam ao serviço; podia-se vê-los passar
por diferentes lugares. Um negro maneta ocupava-se do elevador do pessoal do lado norte, e um
irlandês apoplético, com uma perna artificial, tinha por missão aparar todos os lápis dos escritórios.
- Decoração de Páscoa - disse Bengtson estendendo ao guarda o seu maço de cigarros para que ele tirasse um.
- Obrigado. - agradeceu Joé, metendo o cigarro na
algibeira interior.
- O velho já lá está ? - preguntou Bengtson.
- Eu não vi o sr. Sprague - respondeu Joé.
Bengtson afastou-se em passo de gimnástica, assobiando. Fazia soar as chaves como castanholas. As salas vazias seguiam-se numa semi-obscuridade; panos brancos cobriam
as mercadorias que não tinham sido retiradas. De vez em quando, aparecia um manequim, impecavelmente vestido, que sorria, com ar petrificado.
Bengtson dava piparotes naquelas caras de cera, estava contente. Cantava-lhe ainda no sangue o beijo de Nina. Ele gostava do armazém, de noite, "a multidão do mundo",
pensava vagamente. Pensava em dinamarquês.
Abriu o elevador com a sua chave e estava quási a entrar, quando Pusch apareceu, ofegante, e também entrou. Pusch era aprendiz de decorador, um adolescente de dezoito
anos, em pleno crescimento. Ignoravam donde lhe vinha o apelido. Trazia uma pilha de amostras e vacilava com o peso do fardo.
- O sr. Sprague quere ver as cores - balbuciou sufocado, emquanto o elevador os levava. Erik assobiou um pouco mais forte. Tinha a convicção profunda de que o velho,
o sr. Sprague, o chefe dos decoradores, nascera daltónico. Assobiando sempre, indicou com o dedo uma amostra verde claro. Depois interrompeu o assobio e disse:
- É este que vamos escolher. - Depois continuou a
assobiar.
Chegaram ao 12º andar onde ficava a oficina,
- Diz-me cá, ó Pusch, é verdade que pintas o cabelo ? - preguntou ele, antes de sair.
-Não, porquê?- balbuciou o aprendiz cujas orelhas descoradas se tinham tornado encarnadas como fogo. Os seus cabelos eram tão claros, como os de jean Harlow antes
do protesto dos censores. Estava ainda no mesmo sítio com o maço de fazendas e as suas orelhas vermelhas e já Bengtson abria a porta da oficina.
Quando ia a entrar notou um vulto que saía do escritório de Filipe, o detective da casa.- Ah? -pensou, retirando a mão do fecho. A rapariga que avançava para ele
era Liliana, a amiga de Nina.
- Ah? Liliana? - admirou-se. A rapariga, de casaco no braço, abotoando o vestido, disse:
- Viva, Bengtson! - numa voz um pouco rouca Dê-me um cigarro, depressa.
Solícito, estendeu-lhe o maço emquanto riscava já o fósforo. Ela considerava o gesto amável com as sobrancelhas erguidas.
- Aconteceu alguma coisa? -preguntou ele.
- Porquê? Tenho ar de ter sido violentada pelo velho Filipe? Tranqúilize-se, não aconteceu nada.
- Fazia-me pena... por causa do pobre homem. disse ousadamente Bengtson.
Liliana estava na sua frente, com o vestido já abotoado mas tendo ainda as mãos trémulas. Fumava com violência, de uma forma completamente diferente de Nina - pensava
Erik.
- Julgava que já tinha saído há muito tempo. -disse ele, para dizer alguma coisa. Não podia suportar Liliana que se encontrava, sempre que não se desejava a sua
presença. Ela encostara-se a ele e olhava-o com um sorriso trocista.
- Eu não sabia que a Nina usava bâton...-zombe teou a rapariga. Pusch, o aprendiz, tinha-se, entretanto, aproximado e nem se mexia.
- Como? Nina?... - preguntou Erik pouco à vontade.
Liliana desatou a rir e dispòs-se a sair, dizendo:
- Ela tem sempre os lábios pálidos e acha que me
pinto muito.
- Não sei o que quere dizer .. - observou Erik,
que se sentia estúpido.
Pusch riu, passando a mão pelo rosto. Erik compreendeu e, tirando vivamente o lenço, limpou a cara. Envergonhado, apagou bruscamente o beijo do adeus de
Nina.
- Boas noites. - rematou Liliana - Tenho de me ir
embora.
- Quem a espera ? - preguntou Erik.
- Vanderbilt - chasqueou a rapariga, afastando-se. Erik viu-a partir. Ela tinha as mais bonitas ancas de todo o armazém.
- Espere. Eu levo-a. Não está ninguém no elevador.
Erik possuía as chaves de todas as portas pois trabalhava principalmente de noite. "Um gentleman é sempre um gentleman" - troçou Liliana emquanto o rapaz lhe abria
a porta - e isso desagradou-lhe. Ela tinha uma maneira de irritar as pessoas, como um mosquito que não se pode apanhar. O elevador ficou logo cheio do seu perfume
penetrante e vulgar.
- Sabe do que eu gostava agora ? - preguntou, antes do elevador chegar abaixo. -Dançar, divertir-me, beber... consigo. -continuou, emquanto ele a olhava-Sim, arranjar
uma brincadeira aqui mesmo.
- Está a chorar ? - preguntou Erik, levemente perturbado, olhando-a, sempre.
-Parece... Obrigada por me ter acompanhado. O seu perfume flutuava ainda, quando Bengtson subiu e saiu do elevador.
O velho-o sr. Sprague - parecia impaciente quando
Erik entrou.
Quando tiver acabado de namorar as raparigas, talvez possamos pensar um pouco nas vitrinas, - disse imediatamente.
Bengtson limitou-se a rir. O sr. Sprague parecia-se com Mark Twain - velhas maneiras, e boa aparência - e sentia-se orgulhoso com isso. Tinha um cérebro de mármore
e um coração de oiro.
-Um dos manequins estava a chorar, levei-a lá abaixo - respondeu Erik, despreocupado.
- Paladino das damas. -replicou Sprague, ciumento Sabe que ser revistado não tem nada de divertido ?
-Ser revistado? Como? -exclamou Bengtson Que quere dizer com isso?
- O quê, não sabe ? Roubaram qualquer coisa e o Filipe teve de revistar muitas empregadas.
- Rouba-se muito, nestes últimos tempos, não acha sr. Sprague?-notou Bengtson, brincando com as amostras.
A luz lançava um reflexo vivo sobre o tecido vulgar.
- É exactamente o que diz o sr. Crosby; roubam muito, nestes últimos tempos. Desta vez o velho Filipe vai pagá-las.
- Que aconteceu ? - interrogou Erik, deixando cair a amostra,
- Sabe, aqueles objectos de arte com que se fez uma exposição russa de peças raras e de objectos pertencentes a particulares, lembra-se?
Bengtson lembrava-se muito bem: tivera com o velho uma grande discussão a respeito dessa instalação e acabara por ganhar. O outro quisera fazer qualquer coisa de
exagerado, como nos bailados eslavos. Erik tinha pedido alguns móveis emprestados à secção de antiguidades e fizera instalar vários aposentos em estilo Império,
onde dispusera as obras de arte.
- Que roubaram ? - preguntou, mais para dar prazer ao velho, do que por interesse.
- Uma pequena imagem, um ícone todo incrustado de pedras preciosas valendo dois mil dólares.
Estava segura ? - informou-se Bengtson - Então,
ninguém perdeu.
Lembrou-se de-repente dos olhos brilhantes de Liliana que chorava sem lágrimas e parecia irritada. "Como podem ter suspeitado das raparigas da secção de costura,
é o que eu pregunto. O velho Filipe torna-se cada vez
mais idiota."
Sprague abafou o riso: - É o que nos acontecerá a todos se ficarmos aqui empregados muito tempo. Você ainda não percebeu isso?
Desta vez, Bengtson exaltou-se: imaginou Filipe revistando Liliana.
- Eu matava alguém que quisesse revistar a Nina! -
disse, com veemência.
- Quem é a Nina? - preguntou o velho,
- Vamos casar no dia de Páscoa, como já lhe disse
- confirmou Erik.
O velho pôs-se a rir.
- É verdade, é tempo de se acorrentar - E havia nas suas palavras admiração e inveja.
Subitamente, Erik deixou os seus negócios pessoais e voltou-se para os tecidos. Pusch continuava ao pé da grande mesa de desenho, sobre a qual colocara as amostras,
e segurava uma na mão. Tinha uma predilecção quási feminina pelas cores, as sedas e os tecidos brilhantes e, no fundo da sua alma, sentia uma certa vergonha por
isso.
- Vai dormir, Pusch. - disse Bengtson - Aqui não se
precisa de crianças.
O velho aproximou-se também da mesa e, através
dos óculos, observou os tecidos.
- Precisamos de trinta e seis metros por vitrina. disse Erik, num tom profissional, pondo um papel coberto de cifras e de notas na mão do sr. Sprague - Prefere o
tecido verde, mas eu gosto mais do amarelo.
O velho considerou as duas cores que Bengtson lhe metia debaixo dos olhos,
- Você não percebe nada, meu rapaz, o verde é que deve ser.
Bengtson tomou um ar agastado. Intimamente, rejubilava.
- bom. vou descer, Começamos pela vitrina sete. - anunciou pegando no tecido verde. O seu método de obrigar o velho a fazer o que ele queria, mostrou-se mais uma
vez infalível:
- Comece pela primeira vitrina, como já lhe disse ordenou o chefe em tom peremptório.
Bengtson mostrou um ar santamente desolado. -Senhor, seja feita a vossa vontade!-disse - Depois pegou nas amostras e retirou-se.
No elevador flutuava ainda o perfume de Liliana... Liliana era caixeira do salão francês, de costura, na secção de vestidos. Chamava-se Liliana Smith. Smith, porque
era filha do operário Smith, empregado nos trabalhos do canal; Liliana, porque desejava velar assim a vulgaridade do seu nome de família e da sua origem. Imaginava
às vezes, vagamente, o que daria esse nome nos cartazes: a actriz de cinema Liliana Smith, a star de music'all, a rainha de beleza Liliana Smith. Gostaria então
de reservar o "Liliana" e abandonar o "Smith". Havia nela ódio contra tudo quanto vinha de baixo: odiava o ! cheiro da cozinha, morar numa cave à janela da qual
não via passar senão pernas, odiava as baratas que, de noite, passeavam no sobrado, a racha do seu espelho de má qualidade, odiava o seu leito, o seu fato, as suas
próprias mãos que trabalhavam demais Mas sem se tornarem alguma vez verdadeiras mãos de senhora. Liliana odiava também a clientela, irremediavelmente. Odiava essas
mulheres ricas que chegavam nos seus automóveis, com as malinhas cheias de cheques, ou acompanhadas de homens que pagavam por elas. Sorria-lhes, com o seu sorriso
profissional, mas odiava-as ao mesmo tempo e profundamente, com todo o seu ser.
LILIANA era uma criança da rua; em garota, brincara às escondidas nos grossos canos de gás, que a demolição das casas mais velhas do bairro fazia aparecer. Depois
empregou-se como aprendiza, primeiro em minúscula lojeca de alfaiate, depois num armazém da União Square e finalmente no Central Warehouse. Aí, com olhos ambiciosos,
tinha frequentado a escola onde a direcção do armazém mandava educar as suas empregadas. Progressivamente, subira da secção de retrozaria à da roupa branca, depois,
graças aos seus bons serviços e esforços, chegou ao sector mais requintado: aos salões de prova. Aí, tudo era velado: as luzes, as vozes, as cores. Espessos tapetes,
onde a jovem Liliana adorava meter os pés, tapetes de um cinzento-rosa, paredes da mesma cor, candeeiros com reflectores cromados, projectavam a sua claridade no
teto. Madame Chalon, a directora francesa, reinava neste domínio. Era lunática, de génio alegre"! , nas horas sentimentais, contava às empregadas os seus amores
infelizes com um célebre desenhador de modas de Paris. Liliana fazia tudo para agradar aj madames, pois desejava avançar, ir mais longe subir mais alto. Depois de
dois meses, não só se ocupava da venda, mas
também da apresentação de modelos, estava quasi a
passar da escala de 16 dólares para a secção mais bem paga, dos manequins, de que assumira já lugar de destaque.
Fazia a sua entrada com um casaco de arminho ou com um vestido de baile - cópia de um modelo de Patou -ou com um roupão de seda azul-noite. Via-se ao espelho, virava-se
com um movimento que lhe tinham ensinado, alargando o vestido à sua volta e olhava por cima do ombro a cliente - essa cliente que odiava.
A jovem Liliana tinha uma figura perfeita de manequim quarenta, para nos exprimirmos em linguagem profissional. Numa palavra, era construída como uma rainha, delicada,
elegante, com os membros finos e as ancas largas e coleantes. Nela, tudo era alto e pequeno: joelhos, pernas, seios. Esta filha de operário era feita como se um
apurador de raças, depois de muitos esforços, produzisse o que há de melhor com feitio de mulher. Tinha umas formas maravilhosas e também um rosto, mas para o qual
ninguém olhava: viam apenas o corpo e os vestidos que vestia. O seu rosto não era tão belo: tinha linhas duras e, em redor da boca e do queixo, certos traços deixavam
transparecer o Smith de baixa origem, a vontade de trepar.
Apaixonava-se pelos vestidos que mostrava, por todas as sedas, gazes, veludos, rendas. Os casacos de peles endoideciam-na. O seu corpo sentia-se feliz sob a caricia
de belos tecidos. Erik chamara-lhe pouco tempo antes: um mármore frio. Não era justo, pois ela tinha em si a paixão e, muitas vezes, essa paixão ardia de uma forma
insuportável. O pior era ter de tirar os vestidos depois de os apresentar e ser obrigada a pôr o seu fatito pobre de 12 dólares.
Para mudar de vestido só dão a um manequim um " ou dois minutos. No salão, ela passeia lentamente, como uma rainha, diante da clientela mas, assim que sai, no gabinete
de despir, as mãos tremem-lhe ainda: diante do espelho de três faces, despe um vestido, a correr, passa a outro, de-pressa, de-pressa, tendo atrás de si a irritável
directora que resmunga. Mas o que mais a entristece ainda, é ver os vestidos, essas adoradas toilettes em
cima das clientes! Ver como um modelo pode perder o seu chic, ver de que forma todas essas mulheres muito curtas, muito grossas, muito velhas, se esforçam para entrar
nos vestidos, como se põem diante dos espelhos, como são insignificantes, como não sabem vestir se, e tornam vulgares as mais belas peles!
É tudo isso que acende o ódio na jovem Liliana.
-Ah! se eu tivesse a sua figura!-suspirava muitas vezes uma cliente, quando a jovem se apresentava.
"Evidentemente, se tivesses a minha figura... - pensava orgulhosamente Liliana - E se tivesses a minha figura, que aconteceria? com um corpo como o meu, ganha-se
um salário de dezasseis dólares por semana e mora-se numa cave, sim, tudo por baixo! com a minha figura não se tem mesmo um amante, pois, para a maior parte dos
homens é-se "bem demais". Quanto a esses que estariam à minha altura não há nenhuma probabilidade que apareçam neste armazém.
- A cintura é muito estreita. - com estas palavras, cortou madame Thorpe os pensamentos errantes de Liliana.
Madame Thorpe era uma mulher que os seus amigos qualificavam de imponente. Enchouriçada num vestido de seda preta, estava no meio do gabinete de prova e, no espelho,
parecia um pouco melhor do que na realidade era. Todos os espelhos do salão de alta costura eram um tanto lisongeiros. Colocando-os favoravelmente, as senhoras pareciam
logo mais delgadas do que na realidade eram. Na secção de confecção não se davam a esse trabalho: aí abundavam as clientes de medida 48 e 50 e essas são como Deus
as fez e contentam-se com a sua sorte. Quando acabam as compras, sobem lá acima, à pastelaria e banqueteiam-se com sandwichs e tortas de maçã com creme.
-A cintura é muito estreita.-repetia madame Thorpe
- Aqui as cinturas são sempre estreitas. Eu tenho uma linha francesa. Em Paris todos os vestidos me servem,
Liliana odiava esta cliente, esta madame Thorpe, ainda mais do que as outras. Era dessas mulheres que vão aos armazéns unicamente porque se aborrecem: durante horas
fazia com que lhe mostrassem vestidos e provava-os - nervosa, incoerente, histérica. Depois, diante do espelho, caia pouco a pouco no estado de depressão de uma
mulher que tem quarenta anos, e é obrigada a admirar a maneira como uma rapariga de vinte sabe apresentar, com vantagem, o seu corpo esplendoroso.
Muitas vezes o ar quente do pequeno gabinete estava carregado de tempestade. Liliana invejava as clientes pelo seu dinheiro; as clientes invejavam-na pela sua beleza.
O sabor agudo do ciúme aparecia sob os sorrisos recíprocos; o ar cheirava aos corpos, aos perfumes, à mulher, o raio estava a cada momento para estalar. No entanto,
nesse dia, madame Thorpe acabara por comprar um casaco de noite guarnecido de arminho verdadeiro, modelo Margot.
- Esta peste ennervou-me hoje até ao último momento - dizia Liliana à sr.a Bradley quando, no metro, iam para casa. As duas mulheres tinham por costume fazerem juntas
o mesmo caminho até à rua 42. Aí, a sr.a Bradley tinha que mudar. Seguravam-se ambas à mesma correia de suspensão e oscilavam com o movimento da carruagem que ia
completamente cheia; nem pensar num lugar sentado!
- Se vejo a venda da Páscoa passada! - disse a
sr.a Bradley.
- E eu então! Que direi eu? Se soubesse o que passamos neste momento... - replicou Liliana.
- Sim, mas a menina é nova, - queixou-se a sr.a Bradley, cujo rosto pálido tinha manchas de sardas.
- Pregunto a mim mesma quando poderei ir cortar o cabelo ?! - rematava Liliana.
Era o problema constante de todas as caixeiras. Precisavam de ter boa aparência, mas fechavam-lhes a
porta dos salões de cabeleireiro na cara, quando tinham tempo livre.
- Agora preciso de mudar. - disse a sr.a Bradley, conseguindo, a custo, passagem até à porta da carruagem.
- Obrigada por ter esperado por mim. - agradeceu Liliana, fatigada.
- É que eu queria saber como aquilo acabou. Não devia ter-se deixado revistar tão facilmente, digo-lho eu.
- afirmou ainda a sr.a Bradley, descendo.
E o comboio lá continuou, com o ritmo enraivecido e ensurdecedor.
Um homem estava agarrado à correia perto da mão de Liliana, um entre as centenas de homens que tinham feito olhos ternos à rapariga e lhos faziam ainda. Ele soprava-lhe
o seu hálito quente no pescoço e encostava o joelho ao dela, como se a pressão da multidão a isso o obrigasse. Liliana, agarrando-se à correia, sentia em todos os
membros, a pobreza do seu casaco como qualquer coisa que a magoava. A dobra das mangas estava rota, ela sabia-o. A manga que tinha debaixo dos olhos começara a ficar
lustrosa e também cinzenta nas costuras. Liliana sentia-se aborrecida. Tinha trabalhado muito durante todo o dia e depois ainda a retiveram uma hora para a apalpar
e revistar como a uma ladra. "Um dia hão-de pagar-me tudo isto.- pensava, desesperada - Sentia-se ferida e sem defesa. Uma força maldosa acumulava-se nela.
- Deixe-me em paz, senão temos barulho - disse ao homem. Sofria de saudades do casaco de seda comprado por madame Thorpe, como se fosse uma doença. "Esperem", pensava,
emquanto que, fatigada, viajava por debaixo da cidade, entre milhares de outros entes fatigados. "Esperem um pouco, esperem..."
O comboio parou na 125ª rua e ela saiu mecanicamente. Ainda tinha de andar até à 122ª onde moravam seus pais. Era um bairro cheio de mexicanos e italianos. Não sabia,
ao certo, como é que tinham vindo para
ali, sabia apenas que esse meio não lhe convinha e que um dia, muito breve, o mais breve possível, sairia de lá; Diante de um cinema, encimado por um anúncio luminoso,
em espanhol, agrupavam-se as pessoas. Dum café saía o som de um piano eléctrico. Na rua brincavam crianças e cães e a valeta estava cheia de detritos. Diante das
casas passeavam altas mulheres de carnes , caídas e homens em mangas de camisa, embora a noite estivesse fresca, como ao princípio da primavera.
"Assim tão só, minha linda menina?" -preguntou um homem, atrás dela - Não precisou de se voltar para ver como ele era; pele escura, calças estreitas e o cheiro a
alho dos mexicanos. Ela ia mais de-pressa. Ele seguiu-a. "Quere que chame a polícia?" - preguntou a meia voz, sem o olhar - "Não tem coração... não tem coração!...".-
disse, num tom melancólico - Os passos afroixaram. Chegou emfim a sua casa e hesitou um momento antes de descer os três degraus que precediam
a porta.
No próprio momento em que hesitava, surgiu, diante dos seus olhos, inesperadamente, a imagem de Bengtson. Ela não pensava nele - foi um puro acaso. Não estava apaixonada
- não se podia apaixonar. Tal como era, ele não lhe agradava: louco, atrevido, arrogante, superficial, distraído. Aquele que lhe havia de agradar devia ser absolutamente
diferente: rico, com um belo automóvel, fatos de bom corte, dinheiro e tudo mais. "Um homem habituado a comer caviar" - pensava vagamente.
Um gato malhado aproximou-se e deu-lhe marradinhas nas pernas. Liliana não se baixou, ficou direita diante da porta da habitação subterrânea: fixava os olhos na
luz do candeeiro, diante da porta. Erik tinha-lhe acendido o cigarro... acompanhara-a ao elevador... Possuía uma certa elegância e portava-se de forma diferente
dos homens do seu conhecimento. É pena que não tenha dinheiro. - pensava - É pena que vá casar com Nina... Não podia compreender porque o fazia. E,
sobretudo é pena que eu não tenha realmente roubado, pensou de repente-Foi como que um pensamento ardente e corrosivo, que fugiu logo.
Apertando os dentes, Liliana empurrou a porta e
entrou.
LILIANA vinha de baixo, mas aspirava às alturas. Como manequim de um salão de costura tinha já feito um bom pedaço de carreira. Quanto à sr.a Bradley era absolutamente
o contrário: vinha de cima e, irresistivelmente, descia o declive. Uma mulher que, aos quarenta e sete anos fazia embrulhos no serviço de embalagem de um grande
armazém, não podia ter grandes ambições na vida. É que, empacotar, era a única coisa que a sr.a Bradley ainda pôde aprender, depois que seu marido, um industrial,
se suicidou, quando da crise, não lhe deixando senão dívidas, derrocada e um desfazer de feira. Graças a certas protecções, a sr.a Bradley conseguiu ser empregada
na entrega de embrulhos e não se passava uma hora sem que ela não receasse perder o emprego.
Ali estava, entre as jovens principiantes de dezasseis anos, fazendo, sempre com o mesmo gesto, embrulhos
- centenas, milhares de embrulhos. Quando erguia os olhos, só via mãos estendendo-lhe uma senha de entrega, mãos e senhas, senhas e mãos. Ocupava um lugar difícil
onde todos são nervosos, impacientes e ninguém quere esperar. Ela empacotava, empacotava, pensando muitas vezes em Skimpy. "Oxalá Skimpy não fique atropelada! Queira
Deus não caia da janela! Oxalá não brinque com o petróleo do fogão. Skimpy era uma mulherzinhaA GRANDE LIQUIDAÇÃO
de oito anos que tratava da casa, emquanto a sr.a Bradley trabalhava.
Da época da sua opulência elas tinham conservado a sua habitação de Fieldston, esse vestígio de tempo mais feliz. Eram quartos grandes demais, muito numerosos, cheios
de mobília, muito ricos. A sr.a Bradley tinha feito tudo para se desembaraçar dessa casa.
Aparentemente, ninguém a queria. A pobre mulher viu-se obrigada a alugar quartos a pessoas de bem, a preços razoáveis; ao menos pagava as despesas.
No refeitório do armazém encontrava-se um quadro onde se afixavam os anúncios dos empregados. "Piano usado vende-se, ou então: Compra-se bicicleta em bom estado,
ou ainda: Gostaríamos de participar da excursão de domingo, rateando despesas. O quadro estava bem colocado no próprio lugar em que os empregados faziam bicha para
ir buscar o seu prato. Um ou mais dos quartos da sr.a Bradley estavam sempre para alugar.
Fora assim que Nina arranjara um alojamento quando, pobre criatura sem família, grão de poeira atirado pelo vento para a grande cidade, chegara do Texas a New-York.
Foi assim que ela se tornou vizinha de quarto de Erik Bengtson, que já habitava a pensão havia meses, e passava as noites a assobiar de uma forma horrorosa, a cantar,
a fazer barulho. Sem esse quadro, Nina nunca se teria provavelmente casado com esse louco do Erik, com esse génio da decoração.
O casamento realizou-se no domingo de Páscoa e correu de uma forma perfeita. Era, pelo menos, essa a opinião de Nina e também a de Liliana, sua dama de honor.
Erik tinha lutado para ter o sábado livre afim de instalar os seus aposentos. Passou primeiro a sua cama para o quarto de Nina, que se tornou assim um quarto Bradley
completo, com leitos iguais em mogno encerado. Depois, começou as suas operações no outro, no seu, que devia ser a sala, Trabalhou como para a preparação de uma
vitrina. Decorou primeiro as paredes, pintando palmeiras e lianas e pequenos macacos a baloiçar-se. Depois, ornamentou os móveis e plantou um arbusto num vaso chinês.
Pintou almofadas, estofou caixotes e fez mil coisas incompreensíveis.
Transpirava como um escravo, na sua bata manchada de cores, assobiando e cantando tão alto que Skimpy não podia estudar as lições. Por fim, saiu de todo esse trabalho
qualquer coisa que parecia um estúdio exótico. Nina ficou petrificada logo que entrou. "Ah! palavra... estou espantada..."- disse ela - E Foi preciso que, à sua
maneira, Erik a degelasse. Ela pôde sair do seu trabalho a horas, pois a secção de loiças tinha pouca clientela durante a Páscoa: a multidão afluía mais à confecção
e às modas. Mas, como sempre, às seis horas menos três minutos, apresentou-se um cliente que logo caiu sobre Nina. Desta vez, era um rapaz que também vinha com muita
pressa, um estudante ou coisa parecida, em todo o caso, um ente muito agitado. Desejava - ora vejam! duas taças para champagne, mais nada. Nina não pôde deixar de
rir; imaginava nitidamente a cena em que essas taças de champagne deviam figurar. Viu essa venda como um bom presságio: "Páscoa feliz!"- disse ela, emquanto o rapaz
se ia embora - "Obrigado, igualmente".-respondeu ele - Ora se isso não lhe havia de trazer felicidade! Raramente desejos tão cordiais foram trocados entre uma caixeira
e um cliente.
À noite, Liliana ajudou a confeccionar qualquer coisa como um vestido de noiva; Erik, que estava presente, fazia café emquanto a sr.a Bradley mexia a massa do doce
lutando contra o sono. Quanto a Skimpy tinham-na metido na cama, mas estava tão sobreexcitada que falava mesmo a dormir. Liliana tornou-se útil transportando os
fatos de Erik do quarto dele para o futuro quarto de cama. Assim que eles ficaram pendurados, muito bem passados, ao pé do seu modesto enxoval, Nina compreendeu,
pela primeira vez, que no dia seguinte
deveria estar realmente casada. Sentia-se tão fatigada, tão comovida, que via tudo como num sonho, como através de vidros espessos e turvos. Eram já duas horas da
manhã quando se dispôs a arrastar uma pesada mala de pele de búfalo: "posso pôr as minhas coisas na cave?"
- preguntou - A sr.a Bradley acordou e disse que sim, com a cabeça. "São os teus tesoiros?" - preguntou Erik "Precisamos de beber qualquer coisa," -declarou Liliana
- "Oh... coisas minhas. - disse Nina um tanto acanhada
- Velhas recordações..."
Erik tirou-lhe a mala das mãos para a descer à cave: em baixo cheirava ao aquecimento e à poeira, grandes aranhas agitavam-se nas suas teias. Erik abraçou Nina e
beijou-a. Ela ficou um grande momento assim, envolvida nesse abraço. Estava quente e era agradável: teria gostado de adormecer ali.
Vagamente, recordava a sua infância quando, fatigada, no regresso dos seus passeios ao domingo, o pai a trazia até casa. Por fim despertou e pôs-se de joelhos diante
da mala.
- Deixa-me ver o que tens aí.-pediu Erik, ajoelhando
junto dela.
Entreabriu-se-lhe a boca num sorriso mudo e tímido, quando ele abriu a mala.
- Olha! - disse, divertido. Havia uma velha boneca, datando da infância de Nina, com a cabeleira mal posta. Depois, outra, magra, com uns grandes olhos feitos de
botões. Erik lembrou-se que a rapariga o tinha conquistado logo que, pela primeira vez, foram juntos a Coney Island. Depois havia um retrato onde estavam agrupadas
quatro pessoas. Erik olhou para esse quadro, com uma expressão impertinente e garota.
- Este é o meu pai.- disse Nina.
- Morreu?-preguntou Erik, de-repente sério, aproximando-se dela.
- Mataram-no quando assaltaram um Banco. Era da polícia, não te disse já?
- Oh! - exclamou Erik. E calaram-se por um instante. Nina tirou-lhe a fotografia das mãos.
- Eu estou aqui. - disse - Parece que sou estrábica... é que não queria ser fotografada. Este, é meu irmão mais novo, esta, minha mãe...
Erik não ousou fazer preguntas. Olhava de revés o rosto de Nina. Por fim, ela pousou o retrato. "Todos mortos. A gripe..." - explicou, sorrindo tristemente. Ele
esperou um momento:
- Agora recomeçaremos tudo, Lille Sprorv - murmurou depois.
Quando se resolveu a fechar a mala, qualquer coisa havia no fundo. Erik quis ver:
- Que é ? - preguntou.
- Nada, é o revolver do papá.-E pôs prudentemente a arma no seu lugar.
- Está carregado?-preguntou Erik, fechando a mala.
- Não sei, deixámO-lo tal como estava quando da morte do papá.
- Sabes atirar ?
- Não. Mas é uma recordação.
- Estás a dormir em pé.- compadeceu-se Erik, levantando-se - Anda, vou meter-te na cama.
- Onde ?- preguntou Nina.
Ele apagou a pálida luz da cave e, na sombra, procurou a boca dela. Sentiu tudo andar-lhe à volta, em grandes círculos. "Como estou cansada!" -disse logo que emergiu
do turbilhão - Ao cimo da escada da cave, Liliana apareceu, fazendo tilintar copos.
- Desejam casar lá em baixo?-disse ela -Ou preferem subir para beber whisky?
Subiram a escada à pressa e tiraram os copos da mão de Liliana. Erik tinha a cara de um homem um pouco ébrio.
- De onde vem esta fortuna ? - preguntou ele.
- O velho Filipe tem lá que chegue para ele - respondeu Liliana, lacónica.
O sr. Filipe, o detective do armazém, morava também em casa da sr.a Bradley. Verosimilmente, Liliana tinha-o acordado e tirara-lhe uma garrafa de whisky. Erik esteve
quási a fazer uma pregunta, mas guardou-a para si. Liliana parecia já não querer mal ao velho Filipe por a ter submetido à revista. zoa " (1) - disse ele e bebeu
o conteúdo do seu copo. Detestava o whisky.
- Onde está a sr.a Bradley ? - preguntou.
- Deitada!-respondeu Liliana.
Durante a noite a pintura do seu rosto tinha-se apagado e a sua pele, muito branca, brilhava num reflexo mate.
- Já pousou para algum pintor?- preguntou incidentalmente Erik.
- Era o que faltava! Ir-me pôr toda nua para os idiotas dos artistas!-replicou vivamente Liliana. Erik desatou a rir.
- Também se fazem retratos de senhoras vestidas. explicou, muito divertido.
- Sim ? -preguntou Liliana, engulindo o segundo copo de álcool e exagerando a sua inocência - Sempre julguei que era preciso não ter a cicatriz da apendicite para
que nos pintassem.
Erik teve um rápido olhar para Nina, pois sabia que este género de brincadeiras não lhe agradava. Mas Nina adormecera na sua poltrona, justamente por baixo de um
dos macacos que ele tinha pintado na parede. As mãos pendiam-lhe, moles e abandonadas. Foi até junto dela e sacudiu-a docemente: - Spurv, lúh Spurv.- disse baixinho
- Ela moveu os lábios, mas não chegou a falar. Ele ergueu-a e, no sono, ela lançou-lhe um braço à volta do pescoço. Levou-a, assim adormecida, para a cama. Liliana,
de garrafa de whisky na mão, olhava-o
(1) A sua saúde, em dinamarquês.
com ar trocista. Ele deitou Nina e voltou, fechou a porta do quarto, sorrindo sempre.
- Comovedor! - disse Liliana.
- Como ?
- Disse só "comovedor" - repetiu ela.
-Deve estar fatigada, miss Smith?-preguntou Erik, aproximando-se - Quere que a acompanhe a casa ?
- Oh! por Deus, sr. Bengtson. - replicou - Eu não sou daquelas que é preciso levar a casa. De resto, não vou para casa. Trouxe o que me era preciso e durmo cá.
- Aqui? - preguntou ele, de sobrolho franzido.
- Por exemplo, ao pé de Nina, no vosso futuro leito de casados, a não ser que veja qualquer inconveniente ? - disse ela, irónica.
- Pelo contrário, será uma grande honra para o meu leito conjugal -. respondeu o rapaz, muito aborrecido.
Instalou-se numa poltrona, bocejou ostensivamente e esperou o seguimento. Sentia-se terrivelmente cansado, sentia-o agora, e era preciso que às dez horas da manhã
estivesse no registo civil.
- Adeus, boas-noites e bons sonhos. - disse Liliana. Pegou na garrafa e encheu mais um copo do líquido
que bebeu de um trago. Erik olhava-lhe para o pescoço muito branco emquanto ela bebia.
- Porque não me pode suportar?-preguntou, quando acabou.
- Instinto de defesa contra uma muito perigosa formosura. - replicou ele, depois de um momento de hesitação - Ela não compreendeu imediatamente, só percebeu a intenção.
- Muito obrigada. - disse, abrindo a porta - Erik levantou-se por delicadeza; sentia as pernas cansadas, pois tinha estado todo o dia em cima do escadote. Exibindo
um espelhinho de bolso e um bâton, Liliana contornava cuidadosamente os lábios. Disse ainda: "boas-noites" e fechou a porta atrás de si.
Desconcertado, Erik recaiu na poltrona e pôs-se a rir. Achava imensamente engraçado que Liliana pintasse os lábios antes de se deitar. Dependurou o sobretudo e atirou-o
para cima da cama, que tinha improvisado com mantas, estendeu-se e dispôs-se a dormir. Indubitàvelmente, a manhã vinha próxima. Apagou a luz, ouviu em qualquer parte
a buzina de um automóvel. Fechou os olhos. "Á minha última noite de solteiro" pensou, sentindo um pequeno aperto no coração.
Toda a casa estava cheia do perfume detestável e ordinário de Liliana.
NO dia seguinte, às sete horas da manhã, a campainha da entrada tocou; foi um espanto geral. Uma senhora estava diante da casa e dizia em voz enérgica:
- Sou a condessa Bengtson. Venho assistir ao casamento do meu filho.
A sr.a Bradley, que também tinha sido uma senhora de sociedade, agarrou no seu roupão da manhã e nas suas boas maneiras, e respondeu:
- Entre, sr.a condessa. Estamos ainda por arranjar, mas o pequeno almoço, daqui a pouco, está pronto.
A condessa Bengtson acedeu ao convite e entrou. Vestia um fato género alfaiate, preto, e calçava luvas brancas. Diante da casa, um miserável Ford estava parado.
A visitante entrou francamente no aposento acabado de pintar, de que a sr.a Bradley abria a porta, lançou um olhar divertido para os macacos das paredes e ficou
de pé, junto da cama onde Erik dormia.
- O sr. Bengtson não a esperava, quero dizer, o sr. conde Bengtson - balbuciou a sr.a Bradley.
- Eu não tinha a certeza de ficar livre. - respondeu a condessa - Trabalho no asilo de alienados de Lansdale.
Agora o sr. Bengtson dispunha-se a acordar: espreguiçou-se, queixou-se, abriu os olhos e disse: "Olá Mutz!", sem parecer admirado. Discretamente, a sr.a Bradley
retirou-se. Logo a seguir ouviu-se, através da porta, uma
conversa sonora, em dinamarquês. Correndo, a sr.a Bradley atravessou a cozinha, onde Skimpy fazia já o café, e atirou-se para o quarto onde dormiam as duas raparigas.
- Levantem-se.- disse - Vistam-se de-pressa. A mãe dele chegou, é uma condessa e ele é um conde.
Liliana sentou-se na cama, direita como uma vela. Nina precisou de alguns minutos para acordar e mesmo depois, conservou os olhos fechados.
- Que foi ? - preguntou.
- É, minha menina, que vais tornar-te condessa em te casando com ele. É de morrer a rir!-troçou Liliana, sacudindo-a.
Agora todas as torneiras funcionavam em casa; nas três salas de banho jorravam os chuveiros. O velho Filipe foi o primeiro a aprontar-se e a aparecer à mesa do pequeno
almoço, que Skimpy tinha posto.
- Eu sou testemunha - declarou, saudando a condessa. Cheirava ao whisky da véspera e ao da manhã.
- Muito prazer em conhecê-lo.-replicou a condessa, esfregando as mãos - Estou ainda entorpecida pela horrível viagem feita de noite.
O velho Filipe disse em voz pensativa: "Se lhe aconselhar a beber qualquer coisa vai com certeza recusar..." A condessa animou-se: "Ah, não recuso ! respondeu com
energia.
Filipe foi buscar a garrafa de whisky emquanto a sr.a Bradley aparecia com o café. As duas raparigas entraram. Erik estava ainda no banho. A condessa considerou
os dois rostos durante um segundo, depois, levantando-se, foi direita a Nina que, timidamente, estava no mesmo sítio, ignorando o que devia fazer.
- Bons-dias Nina. - disse ela - Caí aqui, de-repente, mas gostava de ver com quem o rapaz casava. Pôs as duas mãos nos ombros de Nina e sacudiu-a de bom humor.-
Vai ter muita arrelia com ele.
Nina procurava palavras.
- Chamam-me Mutz - disse a condessa.
- Sinto-me muito feliz por ter vindo. - respondeu Nina - Apresento-lhe a minha amiga Liliana. Esta é Skimpy, uma boa cozinheira. Foi ela que nos fez o bolo da boda.
A condessa puxou Nina para junto de si, para um canapé e pôs-se a saborear o copo de whisky, que o velho Filipe tinha posto diante dela. - É um verdadeiro reconfortante
do coração - disse - mas não se sabia se falava da noiva, se da bebida.
Liliana estava sentada a um canto sem dizer palavra. Era a primeira condessa que via na sua vida e isso fazia-lhe um certo efeito, embora o não quisesse confessar.
Olhou para Erik, com nova curiosidade, quando ele entrou com os seus cabelos claros puxados para trás, à força de água. Eis que um habitante de esferas superiores
penetrava no seu círculo... Ele devia saber o que era caviar ... Tratava sua mãe como uma encantadora irmã mais velha e a condessa brincava alegremente com ele.
Durante o pequeno almoço foi dado aos assistentes ouvirem uma boa parte da história dos Bengtson. Ao que parecia, a condessa tinha-se tornado enfermeira-mór do asilo
de alienados de Lansdale, depois que seu marido, conde Bengtson, se "afogou a beber". A condessa tinha uma forma agradável de chamar as coisas pelos seus verdadeiros
nomes. Foi assim que a clínica de luxo em que trabalhava passou a ser, na sua boca, a "caixa dos malucos". Foi tratando seu marido, confidenciou, que aprendeu a
tratar os agitados nas suas crises, Erik confirmava de bom humor. Soube-se ainda que seu pai perdera a vida em circunstâncias extraordinárias. Depois de uma caçada
real, na qual todos os senhores haviam tomado parte com casacas vermelhas, ele apostou - cheio como um odre - que iria, em traje de caça, ao prado onde estavam os
toiros. Ganhou a aposta (duzentas garrafas de Pommard, 1879) mas foi atirado ao ar pelos animais furiosos. Os Bengtson, mãe e filho, riram francamente, contando
esta aventura.
Nina calava-se. Mais do que nunca tinha a consciência de casar com um estrangeiro, com um homem que não nascera na América, um homem que viera de barco. No registo
civil confirmou-se que ela ficava a ser condessa Bengtson: era uma novidade difícil de digerir.
- Porque não me disseste nunca ? - preguntou a Erik, emquanto o táxi os trazia de novo a Fieldston.
- Para quê ? Vês-me com uma coroa de conde na cabeça a arranjar uma montra?
- Gosto da tua mãe. - disse Nina timidamente.
- Ela também gosta de ti, pardalito -declarou, muito satisfeito, apertando-lhe a mão.
Estava um tempo soberbo; doirados raios de sol caíam sobre o asfalto, as árvores começavam a florir. Quando os recém-casados chegaram a casa, encontraram convidados:
miss Drivot, o sr. Berg, Pusch, o aprendiz, e uma delegação de caixeiras que traziam um aparelho de T. S. F. como prenda de casamento. O velho Filipe fez um discurso
humorístico e estava em jejum; talvez os pormenores da cura de desintoxicação, contados alegremente pela condessa, lhe tivessem dado que pensar... Comeram o bolo
feito por Skimpy e elogiaram-no. O sr. Berg tornou-se um pouco impertinente com Liliana, que lhe disse: "Tire as mãos. Não é bastante fino para mim." Ele não ficou
ofendido.
Liliana mostrava uma alegria ruidosa e amarga. Insistia em chamar a Nina "sr.a condessa e, na sua boca, isto soava como uma ofensa.
Às duas horas da tarde, a condessa anunciou que se retirava. Convidou o jovem casal a fazer a viagem de núpcias no seu automóvel. Erik, para se despedir, beijou
todos. Não tinha bebido e, no entanto, dava a impressão de estar um pouco ébrio. Liliana voltou-se para a parede quando ele se aproximou. Miss Drivot, muito excitada,
limpou a boca. Todos disseram que a dama de honor devia beijar o noivo. De sobrancelhas franzidas,
Liliana passou fugitivamente com os lábios pelo ar que a separava de Erik, mas Erik apertou-a contra si: Assim não presta - disse, emquanto os outros riam quero
um beijo a valer!"
Liliana parecia zangada: "A valer?"-murmurou baixo. E sem esperar resposta pôs as mãos em volta do pescoço de Erik e beijou-o. Co'a breca!"-disse ele, um pouco sufocado,
assim que ela se desprendeu. Nina, de pé junto dos dois, tinha um sorrizinho contrafeito. Os outros deixaram de rir. A nova T. S. F. manipulada por Pusch, o aprendiz,
emitia sons horríveis.
Finalmente, depois de muitas palavras e lisonjas, a condessa conseguiu pôr o Ford em marcha. Erik e Nina instalaram-se com a sua maleta de fim de semana e partiram.
O ar estava fresco e eles sentaram-se bem junto um do outro com os seus casacos.
Ao crepúsculo, a condessa parou diante de uma velha estalagem, em qualquer parte, e deixou o motor em marcha emquanto desciam os dois.
- Adeus, meus filhos - disse ela.
- Adeus, Mutz - respondeu Erik.
O Ford afastou-se com o ruído de uma máquina de coser, escangalhada, depois tudo se calou. Nina olhou à sua volta. Estava um pouco desapontada. Já que tinham pedido
um dia de licença para a sua viagem de núpcias, imaginara outra coisa: barulho, gente, conversa. Atlantic City ou, pelo menos, Long Beach. Aqui, havia árvores muito
velhas, sobre as quais a folhagem da primavera acabava de reaparecer e um rebanho de carneiros, que passava no caminho, levantava poeira em grandes nuvens azues.
Por entre as árvores vislumbrava-se o mar. "É belo isto," - dizia Erik - é como na Dinamarca" e, de braços estendidos, espreguiçou-se. Nina envergonhava-se por não
ter gostado da paisagem.
À noite, ouviram música distante, foram à sua procura e descobriram por fim um baile campestre onde dançaram. Regressaram tarde, primeiro pela beira-mar e
depois atravessando a aldeia. Já não era calcetamento o que Nina tinha debaixo dos pés, eram nuvens: elas transportavam-na para a velha estalagem...
No meio da noite, Nina, a dormir, estendeu a mão. Sim, estava ali, o ente amado ...
Na manhã de terça-feira o despertador tocou, como de costume. Como de costume, Nina dormia ainda quando se levantou e quando fez alguns exercícios (tinha lido em
qualquer parte que a cultura física conservava a mocidade). Dormia emquanto fazia o café e mesmo emquanto tomava o pequeno almoço. Só acordou completamente quando
estavam sentados no metro dirigindo-se para a Central. Como de costume, Erik subiu a escada 5 e Nina correu aos relógios do ponto, no edifício 6.
E como de costume, miss Drivot notou:
- Olhe que vem atrazada, Nina, despache-se. - Embora Nina fosse agora casada e tivesse o direito de se chamar condessa Bengtson.
-Estou a fazer uma cura de emmagrecimento. Olhe, já perdi 11 arráteis - dizia madame Thorpe a Liliana.
- A senhora está maravilhosa. - respondeu Liliana, lançando um olhar sobre as redondezas da cliente.
- Uma verdadeira linha de rapariga - acrescentou, madame Chalon, a directora. - Que há-de ser hoje? Recebemos um vestido verde, com capa, da Lanvin. Deve ficar-lhe
lindamente.
Desta vez, madame Thorpe estava horrível. Tinha realmente emmagrecido um pouco, mas quatro novas rugas marcavam-lhe o rosto. Mandara pintar os cabelos com henné,
e fumava sem descanso, mostrando-se excessivamente nervosa. As jóias dos dedos e dos pulsos tilintavam, quando se agitava. Tinha levado com ela um rapaz, que se
estendeu no canapé, verificando os vincos das calças e admirando os seus sapatos novos.
- Querido, deixa-me dar só uma fumaça no teu cigarro. - disse madame Thorpe - E tirando-lhe, com os
dedos afusados, o cigarro da boca, aspirou-o profundamente e depois entregou-lho. Isto pareceu espantosamente inconveniente. O rapaz tirou logo o cigarro da boca,
fitando a marca vermelha deixada pelo rouge dos lábios, olhou à sua volta e, com ar adormecido, atirou o cigarro para um cinzeiro de metal, que tinha perto.
Madame Thorpe nada vira, mas Liliana examinava o rapaz com um olhar crítico. "Gigolô" pensou, e assim ficou arrumado. Madame Thorpe parecia absolutamente dominada
por esse indivíduo que era muito bonito, com os cabelos pretos, lisos e brilhantes, os dentes muito belos e um fato do melhor corte.
- Estou horrivelmente nervosa. - suspirou ela - É muito para uma vez só. Ora vejamos, preciso de um enxoval para viagem. Sim ... vou partir... uma voltazita ao mundo,
Palmeiras... entende... tecido branco, para os trópicos... Tem qualquer coisa deste género? vou divorciar-me em breve... e não imagina quanto isso me excita os nervos.
- Quere que lhe mostre a nossa nova colecção para o Sul? - preguntou madame Chalon, piscando o olho a Liliana - "EZ 24 até 32". - segredou-lhe. Liliana desapareceu,
obediente, com o seu passo ondulante, que lhe tinham ensinado na escola de manequins. Mal chegou ao gabinete, despiu apressadamente o vestidito negro, de caixeira.
"EZ 24 até 32". - gritou às duas aprendizas.
- De-pressa, Primeiro o vestido verde; a velha quere comprar muita coisa.
Uma das pequenas saiu a correr, a outra deixou-se ficar com ar estúpido. "O vestido de seda verde?" - preguntou - "Anda. Não sejas idiota. O vestido verde claro,
de capa, vá.. não fiques aí a olhar para mim". - gritou Liliana. Sentia sempre uma certa emoção de actriz, quando tinha de apresentar os vestidos.
- "Se vendermos a colecção pedirei uma percentagem."
- pensava, emquanto, rapidamente, punha pó na cara
e penteava os cabelos. Entre ela e a sr.a Chalon havia uma grande luta calma. Liliana reclamava uma percentagem, quando se vendia qualquer vestido apresentado por
ela. Pelo seu lado, madame Chalon afirmava que ela é que vendia o vestido sozinha, como se Liliana fosse apenas um manequim de madeira. Já duas vezes, depois de
se ter inundado de perfume, Liliana se fora queixar ao chefe de serviço. Ele tinha-lhe acariciado amigavelmente a nuca como a um cãozinho, dizendo que uma rapariga
que possuía a sua linha, não devia prender-se com tão medíocre percentagem; e fora assim que a discussão se desvanecera como fumo.
As aprendizas voltaram a correr com o seu carregamento de vestidos nos braços. No pequeno gabinete de mudas, a que chamavam a jaula dos macacos, cheirava a tecidos
novos, a oficina de alfaiate, a sabão ordinário. A um canto, uma velha costureira mordiscava uma sandwich que preparara em casa.
- Não podem andar mais de-vagar, não ? - rugiu Liliana, arrancando das mãos das raparigas o vestido verde. Como aprendiza, ela tinha sido mal tratada, era agora
a sua vez de maltratar as outras. Só quando a fina seda lhe deslizou pelas ancas, é que a calma veio, os seus nervos distenderam-se, a pele sentiu-se mais feliz.
Lançou a capa sobre os ombros, viu-se mais uma vez ao espelho e dirigiu-se para o salão.
Quando madame Thorpe a notou, tomou uma verdadeira expressão de dor de dentes: "Mas que idea! Não é a minha cor!" -disse, com ar desagradável. Liliana passeou diante
dela, lançando a capa para trás, descobrindo a blusa de fino plissado. O rapaz, no canapé, nem se mexeu, mas, sob as pestanas baixas, o seu olhar adormecido veio
errar sobre essa blusa.
- No entanto, o verde seria o ideal para os cabelos ruivos de V. Ex.a. - notou madame Chalon.
- Ah! não me aborreça, nervosa já eu estou!-gemeu a cliente. - Não posso suportar esta cor.
Madame Chalon fez sinal a Liliana e esta mexeu-se.
- Espere um pouco!-gritou madame Thorpe-Nem sequer sabe o que eu quero. Não têm nada de especial para os trópicos? Um vestido de seda para Hawai, compreende ?
- Ah! o amarelo! - exclamou madame Chalon entusiasmada, como se uma inspiração genial acabasse de lhe acudir - Miss Smith, apresente o vestido amarelo. Esse vestido
é um poema, querida senhora, um sonho, música...
Emquanto se despia, Liliana ouvia ainda o discurso exaltado da modista, que ia buscar as suas expressões ao estilo florido dos anúncios. Por uma razão qualquer,
o gabinete de muda estava sempre quente, provavelmente porque a velha costureira sofria de constipação crónica. Liliana sentia finas gotas de suor, na testa, emquanto
que, sem deixar de acelerar as aprendizas, se metia no vestido amarelo. Este era composto de muitas camadas de tule sobreposto. Na orla, a saia tinha oito metros
de roda. Quando Liliana estava vestida, viu que o penteado não condizia com o estilo do vestido. Foi buscar um pente e deitou pó na fronte húmida.
- Porque se demora tanto ? A cliente impacienta-se - gritou asperamente madame Chalon, metendo a cabeça entre as portas.
- Já vou... não pode ser mais de-pressa.-respondeu Liliana, enervada. Diligenciava todos os dias estar em boas relações com a modista, mas, todos os dias, a tensão,
que existia entre elas, se tornava maior - Saiam do caminho. - ordenou às aprendizas, que estavam ao pé da porta. Por pouco ia pisando as vítimas inocentes. Mas,
quando apareceu diante de madame Thorpe, tinha já o seu mais suave sorriso de manequim.
- Então ? - preguntou orgulhosamente a directora, emquanto Liliana se voltava, ondulante, erguendo a saia com as duas mãos e fazendo alguns passos de dança, apropriados.
- Não é feio... - concordou madame Thorpe, depois de uma pausa.
- Não é feio, minha senhora ? Mas é um sonho este vestido, é a lua de Hawai! Temos um casaco amarelo, palha de milho, com capuz, para a noite, se quiser passear
no tombadilho.
Madame Chalon conhecia as suas clientes. Uma expressão sonhadora passou um instante pelo rosto duro de madame Thorpe. O rapaz pareceu acordar: endireitou-se e parou
de fumar. Liliana desprezava-o profundamente, como só uma mulher jovem, que ainda se não vendeu, pode desprezar um homem que se vende. De súbito, ela viu-o deixar
cair lentamente uma pálpebra, emquanto os seus belos dentes brilhavam.
Era um sinal nítido e descarado, emquanto madame Thorpe voltava costas. Desconcertada, Liliana olhou-o. Estava habituada à desfaçatez, mas esta parecia-lhe demasiada.
Então, o rapaz tirou um cartão do bolso e meteu-o entre as almofadas do canapé onde estava sentado. Dava-lhe a direcção! Liliana começou logo a andar de um lado
para o outro, de contrário, teria rido.
- Esteja sossegada! Aproxime-se. - ordenou madame Thorpe.
Ela avançou com o seu passo leve, para a compra dora, que vista de perto, era quási digna de piedade. Subitamente, Liliana foi de novo acometida por esse ódio, que
sentia tantas vezes, pelas clientes do salão de costura. Viu-se a si própria, vestida com linda toilette, leve, elegante. Era uma vergonha que aquela velha se fosse
vestir assim. E, lentamente, subiu-lhe o calor à
cara.
Liliana foi tratada como um objecto: madame Chalon e madame Thorpe andavam à sua volta, tocavam-lhe, ou antes tocavam no vestido, trocando reflexões profissionais.
- Seria preciso encurtá-lo mais. -disse a cliente.
-Sim, dava-lhe mais chic - concordou a costureira.
Nesse instante, Liliana sentiu uma dor aguda, na espádua nua.
- Ai! - queixou-se baixo, voltando-se.
- Que foi? -informou-se madame Chalon, trocista.
- Não sei... peço desculpa ...-murmurou Liliana. Com dois dedos, chegou ao lugar dorido e retirou-os tintos de sangue.
Madame Thorpe exclamou, de súbito:
- O meu anel? Onde está o meu anel?
O rapaz tinha-se levantado, emquanto Liliana olhava para a ponta dos dedos. Abaixou-se e desprendeu o anel, do tule do vestido, no qual tinha ficado preso. Era um
anel pomposo com uma esmeralda rodeada de pequenos brilhantes. "Aqui está o teu anel, querida."-disse ele, suavemente, metendo-o no dedo de madame Thorpe.
- Vejam até que ponto emmagreci!- exclamou ela, triunfante.- Até os anéis me estão largos.
E para provar o que dizia, estendeu a mão por baixo do nariz do rapaz. Era uma branca mão preguiçosa, de longas unhas afiladas. O anel deslizava ao longo do dedo
emmagrecido, O rapaz pensou um instante no que podiam esperar dele, depois inclinou-se e beijou a mão de madame Thorpe.- Como os europeus são encantadores! - disse,
encantada, trocando com madame Chalon um olhar de compreensão feminina. De Liliana ninguém se ocupava.
Talvez o que aconteceu depois não houvesse acontecido, se madame Thorpe tivesse pedido desculpa à rapariga por causa do arranhão que sangrava, gota a gota. Mas não
o fez. Sem dúvida, não pensava que um manequim fosse um ente vivo, com desejos, invejas e ardentes cóleras.
- Tenha cuidado com o vestido, não apanhe alguma nódoa, miss Smith. - recomendou madame Chalon. Mas de-certo leu no rosto de Liliana qualquer coisa que lhe fez medo,
pois, tornando-se subitamente gentil, continuou:
- Agora pode ir dizer a toda a gente que foi ferida por uma esmeralda verdadeira.
Nesse momento, o rapaz tirou o seu fino lenço de baptista e tocou ligeiramente a gota de sangue nas costas de Liliana. "Seria pena que manchasse tão lindo vestido
-declarou, e Liliana não soube dizer se fôra ironia ou imbecilidade.
- Agrada-te este modelo, querido? Achas que devo
comprá-lo ?
O rapaz levantou-se e olhou para madame Thorpe. Deus sabe o que a quarentona descobriu na expressão desse rosto. com certeza uma coisa que o seu sorriso e os seus
olhos, em forma de amêndoa, não puderam esconder bastante. De-repente, o seu humor virou-se. "O vestido não me agrada!" -declarou bruscamente - "Não o quero. A saia
é muito larga. Vá, mostre-me outra coisa."
Nervosa, fazia girar o anel no dedo.- "Quero qualquer coisa de muito simples, em branco, um vestido com o qual se possa ir jogar o polo em Singapura, sem que os
ingleses nos apontem a dedo."
Liliana olhou para a directora.
- Mostre o nº 34 - disse madame Chalon, um
tanto sucumbida.
Madame Thorpe protestou, com agrura:
- Não mostre mais nada, peço-lhe. Eu mesma vou provar. Não serve a ninguém ver como os vestidos ficam no manequim. Sou eu que os tenho de trazer.
- É justo. - condescendeu madame Chalon, obsequiosa. Nas costas da cliente, ergueu os olhos ao céu num olhar implorativo: - "Traga o nº 34, miss Smith, o vestido
branco, género alfaiate."
Liliana retirou-se de novo para a jaula dos macacos.
- Que mais há ? - preguntou a velha costureira quando, ennervada, a rapariga despiu mais um vestido para tornar a envergar o seu fato de caixeira.
- A velha morre de medo de que eu possa agradar ao seu gigolô! - explicou Liliana - Que idea! A tipos como aquele nem sequer vale a pena a gente escarrar-lhe em
cima.
Madame Thorpe era ainda mais ciumenta do que Liliana supunha. Assim que ela chegou com o vestido branco nº 34 e que madame Chalon acompanhou a sua cliente ao gabinete
de prova, esta deteve o manequim, na passagem:
- Se faz favor, venha provar comigo, - disse claramente, num tom que não admitia réplica.
- com muito prazer, - respondeu Liliana tão amavelmente, que era quási uma insolência.
Nos últimos tempos perdia facilmente o domínio dos nervos. Isso tinha começado pouco antes do casamento de Nina, talvez mesmo na noite em que suspeitaram que ela
tivesse roubado o ícone russo. Desde então, a sua tensão interior tornou-se cada vez mais aguda e lutava contra a estranha apreensão de uma espécie de explosão iminente,
como se todo o armazém, um belo dia, devesse ir pelos ares, ou então arder completamente até não ser mais do que um pequeno monte de cinzas frias. O fino arranhão
ardia-lhe nas costas de uma forma insuportável e sentia uma louca vontade de puxar pelos cabelos pintados de madame Thorpe. A cliente pareceu adivinhar esta tensão,
ou então sentiu exasperar o seu ciúme, embora tivesse arrastado o manequim para longe do seu amante. Era uma obsessão. Vestia e despia os vestidos, mandando a directora
fazer uma nova escolha. As aprendizas andavam de um lado para o outro e madame Thorpe não consentia que Liliana se afastasse um segundo.
Estava calor no gabinete. As figuras das três mulheres multiplicavam-se no grande espelho de três corpos. Parecia que uma multidão de pessoas se agitava e comprimia
na estreita cela. Por fim, madame Thorpe mergulhou num delíquio. Apressada, madame Chalon foi-lhe buscar um copo de água. Liliana fez toda a diligência para dominar
a sua expressão, afim de que a cliente não pudesse perceber com que antipatia a olhava. Madame Thorpe estava agora paramentada com um vestido
preto, de cauda, que lhe exibia as espáduas muito nuas e muito gordas.
Quis ela própria desapertar, nas costas, o cordão da cinta: o anel de esmeralda deslizou e caiu sem ruído, no tapete cinzento e rosa que cobria o chão da casa de
prova, assim como todos os aposentos do salão de costura. Liliana não reflectiu, talvez nem soubesse mesmo o que fazia. Foi espontânea e instintiva: em vez de apanhar
o anel e de o entregar, com uma frase amável, pôs-lhe o pé em cima, para o esconder.
Madame Chalon voltou, trazendo um copo de água que a cliente bebeu, reconhecida. Não tinha dado por nada. Liliana estava em cima do anel e sentia a esmeralda, como
um ponto escaldante, sob a planta dos pés. Madame conseguiu tirar pela cabeça o estreito vestido: tinha perdido completamente o entusiasmo. E, depois de ter atormentado
a directora e a caixeira durante uma hora, decidiu-se bruscamente a não comprar nada.
- Tudo isto me parece muito ordinário! - disse ela - Decididamente, mandarei fazer em Paris o meu enxoval de viagem. Tenho lá uma costureirinha espantosa.
A frase soou de uma forma mesquinha, deselegante e snob. Madame Chalon tornou-se quási aliada de Liliana.
- Como v. ex.a desejar. - disse, lançando a Liliana um olhar que significava "que os diabos levem o velho camelo". Agora já não se preocupava com o facto de madame
Thorpe poder ver o seu gesto pelo espelho.
-Quere ter a bondade de me arrumar um pouco isto?-disse a directora, emquanto acompanhava a cliente.
O gabinete estava cheio de tule, de taffetãs, de folhos - sonhos floridos das costureiras para as noites de Hawai...
Quando Liliana pegou no anel, acariciou-o, mirou-o, sentindo um estremecimento: não era só medo e comoção
- era essa paixão, esse ardor indomável que experimentava
sempre, diante das coisas caras. Acariciou mais o anel e teve ainda tempo de o fazer desaparecer, quando as duas aprendizas entraram. "Nada feito?" - preguntou uma
delas, maliciosamente. - "Mete-te na tua vida". - replicou Liliana, Tinha o anel fechado na mão e não sabia que lhe havia de fazer. Pegou no fato branco nº 34, modelo
Emily e apertou-o contra si. "Eu arranjo isto".- disse, baixando-se para apanhar do tapete alguns alfinetes. As pequenas foram-se embora.
Liliana meteu o anel na algibeira direita do casaco do vestido modelo, de fazenda branca, pendurou cuidadosamente a saia e o casaco numa cruzeta e levou tudo para
o armário. Passou a mão pelo saco de celofane que devia proteger o fato claro, da poeira, respirou profundamente e deixou-o ali, suspenso entre centenas de outros
modelos de verão, prontos para a venda.
Meia hora mais tarde, madame Thorpe surgiu como um tufão. Eram quási cinco e meia e as caixeiras, extenuadas, serviam os últimos fregueses, impacientes. Houve um
certo ruído violento, mas logo reprimido, e a notícia da perda do anel espalhou-se. O velho Filipe foi chamado e as ondas informatórias chegaram ao santuário do
sr. Crosby, ao 18º andar da torre central. Embora madame Thorpe fizesse grande barulho, não podia, de maneira alguma, afirmar que tinha perdido o anel no salão de
prova ou em qualquer outro sítio. Pelo contrário, madame Chalon lembrava-se muito bem de ter visto o anel e de o ter dado ela própria à cliente. O criado, chamado
como testemunha, fez reparos adormecidos e despidos de senso. O velho Filipe fixava o seu olhar perscrutador e desconfiado sobre o rapaz. Não lhe agradava. Dois
homens da polícia privada estavam discretamente num segundo plano, mas não foram precisos. Procuraram por toda a parte e não encontraram nada. Por fim, madame Thorpe
acabou por confessar que tinha saído do armazém num táxi, cujo número ignorava. Tinha ido ao Olímpia Bar, bebera dois cocktails
passara alguns minutos na sua modista, na Madison Avenida e só no segundo táxi, tinha dado pela falta da jóia.
Lamentou-se o facto, fizeram-se promessas de mais buscas e, amavelmente, acompanharam à porta a nervosa senhora, porque era tempo de fechar o armazém. De resto,
madame Thorpe tinha a jóia no seguro, mas custava-lhe dirigir-se por causa disso ao sr. Thorpe de quem se estava a divorciar. Quando a sineta acabou de tocar para
fechar, o velho Filipe convidou o pequeno grupo de empregados a subir ao seu escritório para serem revistados. madame Chalon fazia parte desse número e ficou tão
emocionada que começou logo a falar francês e a pedir que a despedissem. As duas pequenas aprendizas, choravam. Liliana estava fria e calma. "A gente habitua-se"
disse ela irónica, emquanto se despia, sob a vigilância da enfermeira, pois, se o revistar era uma desagradável operação, era ainda assim praticada com delicadeza.
"Lamento, minha filha... -murmurou o velho Filipe, quando aquilo acabou. O seu rosto bondoso, de foca, parecia perturbado. Cheirava a whisky, como de costume. Desde
a data do casamento de Nina, conhecia mais Liliana, e tinha um fraco por ela. "Que é isso que tem aí?" preguntou a enfermeira, vendo nas costas de Liliana algumas
gotas de sangue resumando da arranhadura.
- "Isto? Foi madame Thorpe que me feriu com o seu famoso anel." -disse Liliana, com desprezo.
Sentia uma louca sensação de temeridade, como um dançarino em corda bamba, de pé, em cima de um fio fino, muito alto... "Espere, vou pôr-lhe iodo. -disse a enfermeira.
O ligeiro ardor foi para Liliana como uma promessa.
Durante quatro dias o anel ficou na algibeira do casaco branco, modelo Emily nº 34. Ninguém o comprou, pois começava a chover e as pessoas desejavam impermeáveis
e chapéus de chuva.
Ao quarto dia, o tempo melhorou e Liliana apresentou
o modelo a uma senhora que tinha uma linda figura e que o comprou sem hesitar. No último momento, Liliana teve que tirar o anel e escondê-lo na meia.
Estava doente de excitação. Se um médico lhe tivesse tomado o pulso, achar-lhe-ia febre. E se esse velho Filipe tivesse hoje a idea de a revistar, estava perdida.
Mas o velho Filipe tinha outras preocupações.
À noite, no seu reduto da cave, em casa dos pais, Liliana ficou acordada, acendendo e apagando a luz... Ao lado, seu pai resmungou, mas ela não podia dormir, tinha
que contemplar o anel...
Até que Liliana possuía, emfim, um belo anel de esmeralda, uma jóia sua, um segredo seu, um perigo seu!...
DESDE o décimo quinto andar da parte central até ao cimo, havia por toda a parte avisos com estas palavras. Pede-se silêncio. Quem saía do elevador não podia deixar
de ver este pedido que era antes uma ordem. Havia também avisos nas portas das salas de conferência onde se reunia o conselho para deliberar dos destinos da Central
Warehouse, assim como à entrada dos corredores dando para os escritórios particulares do director-chefe. O sr. Crosby tinha o seu trono lá em cima, no décimo oitavo
andar, num escritório guarnecido nos quatro lados por janelas, e que mais parecia a casa de vigilância de um faroleiro. Nos dias claros podiam ver-se os dois rios,
o Hudson e o Eastriver e as cadeias de colinas, longe, além, em New-Jersey. Mas o sr. Crosby não se interessava pela paisagem: estava muito preocupado. As acções
"da companhia estavam mal cotadas e ele possuía 51? 0 do total, justamente o preciso para lhe garantir a maioria na assembleia geral dos
acionistas.
Na segunda reunião tinha-se notado um certo descontentamento ; embora o armazém fizesse muito negócio, no último ano, fechara-se o balanço com déficit. O sr. Crosby
fazia dançar os algarismos na sua cabeça, sem encontrar solução. "Os impostos, senhores, os impostos ... Não devíamos, evidentemente, falar tão alto,
mas, o que se passa recentemente no nosso país, é uma espécie de comunismo disfarçado.
O sr. Crosby tinha memória matemática, podia-se confiar nela como numa prodigiosa máquina, contanto que se tratasse de acções e de números. Quanto aos rostos dos
seus dois filhinhos e aos aniversários dos seus amigos, esquecia-os sem cessar. No fundo, o sr. Crosby era um doente - sofria de diabetes - e isso roubava-lhe uma
porção de alegrias da vida. Bebia chá sem açúcar, com o seu biscoito seco de diabético, que sabia a papel. Cairam-lhe os dentes um após outro; pouco depois uma chagazinha
no dedo grande, do pé, causou-lhe inquietação : não era nada, uma chagazinha, sem importância, mas, para um homem diabético, podia significar o pior. O sr. Crosby
tinha as mãos frias e pesadas, inchadas, com as veias grossas. Nessa manhã, assinara o despedimento de duzentos empregados. Ninguém o estimava e ele não queria a
ninguém no mundo. Muitas vezes sentia a impressão de que o arranha-céus oscilava ligeiramente: os engenheiros haviam calculado que a ponta da torre central oscilaria
diariamente cerca de quatro polegadas.
Avaliavam a fortuna de Crosby em trinta e quatro milhões.
Filipe, o detective da casa, via o seu chefe superior pela primeira vez, depois da desaparição do anel de madame Thorpe. Ao levantar, tinha tomado como de costume
a sua ração de whisky, pois precisava de criar forças. Estava agora diante do grande patrão e obsecava-o a idea de que podiam notar a leve percentagem de álcool
que tinha no sangue.
O sr. Crosby olhou longamente para o seu subordinado, antes de dizer uma palavra:
- Chama-se Filipe ? Filipe... Filipe ? - preguntou, emfim, decifrando o nome num caderno que o seu secretário lhe estendia.
- Sim, sr. Crosby. Uma pequena brincadeira de meu pai.-murmurou o velho Filipe num tom deferente.
- Que idade tem ?
- Um pouco mais de cinquenta e oito anos - murmurou Filipe. Fazia sessenta daí a três dias e sentia uma espécie de vergonha...
O sr. Crosby olhou com atenção o seu detective. -Bebe.-Não era uma pregunta mas uma participação.
- Às vezes, um copinho... para estar acordado ... trabalho de noite, muitas vezes fico vinte e quatro horas fora de casa.
- Tem um assistente às suas ordens, não é verdade ? Não trabalham alternadamente?
- Sim, mas não descanso completamente nesse jovem detective, principalmente depois... que... várias vezes tivemos pouca sorte... isso não me deixa descansar... não
posso dormir... Por isso prefiro ser eu próprio a fazer a ronda.
- Parece-me que o seu zelo não tem tido grande êxito - disse o sr. Crosby, um pouco mais conciliador. Que um homem preferisse envelhecer no armazém em vez de dormir
na sua cama, compreendia-o bem. Ele mesmo passava a vida naquela torre e não podia admitir que certas pessoas fossem à Flórida ou à caça dos patos.
- Sr. Crosby, - disse Filipe num tom aflito, aproximando-se da secretária - reconheço que temos tido um período de infelicidade. Isso acontece. Asseguro-lhe que
vou redobrar os esforços... não consentirei que aconteça mais qualquer coisa... e se eu...
- Palavras não servem de nada. - disse Crosby. Recuou um pouco, assim que Filipe avançou para ele com o seu hálito saturado de whisky, e irritou-se de novo.
- Mandei-o chamar aqui, não para ouvir as suas explicações, mas para lhe dizer que somos obrigados a dispensá-lo, se tornar a haver o mínimo roubo.
Houve um instante de silêncio; só o secretário fazia mover uma folha de papel, para encobrir a sua perplexidade.
- Dispensar-me ? Não está a falar sério, sr. Crosby ? -disse o velho Filipe - Eu trabalho na Central desde que ela existe, faz daqui a pouco vinte e sete anos...
sr. Crosby...
- Lamento, Filipe, - disse o sr. Crosby - mas bem deve compreender que já não está à altura da sua missão. Isso acontece-nos a todos, um dia. Eu próprio terei de
me retirar e hei-de sabê-lo, exactamente, quando chegar o meu dia. Exijo a mesma coisa dos meus subordinados.
- Não poderá arranjar melhor. - disse Filipe, tocado pela sinceridade do patrão -Para mim... a Central significa tudo... Não é só um emprego... o meu salário...
sempre poderei arranjar trabalho... mas a Central... é como a minha própria casa... eu não tenho lar... sou um velho celibatário... passei toda a minha vida na Central...
não me podem mandar embora simplesmente porque se deram alguns roubos. Eu pertenço à Central... Desculpe-me, sr. Crosby, dizer-lhe assim tudo isto...
O sr. Crosby reflectia sobre o que acabava de ouvir. Desviou-se do ponto principal:
- A polícia descobriu alguma coisa a respeito do anel de madame Thorpe ? - preguntou secamente.
- Não, o caso foi abandonado. É ainda uma coisa que nos pesa às costas, se bem que seja quási certo que o anel não foi perdido em nossa casa. Mas com essas mulheres
não se pode tirar nada a limpo.
- Faço-lhe notar que madame Thorpe é uma das nossas melhores clientes, uma senhora da alta sociedade. Seu marido é meu amigo.
- Peço-lhe perdão, sr. Crosby. De qualquer forma, madame Thorpe deu ordem para acabarem com as investigações, e se me preguntar porquê, poderei dizer-lhe a razão.
O sr. Crosby olhou para o seu detective. Ele só tinha falado duas vezes a madame Thorpe, pois Thorpe, o advogado, não era, na realidade, senão uma relação de
club. No fundo, partilhava a aversão de Filipe pela cliente.
- Sabe que essas insinuações são muito injustas? disse ele.
Filipe lançou um olhar sobre o jovem secretário. Teve a necessidade urgente de uma golada de whisky e sentiu-se muito infeliz.
- Madame Thorpe mandou parar com tudo, porque receou descobrir que o seu... amigo tinha roubado o anel. É tudo. - disse, soltando um suspiro.
- Ela disse isso ? - preguntou Crosby. O velho Filipe não pôde deixar de sorrir a tanta ignorância do mundo no espírito de um grande homem de negócios.
- Disse? O senhor não conhece as mulheres, sr. Crosby. - exclamou. - Uma coisa dessas ? Elas não a confessariam nem mesmo a si próprias, em face da sua consciência.
Mas isso é-me indiferente, pode acreditar...
A leve jocosidade do sr. Crosby durou apenas um minuto, dissipando-se logo. Não sentia já senão impaciência e descontentamento em face deste empregado meio ébrio,
que não queria ser despedido. Abriu a gaveta do meio, da sua secretária, e tirou um frasquinho de remédio. Muito obsequioso, o secretário particular ofereceu-lhe
um copo de água: o director contou vinte gotas. A droga tinha um gosto amargo. Muitas vezes o doente sr. Crosby sentia repugnância por si próprio: o seu braço estava
cheio de picadas da seringa da insulina, que, ultimamente, mostravam uma desastrosa tendência para se inflamarem.
- Está então avisado, sr. Filipe - disse em tom peremptório - Na primeira ocasião, é despedido. Obrigado.
Era definitivo. Nada tinha a responder.
-Obrigado, igualmente, sr. Crosby-respondeu Filipe, retirando-se.
Lá fora, exausto, encostou-se uns minutos à parede, ao pé do aviso que reclamava silêncio. Depois dispôs-se a descer a escada que vai do 18º andar ao 12.?. Era um
hábito curioso: Filipe preferia a escada ao elevador. Três vezes, na sua carreira, tinha prendido nas escadas, ladrões que se julgavam em segurança. Chegou dez minutos
mais tarde ao seu escritório, chamou o piquete de detectives ajudantes, simples e frustes adolescentes sem nenhuma intuição psicológica, e recomendou-lhes uma grande
vigilância. Assim que partiram, acabou de esvaziar a sua garrafa de whisky, sem utilizar nem copo nem soda, pois começava a sua luta obstinada contra a ameaça de
despedida que pesava sobre ele.
OS empregados de uma grande casa só conhecem ? realmente uma pequena parte dela; estão incrustados à sua secção, como os corais ao fundo do mar. Mas aquele que,
constantemente, lhe percorre todos os cantos, como o velho Filipe, esse vê o conjunto, conhece essa imagem reduzida do universo, que é um grande armazém.
Ele via milhares de coisas emquanto, com o seu bondoso rosto ingénuo, de foca, e os olhos um pouco turvos pelo álcool, mas atentos, andava por todo o edifício. Ia
constantemente às escadas, às salas de venda que se estendiam até ao infinito. Na secção de branco, havia batalhas entre mulheres, pois era o dia de um dólar. No
salão de chá, três músicos faziam ouvir as árias em voga e, na secção de música, ouviam-se, outra vez, essas árias. Aí, uma rapariga anémica estava sentada ao piano
e tocava, como uma sonâmbula, tudo quanto punham diante dela: as notas pareciam espectros. Sem descanso, os camiões rolavam no pátio número 5, onde era descarregada
a mercadoria, pesada, registada e escolhida. Em todas as secções, Filipe distinguia as clientes que compravam sem reflexões, sem resistência, dessas que, de lábios
cerrados, calculam de pé, aos cantos, e por fim não compram nada. Mais além são os jovens negros dos elevadores que, na multidão de mulheres, anunciam os andares
como máquinas falantes, sem vida, cegos, surdos e insensíveis.
Ao romper da manhã, o armazém é ocupado por grupos de mulheres que tratam da limpeza e do encerado. De noite, os guardas vão e vêm na penumbra, marcando a sua passagem
nos relógios de verificação. Na cave, fica a reserva dos manequins das vitrinas: bonecas de cera, nuas, de sorrisos afectados, alinhadas em longas filas, contra
as paredes. Pares de braços e de pernas estão deitados ao lado delas no chão, e todas têm o ar de esperar alguma coisa. No 14º andar ficam as caixas, os cofres fortes,
metidos nas paredes, protegidos por um sistema secreto e complicado, vigiados noite e dia. É aí que, nos dias de pagamento, os empregados, em longas filas, esperam
o seu sobrescrito. Os caixas estão atrás das grades, vivem prisioneiros entre barras de ferro e campainhas de alarme e usam dedeiras de borracha, no polegar, para
protegerem a pele, que ficaria em sangue, à força de contarem todo aquele dinheiro.
Além, estão os escritórios da administração com os seus tickers, as campainhas, o martelar de centenas de máquinas de escrever. Eis o pequeno ramo de flores em cima
da mesa de uma estenotipista e um único raio de sol que, pelo meio dia, desliza pontualmente na sombria sala do empacotamento.
No vestiário das senhoras - onde as caixeiras vão à pressa fumar um cigarro quando estão cansadas - trocam-se mil bisbilhotices e chefes de secção contam historietas
emquanto se arranjam.
Mais longe, estão as mesas guarnecidas de seis, de quatro, de dois aparelhos telefónicos. Outras mesas têm vinte campainhas, e há gente que se deve precipitar assim
que as ouça tocar.
Eis aqui, em resumo, um bloco inteiro do edifício onde reina a febre da compra e da venda. A casa vibra e tudo isto, unicamente, para ganhar dinheiro.
Há longas mesas onde se escrevem, sobre etiquetas,
os preços que se marcam nas mercadorias. Certos preços são alterados, diminuídos, outra vez modificados. Isto interessa o velho Filipe; pode ficar ali muito tempo
a olhar, a ruminar, preguntando a si próprio como pode um rico modelo elegante descer até ao preço dos saldos, como um lindo móvel é um dia atirado para o subterrâneo,
ou liquidado por uma insignificância. "Que fazem dos monos?" - pregunta ele. Ninguém o sabe. - "Que fazem da mercadoria que não vendem?" - pregunta ainda. Parece
que existe uma casa que compra tudo quanto é inútil; aceita o rebotalho do grande armazém e manda-o, não se sabe para onde; para a Nova Guiné ou para quaisquer antropófagos
do fim do mundo.
E isto mergulha o velho Filipe em longas meditações. Ele também faz parte desse rebotalho... tornou-se inútil... Depois de vinte e oito anos passados na Central,
que podem fazer de um velho como ele? À noite, depois de ter ainda bebido meia garrafa de whisky, sonha que passeia com um cartaz gigantesco às costas, anunciando
um preço diminuído, rediminuído, reduzido a nada.
Um murmúrio percorreu subitamente o armazém, uma espécie de secreta inquietação. Filtrou-se não se sabe por onde: diziam que iam licenciar empregados. Muitas mulheres,
como a srª Bradley, tremiam ao pensar numa despedida. Esforçavam-se por todos os meios para se valorizarem entre os novos, os muito novos, os levianos, os mal vistos.
Havia algum tempo já que a sr.a Bradley sentia certa dor de um lado, que nem ousava confessá-lo a si própria, Skimpy, à noite, punha-lhe uma cataplasma e a sr.a
Bradley desculpava-se junto dos seus hóspedes e ia para a cama, emquanto Skimpy ficava com o velho Filipe e o casal Bengtson, a jogar. Jogavam a "beijinhos de chocolate",
pequenos bonbons negros, que a confeitaria da Central havia comprado em grande quantidade e de que não se tinha podido desembaraçar: saldavam-nos, por isso, aos
empregados, na cantina. Skimpy fazia batota sem vergonha e ganhava, com grandes gritos de alegria. Filipe perdia regularmente, não podia reter na cabeça as cartas
do jogo, embora fosse um bom jogador de xadrez. Às vezes, Nina lançava-lhe um olhar de inquietação e de
piedade.
O pior, para o pobre homem, é que tinha renunciado a beber e não ia já de noite à Central. Tinha medo do armazém, de noite, e medo de si mesmo. Sen tia muitas vezes
a impressão de que poderia, com as suas próprias mãos de detective, roubar uma garrafa de whisky, na secção. Para um bebedor, a sobriedade é uma dura doença, com
arrepios que fazem estremecer, e dores em todos os membros. Durante o tempo em que se conservou sóbrio, o velho Filipe registou um pequeno êxito e um verdadeiro
desastre.
Uma noite, descobriu um rapaz que se tinha escondido, durante as horas de trabalho, atrás de um alto rolo de tapeçaria, em pé, contra a parede do depósito de tapetes.
Uma simples intuição levou o velho Filipe a lançar um olhar para trás do rolo e a agarrar o jovem ladrão pelas orelhas.
A polícia prendeu o garoto, que não tinha ainda dezasseis anos. Ele jurou que não queria roubar nada, mas apenas brincar com os objectos da secção de sport. Isso
foi um triunfo um tanto atenuado e Filipe sentiu-o bem, Três dias mais tarde, passsou-se o seguinte ; emquanto passava pelo armazém próximo da porta de oeste, onde
vendiam tudo em pequenas quantidades, notou duas pessoas que lhe pareceram suspeitas. Lembrou-se de as ter já visto e desconfiado delas, mas o seu cérebro, perturbado
pela abstinência, não lhe deu nenhuma indicação precisa. O homem era do género "belo aventureiro"; a mulher, mais velha do que ele, estava pintada e parecia muito
nervosa. Filipe seguiu-os, sem ser notado, entre a onda da clientela que se espraiava, a essas horas da tarde, pelo armazém.
Tinha vestido o sobretudo e posto o chapéu, para ter também o aspecto de um freguês. Emquanto os vigiava, encostado a uma coluna, sentia-se cambaleante, como que
vazio. No entanto, a velha febre de caça do detective, aguilhoada pelo desejo de provar ao sr. Crosby que ainda podiam contar com ele, levou-o a agir.
As duas pessoas suspeitas deslizaram das malas de senhora para os perfumes, separaram-se, pararam em balcões diferentes, ele no das luvas, ela no dos lenços e Filipe
via-os, distintamente, trocarem sinais às escondidas. O coração pôs-se-lhe a bater: contornou a coluna, quando os viu afastarem-se, e não os perdeu de vista. Em
cima de uma mesa estavam objectos de metal prateado, nada de extraordinário, coisas que faziam mais efeito do que valiam. Shakers para cocktails, taças de fruta,
etc. Filipe sentiu de novo uma espécie de vertigem: entretanto, viu a mulher meter qualquer coisa na carteira, fazer sinal ao homem e dirigir-se com ele para a saída,
num ar indiferente.
Apanhou-os a poucos passos da porta, deitou a mão à malinha da senhora e disse brandamente: "siga-me, se faz favor, e sem fazer escândalo."
- Que aconteceu, sr. Filipe ? - preguntou a senhora. Quando ouviu esta voz teve uma sensação desagradável. No entanto, tudo teria corrido bem se, no mesmo instante,
um jovem assistente dos seus detectives não tivesse vindo em seu auxílio. Esse principiante lançou o seu punho de polícia à mão do homem e disse:
- Deixa-te de histórias, meu rapaz! Já roubaste bastante.
O escândalo estalou... O homem defendeu-se, a mulher pôs-se aos gritos, a multidão alarmou-se, a polícia da casa acorreu com as suas pesadas botas. Tudo se desenrolou
fatalmente, irresistivelmente, como numa tragédia grega.
A mulher era madame Thorpe... O conteúdo da
malinha: irrepreensível... O seu companheiro ameaçava fazer um processo por difamação. Finalmente a cena terminou na sala, pintada de branco, do posto de ambulância,
onde madame Thorpe se entregou a uma crise de nervos. A enfermeira deu-lhe brometo e o aprendiz Pusch, que estava em toda a parte onde havia qualquer coisa de interessante
a ver, foi buscar um carro para levar os dois.
- Se eu estivesse bêbado, semelhante coisa não me tinha acontecido! - dizia de si para si o velho Filipe - O pobre homem já sabia, agora, que seria despedido.
Efectivamente o sr. Crosby mandou-lhe o ordenado de três meses e um atestado para que pudesse arranjar outro emprego. Fizeram-lhe compreender que, no futuro, passariam
sem ele. Um novo chefe detective, moço e enérgico, foi nomeado. Chamava-se Ricardo Cromwell e tinha servido na marinha: foi por isso que o alcunharam logo de "Toughyj.
Desde o primeiro dia que as caixeiras o adoravam, e ele passeava por toda a parte, como um pachá que possue trezentas mulheres.
O velho Filipe estava em casa, jogava as cartas a beijinhos de chocolate e tentava não beber... A Central podia passar sem ele-bem o sabia, o pobre
- mas, Santo Deus, como poderia ele passar sem a Central ?- É preciso que alguém nos dê uma idea - dizia o
sr. Sprague, o velho, o chefe dos decoradores como iniciar essas novas ligas? Parece que a Central comprou a patente, Patente Fidélia! Uma verdadeira porcaria! Mas
a patente é nossa. Não rasga as meias. É preciso fazer uma vitrina inteira com isso. Pregunto-lhe como... Porque eu não posso colocar sessenta mil ligas como se
fossem cebolas, na montra... A não ser que fabricássemos uma árvore sobre a qual nascessem as ligas?
- Não. Já fizemos a árvore das gravatas. - interrompeu erik Bengtson que estava sentado em cima de um escadote, pintando uma senhora maior que o natural, mostrando
uma grande parte da perna, que era destinada à fachada do armazém - precisamos pensar nisso, a sério.
E mergulhou nas suas reflexões, assobiando:
"Contigo, querida, gostaria de ir a Bali dormir sob as palmeiras Contigo irià Austrália e subiria até à lua, Contigo, contigo ..
- Alto! Tenho uma idea, - disse ele - dezasseis bonecas mostrando todas o joelho, com a liga por cima.
Sim, mas... era preciso poder demonstrar que não rasga a meia...
- E como demonstrar isso ? - preguntou o velho, interessado.
Erik caiu em profunda meditação.
- Já sei. Precisamos de uma verdadeira mulier. disse, ao fim de um minuto.
- Como ?
- Uma verdadeira mulher. Dezasseis bonecas e uma mulher verdadeira, vestida exactamente da mesma forma. Ela dobra o joelho e mostra que a meia não se rasga. Admirável!
Eis a solução!
Por um momento, o velho não disse nada. A idea trabalhava no seu cérebro genial. "Não está mau..."murmurou por fim. - "Mas é preciso que tenha umas pernas bonitas"
- acrescentou Erik, do alto do escadote. O velho pareceu despertar.
- Ora! Pernas bonitas têm elas todas!
Erik desceu e pôs-se a gizar o vestido que as dezasseis bonecas e a mulher deviam vestir.
- Precisamos de procurar entre as caixeiras, temos bonitas raparigas na Central - disse ele, absorto.
- Sim. Eu encarrego-me pessoalmente de a descobrir - respondeu o velho.
E pôs-se à procura, nesse mesmo dia. Como por acaso, percorria todo o estabelecimento, cominando as caixeiras, quando elas subiam as escadas ou trepavam aos escadotes.
Tirou disso muito prazer, mas não conseguiu mais nada. No dia seguinte foi o próprio chefe do pessoal que tomou esse encargo. Estava combinado que as ligas deviam
ser expostas durante uma semana na montra número 7, do lado norte. Erik traçava já o esboço do fundo... A caixeira indicada devia receber uma gratificação de dez
dólars por dia, quantia extraordinária, comparada com o pequeno salário que tinham, quando as pernas não entravam em jogo. As mais belas raparigas da Central foram
convocadas
para a oficina de decoração e aí alinhadas. As mais belas raparigas, quere dizer, antes de tudo, os manequins e as alunas da escola de manequins. Segredando e rindo
ofereciam-se aos olhares do velho Sprague: embora se tratasse apenas de pernas, elas tinham dado ao rosto o brilho mais resplandecente. Todas eram ambiciosas e o
facto de serem expostas durante uma semana na vitrina, representava uma aventura excitante, e uma grande oportunidade de êxito.
Sem nenhuma dúvida, Liliana Smíth possuía as mais belas pernas; foi classificada em primeiro lugar na restricta selecção que fizeram. No fim, ficou só em campo.
O velho passeava ao longo da fila de raparigas, com um passo solene, como um general passando revista a um regimento. Erik fazia de ajudante, seguia atrás. O velho
discutia, em voz alta, as qualidades de cada uma, pois as suas relações de todo o ano com bonecas das vitrinas, tinham-no tornado indiferente às reacções humanas.
Erik Bengtson, pelo seu lado, fazia caretas nas costas do velho, o que obrigava a rir as concorrentes. Por fim, o sr. Sprague mandou embora todas, mesmo Liliana.
- Que tem o senhor a dizer às pernas dessa rapariga?-preguntou Erik, assim que ficou só com o chefe.
- Não as podemos utilizar. Ela não tem o tipo preciso, tem um ar ordinário.
- Acha ? -preguntou Erik, que estava habituado a Liliana.
- Meu rapaz-disse o sr. Sprague - pode-se ter excelentes ideas a respeito de decorações, mas não se saber nada do que é venda. E nós queremos vender, entendeu? Nós
queremos vender essas danadas sessenta mil ligas Fidélia. E a quem, pregunto eu? A gente modesta, às donas de casa que precisam de fazer durar as meias, a esses
dois milhões de mulheres que ficariam furiosas, se vissem uma rapariga como esta Smith. Se a pusermos na montra, teremos um montão de homens
diante da nossa fachada norte, e a patente vai-se pela água abaixo.
- Que é preciso fazer então ? - preguntou Erik, que começava a achar o assunto demorado.
- É preciso descobrir um tipo que convenha explicou o velho. - Deve, com certeza, existir uma rapariga que tenha as pernas bonitas e, ao mesmo tempo, um ar sério.
vou procurar mais uma vez. O chefe do pessoal é um burro, É preciso a gente ir em pessoa.
Ao lado do seu superior, Erik percorreu o armazém. Toda a gente estava agora ao facto do que eles queriam e as caixeiras arranjavam-se de tal maneira, quo as suas
pernas não podiam passar despercebidas. Mesmo as da velha guarda, como miss Drívot, da secção das louças, estavam cheias de esperança, pois, desta vez, não se tratava
da cara,
- Espere! É esta que eu quero! - disse o sr. Sprague, de-repente - Eis emfim o tipo de mulher que ety; procurava, como um pedaço de oiro absolutamente raro.."; Uma
rapariga que é bonita e que, ao mesmo tempo,'- tem um ar decente. É esta, acredite. Esta é que há-de vender as nossas ligas à clientela.
- Oh!... parece-me... que se engana.-disse Erik, estupefacto. A rapariga que estava em cima de um escadote, e que tinha encantado o sr. Sprague, não era outra senão
Nina.
- Ela é muito tímida para ser exposta assim - atalhou, tentando distrair o velho.
- Como sabe você, se ela é tímida ? Já lhe fez propostas ? Pois do que precisamos é justamente duma mulher deste género.
- Mas o senhor não a pode meter dentro de uma vitrina, pronto! - exclamou Erik, grosseiro. Mas, como há meses, com subtil diplomacia, tinha sempre levado o velho
a fazer o que não lhe aconselhava e a evitar o que ele queria, a sua oposição enraizou a idea do bom homem.
A GRANDE LIQUIDAÇÃO
- Como se chama, menina ? - preguntou o sr. Sprague, com os olhos erguidos para o escadote, sem se preocupar com o seu assistente.
- Nina. - disse ela.
Acabava de ver seu marido e o rosto iluminou-se-lhe.
- Desça. Tenho que lhe falar - ordenou o velho.
- Deixa-te ficar lá em cima, Nina! - gritou Erik - Na verdade, não desejo que a minha mulher se pespegue numa vitrina a exibir os joelhos.
O sr. Sprague ficou sufocado.
- Ah! bom ... casou com ela não ? As minhas felicitações. Mas... ouça-me bem: você não tem o direito de influenciar sua mulher. Ela talvez se sinta feliz, ganhando
uma pequena gratificação.
Nina descera do escadote e colocara-se ao pé de Erik, não tão perto que pudessem julgar que falavam em particular, mas, no entanto, próximo dele.
- Que gratificação? - preguntou.
- Setenta dólares por semana. - disse o velho, com ar importante - Sem contar que isso a pode fazer ir mais longe.
O sr. Berg, chefe da secção, havia-se aproximado. Miss Drivot passou perto deles, sorridente. Sabiam já todos que Nina era a escolhida e vinham cumprimentá-la, parecendo
tomar o facto como uma honra e uma distinção. No lavatório das senhoras começavam já os comentários ciumentos e os doze andares encheram-se com a notícia.
- Não quero que a minha mulher vá para a vitrina.-repetiu Erik, numa cólera fria.
- No entanto, ganhar dinheiro, só lhe pode ser agradável. Para mais, isso causa-nos a nós, à Central, um grande prazer. Estou convencido de que o sr. Crosby será
informado -continuou insidiosamente o sr. Sprague, emquanto Erik prometia, a si próprio, vingar-se na primeira ocasião. Podia sempre, emquanto decorava, deixar
cair um martelo em cima daquela maldita cabeça de intrigante.
À noite, no metro, os recém-casados discutiram. Erik mantinha que Nina devia recusar a proposta. Nina compreendia isso mal: seu marido fora sempre superficial, não
tomando nada a sério pelo facto de ser artista, e eis que, por esta história sem importância, fazia soar o seu título de conde. com aquele dinheiro podiam começar
a comprar o pequeno Ford e fazer mesmo mais qualquer coisa. Erik tinha um desejo louco de um pequeno Ford e fazia anos daí a pouco...
- Quer te agrade ou não, estou decidida, - disse ela
- Ambos temos desejo de avançar e não nos podemos permitir o luxo de desprezar semelhante ocasião. De resto, até te fica mal fazeres barulho por tão pouco. Ouvirei,
com certeza, menos reflexões desagradáveis dentro duma vitrina, do que quando sirvo os clientes.
A sr.a Bradley tomou o partido de Nina.
- Ela tem razão, se recusar, tomam-na de ponta. Erik resmungou ainda.
- Tenho a certeza que tua mãe não faria objecções - assegurou Nina lançando o seu último trunfo.
- Lá nisso podes estar descansada. Minha mãe até teria prazer nisso. - disse Erik, furioso.
- Bem vê... - concluiu a sr.a Bradley agarrando-se com força á correia, pois, nos últimos tempos, andava trémula. Devia ser por causa das dores no lado. Por instantes,
ela julgou ver os embrulhos, as etiquetas, as mãos girarem diante dos olhos e teve medo de cair. Mas era preciso não falar dessas coisas, se queria conservar o seu
lugar na Central. Bem vê! - continuou, deixando-se baloiçar da direita para a esquerda. Liliana, de pé, a seu lado, não dizia nada. Ia devorada pela cólera e pelo
ciúme. Pensar que a rejeitaram para pôr Nina na vitrina! Pensar que havia casado, emquanto ela tinha todas as noites que andar sozinha no seu ? bairro! Pensar que
esse cretino do Erik procedia como
se Nina fosse distinta demais para ser exibida! Tudo isto, punha Liliana fora de si: era como uma dor perfurã nte.
- Fazia muito mais efeito se soubessem que viam as pernas de uma condessa Bengtson - disse ela, por fim.
A flecha atingiu Erík, - e ela percebeu-o - mas era uma bem fraca consolação. Desceram os três na rua 42.a e Liliana continuou sozinha até à 125ª.
Não era que aquilo desse muito prazer a Nina, pelo contrário, afligia-a até. - "Setenta dólares". -pensava emquanto jogava com Skimpy. Setenta dólares" Erik resmungava
ainda, no entanto, deixava-a fazer o que quisesse. Nina via-se já quási a escolher o pequeno Ford. Nem podia adormecer. Estendida na obscuridade, assaltava-a a sua
empresa e construía castelos no ar.
- Pensa que nunca mais te aborrecerás - disse ela, noite alta. -Adivinhava, pela respiração de Erik, que ainda não conseguira adormecer.
- Quando? - preguntou.
Nina estendeu a mão para a outra cama:
- Ora quando ... por exemplo, quando tivermos o nosso automòvelzinho... À noite poderemos dar um passeio...
Nina conservava a mão estendida; aparentemente, Erik nem dava por isso.
- Eu não me aborreço - disse, algum tempo depois.
- Sim, continuou ela meigamente - eu sei, não é preciso que o digas: tu aborreces-te. Jogar todas as noites com a Skimpy e o velho Filipe não é, evidentemente, muito
interessante para ti. Mas tu verás... Ela calou-se um momento e depois veio a mão de Erik, da outra cama, ter com a sua.
- Querida inteligente, Lille spurv, - disse ele - estamos casados apenas há três semanas e já tens sustos a meu respeito...
Nina teve desejos de responder, mas não o fez. Erik
adivinhava sempre as suas mentiras; mesmo num quarto de dormir às escuras, ele sabia quando ela mentia. Tinha receios, sim... Ele andava distante... distraído, muito
amável... mas de noite para noite, a partida de cartas e a vida em casa dos Bradley, mais o irritavam. Um carrito para ele... ar ... movimento ... velocidade ...
- Sabes ?... é porque não me habituo aos beijos de chocolate - disse emfim Erik, do outro lado.
Nina pôs-se a rir baixinho, e adormeceram.
No dia seguinte, Nina exercitou-se no papel que devia representar. À noite Erik não foi a casa, mas jantaram juntos no "Rivoldi". Depois, ele voltou para a loja
para decorar a montra das ligas.
Foi a uma quarta-feira, que Nina tomou posse do seu novo posto. Tendo um vestidinho azul-claro, foi colocada na vitrina, no meio de dezasseis bonecas, de sorriso
idiota, e fez a demonstração das ligas Fidélia. Para dizer a verdade, ela admirava-se que as meias ficassem inteiras.
Três vezes, durante a manhã, Erik foi à rua e fazia guarda para vigiar a mulher por trás do vidro. Nina mal se atrevia a sorrir-lhe, como se se tivesse tornado actriz
de um drama de Shakespeare. Ao meio dia, houve uma pausa de meia hora; deixou ali as dezasseis bonecas e foi ter com Erik, à cantina. Ele não disse uma palavra sobre
o novo emprego de sua mulher e ela também não falou nisso. Liliana não se foi sentar em frente deles, como de costume. Na escada 5, os esposos separaram-se e Nina
retomou o seu lugar na montra 7.
Era fatigante. Horrivelmente fatigante e ennervante. Mas, ao fim de dois dias, tinha-se habituado, Às vezes, parecia-lhe que se tinha transformado também numa boneca,
com as costas duras, curvadas, e com um sorriso de madeira.
É vulgar dizer-se que os novaiorquinos nunca têm tempo. Mas quando uma bonita rapariga, exposta em carne e osso, mostra, nas suas próprias pernas, que
as meias não se rasgam, os mais ocupados arranjam logo tempo. De manhã até à noite havia uma multidão em frente da fachada norte, de tal maneira, que teve de ir
para lá um agente de polícia, afim de manter a ordem. Certos basbaques ficavam ali cinco minutos, olhando com um sorriso cheio de espectativa, como se esperassem
a conclusão divertida de uma boa anedota. Até o mendigo da esquina da rua pôs a tiracolo o seu letreiro "Sou cego" e se fez conduzir até ao armazém, pelo cão, arriscando
um olhar para Nina, Ela tinha esquecido completamente que a fitavam, e desempenhava o melhor possível o seu papel, sem se preocupar com a gente que estava lá fora.
- Ah! Tu nunca podias, na vida, ser um manequim ! - disse-lhe Liliana, à noite, quando, fatigadas de corpo e espírito, se dispunham a partir.
- Parece-me bem que não. - respondeu Nina, sem rancor.
Erik fora obrigado a ficar no armazém; os projectos para a estação de verão não estavam acabados.
- Emfim... compreendes, ao menos, a sorte que tiveste de seres assim exposta ?
- Porquê? -admirou-se Nina, a quem doíam as costas .
- Por causa de toda essa gente que olha para ti... todas essas ocasiões... Podes encontrar alguém que faça a tua felicidade.
- Que felicidade ? -preguntou Nina. Ela alegrava-se mas era ao pensar nos setenta dólares e no pequeno Ford ... Mas a felicidade era talvez outra coisa.
- Inocentinha, an ? - troçou Liliana. Tinham entrado no vestiário das senhoras e punham pó no rosto. Nina fazia-o negligentemente, Liliana com uma gravidade atenta.
- Emfim... não tens recebido propostas, cartas de amor ou coisas desse género?
- Mas eu sou casada! - replicou Nina. Liliana olhou-a com ar de desprezo:
- Eu é que devia lá estar. - disse, rancorosa. E havia de tudo neste pensamento: inveja, ciúme, raiva, até desdém e ódio por essa pequena Nina tão simples. Um pensamento
que queimava e estragava tudo: "Eu é que devia lá estar!..."
FACTO estranho, os habitantes de uma capital não conhecem verdadeiramente senão uma pequena parte da sua cidade. Fazem todos os dias o mesmo caminho, à mesma hora,
com a mesma luz. Steve Thorpe, por exemplo, não conhecia senão o caminho da sua casa de White Plains para o seu escritório da 5ª Avenida, e, além disso, o seu Club.
E mesmo, só conhecia esse bairro, através da porta do seu automóvel.
Que ele tivesse passado a pé, numa quinta-feira, pouco antes do meio-dia, diante da fachada norte da Central Warehouse, era um puro acaso e fora causa disso, também,
uma carta que tinha recebido. Essa carta, monumento epistolar, ao mesmo tempo atormentada e solene, era assinada por Filipe Filipe. Thorpe não se teria inquietado
muito se, entre frases confusas, não houvesse alusão, a sua mulher. O epistológrafo Filipe, pedia perdão pela ofensa que, em consequência de um mal-entendido, tinha
feito a madame Thorpe. Ao mesmo tempo que se censurava a si próprio, pedia instantemente ao marido, sr. Thorpe, para o ajudar: "Por causa de sua mulher perdi o meu
lugar que, durante toda a vida, ocupei o melhor que pude. Seja generoso, sr. Thorpe, e ajude-me a recuperá-lo. Sei que é amigo do sr. Crosby, uma palavra sua pode
restituir-me a felicidade", Assim terminava a confusa epístola.
O sr. Thorpe percebeu, pelo menos, que esse Filipe ignorava a acção de divórcio, posta por madame Thorpe contra ele, e ficou-lhe reconhecido, pois desde que sua
mulher o tinha deixado, andava de um lado para outro com a sensação de que toda a cidade o apontava a dedo.
Embora as culpas estivessem do lado de Lúcia, Thorpe não tinha a consciência tranquila. Em muitos processos, defendera a opinião de que, quando uma mulher se entrega
a certas faltas, é sempre por culpa do marido. Se a carta não falasse de sua mulher, ele tê-la-ia deitado fora, imediatamente. Mas Steve Thorpe queria bem à mulher
que o tinha abandonado, e tudo o que lhe dizia respeito o agitava extremamente. Ele metera-se em casa e não se dava com ninguém; quanto às pessoas que iam ao seu
escritório de advogado, possuíam o tacto preciso para não falarem de Lúcia. De-resto, Thorpe supunha que, havia muito tempo, ela tinha partido em viagem para a Europa,
como lhe dissera, quando se separaram. Só agora, esta carta lhe fazia saber que estava ainda em New-York. Esse Filipe devia ser um louco. Thorpe nada podia deduzir
da carta, mas o sangue subia-lhe ao rosto, ao pensar que um desconhecido tinha podido ofender Lúcia. Pegou no telefone para chamar Crosby, que conhecia como membro
do seu Club. Mas abandonou o auscultador, assim que viu os olhos atentos da sua velha secretária. Miss Tackle tinha a aparência e a vigilância dos cães de pedra,
que na China velam as portas dos templos e afastam os espíritos maus. Teve vergonha diante dela, diante da telefonista e diante do groom e, levantando-se, aproximou-se
da janela. O sol brilhava. Havia apenas três quarteirões de casas até à Warehouse. O grande relógio da torre central fez soar meio-dia. Havia anos que Thorpe tinha
por costume acertar por ele o seu relógio. "vou almoçar fora" - murmurou, e depois, deixando o sobretudo, pegou no chapéu e libertou-se do olhar de miss Tackle.
Assim que chegou à rua, respirou e olhou para o céu. Impaciente, esperou a luz verde para atravessar, pois tinha medo dos automóveis, como todas as pessoas que andam
sempre neles. O sol brilhante, aquecia-lhe as costas; à esquina da rua flutuava um cheiro a cravo. Uma mulher vendia flores; um homem empurrava um carrinho de pop-corn.
Thorpe sentiu-se agradavelmente englobado na onda dos passantes. "É preciso andar mais - pensou ele. - O pouco footing que faço ao sábado, não basta".
Thorpe era um homem alto e pesado, de cinquenta e dois anos. Havia quatro que estava um pouco calvo e ultimamente, a sua tensão arterial não era o que devia ser.
"A máquina gasta-se lamentava-se frequentes vezes. Era um trabalhador de uma resistência e de uma concentração colossais. Tinha ganho bom dinheiro e oferecido a
sua mulher todo o luxo que ela podia desejar. Era um dos milhões de maridos americanos, que passam o tempo a ganhar dinheiro para a mulher, de forma a não lhe ficar
nenhum tempo para gastar com as mulheres. Por isso é que ela o tinha deixado. Havia fugido com um gigolô, tal como o sr. Thorpe designava esse homem. Que o gigolô
se chamasse conde Di Péruggi e que quisesse desposar Lúcia, em nada alterava a situação.
Steve Thorpe estava na idade em que fere e faz doer horrivelmente uma mulher deixar um homem por causa dum gigolô. Mas, - com os diabos! - também ela estava na idade
em que as mulheres têm tendência para fugir com gigolôs. Pânico final, o desejo de agarrar a vida pelo último cabelo... Às vezes, sentia uma violenta cólera contra
Lúcia, outras, causava-lhe pena. Tinha conhecido muitos casos deste género, nos processos que estudara, para ser intransigente.
Foi por isso que Steve Thorpe se pôs a caminho, para tentar saber desse Filipe qualquer coisa de novo a respeito da sua mulher. Chegou diante da Central, parou
diante das vitrinas, olhando para tudo. Era novo para ele, isto desviava-o do motu-continuo dos seus pensamentos. Avançou entre a onda de gente, contornou o armazém,
deslizou ao longo da fachada norte e chegou diante da montra onde se fazia a demonstração das novas ligas Fidélia.
Thorpe parou e pôs-se a sorrir. Bonito, muito bonito. Muito bem" - pensou.
Cada uma das dezasseis bonecas tinha uma etiqueta de cartão, pendurada do joelho: "Preço: 2,80. A jovem, ao centro da vitrina, que, com um movimento regular levantava
a saia e puxava a liga, tinha também uma etiqueta pendente do joelho.
- Encantadora! - pensou Thorpe, olhando Nina e as bonecas - A rapariga é encantadora, muito mais bonita, do que parecia à primeira vista.
Parou, olhou e andou um pouco mais. Ao fim de um momento, voltou atrás. Tinha, entretanto, dado uma volta a todo o quarteirão; o sol brilhava e fazia-lhe bem
andar.
- Aqui está o que eu devia arranjar... uma amiguinha... - pensou.
Era o remédio infalível de todos os divorciados que conhecia. Uma amiguinha, uma coisa que se possa mostrar em público, que possa trazer um pouco de calor e de juventude.
Em Thorpe havia um fundo de bondade: amava os cães, as crianças, tudo o que era pequeno e necessitava de protecção. Teria sido terno, mas não tinha aprendido como
isso era.
Na sua casa de White Plains havia mesmo dois cães. A casa era muito grande para um homem só, pois a T. S. F. e a garrafa de whisky são uma companhia insuficiente.
Thorpe ficou ainda cinco minutos a olhar para a rapariga, depois entrou no armazém, pela porta norte.
No escritório de informações estava uma senhora de cabelo grisalho, que, a julgar pela sua aparência, devia
ser membro de numerosas associações de reforma. Thorpe, num acesso de bom humor, dirigiu-se a ela:
- Gostaria de comprar a jovem senhora que está exposta na montra - disse, tirando o chapéu.
- O quê ?
- A jovem senhora da montra. Tem o preço: dois dólares e oitenta. É um bom negócio. Onde a posso ir buscar?
- O senhor está a brincar! - respondeu "o escritório de informações" num tom adocicado. Em que posso servi-lo ?
A crise de Thorpe tinha já passado. Lembrou-se a que tinha vindo.
- Queria falar a um homem chamado Filipe . sabe se está empregado aqui ?
- Filipe ? O detective ? Um minuto ... - respondeu a senhora - vou chamar o sr. Cromwell.
Disse algumas palavras ao telefone e o resultado foi a aparição, passado um momento, de um rapagão com atitude de campeão de foot-ball, que a senhora das informações
apresentou com visível complacência.
- Este senhor deseja falar com o sr. Filipe. - disse ela - Este é o sr. Cromwell, que lhe dará informações.
- Chamo-me Thorpe -elucidou o advogado.-Tenho aqui uma carta que me foi dirigida por um tal sr. Filipe. Gostaria de o ver.
- Filipe, neste momento, está no depósito das peles, sr. Thorpe. Eu sou o novo detective da casa, tratando-se de qualquer coisa que...
- Não, não, obrigado,- disse vivamente Thorpe.- Queira apenas indicar-me o caminho desse depósito.
Cromwell teve um sorriso que significava: "Tu imaginas que as coisas se passam assim, meu homenzinho..."
- Como é natural, não é permitido a ninguém descer ao depósito das peles.- explicou com um sorriso condescendente,
- Bem. Então queira fazer o favor de mandar chamar aqui esse senhor.- propôs Thorpe.
Cromwell mirou-o com ar inquisitorial: "Talvez se trate de alguma situação para o velho Filipe" sugeriu, receosa, a senhora das informações. O novo detective piscou-lhe
o olho: "Trata-se de algum novo emprego?"
- preguntou. Mas Thorpe perdeu a paciência. "Quero falar com esse senhor, sim ou não?"
- Nunca, antes de meia hora. É preciso esperar que ele acabe a ronda, lá em baixo.
- Muito obrigado. Isso para mim não tem grande importância.- respondeu Thorpe. E, furioso, pôs o chapéu na cabeça e foi-se embora. Parecia, aos seus próprios olhos,
bem ridículo ter tanto trabalho por causa de uma baboseira escrita numa carta. Que lhe importava o que fazia a sua antiga mulher? Se foi vexada, foi muito bem feito.
O pequeno passeio ao sol de abril tinha enchido Thorpe de uma sensação desacostumada de frescura. Podia ser também por ter visto a pequena da vitrina. Para ser franco,
estava impaciente por tornar a vê-la. Mas, quando Steve Thorpe se encontrou na rua, a montra número 7 estava vazia. Ou antes, continha as dezasseis bonecas sorridentes;
pareceu-lhe vazia, porque a rapariga tinha desaparecido. Ruminou um pouco sobre este fenómeno, hesitou, e depois decidiu se, deu a volta ao armazém até à porta do
sul e entrou por esse lado. Era a secção de perfumaria. Um cheiro forte, a sabonete, flutuava no ar e Thorpe encontrava-se muito embaraçado nessa atmosfera de artigos
de beleza feminina. Também ali havia um "escritório de informações"; era uma senhora de meia-idade com um ar prodigiosamente distinto.
- Desculpe-me -pediu Thorpe -mas podia dizer-me para onde foi a senhora da vitrina?
Este "escritório de informações" tinha uma compreensão muito rápida. A senhora pôs-se logo a sorrir:
- Naturalmente essa senhora está no seu repouso do meio-dia,
- respondeu, depois de olhar para o relógio de pulso.
- Será possível revelar-me o seu nome ou onde poderei falar-lhe?
O sorriso do "escritório" desapareceu:
- Lamento, senhor, mas é-nos formalmente proibido dar informações desse género - replicou em tom gelado.
- Que o diabo leve todas as mulheres de quarenta anos!- resmungou Thorpe, saindo do armazém.
Se tivesse sido dado a Steve Thorpe ver Nina nessa manhã, a impressão fugitiva e agradável que sentira, teria provavelmente desaparecido. Mas, como deparou com o
impossível, ficou-lhe no sangue uma impaciência extraordinária, como de uma coisa esperada e que não teve ainda desenlace. Esse ligeiro aborrecimento deu-lhe uma
sensação de vitalidade nas veias, como, havia muito tempo, não sentira. Isso fazia parte desse dia de abril cujo ar, a-pesar-do calor do sol, era atravessado por
uma frescura estimulante que parecia vir de qualquer distante vento de montanha.
Como era meio-dia, a gente moça que saía dos escritórios estava espalhada um pouco por toda a parte, encostada às paredes das casas, fumando o seu cigarro. Thorpe
passou diante deles com ar atento: procurava a rapariga da montra. Ao canto da rua havia um grande drugstore, em que as pessoas estavam sentadas e apertadas, comendo
rapidamente a sua refeição. Subitamente, Thorpe teve um pressentimento, quási a certeza de que a jovem se encontrava ali. Entrou, atirou-se para a primeira cadeira
vaga e encomendou uma sandwich de presunto. Já tinham passado muitos anos sobre a época em que o advogado almoçava num drugstore. Os anos do seu triunfo, os anos
do seu infeliz casamento, os anos em que os cabelos lhe tinham caído e o ventre se lhe tinha arredondado. Entre essa gente moça, ele sentiu-se subitamente novo,
como no tempo da sua estreia,
A rapariga não estava entre o rancho de gentis criaturas que se amontoavam à volta do balcão, a mastigar. O advogado olhou para todas uma a uma, nenhuma lhe agradava
nem metade do que lhe agradara a rapariga da vitrina. Levantou-se, admirado de si próprio, pagou e voltou para o seu gabinete da 5ª avenida.
Uma multidão de clientes esperava-o já e mergulhou-se no trabalho até tarde. Às cinco horas, depois de ter acabado uma consulta delicada, pediu a miss Tackle que
lhe fizesse café. O ruído da cafeteira eléctrica e o perfume ligeiramente amargo que se espalhava no aposento, enchía-o de bem-estar.
- Pode ligar-me para o sr. Crosby, da Central ? preguntou subitamente e ficou surpreendido com isso. Não sabia de onde lhe vinha tal audácia, esse feitio "não te
rales". Que diabo lhe podia importar que miss Tackle, sua subordinada, ouvisse a conversa e desaprovasse as suas intenções?
Entre o escritório do advogado e o armazém houve as intervenções habituais de empregados subalternos até que miss Tackle obteve o escritório do grande director.
"O sr. Crosby está ao telefone" - anunciou ela emfim, com uma voz triunfante, estendendo a Thorpe o auscultador. O advogado lançou-lhe um olhar breve e, modelo de
discrição, ela saiu do aposento. (Ele sabia, que, de toda a forma, ela ouviria do vestíbulo a conversa telefónica ...)
- Bons-dias Crosby, como vai isso ? Aqui, Thorpe.
- Bons-dias, Thorpe. É você?
- Um lindo dia, não é verdade ?
- Sim! Ainda não tive tempo...
- Como vão essas percentagens ? Excepcionalmente, não se tratava do dividendo das
acções, mas do açúcar contido no sangue do sr. Crosby. A pregunta era uma amabilidade e como tal foi tomada.
- Obrigado, apenas 0,5 na última análise.
-Ainda bem. Está, com certeza, disposto a prestar um favor a um amigo...
- Se não custar nada...
- Ora vejamos, trata-se de um certo ... Filipe Filipe ... - disse Thorpe - puxando a confusa carta para si, pois tinha outra vez esquecido o nome. - Soube que este
homem perdeu o lugar por causa de minha mulher. Queria pedir-lhe por ele... emfim ... queria pedir-lhe que o conservasse. Parece que trabalhou durante muito tempo
na sua casa... e custa-me pensar que foi despedido por causa da minha mulher.
Ao telefone, o sr. Crosby calou-se.
- Está ? - fez Thorpe.
- Estou, sim, um instante. - respondeu Crosby - Estou a pensar. Lamento muito, Thorpe, mas não há nada a fazer. Creia-me, o facto não tem nenhuma ligação com madame
Thorpe. O indivíduo em questão é um bêbedo inveterado, é velho, em suma, não está já à altura do seu posto.
- Não há então nada a fazer, com certeza? - insistiu Thorpe.
- Infelizmente, não!-foi a resposta.
- Bem. Em todo o caso fiz o possível por ser agradável ao homem. Vai esta noite ao Club?
- Não me parece, sinto-me bastante abatido.
- É a primavera.- disse Thorpe, em cujas artérias ardia numa nova excitação - Escute Crosby... queria ainda qualquer coisa de si... muito fácil de fazer.
- Sim? - esperou Crosby de mau humor. A exuberância do advogado contrariava-o.
- Você tem uma rapariga na vitrina.. por causa de meias ou outra coisa parecida ... Gostaria de saber o nome dela, a morada e... Onde poderei informar-me?
Crosby teve um riso breve.
- Você precisa de uma caixeira para meias? Thorpe respondeu:
- Sim... pouco mais ou menos.
- Então, com muito prazer. O meu secretário vai dar-lhe as informações.
- Muito obrigado, Crosby. Adeus, até ao Club.
E Thorpe pôs-se a beber o café. Miss Tackle apareceu e tentou fingir que não tinha ouvido nada. Dez minutos mais tarde, o secretário de Crosby tocava. Secamente
e em tom protocolar, disse que a senhora a respeito de quem o sr. Thorpe tinha pedido informações, se chamava Nina Bengtson, de Houston, Texas, de 19 anos de idade,
empregada na secção de loiças e vidros, havia seis meses.
- Muito obrigado.
- Ora essa, às suas ordens.
Thorpe leu rapidamente um pacote de cartas que miss Tackle lhe entregara, assinou, pegou no chapéu, no sobretudo e saiu do gabinete.
- bom domingo, miss Tackle. - disse ele.
- Obrigada, igualmente. - respondeu miss Tackle e ele viu nas suas palavras uma pontinha de mordacidade impossível de dissimular.
Sentiu desejo de ir mais uma vez a pé até à Central, mas o seu motorista esperava-o diante de casa com o carro, e o relógio luminoso marcava seis horas menos cinco.
Subiu, deu a direcção da Central e saiu do carro no anoitecer cheio de gente e de luzes. Estavam já a fechar as portas. Assim que chegou diante da vitrina, um rapaz
extremamente loiro estava ocupado a fazer descer as cortinas de tom creme, que escondiam a montra dos basbaques da rua.
- Para casa, Tony - disse Thorpe secamente, assim que subiu para o automóvel.
Tinha dois cães bassets em casa, Max e Moritz. Podia, ao domingo, jogar o golf ou visitar o seu amigo dr. Back, em Rye. Agarrava-se a quanto o desprendesse da recordação
de sua mulher. E a rapariga da vitrina parecia ter essa qualidade, em larga escala.
Quando Thorpe, no dia seguinte, passou diante do armazém, à hora do lanche, não conseguiu encontrar a montra e foram-lhe precisos alguns minutos para compreender
que a decoração tinha sido mudada. Onde havia estado Nina Bengtson, exibiam-se agora móveis de jardim, pintados em cores vivas e aureoladas de promessas de verão.
Na terça e quarta-feira, Thorpe tentou apagar o incidente da memória. "Porque hei-de renunciar?"- preguntava a si próprio na quinta de manhã, rolando para o escritório.
No seu foro intimo germinava o másculo desejo de fazer a sua mulher, o que ela lhe tinha feito a ele. Fora sempre fiel a Lúcia principalmente por falta de tempo
e de interesse. Parecia-lhe agora que esse pequeno deslize, cometido mesmo depois, podia torná-lo mais atraente aos olhos dela.
Pode parecer espantoso que madame Thorpe que, no salão de costura, causava tão má impressão, fosse capaz de despedaçar o coração de um bom homem como o marido. Mas
os indivíduos têm tantas facetas como os olhos dos insectos e cada um só nota no outro as poucas facetas que estão voltadas para ele. Thorpe conhecia Lúcia; sabia
o que ela fora e no que se tornara. Via-a outra vez terna e tímida. A rapariga, com quem ele tinha casado, a jovem mulher que, por três vezes, tivera um parto prematuro
até que renunciara ao desejo de ter um filho, a boa camarada do seu difícil princípio de vida. A mudança tinha começado mais tarde, com o dinheiro que ele trazia
abundantemente para casa. Lembrava-se que lhe pedira, frequentes vezes, para se ocupar mais dela. "Mais tarde, mais tarde... ainda temos tempo" - respondera ele.
"A vida passa e nós não a gozamos" suspirava ela, e ele considerava isso uma injustiça do seu temperamento nervoso. Deu-lhe peles, jóias, um anel de esmeralda quando
fez quarenta anos. Em vez de se alegrar, ela tinha chorado. "Tu imaginas que a vida só é feita de segurança e de uma eterna partida de bridge,
dissera. Nessa época, aquilo havia-o surpreendido e encolerizado. Só agora começava a compreender. Um triste ressaibo era tudo quanto lhe restava do seu casamento
perdido.
- "Para que me hei-de preocupar com isso?" -repetia a si próprio. - Porque não arranjar a primeira distracção, que me aparece no caminho?"
Ao meio-dia desembaraçou-se da solicitude de miss Tackle e andou os três quarteirões que o separavam da Central. Hoje, o sol não brilhava, mas o ar estava pesado
sob um teto de nuvens que cobria o céu. Thorpe tomou o elevador até ao sexto andar e passeou o olhar, aparentemente distraído, pela secção de vidros e porcelanas.
Uma menina de aspecto rebarbativo ofereceu-se para o servir, mas não era isso que ele queria.
-Miss Bengtson não está? -preguntou-lhe sem rodeios. O chefe da secção aproximou-se e chamou em voz baixa: "Nina, Nina, um cliente para si-". A estas palavras, Thorpe
não pôde defender-se de uma lembrança cómica que se relacionava com uma casa célebre de Nova Orleans. "Nina, um comprador para si". De resto, era verdade; mas assim
que Nina apareceu, ele sentiu-se acanhado e não sabia bem o que dizer. "Um amigo aconselhou-me que me dirigisse a si; trata-se de um serviço de licores... vidro
sueco.."-balbuciou. "Vidro sueco?" - repetiu Nina reflectindo, emquanto três rugas lhe cruzavam a fronte... Ela tinha rosto de criança e corpo de mulher. Possuía
uma cor fresca e uma pele aveludada: irradiava mocidade e saúde. Um calor envolveu o coração de Thorpe, quando, atrás dela, se dirigiu para o lado dos copos de licor.
Emquanto o servia, ele tentou meter conversa, mas não foi longe. Não tinha prática e ela parecia séria e atenta ao trabalho. Enternecer um júri de coração duro,
era simples. Mas encontrar um princípio de conversa para uma caixeirinha de um grande armazém !.. Para lhe dar prazer comprou um serviço caro, de doze copos,
desejando, em silêncio, que ela tivesse uma percentagem.
- Está muito bem para esta secção -disse ele, emquanto Nina fazia tilintar com o dedo cada copo para mostrar que o cristal não estava rachado.
- Porquê ? - preguntou.
- Se lhe batessem assim, também, com o dedo, teria sonoridade, igualmente clara e fina. - disse Thorpe - Ela corou. "Não. Não diga isso..." -balbuciou com um sorriso
espantado. Não podia, no entanto, explicar à clientela, que só seu marido tinha o direito de lhe fazer reparos semelhantes. Thorpe passeou ainda um pouco, vendo
as jarras de flores e as fruteiras, achou tudo muito bem, prometeu voltar e por fim despediu-se descobrindo-se, o que mostrou ao mesmo tempo a Nina as suas boas
maneiras e a sua calvície.
Nina pensou em falar a Erik nesse amável cliente, mas não teve tempo. Esperou, como de costume, na escada 5, mas Erik não apareceu. O armazém esvaziou-se, ela ouviu
o andar dos empregados que saíam e o incessante pong pong pong do relógio do ponto, no pátio velho. Depois, tudo ficou silencioso, os elevadores deixaram de funcionar,
as luzes apagaram-se. Por fim, ouviram-se passos lá em cima, mas era só Pusch que lhe trazia uma carta. Curioso, ficou de pé junto dela emquanto a viu ler.
Gentil pardalinho,- escrevia Erick - estou condenado numa conferência interminável, peço-te que não me esperes, porque o caso não tem esperança. Vai ao cinema ou
ocupa a tua noite de qualquer forma distraída. Não te inquietes com o meu jantar, pois vou ao Rivoldi". Trezentos beijos da reserva.
Nas margens da carta, Erik tinha-se desenhado a chorar, apresentando um coração partido e assassinando o velho Sprague com um martelo. Embora ficasse aborrecida,
Nina não pôde deixar de rir.
-Não tem resposta, Pusch-disse. E depois de
dar um piparote nos caracóis inverosímeis do rapaz, foi-se embora.
- Meu Deus!-murmurou Nina, chegando à porta dos empregados e querendo sair para a rua.
- Sim, parece que chove, não é verdade minha senhora ? - disse o guarda Joé aproximando-se dela. Dentro do armazém dá-se pouco pelo ar e pelo tempo. Por uma ou duas
vezes Nina tinha notado uma crepitação semelhante a chuva, mas nunca esperara uma torrente de água comparada à que caía do céu. A rua estava deserta, largos regatos
corriam para os escoadoiros.
Gotas enormes estalavam no asfalto e uniam-se em milhares de pequenas fontes. Nina não tinha casaco nem guarda-chuva e olhava para o seu vestido bastante elegante.
Os quatro quarteirões que a separavam da estação do metro significavam catástrofe e ruína. Esperou um instante, viu passar diante de si vários autobus absolutamente
cheios, e, como aquilo parecesse não querer acabar, tomou uma decisão: "vou tomar um táxi até ao metro" pensou, e fez um sinal. Mas os motoristas dos táxis iam arrogantes
e irónicos, como sempre que chove. Continuavam o seu caminho, sem parar, limitando-se a salpicarem, com a água cinzenta das poças, as pernas de Nina. No próprio
momento em que ela ia a renunciar, surgiu um carro particular que parou mesmo diante da saída dos empregados... O senhor que ia no interior baixou o vidro e disse:
- Não poderei levá-la, menina? Embora esse convite fosse a coisa mais inocente e mais corrente em New-York, Nina respondeu como sua mãe lhe tinha ensinado em Houston,
Texas. - Muito obrigado, senhor, espero o autobus.
- Mas vai molhar-se, miss Bengtson! - teimou o senhor do automóvel.
E Nina reconheceu então o seu amável cliente da
tarde. Ele passou a cabeça calva pela portinhola e sorriu, com ar animador:
- Somos já velhos conhecidos ...
- Não sei... - respondeu Nina, hesitante.
Fazia frio, o lado direito do vestido estava já encharcado; o caminho até ao metro, debaixo de chuva, parecia de uma dificuldade insuperável. O que a levou a aceitar
foi o facto do senhor, deixando o abrigo do seu carro, sair de cabeça descoberta para a tempestade, abrindo a porta para ela entrar. "Vamos, suba. Não está tempo
para hesitações." - disse ele. E Nina subiu.
Lá dentro sentiu calor. O que primeiro caiu debaixo dos olhos de Nina foi um fresco ramo de junquilhos numa jarra; o aroma envolveu-a com a sua doçura cativante
e pesada.
- Onde quere que a leve ? - preguntou o sr. Thorpe.
- À primeira estação de metro, - disse Nina.
- Onde mora ? - informou-se Thorpe. Nina deu-lhe a sua direcção.
- Mas então é muito simples, eu passo em frente da sua casa e deixo-a lá.
O motorista guiou habilmente através das filas de automóveis; a chuva batia, impaciente, no teto do carro, os junquilhos cheiravam bem.
- É muito gentil da sua parte - agradeceu Nina. E Thorpe respondeu:
- Mas absolutamente nada... nada ...
Agora que tinha a rapariga tão perto de si, não sabia como poderia avançar mais ainda. Ela parecia séria, sentia que tinha de agir com prudência. - "Está molhada ? - preguntou, tateando o ombro do casaco de Nina. Ela encolheu-se imediatamente para um canto do carro. - "Não, obrigada" - disse. Até ao Central Park foram calados;
ao princípio o silêncio era opressor.
- "Onde pôs os lindos copos que comprou?" - preguntou a rapariga. Thorpe tinha deixado o serviço de licor no seu gabinete de trabalho. - "No escritório. - disse
-Sou advogado. Chamo-me Steve Thorpe . Nina esboçou um pequeno cumprimento. O auto avançava pela rua 62ª para a Riverside Drive. Agora chovia com mais força e, regularmente,
o asfalto parecia um mar cheio de luzes. - "Quere realmente ir para casa?" - preguntou Thorpe. - "Para onde hei-de ir ?" - exclamou Nina, surpreendida.
- Mas há mil coisas agradáveis a fazer numa tarde de chuva. Bar, cinema, concerto. A menos que a esperem ?
Emquanto Thorpe fazia esta pregunta, Nina entristeceu um pouco: era a quarta noite passada sem Erik.
- Não, ninguém me espera. - disse rapidamente.
- Temos então a mesma sorte. - replicou Thorpe. Olhou-o de revés. Ele pareceu-lhe muito velho, com a cabeça calva e uma ruga de preocupação ao canto da boca.
- Numa cidade tão grande há muita gente só. disse ela, sem querer.
Thorpe concordou com calor e no meio da conversa, obliquavam para a avenida de Fieldston, semeada de árvores. ?
- Como vê, levo-a conscienciosamente para casa. - , disse Thorpe - Mas é uma vergonha! Vai ficar lá sozinha e eu ficarei mortalmente melancólico. Porque não vamos
jantar juntos e passar a noite num cinema? Que lhe parece? Gosta do Gary Cooper?
Nina, tal como milhares das suas irmãs americanas, era louca por Gary Cooper e tanto mais que ela achava o Erik parecido com Gary. Erik também era alto magro e tinha
as faces vincadas e um ar desdenhoso quando julgava que ninguém reparava nele.
-Gary Cooper? Mas é o meu sonho! -disse ingenuamente.
Thorpe compreendeu mal a expressão sonhadora e abandonada do seu rosto que espiava à luz de um candeeiro emquanto, num cruzamento, esperavam que se
restabelecesse o trânsito. Aproximou-se dela e procurou-lhe a mão.
- Está entendido que vamos passear juntos? - preguntou, entusiasmado. Nina desprendeu-se, pôs-se logo a rir e repeliu-o sem o melindrar, mas muito claramente.
- Que imagina? - disse - Eu sou casada.
Thorpe não estava em disposição de se deter por semelhante dificuldade.
- Isso não tem a menor importância. - replicou Cada um de nós é mais ou menos casado, emquanto isso dura...
Sem querer, o seu tom tornou-se amargo e Nina reparou.
- Não o queria magoar. Tem sido tão amável comigo... - disse ela, preguntando a si própria se devia ou não descer.
- Somos ambos casados e estamos ambos sozinhos esta noite. E eu não acho isso bem.
Estas palavras atingiram o ponto vulnerável do coração de Nina, o ponto que lhe doía e onde reinava a ansiedade.
- Meu marido trabalha de noite. - disse vivamente.
Thorpe calou-se, mas com a expressão duma pessoa que sabe mais do que diz. Subitamente, sem ele mesmo saber como, encontrou-se a falar:
- Criança ... Criança... è muito nova, imagina ainda que o casamento é qualquer coisa de sagrado, de importante... toda a maçada do catecismo. Olhe à sua volta:
qual é a união que se possa garantir que não será um dia anulada ou quebrada -ou que não se transforme num verdadeiro inferno? O casamento! Uma bela instituição
que nós arrastamos, na nossa civilização. Poderia dizer-lhe como certos casamentos acabam pouco a pouco, a-pesar-da boa vontade dos cônjuges. Eu também já fui um
jovem casado, minha mulher era fresca e pequenina como a senhora é agora. Podia contar-lhe o que aconteceu depois... ao casamento e à mulher...
Nina ouvia sem dizer palavra. Aquele homem causava-lhe pena e ela acabara de o repelir ! Continuou a falar de si, da sua casa vazia, dos seus dois cães. Não podia
dormir, dizia, e os fins de semana eram tão longos!... Como era doloroso estar só! Por isso é que procurava... sem más intenções, um pouco de companhia.
Steve Thorpe podia fazer chorar os júris e saber encontrar, para os piores adversários, terrenos de entendimento, mas, como sedutor de mulheres, não tinha a menor
experiência. Outro qualquer ocultaria a Nina que era casado e ter-lhe-ia oferecido um anel de brilhantes, uma viagem à Flórida, e tentaria fazê-la beber. Foi justamente
porque ele não o fez, porque tudo quanto dizia, tinha um tom de verdade e despertava compaixão, que Nina foi tão confiante. Haviam já passado a casa de Bradley e
Nina não mandara parar. Parecia-lhe indelicado, impossível, interromper as recordações desse homem solitário e dizer-lhe: "Muito obrigada, cheguei a minha casa."
A chuva cessou e os junquilhos pareciam adormecidos. Assim que Thorpe deixou de falar, tirou o lenço e limpou a testa. O advogado mostrava-se infeliz e fatigado.
Nina olhava-o: "Pois bem, iremos jantar juntos e depois passaremos a noite no cinema. ouviu-se ela dizer subitamente. Surpreendeu-se, mas sentiu um sentimento ardente
ao pensar que alguém pedia o seu socorro e, na verdade, uma expressão de incomparável alegria inundou o rosto do seu companheiro.
Fez o carro dar meia volta e voltar para trás. Comeram num restaurante chic, ao pé de Grants Grab, e depois foram a um cinema de Broadway onde puderam ver um filme
de Gary Cooper. Thorpe portou-se impecavelmente e esteve satisfeito toda a noite. Estar feliz é uma coisa, e a paz sentida, depois de uma dor de dentes, é outra.
Parecia a Thorpe que o tormento ocasionado pelo casamento falhado, tinha cessado definitivamente ; sentia-se ainda um pouco fatigado, mas leve e livre.
Quando, mais tarde, convidou Nina para um bar, ela agradeceu delicadamente. Rolaram então, de novo ao longo da Riverside Drive, para Fieldston.
Seria uma ofensa para a sua mão se eu a agarrasse ?
- preguntou ele, sorrindo - E Nina sorriu também, respondeu que não e assim foram em silêncio. Nina pensava em Erik e em Gary Cooper; ele, em nada, nem sequer em
Lúcia. Sentia apenas o seu próprio pulso bater docemente contra a luva de Nina.
Quando ela chegou a casa, esperava-a uma surpresa. Erik tinha voltado. Estava no quarto, por baixo de um dos macacos, e parecia zangado.
- Já cá estás ? - preguntou ela, tolamente.
- Tenho vagamente essa impressão. - respondeu ele sem levantar os olhos. Acabava uma paciência complicada.
- Pensei que não voltasses antes da meia-noite... disse Nina, sem se atrever a beijá-lo.
- Matei o sr. Sprague, escondi o seu cadáver no subterrâneo, voltei para casa mais cedo e não te encontrei !
Via agora que ele não estava zangado.
- Onde estiveste, mulher ? - preguntou no tom das comédias francesas.
- Fui ao cinema, tinhas-me escrito dizendo que fosse ao cinema...
- Esposa obediente. - disse, aproximando-se dela E voltaste de táxi ? Ouvi parar um carro.
- Trouxeram-me de automóvel, por causa da chuva. uma senhora... - disse Nina.
A primeira mentira, que dizia depois do seu casamento, saiu sem esforço. Mal deu por que tinha mentido. Uma hora mais tarde, esquecera Thorpe, e o advogado não lhe
voltou a acudir ao espírito, senão no dia seguinte à chegada à Central, quando Joé lhe entregou um ramo de junquilhos e um cartão: "Obrigado pelo bom serão e até
breve."
Nina estava terrivelmente embaraçada. Erik encontrava-se a seu lado, cheirava os junquilhos olhando para o cartão e para a mulher.
- Foi alguém que me viu na vitrina.- balbuciou.
- Tem sem dúvida uma alma terna. - respondeu Erik, que parecia divertir-se prodigiosamente.
Depois não falaram mais no incidente.
TODOS os anos no mês de Maio, o Central-Club alugava um desses barcos especialmente apetrechados para reuniões amigáveis, que estão ancorados em East-River. E, por
uma noite de lua cheia e de bom tempo, organizavam um baile, emquanto o barco, lentamente, lentamente, subia o rio; primeiro ao longo dos arranha?céus de Manhattan
até ao Schiffs canal, depois voltando por Hudson até por detrás da ponte Jorge Washington, entrando por Downtown.
Muitas semanas antes, o armazém estava em efervescência, mas essa noite não era uma coisa sem importância na vida dos empregados. A lua cheia, o mês de Maio e o
bom tempo! Música e dança! Flirts e namoricos ! E a esperança de qualquer coisa inesperada e maravilhosa, sempre escondida no fundo do coração da gente modesta.
O aprendiz Pusch, por exemplo, mandou para uma certa morada 35 cêntimos e um boletim que cortou de uma revista. Em troca, recebeu uma brochura de cultura física
que prometia torná-lo em seis semanas, um verdadeiro Golias. Além disso, usou um creme garantido, com promessa de reembolso, se as sardas não desaparecessem, como
por encanto.
Madame Chalon mandou pintar as unhas dos pés vermelho escuro, Deus sabe com que esperanças. O sr. Berg tencionava festejar no barco o seu noivado
com uma senhora de Brocklyn, filha dum dentista judeu. Infelizmente, o noivado desmanchou-se antes da festa e Berg teve de se portar impecavelmente com uma caixeira
da secção de perfumaria. Efectivamente, ele tinha por princípio nunca se abalançar a tais coisas na sua própria secção. Toughy, o novo chefe detective, foi assediado
com quatro semanas de antecedência, por convites para danças. Prometeu a doze damas diferentes os seus favores para o serão e pediu a Filipe para o substituir nessa
noite, na Central. Quanto ao sr. Crosby, procurava, lá no alto da sua torre, um pretexto para não tomar parte na festa. Esse baile parecia-lhe uma demonstração demasiadamente
democrática, mas os empregados contavam absolutamente com a presença do grande Director da Central. Erik aceitou os setenta dólares que Nina lhe deu de presente
no dia dos seus anos, mas não dispôs de nada para a compra do automóvel. Pagou algumas dívidas e tirou o smoking do Montepio onde estava havia muito, acumulando
juros. Nina teve uma certa decepção, pois sabia quanto ele desejava um carrinho, mas por outro lado ficou orgulhosa que seu marido não quisesse dever nada a ninguém
e que possuísse um smoking. Erik estivera três anos desempregado, antes de consentir em renunciar ao seu sonho de ser pintor, e vender-se como decorador da Central.
Ganhava apenas dezasseis dólares por semana, pois consideravam-no como um principiante, um decorador sem experiência. Por isso é que tinha dívidas. Fez várias proezas
com os seus setenta dólares, pois ficou-lhe dinheiro ainda para comprar um vestido para Nina que ele mesmo escolheu: azul-claro, com um bordado, a prata, no cinto.
Nina sentia-se orgulhosa, mas não completamente feliz. Erik tinha mudado um pouco nas últimas semanas, andava nervoso, distraído, fazia muitos desenhos em papéis
que logo rasgava e deitava fora, encolerizado.
- Tua mãe não vem, em breve, a New-York? - preguntou Nina.
- Que queres tu a minha mãe ?
- Oh! Nada ... nada ... era cá uma idea.
Na verdade, gostaria de pedir conselho à enérgica e original condessa, sobre a forma de tratar o seu genial filho, principalmente para o fazer feliz.
Pouco antes da grande noite, aconteceu Steve Thorpe convidar Nina para um cocktail em sua casa, oficialmente, com o marido. O seu início de relações com ela não
tinha ido longe, mas também não se quebrara. Assim que se sentia infeliz e os seus espectros particulares vinham visitá-lo", ia até à Central Warehouse e comprava
coisas inúteis na secção de louças e vidros. Uma colecção de copos e jarras de todos os feitios acumulava-se já no seu escritório e miss Drivot não deixava de fazer
reparos irónicos a respeito dos clientes assíduos de Nina. De vez em quando, Thorpe fazia a Nina uma amabilidade: dois bilhetes para um concerto, (a que ela ia com
Erik, sem nada compreender) duas flores para pôr ao peito, um livro. Também a esperava muitas vezes no seu carro diante da saída dos empregados. Se ela saía com
Erik, levava amavelmente a mão ao chapéu e ia-se embora. Se saía só, então conduzia-a a casa; uma vez, mesmo, Nina acompanhou-o até White Plains. Tinha visto a casa
por fora, brincado com os cães bassets, que correram do fundo do jardim, mas recusou-se a entrar. Uma noite resolveu ser franca e confessou a Erik toda a história
inocente e oculta. Ele riu com gosto. "Nina, Nina, Lille Spurv, és uma grande màzinha". - disse "Passeias com senhores ricos, emquanto o teu marido trabalha. Uma
planta gangrenada da grande cidade, eis o que tu és."
Nina ficou desiludida. Tinha esperado outra coisa; ciúme, lágrimas e perdão, para terminar. Pelo contrário, ele tinha-lhe chamado Lille Spurv... O meigo nome fora
quási esquecido depois do casamento. Foi assim que Nina apresentou ao marido o advogado, uma tarde,
à saída, e que os dois homens trocaram algumas palavras amáveis.
Durante três dias, New-York ardera em calor, embora Maio mal tivesse começado, e fosse já de noite que a Central fechasse. Thorpe apertou a mão de Erik e convidou-os
para um cocktail em sua casa, na quarta-feira seguinte. Erik aceitou com entusiasmo. - "É um homem encantador. - disse ele a Nina - Deitaste a mão a alguém de primeira
ordem." Nina era jovem e vinha de Houston, Texas. Não compreendia de forma alguma esse laissez-faire, laissez aller, do conde Bengtson que vinha da maturidade, do
cansaço de um sangue velho.
Na quarta-feira, Erik não pôde libertar-se. A direcção tinha dado ordem para alterar completamente a secção de arte. Queriam fazer liquidação, e o sr. Sprague e
Erik tinham por missão dispor as coisas de uma Forma agradável e atraente nas montras de baixo: os irremediáveis bibelots, pinturas a óleo e estatuetas de bronze.
O velho quási chorou, assim que Erik disse que tinha um convite; Sprague portou-se como Cristo no jardim das Oliveiras: "Não poderá velar uma noite comigo ?"
- Ora que maçada! - disse, no vestiário das senhoras, Nina a Liliana, que se preparava - Erik não pode vir e Steve Thorpe está à nossa espera.
- Quem é que te espera ? - preguntou Liliana, deixando o seu bâton.
- O velhote, aquele que tem uma paixoneta por mim. Já te contei.
- Como lhe chamaste?
- Thorpe. Steve Thorpe.
- É o marido da nossa cliente ?
- Não sei. A mulher pediu o divórcio.
- Gostava de o conhecer... - declarou Liliana.
- Imediatamente, se quiseres. - respondeu Nina.
Cinco minutos mais tarde, rolavam as duas no automóvel de Thorpe para White Plains. Liliana ia alegre e faladora. Nina continuava calma. Thorpe sentia-se pouco à
vontade entre as duas raparigas. O carro depressa se impregnou do perfume de Liliana.
É difícil dizer porque Liliana mostrava tanto empenho em conhecer Thorpe. Sem dúvida tinha, sem dar por isso, o desejo de conhecer o homem que comprara o anel de
esmeralda, o anel que ela escondia em casa, nos colchões. Era um instinto de mulher, um instinto de caça, um instinto de prostituta. O homem que dava anéis a madame
Thorpe e fazia a corte a uma mulherzita como Nina, devia ser uma presa fácil. O seu melindre de amor-próprio não havia desaparecido, esse de Nina ser exposta na
vitrina e ela não! Que Nina se tivesse casado e ela não! Que Nina fosse cortejada por um homem rico e ela não! Era demais.
Ia roubar a Nina esse homem, que lhe havia de dar os anéis que ela quisesse e quando quisesse. Emquanto subiam o Grand Concourse, ela julgava o homem: a sua idade,
a sua calvície, o seu ventre. Era preciso que fosse rico para compensar o que lhe faltava. Avaliou a casa, os criados, o whisky. Liliana tinha crescido nos bairros
pobres, mas nascera com o instinto do luxo. "À nossa boa amizade!" -disse, com intenção, levantando o copo ao mesmo tempo que Thorpe. Ela chamava-lhe Steve, simplesmente,
embora apenas o conhecesse havia meia hora. Deu volta aos botões do rádio e fez alguns passos ondulosos de dança, ao ritmo da música. Exibia assim a sua coleante
linha de anos, como no armazém.
Durante esse tempo, Nina brincava com Max e iMoritz. Thorpe foi ter com ela, ao seu canto: "Quem é esta rapariga?" - preguntou.
- Liliana? A mais linda rapariga da Central. - disse logo Nina.
- Não gosto dela.
Às nove horas, Nina começou a bocejar e Thorpe propôs imediatamente levar as duas a casa. Desta vez, foi ele mesmo que guiou, tendo mandado Tony embora. Era um motorista
exageradamente prudente e lento. Durante todo o tempo, Liliana reflectiu sobre o que seria de melhor política: continuar só com ele ou descer com Nina. Ela não queria
que ele soubesse que morava na 122ª rua do bairro Leste. Tendo notado que a expressão do advogado, de minuto a minuto se mostrava mais fatigada, preferiu descer.
"Posso dormir em qualquer parte em tua casa?" - preguntou à amiga.
- Certamente, - respondeu Nina, contra vontade. -Boas-noites e obrigado pela vossa visita - agradeceu Thorpe, retendo um segundo a mão de Nina, quando ela descia.
No derradeiro momento, Liliana teve uma idea genial.
- Porque não convidamos Steve para o nosso baile? Seria admirável! - disse.
- Não sei se o sr. Thorpe gosta dessas coisas... respondeu Nina, hesitante. O advogado pediu pormenores do baile do Central-Club e confessou, com entusiasmo, que
morria de desejos de ir. Pobre Steve Thorpe! Aproveitava todas as ocasiões que o afastassem de sua mulher e o aproximassem de Nina.
- Combinado. - disse Liliana - Será o meu par e faremos ciúme a todas. "Fazer ciúme . Era bem uma idea de Liliana.
Assim que entraram em casa cheirava a naftalina. A sr.a Bradley ocupava-se em modernizar um vestido de seda preta, de noite, que lhe restava de melhores tempos.
Skimpy, excitada, estava sentada ao pé dela, a costurar. Nina tirou o seu vestido azul prateado do armário para o mostrar a Liliana, assim como o smoking de Erik,
que saíra do Montepio, e no qual ela tinha certo orgulho.
No dia seguinte, Erik trabalhou na cave, onde se encontravam os manequins da exposição. Estavam a oito dias do baile. O decorador colocara cinco bonecas na ordem
em que mais tarde seriam postas na montra e arranjava-lhes a atitude, abandonando o cigarro. Liliana entrou, seguida de Pusch que trazia um carregamento de vestidos
de verão.
Já não precisamos de si, Pusch - disse Liliana, logo que ele pousou o fardo.
No depósito de manequins era sempre noite; as lâmpadas eléctricas estavam acesas, o ar descia por tubos e havia o mesmo cheiro que no metro. "Trago os vestidos para
a montra 11" - disse Liliana colocando-se diante de Erik. "Grande honra".-disse ele-E, pegando num dos vestidos, sacudiu-o diante de si. As bonecas estavam à sua
volta e sorriam. "Queria falar-lhe a sós". - murmurou Liliana - Erik ergueu vivamente os olhos. Havia qualquer coisa na atmosfera - entre ele e Liliana - uma espécie
de inconfessada tensão. Ele pousou o vestido e sentou-se na borda da mesa.
- Onde é que se vai quando se quere empenhar qualquer coisa?-preguntou Liliana.
- Quere dizer que nunca pôs nada no prego ? exclamou ele.
- Não. É o meu primeiro ensaio. Mas gostaria de ter um lindo vestido para o baile.
- Eu costumo ir sempre à 6.a avenida, mas ouvi dizer que se encontra melhor na 2.a avenida. - disse Erik - Se quiser, passamos por lá depois de fecharmos. As casas
de penhores estão abertas até às sete horas.
- Obrigada. - agradeceu Liliana - Pediu mais alguns nomes e moradas e foi-se embora.
- Inscrevo-me para a primeira dança. - gritou Erik, atrás dela - Depois, voltou aos manequins. Às vezes estava tão farto de armar montras que tinha vontade de gritar.
No dia seguinte, à tarde, Liliana, hesitante, tomou o
caminho da 6.a avenida. Três vezes passou de largo sem ousar transpor o limiar da loja. Tinha a direcção de memória. Corria um perigo e sabia-o. Interiormente tremia,
mas era uma particularidade do carácter de Liliana: excitava-a o perigo.
Aspirou o ar quando entrou - havia ali o odor dos fatos muito usados. Objectos de todas as espécies jaziam um pouco por toda a parte - tudo parecia impreciso e apagado.
O homem pôs uma lente na órbita e examinou o anel. Que calma! Podia ouvir se o tique-taque do relógio.
- Quanto quere ? - preguntou o prestamista.
O coração de Liliana batia com tanta força, que ela podia ouvi-lo.
- Ignoro o valor do anel, foi um presente. O homem não desviou o olhar da pedra.
- Posso dar-lhe seiscentos dólares. - disse ele, de pois de um longo silêncio. A soma, importante e inesperada, caiu, grande e pesada, sobre Liliana.
- Sim ? - murmurou.
- É uma bela esmeralda. - afirmou o homem. Durante um instante, Liliana esperou que polícias
surgissem de cantos imprecisos da casa, para a prenderem.
- Só me quero separar dele por pouco tempo - disse, sem fôlego.
O prestamista tirou a lente e olhou-a.
- Precisamos dum documento. - esclareceu - É da lei... Seja qual for... passaporte ou bilhete de identidade ...
Liliana tinha um: todos os empregados da Central possuíam um cartão azul num sobrescrito de celofane. Parecia-lhe sentir o cartão como qualquer coisa de quente,
no seu saco, que ardia através do coiro. "Não tenho... não se pode dispensar?"
-Lamento, mas é impossível, - disse o homem e
Liliana iliana sorriu: os artifícios aprendidos na escola de manequins vieram em sua ajuda.
-Corro a casa a buscar o meu cartão.-disse-Daqui a dez minutos estou de volta.
Se vai de-pressa, fecharei a loja um pouco mais tarde - disse o prestamista, estendendo-lhe o anel. Bem; tinha outra vez o anel, não havia a menor suspeita, nenhum
polícia seguia Liliana, emquanto ela corria à próxima estação de eléctricos. Nesse instante, quási odiou o anel.
Era como uma obsessão, precisava desembaraçar-se daquela jóia que não lhe servia de nada, precisava comprar vestidos novos, precisava de ser a mais linda rapariga
do baile. Era uma ocasião maravilhosa: iriam vê-la, emfim, os dirigentes da Central que sairiam da sua torre de marfim e vagueariam entre os mortais. Liliana não
dormia: tinha as faces afogueadas, o rosto emmagrecido.
Três dias antes do baile encontrou-se na 2.a avenida; subiu a rua, lançou um olhar para a casa de penhores e por fim entrou resolutamente.
Aí era uma mulher que tratava do negócio, uma velha muito pintada. Outra vez a lente, o cheiro sujo a vestidos usados, a desordem, a tensão silenciosa.
Dois homens estavam encostados ao balcão, e olharam para Liliana com um olhar investigador, como se fosse um objecto.
- Pois bem, - disse por fim a mulher - dou trezentos, por ser a si, Como entrou em posse deste anel ?
- Um presente. - disse Liliana.
- Deve saber da coisa, para o seu amigo lhe dar presentes destes. - notou a mulher - A mim não mo davam.
Liliana forçou-se a sorrir.
-Posso acompanhá-la, menina?-preguntou um dos homens - Era alto e tinha os lábios inchados.
- Obrigado, tomo um táxi. - disse Liliana - Entretanto, a mulher havia lido um papel.
- O bilhete de identidade? -disse ela em tom indiferente.
- Diabo, nem pensei nisso! Não o trago comigo disse Liliana.
- Nem nada ? Veja na sua malinha. - aconselhou a mulher - Liliana pôs a malinha em cima da mesa e esvaziou-a.
- Tem aqui uma carta. - disse a prestamista - Os dois homens aproximaram-se e olharam.
- Sim, - disse Liliana - e esta carta basta ?
- Nós não somos exigentes; é apenas uma formalidade.-respondeu a mulher -Leu a direcção e copiou-a num livro: Madame Adriana Chalon, 367, West 72.a Street, City
Apartments.-Francesa? -preguntou a prestamista. Era um pouco estrábica, Liliana só então deu por isso.
- De origem francesa; meu pai veio do Canadá elucidou Liliana.
Ela tinha tirado do cesto dos papéis um envelope enviado à directora detestada. Assim que todas as formalidades foram preenchidas, e que meteu na malinha os trezentos
dólares, sentiu o mal que lhe ia no estômago.
- Voltarei a buscar o anel - disse fracamente.
- Dez por cento de juros pagáveis todos os meses - explicou a mulher.
- Um cigarro ? - ofereceu um dos homens. Era alto, novo e seria belo se a boca fosse menos vulgar.
- Obrigada.-respondeu Liliana-Embora tivesse uma frenética necessidade de fumar, rejeitou a oferta. Ding-ding-ding fez o relógio da loja emquanto ela saía.
- Bela rapariga! - exclamou o homem.
- Podíamos, justamente, precisar dela - disse o outro mais baixo que parecia um grego ou um arménio, negociante de frutas.
-Como pode uma mulher destas ter semelhante esmeralda ? - preguntou a prestamista, tornando a pegar na lente.
- Não está na lista ? - interrogou o rapaz bonito.
A mulher tornou a ler as folhas impressas e já meio apagadas: era a circular da polícia assinalando os objectos roubados com ordem de não os adquirirem.
- Não. - respondeu a mulher, terminando.
Donde lhe pode ter vindo o anel ? - repetiu o mais baixo dos homens.
O outro pôs-se a assobiar uma melodia sentimental.
- Veremos - disse subitamente. E, tirando as mãos dos bolsos, seguiu Liliana.
A lua brilhava, o tempo estava belo e dançava-se no tombadilho. A orquestra, embora composta apenas por quatro músicos, era excelente por fazerem parte dela dois
cubanos e um russo; os cubanos forneciam o ritmo, o russo a sentimentalidade. O sr. Crosby tinha-se, finalmente, resolvido a vir; estava até de casaca. Sentado em
baixo, no pseudo salão, onde a Central-Club lhe tinha preparado uma espécie de trono, bebia café, no qual, cuidadosamente, havia deitado dois comprimidos de sacarina.
De cada vez que absorvia um gole, agitava-se contrafeito. Steve Thorpe também viera. Vestia um fato de flanela cinzenta, pois nunca pensara que a gente da Central
desse um baile tão solene. Tinha trazido flores para Nina e Liliana. Como Nina já as tinha recebido de Erik, o decote do seu vestido desaparecia sob as flores. Erik
estava de smoking, com um cravo vermelho na lapela. Dir-se-ia que acabava de sair da mesa do rei da Dinamarca; era essa pelo menos, a confusa impressão de Nina.
No fundo, ela não sabia bem, se a Dinamarca tinha rei ou não.
Erik dançou com Liliana, depois com Nina, depois outra vez com Liliana. Elegante e digno, dançava primorosamente e Nina parecia inferior a seu lado. Os passos da
jovem revelavam ainda a sua origem de Houston, Texas, onde seu pai às vezes a levava a reuniões de sociedades. Ela sentou-se numa cadeira, no tombadilho,
ao pé do reeling, a ver. Que Erik dançasse menos com ela do que com Liliana era natural, não era? Se eram
casados...
Liliana estava encantadora com o seu vestido branco. Era um vestido sem enfeites, de linhas muito simples mas um vestido tão distinto e caro que não podia ter sido
comprado no salão da Central. Madame Chalon, que estava enfiada num vestido cor de tijolo, apalpou às escondidas, o tecido: "É o que eu disse sempre, é preciso saber
usar um vestido!"- disse ela - "Trinta e nove a cinquenta?"
- Cento e sessenta e cinco. - lançou Liliana, afastando-se pelo braço do chefe do pessoal. Madame Chalon levou bem uma hora a engulir a soma.
- Que quere beber, Nina ? - preguntou Thorpe.
- Qualquer coisa ... não muito forte porque me faz
sono - respondeu Nina.
Thorpe olhou-a; ela não parecia ter sono, parecia, pelo contrário, uma criança sobreexcitada por estar acordada até muito tarde. Os seus olhares seguiam Erik
pelo tombadilho.
- Vamos dançar ? - convidou Thorpe - Eu danço
muito mal.
- Eu também, - respondeu Nina.
Dançaram, mesmo assim, sempre à roda do tombadilho. Os cabelos de Nina tinham o cheiro da mocidade, sem que ela os perfumasse. Thorpe apertou-a um pouco contra si:
"Está-se bem aqui" -disse.
Quando a orquestra lançou as primeiras notas de um tango, todos os pares foram para as suas cadeiras ou para o bar improvisado. Só alguns inocentes pares abandonados,
continuaram a tropeçar no seu fox trot, sem saberem porque os seus passos já não iam a compasso.
- Tango! - exclamou Erik -Quem dança o tango?
Parecia de excelente disposição e no seu elemento. "Não bebas muito, querido". - segredou-lhe Nina, quando
ele se sentou um instante ao pé dela. - "Obrigado pelo conselho" - respondeu, muito frio. A observação pareceu encolerizá-lo excessivamente - "Quem dança o tango?"
- preguntou outra vez, fazendo das mãos porta voz. "Porque gritas tanto, Baby?" - preguntou Liliana, muito junto dele. No dia do casamento tinham combinado tratar-se
por tu, mas depois trataram-se sempre por você. Erik voltou-se bruscamente quando ouviu o tu.
- Embriagada, também ? - preguntou. Sem responder, Liliana abandonou se nos seus braços para o tango; ele inclinou a cabeça paralelamente à sua, como fazem os pares
célebres, no casino... Sob a mão, que encostava às costas nuaS, sentiu que ela tremia. - "Que é isso, Liliana?" - preguntou em voz baixa. A vibração do corpo da
jovem mulher contaminou o, entrou nele, nada podia fazer contra isso. - "Nada ... Porquê? Sinto-me feliz esta noite, mais nada" - murmurou ela. - "Sério?" - disse
ele. Dançaram. Nina estava sentada com Thorpe ao seu lado e observava o tango. Alguns dançarinos, entre eles Cromwell com uma rapariga da secção de perfumaria, continuavam
ainda na pista. Mas, ao fim dum instante, pararam todos para contemplarem os dois jovens. - "Um belo par!" -disse a sr.a Bradley, na ingenuidade do seu coração,
ao sr. Berg. Ela vestia o vestido de seda preta que, a-pesar-de tudo, estava ainda muito largo. - "Se nós descêssemos? Aqui começa a estar fresco" - propôs Thorpe
a Nina, depois de lhe ter estudado a expressão.
- Logo que o tango acabar... é tão bonito, não é?
- respondeu ela sem despregar os olhos de Erik e Liliana. Assim que o tango acabou, todo o tombadilho se posa aclamá-los e a bater palmas.
Levantando a cauda do seu vestido branco, ela desapareceu à maneira de uma artista depois da representação.-"Agora, sim, gostaria de beber qualquer coisa" disse
Nina a Steve Thorpe.
O sr. Crosby, no interior do barco, fazia justamente algumas tentativas de despedida. Gostaria de ir para casa e, por isso, de fazer parar o barco no Shiffs-canal.
- "Uma noite encantadora - disse ele à comissão que estava diante de si - mas eu estou doente, queiram desculpar-me."
Insistiram para que ficasse ainda, pois devia coroar a rainha de beleza, a mais bela rapariga que estivesse a bordo e, ao mesmo tempo, a mais bela rapariga da Central.
Resignado, vestiu o sobretudo e seguiu os delegados para a ponte onde, justamente, alguém espetava números nos vestidos das jovens mulheres colocadas numa longa
fila. Liliana tinha o nº 17, Nina o nº 4.
- Boas-noites, sr. Crosby- disse a sr.a Bradley, avançando para o campo visual do todo-poderoso. Ele tentou recordar-se. - "Sou a sr.a Bradley" - disse ela. "Bem
sei, desculpe, a minha vista vai enfraquecendo. Porque razão veio à nossa humilde reunião, sr.a Bradley?" - preguntou Crosby. Há muito tempo já que ele tinha esquecido
que dera à viúva do seu antigo camarada de club um emprego, na secção de embalagem. A sr.a Bradley desapareceu. Não se sentia doente nessa noite, mas sentia-se oprimida
com receio de que as dores voltassem de um momento para o outro.
- Olá, Crosby - disse Thorpe com um chapéu de papel na cabeça calva e um pequeno torniquete na mão.
- Meu Deus, que faz você aqui, Thorpe ? - exclamou o sr. Crosby para quem se tinha, entretanto, arranjado um novo trono. - Ele deixou-se cair emquanto a música tocava
e as raparigas numeradas começavam a andar à volta do tombadilho.
- Tenho amigos entre os seus empregados - respondeu Thorpe.
- Amigos ou amigas ? - preguntou Crosby.
- As duas coisas.- replicou o advogado. O seu olhar seguiu Nina, a sua figurinha leve, o seu sorriso ingénuo, os seus olhos que estavam húmidos de lágrimas
ao mesmo tempo cheios de espectativa, como se um grande divertimento ainda devesse chegar.
Já pensou alguma vez nisto, Crosby? - continuou Thorpe - Você tem uma casa cheia de coisas para vender e sofrem que se fartam para as vender, não é verdade ? NO
entanto... há na Central coisas que não se podem comprar... Crosby olhou na mesma direcção que o seu amigo e viu Nina. Não compreendeu completamente.
É uma reclamação ? - preguntou ele a Thorpe, com um vago sorriso.
Por fim compreendeu:
- Voto no nº 4.- insinuou -Não acha que é a mais bonita?
- Eu voto com certeza no nº 4.
O enfeite prateado do vestido de Nina cintilava, quando ela respirava, e as flores começavam já a murchar na noite quente.
Embora a eloquência de Thorpe levasse alguns a votarem em Nina -por exemplo o velho Sprague, que, de resto, estava completamente embriagado e Berg, o chefe de secção
e o próprio sr. Crosby, foi no entanto Liliana a eleita por uma esmagadora maioria. Sem admiração nem acanhamento, ela deixou porem-lhe na cabeça a coroa de papel,
apertou a mão de Crosby e, com o seu passo firme de manequim, deu mais uma vez volta ao tombadilho para se mostrar a todos. Os quatro músicos tocavam em surdina.
Bruscamente, Erik levantou-a muito alto para que toda a gente a pudesse ver.
O sr. Crosby voltou para casa, quere dizer que o barco parou alguns minutos à entrada da 225.a rua, e depois, vogou para mais longe. O sr. Thorpe ficou. Preocupava-o
Nina que murchava a olhos vistos, como as flores que tinha ao peito. De vez em quando, Erik passava como um vendaval, gritando: "Divertes-te, Lili Spurv?" E desaparecia
no turbilhão dos pares. "Não sejas idiota, monologava em pensamento o advogado,
Eis uma ocasião única para ti. A rapariga está um pouco embriagada e o marido abandona-a; ocasião mais favorável do que nesta noite não torna a aparecer." Dançou
outra vez com Nina; pesava inteiramente sobre ele, por leve que parecesse. Sob um lampião encarnado, ele beijou-a. Ela quási não se defendeu, disse apenas: "Tudo
isto é um disparate, Steve" e a sua voz estava fatigada. "Vamos beber um pouco mais?" - propôs ele cheio de esperança, levando-a ao bar.
Erik e Liliana estavam de pé, por baixo da escada que ia dar à ponte particular do capitão. Entrada rigorosamente proibida. Ninguém devia passar por ali; viam-se
as luzes de Manhattan na outra margem, a lua reflectia-se na água dando-lhe um aspecto metálico.
- Que se passou em ti, Liliana ? Pareces outra ..- notou Erik. E Liliana sorriu, orgulhosa.
- Deitei ao caixote os meus vestidos velhos, simplesmente. Vocês têm realmente olhos?
- Vocês, quem, nós?
- Vocês, os homens.
- Prefiro ser tratado como simples indivíduo,- resmungou ele.
Era um pouco forte para Liliana. Ele meteu o braço no do manequim. "Tens frio? -preguntou.
- Não, pelo contrário, tenho febre.
E dizia a verdade: havia semanas que ela tinha um pouco de temperatura. Sentia arrepios ao longo da coluna vertebral, mas as faces e as mãos escaldavam. Era devido
ao anel e às coisas perigosas e anexas que se tinham seguido.
- A tua febre é contagiosa. - ciciou Erik. Ele bebera, não muito, pois não gostava de cocktails, mas o bastante para estar alegre. Sentia ainda, nas suas próprias
articulações, a sobreexcitação nervosa de Liliana. E depois, santo Deus, ela estava tão bonita!
- Tenho a impressão de ter estado muito tempo
guardado na caixa da naftalina e ter saído bem sacudido e outra vez pronto a servir - disse ele.
- Falas demais, Erik. - murmurou Liliana - Não é necessário...
- Não? - preguntou o rapaz, olhando-a.
-Não.-respondeu ela, em voz quási imperceptível. Contiveram-se ainda um instante, sentindo vibrar ondas entre si, e depois Liliana lançou os braços ao pescoço de
Erik e beijou-o. Foi um beijo longo, esfaimado... A lua desapareceu atrás de uma pequena nuvem, depois tornou a surgir. Erik vacilava um pouco, quando Liliana lhe
descolou os braços da nuca. Ela ria silenciosamente. "Que quere dizer isto?"-preguntou ele - "Nada de maior importância ..." -retorquiu ela. E saiu do esconderijo.
Passagem rigorosamente proibida. "Fica mais um segundo" - suplicou ele em voz rouca.
Duas sombras caíram no tombadilho, quando a lua voltou a ser clara.
- Não se pode passar por aqui, Nina - disse Steve Thorpe.
-Em todos os sítios bonitos há avisos destes.-disse Nina.
- Vamos, deixe-se de discursos comunistas. - conciliou Thorpe.
Deram meia volta e tomaram a escada vizinha que ia dar ao bar. Por todos os lados, pares namoravam. Assim que vieram outra vez para a luz dos lampiões, Thorpe notou
que Nina tinha os lábios brancos. Um pensamento fugidio atravessou-lhe o espírito: ele nunca tinha reparado nessas coisas quando estava casado com Lúcia. É verdade
que Lúcia pintava os lábios. Mesmo ameaçado de morte, não poderia dizer se Nina tinha visto, como ele, os dois debaixo da escada da ponte. "Em que pensa, Nina?"
- preguntou bruscamente. E se nós aproveitássemos um fim de semana ou mesmo uma semana inteira?. para fazermos uma viagenzinha juntos?
- Porque me faz essa proposta justamente agora? preguntou ela.
- Tem razão... devia ter-lha feito há mais tempo. Talvez esta noite tenha mais coragem, porque bebi um pouco. Mas com certeza entendeu, desde o princípio, o que
espero de si, não é verdade?
Nina não respondeu. Tinha um ar tão infeliz que, subitamente, ele teve vergonha do seu ataque. "Sou um velho cínico, Nina" - disse. - "Já defendi muitas causas,
tenho observado muitas vezes, que as opiniões mudam e... as situações... e as relações entre as pessoas... e tenho a impressão de que um dia, talvez me possa suportar.
Compreende... Se qualquer.. emfim... se na sua vida qualquer coisa se modificar... pois bem, lembre-se... se um dia se sentir isolada... que o velho Steve cá está...
quero dizer... vá ter comigo... Promete-me isso?"
Nina fitava-o com atenção emquanto ele falava. Olhou para o lenço de seda em que ele pegou para limpar a testa e que depois colocou outra vez no bolso. A sombra
de um sorriso passou nos lábios pálidos da rapariga: "Fala-me como a uma idiota"-disse ela.-"Compreendo-o perfeitamente. Se um dia eu já não for casada .. entendido...
prometo que irei ter consigo. É isto?"
A música, depois do intervalo, estalou subitamente num ar de rumba sonoro e vivo. Cromwell passou a correr, gritando: "Onde está a rainha da beleza? Quero dançar
com a rainha da beleza."
- Vamos dançar? - preguntou Thorpe, pegando no braço de Nina.
- Obrigada. - respondeu ela, voltando-se vivamente. Liliana descia os degraus da ponte superior, docemente amparada pelo pretencioso detective.
- Onde está o Erik? - preguntou Nina, de lábios brancos.
- Como queres que eu saiba ? -replicou Liliana. E, agarrando na cauda do vestido, afastou-se, dançando.
DE noite, Nina, saindo de um mau sonho, quisera agarrar Erík. Ele não estava... Era como a continuação do pesadelo! Sonhando, tinha-o procurado e não o encontrara.
Só minutos depois ouviu o duche correr na sala de banho, às escuras. Pôs-se então à escuta:
- Tens alguma coisa, Erik ? - preguntou baixinho, quando, às apalpadelas, ele voltou para a cama.
- Nada. Não posso dormir. Faz muito calor aqui disse, vagamente.
As duas janelas estavam abertas e os primeiros clarões da aurora apareciam já. Nina estendeu as mãos e, como não acontecesse nada, tornou a passá-las para o seu
leito. Ficou muito tempo acordada, com os olhos abertos e ouviu os primeiros carros de leite rolarem na rua. Erik teria adormecido? Ignorava.
Ele trabalhou muito nos dias seguintes; a liquidação da secção de arte continuava, e a época dos banhos de mar tinha que ser anunciada com a exibição de fatos de
praia, e bonecas vestidas de maillot. Ele andava distraído e com mau parecer. Fosse onde fosse, estivesse em pé ou sentado, fazia esboços; depois rasgava os papéis
e deitava-os fora. Um dia, Nina revistou o cesto dos papéis e apanhou os pedaços rasgados. "Que foi?" - preguntou Erik, embora ela tivesse ficado muda.
- Mas... tudo isto se parece com a Liliana! - disse Nina com as três rugas na testa.
-Liliana? Que estupidez! Os manequins parecem-se todos. - explicou ele.
Nina continuou ajoelhada no chão diante dos pedaços de papel. Esperava que ele viesse levantá-la. Mas ficou ao pé da janela e acendeu um cigarro. Era domingo e Erik
estava ainda mais indecifrável que de costume. No quarto, por cima deles, ouviam o velho Filipe andar de um lado para o outro, sem descansar...
- Não posso mais!... - disse Erik - Tenho que sair. Saiu, sem chapéu nem casaco, não disse "Vamos
passear". Foi sozinho e só voltou a casa ao fim de quatro longas horas. Nina, tirou do cabide todas as calças do marido e passou-as cuidadosamente a ferro. Depois
desceu à cave, abriu a sua mala, tirou as velhas bonecas e tomou as nos braços. Por fim, subiu e foi procurar a sr.a Bradley.
- Quere que eu faça o jantar esta noite, sr.a Bradley ? - preguntou.
A sr.a Bradley, com o rosto amarelado, estava estendida em cima do canapé. Cansada, fez sinal que sim. Afligia-se ao pensar na segunda-feira, no tempo que tinha
de estar em pé, na embalagem, com aquela dor num lado. À noite jogaram uma triste partida de rummy. Nina, Filipe, a sr.a Bradley, Skimpy. A pequenita ganhou quási
sempre: feliz, soltava gritos de alegria emquanto os adultos, fatigados, sorriam. Cada um tinha as suas próprias preocupações, os seus próprios receios. Cada um
deixava errar os seus pensamentos.
- Onde se esconde sempre o seu jovem esposo ? preguntou o velho Filipe. Nina corou como se tivesse vergonha.
- É o sr. Sprague que o retém. Agora mudam a decoração das montras duas vezes por semana.
- É verdade - disse Filipe. Ele era céptico por
causa da sua profissão. Nina falou nas vitrinas como numa prova de que Erik não lhe mentira.
Assim que se cansaram de jogar, ela construiu com Skimpy castelos de cartas.
Deitada, conservou-se acordada até ao regresso do marido. Ele chegava a casa às três horas, às quatro, às sete. Mas Nina não dizia palavra e tinha os olhos fechados,
quando ele se inclinava para a ver. Muitas vezes beijava ao de leve aquele rosto, que julgava adormecido. Era uma grande consolação: Nina quási chorava. Cheirava
a cigarro, assim como a um perfume que a esposa, de sobrancelhas franzidas, adivinhava doce e forte, um pouco impudico - o perfume de Liliana.
As coisas continuaram assim durante três semanas. Certos dias, só se encontravam na cantina da Central. Às vezes, iam jantar ao "Rivoldi"; Erik mostrava-se de uma
alegria febril e forçada. Depois, no meio da refeição, tornava-se distante e distraído, punha-se a desenhar sobre o mármore da mesa, apagando depois com a palma
da mão.
- Porque não vem a Liliana comer agora connosco? preguntou-lhe Nina.
Ele encolheu os ombros. Queria ter um ar indiferente, mas mostrou a expressão que é costume ter-se no dentista quando, por acaso, a broca encontra um nervo. Nina
acompanhava-o até à entrada do armazém, depois, voltava para casa. Uma noite escreveu uma carta à mãe de Erik. Condessa Bengtson, Asilo de Alienados, Lansale, Connecticut.
Não era trabalho fácil. Assim que acabou de escrever, rasgou. Estava só. Nunca tinha sabido o que era estar só no mundo, antes de casar com Erik.
Meia-noite, duas horas, três... Como uma noite é longa, quando se espera o ente amado e ele não vem! Nina levantou-se, vestiu o seu roupão e dirigiu-se ao vestíbulo,
ao telefone. com voz em surdina, pediu a Central. Já não podia mais; era preciso que falasse
com Erik. Foi Joé, o porteiro, que respondeu; "Desculpe, Joé, eu queria dizer uma palavra a meu marido... o sr. Bengtson, deve estar do lado oeste... a decorar a
montra."
-Um momento... -disse Joé, com a sua voz de baixo, que inspirava confiança. Nina esperou. O coração batia-lhe debaixo do roupão: era como se fosse uma aventura proibida.
Depois de muito tempo, ouviu, ao telefone, uma voz que não pertencia a Erik.
- Está ? Quem fala ? - preguntou ela.
- Aqui, Donald Brooks, - responderam.
- Queria falar ao sr. Bengtson - repetiu Nina, intrigada.
Abriu-se uma porta no andar superior, e Filipe apareceu na estreita fenda iluminada, da porta.
- Que aconteceu ? -murmurou ele. Nina sacudiu a cabeça, com o auscultador no ouvido.
- Sou eu, o Pusch. - disse a voz ao telefone. O aprendiz renunciou ao nome elegante que ninguém conhecia.
- Oh! Pusch, ainda estão com as decorações ?
- Pois estão, minha senhora. - disse Pusch.
- Posso falar um segundo a meu marido ? - preguntou Nina. Entretanto o velho Filipe tinha descido a escada e estava agora ali. Ela fez-lhe sinal para a deixar só.
O seu coração tornara-se subitamente leve e alegre, ela queria implorar o perdão de Erik e desejava que Filipe não a ouvisse.
- Eles já saíram há cerca de hora e meia - disse Pusch, do outro lado do fio.
- Eles... quem ? - preguntou Nina.
- O sr. Bengtson e o modelo. - esclareceu Pusch. Mais nada ? - informou-se ao fim de um minuto, como Nina não falasse,
- Mais nada, obrigada. Parece-lhe que ele volta ?
- É possível... - disse Pusch num tom consolador. Obrigada, sr. Brooks, - agradeceu Nina, De-repente
o seu espírito tinha-se tornado tão claro e tão subtil que se lembrou do nome estranho. Via através da obscuridade, apercebia cada prega do velho roupão de felpa.
ouvia respirar Skimpy no outro aposento. No jardim da frente, um pássaro abria a garganta para os primeiros trinados da manhã.
- Posso fazer qualquer coisa por si ? - preguntou o detective. Nina olhou-o um momento, como se a pregunta precisasse de um certo tempo para chegar até ela.
- Não, obrigada, tudo vai bem. -disse delicadamente, pendurando o auscultador. O velho Filipe seguiu-a com o olhar, emquanto, através do patamar obscuro, ela voltava
para o quarto.
Os homens podem ser enganados pelas mulheres; as mulheres, não se podem enganar. Elas sabem tudo, elas sentem tudo. Nina tinha compreendido. Não fez cenas. Deitou-se
na sua cama, com os olhos secos, e sentiu que se tornava hirta, pequena figura de pedra rígida, quando Erik entrou. Pouco antes, o despertador tinha tocado. Sete
horas da manhã. Erik fez a sua aparição, de cigarro na boca com uma falsa naturalidade. Os cabelos vinham muito lisos, acabavam sem dúvida de serem passados por
água, para causar boa impressão.
- Bons-dias, Lille Spurv - disse, debruçando-se para a beijar na testa. Ela não se desviou, mas sentia que a testa devia estar fria e dura. Dura como pedra. Tinha
sempre sido meiga e doce, mas sabia ser dura quando se tratava de coisas importantes.
- Bons-dias. - disse saindo do quarto. No patamar, bateu à porta da sr.a Bradley.
- Quere fazer-me o favor, sr.a Bradley, de avisar que eu hoje não vou ao serviço?
- Está doente ? - preguntou a sr.a Bradley, inquieta.
- Não sei... tenho febre... talvez gripe.
- Pode ser. Eu também não me sinto bem. - disse a sr.a Bradley - Não se rale, tem direito a três dias com vencimento, mesmo que falte.
- Pois é... - concordou Nina, voltando para o seu quarto. Na cozinha, ouviu Skimpy preparar o pequeno almoço, antes de ir para a escola. Assim que Nina entrou, Erik,
que se tinha despido, estava debaixo do duche. Ela sentou-se e esperou.
- Não estás atrazada ? - preguntou, assim que saiu da sala de banho. Pequenos mares de água caíam dele sobre o sobrado.
- Não vou hoje à Central. - disse Nina - Ele lançou-lhe um olhar rápido, assustado, depois meteu-se na cama e puxou a coberta. Parecia tremer.
Maquinalmente, ela aconchegou-lhe a roupa, com a mão.
- Onde estiveste até agora?
- Tu bem sabes, Nina.
- Sim, eu sei. - disse ela. Seguiu-se um pesado silêncio.
- Ora vamos, não me faças cenas - pediu Erik, pegando na mão de Nina.
Ela não o repeliu mas estava sem vida.
- Não te faço cenas. - disse.
- Podia ter te explicado logo, mas quis fazer-te uma surpresa; estou a pintar Liliana para o concurso.
- Qual concurso?
- Tu bem sabes, o dos cartazes de verão.
Nina lembrava-se, vagamente, de Erik lhe ter dito qualquer coisa.
- Não era bonito se eu ganhasse o primeiro prémio e pudesse trazer-te mil dólares? - preguntou, acarinhando a mão da mulher para a aquecer.
Nina tentou sorrir, mas não conseguiu.
- E então? - disse ela.
- Não sei. Liliana endoidece-me. É um diabo perigoso. Mas, às vezes, preciso dela ... Excitação... Isso inspira, pois eu sou um pintor, Nina, mesmo quando me meto
nas montras às ordens do velho Sprague, a fabricar árvores de celofane.
Já me não amas?
Sim, Lille Spurv. Sim ...
- Mas gostas mais de Liliana.
Liliana ... é de outra maneira, Nina.
O pior é que ele não mentia nem se desculpava. Nina esperava um alívio, uma salvação que não veio.
Nada teria acontecido se eu não me tivesse metido a pintá-la. Mas o quadro será bom, Nina. Sentia-me completamente decaído... num verdadeiro lodaçal... eu não nasci
para forrar casas ... Dei-lhe entrevistas todas as noites, na oficina ... e assim ... só com ela ... Tu compreendes?
- Não. - disse Nina.
- Tinha preferido não me apaixonar por ela. Mas realmente apaixonei-me. Também há-de passar.
Nina esperou um momento, até poder engulir a dor.
-Que vai ser de nós?-disse.
- De nós? Não sei... se tu não sabes... -É-me impossível continuar ao pé de ti, se tu estás
apaixonado por outra. - declarou Nina. Ele sentou-se na cama.
- Não estás a falar a sério ?
- Que queres? Tu só podes ser como és. Eu só posso ser como sou. Não me é possível ficar contigo.
-Nina!-pediu Erik suplicante-Somos casados apenas há seis semanas!
Ele não podia dizer coisa pior; casados havia seis semanas e o seu coração já ia passear! Nina sentiu lágrimas subirem-lhe numa grande onda pesada.
- Acabou tudo entre nós.-disse ela, dirigindo-se para a porta. Ele voltou-se com a cara para a parede: ela viu-lhe as costas. Eram oito horas da manhã .. hora de
ir para a Central. "Preciso de renunciar a tudo.. a tudo - pensava Nina. - Não posso fazer outra coisa. ? Diante da janela, o pássaro da manhã lançava agora os seus
trinados claros e irónicos.
- Se tu pudesses prometer... que renunciavas a Liliana... - murmurou Nina, à porta. Ele não se voltou, pareceu reflectir.
- Eu, renunciar a Liliana? Deus! Mas ela é que não renunciará a mim! Agarra com força o que pode agarrar.-disse, voltando-se para a parede. Ele tinha, também, podido
agarrar num pau e bater na cabeça de Nina.
-Então... acabou-se - disse ela. O marido encolheu os ombros. Ela saiu do quarto e foi-se embora.
Ficou deitado na mesma posição, com a cara virada para a parede, para que ela não visse quanto era infeliz. O pássaro, fora, deixou de cantar. No vestíbulo, soaram
passos sonoros. O velho Filipe bateu a porta da entrada. Tudo tinha acabado.
- Fica ao pé de mim, Spurv, Lille Spurv... murmurou ele, no quarto vazio. Mas sua mulher, ajoelhada na cave, preparava as bagagens...
LEVANDO uma mala grande e outra pequena, Nina fez a sua entrada no vestíbulo atapetado da casa de Thorpe, como se um vento de tempestade a tivesse en purrado para
lá. Pretender que esta entrada fosse gloriosa, seria falso. Primeiro, o pessoal não a quis deixar entrar, depois, assim que se encontrou lá dentro, incomodou os
criados nos seus trabalhos. Um deles fazia funcionar o aspirador no tapete do vestíbulo; comovida, Nina apertava a argola das suas maletas emquanto o criado telefonava,
com ar importante, para o escritório de Thorpe.
Thorpe estava justamente em conferência quando o telefone tocou - conferência de um género desagradável com dois indivíduos cabeçudos que não chegavam a um acordo
sobre a exploração comum dos seus negócios de moagem.
- Está aqui uma senhora que deseja falar ao sr. Thorpe. - disse o criado.
- Como? Uma senhora? Neste momento não tenho tempo para falar a senhoras - resmungou o advogado ao telefone.
- A senhora diz que eu devo só dizer que é a Nina da Central, que está cá.
O rosto de Thorpe iluminou-se e sem se ocupar mais dos dois clientes disse:
- Ah! está aí ? Que quere ela ?
- A senhora chegou com duas malas.
- Bem... Bem ... que a senhora esteja à vontade, eu vou logo que possa. - disse Thorpe um pouco perturbado. Aquilo não parecia da Nina: irromper por casa dele com
duas malas...
Pôr-se à vontade consistiu nisto: Nina ficou sentada no vestíbulo em companhia da sua bagagem. E foi assim que Thorpe a encontrou, quando chegou a casa. Embora se
apressasse, era já tarde. "Então, cá estás?" disse simplesmente-Ele não preguntou nada; depois de um instante de hesitação, abraçou-a. Nina levantou os olhos, como
sempre que tinha medo, e aceitou o beijo de boas-vindas. Agora era preciso levar ao fim toda esta história, se queria, realmente, ferir Erik, feri-lo tanto quanto
ele a tinha ferido.
- Whisky, - ordenou Thorpe ao criado - E estas malas para o quarto de hóspedes.
Também estava um pouco aturdido pela forma súbita, como a felicidade lhe caía em casa. Bebeu o seu whisky e Nina deixou o dela.
- Quere explicar-me o que aconteceu, ou devo adivinhar? - preguntou ele. No espírito de Nina tudo estava já resolvido.
- Preciso separar-me de meu marido, - disse em voz resoluta. Não nos damos bem. Não me acomodo a ser casada com um génio. Compreendeu-o desde o princípio, não é
verdade? Não quero mais trabalhar na Central. Encontravamo-nos sempre no caminho um do outro... na cantina, em toda a parte... e não poderia suportar...
Evitou dizer que não se sentia com forças para afrontar Liliana, mas Thorpe compreendeu-o da mesma maneira.
- Não tenho dinheiro. - disse Nina - Preciso arranjar outro emprego e só o conheço a si.
- Tudo está perfeitamente entendido entre nós. disse Thorpe - A minha opinião é que durma hoje no
meu quarto de hóspedes, e amanhã procuramos uma casa bonita para si.
-É muito bom!...-disse Nina. Thorpe defendeu-se vivamente:
- Não vamos trocar cumprimentos - disse, emquanto pequenas pérolas de suor lhe apareciam na testa nua. Ambos sabemos do que se trata. Eu não sou bom, mas gostaria
que fosse minha. Pode talvez dizer-se que somos dois pássaros solitários... e... um pouco desiludidos, a certo respeito, e que, por causa disso, nos poderíamos sem
dúvida suportar, não é?
- É... - respondeu francamente Nina. Thorpe correu num impulso para ela e deu-lhe outro beijo. Ela recebeu-o com a expressão que tinha em criança quando engulia
o óleo de rícino. "Obrigada sr. Thorpe" - agradeceu.
- Chame-me Steve. - pediu ele, um pouco embaraçado.
O criado conduziu-a ao quarto de hóspedes e ela sentiu o seu olhar mirá-la com desdém. "Como se chama?
- preguntou, embaraçada - "Por excepção, não me chamo James". - disse o homem - Ela não sabia se isto seria uma insolência. Esperou, de pé, e como ela tentasse sorrir,
ele ficou sério: "Eu ajudo a senhora a desmanchar as suas malas" - disse por fim.
- Obrigada, prefiro eu tratar disso. - respondeu. Tinha vergonha das suas coisas, da sua roupa de
seda artificial, das suas meias cozidas, dos seus sapatos com meias solas. Thorpe entrou, passado um momento, quando ela olhava para as suas recordações: as duas
bonecas, a fotografia, o revólver.
- Como vai isso agora, Nina? -preguntou. Ele tratava-a por tu e ela tratava o por você, desculpando-se de vez em quando. Os olhos do advogado caíram no revólver
e encheram-se de receio. "Tu não tencionas fazer tolices, rapariga?"-preguntou, agarrando rapidamente na velha arma. "Não, é o revólver de serviço, de meu pai"
-explicou. Assim que ela voltou a pôr o revólver na mala, fechou os olhos, com medo, como quando do beijo do sr. Thorpe. Abaixando-se, ele apanhou um papel
que tinha caído.
- Não é nada - disse muito de-pressa pondo-o para um lado. - A conta de hotel da nossa noite de núpcias em Connecticut.
- Vai pôr-te bonita para ver se passamos um bom serão. - disse Thorpe e deixou-a só e hesitante.
Nina fez-se bonita com o único vestido capaz que possuía e que, infelizmente, era ainda uma prenda de Erik. Estava tão contente quanto podia estar, emquanto, de
vez em quando, fechava os olhos para receber um beijo de Thorpe. O belo serão não foi um triunfo, não lhe era fácil sentir-se à vontade, com um criado de cara dura
e severa em serviço ou oferecendo pratos de que não se gosta. Ao pé de cada prato estavam colocados talheres, com os quais Nina não se entendia. Mas fez o que pôde.
Logo depois da refeição passaram para outro aposento, ela cantou mesmo um pouco ao piano, tocando com um dedo, o acompanhamento, Isso pareceu agradar ao sr. Thorpe,
que lhe prometeu um professor de música.
O tempo passava e Thorpe tornou-se pensativo e silencioso. Passou um braço à volta do ombro de Nina: era desagradàvelmente quente, mas ela conseguiu suportar. Estava
resolvida a mergulhar nesta aventura, como se mergulha na água fria; sem reflectir e de um salto. Sorriu timidamente a Thorpe, quando ele a atraiu para o seu joelho.
Veio-lhe mesmo ao espírito a idea tranquilizadora de que ele também tinha tanto medo como ela.
Por fim, fatigou-se daquele silêncio e começou a bocejar. Ele levantou-se logo: "agora vamos deitar a menina" -disse, o que não agradou a Nina. Ela não podia supor
que, durante todo esse tempo, ele tinha tido um diálogo com o fantasma de sua mulher.
No patamar, pegou-lhe para a levar para o quarto mas foi uma tentativa falhada e, um pouco cansado, teve de a pôr no chão. Empurrando a porta do quarto de hóspedes,
deixou-a entrar primeiro: a lâmpada ardia na mesa de cabeceira, a cama ficava perto. O sr. Thorpe tinha o ar de um homem que desejasse ir buscar o seu chapéu ao
vestiário, e tivesse perdido o número. Quando a abraçou, ela começou a chorar. Tinha vergonha das suas lágrimas mas não podia sustê-las; sentia nas mãos a grande
cara do advogado, os seus grossos braços, o seu corpo pesado: tudo isto lhe era tão estranho, tão estranho, e não sentia em si a felicidade que sentia sempre que
Erik se aproximava dela com os seus membros finos e ágeis. E soluçava sem parar.
Tinha passado um dia muito cruel, não chorara ao descobrir que Erik a enganava, nem emquanto fazia as malas, nem ao sair de casa. Todo o dia tinha sido um pequeno
ídolo de pedra. Todavia um ente humano tem também o direito de chorar.
Thorpe ficou sinceramente comovido e consolou-a o melhor que pôde.
- Que queres tu? Que tens?- preguntou, acariciando a.
- Queria estar só ... queria chorar... - soluçou ela, com a consciência inquieta.
- Bem... eu não sou nenhum papão - disse o sr. Thorpe. E realmente não era, principalmente para com Nina. Largou-a, deixando-a sozinha na cama, cuja coberta de seda,
coisa nova para ela e muito incómoda, estava sempre a escorregar. Em casa da gente rica, as camas são realmente esquisitas." - pensou. E foi a única experiência
que tirou dessa noite.
No dia seguinte, Thorpe quis arranjar-lhe casa, mas, quando chegou ao escritório, encontrou um telegrama que o chamava imediatamente a Minneapolis. Tratava-se
do acordo entre as duas moagens e era importante, muito mais importante do que Nina.
Ela tinha tomado a resolução de ser amável com Steve assim que chegasse, mas ele não veio para casa. Telefonou ao criado dizendo que lhe levasse ao escritório a
mala, pronta. Dir-se-ia que tinha esquecido completamente a presença da jovem caixeira na sua habitação. Mas a verdade é que não ousava, na presença de miss Tackle,
telefonar a uma mulher que estava na sua própria habitação. Da gare mandou-lhe um telegrama. "Não te aborreças. Faz tudo que te apetecer. Estarei de volta daqui
a três dias." Nina sentou-se diante do fogão de sala com o telegrama na mão. O criado tinha acendido o lume, pois chovia e ela não sabia de nenhum lugar no mundo
onde se pudesse refugiar.
"Não te aborreças!" -pensava ela, ironicamente. - O seu coração estava despedaçado de angústia, de nostalgia, de desejo de tornar a ver Erik. Além disso, vinham
as coisas desagradáveis: olhares do pessoal, aborrecimento sem limites, ociosidade, refeições na grande sala de jantar, sozinha. E todas as vezes que, de noite,
estendia a mão, só encontrava o vácuo, nesse quarto horrívelmente estranho: nada de Erik, apenas a endiabrada coberta de seda que caía constantemente, o que a fez
sonhar que estava em camisa em cima de uma ponte, à chuva e ao vento ...
No dia seguinte, entregaram-lhe uma missiva de Thorpe, escrita da estação. As letras eram deitadas como se o vento também lhe tivesse passado por cima.
"Querida Nina pequena. Que pena não ter podido ficar aí! Rehaveremos tudo isso assim que eu chegue. compra lindos vestidos e tudo o que quiseres, pois vamos divertir-nos
muito. Adeus e até breve. Teu, Steve."
Um cheque em branco vinha junto à carta. Nina voltou-o entre os dedos, conteve o gesto de o deitar ao lume e, daí a pouco, sorriu.
Ao terceiro dia, como Thorpe não tivesse voltado,
ela fez tudo quanto o seu coração desejava: pediu ligação para a sr.a Bradley, depois do armazém fechar, quando ela já estaria com certeza em casa... A sr.a Bradley
gritou de admiração, ao telefone, e Nina podia ouvir Skimpy andar. Não preguntou se Erik estava em casa.
- Como vai isso por aí ?
- Obrigada, assim, assim.
- O velho Filipe está cada vez mais esquisito.
- E as suas dores ?
- Há dois dias que estou melhor. Faz-nos muita falta, Nina.
- Que diz a gente da Central, da minha saída ?
- Mordem se de inveja. Dizem que fez a sua felicidade ...
Nina esperou. Ela não podia conter a pregunta:
- E... e meu marido, que faz ?
- Meu Deus ... até agora, lá vai indo... -Ah!
Então, ele ia bem. Hesitou ainda. O criado passou, sentiu-se vigiada, como prisioneira. Esperou que desaparecesse.
- Escute, sr.a Bradley... o fato cinzento dele está ainda no tintureiro, é preciso ir buscá-lo. E que não fume muito, sr.a Bradley. Que ar tem ele ? À noite fica
em casa? Quem lhe passa as calças? Ele gosta tanto delas bem vincadas!... Não lhe diga que telefonei, sr.a Bradley... promete ?
Não, esta conversa não a aliviou absolutamente nada. No dia seguinte, telefonou outra vez. Depois pegou no seu cheque e foi à Central. Sim, estava decidida.
Na verdade, um grande armazém é um lugar onde quem quere pode ir. E se uma caixeira fez a sua felicidade e volta como cliente, deve ser tratada como cliente. Nina
evitou a escada 5 e subiu primeiro à secção de loiças, a sua secção, por assim dizer, a sua casa.
Aí, parou diante do balcão onde estava o serviço 279 E 14, decorado com rosas.
- Deseja ?-preguntou miss Drivot. Ela não viu a cara de Nina; a clientela não tem cara.
- Como vai isso, miss Drivot ? -preguntou Nina baixinho.
-Ah!... é você... Obrigada, vai bem. Deseja alguma coisa ? Quere fazer uma compra ? O serviço de rosas está mais barato.
O sr. Berg, que passou, lançou um olhar perscrutador para as duas.
-Desculpe-me, tenho que servir uma cliente-murmurou miss Drivot. Depois afastou-se, deixando Nina em pé diante da loiça de rosas, como uma estranha.
O sr. Berg olhou a com ar ofendido, fez-lhe um cumprimento distante e continuou o seu caminho.
A testa da jovem franziu-se. Atravessou o vestíbulo envidraçado, passou diante dos vestidos de verão para chegar ao lugar elegante, que era o salão de costura. O
coração batia-lhe furiosamente. Mas tinha um cheque em branco na sua malinha ...
- Queria que me atendessem - disse, logo que encontrou Liliana.
-Meu Deus, é a Nina!-exclamou Liliana.
- Desejo um vestido de noite, branco, qualquer coisa de muito bom - disse friamente Nina. - Liliana fez uma careta; daí a pouco surgiu madame Chalon, ignorando,
naturalmente, a situação. Nina tinha-se divertido antecipadamente com esta visita ao armazém. Sentou-se na poltrona e Liliana teve de andar dum lado para outro.
Ah ! fê-la mexer-se bem! Infligiu-lhe, em suma, todos os vexames que uma cliente aborrecida, mal humorada e inconsciente, pode infligir a uma caixeira. Mas, justamente
no momento em que Liliana não podia mais e ia perder a paciência, Nina sentiu-se igualmente esgotada de nervos. Não, ela não podia mais suportar aquilo: ver as belas
costas nuas de Liliana, o seu andar, a
sua cara, o seu corpo, o todo dessa mulher que lhe tinha roubado o marido. Levantou-se de um salto, murmurou uma desculpa, que soou como um soluço e saiu precipitadamente.
Liliana limpava as finas pérolas de transpiração, da testa.
Nina tomou o caminho de casa, entrou no carro elegante de Thorpe que o criado tinha posto à sua disposição. Tony, o belo motorista, tratava-a com tanto respeito,
como se ela fosse a própria rainha da Inglaterra. Refugiada no quarto de hóspedes, escovou os cães; sentia a garganta apertada com todos os sentimentos que tivera
de refrear.
Subitamente, os animais correram para a porta e ladraram com tanta força que Nina teve medo: o sr. Thorpe estava de regresso. Nina ficou surpreendida, ao notar que
também sentia alegria, e correu ao seu encontro. Desta vez recebeu o beijo sem fechar os olhos, Thorpe foi muito terno, tinha-lhe trazido um presente, um colar de
pedras verdes, Depois desapareceu na sala de banho para sacudir a poeira da viagem. O ruído do avião deixara-o um pouco surdo durante meia hora, mas depois passou.
- Agora mostra-me o que compraste com o cheque. - disse ele a Nina e, ante o embaraço dela desatou a rir. Ela subiu ao quarto de hóspedes, tirou rapidamente o cheque
da sua malinha e pô-lo diante de Thorpe. "Que os diabos me levem!" - disse ele, espantado. E Nina sentiu-se aliviada por não ter gasto esse dinheiro, por não se
ter ainda vendido completamente...
- Mas não tens que vestir!.. No entanto, é preciso que estejas bonita para sairmos. - disse Thorpe - Ele estava convencido que para obter os sorrisos das mulheres
era preciso cobri-las de presentes. No fundo, não tinha tratado Lúcia, a sua própria mulher, de outra maneira. Assim que diante do espelho esfregou a cabeça calva
com água de Colónia e se meteu no seu smoking, sentiu surdamente que Nina era uma coisa difícil de conquistar. As suas pantufas, os seus cães, um copo de whisky
e as últimas revistas ao pé do lume, eis quanto ele desejava. Mas tinha resolvido, nessa mesma noite, forçar a resistência. De resto, Nina estava resolvida.
Preparou-se com o seu vestido azul bordado a prata e o companheiro levou-a a um cabaret elegante: música, dança, champagne, sala cheia, turbilhão de vozes e de perfumes.
Tinham instalado esta casa luxuosa como o interior de um barco, o que dava aos clientes uma impressão de opulência e de romanesco, incitando-os a gastar dinheiro.
Os criados andavam de um lado para o outro, vestidos de marinheiros franceses com grandes ponpons nos bonés, o que, visivelmente, os incomodava um pouco.
- Então, menina ?-preguntou Thorpe, satisfeito, assim que encomendou a refeição.
Também havia mais talheres do que aqueles que eram precisos, mas agora, Nina já tinha experiência. Antes de se instalar deram um salto ao bar e Nina falava alegremente
e muito. Esforçando-se por chegar de-pressa à disposição de espírito que esperavam dela, tinha engulido os dois primeiros cocktails como uma desesperada. Durante
a refeição fumou muito. "Não vamos dançar, sr. Thorpe? quero dizer... Steve?" - preguntou - A música tinha acendido nela uma avidez que não compreendia. Mas assim
que fizeram desastradamente uma volta à pista, caiu em si. É melhor sentarmo-nos a ver... - disse - Ele continuou com brandy e aconselhou champagne a Nina.
- Ó champagne dá alegria, aquece. - explicou Numa obsessão, Nina bebia grandes taças, como se o champagne fosse um antídoto contra a sua infelicidade. Tinha realmente
as faces rosadas, sob a fina camada de pó de arrôs. Os olhos começavam a brilhar.
- És adorável! - declarou Thorpe.
- Tu o dizes...-sussurrou ela, na linguagem habitual do armazém.
Infelizmente, verificava-se que com o primeiro excesso da sua vida, se mostrava mais obstinada e rebelde. Ela, que era semPre meiga e aceitava as coisas como vinham,
agora revelava subitamente o fundo do seu ser.
-São todos uns indecentes...-disse, indicando com o dedo toda a gente fina do restaurante da moda-são uns indecentes - Ah! Nós podemos falar. Que fazem eles todos,
lá porque têm algum dinheiro ?
Olhou à sua volta, riu, às gargalhadas, do criado à maruja, depois os seus olhos caíram sobre Thorpe.
- Tu és como os outros, sabes, meu caro Steve ? Tu também imaginas que podes comprar-me... lá porque tens dinheiro. An ? Diz a verdade... não é verdade que julgas
... com o teu cheque... Também tu és simplesmente um porco, Steve... um gordo porquinho cor de rosa, com quatro pêlos na cabeça...
Thorpe alarmou-se. Acabou de-pressa, pagou, empurrou Nina para o automóvel, antes que a coisa desse escândalo. Tony, o motorista, lançou-lhe um olhar cheio de compreensão
masculina e, sem pressa, pôs o carro em marcha.
Entretanto, Nina seguia o curso das suas ideas: teimosa, fazia ao pobre Thorpe uma cena em regra. Na sua embriaguez, e embora o tratasse por tu, lançava-lhe reparos
tão desagradáveis que não tinha sido dado ao advogado ouvi-los desde que se separara de Lúcia. Censurava-lhe o dinheiro, o ventre, a calvície e a idade. Por fim,
ele sentiu se absolutamente infeliz. Mas justamente no momento em que ia decidir-se a descer e a deixar Nina voltar só para White Plains, a jovem lançou-lhe os braços
ao pescoço e desatou a soluçar. Para a acalmar, bateu-lhe nas costas, como tinha o costume de fazer a Max e a Moritz e rolaram assim, ao longo das avenidas calmas
do parque, para o bairro Norte.
Na sua embriaguez, Nina, desesperada, estava pronta para tudo. Mas, o diabo, era ele, Steve, que nada queria nessa noite, Não queria dela nenhum favor se o devesse
obter de uma maneira suja e desagradável. Acompanhou-a ao seu quarto onde ela se sentou imediatamente na borda da cama, na atitude resignada de quem espera a partida
do comboio. As lágrimas vertidas brilhavam ainda sôbr a pele lisa das faces. Fazia-lhe pena, mas não é com pena que se vai para uma aventura amorosa. À porta, ele
parou :
- Não podes gostar de mim, um pouco?- preguntou, hesitante.
Nina pareceu voltar não se sabe donde. com simplicidade, respondeu:
- Não. Emfim ... assim não ...
Thorpe tomou, sem demora, o caminho dos seus aposentos. Eram duas horas da manhã. com um copo de whisky ao alcance da mão, um dos seus cães ao colo, meteu-se ao
canto do fogão pois, de-repente, o pobre homem sentiu imenso frio ..
HAVIA longas semanas que Liliana tinha sempre o mesmo sonho: queria apanhar um comboio mas não o conseguia. Sufocada, ofegante, ficava no cais e via o comboio desaparecer.
Depois descia uma escada que se parecia com a do metro, mas maior e deformada, como acontece nos sonhos. Ela ia, descia sempre, sempre, sempre mais para baixo. Não
queria descer, mas, lá em baixo, alguém riscava constantemente um fósforo e então podia ver a escada que levava à escuridão, lá para baixo, lá para baixo... e ela
continuava a descer. Dling... dling... dling... tocava, durante esse tempo, a campainha da prestamista.
Liliana tinha deixado os pais e alugara casa na rua 44.a a oeste da cidade. A sua sala estava sempre cheia de fumo de cigarro, no sofá via-se sempre estirado qualquer
homem, algum dos amigos de Bill. Bill era aquele indivíduo duvidoso que a tinha seguido, assim que ela saíra da casa de penhores, uma espécie de grande animal, bonito,
violento, habitualmente complacente, mas conhecedor da sua força. Gostava de gatos e trouxera dois para casa de Liliana. Os outros homens, Jerky, Big Paw e Kid,
que tinham dezoito anos, pareciam-se com ele. Haviam-se instalado em casa da rapariga e viviam "na sua vida" por assim dizer, com as suas cartas, as suas pragas,
os seus licores, os seus revólveres e as suas amantes. Bill vinha irregularmente,
mas era o senhor. Tinham dinheiro com fartura que lhes restava ainda do último negócio feito. Liliana recebera, como presente, um belo vestido e um casaco de arminho.
Ia aos clubs nocturnos, frequentava os lugares onde Bill era um personagem respeitável. Bill tinha automóvel, relações e influência, numa palavra, Bill era poderoso.
Conseguira Liliana à força de ameaças, de promesas, de pancada e também mostrando-lhe o seu revólver.
Isto começara com o anel; com o anel roubado, foi ela agarrada. E com mais segurança e mais firmemente do que com uma corrente de ferro. Ela não sabia exactamente
no que o bando a queria empregar, mas era em qualquer empresa bem determinada, isso sentia-o. Bill não a deixava renunciar ao seu emprego. Mais tarde, afirmava ele,
seria contratada para uma grande revista de Broadway. "Posso ter em Broadway o que quiser, compreendes?" afirmava, e ela quási o acreditava. E, como agora vivia
numa atmosfera de receio e de febre e se sentia perdida, sem remédio, Liliana de-pressa se entregou à bebida. Um dia Bill fez-lhe mesmo tomar cocaína: ela experimentou
imediatamente um sentimento indescritível da sua grande importância, mas no dia seguinte, na Central, sentiu-se horrivelmente infeliz. Eles tinham a sua presa e
o que esta espécie de gente agarra, segura-o bem. Às vezes Liliana tinha quási desejo de rir quando madame Chalon ou uma cliente a maltratavam um pouco. Imaginava
o susto e os gritos se Bill, de revólver em punho, surgisse no meio delas. Bill possuía certas ideas cavalheirescas a respeito de Liliana, mas tinha também outra
amante, Máxima, uma mulher loura que o vigiava com um ciúme feroz. Liliana tremia muitas vezes, com medo que ela lhe atirasse vitriolo à cara. No entanto, tudo correra
bem até agora. Em certos dias sentia-se quási feliz com o caminho que as coisas tinham tomado: tivera sempre más tendências. Agora apanhava ar pela primeira vez
na sua vida; o ódio que sempre sentira pela gente do"
grande mundo, encontrava um motivo e uma justificação. Nos antros que frequentava, era quási uma rainha. Às vezes, entregava-se a uma esfusiante alegria. Outras
vezes, revoltava-se e Bill, em tom firme, punha-a no seu
lugar.
- Afinal, que queres de mim?- gritava-lhe, Bill
sorria com a sua boca vulgar. Tinha os lábios sempre secos, vermelhos, como que inchados pelo sangue. Nem o álcool nem a cocaína lhe faziam mal.
E eis que, pouco a pouco, Liliana compreendeu o fim dos seus carcereiros; queriam utilizá-la na Central, a loja objecto do seu ódio. Entretanto continuava a servir
a clientela. "Sim, minha senhora, certamente, minha senhora. Está encantadora, minha senhora". Tornou-se instrumento desses homens que saíam da sombra e desapareciam
na sombra. Liliana não os conhecia melhor do que se conhecem as personagens que se vêem em sonhos. Descia a escada, descia sempre cada vez mais baixo.
Dling, dling, dling, fazia a campainha...
- Bem mereço que tenham pena de mim - disse ela a Erik.
- Pena ? Porquê - preguntou ele.
- Tu não podes compreender. Não me faças preguntas estúpidas. Olha, dá-me um cigarro.
Erik acendeu-lhe um cigarro, e a sua mão tremia. Trocista, Liliana olhou para essa chamazinha de fósforo que oscilava sem descanso... - "Sonho muitas vezes com um
homem que está no fundo de uma escada sempre a acender um fósforo."
- Ah! Até em sonhos me enganas! - suspirou Erik, irónico. Estavam ambos sós na grande oficina onde os empregados da propaganda costumavam trabalhar nos seus esboços.
Liliana, com o vestido branco que estreara no barco e Erik, de mãos frouxas, pintava, fumava, tornava a pintar. Esse nervosismo tinha começado com
o primeiro beijo; depois, o rapaz não se havia mais acalmado.
Muito tempo reprimira o artista que havia em si. A crise tinha estalado, assim que viu Liliana com o seu vestido branco, nessa memorável noite do barco. "É como
o sarampo, queixava-se ele. Tem que sair, senão morro intoxicado." Liliana sorria sem compreender, mas consentia na pose. Na sua vida perturbada e destruída, as
horas com Erik eram as únicas que tinham algum valor. Sentia por ele uma paixão estranha, confiante: era como que uma despedida de qualquer coisa. Entretanto, o
quadro que pintava tomava forma, "não sou absolutamente eu, criticava Liliana considerando o retrato com ar zangado. "Que tens a objectar?" - preguntava o artista,
afastando-se do cavalete - Parece um sorvete de morango
- analisava o modelo numa gargalhada desdenhosa -Decididamente, tu não fazes de mim uma idea justa.
- Evidentemente, se eu quisesse pintar o diabo que tu és não ganharia com certeza o primeiro prémio no concurso de cartazes - disse Erik aproximando-se do seu trabalho
com ar ameaçador e acrescentando alguns retoques. O branco é a coisa mais difícil de pintar. - acrescentou - Conta-se que Renoir, quando envelheceu, dizia: "ficaria
contente se pudesse pintar um guardanapo branco, apenas um guardanapo branco."
Liliana seguia com aborrecimento esta incursão na história de arte.
-Tens a certeza de ganhar o prémio?-preguntava.
- Absoluta, meu amor. Ganhamos mil dólares e iremos juntos apanhar uma bebedeira e divertirmo-nos muito.- dizia Erik-Ela sabia que, no fundo, ele a odiava por Nina
o ter abandonado por sua causa. Parando de pintar, Erik, pensativo, pôs um pouco de branco na paleta: também pensava em Nina, em todos os projectos que tinham feito
com esses mil dólares, em todos os sonhos mortos.
- Vi-a ontem - disse Liliana como se os seus pensamentos tivessem falado alto.
- A quem ? - preguntou ele, afogueado, e começando a pintar precipitadamente. Liliana deixou passar a pregunta supérflua.
- O velho com quem ela vive parece que lhe dá muito dinheiro. Devias ver como se portou cá na loja. Menina para aqui, menina para ali... Tinha-lhe dado de boa vontade
um murro nos queixos, podes crer.
- Como... estava ela ? - preguntou Erik, sem querer, depois de um longo silêncio.
- Deliciosa, divina, encantadora. É esta a resposta que desejas?
Pousou os pincéis e avançou para Liliana. Ela deu um passo atrás, pois parecia que ia bater-lhe. Mas Erik não era o Bill e não usava revólver na algibeira.
- Porque não deixas a Nina em paz? Não te basta ter-nos separado?-disse pouco depois, em voz baixa e ameaçadora.
Liliana levou tempo a responder; teria gostado de dizer muitas coisas feias, mas conteve-as, pois embora tivesse ciúme de Nina, não o queria confessar. Gostava de
Erik à sua maneira, tanto quanto era susceptível de amar... mas isso não se podia dizer. Deitando o cigarro fora, desceu do estrado...
- Porque será que tudo em que eu toco se suja ?
- disse, de súbito. Era uma frase que podia ter um som brutal, mas saiu apenas triste. Erik notou-lhe uma pequena oscilação na voz e voltou ao seu cavalete.
O quadro ia em meio. Representava um pedaço de água verde sobre o qual vogava um barco com velas cor de laranja; encostada a um mastro, estava Liliana com o seu
vestido branco. Erik tinha-se cingido, na pintura, às linhas do seu corpo, o ombro direito e a cabeça estavam terminados, mas a anca esquerda estava ainda mal definida.
E só faltavam três dias para a data fixada para a entrega das provas. Erik tinha febre durante
as suas horas livres, antes e depois do serviço. Desde que Nina o deixara, afligia-o a idea de voltar para casa: o leito vazio no quarto de dormir... e um silêncio
absoluto. O velho Filipe e a sr.a Bradley já não lhe dirigiam a palavra; quanto a Skimpy aborrecia-o preguntando-lhe constantemente, quando é que a Nina voltava
e para onde tinha ido. Preferia ficar na Central onde dormia numa velha cama de campanha, na oficina, pintando a qualquer hora da noite. De vez em quando, Cromwell,
o novo detective, ia visitá-lo, Levava um frasco de gin e fazia, a respeito do quadro, reparos de arrepiar os cabelos. Erik tinha a vaga intuição de que entre Liliana
e o detective havia qualquer coisa, pois este não podia conter algumas observações sorridentes. "Ela não tem as pernas tão compridas como estão no quadro." -dizia
ele. Conheço-a bem; tem umas pernas compridas, mas ainda assim, não tanto. "Ou ainda": "Se eu fosse pintor, pintava-a deitada. É assim que os seus melhores pontos
se valorizam." Isso tornava Erik furioso a ponto de o fazer recusar o gin oferecido. "Quanto ao resto, é um cartaz espantoso. Tenho a certeza de que vai ganhar o
primeiro prémio."
- acrescentava Cromwell com um ar bonacheirão, retirando-se, Erik refreava a custo o desejo que sentia de dar um pontapé na tela e de se ir refugiar ao pé de sua
mãe, no asilo de alienados. Em vez disso, punha novas cores na paleta e tentava levar a obra a bom termo. Desde que Nina o tinha deixado, a pintura era a única coisa
que o interessava suficientemente e o fazia esquecer, durante algumas horas, o que se tinha passado. Fenómeno curioso: o sentimento que experimentava por Liliana,
essa funesta insatisfação e o entusiasmo que se tinham apoderado dele, enfraqueceram desde que perdera Nina. Á sua única consolação era agarrar-se a Liliana, tal
como um doente que não quere abandonar o leito no qual sofreu durante semanas.
As alusões de Ricardo Cromwell não eram os únicos pontos tenebrosos da vida de Liliana. Um sábado,
depois de Erik ter recebido o seu magro salário, levou-a a um club de noite, como Liliana desejara. Vestiu o seu smoking, pois ela parecia ligar a isso grande importância,
e Liliana pôs o seu casaco de arminho. Fizeram uma entrada no club onde todos olharam, com admiração, para a jovem mulher. Erik sentiu-se ao mesmo tempo orgulhoso
e pouco à vontade. Não ousou preguntar como é que, com os seus vinte e cinco dólares semanais, ela tinha podido comprar um casaco de arminho. Dois homens com atitudes
de gangsters piscaram-lhe os olhos, familiarmente.
- Quem são aqueles indivíduos? - preguntou ele.
- Amigos meus.-respondeu Liliana.
No fundo, Erik não sabia nada a respeito dela. Sabia que dançava bem o tango e que a sua boca tinha o gosto amargo da baunilha, por causa do bâton que usava. Nem
sequer sabia onde ela morava. Tinha lhe contado que saíra de casa dos pais, mas guardou segredo sobre a sua direcção. Nunca lhe consentia que a levasse a casa. Saltava
para um táxi e afastava se a toda a velocidade emquanto que, durante muito tempo ainda, ele errava pelas ruas, solitário, no turbilhão nocturno das luzes de Broadway
- pensando em Nina.
ErA quarta feira, o dia de venda a um dólar em todas as secções da Central. Na secção de sedas havia liquidação de retalhos. Dois agentes da polícia estavam à porta
sul, onde tudo era vendido à razão de dólar por três artigos; três camisas de homem, três pares de meias de seda, três lenços de linho, três clips de pedras falsas.
No sexto andar, Cromwell não sabia que fazer para manter a ordem. Aí, tudo se liquidava à dúzia: uma dúzia de copos de vinho; uma dúzia de chávenas, de café; uma
dúzia de pratos de bordos doirados, isto na secção de louças e vidros. Miss Drivot andava numa actividade febril, a sua face estava coberta de pequenas gotas de
transpiração e de veiazinhas. Parecia que a sua circulação sanguínea não lhe permitia resistir ao assalto dos clientes. O sr. Berg, chefe da secção, ajudava em pessoa,
embora não fosse essa a sua função. A nova caixeira que substituira Nina era desajeitada : não estava ainda a par do serviço e miss Drivot tinha de lhe dizer em
segredo, números e preços.
Na entrega, acumulava-se gente. Ouviu-se tilintar: a sr.a Bradley acabava de partir um prato de cristal.
- Que aconteceu ? - indagou o sr. Berg, que fazia a sua inspecção.
- Nada, não tem importância. - balbuciou a sr.a Bradley, receosa. Tinha febre, não via claro por causa da febre e do sofrimento, tudo estava desfigurado, tudo
oscilava à sua volta. Pousou um embrulho meio feito e dirigiu se para a escada do pessoal. Mal chegou diante da porta envidraçada, caiu desmaiada.
Levaram- na ... Tudo isso foi feito num abrir e fechar de olhos, sem ruído, sem escândalo: os serviços sanitários da casa trabalhavam bem e as caixeiras desmaiadas
não eram raras no Dollar-day. O pacote meio pronto permanecia ainda em cima da mesa, quando a sr.a Bradley já estava para entrar no carro da ambulância.
- Quanto tempo tenho de esperar pelo meu embrulho?- preguntou a freguesa, encolerizada.
O sr. Berg fez tudo para restabelecer a ordem.
- Imediatamente, minha senhora, um momentozinho, se faz favor. - disse, com solicitude. Uma rapariga correu a substituir a sr.a Bradley, uma rapariga ruiva, de grande
boca risonha. O embrulho foi acabado e a cliente servida. Era bem pouca coisa, afinal, a desaparição de um dos setecentos empregados da Central... Meia hora mais
tarde, a sr.a Bradley estava adormecida pelo éter, suspirava aliviada, como se flutuasse sobre grandes vagas. Um cirurgião de luvas de borracha, com o rosto tapado
pela máscara branca, operava-lhe o apêndice. com este, eram quatro mil oitocentos e sessenta e dois apêndices que extraía na sua vida, e, por isso, o facto afligia-o
pouco: "Um apêndice particularmente feio" -disse, em ar de censura à enfermeira que estava ao éter, emquanto lavava as mãos. A sr.a Bradley foi instalada no hospital
com um pequeno aviso à cabeceira da cama. Estivera em riscos de morrer e salvara-se, mas não o sabia. Continuava sob a influência do éter e, acompanhada pelo sr.
Bradley, ia a um pique-nique num automóvel muito esquisito que possuía e era dos mais elegantes no ano de 1924...
Agora, eram seis horas e cinco e a Central atirava os últimos clientes para a rua. No vestiário, as caixeiras,
extenuadas, punham pó no nariz suado, emquanto os caixas faziam, febrilmente, as contas.
Cromwell, o detective, subiu até ao 12.? andar para ir buscar o sobretudo. Logo que, assobiando, entrou no seu escritório, que era um pequeno buraco dando para o
pátio velho, encontrou Filipe.
- Olá, Filipe - disse, olhando para o velho que mexia em papéis amarelecidos, em cima da mesa.
- Olá, Cromwell - respondeu gravemente Filipe.
- Está a fazer arrumações? - preguntou Cromwell, jovial.
- Levo as minhas coisas. Os meus três meses terminam na próxima semana.- respondeu o velho detective.
Cromwell, que alisava os cabelos a um espelho de algibeira, deixou de assobiar. "É uma vergonha." - disse, sem intonação. Um instante depois, voltou ao seu problema
particular: "Diga-me cá, Filipe, quantas vezes por dia é obrigado a barbear-se?"-preguntou, enchendo a face com a língua e vendo no espelho de algibeira os resultados
obtidos.
- Todos os dias, se lhe interessa saber - respondeu Filipe, aborrecido.
- Pois eu, duas vezes ao dia sempre que desejo sair à noite. Senão, as raparigas queixam-se - gabou-se Cromwell.
E embaciou o espelho, limpou-o com a manga e tornou a guardá-lo.
A absurda insensatez de toda esta mímica desesperou Filipe.
- Mandou-me dizer que o esperasse ... - observou, um pouco irritado.
-Ah! sim, é verdade. Queria pedir-lhe para passar aqui a noite, hoje. Pode dormir, nada o inquieta, é apenas pro-forma. Tenho que fazer... compreende? De vez em
quando, preciso de ter uma noite minha... Cada um tem também a sua vida particular, não é verdade ?
- Hoje calha mal. -disse Filipe-A sr.a Bradley, em casa de quem moro, foi para o hospital. E eu queria ficar ao pé da criança que está sozinha em casa.
- Tudo isso é muito bonito, mas você não é criado de meninos, é detective. Lamento, mas prometi absolutamente ao manequim do salão de costura, sair esta noite com
ela. Você sabe o que é isto... com senhoras ...
- Então divirta-se. - cortou Filipe para acabar com a conversa - Eu cá fico a olhar por isto.
- Não é preciso olhar por nada: desde que eu cá estou, nem uma carta de alfinetes foi roubada. Durma... contente-se em fazer uma vez, à meia-noite, a ronda do costume.
-Bem, bem, eu conheço o trabalho melhor do que você. -resmungou Filipe.
Cromwell não levou a mal. O velho fazia-lhe pena. Foi ao pé dele e bateu-lhe no ombro:
- Fico-lhe sinceramente reconhecido por me querer substituir. A rapariga é diabòlicamente bonita e tenho de andar atrás dela, se a quiser apanhar -explicou.
Exasperado, Filipe viu a porta fechar-se atrás do homem.
Rebuscou ainda um pouco a gaveta donde queria tirar o que era seu: algumas cartas, velhos recortes de Jornais, restos emmurchecidos de uma vida ajuizada e descuidada.
Tentou reler alguns dos recortes, mas as letras tremiam-lhe diante dos olhos. Desde que tinha renunciado a beber, o velho Filipe vivia num mundo impreciso e desbotado.
Passava mal, tinha zumbidos nos ouvidos, às vezes mal ouvia o que lhe diziam e esquecia os nomes, os rostos e os números dos telefones. As costas vergavam-se-lhe
logo, mal se punha em pé. Subitamente, o olhar poisou numa garrafa que Cromwell deixara em cima da mesa: era o gin recusado por Erik.
Filipe notou, contrafeito, que lhe tremiam as mãos emquanto olhava para a garrafa. Voltou à gaveta e,
segundo o seu hábito, meteu o revólver na algibeira do lado do casaco. A sensação da arma contra o corpo deu-lhe mais segurança. Num passo brusco, foi ao pé da mesa,
fez saltar a rolha da garrafa - sentiu, com espantosa precisão, a pequena cápsula de estanho entre os dedos - depois bebeu três grandes goles. O gin, acre e quente,
descia-lhe pela garganta; já ele sentia o calor penetrar em largas ondas no interior do tórax. Durante alguns instantes, o ruído, nos ouvidos, tornou-se uma ameaça,
para depois cessar completamente. Atónito, o velho Filipe olhou à sua volta, pois uma claridade e um silêncio inesperados entraram em todo o seu ser. Bebeu outra
golada, depois, saindo do aposento, enfiou pelo corredor que ia dar à oficina dos decoradores.
- Ouça lá Bengtson, você pode ir agora lá a casa e trazer-me a Skimpy? A mãe está doente e eu encontro-me de serviço esta noite.
Erik permanecia de pé em frente de um cavalete em cima do qual estava colocado um quadro coberto com um pano velho. Agarrou nos pincéis e foi lavá-los à torneira.
- Lamento... pobre sr.a Bradley!... Liliana acabou de me contar. Mas eu não posso ir buscar a pequena. Toda a secção b8 deve ser remodelada esta noite.
B 8 era a secção das sedas estampadas, no 3.? andar. Depois do Dollar-day, essa secção parecia um campo de batalha, Filipe sabia-o.
-Que havemos de fazer então? -preguntou ele, voltando-se para Liliana, - A jovem esperava ao pé da mesa, com o seu vestidinho preto, de caixeira, o casaco no braço
e uma boina verde na mão. Era estranha esta nova lucidez com que o cérebro de Filipe apanhava outra vez tudo; imagens, ruidos, perfumes. Ouvia distintamente a torneira
pingar depois de Erik ter lavado os pincéis, o perfume de Liliana feriu-lhe o nariz, como qualquer coisa de palpável,
Sentia uma irritação ao respirar esse perfume pesado e voltou-se com ar pouco amável para a rapariga. "Tem passado muita vez a noite em nossa casa... Podia ir a
Fieldston e ficar ao pé de Skimpy."
Liliana encolheu os ombros. "Eu ia de boa vontade, mas tenho um encontro urgente" - respondeu. Erik despiu a bata manchada de tinta e vestiu o casaco. Filipe voltou-se,
indeciso: "É verdade... tinha-me esquecido completamente"... - disse, e as alusões de Toughy acudiram-lhe à memória. Eram agora tão notadas na sua memória, que tornou
a ver cada um dos pêlos da face do jovem detective. Erik olhou o com uma leve surpresa.
- Liliana tem ainda que me servir de modelo, esta noite, assim que eu acabar de arranjar a B-8 - disse. - O prazo expira amanhã de manhã e nos últimos dias quási
não pude trabalhar. E pegando na chave que tinha no bolso, dirigiu-se para a porta. vou só comer qualquer coisa à pressa - acrescentou. Liliana seguiu-o. Ao clarão
da luz, Filipe notou como Bengtson estava pálido. Um reflexo mate de suor cobria-lhe o rosto nervoso; os dois sulcos à Gary Cooper marcavam-se-lhe mais nas faces,
cheias de sombra. Filipe saiu com eles da oficina e observou os gestos de Erik, fechando a porta à chave. O par foi tomar o elevador. Emquanto ele os seguia com
o olhar, quando iam para o elevador, considerava a situação. Segundo todas as aparências, esta Liliana tinha prometido a noite a dois homens. "Hum... pensou, é preciso
que ela seja muito esperta, para ir aos dois encontros."
Agora a casa estava deserta e tranquila. Pertencia ao velho Filipe como lhe tinha pertencido durante numerosos anos. Errou pelas escadas, de andar em andar, inspeccionando
todos os cantos. Daí a pouco sentiu-se extraordinariamente descontente e agitado. Olhou para as mãos: tremiam quando as estendia. Pegou na sua chave, abriu um elevador
e subiu ao 12.? andar. 155
Todo o corredor cheirava a Liliana. Foi ao escritório e bebeu a metade do gin. Depois pegou no telefone e mandou ligar para Skimpy.
- Estás admirada de não termos ainda chegado a
casa?
- Sim, tio Filipe. Aconteceu alguma coisa?
- Escuta Skimpy, temos tido muito trabalho. Tens medo de estar sozinha em casa ? Não queres ser uma menina corajosa e ires dormir?
Passou-se um instante antes que Skimpy, no outro lado do fio, arrumasse tudo isso na sua cabecinha.
- Queres dizer que a mamã não vem para casa ? -Sim, é isso. Ela não está muito bem e a nossa
enfermeira está a tratá-la.
- Mas eu tinha feito o jantar para vocês!
- Queria saber se tens medo de estares sozinha em casa? -tornou a preguntar o velho Filipe.
Houve outra vez um instante de silêncio.
- Tenho sim, tio Filipe... - Isto foi murmurado com uma vòzinha, na qual já tremiam as lágrimas.
Filipe tinha agora o cérebro lúcido e não reflectiu um segundo:
- Presta muita atenção ao que te vou dizer, Skimpy. Daqui a uns minutos um automóvel há-de businar três vezes à porta. É um táxi que te mando. Metes-te nele e vens
para a Central. Quando chegares, preguntas por mim ao homem que está à porta, tu conheces bem o Joé, não é verdade? Ficas aqui ao pé de mim e ajudas-me a guardar
o armazém, queres?
- Os brinquedos também ?
- Sim, os brinquedos também. Mas avia-te, veste-te de-pressa que o carro vai já.
Filipe riu, pois não se ouviu nenhuma resposta: apenas o estalido seco do auscultador que Skimpy punha no descanso. Folheou a lista dos telefones e chamou para uma
garagem de táxis de White Plains, dando as instruções necessárias e dizendo que o táxi seria pago
assim que a pequenita chegasse à Central Warehouse. Bebeu mais um gole de gin e ligou para o hospital, para onde a sr.a Bradley tinha sido transportada. Disseram-lhe
que tudo ia bem. A operação correra perfeitamente, a doente estava ainda um pouco aturdida pelo narcótico, mas livre de perigo. Filipe soltou um suspiro de alivio.
Deslizou diante da garrafa mein vazia e saiu do 12.? andar. Calculou que Skimpy não poderia chegar antes de meia hora, justamente o tempo de fazer uma ronda ao estabelecimento.
Tal como tinha procedido durante vinte e sete anos, começou pela sala dos caixas. Examinou todos os postos de alarme no aposento semi-iluminado, encontrou, à saída,
um dos guardas da noite que acertava o relógio registrador ao pé da escada 8. Trocou algumas palavras com ele e continuou a sua ronda. No grande escritório das dactilógrafas,
as máquinas de escrever estavam arrumadas em boa ordem, todas cobertas com a capa de oleado. Continuou o seu passeio por todos os andares, acendendo aqui e acolá
a sua lâmpada de algibeira; parando, apurando o ouvido, espiando o silêncio do enorme edifício e continuando o seu caminho. No rés-do-chão parou um pouco ao pé da
porta de Joé.
- Ouça lá Joé, vão trazer aqui uma menina; é a filha da sr.a Bradley. Aqui tem dinheiro para pagar o táxi. Chame-me, assim que ela chegar, percebeu?
- Sim senhor, chefe.- respondeu Joé levando a mão ao boné. As vigílias comuns tinham-nos feito velhos amigos. Joé, além disso, havia ajudado, quando transportaram
a sr.a Bradley na maca para o carro da ambulância.
- Só me falta descer à cave e depois acabou-se. disse Filipe, continuando a ronda. Joé viu-o partir abanando a cabeça, até que a sua sombra desapareceu da parede.
"Que pena... pobre homem ! - comentou pensativo.
Filipe percorria o território plebeu da cave. Aí reinava um verdadeiro caos depois da batalha do Dollar-
Day- Atravessou a secção de armamento que tinha sido passada para baixo, seguiu a dos móveis baratos e chegou ao fim, à porta de ferro do depósito de peles, pegou
na chave e na lâmpada de algibeira e manobrou a complicada fechadura. Abriu a segunda porta, entrou. Estava escuro lá dentro e respirava-se um ar acre e frio. Fez
luz; todo o sortido de peles estava reunido no vasto aposento, cada uma delas cuidadosamente embailhada num resguardo contra as traças. Havia ali mais de cem mil
dólares entre as filas dos tubos do frigorífico. Filipe tivera sempre um fraco pelo armazém de peles; era como um mundo aparte, lá em baixo, um mundo frio e fechado.
A sala era muito alta e cruzada em todos os sentidos pelo complicado sistema de tubos que mantinham a temperatura a 28º. Meteu-se entre as peles, automaticamente,
segundo um hábito adquirido no decorrer de anos, encontrou tudo em ordem e voltou à porta. Maquinalmente, ligou a campainha e saiu do depósito, deixando o alarme
pronto a poder funcionar.
A entrada do armazém das peles era cheia de instalações automáticas, como na sala dos caixas. Como ele agisse de uma forma mecânica e habitual, o velho Filipe tinha
quási esquecido que as campainhas de alarme não roçavam. Mas, um segundo mais tarde, o silêncio caiu sobre ele como qualquer coisa de palpável, uma espécie de pano
negro ou uma pancada. Ficou petrificado no mesmo sítio, com as mãos estendidas, tremendo, tremendo desesperadamente. Pegou no revólver, mas era um movimento absurdo.
Agora ouvia o martelar do seu coração, no peito, nas fontes, em toda a parte... as campainhas de alarme não funcionavam !
Como o silêncio persistisse e não surgisse nenhuma sombra sobre que pudesse atirar, o velho detective julgou-se no dever de descobrir donde provinha a paragem dos
sinais. Podia ser apenas um desarranjo dos fios de que Toughy, na sua confiança em si próprio, nem dera conta. Tateou até ao botão secreto, abriu um pequeno
cofre de ferro incrustado na parede e tentou acender uma lâmpada encarnada. O sinal luminoso, tal como as campainhas de alarme, não funcionava. Fechou cuidadosamente
o cofre e, sempre na defesa, transpôs a porta. Havia ali instalações que deviam disparar automaticamente, das quais nunca fizera grande caso. Voltou ao depósito
e, no ar envinagrado e no pesado silêncio, inspeccionou todos os cantos: não descobriu nada. Não percebeu mesmo que agia de uma forma insensata e temerária, pois
se um ladrão se tivesse escondido entre as peles, Filipe estaria, havia muito, reduzido à impotência. Na angustiosa tensão de nervos provocada pela sua descoberta,
tinha mesmo esquecido Skimpy. Subitamente, lembrou-se da criança. Abandonou o depósito das peles, transpôs prudentemente a porta que fechou à chave. com a mão sobre
o gatilho do revólver que tinha no bolso, atravessou rapidamente a cave e tomou o elevador, para subir. Durante segundos, traçara o seu plano; não participaria nem
aos guardas da noite, nem à polícia as suas suspeitas. Se depois se descobrisse qualquer coisa nas instalações eléctricas, qualquer curto-circuito, fariam troça
dele. Se qualquer coisa de anormal tivesse que se passar no depósito das peles, e um instinto preciso, insinuante, angustioso, parecia adverti-lo, queria combatê-lo
só, queria reservar para si todo o perigo e toda a honra.
- Ah! cá estás! - disse ele, assim que chegou ao aposento de Joé e viu Skimpy. Ela vinha toda bonita: esfregara energicamente a cara e as mãos com sabonete, antes
de se lançar nesta grande aventura.
- O Joé disse que a minha mamã está no hospital.
- murmurou, de cabeça pendida para o peito, mas sem chorar.
- Sim, sim... mas está melhor e mandou-te dizer que não tenhas medo. Amanhã de manhã, iremos vê-la
- disse Filipe. Ele já não sabia o que fazer da criança pois tinha que voltar à cave. Tu não queres ficar aqui ao pé do Joé e dormir em cima do sofá ? - preguntou.
- Não. - disse vivamente Skimpy.
Era um velho sofá, cuja crina saía por todos os lados, que estava impregnado com cheiro de tabaco de cachimbo. Joé riu com bonomia.
-Quero ir para o pé dos brinquedos.-declarou Skimpy.
Ela estava quási a chorar, mas continha-se corajosamente. Filipe pegou-lhe nas duas mãos.
- Joé, - disse ele, antes de partir com a criança, escuta. Tem esta noite especial cuidado, se notares o que quer que seja de suspeito, chama imediatamente a polícia,
percebeste?
- Sim, chefe - disse Joé com um novo cumprimento. Não percebia nada. "O velho está cada vez mais velho", foi tudo quanto pensou.
Filipe entrou no elevador e subiu à secção dos brinquedos. A mãozita confiante tremendo na sua mão, acalmava-o um pouco, com o seu calor.
- Agora escolhe qualquer coisa para brincares, mas de-pressa e toma cuidado; é só emprestado. Não tens nada que ver como é feito por dentro. - disse ele, pois conhecia
as bonecas de Skimpy, cujas cabeças abertas tinham sido vítimas da tendência exploradora da criança. Skimpy, que tinha o sentimento de ser uma grande pessoa, fingiu
um interesse frio. Filipe meteu lhe nos braços uma boneca e uma paciência e subiu com ela até ao
12. andar.
- Escuta, - disse ao guarda que encontrou lá em cima - vigia bem esta noite, especialmente as escadas de socorro e a cave.
- Muito bem, chefe. - disse o homem, fazendo pouco caso da recomendação.
O velho detective não sabia ao certo o que devia fazer da criança. Todo o seu corpo ardia de impaciência, o seu escritório, ou antes, o escritório de Cromwell, era
um sítio miserável e Skimpy não queria lá ficar. Tomando uma rápida decisão, abriu a oficina de decoração, acendeu
a luz e olhou à sua volta: Bengtson não estava ainda de volta; no cavalete, o quadro continuava coberto... O perfume de Liliana flutuava pesadamente no ar.
- Bem ... podes instalar-te aqui a brincar... ou a dormir. - disse, rapidamente.-Eu volto já. Mas é preciso que não saias daqui, mesmo que ouças barulho. Compreendeste?
Erik vai chegar daqui a pouco. Poderás ajudá-lo a pintar.
- A Nina também cá está ? - preguntou Skimpy.
- Não. Saiu. - respondeu Filipe.
Esperou ainda um instante que Skimpy se instalasse na cama de campanha com a sua boneca, depois dirigiu-se para a porta. Num segundo, teve o pensamento de que a
criança fora a última pessoa que lhe tinha sido dado ver... Talvez uma bala lhe estivesse destinada nessa noite, na cave, no depósito ou nas escadas. Hesitou um
pouco, depois voltou em passo vivo ao escritório que fechou à chave. A garrafa lá estava, meia vazia. Bebeu alguns goles grandes, sentiu calor; a lucidez de espírito
e a decisão entraram em si e pôs-se a rir, pensando em Toughy.
-"Ele precisa de barbear-se duas vezes!" - murmurou, com desdém. Pôs a garrafa na algibeira, procurou com a mão o revólver, meteu algumas balas de reserva no bolso
do casaco e saiu. Parecia a Filipe que já tinham passado muitas horas desde que o armazém fechara.
Desceu ao depósito das peles e abriu as portas. O silêncio e o frio reinavam no interior. As peliças estavam alinhadas em boa ordem e os tubos, pintados de branco,
ziguezagueavam entre elas. Filipe tirou um dos casacos e envolveu-se nele, antes de se sentar a um canto para esperar. Daí a pouco tinha os dedos hirtos de frio,
doíam-lhe os dentes. O tempo passou.
Não acontecia nada.
Erik estendeu a mão por cima da mesa.
- Mas... é proibido... - hesitou ele.
- Proibido ? - replicou ela, rindo - Como háa"de acabar o teu quadro se eu não vier?
- Podes vir sem ter a chave.
- Quando, às nove horas ?
- Um pouco mais tarde. Tenho de acabar primeiro a B 8 e vai levar tempo.
- Então quando ? Às onze horas ? Posso esperar.
- Tu sim, eu não. - replicou Erik, aborrecido.
Estavam no "Rívoldi". Sim, agora estava com Liliana no "Rivoldi" atrás da mesa de mármore, sobre o velho banco de veludo.
-Vamos, dá-me a chave. vou às onze horas e subo directamente à tua oficina.
- Aborrece me entregar isto - disse Erik, hesitante, pousando sobre a mesa o pequeno molho de chaves.
- Então, não. - terminou Liliana, levantando-se - Estou farta de dar nas vistas e de falatório... quando, de noite, vou ter contigo, e me têm de acompanhar.
- Pronto. Aqui está a do elevador, escada 5 - decidiu-se Erik, indicando as chaves. Tinha-as posto em cima da mesa, mas Liliana nem para elas olhava. Já sabes, no
12. andar vais até à boca de incêndio, voltas à direita e
assobias. Se eu ainda lá não estiver, abre a porta da oficina e espera-me. Há cigarros na gaveta.
- Entendido, - retorquiu Liliana - não te canses muito. Adeus Baby.
Pegou nas chaves e meteu-as na malinha.
- Agora tenho de me aviar.
- Tão de-pressa!...
-Tenho muita. Descobri um cabeleireiro que me penteia depois das sete horas. Vou-me embora. combinado. As onze.
Erik viu-a sair. Possuía o mais belo corpo de mulher, que lhe tinha sido dado contemplar. Todos os comensais se voltaram; era uma dessas raras criaturas que, mesmo
com capa de borracha, parecem nuas. Assim que a porta se fechou atrás dela, Erik acendeu outro cigarro. Continuou sentado diante de uma chávena de café. O criado
aproximou-se, limpou a mesa e quis falar-lhe em italiano, mas Erik não respondeu. Também não tinha vontade de voltar de noite à loja para arranjar a secção das sedas,
não tinha vontade de acabar o quadro, era-lhe indiferente ganhar ou não o prémio. Sonhou um momento, pegou no lápis e desenhou qualquer coisa na mesa. Ao princípio,
alguns projectos para a secção de sedas, depois qualquer coisa que apagou com o dedo. Esperou uns minutos ainda, olhando fixamente na sua frente, com os olhos vagos,
Por fim, levantou-se, pagou e foi-se embora.
Sobre o mármore coberto de nódoas, distinguia-se um esboço um pouco apagado: não era o retrato de Liliana, mas o de Nina.
Durante esse tempo, Liliana seguia à pressa pela rua 41.a, depois tomou a 8.a Avenida. Um automóvel verde esperava-a, entre os carros parados diante de um hotel.
Liliana subiu. O motorista era um bonito rapaz de cabelos pretos, anelados. "Anda, anda, Kid. É tarde." - disse ela. Desceram rapidamente a avenida. "Bill está lá?"
- preguntou ela.
- Esperam desde as sete horas. Há qualquer coisa em vista?
-Anda e cala-te. - respondeu Liliana, muito nervosa. Fumava um cigarro que meteu na boca do rapaz. Contente, ele fez uma careta. O carro andou rápido, obliquou e
parou bruscamente. É melhor tu esperares aqui disse Liliana, descendo.
O prédio no qual Bill tinha alugado um andar, exibia um luxo burguês um pouco exagerado. Falso tapete do Oriente na entrada, uma jovem mulher com um olho de vidro
no escritório de recepção, um negro no elevador. Este teve uma piscadela de olho, interrogativa, levando-a para cima. "Isto vai bem, Pedro"-respondeu, aborrecida.
Na sua casa, tocava a T. S. F.
- Até que emfim!-disse preguiçosamente Bill, quando ela entrou. Como sempre, o aposento estava cheio de fumo: garrafas vazias, um balde de gelo, tudo em cima da
mesa. Um copo tinha-se entornado sobre o brocado e o álcool pingava pegajosamente para o chão. Liliana atravessou o aposento, encaminhando-se para o seu quarto de
dormir. Olá ?"-- limitou-se a dizer. Tirou o chapéu e, no espelho, viu-se pálida sob a pintura. "Não fui feita para estas coisas" - pensou fugitivamente.
As asas do nariz estavam quási verdes de medo. Bill seguiu-a ao quarto.
- Então, arranjaste tudo ? - preguntou. Ela tirou as chaves da bolsa.
- Aqui estão. - disse. Bill riu baixo. Não agarrou logo nas chaves. Liliana levantou-se e voltou à sala. Big Paw baloiçava-se molemente numa poltrona, tendo ao colo
Máxima, que se levantou à aproximação de Bill. Era loira, pálida e muito nova; tinha a figura de uma bailarina. Liliana percebeu que Bill estava sob a influência
da cocaína. Ele tinha dito que tomava sempre cocaína, quando empreendia algum golpe difícil. Os olhos brilhavam-lhe. O bando trouxera nesse dia um homem de
reforço, com ombros largos de boxeur desenhando-se sob o pano verde do seu uniforme de groom.
Bill mergulhou a mão no bolso e tirou um estojo. Fez-lhe saltar a mola e exibiu um broche ornado com uma grande esmeralda ... Atirou a jóia para a frente de Liliana.
"Lindo trabalho, an? A lapidação fez-nos perder dois quilates, mas agora ninguém conhece a pedra." disse, com ar amável. Num gesto brusco, Liliana pegou na jóia.
Era a sua recompensa por ter vendido Erik.
- Pronto.-respondeu, pondo sobre a mesa um plano traçado à pressa - Deixem-me fora de tudo isto. Levai Máxima, e está tudo acabado entre nós, assim o espero. Pôs
as chaves ao pé do plano, sobre a mesa, no sitio onde estava a nódoa de álcool. As suas mãos pareciam curiosamente alongadas e pequenas ao pé dos rudes punhos de
homem que se lançavam sobre as chaves.
- Ah! sim? Estás farta de nós? Mas talvez não estejamos nós fartos de ti, minha menina. - disse Bill. Galantemente, Big Paw interpôs-se:
- Deixa-a em paz, ela trabalhou bem. - reconheceu. Liliana olhava para todos, um após outro, como se
saísse de um sonho. Os rostos estranhos, as mãos estranhas, a esmeralda ...
- Devem ir. - disse ela - Às nove horas o gorila
vem-me buscar.
Bill teve um novo ataque de riso. Alisava ainda
mais os seus cabelos lisos.
- Divirtam-se. - gracejou.
- Obrigada. - respondeu Liliana, abstracta. Bill aproximou-se dela e bateu-lhe no ombro: - Se isto correr bem, dou-te um lindo presente-prometeu. Bruscamente, inclinou-se
para a rapariga e colou os lábios vermelhos aos seus. Máxima olhava-os com ar zangado.
Assim que partiram, Liliana abriu as duas janelas e preparou um banho quente, pois estava gelada. Quando saiu da água, sentiu-se com melhor disposição. VoLtando
à sala, rebuscou as garrafas quási vazias. Eles tinham também absinto. Fez uma mistura de bebidas e enguliu essa mistura, que sabia fortemente a Kummel. Logo depois
sentiu invadi-la um calor e a habitual sensação de temeridade subiu-lhe à cabeça. Pôs-se diante do guarda-fato, acariciou os vestidos novos e caros e escolheu, emfim,
um vestido verde, de seda pesada, que lhe modelou as formas. O telefone, ao lado da sua cama, tocou. O relógio marcava nove menos cinco. "O sr. Cromwell está aqui"-anunciaram.
"Que me espere no hall, daqui a um instante estou pronta."-disse Liliana. Ela detestava o jovem detective, que achava ridículo. Num capricho súbito, tirou do armário
o casaco de arminho e pô-lo nos ombros. Tomou mais um copo, sentiu-se um pouco embriagada e, rindo a bandeiras despregadas, pôs o broche de esmeralda. O telefone
fez-se ouvir pela segunda vez. "Sim, desço imediatamente." - disse, encolerizada. Cromwell era grotesco na sua impaciência. Liliana, de pé em frente do espelho,
deu mais uma gargalhada pensando no que se passava na Central, emquanto ela ia sair com Toughy!
"Santo Deus!" - exclamou Cromwell, assim que a viu sair do elevador.
Perplexo, fitava o vestido, o arminho, as grandes luvas brancas. Ele tinha também vestido o seu melhor fato azul-escuro, que lhe assentava muito bem. Como só aos
antigos oficiais assentam os fatos.
- Santo Deus. - repetiu ele. Liliana, sobreexcitada pelo absinto, respondeu:
- Ora vamos... não sabes que os manequins são as mulheres mais caras de New-York?
Às onze menos um quarto, com dores de cabeça e as mãos sujas, Erik saiu da secção de sedas. Em baixo, continuavam a trabalhar, mas sem ele. Tinha arrepios e sentia-se
aniquilado.
- Não é muito confortável para a noite, o armazém.
- resmungou. Teve que atravessar a secção de artigos japoneses, absolutamente às escuras. Tirou a lâmpada da algibeira: os Budas estavam aqui e acolá, surgindo da
sombra.
Chegando em frente do elevador, perdeu imenso tempo a procurar as chaves, até que se lembrou de as ter emprestado. "Diabo!"- disse. Os nove andares, desde o
3.? até à oficina pareciam-lhe extenuantes e intermináveis.
Sempre resmungando em voz baixa, dirigiu-se para a escada e começou a ascenção. ? Era como uma subida difícil, na montanha. Ele subia, subia, já lhe faltava o fôlego
e ainda estava no 8.? andar. Parou, escutou ouvindo passos; de facto, apareceu um guarda.
- Se faz favor leve-me até à oficina e abra-me a porta - disse, acanhado - pois acabava de se lembrar que não podia entrar na oficina porque Liliana tinha as chaves.
O guarda resmungou qualquer coisa, pois fazia as rondas num semi-sono e não lhe agradava nada ser incomodado. No entanto, decidiu-se e tomou o elevador com Erik,
até ao 10. andar.
- É um ofício bem desgraçado, o nosso! - disse Erik, emquanto percorriam o corredor e passavam pela boca do incêndio, para a oficina.
- Como? - preguntou o guarda.
- É que ... você pode dormir de dia? - preguntou.
- Porque não? -respondeu o guarda, rindo.
- Melhor para si. Eu não posso. E tirou do bolso o maço de cigarros, metendo-o na algibeira do peito do uniforme do guarda.
- Está aberto. - disse o homem, depois de ter feito deslizar a chave na fechadura.
-Sim? Ainda bem. - replicou Erik - Obrigado e boas-noites.
Hesitou um instante antes de entrar. "Liliana já lá está" - pensou. Sentiu-se cansado, como que vazio, incapaz de terminar o quadro.
"Que os demónios levem o prémio!" Tinha a impressão de não ter dormido havia semanas, sim, de não ter dormido desde que Nina o tinha deixado. Dominou-se e abriu
a porta.
Liliana não estava lá, a-pesar-do aposento parecer animado. A primeira coisa que viu foi uma folha de papel, espetada com um alfinete, no pano que cobria o retrato
que estava no cavalete. Deu dois passos e leu:
"Se faz favor deixe a Skimpy passar a noite consigo. Se acontecer alguma coisa, queira levá-la amanhã à mãe ao hospital Santa-Maria. Obrigado. Filipe."
Erik olhou à sua volta e não distinguiu a criança imediatamente. Skimpy tinha rolado até à orla do leito, antes de adormecer. Colocara em cima dela o sobretudo de
Erik; muito chegada ao nariz, estava a cabeleira de uma boneca. A respiração era regular; uma suavidade, uma calma, emanavam dessa criança adormecida. "Se tenho
a desgraça de me deitar-pensou Erik -adormeço imediatamente." Lançou sobre os objectos um olhar vago e acabou por se sentar numa cadeira, a um canto. Esperou, aborrecido
e cansado. O relógio da
torre deu onze horas. Esperou ainda. Liliana não chegava. Erik levantou o auscultador e Joé respondeu:
- Está lá, Joé ? Ninguém preguntou por mim ? Não há nada para mim ? Ouça Joé, espero um dos manequins, deixe-a entrar quando ela vier. Que tome a escada 5. Como
? Se tem uma licença ? Sim, naturalmente. Obrigado, boas-noites.
"Onze horas e meia. Que mulher fatigante, esta Liliana!" - pensava Erik. Doíam-lhe os membros, os olhos fechavam-se-lhe. Levantando o pano, descobriu o quadro. Não,
não valia a pena pintar. Skímpy respirava, no seu canto. Erik deitou-se junto dela e soltou um suspiro. Não queria dormir... no entanto... adormeceu imediatamente...
QUARTA-FEIRA à noite tenho visitas, quero apre sentar-te aos meus amigos" - tinha dito Steve Thorpe a Nina, depois da última noite frustrada. Fazia o que fazem muitos
homens da sua idade e da sua posição. Já que não podia possuir Nina, queria ao menos dar na vista. Mostrava-se com ela por toda a parte onde ia: no teatro, no restaurante.
Tinha-a forçado a aceitar alguns lindos vestidos e tratava-a, como se ela fosse uma rainha disfarçada. No seu foro intimo, desejava que Lúcia se encontrasse um dia
com Nina. O convite feito aos seus amigos, tinha mesmo um fim: a certeza de que um deles contaria à sua ex-espôsa que vivia com uma mulher em casa e que parecia
feliz. Era já a segunda semana que Nina passava na habitação de Thorpe, em White Plains. Tinha aprendido a apanhar a coberta emquanto dormia, para evitar que caísse,
a
sustentar o olhar do criado e a receber, à noite, os convidados de Steve. Muitas vezes sentia a cabeça pesada. Em geral vivia como num sonho, num espaço sem ar.
Não se atrevia a preguntar a Steve quando lhe alugava a casa prometida, e ele pelo seu lado, parecia ocupado demais para pensar nisso. Havia dois dias que tentava
iniciá-la nas bases do jogo de bridge, e ela ouvia, com os olhos fixos, sem perceber nada. Ele ameaçava-a também de lhe dar um professor de piano, pois tinha uma
vaga
inclinação para a música, e queria que Nina, com a sua vòzinha, lhe cantasse canções. Desde a noite em que a fizera beber, cessara com as suas assiduidades. Nina
não tinha a consciência tranquila, pagavam-lhe e ela nada dava em troca. Tinha adquirido na Central a idea confusa de que a compra e a venda formavam as bases da
vida. Valor e contra-partida. Pagamento e produção. Sabia que aquilo não podia durar muito tempo assim. De qualquer lado que a considerasse, a situação era torta
e falsa. Competia-lhe dar a Steve o que ele esperava.
-És amável em me dares tempo, para me decidir ... - murmurava Nina, receosa.
Emquanto que ou dormindo ou acordada, sonhasse com Erik, não estava ainda madura para o sacrifício.
Na quarta-feira à noite ela estava um pouco excitada. Steve voltou do escritório mais cedo que de costume, e desapareceu imediatamente no seu quarto de vestir.
- Que devo pôr ? - preguntou Nina, através da
porta.
- O vermelho- escuro. - respondeu Thorpe. Ela ficou, por momentos, admirada que conhecesse a cor dos seus vestidos... Vestiu o vermelho-escuro, mas teve que parar
para se sentar. Sentia-se aturdida. Os lábios, bruscamente, tornaram-se frios.
O ruído que o criado fazia a pôr a mesa, chegou até ela com a emanação discreta dum cheiro a galinha assada vindo da cozinha. Pensando na comida, Nina teve uma ligeira
náusea contra a qual lutou com energia. Não posso ter gripe, não faltava mais nada! - disse, descontente. Desceu e lançou uma vista de olhos para a casa de jantar.
O mordomo, que não se chamava James, estava limpando os copos, embaciando-os com o bafo e olhando-os depois à luz. Este espectáculo provocou em Nina uma nova náusea.
Tirou-lhe o copo da mão e pô-lo em cima da mesa. De resto, ela era mais competente do que ele a respeito de vidros e do arranjo
de uma mesa. "Está bem, Trompsted" - disse. Tinha conseguido saber o nome do mordomo.
- A senhora deseja que sirva Pomard com a galinha ou vinho do Reno ? - preguntou ele, impenetrável. Ela sabia que ele gostava de a troçar. As suas mãos encontraram,
como uma coisa familiar, a sensação dos copos e da porcelana.
- Não sei nada disso. Você, Trompsted, deve saber melhor do que eu. - disse.
O criado inclinou-se.
- O dr. Back é vegetariano. - acrescentou ainda Ele não gosta que insistam para o obrigar a comer carne.
- De que terra é, Trompsted ? - preguntou Nina. A sua pronúncia agrada-me.
- Sou dinamarquês - declarou ele, colocando, com a ponta dos dedos um cinzeiro e cigarros ao pé de cada talher. Depois recuou e inclinou a cabeça, para o lado, afim
de avaliar o efeito do seu trabalho.
-Oh! Dinamarquês... - exclamou Nina - Tenho... tenho amigos dinamarqueses. A condessa Bengtson. Esperava uma observação qualquer que não veio.
- A minha família era muito grande na Dinamarca
- disse Trompsted, e pôs-se a olhar sonhadoramente as taças de flores que Nina dispunha em cima da mesa.
- Está bem, Trompsted. - disse ela. O mordomo afastou-se.
Steve chegou de cima; cheirava a sabonete de barba e esfregava as mãos. Os cães saltavam à volta dele, como loucos. "Então, pequenos mendigos?"-disse com bom humor,
agarrando ambos nos seus braços. Max era um verdadeiro palhaço e Moritz possuía uma natureza trágica. Gostava das atitudes à Greta Garbo. A campainha soou à porta
de entrada: os primeiros convidados chegavam.
Steve tinha convidado cinco homens e Nina não achou nada de extraordinário na ausência de senhoras, Agora tinha mais acanhamento do que no dia em
que fora exposta na vitrina, nessa vitrina em que Steve falava constantemente. A cada um dos convidados contava a história: como tinha visto Nina na montra e como
tinha ido às informações inquirindo a forma de a comprar. Parecia orgulhoso da sua conquista ou da sua aquisição ou - qualquer que fosse a denominação-do facto de
ter tirado Nina da montra para a trazer para a sua mesa.
Os senhores, cujos nomes Nina não tinha compreendido, dirigiam-se a ela com uma benevolência a que não era estranho um certo embaraço. Dividiam a sua admiração por
Nina e pelos bassets. O dr. Back era um homem de cabelos brancos como a neve, e olhos azues, que pretendia ter um coração muito jovem. Como Steve tratasse Nina com
uma delicadeza requintada, os convidados estavam um pouco tímidos e, com discrição, Trompsted trouxe os cocktails. Nina olhou-o amigavelmente porque ele era dinamarquês.
O rádio tocava, todos falavam ao mesmo tempo, tinham vozes fortes e riam muito. De súbito, as paredes da biblioteca, onde estavam reunidos antes do jantar, pareceram
afastarem-se de Nina: era uma impressão esquisita como se ela não estivesse ali; as palavras não feriam o seu ouvido senão de uma forma indistinta. Tony, que envergava
às vezes a libré de criado, abriu a porta da sala de jantar. O dr. Back ofereceu o braço a Nina e ela ficou reconhecida que quisessem guiá-la através do nevoeiro
que a rodeava. Assim que Trompsted passou a lagosta pelo seu ombro, sentiu-se mal.
Visível e indubitavelmente doente. Supôs que fosse o efeito do cocktail, mas teve apenas tempo de se levantar da mesa e correr ao seu quarto. Trompsted continuou
a servir, impassível, e Steve ria com ar contrariado, "Ela não pode suportar o fumo. - disse - É tão delicada, uma verdadeira criança."
Os cinco senhores puseram-se a falar todos ao mesmo tempo, para afastar o embaraço... Como Nina
não voltava, Steve segredou qualquer coisa ao ouvido do mordomo. O criado afastou-se e voltou segredando também a resposta. "Continua doente" - disse Thorpe um pouco
aborrecido. "Gripe" - lembrou Green que tinha sido seu sócio. "Toda a gente tem gripe, por causa do calor"-aprovou outro. Puseram-se então todos a falar da gripe
e a discutirem as suas fases e se era verdade que os morangos se tratavam com arsénico e se constituíam um perigo.
Quando serviram o café, o dr. Back pousou o guardanapo e saiu. Fez ao seu amigo Steve um sinal e Steve, reconhecido, respondeu-lhe do mesmo modo. Ouviram o médico
subir as escadas, que iam dar aos quartos.
O cognac foi servido em grandes cálices e os convidados voltaram para aquilo a que chamavam a biblioteca: era um aposento que tinha de tudo, menos livros. Instalaram-se
para jogar o bridge e Steve sentou-se em frente de Green ao pé do fogão de sala, diante do jogo de xadrez. Mas não jogou imediatamente porque estava distraído e
aborrecido. A-pesar-de gostar de Nina não podia dissimular que ela representava um malogro em toda a linha. Assim que saiu para ir buscar cigarros para os convidados,
teve o sentimento preciso que troçavam dele em vez de o admirarem.
Mas os aborrecimentos de Steve Thorpe nessa noite ainda não tinham acabado. Mal colocara as marcas de xadrez e feito as três primeiras puxadas, apareceu Trompsted
na biblioteca, debruçou-se para o patrão e disse-lhe qualquer coisa ao ouvido.
- "Como ? Que está a dizer?" - preguntou Thorpe. Trompsted, imagem da dignidade e da discrição, repetiu a misteriosa nova. Thorpe, sufocado, balbuciou: "desculpem-me."
e correu para fora do aposento. A sua partida foi tão súbita, que até os jogadores de bridge foram por momentos arrancados à sua concentração. De mau humor, Green,
o parceiro de Thorpe, ficou sentado diante da partida começada.
- Onde está ela ? - preguntou Thorpe logo que, seguido pelo criado de quarto, chegou ao vestíbulo. com o queixo, Trompsted designou a porta da entrada: era um gesto
pouco respeitoso. "Porque a deixou lá fora, santo Deus ! - exclamou Thorpe em voz baixa. "Madame Thorpe não quis entrar, senhor." - disse o criado, um pouco vexado.
Thorpe empurrou-o para o lado e lançou-se para a porta entreaberta.
Fora, sob a lanterna da entrada, Lúcia estava de pé. Parecia muito infeliz.
-Lúcia... como estás magra!...-disse Thorpe, à queima-roupa.
- Obrigada, perdi vinte e dois arráteis - respondeu ela como mulher que, mesmo na adversidade, não se esquece de verificar todos os dias o seu peso.
- Que posso fazer por ti?... emfim ... não queres entrar... tenho algumas visitas... tu conhece-las... Green, o dr. Back... estou muito contente por te ver... -
balbuciou Thorpe.
- Justamente. Não quero ... visto que tens gente... é a ti só que desejo falar. - disse Lúcia. Ela tirava, nervosamente, o veuzinho que lhe cobria a testa e os olhos.
Um ramo de violetas artificiais enfeitava-lhe o chapéu, como exigia a moda dessa primavera, e pareceu a Thorpe que nunca tinha visto nada mais triste do que essas
violetas.
- Vem, eles estão a jogar o brídge, ninguém te verá.
- disse vivamente pegando-lhe na mão e atraindo-a para casa. Assim que chegaram ao vestíbulo, não soube muito bem para onde a devia levar. Ela tremia toda e, com
a breca, ele tremia também. Da biblioteca chegava o riso dos jogadores. Em cima, do lado dos quartos, podia ouvir-se a voz monótona e ensurdecida do dr. Back que
parecia quási que resava. Steve lembrou-se de-repente que tinha Nina em sua casa; subiu-lhe calor à cabeça. Afastou as portas do salão e fechou-as logo. Green, ofendido,
tinha-se ido sentar para diante do fogão de sala e
lia uma ilustração. A T. S. F. tocava. Na sala de jantar, Tony, fazia arrumações. Na cozinha, Trompsted entrechocava os copos, Tomando uma rápida decisão, Thorpe
levou Lúcia atrás de si para um aposento chamado a sala do ping-pong. Actualmente, os cães tinham ali os seus cestos. Saltaram em volta de Lúcia, os seus latidos
amigáveis pareciam quási lamentos, tão agitados estavam. Algumas palavras a respeito de Max e Moritz fizeram passar os primeiros minutos. Thorpe pediu a Lúcia para
se sentar numa poltrona e colocou a luz um pouco de lado para a afastar dela, Fazia-lhe mal olhá-la e admirava-se disso. Mil vezes tinha imaginado e sonhado como
seria, se ele se encontrasse em frente de sua mulher. Tinha imaginado tudo, desde o frio desdém até à ofensa mordaz, desde a recusa de a reconhecer, até ao assassinato.
Agora, ali estava em pé em frente dela, receando olhá-la e, com o coração a doer-lhe.
- Queres comer alguma coisa ? - preguntou. (O seu rosto parecia-lhe tão magro!) "Obrigada, estou de dieta." - respondeu. E ele lembrou-se que os regímens de Lúcia
tínham-no feito, muitas vezes, encolerizar.
Sem lhe fazer outra pregunta, foi à copa, encheu dois copos de cognac, rebuscou o frigorífico e encontrou um resto de lagosta. Sob os olhares da cozinheira, ofendido
com a sua invasão, dispôs os seus achados em cima de um prato e levou tudo a sua mulher. Era o instinto do troglodita: primeiro alimentar a esposa. O resto seguiria
ao acaso... E de facto, Lúcia bebeu o cognac, com reconhecimento, e pôs-se a mastigar alguns pedaços de lagosta como se se escondesse de si própria.
Tinha as pálpebras inchadas das lágrimas e a maneira como o rouge se espalhava um pouco por toda a parte, denotava um verdadeiro desespero. Steve meteu-lhe um cigarro
na boca, enxotou os cães, que mandou deitar nos seus cestos e sentou-se emfim ao lado de Lúcia. Agora, ela já não tremia.
- Não queres tirar o chapéu ? - preguntou.
- Não, obrigada, - disse vivamente puxando o véu para os olhos...
- Tens qualquer coisa a dizer-me? Podes contar-me tudo como se eu fosse teu advogado... não de outro modo. Estou habituado a ouvir... e se precisas de um conselho..
- Não preciso de nenhum conselho - disse Lúcia, sacudindo energicamente a cabeça, de forma que as violetas tristes do chapéu estremeceram um pouco.
- Dois e dois fazem muitas vezes cinco, nesta vida, graças a Deus. - disse Thorpe - Era uma sibilina máxima muitas vezes utilizada na prática dos seus negócios cuja
urbanidade e experiência produziam um efeito calmante, Lúcia olhou-o com atenção.
- Mudaste muito, Steve! - disse ela.
- Tomo isso como um cumprimento. - respondeu ele. Distraída, olhou-o sem ouvir:
- Assim que me fiz conduzir aqui, pensei logo que poderias ajudar-me. Mas tu falas em contar... É difícil, Steve...
Deixou escapar um soluço ruidoso, como fazem as crianças que já choraram muito. Aquilo não ficava bem com o seu rosto emmurchecido, mas comoveu Thorpe, Havia um
quarto de hora que ele tinha esquecido completamente Nina, era como se ela nunca tivesse existido.
- Não me casei com Peruggi. - disse Lúcia - Pu-lo
na rua.
- Nunca o considerei como uma pessoa estimável ... - concordou Thorpe, amavelmente.
E a onda, de súbito, quebrou todos os diques. Sua mulher lançou os braços em cima da poeirenta mesa de ping-pong e pôs-se a chorar lágrimas quentes, sem as poder
conter. Entre lágrimas e soluços contou a sua história, por fragmentos e, por vezes, de forma pouco compreensível.
- Estimável, não era, não... - soluçava ela com o rosto nas mãos. Era um intrujão, um criminoso. Viveu
à minha custa. Fez-se sustentar por mim ... pediu dinheiro emprestado .. sabes como o gastou? E roubou-me o meu anel de esmeralda. Sim, foi ele com certeza.. sempre
estive certa disso mas nunca lho disse. Calei-me ... Como poderia dizer a um homem : tu roubaste o meu anel ? Nem sequer confessá-lo a mim mesma, embora sempre estivesse
convencida disso. Ele tinha más maneiras, se bem que dissesse serem italianas ... há italianos ordinários, mas deve também havê-los bem educados. Emfim, era um conde
e não um vendedor de gelados. Palita os dentes à mesa depois de comer, e pragueja constantemente. Mas tudo isso ainda eu suportaria ... Gabava-se muito da sua família
aristocrática... e pedia-me dinheiro emprestado. Tinha prometido casar comigo em Verona... onde estão enterrados Romeu e Julieta ... era tão romântico!... e eis
que descubro que gastava o meu dinheiro com amantes... não sei a quantas mulheres, prometeu a mesma coisa: esse casamento na catedral de Verona. Então, naturalmente,
disse-lhe a verdade... que me tinha roubado o anel. "Dá-me o anel que me roubaste, é muito lindo para a canalha com quem andas." Então, dir-se-ia que estava louco,
um bruto, um verdadeiro bruto ... arrancou-me os cabelos, arranhou-me, bateu-me ... aqui..."
E Lúcia ergueu da mesa de ping-pong o rosto inundado de lágrimas, tirou o chapéu, o véu e descobriu a fronte arranhada e os vergões que lhe marcavam a face esquerda.
Thorpe ficou um pouco desconcertado por esta explosão. Assim que viu que lhe tinham batido na mulher, uma violenta cólera se apoderou dele, embora tivesse sentido,
também, muitas vezes, vontade de a espancar.
- Olha, bebe mais um copo de cognac. - aconselhou em voz grave, estendendo-lhe o seu próprio copo. Ela bebeu de um trago, tornou a pôr o chapéu, limpou os olhos,
baixou o véu, tirou a caixa de pó, da malinha, para
reparar a desordem das feições. O que mais sensibilizou Steve foi ela diligenciar sorrir, um pouco timidamente, para se desculpar... um pouco envergonhada !
- Alegra-te porque tudo isso tenha acontecido antes de teres casado com ele. - disse usando uma frase banal de consolação, que costumava dizer à sua clientela. O
sorriso de Lúcia tornou-se mais grave.
- Vocês, homens, são todos os mesmos. Tu também tens uma mulher cá em casa.
E duas lágrimas retardatárias, depois do grande dilúvio, desceram lentamente até aos cantos da boca. Thorpe compreendeu que essas duas lágrimas eram para ele e não
para o belo gigolô desleal.
- Isso não significa nada... Se te interessa, posso contar-te tudo ... - disse. Ela fez um pequeno gesto rápido, de recusa, que ele, de novo, reconheceu:
- Nada tenho a censurar-te... não tenho esse direito. - disse.
- Não se trata de direito, - ouviu-se Thorpe dizer. Reflectiu sobre o que devia agora fazer diante de Lúcia.
- Que intenções são as tuas ? - preguntou, prudente.
- Não sei... não sei, Steve. - disse ela, sonhadora É como depois de um tremor de terra, não me reconheço, já... Podem-se entregar os bilhetes do barco, perdendo
alguma coisa.
-As Companhias marítimas habitualmente dão 90? % do preço dos bilhetes pagos - disse ele no seu tom de advogado.
- Nem sequer desejo voltar ao hotel, tenho medo que ele venha.
- Não te tornará a bater, afirmo-te. - garantiu Steve, sombrio.
- Não... tenho medo que ele ... que me peça perdão... e eu... tu não o conheces, quando quere, ele sabe ser encantador.
- É disso que vive, de resto- disse Thorpe.
- Tens razão, disseste bem ... é disso que ele vive ... aprovou rapidamente Lúcia.
Olhava à sua volta e começou a sorrir vendo os dois cães que, até então tinham estado deitados com ar hipócrita nos seus cestos, começarem a saltar à sua volta.
Os seus ladridos mostravam toda a sua alegria.
- Vocês reconhecem-me... não me esqueceram... -disse, pegando-lhes pela pele bamba do cachaço, para os pôr ao colo. Os seus focinhos castanhos escuros dirigiram-se
para a cara da dona como que para a beijar. Thorpe, de pé, a um canto, reflectia. A partida de bridge, o dr. Back, Nina.
-Queres que te leve para outro hotel ou preferes viajar ?
- Não. - disse ela, resolvida. E ele preguntava a si próprio a razão da recusa.
-De-certo já... alguém te contou que tenho uma senhora no quarto de hóspedes. - disse - Mas tu podes passar a noite no nosso quarto de cama e eu fico na biblioteca.
- És muito bom ...- respondeu Lúcia. Sobre os seus joelhos os cães latiam. A porta abriu-se e o dr. Back meteu a cabeça branca: "Perdão" - disse, confuso. E desapareceu.
-Estás apaixonado pela senhora do quarto de hóspedes?-preguntou Lúcia com um sorriso.
- Tentei imaginá-lo durante certo tempo.. -respondeu Thorpe, sorrindo também - Dá-me o número do teu hotel, vou telefonar para que tragam para aqui as tuas bagagens.
- Obrigada. - murmurou Lúcia.
Ele viu que, maquinalmente, ela passava o dedo sobre a mesa de ping-pong. Na verdade, estava cheia de poeira. "A casa precisa de uma mulher" - murmurou ele ao pé
da porta. Lúcia levantou os olhos e começou a rir, com um tremeluzir de lágrimas nos olhos.
-No que diz respeito ao romanesco, nós podemos
também partir para Verona e casar lá segunda vez. O seu tom era de gracejo, mas a voz embargava-Se-lhe na garganta. Fechou a porta atrás de si e ficou frente a frente
com o dr. Back.
- Que estás a fazer ? Escutas ? - preguntou, e o constrangimento a que se tinha imposto, explodiu nestas palavras.
- Não, mas preciso falar-te com urgência. Tua mulher não podia ter escolhido um momento mais inoportuno para vir.
Thorpe dizia a si mesmo que não existia nenhuma lei determinando o instante em que uma mulher devia voltar para o seu marido.
- Que aconteceu ? - preguntou em tom breve.
- Vem comigo ao teu quarto. É o único lugar onde podemos conversar sem que nos incomodem-resmungou o médico.
Thorpe desejava subir, para telefonar. -Então? A pequena não vai melhor? É gripe?- preguntou, impaciente,
- Não... Ela vai bem... vai até muito bem - disse o dr. Back fechando a porta atrás deles.
As suas maneiras misteriosas começaram a irritar Thorpe.
- Acabemos. Preciso de telefonar - disse.
- Pois bem, meu caro, é uma história bem triste... Vai custar-te dinheiro. No entanto, as minhas felicitações... para um velho como tu...
Admirado, Thorpe olhou para o seu amigo por instantes. O médico respondeu-lhe com um olhar silencioso e cheio de segundo sentido. Subitamente, o advogado desatou
a rir.
-Mas é espantoso! Isso não podia calhar melhor. Ora ai está porque parece tão nervosa... Pobre pequena!-acrescentou, compadecido. Ela já sabe?
- Naturalmente que lho disse.-respondeu o médico.
- Sim ? E então ? Como tomou ela a coisa ?
- As mulheres naquele estado são sempre um pouco exquisitas - sentenciou o dr, Back, embora isso não fosse uma resposta.
Thorpe percorreu duas vezes o aposento dando estalos com os dedos.
- É um tanto excessivo para uma noite só. - pensava. Ao mesmo tempo louvava a delicadeza, a perfeição das suas relações com as mulheres.
- Ouve.- disse ao médico - Tu vais telefonar. Pede o Hotel SãO Moritz e diz que madame Thorpe não volta e que lhe mandem a mala e os objectos indispensáveis para
uma noite. Depois, vais à sala de ping-pong onde reterás Lúcia durante meia hora, podes administrar-lhe um calmante qualquer: brometo, um sonífero, qualquer coisa.
Depois tratarás de acabar com essa danada partida de bridge e de os mandar para casa. Negócios de mulheres fazem parte do segredo profissional, percebeste?
- Compreendo perfeitamente - disse o dr. Back com uma expressão de profunda perplexidade, no seu rosto barbeado.
Thorpe atravessou a passo rápido os dois quartos de vestir, que separavam o seu do quarto de hóspedes, esperou um instante diante da porta de Nina, e depois bateu.
"Sou só eu... Steve..."- disse. Veio-lhe o pensamento fugitivo de não ter, há anos, vivido coisas tão importantes e salutares como durante esta última hora. Nina
disse: "Entre" e ele entrou, com um sorriso de homem um pouco acanhado no rosto sobressaltado.
Mas encontrou uma outra Nina: uma Nina inteiramente diferente, transformada, em pé, delirante, fora de si, uma Nina absolutamente louca, que chorava e ria ao mesmo
tempo. Ele ignorava se era alegria ou dor -ela mesma não o sabia, provavelmente...
Ela só queria uma coisa: ir-se embora, partir dali imediatamente. Deixar, sem demora, esta casa onde os criados a desprezavam, onde os hóspedes eram impertinentes:
ela ia ter um filho, ela era mãe! Um filho, um novo Erik, um conde Bengtson! Gritou tudo isto no quarto, emquanto fazia as malas... ou antes, emquanto atirava tudo
para dentro delas... a barata roupa de baixo, as bonecas, o revólver. Thorpe estava ali petrificado, como imobilizado sob uma catarata. Não podia fazer nada senão
atirar para o monte os vestidos de que tinha feito presente a Nina e, às escondidas, meter-lhe em qualquer parte uma nota do Banco... para prever todos
os acontecimentos.
Tudo se fez de-pressa e de uma forma tão irresistível que, quando Nina lhe estendeu amavelmente a mão para lhe agradecer a hospitalidade, ele notou, pelo tom da
voz, que o seu espírito estava já distante.
Reteve-a, no entanto, um momento com a porta aberta pois acabava de perceber, pelo barulho, pelos risos, pelo cheiro de charuto, que o bridge havia terminado. O
dr. Back parecia ter trabalhado bem. com precaução, Thorpe atravessou o patamar; não queria que Lúcia e Nina, que tinham por momentos perdido o domínio de si próprias,
pudessem encontrar-se. No seu foro íntimo agradecia à Providência essa reviravolta súbita de Nina que lhe poupara muitas dificuldades.
Num piscar de olho, fez-lhe sinal para o seguir. Pediu a Trompsted para ir acima buscar-lhe a bagagem, pois não queria que a rapariga carregasse com nenhuma mala,
nem mesmo a sua pequena maleta de mão.
- Tony. - disse ao motorista que tinha ajudado Vá levar mademoiselle Nina a Fieldston, depois vá ao hotel São-Moritz buscar as bagagens de madame Thorpe. Diga que
eu passarei por lá amanhã para pagar a conta. E... não preciso do carro antes das dez horas.
Instalou Nina no automóvel. Distraidamente disseram adeus; ela estava já com Erik e ele com Lúcia...
- Vá de-vagarinho, Tony-ouviu ela dizer. Ele ficou de pé em frente da casa, emquanto o clarão dos faróis desaparecia, perdendo-se na obscuridade. Depois, meneou
a cabeça. No fim de contas, as mulheres são uma raça singular... -pensou.
E esse meneio de cabeça era a conclusão da tentativa que Nina fez para se vender. Era o princípio das segundas núpcias de Thorpe.
MEIA-NOITE e meia hora no relógio da Central. Os guardas de noite acabavam de terminar a sua segunda ronda e foram aquecer café à sua sala.
A campainha da noite soou no quarto de Joé, o porteiro. Abriu a porta pequena; fora estavam duas pessoas.
- Posso ir falar ao sr. Bengtson ?
-Tem licença ?-preguntou Joé à rapariga, pálida, com ar de dançarina.
- Sim. Naturalmente.
O porteiro pegou na licença e voltou ao seu cubículo, à luz eléctrica. Ele tinha um olho de vidro e era forçado a colocar o papel obliquamente, para ler.
- E esse rapaz? - preguntou.
- Este rapaz é que traz as coisas.
- Que coisas?
- As coisas para o sr. Bengtson.
- Tem licença?
- Não, mas eu tenho.
- Sem licença não o deixo entrar.
- Ele tem de lhe entregar as coisas... sem isso o sr. Bengtson não poderá trabalhar. - explicou a rapariga.
- Impossível,-disse Joé voltando o lado do olho de vidro para o rapaz para melhor examinar a rapariga. Foi nesse momento que recebeu uma pancada no queixo e caiu
por terra.
- Tocado! - disse o rapaz, satisfeito, e desapareceu no fundo do vestíbulo que levava ao pátio velho.
A rapariga voltou à rua. À esquina, um automóvel esperava. Dois indivíduos desceram e aproximaram-se. A mulher cruzou-se com eles, disse uma palavra e seguiu o seu
caminho. Depois, fazendo sinal a um táxi, afastou-se. Os dois tipos entraram na Central pela porta aberta que fecharam atrás de si.
Joé continuava no chão, sem sentidos, e com um sorriso nos lábios . Big Paw inclinou-se e transportou-o para o seu cubículo. Emquanto o ligava a uma cadeira fazendo-o
respirar clorofórmio, Bill viu à luz o plano desenhado por Liliana.
- Diz a Kid que entre. - disse a Big Paw.
- Onde está Bully? - preguntou este. Estava emocionado e não podia dominar-se. Bill deu-lhe um pequeno encontrão. Big Paw abriu a porta e inspeccionou a rua : um
homem, sonhador estava de pé diante da montra dos bars portáteis. Big Paw teve de esperar um certo tempo emquanto Bill, impaciente, espreitava atrás dele. O relógio
da torre deu três pancadas antes da uma hora. Finalmente o admirador tardio desligou-se da montra e marchava, indecisamente pela rua abaixo, como alguém que se aborrece
e espera uma aventura. Passaram dois automóveis, depois, tudo ficou vazio por um momento. Kid apareceu, de-repente, e deslizou pela porta, para dentro da Central.
Joé estava agora muito bem empacotado com adesivo na boca e uma boa narcose. Em silêncio, os dois homens seguiram Big Paw através do pátio; subitamente, este sobressaltou-se
diante do gato branco, que fazia rolar uma caixa vazia de conservas no chão de cimento. Através duma porta envidraçada, podiam ver a secção, mal iluminada, de confecção
para homens. Sem barulho, Bill pegou nas chaves que Liliana lhe tinha dado e abriu a porta de par em par. Havia só cinco chaves e encontrou a precisa sem hesitação.
Assim que chegaram ao interior, ficaram uns minutos imóveis, de ouvido à escuta; reinava um silêncio de morte. Um senhor loiro, de cera, vestido de branco, olhava
na sua direcção e sorria vagamente. Bully, o rapaz vestido de groom, tirou o pano branco que recobria as gravatas. "Deixa isso!" -disse Bill. "Mais baixo.
- respondeu o rapaz renunciando de má vontade ao seu roubo. "Por causa de idiotas da tua espécie é que os grandes negócios não triunfam." - sentenciou Bill.
Ele levou-os mais longe, ziguezagueando entre as secções mudas e cheias de fantasmas imaginários, chegando emfim à escada que ia dar à cave.
- Levo os dois rapazes comigo, tu vais ficar lá em cima à espreita - murmurou Bill.
- Entendido, chefe, - respondeu Big Paw em voz forte.
Tinha estado todo o tempo irritado por causa dessa marcha prudente através da Central vazia e por esses segredinhos inúteis, pois não estava lá ninguém que os pudesse
ouvir.
- E se vier alguém, mostra o teu revólver. Mas nada de ruído inútil... ouviste?
- Entendido, chefe - respondeu ainda Big Paw.
- A escada de socorro é no terceiro andar, encostada ao elevador. - explicou Bill, a todos - O carro espera à esquina sudoeste.
Big Paw viu-os desaparecer na escada. Pegou num cigarro e pôs-se a fumar. Tinha medo e a coragem de Bill não o animava: Bill tomava cocaína e isso é que lhe mantinha
o espírito empreendedor. Big Paw não tinha bebido bastante para se sentir à vontade.
Ele gostaria de percorrer o armazém vazio para examinar tudo, mas não teve coragem. Atirou fora o cigarro meio fumado e acendeu logo um segundo. Em bicos de pés,
foi até ao tapete rolante que, na sua imobilidade, tinha o mesmo carácter espectral do resto, e sentou-se no primeiro degrau. Pôs a cabeça
no braço e ouviu um choque rítmico que lhe meteu medo. "com a breca!" - exclamou, rindo incrèdulamente assim que notou que era apenas o bater do seu pulso que lhe
chegava ao ouvido, através da manga - Então ficou para ali sem se mexer e muito tempo passou..
Estava certo de não ter dormido, e tinha mesmo ouvido o relógio dar uma hora; no entanto para ele foi como um brusco despertar quando ouviu vozes vindas dos andares
superiores.
- Boas-noites, disse alguém lá em cima. Trata de ir direito para casa, já há muito tempo que devias estar no berço.
Depois ouviu uma gargalhada cujo eco se repercutiu contra as paredes. Metendo a mão no bolso, Big Paw, maquinalmente, pegou no revólver. Olhou à sua volta e, a-pesar-do
pânico, descobriu um excelente esconderijo. Uma cortina ocultava os fatos pendurados: ergueu-a e escondeu-se atrás. Durante esse tempo passos leves tinham descido
a escada. Arriscando um olhar por uma fenda, o bandido viu um ser de cabelos de um loiro pálido que descia a escada a dois e dois. "Vai descobrir o porteiro amarrado
e tocar a campainha de alarme." - pensou Big Paw, embora pensar não fosse o seu forte. Puxou do revólver, visou na direcção do rapaz; mas deteve-se... O rapaz parou
diante de um grande espelho, examinando o queixo; depois, tendo procurado à sua volta, tirou um chapéu branco da cabeça de um manequim vestido com um fato de linho,
penteou-se e mirou-se por todos os lados. Tateou a algibeira, tirou um cigarro que meteu na boca, sem acender, e continuou a admirar-se. Big Paw riu atrás da cortina.
O pequeno, depois de se ter contemplado bastante, tirou o chapéu, pôs o cigarro na algibeira e, inclinando-se respeitosamente diante do manequim, restituiu-lhe o
chapéu. Depois, tomou balanço e escorregou pelo oleado do soalho até à saída.
Big Paw, saiu do seu esconderijo e gritou: "Mãos
no ar!" O pequeno voltou-se estupefacto, e ficou de boca aberta, não levantou as mãos, pois, com certeza não tinha percebido do que se tratava. "Mãos no ar!" repetiu
Big Paw um pouco mais baixo - Lembrou-se de-repente que deviam estar mais pessoas lá em cima. Talvez, de noite, no armazém houvesse um formigueiro de gente ocupada
a trabalhar. Agora o pobre garoto levantou as mãos, como um fantoche, como se fossem puxadas para o alto por dois cordéis. Big Paw pensou no que iria fazer dele,
mas, antes que pudesse tomar uma resolução, o cabelo louro branco pareceu erguer-se, como que empurrado por uma corrente de ar, o rosto sardento ficou lívido e ele
caiu ao chão. Era a primeira vez que Big Paw tinha visto desmaiar alguém, e não sabia o que havia de fazer. Dirigiu-se para o pequeno, levantou-o, sentindo um certo
desagrado ao contacto desse corpo flácido.
Nesse instante, ouviu-se qualquer coisa que conhecia muito bem: tiros. Três tiros amortecidos partiram da cave. Deixou cair o garoto, olhou à sua volta com ar assustado
e correu pela escada até ao terceiro andar. Lá em cima, já sem fôlego, procurou o elevador, ao pé do qual ficava a escada de socorro. Roçou, a correr, por três senhoras
em roupão, obliquou e viu subitamente que um homem vinha para ele: atirou-se sobre o indivíduo como num desafio de foot-ball, ouviu a queda pesada de um corpo e
continuou na sua fuga. com a coronha do revólver, deu uma pancada num enorme vidro: o ar da noite bateu-lhe no rosto coberto de suor. Do alto da escada de socorro
onde estava, via o pátio no qual o gato brincava ainda agora; resolveu não se mexer. Em baixo, corria gente; bruscamente, todas as campainhas de alarme se puseram
a tocar; sons agudos encheram o vasto edifício. Era um barulho infernal e isso tornou-o tão nervoso que se endireitou imediatamente. Recebeu então uma pancada e
caiu.
uma coisa horrível, uma campainha a ressoar numa casa vazia. Era meia-noite. Em casa dos Bradley, ninguém. O vestíbulo estava vazio, os quartos vazios, o leito da
sr.a Bradley também vazio. Vazio o leito de Erik, vazio o de Filipe; nem Skimpy estava em casa e a campainha tocava. Um som longo, depois curto, depois mais longo
ainda; primeiro paciente, depois nervoso, depois como louco. Finalmente tudo se calou.
-Não está ninguém em casa-disse Nina ao motorista que esperava de pé, com as malas na mão.
- Devo levá-la outra vez para trás ? - preguntou ele, tornando a pôr as bagagens no carro.
- Não, de maneira nenhuma. - disse Nina. -Então aonde, se faz favor? - preguntou Tony
olhando para o carro com indiferença.
- Aonde? - repetiu Nina.
- Talvez a um hotel ? - propôs o homem.
- Sim, mas não a um hotel caro. - disse abafadamente Nina.
Tony levou-a a um hotelzito, longe, ao cimo de Broadway, onde a olharam de uma forma estranha. Mas, como ela tinha duas malas, deram-lhe um quarto, um quarto que
cheirava a fósforo. Aí, sentada na borda da cama, Nina telefonou. Três vezes tocou para a Central
e de todas recebeu a mesma resposta: "Não responde". "Não é possível, torne a tentar" - suplicou ela. Mas
isso nada fez.
- Quiseram matar ratos - pensou Nina aspirando o odor estranho do quarto. Tornou a pegar no telefone e, de vez em quando, tornava a pedir a casa de Bradley. A manhã
ia já muito avançada quando, emfim, uma voz respondeu: Era a voz infantil e aguda de Skimpy.
- Estás, Skimpy ? Aqui, a Nina, Posso falar à
mamã?
- Não.
- Ela saiu? Tenho uma coisa importante a dizer-lhe.
- A mamã está no hospital, mas vai bem. Esta
tarde vou vê-la.
- Oh!.. Que pena!... - murmurou Nina. Mas não tinha tempo a perder com amabilidades - Pois eu... gostava de falar ao sr. Bengtson... - disse ela.
- O sr. Bengtson foi preso.
- Como? Fala um pouco mais alto, Skimpy.
- O sr. Bengtson foi preso. - gritou Skimpy ao
aparelho.
- An ?... como assim ?... Não é... possível. balbuciou Nina, sentindo-se arrefecer. Os lábios estavam como que gelados, a pele da cabeça parecia esticada, agarrava-se
ao telefone.
- Ele roubou coisas. Fez um assalto. Deram tiros e ele é um gangster. Eu também lá estava - continuou Skimpy, com importância.
- Eu queria... falar a Filipe... - murmurou Nina ao aparelho. O cheiro a fósforo envolvia-a toda.
- Filipe está no posto de polícia. O seu retrato vem nos jornais - disse Skimpy. Ela esperou ainda um pouco, mas como Nina não respondesse, desligou, desceu prudentemente
do banco que tinha posto para telefonar, e, consciente da sua importância, foi para a escola.
Para Nina, correu um lapso de tempo de que, mais tarde, não se lembrava. De-facto, eram oito horas
da manhã quando tinha telefonado a Skimpy e, foi às dez horas somente, que se encontrou sentada no autobus que se dirigia para a Central. Do que tinha feito, durante
essas duas horas, não poderia mais, em toda a vida, recordar-se. No entanto, o seu cérebro estava absolutamente claro quando, chegando ao armazém, tomou a escada
móvel. Tinha comprado um Jornal na rua e, embora o nome de Liliana aí não figurasse, estava absolutamente certa de uma coisa: Liliana tinha levado seu marido à prisão
e era Liliana que devia fazê-lo sair.
Nina tinha sido sempre calma e meiga durante toda a sua vida. Mas, agora, haviam-se passado coisas de molde a transformar completamente esta criaturinha. Desde que
a tinham tirado da secção de porcelanas para a porem na vitrina, nunca mais tivera paz. Andava como um projéctil que ninguém pode reter, assim que é lançado, como
um pequeno cometa apaixonado, pronto a rebentar em mil pedaços. Exteriormente, todavia, este pequeno pedaço ardente de destino feminino não se distinguia das outras
clientes. Como todas as outras, lançou um rápido olhar para o espelho, diante do qual passou e parou um instante diante dos sensacionais pijamas de praia, da secção
de confecção. Essa secção estava à cunha nessa manhã: havia uma venda-reclamo de séries baratas e todos queriam o primeiro lugar junto ao balcão, para pescar os
artigos mais vantajosos. Fez calor, de-repente, nessa manhã de princípio de primavera e as ventoinhas funcionavam, as caixeiras transpiravam, as modistas estavam
nervosas, as clientes histéricas.
- Gostaria que me atendessem, menina. - disse Nina numa voz sem intonação a Liliana que saía da sala de costura. Nessa manhã, Liliana estava mais pintada que de
costume, sem dúvida porque se sabia mais pálida. A boca estava muito vermelha sobre a pele branca e o seu nervosismo concentrava-se na palpitação das narinas.
Prenderam todo o seu bando. Bill morreu, os outros estão presos. Nem peles, nem amigos, nem dinheiro, nem carreira em Broadway. Devia mesmo sentir-se feliz, por
todos se terem calado, não a comprometendo na aventura ...
- Gostaria que me atendessem, menina. - repetiu Nina com mais força. Liliana imobilizou se com um pequeno movimento de ancas que dantes a tinha distinguido entre
as suas colegas aprendizas e a tinha trazido até ao salão de costura.
- "Olha... a Nina!-disse ela-Talvez saiba qualquer coisa de novo." Foi apenas uma idea fugitiva...
Teria de boa vontade envenenado Erik Bengtson se, por esse meio, pudesse estar segura do seu silêncio. Mas a criança de peito, o menino de mama estava preso e era
de prever que ele a envolvesse no caso. Teria contado a história das chaves? com certeza, se isso pudesse servir-lhe de defesa. Seria então o fim de Liliana Smith,
saída a custo da obscuridade e que se sentia empurrada, irresistivelmente, outra vez, para a escuridão, para o abjecto.
- A senhora deseja? - preguntou ela, olhando Nina como se fosse um carteiro que, de noite, nos traz um telegrama.
- Queria provar este vestido. - disse Nina apontando para qualquer parte, por cima do ombro, na direcção do armário.
- com muito prazer. - respondeu Liliana, tirando um vestido ao acaso e abrindo a porta do gabinete de
prova.
- Que há de novo ? - preguntou ela assim que ficaram sós entre as paredes de espelhos.
- Que fizeste de meu marido ? - preguntou Nina.
Qualquer coisa nesta pregunta irritou Liliana: ela não podia suportar o que havia de burguês nesta expressão: meu marido. Não podia suportar esta pequena Nina meiga
e tranquila, esta provinciana que tinham posto na montra.
- Que me importa o teu marido ? Teu marido!
- Foste tu que o meteste na prisão, - disse Nina e és tu que o tens de fazer sair de lá.
Era a frase que, havia horas, ela tinha formado na cabeça.
- Tem cuidado com o que dizes, minha menina. Teu marido meteu se com ladrões. Eu não...-disse Liliana.
Falavam ambas em voz baixa, com os rostos aproximados um do outro e reflectidos nos seis espelhos ao mesmo tempo. Mas mesmo que tivessem falado mais alto, não as
teriam ouvido, pois em toda a secção de costura havia um zunido sussurrante de mulheres. No salão, a directora esvoaçava de um lado para o outro, dando ordens, com
o seu sotaque francês. Todos os gabinetes de prova estavam ocupados. Uma caixeira abriu a porta e disse: "Perdão", tornando-a a fechar. Liliana e Nina ficaram frente
a frente, ambas trémulas, cada uma dizendo à outra o que tinha a dizer-lhe.
Liliana estava ao rubro, ladeava um precipício. Mas Nina já não era a rapariguinha de antigamente, agora tinha sofrido muito.
- Estou farta, entendes? E repetiu o que exigia e que não era nada mais, nada menos do que isto: Liliana devia comparecer diante da justiça e provar a inocência
de Erik.
Liliana riu-se, provocante. Pôs as mãos nas ancas, gargalhando na cara de Nina.
Subitamente, ela viu que Nina levava um revólver, um grande revólver de polícia que segurava desajeitadamente.
- Se não tiras cá para fora o meu marido, mato-te! disse em voz grave, rouca, numa voz absolutamente nova.
Liliana segurou o pulso que agarrava a arma para a desviar de si.
- Endoideceste? - preguntou vivamente.
- Estou grávida. vou ter um filho! É preciso que meu marido volte. - gritou Nina.
Foi apenas um instante, um instante singular, a duração de um abrir e fechar de olhos... mas durante esse segundo, Liliana fraquejou. Um filho era uma palavra do
outro mundo. Nina... ia ter um filho. Dantes, elas haviam sido amigas. Juntas, como aprendizas tinham-se sentado nos bancos da escola, onde o grande armazém educava
as caixeiras ...
E o facto de Nina ter um revólver e parecer decidida a servir-se dele, revelou um sentimento que Liliana pôde compreender. Isso já não lhe era tão estranho, tão
hostil...
- Um filho ? - preguntou, largando, sem dar por isso, o pulso de Nina - Mas, um momento depois, reencontrou a sua dureza.
- Mas que me pode importar que tu tenhas um filho ? Que tenho com teu marido ? Deus sabe de quern é esse bastardo!
Ela não falava alto, mas as suas palavras soavam tão duras, como uma pedra batendo noutra pedra.
Então, Nina fechou os olhos e descarregou a arma. Nunca tinha disparado na sua vida e ficou aflita com o safanão que recebeu - houve depois um cheiro a pólvora.
Assim que abriu os olhos, Liliana ainda estava de pé, com as duas mãos apoiadas à mesita, depois, a taça dos alfinetes caiu e Liliana caiu também por sua vez. Dir-se-ia
que tentava sorrir com ar irónico e surpreendido. Talvez também sofresse...
Tudo isto se passou muito silenciosamente. Os gabinetes tinham tapetes espessos e o tiro não fez mais barulho do que uma rolha de garrafa de champagne.
A queda de Liliana também não foi ruidosa. Nina meteu o revólver na sua velha malinha de mão e saiu do gabinete.
Na secção reinava o ruído da venda-reclamo.
- V. Ex.a foi servida como desejava ? -preguntou madame Chalon.
- Fui, obrigada, - respondeu Nina.
Portas, portas e portas, escadas e escadas... O elevador... no edifício central. A saída à direita, portas envidraçadas, portas móveis e ainda flechas indicando
saída, saída, saída...
Nina transpôs emfim a última porta, que bateu pesadamente sobre ela. Cá fora, era Junho, cá fora, as mulheres compravam flores. Ninguém a seguiu. Respirou o ar a
grandes sorvos, as suas mãos já não tremiam. Fez sinal a um táxi. "Para a Grande Estação Central" - disse. Tinha dinheiro, a sua algibeira estava cheia de notas
provenientes do último presente de Thorpe.
Carros, pessoas, môços de fretes, de cor, informações, bilheteiras, pessoas. Bilhetes para Cleveland. Bilhetes para Boston, bilhetes para New Heaven.
- Para Lansdale, Connecticut... - disse Nina.
- Simples, ou de ida e volta ? - preguntaram da bilheteira.
- Isso é que eu não sei. - respondeu a jovem.
LAMENTO tê-lo feito esperar, - disse Filipe quando, às duas horas e dez, entrou no seu escritório. Estou cheio de trabalho, como pode calcular. A polícia... e depois
tive com o sr. Crosby uma longa conferência.
Sentia-se extraordinariamente bem disposto, pois tinha substituído a falta de sono pelo álcool. Trazia o braço ao peito.
- Foi grave ? - preguntou o rapaz, que se tinha levantado à sua chegada.
- Oh! já estou habituado. A bala desta noite foi a sexta que recebi no cadáver, desde que trabalho na Central - disse Filipe, em tom importante. Estava excitado
e como prestes a tomar voo, tal como um grande balão vermelho, novo. O rapaz escreveu à pressa algumas notas no caderno que tinha preparado.
- Eu sou Sanders, do Evening Star, como sabe. Pensamos que o senhor não teria hoje muito tempo livre, mas o chefe entregou-me o contracto que lhe diz respeito.
- Ah, ah - disse Filipe, lendo o documento. - Dois mil dólares por uma reportagem especial... espero que o seu chefe não fique desiludido. Não posso, evidentemente,
revelar tudo quanto sei, pois a polícia tem o assunto entre mãos.
- Limitar-me-ei a preguntar-lhe o que nós desejamos saber - disse Sanders, com benevolência. Prátt vai
primeiro tirar-lhe algumas fotografias. Já fotografámos o depósito e a escada de socorro, onde o senhor matou esse indivíduo. Vejamos como conseguiu fazer tudo isso
.. sozinho ?
- O instinto.- declarou o velho Filipe-Está tudo no instinto. Um detective deve possuir a intuição necessária, de outra forma nunca lhe viria à idea que, justamente
no dia em que sai com uma mulher, um bando de gangsters projecta um roubo de peles.
Depois de ter disparado esta flechazinha subtil a Ricardo Cromwell, que considerava como despedido, Filipe abriu o seu armário e vazou um copo de whisky puro. "A
minha novocaína" - disse alegremente.
Entretanto, Pratt tinha feito a sua entrada com o aparelho, chapas e magnésio, e instalava tudo no pequeno escritório: "Nós queremos também possuir uma fotografia
sua de quando esperava os tipos, no depósito". disse ele dando ao detective a atitude desejada. "É a décima quarta vez que me fotografo hoje" - notou Filipe colocando
bem à vista o braço ferido. O relâmpago de magnésio brilhou.
- Reparou como lá em baixo faz frio ? - preguntou ele - Não há mais de 28? Fahrenheit. Fique lá apenas um quarto de hora à espera de gatunos, e posso garantir-lhe
que dois mil dólares não são muito por isso.
- Vai-te agora embora, - disse Sanders a Pratt, e previne na redação que estou lá daqui a uma hora com a minha reportagem.
Assim que o fotógrafo desapareceu, Filipe pôs um copo diante do jornalista.
- Agora,-disse este-procedamos por ordem. Ponhamos de parte tudo quanto já foi dito na edição da manhã. Como foi ferido no braço?
- O indivíduo visou-me o cotovelo direito. Não era muito burro... mas, por felicidade, sou canhoto.
- Já lhe foi entregue a quantia de mil dólares que ofereciam pela captura de Big Bill?
- O chefe da polícia já mos prometeu. É curioso... ontem, estava mais teso do que um cão atropelado, hoje, recebo dinheiro de todos os lados! O sr. Crosby apertou-me
a mão e chamou-me herói; aumentou-me o vencimento e conserva-me o lugar durante a minha vida e o comissário de polícia levanta-se para me falar.
-Que vai fazer de todo esse dinheiro, sr. Filipe? preguntou Sanders estenografando rapidamente.
- Eis o problema, sabe? Sou celibatário e não posso gastar tudo a beber, senão o sr. Crosby punha-me na rua...
Sanders riu reconhecidamente, ao pensar no êxito que este gracejo alcançaria no jornal.
- Quantos tipos do bando se puderam escapar ? Não faz uma idea?
- Krocinsky... a quem eles chamavam Big Paw está no hospital e Big Bill na morgue, deitado num belo caixão novinho em folha. Dois fugiram, mas estou convencido de
que não era este o bando completo.
- Não receia que se vinguem de si ? Não se acha em perigo?
- Olhe, isso dá-me uma idea sobre o emprego do meu dinheiro; vou contratar uma guarda especial, com Toughy à cabeça-disse Filipe, encantado. Também este dito de
espírito foi igualmente estenografado com alegria.
- Qual é a sua opinião sobre esse Erik Bengtson, que prenderam por ser conivente com os bandidos?
Filipe bebeu só uma vez e reflectiu.
- Quere arranjar-me uma armadilha? Isso é com a polícia. O meu papel é velar porque nada desapareça da Central, o resto é negócio do comissário.
- No entanto, deve ter uma opinião ?..-preguntou Sanders, bebendo também, para criar um ambiente de camaradagem. -Vejamos... que pensa do homem, como indivíduo?
- Bem... como indivíduo, tive-o sempre por um leviano, por um desses endemoninhados estrangeiros que
não inspiram a mínima confiança e, além disso, por um grande pateta. Oficialmente, só se pode dizer uma coisa: foi com o molho de chaves de Bengtson, que Bill entrou
na Central. Todos nós temos o número numa chapinha presa às chaves... e o bando não teve o tacto de a fazer desaparecer. Mas...
-Mas?-preguntou Sanders agarrando-se avidamente à palavrinha que ficou em suspenso.
- Mas... mais nada. -disse o velho Filipe, teimoso.
- Posso escrever que considera Erik Bengtson o principal culpado? -disse Sanders. Filipe enguliu precipitadamente a isca e o anzol:
- Não se trata disso, Deus me livre de afirmar semelhante coisa !
- Emfim, é verdade que esse Bengtson dormia na oficina quando as campainhas de alarme tocaram ?
- É essa justamente a questão, Se ele realmente não ouviu as campainhas de alarme, é preciso confessar que a consciência de nada o acusava. Mas se na realidade ele
só fingia dormir, é muito suspeito, muito.
Sanders esperava, de caneta no ar.
- Skimpy afirma que ele dormia, que foi ela que o acordou, aos murros, quando ouviu os tiros e as campainhas, que a assustaram.
- Na edição da noite deve aparecer uma fotografia da pequena heroína.
- Queria, no entanto, acrescentar uma coisa a respeito de Bengtson. - continuou êle - Fizeram-no sofrer esta noite um interrogatório de terceiro grau. Sabe o que
isto quere dizer?
Sanders aquiesceu, com respeito. As pessoas que tinham sofrido esta prova, falavam dela mais tarde como os gazeados falavam da guerra.
- Pois bem, o rapaz não disse nada. Nem sequer abriu a boca. Isto dá-me que pensar. Tive-o sempre por um rapazola mal habituado e duvidoso. Mas... para ter aguentado
um interrogatório de terceiro grau
sem se mexer, caramba, é preciso ter sangue nas veias! Vi-o esta manhã às nove horas. Eles não o deixaram dormir, como sabe, e a luz aguda, que lhe projectaram nos
olhos, ia-o quási cegando. O comissário pensou que eu talvez pudesse tirar qualquer coisa dele, mas não disse nada, não tentou sequer afirmar que estava inocente.
Sabe o que ele repete?:- "Fui um idiota e o que me acontece é bem merecido". Tinha esperado outra coisa desse pateta.
Sanders levantou-se, pegou no frasco de whisky e encheu dois copos. Filipe bebeu: -"De resto, se ele se chama idiota, é a respeito da sua vida privada" - disse.
O braço começava a doer-lhe muito. Filipe desde a uma da madrugada que estava numa espécie de transe. Ergueu o copo e esvaziou-o.
Sanders deitou novamente mais.
- Posso então escrever que considera Bengtson inocente ? - preguntou de pena em riste.
- Também não disse isso. - murmurou Filipe que começava a sentir se ligeiramente ennevoado - Mas ouça bem ... promete-me segredo se eu lhe confiar uma coisa? Compreende,
isto não é destinado ao seu Jornal. É apenas ... um dado ... um palpite, como nas corridas .. mas queria provar-lhe que o velho Filipe sabe mais do que toda a polícia
... o comissário e todos esses interrogatórios de terceiro grau. Não sei ainda se Bengtson está inocente: mas sei que não está culpado.
- Quê ? - exclamou o jornalista.
- Chut! Chut!- disse Filipe.-Eu não disse nada. Só quero mostrar o que é um trabalho de detective, bem feito. Ligado a cada molho de chaves, está uma placazita,
não é verdade? Pois bem... siga-me com atenção... a placa do molho encontrado em poder de Big Bill cheirava ... a um certo perfume ... Que diz você a isto ?
Sanders não disse nada. O bloco de papel tremia-lhe nas mãos, pois estava possuído da verdadeira febre do caçador.
- As chaves estiveram numa certa malinha de senhora. Foi aí que a placa se impregnou de perfume. Quero dizer-lhe ainda mais uma coisa: eu conheço a mulher que usa
esse perfume. É uma das nossas caixeiras ... e se não atormentarem Big Paw ao ponto de o fazerem confessar todo o imbróglio... eu vejo-me obrigado a dizer o que
sei.
E Filipe, depois destas declarações, instalou-se na sua poltrona e pôs os pés em cima da mesa. As dores no braço tornavam-se horríveis, mas sentia-se feliz como
não era havia muitos anos. A pena de Sanders corria no papel.
- Prenderam a mulher ? - preguntou ele, sem levantar os olhos.
- Você, meu amigo, nunca daria um detective. Emquanto a pequena vier ao armazém e eu a puder vigiar, tudo irá bem. Mas assim que ela estiver na prisão, contará uma
data de mentiras e nós nada avançaremos. Deixemo-la livre e bastará segui-la para se encontrar o ninho onde se esconde o resto do bando. Não é simples?
Sanders escrevia ainda, murmurando que era realmente muito simples. Bruscamente, Filipe retirou os pés da mesa e endireitou-se na cadeira. Depois, esboçou um sorriso
para se desculpar. "Tenho ainda os tiros nos ouvidos, disse ele. Assim que se fecha uma porta julgo ouvir uma detonação."
- Talvez tenha um pouco de febre... por causa do seu braço... - replicou Sanders.
- Não tenho febre! - declarou o velho, com energia.
- Hoje, sr. Filipe limito-me a entrevistá-lo sobre coisas de actualidade, mas temos ainda sete continuações a fornecer, como deve ter compreendido, Amanhã terá de
me falar de si, da sua infância, dos seus estudos, etc. Uma verdadeira biografia. "O homem que abateu Big Bill." Dizia então que essa mulher... e como é ela?
Filipe não respondeu e riu cordealmente a este súbito ataque.
- Olhe que não me apanha com tanta facilidade. Não ouço nada, não vejo nada, não digo nada. E fez o gesto dos três macacos do templo de Nikko.
-É pena.-disse Sanders-Por uma informação semelhante o chefe daria ainda quinhentos dólares... eu conheço-o.
Filipe tinha caído numa profunda meditação. Não podia afastar Erik Bengtson do seu espírito. Erik com os olhos vermelhos, meio cego, meio louco por dores horríveis
na cabeça, o acabrunhamento do seu corpo, a tristeza da sua voz. O rapaz não era mau. E tinha coragem. Sabia calar-se e estava só, para se defender. E esse quadro,
na oficina, com as suas ondas verdes, a vela cor de laranja e Liliana Smith no primeiro plano. Era um idiota, com certeza, mas havia arrojo na sua falta, forçoso
era reconhecê-lo. "Como? Que dizia?" - preguntou, saindo da sua distracção - "Preguntava se posso servir me do seu telefone. Queria saber se o patrão daria mil dólares
caso o senhor consentisse em dar parte ao Evening Star das suas suspeitas."
- Pregunto a mim mesmo que hei-de fazer a tanto dinheiro. - disse Filipe - Vejamos... espere dois dias e... veremos. vou fazer uma outra proposta: suponha que nós
visitamos toda a Central - você fotografará doze caixeiras e depois escolherá. E eu digo depois se a mulher em questão faz parte delas. Que acha?
Sanders reflectiu, perplexo. Isto abria-lhe horizontes novos. Sob o ponto de vista jornalístico, a proposta não era má. Podiam fotografar doze bonitas mulheres e
abrir um concurso entre os leitores. "Qual das doze mulheres era a amante de Big Bill?" Antes que ele pudesse sair das suas reflexões, o telefone tocou. Maquinalmente,
pegou no auscultador e estendeu-o a Filipe. "É para si -disse.
- Como? O quê? Morta? Não, eu vou, - gritou
o detective ao aparelho e, precipitadamente saiu do aposento - Sanders, com a rápida compreensão do repórter experimentado correu atrás dele, através do corredor,
por diante da boca de incêndio até ao elevador.
- Que aconteceu? - gritou, já sem fôlego.
- O bando de Big Bill. Acabam de matar a rapariga. - respondeu o velho detective - E precipitaram-se os dois para o 3.? andar.
LADEADO por dois inspectores de polícia, o velho Filipe
estava no corredor branco da casa de saúde. Sanders, o repórter, estava sentado no banco vizinho. Cheirava a oleado recentemente encerado; o braço de Filipe doía-lhe.
Esperavam todos que a doente, Liliana Smith, estivesse preparada para o interrogatório.
- Que fazem aqui? - preguntou a enfermeira-chefe passando diante dos quatro homens.
- Esperam pelo N.? 14 - respondeu a enfermeira do andar, pois aqui cada doente tinha um número.
Liliana não era mais do que um fardo inconsciente, no momento em que madame Chalon a tinha encontrado no tapete do gabinete de provas, até a terem deitado na mesa
das operações. Pelo espaço de um segundo, tinha experimentado a sensação de uma luz aguda e dolorosa, depois, sob a influência do narcótico, ouvia a campainha da
loja de penhores, dling dling dling... Tiraram-lhe a bala do pulmão, coseram-na e transportaram-na para o quarto n.? 14.
Só à noite voltou a si; deram-lhe uma injecção, ergueram na um pouco e submeteram-na a um curto interrogatório, A enfermeira tomou lhe o pulso e os homens encostaram-se
à cama, pois Liliana só podia falar em voz quási imperceptível.
-- Conhecia a pessoa que fez fogo sobre si?
Liliana reflectiu:
- Não - respondeu. - Não.
- com certeza? - preguntou um dos comissários. -Não.
- Era um homem?
Liliana acenou negativamente com a cabeça na almofada.
- Uma mulher, então ?
- Sim.
- Como era ela ?
- Como uma cliente. - murmurou, a custo, Liliana.
- Isso não é uma descrição; que aparência tinha ? Liliana, cujo pulso na mão da enfermeira se tornava
lento e fraco, fez, em voz baixa, o retrato de uma mulher: alta, morena, enérgica, com uma voz forte e uma grande verruga na face, uma mulher, emfim, que não tinha
a mínima semelhança com Nina. A enfermeira fez um sinal ao comissário: basta.
Fora, no corredor branco da casa de saúde, Filipe dizia: "É claro. Ela não dirá nada. Foi qualquer do seu bando que lhe atirou." Têm medo que fale demais.
- Sim, é claro, - disse o comissário - Sanders, tomou notas apressadas no seu bloco; depois, todos juntos foram tomar cerveja.
Filipe tinha a impressão de que não poderia mais dormir na sua vida. Já fazia vinte e quatro horas que estava em pé e, no cotovelo, uma palpitação fazia-se sentir,
o que significava talvez um envenenamento do sangue.
No quarto N.? 14, Liliana estava deitada sem movimento. Sentia-se contente. Deram-lhe mais uma injecção e ela adormeceu: depois, voltou a si, tornando ainda a amodorrar.
Assim que abriu os olhos, era dia. Não tinha o cérebro ainda claro, mas a consciência de ter feito qualquer coisa certa. O que era forte em si, era sempre forte:
o bem no mal, a força no querer.
Nina quis matá-la. Liliana sorria quando pensava
nessa "maluquinha". Quem podia imaginar uma coisa dessas, da Nina! Havia também neste pensamento um pouco de respeito, um estranho elo, uma leve e curiosa simpatia.
- Então, como vai hoje ? - preguntou a enfermeira endireitando-a na cama. Liliana tinha uma estranha tendência a descair constantemente, o que era mau sinal.
- Obrigada, muito bem - respondeu, num sopro. Sim, ela sentia-se bem nesse leito. Não sofria.
Aqui, nada podia acontecer-lhe. Ninguém a podia vir prender. O ventilador sussurrava; havia um ventilador ao pé da janela. Lá fora oscilava um ramo de hera. De longe,
chegava o som amortecido de um rádio.
Depois ouviu o sino que, na Central, tocava para se fechar o armazém.
No corredor, um homem esperava.
- Chamo-me Sanders do Evening Star e queria tirar um retrato à menina Smith, para o meu jornal. Trago o fotógrafo, Pratt. Vamos, Pratt, venha cá.
- Ninguém pode ver a menina Smith. - disse a enfermeira.-Ela não está bem.
- Estado grave ?-preguntou Sanders, aflito com o pensamento de ver uma boa reportagem escapar-lhe. A enfermeira encolheu os ombros e foi-se sem ruído, nas suas solas
de borracha.
- Voltarei. - disse Sanders.
Mas só pôde ver Liliana ao fim de três semanas, dois dias depois do enterro do velho Filipe. "Cá está, outra vez, esse demónio do Evening Star-" - disse a enfermeira.
- Deixe-o entrar... espere... passe-me um espelho... e a minha malinha... diga-lhe que tenha paciência por cinco minutos ... - respondeu vivamente Liliana. Aborrecida,
a enfermeira saiu. Assim que Sanders entrou, Liliana estava espectaculosamente deitada: com as faces pálidas e os lábios vermelhos. Vestia uma camisa de noite cor
de rosa-chá.
Ah! emfim!- exclamou Sanders. New-York inteira espera ver o seu retrato. Tem um grande futuro diante de si e um passado cheio de experiência, Baby; acredite em Sanders
que tem visto subir muitas estrelas.
- Estou absolutamente num feixe - disse Liliana, sorrindo. Sanders arranjou-a um pouco e Pratt barulhava com o seu aparelho através da porta.
- Aqui está Pratt. - disse Sanders. - Desta vez, Pratt, nada de retoques. Deixe-nos andar, Baby, vamos valorizar a sua história como merece. O patrão oferece lhe
trezentos dólares pelas suas memórias a respeito de Big Bill e isto para começar. Que vai fazer quando sair deste galinheiro?
- A minha ambição tem sido sempre o teatro. disse prontamente Liliana. -Mesmo sob o cobertor de lã, marcado com as iniciais do hospital, podia ver-se quanto as suas
ancas eram belas. - Gostaria de ser rica e célebre, meus pais não são ricos e tenho duas irmãzinhas.
Encantado, Sanders estenografava. Tudo isso seria impresso no Evening Star.
- Minha filha - disse ele. em tom solene, - a tua carreira começa hoje. Dentro de três anos darão o teu nome a uma marca de cigarros!
O magnésio brilhou com um estalido surdo e uma nuvem de fumo pálido diluiu-se no ar, até ao teto, pintado de branco, do quarto da doente.
- DE quem é a vez agora ?-preguntou o Sr. Crosby
ao seu secretário. O secretário consultou a lista e disse:
- Da sr.a Bengtson, sr. Crosby.
O sr. Crosby levantou-se e passou por cada uma das quatro janelas colossais do seu escritório. Diante de todas via-se a mesma coisa : neve suja, bicos de torres,
de tal forma que New-York parecia uma péssima gravura de Jornal, impressa em rede grossa. Os dois rios e as colinas estavam invisíveis e a região do centro-oeste
pedia socorro, pois encontrava-se inundada, como todos os anos, em Março. No entanto, Crosby estava de bom humor. As acções da Central tinham subido meio ponto e
o seu açúcar tinha descido três décimas.
- Mande entrar a sr.a Bengtson. - ordenou. O secretário particular disse ao ditofone:
- A sr.a Bengtson pode entrar.
No vestíbulo de recepção estavam três secretárias prontas a executarem as ordens do todo-poderoso. Uma delas levantou se e foi chamar à sala de espera:
- A sr. Bengtson.
Ela tinha uma voz de mayonnaise rançosa. Nina levantou-se e entrou.
Os seus joelhos estavam ainda um pouco trémulos, pois o jovem Erik pesava mais de quatro quilos à nascença
e levou vinte e quatro horas a chegar. Mas, mesmo sem isso, ela teria os joelhos vacilantes no momento de comparecer diante do grande patrão. Vestia o seu casaco
azul-marinho e a condessa tinha-lhe emprestado luvas brancas, que eram muito grandes para ela. -Aqui está a sr.a Bengtson, sr. Crosby-disse o secretário, empurrando
uma cadeira incómoda para a frente do director da Central.
- Bons-dias, sr.a Bengtson - disse Crosby, sem olhar para Nina. Lia numa resma de papéis que o seu secretário colocara diante dele; quando acabou, suspirou alto
e passou outra vez diante de cada uma das quatro janelas de vidros cobertos de neve e voltou a sentar-se atrás da sua secretária gigante.
- Fez um pedido para voltar para cá, sr.a Bengtson ?
- preguntou, e o seu olhar ergueu-se bruscamente para Nina, de modo que ela ficou tão surpreendida que sentiu Cada uma das doze sardas do seu rosto.
É verdade, sr. Crosby. - respondeu prontamente, avançando para a borda da cadeira - A sr.a Bradley informou-me que iam contratar sessenta caixeiras novas para a
Central.
- A sr.a Bradley? A sr.a Bradley?-disse o sr. Crosby franzindo as sobrancelhas e procurando nos seus papéis.
- Ela já não trabalha na Central desde que Skimpy herdou do velho Filipe, mas aluga quartos aos empregados do armazém e sabe assim todas as novidades.
O sr. Crosby afastou, com um gesto de mão, essas explicações ociosas.
- Mandei-a chamar porque o meu amigo Thorpe escreveu-me de Paris por sua causa. -disse. Nina corou. Êle parece que se interessa muito por si, - acrescentou Crosby.
Pelo rizinho lisongeiro do secretário, Nina percebeu que o todo-poderoso acabava de ter espírito. Sorriu fracamente. Tinha muito medo. Querido e bom Steve, que mesmo
durante a sua segunda viagem de núpcias...
que com certeza não era um prazer para ele... não a esquecia..
- com certeza, sr. Crosby - disse ela.
- Thorpe disse-me que devia também receber seu marido, mas compreende que isso é completamente impossível. - disse o sr. Crosby.
- com certeza, sr. Crosby. - murmurou Nina com a garganta seca.
- Se o nosso bom Filipe não estivesse cá, a Central teria perdido centenas de milhares de dólares por causa de uma leviandade de seu marido. Eu digo leviandade...
porque não se pôde provar qualquer coisa pior.
Nina olhou para as luvas.
- Meu marido pagou duramente as suas faltas. disse ela-Transformou-se muito, também, desde que lhe foi levantada a prisão preventiva.
O sr. Crosby impacientou-se. Não queria meter-se em assuntos de psicologia privada.
- Bem - disse, atirando ao secretário o maço de papéis... - Por causa do meu amigo Thorpe... e por a senhora ser considerada como uma caixeira conscienciosa, vai
ser-lhe restituído o seu antigo lugar. Pode ir apresentar-se imediatamente na secção de louças e vidros... lá lhe darão as necessárias instruções. O seu marido deve
ver o que faz...
- Pinta. Será um dia um artista célebre! - não pôde deixar de dizer Nina.
Teria abafado, se tivesse que engulir isto. O sr. Crosby tomou um ar impacientado, mas franziu as sobrancelhas, o que era nele uma forma de sorrir.
- De quem é a vez agora ? - preguntou ao secretário.
- De madame Chalon: aumento de ordenado respondeu o rapaz.
Nina compreendeu que a despediam. Tinha o coração cheio de reconhecimento e não sabia como exprimi-lo.
- Obrigada, sr. Crosby - disse ela. Sinto-me feliz... emfim... quem já trabalhou na Central... embora esteja sempre a resmungar, troca tudo pela velha loja.
Assustada, ouviu como o sr. Crosby desatou a rir sonoramente, o que em breve se transformou numa tosse de bronquite crónica.
Nina desfilou diante das três secretárias do hall de recepção, diante das pessoas que estavam no salão de espera, diante dos avisos: "Pede-se o favor de guardar
silêncio" e dirigiu-se para o elevador.
Na secção de louças e vidros estavam já informados do seu regresso, pois na Central as notícias têm uma forma extraordinária de se propagar sem fios, por telepatia.
O sr. Berg estava sinceramente contente e miss Drivot fez como se estivesse.
- Sabe que nos tiram agora mais cinquenta cêntimos sobre 60 dólares ? Não faltava mais nada! Chamam a esta retirada: reforma para a velhice. Batatas, digo-lhe eu.
- anunciou ela a Nina.
Às escondidas, Nina acariciou a superfície lisa e fria de um vaso de cristal azul.
- Já lanchou? - preguntou o sr. Berg. Não? Então vá de pressa, porque pode começar a seguir. Como? Se precisamos de si? Creio bem. Temos uma venda antes do inventário:
vamos liquidar todos os objectos de importação inglesa. O serviço de 62 dólares está por 12 dólares, sem falar no resto.
- Os vidros, as porcelanas tomaram um grande desenvolvimento desde a sua saída - disse miss Drivot como um triunfo pessoal. Ao fundo, ouviu-se um ruído de vidro
partido; uma das novas caixeiras tinha quebrado uma fruteira. "Meu Deus!"-exclamou o sr. Berg, correndo para o local do sinistro.
A condessa esperava, com o seu inverosímil Ford diante da fachada oeste, justamente debaixo do aviso: "É proibido estacionar." Tinha metido conversa com o polícia
e este fazia, com sorridente complacência, uma
descrição da constituição de seu jovem irmão. Nina subiu para o carro.
- Pronto, Mutz - disse ela. A condessa falou amavelmente ao seu motor e, ao fim de um certo tempo, o carro consentiu em pôr-se em marcha. "Onde está Erik ? - preguntou
Nina. - "Espera-nos no "Rivoldi"... Ofereço-lhes uma garrafa de chianti.
- Eu não devo beber, pois começo a trabalhar logo a seguir ao almoço.
- Estás contente? - preguntou a condessa, olhando Nina emquanto ia aos ziguezagues perigosos.
- Sim ... se não fosse por causa do pequeno... -A sr.a Bradley e Skimpy tratarão dele. E tu ainda lhe podes dar de mamar duas vezes ao dia, de manhã e à noite.
- Sim, é verdade.
- E depois, Erik é mestre na arte de mudar os cueiros e de preparar biberons, deves reconhecê-lo...
- Querido Erik! - murmurou Nina, sorrindo sonhadoramente.
- Erik gosta muito de ti, Nina.- disse a condessa. Elas avançavam lentamente sobre a neve, por entre
a circulação do meio-dia. Nina não respondeu. A condessa afirmou:
- Nunca pensei que ele chegasse a amar tão profundamente.
- Não ? - preguntou Nina.
- Escuta, Nina. Eu aprendi qualquer coisa lá em baixo, em Lansdale. - disse a condessa fazendo habilmente uma volta para se colocar no lugar dos carros do "Rivoldi"
- O homem é uma máquina subtil e imperfeita. É muito bonito e muito bom sonhar com a perfeição : o ente perfeito, o casamento perfeito... o carácter perfeito...
mas isso não existe na realidade. Os defeitos são válvulas de segurança. Aprendi isto com os meus desgraçados de lá, da caixa dos malucos.
Nina reflectiu um instante. Desceram, e a condessa
teve um diálogo em voz muito alta com um italiano do parque dos carros; por fim, com um grande sorriso e um cumprimento, este deu-lhe a sua senha de estacionamento.
- Sim, creio que, quando se gosta de alguém, gosta-se tanto dos seus defeitos como do resto... - disse Nina quando elas empurravam já a porta e entravam na sala
do "Rivoldi , obscurecida pelo fumo.
Erik estava sentado a um canto, debruçado sobre o mármore da mesa : desenhava encarniçadamente. Quando viu as duas mulheres, apagou vivamente tudo com a palma da
mão. Nina instalou-se e, como havia muito que tinha aprendido a decifrar as garatujas de seu marido, reparou que se tratava de uma familia de pardalitos, de grandes
bicos abertos. A condessa esfregou as mãos e encomendou a comida.
- Nina resolveu trabalhar, emquanto tu não vendes o teu primeiro quadro. - disse ela a Erik.
- Não tardará muito tempo-respondeu, procurando debaixo da mesa, a mão de Nina. A jovem tinha ainda as grandes luvas e, surpreendido, ele tateou o final dos dedos
vazios. Durante esse tempo, a condessa lançou a Nina um olhar de muda compreensão. "Os homens são uma raça bem fraca... nós temos de os ajudar como pudermos..."
Era isto mais ou menos o que o seu olhar significava. Em Lansdale tinha ela tido muitas conversas sobre esse tema.
O chianti apareceu ao mesmo tempo que a sopa. O criado parecia estar apaixonado- pela condessa; uma nódoa de tomate manchava o seu avental branco.
- vou tentar pintar o que pensei durante o meu interrogatório de terceiro grau. - disse Erik subitamente. Era a primeira vez que falava disso.
- E que era, meu filho? - preguntou a condessa.
- Nina ... eis o que pensava. Dizia constantemente para mim: Nina ... Nina ... Nina..
Calaram-se um instante.
- Agora trata de não recomeçar, porque eu só posso pedir uma licença por ano. - disse a condessa, alegremente, vazando o vinho nos copos.
Às seis horas menos cinco, exactamente, a tal senhora
- a cliente para quem tudo era caro - fez a sua entrada na secção de vidros e louças. Passou pelos doze balcões, que tinham instalado para a liquidação geral e chegou
diante do serviço de rosas.
Nina apressou-se a servi-la.
-A senhora ainda se interessa pelo serviço? - preguntou ela - Baixou. Só custa nove dólares e setenta e cinco...
A mulher calculou, movendo os lábios.
Eram seis horas, a sineta tocou; por fim, a cliente tomou um ar encantado:
- Eu levo-o! -disse.
- Devo avisá-la, minha senhora, de que duas chávenas já estão rachadas -disse Nina dando um piparote nas duas peças de que saía um som velado.
- Não faz mal - afirmou a senhora - as coisas rachadas são as que duram mais.

VALHA ME Deus! Lá está ela outra vez! -exclamou intimamente Nina, ao ver a cliente que, às seis horas menos cinco, entrava a porta envidraçada que separava os novos dos velhos armazéns, e a secção de alimentação da das porcelanas.
Na secção dos alimentos era hoje o dia do peixe a preço único: cada qualidade a 20 cents o arrátel. Sentia-se o cheiro em todo o andar! Quanto à senhora, vinha pela quarta vez e, justamente uns minutos antes de fechar o armazém, Pertencia a essa categoria de pessoas que chegam sempre tarde. Embora os cinco degraus, que se seguiam à porta envidraçada, fossem assinalados por um letreiro, dizendo: "Atenção aos degraus!" a senhora tropeçou, deixou cair um embrulho e apertou a malinha de mão contra o seio frouxo. com o chapéu um pouco ao lado, as faces afogueadas, pertencia também a essa espécie de clientes que andam sempre à procura do que for mais barato.
Blusas manchadas, cafeteiras amachucadas, sacos de coiro desbotados pelo sol, meias de seda quási artificial, de ocasião - tais eram as suas compras. São mulheres de pequenos empregados, cheias de preocupações e de trabalho, mulheres que nunca, na sua vida, possuíram uma coisa, tendo-a pago pelo seu preço normal.
Agora era o serviço de porcelana para doze pessoas, guarnecido a rosas, que tinha dado volta à cabeça da boa senhora. Estava em cima da segunda mesa: pratos, travessas, chávenas de café -tudo. Porcelana já não muito branca, rosas de cor bastante carregada, folhas excessivamente verdes, com os bordos ligeiramente mordiscados, pouco doirados. " 39.80" anunciava a etiqueta; e esse preço, só por si, era uma obra de arte, uma sugestão que tornava o serviço ainda mais barato do que 40 dólares. Desde a fábrica, até esta mesa de armazém, centenas de pessoas tinham sido lesadas nos seus salários, para que o preço desse serviço pudesse ser calculado vinte cêntimos abaixo de quarenta dólares. Exposto agora, com todas as suas rosas e o seu luxo de segunda classe, atraía os clientes.

 

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A mulher parou diante do serviço: viram-na reflectir e calcular, emquanto que, com o olhar, procurava uma empregada.
"A mim não, Senhor, a mim não!"-implorou mentalmente Nina, tentando parecer desagradável - "Ao menos uma vez, miss Drivot pode muito bem atender a última cliente."
- pensava ela, quási zangada -Três rugas cruzaram-lhe a pequena testa. Erik pretendia que ela parecia um pequeno cão basset, assim que tinha qualquer preocupação...
Dizia também que era tão pequena e tão nova que devia ainda "precisar de crescer dentro da pele, dessa pele fina, brilhante e aveludada de rapariga de dezanove anos.
E quando Nina recordava as coisas que o seu amigo lhe dizia, essas coisas que mais ninguém no mundo podia inventar, sentia sempre um aperto angustioso e doce, no
coração. Agora, no seu trabalho, cinco-não, dois minutos e meio-antes de fechar, e com uma cliente desagradável à vista, sentia-o também, mas sem doçura.
- Está livre, menina?-preguntou a senhora, diante do serviço de porcelana - E Nina abandonou-se ao seu destino.
E devia ser esse o seu destino, pois toda a clientela
desagradável se lhe dirigia. Não sei o que tenho... as clientes caem em cima de mim como moscas -lamentava-se ao seu amigo Erik e à sua camarada Liliana.
-Oh! Tu tens com certeza qualquer atracção, pardal, pardalinho, pardalito - dizia ele.
Os clientes só servem para nos maçar! -replicava Liliana, sem dar atenção ao pedido de conselho que a queixa de Nina ocultava.
Isso é certo. - concordava Nina, sem verdadeira convicção.
com os cabelos brilhantes, cor de avelã, o olhar sério e interrogador, tudo nela parecia tão simples e era tão simpático, que não se tornava necessária muita psicologia
para compreender que, quem quisesse comprar um serviço de porcelana ou uma fruteira de cristal, se dirigisse a ela e não à magra e seca miss Drivot.
- Trinta e nove dólares ?-preguntou a senhora, parada diante do serviço de rosas - Eram então seis horas e um minuto; a sineta já tinha acabado de tocar.
- Trinta e nove dólares e oitenta.-rectificou polidamente Nina, fazendo soar, com uma pancada do dedo, uma chávena de onde saiu um lindo som - É uma bela porcelana.
Artigo de primeira qualidade.
Seis horas e dois! Erick devia já estar à espera em baixo, na escada 5. Drivot, naturalmente, já estava pronta, há que tempos! Cobria com panos os animais de vidro
e preparava-se para sair.
- Tão caro! Não se poderia... emfim, não se poderia fazer um abatimento ?
- Infelizmente não é possível. É pintado à mão, artigo de primeira qualidade.
- Não posso gastar tanto! É pintado à mão? E se se partir alguma peça, poderão substituí-la ?
- com certeza, minha senhora, com certeza.- respondeu Nina.
Esta conversa tinha lugar pela quarta vez; a mulher estava louca pelo serviço, mas não tinha o dinheiro preciso.
Seis horas e quatro! No meio da sua cólera e da sua impaciência, Nina experimentava como que um sentimento de compreensão por essa senhora, sentimento que era piedade,
embora ela não o reconhecesse como tal.
- É que eu festejo em breve as minhas bodas de prata ... - explicou a cliente.
- Ah! Sim?-interessou-se amavelmente Nina - Eu também estou para casar em breve, teria acrescentado de boa vontade. Mas a sua vida privada nada tinha que ver com
o trabalho. Seis horas e cinco, indicava o relógio sobre a porta envidraçada. Na secção musical, próxima, o último gramofone tinha-se calado. Erik esperava. Drivot,
evidentemente, havia-se eclipsado. Somente no fundo da galeria, na caixa 24, trabalhavam ainda. Era aí que a sr.a Bradley empacotava, mecanicamente, como uma máquina.
A sr.a Bradley era também uma espécie de vítima; era sempre a última a sair.
- Deve resolver-se. - tornou Nina - é uma ocasião
única...
O sr. Berg, chefe da secção, percorria pela última vez o seu domínio. Involuntariamente, Nina lançou lhe um olhar de submissa súplica. Experimentava pelo sr. Berg
o sentimento respeitoso que um jovem escritor pode sentir por um prémio Nobel. O sr, Berg possuia, com certeza, coração: toda a secção estava de acordo sobre este
ponto - coração e coragem. Veio em auxílio da empregada.
- O elevador não trabalha já, minha senhora. lembrou, cortesmente - Fechamos às seis horas. Esta senhora terá que descer a escada, quando tiver terminado a sua compra.
- Não posso resolver hoje. - disse a cliente - Volto cá noutra ocasião. E foi-se embora.
Nina tinha ainda de arrumar. A porcelana tilintava-lhe nas mãos, tão nervosa se sentia. Erik estava em baixo, na escada 5. O elevador reservado ao pessoal já não
funcionava. Era preciso descer a pé a escada 8 e seguir o longo corredor da cave até ao vestiário onde estavam os armários estreitos e alinhados, como no quartel.
Nina lavou as mãos, mirou-se um segundo ao espelho do toucador e, em seguida, pôs um sopro de pó no rosto e um traço de rouge nos lábios.
-Então? Tens pressa?-preguntou Liliana que arranjava as unhas e as sobrancelhas, pausadamente.
- Tenho. - respondeu Nina, com um braço já metido na manga do casaco -A sr.a Bradley já saiu?
- Não a vi - respondeu Liliana, pintando cuidadosamente os lábios.
- Tanto pior, eu não posso esperar, -retorquiu Nina, saindo.
- Espera um instante! Eu vou contigo! -gritou Liliana atrás dela; mas com as suas três rugas na testa, Nina fingiu não ouvir. Embora Liliana fôsse sua amiga, não
gostava que se lhe agarrasse todas as tardes. Muitas vezes Liliana e Erik entregavam-se a brincadeiras a que Nina, com a melhor boa vontade deste mundo, não podia
achar graça.
Transpôs, correndo, as portas da cave, deslisou entre as caixeiras que subiam, cujo grupo foi detido no antigo pátio de controle. Do portão vinha uma corrente de
ar: recebia-se aí uma poeirada no rosto e nos olhos, de fazer chorar. Nina ia meia cega quando conseguiu chegar à escada 5. Erik lá estava: tinha o ar de verdadeiro
gentleman, com a gravata de seda e o chapéu de coco. Havia já algum tempo que deixara crescer um pequeno bigode. Enlaçou amorosamente Nina.
- Então Spurv? Lille Spurv! - murmurou, arrastando-a. Isto era dinamarquês e significava: pardal, pardalinho. Pois Erik - Erik Bengtson era dinamarquês. Viera para
a América muito novo e frequentemente, evocava ainda os bosques de vidoeiros e as baías tranquilas do seu país. Diferia em muita coisa da espécie de rapazes que
Nina costumava conhecer. Ele parecia-lhe um estrangeiro que tivesse acabado de desembarcar no último
barco e não compreendesse bem o que representava New-York. Era muito mais alto do que Nina; uma expressão impertinente flutuava-lhe no rosto: dir-se-ia que tudo
quanto ele via o divertia loucamente.
Nina apertou com mais força o braço contra o do companheiro, e caminhou sem dizer palavra. Como exprimir a sua felicidade sempre que este Erik tinha o braço metido
no seu ombro junto à sua fronte? Ela regulava o mais possível o seu passo pelo dele e levantava, quanto podia, o rosto para o ver.
Era o rosto da tarde de todas as mulheres de grande cidade: a face jovem e fina, de pele frágil e delicada, de quem apanha pouca luz e pouco sol. Muito nova, terna,
um tudo-nada de petulância e algum cepticismo. "Estar cansada, sim, às vezes, mas não o mostrar nunca." Um leve círculo em redor dos olhos e o clarão agudo das lâmpadas
e dos reclamos luminosos sobre as faces e sobre a boca entreaberta.
- Um pouco atrasada, an ? - disse ele.
- Sim... À última hora apareceu-me uma velha maçadora...
- Não te rales, podemos ainda passar dez minutos no "Rivoldi" - e deu grandes passadas.
Não podiam avançar; era a hora em que a capital enlouquecia, em que de todas as casas de comércio saía gente, ondas de gente. Caça aos automóveis, aos metros, aos
eléctricos, filas de carros parados, mendigos, floristas tentando vender os últimos ramos, carritos de fruta voltando para casa, homens que querem apanhar uma rapariga
com quem passar a tarde, mulheres procurando um homem com quem passar a noite; gente casada que volta para casa, maridos que perdem tempo para não terem de recolher,
solitários parados às esquinas a seguir os namorados com o olhar.
- Ao "Rivoldi"? Não vamos para casa? É pena!...
- lamentou Nina, mergulhando rapidamente, o rosto na sombra.
- Que queres, tem que ser! E posso dar-me por feliz se tiver acabado amanhã de manhã, às seis horas.
- Trabalho extraordinário ? E que vais fazer ? - preguntou a rapariga.
- Pôr. Pôr ovos toda a noite. - disse Erik, não sem dignidade, empurrando a porta do pequeno restaurante italiano. Lá dentro cheirava a cebola e a cigarros ordinários;
o ar estava todo azul, Erik tinha um fraco por esse lugar fumarento; já fora à Itália, no tempo em que esperava tornar-se pintor célebre, e conhecia um pouco o italiano.
- Pôr ovos ? Para quê ? - preguntou Nina, rindo.
- Para as festas da Páscoa. - respondeu Erik, instalando-a num canto.
Ela encaixou-se atrás da mesita de tampo de mármore, olhando-o num ar encantado.
- Dá-me um cigarro. - disse, para não deixar ver muito a sua admiração - E deixa o meu joelho em paz. Não dês nas vistas.
Na verdade, Erik, esse grande maluco, não se comportava bem. Que ele era um grande maluco, lá nisso toda a gente estava de acordo,
- Raviolis, café, torta de damasco, - encomendou ao criado.
- Para mim também-resolveu Nina, que não percebera nada.
Erik tinha, mais uma vez, o lápis na mão e desenhava qualquer coisa no mármore da mesa, entre as rodelas que as chávenas de café, anteriormente servidas, haviam
deixado.
- Que é isso ? - preguntou Nina, aspirando profundamente a sua primeira fumaça.
Erik levantou os olhos um instante, quando o fumo saía pelas narinas pálidas e finas da sua companheira. Estava loucamente apaixonado por ela. - "Faz anéis".
- disse-lhe - Nina aspirou o cigarro e fez anéis. Erik contemplava o espectáculo, como se fosse um bom numero
de musiC'hall. Depois, continuou a desenhar. "Parece-me que tenho uma idea"... - murmurou, distraído.
- A respeito dos ovos ?
- Sim. Trata-se da decoração para a Páscoa.
- Que o demónio leve a decoração se tu tens que ficar lá todas as noites por causa disso. Parece-me que o teu chefe te apanhou mais uma vez.
- Apanhou-me bem, o velho rinoceronte. A ele não lhe vem outra coisa à cabeça senão pôr uma lebre e um vidoeiro em cada vitrina.
-E tu?
- Eu ? Oh! eu vou achar, com certeza, qualquer
coisa melhor.
- com certeza. - confiou Nina. Desde que conhecera este Erik, descobrira que ele era um génio. Um génio em montras e em todo o género de coisas: publicidade, desenhos,
balões fora dos novos edifícios, esboços para catálogos - sim, um génio em tudo e para tudo. Mas, por mais recente que fosse a sua experiência no que respeitava
a génios, ela já tinha compreendido que não é sempre fácil viver com eles.
- Fico outra vez sozinha esta noite! Estava tão contente pensando que a passaria ao pé de ti... - disse timidamente.
- Mete-te no teu ninho e dorme, Lille Spurv. - respondeu ele - Tens o ar de quem está um pouco cansada ... Eu vou despachar-me e talvez amanhã te vá dar os bons-dias
antes de tu saíres.
- Sim senhor... isto vai dar um bonito casamento! exclamou ela. - Quando eu sair do armazém, tens tu que entrar e quando tu saíres, entrarei eu!
- Um casamento de primeira qualidade. Garantido. - brincou ele abandonando, emfim, o desenho. Nina observava-o emquanto mastigava a sua dose de raviolis... Tinha
outra vez o ar de não estar ali ao pé dela, à mesa do "Rivoldi", mas Deus sabia lá onde...
Tu não te sentes cansado, dize ? - preguntou ela.
Nem nada - respondeu o rapaz.
Nina bebeu o seu café e comeu o seu bolo. Estava desiludida e triste. A noite, sem Erik, alongava-se na sua frente, sem fim, vazia como um deserto.
- Poderia talvez ir ao cinema... - arriscou, hesitante.
- Isso não! - retorquiu Erik - Ao cinema só vamos
juntos. Não quero que vejas sem mim todos os bons films. -Egoísta!
- Sou-o horrivelmente, quando se trata de ti. - afirmou Erik. Mas estava a brincar.
- Quando iremos ao cinema, os dois ? - preguntou Nina, meia consolada.
- Amanhã. - respondeu ele - E chamou o criado, murmurando palavras em italiano. A conta chegou pouco depois. Erik pagou.
A mesa estava coberta de garatujas, mas Nina não chegava a perceber do que se tratava. O criado trazia já uma rodilha molhada e apagou tudo.
- Agora vamos, pequenina, avante! Preciso voltar à loja - disse Erik, metendo o braço no da rapariga.
Lá fora, tiveram que afrontar o primeiro vento da primavera que desembocava da esquina. Só agora ela sentia a que ponto estava fatigada e só o pensar na sua cama,
causou-lhe prazer. Maquinalmente dirigiu-se para a estação do metro, mais próxima, mas Erik reteve-a no momento em que ela ia atravessar a rua.
- Anda, - disse - vamos tomar um táxi, dou-te um thaler para pagar e vais até casa. Ele disse thaler e isso parecia estrangeiro, dinamarquês.
- Meu Deus, como és gastador! E pensa isto em casar...
- Pst! Pare primeiro na Central Warehouse. A senhora vai mais-longe - disse Erik, empurrando Nina para o táxi, que acabava de parar ao seu sinal.
Para ir do "Rivoldi" à Central, de táxi, bastava minuto e meio, compreendendo duas paragens nos cruzamentos,
Durante esse minuto e meio a boca de Erik foi colada à de Nina.
- Boas-noites, Lille Spurv. - disse, descendo - Aqui
tens o teu thaler.
- Dá saudades â lebre da Páscoa,-recomendou ela e põe os teus ovos com todo o cuidado.
Na primeira esquina fêz parar o carro, deu ao motorista trinta cêntimos, meteu na sua carteira o dólar que tinha aquecido na mão, e depois meteu-se na boca do metro.
A Central Warehouse ocupava um quarteirão inteiro de casas no centro da cidade, com doze montras gigantescas, em cada uma das quatro fachadas e doze andares cheios
de mercadorias e de actividade. No meio, erguia-se um arranha-céus de dezoito andares, no qual estavam instalados os escritórios e aposentos da direcção.
Erik seguiu pelo lado oeste do edifício: todas as vitrinas estavam iluminadas. Na fachada norte, estores, atrás dos quais se agitavam sombras, velavam as montras
números 1 a 6, cuja decoração devia ser renovada durante a noite. O relógio monumental do edifício do centro, de disco luminoso, indicava sete horas menos dez.
- Adeus, Joé - disse o rapaz passando diante da casa do porteiro, que ficava à entrada 4 do pessoal.
- Trabalha de noite, sr. Bengtson ? - informou-se Joé, aparecendo à porta.
Ele tinha um olho de vidro. Depois do armistício, fôra uma idea fixa do sr. Crosby, o deus invisível que, reinava sobre todo o armazém, empregar cinquenta feridos
de guerra. Os jornais tinham falado muito e citado o sr. Crosby como um grande patriota. Sete ou oito desses veteranos estavam ao serviço; podia-se vê-los passar
por diferentes lugares. Um negro maneta ocupava-se do elevador do pessoal do lado norte, e um
irlandês apoplético, com uma perna artificial, tinha por missão aparar todos os lápis dos escritórios.
- Decoração de Páscoa - disse Bengtson estendendo ao guarda o seu maço de cigarros para que ele tirasse um.
- Obrigado. - agradeceu Joé, metendo o cigarro na
algibeira interior.
- O velho já lá está ? - preguntou Bengtson.
- Eu não vi o sr. Sprague - respondeu Joé.
Bengtson afastou-se em passo de gimnástica, assobiando. Fazia soar as chaves como castanholas. As salas vazias seguiam-se numa semi-obscuridade; panos brancos cobriam
as mercadorias que não tinham sido retiradas. De vez em quando, aparecia um manequim, impecavelmente vestido, que sorria, com ar petrificado.
Bengtson dava piparotes naquelas caras de cera, estava contente. Cantava-lhe ainda no sangue o beijo de Nina. Ele gostava do armazém, de noite, "a multidão do mundo",
pensava vagamente. Pensava em dinamarquês.
Abriu o elevador com a sua chave e estava quási a entrar, quando Pusch apareceu, ofegante, e também entrou. Pusch era aprendiz de decorador, um adolescente de dezoito
anos, em pleno crescimento. Ignoravam donde lhe vinha o apelido. Trazia uma pilha de amostras e vacilava com o peso do fardo.
- O sr. Sprague quere ver as cores - balbuciou sufocado, emquanto o elevador os levava. Erik assobiou um pouco mais forte. Tinha a convicção profunda de que o velho,
o sr. Sprague, o chefe dos decoradores, nascera daltónico. Assobiando sempre, indicou com o dedo uma amostra verde claro. Depois interrompeu o assobio e disse:
- É este que vamos escolher. - Depois continuou a
assobiar.
Chegaram ao 12º andar onde ficava a oficina,
- Diz-me cá, ó Pusch, é verdade que pintas o cabelo ? - preguntou ele, antes de sair.
-Não, porquê?- balbuciou o aprendiz cujas orelhas descoradas se tinham tornado encarnadas como fogo. Os seus cabelos eram tão claros, como os de jean Harlow antes
do protesto dos censores. Estava ainda no mesmo sítio com o maço de fazendas e as suas orelhas vermelhas e já Bengtson abria a porta da oficina.
Quando ia a entrar notou um vulto que saía do escritório de Filipe, o detective da casa.- Ah? -pensou, retirando a mão do fecho. A rapariga que avançava para ele
era Liliana, a amiga de Nina.
- Ah? Liliana? - admirou-se. A rapariga, de casaco no braço, abotoando o vestido, disse:
- Viva, Bengtson! - numa voz um pouco rouca Dê-me um cigarro, depressa.
Solícito, estendeu-lhe o maço emquanto riscava já o fósforo. Ela considerava o gesto amável com as sobrancelhas erguidas.
- Aconteceu alguma coisa? -preguntou ele.
- Porquê? Tenho ar de ter sido violentada pelo velho Filipe? Tranqúilize-se, não aconteceu nada.
- Fazia-me pena... por causa do pobre homem. disse ousadamente Bengtson.
Liliana estava na sua frente, com o vestido já abotoado mas tendo ainda as mãos trémulas. Fumava com violência, de uma forma completamente diferente de Nina - pensava
Erik.
- Julgava que já tinha saído há muito tempo. -disse ele, para dizer alguma coisa. Não podia suportar Liliana que se encontrava, sempre que não se desejava a sua
presença. Ela encostara-se a ele e olhava-o com um sorriso trocista.
- Eu não sabia que a Nina usava bâton...-zombe teou a rapariga. Pusch, o aprendiz, tinha-se, entretanto, aproximado e nem se mexia.
- Como? Nina?... - preguntou Erik pouco à vontade.
Liliana desatou a rir e dispòs-se a sair, dizendo:
- Ela tem sempre os lábios pálidos e acha que me
pinto muito.
- Não sei o que quere dizer .. - observou Erik,
que se sentia estúpido.
Pusch riu, passando a mão pelo rosto. Erik compreendeu e, tirando vivamente o lenço, limpou a cara. Envergonhado, apagou bruscamente o beijo do adeus de
Nina.
- Boas noites. - rematou Liliana - Tenho de me ir
embora.
- Quem a espera ? - preguntou Erik.
- Vanderbilt - chasqueou a rapariga, afastando-se. Erik viu-a partir. Ela tinha as mais bonitas ancas de todo o armazém.
- Espere. Eu levo-a. Não está ninguém no elevador.
Erik possuía as chaves de todas as portas pois trabalhava principalmente de noite. "Um gentleman é sempre um gentleman" - troçou Liliana emquanto o rapaz lhe abria
a porta - e isso desagradou-lhe. Ela tinha uma maneira de irritar as pessoas, como um mosquito que não se pode apanhar. O elevador ficou logo cheio do seu perfume
penetrante e vulgar.
- Sabe do que eu gostava agora ? - preguntou, antes do elevador chegar abaixo. -Dançar, divertir-me, beber... consigo. -continuou, emquanto ele a olhava-Sim, arranjar
uma brincadeira aqui mesmo.
- Está a chorar ? - preguntou Erik, levemente perturbado, olhando-a, sempre.
-Parece... Obrigada por me ter acompanhado. O seu perfume flutuava ainda, quando Bengtson subiu e saiu do elevador.
O velho-o sr. Sprague - parecia impaciente quando
Erik entrou.
Quando tiver acabado de namorar as raparigas, talvez possamos pensar um pouco nas vitrinas, - disse imediatamente.
Bengtson limitou-se a rir. O sr. Sprague parecia-se com Mark Twain - velhas maneiras, e boa aparência - e sentia-se orgulhoso com isso. Tinha um cérebro de mármore
e um coração de oiro.
-Um dos manequins estava a chorar, levei-a lá abaixo - respondeu Erik, despreocupado.
- Paladino das damas. -replicou Sprague, ciumento Sabe que ser revistado não tem nada de divertido ?
-Ser revistado? Como? -exclamou Bengtson Que quere dizer com isso?
- O quê, não sabe ? Roubaram qualquer coisa e o Filipe teve de revistar muitas empregadas.
- Rouba-se muito, nestes últimos tempos, não acha sr. Sprague?-notou Bengtson, brincando com as amostras.
A luz lançava um reflexo vivo sobre o tecido vulgar.
- É exactamente o que diz o sr. Crosby; roubam muito, nestes últimos tempos. Desta vez o velho Filipe vai pagá-las.
- Que aconteceu ? - interrogou Erik, deixando cair a amostra,
- Sabe, aqueles objectos de arte com que se fez uma exposição russa de peças raras e de objectos pertencentes a particulares, lembra-se?
Bengtson lembrava-se muito bem: tivera com o velho uma grande discussão a respeito dessa instalação e acabara por ganhar. O outro quisera fazer qualquer coisa de
exagerado, como nos bailados eslavos. Erik tinha pedido alguns móveis emprestados à secção de antiguidades e fizera instalar vários aposentos em estilo Império,
onde dispusera as obras de arte.
- Que roubaram ? - preguntou, mais para dar prazer ao velho, do que por interesse.
- Uma pequena imagem, um ícone todo incrustado de pedras preciosas valendo dois mil dólares.
Estava segura ? - informou-se Bengtson - Então,
ninguém perdeu.
Lembrou-se de-repente dos olhos brilhantes de Liliana que chorava sem lágrimas e parecia irritada. "Como podem ter suspeitado das raparigas da secção de costura,
é o que eu pregunto. O velho Filipe torna-se cada vez
mais idiota."
Sprague abafou o riso: - É o que nos acontecerá a todos se ficarmos aqui empregados muito tempo. Você ainda não percebeu isso?
Desta vez, Bengtson exaltou-se: imaginou Filipe revistando Liliana.
- Eu matava alguém que quisesse revistar a Nina! -
disse, com veemência.
- Quem é a Nina? - preguntou o velho,
- Vamos casar no dia de Páscoa, como já lhe disse
- confirmou Erik.
O velho pôs-se a rir.
- É verdade, é tempo de se acorrentar - E havia nas suas palavras admiração e inveja.
Subitamente, Erik deixou os seus negócios pessoais e voltou-se para os tecidos. Pusch continuava ao pé da grande mesa de desenho, sobre a qual colocara as amostras,
e segurava uma na mão. Tinha uma predilecção quási feminina pelas cores, as sedas e os tecidos brilhantes e, no fundo da sua alma, sentia uma certa vergonha por
isso.
- Vai dormir, Pusch. - disse Bengtson - Aqui não se
precisa de crianças.
O velho aproximou-se também da mesa e, através
dos óculos, observou os tecidos.
- Precisamos de trinta e seis metros por vitrina. disse Erik, num tom profissional, pondo um papel coberto de cifras e de notas na mão do sr. Sprague - Prefere o
tecido verde, mas eu gosto mais do amarelo.
O velho considerou as duas cores que Bengtson lhe metia debaixo dos olhos,
- Você não percebe nada, meu rapaz, o verde é que deve ser.
Bengtson tomou um ar agastado. Intimamente, rejubilava.
- bom. vou descer, Começamos pela vitrina sete. - anunciou pegando no tecido verde. O seu método de obrigar o velho a fazer o que ele queria, mostrou-se mais uma
vez infalível:
- Comece pela primeira vitrina, como já lhe disse ordenou o chefe em tom peremptório.
Bengtson mostrou um ar santamente desolado. -Senhor, seja feita a vossa vontade!-disse - Depois pegou nas amostras e retirou-se.
No elevador flutuava ainda o perfume de Liliana... Liliana era caixeira do salão francês, de costura, na secção de vestidos. Chamava-se Liliana Smith. Smith, porque
era filha do operário Smith, empregado nos trabalhos do canal; Liliana, porque desejava velar assim a vulgaridade do seu nome de família e da sua origem. Imaginava
às vezes, vagamente, o que daria esse nome nos cartazes: a actriz de cinema Liliana Smith, a star de music'all, a rainha de beleza Liliana Smith. Gostaria então
de reservar o "Liliana" e abandonar o "Smith". Havia nela ódio contra tudo quanto vinha de baixo: odiava o ! cheiro da cozinha, morar numa cave à janela da qual
não via passar senão pernas, odiava as baratas que, de noite, passeavam no sobrado, a racha do seu espelho de má qualidade, odiava o seu leito, o seu fato, as suas
próprias mãos que trabalhavam demais Mas sem se tornarem alguma vez verdadeiras mãos de senhora. Liliana odiava também a clientela, irremediavelmente. Odiava essas
mulheres ricas que chegavam nos seus automóveis, com as malinhas cheias de cheques, ou acompanhadas de homens que pagavam por elas. Sorria-lhes, com o seu sorriso
profissional, mas odiava-as ao mesmo tempo e profundamente, com todo o seu ser.
LILIANA era uma criança da rua; em garota, brincara às escondidas nos grossos canos de gás, que a demolição das casas mais velhas do bairro fazia aparecer. Depois
empregou-se como aprendiza, primeiro em minúscula lojeca de alfaiate, depois num armazém da União Square e finalmente no Central Warehouse. Aí, com olhos ambiciosos,
tinha frequentado a escola onde a direcção do armazém mandava educar as suas empregadas. Progressivamente, subira da secção de retrozaria à da roupa branca, depois,
graças aos seus bons serviços e esforços, chegou ao sector mais requintado: aos salões de prova. Aí, tudo era velado: as luzes, as vozes, as cores. Espessos tapetes,
onde a jovem Liliana adorava meter os pés, tapetes de um cinzento-rosa, paredes da mesma cor, candeeiros com reflectores cromados, projectavam a sua claridade no
teto. Madame Chalon, a directora francesa, reinava neste domínio. Era lunática, de génio alegre"! , nas horas sentimentais, contava às empregadas os seus amores
infelizes com um célebre desenhador de modas de Paris. Liliana fazia tudo para agradar aj madames, pois desejava avançar, ir mais longe subir mais alto. Depois de
dois meses, não só se ocupava da venda, mas
também da apresentação de modelos, estava quasi a
passar da escala de 16 dólares para a secção mais bem paga, dos manequins, de que assumira já lugar de destaque.
Fazia a sua entrada com um casaco de arminho ou com um vestido de baile - cópia de um modelo de Patou -ou com um roupão de seda azul-noite. Via-se ao espelho, virava-se
com um movimento que lhe tinham ensinado, alargando o vestido à sua volta e olhava por cima do ombro a cliente - essa cliente que odiava.
A jovem Liliana tinha uma figura perfeita de manequim quarenta, para nos exprimirmos em linguagem profissional. Numa palavra, era construída como uma rainha, delicada,
elegante, com os membros finos e as ancas largas e coleantes. Nela, tudo era alto e pequeno: joelhos, pernas, seios. Esta filha de operário era feita como se um
apurador de raças, depois de muitos esforços, produzisse o que há de melhor com feitio de mulher. Tinha umas formas maravilhosas e também um rosto, mas para o qual
ninguém olhava: viam apenas o corpo e os vestidos que vestia. O seu rosto não era tão belo: tinha linhas duras e, em redor da boca e do queixo, certos traços deixavam
transparecer o Smith de baixa origem, a vontade de trepar.
Apaixonava-se pelos vestidos que mostrava, por todas as sedas, gazes, veludos, rendas. Os casacos de peles endoideciam-na. O seu corpo sentia-se feliz sob a caricia
de belos tecidos. Erik chamara-lhe pouco tempo antes: um mármore frio. Não era justo, pois ela tinha em si a paixão e, muitas vezes, essa paixão ardia de uma forma
insuportável. O pior era ter de tirar os vestidos depois de os apresentar e ser obrigada a pôr o seu fatito pobre de 12 dólares.
Para mudar de vestido só dão a um manequim um " ou dois minutos. No salão, ela passeia lentamente, como uma rainha, diante da clientela mas, assim que sai, no gabinete
de despir, as mãos tremem-lhe ainda: diante do espelho de três faces, despe um vestido, a correr, passa a outro, de-pressa, de-pressa, tendo atrás de si a irritável
directora que resmunga. Mas o que mais a entristece ainda, é ver os vestidos, essas adoradas toilettes em
cima das clientes! Ver como um modelo pode perder o seu chic, ver de que forma todas essas mulheres muito curtas, muito grossas, muito velhas, se esforçam para entrar
nos vestidos, como se põem diante dos espelhos, como são insignificantes, como não sabem vestir se, e tornam vulgares as mais belas peles!
É tudo isso que acende o ódio na jovem Liliana.
-Ah! se eu tivesse a sua figura!-suspirava muitas vezes uma cliente, quando a jovem se apresentava.
"Evidentemente, se tivesses a minha figura... - pensava orgulhosamente Liliana - E se tivesses a minha figura, que aconteceria? com um corpo como o meu, ganha-se
um salário de dezasseis dólares por semana e mora-se numa cave, sim, tudo por baixo! com a minha figura não se tem mesmo um amante, pois, para a maior parte dos
homens é-se "bem demais". Quanto a esses que estariam à minha altura não há nenhuma probabilidade que apareçam neste armazém.
- A cintura é muito estreita. - com estas palavras, cortou madame Thorpe os pensamentos errantes de Liliana.
Madame Thorpe era uma mulher que os seus amigos qualificavam de imponente. Enchouriçada num vestido de seda preta, estava no meio do gabinete de prova e, no espelho,
parecia um pouco melhor do que na realidade era. Todos os espelhos do salão de alta costura eram um tanto lisongeiros. Colocando-os favoravelmente, as senhoras pareciam
logo mais delgadas do que na realidade eram. Na secção de confecção não se davam a esse trabalho: aí abundavam as clientes de medida 48 e 50 e essas são como Deus
as fez e contentam-se com a sua sorte. Quando acabam as compras, sobem lá acima, à pastelaria e banqueteiam-se com sandwichs e tortas de maçã com creme.
-A cintura é muito estreita.-repetia madame Thorpe
- Aqui as cinturas são sempre estreitas. Eu tenho uma linha francesa. Em Paris todos os vestidos me servem,
Liliana odiava esta cliente, esta madame Thorpe, ainda mais do que as outras. Era dessas mulheres que vão aos armazéns unicamente porque se aborrecem: durante horas
fazia com que lhe mostrassem vestidos e provava-os - nervosa, incoerente, histérica. Depois, diante do espelho, caia pouco a pouco no estado de depressão de uma
mulher que tem quarenta anos, e é obrigada a admirar a maneira como uma rapariga de vinte sabe apresentar, com vantagem, o seu corpo esplendoroso.
Muitas vezes o ar quente do pequeno gabinete estava carregado de tempestade. Liliana invejava as clientes pelo seu dinheiro; as clientes invejavam-na pela sua beleza.
O sabor agudo do ciúme aparecia sob os sorrisos recíprocos; o ar cheirava aos corpos, aos perfumes, à mulher, o raio estava a cada momento para estalar. No entanto,
nesse dia, madame Thorpe acabara por comprar um casaco de noite guarnecido de arminho verdadeiro, modelo Margot.
- Esta peste ennervou-me hoje até ao último momento - dizia Liliana à sr.a Bradley quando, no metro, iam para casa. As duas mulheres tinham por costume fazerem juntas
o mesmo caminho até à rua 42. Aí, a sr.a Bradley tinha que mudar. Seguravam-se ambas à mesma correia de suspensão e oscilavam com o movimento da carruagem que ia
completamente cheia; nem pensar num lugar sentado!
- Se vejo a venda da Páscoa passada! - disse a
sr.a Bradley.
- E eu então! Que direi eu? Se soubesse o que passamos neste momento... - replicou Liliana.
- Sim, mas a menina é nova, - queixou-se a sr.a Bradley, cujo rosto pálido tinha manchas de sardas.
- Pregunto a mim mesma quando poderei ir cortar o cabelo ?! - rematava Liliana.
Era o problema constante de todas as caixeiras. Precisavam de ter boa aparência, mas fechavam-lhes a
porta dos salões de cabeleireiro na cara, quando tinham tempo livre.
- Agora preciso de mudar. - disse a sr.a Bradley, conseguindo, a custo, passagem até à porta da carruagem.
- Obrigada por ter esperado por mim. - agradeceu Liliana, fatigada.
- É que eu queria saber como aquilo acabou. Não devia ter-se deixado revistar tão facilmente, digo-lho eu.
- afirmou ainda a sr.a Bradley, descendo.
E o comboio lá continuou, com o ritmo enraivecido e ensurdecedor.
Um homem estava agarrado à correia perto da mão de Liliana, um entre as centenas de homens que tinham feito olhos ternos à rapariga e lhos faziam ainda. Ele soprava-lhe
o seu hálito quente no pescoço e encostava o joelho ao dela, como se a pressão da multidão a isso o obrigasse. Liliana, agarrando-se à correia, sentia em todos os
membros, a pobreza do seu casaco como qualquer coisa que a magoava. A dobra das mangas estava rota, ela sabia-o. A manga que tinha debaixo dos olhos começara a ficar
lustrosa e também cinzenta nas costuras. Liliana sentia-se aborrecida. Tinha trabalhado muito durante todo o dia e depois ainda a retiveram uma hora para a apalpar
e revistar como a uma ladra. "Um dia hão-de pagar-me tudo isto.- pensava, desesperada - Sentia-se ferida e sem defesa. Uma força maldosa acumulava-se nela.
- Deixe-me em paz, senão temos barulho - disse ao homem. Sofria de saudades do casaco de seda comprado por madame Thorpe, como se fosse uma doença. "Esperem", pensava,
emquanto que, fatigada, viajava por debaixo da cidade, entre milhares de outros entes fatigados. "Esperem um pouco, esperem..."
O comboio parou na 125ª rua e ela saiu mecanicamente. Ainda tinha de andar até à 122ª onde moravam seus pais. Era um bairro cheio de mexicanos e italianos. Não sabia,
ao certo, como é que tinham vindo para
ali, sabia apenas que esse meio não lhe convinha e que um dia, muito breve, o mais breve possível, sairia de lá; Diante de um cinema, encimado por um anúncio luminoso,
em espanhol, agrupavam-se as pessoas. Dum café saía o som de um piano eléctrico. Na rua brincavam crianças e cães e a valeta estava cheia de detritos. Diante das
casas passeavam altas mulheres de carnes , caídas e homens em mangas de camisa, embora a noite estivesse fresca, como ao princípio da primavera.
"Assim tão só, minha linda menina?" -preguntou um homem, atrás dela - Não precisou de se voltar para ver como ele era; pele escura, calças estreitas e o cheiro a
alho dos mexicanos. Ela ia mais de-pressa. Ele seguiu-a. "Quere que chame a polícia?" - preguntou a meia voz, sem o olhar - "Não tem coração... não tem coração!...".-
disse, num tom melancólico - Os passos afroixaram. Chegou emfim a sua casa e hesitou um momento antes de descer os três degraus que precediam
a porta.
No próprio momento em que hesitava, surgiu, diante dos seus olhos, inesperadamente, a imagem de Bengtson. Ela não pensava nele - foi um puro acaso. Não estava apaixonada
- não se podia apaixonar. Tal como era, ele não lhe agradava: louco, atrevido, arrogante, superficial, distraído. Aquele que lhe havia de agradar devia ser absolutamente
diferente: rico, com um belo automóvel, fatos de bom corte, dinheiro e tudo mais. "Um homem habituado a comer caviar" - pensava vagamente.
Um gato malhado aproximou-se e deu-lhe marradinhas nas pernas. Liliana não se baixou, ficou direita diante da porta da habitação subterrânea: fixava os olhos na
luz do candeeiro, diante da porta. Erik tinha-lhe acendido o cigarro... acompanhara-a ao elevador... Possuía uma certa elegância e portava-se de forma diferente
dos homens do seu conhecimento. É pena que não tenha dinheiro. - pensava - É pena que vá casar com Nina... Não podia compreender porque o fazia. E,
sobretudo é pena que eu não tenha realmente roubado, pensou de repente-Foi como que um pensamento ardente e corrosivo, que fugiu logo.
Apertando os dentes, Liliana empurrou a porta e
entrou.
LILIANA vinha de baixo, mas aspirava às alturas. Como manequim de um salão de costura tinha já feito um bom pedaço de carreira. Quanto à sr.a Bradley era absolutamente
o contrário: vinha de cima e, irresistivelmente, descia o declive. Uma mulher que, aos quarenta e sete anos fazia embrulhos no serviço de embalagem de um grande
armazém, não podia ter grandes ambições na vida. É que, empacotar, era a única coisa que a sr.a Bradley ainda pôde aprender, depois que seu marido, um industrial,
se suicidou, quando da crise, não lhe deixando senão dívidas, derrocada e um desfazer de feira. Graças a certas protecções, a sr.a Bradley conseguiu ser empregada
na entrega de embrulhos e não se passava uma hora sem que ela não receasse perder o emprego.
Ali estava, entre as jovens principiantes de dezasseis anos, fazendo, sempre com o mesmo gesto, embrulhos
- centenas, milhares de embrulhos. Quando erguia os olhos, só via mãos estendendo-lhe uma senha de entrega, mãos e senhas, senhas e mãos. Ocupava um lugar difícil
onde todos são nervosos, impacientes e ninguém quere esperar. Ela empacotava, empacotava, pensando muitas vezes em Skimpy. "Oxalá Skimpy não fique atropelada! Queira
Deus não caia da janela! Oxalá não brinque com o petróleo do fogão. Skimpy era uma mulherzinhaA GRANDE LIQUIDAÇÃO
de oito anos que tratava da casa, emquanto a sr.a Bradley trabalhava.
Da época da sua opulência elas tinham conservado a sua habitação de Fieldston, esse vestígio de tempo mais feliz. Eram quartos grandes demais, muito numerosos, cheios
de mobília, muito ricos. A sr.a Bradley tinha feito tudo para se desembaraçar dessa casa.
Aparentemente, ninguém a queria. A pobre mulher viu-se obrigada a alugar quartos a pessoas de bem, a preços razoáveis; ao menos pagava as despesas.
No refeitório do armazém encontrava-se um quadro onde se afixavam os anúncios dos empregados. "Piano usado vende-se, ou então: Compra-se bicicleta em bom estado,
ou ainda: Gostaríamos de participar da excursão de domingo, rateando despesas. O quadro estava bem colocado no próprio lugar em que os empregados faziam bicha para
ir buscar o seu prato. Um ou mais dos quartos da sr.a Bradley estavam sempre para alugar.
Fora assim que Nina arranjara um alojamento quando, pobre criatura sem família, grão de poeira atirado pelo vento para a grande cidade, chegara do Texas a New-York.
Foi assim que ela se tornou vizinha de quarto de Erik Bengtson, que já habitava a pensão havia meses, e passava as noites a assobiar de uma forma horrorosa, a cantar,
a fazer barulho. Sem esse quadro, Nina nunca se teria provavelmente casado com esse louco do Erik, com esse génio da decoração.
O casamento realizou-se no domingo de Páscoa e correu de uma forma perfeita. Era, pelo menos, essa a opinião de Nina e também a de Liliana, sua dama de honor.
Erik tinha lutado para ter o sábado livre afim de instalar os seus aposentos. Passou primeiro a sua cama para o quarto de Nina, que se tornou assim um quarto Bradley
completo, com leitos iguais em mogno encerado. Depois, começou as suas operações no outro, no seu, que devia ser a sala, Trabalhou como para a preparação de uma
vitrina. Decorou primeiro as paredes, pintando palmeiras e lianas e pequenos macacos a baloiçar-se. Depois, ornamentou os móveis e plantou um arbusto num vaso chinês.
Pintou almofadas, estofou caixotes e fez mil coisas incompreensíveis.
Transpirava como um escravo, na sua bata manchada de cores, assobiando e cantando tão alto que Skimpy não podia estudar as lições. Por fim, saiu de todo esse trabalho
qualquer coisa que parecia um estúdio exótico. Nina ficou petrificada logo que entrou. "Ah! palavra... estou espantada..."- disse ela - E Foi preciso que, à sua
maneira, Erik a degelasse. Ela pôde sair do seu trabalho a horas, pois a secção de loiças tinha pouca clientela durante a Páscoa: a multidão afluía mais à confecção
e às modas. Mas, como sempre, às seis horas menos três minutos, apresentou-se um cliente que logo caiu sobre Nina. Desta vez, era um rapaz que também vinha com muita
pressa, um estudante ou coisa parecida, em todo o caso, um ente muito agitado. Desejava - ora vejam! duas taças para champagne, mais nada. Nina não pôde deixar de
rir; imaginava nitidamente a cena em que essas taças de champagne deviam figurar. Viu essa venda como um bom presságio: "Páscoa feliz!"- disse ela, emquanto o rapaz
se ia embora - "Obrigado, igualmente".-respondeu ele - Ora se isso não lhe havia de trazer felicidade! Raramente desejos tão cordiais foram trocados entre uma caixeira
e um cliente.
À noite, Liliana ajudou a confeccionar qualquer coisa como um vestido de noiva; Erik, que estava presente, fazia café emquanto a sr.a Bradley mexia a massa do doce
lutando contra o sono. Quanto a Skimpy tinham-na metido na cama, mas estava tão sobreexcitada que falava mesmo a dormir. Liliana tornou-se útil transportando os
fatos de Erik do quarto dele para o futuro quarto de cama. Assim que eles ficaram pendurados, muito bem passados, ao pé do seu modesto enxoval, Nina compreendeu,
pela primeira vez, que no dia seguinte
deveria estar realmente casada. Sentia-se tão fatigada, tão comovida, que via tudo como num sonho, como através de vidros espessos e turvos. Eram já duas horas da
manhã quando se dispôs a arrastar uma pesada mala de pele de búfalo: "posso pôr as minhas coisas na cave?"
- preguntou - A sr.a Bradley acordou e disse que sim, com a cabeça. "São os teus tesoiros?" - preguntou Erik "Precisamos de beber qualquer coisa," -declarou Liliana
- "Oh... coisas minhas. - disse Nina um tanto acanhada
- Velhas recordações..."
Erik tirou-lhe a mala das mãos para a descer à cave: em baixo cheirava ao aquecimento e à poeira, grandes aranhas agitavam-se nas suas teias. Erik abraçou Nina e
beijou-a. Ela ficou um grande momento assim, envolvida nesse abraço. Estava quente e era agradável: teria gostado de adormecer ali.
Vagamente, recordava a sua infância quando, fatigada, no regresso dos seus passeios ao domingo, o pai a trazia até casa. Por fim despertou e pôs-se de joelhos diante
da mala.
- Deixa-me ver o que tens aí.-pediu Erik, ajoelhando
junto dela.
Entreabriu-se-lhe a boca num sorriso mudo e tímido, quando ele abriu a mala.
- Olha! - disse, divertido. Havia uma velha boneca, datando da infância de Nina, com a cabeleira mal posta. Depois, outra, magra, com uns grandes olhos feitos de
botões. Erik lembrou-se que a rapariga o tinha conquistado logo que, pela primeira vez, foram juntos a Coney Island. Depois havia um retrato onde estavam agrupadas
quatro pessoas. Erik olhou para esse quadro, com uma expressão impertinente e garota.
- Este é o meu pai.- disse Nina.
- Morreu?-preguntou Erik, de-repente sério, aproximando-se dela.
- Mataram-no quando assaltaram um Banco. Era da polícia, não te disse já?
- Oh! - exclamou Erik. E calaram-se por um instante. Nina tirou-lhe a fotografia das mãos.
- Eu estou aqui. - disse - Parece que sou estrábica... é que não queria ser fotografada. Este, é meu irmão mais novo, esta, minha mãe...
Erik não ousou fazer preguntas. Olhava de revés o rosto de Nina. Por fim, ela pousou o retrato. "Todos mortos. A gripe..." - explicou, sorrindo tristemente. Ele
esperou um momento:
- Agora recomeçaremos tudo, Lille Sprorv - murmurou depois.
Quando se resolveu a fechar a mala, qualquer coisa havia no fundo. Erik quis ver:
- Que é ? - preguntou.
- Nada, é o revolver do papá.-E pôs prudentemente a arma no seu lugar.
- Está carregado?-preguntou Erik, fechando a mala.
- Não sei, deixámO-lo tal como estava quando da morte do papá.
- Sabes atirar ?
- Não. Mas é uma recordação.
- Estás a dormir em pé.- compadeceu-se Erik, levantando-se - Anda, vou meter-te na cama.
- Onde ?- preguntou Nina.
Ele apagou a pálida luz da cave e, na sombra, procurou a boca dela. Sentiu tudo andar-lhe à volta, em grandes círculos. "Como estou cansada!" -disse logo que emergiu
do turbilhão - Ao cimo da escada da cave, Liliana apareceu, fazendo tilintar copos.
- Desejam casar lá em baixo?-disse ela -Ou preferem subir para beber whisky?
Subiram a escada à pressa e tiraram os copos da mão de Liliana. Erik tinha a cara de um homem um pouco ébrio.
- De onde vem esta fortuna ? - preguntou ele.
- O velho Filipe tem lá que chegue para ele - respondeu Liliana, lacónica.
O sr. Filipe, o detective do armazém, morava também em casa da sr.a Bradley. Verosimilmente, Liliana tinha-o acordado e tirara-lhe uma garrafa de whisky. Erik esteve
quási a fazer uma pregunta, mas guardou-a para si. Liliana parecia já não querer mal ao velho Filipe por a ter submetido à revista. zoa " (1) - disse ele e bebeu
o conteúdo do seu copo. Detestava o whisky.
- Onde está a sr.a Bradley ? - preguntou.
- Deitada!-respondeu Liliana.
Durante a noite a pintura do seu rosto tinha-se apagado e a sua pele, muito branca, brilhava num reflexo mate.
- Já pousou para algum pintor?- preguntou incidentalmente Erik.
- Era o que faltava! Ir-me pôr toda nua para os idiotas dos artistas!-replicou vivamente Liliana. Erik desatou a rir.
- Também se fazem retratos de senhoras vestidas. explicou, muito divertido.
- Sim ? -preguntou Liliana, engulindo o segundo copo de álcool e exagerando a sua inocência - Sempre julguei que era preciso não ter a cicatriz da apendicite para
que nos pintassem.
Erik teve um rápido olhar para Nina, pois sabia que este género de brincadeiras não lhe agradava. Mas Nina adormecera na sua poltrona, justamente por baixo de um
dos macacos que ele tinha pintado na parede. As mãos pendiam-lhe, moles e abandonadas. Foi até junto dela e sacudiu-a docemente: - Spurv, lúh Spurv.- disse baixinho
- Ela moveu os lábios, mas não chegou a falar. Ele ergueu-a e, no sono, ela lançou-lhe um braço à volta do pescoço. Levou-a, assim adormecida, para a cama. Liliana,
de garrafa de whisky na mão, olhava-o
(1) A sua saúde, em dinamarquês.
com ar trocista. Ele deitou Nina e voltou, fechou a porta do quarto, sorrindo sempre.
- Comovedor! - disse Liliana.
- Como ?
- Disse só "comovedor" - repetiu ela.
-Deve estar fatigada, miss Smith?-preguntou Erik, aproximando-se - Quere que a acompanhe a casa ?
- Oh! por Deus, sr. Bengtson. - replicou - Eu não sou daquelas que é preciso levar a casa. De resto, não vou para casa. Trouxe o que me era preciso e durmo cá.
- Aqui? - preguntou ele, de sobrolho franzido.
- Por exemplo, ao pé de Nina, no vosso futuro leito de casados, a não ser que veja qualquer inconveniente ? - disse ela, irónica.
- Pelo contrário, será uma grande honra para o meu leito conjugal -. respondeu o rapaz, muito aborrecido.
Instalou-se numa poltrona, bocejou ostensivamente e esperou o seguimento. Sentia-se terrivelmente cansado, sentia-o agora, e era preciso que às dez horas da manhã
estivesse no registo civil.
- Adeus, boas-noites e bons sonhos. - disse Liliana. Pegou na garrafa e encheu mais um copo do líquido
que bebeu de um trago. Erik olhava-lhe para o pescoço muito branco emquanto ela bebia.
- Porque não me pode suportar?-preguntou, quando acabou.
- Instinto de defesa contra uma muito perigosa formosura. - replicou ele, depois de um momento de hesitação - Ela não compreendeu imediatamente, só percebeu a intenção.
- Muito obrigada. - disse, abrindo a porta - Erik levantou-se por delicadeza; sentia as pernas cansadas, pois tinha estado todo o dia em cima do escadote. Exibindo
um espelhinho de bolso e um bâton, Liliana contornava cuidadosamente os lábios. Disse ainda: "boas-noites" e fechou a porta atrás de si.
Desconcertado, Erik recaiu na poltrona e pôs-se a rir. Achava imensamente engraçado que Liliana pintasse os lábios antes de se deitar. Dependurou o sobretudo e atirou-o
para cima da cama, que tinha improvisado com mantas, estendeu-se e dispôs-se a dormir. Indubitàvelmente, a manhã vinha próxima. Apagou a luz, ouviu em qualquer parte
a buzina de um automóvel. Fechou os olhos. "Á minha última noite de solteiro" pensou, sentindo um pequeno aperto no coração.
Toda a casa estava cheia do perfume detestável e ordinário de Liliana.
NO dia seguinte, às sete horas da manhã, a campainha da entrada tocou; foi um espanto geral. Uma senhora estava diante da casa e dizia em voz enérgica:
- Sou a condessa Bengtson. Venho assistir ao casamento do meu filho.
A sr.a Bradley, que também tinha sido uma senhora de sociedade, agarrou no seu roupão da manhã e nas suas boas maneiras, e respondeu:
- Entre, sr.a condessa. Estamos ainda por arranjar, mas o pequeno almoço, daqui a pouco, está pronto.
A condessa Bengtson acedeu ao convite e entrou. Vestia um fato género alfaiate, preto, e calçava luvas brancas. Diante da casa, um miserável Ford estava parado.
A visitante entrou francamente no aposento acabado de pintar, de que a sr.a Bradley abria a porta, lançou um olhar divertido para os macacos das paredes e ficou
de pé, junto da cama onde Erik dormia.
- O sr. Bengtson não a esperava, quero dizer, o sr. conde Bengtson - balbuciou a sr.a Bradley.
- Eu não tinha a certeza de ficar livre. - respondeu a condessa - Trabalho no asilo de alienados de Lansdale.
Agora o sr. Bengtson dispunha-se a acordar: espreguiçou-se, queixou-se, abriu os olhos e disse: "Olá Mutz!", sem parecer admirado. Discretamente, a sr.a Bradley
retirou-se. Logo a seguir ouviu-se, através da porta, uma
conversa sonora, em dinamarquês. Correndo, a sr.a Bradley atravessou a cozinha, onde Skimpy fazia já o café, e atirou-se para o quarto onde dormiam as duas raparigas.
- Levantem-se.- disse - Vistam-se de-pressa. A mãe dele chegou, é uma condessa e ele é um conde.
Liliana sentou-se na cama, direita como uma vela. Nina precisou de alguns minutos para acordar e mesmo depois, conservou os olhos fechados.
- Que foi ? - preguntou.
- É, minha menina, que vais tornar-te condessa em te casando com ele. É de morrer a rir!-troçou Liliana, sacudindo-a.
Agora todas as torneiras funcionavam em casa; nas três salas de banho jorravam os chuveiros. O velho Filipe foi o primeiro a aprontar-se e a aparecer à mesa do pequeno
almoço, que Skimpy tinha posto.
- Eu sou testemunha - declarou, saudando a condessa. Cheirava ao whisky da véspera e ao da manhã.
- Muito prazer em conhecê-lo.-replicou a condessa, esfregando as mãos - Estou ainda entorpecida pela horrível viagem feita de noite.
O velho Filipe disse em voz pensativa: "Se lhe aconselhar a beber qualquer coisa vai com certeza recusar..." A condessa animou-se: "Ah, não recuso ! respondeu com
energia.
Filipe foi buscar a garrafa de whisky emquanto a sr.a Bradley aparecia com o café. As duas raparigas entraram. Erik estava ainda no banho. A condessa considerou
os dois rostos durante um segundo, depois, levantando-se, foi direita a Nina que, timidamente, estava no mesmo sítio, ignorando o que devia fazer.
- Bons-dias Nina. - disse ela - Caí aqui, de-repente, mas gostava de ver com quem o rapaz casava. Pôs as duas mãos nos ombros de Nina e sacudiu-a de bom humor.-
Vai ter muita arrelia com ele.
Nina procurava palavras.
- Chamam-me Mutz - disse a condessa.
- Sinto-me muito feliz por ter vindo. - respondeu Nina - Apresento-lhe a minha amiga Liliana. Esta é Skimpy, uma boa cozinheira. Foi ela que nos fez o bolo da boda.
A condessa puxou Nina para junto de si, para um canapé e pôs-se a saborear o copo de whisky, que o velho Filipe tinha posto diante dela. - É um verdadeiro reconfortante
do coração - disse - mas não se sabia se falava da noiva, se da bebida.
Liliana estava sentada a um canto sem dizer palavra. Era a primeira condessa que via na sua vida e isso fazia-lhe um certo efeito, embora o não quisesse confessar.
Olhou para Erik, com nova curiosidade, quando ele entrou com os seus cabelos claros puxados para trás, à força de água. Eis que um habitante de esferas superiores
penetrava no seu círculo... Ele devia saber o que era caviar ... Tratava sua mãe como uma encantadora irmã mais velha e a condessa brincava alegremente com ele.
Durante o pequeno almoço foi dado aos assistentes ouvirem uma boa parte da história dos Bengtson. Ao que parecia, a condessa tinha-se tornado enfermeira-mór do asilo
de alienados de Lansdale, depois que seu marido, conde Bengtson, se "afogou a beber". A condessa tinha uma forma agradável de chamar as coisas pelos seus verdadeiros
nomes. Foi assim que a clínica de luxo em que trabalhava passou a ser, na sua boca, a "caixa dos malucos". Foi tratando seu marido, confidenciou, que aprendeu a
tratar os agitados nas suas crises, Erik confirmava de bom humor. Soube-se ainda que seu pai perdera a vida em circunstâncias extraordinárias. Depois de uma caçada
real, na qual todos os senhores haviam tomado parte com casacas vermelhas, ele apostou - cheio como um odre - que iria, em traje de caça, ao prado onde estavam os
toiros. Ganhou a aposta (duzentas garrafas de Pommard, 1879) mas foi atirado ao ar pelos animais furiosos. Os Bengtson, mãe e filho, riram francamente, contando
esta aventura.
Nina calava-se. Mais do que nunca tinha a consciência de casar com um estrangeiro, com um homem que não nascera na América, um homem que viera de barco. No registo
civil confirmou-se que ela ficava a ser condessa Bengtson: era uma novidade difícil de digerir.
- Porque não me disseste nunca ? - preguntou a Erik, emquanto o táxi os trazia de novo a Fieldston.
- Para quê ? Vês-me com uma coroa de conde na cabeça a arranjar uma montra?
- Gosto da tua mãe. - disse Nina timidamente.
- Ela também gosta de ti, pardalito -declarou, muito satisfeito, apertando-lhe a mão.
Estava um tempo soberbo; doirados raios de sol caíam sobre o asfalto, as árvores começavam a florir. Quando os recém-casados chegaram a casa, encontraram convidados:
miss Drivot, o sr. Berg, Pusch, o aprendiz, e uma delegação de caixeiras que traziam um aparelho de T. S. F. como prenda de casamento. O velho Filipe fez um discurso
humorístico e estava em jejum; talvez os pormenores da cura de desintoxicação, contados alegremente pela condessa, lhe tivessem dado que pensar... Comeram o bolo
feito por Skimpy e elogiaram-no. O sr. Berg tornou-se um pouco impertinente com Liliana, que lhe disse: "Tire as mãos. Não é bastante fino para mim." Ele não ficou
ofendido.
Liliana mostrava uma alegria ruidosa e amarga. Insistia em chamar a Nina "sr.a condessa e, na sua boca, isto soava como uma ofensa.
Às duas horas da tarde, a condessa anunciou que se retirava. Convidou o jovem casal a fazer a viagem de núpcias no seu automóvel. Erik, para se despedir, beijou
todos. Não tinha bebido e, no entanto, dava a impressão de estar um pouco ébrio. Liliana voltou-se para a parede quando ele se aproximou. Miss Drivot, muito excitada,
limpou a boca. Todos disseram que a dama de honor devia beijar o noivo. De sobrancelhas franzidas,
Liliana passou fugitivamente com os lábios pelo ar que a separava de Erik, mas Erik apertou-a contra si: Assim não presta - disse, emquanto os outros riam quero
um beijo a valer!"
Liliana parecia zangada: "A valer?"-murmurou baixo. E sem esperar resposta pôs as mãos em volta do pescoço de Erik e beijou-o. Co'a breca!"-disse ele, um pouco sufocado,
assim que ela se desprendeu. Nina, de pé junto dos dois, tinha um sorrizinho contrafeito. Os outros deixaram de rir. A nova T. S. F. manipulada por Pusch, o aprendiz,
emitia sons horríveis.
Finalmente, depois de muitas palavras e lisonjas, a condessa conseguiu pôr o Ford em marcha. Erik e Nina instalaram-se com a sua maleta de fim de semana e partiram.
O ar estava fresco e eles sentaram-se bem junto um do outro com os seus casacos.
Ao crepúsculo, a condessa parou diante de uma velha estalagem, em qualquer parte, e deixou o motor em marcha emquanto desciam os dois.
- Adeus, meus filhos - disse ela.
- Adeus, Mutz - respondeu Erik.
O Ford afastou-se com o ruído de uma máquina de coser, escangalhada, depois tudo se calou. Nina olhou à sua volta. Estava um pouco desapontada. Já que tinham pedido
um dia de licença para a sua viagem de núpcias, imaginara outra coisa: barulho, gente, conversa. Atlantic City ou, pelo menos, Long Beach. Aqui, havia árvores muito
velhas, sobre as quais a folhagem da primavera acabava de reaparecer e um rebanho de carneiros, que passava no caminho, levantava poeira em grandes nuvens azues.
Por entre as árvores vislumbrava-se o mar. "É belo isto," - dizia Erik - é como na Dinamarca" e, de braços estendidos, espreguiçou-se. Nina envergonhava-se por não
ter gostado da paisagem.
À noite, ouviram música distante, foram à sua procura e descobriram por fim um baile campestre onde dançaram. Regressaram tarde, primeiro pela beira-mar e
depois atravessando a aldeia. Já não era calcetamento o que Nina tinha debaixo dos pés, eram nuvens: elas transportavam-na para a velha estalagem...
No meio da noite, Nina, a dormir, estendeu a mão. Sim, estava ali, o ente amado ...
Na manhã de terça-feira o despertador tocou, como de costume. Como de costume, Nina dormia ainda quando se levantou e quando fez alguns exercícios (tinha lido em
qualquer parte que a cultura física conservava a mocidade). Dormia emquanto fazia o café e mesmo emquanto tomava o pequeno almoço. Só acordou completamente quando
estavam sentados no metro dirigindo-se para a Central. Como de costume, Erik subiu a escada 5 e Nina correu aos relógios do ponto, no edifício 6.
E como de costume, miss Drivot notou:
- Olhe que vem atrazada, Nina, despache-se. - Embora Nina fosse agora casada e tivesse o direito de se chamar condessa Bengtson.
-Estou a fazer uma cura de emmagrecimento. Olhe, já perdi 11 arráteis - dizia madame Thorpe a Liliana.
- A senhora está maravilhosa. - respondeu Liliana, lançando um olhar sobre as redondezas da cliente.
- Uma verdadeira linha de rapariga - acrescentou, madame Chalon, a directora. - Que há-de ser hoje? Recebemos um vestido verde, com capa, da Lanvin. Deve ficar-lhe
lindamente.
Desta vez, madame Thorpe estava horrível. Tinha realmente emmagrecido um pouco, mas quatro novas rugas marcavam-lhe o rosto. Mandara pintar os cabelos com henné,
e fumava sem descanso, mostrando-se excessivamente nervosa. As jóias dos dedos e dos pulsos tilintavam, quando se agitava. Tinha levado com ela um rapaz, que se
estendeu no canapé, verificando os vincos das calças e admirando os seus sapatos novos.
- Querido, deixa-me dar só uma fumaça no teu cigarro. - disse madame Thorpe - E tirando-lhe, com os
dedos afusados, o cigarro da boca, aspirou-o profundamente e depois entregou-lho. Isto pareceu espantosamente inconveniente. O rapaz tirou logo o cigarro da boca,
fitando a marca vermelha deixada pelo rouge dos lábios, olhou à sua volta e, com ar adormecido, atirou o cigarro para um cinzeiro de metal, que tinha perto.
Madame Thorpe nada vira, mas Liliana examinava o rapaz com um olhar crítico. "Gigolô" pensou, e assim ficou arrumado. Madame Thorpe parecia absolutamente dominada
por esse indivíduo que era muito bonito, com os cabelos pretos, lisos e brilhantes, os dentes muito belos e um fato do melhor corte.
- Estou horrivelmente nervosa. - suspirou ela - É muito para uma vez só. Ora vejamos, preciso de um enxoval para viagem. Sim ... vou partir... uma voltazita ao mundo,
Palmeiras... entende... tecido branco, para os trópicos... Tem qualquer coisa deste género? vou divorciar-me em breve... e não imagina quanto isso me excita os nervos.
- Quere que lhe mostre a nossa nova colecção para o Sul? - preguntou madame Chalon, piscando o olho a Liliana - "EZ 24 até 32". - segredou-lhe. Liliana desapareceu,
obediente, com o seu passo ondulante, que lhe tinham ensinado na escola de manequins. Mal chegou ao gabinete, despiu apressadamente o vestidito negro, de caixeira.
"EZ 24 até 32". - gritou às duas aprendizas.
- De-pressa, Primeiro o vestido verde; a velha quere comprar muita coisa.
Uma das pequenas saiu a correr, a outra deixou-se ficar com ar estúpido. "O vestido de seda verde?" - preguntou - "Anda. Não sejas idiota. O vestido verde claro,
de capa, vá.. não fiques aí a olhar para mim". - gritou Liliana. Sentia sempre uma certa emoção de actriz, quando tinha de apresentar os vestidos.
- "Se vendermos a colecção pedirei uma percentagem."
- pensava, emquanto, rapidamente, punha pó na cara
e penteava os cabelos. Entre ela e a sr.a Chalon havia uma grande luta calma. Liliana reclamava uma percentagem, quando se vendia qualquer vestido apresentado por
ela. Pelo seu lado, madame Chalon afirmava que ela é que vendia o vestido sozinha, como se Liliana fosse apenas um manequim de madeira. Já duas vezes, depois de
se ter inundado de perfume, Liliana se fora queixar ao chefe de serviço. Ele tinha-lhe acariciado amigavelmente a nuca como a um cãozinho, dizendo que uma rapariga
que possuía a sua linha, não devia prender-se com tão medíocre percentagem; e fora assim que a discussão se desvanecera como fumo.
As aprendizas voltaram a correr com o seu carregamento de vestidos nos braços. No pequeno gabinete de mudas, a que chamavam a jaula dos macacos, cheirava a tecidos
novos, a oficina de alfaiate, a sabão ordinário. A um canto, uma velha costureira mordiscava uma sandwich que preparara em casa.
- Não podem andar mais de-vagar, não ? - rugiu Liliana, arrancando das mãos das raparigas o vestido verde. Como aprendiza, ela tinha sido mal tratada, era agora
a sua vez de maltratar as outras. Só quando a fina seda lhe deslizou pelas ancas, é que a calma veio, os seus nervos distenderam-se, a pele sentiu-se mais feliz.
Lançou a capa sobre os ombros, viu-se mais uma vez ao espelho e dirigiu-se para o salão.
Quando madame Thorpe a notou, tomou uma verdadeira expressão de dor de dentes: "Mas que idea! Não é a minha cor!" -disse, com ar desagradável. Liliana passeou diante
dela, lançando a capa para trás, descobrindo a blusa de fino plissado. O rapaz, no canapé, nem se mexeu, mas, sob as pestanas baixas, o seu olhar adormecido veio
errar sobre essa blusa.
- No entanto, o verde seria o ideal para os cabelos ruivos de V. Ex.a. - notou madame Chalon.
- Ah! não me aborreça, nervosa já eu estou!-gemeu a cliente. - Não posso suportar esta cor.
Madame Chalon fez sinal a Liliana e esta mexeu-se.
- Espere um pouco!-gritou madame Thorpe-Nem sequer sabe o que eu quero. Não têm nada de especial para os trópicos? Um vestido de seda para Hawai, compreende ?
- Ah! o amarelo! - exclamou madame Chalon entusiasmada, como se uma inspiração genial acabasse de lhe acudir - Miss Smith, apresente o vestido amarelo. Esse vestido
é um poema, querida senhora, um sonho, música...
Emquanto se despia, Liliana ouvia ainda o discurso exaltado da modista, que ia buscar as suas expressões ao estilo florido dos anúncios. Por uma razão qualquer,
o gabinete de muda estava sempre quente, provavelmente porque a velha costureira sofria de constipação crónica. Liliana sentia finas gotas de suor, na testa, emquanto
que, sem deixar de acelerar as aprendizas, se metia no vestido amarelo. Este era composto de muitas camadas de tule sobreposto. Na orla, a saia tinha oito metros
de roda. Quando Liliana estava vestida, viu que o penteado não condizia com o estilo do vestido. Foi buscar um pente e deitou pó na fronte húmida.
- Porque se demora tanto ? A cliente impacienta-se - gritou asperamente madame Chalon, metendo a cabeça entre as portas.
- Já vou... não pode ser mais de-pressa.-respondeu Liliana, enervada. Diligenciava todos os dias estar em boas relações com a modista, mas, todos os dias, a tensão,
que existia entre elas, se tornava maior - Saiam do caminho. - ordenou às aprendizas, que estavam ao pé da porta. Por pouco ia pisando as vítimas inocentes. Mas,
quando apareceu diante de madame Thorpe, tinha já o seu mais suave sorriso de manequim.
- Então ? - preguntou orgulhosamente a directora, emquanto Liliana se voltava, ondulante, erguendo a saia com as duas mãos e fazendo alguns passos de dança, apropriados.
- Não é feio... - concordou madame Thorpe, depois de uma pausa.
- Não é feio, minha senhora ? Mas é um sonho este vestido, é a lua de Hawai! Temos um casaco amarelo, palha de milho, com capuz, para a noite, se quiser passear
no tombadilho.
Madame Chalon conhecia as suas clientes. Uma expressão sonhadora passou um instante pelo rosto duro de madame Thorpe. O rapaz pareceu acordar: endireitou-se e parou
de fumar. Liliana desprezava-o profundamente, como só uma mulher jovem, que ainda se não vendeu, pode desprezar um homem que se vende. De súbito, ela viu-o deixar
cair lentamente uma pálpebra, emquanto os seus belos dentes brilhavam.
Era um sinal nítido e descarado, emquanto madame Thorpe voltava costas. Desconcertada, Liliana olhou-o. Estava habituada à desfaçatez, mas esta parecia-lhe demasiada.
Então, o rapaz tirou um cartão do bolso e meteu-o entre as almofadas do canapé onde estava sentado. Dava-lhe a direcção! Liliana começou logo a andar de um lado
para o outro, de contrário, teria rido.
- Esteja sossegada! Aproxime-se. - ordenou madame Thorpe.
Ela avançou com o seu passo leve, para a compra dora, que vista de perto, era quási digna de piedade. Subitamente, Liliana foi de novo acometida por esse ódio, que
sentia tantas vezes, pelas clientes do salão de costura. Viu-se a si própria, vestida com linda toilette, leve, elegante. Era uma vergonha que aquela velha se fosse
vestir assim. E, lentamente, subiu-lhe o calor à
cara.
Liliana foi tratada como um objecto: madame Chalon e madame Thorpe andavam à sua volta, tocavam-lhe, ou antes tocavam no vestido, trocando reflexões profissionais.
- Seria preciso encurtá-lo mais. -disse a cliente.
-Sim, dava-lhe mais chic - concordou a costureira.
Nesse instante, Liliana sentiu uma dor aguda, na espádua nua.
- Ai! - queixou-se baixo, voltando-se.
- Que foi? -informou-se madame Chalon, trocista.
- Não sei... peço desculpa ...-murmurou Liliana. Com dois dedos, chegou ao lugar dorido e retirou-os tintos de sangue.
Madame Thorpe exclamou, de súbito:
- O meu anel? Onde está o meu anel?
O rapaz tinha-se levantado, emquanto Liliana olhava para a ponta dos dedos. Abaixou-se e desprendeu o anel, do tule do vestido, no qual tinha ficado preso. Era um
anel pomposo com uma esmeralda rodeada de pequenos brilhantes. "Aqui está o teu anel, querida."-disse ele, suavemente, metendo-o no dedo de madame Thorpe.
- Vejam até que ponto emmagreci!- exclamou ela, triunfante.- Até os anéis me estão largos.
E para provar o que dizia, estendeu a mão por baixo do nariz do rapaz. Era uma branca mão preguiçosa, de longas unhas afiladas. O anel deslizava ao longo do dedo
emmagrecido, O rapaz pensou um instante no que podiam esperar dele, depois inclinou-se e beijou a mão de madame Thorpe.- Como os europeus são encantadores! - disse,
encantada, trocando com madame Chalon um olhar de compreensão feminina. De Liliana ninguém se ocupava.
Talvez o que aconteceu depois não houvesse acontecido, se madame Thorpe tivesse pedido desculpa à rapariga por causa do arranhão que sangrava, gota a gota. Mas não
o fez. Sem dúvida, não pensava que um manequim fosse um ente vivo, com desejos, invejas e ardentes cóleras.
- Tenha cuidado com o vestido, não apanhe alguma nódoa, miss Smith. - recomendou madame Chalon. Mas de-certo leu no rosto de Liliana qualquer coisa que lhe fez medo,
pois, tornando-se subitamente gentil, continuou:
- Agora pode ir dizer a toda a gente que foi ferida por uma esmeralda verdadeira.
Nesse momento, o rapaz tirou o seu fino lenço de baptista e tocou ligeiramente a gota de sangue nas costas de Liliana. "Seria pena que manchasse tão lindo vestido
-declarou, e Liliana não soube dizer se fôra ironia ou imbecilidade.
- Agrada-te este modelo, querido? Achas que devo
comprá-lo ?
O rapaz levantou-se e olhou para madame Thorpe. Deus sabe o que a quarentona descobriu na expressão desse rosto. com certeza uma coisa que o seu sorriso e os seus
olhos, em forma de amêndoa, não puderam esconder bastante. De-repente, o seu humor virou-se. "O vestido não me agrada!" -declarou bruscamente - "Não o quero. A saia
é muito larga. Vá, mostre-me outra coisa."
Nervosa, fazia girar o anel no dedo.- "Quero qualquer coisa de muito simples, em branco, um vestido com o qual se possa ir jogar o polo em Singapura, sem que os
ingleses nos apontem a dedo."
Liliana olhou para a directora.
- Mostre o nº 34 - disse madame Chalon, um
tanto sucumbida.
Madame Thorpe protestou, com agrura:
- Não mostre mais nada, peço-lhe. Eu mesma vou provar. Não serve a ninguém ver como os vestidos ficam no manequim. Sou eu que os tenho de trazer.
- É justo. - condescendeu madame Chalon, obsequiosa. Nas costas da cliente, ergueu os olhos ao céu num olhar implorativo: - "Traga o nº 34, miss Smith, o vestido
branco, género alfaiate."
Liliana retirou-se de novo para a jaula dos macacos.
- Que mais há ? - preguntou a velha costureira quando, ennervada, a rapariga despiu mais um vestido para tornar a envergar o seu fato de caixeira.
- A velha morre de medo de que eu possa agradar ao seu gigolô! - explicou Liliana - Que idea! A tipos como aquele nem sequer vale a pena a gente escarrar-lhe em
cima.
Madame Thorpe era ainda mais ciumenta do que Liliana supunha. Assim que ela chegou com o vestido branco nº 34 e que madame Chalon acompanhou a sua cliente ao gabinete
de prova, esta deteve o manequim, na passagem:
- Se faz favor, venha provar comigo, - disse claramente, num tom que não admitia réplica.
- com muito prazer, - respondeu Liliana tão amavelmente, que era quási uma insolência.
Nos últimos tempos perdia facilmente o domínio dos nervos. Isso tinha começado pouco antes do casamento de Nina, talvez mesmo na noite em que suspeitaram que ela
tivesse roubado o ícone russo. Desde então, a sua tensão interior tornou-se cada vez mais aguda e lutava contra a estranha apreensão de uma espécie de explosão iminente,
como se todo o armazém, um belo dia, devesse ir pelos ares, ou então arder completamente até não ser mais do que um pequeno monte de cinzas frias. O fino arranhão
ardia-lhe nas costas de uma forma insuportável e sentia uma louca vontade de puxar pelos cabelos pintados de madame Thorpe. A cliente pareceu adivinhar esta tensão,
ou então sentiu exasperar o seu ciúme, embora tivesse arrastado o manequim para longe do seu amante. Era uma obsessão. Vestia e despia os vestidos, mandando a directora
fazer uma nova escolha. As aprendizas andavam de um lado para o outro e madame Thorpe não consentia que Liliana se afastasse um segundo.
Estava calor no gabinete. As figuras das três mulheres multiplicavam-se no grande espelho de três corpos. Parecia que uma multidão de pessoas se agitava e comprimia
na estreita cela. Por fim, madame Thorpe mergulhou num delíquio. Apressada, madame Chalon foi-lhe buscar um copo de água. Liliana fez toda a diligência para dominar
a sua expressão, afim de que a cliente não pudesse perceber com que antipatia a olhava. Madame Thorpe estava agora paramentada com um vestido
preto, de cauda, que lhe exibia as espáduas muito nuas e muito gordas.
Quis ela própria desapertar, nas costas, o cordão da cinta: o anel de esmeralda deslizou e caiu sem ruído, no tapete cinzento e rosa que cobria o chão da casa de
prova, assim como todos os aposentos do salão de costura. Liliana não reflectiu, talvez nem soubesse mesmo o que fazia. Foi espontânea e instintiva: em vez de apanhar
o anel e de o entregar, com uma frase amável, pôs-lhe o pé em cima, para o esconder.
Madame Chalon voltou, trazendo um copo de água que a cliente bebeu, reconhecida. Não tinha dado por nada. Liliana estava em cima do anel e sentia a esmeralda, como
um ponto escaldante, sob a planta dos pés. Madame conseguiu tirar pela cabeça o estreito vestido: tinha perdido completamente o entusiasmo. E, depois de ter atormentado
a directora e a caixeira durante uma hora, decidiu-se bruscamente a não comprar nada.
- Tudo isto me parece muito ordinário! - disse ela - Decididamente, mandarei fazer em Paris o meu enxoval de viagem. Tenho lá uma costureirinha espantosa.
A frase soou de uma forma mesquinha, deselegante e snob. Madame Chalon tornou-se quási aliada de Liliana.
- Como v. ex.a desejar. - disse, lançando a Liliana um olhar que significava "que os diabos levem o velho camelo". Agora já não se preocupava com o facto de madame
Thorpe poder ver o seu gesto pelo espelho.
-Quere ter a bondade de me arrumar um pouco isto?-disse a directora, emquanto acompanhava a cliente.
O gabinete estava cheio de tule, de taffetãs, de folhos - sonhos floridos das costureiras para as noites de Hawai...
Quando Liliana pegou no anel, acariciou-o, mirou-o, sentindo um estremecimento: não era só medo e comoção
- era essa paixão, esse ardor indomável que experimentava
sempre, diante das coisas caras. Acariciou mais o anel e teve ainda tempo de o fazer desaparecer, quando as duas aprendizas entraram. "Nada feito?" - preguntou uma
delas, maliciosamente. - "Mete-te na tua vida". - replicou Liliana, Tinha o anel fechado na mão e não sabia que lhe havia de fazer. Pegou no fato branco nº 34, modelo
Emily e apertou-o contra si. "Eu arranjo isto".- disse, baixando-se para apanhar do tapete alguns alfinetes. As pequenas foram-se embora.
Liliana meteu o anel na algibeira direita do casaco do vestido modelo, de fazenda branca, pendurou cuidadosamente a saia e o casaco numa cruzeta e levou tudo para
o armário. Passou a mão pelo saco de celofane que devia proteger o fato claro, da poeira, respirou profundamente e deixou-o ali, suspenso entre centenas de outros
modelos de verão, prontos para a venda.
Meia hora mais tarde, madame Thorpe surgiu como um tufão. Eram quási cinco e meia e as caixeiras, extenuadas, serviam os últimos fregueses, impacientes. Houve um
certo ruído violento, mas logo reprimido, e a notícia da perda do anel espalhou-se. O velho Filipe foi chamado e as ondas informatórias chegaram ao santuário do
sr. Crosby, ao 18º andar da torre central. Embora madame Thorpe fizesse grande barulho, não podia, de maneira alguma, afirmar que tinha perdido o anel no salão de
prova ou em qualquer outro sítio. Pelo contrário, madame Chalon lembrava-se muito bem de ter visto o anel e de o ter dado ela própria à cliente. O criado, chamado
como testemunha, fez reparos adormecidos e despidos de senso. O velho Filipe fixava o seu olhar perscrutador e desconfiado sobre o rapaz. Não lhe agradava. Dois
homens da polícia privada estavam discretamente num segundo plano, mas não foram precisos. Procuraram por toda a parte e não encontraram nada. Por fim, madame Thorpe
acabou por confessar que tinha saído do armazém num táxi, cujo número ignorava. Tinha ido ao Olímpia Bar, bebera dois cocktails
passara alguns minutos na sua modista, na Madison Avenida e só no segundo táxi, tinha dado pela falta da jóia.
Lamentou-se o facto, fizeram-se promessas de mais buscas e, amavelmente, acompanharam à porta a nervosa senhora, porque era tempo de fechar o armazém. De resto,
madame Thorpe tinha a jóia no seguro, mas custava-lhe dirigir-se por causa disso ao sr. Thorpe de quem se estava a divorciar. Quando a sineta acabou de tocar para
fechar, o velho Filipe convidou o pequeno grupo de empregados a subir ao seu escritório para serem revistados. madame Chalon fazia parte desse número e ficou tão
emocionada que começou logo a falar francês e a pedir que a despedissem. As duas pequenas aprendizas, choravam. Liliana estava fria e calma. "A gente habitua-se"
disse ela irónica, emquanto se despia, sob a vigilância da enfermeira, pois, se o revistar era uma desagradável operação, era ainda assim praticada com delicadeza.
"Lamento, minha filha... -murmurou o velho Filipe, quando aquilo acabou. O seu rosto bondoso, de foca, parecia perturbado. Cheirava a whisky, como de costume. Desde
a data do casamento de Nina, conhecia mais Liliana, e tinha um fraco por ela. "Que é isso que tem aí?" preguntou a enfermeira, vendo nas costas de Liliana algumas
gotas de sangue resumando da arranhadura.
- "Isto? Foi madame Thorpe que me feriu com o seu famoso anel." -disse Liliana, com desprezo.
Sentia uma louca sensação de temeridade, como um dançarino em corda bamba, de pé, em cima de um fio fino, muito alto... "Espere, vou pôr-lhe iodo. -disse a enfermeira.
O ligeiro ardor foi para Liliana como uma promessa.
Durante quatro dias o anel ficou na algibeira do casaco branco, modelo Emily nº 34. Ninguém o comprou, pois começava a chover e as pessoas desejavam impermeáveis
e chapéus de chuva.
Ao quarto dia, o tempo melhorou e Liliana apresentou
o modelo a uma senhora que tinha uma linda figura e que o comprou sem hesitar. No último momento, Liliana teve que tirar o anel e escondê-lo na meia.
Estava doente de excitação. Se um médico lhe tivesse tomado o pulso, achar-lhe-ia febre. E se esse velho Filipe tivesse hoje a idea de a revistar, estava perdida.
Mas o velho Filipe tinha outras preocupações.
À noite, no seu reduto da cave, em casa dos pais, Liliana ficou acordada, acendendo e apagando a luz... Ao lado, seu pai resmungou, mas ela não podia dormir, tinha
que contemplar o anel...
Até que Liliana possuía, emfim, um belo anel de esmeralda, uma jóia sua, um segredo seu, um perigo seu!...
DESDE o décimo quinto andar da parte central até ao cimo, havia por toda a parte avisos com estas palavras. Pede-se silêncio. Quem saía do elevador não podia deixar
de ver este pedido que era antes uma ordem. Havia também avisos nas portas das salas de conferência onde se reunia o conselho para deliberar dos destinos da Central
Warehouse, assim como à entrada dos corredores dando para os escritórios particulares do director-chefe. O sr. Crosby tinha o seu trono lá em cima, no décimo oitavo
andar, num escritório guarnecido nos quatro lados por janelas, e que mais parecia a casa de vigilância de um faroleiro. Nos dias claros podiam ver-se os dois rios,
o Hudson e o Eastriver e as cadeias de colinas, longe, além, em New-Jersey. Mas o sr. Crosby não se interessava pela paisagem: estava muito preocupado. As acções
"da companhia estavam mal cotadas e ele possuía 51? 0 do total, justamente o preciso para lhe garantir a maioria na assembleia geral dos
acionistas.
Na segunda reunião tinha-se notado um certo descontentamento ; embora o armazém fizesse muito negócio, no último ano, fechara-se o balanço com déficit. O sr. Crosby
fazia dançar os algarismos na sua cabeça, sem encontrar solução. "Os impostos, senhores, os impostos ... Não devíamos, evidentemente, falar tão alto,
mas, o que se passa recentemente no nosso país, é uma espécie de comunismo disfarçado.
O sr. Crosby tinha memória matemática, podia-se confiar nela como numa prodigiosa máquina, contanto que se tratasse de acções e de números. Quanto aos rostos dos
seus dois filhinhos e aos aniversários dos seus amigos, esquecia-os sem cessar. No fundo, o sr. Crosby era um doente - sofria de diabetes - e isso roubava-lhe uma
porção de alegrias da vida. Bebia chá sem açúcar, com o seu biscoito seco de diabético, que sabia a papel. Cairam-lhe os dentes um após outro; pouco depois uma chagazinha
no dedo grande, do pé, causou-lhe inquietação : não era nada, uma chagazinha, sem importância, mas, para um homem diabético, podia significar o pior. O sr. Crosby
tinha as mãos frias e pesadas, inchadas, com as veias grossas. Nessa manhã, assinara o despedimento de duzentos empregados. Ninguém o estimava e ele não queria a
ninguém no mundo. Muitas vezes sentia a impressão de que o arranha-céus oscilava ligeiramente: os engenheiros haviam calculado que a ponta da torre central oscilaria
diariamente cerca de quatro polegadas.
Avaliavam a fortuna de Crosby em trinta e quatro milhões.
Filipe, o detective da casa, via o seu chefe superior pela primeira vez, depois da desaparição do anel de madame Thorpe. Ao levantar, tinha tomado como de costume
a sua ração de whisky, pois precisava de criar forças. Estava agora diante do grande patrão e obsecava-o a idea de que podiam notar a leve percentagem de álcool
que tinha no sangue.
O sr. Crosby olhou longamente para o seu subordinado, antes de dizer uma palavra:
- Chama-se Filipe ? Filipe... Filipe ? - preguntou, emfim, decifrando o nome num caderno que o seu secretário lhe estendia.
- Sim, sr. Crosby. Uma pequena brincadeira de meu pai.-murmurou o velho Filipe num tom deferente.
- Que idade tem ?
- Um pouco mais de cinquenta e oito anos - murmurou Filipe. Fazia sessenta daí a três dias e sentia uma espécie de vergonha...
O sr. Crosby olhou com atenção o seu detective. -Bebe.-Não era uma pregunta mas uma participação.
- Às vezes, um copinho... para estar acordado ... trabalho de noite, muitas vezes fico vinte e quatro horas fora de casa.
- Tem um assistente às suas ordens, não é verdade ? Não trabalham alternadamente?
- Sim, mas não descanso completamente nesse jovem detective, principalmente depois... que... várias vezes tivemos pouca sorte... isso não me deixa descansar... não
posso dormir... Por isso prefiro ser eu próprio a fazer a ronda.
- Parece-me que o seu zelo não tem tido grande êxito - disse o sr. Crosby, um pouco mais conciliador. Que um homem preferisse envelhecer no armazém em vez de dormir
na sua cama, compreendia-o bem. Ele mesmo passava a vida naquela torre e não podia admitir que certas pessoas fossem à Flórida ou à caça dos patos.
- Sr. Crosby, - disse Filipe num tom aflito, aproximando-se da secretária - reconheço que temos tido um período de infelicidade. Isso acontece. Asseguro-lhe que
vou redobrar os esforços... não consentirei que aconteça mais qualquer coisa... e se eu...
- Palavras não servem de nada. - disse Crosby. Recuou um pouco, assim que Filipe avançou para ele com o seu hálito saturado de whisky, e irritou-se de novo.
- Mandei-o chamar aqui, não para ouvir as suas explicações, mas para lhe dizer que somos obrigados a dispensá-lo, se tornar a haver o mínimo roubo.
Houve um instante de silêncio; só o secretário fazia mover uma folha de papel, para encobrir a sua perplexidade.
- Dispensar-me ? Não está a falar sério, sr. Crosby ? -disse o velho Filipe - Eu trabalho na Central desde que ela existe, faz daqui a pouco vinte e sete anos...
sr. Crosby...
- Lamento, Filipe, - disse o sr. Crosby - mas bem deve compreender que já não está à altura da sua missão. Isso acontece-nos a todos, um dia. Eu próprio terei de
me retirar e hei-de sabê-lo, exactamente, quando chegar o meu dia. Exijo a mesma coisa dos meus subordinados.
- Não poderá arranjar melhor. - disse Filipe, tocado pela sinceridade do patrão -Para mim... a Central significa tudo... Não é só um emprego... o meu salário...
sempre poderei arranjar trabalho... mas a Central... é como a minha própria casa... eu não tenho lar... sou um velho celibatário... passei toda a minha vida na Central...
não me podem mandar embora simplesmente porque se deram alguns roubos. Eu pertenço à Central... Desculpe-me, sr. Crosby, dizer-lhe assim tudo isto...
O sr. Crosby reflectia sobre o que acabava de ouvir. Desviou-se do ponto principal:
- A polícia descobriu alguma coisa a respeito do anel de madame Thorpe ? - preguntou secamente.
- Não, o caso foi abandonado. É ainda uma coisa que nos pesa às costas, se bem que seja quási certo que o anel não foi perdido em nossa casa. Mas com essas mulheres
não se pode tirar nada a limpo.
- Faço-lhe notar que madame Thorpe é uma das nossas melhores clientes, uma senhora da alta sociedade. Seu marido é meu amigo.
- Peço-lhe perdão, sr. Crosby. De qualquer forma, madame Thorpe deu ordem para acabarem com as investigações, e se me preguntar porquê, poderei dizer-lhe a razão.
O sr. Crosby olhou para o seu detective. Ele só tinha falado duas vezes a madame Thorpe, pois Thorpe, o advogado, não era, na realidade, senão uma relação de
club. No fundo, partilhava a aversão de Filipe pela cliente.
- Sabe que essas insinuações são muito injustas? disse ele.
Filipe lançou um olhar sobre o jovem secretário. Teve a necessidade urgente de uma golada de whisky e sentiu-se muito infeliz.
- Madame Thorpe mandou parar com tudo, porque receou descobrir que o seu... amigo tinha roubado o anel. É tudo. - disse, soltando um suspiro.
- Ela disse isso ? - preguntou Crosby. O velho Filipe não pôde deixar de sorrir a tanta ignorância do mundo no espírito de um grande homem de negócios.
- Disse? O senhor não conhece as mulheres, sr. Crosby. - exclamou. - Uma coisa dessas ? Elas não a confessariam nem mesmo a si próprias, em face da sua consciência.
Mas isso é-me indiferente, pode acreditar...
A leve jocosidade do sr. Crosby durou apenas um minuto, dissipando-se logo. Não sentia já senão impaciência e descontentamento em face deste empregado meio ébrio,
que não queria ser despedido. Abriu a gaveta do meio, da sua secretária, e tirou um frasquinho de remédio. Muito obsequioso, o secretário particular ofereceu-lhe
um copo de água: o director contou vinte gotas. A droga tinha um gosto amargo. Muitas vezes o doente sr. Crosby sentia repugnância por si próprio: o seu braço estava
cheio de picadas da seringa da insulina, que, ultimamente, mostravam uma desastrosa tendência para se inflamarem.
- Está então avisado, sr. Filipe - disse em tom peremptório - Na primeira ocasião, é despedido. Obrigado.
Era definitivo. Nada tinha a responder.
-Obrigado, igualmente, sr. Crosby-respondeu Filipe, retirando-se.
Lá fora, exausto, encostou-se uns minutos à parede, ao pé do aviso que reclamava silêncio. Depois dispôs-se a descer a escada que vai do 18º andar ao 12.?. Era um
hábito curioso: Filipe preferia a escada ao elevador. Três vezes, na sua carreira, tinha prendido nas escadas, ladrões que se julgavam em segurança. Chegou dez minutos
mais tarde ao seu escritório, chamou o piquete de detectives ajudantes, simples e frustes adolescentes sem nenhuma intuição psicológica, e recomendou-lhes uma grande
vigilância. Assim que partiram, acabou de esvaziar a sua garrafa de whisky, sem utilizar nem copo nem soda, pois começava a sua luta obstinada contra a ameaça de
despedida que pesava sobre ele.
OS empregados de uma grande casa só conhecem ? realmente uma pequena parte dela; estão incrustados à sua secção, como os corais ao fundo do mar. Mas aquele que,
constantemente, lhe percorre todos os cantos, como o velho Filipe, esse vê o conjunto, conhece essa imagem reduzida do universo, que é um grande armazém.
Ele via milhares de coisas emquanto, com o seu bondoso rosto ingénuo, de foca, e os olhos um pouco turvos pelo álcool, mas atentos, andava por todo o edifício. Ia
constantemente às escadas, às salas de venda que se estendiam até ao infinito. Na secção de branco, havia batalhas entre mulheres, pois era o dia de um dólar. No
salão de chá, três músicos faziam ouvir as árias em voga e, na secção de música, ouviam-se, outra vez, essas árias. Aí, uma rapariga anémica estava sentada ao piano
e tocava, como uma sonâmbula, tudo quanto punham diante dela: as notas pareciam espectros. Sem descanso, os camiões rolavam no pátio número 5, onde era descarregada
a mercadoria, pesada, registada e escolhida. Em todas as secções, Filipe distinguia as clientes que compravam sem reflexões, sem resistência, dessas que, de lábios
cerrados, calculam de pé, aos cantos, e por fim não compram nada. Mais além são os jovens negros dos elevadores que, na multidão de mulheres, anunciam os andares
como máquinas falantes, sem vida, cegos, surdos e insensíveis.
Ao romper da manhã, o armazém é ocupado por grupos de mulheres que tratam da limpeza e do encerado. De noite, os guardas vão e vêm na penumbra, marcando a sua passagem
nos relógios de verificação. Na cave, fica a reserva dos manequins das vitrinas: bonecas de cera, nuas, de sorrisos afectados, alinhadas em longas filas, contra
as paredes. Pares de braços e de pernas estão deitados ao lado delas no chão, e todas têm o ar de esperar alguma coisa. No 14º andar ficam as caixas, os cofres fortes,
metidos nas paredes, protegidos por um sistema secreto e complicado, vigiados noite e dia. É aí que, nos dias de pagamento, os empregados, em longas filas, esperam
o seu sobrescrito. Os caixas estão atrás das grades, vivem prisioneiros entre barras de ferro e campainhas de alarme e usam dedeiras de borracha, no polegar, para
protegerem a pele, que ficaria em sangue, à força de contarem todo aquele dinheiro.
Além, estão os escritórios da administração com os seus tickers, as campainhas, o martelar de centenas de máquinas de escrever. Eis o pequeno ramo de flores em cima
da mesa de uma estenotipista e um único raio de sol que, pelo meio dia, desliza pontualmente na sombria sala do empacotamento.
No vestiário das senhoras - onde as caixeiras vão à pressa fumar um cigarro quando estão cansadas - trocam-se mil bisbilhotices e chefes de secção contam historietas
emquanto se arranjam.
Mais longe, estão as mesas guarnecidas de seis, de quatro, de dois aparelhos telefónicos. Outras mesas têm vinte campainhas, e há gente que se deve precipitar assim
que as ouça tocar.
Eis aqui, em resumo, um bloco inteiro do edifício onde reina a febre da compra e da venda. A casa vibra e tudo isto, unicamente, para ganhar dinheiro.
Há longas mesas onde se escrevem, sobre etiquetas,
os preços que se marcam nas mercadorias. Certos preços são alterados, diminuídos, outra vez modificados. Isto interessa o velho Filipe; pode ficar ali muito tempo
a olhar, a ruminar, preguntando a si próprio como pode um rico modelo elegante descer até ao preço dos saldos, como um lindo móvel é um dia atirado para o subterrâneo,
ou liquidado por uma insignificância. "Que fazem dos monos?" - pregunta ele. Ninguém o sabe. - "Que fazem da mercadoria que não vendem?" - pregunta ainda. Parece
que existe uma casa que compra tudo quanto é inútil; aceita o rebotalho do grande armazém e manda-o, não se sabe para onde; para a Nova Guiné ou para quaisquer antropófagos
do fim do mundo.
E isto mergulha o velho Filipe em longas meditações. Ele também faz parte desse rebotalho... tornou-se inútil... Depois de vinte e oito anos passados na Central,
que podem fazer de um velho como ele? À noite, depois de ter ainda bebido meia garrafa de whisky, sonha que passeia com um cartaz gigantesco às costas, anunciando
um preço diminuído, rediminuído, reduzido a nada.
Um murmúrio percorreu subitamente o armazém, uma espécie de secreta inquietação. Filtrou-se não se sabe por onde: diziam que iam licenciar empregados. Muitas mulheres,
como a srª Bradley, tremiam ao pensar numa despedida. Esforçavam-se por todos os meios para se valorizarem entre os novos, os muito novos, os levianos, os mal vistos.
Havia algum tempo já que a sr.a Bradley sentia certa dor de um lado, que nem ousava confessá-lo a si própria, Skimpy, à noite, punha-lhe uma cataplasma e a sr.a
Bradley desculpava-se junto dos seus hóspedes e ia para a cama, emquanto Skimpy ficava com o velho Filipe e o casal Bengtson, a jogar. Jogavam a "beijinhos de chocolate",
pequenos bonbons negros, que a confeitaria da Central havia comprado em grande quantidade e de que não se tinha podido desembaraçar: saldavam-nos, por isso, aos
empregados, na cantina. Skimpy fazia batota sem vergonha e ganhava, com grandes gritos de alegria. Filipe perdia regularmente, não podia reter na cabeça as cartas
do jogo, embora fosse um bom jogador de xadrez. Às vezes, Nina lançava-lhe um olhar de inquietação e de
piedade.
O pior, para o pobre homem, é que tinha renunciado a beber e não ia já de noite à Central. Tinha medo do armazém, de noite, e medo de si mesmo. Sen tia muitas vezes
a impressão de que poderia, com as suas próprias mãos de detective, roubar uma garrafa de whisky, na secção. Para um bebedor, a sobriedade é uma dura doença, com
arrepios que fazem estremecer, e dores em todos os membros. Durante o tempo em que se conservou sóbrio, o velho Filipe registou um pequeno êxito e um verdadeiro
desastre.
Uma noite, descobriu um rapaz que se tinha escondido, durante as horas de trabalho, atrás de um alto rolo de tapeçaria, em pé, contra a parede do depósito de tapetes.
Uma simples intuição levou o velho Filipe a lançar um olhar para trás do rolo e a agarrar o jovem ladrão pelas orelhas.
A polícia prendeu o garoto, que não tinha ainda dezasseis anos. Ele jurou que não queria roubar nada, mas apenas brincar com os objectos da secção de sport. Isso
foi um triunfo um tanto atenuado e Filipe sentiu-o bem, Três dias mais tarde, passsou-se o seguinte ; emquanto passava pelo armazém próximo da porta de oeste, onde
vendiam tudo em pequenas quantidades, notou duas pessoas que lhe pareceram suspeitas. Lembrou-se de as ter já visto e desconfiado delas, mas o seu cérebro, perturbado
pela abstinência, não lhe deu nenhuma indicação precisa. O homem era do género "belo aventureiro"; a mulher, mais velha do que ele, estava pintada e parecia muito
nervosa. Filipe seguiu-os, sem ser notado, entre a onda da clientela que se espraiava, a essas horas da tarde, pelo armazém.
Tinha vestido o sobretudo e posto o chapéu, para ter também o aspecto de um freguês. Emquanto os vigiava, encostado a uma coluna, sentia-se cambaleante, como que
vazio. No entanto, a velha febre de caça do detective, aguilhoada pelo desejo de provar ao sr. Crosby que ainda podiam contar com ele, levou-o a agir.
As duas pessoas suspeitas deslizaram das malas de senhora para os perfumes, separaram-se, pararam em balcões diferentes, ele no das luvas, ela no dos lenços e Filipe
via-os, distintamente, trocarem sinais às escondidas. O coração pôs-se-lhe a bater: contornou a coluna, quando os viu afastarem-se, e não os perdeu de vista. Em
cima de uma mesa estavam objectos de metal prateado, nada de extraordinário, coisas que faziam mais efeito do que valiam. Shakers para cocktails, taças de fruta,
etc. Filipe sentiu de novo uma espécie de vertigem: entretanto, viu a mulher meter qualquer coisa na carteira, fazer sinal ao homem e dirigir-se com ele para a saída,
num ar indiferente.
Apanhou-os a poucos passos da porta, deitou a mão à malinha da senhora e disse brandamente: "siga-me, se faz favor, e sem fazer escândalo."
- Que aconteceu, sr. Filipe ? - preguntou a senhora. Quando ouviu esta voz teve uma sensação desagradável. No entanto, tudo teria corrido bem se, no mesmo instante,
um jovem assistente dos seus detectives não tivesse vindo em seu auxílio. Esse principiante lançou o seu punho de polícia à mão do homem e disse:
- Deixa-te de histórias, meu rapaz! Já roubaste bastante.
O escândalo estalou... O homem defendeu-se, a mulher pôs-se aos gritos, a multidão alarmou-se, a polícia da casa acorreu com as suas pesadas botas. Tudo se desenrolou
fatalmente, irresistivelmente, como numa tragédia grega.
A mulher era madame Thorpe... O conteúdo da
malinha: irrepreensível... O seu companheiro ameaçava fazer um processo por difamação. Finalmente a cena terminou na sala, pintada de branco, do posto de ambulância,
onde madame Thorpe se entregou a uma crise de nervos. A enfermeira deu-lhe brometo e o aprendiz Pusch, que estava em toda a parte onde havia qualquer coisa de interessante
a ver, foi buscar um carro para levar os dois.
- Se eu estivesse bêbado, semelhante coisa não me tinha acontecido! - dizia de si para si o velho Filipe - O pobre homem já sabia, agora, que seria despedido.
Efectivamente o sr. Crosby mandou-lhe o ordenado de três meses e um atestado para que pudesse arranjar outro emprego. Fizeram-lhe compreender que, no futuro, passariam
sem ele. Um novo chefe detective, moço e enérgico, foi nomeado. Chamava-se Ricardo Cromwell e tinha servido na marinha: foi por isso que o alcunharam logo de "Toughyj.
Desde o primeiro dia que as caixeiras o adoravam, e ele passeava por toda a parte, como um pachá que possue trezentas mulheres.
O velho Filipe estava em casa, jogava as cartas a beijinhos de chocolate e tentava não beber... A Central podia passar sem ele-bem o sabia, o pobre
- mas, Santo Deus, como poderia ele passar sem a Central ?- É preciso que alguém nos dê uma idea - dizia o
sr. Sprague, o velho, o chefe dos decoradores como iniciar essas novas ligas? Parece que a Central comprou a patente, Patente Fidélia! Uma verdadeira porcaria! Mas
a patente é nossa. Não rasga as meias. É preciso fazer uma vitrina inteira com isso. Pregunto-lhe como... Porque eu não posso colocar sessenta mil ligas como se
fossem cebolas, na montra... A não ser que fabricássemos uma árvore sobre a qual nascessem as ligas?
- Não. Já fizemos a árvore das gravatas. - interrompeu erik Bengtson que estava sentado em cima de um escadote, pintando uma senhora maior que o natural, mostrando
uma grande parte da perna, que era destinada à fachada do armazém - precisamos pensar nisso, a sério.
E mergulhou nas suas reflexões, assobiando:
"Contigo, querida, gostaria de ir a Bali dormir sob as palmeiras Contigo irià Austrália e subiria até à lua, Contigo, contigo ..
- Alto! Tenho uma idea, - disse ele - dezasseis bonecas mostrando todas o joelho, com a liga por cima.
Sim, mas... era preciso poder demonstrar que não rasga a meia...
- E como demonstrar isso ? - preguntou o velho, interessado.
Erik caiu em profunda meditação.
- Já sei. Precisamos de uma verdadeira mulier. disse, ao fim de um minuto.
- Como ?
- Uma verdadeira mulher. Dezasseis bonecas e uma mulher verdadeira, vestida exactamente da mesma forma. Ela dobra o joelho e mostra que a meia não se rasga. Admirável!
Eis a solução!
Por um momento, o velho não disse nada. A idea trabalhava no seu cérebro genial. "Não está mau..."murmurou por fim. - "Mas é preciso que tenha umas pernas bonitas"
- acrescentou Erik, do alto do escadote. O velho pareceu despertar.
- Ora! Pernas bonitas têm elas todas!
Erik desceu e pôs-se a gizar o vestido que as dezasseis bonecas e a mulher deviam vestir.
- Precisamos de procurar entre as caixeiras, temos bonitas raparigas na Central - disse ele, absorto.
- Sim. Eu encarrego-me pessoalmente de a descobrir - respondeu o velho.
E pôs-se à procura, nesse mesmo dia. Como por acaso, percorria todo o estabelecimento, cominando as caixeiras, quando elas subiam as escadas ou trepavam aos escadotes.
Tirou disso muito prazer, mas não conseguiu mais nada. No dia seguinte foi o próprio chefe do pessoal que tomou esse encargo. Estava combinado que as ligas deviam
ser expostas durante uma semana na montra número 7, do lado norte. Erik traçava já o esboço do fundo... A caixeira indicada devia receber uma gratificação de dez
dólars por dia, quantia extraordinária, comparada com o pequeno salário que tinham, quando as pernas não entravam em jogo. As mais belas raparigas da Central foram
convocadas
para a oficina de decoração e aí alinhadas. As mais belas raparigas, quere dizer, antes de tudo, os manequins e as alunas da escola de manequins. Segredando e rindo
ofereciam-se aos olhares do velho Sprague: embora se tratasse apenas de pernas, elas tinham dado ao rosto o brilho mais resplandecente. Todas eram ambiciosas e o
facto de serem expostas durante uma semana na vitrina, representava uma aventura excitante, e uma grande oportunidade de êxito.
Sem nenhuma dúvida, Liliana Smíth possuía as mais belas pernas; foi classificada em primeiro lugar na restricta selecção que fizeram. No fim, ficou só em campo.
O velho passeava ao longo da fila de raparigas, com um passo solene, como um general passando revista a um regimento. Erik fazia de ajudante, seguia atrás. O velho
discutia, em voz alta, as qualidades de cada uma, pois as suas relações de todo o ano com bonecas das vitrinas, tinham-no tornado indiferente às reacções humanas.
Erik Bengtson, pelo seu lado, fazia caretas nas costas do velho, o que obrigava a rir as concorrentes. Por fim, o sr. Sprague mandou embora todas, mesmo Liliana.
- Que tem o senhor a dizer às pernas dessa rapariga?-preguntou Erik, assim que ficou só com o chefe.
- Não as podemos utilizar. Ela não tem o tipo preciso, tem um ar ordinário.
- Acha ? -preguntou Erik, que estava habituado a Liliana.
- Meu rapaz-disse o sr. Sprague - pode-se ter excelentes ideas a respeito de decorações, mas não se saber nada do que é venda. E nós queremos vender, entendeu? Nós
queremos vender essas danadas sessenta mil ligas Fidélia. E a quem, pregunto eu? A gente modesta, às donas de casa que precisam de fazer durar as meias, a esses
dois milhões de mulheres que ficariam furiosas, se vissem uma rapariga como esta Smith. Se a pusermos na montra, teremos um montão de homens
diante da nossa fachada norte, e a patente vai-se pela água abaixo.
- Que é preciso fazer então ? - preguntou Erik, que começava a achar o assunto demorado.
- É preciso descobrir um tipo que convenha explicou o velho. - Deve, com certeza, existir uma rapariga que tenha as pernas bonitas e, ao mesmo tempo, um ar sério.
vou procurar mais uma vez. O chefe do pessoal é um burro, É preciso a gente ir em pessoa.
Ao lado do seu superior, Erik percorreu o armazém. Toda a gente estava agora ao facto do que eles queriam e as caixeiras arranjavam-se de tal maneira, quo as suas
pernas não podiam passar despercebidas. Mesmo as da velha guarda, como miss Drívot, da secção das louças, estavam cheias de esperança, pois, desta vez, não se tratava
da cara,
- Espere! É esta que eu quero! - disse o sr. Sprague, de-repente - Eis emfim o tipo de mulher que ety; procurava, como um pedaço de oiro absolutamente raro.."; Uma
rapariga que é bonita e que, ao mesmo tempo,'- tem um ar decente. É esta, acredite. Esta é que há-de vender as nossas ligas à clientela.
- Oh!... parece-me... que se engana.-disse Erik, estupefacto. A rapariga que estava em cima de um escadote, e que tinha encantado o sr. Sprague, não era outra senão
Nina.
- Ela é muito tímida para ser exposta assim - atalhou, tentando distrair o velho.
- Como sabe você, se ela é tímida ? Já lhe fez propostas ? Pois do que precisamos é justamente duma mulher deste género.
- Mas o senhor não a pode meter dentro de uma vitrina, pronto! - exclamou Erik, grosseiro. Mas, como há meses, com subtil diplomacia, tinha sempre levado o velho
a fazer o que não lhe aconselhava e a evitar o que ele queria, a sua oposição enraizou a idea do bom homem.
A GRANDE LIQUIDAÇÃO
- Como se chama, menina ? - preguntou o sr. Sprague, com os olhos erguidos para o escadote, sem se preocupar com o seu assistente.
- Nina. - disse ela.
Acabava de ver seu marido e o rosto iluminou-se-lhe.
- Desça. Tenho que lhe falar - ordenou o velho.
- Deixa-te ficar lá em cima, Nina! - gritou Erik - Na verdade, não desejo que a minha mulher se pespegue numa vitrina a exibir os joelhos.
O sr. Sprague ficou sufocado.
- Ah! bom ... casou com ela não ? As minhas felicitações. Mas... ouça-me bem: você não tem o direito de influenciar sua mulher. Ela talvez se sinta feliz, ganhando
uma pequena gratificação.
Nina descera do escadote e colocara-se ao pé de Erik, não tão perto que pudessem julgar que falavam em particular, mas, no entanto, próximo dele.
- Que gratificação? - preguntou.
- Setenta dólares por semana. - disse o velho, com ar importante - Sem contar que isso a pode fazer ir mais longe.
O sr. Berg, chefe da secção, havia-se aproximado. Miss Drivot passou perto deles, sorridente. Sabiam já todos que Nina era a escolhida e vinham cumprimentá-la, parecendo
tomar o facto como uma honra e uma distinção. No lavatório das senhoras começavam já os comentários ciumentos e os doze andares encheram-se com a notícia.
- Não quero que a minha mulher vá para a vitrina.-repetiu Erik, numa cólera fria.
- No entanto, ganhar dinheiro, só lhe pode ser agradável. Para mais, isso causa-nos a nós, à Central, um grande prazer. Estou convencido de que o sr. Crosby será
informado -continuou insidiosamente o sr. Sprague, emquanto Erik prometia, a si próprio, vingar-se na primeira ocasião. Podia sempre, emquanto decorava, deixar
cair um martelo em cima daquela maldita cabeça de intrigante.
À noite, no metro, os recém-casados discutiram. Erik mantinha que Nina devia recusar a proposta. Nina compreendia isso mal: seu marido fora sempre superficial, não
tomando nada a sério pelo facto de ser artista, e eis que, por esta história sem importância, fazia soar o seu título de conde. com aquele dinheiro podiam começar
a comprar o pequeno Ford e fazer mesmo mais qualquer coisa. Erik tinha um desejo louco de um pequeno Ford e fazia anos daí a pouco...
- Quer te agrade ou não, estou decidida, - disse ela
- Ambos temos desejo de avançar e não nos podemos permitir o luxo de desprezar semelhante ocasião. De resto, até te fica mal fazeres barulho por tão pouco. Ouvirei,
com certeza, menos reflexões desagradáveis dentro duma vitrina, do que quando sirvo os clientes.
A sr.a Bradley tomou o partido de Nina.
- Ela tem razão, se recusar, tomam-na de ponta. Erik resmungou ainda.
- Tenho a certeza que tua mãe não faria objecções - assegurou Nina lançando o seu último trunfo.
- Lá nisso podes estar descansada. Minha mãe até teria prazer nisso. - disse Erik, furioso.
- Bem vê... - concluiu a sr.a Bradley agarrando-se com força á correia, pois, nos últimos tempos, andava trémula. Devia ser por causa das dores no lado. Por instantes,
ela julgou ver os embrulhos, as etiquetas, as mãos girarem diante dos olhos e teve medo de cair. Mas era preciso não falar dessas coisas, se queria conservar o seu
lugar na Central. Bem vê! - continuou, deixando-se baloiçar da direita para a esquerda. Liliana, de pé, a seu lado, não dizia nada. Ia devorada pela cólera e pelo
ciúme. Pensar que a rejeitaram para pôr Nina na vitrina! Pensar que havia casado, emquanto ela tinha todas as noites que andar sozinha no seu ? bairro! Pensar que
esse cretino do Erik procedia como
se Nina fosse distinta demais para ser exibida! Tudo isto, punha Liliana fora de si: era como uma dor perfurã nte.
- Fazia muito mais efeito se soubessem que viam as pernas de uma condessa Bengtson - disse ela, por fim.
A flecha atingiu Erík, - e ela percebeu-o - mas era uma bem fraca consolação. Desceram os três na rua 42.a e Liliana continuou sozinha até à 125ª.
Não era que aquilo desse muito prazer a Nina, pelo contrário, afligia-a até. - "Setenta dólares". -pensava emquanto jogava com Skimpy. Setenta dólares" Erik resmungava
ainda, no entanto, deixava-a fazer o que quisesse. Nina via-se já quási a escolher o pequeno Ford. Nem podia adormecer. Estendida na obscuridade, assaltava-a a sua
empresa e construía castelos no ar.
- Pensa que nunca mais te aborrecerás - disse ela, noite alta. -Adivinhava, pela respiração de Erik, que ainda não conseguira adormecer.
- Quando? - preguntou.
Nina estendeu a mão para a outra cama:
- Ora quando ... por exemplo, quando tivermos o nosso automòvelzinho... À noite poderemos dar um passeio...
Nina conservava a mão estendida; aparentemente, Erik nem dava por isso.
- Eu não me aborreço - disse, algum tempo depois.
- Sim, continuou ela meigamente - eu sei, não é preciso que o digas: tu aborreces-te. Jogar todas as noites com a Skimpy e o velho Filipe não é, evidentemente, muito
interessante para ti. Mas tu verás... Ela calou-se um momento e depois veio a mão de Erik, da outra cama, ter com a sua.
- Querida inteligente, Lille spurv, - disse ele - estamos casados apenas há três semanas e já tens sustos a meu respeito...
Nina teve desejos de responder, mas não o fez. Erik
adivinhava sempre as suas mentiras; mesmo num quarto de dormir às escuras, ele sabia quando ela mentia. Tinha receios, sim... Ele andava distante... distraído, muito
amável... mas de noite para noite, a partida de cartas e a vida em casa dos Bradley, mais o irritavam. Um carrito para ele... ar ... movimento ... velocidade ...
- Sabes ?... é porque não me habituo aos beijos de chocolate - disse emfim Erik, do outro lado.
Nina pôs-se a rir baixinho, e adormeceram.
No dia seguinte, Nina exercitou-se no papel que devia representar. À noite Erik não foi a casa, mas jantaram juntos no "Rivoldi". Depois, ele voltou para a loja
para decorar a montra das ligas.
Foi a uma quarta-feira, que Nina tomou posse do seu novo posto. Tendo um vestidinho azul-claro, foi colocada na vitrina, no meio de dezasseis bonecas, de sorriso
idiota, e fez a demonstração das ligas Fidélia. Para dizer a verdade, ela admirava-se que as meias ficassem inteiras.
Três vezes, durante a manhã, Erik foi à rua e fazia guarda para vigiar a mulher por trás do vidro. Nina mal se atrevia a sorrir-lhe, como se se tivesse tornado actriz
de um drama de Shakespeare. Ao meio dia, houve uma pausa de meia hora; deixou ali as dezasseis bonecas e foi ter com Erik, à cantina. Ele não disse uma palavra sobre
o novo emprego de sua mulher e ela também não falou nisso. Liliana não se foi sentar em frente deles, como de costume. Na escada 5, os esposos separaram-se e Nina
retomou o seu lugar na montra 7.
Era fatigante. Horrivelmente fatigante e ennervante. Mas, ao fim de dois dias, tinha-se habituado, Às vezes, parecia-lhe que se tinha transformado também numa boneca,
com as costas duras, curvadas, e com um sorriso de madeira.
É vulgar dizer-se que os novaiorquinos nunca têm tempo. Mas quando uma bonita rapariga, exposta em carne e osso, mostra, nas suas próprias pernas, que
as meias não se rasgam, os mais ocupados arranjam logo tempo. De manhã até à noite havia uma multidão em frente da fachada norte, de tal maneira, que teve de ir
para lá um agente de polícia, afim de manter a ordem. Certos basbaques ficavam ali cinco minutos, olhando com um sorriso cheio de espectativa, como se esperassem
a conclusão divertida de uma boa anedota. Até o mendigo da esquina da rua pôs a tiracolo o seu letreiro "Sou cego" e se fez conduzir até ao armazém, pelo cão, arriscando
um olhar para Nina, Ela tinha esquecido completamente que a fitavam, e desempenhava o melhor possível o seu papel, sem se preocupar com a gente que estava lá fora.
- Ah! Tu nunca podias, na vida, ser um manequim ! - disse-lhe Liliana, à noite, quando, fatigadas de corpo e espírito, se dispunham a partir.
- Parece-me bem que não. - respondeu Nina, sem rancor.
Erik fora obrigado a ficar no armazém; os projectos para a estação de verão não estavam acabados.
- Emfim... compreendes, ao menos, a sorte que tiveste de seres assim exposta ?
- Porquê? -admirou-se Nina, a quem doíam as costas .
- Por causa de toda essa gente que olha para ti... todas essas ocasiões... Podes encontrar alguém que faça a tua felicidade.
- Que felicidade ? -preguntou Nina. Ela alegrava-se mas era ao pensar nos setenta dólares e no pequeno Ford ... Mas a felicidade era talvez outra coisa.
- Inocentinha, an ? - troçou Liliana. Tinham entrado no vestiário das senhoras e punham pó no rosto. Nina fazia-o negligentemente, Liliana com uma gravidade atenta.
- Emfim... não tens recebido propostas, cartas de amor ou coisas desse género?
- Mas eu sou casada! - replicou Nina. Liliana olhou-a com ar de desprezo:
- Eu é que devia lá estar. - disse, rancorosa. E havia de tudo neste pensamento: inveja, ciúme, raiva, até desdém e ódio por essa pequena Nina tão simples. Um pensamento
que queimava e estragava tudo: "Eu é que devia lá estar!..."
FACTO estranho, os habitantes de uma capital não conhecem verdadeiramente senão uma pequena parte da sua cidade. Fazem todos os dias o mesmo caminho, à mesma hora,
com a mesma luz. Steve Thorpe, por exemplo, não conhecia senão o caminho da sua casa de White Plains para o seu escritório da 5ª Avenida, e, além disso, o seu Club.
E mesmo, só conhecia esse bairro, através da porta do seu automóvel.
Que ele tivesse passado a pé, numa quinta-feira, pouco antes do meio-dia, diante da fachada norte da Central Warehouse, era um puro acaso e fora causa disso, também,
uma carta que tinha recebido. Essa carta, monumento epistolar, ao mesmo tempo atormentada e solene, era assinada por Filipe Filipe. Thorpe não se teria inquietado
muito se, entre frases confusas, não houvesse alusão, a sua mulher. O epistológrafo Filipe, pedia perdão pela ofensa que, em consequência de um mal-entendido, tinha
feito a madame Thorpe. Ao mesmo tempo que se censurava a si próprio, pedia instantemente ao marido, sr. Thorpe, para o ajudar: "Por causa de sua mulher perdi o meu
lugar que, durante toda a vida, ocupei o melhor que pude. Seja generoso, sr. Thorpe, e ajude-me a recuperá-lo. Sei que é amigo do sr. Crosby, uma palavra sua pode
restituir-me a felicidade", Assim terminava a confusa epístola.
O sr. Thorpe percebeu, pelo menos, que esse Filipe ignorava a acção de divórcio, posta por madame Thorpe contra ele, e ficou-lhe reconhecido, pois desde que sua
mulher o tinha deixado, andava de um lado para outro com a sensação de que toda a cidade o apontava a dedo.
Embora as culpas estivessem do lado de Lúcia, Thorpe não tinha a consciência tranquila. Em muitos processos, defendera a opinião de que, quando uma mulher se entrega
a certas faltas, é sempre por culpa do marido. Se a carta não falasse de sua mulher, ele tê-la-ia deitado fora, imediatamente. Mas Steve Thorpe queria bem à mulher
que o tinha abandonado, e tudo o que lhe dizia respeito o agitava extremamente. Ele metera-se em casa e não se dava com ninguém; quanto às pessoas que iam ao seu
escritório de advogado, possuíam o tacto preciso para não falarem de Lúcia. De-resto, Thorpe supunha que, havia muito tempo, ela tinha partido em viagem para a Europa,
como lhe dissera, quando se separaram. Só agora, esta carta lhe fazia saber que estava ainda em New-York. Esse Filipe devia ser um louco. Thorpe nada podia deduzir
da carta, mas o sangue subia-lhe ao rosto, ao pensar que um desconhecido tinha podido ofender Lúcia. Pegou no telefone para chamar Crosby, que conhecia como membro
do seu Club. Mas abandonou o auscultador, assim que viu os olhos atentos da sua velha secretária. Miss Tackle tinha a aparência e a vigilância dos cães de pedra,
que na China velam as portas dos templos e afastam os espíritos maus. Teve vergonha diante dela, diante da telefonista e diante do groom e, levantando-se, aproximou-se
da janela. O sol brilhava. Havia apenas três quarteirões de casas até à Warehouse. O grande relógio da torre central fez soar meio-dia. Havia anos que Thorpe tinha
por costume acertar por ele o seu relógio. "vou almoçar fora" - murmurou, e depois, deixando o sobretudo, pegou no chapéu e libertou-se do olhar de miss Tackle.
Assim que chegou à rua, respirou e olhou para o céu. Impaciente, esperou a luz verde para atravessar, pois tinha medo dos automóveis, como todas as pessoas que andam
sempre neles. O sol brilhante, aquecia-lhe as costas; à esquina da rua flutuava um cheiro a cravo. Uma mulher vendia flores; um homem empurrava um carrinho de pop-corn.
Thorpe sentiu-se agradavelmente englobado na onda dos passantes. "É preciso andar mais - pensou ele. - O pouco footing que faço ao sábado, não basta".
Thorpe era um homem alto e pesado, de cinquenta e dois anos. Havia quatro que estava um pouco calvo e ultimamente, a sua tensão arterial não era o que devia ser.
"A máquina gasta-se lamentava-se frequentes vezes. Era um trabalhador de uma resistência e de uma concentração colossais. Tinha ganho bom dinheiro e oferecido a
sua mulher todo o luxo que ela podia desejar. Era um dos milhões de maridos americanos, que passam o tempo a ganhar dinheiro para a mulher, de forma a não lhe ficar
nenhum tempo para gastar com as mulheres. Por isso é que ela o tinha deixado. Havia fugido com um gigolô, tal como o sr. Thorpe designava esse homem. Que o gigolô
se chamasse conde Di Péruggi e que quisesse desposar Lúcia, em nada alterava a situação.
Steve Thorpe estava na idade em que fere e faz doer horrivelmente uma mulher deixar um homem por causa dum gigolô. Mas, - com os diabos! - também ela estava na idade
em que as mulheres têm tendência para fugir com gigolôs. Pânico final, o desejo de agarrar a vida pelo último cabelo... Às vezes, sentia uma violenta cólera contra
Lúcia, outras, causava-lhe pena. Tinha conhecido muitos casos deste género, nos processos que estudara, para ser intransigente.
Foi por isso que Steve Thorpe se pôs a caminho, para tentar saber desse Filipe qualquer coisa de novo a respeito da sua mulher. Chegou diante da Central, parou
diante das vitrinas, olhando para tudo. Era novo para ele, isto desviava-o do motu-continuo dos seus pensamentos. Avançou entre a onda de gente, contornou o armazém,
deslizou ao longo da fachada norte e chegou diante da montra onde se fazia a demonstração das novas ligas Fidélia.
Thorpe parou e pôs-se a sorrir. Bonito, muito bonito. Muito bem" - pensou.
Cada uma das dezasseis bonecas tinha uma etiqueta de cartão, pendurada do joelho: "Preço: 2,80. A jovem, ao centro da vitrina, que, com um movimento regular levantava
a saia e puxava a liga, tinha também uma etiqueta pendente do joelho.
- Encantadora! - pensou Thorpe, olhando Nina e as bonecas - A rapariga é encantadora, muito mais bonita, do que parecia à primeira vista.
Parou, olhou e andou um pouco mais. Ao fim de um momento, voltou atrás. Tinha, entretanto, dado uma volta a todo o quarteirão; o sol brilhava e fazia-lhe bem
andar.
- Aqui está o que eu devia arranjar... uma amiguinha... - pensou.
Era o remédio infalível de todos os divorciados que conhecia. Uma amiguinha, uma coisa que se possa mostrar em público, que possa trazer um pouco de calor e de juventude.
Em Thorpe havia um fundo de bondade: amava os cães, as crianças, tudo o que era pequeno e necessitava de protecção. Teria sido terno, mas não tinha aprendido como
isso era.
Na sua casa de White Plains havia mesmo dois cães. A casa era muito grande para um homem só, pois a T. S. F. e a garrafa de whisky são uma companhia insuficiente.
Thorpe ficou ainda cinco minutos a olhar para a rapariga, depois entrou no armazém, pela porta norte.
No escritório de informações estava uma senhora de cabelo grisalho, que, a julgar pela sua aparência, devia
ser membro de numerosas associações de reforma. Thorpe, num acesso de bom humor, dirigiu-se a ela:
- Gostaria de comprar a jovem senhora que está exposta na montra - disse, tirando o chapéu.
- O quê ?
- A jovem senhora da montra. Tem o preço: dois dólares e oitenta. É um bom negócio. Onde a posso ir buscar?
- O senhor está a brincar! - respondeu "o escritório de informações" num tom adocicado. Em que posso servi-lo ?
A crise de Thorpe tinha já passado. Lembrou-se a que tinha vindo.
- Queria falar a um homem chamado Filipe . sabe se está empregado aqui ?
- Filipe ? O detective ? Um minuto ... - respondeu a senhora - vou chamar o sr. Cromwell.
Disse algumas palavras ao telefone e o resultado foi a aparição, passado um momento, de um rapagão com atitude de campeão de foot-ball, que a senhora das informações
apresentou com visível complacência.
- Este senhor deseja falar com o sr. Filipe. - disse ela - Este é o sr. Cromwell, que lhe dará informações.
- Chamo-me Thorpe -elucidou o advogado.-Tenho aqui uma carta que me foi dirigida por um tal sr. Filipe. Gostaria de o ver.
- Filipe, neste momento, está no depósito das peles, sr. Thorpe. Eu sou o novo detective da casa, tratando-se de qualquer coisa que...
- Não, não, obrigado,- disse vivamente Thorpe.- Queira apenas indicar-me o caminho desse depósito.
Cromwell teve um sorriso que significava: "Tu imaginas que as coisas se passam assim, meu homenzinho..."
- Como é natural, não é permitido a ninguém descer ao depósito das peles.- explicou com um sorriso condescendente,
- Bem. Então queira fazer o favor de mandar chamar aqui esse senhor.- propôs Thorpe.
Cromwell mirou-o com ar inquisitorial: "Talvez se trate de alguma situação para o velho Filipe" sugeriu, receosa, a senhora das informações. O novo detective piscou-lhe
o olho: "Trata-se de algum novo emprego?"
- preguntou. Mas Thorpe perdeu a paciência. "Quero falar com esse senhor, sim ou não?"
- Nunca, antes de meia hora. É preciso esperar que ele acabe a ronda, lá em baixo.
- Muito obrigado. Isso para mim não tem grande importância.- respondeu Thorpe. E, furioso, pôs o chapéu na cabeça e foi-se embora. Parecia, aos seus próprios olhos,
bem ridículo ter tanto trabalho por causa de uma baboseira escrita numa carta. Que lhe importava o que fazia a sua antiga mulher? Se foi vexada, foi muito bem feito.
O pequeno passeio ao sol de abril tinha enchido Thorpe de uma sensação desacostumada de frescura. Podia ser também por ter visto a pequena da vitrina. Para ser franco,
estava impaciente por tornar a vê-la. Mas, quando Steve Thorpe se encontrou na rua, a montra número 7 estava vazia. Ou antes, continha as dezasseis bonecas sorridentes;
pareceu-lhe vazia, porque a rapariga tinha desaparecido. Ruminou um pouco sobre este fenómeno, hesitou, e depois decidiu se, deu a volta ao armazém até à porta do
sul e entrou por esse lado. Era a secção de perfumaria. Um cheiro forte, a sabonete, flutuava no ar e Thorpe encontrava-se muito embaraçado nessa atmosfera de artigos
de beleza feminina. Também ali havia um "escritório de informações"; era uma senhora de meia-idade com um ar prodigiosamente distinto.
- Desculpe-me -pediu Thorpe -mas podia dizer-me para onde foi a senhora da vitrina?
Este "escritório de informações" tinha uma compreensão muito rápida. A senhora pôs-se logo a sorrir:
- Naturalmente essa senhora está no seu repouso do meio-dia,
- respondeu, depois de olhar para o relógio de pulso.
- Será possível revelar-me o seu nome ou onde poderei falar-lhe?
O sorriso do "escritório" desapareceu:
- Lamento, senhor, mas é-nos formalmente proibido dar informações desse género - replicou em tom gelado.
- Que o diabo leve todas as mulheres de quarenta anos!- resmungou Thorpe, saindo do armazém.
Se tivesse sido dado a Steve Thorpe ver Nina nessa manhã, a impressão fugitiva e agradável que sentira, teria provavelmente desaparecido. Mas, como deparou com o
impossível, ficou-lhe no sangue uma impaciência extraordinária, como de uma coisa esperada e que não teve ainda desenlace. Esse ligeiro aborrecimento deu-lhe uma
sensação de vitalidade nas veias, como, havia muito tempo, não sentira. Isso fazia parte desse dia de abril cujo ar, a-pesar-do calor do sol, era atravessado por
uma frescura estimulante que parecia vir de qualquer distante vento de montanha.
Como era meio-dia, a gente moça que saía dos escritórios estava espalhada um pouco por toda a parte, encostada às paredes das casas, fumando o seu cigarro. Thorpe
passou diante deles com ar atento: procurava a rapariga da montra. Ao canto da rua havia um grande drugstore, em que as pessoas estavam sentadas e apertadas, comendo
rapidamente a sua refeição. Subitamente, Thorpe teve um pressentimento, quási a certeza de que a jovem se encontrava ali. Entrou, atirou-se para a primeira cadeira
vaga e encomendou uma sandwich de presunto. Já tinham passado muitos anos sobre a época em que o advogado almoçava num drugstore. Os anos do seu triunfo, os anos
do seu infeliz casamento, os anos em que os cabelos lhe tinham caído e o ventre se lhe tinha arredondado. Entre essa gente moça, ele sentiu-se subitamente novo,
como no tempo da sua estreia,
A rapariga não estava entre o rancho de gentis criaturas que se amontoavam à volta do balcão, a mastigar. O advogado olhou para todas uma a uma, nenhuma lhe agradava
nem metade do que lhe agradara a rapariga da vitrina. Levantou-se, admirado de si próprio, pagou e voltou para o seu gabinete da 5ª avenida.
Uma multidão de clientes esperava-o já e mergulhou-se no trabalho até tarde. Às cinco horas, depois de ter acabado uma consulta delicada, pediu a miss Tackle que
lhe fizesse café. O ruído da cafeteira eléctrica e o perfume ligeiramente amargo que se espalhava no aposento, enchía-o de bem-estar.
- Pode ligar-me para o sr. Crosby, da Central ? preguntou subitamente e ficou surpreendido com isso. Não sabia de onde lhe vinha tal audácia, esse feitio "não te
rales". Que diabo lhe podia importar que miss Tackle, sua subordinada, ouvisse a conversa e desaprovasse as suas intenções?
Entre o escritório do advogado e o armazém houve as intervenções habituais de empregados subalternos até que miss Tackle obteve o escritório do grande director.
"O sr. Crosby está ao telefone" - anunciou ela emfim, com uma voz triunfante, estendendo a Thorpe o auscultador. O advogado lançou-lhe um olhar breve e, modelo de
discrição, ela saiu do aposento. (Ele sabia, que, de toda a forma, ela ouviria do vestíbulo a conversa telefónica ...)
- Bons-dias Crosby, como vai isso ? Aqui, Thorpe.
- Bons-dias, Thorpe. É você?
- Um lindo dia, não é verdade ?
- Sim! Ainda não tive tempo...
- Como vão essas percentagens ? Excepcionalmente, não se tratava do dividendo das
acções, mas do açúcar contido no sangue do sr. Crosby. A pregunta era uma amabilidade e como tal foi tomada.
- Obrigado, apenas 0,5 na última análise.
-Ainda bem. Está, com certeza, disposto a prestar um favor a um amigo...
- Se não custar nada...
- Ora vejamos, trata-se de um certo ... Filipe Filipe ... - disse Thorpe - puxando a confusa carta para si, pois tinha outra vez esquecido o nome. - Soube que este
homem perdeu o lugar por causa de minha mulher. Queria pedir-lhe por ele... emfim ... queria pedir-lhe que o conservasse. Parece que trabalhou durante muito tempo
na sua casa... e custa-me pensar que foi despedido por causa da minha mulher.
Ao telefone, o sr. Crosby calou-se.
- Está ? - fez Thorpe.
- Estou, sim, um instante. - respondeu Crosby - Estou a pensar. Lamento muito, Thorpe, mas não há nada a fazer. Creia-me, o facto não tem nenhuma ligação com madame
Thorpe. O indivíduo em questão é um bêbedo inveterado, é velho, em suma, não está já à altura do seu posto.
- Não há então nada a fazer, com certeza? - insistiu Thorpe.
- Infelizmente, não!-foi a resposta.
- Bem. Em todo o caso fiz o possível por ser agradável ao homem. Vai esta noite ao Club?
- Não me parece, sinto-me bastante abatido.
- É a primavera.- disse Thorpe, em cujas artérias ardia numa nova excitação - Escute Crosby... queria ainda qualquer coisa de si... muito fácil de fazer.
- Sim? - esperou Crosby de mau humor. A exuberância do advogado contrariava-o.
- Você tem uma rapariga na vitrina.. por causa de meias ou outra coisa parecida ... Gostaria de saber o nome dela, a morada e... Onde poderei informar-me?
Crosby teve um riso breve.
- Você precisa de uma caixeira para meias? Thorpe respondeu:
- Sim... pouco mais ou menos.
- Então, com muito prazer. O meu secretário vai dar-lhe as informações.
- Muito obrigado, Crosby. Adeus, até ao Club.
E Thorpe pôs-se a beber o café. Miss Tackle apareceu e tentou fingir que não tinha ouvido nada. Dez minutos mais tarde, o secretário de Crosby tocava. Secamente
e em tom protocolar, disse que a senhora a respeito de quem o sr. Thorpe tinha pedido informações, se chamava Nina Bengtson, de Houston, Texas, de 19 anos de idade,
empregada na secção de loiças e vidros, havia seis meses.
- Muito obrigado.
- Ora essa, às suas ordens.
Thorpe leu rapidamente um pacote de cartas que miss Tackle lhe entregara, assinou, pegou no chapéu, no sobretudo e saiu do gabinete.
- bom domingo, miss Tackle. - disse ele.
- Obrigada, igualmente. - respondeu miss Tackle e ele viu nas suas palavras uma pontinha de mordacidade impossível de dissimular.
Sentiu desejo de ir mais uma vez a pé até à Central, mas o seu motorista esperava-o diante de casa com o carro, e o relógio luminoso marcava seis horas menos cinco.
Subiu, deu a direcção da Central e saiu do carro no anoitecer cheio de gente e de luzes. Estavam já a fechar as portas. Assim que chegou diante da vitrina, um rapaz
extremamente loiro estava ocupado a fazer descer as cortinas de tom creme, que escondiam a montra dos basbaques da rua.
- Para casa, Tony - disse Thorpe secamente, assim que subiu para o automóvel.
Tinha dois cães bassets em casa, Max e Moritz. Podia, ao domingo, jogar o golf ou visitar o seu amigo dr. Back, em Rye. Agarrava-se a quanto o desprendesse da recordação
de sua mulher. E a rapariga da vitrina parecia ter essa qualidade, em larga escala.
Quando Thorpe, no dia seguinte, passou diante do armazém, à hora do lanche, não conseguiu encontrar a montra e foram-lhe precisos alguns minutos para compreender
que a decoração tinha sido mudada. Onde havia estado Nina Bengtson, exibiam-se agora móveis de jardim, pintados em cores vivas e aureoladas de promessas de verão.
Na terça e quarta-feira, Thorpe tentou apagar o incidente da memória. "Porque hei-de renunciar?"- preguntava a si próprio na quinta de manhã, rolando para o escritório.
No seu foro intimo germinava o másculo desejo de fazer a sua mulher, o que ela lhe tinha feito a ele. Fora sempre fiel a Lúcia principalmente por falta de tempo
e de interesse. Parecia-lhe agora que esse pequeno deslize, cometido mesmo depois, podia torná-lo mais atraente aos olhos dela.
Pode parecer espantoso que madame Thorpe que, no salão de costura, causava tão má impressão, fosse capaz de despedaçar o coração de um bom homem como o marido. Mas
os indivíduos têm tantas facetas como os olhos dos insectos e cada um só nota no outro as poucas facetas que estão voltadas para ele. Thorpe conhecia Lúcia; sabia
o que ela fora e no que se tornara. Via-a outra vez terna e tímida. A rapariga, com quem ele tinha casado, a jovem mulher que, por três vezes, tivera um parto prematuro
até que renunciara ao desejo de ter um filho, a boa camarada do seu difícil princípio de vida. A mudança tinha começado mais tarde, com o dinheiro que ele trazia
abundantemente para casa. Lembrava-se que lhe pedira, frequentes vezes, para se ocupar mais dela. "Mais tarde, mais tarde... ainda temos tempo" - respondera ele.
"A vida passa e nós não a gozamos" suspirava ela, e ele considerava isso uma injustiça do seu temperamento nervoso. Deu-lhe peles, jóias, um anel de esmeralda quando
fez quarenta anos. Em vez de se alegrar, ela tinha chorado. "Tu imaginas que a vida só é feita de segurança e de uma eterna partida de bridge,
dissera. Nessa época, aquilo havia-o surpreendido e encolerizado. Só agora começava a compreender. Um triste ressaibo era tudo quanto lhe restava do seu casamento
perdido.
- "Para que me hei-de preocupar com isso?" -repetia a si próprio. - Porque não arranjar a primeira distracção, que me aparece no caminho?"
Ao meio-dia desembaraçou-se da solicitude de miss Tackle e andou os três quarteirões que o separavam da Central. Hoje, o sol não brilhava, mas o ar estava pesado
sob um teto de nuvens que cobria o céu. Thorpe tomou o elevador até ao sexto andar e passeou o olhar, aparentemente distraído, pela secção de vidros e porcelanas.
Uma menina de aspecto rebarbativo ofereceu-se para o servir, mas não era isso que ele queria.
-Miss Bengtson não está? -preguntou-lhe sem rodeios. O chefe da secção aproximou-se e chamou em voz baixa: "Nina, Nina, um cliente para si-". A estas palavras, Thorpe
não pôde defender-se de uma lembrança cómica que se relacionava com uma casa célebre de Nova Orleans. "Nina, um comprador para si". De resto, era verdade; mas assim
que Nina apareceu, ele sentiu-se acanhado e não sabia bem o que dizer. "Um amigo aconselhou-me que me dirigisse a si; trata-se de um serviço de licores... vidro
sueco.."-balbuciou. "Vidro sueco?" - repetiu Nina reflectindo, emquanto três rugas lhe cruzavam a fronte... Ela tinha rosto de criança e corpo de mulher. Possuía
uma cor fresca e uma pele aveludada: irradiava mocidade e saúde. Um calor envolveu o coração de Thorpe, quando, atrás dela, se dirigiu para o lado dos copos de licor.
Emquanto o servia, ele tentou meter conversa, mas não foi longe. Não tinha prática e ela parecia séria e atenta ao trabalho. Enternecer um júri de coração duro,
era simples. Mas encontrar um princípio de conversa para uma caixeirinha de um grande armazém !.. Para lhe dar prazer comprou um serviço caro, de doze copos,
desejando, em silêncio, que ela tivesse uma percentagem.
- Está muito bem para esta secção -disse ele, emquanto Nina fazia tilintar com o dedo cada copo para mostrar que o cristal não estava rachado.
- Porquê ? - preguntou.
- Se lhe batessem assim, também, com o dedo, teria sonoridade, igualmente clara e fina. - disse Thorpe - Ela corou. "Não. Não diga isso..." -balbuciou com um sorriso
espantado. Não podia, no entanto, explicar à clientela, que só seu marido tinha o direito de lhe fazer reparos semelhantes. Thorpe passeou ainda um pouco, vendo
as jarras de flores e as fruteiras, achou tudo muito bem, prometeu voltar e por fim despediu-se descobrindo-se, o que mostrou ao mesmo tempo a Nina as suas boas
maneiras e a sua calvície.
Nina pensou em falar a Erik nesse amável cliente, mas não teve tempo. Esperou, como de costume, na escada 5, mas Erik não apareceu. O armazém esvaziou-se, ela ouviu
o andar dos empregados que saíam e o incessante pong pong pong do relógio do ponto, no pátio velho. Depois, tudo ficou silencioso, os elevadores deixaram de funcionar,
as luzes apagaram-se. Por fim, ouviram-se passos lá em cima, mas era só Pusch que lhe trazia uma carta. Curioso, ficou de pé junto dela emquanto a viu ler.
Gentil pardalinho,- escrevia Erick - estou condenado numa conferência interminável, peço-te que não me esperes, porque o caso não tem esperança. Vai ao cinema ou
ocupa a tua noite de qualquer forma distraída. Não te inquietes com o meu jantar, pois vou ao Rivoldi". Trezentos beijos da reserva.
Nas margens da carta, Erik tinha-se desenhado a chorar, apresentando um coração partido e assassinando o velho Sprague com um martelo. Embora ficasse aborrecida,
Nina não pôde deixar de rir.
-Não tem resposta, Pusch-disse. E depois de
dar um piparote nos caracóis inverosímeis do rapaz, foi-se embora.
- Meu Deus!-murmurou Nina, chegando à porta dos empregados e querendo sair para a rua.
- Sim, parece que chove, não é verdade minha senhora ? - disse o guarda Joé aproximando-se dela. Dentro do armazém dá-se pouco pelo ar e pelo tempo. Por uma ou duas
vezes Nina tinha notado uma crepitação semelhante a chuva, mas nunca esperara uma torrente de água comparada à que caía do céu. A rua estava deserta, largos regatos
corriam para os escoadoiros.
Gotas enormes estalavam no asfalto e uniam-se em milhares de pequenas fontes. Nina não tinha casaco nem guarda-chuva e olhava para o seu vestido bastante elegante.
Os quatro quarteirões que a separavam da estação do metro significavam catástrofe e ruína. Esperou um instante, viu passar diante de si vários autobus absolutamente
cheios, e, como aquilo parecesse não querer acabar, tomou uma decisão: "vou tomar um táxi até ao metro" pensou, e fez um sinal. Mas os motoristas dos táxis iam arrogantes
e irónicos, como sempre que chove. Continuavam o seu caminho, sem parar, limitando-se a salpicarem, com a água cinzenta das poças, as pernas de Nina. No próprio
momento em que ela ia a renunciar, surgiu um carro particular que parou mesmo diante da saída dos empregados... O senhor que ia no interior baixou o vidro e disse:
- Não poderei levá-la, menina? Embora esse convite fosse a coisa mais inocente e mais corrente em New-York, Nina respondeu como sua mãe lhe tinha ensinado em Houston,
Texas. - Muito obrigado, senhor, espero o autobus.
- Mas vai molhar-se, miss Bengtson! - teimou o senhor do automóvel.
E Nina reconheceu então o seu amável cliente da
tarde. Ele passou a cabeça calva pela portinhola e sorriu, com ar animador:
- Somos já velhos conhecidos ...
- Não sei... - respondeu Nina, hesitante.
Fazia frio, o lado direito do vestido estava já encharcado; o caminho até ao metro, debaixo de chuva, parecia de uma dificuldade insuperável. O que a levou a aceitar
foi o facto do senhor, deixando o abrigo do seu carro, sair de cabeça descoberta para a tempestade, abrindo a porta para ela entrar. "Vamos, suba. Não está tempo
para hesitações." - disse ele. E Nina subiu.
Lá dentro sentiu calor. O que primeiro caiu debaixo dos olhos de Nina foi um fresco ramo de junquilhos numa jarra; o aroma envolveu-a com a sua doçura cativante
e pesada.
- Onde quere que a leve ? - preguntou o sr. Thorpe.
- À primeira estação de metro, - disse Nina.
- Onde mora ? - informou-se Thorpe. Nina deu-lhe a sua direcção.
- Mas então é muito simples, eu passo em frente da sua casa e deixo-a lá.
O motorista guiou habilmente através das filas de automóveis; a chuva batia, impaciente, no teto do carro, os junquilhos cheiravam bem.
- É muito gentil da sua parte - agradeceu Nina. E Thorpe respondeu:
- Mas absolutamente nada... nada ...
Agora que tinha a rapariga tão perto de si, não sabia como poderia avançar mais ainda. Ela parecia séria, sentia que tinha de agir com prudência. - "Está molhada ? - preguntou, tateando o ombro do casaco de Nina. Ela encolheu-se imediatamente para um canto do carro. - "Não, obrigada" - disse. Até ao Central Park foram calados;
ao princípio o silêncio era opressor.
- "Onde pôs os lindos copos que comprou?" - preguntou a rapariga. Thorpe tinha deixado o serviço de licor no seu gabinete de trabalho. - "No escritório. - disse
-Sou advogado. Chamo-me Steve Thorpe . Nina esboçou um pequeno cumprimento. O auto avançava pela rua 62ª para a Riverside Drive. Agora chovia com mais força e, regularmente,
o asfalto parecia um mar cheio de luzes. - "Quere realmente ir para casa?" - preguntou Thorpe. - "Para onde hei-de ir ?" - exclamou Nina, surpreendida.
- Mas há mil coisas agradáveis a fazer numa tarde de chuva. Bar, cinema, concerto. A menos que a esperem ?
Emquanto Thorpe fazia esta pregunta, Nina entristeceu um pouco: era a quarta noite passada sem Erik.
- Não, ninguém me espera. - disse rapidamente.
- Temos então a mesma sorte. - replicou Thorpe. Olhou-o de revés. Ele pareceu-lhe muito velho, com a cabeça calva e uma ruga de preocupação ao canto da boca.
- Numa cidade tão grande há muita gente só. disse ela, sem querer.
Thorpe concordou com calor e no meio da conversa, obliquavam para a avenida de Fieldston, semeada de árvores. ?
- Como vê, levo-a conscienciosamente para casa. - , disse Thorpe - Mas é uma vergonha! Vai ficar lá sozinha e eu ficarei mortalmente melancólico. Porque não vamos
jantar juntos e passar a noite num cinema? Que lhe parece? Gosta do Gary Cooper?
Nina, tal como milhares das suas irmãs americanas, era louca por Gary Cooper e tanto mais que ela achava o Erik parecido com Gary. Erik também era alto magro e tinha
as faces vincadas e um ar desdenhoso quando julgava que ninguém reparava nele.
-Gary Cooper? Mas é o meu sonho! -disse ingenuamente.
Thorpe compreendeu mal a expressão sonhadora e abandonada do seu rosto que espiava à luz de um candeeiro emquanto, num cruzamento, esperavam que se
restabelecesse o trânsito. Aproximou-se dela e procurou-lhe a mão.
- Está entendido que vamos passear juntos? - preguntou, entusiasmado. Nina desprendeu-se, pôs-se logo a rir e repeliu-o sem o melindrar, mas muito claramente.
- Que imagina? - disse - Eu sou casada.
Thorpe não estava em disposição de se deter por semelhante dificuldade.
- Isso não tem a menor importância. - replicou Cada um de nós é mais ou menos casado, emquanto isso dura...
Sem querer, o seu tom tornou-se amargo e Nina reparou.
- Não o queria magoar. Tem sido tão amável comigo... - disse ela, preguntando a si própria se devia ou não descer.
- Somos ambos casados e estamos ambos sozinhos esta noite. E eu não acho isso bem.
Estas palavras atingiram o ponto vulnerável do coração de Nina, o ponto que lhe doía e onde reinava a ansiedade.
- Meu marido trabalha de noite. - disse vivamente.
Thorpe calou-se, mas com a expressão duma pessoa que sabe mais do que diz. Subitamente, sem ele mesmo saber como, encontrou-se a falar:
- Criança ... Criança... è muito nova, imagina ainda que o casamento é qualquer coisa de sagrado, de importante... toda a maçada do catecismo. Olhe à sua volta:
qual é a união que se possa garantir que não será um dia anulada ou quebrada -ou que não se transforme num verdadeiro inferno? O casamento! Uma bela instituição
que nós arrastamos, na nossa civilização. Poderia dizer-lhe como certos casamentos acabam pouco a pouco, a-pesar-da boa vontade dos cônjuges. Eu também já fui um
jovem casado, minha mulher era fresca e pequenina como a senhora é agora. Podia contar-lhe o que aconteceu depois... ao casamento e à mulher...
Nina ouvia sem dizer palavra. Aquele homem causava-lhe pena e ela acabara de o repelir ! Continuou a falar de si, da sua casa vazia, dos seus dois cães. Não podia
dormir, dizia, e os fins de semana eram tão longos!... Como era doloroso estar só! Por isso é que procurava... sem más intenções, um pouco de companhia.
Steve Thorpe podia fazer chorar os júris e saber encontrar, para os piores adversários, terrenos de entendimento, mas, como sedutor de mulheres, não tinha a menor
experiência. Outro qualquer ocultaria a Nina que era casado e ter-lhe-ia oferecido um anel de brilhantes, uma viagem à Flórida, e tentaria fazê-la beber. Foi justamente
porque ele não o fez, porque tudo quanto dizia, tinha um tom de verdade e despertava compaixão, que Nina foi tão confiante. Haviam já passado a casa de Bradley e
Nina não mandara parar. Parecia-lhe indelicado, impossível, interromper as recordações desse homem solitário e dizer-lhe: "Muito obrigada, cheguei a minha casa."
A chuva cessou e os junquilhos pareciam adormecidos. Assim que Thorpe deixou de falar, tirou o lenço e limpou a testa. O advogado mostrava-se infeliz e fatigado.
Nina olhava-o: "Pois bem, iremos jantar juntos e depois passaremos a noite no cinema. ouviu-se ela dizer subitamente. Surpreendeu-se, mas sentiu um sentimento ardente
ao pensar que alguém pedia o seu socorro e, na verdade, uma expressão de incomparável alegria inundou o rosto do seu companheiro.
Fez o carro dar meia volta e voltar para trás. Comeram num restaurante chic, ao pé de Grants Grab, e depois foram a um cinema de Broadway onde puderam ver um filme
de Gary Cooper. Thorpe portou-se impecavelmente e esteve satisfeito toda a noite. Estar feliz é uma coisa, e a paz sentida, depois de uma dor de dentes, é outra.
Parecia a Thorpe que o tormento ocasionado pelo casamento falhado, tinha cessado definitivamente ; sentia-se ainda um pouco fatigado, mas leve e livre.
Quando, mais tarde, convidou Nina para um bar, ela agradeceu delicadamente. Rolaram então, de novo ao longo da Riverside Drive, para Fieldston.
Seria uma ofensa para a sua mão se eu a agarrasse ?
- preguntou ele, sorrindo - E Nina sorriu também, respondeu que não e assim foram em silêncio. Nina pensava em Erik e em Gary Cooper; ele, em nada, nem sequer em
Lúcia. Sentia apenas o seu próprio pulso bater docemente contra a luva de Nina.
Quando ela chegou a casa, esperava-a uma surpresa. Erik tinha voltado. Estava no quarto, por baixo de um dos macacos, e parecia zangado.
- Já cá estás ? - preguntou ela, tolamente.
- Tenho vagamente essa impressão. - respondeu ele sem levantar os olhos. Acabava uma paciência complicada.
- Pensei que não voltasses antes da meia-noite... disse Nina, sem se atrever a beijá-lo.
- Matei o sr. Sprague, escondi o seu cadáver no subterrâneo, voltei para casa mais cedo e não te encontrei !
Via agora que ele não estava zangado.
- Onde estiveste, mulher ? - preguntou no tom das comédias francesas.
- Fui ao cinema, tinhas-me escrito dizendo que fosse ao cinema...
- Esposa obediente. - disse, aproximando-se dela E voltaste de táxi ? Ouvi parar um carro.
- Trouxeram-me de automóvel, por causa da chuva. uma senhora... - disse Nina.
A primeira mentira, que dizia depois do seu casamento, saiu sem esforço. Mal deu por que tinha mentido. Uma hora mais tarde, esquecera Thorpe, e o advogado não lhe
voltou a acudir ao espírito, senão no dia seguinte à chegada à Central, quando Joé lhe entregou um ramo de junquilhos e um cartão: "Obrigado pelo bom serão e até
breve."
Nina estava terrivelmente embaraçada. Erik encontrava-se a seu lado, cheirava os junquilhos olhando para o cartão e para a mulher.
- Foi alguém que me viu na vitrina.- balbuciou.
- Tem sem dúvida uma alma terna. - respondeu Erik, que parecia divertir-se prodigiosamente.
Depois não falaram mais no incidente.
TODOS os anos no mês de Maio, o Central-Club alugava um desses barcos especialmente apetrechados para reuniões amigáveis, que estão ancorados em East-River. E, por
uma noite de lua cheia e de bom tempo, organizavam um baile, emquanto o barco, lentamente, lentamente, subia o rio; primeiro ao longo dos arranha?céus de Manhattan
até ao Schiffs canal, depois voltando por Hudson até por detrás da ponte Jorge Washington, entrando por Downtown.
Muitas semanas antes, o armazém estava em efervescência, mas essa noite não era uma coisa sem importância na vida dos empregados. A lua cheia, o mês de Maio e o
bom tempo! Música e dança! Flirts e namoricos ! E a esperança de qualquer coisa inesperada e maravilhosa, sempre escondida no fundo do coração da gente modesta.
O aprendiz Pusch, por exemplo, mandou para uma certa morada 35 cêntimos e um boletim que cortou de uma revista. Em troca, recebeu uma brochura de cultura física
que prometia torná-lo em seis semanas, um verdadeiro Golias. Além disso, usou um creme garantido, com promessa de reembolso, se as sardas não desaparecessem, como
por encanto.
Madame Chalon mandou pintar as unhas dos pés vermelho escuro, Deus sabe com que esperanças. O sr. Berg tencionava festejar no barco o seu noivado
com uma senhora de Brocklyn, filha dum dentista judeu. Infelizmente, o noivado desmanchou-se antes da festa e Berg teve de se portar impecavelmente com uma caixeira
da secção de perfumaria. Efectivamente, ele tinha por princípio nunca se abalançar a tais coisas na sua própria secção. Toughy, o novo chefe detective, foi assediado
com quatro semanas de antecedência, por convites para danças. Prometeu a doze damas diferentes os seus favores para o serão e pediu a Filipe para o substituir nessa
noite, na Central. Quanto ao sr. Crosby, procurava, lá no alto da sua torre, um pretexto para não tomar parte na festa. Esse baile parecia-lhe uma demonstração demasiadamente
democrática, mas os empregados contavam absolutamente com a presença do grande Director da Central. Erik aceitou os setenta dólares que Nina lhe deu de presente
no dia dos seus anos, mas não dispôs de nada para a compra do automóvel. Pagou algumas dívidas e tirou o smoking do Montepio onde estava havia muito, acumulando
juros. Nina teve uma certa decepção, pois sabia quanto ele desejava um carrinho, mas por outro lado ficou orgulhosa que seu marido não quisesse dever nada a ninguém
e que possuísse um smoking. Erik estivera três anos desempregado, antes de consentir em renunciar ao seu sonho de ser pintor, e vender-se como decorador da Central.
Ganhava apenas dezasseis dólares por semana, pois consideravam-no como um principiante, um decorador sem experiência. Por isso é que tinha dívidas. Fez várias proezas
com os seus setenta dólares, pois ficou-lhe dinheiro ainda para comprar um vestido para Nina que ele mesmo escolheu: azul-claro, com um bordado, a prata, no cinto.
Nina sentia-se orgulhosa, mas não completamente feliz. Erik tinha mudado um pouco nas últimas semanas, andava nervoso, distraído, fazia muitos desenhos em papéis
que logo rasgava e deitava fora, encolerizado.
- Tua mãe não vem, em breve, a New-York? - preguntou Nina.
- Que queres tu a minha mãe ?
- Oh! Nada ... nada ... era cá uma idea.
Na verdade, gostaria de pedir conselho à enérgica e original condessa, sobre a forma de tratar o seu genial filho, principalmente para o fazer feliz.
Pouco antes da grande noite, aconteceu Steve Thorpe convidar Nina para um cocktail em sua casa, oficialmente, com o marido. O seu início de relações com ela não
tinha ido longe, mas também não se quebrara. Assim que se sentia infeliz e os seus espectros particulares vinham visitá-lo", ia até à Central Warehouse e comprava
coisas inúteis na secção de louças e vidros. Uma colecção de copos e jarras de todos os feitios acumulava-se já no seu escritório e miss Drivot não deixava de fazer
reparos irónicos a respeito dos clientes assíduos de Nina. De vez em quando, Thorpe fazia a Nina uma amabilidade: dois bilhetes para um concerto, (a que ela ia com
Erik, sem nada compreender) duas flores para pôr ao peito, um livro. Também a esperava muitas vezes no seu carro diante da saída dos empregados. Se ela saía com
Erik, levava amavelmente a mão ao chapéu e ia-se embora. Se saía só, então conduzia-a a casa; uma vez, mesmo, Nina acompanhou-o até White Plains. Tinha visto a casa
por fora, brincado com os cães bassets, que correram do fundo do jardim, mas recusou-se a entrar. Uma noite resolveu ser franca e confessou a Erik toda a história
inocente e oculta. Ele riu com gosto. "Nina, Nina, Lille Spurv, és uma grande màzinha". - disse "Passeias com senhores ricos, emquanto o teu marido trabalha. Uma
planta gangrenada da grande cidade, eis o que tu és."
Nina ficou desiludida. Tinha esperado outra coisa; ciúme, lágrimas e perdão, para terminar. Pelo contrário, ele tinha-lhe chamado Lille Spurv... O meigo nome fora
quási esquecido depois do casamento. Foi assim que Nina apresentou ao marido o advogado, uma tarde,
à saída, e que os dois homens trocaram algumas palavras amáveis.
Durante três dias, New-York ardera em calor, embora Maio mal tivesse começado, e fosse já de noite que a Central fechasse. Thorpe apertou a mão de Erik e convidou-os
para um cocktail em sua casa, na quarta-feira seguinte. Erik aceitou com entusiasmo. - "É um homem encantador. - disse ele a Nina - Deitaste a mão a alguém de primeira
ordem." Nina era jovem e vinha de Houston, Texas. Não compreendia de forma alguma esse laissez-faire, laissez aller, do conde Bengtson que vinha da maturidade, do
cansaço de um sangue velho.
Na quarta-feira, Erik não pôde libertar-se. A direcção tinha dado ordem para alterar completamente a secção de arte. Queriam fazer liquidação, e o sr. Sprague e
Erik tinham por missão dispor as coisas de uma Forma agradável e atraente nas montras de baixo: os irremediáveis bibelots, pinturas a óleo e estatuetas de bronze.
O velho quási chorou, assim que Erik disse que tinha um convite; Sprague portou-se como Cristo no jardim das Oliveiras: "Não poderá velar uma noite comigo ?"
- Ora que maçada! - disse, no vestiário das senhoras, Nina a Liliana, que se preparava - Erik não pode vir e Steve Thorpe está à nossa espera.
- Quem é que te espera ? - preguntou Liliana, deixando o seu bâton.
- O velhote, aquele que tem uma paixoneta por mim. Já te contei.
- Como lhe chamaste?
- Thorpe. Steve Thorpe.
- É o marido da nossa cliente ?
- Não sei. A mulher pediu o divórcio.
- Gostava de o conhecer... - declarou Liliana.
- Imediatamente, se quiseres. - respondeu Nina.
Cinco minutos mais tarde, rolavam as duas no automóvel de Thorpe para White Plains. Liliana ia alegre e faladora. Nina continuava calma. Thorpe sentia-se pouco à
vontade entre as duas raparigas. O carro depressa se impregnou do perfume de Liliana.
É difícil dizer porque Liliana mostrava tanto empenho em conhecer Thorpe. Sem dúvida tinha, sem dar por isso, o desejo de conhecer o homem que comprara o anel de
esmeralda, o anel que ela escondia em casa, nos colchões. Era um instinto de mulher, um instinto de caça, um instinto de prostituta. O homem que dava anéis a madame
Thorpe e fazia a corte a uma mulherzita como Nina, devia ser uma presa fácil. O seu melindre de amor-próprio não havia desaparecido, esse de Nina ser exposta na
vitrina e ela não! Que Nina se tivesse casado e ela não! Que Nina fosse cortejada por um homem rico e ela não! Era demais.
Ia roubar a Nina esse homem, que lhe havia de dar os anéis que ela quisesse e quando quisesse. Emquanto subiam o Grand Concourse, ela julgava o homem: a sua idade,
a sua calvície, o seu ventre. Era preciso que fosse rico para compensar o que lhe faltava. Avaliou a casa, os criados, o whisky. Liliana tinha crescido nos bairros
pobres, mas nascera com o instinto do luxo. "À nossa boa amizade!" -disse, com intenção, levantando o copo ao mesmo tempo que Thorpe. Ela chamava-lhe Steve, simplesmente,
embora apenas o conhecesse havia meia hora. Deu volta aos botões do rádio e fez alguns passos ondulosos de dança, ao ritmo da música. Exibia assim a sua coleante
linha de anos, como no armazém.
Durante esse tempo, Nina brincava com Max e iMoritz. Thorpe foi ter com ela, ao seu canto: "Quem é esta rapariga?" - preguntou.
- Liliana? A mais linda rapariga da Central. - disse logo Nina.
- Não gosto dela.
Às nove horas, Nina começou a bocejar e Thorpe propôs imediatamente levar as duas a casa. Desta vez, foi ele mesmo que guiou, tendo mandado Tony embora. Era um motorista
exageradamente prudente e lento. Durante todo o tempo, Liliana reflectiu sobre o que seria de melhor política: continuar só com ele ou descer com Nina. Ela não queria
que ele soubesse que morava na 122ª rua do bairro Leste. Tendo notado que a expressão do advogado, de minuto a minuto se mostrava mais fatigada, preferiu descer.
"Posso dormir em qualquer parte em tua casa?" - preguntou à amiga.
- Certamente, - respondeu Nina, contra vontade. -Boas-noites e obrigado pela vossa visita - agradeceu Thorpe, retendo um segundo a mão de Nina, quando ela descia.
No derradeiro momento, Liliana teve uma idea genial.
- Porque não convidamos Steve para o nosso baile? Seria admirável! - disse.
- Não sei se o sr. Thorpe gosta dessas coisas... respondeu Nina, hesitante. O advogado pediu pormenores do baile do Central-Club e confessou, com entusiasmo, que
morria de desejos de ir. Pobre Steve Thorpe! Aproveitava todas as ocasiões que o afastassem de sua mulher e o aproximassem de Nina.
- Combinado. - disse Liliana - Será o meu par e faremos ciúme a todas. "Fazer ciúme . Era bem uma idea de Liliana.
Assim que entraram em casa cheirava a naftalina. A sr.a Bradley ocupava-se em modernizar um vestido de seda preta, de noite, que lhe restava de melhores tempos.
Skimpy, excitada, estava sentada ao pé dela, a costurar. Nina tirou o seu vestido azul prateado do armário para o mostrar a Liliana, assim como o smoking de Erik,
que saíra do Montepio, e no qual ela tinha certo orgulho.
No dia seguinte, Erik trabalhou na cave, onde se encontravam os manequins da exposição. Estavam a oito dias do baile. O decorador colocara cinco bonecas na ordem
em que mais tarde seriam postas na montra e arranjava-lhes a atitude, abandonando o cigarro. Liliana entrou, seguida de Pusch que trazia um carregamento de vestidos
de verão.
Já não precisamos de si, Pusch - disse Liliana, logo que ele pousou o fardo.
No depósito de manequins era sempre noite; as lâmpadas eléctricas estavam acesas, o ar descia por tubos e havia o mesmo cheiro que no metro. "Trago os vestidos para
a montra 11" - disse Liliana colocando-se diante de Erik. "Grande honra".-disse ele-E, pegando num dos vestidos, sacudiu-o diante de si. As bonecas estavam à sua
volta e sorriam. "Queria falar-lhe a sós". - murmurou Liliana - Erik ergueu vivamente os olhos. Havia qualquer coisa na atmosfera - entre ele e Liliana - uma espécie
de inconfessada tensão. Ele pousou o vestido e sentou-se na borda da mesa.
- Onde é que se vai quando se quere empenhar qualquer coisa?-preguntou Liliana.
- Quere dizer que nunca pôs nada no prego ? exclamou ele.
- Não. É o meu primeiro ensaio. Mas gostaria de ter um lindo vestido para o baile.
- Eu costumo ir sempre à 6.a avenida, mas ouvi dizer que se encontra melhor na 2.a avenida. - disse Erik - Se quiser, passamos por lá depois de fecharmos. As casas
de penhores estão abertas até às sete horas.
- Obrigada. - agradeceu Liliana - Pediu mais alguns nomes e moradas e foi-se embora.
- Inscrevo-me para a primeira dança. - gritou Erik, atrás dela - Depois, voltou aos manequins. Às vezes estava tão farto de armar montras que tinha vontade de gritar.
No dia seguinte, à tarde, Liliana, hesitante, tomou o
caminho da 6.a avenida. Três vezes passou de largo sem ousar transpor o limiar da loja. Tinha a direcção de memória. Corria um perigo e sabia-o. Interiormente tremia,
mas era uma particularidade do carácter de Liliana: excitava-a o perigo.
Aspirou o ar quando entrou - havia ali o odor dos fatos muito usados. Objectos de todas as espécies jaziam um pouco por toda a parte - tudo parecia impreciso e apagado.
O homem pôs uma lente na órbita e examinou o anel. Que calma! Podia ouvir se o tique-taque do relógio.
- Quanto quere ? - preguntou o prestamista.
O coração de Liliana batia com tanta força, que ela podia ouvi-lo.
- Ignoro o valor do anel, foi um presente. O homem não desviou o olhar da pedra.
- Posso dar-lhe seiscentos dólares. - disse ele, de pois de um longo silêncio. A soma, importante e inesperada, caiu, grande e pesada, sobre Liliana.
- Sim ? - murmurou.
- É uma bela esmeralda. - afirmou o homem. Durante um instante, Liliana esperou que polícias
surgissem de cantos imprecisos da casa, para a prenderem.
- Só me quero separar dele por pouco tempo - disse, sem fôlego.
O prestamista tirou a lente e olhou-a.
- Precisamos dum documento. - esclareceu - É da lei... Seja qual for... passaporte ou bilhete de identidade ...
Liliana tinha um: todos os empregados da Central possuíam um cartão azul num sobrescrito de celofane. Parecia-lhe sentir o cartão como qualquer coisa de quente,
no seu saco, que ardia através do coiro. "Não tenho... não se pode dispensar?"
-Lamento, mas é impossível, - disse o homem e
Liliana iliana sorriu: os artifícios aprendidos na escola de manequins vieram em sua ajuda.
-Corro a casa a buscar o meu cartão.-disse-Daqui a dez minutos estou de volta.
Se vai de-pressa, fecharei a loja um pouco mais tarde - disse o prestamista, estendendo-lhe o anel. Bem; tinha outra vez o anel, não havia a menor suspeita, nenhum
polícia seguia Liliana, emquanto ela corria à próxima estação de eléctricos. Nesse instante, quási odiou o anel.
Era como uma obsessão, precisava desembaraçar-se daquela jóia que não lhe servia de nada, precisava comprar vestidos novos, precisava de ser a mais linda rapariga
do baile. Era uma ocasião maravilhosa: iriam vê-la, emfim, os dirigentes da Central que sairiam da sua torre de marfim e vagueariam entre os mortais. Liliana não
dormia: tinha as faces afogueadas, o rosto emmagrecido.
Três dias antes do baile encontrou-se na 2.a avenida; subiu a rua, lançou um olhar para a casa de penhores e por fim entrou resolutamente.
Aí era uma mulher que tratava do negócio, uma velha muito pintada. Outra vez a lente, o cheiro sujo a vestidos usados, a desordem, a tensão silenciosa.
Dois homens estavam encostados ao balcão, e olharam para Liliana com um olhar investigador, como se fosse um objecto.
- Pois bem, - disse por fim a mulher - dou trezentos, por ser a si, Como entrou em posse deste anel ?
- Um presente. - disse Liliana.
- Deve saber da coisa, para o seu amigo lhe dar presentes destes. - notou a mulher - A mim não mo davam.
Liliana forçou-se a sorrir.
-Posso acompanhá-la, menina?-preguntou um dos homens - Era alto e tinha os lábios inchados.
- Obrigado, tomo um táxi. - disse Liliana - Entretanto, a mulher havia lido um papel.
- O bilhete de identidade? -disse ela em tom indiferente.
- Diabo, nem pensei nisso! Não o trago comigo disse Liliana.
- Nem nada ? Veja na sua malinha. - aconselhou a mulher - Liliana pôs a malinha em cima da mesa e esvaziou-a.
- Tem aqui uma carta. - disse a prestamista - Os dois homens aproximaram-se e olharam.
- Sim, - disse Liliana - e esta carta basta ?
- Nós não somos exigentes; é apenas uma formalidade.-respondeu a mulher -Leu a direcção e copiou-a num livro: Madame Adriana Chalon, 367, West 72.a Street, City
Apartments.-Francesa? -preguntou a prestamista. Era um pouco estrábica, Liliana só então deu por isso.
- De origem francesa; meu pai veio do Canadá elucidou Liliana.
Ela tinha tirado do cesto dos papéis um envelope enviado à directora detestada. Assim que todas as formalidades foram preenchidas, e que meteu na malinha os trezentos
dólares, sentiu o mal que lhe ia no estômago.
- Voltarei a buscar o anel - disse fracamente.
- Dez por cento de juros pagáveis todos os meses - explicou a mulher.
- Um cigarro ? - ofereceu um dos homens. Era alto, novo e seria belo se a boca fosse menos vulgar.
- Obrigada.-respondeu Liliana-Embora tivesse uma frenética necessidade de fumar, rejeitou a oferta. Ding-ding-ding fez o relógio da loja emquanto ela saía.
- Bela rapariga! - exclamou o homem.
- Podíamos, justamente, precisar dela - disse o outro mais baixo que parecia um grego ou um arménio, negociante de frutas.
-Como pode uma mulher destas ter semelhante esmeralda ? - preguntou a prestamista, tornando a pegar na lente.
- Não está na lista ? - interrogou o rapaz bonito.
A mulher tornou a ler as folhas impressas e já meio apagadas: era a circular da polícia assinalando os objectos roubados com ordem de não os adquirirem.
- Não. - respondeu a mulher, terminando.
Donde lhe pode ter vindo o anel ? - repetiu o mais baixo dos homens.
O outro pôs-se a assobiar uma melodia sentimental.
- Veremos - disse subitamente. E, tirando as mãos dos bolsos, seguiu Liliana.
A lua brilhava, o tempo estava belo e dançava-se no tombadilho. A orquestra, embora composta apenas por quatro músicos, era excelente por fazerem parte dela dois
cubanos e um russo; os cubanos forneciam o ritmo, o russo a sentimentalidade. O sr. Crosby tinha-se, finalmente, resolvido a vir; estava até de casaca. Sentado em
baixo, no pseudo salão, onde a Central-Club lhe tinha preparado uma espécie de trono, bebia café, no qual, cuidadosamente, havia deitado dois comprimidos de sacarina.
De cada vez que absorvia um gole, agitava-se contrafeito. Steve Thorpe também viera. Vestia um fato de flanela cinzenta, pois nunca pensara que a gente da Central
desse um baile tão solene. Tinha trazido flores para Nina e Liliana. Como Nina já as tinha recebido de Erik, o decote do seu vestido desaparecia sob as flores. Erik
estava de smoking, com um cravo vermelho na lapela. Dir-se-ia que acabava de sair da mesa do rei da Dinamarca; era essa pelo menos, a confusa impressão de Nina.
No fundo, ela não sabia bem, se a Dinamarca tinha rei ou não.
Erik dançou com Liliana, depois com Nina, depois outra vez com Liliana. Elegante e digno, dançava primorosamente e Nina parecia inferior a seu lado. Os passos da
jovem revelavam ainda a sua origem de Houston, Texas, onde seu pai às vezes a levava a reuniões de sociedades. Ela sentou-se numa cadeira, no tombadilho,
ao pé do reeling, a ver. Que Erik dançasse menos com ela do que com Liliana era natural, não era? Se eram
casados...
Liliana estava encantadora com o seu vestido branco. Era um vestido sem enfeites, de linhas muito simples mas um vestido tão distinto e caro que não podia ter sido
comprado no salão da Central. Madame Chalon, que estava enfiada num vestido cor de tijolo, apalpou às escondidas, o tecido: "É o que eu disse sempre, é preciso saber
usar um vestido!"- disse ela - "Trinta e nove a cinquenta?"
- Cento e sessenta e cinco. - lançou Liliana, afastando-se pelo braço do chefe do pessoal. Madame Chalon levou bem uma hora a engulir a soma.
- Que quere beber, Nina ? - preguntou Thorpe.
- Qualquer coisa ... não muito forte porque me faz
sono - respondeu Nina.
Thorpe olhou-a; ela não parecia ter sono, parecia, pelo contrário, uma criança sobreexcitada por estar acordada até muito tarde. Os seus olhares seguiam Erik
pelo tombadilho.
- Vamos dançar ? - convidou Thorpe - Eu danço
muito mal.
- Eu também, - respondeu Nina.
Dançaram, mesmo assim, sempre à roda do tombadilho. Os cabelos de Nina tinham o cheiro da mocidade, sem que ela os perfumasse. Thorpe apertou-a um pouco contra si:
"Está-se bem aqui" -disse.
Quando a orquestra lançou as primeiras notas de um tango, todos os pares foram para as suas cadeiras ou para o bar improvisado. Só alguns inocentes pares abandonados,
continuaram a tropeçar no seu fox trot, sem saberem porque os seus passos já não iam a compasso.
- Tango! - exclamou Erik -Quem dança o tango?
Parecia de excelente disposição e no seu elemento. "Não bebas muito, querido". - segredou-lhe Nina, quando
ele se sentou um instante ao pé dela. - "Obrigado pelo conselho" - respondeu, muito frio. A observação pareceu encolerizá-lo excessivamente - "Quem dança o tango?"
- preguntou outra vez, fazendo das mãos porta voz. "Porque gritas tanto, Baby?" - preguntou Liliana, muito junto dele. No dia do casamento tinham combinado tratar-se
por tu, mas depois trataram-se sempre por você. Erik voltou-se bruscamente quando ouviu o tu.
- Embriagada, também ? - preguntou. Sem responder, Liliana abandonou se nos seus braços para o tango; ele inclinou a cabeça paralelamente à sua, como fazem os pares
célebres, no casino... Sob a mão, que encostava às costas nuaS, sentiu que ela tremia. - "Que é isso, Liliana?" - preguntou em voz baixa. A vibração do corpo da
jovem mulher contaminou o, entrou nele, nada podia fazer contra isso. - "Nada ... Porquê? Sinto-me feliz esta noite, mais nada" - murmurou ela. - "Sério?" - disse
ele. Dançaram. Nina estava sentada com Thorpe ao seu lado e observava o tango. Alguns dançarinos, entre eles Cromwell com uma rapariga da secção de perfumaria, continuavam
ainda na pista. Mas, ao fim dum instante, pararam todos para contemplarem os dois jovens. - "Um belo par!" -disse a sr.a Bradley, na ingenuidade do seu coração,
ao sr. Berg. Ela vestia o vestido de seda preta que, a-pesar-de tudo, estava ainda muito largo. - "Se nós descêssemos? Aqui começa a estar fresco" - propôs Thorpe
a Nina, depois de lhe ter estudado a expressão.
- Logo que o tango acabar... é tão bonito, não é?
- respondeu ela sem despregar os olhos de Erik e Liliana. Assim que o tango acabou, todo o tombadilho se posa aclamá-los e a bater palmas.
Levantando a cauda do seu vestido branco, ela desapareceu à maneira de uma artista depois da representação.-"Agora, sim, gostaria de beber qualquer coisa" disse
Nina a Steve Thorpe.
O sr. Crosby, no interior do barco, fazia justamente algumas tentativas de despedida. Gostaria de ir para casa e, por isso, de fazer parar o barco no Shiffs-canal.
- "Uma noite encantadora - disse ele à comissão que estava diante de si - mas eu estou doente, queiram desculpar-me."
Insistiram para que ficasse ainda, pois devia coroar a rainha de beleza, a mais bela rapariga que estivesse a bordo e, ao mesmo tempo, a mais bela rapariga da Central.
Resignado, vestiu o sobretudo e seguiu os delegados para a ponte onde, justamente, alguém espetava números nos vestidos das jovens mulheres colocadas numa longa
fila. Liliana tinha o nº 17, Nina o nº 4.
- Boas-noites, sr. Crosby- disse a sr.a Bradley, avançando para o campo visual do todo-poderoso. Ele tentou recordar-se. - "Sou a sr.a Bradley" - disse ela. "Bem
sei, desculpe, a minha vista vai enfraquecendo. Porque razão veio à nossa humilde reunião, sr.a Bradley?" - preguntou Crosby. Há muito tempo já que ele tinha esquecido
que dera à viúva do seu antigo camarada de club um emprego, na secção de embalagem. A sr.a Bradley desapareceu. Não se sentia doente nessa noite, mas sentia-se oprimida
com receio de que as dores voltassem de um momento para o outro.
- Olá, Crosby - disse Thorpe com um chapéu de papel na cabeça calva e um pequeno torniquete na mão.
- Meu Deus, que faz você aqui, Thorpe ? - exclamou o sr. Crosby para quem se tinha, entretanto, arranjado um novo trono. - Ele deixou-se cair emquanto a música tocava
e as raparigas numeradas começavam a andar à volta do tombadilho.
- Tenho amigos entre os seus empregados - respondeu Thorpe.
- Amigos ou amigas ? - preguntou Crosby.
- As duas coisas.- replicou o advogado. O seu olhar seguiu Nina, a sua figurinha leve, o seu sorriso ingénuo, os seus olhos que estavam húmidos de lágrimas
ao mesmo tempo cheios de espectativa, como se um grande divertimento ainda devesse chegar.
Já pensou alguma vez nisto, Crosby? - continuou Thorpe - Você tem uma casa cheia de coisas para vender e sofrem que se fartam para as vender, não é verdade ? NO
entanto... há na Central coisas que não se podem comprar... Crosby olhou na mesma direcção que o seu amigo e viu Nina. Não compreendeu completamente.
É uma reclamação ? - preguntou ele a Thorpe, com um vago sorriso.
Por fim compreendeu:
- Voto no nº 4.- insinuou -Não acha que é a mais bonita?
- Eu voto com certeza no nº 4.
O enfeite prateado do vestido de Nina cintilava, quando ela respirava, e as flores começavam já a murchar na noite quente.
Embora a eloquência de Thorpe levasse alguns a votarem em Nina -por exemplo o velho Sprague, que, de resto, estava completamente embriagado e Berg, o chefe de secção
e o próprio sr. Crosby, foi no entanto Liliana a eleita por uma esmagadora maioria. Sem admiração nem acanhamento, ela deixou porem-lhe na cabeça a coroa de papel,
apertou a mão de Crosby e, com o seu passo firme de manequim, deu mais uma vez volta ao tombadilho para se mostrar a todos. Os quatro músicos tocavam em surdina.
Bruscamente, Erik levantou-a muito alto para que toda a gente a pudesse ver.
O sr. Crosby voltou para casa, quere dizer que o barco parou alguns minutos à entrada da 225.a rua, e depois, vogou para mais longe. O sr. Thorpe ficou. Preocupava-o
Nina que murchava a olhos vistos, como as flores que tinha ao peito. De vez em quando, Erik passava como um vendaval, gritando: "Divertes-te, Lili Spurv?" E desaparecia
no turbilhão dos pares. "Não sejas idiota, monologava em pensamento o advogado,
Eis uma ocasião única para ti. A rapariga está um pouco embriagada e o marido abandona-a; ocasião mais favorável do que nesta noite não torna a aparecer." Dançou
outra vez com Nina; pesava inteiramente sobre ele, por leve que parecesse. Sob um lampião encarnado, ele beijou-a. Ela quási não se defendeu, disse apenas: "Tudo
isto é um disparate, Steve" e a sua voz estava fatigada. "Vamos beber um pouco mais?" - propôs ele cheio de esperança, levando-a ao bar.
Erik e Liliana estavam de pé, por baixo da escada que ia dar à ponte particular do capitão. Entrada rigorosamente proibida. Ninguém devia passar por ali; viam-se
as luzes de Manhattan na outra margem, a lua reflectia-se na água dando-lhe um aspecto metálico.
- Que se passou em ti, Liliana ? Pareces outra ..- notou Erik. E Liliana sorriu, orgulhosa.
- Deitei ao caixote os meus vestidos velhos, simplesmente. Vocês têm realmente olhos?
- Vocês, quem, nós?
- Vocês, os homens.
- Prefiro ser tratado como simples indivíduo,- resmungou ele.
Era um pouco forte para Liliana. Ele meteu o braço no do manequim. "Tens frio? -preguntou.
- Não, pelo contrário, tenho febre.
E dizia a verdade: havia semanas que ela tinha um pouco de temperatura. Sentia arrepios ao longo da coluna vertebral, mas as faces e as mãos escaldavam. Era devido
ao anel e às coisas perigosas e anexas que se tinham seguido.
- A tua febre é contagiosa. - ciciou Erik. Ele bebera, não muito, pois não gostava de cocktails, mas o bastante para estar alegre. Sentia ainda, nas suas próprias
articulações, a sobreexcitação nervosa de Liliana. E depois, santo Deus, ela estava tão bonita!
- Tenho a impressão de ter estado muito tempo
guardado na caixa da naftalina e ter saído bem sacudido e outra vez pronto a servir - disse ele.
- Falas demais, Erik. - murmurou Liliana - Não é necessário...
- Não? - preguntou o rapaz, olhando-a.
-Não.-respondeu ela, em voz quási imperceptível. Contiveram-se ainda um instante, sentindo vibrar ondas entre si, e depois Liliana lançou os braços ao pescoço de
Erik e beijou-o. Foi um beijo longo, esfaimado... A lua desapareceu atrás de uma pequena nuvem, depois tornou a surgir. Erik vacilava um pouco, quando Liliana lhe
descolou os braços da nuca. Ela ria silenciosamente. "Que quere dizer isto?"-preguntou ele - "Nada de maior importância ..." -retorquiu ela. E saiu do esconderijo.
Passagem rigorosamente proibida. "Fica mais um segundo" - suplicou ele em voz rouca.
Duas sombras caíram no tombadilho, quando a lua voltou a ser clara.
- Não se pode passar por aqui, Nina - disse Steve Thorpe.
-Em todos os sítios bonitos há avisos destes.-disse Nina.
- Vamos, deixe-se de discursos comunistas. - conciliou Thorpe.
Deram meia volta e tomaram a escada vizinha que ia dar ao bar. Por todos os lados, pares namoravam. Assim que vieram outra vez para a luz dos lampiões, Thorpe notou
que Nina tinha os lábios brancos. Um pensamento fugidio atravessou-lhe o espírito: ele nunca tinha reparado nessas coisas quando estava casado com Lúcia. É verdade
que Lúcia pintava os lábios. Mesmo ameaçado de morte, não poderia dizer se Nina tinha visto, como ele, os dois debaixo da escada da ponte. "Em que pensa, Nina?"
- preguntou bruscamente. E se nós aproveitássemos um fim de semana ou mesmo uma semana inteira?. para fazermos uma viagenzinha juntos?
- Porque me faz essa proposta justamente agora? preguntou ela.
- Tem razão... devia ter-lha feito há mais tempo. Talvez esta noite tenha mais coragem, porque bebi um pouco. Mas com certeza entendeu, desde o princípio, o que
espero de si, não é verdade?
Nina não respondeu. Tinha um ar tão infeliz que, subitamente, ele teve vergonha do seu ataque. "Sou um velho cínico, Nina" - disse. - "Já defendi muitas causas,
tenho observado muitas vezes, que as opiniões mudam e... as situações... e as relações entre as pessoas... e tenho a impressão de que um dia, talvez me possa suportar.
Compreende... Se qualquer.. emfim... se na sua vida qualquer coisa se modificar... pois bem, lembre-se... se um dia se sentir isolada... que o velho Steve cá está...
quero dizer... vá ter comigo... Promete-me isso?"
Nina fitava-o com atenção emquanto ele falava. Olhou para o lenço de seda em que ele pegou para limpar a testa e que depois colocou outra vez no bolso. A sombra
de um sorriso passou nos lábios pálidos da rapariga: "Fala-me como a uma idiota"-disse ela.-"Compreendo-o perfeitamente. Se um dia eu já não for casada .. entendido...
prometo que irei ter consigo. É isto?"
A música, depois do intervalo, estalou subitamente num ar de rumba sonoro e vivo. Cromwell passou a correr, gritando: "Onde está a rainha da beleza? Quero dançar
com a rainha da beleza."
- Vamos dançar? - preguntou Thorpe, pegando no braço de Nina.
- Obrigada. - respondeu ela, voltando-se vivamente. Liliana descia os degraus da ponte superior, docemente amparada pelo pretencioso detective.
- Onde está o Erik? - preguntou Nina, de lábios brancos.
- Como queres que eu saiba ? -replicou Liliana. E, agarrando na cauda do vestido, afastou-se, dançando.
DE noite, Nina, saindo de um mau sonho, quisera agarrar Erík. Ele não estava... Era como a continuação do pesadelo! Sonhando, tinha-o procurado e não o encontrara.
Só minutos depois ouviu o duche correr na sala de banho, às escuras. Pôs-se então à escuta:
- Tens alguma coisa, Erik ? - preguntou baixinho, quando, às apalpadelas, ele voltou para a cama.
- Nada. Não posso dormir. Faz muito calor aqui disse, vagamente.
As duas janelas estavam abertas e os primeiros clarões da aurora apareciam já. Nina estendeu as mãos e, como não acontecesse nada, tornou a passá-las para o seu
leito. Ficou muito tempo acordada, com os olhos abertos e ouviu os primeiros carros de leite rolarem na rua. Erik teria adormecido? Ignorava.
Ele trabalhou muito nos dias seguintes; a liquidação da secção de arte continuava, e a época dos banhos de mar tinha que ser anunciada com a exibição de fatos de
praia, e bonecas vestidas de maillot. Ele andava distraído e com mau parecer. Fosse onde fosse, estivesse em pé ou sentado, fazia esboços; depois rasgava os papéis
e deitava-os fora. Um dia, Nina revistou o cesto dos papéis e apanhou os pedaços rasgados. "Que foi?" - preguntou Erik, embora ela tivesse ficado muda.
- Mas... tudo isto se parece com a Liliana! - disse Nina com as três rugas na testa.
-Liliana? Que estupidez! Os manequins parecem-se todos. - explicou ele.
Nina continuou ajoelhada no chão diante dos pedaços de papel. Esperava que ele viesse levantá-la. Mas ficou ao pé da janela e acendeu um cigarro. Era domingo e Erik
estava ainda mais indecifrável que de costume. No quarto, por cima deles, ouviam o velho Filipe andar de um lado para o outro, sem descansar...
- Não posso mais!... - disse Erik - Tenho que sair. Saiu, sem chapéu nem casaco, não disse "Vamos
passear". Foi sozinho e só voltou a casa ao fim de quatro longas horas. Nina, tirou do cabide todas as calças do marido e passou-as cuidadosamente a ferro. Depois
desceu à cave, abriu a sua mala, tirou as velhas bonecas e tomou as nos braços. Por fim, subiu e foi procurar a sr.a Bradley.
- Quere que eu faça o jantar esta noite, sr.a Bradley ? - preguntou.
A sr.a Bradley, com o rosto amarelado, estava estendida em cima do canapé. Cansada, fez sinal que sim. Afligia-se ao pensar na segunda-feira, no tempo que tinha
de estar em pé, na embalagem, com aquela dor num lado. À noite jogaram uma triste partida de rummy. Nina, Filipe, a sr.a Bradley, Skimpy. A pequenita ganhou quási
sempre: feliz, soltava gritos de alegria emquanto os adultos, fatigados, sorriam. Cada um tinha as suas próprias preocupações, os seus próprios receios. Cada um
deixava errar os seus pensamentos.
- Onde se esconde sempre o seu jovem esposo ? preguntou o velho Filipe. Nina corou como se tivesse vergonha.
- É o sr. Sprague que o retém. Agora mudam a decoração das montras duas vezes por semana.
- É verdade - disse Filipe. Ele era céptico por
causa da sua profissão. Nina falou nas vitrinas como numa prova de que Erik não lhe mentira.
Assim que se cansaram de jogar, ela construiu com Skimpy castelos de cartas.
Deitada, conservou-se acordada até ao regresso do marido. Ele chegava a casa às três horas, às quatro, às sete. Mas Nina não dizia palavra e tinha os olhos fechados,
quando ele se inclinava para a ver. Muitas vezes beijava ao de leve aquele rosto, que julgava adormecido. Era uma grande consolação: Nina quási chorava. Cheirava
a cigarro, assim como a um perfume que a esposa, de sobrancelhas franzidas, adivinhava doce e forte, um pouco impudico - o perfume de Liliana.
As coisas continuaram assim durante três semanas. Certos dias, só se encontravam na cantina da Central. Às vezes, iam jantar ao "Rivoldi"; Erik mostrava-se de uma
alegria febril e forçada. Depois, no meio da refeição, tornava-se distante e distraído, punha-se a desenhar sobre o mármore da mesa, apagando depois com a palma
da mão.
- Porque não vem a Liliana comer agora connosco? preguntou-lhe Nina.
Ele encolheu os ombros. Queria ter um ar indiferente, mas mostrou a expressão que é costume ter-se no dentista quando, por acaso, a broca encontra um nervo. Nina
acompanhava-o até à entrada do armazém, depois, voltava para casa. Uma noite escreveu uma carta à mãe de Erik. Condessa Bengtson, Asilo de Alienados, Lansale, Connecticut.
Não era trabalho fácil. Assim que acabou de escrever, rasgou. Estava só. Nunca tinha sabido o que era estar só no mundo, antes de casar com Erik.
Meia-noite, duas horas, três... Como uma noite é longa, quando se espera o ente amado e ele não vem! Nina levantou-se, vestiu o seu roupão e dirigiu-se ao vestíbulo,
ao telefone. com voz em surdina, pediu a Central. Já não podia mais; era preciso que falasse
com Erik. Foi Joé, o porteiro, que respondeu; "Desculpe, Joé, eu queria dizer uma palavra a meu marido... o sr. Bengtson, deve estar do lado oeste... a decorar a
montra."
-Um momento... -disse Joé, com a sua voz de baixo, que inspirava confiança. Nina esperou. O coração batia-lhe debaixo do roupão: era como se fosse uma aventura proibida.
Depois de muito tempo, ouviu, ao telefone, uma voz que não pertencia a Erik.
- Está ? Quem fala ? - preguntou ela.
- Aqui, Donald Brooks, - responderam.
- Queria falar ao sr. Bengtson - repetiu Nina, intrigada.
Abriu-se uma porta no andar superior, e Filipe apareceu na estreita fenda iluminada, da porta.
- Que aconteceu ? -murmurou ele. Nina sacudiu a cabeça, com o auscultador no ouvido.
- Sou eu, o Pusch. - disse a voz ao telefone. O aprendiz renunciou ao nome elegante que ninguém conhecia.
- Oh! Pusch, ainda estão com as decorações ?
- Pois estão, minha senhora. - disse Pusch.
- Posso falar um segundo a meu marido ? - preguntou Nina. Entretanto o velho Filipe tinha descido a escada e estava agora ali. Ela fez-lhe sinal para a deixar só.
O seu coração tornara-se subitamente leve e alegre, ela queria implorar o perdão de Erik e desejava que Filipe não a ouvisse.
- Eles já saíram há cerca de hora e meia - disse Pusch, do outro lado do fio.
- Eles... quem ? - preguntou Nina.
- O sr. Bengtson e o modelo. - esclareceu Pusch. Mais nada ? - informou-se ao fim de um minuto, como Nina não falasse,
- Mais nada, obrigada. Parece-lhe que ele volta ?
- É possível... - disse Pusch num tom consolador. Obrigada, sr. Brooks, - agradeceu Nina, De-repente
o seu espírito tinha-se tornado tão claro e tão subtil que se lembrou do nome estranho. Via através da obscuridade, apercebia cada prega do velho roupão de felpa.
ouvia respirar Skimpy no outro aposento. No jardim da frente, um pássaro abria a garganta para os primeiros trinados da manhã.
- Posso fazer qualquer coisa por si ? - preguntou o detective. Nina olhou-o um momento, como se a pregunta precisasse de um certo tempo para chegar até ela.
- Não, obrigada, tudo vai bem. -disse delicadamente, pendurando o auscultador. O velho Filipe seguiu-a com o olhar, emquanto, através do patamar obscuro, ela voltava
para o quarto.
Os homens podem ser enganados pelas mulheres; as mulheres, não se podem enganar. Elas sabem tudo, elas sentem tudo. Nina tinha compreendido. Não fez cenas. Deitou-se
na sua cama, com os olhos secos, e sentiu que se tornava hirta, pequena figura de pedra rígida, quando Erik entrou. Pouco antes, o despertador tinha tocado. Sete
horas da manhã. Erik fez a sua aparição, de cigarro na boca com uma falsa naturalidade. Os cabelos vinham muito lisos, acabavam sem dúvida de serem passados por
água, para causar boa impressão.
- Bons-dias, Lille Spurv - disse, debruçando-se para a beijar na testa. Ela não se desviou, mas sentia que a testa devia estar fria e dura. Dura como pedra. Tinha
sempre sido meiga e doce, mas sabia ser dura quando se tratava de coisas importantes.
- Bons-dias. - disse saindo do quarto. No patamar, bateu à porta da sr.a Bradley.
- Quere fazer-me o favor, sr.a Bradley, de avisar que eu hoje não vou ao serviço?
- Está doente ? - preguntou a sr.a Bradley, inquieta.
- Não sei... tenho febre... talvez gripe.
- Pode ser. Eu também não me sinto bem. - disse a sr.a Bradley - Não se rale, tem direito a três dias com vencimento, mesmo que falte.
- Pois é... - concordou Nina, voltando para o seu quarto. Na cozinha, ouviu Skimpy preparar o pequeno almoço, antes de ir para a escola. Assim que Nina entrou, Erik,
que se tinha despido, estava debaixo do duche. Ela sentou-se e esperou.
- Não estás atrazada ? - preguntou, assim que saiu da sala de banho. Pequenos mares de água caíam dele sobre o sobrado.
- Não vou hoje à Central. - disse Nina - Ele lançou-lhe um olhar rápido, assustado, depois meteu-se na cama e puxou a coberta. Parecia tremer.
Maquinalmente, ela aconchegou-lhe a roupa, com a mão.
- Onde estiveste até agora?
- Tu bem sabes, Nina.
- Sim, eu sei. - disse ela. Seguiu-se um pesado silêncio.
- Ora vamos, não me faças cenas - pediu Erik, pegando na mão de Nina.
Ela não o repeliu mas estava sem vida.
- Não te faço cenas. - disse.
- Podia ter te explicado logo, mas quis fazer-te uma surpresa; estou a pintar Liliana para o concurso.
- Qual concurso?
- Tu bem sabes, o dos cartazes de verão.
Nina lembrava-se, vagamente, de Erik lhe ter dito qualquer coisa.
- Não era bonito se eu ganhasse o primeiro prémio e pudesse trazer-te mil dólares? - preguntou, acarinhando a mão da mulher para a aquecer.
Nina tentou sorrir, mas não conseguiu.
- E então? - disse ela.
- Não sei. Liliana endoidece-me. É um diabo perigoso. Mas, às vezes, preciso dela ... Excitação... Isso inspira, pois eu sou um pintor, Nina, mesmo quando me meto
nas montras às ordens do velho Sprague, a fabricar árvores de celofane.
Já me não amas?
Sim, Lille Spurv. Sim ...
- Mas gostas mais de Liliana.
Liliana ... é de outra maneira, Nina.
O pior é que ele não mentia nem se desculpava. Nina esperava um alívio, uma salvação que não veio.
Nada teria acontecido se eu não me tivesse metido a pintá-la. Mas o quadro será bom, Nina. Sentia-me completamente decaído... num verdadeiro lodaçal... eu não nasci
para forrar casas ... Dei-lhe entrevistas todas as noites, na oficina ... e assim ... só com ela ... Tu compreendes?
- Não. - disse Nina.
- Tinha preferido não me apaixonar por ela. Mas realmente apaixonei-me. Também há-de passar.
Nina esperou um momento, até poder engulir a dor.
-Que vai ser de nós?-disse.
- De nós? Não sei... se tu não sabes... -É-me impossível continuar ao pé de ti, se tu estás
apaixonado por outra. - declarou Nina. Ele sentou-se na cama.
- Não estás a falar a sério ?
- Que queres? Tu só podes ser como és. Eu só posso ser como sou. Não me é possível ficar contigo.
-Nina!-pediu Erik suplicante-Somos casados apenas há seis semanas!
Ele não podia dizer coisa pior; casados havia seis semanas e o seu coração já ia passear! Nina sentiu lágrimas subirem-lhe numa grande onda pesada.
- Acabou tudo entre nós.-disse ela, dirigindo-se para a porta. Ele voltou-se com a cara para a parede: ela viu-lhe as costas. Eram oito horas da manhã .. hora de
ir para a Central. "Preciso de renunciar a tudo.. a tudo - pensava Nina. - Não posso fazer outra coisa. ? Diante da janela, o pássaro da manhã lançava agora os seus
trinados claros e irónicos.
- Se tu pudesses prometer... que renunciavas a Liliana... - murmurou Nina, à porta. Ele não se voltou, pareceu reflectir.
- Eu, renunciar a Liliana? Deus! Mas ela é que não renunciará a mim! Agarra com força o que pode agarrar.-disse, voltando-se para a parede. Ele tinha, também, podido
agarrar num pau e bater na cabeça de Nina.
-Então... acabou-se - disse ela. O marido encolheu os ombros. Ela saiu do quarto e foi-se embora.
Ficou deitado na mesma posição, com a cara virada para a parede, para que ela não visse quanto era infeliz. O pássaro, fora, deixou de cantar. No vestíbulo, soaram
passos sonoros. O velho Filipe bateu a porta da entrada. Tudo tinha acabado.
- Fica ao pé de mim, Spurv, Lille Spurv... murmurou ele, no quarto vazio. Mas sua mulher, ajoelhada na cave, preparava as bagagens...
LEVANDO uma mala grande e outra pequena, Nina fez a sua entrada no vestíbulo atapetado da casa de Thorpe, como se um vento de tempestade a tivesse en purrado para
lá. Pretender que esta entrada fosse gloriosa, seria falso. Primeiro, o pessoal não a quis deixar entrar, depois, assim que se encontrou lá dentro, incomodou os
criados nos seus trabalhos. Um deles fazia funcionar o aspirador no tapete do vestíbulo; comovida, Nina apertava a argola das suas maletas emquanto o criado telefonava,
com ar importante, para o escritório de Thorpe.
Thorpe estava justamente em conferência quando o telefone tocou - conferência de um género desagradável com dois indivíduos cabeçudos que não chegavam a um acordo
sobre a exploração comum dos seus negócios de moagem.
- Está aqui uma senhora que deseja falar ao sr. Thorpe. - disse o criado.
- Como? Uma senhora? Neste momento não tenho tempo para falar a senhoras - resmungou o advogado ao telefone.
- A senhora diz que eu devo só dizer que é a Nina da Central, que está cá.
O rosto de Thorpe iluminou-se e sem se ocupar mais dos dois clientes disse:
- Ah! está aí ? Que quere ela ?
- A senhora chegou com duas malas.
- Bem... Bem ... que a senhora esteja à vontade, eu vou logo que possa. - disse Thorpe um pouco perturbado. Aquilo não parecia da Nina: irromper por casa dele com
duas malas...
Pôr-se à vontade consistiu nisto: Nina ficou sentada no vestíbulo em companhia da sua bagagem. E foi assim que Thorpe a encontrou, quando chegou a casa. Embora se
apressasse, era já tarde. "Então, cá estás?" disse simplesmente-Ele não preguntou nada; depois de um instante de hesitação, abraçou-a. Nina levantou os olhos, como
sempre que tinha medo, e aceitou o beijo de boas-vindas. Agora era preciso levar ao fim toda esta história, se queria, realmente, ferir Erik, feri-lo tanto quanto
ele a tinha ferido.
- Whisky, - ordenou Thorpe ao criado - E estas malas para o quarto de hóspedes.
Também estava um pouco aturdido pela forma súbita, como a felicidade lhe caía em casa. Bebeu o seu whisky e Nina deixou o dela.
- Quere explicar-me o que aconteceu, ou devo adivinhar? - preguntou ele. No espírito de Nina tudo estava já resolvido.
- Preciso separar-me de meu marido, - disse em voz resoluta. Não nos damos bem. Não me acomodo a ser casada com um génio. Compreendeu-o desde o princípio, não é
verdade? Não quero mais trabalhar na Central. Encontravamo-nos sempre no caminho um do outro... na cantina, em toda a parte... e não poderia suportar...
Evitou dizer que não se sentia com forças para afrontar Liliana, mas Thorpe compreendeu-o da mesma maneira.
- Não tenho dinheiro. - disse Nina - Preciso arranjar outro emprego e só o conheço a si.
- Tudo está perfeitamente entendido entre nós. disse Thorpe - A minha opinião é que durma hoje no
meu quarto de hóspedes, e amanhã procuramos uma casa bonita para si.
-É muito bom!...-disse Nina. Thorpe defendeu-se vivamente:
- Não vamos trocar cumprimentos - disse, emquanto pequenas pérolas de suor lhe apareciam na testa nua. Ambos sabemos do que se trata. Eu não sou bom, mas gostaria
que fosse minha. Pode talvez dizer-se que somos dois pássaros solitários... e... um pouco desiludidos, a certo respeito, e que, por causa disso, nos poderíamos sem
dúvida suportar, não é?
- É... - respondeu francamente Nina. Thorpe correu num impulso para ela e deu-lhe outro beijo. Ela recebeu-o com a expressão que tinha em criança quando engulia
o óleo de rícino. "Obrigada sr. Thorpe" - agradeceu.
- Chame-me Steve. - pediu ele, um pouco embaraçado.
O criado conduziu-a ao quarto de hóspedes e ela sentiu o seu olhar mirá-la com desdém. "Como se chama?
- preguntou, embaraçada - "Por excepção, não me chamo James". - disse o homem - Ela não sabia se isto seria uma insolência. Esperou, de pé, e como ela tentasse sorrir,
ele ficou sério: "Eu ajudo a senhora a desmanchar as suas malas" - disse por fim.
- Obrigada, prefiro eu tratar disso. - respondeu. Tinha vergonha das suas coisas, da sua roupa de
seda artificial, das suas meias cozidas, dos seus sapatos com meias solas. Thorpe entrou, passado um momento, quando ela olhava para as suas recordações: as duas
bonecas, a fotografia, o revólver.
- Como vai isso agora, Nina? -preguntou. Ele tratava-a por tu e ela tratava o por você, desculpando-se de vez em quando. Os olhos do advogado caíram no revólver
e encheram-se de receio. "Tu não tencionas fazer tolices, rapariga?"-preguntou, agarrando rapidamente na velha arma. "Não, é o revólver de serviço, de meu pai"
-explicou. Assim que ela voltou a pôr o revólver na mala, fechou os olhos, com medo, como quando do beijo do sr. Thorpe. Abaixando-se, ele apanhou um papel
que tinha caído.
- Não é nada - disse muito de-pressa pondo-o para um lado. - A conta de hotel da nossa noite de núpcias em Connecticut.
- Vai pôr-te bonita para ver se passamos um bom serão. - disse Thorpe e deixou-a só e hesitante.
Nina fez-se bonita com o único vestido capaz que possuía e que, infelizmente, era ainda uma prenda de Erik. Estava tão contente quanto podia estar, emquanto, de
vez em quando, fechava os olhos para receber um beijo de Thorpe. O belo serão não foi um triunfo, não lhe era fácil sentir-se à vontade, com um criado de cara dura
e severa em serviço ou oferecendo pratos de que não se gosta. Ao pé de cada prato estavam colocados talheres, com os quais Nina não se entendia. Mas fez o que pôde.
Logo depois da refeição passaram para outro aposento, ela cantou mesmo um pouco ao piano, tocando com um dedo, o acompanhamento, Isso pareceu agradar ao sr. Thorpe,
que lhe prometeu um professor de música.
O tempo passava e Thorpe tornou-se pensativo e silencioso. Passou um braço à volta do ombro de Nina: era desagradàvelmente quente, mas ela conseguiu suportar. Estava
resolvida a mergulhar nesta aventura, como se mergulha na água fria; sem reflectir e de um salto. Sorriu timidamente a Thorpe, quando ele a atraiu para o seu joelho.
Veio-lhe mesmo ao espírito a idea tranquilizadora de que ele também tinha tanto medo como ela.
Por fim, fatigou-se daquele silêncio e começou a bocejar. Ele levantou-se logo: "agora vamos deitar a menina" -disse, o que não agradou a Nina. Ela não podia supor
que, durante todo esse tempo, ele tinha tido um diálogo com o fantasma de sua mulher.
No patamar, pegou-lhe para a levar para o quarto mas foi uma tentativa falhada e, um pouco cansado, teve de a pôr no chão. Empurrando a porta do quarto de hóspedes,
deixou-a entrar primeiro: a lâmpada ardia na mesa de cabeceira, a cama ficava perto. O sr. Thorpe tinha o ar de um homem que desejasse ir buscar o seu chapéu ao
vestiário, e tivesse perdido o número. Quando a abraçou, ela começou a chorar. Tinha vergonha das suas lágrimas mas não podia sustê-las; sentia nas mãos a grande
cara do advogado, os seus grossos braços, o seu corpo pesado: tudo isto lhe era tão estranho, tão estranho, e não sentia em si a felicidade que sentia sempre que
Erik se aproximava dela com os seus membros finos e ágeis. E soluçava sem parar.
Tinha passado um dia muito cruel, não chorara ao descobrir que Erik a enganava, nem emquanto fazia as malas, nem ao sair de casa. Todo o dia tinha sido um pequeno
ídolo de pedra. Todavia um ente humano tem também o direito de chorar.
Thorpe ficou sinceramente comovido e consolou-a o melhor que pôde.
- Que queres tu? Que tens?- preguntou, acariciando a.
- Queria estar só ... queria chorar... - soluçou ela, com a consciência inquieta.
- Bem... eu não sou nenhum papão - disse o sr. Thorpe. E realmente não era, principalmente para com Nina. Largou-a, deixando-a sozinha na cama, cuja coberta de seda,
coisa nova para ela e muito incómoda, estava sempre a escorregar. Em casa da gente rica, as camas são realmente esquisitas." - pensou. E foi a única experiência
que tirou dessa noite.
No dia seguinte, Thorpe quis arranjar-lhe casa, mas, quando chegou ao escritório, encontrou um telegrama que o chamava imediatamente a Minneapolis. Tratava-se
do acordo entre as duas moagens e era importante, muito mais importante do que Nina.
Ela tinha tomado a resolução de ser amável com Steve assim que chegasse, mas ele não veio para casa. Telefonou ao criado dizendo que lhe levasse ao escritório a
mala, pronta. Dir-se-ia que tinha esquecido completamente a presença da jovem caixeira na sua habitação. Mas a verdade é que não ousava, na presença de miss Tackle,
telefonar a uma mulher que estava na sua própria habitação. Da gare mandou-lhe um telegrama. "Não te aborreças. Faz tudo que te apetecer. Estarei de volta daqui
a três dias." Nina sentou-se diante do fogão de sala com o telegrama na mão. O criado tinha acendido o lume, pois chovia e ela não sabia de nenhum lugar no mundo
onde se pudesse refugiar.
"Não te aborreças!" -pensava ela, ironicamente. - O seu coração estava despedaçado de angústia, de nostalgia, de desejo de tornar a ver Erik. Além disso, vinham
as coisas desagradáveis: olhares do pessoal, aborrecimento sem limites, ociosidade, refeições na grande sala de jantar, sozinha. E todas as vezes que, de noite,
estendia a mão, só encontrava o vácuo, nesse quarto horrívelmente estranho: nada de Erik, apenas a endiabrada coberta de seda que caía constantemente, o que a fez
sonhar que estava em camisa em cima de uma ponte, à chuva e ao vento ...
No dia seguinte, entregaram-lhe uma missiva de Thorpe, escrita da estação. As letras eram deitadas como se o vento também lhe tivesse passado por cima.
"Querida Nina pequena. Que pena não ter podido ficar aí! Rehaveremos tudo isso assim que eu chegue. compra lindos vestidos e tudo o que quiseres, pois vamos divertir-nos
muito. Adeus e até breve. Teu, Steve."
Um cheque em branco vinha junto à carta. Nina voltou-o entre os dedos, conteve o gesto de o deitar ao lume e, daí a pouco, sorriu.
Ao terceiro dia, como Thorpe não tivesse voltado,
ela fez tudo quanto o seu coração desejava: pediu ligação para a sr.a Bradley, depois do armazém fechar, quando ela já estaria com certeza em casa... A sr.a Bradley
gritou de admiração, ao telefone, e Nina podia ouvir Skimpy andar. Não preguntou se Erik estava em casa.
- Como vai isso por aí ?
- Obrigada, assim, assim.
- O velho Filipe está cada vez mais esquisito.
- E as suas dores ?
- Há dois dias que estou melhor. Faz-nos muita falta, Nina.
- Que diz a gente da Central, da minha saída ?
- Mordem se de inveja. Dizem que fez a sua felicidade ...
Nina esperou. Ela não podia conter a pregunta:
- E... e meu marido, que faz ?
- Meu Deus ... até agora, lá vai indo... -Ah!
Então, ele ia bem. Hesitou ainda. O criado passou, sentiu-se vigiada, como prisioneira. Esperou que desaparecesse.
- Escute, sr.a Bradley... o fato cinzento dele está ainda no tintureiro, é preciso ir buscá-lo. E que não fume muito, sr.a Bradley. Que ar tem ele ? À noite fica
em casa? Quem lhe passa as calças? Ele gosta tanto delas bem vincadas!... Não lhe diga que telefonei, sr.a Bradley... promete ?
Não, esta conversa não a aliviou absolutamente nada. No dia seguinte, telefonou outra vez. Depois pegou no seu cheque e foi à Central. Sim, estava decidida.
Na verdade, um grande armazém é um lugar onde quem quere pode ir. E se uma caixeira fez a sua felicidade e volta como cliente, deve ser tratada como cliente. Nina
evitou a escada 5 e subiu primeiro à secção de loiças, a sua secção, por assim dizer, a sua casa.
Aí, parou diante do balcão onde estava o serviço 279 E 14, decorado com rosas.
- Deseja ?-preguntou miss Drivot. Ela não viu a cara de Nina; a clientela não tem cara.
- Como vai isso, miss Drivot ? -preguntou Nina baixinho.
-Ah!... é você... Obrigada, vai bem. Deseja alguma coisa ? Quere fazer uma compra ? O serviço de rosas está mais barato.
O sr. Berg, que passou, lançou um olhar perscrutador para as duas.
-Desculpe-me, tenho que servir uma cliente-murmurou miss Drivot. Depois afastou-se, deixando Nina em pé diante da loiça de rosas, como uma estranha.
O sr. Berg olhou a com ar ofendido, fez-lhe um cumprimento distante e continuou o seu caminho.
A testa da jovem franziu-se. Atravessou o vestíbulo envidraçado, passou diante dos vestidos de verão para chegar ao lugar elegante, que era o salão de costura. O
coração batia-lhe furiosamente. Mas tinha um cheque em branco na sua malinha ...
- Queria que me atendessem - disse, logo que encontrou Liliana.
-Meu Deus, é a Nina!-exclamou Liliana.
- Desejo um vestido de noite, branco, qualquer coisa de muito bom - disse friamente Nina. - Liliana fez uma careta; daí a pouco surgiu madame Chalon, ignorando,
naturalmente, a situação. Nina tinha-se divertido antecipadamente com esta visita ao armazém. Sentou-se na poltrona e Liliana teve de andar dum lado para outro.
Ah ! fê-la mexer-se bem! Infligiu-lhe, em suma, todos os vexames que uma cliente aborrecida, mal humorada e inconsciente, pode infligir a uma caixeira. Mas, justamente
no momento em que Liliana não podia mais e ia perder a paciência, Nina sentiu-se igualmente esgotada de nervos. Não, ela não podia mais suportar aquilo: ver as belas
costas nuas de Liliana, o seu andar, a
sua cara, o seu corpo, o todo dessa mulher que lhe tinha roubado o marido. Levantou-se de um salto, murmurou uma desculpa, que soou como um soluço e saiu precipitadamente.
Liliana limpava as finas pérolas de transpiração, da testa.
Nina tomou o caminho de casa, entrou no carro elegante de Thorpe que o criado tinha posto à sua disposição. Tony, o belo motorista, tratava-a com tanto respeito,
como se ela fosse a própria rainha da Inglaterra. Refugiada no quarto de hóspedes, escovou os cães; sentia a garganta apertada com todos os sentimentos que tivera
de refrear.
Subitamente, os animais correram para a porta e ladraram com tanta força que Nina teve medo: o sr. Thorpe estava de regresso. Nina ficou surpreendida, ao notar que
também sentia alegria, e correu ao seu encontro. Desta vez recebeu o beijo sem fechar os olhos, Thorpe foi muito terno, tinha-lhe trazido um presente, um colar de
pedras verdes, Depois desapareceu na sala de banho para sacudir a poeira da viagem. O ruído do avião deixara-o um pouco surdo durante meia hora, mas depois passou.
- Agora mostra-me o que compraste com o cheque. - disse ele a Nina e, ante o embaraço dela desatou a rir. Ela subiu ao quarto de hóspedes, tirou rapidamente o cheque
da sua malinha e pô-lo diante de Thorpe. "Que os diabos me levem!" - disse ele, espantado. E Nina sentiu-se aliviada por não ter gasto esse dinheiro, por não se
ter ainda vendido completamente...
- Mas não tens que vestir!.. No entanto, é preciso que estejas bonita para sairmos. - disse Thorpe - Ele estava convencido que para obter os sorrisos das mulheres
era preciso cobri-las de presentes. No fundo, não tinha tratado Lúcia, a sua própria mulher, de outra maneira. Assim que diante do espelho esfregou a cabeça calva
com água de Colónia e se meteu no seu smoking, sentiu surdamente que Nina era uma coisa difícil de conquistar. As suas pantufas, os seus cães, um copo de whisky
e as últimas revistas ao pé do lume, eis quanto ele desejava. Mas tinha resolvido, nessa mesma noite, forçar a resistência. De resto, Nina estava resolvida.
Preparou-se com o seu vestido azul bordado a prata e o companheiro levou-a a um cabaret elegante: música, dança, champagne, sala cheia, turbilhão de vozes e de perfumes.
Tinham instalado esta casa luxuosa como o interior de um barco, o que dava aos clientes uma impressão de opulência e de romanesco, incitando-os a gastar dinheiro.
Os criados andavam de um lado para o outro, vestidos de marinheiros franceses com grandes ponpons nos bonés, o que, visivelmente, os incomodava um pouco.
- Então, menina ?-preguntou Thorpe, satisfeito, assim que encomendou a refeição.
Também havia mais talheres do que aqueles que eram precisos, mas agora, Nina já tinha experiência. Antes de se instalar deram um salto ao bar e Nina falava alegremente
e muito. Esforçando-se por chegar de-pressa à disposição de espírito que esperavam dela, tinha engulido os dois primeiros cocktails como uma desesperada. Durante
a refeição fumou muito. "Não vamos dançar, sr. Thorpe? quero dizer... Steve?" - preguntou - A música tinha acendido nela uma avidez que não compreendia. Mas assim
que fizeram desastradamente uma volta à pista, caiu em si. É melhor sentarmo-nos a ver... - disse - Ele continuou com brandy e aconselhou champagne a Nina.
- Ó champagne dá alegria, aquece. - explicou Numa obsessão, Nina bebia grandes taças, como se o champagne fosse um antídoto contra a sua infelicidade. Tinha realmente
as faces rosadas, sob a fina camada de pó de arrôs. Os olhos começavam a brilhar.
- És adorável! - declarou Thorpe.
- Tu o dizes...-sussurrou ela, na linguagem habitual do armazém.
Infelizmente, verificava-se que com o primeiro excesso da sua vida, se mostrava mais obstinada e rebelde. Ela, que era semPre meiga e aceitava as coisas como vinham,
agora revelava subitamente o fundo do seu ser.
-São todos uns indecentes...-disse, indicando com o dedo toda a gente fina do restaurante da moda-são uns indecentes - Ah! Nós podemos falar. Que fazem eles todos,
lá porque têm algum dinheiro ?
Olhou à sua volta, riu, às gargalhadas, do criado à maruja, depois os seus olhos caíram sobre Thorpe.
- Tu és como os outros, sabes, meu caro Steve ? Tu também imaginas que podes comprar-me... lá porque tens dinheiro. An ? Diz a verdade... não é verdade que julgas
... com o teu cheque... Também tu és simplesmente um porco, Steve... um gordo porquinho cor de rosa, com quatro pêlos na cabeça...
Thorpe alarmou-se. Acabou de-pressa, pagou, empurrou Nina para o automóvel, antes que a coisa desse escândalo. Tony, o motorista, lançou-lhe um olhar cheio de compreensão
masculina e, sem pressa, pôs o carro em marcha.
Entretanto, Nina seguia o curso das suas ideas: teimosa, fazia ao pobre Thorpe uma cena em regra. Na sua embriaguez, e embora o tratasse por tu, lançava-lhe reparos
tão desagradáveis que não tinha sido dado ao advogado ouvi-los desde que se separara de Lúcia. Censurava-lhe o dinheiro, o ventre, a calvície e a idade. Por fim,
ele sentiu se absolutamente infeliz. Mas justamente no momento em que ia decidir-se a descer e a deixar Nina voltar só para White Plains, a jovem lançou-lhe os braços
ao pescoço e desatou a soluçar. Para a acalmar, bateu-lhe nas costas, como tinha o costume de fazer a Max e a Moritz e rolaram assim, ao longo das avenidas calmas
do parque, para o bairro Norte.
Na sua embriaguez, Nina, desesperada, estava pronta para tudo. Mas, o diabo, era ele, Steve, que nada queria nessa noite, Não queria dela nenhum favor se o devesse
obter de uma maneira suja e desagradável. Acompanhou-a ao seu quarto onde ela se sentou imediatamente na borda da cama, na atitude resignada de quem espera a partida
do comboio. As lágrimas vertidas brilhavam ainda sôbr a pele lisa das faces. Fazia-lhe pena, mas não é com pena que se vai para uma aventura amorosa. À porta, ele
parou :
- Não podes gostar de mim, um pouco?- preguntou, hesitante.
Nina pareceu voltar não se sabe donde. com simplicidade, respondeu:
- Não. Emfim ... assim não ...
Thorpe tomou, sem demora, o caminho dos seus aposentos. Eram duas horas da manhã. com um copo de whisky ao alcance da mão, um dos seus cães ao colo, meteu-se ao
canto do fogão pois, de-repente, o pobre homem sentiu imenso frio ..
HAVIA longas semanas que Liliana tinha sempre o mesmo sonho: queria apanhar um comboio mas não o conseguia. Sufocada, ofegante, ficava no cais e via o comboio desaparecer.
Depois descia uma escada que se parecia com a do metro, mas maior e deformada, como acontece nos sonhos. Ela ia, descia sempre, sempre, sempre mais para baixo. Não
queria descer, mas, lá em baixo, alguém riscava constantemente um fósforo e então podia ver a escada que levava à escuridão, lá para baixo, lá para baixo... e ela
continuava a descer. Dling... dling... dling... tocava, durante esse tempo, a campainha da prestamista.
Liliana tinha deixado os pais e alugara casa na rua 44.a a oeste da cidade. A sua sala estava sempre cheia de fumo de cigarro, no sofá via-se sempre estirado qualquer
homem, algum dos amigos de Bill. Bill era aquele indivíduo duvidoso que a tinha seguido, assim que ela saíra da casa de penhores, uma espécie de grande animal, bonito,
violento, habitualmente complacente, mas conhecedor da sua força. Gostava de gatos e trouxera dois para casa de Liliana. Os outros homens, Jerky, Big Paw e Kid,
que tinham dezoito anos, pareciam-se com ele. Haviam-se instalado em casa da rapariga e viviam "na sua vida" por assim dizer, com as suas cartas, as suas pragas,
os seus licores, os seus revólveres e as suas amantes. Bill vinha irregularmente,
mas era o senhor. Tinham dinheiro com fartura que lhes restava ainda do último negócio feito. Liliana recebera, como presente, um belo vestido e um casaco de arminho.
Ia aos clubs nocturnos, frequentava os lugares onde Bill era um personagem respeitável. Bill tinha automóvel, relações e influência, numa palavra, Bill era poderoso.
Conseguira Liliana à força de ameaças, de promesas, de pancada e também mostrando-lhe o seu revólver.
Isto começara com o anel; com o anel roubado, foi ela agarrada. E com mais segurança e mais firmemente do que com uma corrente de ferro. Ela não sabia exactamente
no que o bando a queria empregar, mas era em qualquer empresa bem determinada, isso sentia-o. Bill não a deixava renunciar ao seu emprego. Mais tarde, afirmava ele,
seria contratada para uma grande revista de Broadway. "Posso ter em Broadway o que quiser, compreendes?" afirmava, e ela quási o acreditava. E, como agora vivia
numa atmosfera de receio e de febre e se sentia perdida, sem remédio, Liliana de-pressa se entregou à bebida. Um dia Bill fez-lhe mesmo tomar cocaína: ela experimentou
imediatamente um sentimento indescritível da sua grande importância, mas no dia seguinte, na Central, sentiu-se horrivelmente infeliz. Eles tinham a sua presa e
o que esta espécie de gente agarra, segura-o bem. Às vezes Liliana tinha quási desejo de rir quando madame Chalon ou uma cliente a maltratavam um pouco. Imaginava
o susto e os gritos se Bill, de revólver em punho, surgisse no meio delas. Bill possuía certas ideas cavalheirescas a respeito de Liliana, mas tinha também outra
amante, Máxima, uma mulher loura que o vigiava com um ciúme feroz. Liliana tremia muitas vezes, com medo que ela lhe atirasse vitriolo à cara. No entanto, tudo correra
bem até agora. Em certos dias sentia-se quási feliz com o caminho que as coisas tinham tomado: tivera sempre más tendências. Agora apanhava ar pela primeira vez
na sua vida; o ódio que sempre sentira pela gente do"
grande mundo, encontrava um motivo e uma justificação. Nos antros que frequentava, era quási uma rainha. Às vezes, entregava-se a uma esfusiante alegria. Outras
vezes, revoltava-se e Bill, em tom firme, punha-a no seu
lugar.
- Afinal, que queres de mim?- gritava-lhe, Bill
sorria com a sua boca vulgar. Tinha os lábios sempre secos, vermelhos, como que inchados pelo sangue. Nem o álcool nem a cocaína lhe faziam mal.
E eis que, pouco a pouco, Liliana compreendeu o fim dos seus carcereiros; queriam utilizá-la na Central, a loja objecto do seu ódio. Entretanto continuava a servir
a clientela. "Sim, minha senhora, certamente, minha senhora. Está encantadora, minha senhora". Tornou-se instrumento desses homens que saíam da sombra e desapareciam
na sombra. Liliana não os conhecia melhor do que se conhecem as personagens que se vêem em sonhos. Descia a escada, descia sempre cada vez mais baixo.
Dling, dling, dling, fazia a campainha...
- Bem mereço que tenham pena de mim - disse ela a Erik.
- Pena ? Porquê - preguntou ele.
- Tu não podes compreender. Não me faças preguntas estúpidas. Olha, dá-me um cigarro.
Erik acendeu-lhe um cigarro, e a sua mão tremia. Trocista, Liliana olhou para essa chamazinha de fósforo que oscilava sem descanso... - "Sonho muitas vezes com um
homem que está no fundo de uma escada sempre a acender um fósforo."
- Ah! Até em sonhos me enganas! - suspirou Erik, irónico. Estavam ambos sós na grande oficina onde os empregados da propaganda costumavam trabalhar nos seus esboços.
Liliana, com o vestido branco que estreara no barco e Erik, de mãos frouxas, pintava, fumava, tornava a pintar. Esse nervosismo tinha começado com
o primeiro beijo; depois, o rapaz não se havia mais acalmado.
Muito tempo reprimira o artista que havia em si. A crise tinha estalado, assim que viu Liliana com o seu vestido branco, nessa memorável noite do barco. "É como
o sarampo, queixava-se ele. Tem que sair, senão morro intoxicado." Liliana sorria sem compreender, mas consentia na pose. Na sua vida perturbada e destruída, as
horas com Erik eram as únicas que tinham algum valor. Sentia por ele uma paixão estranha, confiante: era como que uma despedida de qualquer coisa. Entretanto, o
quadro que pintava tomava forma, "não sou absolutamente eu, criticava Liliana considerando o retrato com ar zangado. "Que tens a objectar?" - preguntava o artista,
afastando-se do cavalete - Parece um sorvete de morango
- analisava o modelo numa gargalhada desdenhosa -Decididamente, tu não fazes de mim uma idea justa.
- Evidentemente, se eu quisesse pintar o diabo que tu és não ganharia com certeza o primeiro prémio no concurso de cartazes - disse Erik aproximando-se do seu trabalho
com ar ameaçador e acrescentando alguns retoques. O branco é a coisa mais difícil de pintar. - acrescentou - Conta-se que Renoir, quando envelheceu, dizia: "ficaria
contente se pudesse pintar um guardanapo branco, apenas um guardanapo branco."
Liliana seguia com aborrecimento esta incursão na história de arte.
-Tens a certeza de ganhar o prémio?-preguntava.
- Absoluta, meu amor. Ganhamos mil dólares e iremos juntos apanhar uma bebedeira e divertirmo-nos muito.- dizia Erik-Ela sabia que, no fundo, ele a odiava por Nina
o ter abandonado por sua causa. Parando de pintar, Erik, pensativo, pôs um pouco de branco na paleta: também pensava em Nina, em todos os projectos que tinham feito
com esses mil dólares, em todos os sonhos mortos.
- Vi-a ontem - disse Liliana como se os seus pensamentos tivessem falado alto.
- A quem ? - preguntou ele, afogueado, e começando a pintar precipitadamente. Liliana deixou passar a pregunta supérflua.
- O velho com quem ela vive parece que lhe dá muito dinheiro. Devias ver como se portou cá na loja. Menina para aqui, menina para ali... Tinha-lhe dado de boa vontade
um murro nos queixos, podes crer.
- Como... estava ela ? - preguntou Erik, sem querer, depois de um longo silêncio.
- Deliciosa, divina, encantadora. É esta a resposta que desejas?
Pousou os pincéis e avançou para Liliana. Ela deu um passo atrás, pois parecia que ia bater-lhe. Mas Erik não era o Bill e não usava revólver na algibeira.
- Porque não deixas a Nina em paz? Não te basta ter-nos separado?-disse pouco depois, em voz baixa e ameaçadora.
Liliana levou tempo a responder; teria gostado de dizer muitas coisas feias, mas conteve-as, pois embora tivesse ciúme de Nina, não o queria confessar. Gostava de
Erik à sua maneira, tanto quanto era susceptível de amar... mas isso não se podia dizer. Deitando o cigarro fora, desceu do estrado...
- Porque será que tudo em que eu toco se suja ?
- disse, de súbito. Era uma frase que podia ter um som brutal, mas saiu apenas triste. Erik notou-lhe uma pequena oscilação na voz e voltou ao seu cavalete.
O quadro ia em meio. Representava um pedaço de água verde sobre o qual vogava um barco com velas cor de laranja; encostada a um mastro, estava Liliana com o seu
vestido branco. Erik tinha-se cingido, na pintura, às linhas do seu corpo, o ombro direito e a cabeça estavam terminados, mas a anca esquerda estava ainda mal definida.
E só faltavam três dias para a data fixada para a entrega das provas. Erik tinha febre durante
as suas horas livres, antes e depois do serviço. Desde que Nina o deixara, afligia-o a idea de voltar para casa: o leito vazio no quarto de dormir... e um silêncio
absoluto. O velho Filipe e a sr.a Bradley já não lhe dirigiam a palavra; quanto a Skimpy aborrecia-o preguntando-lhe constantemente, quando é que a Nina voltava
e para onde tinha ido. Preferia ficar na Central onde dormia numa velha cama de campanha, na oficina, pintando a qualquer hora da noite. De vez em quando, Cromwell,
o novo detective, ia visitá-lo, Levava um frasco de gin e fazia, a respeito do quadro, reparos de arrepiar os cabelos. Erik tinha a vaga intuição de que entre Liliana
e o detective havia qualquer coisa, pois este não podia conter algumas observações sorridentes. "Ela não tem as pernas tão compridas como estão no quadro." -dizia
ele. Conheço-a bem; tem umas pernas compridas, mas ainda assim, não tanto. "Ou ainda": "Se eu fosse pintor, pintava-a deitada. É assim que os seus melhores pontos
se valorizam." Isso tornava Erik furioso a ponto de o fazer recusar o gin oferecido. "Quanto ao resto, é um cartaz espantoso. Tenho a certeza de que vai ganhar o
primeiro prémio."
- acrescentava Cromwell com um ar bonacheirão, retirando-se, Erik refreava a custo o desejo que sentia de dar um pontapé na tela e de se ir refugiar ao pé de sua
mãe, no asilo de alienados. Em vez disso, punha novas cores na paleta e tentava levar a obra a bom termo. Desde que Nina o tinha deixado, a pintura era a única coisa
que o interessava suficientemente e o fazia esquecer, durante algumas horas, o que se tinha passado. Fenómeno curioso: o sentimento que experimentava por Liliana,
essa funesta insatisfação e o entusiasmo que se tinham apoderado dele, enfraqueceram desde que perdera Nina. Á sua única consolação era agarrar-se a Liliana, tal
como um doente que não quere abandonar o leito no qual sofreu durante semanas.
As alusões de Ricardo Cromwell não eram os únicos pontos tenebrosos da vida de Liliana. Um sábado,
depois de Erik ter recebido o seu magro salário, levou-a a um club de noite, como Liliana desejara. Vestiu o seu smoking, pois ela parecia ligar a isso grande importância,
e Liliana pôs o seu casaco de arminho. Fizeram uma entrada no club onde todos olharam, com admiração, para a jovem mulher. Erik sentiu-se ao mesmo tempo orgulhoso
e pouco à vontade. Não ousou preguntar como é que, com os seus vinte e cinco dólares semanais, ela tinha podido comprar um casaco de arminho. Dois homens com atitudes
de gangsters piscaram-lhe os olhos, familiarmente.
- Quem são aqueles indivíduos? - preguntou ele.
- Amigos meus.-respondeu Liliana.
No fundo, Erik não sabia nada a respeito dela. Sabia que dançava bem o tango e que a sua boca tinha o gosto amargo da baunilha, por causa do bâton que usava. Nem
sequer sabia onde ela morava. Tinha lhe contado que saíra de casa dos pais, mas guardou segredo sobre a sua direcção. Nunca lhe consentia que a levasse a casa. Saltava
para um táxi e afastava se a toda a velocidade emquanto que, durante muito tempo ainda, ele errava pelas ruas, solitário, no turbilhão nocturno das luzes de Broadway
- pensando em Nina.
ErA quarta feira, o dia de venda a um dólar em todas as secções da Central. Na secção de sedas havia liquidação de retalhos. Dois agentes da polícia estavam à porta
sul, onde tudo era vendido à razão de dólar por três artigos; três camisas de homem, três pares de meias de seda, três lenços de linho, três clips de pedras falsas.
No sexto andar, Cromwell não sabia que fazer para manter a ordem. Aí, tudo se liquidava à dúzia: uma dúzia de copos de vinho; uma dúzia de chávenas, de café; uma
dúzia de pratos de bordos doirados, isto na secção de louças e vidros. Miss Drivot andava numa actividade febril, a sua face estava coberta de pequenas gotas de
transpiração e de veiazinhas. Parecia que a sua circulação sanguínea não lhe permitia resistir ao assalto dos clientes. O sr. Berg, chefe da secção, ajudava em pessoa,
embora não fosse essa a sua função. A nova caixeira que substituira Nina era desajeitada : não estava ainda a par do serviço e miss Drivot tinha de lhe dizer em
segredo, números e preços.
Na entrega, acumulava-se gente. Ouviu-se tilintar: a sr.a Bradley acabava de partir um prato de cristal.
- Que aconteceu ? - indagou o sr. Berg, que fazia a sua inspecção.
- Nada, não tem importância. - balbuciou a sr.a Bradley, receosa. Tinha febre, não via claro por causa da febre e do sofrimento, tudo estava desfigurado, tudo
oscilava à sua volta. Pousou um embrulho meio feito e dirigiu se para a escada do pessoal. Mal chegou diante da porta envidraçada, caiu desmaiada.
Levaram- na ... Tudo isso foi feito num abrir e fechar de olhos, sem ruído, sem escândalo: os serviços sanitários da casa trabalhavam bem e as caixeiras desmaiadas
não eram raras no Dollar-day. O pacote meio pronto permanecia ainda em cima da mesa, quando a sr.a Bradley já estava para entrar no carro da ambulância.
- Quanto tempo tenho de esperar pelo meu embrulho?- preguntou a freguesa, encolerizada.
O sr. Berg fez tudo para restabelecer a ordem.
- Imediatamente, minha senhora, um momentozinho, se faz favor. - disse, com solicitude. Uma rapariga correu a substituir a sr.a Bradley, uma rapariga ruiva, de grande
boca risonha. O embrulho foi acabado e a cliente servida. Era bem pouca coisa, afinal, a desaparição de um dos setecentos empregados da Central... Meia hora mais
tarde, a sr.a Bradley estava adormecida pelo éter, suspirava aliviada, como se flutuasse sobre grandes vagas. Um cirurgião de luvas de borracha, com o rosto tapado
pela máscara branca, operava-lhe o apêndice. com este, eram quatro mil oitocentos e sessenta e dois apêndices que extraía na sua vida, e, por isso, o facto afligia-o
pouco: "Um apêndice particularmente feio" -disse, em ar de censura à enfermeira que estava ao éter, emquanto lavava as mãos. A sr.a Bradley foi instalada no hospital
com um pequeno aviso à cabeceira da cama. Estivera em riscos de morrer e salvara-se, mas não o sabia. Continuava sob a influência do éter e, acompanhada pelo sr.
Bradley, ia a um pique-nique num automóvel muito esquisito que possuía e era dos mais elegantes no ano de 1924...
Agora, eram seis horas e cinco e a Central atirava os últimos clientes para a rua. No vestiário, as caixeiras,
extenuadas, punham pó no nariz suado, emquanto os caixas faziam, febrilmente, as contas.
Cromwell, o detective, subiu até ao 12.? andar para ir buscar o sobretudo. Logo que, assobiando, entrou no seu escritório, que era um pequeno buraco dando para o
pátio velho, encontrou Filipe.
- Olá, Filipe - disse, olhando para o velho que mexia em papéis amarelecidos, em cima da mesa.
- Olá, Cromwell - respondeu gravemente Filipe.
- Está a fazer arrumações? - preguntou Cromwell, jovial.
- Levo as minhas coisas. Os meus três meses terminam na próxima semana.- respondeu o velho detective.
Cromwell, que alisava os cabelos a um espelho de algibeira, deixou de assobiar. "É uma vergonha." - disse, sem intonação. Um instante depois, voltou ao seu problema
particular: "Diga-me cá, Filipe, quantas vezes por dia é obrigado a barbear-se?"-preguntou, enchendo a face com a língua e vendo no espelho de algibeira os resultados
obtidos.
- Todos os dias, se lhe interessa saber - respondeu Filipe, aborrecido.
- Pois eu, duas vezes ao dia sempre que desejo sair à noite. Senão, as raparigas queixam-se - gabou-se Cromwell.
E embaciou o espelho, limpou-o com a manga e tornou a guardá-lo.
A absurda insensatez de toda esta mímica desesperou Filipe.
- Mandou-me dizer que o esperasse ... - observou, um pouco irritado.
-Ah! sim, é verdade. Queria pedir-lhe para passar aqui a noite, hoje. Pode dormir, nada o inquieta, é apenas pro-forma. Tenho que fazer... compreende? De vez em
quando, preciso de ter uma noite minha... Cada um tem também a sua vida particular, não é verdade ?
- Hoje calha mal. -disse Filipe-A sr.a Bradley, em casa de quem moro, foi para o hospital. E eu queria ficar ao pé da criança que está sozinha em casa.
- Tudo isso é muito bonito, mas você não é criado de meninos, é detective. Lamento, mas prometi absolutamente ao manequim do salão de costura, sair esta noite com
ela. Você sabe o que é isto... com senhoras ...
- Então divirta-se. - cortou Filipe para acabar com a conversa - Eu cá fico a olhar por isto.
- Não é preciso olhar por nada: desde que eu cá estou, nem uma carta de alfinetes foi roubada. Durma... contente-se em fazer uma vez, à meia-noite, a ronda do costume.
-Bem, bem, eu conheço o trabalho melhor do que você. -resmungou Filipe.
Cromwell não levou a mal. O velho fazia-lhe pena. Foi ao pé dele e bateu-lhe no ombro:
- Fico-lhe sinceramente reconhecido por me querer substituir. A rapariga é diabòlicamente bonita e tenho de andar atrás dela, se a quiser apanhar -explicou.
Exasperado, Filipe viu a porta fechar-se atrás do homem.
Rebuscou ainda um pouco a gaveta donde queria tirar o que era seu: algumas cartas, velhos recortes de Jornais, restos emmurchecidos de uma vida ajuizada e descuidada.
Tentou reler alguns dos recortes, mas as letras tremiam-lhe diante dos olhos. Desde que tinha renunciado a beber, o velho Filipe vivia num mundo impreciso e desbotado.
Passava mal, tinha zumbidos nos ouvidos, às vezes mal ouvia o que lhe diziam e esquecia os nomes, os rostos e os números dos telefones. As costas vergavam-se-lhe
logo, mal se punha em pé. Subitamente, o olhar poisou numa garrafa que Cromwell deixara em cima da mesa: era o gin recusado por Erik.
Filipe notou, contrafeito, que lhe tremiam as mãos emquanto olhava para a garrafa. Voltou à gaveta e,
segundo o seu hábito, meteu o revólver na algibeira do lado do casaco. A sensação da arma contra o corpo deu-lhe mais segurança. Num passo brusco, foi ao pé da mesa,
fez saltar a rolha da garrafa - sentiu, com espantosa precisão, a pequena cápsula de estanho entre os dedos - depois bebeu três grandes goles. O gin, acre e quente,
descia-lhe pela garganta; já ele sentia o calor penetrar em largas ondas no interior do tórax. Durante alguns instantes, o ruído, nos ouvidos, tornou-se uma ameaça,
para depois cessar completamente. Atónito, o velho Filipe olhou à sua volta, pois uma claridade e um silêncio inesperados entraram em todo o seu ser. Bebeu outra
golada, depois, saindo do aposento, enfiou pelo corredor que ia dar à oficina dos decoradores.
- Ouça lá Bengtson, você pode ir agora lá a casa e trazer-me a Skimpy? A mãe está doente e eu encontro-me de serviço esta noite.
Erik permanecia de pé em frente de um cavalete em cima do qual estava colocado um quadro coberto com um pano velho. Agarrou nos pincéis e foi lavá-los à torneira.
- Lamento... pobre sr.a Bradley!... Liliana acabou de me contar. Mas eu não posso ir buscar a pequena. Toda a secção b8 deve ser remodelada esta noite.
B 8 era a secção das sedas estampadas, no 3.? andar. Depois do Dollar-day, essa secção parecia um campo de batalha, Filipe sabia-o.
-Que havemos de fazer então? -preguntou ele, voltando-se para Liliana, - A jovem esperava ao pé da mesa, com o seu vestidinho preto, de caixeira, o casaco no braço
e uma boina verde na mão. Era estranha esta nova lucidez com que o cérebro de Filipe apanhava outra vez tudo; imagens, ruidos, perfumes. Ouvia distintamente a torneira
pingar depois de Erik ter lavado os pincéis, o perfume de Liliana feriu-lhe o nariz, como qualquer coisa de palpável,
Sentia uma irritação ao respirar esse perfume pesado e voltou-se com ar pouco amável para a rapariga. "Tem passado muita vez a noite em nossa casa... Podia ir a
Fieldston e ficar ao pé de Skimpy."
Liliana encolheu os ombros. "Eu ia de boa vontade, mas tenho um encontro urgente" - respondeu. Erik despiu a bata manchada de tinta e vestiu o casaco. Filipe voltou-se,
indeciso: "É verdade... tinha-me esquecido completamente"... - disse, e as alusões de Toughy acudiram-lhe à memória. Eram agora tão notadas na sua memória, que tornou
a ver cada um dos pêlos da face do jovem detective. Erik olhou o com uma leve surpresa.
- Liliana tem ainda que me servir de modelo, esta noite, assim que eu acabar de arranjar a B-8 - disse. - O prazo expira amanhã de manhã e nos últimos dias quási
não pude trabalhar. E pegando na chave que tinha no bolso, dirigiu-se para a porta. vou só comer qualquer coisa à pressa - acrescentou. Liliana seguiu-o. Ao clarão
da luz, Filipe notou como Bengtson estava pálido. Um reflexo mate de suor cobria-lhe o rosto nervoso; os dois sulcos à Gary Cooper marcavam-se-lhe mais nas faces,
cheias de sombra. Filipe saiu com eles da oficina e observou os gestos de Erik, fechando a porta à chave. O par foi tomar o elevador. Emquanto ele os seguia com
o olhar, quando iam para o elevador, considerava a situação. Segundo todas as aparências, esta Liliana tinha prometido a noite a dois homens. "Hum... pensou, é preciso
que ela seja muito esperta, para ir aos dois encontros."
Agora a casa estava deserta e tranquila. Pertencia ao velho Filipe como lhe tinha pertencido durante numerosos anos. Errou pelas escadas, de andar em andar, inspeccionando
todos os cantos. Daí a pouco sentiu-se extraordinariamente descontente e agitado. Olhou para as mãos: tremiam quando as estendia. Pegou na sua chave, abriu um elevador
e subiu ao 12.? andar. 155
Todo o corredor cheirava a Liliana. Foi ao escritório e bebeu a metade do gin. Depois pegou no telefone e mandou ligar para Skimpy.
- Estás admirada de não termos ainda chegado a
casa?
- Sim, tio Filipe. Aconteceu alguma coisa?
- Escuta Skimpy, temos tido muito trabalho. Tens medo de estar sozinha em casa ? Não queres ser uma menina corajosa e ires dormir?
Passou-se um instante antes que Skimpy, no outro lado do fio, arrumasse tudo isso na sua cabecinha.
- Queres dizer que a mamã não vem para casa ? -Sim, é isso. Ela não está muito bem e a nossa
enfermeira está a tratá-la.
- Mas eu tinha feito o jantar para vocês!
- Queria saber se tens medo de estares sozinha em casa? -tornou a preguntar o velho Filipe.
Houve outra vez um instante de silêncio.
- Tenho sim, tio Filipe... - Isto foi murmurado com uma vòzinha, na qual já tremiam as lágrimas.
Filipe tinha agora o cérebro lúcido e não reflectiu um segundo:
- Presta muita atenção ao que te vou dizer, Skimpy. Daqui a uns minutos um automóvel há-de businar três vezes à porta. É um táxi que te mando. Metes-te nele e vens
para a Central. Quando chegares, preguntas por mim ao homem que está à porta, tu conheces bem o Joé, não é verdade? Ficas aqui ao pé de mim e ajudas-me a guardar
o armazém, queres?
- Os brinquedos também ?
- Sim, os brinquedos também. Mas avia-te, veste-te de-pressa que o carro vai já.
Filipe riu, pois não se ouviu nenhuma resposta: apenas o estalido seco do auscultador que Skimpy punha no descanso. Folheou a lista dos telefones e chamou para uma
garagem de táxis de White Plains, dando as instruções necessárias e dizendo que o táxi seria pago
assim que a pequenita chegasse à Central Warehouse. Bebeu mais um gole de gin e ligou para o hospital, para onde a sr.a Bradley tinha sido transportada. Disseram-lhe
que tudo ia bem. A operação correra perfeitamente, a doente estava ainda um pouco aturdida pelo narcótico, mas livre de perigo. Filipe soltou um suspiro de alivio.
Deslizou diante da garrafa mein vazia e saiu do 12.? andar. Calculou que Skimpy não poderia chegar antes de meia hora, justamente o tempo de fazer uma ronda ao estabelecimento.
Tal como tinha procedido durante vinte e sete anos, começou pela sala dos caixas. Examinou todos os postos de alarme no aposento semi-iluminado, encontrou, à saída,
um dos guardas da noite que acertava o relógio registrador ao pé da escada 8. Trocou algumas palavras com ele e continuou a sua ronda. No grande escritório das dactilógrafas,
as máquinas de escrever estavam arrumadas em boa ordem, todas cobertas com a capa de oleado. Continuou o seu passeio por todos os andares, acendendo aqui e acolá
a sua lâmpada de algibeira; parando, apurando o ouvido, espiando o silêncio do enorme edifício e continuando o seu caminho. No rés-do-chão parou um pouco ao pé da
porta de Joé.
- Ouça lá Joé, vão trazer aqui uma menina; é a filha da sr.a Bradley. Aqui tem dinheiro para pagar o táxi. Chame-me, assim que ela chegar, percebeu?
- Sim senhor, chefe.- respondeu Joé levando a mão ao boné. As vigílias comuns tinham-nos feito velhos amigos. Joé, além disso, havia ajudado, quando transportaram
a sr.a Bradley na maca para o carro da ambulância.
- Só me falta descer à cave e depois acabou-se. disse Filipe, continuando a ronda. Joé viu-o partir abanando a cabeça, até que a sua sombra desapareceu da parede.
"Que pena... pobre homem ! - comentou pensativo.
Filipe percorria o território plebeu da cave. Aí reinava um verdadeiro caos depois da batalha do Dollar-
Day- Atravessou a secção de armamento que tinha sido passada para baixo, seguiu a dos móveis baratos e chegou ao fim, à porta de ferro do depósito de peles, pegou
na chave e na lâmpada de algibeira e manobrou a complicada fechadura. Abriu a segunda porta, entrou. Estava escuro lá dentro e respirava-se um ar acre e frio. Fez
luz; todo o sortido de peles estava reunido no vasto aposento, cada uma delas cuidadosamente embailhada num resguardo contra as traças. Havia ali mais de cem mil
dólares entre as filas dos tubos do frigorífico. Filipe tivera sempre um fraco pelo armazém de peles; era como um mundo aparte, lá em baixo, um mundo frio e fechado.
A sala era muito alta e cruzada em todos os sentidos pelo complicado sistema de tubos que mantinham a temperatura a 28º. Meteu-se entre as peles, automaticamente,
segundo um hábito adquirido no decorrer de anos, encontrou tudo em ordem e voltou à porta. Maquinalmente, ligou a campainha e saiu do depósito, deixando o alarme
pronto a poder funcionar.
A entrada do armazém das peles era cheia de instalações automáticas, como na sala dos caixas. Como ele agisse de uma forma mecânica e habitual, o velho Filipe tinha
quási esquecido que as campainhas de alarme não roçavam. Mas, um segundo mais tarde, o silêncio caiu sobre ele como qualquer coisa de palpável, uma espécie de pano
negro ou uma pancada. Ficou petrificado no mesmo sítio, com as mãos estendidas, tremendo, tremendo desesperadamente. Pegou no revólver, mas era um movimento absurdo.
Agora ouvia o martelar do seu coração, no peito, nas fontes, em toda a parte... as campainhas de alarme não funcionavam !
Como o silêncio persistisse e não surgisse nenhuma sombra sobre que pudesse atirar, o velho detective julgou-se no dever de descobrir donde provinha a paragem dos
sinais. Podia ser apenas um desarranjo dos fios de que Toughy, na sua confiança em si próprio, nem dera conta. Tateou até ao botão secreto, abriu um pequeno
cofre de ferro incrustado na parede e tentou acender uma lâmpada encarnada. O sinal luminoso, tal como as campainhas de alarme, não funcionava. Fechou cuidadosamente
o cofre e, sempre na defesa, transpôs a porta. Havia ali instalações que deviam disparar automaticamente, das quais nunca fizera grande caso. Voltou ao depósito
e, no ar envinagrado e no pesado silêncio, inspeccionou todos os cantos: não descobriu nada. Não percebeu mesmo que agia de uma forma insensata e temerária, pois
se um ladrão se tivesse escondido entre as peles, Filipe estaria, havia muito, reduzido à impotência. Na angustiosa tensão de nervos provocada pela sua descoberta,
tinha mesmo esquecido Skimpy. Subitamente, lembrou-se da criança. Abandonou o depósito das peles, transpôs prudentemente a porta que fechou à chave. com a mão sobre
o gatilho do revólver que tinha no bolso, atravessou rapidamente a cave e tomou o elevador, para subir. Durante segundos, traçara o seu plano; não participaria nem
aos guardas da noite, nem à polícia as suas suspeitas. Se depois se descobrisse qualquer coisa nas instalações eléctricas, qualquer curto-circuito, fariam troça
dele. Se qualquer coisa de anormal tivesse que se passar no depósito das peles, e um instinto preciso, insinuante, angustioso, parecia adverti-lo, queria combatê-lo
só, queria reservar para si todo o perigo e toda a honra.
- Ah! cá estás! - disse ele, assim que chegou ao aposento de Joé e viu Skimpy. Ela vinha toda bonita: esfregara energicamente a cara e as mãos com sabonete, antes
de se lançar nesta grande aventura.
- O Joé disse que a minha mamã está no hospital.
- murmurou, de cabeça pendida para o peito, mas sem chorar.
- Sim, sim... mas está melhor e mandou-te dizer que não tenhas medo. Amanhã de manhã, iremos vê-la
- disse Filipe. Ele já não sabia o que fazer da criança pois tinha que voltar à cave. Tu não queres ficar aqui ao pé do Joé e dormir em cima do sofá ? - preguntou.
- Não. - disse vivamente Skimpy.
Era um velho sofá, cuja crina saía por todos os lados, que estava impregnado com cheiro de tabaco de cachimbo. Joé riu com bonomia.
-Quero ir para o pé dos brinquedos.-declarou Skimpy.
Ela estava quási a chorar, mas continha-se corajosamente. Filipe pegou-lhe nas duas mãos.
- Joé, - disse ele, antes de partir com a criança, escuta. Tem esta noite especial cuidado, se notares o que quer que seja de suspeito, chama imediatamente a polícia,
percebeste?
- Sim, chefe - disse Joé com um novo cumprimento. Não percebia nada. "O velho está cada vez mais velho", foi tudo quanto pensou.
Filipe entrou no elevador e subiu à secção dos brinquedos. A mãozita confiante tremendo na sua mão, acalmava-o um pouco, com o seu calor.
- Agora escolhe qualquer coisa para brincares, mas de-pressa e toma cuidado; é só emprestado. Não tens nada que ver como é feito por dentro. - disse ele, pois conhecia
as bonecas de Skimpy, cujas cabeças abertas tinham sido vítimas da tendência exploradora da criança. Skimpy, que tinha o sentimento de ser uma grande pessoa, fingiu
um interesse frio. Filipe meteu lhe nos braços uma boneca e uma paciência e subiu com ela até ao
12. andar.
- Escuta, - disse ao guarda que encontrou lá em cima - vigia bem esta noite, especialmente as escadas de socorro e a cave.
- Muito bem, chefe. - disse o homem, fazendo pouco caso da recomendação.
O velho detective não sabia ao certo o que devia fazer da criança. Todo o seu corpo ardia de impaciência, o seu escritório, ou antes, o escritório de Cromwell, era
um sítio miserável e Skimpy não queria lá ficar. Tomando uma rápida decisão, abriu a oficina de decoração, acendeu
a luz e olhou à sua volta: Bengtson não estava ainda de volta; no cavalete, o quadro continuava coberto... O perfume de Liliana flutuava pesadamente no ar.
- Bem ... podes instalar-te aqui a brincar... ou a dormir. - disse, rapidamente.-Eu volto já. Mas é preciso que não saias daqui, mesmo que ouças barulho. Compreendeste?
Erik vai chegar daqui a pouco. Poderás ajudá-lo a pintar.
- A Nina também cá está ? - preguntou Skimpy.
- Não. Saiu. - respondeu Filipe.
Esperou ainda um instante que Skimpy se instalasse na cama de campanha com a sua boneca, depois dirigiu-se para a porta. Num segundo, teve o pensamento de que a
criança fora a última pessoa que lhe tinha sido dado ver... Talvez uma bala lhe estivesse destinada nessa noite, na cave, no depósito ou nas escadas. Hesitou um
pouco, depois voltou em passo vivo ao escritório que fechou à chave. A garrafa lá estava, meia vazia. Bebeu alguns goles grandes, sentiu calor; a lucidez de espírito
e a decisão entraram em si e pôs-se a rir, pensando em Toughy.
-"Ele precisa de barbear-se duas vezes!" - murmurou, com desdém. Pôs a garrafa na algibeira, procurou com a mão o revólver, meteu algumas balas de reserva no bolso
do casaco e saiu. Parecia a Filipe que já tinham passado muitas horas desde que o armazém fechara.
Desceu ao depósito das peles e abriu as portas. O silêncio e o frio reinavam no interior. As peliças estavam alinhadas em boa ordem e os tubos, pintados de branco,
ziguezagueavam entre elas. Filipe tirou um dos casacos e envolveu-se nele, antes de se sentar a um canto para esperar. Daí a pouco tinha os dedos hirtos de frio,
doíam-lhe os dentes. O tempo passou.
Não acontecia nada.
Erik estendeu a mão por cima da mesa.
- Mas... é proibido... - hesitou ele.
- Proibido ? - replicou ela, rindo - Como háa"de acabar o teu quadro se eu não vier?
- Podes vir sem ter a chave.
- Quando, às nove horas ?
- Um pouco mais tarde. Tenho de acabar primeiro a B 8 e vai levar tempo.
- Então quando ? Às onze horas ? Posso esperar.
- Tu sim, eu não. - replicou Erik, aborrecido.
Estavam no "Rívoldi". Sim, agora estava com Liliana no "Rivoldi" atrás da mesa de mármore, sobre o velho banco de veludo.
-Vamos, dá-me a chave. vou às onze horas e subo directamente à tua oficina.
- Aborrece me entregar isto - disse Erik, hesitante, pousando sobre a mesa o pequeno molho de chaves.
- Então, não. - terminou Liliana, levantando-se - Estou farta de dar nas vistas e de falatório... quando, de noite, vou ter contigo, e me têm de acompanhar.
- Pronto. Aqui está a do elevador, escada 5 - decidiu-se Erik, indicando as chaves. Tinha-as posto em cima da mesa, mas Liliana nem para elas olhava. Já sabes, no
12. andar vais até à boca de incêndio, voltas à direita e
assobias. Se eu ainda lá não estiver, abre a porta da oficina e espera-me. Há cigarros na gaveta.
- Entendido, - retorquiu Liliana - não te canses muito. Adeus Baby.
Pegou nas chaves e meteu-as na malinha.
- Agora tenho de me aviar.
- Tão de-pressa!...
-Tenho muita. Descobri um cabeleireiro que me penteia depois das sete horas. Vou-me embora. combinado. As onze.
Erik viu-a sair. Possuía o mais belo corpo de mulher, que lhe tinha sido dado contemplar. Todos os comensais se voltaram; era uma dessas raras criaturas que, mesmo
com capa de borracha, parecem nuas. Assim que a porta se fechou atrás dela, Erik acendeu outro cigarro. Continuou sentado diante de uma chávena de café. O criado
aproximou-se, limpou a mesa e quis falar-lhe em italiano, mas Erik não respondeu. Também não tinha vontade de voltar de noite à loja para arranjar a secção das sedas,
não tinha vontade de acabar o quadro, era-lhe indiferente ganhar ou não o prémio. Sonhou um momento, pegou no lápis e desenhou qualquer coisa na mesa. Ao princípio,
alguns projectos para a secção de sedas, depois qualquer coisa que apagou com o dedo. Esperou uns minutos ainda, olhando fixamente na sua frente, com os olhos vagos,
Por fim, levantou-se, pagou e foi-se embora.
Sobre o mármore coberto de nódoas, distinguia-se um esboço um pouco apagado: não era o retrato de Liliana, mas o de Nina.
Durante esse tempo, Liliana seguia à pressa pela rua 41.a, depois tomou a 8.a Avenida. Um automóvel verde esperava-a, entre os carros parados diante de um hotel.
Liliana subiu. O motorista era um bonito rapaz de cabelos pretos, anelados. "Anda, anda, Kid. É tarde." - disse ela. Desceram rapidamente a avenida. "Bill está lá?"
- preguntou ela.
- Esperam desde as sete horas. Há qualquer coisa em vista?
-Anda e cala-te. - respondeu Liliana, muito nervosa. Fumava um cigarro que meteu na boca do rapaz. Contente, ele fez uma careta. O carro andou rápido, obliquou e
parou bruscamente. É melhor tu esperares aqui disse Liliana, descendo.
O prédio no qual Bill tinha alugado um andar, exibia um luxo burguês um pouco exagerado. Falso tapete do Oriente na entrada, uma jovem mulher com um olho de vidro
no escritório de recepção, um negro no elevador. Este teve uma piscadela de olho, interrogativa, levando-a para cima. "Isto vai bem, Pedro"-respondeu, aborrecida.
Na sua casa, tocava a T. S. F.
- Até que emfim!-disse preguiçosamente Bill, quando ela entrou. Como sempre, o aposento estava cheio de fumo: garrafas vazias, um balde de gelo, tudo em cima da
mesa. Um copo tinha-se entornado sobre o brocado e o álcool pingava pegajosamente para o chão. Liliana atravessou o aposento, encaminhando-se para o seu quarto de
dormir. Olá ?"-- limitou-se a dizer. Tirou o chapéu e, no espelho, viu-se pálida sob a pintura. "Não fui feita para estas coisas" - pensou fugitivamente.
As asas do nariz estavam quási verdes de medo. Bill seguiu-a ao quarto.
- Então, arranjaste tudo ? - preguntou. Ela tirou as chaves da bolsa.
- Aqui estão. - disse. Bill riu baixo. Não agarrou logo nas chaves. Liliana levantou-se e voltou à sala. Big Paw baloiçava-se molemente numa poltrona, tendo ao colo
Máxima, que se levantou à aproximação de Bill. Era loira, pálida e muito nova; tinha a figura de uma bailarina. Liliana percebeu que Bill estava sob a influência
da cocaína. Ele tinha dito que tomava sempre cocaína, quando empreendia algum golpe difícil. Os olhos brilhavam-lhe. O bando trouxera nesse dia um homem de
reforço, com ombros largos de boxeur desenhando-se sob o pano verde do seu uniforme de groom.
Bill mergulhou a mão no bolso e tirou um estojo. Fez-lhe saltar a mola e exibiu um broche ornado com uma grande esmeralda ... Atirou a jóia para a frente de Liliana.
"Lindo trabalho, an? A lapidação fez-nos perder dois quilates, mas agora ninguém conhece a pedra." disse, com ar amável. Num gesto brusco, Liliana pegou na jóia.
Era a sua recompensa por ter vendido Erik.
- Pronto.-respondeu, pondo sobre a mesa um plano traçado à pressa - Deixem-me fora de tudo isto. Levai Máxima, e está tudo acabado entre nós, assim o espero. Pôs
as chaves ao pé do plano, sobre a mesa, no sitio onde estava a nódoa de álcool. As suas mãos pareciam curiosamente alongadas e pequenas ao pé dos rudes punhos de
homem que se lançavam sobre as chaves.
- Ah! sim? Estás farta de nós? Mas talvez não estejamos nós fartos de ti, minha menina. - disse Bill. Galantemente, Big Paw interpôs-se:
- Deixa-a em paz, ela trabalhou bem. - reconheceu. Liliana olhava para todos, um após outro, como se
saísse de um sonho. Os rostos estranhos, as mãos estranhas, a esmeralda ...
- Devem ir. - disse ela - Às nove horas o gorila
vem-me buscar.
Bill teve um novo ataque de riso. Alisava ainda
mais os seus cabelos lisos.
- Divirtam-se. - gracejou.
- Obrigada. - respondeu Liliana, abstracta. Bill aproximou-se dela e bateu-lhe no ombro: - Se isto correr bem, dou-te um lindo presente-prometeu. Bruscamente, inclinou-se
para a rapariga e colou os lábios vermelhos aos seus. Máxima olhava-os com ar zangado.
Assim que partiram, Liliana abriu as duas janelas e preparou um banho quente, pois estava gelada. Quando saiu da água, sentiu-se com melhor disposição. VoLtando
à sala, rebuscou as garrafas quási vazias. Eles tinham também absinto. Fez uma mistura de bebidas e enguliu essa mistura, que sabia fortemente a Kummel. Logo depois
sentiu invadi-la um calor e a habitual sensação de temeridade subiu-lhe à cabeça. Pôs-se diante do guarda-fato, acariciou os vestidos novos e caros e escolheu, emfim,
um vestido verde, de seda pesada, que lhe modelou as formas. O telefone, ao lado da sua cama, tocou. O relógio marcava nove menos cinco. "O sr. Cromwell está aqui"-anunciaram.
"Que me espere no hall, daqui a um instante estou pronta."-disse Liliana. Ela detestava o jovem detective, que achava ridículo. Num capricho súbito, tirou do armário
o casaco de arminho e pô-lo nos ombros. Tomou mais um copo, sentiu-se um pouco embriagada e, rindo a bandeiras despregadas, pôs o broche de esmeralda. O telefone
fez-se ouvir pela segunda vez. "Sim, desço imediatamente." - disse, encolerizada. Cromwell era grotesco na sua impaciência. Liliana, de pé em frente do espelho,
deu mais uma gargalhada pensando no que se passava na Central, emquanto ela ia sair com Toughy!
"Santo Deus!" - exclamou Cromwell, assim que a viu sair do elevador.
Perplexo, fitava o vestido, o arminho, as grandes luvas brancas. Ele tinha também vestido o seu melhor fato azul-escuro, que lhe assentava muito bem. Como só aos
antigos oficiais assentam os fatos.
- Santo Deus. - repetiu ele. Liliana, sobreexcitada pelo absinto, respondeu:
- Ora vamos... não sabes que os manequins são as mulheres mais caras de New-York?
Às onze menos um quarto, com dores de cabeça e as mãos sujas, Erik saiu da secção de sedas. Em baixo, continuavam a trabalhar, mas sem ele. Tinha arrepios e sentia-se
aniquilado.
- Não é muito confortável para a noite, o armazém.
- resmungou. Teve que atravessar a secção de artigos japoneses, absolutamente às escuras. Tirou a lâmpada da algibeira: os Budas estavam aqui e acolá, surgindo da
sombra.
Chegando em frente do elevador, perdeu imenso tempo a procurar as chaves, até que se lembrou de as ter emprestado. "Diabo!"- disse. Os nove andares, desde o
3.? até à oficina pareciam-lhe extenuantes e intermináveis.
Sempre resmungando em voz baixa, dirigiu-se para a escada e começou a ascenção. ? Era como uma subida difícil, na montanha. Ele subia, subia, já lhe faltava o fôlego
e ainda estava no 8.? andar. Parou, escutou ouvindo passos; de facto, apareceu um guarda.
- Se faz favor leve-me até à oficina e abra-me a porta - disse, acanhado - pois acabava de se lembrar que não podia entrar na oficina porque Liliana tinha as chaves.
O guarda resmungou qualquer coisa, pois fazia as rondas num semi-sono e não lhe agradava nada ser incomodado. No entanto, decidiu-se e tomou o elevador com Erik,
até ao 10. andar.
- É um ofício bem desgraçado, o nosso! - disse Erik, emquanto percorriam o corredor e passavam pela boca do incêndio, para a oficina.
- Como? - preguntou o guarda.
- É que ... você pode dormir de dia? - preguntou.
- Porque não? -respondeu o guarda, rindo.
- Melhor para si. Eu não posso. E tirou do bolso o maço de cigarros, metendo-o na algibeira do peito do uniforme do guarda.
- Está aberto. - disse o homem, depois de ter feito deslizar a chave na fechadura.
-Sim? Ainda bem. - replicou Erik - Obrigado e boas-noites.
Hesitou um instante antes de entrar. "Liliana já lá está" - pensou. Sentiu-se cansado, como que vazio, incapaz de terminar o quadro.
"Que os demónios levem o prémio!" Tinha a impressão de não ter dormido havia semanas, sim, de não ter dormido desde que Nina o tinha deixado. Dominou-se e abriu
a porta.
Liliana não estava lá, a-pesar-do aposento parecer animado. A primeira coisa que viu foi uma folha de papel, espetada com um alfinete, no pano que cobria o retrato
que estava no cavalete. Deu dois passos e leu:
"Se faz favor deixe a Skimpy passar a noite consigo. Se acontecer alguma coisa, queira levá-la amanhã à mãe ao hospital Santa-Maria. Obrigado. Filipe."
Erik olhou à sua volta e não distinguiu a criança imediatamente. Skimpy tinha rolado até à orla do leito, antes de adormecer. Colocara em cima dela o sobretudo de
Erik; muito chegada ao nariz, estava a cabeleira de uma boneca. A respiração era regular; uma suavidade, uma calma, emanavam dessa criança adormecida. "Se tenho
a desgraça de me deitar-pensou Erik -adormeço imediatamente." Lançou sobre os objectos um olhar vago e acabou por se sentar numa cadeira, a um canto. Esperou, aborrecido
e cansado. O relógio da
torre deu onze horas. Esperou ainda. Liliana não chegava. Erik levantou o auscultador e Joé respondeu:
- Está lá, Joé ? Ninguém preguntou por mim ? Não há nada para mim ? Ouça Joé, espero um dos manequins, deixe-a entrar quando ela vier. Que tome a escada 5. Como
? Se tem uma licença ? Sim, naturalmente. Obrigado, boas-noites.
"Onze horas e meia. Que mulher fatigante, esta Liliana!" - pensava Erik. Doíam-lhe os membros, os olhos fechavam-se-lhe. Levantando o pano, descobriu o quadro. Não,
não valia a pena pintar. Skímpy respirava, no seu canto. Erik deitou-se junto dela e soltou um suspiro. Não queria dormir... no entanto... adormeceu imediatamente...
QUARTA-FEIRA à noite tenho visitas, quero apre sentar-te aos meus amigos" - tinha dito Steve Thorpe a Nina, depois da última noite frustrada. Fazia o que fazem muitos
homens da sua idade e da sua posição. Já que não podia possuir Nina, queria ao menos dar na vista. Mostrava-se com ela por toda a parte onde ia: no teatro, no restaurante.
Tinha-a forçado a aceitar alguns lindos vestidos e tratava-a, como se ela fosse uma rainha disfarçada. No seu foro intimo, desejava que Lúcia se encontrasse um dia
com Nina. O convite feito aos seus amigos, tinha mesmo um fim: a certeza de que um deles contaria à sua ex-espôsa que vivia com uma mulher em casa e que parecia
feliz. Era já a segunda semana que Nina passava na habitação de Thorpe, em White Plains. Tinha aprendido a apanhar a coberta emquanto dormia, para evitar que caísse,
a
sustentar o olhar do criado e a receber, à noite, os convidados de Steve. Muitas vezes sentia a cabeça pesada. Em geral vivia como num sonho, num espaço sem ar.
Não se atrevia a preguntar a Steve quando lhe alugava a casa prometida, e ele pelo seu lado, parecia ocupado demais para pensar nisso. Havia dois dias que tentava
iniciá-la nas bases do jogo de bridge, e ela ouvia, com os olhos fixos, sem perceber nada. Ele ameaçava-a também de lhe dar um professor de piano, pois tinha uma
vaga
inclinação para a música, e queria que Nina, com a sua vòzinha, lhe cantasse canções. Desde a noite em que a fizera beber, cessara com as suas assiduidades. Nina
não tinha a consciência tranquila, pagavam-lhe e ela nada dava em troca. Tinha adquirido na Central a idea confusa de que a compra e a venda formavam as bases da
vida. Valor e contra-partida. Pagamento e produção. Sabia que aquilo não podia durar muito tempo assim. De qualquer lado que a considerasse, a situação era torta
e falsa. Competia-lhe dar a Steve o que ele esperava.
-És amável em me dares tempo, para me decidir ... - murmurava Nina, receosa.
Emquanto que ou dormindo ou acordada, sonhasse com Erik, não estava ainda madura para o sacrifício.
Na quarta-feira à noite ela estava um pouco excitada. Steve voltou do escritório mais cedo que de costume, e desapareceu imediatamente no seu quarto de vestir.
- Que devo pôr ? - preguntou Nina, através da
porta.
- O vermelho- escuro. - respondeu Thorpe. Ela ficou, por momentos, admirada que conhecesse a cor dos seus vestidos... Vestiu o vermelho-escuro, mas teve que parar
para se sentar. Sentia-se aturdida. Os lábios, bruscamente, tornaram-se frios.
O ruído que o criado fazia a pôr a mesa, chegou até ela com a emanação discreta dum cheiro a galinha assada vindo da cozinha. Pensando na comida, Nina teve uma ligeira
náusea contra a qual lutou com energia. Não posso ter gripe, não faltava mais nada! - disse, descontente. Desceu e lançou uma vista de olhos para a casa de jantar.
O mordomo, que não se chamava James, estava limpando os copos, embaciando-os com o bafo e olhando-os depois à luz. Este espectáculo provocou em Nina uma nova náusea.
Tirou-lhe o copo da mão e pô-lo em cima da mesa. De resto, ela era mais competente do que ele a respeito de vidros e do arranjo
de uma mesa. "Está bem, Trompsted" - disse. Tinha conseguido saber o nome do mordomo.
- A senhora deseja que sirva Pomard com a galinha ou vinho do Reno ? - preguntou ele, impenetrável. Ela sabia que ele gostava de a troçar. As suas mãos encontraram,
como uma coisa familiar, a sensação dos copos e da porcelana.
- Não sei nada disso. Você, Trompsted, deve saber melhor do que eu. - disse.
O criado inclinou-se.
- O dr. Back é vegetariano. - acrescentou ainda Ele não gosta que insistam para o obrigar a comer carne.
- De que terra é, Trompsted ? - preguntou Nina. A sua pronúncia agrada-me.
- Sou dinamarquês - declarou ele, colocando, com a ponta dos dedos um cinzeiro e cigarros ao pé de cada talher. Depois recuou e inclinou a cabeça, para o lado, afim
de avaliar o efeito do seu trabalho.
-Oh! Dinamarquês... - exclamou Nina - Tenho... tenho amigos dinamarqueses. A condessa Bengtson. Esperava uma observação qualquer que não veio.
- A minha família era muito grande na Dinamarca
- disse Trompsted, e pôs-se a olhar sonhadoramente as taças de flores que Nina dispunha em cima da mesa.
- Está bem, Trompsted. - disse ela. O mordomo afastou-se.
Steve chegou de cima; cheirava a sabonete de barba e esfregava as mãos. Os cães saltavam à volta dele, como loucos. "Então, pequenos mendigos?"-disse com bom humor,
agarrando ambos nos seus braços. Max era um verdadeiro palhaço e Moritz possuía uma natureza trágica. Gostava das atitudes à Greta Garbo. A campainha soou à porta
de entrada: os primeiros convidados chegavam.
Steve tinha convidado cinco homens e Nina não achou nada de extraordinário na ausência de senhoras, Agora tinha mais acanhamento do que no dia em
que fora exposta na vitrina, nessa vitrina em que Steve falava constantemente. A cada um dos convidados contava a história: como tinha visto Nina na montra e como
tinha ido às informações inquirindo a forma de a comprar. Parecia orgulhoso da sua conquista ou da sua aquisição ou - qualquer que fosse a denominação-do facto de
ter tirado Nina da montra para a trazer para a sua mesa.
Os senhores, cujos nomes Nina não tinha compreendido, dirigiam-se a ela com uma benevolência a que não era estranho um certo embaraço. Dividiam a sua admiração por
Nina e pelos bassets. O dr. Back era um homem de cabelos brancos como a neve, e olhos azues, que pretendia ter um coração muito jovem. Como Steve tratasse Nina com
uma delicadeza requintada, os convidados estavam um pouco tímidos e, com discrição, Trompsted trouxe os cocktails. Nina olhou-o amigavelmente porque ele era dinamarquês.
O rádio tocava, todos falavam ao mesmo tempo, tinham vozes fortes e riam muito. De súbito, as paredes da biblioteca, onde estavam reunidos antes do jantar, pareceram
afastarem-se de Nina: era uma impressão esquisita como se ela não estivesse ali; as palavras não feriam o seu ouvido senão de uma forma indistinta. Tony, que envergava
às vezes a libré de criado, abriu a porta da sala de jantar. O dr. Back ofereceu o braço a Nina e ela ficou reconhecida que quisessem guiá-la através do nevoeiro
que a rodeava. Assim que Trompsted passou a lagosta pelo seu ombro, sentiu-se mal.
Visível e indubitavelmente doente. Supôs que fosse o efeito do cocktail, mas teve apenas tempo de se levantar da mesa e correr ao seu quarto. Trompsted continuou
a servir, impassível, e Steve ria com ar contrariado, "Ela não pode suportar o fumo. - disse - É tão delicada, uma verdadeira criança."
Os cinco senhores puseram-se a falar todos ao mesmo tempo, para afastar o embaraço... Como Nina
não voltava, Steve segredou qualquer coisa ao ouvido do mordomo. O criado afastou-se e voltou segredando também a resposta. "Continua doente" - disse Thorpe um pouco
aborrecido. "Gripe" - lembrou Green que tinha sido seu sócio. "Toda a gente tem gripe, por causa do calor"-aprovou outro. Puseram-se então todos a falar da gripe
e a discutirem as suas fases e se era verdade que os morangos se tratavam com arsénico e se constituíam um perigo.
Quando serviram o café, o dr. Back pousou o guardanapo e saiu. Fez ao seu amigo Steve um sinal e Steve, reconhecido, respondeu-lhe do mesmo modo. Ouviram o médico
subir as escadas, que iam dar aos quartos.
O cognac foi servido em grandes cálices e os convidados voltaram para aquilo a que chamavam a biblioteca: era um aposento que tinha de tudo, menos livros. Instalaram-se
para jogar o bridge e Steve sentou-se em frente de Green ao pé do fogão de sala, diante do jogo de xadrez. Mas não jogou imediatamente porque estava distraído e
aborrecido. A-pesar-de gostar de Nina não podia dissimular que ela representava um malogro em toda a linha. Assim que saiu para ir buscar cigarros para os convidados,
teve o sentimento preciso que troçavam dele em vez de o admirarem.
Mas os aborrecimentos de Steve Thorpe nessa noite ainda não tinham acabado. Mal colocara as marcas de xadrez e feito as três primeiras puxadas, apareceu Trompsted
na biblioteca, debruçou-se para o patrão e disse-lhe qualquer coisa ao ouvido.
- "Como ? Que está a dizer?" - preguntou Thorpe. Trompsted, imagem da dignidade e da discrição, repetiu a misteriosa nova. Thorpe, sufocado, balbuciou: "desculpem-me."
e correu para fora do aposento. A sua partida foi tão súbita, que até os jogadores de bridge foram por momentos arrancados à sua concentração. De mau humor, Green,
o parceiro de Thorpe, ficou sentado diante da partida começada.
- Onde está ela ? - preguntou Thorpe logo que, seguido pelo criado de quarto, chegou ao vestíbulo. com o queixo, Trompsted designou a porta da entrada: era um gesto
pouco respeitoso. "Porque a deixou lá fora, santo Deus ! - exclamou Thorpe em voz baixa. "Madame Thorpe não quis entrar, senhor." - disse o criado, um pouco vexado.
Thorpe empurrou-o para o lado e lançou-se para a porta entreaberta.
Fora, sob a lanterna da entrada, Lúcia estava de pé. Parecia muito infeliz.
-Lúcia... como estás magra!...-disse Thorpe, à queima-roupa.
- Obrigada, perdi vinte e dois arráteis - respondeu ela como mulher que, mesmo na adversidade, não se esquece de verificar todos os dias o seu peso.
- Que posso fazer por ti?... emfim ... não queres entrar... tenho algumas visitas... tu conhece-las... Green, o dr. Back... estou muito contente por te ver... -
balbuciou Thorpe.
- Justamente. Não quero ... visto que tens gente... é a ti só que desejo falar. - disse Lúcia. Ela tirava, nervosamente, o veuzinho que lhe cobria a testa e os olhos.
Um ramo de violetas artificiais enfeitava-lhe o chapéu, como exigia a moda dessa primavera, e pareceu a Thorpe que nunca tinha visto nada mais triste do que essas
violetas.
- Vem, eles estão a jogar o brídge, ninguém te verá.
- disse vivamente pegando-lhe na mão e atraindo-a para casa. Assim que chegaram ao vestíbulo, não soube muito bem para onde a devia levar. Ela tremia toda e, com
a breca, ele tremia também. Da biblioteca chegava o riso dos jogadores. Em cima, do lado dos quartos, podia ouvir-se a voz monótona e ensurdecida do dr. Back que
parecia quási que resava. Steve lembrou-se de-repente que tinha Nina em sua casa; subiu-lhe calor à cabeça. Afastou as portas do salão e fechou-as logo. Green, ofendido,
tinha-se ido sentar para diante do fogão de sala e
lia uma ilustração. A T. S. F. tocava. Na sala de jantar, Tony, fazia arrumações. Na cozinha, Trompsted entrechocava os copos, Tomando uma rápida decisão, Thorpe
levou Lúcia atrás de si para um aposento chamado a sala do ping-pong. Actualmente, os cães tinham ali os seus cestos. Saltaram em volta de Lúcia, os seus latidos
amigáveis pareciam quási lamentos, tão agitados estavam. Algumas palavras a respeito de Max e Moritz fizeram passar os primeiros minutos. Thorpe pediu a Lúcia para
se sentar numa poltrona e colocou a luz um pouco de lado para a afastar dela, Fazia-lhe mal olhá-la e admirava-se disso. Mil vezes tinha imaginado e sonhado como
seria, se ele se encontrasse em frente de sua mulher. Tinha imaginado tudo, desde o frio desdém até à ofensa mordaz, desde a recusa de a reconhecer, até ao assassinato.
Agora, ali estava em pé em frente dela, receando olhá-la e, com o coração a doer-lhe.
- Queres comer alguma coisa ? - preguntou. (O seu rosto parecia-lhe tão magro!) "Obrigada, estou de dieta." - respondeu. E ele lembrou-se que os regímens de Lúcia
tínham-no feito, muitas vezes, encolerizar.
Sem lhe fazer outra pregunta, foi à copa, encheu dois copos de cognac, rebuscou o frigorífico e encontrou um resto de lagosta. Sob os olhares da cozinheira, ofendido
com a sua invasão, dispôs os seus achados em cima de um prato e levou tudo a sua mulher. Era o instinto do troglodita: primeiro alimentar a esposa. O resto seguiria
ao acaso... E de facto, Lúcia bebeu o cognac, com reconhecimento, e pôs-se a mastigar alguns pedaços de lagosta como se se escondesse de si própria.
Tinha as pálpebras inchadas das lágrimas e a maneira como o rouge se espalhava um pouco por toda a parte, denotava um verdadeiro desespero. Steve meteu-lhe um cigarro
na boca, enxotou os cães, que mandou deitar nos seus cestos e sentou-se emfim ao lado de Lúcia. Agora, ela já não tremia.
- Não queres tirar o chapéu ? - preguntou.
- Não, obrigada, - disse vivamente puxando o véu para os olhos...
- Tens qualquer coisa a dizer-me? Podes contar-me tudo como se eu fosse teu advogado... não de outro modo. Estou habituado a ouvir... e se precisas de um conselho..
- Não preciso de nenhum conselho - disse Lúcia, sacudindo energicamente a cabeça, de forma que as violetas tristes do chapéu estremeceram um pouco.
- Dois e dois fazem muitas vezes cinco, nesta vida, graças a Deus. - disse Thorpe - Era uma sibilina máxima muitas vezes utilizada na prática dos seus negócios cuja
urbanidade e experiência produziam um efeito calmante, Lúcia olhou-o com atenção.
- Mudaste muito, Steve! - disse ela.
- Tomo isso como um cumprimento. - respondeu ele. Distraída, olhou-o sem ouvir:
- Assim que me fiz conduzir aqui, pensei logo que poderias ajudar-me. Mas tu falas em contar... É difícil, Steve...
Deixou escapar um soluço ruidoso, como fazem as crianças que já choraram muito. Aquilo não ficava bem com o seu rosto emmurchecido, mas comoveu Thorpe, Havia um
quarto de hora que ele tinha esquecido completamente Nina, era como se ela nunca tivesse existido.
- Não me casei com Peruggi. - disse Lúcia - Pu-lo
na rua.
- Nunca o considerei como uma pessoa estimável ... - concordou Thorpe, amavelmente.
E a onda, de súbito, quebrou todos os diques. Sua mulher lançou os braços em cima da poeirenta mesa de ping-pong e pôs-se a chorar lágrimas quentes, sem as poder
conter. Entre lágrimas e soluços contou a sua história, por fragmentos e, por vezes, de forma pouco compreensível.
- Estimável, não era, não... - soluçava ela com o rosto nas mãos. Era um intrujão, um criminoso. Viveu
à minha custa. Fez-se sustentar por mim ... pediu dinheiro emprestado .. sabes como o gastou? E roubou-me o meu anel de esmeralda. Sim, foi ele com certeza.. sempre
estive certa disso mas nunca lho disse. Calei-me ... Como poderia dizer a um homem : tu roubaste o meu anel ? Nem sequer confessá-lo a mim mesma, embora sempre estivesse
convencida disso. Ele tinha más maneiras, se bem que dissesse serem italianas ... há italianos ordinários, mas deve também havê-los bem educados. Emfim, era um conde
e não um vendedor de gelados. Palita os dentes à mesa depois de comer, e pragueja constantemente. Mas tudo isso ainda eu suportaria ... Gabava-se muito da sua família
aristocrática... e pedia-me dinheiro emprestado. Tinha prometido casar comigo em Verona... onde estão enterrados Romeu e Julieta ... era tão romântico!... e eis
que descubro que gastava o meu dinheiro com amantes... não sei a quantas mulheres, prometeu a mesma coisa: esse casamento na catedral de Verona. Então, naturalmente,
disse-lhe a verdade... que me tinha roubado o anel. "Dá-me o anel que me roubaste, é muito lindo para a canalha com quem andas." Então, dir-se-ia que estava louco,
um bruto, um verdadeiro bruto ... arrancou-me os cabelos, arranhou-me, bateu-me ... aqui..."
E Lúcia ergueu da mesa de ping-pong o rosto inundado de lágrimas, tirou o chapéu, o véu e descobriu a fronte arranhada e os vergões que lhe marcavam a face esquerda.
Thorpe ficou um pouco desconcertado por esta explosão. Assim que viu que lhe tinham batido na mulher, uma violenta cólera se apoderou dele, embora tivesse sentido,
também, muitas vezes, vontade de a espancar.
- Olha, bebe mais um copo de cognac. - aconselhou em voz grave, estendendo-lhe o seu próprio copo. Ela bebeu de um trago, tornou a pôr o chapéu, limpou os olhos,
baixou o véu, tirou a caixa de pó, da malinha, para
reparar a desordem das feições. O que mais sensibilizou Steve foi ela diligenciar sorrir, um pouco timidamente, para se desculpar... um pouco envergonhada !
- Alegra-te porque tudo isso tenha acontecido antes de teres casado com ele. - disse usando uma frase banal de consolação, que costumava dizer à sua clientela. O
sorriso de Lúcia tornou-se mais grave.
- Vocês, homens, são todos os mesmos. Tu também tens uma mulher cá em casa.
E duas lágrimas retardatárias, depois do grande dilúvio, desceram lentamente até aos cantos da boca. Thorpe compreendeu que essas duas lágrimas eram para ele e não
para o belo gigolô desleal.
- Isso não significa nada... Se te interessa, posso contar-te tudo ... - disse. Ela fez um pequeno gesto rápido, de recusa, que ele, de novo, reconheceu:
- Nada tenho a censurar-te... não tenho esse direito. - disse.
- Não se trata de direito, - ouviu-se Thorpe dizer. Reflectiu sobre o que devia agora fazer diante de Lúcia.
- Que intenções são as tuas ? - preguntou, prudente.
- Não sei... não sei, Steve. - disse ela, sonhadora É como depois de um tremor de terra, não me reconheço, já... Podem-se entregar os bilhetes do barco, perdendo
alguma coisa.
-As Companhias marítimas habitualmente dão 90? % do preço dos bilhetes pagos - disse ele no seu tom de advogado.
- Nem sequer desejo voltar ao hotel, tenho medo que ele venha.
- Não te tornará a bater, afirmo-te. - garantiu Steve, sombrio.
- Não... tenho medo que ele ... que me peça perdão... e eu... tu não o conheces, quando quere, ele sabe ser encantador.
- É disso que vive, de resto- disse Thorpe.
- Tens razão, disseste bem ... é disso que ele vive ... aprovou rapidamente Lúcia.
Olhava à sua volta e começou a sorrir vendo os dois cães que, até então tinham estado deitados com ar hipócrita nos seus cestos, começarem a saltar à sua volta.
Os seus ladridos mostravam toda a sua alegria.
- Vocês reconhecem-me... não me esqueceram... -disse, pegando-lhes pela pele bamba do cachaço, para os pôr ao colo. Os seus focinhos castanhos escuros dirigiram-se
para a cara da dona como que para a beijar. Thorpe, de pé, a um canto, reflectia. A partida de bridge, o dr. Back, Nina.
-Queres que te leve para outro hotel ou preferes viajar ?
- Não. - disse ela, resolvida. E ele preguntava a si próprio a razão da recusa.
-De-certo já... alguém te contou que tenho uma senhora no quarto de hóspedes. - disse - Mas tu podes passar a noite no nosso quarto de cama e eu fico na biblioteca.
- És muito bom ...- respondeu Lúcia. Sobre os seus joelhos os cães latiam. A porta abriu-se e o dr. Back meteu a cabeça branca: "Perdão" - disse, confuso. E desapareceu.
-Estás apaixonado pela senhora do quarto de hóspedes?-preguntou Lúcia com um sorriso.
- Tentei imaginá-lo durante certo tempo.. -respondeu Thorpe, sorrindo também - Dá-me o número do teu hotel, vou telefonar para que tragam para aqui as tuas bagagens.
- Obrigada. - murmurou Lúcia.
Ele viu que, maquinalmente, ela passava o dedo sobre a mesa de ping-pong. Na verdade, estava cheia de poeira. "A casa precisa de uma mulher" - murmurou ele ao pé
da porta. Lúcia levantou os olhos e começou a rir, com um tremeluzir de lágrimas nos olhos.
-No que diz respeito ao romanesco, nós podemos
também partir para Verona e casar lá segunda vez. O seu tom era de gracejo, mas a voz embargava-Se-lhe na garganta. Fechou a porta atrás de si e ficou frente a frente
com o dr. Back.
- Que estás a fazer ? Escutas ? - preguntou, e o constrangimento a que se tinha imposto, explodiu nestas palavras.
- Não, mas preciso falar-te com urgência. Tua mulher não podia ter escolhido um momento mais inoportuno para vir.
Thorpe dizia a si mesmo que não existia nenhuma lei determinando o instante em que uma mulher devia voltar para o seu marido.
- Que aconteceu ? - preguntou em tom breve.
- Vem comigo ao teu quarto. É o único lugar onde podemos conversar sem que nos incomodem-resmungou o médico.
Thorpe desejava subir, para telefonar. -Então? A pequena não vai melhor? É gripe?- preguntou, impaciente,
- Não... Ela vai bem... vai até muito bem - disse o dr. Back fechando a porta atrás deles.
As suas maneiras misteriosas começaram a irritar Thorpe.
- Acabemos. Preciso de telefonar - disse.
- Pois bem, meu caro, é uma história bem triste... Vai custar-te dinheiro. No entanto, as minhas felicitações... para um velho como tu...
Admirado, Thorpe olhou para o seu amigo por instantes. O médico respondeu-lhe com um olhar silencioso e cheio de segundo sentido. Subitamente, o advogado desatou
a rir.
-Mas é espantoso! Isso não podia calhar melhor. Ora ai está porque parece tão nervosa... Pobre pequena!-acrescentou, compadecido. Ela já sabe?
- Naturalmente que lho disse.-respondeu o médico.
- Sim ? E então ? Como tomou ela a coisa ?
- As mulheres naquele estado são sempre um pouco exquisitas - sentenciou o dr, Back, embora isso não fosse uma resposta.
Thorpe percorreu duas vezes o aposento dando estalos com os dedos.
- É um tanto excessivo para uma noite só. - pensava. Ao mesmo tempo louvava a delicadeza, a perfeição das suas relações com as mulheres.
- Ouve.- disse ao médico - Tu vais telefonar. Pede o Hotel SãO Moritz e diz que madame Thorpe não volta e que lhe mandem a mala e os objectos indispensáveis para
uma noite. Depois, vais à sala de ping-pong onde reterás Lúcia durante meia hora, podes administrar-lhe um calmante qualquer: brometo, um sonífero, qualquer coisa.
Depois tratarás de acabar com essa danada partida de bridge e de os mandar para casa. Negócios de mulheres fazem parte do segredo profissional, percebeste?
- Compreendo perfeitamente - disse o dr. Back com uma expressão de profunda perplexidade, no seu rosto barbeado.
Thorpe atravessou a passo rápido os dois quartos de vestir, que separavam o seu do quarto de hóspedes, esperou um instante diante da porta de Nina, e depois bateu.
"Sou só eu... Steve..."- disse. Veio-lhe o pensamento fugitivo de não ter, há anos, vivido coisas tão importantes e salutares como durante esta última hora. Nina
disse: "Entre" e ele entrou, com um sorriso de homem um pouco acanhado no rosto sobressaltado.
Mas encontrou uma outra Nina: uma Nina inteiramente diferente, transformada, em pé, delirante, fora de si, uma Nina absolutamente louca, que chorava e ria ao mesmo
tempo. Ele ignorava se era alegria ou dor -ela mesma não o sabia, provavelmente...
Ela só queria uma coisa: ir-se embora, partir dali imediatamente. Deixar, sem demora, esta casa onde os criados a desprezavam, onde os hóspedes eram impertinentes:
ela ia ter um filho, ela era mãe! Um filho, um novo Erik, um conde Bengtson! Gritou tudo isto no quarto, emquanto fazia as malas... ou antes, emquanto atirava tudo
para dentro delas... a barata roupa de baixo, as bonecas, o revólver. Thorpe estava ali petrificado, como imobilizado sob uma catarata. Não podia fazer nada senão
atirar para o monte os vestidos de que tinha feito presente a Nina e, às escondidas, meter-lhe em qualquer parte uma nota do Banco... para prever todos
os acontecimentos.
Tudo se fez de-pressa e de uma forma tão irresistível que, quando Nina lhe estendeu amavelmente a mão para lhe agradecer a hospitalidade, ele notou, pelo tom da
voz, que o seu espírito estava já distante.
Reteve-a, no entanto, um momento com a porta aberta pois acabava de perceber, pelo barulho, pelos risos, pelo cheiro de charuto, que o bridge havia terminado. O
dr. Back parecia ter trabalhado bem. com precaução, Thorpe atravessou o patamar; não queria que Lúcia e Nina, que tinham por momentos perdido o domínio de si próprias,
pudessem encontrar-se. No seu foro íntimo agradecia à Providência essa reviravolta súbita de Nina que lhe poupara muitas dificuldades.
Num piscar de olho, fez-lhe sinal para o seguir. Pediu a Trompsted para ir acima buscar-lhe a bagagem, pois não queria que a rapariga carregasse com nenhuma mala,
nem mesmo a sua pequena maleta de mão.
- Tony. - disse ao motorista que tinha ajudado Vá levar mademoiselle Nina a Fieldston, depois vá ao hotel São-Moritz buscar as bagagens de madame Thorpe. Diga que
eu passarei por lá amanhã para pagar a conta. E... não preciso do carro antes das dez horas.
Instalou Nina no automóvel. Distraidamente disseram adeus; ela estava já com Erik e ele com Lúcia...
- Vá de-vagarinho, Tony-ouviu ela dizer. Ele ficou de pé em frente da casa, emquanto o clarão dos faróis desaparecia, perdendo-se na obscuridade. Depois, meneou
a cabeça. No fim de contas, as mulheres são uma raça singular... -pensou.
E esse meneio de cabeça era a conclusão da tentativa que Nina fez para se vender. Era o princípio das segundas núpcias de Thorpe.
MEIA-NOITE e meia hora no relógio da Central. Os guardas de noite acabavam de terminar a sua segunda ronda e foram aquecer café à sua sala.
A campainha da noite soou no quarto de Joé, o porteiro. Abriu a porta pequena; fora estavam duas pessoas.
- Posso ir falar ao sr. Bengtson ?
-Tem licença ?-preguntou Joé à rapariga, pálida, com ar de dançarina.
- Sim. Naturalmente.
O porteiro pegou na licença e voltou ao seu cubículo, à luz eléctrica. Ele tinha um olho de vidro e era forçado a colocar o papel obliquamente, para ler.
- E esse rapaz? - preguntou.
- Este rapaz é que traz as coisas.
- Que coisas?
- As coisas para o sr. Bengtson.
- Tem licença?
- Não, mas eu tenho.
- Sem licença não o deixo entrar.
- Ele tem de lhe entregar as coisas... sem isso o sr. Bengtson não poderá trabalhar. - explicou a rapariga.
- Impossível,-disse Joé voltando o lado do olho de vidro para o rapaz para melhor examinar a rapariga. Foi nesse momento que recebeu uma pancada no queixo e caiu
por terra.
- Tocado! - disse o rapaz, satisfeito, e desapareceu no fundo do vestíbulo que levava ao pátio velho.
A rapariga voltou à rua. À esquina, um automóvel esperava. Dois indivíduos desceram e aproximaram-se. A mulher cruzou-se com eles, disse uma palavra e seguiu o seu
caminho. Depois, fazendo sinal a um táxi, afastou-se. Os dois tipos entraram na Central pela porta aberta que fecharam atrás de si.
Joé continuava no chão, sem sentidos, e com um sorriso nos lábios . Big Paw inclinou-se e transportou-o para o seu cubículo. Emquanto o ligava a uma cadeira fazendo-o
respirar clorofórmio, Bill viu à luz o plano desenhado por Liliana.
- Diz a Kid que entre. - disse a Big Paw.
- Onde está Bully? - preguntou este. Estava emocionado e não podia dominar-se. Bill deu-lhe um pequeno encontrão. Big Paw abriu a porta e inspeccionou a rua : um
homem, sonhador estava de pé diante da montra dos bars portáteis. Big Paw teve de esperar um certo tempo emquanto Bill, impaciente, espreitava atrás dele. O relógio
da torre deu três pancadas antes da uma hora. Finalmente o admirador tardio desligou-se da montra e marchava, indecisamente pela rua abaixo, como alguém que se aborrece
e espera uma aventura. Passaram dois automóveis, depois, tudo ficou vazio por um momento. Kid apareceu, de-repente, e deslizou pela porta, para dentro da Central.
Joé estava agora muito bem empacotado com adesivo na boca e uma boa narcose. Em silêncio, os dois homens seguiram Big Paw através do pátio; subitamente, este sobressaltou-se
diante do gato branco, que fazia rolar uma caixa vazia de conservas no chão de cimento. Através duma porta envidraçada, podiam ver a secção, mal iluminada, de confecção
para homens. Sem barulho, Bill pegou nas chaves que Liliana lhe tinha dado e abriu a porta de par em par. Havia só cinco chaves e encontrou a precisa sem hesitação.
Assim que chegaram ao interior, ficaram uns minutos imóveis, de ouvido à escuta; reinava um silêncio de morte. Um senhor loiro, de cera, vestido de branco, olhava
na sua direcção e sorria vagamente. Bully, o rapaz vestido de groom, tirou o pano branco que recobria as gravatas. "Deixa isso!" -disse Bill. "Mais baixo.
- respondeu o rapaz renunciando de má vontade ao seu roubo. "Por causa de idiotas da tua espécie é que os grandes negócios não triunfam." - sentenciou Bill.
Ele levou-os mais longe, ziguezagueando entre as secções mudas e cheias de fantasmas imaginários, chegando emfim à escada que ia dar à cave.
- Levo os dois rapazes comigo, tu vais ficar lá em cima à espreita - murmurou Bill.
- Entendido, chefe, - respondeu Big Paw em voz forte.
Tinha estado todo o tempo irritado por causa dessa marcha prudente através da Central vazia e por esses segredinhos inúteis, pois não estava lá ninguém que os pudesse
ouvir.
- E se vier alguém, mostra o teu revólver. Mas nada de ruído inútil... ouviste?
- Entendido, chefe - respondeu ainda Big Paw.
- A escada de socorro é no terceiro andar, encostada ao elevador. - explicou Bill, a todos - O carro espera à esquina sudoeste.
Big Paw viu-os desaparecer na escada. Pegou num cigarro e pôs-se a fumar. Tinha medo e a coragem de Bill não o animava: Bill tomava cocaína e isso é que lhe mantinha
o espírito empreendedor. Big Paw não tinha bebido bastante para se sentir à vontade.
Ele gostaria de percorrer o armazém vazio para examinar tudo, mas não teve coragem. Atirou fora o cigarro meio fumado e acendeu logo um segundo. Em bicos de pés,
foi até ao tapete rolante que, na sua imobilidade, tinha o mesmo carácter espectral do resto, e sentou-se no primeiro degrau. Pôs a cabeça
no braço e ouviu um choque rítmico que lhe meteu medo. "com a breca!" - exclamou, rindo incrèdulamente assim que notou que era apenas o bater do seu pulso que lhe
chegava ao ouvido, através da manga - Então ficou para ali sem se mexer e muito tempo passou..
Estava certo de não ter dormido, e tinha mesmo ouvido o relógio dar uma hora; no entanto para ele foi como um brusco despertar quando ouviu vozes vindas dos andares
superiores.
- Boas-noites, disse alguém lá em cima. Trata de ir direito para casa, já há muito tempo que devias estar no berço.
Depois ouviu uma gargalhada cujo eco se repercutiu contra as paredes. Metendo a mão no bolso, Big Paw, maquinalmente, pegou no revólver. Olhou à sua volta e, a-pesar-do
pânico, descobriu um excelente esconderijo. Uma cortina ocultava os fatos pendurados: ergueu-a e escondeu-se atrás. Durante esse tempo passos leves tinham descido
a escada. Arriscando um olhar por uma fenda, o bandido viu um ser de cabelos de um loiro pálido que descia a escada a dois e dois. "Vai descobrir o porteiro amarrado
e tocar a campainha de alarme." - pensou Big Paw, embora pensar não fosse o seu forte. Puxou do revólver, visou na direcção do rapaz; mas deteve-se... O rapaz parou
diante de um grande espelho, examinando o queixo; depois, tendo procurado à sua volta, tirou um chapéu branco da cabeça de um manequim vestido com um fato de linho,
penteou-se e mirou-se por todos os lados. Tateou a algibeira, tirou um cigarro que meteu na boca, sem acender, e continuou a admirar-se. Big Paw riu atrás da cortina.
O pequeno, depois de se ter contemplado bastante, tirou o chapéu, pôs o cigarro na algibeira e, inclinando-se respeitosamente diante do manequim, restituiu-lhe o
chapéu. Depois, tomou balanço e escorregou pelo oleado do soalho até à saída.
Big Paw, saiu do seu esconderijo e gritou: "Mãos
no ar!" O pequeno voltou-se estupefacto, e ficou de boca aberta, não levantou as mãos, pois, com certeza não tinha percebido do que se tratava. "Mãos no ar!" repetiu
Big Paw um pouco mais baixo - Lembrou-se de-repente que deviam estar mais pessoas lá em cima. Talvez, de noite, no armazém houvesse um formigueiro de gente ocupada
a trabalhar. Agora o pobre garoto levantou as mãos, como um fantoche, como se fossem puxadas para o alto por dois cordéis. Big Paw pensou no que iria fazer dele,
mas, antes que pudesse tomar uma resolução, o cabelo louro branco pareceu erguer-se, como que empurrado por uma corrente de ar, o rosto sardento ficou lívido e ele
caiu ao chão. Era a primeira vez que Big Paw tinha visto desmaiar alguém, e não sabia o que havia de fazer. Dirigiu-se para o pequeno, levantou-o, sentindo um certo
desagrado ao contacto desse corpo flácido.
Nesse instante, ouviu-se qualquer coisa que conhecia muito bem: tiros. Três tiros amortecidos partiram da cave. Deixou cair o garoto, olhou à sua volta com ar assustado
e correu pela escada até ao terceiro andar. Lá em cima, já sem fôlego, procurou o elevador, ao pé do qual ficava a escada de socorro. Roçou, a correr, por três senhoras
em roupão, obliquou e viu subitamente que um homem vinha para ele: atirou-se sobre o indivíduo como num desafio de foot-ball, ouviu a queda pesada de um corpo e
continuou na sua fuga. com a coronha do revólver, deu uma pancada num enorme vidro: o ar da noite bateu-lhe no rosto coberto de suor. Do alto da escada de socorro
onde estava, via o pátio no qual o gato brincava ainda agora; resolveu não se mexer. Em baixo, corria gente; bruscamente, todas as campainhas de alarme se puseram
a tocar; sons agudos encheram o vasto edifício. Era um barulho infernal e isso tornou-o tão nervoso que se endireitou imediatamente. Recebeu então uma pancada e
caiu.
uma coisa horrível, uma campainha a ressoar numa casa vazia. Era meia-noite. Em casa dos Bradley, ninguém. O vestíbulo estava vazio, os quartos vazios, o leito da
sr.a Bradley também vazio. Vazio o leito de Erik, vazio o de Filipe; nem Skimpy estava em casa e a campainha tocava. Um som longo, depois curto, depois mais longo
ainda; primeiro paciente, depois nervoso, depois como louco. Finalmente tudo se calou.
-Não está ninguém em casa-disse Nina ao motorista que esperava de pé, com as malas na mão.
- Devo levá-la outra vez para trás ? - preguntou ele, tornando a pôr as bagagens no carro.
- Não, de maneira nenhuma. - disse Nina. -Então aonde, se faz favor? - preguntou Tony
olhando para o carro com indiferença.
- Aonde? - repetiu Nina.
- Talvez a um hotel ? - propôs o homem.
- Sim, mas não a um hotel caro. - disse abafadamente Nina.
Tony levou-a a um hotelzito, longe, ao cimo de Broadway, onde a olharam de uma forma estranha. Mas, como ela tinha duas malas, deram-lhe um quarto, um quarto que
cheirava a fósforo. Aí, sentada na borda da cama, Nina telefonou. Três vezes tocou para a Central
e de todas recebeu a mesma resposta: "Não responde". "Não é possível, torne a tentar" - suplicou ela. Mas
isso nada fez.
- Quiseram matar ratos - pensou Nina aspirando o odor estranho do quarto. Tornou a pegar no telefone e, de vez em quando, tornava a pedir a casa de Bradley. A manhã
ia já muito avançada quando, emfim, uma voz respondeu: Era a voz infantil e aguda de Skimpy.
- Estás, Skimpy ? Aqui, a Nina, Posso falar à
mamã?
- Não.
- Ela saiu? Tenho uma coisa importante a dizer-lhe.
- A mamã está no hospital, mas vai bem. Esta
tarde vou vê-la.
- Oh!.. Que pena!... - murmurou Nina. Mas não tinha tempo a perder com amabilidades - Pois eu... gostava de falar ao sr. Bengtson... - disse ela.
- O sr. Bengtson foi preso.
- Como? Fala um pouco mais alto, Skimpy.
- O sr. Bengtson foi preso. - gritou Skimpy ao
aparelho.
- An ?... como assim ?... Não é... possível. balbuciou Nina, sentindo-se arrefecer. Os lábios estavam como que gelados, a pele da cabeça parecia esticada, agarrava-se
ao telefone.
- Ele roubou coisas. Fez um assalto. Deram tiros e ele é um gangster. Eu também lá estava - continuou Skimpy, com importância.
- Eu queria... falar a Filipe... - murmurou Nina ao aparelho. O cheiro a fósforo envolvia-a toda.
- Filipe está no posto de polícia. O seu retrato vem nos jornais - disse Skimpy. Ela esperou ainda um pouco, mas como Nina não respondesse, desligou, desceu prudentemente
do banco que tinha posto para telefonar, e, consciente da sua importância, foi para a escola.
Para Nina, correu um lapso de tempo de que, mais tarde, não se lembrava. De-facto, eram oito horas
da manhã quando tinha telefonado a Skimpy e, foi às dez horas somente, que se encontrou sentada no autobus que se dirigia para a Central. Do que tinha feito, durante
essas duas horas, não poderia mais, em toda a vida, recordar-se. No entanto, o seu cérebro estava absolutamente claro quando, chegando ao armazém, tomou a escada
móvel. Tinha comprado um Jornal na rua e, embora o nome de Liliana aí não figurasse, estava absolutamente certa de uma coisa: Liliana tinha levado seu marido à prisão
e era Liliana que devia fazê-lo sair.
Nina tinha sido sempre calma e meiga durante toda a sua vida. Mas, agora, haviam-se passado coisas de molde a transformar completamente esta criaturinha. Desde que
a tinham tirado da secção de porcelanas para a porem na vitrina, nunca mais tivera paz. Andava como um projéctil que ninguém pode reter, assim que é lançado, como
um pequeno cometa apaixonado, pronto a rebentar em mil pedaços. Exteriormente, todavia, este pequeno pedaço ardente de destino feminino não se distinguia das outras
clientes. Como todas as outras, lançou um rápido olhar para o espelho, diante do qual passou e parou um instante diante dos sensacionais pijamas de praia, da secção
de confecção. Essa secção estava à cunha nessa manhã: havia uma venda-reclamo de séries baratas e todos queriam o primeiro lugar junto ao balcão, para pescar os
artigos mais vantajosos. Fez calor, de-repente, nessa manhã de princípio de primavera e as ventoinhas funcionavam, as caixeiras transpiravam, as modistas estavam
nervosas, as clientes histéricas.
- Gostaria que me atendessem, menina. - disse Nina numa voz sem intonação a Liliana que saía da sala de costura. Nessa manhã, Liliana estava mais pintada que de
costume, sem dúvida porque se sabia mais pálida. A boca estava muito vermelha sobre a pele branca e o seu nervosismo concentrava-se na palpitação das narinas.
Prenderam todo o seu bando. Bill morreu, os outros estão presos. Nem peles, nem amigos, nem dinheiro, nem carreira em Broadway. Devia mesmo sentir-se feliz, por
todos se terem calado, não a comprometendo na aventura ...
- Gostaria que me atendessem, menina. - repetiu Nina com mais força. Liliana imobilizou se com um pequeno movimento de ancas que dantes a tinha distinguido entre
as suas colegas aprendizas e a tinha trazido até ao salão de costura.
- "Olha... a Nina!-disse ela-Talvez saiba qualquer coisa de novo." Foi apenas uma idea fugitiva...
Teria de boa vontade envenenado Erik Bengtson se, por esse meio, pudesse estar segura do seu silêncio. Mas a criança de peito, o menino de mama estava preso e era
de prever que ele a envolvesse no caso. Teria contado a história das chaves? com certeza, se isso pudesse servir-lhe de defesa. Seria então o fim de Liliana Smith,
saída a custo da obscuridade e que se sentia empurrada, irresistivelmente, outra vez, para a escuridão, para o abjecto.
- A senhora deseja? - preguntou ela, olhando Nina como se fosse um carteiro que, de noite, nos traz um telegrama.
- Queria provar este vestido. - disse Nina apontando para qualquer parte, por cima do ombro, na direcção do armário.
- com muito prazer. - respondeu Liliana, tirando um vestido ao acaso e abrindo a porta do gabinete de
prova.
- Que há de novo ? - preguntou ela assim que ficaram sós entre as paredes de espelhos.
- Que fizeste de meu marido ? - preguntou Nina.
Qualquer coisa nesta pregunta irritou Liliana: ela não podia suportar o que havia de burguês nesta expressão: meu marido. Não podia suportar esta pequena Nina meiga
e tranquila, esta provinciana que tinham posto na montra.
- Que me importa o teu marido ? Teu marido!
- Foste tu que o meteste na prisão, - disse Nina e és tu que o tens de fazer sair de lá.
Era a frase que, havia horas, ela tinha formado na cabeça.
- Tem cuidado com o que dizes, minha menina. Teu marido meteu se com ladrões. Eu não...-disse Liliana.
Falavam ambas em voz baixa, com os rostos aproximados um do outro e reflectidos nos seis espelhos ao mesmo tempo. Mas mesmo que tivessem falado mais alto, não as
teriam ouvido, pois em toda a secção de costura havia um zunido sussurrante de mulheres. No salão, a directora esvoaçava de um lado para o outro, dando ordens, com
o seu sotaque francês. Todos os gabinetes de prova estavam ocupados. Uma caixeira abriu a porta e disse: "Perdão", tornando-a a fechar. Liliana e Nina ficaram frente
a frente, ambas trémulas, cada uma dizendo à outra o que tinha a dizer-lhe.
Liliana estava ao rubro, ladeava um precipício. Mas Nina já não era a rapariguinha de antigamente, agora tinha sofrido muito.
- Estou farta, entendes? E repetiu o que exigia e que não era nada mais, nada menos do que isto: Liliana devia comparecer diante da justiça e provar a inocência
de Erik.
Liliana riu-se, provocante. Pôs as mãos nas ancas, gargalhando na cara de Nina.
Subitamente, ela viu que Nina levava um revólver, um grande revólver de polícia que segurava desajeitadamente.
- Se não tiras cá para fora o meu marido, mato-te! disse em voz grave, rouca, numa voz absolutamente nova.
Liliana segurou o pulso que agarrava a arma para a desviar de si.
- Endoideceste? - preguntou vivamente.
- Estou grávida. vou ter um filho! É preciso que meu marido volte. - gritou Nina.
Foi apenas um instante, um instante singular, a duração de um abrir e fechar de olhos... mas durante esse segundo, Liliana fraquejou. Um filho era uma palavra do
outro mundo. Nina... ia ter um filho. Dantes, elas haviam sido amigas. Juntas, como aprendizas tinham-se sentado nos bancos da escola, onde o grande armazém educava
as caixeiras ...
E o facto de Nina ter um revólver e parecer decidida a servir-se dele, revelou um sentimento que Liliana pôde compreender. Isso já não lhe era tão estranho, tão
hostil...
- Um filho ? - preguntou, largando, sem dar por isso, o pulso de Nina - Mas, um momento depois, reencontrou a sua dureza.
- Mas que me pode importar que tu tenhas um filho ? Que tenho com teu marido ? Deus sabe de quern é esse bastardo!
Ela não falava alto, mas as suas palavras soavam tão duras, como uma pedra batendo noutra pedra.
Então, Nina fechou os olhos e descarregou a arma. Nunca tinha disparado na sua vida e ficou aflita com o safanão que recebeu - houve depois um cheiro a pólvora.
Assim que abriu os olhos, Liliana ainda estava de pé, com as duas mãos apoiadas à mesita, depois, a taça dos alfinetes caiu e Liliana caiu também por sua vez. Dir-se-ia
que tentava sorrir com ar irónico e surpreendido. Talvez também sofresse...
Tudo isto se passou muito silenciosamente. Os gabinetes tinham tapetes espessos e o tiro não fez mais barulho do que uma rolha de garrafa de champagne.
A queda de Liliana também não foi ruidosa. Nina meteu o revólver na sua velha malinha de mão e saiu do gabinete.
Na secção reinava o ruído da venda-reclamo.
- V. Ex.a foi servida como desejava ? -preguntou madame Chalon.
- Fui, obrigada, - respondeu Nina.
Portas, portas e portas, escadas e escadas... O elevador... no edifício central. A saída à direita, portas envidraçadas, portas móveis e ainda flechas indicando
saída, saída, saída...
Nina transpôs emfim a última porta, que bateu pesadamente sobre ela. Cá fora, era Junho, cá fora, as mulheres compravam flores. Ninguém a seguiu. Respirou o ar a
grandes sorvos, as suas mãos já não tremiam. Fez sinal a um táxi. "Para a Grande Estação Central" - disse. Tinha dinheiro, a sua algibeira estava cheia de notas
provenientes do último presente de Thorpe.
Carros, pessoas, môços de fretes, de cor, informações, bilheteiras, pessoas. Bilhetes para Cleveland. Bilhetes para Boston, bilhetes para New Heaven.
- Para Lansdale, Connecticut... - disse Nina.
- Simples, ou de ida e volta ? - preguntaram da bilheteira.
- Isso é que eu não sei. - respondeu a jovem.
LAMENTO tê-lo feito esperar, - disse Filipe quando, às duas horas e dez, entrou no seu escritório. Estou cheio de trabalho, como pode calcular. A polícia... e depois
tive com o sr. Crosby uma longa conferência.
Sentia-se extraordinariamente bem disposto, pois tinha substituído a falta de sono pelo álcool. Trazia o braço ao peito.
- Foi grave ? - preguntou o rapaz, que se tinha levantado à sua chegada.
- Oh! já estou habituado. A bala desta noite foi a sexta que recebi no cadáver, desde que trabalho na Central - disse Filipe, em tom importante. Estava excitado
e como prestes a tomar voo, tal como um grande balão vermelho, novo. O rapaz escreveu à pressa algumas notas no caderno que tinha preparado.
- Eu sou Sanders, do Evening Star, como sabe. Pensamos que o senhor não teria hoje muito tempo livre, mas o chefe entregou-me o contracto que lhe diz respeito.
- Ah, ah - disse Filipe, lendo o documento. - Dois mil dólares por uma reportagem especial... espero que o seu chefe não fique desiludido. Não posso, evidentemente,
revelar tudo quanto sei, pois a polícia tem o assunto entre mãos.
- Limitar-me-ei a preguntar-lhe o que nós desejamos saber - disse Sanders, com benevolência. Prátt vai
primeiro tirar-lhe algumas fotografias. Já fotografámos o depósito e a escada de socorro, onde o senhor matou esse indivíduo. Vejamos como conseguiu fazer tudo isso
.. sozinho ?
- O instinto.- declarou o velho Filipe-Está tudo no instinto. Um detective deve possuir a intuição necessária, de outra forma nunca lhe viria à idea que, justamente
no dia em que sai com uma mulher, um bando de gangsters projecta um roubo de peles.
Depois de ter disparado esta flechazinha subtil a Ricardo Cromwell, que considerava como despedido, Filipe abriu o seu armário e vazou um copo de whisky puro. "A
minha novocaína" - disse alegremente.
Entretanto, Pratt tinha feito a sua entrada com o aparelho, chapas e magnésio, e instalava tudo no pequeno escritório: "Nós queremos também possuir uma fotografia
sua de quando esperava os tipos, no depósito". disse ele dando ao detective a atitude desejada. "É a décima quarta vez que me fotografo hoje" - notou Filipe colocando
bem à vista o braço ferido. O relâmpago de magnésio brilhou.
- Reparou como lá em baixo faz frio ? - preguntou ele - Não há mais de 28? Fahrenheit. Fique lá apenas um quarto de hora à espera de gatunos, e posso garantir-lhe
que dois mil dólares não são muito por isso.
- Vai-te agora embora, - disse Sanders a Pratt, e previne na redação que estou lá daqui a uma hora com a minha reportagem.
Assim que o fotógrafo desapareceu, Filipe pôs um copo diante do jornalista.
- Agora,-disse este-procedamos por ordem. Ponhamos de parte tudo quanto já foi dito na edição da manhã. Como foi ferido no braço?
- O indivíduo visou-me o cotovelo direito. Não era muito burro... mas, por felicidade, sou canhoto.
- Já lhe foi entregue a quantia de mil dólares que ofereciam pela captura de Big Bill?
- O chefe da polícia já mos prometeu. É curioso... ontem, estava mais teso do que um cão atropelado, hoje, recebo dinheiro de todos os lados! O sr. Crosby apertou-me
a mão e chamou-me herói; aumentou-me o vencimento e conserva-me o lugar durante a minha vida e o comissário de polícia levanta-se para me falar.
-Que vai fazer de todo esse dinheiro, sr. Filipe? preguntou Sanders estenografando rapidamente.
- Eis o problema, sabe? Sou celibatário e não posso gastar tudo a beber, senão o sr. Crosby punha-me na rua...
Sanders riu reconhecidamente, ao pensar no êxito que este gracejo alcançaria no jornal.
- Quantos tipos do bando se puderam escapar ? Não faz uma idea?
- Krocinsky... a quem eles chamavam Big Paw está no hospital e Big Bill na morgue, deitado num belo caixão novinho em folha. Dois fugiram, mas estou convencido de
que não era este o bando completo.
- Não receia que se vinguem de si ? Não se acha em perigo?
- Olhe, isso dá-me uma idea sobre o emprego do meu dinheiro; vou contratar uma guarda especial, com Toughy à cabeça-disse Filipe, encantado. Também este dito de
espírito foi igualmente estenografado com alegria.
- Qual é a sua opinião sobre esse Erik Bengtson, que prenderam por ser conivente com os bandidos?
Filipe bebeu só uma vez e reflectiu.
- Quere arranjar-me uma armadilha? Isso é com a polícia. O meu papel é velar porque nada desapareça da Central, o resto é negócio do comissário.
- No entanto, deve ter uma opinião ?..-preguntou Sanders, bebendo também, para criar um ambiente de camaradagem. -Vejamos... que pensa do homem, como indivíduo?
- Bem... como indivíduo, tive-o sempre por um leviano, por um desses endemoninhados estrangeiros que
não inspiram a mínima confiança e, além disso, por um grande pateta. Oficialmente, só se pode dizer uma coisa: foi com o molho de chaves de Bengtson, que Bill entrou
na Central. Todos nós temos o número numa chapinha presa às chaves... e o bando não teve o tacto de a fazer desaparecer. Mas...
-Mas?-preguntou Sanders agarrando-se avidamente à palavrinha que ficou em suspenso.
- Mas... mais nada. -disse o velho Filipe, teimoso.
- Posso escrever que considera Erik Bengtson o principal culpado? -disse Sanders. Filipe enguliu precipitadamente a isca e o anzol:
- Não se trata disso, Deus me livre de afirmar semelhante coisa !
- Emfim, é verdade que esse Bengtson dormia na oficina quando as campainhas de alarme tocaram ?
- É essa justamente a questão, Se ele realmente não ouviu as campainhas de alarme, é preciso confessar que a consciência de nada o acusava. Mas se na realidade ele
só fingia dormir, é muito suspeito, muito.
Sanders esperava, de caneta no ar.
- Skimpy afirma que ele dormia, que foi ela que o acordou, aos murros, quando ouviu os tiros e as campainhas, que a assustaram.
- Na edição da noite deve aparecer uma fotografia da pequena heroína.
- Queria, no entanto, acrescentar uma coisa a respeito de Bengtson. - continuou êle - Fizeram-no sofrer esta noite um interrogatório de terceiro grau. Sabe o que
isto quere dizer?
Sanders aquiesceu, com respeito. As pessoas que tinham sofrido esta prova, falavam dela mais tarde como os gazeados falavam da guerra.
- Pois bem, o rapaz não disse nada. Nem sequer abriu a boca. Isto dá-me que pensar. Tive-o sempre por um rapazola mal habituado e duvidoso. Mas... para ter aguentado
um interrogatório de terceiro grau
sem se mexer, caramba, é preciso ter sangue nas veias! Vi-o esta manhã às nove horas. Eles não o deixaram dormir, como sabe, e a luz aguda, que lhe projectaram nos
olhos, ia-o quási cegando. O comissário pensou que eu talvez pudesse tirar qualquer coisa dele, mas não disse nada, não tentou sequer afirmar que estava inocente.
Sabe o que ele repete?:- "Fui um idiota e o que me acontece é bem merecido". Tinha esperado outra coisa desse pateta.
Sanders levantou-se, pegou no frasco de whisky e encheu dois copos. Filipe bebeu: -"De resto, se ele se chama idiota, é a respeito da sua vida privada" - disse.
O braço começava a doer-lhe muito. Filipe desde a uma da madrugada que estava numa espécie de transe. Ergueu o copo e esvaziou-o.
Sanders deitou novamente mais.
- Posso então escrever que considera Bengtson inocente ? - preguntou de pena em riste.
- Também não disse isso. - murmurou Filipe que começava a sentir se ligeiramente ennevoado - Mas ouça bem ... promete-me segredo se eu lhe confiar uma coisa? Compreende,
isto não é destinado ao seu Jornal. É apenas ... um dado ... um palpite, como nas corridas .. mas queria provar-lhe que o velho Filipe sabe mais do que toda a polícia
... o comissário e todos esses interrogatórios de terceiro grau. Não sei ainda se Bengtson está inocente: mas sei que não está culpado.
- Quê ? - exclamou o jornalista.
- Chut! Chut!- disse Filipe.-Eu não disse nada. Só quero mostrar o que é um trabalho de detective, bem feito. Ligado a cada molho de chaves, está uma placazita,
não é verdade? Pois bem... siga-me com atenção... a placa do molho encontrado em poder de Big Bill cheirava ... a um certo perfume ... Que diz você a isto ?
Sanders não disse nada. O bloco de papel tremia-lhe nas mãos, pois estava possuído da verdadeira febre do caçador.
- As chaves estiveram numa certa malinha de senhora. Foi aí que a placa se impregnou de perfume. Quero dizer-lhe ainda mais uma coisa: eu conheço a mulher que usa
esse perfume. É uma das nossas caixeiras ... e se não atormentarem Big Paw ao ponto de o fazerem confessar todo o imbróglio... eu vejo-me obrigado a dizer o que
sei.
E Filipe, depois destas declarações, instalou-se na sua poltrona e pôs os pés em cima da mesa. As dores no braço tornavam-se horríveis, mas sentia-se feliz como
não era havia muitos anos. A pena de Sanders corria no papel.
- Prenderam a mulher ? - preguntou ele, sem levantar os olhos.
- Você, meu amigo, nunca daria um detective. Emquanto a pequena vier ao armazém e eu a puder vigiar, tudo irá bem. Mas assim que ela estiver na prisão, contará uma
data de mentiras e nós nada avançaremos. Deixemo-la livre e bastará segui-la para se encontrar o ninho onde se esconde o resto do bando. Não é simples?
Sanders escrevia ainda, murmurando que era realmente muito simples. Bruscamente, Filipe retirou os pés da mesa e endireitou-se na cadeira. Depois, esboçou um sorriso
para se desculpar. "Tenho ainda os tiros nos ouvidos, disse ele. Assim que se fecha uma porta julgo ouvir uma detonação."
- Talvez tenha um pouco de febre... por causa do seu braço... - replicou Sanders.
- Não tenho febre! - declarou o velho, com energia.
- Hoje, sr. Filipe limito-me a entrevistá-lo sobre coisas de actualidade, mas temos ainda sete continuações a fornecer, como deve ter compreendido, Amanhã terá de
me falar de si, da sua infância, dos seus estudos, etc. Uma verdadeira biografia. "O homem que abateu Big Bill." Dizia então que essa mulher... e como é ela?
Filipe não respondeu e riu cordealmente a este súbito ataque.
- Olhe que não me apanha com tanta facilidade. Não ouço nada, não vejo nada, não digo nada. E fez o gesto dos três macacos do templo de Nikko.
-É pena.-disse Sanders-Por uma informação semelhante o chefe daria ainda quinhentos dólares... eu conheço-o.
Filipe tinha caído numa profunda meditação. Não podia afastar Erik Bengtson do seu espírito. Erik com os olhos vermelhos, meio cego, meio louco por dores horríveis
na cabeça, o acabrunhamento do seu corpo, a tristeza da sua voz. O rapaz não era mau. E tinha coragem. Sabia calar-se e estava só, para se defender. E esse quadro,
na oficina, com as suas ondas verdes, a vela cor de laranja e Liliana Smith no primeiro plano. Era um idiota, com certeza, mas havia arrojo na sua falta, forçoso
era reconhecê-lo. "Como? Que dizia?" - preguntou, saindo da sua distracção - "Preguntava se posso servir me do seu telefone. Queria saber se o patrão daria mil dólares
caso o senhor consentisse em dar parte ao Evening Star das suas suspeitas."
- Pregunto a mim mesmo que hei-de fazer a tanto dinheiro. - disse Filipe - Vejamos... espere dois dias e... veremos. vou fazer uma outra proposta: suponha que nós
visitamos toda a Central - você fotografará doze caixeiras e depois escolherá. E eu digo depois se a mulher em questão faz parte delas. Que acha?
Sanders reflectiu, perplexo. Isto abria-lhe horizontes novos. Sob o ponto de vista jornalístico, a proposta não era má. Podiam fotografar doze bonitas mulheres e
abrir um concurso entre os leitores. "Qual das doze mulheres era a amante de Big Bill?" Antes que ele pudesse sair das suas reflexões, o telefone tocou. Maquinalmente,
pegou no auscultador e estendeu-o a Filipe. "É para si -disse.
- Como? O quê? Morta? Não, eu vou, - gritou
o detective ao aparelho e, precipitadamente saiu do aposento - Sanders, com a rápida compreensão do repórter experimentado correu atrás dele, através do corredor,
por diante da boca de incêndio até ao elevador.
- Que aconteceu? - gritou, já sem fôlego.
- O bando de Big Bill. Acabam de matar a rapariga. - respondeu o velho detective - E precipitaram-se os dois para o 3.? andar.
LADEADO por dois inspectores de polícia, o velho Filipe
estava no corredor branco da casa de saúde. Sanders, o repórter, estava sentado no banco vizinho. Cheirava a oleado recentemente encerado; o braço de Filipe doía-lhe.
Esperavam todos que a doente, Liliana Smith, estivesse preparada para o interrogatório.
- Que fazem aqui? - preguntou a enfermeira-chefe passando diante dos quatro homens.
- Esperam pelo N.? 14 - respondeu a enfermeira do andar, pois aqui cada doente tinha um número.
Liliana não era mais do que um fardo inconsciente, no momento em que madame Chalon a tinha encontrado no tapete do gabinete de provas, até a terem deitado na mesa
das operações. Pelo espaço de um segundo, tinha experimentado a sensação de uma luz aguda e dolorosa, depois, sob a influência do narcótico, ouvia a campainha da
loja de penhores, dling dling dling... Tiraram-lhe a bala do pulmão, coseram-na e transportaram-na para o quarto n.? 14.
Só à noite voltou a si; deram-lhe uma injecção, ergueram na um pouco e submeteram-na a um curto interrogatório, A enfermeira tomou lhe o pulso e os homens encostaram-se
à cama, pois Liliana só podia falar em voz quási imperceptível.
-- Conhecia a pessoa que fez fogo sobre si?
Liliana reflectiu:
- Não - respondeu. - Não.
- com certeza? - preguntou um dos comissários. -Não.
- Era um homem?
Liliana acenou negativamente com a cabeça na almofada.
- Uma mulher, então ?
- Sim.
- Como era ela ?
- Como uma cliente. - murmurou, a custo, Liliana.
- Isso não é uma descrição; que aparência tinha ? Liliana, cujo pulso na mão da enfermeira se tornava
lento e fraco, fez, em voz baixa, o retrato de uma mulher: alta, morena, enérgica, com uma voz forte e uma grande verruga na face, uma mulher, emfim, que não tinha
a mínima semelhança com Nina. A enfermeira fez um sinal ao comissário: basta.
Fora, no corredor branco da casa de saúde, Filipe dizia: "É claro. Ela não dirá nada. Foi qualquer do seu bando que lhe atirou." Têm medo que fale demais.
- Sim, é claro, - disse o comissário - Sanders, tomou notas apressadas no seu bloco; depois, todos juntos foram tomar cerveja.
Filipe tinha a impressão de que não poderia mais dormir na sua vida. Já fazia vinte e quatro horas que estava em pé e, no cotovelo, uma palpitação fazia-se sentir,
o que significava talvez um envenenamento do sangue.
No quarto N.? 14, Liliana estava deitada sem movimento. Sentia-se contente. Deram-lhe mais uma injecção e ela adormeceu: depois, voltou a si, tornando ainda a amodorrar.
Assim que abriu os olhos, era dia. Não tinha o cérebro ainda claro, mas a consciência de ter feito qualquer coisa certa. O que era forte em si, era sempre forte:
o bem no mal, a força no querer.
Nina quis matá-la. Liliana sorria quando pensava
nessa "maluquinha". Quem podia imaginar uma coisa dessas, da Nina! Havia também neste pensamento um pouco de respeito, um estranho elo, uma leve e curiosa simpatia.
- Então, como vai hoje ? - preguntou a enfermeira endireitando-a na cama. Liliana tinha uma estranha tendência a descair constantemente, o que era mau sinal.
- Obrigada, muito bem - respondeu, num sopro. Sim, ela sentia-se bem nesse leito. Não sofria.
Aqui, nada podia acontecer-lhe. Ninguém a podia vir prender. O ventilador sussurrava; havia um ventilador ao pé da janela. Lá fora oscilava um ramo de hera. De longe,
chegava o som amortecido de um rádio.
Depois ouviu o sino que, na Central, tocava para se fechar o armazém.
No corredor, um homem esperava.
- Chamo-me Sanders do Evening Star e queria tirar um retrato à menina Smith, para o meu jornal. Trago o fotógrafo, Pratt. Vamos, Pratt, venha cá.
- Ninguém pode ver a menina Smith. - disse a enfermeira.-Ela não está bem.
- Estado grave ?-preguntou Sanders, aflito com o pensamento de ver uma boa reportagem escapar-lhe. A enfermeira encolheu os ombros e foi-se sem ruído, nas suas solas
de borracha.
- Voltarei. - disse Sanders.
Mas só pôde ver Liliana ao fim de três semanas, dois dias depois do enterro do velho Filipe. "Cá está, outra vez, esse demónio do Evening Star-" - disse a enfermeira.
- Deixe-o entrar... espere... passe-me um espelho... e a minha malinha... diga-lhe que tenha paciência por cinco minutos ... - respondeu vivamente Liliana. Aborrecida,
a enfermeira saiu. Assim que Sanders entrou, Liliana estava espectaculosamente deitada: com as faces pálidas e os lábios vermelhos. Vestia uma camisa de noite cor
de rosa-chá.
Ah! emfim!- exclamou Sanders. New-York inteira espera ver o seu retrato. Tem um grande futuro diante de si e um passado cheio de experiência, Baby; acredite em Sanders
que tem visto subir muitas estrelas.
- Estou absolutamente num feixe - disse Liliana, sorrindo. Sanders arranjou-a um pouco e Pratt barulhava com o seu aparelho através da porta.
- Aqui está Pratt. - disse Sanders. - Desta vez, Pratt, nada de retoques. Deixe-nos andar, Baby, vamos valorizar a sua história como merece. O patrão oferece lhe
trezentos dólares pelas suas memórias a respeito de Big Bill e isto para começar. Que vai fazer quando sair deste galinheiro?
- A minha ambição tem sido sempre o teatro. disse prontamente Liliana. -Mesmo sob o cobertor de lã, marcado com as iniciais do hospital, podia ver-se quanto as suas
ancas eram belas. - Gostaria de ser rica e célebre, meus pais não são ricos e tenho duas irmãzinhas.
Encantado, Sanders estenografava. Tudo isso seria impresso no Evening Star.
- Minha filha - disse ele. em tom solene, - a tua carreira começa hoje. Dentro de três anos darão o teu nome a uma marca de cigarros!
O magnésio brilhou com um estalido surdo e uma nuvem de fumo pálido diluiu-se no ar, até ao teto, pintado de branco, do quarto da doente.
- DE quem é a vez agora ?-preguntou o Sr. Crosby
ao seu secretário. O secretário consultou a lista e disse:
- Da sr.a Bengtson, sr. Crosby.
O sr. Crosby levantou-se e passou por cada uma das quatro janelas colossais do seu escritório. Diante de todas via-se a mesma coisa : neve suja, bicos de torres,
de tal forma que New-York parecia uma péssima gravura de Jornal, impressa em rede grossa. Os dois rios e as colinas estavam invisíveis e a região do centro-oeste
pedia socorro, pois encontrava-se inundada, como todos os anos, em Março. No entanto, Crosby estava de bom humor. As acções da Central tinham subido meio ponto e
o seu açúcar tinha descido três décimas.
- Mande entrar a sr.a Bengtson. - ordenou. O secretário particular disse ao ditofone:
- A sr.a Bengtson pode entrar.
No vestíbulo de recepção estavam três secretárias prontas a executarem as ordens do todo-poderoso. Uma delas levantou se e foi chamar à sala de espera:
- A sr. Bengtson.
Ela tinha uma voz de mayonnaise rançosa. Nina levantou-se e entrou.
Os seus joelhos estavam ainda um pouco trémulos, pois o jovem Erik pesava mais de quatro quilos à nascença
e levou vinte e quatro horas a chegar. Mas, mesmo sem isso, ela teria os joelhos vacilantes no momento de comparecer diante do grande patrão. Vestia o seu casaco
azul-marinho e a condessa tinha-lhe emprestado luvas brancas, que eram muito grandes para ela. -Aqui está a sr.a Bengtson, sr. Crosby-disse o secretário, empurrando
uma cadeira incómoda para a frente do director da Central.
- Bons-dias, sr.a Bengtson - disse Crosby, sem olhar para Nina. Lia numa resma de papéis que o seu secretário colocara diante dele; quando acabou, suspirou alto
e passou outra vez diante de cada uma das quatro janelas de vidros cobertos de neve e voltou a sentar-se atrás da sua secretária gigante.
- Fez um pedido para voltar para cá, sr.a Bengtson ?
- preguntou, e o seu olhar ergueu-se bruscamente para Nina, de modo que ela ficou tão surpreendida que sentiu Cada uma das doze sardas do seu rosto.
É verdade, sr. Crosby. - respondeu prontamente, avançando para a borda da cadeira - A sr.a Bradley informou-me que iam contratar sessenta caixeiras novas para a
Central.
- A sr.a Bradley? A sr.a Bradley?-disse o sr. Crosby franzindo as sobrancelhas e procurando nos seus papéis.
- Ela já não trabalha na Central desde que Skimpy herdou do velho Filipe, mas aluga quartos aos empregados do armazém e sabe assim todas as novidades.
O sr. Crosby afastou, com um gesto de mão, essas explicações ociosas.
- Mandei-a chamar porque o meu amigo Thorpe escreveu-me de Paris por sua causa. -disse. Nina corou. Êle parece que se interessa muito por si, - acrescentou Crosby.
Pelo rizinho lisongeiro do secretário, Nina percebeu que o todo-poderoso acabava de ter espírito. Sorriu fracamente. Tinha muito medo. Querido e bom Steve, que mesmo
durante a sua segunda viagem de núpcias...
que com certeza não era um prazer para ele... não a esquecia..
- com certeza, sr. Crosby - disse ela.
- Thorpe disse-me que devia também receber seu marido, mas compreende que isso é completamente impossível. - disse o sr. Crosby.
- com certeza, sr. Crosby. - murmurou Nina com a garganta seca.
- Se o nosso bom Filipe não estivesse cá, a Central teria perdido centenas de milhares de dólares por causa de uma leviandade de seu marido. Eu digo leviandade...
porque não se pôde provar qualquer coisa pior.
Nina olhou para as luvas.
- Meu marido pagou duramente as suas faltas. disse ela-Transformou-se muito, também, desde que lhe foi levantada a prisão preventiva.
O sr. Crosby impacientou-se. Não queria meter-se em assuntos de psicologia privada.
- Bem - disse, atirando ao secretário o maço de papéis... - Por causa do meu amigo Thorpe... e por a senhora ser considerada como uma caixeira conscienciosa, vai
ser-lhe restituído o seu antigo lugar. Pode ir apresentar-se imediatamente na secção de louças e vidros... lá lhe darão as necessárias instruções. O seu marido deve
ver o que faz...
- Pinta. Será um dia um artista célebre! - não pôde deixar de dizer Nina.
Teria abafado, se tivesse que engulir isto. O sr. Crosby tomou um ar impacientado, mas franziu as sobrancelhas, o que era nele uma forma de sorrir.
- De quem é a vez agora ? - preguntou ao secretário.
- De madame Chalon: aumento de ordenado respondeu o rapaz.
Nina compreendeu que a despediam. Tinha o coração cheio de reconhecimento e não sabia como exprimi-lo.
- Obrigada, sr. Crosby - disse ela. Sinto-me feliz... emfim... quem já trabalhou na Central... embora esteja sempre a resmungar, troca tudo pela velha loja.
Assustada, ouviu como o sr. Crosby desatou a rir sonoramente, o que em breve se transformou numa tosse de bronquite crónica.
Nina desfilou diante das três secretárias do hall de recepção, diante das pessoas que estavam no salão de espera, diante dos avisos: "Pede-se o favor de guardar
silêncio" e dirigiu-se para o elevador.
Na secção de louças e vidros estavam já informados do seu regresso, pois na Central as notícias têm uma forma extraordinária de se propagar sem fios, por telepatia.
O sr. Berg estava sinceramente contente e miss Drivot fez como se estivesse.
- Sabe que nos tiram agora mais cinquenta cêntimos sobre 60 dólares ? Não faltava mais nada! Chamam a esta retirada: reforma para a velhice. Batatas, digo-lhe eu.
- anunciou ela a Nina.
Às escondidas, Nina acariciou a superfície lisa e fria de um vaso de cristal azul.
- Já lanchou? - preguntou o sr. Berg. Não? Então vá de pressa, porque pode começar a seguir. Como? Se precisamos de si? Creio bem. Temos uma venda antes do inventário:
vamos liquidar todos os objectos de importação inglesa. O serviço de 62 dólares está por 12 dólares, sem falar no resto.
- Os vidros, as porcelanas tomaram um grande desenvolvimento desde a sua saída - disse miss Drivot como um triunfo pessoal. Ao fundo, ouviu-se um ruído de vidro
partido; uma das novas caixeiras tinha quebrado uma fruteira. "Meu Deus!"-exclamou o sr. Berg, correndo para o local do sinistro.
A condessa esperava, com o seu inverosímil Ford diante da fachada oeste, justamente debaixo do aviso: "É proibido estacionar." Tinha metido conversa com o polícia
e este fazia, com sorridente complacência, uma
descrição da constituição de seu jovem irmão. Nina subiu para o carro.
- Pronto, Mutz - disse ela. A condessa falou amavelmente ao seu motor e, ao fim de um certo tempo, o carro consentiu em pôr-se em marcha. "Onde está Erik ? - preguntou
Nina. - "Espera-nos no "Rivoldi"... Ofereço-lhes uma garrafa de chianti.
- Eu não devo beber, pois começo a trabalhar logo a seguir ao almoço.
- Estás contente? - preguntou a condessa, olhando Nina emquanto ia aos ziguezagues perigosos.
- Sim ... se não fosse por causa do pequeno... -A sr.a Bradley e Skimpy tratarão dele. E tu ainda lhe podes dar de mamar duas vezes ao dia, de manhã e à noite.
- Sim, é verdade.
- E depois, Erik é mestre na arte de mudar os cueiros e de preparar biberons, deves reconhecê-lo...
- Querido Erik! - murmurou Nina, sorrindo sonhadoramente.
- Erik gosta muito de ti, Nina.- disse a condessa. Elas avançavam lentamente sobre a neve, por entre
a circulação do meio-dia. Nina não respondeu. A condessa afirmou:
- Nunca pensei que ele chegasse a amar tão profundamente.
- Não ? - preguntou Nina.
- Escuta, Nina. Eu aprendi qualquer coisa lá em baixo, em Lansdale. - disse a condessa fazendo habilmente uma volta para se colocar no lugar dos carros do "Rivoldi"
- O homem é uma máquina subtil e imperfeita. É muito bonito e muito bom sonhar com a perfeição : o ente perfeito, o casamento perfeito... o carácter perfeito...
mas isso não existe na realidade. Os defeitos são válvulas de segurança. Aprendi isto com os meus desgraçados de lá, da caixa dos malucos.
Nina reflectiu um instante. Desceram, e a condessa
teve um diálogo em voz muito alta com um italiano do parque dos carros; por fim, com um grande sorriso e um cumprimento, este deu-lhe a sua senha de estacionamento.
- Sim, creio que, quando se gosta de alguém, gosta-se tanto dos seus defeitos como do resto... - disse Nina quando elas empurravam já a porta e entravam na sala
do "Rivoldi , obscurecida pelo fumo.
Erik estava sentado a um canto, debruçado sobre o mármore da mesa : desenhava encarniçadamente. Quando viu as duas mulheres, apagou vivamente tudo com a palma da
mão. Nina instalou-se e, como havia muito que tinha aprendido a decifrar as garatujas de seu marido, reparou que se tratava de uma familia de pardalitos, de grandes
bicos abertos. A condessa esfregou as mãos e encomendou a comida.
- Nina resolveu trabalhar, emquanto tu não vendes o teu primeiro quadro. - disse ela a Erik.
- Não tardará muito tempo-respondeu, procurando debaixo da mesa, a mão de Nina. A jovem tinha ainda as grandes luvas e, surpreendido, ele tateou o final dos dedos
vazios. Durante esse tempo, a condessa lançou a Nina um olhar de muda compreensão. "Os homens são uma raça bem fraca... nós temos de os ajudar como pudermos..."
Era isto mais ou menos o que o seu olhar significava. Em Lansdale tinha ela tido muitas conversas sobre esse tema.
O chianti apareceu ao mesmo tempo que a sopa. O criado parecia estar apaixonado- pela condessa; uma nódoa de tomate manchava o seu avental branco.
- vou tentar pintar o que pensei durante o meu interrogatório de terceiro grau. - disse Erik subitamente. Era a primeira vez que falava disso.
- E que era, meu filho? - preguntou a condessa.
- Nina ... eis o que pensava. Dizia constantemente para mim: Nina ... Nina ... Nina..
Calaram-se um instante.
- Agora trata de não recomeçar, porque eu só posso pedir uma licença por ano. - disse a condessa, alegremente, vazando o vinho nos copos.
Às seis horas menos cinco, exactamente, a tal senhora
- a cliente para quem tudo era caro - fez a sua entrada na secção de vidros e louças. Passou pelos doze balcões, que tinham instalado para a liquidação geral e chegou
diante do serviço de rosas.
Nina apressou-se a servi-la.
-A senhora ainda se interessa pelo serviço? - preguntou ela - Baixou. Só custa nove dólares e setenta e cinco...
A mulher calculou, movendo os lábios.
Eram seis horas, a sineta tocou; por fim, a cliente tomou um ar encantado:
- Eu levo-o! -disse.
- Devo avisá-la, minha senhora, de que duas chávenas já estão rachadas -disse Nina dando um piparote nas duas peças de que saía um som velado.
- Não faz mal - afirmou a senhora - as coisas rachadas são as que duram mais.

VALHA ME Deus! Lá está ela outra vez! -exclamou intimamente Nina, ao ver a cliente que, às seis horas menos cinco, entrava a porta envidraçada que separava os novos dos velhos armazéns, e a secção de alimentação da das porcelanas.
Na secção dos alimentos era hoje o dia do peixe a preço único: cada qualidade a 20 cents o arrátel. Sentia-se o cheiro em todo o andar! Quanto à senhora, vinha pela quarta vez e, justamente uns minutos antes de fechar o armazém, Pertencia a essa categoria de pessoas que chegam sempre tarde. Embora os cinco degraus, que se seguiam à porta envidraçada, fossem assinalados por um letreiro, dizendo: "Atenção aos degraus!" a senhora tropeçou, deixou cair um embrulho e apertou a malinha de mão contra o seio frouxo. com o chapéu um pouco ao lado, as faces afogueadas, pertencia também a essa espécie de clientes que andam sempre à procura do que for mais barato.
Blusas manchadas, cafeteiras amachucadas, sacos de coiro desbotados pelo sol, meias de seda quási artificial, de ocasião - tais eram as suas compras. São mulheres de pequenos empregados, cheias de preocupações e de trabalho, mulheres que nunca, na sua vida, possuíram uma coisa, tendo-a pago pelo seu preço normal.
Agora era o serviço de porcelana para doze pessoas, guarnecido a rosas, que tinha dado volta à cabeça da boa senhora. Estava em cima da segunda mesa: pratos, travessas, chávenas de café -tudo. Porcelana já não muito branca, rosas de cor bastante carregada, folhas excessivamente verdes, com os bordos ligeiramente mordiscados, pouco doirados. " 39.80" anunciava a etiqueta; e esse preço, só por si, era uma obra de arte, uma sugestão que tornava o serviço ainda mais barato do que 40 dólares. Desde a fábrica, até esta mesa de armazém, centenas de pessoas tinham sido lesadas nos seus salários, para que o preço desse serviço pudesse ser calculado vinte cêntimos abaixo de quarenta dólares. Exposto agora, com todas as suas rosas e o seu luxo de segunda classe, atraía os clientes.

 

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A mulher parou diante do serviço: viram-na reflectir e calcular, emquanto que, com o olhar, procurava uma empregada.
"A mim não, Senhor, a mim não!"-implorou mentalmente Nina, tentando parecer desagradável - "Ao menos uma vez, miss Drivot pode muito bem atender a última cliente."
- pensava ela, quási zangada -Três rugas cruzaram-lhe a pequena testa. Erik pretendia que ela parecia um pequeno cão basset, assim que tinha qualquer preocupação...
Dizia também que era tão pequena e tão nova que devia ainda "precisar de crescer dentro da pele, dessa pele fina, brilhante e aveludada de rapariga de dezanove anos.
E quando Nina recordava as coisas que o seu amigo lhe dizia, essas coisas que mais ninguém no mundo podia inventar, sentia sempre um aperto angustioso e doce, no
coração. Agora, no seu trabalho, cinco-não, dois minutos e meio-antes de fechar, e com uma cliente desagradável à vista, sentia-o também, mas sem doçura.
- Está livre, menina?-preguntou a senhora, diante do serviço de porcelana - E Nina abandonou-se ao seu destino.
E devia ser esse o seu destino, pois toda a clientela
desagradável se lhe dirigia. Não sei o que tenho... as clientes caem em cima de mim como moscas -lamentava-se ao seu amigo Erik e à sua camarada Liliana.
-Oh! Tu tens com certeza qualquer atracção, pardal, pardalinho, pardalito - dizia ele.
Os clientes só servem para nos maçar! -replicava Liliana, sem dar atenção ao pedido de conselho que a queixa de Nina ocultava.
Isso é certo. - concordava Nina, sem verdadeira convicção.
com os cabelos brilhantes, cor de avelã, o olhar sério e interrogador, tudo nela parecia tão simples e era tão simpático, que não se tornava necessária muita psicologia
para compreender que, quem quisesse comprar um serviço de porcelana ou uma fruteira de cristal, se dirigisse a ela e não à magra e seca miss Drivot.
- Trinta e nove dólares ?-preguntou a senhora, parada diante do serviço de rosas - Eram então seis horas e um minuto; a sineta já tinha acabado de tocar.
- Trinta e nove dólares e oitenta.-rectificou polidamente Nina, fazendo soar, com uma pancada do dedo, uma chávena de onde saiu um lindo som - É uma bela porcelana.
Artigo de primeira qualidade.
Seis horas e dois! Erick devia já estar à espera em baixo, na escada 5. Drivot, naturalmente, já estava pronta, há que tempos! Cobria com panos os animais de vidro
e preparava-se para sair.
- Tão caro! Não se poderia... emfim, não se poderia fazer um abatimento ?
- Infelizmente não é possível. É pintado à mão, artigo de primeira qualidade.
- Não posso gastar tanto! É pintado à mão? E se se partir alguma peça, poderão substituí-la ?
- com certeza, minha senhora, com certeza.- respondeu Nina.
Esta conversa tinha lugar pela quarta vez; a mulher estava louca pelo serviço, mas não tinha o dinheiro preciso.
Seis horas e quatro! No meio da sua cólera e da sua impaciência, Nina experimentava como que um sentimento de compreensão por essa senhora, sentimento que era piedade,
embora ela não o reconhecesse como tal.
- É que eu festejo em breve as minhas bodas de prata ... - explicou a cliente.
- Ah! Sim?-interessou-se amavelmente Nina - Eu também estou para casar em breve, teria acrescentado de boa vontade. Mas a sua vida privada nada tinha que ver com
o trabalho. Seis horas e cinco, indicava o relógio sobre a porta envidraçada. Na secção musical, próxima, o último gramofone tinha-se calado. Erik esperava. Drivot,
evidentemente, havia-se eclipsado. Somente no fundo da galeria, na caixa 24, trabalhavam ainda. Era aí que a sr.a Bradley empacotava, mecanicamente, como uma máquina.
A sr.a Bradley era também uma espécie de vítima; era sempre a última a sair.
- Deve resolver-se. - tornou Nina - é uma ocasião
única...
O sr. Berg, chefe da secção, percorria pela última vez o seu domínio. Involuntariamente, Nina lançou lhe um olhar de submissa súplica. Experimentava pelo sr. Berg
o sentimento respeitoso que um jovem escritor pode sentir por um prémio Nobel. O sr, Berg possuia, com certeza, coração: toda a secção estava de acordo sobre este
ponto - coração e coragem. Veio em auxílio da empregada.
- O elevador não trabalha já, minha senhora. lembrou, cortesmente - Fechamos às seis horas. Esta senhora terá que descer a escada, quando tiver terminado a sua compra.
- Não posso resolver hoje. - disse a cliente - Volto cá noutra ocasião. E foi-se embora.
Nina tinha ainda de arrumar. A porcelana tilintava-lhe nas mãos, tão nervosa se sentia. Erik estava em baixo, na escada 5. O elevador reservado ao pessoal já não
funcionava. Era preciso descer a pé a escada 8 e seguir o longo corredor da cave até ao vestiário onde estavam os armários estreitos e alinhados, como no quartel.
Nina lavou as mãos, mirou-se um segundo ao espelho do toucador e, em seguida, pôs um sopro de pó no rosto e um traço de rouge nos lábios.
-Então? Tens pressa?-preguntou Liliana que arranjava as unhas e as sobrancelhas, pausadamente.
- Tenho. - respondeu Nina, com um braço já metido na manga do casaco -A sr.a Bradley já saiu?
- Não a vi - respondeu Liliana, pintando cuidadosamente os lábios.
- Tanto pior, eu não posso esperar, -retorquiu Nina, saindo.
- Espera um instante! Eu vou contigo! -gritou Liliana atrás dela; mas com as suas três rugas na testa, Nina fingiu não ouvir. Embora Liliana fôsse sua amiga, não
gostava que se lhe agarrasse todas as tardes. Muitas vezes Liliana e Erik entregavam-se a brincadeiras a que Nina, com a melhor boa vontade deste mundo, não podia
achar graça.
Transpôs, correndo, as portas da cave, deslisou entre as caixeiras que subiam, cujo grupo foi detido no antigo pátio de controle. Do portão vinha uma corrente de
ar: recebia-se aí uma poeirada no rosto e nos olhos, de fazer chorar. Nina ia meia cega quando conseguiu chegar à escada 5. Erik lá estava: tinha o ar de verdadeiro
gentleman, com a gravata de seda e o chapéu de coco. Havia já algum tempo que deixara crescer um pequeno bigode. Enlaçou amorosamente Nina.
- Então Spurv? Lille Spurv! - murmurou, arrastando-a. Isto era dinamarquês e significava: pardal, pardalinho. Pois Erik - Erik Bengtson era dinamarquês. Viera para
a América muito novo e frequentemente, evocava ainda os bosques de vidoeiros e as baías tranquilas do seu país. Diferia em muita coisa da espécie de rapazes que
Nina costumava conhecer. Ele parecia-lhe um estrangeiro que tivesse acabado de desembarcar no último
barco e não compreendesse bem o que representava New-York. Era muito mais alto do que Nina; uma expressão impertinente flutuava-lhe no rosto: dir-se-ia que tudo
quanto ele via o divertia loucamente.
Nina apertou com mais força o braço contra o do companheiro, e caminhou sem dizer palavra. Como exprimir a sua felicidade sempre que este Erik tinha o braço metido
no seu ombro junto à sua fronte? Ela regulava o mais possível o seu passo pelo dele e levantava, quanto podia, o rosto para o ver.
Era o rosto da tarde de todas as mulheres de grande cidade: a face jovem e fina, de pele frágil e delicada, de quem apanha pouca luz e pouco sol. Muito nova, terna,
um tudo-nada de petulância e algum cepticismo. "Estar cansada, sim, às vezes, mas não o mostrar nunca." Um leve círculo em redor dos olhos e o clarão agudo das lâmpadas
e dos reclamos luminosos sobre as faces e sobre a boca entreaberta.
- Um pouco atrasada, an ? - disse ele.
- Sim... À última hora apareceu-me uma velha maçadora...
- Não te rales, podemos ainda passar dez minutos no "Rivoldi" - e deu grandes passadas.
Não podiam avançar; era a hora em que a capital enlouquecia, em que de todas as casas de comércio saía gente, ondas de gente. Caça aos automóveis, aos metros, aos
eléctricos, filas de carros parados, mendigos, floristas tentando vender os últimos ramos, carritos de fruta voltando para casa, homens que querem apanhar uma rapariga
com quem passar a tarde, mulheres procurando um homem com quem passar a noite; gente casada que volta para casa, maridos que perdem tempo para não terem de recolher,
solitários parados às esquinas a seguir os namorados com o olhar.
- Ao "Rivoldi"? Não vamos para casa? É pena!...
- lamentou Nina, mergulhando rapidamente, o rosto na sombra.
- Que queres, tem que ser! E posso dar-me por feliz se tiver acabado amanhã de manhã, às seis horas.
- Trabalho extraordinário ? E que vais fazer ? - preguntou a rapariga.
- Pôr. Pôr ovos toda a noite. - disse Erik, não sem dignidade, empurrando a porta do pequeno restaurante italiano. Lá dentro cheirava a cebola e a cigarros ordinários;
o ar estava todo azul, Erik tinha um fraco por esse lugar fumarento; já fora à Itália, no tempo em que esperava tornar-se pintor célebre, e conhecia um pouco o italiano.
- Pôr ovos ? Para quê ? - preguntou Nina, rindo.
- Para as festas da Páscoa. - respondeu Erik, instalando-a num canto.
Ela encaixou-se atrás da mesita de tampo de mármore, olhando-o num ar encantado.
- Dá-me um cigarro. - disse, para não deixar ver muito a sua admiração - E deixa o meu joelho em paz. Não dês nas vistas.
Na verdade, Erik, esse grande maluco, não se comportava bem. Que ele era um grande maluco, lá nisso toda a gente estava de acordo,
- Raviolis, café, torta de damasco, - encomendou ao criado.
- Para mim também-resolveu Nina, que não percebera nada.
Erik tinha, mais uma vez, o lápis na mão e desenhava qualquer coisa no mármore da mesa, entre as rodelas que as chávenas de café, anteriormente servidas, haviam
deixado.
- Que é isso ? - preguntou Nina, aspirando profundamente a sua primeira fumaça.
Erik levantou os olhos um instante, quando o fumo saía pelas narinas pálidas e finas da sua companheira. Estava loucamente apaixonado por ela. - "Faz anéis".
- disse-lhe - Nina aspirou o cigarro e fez anéis. Erik contemplava o espectáculo, como se fosse um bom numero
de musiC'hall. Depois, continuou a desenhar. "Parece-me que tenho uma idea"... - murmurou, distraído.
- A respeito dos ovos ?
- Sim. Trata-se da decoração para a Páscoa.
- Que o demónio leve a decoração se tu tens que ficar lá todas as noites por causa disso. Parece-me que o teu chefe te apanhou mais uma vez.
- Apanhou-me bem, o velho rinoceronte. A ele não lhe vem outra coisa à cabeça senão pôr uma lebre e um vidoeiro em cada vitrina.
-E tu?
- Eu ? Oh! eu vou achar, com certeza, qualquer
coisa melhor.
- com certeza. - confiou Nina. Desde que conhecera este Erik, descobrira que ele era um génio. Um génio em montras e em todo o género de coisas: publicidade, desenhos,
balões fora dos novos edifícios, esboços para catálogos - sim, um génio em tudo e para tudo. Mas, por mais recente que fosse a sua experiência no que respeitava
a génios, ela já tinha compreendido que não é sempre fácil viver com eles.
- Fico outra vez sozinha esta noite! Estava tão contente pensando que a passaria ao pé de ti... - disse timidamente.
- Mete-te no teu ninho e dorme, Lille Spurv. - respondeu ele - Tens o ar de quem está um pouco cansada ... Eu vou despachar-me e talvez amanhã te vá dar os bons-dias
antes de tu saíres.
- Sim senhor... isto vai dar um bonito casamento! exclamou ela. - Quando eu sair do armazém, tens tu que entrar e quando tu saíres, entrarei eu!
- Um casamento de primeira qualidade. Garantido. - brincou ele abandonando, emfim, o desenho. Nina observava-o emquanto mastigava a sua dose de raviolis... Tinha
outra vez o ar de não estar ali ao pé dela, à mesa do "Rivoldi", mas Deus sabia lá onde...
Tu não te sentes cansado, dize ? - preguntou ela.
Nem nada - respondeu o rapaz.
Nina bebeu o seu café e comeu o seu bolo. Estava desiludida e triste. A noite, sem Erik, alongava-se na sua frente, sem fim, vazia como um deserto.
- Poderia talvez ir ao cinema... - arriscou, hesitante.
- Isso não! - retorquiu Erik - Ao cinema só vamos
juntos. Não quero que vejas sem mim todos os bons films. -Egoísta!
- Sou-o horrivelmente, quando se trata de ti. - afirmou Erik. Mas estava a brincar.
- Quando iremos ao cinema, os dois ? - preguntou Nina, meia consolada.
- Amanhã. - respondeu ele - E chamou o criado, murmurando palavras em italiano. A conta chegou pouco depois. Erik pagou.
A mesa estava coberta de garatujas, mas Nina não chegava a perceber do que se tratava. O criado trazia já uma rodilha molhada e apagou tudo.
- Agora vamos, pequenina, avante! Preciso voltar à loja - disse Erik, metendo o braço no da rapariga.
Lá fora, tiveram que afrontar o primeiro vento da primavera que desembocava da esquina. Só agora ela sentia a que ponto estava fatigada e só o pensar na sua cama,
causou-lhe prazer. Maquinalmente dirigiu-se para a estação do metro, mais próxima, mas Erik reteve-a no momento em que ela ia atravessar a rua.
- Anda, - disse - vamos tomar um táxi, dou-te um thaler para pagar e vais até casa. Ele disse thaler e isso parecia estrangeiro, dinamarquês.
- Meu Deus, como és gastador! E pensa isto em casar...
- Pst! Pare primeiro na Central Warehouse. A senhora vai mais-longe - disse Erik, empurrando Nina para o táxi, que acabava de parar ao seu sinal.
Para ir do "Rivoldi" à Central, de táxi, bastava minuto e meio, compreendendo duas paragens nos cruzamentos,
Durante esse minuto e meio a boca de Erik foi colada à de Nina.
- Boas-noites, Lille Spurv. - disse, descendo - Aqui
tens o teu thaler.
- Dá saudades â lebre da Páscoa,-recomendou ela e põe os teus ovos com todo o cuidado.
Na primeira esquina fêz parar o carro, deu ao motorista trinta cêntimos, meteu na sua carteira o dólar que tinha aquecido na mão, e depois meteu-se na boca do metro.
A Central Warehouse ocupava um quarteirão inteiro de casas no centro da cidade, com doze montras gigantescas, em cada uma das quatro fachadas e doze andares cheios
de mercadorias e de actividade. No meio, erguia-se um arranha-céus de dezoito andares, no qual estavam instalados os escritórios e aposentos da direcção.
Erik seguiu pelo lado oeste do edifício: todas as vitrinas estavam iluminadas. Na fachada norte, estores, atrás dos quais se agitavam sombras, velavam as montras
números 1 a 6, cuja decoração devia ser renovada durante a noite. O relógio monumental do edifício do centro, de disco luminoso, indicava sete horas menos dez.
- Adeus, Joé - disse o rapaz passando diante da casa do porteiro, que ficava à entrada 4 do pessoal.
- Trabalha de noite, sr. Bengtson ? - informou-se Joé, aparecendo à porta.
Ele tinha um olho de vidro. Depois do armistício, fôra uma idea fixa do sr. Crosby, o deus invisível que, reinava sobre todo o armazém, empregar cinquenta feridos
de guerra. Os jornais tinham falado muito e citado o sr. Crosby como um grande patriota. Sete ou oito desses veteranos estavam ao serviço; podia-se vê-los passar
por diferentes lugares. Um negro maneta ocupava-se do elevador do pessoal do lado norte, e um
irlandês apoplético, com uma perna artificial, tinha por missão aparar todos os lápis dos escritórios.
- Decoração de Páscoa - disse Bengtson estendendo ao guarda o seu maço de cigarros para que ele tirasse um.
- Obrigado. - agradeceu Joé, metendo o cigarro na
algibeira interior.
- O velho já lá está ? - preguntou Bengtson.
- Eu não vi o sr. Sprague - respondeu Joé.
Bengtson afastou-se em passo de gimnástica, assobiando. Fazia soar as chaves como castanholas. As salas vazias seguiam-se numa semi-obscuridade; panos brancos cobriam
as mercadorias que não tinham sido retiradas. De vez em quando, aparecia um manequim, impecavelmente vestido, que sorria, com ar petrificado.
Bengtson dava piparotes naquelas caras de cera, estava contente. Cantava-lhe ainda no sangue o beijo de Nina. Ele gostava do armazém, de noite, "a multidão do mundo",
pensava vagamente. Pensava em dinamarquês.
Abriu o elevador com a sua chave e estava quási a entrar, quando Pusch apareceu, ofegante, e também entrou. Pusch era aprendiz de decorador, um adolescente de dezoito
anos, em pleno crescimento. Ignoravam donde lhe vinha o apelido. Trazia uma pilha de amostras e vacilava com o peso do fardo.
- O sr. Sprague quere ver as cores - balbuciou sufocado, emquanto o elevador os levava. Erik assobiou um pouco mais forte. Tinha a convicção profunda de que o velho,
o sr. Sprague, o chefe dos decoradores, nascera daltónico. Assobiando sempre, indicou com o dedo uma amostra verde claro. Depois interrompeu o assobio e disse:
- É este que vamos escolher. - Depois continuou a
assobiar.
Chegaram ao 12º andar onde ficava a oficina,
- Diz-me cá, ó Pusch, é verdade que pintas o cabelo ? - preguntou ele, antes de sair.
-Não, porquê?- balbuciou o aprendiz cujas orelhas descoradas se tinham tornado encarnadas como fogo. Os seus cabelos eram tão claros, como os de jean Harlow antes
do protesto dos censores. Estava ainda no mesmo sítio com o maço de fazendas e as suas orelhas vermelhas e já Bengtson abria a porta da oficina.
Quando ia a entrar notou um vulto que saía do escritório de Filipe, o detective da casa.- Ah? -pensou, retirando a mão do fecho. A rapariga que avançava para ele
era Liliana, a amiga de Nina.
- Ah? Liliana? - admirou-se. A rapariga, de casaco no braço, abotoando o vestido, disse:
- Viva, Bengtson! - numa voz um pouco rouca Dê-me um cigarro, depressa.
Solícito, estendeu-lhe o maço emquanto riscava já o fósforo. Ela considerava o gesto amável com as sobrancelhas erguidas.
- Aconteceu alguma coisa? -preguntou ele.
- Porquê? Tenho ar de ter sido violentada pelo velho Filipe? Tranqúilize-se, não aconteceu nada.
- Fazia-me pena... por causa do pobre homem. disse ousadamente Bengtson.
Liliana estava na sua frente, com o vestido já abotoado mas tendo ainda as mãos trémulas. Fumava com violência, de uma forma completamente diferente de Nina - pensava
Erik.
- Julgava que já tinha saído há muito tempo. -disse ele, para dizer alguma coisa. Não podia suportar Liliana que se encontrava, sempre que não se desejava a sua
presença. Ela encostara-se a ele e olhava-o com um sorriso trocista.
- Eu não sabia que a Nina usava bâton...-zombe teou a rapariga. Pusch, o aprendiz, tinha-se, entretanto, aproximado e nem se mexia.
- Como? Nina?... - preguntou Erik pouco à vontade.
Liliana desatou a rir e dispòs-se a sair, dizendo:
- Ela tem sempre os lábios pálidos e acha que me
pinto muito.
- Não sei o que quere dizer .. - observou Erik,
que se sentia estúpido.
Pusch riu, passando a mão pelo rosto. Erik compreendeu e, tirando vivamente o lenço, limpou a cara. Envergonhado, apagou bruscamente o beijo do adeus de
Nina.
- Boas noites. - rematou Liliana - Tenho de me ir
embora.
- Quem a espera ? - preguntou Erik.
- Vanderbilt - chasqueou a rapariga, afastando-se. Erik viu-a partir. Ela tinha as mais bonitas ancas de todo o armazém.
- Espere. Eu levo-a. Não está ninguém no elevador.
Erik possuía as chaves de todas as portas pois trabalhava principalmente de noite. "Um gentleman é sempre um gentleman" - troçou Liliana emquanto o rapaz lhe abria
a porta - e isso desagradou-lhe. Ela tinha uma maneira de irritar as pessoas, como um mosquito que não se pode apanhar. O elevador ficou logo cheio do seu perfume
penetrante e vulgar.
- Sabe do que eu gostava agora ? - preguntou, antes do elevador chegar abaixo. -Dançar, divertir-me, beber... consigo. -continuou, emquanto ele a olhava-Sim, arranjar
uma brincadeira aqui mesmo.
- Está a chorar ? - preguntou Erik, levemente perturbado, olhando-a, sempre.
-Parece... Obrigada por me ter acompanhado. O seu perfume flutuava ainda, quando Bengtson subiu e saiu do elevador.
O velho-o sr. Sprague - parecia impaciente quando
Erik entrou.
Quando tiver acabado de namorar as raparigas, talvez possamos pensar um pouco nas vitrinas, - disse imediatamente.
Bengtson limitou-se a rir. O sr. Sprague parecia-se com Mark Twain - velhas maneiras, e boa aparência - e sentia-se orgulhoso com isso. Tinha um cérebro de mármore
e um coração de oiro.
-Um dos manequins estava a chorar, levei-a lá abaixo - respondeu Erik, despreocupado.
- Paladino das damas. -replicou Sprague, ciumento Sabe que ser revistado não tem nada de divertido ?
-Ser revistado? Como? -exclamou Bengtson Que quere dizer com isso?
- O quê, não sabe ? Roubaram qualquer coisa e o Filipe teve de revistar muitas empregadas.
- Rouba-se muito, nestes últimos tempos, não acha sr. Sprague?-notou Bengtson, brincando com as amostras.
A luz lançava um reflexo vivo sobre o tecido vulgar.
- É exactamente o que diz o sr. Crosby; roubam muito, nestes últimos tempos. Desta vez o velho Filipe vai pagá-las.
- Que aconteceu ? - interrogou Erik, deixando cair a amostra,
- Sabe, aqueles objectos de arte com que se fez uma exposição russa de peças raras e de objectos pertencentes a particulares, lembra-se?
Bengtson lembrava-se muito bem: tivera com o velho uma grande discussão a respeito dessa instalação e acabara por ganhar. O outro quisera fazer qualquer coisa de
exagerado, como nos bailados eslavos. Erik tinha pedido alguns móveis emprestados à secção de antiguidades e fizera instalar vários aposentos em estilo Império,
onde dispusera as obras de arte.
- Que roubaram ? - preguntou, mais para dar prazer ao velho, do que por interesse.
- Uma pequena imagem, um ícone todo incrustado de pedras preciosas valendo dois mil dólares.
Estava segura ? - informou-se Bengtson - Então,
ninguém perdeu.
Lembrou-se de-repente dos olhos brilhantes de Liliana que chorava sem lágrimas e parecia irritada. "Como podem ter suspeitado das raparigas da secção de costura,
é o que eu pregunto. O velho Filipe torna-se cada vez
mais idiota."
Sprague abafou o riso: - É o que nos acontecerá a todos se ficarmos aqui empregados muito tempo. Você ainda não percebeu isso?
Desta vez, Bengtson exaltou-se: imaginou Filipe revistando Liliana.
- Eu matava alguém que quisesse revistar a Nina! -
disse, com veemência.
- Quem é a Nina? - preguntou o velho,
- Vamos casar no dia de Páscoa, como já lhe disse
- confirmou Erik.
O velho pôs-se a rir.
- É verdade, é tempo de se acorrentar - E havia nas suas palavras admiração e inveja.
Subitamente, Erik deixou os seus negócios pessoais e voltou-se para os tecidos. Pusch continuava ao pé da grande mesa de desenho, sobre a qual colocara as amostras,
e segurava uma na mão. Tinha uma predilecção quási feminina pelas cores, as sedas e os tecidos brilhantes e, no fundo da sua alma, sentia uma certa vergonha por
isso.
- Vai dormir, Pusch. - disse Bengtson - Aqui não se
precisa de crianças.
O velho aproximou-se também da mesa e, através
dos óculos, observou os tecidos.
- Precisamos de trinta e seis metros por vitrina. disse Erik, num tom profissional, pondo um papel coberto de cifras e de notas na mão do sr. Sprague - Prefere o
tecido verde, mas eu gosto mais do amarelo.
O velho considerou as duas cores que Bengtson lhe metia debaixo dos olhos,
- Você não percebe nada, meu rapaz, o verde é que deve ser.
Bengtson tomou um ar agastado. Intimamente, rejubilava.
- bom. vou descer, Começamos pela vitrina sete. - anunciou pegando no tecido verde. O seu método de obrigar o velho a fazer o que ele queria, mostrou-se mais uma
vez infalível:
- Comece pela primeira vitrina, como já lhe disse ordenou o chefe em tom peremptório.
Bengtson mostrou um ar santamente desolado. -Senhor, seja feita a vossa vontade!-disse - Depois pegou nas amostras e retirou-se.
No elevador flutuava ainda o perfume de Liliana... Liliana era caixeira do salão francês, de costura, na secção de vestidos. Chamava-se Liliana Smith. Smith, porque
era filha do operário Smith, empregado nos trabalhos do canal; Liliana, porque desejava velar assim a vulgaridade do seu nome de família e da sua origem. Imaginava
às vezes, vagamente, o que daria esse nome nos cartazes: a actriz de cinema Liliana Smith, a star de music'all, a rainha de beleza Liliana Smith. Gostaria então
de reservar o "Liliana" e abandonar o "Smith". Havia nela ódio contra tudo quanto vinha de baixo: odiava o ! cheiro da cozinha, morar numa cave à janela da qual
não via passar senão pernas, odiava as baratas que, de noite, passeavam no sobrado, a racha do seu espelho de má qualidade, odiava o seu leito, o seu fato, as suas
próprias mãos que trabalhavam demais Mas sem se tornarem alguma vez verdadeiras mãos de senhora. Liliana odiava também a clientela, irremediavelmente. Odiava essas
mulheres ricas que chegavam nos seus automóveis, com as malinhas cheias de cheques, ou acompanhadas de homens que pagavam por elas. Sorria-lhes, com o seu sorriso
profissional, mas odiava-as ao mesmo tempo e profundamente, com todo o seu ser.
LILIANA era uma criança da rua; em garota, brincara às escondidas nos grossos canos de gás, que a demolição das casas mais velhas do bairro fazia aparecer. Depois
empregou-se como aprendiza, primeiro em minúscula lojeca de alfaiate, depois num armazém da União Square e finalmente no Central Warehouse. Aí, com olhos ambiciosos,
tinha frequentado a escola onde a direcção do armazém mandava educar as suas empregadas. Progressivamente, subira da secção de retrozaria à da roupa branca, depois,
graças aos seus bons serviços e esforços, chegou ao sector mais requintado: aos salões de prova. Aí, tudo era velado: as luzes, as vozes, as cores. Espessos tapetes,
onde a jovem Liliana adorava meter os pés, tapetes de um cinzento-rosa, paredes da mesma cor, candeeiros com reflectores cromados, projectavam a sua claridade no
teto. Madame Chalon, a directora francesa, reinava neste domínio. Era lunática, de génio alegre"! , nas horas sentimentais, contava às empregadas os seus amores
infelizes com um célebre desenhador de modas de Paris. Liliana fazia tudo para agradar aj madames, pois desejava avançar, ir mais longe subir mais alto. Depois de
dois meses, não só se ocupava da venda, mas
também da apresentação de modelos, estava quasi a
passar da escala de 16 dólares para a secção mais bem paga, dos manequins, de que assumira já lugar de destaque.
Fazia a sua entrada com um casaco de arminho ou com um vestido de baile - cópia de um modelo de Patou -ou com um roupão de seda azul-noite. Via-se ao espelho, virava-se
com um movimento que lhe tinham ensinado, alargando o vestido à sua volta e olhava por cima do ombro a cliente - essa cliente que odiava.
A jovem Liliana tinha uma figura perfeita de manequim quarenta, para nos exprimirmos em linguagem profissional. Numa palavra, era construída como uma rainha, delicada,
elegante, com os membros finos e as ancas largas e coleantes. Nela, tudo era alto e pequeno: joelhos, pernas, seios. Esta filha de operário era feita como se um
apurador de raças, depois de muitos esforços, produzisse o que há de melhor com feitio de mulher. Tinha umas formas maravilhosas e também um rosto, mas para o qual
ninguém olhava: viam apenas o corpo e os vestidos que vestia. O seu rosto não era tão belo: tinha linhas duras e, em redor da boca e do queixo, certos traços deixavam
transparecer o Smith de baixa origem, a vontade de trepar.
Apaixonava-se pelos vestidos que mostrava, por todas as sedas, gazes, veludos, rendas. Os casacos de peles endoideciam-na. O seu corpo sentia-se feliz sob a caricia
de belos tecidos. Erik chamara-lhe pouco tempo antes: um mármore frio. Não era justo, pois ela tinha em si a paixão e, muitas vezes, essa paixão ardia de uma forma
insuportável. O pior era ter de tirar os vestidos depois de os apresentar e ser obrigada a pôr o seu fatito pobre de 12 dólares.
Para mudar de vestido só dão a um manequim um " ou dois minutos. No salão, ela passeia lentamente, como uma rainha, diante da clientela mas, assim que sai, no gabinete
de despir, as mãos tremem-lhe ainda: diante do espelho de três faces, despe um vestido, a correr, passa a outro, de-pressa, de-pressa, tendo atrás de si a irritável
directora que resmunga. Mas o que mais a entristece ainda, é ver os vestidos, essas adoradas toilettes em
cima das clientes! Ver como um modelo pode perder o seu chic, ver de que forma todas essas mulheres muito curtas, muito grossas, muito velhas, se esforçam para entrar
nos vestidos, como se põem diante dos espelhos, como são insignificantes, como não sabem vestir se, e tornam vulgares as mais belas peles!
É tudo isso que acende o ódio na jovem Liliana.
-Ah! se eu tivesse a sua figura!-suspirava muitas vezes uma cliente, quando a jovem se apresentava.
"Evidentemente, se tivesses a minha figura... - pensava orgulhosamente Liliana - E se tivesses a minha figura, que aconteceria? com um corpo como o meu, ganha-se
um salário de dezasseis dólares por semana e mora-se numa cave, sim, tudo por baixo! com a minha figura não se tem mesmo um amante, pois, para a maior parte dos
homens é-se "bem demais". Quanto a esses que estariam à minha altura não há nenhuma probabilidade que apareçam neste armazém.
- A cintura é muito estreita. - com estas palavras, cortou madame Thorpe os pensamentos errantes de Liliana.
Madame Thorpe era uma mulher que os seus amigos qualificavam de imponente. Enchouriçada num vestido de seda preta, estava no meio do gabinete de prova e, no espelho,
parecia um pouco melhor do que na realidade era. Todos os espelhos do salão de alta costura eram um tanto lisongeiros. Colocando-os favoravelmente, as senhoras pareciam
logo mais delgadas do que na realidade eram. Na secção de confecção não se davam a esse trabalho: aí abundavam as clientes de medida 48 e 50 e essas são como Deus
as fez e contentam-se com a sua sorte. Quando acabam as compras, sobem lá acima, à pastelaria e banqueteiam-se com sandwichs e tortas de maçã com creme.
-A cintura é muito estreita.-repetia madame Thorpe
- Aqui as cinturas são sempre estreitas. Eu tenho uma linha francesa. Em Paris todos os vestidos me servem,
Liliana odiava esta cliente, esta madame Thorpe, ainda mais do que as outras. Era dessas mulheres que vão aos armazéns unicamente porque se aborrecem: durante horas
fazia com que lhe mostrassem vestidos e provava-os - nervosa, incoerente, histérica. Depois, diante do espelho, caia pouco a pouco no estado de depressão de uma
mulher que tem quarenta anos, e é obrigada a admirar a maneira como uma rapariga de vinte sabe apresentar, com vantagem, o seu corpo esplendoroso.
Muitas vezes o ar quente do pequeno gabinete estava carregado de tempestade. Liliana invejava as clientes pelo seu dinheiro; as clientes invejavam-na pela sua beleza.
O sabor agudo do ciúme aparecia sob os sorrisos recíprocos; o ar cheirava aos corpos, aos perfumes, à mulher, o raio estava a cada momento para estalar. No entanto,
nesse dia, madame Thorpe acabara por comprar um casaco de noite guarnecido de arminho verdadeiro, modelo Margot.
- Esta peste ennervou-me hoje até ao último momento - dizia Liliana à sr.a Bradley quando, no metro, iam para casa. As duas mulheres tinham por costume fazerem juntas
o mesmo caminho até à rua 42. Aí, a sr.a Bradley tinha que mudar. Seguravam-se ambas à mesma correia de suspensão e oscilavam com o movimento da carruagem que ia
completamente cheia; nem pensar num lugar sentado!
- Se vejo a venda da Páscoa passada! - disse a
sr.a Bradley.
- E eu então! Que direi eu? Se soubesse o que passamos neste momento... - replicou Liliana.
- Sim, mas a menina é nova, - queixou-se a sr.a Bradley, cujo rosto pálido tinha manchas de sardas.
- Pregunto a mim mesma quando poderei ir cortar o cabelo ?! - rematava Liliana.
Era o problema constante de todas as caixeiras. Precisavam de ter boa aparência, mas fechavam-lhes a
porta dos salões de cabeleireiro na cara, quando tinham tempo livre.
- Agora preciso de mudar. - disse a sr.a Bradley, conseguindo, a custo, passagem até à porta da carruagem.
- Obrigada por ter esperado por mim. - agradeceu Liliana, fatigada.
- É que eu queria saber como aquilo acabou. Não devia ter-se deixado revistar tão facilmente, digo-lho eu.
- afirmou ainda a sr.a Bradley, descendo.
E o comboio lá continuou, com o ritmo enraivecido e ensurdecedor.
Um homem estava agarrado à correia perto da mão de Liliana, um entre as centenas de homens que tinham feito olhos ternos à rapariga e lhos faziam ainda. Ele soprava-lhe
o seu hálito quente no pescoço e encostava o joelho ao dela, como se a pressão da multidão a isso o obrigasse. Liliana, agarrando-se à correia, sentia em todos os
membros, a pobreza do seu casaco como qualquer coisa que a magoava. A dobra das mangas estava rota, ela sabia-o. A manga que tinha debaixo dos olhos começara a ficar
lustrosa e também cinzenta nas costuras. Liliana sentia-se aborrecida. Tinha trabalhado muito durante todo o dia e depois ainda a retiveram uma hora para a apalpar
e revistar como a uma ladra. "Um dia hão-de pagar-me tudo isto.- pensava, desesperada - Sentia-se ferida e sem defesa. Uma força maldosa acumulava-se nela.
- Deixe-me em paz, senão temos barulho - disse ao homem. Sofria de saudades do casaco de seda comprado por madame Thorpe, como se fosse uma doença. "Esperem", pensava,
emquanto que, fatigada, viajava por debaixo da cidade, entre milhares de outros entes fatigados. "Esperem um pouco, esperem..."
O comboio parou na 125ª rua e ela saiu mecanicamente. Ainda tinha de andar até à 122ª onde moravam seus pais. Era um bairro cheio de mexicanos e italianos. Não sabia,
ao certo, como é que tinham vindo para
ali, sabia apenas que esse meio não lhe convinha e que um dia, muito breve, o mais breve possível, sairia de lá; Diante de um cinema, encimado por um anúncio luminoso,
em espanhol, agrupavam-se as pessoas. Dum café saía o som de um piano eléctrico. Na rua brincavam crianças e cães e a valeta estava cheia de detritos. Diante das
casas passeavam altas mulheres de carnes , caídas e homens em mangas de camisa, embora a noite estivesse fresca, como ao princípio da primavera.
"Assim tão só, minha linda menina?" -preguntou um homem, atrás dela - Não precisou de se voltar para ver como ele era; pele escura, calças estreitas e o cheiro a
alho dos mexicanos. Ela ia mais de-pressa. Ele seguiu-a. "Quere que chame a polícia?" - preguntou a meia voz, sem o olhar - "Não tem coração... não tem coração!...".-
disse, num tom melancólico - Os passos afroixaram. Chegou emfim a sua casa e hesitou um momento antes de descer os três degraus que precediam
a porta.
No próprio momento em que hesitava, surgiu, diante dos seus olhos, inesperadamente, a imagem de Bengtson. Ela não pensava nele - foi um puro acaso. Não estava apaixonada
- não se podia apaixonar. Tal como era, ele não lhe agradava: louco, atrevido, arrogante, superficial, distraído. Aquele que lhe havia de agradar devia ser absolutamente
diferente: rico, com um belo automóvel, fatos de bom corte, dinheiro e tudo mais. "Um homem habituado a comer caviar" - pensava vagamente.
Um gato malhado aproximou-se e deu-lhe marradinhas nas pernas. Liliana não se baixou, ficou direita diante da porta da habitação subterrânea: fixava os olhos na
luz do candeeiro, diante da porta. Erik tinha-lhe acendido o cigarro... acompanhara-a ao elevador... Possuía uma certa elegância e portava-se de forma diferente
dos homens do seu conhecimento. É pena que não tenha dinheiro. - pensava - É pena que vá casar com Nina... Não podia compreender porque o fazia. E,
sobretudo é pena que eu não tenha realmente roubado, pensou de repente-Foi como que um pensamento ardente e corrosivo, que fugiu logo.
Apertando os dentes, Liliana empurrou a porta e
entrou.
LILIANA vinha de baixo, mas aspirava às alturas. Como manequim de um salão de costura tinha já feito um bom pedaço de carreira. Quanto à sr.a Bradley era absolutamente
o contrário: vinha de cima e, irresistivelmente, descia o declive. Uma mulher que, aos quarenta e sete anos fazia embrulhos no serviço de embalagem de um grande
armazém, não podia ter grandes ambições na vida. É que, empacotar, era a única coisa que a sr.a Bradley ainda pôde aprender, depois que seu marido, um industrial,
se suicidou, quando da crise, não lhe deixando senão dívidas, derrocada e um desfazer de feira. Graças a certas protecções, a sr.a Bradley conseguiu ser empregada
na entrega de embrulhos e não se passava uma hora sem que ela não receasse perder o emprego.
Ali estava, entre as jovens principiantes de dezasseis anos, fazendo, sempre com o mesmo gesto, embrulhos
- centenas, milhares de embrulhos. Quando erguia os olhos, só via mãos estendendo-lhe uma senha de entrega, mãos e senhas, senhas e mãos. Ocupava um lugar difícil
onde todos são nervosos, impacientes e ninguém quere esperar. Ela empacotava, empacotava, pensando muitas vezes em Skimpy. "Oxalá Skimpy não fique atropelada! Queira
Deus não caia da janela! Oxalá não brinque com o petróleo do fogão. Skimpy era uma mulherzinhaA GRANDE LIQUIDAÇÃO
de oito anos que tratava da casa, emquanto a sr.a Bradley trabalhava.
Da época da sua opulência elas tinham conservado a sua habitação de Fieldston, esse vestígio de tempo mais feliz. Eram quartos grandes demais, muito numerosos, cheios
de mobília, muito ricos. A sr.a Bradley tinha feito tudo para se desembaraçar dessa casa.
Aparentemente, ninguém a queria. A pobre mulher viu-se obrigada a alugar quartos a pessoas de bem, a preços razoáveis; ao menos pagava as despesas.
No refeitório do armazém encontrava-se um quadro onde se afixavam os anúncios dos empregados. "Piano usado vende-se, ou então: Compra-se bicicleta em bom estado,
ou ainda: Gostaríamos de participar da excursão de domingo, rateando despesas. O quadro estava bem colocado no próprio lugar em que os empregados faziam bicha para
ir buscar o seu prato. Um ou mais dos quartos da sr.a Bradley estavam sempre para alugar.
Fora assim que Nina arranjara um alojamento quando, pobre criatura sem família, grão de poeira atirado pelo vento para a grande cidade, chegara do Texas a New-York.
Foi assim que ela se tornou vizinha de quarto de Erik Bengtson, que já habitava a pensão havia meses, e passava as noites a assobiar de uma forma horrorosa, a cantar,
a fazer barulho. Sem esse quadro, Nina nunca se teria provavelmente casado com esse louco do Erik, com esse génio da decoração.
O casamento realizou-se no domingo de Páscoa e correu de uma forma perfeita. Era, pelo menos, essa a opinião de Nina e também a de Liliana, sua dama de honor.
Erik tinha lutado para ter o sábado livre afim de instalar os seus aposentos. Passou primeiro a sua cama para o quarto de Nina, que se tornou assim um quarto Bradley
completo, com leitos iguais em mogno encerado. Depois, começou as suas operações no outro, no seu, que devia ser a sala, Trabalhou como para a preparação de uma
vitrina. Decorou primeiro as paredes, pintando palmeiras e lianas e pequenos macacos a baloiçar-se. Depois, ornamentou os móveis e plantou um arbusto num vaso chinês.
Pintou almofadas, estofou caixotes e fez mil coisas incompreensíveis.
Transpirava como um escravo, na sua bata manchada de cores, assobiando e cantando tão alto que Skimpy não podia estudar as lições. Por fim, saiu de todo esse trabalho
qualquer coisa que parecia um estúdio exótico. Nina ficou petrificada logo que entrou. "Ah! palavra... estou espantada..."- disse ela - E Foi preciso que, à sua
maneira, Erik a degelasse. Ela pôde sair do seu trabalho a horas, pois a secção de loiças tinha pouca clientela durante a Páscoa: a multidão afluía mais à confecção
e às modas. Mas, como sempre, às seis horas menos três minutos, apresentou-se um cliente que logo caiu sobre Nina. Desta vez, era um rapaz que também vinha com muita
pressa, um estudante ou coisa parecida, em todo o caso, um ente muito agitado. Desejava - ora vejam! duas taças para champagne, mais nada. Nina não pôde deixar de
rir; imaginava nitidamente a cena em que essas taças de champagne deviam figurar. Viu essa venda como um bom presságio: "Páscoa feliz!"- disse ela, emquanto o rapaz
se ia embora - "Obrigado, igualmente".-respondeu ele - Ora se isso não lhe havia de trazer felicidade! Raramente desejos tão cordiais foram trocados entre uma caixeira
e um cliente.
À noite, Liliana ajudou a confeccionar qualquer coisa como um vestido de noiva; Erik, que estava presente, fazia café emquanto a sr.a Bradley mexia a massa do doce
lutando contra o sono. Quanto a Skimpy tinham-na metido na cama, mas estava tão sobreexcitada que falava mesmo a dormir. Liliana tornou-se útil transportando os
fatos de Erik do quarto dele para o futuro quarto de cama. Assim que eles ficaram pendurados, muito bem passados, ao pé do seu modesto enxoval, Nina compreendeu,
pela primeira vez, que no dia seguinte
deveria estar realmente casada. Sentia-se tão fatigada, tão comovida, que via tudo como num sonho, como através de vidros espessos e turvos. Eram já duas horas da
manhã quando se dispôs a arrastar uma pesada mala de pele de búfalo: "posso pôr as minhas coisas na cave?"
- preguntou - A sr.a Bradley acordou e disse que sim, com a cabeça. "São os teus tesoiros?" - preguntou Erik "Precisamos de beber qualquer coisa," -declarou Liliana
- "Oh... coisas minhas. - disse Nina um tanto acanhada
- Velhas recordações..."
Erik tirou-lhe a mala das mãos para a descer à cave: em baixo cheirava ao aquecimento e à poeira, grandes aranhas agitavam-se nas suas teias. Erik abraçou Nina e
beijou-a. Ela ficou um grande momento assim, envolvida nesse abraço. Estava quente e era agradável: teria gostado de adormecer ali.
Vagamente, recordava a sua infância quando, fatigada, no regresso dos seus passeios ao domingo, o pai a trazia até casa. Por fim despertou e pôs-se de joelhos diante
da mala.
- Deixa-me ver o que tens aí.-pediu Erik, ajoelhando
junto dela.
Entreabriu-se-lhe a boca num sorriso mudo e tímido, quando ele abriu a mala.
- Olha! - disse, divertido. Havia uma velha boneca, datando da infância de Nina, com a cabeleira mal posta. Depois, outra, magra, com uns grandes olhos feitos de
botões. Erik lembrou-se que a rapariga o tinha conquistado logo que, pela primeira vez, foram juntos a Coney Island. Depois havia um retrato onde estavam agrupadas
quatro pessoas. Erik olhou para esse quadro, com uma expressão impertinente e garota.
- Este é o meu pai.- disse Nina.
- Morreu?-preguntou Erik, de-repente sério, aproximando-se dela.
- Mataram-no quando assaltaram um Banco. Era da polícia, não te disse já?
- Oh! - exclamou Erik. E calaram-se por um instante. Nina tirou-lhe a fotografia das mãos.
- Eu estou aqui. - disse - Parece que sou estrábica... é que não queria ser fotografada. Este, é meu irmão mais novo, esta, minha mãe...
Erik não ousou fazer preguntas. Olhava de revés o rosto de Nina. Por fim, ela pousou o retrato. "Todos mortos. A gripe..." - explicou, sorrindo tristemente. Ele
esperou um momento:
- Agora recomeçaremos tudo, Lille Sprorv - murmurou depois.
Quando se resolveu a fechar a mala, qualquer coisa havia no fundo. Erik quis ver:
- Que é ? - preguntou.
- Nada, é o revolver do papá.-E pôs prudentemente a arma no seu lugar.
- Está carregado?-preguntou Erik, fechando a mala.
- Não sei, deixámO-lo tal como estava quando da morte do papá.
- Sabes atirar ?
- Não. Mas é uma recordação.
- Estás a dormir em pé.- compadeceu-se Erik, levantando-se - Anda, vou meter-te na cama.
- Onde ?- preguntou Nina.
Ele apagou a pálida luz da cave e, na sombra, procurou a boca dela. Sentiu tudo andar-lhe à volta, em grandes círculos. "Como estou cansada!" -disse logo que emergiu
do turbilhão - Ao cimo da escada da cave, Liliana apareceu, fazendo tilintar copos.
- Desejam casar lá em baixo?-disse ela -Ou preferem subir para beber whisky?
Subiram a escada à pressa e tiraram os copos da mão de Liliana. Erik tinha a cara de um homem um pouco ébrio.
- De onde vem esta fortuna ? - preguntou ele.
- O velho Filipe tem lá que chegue para ele - respondeu Liliana, lacónica.
O sr. Filipe, o detective do armazém, morava também em casa da sr.a Bradley. Verosimilmente, Liliana tinha-o acordado e tirara-lhe uma garrafa de whisky. Erik esteve
quási a fazer uma pregunta, mas guardou-a para si. Liliana parecia já não querer mal ao velho Filipe por a ter submetido à revista. zoa " (1) - disse ele e bebeu
o conteúdo do seu copo. Detestava o whisky.
- Onde está a sr.a Bradley ? - preguntou.
- Deitada!-respondeu Liliana.
Durante a noite a pintura do seu rosto tinha-se apagado e a sua pele, muito branca, brilhava num reflexo mate.
- Já pousou para algum pintor?- preguntou incidentalmente Erik.
- Era o que faltava! Ir-me pôr toda nua para os idiotas dos artistas!-replicou vivamente Liliana. Erik desatou a rir.
- Também se fazem retratos de senhoras vestidas. explicou, muito divertido.
- Sim ? -preguntou Liliana, engulindo o segundo copo de álcool e exagerando a sua inocência - Sempre julguei que era preciso não ter a cicatriz da apendicite para
que nos pintassem.
Erik teve um rápido olhar para Nina, pois sabia que este género de brincadeiras não lhe agradava. Mas Nina adormecera na sua poltrona, justamente por baixo de um
dos macacos que ele tinha pintado na parede. As mãos pendiam-lhe, moles e abandonadas. Foi até junto dela e sacudiu-a docemente: - Spurv, lúh Spurv.- disse baixinho
- Ela moveu os lábios, mas não chegou a falar. Ele ergueu-a e, no sono, ela lançou-lhe um braço à volta do pescoço. Levou-a, assim adormecida, para a cama. Liliana,
de garrafa de whisky na mão, olhava-o
(1) A sua saúde, em dinamarquês.
com ar trocista. Ele deitou Nina e voltou, fechou a porta do quarto, sorrindo sempre.
- Comovedor! - disse Liliana.
- Como ?
- Disse só "comovedor" - repetiu ela.
-Deve estar fatigada, miss Smith?-preguntou Erik, aproximando-se - Quere que a acompanhe a casa ?
- Oh! por Deus, sr. Bengtson. - replicou - Eu não sou daquelas que é preciso levar a casa. De resto, não vou para casa. Trouxe o que me era preciso e durmo cá.
- Aqui? - preguntou ele, de sobrolho franzido.
- Por exemplo, ao pé de Nina, no vosso futuro leito de casados, a não ser que veja qualquer inconveniente ? - disse ela, irónica.
- Pelo contrário, será uma grande honra para o meu leito conjugal -. respondeu o rapaz, muito aborrecido.
Instalou-se numa poltrona, bocejou ostensivamente e esperou o seguimento. Sentia-se terrivelmente cansado, sentia-o agora, e era preciso que às dez horas da manhã
estivesse no registo civil.
- Adeus, boas-noites e bons sonhos. - disse Liliana. Pegou na garrafa e encheu mais um copo do líquido
que bebeu de um trago. Erik olhava-lhe para o pescoço muito branco emquanto ela bebia.
- Porque não me pode suportar?-preguntou, quando acabou.
- Instinto de defesa contra uma muito perigosa formosura. - replicou ele, depois de um momento de hesitação - Ela não compreendeu imediatamente, só percebeu a intenção.
- Muito obrigada. - disse, abrindo a porta - Erik levantou-se por delicadeza; sentia as pernas cansadas, pois tinha estado todo o dia em cima do escadote. Exibindo
um espelhinho de bolso e um bâton, Liliana contornava cuidadosamente os lábios. Disse ainda: "boas-noites" e fechou a porta atrás de si.
Desconcertado, Erik recaiu na poltrona e pôs-se a rir. Achava imensamente engraçado que Liliana pintasse os lábios antes de se deitar. Dependurou o sobretudo e atirou-o
para cima da cama, que tinha improvisado com mantas, estendeu-se e dispôs-se a dormir. Indubitàvelmente, a manhã vinha próxima. Apagou a luz, ouviu em qualquer parte
a buzina de um automóvel. Fechou os olhos. "Á minha última noite de solteiro" pensou, sentindo um pequeno aperto no coração.
Toda a casa estava cheia do perfume detestável e ordinário de Liliana.
NO dia seguinte, às sete horas da manhã, a campainha da entrada tocou; foi um espanto geral. Uma senhora estava diante da casa e dizia em voz enérgica:
- Sou a condessa Bengtson. Venho assistir ao casamento do meu filho.
A sr.a Bradley, que também tinha sido uma senhora de sociedade, agarrou no seu roupão da manhã e nas suas boas maneiras, e respondeu:
- Entre, sr.a condessa. Estamos ainda por arranjar, mas o pequeno almoço, daqui a pouco, está pronto.
A condessa Bengtson acedeu ao convite e entrou. Vestia um fato género alfaiate, preto, e calçava luvas brancas. Diante da casa, um miserável Ford estava parado.
A visitante entrou francamente no aposento acabado de pintar, de que a sr.a Bradley abria a porta, lançou um olhar divertido para os macacos das paredes e ficou
de pé, junto da cama onde Erik dormia.
- O sr. Bengtson não a esperava, quero dizer, o sr. conde Bengtson - balbuciou a sr.a Bradley.
- Eu não tinha a certeza de ficar livre. - respondeu a condessa - Trabalho no asilo de alienados de Lansdale.
Agora o sr. Bengtson dispunha-se a acordar: espreguiçou-se, queixou-se, abriu os olhos e disse: "Olá Mutz!", sem parecer admirado. Discretamente, a sr.a Bradley
retirou-se. Logo a seguir ouviu-se, através da porta, uma
conversa sonora, em dinamarquês. Correndo, a sr.a Bradley atravessou a cozinha, onde Skimpy fazia já o café, e atirou-se para o quarto onde dormiam as duas raparigas.
- Levantem-se.- disse - Vistam-se de-pressa. A mãe dele chegou, é uma condessa e ele é um conde.
Liliana sentou-se na cama, direita como uma vela. Nina precisou de alguns minutos para acordar e mesmo depois, conservou os olhos fechados.
- Que foi ? - preguntou.
- É, minha menina, que vais tornar-te condessa em te casando com ele. É de morrer a rir!-troçou Liliana, sacudindo-a.
Agora todas as torneiras funcionavam em casa; nas três salas de banho jorravam os chuveiros. O velho Filipe foi o primeiro a aprontar-se e a aparecer à mesa do pequeno
almoço, que Skimpy tinha posto.
- Eu sou testemunha - declarou, saudando a condessa. Cheirava ao whisky da véspera e ao da manhã.
- Muito prazer em conhecê-lo.-replicou a condessa, esfregando as mãos - Estou ainda entorpecida pela horrível viagem feita de noite.
O velho Filipe disse em voz pensativa: "Se lhe aconselhar a beber qualquer coisa vai com certeza recusar..." A condessa animou-se: "Ah, não recuso ! respondeu com
energia.
Filipe foi buscar a garrafa de whisky emquanto a sr.a Bradley aparecia com o café. As duas raparigas entraram. Erik estava ainda no banho. A condessa considerou
os dois rostos durante um segundo, depois, levantando-se, foi direita a Nina que, timidamente, estava no mesmo sítio, ignorando o que devia fazer.
- Bons-dias Nina. - disse ela - Caí aqui, de-repente, mas gostava de ver com quem o rapaz casava. Pôs as duas mãos nos ombros de Nina e sacudiu-a de bom humor.-
Vai ter muita arrelia com ele.
Nina procurava palavras.
- Chamam-me Mutz - disse a condessa.
- Sinto-me muito feliz por ter vindo. - respondeu Nina - Apresento-lhe a minha amiga Liliana. Esta é Skimpy, uma boa cozinheira. Foi ela que nos fez o bolo da boda.
A condessa puxou Nina para junto de si, para um canapé e pôs-se a saborear o copo de whisky, que o velho Filipe tinha posto diante dela. - É um verdadeiro reconfortante
do coração - disse - mas não se sabia se falava da noiva, se da bebida.
Liliana estava sentada a um canto sem dizer palavra. Era a primeira condessa que via na sua vida e isso fazia-lhe um certo efeito, embora o não quisesse confessar.
Olhou para Erik, com nova curiosidade, quando ele entrou com os seus cabelos claros puxados para trás, à força de água. Eis que um habitante de esferas superiores
penetrava no seu círculo... Ele devia saber o que era caviar ... Tratava sua mãe como uma encantadora irmã mais velha e a condessa brincava alegremente com ele.
Durante o pequeno almoço foi dado aos assistentes ouvirem uma boa parte da história dos Bengtson. Ao que parecia, a condessa tinha-se tornado enfermeira-mór do asilo
de alienados de Lansdale, depois que seu marido, conde Bengtson, se "afogou a beber". A condessa tinha uma forma agradável de chamar as coisas pelos seus verdadeiros
nomes. Foi assim que a clínica de luxo em que trabalhava passou a ser, na sua boca, a "caixa dos malucos". Foi tratando seu marido, confidenciou, que aprendeu a
tratar os agitados nas suas crises, Erik confirmava de bom humor. Soube-se ainda que seu pai perdera a vida em circunstâncias extraordinárias. Depois de uma caçada
real, na qual todos os senhores haviam tomado parte com casacas vermelhas, ele apostou - cheio como um odre - que iria, em traje de caça, ao prado onde estavam os
toiros. Ganhou a aposta (duzentas garrafas de Pommard, 1879) mas foi atirado ao ar pelos animais furiosos. Os Bengtson, mãe e filho, riram francamente, contando
esta aventura.
Nina calava-se. Mais do que nunca tinha a consciência de casar com um estrangeiro, com um homem que não nascera na América, um homem que viera de barco. No registo
civil confirmou-se que ela ficava a ser condessa Bengtson: era uma novidade difícil de digerir.
- Porque não me disseste nunca ? - preguntou a Erik, emquanto o táxi os trazia de novo a Fieldston.
- Para quê ? Vês-me com uma coroa de conde na cabeça a arranjar uma montra?
- Gosto da tua mãe. - disse Nina timidamente.
- Ela também gosta de ti, pardalito -declarou, muito satisfeito, apertando-lhe a mão.
Estava um tempo soberbo; doirados raios de sol caíam sobre o asfalto, as árvores começavam a florir. Quando os recém-casados chegaram a casa, encontraram convidados:
miss Drivot, o sr. Berg, Pusch, o aprendiz, e uma delegação de caixeiras que traziam um aparelho de T. S. F. como prenda de casamento. O velho Filipe fez um discurso
humorístico e estava em jejum; talvez os pormenores da cura de desintoxicação, contados alegremente pela condessa, lhe tivessem dado que pensar... Comeram o bolo
feito por Skimpy e elogiaram-no. O sr. Berg tornou-se um pouco impertinente com Liliana, que lhe disse: "Tire as mãos. Não é bastante fino para mim." Ele não ficou
ofendido.
Liliana mostrava uma alegria ruidosa e amarga. Insistia em chamar a Nina "sr.a condessa e, na sua boca, isto soava como uma ofensa.
Às duas horas da tarde, a condessa anunciou que se retirava. Convidou o jovem casal a fazer a viagem de núpcias no seu automóvel. Erik, para se despedir, beijou
todos. Não tinha bebido e, no entanto, dava a impressão de estar um pouco ébrio. Liliana voltou-se para a parede quando ele se aproximou. Miss Drivot, muito excitada,
limpou a boca. Todos disseram que a dama de honor devia beijar o noivo. De sobrancelhas franzidas,
Liliana passou fugitivamente com os lábios pelo ar que a separava de Erik, mas Erik apertou-a contra si: Assim não presta - disse, emquanto os outros riam quero
um beijo a valer!"
Liliana parecia zangada: "A valer?"-murmurou baixo. E sem esperar resposta pôs as mãos em volta do pescoço de Erik e beijou-o. Co'a breca!"-disse ele, um pouco sufocado,
assim que ela se desprendeu. Nina, de pé junto dos dois, tinha um sorrizinho contrafeito. Os outros deixaram de rir. A nova T. S. F. manipulada por Pusch, o aprendiz,
emitia sons horríveis.
Finalmente, depois de muitas palavras e lisonjas, a condessa conseguiu pôr o Ford em marcha. Erik e Nina instalaram-se com a sua maleta de fim de semana e partiram.
O ar estava fresco e eles sentaram-se bem junto um do outro com os seus casacos.
Ao crepúsculo, a condessa parou diante de uma velha estalagem, em qualquer parte, e deixou o motor em marcha emquanto desciam os dois.
- Adeus, meus filhos - disse ela.
- Adeus, Mutz - respondeu Erik.
O Ford afastou-se com o ruído de uma máquina de coser, escangalhada, depois tudo se calou. Nina olhou à sua volta. Estava um pouco desapontada. Já que tinham pedido
um dia de licença para a sua viagem de núpcias, imaginara outra coisa: barulho, gente, conversa. Atlantic City ou, pelo menos, Long Beach. Aqui, havia árvores muito
velhas, sobre as quais a folhagem da primavera acabava de reaparecer e um rebanho de carneiros, que passava no caminho, levantava poeira em grandes nuvens azues.
Por entre as árvores vislumbrava-se o mar. "É belo isto," - dizia Erik - é como na Dinamarca" e, de braços estendidos, espreguiçou-se. Nina envergonhava-se por não
ter gostado da paisagem.
À noite, ouviram música distante, foram à sua procura e descobriram por fim um baile campestre onde dançaram. Regressaram tarde, primeiro pela beira-mar e
depois atravessando a aldeia. Já não era calcetamento o que Nina tinha debaixo dos pés, eram nuvens: elas transportavam-na para a velha estalagem...
No meio da noite, Nina, a dormir, estendeu a mão. Sim, estava ali, o ente amado ...
Na manhã de terça-feira o despertador tocou, como de costume. Como de costume, Nina dormia ainda quando se levantou e quando fez alguns exercícios (tinha lido em
qualquer parte que a cultura física conservava a mocidade). Dormia emquanto fazia o café e mesmo emquanto tomava o pequeno almoço. Só acordou completamente quando
estavam sentados no metro dirigindo-se para a Central. Como de costume, Erik subiu a escada 5 e Nina correu aos relógios do ponto, no edifício 6.
E como de costume, miss Drivot notou:
- Olhe que vem atrazada, Nina, despache-se. - Embora Nina fosse agora casada e tivesse o direito de se chamar condessa Bengtson.
-Estou a fazer uma cura de emmagrecimento. Olhe, já perdi 11 arráteis - dizia madame Thorpe a Liliana.
- A senhora está maravilhosa. - respondeu Liliana, lançando um olhar sobre as redondezas da cliente.
- Uma verdadeira linha de rapariga - acrescentou, madame Chalon, a directora. - Que há-de ser hoje? Recebemos um vestido verde, com capa, da Lanvin. Deve ficar-lhe
lindamente.
Desta vez, madame Thorpe estava horrível. Tinha realmente emmagrecido um pouco, mas quatro novas rugas marcavam-lhe o rosto. Mandara pintar os cabelos com henné,
e fumava sem descanso, mostrando-se excessivamente nervosa. As jóias dos dedos e dos pulsos tilintavam, quando se agitava. Tinha levado com ela um rapaz, que se
estendeu no canapé, verificando os vincos das calças e admirando os seus sapatos novos.
- Querido, deixa-me dar só uma fumaça no teu cigarro. - disse madame Thorpe - E tirando-lhe, com os
dedos afusados, o cigarro da boca, aspirou-o profundamente e depois entregou-lho. Isto pareceu espantosamente inconveniente. O rapaz tirou logo o cigarro da boca,
fitando a marca vermelha deixada pelo rouge dos lábios, olhou à sua volta e, com ar adormecido, atirou o cigarro para um cinzeiro de metal, que tinha perto.
Madame Thorpe nada vira, mas Liliana examinava o rapaz com um olhar crítico. "Gigolô" pensou, e assim ficou arrumado. Madame Thorpe parecia absolutamente dominada
por esse indivíduo que era muito bonito, com os cabelos pretos, lisos e brilhantes, os dentes muito belos e um fato do melhor corte.
- Estou horrivelmente nervosa. - suspirou ela - É muito para uma vez só. Ora vejamos, preciso de um enxoval para viagem. Sim ... vou partir... uma voltazita ao mundo,
Palmeiras... entende... tecido branco, para os trópicos... Tem qualquer coisa deste género? vou divorciar-me em breve... e não imagina quanto isso me excita os nervos.
- Quere que lhe mostre a nossa nova colecção para o Sul? - preguntou madame Chalon, piscando o olho a Liliana - "EZ 24 até 32". - segredou-lhe. Liliana desapareceu,
obediente, com o seu passo ondulante, que lhe tinham ensinado na escola de manequins. Mal chegou ao gabinete, despiu apressadamente o vestidito negro, de caixeira.
"EZ 24 até 32". - gritou às duas aprendizas.
- De-pressa, Primeiro o vestido verde; a velha quere comprar muita coisa.
Uma das pequenas saiu a correr, a outra deixou-se ficar com ar estúpido. "O vestido de seda verde?" - preguntou - "Anda. Não sejas idiota. O vestido verde claro,
de capa, vá.. não fiques aí a olhar para mim". - gritou Liliana. Sentia sempre uma certa emoção de actriz, quando tinha de apresentar os vestidos.
- "Se vendermos a colecção pedirei uma percentagem."
- pensava, emquanto, rapidamente, punha pó na cara
e penteava os cabelos. Entre ela e a sr.a Chalon havia uma grande luta calma. Liliana reclamava uma percentagem, quando se vendia qualquer vestido apresentado por
ela. Pelo seu lado, madame Chalon afirmava que ela é que vendia o vestido sozinha, como se Liliana fosse apenas um manequim de madeira. Já duas vezes, depois de
se ter inundado de perfume, Liliana se fora queixar ao chefe de serviço. Ele tinha-lhe acariciado amigavelmente a nuca como a um cãozinho, dizendo que uma rapariga
que possuía a sua linha, não devia prender-se com tão medíocre percentagem; e fora assim que a discussão se desvanecera como fumo.
As aprendizas voltaram a correr com o seu carregamento de vestidos nos braços. No pequeno gabinete de mudas, a que chamavam a jaula dos macacos, cheirava a tecidos
novos, a oficina de alfaiate, a sabão ordinário. A um canto, uma velha costureira mordiscava uma sandwich que preparara em casa.
- Não podem andar mais de-vagar, não ? - rugiu Liliana, arrancando das mãos das raparigas o vestido verde. Como aprendiza, ela tinha sido mal tratada, era agora
a sua vez de maltratar as outras. Só quando a fina seda lhe deslizou pelas ancas, é que a calma veio, os seus nervos distenderam-se, a pele sentiu-se mais feliz.
Lançou a capa sobre os ombros, viu-se mais uma vez ao espelho e dirigiu-se para o salão.
Quando madame Thorpe a notou, tomou uma verdadeira expressão de dor de dentes: "Mas que idea! Não é a minha cor!" -disse, com ar desagradável. Liliana passeou diante
dela, lançando a capa para trás, descobrindo a blusa de fino plissado. O rapaz, no canapé, nem se mexeu, mas, sob as pestanas baixas, o seu olhar adormecido veio
errar sobre essa blusa.
- No entanto, o verde seria o ideal para os cabelos ruivos de V. Ex.a. - notou madame Chalon.
- Ah! não me aborreça, nervosa já eu estou!-gemeu a cliente. - Não posso suportar esta cor.
Madame Chalon fez sinal a Liliana e esta mexeu-se.
- Espere um pouco!-gritou madame Thorpe-Nem sequer sabe o que eu quero. Não têm nada de especial para os trópicos? Um vestido de seda para Hawai, compreende ?
- Ah! o amarelo! - exclamou madame Chalon entusiasmada, como se uma inspiração genial acabasse de lhe acudir - Miss Smith, apresente o vestido amarelo. Esse vestido
é um poema, querida senhora, um sonho, música...
Emquanto se despia, Liliana ouvia ainda o discurso exaltado da modista, que ia buscar as suas expressões ao estilo florido dos anúncios. Por uma razão qualquer,
o gabinete de muda estava sempre quente, provavelmente porque a velha costureira sofria de constipação crónica. Liliana sentia finas gotas de suor, na testa, emquanto
que, sem deixar de acelerar as aprendizas, se metia no vestido amarelo. Este era composto de muitas camadas de tule sobreposto. Na orla, a saia tinha oito metros
de roda. Quando Liliana estava vestida, viu que o penteado não condizia com o estilo do vestido. Foi buscar um pente e deitou pó na fronte húmida.
- Porque se demora tanto ? A cliente impacienta-se - gritou asperamente madame Chalon, metendo a cabeça entre as portas.
- Já vou... não pode ser mais de-pressa.-respondeu Liliana, enervada. Diligenciava todos os dias estar em boas relações com a modista, mas, todos os dias, a tensão,
que existia entre elas, se tornava maior - Saiam do caminho. - ordenou às aprendizas, que estavam ao pé da porta. Por pouco ia pisando as vítimas inocentes. Mas,
quando apareceu diante de madame Thorpe, tinha já o seu mais suave sorriso de manequim.
- Então ? - preguntou orgulhosamente a directora, emquanto Liliana se voltava, ondulante, erguendo a saia com as duas mãos e fazendo alguns passos de dança, apropriados.
- Não é feio... - concordou madame Thorpe, depois de uma pausa.
- Não é feio, minha senhora ? Mas é um sonho este vestido, é a lua de Hawai! Temos um casaco amarelo, palha de milho, com capuz, para a noite, se quiser passear
no tombadilho.
Madame Chalon conhecia as suas clientes. Uma expressão sonhadora passou um instante pelo rosto duro de madame Thorpe. O rapaz pareceu acordar: endireitou-se e parou
de fumar. Liliana desprezava-o profundamente, como só uma mulher jovem, que ainda se não vendeu, pode desprezar um homem que se vende. De súbito, ela viu-o deixar
cair lentamente uma pálpebra, emquanto os seus belos dentes brilhavam.
Era um sinal nítido e descarado, emquanto madame Thorpe voltava costas. Desconcertada, Liliana olhou-o. Estava habituada à desfaçatez, mas esta parecia-lhe demasiada.
Então, o rapaz tirou um cartão do bolso e meteu-o entre as almofadas do canapé onde estava sentado. Dava-lhe a direcção! Liliana começou logo a andar de um lado
para o outro, de contrário, teria rido.
- Esteja sossegada! Aproxime-se. - ordenou madame Thorpe.
Ela avançou com o seu passo leve, para a compra dora, que vista de perto, era quási digna de piedade. Subitamente, Liliana foi de novo acometida por esse ódio, que
sentia tantas vezes, pelas clientes do salão de costura. Viu-se a si própria, vestida com linda toilette, leve, elegante. Era uma vergonha que aquela velha se fosse
vestir assim. E, lentamente, subiu-lhe o calor à
cara.
Liliana foi tratada como um objecto: madame Chalon e madame Thorpe andavam à sua volta, tocavam-lhe, ou antes tocavam no vestido, trocando reflexões profissionais.
- Seria preciso encurtá-lo mais. -disse a cliente.
-Sim, dava-lhe mais chic - concordou a costureira.
Nesse instante, Liliana sentiu uma dor aguda, na espádua nua.
- Ai! - queixou-se baixo, voltando-se.
- Que foi? -informou-se madame Chalon, trocista.
- Não sei... peço desculpa ...-murmurou Liliana. Com dois dedos, chegou ao lugar dorido e retirou-os tintos de sangue.
Madame Thorpe exclamou, de súbito:
- O meu anel? Onde está o meu anel?
O rapaz tinha-se levantado, emquanto Liliana olhava para a ponta dos dedos. Abaixou-se e desprendeu o anel, do tule do vestido, no qual tinha ficado preso. Era um
anel pomposo com uma esmeralda rodeada de pequenos brilhantes. "Aqui está o teu anel, querida."-disse ele, suavemente, metendo-o no dedo de madame Thorpe.
- Vejam até que ponto emmagreci!- exclamou ela, triunfante.- Até os anéis me estão largos.
E para provar o que dizia, estendeu a mão por baixo do nariz do rapaz. Era uma branca mão preguiçosa, de longas unhas afiladas. O anel deslizava ao longo do dedo
emmagrecido, O rapaz pensou um instante no que podiam esperar dele, depois inclinou-se e beijou a mão de madame Thorpe.- Como os europeus são encantadores! - disse,
encantada, trocando com madame Chalon um olhar de compreensão feminina. De Liliana ninguém se ocupava.
Talvez o que aconteceu depois não houvesse acontecido, se madame Thorpe tivesse pedido desculpa à rapariga por causa do arranhão que sangrava, gota a gota. Mas não
o fez. Sem dúvida, não pensava que um manequim fosse um ente vivo, com desejos, invejas e ardentes cóleras.
- Tenha cuidado com o vestido, não apanhe alguma nódoa, miss Smith. - recomendou madame Chalon. Mas de-certo leu no rosto de Liliana qualquer coisa que lhe fez medo,
pois, tornando-se subitamente gentil, continuou:
- Agora pode ir dizer a toda a gente que foi ferida por uma esmeralda verdadeira.
Nesse momento, o rapaz tirou o seu fino lenço de baptista e tocou ligeiramente a gota de sangue nas costas de Liliana. "Seria pena que manchasse tão lindo vestido
-declarou, e Liliana não soube dizer se fôra ironia ou imbecilidade.
- Agrada-te este modelo, querido? Achas que devo
comprá-lo ?
O rapaz levantou-se e olhou para madame Thorpe. Deus sabe o que a quarentona descobriu na expressão desse rosto. com certeza uma coisa que o seu sorriso e os seus
olhos, em forma de amêndoa, não puderam esconder bastante. De-repente, o seu humor virou-se. "O vestido não me agrada!" -declarou bruscamente - "Não o quero. A saia
é muito larga. Vá, mostre-me outra coisa."
Nervosa, fazia girar o anel no dedo.- "Quero qualquer coisa de muito simples, em branco, um vestido com o qual se possa ir jogar o polo em Singapura, sem que os
ingleses nos apontem a dedo."
Liliana olhou para a directora.
- Mostre o nº 34 - disse madame Chalon, um
tanto sucumbida.
Madame Thorpe protestou, com agrura:
- Não mostre mais nada, peço-lhe. Eu mesma vou provar. Não serve a ninguém ver como os vestidos ficam no manequim. Sou eu que os tenho de trazer.
- É justo. - condescendeu madame Chalon, obsequiosa. Nas costas da cliente, ergueu os olhos ao céu num olhar implorativo: - "Traga o nº 34, miss Smith, o vestido
branco, género alfaiate."
Liliana retirou-se de novo para a jaula dos macacos.
- Que mais há ? - preguntou a velha costureira quando, ennervada, a rapariga despiu mais um vestido para tornar a envergar o seu fato de caixeira.
- A velha morre de medo de que eu possa agradar ao seu gigolô! - explicou Liliana - Que idea! A tipos como aquele nem sequer vale a pena a gente escarrar-lhe em
cima.
Madame Thorpe era ainda mais ciumenta do que Liliana supunha. Assim que ela chegou com o vestido branco nº 34 e que madame Chalon acompanhou a sua cliente ao gabinete
de prova, esta deteve o manequim, na passagem:
- Se faz favor, venha provar comigo, - disse claramente, num tom que não admitia réplica.
- com muito prazer, - respondeu Liliana tão amavelmente, que era quási uma insolência.
Nos últimos tempos perdia facilmente o domínio dos nervos. Isso tinha começado pouco antes do casamento de Nina, talvez mesmo na noite em que suspeitaram que ela
tivesse roubado o ícone russo. Desde então, a sua tensão interior tornou-se cada vez mais aguda e lutava contra a estranha apreensão de uma espécie de explosão iminente,
como se todo o armazém, um belo dia, devesse ir pelos ares, ou então arder completamente até não ser mais do que um pequeno monte de cinzas frias. O fino arranhão
ardia-lhe nas costas de uma forma insuportável e sentia uma louca vontade de puxar pelos cabelos pintados de madame Thorpe. A cliente pareceu adivinhar esta tensão,
ou então sentiu exasperar o seu ciúme, embora tivesse arrastado o manequim para longe do seu amante. Era uma obsessão. Vestia e despia os vestidos, mandando a directora
fazer uma nova escolha. As aprendizas andavam de um lado para o outro e madame Thorpe não consentia que Liliana se afastasse um segundo.
Estava calor no gabinete. As figuras das três mulheres multiplicavam-se no grande espelho de três corpos. Parecia que uma multidão de pessoas se agitava e comprimia
na estreita cela. Por fim, madame Thorpe mergulhou num delíquio. Apressada, madame Chalon foi-lhe buscar um copo de água. Liliana fez toda a diligência para dominar
a sua expressão, afim de que a cliente não pudesse perceber com que antipatia a olhava. Madame Thorpe estava agora paramentada com um vestido
preto, de cauda, que lhe exibia as espáduas muito nuas e muito gordas.
Quis ela própria desapertar, nas costas, o cordão da cinta: o anel de esmeralda deslizou e caiu sem ruído, no tapete cinzento e rosa que cobria o chão da casa de
prova, assim como todos os aposentos do salão de costura. Liliana não reflectiu, talvez nem soubesse mesmo o que fazia. Foi espontânea e instintiva: em vez de apanhar
o anel e de o entregar, com uma frase amável, pôs-lhe o pé em cima, para o esconder.
Madame Chalon voltou, trazendo um copo de água que a cliente bebeu, reconhecida. Não tinha dado por nada. Liliana estava em cima do anel e sentia a esmeralda, como
um ponto escaldante, sob a planta dos pés. Madame conseguiu tirar pela cabeça o estreito vestido: tinha perdido completamente o entusiasmo. E, depois de ter atormentado
a directora e a caixeira durante uma hora, decidiu-se bruscamente a não comprar nada.
- Tudo isto me parece muito ordinário! - disse ela - Decididamente, mandarei fazer em Paris o meu enxoval de viagem. Tenho lá uma costureirinha espantosa.
A frase soou de uma forma mesquinha, deselegante e snob. Madame Chalon tornou-se quási aliada de Liliana.
- Como v. ex.a desejar. - disse, lançando a Liliana um olhar que significava "que os diabos levem o velho camelo". Agora já não se preocupava com o facto de madame
Thorpe poder ver o seu gesto pelo espelho.
-Quere ter a bondade de me arrumar um pouco isto?-disse a directora, emquanto acompanhava a cliente.
O gabinete estava cheio de tule, de taffetãs, de folhos - sonhos floridos das costureiras para as noites de Hawai...
Quando Liliana pegou no anel, acariciou-o, mirou-o, sentindo um estremecimento: não era só medo e comoção
- era essa paixão, esse ardor indomável que experimentava
sempre, diante das coisas caras. Acariciou mais o anel e teve ainda tempo de o fazer desaparecer, quando as duas aprendizas entraram. "Nada feito?" - preguntou uma
delas, maliciosamente. - "Mete-te na tua vida". - replicou Liliana, Tinha o anel fechado na mão e não sabia que lhe havia de fazer. Pegou no fato branco nº 34, modelo
Emily e apertou-o contra si. "Eu arranjo isto".- disse, baixando-se para apanhar do tapete alguns alfinetes. As pequenas foram-se embora.
Liliana meteu o anel na algibeira direita do casaco do vestido modelo, de fazenda branca, pendurou cuidadosamente a saia e o casaco numa cruzeta e levou tudo para
o armário. Passou a mão pelo saco de celofane que devia proteger o fato claro, da poeira, respirou profundamente e deixou-o ali, suspenso entre centenas de outros
modelos de verão, prontos para a venda.
Meia hora mais tarde, madame Thorpe surgiu como um tufão. Eram quási cinco e meia e as caixeiras, extenuadas, serviam os últimos fregueses, impacientes. Houve um
certo ruído violento, mas logo reprimido, e a notícia da perda do anel espalhou-se. O velho Filipe foi chamado e as ondas informatórias chegaram ao santuário do
sr. Crosby, ao 18º andar da torre central. Embora madame Thorpe fizesse grande barulho, não podia, de maneira alguma, afirmar que tinha perdido o anel no salão de
prova ou em qualquer outro sítio. Pelo contrário, madame Chalon lembrava-se muito bem de ter visto o anel e de o ter dado ela própria à cliente. O criado, chamado
como testemunha, fez reparos adormecidos e despidos de senso. O velho Filipe fixava o seu olhar perscrutador e desconfiado sobre o rapaz. Não lhe agradava. Dois
homens da polícia privada estavam discretamente num segundo plano, mas não foram precisos. Procuraram por toda a parte e não encontraram nada. Por fim, madame Thorpe
acabou por confessar que tinha saído do armazém num táxi, cujo número ignorava. Tinha ido ao Olímpia Bar, bebera dois cocktails
passara alguns minutos na sua modista, na Madison Avenida e só no segundo táxi, tinha dado pela falta da jóia.
Lamentou-se o facto, fizeram-se promessas de mais buscas e, amavelmente, acompanharam à porta a nervosa senhora, porque era tempo de fechar o armazém. De resto,
madame Thorpe tinha a jóia no seguro, mas custava-lhe dirigir-se por causa disso ao sr. Thorpe de quem se estava a divorciar. Quando a sineta acabou de tocar para
fechar, o velho Filipe convidou o pequeno grupo de empregados a subir ao seu escritório para serem revistados. madame Chalon fazia parte desse número e ficou tão
emocionada que começou logo a falar francês e a pedir que a despedissem. As duas pequenas aprendizas, choravam. Liliana estava fria e calma. "A gente habitua-se"
disse ela irónica, emquanto se despia, sob a vigilância da enfermeira, pois, se o revistar era uma desagradável operação, era ainda assim praticada com delicadeza.
"Lamento, minha filha... -murmurou o velho Filipe, quando aquilo acabou. O seu rosto bondoso, de foca, parecia perturbado. Cheirava a whisky, como de costume. Desde
a data do casamento de Nina, conhecia mais Liliana, e tinha um fraco por ela. "Que é isso que tem aí?" preguntou a enfermeira, vendo nas costas de Liliana algumas
gotas de sangue resumando da arranhadura.
- "Isto? Foi madame Thorpe que me feriu com o seu famoso anel." -disse Liliana, com desprezo.
Sentia uma louca sensação de temeridade, como um dançarino em corda bamba, de pé, em cima de um fio fino, muito alto... "Espere, vou pôr-lhe iodo. -disse a enfermeira.
O ligeiro ardor foi para Liliana como uma promessa.
Durante quatro dias o anel ficou na algibeira do casaco branco, modelo Emily nº 34. Ninguém o comprou, pois começava a chover e as pessoas desejavam impermeáveis
e chapéus de chuva.
Ao quarto dia, o tempo melhorou e Liliana apresentou
o modelo a uma senhora que tinha uma linda figura e que o comprou sem hesitar. No último momento, Liliana teve que tirar o anel e escondê-lo na meia.
Estava doente de excitação. Se um médico lhe tivesse tomado o pulso, achar-lhe-ia febre. E se esse velho Filipe tivesse hoje a idea de a revistar, estava perdida.
Mas o velho Filipe tinha outras preocupações.
À noite, no seu reduto da cave, em casa dos pais, Liliana ficou acordada, acendendo e apagando a luz... Ao lado, seu pai resmungou, mas ela não podia dormir, tinha
que contemplar o anel...
Até que Liliana possuía, emfim, um belo anel de esmeralda, uma jóia sua, um segredo seu, um perigo seu!...
DESDE o décimo quinto andar da parte central até ao cimo, havia por toda a parte avisos com estas palavras. Pede-se silêncio. Quem saía do elevador não podia deixar
de ver este pedido que era antes uma ordem. Havia também avisos nas portas das salas de conferência onde se reunia o conselho para deliberar dos destinos da Central
Warehouse, assim como à entrada dos corredores dando para os escritórios particulares do director-chefe. O sr. Crosby tinha o seu trono lá em cima, no décimo oitavo
andar, num escritório guarnecido nos quatro lados por janelas, e que mais parecia a casa de vigilância de um faroleiro. Nos dias claros podiam ver-se os dois rios,
o Hudson e o Eastriver e as cadeias de colinas, longe, além, em New-Jersey. Mas o sr. Crosby não se interessava pela paisagem: estava muito preocupado. As acções
"da companhia estavam mal cotadas e ele possuía 51? 0 do total, justamente o preciso para lhe garantir a maioria na assembleia geral dos
acionistas.
Na segunda reunião tinha-se notado um certo descontentamento ; embora o armazém fizesse muito negócio, no último ano, fechara-se o balanço com déficit. O sr. Crosby
fazia dançar os algarismos na sua cabeça, sem encontrar solução. "Os impostos, senhores, os impostos ... Não devíamos, evidentemente, falar tão alto,
mas, o que se passa recentemente no nosso país, é uma espécie de comunismo disfarçado.
O sr. Crosby tinha memória matemática, podia-se confiar nela como numa prodigiosa máquina, contanto que se tratasse de acções e de números. Quanto aos rostos dos
seus dois filhinhos e aos aniversários dos seus amigos, esquecia-os sem cessar. No fundo, o sr. Crosby era um doente - sofria de diabetes - e isso roubava-lhe uma
porção de alegrias da vida. Bebia chá sem açúcar, com o seu biscoito seco de diabético, que sabia a papel. Cairam-lhe os dentes um após outro; pouco depois uma chagazinha
no dedo grande, do pé, causou-lhe inquietação : não era nada, uma chagazinha, sem importância, mas, para um homem diabético, podia significar o pior. O sr. Crosby
tinha as mãos frias e pesadas, inchadas, com as veias grossas. Nessa manhã, assinara o despedimento de duzentos empregados. Ninguém o estimava e ele não queria a
ninguém no mundo. Muitas vezes sentia a impressão de que o arranha-céus oscilava ligeiramente: os engenheiros haviam calculado que a ponta da torre central oscilaria
diariamente cerca de quatro polegadas.
Avaliavam a fortuna de Crosby em trinta e quatro milhões.
Filipe, o detective da casa, via o seu chefe superior pela primeira vez, depois da desaparição do anel de madame Thorpe. Ao levantar, tinha tomado como de costume
a sua ração de whisky, pois precisava de criar forças. Estava agora diante do grande patrão e obsecava-o a idea de que podiam notar a leve percentagem de álcool
que tinha no sangue.
O sr. Crosby olhou longamente para o seu subordinado, antes de dizer uma palavra:
- Chama-se Filipe ? Filipe... Filipe ? - preguntou, emfim, decifrando o nome num caderno que o seu secretário lhe estendia.
- Sim, sr. Crosby. Uma pequena brincadeira de meu pai.-murmurou o velho Filipe num tom deferente.
- Que idade tem ?
- Um pouco mais de cinquenta e oito anos - murmurou Filipe. Fazia sessenta daí a três dias e sentia uma espécie de vergonha...
O sr. Crosby olhou com atenção o seu detective. -Bebe.-Não era uma pregunta mas uma participação.
- Às vezes, um copinho... para estar acordado ... trabalho de noite, muitas vezes fico vinte e quatro horas fora de casa.
- Tem um assistente às suas ordens, não é verdade ? Não trabalham alternadamente?
- Sim, mas não descanso completamente nesse jovem detective, principalmente depois... que... várias vezes tivemos pouca sorte... isso não me deixa descansar... não
posso dormir... Por isso prefiro ser eu próprio a fazer a ronda.
- Parece-me que o seu zelo não tem tido grande êxito - disse o sr. Crosby, um pouco mais conciliador. Que um homem preferisse envelhecer no armazém em vez de dormir
na sua cama, compreendia-o bem. Ele mesmo passava a vida naquela torre e não podia admitir que certas pessoas fossem à Flórida ou à caça dos patos.
- Sr. Crosby, - disse Filipe num tom aflito, aproximando-se da secretária - reconheço que temos tido um período de infelicidade. Isso acontece. Asseguro-lhe que
vou redobrar os esforços... não consentirei que aconteça mais qualquer coisa... e se eu...
- Palavras não servem de nada. - disse Crosby. Recuou um pouco, assim que Filipe avançou para ele com o seu hálito saturado de whisky, e irritou-se de novo.
- Mandei-o chamar aqui, não para ouvir as suas explicações, mas para lhe dizer que somos obrigados a dispensá-lo, se tornar a haver o mínimo roubo.
Houve um instante de silêncio; só o secretário fazia mover uma folha de papel, para encobrir a sua perplexidade.
- Dispensar-me ? Não está a falar sério, sr. Crosby ? -disse o velho Filipe - Eu trabalho na Central desde que ela existe, faz daqui a pouco vinte e sete anos...
sr. Crosby...
- Lamento, Filipe, - disse o sr. Crosby - mas bem deve compreender que já não está à altura da sua missão. Isso acontece-nos a todos, um dia. Eu próprio terei de
me retirar e hei-de sabê-lo, exactamente, quando chegar o meu dia. Exijo a mesma coisa dos meus subordinados.
- Não poderá arranjar melhor. - disse Filipe, tocado pela sinceridade do patrão -Para mim... a Central significa tudo... Não é só um emprego... o meu salário...
sempre poderei arranjar trabalho... mas a Central... é como a minha própria casa... eu não tenho lar... sou um velho celibatário... passei toda a minha vida na Central...
não me podem mandar embora simplesmente porque se deram alguns roubos. Eu pertenço à Central... Desculpe-me, sr. Crosby, dizer-lhe assim tudo isto...
O sr. Crosby reflectia sobre o que acabava de ouvir. Desviou-se do ponto principal:
- A polícia descobriu alguma coisa a respeito do anel de madame Thorpe ? - preguntou secamente.
- Não, o caso foi abandonado. É ainda uma coisa que nos pesa às costas, se bem que seja quási certo que o anel não foi perdido em nossa casa. Mas com essas mulheres
não se pode tirar nada a limpo.
- Faço-lhe notar que madame Thorpe é uma das nossas melhores clientes, uma senhora da alta sociedade. Seu marido é meu amigo.
- Peço-lhe perdão, sr. Crosby. De qualquer forma, madame Thorpe deu ordem para acabarem com as investigações, e se me preguntar porquê, poderei dizer-lhe a razão.
O sr. Crosby olhou para o seu detective. Ele só tinha falado duas vezes a madame Thorpe, pois Thorpe, o advogado, não era, na realidade, senão uma relação de
club. No fundo, partilhava a aversão de Filipe pela cliente.
- Sabe que essas insinuações são muito injustas? disse ele.
Filipe lançou um olhar sobre o jovem secretário. Teve a necessidade urgente de uma golada de whisky e sentiu-se muito infeliz.
- Madame Thorpe mandou parar com tudo, porque receou descobrir que o seu... amigo tinha roubado o anel. É tudo. - disse, soltando um suspiro.
- Ela disse isso ? - preguntou Crosby. O velho Filipe não pôde deixar de sorrir a tanta ignorância do mundo no espírito de um grande homem de negócios.
- Disse? O senhor não conhece as mulheres, sr. Crosby. - exclamou. - Uma coisa dessas ? Elas não a confessariam nem mesmo a si próprias, em face da sua consciência.
Mas isso é-me indiferente, pode acreditar...
A leve jocosidade do sr. Crosby durou apenas um minuto, dissipando-se logo. Não sentia já senão impaciência e descontentamento em face deste empregado meio ébrio,
que não queria ser despedido. Abriu a gaveta do meio, da sua secretária, e tirou um frasquinho de remédio. Muito obsequioso, o secretário particular ofereceu-lhe
um copo de água: o director contou vinte gotas. A droga tinha um gosto amargo. Muitas vezes o doente sr. Crosby sentia repugnância por si próprio: o seu braço estava
cheio de picadas da seringa da insulina, que, ultimamente, mostravam uma desastrosa tendência para se inflamarem.
- Está então avisado, sr. Filipe - disse em tom peremptório - Na primeira ocasião, é despedido. Obrigado.
Era definitivo. Nada tinha a responder.
-Obrigado, igualmente, sr. Crosby-respondeu Filipe, retirando-se.
Lá fora, exausto, encostou-se uns minutos à parede, ao pé do aviso que reclamava silêncio. Depois dispôs-se a descer a escada que vai do 18º andar ao 12.?. Era um
hábito curioso: Filipe preferia a escada ao elevador. Três vezes, na sua carreira, tinha prendido nas escadas, ladrões que se julgavam em segurança. Chegou dez minutos
mais tarde ao seu escritório, chamou o piquete de detectives ajudantes, simples e frustes adolescentes sem nenhuma intuição psicológica, e recomendou-lhes uma grande
vigilância. Assim que partiram, acabou de esvaziar a sua garrafa de whisky, sem utilizar nem copo nem soda, pois começava a sua luta obstinada contra a ameaça de
despedida que pesava sobre ele.
OS empregados de uma grande casa só conhecem ? realmente uma pequena parte dela; estão incrustados à sua secção, como os corais ao fundo do mar. Mas aquele que,
constantemente, lhe percorre todos os cantos, como o velho Filipe, esse vê o conjunto, conhece essa imagem reduzida do universo, que é um grande armazém.
Ele via milhares de coisas emquanto, com o seu bondoso rosto ingénuo, de foca, e os olhos um pouco turvos pelo álcool, mas atentos, andava por todo o edifício. Ia
constantemente às escadas, às salas de venda que se estendiam até ao infinito. Na secção de branco, havia batalhas entre mulheres, pois era o dia de um dólar. No
salão de chá, três músicos faziam ouvir as árias em voga e, na secção de música, ouviam-se, outra vez, essas árias. Aí, uma rapariga anémica estava sentada ao piano
e tocava, como uma sonâmbula, tudo quanto punham diante dela: as notas pareciam espectros. Sem descanso, os camiões rolavam no pátio número 5, onde era descarregada
a mercadoria, pesada, registada e escolhida. Em todas as secções, Filipe distinguia as clientes que compravam sem reflexões, sem resistência, dessas que, de lábios
cerrados, calculam de pé, aos cantos, e por fim não compram nada. Mais além são os jovens negros dos elevadores que, na multidão de mulheres, anunciam os andares
como máquinas falantes, sem vida, cegos, surdos e insensíveis.
Ao romper da manhã, o armazém é ocupado por grupos de mulheres que tratam da limpeza e do encerado. De noite, os guardas vão e vêm na penumbra, marcando a sua passagem
nos relógios de verificação. Na cave, fica a reserva dos manequins das vitrinas: bonecas de cera, nuas, de sorrisos afectados, alinhadas em longas filas, contra
as paredes. Pares de braços e de pernas estão deitados ao lado delas no chão, e todas têm o ar de esperar alguma coisa. No 14º andar ficam as caixas, os cofres fortes,
metidos nas paredes, protegidos por um sistema secreto e complicado, vigiados noite e dia. É aí que, nos dias de pagamento, os empregados, em longas filas, esperam
o seu sobrescrito. Os caixas estão atrás das grades, vivem prisioneiros entre barras de ferro e campainhas de alarme e usam dedeiras de borracha, no polegar, para
protegerem a pele, que ficaria em sangue, à força de contarem todo aquele dinheiro.
Além, estão os escritórios da administração com os seus tickers, as campainhas, o martelar de centenas de máquinas de escrever. Eis o pequeno ramo de flores em cima
da mesa de uma estenotipista e um único raio de sol que, pelo meio dia, desliza pontualmente na sombria sala do empacotamento.
No vestiário das senhoras - onde as caixeiras vão à pressa fumar um cigarro quando estão cansadas - trocam-se mil bisbilhotices e chefes de secção contam historietas
emquanto se arranjam.
Mais longe, estão as mesas guarnecidas de seis, de quatro, de dois aparelhos telefónicos. Outras mesas têm vinte campainhas, e há gente que se deve precipitar assim
que as ouça tocar.
Eis aqui, em resumo, um bloco inteiro do edifício onde reina a febre da compra e da venda. A casa vibra e tudo isto, unicamente, para ganhar dinheiro.
Há longas mesas onde se escrevem, sobre etiquetas,
os preços que se marcam nas mercadorias. Certos preços são alterados, diminuídos, outra vez modificados. Isto interessa o velho Filipe; pode ficar ali muito tempo
a olhar, a ruminar, preguntando a si próprio como pode um rico modelo elegante descer até ao preço dos saldos, como um lindo móvel é um dia atirado para o subterrâneo,
ou liquidado por uma insignificância. "Que fazem dos monos?" - pregunta ele. Ninguém o sabe. - "Que fazem da mercadoria que não vendem?" - pregunta ainda. Parece
que existe uma casa que compra tudo quanto é inútil; aceita o rebotalho do grande armazém e manda-o, não se sabe para onde; para a Nova Guiné ou para quaisquer antropófagos
do fim do mundo.
E isto mergulha o velho Filipe em longas meditações. Ele também faz parte desse rebotalho... tornou-se inútil... Depois de vinte e oito anos passados na Central,
que podem fazer de um velho como ele? À noite, depois de ter ainda bebido meia garrafa de whisky, sonha que passeia com um cartaz gigantesco às costas, anunciando
um preço diminuído, rediminuído, reduzido a nada.
Um murmúrio percorreu subitamente o armazém, uma espécie de secreta inquietação. Filtrou-se não se sabe por onde: diziam que iam licenciar empregados. Muitas mulheres,
como a srª Bradley, tremiam ao pensar numa despedida. Esforçavam-se por todos os meios para se valorizarem entre os novos, os muito novos, os levianos, os mal vistos.
Havia algum tempo já que a sr.a Bradley sentia certa dor de um lado, que nem ousava confessá-lo a si própria, Skimpy, à noite, punha-lhe uma cataplasma e a sr.a
Bradley desculpava-se junto dos seus hóspedes e ia para a cama, emquanto Skimpy ficava com o velho Filipe e o casal Bengtson, a jogar. Jogavam a "beijinhos de chocolate",
pequenos bonbons negros, que a confeitaria da Central havia comprado em grande quantidade e de que não se tinha podido desembaraçar: saldavam-nos, por isso, aos
empregados, na cantina. Skimpy fazia batota sem vergonha e ganhava, com grandes gritos de alegria. Filipe perdia regularmente, não podia reter na cabeça as cartas
do jogo, embora fosse um bom jogador de xadrez. Às vezes, Nina lançava-lhe um olhar de inquietação e de
piedade.
O pior, para o pobre homem, é que tinha renunciado a beber e não ia já de noite à Central. Tinha medo do armazém, de noite, e medo de si mesmo. Sen tia muitas vezes
a impressão de que poderia, com as suas próprias mãos de detective, roubar uma garrafa de whisky, na secção. Para um bebedor, a sobriedade é uma dura doença, com
arrepios que fazem estremecer, e dores em todos os membros. Durante o tempo em que se conservou sóbrio, o velho Filipe registou um pequeno êxito e um verdadeiro
desastre.
Uma noite, descobriu um rapaz que se tinha escondido, durante as horas de trabalho, atrás de um alto rolo de tapeçaria, em pé, contra a parede do depósito de tapetes.
Uma simples intuição levou o velho Filipe a lançar um olhar para trás do rolo e a agarrar o jovem ladrão pelas orelhas.
A polícia prendeu o garoto, que não tinha ainda dezasseis anos. Ele jurou que não queria roubar nada, mas apenas brincar com os objectos da secção de sport. Isso
foi um triunfo um tanto atenuado e Filipe sentiu-o bem, Três dias mais tarde, passsou-se o seguinte ; emquanto passava pelo armazém próximo da porta de oeste, onde
vendiam tudo em pequenas quantidades, notou duas pessoas que lhe pareceram suspeitas. Lembrou-se de as ter já visto e desconfiado delas, mas o seu cérebro, perturbado
pela abstinência, não lhe deu nenhuma indicação precisa. O homem era do género "belo aventureiro"; a mulher, mais velha do que ele, estava pintada e parecia muito
nervosa. Filipe seguiu-os, sem ser notado, entre a onda da clientela que se espraiava, a essas horas da tarde, pelo armazém.
Tinha vestido o sobretudo e posto o chapéu, para ter também o aspecto de um freguês. Emquanto os vigiava, encostado a uma coluna, sentia-se cambaleante, como que
vazio. No entanto, a velha febre de caça do detective, aguilhoada pelo desejo de provar ao sr. Crosby que ainda podiam contar com ele, levou-o a agir.
As duas pessoas suspeitas deslizaram das malas de senhora para os perfumes, separaram-se, pararam em balcões diferentes, ele no das luvas, ela no dos lenços e Filipe
via-os, distintamente, trocarem sinais às escondidas. O coração pôs-se-lhe a bater: contornou a coluna, quando os viu afastarem-se, e não os perdeu de vista. Em
cima de uma mesa estavam objectos de metal prateado, nada de extraordinário, coisas que faziam mais efeito do que valiam. Shakers para cocktails, taças de fruta,
etc. Filipe sentiu de novo uma espécie de vertigem: entretanto, viu a mulher meter qualquer coisa na carteira, fazer sinal ao homem e dirigir-se com ele para a saída,
num ar indiferente.
Apanhou-os a poucos passos da porta, deitou a mão à malinha da senhora e disse brandamente: "siga-me, se faz favor, e sem fazer escândalo."
- Que aconteceu, sr. Filipe ? - preguntou a senhora. Quando ouviu esta voz teve uma sensação desagradável. No entanto, tudo teria corrido bem se, no mesmo instante,
um jovem assistente dos seus detectives não tivesse vindo em seu auxílio. Esse principiante lançou o seu punho de polícia à mão do homem e disse:
- Deixa-te de histórias, meu rapaz! Já roubaste bastante.
O escândalo estalou... O homem defendeu-se, a mulher pôs-se aos gritos, a multidão alarmou-se, a polícia da casa acorreu com as suas pesadas botas. Tudo se desenrolou
fatalmente, irresistivelmente, como numa tragédia grega.
A mulher era madame Thorpe... O conteúdo da
malinha: irrepreensível... O seu companheiro ameaçava fazer um processo por difamação. Finalmente a cena terminou na sala, pintada de branco, do posto de ambulância,
onde madame Thorpe se entregou a uma crise de nervos. A enfermeira deu-lhe brometo e o aprendiz Pusch, que estava em toda a parte onde havia qualquer coisa de interessante
a ver, foi buscar um carro para levar os dois.
- Se eu estivesse bêbado, semelhante coisa não me tinha acontecido! - dizia de si para si o velho Filipe - O pobre homem já sabia, agora, que seria despedido.
Efectivamente o sr. Crosby mandou-lhe o ordenado de três meses e um atestado para que pudesse arranjar outro emprego. Fizeram-lhe compreender que, no futuro, passariam
sem ele. Um novo chefe detective, moço e enérgico, foi nomeado. Chamava-se Ricardo Cromwell e tinha servido na marinha: foi por isso que o alcunharam logo de "Toughyj.
Desde o primeiro dia que as caixeiras o adoravam, e ele passeava por toda a parte, como um pachá que possue trezentas mulheres.
O velho Filipe estava em casa, jogava as cartas a beijinhos de chocolate e tentava não beber... A Central podia passar sem ele-bem o sabia, o pobre
- mas, Santo Deus, como poderia ele passar sem a Central ?- É preciso que alguém nos dê uma idea - dizia o
sr. Sprague, o velho, o chefe dos decoradores como iniciar essas novas ligas? Parece que a Central comprou a patente, Patente Fidélia! Uma verdadeira porcaria! Mas
a patente é nossa. Não rasga as meias. É preciso fazer uma vitrina inteira com isso. Pregunto-lhe como... Porque eu não posso colocar sessenta mil ligas como se
fossem cebolas, na montra... A não ser que fabricássemos uma árvore sobre a qual nascessem as ligas?
- Não. Já fizemos a árvore das gravatas. - interrompeu erik Bengtson que estava sentado em cima de um escadote, pintando uma senhora maior que o natural, mostrando
uma grande parte da perna, que era destinada à fachada do armazém - precisamos pensar nisso, a sério.
E mergulhou nas suas reflexões, assobiando:
"Contigo, querida, gostaria de ir a Bali dormir sob as palmeiras Contigo irià Austrália e subiria até à lua, Contigo, contigo ..
- Alto! Tenho uma idea, - disse ele - dezasseis bonecas mostrando todas o joelho, com a liga por cima.
Sim, mas... era preciso poder demonstrar que não rasga a meia...
- E como demonstrar isso ? - preguntou o velho, interessado.
Erik caiu em profunda meditação.
- Já sei. Precisamos de uma verdadeira mulier. disse, ao fim de um minuto.
- Como ?
- Uma verdadeira mulher. Dezasseis bonecas e uma mulher verdadeira, vestida exactamente da mesma forma. Ela dobra o joelho e mostra que a meia não se rasga. Admirável!
Eis a solução!
Por um momento, o velho não disse nada. A idea trabalhava no seu cérebro genial. "Não está mau..."murmurou por fim. - "Mas é preciso que tenha umas pernas bonitas"
- acrescentou Erik, do alto do escadote. O velho pareceu despertar.
- Ora! Pernas bonitas têm elas todas!
Erik desceu e pôs-se a gizar o vestido que as dezasseis bonecas e a mulher deviam vestir.
- Precisamos de procurar entre as caixeiras, temos bonitas raparigas na Central - disse ele, absorto.
- Sim. Eu encarrego-me pessoalmente de a descobrir - respondeu o velho.
E pôs-se à procura, nesse mesmo dia. Como por acaso, percorria todo o estabelecimento, cominando as caixeiras, quando elas subiam as escadas ou trepavam aos escadotes.
Tirou disso muito prazer, mas não conseguiu mais nada. No dia seguinte foi o próprio chefe do pessoal que tomou esse encargo. Estava combinado que as ligas deviam
ser expostas durante uma semana na montra número 7, do lado norte. Erik traçava já o esboço do fundo... A caixeira indicada devia receber uma gratificação de dez
dólars por dia, quantia extraordinária, comparada com o pequeno salário que tinham, quando as pernas não entravam em jogo. As mais belas raparigas da Central foram
convocadas
para a oficina de decoração e aí alinhadas. As mais belas raparigas, quere dizer, antes de tudo, os manequins e as alunas da escola de manequins. Segredando e rindo
ofereciam-se aos olhares do velho Sprague: embora se tratasse apenas de pernas, elas tinham dado ao rosto o brilho mais resplandecente. Todas eram ambiciosas e o
facto de serem expostas durante uma semana na vitrina, representava uma aventura excitante, e uma grande oportunidade de êxito.
Sem nenhuma dúvida, Liliana Smíth possuía as mais belas pernas; foi classificada em primeiro lugar na restricta selecção que fizeram. No fim, ficou só em campo.
O velho passeava ao longo da fila de raparigas, com um passo solene, como um general passando revista a um regimento. Erik fazia de ajudante, seguia atrás. O velho
discutia, em voz alta, as qualidades de cada uma, pois as suas relações de todo o ano com bonecas das vitrinas, tinham-no tornado indiferente às reacções humanas.
Erik Bengtson, pelo seu lado, fazia caretas nas costas do velho, o que obrigava a rir as concorrentes. Por fim, o sr. Sprague mandou embora todas, mesmo Liliana.
- Que tem o senhor a dizer às pernas dessa rapariga?-preguntou Erik, assim que ficou só com o chefe.
- Não as podemos utilizar. Ela não tem o tipo preciso, tem um ar ordinário.
- Acha ? -preguntou Erik, que estava habituado a Liliana.
- Meu rapaz-disse o sr. Sprague - pode-se ter excelentes ideas a respeito de decorações, mas não se saber nada do que é venda. E nós queremos vender, entendeu? Nós
queremos vender essas danadas sessenta mil ligas Fidélia. E a quem, pregunto eu? A gente modesta, às donas de casa que precisam de fazer durar as meias, a esses
dois milhões de mulheres que ficariam furiosas, se vissem uma rapariga como esta Smith. Se a pusermos na montra, teremos um montão de homens
diante da nossa fachada norte, e a patente vai-se pela água abaixo.
- Que é preciso fazer então ? - preguntou Erik, que começava a achar o assunto demorado.
- É preciso descobrir um tipo que convenha explicou o velho. - Deve, com certeza, existir uma rapariga que tenha as pernas bonitas e, ao mesmo tempo, um ar sério.
vou procurar mais uma vez. O chefe do pessoal é um burro, É preciso a gente ir em pessoa.
Ao lado do seu superior, Erik percorreu o armazém. Toda a gente estava agora ao facto do que eles queriam e as caixeiras arranjavam-se de tal maneira, quo as suas
pernas não podiam passar despercebidas. Mesmo as da velha guarda, como miss Drívot, da secção das louças, estavam cheias de esperança, pois, desta vez, não se tratava
da cara,
- Espere! É esta que eu quero! - disse o sr. Sprague, de-repente - Eis emfim o tipo de mulher que ety; procurava, como um pedaço de oiro absolutamente raro.."; Uma
rapariga que é bonita e que, ao mesmo tempo,'- tem um ar decente. É esta, acredite. Esta é que há-de vender as nossas ligas à clientela.
- Oh!... parece-me... que se engana.-disse Erik, estupefacto. A rapariga que estava em cima de um escadote, e que tinha encantado o sr. Sprague, não era outra senão
Nina.
- Ela é muito tímida para ser exposta assim - atalhou, tentando distrair o velho.
- Como sabe você, se ela é tímida ? Já lhe fez propostas ? Pois do que precisamos é justamente duma mulher deste género.
- Mas o senhor não a pode meter dentro de uma vitrina, pronto! - exclamou Erik, grosseiro. Mas, como há meses, com subtil diplomacia, tinha sempre levado o velho
a fazer o que não lhe aconselhava e a evitar o que ele queria, a sua oposição enraizou a idea do bom homem.
A GRANDE LIQUIDAÇÃO
- Como se chama, menina ? - preguntou o sr. Sprague, com os olhos erguidos para o escadote, sem se preocupar com o seu assistente.
- Nina. - disse ela.
Acabava de ver seu marido e o rosto iluminou-se-lhe.
- Desça. Tenho que lhe falar - ordenou o velho.
- Deixa-te ficar lá em cima, Nina! - gritou Erik - Na verdade, não desejo que a minha mulher se pespegue numa vitrina a exibir os joelhos.
O sr. Sprague ficou sufocado.
- Ah! bom ... casou com ela não ? As minhas felicitações. Mas... ouça-me bem: você não tem o direito de influenciar sua mulher. Ela talvez se sinta feliz, ganhando
uma pequena gratificação.
Nina descera do escadote e colocara-se ao pé de Erik, não tão perto que pudessem julgar que falavam em particular, mas, no entanto, próximo dele.
- Que gratificação? - preguntou.
- Setenta dólares por semana. - disse o velho, com ar importante - Sem contar que isso a pode fazer ir mais longe.
O sr. Berg, chefe da secção, havia-se aproximado. Miss Drivot passou perto deles, sorridente. Sabiam já todos que Nina era a escolhida e vinham cumprimentá-la, parecendo
tomar o facto como uma honra e uma distinção. No lavatório das senhoras começavam já os comentários ciumentos e os doze andares encheram-se com a notícia.
- Não quero que a minha mulher vá para a vitrina.-repetiu Erik, numa cólera fria.
- No entanto, ganhar dinheiro, só lhe pode ser agradável. Para mais, isso causa-nos a nós, à Central, um grande prazer. Estou convencido de que o sr. Crosby será
informado -continuou insidiosamente o sr. Sprague, emquanto Erik prometia, a si próprio, vingar-se na primeira ocasião. Podia sempre, emquanto decorava, deixar
cair um martelo em cima daquela maldita cabeça de intrigante.
À noite, no metro, os recém-casados discutiram. Erik mantinha que Nina devia recusar a proposta. Nina compreendia isso mal: seu marido fora sempre superficial, não
tomando nada a sério pelo facto de ser artista, e eis que, por esta história sem importância, fazia soar o seu título de conde. com aquele dinheiro podiam começar
a comprar o pequeno Ford e fazer mesmo mais qualquer coisa. Erik tinha um desejo louco de um pequeno Ford e fazia anos daí a pouco...
- Quer te agrade ou não, estou decidida, - disse ela
- Ambos temos desejo de avançar e não nos podemos permitir o luxo de desprezar semelhante ocasião. De resto, até te fica mal fazeres barulho por tão pouco. Ouvirei,
com certeza, menos reflexões desagradáveis dentro duma vitrina, do que quando sirvo os clientes.
A sr.a Bradley tomou o partido de Nina.
- Ela tem razão, se recusar, tomam-na de ponta. Erik resmungou ainda.
- Tenho a certeza que tua mãe não faria objecções - assegurou Nina lançando o seu último trunfo.
- Lá nisso podes estar descansada. Minha mãe até teria prazer nisso. - disse Erik, furioso.
- Bem vê... - concluiu a sr.a Bradley agarrando-se com força á correia, pois, nos últimos tempos, andava trémula. Devia ser por causa das dores no lado. Por instantes,
ela julgou ver os embrulhos, as etiquetas, as mãos girarem diante dos olhos e teve medo de cair. Mas era preciso não falar dessas coisas, se queria conservar o seu
lugar na Central. Bem vê! - continuou, deixando-se baloiçar da direita para a esquerda. Liliana, de pé, a seu lado, não dizia nada. Ia devorada pela cólera e pelo
ciúme. Pensar que a rejeitaram para pôr Nina na vitrina! Pensar que havia casado, emquanto ela tinha todas as noites que andar sozinha no seu ? bairro! Pensar que
esse cretino do Erik procedia como
se Nina fosse distinta demais para ser exibida! Tudo isto, punha Liliana fora de si: era como uma dor perfurã nte.
- Fazia muito mais efeito se soubessem que viam as pernas de uma condessa Bengtson - disse ela, por fim.
A flecha atingiu Erík, - e ela percebeu-o - mas era uma bem fraca consolação. Desceram os três na rua 42.a e Liliana continuou sozinha até à 125ª.
Não era que aquilo desse muito prazer a Nina, pelo contrário, afligia-a até. - "Setenta dólares". -pensava emquanto jogava com Skimpy. Setenta dólares" Erik resmungava
ainda, no entanto, deixava-a fazer o que quisesse. Nina via-se já quási a escolher o pequeno Ford. Nem podia adormecer. Estendida na obscuridade, assaltava-a a sua
empresa e construía castelos no ar.
- Pensa que nunca mais te aborrecerás - disse ela, noite alta. -Adivinhava, pela respiração de Erik, que ainda não conseguira adormecer.
- Quando? - preguntou.
Nina estendeu a mão para a outra cama:
- Ora quando ... por exemplo, quando tivermos o nosso automòvelzinho... À noite poderemos dar um passeio...
Nina conservava a mão estendida; aparentemente, Erik nem dava por isso.
- Eu não me aborreço - disse, algum tempo depois.
- Sim, continuou ela meigamente - eu sei, não é preciso que o digas: tu aborreces-te. Jogar todas as noites com a Skimpy e o velho Filipe não é, evidentemente, muito
interessante para ti. Mas tu verás... Ela calou-se um momento e depois veio a mão de Erik, da outra cama, ter com a sua.
- Querida inteligente, Lille spurv, - disse ele - estamos casados apenas há três semanas e já tens sustos a meu respeito...
Nina teve desejos de responder, mas não o fez. Erik
adivinhava sempre as suas mentiras; mesmo num quarto de dormir às escuras, ele sabia quando ela mentia. Tinha receios, sim... Ele andava distante... distraído, muito
amável... mas de noite para noite, a partida de cartas e a vida em casa dos Bradley, mais o irritavam. Um carrito para ele... ar ... movimento ... velocidade ...
- Sabes ?... é porque não me habituo aos beijos de chocolate - disse emfim Erik, do outro lado.
Nina pôs-se a rir baixinho, e adormeceram.
No dia seguinte, Nina exercitou-se no papel que devia representar. À noite Erik não foi a casa, mas jantaram juntos no "Rivoldi". Depois, ele voltou para a loja
para decorar a montra das ligas.
Foi a uma quarta-feira, que Nina tomou posse do seu novo posto. Tendo um vestidinho azul-claro, foi colocada na vitrina, no meio de dezasseis bonecas, de sorriso
idiota, e fez a demonstração das ligas Fidélia. Para dizer a verdade, ela admirava-se que as meias ficassem inteiras.
Três vezes, durante a manhã, Erik foi à rua e fazia guarda para vigiar a mulher por trás do vidro. Nina mal se atrevia a sorrir-lhe, como se se tivesse tornado actriz
de um drama de Shakespeare. Ao meio dia, houve uma pausa de meia hora; deixou ali as dezasseis bonecas e foi ter com Erik, à cantina. Ele não disse uma palavra sobre
o novo emprego de sua mulher e ela também não falou nisso. Liliana não se foi sentar em frente deles, como de costume. Na escada 5, os esposos separaram-se e Nina
retomou o seu lugar na montra 7.
Era fatigante. Horrivelmente fatigante e ennervante. Mas, ao fim de dois dias, tinha-se habituado, Às vezes, parecia-lhe que se tinha transformado também numa boneca,
com as costas duras, curvadas, e com um sorriso de madeira.
É vulgar dizer-se que os novaiorquinos nunca têm tempo. Mas quando uma bonita rapariga, exposta em carne e osso, mostra, nas suas próprias pernas, que
as meias não se rasgam, os mais ocupados arranjam logo tempo. De manhã até à noite havia uma multidão em frente da fachada norte, de tal maneira, que teve de ir
para lá um agente de polícia, afim de manter a ordem. Certos basbaques ficavam ali cinco minutos, olhando com um sorriso cheio de espectativa, como se esperassem
a conclusão divertida de uma boa anedota. Até o mendigo da esquina da rua pôs a tiracolo o seu letreiro "Sou cego" e se fez conduzir até ao armazém, pelo cão, arriscando
um olhar para Nina, Ela tinha esquecido completamente que a fitavam, e desempenhava o melhor possível o seu papel, sem se preocupar com a gente que estava lá fora.
- Ah! Tu nunca podias, na vida, ser um manequim ! - disse-lhe Liliana, à noite, quando, fatigadas de corpo e espírito, se dispunham a partir.
- Parece-me bem que não. - respondeu Nina, sem rancor.
Erik fora obrigado a ficar no armazém; os projectos para a estação de verão não estavam acabados.
- Emfim... compreendes, ao menos, a sorte que tiveste de seres assim exposta ?
- Porquê? -admirou-se Nina, a quem doíam as costas .
- Por causa de toda essa gente que olha para ti... todas essas ocasiões... Podes encontrar alguém que faça a tua felicidade.
- Que felicidade ? -preguntou Nina. Ela alegrava-se mas era ao pensar nos setenta dólares e no pequeno Ford ... Mas a felicidade era talvez outra coisa.
- Inocentinha, an ? - troçou Liliana. Tinham entrado no vestiário das senhoras e punham pó no rosto. Nina fazia-o negligentemente, Liliana com uma gravidade atenta.
- Emfim... não tens recebido propostas, cartas de amor ou coisas desse género?
- Mas eu sou casada! - replicou Nina. Liliana olhou-a com ar de desprezo:
- Eu é que devia lá estar. - disse, rancorosa. E havia de tudo neste pensamento: inveja, ciúme, raiva, até desdém e ódio por essa pequena Nina tão simples. Um pensamento
que queimava e estragava tudo: "Eu é que devia lá estar!..."
FACTO estranho, os habitantes de uma capital não conhecem verdadeiramente senão uma pequena parte da sua cidade. Fazem todos os dias o mesmo caminho, à mesma hora,
com a mesma luz. Steve Thorpe, por exemplo, não conhecia senão o caminho da sua casa de White Plains para o seu escritório da 5ª Avenida, e, além disso, o seu Club.
E mesmo, só conhecia esse bairro, através da porta do seu automóvel.
Que ele tivesse passado a pé, numa quinta-feira, pouco antes do meio-dia, diante da fachada norte da Central Warehouse, era um puro acaso e fora causa disso, também,
uma carta que tinha recebido. Essa carta, monumento epistolar, ao mesmo tempo atormentada e solene, era assinada por Filipe Filipe. Thorpe não se teria inquietado
muito se, entre frases confusas, não houvesse alusão, a sua mulher. O epistológrafo Filipe, pedia perdão pela ofensa que, em consequência de um mal-entendido, tinha
feito a madame Thorpe. Ao mesmo tempo que se censurava a si próprio, pedia instantemente ao marido, sr. Thorpe, para o ajudar: "Por causa de sua mulher perdi o meu
lugar que, durante toda a vida, ocupei o melhor que pude. Seja generoso, sr. Thorpe, e ajude-me a recuperá-lo. Sei que é amigo do sr. Crosby, uma palavra sua pode
restituir-me a felicidade", Assim terminava a confusa epístola.
O sr. Thorpe percebeu, pelo menos, que esse Filipe ignorava a acção de divórcio, posta por madame Thorpe contra ele, e ficou-lhe reconhecido, pois desde que sua
mulher o tinha deixado, andava de um lado para outro com a sensação de que toda a cidade o apontava a dedo.
Embora as culpas estivessem do lado de Lúcia, Thorpe não tinha a consciência tranquila. Em muitos processos, defendera a opinião de que, quando uma mulher se entrega
a certas faltas, é sempre por culpa do marido. Se a carta não falasse de sua mulher, ele tê-la-ia deitado fora, imediatamente. Mas Steve Thorpe queria bem à mulher
que o tinha abandonado, e tudo o que lhe dizia respeito o agitava extremamente. Ele metera-se em casa e não se dava com ninguém; quanto às pessoas que iam ao seu
escritório de advogado, possuíam o tacto preciso para não falarem de Lúcia. De-resto, Thorpe supunha que, havia muito tempo, ela tinha partido em viagem para a Europa,
como lhe dissera, quando se separaram. Só agora, esta carta lhe fazia saber que estava ainda em New-York. Esse Filipe devia ser um louco. Thorpe nada podia deduzir
da carta, mas o sangue subia-lhe ao rosto, ao pensar que um desconhecido tinha podido ofender Lúcia. Pegou no telefone para chamar Crosby, que conhecia como membro
do seu Club. Mas abandonou o auscultador, assim que viu os olhos atentos da sua velha secretária. Miss Tackle tinha a aparência e a vigilância dos cães de pedra,
que na China velam as portas dos templos e afastam os espíritos maus. Teve vergonha diante dela, diante da telefonista e diante do groom e, levantando-se, aproximou-se
da janela. O sol brilhava. Havia apenas três quarteirões de casas até à Warehouse. O grande relógio da torre central fez soar meio-dia. Havia anos que Thorpe tinha
por costume acertar por ele o seu relógio. "vou almoçar fora" - murmurou, e depois, deixando o sobretudo, pegou no chapéu e libertou-se do olhar de miss Tackle.
Assim que chegou à rua, respirou e olhou para o céu. Impaciente, esperou a luz verde para atravessar, pois tinha medo dos automóveis, como todas as pessoas que andam
sempre neles. O sol brilhante, aquecia-lhe as costas; à esquina da rua flutuava um cheiro a cravo. Uma mulher vendia flores; um homem empurrava um carrinho de pop-corn.
Thorpe sentiu-se agradavelmente englobado na onda dos passantes. "É preciso andar mais - pensou ele. - O pouco footing que faço ao sábado, não basta".
Thorpe era um homem alto e pesado, de cinquenta e dois anos. Havia quatro que estava um pouco calvo e ultimamente, a sua tensão arterial não era o que devia ser.
"A máquina gasta-se lamentava-se frequentes vezes. Era um trabalhador de uma resistência e de uma concentração colossais. Tinha ganho bom dinheiro e oferecido a
sua mulher todo o luxo que ela podia desejar. Era um dos milhões de maridos americanos, que passam o tempo a ganhar dinheiro para a mulher, de forma a não lhe ficar
nenhum tempo para gastar com as mulheres. Por isso é que ela o tinha deixado. Havia fugido com um gigolô, tal como o sr. Thorpe designava esse homem. Que o gigolô
se chamasse conde Di Péruggi e que quisesse desposar Lúcia, em nada alterava a situação.
Steve Thorpe estava na idade em que fere e faz doer horrivelmente uma mulher deixar um homem por causa dum gigolô. Mas, - com os diabos! - também ela estava na idade
em que as mulheres têm tendência para fugir com gigolôs. Pânico final, o desejo de agarrar a vida pelo último cabelo... Às vezes, sentia uma violenta cólera contra
Lúcia, outras, causava-lhe pena. Tinha conhecido muitos casos deste género, nos processos que estudara, para ser intransigente.
Foi por isso que Steve Thorpe se pôs a caminho, para tentar saber desse Filipe qualquer coisa de novo a respeito da sua mulher. Chegou diante da Central, parou
diante das vitrinas, olhando para tudo. Era novo para ele, isto desviava-o do motu-continuo dos seus pensamentos. Avançou entre a onda de gente, contornou o armazém,
deslizou ao longo da fachada norte e chegou diante da montra onde se fazia a demonstração das novas ligas Fidélia.
Thorpe parou e pôs-se a sorrir. Bonito, muito bonito. Muito bem" - pensou.
Cada uma das dezasseis bonecas tinha uma etiqueta de cartão, pendurada do joelho: "Preço: 2,80. A jovem, ao centro da vitrina, que, com um movimento regular levantava
a saia e puxava a liga, tinha também uma etiqueta pendente do joelho.
- Encantadora! - pensou Thorpe, olhando Nina e as bonecas - A rapariga é encantadora, muito mais bonita, do que parecia à primeira vista.
Parou, olhou e andou um pouco mais. Ao fim de um momento, voltou atrás. Tinha, entretanto, dado uma volta a todo o quarteirão; o sol brilhava e fazia-lhe bem
andar.
- Aqui está o que eu devia arranjar... uma amiguinha... - pensou.
Era o remédio infalível de todos os divorciados que conhecia. Uma amiguinha, uma coisa que se possa mostrar em público, que possa trazer um pouco de calor e de juventude.
Em Thorpe havia um fundo de bondade: amava os cães, as crianças, tudo o que era pequeno e necessitava de protecção. Teria sido terno, mas não tinha aprendido como
isso era.
Na sua casa de White Plains havia mesmo dois cães. A casa era muito grande para um homem só, pois a T. S. F. e a garrafa de whisky são uma companhia insuficiente.
Thorpe ficou ainda cinco minutos a olhar para a rapariga, depois entrou no armazém, pela porta norte.
No escritório de informações estava uma senhora de cabelo grisalho, que, a julgar pela sua aparência, devia
ser membro de numerosas associações de reforma. Thorpe, num acesso de bom humor, dirigiu-se a ela:
- Gostaria de comprar a jovem senhora que está exposta na montra - disse, tirando o chapéu.
- O quê ?
- A jovem senhora da montra. Tem o preço: dois dólares e oitenta. É um bom negócio. Onde a posso ir buscar?
- O senhor está a brincar! - respondeu "o escritório de informações" num tom adocicado. Em que posso servi-lo ?
A crise de Thorpe tinha já passado. Lembrou-se a que tinha vindo.
- Queria falar a um homem chamado Filipe . sabe se está empregado aqui ?
- Filipe ? O detective ? Um minuto ... - respondeu a senhora - vou chamar o sr. Cromwell.
Disse algumas palavras ao telefone e o resultado foi a aparição, passado um momento, de um rapagão com atitude de campeão de foot-ball, que a senhora das informações
apresentou com visível complacência.
- Este senhor deseja falar com o sr. Filipe. - disse ela - Este é o sr. Cromwell, que lhe dará informações.
- Chamo-me Thorpe -elucidou o advogado.-Tenho aqui uma carta que me foi dirigida por um tal sr. Filipe. Gostaria de o ver.
- Filipe, neste momento, está no depósito das peles, sr. Thorpe. Eu sou o novo detective da casa, tratando-se de qualquer coisa que...
- Não, não, obrigado,- disse vivamente Thorpe.- Queira apenas indicar-me o caminho desse depósito.
Cromwell teve um sorriso que significava: "Tu imaginas que as coisas se passam assim, meu homenzinho..."
- Como é natural, não é permitido a ninguém descer ao depósito das peles.- explicou com um sorriso condescendente,
- Bem. Então queira fazer o favor de mandar chamar aqui esse senhor.- propôs Thorpe.
Cromwell mirou-o com ar inquisitorial: "Talvez se trate de alguma situação para o velho Filipe" sugeriu, receosa, a senhora das informações. O novo detective piscou-lhe
o olho: "Trata-se de algum novo emprego?"
- preguntou. Mas Thorpe perdeu a paciência. "Quero falar com esse senhor, sim ou não?"
- Nunca, antes de meia hora. É preciso esperar que ele acabe a ronda, lá em baixo.
- Muito obrigado. Isso para mim não tem grande importância.- respondeu Thorpe. E, furioso, pôs o chapéu na cabeça e foi-se embora. Parecia, aos seus próprios olhos,
bem ridículo ter tanto trabalho por causa de uma baboseira escrita numa carta. Que lhe importava o que fazia a sua antiga mulher? Se foi vexada, foi muito bem feito.
O pequeno passeio ao sol de abril tinha enchido Thorpe de uma sensação desacostumada de frescura. Podia ser também por ter visto a pequena da vitrina. Para ser franco,
estava impaciente por tornar a vê-la. Mas, quando Steve Thorpe se encontrou na rua, a montra número 7 estava vazia. Ou antes, continha as dezasseis bonecas sorridentes;
pareceu-lhe vazia, porque a rapariga tinha desaparecido. Ruminou um pouco sobre este fenómeno, hesitou, e depois decidiu se, deu a volta ao armazém até à porta do
sul e entrou por esse lado. Era a secção de perfumaria. Um cheiro forte, a sabonete, flutuava no ar e Thorpe encontrava-se muito embaraçado nessa atmosfera de artigos
de beleza feminina. Também ali havia um "escritório de informações"; era uma senhora de meia-idade com um ar prodigiosamente distinto.
- Desculpe-me -pediu Thorpe -mas podia dizer-me para onde foi a senhora da vitrina?
Este "escritório de informações" tinha uma compreensão muito rápida. A senhora pôs-se logo a sorrir:
- Naturalmente essa senhora está no seu repouso do meio-dia,
- respondeu, depois de olhar para o relógio de pulso.
- Será possível revelar-me o seu nome ou onde poderei falar-lhe?
O sorriso do "escritório" desapareceu:
- Lamento, senhor, mas é-nos formalmente proibido dar informações desse género - replicou em tom gelado.
- Que o diabo leve todas as mulheres de quarenta anos!- resmungou Thorpe, saindo do armazém.
Se tivesse sido dado a Steve Thorpe ver Nina nessa manhã, a impressão fugitiva e agradável que sentira, teria provavelmente desaparecido. Mas, como deparou com o
impossível, ficou-lhe no sangue uma impaciência extraordinária, como de uma coisa esperada e que não teve ainda desenlace. Esse ligeiro aborrecimento deu-lhe uma
sensação de vitalidade nas veias, como, havia muito tempo, não sentira. Isso fazia parte desse dia de abril cujo ar, a-pesar-do calor do sol, era atravessado por
uma frescura estimulante que parecia vir de qualquer distante vento de montanha.
Como era meio-dia, a gente moça que saía dos escritórios estava espalhada um pouco por toda a parte, encostada às paredes das casas, fumando o seu cigarro. Thorpe
passou diante deles com ar atento: procurava a rapariga da montra. Ao canto da rua havia um grande drugstore, em que as pessoas estavam sentadas e apertadas, comendo
rapidamente a sua refeição. Subitamente, Thorpe teve um pressentimento, quási a certeza de que a jovem se encontrava ali. Entrou, atirou-se para a primeira cadeira
vaga e encomendou uma sandwich de presunto. Já tinham passado muitos anos sobre a época em que o advogado almoçava num drugstore. Os anos do seu triunfo, os anos
do seu infeliz casamento, os anos em que os cabelos lhe tinham caído e o ventre se lhe tinha arredondado. Entre essa gente moça, ele sentiu-se subitamente novo,
como no tempo da sua estreia,
A rapariga não estava entre o rancho de gentis criaturas que se amontoavam à volta do balcão, a mastigar. O advogado olhou para todas uma a uma, nenhuma lhe agradava
nem metade do que lhe agradara a rapariga da vitrina. Levantou-se, admirado de si próprio, pagou e voltou para o seu gabinete da 5ª avenida.
Uma multidão de clientes esperava-o já e mergulhou-se no trabalho até tarde. Às cinco horas, depois de ter acabado uma consulta delicada, pediu a miss Tackle que
lhe fizesse café. O ruído da cafeteira eléctrica e o perfume ligeiramente amargo que se espalhava no aposento, enchía-o de bem-estar.
- Pode ligar-me para o sr. Crosby, da Central ? preguntou subitamente e ficou surpreendido com isso. Não sabia de onde lhe vinha tal audácia, esse feitio "não te
rales". Que diabo lhe podia importar que miss Tackle, sua subordinada, ouvisse a conversa e desaprovasse as suas intenções?
Entre o escritório do advogado e o armazém houve as intervenções habituais de empregados subalternos até que miss Tackle obteve o escritório do grande director.
"O sr. Crosby está ao telefone" - anunciou ela emfim, com uma voz triunfante, estendendo a Thorpe o auscultador. O advogado lançou-lhe um olhar breve e, modelo de
discrição, ela saiu do aposento. (Ele sabia, que, de toda a forma, ela ouviria do vestíbulo a conversa telefónica ...)
- Bons-dias Crosby, como vai isso ? Aqui, Thorpe.
- Bons-dias, Thorpe. É você?
- Um lindo dia, não é verdade ?
- Sim! Ainda não tive tempo...
- Como vão essas percentagens ? Excepcionalmente, não se tratava do dividendo das
acções, mas do açúcar contido no sangue do sr. Crosby. A pregunta era uma amabilidade e como tal foi tomada.
- Obrigado, apenas 0,5 na última análise.
-Ainda bem. Está, com certeza, disposto a prestar um favor a um amigo...
- Se não custar nada...
- Ora vejamos, trata-se de um certo ... Filipe Filipe ... - disse Thorpe - puxando a confusa carta para si, pois tinha outra vez esquecido o nome. - Soube que este
homem perdeu o lugar por causa de minha mulher. Queria pedir-lhe por ele... emfim ... queria pedir-lhe que o conservasse. Parece que trabalhou durante muito tempo
na sua casa... e custa-me pensar que foi despedido por causa da minha mulher.
Ao telefone, o sr. Crosby calou-se.
- Está ? - fez Thorpe.
- Estou, sim, um instante. - respondeu Crosby - Estou a pensar. Lamento muito, Thorpe, mas não há nada a fazer. Creia-me, o facto não tem nenhuma ligação com madame
Thorpe. O indivíduo em questão é um bêbedo inveterado, é velho, em suma, não está já à altura do seu posto.
- Não há então nada a fazer, com certeza? - insistiu Thorpe.
- Infelizmente, não!-foi a resposta.
- Bem. Em todo o caso fiz o possível por ser agradável ao homem. Vai esta noite ao Club?
- Não me parece, sinto-me bastante abatido.
- É a primavera.- disse Thorpe, em cujas artérias ardia numa nova excitação - Escute Crosby... queria ainda qualquer coisa de si... muito fácil de fazer.
- Sim? - esperou Crosby de mau humor. A exuberância do advogado contrariava-o.
- Você tem uma rapariga na vitrina.. por causa de meias ou outra coisa parecida ... Gostaria de saber o nome dela, a morada e... Onde poderei informar-me?
Crosby teve um riso breve.
- Você precisa de uma caixeira para meias? Thorpe respondeu:
- Sim... pouco mais ou menos.
- Então, com muito prazer. O meu secretário vai dar-lhe as informações.
- Muito obrigado, Crosby. Adeus, até ao Club.
E Thorpe pôs-se a beber o café. Miss Tackle apareceu e tentou fingir que não tinha ouvido nada. Dez minutos mais tarde, o secretário de Crosby tocava. Secamente
e em tom protocolar, disse que a senhora a respeito de quem o sr. Thorpe tinha pedido informações, se chamava Nina Bengtson, de Houston, Texas, de 19 anos de idade,
empregada na secção de loiças e vidros, havia seis meses.
- Muito obrigado.
- Ora essa, às suas ordens.
Thorpe leu rapidamente um pacote de cartas que miss Tackle lhe entregara, assinou, pegou no chapéu, no sobretudo e saiu do gabinete.
- bom domingo, miss Tackle. - disse ele.
- Obrigada, igualmente. - respondeu miss Tackle e ele viu nas suas palavras uma pontinha de mordacidade impossível de dissimular.
Sentiu desejo de ir mais uma vez a pé até à Central, mas o seu motorista esperava-o diante de casa com o carro, e o relógio luminoso marcava seis horas menos cinco.
Subiu, deu a direcção da Central e saiu do carro no anoitecer cheio de gente e de luzes. Estavam já a fechar as portas. Assim que chegou diante da vitrina, um rapaz
extremamente loiro estava ocupado a fazer descer as cortinas de tom creme, que escondiam a montra dos basbaques da rua.
- Para casa, Tony - disse Thorpe secamente, assim que subiu para o automóvel.
Tinha dois cães bassets em casa, Max e Moritz. Podia, ao domingo, jogar o golf ou visitar o seu amigo dr. Back, em Rye. Agarrava-se a quanto o desprendesse da recordação
de sua mulher. E a rapariga da vitrina parecia ter essa qualidade, em larga escala.
Quando Thorpe, no dia seguinte, passou diante do armazém, à hora do lanche, não conseguiu encontrar a montra e foram-lhe precisos alguns minutos para compreender
que a decoração tinha sido mudada. Onde havia estado Nina Bengtson, exibiam-se agora móveis de jardim, pintados em cores vivas e aureoladas de promessas de verão.
Na terça e quarta-feira, Thorpe tentou apagar o incidente da memória. "Porque hei-de renunciar?"- preguntava a si próprio na quinta de manhã, rolando para o escritório.
No seu foro intimo germinava o másculo desejo de fazer a sua mulher, o que ela lhe tinha feito a ele. Fora sempre fiel a Lúcia principalmente por falta de tempo
e de interesse. Parecia-lhe agora que esse pequeno deslize, cometido mesmo depois, podia torná-lo mais atraente aos olhos dela.
Pode parecer espantoso que madame Thorpe que, no salão de costura, causava tão má impressão, fosse capaz de despedaçar o coração de um bom homem como o marido. Mas
os indivíduos têm tantas facetas como os olhos dos insectos e cada um só nota no outro as poucas facetas que estão voltadas para ele. Thorpe conhecia Lúcia; sabia
o que ela fora e no que se tornara. Via-a outra vez terna e tímida. A rapariga, com quem ele tinha casado, a jovem mulher que, por três vezes, tivera um parto prematuro
até que renunciara ao desejo de ter um filho, a boa camarada do seu difícil princípio de vida. A mudança tinha começado mais tarde, com o dinheiro que ele trazia
abundantemente para casa. Lembrava-se que lhe pedira, frequentes vezes, para se ocupar mais dela. "Mais tarde, mais tarde... ainda temos tempo" - respondera ele.
"A vida passa e nós não a gozamos" suspirava ela, e ele considerava isso uma injustiça do seu temperamento nervoso. Deu-lhe peles, jóias, um anel de esmeralda quando
fez quarenta anos. Em vez de se alegrar, ela tinha chorado. "Tu imaginas que a vida só é feita de segurança e de uma eterna partida de bridge,
dissera. Nessa época, aquilo havia-o surpreendido e encolerizado. Só agora começava a compreender. Um triste ressaibo era tudo quanto lhe restava do seu casamento
perdido.
- "Para que me hei-de preocupar com isso?" -repetia a si próprio. - Porque não arranjar a primeira distracção, que me aparece no caminho?"
Ao meio-dia desembaraçou-se da solicitude de miss Tackle e andou os três quarteirões que o separavam da Central. Hoje, o sol não brilhava, mas o ar estava pesado
sob um teto de nuvens que cobria o céu. Thorpe tomou o elevador até ao sexto andar e passeou o olhar, aparentemente distraído, pela secção de vidros e porcelanas.
Uma menina de aspecto rebarbativo ofereceu-se para o servir, mas não era isso que ele queria.
-Miss Bengtson não está? -preguntou-lhe sem rodeios. O chefe da secção aproximou-se e chamou em voz baixa: "Nina, Nina, um cliente para si-". A estas palavras, Thorpe
não pôde defender-se de uma lembrança cómica que se relacionava com uma casa célebre de Nova Orleans. "Nina, um comprador para si". De resto, era verdade; mas assim
que Nina apareceu, ele sentiu-se acanhado e não sabia bem o que dizer. "Um amigo aconselhou-me que me dirigisse a si; trata-se de um serviço de licores... vidro
sueco.."-balbuciou. "Vidro sueco?" - repetiu Nina reflectindo, emquanto três rugas lhe cruzavam a fronte... Ela tinha rosto de criança e corpo de mulher. Possuía
uma cor fresca e uma pele aveludada: irradiava mocidade e saúde. Um calor envolveu o coração de Thorpe, quando, atrás dela, se dirigiu para o lado dos copos de licor.
Emquanto o servia, ele tentou meter conversa, mas não foi longe. Não tinha prática e ela parecia séria e atenta ao trabalho. Enternecer um júri de coração duro,
era simples. Mas encontrar um princípio de conversa para uma caixeirinha de um grande armazém !.. Para lhe dar prazer comprou um serviço caro, de doze copos,
desejando, em silêncio, que ela tivesse uma percentagem.
- Está muito bem para esta secção -disse ele, emquanto Nina fazia tilintar com o dedo cada copo para mostrar que o cristal não estava rachado.
- Porquê ? - preguntou.
- Se lhe batessem assim, também, com o dedo, teria sonoridade, igualmente clara e fina. - disse Thorpe - Ela corou. "Não. Não diga isso..." -balbuciou com um sorriso
espantado. Não podia, no entanto, explicar à clientela, que só seu marido tinha o direito de lhe fazer reparos semelhantes. Thorpe passeou ainda um pouco, vendo
as jarras de flores e as fruteiras, achou tudo muito bem, prometeu voltar e por fim despediu-se descobrindo-se, o que mostrou ao mesmo tempo a Nina as suas boas
maneiras e a sua calvície.
Nina pensou em falar a Erik nesse amável cliente, mas não teve tempo. Esperou, como de costume, na escada 5, mas Erik não apareceu. O armazém esvaziou-se, ela ouviu
o andar dos empregados que saíam e o incessante pong pong pong do relógio do ponto, no pátio velho. Depois, tudo ficou silencioso, os elevadores deixaram de funcionar,
as luzes apagaram-se. Por fim, ouviram-se passos lá em cima, mas era só Pusch que lhe trazia uma carta. Curioso, ficou de pé junto dela emquanto a viu ler.
Gentil pardalinho,- escrevia Erick - estou condenado numa conferência interminável, peço-te que não me esperes, porque o caso não tem esperança. Vai ao cinema ou
ocupa a tua noite de qualquer forma distraída. Não te inquietes com o meu jantar, pois vou ao Rivoldi". Trezentos beijos da reserva.
Nas margens da carta, Erik tinha-se desenhado a chorar, apresentando um coração partido e assassinando o velho Sprague com um martelo. Embora ficasse aborrecida,
Nina não pôde deixar de rir.
-Não tem resposta, Pusch-disse. E depois de
dar um piparote nos caracóis inverosímeis do rapaz, foi-se embora.
- Meu Deus!-murmurou Nina, chegando à porta dos empregados e querendo sair para a rua.
- Sim, parece que chove, não é verdade minha senhora ? - disse o guarda Joé aproximando-se dela. Dentro do armazém dá-se pouco pelo ar e pelo tempo. Por uma ou duas
vezes Nina tinha notado uma crepitação semelhante a chuva, mas nunca esperara uma torrente de água comparada à que caía do céu. A rua estava deserta, largos regatos
corriam para os escoadoiros.
Gotas enormes estalavam no asfalto e uniam-se em milhares de pequenas fontes. Nina não tinha casaco nem guarda-chuva e olhava para o seu vestido bastante elegante.
Os quatro quarteirões que a separavam da estação do metro significavam catástrofe e ruína. Esperou um instante, viu passar diante de si vários autobus absolutamente
cheios, e, como aquilo parecesse não querer acabar, tomou uma decisão: "vou tomar um táxi até ao metro" pensou, e fez um sinal. Mas os motoristas dos táxis iam arrogantes
e irónicos, como sempre que chove. Continuavam o seu caminho, sem parar, limitando-se a salpicarem, com a água cinzenta das poças, as pernas de Nina. No próprio
momento em que ela ia a renunciar, surgiu um carro particular que parou mesmo diante da saída dos empregados... O senhor que ia no interior baixou o vidro e disse:
- Não poderei levá-la, menina? Embora esse convite fosse a coisa mais inocente e mais corrente em New-York, Nina respondeu como sua mãe lhe tinha ensinado em Houston,
Texas. - Muito obrigado, senhor, espero o autobus.
- Mas vai molhar-se, miss Bengtson! - teimou o senhor do automóvel.
E Nina reconheceu então o seu amável cliente da
tarde. Ele passou a cabeça calva pela portinhola e sorriu, com ar animador:
- Somos já velhos conhecidos ...
- Não sei... - respondeu Nina, hesitante.
Fazia frio, o lado direito do vestido estava já encharcado; o caminho até ao metro, debaixo de chuva, parecia de uma dificuldade insuperável. O que a levou a aceitar
foi o facto do senhor, deixando o abrigo do seu carro, sair de cabeça descoberta para a tempestade, abrindo a porta para ela entrar. "Vamos, suba. Não está tempo
para hesitações." - disse ele. E Nina subiu.
Lá dentro sentiu calor. O que primeiro caiu debaixo dos olhos de Nina foi um fresco ramo de junquilhos numa jarra; o aroma envolveu-a com a sua doçura cativante
e pesada.
- Onde quere que a leve ? - preguntou o sr. Thorpe.
- À primeira estação de metro, - disse Nina.
- Onde mora ? - informou-se Thorpe. Nina deu-lhe a sua direcção.
- Mas então é muito simples, eu passo em frente da sua casa e deixo-a lá.
O motorista guiou habilmente através das filas de automóveis; a chuva batia, impaciente, no teto do carro, os junquilhos cheiravam bem.
- É muito gentil da sua parte - agradeceu Nina. E Thorpe respondeu:
- Mas absolutamente nada... nada ...
Agora que tinha a rapariga tão perto de si, não sabia como poderia avançar mais ainda. Ela parecia séria, sentia que tinha de agir com prudência. - "Está molhada ? - preguntou, tateando o ombro do casaco de Nina. Ela encolheu-se imediatamente para um canto do carro. - "Não, obrigada" - disse. Até ao Central Park foram calados;
ao princípio o silêncio era opressor.
- "Onde pôs os lindos copos que comprou?" - preguntou a rapariga. Thorpe tinha deixado o serviço de licor no seu gabinete de trabalho. - "No escritório. - disse
-Sou advogado. Chamo-me Steve Thorpe . Nina esboçou um pequeno cumprimento. O auto avançava pela rua 62ª para a Riverside Drive. Agora chovia com mais força e, regularmente,
o asfalto parecia um mar cheio de luzes. - "Quere realmente ir para casa?" - preguntou Thorpe. - "Para onde hei-de ir ?" - exclamou Nina, surpreendida.
- Mas há mil coisas agradáveis a fazer numa tarde de chuva. Bar, cinema, concerto. A menos que a esperem ?
Emquanto Thorpe fazia esta pregunta, Nina entristeceu um pouco: era a quarta noite passada sem Erik.
- Não, ninguém me espera. - disse rapidamente.
- Temos então a mesma sorte. - replicou Thorpe. Olhou-o de revés. Ele pareceu-lhe muito velho, com a cabeça calva e uma ruga de preocupação ao canto da boca.
- Numa cidade tão grande há muita gente só. disse ela, sem querer.
Thorpe concordou com calor e no meio da conversa, obliquavam para a avenida de Fieldston, semeada de árvores. ?
- Como vê, levo-a conscienciosamente para casa. - , disse Thorpe - Mas é uma vergonha! Vai ficar lá sozinha e eu ficarei mortalmente melancólico. Porque não vamos
jantar juntos e passar a noite num cinema? Que lhe parece? Gosta do Gary Cooper?
Nina, tal como milhares das suas irmãs americanas, era louca por Gary Cooper e tanto mais que ela achava o Erik parecido com Gary. Erik também era alto magro e tinha
as faces vincadas e um ar desdenhoso quando julgava que ninguém reparava nele.
-Gary Cooper? Mas é o meu sonho! -disse ingenuamente.
Thorpe compreendeu mal a expressão sonhadora e abandonada do seu rosto que espiava à luz de um candeeiro emquanto, num cruzamento, esperavam que se
restabelecesse o trânsito. Aproximou-se dela e procurou-lhe a mão.
- Está entendido que vamos passear juntos? - preguntou, entusiasmado. Nina desprendeu-se, pôs-se logo a rir e repeliu-o sem o melindrar, mas muito claramente.
- Que imagina? - disse - Eu sou casada.
Thorpe não estava em disposição de se deter por semelhante dificuldade.
- Isso não tem a menor importância. - replicou Cada um de nós é mais ou menos casado, emquanto isso dura...
Sem querer, o seu tom tornou-se amargo e Nina reparou.
- Não o queria magoar. Tem sido tão amável comigo... - disse ela, preguntando a si própria se devia ou não descer.
- Somos ambos casados e estamos ambos sozinhos esta noite. E eu não acho isso bem.
Estas palavras atingiram o ponto vulnerável do coração de Nina, o ponto que lhe doía e onde reinava a ansiedade.
- Meu marido trabalha de noite. - disse vivamente.
Thorpe calou-se, mas com a expressão duma pessoa que sabe mais do que diz. Subitamente, sem ele mesmo saber como, encontrou-se a falar:
- Criança ... Criança... è muito nova, imagina ainda que o casamento é qualquer coisa de sagrado, de importante... toda a maçada do catecismo. Olhe à sua volta:
qual é a união que se possa garantir que não será um dia anulada ou quebrada -ou que não se transforme num verdadeiro inferno? O casamento! Uma bela instituição
que nós arrastamos, na nossa civilização. Poderia dizer-lhe como certos casamentos acabam pouco a pouco, a-pesar-da boa vontade dos cônjuges. Eu também já fui um
jovem casado, minha mulher era fresca e pequenina como a senhora é agora. Podia contar-lhe o que aconteceu depois... ao casamento e à mulher...
Nina ouvia sem dizer palavra. Aquele homem causava-lhe pena e ela acabara de o repelir ! Continuou a falar de si, da sua casa vazia, dos seus dois cães. Não podia
dormir, dizia, e os fins de semana eram tão longos!... Como era doloroso estar só! Por isso é que procurava... sem más intenções, um pouco de companhia.
Steve Thorpe podia fazer chorar os júris e saber encontrar, para os piores adversários, terrenos de entendimento, mas, como sedutor de mulheres, não tinha a menor
experiência. Outro qualquer ocultaria a Nina que era casado e ter-lhe-ia oferecido um anel de brilhantes, uma viagem à Flórida, e tentaria fazê-la beber. Foi justamente
porque ele não o fez, porque tudo quanto dizia, tinha um tom de verdade e despertava compaixão, que Nina foi tão confiante. Haviam já passado a casa de Bradley e
Nina não mandara parar. Parecia-lhe indelicado, impossível, interromper as recordações desse homem solitário e dizer-lhe: "Muito obrigada, cheguei a minha casa."
A chuva cessou e os junquilhos pareciam adormecidos. Assim que Thorpe deixou de falar, tirou o lenço e limpou a testa. O advogado mostrava-se infeliz e fatigado.
Nina olhava-o: "Pois bem, iremos jantar juntos e depois passaremos a noite no cinema. ouviu-se ela dizer subitamente. Surpreendeu-se, mas sentiu um sentimento ardente
ao pensar que alguém pedia o seu socorro e, na verdade, uma expressão de incomparável alegria inundou o rosto do seu companheiro.
Fez o carro dar meia volta e voltar para trás. Comeram num restaurante chic, ao pé de Grants Grab, e depois foram a um cinema de Broadway onde puderam ver um filme
de Gary Cooper. Thorpe portou-se impecavelmente e esteve satisfeito toda a noite. Estar feliz é uma coisa, e a paz sentida, depois de uma dor de dentes, é outra.
Parecia a Thorpe que o tormento ocasionado pelo casamento falhado, tinha cessado definitivamente ; sentia-se ainda um pouco fatigado, mas leve e livre.
Quando, mais tarde, convidou Nina para um bar, ela agradeceu delicadamente. Rolaram então, de novo ao longo da Riverside Drive, para Fieldston.
Seria uma ofensa para a sua mão se eu a agarrasse ?
- preguntou ele, sorrindo - E Nina sorriu também, respondeu que não e assim foram em silêncio. Nina pensava em Erik e em Gary Cooper; ele, em nada, nem sequer em
Lúcia. Sentia apenas o seu próprio pulso bater docemente contra a luva de Nina.
Quando ela chegou a casa, esperava-a uma surpresa. Erik tinha voltado. Estava no quarto, por baixo de um dos macacos, e parecia zangado.
- Já cá estás ? - preguntou ela, tolamente.
- Tenho vagamente essa impressão. - respondeu ele sem levantar os olhos. Acabava uma paciência complicada.
- Pensei que não voltasses antes da meia-noite... disse Nina, sem se atrever a beijá-lo.
- Matei o sr. Sprague, escondi o seu cadáver no subterrâneo, voltei para casa mais cedo e não te encontrei !
Via agora que ele não estava zangado.
- Onde estiveste, mulher ? - preguntou no tom das comédias francesas.
- Fui ao cinema, tinhas-me escrito dizendo que fosse ao cinema...
- Esposa obediente. - disse, aproximando-se dela E voltaste de táxi ? Ouvi parar um carro.
- Trouxeram-me de automóvel, por causa da chuva. uma senhora... - disse Nina.
A primeira mentira, que dizia depois do seu casamento, saiu sem esforço. Mal deu por que tinha mentido. Uma hora mais tarde, esquecera Thorpe, e o advogado não lhe
voltou a acudir ao espírito, senão no dia seguinte à chegada à Central, quando Joé lhe entregou um ramo de junquilhos e um cartão: "Obrigado pelo bom serão e até
breve."
Nina estava terrivelmente embaraçada. Erik encontrava-se a seu lado, cheirava os junquilhos olhando para o cartão e para a mulher.
- Foi alguém que me viu na vitrina.- balbuciou.
- Tem sem dúvida uma alma terna. - respondeu Erik, que parecia divertir-se prodigiosamente.
Depois não falaram mais no incidente.
TODOS os anos no mês de Maio, o Central-Club alugava um desses barcos especialmente apetrechados para reuniões amigáveis, que estão ancorados em East-River. E, por
uma noite de lua cheia e de bom tempo, organizavam um baile, emquanto o barco, lentamente, lentamente, subia o rio; primeiro ao longo dos arranha?céus de Manhattan
até ao Schiffs canal, depois voltando por Hudson até por detrás da ponte Jorge Washington, entrando por Downtown.
Muitas semanas antes, o armazém estava em efervescência, mas essa noite não era uma coisa sem importância na vida dos empregados. A lua cheia, o mês de Maio e o
bom tempo! Música e dança! Flirts e namoricos ! E a esperança de qualquer coisa inesperada e maravilhosa, sempre escondida no fundo do coração da gente modesta.
O aprendiz Pusch, por exemplo, mandou para uma certa morada 35 cêntimos e um boletim que cortou de uma revista. Em troca, recebeu uma brochura de cultura física
que prometia torná-lo em seis semanas, um verdadeiro Golias. Além disso, usou um creme garantido, com promessa de reembolso, se as sardas não desaparecessem, como
por encanto.
Madame Chalon mandou pintar as unhas dos pés vermelho escuro, Deus sabe com que esperanças. O sr. Berg tencionava festejar no barco o seu noivado
com uma senhora de Brocklyn, filha dum dentista judeu. Infelizmente, o noivado desmanchou-se antes da festa e Berg teve de se portar impecavelmente com uma caixeira
da secção de perfumaria. Efectivamente, ele tinha por princípio nunca se abalançar a tais coisas na sua própria secção. Toughy, o novo chefe detective, foi assediado
com quatro semanas de antecedência, por convites para danças. Prometeu a doze damas diferentes os seus favores para o serão e pediu a Filipe para o substituir nessa
noite, na Central. Quanto ao sr. Crosby, procurava, lá no alto da sua torre, um pretexto para não tomar parte na festa. Esse baile parecia-lhe uma demonstração demasiadamente
democrática, mas os empregados contavam absolutamente com a presença do grande Director da Central. Erik aceitou os setenta dólares que Nina lhe deu de presente
no dia dos seus anos, mas não dispôs de nada para a compra do automóvel. Pagou algumas dívidas e tirou o smoking do Montepio onde estava havia muito, acumulando
juros. Nina teve uma certa decepção, pois sabia quanto ele desejava um carrinho, mas por outro lado ficou orgulhosa que seu marido não quisesse dever nada a ninguém
e que possuísse um smoking. Erik estivera três anos desempregado, antes de consentir em renunciar ao seu sonho de ser pintor, e vender-se como decorador da Central.
Ganhava apenas dezasseis dólares por semana, pois consideravam-no como um principiante, um decorador sem experiência. Por isso é que tinha dívidas. Fez várias proezas
com os seus setenta dólares, pois ficou-lhe dinheiro ainda para comprar um vestido para Nina que ele mesmo escolheu: azul-claro, com um bordado, a prata, no cinto.
Nina sentia-se orgulhosa, mas não completamente feliz. Erik tinha mudado um pouco nas últimas semanas, andava nervoso, distraído, fazia muitos desenhos em papéis
que logo rasgava e deitava fora, encolerizado.
- Tua mãe não vem, em breve, a New-York? - preguntou Nina.
- Que queres tu a minha mãe ?
- Oh! Nada ... nada ... era cá uma idea.
Na verdade, gostaria de pedir conselho à enérgica e original condessa, sobre a forma de tratar o seu genial filho, principalmente para o fazer feliz.
Pouco antes da grande noite, aconteceu Steve Thorpe convidar Nina para um cocktail em sua casa, oficialmente, com o marido. O seu início de relações com ela não
tinha ido longe, mas também não se quebrara. Assim que se sentia infeliz e os seus espectros particulares vinham visitá-lo", ia até à Central Warehouse e comprava
coisas inúteis na secção de louças e vidros. Uma colecção de copos e jarras de todos os feitios acumulava-se já no seu escritório e miss Drivot não deixava de fazer
reparos irónicos a respeito dos clientes assíduos de Nina. De vez em quando, Thorpe fazia a Nina uma amabilidade: dois bilhetes para um concerto, (a que ela ia com
Erik, sem nada compreender) duas flores para pôr ao peito, um livro. Também a esperava muitas vezes no seu carro diante da saída dos empregados. Se ela saía com
Erik, levava amavelmente a mão ao chapéu e ia-se embora. Se saía só, então conduzia-a a casa; uma vez, mesmo, Nina acompanhou-o até White Plains. Tinha visto a casa
por fora, brincado com os cães bassets, que correram do fundo do jardim, mas recusou-se a entrar. Uma noite resolveu ser franca e confessou a Erik toda a história
inocente e oculta. Ele riu com gosto. "Nina, Nina, Lille Spurv, és uma grande màzinha". - disse "Passeias com senhores ricos, emquanto o teu marido trabalha. Uma
planta gangrenada da grande cidade, eis o que tu és."
Nina ficou desiludida. Tinha esperado outra coisa; ciúme, lágrimas e perdão, para terminar. Pelo contrário, ele tinha-lhe chamado Lille Spurv... O meigo nome fora
quási esquecido depois do casamento. Foi assim que Nina apresentou ao marido o advogado, uma tarde,
à saída, e que os dois homens trocaram algumas palavras amáveis.
Durante três dias, New-York ardera em calor, embora Maio mal tivesse começado, e fosse já de noite que a Central fechasse. Thorpe apertou a mão de Erik e convidou-os
para um cocktail em sua casa, na quarta-feira seguinte. Erik aceitou com entusiasmo. - "É um homem encantador. - disse ele a Nina - Deitaste a mão a alguém de primeira
ordem." Nina era jovem e vinha de Houston, Texas. Não compreendia de forma alguma esse laissez-faire, laissez aller, do conde Bengtson que vinha da maturidade, do
cansaço de um sangue velho.
Na quarta-feira, Erik não pôde libertar-se. A direcção tinha dado ordem para alterar completamente a secção de arte. Queriam fazer liquidação, e o sr. Sprague e
Erik tinham por missão dispor as coisas de uma Forma agradável e atraente nas montras de baixo: os irremediáveis bibelots, pinturas a óleo e estatuetas de bronze.
O velho quási chorou, assim que Erik disse que tinha um convite; Sprague portou-se como Cristo no jardim das Oliveiras: "Não poderá velar uma noite comigo ?"
- Ora que maçada! - disse, no vestiário das senhoras, Nina a Liliana, que se preparava - Erik não pode vir e Steve Thorpe está à nossa espera.
- Quem é que te espera ? - preguntou Liliana, deixando o seu bâton.
- O velhote, aquele que tem uma paixoneta por mim. Já te contei.
- Como lhe chamaste?
- Thorpe. Steve Thorpe.
- É o marido da nossa cliente ?
- Não sei. A mulher pediu o divórcio.
- Gostava de o conhecer... - declarou Liliana.
- Imediatamente, se quiseres. - respondeu Nina.
Cinco minutos mais tarde, rolavam as duas no automóvel de Thorpe para White Plains. Liliana ia alegre e faladora. Nina continuava calma. Thorpe sentia-se pouco à
vontade entre as duas raparigas. O carro depressa se impregnou do perfume de Liliana.
É difícil dizer porque Liliana mostrava tanto empenho em conhecer Thorpe. Sem dúvida tinha, sem dar por isso, o desejo de conhecer o homem que comprara o anel de
esmeralda, o anel que ela escondia em casa, nos colchões. Era um instinto de mulher, um instinto de caça, um instinto de prostituta. O homem que dava anéis a madame
Thorpe e fazia a corte a uma mulherzita como Nina, devia ser uma presa fácil. O seu melindre de amor-próprio não havia desaparecido, esse de Nina ser exposta na
vitrina e ela não! Que Nina se tivesse casado e ela não! Que Nina fosse cortejada por um homem rico e ela não! Era demais.
Ia roubar a Nina esse homem, que lhe havia de dar os anéis que ela quisesse e quando quisesse. Emquanto subiam o Grand Concourse, ela julgava o homem: a sua idade,
a sua calvície, o seu ventre. Era preciso que fosse rico para compensar o que lhe faltava. Avaliou a casa, os criados, o whisky. Liliana tinha crescido nos bairros
pobres, mas nascera com o instinto do luxo. "À nossa boa amizade!" -disse, com intenção, levantando o copo ao mesmo tempo que Thorpe. Ela chamava-lhe Steve, simplesmente,
embora apenas o conhecesse havia meia hora. Deu volta aos botões do rádio e fez alguns passos ondulosos de dança, ao ritmo da música. Exibia assim a sua coleante
linha de anos, como no armazém.
Durante esse tempo, Nina brincava com Max e iMoritz. Thorpe foi ter com ela, ao seu canto: "Quem é esta rapariga?" - preguntou.
- Liliana? A mais linda rapariga da Central. - disse logo Nina.
- Não gosto dela.
Às nove horas, Nina começou a bocejar e Thorpe propôs imediatamente levar as duas a casa. Desta vez, foi ele mesmo que guiou, tendo mandado Tony embora. Era um motorista
exageradamente prudente e lento. Durante todo o tempo, Liliana reflectiu sobre o que seria de melhor política: continuar só com ele ou descer com Nina. Ela não queria
que ele soubesse que morava na 122ª rua do bairro Leste. Tendo notado que a expressão do advogado, de minuto a minuto se mostrava mais fatigada, preferiu descer.
"Posso dormir em qualquer parte em tua casa?" - preguntou à amiga.
- Certamente, - respondeu Nina, contra vontade. -Boas-noites e obrigado pela vossa visita - agradeceu Thorpe, retendo um segundo a mão de Nina, quando ela descia.
No derradeiro momento, Liliana teve uma idea genial.
- Porque não convidamos Steve para o nosso baile? Seria admirável! - disse.
- Não sei se o sr. Thorpe gosta dessas coisas... respondeu Nina, hesitante. O advogado pediu pormenores do baile do Central-Club e confessou, com entusiasmo, que
morria de desejos de ir. Pobre Steve Thorpe! Aproveitava todas as ocasiões que o afastassem de sua mulher e o aproximassem de Nina.
- Combinado. - disse Liliana - Será o meu par e faremos ciúme a todas. "Fazer ciúme . Era bem uma idea de Liliana.
Assim que entraram em casa cheirava a naftalina. A sr.a Bradley ocupava-se em modernizar um vestido de seda preta, de noite, que lhe restava de melhores tempos.
Skimpy, excitada, estava sentada ao pé dela, a costurar. Nina tirou o seu vestido azul prateado do armário para o mostrar a Liliana, assim como o smoking de Erik,
que saíra do Montepio, e no qual ela tinha certo orgulho.
No dia seguinte, Erik trabalhou na cave, onde se encontravam os manequins da exposição. Estavam a oito dias do baile. O decorador colocara cinco bonecas na ordem
em que mais tarde seriam postas na montra e arranjava-lhes a atitude, abandonando o cigarro. Liliana entrou, seguida de Pusch que trazia um carregamento de vestidos
de verão.
Já não precisamos de si, Pusch - disse Liliana, logo que ele pousou o fardo.
No depósito de manequins era sempre noite; as lâmpadas eléctricas estavam acesas, o ar descia por tubos e havia o mesmo cheiro que no metro. "Trago os vestidos para
a montra 11" - disse Liliana colocando-se diante de Erik. "Grande honra".-disse ele-E, pegando num dos vestidos, sacudiu-o diante de si. As bonecas estavam à sua
volta e sorriam. "Queria falar-lhe a sós". - murmurou Liliana - Erik ergueu vivamente os olhos. Havia qualquer coisa na atmosfera - entre ele e Liliana - uma espécie
de inconfessada tensão. Ele pousou o vestido e sentou-se na borda da mesa.
- Onde é que se vai quando se quere empenhar qualquer coisa?-preguntou Liliana.
- Quere dizer que nunca pôs nada no prego ? exclamou ele.
- Não. É o meu primeiro ensaio. Mas gostaria de ter um lindo vestido para o baile.
- Eu costumo ir sempre à 6.a avenida, mas ouvi dizer que se encontra melhor na 2.a avenida. - disse Erik - Se quiser, passamos por lá depois de fecharmos. As casas
de penhores estão abertas até às sete horas.
- Obrigada. - agradeceu Liliana - Pediu mais alguns nomes e moradas e foi-se embora.
- Inscrevo-me para a primeira dança. - gritou Erik, atrás dela - Depois, voltou aos manequins. Às vezes estava tão farto de armar montras que tinha vontade de gritar.
No dia seguinte, à tarde, Liliana, hesitante, tomou o
caminho da 6.a avenida. Três vezes passou de largo sem ousar transpor o limiar da loja. Tinha a direcção de memória. Corria um perigo e sabia-o. Interiormente tremia,
mas era uma particularidade do carácter de Liliana: excitava-a o perigo.
Aspirou o ar quando entrou - havia ali o odor dos fatos muito usados. Objectos de todas as espécies jaziam um pouco por toda a parte - tudo parecia impreciso e apagado.
O homem pôs uma lente na órbita e examinou o anel. Que calma! Podia ouvir se o tique-taque do relógio.
- Quanto quere ? - preguntou o prestamista.
O coração de Liliana batia com tanta força, que ela podia ouvi-lo.
- Ignoro o valor do anel, foi um presente. O homem não desviou o olhar da pedra.
- Posso dar-lhe seiscentos dólares. - disse ele, de pois de um longo silêncio. A soma, importante e inesperada, caiu, grande e pesada, sobre Liliana.
- Sim ? - murmurou.
- É uma bela esmeralda. - afirmou o homem. Durante um instante, Liliana esperou que polícias
surgissem de cantos imprecisos da casa, para a prenderem.
- Só me quero separar dele por pouco tempo - disse, sem fôlego.
O prestamista tirou a lente e olhou-a.
- Precisamos dum documento. - esclareceu - É da lei... Seja qual for... passaporte ou bilhete de identidade ...
Liliana tinha um: todos os empregados da Central possuíam um cartão azul num sobrescrito de celofane. Parecia-lhe sentir o cartão como qualquer coisa de quente,
no seu saco, que ardia através do coiro. "Não tenho... não se pode dispensar?"
-Lamento, mas é impossível, - disse o homem e
Liliana iliana sorriu: os artifícios aprendidos na escola de manequins vieram em sua ajuda.
-Corro a casa a buscar o meu cartão.-disse-Daqui a dez minutos estou de volta.
Se vai de-pressa, fecharei a loja um pouco mais tarde - disse o prestamista, estendendo-lhe o anel. Bem; tinha outra vez o anel, não havia a menor suspeita, nenhum
polícia seguia Liliana, emquanto ela corria à próxima estação de eléctricos. Nesse instante, quási odiou o anel.
Era como uma obsessão, precisava desembaraçar-se daquela jóia que não lhe servia de nada, precisava comprar vestidos novos, precisava de ser a mais linda rapariga
do baile. Era uma ocasião maravilhosa: iriam vê-la, emfim, os dirigentes da Central que sairiam da sua torre de marfim e vagueariam entre os mortais. Liliana não
dormia: tinha as faces afogueadas, o rosto emmagrecido.
Três dias antes do baile encontrou-se na 2.a avenida; subiu a rua, lançou um olhar para a casa de penhores e por fim entrou resolutamente.
Aí era uma mulher que tratava do negócio, uma velha muito pintada. Outra vez a lente, o cheiro sujo a vestidos usados, a desordem, a tensão silenciosa.
Dois homens estavam encostados ao balcão, e olharam para Liliana com um olhar investigador, como se fosse um objecto.
- Pois bem, - disse por fim a mulher - dou trezentos, por ser a si, Como entrou em posse deste anel ?
- Um presente. - disse Liliana.
- Deve saber da coisa, para o seu amigo lhe dar presentes destes. - notou a mulher - A mim não mo davam.
Liliana forçou-se a sorrir.
-Posso acompanhá-la, menina?-preguntou um dos homens - Era alto e tinha os lábios inchados.
- Obrigado, tomo um táxi. - disse Liliana - Entretanto, a mulher havia lido um papel.
- O bilhete de identidade? -disse ela em tom indiferente.
- Diabo, nem pensei nisso! Não o trago comigo disse Liliana.
- Nem nada ? Veja na sua malinha. - aconselhou a mulher - Liliana pôs a malinha em cima da mesa e esvaziou-a.
- Tem aqui uma carta. - disse a prestamista - Os dois homens aproximaram-se e olharam.
- Sim, - disse Liliana - e esta carta basta ?
- Nós não somos exigentes; é apenas uma formalidade.-respondeu a mulher -Leu a direcção e copiou-a num livro: Madame Adriana Chalon, 367, West 72.a Street, City
Apartments.-Francesa? -preguntou a prestamista. Era um pouco estrábica, Liliana só então deu por isso.
- De origem francesa; meu pai veio do Canadá elucidou Liliana.
Ela tinha tirado do cesto dos papéis um envelope enviado à directora detestada. Assim que todas as formalidades foram preenchidas, e que meteu na malinha os trezentos
dólares, sentiu o mal que lhe ia no estômago.
- Voltarei a buscar o anel - disse fracamente.
- Dez por cento de juros pagáveis todos os meses - explicou a mulher.
- Um cigarro ? - ofereceu um dos homens. Era alto, novo e seria belo se a boca fosse menos vulgar.
- Obrigada.-respondeu Liliana-Embora tivesse uma frenética necessidade de fumar, rejeitou a oferta. Ding-ding-ding fez o relógio da loja emquanto ela saía.
- Bela rapariga! - exclamou o homem.
- Podíamos, justamente, precisar dela - disse o outro mais baixo que parecia um grego ou um arménio, negociante de frutas.
-Como pode uma mulher destas ter semelhante esmeralda ? - preguntou a prestamista, tornando a pegar na lente.
- Não está na lista ? - interrogou o rapaz bonito.
A mulher tornou a ler as folhas impressas e já meio apagadas: era a circular da polícia assinalando os objectos roubados com ordem de não os adquirirem.
- Não. - respondeu a mulher, terminando.
Donde lhe pode ter vindo o anel ? - repetiu o mais baixo dos homens.
O outro pôs-se a assobiar uma melodia sentimental.
- Veremos - disse subitamente. E, tirando as mãos dos bolsos, seguiu Liliana.
A lua brilhava, o tempo estava belo e dançava-se no tombadilho. A orquestra, embora composta apenas por quatro músicos, era excelente por fazerem parte dela dois
cubanos e um russo; os cubanos forneciam o ritmo, o russo a sentimentalidade. O sr. Crosby tinha-se, finalmente, resolvido a vir; estava até de casaca. Sentado em
baixo, no pseudo salão, onde a Central-Club lhe tinha preparado uma espécie de trono, bebia café, no qual, cuidadosamente, havia deitado dois comprimidos de sacarina.
De cada vez que absorvia um gole, agitava-se contrafeito. Steve Thorpe também viera. Vestia um fato de flanela cinzenta, pois nunca pensara que a gente da Central
desse um baile tão solene. Tinha trazido flores para Nina e Liliana. Como Nina já as tinha recebido de Erik, o decote do seu vestido desaparecia sob as flores. Erik
estava de smoking, com um cravo vermelho na lapela. Dir-se-ia que acabava de sair da mesa do rei da Dinamarca; era essa pelo menos, a confusa impressão de Nina.
No fundo, ela não sabia bem, se a Dinamarca tinha rei ou não.
Erik dançou com Liliana, depois com Nina, depois outra vez com Liliana. Elegante e digno, dançava primorosamente e Nina parecia inferior a seu lado. Os passos da
jovem revelavam ainda a sua origem de Houston, Texas, onde seu pai às vezes a levava a reuniões de sociedades. Ela sentou-se numa cadeira, no tombadilho,
ao pé do reeling, a ver. Que Erik dançasse menos com ela do que com Liliana era natural, não era? Se eram
casados...
Liliana estava encantadora com o seu vestido branco. Era um vestido sem enfeites, de linhas muito simples mas um vestido tão distinto e caro que não podia ter sido
comprado no salão da Central. Madame Chalon, que estava enfiada num vestido cor de tijolo, apalpou às escondidas, o tecido: "É o que eu disse sempre, é preciso saber
usar um vestido!"- disse ela - "Trinta e nove a cinquenta?"
- Cento e sessenta e cinco. - lançou Liliana, afastando-se pelo braço do chefe do pessoal. Madame Chalon levou bem uma hora a engulir a soma.
- Que quere beber, Nina ? - preguntou Thorpe.
- Qualquer coisa ... não muito forte porque me faz
sono - respondeu Nina.
Thorpe olhou-a; ela não parecia ter sono, parecia, pelo contrário, uma criança sobreexcitada por estar acordada até muito tarde. Os seus olhares seguiam Erik
pelo tombadilho.
- Vamos dançar ? - convidou Thorpe - Eu danço
muito mal.
- Eu também, - respondeu Nina.
Dançaram, mesmo assim, sempre à roda do tombadilho. Os cabelos de Nina tinham o cheiro da mocidade, sem que ela os perfumasse. Thorpe apertou-a um pouco contra si:
"Está-se bem aqui" -disse.
Quando a orquestra lançou as primeiras notas de um tango, todos os pares foram para as suas cadeiras ou para o bar improvisado. Só alguns inocentes pares abandonados,
continuaram a tropeçar no seu fox trot, sem saberem porque os seus passos já não iam a compasso.
- Tango! - exclamou Erik -Quem dança o tango?
Parecia de excelente disposição e no seu elemento. "Não bebas muito, querido". - segredou-lhe Nina, quando
ele se sentou um instante ao pé dela. - "Obrigado pelo conselho" - respondeu, muito frio. A observação pareceu encolerizá-lo excessivamente - "Quem dança o tango?"
- preguntou outra vez, fazendo das mãos porta voz. "Porque gritas tanto, Baby?" - preguntou Liliana, muito junto dele. No dia do casamento tinham combinado tratar-se
por tu, mas depois trataram-se sempre por você. Erik voltou-se bruscamente quando ouviu o tu.
- Embriagada, também ? - preguntou. Sem responder, Liliana abandonou se nos seus braços para o tango; ele inclinou a cabeça paralelamente à sua, como fazem os pares
célebres, no casino... Sob a mão, que encostava às costas nuaS, sentiu que ela tremia. - "Que é isso, Liliana?" - preguntou em voz baixa. A vibração do corpo da
jovem mulher contaminou o, entrou nele, nada podia fazer contra isso. - "Nada ... Porquê? Sinto-me feliz esta noite, mais nada" - murmurou ela. - "Sério?" - disse
ele. Dançaram. Nina estava sentada com Thorpe ao seu lado e observava o tango. Alguns dançarinos, entre eles Cromwell com uma rapariga da secção de perfumaria, continuavam
ainda na pista. Mas, ao fim dum instante, pararam todos para contemplarem os dois jovens. - "Um belo par!" -disse a sr.a Bradley, na ingenuidade do seu coração,
ao sr. Berg. Ela vestia o vestido de seda preta que, a-pesar-de tudo, estava ainda muito largo. - "Se nós descêssemos? Aqui começa a estar fresco" - propôs Thorpe
a Nina, depois de lhe ter estudado a expressão.
- Logo que o tango acabar... é tão bonito, não é?
- respondeu ela sem despregar os olhos de Erik e Liliana. Assim que o tango acabou, todo o tombadilho se posa aclamá-los e a bater palmas.
Levantando a cauda do seu vestido branco, ela desapareceu à maneira de uma artista depois da representação.-"Agora, sim, gostaria de beber qualquer coisa" disse
Nina a Steve Thorpe.
O sr. Crosby, no interior do barco, fazia justamente algumas tentativas de despedida. Gostaria de ir para casa e, por isso, de fazer parar o barco no Shiffs-canal.
- "Uma noite encantadora - disse ele à comissão que estava diante de si - mas eu estou doente, queiram desculpar-me."
Insistiram para que ficasse ainda, pois devia coroar a rainha de beleza, a mais bela rapariga que estivesse a bordo e, ao mesmo tempo, a mais bela rapariga da Central.
Resignado, vestiu o sobretudo e seguiu os delegados para a ponte onde, justamente, alguém espetava números nos vestidos das jovens mulheres colocadas numa longa
fila. Liliana tinha o nº 17, Nina o nº 4.
- Boas-noites, sr. Crosby- disse a sr.a Bradley, avançando para o campo visual do todo-poderoso. Ele tentou recordar-se. - "Sou a sr.a Bradley" - disse ela. "Bem
sei, desculpe, a minha vista vai enfraquecendo. Porque razão veio à nossa humilde reunião, sr.a Bradley?" - preguntou Crosby. Há muito tempo já que ele tinha esquecido
que dera à viúva do seu antigo camarada de club um emprego, na secção de embalagem. A sr.a Bradley desapareceu. Não se sentia doente nessa noite, mas sentia-se oprimida
com receio de que as dores voltassem de um momento para o outro.
- Olá, Crosby - disse Thorpe com um chapéu de papel na cabeça calva e um pequeno torniquete na mão.
- Meu Deus, que faz você aqui, Thorpe ? - exclamou o sr. Crosby para quem se tinha, entretanto, arranjado um novo trono. - Ele deixou-se cair emquanto a música tocava
e as raparigas numeradas começavam a andar à volta do tombadilho.
- Tenho amigos entre os seus empregados - respondeu Thorpe.
- Amigos ou amigas ? - preguntou Crosby.
- As duas coisas.- replicou o advogado. O seu olhar seguiu Nina, a sua figurinha leve, o seu sorriso ingénuo, os seus olhos que estavam húmidos de lágrimas
ao mesmo tempo cheios de espectativa, como se um grande divertimento ainda devesse chegar.
Já pensou alguma vez nisto, Crosby? - continuou Thorpe - Você tem uma casa cheia de coisas para vender e sofrem que se fartam para as vender, não é verdade ? NO
entanto... há na Central coisas que não se podem comprar... Crosby olhou na mesma direcção que o seu amigo e viu Nina. Não compreendeu completamente.
É uma reclamação ? - preguntou ele a Thorpe, com um vago sorriso.
Por fim compreendeu:
- Voto no nº 4.- insinuou -Não acha que é a mais bonita?
- Eu voto com certeza no nº 4.
O enfeite prateado do vestido de Nina cintilava, quando ela respirava, e as flores começavam já a murchar na noite quente.
Embora a eloquência de Thorpe levasse alguns a votarem em Nina -por exemplo o velho Sprague, que, de resto, estava completamente embriagado e Berg, o chefe de secção
e o próprio sr. Crosby, foi no entanto Liliana a eleita por uma esmagadora maioria. Sem admiração nem acanhamento, ela deixou porem-lhe na cabeça a coroa de papel,
apertou a mão de Crosby e, com o seu passo firme de manequim, deu mais uma vez volta ao tombadilho para se mostrar a todos. Os quatro músicos tocavam em surdina.
Bruscamente, Erik levantou-a muito alto para que toda a gente a pudesse ver.
O sr. Crosby voltou para casa, quere dizer que o barco parou alguns minutos à entrada da 225.a rua, e depois, vogou para mais longe. O sr. Thorpe ficou. Preocupava-o
Nina que murchava a olhos vistos, como as flores que tinha ao peito. De vez em quando, Erik passava como um vendaval, gritando: "Divertes-te, Lili Spurv?" E desaparecia
no turbilhão dos pares. "Não sejas idiota, monologava em pensamento o advogado,
Eis uma ocasião única para ti. A rapariga está um pouco embriagada e o marido abandona-a; ocasião mais favorável do que nesta noite não torna a aparecer." Dançou
outra vez com Nina; pesava inteiramente sobre ele, por leve que parecesse. Sob um lampião encarnado, ele beijou-a. Ela quási não se defendeu, disse apenas: "Tudo
isto é um disparate, Steve" e a sua voz estava fatigada. "Vamos beber um pouco mais?" - propôs ele cheio de esperança, levando-a ao bar.
Erik e Liliana estavam de pé, por baixo da escada que ia dar à ponte particular do capitão. Entrada rigorosamente proibida. Ninguém devia passar por ali; viam-se
as luzes de Manhattan na outra margem, a lua reflectia-se na água dando-lhe um aspecto metálico.
- Que se passou em ti, Liliana ? Pareces outra ..- notou Erik. E Liliana sorriu, orgulhosa.
- Deitei ao caixote os meus vestidos velhos, simplesmente. Vocês têm realmente olhos?
- Vocês, quem, nós?
- Vocês, os homens.
- Prefiro ser tratado como simples indivíduo,- resmungou ele.
Era um pouco forte para Liliana. Ele meteu o braço no do manequim. "Tens frio? -preguntou.
- Não, pelo contrário, tenho febre.
E dizia a verdade: havia semanas que ela tinha um pouco de temperatura. Sentia arrepios ao longo da coluna vertebral, mas as faces e as mãos escaldavam. Era devido
ao anel e às coisas perigosas e anexas que se tinham seguido.
- A tua febre é contagiosa. - ciciou Erik. Ele bebera, não muito, pois não gostava de cocktails, mas o bastante para estar alegre. Sentia ainda, nas suas próprias
articulações, a sobreexcitação nervosa de Liliana. E depois, santo Deus, ela estava tão bonita!
- Tenho a impressão de ter estado muito tempo
guardado na caixa da naftalina e ter saído bem sacudido e outra vez pronto a servir - disse ele.
- Falas demais, Erik. - murmurou Liliana - Não é necessário...
- Não? - preguntou o rapaz, olhando-a.
-Não.-respondeu ela, em voz quási imperceptível. Contiveram-se ainda um instante, sentindo vibrar ondas entre si, e depois Liliana lançou os braços ao pescoço de
Erik e beijou-o. Foi um beijo longo, esfaimado... A lua desapareceu atrás de uma pequena nuvem, depois tornou a surgir. Erik vacilava um pouco, quando Liliana lhe
descolou os braços da nuca. Ela ria silenciosamente. "Que quere dizer isto?"-preguntou ele - "Nada de maior importância ..." -retorquiu ela. E saiu do esconderijo.
Passagem rigorosamente proibida. "Fica mais um segundo" - suplicou ele em voz rouca.
Duas sombras caíram no tombadilho, quando a lua voltou a ser clara.
- Não se pode passar por aqui, Nina - disse Steve Thorpe.
-Em todos os sítios bonitos há avisos destes.-disse Nina.
- Vamos, deixe-se de discursos comunistas. - conciliou Thorpe.
Deram meia volta e tomaram a escada vizinha que ia dar ao bar. Por todos os lados, pares namoravam. Assim que vieram outra vez para a luz dos lampiões, Thorpe notou
que Nina tinha os lábios brancos. Um pensamento fugidio atravessou-lhe o espírito: ele nunca tinha reparado nessas coisas quando estava casado com Lúcia. É verdade
que Lúcia pintava os lábios. Mesmo ameaçado de morte, não poderia dizer se Nina tinha visto, como ele, os dois debaixo da escada da ponte. "Em que pensa, Nina?"
- preguntou bruscamente. E se nós aproveitássemos um fim de semana ou mesmo uma semana inteira?. para fazermos uma viagenzinha juntos?
- Porque me faz essa proposta justamente agora? preguntou ela.
- Tem razão... devia ter-lha feito há mais tempo. Talvez esta noite tenha mais coragem, porque bebi um pouco. Mas com certeza entendeu, desde o princípio, o que
espero de si, não é verdade?
Nina não respondeu. Tinha um ar tão infeliz que, subitamente, ele teve vergonha do seu ataque. "Sou um velho cínico, Nina" - disse. - "Já defendi muitas causas,
tenho observado muitas vezes, que as opiniões mudam e... as situações... e as relações entre as pessoas... e tenho a impressão de que um dia, talvez me possa suportar.
Compreende... Se qualquer.. emfim... se na sua vida qualquer coisa se modificar... pois bem, lembre-se... se um dia se sentir isolada... que o velho Steve cá está...
quero dizer... vá ter comigo... Promete-me isso?"
Nina fitava-o com atenção emquanto ele falava. Olhou para o lenço de seda em que ele pegou para limpar a testa e que depois colocou outra vez no bolso. A sombra
de um sorriso passou nos lábios pálidos da rapariga: "Fala-me como a uma idiota"-disse ela.-"Compreendo-o perfeitamente. Se um dia eu já não for casada .. entendido...
prometo que irei ter consigo. É isto?"
A música, depois do intervalo, estalou subitamente num ar de rumba sonoro e vivo. Cromwell passou a correr, gritando: "Onde está a rainha da beleza? Quero dançar
com a rainha da beleza."
- Vamos dançar? - preguntou Thorpe, pegando no braço de Nina.
- Obrigada. - respondeu ela, voltando-se vivamente. Liliana descia os degraus da ponte superior, docemente amparada pelo pretencioso detective.
- Onde está o Erik? - preguntou Nina, de lábios brancos.
- Como queres que eu saiba ? -replicou Liliana. E, agarrando na cauda do vestido, afastou-se, dançando.
DE noite, Nina, saindo de um mau sonho, quisera agarrar Erík. Ele não estava... Era como a continuação do pesadelo! Sonhando, tinha-o procurado e não o encontrara.
Só minutos depois ouviu o duche correr na sala de banho, às escuras. Pôs-se então à escuta:
- Tens alguma coisa, Erik ? - preguntou baixinho, quando, às apalpadelas, ele voltou para a cama.
- Nada. Não posso dormir. Faz muito calor aqui disse, vagamente.
As duas janelas estavam abertas e os primeiros clarões da aurora apareciam já. Nina estendeu as mãos e, como não acontecesse nada, tornou a passá-las para o seu
leito. Ficou muito tempo acordada, com os olhos abertos e ouviu os primeiros carros de leite rolarem na rua. Erik teria adormecido? Ignorava.
Ele trabalhou muito nos dias seguintes; a liquidação da secção de arte continuava, e a época dos banhos de mar tinha que ser anunciada com a exibição de fatos de
praia, e bonecas vestidas de maillot. Ele andava distraído e com mau parecer. Fosse onde fosse, estivesse em pé ou sentado, fazia esboços; depois rasgava os papéis
e deitava-os fora. Um dia, Nina revistou o cesto dos papéis e apanhou os pedaços rasgados. "Que foi?" - preguntou Erik, embora ela tivesse ficado muda.
- Mas... tudo isto se parece com a Liliana! - disse Nina com as três rugas na testa.
-Liliana? Que estupidez! Os manequins parecem-se todos. - explicou ele.
Nina continuou ajoelhada no chão diante dos pedaços de papel. Esperava que ele viesse levantá-la. Mas ficou ao pé da janela e acendeu um cigarro. Era domingo e Erik
estava ainda mais indecifrável que de costume. No quarto, por cima deles, ouviam o velho Filipe andar de um lado para o outro, sem descansar...
- Não posso mais!... - disse Erik - Tenho que sair. Saiu, sem chapéu nem casaco, não disse "Vamos
passear". Foi sozinho e só voltou a casa ao fim de quatro longas horas. Nina, tirou do cabide todas as calças do marido e passou-as cuidadosamente a ferro. Depois
desceu à cave, abriu a sua mala, tirou as velhas bonecas e tomou as nos braços. Por fim, subiu e foi procurar a sr.a Bradley.
- Quere que eu faça o jantar esta noite, sr.a Bradley ? - preguntou.
A sr.a Bradley, com o rosto amarelado, estava estendida em cima do canapé. Cansada, fez sinal que sim. Afligia-se ao pensar na segunda-feira, no tempo que tinha
de estar em pé, na embalagem, com aquela dor num lado. À noite jogaram uma triste partida de rummy. Nina, Filipe, a sr.a Bradley, Skimpy. A pequenita ganhou quási
sempre: feliz, soltava gritos de alegria emquanto os adultos, fatigados, sorriam. Cada um tinha as suas próprias preocupações, os seus próprios receios. Cada um
deixava errar os seus pensamentos.
- Onde se esconde sempre o seu jovem esposo ? preguntou o velho Filipe. Nina corou como se tivesse vergonha.
- É o sr. Sprague que o retém. Agora mudam a decoração das montras duas vezes por semana.
- É verdade - disse Filipe. Ele era céptico por
causa da sua profissão. Nina falou nas vitrinas como numa prova de que Erik não lhe mentira.
Assim que se cansaram de jogar, ela construiu com Skimpy castelos de cartas.
Deitada, conservou-se acordada até ao regresso do marido. Ele chegava a casa às três horas, às quatro, às sete. Mas Nina não dizia palavra e tinha os olhos fechados,
quando ele se inclinava para a ver. Muitas vezes beijava ao de leve aquele rosto, que julgava adormecido. Era uma grande consolação: Nina quási chorava. Cheirava
a cigarro, assim como a um perfume que a esposa, de sobrancelhas franzidas, adivinhava doce e forte, um pouco impudico - o perfume de Liliana.
As coisas continuaram assim durante três semanas. Certos dias, só se encontravam na cantina da Central. Às vezes, iam jantar ao "Rivoldi"; Erik mostrava-se de uma
alegria febril e forçada. Depois, no meio da refeição, tornava-se distante e distraído, punha-se a desenhar sobre o mármore da mesa, apagando depois com a palma
da mão.
- Porque não vem a Liliana comer agora connosco? preguntou-lhe Nina.
Ele encolheu os ombros. Queria ter um ar indiferente, mas mostrou a expressão que é costume ter-se no dentista quando, por acaso, a broca encontra um nervo. Nina
acompanhava-o até à entrada do armazém, depois, voltava para casa. Uma noite escreveu uma carta à mãe de Erik. Condessa Bengtson, Asilo de Alienados, Lansale, Connecticut.
Não era trabalho fácil. Assim que acabou de escrever, rasgou. Estava só. Nunca tinha sabido o que era estar só no mundo, antes de casar com Erik.
Meia-noite, duas horas, três... Como uma noite é longa, quando se espera o ente amado e ele não vem! Nina levantou-se, vestiu o seu roupão e dirigiu-se ao vestíbulo,
ao telefone. com voz em surdina, pediu a Central. Já não podia mais; era preciso que falasse
com Erik. Foi Joé, o porteiro, que respondeu; "Desculpe, Joé, eu queria dizer uma palavra a meu marido... o sr. Bengtson, deve estar do lado oeste... a decorar a
montra."
-Um momento... -disse Joé, com a sua voz de baixo, que inspirava confiança. Nina esperou. O coração batia-lhe debaixo do roupão: era como se fosse uma aventura proibida.
Depois de muito tempo, ouviu, ao telefone, uma voz que não pertencia a Erik.
- Está ? Quem fala ? - preguntou ela.
- Aqui, Donald Brooks, - responderam.
- Queria falar ao sr. Bengtson - repetiu Nina, intrigada.
Abriu-se uma porta no andar superior, e Filipe apareceu na estreita fenda iluminada, da porta.
- Que aconteceu ? -murmurou ele. Nina sacudiu a cabeça, com o auscultador no ouvido.
- Sou eu, o Pusch. - disse a voz ao telefone. O aprendiz renunciou ao nome elegante que ninguém conhecia.
- Oh! Pusch, ainda estão com as decorações ?
- Pois estão, minha senhora. - disse Pusch.
- Posso falar um segundo a meu marido ? - preguntou Nina. Entretanto o velho Filipe tinha descido a escada e estava agora ali. Ela fez-lhe sinal para a deixar só.
O seu coração tornara-se subitamente leve e alegre, ela queria implorar o perdão de Erik e desejava que Filipe não a ouvisse.
- Eles já saíram há cerca de hora e meia - disse Pusch, do outro lado do fio.
- Eles... quem ? - preguntou Nina.
- O sr. Bengtson e o modelo. - esclareceu Pusch. Mais nada ? - informou-se ao fim de um minuto, como Nina não falasse,
- Mais nada, obrigada. Parece-lhe que ele volta ?
- É possível... - disse Pusch num tom consolador. Obrigada, sr. Brooks, - agradeceu Nina, De-repente
o seu espírito tinha-se tornado tão claro e tão subtil que se lembrou do nome estranho. Via através da obscuridade, apercebia cada prega do velho roupão de felpa.
ouvia respirar Skimpy no outro aposento. No jardim da frente, um pássaro abria a garganta para os primeiros trinados da manhã.
- Posso fazer qualquer coisa por si ? - preguntou o detective. Nina olhou-o um momento, como se a pregunta precisasse de um certo tempo para chegar até ela.
- Não, obrigada, tudo vai bem. -disse delicadamente, pendurando o auscultador. O velho Filipe seguiu-a com o olhar, emquanto, através do patamar obscuro, ela voltava
para o quarto.
Os homens podem ser enganados pelas mulheres; as mulheres, não se podem enganar. Elas sabem tudo, elas sentem tudo. Nina tinha compreendido. Não fez cenas. Deitou-se
na sua cama, com os olhos secos, e sentiu que se tornava hirta, pequena figura de pedra rígida, quando Erik entrou. Pouco antes, o despertador tinha tocado. Sete
horas da manhã. Erik fez a sua aparição, de cigarro na boca com uma falsa naturalidade. Os cabelos vinham muito lisos, acabavam sem dúvida de serem passados por
água, para causar boa impressão.
- Bons-dias, Lille Spurv - disse, debruçando-se para a beijar na testa. Ela não se desviou, mas sentia que a testa devia estar fria e dura. Dura como pedra. Tinha
sempre sido meiga e doce, mas sabia ser dura quando se tratava de coisas importantes.
- Bons-dias. - disse saindo do quarto. No patamar, bateu à porta da sr.a Bradley.
- Quere fazer-me o favor, sr.a Bradley, de avisar que eu hoje não vou ao serviço?
- Está doente ? - preguntou a sr.a Bradley, inquieta.
- Não sei... tenho febre... talvez gripe.
- Pode ser. Eu também não me sinto bem. - disse a sr.a Bradley - Não se rale, tem direito a três dias com vencimento, mesmo que falte.
- Pois é... - concordou Nina, voltando para o seu quarto. Na cozinha, ouviu Skimpy preparar o pequeno almoço, antes de ir para a escola. Assim que Nina entrou, Erik,
que se tinha despido, estava debaixo do duche. Ela sentou-se e esperou.
- Não estás atrazada ? - preguntou, assim que saiu da sala de banho. Pequenos mares de água caíam dele sobre o sobrado.
- Não vou hoje à Central. - disse Nina - Ele lançou-lhe um olhar rápido, assustado, depois meteu-se na cama e puxou a coberta. Parecia tremer.
Maquinalmente, ela aconchegou-lhe a roupa, com a mão.
- Onde estiveste até agora?
- Tu bem sabes, Nina.
- Sim, eu sei. - disse ela. Seguiu-se um pesado silêncio.
- Ora vamos, não me faças cenas - pediu Erik, pegando na mão de Nina.
Ela não o repeliu mas estava sem vida.
- Não te faço cenas. - disse.
- Podia ter te explicado logo, mas quis fazer-te uma surpresa; estou a pintar Liliana para o concurso.
- Qual concurso?
- Tu bem sabes, o dos cartazes de verão.
Nina lembrava-se, vagamente, de Erik lhe ter dito qualquer coisa.
- Não era bonito se eu ganhasse o primeiro prémio e pudesse trazer-te mil dólares? - preguntou, acarinhando a mão da mulher para a aquecer.
Nina tentou sorrir, mas não conseguiu.
- E então? - disse ela.
- Não sei. Liliana endoidece-me. É um diabo perigoso. Mas, às vezes, preciso dela ... Excitação... Isso inspira, pois eu sou um pintor, Nina, mesmo quando me meto
nas montras às ordens do velho Sprague, a fabricar árvores de celofane.
Já me não amas?
Sim, Lille Spurv. Sim ...
- Mas gostas mais de Liliana.
Liliana ... é de outra maneira, Nina.
O pior é que ele não mentia nem se desculpava. Nina esperava um alívio, uma salvação que não veio.
Nada teria acontecido se eu não me tivesse metido a pintá-la. Mas o quadro será bom, Nina. Sentia-me completamente decaído... num verdadeiro lodaçal... eu não nasci
para forrar casas ... Dei-lhe entrevistas todas as noites, na oficina ... e assim ... só com ela ... Tu compreendes?
- Não. - disse Nina.
- Tinha preferido não me apaixonar por ela. Mas realmente apaixonei-me. Também há-de passar.
Nina esperou um momento, até poder engulir a dor.
-Que vai ser de nós?-disse.
- De nós? Não sei... se tu não sabes... -É-me impossível continuar ao pé de ti, se tu estás
apaixonado por outra. - declarou Nina. Ele sentou-se na cama.
- Não estás a falar a sério ?
- Que queres? Tu só podes ser como és. Eu só posso ser como sou. Não me é possível ficar contigo.
-Nina!-pediu Erik suplicante-Somos casados apenas há seis semanas!
Ele não podia dizer coisa pior; casados havia seis semanas e o seu coração já ia passear! Nina sentiu lágrimas subirem-lhe numa grande onda pesada.
- Acabou tudo entre nós.-disse ela, dirigindo-se para a porta. Ele voltou-se com a cara para a parede: ela viu-lhe as costas. Eram oito horas da manhã .. hora de
ir para a Central. "Preciso de renunciar a tudo.. a tudo - pensava Nina. - Não posso fazer outra coisa. ? Diante da janela, o pássaro da manhã lançava agora os seus
trinados claros e irónicos.
- Se tu pudesses prometer... que renunciavas a Liliana... - murmurou Nina, à porta. Ele não se voltou, pareceu reflectir.
- Eu, renunciar a Liliana? Deus! Mas ela é que não renunciará a mim! Agarra com força o que pode agarrar.-disse, voltando-se para a parede. Ele tinha, também, podido
agarrar num pau e bater na cabeça de Nina.
-Então... acabou-se - disse ela. O marido encolheu os ombros. Ela saiu do quarto e foi-se embora.
Ficou deitado na mesma posição, com a cara virada para a parede, para que ela não visse quanto era infeliz. O pássaro, fora, deixou de cantar. No vestíbulo, soaram
passos sonoros. O velho Filipe bateu a porta da entrada. Tudo tinha acabado.
- Fica ao pé de mim, Spurv, Lille Spurv... murmurou ele, no quarto vazio. Mas sua mulher, ajoelhada na cave, preparava as bagagens...
LEVANDO uma mala grande e outra pequena, Nina fez a sua entrada no vestíbulo atapetado da casa de Thorpe, como se um vento de tempestade a tivesse en purrado para
lá. Pretender que esta entrada fosse gloriosa, seria falso. Primeiro, o pessoal não a quis deixar entrar, depois, assim que se encontrou lá dentro, incomodou os
criados nos seus trabalhos. Um deles fazia funcionar o aspirador no tapete do vestíbulo; comovida, Nina apertava a argola das suas maletas emquanto o criado telefonava,
com ar importante, para o escritório de Thorpe.
Thorpe estava justamente em conferência quando o telefone tocou - conferência de um género desagradável com dois indivíduos cabeçudos que não chegavam a um acordo
sobre a exploração comum dos seus negócios de moagem.
- Está aqui uma senhora que deseja falar ao sr. Thorpe. - disse o criado.
- Como? Uma senhora? Neste momento não tenho tempo para falar a senhoras - resmungou o advogado ao telefone.
- A senhora diz que eu devo só dizer que é a Nina da Central, que está cá.
O rosto de Thorpe iluminou-se e sem se ocupar mais dos dois clientes disse:
- Ah! está aí ? Que quere ela ?
- A senhora chegou com duas malas.
- Bem... Bem ... que a senhora esteja à vontade, eu vou logo que possa. - disse Thorpe um pouco perturbado. Aquilo não parecia da Nina: irromper por casa dele com
duas malas...
Pôr-se à vontade consistiu nisto: Nina ficou sentada no vestíbulo em companhia da sua bagagem. E foi assim que Thorpe a encontrou, quando chegou a casa. Embora se
apressasse, era já tarde. "Então, cá estás?" disse simplesmente-Ele não preguntou nada; depois de um instante de hesitação, abraçou-a. Nina levantou os olhos, como
sempre que tinha medo, e aceitou o beijo de boas-vindas. Agora era preciso levar ao fim toda esta história, se queria, realmente, ferir Erik, feri-lo tanto quanto
ele a tinha ferido.
- Whisky, - ordenou Thorpe ao criado - E estas malas para o quarto de hóspedes.
Também estava um pouco aturdido pela forma súbita, como a felicidade lhe caía em casa. Bebeu o seu whisky e Nina deixou o dela.
- Quere explicar-me o que aconteceu, ou devo adivinhar? - preguntou ele. No espírito de Nina tudo estava já resolvido.
- Preciso separar-me de meu marido, - disse em voz resoluta. Não nos damos bem. Não me acomodo a ser casada com um génio. Compreendeu-o desde o princípio, não é
verdade? Não quero mais trabalhar na Central. Encontravamo-nos sempre no caminho um do outro... na cantina, em toda a parte... e não poderia suportar...
Evitou dizer que não se sentia com forças para afrontar Liliana, mas Thorpe compreendeu-o da mesma maneira.
- Não tenho dinheiro. - disse Nina - Preciso arranjar outro emprego e só o conheço a si.
- Tudo está perfeitamente entendido entre nós. disse Thorpe - A minha opinião é que durma hoje no
meu quarto de hóspedes, e amanhã procuramos uma casa bonita para si.
-É muito bom!...-disse Nina. Thorpe defendeu-se vivamente:
- Não vamos trocar cumprimentos - disse, emquanto pequenas pérolas de suor lhe apareciam na testa nua. Ambos sabemos do que se trata. Eu não sou bom, mas gostaria
que fosse minha. Pode talvez dizer-se que somos dois pássaros solitários... e... um pouco desiludidos, a certo respeito, e que, por causa disso, nos poderíamos sem
dúvida suportar, não é?
- É... - respondeu francamente Nina. Thorpe correu num impulso para ela e deu-lhe outro beijo. Ela recebeu-o com a expressão que tinha em criança quando engulia
o óleo de rícino. "Obrigada sr. Thorpe" - agradeceu.
- Chame-me Steve. - pediu ele, um pouco embaraçado.
O criado conduziu-a ao quarto de hóspedes e ela sentiu o seu olhar mirá-la com desdém. "Como se chama?
- preguntou, embaraçada - "Por excepção, não me chamo James". - disse o homem - Ela não sabia se isto seria uma insolência. Esperou, de pé, e como ela tentasse sorrir,
ele ficou sério: "Eu ajudo a senhora a desmanchar as suas malas" - disse por fim.
- Obrigada, prefiro eu tratar disso. - respondeu. Tinha vergonha das suas coisas, da sua roupa de
seda artificial, das suas meias cozidas, dos seus sapatos com meias solas. Thorpe entrou, passado um momento, quando ela olhava para as suas recordações: as duas
bonecas, a fotografia, o revólver.
- Como vai isso agora, Nina? -preguntou. Ele tratava-a por tu e ela tratava o por você, desculpando-se de vez em quando. Os olhos do advogado caíram no revólver
e encheram-se de receio. "Tu não tencionas fazer tolices, rapariga?"-preguntou, agarrando rapidamente na velha arma. "Não, é o revólver de serviço, de meu pai"
-explicou. Assim que ela voltou a pôr o revólver na mala, fechou os olhos, com medo, como quando do beijo do sr. Thorpe. Abaixando-se, ele apanhou um papel
que tinha caído.
- Não é nada - disse muito de-pressa pondo-o para um lado. - A conta de hotel da nossa noite de núpcias em Connecticut.
- Vai pôr-te bonita para ver se passamos um bom serão. - disse Thorpe e deixou-a só e hesitante.
Nina fez-se bonita com o único vestido capaz que possuía e que, infelizmente, era ainda uma prenda de Erik. Estava tão contente quanto podia estar, emquanto, de
vez em quando, fechava os olhos para receber um beijo de Thorpe. O belo serão não foi um triunfo, não lhe era fácil sentir-se à vontade, com um criado de cara dura
e severa em serviço ou oferecendo pratos de que não se gosta. Ao pé de cada prato estavam colocados talheres, com os quais Nina não se entendia. Mas fez o que pôde.
Logo depois da refeição passaram para outro aposento, ela cantou mesmo um pouco ao piano, tocando com um dedo, o acompanhamento, Isso pareceu agradar ao sr. Thorpe,
que lhe prometeu um professor de música.
O tempo passava e Thorpe tornou-se pensativo e silencioso. Passou um braço à volta do ombro de Nina: era desagradàvelmente quente, mas ela conseguiu suportar. Estava
resolvida a mergulhar nesta aventura, como se mergulha na água fria; sem reflectir e de um salto. Sorriu timidamente a Thorpe, quando ele a atraiu para o seu joelho.
Veio-lhe mesmo ao espírito a idea tranquilizadora de que ele também tinha tanto medo como ela.
Por fim, fatigou-se daquele silêncio e começou a bocejar. Ele levantou-se logo: "agora vamos deitar a menina" -disse, o que não agradou a Nina. Ela não podia supor
que, durante todo esse tempo, ele tinha tido um diálogo com o fantasma de sua mulher.
No patamar, pegou-lhe para a levar para o quarto mas foi uma tentativa falhada e, um pouco cansado, teve de a pôr no chão. Empurrando a porta do quarto de hóspedes,
deixou-a entrar primeiro: a lâmpada ardia na mesa de cabeceira, a cama ficava perto. O sr. Thorpe tinha o ar de um homem que desejasse ir buscar o seu chapéu ao
vestiário, e tivesse perdido o número. Quando a abraçou, ela começou a chorar. Tinha vergonha das suas lágrimas mas não podia sustê-las; sentia nas mãos a grande
cara do advogado, os seus grossos braços, o seu corpo pesado: tudo isto lhe era tão estranho, tão estranho, e não sentia em si a felicidade que sentia sempre que
Erik se aproximava dela com os seus membros finos e ágeis. E soluçava sem parar.
Tinha passado um dia muito cruel, não chorara ao descobrir que Erik a enganava, nem emquanto fazia as malas, nem ao sair de casa. Todo o dia tinha sido um pequeno
ídolo de pedra. Todavia um ente humano tem também o direito de chorar.
Thorpe ficou sinceramente comovido e consolou-a o melhor que pôde.
- Que queres tu? Que tens?- preguntou, acariciando a.
- Queria estar só ... queria chorar... - soluçou ela, com a consciência inquieta.
- Bem... eu não sou nenhum papão - disse o sr. Thorpe. E realmente não era, principalmente para com Nina. Largou-a, deixando-a sozinha na cama, cuja coberta de seda,
coisa nova para ela e muito incómoda, estava sempre a escorregar. Em casa da gente rica, as camas são realmente esquisitas." - pensou. E foi a única experiência
que tirou dessa noite.
No dia seguinte, Thorpe quis arranjar-lhe casa, mas, quando chegou ao escritório, encontrou um telegrama que o chamava imediatamente a Minneapolis. Tratava-se
do acordo entre as duas moagens e era importante, muito mais importante do que Nina.
Ela tinha tomado a resolução de ser amável com Steve assim que chegasse, mas ele não veio para casa. Telefonou ao criado dizendo que lhe levasse ao escritório a
mala, pronta. Dir-se-ia que tinha esquecido completamente a presença da jovem caixeira na sua habitação. Mas a verdade é que não ousava, na presença de miss Tackle,
telefonar a uma mulher que estava na sua própria habitação. Da gare mandou-lhe um telegrama. "Não te aborreças. Faz tudo que te apetecer. Estarei de volta daqui
a três dias." Nina sentou-se diante do fogão de sala com o telegrama na mão. O criado tinha acendido o lume, pois chovia e ela não sabia de nenhum lugar no mundo
onde se pudesse refugiar.
"Não te aborreças!" -pensava ela, ironicamente. - O seu coração estava despedaçado de angústia, de nostalgia, de desejo de tornar a ver Erik. Além disso, vinham
as coisas desagradáveis: olhares do pessoal, aborrecimento sem limites, ociosidade, refeições na grande sala de jantar, sozinha. E todas as vezes que, de noite,
estendia a mão, só encontrava o vácuo, nesse quarto horrívelmente estranho: nada de Erik, apenas a endiabrada coberta de seda que caía constantemente, o que a fez
sonhar que estava em camisa em cima de uma ponte, à chuva e ao vento ...
No dia seguinte, entregaram-lhe uma missiva de Thorpe, escrita da estação. As letras eram deitadas como se o vento também lhe tivesse passado por cima.
"Querida Nina pequena. Que pena não ter podido ficar aí! Rehaveremos tudo isso assim que eu chegue. compra lindos vestidos e tudo o que quiseres, pois vamos divertir-nos
muito. Adeus e até breve. Teu, Steve."
Um cheque em branco vinha junto à carta. Nina voltou-o entre os dedos, conteve o gesto de o deitar ao lume e, daí a pouco, sorriu.
Ao terceiro dia, como Thorpe não tivesse voltado,
ela fez tudo quanto o seu coração desejava: pediu ligação para a sr.a Bradley, depois do armazém fechar, quando ela já estaria com certeza em casa... A sr.a Bradley
gritou de admiração, ao telefone, e Nina podia ouvir Skimpy andar. Não preguntou se Erik estava em casa.
- Como vai isso por aí ?
- Obrigada, assim, assim.
- O velho Filipe está cada vez mais esquisito.
- E as suas dores ?
- Há dois dias que estou melhor. Faz-nos muita falta, Nina.
- Que diz a gente da Central, da minha saída ?
- Mordem se de inveja. Dizem que fez a sua felicidade ...
Nina esperou. Ela não podia conter a pregunta:
- E... e meu marido, que faz ?
- Meu Deus ... até agora, lá vai indo... -Ah!
Então, ele ia bem. Hesitou ainda. O criado passou, sentiu-se vigiada, como prisioneira. Esperou que desaparecesse.
- Escute, sr.a Bradley... o fato cinzento dele está ainda no tintureiro, é preciso ir buscá-lo. E que não fume muito, sr.a Bradley. Que ar tem ele ? À noite fica
em casa? Quem lhe passa as calças? Ele gosta tanto delas bem vincadas!... Não lhe diga que telefonei, sr.a Bradley... promete ?
Não, esta conversa não a aliviou absolutamente nada. No dia seguinte, telefonou outra vez. Depois pegou no seu cheque e foi à Central. Sim, estava decidida.
Na verdade, um grande armazém é um lugar onde quem quere pode ir. E se uma caixeira fez a sua felicidade e volta como cliente, deve ser tratada como cliente. Nina
evitou a escada 5 e subiu primeiro à secção de loiças, a sua secção, por assim dizer, a sua casa.
Aí, parou diante do balcão onde estava o serviço 279 E 14, decorado com rosas.
- Deseja ?-preguntou miss Drivot. Ela não viu a cara de Nina; a clientela não tem cara.
- Como vai isso, miss Drivot ? -preguntou Nina baixinho.
-Ah!... é você... Obrigada, vai bem. Deseja alguma coisa ? Quere fazer uma compra ? O serviço de rosas está mais barato.
O sr. Berg, que passou, lançou um olhar perscrutador para as duas.
-Desculpe-me, tenho que servir uma cliente-murmurou miss Drivot. Depois afastou-se, deixando Nina em pé diante da loiça de rosas, como uma estranha.
O sr. Berg olhou a com ar ofendido, fez-lhe um cumprimento distante e continuou o seu caminho.
A testa da jovem franziu-se. Atravessou o vestíbulo envidraçado, passou diante dos vestidos de verão para chegar ao lugar elegante, que era o salão de costura. O
coração batia-lhe furiosamente. Mas tinha um cheque em branco na sua malinha ...
- Queria que me atendessem - disse, logo que encontrou Liliana.
-Meu Deus, é a Nina!-exclamou Liliana.
- Desejo um vestido de noite, branco, qualquer coisa de muito bom - disse friamente Nina. - Liliana fez uma careta; daí a pouco surgiu madame Chalon, ignorando,
naturalmente, a situação. Nina tinha-se divertido antecipadamente com esta visita ao armazém. Sentou-se na poltrona e Liliana teve de andar dum lado para outro.
Ah ! fê-la mexer-se bem! Infligiu-lhe, em suma, todos os vexames que uma cliente aborrecida, mal humorada e inconsciente, pode infligir a uma caixeira. Mas, justamente
no momento em que Liliana não podia mais e ia perder a paciência, Nina sentiu-se igualmente esgotada de nervos. Não, ela não podia mais suportar aquilo: ver as belas
costas nuas de Liliana, o seu andar, a
sua cara, o seu corpo, o todo dessa mulher que lhe tinha roubado o marido. Levantou-se de um salto, murmurou uma desculpa, que soou como um soluço e saiu precipitadamente.
Liliana limpava as finas pérolas de transpiração, da testa.
Nina tomou o caminho de casa, entrou no carro elegante de Thorpe que o criado tinha posto à sua disposição. Tony, o belo motorista, tratava-a com tanto respeito,
como se ela fosse a própria rainha da Inglaterra. Refugiada no quarto de hóspedes, escovou os cães; sentia a garganta apertada com todos os sentimentos que tivera
de refrear.
Subitamente, os animais correram para a porta e ladraram com tanta força que Nina teve medo: o sr. Thorpe estava de regresso. Nina ficou surpreendida, ao notar que
também sentia alegria, e correu ao seu encontro. Desta vez recebeu o beijo sem fechar os olhos, Thorpe foi muito terno, tinha-lhe trazido um presente, um colar de
pedras verdes, Depois desapareceu na sala de banho para sacudir a poeira da viagem. O ruído do avião deixara-o um pouco surdo durante meia hora, mas depois passou.
- Agora mostra-me o que compraste com o cheque. - disse ele a Nina e, ante o embaraço dela desatou a rir. Ela subiu ao quarto de hóspedes, tirou rapidamente o cheque
da sua malinha e pô-lo diante de Thorpe. "Que os diabos me levem!" - disse ele, espantado. E Nina sentiu-se aliviada por não ter gasto esse dinheiro, por não se
ter ainda vendido completamente...
- Mas não tens que vestir!.. No entanto, é preciso que estejas bonita para sairmos. - disse Thorpe - Ele estava convencido que para obter os sorrisos das mulheres
era preciso cobri-las de presentes. No fundo, não tinha tratado Lúcia, a sua própria mulher, de outra maneira. Assim que diante do espelho esfregou a cabeça calva
com água de Colónia e se meteu no seu smoking, sentiu surdamente que Nina era uma coisa difícil de conquistar. As suas pantufas, os seus cães, um copo de whisky
e as últimas revistas ao pé do lume, eis quanto ele desejava. Mas tinha resolvido, nessa mesma noite, forçar a resistência. De resto, Nina estava resolvida.
Preparou-se com o seu vestido azul bordado a prata e o companheiro levou-a a um cabaret elegante: música, dança, champagne, sala cheia, turbilhão de vozes e de perfumes.
Tinham instalado esta casa luxuosa como o interior de um barco, o que dava aos clientes uma impressão de opulência e de romanesco, incitando-os a gastar dinheiro.
Os criados andavam de um lado para o outro, vestidos de marinheiros franceses com grandes ponpons nos bonés, o que, visivelmente, os incomodava um pouco.
- Então, menina ?-preguntou Thorpe, satisfeito, assim que encomendou a refeição.
Também havia mais talheres do que aqueles que eram precisos, mas agora, Nina já tinha experiência. Antes de se instalar deram um salto ao bar e Nina falava alegremente
e muito. Esforçando-se por chegar de-pressa à disposição de espírito que esperavam dela, tinha engulido os dois primeiros cocktails como uma desesperada. Durante
a refeição fumou muito. "Não vamos dançar, sr. Thorpe? quero dizer... Steve?" - preguntou - A música tinha acendido nela uma avidez que não compreendia. Mas assim
que fizeram desastradamente uma volta à pista, caiu em si. É melhor sentarmo-nos a ver... - disse - Ele continuou com brandy e aconselhou champagne a Nina.
- Ó champagne dá alegria, aquece. - explicou Numa obsessão, Nina bebia grandes taças, como se o champagne fosse um antídoto contra a sua infelicidade. Tinha realmente
as faces rosadas, sob a fina camada de pó de arrôs. Os olhos começavam a brilhar.
- És adorável! - declarou Thorpe.
- Tu o dizes...-sussurrou ela, na linguagem habitual do armazém.
Infelizmente, verificava-se que com o primeiro excesso da sua vida, se mostrava mais obstinada e rebelde. Ela, que era semPre meiga e aceitava as coisas como vinham,
agora revelava subitamente o fundo do seu ser.
-São todos uns indecentes...-disse, indicando com o dedo toda a gente fina do restaurante da moda-são uns indecentes - Ah! Nós podemos falar. Que fazem eles todos,
lá porque têm algum dinheiro ?
Olhou à sua volta, riu, às gargalhadas, do criado à maruja, depois os seus olhos caíram sobre Thorpe.
- Tu és como os outros, sabes, meu caro Steve ? Tu também imaginas que podes comprar-me... lá porque tens dinheiro. An ? Diz a verdade... não é verdade que julgas
... com o teu cheque... Também tu és simplesmente um porco, Steve... um gordo porquinho cor de rosa, com quatro pêlos na cabeça...
Thorpe alarmou-se. Acabou de-pressa, pagou, empurrou Nina para o automóvel, antes que a coisa desse escândalo. Tony, o motorista, lançou-lhe um olhar cheio de compreensão
masculina e, sem pressa, pôs o carro em marcha.
Entretanto, Nina seguia o curso das suas ideas: teimosa, fazia ao pobre Thorpe uma cena em regra. Na sua embriaguez, e embora o tratasse por tu, lançava-lhe reparos
tão desagradáveis que não tinha sido dado ao advogado ouvi-los desde que se separara de Lúcia. Censurava-lhe o dinheiro, o ventre, a calvície e a idade. Por fim,
ele sentiu se absolutamente infeliz. Mas justamente no momento em que ia decidir-se a descer e a deixar Nina voltar só para White Plains, a jovem lançou-lhe os braços
ao pescoço e desatou a soluçar. Para a acalmar, bateu-lhe nas costas, como tinha o costume de fazer a Max e a Moritz e rolaram assim, ao longo das avenidas calmas
do parque, para o bairro Norte.
Na sua embriaguez, Nina, desesperada, estava pronta para tudo. Mas, o diabo, era ele, Steve, que nada queria nessa noite, Não queria dela nenhum favor se o devesse
obter de uma maneira suja e desagradável. Acompanhou-a ao seu quarto onde ela se sentou imediatamente na borda da cama, na atitude resignada de quem espera a partida
do comboio. As lágrimas vertidas brilhavam ainda sôbr a pele lisa das faces. Fazia-lhe pena, mas não é com pena que se vai para uma aventura amorosa. À porta, ele
parou :
- Não podes gostar de mim, um pouco?- preguntou, hesitante.
Nina pareceu voltar não se sabe donde. com simplicidade, respondeu:
- Não. Emfim ... assim não ...
Thorpe tomou, sem demora, o caminho dos seus aposentos. Eram duas horas da manhã. com um copo de whisky ao alcance da mão, um dos seus cães ao colo, meteu-se ao
canto do fogão pois, de-repente, o pobre homem sentiu imenso frio ..
HAVIA longas semanas que Liliana tinha sempre o mesmo sonho: queria apanhar um comboio mas não o conseguia. Sufocada, ofegante, ficava no cais e via o comboio desaparecer.
Depois descia uma escada que se parecia com a do metro, mas maior e deformada, como acontece nos sonhos. Ela ia, descia sempre, sempre, sempre mais para baixo. Não
queria descer, mas, lá em baixo, alguém riscava constantemente um fósforo e então podia ver a escada que levava à escuridão, lá para baixo, lá para baixo... e ela
continuava a descer. Dling... dling... dling... tocava, durante esse tempo, a campainha da prestamista.
Liliana tinha deixado os pais e alugara casa na rua 44.a a oeste da cidade. A sua sala estava sempre cheia de fumo de cigarro, no sofá via-se sempre estirado qualquer
homem, algum dos amigos de Bill. Bill era aquele indivíduo duvidoso que a tinha seguido, assim que ela saíra da casa de penhores, uma espécie de grande animal, bonito,
violento, habitualmente complacente, mas conhecedor da sua força. Gostava de gatos e trouxera dois para casa de Liliana. Os outros homens, Jerky, Big Paw e Kid,
que tinham dezoito anos, pareciam-se com ele. Haviam-se instalado em casa da rapariga e viviam "na sua vida" por assim dizer, com as suas cartas, as suas pragas,
os seus licores, os seus revólveres e as suas amantes. Bill vinha irregularmente,
mas era o senhor. Tinham dinheiro com fartura que lhes restava ainda do último negócio feito. Liliana recebera, como presente, um belo vestido e um casaco de arminho.
Ia aos clubs nocturnos, frequentava os lugares onde Bill era um personagem respeitável. Bill tinha automóvel, relações e influência, numa palavra, Bill era poderoso.
Conseguira Liliana à força de ameaças, de promesas, de pancada e também mostrando-lhe o seu revólver.
Isto começara com o anel; com o anel roubado, foi ela agarrada. E com mais segurança e mais firmemente do que com uma corrente de ferro. Ela não sabia exactamente
no que o bando a queria empregar, mas era em qualquer empresa bem determinada, isso sentia-o. Bill não a deixava renunciar ao seu emprego. Mais tarde, afirmava ele,
seria contratada para uma grande revista de Broadway. "Posso ter em Broadway o que quiser, compreendes?" afirmava, e ela quási o acreditava. E, como agora vivia
numa atmosfera de receio e de febre e se sentia perdida, sem remédio, Liliana de-pressa se entregou à bebida. Um dia Bill fez-lhe mesmo tomar cocaína: ela experimentou
imediatamente um sentimento indescritível da sua grande importância, mas no dia seguinte, na Central, sentiu-se horrivelmente infeliz. Eles tinham a sua presa e
o que esta espécie de gente agarra, segura-o bem. Às vezes Liliana tinha quási desejo de rir quando madame Chalon ou uma cliente a maltratavam um pouco. Imaginava
o susto e os gritos se Bill, de revólver em punho, surgisse no meio delas. Bill possuía certas ideas cavalheirescas a respeito de Liliana, mas tinha também outra
amante, Máxima, uma mulher loura que o vigiava com um ciúme feroz. Liliana tremia muitas vezes, com medo que ela lhe atirasse vitriolo à cara. No entanto, tudo correra
bem até agora. Em certos dias sentia-se quási feliz com o caminho que as coisas tinham tomado: tivera sempre más tendências. Agora apanhava ar pela primeira vez
na sua vida; o ódio que sempre sentira pela gente do"
grande mundo, encontrava um motivo e uma justificação. Nos antros que frequentava, era quási uma rainha. Às vezes, entregava-se a uma esfusiante alegria. Outras
vezes, revoltava-se e Bill, em tom firme, punha-a no seu
lugar.
- Afinal, que queres de mim?- gritava-lhe, Bill
sorria com a sua boca vulgar. Tinha os lábios sempre secos, vermelhos, como que inchados pelo sangue. Nem o álcool nem a cocaína lhe faziam mal.
E eis que, pouco a pouco, Liliana compreendeu o fim dos seus carcereiros; queriam utilizá-la na Central, a loja objecto do seu ódio. Entretanto continuava a servir
a clientela. "Sim, minha senhora, certamente, minha senhora. Está encantadora, minha senhora". Tornou-se instrumento desses homens que saíam da sombra e desapareciam
na sombra. Liliana não os conhecia melhor do que se conhecem as personagens que se vêem em sonhos. Descia a escada, descia sempre cada vez mais baixo.
Dling, dling, dling, fazia a campainha...
- Bem mereço que tenham pena de mim - disse ela a Erik.
- Pena ? Porquê - preguntou ele.
- Tu não podes compreender. Não me faças preguntas estúpidas. Olha, dá-me um cigarro.
Erik acendeu-lhe um cigarro, e a sua mão tremia. Trocista, Liliana olhou para essa chamazinha de fósforo que oscilava sem descanso... - "Sonho muitas vezes com um
homem que está no fundo de uma escada sempre a acender um fósforo."
- Ah! Até em sonhos me enganas! - suspirou Erik, irónico. Estavam ambos sós na grande oficina onde os empregados da propaganda costumavam trabalhar nos seus esboços.
Liliana, com o vestido branco que estreara no barco e Erik, de mãos frouxas, pintava, fumava, tornava a pintar. Esse nervosismo tinha começado com
o primeiro beijo; depois, o rapaz não se havia mais acalmado.
Muito tempo reprimira o artista que havia em si. A crise tinha estalado, assim que viu Liliana com o seu vestido branco, nessa memorável noite do barco. "É como
o sarampo, queixava-se ele. Tem que sair, senão morro intoxicado." Liliana sorria sem compreender, mas consentia na pose. Na sua vida perturbada e destruída, as
horas com Erik eram as únicas que tinham algum valor. Sentia por ele uma paixão estranha, confiante: era como que uma despedida de qualquer coisa. Entretanto, o
quadro que pintava tomava forma, "não sou absolutamente eu, criticava Liliana considerando o retrato com ar zangado. "Que tens a objectar?" - preguntava o artista,
afastando-se do cavalete - Parece um sorvete de morango
- analisava o modelo numa gargalhada desdenhosa -Decididamente, tu não fazes de mim uma idea justa.
- Evidentemente, se eu quisesse pintar o diabo que tu és não ganharia com certeza o primeiro prémio no concurso de cartazes - disse Erik aproximando-se do seu trabalho
com ar ameaçador e acrescentando alguns retoques. O branco é a coisa mais difícil de pintar. - acrescentou - Conta-se que Renoir, quando envelheceu, dizia: "ficaria
contente se pudesse pintar um guardanapo branco, apenas um guardanapo branco."
Liliana seguia com aborrecimento esta incursão na história de arte.
-Tens a certeza de ganhar o prémio?-preguntava.
- Absoluta, meu amor. Ganhamos mil dólares e iremos juntos apanhar uma bebedeira e divertirmo-nos muito.- dizia Erik-Ela sabia que, no fundo, ele a odiava por Nina
o ter abandonado por sua causa. Parando de pintar, Erik, pensativo, pôs um pouco de branco na paleta: também pensava em Nina, em todos os projectos que tinham feito
com esses mil dólares, em todos os sonhos mortos.
- Vi-a ontem - disse Liliana como se os seus pensamentos tivessem falado alto.
- A quem ? - preguntou ele, afogueado, e começando a pintar precipitadamente. Liliana deixou passar a pregunta supérflua.
- O velho com quem ela vive parece que lhe dá muito dinheiro. Devias ver como se portou cá na loja. Menina para aqui, menina para ali... Tinha-lhe dado de boa vontade
um murro nos queixos, podes crer.
- Como... estava ela ? - preguntou Erik, sem querer, depois de um longo silêncio.
- Deliciosa, divina, encantadora. É esta a resposta que desejas?
Pousou os pincéis e avançou para Liliana. Ela deu um passo atrás, pois parecia que ia bater-lhe. Mas Erik não era o Bill e não usava revólver na algibeira.
- Porque não deixas a Nina em paz? Não te basta ter-nos separado?-disse pouco depois, em voz baixa e ameaçadora.
Liliana levou tempo a responder; teria gostado de dizer muitas coisas feias, mas conteve-as, pois embora tivesse ciúme de Nina, não o queria confessar. Gostava de
Erik à sua maneira, tanto quanto era susceptível de amar... mas isso não se podia dizer. Deitando o cigarro fora, desceu do estrado...
- Porque será que tudo em que eu toco se suja ?
- disse, de súbito. Era uma frase que podia ter um som brutal, mas saiu apenas triste. Erik notou-lhe uma pequena oscilação na voz e voltou ao seu cavalete.
O quadro ia em meio. Representava um pedaço de água verde sobre o qual vogava um barco com velas cor de laranja; encostada a um mastro, estava Liliana com o seu
vestido branco. Erik tinha-se cingido, na pintura, às linhas do seu corpo, o ombro direito e a cabeça estavam terminados, mas a anca esquerda estava ainda mal definida.
E só faltavam três dias para a data fixada para a entrega das provas. Erik tinha febre durante
as suas horas livres, antes e depois do serviço. Desde que Nina o deixara, afligia-o a idea de voltar para casa: o leito vazio no quarto de dormir... e um silêncio
absoluto. O velho Filipe e a sr.a Bradley já não lhe dirigiam a palavra; quanto a Skimpy aborrecia-o preguntando-lhe constantemente, quando é que a Nina voltava
e para onde tinha ido. Preferia ficar na Central onde dormia numa velha cama de campanha, na oficina, pintando a qualquer hora da noite. De vez em quando, Cromwell,
o novo detective, ia visitá-lo, Levava um frasco de gin e fazia, a respeito do quadro, reparos de arrepiar os cabelos. Erik tinha a vaga intuição de que entre Liliana
e o detective havia qualquer coisa, pois este não podia conter algumas observações sorridentes. "Ela não tem as pernas tão compridas como estão no quadro." -dizia
ele. Conheço-a bem; tem umas pernas compridas, mas ainda assim, não tanto. "Ou ainda": "Se eu fosse pintor, pintava-a deitada. É assim que os seus melhores pontos
se valorizam." Isso tornava Erik furioso a ponto de o fazer recusar o gin oferecido. "Quanto ao resto, é um cartaz espantoso. Tenho a certeza de que vai ganhar o
primeiro prémio."
- acrescentava Cromwell com um ar bonacheirão, retirando-se, Erik refreava a custo o desejo que sentia de dar um pontapé na tela e de se ir refugiar ao pé de sua
mãe, no asilo de alienados. Em vez disso, punha novas cores na paleta e tentava levar a obra a bom termo. Desde que Nina o tinha deixado, a pintura era a única coisa
que o interessava suficientemente e o fazia esquecer, durante algumas horas, o que se tinha passado. Fenómeno curioso: o sentimento que experimentava por Liliana,
essa funesta insatisfação e o entusiasmo que se tinham apoderado dele, enfraqueceram desde que perdera Nina. Á sua única consolação era agarrar-se a Liliana, tal
como um doente que não quere abandonar o leito no qual sofreu durante semanas.
As alusões de Ricardo Cromwell não eram os únicos pontos tenebrosos da vida de Liliana. Um sábado,
depois de Erik ter recebido o seu magro salário, levou-a a um club de noite, como Liliana desejara. Vestiu o seu smoking, pois ela parecia ligar a isso grande importância,
e Liliana pôs o seu casaco de arminho. Fizeram uma entrada no club onde todos olharam, com admiração, para a jovem mulher. Erik sentiu-se ao mesmo tempo orgulhoso
e pouco à vontade. Não ousou preguntar como é que, com os seus vinte e cinco dólares semanais, ela tinha podido comprar um casaco de arminho. Dois homens com atitudes
de gangsters piscaram-lhe os olhos, familiarmente.
- Quem são aqueles indivíduos? - preguntou ele.
- Amigos meus.-respondeu Liliana.
No fundo, Erik não sabia nada a respeito dela. Sabia que dançava bem o tango e que a sua boca tinha o gosto amargo da baunilha, por causa do bâton que usava. Nem
sequer sabia onde ela morava. Tinha lhe contado que saíra de casa dos pais, mas guardou segredo sobre a sua direcção. Nunca lhe consentia que a levasse a casa. Saltava
para um táxi e afastava se a toda a velocidade emquanto que, durante muito tempo ainda, ele errava pelas ruas, solitário, no turbilhão nocturno das luzes de Broadway
- pensando em Nina.
ErA quarta feira, o dia de venda a um dólar em todas as secções da Central. Na secção de sedas havia liquidação de retalhos. Dois agentes da polícia estavam à porta
sul, onde tudo era vendido à razão de dólar por três artigos; três camisas de homem, três pares de meias de seda, três lenços de linho, três clips de pedras falsas.
No sexto andar, Cromwell não sabia que fazer para manter a ordem. Aí, tudo se liquidava à dúzia: uma dúzia de copos de vinho; uma dúzia de chávenas, de café; uma
dúzia de pratos de bordos doirados, isto na secção de louças e vidros. Miss Drivot andava numa actividade febril, a sua face estava coberta de pequenas gotas de
transpiração e de veiazinhas. Parecia que a sua circulação sanguínea não lhe permitia resistir ao assalto dos clientes. O sr. Berg, chefe da secção, ajudava em pessoa,
embora não fosse essa a sua função. A nova caixeira que substituira Nina era desajeitada : não estava ainda a par do serviço e miss Drivot tinha de lhe dizer em
segredo, números e preços.
Na entrega, acumulava-se gente. Ouviu-se tilintar: a sr.a Bradley acabava de partir um prato de cristal.
- Que aconteceu ? - indagou o sr. Berg, que fazia a sua inspecção.
- Nada, não tem importância. - balbuciou a sr.a Bradley, receosa. Tinha febre, não via claro por causa da febre e do sofrimento, tudo estava desfigurado, tudo
oscilava à sua volta. Pousou um embrulho meio feito e dirigiu se para a escada do pessoal. Mal chegou diante da porta envidraçada, caiu desmaiada.
Levaram- na ... Tudo isso foi feito num abrir e fechar de olhos, sem ruído, sem escândalo: os serviços sanitários da casa trabalhavam bem e as caixeiras desmaiadas
não eram raras no Dollar-day. O pacote meio pronto permanecia ainda em cima da mesa, quando a sr.a Bradley já estava para entrar no carro da ambulância.
- Quanto tempo tenho de esperar pelo meu embrulho?- preguntou a freguesa, encolerizada.
O sr. Berg fez tudo para restabelecer a ordem.
- Imediatamente, minha senhora, um momentozinho, se faz favor. - disse, com solicitude. Uma rapariga correu a substituir a sr.a Bradley, uma rapariga ruiva, de grande
boca risonha. O embrulho foi acabado e a cliente servida. Era bem pouca coisa, afinal, a desaparição de um dos setecentos empregados da Central... Meia hora mais
tarde, a sr.a Bradley estava adormecida pelo éter, suspirava aliviada, como se flutuasse sobre grandes vagas. Um cirurgião de luvas de borracha, com o rosto tapado
pela máscara branca, operava-lhe o apêndice. com este, eram quatro mil oitocentos e sessenta e dois apêndices que extraía na sua vida, e, por isso, o facto afligia-o
pouco: "Um apêndice particularmente feio" -disse, em ar de censura à enfermeira que estava ao éter, emquanto lavava as mãos. A sr.a Bradley foi instalada no hospital
com um pequeno aviso à cabeceira da cama. Estivera em riscos de morrer e salvara-se, mas não o sabia. Continuava sob a influência do éter e, acompanhada pelo sr.
Bradley, ia a um pique-nique num automóvel muito esquisito que possuía e era dos mais elegantes no ano de 1924...
Agora, eram seis horas e cinco e a Central atirava os últimos clientes para a rua. No vestiário, as caixeiras,
extenuadas, punham pó no nariz suado, emquanto os caixas faziam, febrilmente, as contas.
Cromwell, o detective, subiu até ao 12.? andar para ir buscar o sobretudo. Logo que, assobiando, entrou no seu escritório, que era um pequeno buraco dando para o
pátio velho, encontrou Filipe.
- Olá, Filipe - disse, olhando para o velho que mexia em papéis amarelecidos, em cima da mesa.
- Olá, Cromwell - respondeu gravemente Filipe.
- Está a fazer arrumações? - preguntou Cromwell, jovial.
- Levo as minhas coisas. Os meus três meses terminam na próxima semana.- respondeu o velho detective.
Cromwell, que alisava os cabelos a um espelho de algibeira, deixou de assobiar. "É uma vergonha." - disse, sem intonação. Um instante depois, voltou ao seu problema
particular: "Diga-me cá, Filipe, quantas vezes por dia é obrigado a barbear-se?"-preguntou, enchendo a face com a língua e vendo no espelho de algibeira os resultados
obtidos.
- Todos os dias, se lhe interessa saber - respondeu Filipe, aborrecido.
- Pois eu, duas vezes ao dia sempre que desejo sair à noite. Senão, as raparigas queixam-se - gabou-se Cromwell.
E embaciou o espelho, limpou-o com a manga e tornou a guardá-lo.
A absurda insensatez de toda esta mímica desesperou Filipe.
- Mandou-me dizer que o esperasse ... - observou, um pouco irritado.
-Ah! sim, é verdade. Queria pedir-lhe para passar aqui a noite, hoje. Pode dormir, nada o inquieta, é apenas pro-forma. Tenho que fazer... compreende? De vez em
quando, preciso de ter uma noite minha... Cada um tem também a sua vida particular, não é verdade ?
- Hoje calha mal. -disse Filipe-A sr.a Bradley, em casa de quem moro, foi para o hospital. E eu queria ficar ao pé da criança que está sozinha em casa.
- Tudo isso é muito bonito, mas você não é criado de meninos, é detective. Lamento, mas prometi absolutamente ao manequim do salão de costura, sair esta noite com
ela. Você sabe o que é isto... com senhoras ...
- Então divirta-se. - cortou Filipe para acabar com a conversa - Eu cá fico a olhar por isto.
- Não é preciso olhar por nada: desde que eu cá estou, nem uma carta de alfinetes foi roubada. Durma... contente-se em fazer uma vez, à meia-noite, a ronda do costume.
-Bem, bem, eu conheço o trabalho melhor do que você. -resmungou Filipe.
Cromwell não levou a mal. O velho fazia-lhe pena. Foi ao pé dele e bateu-lhe no ombro:
- Fico-lhe sinceramente reconhecido por me querer substituir. A rapariga é diabòlicamente bonita e tenho de andar atrás dela, se a quiser apanhar -explicou.
Exasperado, Filipe viu a porta fechar-se atrás do homem.
Rebuscou ainda um pouco a gaveta donde queria tirar o que era seu: algumas cartas, velhos recortes de Jornais, restos emmurchecidos de uma vida ajuizada e descuidada.
Tentou reler alguns dos recortes, mas as letras tremiam-lhe diante dos olhos. Desde que tinha renunciado a beber, o velho Filipe vivia num mundo impreciso e desbotado.
Passava mal, tinha zumbidos nos ouvidos, às vezes mal ouvia o que lhe diziam e esquecia os nomes, os rostos e os números dos telefones. As costas vergavam-se-lhe
logo, mal se punha em pé. Subitamente, o olhar poisou numa garrafa que Cromwell deixara em cima da mesa: era o gin recusado por Erik.
Filipe notou, contrafeito, que lhe tremiam as mãos emquanto olhava para a garrafa. Voltou à gaveta e,
segundo o seu hábito, meteu o revólver na algibeira do lado do casaco. A sensação da arma contra o corpo deu-lhe mais segurança. Num passo brusco, foi ao pé da mesa,
fez saltar a rolha da garrafa - sentiu, com espantosa precisão, a pequena cápsula de estanho entre os dedos - depois bebeu três grandes goles. O gin, acre e quente,
descia-lhe pela garganta; já ele sentia o calor penetrar em largas ondas no interior do tórax. Durante alguns instantes, o ruído, nos ouvidos, tornou-se uma ameaça,
para depois cessar completamente. Atónito, o velho Filipe olhou à sua volta, pois uma claridade e um silêncio inesperados entraram em todo o seu ser. Bebeu outra
golada, depois, saindo do aposento, enfiou pelo corredor que ia dar à oficina dos decoradores.
- Ouça lá Bengtson, você pode ir agora lá a casa e trazer-me a Skimpy? A mãe está doente e eu encontro-me de serviço esta noite.
Erik permanecia de pé em frente de um cavalete em cima do qual estava colocado um quadro coberto com um pano velho. Agarrou nos pincéis e foi lavá-los à torneira.
- Lamento... pobre sr.a Bradley!... Liliana acabou de me contar. Mas eu não posso ir buscar a pequena. Toda a secção b8 deve ser remodelada esta noite.
B 8 era a secção das sedas estampadas, no 3.? andar. Depois do Dollar-day, essa secção parecia um campo de batalha, Filipe sabia-o.
-Que havemos de fazer então? -preguntou ele, voltando-se para Liliana, - A jovem esperava ao pé da mesa, com o seu vestidinho preto, de caixeira, o casaco no braço
e uma boina verde na mão. Era estranha esta nova lucidez com que o cérebro de Filipe apanhava outra vez tudo; imagens, ruidos, perfumes. Ouvia distintamente a torneira
pingar depois de Erik ter lavado os pincéis, o perfume de Liliana feriu-lhe o nariz, como qualquer coisa de palpável,
Sentia uma irritação ao respirar esse perfume pesado e voltou-se com ar pouco amável para a rapariga. "Tem passado muita vez a noite em nossa casa... Podia ir a
Fieldston e ficar ao pé de Skimpy."
Liliana encolheu os ombros. "Eu ia de boa vontade, mas tenho um encontro urgente" - respondeu. Erik despiu a bata manchada de tinta e vestiu o casaco. Filipe voltou-se,
indeciso: "É verdade... tinha-me esquecido completamente"... - disse, e as alusões de Toughy acudiram-lhe à memória. Eram agora tão notadas na sua memória, que tornou
a ver cada um dos pêlos da face do jovem detective. Erik olhou o com uma leve surpresa.
- Liliana tem ainda que me servir de modelo, esta noite, assim que eu acabar de arranjar a B-8 - disse. - O prazo expira amanhã de manhã e nos últimos dias quási
não pude trabalhar. E pegando na chave que tinha no bolso, dirigiu-se para a porta. vou só comer qualquer coisa à pressa - acrescentou. Liliana seguiu-o. Ao clarão
da luz, Filipe notou como Bengtson estava pálido. Um reflexo mate de suor cobria-lhe o rosto nervoso; os dois sulcos à Gary Cooper marcavam-se-lhe mais nas faces,
cheias de sombra. Filipe saiu com eles da oficina e observou os gestos de Erik, fechando a porta à chave. O par foi tomar o elevador. Emquanto ele os seguia com
o olhar, quando iam para o elevador, considerava a situação. Segundo todas as aparências, esta Liliana tinha prometido a noite a dois homens. "Hum... pensou, é preciso
que ela seja muito esperta, para ir aos dois encontros."
Agora a casa estava deserta e tranquila. Pertencia ao velho Filipe como lhe tinha pertencido durante numerosos anos. Errou pelas escadas, de andar em andar, inspeccionando
todos os cantos. Daí a pouco sentiu-se extraordinariamente descontente e agitado. Olhou para as mãos: tremiam quando as estendia. Pegou na sua chave, abriu um elevador
e subiu ao 12.? andar. 155
Todo o corredor cheirava a Liliana. Foi ao escritório e bebeu a metade do gin. Depois pegou no telefone e mandou ligar para Skimpy.
- Estás admirada de não termos ainda chegado a
casa?
- Sim, tio Filipe. Aconteceu alguma coisa?
- Escuta Skimpy, temos tido muito trabalho. Tens medo de estar sozinha em casa ? Não queres ser uma menina corajosa e ires dormir?
Passou-se um instante antes que Skimpy, no outro lado do fio, arrumasse tudo isso na sua cabecinha.
- Queres dizer que a mamã não vem para casa ? -Sim, é isso. Ela não está muito bem e a nossa
enfermeira está a tratá-la.
- Mas eu tinha feito o jantar para vocês!
- Queria saber se tens medo de estares sozinha em casa? -tornou a preguntar o velho Filipe.
Houve outra vez um instante de silêncio.
- Tenho sim, tio Filipe... - Isto foi murmurado com uma vòzinha, na qual já tremiam as lágrimas.
Filipe tinha agora o cérebro lúcido e não reflectiu um segundo:
- Presta muita atenção ao que te vou dizer, Skimpy. Daqui a uns minutos um automóvel há-de businar três vezes à porta. É um táxi que te mando. Metes-te nele e vens
para a Central. Quando chegares, preguntas por mim ao homem que está à porta, tu conheces bem o Joé, não é verdade? Ficas aqui ao pé de mim e ajudas-me a guardar
o armazém, queres?
- Os brinquedos também ?
- Sim, os brinquedos também. Mas avia-te, veste-te de-pressa que o carro vai já.
Filipe riu, pois não se ouviu nenhuma resposta: apenas o estalido seco do auscultador que Skimpy punha no descanso. Folheou a lista dos telefones e chamou para uma
garagem de táxis de White Plains, dando as instruções necessárias e dizendo que o táxi seria pago
assim que a pequenita chegasse à Central Warehouse. Bebeu mais um gole de gin e ligou para o hospital, para onde a sr.a Bradley tinha sido transportada. Disseram-lhe
que tudo ia bem. A operação correra perfeitamente, a doente estava ainda um pouco aturdida pelo narcótico, mas livre de perigo. Filipe soltou um suspiro de alivio.
Deslizou diante da garrafa mein vazia e saiu do 12.? andar. Calculou que Skimpy não poderia chegar antes de meia hora, justamente o tempo de fazer uma ronda ao estabelecimento.
Tal como tinha procedido durante vinte e sete anos, começou pela sala dos caixas. Examinou todos os postos de alarme no aposento semi-iluminado, encontrou, à saída,
um dos guardas da noite que acertava o relógio registrador ao pé da escada 8. Trocou algumas palavras com ele e continuou a sua ronda. No grande escritório das dactilógrafas,
as máquinas de escrever estavam arrumadas em boa ordem, todas cobertas com a capa de oleado. Continuou o seu passeio por todos os andares, acendendo aqui e acolá
a sua lâmpada de algibeira; parando, apurando o ouvido, espiando o silêncio do enorme edifício e continuando o seu caminho. No rés-do-chão parou um pouco ao pé da
porta de Joé.
- Ouça lá Joé, vão trazer aqui uma menina; é a filha da sr.a Bradley. Aqui tem dinheiro para pagar o táxi. Chame-me, assim que ela chegar, percebeu?
- Sim senhor, chefe.- respondeu Joé levando a mão ao boné. As vigílias comuns tinham-nos feito velhos amigos. Joé, além disso, havia ajudado, quando transportaram
a sr.a Bradley na maca para o carro da ambulância.
- Só me falta descer à cave e depois acabou-se. disse Filipe, continuando a ronda. Joé viu-o partir abanando a cabeça, até que a sua sombra desapareceu da parede.
"Que pena... pobre homem ! - comentou pensativo.
Filipe percorria o território plebeu da cave. Aí reinava um verdadeiro caos depois da batalha do Dollar-
Day- Atravessou a secção de armamento que tinha sido passada para baixo, seguiu a dos móveis baratos e chegou ao fim, à porta de ferro do depósito de peles, pegou
na chave e na lâmpada de algibeira e manobrou a complicada fechadura. Abriu a segunda porta, entrou. Estava escuro lá dentro e respirava-se um ar acre e frio. Fez
luz; todo o sortido de peles estava reunido no vasto aposento, cada uma delas cuidadosamente embailhada num resguardo contra as traças. Havia ali mais de cem mil
dólares entre as filas dos tubos do frigorífico. Filipe tivera sempre um fraco pelo armazém de peles; era como um mundo aparte, lá em baixo, um mundo frio e fechado.
A sala era muito alta e cruzada em todos os sentidos pelo complicado sistema de tubos que mantinham a temperatura a 28º. Meteu-se entre as peles, automaticamente,
segundo um hábito adquirido no decorrer de anos, encontrou tudo em ordem e voltou à porta. Maquinalmente, ligou a campainha e saiu do depósito, deixando o alarme
pronto a poder funcionar.
A entrada do armazém das peles era cheia de instalações automáticas, como na sala dos caixas. Como ele agisse de uma forma mecânica e habitual, o velho Filipe tinha
quási esquecido que as campainhas de alarme não roçavam. Mas, um segundo mais tarde, o silêncio caiu sobre ele como qualquer coisa de palpável, uma espécie de pano
negro ou uma pancada. Ficou petrificado no mesmo sítio, com as mãos estendidas, tremendo, tremendo desesperadamente. Pegou no revólver, mas era um movimento absurdo.
Agora ouvia o martelar do seu coração, no peito, nas fontes, em toda a parte... as campainhas de alarme não funcionavam !
Como o silêncio persistisse e não surgisse nenhuma sombra sobre que pudesse atirar, o velho detective julgou-se no dever de descobrir donde provinha a paragem dos
sinais. Podia ser apenas um desarranjo dos fios de que Toughy, na sua confiança em si próprio, nem dera conta. Tateou até ao botão secreto, abriu um pequeno
cofre de ferro incrustado na parede e tentou acender uma lâmpada encarnada. O sinal luminoso, tal como as campainhas de alarme, não funcionava. Fechou cuidadosamente
o cofre e, sempre na defesa, transpôs a porta. Havia ali instalações que deviam disparar automaticamente, das quais nunca fizera grande caso. Voltou ao depósito
e, no ar envinagrado e no pesado silêncio, inspeccionou todos os cantos: não descobriu nada. Não percebeu mesmo que agia de uma forma insensata e temerária, pois
se um ladrão se tivesse escondido entre as peles, Filipe estaria, havia muito, reduzido à impotência. Na angustiosa tensão de nervos provocada pela sua descoberta,
tinha mesmo esquecido Skimpy. Subitamente, lembrou-se da criança. Abandonou o depósito das peles, transpôs prudentemente a porta que fechou à chave. com a mão sobre
o gatilho do revólver que tinha no bolso, atravessou rapidamente a cave e tomou o elevador, para subir. Durante segundos, traçara o seu plano; não participaria nem
aos guardas da noite, nem à polícia as suas suspeitas. Se depois se descobrisse qualquer coisa nas instalações eléctricas, qualquer curto-circuito, fariam troça
dele. Se qualquer coisa de anormal tivesse que se passar no depósito das peles, e um instinto preciso, insinuante, angustioso, parecia adverti-lo, queria combatê-lo
só, queria reservar para si todo o perigo e toda a honra.
- Ah! cá estás! - disse ele, assim que chegou ao aposento de Joé e viu Skimpy. Ela vinha toda bonita: esfregara energicamente a cara e as mãos com sabonete, antes
de se lançar nesta grande aventura.
- O Joé disse que a minha mamã está no hospital.
- murmurou, de cabeça pendida para o peito, mas sem chorar.
- Sim, sim... mas está melhor e mandou-te dizer que não tenhas medo. Amanhã de manhã, iremos vê-la
- disse Filipe. Ele já não sabia o que fazer da criança pois tinha que voltar à cave. Tu não queres ficar aqui ao pé do Joé e dormir em cima do sofá ? - preguntou.
- Não. - disse vivamente Skimpy.
Era um velho sofá, cuja crina saía por todos os lados, que estava impregnado com cheiro de tabaco de cachimbo. Joé riu com bonomia.
-Quero ir para o pé dos brinquedos.-declarou Skimpy.
Ela estava quási a chorar, mas continha-se corajosamente. Filipe pegou-lhe nas duas mãos.
- Joé, - disse ele, antes de partir com a criança, escuta. Tem esta noite especial cuidado, se notares o que quer que seja de suspeito, chama imediatamente a polícia,
percebeste?
- Sim, chefe - disse Joé com um novo cumprimento. Não percebia nada. "O velho está cada vez mais velho", foi tudo quanto pensou.
Filipe entrou no elevador e subiu à secção dos brinquedos. A mãozita confiante tremendo na sua mão, acalmava-o um pouco, com o seu calor.
- Agora escolhe qualquer coisa para brincares, mas de-pressa e toma cuidado; é só emprestado. Não tens nada que ver como é feito por dentro. - disse ele, pois conhecia
as bonecas de Skimpy, cujas cabeças abertas tinham sido vítimas da tendência exploradora da criança. Skimpy, que tinha o sentimento de ser uma grande pessoa, fingiu
um interesse frio. Filipe meteu lhe nos braços uma boneca e uma paciência e subiu com ela até ao
12. andar.
- Escuta, - disse ao guarda que encontrou lá em cima - vigia bem esta noite, especialmente as escadas de socorro e a cave.
- Muito bem, chefe. - disse o homem, fazendo pouco caso da recomendação.
O velho detective não sabia ao certo o que devia fazer da criança. Todo o seu corpo ardia de impaciência, o seu escritório, ou antes, o escritório de Cromwell, era
um sítio miserável e Skimpy não queria lá ficar. Tomando uma rápida decisão, abriu a oficina de decoração, acendeu
a luz e olhou à sua volta: Bengtson não estava ainda de volta; no cavalete, o quadro continuava coberto... O perfume de Liliana flutuava pesadamente no ar.
- Bem ... podes instalar-te aqui a brincar... ou a dormir. - disse, rapidamente.-Eu volto já. Mas é preciso que não saias daqui, mesmo que ouças barulho. Compreendeste?
Erik vai chegar daqui a pouco. Poderás ajudá-lo a pintar.
- A Nina também cá está ? - preguntou Skimpy.
- Não. Saiu. - respondeu Filipe.
Esperou ainda um instante que Skimpy se instalasse na cama de campanha com a sua boneca, depois dirigiu-se para a porta. Num segundo, teve o pensamento de que a
criança fora a última pessoa que lhe tinha sido dado ver... Talvez uma bala lhe estivesse destinada nessa noite, na cave, no depósito ou nas escadas. Hesitou um
pouco, depois voltou em passo vivo ao escritório que fechou à chave. A garrafa lá estava, meia vazia. Bebeu alguns goles grandes, sentiu calor; a lucidez de espírito
e a decisão entraram em si e pôs-se a rir, pensando em Toughy.
-"Ele precisa de barbear-se duas vezes!" - murmurou, com desdém. Pôs a garrafa na algibeira, procurou com a mão o revólver, meteu algumas balas de reserva no bolso
do casaco e saiu. Parecia a Filipe que já tinham passado muitas horas desde que o armazém fechara.
Desceu ao depósito das peles e abriu as portas. O silêncio e o frio reinavam no interior. As peliças estavam alinhadas em boa ordem e os tubos, pintados de branco,
ziguezagueavam entre elas. Filipe tirou um dos casacos e envolveu-se nele, antes de se sentar a um canto para esperar. Daí a pouco tinha os dedos hirtos de frio,
doíam-lhe os dentes. O tempo passou.
Não acontecia nada.
Erik estendeu a mão por cima da mesa.
- Mas... é proibido... - hesitou ele.
- Proibido ? - replicou ela, rindo - Como háa"de acabar o teu quadro se eu não vier?
- Podes vir sem ter a chave.
- Quando, às nove horas ?
- Um pouco mais tarde. Tenho de acabar primeiro a B 8 e vai levar tempo.
- Então quando ? Às onze horas ? Posso esperar.
- Tu sim, eu não. - replicou Erik, aborrecido.
Estavam no "Rívoldi". Sim, agora estava com Liliana no "Rivoldi" atrás da mesa de mármore, sobre o velho banco de veludo.
-Vamos, dá-me a chave. vou às onze horas e subo directamente à tua oficina.
- Aborrece me entregar isto - disse Erik, hesitante, pousando sobre a mesa o pequeno molho de chaves.
- Então, não. - terminou Liliana, levantando-se - Estou farta de dar nas vistas e de falatório... quando, de noite, vou ter contigo, e me têm de acompanhar.
- Pronto. Aqui está a do elevador, escada 5 - decidiu-se Erik, indicando as chaves. Tinha-as posto em cima da mesa, mas Liliana nem para elas olhava. Já sabes, no
12. andar vais até à boca de incêndio, voltas à direita e
assobias. Se eu ainda lá não estiver, abre a porta da oficina e espera-me. Há cigarros na gaveta.
- Entendido, - retorquiu Liliana - não te canses muito. Adeus Baby.
Pegou nas chaves e meteu-as na malinha.
- Agora tenho de me aviar.
- Tão de-pressa!...
-Tenho muita. Descobri um cabeleireiro que me penteia depois das sete horas. Vou-me embora. combinado. As onze.
Erik viu-a sair. Possuía o mais belo corpo de mulher, que lhe tinha sido dado contemplar. Todos os comensais se voltaram; era uma dessas raras criaturas que, mesmo
com capa de borracha, parecem nuas. Assim que a porta se fechou atrás dela, Erik acendeu outro cigarro. Continuou sentado diante de uma chávena de café. O criado
aproximou-se, limpou a mesa e quis falar-lhe em italiano, mas Erik não respondeu. Também não tinha vontade de voltar de noite à loja para arranjar a secção das sedas,
não tinha vontade de acabar o quadro, era-lhe indiferente ganhar ou não o prémio. Sonhou um momento, pegou no lápis e desenhou qualquer coisa na mesa. Ao princípio,
alguns projectos para a secção de sedas, depois qualquer coisa que apagou com o dedo. Esperou uns minutos ainda, olhando fixamente na sua frente, com os olhos vagos,
Por fim, levantou-se, pagou e foi-se embora.
Sobre o mármore coberto de nódoas, distinguia-se um esboço um pouco apagado: não era o retrato de Liliana, mas o de Nina.
Durante esse tempo, Liliana seguia à pressa pela rua 41.a, depois tomou a 8.a Avenida. Um automóvel verde esperava-a, entre os carros parados diante de um hotel.
Liliana subiu. O motorista era um bonito rapaz de cabelos pretos, anelados. "Anda, anda, Kid. É tarde." - disse ela. Desceram rapidamente a avenida. "Bill está lá?"
- preguntou ela.
- Esperam desde as sete horas. Há qualquer coisa em vista?
-Anda e cala-te. - respondeu Liliana, muito nervosa. Fumava um cigarro que meteu na boca do rapaz. Contente, ele fez uma careta. O carro andou rápido, obliquou e
parou bruscamente. É melhor tu esperares aqui disse Liliana, descendo.
O prédio no qual Bill tinha alugado um andar, exibia um luxo burguês um pouco exagerado. Falso tapete do Oriente na entrada, uma jovem mulher com um olho de vidro
no escritório de recepção, um negro no elevador. Este teve uma piscadela de olho, interrogativa, levando-a para cima. "Isto vai bem, Pedro"-respondeu, aborrecida.
Na sua casa, tocava a T. S. F.
- Até que emfim!-disse preguiçosamente Bill, quando ela entrou. Como sempre, o aposento estava cheio de fumo: garrafas vazias, um balde de gelo, tudo em cima da
mesa. Um copo tinha-se entornado sobre o brocado e o álcool pingava pegajosamente para o chão. Liliana atravessou o aposento, encaminhando-se para o seu quarto de
dormir. Olá ?"-- limitou-se a dizer. Tirou o chapéu e, no espelho, viu-se pálida sob a pintura. "Não fui feita para estas coisas" - pensou fugitivamente.
As asas do nariz estavam quási verdes de medo. Bill seguiu-a ao quarto.
- Então, arranjaste tudo ? - preguntou. Ela tirou as chaves da bolsa.
- Aqui estão. - disse. Bill riu baixo. Não agarrou logo nas chaves. Liliana levantou-se e voltou à sala. Big Paw baloiçava-se molemente numa poltrona, tendo ao colo
Máxima, que se levantou à aproximação de Bill. Era loira, pálida e muito nova; tinha a figura de uma bailarina. Liliana percebeu que Bill estava sob a influência
da cocaína. Ele tinha dito que tomava sempre cocaína, quando empreendia algum golpe difícil. Os olhos brilhavam-lhe. O bando trouxera nesse dia um homem de
reforço, com ombros largos de boxeur desenhando-se sob o pano verde do seu uniforme de groom.
Bill mergulhou a mão no bolso e tirou um estojo. Fez-lhe saltar a mola e exibiu um broche ornado com uma grande esmeralda ... Atirou a jóia para a frente de Liliana.
"Lindo trabalho, an? A lapidação fez-nos perder dois quilates, mas agora ninguém conhece a pedra." disse, com ar amável. Num gesto brusco, Liliana pegou na jóia.
Era a sua recompensa por ter vendido Erik.
- Pronto.-respondeu, pondo sobre a mesa um plano traçado à pressa - Deixem-me fora de tudo isto. Levai Máxima, e está tudo acabado entre nós, assim o espero. Pôs
as chaves ao pé do plano, sobre a mesa, no sitio onde estava a nódoa de álcool. As suas mãos pareciam curiosamente alongadas e pequenas ao pé dos rudes punhos de
homem que se lançavam sobre as chaves.
- Ah! sim? Estás farta de nós? Mas talvez não estejamos nós fartos de ti, minha menina. - disse Bill. Galantemente, Big Paw interpôs-se:
- Deixa-a em paz, ela trabalhou bem. - reconheceu. Liliana olhava para todos, um após outro, como se
saísse de um sonho. Os rostos estranhos, as mãos estranhas, a esmeralda ...
- Devem ir. - disse ela - Às nove horas o gorila
vem-me buscar.
Bill teve um novo ataque de riso. Alisava ainda
mais os seus cabelos lisos.
- Divirtam-se. - gracejou.
- Obrigada. - respondeu Liliana, abstracta. Bill aproximou-se dela e bateu-lhe no ombro: - Se isto correr bem, dou-te um lindo presente-prometeu. Bruscamente, inclinou-se
para a rapariga e colou os lábios vermelhos aos seus. Máxima olhava-os com ar zangado.
Assim que partiram, Liliana abriu as duas janelas e preparou um banho quente, pois estava gelada. Quando saiu da água, sentiu-se com melhor disposição. VoLtando
à sala, rebuscou as garrafas quási vazias. Eles tinham também absinto. Fez uma mistura de bebidas e enguliu essa mistura, que sabia fortemente a Kummel. Logo depois
sentiu invadi-la um calor e a habitual sensação de temeridade subiu-lhe à cabeça. Pôs-se diante do guarda-fato, acariciou os vestidos novos e caros e escolheu, emfim,
um vestido verde, de seda pesada, que lhe modelou as formas. O telefone, ao lado da sua cama, tocou. O relógio marcava nove menos cinco. "O sr. Cromwell está aqui"-anunciaram.
"Que me espere no hall, daqui a um instante estou pronta."-disse Liliana. Ela detestava o jovem detective, que achava ridículo. Num capricho súbito, tirou do armário
o casaco de arminho e pô-lo nos ombros. Tomou mais um copo, sentiu-se um pouco embriagada e, rindo a bandeiras despregadas, pôs o broche de esmeralda. O telefone
fez-se ouvir pela segunda vez. "Sim, desço imediatamente." - disse, encolerizada. Cromwell era grotesco na sua impaciência. Liliana, de pé em frente do espelho,
deu mais uma gargalhada pensando no que se passava na Central, emquanto ela ia sair com Toughy!
"Santo Deus!" - exclamou Cromwell, assim que a viu sair do elevador.
Perplexo, fitava o vestido, o arminho, as grandes luvas brancas. Ele tinha também vestido o seu melhor fato azul-escuro, que lhe assentava muito bem. Como só aos
antigos oficiais assentam os fatos.
- Santo Deus. - repetiu ele. Liliana, sobreexcitada pelo absinto, respondeu:
- Ora vamos... não sabes que os manequins são as mulheres mais caras de New-York?
Às onze menos um quarto, com dores de cabeça e as mãos sujas, Erik saiu da secção de sedas. Em baixo, continuavam a trabalhar, mas sem ele. Tinha arrepios e sentia-se
aniquilado.
- Não é muito confortável para a noite, o armazém.
- resmungou. Teve que atravessar a secção de artigos japoneses, absolutamente às escuras. Tirou a lâmpada da algibeira: os Budas estavam aqui e acolá, surgindo da
sombra.
Chegando em frente do elevador, perdeu imenso tempo a procurar as chaves, até que se lembrou de as ter emprestado. "Diabo!"- disse. Os nove andares, desde o
3.? até à oficina pareciam-lhe extenuantes e intermináveis.
Sempre resmungando em voz baixa, dirigiu-se para a escada e começou a ascenção. ? Era como uma subida difícil, na montanha. Ele subia, subia, já lhe faltava o fôlego
e ainda estava no 8.? andar. Parou, escutou ouvindo passos; de facto, apareceu um guarda.
- Se faz favor leve-me até à oficina e abra-me a porta - disse, acanhado - pois acabava de se lembrar que não podia entrar na oficina porque Liliana tinha as chaves.
O guarda resmungou qualquer coisa, pois fazia as rondas num semi-sono e não lhe agradava nada ser incomodado. No entanto, decidiu-se e tomou o elevador com Erik,
até ao 10. andar.
- É um ofício bem desgraçado, o nosso! - disse Erik, emquanto percorriam o corredor e passavam pela boca do incêndio, para a oficina.
- Como? - preguntou o guarda.
- É que ... você pode dormir de dia? - preguntou.
- Porque não? -respondeu o guarda, rindo.
- Melhor para si. Eu não posso. E tirou do bolso o maço de cigarros, metendo-o na algibeira do peito do uniforme do guarda.
- Está aberto. - disse o homem, depois de ter feito deslizar a chave na fechadura.
-Sim? Ainda bem. - replicou Erik - Obrigado e boas-noites.
Hesitou um instante antes de entrar. "Liliana já lá está" - pensou. Sentiu-se cansado, como que vazio, incapaz de terminar o quadro.
"Que os demónios levem o prémio!" Tinha a impressão de não ter dormido havia semanas, sim, de não ter dormido desde que Nina o tinha deixado. Dominou-se e abriu
a porta.
Liliana não estava lá, a-pesar-do aposento parecer animado. A primeira coisa que viu foi uma folha de papel, espetada com um alfinete, no pano que cobria o retrato
que estava no cavalete. Deu dois passos e leu:
"Se faz favor deixe a Skimpy passar a noite consigo. Se acontecer alguma coisa, queira levá-la amanhã à mãe ao hospital Santa-Maria. Obrigado. Filipe."
Erik olhou à sua volta e não distinguiu a criança imediatamente. Skimpy tinha rolado até à orla do leito, antes de adormecer. Colocara em cima dela o sobretudo de
Erik; muito chegada ao nariz, estava a cabeleira de uma boneca. A respiração era regular; uma suavidade, uma calma, emanavam dessa criança adormecida. "Se tenho
a desgraça de me deitar-pensou Erik -adormeço imediatamente." Lançou sobre os objectos um olhar vago e acabou por se sentar numa cadeira, a um canto. Esperou, aborrecido
e cansado. O relógio da
torre deu onze horas. Esperou ainda. Liliana não chegava. Erik levantou o auscultador e Joé respondeu:
- Está lá, Joé ? Ninguém preguntou por mim ? Não há nada para mim ? Ouça Joé, espero um dos manequins, deixe-a entrar quando ela vier. Que tome a escada 5. Como
? Se tem uma licença ? Sim, naturalmente. Obrigado, boas-noites.
"Onze horas e meia. Que mulher fatigante, esta Liliana!" - pensava Erik. Doíam-lhe os membros, os olhos fechavam-se-lhe. Levantando o pano, descobriu o quadro. Não,
não valia a pena pintar. Skímpy respirava, no seu canto. Erik deitou-se junto dela e soltou um suspiro. Não queria dormir... no entanto... adormeceu imediatamente...
QUARTA-FEIRA à noite tenho visitas, quero apre sentar-te aos meus amigos" - tinha dito Steve Thorpe a Nina, depois da última noite frustrada. Fazia o que fazem muitos
homens da sua idade e da sua posição. Já que não podia possuir Nina, queria ao menos dar na vista. Mostrava-se com ela por toda a parte onde ia: no teatro, no restaurante.
Tinha-a forçado a aceitar alguns lindos vestidos e tratava-a, como se ela fosse uma rainha disfarçada. No seu foro intimo, desejava que Lúcia se encontrasse um dia
com Nina. O convite feito aos seus amigos, tinha mesmo um fim: a certeza de que um deles contaria à sua ex-espôsa que vivia com uma mulher em casa e que parecia
feliz. Era já a segunda semana que Nina passava na habitação de Thorpe, em White Plains. Tinha aprendido a apanhar a coberta emquanto dormia, para evitar que caísse,
a
sustentar o olhar do criado e a receber, à noite, os convidados de Steve. Muitas vezes sentia a cabeça pesada. Em geral vivia como num sonho, num espaço sem ar.
Não se atrevia a preguntar a Steve quando lhe alugava a casa prometida, e ele pelo seu lado, parecia ocupado demais para pensar nisso. Havia dois dias que tentava
iniciá-la nas bases do jogo de bridge, e ela ouvia, com os olhos fixos, sem perceber nada. Ele ameaçava-a também de lhe dar um professor de piano, pois tinha uma
vaga
inclinação para a música, e queria que Nina, com a sua vòzinha, lhe cantasse canções. Desde a noite em que a fizera beber, cessara com as suas assiduidades. Nina
não tinha a consciência tranquila, pagavam-lhe e ela nada dava em troca. Tinha adquirido na Central a idea confusa de que a compra e a venda formavam as bases da
vida. Valor e contra-partida. Pagamento e produção. Sabia que aquilo não podia durar muito tempo assim. De qualquer lado que a considerasse, a situação era torta
e falsa. Competia-lhe dar a Steve o que ele esperava.
-És amável em me dares tempo, para me decidir ... - murmurava Nina, receosa.
Emquanto que ou dormindo ou acordada, sonhasse com Erik, não estava ainda madura para o sacrifício.
Na quarta-feira à noite ela estava um pouco excitada. Steve voltou do escritório mais cedo que de costume, e desapareceu imediatamente no seu quarto de vestir.
- Que devo pôr ? - preguntou Nina, através da
porta.
- O vermelho- escuro. - respondeu Thorpe. Ela ficou, por momentos, admirada que conhecesse a cor dos seus vestidos... Vestiu o vermelho-escuro, mas teve que parar
para se sentar. Sentia-se aturdida. Os lábios, bruscamente, tornaram-se frios.
O ruído que o criado fazia a pôr a mesa, chegou até ela com a emanação discreta dum cheiro a galinha assada vindo da cozinha. Pensando na comida, Nina teve uma ligeira
náusea contra a qual lutou com energia. Não posso ter gripe, não faltava mais nada! - disse, descontente. Desceu e lançou uma vista de olhos para a casa de jantar.
O mordomo, que não se chamava James, estava limpando os copos, embaciando-os com o bafo e olhando-os depois à luz. Este espectáculo provocou em Nina uma nova náusea.
Tirou-lhe o copo da mão e pô-lo em cima da mesa. De resto, ela era mais competente do que ele a respeito de vidros e do arranjo
de uma mesa. "Está bem, Trompsted" - disse. Tinha conseguido saber o nome do mordomo.
- A senhora deseja que sirva Pomard com a galinha ou vinho do Reno ? - preguntou ele, impenetrável. Ela sabia que ele gostava de a troçar. As suas mãos encontraram,
como uma coisa familiar, a sensação dos copos e da porcelana.
- Não sei nada disso. Você, Trompsted, deve saber melhor do que eu. - disse.
O criado inclinou-se.
- O dr. Back é vegetariano. - acrescentou ainda Ele não gosta que insistam para o obrigar a comer carne.
- De que terra é, Trompsted ? - preguntou Nina. A sua pronúncia agrada-me.
- Sou dinamarquês - declarou ele, colocando, com a ponta dos dedos um cinzeiro e cigarros ao pé de cada talher. Depois recuou e inclinou a cabeça, para o lado, afim
de avaliar o efeito do seu trabalho.
-Oh! Dinamarquês... - exclamou Nina - Tenho... tenho amigos dinamarqueses. A condessa Bengtson. Esperava uma observação qualquer que não veio.
- A minha família era muito grande na Dinamarca
- disse Trompsted, e pôs-se a olhar sonhadoramente as taças de flores que Nina dispunha em cima da mesa.
- Está bem, Trompsted. - disse ela. O mordomo afastou-se.
Steve chegou de cima; cheirava a sabonete de barba e esfregava as mãos. Os cães saltavam à volta dele, como loucos. "Então, pequenos mendigos?"-disse com bom humor,
agarrando ambos nos seus braços. Max era um verdadeiro palhaço e Moritz possuía uma natureza trágica. Gostava das atitudes à Greta Garbo. A campainha soou à porta
de entrada: os primeiros convidados chegavam.
Steve tinha convidado cinco homens e Nina não achou nada de extraordinário na ausência de senhoras, Agora tinha mais acanhamento do que no dia em
que fora exposta na vitrina, nessa vitrina em que Steve falava constantemente. A cada um dos convidados contava a história: como tinha visto Nina na montra e como
tinha ido às informações inquirindo a forma de a comprar. Parecia orgulhoso da sua conquista ou da sua aquisição ou - qualquer que fosse a denominação-do facto de
ter tirado Nina da montra para a trazer para a sua mesa.
Os senhores, cujos nomes Nina não tinha compreendido, dirigiam-se a ela com uma benevolência a que não era estranho um certo embaraço. Dividiam a sua admiração por
Nina e pelos bassets. O dr. Back era um homem de cabelos brancos como a neve, e olhos azues, que pretendia ter um coração muito jovem. Como Steve tratasse Nina com
uma delicadeza requintada, os convidados estavam um pouco tímidos e, com discrição, Trompsted trouxe os cocktails. Nina olhou-o amigavelmente porque ele era dinamarquês.
O rádio tocava, todos falavam ao mesmo tempo, tinham vozes fortes e riam muito. De súbito, as paredes da biblioteca, onde estavam reunidos antes do jantar, pareceram
afastarem-se de Nina: era uma impressão esquisita como se ela não estivesse ali; as palavras não feriam o seu ouvido senão de uma forma indistinta. Tony, que envergava
às vezes a libré de criado, abriu a porta da sala de jantar. O dr. Back ofereceu o braço a Nina e ela ficou reconhecida que quisessem guiá-la através do nevoeiro
que a rodeava. Assim que Trompsted passou a lagosta pelo seu ombro, sentiu-se mal.
Visível e indubitavelmente doente. Supôs que fosse o efeito do cocktail, mas teve apenas tempo de se levantar da mesa e correr ao seu quarto. Trompsted continuou
a servir, impassível, e Steve ria com ar contrariado, "Ela não pode suportar o fumo. - disse - É tão delicada, uma verdadeira criança."
Os cinco senhores puseram-se a falar todos ao mesmo tempo, para afastar o embaraço... Como Nina
não voltava, Steve segredou qualquer coisa ao ouvido do mordomo. O criado afastou-se e voltou segredando também a resposta. "Continua doente" - disse Thorpe um pouco
aborrecido. "Gripe" - lembrou Green que tinha sido seu sócio. "Toda a gente tem gripe, por causa do calor"-aprovou outro. Puseram-se então todos a falar da gripe
e a discutirem as suas fases e se era verdade que os morangos se tratavam com arsénico e se constituíam um perigo.
Quando serviram o café, o dr. Back pousou o guardanapo e saiu. Fez ao seu amigo Steve um sinal e Steve, reconhecido, respondeu-lhe do mesmo modo. Ouviram o médico
subir as escadas, que iam dar aos quartos.
O cognac foi servido em grandes cálices e os convidados voltaram para aquilo a que chamavam a biblioteca: era um aposento que tinha de tudo, menos livros. Instalaram-se
para jogar o bridge e Steve sentou-se em frente de Green ao pé do fogão de sala, diante do jogo de xadrez. Mas não jogou imediatamente porque estava distraído e
aborrecido. A-pesar-de gostar de Nina não podia dissimular que ela representava um malogro em toda a linha. Assim que saiu para ir buscar cigarros para os convidados,
teve o sentimento preciso que troçavam dele em vez de o admirarem.
Mas os aborrecimentos de Steve Thorpe nessa noite ainda não tinham acabado. Mal colocara as marcas de xadrez e feito as três primeiras puxadas, apareceu Trompsted
na biblioteca, debruçou-se para o patrão e disse-lhe qualquer coisa ao ouvido.
- "Como ? Que está a dizer?" - preguntou Thorpe. Trompsted, imagem da dignidade e da discrição, repetiu a misteriosa nova. Thorpe, sufocado, balbuciou: "desculpem-me."
e correu para fora do aposento. A sua partida foi tão súbita, que até os jogadores de bridge foram por momentos arrancados à sua concentração. De mau humor, Green,
o parceiro de Thorpe, ficou sentado diante da partida começada.
- Onde está ela ? - preguntou Thorpe logo que, seguido pelo criado de quarto, chegou ao vestíbulo. com o queixo, Trompsted designou a porta da entrada: era um gesto
pouco respeitoso. "Porque a deixou lá fora, santo Deus ! - exclamou Thorpe em voz baixa. "Madame Thorpe não quis entrar, senhor." - disse o criado, um pouco vexado.
Thorpe empurrou-o para o lado e lançou-se para a porta entreaberta.
Fora, sob a lanterna da entrada, Lúcia estava de pé. Parecia muito infeliz.
-Lúcia... como estás magra!...-disse Thorpe, à queima-roupa.
- Obrigada, perdi vinte e dois arráteis - respondeu ela como mulher que, mesmo na adversidade, não se esquece de verificar todos os dias o seu peso.
- Que posso fazer por ti?... emfim ... não queres entrar... tenho algumas visitas... tu conhece-las... Green, o dr. Back... estou muito contente por te ver... -
balbuciou Thorpe.
- Justamente. Não quero ... visto que tens gente... é a ti só que desejo falar. - disse Lúcia. Ela tirava, nervosamente, o veuzinho que lhe cobria a testa e os olhos.
Um ramo de violetas artificiais enfeitava-lhe o chapéu, como exigia a moda dessa primavera, e pareceu a Thorpe que nunca tinha visto nada mais triste do que essas
violetas.
- Vem, eles estão a jogar o brídge, ninguém te verá.
- disse vivamente pegando-lhe na mão e atraindo-a para casa. Assim que chegaram ao vestíbulo, não soube muito bem para onde a devia levar. Ela tremia toda e, com
a breca, ele tremia também. Da biblioteca chegava o riso dos jogadores. Em cima, do lado dos quartos, podia ouvir-se a voz monótona e ensurdecida do dr. Back que
parecia quási que resava. Steve lembrou-se de-repente que tinha Nina em sua casa; subiu-lhe calor à cabeça. Afastou as portas do salão e fechou-as logo. Green, ofendido,
tinha-se ido sentar para diante do fogão de sala e
lia uma ilustração. A T. S. F. tocava. Na sala de jantar, Tony, fazia arrumações. Na cozinha, Trompsted entrechocava os copos, Tomando uma rápida decisão, Thorpe
levou Lúcia atrás de si para um aposento chamado a sala do ping-pong. Actualmente, os cães tinham ali os seus cestos. Saltaram em volta de Lúcia, os seus latidos
amigáveis pareciam quási lamentos, tão agitados estavam. Algumas palavras a respeito de Max e Moritz fizeram passar os primeiros minutos. Thorpe pediu a Lúcia para
se sentar numa poltrona e colocou a luz um pouco de lado para a afastar dela, Fazia-lhe mal olhá-la e admirava-se disso. Mil vezes tinha imaginado e sonhado como
seria, se ele se encontrasse em frente de sua mulher. Tinha imaginado tudo, desde o frio desdém até à ofensa mordaz, desde a recusa de a reconhecer, até ao assassinato.
Agora, ali estava em pé em frente dela, receando olhá-la e, com o coração a doer-lhe.
- Queres comer alguma coisa ? - preguntou. (O seu rosto parecia-lhe tão magro!) "Obrigada, estou de dieta." - respondeu. E ele lembrou-se que os regímens de Lúcia
tínham-no feito, muitas vezes, encolerizar.
Sem lhe fazer outra pregunta, foi à copa, encheu dois copos de cognac, rebuscou o frigorífico e encontrou um resto de lagosta. Sob os olhares da cozinheira, ofendido
com a sua invasão, dispôs os seus achados em cima de um prato e levou tudo a sua mulher. Era o instinto do troglodita: primeiro alimentar a esposa. O resto seguiria
ao acaso... E de facto, Lúcia bebeu o cognac, com reconhecimento, e pôs-se a mastigar alguns pedaços de lagosta como se se escondesse de si própria.
Tinha as pálpebras inchadas das lágrimas e a maneira como o rouge se espalhava um pouco por toda a parte, denotava um verdadeiro desespero. Steve meteu-lhe um cigarro
na boca, enxotou os cães, que mandou deitar nos seus cestos e sentou-se emfim ao lado de Lúcia. Agora, ela já não tremia.
- Não queres tirar o chapéu ? - preguntou.
- Não, obrigada, - disse vivamente puxando o véu para os olhos...
- Tens qualquer coisa a dizer-me? Podes contar-me tudo como se eu fosse teu advogado... não de outro modo. Estou habituado a ouvir... e se precisas de um conselho..
- Não preciso de nenhum conselho - disse Lúcia, sacudindo energicamente a cabeça, de forma que as violetas tristes do chapéu estremeceram um pouco.
- Dois e dois fazem muitas vezes cinco, nesta vida, graças a Deus. - disse Thorpe - Era uma sibilina máxima muitas vezes utilizada na prática dos seus negócios cuja
urbanidade e experiência produziam um efeito calmante, Lúcia olhou-o com atenção.
- Mudaste muito, Steve! - disse ela.
- Tomo isso como um cumprimento. - respondeu ele. Distraída, olhou-o sem ouvir:
- Assim que me fiz conduzir aqui, pensei logo que poderias ajudar-me. Mas tu falas em contar... É difícil, Steve...
Deixou escapar um soluço ruidoso, como fazem as crianças que já choraram muito. Aquilo não ficava bem com o seu rosto emmurchecido, mas comoveu Thorpe, Havia um
quarto de hora que ele tinha esquecido completamente Nina, era como se ela nunca tivesse existido.
- Não me casei com Peruggi. - disse Lúcia - Pu-lo
na rua.
- Nunca o considerei como uma pessoa estimável ... - concordou Thorpe, amavelmente.
E a onda, de súbito, quebrou todos os diques. Sua mulher lançou os braços em cima da poeirenta mesa de ping-pong e pôs-se a chorar lágrimas quentes, sem as poder
conter. Entre lágrimas e soluços contou a sua história, por fragmentos e, por vezes, de forma pouco compreensível.
- Estimável, não era, não... - soluçava ela com o rosto nas mãos. Era um intrujão, um criminoso. Viveu
à minha custa. Fez-se sustentar por mim ... pediu dinheiro emprestado .. sabes como o gastou? E roubou-me o meu anel de esmeralda. Sim, foi ele com certeza.. sempre
estive certa disso mas nunca lho disse. Calei-me ... Como poderia dizer a um homem : tu roubaste o meu anel ? Nem sequer confessá-lo a mim mesma, embora sempre estivesse
convencida disso. Ele tinha más maneiras, se bem que dissesse serem italianas ... há italianos ordinários, mas deve também havê-los bem educados. Emfim, era um conde
e não um vendedor de gelados. Palita os dentes à mesa depois de comer, e pragueja constantemente. Mas tudo isso ainda eu suportaria ... Gabava-se muito da sua família
aristocrática... e pedia-me dinheiro emprestado. Tinha prometido casar comigo em Verona... onde estão enterrados Romeu e Julieta ... era tão romântico!... e eis
que descubro que gastava o meu dinheiro com amantes... não sei a quantas mulheres, prometeu a mesma coisa: esse casamento na catedral de Verona. Então, naturalmente,
disse-lhe a verdade... que me tinha roubado o anel. "Dá-me o anel que me roubaste, é muito lindo para a canalha com quem andas." Então, dir-se-ia que estava louco,
um bruto, um verdadeiro bruto ... arrancou-me os cabelos, arranhou-me, bateu-me ... aqui..."
E Lúcia ergueu da mesa de ping-pong o rosto inundado de lágrimas, tirou o chapéu, o véu e descobriu a fronte arranhada e os vergões que lhe marcavam a face esquerda.
Thorpe ficou um pouco desconcertado por esta explosão. Assim que viu que lhe tinham batido na mulher, uma violenta cólera se apoderou dele, embora tivesse sentido,
também, muitas vezes, vontade de a espancar.
- Olha, bebe mais um copo de cognac. - aconselhou em voz grave, estendendo-lhe o seu próprio copo. Ela bebeu de um trago, tornou a pôr o chapéu, limpou os olhos,
baixou o véu, tirou a caixa de pó, da malinha, para
reparar a desordem das feições. O que mais sensibilizou Steve foi ela diligenciar sorrir, um pouco timidamente, para se desculpar... um pouco envergonhada !
- Alegra-te porque tudo isso tenha acontecido antes de teres casado com ele. - disse usando uma frase banal de consolação, que costumava dizer à sua clientela. O
sorriso de Lúcia tornou-se mais grave.
- Vocês, homens, são todos os mesmos. Tu também tens uma mulher cá em casa.
E duas lágrimas retardatárias, depois do grande dilúvio, desceram lentamente até aos cantos da boca. Thorpe compreendeu que essas duas lágrimas eram para ele e não
para o belo gigolô desleal.
- Isso não significa nada... Se te interessa, posso contar-te tudo ... - disse. Ela fez um pequeno gesto rápido, de recusa, que ele, de novo, reconheceu:
- Nada tenho a censurar-te... não tenho esse direito. - disse.
- Não se trata de direito, - ouviu-se Thorpe dizer. Reflectiu sobre o que devia agora fazer diante de Lúcia.
- Que intenções são as tuas ? - preguntou, prudente.
- Não sei... não sei, Steve. - disse ela, sonhadora É como depois de um tremor de terra, não me reconheço, já... Podem-se entregar os bilhetes do barco, perdendo
alguma coisa.
-As Companhias marítimas habitualmente dão 90? % do preço dos bilhetes pagos - disse ele no seu tom de advogado.
- Nem sequer desejo voltar ao hotel, tenho medo que ele venha.
- Não te tornará a bater, afirmo-te. - garantiu Steve, sombrio.
- Não... tenho medo que ele ... que me peça perdão... e eu... tu não o conheces, quando quere, ele sabe ser encantador.
- É disso que vive, de resto- disse Thorpe.
- Tens razão, disseste bem ... é disso que ele vive ... aprovou rapidamente Lúcia.
Olhava à sua volta e começou a sorrir vendo os dois cães que, até então tinham estado deitados com ar hipócrita nos seus cestos, começarem a saltar à sua volta.
Os seus ladridos mostravam toda a sua alegria.
- Vocês reconhecem-me... não me esqueceram... -disse, pegando-lhes pela pele bamba do cachaço, para os pôr ao colo. Os seus focinhos castanhos escuros dirigiram-se
para a cara da dona como que para a beijar. Thorpe, de pé, a um canto, reflectia. A partida de bridge, o dr. Back, Nina.
-Queres que te leve para outro hotel ou preferes viajar ?
- Não. - disse ela, resolvida. E ele preguntava a si próprio a razão da recusa.
-De-certo já... alguém te contou que tenho uma senhora no quarto de hóspedes. - disse - Mas tu podes passar a noite no nosso quarto de cama e eu fico na biblioteca.
- És muito bom ...- respondeu Lúcia. Sobre os seus joelhos os cães latiam. A porta abriu-se e o dr. Back meteu a cabeça branca: "Perdão" - disse, confuso. E desapareceu.
-Estás apaixonado pela senhora do quarto de hóspedes?-preguntou Lúcia com um sorriso.
- Tentei imaginá-lo durante certo tempo.. -respondeu Thorpe, sorrindo também - Dá-me o número do teu hotel, vou telefonar para que tragam para aqui as tuas bagagens.
- Obrigada. - murmurou Lúcia.
Ele viu que, maquinalmente, ela passava o dedo sobre a mesa de ping-pong. Na verdade, estava cheia de poeira. "A casa precisa de uma mulher" - murmurou ele ao pé
da porta. Lúcia levantou os olhos e começou a rir, com um tremeluzir de lágrimas nos olhos.
-No que diz respeito ao romanesco, nós podemos
também partir para Verona e casar lá segunda vez. O seu tom era de gracejo, mas a voz embargava-Se-lhe na garganta. Fechou a porta atrás de si e ficou frente a frente
com o dr. Back.
- Que estás a fazer ? Escutas ? - preguntou, e o constrangimento a que se tinha imposto, explodiu nestas palavras.
- Não, mas preciso falar-te com urgência. Tua mulher não podia ter escolhido um momento mais inoportuno para vir.
Thorpe dizia a si mesmo que não existia nenhuma lei determinando o instante em que uma mulher devia voltar para o seu marido.
- Que aconteceu ? - preguntou em tom breve.
- Vem comigo ao teu quarto. É o único lugar onde podemos conversar sem que nos incomodem-resmungou o médico.
Thorpe desejava subir, para telefonar. -Então? A pequena não vai melhor? É gripe?- preguntou, impaciente,
- Não... Ela vai bem... vai até muito bem - disse o dr. Back fechando a porta atrás deles.
As suas maneiras misteriosas começaram a irritar Thorpe.
- Acabemos. Preciso de telefonar - disse.
- Pois bem, meu caro, é uma história bem triste... Vai custar-te dinheiro. No entanto, as minhas felicitações... para um velho como tu...
Admirado, Thorpe olhou para o seu amigo por instantes. O médico respondeu-lhe com um olhar silencioso e cheio de segundo sentido. Subitamente, o advogado desatou
a rir.
-Mas é espantoso! Isso não podia calhar melhor. Ora ai está porque parece tão nervosa... Pobre pequena!-acrescentou, compadecido. Ela já sabe?
- Naturalmente que lho disse.-respondeu o médico.
- Sim ? E então ? Como tomou ela a coisa ?
- As mulheres naquele estado são sempre um pouco exquisitas - sentenciou o dr, Back, embora isso não fosse uma resposta.
Thorpe percorreu duas vezes o aposento dando estalos com os dedos.
- É um tanto excessivo para uma noite só. - pensava. Ao mesmo tempo louvava a delicadeza, a perfeição das suas relações com as mulheres.
- Ouve.- disse ao médico - Tu vais telefonar. Pede o Hotel SãO Moritz e diz que madame Thorpe não volta e que lhe mandem a mala e os objectos indispensáveis para
uma noite. Depois, vais à sala de ping-pong onde reterás Lúcia durante meia hora, podes administrar-lhe um calmante qualquer: brometo, um sonífero, qualquer coisa.
Depois tratarás de acabar com essa danada partida de bridge e de os mandar para casa. Negócios de mulheres fazem parte do segredo profissional, percebeste?
- Compreendo perfeitamente - disse o dr. Back com uma expressão de profunda perplexidade, no seu rosto barbeado.
Thorpe atravessou a passo rápido os dois quartos de vestir, que separavam o seu do quarto de hóspedes, esperou um instante diante da porta de Nina, e depois bateu.
"Sou só eu... Steve..."- disse. Veio-lhe o pensamento fugitivo de não ter, há anos, vivido coisas tão importantes e salutares como durante esta última hora. Nina
disse: "Entre" e ele entrou, com um sorriso de homem um pouco acanhado no rosto sobressaltado.
Mas encontrou uma outra Nina: uma Nina inteiramente diferente, transformada, em pé, delirante, fora de si, uma Nina absolutamente louca, que chorava e ria ao mesmo
tempo. Ele ignorava se era alegria ou dor -ela mesma não o sabia, provavelmente...
Ela só queria uma coisa: ir-se embora, partir dali imediatamente. Deixar, sem demora, esta casa onde os criados a desprezavam, onde os hóspedes eram impertinentes:
ela ia ter um filho, ela era mãe! Um filho, um novo Erik, um conde Bengtson! Gritou tudo isto no quarto, emquanto fazia as malas... ou antes, emquanto atirava tudo
para dentro delas... a barata roupa de baixo, as bonecas, o revólver. Thorpe estava ali petrificado, como imobilizado sob uma catarata. Não podia fazer nada senão
atirar para o monte os vestidos de que tinha feito presente a Nina e, às escondidas, meter-lhe em qualquer parte uma nota do Banco... para prever todos
os acontecimentos.
Tudo se fez de-pressa e de uma forma tão irresistível que, quando Nina lhe estendeu amavelmente a mão para lhe agradecer a hospitalidade, ele notou, pelo tom da
voz, que o seu espírito estava já distante.
Reteve-a, no entanto, um momento com a porta aberta pois acabava de perceber, pelo barulho, pelos risos, pelo cheiro de charuto, que o bridge havia terminado. O
dr. Back parecia ter trabalhado bem. com precaução, Thorpe atravessou o patamar; não queria que Lúcia e Nina, que tinham por momentos perdido o domínio de si próprias,
pudessem encontrar-se. No seu foro íntimo agradecia à Providência essa reviravolta súbita de Nina que lhe poupara muitas dificuldades.
Num piscar de olho, fez-lhe sinal para o seguir. Pediu a Trompsted para ir acima buscar-lhe a bagagem, pois não queria que a rapariga carregasse com nenhuma mala,
nem mesmo a sua pequena maleta de mão.
- Tony. - disse ao motorista que tinha ajudado Vá levar mademoiselle Nina a Fieldston, depois vá ao hotel São-Moritz buscar as bagagens de madame Thorpe. Diga que
eu passarei por lá amanhã para pagar a conta. E... não preciso do carro antes das dez horas.
Instalou Nina no automóvel. Distraidamente disseram adeus; ela estava já com Erik e ele com Lúcia...
- Vá de-vagarinho, Tony-ouviu ela dizer. Ele ficou de pé em frente da casa, emquanto o clarão dos faróis desaparecia, perdendo-se na obscuridade. Depois, meneou
a cabeça. No fim de contas, as mulheres são uma raça singular... -pensou.
E esse meneio de cabeça era a conclusão da tentativa que Nina fez para se vender. Era o princípio das segundas núpcias de Thorpe.
MEIA-NOITE e meia hora no relógio da Central. Os guardas de noite acabavam de terminar a sua segunda ronda e foram aquecer café à sua sala.
A campainha da noite soou no quarto de Joé, o porteiro. Abriu a porta pequena; fora estavam duas pessoas.
- Posso ir falar ao sr. Bengtson ?
-Tem licença ?-preguntou Joé à rapariga, pálida, com ar de dançarina.
- Sim. Naturalmente.
O porteiro pegou na licença e voltou ao seu cubículo, à luz eléctrica. Ele tinha um olho de vidro e era forçado a colocar o papel obliquamente, para ler.
- E esse rapaz? - preguntou.
- Este rapaz é que traz as coisas.
- Que coisas?
- As coisas para o sr. Bengtson.
- Tem licença?
- Não, mas eu tenho.
- Sem licença não o deixo entrar.
- Ele tem de lhe entregar as coisas... sem isso o sr. Bengtson não poderá trabalhar. - explicou a rapariga.
- Impossível,-disse Joé voltando o lado do olho de vidro para o rapaz para melhor examinar a rapariga. Foi nesse momento que recebeu uma pancada no queixo e caiu
por terra.
- Tocado! - disse o rapaz, satisfeito, e desapareceu no fundo do vestíbulo que levava ao pátio velho.
A rapariga voltou à rua. À esquina, um automóvel esperava. Dois indivíduos desceram e aproximaram-se. A mulher cruzou-se com eles, disse uma palavra e seguiu o seu
caminho. Depois, fazendo sinal a um táxi, afastou-se. Os dois tipos entraram na Central pela porta aberta que fecharam atrás de si.
Joé continuava no chão, sem sentidos, e com um sorriso nos lábios . Big Paw inclinou-se e transportou-o para o seu cubículo. Emquanto o ligava a uma cadeira fazendo-o
respirar clorofórmio, Bill viu à luz o plano desenhado por Liliana.
- Diz a Kid que entre. - disse a Big Paw.
- Onde está Bully? - preguntou este. Estava emocionado e não podia dominar-se. Bill deu-lhe um pequeno encontrão. Big Paw abriu a porta e inspeccionou a rua : um
homem, sonhador estava de pé diante da montra dos bars portáteis. Big Paw teve de esperar um certo tempo emquanto Bill, impaciente, espreitava atrás dele. O relógio
da torre deu três pancadas antes da uma hora. Finalmente o admirador tardio desligou-se da montra e marchava, indecisamente pela rua abaixo, como alguém que se aborrece
e espera uma aventura. Passaram dois automóveis, depois, tudo ficou vazio por um momento. Kid apareceu, de-repente, e deslizou pela porta, para dentro da Central.
Joé estava agora muito bem empacotado com adesivo na boca e uma boa narcose. Em silêncio, os dois homens seguiram Big Paw através do pátio; subitamente, este sobressaltou-se
diante do gato branco, que fazia rolar uma caixa vazia de conservas no chão de cimento. Através duma porta envidraçada, podiam ver a secção, mal iluminada, de confecção
para homens. Sem barulho, Bill pegou nas chaves que Liliana lhe tinha dado e abriu a porta de par em par. Havia só cinco chaves e encontrou a precisa sem hesitação.
Assim que chegaram ao interior, ficaram uns minutos imóveis, de ouvido à escuta; reinava um silêncio de morte. Um senhor loiro, de cera, vestido de branco, olhava
na sua direcção e sorria vagamente. Bully, o rapaz vestido de groom, tirou o pano branco que recobria as gravatas. "Deixa isso!" -disse Bill. "Mais baixo.
- respondeu o rapaz renunciando de má vontade ao seu roubo. "Por causa de idiotas da tua espécie é que os grandes negócios não triunfam." - sentenciou Bill.
Ele levou-os mais longe, ziguezagueando entre as secções mudas e cheias de fantasmas imaginários, chegando emfim à escada que ia dar à cave.
- Levo os dois rapazes comigo, tu vais ficar lá em cima à espreita - murmurou Bill.
- Entendido, chefe, - respondeu Big Paw em voz forte.
Tinha estado todo o tempo irritado por causa dessa marcha prudente através da Central vazia e por esses segredinhos inúteis, pois não estava lá ninguém que os pudesse
ouvir.
- E se vier alguém, mostra o teu revólver. Mas nada de ruído inútil... ouviste?
- Entendido, chefe - respondeu ainda Big Paw.
- A escada de socorro é no terceiro andar, encostada ao elevador. - explicou Bill, a todos - O carro espera à esquina sudoeste.
Big Paw viu-os desaparecer na escada. Pegou num cigarro e pôs-se a fumar. Tinha medo e a coragem de Bill não o animava: Bill tomava cocaína e isso é que lhe mantinha
o espírito empreendedor. Big Paw não tinha bebido bastante para se sentir à vontade.
Ele gostaria de percorrer o armazém vazio para examinar tudo, mas não teve coragem. Atirou fora o cigarro meio fumado e acendeu logo um segundo. Em bicos de pés,
foi até ao tapete rolante que, na sua imobilidade, tinha o mesmo carácter espectral do resto, e sentou-se no primeiro degrau. Pôs a cabeça
no braço e ouviu um choque rítmico que lhe meteu medo. "com a breca!" - exclamou, rindo incrèdulamente assim que notou que era apenas o bater do seu pulso que lhe
chegava ao ouvido, através da manga - Então ficou para ali sem se mexer e muito tempo passou..
Estava certo de não ter dormido, e tinha mesmo ouvido o relógio dar uma hora; no entanto para ele foi como um brusco despertar quando ouviu vozes vindas dos andares
superiores.
- Boas-noites, disse alguém lá em cima. Trata de ir direito para casa, já há muito tempo que devias estar no berço.
Depois ouviu uma gargalhada cujo eco se repercutiu contra as paredes. Metendo a mão no bolso, Big Paw, maquinalmente, pegou no revólver. Olhou à sua volta e, a-pesar-do
pânico, descobriu um excelente esconderijo. Uma cortina ocultava os fatos pendurados: ergueu-a e escondeu-se atrás. Durante esse tempo passos leves tinham descido
a escada. Arriscando um olhar por uma fenda, o bandido viu um ser de cabelos de um loiro pálido que descia a escada a dois e dois. "Vai descobrir o porteiro amarrado
e tocar a campainha de alarme." - pensou Big Paw, embora pensar não fosse o seu forte. Puxou do revólver, visou na direcção do rapaz; mas deteve-se... O rapaz parou
diante de um grande espelho, examinando o queixo; depois, tendo procurado à sua volta, tirou um chapéu branco da cabeça de um manequim vestido com um fato de linho,
penteou-se e mirou-se por todos os lados. Tateou a algibeira, tirou um cigarro que meteu na boca, sem acender, e continuou a admirar-se. Big Paw riu atrás da cortina.
O pequeno, depois de se ter contemplado bastante, tirou o chapéu, pôs o cigarro na algibeira e, inclinando-se respeitosamente diante do manequim, restituiu-lhe o
chapéu. Depois, tomou balanço e escorregou pelo oleado do soalho até à saída.
Big Paw, saiu do seu esconderijo e gritou: "Mãos
no ar!" O pequeno voltou-se estupefacto, e ficou de boca aberta, não levantou as mãos, pois, com certeza não tinha percebido do que se tratava. "Mãos no ar!" repetiu
Big Paw um pouco mais baixo - Lembrou-se de-repente que deviam estar mais pessoas lá em cima. Talvez, de noite, no armazém houvesse um formigueiro de gente ocupada
a trabalhar. Agora o pobre garoto levantou as mãos, como um fantoche, como se fossem puxadas para o alto por dois cordéis. Big Paw pensou no que iria fazer dele,
mas, antes que pudesse tomar uma resolução, o cabelo louro branco pareceu erguer-se, como que empurrado por uma corrente de ar, o rosto sardento ficou lívido e ele
caiu ao chão. Era a primeira vez que Big Paw tinha visto desmaiar alguém, e não sabia o que havia de fazer. Dirigiu-se para o pequeno, levantou-o, sentindo um certo
desagrado ao contacto desse corpo flácido.
Nesse instante, ouviu-se qualquer coisa que conhecia muito bem: tiros. Três tiros amortecidos partiram da cave. Deixou cair o garoto, olhou à sua volta com ar assustado
e correu pela escada até ao terceiro andar. Lá em cima, já sem fôlego, procurou o elevador, ao pé do qual ficava a escada de socorro. Roçou, a correr, por três senhoras
em roupão, obliquou e viu subitamente que um homem vinha para ele: atirou-se sobre o indivíduo como num desafio de foot-ball, ouviu a queda pesada de um corpo e
continuou na sua fuga. com a coronha do revólver, deu uma pancada num enorme vidro: o ar da noite bateu-lhe no rosto coberto de suor. Do alto da escada de socorro
onde estava, via o pátio no qual o gato brincava ainda agora; resolveu não se mexer. Em baixo, corria gente; bruscamente, todas as campainhas de alarme se puseram
a tocar; sons agudos encheram o vasto edifício. Era um barulho infernal e isso tornou-o tão nervoso que se endireitou imediatamente. Recebeu então uma pancada e
caiu.
uma coisa horrível, uma campainha a ressoar numa casa vazia. Era meia-noite. Em casa dos Bradley, ninguém. O vestíbulo estava vazio, os quartos vazios, o leito da
sr.a Bradley também vazio. Vazio o leito de Erik, vazio o de Filipe; nem Skimpy estava em casa e a campainha tocava. Um som longo, depois curto, depois mais longo
ainda; primeiro paciente, depois nervoso, depois como louco. Finalmente tudo se calou.
-Não está ninguém em casa-disse Nina ao motorista que esperava de pé, com as malas na mão.
- Devo levá-la outra vez para trás ? - preguntou ele, tornando a pôr as bagagens no carro.
- Não, de maneira nenhuma. - disse Nina. -Então aonde, se faz favor? - preguntou Tony
olhando para o carro com indiferença.
- Aonde? - repetiu Nina.
- Talvez a um hotel ? - propôs o homem.
- Sim, mas não a um hotel caro. - disse abafadamente Nina.
Tony levou-a a um hotelzito, longe, ao cimo de Broadway, onde a olharam de uma forma estranha. Mas, como ela tinha duas malas, deram-lhe um quarto, um quarto que
cheirava a fósforo. Aí, sentada na borda da cama, Nina telefonou. Três vezes tocou para a Central
e de todas recebeu a mesma resposta: "Não responde". "Não é possível, torne a tentar" - suplicou ela. Mas
isso nada fez.
- Quiseram matar ratos - pensou Nina aspirando o odor estranho do quarto. Tornou a pegar no telefone e, de vez em quando, tornava a pedir a casa de Bradley. A manhã
ia já muito avançada quando, emfim, uma voz respondeu: Era a voz infantil e aguda de Skimpy.
- Estás, Skimpy ? Aqui, a Nina, Posso falar à
mamã?
- Não.
- Ela saiu? Tenho uma coisa importante a dizer-lhe.
- A mamã está no hospital, mas vai bem. Esta
tarde vou vê-la.
- Oh!.. Que pena!... - murmurou Nina. Mas não tinha tempo a perder com amabilidades - Pois eu... gostava de falar ao sr. Bengtson... - disse ela.
- O sr. Bengtson foi preso.
- Como? Fala um pouco mais alto, Skimpy.
- O sr. Bengtson foi preso. - gritou Skimpy ao
aparelho.
- An ?... como assim ?... Não é... possível. balbuciou Nina, sentindo-se arrefecer. Os lábios estavam como que gelados, a pele da cabeça parecia esticada, agarrava-se
ao telefone.
- Ele roubou coisas. Fez um assalto. Deram tiros e ele é um gangster. Eu também lá estava - continuou Skimpy, com importância.
- Eu queria... falar a Filipe... - murmurou Nina ao aparelho. O cheiro a fósforo envolvia-a toda.
- Filipe está no posto de polícia. O seu retrato vem nos jornais - disse Skimpy. Ela esperou ainda um pouco, mas como Nina não respondesse, desligou, desceu prudentemente
do banco que tinha posto para telefonar, e, consciente da sua importância, foi para a escola.
Para Nina, correu um lapso de tempo de que, mais tarde, não se lembrava. De-facto, eram oito horas
da manhã quando tinha telefonado a Skimpy e, foi às dez horas somente, que se encontrou sentada no autobus que se dirigia para a Central. Do que tinha feito, durante
essas duas horas, não poderia mais, em toda a vida, recordar-se. No entanto, o seu cérebro estava absolutamente claro quando, chegando ao armazém, tomou a escada
móvel. Tinha comprado um Jornal na rua e, embora o nome de Liliana aí não figurasse, estava absolutamente certa de uma coisa: Liliana tinha levado seu marido à prisão
e era Liliana que devia fazê-lo sair.
Nina tinha sido sempre calma e meiga durante toda a sua vida. Mas, agora, haviam-se passado coisas de molde a transformar completamente esta criaturinha. Desde que
a tinham tirado da secção de porcelanas para a porem na vitrina, nunca mais tivera paz. Andava como um projéctil que ninguém pode reter, assim que é lançado, como
um pequeno cometa apaixonado, pronto a rebentar em mil pedaços. Exteriormente, todavia, este pequeno pedaço ardente de destino feminino não se distinguia das outras
clientes. Como todas as outras, lançou um rápido olhar para o espelho, diante do qual passou e parou um instante diante dos sensacionais pijamas de praia, da secção
de confecção. Essa secção estava à cunha nessa manhã: havia uma venda-reclamo de séries baratas e todos queriam o primeiro lugar junto ao balcão, para pescar os
artigos mais vantajosos. Fez calor, de-repente, nessa manhã de princípio de primavera e as ventoinhas funcionavam, as caixeiras transpiravam, as modistas estavam
nervosas, as clientes histéricas.
- Gostaria que me atendessem, menina. - disse Nina numa voz sem intonação a Liliana que saía da sala de costura. Nessa manhã, Liliana estava mais pintada que de
costume, sem dúvida porque se sabia mais pálida. A boca estava muito vermelha sobre a pele branca e o seu nervosismo concentrava-se na palpitação das narinas.
Prenderam todo o seu bando. Bill morreu, os outros estão presos. Nem peles, nem amigos, nem dinheiro, nem carreira em Broadway. Devia mesmo sentir-se feliz, por
todos se terem calado, não a comprometendo na aventura ...
- Gostaria que me atendessem, menina. - repetiu Nina com mais força. Liliana imobilizou se com um pequeno movimento de ancas que dantes a tinha distinguido entre
as suas colegas aprendizas e a tinha trazido até ao salão de costura.
- "Olha... a Nina!-disse ela-Talvez saiba qualquer coisa de novo." Foi apenas uma idea fugitiva...
Teria de boa vontade envenenado Erik Bengtson se, por esse meio, pudesse estar segura do seu silêncio. Mas a criança de peito, o menino de mama estava preso e era
de prever que ele a envolvesse no caso. Teria contado a história das chaves? com certeza, se isso pudesse servir-lhe de defesa. Seria então o fim de Liliana Smith,
saída a custo da obscuridade e que se sentia empurrada, irresistivelmente, outra vez, para a escuridão, para o abjecto.
- A senhora deseja? - preguntou ela, olhando Nina como se fosse um carteiro que, de noite, nos traz um telegrama.
- Queria provar este vestido. - disse Nina apontando para qualquer parte, por cima do ombro, na direcção do armário.
- com muito prazer. - respondeu Liliana, tirando um vestido ao acaso e abrindo a porta do gabinete de
prova.
- Que há de novo ? - preguntou ela assim que ficaram sós entre as paredes de espelhos.
- Que fizeste de meu marido ? - preguntou Nina.
Qualquer coisa nesta pregunta irritou Liliana: ela não podia suportar o que havia de burguês nesta expressão: meu marido. Não podia suportar esta pequena Nina meiga
e tranquila, esta provinciana que tinham posto na montra.
- Que me importa o teu marido ? Teu marido!
- Foste tu que o meteste na prisão, - disse Nina e és tu que o tens de fazer sair de lá.
Era a frase que, havia horas, ela tinha formado na cabeça.
- Tem cuidado com o que dizes, minha menina. Teu marido meteu se com ladrões. Eu não...-disse Liliana.
Falavam ambas em voz baixa, com os rostos aproximados um do outro e reflectidos nos seis espelhos ao mesmo tempo. Mas mesmo que tivessem falado mais alto, não as
teriam ouvido, pois em toda a secção de costura havia um zunido sussurrante de mulheres. No salão, a directora esvoaçava de um lado para o outro, dando ordens, com
o seu sotaque francês. Todos os gabinetes de prova estavam ocupados. Uma caixeira abriu a porta e disse: "Perdão", tornando-a a fechar. Liliana e Nina ficaram frente
a frente, ambas trémulas, cada uma dizendo à outra o que tinha a dizer-lhe.
Liliana estava ao rubro, ladeava um precipício. Mas Nina já não era a rapariguinha de antigamente, agora tinha sofrido muito.
- Estou farta, entendes? E repetiu o que exigia e que não era nada mais, nada menos do que isto: Liliana devia comparecer diante da justiça e provar a inocência
de Erik.
Liliana riu-se, provocante. Pôs as mãos nas ancas, gargalhando na cara de Nina.
Subitamente, ela viu que Nina levava um revólver, um grande revólver de polícia que segurava desajeitadamente.
- Se não tiras cá para fora o meu marido, mato-te! disse em voz grave, rouca, numa voz absolutamente nova.
Liliana segurou o pulso que agarrava a arma para a desviar de si.
- Endoideceste? - preguntou vivamente.
- Estou grávida. vou ter um filho! É preciso que meu marido volte. - gritou Nina.
Foi apenas um instante, um instante singular, a duração de um abrir e fechar de olhos... mas durante esse segundo, Liliana fraquejou. Um filho era uma palavra do
outro mundo. Nina... ia ter um filho. Dantes, elas haviam sido amigas. Juntas, como aprendizas tinham-se sentado nos bancos da escola, onde o grande armazém educava
as caixeiras ...
E o facto de Nina ter um revólver e parecer decidida a servir-se dele, revelou um sentimento que Liliana pôde compreender. Isso já não lhe era tão estranho, tão
hostil...
- Um filho ? - preguntou, largando, sem dar por isso, o pulso de Nina - Mas, um momento depois, reencontrou a sua dureza.
- Mas que me pode importar que tu tenhas um filho ? Que tenho com teu marido ? Deus sabe de quern é esse bastardo!
Ela não falava alto, mas as suas palavras soavam tão duras, como uma pedra batendo noutra pedra.
Então, Nina fechou os olhos e descarregou a arma. Nunca tinha disparado na sua vida e ficou aflita com o safanão que recebeu - houve depois um cheiro a pólvora.
Assim que abriu os olhos, Liliana ainda estava de pé, com as duas mãos apoiadas à mesita, depois, a taça dos alfinetes caiu e Liliana caiu também por sua vez. Dir-se-ia
que tentava sorrir com ar irónico e surpreendido. Talvez também sofresse...
Tudo isto se passou muito silenciosamente. Os gabinetes tinham tapetes espessos e o tiro não fez mais barulho do que uma rolha de garrafa de champagne.
A queda de Liliana também não foi ruidosa. Nina meteu o revólver na sua velha malinha de mão e saiu do gabinete.
Na secção reinava o ruído da venda-reclamo.
- V. Ex.a foi servida como desejava ? -preguntou madame Chalon.
- Fui, obrigada, - respondeu Nina.
Portas, portas e portas, escadas e escadas... O elevador... no edifício central. A saída à direita, portas envidraçadas, portas móveis e ainda flechas indicando
saída, saída, saída...
Nina transpôs emfim a última porta, que bateu pesadamente sobre ela. Cá fora, era Junho, cá fora, as mulheres compravam flores. Ninguém a seguiu. Respirou o ar a
grandes sorvos, as suas mãos já não tremiam. Fez sinal a um táxi. "Para a Grande Estação Central" - disse. Tinha dinheiro, a sua algibeira estava cheia de notas
provenientes do último presente de Thorpe.
Carros, pessoas, môços de fretes, de cor, informações, bilheteiras, pessoas. Bilhetes para Cleveland. Bilhetes para Boston, bilhetes para New Heaven.
- Para Lansdale, Connecticut... - disse Nina.
- Simples, ou de ida e volta ? - preguntaram da bilheteira.
- Isso é que eu não sei. - respondeu a jovem.
LAMENTO tê-lo feito esperar, - disse Filipe quando, às duas horas e dez, entrou no seu escritório. Estou cheio de trabalho, como pode calcular. A polícia... e depois
tive com o sr. Crosby uma longa conferência.
Sentia-se extraordinariamente bem disposto, pois tinha substituído a falta de sono pelo álcool. Trazia o braço ao peito.
- Foi grave ? - preguntou o rapaz, que se tinha levantado à sua chegada.
- Oh! já estou habituado. A bala desta noite foi a sexta que recebi no cadáver, desde que trabalho na Central - disse Filipe, em tom importante. Estava excitado
e como prestes a tomar voo, tal como um grande balão vermelho, novo. O rapaz escreveu à pressa algumas notas no caderno que tinha preparado.
- Eu sou Sanders, do Evening Star, como sabe. Pensamos que o senhor não teria hoje muito tempo livre, mas o chefe entregou-me o contracto que lhe diz respeito.
- Ah, ah - disse Filipe, lendo o documento. - Dois mil dólares por uma reportagem especial... espero que o seu chefe não fique desiludido. Não posso, evidentemente,
revelar tudo quanto sei, pois a polícia tem o assunto entre mãos.
- Limitar-me-ei a preguntar-lhe o que nós desejamos saber - disse Sanders, com benevolência. Prátt vai
primeiro tirar-lhe algumas fotografias. Já fotografámos o depósito e a escada de socorro, onde o senhor matou esse indivíduo. Vejamos como conseguiu fazer tudo isso
.. sozinho ?
- O instinto.- declarou o velho Filipe-Está tudo no instinto. Um detective deve possuir a intuição necessária, de outra forma nunca lhe viria à idea que, justamente
no dia em que sai com uma mulher, um bando de gangsters projecta um roubo de peles.
Depois de ter disparado esta flechazinha subtil a Ricardo Cromwell, que considerava como despedido, Filipe abriu o seu armário e vazou um copo de whisky puro. "A
minha novocaína" - disse alegremente.
Entretanto, Pratt tinha feito a sua entrada com o aparelho, chapas e magnésio, e instalava tudo no pequeno escritório: "Nós queremos também possuir uma fotografia
sua de quando esperava os tipos, no depósito". disse ele dando ao detective a atitude desejada. "É a décima quarta vez que me fotografo hoje" - notou Filipe colocando
bem à vista o braço ferido. O relâmpago de magnésio brilhou.
- Reparou como lá em baixo faz frio ? - preguntou ele - Não há mais de 28? Fahrenheit. Fique lá apenas um quarto de hora à espera de gatunos, e posso garantir-lhe
que dois mil dólares não são muito por isso.
- Vai-te agora embora, - disse Sanders a Pratt, e previne na redação que estou lá daqui a uma hora com a minha reportagem.
Assim que o fotógrafo desapareceu, Filipe pôs um copo diante do jornalista.
- Agora,-disse este-procedamos por ordem. Ponhamos de parte tudo quanto já foi dito na edição da manhã. Como foi ferido no braço?
- O indivíduo visou-me o cotovelo direito. Não era muito burro... mas, por felicidade, sou canhoto.
- Já lhe foi entregue a quantia de mil dólares que ofereciam pela captura de Big Bill?
- O chefe da polícia já mos prometeu. É curioso... ontem, estava mais teso do que um cão atropelado, hoje, recebo dinheiro de todos os lados! O sr. Crosby apertou-me
a mão e chamou-me herói; aumentou-me o vencimento e conserva-me o lugar durante a minha vida e o comissário de polícia levanta-se para me falar.
-Que vai fazer de todo esse dinheiro, sr. Filipe? preguntou Sanders estenografando rapidamente.
- Eis o problema, sabe? Sou celibatário e não posso gastar tudo a beber, senão o sr. Crosby punha-me na rua...
Sanders riu reconhecidamente, ao pensar no êxito que este gracejo alcançaria no jornal.
- Quantos tipos do bando se puderam escapar ? Não faz uma idea?
- Krocinsky... a quem eles chamavam Big Paw está no hospital e Big Bill na morgue, deitado num belo caixão novinho em folha. Dois fugiram, mas estou convencido de
que não era este o bando completo.
- Não receia que se vinguem de si ? Não se acha em perigo?
- Olhe, isso dá-me uma idea sobre o emprego do meu dinheiro; vou contratar uma guarda especial, com Toughy à cabeça-disse Filipe, encantado. Também este dito de
espírito foi igualmente estenografado com alegria.
- Qual é a sua opinião sobre esse Erik Bengtson, que prenderam por ser conivente com os bandidos?
Filipe bebeu só uma vez e reflectiu.
- Quere arranjar-me uma armadilha? Isso é com a polícia. O meu papel é velar porque nada desapareça da Central, o resto é negócio do comissário.
- No entanto, deve ter uma opinião ?..-preguntou Sanders, bebendo também, para criar um ambiente de camaradagem. -Vejamos... que pensa do homem, como indivíduo?
- Bem... como indivíduo, tive-o sempre por um leviano, por um desses endemoninhados estrangeiros que
não inspiram a mínima confiança e, além disso, por um grande pateta. Oficialmente, só se pode dizer uma coisa: foi com o molho de chaves de Bengtson, que Bill entrou
na Central. Todos nós temos o número numa chapinha presa às chaves... e o bando não teve o tacto de a fazer desaparecer. Mas...
-Mas?-preguntou Sanders agarrando-se avidamente à palavrinha que ficou em suspenso.
- Mas... mais nada. -disse o velho Filipe, teimoso.
- Posso escrever que considera Erik Bengtson o principal culpado? -disse Sanders. Filipe enguliu precipitadamente a isca e o anzol:
- Não se trata disso, Deus me livre de afirmar semelhante coisa !
- Emfim, é verdade que esse Bengtson dormia na oficina quando as campainhas de alarme tocaram ?
- É essa justamente a questão, Se ele realmente não ouviu as campainhas de alarme, é preciso confessar que a consciência de nada o acusava. Mas se na realidade ele
só fingia dormir, é muito suspeito, muito.
Sanders esperava, de caneta no ar.
- Skimpy afirma que ele dormia, que foi ela que o acordou, aos murros, quando ouviu os tiros e as campainhas, que a assustaram.
- Na edição da noite deve aparecer uma fotografia da pequena heroína.
- Queria, no entanto, acrescentar uma coisa a respeito de Bengtson. - continuou êle - Fizeram-no sofrer esta noite um interrogatório de terceiro grau. Sabe o que
isto quere dizer?
Sanders aquiesceu, com respeito. As pessoas que tinham sofrido esta prova, falavam dela mais tarde como os gazeados falavam da guerra.
- Pois bem, o rapaz não disse nada. Nem sequer abriu a boca. Isto dá-me que pensar. Tive-o sempre por um rapazola mal habituado e duvidoso. Mas... para ter aguentado
um interrogatório de terceiro grau
sem se mexer, caramba, é preciso ter sangue nas veias! Vi-o esta manhã às nove horas. Eles não o deixaram dormir, como sabe, e a luz aguda, que lhe projectaram nos
olhos, ia-o quási cegando. O comissário pensou que eu talvez pudesse tirar qualquer coisa dele, mas não disse nada, não tentou sequer afirmar que estava inocente.
Sabe o que ele repete?:- "Fui um idiota e o que me acontece é bem merecido". Tinha esperado outra coisa desse pateta.
Sanders levantou-se, pegou no frasco de whisky e encheu dois copos. Filipe bebeu: -"De resto, se ele se chama idiota, é a respeito da sua vida privada" - disse.
O braço começava a doer-lhe muito. Filipe desde a uma da madrugada que estava numa espécie de transe. Ergueu o copo e esvaziou-o.
Sanders deitou novamente mais.
- Posso então escrever que considera Bengtson inocente ? - preguntou de pena em riste.
- Também não disse isso. - murmurou Filipe que começava a sentir se ligeiramente ennevoado - Mas ouça bem ... promete-me segredo se eu lhe confiar uma coisa? Compreende,
isto não é destinado ao seu Jornal. É apenas ... um dado ... um palpite, como nas corridas .. mas queria provar-lhe que o velho Filipe sabe mais do que toda a polícia
... o comissário e todos esses interrogatórios de terceiro grau. Não sei ainda se Bengtson está inocente: mas sei que não está culpado.
- Quê ? - exclamou o jornalista.
- Chut! Chut!- disse Filipe.-Eu não disse nada. Só quero mostrar o que é um trabalho de detective, bem feito. Ligado a cada molho de chaves, está uma placazita,
não é verdade? Pois bem... siga-me com atenção... a placa do molho encontrado em poder de Big Bill cheirava ... a um certo perfume ... Que diz você a isto ?
Sanders não disse nada. O bloco de papel tremia-lhe nas mãos, pois estava possuído da verdadeira febre do caçador.
- As chaves estiveram numa certa malinha de senhora. Foi aí que a placa se impregnou de perfume. Quero dizer-lhe ainda mais uma coisa: eu conheço a mulher que usa
esse perfume. É uma das nossas caixeiras ... e se não atormentarem Big Paw ao ponto de o fazerem confessar todo o imbróglio... eu vejo-me obrigado a dizer o que
sei.
E Filipe, depois destas declarações, instalou-se na sua poltrona e pôs os pés em cima da mesa. As dores no braço tornavam-se horríveis, mas sentia-se feliz como
não era havia muitos anos. A pena de Sanders corria no papel.
- Prenderam a mulher ? - preguntou ele, sem levantar os olhos.
- Você, meu amigo, nunca daria um detective. Emquanto a pequena vier ao armazém e eu a puder vigiar, tudo irá bem. Mas assim que ela estiver na prisão, contará uma
data de mentiras e nós nada avançaremos. Deixemo-la livre e bastará segui-la para se encontrar o ninho onde se esconde o resto do bando. Não é simples?
Sanders escrevia ainda, murmurando que era realmente muito simples. Bruscamente, Filipe retirou os pés da mesa e endireitou-se na cadeira. Depois, esboçou um sorriso
para se desculpar. "Tenho ainda os tiros nos ouvidos, disse ele. Assim que se fecha uma porta julgo ouvir uma detonação."
- Talvez tenha um pouco de febre... por causa do seu braço... - replicou Sanders.
- Não tenho febre! - declarou o velho, com energia.
- Hoje, sr. Filipe limito-me a entrevistá-lo sobre coisas de actualidade, mas temos ainda sete continuações a fornecer, como deve ter compreendido, Amanhã terá de
me falar de si, da sua infância, dos seus estudos, etc. Uma verdadeira biografia. "O homem que abateu Big Bill." Dizia então que essa mulher... e como é ela?
Filipe não respondeu e riu cordealmente a este súbito ataque.
- Olhe que não me apanha com tanta facilidade. Não ouço nada, não vejo nada, não digo nada. E fez o gesto dos três macacos do templo de Nikko.
-É pena.-disse Sanders-Por uma informação semelhante o chefe daria ainda quinhentos dólares... eu conheço-o.
Filipe tinha caído numa profunda meditação. Não podia afastar Erik Bengtson do seu espírito. Erik com os olhos vermelhos, meio cego, meio louco por dores horríveis
na cabeça, o acabrunhamento do seu corpo, a tristeza da sua voz. O rapaz não era mau. E tinha coragem. Sabia calar-se e estava só, para se defender. E esse quadro,
na oficina, com as suas ondas verdes, a vela cor de laranja e Liliana Smith no primeiro plano. Era um idiota, com certeza, mas havia arrojo na sua falta, forçoso
era reconhecê-lo. "Como? Que dizia?" - preguntou, saindo da sua distracção - "Preguntava se posso servir me do seu telefone. Queria saber se o patrão daria mil dólares
caso o senhor consentisse em dar parte ao Evening Star das suas suspeitas."
- Pregunto a mim mesmo que hei-de fazer a tanto dinheiro. - disse Filipe - Vejamos... espere dois dias e... veremos. vou fazer uma outra proposta: suponha que nós
visitamos toda a Central - você fotografará doze caixeiras e depois escolherá. E eu digo depois se a mulher em questão faz parte delas. Que acha?
Sanders reflectiu, perplexo. Isto abria-lhe horizontes novos. Sob o ponto de vista jornalístico, a proposta não era má. Podiam fotografar doze bonitas mulheres e
abrir um concurso entre os leitores. "Qual das doze mulheres era a amante de Big Bill?" Antes que ele pudesse sair das suas reflexões, o telefone tocou. Maquinalmente,
pegou no auscultador e estendeu-o a Filipe. "É para si -disse.
- Como? O quê? Morta? Não, eu vou, - gritou
o detective ao aparelho e, precipitadamente saiu do aposento - Sanders, com a rápida compreensão do repórter experimentado correu atrás dele, através do corredor,
por diante da boca de incêndio até ao elevador.
- Que aconteceu? - gritou, já sem fôlego.
- O bando de Big Bill. Acabam de matar a rapariga. - respondeu o velho detective - E precipitaram-se os dois para o 3.? andar.
LADEADO por dois inspectores de polícia, o velho Filipe
estava no corredor branco da casa de saúde. Sanders, o repórter, estava sentado no banco vizinho. Cheirava a oleado recentemente encerado; o braço de Filipe doía-lhe.
Esperavam todos que a doente, Liliana Smith, estivesse preparada para o interrogatório.
- Que fazem aqui? - preguntou a enfermeira-chefe passando diante dos quatro homens.
- Esperam pelo N.? 14 - respondeu a enfermeira do andar, pois aqui cada doente tinha um número.
Liliana não era mais do que um fardo inconsciente, no momento em que madame Chalon a tinha encontrado no tapete do gabinete de provas, até a terem deitado na mesa
das operações. Pelo espaço de um segundo, tinha experimentado a sensação de uma luz aguda e dolorosa, depois, sob a influência do narcótico, ouvia a campainha da
loja de penhores, dling dling dling... Tiraram-lhe a bala do pulmão, coseram-na e transportaram-na para o quarto n.? 14.
Só à noite voltou a si; deram-lhe uma injecção, ergueram na um pouco e submeteram-na a um curto interrogatório, A enfermeira tomou lhe o pulso e os homens encostaram-se
à cama, pois Liliana só podia falar em voz quási imperceptível.
-- Conhecia a pessoa que fez fogo sobre si?
Liliana reflectiu:
- Não - respondeu. - Não.
- com certeza? - preguntou um dos comissários. -Não.
- Era um homem?
Liliana acenou negativamente com a cabeça na almofada.
- Uma mulher, então ?
- Sim.
- Como era ela ?
- Como uma cliente. - murmurou, a custo, Liliana.
- Isso não é uma descrição; que aparência tinha ? Liliana, cujo pulso na mão da enfermeira se tornava
lento e fraco, fez, em voz baixa, o retrato de uma mulher: alta, morena, enérgica, com uma voz forte e uma grande verruga na face, uma mulher, emfim, que não tinha
a mínima semelhança com Nina. A enfermeira fez um sinal ao comissário: basta.
Fora, no corredor branco da casa de saúde, Filipe dizia: "É claro. Ela não dirá nada. Foi qualquer do seu bando que lhe atirou." Têm medo que fale demais.
- Sim, é claro, - disse o comissário - Sanders, tomou notas apressadas no seu bloco; depois, todos juntos foram tomar cerveja.
Filipe tinha a impressão de que não poderia mais dormir na sua vida. Já fazia vinte e quatro horas que estava em pé e, no cotovelo, uma palpitação fazia-se sentir,
o que significava talvez um envenenamento do sangue.
No quarto N.? 14, Liliana estava deitada sem movimento. Sentia-se contente. Deram-lhe mais uma injecção e ela adormeceu: depois, voltou a si, tornando ainda a amodorrar.
Assim que abriu os olhos, era dia. Não tinha o cérebro ainda claro, mas a consciência de ter feito qualquer coisa certa. O que era forte em si, era sempre forte:
o bem no mal, a força no querer.
Nina quis matá-la. Liliana sorria quando pensava
nessa "maluquinha". Quem podia imaginar uma coisa dessas, da Nina! Havia também neste pensamento um pouco de respeito, um estranho elo, uma leve e curiosa simpatia.
- Então, como vai hoje ? - preguntou a enfermeira endireitando-a na cama. Liliana tinha uma estranha tendência a descair constantemente, o que era mau sinal.
- Obrigada, muito bem - respondeu, num sopro. Sim, ela sentia-se bem nesse leito. Não sofria.
Aqui, nada podia acontecer-lhe. Ninguém a podia vir prender. O ventilador sussurrava; havia um ventilador ao pé da janela. Lá fora oscilava um ramo de hera. De longe,
chegava o som amortecido de um rádio.
Depois ouviu o sino que, na Central, tocava para se fechar o armazém.
No corredor, um homem esperava.
- Chamo-me Sanders do Evening Star e queria tirar um retrato à menina Smith, para o meu jornal. Trago o fotógrafo, Pratt. Vamos, Pratt, venha cá.
- Ninguém pode ver a menina Smith. - disse a enfermeira.-Ela não está bem.
- Estado grave ?-preguntou Sanders, aflito com o pensamento de ver uma boa reportagem escapar-lhe. A enfermeira encolheu os ombros e foi-se sem ruído, nas suas solas
de borracha.
- Voltarei. - disse Sanders.
Mas só pôde ver Liliana ao fim de três semanas, dois dias depois do enterro do velho Filipe. "Cá está, outra vez, esse demónio do Evening Star-" - disse a enfermeira.
- Deixe-o entrar... espere... passe-me um espelho... e a minha malinha... diga-lhe que tenha paciência por cinco minutos ... - respondeu vivamente Liliana. Aborrecida,
a enfermeira saiu. Assim que Sanders entrou, Liliana estava espectaculosamente deitada: com as faces pálidas e os lábios vermelhos. Vestia uma camisa de noite cor
de rosa-chá.
Ah! emfim!- exclamou Sanders. New-York inteira espera ver o seu retrato. Tem um grande futuro diante de si e um passado cheio de experiência, Baby; acredite em Sanders
que tem visto subir muitas estrelas.
- Estou absolutamente num feixe - disse Liliana, sorrindo. Sanders arranjou-a um pouco e Pratt barulhava com o seu aparelho através da porta.
- Aqui está Pratt. - disse Sanders. - Desta vez, Pratt, nada de retoques. Deixe-nos andar, Baby, vamos valorizar a sua história como merece. O patrão oferece lhe
trezentos dólares pelas suas memórias a respeito de Big Bill e isto para começar. Que vai fazer quando sair deste galinheiro?
- A minha ambição tem sido sempre o teatro. disse prontamente Liliana. -Mesmo sob o cobertor de lã, marcado com as iniciais do hospital, podia ver-se quanto as suas
ancas eram belas. - Gostaria de ser rica e célebre, meus pais não são ricos e tenho duas irmãzinhas.
Encantado, Sanders estenografava. Tudo isso seria impresso no Evening Star.
- Minha filha - disse ele. em tom solene, - a tua carreira começa hoje. Dentro de três anos darão o teu nome a uma marca de cigarros!
O magnésio brilhou com um estalido surdo e uma nuvem de fumo pálido diluiu-se no ar, até ao teto, pintado de branco, do quarto da doente.
- DE quem é a vez agora ?-preguntou o Sr. Crosby
ao seu secretário. O secretário consultou a lista e disse:
- Da sr.a Bengtson, sr. Crosby.
O sr. Crosby levantou-se e passou por cada uma das quatro janelas colossais do seu escritório. Diante de todas via-se a mesma coisa : neve suja, bicos de torres,
de tal forma que New-York parecia uma péssima gravura de Jornal, impressa em rede grossa. Os dois rios e as colinas estavam invisíveis e a região do centro-oeste
pedia socorro, pois encontrava-se inundada, como todos os anos, em Março. No entanto, Crosby estava de bom humor. As acções da Central tinham subido meio ponto e
o seu açúcar tinha descido três décimas.
- Mande entrar a sr.a Bengtson. - ordenou. O secretário particular disse ao ditofone:
- A sr.a Bengtson pode entrar.
No vestíbulo de recepção estavam três secretárias prontas a executarem as ordens do todo-poderoso. Uma delas levantou se e foi chamar à sala de espera:
- A sr. Bengtson.
Ela tinha uma voz de mayonnaise rançosa. Nina levantou-se e entrou.
Os seus joelhos estavam ainda um pouco trémulos, pois o jovem Erik pesava mais de quatro quilos à nascença
e levou vinte e quatro horas a chegar. Mas, mesmo sem isso, ela teria os joelhos vacilantes no momento de comparecer diante do grande patrão. Vestia o seu casaco
azul-marinho e a condessa tinha-lhe emprestado luvas brancas, que eram muito grandes para ela. -Aqui está a sr.a Bengtson, sr. Crosby-disse o secretário, empurrando
uma cadeira incómoda para a frente do director da Central.
- Bons-dias, sr.a Bengtson - disse Crosby, sem olhar para Nina. Lia numa resma de papéis que o seu secretário colocara diante dele; quando acabou, suspirou alto
e passou outra vez diante de cada uma das quatro janelas de vidros cobertos de neve e voltou a sentar-se atrás da sua secretária gigante.
- Fez um pedido para voltar para cá, sr.a Bengtson ?
- preguntou, e o seu olhar ergueu-se bruscamente para Nina, de modo que ela ficou tão surpreendida que sentiu Cada uma das doze sardas do seu rosto.
É verdade, sr. Crosby. - respondeu prontamente, avançando para a borda da cadeira - A sr.a Bradley informou-me que iam contratar sessenta caixeiras novas para a
Central.
- A sr.a Bradley? A sr.a Bradley?-disse o sr. Crosby franzindo as sobrancelhas e procurando nos seus papéis.
- Ela já não trabalha na Central desde que Skimpy herdou do velho Filipe, mas aluga quartos aos empregados do armazém e sabe assim todas as novidades.
O sr. Crosby afastou, com um gesto de mão, essas explicações ociosas.
- Mandei-a chamar porque o meu amigo Thorpe escreveu-me de Paris por sua causa. -disse. Nina corou. Êle parece que se interessa muito por si, - acrescentou Crosby.
Pelo rizinho lisongeiro do secretário, Nina percebeu que o todo-poderoso acabava de ter espírito. Sorriu fracamente. Tinha muito medo. Querido e bom Steve, que mesmo
durante a sua segunda viagem de núpcias...
que com certeza não era um prazer para ele... não a esquecia..
- com certeza, sr. Crosby - disse ela.
- Thorpe disse-me que devia também receber seu marido, mas compreende que isso é completamente impossível. - disse o sr. Crosby.
- com certeza, sr. Crosby. - murmurou Nina com a garganta seca.
- Se o nosso bom Filipe não estivesse cá, a Central teria perdido centenas de milhares de dólares por causa de uma leviandade de seu marido. Eu digo leviandade...
porque não se pôde provar qualquer coisa pior.
Nina olhou para as luvas.
- Meu marido pagou duramente as suas faltas. disse ela-Transformou-se muito, também, desde que lhe foi levantada a prisão preventiva.
O sr. Crosby impacientou-se. Não queria meter-se em assuntos de psicologia privada.
- Bem - disse, atirando ao secretário o maço de papéis... - Por causa do meu amigo Thorpe... e por a senhora ser considerada como uma caixeira conscienciosa, vai
ser-lhe restituído o seu antigo lugar. Pode ir apresentar-se imediatamente na secção de louças e vidros... lá lhe darão as necessárias instruções. O seu marido deve
ver o que faz...
- Pinta. Será um dia um artista célebre! - não pôde deixar de dizer Nina.
Teria abafado, se tivesse que engulir isto. O sr. Crosby tomou um ar impacientado, mas franziu as sobrancelhas, o que era nele uma forma de sorrir.
- De quem é a vez agora ? - preguntou ao secretário.
- De madame Chalon: aumento de ordenado respondeu o rapaz.
Nina compreendeu que a despediam. Tinha o coração cheio de reconhecimento e não sabia como exprimi-lo.
- Obrigada, sr. Crosby - disse ela. Sinto-me feliz... emfim... quem já trabalhou na Central... embora esteja sempre a resmungar, troca tudo pela velha loja.
Assustada, ouviu como o sr. Crosby desatou a rir sonoramente, o que em breve se transformou numa tosse de bronquite crónica.
Nina desfilou diante das três secretárias do hall de recepção, diante das pessoas que estavam no salão de espera, diante dos avisos: "Pede-se o favor de guardar
silêncio" e dirigiu-se para o elevador.
Na secção de louças e vidros estavam já informados do seu regresso, pois na Central as notícias têm uma forma extraordinária de se propagar sem fios, por telepatia.
O sr. Berg estava sinceramente contente e miss Drivot fez como se estivesse.
- Sabe que nos tiram agora mais cinquenta cêntimos sobre 60 dólares ? Não faltava mais nada! Chamam a esta retirada: reforma para a velhice. Batatas, digo-lhe eu.
- anunciou ela a Nina.
Às escondidas, Nina acariciou a superfície lisa e fria de um vaso de cristal azul.
- Já lanchou? - preguntou o sr. Berg. Não? Então vá de pressa, porque pode começar a seguir. Como? Se precisamos de si? Creio bem. Temos uma venda antes do inventário:
vamos liquidar todos os objectos de importação inglesa. O serviço de 62 dólares está por 12 dólares, sem falar no resto.
- Os vidros, as porcelanas tomaram um grande desenvolvimento desde a sua saída - disse miss Drivot como um triunfo pessoal. Ao fundo, ouviu-se um ruído de vidro
partido; uma das novas caixeiras tinha quebrado uma fruteira. "Meu Deus!"-exclamou o sr. Berg, correndo para o local do sinistro.
A condessa esperava, com o seu inverosímil Ford diante da fachada oeste, justamente debaixo do aviso: "É proibido estacionar." Tinha metido conversa com o polícia
e este fazia, com sorridente complacência, uma
descrição da constituição de seu jovem irmão. Nina subiu para o carro.
- Pronto, Mutz - disse ela. A condessa falou amavelmente ao seu motor e, ao fim de um certo tempo, o carro consentiu em pôr-se em marcha. "Onde está Erik ? - preguntou
Nina. - "Espera-nos no "Rivoldi"... Ofereço-lhes uma garrafa de chianti.
- Eu não devo beber, pois começo a trabalhar logo a seguir ao almoço.
- Estás contente? - preguntou a condessa, olhando Nina emquanto ia aos ziguezagues perigosos.
- Sim ... se não fosse por causa do pequeno... -A sr.a Bradley e Skimpy tratarão dele. E tu ainda lhe podes dar de mamar duas vezes ao dia, de manhã e à noite.
- Sim, é verdade.
- E depois, Erik é mestre na arte de mudar os cueiros e de preparar biberons, deves reconhecê-lo...
- Querido Erik! - murmurou Nina, sorrindo sonhadoramente.
- Erik gosta muito de ti, Nina.- disse a condessa. Elas avançavam lentamente sobre a neve, por entre
a circulação do meio-dia. Nina não respondeu. A condessa afirmou:
- Nunca pensei que ele chegasse a amar tão profundamente.
- Não ? - preguntou Nina.
- Escuta, Nina. Eu aprendi qualquer coisa lá em baixo, em Lansdale. - disse a condessa fazendo habilmente uma volta para se colocar no lugar dos carros do "Rivoldi"
- O homem é uma máquina subtil e imperfeita. É muito bonito e muito bom sonhar com a perfeição : o ente perfeito, o casamento perfeito... o carácter perfeito...
mas isso não existe na realidade. Os defeitos são válvulas de segurança. Aprendi isto com os meus desgraçados de lá, da caixa dos malucos.
Nina reflectiu um instante. Desceram, e a condessa
teve um diálogo em voz muito alta com um italiano do parque dos carros; por fim, com um grande sorriso e um cumprimento, este deu-lhe a sua senha de estacionamento.
- Sim, creio que, quando se gosta de alguém, gosta-se tanto dos seus defeitos como do resto... - disse Nina quando elas empurravam já a porta e entravam na sala
do "Rivoldi , obscurecida pelo fumo.
Erik estava sentado a um canto, debruçado sobre o mármore da mesa : desenhava encarniçadamente. Quando viu as duas mulheres, apagou vivamente tudo com a palma da
mão. Nina instalou-se e, como havia muito que tinha aprendido a decifrar as garatujas de seu marido, reparou que se tratava de uma familia de pardalitos, de grandes
bicos abertos. A condessa esfregou as mãos e encomendou a comida.
- Nina resolveu trabalhar, emquanto tu não vendes o teu primeiro quadro. - disse ela a Erik.
- Não tardará muito tempo-respondeu, procurando debaixo da mesa, a mão de Nina. A jovem tinha ainda as grandes luvas e, surpreendido, ele tateou o final dos dedos
vazios. Durante esse tempo, a condessa lançou a Nina um olhar de muda compreensão. "Os homens são uma raça bem fraca... nós temos de os ajudar como pudermos..."
Era isto mais ou menos o que o seu olhar significava. Em Lansdale tinha ela tido muitas conversas sobre esse tema.
O chianti apareceu ao mesmo tempo que a sopa. O criado parecia estar apaixonado- pela condessa; uma nódoa de tomate manchava o seu avental branco.
- vou tentar pintar o que pensei durante o meu interrogatório de terceiro grau. - disse Erik subitamente. Era a primeira vez que falava disso.
- E que era, meu filho? - preguntou a condessa.
- Nina ... eis o que pensava. Dizia constantemente para mim: Nina ... Nina ... Nina..
Calaram-se um instante.
- Agora trata de não recomeçar, porque eu só posso pedir uma licença por ano. - disse a condessa, alegremente, vazando o vinho nos copos.
Às seis horas menos cinco, exactamente, a tal senhora
- a cliente para quem tudo era caro - fez a sua entrada na secção de vidros e louças. Passou pelos doze balcões, que tinham instalado para a liquidação geral e chegou
diante do serviço de rosas.
Nina apressou-se a servi-la.
-A senhora ainda se interessa pelo serviço? - preguntou ela - Baixou. Só custa nove dólares e setenta e cinco...
A mulher calculou, movendo os lábios.
Eram seis horas, a sineta tocou; por fim, a cliente tomou um ar encantado:
- Eu levo-o! -disse.
- Devo avisá-la, minha senhora, de que duas chávenas já estão rachadas -disse Nina dando um piparote nas duas peças de que saía um som velado.
- Não faz mal - afirmou a senhora - as coisas rachadas são as que duram mais.

VALHA ME Deus! Lá está ela outra vez! -exclamou intimamente Nina, ao ver a cliente que, às seis horas menos cinco, entrava a porta envidraçada que separava os novos dos velhos armazéns, e a secção de alimentação da das porcelanas.
Na secção dos alimentos era hoje o dia do peixe a preço único: cada qualidade a 20 cents o arrátel. Sentia-se o cheiro em todo o andar! Quanto à senhora, vinha pela quarta vez e, justamente uns minutos antes de fechar o armazém, Pertencia a essa categoria de pessoas que chegam sempre tarde. Embora os cinco degraus, que se seguiam à porta envidraçada, fossem assinalados por um letreiro, dizendo: "Atenção aos degraus!" a senhora tropeçou, deixou cair um embrulho e apertou a malinha de mão contra o seio frouxo. com o chapéu um pouco ao lado, as faces afogueadas, pertencia também a essa espécie de clientes que andam sempre à procura do que for mais barato.
Blusas manchadas, cafeteiras amachucadas, sacos de coiro desbotados pelo sol, meias de seda quási artificial, de ocasião - tais eram as suas compras. São mulheres de pequenos empregados, cheias de preocupações e de trabalho, mulheres que nunca, na sua vida, possuíram uma coisa, tendo-a pago pelo seu preço normal.
Agora era o serviço de porcelana para doze pessoas, guarnecido a rosas, que tinha dado volta à cabeça da boa senhora. Estava em cima da segunda mesa: pratos, travessas, chávenas de café -tudo. Porcelana já não muito branca, rosas de cor bastante carregada, folhas excessivamente verdes, com os bordos ligeiramente mordiscados, pouco doirados. " 39.80" anunciava a etiqueta; e esse preço, só por si, era uma obra de arte, uma sugestão que tornava o serviço ainda mais barato do que 40 dólares. Desde a fábrica, até esta mesa de armazém, centenas de pessoas tinham sido lesadas nos seus salários, para que o preço desse serviço pudesse ser calculado vinte cêntimos abaixo de quarenta dólares. Exposto agora, com todas as suas rosas e o seu luxo de segunda classe, atraía os clientes.

 

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A mulher parou diante do serviço: viram-na reflectir e calcular, emquanto que, com o olhar, procurava uma empregada.
"A mim não, Senhor, a mim não!"-implorou mentalmente Nina, tentando parecer desagradável - "Ao menos uma vez, miss Drivot pode muito bem atender a última cliente."
- pensava ela, quási zangada -Três rugas cruzaram-lhe a pequena testa. Erik pretendia que ela parecia um pequeno cão basset, assim que tinha qualquer preocupação...
Dizia também que era tão pequena e tão nova que devia ainda "precisar de crescer dentro da pele, dessa pele fina, brilhante e aveludada de rapariga de dezanove anos.
E quando Nina recordava as coisas que o seu amigo lhe dizia, essas coisas que mais ninguém no mundo podia inventar, sentia sempre um aperto angustioso e doce, no
coração. Agora, no seu trabalho, cinco-não, dois minutos e meio-antes de fechar, e com uma cliente desagradável à vista, sentia-o também, mas sem doçura.
- Está livre, menina?-preguntou a senhora, diante do serviço de porcelana - E Nina abandonou-se ao seu destino.
E devia ser esse o seu destino, pois toda a clientela
desagradável se lhe dirigia. Não sei o que tenho... as clientes caem em cima de mim como moscas -lamentava-se ao seu amigo Erik e à sua camarada Liliana.
-Oh! Tu tens com certeza qualquer atracção, pardal, pardalinho, pardalito - dizia ele.
Os clientes só servem para nos maçar! -replicava Liliana, sem dar atenção ao pedido de conselho que a queixa de Nina ocultava.
Isso é certo. - concordava Nina, sem verdadeira convicção.
com os cabelos brilhantes, cor de avelã, o olhar sério e interrogador, tudo nela parecia tão simples e era tão simpático, que não se tornava necessária muita psicologia
para compreender que, quem quisesse comprar um serviço de porcelana ou uma fruteira de cristal, se dirigisse a ela e não à magra e seca miss Drivot.
- Trinta e nove dólares ?-preguntou a senhora, parada diante do serviço de rosas - Eram então seis horas e um minuto; a sineta já tinha acabado de tocar.
- Trinta e nove dólares e oitenta.-rectificou polidamente Nina, fazendo soar, com uma pancada do dedo, uma chávena de onde saiu um lindo som - É uma bela porcelana.
Artigo de primeira qualidade.
Seis horas e dois! Erick devia já estar à espera em baixo, na escada 5. Drivot, naturalmente, já estava pronta, há que tempos! Cobria com panos os animais de vidro
e preparava-se para sair.
- Tão caro! Não se poderia... emfim, não se poderia fazer um abatimento ?
- Infelizmente não é possível. É pintado à mão, artigo de primeira qualidade.
- Não posso gastar tanto! É pintado à mão? E se se partir alguma peça, poderão substituí-la ?
- com certeza, minha senhora, com certeza.- respondeu Nina.
Esta conversa tinha lugar pela quarta vez; a mulher estava louca pelo serviço, mas não tinha o dinheiro preciso.
Seis horas e quatro! No meio da sua cólera e da sua impaciência, Nina experimentava como que um sentimento de compreensão por essa senhora, sentimento que era piedade,
embora ela não o reconhecesse como tal.
- É que eu festejo em breve as minhas bodas de prata ... - explicou a cliente.
- Ah! Sim?-interessou-se amavelmente Nina - Eu também estou para casar em breve, teria acrescentado de boa vontade. Mas a sua vida privada nada tinha que ver com
o trabalho. Seis horas e cinco, indicava o relógio sobre a porta envidraçada. Na secção musical, próxima, o último gramofone tinha-se calado. Erik esperava. Drivot,
evidentemente, havia-se eclipsado. Somente no fundo da galeria, na caixa 24, trabalhavam ainda. Era aí que a sr.a Bradley empacotava, mecanicamente, como uma máquina.
A sr.a Bradley era também uma espécie de vítima; era sempre a última a sair.
- Deve resolver-se. - tornou Nina - é uma ocasião
única...
O sr. Berg, chefe da secção, percorria pela última vez o seu domínio. Involuntariamente, Nina lançou lhe um olhar de submissa súplica. Experimentava pelo sr. Berg
o sentimento respeitoso que um jovem escritor pode sentir por um prémio Nobel. O sr, Berg possuia, com certeza, coração: toda a secção estava de acordo sobre este
ponto - coração e coragem. Veio em auxílio da empregada.
- O elevador não trabalha já, minha senhora. lembrou, cortesmente - Fechamos às seis horas. Esta senhora terá que descer a escada, quando tiver terminado a sua compra.
- Não posso resolver hoje. - disse a cliente - Volto cá noutra ocasião. E foi-se embora.
Nina tinha ainda de arrumar. A porcelana tilintava-lhe nas mãos, tão nervosa se sentia. Erik estava em baixo, na escada 5. O elevador reservado ao pessoal já não
funcionava. Era preciso descer a pé a escada 8 e seguir o longo corredor da cave até ao vestiário onde estavam os armários estreitos e alinhados, como no quartel.
Nina lavou as mãos, mirou-se um segundo ao espelho do toucador e, em seguida, pôs um sopro de pó no rosto e um traço de rouge nos lábios.
-Então? Tens pressa?-preguntou Liliana que arranjava as unhas e as sobrancelhas, pausadamente.
- Tenho. - respondeu Nina, com um braço já metido na manga do casaco -A sr.a Bradley já saiu?
- Não a vi - respondeu Liliana, pintando cuidadosamente os lábios.
- Tanto pior, eu não posso esperar, -retorquiu Nina, saindo.
- Espera um instante! Eu vou contigo! -gritou Liliana atrás dela; mas com as suas três rugas na testa, Nina fingiu não ouvir. Embora Liliana fôsse sua amiga, não
gostava que se lhe agarrasse todas as tardes. Muitas vezes Liliana e Erik entregavam-se a brincadeiras a que Nina, com a melhor boa vontade deste mundo, não podia
achar graça.
Transpôs, correndo, as portas da cave, deslisou entre as caixeiras que subiam, cujo grupo foi detido no antigo pátio de controle. Do portão vinha uma corrente de
ar: recebia-se aí uma poeirada no rosto e nos olhos, de fazer chorar. Nina ia meia cega quando conseguiu chegar à escada 5. Erik lá estava: tinha o ar de verdadeiro
gentleman, com a gravata de seda e o chapéu de coco. Havia já algum tempo que deixara crescer um pequeno bigode. Enlaçou amorosamente Nina.
- Então Spurv? Lille Spurv! - murmurou, arrastando-a. Isto era dinamarquês e significava: pardal, pardalinho. Pois Erik - Erik Bengtson era dinamarquês. Viera para
a América muito novo e frequentemente, evocava ainda os bosques de vidoeiros e as baías tranquilas do seu país. Diferia em muita coisa da espécie de rapazes que
Nina costumava conhecer. Ele parecia-lhe um estrangeiro que tivesse acabado de desembarcar no último
barco e não compreendesse bem o que representava New-York. Era muito mais alto do que Nina; uma expressão impertinente flutuava-lhe no rosto: dir-se-ia que tudo
quanto ele via o divertia loucamente.
Nina apertou com mais força o braço contra o do companheiro, e caminhou sem dizer palavra. Como exprimir a sua felicidade sempre que este Erik tinha o braço metido
no seu ombro junto à sua fronte? Ela regulava o mais possível o seu passo pelo dele e levantava, quanto podia, o rosto para o ver.
Era o rosto da tarde de todas as mulheres de grande cidade: a face jovem e fina, de pele frágil e delicada, de quem apanha pouca luz e pouco sol. Muito nova, terna,
um tudo-nada de petulância e algum cepticismo. "Estar cansada, sim, às vezes, mas não o mostrar nunca." Um leve círculo em redor dos olhos e o clarão agudo das lâmpadas
e dos reclamos luminosos sobre as faces e sobre a boca entreaberta.
- Um pouco atrasada, an ? - disse ele.
- Sim... À última hora apareceu-me uma velha maçadora...
- Não te rales, podemos ainda passar dez minutos no "Rivoldi" - e deu grandes passadas.
Não podiam avançar; era a hora em que a capital enlouquecia, em que de todas as casas de comércio saía gente, ondas de gente. Caça aos automóveis, aos metros, aos
eléctricos, filas de carros parados, mendigos, floristas tentando vender os últimos ramos, carritos de fruta voltando para casa, homens que querem apanhar uma rapariga
com quem passar a tarde, mulheres procurando um homem com quem passar a noite; gente casada que volta para casa, maridos que perdem tempo para não terem de recolher,
solitários parados às esquinas a seguir os namorados com o olhar.
- Ao "Rivoldi"? Não vamos para casa? É pena!...
- lamentou Nina, mergulhando rapidamente, o rosto na sombra.
- Que queres, tem que ser! E posso dar-me por feliz se tiver acabado amanhã de manhã, às seis horas.
- Trabalho extraordinário ? E que vais fazer ? - preguntou a rapariga.
- Pôr. Pôr ovos toda a noite. - disse Erik, não sem dignidade, empurrando a porta do pequeno restaurante italiano. Lá dentro cheirava a cebola e a cigarros ordinários;
o ar estava todo azul, Erik tinha um fraco por esse lugar fumarento; já fora à Itália, no tempo em que esperava tornar-se pintor célebre, e conhecia um pouco o italiano.
- Pôr ovos ? Para quê ? - preguntou Nina, rindo.
- Para as festas da Páscoa. - respondeu Erik, instalando-a num canto.
Ela encaixou-se atrás da mesita de tampo de mármore, olhando-o num ar encantado.
- Dá-me um cigarro. - disse, para não deixar ver muito a sua admiração - E deixa o meu joelho em paz. Não dês nas vistas.
Na verdade, Erik, esse grande maluco, não se comportava bem. Que ele era um grande maluco, lá nisso toda a gente estava de acordo,
- Raviolis, café, torta de damasco, - encomendou ao criado.
- Para mim também-resolveu Nina, que não percebera nada.
Erik tinha, mais uma vez, o lápis na mão e desenhava qualquer coisa no mármore da mesa, entre as rodelas que as chávenas de café, anteriormente servidas, haviam
deixado.
- Que é isso ? - preguntou Nina, aspirando profundamente a sua primeira fumaça.
Erik levantou os olhos um instante, quando o fumo saía pelas narinas pálidas e finas da sua companheira. Estava loucamente apaixonado por ela. - "Faz anéis".
- disse-lhe - Nina aspirou o cigarro e fez anéis. Erik contemplava o espectáculo, como se fosse um bom numero
de musiC'hall. Depois, continuou a desenhar. "Parece-me que tenho uma idea"... - murmurou, distraído.
- A respeito dos ovos ?
- Sim. Trata-se da decoração para a Páscoa.
- Que o demónio leve a decoração se tu tens que ficar lá todas as noites por causa disso. Parece-me que o teu chefe te apanhou mais uma vez.
- Apanhou-me bem, o velho rinoceronte. A ele não lhe vem outra coisa à cabeça senão pôr uma lebre e um vidoeiro em cada vitrina.
-E tu?
- Eu ? Oh! eu vou achar, com certeza, qualquer
coisa melhor.
- com certeza. - confiou Nina. Desde que conhecera este Erik, descobrira que ele era um génio. Um génio em montras e em todo o género de coisas: publicidade, desenhos,
balões fora dos novos edifícios, esboços para catálogos - sim, um génio em tudo e para tudo. Mas, por mais recente que fosse a sua experiência no que respeitava
a génios, ela já tinha compreendido que não é sempre fácil viver com eles.
- Fico outra vez sozinha esta noite! Estava tão contente pensando que a passaria ao pé de ti... - disse timidamente.
- Mete-te no teu ninho e dorme, Lille Spurv. - respondeu ele - Tens o ar de quem está um pouco cansada ... Eu vou despachar-me e talvez amanhã te vá dar os bons-dias
antes de tu saíres.
- Sim senhor... isto vai dar um bonito casamento! exclamou ela. - Quando eu sair do armazém, tens tu que entrar e quando tu saíres, entrarei eu!
- Um casamento de primeira qualidade. Garantido. - brincou ele abandonando, emfim, o desenho. Nina observava-o emquanto mastigava a sua dose de raviolis... Tinha
outra vez o ar de não estar ali ao pé dela, à mesa do "Rivoldi", mas Deus sabia lá onde...
Tu não te sentes cansado, dize ? - preguntou ela.
Nem nada - respondeu o rapaz.
Nina bebeu o seu café e comeu o seu bolo. Estava desiludida e triste. A noite, sem Erik, alongava-se na sua frente, sem fim, vazia como um deserto.
- Poderia talvez ir ao cinema... - arriscou, hesitante.
- Isso não! - retorquiu Erik - Ao cinema só vamos
juntos. Não quero que vejas sem mim todos os bons films. -Egoísta!
- Sou-o horrivelmente, quando se trata de ti. - afirmou Erik. Mas estava a brincar.
- Quando iremos ao cinema, os dois ? - preguntou Nina, meia consolada.
- Amanhã. - respondeu ele - E chamou o criado, murmurando palavras em italiano. A conta chegou pouco depois. Erik pagou.
A mesa estava coberta de garatujas, mas Nina não chegava a perceber do que se tratava. O criado trazia já uma rodilha molhada e apagou tudo.
- Agora vamos, pequenina, avante! Preciso voltar à loja - disse Erik, metendo o braço no da rapariga.
Lá fora, tiveram que afrontar o primeiro vento da primavera que desembocava da esquina. Só agora ela sentia a que ponto estava fatigada e só o pensar na sua cama,
causou-lhe prazer. Maquinalmente dirigiu-se para a estação do metro, mais próxima, mas Erik reteve-a no momento em que ela ia atravessar a rua.
- Anda, - disse - vamos tomar um táxi, dou-te um thaler para pagar e vais até casa. Ele disse thaler e isso parecia estrangeiro, dinamarquês.
- Meu Deus, como és gastador! E pensa isto em casar...
- Pst! Pare primeiro na Central Warehouse. A senhora vai mais-longe - disse Erik, empurrando Nina para o táxi, que acabava de parar ao seu sinal.
Para ir do "Rivoldi" à Central, de táxi, bastava minuto e meio, compreendendo duas paragens nos cruzamentos,
Durante esse minuto e meio a boca de Erik foi colada à de Nina.
- Boas-noites, Lille Spurv. - disse, descendo - Aqui
tens o teu thaler.
- Dá saudades â lebre da Páscoa,-recomendou ela e põe os teus ovos com todo o cuidado.
Na primeira esquina fêz parar o carro, deu ao motorista trinta cêntimos, meteu na sua carteira o dólar que tinha aquecido na mão, e depois meteu-se na boca do metro.
A Central Warehouse ocupava um quarteirão inteiro de casas no centro da cidade, com doze montras gigantescas, em cada uma das quatro fachadas e doze andares cheios
de mercadorias e de actividade. No meio, erguia-se um arranha-céus de dezoito andares, no qual estavam instalados os escritórios e aposentos da direcção.
Erik seguiu pelo lado oeste do edifício: todas as vitrinas estavam iluminadas. Na fachada norte, estores, atrás dos quais se agitavam sombras, velavam as montras
números 1 a 6, cuja decoração devia ser renovada durante a noite. O relógio monumental do edifício do centro, de disco luminoso, indicava sete horas menos dez.
- Adeus, Joé - disse o rapaz passando diante da casa do porteiro, que ficava à entrada 4 do pessoal.
- Trabalha de noite, sr. Bengtson ? - informou-se Joé, aparecendo à porta.
Ele tinha um olho de vidro. Depois do armistício, fôra uma idea fixa do sr. Crosby, o deus invisível que, reinava sobre todo o armazém, empregar cinquenta feridos
de guerra. Os jornais tinham falado muito e citado o sr. Crosby como um grande patriota. Sete ou oito desses veteranos estavam ao serviço; podia-se vê-los passar
por diferentes lugares. Um negro maneta ocupava-se do elevador do pessoal do lado norte, e um
irlandês apoplético, com uma perna artificial, tinha por missão aparar todos os lápis dos escritórios.
- Decoração de Páscoa - disse Bengtson estendendo ao guarda o seu maço de cigarros para que ele tirasse um.
- Obrigado. - agradeceu Joé, metendo o cigarro na
algibeira interior.
- O velho já lá está ? - preguntou Bengtson.
- Eu não vi o sr. Sprague - respondeu Joé.
Bengtson afastou-se em passo de gimnástica, assobiando. Fazia soar as chaves como castanholas. As salas vazias seguiam-se numa semi-obscuridade; panos brancos cobriam
as mercadorias que não tinham sido retiradas. De vez em quando, aparecia um manequim, impecavelmente vestido, que sorria, com ar petrificado.
Bengtson dava piparotes naquelas caras de cera, estava contente. Cantava-lhe ainda no sangue o beijo de Nina. Ele gostava do armazém, de noite, "a multidão do mundo",
pensava vagamente. Pensava em dinamarquês.
Abriu o elevador com a sua chave e estava quási a entrar, quando Pusch apareceu, ofegante, e também entrou. Pusch era aprendiz de decorador, um adolescente de dezoito
anos, em pleno crescimento. Ignoravam donde lhe vinha o apelido. Trazia uma pilha de amostras e vacilava com o peso do fardo.
- O sr. Sprague quere ver as cores - balbuciou sufocado, emquanto o elevador os levava. Erik assobiou um pouco mais forte. Tinha a convicção profunda de que o velho,
o sr. Sprague, o chefe dos decoradores, nascera daltónico. Assobiando sempre, indicou com o dedo uma amostra verde claro. Depois interrompeu o assobio e disse:
- É este que vamos escolher. - Depois continuou a
assobiar.
Chegaram ao 12º andar onde ficava a oficina,
- Diz-me cá, ó Pusch, é verdade que pintas o cabelo ? - preguntou ele, antes de sair.
-Não, porquê?- balbuciou o aprendiz cujas orelhas descoradas se tinham tornado encarnadas como fogo. Os seus cabelos eram tão claros, como os de jean Harlow antes
do protesto dos censores. Estava ainda no mesmo sítio com o maço de fazendas e as suas orelhas vermelhas e já Bengtson abria a porta da oficina.
Quando ia a entrar notou um vulto que saía do escritório de Filipe, o detective da casa.- Ah? -pensou, retirando a mão do fecho. A rapariga que avançava para ele
era Liliana, a amiga de Nina.
- Ah? Liliana? - admirou-se. A rapariga, de casaco no braço, abotoando o vestido, disse:
- Viva, Bengtson! - numa voz um pouco rouca Dê-me um cigarro, depressa.
Solícito, estendeu-lhe o maço emquanto riscava já o fósforo. Ela considerava o gesto amável com as sobrancelhas erguidas.
- Aconteceu alguma coisa? -preguntou ele.
- Porquê? Tenho ar de ter sido violentada pelo velho Filipe? Tranqúilize-se, não aconteceu nada.
- Fazia-me pena... por causa do pobre homem. disse ousadamente Bengtson.
Liliana estava na sua frente, com o vestido já abotoado mas tendo ainda as mãos trémulas. Fumava com violência, de uma forma completamente diferente de Nina - pensava
Erik.
- Julgava que já tinha saído há muito tempo. -disse ele, para dizer alguma coisa. Não podia suportar Liliana que se encontrava, sempre que não se desejava a sua
presença. Ela encostara-se a ele e olhava-o com um sorriso trocista.
- Eu não sabia que a Nina usava bâton...-zombe teou a rapariga. Pusch, o aprendiz, tinha-se, entretanto, aproximado e nem se mexia.
- Como? Nina?... - preguntou Erik pouco à vontade.
Liliana desatou a rir e dispòs-se a sair, dizendo:
- Ela tem sempre os lábios pálidos e acha que me
pinto muito.
- Não sei o que quere dizer .. - observou Erik,
que se sentia estúpido.
Pusch riu, passando a mão pelo rosto. Erik compreendeu e, tirando vivamente o lenço, limpou a cara. Envergonhado, apagou bruscamente o beijo do adeus de
Nina.
- Boas noites. - rematou Liliana - Tenho de me ir
embora.
- Quem a espera ? - preguntou Erik.
- Vanderbilt - chasqueou a rapariga, afastando-se. Erik viu-a partir. Ela tinha as mais bonitas ancas de todo o armazém.
- Espere. Eu levo-a. Não está ninguém no elevador.
Erik possuía as chaves de todas as portas pois trabalhava principalmente de noite. "Um gentleman é sempre um gentleman" - troçou Liliana emquanto o rapaz lhe abria
a porta - e isso desagradou-lhe. Ela tinha uma maneira de irritar as pessoas, como um mosquito que não se pode apanhar. O elevador ficou logo cheio do seu perfume
penetrante e vulgar.
- Sabe do que eu gostava agora ? - preguntou, antes do elevador chegar abaixo. -Dançar, divertir-me, beber... consigo. -continuou, emquanto ele a olhava-Sim, arranjar
uma brincadeira aqui mesmo.
- Está a chorar ? - preguntou Erik, levemente perturbado, olhando-a, sempre.
-Parece... Obrigada por me ter acompanhado. O seu perfume flutuava ainda, quando Bengtson subiu e saiu do elevador.
O velho-o sr. Sprague - parecia impaciente quando
Erik entrou.
Quando tiver acabado de namorar as raparigas, talvez possamos pensar um pouco nas vitrinas, - disse imediatamente.
Bengtson limitou-se a rir. O sr. Sprague parecia-se com Mark Twain - velhas maneiras, e boa aparência - e sentia-se orgulhoso com isso. Tinha um cérebro de mármore
e um coração de oiro.
-Um dos manequins estava a chorar, levei-a lá abaixo - respondeu Erik, despreocupado.
- Paladino das damas. -replicou Sprague, ciumento Sabe que ser revistado não tem nada de divertido ?
-Ser revistado? Como? -exclamou Bengtson Que quere dizer com isso?
- O quê, não sabe ? Roubaram qualquer coisa e o Filipe teve de revistar muitas empregadas.
- Rouba-se muito, nestes últimos tempos, não acha sr. Sprague?-notou Bengtson, brincando com as amostras.
A luz lançava um reflexo vivo sobre o tecido vulgar.
- É exactamente o que diz o sr. Crosby; roubam muito, nestes últimos tempos. Desta vez o velho Filipe vai pagá-las.
- Que aconteceu ? - interrogou Erik, deixando cair a amostra,
- Sabe, aqueles objectos de arte com que se fez uma exposição russa de peças raras e de objectos pertencentes a particulares, lembra-se?
Bengtson lembrava-se muito bem: tivera com o velho uma grande discussão a respeito dessa instalação e acabara por ganhar. O outro quisera fazer qualquer coisa de
exagerado, como nos bailados eslavos. Erik tinha pedido alguns móveis emprestados à secção de antiguidades e fizera instalar vários aposentos em estilo Império,
onde dispusera as obras de arte.
- Que roubaram ? - preguntou, mais para dar prazer ao velho, do que por interesse.
- Uma pequena imagem, um ícone todo incrustado de pedras preciosas valendo dois mil dólares.
Estava segura ? - informou-se Bengtson - Então,
ninguém perdeu.
Lembrou-se de-repente dos olhos brilhantes de Liliana que chorava sem lágrimas e parecia irritada. "Como podem ter suspeitado das raparigas da secção de costura,
é o que eu pregunto. O velho Filipe torna-se cada vez
mais idiota."
Sprague abafou o riso: - É o que nos acontecerá a todos se ficarmos aqui empregados muito tempo. Você ainda não percebeu isso?
Desta vez, Bengtson exaltou-se: imaginou Filipe revistando Liliana.
- Eu matava alguém que quisesse revistar a Nina! -
disse, com veemência.
- Quem é a Nina? - preguntou o velho,
- Vamos casar no dia de Páscoa, como já lhe disse
- confirmou Erik.
O velho pôs-se a rir.
- É verdade, é tempo de se acorrentar - E havia nas suas palavras admiração e inveja.
Subitamente, Erik deixou os seus negócios pessoais e voltou-se para os tecidos. Pusch continuava ao pé da grande mesa de desenho, sobre a qual colocara as amostras,
e segurava uma na mão. Tinha uma predilecção quási feminina pelas cores, as sedas e os tecidos brilhantes e, no fundo da sua alma, sentia uma certa vergonha por
isso.
- Vai dormir, Pusch. - disse Bengtson - Aqui não se
precisa de crianças.
O velho aproximou-se também da mesa e, através
dos óculos, observou os tecidos.
- Precisamos de trinta e seis metros por vitrina. disse Erik, num tom profissional, pondo um papel coberto de cifras e de notas na mão do sr. Sprague - Prefere o
tecido verde, mas eu gosto mais do amarelo.
O velho considerou as duas cores que Bengtson lhe metia debaixo dos olhos,
- Você não percebe nada, meu rapaz, o verde é que deve ser.
Bengtson tomou um ar agastado. Intimamente, rejubilava.
- bom. vou descer, Começamos pela vitrina sete. - anunciou pegando no tecido verde. O seu método de obrigar o velho a fazer o que ele queria, mostrou-se mais uma
vez infalível:
- Comece pela primeira vitrina, como já lhe disse ordenou o chefe em tom peremptório.
Bengtson mostrou um ar santamente desolado. -Senhor, seja feita a vossa vontade!-disse - Depois pegou nas amostras e retirou-se.
No elevador flutuava ainda o perfume de Liliana... Liliana era caixeira do salão francês, de costura, na secção de vestidos. Chamava-se Liliana Smith. Smith, porque
era filha do operário Smith, empregado nos trabalhos do canal; Liliana, porque desejava velar assim a vulgaridade do seu nome de família e da sua origem. Imaginava
às vezes, vagamente, o que daria esse nome nos cartazes: a actriz de cinema Liliana Smith, a star de music'all, a rainha de beleza Liliana Smith. Gostaria então
de reservar o "Liliana" e abandonar o "Smith". Havia nela ódio contra tudo quanto vinha de baixo: odiava o ! cheiro da cozinha, morar numa cave à janela da qual
não via passar senão pernas, odiava as baratas que, de noite, passeavam no sobrado, a racha do seu espelho de má qualidade, odiava o seu leito, o seu fato, as suas
próprias mãos que trabalhavam demais Mas sem se tornarem alguma vez verdadeiras mãos de senhora. Liliana odiava também a clientela, irremediavelmente. Odiava essas
mulheres ricas que chegavam nos seus automóveis, com as malinhas cheias de cheques, ou acompanhadas de homens que pagavam por elas. Sorria-lhes, com o seu sorriso
profissional, mas odiava-as ao mesmo tempo e profundamente, com todo o seu ser.
LILIANA era uma criança da rua; em garota, brincara às escondidas nos grossos canos de gás, que a demolição das casas mais velhas do bairro fazia aparecer. Depois
empregou-se como aprendiza, primeiro em minúscula lojeca de alfaiate, depois num armazém da União Square e finalmente no Central Warehouse. Aí, com olhos ambiciosos,
tinha frequentado a escola onde a direcção do armazém mandava educar as suas empregadas. Progressivamente, subira da secção de retrozaria à da roupa branca, depois,
graças aos seus bons serviços e esforços, chegou ao sector mais requintado: aos salões de prova. Aí, tudo era velado: as luzes, as vozes, as cores. Espessos tapetes,
onde a jovem Liliana adorava meter os pés, tapetes de um cinzento-rosa, paredes da mesma cor, candeeiros com reflectores cromados, projectavam a sua claridade no
teto. Madame Chalon, a directora francesa, reinava neste domínio. Era lunática, de génio alegre"! , nas horas sentimentais, contava às empregadas os seus amores
infelizes com um célebre desenhador de modas de Paris. Liliana fazia tudo para agradar aj madames, pois desejava avançar, ir mais longe subir mais alto. Depois de
dois meses, não só se ocupava da venda, mas
também da apresentação de modelos, estava quasi a
passar da escala de 16 dólares para a secção mais bem paga, dos manequins, de que assumira já lugar de destaque.
Fazia a sua entrada com um casaco de arminho ou com um vestido de baile - cópia de um modelo de Patou -ou com um roupão de seda azul-noite. Via-se ao espelho, virava-se
com um movimento que lhe tinham ensinado, alargando o vestido à sua volta e olhava por cima do ombro a cliente - essa cliente que odiava.
A jovem Liliana tinha uma figura perfeita de manequim quarenta, para nos exprimirmos em linguagem profissional. Numa palavra, era construída como uma rainha, delicada,
elegante, com os membros finos e as ancas largas e coleantes. Nela, tudo era alto e pequeno: joelhos, pernas, seios. Esta filha de operário era feita como se um
apurador de raças, depois de muitos esforços, produzisse o que há de melhor com feitio de mulher. Tinha umas formas maravilhosas e também um rosto, mas para o qual
ninguém olhava: viam apenas o corpo e os vestidos que vestia. O seu rosto não era tão belo: tinha linhas duras e, em redor da boca e do queixo, certos traços deixavam
transparecer o Smith de baixa origem, a vontade de trepar.
Apaixonava-se pelos vestidos que mostrava, por todas as sedas, gazes, veludos, rendas. Os casacos de peles endoideciam-na. O seu corpo sentia-se feliz sob a caricia
de belos tecidos. Erik chamara-lhe pouco tempo antes: um mármore frio. Não era justo, pois ela tinha em si a paixão e, muitas vezes, essa paixão ardia de uma forma
insuportável. O pior era ter de tirar os vestidos depois de os apresentar e ser obrigada a pôr o seu fatito pobre de 12 dólares.
Para mudar de vestido só dão a um manequim um " ou dois minutos. No salão, ela passeia lentamente, como uma rainha, diante da clientela mas, assim que sai, no gabinete
de despir, as mãos tremem-lhe ainda: diante do espelho de três faces, despe um vestido, a correr, passa a outro, de-pressa, de-pressa, tendo atrás de si a irritável
directora que resmunga. Mas o que mais a entristece ainda, é ver os vestidos, essas adoradas toilettes em
cima das clientes! Ver como um modelo pode perder o seu chic, ver de que forma todas essas mulheres muito curtas, muito grossas, muito velhas, se esforçam para entrar
nos vestidos, como se põem diante dos espelhos, como são insignificantes, como não sabem vestir se, e tornam vulgares as mais belas peles!
É tudo isso que acende o ódio na jovem Liliana.
-Ah! se eu tivesse a sua figura!-suspirava muitas vezes uma cliente, quando a jovem se apresentava.
"Evidentemente, se tivesses a minha figura... - pensava orgulhosamente Liliana - E se tivesses a minha figura, que aconteceria? com um corpo como o meu, ganha-se
um salário de dezasseis dólares por semana e mora-se numa cave, sim, tudo por baixo! com a minha figura não se tem mesmo um amante, pois, para a maior parte dos
homens é-se "bem demais". Quanto a esses que estariam à minha altura não há nenhuma probabilidade que apareçam neste armazém.
- A cintura é muito estreita. - com estas palavras, cortou madame Thorpe os pensamentos errantes de Liliana.
Madame Thorpe era uma mulher que os seus amigos qualificavam de imponente. Enchouriçada num vestido de seda preta, estava no meio do gabinete de prova e, no espelho,
parecia um pouco melhor do que na realidade era. Todos os espelhos do salão de alta costura eram um tanto lisongeiros. Colocando-os favoravelmente, as senhoras pareciam
logo mais delgadas do que na realidade eram. Na secção de confecção não se davam a esse trabalho: aí abundavam as clientes de medida 48 e 50 e essas são como Deus
as fez e contentam-se com a sua sorte. Quando acabam as compras, sobem lá acima, à pastelaria e banqueteiam-se com sandwichs e tortas de maçã com creme.
-A cintura é muito estreita.-repetia madame Thorpe
- Aqui as cinturas são sempre estreitas. Eu tenho uma linha francesa. Em Paris todos os vestidos me servem,
Liliana odiava esta cliente, esta madame Thorpe, ainda mais do que as outras. Era dessas mulheres que vão aos armazéns unicamente porque se aborrecem: durante horas
fazia com que lhe mostrassem vestidos e provava-os - nervosa, incoerente, histérica. Depois, diante do espelho, caia pouco a pouco no estado de depressão de uma
mulher que tem quarenta anos, e é obrigada a admirar a maneira como uma rapariga de vinte sabe apresentar, com vantagem, o seu corpo esplendoroso.
Muitas vezes o ar quente do pequeno gabinete estava carregado de tempestade. Liliana invejava as clientes pelo seu dinheiro; as clientes invejavam-na pela sua beleza.
O sabor agudo do ciúme aparecia sob os sorrisos recíprocos; o ar cheirava aos corpos, aos perfumes, à mulher, o raio estava a cada momento para estalar. No entanto,
nesse dia, madame Thorpe acabara por comprar um casaco de noite guarnecido de arminho verdadeiro, modelo Margot.
- Esta peste ennervou-me hoje até ao último momento - dizia Liliana à sr.a Bradley quando, no metro, iam para casa. As duas mulheres tinham por costume fazerem juntas
o mesmo caminho até à rua 42. Aí, a sr.a Bradley tinha que mudar. Seguravam-se ambas à mesma correia de suspensão e oscilavam com o movimento da carruagem que ia
completamente cheia; nem pensar num lugar sentado!
- Se vejo a venda da Páscoa passada! - disse a
sr.a Bradley.
- E eu então! Que direi eu? Se soubesse o que passamos neste momento... - replicou Liliana.
- Sim, mas a menina é nova, - queixou-se a sr.a Bradley, cujo rosto pálido tinha manchas de sardas.
- Pregunto a mim mesma quando poderei ir cortar o cabelo ?! - rematava Liliana.
Era o problema constante de todas as caixeiras. Precisavam de ter boa aparência, mas fechavam-lhes a
porta dos salões de cabeleireiro na cara, quando tinham tempo livre.
- Agora preciso de mudar. - disse a sr.a Bradley, conseguindo, a custo, passagem até à porta da carruagem.
- Obrigada por ter esperado por mim. - agradeceu Liliana, fatigada.
- É que eu queria saber como aquilo acabou. Não devia ter-se deixado revistar tão facilmente, digo-lho eu.
- afirmou ainda a sr.a Bradley, descendo.
E o comboio lá continuou, com o ritmo enraivecido e ensurdecedor.
Um homem estava agarrado à correia perto da mão de Liliana, um entre as centenas de homens que tinham feito olhos ternos à rapariga e lhos faziam ainda. Ele soprava-lhe
o seu hálito quente no pescoço e encostava o joelho ao dela, como se a pressão da multidão a isso o obrigasse. Liliana, agarrando-se à correia, sentia em todos os
membros, a pobreza do seu casaco como qualquer coisa que a magoava. A dobra das mangas estava rota, ela sabia-o. A manga que tinha debaixo dos olhos começara a ficar
lustrosa e também cinzenta nas costuras. Liliana sentia-se aborrecida. Tinha trabalhado muito durante todo o dia e depois ainda a retiveram uma hora para a apalpar
e revistar como a uma ladra. "Um dia hão-de pagar-me tudo isto.- pensava, desesperada - Sentia-se ferida e sem defesa. Uma força maldosa acumulava-se nela.
- Deixe-me em paz, senão temos barulho - disse ao homem. Sofria de saudades do casaco de seda comprado por madame Thorpe, como se fosse uma doença. "Esperem", pensava,
emquanto que, fatigada, viajava por debaixo da cidade, entre milhares de outros entes fatigados. "Esperem um pouco, esperem..."
O comboio parou na 125ª rua e ela saiu mecanicamente. Ainda tinha de andar até à 122ª onde moravam seus pais. Era um bairro cheio de mexicanos e italianos. Não sabia,
ao certo, como é que tinham vindo para
ali, sabia apenas que esse meio não lhe convinha e que um dia, muito breve, o mais breve possível, sairia de lá; Diante de um cinema, encimado por um anúncio luminoso,
em espanhol, agrupavam-se as pessoas. Dum café saía o som de um piano eléctrico. Na rua brincavam crianças e cães e a valeta estava cheia de detritos. Diante das
casas passeavam altas mulheres de carnes , caídas e homens em mangas de camisa, embora a noite estivesse fresca, como ao princípio da primavera.
"Assim tão só, minha linda menina?" -preguntou um homem, atrás dela - Não precisou de se voltar para ver como ele era; pele escura, calças estreitas e o cheiro a
alho dos mexicanos. Ela ia mais de-pressa. Ele seguiu-a. "Quere que chame a polícia?" - preguntou a meia voz, sem o olhar - "Não tem coração... não tem coração!...".-
disse, num tom melancólico - Os passos afroixaram. Chegou emfim a sua casa e hesitou um momento antes de descer os três degraus que precediam
a porta.
No próprio momento em que hesitava, surgiu, diante dos seus olhos, inesperadamente, a imagem de Bengtson. Ela não pensava nele - foi um puro acaso. Não estava apaixonada
- não se podia apaixonar. Tal como era, ele não lhe agradava: louco, atrevido, arrogante, superficial, distraído. Aquele que lhe havia de agradar devia ser absolutamente
diferente: rico, com um belo automóvel, fatos de bom corte, dinheiro e tudo mais. "Um homem habituado a comer caviar" - pensava vagamente.
Um gato malhado aproximou-se e deu-lhe marradinhas nas pernas. Liliana não se baixou, ficou direita diante da porta da habitação subterrânea: fixava os olhos na
luz do candeeiro, diante da porta. Erik tinha-lhe acendido o cigarro... acompanhara-a ao elevador... Possuía uma certa elegância e portava-se de forma diferente
dos homens do seu conhecimento. É pena que não tenha dinheiro. - pensava - É pena que vá casar com Nina... Não podia compreender porque o fazia. E,
sobretudo é pena que eu não tenha realmente roubado, pensou de repente-Foi como que um pensamento ardente e corrosivo, que fugiu logo.
Apertando os dentes, Liliana empurrou a porta e
entrou.
LILIANA vinha de baixo, mas aspirava às alturas. Como manequim de um salão de costura tinha já feito um bom pedaço de carreira. Quanto à sr.a Bradley era absolutamente
o contrário: vinha de cima e, irresistivelmente, descia o declive. Uma mulher que, aos quarenta e sete anos fazia embrulhos no serviço de embalagem de um grande
armazém, não podia ter grandes ambições na vida. É que, empacotar, era a única coisa que a sr.a Bradley ainda pôde aprender, depois que seu marido, um industrial,
se suicidou, quando da crise, não lhe deixando senão dívidas, derrocada e um desfazer de feira. Graças a certas protecções, a sr.a Bradley conseguiu ser empregada
na entrega de embrulhos e não se passava uma hora sem que ela não receasse perder o emprego.
Ali estava, entre as jovens principiantes de dezasseis anos, fazendo, sempre com o mesmo gesto, embrulhos
- centenas, milhares de embrulhos. Quando erguia os olhos, só via mãos estendendo-lhe uma senha de entrega, mãos e senhas, senhas e mãos. Ocupava um lugar difícil
onde todos são nervosos, impacientes e ninguém quere esperar. Ela empacotava, empacotava, pensando muitas vezes em Skimpy. "Oxalá Skimpy não fique atropelada! Queira
Deus não caia da janela! Oxalá não brinque com o petróleo do fogão. Skimpy era uma mulherzinhaA GRANDE LIQUIDAÇÃO
de oito anos que tratava da casa, emquanto a sr.a Bradley trabalhava.
Da época da sua opulência elas tinham conservado a sua habitação de Fieldston, esse vestígio de tempo mais feliz. Eram quartos grandes demais, muito numerosos, cheios
de mobília, muito ricos. A sr.a Bradley tinha feito tudo para se desembaraçar dessa casa.
Aparentemente, ninguém a queria. A pobre mulher viu-se obrigada a alugar quartos a pessoas de bem, a preços razoáveis; ao menos pagava as despesas.
No refeitório do armazém encontrava-se um quadro onde se afixavam os anúncios dos empregados. "Piano usado vende-se, ou então: Compra-se bicicleta em bom estado,
ou ainda: Gostaríamos de participar da excursão de domingo, rateando despesas. O quadro estava bem colocado no próprio lugar em que os empregados faziam bicha para
ir buscar o seu prato. Um ou mais dos quartos da sr.a Bradley estavam sempre para alugar.
Fora assim que Nina arranjara um alojamento quando, pobre criatura sem família, grão de poeira atirado pelo vento para a grande cidade, chegara do Texas a New-York.
Foi assim que ela se tornou vizinha de quarto de Erik Bengtson, que já habitava a pensão havia meses, e passava as noites a assobiar de uma forma horrorosa, a cantar,
a fazer barulho. Sem esse quadro, Nina nunca se teria provavelmente casado com esse louco do Erik, com esse génio da decoração.
O casamento realizou-se no domingo de Páscoa e correu de uma forma perfeita. Era, pelo menos, essa a opinião de Nina e também a de Liliana, sua dama de honor.
Erik tinha lutado para ter o sábado livre afim de instalar os seus aposentos. Passou primeiro a sua cama para o quarto de Nina, que se tornou assim um quarto Bradley
completo, com leitos iguais em mogno encerado. Depois, começou as suas operações no outro, no seu, que devia ser a sala, Trabalhou como para a preparação de uma
vitrina. Decorou primeiro as paredes, pintando palmeiras e lianas e pequenos macacos a baloiçar-se. Depois, ornamentou os móveis e plantou um arbusto num vaso chinês.
Pintou almofadas, estofou caixotes e fez mil coisas incompreensíveis.
Transpirava como um escravo, na sua bata manchada de cores, assobiando e cantando tão alto que Skimpy não podia estudar as lições. Por fim, saiu de todo esse trabalho
qualquer coisa que parecia um estúdio exótico. Nina ficou petrificada logo que entrou. "Ah! palavra... estou espantada..."- disse ela - E Foi preciso que, à sua
maneira, Erik a degelasse. Ela pôde sair do seu trabalho a horas, pois a secção de loiças tinha pouca clientela durante a Páscoa: a multidão afluía mais à confecção
e às modas. Mas, como sempre, às seis horas menos três minutos, apresentou-se um cliente que logo caiu sobre Nina. Desta vez, era um rapaz que também vinha com muita
pressa, um estudante ou coisa parecida, em todo o caso, um ente muito agitado. Desejava - ora vejam! duas taças para champagne, mais nada. Nina não pôde deixar de
rir; imaginava nitidamente a cena em que essas taças de champagne deviam figurar. Viu essa venda como um bom presságio: "Páscoa feliz!"- disse ela, emquanto o rapaz
se ia embora - "Obrigado, igualmente".-respondeu ele - Ora se isso não lhe havia de trazer felicidade! Raramente desejos tão cordiais foram trocados entre uma caixeira
e um cliente.
À noite, Liliana ajudou a confeccionar qualquer coisa como um vestido de noiva; Erik, que estava presente, fazia café emquanto a sr.a Bradley mexia a massa do doce
lutando contra o sono. Quanto a Skimpy tinham-na metido na cama, mas estava tão sobreexcitada que falava mesmo a dormir. Liliana tornou-se útil transportando os
fatos de Erik do quarto dele para o futuro quarto de cama. Assim que eles ficaram pendurados, muito bem passados, ao pé do seu modesto enxoval, Nina compreendeu,
pela primeira vez, que no dia seguinte
deveria estar realmente casada. Sentia-se tão fatigada, tão comovida, que via tudo como num sonho, como através de vidros espessos e turvos. Eram já duas horas da
manhã quando se dispôs a arrastar uma pesada mala de pele de búfalo: "posso pôr as minhas coisas na cave?"
- preguntou - A sr.a Bradley acordou e disse que sim, com a cabeça. "São os teus tesoiros?" - preguntou Erik "Precisamos de beber qualquer coisa," -declarou Liliana
- "Oh... coisas minhas. - disse Nina um tanto acanhada
- Velhas recordações..."
Erik tirou-lhe a mala das mãos para a descer à cave: em baixo cheirava ao aquecimento e à poeira, grandes aranhas agitavam-se nas suas teias. Erik abraçou Nina e
beijou-a. Ela ficou um grande momento assim, envolvida nesse abraço. Estava quente e era agradável: teria gostado de adormecer ali.
Vagamente, recordava a sua infância quando, fatigada, no regresso dos seus passeios ao domingo, o pai a trazia até casa. Por fim despertou e pôs-se de joelhos diante
da mala.
- Deixa-me ver o que tens aí.-pediu Erik, ajoelhando
junto dela.
Entreabriu-se-lhe a boca num sorriso mudo e tímido, quando ele abriu a mala.
- Olha! - disse, divertido. Havia uma velha boneca, datando da infância de Nina, com a cabeleira mal posta. Depois, outra, magra, com uns grandes olhos feitos de
botões. Erik lembrou-se que a rapariga o tinha conquistado logo que, pela primeira vez, foram juntos a Coney Island. Depois havia um retrato onde estavam agrupadas
quatro pessoas. Erik olhou para esse quadro, com uma expressão impertinente e garota.
- Este é o meu pai.- disse Nina.
- Morreu?-preguntou Erik, de-repente sério, aproximando-se dela.
- Mataram-no quando assaltaram um Banco. Era da polícia, não te disse já?
- Oh! - exclamou Erik. E calaram-se por um instante. Nina tirou-lhe a fotografia das mãos.
- Eu estou aqui. - disse - Parece que sou estrábica... é que não queria ser fotografada. Este, é meu irmão mais novo, esta, minha mãe...
Erik não ousou fazer preguntas. Olhava de revés o rosto de Nina. Por fim, ela pousou o retrato. "Todos mortos. A gripe..." - explicou, sorrindo tristemente. Ele
esperou um momento:
- Agora recomeçaremos tudo, Lille Sprorv - murmurou depois.
Quando se resolveu a fechar a mala, qualquer coisa havia no fundo. Erik quis ver:
- Que é ? - preguntou.
- Nada, é o revolver do papá.-E pôs prudentemente a arma no seu lugar.
- Está carregado?-preguntou Erik, fechando a mala.
- Não sei, deixámO-lo tal como estava quando da morte do papá.
- Sabes atirar ?
- Não. Mas é uma recordação.
- Estás a dormir em pé.- compadeceu-se Erik, levantando-se - Anda, vou meter-te na cama.
- Onde ?- preguntou Nina.
Ele apagou a pálida luz da cave e, na sombra, procurou a boca dela. Sentiu tudo andar-lhe à volta, em grandes círculos. "Como estou cansada!" -disse logo que emergiu
do turbilhão - Ao cimo da escada da cave, Liliana apareceu, fazendo tilintar copos.
- Desejam casar lá em baixo?-disse ela -Ou preferem subir para beber whisky?
Subiram a escada à pressa e tiraram os copos da mão de Liliana. Erik tinha a cara de um homem um pouco ébrio.
- De onde vem esta fortuna ? - preguntou ele.
- O velho Filipe tem lá que chegue para ele - respondeu Liliana, lacónica.
O sr. Filipe, o detective do armazém, morava também em casa da sr.a Bradley. Verosimilmente, Liliana tinha-o acordado e tirara-lhe uma garrafa de whisky. Erik esteve
quási a fazer uma pregunta, mas guardou-a para si. Liliana parecia já não querer mal ao velho Filipe por a ter submetido à revista. zoa " (1) - disse ele e bebeu
o conteúdo do seu copo. Detestava o whisky.
- Onde está a sr.a Bradley ? - preguntou.
- Deitada!-respondeu Liliana.
Durante a noite a pintura do seu rosto tinha-se apagado e a sua pele, muito branca, brilhava num reflexo mate.
- Já pousou para algum pintor?- preguntou incidentalmente Erik.
- Era o que faltava! Ir-me pôr toda nua para os idiotas dos artistas!-replicou vivamente Liliana. Erik desatou a rir.
- Também se fazem retratos de senhoras vestidas. explicou, muito divertido.
- Sim ? -preguntou Liliana, engulindo o segundo copo de álcool e exagerando a sua inocência - Sempre julguei que era preciso não ter a cicatriz da apendicite para
que nos pintassem.
Erik teve um rápido olhar para Nina, pois sabia que este género de brincadeiras não lhe agradava. Mas Nina adormecera na sua poltrona, justamente por baixo de um
dos macacos que ele tinha pintado na parede. As mãos pendiam-lhe, moles e abandonadas. Foi até junto dela e sacudiu-a docemente: - Spurv, lúh Spurv.- disse baixinho
- Ela moveu os lábios, mas não chegou a falar. Ele ergueu-a e, no sono, ela lançou-lhe um braço à volta do pescoço. Levou-a, assim adormecida, para a cama. Liliana,
de garrafa de whisky na mão, olhava-o
(1) A sua saúde, em dinamarquês.
com ar trocista. Ele deitou Nina e voltou, fechou a porta do quarto, sorrindo sempre.
- Comovedor! - disse Liliana.
- Como ?
- Disse só "comovedor" - repetiu ela.
-Deve estar fatigada, miss Smith?-preguntou Erik, aproximando-se - Quere que a acompanhe a casa ?
- Oh! por Deus, sr. Bengtson. - replicou - Eu não sou daquelas que é preciso levar a casa. De resto, não vou para casa. Trouxe o que me era preciso e durmo cá.
- Aqui? - preguntou ele, de sobrolho franzido.
- Por exemplo, ao pé de Nina, no vosso futuro leito de casados, a não ser que veja qualquer inconveniente ? - disse ela, irónica.
- Pelo contrário, será uma grande honra para o meu leito conjugal -. respondeu o rapaz, muito aborrecido.
Instalou-se numa poltrona, bocejou ostensivamente e esperou o seguimento. Sentia-se terrivelmente cansado, sentia-o agora, e era preciso que às dez horas da manhã
estivesse no registo civil.
- Adeus, boas-noites e bons sonhos. - disse Liliana. Pegou na garrafa e encheu mais um copo do líquido
que bebeu de um trago. Erik olhava-lhe para o pescoço muito branco emquanto ela bebia.
- Porque não me pode suportar?-preguntou, quando acabou.
- Instinto de defesa contra uma muito perigosa formosura. - replicou ele, depois de um momento de hesitação - Ela não compreendeu imediatamente, só percebeu a intenção.
- Muito obrigada. - disse, abrindo a porta - Erik levantou-se por delicadeza; sentia as pernas cansadas, pois tinha estado todo o dia em cima do escadote. Exibindo
um espelhinho de bolso e um bâton, Liliana contornava cuidadosamente os lábios. Disse ainda: "boas-noites" e fechou a porta atrás de si.
Desconcertado, Erik recaiu na poltrona e pôs-se a rir. Achava imensamente engraçado que Liliana pintasse os lábios antes de se deitar. Dependurou o sobretudo e atirou-o
para cima da cama, que tinha improvisado com mantas, estendeu-se e dispôs-se a dormir. Indubitàvelmente, a manhã vinha próxima. Apagou a luz, ouviu em qualquer parte
a buzina de um automóvel. Fechou os olhos. "Á minha última noite de solteiro" pensou, sentindo um pequeno aperto no coração.
Toda a casa estava cheia do perfume detestável e ordinário de Liliana.
NO dia seguinte, às sete horas da manhã, a campainha da entrada tocou; foi um espanto geral. Uma senhora estava diante da casa e dizia em voz enérgica:
- Sou a condessa Bengtson. Venho assistir ao casamento do meu filho.
A sr.a Bradley, que também tinha sido uma senhora de sociedade, agarrou no seu roupão da manhã e nas suas boas maneiras, e respondeu:
- Entre, sr.a condessa. Estamos ainda por arranjar, mas o pequeno almoço, daqui a pouco, está pronto.
A condessa Bengtson acedeu ao convite e entrou. Vestia um fato género alfaiate, preto, e calçava luvas brancas. Diante da casa, um miserável Ford estava parado.
A visitante entrou francamente no aposento acabado de pintar, de que a sr.a Bradley abria a porta, lançou um olhar divertido para os macacos das paredes e ficou
de pé, junto da cama onde Erik dormia.
- O sr. Bengtson não a esperava, quero dizer, o sr. conde Bengtson - balbuciou a sr.a Bradley.
- Eu não tinha a certeza de ficar livre. - respondeu a condessa - Trabalho no asilo de alienados de Lansdale.
Agora o sr. Bengtson dispunha-se a acordar: espreguiçou-se, queixou-se, abriu os olhos e disse: "Olá Mutz!", sem parecer admirado. Discretamente, a sr.a Bradley
retirou-se. Logo a seguir ouviu-se, através da porta, uma
conversa sonora, em dinamarquês. Correndo, a sr.a Bradley atravessou a cozinha, onde Skimpy fazia já o café, e atirou-se para o quarto onde dormiam as duas raparigas.
- Levantem-se.- disse - Vistam-se de-pressa. A mãe dele chegou, é uma condessa e ele é um conde.
Liliana sentou-se na cama, direita como uma vela. Nina precisou de alguns minutos para acordar e mesmo depois, conservou os olhos fechados.
- Que foi ? - preguntou.
- É, minha menina, que vais tornar-te condessa em te casando com ele. É de morrer a rir!-troçou Liliana, sacudindo-a.
Agora todas as torneiras funcionavam em casa; nas três salas de banho jorravam os chuveiros. O velho Filipe foi o primeiro a aprontar-se e a aparecer à mesa do pequeno
almoço, que Skimpy tinha posto.
- Eu sou testemunha - declarou, saudando a condessa. Cheirava ao whisky da véspera e ao da manhã.
- Muito prazer em conhecê-lo.-replicou a condessa, esfregando as mãos - Estou ainda entorpecida pela horrível viagem feita de noite.
O velho Filipe disse em voz pensativa: "Se lhe aconselhar a beber qualquer coisa vai com certeza recusar..." A condessa animou-se: "Ah, não recuso ! respondeu com
energia.
Filipe foi buscar a garrafa de whisky emquanto a sr.a Bradley aparecia com o café. As duas raparigas entraram. Erik estava ainda no banho. A condessa considerou
os dois rostos durante um segundo, depois, levantando-se, foi direita a Nina que, timidamente, estava no mesmo sítio, ignorando o que devia fazer.
- Bons-dias Nina. - disse ela - Caí aqui, de-repente, mas gostava de ver com quem o rapaz casava. Pôs as duas mãos nos ombros de Nina e sacudiu-a de bom humor.-
Vai ter muita arrelia com ele.
Nina procurava palavras.
- Chamam-me Mutz - disse a condessa.
- Sinto-me muito feliz por ter vindo. - respondeu Nina - Apresento-lhe a minha amiga Liliana. Esta é Skimpy, uma boa cozinheira. Foi ela que nos fez o bolo da boda.
A condessa puxou Nina para junto de si, para um canapé e pôs-se a saborear o copo de whisky, que o velho Filipe tinha posto diante dela. - É um verdadeiro reconfortante
do coração - disse - mas não se sabia se falava da noiva, se da bebida.
Liliana estava sentada a um canto sem dizer palavra. Era a primeira condessa que via na sua vida e isso fazia-lhe um certo efeito, embora o não quisesse confessar.
Olhou para Erik, com nova curiosidade, quando ele entrou com os seus cabelos claros puxados para trás, à força de água. Eis que um habitante de esferas superiores
penetrava no seu círculo... Ele devia saber o que era caviar ... Tratava sua mãe como uma encantadora irmã mais velha e a condessa brincava alegremente com ele.
Durante o pequeno almoço foi dado aos assistentes ouvirem uma boa parte da história dos Bengtson. Ao que parecia, a condessa tinha-se tornado enfermeira-mór do asilo
de alienados de Lansdale, depois que seu marido, conde Bengtson, se "afogou a beber". A condessa tinha uma forma agradável de chamar as coisas pelos seus verdadeiros
nomes. Foi assim que a clínica de luxo em que trabalhava passou a ser, na sua boca, a "caixa dos malucos". Foi tratando seu marido, confidenciou, que aprendeu a
tratar os agitados nas suas crises, Erik confirmava de bom humor. Soube-se ainda que seu pai perdera a vida em circunstâncias extraordinárias. Depois de uma caçada
real, na qual todos os senhores haviam tomado parte com casacas vermelhas, ele apostou - cheio como um odre - que iria, em traje de caça, ao prado onde estavam os
toiros. Ganhou a aposta (duzentas garrafas de Pommard, 1879) mas foi atirado ao ar pelos animais furiosos. Os Bengtson, mãe e filho, riram francamente, contando
esta aventura.
Nina calava-se. Mais do que nunca tinha a consciência de casar com um estrangeiro, com um homem que não nascera na América, um homem que viera de barco. No registo
civil confirmou-se que ela ficava a ser condessa Bengtson: era uma novidade difícil de digerir.
- Porque não me disseste nunca ? - preguntou a Erik, emquanto o táxi os trazia de novo a Fieldston.
- Para quê ? Vês-me com uma coroa de conde na cabeça a arranjar uma montra?
- Gosto da tua mãe. - disse Nina timidamente.
- Ela também gosta de ti, pardalito -declarou, muito satisfeito, apertando-lhe a mão.
Estava um tempo soberbo; doirados raios de sol caíam sobre o asfalto, as árvores começavam a florir. Quando os recém-casados chegaram a casa, encontraram convidados:
miss Drivot, o sr. Berg, Pusch, o aprendiz, e uma delegação de caixeiras que traziam um aparelho de T. S. F. como prenda de casamento. O velho Filipe fez um discurso
humorístico e estava em jejum; talvez os pormenores da cura de desintoxicação, contados alegremente pela condessa, lhe tivessem dado que pensar... Comeram o bolo
feito por Skimpy e elogiaram-no. O sr. Berg tornou-se um pouco impertinente com Liliana, que lhe disse: "Tire as mãos. Não é bastante fino para mim." Ele não ficou
ofendido.
Liliana mostrava uma alegria ruidosa e amarga. Insistia em chamar a Nina "sr.a condessa e, na sua boca, isto soava como uma ofensa.
Às duas horas da tarde, a condessa anunciou que se retirava. Convidou o jovem casal a fazer a viagem de núpcias no seu automóvel. Erik, para se despedir, beijou
todos. Não tinha bebido e, no entanto, dava a impressão de estar um pouco ébrio. Liliana voltou-se para a parede quando ele se aproximou. Miss Drivot, muito excitada,
limpou a boca. Todos disseram que a dama de honor devia beijar o noivo. De sobrancelhas franzidas,
Liliana passou fugitivamente com os lábios pelo ar que a separava de Erik, mas Erik apertou-a contra si: Assim não presta - disse, emquanto os outros riam quero
um beijo a valer!"
Liliana parecia zangada: "A valer?"-murmurou baixo. E sem esperar resposta pôs as mãos em volta do pescoço de Erik e beijou-o. Co'a breca!"-disse ele, um pouco sufocado,
assim que ela se desprendeu. Nina, de pé junto dos dois, tinha um sorrizinho contrafeito. Os outros deixaram de rir. A nova T. S. F. manipulada por Pusch, o aprendiz,
emitia sons horríveis.
Finalmente, depois de muitas palavras e lisonjas, a condessa conseguiu pôr o Ford em marcha. Erik e Nina instalaram-se com a sua maleta de fim de semana e partiram.
O ar estava fresco e eles sentaram-se bem junto um do outro com os seus casacos.
Ao crepúsculo, a condessa parou diante de uma velha estalagem, em qualquer parte, e deixou o motor em marcha emquanto desciam os dois.
- Adeus, meus filhos - disse ela.
- Adeus, Mutz - respondeu Erik.
O Ford afastou-se com o ruído de uma máquina de coser, escangalhada, depois tudo se calou. Nina olhou à sua volta. Estava um pouco desapontada. Já que tinham pedido
um dia de licença para a sua viagem de núpcias, imaginara outra coisa: barulho, gente, conversa. Atlantic City ou, pelo menos, Long Beach. Aqui, havia árvores muito
velhas, sobre as quais a folhagem da primavera acabava de reaparecer e um rebanho de carneiros, que passava no caminho, levantava poeira em grandes nuvens azues.
Por entre as árvores vislumbrava-se o mar. "É belo isto," - dizia Erik - é como na Dinamarca" e, de braços estendidos, espreguiçou-se. Nina envergonhava-se por não
ter gostado da paisagem.
À noite, ouviram música distante, foram à sua procura e descobriram por fim um baile campestre onde dançaram. Regressaram tarde, primeiro pela beira-mar e
depois atravessando a aldeia. Já não era calcetamento o que Nina tinha debaixo dos pés, eram nuvens: elas transportavam-na para a velha estalagem...
No meio da noite, Nina, a dormir, estendeu a mão. Sim, estava ali, o ente amado ...
Na manhã de terça-feira o despertador tocou, como de costume. Como de costume, Nina dormia ainda quando se levantou e quando fez alguns exercícios (tinha lido em
qualquer parte que a cultura física conservava a mocidade). Dormia emquanto fazia o café e mesmo emquanto tomava o pequeno almoço. Só acordou completamente quando
estavam sentados no metro dirigindo-se para a Central. Como de costume, Erik subiu a escada 5 e Nina correu aos relógios do ponto, no edifício 6.
E como de costume, miss Drivot notou:
- Olhe que vem atrazada, Nina, despache-se. - Embora Nina fosse agora casada e tivesse o direito de se chamar condessa Bengtson.
-Estou a fazer uma cura de emmagrecimento. Olhe, já perdi 11 arráteis - dizia madame Thorpe a Liliana.
- A senhora está maravilhosa. - respondeu Liliana, lançando um olhar sobre as redondezas da cliente.
- Uma verdadeira linha de rapariga - acrescentou, madame Chalon, a directora. - Que há-de ser hoje? Recebemos um vestido verde, com capa, da Lanvin. Deve ficar-lhe
lindamente.
Desta vez, madame Thorpe estava horrível. Tinha realmente emmagrecido um pouco, mas quatro novas rugas marcavam-lhe o rosto. Mandara pintar os cabelos com henné,
e fumava sem descanso, mostrando-se excessivamente nervosa. As jóias dos dedos e dos pulsos tilintavam, quando se agitava. Tinha levado com ela um rapaz, que se
estendeu no canapé, verificando os vincos das calças e admirando os seus sapatos novos.
- Querido, deixa-me dar só uma fumaça no teu cigarro. - disse madame Thorpe - E tirando-lhe, com os
dedos afusados, o cigarro da boca, aspirou-o profundamente e depois entregou-lho. Isto pareceu espantosamente inconveniente. O rapaz tirou logo o cigarro da boca,
fitando a marca vermelha deixada pelo rouge dos lábios, olhou à sua volta e, com ar adormecido, atirou o cigarro para um cinzeiro de metal, que tinha perto.
Madame Thorpe nada vira, mas Liliana examinava o rapaz com um olhar crítico. "Gigolô" pensou, e assim ficou arrumado. Madame Thorpe parecia absolutamente dominada
por esse indivíduo que era muito bonito, com os cabelos pretos, lisos e brilhantes, os dentes muito belos e um fato do melhor corte.
- Estou horrivelmente nervosa. - suspirou ela - É muito para uma vez só. Ora vejamos, preciso de um enxoval para viagem. Sim ... vou partir... uma voltazita ao mundo,
Palmeiras... entende... tecido branco, para os trópicos... Tem qualquer coisa deste género? vou divorciar-me em breve... e não imagina quanto isso me excita os nervos.
- Quere que lhe mostre a nossa nova colecção para o Sul? - preguntou madame Chalon, piscando o olho a Liliana - "EZ 24 até 32". - segredou-lhe. Liliana desapareceu,
obediente, com o seu passo ondulante, que lhe tinham ensinado na escola de manequins. Mal chegou ao gabinete, despiu apressadamente o vestidito negro, de caixeira.
"EZ 24 até 32". - gritou às duas aprendizas.
- De-pressa, Primeiro o vestido verde; a velha quere comprar muita coisa.
Uma das pequenas saiu a correr, a outra deixou-se ficar com ar estúpido. "O vestido de seda verde?" - preguntou - "Anda. Não sejas idiota. O vestido verde claro,
de capa, vá.. não fiques aí a olhar para mim". - gritou Liliana. Sentia sempre uma certa emoção de actriz, quando tinha de apresentar os vestidos.
- "Se vendermos a colecção pedirei uma percentagem."
- pensava, emquanto, rapidamente, punha pó na cara
e penteava os cabelos. Entre ela e a sr.a Chalon havia uma grande luta calma. Liliana reclamava uma percentagem, quando se vendia qualquer vestido apresentado por
ela. Pelo seu lado, madame Chalon afirmava que ela é que vendia o vestido sozinha, como se Liliana fosse apenas um manequim de madeira. Já duas vezes, depois de
se ter inundado de perfume, Liliana se fora queixar ao chefe de serviço. Ele tinha-lhe acariciado amigavelmente a nuca como a um cãozinho, dizendo que uma rapariga
que possuía a sua linha, não devia prender-se com tão medíocre percentagem; e fora assim que a discussão se desvanecera como fumo.
As aprendizas voltaram a correr com o seu carregamento de vestidos nos braços. No pequeno gabinete de mudas, a que chamavam a jaula dos macacos, cheirava a tecidos
novos, a oficina de alfaiate, a sabão ordinário. A um canto, uma velha costureira mordiscava uma sandwich que preparara em casa.
- Não podem andar mais de-vagar, não ? - rugiu Liliana, arrancando das mãos das raparigas o vestido verde. Como aprendiza, ela tinha sido mal tratada, era agora
a sua vez de maltratar as outras. Só quando a fina seda lhe deslizou pelas ancas, é que a calma veio, os seus nervos distenderam-se, a pele sentiu-se mais feliz.
Lançou a capa sobre os ombros, viu-se mais uma vez ao espelho e dirigiu-se para o salão.
Quando madame Thorpe a notou, tomou uma verdadeira expressão de dor de dentes: "Mas que idea! Não é a minha cor!" -disse, com ar desagradável. Liliana passeou diante
dela, lançando a capa para trás, descobrindo a blusa de fino plissado. O rapaz, no canapé, nem se mexeu, mas, sob as pestanas baixas, o seu olhar adormecido veio
errar sobre essa blusa.
- No entanto, o verde seria o ideal para os cabelos ruivos de V. Ex.a. - notou madame Chalon.
- Ah! não me aborreça, nervosa já eu estou!-gemeu a cliente. - Não posso suportar esta cor.
Madame Chalon fez sinal a Liliana e esta mexeu-se.
- Espere um pouco!-gritou madame Thorpe-Nem sequer sabe o que eu quero. Não têm nada de especial para os trópicos? Um vestido de seda para Hawai, compreende ?
- Ah! o amarelo! - exclamou madame Chalon entusiasmada, como se uma inspiração genial acabasse de lhe acudir - Miss Smith, apresente o vestido amarelo. Esse vestido
é um poema, querida senhora, um sonho, música...
Emquanto se despia, Liliana ouvia ainda o discurso exaltado da modista, que ia buscar as suas expressões ao estilo florido dos anúncios. Por uma razão qualquer,
o gabinete de muda estava sempre quente, provavelmente porque a velha costureira sofria de constipação crónica. Liliana sentia finas gotas de suor, na testa, emquanto
que, sem deixar de acelerar as aprendizas, se metia no vestido amarelo. Este era composto de muitas camadas de tule sobreposto. Na orla, a saia tinha oito metros
de roda. Quando Liliana estava vestida, viu que o penteado não condizia com o estilo do vestido. Foi buscar um pente e deitou pó na fronte húmida.
- Porque se demora tanto ? A cliente impacienta-se - gritou asperamente madame Chalon, metendo a cabeça entre as portas.
- Já vou... não pode ser mais de-pressa.-respondeu Liliana, enervada. Diligenciava todos os dias estar em boas relações com a modista, mas, todos os dias, a tensão,
que existia entre elas, se tornava maior - Saiam do caminho. - ordenou às aprendizas, que estavam ao pé da porta. Por pouco ia pisando as vítimas inocentes. Mas,
quando apareceu diante de madame Thorpe, tinha já o seu mais suave sorriso de manequim.
- Então ? - preguntou orgulhosamente a directora, emquanto Liliana se voltava, ondulante, erguendo a saia com as duas mãos e fazendo alguns passos de dança, apropriados.
- Não é feio... - concordou madame Thorpe, depois de uma pausa.
- Não é feio, minha senhora ? Mas é um sonho este vestido, é a lua de Hawai! Temos um casaco amarelo, palha de milho, com capuz, para a noite, se quiser passear
no tombadilho.
Madame Chalon conhecia as suas clientes. Uma expressão sonhadora passou um instante pelo rosto duro de madame Thorpe. O rapaz pareceu acordar: endireitou-se e parou
de fumar. Liliana desprezava-o profundamente, como só uma mulher jovem, que ainda se não vendeu, pode desprezar um homem que se vende. De súbito, ela viu-o deixar
cair lentamente uma pálpebra, emquanto os seus belos dentes brilhavam.
Era um sinal nítido e descarado, emquanto madame Thorpe voltava costas. Desconcertada, Liliana olhou-o. Estava habituada à desfaçatez, mas esta parecia-lhe demasiada.
Então, o rapaz tirou um cartão do bolso e meteu-o entre as almofadas do canapé onde estava sentado. Dava-lhe a direcção! Liliana começou logo a andar de um lado
para o outro, de contrário, teria rido.
- Esteja sossegada! Aproxime-se. - ordenou madame Thorpe.
Ela avançou com o seu passo leve, para a compra dora, que vista de perto, era quási digna de piedade. Subitamente, Liliana foi de novo acometida por esse ódio, que
sentia tantas vezes, pelas clientes do salão de costura. Viu-se a si própria, vestida com linda toilette, leve, elegante. Era uma vergonha que aquela velha se fosse
vestir assim. E, lentamente, subiu-lhe o calor à
cara.
Liliana foi tratada como um objecto: madame Chalon e madame Thorpe andavam à sua volta, tocavam-lhe, ou antes tocavam no vestido, trocando reflexões profissionais.
- Seria preciso encurtá-lo mais. -disse a cliente.
-Sim, dava-lhe mais chic - concordou a costureira.
Nesse instante, Liliana sentiu uma dor aguda, na espádua nua.
- Ai! - queixou-se baixo, voltando-se.
- Que foi? -informou-se madame Chalon, trocista.
- Não sei... peço desculpa ...-murmurou Liliana. Com dois dedos, chegou ao lugar dorido e retirou-os tintos de sangue.
Madame Thorpe exclamou, de súbito:
- O meu anel? Onde está o meu anel?
O rapaz tinha-se levantado, emquanto Liliana olhava para a ponta dos dedos. Abaixou-se e desprendeu o anel, do tule do vestido, no qual tinha ficado preso. Era um
anel pomposo com uma esmeralda rodeada de pequenos brilhantes. "Aqui está o teu anel, querida."-disse ele, suavemente, metendo-o no dedo de madame Thorpe.
- Vejam até que ponto emmagreci!- exclamou ela, triunfante.- Até os anéis me estão largos.
E para provar o que dizia, estendeu a mão por baixo do nariz do rapaz. Era uma branca mão preguiçosa, de longas unhas afiladas. O anel deslizava ao longo do dedo
emmagrecido, O rapaz pensou um instante no que podiam esperar dele, depois inclinou-se e beijou a mão de madame Thorpe.- Como os europeus são encantadores! - disse,
encantada, trocando com madame Chalon um olhar de compreensão feminina. De Liliana ninguém se ocupava.
Talvez o que aconteceu depois não houvesse acontecido, se madame Thorpe tivesse pedido desculpa à rapariga por causa do arranhão que sangrava, gota a gota. Mas não
o fez. Sem dúvida, não pensava que um manequim fosse um ente vivo, com desejos, invejas e ardentes cóleras.
- Tenha cuidado com o vestido, não apanhe alguma nódoa, miss Smith. - recomendou madame Chalon. Mas de-certo leu no rosto de Liliana qualquer coisa que lhe fez medo,
pois, tornando-se subitamente gentil, continuou:
- Agora pode ir dizer a toda a gente que foi ferida por uma esmeralda verdadeira.
Nesse momento, o rapaz tirou o seu fino lenço de baptista e tocou ligeiramente a gota de sangue nas costas de Liliana. "Seria pena que manchasse tão lindo vestido
-declarou, e Liliana não soube dizer se fôra ironia ou imbecilidade.
- Agrada-te este modelo, querido? Achas que devo
comprá-lo ?
O rapaz levantou-se e olhou para madame Thorpe. Deus sabe o que a quarentona descobriu na expressão desse rosto. com certeza uma coisa que o seu sorriso e os seus
olhos, em forma de amêndoa, não puderam esconder bastante. De-repente, o seu humor virou-se. "O vestido não me agrada!" -declarou bruscamente - "Não o quero. A saia
é muito larga. Vá, mostre-me outra coisa."
Nervosa, fazia girar o anel no dedo.- "Quero qualquer coisa de muito simples, em branco, um vestido com o qual se possa ir jogar o polo em Singapura, sem que os
ingleses nos apontem a dedo."
Liliana olhou para a directora.
- Mostre o nº 34 - disse madame Chalon, um
tanto sucumbida.
Madame Thorpe protestou, com agrura:
- Não mostre mais nada, peço-lhe. Eu mesma vou provar. Não serve a ninguém ver como os vestidos ficam no manequim. Sou eu que os tenho de trazer.
- É justo. - condescendeu madame Chalon, obsequiosa. Nas costas da cliente, ergueu os olhos ao céu num olhar implorativo: - "Traga o nº 34, miss Smith, o vestido
branco, género alfaiate."
Liliana retirou-se de novo para a jaula dos macacos.
- Que mais há ? - preguntou a velha costureira quando, ennervada, a rapariga despiu mais um vestido para tornar a envergar o seu fato de caixeira.
- A velha morre de medo de que eu possa agradar ao seu gigolô! - explicou Liliana - Que idea! A tipos como aquele nem sequer vale a pena a gente escarrar-lhe em
cima.
Madame Thorpe era ainda mais ciumenta do que Liliana supunha. Assim que ela chegou com o vestido branco nº 34 e que madame Chalon acompanhou a sua cliente ao gabinete
de prova, esta deteve o manequim, na passagem:
- Se faz favor, venha provar comigo, - disse claramente, num tom que não admitia réplica.
- com muito prazer, - respondeu Liliana tão amavelmente, que era quási uma insolência.
Nos últimos tempos perdia facilmente o domínio dos nervos. Isso tinha começado pouco antes do casamento de Nina, talvez mesmo na noite em que suspeitaram que ela
tivesse roubado o ícone russo. Desde então, a sua tensão interior tornou-se cada vez mais aguda e lutava contra a estranha apreensão de uma espécie de explosão iminente,
como se todo o armazém, um belo dia, devesse ir pelos ares, ou então arder completamente até não ser mais do que um pequeno monte de cinzas frias. O fino arranhão
ardia-lhe nas costas de uma forma insuportável e sentia uma louca vontade de puxar pelos cabelos pintados de madame Thorpe. A cliente pareceu adivinhar esta tensão,
ou então sentiu exasperar o seu ciúme, embora tivesse arrastado o manequim para longe do seu amante. Era uma obsessão. Vestia e despia os vestidos, mandando a directora
fazer uma nova escolha. As aprendizas andavam de um lado para o outro e madame Thorpe não consentia que Liliana se afastasse um segundo.
Estava calor no gabinete. As figuras das três mulheres multiplicavam-se no grande espelho de três corpos. Parecia que uma multidão de pessoas se agitava e comprimia
na estreita cela. Por fim, madame Thorpe mergulhou num delíquio. Apressada, madame Chalon foi-lhe buscar um copo de água. Liliana fez toda a diligência para dominar
a sua expressão, afim de que a cliente não pudesse perceber com que antipatia a olhava. Madame Thorpe estava agora paramentada com um vestido
preto, de cauda, que lhe exibia as espáduas muito nuas e muito gordas.
Quis ela própria desapertar, nas costas, o cordão da cinta: o anel de esmeralda deslizou e caiu sem ruído, no tapete cinzento e rosa que cobria o chão da casa de
prova, assim como todos os aposentos do salão de costura. Liliana não reflectiu, talvez nem soubesse mesmo o que fazia. Foi espontânea e instintiva: em vez de apanhar
o anel e de o entregar, com uma frase amável, pôs-lhe o pé em cima, para o esconder.
Madame Chalon voltou, trazendo um copo de água que a cliente bebeu, reconhecida. Não tinha dado por nada. Liliana estava em cima do anel e sentia a esmeralda, como
um ponto escaldante, sob a planta dos pés. Madame conseguiu tirar pela cabeça o estreito vestido: tinha perdido completamente o entusiasmo. E, depois de ter atormentado
a directora e a caixeira durante uma hora, decidiu-se bruscamente a não comprar nada.
- Tudo isto me parece muito ordinário! - disse ela - Decididamente, mandarei fazer em Paris o meu enxoval de viagem. Tenho lá uma costureirinha espantosa.
A frase soou de uma forma mesquinha, deselegante e snob. Madame Chalon tornou-se quási aliada de Liliana.
- Como v. ex.a desejar. - disse, lançando a Liliana um olhar que significava "que os diabos levem o velho camelo". Agora já não se preocupava com o facto de madame
Thorpe poder ver o seu gesto pelo espelho.
-Quere ter a bondade de me arrumar um pouco isto?-disse a directora, emquanto acompanhava a cliente.
O gabinete estava cheio de tule, de taffetãs, de folhos - sonhos floridos das costureiras para as noites de Hawai...
Quando Liliana pegou no anel, acariciou-o, mirou-o, sentindo um estremecimento: não era só medo e comoção
- era essa paixão, esse ardor indomável que experimentava
sempre, diante das coisas caras. Acariciou mais o anel e teve ainda tempo de o fazer desaparecer, quando as duas aprendizas entraram. "Nada feito?" - preguntou uma
delas, maliciosamente. - "Mete-te na tua vida". - replicou Liliana, Tinha o anel fechado na mão e não sabia que lhe havia de fazer. Pegou no fato branco nº 34, modelo
Emily e apertou-o contra si. "Eu arranjo isto".- disse, baixando-se para apanhar do tapete alguns alfinetes. As pequenas foram-se embora.
Liliana meteu o anel na algibeira direita do casaco do vestido modelo, de fazenda branca, pendurou cuidadosamente a saia e o casaco numa cruzeta e levou tudo para
o armário. Passou a mão pelo saco de celofane que devia proteger o fato claro, da poeira, respirou profundamente e deixou-o ali, suspenso entre centenas de outros
modelos de verão, prontos para a venda.
Meia hora mais tarde, madame Thorpe surgiu como um tufão. Eram quási cinco e meia e as caixeiras, extenuadas, serviam os últimos fregueses, impacientes. Houve um
certo ruído violento, mas logo reprimido, e a notícia da perda do anel espalhou-se. O velho Filipe foi chamado e as ondas informatórias chegaram ao santuário do
sr. Crosby, ao 18º andar da torre central. Embora madame Thorpe fizesse grande barulho, não podia, de maneira alguma, afirmar que tinha perdido o anel no salão de
prova ou em qualquer outro sítio. Pelo contrário, madame Chalon lembrava-se muito bem de ter visto o anel e de o ter dado ela própria à cliente. O criado, chamado
como testemunha, fez reparos adormecidos e despidos de senso. O velho Filipe fixava o seu olhar perscrutador e desconfiado sobre o rapaz. Não lhe agradava. Dois
homens da polícia privada estavam discretamente num segundo plano, mas não foram precisos. Procuraram por toda a parte e não encontraram nada. Por fim, madame Thorpe
acabou por confessar que tinha saído do armazém num táxi, cujo número ignorava. Tinha ido ao Olímpia Bar, bebera dois cocktails
passara alguns minutos na sua modista, na Madison Avenida e só no segundo táxi, tinha dado pela falta da jóia.
Lamentou-se o facto, fizeram-se promessas de mais buscas e, amavelmente, acompanharam à porta a nervosa senhora, porque era tempo de fechar o armazém. De resto,
madame Thorpe tinha a jóia no seguro, mas custava-lhe dirigir-se por causa disso ao sr. Thorpe de quem se estava a divorciar. Quando a sineta acabou de tocar para
fechar, o velho Filipe convidou o pequeno grupo de empregados a subir ao seu escritório para serem revistados. madame Chalon fazia parte desse número e ficou tão
emocionada que começou logo a falar francês e a pedir que a despedissem. As duas pequenas aprendizas, choravam. Liliana estava fria e calma. "A gente habitua-se"
disse ela irónica, emquanto se despia, sob a vigilância da enfermeira, pois, se o revistar era uma desagradável operação, era ainda assim praticada com delicadeza.
"Lamento, minha filha... -murmurou o velho Filipe, quando aquilo acabou. O seu rosto bondoso, de foca, parecia perturbado. Cheirava a whisky, como de costume. Desde
a data do casamento de Nina, conhecia mais Liliana, e tinha um fraco por ela. "Que é isso que tem aí?" preguntou a enfermeira, vendo nas costas de Liliana algumas
gotas de sangue resumando da arranhadura.
- "Isto? Foi madame Thorpe que me feriu com o seu famoso anel." -disse Liliana, com desprezo.
Sentia uma louca sensação de temeridade, como um dançarino em corda bamba, de pé, em cima de um fio fino, muito alto... "Espere, vou pôr-lhe iodo. -disse a enfermeira.
O ligeiro ardor foi para Liliana como uma promessa.
Durante quatro dias o anel ficou na algibeira do casaco branco, modelo Emily nº 34. Ninguém o comprou, pois começava a chover e as pessoas desejavam impermeáveis
e chapéus de chuva.
Ao quarto dia, o tempo melhorou e Liliana apresentou
o modelo a uma senhora que tinha uma linda figura e que o comprou sem hesitar. No último momento, Liliana teve que tirar o anel e escondê-lo na meia.
Estava doente de excitação. Se um médico lhe tivesse tomado o pulso, achar-lhe-ia febre. E se esse velho Filipe tivesse hoje a idea de a revistar, estava perdida.
Mas o velho Filipe tinha outras preocupações.
À noite, no seu reduto da cave, em casa dos pais, Liliana ficou acordada, acendendo e apagando a luz... Ao lado, seu pai resmungou, mas ela não podia dormir, tinha
que contemplar o anel...
Até que Liliana possuía, emfim, um belo anel de esmeralda, uma jóia sua, um segredo seu, um perigo seu!...
DESDE o décimo quinto andar da parte central até ao cimo, havia por toda a parte avisos com estas palavras. Pede-se silêncio. Quem saía do elevador não podia deixar
de ver este pedido que era antes uma ordem. Havia também avisos nas portas das salas de conferência onde se reunia o conselho para deliberar dos destinos da Central
Warehouse, assim como à entrada dos corredores dando para os escritórios particulares do director-chefe. O sr. Crosby tinha o seu trono lá em cima, no décimo oitavo
andar, num escritório guarnecido nos quatro lados por janelas, e que mais parecia a casa de vigilância de um faroleiro. Nos dias claros podiam ver-se os dois rios,
o Hudson e o Eastriver e as cadeias de colinas, longe, além, em New-Jersey. Mas o sr. Crosby não se interessava pela paisagem: estava muito preocupado. As acções
"da companhia estavam mal cotadas e ele possuía 51? 0 do total, justamente o preciso para lhe garantir a maioria na assembleia geral dos
acionistas.
Na segunda reunião tinha-se notado um certo descontentamento ; embora o armazém fizesse muito negócio, no último ano, fechara-se o balanço com déficit. O sr. Crosby
fazia dançar os algarismos na sua cabeça, sem encontrar solução. "Os impostos, senhores, os impostos ... Não devíamos, evidentemente, falar tão alto,
mas, o que se passa recentemente no nosso país, é uma espécie de comunismo disfarçado.
O sr. Crosby tinha memória matemática, podia-se confiar nela como numa prodigiosa máquina, contanto que se tratasse de acções e de números. Quanto aos rostos dos
seus dois filhinhos e aos aniversários dos seus amigos, esquecia-os sem cessar. No fundo, o sr. Crosby era um doente - sofria de diabetes - e isso roubava-lhe uma
porção de alegrias da vida. Bebia chá sem açúcar, com o seu biscoito seco de diabético, que sabia a papel. Cairam-lhe os dentes um após outro; pouco depois uma chagazinha
no dedo grande, do pé, causou-lhe inquietação : não era nada, uma chagazinha, sem importância, mas, para um homem diabético, podia significar o pior. O sr. Crosby
tinha as mãos frias e pesadas, inchadas, com as veias grossas. Nessa manhã, assinara o despedimento de duzentos empregados. Ninguém o estimava e ele não queria a
ninguém no mundo. Muitas vezes sentia a impressão de que o arranha-céus oscilava ligeiramente: os engenheiros haviam calculado que a ponta da torre central oscilaria
diariamente cerca de quatro polegadas.
Avaliavam a fortuna de Crosby em trinta e quatro milhões.
Filipe, o detective da casa, via o seu chefe superior pela primeira vez, depois da desaparição do anel de madame Thorpe. Ao levantar, tinha tomado como de costume
a sua ração de whisky, pois precisava de criar forças. Estava agora diante do grande patrão e obsecava-o a idea de que podiam notar a leve percentagem de álcool
que tinha no sangue.
O sr. Crosby olhou longamente para o seu subordinado, antes de dizer uma palavra:
- Chama-se Filipe ? Filipe... Filipe ? - preguntou, emfim, decifrando o nome num caderno que o seu secretário lhe estendia.
- Sim, sr. Crosby. Uma pequena brincadeira de meu pai.-murmurou o velho Filipe num tom deferente.
- Que idade tem ?
- Um pouco mais de cinquenta e oito anos - murmurou Filipe. Fazia sessenta daí a três dias e sentia uma espécie de vergonha...
O sr. Crosby olhou com atenção o seu detective. -Bebe.-Não era uma pregunta mas uma participação.
- Às vezes, um copinho... para estar acordado ... trabalho de noite, muitas vezes fico vinte e quatro horas fora de casa.
- Tem um assistente às suas ordens, não é verdade ? Não trabalham alternadamente?
- Sim, mas não descanso completamente nesse jovem detective, principalmente depois... que... várias vezes tivemos pouca sorte... isso não me deixa descansar... não
posso dormir... Por isso prefiro ser eu próprio a fazer a ronda.
- Parece-me que o seu zelo não tem tido grande êxito - disse o sr. Crosby, um pouco mais conciliador. Que um homem preferisse envelhecer no armazém em vez de dormir
na sua cama, compreendia-o bem. Ele mesmo passava a vida naquela torre e não podia admitir que certas pessoas fossem à Flórida ou à caça dos patos.
- Sr. Crosby, - disse Filipe num tom aflito, aproximando-se da secretária - reconheço que temos tido um período de infelicidade. Isso acontece. Asseguro-lhe que
vou redobrar os esforços... não consentirei que aconteça mais qualquer coisa... e se eu...
- Palavras não servem de nada. - disse Crosby. Recuou um pouco, assim que Filipe avançou para ele com o seu hálito saturado de whisky, e irritou-se de novo.
- Mandei-o chamar aqui, não para ouvir as suas explicações, mas para lhe dizer que somos obrigados a dispensá-lo, se tornar a haver o mínimo roubo.
Houve um instante de silêncio; só o secretário fazia mover uma folha de papel, para encobrir a sua perplexidade.
- Dispensar-me ? Não está a falar sério, sr. Crosby ? -disse o velho Filipe - Eu trabalho na Central desde que ela existe, faz daqui a pouco vinte e sete anos...
sr. Crosby...
- Lamento, Filipe, - disse o sr. Crosby - mas bem deve compreender que já não está à altura da sua missão. Isso acontece-nos a todos, um dia. Eu próprio terei de
me retirar e hei-de sabê-lo, exactamente, quando chegar o meu dia. Exijo a mesma coisa dos meus subordinados.
- Não poderá arranjar melhor. - disse Filipe, tocado pela sinceridade do patrão -Para mim... a Central significa tudo... Não é só um emprego... o meu salário...
sempre poderei arranjar trabalho... mas a Central... é como a minha própria casa... eu não tenho lar... sou um velho celibatário... passei toda a minha vida na Central...
não me podem mandar embora simplesmente porque se deram alguns roubos. Eu pertenço à Central... Desculpe-me, sr. Crosby, dizer-lhe assim tudo isto...
O sr. Crosby reflectia sobre o que acabava de ouvir. Desviou-se do ponto principal:
- A polícia descobriu alguma coisa a respeito do anel de madame Thorpe ? - preguntou secamente.
- Não, o caso foi abandonado. É ainda uma coisa que nos pesa às costas, se bem que seja quási certo que o anel não foi perdido em nossa casa. Mas com essas mulheres
não se pode tirar nada a limpo.
- Faço-lhe notar que madame Thorpe é uma das nossas melhores clientes, uma senhora da alta sociedade. Seu marido é meu amigo.
- Peço-lhe perdão, sr. Crosby. De qualquer forma, madame Thorpe deu ordem para acabarem com as investigações, e se me preguntar porquê, poderei dizer-lhe a razão.
O sr. Crosby olhou para o seu detective. Ele só tinha falado duas vezes a madame Thorpe, pois Thorpe, o advogado, não era, na realidade, senão uma relação de
club. No fundo, partilhava a aversão de Filipe pela cliente.
- Sabe que essas insinuações são muito injustas? disse ele.
Filipe lançou um olhar sobre o jovem secretário. Teve a necessidade urgente de uma golada de whisky e sentiu-se muito infeliz.
- Madame Thorpe mandou parar com tudo, porque receou descobrir que o seu... amigo tinha roubado o anel. É tudo. - disse, soltando um suspiro.
- Ela disse isso ? - preguntou Crosby. O velho Filipe não pôde deixar de sorrir a tanta ignorância do mundo no espírito de um grande homem de negócios.
- Disse? O senhor não conhece as mulheres, sr. Crosby. - exclamou. - Uma coisa dessas ? Elas não a confessariam nem mesmo a si próprias, em face da sua consciência.
Mas isso é-me indiferente, pode acreditar...
A leve jocosidade do sr. Crosby durou apenas um minuto, dissipando-se logo. Não sentia já senão impaciência e descontentamento em face deste empregado meio ébrio,
que não queria ser despedido. Abriu a gaveta do meio, da sua secretária, e tirou um frasquinho de remédio. Muito obsequioso, o secretário particular ofereceu-lhe
um copo de água: o director contou vinte gotas. A droga tinha um gosto amargo. Muitas vezes o doente sr. Crosby sentia repugnância por si próprio: o seu braço estava
cheio de picadas da seringa da insulina, que, ultimamente, mostravam uma desastrosa tendência para se inflamarem.
- Está então avisado, sr. Filipe - disse em tom peremptório - Na primeira ocasião, é despedido. Obrigado.
Era definitivo. Nada tinha a responder.
-Obrigado, igualmente, sr. Crosby-respondeu Filipe, retirando-se.
Lá fora, exausto, encostou-se uns minutos à parede, ao pé do aviso que reclamava silêncio. Depois dispôs-se a descer a escada que vai do 18º andar ao 12.?. Era um
hábito curioso: Filipe preferia a escada ao elevador. Três vezes, na sua carreira, tinha prendido nas escadas, ladrões que se julgavam em segurança. Chegou dez minutos
mais tarde ao seu escritório, chamou o piquete de detectives ajudantes, simples e frustes adolescentes sem nenhuma intuição psicológica, e recomendou-lhes uma grande
vigilância. Assim que partiram, acabou de esvaziar a sua garrafa de whisky, sem utilizar nem copo nem soda, pois começava a sua luta obstinada contra a ameaça de
despedida que pesava sobre ele.
OS empregados de uma grande casa só conhecem ? realmente uma pequena parte dela; estão incrustados à sua secção, como os corais ao fundo do mar. Mas aquele que,
constantemente, lhe percorre todos os cantos, como o velho Filipe, esse vê o conjunto, conhece essa imagem reduzida do universo, que é um grande armazém.
Ele via milhares de coisas emquanto, com o seu bondoso rosto ingénuo, de foca, e os olhos um pouco turvos pelo álcool, mas atentos, andava por todo o edifício. Ia
constantemente às escadas, às salas de venda que se estendiam até ao infinito. Na secção de branco, havia batalhas entre mulheres, pois era o dia de um dólar. No
salão de chá, três músicos faziam ouvir as árias em voga e, na secção de música, ouviam-se, outra vez, essas árias. Aí, uma rapariga anémica estava sentada ao piano
e tocava, como uma sonâmbula, tudo quanto punham diante dela: as notas pareciam espectros. Sem descanso, os camiões rolavam no pátio número 5, onde era descarregada
a mercadoria, pesada, registada e escolhida. Em todas as secções, Filipe distinguia as clientes que compravam sem reflexões, sem resistência, dessas que, de lábios
cerrados, calculam de pé, aos cantos, e por fim não compram nada. Mais além são os jovens negros dos elevadores que, na multidão de mulheres, anunciam os andares
como máquinas falantes, sem vida, cegos, surdos e insensíveis.
Ao romper da manhã, o armazém é ocupado por grupos de mulheres que tratam da limpeza e do encerado. De noite, os guardas vão e vêm na penumbra, marcando a sua passagem
nos relógios de verificação. Na cave, fica a reserva dos manequins das vitrinas: bonecas de cera, nuas, de sorrisos afectados, alinhadas em longas filas, contra
as paredes. Pares de braços e de pernas estão deitados ao lado delas no chão, e todas têm o ar de esperar alguma coisa. No 14º andar ficam as caixas, os cofres fortes,
metidos nas paredes, protegidos por um sistema secreto e complicado, vigiados noite e dia. É aí que, nos dias de pagamento, os empregados, em longas filas, esperam
o seu sobrescrito. Os caixas estão atrás das grades, vivem prisioneiros entre barras de ferro e campainhas de alarme e usam dedeiras de borracha, no polegar, para
protegerem a pele, que ficaria em sangue, à força de contarem todo aquele dinheiro.
Além, estão os escritórios da administração com os seus tickers, as campainhas, o martelar de centenas de máquinas de escrever. Eis o pequeno ramo de flores em cima
da mesa de uma estenotipista e um único raio de sol que, pelo meio dia, desliza pontualmente na sombria sala do empacotamento.
No vestiário das senhoras - onde as caixeiras vão à pressa fumar um cigarro quando estão cansadas - trocam-se mil bisbilhotices e chefes de secção contam historietas
emquanto se arranjam.
Mais longe, estão as mesas guarnecidas de seis, de quatro, de dois aparelhos telefónicos. Outras mesas têm vinte campainhas, e há gente que se deve precipitar assim
que as ouça tocar.
Eis aqui, em resumo, um bloco inteiro do edifício onde reina a febre da compra e da venda. A casa vibra e tudo isto, unicamente, para ganhar dinheiro.
Há longas mesas onde se escrevem, sobre etiquetas,
os preços que se marcam nas mercadorias. Certos preços são alterados, diminuídos, outra vez modificados. Isto interessa o velho Filipe; pode ficar ali muito tempo
a olhar, a ruminar, preguntando a si próprio como pode um rico modelo elegante descer até ao preço dos saldos, como um lindo móvel é um dia atirado para o subterrâneo,
ou liquidado por uma insignificância. "Que fazem dos monos?" - pregunta ele. Ninguém o sabe. - "Que fazem da mercadoria que não vendem?" - pregunta ainda. Parece
que existe uma casa que compra tudo quanto é inútil; aceita o rebotalho do grande armazém e manda-o, não se sabe para onde; para a Nova Guiné ou para quaisquer antropófagos
do fim do mundo.
E isto mergulha o velho Filipe em longas meditações. Ele também faz parte desse rebotalho... tornou-se inútil... Depois de vinte e oito anos passados na Central,
que podem fazer de um velho como ele? À noite, depois de ter ainda bebido meia garrafa de whisky, sonha que passeia com um cartaz gigantesco às costas, anunciando
um preço diminuído, rediminuído, reduzido a nada.
Um murmúrio percorreu subitamente o armazém, uma espécie de secreta inquietação. Filtrou-se não se sabe por onde: diziam que iam licenciar empregados. Muitas mulheres,
como a srª Bradley, tremiam ao pensar numa despedida. Esforçavam-se por todos os meios para se valorizarem entre os novos, os muito novos, os levianos, os mal vistos.
Havia algum tempo já que a sr.a Bradley sentia certa dor de um lado, que nem ousava confessá-lo a si própria, Skimpy, à noite, punha-lhe uma cataplasma e a sr.a
Bradley desculpava-se junto dos seus hóspedes e ia para a cama, emquanto Skimpy ficava com o velho Filipe e o casal Bengtson, a jogar. Jogavam a "beijinhos de chocolate",
pequenos bonbons negros, que a confeitaria da Central havia comprado em grande quantidade e de que não se tinha podido desembaraçar: saldavam-nos, por isso, aos
empregados, na cantina. Skimpy fazia batota sem vergonha e ganhava, com grandes gritos de alegria. Filipe perdia regularmente, não podia reter na cabeça as cartas
do jogo, embora fosse um bom jogador de xadrez. Às vezes, Nina lançava-lhe um olhar de inquietação e de
piedade.
O pior, para o pobre homem, é que tinha renunciado a beber e não ia já de noite à Central. Tinha medo do armazém, de noite, e medo de si mesmo. Sen tia muitas vezes
a impressão de que poderia, com as suas próprias mãos de detective, roubar uma garrafa de whisky, na secção. Para um bebedor, a sobriedade é uma dura doença, com
arrepios que fazem estremecer, e dores em todos os membros. Durante o tempo em que se conservou sóbrio, o velho Filipe registou um pequeno êxito e um verdadeiro
desastre.
Uma noite, descobriu um rapaz que se tinha escondido, durante as horas de trabalho, atrás de um alto rolo de tapeçaria, em pé, contra a parede do depósito de tapetes.
Uma simples intuição levou o velho Filipe a lançar um olhar para trás do rolo e a agarrar o jovem ladrão pelas orelhas.
A polícia prendeu o garoto, que não tinha ainda dezasseis anos. Ele jurou que não queria roubar nada, mas apenas brincar com os objectos da secção de sport. Isso
foi um triunfo um tanto atenuado e Filipe sentiu-o bem, Três dias mais tarde, passsou-se o seguinte ; emquanto passava pelo armazém próximo da porta de oeste, onde
vendiam tudo em pequenas quantidades, notou duas pessoas que lhe pareceram suspeitas. Lembrou-se de as ter já visto e desconfiado delas, mas o seu cérebro, perturbado
pela abstinência, não lhe deu nenhuma indicação precisa. O homem era do género "belo aventureiro"; a mulher, mais velha do que ele, estava pintada e parecia muito
nervosa. Filipe seguiu-os, sem ser notado, entre a onda da clientela que se espraiava, a essas horas da tarde, pelo armazém.
Tinha vestido o sobretudo e posto o chapéu, para ter também o aspecto de um freguês. Emquanto os vigiava, encostado a uma coluna, sentia-se cambaleante, como que
vazio. No entanto, a velha febre de caça do detective, aguilhoada pelo desejo de provar ao sr. Crosby que ainda podiam contar com ele, levou-o a agir.
As duas pessoas suspeitas deslizaram das malas de senhora para os perfumes, separaram-se, pararam em balcões diferentes, ele no das luvas, ela no dos lenços e Filipe
via-os, distintamente, trocarem sinais às escondidas. O coração pôs-se-lhe a bater: contornou a coluna, quando os viu afastarem-se, e não os perdeu de vista. Em
cima de uma mesa estavam objectos de metal prateado, nada de extraordinário, coisas que faziam mais efeito do que valiam. Shakers para cocktails, taças de fruta,
etc. Filipe sentiu de novo uma espécie de vertigem: entretanto, viu a mulher meter qualquer coisa na carteira, fazer sinal ao homem e dirigir-se com ele para a saída,
num ar indiferente.
Apanhou-os a poucos passos da porta, deitou a mão à malinha da senhora e disse brandamente: "siga-me, se faz favor, e sem fazer escândalo."
- Que aconteceu, sr. Filipe ? - preguntou a senhora. Quando ouviu esta voz teve uma sensação desagradável. No entanto, tudo teria corrido bem se, no mesmo instante,
um jovem assistente dos seus detectives não tivesse vindo em seu auxílio. Esse principiante lançou o seu punho de polícia à mão do homem e disse:
- Deixa-te de histórias, meu rapaz! Já roubaste bastante.
O escândalo estalou... O homem defendeu-se, a mulher pôs-se aos gritos, a multidão alarmou-se, a polícia da casa acorreu com as suas pesadas botas. Tudo se desenrolou
fatalmente, irresistivelmente, como numa tragédia grega.
A mulher era madame Thorpe... O conteúdo da
malinha: irrepreensível... O seu companheiro ameaçava fazer um processo por difamação. Finalmente a cena terminou na sala, pintada de branco, do posto de ambulância,
onde madame Thorpe se entregou a uma crise de nervos. A enfermeira deu-lhe brometo e o aprendiz Pusch, que estava em toda a parte onde havia qualquer coisa de interessante
a ver, foi buscar um carro para levar os dois.
- Se eu estivesse bêbado, semelhante coisa não me tinha acontecido! - dizia de si para si o velho Filipe - O pobre homem já sabia, agora, que seria despedido.
Efectivamente o sr. Crosby mandou-lhe o ordenado de três meses e um atestado para que pudesse arranjar outro emprego. Fizeram-lhe compreender que, no futuro, passariam
sem ele. Um novo chefe detective, moço e enérgico, foi nomeado. Chamava-se Ricardo Cromwell e tinha servido na marinha: foi por isso que o alcunharam logo de "Toughyj.
Desde o primeiro dia que as caixeiras o adoravam, e ele passeava por toda a parte, como um pachá que possue trezentas mulheres.
O velho Filipe estava em casa, jogava as cartas a beijinhos de chocolate e tentava não beber... A Central podia passar sem ele-bem o sabia, o pobre
- mas, Santo Deus, como poderia ele passar sem a Central ?- É preciso que alguém nos dê uma idea - dizia o
sr. Sprague, o velho, o chefe dos decoradores como iniciar essas novas ligas? Parece que a Central comprou a patente, Patente Fidélia! Uma verdadeira porcaria! Mas
a patente é nossa. Não rasga as meias. É preciso fazer uma vitrina inteira com isso. Pregunto-lhe como... Porque eu não posso colocar sessenta mil ligas como se
fossem cebolas, na montra... A não ser que fabricássemos uma árvore sobre a qual nascessem as ligas?
- Não. Já fizemos a árvore das gravatas. - interrompeu erik Bengtson que estava sentado em cima de um escadote, pintando uma senhora maior que o natural, mostrando
uma grande parte da perna, que era destinada à fachada do armazém - precisamos pensar nisso, a sério.
E mergulhou nas suas reflexões, assobiando:
"Contigo, querida, gostaria de ir a Bali dormir sob as palmeiras Contigo irià Austrália e subiria até à lua, Contigo, contigo ..
- Alto! Tenho uma idea, - disse ele - dezasseis bonecas mostrando todas o joelho, com a liga por cima.
Sim, mas... era preciso poder demonstrar que não rasga a meia...
- E como demonstrar isso ? - preguntou o velho, interessado.
Erik caiu em profunda meditação.
- Já sei. Precisamos de uma verdadeira mulier. disse, ao fim de um minuto.
- Como ?
- Uma verdadeira mulher. Dezasseis bonecas e uma mulher verdadeira, vestida exactamente da mesma forma. Ela dobra o joelho e mostra que a meia não se rasga. Admirável!
Eis a solução!
Por um momento, o velho não disse nada. A idea trabalhava no seu cérebro genial. "Não está mau..."murmurou por fim. - "Mas é preciso que tenha umas pernas bonitas"
- acrescentou Erik, do alto do escadote. O velho pareceu despertar.
- Ora! Pernas bonitas têm elas todas!
Erik desceu e pôs-se a gizar o vestido que as dezasseis bonecas e a mulher deviam vestir.
- Precisamos de procurar entre as caixeiras, temos bonitas raparigas na Central - disse ele, absorto.
- Sim. Eu encarrego-me pessoalmente de a descobrir - respondeu o velho.
E pôs-se à procura, nesse mesmo dia. Como por acaso, percorria todo o estabelecimento, cominando as caixeiras, quando elas subiam as escadas ou trepavam aos escadotes.
Tirou disso muito prazer, mas não conseguiu mais nada. No dia seguinte foi o próprio chefe do pessoal que tomou esse encargo. Estava combinado que as ligas deviam
ser expostas durante uma semana na montra número 7, do lado norte. Erik traçava já o esboço do fundo... A caixeira indicada devia receber uma gratificação de dez
dólars por dia, quantia extraordinária, comparada com o pequeno salário que tinham, quando as pernas não entravam em jogo. As mais belas raparigas da Central foram
convocadas
para a oficina de decoração e aí alinhadas. As mais belas raparigas, quere dizer, antes de tudo, os manequins e as alunas da escola de manequins. Segredando e rindo
ofereciam-se aos olhares do velho Sprague: embora se tratasse apenas de pernas, elas tinham dado ao rosto o brilho mais resplandecente. Todas eram ambiciosas e o
facto de serem expostas durante uma semana na vitrina, representava uma aventura excitante, e uma grande oportunidade de êxito.
Sem nenhuma dúvida, Liliana Smíth possuía as mais belas pernas; foi classificada em primeiro lugar na restricta selecção que fizeram. No fim, ficou só em campo.
O velho passeava ao longo da fila de raparigas, com um passo solene, como um general passando revista a um regimento. Erik fazia de ajudante, seguia atrás. O velho
discutia, em voz alta, as qualidades de cada uma, pois as suas relações de todo o ano com bonecas das vitrinas, tinham-no tornado indiferente às reacções humanas.
Erik Bengtson, pelo seu lado, fazia caretas nas costas do velho, o que obrigava a rir as concorrentes. Por fim, o sr. Sprague mandou embora todas, mesmo Liliana.
- Que tem o senhor a dizer às pernas dessa rapariga?-preguntou Erik, assim que ficou só com o chefe.
- Não as podemos utilizar. Ela não tem o tipo preciso, tem um ar ordinário.
- Acha ? -preguntou Erik, que estava habituado a Liliana.
- Meu rapaz-disse o sr. Sprague - pode-se ter excelentes ideas a respeito de decorações, mas não se saber nada do que é venda. E nós queremos vender, entendeu? Nós
queremos vender essas danadas sessenta mil ligas Fidélia. E a quem, pregunto eu? A gente modesta, às donas de casa que precisam de fazer durar as meias, a esses
dois milhões de mulheres que ficariam furiosas, se vissem uma rapariga como esta Smith. Se a pusermos na montra, teremos um montão de homens
diante da nossa fachada norte, e a patente vai-se pela água abaixo.
- Que é preciso fazer então ? - preguntou Erik, que começava a achar o assunto demorado.
- É preciso descobrir um tipo que convenha explicou o velho. - Deve, com certeza, existir uma rapariga que tenha as pernas bonitas e, ao mesmo tempo, um ar sério.
vou procurar mais uma vez. O chefe do pessoal é um burro, É preciso a gente ir em pessoa.
Ao lado do seu superior, Erik percorreu o armazém. Toda a gente estava agora ao facto do que eles queriam e as caixeiras arranjavam-se de tal maneira, quo as suas
pernas não podiam passar despercebidas. Mesmo as da velha guarda, como miss Drívot, da secção das louças, estavam cheias de esperança, pois, desta vez, não se tratava
da cara,
- Espere! É esta que eu quero! - disse o sr. Sprague, de-repente - Eis emfim o tipo de mulher que ety; procurava, como um pedaço de oiro absolutamente raro.."; Uma
rapariga que é bonita e que, ao mesmo tempo,'- tem um ar decente. É esta, acredite. Esta é que há-de vender as nossas ligas à clientela.
- Oh!... parece-me... que se engana.-disse Erik, estupefacto. A rapariga que estava em cima de um escadote, e que tinha encantado o sr. Sprague, não era outra senão
Nina.
- Ela é muito tímida para ser exposta assim - atalhou, tentando distrair o velho.
- Como sabe você, se ela é tímida ? Já lhe fez propostas ? Pois do que precisamos é justamente duma mulher deste género.
- Mas o senhor não a pode meter dentro de uma vitrina, pronto! - exclamou Erik, grosseiro. Mas, como há meses, com subtil diplomacia, tinha sempre levado o velho
a fazer o que não lhe aconselhava e a evitar o que ele queria, a sua oposição enraizou a idea do bom homem.
A GRANDE LIQUIDAÇÃO
- Como se chama, menina ? - preguntou o sr. Sprague, com os olhos erguidos para o escadote, sem se preocupar com o seu assistente.
- Nina. - disse ela.
Acabava de ver seu marido e o rosto iluminou-se-lhe.
- Desça. Tenho que lhe falar - ordenou o velho.
- Deixa-te ficar lá em cima, Nina! - gritou Erik - Na verdade, não desejo que a minha mulher se pespegue numa vitrina a exibir os joelhos.
O sr. Sprague ficou sufocado.
- Ah! bom ... casou com ela não ? As minhas felicitações. Mas... ouça-me bem: você não tem o direito de influenciar sua mulher. Ela talvez se sinta feliz, ganhando
uma pequena gratificação.
Nina descera do escadote e colocara-se ao pé de Erik, não tão perto que pudessem julgar que falavam em particular, mas, no entanto, próximo dele.
- Que gratificação? - preguntou.
- Setenta dólares por semana. - disse o velho, com ar importante - Sem contar que isso a pode fazer ir mais longe.
O sr. Berg, chefe da secção, havia-se aproximado. Miss Drivot passou perto deles, sorridente. Sabiam já todos que Nina era a escolhida e vinham cumprimentá-la, parecendo
tomar o facto como uma honra e uma distinção. No lavatório das senhoras começavam já os comentários ciumentos e os doze andares encheram-se com a notícia.
- Não quero que a minha mulher vá para a vitrina.-repetiu Erik, numa cólera fria.
- No entanto, ganhar dinheiro, só lhe pode ser agradável. Para mais, isso causa-nos a nós, à Central, um grande prazer. Estou convencido de que o sr. Crosby será
informado -continuou insidiosamente o sr. Sprague, emquanto Erik prometia, a si próprio, vingar-se na primeira ocasião. Podia sempre, emquanto decorava, deixar
cair um martelo em cima daquela maldita cabeça de intrigante.
À noite, no metro, os recém-casados discutiram. Erik mantinha que Nina devia recusar a proposta. Nina compreendia isso mal: seu marido fora sempre superficial, não
tomando nada a sério pelo facto de ser artista, e eis que, por esta história sem importância, fazia soar o seu título de conde. com aquele dinheiro podiam começar
a comprar o pequeno Ford e fazer mesmo mais qualquer coisa. Erik tinha um desejo louco de um pequeno Ford e fazia anos daí a pouco...
- Quer te agrade ou não, estou decidida, - disse ela
- Ambos temos desejo de avançar e não nos podemos permitir o luxo de desprezar semelhante ocasião. De resto, até te fica mal fazeres barulho por tão pouco. Ouvirei,
com certeza, menos reflexões desagradáveis dentro duma vitrina, do que quando sirvo os clientes.
A sr.a Bradley tomou o partido de Nina.
- Ela tem razão, se recusar, tomam-na de ponta. Erik resmungou ainda.
- Tenho a certeza que tua mãe não faria objecções - assegurou Nina lançando o seu último trunfo.
- Lá nisso podes estar descansada. Minha mãe até teria prazer nisso. - disse Erik, furioso.
- Bem vê... - concluiu a sr.a Bradley agarrando-se com força á correia, pois, nos últimos tempos, andava trémula. Devia ser por causa das dores no lado. Por instantes,
ela julgou ver os embrulhos, as etiquetas, as mãos girarem diante dos olhos e teve medo de cair. Mas era preciso não falar dessas coisas, se queria conservar o seu
lugar na Central. Bem vê! - continuou, deixando-se baloiçar da direita para a esquerda. Liliana, de pé, a seu lado, não dizia nada. Ia devorada pela cólera e pelo
ciúme. Pensar que a rejeitaram para pôr Nina na vitrina! Pensar que havia casado, emquanto ela tinha todas as noites que andar sozinha no seu ? bairro! Pensar que
esse cretino do Erik procedia como
se Nina fosse distinta demais para ser exibida! Tudo isto, punha Liliana fora de si: era como uma dor perfurã nte.
- Fazia muito mais efeito se soubessem que viam as pernas de uma condessa Bengtson - disse ela, por fim.
A flecha atingiu Erík, - e ela percebeu-o - mas era uma bem fraca consolação. Desceram os três na rua 42.a e Liliana continuou sozinha até à 125ª.
Não era que aquilo desse muito prazer a Nina, pelo contrário, afligia-a até. - "Setenta dólares". -pensava emquanto jogava com Skimpy. Setenta dólares" Erik resmungava
ainda, no entanto, deixava-a fazer o que quisesse. Nina via-se já quási a escolher o pequeno Ford. Nem podia adormecer. Estendida na obscuridade, assaltava-a a sua
empresa e construía castelos no ar.
- Pensa que nunca mais te aborrecerás - disse ela, noite alta. -Adivinhava, pela respiração de Erik, que ainda não conseguira adormecer.
- Quando? - preguntou.
Nina estendeu a mão para a outra cama:
- Ora quando ... por exemplo, quando tivermos o nosso automòvelzinho... À noite poderemos dar um passeio...
Nina conservava a mão estendida; aparentemente, Erik nem dava por isso.
- Eu não me aborreço - disse, algum tempo depois.
- Sim, continuou ela meigamente - eu sei, não é preciso que o digas: tu aborreces-te. Jogar todas as noites com a Skimpy e o velho Filipe não é, evidentemente, muito
interessante para ti. Mas tu verás... Ela calou-se um momento e depois veio a mão de Erik, da outra cama, ter com a sua.
- Querida inteligente, Lille spurv, - disse ele - estamos casados apenas há três semanas e já tens sustos a meu respeito...
Nina teve desejos de responder, mas não o fez. Erik
adivinhava sempre as suas mentiras; mesmo num quarto de dormir às escuras, ele sabia quando ela mentia. Tinha receios, sim... Ele andava distante... distraído, muito
amável... mas de noite para noite, a partida de cartas e a vida em casa dos Bradley, mais o irritavam. Um carrito para ele... ar ... movimento ... velocidade ...
- Sabes ?... é porque não me habituo aos beijos de chocolate - disse emfim Erik, do outro lado.
Nina pôs-se a rir baixinho, e adormeceram.
No dia seguinte, Nina exercitou-se no papel que devia representar. À noite Erik não foi a casa, mas jantaram juntos no "Rivoldi". Depois, ele voltou para a loja
para decorar a montra das ligas.
Foi a uma quarta-feira, que Nina tomou posse do seu novo posto. Tendo um vestidinho azul-claro, foi colocada na vitrina, no meio de dezasseis bonecas, de sorriso
idiota, e fez a demonstração das ligas Fidélia. Para dizer a verdade, ela admirava-se que as meias ficassem inteiras.
Três vezes, durante a manhã, Erik foi à rua e fazia guarda para vigiar a mulher por trás do vidro. Nina mal se atrevia a sorrir-lhe, como se se tivesse tornado actriz
de um drama de Shakespeare. Ao meio dia, houve uma pausa de meia hora; deixou ali as dezasseis bonecas e foi ter com Erik, à cantina. Ele não disse uma palavra sobre
o novo emprego de sua mulher e ela também não falou nisso. Liliana não se foi sentar em frente deles, como de costume. Na escada 5, os esposos separaram-se e Nina
retomou o seu lugar na montra 7.
Era fatigante. Horrivelmente fatigante e ennervante. Mas, ao fim de dois dias, tinha-se habituado, Às vezes, parecia-lhe que se tinha transformado também numa boneca,
com as costas duras, curvadas, e com um sorriso de madeira.
É vulgar dizer-se que os novaiorquinos nunca têm tempo. Mas quando uma bonita rapariga, exposta em carne e osso, mostra, nas suas próprias pernas, que
as meias não se rasgam, os mais ocupados arranjam logo tempo. De manhã até à noite havia uma multidão em frente da fachada norte, de tal maneira, que teve de ir
para lá um agente de polícia, afim de manter a ordem. Certos basbaques ficavam ali cinco minutos, olhando com um sorriso cheio de espectativa, como se esperassem
a conclusão divertida de uma boa anedota. Até o mendigo da esquina da rua pôs a tiracolo o seu letreiro "Sou cego" e se fez conduzir até ao armazém, pelo cão, arriscando
um olhar para Nina, Ela tinha esquecido completamente que a fitavam, e desempenhava o melhor possível o seu papel, sem se preocupar com a gente que estava lá fora.
- Ah! Tu nunca podias, na vida, ser um manequim ! - disse-lhe Liliana, à noite, quando, fatigadas de corpo e espírito, se dispunham a partir.
- Parece-me bem que não. - respondeu Nina, sem rancor.
Erik fora obrigado a ficar no armazém; os projectos para a estação de verão não estavam acabados.
- Emfim... compreendes, ao menos, a sorte que tiveste de seres assim exposta ?
- Porquê? -admirou-se Nina, a quem doíam as costas .
- Por causa de toda essa gente que olha para ti... todas essas ocasiões... Podes encontrar alguém que faça a tua felicidade.
- Que felicidade ? -preguntou Nina. Ela alegrava-se mas era ao pensar nos setenta dólares e no pequeno Ford ... Mas a felicidade era talvez outra coisa.
- Inocentinha, an ? - troçou Liliana. Tinham entrado no vestiário das senhoras e punham pó no rosto. Nina fazia-o negligentemente, Liliana com uma gravidade atenta.
- Emfim... não tens recebido propostas, cartas de amor ou coisas desse género?
- Mas eu sou casada! - replicou Nina. Liliana olhou-a com ar de desprezo:
- Eu é que devia lá estar. - disse, rancorosa. E havia de tudo neste pensamento: inveja, ciúme, raiva, até desdém e ódio por essa pequena Nina tão simples. Um pensamento
que queimava e estragava tudo: "Eu é que devia lá estar!..."
FACTO estranho, os habitantes de uma capital não conhecem verdadeiramente senão uma pequena parte da sua cidade. Fazem todos os dias o mesmo caminho, à mesma hora,
com a mesma luz. Steve Thorpe, por exemplo, não conhecia senão o caminho da sua casa de White Plains para o seu escritório da 5ª Avenida, e, além disso, o seu Club.
E mesmo, só conhecia esse bairro, através da porta do seu automóvel.
Que ele tivesse passado a pé, numa quinta-feira, pouco antes do meio-dia, diante da fachada norte da Central Warehouse, era um puro acaso e fora causa disso, também,
uma carta que tinha recebido. Essa carta, monumento epistolar, ao mesmo tempo atormentada e solene, era assinada por Filipe Filipe. Thorpe não se teria inquietado
muito se, entre frases confusas, não houvesse alusão, a sua mulher. O epistológrafo Filipe, pedia perdão pela ofensa que, em consequência de um mal-entendido, tinha
feito a madame Thorpe. Ao mesmo tempo que se censurava a si próprio, pedia instantemente ao marido, sr. Thorpe, para o ajudar: "Por causa de sua mulher perdi o meu
lugar que, durante toda a vida, ocupei o melhor que pude. Seja generoso, sr. Thorpe, e ajude-me a recuperá-lo. Sei que é amigo do sr. Crosby, uma palavra sua pode
restituir-me a felicidade", Assim terminava a confusa epístola.
O sr. Thorpe percebeu, pelo menos, que esse Filipe ignorava a acção de divórcio, posta por madame Thorpe contra ele, e ficou-lhe reconhecido, pois desde que sua
mulher o tinha deixado, andava de um lado para outro com a sensação de que toda a cidade o apontava a dedo.
Embora as culpas estivessem do lado de Lúcia, Thorpe não tinha a consciência tranquila. Em muitos processos, defendera a opinião de que, quando uma mulher se entrega
a certas faltas, é sempre por culpa do marido. Se a carta não falasse de sua mulher, ele tê-la-ia deitado fora, imediatamente. Mas Steve Thorpe queria bem à mulher
que o tinha abandonado, e tudo o que lhe dizia respeito o agitava extremamente. Ele metera-se em casa e não se dava com ninguém; quanto às pessoas que iam ao seu
escritório de advogado, possuíam o tacto preciso para não falarem de Lúcia. De-resto, Thorpe supunha que, havia muito tempo, ela tinha partido em viagem para a Europa,
como lhe dissera, quando se separaram. Só agora, esta carta lhe fazia saber que estava ainda em New-York. Esse Filipe devia ser um louco. Thorpe nada podia deduzir
da carta, mas o sangue subia-lhe ao rosto, ao pensar que um desconhecido tinha podido ofender Lúcia. Pegou no telefone para chamar Crosby, que conhecia como membro
do seu Club. Mas abandonou o auscultador, assim que viu os olhos atentos da sua velha secretária. Miss Tackle tinha a aparência e a vigilância dos cães de pedra,
que na China velam as portas dos templos e afastam os espíritos maus. Teve vergonha diante dela, diante da telefonista e diante do groom e, levantando-se, aproximou-se
da janela. O sol brilhava. Havia apenas três quarteirões de casas até à Warehouse. O grande relógio da torre central fez soar meio-dia. Havia anos que Thorpe tinha
por costume acertar por ele o seu relógio. "vou almoçar fora" - murmurou, e depois, deixando o sobretudo, pegou no chapéu e libertou-se do olhar de miss Tackle.
Assim que chegou à rua, respirou e olhou para o céu. Impaciente, esperou a luz verde para atravessar, pois tinha medo dos automóveis, como todas as pessoas que andam
sempre neles. O sol brilhante, aquecia-lhe as costas; à esquina da rua flutuava um cheiro a cravo. Uma mulher vendia flores; um homem empurrava um carrinho de pop-corn.
Thorpe sentiu-se agradavelmente englobado na onda dos passantes. "É preciso andar mais - pensou ele. - O pouco footing que faço ao sábado, não basta".
Thorpe era um homem alto e pesado, de cinquenta e dois anos. Havia quatro que estava um pouco calvo e ultimamente, a sua tensão arterial não era o que devia ser.
"A máquina gasta-se lamentava-se frequentes vezes. Era um trabalhador de uma resistência e de uma concentração colossais. Tinha ganho bom dinheiro e oferecido a
sua mulher todo o luxo que ela podia desejar. Era um dos milhões de maridos americanos, que passam o tempo a ganhar dinheiro para a mulher, de forma a não lhe ficar
nenhum tempo para gastar com as mulheres. Por isso é que ela o tinha deixado. Havia fugido com um gigolô, tal como o sr. Thorpe designava esse homem. Que o gigolô
se chamasse conde Di Péruggi e que quisesse desposar Lúcia, em nada alterava a situação.
Steve Thorpe estava na idade em que fere e faz doer horrivelmente uma mulher deixar um homem por causa dum gigolô. Mas, - com os diabos! - também ela estava na idade
em que as mulheres têm tendência para fugir com gigolôs. Pânico final, o desejo de agarrar a vida pelo último cabelo... Às vezes, sentia uma violenta cólera contra
Lúcia, outras, causava-lhe pena. Tinha conhecido muitos casos deste género, nos processos que estudara, para ser intransigente.
Foi por isso que Steve Thorpe se pôs a caminho, para tentar saber desse Filipe qualquer coisa de novo a respeito da sua mulher. Chegou diante da Central, parou
diante das vitrinas, olhando para tudo. Era novo para ele, isto desviava-o do motu-continuo dos seus pensamentos. Avançou entre a onda de gente, contornou o armazém,
deslizou ao longo da fachada norte e chegou diante da montra onde se fazia a demonstração das novas ligas Fidélia.
Thorpe parou e pôs-se a sorrir. Bonito, muito bonito. Muito bem" - pensou.
Cada uma das dezasseis bonecas tinha uma etiqueta de cartão, pendurada do joelho: "Preço: 2,80. A jovem, ao centro da vitrina, que, com um movimento regular levantava
a saia e puxava a liga, tinha também uma etiqueta pendente do joelho.
- Encantadora! - pensou Thorpe, olhando Nina e as bonecas - A rapariga é encantadora, muito mais bonita, do que parecia à primeira vista.
Parou, olhou e andou um pouco mais. Ao fim de um momento, voltou atrás. Tinha, entretanto, dado uma volta a todo o quarteirão; o sol brilhava e fazia-lhe bem
andar.
- Aqui está o que eu devia arranjar... uma amiguinha... - pensou.
Era o remédio infalível de todos os divorciados que conhecia. Uma amiguinha, uma coisa que se possa mostrar em público, que possa trazer um pouco de calor e de juventude.
Em Thorpe havia um fundo de bondade: amava os cães, as crianças, tudo o que era pequeno e necessitava de protecção. Teria sido terno, mas não tinha aprendido como
isso era.
Na sua casa de White Plains havia mesmo dois cães. A casa era muito grande para um homem só, pois a T. S. F. e a garrafa de whisky são uma companhia insuficiente.
Thorpe ficou ainda cinco minutos a olhar para a rapariga, depois entrou no armazém, pela porta norte.
No escritório de informações estava uma senhora de cabelo grisalho, que, a julgar pela sua aparência, devia
ser membro de numerosas associações de reforma. Thorpe, num acesso de bom humor, dirigiu-se a ela:
- Gostaria de comprar a jovem senhora que está exposta na montra - disse, tirando o chapéu.
- O quê ?
- A jovem senhora da montra. Tem o preço: dois dólares e oitenta. É um bom negócio. Onde a posso ir buscar?
- O senhor está a brincar! - respondeu "o escritório de informações" num tom adocicado. Em que posso servi-lo ?
A crise de Thorpe tinha já passado. Lembrou-se a que tinha vindo.
- Queria falar a um homem chamado Filipe . sabe se está empregado aqui ?
- Filipe ? O detective ? Um minuto ... - respondeu a senhora - vou chamar o sr. Cromwell.
Disse algumas palavras ao telefone e o resultado foi a aparição, passado um momento, de um rapagão com atitude de campeão de foot-ball, que a senhora das informações
apresentou com visível complacência.
- Este senhor deseja falar com o sr. Filipe. - disse ela - Este é o sr. Cromwell, que lhe dará informações.
- Chamo-me Thorpe -elucidou o advogado.-Tenho aqui uma carta que me foi dirigida por um tal sr. Filipe. Gostaria de o ver.
- Filipe, neste momento, está no depósito das peles, sr. Thorpe. Eu sou o novo detective da casa, tratando-se de qualquer coisa que...
- Não, não, obrigado,- disse vivamente Thorpe.- Queira apenas indicar-me o caminho desse depósito.
Cromwell teve um sorriso que significava: "Tu imaginas que as coisas se passam assim, meu homenzinho..."
- Como é natural, não é permitido a ninguém descer ao depósito das peles.- explicou com um sorriso condescendente,
- Bem. Então queira fazer o favor de mandar chamar aqui esse senhor.- propôs Thorpe.
Cromwell mirou-o com ar inquisitorial: "Talvez se trate de alguma situação para o velho Filipe" sugeriu, receosa, a senhora das informações. O novo detective piscou-lhe
o olho: "Trata-se de algum novo emprego?"
- preguntou. Mas Thorpe perdeu a paciência. "Quero falar com esse senhor, sim ou não?"
- Nunca, antes de meia hora. É preciso esperar que ele acabe a ronda, lá em baixo.
- Muito obrigado. Isso para mim não tem grande importância.- respondeu Thorpe. E, furioso, pôs o chapéu na cabeça e foi-se embora. Parecia, aos seus próprios olhos,
bem ridículo ter tanto trabalho por causa de uma baboseira escrita numa carta. Que lhe importava o que fazia a sua antiga mulher? Se foi vexada, foi muito bem feito.
O pequeno passeio ao sol de abril tinha enchido Thorpe de uma sensação desacostumada de frescura. Podia ser também por ter visto a pequena da vitrina. Para ser franco,
estava impaciente por tornar a vê-la. Mas, quando Steve Thorpe se encontrou na rua, a montra número 7 estava vazia. Ou antes, continha as dezasseis bonecas sorridentes;
pareceu-lhe vazia, porque a rapariga tinha desaparecido. Ruminou um pouco sobre este fenómeno, hesitou, e depois decidiu se, deu a volta ao armazém até à porta do
sul e entrou por esse lado. Era a secção de perfumaria. Um cheiro forte, a sabonete, flutuava no ar e Thorpe encontrava-se muito embaraçado nessa atmosfera de artigos
de beleza feminina. Também ali havia um "escritório de informações"; era uma senhora de meia-idade com um ar prodigiosamente distinto.
- Desculpe-me -pediu Thorpe -mas podia dizer-me para onde foi a senhora da vitrina?
Este "escritório de informações" tinha uma compreensão muito rápida. A senhora pôs-se logo a sorrir:
- Naturalmente essa senhora está no seu repouso do meio-dia,
- respondeu, depois de olhar para o relógio de pulso.
- Será possível revelar-me o seu nome ou onde poderei falar-lhe?
O sorriso do "escritório" desapareceu:
- Lamento, senhor, mas é-nos formalmente proibido dar informações desse género - replicou em tom gelado.
- Que o diabo leve todas as mulheres de quarenta anos!- resmungou Thorpe, saindo do armazém.
Se tivesse sido dado a Steve Thorpe ver Nina nessa manhã, a impressão fugitiva e agradável que sentira, teria provavelmente desaparecido. Mas, como deparou com o
impossível, ficou-lhe no sangue uma impaciência extraordinária, como de uma coisa esperada e que não teve ainda desenlace. Esse ligeiro aborrecimento deu-lhe uma
sensação de vitalidade nas veias, como, havia muito tempo, não sentira. Isso fazia parte desse dia de abril cujo ar, a-pesar-do calor do sol, era atravessado por
uma frescura estimulante que parecia vir de qualquer distante vento de montanha.
Como era meio-dia, a gente moça que saía dos escritórios estava espalhada um pouco por toda a parte, encostada às paredes das casas, fumando o seu cigarro. Thorpe
passou diante deles com ar atento: procurava a rapariga da montra. Ao canto da rua havia um grande drugstore, em que as pessoas estavam sentadas e apertadas, comendo
rapidamente a sua refeição. Subitamente, Thorpe teve um pressentimento, quási a certeza de que a jovem se encontrava ali. Entrou, atirou-se para a primeira cadeira
vaga e encomendou uma sandwich de presunto. Já tinham passado muitos anos sobre a época em que o advogado almoçava num drugstore. Os anos do seu triunfo, os anos
do seu infeliz casamento, os anos em que os cabelos lhe tinham caído e o ventre se lhe tinha arredondado. Entre essa gente moça, ele sentiu-se subitamente novo,
como no tempo da sua estreia,
A rapariga não estava entre o rancho de gentis criaturas que se amontoavam à volta do balcão, a mastigar. O advogado olhou para todas uma a uma, nenhuma lhe agradava
nem metade do que lhe agradara a rapariga da vitrina. Levantou-se, admirado de si próprio, pagou e voltou para o seu gabinete da 5ª avenida.
Uma multidão de clientes esperava-o já e mergulhou-se no trabalho até tarde. Às cinco horas, depois de ter acabado uma consulta delicada, pediu a miss Tackle que
lhe fizesse café. O ruído da cafeteira eléctrica e o perfume ligeiramente amargo que se espalhava no aposento, enchía-o de bem-estar.
- Pode ligar-me para o sr. Crosby, da Central ? preguntou subitamente e ficou surpreendido com isso. Não sabia de onde lhe vinha tal audácia, esse feitio "não te
rales". Que diabo lhe podia importar que miss Tackle, sua subordinada, ouvisse a conversa e desaprovasse as suas intenções?
Entre o escritório do advogado e o armazém houve as intervenções habituais de empregados subalternos até que miss Tackle obteve o escritório do grande director.
"O sr. Crosby está ao telefone" - anunciou ela emfim, com uma voz triunfante, estendendo a Thorpe o auscultador. O advogado lançou-lhe um olhar breve e, modelo de
discrição, ela saiu do aposento. (Ele sabia, que, de toda a forma, ela ouviria do vestíbulo a conversa telefónica ...)
- Bons-dias Crosby, como vai isso ? Aqui, Thorpe.
- Bons-dias, Thorpe. É você?
- Um lindo dia, não é verdade ?
- Sim! Ainda não tive tempo...
- Como vão essas percentagens ? Excepcionalmente, não se tratava do dividendo das
acções, mas do açúcar contido no sangue do sr. Crosby. A pregunta era uma amabilidade e como tal foi tomada.
- Obrigado, apenas 0,5 na última análise.
-Ainda bem. Está, com certeza, disposto a prestar um favor a um amigo...
- Se não custar nada...
- Ora vejamos, trata-se de um certo ... Filipe Filipe ... - disse Thorpe - puxando a confusa carta para si, pois tinha outra vez esquecido o nome. - Soube que este
homem perdeu o lugar por causa de minha mulher. Queria pedir-lhe por ele... emfim ... queria pedir-lhe que o conservasse. Parece que trabalhou durante muito tempo
na sua casa... e custa-me pensar que foi despedido por causa da minha mulher.
Ao telefone, o sr. Crosby calou-se.
- Está ? - fez Thorpe.
- Estou, sim, um instante. - respondeu Crosby - Estou a pensar. Lamento muito, Thorpe, mas não há nada a fazer. Creia-me, o facto não tem nenhuma ligação com madame
Thorpe. O indivíduo em questão é um bêbedo inveterado, é velho, em suma, não está já à altura do seu posto.
- Não há então nada a fazer, com certeza? - insistiu Thorpe.
- Infelizmente, não!-foi a resposta.
- Bem. Em todo o caso fiz o possível por ser agradável ao homem. Vai esta noite ao Club?
- Não me parece, sinto-me bastante abatido.
- É a primavera.- disse Thorpe, em cujas artérias ardia numa nova excitação - Escute Crosby... queria ainda qualquer coisa de si... muito fácil de fazer.
- Sim? - esperou Crosby de mau humor. A exuberância do advogado contrariava-o.
- Você tem uma rapariga na vitrina.. por causa de meias ou outra coisa parecida ... Gostaria de saber o nome dela, a morada e... Onde poderei informar-me?
Crosby teve um riso breve.
- Você precisa de uma caixeira para meias? Thorpe respondeu:
- Sim... pouco mais ou menos.
- Então, com muito prazer. O meu secretário vai dar-lhe as informações.
- Muito obrigado, Crosby. Adeus, até ao Club.
E Thorpe pôs-se a beber o café. Miss Tackle apareceu e tentou fingir que não tinha ouvido nada. Dez minutos mais tarde, o secretário de Crosby tocava. Secamente
e em tom protocolar, disse que a senhora a respeito de quem o sr. Thorpe tinha pedido informações, se chamava Nina Bengtson, de Houston, Texas, de 19 anos de idade,
empregada na secção de loiças e vidros, havia seis meses.
- Muito obrigado.
- Ora essa, às suas ordens.
Thorpe leu rapidamente um pacote de cartas que miss Tackle lhe entregara, assinou, pegou no chapéu, no sobretudo e saiu do gabinete.
- bom domingo, miss Tackle. - disse ele.
- Obrigada, igualmente. - respondeu miss Tackle e ele viu nas suas palavras uma pontinha de mordacidade impossível de dissimular.
Sentiu desejo de ir mais uma vez a pé até à Central, mas o seu motorista esperava-o diante de casa com o carro, e o relógio luminoso marcava seis horas menos cinco.
Subiu, deu a direcção da Central e saiu do carro no anoitecer cheio de gente e de luzes. Estavam já a fechar as portas. Assim que chegou diante da vitrina, um rapaz
extremamente loiro estava ocupado a fazer descer as cortinas de tom creme, que escondiam a montra dos basbaques da rua.
- Para casa, Tony - disse Thorpe secamente, assim que subiu para o automóvel.
Tinha dois cães bassets em casa, Max e Moritz. Podia, ao domingo, jogar o golf ou visitar o seu amigo dr. Back, em Rye. Agarrava-se a quanto o desprendesse da recordação
de sua mulher. E a rapariga da vitrina parecia ter essa qualidade, em larga escala.
Quando Thorpe, no dia seguinte, passou diante do armazém, à hora do lanche, não conseguiu encontrar a montra e foram-lhe precisos alguns minutos para compreender
que a decoração tinha sido mudada. Onde havia estado Nina Bengtson, exibiam-se agora móveis de jardim, pintados em cores vivas e aureoladas de promessas de verão.
Na terça e quarta-feira, Thorpe tentou apagar o incidente da memória. "Porque hei-de renunciar?"- preguntava a si próprio na quinta de manhã, rolando para o escritório.
No seu foro intimo germinava o másculo desejo de fazer a sua mulher, o que ela lhe tinha feito a ele. Fora sempre fiel a Lúcia principalmente por falta de tempo
e de interesse. Parecia-lhe agora que esse pequeno deslize, cometido mesmo depois, podia torná-lo mais atraente aos olhos dela.
Pode parecer espantoso que madame Thorpe que, no salão de costura, causava tão má impressão, fosse capaz de despedaçar o coração de um bom homem como o marido. Mas
os indivíduos têm tantas facetas como os olhos dos insectos e cada um só nota no outro as poucas facetas que estão voltadas para ele. Thorpe conhecia Lúcia; sabia
o que ela fora e no que se tornara. Via-a outra vez terna e tímida. A rapariga, com quem ele tinha casado, a jovem mulher que, por três vezes, tivera um parto prematuro
até que renunciara ao desejo de ter um filho, a boa camarada do seu difícil princípio de vida. A mudança tinha começado mais tarde, com o dinheiro que ele trazia
abundantemente para casa. Lembrava-se que lhe pedira, frequentes vezes, para se ocupar mais dela. "Mais tarde, mais tarde... ainda temos tempo" - respondera ele.
"A vida passa e nós não a gozamos" suspirava ela, e ele considerava isso uma injustiça do seu temperamento nervoso. Deu-lhe peles, jóias, um anel de esmeralda quando
fez quarenta anos. Em vez de se alegrar, ela tinha chorado. "Tu imaginas que a vida só é feita de segurança e de uma eterna partida de bridge,
dissera. Nessa época, aquilo havia-o surpreendido e encolerizado. Só agora começava a compreender. Um triste ressaibo era tudo quanto lhe restava do seu casamento
perdido.
- "Para que me hei-de preocupar com isso?" -repetia a si próprio. - Porque não arranjar a primeira distracção, que me aparece no caminho?"
Ao meio-dia desembaraçou-se da solicitude de miss Tackle e andou os três quarteirões que o separavam da Central. Hoje, o sol não brilhava, mas o ar estava pesado
sob um teto de nuvens que cobria o céu. Thorpe tomou o elevador até ao sexto andar e passeou o olhar, aparentemente distraído, pela secção de vidros e porcelanas.
Uma menina de aspecto rebarbativo ofereceu-se para o servir, mas não era isso que ele queria.
-Miss Bengtson não está? -preguntou-lhe sem rodeios. O chefe da secção aproximou-se e chamou em voz baixa: "Nina, Nina, um cliente para si-". A estas palavras, Thorpe
não pôde defender-se de uma lembrança cómica que se relacionava com uma casa célebre de Nova Orleans. "Nina, um comprador para si". De resto, era verdade; mas assim
que Nina apareceu, ele sentiu-se acanhado e não sabia bem o que dizer. "Um amigo aconselhou-me que me dirigisse a si; trata-se de um serviço de licores... vidro
sueco.."-balbuciou. "Vidro sueco?" - repetiu Nina reflectindo, emquanto três rugas lhe cruzavam a fronte... Ela tinha rosto de criança e corpo de mulher. Possuía
uma cor fresca e uma pele aveludada: irradiava mocidade e saúde. Um calor envolveu o coração de Thorpe, quando, atrás dela, se dirigiu para o lado dos copos de licor.
Emquanto o servia, ele tentou meter conversa, mas não foi longe. Não tinha prática e ela parecia séria e atenta ao trabalho. Enternecer um júri de coração duro,
era simples. Mas encontrar um princípio de conversa para uma caixeirinha de um grande armazém !.. Para lhe dar prazer comprou um serviço caro, de doze copos,
desejando, em silêncio, que ela tivesse uma percentagem.
- Está muito bem para esta secção -disse ele, emquanto Nina fazia tilintar com o dedo cada copo para mostrar que o cristal não estava rachado.
- Porquê ? - preguntou.
- Se lhe batessem assim, também, com o dedo, teria sonoridade, igualmente clara e fina. - disse Thorpe - Ela corou. "Não. Não diga isso..." -balbuciou com um sorriso
espantado. Não podia, no entanto, explicar à clientela, que só seu marido tinha o direito de lhe fazer reparos semelhantes. Thorpe passeou ainda um pouco, vendo
as jarras de flores e as fruteiras, achou tudo muito bem, prometeu voltar e por fim despediu-se descobrindo-se, o que mostrou ao mesmo tempo a Nina as suas boas
maneiras e a sua calvície.
Nina pensou em falar a Erik nesse amável cliente, mas não teve tempo. Esperou, como de costume, na escada 5, mas Erik não apareceu. O armazém esvaziou-se, ela ouviu
o andar dos empregados que saíam e o incessante pong pong pong do relógio do ponto, no pátio velho. Depois, tudo ficou silencioso, os elevadores deixaram de funcionar,
as luzes apagaram-se. Por fim, ouviram-se passos lá em cima, mas era só Pusch que lhe trazia uma carta. Curioso, ficou de pé junto dela emquanto a viu ler.
Gentil pardalinho,- escrevia Erick - estou condenado numa conferência interminável, peço-te que não me esperes, porque o caso não tem esperança. Vai ao cinema ou
ocupa a tua noite de qualquer forma distraída. Não te inquietes com o meu jantar, pois vou ao Rivoldi". Trezentos beijos da reserva.
Nas margens da carta, Erik tinha-se desenhado a chorar, apresentando um coração partido e assassinando o velho Sprague com um martelo. Embora ficasse aborrecida,
Nina não pôde deixar de rir.
-Não tem resposta, Pusch-disse. E depois de
dar um piparote nos caracóis inverosímeis do rapaz, foi-se embora.
- Meu Deus!-murmurou Nina, chegando à porta dos empregados e querendo sair para a rua.
- Sim, parece que chove, não é verdade minha senhora ? - disse o guarda Joé aproximando-se dela. Dentro do armazém dá-se pouco pelo ar e pelo tempo. Por uma ou duas
vezes Nina tinha notado uma crepitação semelhante a chuva, mas nunca esperara uma torrente de água comparada à que caía do céu. A rua estava deserta, largos regatos
corriam para os escoadoiros.
Gotas enormes estalavam no asfalto e uniam-se em milhares de pequenas fontes. Nina não tinha casaco nem guarda-chuva e olhava para o seu vestido bastante elegante.
Os quatro quarteirões que a separavam da estação do metro significavam catástrofe e ruína. Esperou um instante, viu passar diante de si vários autobus absolutamente
cheios, e, como aquilo parecesse não querer acabar, tomou uma decisão: "vou tomar um táxi até ao metro" pensou, e fez um sinal. Mas os motoristas dos táxis iam arrogantes
e irónicos, como sempre que chove. Continuavam o seu caminho, sem parar, limitando-se a salpicarem, com a água cinzenta das poças, as pernas de Nina. No próprio
momento em que ela ia a renunciar, surgiu um carro particular que parou mesmo diante da saída dos empregados... O senhor que ia no interior baixou o vidro e disse:
- Não poderei levá-la, menina? Embora esse convite fosse a coisa mais inocente e mais corrente em New-York, Nina respondeu como sua mãe lhe tinha ensinado em Houston,
Texas. - Muito obrigado, senhor, espero o autobus.
- Mas vai molhar-se, miss Bengtson! - teimou o senhor do automóvel.
E Nina reconheceu então o seu amável cliente da
tarde. Ele passou a cabeça calva pela portinhola e sorriu, com ar animador:
- Somos já velhos conhecidos ...
- Não sei... - respondeu Nina, hesitante.
Fazia frio, o lado direito do vestido estava já encharcado; o caminho até ao metro, debaixo de chuva, parecia de uma dificuldade insuperável. O que a levou a aceitar
foi o facto do senhor, deixando o abrigo do seu carro, sair de cabeça descoberta para a tempestade, abrindo a porta para ela entrar. "Vamos, suba. Não está tempo
para hesitações." - disse ele. E Nina subiu.
Lá dentro sentiu calor. O que primeiro caiu debaixo dos olhos de Nina foi um fresco ramo de junquilhos numa jarra; o aroma envolveu-a com a sua doçura cativante
e pesada.
- Onde quere que a leve ? - preguntou o sr. Thorpe.
- À primeira estação de metro, - disse Nina.
- Onde mora ? - informou-se Thorpe. Nina deu-lhe a sua direcção.
- Mas então é muito simples, eu passo em frente da sua casa e deixo-a lá.
O motorista guiou habilmente através das filas de automóveis; a chuva batia, impaciente, no teto do carro, os junquilhos cheiravam bem.
- É muito gentil da sua parte - agradeceu Nina. E Thorpe respondeu:
- Mas absolutamente nada... nada ...
Agora que tinha a rapariga tão perto de si, não sabia como poderia avançar mais ainda. Ela parecia séria, sentia que tinha de agir com prudência. - "Está molhada ? - preguntou, tateando o ombro do casaco de Nina. Ela encolheu-se imediatamente para um canto do carro. - "Não, obrigada" - disse. Até ao Central Park foram calados;
ao princípio o silêncio era opressor.
- "Onde pôs os lindos copos que comprou?" - preguntou a rapariga. Thorpe tinha deixado o serviço de licor no seu gabinete de trabalho. - "No escritório. - disse
-Sou advogado. Chamo-me Steve Thorpe . Nina esboçou um pequeno cumprimento. O auto avançava pela rua 62ª para a Riverside Drive. Agora chovia com mais força e, regularmente,
o asfalto parecia um mar cheio de luzes. - "Quere realmente ir para casa?" - preguntou Thorpe. - "Para onde hei-de ir ?" - exclamou Nina, surpreendida.
- Mas há mil coisas agradáveis a fazer numa tarde de chuva. Bar, cinema, concerto. A menos que a esperem ?
Emquanto Thorpe fazia esta pregunta, Nina entristeceu um pouco: era a quarta noite passada sem Erik.
- Não, ninguém me espera. - disse rapidamente.
- Temos então a mesma sorte. - replicou Thorpe. Olhou-o de revés. Ele pareceu-lhe muito velho, com a cabeça calva e uma ruga de preocupação ao canto da boca.
- Numa cidade tão grande há muita gente só. disse ela, sem querer.
Thorpe concordou com calor e no meio da conversa, obliquavam para a avenida de Fieldston, semeada de árvores. ?
- Como vê, levo-a conscienciosamente para casa. - , disse Thorpe - Mas é uma vergonha! Vai ficar lá sozinha e eu ficarei mortalmente melancólico. Porque não vamos
jantar juntos e passar a noite num cinema? Que lhe parece? Gosta do Gary Cooper?
Nina, tal como milhares das suas irmãs americanas, era louca por Gary Cooper e tanto mais que ela achava o Erik parecido com Gary. Erik também era alto magro e tinha
as faces vincadas e um ar desdenhoso quando julgava que ninguém reparava nele.
-Gary Cooper? Mas é o meu sonho! -disse ingenuamente.
Thorpe compreendeu mal a expressão sonhadora e abandonada do seu rosto que espiava à luz de um candeeiro emquanto, num cruzamento, esperavam que se
restabelecesse o trânsito. Aproximou-se dela e procurou-lhe a mão.
- Está entendido que vamos passear juntos? - preguntou, entusiasmado. Nina desprendeu-se, pôs-se logo a rir e repeliu-o sem o melindrar, mas muito claramente.
- Que imagina? - disse - Eu sou casada.
Thorpe não estava em disposição de se deter por semelhante dificuldade.
- Isso não tem a menor importância. - replicou Cada um de nós é mais ou menos casado, emquanto isso dura...
Sem querer, o seu tom tornou-se amargo e Nina reparou.
- Não o queria magoar. Tem sido tão amável comigo... - disse ela, preguntando a si própria se devia ou não descer.
- Somos ambos casados e estamos ambos sozinhos esta noite. E eu não acho isso bem.
Estas palavras atingiram o ponto vulnerável do coração de Nina, o ponto que lhe doía e onde reinava a ansiedade.
- Meu marido trabalha de noite. - disse vivamente.
Thorpe calou-se, mas com a expressão duma pessoa que sabe mais do que diz. Subitamente, sem ele mesmo saber como, encontrou-se a falar:
- Criança ... Criança... è muito nova, imagina ainda que o casamento é qualquer coisa de sagrado, de importante... toda a maçada do catecismo. Olhe à sua volta:
qual é a união que se possa garantir que não será um dia anulada ou quebrada -ou que não se transforme num verdadeiro inferno? O casamento! Uma bela instituição
que nós arrastamos, na nossa civilização. Poderia dizer-lhe como certos casamentos acabam pouco a pouco, a-pesar-da boa vontade dos cônjuges. Eu também já fui um
jovem casado, minha mulher era fresca e pequenina como a senhora é agora. Podia contar-lhe o que aconteceu depois... ao casamento e à mulher...
Nina ouvia sem dizer palavra. Aquele homem causava-lhe pena e ela acabara de o repelir ! Continuou a falar de si, da sua casa vazia, dos seus dois cães. Não podia
dormir, dizia, e os fins de semana eram tão longos!... Como era doloroso estar só! Por isso é que procurava... sem más intenções, um pouco de companhia.
Steve Thorpe podia fazer chorar os júris e saber encontrar, para os piores adversários, terrenos de entendimento, mas, como sedutor de mulheres, não tinha a menor
experiência. Outro qualquer ocultaria a Nina que era casado e ter-lhe-ia oferecido um anel de brilhantes, uma viagem à Flórida, e tentaria fazê-la beber. Foi justamente
porque ele não o fez, porque tudo quanto dizia, tinha um tom de verdade e despertava compaixão, que Nina foi tão confiante. Haviam já passado a casa de Bradley e
Nina não mandara parar. Parecia-lhe indelicado, impossível, interromper as recordações desse homem solitário e dizer-lhe: "Muito obrigada, cheguei a minha casa."
A chuva cessou e os junquilhos pareciam adormecidos. Assim que Thorpe deixou de falar, tirou o lenço e limpou a testa. O advogado mostrava-se infeliz e fatigado.
Nina olhava-o: "Pois bem, iremos jantar juntos e depois passaremos a noite no cinema. ouviu-se ela dizer subitamente. Surpreendeu-se, mas sentiu um sentimento ardente
ao pensar que alguém pedia o seu socorro e, na verdade, uma expressão de incomparável alegria inundou o rosto do seu companheiro.
Fez o carro dar meia volta e voltar para trás. Comeram num restaurante chic, ao pé de Grants Grab, e depois foram a um cinema de Broadway onde puderam ver um filme
de Gary Cooper. Thorpe portou-se impecavelmente e esteve satisfeito toda a noite. Estar feliz é uma coisa, e a paz sentida, depois de uma dor de dentes, é outra.
Parecia a Thorpe que o tormento ocasionado pelo casamento falhado, tinha cessado definitivamente ; sentia-se ainda um pouco fatigado, mas leve e livre.
Quando, mais tarde, convidou Nina para um bar, ela agradeceu delicadamente. Rolaram então, de novo ao longo da Riverside Drive, para Fieldston.
Seria uma ofensa para a sua mão se eu a agarrasse ?
- preguntou ele, sorrindo - E Nina sorriu também, respondeu que não e assim foram em silêncio. Nina pensava em Erik e em Gary Cooper; ele, em nada, nem sequer em
Lúcia. Sentia apenas o seu próprio pulso bater docemente contra a luva de Nina.
Quando ela chegou a casa, esperava-a uma surpresa. Erik tinha voltado. Estava no quarto, por baixo de um dos macacos, e parecia zangado.
- Já cá estás ? - preguntou ela, tolamente.
- Tenho vagamente essa impressão. - respondeu ele sem levantar os olhos. Acabava uma paciência complicada.
- Pensei que não voltasses antes da meia-noite... disse Nina, sem se atrever a beijá-lo.
- Matei o sr. Sprague, escondi o seu cadáver no subterrâneo, voltei para casa mais cedo e não te encontrei !
Via agora que ele não estava zangado.
- Onde estiveste, mulher ? - preguntou no tom das comédias francesas.
- Fui ao cinema, tinhas-me escrito dizendo que fosse ao cinema...
- Esposa obediente. - disse, aproximando-se dela E voltaste de táxi ? Ouvi parar um carro.
- Trouxeram-me de automóvel, por causa da chuva. uma senhora... - disse Nina.
A primeira mentira, que dizia depois do seu casamento, saiu sem esforço. Mal deu por que tinha mentido. Uma hora mais tarde, esquecera Thorpe, e o advogado não lhe
voltou a acudir ao espírito, senão no dia seguinte à chegada à Central, quando Joé lhe entregou um ramo de junquilhos e um cartão: "Obrigado pelo bom serão e até
breve."
Nina estava terrivelmente embaraçada. Erik encontrava-se a seu lado, cheirava os junquilhos olhando para o cartão e para a mulher.
- Foi alguém que me viu na vitrina.- balbuciou.
- Tem sem dúvida uma alma terna. - respondeu Erik, que parecia divertir-se prodigiosamente.
Depois não falaram mais no incidente.
TODOS os anos no mês de Maio, o Central-Club alugava um desses barcos especialmente apetrechados para reuniões amigáveis, que estão ancorados em East-River. E, por
uma noite de lua cheia e de bom tempo, organizavam um baile, emquanto o barco, lentamente, lentamente, subia o rio; primeiro ao longo dos arranha?céus de Manhattan
até ao Schiffs canal, depois voltando por Hudson até por detrás da ponte Jorge Washington, entrando por Downtown.
Muitas semanas antes, o armazém estava em efervescência, mas essa noite não era uma coisa sem importância na vida dos empregados. A lua cheia, o mês de Maio e o
bom tempo! Música e dança! Flirts e namoricos ! E a esperança de qualquer coisa inesperada e maravilhosa, sempre escondida no fundo do coração da gente modesta.
O aprendiz Pusch, por exemplo, mandou para uma certa morada 35 cêntimos e um boletim que cortou de uma revista. Em troca, recebeu uma brochura de cultura física
que prometia torná-lo em seis semanas, um verdadeiro Golias. Além disso, usou um creme garantido, com promessa de reembolso, se as sardas não desaparecessem, como
por encanto.
Madame Chalon mandou pintar as unhas dos pés vermelho escuro, Deus sabe com que esperanças. O sr. Berg tencionava festejar no barco o seu noivado
com uma senhora de Brocklyn, filha dum dentista judeu. Infelizmente, o noivado desmanchou-se antes da festa e Berg teve de se portar impecavelmente com uma caixeira
da secção de perfumaria. Efectivamente, ele tinha por princípio nunca se abalançar a tais coisas na sua própria secção. Toughy, o novo chefe detective, foi assediado
com quatro semanas de antecedência, por convites para danças. Prometeu a doze damas diferentes os seus favores para o serão e pediu a Filipe para o substituir nessa
noite, na Central. Quanto ao sr. Crosby, procurava, lá no alto da sua torre, um pretexto para não tomar parte na festa. Esse baile parecia-lhe uma demonstração demasiadamente
democrática, mas os empregados contavam absolutamente com a presença do grande Director da Central. Erik aceitou os setenta dólares que Nina lhe deu de presente
no dia dos seus anos, mas não dispôs de nada para a compra do automóvel. Pagou algumas dívidas e tirou o smoking do Montepio onde estava havia muito, acumulando
juros. Nina teve uma certa decepção, pois sabia quanto ele desejava um carrinho, mas por outro lado ficou orgulhosa que seu marido não quisesse dever nada a ninguém
e que possuísse um smoking. Erik estivera três anos desempregado, antes de consentir em renunciar ao seu sonho de ser pintor, e vender-se como decorador da Central.
Ganhava apenas dezasseis dólares por semana, pois consideravam-no como um principiante, um decorador sem experiência. Por isso é que tinha dívidas. Fez várias proezas
com os seus setenta dólares, pois ficou-lhe dinheiro ainda para comprar um vestido para Nina que ele mesmo escolheu: azul-claro, com um bordado, a prata, no cinto.
Nina sentia-se orgulhosa, mas não completamente feliz. Erik tinha mudado um pouco nas últimas semanas, andava nervoso, distraído, fazia muitos desenhos em papéis
que logo rasgava e deitava fora, encolerizado.
- Tua mãe não vem, em breve, a New-York? - preguntou Nina.
- Que queres tu a minha mãe ?
- Oh! Nada ... nada ... era cá uma idea.
Na verdade, gostaria de pedir conselho à enérgica e original condessa, sobre a forma de tratar o seu genial filho, principalmente para o fazer feliz.
Pouco antes da grande noite, aconteceu Steve Thorpe convidar Nina para um cocktail em sua casa, oficialmente, com o marido. O seu início de relações com ela não
tinha ido longe, mas também não se quebrara. Assim que se sentia infeliz e os seus espectros particulares vinham visitá-lo", ia até à Central Warehouse e comprava
coisas inúteis na secção de louças e vidros. Uma colecção de copos e jarras de todos os feitios acumulava-se já no seu escritório e miss Drivot não deixava de fazer
reparos irónicos a respeito dos clientes assíduos de Nina. De vez em quando, Thorpe fazia a Nina uma amabilidade: dois bilhetes para um concerto, (a que ela ia com
Erik, sem nada compreender) duas flores para pôr ao peito, um livro. Também a esperava muitas vezes no seu carro diante da saída dos empregados. Se ela saía com
Erik, levava amavelmente a mão ao chapéu e ia-se embora. Se saía só, então conduzia-a a casa; uma vez, mesmo, Nina acompanhou-o até White Plains. Tinha visto a casa
por fora, brincado com os cães bassets, que correram do fundo do jardim, mas recusou-se a entrar. Uma noite resolveu ser franca e confessou a Erik toda a história
inocente e oculta. Ele riu com gosto. "Nina, Nina, Lille Spurv, és uma grande màzinha". - disse "Passeias com senhores ricos, emquanto o teu marido trabalha. Uma
planta gangrenada da grande cidade, eis o que tu és."
Nina ficou desiludida. Tinha esperado outra coisa; ciúme, lágrimas e perdão, para terminar. Pelo contrário, ele tinha-lhe chamado Lille Spurv... O meigo nome fora
quási esquecido depois do casamento. Foi assim que Nina apresentou ao marido o advogado, uma tarde,
à saída, e que os dois homens trocaram algumas palavras amáveis.
Durante três dias, New-York ardera em calor, embora Maio mal tivesse começado, e fosse já de noite que a Central fechasse. Thorpe apertou a mão de Erik e convidou-os
para um cocktail em sua casa, na quarta-feira seguinte. Erik aceitou com entusiasmo. - "É um homem encantador. - disse ele a Nina - Deitaste a mão a alguém de primeira
ordem." Nina era jovem e vinha de Houston, Texas. Não compreendia de forma alguma esse laissez-faire, laissez aller, do conde Bengtson que vinha da maturidade, do
cansaço de um sangue velho.
Na quarta-feira, Erik não pôde libertar-se. A direcção tinha dado ordem para alterar completamente a secção de arte. Queriam fazer liquidação, e o sr. Sprague e
Erik tinham por missão dispor as coisas de uma Forma agradável e atraente nas montras de baixo: os irremediáveis bibelots, pinturas a óleo e estatuetas de bronze.
O velho quási chorou, assim que Erik disse que tinha um convite; Sprague portou-se como Cristo no jardim das Oliveiras: "Não poderá velar uma noite comigo ?"
- Ora que maçada! - disse, no vestiário das senhoras, Nina a Liliana, que se preparava - Erik não pode vir e Steve Thorpe está à nossa espera.
- Quem é que te espera ? - preguntou Liliana, deixando o seu bâton.
- O velhote, aquele que tem uma paixoneta por mim. Já te contei.
- Como lhe chamaste?
- Thorpe. Steve Thorpe.
- É o marido da nossa cliente ?
- Não sei. A mulher pediu o divórcio.
- Gostava de o conhecer... - declarou Liliana.
- Imediatamente, se quiseres. - respondeu Nina.
Cinco minutos mais tarde, rolavam as duas no automóvel de Thorpe para White Plains. Liliana ia alegre e faladora. Nina continuava calma. Thorpe sentia-se pouco à
vontade entre as duas raparigas. O carro depressa se impregnou do perfume de Liliana.
É difícil dizer porque Liliana mostrava tanto empenho em conhecer Thorpe. Sem dúvida tinha, sem dar por isso, o desejo de conhecer o homem que comprara o anel de
esmeralda, o anel que ela escondia em casa, nos colchões. Era um instinto de mulher, um instinto de caça, um instinto de prostituta. O homem que dava anéis a madame
Thorpe e fazia a corte a uma mulherzita como Nina, devia ser uma presa fácil. O seu melindre de amor-próprio não havia desaparecido, esse de Nina ser exposta na
vitrina e ela não! Que Nina se tivesse casado e ela não! Que Nina fosse cortejada por um homem rico e ela não! Era demais.
Ia roubar a Nina esse homem, que lhe havia de dar os anéis que ela quisesse e quando quisesse. Emquanto subiam o Grand Concourse, ela julgava o homem: a sua idade,
a sua calvície, o seu ventre. Era preciso que fosse rico para compensar o que lhe faltava. Avaliou a casa, os criados, o whisky. Liliana tinha crescido nos bairros
pobres, mas nascera com o instinto do luxo. "À nossa boa amizade!" -disse, com intenção, levantando o copo ao mesmo tempo que Thorpe. Ela chamava-lhe Steve, simplesmente,
embora apenas o conhecesse havia meia hora. Deu volta aos botões do rádio e fez alguns passos ondulosos de dança, ao ritmo da música. Exibia assim a sua coleante
linha de anos, como no armazém.
Durante esse tempo, Nina brincava com Max e iMoritz. Thorpe foi ter com ela, ao seu canto: "Quem é esta rapariga?" - preguntou.
- Liliana? A mais linda rapariga da Central. - disse logo Nina.
- Não gosto dela.
Às nove horas, Nina começou a bocejar e Thorpe propôs imediatamente levar as duas a casa. Desta vez, foi ele mesmo que guiou, tendo mandado Tony embora. Era um motorista
exageradamente prudente e lento. Durante todo o tempo, Liliana reflectiu sobre o que seria de melhor política: continuar só com ele ou descer com Nina. Ela não queria
que ele soubesse que morava na 122ª rua do bairro Leste. Tendo notado que a expressão do advogado, de minuto a minuto se mostrava mais fatigada, preferiu descer.
"Posso dormir em qualquer parte em tua casa?" - preguntou à amiga.
- Certamente, - respondeu Nina, contra vontade. -Boas-noites e obrigado pela vossa visita - agradeceu Thorpe, retendo um segundo a mão de Nina, quando ela descia.
No derradeiro momento, Liliana teve uma idea genial.
- Porque não convidamos Steve para o nosso baile? Seria admirável! - disse.
- Não sei se o sr. Thorpe gosta dessas coisas... respondeu Nina, hesitante. O advogado pediu pormenores do baile do Central-Club e confessou, com entusiasmo, que
morria de desejos de ir. Pobre Steve Thorpe! Aproveitava todas as ocasiões que o afastassem de sua mulher e o aproximassem de Nina.
- Combinado. - disse Liliana - Será o meu par e faremos ciúme a todas. "Fazer ciúme . Era bem uma idea de Liliana.
Assim que entraram em casa cheirava a naftalina. A sr.a Bradley ocupava-se em modernizar um vestido de seda preta, de noite, que lhe restava de melhores tempos.
Skimpy, excitada, estava sentada ao pé dela, a costurar. Nina tirou o seu vestido azul prateado do armário para o mostrar a Liliana, assim como o smoking de Erik,
que saíra do Montepio, e no qual ela tinha certo orgulho.
No dia seguinte, Erik trabalhou na cave, onde se encontravam os manequins da exposição. Estavam a oito dias do baile. O decorador colocara cinco bonecas na ordem
em que mais tarde seriam postas na montra e arranjava-lhes a atitude, abandonando o cigarro. Liliana entrou, seguida de Pusch que trazia um carregamento de vestidos
de verão.
Já não precisamos de si, Pusch - disse Liliana, logo que ele pousou o fardo.
No depósito de manequins era sempre noite; as lâmpadas eléctricas estavam acesas, o ar descia por tubos e havia o mesmo cheiro que no metro. "Trago os vestidos para
a montra 11" - disse Liliana colocando-se diante de Erik. "Grande honra".-disse ele-E, pegando num dos vestidos, sacudiu-o diante de si. As bonecas estavam à sua
volta e sorriam. "Queria falar-lhe a sós". - murmurou Liliana - Erik ergueu vivamente os olhos. Havia qualquer coisa na atmosfera - entre ele e Liliana - uma espécie
de inconfessada tensão. Ele pousou o vestido e sentou-se na borda da mesa.
- Onde é que se vai quando se quere empenhar qualquer coisa?-preguntou Liliana.
- Quere dizer que nunca pôs nada no prego ? exclamou ele.
- Não. É o meu primeiro ensaio. Mas gostaria de ter um lindo vestido para o baile.
- Eu costumo ir sempre à 6.a avenida, mas ouvi dizer que se encontra melhor na 2.a avenida. - disse Erik - Se quiser, passamos por lá depois de fecharmos. As casas
de penhores estão abertas até às sete horas.
- Obrigada. - agradeceu Liliana - Pediu mais alguns nomes e moradas e foi-se embora.
- Inscrevo-me para a primeira dança. - gritou Erik, atrás dela - Depois, voltou aos manequins. Às vezes estava tão farto de armar montras que tinha vontade de gritar.
No dia seguinte, à tarde, Liliana, hesitante, tomou o
caminho da 6.a avenida. Três vezes passou de largo sem ousar transpor o limiar da loja. Tinha a direcção de memória. Corria um perigo e sabia-o. Interiormente tremia,
mas era uma particularidade do carácter de Liliana: excitava-a o perigo.
Aspirou o ar quando entrou - havia ali o odor dos fatos muito usados. Objectos de todas as espécies jaziam um pouco por toda a parte - tudo parecia impreciso e apagado.
O homem pôs uma lente na órbita e examinou o anel. Que calma! Podia ouvir se o tique-taque do relógio.
- Quanto quere ? - preguntou o prestamista.
O coração de Liliana batia com tanta força, que ela podia ouvi-lo.
- Ignoro o valor do anel, foi um presente. O homem não desviou o olhar da pedra.
- Posso dar-lhe seiscentos dólares. - disse ele, de pois de um longo silêncio. A soma, importante e inesperada, caiu, grande e pesada, sobre Liliana.
- Sim ? - murmurou.
- É uma bela esmeralda. - afirmou o homem. Durante um instante, Liliana esperou que polícias
surgissem de cantos imprecisos da casa, para a prenderem.
- Só me quero separar dele por pouco tempo - disse, sem fôlego.
O prestamista tirou a lente e olhou-a.
- Precisamos dum documento. - esclareceu - É da lei... Seja qual for... passaporte ou bilhete de identidade ...
Liliana tinha um: todos os empregados da Central possuíam um cartão azul num sobrescrito de celofane. Parecia-lhe sentir o cartão como qualquer coisa de quente,
no seu saco, que ardia através do coiro. "Não tenho... não se pode dispensar?"
-Lamento, mas é impossível, - disse o homem e
Liliana iliana sorriu: os artifícios aprendidos na escola de manequins vieram em sua ajuda.
-Corro a casa a buscar o meu cartão.-disse-Daqui a dez minutos estou de volta.
Se vai de-pressa, fecharei a loja um pouco mais tarde - disse o prestamista, estendendo-lhe o anel. Bem; tinha outra vez o anel, não havia a menor suspeita, nenhum
polícia seguia Liliana, emquanto ela corria à próxima estação de eléctricos. Nesse instante, quási odiou o anel.
Era como uma obsessão, precisava desembaraçar-se daquela jóia que não lhe servia de nada, precisava comprar vestidos novos, precisava de ser a mais linda rapariga
do baile. Era uma ocasião maravilhosa: iriam vê-la, emfim, os dirigentes da Central que sairiam da sua torre de marfim e vagueariam entre os mortais. Liliana não
dormia: tinha as faces afogueadas, o rosto emmagrecido.
Três dias antes do baile encontrou-se na 2.a avenida; subiu a rua, lançou um olhar para a casa de penhores e por fim entrou resolutamente.
Aí era uma mulher que tratava do negócio, uma velha muito pintada. Outra vez a lente, o cheiro sujo a vestidos usados, a desordem, a tensão silenciosa.
Dois homens estavam encostados ao balcão, e olharam para Liliana com um olhar investigador, como se fosse um objecto.
- Pois bem, - disse por fim a mulher - dou trezentos, por ser a si, Como entrou em posse deste anel ?
- Um presente. - disse Liliana.
- Deve saber da coisa, para o seu amigo lhe dar presentes destes. - notou a mulher - A mim não mo davam.
Liliana forçou-se a sorrir.
-Posso acompanhá-la, menina?-preguntou um dos homens - Era alto e tinha os lábios inchados.
- Obrigado, tomo um táxi. - disse Liliana - Entretanto, a mulher havia lido um papel.
- O bilhete de identidade? -disse ela em tom indiferente.
- Diabo, nem pensei nisso! Não o trago comigo disse Liliana.
- Nem nada ? Veja na sua malinha. - aconselhou a mulher - Liliana pôs a malinha em cima da mesa e esvaziou-a.
- Tem aqui uma carta. - disse a prestamista - Os dois homens aproximaram-se e olharam.
- Sim, - disse Liliana - e esta carta basta ?
- Nós não somos exigentes; é apenas uma formalidade.-respondeu a mulher -Leu a direcção e copiou-a num livro: Madame Adriana Chalon, 367, West 72.a Street, City
Apartments.-Francesa? -preguntou a prestamista. Era um pouco estrábica, Liliana só então deu por isso.
- De origem francesa; meu pai veio do Canadá elucidou Liliana.
Ela tinha tirado do cesto dos papéis um envelope enviado à directora detestada. Assim que todas as formalidades foram preenchidas, e que meteu na malinha os trezentos
dólares, sentiu o mal que lhe ia no estômago.
- Voltarei a buscar o anel - disse fracamente.
- Dez por cento de juros pagáveis todos os meses - explicou a mulher.
- Um cigarro ? - ofereceu um dos homens. Era alto, novo e seria belo se a boca fosse menos vulgar.
- Obrigada.-respondeu Liliana-Embora tivesse uma frenética necessidade de fumar, rejeitou a oferta. Ding-ding-ding fez o relógio da loja emquanto ela saía.
- Bela rapariga! - exclamou o homem.
- Podíamos, justamente, precisar dela - disse o outro mais baixo que parecia um grego ou um arménio, negociante de frutas.
-Como pode uma mulher destas ter semelhante esmeralda ? - preguntou a prestamista, tornando a pegar na lente.
- Não está na lista ? - interrogou o rapaz bonito.
A mulher tornou a ler as folhas impressas e já meio apagadas: era a circular da polícia assinalando os objectos roubados com ordem de não os adquirirem.
- Não. - respondeu a mulher, terminando.
Donde lhe pode ter vindo o anel ? - repetiu o mais baixo dos homens.
O outro pôs-se a assobiar uma melodia sentimental.
- Veremos - disse subitamente. E, tirando as mãos dos bolsos, seguiu Liliana.
A lua brilhava, o tempo estava belo e dançava-se no tombadilho. A orquestra, embora composta apenas por quatro músicos, era excelente por fazerem parte dela dois
cubanos e um russo; os cubanos forneciam o ritmo, o russo a sentimentalidade. O sr. Crosby tinha-se, finalmente, resolvido a vir; estava até de casaca. Sentado em
baixo, no pseudo salão, onde a Central-Club lhe tinha preparado uma espécie de trono, bebia café, no qual, cuidadosamente, havia deitado dois comprimidos de sacarina.
De cada vez que absorvia um gole, agitava-se contrafeito. Steve Thorpe também viera. Vestia um fato de flanela cinzenta, pois nunca pensara que a gente da Central
desse um baile tão solene. Tinha trazido flores para Nina e Liliana. Como Nina já as tinha recebido de Erik, o decote do seu vestido desaparecia sob as flores. Erik
estava de smoking, com um cravo vermelho na lapela. Dir-se-ia que acabava de sair da mesa do rei da Dinamarca; era essa pelo menos, a confusa impressão de Nina.
No fundo, ela não sabia bem, se a Dinamarca tinha rei ou não.
Erik dançou com Liliana, depois com Nina, depois outra vez com Liliana. Elegante e digno, dançava primorosamente e Nina parecia inferior a seu lado. Os passos da
jovem revelavam ainda a sua origem de Houston, Texas, onde seu pai às vezes a levava a reuniões de sociedades. Ela sentou-se numa cadeira, no tombadilho,
ao pé do reeling, a ver. Que Erik dançasse menos com ela do que com Liliana era natural, não era? Se eram
casados...
Liliana estava encantadora com o seu vestido branco. Era um vestido sem enfeites, de linhas muito simples mas um vestido tão distinto e caro que não podia ter sido
comprado no salão da Central. Madame Chalon, que estava enfiada num vestido cor de tijolo, apalpou às escondidas, o tecido: "É o que eu disse sempre, é preciso saber
usar um vestido!"- disse ela - "Trinta e nove a cinquenta?"
- Cento e sessenta e cinco. - lançou Liliana, afastando-se pelo braço do chefe do pessoal. Madame Chalon levou bem uma hora a engulir a soma.
- Que quere beber, Nina ? - preguntou Thorpe.
- Qualquer coisa ... não muito forte porque me faz
sono - respondeu Nina.
Thorpe olhou-a; ela não parecia ter sono, parecia, pelo contrário, uma criança sobreexcitada por estar acordada até muito tarde. Os seus olhares seguiam Erik
pelo tombadilho.
- Vamos dançar ? - convidou Thorpe - Eu danço
muito mal.
- Eu também, - respondeu Nina.
Dançaram, mesmo assim, sempre à roda do tombadilho. Os cabelos de Nina tinham o cheiro da mocidade, sem que ela os perfumasse. Thorpe apertou-a um pouco contra si:
"Está-se bem aqui" -disse.
Quando a orquestra lançou as primeiras notas de um tango, todos os pares foram para as suas cadeiras ou para o bar improvisado. Só alguns inocentes pares abandonados,
continuaram a tropeçar no seu fox trot, sem saberem porque os seus passos já não iam a compasso.
- Tango! - exclamou Erik -Quem dança o tango?
Parecia de excelente disposição e no seu elemento. "Não bebas muito, querido". - segredou-lhe Nina, quando
ele se sentou um instante ao pé dela. - "Obrigado pelo conselho" - respondeu, muito frio. A observação pareceu encolerizá-lo excessivamente - "Quem dança o tango?"
- preguntou outra vez, fazendo das mãos porta voz. "Porque gritas tanto, Baby?" - preguntou Liliana, muito junto dele. No dia do casamento tinham combinado tratar-se
por tu, mas depois trataram-se sempre por você. Erik voltou-se bruscamente quando ouviu o tu.
- Embriagada, também ? - preguntou. Sem responder, Liliana abandonou se nos seus braços para o tango; ele inclinou a cabeça paralelamente à sua, como fazem os pares
célebres, no casino... Sob a mão, que encostava às costas nuaS, sentiu que ela tremia. - "Que é isso, Liliana?" - preguntou em voz baixa. A vibração do corpo da
jovem mulher contaminou o, entrou nele, nada podia fazer contra isso. - "Nada ... Porquê? Sinto-me feliz esta noite, mais nada" - murmurou ela. - "Sério?" - disse
ele. Dançaram. Nina estava sentada com Thorpe ao seu lado e observava o tango. Alguns dançarinos, entre eles Cromwell com uma rapariga da secção de perfumaria, continuavam
ainda na pista. Mas, ao fim dum instante, pararam todos para contemplarem os dois jovens. - "Um belo par!" -disse a sr.a Bradley, na ingenuidade do seu coração,
ao sr. Berg. Ela vestia o vestido de seda preta que, a-pesar-de tudo, estava ainda muito largo. - "Se nós descêssemos? Aqui começa a estar fresco" - propôs Thorpe
a Nina, depois de lhe ter estudado a expressão.
- Logo que o tango acabar... é tão bonito, não é?
- respondeu ela sem despregar os olhos de Erik e Liliana. Assim que o tango acabou, todo o tombadilho se posa aclamá-los e a bater palmas.
Levantando a cauda do seu vestido branco, ela desapareceu à maneira de uma artista depois da representação.-"Agora, sim, gostaria de beber qualquer coisa" disse
Nina a Steve Thorpe.
O sr. Crosby, no interior do barco, fazia justamente algumas tentativas de despedida. Gostaria de ir para casa e, por isso, de fazer parar o barco no Shiffs-canal.
- "Uma noite encantadora - disse ele à comissão que estava diante de si - mas eu estou doente, queiram desculpar-me."
Insistiram para que ficasse ainda, pois devia coroar a rainha de beleza, a mais bela rapariga que estivesse a bordo e, ao mesmo tempo, a mais bela rapariga da Central.
Resignado, vestiu o sobretudo e seguiu os delegados para a ponte onde, justamente, alguém espetava números nos vestidos das jovens mulheres colocadas numa longa
fila. Liliana tinha o nº 17, Nina o nº 4.
- Boas-noites, sr. Crosby- disse a sr.a Bradley, avançando para o campo visual do todo-poderoso. Ele tentou recordar-se. - "Sou a sr.a Bradley" - disse ela. "Bem
sei, desculpe, a minha vista vai enfraquecendo. Porque razão veio à nossa humilde reunião, sr.a Bradley?" - preguntou Crosby. Há muito tempo já que ele tinha esquecido
que dera à viúva do seu antigo camarada de club um emprego, na secção de embalagem. A sr.a Bradley desapareceu. Não se sentia doente nessa noite, mas sentia-se oprimida
com receio de que as dores voltassem de um momento para o outro.
- Olá, Crosby - disse Thorpe com um chapéu de papel na cabeça calva e um pequeno torniquete na mão.
- Meu Deus, que faz você aqui, Thorpe ? - exclamou o sr. Crosby para quem se tinha, entretanto, arranjado um novo trono. - Ele deixou-se cair emquanto a música tocava
e as raparigas numeradas começavam a andar à volta do tombadilho.
- Tenho amigos entre os seus empregados - respondeu Thorpe.
- Amigos ou amigas ? - preguntou Crosby.
- As duas coisas.- replicou o advogado. O seu olhar seguiu Nina, a sua figurinha leve, o seu sorriso ingénuo, os seus olhos que estavam húmidos de lágrimas
ao mesmo tempo cheios de espectativa, como se um grande divertimento ainda devesse chegar.
Já pensou alguma vez nisto, Crosby? - continuou Thorpe - Você tem uma casa cheia de coisas para vender e sofrem que se fartam para as vender, não é verdade ? NO
entanto... há na Central coisas que não se podem comprar... Crosby olhou na mesma direcção que o seu amigo e viu Nina. Não compreendeu completamente.
É uma reclamação ? - preguntou ele a Thorpe, com um vago sorriso.
Por fim compreendeu:
- Voto no nº 4.- insinuou -Não acha que é a mais bonita?
- Eu voto com certeza no nº 4.
O enfeite prateado do vestido de Nina cintilava, quando ela respirava, e as flores começavam já a murchar na noite quente.
Embora a eloquência de Thorpe levasse alguns a votarem em Nina -por exemplo o velho Sprague, que, de resto, estava completamente embriagado e Berg, o chefe de secção
e o próprio sr. Crosby, foi no entanto Liliana a eleita por uma esmagadora maioria. Sem admiração nem acanhamento, ela deixou porem-lhe na cabeça a coroa de papel,
apertou a mão de Crosby e, com o seu passo firme de manequim, deu mais uma vez volta ao tombadilho para se mostrar a todos. Os quatro músicos tocavam em surdina.
Bruscamente, Erik levantou-a muito alto para que toda a gente a pudesse ver.
O sr. Crosby voltou para casa, quere dizer que o barco parou alguns minutos à entrada da 225.a rua, e depois, vogou para mais longe. O sr. Thorpe ficou. Preocupava-o
Nina que murchava a olhos vistos, como as flores que tinha ao peito. De vez em quando, Erik passava como um vendaval, gritando: "Divertes-te, Lili Spurv?" E desaparecia
no turbilhão dos pares. "Não sejas idiota, monologava em pensamento o advogado,
Eis uma ocasião única para ti. A rapariga está um pouco embriagada e o marido abandona-a; ocasião mais favorável do que nesta noite não torna a aparecer." Dançou
outra vez com Nina; pesava inteiramente sobre ele, por leve que parecesse. Sob um lampião encarnado, ele beijou-a. Ela quási não se defendeu, disse apenas: "Tudo
isto é um disparate, Steve" e a sua voz estava fatigada. "Vamos beber um pouco mais?" - propôs ele cheio de esperança, levando-a ao bar.
Erik e Liliana estavam de pé, por baixo da escada que ia dar à ponte particular do capitão. Entrada rigorosamente proibida. Ninguém devia passar por ali; viam-se
as luzes de Manhattan na outra margem, a lua reflectia-se na água dando-lhe um aspecto metálico.
- Que se passou em ti, Liliana ? Pareces outra ..- notou Erik. E Liliana sorriu, orgulhosa.
- Deitei ao caixote os meus vestidos velhos, simplesmente. Vocês têm realmente olhos?
- Vocês, quem, nós?
- Vocês, os homens.
- Prefiro ser tratado como simples indivíduo,- resmungou ele.
Era um pouco forte para Liliana. Ele meteu o braço no do manequim. "Tens frio? -preguntou.
- Não, pelo contrário, tenho febre.
E dizia a verdade: havia semanas que ela tinha um pouco de temperatura. Sentia arrepios ao longo da coluna vertebral, mas as faces e as mãos escaldavam. Era devido
ao anel e às coisas perigosas e anexas que se tinham seguido.
- A tua febre é contagiosa. - ciciou Erik. Ele bebera, não muito, pois não gostava de cocktails, mas o bastante para estar alegre. Sentia ainda, nas suas próprias
articulações, a sobreexcitação nervosa de Liliana. E depois, santo Deus, ela estava tão bonita!
- Tenho a impressão de ter estado muito tempo
guardado na caixa da naftalina e ter saído bem sacudido e outra vez pronto a servir - disse ele.
- Falas demais, Erik. - murmurou Liliana - Não é necessário...
- Não? - preguntou o rapaz, olhando-a.
-Não.-respondeu ela, em voz quási imperceptível. Contiveram-se ainda um instante, sentindo vibrar ondas entre si, e depois Liliana lançou os braços ao pescoço de
Erik e beijou-o. Foi um beijo longo, esfaimado... A lua desapareceu atrás de uma pequena nuvem, depois tornou a surgir. Erik vacilava um pouco, quando Liliana lhe
descolou os braços da nuca. Ela ria silenciosamente. "Que quere dizer isto?"-preguntou ele - "Nada de maior importância ..." -retorquiu ela. E saiu do esconderijo.
Passagem rigorosamente proibida. "Fica mais um segundo" - suplicou ele em voz rouca.
Duas sombras caíram no tombadilho, quando a lua voltou a ser clara.
- Não se pode passar por aqui, Nina - disse Steve Thorpe.
-Em todos os sítios bonitos há avisos destes.-disse Nina.
- Vamos, deixe-se de discursos comunistas. - conciliou Thorpe.
Deram meia volta e tomaram a escada vizinha que ia dar ao bar. Por todos os lados, pares namoravam. Assim que vieram outra vez para a luz dos lampiões, Thorpe notou
que Nina tinha os lábios brancos. Um pensamento fugidio atravessou-lhe o espírito: ele nunca tinha reparado nessas coisas quando estava casado com Lúcia. É verdade
que Lúcia pintava os lábios. Mesmo ameaçado de morte, não poderia dizer se Nina tinha visto, como ele, os dois debaixo da escada da ponte. "Em que pensa, Nina?"
- preguntou bruscamente. E se nós aproveitássemos um fim de semana ou mesmo uma semana inteira?. para fazermos uma viagenzinha juntos?
- Porque me faz essa proposta justamente agora? preguntou ela.
- Tem razão... devia ter-lha feito há mais tempo. Talvez esta noite tenha mais coragem, porque bebi um pouco. Mas com certeza entendeu, desde o princípio, o que
espero de si, não é verdade?
Nina não respondeu. Tinha um ar tão infeliz que, subitamente, ele teve vergonha do seu ataque. "Sou um velho cínico, Nina" - disse. - "Já defendi muitas causas,
tenho observado muitas vezes, que as opiniões mudam e... as situações... e as relações entre as pessoas... e tenho a impressão de que um dia, talvez me possa suportar.
Compreende... Se qualquer.. emfim... se na sua vida qualquer coisa se modificar... pois bem, lembre-se... se um dia se sentir isolada... que o velho Steve cá está...
quero dizer... vá ter comigo... Promete-me isso?"
Nina fitava-o com atenção emquanto ele falava. Olhou para o lenço de seda em que ele pegou para limpar a testa e que depois colocou outra vez no bolso. A sombra
de um sorriso passou nos lábios pálidos da rapariga: "Fala-me como a uma idiota"-disse ela.-"Compreendo-o perfeitamente. Se um dia eu já não for casada .. entendido...
prometo que irei ter consigo. É isto?"
A música, depois do intervalo, estalou subitamente num ar de rumba sonoro e vivo. Cromwell passou a correr, gritando: "Onde está a rainha da beleza? Quero dançar
com a rainha da beleza."
- Vamos dançar? - preguntou Thorpe, pegando no braço de Nina.
- Obrigada. - respondeu ela, voltando-se vivamente. Liliana descia os degraus da ponte superior, docemente amparada pelo pretencioso detective.
- Onde está o Erik? - preguntou Nina, de lábios brancos.
- Como queres que eu saiba ? -replicou Liliana. E, agarrando na cauda do vestido, afastou-se, dançando.
DE noite, Nina, saindo de um mau sonho, quisera agarrar Erík. Ele não estava... Era como a continuação do pesadelo! Sonhando, tinha-o procurado e não o encontrara.
Só minutos depois ouviu o duche correr na sala de banho, às escuras. Pôs-se então à escuta:
- Tens alguma coisa, Erik ? - preguntou baixinho, quando, às apalpadelas, ele voltou para a cama.
- Nada. Não posso dormir. Faz muito calor aqui disse, vagamente.
As duas janelas estavam abertas e os primeiros clarões da aurora apareciam já. Nina estendeu as mãos e, como não acontecesse nada, tornou a passá-las para o seu
leito. Ficou muito tempo acordada, com os olhos abertos e ouviu os primeiros carros de leite rolarem na rua. Erik teria adormecido? Ignorava.
Ele trabalhou muito nos dias seguintes; a liquidação da secção de arte continuava, e a época dos banhos de mar tinha que ser anunciada com a exibição de fatos de
praia, e bonecas vestidas de maillot. Ele andava distraído e com mau parecer. Fosse onde fosse, estivesse em pé ou sentado, fazia esboços; depois rasgava os papéis
e deitava-os fora. Um dia, Nina revistou o cesto dos papéis e apanhou os pedaços rasgados. "Que foi?" - preguntou Erik, embora ela tivesse ficado muda.
- Mas... tudo isto se parece com a Liliana! - disse Nina com as três rugas na testa.
-Liliana? Que estupidez! Os manequins parecem-se todos. - explicou ele.
Nina continuou ajoelhada no chão diante dos pedaços de papel. Esperava que ele viesse levantá-la. Mas ficou ao pé da janela e acendeu um cigarro. Era domingo e Erik
estava ainda mais indecifrável que de costume. No quarto, por cima deles, ouviam o velho Filipe andar de um lado para o outro, sem descansar...
- Não posso mais!... - disse Erik - Tenho que sair. Saiu, sem chapéu nem casaco, não disse "Vamos
passear". Foi sozinho e só voltou a casa ao fim de quatro longas horas. Nina, tirou do cabide todas as calças do marido e passou-as cuidadosamente a ferro. Depois
desceu à cave, abriu a sua mala, tirou as velhas bonecas e tomou as nos braços. Por fim, subiu e foi procurar a sr.a Bradley.
- Quere que eu faça o jantar esta noite, sr.a Bradley ? - preguntou.
A sr.a Bradley, com o rosto amarelado, estava estendida em cima do canapé. Cansada, fez sinal que sim. Afligia-se ao pensar na segunda-feira, no tempo que tinha
de estar em pé, na embalagem, com aquela dor num lado. À noite jogaram uma triste partida de rummy. Nina, Filipe, a sr.a Bradley, Skimpy. A pequenita ganhou quási
sempre: feliz, soltava gritos de alegria emquanto os adultos, fatigados, sorriam. Cada um tinha as suas próprias preocupações, os seus próprios receios. Cada um
deixava errar os seus pensamentos.
- Onde se esconde sempre o seu jovem esposo ? preguntou o velho Filipe. Nina corou como se tivesse vergonha.
- É o sr. Sprague que o retém. Agora mudam a decoração das montras duas vezes por semana.
- É verdade - disse Filipe. Ele era céptico por
causa da sua profissão. Nina falou nas vitrinas como numa prova de que Erik não lhe mentira.
Assim que se cansaram de jogar, ela construiu com Skimpy castelos de cartas.
Deitada, conservou-se acordada até ao regresso do marido. Ele chegava a casa às três horas, às quatro, às sete. Mas Nina não dizia palavra e tinha os olhos fechados,
quando ele se inclinava para a ver. Muitas vezes beijava ao de leve aquele rosto, que julgava adormecido. Era uma grande consolação: Nina quási chorava. Cheirava
a cigarro, assim como a um perfume que a esposa, de sobrancelhas franzidas, adivinhava doce e forte, um pouco impudico - o perfume de Liliana.
As coisas continuaram assim durante três semanas. Certos dias, só se encontravam na cantina da Central. Às vezes, iam jantar ao "Rivoldi"; Erik mostrava-se de uma
alegria febril e forçada. Depois, no meio da refeição, tornava-se distante e distraído, punha-se a desenhar sobre o mármore da mesa, apagando depois com a palma
da mão.
- Porque não vem a Liliana comer agora connosco? preguntou-lhe Nina.
Ele encolheu os ombros. Queria ter um ar indiferente, mas mostrou a expressão que é costume ter-se no dentista quando, por acaso, a broca encontra um nervo. Nina
acompanhava-o até à entrada do armazém, depois, voltava para casa. Uma noite escreveu uma carta à mãe de Erik. Condessa Bengtson, Asilo de Alienados, Lansale, Connecticut.
Não era trabalho fácil. Assim que acabou de escrever, rasgou. Estava só. Nunca tinha sabido o que era estar só no mundo, antes de casar com Erik.
Meia-noite, duas horas, três... Como uma noite é longa, quando se espera o ente amado e ele não vem! Nina levantou-se, vestiu o seu roupão e dirigiu-se ao vestíbulo,
ao telefone. com voz em surdina, pediu a Central. Já não podia mais; era preciso que falasse
com Erik. Foi Joé, o porteiro, que respondeu; "Desculpe, Joé, eu queria dizer uma palavra a meu marido... o sr. Bengtson, deve estar do lado oeste... a decorar a
montra."
-Um momento... -disse Joé, com a sua voz de baixo, que inspirava confiança. Nina esperou. O coração batia-lhe debaixo do roupão: era como se fosse uma aventura proibida.
Depois de muito tempo, ouviu, ao telefone, uma voz que não pertencia a Erik.
- Está ? Quem fala ? - preguntou ela.
- Aqui, Donald Brooks, - responderam.
- Queria falar ao sr. Bengtson - repetiu Nina, intrigada.
Abriu-se uma porta no andar superior, e Filipe apareceu na estreita fenda iluminada, da porta.
- Que aconteceu ? -murmurou ele. Nina sacudiu a cabeça, com o auscultador no ouvido.
- Sou eu, o Pusch. - disse a voz ao telefone. O aprendiz renunciou ao nome elegante que ninguém conhecia.
- Oh! Pusch, ainda estão com as decorações ?
- Pois estão, minha senhora. - disse Pusch.
- Posso falar um segundo a meu marido ? - preguntou Nina. Entretanto o velho Filipe tinha descido a escada e estava agora ali. Ela fez-lhe sinal para a deixar só.
O seu coração tornara-se subitamente leve e alegre, ela queria implorar o perdão de Erik e desejava que Filipe não a ouvisse.
- Eles já saíram há cerca de hora e meia - disse Pusch, do outro lado do fio.
- Eles... quem ? - preguntou Nina.
- O sr. Bengtson e o modelo. - esclareceu Pusch. Mais nada ? - informou-se ao fim de um minuto, como Nina não falasse,
- Mais nada, obrigada. Parece-lhe que ele volta ?
- É possível... - disse Pusch num tom consolador. Obrigada, sr. Brooks, - agradeceu Nina, De-repente
o seu espírito tinha-se tornado tão claro e tão subtil que se lembrou do nome estranho. Via através da obscuridade, apercebia cada prega do velho roupão de felpa.
ouvia respirar Skimpy no outro aposento. No jardim da frente, um pássaro abria a garganta para os primeiros trinados da manhã.
- Posso fazer qualquer coisa por si ? - preguntou o detective. Nina olhou-o um momento, como se a pregunta precisasse de um certo tempo para chegar até ela.
- Não, obrigada, tudo vai bem. -disse delicadamente, pendurando o auscultador. O velho Filipe seguiu-a com o olhar, emquanto, através do patamar obscuro, ela voltava
para o quarto.
Os homens podem ser enganados pelas mulheres; as mulheres, não se podem enganar. Elas sabem tudo, elas sentem tudo. Nina tinha compreendido. Não fez cenas. Deitou-se
na sua cama, com os olhos secos, e sentiu que se tornava hirta, pequena figura de pedra rígida, quando Erik entrou. Pouco antes, o despertador tinha tocado. Sete
horas da manhã. Erik fez a sua aparição, de cigarro na boca com uma falsa naturalidade. Os cabelos vinham muito lisos, acabavam sem dúvida de serem passados por
água, para causar boa impressão.
- Bons-dias, Lille Spurv - disse, debruçando-se para a beijar na testa. Ela não se desviou, mas sentia que a testa devia estar fria e dura. Dura como pedra. Tinha
sempre sido meiga e doce, mas sabia ser dura quando se tratava de coisas importantes.
- Bons-dias. - disse saindo do quarto. No patamar, bateu à porta da sr.a Bradley.
- Quere fazer-me o favor, sr.a Bradley, de avisar que eu hoje não vou ao serviço?
- Está doente ? - preguntou a sr.a Bradley, inquieta.
- Não sei... tenho febre... talvez gripe.
- Pode ser. Eu também não me sinto bem. - disse a sr.a Bradley - Não se rale, tem direito a três dias com vencimento, mesmo que falte.
- Pois é... - concordou Nina, voltando para o seu quarto. Na cozinha, ouviu Skimpy preparar o pequeno almoço, antes de ir para a escola. Assim que Nina entrou, Erik,
que se tinha despido, estava debaixo do duche. Ela sentou-se e esperou.
- Não estás atrazada ? - preguntou, assim que saiu da sala de banho. Pequenos mares de água caíam dele sobre o sobrado.
- Não vou hoje à Central. - disse Nina - Ele lançou-lhe um olhar rápido, assustado, depois meteu-se na cama e puxou a coberta. Parecia tremer.
Maquinalmente, ela aconchegou-lhe a roupa, com a mão.
- Onde estiveste até agora?
- Tu bem sabes, Nina.
- Sim, eu sei. - disse ela. Seguiu-se um pesado silêncio.
- Ora vamos, não me faças cenas - pediu Erik, pegando na mão de Nina.
Ela não o repeliu mas estava sem vida.
- Não te faço cenas. - disse.
- Podia ter te explicado logo, mas quis fazer-te uma surpresa; estou a pintar Liliana para o concurso.
- Qual concurso?
- Tu bem sabes, o dos cartazes de verão.
Nina lembrava-se, vagamente, de Erik lhe ter dito qualquer coisa.
- Não era bonito se eu ganhasse o primeiro prémio e pudesse trazer-te mil dólares? - preguntou, acarinhando a mão da mulher para a aquecer.
Nina tentou sorrir, mas não conseguiu.
- E então? - disse ela.
- Não sei. Liliana endoidece-me. É um diabo perigoso. Mas, às vezes, preciso dela ... Excitação... Isso inspira, pois eu sou um pintor, Nina, mesmo quando me meto
nas montras às ordens do velho Sprague, a fabricar árvores de celofane.
Já me não amas?
Sim, Lille Spurv. Sim ...
- Mas gostas mais de Liliana.
Liliana ... é de outra maneira, Nina.
O pior é que ele não mentia nem se desculpava. Nina esperava um alívio, uma salvação que não veio.
Nada teria acontecido se eu não me tivesse metido a pintá-la. Mas o quadro será bom, Nina. Sentia-me completamente decaído... num verdadeiro lodaçal... eu não nasci
para forrar casas ... Dei-lhe entrevistas todas as noites, na oficina ... e assim ... só com ela ... Tu compreendes?
- Não. - disse Nina.
- Tinha preferido não me apaixonar por ela. Mas realmente apaixonei-me. Também há-de passar.
Nina esperou um momento, até poder engulir a dor.
-Que vai ser de nós?-disse.
- De nós? Não sei... se tu não sabes... -É-me impossível continuar ao pé de ti, se tu estás
apaixonado por outra. - declarou Nina. Ele sentou-se na cama.
- Não estás a falar a sério ?
- Que queres? Tu só podes ser como és. Eu só posso ser como sou. Não me é possível ficar contigo.
-Nina!-pediu Erik suplicante-Somos casados apenas há seis semanas!
Ele não podia dizer coisa pior; casados havia seis semanas e o seu coração já ia passear! Nina sentiu lágrimas subirem-lhe numa grande onda pesada.
- Acabou tudo entre nós.-disse ela, dirigindo-se para a porta. Ele voltou-se com a cara para a parede: ela viu-lhe as costas. Eram oito horas da manhã .. hora de
ir para a Central. "Preciso de renunciar a tudo.. a tudo - pensava Nina. - Não posso fazer outra coisa. ? Diante da janela, o pássaro da manhã lançava agora os seus
trinados claros e irónicos.
- Se tu pudesses prometer... que renunciavas a Liliana... - murmurou Nina, à porta. Ele não se voltou, pareceu reflectir.
- Eu, renunciar a Liliana? Deus! Mas ela é que não renunciará a mim! Agarra com força o que pode agarrar.-disse, voltando-se para a parede. Ele tinha, também, podido
agarrar num pau e bater na cabeça de Nina.
-Então... acabou-se - disse ela. O marido encolheu os ombros. Ela saiu do quarto e foi-se embora.
Ficou deitado na mesma posição, com a cara virada para a parede, para que ela não visse quanto era infeliz. O pássaro, fora, deixou de cantar. No vestíbulo, soaram
passos sonoros. O velho Filipe bateu a porta da entrada. Tudo tinha acabado.
- Fica ao pé de mim, Spurv, Lille Spurv... murmurou ele, no quarto vazio. Mas sua mulher, ajoelhada na cave, preparava as bagagens...
LEVANDO uma mala grande e outra pequena, Nina fez a sua entrada no vestíbulo atapetado da casa de Thorpe, como se um vento de tempestade a tivesse en purrado para
lá. Pretender que esta entrada fosse gloriosa, seria falso. Primeiro, o pessoal não a quis deixar entrar, depois, assim que se encontrou lá dentro, incomodou os
criados nos seus trabalhos. Um deles fazia funcionar o aspirador no tapete do vestíbulo; comovida, Nina apertava a argola das suas maletas emquanto o criado telefonava,
com ar importante, para o escritório de Thorpe.
Thorpe estava justamente em conferência quando o telefone tocou - conferência de um género desagradável com dois indivíduos cabeçudos que não chegavam a um acordo
sobre a exploração comum dos seus negócios de moagem.
- Está aqui uma senhora que deseja falar ao sr. Thorpe. - disse o criado.
- Como? Uma senhora? Neste momento não tenho tempo para falar a senhoras - resmungou o advogado ao telefone.
- A senhora diz que eu devo só dizer que é a Nina da Central, que está cá.
O rosto de Thorpe iluminou-se e sem se ocupar mais dos dois clientes disse:
- Ah! está aí ? Que quere ela ?
- A senhora chegou com duas malas.
- Bem... Bem ... que a senhora esteja à vontade, eu vou logo que possa. - disse Thorpe um pouco perturbado. Aquilo não parecia da Nina: irromper por casa dele com
duas malas...
Pôr-se à vontade consistiu nisto: Nina ficou sentada no vestíbulo em companhia da sua bagagem. E foi assim que Thorpe a encontrou, quando chegou a casa. Embora se
apressasse, era já tarde. "Então, cá estás?" disse simplesmente-Ele não preguntou nada; depois de um instante de hesitação, abraçou-a. Nina levantou os olhos, como
sempre que tinha medo, e aceitou o beijo de boas-vindas. Agora era preciso levar ao fim toda esta história, se queria, realmente, ferir Erik, feri-lo tanto quanto
ele a tinha ferido.
- Whisky, - ordenou Thorpe ao criado - E estas malas para o quarto de hóspedes.
Também estava um pouco aturdido pela forma súbita, como a felicidade lhe caía em casa. Bebeu o seu whisky e Nina deixou o dela.
- Quere explicar-me o que aconteceu, ou devo adivinhar? - preguntou ele. No espírito de Nina tudo estava já resolvido.
- Preciso separar-me de meu marido, - disse em voz resoluta. Não nos damos bem. Não me acomodo a ser casada com um génio. Compreendeu-o desde o princípio, não é
verdade? Não quero mais trabalhar na Central. Encontravamo-nos sempre no caminho um do outro... na cantina, em toda a parte... e não poderia suportar...
Evitou dizer que não se sentia com forças para afrontar Liliana, mas Thorpe compreendeu-o da mesma maneira.
- Não tenho dinheiro. - disse Nina - Preciso arranjar outro emprego e só o conheço a si.
- Tudo está perfeitamente entendido entre nós. disse Thorpe - A minha opinião é que durma hoje no
meu quarto de hóspedes, e amanhã procuramos uma casa bonita para si.
-É muito bom!...-disse Nina. Thorpe defendeu-se vivamente:
- Não vamos trocar cumprimentos - disse, emquanto pequenas pérolas de suor lhe apareciam na testa nua. Ambos sabemos do que se trata. Eu não sou bom, mas gostaria
que fosse minha. Pode talvez dizer-se que somos dois pássaros solitários... e... um pouco desiludidos, a certo respeito, e que, por causa disso, nos poderíamos sem
dúvida suportar, não é?
- É... - respondeu francamente Nina. Thorpe correu num impulso para ela e deu-lhe outro beijo. Ela recebeu-o com a expressão que tinha em criança quando engulia
o óleo de rícino. "Obrigada sr. Thorpe" - agradeceu.
- Chame-me Steve. - pediu ele, um pouco embaraçado.
O criado conduziu-a ao quarto de hóspedes e ela sentiu o seu olhar mirá-la com desdém. "Como se chama?
- preguntou, embaraçada - "Por excepção, não me chamo James". - disse o homem - Ela não sabia se isto seria uma insolência. Esperou, de pé, e como ela tentasse sorrir,
ele ficou sério: "Eu ajudo a senhora a desmanchar as suas malas" - disse por fim.
- Obrigada, prefiro eu tratar disso. - respondeu. Tinha vergonha das suas coisas, da sua roupa de
seda artificial, das suas meias cozidas, dos seus sapatos com meias solas. Thorpe entrou, passado um momento, quando ela olhava para as suas recordações: as duas
bonecas, a fotografia, o revólver.
- Como vai isso agora, Nina? -preguntou. Ele tratava-a por tu e ela tratava o por você, desculpando-se de vez em quando. Os olhos do advogado caíram no revólver
e encheram-se de receio. "Tu não tencionas fazer tolices, rapariga?"-preguntou, agarrando rapidamente na velha arma. "Não, é o revólver de serviço, de meu pai"
-explicou. Assim que ela voltou a pôr o revólver na mala, fechou os olhos, com medo, como quando do beijo do sr. Thorpe. Abaixando-se, ele apanhou um papel
que tinha caído.
- Não é nada - disse muito de-pressa pondo-o para um lado. - A conta de hotel da nossa noite de núpcias em Connecticut.
- Vai pôr-te bonita para ver se passamos um bom serão. - disse Thorpe e deixou-a só e hesitante.
Nina fez-se bonita com o único vestido capaz que possuía e que, infelizmente, era ainda uma prenda de Erik. Estava tão contente quanto podia estar, emquanto, de
vez em quando, fechava os olhos para receber um beijo de Thorpe. O belo serão não foi um triunfo, não lhe era fácil sentir-se à vontade, com um criado de cara dura
e severa em serviço ou oferecendo pratos de que não se gosta. Ao pé de cada prato estavam colocados talheres, com os quais Nina não se entendia. Mas fez o que pôde.
Logo depois da refeição passaram para outro aposento, ela cantou mesmo um pouco ao piano, tocando com um dedo, o acompanhamento, Isso pareceu agradar ao sr. Thorpe,
que lhe prometeu um professor de música.
O tempo passava e Thorpe tornou-se pensativo e silencioso. Passou um braço à volta do ombro de Nina: era desagradàvelmente quente, mas ela conseguiu suportar. Estava
resolvida a mergulhar nesta aventura, como se mergulha na água fria; sem reflectir e de um salto. Sorriu timidamente a Thorpe, quando ele a atraiu para o seu joelho.
Veio-lhe mesmo ao espírito a idea tranquilizadora de que ele também tinha tanto medo como ela.
Por fim, fatigou-se daquele silêncio e começou a bocejar. Ele levantou-se logo: "agora vamos deitar a menina" -disse, o que não agradou a Nina. Ela não podia supor
que, durante todo esse tempo, ele tinha tido um diálogo com o fantasma de sua mulher.
No patamar, pegou-lhe para a levar para o quarto mas foi uma tentativa falhada e, um pouco cansado, teve de a pôr no chão. Empurrando a porta do quarto de hóspedes,
deixou-a entrar primeiro: a lâmpada ardia na mesa de cabeceira, a cama ficava perto. O sr. Thorpe tinha o ar de um homem que desejasse ir buscar o seu chapéu ao
vestiário, e tivesse perdido o número. Quando a abraçou, ela começou a chorar. Tinha vergonha das suas lágrimas mas não podia sustê-las; sentia nas mãos a grande
cara do advogado, os seus grossos braços, o seu corpo pesado: tudo isto lhe era tão estranho, tão estranho, e não sentia em si a felicidade que sentia sempre que
Erik se aproximava dela com os seus membros finos e ágeis. E soluçava sem parar.
Tinha passado um dia muito cruel, não chorara ao descobrir que Erik a enganava, nem emquanto fazia as malas, nem ao sair de casa. Todo o dia tinha sido um pequeno
ídolo de pedra. Todavia um ente humano tem também o direito de chorar.
Thorpe ficou sinceramente comovido e consolou-a o melhor que pôde.
- Que queres tu? Que tens?- preguntou, acariciando a.
- Queria estar só ... queria chorar... - soluçou ela, com a consciência inquieta.
- Bem... eu não sou nenhum papão - disse o sr. Thorpe. E realmente não era, principalmente para com Nina. Largou-a, deixando-a sozinha na cama, cuja coberta de seda,
coisa nova para ela e muito incómoda, estava sempre a escorregar. Em casa da gente rica, as camas são realmente esquisitas." - pensou. E foi a única experiência
que tirou dessa noite.
No dia seguinte, Thorpe quis arranjar-lhe casa, mas, quando chegou ao escritório, encontrou um telegrama que o chamava imediatamente a Minneapolis. Tratava-se
do acordo entre as duas moagens e era importante, muito mais importante do que Nina.
Ela tinha tomado a resolução de ser amável com Steve assim que chegasse, mas ele não veio para casa. Telefonou ao criado dizendo que lhe levasse ao escritório a
mala, pronta. Dir-se-ia que tinha esquecido completamente a presença da jovem caixeira na sua habitação. Mas a verdade é que não ousava, na presença de miss Tackle,
telefonar a uma mulher que estava na sua própria habitação. Da gare mandou-lhe um telegrama. "Não te aborreças. Faz tudo que te apetecer. Estarei de volta daqui
a três dias." Nina sentou-se diante do fogão de sala com o telegrama na mão. O criado tinha acendido o lume, pois chovia e ela não sabia de nenhum lugar no mundo
onde se pudesse refugiar.
"Não te aborreças!" -pensava ela, ironicamente. - O seu coração estava despedaçado de angústia, de nostalgia, de desejo de tornar a ver Erik. Além disso, vinham
as coisas desagradáveis: olhares do pessoal, aborrecimento sem limites, ociosidade, refeições na grande sala de jantar, sozinha. E todas as vezes que, de noite,
estendia a mão, só encontrava o vácuo, nesse quarto horrívelmente estranho: nada de Erik, apenas a endiabrada coberta de seda que caía constantemente, o que a fez
sonhar que estava em camisa em cima de uma ponte, à chuva e ao vento ...
No dia seguinte, entregaram-lhe uma missiva de Thorpe, escrita da estação. As letras eram deitadas como se o vento também lhe tivesse passado por cima.
"Querida Nina pequena. Que pena não ter podido ficar aí! Rehaveremos tudo isso assim que eu chegue. compra lindos vestidos e tudo o que quiseres, pois vamos divertir-nos
muito. Adeus e até breve. Teu, Steve."
Um cheque em branco vinha junto à carta. Nina voltou-o entre os dedos, conteve o gesto de o deitar ao lume e, daí a pouco, sorriu.
Ao terceiro dia, como Thorpe não tivesse voltado,
ela fez tudo quanto o seu coração desejava: pediu ligação para a sr.a Bradley, depois do armazém fechar, quando ela já estaria com certeza em casa... A sr.a Bradley
gritou de admiração, ao telefone, e Nina podia ouvir Skimpy andar. Não preguntou se Erik estava em casa.
- Como vai isso por aí ?
- Obrigada, assim, assim.
- O velho Filipe está cada vez mais esquisito.
- E as suas dores ?
- Há dois dias que estou melhor. Faz-nos muita falta, Nina.
- Que diz a gente da Central, da minha saída ?
- Mordem se de inveja. Dizem que fez a sua felicidade ...
Nina esperou. Ela não podia conter a pregunta:
- E... e meu marido, que faz ?
- Meu Deus ... até agora, lá vai indo... -Ah!
Então, ele ia bem. Hesitou ainda. O criado passou, sentiu-se vigiada, como prisioneira. Esperou que desaparecesse.
- Escute, sr.a Bradley... o fato cinzento dele está ainda no tintureiro, é preciso ir buscá-lo. E que não fume muito, sr.a Bradley. Que ar tem ele ? À noite fica
em casa? Quem lhe passa as calças? Ele gosta tanto delas bem vincadas!... Não lhe diga que telefonei, sr.a Bradley... promete ?
Não, esta conversa não a aliviou absolutamente nada. No dia seguinte, telefonou outra vez. Depois pegou no seu cheque e foi à Central. Sim, estava decidida.
Na verdade, um grande armazém é um lugar onde quem quere pode ir. E se uma caixeira fez a sua felicidade e volta como cliente, deve ser tratada como cliente. Nina
evitou a escada 5 e subiu primeiro à secção de loiças, a sua secção, por assim dizer, a sua casa.
Aí, parou diante do balcão onde estava o serviço 279 E 14, decorado com rosas.
- Deseja ?-preguntou miss Drivot. Ela não viu a cara de Nina; a clientela não tem cara.
- Como vai isso, miss Drivot ? -preguntou Nina baixinho.
-Ah!... é você... Obrigada, vai bem. Deseja alguma coisa ? Quere fazer uma compra ? O serviço de rosas está mais barato.
O sr. Berg, que passou, lançou um olhar perscrutador para as duas.
-Desculpe-me, tenho que servir uma cliente-murmurou miss Drivot. Depois afastou-se, deixando Nina em pé diante da loiça de rosas, como uma estranha.
O sr. Berg olhou a com ar ofendido, fez-lhe um cumprimento distante e continuou o seu caminho.
A testa da jovem franziu-se. Atravessou o vestíbulo envidraçado, passou diante dos vestidos de verão para chegar ao lugar elegante, que era o salão de costura. O
coração batia-lhe furiosamente. Mas tinha um cheque em branco na sua malinha ...
- Queria que me atendessem - disse, logo que encontrou Liliana.
-Meu Deus, é a Nina!-exclamou Liliana.
- Desejo um vestido de noite, branco, qualquer coisa de muito bom - disse friamente Nina. - Liliana fez uma careta; daí a pouco surgiu madame Chalon, ignorando,
naturalmente, a situação. Nina tinha-se divertido antecipadamente com esta visita ao armazém. Sentou-se na poltrona e Liliana teve de andar dum lado para outro.
Ah ! fê-la mexer-se bem! Infligiu-lhe, em suma, todos os vexames que uma cliente aborrecida, mal humorada e inconsciente, pode infligir a uma caixeira. Mas, justamente
no momento em que Liliana não podia mais e ia perder a paciência, Nina sentiu-se igualmente esgotada de nervos. Não, ela não podia mais suportar aquilo: ver as belas
costas nuas de Liliana, o seu andar, a
sua cara, o seu corpo, o todo dessa mulher que lhe tinha roubado o marido. Levantou-se de um salto, murmurou uma desculpa, que soou como um soluço e saiu precipitadamente.
Liliana limpava as finas pérolas de transpiração, da testa.
Nina tomou o caminho de casa, entrou no carro elegante de Thorpe que o criado tinha posto à sua disposição. Tony, o belo motorista, tratava-a com tanto respeito,
como se ela fosse a própria rainha da Inglaterra. Refugiada no quarto de hóspedes, escovou os cães; sentia a garganta apertada com todos os sentimentos que tivera
de refrear.
Subitamente, os animais correram para a porta e ladraram com tanta força que Nina teve medo: o sr. Thorpe estava de regresso. Nina ficou surpreendida, ao notar que
também sentia alegria, e correu ao seu encontro. Desta vez recebeu o beijo sem fechar os olhos, Thorpe foi muito terno, tinha-lhe trazido um presente, um colar de
pedras verdes, Depois desapareceu na sala de banho para sacudir a poeira da viagem. O ruído do avião deixara-o um pouco surdo durante meia hora, mas depois passou.
- Agora mostra-me o que compraste com o cheque. - disse ele a Nina e, ante o embaraço dela desatou a rir. Ela subiu ao quarto de hóspedes, tirou rapidamente o cheque
da sua malinha e pô-lo diante de Thorpe. "Que os diabos me levem!" - disse ele, espantado. E Nina sentiu-se aliviada por não ter gasto esse dinheiro, por não se
ter ainda vendido completamente...
- Mas não tens que vestir!.. No entanto, é preciso que estejas bonita para sairmos. - disse Thorpe - Ele estava convencido que para obter os sorrisos das mulheres
era preciso cobri-las de presentes. No fundo, não tinha tratado Lúcia, a sua própria mulher, de outra maneira. Assim que diante do espelho esfregou a cabeça calva
com água de Colónia e se meteu no seu smoking, sentiu surdamente que Nina era uma coisa difícil de conquistar. As suas pantufas, os seus cães, um copo de whisky
e as últimas revistas ao pé do lume, eis quanto ele desejava. Mas tinha resolvido, nessa mesma noite, forçar a resistência. De resto, Nina estava resolvida.
Preparou-se com o seu vestido azul bordado a prata e o companheiro levou-a a um cabaret elegante: música, dança, champagne, sala cheia, turbilhão de vozes e de perfumes.
Tinham instalado esta casa luxuosa como o interior de um barco, o que dava aos clientes uma impressão de opulência e de romanesco, incitando-os a gastar dinheiro.
Os criados andavam de um lado para o outro, vestidos de marinheiros franceses com grandes ponpons nos bonés, o que, visivelmente, os incomodava um pouco.
- Então, menina ?-preguntou Thorpe, satisfeito, assim que encomendou a refeição.
Também havia mais talheres do que aqueles que eram precisos, mas agora, Nina já tinha experiência. Antes de se instalar deram um salto ao bar e Nina falava alegremente
e muito. Esforçando-se por chegar de-pressa à disposição de espírito que esperavam dela, tinha engulido os dois primeiros cocktails como uma desesperada. Durante
a refeição fumou muito. "Não vamos dançar, sr. Thorpe? quero dizer... Steve?" - preguntou - A música tinha acendido nela uma avidez que não compreendia. Mas assim
que fizeram desastradamente uma volta à pista, caiu em si. É melhor sentarmo-nos a ver... - disse - Ele continuou com brandy e aconselhou champagne a Nina.
- Ó champagne dá alegria, aquece. - explicou Numa obsessão, Nina bebia grandes taças, como se o champagne fosse um antídoto contra a sua infelicidade. Tinha realmente
as faces rosadas, sob a fina camada de pó de arrôs. Os olhos começavam a brilhar.
- És adorável! - declarou Thorpe.
- Tu o dizes...-sussurrou ela, na linguagem habitual do armazém.
Infelizmente, verificava-se que com o primeiro excesso da sua vida, se mostrava mais obstinada e rebelde. Ela, que era semPre meiga e aceitava as coisas como vinham,
agora revelava subitamente o fundo do seu ser.
-São todos uns indecentes...-disse, indicando com o dedo toda a gente fina do restaurante da moda-são uns indecentes - Ah! Nós podemos falar. Que fazem eles todos,
lá porque têm algum dinheiro ?
Olhou à sua volta, riu, às gargalhadas, do criado à maruja, depois os seus olhos caíram sobre Thorpe.
- Tu és como os outros, sabes, meu caro Steve ? Tu também imaginas que podes comprar-me... lá porque tens dinheiro. An ? Diz a verdade... não é verdade que julgas
... com o teu cheque... Também tu és simplesmente um porco, Steve... um gordo porquinho cor de rosa, com quatro pêlos na cabeça...
Thorpe alarmou-se. Acabou de-pressa, pagou, empurrou Nina para o automóvel, antes que a coisa desse escândalo. Tony, o motorista, lançou-lhe um olhar cheio de compreensão
masculina e, sem pressa, pôs o carro em marcha.
Entretanto, Nina seguia o curso das suas ideas: teimosa, fazia ao pobre Thorpe uma cena em regra. Na sua embriaguez, e embora o tratasse por tu, lançava-lhe reparos
tão desagradáveis que não tinha sido dado ao advogado ouvi-los desde que se separara de Lúcia. Censurava-lhe o dinheiro, o ventre, a calvície e a idade. Por fim,
ele sentiu se absolutamente infeliz. Mas justamente no momento em que ia decidir-se a descer e a deixar Nina voltar só para White Plains, a jovem lançou-lhe os braços
ao pescoço e desatou a soluçar. Para a acalmar, bateu-lhe nas costas, como tinha o costume de fazer a Max e a Moritz e rolaram assim, ao longo das avenidas calmas
do parque, para o bairro Norte.
Na sua embriaguez, Nina, desesperada, estava pronta para tudo. Mas, o diabo, era ele, Steve, que nada queria nessa noite, Não queria dela nenhum favor se o devesse
obter de uma maneira suja e desagradável. Acompanhou-a ao seu quarto onde ela se sentou imediatamente na borda da cama, na atitude resignada de quem espera a partida
do comboio. As lágrimas vertidas brilhavam ainda sôbr a pele lisa das faces. Fazia-lhe pena, mas não é com pena que se vai para uma aventura amorosa. À porta, ele
parou :
- Não podes gostar de mim, um pouco?- preguntou, hesitante.
Nina pareceu voltar não se sabe donde. com simplicidade, respondeu:
- Não. Emfim ... assim não ...
Thorpe tomou, sem demora, o caminho dos seus aposentos. Eram duas horas da manhã. com um copo de whisky ao alcance da mão, um dos seus cães ao colo, meteu-se ao
canto do fogão pois, de-repente, o pobre homem sentiu imenso frio ..
HAVIA longas semanas que Liliana tinha sempre o mesmo sonho: queria apanhar um comboio mas não o conseguia. Sufocada, ofegante, ficava no cais e via o comboio desaparecer.
Depois descia uma escada que se parecia com a do metro, mas maior e deformada, como acontece nos sonhos. Ela ia, descia sempre, sempre, sempre mais para baixo. Não
queria descer, mas, lá em baixo, alguém riscava constantemente um fósforo e então podia ver a escada que levava à escuridão, lá para baixo, lá para baixo... e ela
continuava a descer. Dling... dling... dling... tocava, durante esse tempo, a campainha da prestamista.
Liliana tinha deixado os pais e alugara casa na rua 44.a a oeste da cidade. A sua sala estava sempre cheia de fumo de cigarro, no sofá via-se sempre estirado qualquer
homem, algum dos amigos de Bill. Bill era aquele indivíduo duvidoso que a tinha seguido, assim que ela saíra da casa de penhores, uma espécie de grande animal, bonito,
violento, habitualmente complacente, mas conhecedor da sua força. Gostava de gatos e trouxera dois para casa de Liliana. Os outros homens, Jerky, Big Paw e Kid,
que tinham dezoito anos, pareciam-se com ele. Haviam-se instalado em casa da rapariga e viviam "na sua vida" por assim dizer, com as suas cartas, as suas pragas,
os seus licores, os seus revólveres e as suas amantes. Bill vinha irregularmente,
mas era o senhor. Tinham dinheiro com fartura que lhes restava ainda do último negócio feito. Liliana recebera, como presente, um belo vestido e um casaco de arminho.
Ia aos clubs nocturnos, frequentava os lugares onde Bill era um personagem respeitável. Bill tinha automóvel, relações e influência, numa palavra, Bill era poderoso.
Conseguira Liliana à força de ameaças, de promesas, de pancada e também mostrando-lhe o seu revólver.
Isto começara com o anel; com o anel roubado, foi ela agarrada. E com mais segurança e mais firmemente do que com uma corrente de ferro. Ela não sabia exactamente
no que o bando a queria empregar, mas era em qualquer empresa bem determinada, isso sentia-o. Bill não a deixava renunciar ao seu emprego. Mais tarde, afirmava ele,
seria contratada para uma grande revista de Broadway. "Posso ter em Broadway o que quiser, compreendes?" afirmava, e ela quási o acreditava. E, como agora vivia
numa atmosfera de receio e de febre e se sentia perdida, sem remédio, Liliana de-pressa se entregou à bebida. Um dia Bill fez-lhe mesmo tomar cocaína: ela experimentou
imediatamente um sentimento indescritível da sua grande importância, mas no dia seguinte, na Central, sentiu-se horrivelmente infeliz. Eles tinham a sua presa e
o que esta espécie de gente agarra, segura-o bem. Às vezes Liliana tinha quási desejo de rir quando madame Chalon ou uma cliente a maltratavam um pouco. Imaginava
o susto e os gritos se Bill, de revólver em punho, surgisse no meio delas. Bill possuía certas ideas cavalheirescas a respeito de Liliana, mas tinha também outra
amante, Máxima, uma mulher loura que o vigiava com um ciúme feroz. Liliana tremia muitas vezes, com medo que ela lhe atirasse vitriolo à cara. No entanto, tudo correra
bem até agora. Em certos dias sentia-se quási feliz com o caminho que as coisas tinham tomado: tivera sempre más tendências. Agora apanhava ar pela primeira vez
na sua vida; o ódio que sempre sentira pela gente do"
grande mundo, encontrava um motivo e uma justificação. Nos antros que frequentava, era quási uma rainha. Às vezes, entregava-se a uma esfusiante alegria. Outras
vezes, revoltava-se e Bill, em tom firme, punha-a no seu
lugar.
- Afinal, que queres de mim?- gritava-lhe, Bill
sorria com a sua boca vulgar. Tinha os lábios sempre secos, vermelhos, como que inchados pelo sangue. Nem o álcool nem a cocaína lhe faziam mal.
E eis que, pouco a pouco, Liliana compreendeu o fim dos seus carcereiros; queriam utilizá-la na Central, a loja objecto do seu ódio. Entretanto continuava a servir
a clientela. "Sim, minha senhora, certamente, minha senhora. Está encantadora, minha senhora". Tornou-se instrumento desses homens que saíam da sombra e desapareciam
na sombra. Liliana não os conhecia melhor do que se conhecem as personagens que se vêem em sonhos. Descia a escada, descia sempre cada vez mais baixo.
Dling, dling, dling, fazia a campainha...
- Bem mereço que tenham pena de mim - disse ela a Erik.
- Pena ? Porquê - preguntou ele.
- Tu não podes compreender. Não me faças preguntas estúpidas. Olha, dá-me um cigarro.
Erik acendeu-lhe um cigarro, e a sua mão tremia. Trocista, Liliana olhou para essa chamazinha de fósforo que oscilava sem descanso... - "Sonho muitas vezes com um
homem que está no fundo de uma escada sempre a acender um fósforo."
- Ah! Até em sonhos me enganas! - suspirou Erik, irónico. Estavam ambos sós na grande oficina onde os empregados da propaganda costumavam trabalhar nos seus esboços.
Liliana, com o vestido branco que estreara no barco e Erik, de mãos frouxas, pintava, fumava, tornava a pintar. Esse nervosismo tinha começado com
o primeiro beijo; depois, o rapaz não se havia mais acalmado.
Muito tempo reprimira o artista que havia em si. A crise tinha estalado, assim que viu Liliana com o seu vestido branco, nessa memorável noite do barco. "É como
o sarampo, queixava-se ele. Tem que sair, senão morro intoxicado." Liliana sorria sem compreender, mas consentia na pose. Na sua vida perturbada e destruída, as
horas com Erik eram as únicas que tinham algum valor. Sentia por ele uma paixão estranha, confiante: era como que uma despedida de qualquer coisa. Entretanto, o
quadro que pintava tomava forma, "não sou absolutamente eu, criticava Liliana considerando o retrato com ar zangado. "Que tens a objectar?" - preguntava o artista,
afastando-se do cavalete - Parece um sorvete de morango
- analisava o modelo numa gargalhada desdenhosa -Decididamente, tu não fazes de mim uma idea justa.
- Evidentemente, se eu quisesse pintar o diabo que tu és não ganharia com certeza o primeiro prémio no concurso de cartazes - disse Erik aproximando-se do seu trabalho
com ar ameaçador e acrescentando alguns retoques. O branco é a coisa mais difícil de pintar. - acrescentou - Conta-se que Renoir, quando envelheceu, dizia: "ficaria
contente se pudesse pintar um guardanapo branco, apenas um guardanapo branco."
Liliana seguia com aborrecimento esta incursão na história de arte.
-Tens a certeza de ganhar o prémio?-preguntava.
- Absoluta, meu amor. Ganhamos mil dólares e iremos juntos apanhar uma bebedeira e divertirmo-nos muito.- dizia Erik-Ela sabia que, no fundo, ele a odiava por Nina
o ter abandonado por sua causa. Parando de pintar, Erik, pensativo, pôs um pouco de branco na paleta: também pensava em Nina, em todos os projectos que tinham feito
com esses mil dólares, em todos os sonhos mortos.
- Vi-a ontem - disse Liliana como se os seus pensamentos tivessem falado alto.
- A quem ? - preguntou ele, afogueado, e começando a pintar precipitadamente. Liliana deixou passar a pregunta supérflua.
- O velho com quem ela vive parece que lhe dá muito dinheiro. Devias ver como se portou cá na loja. Menina para aqui, menina para ali... Tinha-lhe dado de boa vontade
um murro nos queixos, podes crer.
- Como... estava ela ? - preguntou Erik, sem querer, depois de um longo silêncio.
- Deliciosa, divina, encantadora. É esta a resposta que desejas?
Pousou os pincéis e avançou para Liliana. Ela deu um passo atrás, pois parecia que ia bater-lhe. Mas Erik não era o Bill e não usava revólver na algibeira.
- Porque não deixas a Nina em paz? Não te basta ter-nos separado?-disse pouco depois, em voz baixa e ameaçadora.
Liliana levou tempo a responder; teria gostado de dizer muitas coisas feias, mas conteve-as, pois embora tivesse ciúme de Nina, não o queria confessar. Gostava de
Erik à sua maneira, tanto quanto era susceptível de amar... mas isso não se podia dizer. Deitando o cigarro fora, desceu do estrado...
- Porque será que tudo em que eu toco se suja ?
- disse, de súbito. Era uma frase que podia ter um som brutal, mas saiu apenas triste. Erik notou-lhe uma pequena oscilação na voz e voltou ao seu cavalete.
O quadro ia em meio. Representava um pedaço de água verde sobre o qual vogava um barco com velas cor de laranja; encostada a um mastro, estava Liliana com o seu
vestido branco. Erik tinha-se cingido, na pintura, às linhas do seu corpo, o ombro direito e a cabeça estavam terminados, mas a anca esquerda estava ainda mal definida.
E só faltavam três dias para a data fixada para a entrega das provas. Erik tinha febre durante
as suas horas livres, antes e depois do serviço. Desde que Nina o deixara, afligia-o a idea de voltar para casa: o leito vazio no quarto de dormir... e um silêncio
absoluto. O velho Filipe e a sr.a Bradley já não lhe dirigiam a palavra; quanto a Skimpy aborrecia-o preguntando-lhe constantemente, quando é que a Nina voltava
e para onde tinha ido. Preferia ficar na Central onde dormia numa velha cama de campanha, na oficina, pintando a qualquer hora da noite. De vez em quando, Cromwell,
o novo detective, ia visitá-lo, Levava um frasco de gin e fazia, a respeito do quadro, reparos de arrepiar os cabelos. Erik tinha a vaga intuição de que entre Liliana
e o detective havia qualquer coisa, pois este não podia conter algumas observações sorridentes. "Ela não tem as pernas tão compridas como estão no quadro." -dizia
ele. Conheço-a bem; tem umas pernas compridas, mas ainda assim, não tanto. "Ou ainda": "Se eu fosse pintor, pintava-a deitada. É assim que os seus melhores pontos
se valorizam." Isso tornava Erik furioso a ponto de o fazer recusar o gin oferecido. "Quanto ao resto, é um cartaz espantoso. Tenho a certeza de que vai ganhar o
primeiro prémio."
- acrescentava Cromwell com um ar bonacheirão, retirando-se, Erik refreava a custo o desejo que sentia de dar um pontapé na tela e de se ir refugiar ao pé de sua
mãe, no asilo de alienados. Em vez disso, punha novas cores na paleta e tentava levar a obra a bom termo. Desde que Nina o tinha deixado, a pintura era a única coisa
que o interessava suficientemente e o fazia esquecer, durante algumas horas, o que se tinha passado. Fenómeno curioso: o sentimento que experimentava por Liliana,
essa funesta insatisfação e o entusiasmo que se tinham apoderado dele, enfraqueceram desde que perdera Nina. Á sua única consolação era agarrar-se a Liliana, tal
como um doente que não quere abandonar o leito no qual sofreu durante semanas.
As alusões de Ricardo Cromwell não eram os únicos pontos tenebrosos da vida de Liliana. Um sábado,
depois de Erik ter recebido o seu magro salário, levou-a a um club de noite, como Liliana desejara. Vestiu o seu smoking, pois ela parecia ligar a isso grande importância,
e Liliana pôs o seu casaco de arminho. Fizeram uma entrada no club onde todos olharam, com admiração, para a jovem mulher. Erik sentiu-se ao mesmo tempo orgulhoso
e pouco à vontade. Não ousou preguntar como é que, com os seus vinte e cinco dólares semanais, ela tinha podido comprar um casaco de arminho. Dois homens com atitudes
de gangsters piscaram-lhe os olhos, familiarmente.
- Quem são aqueles indivíduos? - preguntou ele.
- Amigos meus.-respondeu Liliana.
No fundo, Erik não sabia nada a respeito dela. Sabia que dançava bem o tango e que a sua boca tinha o gosto amargo da baunilha, por causa do bâton que usava. Nem
sequer sabia onde ela morava. Tinha lhe contado que saíra de casa dos pais, mas guardou segredo sobre a sua direcção. Nunca lhe consentia que a levasse a casa. Saltava
para um táxi e afastava se a toda a velocidade emquanto que, durante muito tempo ainda, ele errava pelas ruas, solitário, no turbilhão nocturno das luzes de Broadway
- pensando em Nina.
ErA quarta feira, o dia de venda a um dólar em todas as secções da Central. Na secção de sedas havia liquidação de retalhos. Dois agentes da polícia estavam à porta
sul, onde tudo era vendido à razão de dólar por três artigos; três camisas de homem, três pares de meias de seda, três lenços de linho, três clips de pedras falsas.
No sexto andar, Cromwell não sabia que fazer para manter a ordem. Aí, tudo se liquidava à dúzia: uma dúzia de copos de vinho; uma dúzia de chávenas, de café; uma
dúzia de pratos de bordos doirados, isto na secção de louças e vidros. Miss Drivot andava numa actividade febril, a sua face estava coberta de pequenas gotas de
transpiração e de veiazinhas. Parecia que a sua circulação sanguínea não lhe permitia resistir ao assalto dos clientes. O sr. Berg, chefe da secção, ajudava em pessoa,
embora não fosse essa a sua função. A nova caixeira que substituira Nina era desajeitada : não estava ainda a par do serviço e miss Drivot tinha de lhe dizer em
segredo, números e preços.
Na entrega, acumulava-se gente. Ouviu-se tilintar: a sr.a Bradley acabava de partir um prato de cristal.
- Que aconteceu ? - indagou o sr. Berg, que fazia a sua inspecção.
- Nada, não tem importância. - balbuciou a sr.a Bradley, receosa. Tinha febre, não via claro por causa da febre e do sofrimento, tudo estava desfigurado, tudo
oscilava à sua volta. Pousou um embrulho meio feito e dirigiu se para a escada do pessoal. Mal chegou diante da porta envidraçada, caiu desmaiada.
Levaram- na ... Tudo isso foi feito num abrir e fechar de olhos, sem ruído, sem escândalo: os serviços sanitários da casa trabalhavam bem e as caixeiras desmaiadas
não eram raras no Dollar-day. O pacote meio pronto permanecia ainda em cima da mesa, quando a sr.a Bradley já estava para entrar no carro da ambulância.
- Quanto tempo tenho de esperar pelo meu embrulho?- preguntou a freguesa, encolerizada.
O sr. Berg fez tudo para restabelecer a ordem.
- Imediatamente, minha senhora, um momentozinho, se faz favor. - disse, com solicitude. Uma rapariga correu a substituir a sr.a Bradley, uma rapariga ruiva, de grande
boca risonha. O embrulho foi acabado e a cliente servida. Era bem pouca coisa, afinal, a desaparição de um dos setecentos empregados da Central... Meia hora mais
tarde, a sr.a Bradley estava adormecida pelo éter, suspirava aliviada, como se flutuasse sobre grandes vagas. Um cirurgião de luvas de borracha, com o rosto tapado
pela máscara branca, operava-lhe o apêndice. com este, eram quatro mil oitocentos e sessenta e dois apêndices que extraía na sua vida, e, por isso, o facto afligia-o
pouco: "Um apêndice particularmente feio" -disse, em ar de censura à enfermeira que estava ao éter, emquanto lavava as mãos. A sr.a Bradley foi instalada no hospital
com um pequeno aviso à cabeceira da cama. Estivera em riscos de morrer e salvara-se, mas não o sabia. Continuava sob a influência do éter e, acompanhada pelo sr.
Bradley, ia a um pique-nique num automóvel muito esquisito que possuía e era dos mais elegantes no ano de 1924...
Agora, eram seis horas e cinco e a Central atirava os últimos clientes para a rua. No vestiário, as caixeiras,
extenuadas, punham pó no nariz suado, emquanto os caixas faziam, febrilmente, as contas.
Cromwell, o detective, subiu até ao 12.? andar para ir buscar o sobretudo. Logo que, assobiando, entrou no seu escritório, que era um pequeno buraco dando para o
pátio velho, encontrou Filipe.
- Olá, Filipe - disse, olhando para o velho que mexia em papéis amarelecidos, em cima da mesa.
- Olá, Cromwell - respondeu gravemente Filipe.
- Está a fazer arrumações? - preguntou Cromwell, jovial.
- Levo as minhas coisas. Os meus três meses terminam na próxima semana.- respondeu o velho detective.
Cromwell, que alisava os cabelos a um espelho de algibeira, deixou de assobiar. "É uma vergonha." - disse, sem intonação. Um instante depois, voltou ao seu problema
particular: "Diga-me cá, Filipe, quantas vezes por dia é obrigado a barbear-se?"-preguntou, enchendo a face com a língua e vendo no espelho de algibeira os resultados
obtidos.
- Todos os dias, se lhe interessa saber - respondeu Filipe, aborrecido.
- Pois eu, duas vezes ao dia sempre que desejo sair à noite. Senão, as raparigas queixam-se - gabou-se Cromwell.
E embaciou o espelho, limpou-o com a manga e tornou a guardá-lo.
A absurda insensatez de toda esta mímica desesperou Filipe.
- Mandou-me dizer que o esperasse ... - observou, um pouco irritado.
-Ah! sim, é verdade. Queria pedir-lhe para passar aqui a noite, hoje. Pode dormir, nada o inquieta, é apenas pro-forma. Tenho que fazer... compreende? De vez em
quando, preciso de ter uma noite minha... Cada um tem também a sua vida particular, não é verdade ?
- Hoje calha mal. -disse Filipe-A sr.a Bradley, em casa de quem moro, foi para o hospital. E eu queria ficar ao pé da criança que está sozinha em casa.
- Tudo isso é muito bonito, mas você não é criado de meninos, é detective. Lamento, mas prometi absolutamente ao manequim do salão de costura, sair esta noite com
ela. Você sabe o que é isto... com senhoras ...
- Então divirta-se. - cortou Filipe para acabar com a conversa - Eu cá fico a olhar por isto.
- Não é preciso olhar por nada: desde que eu cá estou, nem uma carta de alfinetes foi roubada. Durma... contente-se em fazer uma vez, à meia-noite, a ronda do costume.
-Bem, bem, eu conheço o trabalho melhor do que você. -resmungou Filipe.
Cromwell não levou a mal. O velho fazia-lhe pena. Foi ao pé dele e bateu-lhe no ombro:
- Fico-lhe sinceramente reconhecido por me querer substituir. A rapariga é diabòlicamente bonita e tenho de andar atrás dela, se a quiser apanhar -explicou.
Exasperado, Filipe viu a porta fechar-se atrás do homem.
Rebuscou ainda um pouco a gaveta donde queria tirar o que era seu: algumas cartas, velhos recortes de Jornais, restos emmurchecidos de uma vida ajuizada e descuidada.
Tentou reler alguns dos recortes, mas as letras tremiam-lhe diante dos olhos. Desde que tinha renunciado a beber, o velho Filipe vivia num mundo impreciso e desbotado.
Passava mal, tinha zumbidos nos ouvidos, às vezes mal ouvia o que lhe diziam e esquecia os nomes, os rostos e os números dos telefones. As costas vergavam-se-lhe
logo, mal se punha em pé. Subitamente, o olhar poisou numa garrafa que Cromwell deixara em cima da mesa: era o gin recusado por Erik.
Filipe notou, contrafeito, que lhe tremiam as mãos emquanto olhava para a garrafa. Voltou à gaveta e,
segundo o seu hábito, meteu o revólver na algibeira do lado do casaco. A sensação da arma contra o corpo deu-lhe mais segurança. Num passo brusco, foi ao pé da mesa,
fez saltar a rolha da garrafa - sentiu, com espantosa precisão, a pequena cápsula de estanho entre os dedos - depois bebeu três grandes goles. O gin, acre e quente,
descia-lhe pela garganta; já ele sentia o calor penetrar em largas ondas no interior do tórax. Durante alguns instantes, o ruído, nos ouvidos, tornou-se uma ameaça,
para depois cessar completamente. Atónito, o velho Filipe olhou à sua volta, pois uma claridade e um silêncio inesperados entraram em todo o seu ser. Bebeu outra
golada, depois, saindo do aposento, enfiou pelo corredor que ia dar à oficina dos decoradores.
- Ouça lá Bengtson, você pode ir agora lá a casa e trazer-me a Skimpy? A mãe está doente e eu encontro-me de serviço esta noite.
Erik permanecia de pé em frente de um cavalete em cima do qual estava colocado um quadro coberto com um pano velho. Agarrou nos pincéis e foi lavá-los à torneira.
- Lamento... pobre sr.a Bradley!... Liliana acabou de me contar. Mas eu não posso ir buscar a pequena. Toda a secção b8 deve ser remodelada esta noite.
B 8 era a secção das sedas estampadas, no 3.? andar. Depois do Dollar-day, essa secção parecia um campo de batalha, Filipe sabia-o.
-Que havemos de fazer então? -preguntou ele, voltando-se para Liliana, - A jovem esperava ao pé da mesa, com o seu vestidinho preto, de caixeira, o casaco no braço
e uma boina verde na mão. Era estranha esta nova lucidez com que o cérebro de Filipe apanhava outra vez tudo; imagens, ruidos, perfumes. Ouvia distintamente a torneira
pingar depois de Erik ter lavado os pincéis, o perfume de Liliana feriu-lhe o nariz, como qualquer coisa de palpável,
Sentia uma irritação ao respirar esse perfume pesado e voltou-se com ar pouco amável para a rapariga. "Tem passado muita vez a noite em nossa casa... Podia ir a
Fieldston e ficar ao pé de Skimpy."
Liliana encolheu os ombros. "Eu ia de boa vontade, mas tenho um encontro urgente" - respondeu. Erik despiu a bata manchada de tinta e vestiu o casaco. Filipe voltou-se,
indeciso: "É verdade... tinha-me esquecido completamente"... - disse, e as alusões de Toughy acudiram-lhe à memória. Eram agora tão notadas na sua memória, que tornou
a ver cada um dos pêlos da face do jovem detective. Erik olhou o com uma leve surpresa.
- Liliana tem ainda que me servir de modelo, esta noite, assim que eu acabar de arranjar a B-8 - disse. - O prazo expira amanhã de manhã e nos últimos dias quási
não pude trabalhar. E pegando na chave que tinha no bolso, dirigiu-se para a porta. vou só comer qualquer coisa à pressa - acrescentou. Liliana seguiu-o. Ao clarão
da luz, Filipe notou como Bengtson estava pálido. Um reflexo mate de suor cobria-lhe o rosto nervoso; os dois sulcos à Gary Cooper marcavam-se-lhe mais nas faces,
cheias de sombra. Filipe saiu com eles da oficina e observou os gestos de Erik, fechando a porta à chave. O par foi tomar o elevador. Emquanto ele os seguia com
o olhar, quando iam para o elevador, considerava a situação. Segundo todas as aparências, esta Liliana tinha prometido a noite a dois homens. "Hum... pensou, é preciso
que ela seja muito esperta, para ir aos dois encontros."
Agora a casa estava deserta e tranquila. Pertencia ao velho Filipe como lhe tinha pertencido durante numerosos anos. Errou pelas escadas, de andar em andar, inspeccionando
todos os cantos. Daí a pouco sentiu-se extraordinariamente descontente e agitado. Olhou para as mãos: tremiam quando as estendia. Pegou na sua chave, abriu um elevador
e subiu ao 12.? andar. 155
Todo o corredor cheirava a Liliana. Foi ao escritório e bebeu a metade do gin. Depois pegou no telefone e mandou ligar para Skimpy.
- Estás admirada de não termos ainda chegado a
casa?
- Sim, tio Filipe. Aconteceu alguma coisa?
- Escuta Skimpy, temos tido muito trabalho. Tens medo de estar sozinha em casa ? Não queres ser uma menina corajosa e ires dormir?
Passou-se um instante antes que Skimpy, no outro lado do fio, arrumasse tudo isso na sua cabecinha.
- Queres dizer que a mamã não vem para casa ? -Sim, é isso. Ela não está muito bem e a nossa
enfermeira está a tratá-la.
- Mas eu tinha feito o jantar para vocês!
- Queria saber se tens medo de estares sozinha em casa? -tornou a preguntar o velho Filipe.
Houve outra vez um instante de silêncio.
- Tenho sim, tio Filipe... - Isto foi murmurado com uma vòzinha, na qual já tremiam as lágrimas.
Filipe tinha agora o cérebro lúcido e não reflectiu um segundo:
- Presta muita atenção ao que te vou dizer, Skimpy. Daqui a uns minutos um automóvel há-de businar três vezes à porta. É um táxi que te mando. Metes-te nele e vens
para a Central. Quando chegares, preguntas por mim ao homem que está à porta, tu conheces bem o Joé, não é verdade? Ficas aqui ao pé de mim e ajudas-me a guardar
o armazém, queres?
- Os brinquedos também ?
- Sim, os brinquedos também. Mas avia-te, veste-te de-pressa que o carro vai já.
Filipe riu, pois não se ouviu nenhuma resposta: apenas o estalido seco do auscultador que Skimpy punha no descanso. Folheou a lista dos telefones e chamou para uma
garagem de táxis de White Plains, dando as instruções necessárias e dizendo que o táxi seria pago
assim que a pequenita chegasse à Central Warehouse. Bebeu mais um gole de gin e ligou para o hospital, para onde a sr.a Bradley tinha sido transportada. Disseram-lhe
que tudo ia bem. A operação correra perfeitamente, a doente estava ainda um pouco aturdida pelo narcótico, mas livre de perigo. Filipe soltou um suspiro de alivio.
Deslizou diante da garrafa mein vazia e saiu do 12.? andar. Calculou que Skimpy não poderia chegar antes de meia hora, justamente o tempo de fazer uma ronda ao estabelecimento.
Tal como tinha procedido durante vinte e sete anos, começou pela sala dos caixas. Examinou todos os postos de alarme no aposento semi-iluminado, encontrou, à saída,
um dos guardas da noite que acertava o relógio registrador ao pé da escada 8. Trocou algumas palavras com ele e continuou a sua ronda. No grande escritório das dactilógrafas,
as máquinas de escrever estavam arrumadas em boa ordem, todas cobertas com a capa de oleado. Continuou o seu passeio por todos os andares, acendendo aqui e acolá
a sua lâmpada de algibeira; parando, apurando o ouvido, espiando o silêncio do enorme edifício e continuando o seu caminho. No rés-do-chão parou um pouco ao pé da
porta de Joé.
- Ouça lá Joé, vão trazer aqui uma menina; é a filha da sr.a Bradley. Aqui tem dinheiro para pagar o táxi. Chame-me, assim que ela chegar, percebeu?
- Sim senhor, chefe.- respondeu Joé levando a mão ao boné. As vigílias comuns tinham-nos feito velhos amigos. Joé, além disso, havia ajudado, quando transportaram
a sr.a Bradley na maca para o carro da ambulância.
- Só me falta descer à cave e depois acabou-se. disse Filipe, continuando a ronda. Joé viu-o partir abanando a cabeça, até que a sua sombra desapareceu da parede.
"Que pena... pobre homem ! - comentou pensativo.
Filipe percorria o território plebeu da cave. Aí reinava um verdadeiro caos depois da batalha do Dollar-
Day- Atravessou a secção de armamento que tinha sido passada para baixo, seguiu a dos móveis baratos e chegou ao fim, à porta de ferro do depósito de peles, pegou
na chave e na lâmpada de algibeira e manobrou a complicada fechadura. Abriu a segunda porta, entrou. Estava escuro lá dentro e respirava-se um ar acre e frio. Fez
luz; todo o sortido de peles estava reunido no vasto aposento, cada uma delas cuidadosamente embailhada num resguardo contra as traças. Havia ali mais de cem mil
dólares entre as filas dos tubos do frigorífico. Filipe tivera sempre um fraco pelo armazém de peles; era como um mundo aparte, lá em baixo, um mundo frio e fechado.
A sala era muito alta e cruzada em todos os sentidos pelo complicado sistema de tubos que mantinham a temperatura a 28º. Meteu-se entre as peles, automaticamente,
segundo um hábito adquirido no decorrer de anos, encontrou tudo em ordem e voltou à porta. Maquinalmente, ligou a campainha e saiu do depósito, deixando o alarme
pronto a poder funcionar.
A entrada do armazém das peles era cheia de instalações automáticas, como na sala dos caixas. Como ele agisse de uma forma mecânica e habitual, o velho Filipe tinha
quási esquecido que as campainhas de alarme não roçavam. Mas, um segundo mais tarde, o silêncio caiu sobre ele como qualquer coisa de palpável, uma espécie de pano
negro ou uma pancada. Ficou petrificado no mesmo sítio, com as mãos estendidas, tremendo, tremendo desesperadamente. Pegou no revólver, mas era um movimento absurdo.
Agora ouvia o martelar do seu coração, no peito, nas fontes, em toda a parte... as campainhas de alarme não funcionavam !
Como o silêncio persistisse e não surgisse nenhuma sombra sobre que pudesse atirar, o velho detective julgou-se no dever de descobrir donde provinha a paragem dos
sinais. Podia ser apenas um desarranjo dos fios de que Toughy, na sua confiança em si próprio, nem dera conta. Tateou até ao botão secreto, abriu um pequeno
cofre de ferro incrustado na parede e tentou acender uma lâmpada encarnada. O sinal luminoso, tal como as campainhas de alarme, não funcionava. Fechou cuidadosamente
o cofre e, sempre na defesa, transpôs a porta. Havia ali instalações que deviam disparar automaticamente, das quais nunca fizera grande caso. Voltou ao depósito
e, no ar envinagrado e no pesado silêncio, inspeccionou todos os cantos: não descobriu nada. Não percebeu mesmo que agia de uma forma insensata e temerária, pois
se um ladrão se tivesse escondido entre as peles, Filipe estaria, havia muito, reduzido à impotência. Na angustiosa tensão de nervos provocada pela sua descoberta,
tinha mesmo esquecido Skimpy. Subitamente, lembrou-se da criança. Abandonou o depósito das peles, transpôs prudentemente a porta que fechou à chave. com a mão sobre
o gatilho do revólver que tinha no bolso, atravessou rapidamente a cave e tomou o elevador, para subir. Durante segundos, traçara o seu plano; não participaria nem
aos guardas da noite, nem à polícia as suas suspeitas. Se depois se descobrisse qualquer coisa nas instalações eléctricas, qualquer curto-circuito, fariam troça
dele. Se qualquer coisa de anormal tivesse que se passar no depósito das peles, e um instinto preciso, insinuante, angustioso, parecia adverti-lo, queria combatê-lo
só, queria reservar para si todo o perigo e toda a honra.
- Ah! cá estás! - disse ele, assim que chegou ao aposento de Joé e viu Skimpy. Ela vinha toda bonita: esfregara energicamente a cara e as mãos com sabonete, antes
de se lançar nesta grande aventura.
- O Joé disse que a minha mamã está no hospital.
- murmurou, de cabeça pendida para o peito, mas sem chorar.
- Sim, sim... mas está melhor e mandou-te dizer que não tenhas medo. Amanhã de manhã, iremos vê-la
- disse Filipe. Ele já não sabia o que fazer da criança pois tinha que voltar à cave. Tu não queres ficar aqui ao pé do Joé e dormir em cima do sofá ? - preguntou.
- Não. - disse vivamente Skimpy.
Era um velho sofá, cuja crina saía por todos os lados, que estava impregnado com cheiro de tabaco de cachimbo. Joé riu com bonomia.
-Quero ir para o pé dos brinquedos.-declarou Skimpy.
Ela estava quási a chorar, mas continha-se corajosamente. Filipe pegou-lhe nas duas mãos.
- Joé, - disse ele, antes de partir com a criança, escuta. Tem esta noite especial cuidado, se notares o que quer que seja de suspeito, chama imediatamente a polícia,
percebeste?
- Sim, chefe - disse Joé com um novo cumprimento. Não percebia nada. "O velho está cada vez mais velho", foi tudo quanto pensou.
Filipe entrou no elevador e subiu à secção dos brinquedos. A mãozita confiante tremendo na sua mão, acalmava-o um pouco, com o seu calor.
- Agora escolhe qualquer coisa para brincares, mas de-pressa e toma cuidado; é só emprestado. Não tens nada que ver como é feito por dentro. - disse ele, pois conhecia
as bonecas de Skimpy, cujas cabeças abertas tinham sido vítimas da tendência exploradora da criança. Skimpy, que tinha o sentimento de ser uma grande pessoa, fingiu
um interesse frio. Filipe meteu lhe nos braços uma boneca e uma paciência e subiu com ela até ao
12. andar.
- Escuta, - disse ao guarda que encontrou lá em cima - vigia bem esta noite, especialmente as escadas de socorro e a cave.
- Muito bem, chefe. - disse o homem, fazendo pouco caso da recomendação.
O velho detective não sabia ao certo o que devia fazer da criança. Todo o seu corpo ardia de impaciência, o seu escritório, ou antes, o escritório de Cromwell, era
um sítio miserável e Skimpy não queria lá ficar. Tomando uma rápida decisão, abriu a oficina de decoração, acendeu
a luz e olhou à sua volta: Bengtson não estava ainda de volta; no cavalete, o quadro continuava coberto... O perfume de Liliana flutuava pesadamente no ar.
- Bem ... podes instalar-te aqui a brincar... ou a dormir. - disse, rapidamente.-Eu volto já. Mas é preciso que não saias daqui, mesmo que ouças barulho. Compreendeste?
Erik vai chegar daqui a pouco. Poderás ajudá-lo a pintar.
- A Nina também cá está ? - preguntou Skimpy.
- Não. Saiu. - respondeu Filipe.
Esperou ainda um instante que Skimpy se instalasse na cama de campanha com a sua boneca, depois dirigiu-se para a porta. Num segundo, teve o pensamento de que a
criança fora a última pessoa que lhe tinha sido dado ver... Talvez uma bala lhe estivesse destinada nessa noite, na cave, no depósito ou nas escadas. Hesitou um
pouco, depois voltou em passo vivo ao escritório que fechou à chave. A garrafa lá estava, meia vazia. Bebeu alguns goles grandes, sentiu calor; a lucidez de espírito
e a decisão entraram em si e pôs-se a rir, pensando em Toughy.
-"Ele precisa de barbear-se duas vezes!" - murmurou, com desdém. Pôs a garrafa na algibeira, procurou com a mão o revólver, meteu algumas balas de reserva no bolso
do casaco e saiu. Parecia a Filipe que já tinham passado muitas horas desde que o armazém fechara.
Desceu ao depósito das peles e abriu as portas. O silêncio e o frio reinavam no interior. As peliças estavam alinhadas em boa ordem e os tubos, pintados de branco,
ziguezagueavam entre elas. Filipe tirou um dos casacos e envolveu-se nele, antes de se sentar a um canto para esperar. Daí a pouco tinha os dedos hirtos de frio,
doíam-lhe os dentes. O tempo passou.
Não acontecia nada.
Erik estendeu a mão por cima da mesa.
- Mas... é proibido... - hesitou ele.
- Proibido ? - replicou ela, rindo - Como háa"de acabar o teu quadro se eu não vier?
- Podes vir sem ter a chave.
- Quando, às nove horas ?
- Um pouco mais tarde. Tenho de acabar primeiro a B 8 e vai levar tempo.
- Então quando ? Às onze horas ? Posso esperar.
- Tu sim, eu não. - replicou Erik, aborrecido.
Estavam no "Rívoldi". Sim, agora estava com Liliana no "Rivoldi" atrás da mesa de mármore, sobre o velho banco de veludo.
-Vamos, dá-me a chave. vou às onze horas e subo directamente à tua oficina.
- Aborrece me entregar isto - disse Erik, hesitante, pousando sobre a mesa o pequeno molho de chaves.
- Então, não. - terminou Liliana, levantando-se - Estou farta de dar nas vistas e de falatório... quando, de noite, vou ter contigo, e me têm de acompanhar.
- Pronto. Aqui está a do elevador, escada 5 - decidiu-se Erik, indicando as chaves. Tinha-as posto em cima da mesa, mas Liliana nem para elas olhava. Já sabes, no
12. andar vais até à boca de incêndio, voltas à direita e
assobias. Se eu ainda lá não estiver, abre a porta da oficina e espera-me. Há cigarros na gaveta.
- Entendido, - retorquiu Liliana - não te canses muito. Adeus Baby.
Pegou nas chaves e meteu-as na malinha.
- Agora tenho de me aviar.
- Tão de-pressa!...
-Tenho muita. Descobri um cabeleireiro que me penteia depois das sete horas. Vou-me embora. combinado. As onze.
Erik viu-a sair. Possuía o mais belo corpo de mulher, que lhe tinha sido dado contemplar. Todos os comensais se voltaram; era uma dessas raras criaturas que, mesmo
com capa de borracha, parecem nuas. Assim que a porta se fechou atrás dela, Erik acendeu outro cigarro. Continuou sentado diante de uma chávena de café. O criado
aproximou-se, limpou a mesa e quis falar-lhe em italiano, mas Erik não respondeu. Também não tinha vontade de voltar de noite à loja para arranjar a secção das sedas,
não tinha vontade de acabar o quadro, era-lhe indiferente ganhar ou não o prémio. Sonhou um momento, pegou no lápis e desenhou qualquer coisa na mesa. Ao princípio,
alguns projectos para a secção de sedas, depois qualquer coisa que apagou com o dedo. Esperou uns minutos ainda, olhando fixamente na sua frente, com os olhos vagos,
Por fim, levantou-se, pagou e foi-se embora.
Sobre o mármore coberto de nódoas, distinguia-se um esboço um pouco apagado: não era o retrato de Liliana, mas o de Nina.
Durante esse tempo, Liliana seguia à pressa pela rua 41.a, depois tomou a 8.a Avenida. Um automóvel verde esperava-a, entre os carros parados diante de um hotel.
Liliana subiu. O motorista era um bonito rapaz de cabelos pretos, anelados. "Anda, anda, Kid. É tarde." - disse ela. Desceram rapidamente a avenida. "Bill está lá?"
- preguntou ela.
- Esperam desde as sete horas. Há qualquer coisa em vista?
-Anda e cala-te. - respondeu Liliana, muito nervosa. Fumava um cigarro que meteu na boca do rapaz. Contente, ele fez uma careta. O carro andou rápido, obliquou e
parou bruscamente. É melhor tu esperares aqui disse Liliana, descendo.
O prédio no qual Bill tinha alugado um andar, exibia um luxo burguês um pouco exagerado. Falso tapete do Oriente na entrada, uma jovem mulher com um olho de vidro
no escritório de recepção, um negro no elevador. Este teve uma piscadela de olho, interrogativa, levando-a para cima. "Isto vai bem, Pedro"-respondeu, aborrecida.
Na sua casa, tocava a T. S. F.
- Até que emfim!-disse preguiçosamente Bill, quando ela entrou. Como sempre, o aposento estava cheio de fumo: garrafas vazias, um balde de gelo, tudo em cima da
mesa. Um copo tinha-se entornado sobre o brocado e o álcool pingava pegajosamente para o chão. Liliana atravessou o aposento, encaminhando-se para o seu quarto de
dormir. Olá ?"-- limitou-se a dizer. Tirou o chapéu e, no espelho, viu-se pálida sob a pintura. "Não fui feita para estas coisas" - pensou fugitivamente.
As asas do nariz estavam quási verdes de medo. Bill seguiu-a ao quarto.
- Então, arranjaste tudo ? - preguntou. Ela tirou as chaves da bolsa.
- Aqui estão. - disse. Bill riu baixo. Não agarrou logo nas chaves. Liliana levantou-se e voltou à sala. Big Paw baloiçava-se molemente numa poltrona, tendo ao colo
Máxima, que se levantou à aproximação de Bill. Era loira, pálida e muito nova; tinha a figura de uma bailarina. Liliana percebeu que Bill estava sob a influência
da cocaína. Ele tinha dito que tomava sempre cocaína, quando empreendia algum golpe difícil. Os olhos brilhavam-lhe. O bando trouxera nesse dia um homem de
reforço, com ombros largos de boxeur desenhando-se sob o pano verde do seu uniforme de groom.
Bill mergulhou a mão no bolso e tirou um estojo. Fez-lhe saltar a mola e exibiu um broche ornado com uma grande esmeralda ... Atirou a jóia para a frente de Liliana.
"Lindo trabalho, an? A lapidação fez-nos perder dois quilates, mas agora ninguém conhece a pedra." disse, com ar amável. Num gesto brusco, Liliana pegou na jóia.
Era a sua recompensa por ter vendido Erik.
- Pronto.-respondeu, pondo sobre a mesa um plano traçado à pressa - Deixem-me fora de tudo isto. Levai Máxima, e está tudo acabado entre nós, assim o espero. Pôs
as chaves ao pé do plano, sobre a mesa, no sitio onde estava a nódoa de álcool. As suas mãos pareciam curiosamente alongadas e pequenas ao pé dos rudes punhos de
homem que se lançavam sobre as chaves.
- Ah! sim? Estás farta de nós? Mas talvez não estejamos nós fartos de ti, minha menina. - disse Bill. Galantemente, Big Paw interpôs-se:
- Deixa-a em paz, ela trabalhou bem. - reconheceu. Liliana olhava para todos, um após outro, como se
saísse de um sonho. Os rostos estranhos, as mãos estranhas, a esmeralda ...
- Devem ir. - disse ela - Às nove horas o gorila
vem-me buscar.
Bill teve um novo ataque de riso. Alisava ainda
mais os seus cabelos lisos.
- Divirtam-se. - gracejou.
- Obrigada. - respondeu Liliana, abstracta. Bill aproximou-se dela e bateu-lhe no ombro: - Se isto correr bem, dou-te um lindo presente-prometeu. Bruscamente, inclinou-se
para a rapariga e colou os lábios vermelhos aos seus. Máxima olhava-os com ar zangado.
Assim que partiram, Liliana abriu as duas janelas e preparou um banho quente, pois estava gelada. Quando saiu da água, sentiu-se com melhor disposição. VoLtando
à sala, rebuscou as garrafas quási vazias. Eles tinham também absinto. Fez uma mistura de bebidas e enguliu essa mistura, que sabia fortemente a Kummel. Logo depois
sentiu invadi-la um calor e a habitual sensação de temeridade subiu-lhe à cabeça. Pôs-se diante do guarda-fato, acariciou os vestidos novos e caros e escolheu, emfim,
um vestido verde, de seda pesada, que lhe modelou as formas. O telefone, ao lado da sua cama, tocou. O relógio marcava nove menos cinco. "O sr. Cromwell está aqui"-anunciaram.
"Que me espere no hall, daqui a um instante estou pronta."-disse Liliana. Ela detestava o jovem detective, que achava ridículo. Num capricho súbito, tirou do armário
o casaco de arminho e pô-lo nos ombros. Tomou mais um copo, sentiu-se um pouco embriagada e, rindo a bandeiras despregadas, pôs o broche de esmeralda. O telefone
fez-se ouvir pela segunda vez. "Sim, desço imediatamente." - disse, encolerizada. Cromwell era grotesco na sua impaciência. Liliana, de pé em frente do espelho,
deu mais uma gargalhada pensando no que se passava na Central, emquanto ela ia sair com Toughy!
"Santo Deus!" - exclamou Cromwell, assim que a viu sair do elevador.
Perplexo, fitava o vestido, o arminho, as grandes luvas brancas. Ele tinha também vestido o seu melhor fato azul-escuro, que lhe assentava muito bem. Como só aos
antigos oficiais assentam os fatos.
- Santo Deus. - repetiu ele. Liliana, sobreexcitada pelo absinto, respondeu:
- Ora vamos... não sabes que os manequins são as mulheres mais caras de New-York?
Às onze menos um quarto, com dores de cabeça e as mãos sujas, Erik saiu da secção de sedas. Em baixo, continuavam a trabalhar, mas sem ele. Tinha arrepios e sentia-se
aniquilado.
- Não é muito confortável para a noite, o armazém.
- resmungou. Teve que atravessar a secção de artigos japoneses, absolutamente às escuras. Tirou a lâmpada da algibeira: os Budas estavam aqui e acolá, surgindo da
sombra.
Chegando em frente do elevador, perdeu imenso tempo a procurar as chaves, até que se lembrou de as ter emprestado. "Diabo!"- disse. Os nove andares, desde o
3.? até à oficina pareciam-lhe extenuantes e intermináveis.
Sempre resmungando em voz baixa, dirigiu-se para a escada e começou a ascenção. ? Era como uma subida difícil, na montanha. Ele subia, subia, já lhe faltava o fôlego
e ainda estava no 8.? andar. Parou, escutou ouvindo passos; de facto, apareceu um guarda.
- Se faz favor leve-me até à oficina e abra-me a porta - disse, acanhado - pois acabava de se lembrar que não podia entrar na oficina porque Liliana tinha as chaves.
O guarda resmungou qualquer coisa, pois fazia as rondas num semi-sono e não lhe agradava nada ser incomodado. No entanto, decidiu-se e tomou o elevador com Erik,
até ao 10. andar.
- É um ofício bem desgraçado, o nosso! - disse Erik, emquanto percorriam o corredor e passavam pela boca do incêndio, para a oficina.
- Como? - preguntou o guarda.
- É que ... você pode dormir de dia? - preguntou.
- Porque não? -respondeu o guarda, rindo.
- Melhor para si. Eu não posso. E tirou do bolso o maço de cigarros, metendo-o na algibeira do peito do uniforme do guarda.
- Está aberto. - disse o homem, depois de ter feito deslizar a chave na fechadura.
-Sim? Ainda bem. - replicou Erik - Obrigado e boas-noites.
Hesitou um instante antes de entrar. "Liliana já lá está" - pensou. Sentiu-se cansado, como que vazio, incapaz de terminar o quadro.
"Que os demónios levem o prémio!" Tinha a impressão de não ter dormido havia semanas, sim, de não ter dormido desde que Nina o tinha deixado. Dominou-se e abriu
a porta.
Liliana não estava lá, a-pesar-do aposento parecer animado. A primeira coisa que viu foi uma folha de papel, espetada com um alfinete, no pano que cobria o retrato
que estava no cavalete. Deu dois passos e leu:
"Se faz favor deixe a Skimpy passar a noite consigo. Se acontecer alguma coisa, queira levá-la amanhã à mãe ao hospital Santa-Maria. Obrigado. Filipe."
Erik olhou à sua volta e não distinguiu a criança imediatamente. Skimpy tinha rolado até à orla do leito, antes de adormecer. Colocara em cima dela o sobretudo de
Erik; muito chegada ao nariz, estava a cabeleira de uma boneca. A respiração era regular; uma suavidade, uma calma, emanavam dessa criança adormecida. "Se tenho
a desgraça de me deitar-pensou Erik -adormeço imediatamente." Lançou sobre os objectos um olhar vago e acabou por se sentar numa cadeira, a um canto. Esperou, aborrecido
e cansado. O relógio da
torre deu onze horas. Esperou ainda. Liliana não chegava. Erik levantou o auscultador e Joé respondeu:
- Está lá, Joé ? Ninguém preguntou por mim ? Não há nada para mim ? Ouça Joé, espero um dos manequins, deixe-a entrar quando ela vier. Que tome a escada 5. Como
? Se tem uma licença ? Sim, naturalmente. Obrigado, boas-noites.
"Onze horas e meia. Que mulher fatigante, esta Liliana!" - pensava Erik. Doíam-lhe os membros, os olhos fechavam-se-lhe. Levantando o pano, descobriu o quadro. Não,
não valia a pena pintar. Skímpy respirava, no seu canto. Erik deitou-se junto dela e soltou um suspiro. Não queria dormir... no entanto... adormeceu imediatamente...
QUARTA-FEIRA à noite tenho visitas, quero apre sentar-te aos meus amigos" - tinha dito Steve Thorpe a Nina, depois da última noite frustrada. Fazia o que fazem muitos
homens da sua idade e da sua posição. Já que não podia possuir Nina, queria ao menos dar na vista. Mostrava-se com ela por toda a parte onde ia: no teatro, no restaurante.
Tinha-a forçado a aceitar alguns lindos vestidos e tratava-a, como se ela fosse uma rainha disfarçada. No seu foro intimo, desejava que Lúcia se encontrasse um dia
com Nina. O convite feito aos seus amigos, tinha mesmo um fim: a certeza de que um deles contaria à sua ex-espôsa que vivia com uma mulher em casa e que parecia
feliz. Era já a segunda semana que Nina passava na habitação de Thorpe, em White Plains. Tinha aprendido a apanhar a coberta emquanto dormia, para evitar que caísse,
a
sustentar o olhar do criado e a receber, à noite, os convidados de Steve. Muitas vezes sentia a cabeça pesada. Em geral vivia como num sonho, num espaço sem ar.
Não se atrevia a preguntar a Steve quando lhe alugava a casa prometida, e ele pelo seu lado, parecia ocupado demais para pensar nisso. Havia dois dias que tentava
iniciá-la nas bases do jogo de bridge, e ela ouvia, com os olhos fixos, sem perceber nada. Ele ameaçava-a também de lhe dar um professor de piano, pois tinha uma
vaga
inclinação para a música, e queria que Nina, com a sua vòzinha, lhe cantasse canções. Desde a noite em que a fizera beber, cessara com as suas assiduidades. Nina
não tinha a consciência tranquila, pagavam-lhe e ela nada dava em troca. Tinha adquirido na Central a idea confusa de que a compra e a venda formavam as bases da
vida. Valor e contra-partida. Pagamento e produção. Sabia que aquilo não podia durar muito tempo assim. De qualquer lado que a considerasse, a situação era torta
e falsa. Competia-lhe dar a Steve o que ele esperava.
-És amável em me dares tempo, para me decidir ... - murmurava Nina, receosa.
Emquanto que ou dormindo ou acordada, sonhasse com Erik, não estava ainda madura para o sacrifício.
Na quarta-feira à noite ela estava um pouco excitada. Steve voltou do escritório mais cedo que de costume, e desapareceu imediatamente no seu quarto de vestir.
- Que devo pôr ? - preguntou Nina, através da
porta.
- O vermelho- escuro. - respondeu Thorpe. Ela ficou, por momentos, admirada que conhecesse a cor dos seus vestidos... Vestiu o vermelho-escuro, mas teve que parar
para se sentar. Sentia-se aturdida. Os lábios, bruscamente, tornaram-se frios.
O ruído que o criado fazia a pôr a mesa, chegou até ela com a emanação discreta dum cheiro a galinha assada vindo da cozinha. Pensando na comida, Nina teve uma ligeira
náusea contra a qual lutou com energia. Não posso ter gripe, não faltava mais nada! - disse, descontente. Desceu e lançou uma vista de olhos para a casa de jantar.
O mordomo, que não se chamava James, estava limpando os copos, embaciando-os com o bafo e olhando-os depois à luz. Este espectáculo provocou em Nina uma nova náusea.
Tirou-lhe o copo da mão e pô-lo em cima da mesa. De resto, ela era mais competente do que ele a respeito de vidros e do arranjo
de uma mesa. "Está bem, Trompsted" - disse. Tinha conseguido saber o nome do mordomo.
- A senhora deseja que sirva Pomard com a galinha ou vinho do Reno ? - preguntou ele, impenetrável. Ela sabia que ele gostava de a troçar. As suas mãos encontraram,
como uma coisa familiar, a sensação dos copos e da porcelana.
- Não sei nada disso. Você, Trompsted, deve saber melhor do que eu. - disse.
O criado inclinou-se.
- O dr. Back é vegetariano. - acrescentou ainda Ele não gosta que insistam para o obrigar a comer carne.
- De que terra é, Trompsted ? - preguntou Nina. A sua pronúncia agrada-me.
- Sou dinamarquês - declarou ele, colocando, com a ponta dos dedos um cinzeiro e cigarros ao pé de cada talher. Depois recuou e inclinou a cabeça, para o lado, afim
de avaliar o efeito do seu trabalho.
-Oh! Dinamarquês... - exclamou Nina - Tenho... tenho amigos dinamarqueses. A condessa Bengtson. Esperava uma observação qualquer que não veio.
- A minha família era muito grande na Dinamarca
- disse Trompsted, e pôs-se a olhar sonhadoramente as taças de flores que Nina dispunha em cima da mesa.
- Está bem, Trompsted. - disse ela. O mordomo afastou-se.
Steve chegou de cima; cheirava a sabonete de barba e esfregava as mãos. Os cães saltavam à volta dele, como loucos. "Então, pequenos mendigos?"-disse com bom humor,
agarrando ambos nos seus braços. Max era um verdadeiro palhaço e Moritz possuía uma natureza trágica. Gostava das atitudes à Greta Garbo. A campainha soou à porta
de entrada: os primeiros convidados chegavam.
Steve tinha convidado cinco homens e Nina não achou nada de extraordinário na ausência de senhoras, Agora tinha mais acanhamento do que no dia em
que fora exposta na vitrina, nessa vitrina em que Steve falava constantemente. A cada um dos convidados contava a história: como tinha visto Nina na montra e como
tinha ido às informações inquirindo a forma de a comprar. Parecia orgulhoso da sua conquista ou da sua aquisição ou - qualquer que fosse a denominação-do facto de
ter tirado Nina da montra para a trazer para a sua mesa.
Os senhores, cujos nomes Nina não tinha compreendido, dirigiam-se a ela com uma benevolência a que não era estranho um certo embaraço. Dividiam a sua admiração por
Nina e pelos bassets. O dr. Back era um homem de cabelos brancos como a neve, e olhos azues, que pretendia ter um coração muito jovem. Como Steve tratasse Nina com
uma delicadeza requintada, os convidados estavam um pouco tímidos e, com discrição, Trompsted trouxe os cocktails. Nina olhou-o amigavelmente porque ele era dinamarquês.
O rádio tocava, todos falavam ao mesmo tempo, tinham vozes fortes e riam muito. De súbito, as paredes da biblioteca, onde estavam reunidos antes do jantar, pareceram
afastarem-se de Nina: era uma impressão esquisita como se ela não estivesse ali; as palavras não feriam o seu ouvido senão de uma forma indistinta. Tony, que envergava
às vezes a libré de criado, abriu a porta da sala de jantar. O dr. Back ofereceu o braço a Nina e ela ficou reconhecida que quisessem guiá-la através do nevoeiro
que a rodeava. Assim que Trompsted passou a lagosta pelo seu ombro, sentiu-se mal.
Visível e indubitavelmente doente. Supôs que fosse o efeito do cocktail, mas teve apenas tempo de se levantar da mesa e correr ao seu quarto. Trompsted continuou
a servir, impassível, e Steve ria com ar contrariado, "Ela não pode suportar o fumo. - disse - É tão delicada, uma verdadeira criança."
Os cinco senhores puseram-se a falar todos ao mesmo tempo, para afastar o embaraço... Como Nina
não voltava, Steve segredou qualquer coisa ao ouvido do mordomo. O criado afastou-se e voltou segredando também a resposta. "Continua doente" - disse Thorpe um pouco
aborrecido. "Gripe" - lembrou Green que tinha sido seu sócio. "Toda a gente tem gripe, por causa do calor"-aprovou outro. Puseram-se então todos a falar da gripe
e a discutirem as suas fases e se era verdade que os morangos se tratavam com arsénico e se constituíam um perigo.
Quando serviram o café, o dr. Back pousou o guardanapo e saiu. Fez ao seu amigo Steve um sinal e Steve, reconhecido, respondeu-lhe do mesmo modo. Ouviram o médico
subir as escadas, que iam dar aos quartos.
O cognac foi servido em grandes cálices e os convidados voltaram para aquilo a que chamavam a biblioteca: era um aposento que tinha de tudo, menos livros. Instalaram-se
para jogar o bridge e Steve sentou-se em frente de Green ao pé do fogão de sala, diante do jogo de xadrez. Mas não jogou imediatamente porque estava distraído e
aborrecido. A-pesar-de gostar de Nina não podia dissimular que ela representava um malogro em toda a linha. Assim que saiu para ir buscar cigarros para os convidados,
teve o sentimento preciso que troçavam dele em vez de o admirarem.
Mas os aborrecimentos de Steve Thorpe nessa noite ainda não tinham acabado. Mal colocara as marcas de xadrez e feito as três primeiras puxadas, apareceu Trompsted
na biblioteca, debruçou-se para o patrão e disse-lhe qualquer coisa ao ouvido.
- "Como ? Que está a dizer?" - preguntou Thorpe. Trompsted, imagem da dignidade e da discrição, repetiu a misteriosa nova. Thorpe, sufocado, balbuciou: "desculpem-me."
e correu para fora do aposento. A sua partida foi tão súbita, que até os jogadores de bridge foram por momentos arrancados à sua concentração. De mau humor, Green,
o parceiro de Thorpe, ficou sentado diante da partida começada.
- Onde está ela ? - preguntou Thorpe logo que, seguido pelo criado de quarto, chegou ao vestíbulo. com o queixo, Trompsted designou a porta da entrada: era um gesto
pouco respeitoso. "Porque a deixou lá fora, santo Deus ! - exclamou Thorpe em voz baixa. "Madame Thorpe não quis entrar, senhor." - disse o criado, um pouco vexado.
Thorpe empurrou-o para o lado e lançou-se para a porta entreaberta.
Fora, sob a lanterna da entrada, Lúcia estava de pé. Parecia muito infeliz.
-Lúcia... como estás magra!...-disse Thorpe, à queima-roupa.
- Obrigada, perdi vinte e dois arráteis - respondeu ela como mulher que, mesmo na adversidade, não se esquece de verificar todos os dias o seu peso.
- Que posso fazer por ti?... emfim ... não queres entrar... tenho algumas visitas... tu conhece-las... Green, o dr. Back... estou muito contente por te ver... -
balbuciou Thorpe.
- Justamente. Não quero ... visto que tens gente... é a ti só que desejo falar. - disse Lúcia. Ela tirava, nervosamente, o veuzinho que lhe cobria a testa e os olhos.
Um ramo de violetas artificiais enfeitava-lhe o chapéu, como exigia a moda dessa primavera, e pareceu a Thorpe que nunca tinha visto nada mais triste do que essas
violetas.
- Vem, eles estão a jogar o brídge, ninguém te verá.
- disse vivamente pegando-lhe na mão e atraindo-a para casa. Assim que chegaram ao vestíbulo, não soube muito bem para onde a devia levar. Ela tremia toda e, com
a breca, ele tremia também. Da biblioteca chegava o riso dos jogadores. Em cima, do lado dos quartos, podia ouvir-se a voz monótona e ensurdecida do dr. Back que
parecia quási que resava. Steve lembrou-se de-repente que tinha Nina em sua casa; subiu-lhe calor à cabeça. Afastou as portas do salão e fechou-as logo. Green, ofendido,
tinha-se ido sentar para diante do fogão de sala e
lia uma ilustração. A T. S. F. tocava. Na sala de jantar, Tony, fazia arrumações. Na cozinha, Trompsted entrechocava os copos, Tomando uma rápida decisão, Thorpe
levou Lúcia atrás de si para um aposento chamado a sala do ping-pong. Actualmente, os cães tinham ali os seus cestos. Saltaram em volta de Lúcia, os seus latidos
amigáveis pareciam quási lamentos, tão agitados estavam. Algumas palavras a respeito de Max e Moritz fizeram passar os primeiros minutos. Thorpe pediu a Lúcia para
se sentar numa poltrona e colocou a luz um pouco de lado para a afastar dela, Fazia-lhe mal olhá-la e admirava-se disso. Mil vezes tinha imaginado e sonhado como
seria, se ele se encontrasse em frente de sua mulher. Tinha imaginado tudo, desde o frio desdém até à ofensa mordaz, desde a recusa de a reconhecer, até ao assassinato.
Agora, ali estava em pé em frente dela, receando olhá-la e, com o coração a doer-lhe.
- Queres comer alguma coisa ? - preguntou. (O seu rosto parecia-lhe tão magro!) "Obrigada, estou de dieta." - respondeu. E ele lembrou-se que os regímens de Lúcia
tínham-no feito, muitas vezes, encolerizar.
Sem lhe fazer outra pregunta, foi à copa, encheu dois copos de cognac, rebuscou o frigorífico e encontrou um resto de lagosta. Sob os olhares da cozinheira, ofendido
com a sua invasão, dispôs os seus achados em cima de um prato e levou tudo a sua mulher. Era o instinto do troglodita: primeiro alimentar a esposa. O resto seguiria
ao acaso... E de facto, Lúcia bebeu o cognac, com reconhecimento, e pôs-se a mastigar alguns pedaços de lagosta como se se escondesse de si própria.
Tinha as pálpebras inchadas das lágrimas e a maneira como o rouge se espalhava um pouco por toda a parte, denotava um verdadeiro desespero. Steve meteu-lhe um cigarro
na boca, enxotou os cães, que mandou deitar nos seus cestos e sentou-se emfim ao lado de Lúcia. Agora, ela já não tremia.
- Não queres tirar o chapéu ? - preguntou.
- Não, obrigada, - disse vivamente puxando o véu para os olhos...
- Tens qualquer coisa a dizer-me? Podes contar-me tudo como se eu fosse teu advogado... não de outro modo. Estou habituado a ouvir... e se precisas de um conselho..
- Não preciso de nenhum conselho - disse Lúcia, sacudindo energicamente a cabeça, de forma que as violetas tristes do chapéu estremeceram um pouco.
- Dois e dois fazem muitas vezes cinco, nesta vida, graças a Deus. - disse Thorpe - Era uma sibilina máxima muitas vezes utilizada na prática dos seus negócios cuja
urbanidade e experiência produziam um efeito calmante, Lúcia olhou-o com atenção.
- Mudaste muito, Steve! - disse ela.
- Tomo isso como um cumprimento. - respondeu ele. Distraída, olhou-o sem ouvir:
- Assim que me fiz conduzir aqui, pensei logo que poderias ajudar-me. Mas tu falas em contar... É difícil, Steve...
Deixou escapar um soluço ruidoso, como fazem as crianças que já choraram muito. Aquilo não ficava bem com o seu rosto emmurchecido, mas comoveu Thorpe, Havia um
quarto de hora que ele tinha esquecido completamente Nina, era como se ela nunca tivesse existido.
- Não me casei com Peruggi. - disse Lúcia - Pu-lo
na rua.
- Nunca o considerei como uma pessoa estimável ... - concordou Thorpe, amavelmente.
E a onda, de súbito, quebrou todos os diques. Sua mulher lançou os braços em cima da poeirenta mesa de ping-pong e pôs-se a chorar lágrimas quentes, sem as poder
conter. Entre lágrimas e soluços contou a sua história, por fragmentos e, por vezes, de forma pouco compreensível.
- Estimável, não era, não... - soluçava ela com o rosto nas mãos. Era um intrujão, um criminoso. Viveu
à minha custa. Fez-se sustentar por mim ... pediu dinheiro emprestado .. sabes como o gastou? E roubou-me o meu anel de esmeralda. Sim, foi ele com certeza.. sempre
estive certa disso mas nunca lho disse. Calei-me ... Como poderia dizer a um homem : tu roubaste o meu anel ? Nem sequer confessá-lo a mim mesma, embora sempre estivesse
convencida disso. Ele tinha más maneiras, se bem que dissesse serem italianas ... há italianos ordinários, mas deve também havê-los bem educados. Emfim, era um conde
e não um vendedor de gelados. Palita os dentes à mesa depois de comer, e pragueja constantemente. Mas tudo isso ainda eu suportaria ... Gabava-se muito da sua família
aristocrática... e pedia-me dinheiro emprestado. Tinha prometido casar comigo em Verona... onde estão enterrados Romeu e Julieta ... era tão romântico!... e eis
que descubro que gastava o meu dinheiro com amantes... não sei a quantas mulheres, prometeu a mesma coisa: esse casamento na catedral de Verona. Então, naturalmente,
disse-lhe a verdade... que me tinha roubado o anel. "Dá-me o anel que me roubaste, é muito lindo para a canalha com quem andas." Então, dir-se-ia que estava louco,
um bruto, um verdadeiro bruto ... arrancou-me os cabelos, arranhou-me, bateu-me ... aqui..."
E Lúcia ergueu da mesa de ping-pong o rosto inundado de lágrimas, tirou o chapéu, o véu e descobriu a fronte arranhada e os vergões que lhe marcavam a face esquerda.
Thorpe ficou um pouco desconcertado por esta explosão. Assim que viu que lhe tinham batido na mulher, uma violenta cólera se apoderou dele, embora tivesse sentido,
também, muitas vezes, vontade de a espancar.
- Olha, bebe mais um copo de cognac. - aconselhou em voz grave, estendendo-lhe o seu próprio copo. Ela bebeu de um trago, tornou a pôr o chapéu, limpou os olhos,
baixou o véu, tirou a caixa de pó, da malinha, para
reparar a desordem das feições. O que mais sensibilizou Steve foi ela diligenciar sorrir, um pouco timidamente, para se desculpar... um pouco envergonhada !
- Alegra-te porque tudo isso tenha acontecido antes de teres casado com ele. - disse usando uma frase banal de consolação, que costumava dizer à sua clientela. O
sorriso de Lúcia tornou-se mais grave.
- Vocês, homens, são todos os mesmos. Tu também tens uma mulher cá em casa.
E duas lágrimas retardatárias, depois do grande dilúvio, desceram lentamente até aos cantos da boca. Thorpe compreendeu que essas duas lágrimas eram para ele e não
para o belo gigolô desleal.
- Isso não significa nada... Se te interessa, posso contar-te tudo ... - disse. Ela fez um pequeno gesto rápido, de recusa, que ele, de novo, reconheceu:
- Nada tenho a censurar-te... não tenho esse direito. - disse.
- Não se trata de direito, - ouviu-se Thorpe dizer. Reflectiu sobre o que devia agora fazer diante de Lúcia.
- Que intenções são as tuas ? - preguntou, prudente.
- Não sei... não sei, Steve. - disse ela, sonhadora É como depois de um tremor de terra, não me reconheço, já... Podem-se entregar os bilhetes do barco, perdendo
alguma coisa.
-As Companhias marítimas habitualmente dão 90? % do preço dos bilhetes pagos - disse ele no seu tom de advogado.
- Nem sequer desejo voltar ao hotel, tenho medo que ele venha.
- Não te tornará a bater, afirmo-te. - garantiu Steve, sombrio.
- Não... tenho medo que ele ... que me peça perdão... e eu... tu não o conheces, quando quere, ele sabe ser encantador.
- É disso que vive, de resto- disse Thorpe.
- Tens razão, disseste bem ... é disso que ele vive ... aprovou rapidamente Lúcia.
Olhava à sua volta e começou a sorrir vendo os dois cães que, até então tinham estado deitados com ar hipócrita nos seus cestos, começarem a saltar à sua volta.
Os seus ladridos mostravam toda a sua alegria.
- Vocês reconhecem-me... não me esqueceram... -disse, pegando-lhes pela pele bamba do cachaço, para os pôr ao colo. Os seus focinhos castanhos escuros dirigiram-se
para a cara da dona como que para a beijar. Thorpe, de pé, a um canto, reflectia. A partida de bridge, o dr. Back, Nina.
-Queres que te leve para outro hotel ou preferes viajar ?
- Não. - disse ela, resolvida. E ele preguntava a si próprio a razão da recusa.
-De-certo já... alguém te contou que tenho uma senhora no quarto de hóspedes. - disse - Mas tu podes passar a noite no nosso quarto de cama e eu fico na biblioteca.
- És muito bom ...- respondeu Lúcia. Sobre os seus joelhos os cães latiam. A porta abriu-se e o dr. Back meteu a cabeça branca: "Perdão" - disse, confuso. E desapareceu.
-Estás apaixonado pela senhora do quarto de hóspedes?-preguntou Lúcia com um sorriso.
- Tentei imaginá-lo durante certo tempo.. -respondeu Thorpe, sorrindo também - Dá-me o número do teu hotel, vou telefonar para que tragam para aqui as tuas bagagens.
- Obrigada. - murmurou Lúcia.
Ele viu que, maquinalmente, ela passava o dedo sobre a mesa de ping-pong. Na verdade, estava cheia de poeira. "A casa precisa de uma mulher" - murmurou ele ao pé
da porta. Lúcia levantou os olhos e começou a rir, com um tremeluzir de lágrimas nos olhos.
-No que diz respeito ao romanesco, nós podemos
também partir para Verona e casar lá segunda vez. O seu tom era de gracejo, mas a voz embargava-Se-lhe na garganta. Fechou a porta atrás de si e ficou frente a frente
com o dr. Back.
- Que estás a fazer ? Escutas ? - preguntou, e o constrangimento a que se tinha imposto, explodiu nestas palavras.
- Não, mas preciso falar-te com urgência. Tua mulher não podia ter escolhido um momento mais inoportuno para vir.
Thorpe dizia a si mesmo que não existia nenhuma lei determinando o instante em que uma mulher devia voltar para o seu marido.
- Que aconteceu ? - preguntou em tom breve.
- Vem comigo ao teu quarto. É o único lugar onde podemos conversar sem que nos incomodem-resmungou o médico.
Thorpe desejava subir, para telefonar. -Então? A pequena não vai melhor? É gripe?- preguntou, impaciente,
- Não... Ela vai bem... vai até muito bem - disse o dr. Back fechando a porta atrás deles.
As suas maneiras misteriosas começaram a irritar Thorpe.
- Acabemos. Preciso de telefonar - disse.
- Pois bem, meu caro, é uma história bem triste... Vai custar-te dinheiro. No entanto, as minhas felicitações... para um velho como tu...
Admirado, Thorpe olhou para o seu amigo por instantes. O médico respondeu-lhe com um olhar silencioso e cheio de segundo sentido. Subitamente, o advogado desatou
a rir.
-Mas é espantoso! Isso não podia calhar melhor. Ora ai está porque parece tão nervosa... Pobre pequena!-acrescentou, compadecido. Ela já sabe?
- Naturalmente que lho disse.-respondeu o médico.
- Sim ? E então ? Como tomou ela a coisa ?
- As mulheres naquele estado são sempre um pouco exquisitas - sentenciou o dr, Back, embora isso não fosse uma resposta.
Thorpe percorreu duas vezes o aposento dando estalos com os dedos.
- É um tanto excessivo para uma noite só. - pensava. Ao mesmo tempo louvava a delicadeza, a perfeição das suas relações com as mulheres.
- Ouve.- disse ao médico - Tu vais telefonar. Pede o Hotel SãO Moritz e diz que madame Thorpe não volta e que lhe mandem a mala e os objectos indispensáveis para
uma noite. Depois, vais à sala de ping-pong onde reterás Lúcia durante meia hora, podes administrar-lhe um calmante qualquer: brometo, um sonífero, qualquer coisa.
Depois tratarás de acabar com essa danada partida de bridge e de os mandar para casa. Negócios de mulheres fazem parte do segredo profissional, percebeste?
- Compreendo perfeitamente - disse o dr. Back com uma expressão de profunda perplexidade, no seu rosto barbeado.
Thorpe atravessou a passo rápido os dois quartos de vestir, que separavam o seu do quarto de hóspedes, esperou um instante diante da porta de Nina, e depois bateu.
"Sou só eu... Steve..."- disse. Veio-lhe o pensamento fugitivo de não ter, há anos, vivido coisas tão importantes e salutares como durante esta última hora. Nina
disse: "Entre" e ele entrou, com um sorriso de homem um pouco acanhado no rosto sobressaltado.
Mas encontrou uma outra Nina: uma Nina inteiramente diferente, transformada, em pé, delirante, fora de si, uma Nina absolutamente louca, que chorava e ria ao mesmo
tempo. Ele ignorava se era alegria ou dor -ela mesma não o sabia, provavelmente...
Ela só queria uma coisa: ir-se embora, partir dali imediatamente. Deixar, sem demora, esta casa onde os criados a desprezavam, onde os hóspedes eram impertinentes:
ela ia ter um filho, ela era mãe! Um filho, um novo Erik, um conde Bengtson! Gritou tudo isto no quarto, emquanto fazia as malas... ou antes, emquanto atirava tudo
para dentro delas... a barata roupa de baixo, as bonecas, o revólver. Thorpe estava ali petrificado, como imobilizado sob uma catarata. Não podia fazer nada senão
atirar para o monte os vestidos de que tinha feito presente a Nina e, às escondidas, meter-lhe em qualquer parte uma nota do Banco... para prever todos
os acontecimentos.
Tudo se fez de-pressa e de uma forma tão irresistível que, quando Nina lhe estendeu amavelmente a mão para lhe agradecer a hospitalidade, ele notou, pelo tom da
voz, que o seu espírito estava já distante.
Reteve-a, no entanto, um momento com a porta aberta pois acabava de perceber, pelo barulho, pelos risos, pelo cheiro de charuto, que o bridge havia terminado. O
dr. Back parecia ter trabalhado bem. com precaução, Thorpe atravessou o patamar; não queria que Lúcia e Nina, que tinham por momentos perdido o domínio de si próprias,
pudessem encontrar-se. No seu foro íntimo agradecia à Providência essa reviravolta súbita de Nina que lhe poupara muitas dificuldades.
Num piscar de olho, fez-lhe sinal para o seguir. Pediu a Trompsted para ir acima buscar-lhe a bagagem, pois não queria que a rapariga carregasse com nenhuma mala,
nem mesmo a sua pequena maleta de mão.
- Tony. - disse ao motorista que tinha ajudado Vá levar mademoiselle Nina a Fieldston, depois vá ao hotel São-Moritz buscar as bagagens de madame Thorpe. Diga que
eu passarei por lá amanhã para pagar a conta. E... não preciso do carro antes das dez horas.
Instalou Nina no automóvel. Distraidamente disseram adeus; ela estava já com Erik e ele com Lúcia...
- Vá de-vagarinho, Tony-ouviu ela dizer. Ele ficou de pé em frente da casa, emquanto o clarão dos faróis desaparecia, perdendo-se na obscuridade. Depois, meneou
a cabeça. No fim de contas, as mulheres são uma raça singular... -pensou.
E esse meneio de cabeça era a conclusão da tentativa que Nina fez para se vender. Era o princípio das segundas núpcias de Thorpe.
MEIA-NOITE e meia hora no relógio da Central. Os guardas de noite acabavam de terminar a sua segunda ronda e foram aquecer café à sua sala.
A campainha da noite soou no quarto de Joé, o porteiro. Abriu a porta pequena; fora estavam duas pessoas.
- Posso ir falar ao sr. Bengtson ?
-Tem licença ?-preguntou Joé à rapariga, pálida, com ar de dançarina.
- Sim. Naturalmente.
O porteiro pegou na licença e voltou ao seu cubículo, à luz eléctrica. Ele tinha um olho de vidro e era forçado a colocar o papel obliquamente, para ler.
- E esse rapaz? - preguntou.
- Este rapaz é que traz as coisas.
- Que coisas?
- As coisas para o sr. Bengtson.
- Tem licença?
- Não, mas eu tenho.
- Sem licença não o deixo entrar.
- Ele tem de lhe entregar as coisas... sem isso o sr. Bengtson não poderá trabalhar. - explicou a rapariga.
- Impossível,-disse Joé voltando o lado do olho de vidro para o rapaz para melhor examinar a rapariga. Foi nesse momento que recebeu uma pancada no queixo e caiu
por terra.
- Tocado! - disse o rapaz, satisfeito, e desapareceu no fundo do vestíbulo que levava ao pátio velho.
A rapariga voltou à rua. À esquina, um automóvel esperava. Dois indivíduos desceram e aproximaram-se. A mulher cruzou-se com eles, disse uma palavra e seguiu o seu
caminho. Depois, fazendo sinal a um táxi, afastou-se. Os dois tipos entraram na Central pela porta aberta que fecharam atrás de si.
Joé continuava no chão, sem sentidos, e com um sorriso nos lábios . Big Paw inclinou-se e transportou-o para o seu cubículo. Emquanto o ligava a uma cadeira fazendo-o
respirar clorofórmio, Bill viu à luz o plano desenhado por Liliana.
- Diz a Kid que entre. - disse a Big Paw.
- Onde está Bully? - preguntou este. Estava emocionado e não podia dominar-se. Bill deu-lhe um pequeno encontrão. Big Paw abriu a porta e inspeccionou a rua : um
homem, sonhador estava de pé diante da montra dos bars portáteis. Big Paw teve de esperar um certo tempo emquanto Bill, impaciente, espreitava atrás dele. O relógio
da torre deu três pancadas antes da uma hora. Finalmente o admirador tardio desligou-se da montra e marchava, indecisamente pela rua abaixo, como alguém que se aborrece
e espera uma aventura. Passaram dois automóveis, depois, tudo ficou vazio por um momento. Kid apareceu, de-repente, e deslizou pela porta, para dentro da Central.
Joé estava agora muito bem empacotado com adesivo na boca e uma boa narcose. Em silêncio, os dois homens seguiram Big Paw através do pátio; subitamente, este sobressaltou-se
diante do gato branco, que fazia rolar uma caixa vazia de conservas no chão de cimento. Através duma porta envidraçada, podiam ver a secção, mal iluminada, de confecção
para homens. Sem barulho, Bill pegou nas chaves que Liliana lhe tinha dado e abriu a porta de par em par. Havia só cinco chaves e encontrou a precisa sem hesitação.
Assim que chegaram ao interior, ficaram uns minutos imóveis, de ouvido à escuta; reinava um silêncio de morte. Um senhor loiro, de cera, vestido de branco, olhava
na sua direcção e sorria vagamente. Bully, o rapaz vestido de groom, tirou o pano branco que recobria as gravatas. "Deixa isso!" -disse Bill. "Mais baixo.
- respondeu o rapaz renunciando de má vontade ao seu roubo. "Por causa de idiotas da tua espécie é que os grandes negócios não triunfam." - sentenciou Bill.
Ele levou-os mais longe, ziguezagueando entre as secções mudas e cheias de fantasmas imaginários, chegando emfim à escada que ia dar à cave.
- Levo os dois rapazes comigo, tu vais ficar lá em cima à espreita - murmurou Bill.
- Entendido, chefe, - respondeu Big Paw em voz forte.
Tinha estado todo o tempo irritado por causa dessa marcha prudente através da Central vazia e por esses segredinhos inúteis, pois não estava lá ninguém que os pudesse
ouvir.
- E se vier alguém, mostra o teu revólver. Mas nada de ruído inútil... ouviste?
- Entendido, chefe - respondeu ainda Big Paw.
- A escada de socorro é no terceiro andar, encostada ao elevador. - explicou Bill, a todos - O carro espera à esquina sudoeste.
Big Paw viu-os desaparecer na escada. Pegou num cigarro e pôs-se a fumar. Tinha medo e a coragem de Bill não o animava: Bill tomava cocaína e isso é que lhe mantinha
o espírito empreendedor. Big Paw não tinha bebido bastante para se sentir à vontade.
Ele gostaria de percorrer o armazém vazio para examinar tudo, mas não teve coragem. Atirou fora o cigarro meio fumado e acendeu logo um segundo. Em bicos de pés,
foi até ao tapete rolante que, na sua imobilidade, tinha o mesmo carácter espectral do resto, e sentou-se no primeiro degrau. Pôs a cabeça
no braço e ouviu um choque rítmico que lhe meteu medo. "com a breca!" - exclamou, rindo incrèdulamente assim que notou que era apenas o bater do seu pulso que lhe
chegava ao ouvido, através da manga - Então ficou para ali sem se mexer e muito tempo passou..
Estava certo de não ter dormido, e tinha mesmo ouvido o relógio dar uma hora; no entanto para ele foi como um brusco despertar quando ouviu vozes vindas dos andares
superiores.
- Boas-noites, disse alguém lá em cima. Trata de ir direito para casa, já há muito tempo que devias estar no berço.
Depois ouviu uma gargalhada cujo eco se repercutiu contra as paredes. Metendo a mão no bolso, Big Paw, maquinalmente, pegou no revólver. Olhou à sua volta e, a-pesar-do
pânico, descobriu um excelente esconderijo. Uma cortina ocultava os fatos pendurados: ergueu-a e escondeu-se atrás. Durante esse tempo passos leves tinham descido
a escada. Arriscando um olhar por uma fenda, o bandido viu um ser de cabelos de um loiro pálido que descia a escada a dois e dois. "Vai descobrir o porteiro amarrado
e tocar a campainha de alarme." - pensou Big Paw, embora pensar não fosse o seu forte. Puxou do revólver, visou na direcção do rapaz; mas deteve-se... O rapaz parou
diante de um grande espelho, examinando o queixo; depois, tendo procurado à sua volta, tirou um chapéu branco da cabeça de um manequim vestido com um fato de linho,
penteou-se e mirou-se por todos os lados. Tateou a algibeira, tirou um cigarro que meteu na boca, sem acender, e continuou a admirar-se. Big Paw riu atrás da cortina.
O pequeno, depois de se ter contemplado bastante, tirou o chapéu, pôs o cigarro na algibeira e, inclinando-se respeitosamente diante do manequim, restituiu-lhe o
chapéu. Depois, tomou balanço e escorregou pelo oleado do soalho até à saída.
Big Paw, saiu do seu esconderijo e gritou: "Mãos
no ar!" O pequeno voltou-se estupefacto, e ficou de boca aberta, não levantou as mãos, pois, com certeza não tinha percebido do que se tratava. "Mãos no ar!" repetiu
Big Paw um pouco mais baixo - Lembrou-se de-repente que deviam estar mais pessoas lá em cima. Talvez, de noite, no armazém houvesse um formigueiro de gente ocupada
a trabalhar. Agora o pobre garoto levantou as mãos, como um fantoche, como se fossem puxadas para o alto por dois cordéis. Big Paw pensou no que iria fazer dele,
mas, antes que pudesse tomar uma resolução, o cabelo louro branco pareceu erguer-se, como que empurrado por uma corrente de ar, o rosto sardento ficou lívido e ele
caiu ao chão. Era a primeira vez que Big Paw tinha visto desmaiar alguém, e não sabia o que havia de fazer. Dirigiu-se para o pequeno, levantou-o, sentindo um certo
desagrado ao contacto desse corpo flácido.
Nesse instante, ouviu-se qualquer coisa que conhecia muito bem: tiros. Três tiros amortecidos partiram da cave. Deixou cair o garoto, olhou à sua volta com ar assustado
e correu pela escada até ao terceiro andar. Lá em cima, já sem fôlego, procurou o elevador, ao pé do qual ficava a escada de socorro. Roçou, a correr, por três senhoras
em roupão, obliquou e viu subitamente que um homem vinha para ele: atirou-se sobre o indivíduo como num desafio de foot-ball, ouviu a queda pesada de um corpo e
continuou na sua fuga. com a coronha do revólver, deu uma pancada num enorme vidro: o ar da noite bateu-lhe no rosto coberto de suor. Do alto da escada de socorro
onde estava, via o pátio no qual o gato brincava ainda agora; resolveu não se mexer. Em baixo, corria gente; bruscamente, todas as campainhas de alarme se puseram
a tocar; sons agudos encheram o vasto edifício. Era um barulho infernal e isso tornou-o tão nervoso que se endireitou imediatamente. Recebeu então uma pancada e
caiu.
uma coisa horrível, uma campainha a ressoar numa casa vazia. Era meia-noite. Em casa dos Bradley, ninguém. O vestíbulo estava vazio, os quartos vazios, o leito da
sr.a Bradley também vazio. Vazio o leito de Erik, vazio o de Filipe; nem Skimpy estava em casa e a campainha tocava. Um som longo, depois curto, depois mais longo
ainda; primeiro paciente, depois nervoso, depois como louco. Finalmente tudo se calou.
-Não está ninguém em casa-disse Nina ao motorista que esperava de pé, com as malas na mão.
- Devo levá-la outra vez para trás ? - preguntou ele, tornando a pôr as bagagens no carro.
- Não, de maneira nenhuma. - disse Nina. -Então aonde, se faz favor? - preguntou Tony
olhando para o carro com indiferença.
- Aonde? - repetiu Nina.
- Talvez a um hotel ? - propôs o homem.
- Sim, mas não a um hotel caro. - disse abafadamente Nina.
Tony levou-a a um hotelzito, longe, ao cimo de Broadway, onde a olharam de uma forma estranha. Mas, como ela tinha duas malas, deram-lhe um quarto, um quarto que
cheirava a fósforo. Aí, sentada na borda da cama, Nina telefonou. Três vezes tocou para a Central
e de todas recebeu a mesma resposta: "Não responde". "Não é possível, torne a tentar" - suplicou ela. Mas
isso nada fez.
- Quiseram matar ratos - pensou Nina aspirando o odor estranho do quarto. Tornou a pegar no telefone e, de vez em quando, tornava a pedir a casa de Bradley. A manhã
ia já muito avançada quando, emfim, uma voz respondeu: Era a voz infantil e aguda de Skimpy.
- Estás, Skimpy ? Aqui, a Nina, Posso falar à
mamã?
- Não.
- Ela saiu? Tenho uma coisa importante a dizer-lhe.
- A mamã está no hospital, mas vai bem. Esta
tarde vou vê-la.
- Oh!.. Que pena!... - murmurou Nina. Mas não tinha tempo a perder com amabilidades - Pois eu... gostava de falar ao sr. Bengtson... - disse ela.
- O sr. Bengtson foi preso.
- Como? Fala um pouco mais alto, Skimpy.
- O sr. Bengtson foi preso. - gritou Skimpy ao
aparelho.
- An ?... como assim ?... Não é... possível. balbuciou Nina, sentindo-se arrefecer. Os lábios estavam como que gelados, a pele da cabeça parecia esticada, agarrava-se
ao telefone.
- Ele roubou coisas. Fez um assalto. Deram tiros e ele é um gangster. Eu também lá estava - continuou Skimpy, com importância.
- Eu queria... falar a Filipe... - murmurou Nina ao aparelho. O cheiro a fósforo envolvia-a toda.
- Filipe está no posto de polícia. O seu retrato vem nos jornais - disse Skimpy. Ela esperou ainda um pouco, mas como Nina não respondesse, desligou, desceu prudentemente
do banco que tinha posto para telefonar, e, consciente da sua importância, foi para a escola.
Para Nina, correu um lapso de tempo de que, mais tarde, não se lembrava. De-facto, eram oito horas
da manhã quando tinha telefonado a Skimpy e, foi às dez horas somente, que se encontrou sentada no autobus que se dirigia para a Central. Do que tinha feito, durante
essas duas horas, não poderia mais, em toda a vida, recordar-se. No entanto, o seu cérebro estava absolutamente claro quando, chegando ao armazém, tomou a escada
móvel. Tinha comprado um Jornal na rua e, embora o nome de Liliana aí não figurasse, estava absolutamente certa de uma coisa: Liliana tinha levado seu marido à prisão
e era Liliana que devia fazê-lo sair.
Nina tinha sido sempre calma e meiga durante toda a sua vida. Mas, agora, haviam-se passado coisas de molde a transformar completamente esta criaturinha. Desde que
a tinham tirado da secção de porcelanas para a porem na vitrina, nunca mais tivera paz. Andava como um projéctil que ninguém pode reter, assim que é lançado, como
um pequeno cometa apaixonado, pronto a rebentar em mil pedaços. Exteriormente, todavia, este pequeno pedaço ardente de destino feminino não se distinguia das outras
clientes. Como todas as outras, lançou um rápido olhar para o espelho, diante do qual passou e parou um instante diante dos sensacionais pijamas de praia, da secção
de confecção. Essa secção estava à cunha nessa manhã: havia uma venda-reclamo de séries baratas e todos queriam o primeiro lugar junto ao balcão, para pescar os
artigos mais vantajosos. Fez calor, de-repente, nessa manhã de princípio de primavera e as ventoinhas funcionavam, as caixeiras transpiravam, as modistas estavam
nervosas, as clientes histéricas.
- Gostaria que me atendessem, menina. - disse Nina numa voz sem intonação a Liliana que saía da sala de costura. Nessa manhã, Liliana estava mais pintada que de
costume, sem dúvida porque se sabia mais pálida. A boca estava muito vermelha sobre a pele branca e o seu nervosismo concentrava-se na palpitação das narinas.
Prenderam todo o seu bando. Bill morreu, os outros estão presos. Nem peles, nem amigos, nem dinheiro, nem carreira em Broadway. Devia mesmo sentir-se feliz, por
todos se terem calado, não a comprometendo na aventura ...
- Gostaria que me atendessem, menina. - repetiu Nina com mais força. Liliana imobilizou se com um pequeno movimento de ancas que dantes a tinha distinguido entre
as suas colegas aprendizas e a tinha trazido até ao salão de costura.
- "Olha... a Nina!-disse ela-Talvez saiba qualquer coisa de novo." Foi apenas uma idea fugitiva...
Teria de boa vontade envenenado Erik Bengtson se, por esse meio, pudesse estar segura do seu silêncio. Mas a criança de peito, o menino de mama estava preso e era
de prever que ele a envolvesse no caso. Teria contado a história das chaves? com certeza, se isso pudesse servir-lhe de defesa. Seria então o fim de Liliana Smith,
saída a custo da obscuridade e que se sentia empurrada, irresistivelmente, outra vez, para a escuridão, para o abjecto.
- A senhora deseja? - preguntou ela, olhando Nina como se fosse um carteiro que, de noite, nos traz um telegrama.
- Queria provar este vestido. - disse Nina apontando para qualquer parte, por cima do ombro, na direcção do armário.
- com muito prazer. - respondeu Liliana, tirando um vestido ao acaso e abrindo a porta do gabinete de
prova.
- Que há de novo ? - preguntou ela assim que ficaram sós entre as paredes de espelhos.
- Que fizeste de meu marido ? - preguntou Nina.
Qualquer coisa nesta pregunta irritou Liliana: ela não podia suportar o que havia de burguês nesta expressão: meu marido. Não podia suportar esta pequena Nina meiga
e tranquila, esta provinciana que tinham posto na montra.
- Que me importa o teu marido ? Teu marido!
- Foste tu que o meteste na prisão, - disse Nina e és tu que o tens de fazer sair de lá.
Era a frase que, havia horas, ela tinha formado na cabeça.
- Tem cuidado com o que dizes, minha menina. Teu marido meteu se com ladrões. Eu não...-disse Liliana.
Falavam ambas em voz baixa, com os rostos aproximados um do outro e reflectidos nos seis espelhos ao mesmo tempo. Mas mesmo que tivessem falado mais alto, não as
teriam ouvido, pois em toda a secção de costura havia um zunido sussurrante de mulheres. No salão, a directora esvoaçava de um lado para o outro, dando ordens, com
o seu sotaque francês. Todos os gabinetes de prova estavam ocupados. Uma caixeira abriu a porta e disse: "Perdão", tornando-a a fechar. Liliana e Nina ficaram frente
a frente, ambas trémulas, cada uma dizendo à outra o que tinha a dizer-lhe.
Liliana estava ao rubro, ladeava um precipício. Mas Nina já não era a rapariguinha de antigamente, agora tinha sofrido muito.
- Estou farta, entendes? E repetiu o que exigia e que não era nada mais, nada menos do que isto: Liliana devia comparecer diante da justiça e provar a inocência
de Erik.
Liliana riu-se, provocante. Pôs as mãos nas ancas, gargalhando na cara de Nina.
Subitamente, ela viu que Nina levava um revólver, um grande revólver de polícia que segurava desajeitadamente.
- Se não tiras cá para fora o meu marido, mato-te! disse em voz grave, rouca, numa voz absolutamente nova.
Liliana segurou o pulso que agarrava a arma para a desviar de si.
- Endoideceste? - preguntou vivamente.
- Estou grávida. vou ter um filho! É preciso que meu marido volte. - gritou Nina.
Foi apenas um instante, um instante singular, a duração de um abrir e fechar de olhos... mas durante esse segundo, Liliana fraquejou. Um filho era uma palavra do
outro mundo. Nina... ia ter um filho. Dantes, elas haviam sido amigas. Juntas, como aprendizas tinham-se sentado nos bancos da escola, onde o grande armazém educava
as caixeiras ...
E o facto de Nina ter um revólver e parecer decidida a servir-se dele, revelou um sentimento que Liliana pôde compreender. Isso já não lhe era tão estranho, tão
hostil...
- Um filho ? - preguntou, largando, sem dar por isso, o pulso de Nina - Mas, um momento depois, reencontrou a sua dureza.
- Mas que me pode importar que tu tenhas um filho ? Que tenho com teu marido ? Deus sabe de quern é esse bastardo!
Ela não falava alto, mas as suas palavras soavam tão duras, como uma pedra batendo noutra pedra.
Então, Nina fechou os olhos e descarregou a arma. Nunca tinha disparado na sua vida e ficou aflita com o safanão que recebeu - houve depois um cheiro a pólvora.
Assim que abriu os olhos, Liliana ainda estava de pé, com as duas mãos apoiadas à mesita, depois, a taça dos alfinetes caiu e Liliana caiu também por sua vez. Dir-se-ia
que tentava sorrir com ar irónico e surpreendido. Talvez também sofresse...
Tudo isto se passou muito silenciosamente. Os gabinetes tinham tapetes espessos e o tiro não fez mais barulho do que uma rolha de garrafa de champagne.
A queda de Liliana também não foi ruidosa. Nina meteu o revólver na sua velha malinha de mão e saiu do gabinete.
Na secção reinava o ruído da venda-reclamo.
- V. Ex.a foi servida como desejava ? -preguntou madame Chalon.
- Fui, obrigada, - respondeu Nina.
Portas, portas e portas, escadas e escadas... O elevador... no edifício central. A saída à direita, portas envidraçadas, portas móveis e ainda flechas indicando
saída, saída, saída...
Nina transpôs emfim a última porta, que bateu pesadamente sobre ela. Cá fora, era Junho, cá fora, as mulheres compravam flores. Ninguém a seguiu. Respirou o ar a
grandes sorvos, as suas mãos já não tremiam. Fez sinal a um táxi. "Para a Grande Estação Central" - disse. Tinha dinheiro, a sua algibeira estava cheia de notas
provenientes do último presente de Thorpe.
Carros, pessoas, môços de fretes, de cor, informações, bilheteiras, pessoas. Bilhetes para Cleveland. Bilhetes para Boston, bilhetes para New Heaven.
- Para Lansdale, Connecticut... - disse Nina.
- Simples, ou de ida e volta ? - preguntaram da bilheteira.
- Isso é que eu não sei. - respondeu a jovem.
LAMENTO tê-lo feito esperar, - disse Filipe quando, às duas horas e dez, entrou no seu escritório. Estou cheio de trabalho, como pode calcular. A polícia... e depois
tive com o sr. Crosby uma longa conferência.
Sentia-se extraordinariamente bem disposto, pois tinha substituído a falta de sono pelo álcool. Trazia o braço ao peito.
- Foi grave ? - preguntou o rapaz, que se tinha levantado à sua chegada.
- Oh! já estou habituado. A bala desta noite foi a sexta que recebi no cadáver, desde que trabalho na Central - disse Filipe, em tom importante. Estava excitado
e como prestes a tomar voo, tal como um grande balão vermelho, novo. O rapaz escreveu à pressa algumas notas no caderno que tinha preparado.
- Eu sou Sanders, do Evening Star, como sabe. Pensamos que o senhor não teria hoje muito tempo livre, mas o chefe entregou-me o contracto que lhe diz respeito.
- Ah, ah - disse Filipe, lendo o documento. - Dois mil dólares por uma reportagem especial... espero que o seu chefe não fique desiludido. Não posso, evidentemente,
revelar tudo quanto sei, pois a polícia tem o assunto entre mãos.
- Limitar-me-ei a preguntar-lhe o que nós desejamos saber - disse Sanders, com benevolência. Prátt vai
primeiro tirar-lhe algumas fotografias. Já fotografámos o depósito e a escada de socorro, onde o senhor matou esse indivíduo. Vejamos como conseguiu fazer tudo isso
.. sozinho ?
- O instinto.- declarou o velho Filipe-Está tudo no instinto. Um detective deve possuir a intuição necessária, de outra forma nunca lhe viria à idea que, justamente
no dia em que sai com uma mulher, um bando de gangsters projecta um roubo de peles.
Depois de ter disparado esta flechazinha subtil a Ricardo Cromwell, que considerava como despedido, Filipe abriu o seu armário e vazou um copo de whisky puro. "A
minha novocaína" - disse alegremente.
Entretanto, Pratt tinha feito a sua entrada com o aparelho, chapas e magnésio, e instalava tudo no pequeno escritório: "Nós queremos também possuir uma fotografia
sua de quando esperava os tipos, no depósito". disse ele dando ao detective a atitude desejada. "É a décima quarta vez que me fotografo hoje" - notou Filipe colocando
bem à vista o braço ferido. O relâmpago de magnésio brilhou.
- Reparou como lá em baixo faz frio ? - preguntou ele - Não há mais de 28? Fahrenheit. Fique lá apenas um quarto de hora à espera de gatunos, e posso garantir-lhe
que dois mil dólares não são muito por isso.
- Vai-te agora embora, - disse Sanders a Pratt, e previne na redação que estou lá daqui a uma hora com a minha reportagem.
Assim que o fotógrafo desapareceu, Filipe pôs um copo diante do jornalista.
- Agora,-disse este-procedamos por ordem. Ponhamos de parte tudo quanto já foi dito na edição da manhã. Como foi ferido no braço?
- O indivíduo visou-me o cotovelo direito. Não era muito burro... mas, por felicidade, sou canhoto.
- Já lhe foi entregue a quantia de mil dólares que ofereciam pela captura de Big Bill?
- O chefe da polícia já mos prometeu. É curioso... ontem, estava mais teso do que um cão atropelado, hoje, recebo dinheiro de todos os lados! O sr. Crosby apertou-me
a mão e chamou-me herói; aumentou-me o vencimento e conserva-me o lugar durante a minha vida e o comissário de polícia levanta-se para me falar.
-Que vai fazer de todo esse dinheiro, sr. Filipe? preguntou Sanders estenografando rapidamente.
- Eis o problema, sabe? Sou celibatário e não posso gastar tudo a beber, senão o sr. Crosby punha-me na rua...
Sanders riu reconhecidamente, ao pensar no êxito que este gracejo alcançaria no jornal.
- Quantos tipos do bando se puderam escapar ? Não faz uma idea?
- Krocinsky... a quem eles chamavam Big Paw está no hospital e Big Bill na morgue, deitado num belo caixão novinho em folha. Dois fugiram, mas estou convencido de
que não era este o bando completo.
- Não receia que se vinguem de si ? Não se acha em perigo?
- Olhe, isso dá-me uma idea sobre o emprego do meu dinheiro; vou contratar uma guarda especial, com Toughy à cabeça-disse Filipe, encantado. Também este dito de
espírito foi igualmente estenografado com alegria.
- Qual é a sua opinião sobre esse Erik Bengtson, que prenderam por ser conivente com os bandidos?
Filipe bebeu só uma vez e reflectiu.
- Quere arranjar-me uma armadilha? Isso é com a polícia. O meu papel é velar porque nada desapareça da Central, o resto é negócio do comissário.
- No entanto, deve ter uma opinião ?..-preguntou Sanders, bebendo também, para criar um ambiente de camaradagem. -Vejamos... que pensa do homem, como indivíduo?
- Bem... como indivíduo, tive-o sempre por um leviano, por um desses endemoninhados estrangeiros que
não inspiram a mínima confiança e, além disso, por um grande pateta. Oficialmente, só se pode dizer uma coisa: foi com o molho de chaves de Bengtson, que Bill entrou
na Central. Todos nós temos o número numa chapinha presa às chaves... e o bando não teve o tacto de a fazer desaparecer. Mas...
-Mas?-preguntou Sanders agarrando-se avidamente à palavrinha que ficou em suspenso.
- Mas... mais nada. -disse o velho Filipe, teimoso.
- Posso escrever que considera Erik Bengtson o principal culpado? -disse Sanders. Filipe enguliu precipitadamente a isca e o anzol:
- Não se trata disso, Deus me livre de afirmar semelhante coisa !
- Emfim, é verdade que esse Bengtson dormia na oficina quando as campainhas de alarme tocaram ?
- É essa justamente a questão, Se ele realmente não ouviu as campainhas de alarme, é preciso confessar que a consciência de nada o acusava. Mas se na realidade ele
só fingia dormir, é muito suspeito, muito.
Sanders esperava, de caneta no ar.
- Skimpy afirma que ele dormia, que foi ela que o acordou, aos murros, quando ouviu os tiros e as campainhas, que a assustaram.
- Na edição da noite deve aparecer uma fotografia da pequena heroína.
- Queria, no entanto, acrescentar uma coisa a respeito de Bengtson. - continuou êle - Fizeram-no sofrer esta noite um interrogatório de terceiro grau. Sabe o que
isto quere dizer?
Sanders aquiesceu, com respeito. As pessoas que tinham sofrido esta prova, falavam dela mais tarde como os gazeados falavam da guerra.
- Pois bem, o rapaz não disse nada. Nem sequer abriu a boca. Isto dá-me que pensar. Tive-o sempre por um rapazola mal habituado e duvidoso. Mas... para ter aguentado
um interrogatório de terceiro grau
sem se mexer, caramba, é preciso ter sangue nas veias! Vi-o esta manhã às nove horas. Eles não o deixaram dormir, como sabe, e a luz aguda, que lhe projectaram nos
olhos, ia-o quási cegando. O comissário pensou que eu talvez pudesse tirar qualquer coisa dele, mas não disse nada, não tentou sequer afirmar que estava inocente.
Sabe o que ele repete?:- "Fui um idiota e o que me acontece é bem merecido". Tinha esperado outra coisa desse pateta.
Sanders levantou-se, pegou no frasco de whisky e encheu dois copos. Filipe bebeu: -"De resto, se ele se chama idiota, é a respeito da sua vida privada" - disse.
O braço começava a doer-lhe muito. Filipe desde a uma da madrugada que estava numa espécie de transe. Ergueu o copo e esvaziou-o.
Sanders deitou novamente mais.
- Posso então escrever que considera Bengtson inocente ? - preguntou de pena em riste.
- Também não disse isso. - murmurou Filipe que começava a sentir se ligeiramente ennevoado - Mas ouça bem ... promete-me segredo se eu lhe confiar uma coisa? Compreende,
isto não é destinado ao seu Jornal. É apenas ... um dado ... um palpite, como nas corridas .. mas queria provar-lhe que o velho Filipe sabe mais do que toda a polícia
... o comissário e todos esses interrogatórios de terceiro grau. Não sei ainda se Bengtson está inocente: mas sei que não está culpado.
- Quê ? - exclamou o jornalista.
- Chut! Chut!- disse Filipe.-Eu não disse nada. Só quero mostrar o que é um trabalho de detective, bem feito. Ligado a cada molho de chaves, está uma placazita,
não é verdade? Pois bem... siga-me com atenção... a placa do molho encontrado em poder de Big Bill cheirava ... a um certo perfume ... Que diz você a isto ?
Sanders não disse nada. O bloco de papel tremia-lhe nas mãos, pois estava possuído da verdadeira febre do caçador.
- As chaves estiveram numa certa malinha de senhora. Foi aí que a placa se impregnou de perfume. Quero dizer-lhe ainda mais uma coisa: eu conheço a mulher que usa
esse perfume. É uma das nossas caixeiras ... e se não atormentarem Big Paw ao ponto de o fazerem confessar todo o imbróglio... eu vejo-me obrigado a dizer o que
sei.
E Filipe, depois destas declarações, instalou-se na sua poltrona e pôs os pés em cima da mesa. As dores no braço tornavam-se horríveis, mas sentia-se feliz como
não era havia muitos anos. A pena de Sanders corria no papel.
- Prenderam a mulher ? - preguntou ele, sem levantar os olhos.
- Você, meu amigo, nunca daria um detective. Emquanto a pequena vier ao armazém e eu a puder vigiar, tudo irá bem. Mas assim que ela estiver na prisão, contará uma
data de mentiras e nós nada avançaremos. Deixemo-la livre e bastará segui-la para se encontrar o ninho onde se esconde o resto do bando. Não é simples?
Sanders escrevia ainda, murmurando que era realmente muito simples. Bruscamente, Filipe retirou os pés da mesa e endireitou-se na cadeira. Depois, esboçou um sorriso
para se desculpar. "Tenho ainda os tiros nos ouvidos, disse ele. Assim que se fecha uma porta julgo ouvir uma detonação."
- Talvez tenha um pouco de febre... por causa do seu braço... - replicou Sanders.
- Não tenho febre! - declarou o velho, com energia.
- Hoje, sr. Filipe limito-me a entrevistá-lo sobre coisas de actualidade, mas temos ainda sete continuações a fornecer, como deve ter compreendido, Amanhã terá de
me falar de si, da sua infância, dos seus estudos, etc. Uma verdadeira biografia. "O homem que abateu Big Bill." Dizia então que essa mulher... e como é ela?
Filipe não respondeu e riu cordealmente a este súbito ataque.
- Olhe que não me apanha com tanta facilidade. Não ouço nada, não vejo nada, não digo nada. E fez o gesto dos três macacos do templo de Nikko.
-É pena.-disse Sanders-Por uma informação semelhante o chefe daria ainda quinhentos dólares... eu conheço-o.
Filipe tinha caído numa profunda meditação. Não podia afastar Erik Bengtson do seu espírito. Erik com os olhos vermelhos, meio cego, meio louco por dores horríveis
na cabeça, o acabrunhamento do seu corpo, a tristeza da sua voz. O rapaz não era mau. E tinha coragem. Sabia calar-se e estava só, para se defender. E esse quadro,
na oficina, com as suas ondas verdes, a vela cor de laranja e Liliana Smith no primeiro plano. Era um idiota, com certeza, mas havia arrojo na sua falta, forçoso
era reconhecê-lo. "Como? Que dizia?" - preguntou, saindo da sua distracção - "Preguntava se posso servir me do seu telefone. Queria saber se o patrão daria mil dólares
caso o senhor consentisse em dar parte ao Evening Star das suas suspeitas."
- Pregunto a mim mesmo que hei-de fazer a tanto dinheiro. - disse Filipe - Vejamos... espere dois dias e... veremos. vou fazer uma outra proposta: suponha que nós
visitamos toda a Central - você fotografará doze caixeiras e depois escolherá. E eu digo depois se a mulher em questão faz parte delas. Que acha?
Sanders reflectiu, perplexo. Isto abria-lhe horizontes novos. Sob o ponto de vista jornalístico, a proposta não era má. Podiam fotografar doze bonitas mulheres e
abrir um concurso entre os leitores. "Qual das doze mulheres era a amante de Big Bill?" Antes que ele pudesse sair das suas reflexões, o telefone tocou. Maquinalmente,
pegou no auscultador e estendeu-o a Filipe. "É para si -disse.
- Como? O quê? Morta? Não, eu vou, - gritou
o detective ao aparelho e, precipitadamente saiu do aposento - Sanders, com a rápida compreensão do repórter experimentado correu atrás dele, através do corredor,
por diante da boca de incêndio até ao elevador.
- Que aconteceu? - gritou, já sem fôlego.
- O bando de Big Bill. Acabam de matar a rapariga. - respondeu o velho detective - E precipitaram-se os dois para o 3.? andar.
LADEADO por dois inspectores de polícia, o velho Filipe
estava no corredor branco da casa de saúde. Sanders, o repórter, estava sentado no banco vizinho. Cheirava a oleado recentemente encerado; o braço de Filipe doía-lhe.
Esperavam todos que a doente, Liliana Smith, estivesse preparada para o interrogatório.
- Que fazem aqui? - preguntou a enfermeira-chefe passando diante dos quatro homens.
- Esperam pelo N.? 14 - respondeu a enfermeira do andar, pois aqui cada doente tinha um número.
Liliana não era mais do que um fardo inconsciente, no momento em que madame Chalon a tinha encontrado no tapete do gabinete de provas, até a terem deitado na mesa
das operações. Pelo espaço de um segundo, tinha experimentado a sensação de uma luz aguda e dolorosa, depois, sob a influência do narcótico, ouvia a campainha da
loja de penhores, dling dling dling... Tiraram-lhe a bala do pulmão, coseram-na e transportaram-na para o quarto n.? 14.
Só à noite voltou a si; deram-lhe uma injecção, ergueram na um pouco e submeteram-na a um curto interrogatório, A enfermeira tomou lhe o pulso e os homens encostaram-se
à cama, pois Liliana só podia falar em voz quási imperceptível.
-- Conhecia a pessoa que fez fogo sobre si?
Liliana reflectiu:
- Não - respondeu. - Não.
- com certeza? - preguntou um dos comissários. -Não.
- Era um homem?
Liliana acenou negativamente com a cabeça na almofada.
- Uma mulher, então ?
- Sim.
- Como era ela ?
- Como uma cliente. - murmurou, a custo, Liliana.
- Isso não é uma descrição; que aparência tinha ? Liliana, cujo pulso na mão da enfermeira se tornava
lento e fraco, fez, em voz baixa, o retrato de uma mulher: alta, morena, enérgica, com uma voz forte e uma grande verruga na face, uma mulher, emfim, que não tinha
a mínima semelhança com Nina. A enfermeira fez um sinal ao comissário: basta.
Fora, no corredor branco da casa de saúde, Filipe dizia: "É claro. Ela não dirá nada. Foi qualquer do seu bando que lhe atirou." Têm medo que fale demais.
- Sim, é claro, - disse o comissário - Sanders, tomou notas apressadas no seu bloco; depois, todos juntos foram tomar cerveja.
Filipe tinha a impressão de que não poderia mais dormir na sua vida. Já fazia vinte e quatro horas que estava em pé e, no cotovelo, uma palpitação fazia-se sentir,
o que significava talvez um envenenamento do sangue.
No quarto N.? 14, Liliana estava deitada sem movimento. Sentia-se contente. Deram-lhe mais uma injecção e ela adormeceu: depois, voltou a si, tornando ainda a amodorrar.
Assim que abriu os olhos, era dia. Não tinha o cérebro ainda claro, mas a consciência de ter feito qualquer coisa certa. O que era forte em si, era sempre forte:
o bem no mal, a força no querer.
Nina quis matá-la. Liliana sorria quando pensava
nessa "maluquinha". Quem podia imaginar uma coisa dessas, da Nina! Havia também neste pensamento um pouco de respeito, um estranho elo, uma leve e curiosa simpatia.
- Então, como vai hoje ? - preguntou a enfermeira endireitando-a na cama. Liliana tinha uma estranha tendência a descair constantemente, o que era mau sinal.
- Obrigada, muito bem - respondeu, num sopro. Sim, ela sentia-se bem nesse leito. Não sofria.
Aqui, nada podia acontecer-lhe. Ninguém a podia vir prender. O ventilador sussurrava; havia um ventilador ao pé da janela. Lá fora oscilava um ramo de hera. De longe,
chegava o som amortecido de um rádio.
Depois ouviu o sino que, na Central, tocava para se fechar o armazém.
No corredor, um homem esperava.
- Chamo-me Sanders do Evening Star e queria tirar um retrato à menina Smith, para o meu jornal. Trago o fotógrafo, Pratt. Vamos, Pratt, venha cá.
- Ninguém pode ver a menina Smith. - disse a enfermeira.-Ela não está bem.
- Estado grave ?-preguntou Sanders, aflito com o pensamento de ver uma boa reportagem escapar-lhe. A enfermeira encolheu os ombros e foi-se sem ruído, nas suas solas
de borracha.
- Voltarei. - disse Sanders.
Mas só pôde ver Liliana ao fim de três semanas, dois dias depois do enterro do velho Filipe. "Cá está, outra vez, esse demónio do Evening Star-" - disse a enfermeira.
- Deixe-o entrar... espere... passe-me um espelho... e a minha malinha... diga-lhe que tenha paciência por cinco minutos ... - respondeu vivamente Liliana. Aborrecida,
a enfermeira saiu. Assim que Sanders entrou, Liliana estava espectaculosamente deitada: com as faces pálidas e os lábios vermelhos. Vestia uma camisa de noite cor
de rosa-chá.
Ah! emfim!- exclamou Sanders. New-York inteira espera ver o seu retrato. Tem um grande futuro diante de si e um passado cheio de experiência, Baby; acredite em Sanders
que tem visto subir muitas estrelas.
- Estou absolutamente num feixe - disse Liliana, sorrindo. Sanders arranjou-a um pouco e Pratt barulhava com o seu aparelho através da porta.
- Aqui está Pratt. - disse Sanders. - Desta vez, Pratt, nada de retoques. Deixe-nos andar, Baby, vamos valorizar a sua história como merece. O patrão oferece lhe
trezentos dólares pelas suas memórias a respeito de Big Bill e isto para começar. Que vai fazer quando sair deste galinheiro?
- A minha ambição tem sido sempre o teatro. disse prontamente Liliana. -Mesmo sob o cobertor de lã, marcado com as iniciais do hospital, podia ver-se quanto as suas
ancas eram belas. - Gostaria de ser rica e célebre, meus pais não são ricos e tenho duas irmãzinhas.
Encantado, Sanders estenografava. Tudo isso seria impresso no Evening Star.
- Minha filha - disse ele. em tom solene, - a tua carreira começa hoje. Dentro de três anos darão o teu nome a uma marca de cigarros!
O magnésio brilhou com um estalido surdo e uma nuvem de fumo pálido diluiu-se no ar, até ao teto, pintado de branco, do quarto da doente.
- DE quem é a vez agora ?-preguntou o Sr. Crosby
ao seu secretário. O secretário consultou a lista e disse:
- Da sr.a Bengtson, sr. Crosby.
O sr. Crosby levantou-se e passou por cada uma das quatro janelas colossais do seu escritório. Diante de todas via-se a mesma coisa : neve suja, bicos de torres,
de tal forma que New-York parecia uma péssima gravura de Jornal, impressa em rede grossa. Os dois rios e as colinas estavam invisíveis e a região do centro-oeste
pedia socorro, pois encontrava-se inundada, como todos os anos, em Março. No entanto, Crosby estava de bom humor. As acções da Central tinham subido meio ponto e
o seu açúcar tinha descido três décimas.
- Mande entrar a sr.a Bengtson. - ordenou. O secretário particular disse ao ditofone:
- A sr.a Bengtson pode entrar.
No vestíbulo de recepção estavam três secretárias prontas a executarem as ordens do todo-poderoso. Uma delas levantou se e foi chamar à sala de espera:
- A sr. Bengtson.
Ela tinha uma voz de mayonnaise rançosa. Nina levantou-se e entrou.
Os seus joelhos estavam ainda um pouco trémulos, pois o jovem Erik pesava mais de quatro quilos à nascença
e levou vinte e quatro horas a chegar. Mas, mesmo sem isso, ela teria os joelhos vacilantes no momento de comparecer diante do grande patrão. Vestia o seu casaco
azul-marinho e a condessa tinha-lhe emprestado luvas brancas, que eram muito grandes para ela. -Aqui está a sr.a Bengtson, sr. Crosby-disse o secretário, empurrando
uma cadeira incómoda para a frente do director da Central.
- Bons-dias, sr.a Bengtson - disse Crosby, sem olhar para Nina. Lia numa resma de papéis que o seu secretário colocara diante dele; quando acabou, suspirou alto
e passou outra vez diante de cada uma das quatro janelas de vidros cobertos de neve e voltou a sentar-se atrás da sua secretária gigante.
- Fez um pedido para voltar para cá, sr.a Bengtson ?
- preguntou, e o seu olhar ergueu-se bruscamente para Nina, de modo que ela ficou tão surpreendida que sentiu Cada uma das doze sardas do seu rosto.
É verdade, sr. Crosby. - respondeu prontamente, avançando para a borda da cadeira - A sr.a Bradley informou-me que iam contratar sessenta caixeiras novas para a
Central.
- A sr.a Bradley? A sr.a Bradley?-disse o sr. Crosby franzindo as sobrancelhas e procurando nos seus papéis.
- Ela já não trabalha na Central desde que Skimpy herdou do velho Filipe, mas aluga quartos aos empregados do armazém e sabe assim todas as novidades.
O sr. Crosby afastou, com um gesto de mão, essas explicações ociosas.
- Mandei-a chamar porque o meu amigo Thorpe escreveu-me de Paris por sua causa. -disse. Nina corou. Êle parece que se interessa muito por si, - acrescentou Crosby.
Pelo rizinho lisongeiro do secretário, Nina percebeu que o todo-poderoso acabava de ter espírito. Sorriu fracamente. Tinha muito medo. Querido e bom Steve, que mesmo
durante a sua segunda viagem de núpcias...
que com certeza não era um prazer para ele... não a esquecia..
- com certeza, sr. Crosby - disse ela.
- Thorpe disse-me que devia também receber seu marido, mas compreende que isso é completamente impossível. - disse o sr. Crosby.
- com certeza, sr. Crosby. - murmurou Nina com a garganta seca.
- Se o nosso bom Filipe não estivesse cá, a Central teria perdido centenas de milhares de dólares por causa de uma leviandade de seu marido. Eu digo leviandade...
porque não se pôde provar qualquer coisa pior.
Nina olhou para as luvas.
- Meu marido pagou duramente as suas faltas. disse ela-Transformou-se muito, também, desde que lhe foi levantada a prisão preventiva.
O sr. Crosby impacientou-se. Não queria meter-se em assuntos de psicologia privada.
- Bem - disse, atirando ao secretário o maço de papéis... - Por causa do meu amigo Thorpe... e por a senhora ser considerada como uma caixeira conscienciosa, vai
ser-lhe restituído o seu antigo lugar. Pode ir apresentar-se imediatamente na secção de louças e vidros... lá lhe darão as necessárias instruções. O seu marido deve
ver o que faz...
- Pinta. Será um dia um artista célebre! - não pôde deixar de dizer Nina.
Teria abafado, se tivesse que engulir isto. O sr. Crosby tomou um ar impacientado, mas franziu as sobrancelhas, o que era nele uma forma de sorrir.
- De quem é a vez agora ? - preguntou ao secretário.
- De madame Chalon: aumento de ordenado respondeu o rapaz.
Nina compreendeu que a despediam. Tinha o coração cheio de reconhecimento e não sabia como exprimi-lo.
- Obrigada, sr. Crosby - disse ela. Sinto-me feliz... emfim... quem já trabalhou na Central... embora esteja sempre a resmungar, troca tudo pela velha loja.
Assustada, ouviu como o sr. Crosby desatou a rir sonoramente, o que em breve se transformou numa tosse de bronquite crónica.
Nina desfilou diante das três secretárias do hall de recepção, diante das pessoas que estavam no salão de espera, diante dos avisos: "Pede-se o favor de guardar
silêncio" e dirigiu-se para o elevador.
Na secção de louças e vidros estavam já informados do seu regresso, pois na Central as notícias têm uma forma extraordinária de se propagar sem fios, por telepatia.
O sr. Berg estava sinceramente contente e miss Drivot fez como se estivesse.
- Sabe que nos tiram agora mais cinquenta cêntimos sobre 60 dólares ? Não faltava mais nada! Chamam a esta retirada: reforma para a velhice. Batatas, digo-lhe eu.
- anunciou ela a Nina.
Às escondidas, Nina acariciou a superfície lisa e fria de um vaso de cristal azul.
- Já lanchou? - preguntou o sr. Berg. Não? Então vá de pressa, porque pode começar a seguir. Como? Se precisamos de si? Creio bem. Temos uma venda antes do inventário:
vamos liquidar todos os objectos de importação inglesa. O serviço de 62 dólares está por 12 dólares, sem falar no resto.
- Os vidros, as porcelanas tomaram um grande desenvolvimento desde a sua saída - disse miss Drivot como um triunfo pessoal. Ao fundo, ouviu-se um ruído de vidro
partido; uma das novas caixeiras tinha quebrado uma fruteira. "Meu Deus!"-exclamou o sr. Berg, correndo para o local do sinistro.
A condessa esperava, com o seu inverosímil Ford diante da fachada oeste, justamente debaixo do aviso: "É proibido estacionar." Tinha metido conversa com o polícia
e este fazia, com sorridente complacência, uma
descrição da constituição de seu jovem irmão. Nina subiu para o carro.
- Pronto, Mutz - disse ela. A condessa falou amavelmente ao seu motor e, ao fim de um certo tempo, o carro consentiu em pôr-se em marcha. "Onde está Erik ? - preguntou
Nina. - "Espera-nos no "Rivoldi"... Ofereço-lhes uma garrafa de chianti.
- Eu não devo beber, pois começo a trabalhar logo a seguir ao almoço.
- Estás contente? - preguntou a condessa, olhando Nina emquanto ia aos ziguezagues perigosos.
- Sim ... se não fosse por causa do pequeno... -A sr.a Bradley e Skimpy tratarão dele. E tu ainda lhe podes dar de mamar duas vezes ao dia, de manhã e à noite.
- Sim, é verdade.
- E depois, Erik é mestre na arte de mudar os cueiros e de preparar biberons, deves reconhecê-lo...
- Querido Erik! - murmurou Nina, sorrindo sonhadoramente.
- Erik gosta muito de ti, Nina.- disse a condessa. Elas avançavam lentamente sobre a neve, por entre
a circulação do meio-dia. Nina não respondeu. A condessa afirmou:
- Nunca pensei que ele chegasse a amar tão profundamente.
- Não ? - preguntou Nina.
- Escuta, Nina. Eu aprendi qualquer coisa lá em baixo, em Lansdale. - disse a condessa fazendo habilmente uma volta para se colocar no lugar dos carros do "Rivoldi"
- O homem é uma máquina subtil e imperfeita. É muito bonito e muito bom sonhar com a perfeição : o ente perfeito, o casamento perfeito... o carácter perfeito...
mas isso não existe na realidade. Os defeitos são válvulas de segurança. Aprendi isto com os meus desgraçados de lá, da caixa dos malucos.
Nina reflectiu um instante. Desceram, e a condessa
teve um diálogo em voz muito alta com um italiano do parque dos carros; por fim, com um grande sorriso e um cumprimento, este deu-lhe a sua senha de estacionamento.
- Sim, creio que, quando se gosta de alguém, gosta-se tanto dos seus defeitos como do resto... - disse Nina quando elas empurravam já a porta e entravam na sala
do "Rivoldi , obscurecida pelo fumo.
Erik estava sentado a um canto, debruçado sobre o mármore da mesa : desenhava encarniçadamente. Quando viu as duas mulheres, apagou vivamente tudo com a palma da
mão. Nina instalou-se e, como havia muito que tinha aprendido a decifrar as garatujas de seu marido, reparou que se tratava de uma familia de pardalitos, de grandes
bicos abertos. A condessa esfregou as mãos e encomendou a comida.
- Nina resolveu trabalhar, emquanto tu não vendes o teu primeiro quadro. - disse ela a Erik.
- Não tardará muito tempo-respondeu, procurando debaixo da mesa, a mão de Nina. A jovem tinha ainda as grandes luvas e, surpreendido, ele tateou o final dos dedos
vazios. Durante esse tempo, a condessa lançou a Nina um olhar de muda compreensão. "Os homens são uma raça bem fraca... nós temos de os ajudar como pudermos..."
Era isto mais ou menos o que o seu olhar significava. Em Lansdale tinha ela tido muitas conversas sobre esse tema.
O chianti apareceu ao mesmo tempo que a sopa. O criado parecia estar apaixonado- pela condessa; uma nódoa de tomate manchava o seu avental branco.
- vou tentar pintar o que pensei durante o meu interrogatório de terceiro grau. - disse Erik subitamente. Era a primeira vez que falava disso.
- E que era, meu filho? - preguntou a condessa.
- Nina ... eis o que pensava. Dizia constantemente para mim: Nina ... Nina ... Nina..
Calaram-se um instante.
- Agora trata de não recomeçar, porque eu só posso pedir uma licença por ano. - disse a condessa, alegremente, vazando o vinho nos copos.
Às seis horas menos cinco, exactamente, a tal senhora
- a cliente para quem tudo era caro - fez a sua entrada na secção de vidros e louças. Passou pelos doze balcões, que tinham instalado para a liquidação geral e chegou
diante do serviço de rosas.
Nina apressou-se a servi-la.
-A senhora ainda se interessa pelo serviço? - preguntou ela - Baixou. Só custa nove dólares e setenta e cinco...
A mulher calculou, movendo os lábios.
Eram seis horas, a sineta tocou; por fim, a cliente tomou um ar encantado:
- Eu levo-o! -disse.
- Devo avisá-la, minha senhora, de que duas chávenas já estão rachadas -disse Nina dando um piparote nas duas peças de que saía um som velado.
- Não faz mal - afirmou a senhora - as coisas rachadas são as que duram mais.

VALHA ME Deus! Lá está ela outra vez! -exclamou intimamente Nina, ao ver a cliente que, às seis horas menos cinco, entrava a porta envidraçada que separava os novos dos velhos armazéns, e a secção de alimentação da das porcelanas.
Na secção dos alimentos era hoje o dia do peixe a preço único: cada qualidade a 20 cents o arrátel. Sentia-se o cheiro em todo o andar! Quanto à senhora, vinha pela quarta vez e, justamente uns minutos antes de fechar o armazém, Pertencia a essa categoria de pessoas que chegam sempre tarde. Embora os cinco degraus, que se seguiam à porta envidraçada, fossem assinalados por um letreiro, dizendo: "Atenção aos degraus!" a senhora tropeçou, deixou cair um embrulho e apertou a malinha de mão contra o seio frouxo. com o chapéu um pouco ao lado, as faces afogueadas, pertencia também a essa espécie de clientes que andam sempre à procura do que for mais barato.
Blusas manchadas, cafeteiras amachucadas, sacos de coiro desbotados pelo sol, meias de seda quási artificial, de ocasião - tais eram as suas compras. São mulheres de pequenos empregados, cheias de preocupações e de trabalho, mulheres que nunca, na sua vida, possuíram uma coisa, tendo-a pago pelo seu preço normal.
Agora era o serviço de porcelana para doze pessoas, guarnecido a rosas, que tinha dado volta à cabeça da boa senhora. Estava em cima da segunda mesa: pratos, travessas, chávenas de café -tudo. Porcelana já não muito branca, rosas de cor bastante carregada, folhas excessivamente verdes, com os bordos ligeiramente mordiscados, pouco doirados. " 39.80" anunciava a etiqueta; e esse preço, só por si, era uma obra de arte, uma sugestão que tornava o serviço ainda mais barato do que 40 dólares. Desde a fábrica, até esta mesa de armazém, centenas de pessoas tinham sido lesadas nos seus salários, para que o preço desse serviço pudesse ser calculado vinte cêntimos abaixo de quarenta dólares. Exposto agora, com todas as suas rosas e o seu luxo de segunda classe, atraía os clientes.

 

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A mulher parou diante do serviço: viram-na reflectir e calcular, emquanto que, com o olhar, procurava uma empregada.
"A mim não, Senhor, a mim não!"-implorou mentalmente Nina, tentando parecer desagradável - "Ao menos uma vez, miss Drivot pode muito bem atender a última cliente."
- pensava ela, quási zangada -Três rugas cruzaram-lhe a pequena testa. Erik pretendia que ela parecia um pequeno cão basset, assim que tinha qualquer preocupação...
Dizia também que era tão pequena e tão nova que devia ainda "precisar de crescer dentro da pele, dessa pele fina, brilhante e aveludada de rapariga de dezanove anos.
E quando Nina recordava as coisas que o seu amigo lhe dizia, essas coisas que mais ninguém no mundo podia inventar, sentia sempre um aperto angustioso e doce, no
coração. Agora, no seu trabalho, cinco-não, dois minutos e meio-antes de fechar, e com uma cliente desagradável à vista, sentia-o também, mas sem doçura.
- Está livre, menina?-preguntou a senhora, diante do serviço de porcelana - E Nina abandonou-se ao seu destino.
E devia ser esse o seu destino, pois toda a clientela
desagradável se lhe dirigia. Não sei o que tenho... as clientes caem em cima de mim como moscas -lamentava-se ao seu amigo Erik e à sua camarada Liliana.
-Oh! Tu tens com certeza qualquer atracção, pardal, pardalinho, pardalito - dizia ele.
Os clientes só servem para nos maçar! -replicava Liliana, sem dar atenção ao pedido de conselho que a queixa de Nina ocultava.
Isso é certo. - concordava Nina, sem verdadeira convicção.
com os cabelos brilhantes, cor de avelã, o olhar sério e interrogador, tudo nela parecia tão simples e era tão simpático, que não se tornava necessária muita psicologia
para compreender que, quem quisesse comprar um serviço de porcelana ou uma fruteira de cristal, se dirigisse a ela e não à magra e seca miss Drivot.
- Trinta e nove dólares ?-preguntou a senhora, parada diante do serviço de rosas - Eram então seis horas e um minuto; a sineta já tinha acabado de tocar.
- Trinta e nove dólares e oitenta.-rectificou polidamente Nina, fazendo soar, com uma pancada do dedo, uma chávena de onde saiu um lindo som - É uma bela porcelana.
Artigo de primeira qualidade.
Seis horas e dois! Erick devia já estar à espera em baixo, na escada 5. Drivot, naturalmente, já estava pronta, há que tempos! Cobria com panos os animais de vidro
e preparava-se para sair.
- Tão caro! Não se poderia... emfim, não se poderia fazer um abatimento ?
- Infelizmente não é possível. É pintado à mão, artigo de primeira qualidade.
- Não posso gastar tanto! É pintado à mão? E se se partir alguma peça, poderão substituí-la ?
- com certeza, minha senhora, com certeza.- respondeu Nina.
Esta conversa tinha lugar pela quarta vez; a mulher estava louca pelo serviço, mas não tinha o dinheiro preciso.
Seis horas e quatro! No meio da sua cólera e da sua impaciência, Nina experimentava como que um sentimento de compreensão por essa senhora, sentimento que era piedade,
embora ela não o reconhecesse como tal.
- É que eu festejo em breve as minhas bodas de prata ... - explicou a cliente.
- Ah! Sim?-interessou-se amavelmente Nina - Eu também estou para casar em breve, teria acrescentado de boa vontade. Mas a sua vida privada nada tinha que ver com
o trabalho. Seis horas e cinco, indicava o relógio sobre a porta envidraçada. Na secção musical, próxima, o último gramofone tinha-se calado. Erik esperava. Drivot,
evidentemente, havia-se eclipsado. Somente no fundo da galeria, na caixa 24, trabalhavam ainda. Era aí que a sr.a Bradley empacotava, mecanicamente, como uma máquina.
A sr.a Bradley era também uma espécie de vítima; era sempre a última a sair.
- Deve resolver-se. - tornou Nina - é uma ocasião
única...
O sr. Berg, chefe da secção, percorria pela última vez o seu domínio. Involuntariamente, Nina lançou lhe um olhar de submissa súplica. Experimentava pelo sr. Berg
o sentimento respeitoso que um jovem escritor pode sentir por um prémio Nobel. O sr, Berg possuia, com certeza, coração: toda a secção estava de acordo sobre este
ponto - coração e coragem. Veio em auxílio da empregada.
- O elevador não trabalha já, minha senhora. lembrou, cortesmente - Fechamos às seis horas. Esta senhora terá que descer a escada, quando tiver terminado a sua compra.
- Não posso resolver hoje. - disse a cliente - Volto cá noutra ocasião. E foi-se embora.
Nina tinha ainda de arrumar. A porcelana tilintava-lhe nas mãos, tão nervosa se sentia. Erik estava em baixo, na escada 5. O elevador reservado ao pessoal já não
funcionava. Era preciso descer a pé a escada 8 e seguir o longo corredor da cave até ao vestiário onde estavam os armários estreitos e alinhados, como no quartel.
Nina lavou as mãos, mirou-se um segundo ao espelho do toucador e, em seguida, pôs um sopro de pó no rosto e um traço de rouge nos lábios.
-Então? Tens pressa?-preguntou Liliana que arranjava as unhas e as sobrancelhas, pausadamente.
- Tenho. - respondeu Nina, com um braço já metido na manga do casaco -A sr.a Bradley já saiu?
- Não a vi - respondeu Liliana, pintando cuidadosamente os lábios.
- Tanto pior, eu não posso esperar, -retorquiu Nina, saindo.
- Espera um instante! Eu vou contigo! -gritou Liliana atrás dela; mas com as suas três rugas na testa, Nina fingiu não ouvir. Embora Liliana fôsse sua amiga, não
gostava que se lhe agarrasse todas as tardes. Muitas vezes Liliana e Erik entregavam-se a brincadeiras a que Nina, com a melhor boa vontade deste mundo, não podia
achar graça.
Transpôs, correndo, as portas da cave, deslisou entre as caixeiras que subiam, cujo grupo foi detido no antigo pátio de controle. Do portão vinha uma corrente de
ar: recebia-se aí uma poeirada no rosto e nos olhos, de fazer chorar. Nina ia meia cega quando conseguiu chegar à escada 5. Erik lá estava: tinha o ar de verdadeiro
gentleman, com a gravata de seda e o chapéu de coco. Havia já algum tempo que deixara crescer um pequeno bigode. Enlaçou amorosamente Nina.
- Então Spurv? Lille Spurv! - murmurou, arrastando-a. Isto era dinamarquês e significava: pardal, pardalinho. Pois Erik - Erik Bengtson era dinamarquês. Viera para
a América muito novo e frequentemente, evocava ainda os bosques de vidoeiros e as baías tranquilas do seu país. Diferia em muita coisa da espécie de rapazes que
Nina costumava conhecer. Ele parecia-lhe um estrangeiro que tivesse acabado de desembarcar no último
barco e não compreendesse bem o que representava New-York. Era muito mais alto do que Nina; uma expressão impertinente flutuava-lhe no rosto: dir-se-ia que tudo
quanto ele via o divertia loucamente.
Nina apertou com mais força o braço contra o do companheiro, e caminhou sem dizer palavra. Como exprimir a sua felicidade sempre que este Erik tinha o braço metido
no seu ombro junto à sua fronte? Ela regulava o mais possível o seu passo pelo dele e levantava, quanto podia, o rosto para o ver.
Era o rosto da tarde de todas as mulheres de grande cidade: a face jovem e fina, de pele frágil e delicada, de quem apanha pouca luz e pouco sol. Muito nova, terna,
um tudo-nada de petulância e algum cepticismo. "Estar cansada, sim, às vezes, mas não o mostrar nunca." Um leve círculo em redor dos olhos e o clarão agudo das lâmpadas
e dos reclamos luminosos sobre as faces e sobre a boca entreaberta.
- Um pouco atrasada, an ? - disse ele.
- Sim... À última hora apareceu-me uma velha maçadora...
- Não te rales, podemos ainda passar dez minutos no "Rivoldi" - e deu grandes passadas.
Não podiam avançar; era a hora em que a capital enlouquecia, em que de todas as casas de comércio saía gente, ondas de gente. Caça aos automóveis, aos metros, aos
eléctricos, filas de carros parados, mendigos, floristas tentando vender os últimos ramos, carritos de fruta voltando para casa, homens que querem apanhar uma rapariga
com quem passar a tarde, mulheres procurando um homem com quem passar a noite; gente casada que volta para casa, maridos que perdem tempo para não terem de recolher,
solitários parados às esquinas a seguir os namorados com o olhar.
- Ao "Rivoldi"? Não vamos para casa? É pena!...
- lamentou Nina, mergulhando rapidamente, o rosto na sombra.
- Que queres, tem que ser! E posso dar-me por feliz se tiver acabado amanhã de manhã, às seis horas.
- Trabalho extraordinário ? E que vais fazer ? - preguntou a rapariga.
- Pôr. Pôr ovos toda a noite. - disse Erik, não sem dignidade, empurrando a porta do pequeno restaurante italiano. Lá dentro cheirava a cebola e a cigarros ordinários;
o ar estava todo azul, Erik tinha um fraco por esse lugar fumarento; já fora à Itália, no tempo em que esperava tornar-se pintor célebre, e conhecia um pouco o italiano.
- Pôr ovos ? Para quê ? - preguntou Nina, rindo.
- Para as festas da Páscoa. - respondeu Erik, instalando-a num canto.
Ela encaixou-se atrás da mesita de tampo de mármore, olhando-o num ar encantado.
- Dá-me um cigarro. - disse, para não deixar ver muito a sua admiração - E deixa o meu joelho em paz. Não dês nas vistas.
Na verdade, Erik, esse grande maluco, não se comportava bem. Que ele era um grande maluco, lá nisso toda a gente estava de acordo,
- Raviolis, café, torta de damasco, - encomendou ao criado.
- Para mim também-resolveu Nina, que não percebera nada.
Erik tinha, mais uma vez, o lápis na mão e desenhava qualquer coisa no mármore da mesa, entre as rodelas que as chávenas de café, anteriormente servidas, haviam
deixado.
- Que é isso ? - preguntou Nina, aspirando profundamente a sua primeira fumaça.
Erik levantou os olhos um instante, quando o fumo saía pelas narinas pálidas e finas da sua companheira. Estava loucamente apaixonado por ela. - "Faz anéis".
- disse-lhe - Nina aspirou o cigarro e fez anéis. Erik contemplava o espectáculo, como se fosse um bom numero
de musiC'hall. Depois, continuou a desenhar. "Parece-me que tenho uma idea"... - murmurou, distraído.
- A respeito dos ovos ?
- Sim. Trata-se da decoração para a Páscoa.
- Que o demónio leve a decoração se tu tens que ficar lá todas as noites por causa disso. Parece-me que o teu chefe te apanhou mais uma vez.
- Apanhou-me bem, o velho rinoceronte. A ele não lhe vem outra coisa à cabeça senão pôr uma lebre e um vidoeiro em cada vitrina.
-E tu?
- Eu ? Oh! eu vou achar, com certeza, qualquer
coisa melhor.
- com certeza. - confiou Nina. Desde que conhecera este Erik, descobrira que ele era um génio. Um génio em montras e em todo o género de coisas: publicidade, desenhos,
balões fora dos novos edifícios, esboços para catálogos - sim, um génio em tudo e para tudo. Mas, por mais recente que fosse a sua experiência no que respeitava
a génios, ela já tinha compreendido que não é sempre fácil viver com eles.
- Fico outra vez sozinha esta noite! Estava tão contente pensando que a passaria ao pé de ti... - disse timidamente.
- Mete-te no teu ninho e dorme, Lille Spurv. - respondeu ele - Tens o ar de quem está um pouco cansada ... Eu vou despachar-me e talvez amanhã te vá dar os bons-dias
antes de tu saíres.
- Sim senhor... isto vai dar um bonito casamento! exclamou ela. - Quando eu sair do armazém, tens tu que entrar e quando tu saíres, entrarei eu!
- Um casamento de primeira qualidade. Garantido. - brincou ele abandonando, emfim, o desenho. Nina observava-o emquanto mastigava a sua dose de raviolis... Tinha
outra vez o ar de não estar ali ao pé dela, à mesa do "Rivoldi", mas Deus sabia lá onde...
Tu não te sentes cansado, dize ? - preguntou ela.
Nem nada - respondeu o rapaz.
Nina bebeu o seu café e comeu o seu bolo. Estava desiludida e triste. A noite, sem Erik, alongava-se na sua frente, sem fim, vazia como um deserto.
- Poderia talvez ir ao cinema... - arriscou, hesitante.
- Isso não! - retorquiu Erik - Ao cinema só vamos
juntos. Não quero que vejas sem mim todos os bons films. -Egoísta!
- Sou-o horrivelmente, quando se trata de ti. - afirmou Erik. Mas estava a brincar.
- Quando iremos ao cinema, os dois ? - preguntou Nina, meia consolada.
- Amanhã. - respondeu ele - E chamou o criado, murmurando palavras em italiano. A conta chegou pouco depois. Erik pagou.
A mesa estava coberta de garatujas, mas Nina não chegava a perceber do que se tratava. O criado trazia já uma rodilha molhada e apagou tudo.
- Agora vamos, pequenina, avante! Preciso voltar à loja - disse Erik, metendo o braço no da rapariga.
Lá fora, tiveram que afrontar o primeiro vento da primavera que desembocava da esquina. Só agora ela sentia a que ponto estava fatigada e só o pensar na sua cama,
causou-lhe prazer. Maquinalmente dirigiu-se para a estação do metro, mais próxima, mas Erik reteve-a no momento em que ela ia atravessar a rua.
- Anda, - disse - vamos tomar um táxi, dou-te um thaler para pagar e vais até casa. Ele disse thaler e isso parecia estrangeiro, dinamarquês.
- Meu Deus, como és gastador! E pensa isto em casar...
- Pst! Pare primeiro na Central Warehouse. A senhora vai mais-longe - disse Erik, empurrando Nina para o táxi, que acabava de parar ao seu sinal.
Para ir do "Rivoldi" à Central, de táxi, bastava minuto e meio, compreendendo duas paragens nos cruzamentos,
Durante esse minuto e meio a boca de Erik foi colada à de Nina.
- Boas-noites, Lille Spurv. - disse, descendo - Aqui
tens o teu thaler.
- Dá saudades â lebre da Páscoa,-recomendou ela e põe os teus ovos com todo o cuidado.
Na primeira esquina fêz parar o carro, deu ao motorista trinta cêntimos, meteu na sua carteira o dólar que tinha aquecido na mão, e depois meteu-se na boca do metro.
A Central Warehouse ocupava um quarteirão inteiro de casas no centro da cidade, com doze montras gigantescas, em cada uma das quatro fachadas e doze andares cheios
de mercadorias e de actividade. No meio, erguia-se um arranha-céus de dezoito andares, no qual estavam instalados os escritórios e aposentos da direcção.
Erik seguiu pelo lado oeste do edifício: todas as vitrinas estavam iluminadas. Na fachada norte, estores, atrás dos quais se agitavam sombras, velavam as montras
números 1 a 6, cuja decoração devia ser renovada durante a noite. O relógio monumental do edifício do centro, de disco luminoso, indicava sete horas menos dez.
- Adeus, Joé - disse o rapaz passando diante da casa do porteiro, que ficava à entrada 4 do pessoal.
- Trabalha de noite, sr. Bengtson ? - informou-se Joé, aparecendo à porta.
Ele tinha um olho de vidro. Depois do armistício, fôra uma idea fixa do sr. Crosby, o deus invisível que, reinava sobre todo o armazém, empregar cinquenta feridos
de guerra. Os jornais tinham falado muito e citado o sr. Crosby como um grande patriota. Sete ou oito desses veteranos estavam ao serviço; podia-se vê-los passar
por diferentes lugares. Um negro maneta ocupava-se do elevador do pessoal do lado norte, e um
irlandês apoplético, com uma perna artificial, tinha por missão aparar todos os lápis dos escritórios.
- Decoração de Páscoa - disse Bengtson estendendo ao guarda o seu maço de cigarros para que ele tirasse um.
- Obrigado. - agradeceu Joé, metendo o cigarro na
algibeira interior.
- O velho já lá está ? - preguntou Bengtson.
- Eu não vi o sr. Sprague - respondeu Joé.
Bengtson afastou-se em passo de gimnástica, assobiando. Fazia soar as chaves como castanholas. As salas vazias seguiam-se numa semi-obscuridade; panos brancos cobriam
as mercadorias que não tinham sido retiradas. De vez em quando, aparecia um manequim, impecavelmente vestido, que sorria, com ar petrificado.
Bengtson dava piparotes naquelas caras de cera, estava contente. Cantava-lhe ainda no sangue o beijo de Nina. Ele gostava do armazém, de noite, "a multidão do mundo",
pensava vagamente. Pensava em dinamarquês.
Abriu o elevador com a sua chave e estava quási a entrar, quando Pusch apareceu, ofegante, e também entrou. Pusch era aprendiz de decorador, um adolescente de dezoito
anos, em pleno crescimento. Ignoravam donde lhe vinha o apelido. Trazia uma pilha de amostras e vacilava com o peso do fardo.
- O sr. Sprague quere ver as cores - balbuciou sufocado, emquanto o elevador os levava. Erik assobiou um pouco mais forte. Tinha a convicção profunda de que o velho,
o sr. Sprague, o chefe dos decoradores, nascera daltónico. Assobiando sempre, indicou com o dedo uma amostra verde claro. Depois interrompeu o assobio e disse:
- É este que vamos escolher. - Depois continuou a
assobiar.
Chegaram ao 12º andar onde ficava a oficina,
- Diz-me cá, ó Pusch, é verdade que pintas o cabelo ? - preguntou ele, antes de sair.
-Não, porquê?- balbuciou o aprendiz cujas orelhas descoradas se tinham tornado encarnadas como fogo. Os seus cabelos eram tão claros, como os de jean Harlow antes
do protesto dos censores. Estava ainda no mesmo sítio com o maço de fazendas e as suas orelhas vermelhas e já Bengtson abria a porta da oficina.
Quando ia a entrar notou um vulto que saía do escritório de Filipe, o detective da casa.- Ah? -pensou, retirando a mão do fecho. A rapariga que avançava para ele
era Liliana, a amiga de Nina.
- Ah? Liliana? - admirou-se. A rapariga, de casaco no braço, abotoando o vestido, disse:
- Viva, Bengtson! - numa voz um pouco rouca Dê-me um cigarro, depressa.
Solícito, estendeu-lhe o maço emquanto riscava já o fósforo. Ela considerava o gesto amável com as sobrancelhas erguidas.
- Aconteceu alguma coisa? -preguntou ele.
- Porquê? Tenho ar de ter sido violentada pelo velho Filipe? Tranqúilize-se, não aconteceu nada.
- Fazia-me pena... por causa do pobre homem. disse ousadamente Bengtson.
Liliana estava na sua frente, com o vestido já abotoado mas tendo ainda as mãos trémulas. Fumava com violência, de uma forma completamente diferente de Nina - pensava
Erik.
- Julgava que já tinha saído há muito tempo. -disse ele, para dizer alguma coisa. Não podia suportar Liliana que se encontrava, sempre que não se desejava a sua
presença. Ela encostara-se a ele e olhava-o com um sorriso trocista.
- Eu não sabia que a Nina usava bâton...-zombe teou a rapariga. Pusch, o aprendiz, tinha-se, entretanto, aproximado e nem se mexia.
- Como? Nina?... - preguntou Erik pouco à vontade.
Liliana desatou a rir e dispòs-se a sair, dizendo:
- Ela tem sempre os lábios pálidos e acha que me
pinto muito.
- Não sei o que quere dizer .. - observou Erik,
que se sentia estúpido.
Pusch riu, passando a mão pelo rosto. Erik compreendeu e, tirando vivamente o lenço, limpou a cara. Envergonhado, apagou bruscamente o beijo do adeus de
Nina.
- Boas noites. - rematou Liliana - Tenho de me ir
embora.
- Quem a espera ? - preguntou Erik.
- Vanderbilt - chasqueou a rapariga, afastando-se. Erik viu-a partir. Ela tinha as mais bonitas ancas de todo o armazém.
- Espere. Eu levo-a. Não está ninguém no elevador.
Erik possuía as chaves de todas as portas pois trabalhava principalmente de noite. "Um gentleman é sempre um gentleman" - troçou Liliana emquanto o rapaz lhe abria
a porta - e isso desagradou-lhe. Ela tinha uma maneira de irritar as pessoas, como um mosquito que não se pode apanhar. O elevador ficou logo cheio do seu perfume
penetrante e vulgar.
- Sabe do que eu gostava agora ? - preguntou, antes do elevador chegar abaixo. -Dançar, divertir-me, beber... consigo. -continuou, emquanto ele a olhava-Sim, arranjar
uma brincadeira aqui mesmo.
- Está a chorar ? - preguntou Erik, levemente perturbado, olhando-a, sempre.
-Parece... Obrigada por me ter acompanhado. O seu perfume flutuava ainda, quando Bengtson subiu e saiu do elevador.
O velho-o sr. Sprague - parecia impaciente quando
Erik entrou.
Quando tiver acabado de namorar as raparigas, talvez possamos pensar um pouco nas vitrinas, - disse imediatamente.
Bengtson limitou-se a rir. O sr. Sprague parecia-se com Mark Twain - velhas maneiras, e boa aparência - e sentia-se orgulhoso com isso. Tinha um cérebro de mármore
e um coração de oiro.
-Um dos manequins estava a chorar, levei-a lá abaixo - respondeu Erik, despreocupado.
- Paladino das damas. -replicou Sprague, ciumento Sabe que ser revistado não tem nada de divertido ?
-Ser revistado? Como? -exclamou Bengtson Que quere dizer com isso?
- O quê, não sabe ? Roubaram qualquer coisa e o Filipe teve de revistar muitas empregadas.
- Rouba-se muito, nestes últimos tempos, não acha sr. Sprague?-notou Bengtson, brincando com as amostras.
A luz lançava um reflexo vivo sobre o tecido vulgar.
- É exactamente o que diz o sr. Crosby; roubam muito, nestes últimos tempos. Desta vez o velho Filipe vai pagá-las.
- Que aconteceu ? - interrogou Erik, deixando cair a amostra,
- Sabe, aqueles objectos de arte com que se fez uma exposição russa de peças raras e de objectos pertencentes a particulares, lembra-se?
Bengtson lembrava-se muito bem: tivera com o velho uma grande discussão a respeito dessa instalação e acabara por ganhar. O outro quisera fazer qualquer coisa de
exagerado, como nos bailados eslavos. Erik tinha pedido alguns móveis emprestados à secção de antiguidades e fizera instalar vários aposentos em estilo Império,
onde dispusera as obras de arte.
- Que roubaram ? - preguntou, mais para dar prazer ao velho, do que por interesse.
- Uma pequena imagem, um ícone todo incrustado de pedras preciosas valendo dois mil dólares.
Estava segura ? - informou-se Bengtson - Então,
ninguém perdeu.
Lembrou-se de-repente dos olhos brilhantes de Liliana que chorava sem lágrimas e parecia irritada. "Como podem ter suspeitado das raparigas da secção de costura,
é o que eu pregunto. O velho Filipe torna-se cada vez
mais idiota."
Sprague abafou o riso: - É o que nos acontecerá a todos se ficarmos aqui empregados muito tempo. Você ainda não percebeu isso?
Desta vez, Bengtson exaltou-se: imaginou Filipe revistando Liliana.
- Eu matava alguém que quisesse revistar a Nina! -
disse, com veemência.
- Quem é a Nina? - preguntou o velho,
- Vamos casar no dia de Páscoa, como já lhe disse
- confirmou Erik.
O velho pôs-se a rir.
- É verdade, é tempo de se acorrentar - E havia nas suas palavras admiração e inveja.
Subitamente, Erik deixou os seus negócios pessoais e voltou-se para os tecidos. Pusch continuava ao pé da grande mesa de desenho, sobre a qual colocara as amostras,
e segurava uma na mão. Tinha uma predilecção quási feminina pelas cores, as sedas e os tecidos brilhantes e, no fundo da sua alma, sentia uma certa vergonha por
isso.
- Vai dormir, Pusch. - disse Bengtson - Aqui não se
precisa de crianças.
O velho aproximou-se também da mesa e, através
dos óculos, observou os tecidos.
- Precisamos de trinta e seis metros por vitrina. disse Erik, num tom profissional, pondo um papel coberto de cifras e de notas na mão do sr. Sprague - Prefere o
tecido verde, mas eu gosto mais do amarelo.
O velho considerou as duas cores que Bengtson lhe metia debaixo dos olhos,
- Você não percebe nada, meu rapaz, o verde é que deve ser.
Bengtson tomou um ar agastado. Intimamente, rejubilava.
- bom. vou descer, Começamos pela vitrina sete. - anunciou pegando no tecido verde. O seu método de obrigar o velho a fazer o que ele queria, mostrou-se mais uma
vez infalível:
- Comece pela primeira vitrina, como já lhe disse ordenou o chefe em tom peremptório.
Bengtson mostrou um ar santamente desolado. -Senhor, seja feita a vossa vontade!-disse - Depois pegou nas amostras e retirou-se.
No elevador flutuava ainda o perfume de Liliana... Liliana era caixeira do salão francês, de costura, na secção de vestidos. Chamava-se Liliana Smith. Smith, porque
era filha do operário Smith, empregado nos trabalhos do canal; Liliana, porque desejava velar assim a vulgaridade do seu nome de família e da sua origem. Imaginava
às vezes, vagamente, o que daria esse nome nos cartazes: a actriz de cinema Liliana Smith, a star de music'all, a rainha de beleza Liliana Smith. Gostaria então
de reservar o "Liliana" e abandonar o "Smith". Havia nela ódio contra tudo quanto vinha de baixo: odiava o ! cheiro da cozinha, morar numa cave à janela da qual
não via passar senão pernas, odiava as baratas que, de noite, passeavam no sobrado, a racha do seu espelho de má qualidade, odiava o seu leito, o seu fato, as suas
próprias mãos que trabalhavam demais Mas sem se tornarem alguma vez verdadeiras mãos de senhora. Liliana odiava também a clientela, irremediavelmente. Odiava essas
mulheres ricas que chegavam nos seus automóveis, com as malinhas cheias de cheques, ou acompanhadas de homens que pagavam por elas. Sorria-lhes, com o seu sorriso
profissional, mas odiava-as ao mesmo tempo e profundamente, com todo o seu ser.
LILIANA era uma criança da rua; em garota, brincara às escondidas nos grossos canos de gás, que a demolição das casas mais velhas do bairro fazia aparecer. Depois
empregou-se como aprendiza, primeiro em minúscula lojeca de alfaiate, depois num armazém da União Square e finalmente no Central Warehouse. Aí, com olhos ambiciosos,
tinha frequentado a escola onde a direcção do armazém mandava educar as suas empregadas. Progressivamente, subira da secção de retrozaria à da roupa branca, depois,
graças aos seus bons serviços e esforços, chegou ao sector mais requintado: aos salões de prova. Aí, tudo era velado: as luzes, as vozes, as cores. Espessos tapetes,
onde a jovem Liliana adorava meter os pés, tapetes de um cinzento-rosa, paredes da mesma cor, candeeiros com reflectores cromados, projectavam a sua claridade no
teto. Madame Chalon, a directora francesa, reinava neste domínio. Era lunática, de génio alegre"! , nas horas sentimentais, contava às empregadas os seus amores
infelizes com um célebre desenhador de modas de Paris. Liliana fazia tudo para agradar aj madames, pois desejava avançar, ir mais longe subir mais alto. Depois de
dois meses, não só se ocupava da venda, mas
também da apresentação de modelos, estava quasi a
passar da escala de 16 dólares para a secção mais bem paga, dos manequins, de que assumira já lugar de destaque.
Fazia a sua entrada com um casaco de arminho ou com um vestido de baile - cópia de um modelo de Patou -ou com um roupão de seda azul-noite. Via-se ao espelho, virava-se
com um movimento que lhe tinham ensinado, alargando o vestido à sua volta e olhava por cima do ombro a cliente - essa cliente que odiava.
A jovem Liliana tinha uma figura perfeita de manequim quarenta, para nos exprimirmos em linguagem profissional. Numa palavra, era construída como uma rainha, delicada,
elegante, com os membros finos e as ancas largas e coleantes. Nela, tudo era alto e pequeno: joelhos, pernas, seios. Esta filha de operário era feita como se um
apurador de raças, depois de muitos esforços, produzisse o que há de melhor com feitio de mulher. Tinha umas formas maravilhosas e também um rosto, mas para o qual
ninguém olhava: viam apenas o corpo e os vestidos que vestia. O seu rosto não era tão belo: tinha linhas duras e, em redor da boca e do queixo, certos traços deixavam
transparecer o Smith de baixa origem, a vontade de trepar.
Apaixonava-se pelos vestidos que mostrava, por todas as sedas, gazes, veludos, rendas. Os casacos de peles endoideciam-na. O seu corpo sentia-se feliz sob a caricia
de belos tecidos. Erik chamara-lhe pouco tempo antes: um mármore frio. Não era justo, pois ela tinha em si a paixão e, muitas vezes, essa paixão ardia de uma forma
insuportável. O pior era ter de tirar os vestidos depois de os apresentar e ser obrigada a pôr o seu fatito pobre de 12 dólares.
Para mudar de vestido só dão a um manequim um " ou dois minutos. No salão, ela passeia lentamente, como uma rainha, diante da clientela mas, assim que sai, no gabinete
de despir, as mãos tremem-lhe ainda: diante do espelho de três faces, despe um vestido, a correr, passa a outro, de-pressa, de-pressa, tendo atrás de si a irritável
directora que resmunga. Mas o que mais a entristece ainda, é ver os vestidos, essas adoradas toilettes em
cima das clientes! Ver como um modelo pode perder o seu chic, ver de que forma todas essas mulheres muito curtas, muito grossas, muito velhas, se esforçam para entrar
nos vestidos, como se põem diante dos espelhos, como são insignificantes, como não sabem vestir se, e tornam vulgares as mais belas peles!
É tudo isso que acende o ódio na jovem Liliana.
-Ah! se eu tivesse a sua figura!-suspirava muitas vezes uma cliente, quando a jovem se apresentava.
"Evidentemente, se tivesses a minha figura... - pensava orgulhosamente Liliana - E se tivesses a minha figura, que aconteceria? com um corpo como o meu, ganha-se
um salário de dezasseis dólares por semana e mora-se numa cave, sim, tudo por baixo! com a minha figura não se tem mesmo um amante, pois, para a maior parte dos
homens é-se "bem demais". Quanto a esses que estariam à minha altura não há nenhuma probabilidade que apareçam neste armazém.
- A cintura é muito estreita. - com estas palavras, cortou madame Thorpe os pensamentos errantes de Liliana.
Madame Thorpe era uma mulher que os seus amigos qualificavam de imponente. Enchouriçada num vestido de seda preta, estava no meio do gabinete de prova e, no espelho,
parecia um pouco melhor do que na realidade era. Todos os espelhos do salão de alta costura eram um tanto lisongeiros. Colocando-os favoravelmente, as senhoras pareciam
logo mais delgadas do que na realidade eram. Na secção de confecção não se davam a esse trabalho: aí abundavam as clientes de medida 48 e 50 e essas são como Deus
as fez e contentam-se com a sua sorte. Quando acabam as compras, sobem lá acima, à pastelaria e banqueteiam-se com sandwichs e tortas de maçã com creme.
-A cintura é muito estreita.-repetia madame Thorpe
- Aqui as cinturas são sempre estreitas. Eu tenho uma linha francesa. Em Paris todos os vestidos me servem,
Liliana odiava esta cliente, esta madame Thorpe, ainda mais do que as outras. Era dessas mulheres que vão aos armazéns unicamente porque se aborrecem: durante horas
fazia com que lhe mostrassem vestidos e provava-os - nervosa, incoerente, histérica. Depois, diante do espelho, caia pouco a pouco no estado de depressão de uma
mulher que tem quarenta anos, e é obrigada a admirar a maneira como uma rapariga de vinte sabe apresentar, com vantagem, o seu corpo esplendoroso.
Muitas vezes o ar quente do pequeno gabinete estava carregado de tempestade. Liliana invejava as clientes pelo seu dinheiro; as clientes invejavam-na pela sua beleza.
O sabor agudo do ciúme aparecia sob os sorrisos recíprocos; o ar cheirava aos corpos, aos perfumes, à mulher, o raio estava a cada momento para estalar. No entanto,
nesse dia, madame Thorpe acabara por comprar um casaco de noite guarnecido de arminho verdadeiro, modelo Margot.
- Esta peste ennervou-me hoje até ao último momento - dizia Liliana à sr.a Bradley quando, no metro, iam para casa. As duas mulheres tinham por costume fazerem juntas
o mesmo caminho até à rua 42. Aí, a sr.a Bradley tinha que mudar. Seguravam-se ambas à mesma correia de suspensão e oscilavam com o movimento da carruagem que ia
completamente cheia; nem pensar num lugar sentado!
- Se vejo a venda da Páscoa passada! - disse a
sr.a Bradley.
- E eu então! Que direi eu? Se soubesse o que passamos neste momento... - replicou Liliana.
- Sim, mas a menina é nova, - queixou-se a sr.a Bradley, cujo rosto pálido tinha manchas de sardas.
- Pregunto a mim mesma quando poderei ir cortar o cabelo ?! - rematava Liliana.
Era o problema constante de todas as caixeiras. Precisavam de ter boa aparência, mas fechavam-lhes a
porta dos salões de cabeleireiro na cara, quando tinham tempo livre.
- Agora preciso de mudar. - disse a sr.a Bradley, conseguindo, a custo, passagem até à porta da carruagem.
- Obrigada por ter esperado por mim. - agradeceu Liliana, fatigada.
- É que eu queria saber como aquilo acabou. Não devia ter-se deixado revistar tão facilmente, digo-lho eu.
- afirmou ainda a sr.a Bradley, descendo.
E o comboio lá continuou, com o ritmo enraivecido e ensurdecedor.
Um homem estava agarrado à correia perto da mão de Liliana, um entre as centenas de homens que tinham feito olhos ternos à rapariga e lhos faziam ainda. Ele soprava-lhe
o seu hálito quente no pescoço e encostava o joelho ao dela, como se a pressão da multidão a isso o obrigasse. Liliana, agarrando-se à correia, sentia em todos os
membros, a pobreza do seu casaco como qualquer coisa que a magoava. A dobra das mangas estava rota, ela sabia-o. A manga que tinha debaixo dos olhos começara a ficar
lustrosa e também cinzenta nas costuras. Liliana sentia-se aborrecida. Tinha trabalhado muito durante todo o dia e depois ainda a retiveram uma hora para a apalpar
e revistar como a uma ladra. "Um dia hão-de pagar-me tudo isto.- pensava, desesperada - Sentia-se ferida e sem defesa. Uma força maldosa acumulava-se nela.
- Deixe-me em paz, senão temos barulho - disse ao homem. Sofria de saudades do casaco de seda comprado por madame Thorpe, como se fosse uma doença. "Esperem", pensava,
emquanto que, fatigada, viajava por debaixo da cidade, entre milhares de outros entes fatigados. "Esperem um pouco, esperem..."
O comboio parou na 125ª rua e ela saiu mecanicamente. Ainda tinha de andar até à 122ª onde moravam seus pais. Era um bairro cheio de mexicanos e italianos. Não sabia,
ao certo, como é que tinham vindo para
ali, sabia apenas que esse meio não lhe convinha e que um dia, muito breve, o mais breve possível, sairia de lá; Diante de um cinema, encimado por um anúncio luminoso,
em espanhol, agrupavam-se as pessoas. Dum café saía o som de um piano eléctrico. Na rua brincavam crianças e cães e a valeta estava cheia de detritos. Diante das
casas passeavam altas mulheres de carnes , caídas e homens em mangas de camisa, embora a noite estivesse fresca, como ao princípio da primavera.
"Assim tão só, minha linda menina?" -preguntou um homem, atrás dela - Não precisou de se voltar para ver como ele era; pele escura, calças estreitas e o cheiro a
alho dos mexicanos. Ela ia mais de-pressa. Ele seguiu-a. "Quere que chame a polícia?" - preguntou a meia voz, sem o olhar - "Não tem coração... não tem coração!...".-
disse, num tom melancólico - Os passos afroixaram. Chegou emfim a sua casa e hesitou um momento antes de descer os três degraus que precediam
a porta.
No próprio momento em que hesitava, surgiu, diante dos seus olhos, inesperadamente, a imagem de Bengtson. Ela não pensava nele - foi um puro acaso. Não estava apaixonada
- não se podia apaixonar. Tal como era, ele não lhe agradava: louco, atrevido, arrogante, superficial, distraído. Aquele que lhe havia de agradar devia ser absolutamente
diferente: rico, com um belo automóvel, fatos de bom corte, dinheiro e tudo mais. "Um homem habituado a comer caviar" - pensava vagamente.
Um gato malhado aproximou-se e deu-lhe marradinhas nas pernas. Liliana não se baixou, ficou direita diante da porta da habitação subterrânea: fixava os olhos na
luz do candeeiro, diante da porta. Erik tinha-lhe acendido o cigarro... acompanhara-a ao elevador... Possuía uma certa elegância e portava-se de forma diferente
dos homens do seu conhecimento. É pena que não tenha dinheiro. - pensava - É pena que vá casar com Nina... Não podia compreender porque o fazia. E,
sobretudo é pena que eu não tenha realmente roubado, pensou de repente-Foi como que um pensamento ardente e corrosivo, que fugiu logo.
Apertando os dentes, Liliana empurrou a porta e
entrou.
LILIANA vinha de baixo, mas aspirava às alturas. Como manequim de um salão de costura tinha já feito um bom pedaço de carreira. Quanto à sr.a Bradley era absolutamente
o contrário: vinha de cima e, irresistivelmente, descia o declive. Uma mulher que, aos quarenta e sete anos fazia embrulhos no serviço de embalagem de um grande
armazém, não podia ter grandes ambições na vida. É que, empacotar, era a única coisa que a sr.a Bradley ainda pôde aprender, depois que seu marido, um industrial,
se suicidou, quando da crise, não lhe deixando senão dívidas, derrocada e um desfazer de feira. Graças a certas protecções, a sr.a Bradley conseguiu ser empregada
na entrega de embrulhos e não se passava uma hora sem que ela não receasse perder o emprego.
Ali estava, entre as jovens principiantes de dezasseis anos, fazendo, sempre com o mesmo gesto, embrulhos
- centenas, milhares de embrulhos. Quando erguia os olhos, só via mãos estendendo-lhe uma senha de entrega, mãos e senhas, senhas e mãos. Ocupava um lugar difícil
onde todos são nervosos, impacientes e ninguém quere esperar. Ela empacotava, empacotava, pensando muitas vezes em Skimpy. "Oxalá Skimpy não fique atropelada! Queira
Deus não caia da janela! Oxalá não brinque com o petróleo do fogão. Skimpy era uma mulherzinhaA GRANDE LIQUIDAÇÃO
de oito anos que tratava da casa, emquanto a sr.a Bradley trabalhava.
Da época da sua opulência elas tinham conservado a sua habitação de Fieldston, esse vestígio de tempo mais feliz. Eram quartos grandes demais, muito numerosos, cheios
de mobília, muito ricos. A sr.a Bradley tinha feito tudo para se desembaraçar dessa casa.
Aparentemente, ninguém a queria. A pobre mulher viu-se obrigada a alugar quartos a pessoas de bem, a preços razoáveis; ao menos pagava as despesas.
No refeitório do armazém encontrava-se um quadro onde se afixavam os anúncios dos empregados. "Piano usado vende-se, ou então: Compra-se bicicleta em bom estado,
ou ainda: Gostaríamos de participar da excursão de domingo, rateando despesas. O quadro estava bem colocado no próprio lugar em que os empregados faziam bicha para
ir buscar o seu prato. Um ou mais dos quartos da sr.a Bradley estavam sempre para alugar.
Fora assim que Nina arranjara um alojamento quando, pobre criatura sem família, grão de poeira atirado pelo vento para a grande cidade, chegara do Texas a New-York.
Foi assim que ela se tornou vizinha de quarto de Erik Bengtson, que já habitava a pensão havia meses, e passava as noites a assobiar de uma forma horrorosa, a cantar,
a fazer barulho. Sem esse quadro, Nina nunca se teria provavelmente casado com esse louco do Erik, com esse génio da decoração.
O casamento realizou-se no domingo de Páscoa e correu de uma forma perfeita. Era, pelo menos, essa a opinião de Nina e também a de Liliana, sua dama de honor.
Erik tinha lutado para ter o sábado livre afim de instalar os seus aposentos. Passou primeiro a sua cama para o quarto de Nina, que se tornou assim um quarto Bradley
completo, com leitos iguais em mogno encerado. Depois, começou as suas operações no outro, no seu, que devia ser a sala, Trabalhou como para a preparação de uma
vitrina. Decorou primeiro as paredes, pintando palmeiras e lianas e pequenos macacos a baloiçar-se. Depois, ornamentou os móveis e plantou um arbusto num vaso chinês.
Pintou almofadas, estofou caixotes e fez mil coisas incompreensíveis.
Transpirava como um escravo, na sua bata manchada de cores, assobiando e cantando tão alto que Skimpy não podia estudar as lições. Por fim, saiu de todo esse trabalho
qualquer coisa que parecia um estúdio exótico. Nina ficou petrificada logo que entrou. "Ah! palavra... estou espantada..."- disse ela - E Foi preciso que, à sua
maneira, Erik a degelasse. Ela pôde sair do seu trabalho a horas, pois a secção de loiças tinha pouca clientela durante a Páscoa: a multidão afluía mais à confecção
e às modas. Mas, como sempre, às seis horas menos três minutos, apresentou-se um cliente que logo caiu sobre Nina. Desta vez, era um rapaz que também vinha com muita
pressa, um estudante ou coisa parecida, em todo o caso, um ente muito agitado. Desejava - ora vejam! duas taças para champagne, mais nada. Nina não pôde deixar de
rir; imaginava nitidamente a cena em que essas taças de champagne deviam figurar. Viu essa venda como um bom presságio: "Páscoa feliz!"- disse ela, emquanto o rapaz
se ia embora - "Obrigado, igualmente".-respondeu ele - Ora se isso não lhe havia de trazer felicidade! Raramente desejos tão cordiais foram trocados entre uma caixeira
e um cliente.
À noite, Liliana ajudou a confeccionar qualquer coisa como um vestido de noiva; Erik, que estava presente, fazia café emquanto a sr.a Bradley mexia a massa do doce
lutando contra o sono. Quanto a Skimpy tinham-na metido na cama, mas estava tão sobreexcitada que falava mesmo a dormir. Liliana tornou-se útil transportando os
fatos de Erik do quarto dele para o futuro quarto de cama. Assim que eles ficaram pendurados, muito bem passados, ao pé do seu modesto enxoval, Nina compreendeu,
pela primeira vez, que no dia seguinte
deveria estar realmente casada. Sentia-se tão fatigada, tão comovida, que via tudo como num sonho, como através de vidros espessos e turvos. Eram já duas horas da
manhã quando se dispôs a arrastar uma pesada mala de pele de búfalo: "posso pôr as minhas coisas na cave?"
- preguntou - A sr.a Bradley acordou e disse que sim, com a cabeça. "São os teus tesoiros?" - preguntou Erik "Precisamos de beber qualquer coisa," -declarou Liliana
- "Oh... coisas minhas. - disse Nina um tanto acanhada
- Velhas recordações..."
Erik tirou-lhe a mala das mãos para a descer à cave: em baixo cheirava ao aquecimento e à poeira, grandes aranhas agitavam-se nas suas teias. Erik abraçou Nina e
beijou-a. Ela ficou um grande momento assim, envolvida nesse abraço. Estava quente e era agradável: teria gostado de adormecer ali.
Vagamente, recordava a sua infância quando, fatigada, no regresso dos seus passeios ao domingo, o pai a trazia até casa. Por fim despertou e pôs-se de joelhos diante
da mala.
- Deixa-me ver o que tens aí.-pediu Erik, ajoelhando
junto dela.
Entreabriu-se-lhe a boca num sorriso mudo e tímido, quando ele abriu a mala.
- Olha! - disse, divertido. Havia uma velha boneca, datando da infância de Nina, com a cabeleira mal posta. Depois, outra, magra, com uns grandes olhos feitos de
botões. Erik lembrou-se que a rapariga o tinha conquistado logo que, pela primeira vez, foram juntos a Coney Island. Depois havia um retrato onde estavam agrupadas
quatro pessoas. Erik olhou para esse quadro, com uma expressão impertinente e garota.
- Este é o meu pai.- disse Nina.
- Morreu?-preguntou Erik, de-repente sério, aproximando-se dela.
- Mataram-no quando assaltaram um Banco. Era da polícia, não te disse já?
- Oh! - exclamou Erik. E calaram-se por um instante. Nina tirou-lhe a fotografia das mãos.
- Eu estou aqui. - disse - Parece que sou estrábica... é que não queria ser fotografada. Este, é meu irmão mais novo, esta, minha mãe...
Erik não ousou fazer preguntas. Olhava de revés o rosto de Nina. Por fim, ela pousou o retrato. "Todos mortos. A gripe..." - explicou, sorrindo tristemente. Ele
esperou um momento:
- Agora recomeçaremos tudo, Lille Sprorv - murmurou depois.
Quando se resolveu a fechar a mala, qualquer coisa havia no fundo. Erik quis ver:
- Que é ? - preguntou.
- Nada, é o revolver do papá.-E pôs prudentemente a arma no seu lugar.
- Está carregado?-preguntou Erik, fechando a mala.
- Não sei, deixámO-lo tal como estava quando da morte do papá.
- Sabes atirar ?
- Não. Mas é uma recordação.
- Estás a dormir em pé.- compadeceu-se Erik, levantando-se - Anda, vou meter-te na cama.
- Onde ?- preguntou Nina.
Ele apagou a pálida luz da cave e, na sombra, procurou a boca dela. Sentiu tudo andar-lhe à volta, em grandes círculos. "Como estou cansada!" -disse logo que emergiu
do turbilhão - Ao cimo da escada da cave, Liliana apareceu, fazendo tilintar copos.
- Desejam casar lá em baixo?-disse ela -Ou preferem subir para beber whisky?
Subiram a escada à pressa e tiraram os copos da mão de Liliana. Erik tinha a cara de um homem um pouco ébrio.
- De onde vem esta fortuna ? - preguntou ele.
- O velho Filipe tem lá que chegue para ele - respondeu Liliana, lacónica.
O sr. Filipe, o detective do armazém, morava também em casa da sr.a Bradley. Verosimilmente, Liliana tinha-o acordado e tirara-lhe uma garrafa de whisky. Erik esteve
quási a fazer uma pregunta, mas guardou-a para si. Liliana parecia já não querer mal ao velho Filipe por a ter submetido à revista. zoa " (1) - disse ele e bebeu
o conteúdo do seu copo. Detestava o whisky.
- Onde está a sr.a Bradley ? - preguntou.
- Deitada!-respondeu Liliana.
Durante a noite a pintura do seu rosto tinha-se apagado e a sua pele, muito branca, brilhava num reflexo mate.
- Já pousou para algum pintor?- preguntou incidentalmente Erik.
- Era o que faltava! Ir-me pôr toda nua para os idiotas dos artistas!-replicou vivamente Liliana. Erik desatou a rir.
- Também se fazem retratos de senhoras vestidas. explicou, muito divertido.
- Sim ? -preguntou Liliana, engulindo o segundo copo de álcool e exagerando a sua inocência - Sempre julguei que era preciso não ter a cicatriz da apendicite para
que nos pintassem.
Erik teve um rápido olhar para Nina, pois sabia que este género de brincadeiras não lhe agradava. Mas Nina adormecera na sua poltrona, justamente por baixo de um
dos macacos que ele tinha pintado na parede. As mãos pendiam-lhe, moles e abandonadas. Foi até junto dela e sacudiu-a docemente: - Spurv, lúh Spurv.- disse baixinho
- Ela moveu os lábios, mas não chegou a falar. Ele ergueu-a e, no sono, ela lançou-lhe um braço à volta do pescoço. Levou-a, assim adormecida, para a cama. Liliana,
de garrafa de whisky na mão, olhava-o
(1) A sua saúde, em dinamarquês.
com ar trocista. Ele deitou Nina e voltou, fechou a porta do quarto, sorrindo sempre.
- Comovedor! - disse Liliana.
- Como ?
- Disse só "comovedor" - repetiu ela.
-Deve estar fatigada, miss Smith?-preguntou Erik, aproximando-se - Quere que a acompanhe a casa ?
- Oh! por Deus, sr. Bengtson. - replicou - Eu não sou daquelas que é preciso levar a casa. De resto, não vou para casa. Trouxe o que me era preciso e durmo cá.
- Aqui? - preguntou ele, de sobrolho franzido.
- Por exemplo, ao pé de Nina, no vosso futuro leito de casados, a não ser que veja qualquer inconveniente ? - disse ela, irónica.
- Pelo contrário, será uma grande honra para o meu leito conjugal -. respondeu o rapaz, muito aborrecido.
Instalou-se numa poltrona, bocejou ostensivamente e esperou o seguimento. Sentia-se terrivelmente cansado, sentia-o agora, e era preciso que às dez horas da manhã
estivesse no registo civil.
- Adeus, boas-noites e bons sonhos. - disse Liliana. Pegou na garrafa e encheu mais um copo do líquido
que bebeu de um trago. Erik olhava-lhe para o pescoço muito branco emquanto ela bebia.
- Porque não me pode suportar?-preguntou, quando acabou.
- Instinto de defesa contra uma muito perigosa formosura. - replicou ele, depois de um momento de hesitação - Ela não compreendeu imediatamente, só percebeu a intenção.
- Muito obrigada. - disse, abrindo a porta - Erik levantou-se por delicadeza; sentia as pernas cansadas, pois tinha estado todo o dia em cima do escadote. Exibindo
um espelhinho de bolso e um bâton, Liliana contornava cuidadosamente os lábios. Disse ainda: "boas-noites" e fechou a porta atrás de si.
Desconcertado, Erik recaiu na poltrona e pôs-se a rir. Achava imensamente engraçado que Liliana pintasse os lábios antes de se deitar. Dependurou o sobretudo e atirou-o
para cima da cama, que tinha improvisado com mantas, estendeu-se e dispôs-se a dormir. Indubitàvelmente, a manhã vinha próxima. Apagou a luz, ouviu em qualquer parte
a buzina de um automóvel. Fechou os olhos. "Á minha última noite de solteiro" pensou, sentindo um pequeno aperto no coração.
Toda a casa estava cheia do perfume detestável e ordinário de Liliana.
NO dia seguinte, às sete horas da manhã, a campainha da entrada tocou; foi um espanto geral. Uma senhora estava diante da casa e dizia em voz enérgica:
- Sou a condessa Bengtson. Venho assistir ao casamento do meu filho.
A sr.a Bradley, que também tinha sido uma senhora de sociedade, agarrou no seu roupão da manhã e nas suas boas maneiras, e respondeu:
- Entre, sr.a condessa. Estamos ainda por arranjar, mas o pequeno almoço, daqui a pouco, está pronto.
A condessa Bengtson acedeu ao convite e entrou. Vestia um fato género alfaiate, preto, e calçava luvas brancas. Diante da casa, um miserável Ford estava parado.
A visitante entrou francamente no aposento acabado de pintar, de que a sr.a Bradley abria a porta, lançou um olhar divertido para os macacos das paredes e ficou
de pé, junto da cama onde Erik dormia.
- O sr. Bengtson não a esperava, quero dizer, o sr. conde Bengtson - balbuciou a sr.a Bradley.
- Eu não tinha a certeza de ficar livre. - respondeu a condessa - Trabalho no asilo de alienados de Lansdale.
Agora o sr. Bengtson dispunha-se a acordar: espreguiçou-se, queixou-se, abriu os olhos e disse: "Olá Mutz!", sem parecer admirado. Discretamente, a sr.a Bradley
retirou-se. Logo a seguir ouviu-se, através da porta, uma
conversa sonora, em dinamarquês. Correndo, a sr.a Bradley atravessou a cozinha, onde Skimpy fazia já o café, e atirou-se para o quarto onde dormiam as duas raparigas.
- Levantem-se.- disse - Vistam-se de-pressa. A mãe dele chegou, é uma condessa e ele é um conde.
Liliana sentou-se na cama, direita como uma vela. Nina precisou de alguns minutos para acordar e mesmo depois, conservou os olhos fechados.
- Que foi ? - preguntou.
- É, minha menina, que vais tornar-te condessa em te casando com ele. É de morrer a rir!-troçou Liliana, sacudindo-a.
Agora todas as torneiras funcionavam em casa; nas três salas de banho jorravam os chuveiros. O velho Filipe foi o primeiro a aprontar-se e a aparecer à mesa do pequeno
almoço, que Skimpy tinha posto.
- Eu sou testemunha - declarou, saudando a condessa. Cheirava ao whisky da véspera e ao da manhã.
- Muito prazer em conhecê-lo.-replicou a condessa, esfregando as mãos - Estou ainda entorpecida pela horrível viagem feita de noite.
O velho Filipe disse em voz pensativa: "Se lhe aconselhar a beber qualquer coisa vai com certeza recusar..." A condessa animou-se: "Ah, não recuso ! respondeu com
energia.
Filipe foi buscar a garrafa de whisky emquanto a sr.a Bradley aparecia com o café. As duas raparigas entraram. Erik estava ainda no banho. A condessa considerou
os dois rostos durante um segundo, depois, levantando-se, foi direita a Nina que, timidamente, estava no mesmo sítio, ignorando o que devia fazer.
- Bons-dias Nina. - disse ela - Caí aqui, de-repente, mas gostava de ver com quem o rapaz casava. Pôs as duas mãos nos ombros de Nina e sacudiu-a de bom humor.-
Vai ter muita arrelia com ele.
Nina procurava palavras.
- Chamam-me Mutz - disse a condessa.
- Sinto-me muito feliz por ter vindo. - respondeu Nina - Apresento-lhe a minha amiga Liliana. Esta é Skimpy, uma boa cozinheira. Foi ela que nos fez o bolo da boda.
A condessa puxou Nina para junto de si, para um canapé e pôs-se a saborear o copo de whisky, que o velho Filipe tinha posto diante dela. - É um verdadeiro reconfortante
do coração - disse - mas não se sabia se falava da noiva, se da bebida.
Liliana estava sentada a um canto sem dizer palavra. Era a primeira condessa que via na sua vida e isso fazia-lhe um certo efeito, embora o não quisesse confessar.
Olhou para Erik, com nova curiosidade, quando ele entrou com os seus cabelos claros puxados para trás, à força de água. Eis que um habitante de esferas superiores
penetrava no seu círculo... Ele devia saber o que era caviar ... Tratava sua mãe como uma encantadora irmã mais velha e a condessa brincava alegremente com ele.
Durante o pequeno almoço foi dado aos assistentes ouvirem uma boa parte da história dos Bengtson. Ao que parecia, a condessa tinha-se tornado enfermeira-mór do asilo
de alienados de Lansdale, depois que seu marido, conde Bengtson, se "afogou a beber". A condessa tinha uma forma agradável de chamar as coisas pelos seus verdadeiros
nomes. Foi assim que a clínica de luxo em que trabalhava passou a ser, na sua boca, a "caixa dos malucos". Foi tratando seu marido, confidenciou, que aprendeu a
tratar os agitados nas suas crises, Erik confirmava de bom humor. Soube-se ainda que seu pai perdera a vida em circunstâncias extraordinárias. Depois de uma caçada
real, na qual todos os senhores haviam tomado parte com casacas vermelhas, ele apostou - cheio como um odre - que iria, em traje de caça, ao prado onde estavam os
toiros. Ganhou a aposta (duzentas garrafas de Pommard, 1879) mas foi atirado ao ar pelos animais furiosos. Os Bengtson, mãe e filho, riram francamente, contando
esta aventura.
Nina calava-se. Mais do que nunca tinha a consciência de casar com um estrangeiro, com um homem que não nascera na América, um homem que viera de barco. No registo
civil confirmou-se que ela ficava a ser condessa Bengtson: era uma novidade difícil de digerir.
- Porque não me disseste nunca ? - preguntou a Erik, emquanto o táxi os trazia de novo a Fieldston.
- Para quê ? Vês-me com uma coroa de conde na cabeça a arranjar uma montra?
- Gosto da tua mãe. - disse Nina timidamente.
- Ela também gosta de ti, pardalito -declarou, muito satisfeito, apertando-lhe a mão.
Estava um tempo soberbo; doirados raios de sol caíam sobre o asfalto, as árvores começavam a florir. Quando os recém-casados chegaram a casa, encontraram convidados:
miss Drivot, o sr. Berg, Pusch, o aprendiz, e uma delegação de caixeiras que traziam um aparelho de T. S. F. como prenda de casamento. O velho Filipe fez um discurso
humorístico e estava em jejum; talvez os pormenores da cura de desintoxicação, contados alegremente pela condessa, lhe tivessem dado que pensar... Comeram o bolo
feito por Skimpy e elogiaram-no. O sr. Berg tornou-se um pouco impertinente com Liliana, que lhe disse: "Tire as mãos. Não é bastante fino para mim." Ele não ficou
ofendido.
Liliana mostrava uma alegria ruidosa e amarga. Insistia em chamar a Nina "sr.a condessa e, na sua boca, isto soava como uma ofensa.
Às duas horas da tarde, a condessa anunciou que se retirava. Convidou o jovem casal a fazer a viagem de núpcias no seu automóvel. Erik, para se despedir, beijou
todos. Não tinha bebido e, no entanto, dava a impressão de estar um pouco ébrio. Liliana voltou-se para a parede quando ele se aproximou. Miss Drivot, muito excitada,
limpou a boca. Todos disseram que a dama de honor devia beijar o noivo. De sobrancelhas franzidas,
Liliana passou fugitivamente com os lábios pelo ar que a separava de Erik, mas Erik apertou-a contra si: Assim não presta - disse, emquanto os outros riam quero
um beijo a valer!"
Liliana parecia zangada: "A valer?"-murmurou baixo. E sem esperar resposta pôs as mãos em volta do pescoço de Erik e beijou-o. Co'a breca!"-disse ele, um pouco sufocado,
assim que ela se desprendeu. Nina, de pé junto dos dois, tinha um sorrizinho contrafeito. Os outros deixaram de rir. A nova T. S. F. manipulada por Pusch, o aprendiz,
emitia sons horríveis.
Finalmente, depois de muitas palavras e lisonjas, a condessa conseguiu pôr o Ford em marcha. Erik e Nina instalaram-se com a sua maleta de fim de semana e partiram.
O ar estava fresco e eles sentaram-se bem junto um do outro com os seus casacos.
Ao crepúsculo, a condessa parou diante de uma velha estalagem, em qualquer parte, e deixou o motor em marcha emquanto desciam os dois.
- Adeus, meus filhos - disse ela.
- Adeus, Mutz - respondeu Erik.
O Ford afastou-se com o ruído de uma máquina de coser, escangalhada, depois tudo se calou. Nina olhou à sua volta. Estava um pouco desapontada. Já que tinham pedido
um dia de licença para a sua viagem de núpcias, imaginara outra coisa: barulho, gente, conversa. Atlantic City ou, pelo menos, Long Beach. Aqui, havia árvores muito
velhas, sobre as quais a folhagem da primavera acabava de reaparecer e um rebanho de carneiros, que passava no caminho, levantava poeira em grandes nuvens azues.
Por entre as árvores vislumbrava-se o mar. "É belo isto," - dizia Erik - é como na Dinamarca" e, de braços estendidos, espreguiçou-se. Nina envergonhava-se por não
ter gostado da paisagem.
À noite, ouviram música distante, foram à sua procura e descobriram por fim um baile campestre onde dançaram. Regressaram tarde, primeiro pela beira-mar e
depois atravessando a aldeia. Já não era calcetamento o que Nina tinha debaixo dos pés, eram nuvens: elas transportavam-na para a velha estalagem...
No meio da noite, Nina, a dormir, estendeu a mão. Sim, estava ali, o ente amado ...
Na manhã de terça-feira o despertador tocou, como de costume. Como de costume, Nina dormia ainda quando se levantou e quando fez alguns exercícios (tinha lido em
qualquer parte que a cultura física conservava a mocidade). Dormia emquanto fazia o café e mesmo emquanto tomava o pequeno almoço. Só acordou completamente quando
estavam sentados no metro dirigindo-se para a Central. Como de costume, Erik subiu a escada 5 e Nina correu aos relógios do ponto, no edifício 6.
E como de costume, miss Drivot notou:
- Olhe que vem atrazada, Nina, despache-se. - Embora Nina fosse agora casada e tivesse o direito de se chamar condessa Bengtson.
-Estou a fazer uma cura de emmagrecimento. Olhe, já perdi 11 arráteis - dizia madame Thorpe a Liliana.
- A senhora está maravilhosa. - respondeu Liliana, lançando um olhar sobre as redondezas da cliente.
- Uma verdadeira linha de rapariga - acrescentou, madame Chalon, a directora. - Que há-de ser hoje? Recebemos um vestido verde, com capa, da Lanvin. Deve ficar-lhe
lindamente.
Desta vez, madame Thorpe estava horrível. Tinha realmente emmagrecido um pouco, mas quatro novas rugas marcavam-lhe o rosto. Mandara pintar os cabelos com henné,
e fumava sem descanso, mostrando-se excessivamente nervosa. As jóias dos dedos e dos pulsos tilintavam, quando se agitava. Tinha levado com ela um rapaz, que se
estendeu no canapé, verificando os vincos das calças e admirando os seus sapatos novos.
- Querido, deixa-me dar só uma fumaça no teu cigarro. - disse madame Thorpe - E tirando-lhe, com os
dedos afusados, o cigarro da boca, aspirou-o profundamente e depois entregou-lho. Isto pareceu espantosamente inconveniente. O rapaz tirou logo o cigarro da boca,
fitando a marca vermelha deixada pelo rouge dos lábios, olhou à sua volta e, com ar adormecido, atirou o cigarro para um cinzeiro de metal, que tinha perto.
Madame Thorpe nada vira, mas Liliana examinava o rapaz com um olhar crítico. "Gigolô" pensou, e assim ficou arrumado. Madame Thorpe parecia absolutamente dominada
por esse indivíduo que era muito bonito, com os cabelos pretos, lisos e brilhantes, os dentes muito belos e um fato do melhor corte.
- Estou horrivelmente nervosa. - suspirou ela - É muito para uma vez só. Ora vejamos, preciso de um enxoval para viagem. Sim ... vou partir... uma voltazita ao mundo,
Palmeiras... entende... tecido branco, para os trópicos... Tem qualquer coisa deste género? vou divorciar-me em breve... e não imagina quanto isso me excita os nervos.
- Quere que lhe mostre a nossa nova colecção para o Sul? - preguntou madame Chalon, piscando o olho a Liliana - "EZ 24 até 32". - segredou-lhe. Liliana desapareceu,
obediente, com o seu passo ondulante, que lhe tinham ensinado na escola de manequins. Mal chegou ao gabinete, despiu apressadamente o vestidito negro, de caixeira.
"EZ 24 até 32". - gritou às duas aprendizas.
- De-pressa, Primeiro o vestido verde; a velha quere comprar muita coisa.
Uma das pequenas saiu a correr, a outra deixou-se ficar com ar estúpido. "O vestido de seda verde?" - preguntou - "Anda. Não sejas idiota. O vestido verde claro,
de capa, vá.. não fiques aí a olhar para mim". - gritou Liliana. Sentia sempre uma certa emoção de actriz, quando tinha de apresentar os vestidos.
- "Se vendermos a colecção pedirei uma percentagem."
- pensava, emquanto, rapidamente, punha pó na cara
e penteava os cabelos. Entre ela e a sr.a Chalon havia uma grande luta calma. Liliana reclamava uma percentagem, quando se vendia qualquer vestido apresentado por
ela. Pelo seu lado, madame Chalon afirmava que ela é que vendia o vestido sozinha, como se Liliana fosse apenas um manequim de madeira. Já duas vezes, depois de
se ter inundado de perfume, Liliana se fora queixar ao chefe de serviço. Ele tinha-lhe acariciado amigavelmente a nuca como a um cãozinho, dizendo que uma rapariga
que possuía a sua linha, não devia prender-se com tão medíocre percentagem; e fora assim que a discussão se desvanecera como fumo.
As aprendizas voltaram a correr com o seu carregamento de vestidos nos braços. No pequeno gabinete de mudas, a que chamavam a jaula dos macacos, cheirava a tecidos
novos, a oficina de alfaiate, a sabão ordinário. A um canto, uma velha costureira mordiscava uma sandwich que preparara em casa.
- Não podem andar mais de-vagar, não ? - rugiu Liliana, arrancando das mãos das raparigas o vestido verde. Como aprendiza, ela tinha sido mal tratada, era agora
a sua vez de maltratar as outras. Só quando a fina seda lhe deslizou pelas ancas, é que a calma veio, os seus nervos distenderam-se, a pele sentiu-se mais feliz.
Lançou a capa sobre os ombros, viu-se mais uma vez ao espelho e dirigiu-se para o salão.
Quando madame Thorpe a notou, tomou uma verdadeira expressão de dor de dentes: "Mas que idea! Não é a minha cor!" -disse, com ar desagradável. Liliana passeou diante
dela, lançando a capa para trás, descobrindo a blusa de fino plissado. O rapaz, no canapé, nem se mexeu, mas, sob as pestanas baixas, o seu olhar adormecido veio
errar sobre essa blusa.
- No entanto, o verde seria o ideal para os cabelos ruivos de V. Ex.a. - notou madame Chalon.
- Ah! não me aborreça, nervosa já eu estou!-gemeu a cliente. - Não posso suportar esta cor.
Madame Chalon fez sinal a Liliana e esta mexeu-se.
- Espere um pouco!-gritou madame Thorpe-Nem sequer sabe o que eu quero. Não têm nada de especial para os trópicos? Um vestido de seda para Hawai, compreende ?
- Ah! o amarelo! - exclamou madame Chalon entusiasmada, como se uma inspiração genial acabasse de lhe acudir - Miss Smith, apresente o vestido amarelo. Esse vestido
é um poema, querida senhora, um sonho, música...
Emquanto se despia, Liliana ouvia ainda o discurso exaltado da modista, que ia buscar as suas expressões ao estilo florido dos anúncios. Por uma razão qualquer,
o gabinete de muda estava sempre quente, provavelmente porque a velha costureira sofria de constipação crónica. Liliana sentia finas gotas de suor, na testa, emquanto
que, sem deixar de acelerar as aprendizas, se metia no vestido amarelo. Este era composto de muitas camadas de tule sobreposto. Na orla, a saia tinha oito metros
de roda. Quando Liliana estava vestida, viu que o penteado não condizia com o estilo do vestido. Foi buscar um pente e deitou pó na fronte húmida.
- Porque se demora tanto ? A cliente impacienta-se - gritou asperamente madame Chalon, metendo a cabeça entre as portas.
- Já vou... não pode ser mais de-pressa.-respondeu Liliana, enervada. Diligenciava todos os dias estar em boas relações com a modista, mas, todos os dias, a tensão,
que existia entre elas, se tornava maior - Saiam do caminho. - ordenou às aprendizas, que estavam ao pé da porta. Por pouco ia pisando as vítimas inocentes. Mas,
quando apareceu diante de madame Thorpe, tinha já o seu mais suave sorriso de manequim.
- Então ? - preguntou orgulhosamente a directora, emquanto Liliana se voltava, ondulante, erguendo a saia com as duas mãos e fazendo alguns passos de dança, apropriados.
- Não é feio... - concordou madame Thorpe, depois de uma pausa.
- Não é feio, minha senhora ? Mas é um sonho este vestido, é a lua de Hawai! Temos um casaco amarelo, palha de milho, com capuz, para a noite, se quiser passear
no tombadilho.
Madame Chalon conhecia as suas clientes. Uma expressão sonhadora passou um instante pelo rosto duro de madame Thorpe. O rapaz pareceu acordar: endireitou-se e parou
de fumar. Liliana desprezava-o profundamente, como só uma mulher jovem, que ainda se não vendeu, pode desprezar um homem que se vende. De súbito, ela viu-o deixar
cair lentamente uma pálpebra, emquanto os seus belos dentes brilhavam.
Era um sinal nítido e descarado, emquanto madame Thorpe voltava costas. Desconcertada, Liliana olhou-o. Estava habituada à desfaçatez, mas esta parecia-lhe demasiada.
Então, o rapaz tirou um cartão do bolso e meteu-o entre as almofadas do canapé onde estava sentado. Dava-lhe a direcção! Liliana começou logo a andar de um lado
para o outro, de contrário, teria rido.
- Esteja sossegada! Aproxime-se. - ordenou madame Thorpe.
Ela avançou com o seu passo leve, para a compra dora, que vista de perto, era quási digna de piedade. Subitamente, Liliana foi de novo acometida por esse ódio, que
sentia tantas vezes, pelas clientes do salão de costura. Viu-se a si própria, vestida com linda toilette, leve, elegante. Era uma vergonha que aquela velha se fosse
vestir assim. E, lentamente, subiu-lhe o calor à
cara.
Liliana foi tratada como um objecto: madame Chalon e madame Thorpe andavam à sua volta, tocavam-lhe, ou antes tocavam no vestido, trocando reflexões profissionais.
- Seria preciso encurtá-lo mais. -disse a cliente.
-Sim, dava-lhe mais chic - concordou a costureira.
Nesse instante, Liliana sentiu uma dor aguda, na espádua nua.
- Ai! - queixou-se baixo, voltando-se.
- Que foi? -informou-se madame Chalon, trocista.
- Não sei... peço desculpa ...-murmurou Liliana. Com dois dedos, chegou ao lugar dorido e retirou-os tintos de sangue.
Madame Thorpe exclamou, de súbito:
- O meu anel? Onde está o meu anel?
O rapaz tinha-se levantado, emquanto Liliana olhava para a ponta dos dedos. Abaixou-se e desprendeu o anel, do tule do vestido, no qual tinha ficado preso. Era um
anel pomposo com uma esmeralda rodeada de pequenos brilhantes. "Aqui está o teu anel, querida."-disse ele, suavemente, metendo-o no dedo de madame Thorpe.
- Vejam até que ponto emmagreci!- exclamou ela, triunfante.- Até os anéis me estão largos.
E para provar o que dizia, estendeu a mão por baixo do nariz do rapaz. Era uma branca mão preguiçosa, de longas unhas afiladas. O anel deslizava ao longo do dedo
emmagrecido, O rapaz pensou um instante no que podiam esperar dele, depois inclinou-se e beijou a mão de madame Thorpe.- Como os europeus são encantadores! - disse,
encantada, trocando com madame Chalon um olhar de compreensão feminina. De Liliana ninguém se ocupava.
Talvez o que aconteceu depois não houvesse acontecido, se madame Thorpe tivesse pedido desculpa à rapariga por causa do arranhão que sangrava, gota a gota. Mas não
o fez. Sem dúvida, não pensava que um manequim fosse um ente vivo, com desejos, invejas e ardentes cóleras.
- Tenha cuidado com o vestido, não apanhe alguma nódoa, miss Smith. - recomendou madame Chalon. Mas de-certo leu no rosto de Liliana qualquer coisa que lhe fez medo,
pois, tornando-se subitamente gentil, continuou:
- Agora pode ir dizer a toda a gente que foi ferida por uma esmeralda verdadeira.
Nesse momento, o rapaz tirou o seu fino lenço de baptista e tocou ligeiramente a gota de sangue nas costas de Liliana. "Seria pena que manchasse tão lindo vestido
-declarou, e Liliana não soube dizer se fôra ironia ou imbecilidade.
- Agrada-te este modelo, querido? Achas que devo
comprá-lo ?
O rapaz levantou-se e olhou para madame Thorpe. Deus sabe o que a quarentona descobriu na expressão desse rosto. com certeza uma coisa que o seu sorriso e os seus
olhos, em forma de amêndoa, não puderam esconder bastante. De-repente, o seu humor virou-se. "O vestido não me agrada!" -declarou bruscamente - "Não o quero. A saia
é muito larga. Vá, mostre-me outra coisa."
Nervosa, fazia girar o anel no dedo.- "Quero qualquer coisa de muito simples, em branco, um vestido com o qual se possa ir jogar o polo em Singapura, sem que os
ingleses nos apontem a dedo."
Liliana olhou para a directora.
- Mostre o nº 34 - disse madame Chalon, um
tanto sucumbida.
Madame Thorpe protestou, com agrura:
- Não mostre mais nada, peço-lhe. Eu mesma vou provar. Não serve a ninguém ver como os vestidos ficam no manequim. Sou eu que os tenho de trazer.
- É justo. - condescendeu madame Chalon, obsequiosa. Nas costas da cliente, ergueu os olhos ao céu num olhar implorativo: - "Traga o nº 34, miss Smith, o vestido
branco, género alfaiate."
Liliana retirou-se de novo para a jaula dos macacos.
- Que mais há ? - preguntou a velha costureira quando, ennervada, a rapariga despiu mais um vestido para tornar a envergar o seu fato de caixeira.
- A velha morre de medo de que eu possa agradar ao seu gigolô! - explicou Liliana - Que idea! A tipos como aquele nem sequer vale a pena a gente escarrar-lhe em
cima.
Madame Thorpe era ainda mais ciumenta do que Liliana supunha. Assim que ela chegou com o vestido branco nº 34 e que madame Chalon acompanhou a sua cliente ao gabinete
de prova, esta deteve o manequim, na passagem:
- Se faz favor, venha provar comigo, - disse claramente, num tom que não admitia réplica.
- com muito prazer, - respondeu Liliana tão amavelmente, que era quási uma insolência.
Nos últimos tempos perdia facilmente o domínio dos nervos. Isso tinha começado pouco antes do casamento de Nina, talvez mesmo na noite em que suspeitaram que ela
tivesse roubado o ícone russo. Desde então, a sua tensão interior tornou-se cada vez mais aguda e lutava contra a estranha apreensão de uma espécie de explosão iminente,
como se todo o armazém, um belo dia, devesse ir pelos ares, ou então arder completamente até não ser mais do que um pequeno monte de cinzas frias. O fino arranhão
ardia-lhe nas costas de uma forma insuportável e sentia uma louca vontade de puxar pelos cabelos pintados de madame Thorpe. A cliente pareceu adivinhar esta tensão,
ou então sentiu exasperar o seu ciúme, embora tivesse arrastado o manequim para longe do seu amante. Era uma obsessão. Vestia e despia os vestidos, mandando a directora
fazer uma nova escolha. As aprendizas andavam de um lado para o outro e madame Thorpe não consentia que Liliana se afastasse um segundo.
Estava calor no gabinete. As figuras das três mulheres multiplicavam-se no grande espelho de três corpos. Parecia que uma multidão de pessoas se agitava e comprimia
na estreita cela. Por fim, madame Thorpe mergulhou num delíquio. Apressada, madame Chalon foi-lhe buscar um copo de água. Liliana fez toda a diligência para dominar
a sua expressão, afim de que a cliente não pudesse perceber com que antipatia a olhava. Madame Thorpe estava agora paramentada com um vestido
preto, de cauda, que lhe exibia as espáduas muito nuas e muito gordas.
Quis ela própria desapertar, nas costas, o cordão da cinta: o anel de esmeralda deslizou e caiu sem ruído, no tapete cinzento e rosa que cobria o chão da casa de
prova, assim como todos os aposentos do salão de costura. Liliana não reflectiu, talvez nem soubesse mesmo o que fazia. Foi espontânea e instintiva: em vez de apanhar
o anel e de o entregar, com uma frase amável, pôs-lhe o pé em cima, para o esconder.
Madame Chalon voltou, trazendo um copo de água que a cliente bebeu, reconhecida. Não tinha dado por nada. Liliana estava em cima do anel e sentia a esmeralda, como
um ponto escaldante, sob a planta dos pés. Madame conseguiu tirar pela cabeça o estreito vestido: tinha perdido completamente o entusiasmo. E, depois de ter atormentado
a directora e a caixeira durante uma hora, decidiu-se bruscamente a não comprar nada.
- Tudo isto me parece muito ordinário! - disse ela - Decididamente, mandarei fazer em Paris o meu enxoval de viagem. Tenho lá uma costureirinha espantosa.
A frase soou de uma forma mesquinha, deselegante e snob. Madame Chalon tornou-se quási aliada de Liliana.
- Como v. ex.a desejar. - disse, lançando a Liliana um olhar que significava "que os diabos levem o velho camelo". Agora já não se preocupava com o facto de madame
Thorpe poder ver o seu gesto pelo espelho.
-Quere ter a bondade de me arrumar um pouco isto?-disse a directora, emquanto acompanhava a cliente.
O gabinete estava cheio de tule, de taffetãs, de folhos - sonhos floridos das costureiras para as noites de Hawai...
Quando Liliana pegou no anel, acariciou-o, mirou-o, sentindo um estremecimento: não era só medo e comoção
- era essa paixão, esse ardor indomável que experimentava
sempre, diante das coisas caras. Acariciou mais o anel e teve ainda tempo de o fazer desaparecer, quando as duas aprendizas entraram. "Nada feito?" - preguntou uma
delas, maliciosamente. - "Mete-te na tua vida". - replicou Liliana, Tinha o anel fechado na mão e não sabia que lhe havia de fazer. Pegou no fato branco nº 34, modelo
Emily e apertou-o contra si. "Eu arranjo isto".- disse, baixando-se para apanhar do tapete alguns alfinetes. As pequenas foram-se embora.
Liliana meteu o anel na algibeira direita do casaco do vestido modelo, de fazenda branca, pendurou cuidadosamente a saia e o casaco numa cruzeta e levou tudo para
o armário. Passou a mão pelo saco de celofane que devia proteger o fato claro, da poeira, respirou profundamente e deixou-o ali, suspenso entre centenas de outros
modelos de verão, prontos para a venda.
Meia hora mais tarde, madame Thorpe surgiu como um tufão. Eram quási cinco e meia e as caixeiras, extenuadas, serviam os últimos fregueses, impacientes. Houve um
certo ruído violento, mas logo reprimido, e a notícia da perda do anel espalhou-se. O velho Filipe foi chamado e as ondas informatórias chegaram ao santuário do
sr. Crosby, ao 18º andar da torre central. Embora madame Thorpe fizesse grande barulho, não podia, de maneira alguma, afirmar que tinha perdido o anel no salão de
prova ou em qualquer outro sítio. Pelo contrário, madame Chalon lembrava-se muito bem de ter visto o anel e de o ter dado ela própria à cliente. O criado, chamado
como testemunha, fez reparos adormecidos e despidos de senso. O velho Filipe fixava o seu olhar perscrutador e desconfiado sobre o rapaz. Não lhe agradava. Dois
homens da polícia privada estavam discretamente num segundo plano, mas não foram precisos. Procuraram por toda a parte e não encontraram nada. Por fim, madame Thorpe
acabou por confessar que tinha saído do armazém num táxi, cujo número ignorava. Tinha ido ao Olímpia Bar, bebera dois cocktails
passara alguns minutos na sua modista, na Madison Avenida e só no segundo táxi, tinha dado pela falta da jóia.
Lamentou-se o facto, fizeram-se promessas de mais buscas e, amavelmente, acompanharam à porta a nervosa senhora, porque era tempo de fechar o armazém. De resto,
madame Thorpe tinha a jóia no seguro, mas custava-lhe dirigir-se por causa disso ao sr. Thorpe de quem se estava a divorciar. Quando a sineta acabou de tocar para
fechar, o velho Filipe convidou o pequeno grupo de empregados a subir ao seu escritório para serem revistados. madame Chalon fazia parte desse número e ficou tão
emocionada que começou logo a falar francês e a pedir que a despedissem. As duas pequenas aprendizas, choravam. Liliana estava fria e calma. "A gente habitua-se"
disse ela irónica, emquanto se despia, sob a vigilância da enfermeira, pois, se o revistar era uma desagradável operação, era ainda assim praticada com delicadeza.
"Lamento, minha filha... -murmurou o velho Filipe, quando aquilo acabou. O seu rosto bondoso, de foca, parecia perturbado. Cheirava a whisky, como de costume. Desde
a data do casamento de Nina, conhecia mais Liliana, e tinha um fraco por ela. "Que é isso que tem aí?" preguntou a enfermeira, vendo nas costas de Liliana algumas
gotas de sangue resumando da arranhadura.
- "Isto? Foi madame Thorpe que me feriu com o seu famoso anel." -disse Liliana, com desprezo.
Sentia uma louca sensação de temeridade, como um dançarino em corda bamba, de pé, em cima de um fio fino, muito alto... "Espere, vou pôr-lhe iodo. -disse a enfermeira.
O ligeiro ardor foi para Liliana como uma promessa.
Durante quatro dias o anel ficou na algibeira do casaco branco, modelo Emily nº 34. Ninguém o comprou, pois começava a chover e as pessoas desejavam impermeáveis
e chapéus de chuva.
Ao quarto dia, o tempo melhorou e Liliana apresentou
o modelo a uma senhora que tinha uma linda figura e que o comprou sem hesitar. No último momento, Liliana teve que tirar o anel e escondê-lo na meia.
Estava doente de excitação. Se um médico lhe tivesse tomado o pulso, achar-lhe-ia febre. E se esse velho Filipe tivesse hoje a idea de a revistar, estava perdida.
Mas o velho Filipe tinha outras preocupações.
À noite, no seu reduto da cave, em casa dos pais, Liliana ficou acordada, acendendo e apagando a luz... Ao lado, seu pai resmungou, mas ela não podia dormir, tinha
que contemplar o anel...
Até que Liliana possuía, emfim, um belo anel de esmeralda, uma jóia sua, um segredo seu, um perigo seu!...
DESDE o décimo quinto andar da parte central até ao cimo, havia por toda a parte avisos com estas palavras. Pede-se silêncio. Quem saía do elevador não podia deixar
de ver este pedido que era antes uma ordem. Havia também avisos nas portas das salas de conferência onde se reunia o conselho para deliberar dos destinos da Central
Warehouse, assim como à entrada dos corredores dando para os escritórios particulares do director-chefe. O sr. Crosby tinha o seu trono lá em cima, no décimo oitavo
andar, num escritório guarnecido nos quatro lados por janelas, e que mais parecia a casa de vigilância de um faroleiro. Nos dias claros podiam ver-se os dois rios,
o Hudson e o Eastriver e as cadeias de colinas, longe, além, em New-Jersey. Mas o sr. Crosby não se interessava pela paisagem: estava muito preocupado. As acções
"da companhia estavam mal cotadas e ele possuía 51? 0 do total, justamente o preciso para lhe garantir a maioria na assembleia geral dos
acionistas.
Na segunda reunião tinha-se notado um certo descontentamento ; embora o armazém fizesse muito negócio, no último ano, fechara-se o balanço com déficit. O sr. Crosby
fazia dançar os algarismos na sua cabeça, sem encontrar solução. "Os impostos, senhores, os impostos ... Não devíamos, evidentemente, falar tão alto,
mas, o que se passa recentemente no nosso país, é uma espécie de comunismo disfarçado.
O sr. Crosby tinha memória matemática, podia-se confiar nela como numa prodigiosa máquina, contanto que se tratasse de acções e de números. Quanto aos rostos dos
seus dois filhinhos e aos aniversários dos seus amigos, esquecia-os sem cessar. No fundo, o sr. Crosby era um doente - sofria de diabetes - e isso roubava-lhe uma
porção de alegrias da vida. Bebia chá sem açúcar, com o seu biscoito seco de diabético, que sabia a papel. Cairam-lhe os dentes um após outro; pouco depois uma chagazinha
no dedo grande, do pé, causou-lhe inquietação : não era nada, uma chagazinha, sem importância, mas, para um homem diabético, podia significar o pior. O sr. Crosby
tinha as mãos frias e pesadas, inchadas, com as veias grossas. Nessa manhã, assinara o despedimento de duzentos empregados. Ninguém o estimava e ele não queria a
ninguém no mundo. Muitas vezes sentia a impressão de que o arranha-céus oscilava ligeiramente: os engenheiros haviam calculado que a ponta da torre central oscilaria
diariamente cerca de quatro polegadas.
Avaliavam a fortuna de Crosby em trinta e quatro milhões.
Filipe, o detective da casa, via o seu chefe superior pela primeira vez, depois da desaparição do anel de madame Thorpe. Ao levantar, tinha tomado como de costume
a sua ração de whisky, pois precisava de criar forças. Estava agora diante do grande patrão e obsecava-o a idea de que podiam notar a leve percentagem de álcool
que tinha no sangue.
O sr. Crosby olhou longamente para o seu subordinado, antes de dizer uma palavra:
- Chama-se Filipe ? Filipe... Filipe ? - preguntou, emfim, decifrando o nome num caderno que o seu secretário lhe estendia.
- Sim, sr. Crosby. Uma pequena brincadeira de meu pai.-murmurou o velho Filipe num tom deferente.
- Que idade tem ?
- Um pouco mais de cinquenta e oito anos - murmurou Filipe. Fazia sessenta daí a três dias e sentia uma espécie de vergonha...
O sr. Crosby olhou com atenção o seu detective. -Bebe.-Não era uma pregunta mas uma participação.
- Às vezes, um copinho... para estar acordado ... trabalho de noite, muitas vezes fico vinte e quatro horas fora de casa.
- Tem um assistente às suas ordens, não é verdade ? Não trabalham alternadamente?
- Sim, mas não descanso completamente nesse jovem detective, principalmente depois... que... várias vezes tivemos pouca sorte... isso não me deixa descansar... não
posso dormir... Por isso prefiro ser eu próprio a fazer a ronda.
- Parece-me que o seu zelo não tem tido grande êxito - disse o sr. Crosby, um pouco mais conciliador. Que um homem preferisse envelhecer no armazém em vez de dormir
na sua cama, compreendia-o bem. Ele mesmo passava a vida naquela torre e não podia admitir que certas pessoas fossem à Flórida ou à caça dos patos.
- Sr. Crosby, - disse Filipe num tom aflito, aproximando-se da secretária - reconheço que temos tido um período de infelicidade. Isso acontece. Asseguro-lhe que
vou redobrar os esforços... não consentirei que aconteça mais qualquer coisa... e se eu...
- Palavras não servem de nada. - disse Crosby. Recuou um pouco, assim que Filipe avançou para ele com o seu hálito saturado de whisky, e irritou-se de novo.
- Mandei-o chamar aqui, não para ouvir as suas explicações, mas para lhe dizer que somos obrigados a dispensá-lo, se tornar a haver o mínimo roubo.
Houve um instante de silêncio; só o secretário fazia mover uma folha de papel, para encobrir a sua perplexidade.
- Dispensar-me ? Não está a falar sério, sr. Crosby ? -disse o velho Filipe - Eu trabalho na Central desde que ela existe, faz daqui a pouco vinte e sete anos...
sr. Crosby...
- Lamento, Filipe, - disse o sr. Crosby - mas bem deve compreender que já não está à altura da sua missão. Isso acontece-nos a todos, um dia. Eu próprio terei de
me retirar e hei-de sabê-lo, exactamente, quando chegar o meu dia. Exijo a mesma coisa dos meus subordinados.
- Não poderá arranjar melhor. - disse Filipe, tocado pela sinceridade do patrão -Para mim... a Central significa tudo... Não é só um emprego... o meu salário...
sempre poderei arranjar trabalho... mas a Central... é como a minha própria casa... eu não tenho lar... sou um velho celibatário... passei toda a minha vida na Central...
não me podem mandar embora simplesmente porque se deram alguns roubos. Eu pertenço à Central... Desculpe-me, sr. Crosby, dizer-lhe assim tudo isto...
O sr. Crosby reflectia sobre o que acabava de ouvir. Desviou-se do ponto principal:
- A polícia descobriu alguma coisa a respeito do anel de madame Thorpe ? - preguntou secamente.
- Não, o caso foi abandonado. É ainda uma coisa que nos pesa às costas, se bem que seja quási certo que o anel não foi perdido em nossa casa. Mas com essas mulheres
não se pode tirar nada a limpo.
- Faço-lhe notar que madame Thorpe é uma das nossas melhores clientes, uma senhora da alta sociedade. Seu marido é meu amigo.
- Peço-lhe perdão, sr. Crosby. De qualquer forma, madame Thorpe deu ordem para acabarem com as investigações, e se me preguntar porquê, poderei dizer-lhe a razão.
O sr. Crosby olhou para o seu detective. Ele só tinha falado duas vezes a madame Thorpe, pois Thorpe, o advogado, não era, na realidade, senão uma relação de
club. No fundo, partilhava a aversão de Filipe pela cliente.
- Sabe que essas insinuações são muito injustas? disse ele.
Filipe lançou um olhar sobre o jovem secretário. Teve a necessidade urgente de uma golada de whisky e sentiu-se muito infeliz.
- Madame Thorpe mandou parar com tudo, porque receou descobrir que o seu... amigo tinha roubado o anel. É tudo. - disse, soltando um suspiro.
- Ela disse isso ? - preguntou Crosby. O velho Filipe não pôde deixar de sorrir a tanta ignorância do mundo no espírito de um grande homem de negócios.
- Disse? O senhor não conhece as mulheres, sr. Crosby. - exclamou. - Uma coisa dessas ? Elas não a confessariam nem mesmo a si próprias, em face da sua consciência.
Mas isso é-me indiferente, pode acreditar...
A leve jocosidade do sr. Crosby durou apenas um minuto, dissipando-se logo. Não sentia já senão impaciência e descontentamento em face deste empregado meio ébrio,
que não queria ser despedido. Abriu a gaveta do meio, da sua secretária, e tirou um frasquinho de remédio. Muito obsequioso, o secretário particular ofereceu-lhe
um copo de água: o director contou vinte gotas. A droga tinha um gosto amargo. Muitas vezes o doente sr. Crosby sentia repugnância por si próprio: o seu braço estava
cheio de picadas da seringa da insulina, que, ultimamente, mostravam uma desastrosa tendência para se inflamarem.
- Está então avisado, sr. Filipe - disse em tom peremptório - Na primeira ocasião, é despedido. Obrigado.
Era definitivo. Nada tinha a responder.
-Obrigado, igualmente, sr. Crosby-respondeu Filipe, retirando-se.
Lá fora, exausto, encostou-se uns minutos à parede, ao pé do aviso que reclamava silêncio. Depois dispôs-se a descer a escada que vai do 18º andar ao 12.?. Era um
hábito curioso: Filipe preferia a escada ao elevador. Três vezes, na sua carreira, tinha prendido nas escadas, ladrões que se julgavam em segurança. Chegou dez minutos
mais tarde ao seu escritório, chamou o piquete de detectives ajudantes, simples e frustes adolescentes sem nenhuma intuição psicológica, e recomendou-lhes uma grande
vigilância. Assim que partiram, acabou de esvaziar a sua garrafa de whisky, sem utilizar nem copo nem soda, pois começava a sua luta obstinada contra a ameaça de
despedida que pesava sobre ele.
OS empregados de uma grande casa só conhecem ? realmente uma pequena parte dela; estão incrustados à sua secção, como os corais ao fundo do mar. Mas aquele que,
constantemente, lhe percorre todos os cantos, como o velho Filipe, esse vê o conjunto, conhece essa imagem reduzida do universo, que é um grande armazém.
Ele via milhares de coisas emquanto, com o seu bondoso rosto ingénuo, de foca, e os olhos um pouco turvos pelo álcool, mas atentos, andava por todo o edifício. Ia
constantemente às escadas, às salas de venda que se estendiam até ao infinito. Na secção de branco, havia batalhas entre mulheres, pois era o dia de um dólar. No
salão de chá, três músicos faziam ouvir as árias em voga e, na secção de música, ouviam-se, outra vez, essas árias. Aí, uma rapariga anémica estava sentada ao piano
e tocava, como uma sonâmbula, tudo quanto punham diante dela: as notas pareciam espectros. Sem descanso, os camiões rolavam no pátio número 5, onde era descarregada
a mercadoria, pesada, registada e escolhida. Em todas as secções, Filipe distinguia as clientes que compravam sem reflexões, sem resistência, dessas que, de lábios
cerrados, calculam de pé, aos cantos, e por fim não compram nada. Mais além são os jovens negros dos elevadores que, na multidão de mulheres, anunciam os andares
como máquinas falantes, sem vida, cegos, surdos e insensíveis.
Ao romper da manhã, o armazém é ocupado por grupos de mulheres que tratam da limpeza e do encerado. De noite, os guardas vão e vêm na penumbra, marcando a sua passagem
nos relógios de verificação. Na cave, fica a reserva dos manequins das vitrinas: bonecas de cera, nuas, de sorrisos afectados, alinhadas em longas filas, contra
as paredes. Pares de braços e de pernas estão deitados ao lado delas no chão, e todas têm o ar de esperar alguma coisa. No 14º andar ficam as caixas, os cofres fortes,
metidos nas paredes, protegidos por um sistema secreto e complicado, vigiados noite e dia. É aí que, nos dias de pagamento, os empregados, em longas filas, esperam
o seu sobrescrito. Os caixas estão atrás das grades, vivem prisioneiros entre barras de ferro e campainhas de alarme e usam dedeiras de borracha, no polegar, para
protegerem a pele, que ficaria em sangue, à força de contarem todo aquele dinheiro.
Além, estão os escritórios da administração com os seus tickers, as campainhas, o martelar de centenas de máquinas de escrever. Eis o pequeno ramo de flores em cima
da mesa de uma estenotipista e um único raio de sol que, pelo meio dia, desliza pontualmente na sombria sala do empacotamento.
No vestiário das senhoras - onde as caixeiras vão à pressa fumar um cigarro quando estão cansadas - trocam-se mil bisbilhotices e chefes de secção contam historietas
emquanto se arranjam.
Mais longe, estão as mesas guarnecidas de seis, de quatro, de dois aparelhos telefónicos. Outras mesas têm vinte campainhas, e há gente que se deve precipitar assim
que as ouça tocar.
Eis aqui, em resumo, um bloco inteiro do edifício onde reina a febre da compra e da venda. A casa vibra e tudo isto, unicamente, para ganhar dinheiro.
Há longas mesas onde se escrevem, sobre etiquetas,
os preços que se marcam nas mercadorias. Certos preços são alterados, diminuídos, outra vez modificados. Isto interessa o velho Filipe; pode ficar ali muito tempo
a olhar, a ruminar, preguntando a si próprio como pode um rico modelo elegante descer até ao preço dos saldos, como um lindo móvel é um dia atirado para o subterrâneo,
ou liquidado por uma insignificância. "Que fazem dos monos?" - pregunta ele. Ninguém o sabe. - "Que fazem da mercadoria que não vendem?" - pregunta ainda. Parece
que existe uma casa que compra tudo quanto é inútil; aceita o rebotalho do grande armazém e manda-o, não se sabe para onde; para a Nova Guiné ou para quaisquer antropófagos
do fim do mundo.
E isto mergulha o velho Filipe em longas meditações. Ele também faz parte desse rebotalho... tornou-se inútil... Depois de vinte e oito anos passados na Central,
que podem fazer de um velho como ele? À noite, depois de ter ainda bebido meia garrafa de whisky, sonha que passeia com um cartaz gigantesco às costas, anunciando
um preço diminuído, rediminuído, reduzido a nada.
Um murmúrio percorreu subitamente o armazém, uma espécie de secreta inquietação. Filtrou-se não se sabe por onde: diziam que iam licenciar empregados. Muitas mulheres,
como a srª Bradley, tremiam ao pensar numa despedida. Esforçavam-se por todos os meios para se valorizarem entre os novos, os muito novos, os levianos, os mal vistos.
Havia algum tempo já que a sr.a Bradley sentia certa dor de um lado, que nem ousava confessá-lo a si própria, Skimpy, à noite, punha-lhe uma cataplasma e a sr.a
Bradley desculpava-se junto dos seus hóspedes e ia para a cama, emquanto Skimpy ficava com o velho Filipe e o casal Bengtson, a jogar. Jogavam a "beijinhos de chocolate",
pequenos bonbons negros, que a confeitaria da Central havia comprado em grande quantidade e de que não se tinha podido desembaraçar: saldavam-nos, por isso, aos
empregados, na cantina. Skimpy fazia batota sem vergonha e ganhava, com grandes gritos de alegria. Filipe perdia regularmente, não podia reter na cabeça as cartas
do jogo, embora fosse um bom jogador de xadrez. Às vezes, Nina lançava-lhe um olhar de inquietação e de
piedade.
O pior, para o pobre homem, é que tinha renunciado a beber e não ia já de noite à Central. Tinha medo do armazém, de noite, e medo de si mesmo. Sen tia muitas vezes
a impressão de que poderia, com as suas próprias mãos de detective, roubar uma garrafa de whisky, na secção. Para um bebedor, a sobriedade é uma dura doença, com
arrepios que fazem estremecer, e dores em todos os membros. Durante o tempo em que se conservou sóbrio, o velho Filipe registou um pequeno êxito e um verdadeiro
desastre.
Uma noite, descobriu um rapaz que se tinha escondido, durante as horas de trabalho, atrás de um alto rolo de tapeçaria, em pé, contra a parede do depósito de tapetes.
Uma simples intuição levou o velho Filipe a lançar um olhar para trás do rolo e a agarrar o jovem ladrão pelas orelhas.
A polícia prendeu o garoto, que não tinha ainda dezasseis anos. Ele jurou que não queria roubar nada, mas apenas brincar com os objectos da secção de sport. Isso
foi um triunfo um tanto atenuado e Filipe sentiu-o bem, Três dias mais tarde, passsou-se o seguinte ; emquanto passava pelo armazém próximo da porta de oeste, onde
vendiam tudo em pequenas quantidades, notou duas pessoas que lhe pareceram suspeitas. Lembrou-se de as ter já visto e desconfiado delas, mas o seu cérebro, perturbado
pela abstinência, não lhe deu nenhuma indicação precisa. O homem era do género "belo aventureiro"; a mulher, mais velha do que ele, estava pintada e parecia muito
nervosa. Filipe seguiu-os, sem ser notado, entre a onda da clientela que se espraiava, a essas horas da tarde, pelo armazém.
Tinha vestido o sobretudo e posto o chapéu, para ter também o aspecto de um freguês. Emquanto os vigiava, encostado a uma coluna, sentia-se cambaleante, como que
vazio. No entanto, a velha febre de caça do detective, aguilhoada pelo desejo de provar ao sr. Crosby que ainda podiam contar com ele, levou-o a agir.
As duas pessoas suspeitas deslizaram das malas de senhora para os perfumes, separaram-se, pararam em balcões diferentes, ele no das luvas, ela no dos lenços e Filipe
via-os, distintamente, trocarem sinais às escondidas. O coração pôs-se-lhe a bater: contornou a coluna, quando os viu afastarem-se, e não os perdeu de vista. Em
cima de uma mesa estavam objectos de metal prateado, nada de extraordinário, coisas que faziam mais efeito do que valiam. Shakers para cocktails, taças de fruta,
etc. Filipe sentiu de novo uma espécie de vertigem: entretanto, viu a mulher meter qualquer coisa na carteira, fazer sinal ao homem e dirigir-se com ele para a saída,
num ar indiferente.
Apanhou-os a poucos passos da porta, deitou a mão à malinha da senhora e disse brandamente: "siga-me, se faz favor, e sem fazer escândalo."
- Que aconteceu, sr. Filipe ? - preguntou a senhora. Quando ouviu esta voz teve uma sensação desagradável. No entanto, tudo teria corrido bem se, no mesmo instante,
um jovem assistente dos seus detectives não tivesse vindo em seu auxílio. Esse principiante lançou o seu punho de polícia à mão do homem e disse:
- Deixa-te de histórias, meu rapaz! Já roubaste bastante.
O escândalo estalou... O homem defendeu-se, a mulher pôs-se aos gritos, a multidão alarmou-se, a polícia da casa acorreu com as suas pesadas botas. Tudo se desenrolou
fatalmente, irresistivelmente, como numa tragédia grega.
A mulher era madame Thorpe... O conteúdo da
malinha: irrepreensível... O seu companheiro ameaçava fazer um processo por difamação. Finalmente a cena terminou na sala, pintada de branco, do posto de ambulância,
onde madame Thorpe se entregou a uma crise de nervos. A enfermeira deu-lhe brometo e o aprendiz Pusch, que estava em toda a parte onde havia qualquer coisa de interessante
a ver, foi buscar um carro para levar os dois.
- Se eu estivesse bêbado, semelhante coisa não me tinha acontecido! - dizia de si para si o velho Filipe - O pobre homem já sabia, agora, que seria despedido.
Efectivamente o sr. Crosby mandou-lhe o ordenado de três meses e um atestado para que pudesse arranjar outro emprego. Fizeram-lhe compreender que, no futuro, passariam
sem ele. Um novo chefe detective, moço e enérgico, foi nomeado. Chamava-se Ricardo Cromwell e tinha servido na marinha: foi por isso que o alcunharam logo de "Toughyj.
Desde o primeiro dia que as caixeiras o adoravam, e ele passeava por toda a parte, como um pachá que possue trezentas mulheres.
O velho Filipe estava em casa, jogava as cartas a beijinhos de chocolate e tentava não beber... A Central podia passar sem ele-bem o sabia, o pobre
- mas, Santo Deus, como poderia ele passar sem a Central ?- É preciso que alguém nos dê uma idea - dizia o
sr. Sprague, o velho, o chefe dos decoradores como iniciar essas novas ligas? Parece que a Central comprou a patente, Patente Fidélia! Uma verdadeira porcaria! Mas
a patente é nossa. Não rasga as meias. É preciso fazer uma vitrina inteira com isso. Pregunto-lhe como... Porque eu não posso colocar sessenta mil ligas como se
fossem cebolas, na montra... A não ser que fabricássemos uma árvore sobre a qual nascessem as ligas?
- Não. Já fizemos a árvore das gravatas. - interrompeu erik Bengtson que estava sentado em cima de um escadote, pintando uma senhora maior que o natural, mostrando
uma grande parte da perna, que era destinada à fachada do armazém - precisamos pensar nisso, a sério.
E mergulhou nas suas reflexões, assobiando:
"Contigo, querida, gostaria de ir a Bali dormir sob as palmeiras Contigo irià Austrália e subiria até à lua, Contigo, contigo ..
- Alto! Tenho uma idea, - disse ele - dezasseis bonecas mostrando todas o joelho, com a liga por cima.
Sim, mas... era preciso poder demonstrar que não rasga a meia...
- E como demonstrar isso ? - preguntou o velho, interessado.
Erik caiu em profunda meditação.
- Já sei. Precisamos de uma verdadeira mulier. disse, ao fim de um minuto.
- Como ?
- Uma verdadeira mulher. Dezasseis bonecas e uma mulher verdadeira, vestida exactamente da mesma forma. Ela dobra o joelho e mostra que a meia não se rasga. Admirável!
Eis a solução!
Por um momento, o velho não disse nada. A idea trabalhava no seu cérebro genial. "Não está mau..."murmurou por fim. - "Mas é preciso que tenha umas pernas bonitas"
- acrescentou Erik, do alto do escadote. O velho pareceu despertar.
- Ora! Pernas bonitas têm elas todas!
Erik desceu e pôs-se a gizar o vestido que as dezasseis bonecas e a mulher deviam vestir.
- Precisamos de procurar entre as caixeiras, temos bonitas raparigas na Central - disse ele, absorto.
- Sim. Eu encarrego-me pessoalmente de a descobrir - respondeu o velho.
E pôs-se à procura, nesse mesmo dia. Como por acaso, percorria todo o estabelecimento, cominando as caixeiras, quando elas subiam as escadas ou trepavam aos escadotes.
Tirou disso muito prazer, mas não conseguiu mais nada. No dia seguinte foi o próprio chefe do pessoal que tomou esse encargo. Estava combinado que as ligas deviam
ser expostas durante uma semana na montra número 7, do lado norte. Erik traçava já o esboço do fundo... A caixeira indicada devia receber uma gratificação de dez
dólars por dia, quantia extraordinária, comparada com o pequeno salário que tinham, quando as pernas não entravam em jogo. As mais belas raparigas da Central foram
convocadas
para a oficina de decoração e aí alinhadas. As mais belas raparigas, quere dizer, antes de tudo, os manequins e as alunas da escola de manequins. Segredando e rindo
ofereciam-se aos olhares do velho Sprague: embora se tratasse apenas de pernas, elas tinham dado ao rosto o brilho mais resplandecente. Todas eram ambiciosas e o
facto de serem expostas durante uma semana na vitrina, representava uma aventura excitante, e uma grande oportunidade de êxito.
Sem nenhuma dúvida, Liliana Smíth possuía as mais belas pernas; foi classificada em primeiro lugar na restricta selecção que fizeram. No fim, ficou só em campo.
O velho passeava ao longo da fila de raparigas, com um passo solene, como um general passando revista a um regimento. Erik fazia de ajudante, seguia atrás. O velho
discutia, em voz alta, as qualidades de cada uma, pois as suas relações de todo o ano com bonecas das vitrinas, tinham-no tornado indiferente às reacções humanas.
Erik Bengtson, pelo seu lado, fazia caretas nas costas do velho, o que obrigava a rir as concorrentes. Por fim, o sr. Sprague mandou embora todas, mesmo Liliana.
- Que tem o senhor a dizer às pernas dessa rapariga?-preguntou Erik, assim que ficou só com o chefe.
- Não as podemos utilizar. Ela não tem o tipo preciso, tem um ar ordinário.
- Acha ? -preguntou Erik, que estava habituado a Liliana.
- Meu rapaz-disse o sr. Sprague - pode-se ter excelentes ideas a respeito de decorações, mas não se saber nada do que é venda. E nós queremos vender, entendeu? Nós
queremos vender essas danadas sessenta mil ligas Fidélia. E a quem, pregunto eu? A gente modesta, às donas de casa que precisam de fazer durar as meias, a esses
dois milhões de mulheres que ficariam furiosas, se vissem uma rapariga como esta Smith. Se a pusermos na montra, teremos um montão de homens
diante da nossa fachada norte, e a patente vai-se pela água abaixo.
- Que é preciso fazer então ? - preguntou Erik, que começava a achar o assunto demorado.
- É preciso descobrir um tipo que convenha explicou o velho. - Deve, com certeza, existir uma rapariga que tenha as pernas bonitas e, ao mesmo tempo, um ar sério.
vou procurar mais uma vez. O chefe do pessoal é um burro, É preciso a gente ir em pessoa.
Ao lado do seu superior, Erik percorreu o armazém. Toda a gente estava agora ao facto do que eles queriam e as caixeiras arranjavam-se de tal maneira, quo as suas
pernas não podiam passar despercebidas. Mesmo as da velha guarda, como miss Drívot, da secção das louças, estavam cheias de esperança, pois, desta vez, não se tratava
da cara,
- Espere! É esta que eu quero! - disse o sr. Sprague, de-repente - Eis emfim o tipo de mulher que ety; procurava, como um pedaço de oiro absolutamente raro.."; Uma
rapariga que é bonita e que, ao mesmo tempo,'- tem um ar decente. É esta, acredite. Esta é que há-de vender as nossas ligas à clientela.
- Oh!... parece-me... que se engana.-disse Erik, estupefacto. A rapariga que estava em cima de um escadote, e que tinha encantado o sr. Sprague, não era outra senão
Nina.
- Ela é muito tímida para ser exposta assim - atalhou, tentando distrair o velho.
- Como sabe você, se ela é tímida ? Já lhe fez propostas ? Pois do que precisamos é justamente duma mulher deste género.
- Mas o senhor não a pode meter dentro de uma vitrina, pronto! - exclamou Erik, grosseiro. Mas, como há meses, com subtil diplomacia, tinha sempre levado o velho
a fazer o que não lhe aconselhava e a evitar o que ele queria, a sua oposição enraizou a idea do bom homem.
A GRANDE LIQUIDAÇÃO
- Como se chama, menina ? - preguntou o sr. Sprague, com os olhos erguidos para o escadote, sem se preocupar com o seu assistente.
- Nina. - disse ela.
Acabava de ver seu marido e o rosto iluminou-se-lhe.
- Desça. Tenho que lhe falar - ordenou o velho.
- Deixa-te ficar lá em cima, Nina! - gritou Erik - Na verdade, não desejo que a minha mulher se pespegue numa vitrina a exibir os joelhos.
O sr. Sprague ficou sufocado.
- Ah! bom ... casou com ela não ? As minhas felicitações. Mas... ouça-me bem: você não tem o direito de influenciar sua mulher. Ela talvez se sinta feliz, ganhando
uma pequena gratificação.
Nina descera do escadote e colocara-se ao pé de Erik, não tão perto que pudessem julgar que falavam em particular, mas, no entanto, próximo dele.
- Que gratificação? - preguntou.
- Setenta dólares por semana. - disse o velho, com ar importante - Sem contar que isso a pode fazer ir mais longe.
O sr. Berg, chefe da secção, havia-se aproximado. Miss Drivot passou perto deles, sorridente. Sabiam já todos que Nina era a escolhida e vinham cumprimentá-la, parecendo
tomar o facto como uma honra e uma distinção. No lavatório das senhoras começavam já os comentários ciumentos e os doze andares encheram-se com a notícia.
- Não quero que a minha mulher vá para a vitrina.-repetiu Erik, numa cólera fria.
- No entanto, ganhar dinheiro, só lhe pode ser agradável. Para mais, isso causa-nos a nós, à Central, um grande prazer. Estou convencido de que o sr. Crosby será
informado -continuou insidiosamente o sr. Sprague, emquanto Erik prometia, a si próprio, vingar-se na primeira ocasião. Podia sempre, emquanto decorava, deixar
cair um martelo em cima daquela maldita cabeça de intrigante.
À noite, no metro, os recém-casados discutiram. Erik mantinha que Nina devia recusar a proposta. Nina compreendia isso mal: seu marido fora sempre superficial, não
tomando nada a sério pelo facto de ser artista, e eis que, por esta história sem importância, fazia soar o seu título de conde. com aquele dinheiro podiam começar
a comprar o pequeno Ford e fazer mesmo mais qualquer coisa. Erik tinha um desejo louco de um pequeno Ford e fazia anos daí a pouco...
- Quer te agrade ou não, estou decidida, - disse ela
- Ambos temos desejo de avançar e não nos podemos permitir o luxo de desprezar semelhante ocasião. De resto, até te fica mal fazeres barulho por tão pouco. Ouvirei,
com certeza, menos reflexões desagradáveis dentro duma vitrina, do que quando sirvo os clientes.
A sr.a Bradley tomou o partido de Nina.
- Ela tem razão, se recusar, tomam-na de ponta. Erik resmungou ainda.
- Tenho a certeza que tua mãe não faria objecções - assegurou Nina lançando o seu último trunfo.
- Lá nisso podes estar descansada. Minha mãe até teria prazer nisso. - disse Erik, furioso.
- Bem vê... - concluiu a sr.a Bradley agarrando-se com força á correia, pois, nos últimos tempos, andava trémula. Devia ser por causa das dores no lado. Por instantes,
ela julgou ver os embrulhos, as etiquetas, as mãos girarem diante dos olhos e teve medo de cair. Mas era preciso não falar dessas coisas, se queria conservar o seu
lugar na Central. Bem vê! - continuou, deixando-se baloiçar da direita para a esquerda. Liliana, de pé, a seu lado, não dizia nada. Ia devorada pela cólera e pelo
ciúme. Pensar que a rejeitaram para pôr Nina na vitrina! Pensar que havia casado, emquanto ela tinha todas as noites que andar sozinha no seu ? bairro! Pensar que
esse cretino do Erik procedia como
se Nina fosse distinta demais para ser exibida! Tudo isto, punha Liliana fora de si: era como uma dor perfurã nte.
- Fazia muito mais efeito se soubessem que viam as pernas de uma condessa Bengtson - disse ela, por fim.
A flecha atingiu Erík, - e ela percebeu-o - mas era uma bem fraca consolação. Desceram os três na rua 42.a e Liliana continuou sozinha até à 125ª.
Não era que aquilo desse muito prazer a Nina, pelo contrário, afligia-a até. - "Setenta dólares". -pensava emquanto jogava com Skimpy. Setenta dólares" Erik resmungava
ainda, no entanto, deixava-a fazer o que quisesse. Nina via-se já quási a escolher o pequeno Ford. Nem podia adormecer. Estendida na obscuridade, assaltava-a a sua
empresa e construía castelos no ar.
- Pensa que nunca mais te aborrecerás - disse ela, noite alta. -Adivinhava, pela respiração de Erik, que ainda não conseguira adormecer.
- Quando? - preguntou.
Nina estendeu a mão para a outra cama:
- Ora quando ... por exemplo, quando tivermos o nosso automòvelzinho... À noite poderemos dar um passeio...
Nina conservava a mão estendida; aparentemente, Erik nem dava por isso.
- Eu não me aborreço - disse, algum tempo depois.
- Sim, continuou ela meigamente - eu sei, não é preciso que o digas: tu aborreces-te. Jogar todas as noites com a Skimpy e o velho Filipe não é, evidentemente, muito
interessante para ti. Mas tu verás... Ela calou-se um momento e depois veio a mão de Erik, da outra cama, ter com a sua.
- Querida inteligente, Lille spurv, - disse ele - estamos casados apenas há três semanas e já tens sustos a meu respeito...
Nina teve desejos de responder, mas não o fez. Erik
adivinhava sempre as suas mentiras; mesmo num quarto de dormir às escuras, ele sabia quando ela mentia. Tinha receios, sim... Ele andava distante... distraído, muito
amável... mas de noite para noite, a partida de cartas e a vida em casa dos Bradley, mais o irritavam. Um carrito para ele... ar ... movimento ... velocidade ...
- Sabes ?... é porque não me habituo aos beijos de chocolate - disse emfim Erik, do outro lado.
Nina pôs-se a rir baixinho, e adormeceram.
No dia seguinte, Nina exercitou-se no papel que devia representar. À noite Erik não foi a casa, mas jantaram juntos no "Rivoldi". Depois, ele voltou para a loja
para decorar a montra das ligas.
Foi a uma quarta-feira, que Nina tomou posse do seu novo posto. Tendo um vestidinho azul-claro, foi colocada na vitrina, no meio de dezasseis bonecas, de sorriso
idiota, e fez a demonstração das ligas Fidélia. Para dizer a verdade, ela admirava-se que as meias ficassem inteiras.
Três vezes, durante a manhã, Erik foi à rua e fazia guarda para vigiar a mulher por trás do vidro. Nina mal se atrevia a sorrir-lhe, como se se tivesse tornado actriz
de um drama de Shakespeare. Ao meio dia, houve uma pausa de meia hora; deixou ali as dezasseis bonecas e foi ter com Erik, à cantina. Ele não disse uma palavra sobre
o novo emprego de sua mulher e ela também não falou nisso. Liliana não se foi sentar em frente deles, como de costume. Na escada 5, os esposos separaram-se e Nina
retomou o seu lugar na montra 7.
Era fatigante. Horrivelmente fatigante e ennervante. Mas, ao fim de dois dias, tinha-se habituado, Às vezes, parecia-lhe que se tinha transformado também numa boneca,
com as costas duras, curvadas, e com um sorriso de madeira.
É vulgar dizer-se que os novaiorquinos nunca têm tempo. Mas quando uma bonita rapariga, exposta em carne e osso, mostra, nas suas próprias pernas, que
as meias não se rasgam, os mais ocupados arranjam logo tempo. De manhã até à noite havia uma multidão em frente da fachada norte, de tal maneira, que teve de ir
para lá um agente de polícia, afim de manter a ordem. Certos basbaques ficavam ali cinco minutos, olhando com um sorriso cheio de espectativa, como se esperassem
a conclusão divertida de uma boa anedota. Até o mendigo da esquina da rua pôs a tiracolo o seu letreiro "Sou cego" e se fez conduzir até ao armazém, pelo cão, arriscando
um olhar para Nina, Ela tinha esquecido completamente que a fitavam, e desempenhava o melhor possível o seu papel, sem se preocupar com a gente que estava lá fora.
- Ah! Tu nunca podias, na vida, ser um manequim ! - disse-lhe Liliana, à noite, quando, fatigadas de corpo e espírito, se dispunham a partir.
- Parece-me bem que não. - respondeu Nina, sem rancor.
Erik fora obrigado a ficar no armazém; os projectos para a estação de verão não estavam acabados.
- Emfim... compreendes, ao menos, a sorte que tiveste de seres assim exposta ?
- Porquê? -admirou-se Nina, a quem doíam as costas .
- Por causa de toda essa gente que olha para ti... todas essas ocasiões... Podes encontrar alguém que faça a tua felicidade.
- Que felicidade ? -preguntou Nina. Ela alegrava-se mas era ao pensar nos setenta dólares e no pequeno Ford ... Mas a felicidade era talvez outra coisa.
- Inocentinha, an ? - troçou Liliana. Tinham entrado no vestiário das senhoras e punham pó no rosto. Nina fazia-o negligentemente, Liliana com uma gravidade atenta.
- Emfim... não tens recebido propostas, cartas de amor ou coisas desse género?
- Mas eu sou casada! - replicou Nina. Liliana olhou-a com ar de desprezo:
- Eu é que devia lá estar. - disse, rancorosa. E havia de tudo neste pensamento: inveja, ciúme, raiva, até desdém e ódio por essa pequena Nina tão simples. Um pensamento
que queimava e estragava tudo: "Eu é que devia lá estar!..."
FACTO estranho, os habitantes de uma capital não conhecem verdadeiramente senão uma pequena parte da sua cidade. Fazem todos os dias o mesmo caminho, à mesma hora,
com a mesma luz. Steve Thorpe, por exemplo, não conhecia senão o caminho da sua casa de White Plains para o seu escritório da 5ª Avenida, e, além disso, o seu Club.
E mesmo, só conhecia esse bairro, através da porta do seu automóvel.
Que ele tivesse passado a pé, numa quinta-feira, pouco antes do meio-dia, diante da fachada norte da Central Warehouse, era um puro acaso e fora causa disso, também,
uma carta que tinha recebido. Essa carta, monumento epistolar, ao mesmo tempo atormentada e solene, era assinada por Filipe Filipe. Thorpe não se teria inquietado
muito se, entre frases confusas, não houvesse alusão, a sua mulher. O epistológrafo Filipe, pedia perdão pela ofensa que, em consequência de um mal-entendido, tinha
feito a madame Thorpe. Ao mesmo tempo que se censurava a si próprio, pedia instantemente ao marido, sr. Thorpe, para o ajudar: "Por causa de sua mulher perdi o meu
lugar que, durante toda a vida, ocupei o melhor que pude. Seja generoso, sr. Thorpe, e ajude-me a recuperá-lo. Sei que é amigo do sr. Crosby, uma palavra sua pode
restituir-me a felicidade", Assim terminava a confusa epístola.
O sr. Thorpe percebeu, pelo menos, que esse Filipe ignorava a acção de divórcio, posta por madame Thorpe contra ele, e ficou-lhe reconhecido, pois desde que sua
mulher o tinha deixado, andava de um lado para outro com a sensação de que toda a cidade o apontava a dedo.
Embora as culpas estivessem do lado de Lúcia, Thorpe não tinha a consciência tranquila. Em muitos processos, defendera a opinião de que, quando uma mulher se entrega
a certas faltas, é sempre por culpa do marido. Se a carta não falasse de sua mulher, ele tê-la-ia deitado fora, imediatamente. Mas Steve Thorpe queria bem à mulher
que o tinha abandonado, e tudo o que lhe dizia respeito o agitava extremamente. Ele metera-se em casa e não se dava com ninguém; quanto às pessoas que iam ao seu
escritório de advogado, possuíam o tacto preciso para não falarem de Lúcia. De-resto, Thorpe supunha que, havia muito tempo, ela tinha partido em viagem para a Europa,
como lhe dissera, quando se separaram. Só agora, esta carta lhe fazia saber que estava ainda em New-York. Esse Filipe devia ser um louco. Thorpe nada podia deduzir
da carta, mas o sangue subia-lhe ao rosto, ao pensar que um desconhecido tinha podido ofender Lúcia. Pegou no telefone para chamar Crosby, que conhecia como membro
do seu Club. Mas abandonou o auscultador, assim que viu os olhos atentos da sua velha secretária. Miss Tackle tinha a aparência e a vigilância dos cães de pedra,
que na China velam as portas dos templos e afastam os espíritos maus. Teve vergonha diante dela, diante da telefonista e diante do groom e, levantando-se, aproximou-se
da janela. O sol brilhava. Havia apenas três quarteirões de casas até à Warehouse. O grande relógio da torre central fez soar meio-dia. Havia anos que Thorpe tinha
por costume acertar por ele o seu relógio. "vou almoçar fora" - murmurou, e depois, deixando o sobretudo, pegou no chapéu e libertou-se do olhar de miss Tackle.
Assim que chegou à rua, respirou e olhou para o céu. Impaciente, esperou a luz verde para atravessar, pois tinha medo dos automóveis, como todas as pessoas que andam
sempre neles. O sol brilhante, aquecia-lhe as costas; à esquina da rua flutuava um cheiro a cravo. Uma mulher vendia flores; um homem empurrava um carrinho de pop-corn.
Thorpe sentiu-se agradavelmente englobado na onda dos passantes. "É preciso andar mais - pensou ele. - O pouco footing que faço ao sábado, não basta".
Thorpe era um homem alto e pesado, de cinquenta e dois anos. Havia quatro que estava um pouco calvo e ultimamente, a sua tensão arterial não era o que devia ser.
"A máquina gasta-se lamentava-se frequentes vezes. Era um trabalhador de uma resistência e de uma concentração colossais. Tinha ganho bom dinheiro e oferecido a
sua mulher todo o luxo que ela podia desejar. Era um dos milhões de maridos americanos, que passam o tempo a ganhar dinheiro para a mulher, de forma a não lhe ficar
nenhum tempo para gastar com as mulheres. Por isso é que ela o tinha deixado. Havia fugido com um gigolô, tal como o sr. Thorpe designava esse homem. Que o gigolô
se chamasse conde Di Péruggi e que quisesse desposar Lúcia, em nada alterava a situação.
Steve Thorpe estava na idade em que fere e faz doer horrivelmente uma mulher deixar um homem por causa dum gigolô. Mas, - com os diabos! - também ela estava na idade
em que as mulheres têm tendência para fugir com gigolôs. Pânico final, o desejo de agarrar a vida pelo último cabelo... Às vezes, sentia uma violenta cólera contra
Lúcia, outras, causava-lhe pena. Tinha conhecido muitos casos deste género, nos processos que estudara, para ser intransigente.
Foi por isso que Steve Thorpe se pôs a caminho, para tentar saber desse Filipe qualquer coisa de novo a respeito da sua mulher. Chegou diante da Central, parou
diante das vitrinas, olhando para tudo. Era novo para ele, isto desviava-o do motu-continuo dos seus pensamentos. Avançou entre a onda de gente, contornou o armazém,
deslizou ao longo da fachada norte e chegou diante da montra onde se fazia a demonstração das novas ligas Fidélia.
Thorpe parou e pôs-se a sorrir. Bonito, muito bonito. Muito bem" - pensou.
Cada uma das dezasseis bonecas tinha uma etiqueta de cartão, pendurada do joelho: "Preço: 2,80. A jovem, ao centro da vitrina, que, com um movimento regular levantava
a saia e puxava a liga, tinha também uma etiqueta pendente do joelho.
- Encantadora! - pensou Thorpe, olhando Nina e as bonecas - A rapariga é encantadora, muito mais bonita, do que parecia à primeira vista.
Parou, olhou e andou um pouco mais. Ao fim de um momento, voltou atrás. Tinha, entretanto, dado uma volta a todo o quarteirão; o sol brilhava e fazia-lhe bem
andar.
- Aqui está o que eu devia arranjar... uma amiguinha... - pensou.
Era o remédio infalível de todos os divorciados que conhecia. Uma amiguinha, uma coisa que se possa mostrar em público, que possa trazer um pouco de calor e de juventude.
Em Thorpe havia um fundo de bondade: amava os cães, as crianças, tudo o que era pequeno e necessitava de protecção. Teria sido terno, mas não tinha aprendido como
isso era.
Na sua casa de White Plains havia mesmo dois cães. A casa era muito grande para um homem só, pois a T. S. F. e a garrafa de whisky são uma companhia insuficiente.
Thorpe ficou ainda cinco minutos a olhar para a rapariga, depois entrou no armazém, pela porta norte.
No escritório de informações estava uma senhora de cabelo grisalho, que, a julgar pela sua aparência, devia
ser membro de numerosas associações de reforma. Thorpe, num acesso de bom humor, dirigiu-se a ela:
- Gostaria de comprar a jovem senhora que está exposta na montra - disse, tirando o chapéu.
- O quê ?
- A jovem senhora da montra. Tem o preço: dois dólares e oitenta. É um bom negócio. Onde a posso ir buscar?
- O senhor está a brincar! - respondeu "o escritório de informações" num tom adocicado. Em que posso servi-lo ?
A crise de Thorpe tinha já passado. Lembrou-se a que tinha vindo.
- Queria falar a um homem chamado Filipe . sabe se está empregado aqui ?
- Filipe ? O detective ? Um minuto ... - respondeu a senhora - vou chamar o sr. Cromwell.
Disse algumas palavras ao telefone e o resultado foi a aparição, passado um momento, de um rapagão com atitude de campeão de foot-ball, que a senhora das informações
apresentou com visível complacência.
- Este senhor deseja falar com o sr. Filipe. - disse ela - Este é o sr. Cromwell, que lhe dará informações.
- Chamo-me Thorpe -elucidou o advogado.-Tenho aqui uma carta que me foi dirigida por um tal sr. Filipe. Gostaria de o ver.
- Filipe, neste momento, está no depósito das peles, sr. Thorpe. Eu sou o novo detective da casa, tratando-se de qualquer coisa que...
- Não, não, obrigado,- disse vivamente Thorpe.- Queira apenas indicar-me o caminho desse depósito.
Cromwell teve um sorriso que significava: "Tu imaginas que as coisas se passam assim, meu homenzinho..."
- Como é natural, não é permitido a ninguém descer ao depósito das peles.- explicou com um sorriso condescendente,
- Bem. Então queira fazer o favor de mandar chamar aqui esse senhor.- propôs Thorpe.
Cromwell mirou-o com ar inquisitorial: "Talvez se trate de alguma situação para o velho Filipe" sugeriu, receosa, a senhora das informações. O novo detective piscou-lhe
o olho: "Trata-se de algum novo emprego?"
- preguntou. Mas Thorpe perdeu a paciência. "Quero falar com esse senhor, sim ou não?"
- Nunca, antes de meia hora. É preciso esperar que ele acabe a ronda, lá em baixo.
- Muito obrigado. Isso para mim não tem grande importância.- respondeu Thorpe. E, furioso, pôs o chapéu na cabeça e foi-se embora. Parecia, aos seus próprios olhos,
bem ridículo ter tanto trabalho por causa de uma baboseira escrita numa carta. Que lhe importava o que fazia a sua antiga mulher? Se foi vexada, foi muito bem feito.
O pequeno passeio ao sol de abril tinha enchido Thorpe de uma sensação desacostumada de frescura. Podia ser também por ter visto a pequena da vitrina. Para ser franco,
estava impaciente por tornar a vê-la. Mas, quando Steve Thorpe se encontrou na rua, a montra número 7 estava vazia. Ou antes, continha as dezasseis bonecas sorridentes;
pareceu-lhe vazia, porque a rapariga tinha desaparecido. Ruminou um pouco sobre este fenómeno, hesitou, e depois decidiu se, deu a volta ao armazém até à porta do
sul e entrou por esse lado. Era a secção de perfumaria. Um cheiro forte, a sabonete, flutuava no ar e Thorpe encontrava-se muito embaraçado nessa atmosfera de artigos
de beleza feminina. Também ali havia um "escritório de informações"; era uma senhora de meia-idade com um ar prodigiosamente distinto.
- Desculpe-me -pediu Thorpe -mas podia dizer-me para onde foi a senhora da vitrina?
Este "escritório de informações" tinha uma compreensão muito rápida. A senhora pôs-se logo a sorrir:
- Naturalmente essa senhora está no seu repouso do meio-dia,
- respondeu, depois de olhar para o relógio de pulso.
- Será possível revelar-me o seu nome ou onde poderei falar-lhe?
O sorriso do "escritório" desapareceu:
- Lamento, senhor, mas é-nos formalmente proibido dar informações desse género - replicou em tom gelado.
- Que o diabo leve todas as mulheres de quarenta anos!- resmungou Thorpe, saindo do armazém.
Se tivesse sido dado a Steve Thorpe ver Nina nessa manhã, a impressão fugitiva e agradável que sentira, teria provavelmente desaparecido. Mas, como deparou com o
impossível, ficou-lhe no sangue uma impaciência extraordinária, como de uma coisa esperada e que não teve ainda desenlace. Esse ligeiro aborrecimento deu-lhe uma
sensação de vitalidade nas veias, como, havia muito tempo, não sentira. Isso fazia parte desse dia de abril cujo ar, a-pesar-do calor do sol, era atravessado por
uma frescura estimulante que parecia vir de qualquer distante vento de montanha.
Como era meio-dia, a gente moça que saía dos escritórios estava espalhada um pouco por toda a parte, encostada às paredes das casas, fumando o seu cigarro. Thorpe
passou diante deles com ar atento: procurava a rapariga da montra. Ao canto da rua havia um grande drugstore, em que as pessoas estavam sentadas e apertadas, comendo
rapidamente a sua refeição. Subitamente, Thorpe teve um pressentimento, quási a certeza de que a jovem se encontrava ali. Entrou, atirou-se para a primeira cadeira
vaga e encomendou uma sandwich de presunto. Já tinham passado muitos anos sobre a época em que o advogado almoçava num drugstore. Os anos do seu triunfo, os anos
do seu infeliz casamento, os anos em que os cabelos lhe tinham caído e o ventre se lhe tinha arredondado. Entre essa gente moça, ele sentiu-se subitamente novo,
como no tempo da sua estreia,
A rapariga não estava entre o rancho de gentis criaturas que se amontoavam à volta do balcão, a mastigar. O advogado olhou para todas uma a uma, nenhuma lhe agradava
nem metade do que lhe agradara a rapariga da vitrina. Levantou-se, admirado de si próprio, pagou e voltou para o seu gabinete da 5ª avenida.
Uma multidão de clientes esperava-o já e mergulhou-se no trabalho até tarde. Às cinco horas, depois de ter acabado uma consulta delicada, pediu a miss Tackle que
lhe fizesse café. O ruído da cafeteira eléctrica e o perfume ligeiramente amargo que se espalhava no aposento, enchía-o de bem-estar.
- Pode ligar-me para o sr. Crosby, da Central ? preguntou subitamente e ficou surpreendido com isso. Não sabia de onde lhe vinha tal audácia, esse feitio "não te
rales". Que diabo lhe podia importar que miss Tackle, sua subordinada, ouvisse a conversa e desaprovasse as suas intenções?
Entre o escritório do advogado e o armazém houve as intervenções habituais de empregados subalternos até que miss Tackle obteve o escritório do grande director.
"O sr. Crosby está ao telefone" - anunciou ela emfim, com uma voz triunfante, estendendo a Thorpe o auscultador. O advogado lançou-lhe um olhar breve e, modelo de
discrição, ela saiu do aposento. (Ele sabia, que, de toda a forma, ela ouviria do vestíbulo a conversa telefónica ...)
- Bons-dias Crosby, como vai isso ? Aqui, Thorpe.
- Bons-dias, Thorpe. É você?
- Um lindo dia, não é verdade ?
- Sim! Ainda não tive tempo...
- Como vão essas percentagens ? Excepcionalmente, não se tratava do dividendo das
acções, mas do açúcar contido no sangue do sr. Crosby. A pregunta era uma amabilidade e como tal foi tomada.
- Obrigado, apenas 0,5 na última análise.
-Ainda bem. Está, com certeza, disposto a prestar um favor a um amigo...
- Se não custar nada...
- Ora vejamos, trata-se de um certo ... Filipe Filipe ... - disse Thorpe - puxando a confusa carta para si, pois tinha outra vez esquecido o nome. - Soube que este
homem perdeu o lugar por causa de minha mulher. Queria pedir-lhe por ele... emfim ... queria pedir-lhe que o conservasse. Parece que trabalhou durante muito tempo
na sua casa... e custa-me pensar que foi despedido por causa da minha mulher.
Ao telefone, o sr. Crosby calou-se.
- Está ? - fez Thorpe.
- Estou, sim, um instante. - respondeu Crosby - Estou a pensar. Lamento muito, Thorpe, mas não há nada a fazer. Creia-me, o facto não tem nenhuma ligação com madame
Thorpe. O indivíduo em questão é um bêbedo inveterado, é velho, em suma, não está já à altura do seu posto.
- Não há então nada a fazer, com certeza? - insistiu Thorpe.
- Infelizmente, não!-foi a resposta.
- Bem. Em todo o caso fiz o possível por ser agradável ao homem. Vai esta noite ao Club?
- Não me parece, sinto-me bastante abatido.
- É a primavera.- disse Thorpe, em cujas artérias ardia numa nova excitação - Escute Crosby... queria ainda qualquer coisa de si... muito fácil de fazer.
- Sim? - esperou Crosby de mau humor. A exuberância do advogado contrariava-o.
- Você tem uma rapariga na vitrina.. por causa de meias ou outra coisa parecida ... Gostaria de saber o nome dela, a morada e... Onde poderei informar-me?
Crosby teve um riso breve.
- Você precisa de uma caixeira para meias? Thorpe respondeu:
- Sim... pouco mais ou menos.
- Então, com muito prazer. O meu secretário vai dar-lhe as informações.
- Muito obrigado, Crosby. Adeus, até ao Club.
E Thorpe pôs-se a beber o café. Miss Tackle apareceu e tentou fingir que não tinha ouvido nada. Dez minutos mais tarde, o secretário de Crosby tocava. Secamente
e em tom protocolar, disse que a senhora a respeito de quem o sr. Thorpe tinha pedido informações, se chamava Nina Bengtson, de Houston, Texas, de 19 anos de idade,
empregada na secção de loiças e vidros, havia seis meses.
- Muito obrigado.
- Ora essa, às suas ordens.
Thorpe leu rapidamente um pacote de cartas que miss Tackle lhe entregara, assinou, pegou no chapéu, no sobretudo e saiu do gabinete.
- bom domingo, miss Tackle. - disse ele.
- Obrigada, igualmente. - respondeu miss Tackle e ele viu nas suas palavras uma pontinha de mordacidade impossível de dissimular.
Sentiu desejo de ir mais uma vez a pé até à Central, mas o seu motorista esperava-o diante de casa com o carro, e o relógio luminoso marcava seis horas menos cinco.
Subiu, deu a direcção da Central e saiu do carro no anoitecer cheio de gente e de luzes. Estavam já a fechar as portas. Assim que chegou diante da vitrina, um rapaz
extremamente loiro estava ocupado a fazer descer as cortinas de tom creme, que escondiam a montra dos basbaques da rua.
- Para casa, Tony - disse Thorpe secamente, assim que subiu para o automóvel.
Tinha dois cães bassets em casa, Max e Moritz. Podia, ao domingo, jogar o golf ou visitar o seu amigo dr. Back, em Rye. Agarrava-se a quanto o desprendesse da recordação
de sua mulher. E a rapariga da vitrina parecia ter essa qualidade, em larga escala.
Quando Thorpe, no dia seguinte, passou diante do armazém, à hora do lanche, não conseguiu encontrar a montra e foram-lhe precisos alguns minutos para compreender
que a decoração tinha sido mudada. Onde havia estado Nina Bengtson, exibiam-se agora móveis de jardim, pintados em cores vivas e aureoladas de promessas de verão.
Na terça e quarta-feira, Thorpe tentou apagar o incidente da memória. "Porque hei-de renunciar?"- preguntava a si próprio na quinta de manhã, rolando para o escritório.
No seu foro intimo germinava o másculo desejo de fazer a sua mulher, o que ela lhe tinha feito a ele. Fora sempre fiel a Lúcia principalmente por falta de tempo
e de interesse. Parecia-lhe agora que esse pequeno deslize, cometido mesmo depois, podia torná-lo mais atraente aos olhos dela.
Pode parecer espantoso que madame Thorpe que, no salão de costura, causava tão má impressão, fosse capaz de despedaçar o coração de um bom homem como o marido. Mas
os indivíduos têm tantas facetas como os olhos dos insectos e cada um só nota no outro as poucas facetas que estão voltadas para ele. Thorpe conhecia Lúcia; sabia
o que ela fora e no que se tornara. Via-a outra vez terna e tímida. A rapariga, com quem ele tinha casado, a jovem mulher que, por três vezes, tivera um parto prematuro
até que renunciara ao desejo de ter um filho, a boa camarada do seu difícil princípio de vida. A mudança tinha começado mais tarde, com o dinheiro que ele trazia
abundantemente para casa. Lembrava-se que lhe pedira, frequentes vezes, para se ocupar mais dela. "Mais tarde, mais tarde... ainda temos tempo" - respondera ele.
"A vida passa e nós não a gozamos" suspirava ela, e ele considerava isso uma injustiça do seu temperamento nervoso. Deu-lhe peles, jóias, um anel de esmeralda quando
fez quarenta anos. Em vez de se alegrar, ela tinha chorado. "Tu imaginas que a vida só é feita de segurança e de uma eterna partida de bridge,
dissera. Nessa época, aquilo havia-o surpreendido e encolerizado. Só agora começava a compreender. Um triste ressaibo era tudo quanto lhe restava do seu casamento
perdido.
- "Para que me hei-de preocupar com isso?" -repetia a si próprio. - Porque não arranjar a primeira distracção, que me aparece no caminho?"
Ao meio-dia desembaraçou-se da solicitude de miss Tackle e andou os três quarteirões que o separavam da Central. Hoje, o sol não brilhava, mas o ar estava pesado
sob um teto de nuvens que cobria o céu. Thorpe tomou o elevador até ao sexto andar e passeou o olhar, aparentemente distraído, pela secção de vidros e porcelanas.
Uma menina de aspecto rebarbativo ofereceu-se para o servir, mas não era isso que ele queria.
-Miss Bengtson não está? -preguntou-lhe sem rodeios. O chefe da secção aproximou-se e chamou em voz baixa: "Nina, Nina, um cliente para si-". A estas palavras, Thorpe
não pôde defender-se de uma lembrança cómica que se relacionava com uma casa célebre de Nova Orleans. "Nina, um comprador para si". De resto, era verdade; mas assim
que Nina apareceu, ele sentiu-se acanhado e não sabia bem o que dizer. "Um amigo aconselhou-me que me dirigisse a si; trata-se de um serviço de licores... vidro
sueco.."-balbuciou. "Vidro sueco?" - repetiu Nina reflectindo, emquanto três rugas lhe cruzavam a fronte... Ela tinha rosto de criança e corpo de mulher. Possuía
uma cor fresca e uma pele aveludada: irradiava mocidade e saúde. Um calor envolveu o coração de Thorpe, quando, atrás dela, se dirigiu para o lado dos copos de licor.
Emquanto o servia, ele tentou meter conversa, mas não foi longe. Não tinha prática e ela parecia séria e atenta ao trabalho. Enternecer um júri de coração duro,
era simples. Mas encontrar um princípio de conversa para uma caixeirinha de um grande armazém !.. Para lhe dar prazer comprou um serviço caro, de doze copos,
desejando, em silêncio, que ela tivesse uma percentagem.
- Está muito bem para esta secção -disse ele, emquanto Nina fazia tilintar com o dedo cada copo para mostrar que o cristal não estava rachado.
- Porquê ? - preguntou.
- Se lhe batessem assim, também, com o dedo, teria sonoridade, igualmente clara e fina. - disse Thorpe - Ela corou. "Não. Não diga isso..." -balbuciou com um sorriso
espantado. Não podia, no entanto, explicar à clientela, que só seu marido tinha o direito de lhe fazer reparos semelhantes. Thorpe passeou ainda um pouco, vendo
as jarras de flores e as fruteiras, achou tudo muito bem, prometeu voltar e por fim despediu-se descobrindo-se, o que mostrou ao mesmo tempo a Nina as suas boas
maneiras e a sua calvície.
Nina pensou em falar a Erik nesse amável cliente, mas não teve tempo. Esperou, como de costume, na escada 5, mas Erik não apareceu. O armazém esvaziou-se, ela ouviu
o andar dos empregados que saíam e o incessante pong pong pong do relógio do ponto, no pátio velho. Depois, tudo ficou silencioso, os elevadores deixaram de funcionar,
as luzes apagaram-se. Por fim, ouviram-se passos lá em cima, mas era só Pusch que lhe trazia uma carta. Curioso, ficou de pé junto dela emquanto a viu ler.
Gentil pardalinho,- escrevia Erick - estou condenado numa conferência interminável, peço-te que não me esperes, porque o caso não tem esperança. Vai ao cinema ou
ocupa a tua noite de qualquer forma distraída. Não te inquietes com o meu jantar, pois vou ao Rivoldi". Trezentos beijos da reserva.
Nas margens da carta, Erik tinha-se desenhado a chorar, apresentando um coração partido e assassinando o velho Sprague com um martelo. Embora ficasse aborrecida,
Nina não pôde deixar de rir.
-Não tem resposta, Pusch-disse. E depois de
dar um piparote nos caracóis inverosímeis do rapaz, foi-se embora.
- Meu Deus!-murmurou Nina, chegando à porta dos empregados e querendo sair para a rua.
- Sim, parece que chove, não é verdade minha senhora ? - disse o guarda Joé aproximando-se dela. Dentro do armazém dá-se pouco pelo ar e pelo tempo. Por uma ou duas
vezes Nina tinha notado uma crepitação semelhante a chuva, mas nunca esperara uma torrente de água comparada à que caía do céu. A rua estava deserta, largos regatos
corriam para os escoadoiros.
Gotas enormes estalavam no asfalto e uniam-se em milhares de pequenas fontes. Nina não tinha casaco nem guarda-chuva e olhava para o seu vestido bastante elegante.
Os quatro quarteirões que a separavam da estação do metro significavam catástrofe e ruína. Esperou um instante, viu passar diante de si vários autobus absolutamente
cheios, e, como aquilo parecesse não querer acabar, tomou uma decisão: "vou tomar um táxi até ao metro" pensou, e fez um sinal. Mas os motoristas dos táxis iam arrogantes
e irónicos, como sempre que chove. Continuavam o seu caminho, sem parar, limitando-se a salpicarem, com a água cinzenta das poças, as pernas de Nina. No próprio
momento em que ela ia a renunciar, surgiu um carro particular que parou mesmo diante da saída dos empregados... O senhor que ia no interior baixou o vidro e disse:
- Não poderei levá-la, menina? Embora esse convite fosse a coisa mais inocente e mais corrente em New-York, Nina respondeu como sua mãe lhe tinha ensinado em Houston,
Texas. - Muito obrigado, senhor, espero o autobus.
- Mas vai molhar-se, miss Bengtson! - teimou o senhor do automóvel.
E Nina reconheceu então o seu amável cliente da
tarde. Ele passou a cabeça calva pela portinhola e sorriu, com ar animador:
- Somos já velhos conhecidos ...
- Não sei... - respondeu Nina, hesitante.
Fazia frio, o lado direito do vestido estava já encharcado; o caminho até ao metro, debaixo de chuva, parecia de uma dificuldade insuperável. O que a levou a aceitar
foi o facto do senhor, deixando o abrigo do seu carro, sair de cabeça descoberta para a tempestade, abrindo a porta para ela entrar. "Vamos, suba. Não está tempo
para hesitações." - disse ele. E Nina subiu.
Lá dentro sentiu calor. O que primeiro caiu debaixo dos olhos de Nina foi um fresco ramo de junquilhos numa jarra; o aroma envolveu-a com a sua doçura cativante
e pesada.
- Onde quere que a leve ? - preguntou o sr. Thorpe.
- À primeira estação de metro, - disse Nina.
- Onde mora ? - informou-se Thorpe. Nina deu-lhe a sua direcção.
- Mas então é muito simples, eu passo em frente da sua casa e deixo-a lá.
O motorista guiou habilmente através das filas de automóveis; a chuva batia, impaciente, no teto do carro, os junquilhos cheiravam bem.
- É muito gentil da sua parte - agradeceu Nina. E Thorpe respondeu:
- Mas absolutamente nada... nada ...
Agora que tinha a rapariga tão perto de si, não sabia como poderia avançar mais ainda. Ela parecia séria, sentia que tinha de agir com prudência. - "Está molhada ? - preguntou, tateando o ombro do casaco de Nina. Ela encolheu-se imediatamente para um canto do carro. - "Não, obrigada" - disse. Até ao Central Park foram calados;
ao princípio o silêncio era opressor.
- "Onde pôs os lindos copos que comprou?" - preguntou a rapariga. Thorpe tinha deixado o serviço de licor no seu gabinete de trabalho. - "No escritório. - disse
-Sou advogado. Chamo-me Steve Thorpe . Nina esboçou um pequeno cumprimento. O auto avançava pela rua 62ª para a Riverside Drive. Agora chovia com mais força e, regularmente,
o asfalto parecia um mar cheio de luzes. - "Quere realmente ir para casa?" - preguntou Thorpe. - "Para onde hei-de ir ?" - exclamou Nina, surpreendida.
- Mas há mil coisas agradáveis a fazer numa tarde de chuva. Bar, cinema, concerto. A menos que a esperem ?
Emquanto Thorpe fazia esta pregunta, Nina entristeceu um pouco: era a quarta noite passada sem Erik.
- Não, ninguém me espera. - disse rapidamente.
- Temos então a mesma sorte. - replicou Thorpe. Olhou-o de revés. Ele pareceu-lhe muito velho, com a cabeça calva e uma ruga de preocupação ao canto da boca.
- Numa cidade tão grande há muita gente só. disse ela, sem querer.
Thorpe concordou com calor e no meio da conversa, obliquavam para a avenida de Fieldston, semeada de árvores. ?
- Como vê, levo-a conscienciosamente para casa. - , disse Thorpe - Mas é uma vergonha! Vai ficar lá sozinha e eu ficarei mortalmente melancólico. Porque não vamos
jantar juntos e passar a noite num cinema? Que lhe parece? Gosta do Gary Cooper?
Nina, tal como milhares das suas irmãs americanas, era louca por Gary Cooper e tanto mais que ela achava o Erik parecido com Gary. Erik também era alto magro e tinha
as faces vincadas e um ar desdenhoso quando julgava que ninguém reparava nele.
-Gary Cooper? Mas é o meu sonho! -disse ingenuamente.
Thorpe compreendeu mal a expressão sonhadora e abandonada do seu rosto que espiava à luz de um candeeiro emquanto, num cruzamento, esperavam que se
restabelecesse o trânsito. Aproximou-se dela e procurou-lhe a mão.
- Está entendido que vamos passear juntos? - preguntou, entusiasmado. Nina desprendeu-se, pôs-se logo a rir e repeliu-o sem o melindrar, mas muito claramente.
- Que imagina? - disse - Eu sou casada.
Thorpe não estava em disposição de se deter por semelhante dificuldade.
- Isso não tem a menor importância. - replicou Cada um de nós é mais ou menos casado, emquanto isso dura...
Sem querer, o seu tom tornou-se amargo e Nina reparou.
- Não o queria magoar. Tem sido tão amável comigo... - disse ela, preguntando a si própria se devia ou não descer.
- Somos ambos casados e estamos ambos sozinhos esta noite. E eu não acho isso bem.
Estas palavras atingiram o ponto vulnerável do coração de Nina, o ponto que lhe doía e onde reinava a ansiedade.
- Meu marido trabalha de noite. - disse vivamente.
Thorpe calou-se, mas com a expressão duma pessoa que sabe mais do que diz. Subitamente, sem ele mesmo saber como, encontrou-se a falar:
- Criança ... Criança... è muito nova, imagina ainda que o casamento é qualquer coisa de sagrado, de importante... toda a maçada do catecismo. Olhe à sua volta:
qual é a união que se possa garantir que não será um dia anulada ou quebrada -ou que não se transforme num verdadeiro inferno? O casamento! Uma bela instituição
que nós arrastamos, na nossa civilização. Poderia dizer-lhe como certos casamentos acabam pouco a pouco, a-pesar-da boa vontade dos cônjuges. Eu também já fui um
jovem casado, minha mulher era fresca e pequenina como a senhora é agora. Podia contar-lhe o que aconteceu depois... ao casamento e à mulher...
Nina ouvia sem dizer palavra. Aquele homem causava-lhe pena e ela acabara de o repelir ! Continuou a falar de si, da sua casa vazia, dos seus dois cães. Não podia
dormir, dizia, e os fins de semana eram tão longos!... Como era doloroso estar só! Por isso é que procurava... sem más intenções, um pouco de companhia.
Steve Thorpe podia fazer chorar os júris e saber encontrar, para os piores adversários, terrenos de entendimento, mas, como sedutor de mulheres, não tinha a menor
experiência. Outro qualquer ocultaria a Nina que era casado e ter-lhe-ia oferecido um anel de brilhantes, uma viagem à Flórida, e tentaria fazê-la beber. Foi justamente
porque ele não o fez, porque tudo quanto dizia, tinha um tom de verdade e despertava compaixão, que Nina foi tão confiante. Haviam já passado a casa de Bradley e
Nina não mandara parar. Parecia-lhe indelicado, impossível, interromper as recordações desse homem solitário e dizer-lhe: "Muito obrigada, cheguei a minha casa."
A chuva cessou e os junquilhos pareciam adormecidos. Assim que Thorpe deixou de falar, tirou o lenço e limpou a testa. O advogado mostrava-se infeliz e fatigado.
Nina olhava-o: "Pois bem, iremos jantar juntos e depois passaremos a noite no cinema. ouviu-se ela dizer subitamente. Surpreendeu-se, mas sentiu um sentimento ardente
ao pensar que alguém pedia o seu socorro e, na verdade, uma expressão de incomparável alegria inundou o rosto do seu companheiro.
Fez o carro dar meia volta e voltar para trás. Comeram num restaurante chic, ao pé de Grants Grab, e depois foram a um cinema de Broadway onde puderam ver um filme
de Gary Cooper. Thorpe portou-se impecavelmente e esteve satisfeito toda a noite. Estar feliz é uma coisa, e a paz sentida, depois de uma dor de dentes, é outra.
Parecia a Thorpe que o tormento ocasionado pelo casamento falhado, tinha cessado definitivamente ; sentia-se ainda um pouco fatigado, mas leve e livre.
Quando, mais tarde, convidou Nina para um bar, ela agradeceu delicadamente. Rolaram então, de novo ao longo da Riverside Drive, para Fieldston.
Seria uma ofensa para a sua mão se eu a agarrasse ?
- preguntou ele, sorrindo - E Nina sorriu também, respondeu que não e assim foram em silêncio. Nina pensava em Erik e em Gary Cooper; ele, em nada, nem sequer em
Lúcia. Sentia apenas o seu próprio pulso bater docemente contra a luva de Nina.
Quando ela chegou a casa, esperava-a uma surpresa. Erik tinha voltado. Estava no quarto, por baixo de um dos macacos, e parecia zangado.
- Já cá estás ? - preguntou ela, tolamente.
- Tenho vagamente essa impressão. - respondeu ele sem levantar os olhos. Acabava uma paciência complicada.
- Pensei que não voltasses antes da meia-noite... disse Nina, sem se atrever a beijá-lo.
- Matei o sr. Sprague, escondi o seu cadáver no subterrâneo, voltei para casa mais cedo e não te encontrei !
Via agora que ele não estava zangado.
- Onde estiveste, mulher ? - preguntou no tom das comédias francesas.
- Fui ao cinema, tinhas-me escrito dizendo que fosse ao cinema...
- Esposa obediente. - disse, aproximando-se dela E voltaste de táxi ? Ouvi parar um carro.
- Trouxeram-me de automóvel, por causa da chuva. uma senhora... - disse Nina.
A primeira mentira, que dizia depois do seu casamento, saiu sem esforço. Mal deu por que tinha mentido. Uma hora mais tarde, esquecera Thorpe, e o advogado não lhe
voltou a acudir ao espírito, senão no dia seguinte à chegada à Central, quando Joé lhe entregou um ramo de junquilhos e um cartão: "Obrigado pelo bom serão e até
breve."
Nina estava terrivelmente embaraçada. Erik encontrava-se a seu lado, cheirava os junquilhos olhando para o cartão e para a mulher.
- Foi alguém que me viu na vitrina.- balbuciou.
- Tem sem dúvida uma alma terna. - respondeu Erik, que parecia divertir-se prodigiosamente.
Depois não falaram mais no incidente.
TODOS os anos no mês de Maio, o Central-Club alugava um desses barcos especialmente apetrechados para reuniões amigáveis, que estão ancorados em East-River. E, por
uma noite de lua cheia e de bom tempo, organizavam um baile, emquanto o barco, lentamente, lentamente, subia o rio; primeiro ao longo dos arranha?céus de Manhattan
até ao Schiffs canal, depois voltando por Hudson até por detrás da ponte Jorge Washington, entrando por Downtown.
Muitas semanas antes, o armazém estava em efervescência, mas essa noite não era uma coisa sem importância na vida dos empregados. A lua cheia, o mês de Maio e o
bom tempo! Música e dança! Flirts e namoricos ! E a esperança de qualquer coisa inesperada e maravilhosa, sempre escondida no fundo do coração da gente modesta.
O aprendiz Pusch, por exemplo, mandou para uma certa morada 35 cêntimos e um boletim que cortou de uma revista. Em troca, recebeu uma brochura de cultura física
que prometia torná-lo em seis semanas, um verdadeiro Golias. Além disso, usou um creme garantido, com promessa de reembolso, se as sardas não desaparecessem, como
por encanto.
Madame Chalon mandou pintar as unhas dos pés vermelho escuro, Deus sabe com que esperanças. O sr. Berg tencionava festejar no barco o seu noivado
com uma senhora de Brocklyn, filha dum dentista judeu. Infelizmente, o noivado desmanchou-se antes da festa e Berg teve de se portar impecavelmente com uma caixeira
da secção de perfumaria. Efectivamente, ele tinha por princípio nunca se abalançar a tais coisas na sua própria secção. Toughy, o novo chefe detective, foi assediado
com quatro semanas de antecedência, por convites para danças. Prometeu a doze damas diferentes os seus favores para o serão e pediu a Filipe para o substituir nessa
noite, na Central. Quanto ao sr. Crosby, procurava, lá no alto da sua torre, um pretexto para não tomar parte na festa. Esse baile parecia-lhe uma demonstração demasiadamente
democrática, mas os empregados contavam absolutamente com a presença do grande Director da Central. Erik aceitou os setenta dólares que Nina lhe deu de presente
no dia dos seus anos, mas não dispôs de nada para a compra do automóvel. Pagou algumas dívidas e tirou o smoking do Montepio onde estava havia muito, acumulando
juros. Nina teve uma certa decepção, pois sabia quanto ele desejava um carrinho, mas por outro lado ficou orgulhosa que seu marido não quisesse dever nada a ninguém
e que possuísse um smoking. Erik estivera três anos desempregado, antes de consentir em renunciar ao seu sonho de ser pintor, e vender-se como decorador da Central.
Ganhava apenas dezasseis dólares por semana, pois consideravam-no como um principiante, um decorador sem experiência. Por isso é que tinha dívidas. Fez várias proezas
com os seus setenta dólares, pois ficou-lhe dinheiro ainda para comprar um vestido para Nina que ele mesmo escolheu: azul-claro, com um bordado, a prata, no cinto.
Nina sentia-se orgulhosa, mas não completamente feliz. Erik tinha mudado um pouco nas últimas semanas, andava nervoso, distraído, fazia muitos desenhos em papéis
que logo rasgava e deitava fora, encolerizado.
- Tua mãe não vem, em breve, a New-York? - preguntou Nina.
- Que queres tu a minha mãe ?
- Oh! Nada ... nada ... era cá uma idea.
Na verdade, gostaria de pedir conselho à enérgica e original condessa, sobre a forma de tratar o seu genial filho, principalmente para o fazer feliz.
Pouco antes da grande noite, aconteceu Steve Thorpe convidar Nina para um cocktail em sua casa, oficialmente, com o marido. O seu início de relações com ela não
tinha ido longe, mas também não se quebrara. Assim que se sentia infeliz e os seus espectros particulares vinham visitá-lo", ia até à Central Warehouse e comprava
coisas inúteis na secção de louças e vidros. Uma colecção de copos e jarras de todos os feitios acumulava-se já no seu escritório e miss Drivot não deixava de fazer
reparos irónicos a respeito dos clientes assíduos de Nina. De vez em quando, Thorpe fazia a Nina uma amabilidade: dois bilhetes para um concerto, (a que ela ia com
Erik, sem nada compreender) duas flores para pôr ao peito, um livro. Também a esperava muitas vezes no seu carro diante da saída dos empregados. Se ela saía com
Erik, levava amavelmente a mão ao chapéu e ia-se embora. Se saía só, então conduzia-a a casa; uma vez, mesmo, Nina acompanhou-o até White Plains. Tinha visto a casa
por fora, brincado com os cães bassets, que correram do fundo do jardim, mas recusou-se a entrar. Uma noite resolveu ser franca e confessou a Erik toda a história
inocente e oculta. Ele riu com gosto. "Nina, Nina, Lille Spurv, és uma grande màzinha". - disse "Passeias com senhores ricos, emquanto o teu marido trabalha. Uma
planta gangrenada da grande cidade, eis o que tu és."
Nina ficou desiludida. Tinha esperado outra coisa; ciúme, lágrimas e perdão, para terminar. Pelo contrário, ele tinha-lhe chamado Lille Spurv... O meigo nome fora
quási esquecido depois do casamento. Foi assim que Nina apresentou ao marido o advogado, uma tarde,
à saída, e que os dois homens trocaram algumas palavras amáveis.
Durante três dias, New-York ardera em calor, embora Maio mal tivesse começado, e fosse já de noite que a Central fechasse. Thorpe apertou a mão de Erik e convidou-os
para um cocktail em sua casa, na quarta-feira seguinte. Erik aceitou com entusiasmo. - "É um homem encantador. - disse ele a Nina - Deitaste a mão a alguém de primeira
ordem." Nina era jovem e vinha de Houston, Texas. Não compreendia de forma alguma esse laissez-faire, laissez aller, do conde Bengtson que vinha da maturidade, do
cansaço de um sangue velho.
Na quarta-feira, Erik não pôde libertar-se. A direcção tinha dado ordem para alterar completamente a secção de arte. Queriam fazer liquidação, e o sr. Sprague e
Erik tinham por missão dispor as coisas de uma Forma agradável e atraente nas montras de baixo: os irremediáveis bibelots, pinturas a óleo e estatuetas de bronze.
O velho quási chorou, assim que Erik disse que tinha um convite; Sprague portou-se como Cristo no jardim das Oliveiras: "Não poderá velar uma noite comigo ?"
- Ora que maçada! - disse, no vestiário das senhoras, Nina a Liliana, que se preparava - Erik não pode vir e Steve Thorpe está à nossa espera.
- Quem é que te espera ? - preguntou Liliana, deixando o seu bâton.
- O velhote, aquele que tem uma paixoneta por mim. Já te contei.
- Como lhe chamaste?
- Thorpe. Steve Thorpe.
- É o marido da nossa cliente ?
- Não sei. A mulher pediu o divórcio.
- Gostava de o conhecer... - declarou Liliana.
- Imediatamente, se quiseres. - respondeu Nina.
Cinco minutos mais tarde, rolavam as duas no automóvel de Thorpe para White Plains. Liliana ia alegre e faladora. Nina continuava calma. Thorpe sentia-se pouco à
vontade entre as duas raparigas. O carro depressa se impregnou do perfume de Liliana.
É difícil dizer porque Liliana mostrava tanto empenho em conhecer Thorpe. Sem dúvida tinha, sem dar por isso, o desejo de conhecer o homem que comprara o anel de
esmeralda, o anel que ela escondia em casa, nos colchões. Era um instinto de mulher, um instinto de caça, um instinto de prostituta. O homem que dava anéis a madame
Thorpe e fazia a corte a uma mulherzita como Nina, devia ser uma presa fácil. O seu melindre de amor-próprio não havia desaparecido, esse de Nina ser exposta na
vitrina e ela não! Que Nina se tivesse casado e ela não! Que Nina fosse cortejada por um homem rico e ela não! Era demais.
Ia roubar a Nina esse homem, que lhe havia de dar os anéis que ela quisesse e quando quisesse. Emquanto subiam o Grand Concourse, ela julgava o homem: a sua idade,
a sua calvície, o seu ventre. Era preciso que fosse rico para compensar o que lhe faltava. Avaliou a casa, os criados, o whisky. Liliana tinha crescido nos bairros
pobres, mas nascera com o instinto do luxo. "À nossa boa amizade!" -disse, com intenção, levantando o copo ao mesmo tempo que Thorpe. Ela chamava-lhe Steve, simplesmente,
embora apenas o conhecesse havia meia hora. Deu volta aos botões do rádio e fez alguns passos ondulosos de dança, ao ritmo da música. Exibia assim a sua coleante
linha de anos, como no armazém.
Durante esse tempo, Nina brincava com Max e iMoritz. Thorpe foi ter com ela, ao seu canto: "Quem é esta rapariga?" - preguntou.
- Liliana? A mais linda rapariga da Central. - disse logo Nina.
- Não gosto dela.
Às nove horas, Nina começou a bocejar e Thorpe propôs imediatamente levar as duas a casa. Desta vez, foi ele mesmo que guiou, tendo mandado Tony embora. Era um motorista
exageradamente prudente e lento. Durante todo o tempo, Liliana reflectiu sobre o que seria de melhor política: continuar só com ele ou descer com Nina. Ela não queria
que ele soubesse que morava na 122ª rua do bairro Leste. Tendo notado que a expressão do advogado, de minuto a minuto se mostrava mais fatigada, preferiu descer.
"Posso dormir em qualquer parte em tua casa?" - preguntou à amiga.
- Certamente, - respondeu Nina, contra vontade. -Boas-noites e obrigado pela vossa visita - agradeceu Thorpe, retendo um segundo a mão de Nina, quando ela descia.
No derradeiro momento, Liliana teve uma idea genial.
- Porque não convidamos Steve para o nosso baile? Seria admirável! - disse.
- Não sei se o sr. Thorpe gosta dessas coisas... respondeu Nina, hesitante. O advogado pediu pormenores do baile do Central-Club e confessou, com entusiasmo, que
morria de desejos de ir. Pobre Steve Thorpe! Aproveitava todas as ocasiões que o afastassem de sua mulher e o aproximassem de Nina.
- Combinado. - disse Liliana - Será o meu par e faremos ciúme a todas. "Fazer ciúme . Era bem uma idea de Liliana.
Assim que entraram em casa cheirava a naftalina. A sr.a Bradley ocupava-se em modernizar um vestido de seda preta, de noite, que lhe restava de melhores tempos.
Skimpy, excitada, estava sentada ao pé dela, a costurar. Nina tirou o seu vestido azul prateado do armário para o mostrar a Liliana, assim como o smoking de Erik,
que saíra do Montepio, e no qual ela tinha certo orgulho.
No dia seguinte, Erik trabalhou na cave, onde se encontravam os manequins da exposição. Estavam a oito dias do baile. O decorador colocara cinco bonecas na ordem
em que mais tarde seriam postas na montra e arranjava-lhes a atitude, abandonando o cigarro. Liliana entrou, seguida de Pusch que trazia um carregamento de vestidos
de verão.
Já não precisamos de si, Pusch - disse Liliana, logo que ele pousou o fardo.
No depósito de manequins era sempre noite; as lâmpadas eléctricas estavam acesas, o ar descia por tubos e havia o mesmo cheiro que no metro. "Trago os vestidos para
a montra 11" - disse Liliana colocando-se diante de Erik. "Grande honra".-disse ele-E, pegando num dos vestidos, sacudiu-o diante de si. As bonecas estavam à sua
volta e sorriam. "Queria falar-lhe a sós". - murmurou Liliana - Erik ergueu vivamente os olhos. Havia qualquer coisa na atmosfera - entre ele e Liliana - uma espécie
de inconfessada tensão. Ele pousou o vestido e sentou-se na borda da mesa.
- Onde é que se vai quando se quere empenhar qualquer coisa?-preguntou Liliana.
- Quere dizer que nunca pôs nada no prego ? exclamou ele.
- Não. É o meu primeiro ensaio. Mas gostaria de ter um lindo vestido para o baile.
- Eu costumo ir sempre à 6.a avenida, mas ouvi dizer que se encontra melhor na 2.a avenida. - disse Erik - Se quiser, passamos por lá depois de fecharmos. As casas
de penhores estão abertas até às sete horas.
- Obrigada. - agradeceu Liliana - Pediu mais alguns nomes e moradas e foi-se embora.
- Inscrevo-me para a primeira dança. - gritou Erik, atrás dela - Depois, voltou aos manequins. Às vezes estava tão farto de armar montras que tinha vontade de gritar.
No dia seguinte, à tarde, Liliana, hesitante, tomou o
caminho da 6.a avenida. Três vezes passou de largo sem ousar transpor o limiar da loja. Tinha a direcção de memória. Corria um perigo e sabia-o. Interiormente tremia,
mas era uma particularidade do carácter de Liliana: excitava-a o perigo.
Aspirou o ar quando entrou - havia ali o odor dos fatos muito usados. Objectos de todas as espécies jaziam um pouco por toda a parte - tudo parecia impreciso e apagado.
O homem pôs uma lente na órbita e examinou o anel. Que calma! Podia ouvir se o tique-taque do relógio.
- Quanto quere ? - preguntou o prestamista.
O coração de Liliana batia com tanta força, que ela podia ouvi-lo.
- Ignoro o valor do anel, foi um presente. O homem não desviou o olhar da pedra.
- Posso dar-lhe seiscentos dólares. - disse ele, de pois de um longo silêncio. A soma, importante e inesperada, caiu, grande e pesada, sobre Liliana.
- Sim ? - murmurou.
- É uma bela esmeralda. - afirmou o homem. Durante um instante, Liliana esperou que polícias
surgissem de cantos imprecisos da casa, para a prenderem.
- Só me quero separar dele por pouco tempo - disse, sem fôlego.
O prestamista tirou a lente e olhou-a.
- Precisamos dum documento. - esclareceu - É da lei... Seja qual for... passaporte ou bilhete de identidade ...
Liliana tinha um: todos os empregados da Central possuíam um cartão azul num sobrescrito de celofane. Parecia-lhe sentir o cartão como qualquer coisa de quente,
no seu saco, que ardia através do coiro. "Não tenho... não se pode dispensar?"
-Lamento, mas é impossível, - disse o homem e
Liliana iliana sorriu: os artifícios aprendidos na escola de manequins vieram em sua ajuda.
-Corro a casa a buscar o meu cartão.-disse-Daqui a dez minutos estou de volta.
Se vai de-pressa, fecharei a loja um pouco mais tarde - disse o prestamista, estendendo-lhe o anel. Bem; tinha outra vez o anel, não havia a menor suspeita, nenhum
polícia seguia Liliana, emquanto ela corria à próxima estação de eléctricos. Nesse instante, quási odiou o anel.
Era como uma obsessão, precisava desembaraçar-se daquela jóia que não lhe servia de nada, precisava comprar vestidos novos, precisava de ser a mais linda rapariga
do baile. Era uma ocasião maravilhosa: iriam vê-la, emfim, os dirigentes da Central que sairiam da sua torre de marfim e vagueariam entre os mortais. Liliana não
dormia: tinha as faces afogueadas, o rosto emmagrecido.
Três dias antes do baile encontrou-se na 2.a avenida; subiu a rua, lançou um olhar para a casa de penhores e por fim entrou resolutamente.
Aí era uma mulher que tratava do negócio, uma velha muito pintada. Outra vez a lente, o cheiro sujo a vestidos usados, a desordem, a tensão silenciosa.
Dois homens estavam encostados ao balcão, e olharam para Liliana com um olhar investigador, como se fosse um objecto.
- Pois bem, - disse por fim a mulher - dou trezentos, por ser a si, Como entrou em posse deste anel ?
- Um presente. - disse Liliana.
- Deve saber da coisa, para o seu amigo lhe dar presentes destes. - notou a mulher - A mim não mo davam.
Liliana forçou-se a sorrir.
-Posso acompanhá-la, menina?-preguntou um dos homens - Era alto e tinha os lábios inchados.
- Obrigado, tomo um táxi. - disse Liliana - Entretanto, a mulher havia lido um papel.
- O bilhete de identidade? -disse ela em tom indiferente.
- Diabo, nem pensei nisso! Não o trago comigo disse Liliana.
- Nem nada ? Veja na sua malinha. - aconselhou a mulher - Liliana pôs a malinha em cima da mesa e esvaziou-a.
- Tem aqui uma carta. - disse a prestamista - Os dois homens aproximaram-se e olharam.
- Sim, - disse Liliana - e esta carta basta ?
- Nós não somos exigentes; é apenas uma formalidade.-respondeu a mulher -Leu a direcção e copiou-a num livro: Madame Adriana Chalon, 367, West 72.a Street, City
Apartments.-Francesa? -preguntou a prestamista. Era um pouco estrábica, Liliana só então deu por isso.
- De origem francesa; meu pai veio do Canadá elucidou Liliana.
Ela tinha tirado do cesto dos papéis um envelope enviado à directora detestada. Assim que todas as formalidades foram preenchidas, e que meteu na malinha os trezentos
dólares, sentiu o mal que lhe ia no estômago.
- Voltarei a buscar o anel - disse fracamente.
- Dez por cento de juros pagáveis todos os meses - explicou a mulher.
- Um cigarro ? - ofereceu um dos homens. Era alto, novo e seria belo se a boca fosse menos vulgar.
- Obrigada.-respondeu Liliana-Embora tivesse uma frenética necessidade de fumar, rejeitou a oferta. Ding-ding-ding fez o relógio da loja emquanto ela saía.
- Bela rapariga! - exclamou o homem.
- Podíamos, justamente, precisar dela - disse o outro mais baixo que parecia um grego ou um arménio, negociante de frutas.
-Como pode uma mulher destas ter semelhante esmeralda ? - preguntou a prestamista, tornando a pegar na lente.
- Não está na lista ? - interrogou o rapaz bonito.
A mulher tornou a ler as folhas impressas e já meio apagadas: era a circular da polícia assinalando os objectos roubados com ordem de não os adquirirem.
- Não. - respondeu a mulher, terminando.
Donde lhe pode ter vindo o anel ? - repetiu o mais baixo dos homens.
O outro pôs-se a assobiar uma melodia sentimental.
- Veremos - disse subitamente. E, tirando as mãos dos bolsos, seguiu Liliana.
A lua brilhava, o tempo estava belo e dançava-se no tombadilho. A orquestra, embora composta apenas por quatro músicos, era excelente por fazerem parte dela dois
cubanos e um russo; os cubanos forneciam o ritmo, o russo a sentimentalidade. O sr. Crosby tinha-se, finalmente, resolvido a vir; estava até de casaca. Sentado em
baixo, no pseudo salão, onde a Central-Club lhe tinha preparado uma espécie de trono, bebia café, no qual, cuidadosamente, havia deitado dois comprimidos de sacarina.
De cada vez que absorvia um gole, agitava-se contrafeito. Steve Thorpe também viera. Vestia um fato de flanela cinzenta, pois nunca pensara que a gente da Central
desse um baile tão solene. Tinha trazido flores para Nina e Liliana. Como Nina já as tinha recebido de Erik, o decote do seu vestido desaparecia sob as flores. Erik
estava de smoking, com um cravo vermelho na lapela. Dir-se-ia que acabava de sair da mesa do rei da Dinamarca; era essa pelo menos, a confusa impressão de Nina.
No fundo, ela não sabia bem, se a Dinamarca tinha rei ou não.
Erik dançou com Liliana, depois com Nina, depois outra vez com Liliana. Elegante e digno, dançava primorosamente e Nina parecia inferior a seu lado. Os passos da
jovem revelavam ainda a sua origem de Houston, Texas, onde seu pai às vezes a levava a reuniões de sociedades. Ela sentou-se numa cadeira, no tombadilho,
ao pé do reeling, a ver. Que Erik dançasse menos com ela do que com Liliana era natural, não era? Se eram
casados...
Liliana estava encantadora com o seu vestido branco. Era um vestido sem enfeites, de linhas muito simples mas um vestido tão distinto e caro que não podia ter sido
comprado no salão da Central. Madame Chalon, que estava enfiada num vestido cor de tijolo, apalpou às escondidas, o tecido: "É o que eu disse sempre, é preciso saber
usar um vestido!"- disse ela - "Trinta e nove a cinquenta?"
- Cento e sessenta e cinco. - lançou Liliana, afastando-se pelo braço do chefe do pessoal. Madame Chalon levou bem uma hora a engulir a soma.
- Que quere beber, Nina ? - preguntou Thorpe.
- Qualquer coisa ... não muito forte porque me faz
sono - respondeu Nina.
Thorpe olhou-a; ela não parecia ter sono, parecia, pelo contrário, uma criança sobreexcitada por estar acordada até muito tarde. Os seus olhares seguiam Erik
pelo tombadilho.
- Vamos dançar ? - convidou Thorpe - Eu danço
muito mal.
- Eu também, - respondeu Nina.
Dançaram, mesmo assim, sempre à roda do tombadilho. Os cabelos de Nina tinham o cheiro da mocidade, sem que ela os perfumasse. Thorpe apertou-a um pouco contra si:
"Está-se bem aqui" -disse.
Quando a orquestra lançou as primeiras notas de um tango, todos os pares foram para as suas cadeiras ou para o bar improvisado. Só alguns inocentes pares abandonados,
continuaram a tropeçar no seu fox trot, sem saberem porque os seus passos já não iam a compasso.
- Tango! - exclamou Erik -Quem dança o tango?
Parecia de excelente disposição e no seu elemento. "Não bebas muito, querido". - segredou-lhe Nina, quando
ele se sentou um instante ao pé dela. - "Obrigado pelo conselho" - respondeu, muito frio. A observação pareceu encolerizá-lo excessivamente - "Quem dança o tango?"
- preguntou outra vez, fazendo das mãos porta voz. "Porque gritas tanto, Baby?" - preguntou Liliana, muito junto dele. No dia do casamento tinham combinado tratar-se
por tu, mas depois trataram-se sempre por você. Erik voltou-se bruscamente quando ouviu o tu.
- Embriagada, também ? - preguntou. Sem responder, Liliana abandonou se nos seus braços para o tango; ele inclinou a cabeça paralelamente à sua, como fazem os pares
célebres, no casino... Sob a mão, que encostava às costas nuaS, sentiu que ela tremia. - "Que é isso, Liliana?" - preguntou em voz baixa. A vibração do corpo da
jovem mulher contaminou o, entrou nele, nada podia fazer contra isso. - "Nada ... Porquê? Sinto-me feliz esta noite, mais nada" - murmurou ela. - "Sério?" - disse
ele. Dançaram. Nina estava sentada com Thorpe ao seu lado e observava o tango. Alguns dançarinos, entre eles Cromwell com uma rapariga da secção de perfumaria, continuavam
ainda na pista. Mas, ao fim dum instante, pararam todos para contemplarem os dois jovens. - "Um belo par!" -disse a sr.a Bradley, na ingenuidade do seu coração,
ao sr. Berg. Ela vestia o vestido de seda preta que, a-pesar-de tudo, estava ainda muito largo. - "Se nós descêssemos? Aqui começa a estar fresco" - propôs Thorpe
a Nina, depois de lhe ter estudado a expressão.
- Logo que o tango acabar... é tão bonito, não é?
- respondeu ela sem despregar os olhos de Erik e Liliana. Assim que o tango acabou, todo o tombadilho se posa aclamá-los e a bater palmas.
Levantando a cauda do seu vestido branco, ela desapareceu à maneira de uma artista depois da representação.-"Agora, sim, gostaria de beber qualquer coisa" disse
Nina a Steve Thorpe.
O sr. Crosby, no interior do barco, fazia justamente algumas tentativas de despedida. Gostaria de ir para casa e, por isso, de fazer parar o barco no Shiffs-canal.
- "Uma noite encantadora - disse ele à comissão que estava diante de si - mas eu estou doente, queiram desculpar-me."
Insistiram para que ficasse ainda, pois devia coroar a rainha de beleza, a mais bela rapariga que estivesse a bordo e, ao mesmo tempo, a mais bela rapariga da Central.
Resignado, vestiu o sobretudo e seguiu os delegados para a ponte onde, justamente, alguém espetava números nos vestidos das jovens mulheres colocadas numa longa
fila. Liliana tinha o nº 17, Nina o nº 4.
- Boas-noites, sr. Crosby- disse a sr.a Bradley, avançando para o campo visual do todo-poderoso. Ele tentou recordar-se. - "Sou a sr.a Bradley" - disse ela. "Bem
sei, desculpe, a minha vista vai enfraquecendo. Porque razão veio à nossa humilde reunião, sr.a Bradley?" - preguntou Crosby. Há muito tempo já que ele tinha esquecido
que dera à viúva do seu antigo camarada de club um emprego, na secção de embalagem. A sr.a Bradley desapareceu. Não se sentia doente nessa noite, mas sentia-se oprimida
com receio de que as dores voltassem de um momento para o outro.
- Olá, Crosby - disse Thorpe com um chapéu de papel na cabeça calva e um pequeno torniquete na mão.
- Meu Deus, que faz você aqui, Thorpe ? - exclamou o sr. Crosby para quem se tinha, entretanto, arranjado um novo trono. - Ele deixou-se cair emquanto a música tocava
e as raparigas numeradas começavam a andar à volta do tombadilho.
- Tenho amigos entre os seus empregados - respondeu Thorpe.
- Amigos ou amigas ? - preguntou Crosby.
- As duas coisas.- replicou o advogado. O seu olhar seguiu Nina, a sua figurinha leve, o seu sorriso ingénuo, os seus olhos que estavam húmidos de lágrimas
ao mesmo tempo cheios de espectativa, como se um grande divertimento ainda devesse chegar.
Já pensou alguma vez nisto, Crosby? - continuou Thorpe - Você tem uma casa cheia de coisas para vender e sofrem que se fartam para as vender, não é verdade ? NO
entanto... há na Central coisas que não se podem comprar... Crosby olhou na mesma direcção que o seu amigo e viu Nina. Não compreendeu completamente.
É uma reclamação ? - preguntou ele a Thorpe, com um vago sorriso.
Por fim compreendeu:
- Voto no nº 4.- insinuou -Não acha que é a mais bonita?
- Eu voto com certeza no nº 4.
O enfeite prateado do vestido de Nina cintilava, quando ela respirava, e as flores começavam já a murchar na noite quente.
Embora a eloquência de Thorpe levasse alguns a votarem em Nina -por exemplo o velho Sprague, que, de resto, estava completamente embriagado e Berg, o chefe de secção
e o próprio sr. Crosby, foi no entanto Liliana a eleita por uma esmagadora maioria. Sem admiração nem acanhamento, ela deixou porem-lhe na cabeça a coroa de papel,
apertou a mão de Crosby e, com o seu passo firme de manequim, deu mais uma vez volta ao tombadilho para se mostrar a todos. Os quatro músicos tocavam em surdina.
Bruscamente, Erik levantou-a muito alto para que toda a gente a pudesse ver.
O sr. Crosby voltou para casa, quere dizer que o barco parou alguns minutos à entrada da 225.a rua, e depois, vogou para mais longe. O sr. Thorpe ficou. Preocupava-o
Nina que murchava a olhos vistos, como as flores que tinha ao peito. De vez em quando, Erik passava como um vendaval, gritando: "Divertes-te, Lili Spurv?" E desaparecia
no turbilhão dos pares. "Não sejas idiota, monologava em pensamento o advogado,
Eis uma ocasião única para ti. A rapariga está um pouco embriagada e o marido abandona-a; ocasião mais favorável do que nesta noite não torna a aparecer." Dançou
outra vez com Nina; pesava inteiramente sobre ele, por leve que parecesse. Sob um lampião encarnado, ele beijou-a. Ela quási não se defendeu, disse apenas: "Tudo
isto é um disparate, Steve" e a sua voz estava fatigada. "Vamos beber um pouco mais?" - propôs ele cheio de esperança, levando-a ao bar.
Erik e Liliana estavam de pé, por baixo da escada que ia dar à ponte particular do capitão. Entrada rigorosamente proibida. Ninguém devia passar por ali; viam-se
as luzes de Manhattan na outra margem, a lua reflectia-se na água dando-lhe um aspecto metálico.
- Que se passou em ti, Liliana ? Pareces outra ..- notou Erik. E Liliana sorriu, orgulhosa.
- Deitei ao caixote os meus vestidos velhos, simplesmente. Vocês têm realmente olhos?
- Vocês, quem, nós?
- Vocês, os homens.
- Prefiro ser tratado como simples indivíduo,- resmungou ele.
Era um pouco forte para Liliana. Ele meteu o braço no do manequim. "Tens frio? -preguntou.
- Não, pelo contrário, tenho febre.
E dizia a verdade: havia semanas que ela tinha um pouco de temperatura. Sentia arrepios ao longo da coluna vertebral, mas as faces e as mãos escaldavam. Era devido
ao anel e às coisas perigosas e anexas que se tinham seguido.
- A tua febre é contagiosa. - ciciou Erik. Ele bebera, não muito, pois não gostava de cocktails, mas o bastante para estar alegre. Sentia ainda, nas suas próprias
articulações, a sobreexcitação nervosa de Liliana. E depois, santo Deus, ela estava tão bonita!
- Tenho a impressão de ter estado muito tempo
guardado na caixa da naftalina e ter saído bem sacudido e outra vez pronto a servir - disse ele.
- Falas demais, Erik. - murmurou Liliana - Não é necessário...
- Não? - preguntou o rapaz, olhando-a.
-Não.-respondeu ela, em voz quási imperceptível. Contiveram-se ainda um instante, sentindo vibrar ondas entre si, e depois Liliana lançou os braços ao pescoço de
Erik e beijou-o. Foi um beijo longo, esfaimado... A lua desapareceu atrás de uma pequena nuvem, depois tornou a surgir. Erik vacilava um pouco, quando Liliana lhe
descolou os braços da nuca. Ela ria silenciosamente. "Que quere dizer isto?"-preguntou ele - "Nada de maior importância ..." -retorquiu ela. E saiu do esconderijo.
Passagem rigorosamente proibida. "Fica mais um segundo" - suplicou ele em voz rouca.
Duas sombras caíram no tombadilho, quando a lua voltou a ser clara.
- Não se pode passar por aqui, Nina - disse Steve Thorpe.
-Em todos os sítios bonitos há avisos destes.-disse Nina.
- Vamos, deixe-se de discursos comunistas. - conciliou Thorpe.
Deram meia volta e tomaram a escada vizinha que ia dar ao bar. Por todos os lados, pares namoravam. Assim que vieram outra vez para a luz dos lampiões, Thorpe notou
que Nina tinha os lábios brancos. Um pensamento fugidio atravessou-lhe o espírito: ele nunca tinha reparado nessas coisas quando estava casado com Lúcia. É verdade
que Lúcia pintava os lábios. Mesmo ameaçado de morte, não poderia dizer se Nina tinha visto, como ele, os dois debaixo da escada da ponte. "Em que pensa, Nina?"
- preguntou bruscamente. E se nós aproveitássemos um fim de semana ou mesmo uma semana inteira?. para fazermos uma viagenzinha juntos?
- Porque me faz essa proposta justamente agora? preguntou ela.
- Tem razão... devia ter-lha feito há mais tempo. Talvez esta noite tenha mais coragem, porque bebi um pouco. Mas com certeza entendeu, desde o princípio, o que
espero de si, não é verdade?
Nina não respondeu. Tinha um ar tão infeliz que, subitamente, ele teve vergonha do seu ataque. "Sou um velho cínico, Nina" - disse. - "Já defendi muitas causas,
tenho observado muitas vezes, que as opiniões mudam e... as situações... e as relações entre as pessoas... e tenho a impressão de que um dia, talvez me possa suportar.
Compreende... Se qualquer.. emfim... se na sua vida qualquer coisa se modificar... pois bem, lembre-se... se um dia se sentir isolada... que o velho Steve cá está...
quero dizer... vá ter comigo... Promete-me isso?"
Nina fitava-o com atenção emquanto ele falava. Olhou para o lenço de seda em que ele pegou para limpar a testa e que depois colocou outra vez no bolso. A sombra
de um sorriso passou nos lábios pálidos da rapariga: "Fala-me como a uma idiota"-disse ela.-"Compreendo-o perfeitamente. Se um dia eu já não for casada .. entendido...
prometo que irei ter consigo. É isto?"
A música, depois do intervalo, estalou subitamente num ar de rumba sonoro e vivo. Cromwell passou a correr, gritando: "Onde está a rainha da beleza? Quero dançar
com a rainha da beleza."
- Vamos dançar? - preguntou Thorpe, pegando no braço de Nina.
- Obrigada. - respondeu ela, voltando-se vivamente. Liliana descia os degraus da ponte superior, docemente amparada pelo pretencioso detective.
- Onde está o Erik? - preguntou Nina, de lábios brancos.
- Como queres que eu saiba ? -replicou Liliana. E, agarrando na cauda do vestido, afastou-se, dançando.
DE noite, Nina, saindo de um mau sonho, quisera agarrar Erík. Ele não estava... Era como a continuação do pesadelo! Sonhando, tinha-o procurado e não o encontrara.
Só minutos depois ouviu o duche correr na sala de banho, às escuras. Pôs-se então à escuta:
- Tens alguma coisa, Erik ? - preguntou baixinho, quando, às apalpadelas, ele voltou para a cama.
- Nada. Não posso dormir. Faz muito calor aqui disse, vagamente.
As duas janelas estavam abertas e os primeiros clarões da aurora apareciam já. Nina estendeu as mãos e, como não acontecesse nada, tornou a passá-las para o seu
leito. Ficou muito tempo acordada, com os olhos abertos e ouviu os primeiros carros de leite rolarem na rua. Erik teria adormecido? Ignorava.
Ele trabalhou muito nos dias seguintes; a liquidação da secção de arte continuava, e a época dos banhos de mar tinha que ser anunciada com a exibição de fatos de
praia, e bonecas vestidas de maillot. Ele andava distraído e com mau parecer. Fosse onde fosse, estivesse em pé ou sentado, fazia esboços; depois rasgava os papéis
e deitava-os fora. Um dia, Nina revistou o cesto dos papéis e apanhou os pedaços rasgados. "Que foi?" - preguntou Erik, embora ela tivesse ficado muda.
- Mas... tudo isto se parece com a Liliana! - disse Nina com as três rugas na testa.
-Liliana? Que estupidez! Os manequins parecem-se todos. - explicou ele.
Nina continuou ajoelhada no chão diante dos pedaços de papel. Esperava que ele viesse levantá-la. Mas ficou ao pé da janela e acendeu um cigarro. Era domingo e Erik
estava ainda mais indecifrável que de costume. No quarto, por cima deles, ouviam o velho Filipe andar de um lado para o outro, sem descansar...
- Não posso mais!... - disse Erik - Tenho que sair. Saiu, sem chapéu nem casaco, não disse "Vamos
passear". Foi sozinho e só voltou a casa ao fim de quatro longas horas. Nina, tirou do cabide todas as calças do marido e passou-as cuidadosamente a ferro. Depois
desceu à cave, abriu a sua mala, tirou as velhas bonecas e tomou as nos braços. Por fim, subiu e foi procurar a sr.a Bradley.
- Quere que eu faça o jantar esta noite, sr.a Bradley ? - preguntou.
A sr.a Bradley, com o rosto amarelado, estava estendida em cima do canapé. Cansada, fez sinal que sim. Afligia-se ao pensar na segunda-feira, no tempo que tinha
de estar em pé, na embalagem, com aquela dor num lado. À noite jogaram uma triste partida de rummy. Nina, Filipe, a sr.a Bradley, Skimpy. A pequenita ganhou quási
sempre: feliz, soltava gritos de alegria emquanto os adultos, fatigados, sorriam. Cada um tinha as suas próprias preocupações, os seus próprios receios. Cada um
deixava errar os seus pensamentos.
- Onde se esconde sempre o seu jovem esposo ? preguntou o velho Filipe. Nina corou como se tivesse vergonha.
- É o sr. Sprague que o retém. Agora mudam a decoração das montras duas vezes por semana.
- É verdade - disse Filipe. Ele era céptico por
causa da sua profissão. Nina falou nas vitrinas como numa prova de que Erik não lhe mentira.
Assim que se cansaram de jogar, ela construiu com Skimpy castelos de cartas.
Deitada, conservou-se acordada até ao regresso do marido. Ele chegava a casa às três horas, às quatro, às sete. Mas Nina não dizia palavra e tinha os olhos fechados,
quando ele se inclinava para a ver. Muitas vezes beijava ao de leve aquele rosto, que julgava adormecido. Era uma grande consolação: Nina quási chorava. Cheirava
a cigarro, assim como a um perfume que a esposa, de sobrancelhas franzidas, adivinhava doce e forte, um pouco impudico - o perfume de Liliana.
As coisas continuaram assim durante três semanas. Certos dias, só se encontravam na cantina da Central. Às vezes, iam jantar ao "Rivoldi"; Erik mostrava-se de uma
alegria febril e forçada. Depois, no meio da refeição, tornava-se distante e distraído, punha-se a desenhar sobre o mármore da mesa, apagando depois com a palma
da mão.
- Porque não vem a Liliana comer agora connosco? preguntou-lhe Nina.
Ele encolheu os ombros. Queria ter um ar indiferente, mas mostrou a expressão que é costume ter-se no dentista quando, por acaso, a broca encontra um nervo. Nina
acompanhava-o até à entrada do armazém, depois, voltava para casa. Uma noite escreveu uma carta à mãe de Erik. Condessa Bengtson, Asilo de Alienados, Lansale, Connecticut.
Não era trabalho fácil. Assim que acabou de escrever, rasgou. Estava só. Nunca tinha sabido o que era estar só no mundo, antes de casar com Erik.
Meia-noite, duas horas, três... Como uma noite é longa, quando se espera o ente amado e ele não vem! Nina levantou-se, vestiu o seu roupão e dirigiu-se ao vestíbulo,
ao telefone. com voz em surdina, pediu a Central. Já não podia mais; era preciso que falasse
com Erik. Foi Joé, o porteiro, que respondeu; "Desculpe, Joé, eu queria dizer uma palavra a meu marido... o sr. Bengtson, deve estar do lado oeste... a decorar a
montra."
-Um momento... -disse Joé, com a sua voz de baixo, que inspirava confiança. Nina esperou. O coração batia-lhe debaixo do roupão: era como se fosse uma aventura proibida.
Depois de muito tempo, ouviu, ao telefone, uma voz que não pertencia a Erik.
- Está ? Quem fala ? - preguntou ela.
- Aqui, Donald Brooks, - responderam.
- Queria falar ao sr. Bengtson - repetiu Nina, intrigada.
Abriu-se uma porta no andar superior, e Filipe apareceu na estreita fenda iluminada, da porta.
- Que aconteceu ? -murmurou ele. Nina sacudiu a cabeça, com o auscultador no ouvido.
- Sou eu, o Pusch. - disse a voz ao telefone. O aprendiz renunciou ao nome elegante que ninguém conhecia.
- Oh! Pusch, ainda estão com as decorações ?
- Pois estão, minha senhora. - disse Pusch.
- Posso falar um segundo a meu marido ? - preguntou Nina. Entretanto o velho Filipe tinha descido a escada e estava agora ali. Ela fez-lhe sinal para a deixar só.
O seu coração tornara-se subitamente leve e alegre, ela queria implorar o perdão de Erik e desejava que Filipe não a ouvisse.
- Eles já saíram há cerca de hora e meia - disse Pusch, do outro lado do fio.
- Eles... quem ? - preguntou Nina.
- O sr. Bengtson e o modelo. - esclareceu Pusch. Mais nada ? - informou-se ao fim de um minuto, como Nina não falasse,
- Mais nada, obrigada. Parece-lhe que ele volta ?
- É possível... - disse Pusch num tom consolador. Obrigada, sr. Brooks, - agradeceu Nina, De-repente
o seu espírito tinha-se tornado tão claro e tão subtil que se lembrou do nome estranho. Via através da obscuridade, apercebia cada prega do velho roupão de felpa.
ouvia respirar Skimpy no outro aposento. No jardim da frente, um pássaro abria a garganta para os primeiros trinados da manhã.
- Posso fazer qualquer coisa por si ? - preguntou o detective. Nina olhou-o um momento, como se a pregunta precisasse de um certo tempo para chegar até ela.
- Não, obrigada, tudo vai bem. -disse delicadamente, pendurando o auscultador. O velho Filipe seguiu-a com o olhar, emquanto, através do patamar obscuro, ela voltava
para o quarto.
Os homens podem ser enganados pelas mulheres; as mulheres, não se podem enganar. Elas sabem tudo, elas sentem tudo. Nina tinha compreendido. Não fez cenas. Deitou-se
na sua cama, com os olhos secos, e sentiu que se tornava hirta, pequena figura de pedra rígida, quando Erik entrou. Pouco antes, o despertador tinha tocado. Sete
horas da manhã. Erik fez a sua aparição, de cigarro na boca com uma falsa naturalidade. Os cabelos vinham muito lisos, acabavam sem dúvida de serem passados por
água, para causar boa impressão.
- Bons-dias, Lille Spurv - disse, debruçando-se para a beijar na testa. Ela não se desviou, mas sentia que a testa devia estar fria e dura. Dura como pedra. Tinha
sempre sido meiga e doce, mas sabia ser dura quando se tratava de coisas importantes.
- Bons-dias. - disse saindo do quarto. No patamar, bateu à porta da sr.a Bradley.
- Quere fazer-me o favor, sr.a Bradley, de avisar que eu hoje não vou ao serviço?
- Está doente ? - preguntou a sr.a Bradley, inquieta.
- Não sei... tenho febre... talvez gripe.
- Pode ser. Eu também não me sinto bem. - disse a sr.a Bradley - Não se rale, tem direito a três dias com vencimento, mesmo que falte.
- Pois é... - concordou Nina, voltando para o seu quarto. Na cozinha, ouviu Skimpy preparar o pequeno almoço, antes de ir para a escola. Assim que Nina entrou, Erik,
que se tinha despido, estava debaixo do duche. Ela sentou-se e esperou.
- Não estás atrazada ? - preguntou, assim que saiu da sala de banho. Pequenos mares de água caíam dele sobre o sobrado.
- Não vou hoje à Central. - disse Nina - Ele lançou-lhe um olhar rápido, assustado, depois meteu-se na cama e puxou a coberta. Parecia tremer.
Maquinalmente, ela aconchegou-lhe a roupa, com a mão.
- Onde estiveste até agora?
- Tu bem sabes, Nina.
- Sim, eu sei. - disse ela. Seguiu-se um pesado silêncio.
- Ora vamos, não me faças cenas - pediu Erik, pegando na mão de Nina.
Ela não o repeliu mas estava sem vida.
- Não te faço cenas. - disse.
- Podia ter te explicado logo, mas quis fazer-te uma surpresa; estou a pintar Liliana para o concurso.
- Qual concurso?
- Tu bem sabes, o dos cartazes de verão.
Nina lembrava-se, vagamente, de Erik lhe ter dito qualquer coisa.
- Não era bonito se eu ganhasse o primeiro prémio e pudesse trazer-te mil dólares? - preguntou, acarinhando a mão da mulher para a aquecer.
Nina tentou sorrir, mas não conseguiu.
- E então? - disse ela.
- Não sei. Liliana endoidece-me. É um diabo perigoso. Mas, às vezes, preciso dela ... Excitação... Isso inspira, pois eu sou um pintor, Nina, mesmo quando me meto
nas montras às ordens do velho Sprague, a fabricar árvores de celofane.
Já me não amas?
Sim, Lille Spurv. Sim ...
- Mas gostas mais de Liliana.
Liliana ... é de outra maneira, Nina.
O pior é que ele não mentia nem se desculpava. Nina esperava um alívio, uma salvação que não veio.
Nada teria acontecido se eu não me tivesse metido a pintá-la. Mas o quadro será bom, Nina. Sentia-me completamente decaído... num verdadeiro lodaçal... eu não nasci
para forrar casas ... Dei-lhe entrevistas todas as noites, na oficina ... e assim ... só com ela ... Tu compreendes?
- Não. - disse Nina.
- Tinha preferido não me apaixonar por ela. Mas realmente apaixonei-me. Também há-de passar.
Nina esperou um momento, até poder engulir a dor.
-Que vai ser de nós?-disse.
- De nós? Não sei... se tu não sabes... -É-me impossível continuar ao pé de ti, se tu estás
apaixonado por outra. - declarou Nina. Ele sentou-se na cama.
- Não estás a falar a sério ?
- Que queres? Tu só podes ser como és. Eu só posso ser como sou. Não me é possível ficar contigo.
-Nina!-pediu Erik suplicante-Somos casados apenas há seis semanas!
Ele não podia dizer coisa pior; casados havia seis semanas e o seu coração já ia passear! Nina sentiu lágrimas subirem-lhe numa grande onda pesada.
- Acabou tudo entre nós.-disse ela, dirigindo-se para a porta. Ele voltou-se com a cara para a parede: ela viu-lhe as costas. Eram oito horas da manhã .. hora de
ir para a Central. "Preciso de renunciar a tudo.. a tudo - pensava Nina. - Não posso fazer outra coisa. ? Diante da janela, o pássaro da manhã lançava agora os seus
trinados claros e irónicos.
- Se tu pudesses prometer... que renunciavas a Liliana... - murmurou Nina, à porta. Ele não se voltou, pareceu reflectir.
- Eu, renunciar a Liliana? Deus! Mas ela é que não renunciará a mim! Agarra com força o que pode agarrar.-disse, voltando-se para a parede. Ele tinha, também, podido
agarrar num pau e bater na cabeça de Nina.
-Então... acabou-se - disse ela. O marido encolheu os ombros. Ela saiu do quarto e foi-se embora.
Ficou deitado na mesma posição, com a cara virada para a parede, para que ela não visse quanto era infeliz. O pássaro, fora, deixou de cantar. No vestíbulo, soaram
passos sonoros. O velho Filipe bateu a porta da entrada. Tudo tinha acabado.
- Fica ao pé de mim, Spurv, Lille Spurv... murmurou ele, no quarto vazio. Mas sua mulher, ajoelhada na cave, preparava as bagagens...
LEVANDO uma mala grande e outra pequena, Nina fez a sua entrada no vestíbulo atapetado da casa de Thorpe, como se um vento de tempestade a tivesse en purrado para
lá. Pretender que esta entrada fosse gloriosa, seria falso. Primeiro, o pessoal não a quis deixar entrar, depois, assim que se encontrou lá dentro, incomodou os
criados nos seus trabalhos. Um deles fazia funcionar o aspirador no tapete do vestíbulo; comovida, Nina apertava a argola das suas maletas emquanto o criado telefonava,
com ar importante, para o escritório de Thorpe.
Thorpe estava justamente em conferência quando o telefone tocou - conferência de um género desagradável com dois indivíduos cabeçudos que não chegavam a um acordo
sobre a exploração comum dos seus negócios de moagem.
- Está aqui uma senhora que deseja falar ao sr. Thorpe. - disse o criado.
- Como? Uma senhora? Neste momento não tenho tempo para falar a senhoras - resmungou o advogado ao telefone.
- A senhora diz que eu devo só dizer que é a Nina da Central, que está cá.
O rosto de Thorpe iluminou-se e sem se ocupar mais dos dois clientes disse:
- Ah! está aí ? Que quere ela ?
- A senhora chegou com duas malas.
- Bem... Bem ... que a senhora esteja à vontade, eu vou logo que possa. - disse Thorpe um pouco perturbado. Aquilo não parecia da Nina: irromper por casa dele com
duas malas...
Pôr-se à vontade consistiu nisto: Nina ficou sentada no vestíbulo em companhia da sua bagagem. E foi assim que Thorpe a encontrou, quando chegou a casa. Embora se
apressasse, era já tarde. "Então, cá estás?" disse simplesmente-Ele não preguntou nada; depois de um instante de hesitação, abraçou-a. Nina levantou os olhos, como
sempre que tinha medo, e aceitou o beijo de boas-vindas. Agora era preciso levar ao fim toda esta história, se queria, realmente, ferir Erik, feri-lo tanto quanto
ele a tinha ferido.
- Whisky, - ordenou Thorpe ao criado - E estas malas para o quarto de hóspedes.
Também estava um pouco aturdido pela forma súbita, como a felicidade lhe caía em casa. Bebeu o seu whisky e Nina deixou o dela.
- Quere explicar-me o que aconteceu, ou devo adivinhar? - preguntou ele. No espírito de Nina tudo estava já resolvido.
- Preciso separar-me de meu marido, - disse em voz resoluta. Não nos damos bem. Não me acomodo a ser casada com um génio. Compreendeu-o desde o princípio, não é
verdade? Não quero mais trabalhar na Central. Encontravamo-nos sempre no caminho um do outro... na cantina, em toda a parte... e não poderia suportar...
Evitou dizer que não se sentia com forças para afrontar Liliana, mas Thorpe compreendeu-o da mesma maneira.
- Não tenho dinheiro. - disse Nina - Preciso arranjar outro emprego e só o conheço a si.
- Tudo está perfeitamente entendido entre nós. disse Thorpe - A minha opinião é que durma hoje no
meu quarto de hóspedes, e amanhã procuramos uma casa bonita para si.
-É muito bom!...-disse Nina. Thorpe defendeu-se vivamente:
- Não vamos trocar cumprimentos - disse, emquanto pequenas pérolas de suor lhe apareciam na testa nua. Ambos sabemos do que se trata. Eu não sou bom, mas gostaria
que fosse minha. Pode talvez dizer-se que somos dois pássaros solitários... e... um pouco desiludidos, a certo respeito, e que, por causa disso, nos poderíamos sem
dúvida suportar, não é?
- É... - respondeu francamente Nina. Thorpe correu num impulso para ela e deu-lhe outro beijo. Ela recebeu-o com a expressão que tinha em criança quando engulia
o óleo de rícino. "Obrigada sr. Thorpe" - agradeceu.
- Chame-me Steve. - pediu ele, um pouco embaraçado.
O criado conduziu-a ao quarto de hóspedes e ela sentiu o seu olhar mirá-la com desdém. "Como se chama?
- preguntou, embaraçada - "Por excepção, não me chamo James". - disse o homem - Ela não sabia se isto seria uma insolência. Esperou, de pé, e como ela tentasse sorrir,
ele ficou sério: "Eu ajudo a senhora a desmanchar as suas malas" - disse por fim.
- Obrigada, prefiro eu tratar disso. - respondeu. Tinha vergonha das suas coisas, da sua roupa de
seda artificial, das suas meias cozidas, dos seus sapatos com meias solas. Thorpe entrou, passado um momento, quando ela olhava para as suas recordações: as duas
bonecas, a fotografia, o revólver.
- Como vai isso agora, Nina? -preguntou. Ele tratava-a por tu e ela tratava o por você, desculpando-se de vez em quando. Os olhos do advogado caíram no revólver
e encheram-se de receio. "Tu não tencionas fazer tolices, rapariga?"-preguntou, agarrando rapidamente na velha arma. "Não, é o revólver de serviço, de meu pai"
-explicou. Assim que ela voltou a pôr o revólver na mala, fechou os olhos, com medo, como quando do beijo do sr. Thorpe. Abaixando-se, ele apanhou um papel
que tinha caído.
- Não é nada - disse muito de-pressa pondo-o para um lado. - A conta de hotel da nossa noite de núpcias em Connecticut.
- Vai pôr-te bonita para ver se passamos um bom serão. - disse Thorpe e deixou-a só e hesitante.
Nina fez-se bonita com o único vestido capaz que possuía e que, infelizmente, era ainda uma prenda de Erik. Estava tão contente quanto podia estar, emquanto, de
vez em quando, fechava os olhos para receber um beijo de Thorpe. O belo serão não foi um triunfo, não lhe era fácil sentir-se à vontade, com um criado de cara dura
e severa em serviço ou oferecendo pratos de que não se gosta. Ao pé de cada prato estavam colocados talheres, com os quais Nina não se entendia. Mas fez o que pôde.
Logo depois da refeição passaram para outro aposento, ela cantou mesmo um pouco ao piano, tocando com um dedo, o acompanhamento, Isso pareceu agradar ao sr. Thorpe,
que lhe prometeu um professor de música.
O tempo passava e Thorpe tornou-se pensativo e silencioso. Passou um braço à volta do ombro de Nina: era desagradàvelmente quente, mas ela conseguiu suportar. Estava
resolvida a mergulhar nesta aventura, como se mergulha na água fria; sem reflectir e de um salto. Sorriu timidamente a Thorpe, quando ele a atraiu para o seu joelho.
Veio-lhe mesmo ao espírito a idea tranquilizadora de que ele também tinha tanto medo como ela.
Por fim, fatigou-se daquele silêncio e começou a bocejar. Ele levantou-se logo: "agora vamos deitar a menina" -disse, o que não agradou a Nina. Ela não podia supor
que, durante todo esse tempo, ele tinha tido um diálogo com o fantasma de sua mulher.
No patamar, pegou-lhe para a levar para o quarto mas foi uma tentativa falhada e, um pouco cansado, teve de a pôr no chão. Empurrando a porta do quarto de hóspedes,
deixou-a entrar primeiro: a lâmpada ardia na mesa de cabeceira, a cama ficava perto. O sr. Thorpe tinha o ar de um homem que desejasse ir buscar o seu chapéu ao
vestiário, e tivesse perdido o número. Quando a abraçou, ela começou a chorar. Tinha vergonha das suas lágrimas mas não podia sustê-las; sentia nas mãos a grande
cara do advogado, os seus grossos braços, o seu corpo pesado: tudo isto lhe era tão estranho, tão estranho, e não sentia em si a felicidade que sentia sempre que
Erik se aproximava dela com os seus membros finos e ágeis. E soluçava sem parar.
Tinha passado um dia muito cruel, não chorara ao descobrir que Erik a enganava, nem emquanto fazia as malas, nem ao sair de casa. Todo o dia tinha sido um pequeno
ídolo de pedra. Todavia um ente humano tem também o direito de chorar.
Thorpe ficou sinceramente comovido e consolou-a o melhor que pôde.
- Que queres tu? Que tens?- preguntou, acariciando a.
- Queria estar só ... queria chorar... - soluçou ela, com a consciência inquieta.
- Bem... eu não sou nenhum papão - disse o sr. Thorpe. E realmente não era, principalmente para com Nina. Largou-a, deixando-a sozinha na cama, cuja coberta de seda,
coisa nova para ela e muito incómoda, estava sempre a escorregar. Em casa da gente rica, as camas são realmente esquisitas." - pensou. E foi a única experiência
que tirou dessa noite.
No dia seguinte, Thorpe quis arranjar-lhe casa, mas, quando chegou ao escritório, encontrou um telegrama que o chamava imediatamente a Minneapolis. Tratava-se
do acordo entre as duas moagens e era importante, muito mais importante do que Nina.
Ela tinha tomado a resolução de ser amável com Steve assim que chegasse, mas ele não veio para casa. Telefonou ao criado dizendo que lhe levasse ao escritório a
mala, pronta. Dir-se-ia que tinha esquecido completamente a presença da jovem caixeira na sua habitação. Mas a verdade é que não ousava, na presença de miss Tackle,
telefonar a uma mulher que estava na sua própria habitação. Da gare mandou-lhe um telegrama. "Não te aborreças. Faz tudo que te apetecer. Estarei de volta daqui
a três dias." Nina sentou-se diante do fogão de sala com o telegrama na mão. O criado tinha acendido o lume, pois chovia e ela não sabia de nenhum lugar no mundo
onde se pudesse refugiar.
"Não te aborreças!" -pensava ela, ironicamente. - O seu coração estava despedaçado de angústia, de nostalgia, de desejo de tornar a ver Erik. Além disso, vinham
as coisas desagradáveis: olhares do pessoal, aborrecimento sem limites, ociosidade, refeições na grande sala de jantar, sozinha. E todas as vezes que, de noite,
estendia a mão, só encontrava o vácuo, nesse quarto horrívelmente estranho: nada de Erik, apenas a endiabrada coberta de seda que caía constantemente, o que a fez
sonhar que estava em camisa em cima de uma ponte, à chuva e ao vento ...
No dia seguinte, entregaram-lhe uma missiva de Thorpe, escrita da estação. As letras eram deitadas como se o vento também lhe tivesse passado por cima.
"Querida Nina pequena. Que pena não ter podido ficar aí! Rehaveremos tudo isso assim que eu chegue. compra lindos vestidos e tudo o que quiseres, pois vamos divertir-nos
muito. Adeus e até breve. Teu, Steve."
Um cheque em branco vinha junto à carta. Nina voltou-o entre os dedos, conteve o gesto de o deitar ao lume e, daí a pouco, sorriu.
Ao terceiro dia, como Thorpe não tivesse voltado,
ela fez tudo quanto o seu coração desejava: pediu ligação para a sr.a Bradley, depois do armazém fechar, quando ela já estaria com certeza em casa... A sr.a Bradley
gritou de admiração, ao telefone, e Nina podia ouvir Skimpy andar. Não preguntou se Erik estava em casa.
- Como vai isso por aí ?
- Obrigada, assim, assim.
- O velho Filipe está cada vez mais esquisito.
- E as suas dores ?
- Há dois dias que estou melhor. Faz-nos muita falta, Nina.
- Que diz a gente da Central, da minha saída ?
- Mordem se de inveja. Dizem que fez a sua felicidade ...
Nina esperou. Ela não podia conter a pregunta:
- E... e meu marido, que faz ?
- Meu Deus ... até agora, lá vai indo... -Ah!
Então, ele ia bem. Hesitou ainda. O criado passou, sentiu-se vigiada, como prisioneira. Esperou que desaparecesse.
- Escute, sr.a Bradley... o fato cinzento dele está ainda no tintureiro, é preciso ir buscá-lo. E que não fume muito, sr.a Bradley. Que ar tem ele ? À noite fica
em casa? Quem lhe passa as calças? Ele gosta tanto delas bem vincadas!... Não lhe diga que telefonei, sr.a Bradley... promete ?
Não, esta conversa não a aliviou absolutamente nada. No dia seguinte, telefonou outra vez. Depois pegou no seu cheque e foi à Central. Sim, estava decidida.
Na verdade, um grande armazém é um lugar onde quem quere pode ir. E se uma caixeira fez a sua felicidade e volta como cliente, deve ser tratada como cliente. Nina
evitou a escada 5 e subiu primeiro à secção de loiças, a sua secção, por assim dizer, a sua casa.
Aí, parou diante do balcão onde estava o serviço 279 E 14, decorado com rosas.
- Deseja ?-preguntou miss Drivot. Ela não viu a cara de Nina; a clientela não tem cara.
- Como vai isso, miss Drivot ? -preguntou Nina baixinho.
-Ah!... é você... Obrigada, vai bem. Deseja alguma coisa ? Quere fazer uma compra ? O serviço de rosas está mais barato.
O sr. Berg, que passou, lançou um olhar perscrutador para as duas.
-Desculpe-me, tenho que servir uma cliente-murmurou miss Drivot. Depois afastou-se, deixando Nina em pé diante da loiça de rosas, como uma estranha.
O sr. Berg olhou a com ar ofendido, fez-lhe um cumprimento distante e continuou o seu caminho.
A testa da jovem franziu-se. Atravessou o vestíbulo envidraçado, passou diante dos vestidos de verão para chegar ao lugar elegante, que era o salão de costura. O
coração batia-lhe furiosamente. Mas tinha um cheque em branco na sua malinha ...
- Queria que me atendessem - disse, logo que encontrou Liliana.
-Meu Deus, é a Nina!-exclamou Liliana.
- Desejo um vestido de noite, branco, qualquer coisa de muito bom - disse friamente Nina. - Liliana fez uma careta; daí a pouco surgiu madame Chalon, ignorando,
naturalmente, a situação. Nina tinha-se divertido antecipadamente com esta visita ao armazém. Sentou-se na poltrona e Liliana teve de andar dum lado para outro.
Ah ! fê-la mexer-se bem! Infligiu-lhe, em suma, todos os vexames que uma cliente aborrecida, mal humorada e inconsciente, pode infligir a uma caixeira. Mas, justamente
no momento em que Liliana não podia mais e ia perder a paciência, Nina sentiu-se igualmente esgotada de nervos. Não, ela não podia mais suportar aquilo: ver as belas
costas nuas de Liliana, o seu andar, a
sua cara, o seu corpo, o todo dessa mulher que lhe tinha roubado o marido. Levantou-se de um salto, murmurou uma desculpa, que soou como um soluço e saiu precipitadamente.
Liliana limpava as finas pérolas de transpiração, da testa.
Nina tomou o caminho de casa, entrou no carro elegante de Thorpe que o criado tinha posto à sua disposição. Tony, o belo motorista, tratava-a com tanto respeito,
como se ela fosse a própria rainha da Inglaterra. Refugiada no quarto de hóspedes, escovou os cães; sentia a garganta apertada com todos os sentimentos que tivera
de refrear.
Subitamente, os animais correram para a porta e ladraram com tanta força que Nina teve medo: o sr. Thorpe estava de regresso. Nina ficou surpreendida, ao notar que
também sentia alegria, e correu ao seu encontro. Desta vez recebeu o beijo sem fechar os olhos, Thorpe foi muito terno, tinha-lhe trazido um presente, um colar de
pedras verdes, Depois desapareceu na sala de banho para sacudir a poeira da viagem. O ruído do avião deixara-o um pouco surdo durante meia hora, mas depois passou.
- Agora mostra-me o que compraste com o cheque. - disse ele a Nina e, ante o embaraço dela desatou a rir. Ela subiu ao quarto de hóspedes, tirou rapidamente o cheque
da sua malinha e pô-lo diante de Thorpe. "Que os diabos me levem!" - disse ele, espantado. E Nina sentiu-se aliviada por não ter gasto esse dinheiro, por não se
ter ainda vendido completamente...
- Mas não tens que vestir!.. No entanto, é preciso que estejas bonita para sairmos. - disse Thorpe - Ele estava convencido que para obter os sorrisos das mulheres
era preciso cobri-las de presentes. No fundo, não tinha tratado Lúcia, a sua própria mulher, de outra maneira. Assim que diante do espelho esfregou a cabeça calva
com água de Colónia e se meteu no seu smoking, sentiu surdamente que Nina era uma coisa difícil de conquistar. As suas pantufas, os seus cães, um copo de whisky
e as últimas revistas ao pé do lume, eis quanto ele desejava. Mas tinha resolvido, nessa mesma noite, forçar a resistência. De resto, Nina estava resolvida.
Preparou-se com o seu vestido azul bordado a prata e o companheiro levou-a a um cabaret elegante: música, dança, champagne, sala cheia, turbilhão de vozes e de perfumes.
Tinham instalado esta casa luxuosa como o interior de um barco, o que dava aos clientes uma impressão de opulência e de romanesco, incitando-os a gastar dinheiro.
Os criados andavam de um lado para o outro, vestidos de marinheiros franceses com grandes ponpons nos bonés, o que, visivelmente, os incomodava um pouco.
- Então, menina ?-preguntou Thorpe, satisfeito, assim que encomendou a refeição.
Também havia mais talheres do que aqueles que eram precisos, mas agora, Nina já tinha experiência. Antes de se instalar deram um salto ao bar e Nina falava alegremente
e muito. Esforçando-se por chegar de-pressa à disposição de espírito que esperavam dela, tinha engulido os dois primeiros cocktails como uma desesperada. Durante
a refeição fumou muito. "Não vamos dançar, sr. Thorpe? quero dizer... Steve?" - preguntou - A música tinha acendido nela uma avidez que não compreendia. Mas assim
que fizeram desastradamente uma volta à pista, caiu em si. É melhor sentarmo-nos a ver... - disse - Ele continuou com brandy e aconselhou champagne a Nina.
- Ó champagne dá alegria, aquece. - explicou Numa obsessão, Nina bebia grandes taças, como se o champagne fosse um antídoto contra a sua infelicidade. Tinha realmente
as faces rosadas, sob a fina camada de pó de arrôs. Os olhos começavam a brilhar.
- És adorável! - declarou Thorpe.
- Tu o dizes...-sussurrou ela, na linguagem habitual do armazém.
Infelizmente, verificava-se que com o primeiro excesso da sua vida, se mostrava mais obstinada e rebelde. Ela, que era semPre meiga e aceitava as coisas como vinham,
agora revelava subitamente o fundo do seu ser.
-São todos uns indecentes...-disse, indicando com o dedo toda a gente fina do restaurante da moda-são uns indecentes - Ah! Nós podemos falar. Que fazem eles todos,
lá porque têm algum dinheiro ?
Olhou à sua volta, riu, às gargalhadas, do criado à maruja, depois os seus olhos caíram sobre Thorpe.
- Tu és como os outros, sabes, meu caro Steve ? Tu também imaginas que podes comprar-me... lá porque tens dinheiro. An ? Diz a verdade... não é verdade que julgas
... com o teu cheque... Também tu és simplesmente um porco, Steve... um gordo porquinho cor de rosa, com quatro pêlos na cabeça...
Thorpe alarmou-se. Acabou de-pressa, pagou, empurrou Nina para o automóvel, antes que a coisa desse escândalo. Tony, o motorista, lançou-lhe um olhar cheio de compreensão
masculina e, sem pressa, pôs o carro em marcha.
Entretanto, Nina seguia o curso das suas ideas: teimosa, fazia ao pobre Thorpe uma cena em regra. Na sua embriaguez, e embora o tratasse por tu, lançava-lhe reparos
tão desagradáveis que não tinha sido dado ao advogado ouvi-los desde que se separara de Lúcia. Censurava-lhe o dinheiro, o ventre, a calvície e a idade. Por fim,
ele sentiu se absolutamente infeliz. Mas justamente no momento em que ia decidir-se a descer e a deixar Nina voltar só para White Plains, a jovem lançou-lhe os braços
ao pescoço e desatou a soluçar. Para a acalmar, bateu-lhe nas costas, como tinha o costume de fazer a Max e a Moritz e rolaram assim, ao longo das avenidas calmas
do parque, para o bairro Norte.
Na sua embriaguez, Nina, desesperada, estava pronta para tudo. Mas, o diabo, era ele, Steve, que nada queria nessa noite, Não queria dela nenhum favor se o devesse
obter de uma maneira suja e desagradável. Acompanhou-a ao seu quarto onde ela se sentou imediatamente na borda da cama, na atitude resignada de quem espera a partida
do comboio. As lágrimas vertidas brilhavam ainda sôbr a pele lisa das faces. Fazia-lhe pena, mas não é com pena que se vai para uma aventura amorosa. À porta, ele
parou :
- Não podes gostar de mim, um pouco?- preguntou, hesitante.
Nina pareceu voltar não se sabe donde. com simplicidade, respondeu:
- Não. Emfim ... assim não ...
Thorpe tomou, sem demora, o caminho dos seus aposentos. Eram duas horas da manhã. com um copo de whisky ao alcance da mão, um dos seus cães ao colo, meteu-se ao
canto do fogão pois, de-repente, o pobre homem sentiu imenso frio ..
HAVIA longas semanas que Liliana tinha sempre o mesmo sonho: queria apanhar um comboio mas não o conseguia. Sufocada, ofegante, ficava no cais e via o comboio desaparecer.
Depois descia uma escada que se parecia com a do metro, mas maior e deformada, como acontece nos sonhos. Ela ia, descia sempre, sempre, sempre mais para baixo. Não
queria descer, mas, lá em baixo, alguém riscava constantemente um fósforo e então podia ver a escada que levava à escuridão, lá para baixo, lá para baixo... e ela
continuava a descer. Dling... dling... dling... tocava, durante esse tempo, a campainha da prestamista.
Liliana tinha deixado os pais e alugara casa na rua 44.a a oeste da cidade. A sua sala estava sempre cheia de fumo de cigarro, no sofá via-se sempre estirado qualquer
homem, algum dos amigos de Bill. Bill era aquele indivíduo duvidoso que a tinha seguido, assim que ela saíra da casa de penhores, uma espécie de grande animal, bonito,
violento, habitualmente complacente, mas conhecedor da sua força. Gostava de gatos e trouxera dois para casa de Liliana. Os outros homens, Jerky, Big Paw e Kid,
que tinham dezoito anos, pareciam-se com ele. Haviam-se instalado em casa da rapariga e viviam "na sua vida" por assim dizer, com as suas cartas, as suas pragas,
os seus licores, os seus revólveres e as suas amantes. Bill vinha irregularmente,
mas era o senhor. Tinham dinheiro com fartura que lhes restava ainda do último negócio feito. Liliana recebera, como presente, um belo vestido e um casaco de arminho.
Ia aos clubs nocturnos, frequentava os lugares onde Bill era um personagem respeitável. Bill tinha automóvel, relações e influência, numa palavra, Bill era poderoso.
Conseguira Liliana à força de ameaças, de promesas, de pancada e também mostrando-lhe o seu revólver.
Isto começara com o anel; com o anel roubado, foi ela agarrada. E com mais segurança e mais firmemente do que com uma corrente de ferro. Ela não sabia exactamente
no que o bando a queria empregar, mas era em qualquer empresa bem determinada, isso sentia-o. Bill não a deixava renunciar ao seu emprego. Mais tarde, afirmava ele,
seria contratada para uma grande revista de Broadway. "Posso ter em Broadway o que quiser, compreendes?" afirmava, e ela quási o acreditava. E, como agora vivia
numa atmosfera de receio e de febre e se sentia perdida, sem remédio, Liliana de-pressa se entregou à bebida. Um dia Bill fez-lhe mesmo tomar cocaína: ela experimentou
imediatamente um sentimento indescritível da sua grande importância, mas no dia seguinte, na Central, sentiu-se horrivelmente infeliz. Eles tinham a sua presa e
o que esta espécie de gente agarra, segura-o bem. Às vezes Liliana tinha quási desejo de rir quando madame Chalon ou uma cliente a maltratavam um pouco. Imaginava
o susto e os gritos se Bill, de revólver em punho, surgisse no meio delas. Bill possuía certas ideas cavalheirescas a respeito de Liliana, mas tinha também outra
amante, Máxima, uma mulher loura que o vigiava com um ciúme feroz. Liliana tremia muitas vezes, com medo que ela lhe atirasse vitriolo à cara. No entanto, tudo correra
bem até agora. Em certos dias sentia-se quási feliz com o caminho que as coisas tinham tomado: tivera sempre más tendências. Agora apanhava ar pela primeira vez
na sua vida; o ódio que sempre sentira pela gente do"
grande mundo, encontrava um motivo e uma justificação. Nos antros que frequentava, era quási uma rainha. Às vezes, entregava-se a uma esfusiante alegria. Outras
vezes, revoltava-se e Bill, em tom firme, punha-a no seu
lugar.
- Afinal, que queres de mim?- gritava-lhe, Bill
sorria com a sua boca vulgar. Tinha os lábios sempre secos, vermelhos, como que inchados pelo sangue. Nem o álcool nem a cocaína lhe faziam mal.
E eis que, pouco a pouco, Liliana compreendeu o fim dos seus carcereiros; queriam utilizá-la na Central, a loja objecto do seu ódio. Entretanto continuava a servir
a clientela. "Sim, minha senhora, certamente, minha senhora. Está encantadora, minha senhora". Tornou-se instrumento desses homens que saíam da sombra e desapareciam
na sombra. Liliana não os conhecia melhor do que se conhecem as personagens que se vêem em sonhos. Descia a escada, descia sempre cada vez mais baixo.
Dling, dling, dling, fazia a campainha...
- Bem mereço que tenham pena de mim - disse ela a Erik.
- Pena ? Porquê - preguntou ele.
- Tu não podes compreender. Não me faças preguntas estúpidas. Olha, dá-me um cigarro.
Erik acendeu-lhe um cigarro, e a sua mão tremia. Trocista, Liliana olhou para essa chamazinha de fósforo que oscilava sem descanso... - "Sonho muitas vezes com um
homem que está no fundo de uma escada sempre a acender um fósforo."
- Ah! Até em sonhos me enganas! - suspirou Erik, irónico. Estavam ambos sós na grande oficina onde os empregados da propaganda costumavam trabalhar nos seus esboços.
Liliana, com o vestido branco que estreara no barco e Erik, de mãos frouxas, pintava, fumava, tornava a pintar. Esse nervosismo tinha começado com
o primeiro beijo; depois, o rapaz não se havia mais acalmado.
Muito tempo reprimira o artista que havia em si. A crise tinha estalado, assim que viu Liliana com o seu vestido branco, nessa memorável noite do barco. "É como
o sarampo, queixava-se ele. Tem que sair, senão morro intoxicado." Liliana sorria sem compreender, mas consentia na pose. Na sua vida perturbada e destruída, as
horas com Erik eram as únicas que tinham algum valor. Sentia por ele uma paixão estranha, confiante: era como que uma despedida de qualquer coisa. Entretanto, o
quadro que pintava tomava forma, "não sou absolutamente eu, criticava Liliana considerando o retrato com ar zangado. "Que tens a objectar?" - preguntava o artista,
afastando-se do cavalete - Parece um sorvete de morango
- analisava o modelo numa gargalhada desdenhosa -Decididamente, tu não fazes de mim uma idea justa.
- Evidentemente, se eu quisesse pintar o diabo que tu és não ganharia com certeza o primeiro prémio no concurso de cartazes - disse Erik aproximando-se do seu trabalho
com ar ameaçador e acrescentando alguns retoques. O branco é a coisa mais difícil de pintar. - acrescentou - Conta-se que Renoir, quando envelheceu, dizia: "ficaria
contente se pudesse pintar um guardanapo branco, apenas um guardanapo branco."
Liliana seguia com aborrecimento esta incursão na história de arte.
-Tens a certeza de ganhar o prémio?-preguntava.
- Absoluta, meu amor. Ganhamos mil dólares e iremos juntos apanhar uma bebedeira e divertirmo-nos muito.- dizia Erik-Ela sabia que, no fundo, ele a odiava por Nina
o ter abandonado por sua causa. Parando de pintar, Erik, pensativo, pôs um pouco de branco na paleta: também pensava em Nina, em todos os projectos que tinham feito
com esses mil dólares, em todos os sonhos mortos.
- Vi-a ontem - disse Liliana como se os seus pensamentos tivessem falado alto.
- A quem ? - preguntou ele, afogueado, e começando a pintar precipitadamente. Liliana deixou passar a pregunta supérflua.
- O velho com quem ela vive parece que lhe dá muito dinheiro. Devias ver como se portou cá na loja. Menina para aqui, menina para ali... Tinha-lhe dado de boa vontade
um murro nos queixos, podes crer.
- Como... estava ela ? - preguntou Erik, sem querer, depois de um longo silêncio.
- Deliciosa, divina, encantadora. É esta a resposta que desejas?
Pousou os pincéis e avançou para Liliana. Ela deu um passo atrás, pois parecia que ia bater-lhe. Mas Erik não era o Bill e não usava revólver na algibeira.
- Porque não deixas a Nina em paz? Não te basta ter-nos separado?-disse pouco depois, em voz baixa e ameaçadora.
Liliana levou tempo a responder; teria gostado de dizer muitas coisas feias, mas conteve-as, pois embora tivesse ciúme de Nina, não o queria confessar. Gostava de
Erik à sua maneira, tanto quanto era susceptível de amar... mas isso não se podia dizer. Deitando o cigarro fora, desceu do estrado...
- Porque será que tudo em que eu toco se suja ?
- disse, de súbito. Era uma frase que podia ter um som brutal, mas saiu apenas triste. Erik notou-lhe uma pequena oscilação na voz e voltou ao seu cavalete.
O quadro ia em meio. Representava um pedaço de água verde sobre o qual vogava um barco com velas cor de laranja; encostada a um mastro, estava Liliana com o seu
vestido branco. Erik tinha-se cingido, na pintura, às linhas do seu corpo, o ombro direito e a cabeça estavam terminados, mas a anca esquerda estava ainda mal definida.
E só faltavam três dias para a data fixada para a entrega das provas. Erik tinha febre durante
as suas horas livres, antes e depois do serviço. Desde que Nina o deixara, afligia-o a idea de voltar para casa: o leito vazio no quarto de dormir... e um silêncio
absoluto. O velho Filipe e a sr.a Bradley já não lhe dirigiam a palavra; quanto a Skimpy aborrecia-o preguntando-lhe constantemente, quando é que a Nina voltava
e para onde tinha ido. Preferia ficar na Central onde dormia numa velha cama de campanha, na oficina, pintando a qualquer hora da noite. De vez em quando, Cromwell,
o novo detective, ia visitá-lo, Levava um frasco de gin e fazia, a respeito do quadro, reparos de arrepiar os cabelos. Erik tinha a vaga intuição de que entre Liliana
e o detective havia qualquer coisa, pois este não podia conter algumas observações sorridentes. "Ela não tem as pernas tão compridas como estão no quadro." -dizia
ele. Conheço-a bem; tem umas pernas compridas, mas ainda assim, não tanto. "Ou ainda": "Se eu fosse pintor, pintava-a deitada. É assim que os seus melhores pontos
se valorizam." Isso tornava Erik furioso a ponto de o fazer recusar o gin oferecido. "Quanto ao resto, é um cartaz espantoso. Tenho a certeza de que vai ganhar o
primeiro prémio."
- acrescentava Cromwell com um ar bonacheirão, retirando-se, Erik refreava a custo o desejo que sentia de dar um pontapé na tela e de se ir refugiar ao pé de sua
mãe, no asilo de alienados. Em vez disso, punha novas cores na paleta e tentava levar a obra a bom termo. Desde que Nina o tinha deixado, a pintura era a única coisa
que o interessava suficientemente e o fazia esquecer, durante algumas horas, o que se tinha passado. Fenómeno curioso: o sentimento que experimentava por Liliana,
essa funesta insatisfação e o entusiasmo que se tinham apoderado dele, enfraqueceram desde que perdera Nina. Á sua única consolação era agarrar-se a Liliana, tal
como um doente que não quere abandonar o leito no qual sofreu durante semanas.
As alusões de Ricardo Cromwell não eram os únicos pontos tenebrosos da vida de Liliana. Um sábado,
depois de Erik ter recebido o seu magro salário, levou-a a um club de noite, como Liliana desejara. Vestiu o seu smoking, pois ela parecia ligar a isso grande importância,
e Liliana pôs o seu casaco de arminho. Fizeram uma entrada no club onde todos olharam, com admiração, para a jovem mulher. Erik sentiu-se ao mesmo tempo orgulhoso
e pouco à vontade. Não ousou preguntar como é que, com os seus vinte e cinco dólares semanais, ela tinha podido comprar um casaco de arminho. Dois homens com atitudes
de gangsters piscaram-lhe os olhos, familiarmente.
- Quem são aqueles indivíduos? - preguntou ele.
- Amigos meus.-respondeu Liliana.
No fundo, Erik não sabia nada a respeito dela. Sabia que dançava bem o tango e que a sua boca tinha o gosto amargo da baunilha, por causa do bâton que usava. Nem
sequer sabia onde ela morava. Tinha lhe contado que saíra de casa dos pais, mas guardou segredo sobre a sua direcção. Nunca lhe consentia que a levasse a casa. Saltava
para um táxi e afastava se a toda a velocidade emquanto que, durante muito tempo ainda, ele errava pelas ruas, solitário, no turbilhão nocturno das luzes de Broadway
- pensando em Nina.
ErA quarta feira, o dia de venda a um dólar em todas as secções da Central. Na secção de sedas havia liquidação de retalhos. Dois agentes da polícia estavam à porta
sul, onde tudo era vendido à razão de dólar por três artigos; três camisas de homem, três pares de meias de seda, três lenços de linho, três clips de pedras falsas.
No sexto andar, Cromwell não sabia que fazer para manter a ordem. Aí, tudo se liquidava à dúzia: uma dúzia de copos de vinho; uma dúzia de chávenas, de café; uma
dúzia de pratos de bordos doirados, isto na secção de louças e vidros. Miss Drivot andava numa actividade febril, a sua face estava coberta de pequenas gotas de
transpiração e de veiazinhas. Parecia que a sua circulação sanguínea não lhe permitia resistir ao assalto dos clientes. O sr. Berg, chefe da secção, ajudava em pessoa,
embora não fosse essa a sua função. A nova caixeira que substituira Nina era desajeitada : não estava ainda a par do serviço e miss Drivot tinha de lhe dizer em
segredo, números e preços.
Na entrega, acumulava-se gente. Ouviu-se tilintar: a sr.a Bradley acabava de partir um prato de cristal.
- Que aconteceu ? - indagou o sr. Berg, que fazia a sua inspecção.
- Nada, não tem importância. - balbuciou a sr.a Bradley, receosa. Tinha febre, não via claro por causa da febre e do sofrimento, tudo estava desfigurado, tudo
oscilava à sua volta. Pousou um embrulho meio feito e dirigiu se para a escada do pessoal. Mal chegou diante da porta envidraçada, caiu desmaiada.
Levaram- na ... Tudo isso foi feito num abrir e fechar de olhos, sem ruído, sem escândalo: os serviços sanitários da casa trabalhavam bem e as caixeiras desmaiadas
não eram raras no Dollar-day. O pacote meio pronto permanecia ainda em cima da mesa, quando a sr.a Bradley já estava para entrar no carro da ambulância.
- Quanto tempo tenho de esperar pelo meu embrulho?- preguntou a freguesa, encolerizada.
O sr. Berg fez tudo para restabelecer a ordem.
- Imediatamente, minha senhora, um momentozinho, se faz favor. - disse, com solicitude. Uma rapariga correu a substituir a sr.a Bradley, uma rapariga ruiva, de grande
boca risonha. O embrulho foi acabado e a cliente servida. Era bem pouca coisa, afinal, a desaparição de um dos setecentos empregados da Central... Meia hora mais
tarde, a sr.a Bradley estava adormecida pelo éter, suspirava aliviada, como se flutuasse sobre grandes vagas. Um cirurgião de luvas de borracha, com o rosto tapado
pela máscara branca, operava-lhe o apêndice. com este, eram quatro mil oitocentos e sessenta e dois apêndices que extraía na sua vida, e, por isso, o facto afligia-o
pouco: "Um apêndice particularmente feio" -disse, em ar de censura à enfermeira que estava ao éter, emquanto lavava as mãos. A sr.a Bradley foi instalada no hospital
com um pequeno aviso à cabeceira da cama. Estivera em riscos de morrer e salvara-se, mas não o sabia. Continuava sob a influência do éter e, acompanhada pelo sr.
Bradley, ia a um pique-nique num automóvel muito esquisito que possuía e era dos mais elegantes no ano de 1924...
Agora, eram seis horas e cinco e a Central atirava os últimos clientes para a rua. No vestiário, as caixeiras,
extenuadas, punham pó no nariz suado, emquanto os caixas faziam, febrilmente, as contas.
Cromwell, o detective, subiu até ao 12.? andar para ir buscar o sobretudo. Logo que, assobiando, entrou no seu escritório, que era um pequeno buraco dando para o
pátio velho, encontrou Filipe.
- Olá, Filipe - disse, olhando para o velho que mexia em papéis amarelecidos, em cima da mesa.
- Olá, Cromwell - respondeu gravemente Filipe.
- Está a fazer arrumações? - preguntou Cromwell, jovial.
- Levo as minhas coisas. Os meus três meses terminam na próxima semana.- respondeu o velho detective.
Cromwell, que alisava os cabelos a um espelho de algibeira, deixou de assobiar. "É uma vergonha." - disse, sem intonação. Um instante depois, voltou ao seu problema
particular: "Diga-me cá, Filipe, quantas vezes por dia é obrigado a barbear-se?"-preguntou, enchendo a face com a língua e vendo no espelho de algibeira os resultados
obtidos.
- Todos os dias, se lhe interessa saber - respondeu Filipe, aborrecido.
- Pois eu, duas vezes ao dia sempre que desejo sair à noite. Senão, as raparigas queixam-se - gabou-se Cromwell.
E embaciou o espelho, limpou-o com a manga e tornou a guardá-lo.
A absurda insensatez de toda esta mímica desesperou Filipe.
- Mandou-me dizer que o esperasse ... - observou, um pouco irritado.
-Ah! sim, é verdade. Queria pedir-lhe para passar aqui a noite, hoje. Pode dormir, nada o inquieta, é apenas pro-forma. Tenho que fazer... compreende? De vez em
quando, preciso de ter uma noite minha... Cada um tem também a sua vida particular, não é verdade ?
- Hoje calha mal. -disse Filipe-A sr.a Bradley, em casa de quem moro, foi para o hospital. E eu queria ficar ao pé da criança que está sozinha em casa.
- Tudo isso é muito bonito, mas você não é criado de meninos, é detective. Lamento, mas prometi absolutamente ao manequim do salão de costura, sair esta noite com
ela. Você sabe o que é isto... com senhoras ...
- Então divirta-se. - cortou Filipe para acabar com a conversa - Eu cá fico a olhar por isto.
- Não é preciso olhar por nada: desde que eu cá estou, nem uma carta de alfinetes foi roubada. Durma... contente-se em fazer uma vez, à meia-noite, a ronda do costume.
-Bem, bem, eu conheço o trabalho melhor do que você. -resmungou Filipe.
Cromwell não levou a mal. O velho fazia-lhe pena. Foi ao pé dele e bateu-lhe no ombro:
- Fico-lhe sinceramente reconhecido por me querer substituir. A rapariga é diabòlicamente bonita e tenho de andar atrás dela, se a quiser apanhar -explicou.
Exasperado, Filipe viu a porta fechar-se atrás do homem.
Rebuscou ainda um pouco a gaveta donde queria tirar o que era seu: algumas cartas, velhos recortes de Jornais, restos emmurchecidos de uma vida ajuizada e descuidada.
Tentou reler alguns dos recortes, mas as letras tremiam-lhe diante dos olhos. Desde que tinha renunciado a beber, o velho Filipe vivia num mundo impreciso e desbotado.
Passava mal, tinha zumbidos nos ouvidos, às vezes mal ouvia o que lhe diziam e esquecia os nomes, os rostos e os números dos telefones. As costas vergavam-se-lhe
logo, mal se punha em pé. Subitamente, o olhar poisou numa garrafa que Cromwell deixara em cima da mesa: era o gin recusado por Erik.
Filipe notou, contrafeito, que lhe tremiam as mãos emquanto olhava para a garrafa. Voltou à gaveta e,
segundo o seu hábito, meteu o revólver na algibeira do lado do casaco. A sensação da arma contra o corpo deu-lhe mais segurança. Num passo brusco, foi ao pé da mesa,
fez saltar a rolha da garrafa - sentiu, com espantosa precisão, a pequena cápsula de estanho entre os dedos - depois bebeu três grandes goles. O gin, acre e quente,
descia-lhe pela garganta; já ele sentia o calor penetrar em largas ondas no interior do tórax. Durante alguns instantes, o ruído, nos ouvidos, tornou-se uma ameaça,
para depois cessar completamente. Atónito, o velho Filipe olhou à sua volta, pois uma claridade e um silêncio inesperados entraram em todo o seu ser. Bebeu outra
golada, depois, saindo do aposento, enfiou pelo corredor que ia dar à oficina dos decoradores.
- Ouça lá Bengtson, você pode ir agora lá a casa e trazer-me a Skimpy? A mãe está doente e eu encontro-me de serviço esta noite.
Erik permanecia de pé em frente de um cavalete em cima do qual estava colocado um quadro coberto com um pano velho. Agarrou nos pincéis e foi lavá-los à torneira.
- Lamento... pobre sr.a Bradley!... Liliana acabou de me contar. Mas eu não posso ir buscar a pequena. Toda a secção b8 deve ser remodelada esta noite.
B 8 era a secção das sedas estampadas, no 3.? andar. Depois do Dollar-day, essa secção parecia um campo de batalha, Filipe sabia-o.
-Que havemos de fazer então? -preguntou ele, voltando-se para Liliana, - A jovem esperava ao pé da mesa, com o seu vestidinho preto, de caixeira, o casaco no braço
e uma boina verde na mão. Era estranha esta nova lucidez com que o cérebro de Filipe apanhava outra vez tudo; imagens, ruidos, perfumes. Ouvia distintamente a torneira
pingar depois de Erik ter lavado os pincéis, o perfume de Liliana feriu-lhe o nariz, como qualquer coisa de palpável,
Sentia uma irritação ao respirar esse perfume pesado e voltou-se com ar pouco amável para a rapariga. "Tem passado muita vez a noite em nossa casa... Podia ir a
Fieldston e ficar ao pé de Skimpy."
Liliana encolheu os ombros. "Eu ia de boa vontade, mas tenho um encontro urgente" - respondeu. Erik despiu a bata manchada de tinta e vestiu o casaco. Filipe voltou-se,
indeciso: "É verdade... tinha-me esquecido completamente"... - disse, e as alusões de Toughy acudiram-lhe à memória. Eram agora tão notadas na sua memória, que tornou
a ver cada um dos pêlos da face do jovem detective. Erik olhou o com uma leve surpresa.
- Liliana tem ainda que me servir de modelo, esta noite, assim que eu acabar de arranjar a B-8 - disse. - O prazo expira amanhã de manhã e nos últimos dias quási
não pude trabalhar. E pegando na chave que tinha no bolso, dirigiu-se para a porta. vou só comer qualquer coisa à pressa - acrescentou. Liliana seguiu-o. Ao clarão
da luz, Filipe notou como Bengtson estava pálido. Um reflexo mate de suor cobria-lhe o rosto nervoso; os dois sulcos à Gary Cooper marcavam-se-lhe mais nas faces,
cheias de sombra. Filipe saiu com eles da oficina e observou os gestos de Erik, fechando a porta à chave. O par foi tomar o elevador. Emquanto ele os seguia com
o olhar, quando iam para o elevador, considerava a situação. Segundo todas as aparências, esta Liliana tinha prometido a noite a dois homens. "Hum... pensou, é preciso
que ela seja muito esperta, para ir aos dois encontros."
Agora a casa estava deserta e tranquila. Pertencia ao velho Filipe como lhe tinha pertencido durante numerosos anos. Errou pelas escadas, de andar em andar, inspeccionando
todos os cantos. Daí a pouco sentiu-se extraordinariamente descontente e agitado. Olhou para as mãos: tremiam quando as estendia. Pegou na sua chave, abriu um elevador
e subiu ao 12.? andar. 155
Todo o corredor cheirava a Liliana. Foi ao escritório e bebeu a metade do gin. Depois pegou no telefone e mandou ligar para Skimpy.
- Estás admirada de não termos ainda chegado a
casa?
- Sim, tio Filipe. Aconteceu alguma coisa?
- Escuta Skimpy, temos tido muito trabalho. Tens medo de estar sozinha em casa ? Não queres ser uma menina corajosa e ires dormir?
Passou-se um instante antes que Skimpy, no outro lado do fio, arrumasse tudo isso na sua cabecinha.
- Queres dizer que a mamã não vem para casa ? -Sim, é isso. Ela não está muito bem e a nossa
enfermeira está a tratá-la.
- Mas eu tinha feito o jantar para vocês!
- Queria saber se tens medo de estares sozinha em casa? -tornou a preguntar o velho Filipe.
Houve outra vez um instante de silêncio.
- Tenho sim, tio Filipe... - Isto foi murmurado com uma vòzinha, na qual já tremiam as lágrimas.
Filipe tinha agora o cérebro lúcido e não reflectiu um segundo:
- Presta muita atenção ao que te vou dizer, Skimpy. Daqui a uns minutos um automóvel há-de businar três vezes à porta. É um táxi que te mando. Metes-te nele e vens
para a Central. Quando chegares, preguntas por mim ao homem que está à porta, tu conheces bem o Joé, não é verdade? Ficas aqui ao pé de mim e ajudas-me a guardar
o armazém, queres?
- Os brinquedos também ?
- Sim, os brinquedos também. Mas avia-te, veste-te de-pressa que o carro vai já.
Filipe riu, pois não se ouviu nenhuma resposta: apenas o estalido seco do auscultador que Skimpy punha no descanso. Folheou a lista dos telefones e chamou para uma
garagem de táxis de White Plains, dando as instruções necessárias e dizendo que o táxi seria pago
assim que a pequenita chegasse à Central Warehouse. Bebeu mais um gole de gin e ligou para o hospital, para onde a sr.a Bradley tinha sido transportada. Disseram-lhe
que tudo ia bem. A operação correra perfeitamente, a doente estava ainda um pouco aturdida pelo narcótico, mas livre de perigo. Filipe soltou um suspiro de alivio.
Deslizou diante da garrafa mein vazia e saiu do 12.? andar. Calculou que Skimpy não poderia chegar antes de meia hora, justamente o tempo de fazer uma ronda ao estabelecimento.
Tal como tinha procedido durante vinte e sete anos, começou pela sala dos caixas. Examinou todos os postos de alarme no aposento semi-iluminado, encontrou, à saída,
um dos guardas da noite que acertava o relógio registrador ao pé da escada 8. Trocou algumas palavras com ele e continuou a sua ronda. No grande escritório das dactilógrafas,
as máquinas de escrever estavam arrumadas em boa ordem, todas cobertas com a capa de oleado. Continuou o seu passeio por todos os andares, acendendo aqui e acolá
a sua lâmpada de algibeira; parando, apurando o ouvido, espiando o silêncio do enorme edifício e continuando o seu caminho. No rés-do-chão parou um pouco ao pé da
porta de Joé.
- Ouça lá Joé, vão trazer aqui uma menina; é a filha da sr.a Bradley. Aqui tem dinheiro para pagar o táxi. Chame-me, assim que ela chegar, percebeu?
- Sim senhor, chefe.- respondeu Joé levando a mão ao boné. As vigílias comuns tinham-nos feito velhos amigos. Joé, além disso, havia ajudado, quando transportaram
a sr.a Bradley na maca para o carro da ambulância.
- Só me falta descer à cave e depois acabou-se. disse Filipe, continuando a ronda. Joé viu-o partir abanando a cabeça, até que a sua sombra desapareceu da parede.
"Que pena... pobre homem ! - comentou pensativo.
Filipe percorria o território plebeu da cave. Aí reinava um verdadeiro caos depois da batalha do Dollar-
Day- Atravessou a secção de armamento que tinha sido passada para baixo, seguiu a dos móveis baratos e chegou ao fim, à porta de ferro do depósito de peles, pegou
na chave e na lâmpada de algibeira e manobrou a complicada fechadura. Abriu a segunda porta, entrou. Estava escuro lá dentro e respirava-se um ar acre e frio. Fez
luz; todo o sortido de peles estava reunido no vasto aposento, cada uma delas cuidadosamente embailhada num resguardo contra as traças. Havia ali mais de cem mil
dólares entre as filas dos tubos do frigorífico. Filipe tivera sempre um fraco pelo armazém de peles; era como um mundo aparte, lá em baixo, um mundo frio e fechado.
A sala era muito alta e cruzada em todos os sentidos pelo complicado sistema de tubos que mantinham a temperatura a 28º. Meteu-se entre as peles, automaticamente,
segundo um hábito adquirido no decorrer de anos, encontrou tudo em ordem e voltou à porta. Maquinalmente, ligou a campainha e saiu do depósito, deixando o alarme
pronto a poder funcionar.
A entrada do armazém das peles era cheia de instalações automáticas, como na sala dos caixas. Como ele agisse de uma forma mecânica e habitual, o velho Filipe tinha
quási esquecido que as campainhas de alarme não roçavam. Mas, um segundo mais tarde, o silêncio caiu sobre ele como qualquer coisa de palpável, uma espécie de pano
negro ou uma pancada. Ficou petrificado no mesmo sítio, com as mãos estendidas, tremendo, tremendo desesperadamente. Pegou no revólver, mas era um movimento absurdo.
Agora ouvia o martelar do seu coração, no peito, nas fontes, em toda a parte... as campainhas de alarme não funcionavam !
Como o silêncio persistisse e não surgisse nenhuma sombra sobre que pudesse atirar, o velho detective julgou-se no dever de descobrir donde provinha a paragem dos
sinais. Podia ser apenas um desarranjo dos fios de que Toughy, na sua confiança em si próprio, nem dera conta. Tateou até ao botão secreto, abriu um pequeno
cofre de ferro incrustado na parede e tentou acender uma lâmpada encarnada. O sinal luminoso, tal como as campainhas de alarme, não funcionava. Fechou cuidadosamente
o cofre e, sempre na defesa, transpôs a porta. Havia ali instalações que deviam disparar automaticamente, das quais nunca fizera grande caso. Voltou ao depósito
e, no ar envinagrado e no pesado silêncio, inspeccionou todos os cantos: não descobriu nada. Não percebeu mesmo que agia de uma forma insensata e temerária, pois
se um ladrão se tivesse escondido entre as peles, Filipe estaria, havia muito, reduzido à impotência. Na angustiosa tensão de nervos provocada pela sua descoberta,
tinha mesmo esquecido Skimpy. Subitamente, lembrou-se da criança. Abandonou o depósito das peles, transpôs prudentemente a porta que fechou à chave. com a mão sobre
o gatilho do revólver que tinha no bolso, atravessou rapidamente a cave e tomou o elevador, para subir. Durante segundos, traçara o seu plano; não participaria nem
aos guardas da noite, nem à polícia as suas suspeitas. Se depois se descobrisse qualquer coisa nas instalações eléctricas, qualquer curto-circuito, fariam troça
dele. Se qualquer coisa de anormal tivesse que se passar no depósito das peles, e um instinto preciso, insinuante, angustioso, parecia adverti-lo, queria combatê-lo
só, queria reservar para si todo o perigo e toda a honra.
- Ah! cá estás! - disse ele, assim que chegou ao aposento de Joé e viu Skimpy. Ela vinha toda bonita: esfregara energicamente a cara e as mãos com sabonete, antes
de se lançar nesta grande aventura.
- O Joé disse que a minha mamã está no hospital.
- murmurou, de cabeça pendida para o peito, mas sem chorar.
- Sim, sim... mas está melhor e mandou-te dizer que não tenhas medo. Amanhã de manhã, iremos vê-la
- disse Filipe. Ele já não sabia o que fazer da criança pois tinha que voltar à cave. Tu não queres ficar aqui ao pé do Joé e dormir em cima do sofá ? - preguntou.
- Não. - disse vivamente Skimpy.
Era um velho sofá, cuja crina saía por todos os lados, que estava impregnado com cheiro de tabaco de cachimbo. Joé riu com bonomia.
-Quero ir para o pé dos brinquedos.-declarou Skimpy.
Ela estava quási a chorar, mas continha-se corajosamente. Filipe pegou-lhe nas duas mãos.
- Joé, - disse ele, antes de partir com a criança, escuta. Tem esta noite especial cuidado, se notares o que quer que seja de suspeito, chama imediatamente a polícia,
percebeste?
- Sim, chefe - disse Joé com um novo cumprimento. Não percebia nada. "O velho está cada vez mais velho", foi tudo quanto pensou.
Filipe entrou no elevador e subiu à secção dos brinquedos. A mãozita confiante tremendo na sua mão, acalmava-o um pouco, com o seu calor.
- Agora escolhe qualquer coisa para brincares, mas de-pressa e toma cuidado; é só emprestado. Não tens nada que ver como é feito por dentro. - disse ele, pois conhecia
as bonecas de Skimpy, cujas cabeças abertas tinham sido vítimas da tendência exploradora da criança. Skimpy, que tinha o sentimento de ser uma grande pessoa, fingiu
um interesse frio. Filipe meteu lhe nos braços uma boneca e uma paciência e subiu com ela até ao
12. andar.
- Escuta, - disse ao guarda que encontrou lá em cima - vigia bem esta noite, especialmente as escadas de socorro e a cave.
- Muito bem, chefe. - disse o homem, fazendo pouco caso da recomendação.
O velho detective não sabia ao certo o que devia fazer da criança. Todo o seu corpo ardia de impaciência, o seu escritório, ou antes, o escritório de Cromwell, era
um sítio miserável e Skimpy não queria lá ficar. Tomando uma rápida decisão, abriu a oficina de decoração, acendeu
a luz e olhou à sua volta: Bengtson não estava ainda de volta; no cavalete, o quadro continuava coberto... O perfume de Liliana flutuava pesadamente no ar.
- Bem ... podes instalar-te aqui a brincar... ou a dormir. - disse, rapidamente.-Eu volto já. Mas é preciso que não saias daqui, mesmo que ouças barulho. Compreendeste?
Erik vai chegar daqui a pouco. Poderás ajudá-lo a pintar.
- A Nina também cá está ? - preguntou Skimpy.
- Não. Saiu. - respondeu Filipe.
Esperou ainda um instante que Skimpy se instalasse na cama de campanha com a sua boneca, depois dirigiu-se para a porta. Num segundo, teve o pensamento de que a
criança fora a última pessoa que lhe tinha sido dado ver... Talvez uma bala lhe estivesse destinada nessa noite, na cave, no depósito ou nas escadas. Hesitou um
pouco, depois voltou em passo vivo ao escritório que fechou à chave. A garrafa lá estava, meia vazia. Bebeu alguns goles grandes, sentiu calor; a lucidez de espírito
e a decisão entraram em si e pôs-se a rir, pensando em Toughy.
-"Ele precisa de barbear-se duas vezes!" - murmurou, com desdém. Pôs a garrafa na algibeira, procurou com a mão o revólver, meteu algumas balas de reserva no bolso
do casaco e saiu. Parecia a Filipe que já tinham passado muitas horas desde que o armazém fechara.
Desceu ao depósito das peles e abriu as portas. O silêncio e o frio reinavam no interior. As peliças estavam alinhadas em boa ordem e os tubos, pintados de branco,
ziguezagueavam entre elas. Filipe tirou um dos casacos e envolveu-se nele, antes de se sentar a um canto para esperar. Daí a pouco tinha os dedos hirtos de frio,
doíam-lhe os dentes. O tempo passou.
Não acontecia nada.
Erik estendeu a mão por cima da mesa.
- Mas... é proibido... - hesitou ele.
- Proibido ? - replicou ela, rindo - Como háa"de acabar o teu quadro se eu não vier?
- Podes vir sem ter a chave.
- Quando, às nove horas ?
- Um pouco mais tarde. Tenho de acabar primeiro a B 8 e vai levar tempo.
- Então quando ? Às onze horas ? Posso esperar.
- Tu sim, eu não. - replicou Erik, aborrecido.
Estavam no "Rívoldi". Sim, agora estava com Liliana no "Rivoldi" atrás da mesa de mármore, sobre o velho banco de veludo.
-Vamos, dá-me a chave. vou às onze horas e subo directamente à tua oficina.
- Aborrece me entregar isto - disse Erik, hesitante, pousando sobre a mesa o pequeno molho de chaves.
- Então, não. - terminou Liliana, levantando-se - Estou farta de dar nas vistas e de falatório... quando, de noite, vou ter contigo, e me têm de acompanhar.
- Pronto. Aqui está a do elevador, escada 5 - decidiu-se Erik, indicando as chaves. Tinha-as posto em cima da mesa, mas Liliana nem para elas olhava. Já sabes, no
12. andar vais até à boca de incêndio, voltas à direita e
assobias. Se eu ainda lá não estiver, abre a porta da oficina e espera-me. Há cigarros na gaveta.
- Entendido, - retorquiu Liliana - não te canses muito. Adeus Baby.
Pegou nas chaves e meteu-as na malinha.
- Agora tenho de me aviar.
- Tão de-pressa!...
-Tenho muita. Descobri um cabeleireiro que me penteia depois das sete horas. Vou-me embora. combinado. As onze.
Erik viu-a sair. Possuía o mais belo corpo de mulher, que lhe tinha sido dado contemplar. Todos os comensais se voltaram; era uma dessas raras criaturas que, mesmo
com capa de borracha, parecem nuas. Assim que a porta se fechou atrás dela, Erik acendeu outro cigarro. Continuou sentado diante de uma chávena de café. O criado
aproximou-se, limpou a mesa e quis falar-lhe em italiano, mas Erik não respondeu. Também não tinha vontade de voltar de noite à loja para arranjar a secção das sedas,
não tinha vontade de acabar o quadro, era-lhe indiferente ganhar ou não o prémio. Sonhou um momento, pegou no lápis e desenhou qualquer coisa na mesa. Ao princípio,
alguns projectos para a secção de sedas, depois qualquer coisa que apagou com o dedo. Esperou uns minutos ainda, olhando fixamente na sua frente, com os olhos vagos,
Por fim, levantou-se, pagou e foi-se embora.
Sobre o mármore coberto de nódoas, distinguia-se um esboço um pouco apagado: não era o retrato de Liliana, mas o de Nina.
Durante esse tempo, Liliana seguia à pressa pela rua 41.a, depois tomou a 8.a Avenida. Um automóvel verde esperava-a, entre os carros parados diante de um hotel.
Liliana subiu. O motorista era um bonito rapaz de cabelos pretos, anelados. "Anda, anda, Kid. É tarde." - disse ela. Desceram rapidamente a avenida. "Bill está lá?"
- preguntou ela.
- Esperam desde as sete horas. Há qualquer coisa em vista?
-Anda e cala-te. - respondeu Liliana, muito nervosa. Fumava um cigarro que meteu na boca do rapaz. Contente, ele fez uma careta. O carro andou rápido, obliquou e
parou bruscamente. É melhor tu esperares aqui disse Liliana, descendo.
O prédio no qual Bill tinha alugado um andar, exibia um luxo burguês um pouco exagerado. Falso tapete do Oriente na entrada, uma jovem mulher com um olho de vidro
no escritório de recepção, um negro no elevador. Este teve uma piscadela de olho, interrogativa, levando-a para cima. "Isto vai bem, Pedro"-respondeu, aborrecida.
Na sua casa, tocava a T. S. F.
- Até que emfim!-disse preguiçosamente Bill, quando ela entrou. Como sempre, o aposento estava cheio de fumo: garrafas vazias, um balde de gelo, tudo em cima da
mesa. Um copo tinha-se entornado sobre o brocado e o álcool pingava pegajosamente para o chão. Liliana atravessou o aposento, encaminhando-se para o seu quarto de
dormir. Olá ?"-- limitou-se a dizer. Tirou o chapéu e, no espelho, viu-se pálida sob a pintura. "Não fui feita para estas coisas" - pensou fugitivamente.
As asas do nariz estavam quási verdes de medo. Bill seguiu-a ao quarto.
- Então, arranjaste tudo ? - preguntou. Ela tirou as chaves da bolsa.
- Aqui estão. - disse. Bill riu baixo. Não agarrou logo nas chaves. Liliana levantou-se e voltou à sala. Big Paw baloiçava-se molemente numa poltrona, tendo ao colo
Máxima, que se levantou à aproximação de Bill. Era loira, pálida e muito nova; tinha a figura de uma bailarina. Liliana percebeu que Bill estava sob a influência
da cocaína. Ele tinha dito que tomava sempre cocaína, quando empreendia algum golpe difícil. Os olhos brilhavam-lhe. O bando trouxera nesse dia um homem de
reforço, com ombros largos de boxeur desenhando-se sob o pano verde do seu uniforme de groom.
Bill mergulhou a mão no bolso e tirou um estojo. Fez-lhe saltar a mola e exibiu um broche ornado com uma grande esmeralda ... Atirou a jóia para a frente de Liliana.
"Lindo trabalho, an? A lapidação fez-nos perder dois quilates, mas agora ninguém conhece a pedra." disse, com ar amável. Num gesto brusco, Liliana pegou na jóia.
Era a sua recompensa por ter vendido Erik.
- Pronto.-respondeu, pondo sobre a mesa um plano traçado à pressa - Deixem-me fora de tudo isto. Levai Máxima, e está tudo acabado entre nós, assim o espero. Pôs
as chaves ao pé do plano, sobre a mesa, no sitio onde estava a nódoa de álcool. As suas mãos pareciam curiosamente alongadas e pequenas ao pé dos rudes punhos de
homem que se lançavam sobre as chaves.
- Ah! sim? Estás farta de nós? Mas talvez não estejamos nós fartos de ti, minha menina. - disse Bill. Galantemente, Big Paw interpôs-se:
- Deixa-a em paz, ela trabalhou bem. - reconheceu. Liliana olhava para todos, um após outro, como se
saísse de um sonho. Os rostos estranhos, as mãos estranhas, a esmeralda ...
- Devem ir. - disse ela - Às nove horas o gorila
vem-me buscar.
Bill teve um novo ataque de riso. Alisava ainda
mais os seus cabelos lisos.
- Divirtam-se. - gracejou.
- Obrigada. - respondeu Liliana, abstracta. Bill aproximou-se dela e bateu-lhe no ombro: - Se isto correr bem, dou-te um lindo presente-prometeu. Bruscamente, inclinou-se
para a rapariga e colou os lábios vermelhos aos seus. Máxima olhava-os com ar zangado.
Assim que partiram, Liliana abriu as duas janelas e preparou um banho quente, pois estava gelada. Quando saiu da água, sentiu-se com melhor disposição. VoLtando
à sala, rebuscou as garrafas quási vazias. Eles tinham também absinto. Fez uma mistura de bebidas e enguliu essa mistura, que sabia fortemente a Kummel. Logo depois
sentiu invadi-la um calor e a habitual sensação de temeridade subiu-lhe à cabeça. Pôs-se diante do guarda-fato, acariciou os vestidos novos e caros e escolheu, emfim,
um vestido verde, de seda pesada, que lhe modelou as formas. O telefone, ao lado da sua cama, tocou. O relógio marcava nove menos cinco. "O sr. Cromwell está aqui"-anunciaram.
"Que me espere no hall, daqui a um instante estou pronta."-disse Liliana. Ela detestava o jovem detective, que achava ridículo. Num capricho súbito, tirou do armário
o casaco de arminho e pô-lo nos ombros. Tomou mais um copo, sentiu-se um pouco embriagada e, rindo a bandeiras despregadas, pôs o broche de esmeralda. O telefone
fez-se ouvir pela segunda vez. "Sim, desço imediatamente." - disse, encolerizada. Cromwell era grotesco na sua impaciência. Liliana, de pé em frente do espelho,
deu mais uma gargalhada pensando no que se passava na Central, emquanto ela ia sair com Toughy!
"Santo Deus!" - exclamou Cromwell, assim que a viu sair do elevador.
Perplexo, fitava o vestido, o arminho, as grandes luvas brancas. Ele tinha também vestido o seu melhor fato azul-escuro, que lhe assentava muito bem. Como só aos
antigos oficiais assentam os fatos.
- Santo Deus. - repetiu ele. Liliana, sobreexcitada pelo absinto, respondeu:
- Ora vamos... não sabes que os manequins são as mulheres mais caras de New-York?
Às onze menos um quarto, com dores de cabeça e as mãos sujas, Erik saiu da secção de sedas. Em baixo, continuavam a trabalhar, mas sem ele. Tinha arrepios e sentia-se
aniquilado.
- Não é muito confortável para a noite, o armazém.
- resmungou. Teve que atravessar a secção de artigos japoneses, absolutamente às escuras. Tirou a lâmpada da algibeira: os Budas estavam aqui e acolá, surgindo da
sombra.
Chegando em frente do elevador, perdeu imenso tempo a procurar as chaves, até que se lembrou de as ter emprestado. "Diabo!"- disse. Os nove andares, desde o
3.? até à oficina pareciam-lhe extenuantes e intermináveis.
Sempre resmungando em voz baixa, dirigiu-se para a escada e começou a ascenção. ? Era como uma subida difícil, na montanha. Ele subia, subia, já lhe faltava o fôlego
e ainda estava no 8.? andar. Parou, escutou ouvindo passos; de facto, apareceu um guarda.
- Se faz favor leve-me até à oficina e abra-me a porta - disse, acanhado - pois acabava de se lembrar que não podia entrar na oficina porque Liliana tinha as chaves.
O guarda resmungou qualquer coisa, pois fazia as rondas num semi-sono e não lhe agradava nada ser incomodado. No entanto, decidiu-se e tomou o elevador com Erik,
até ao 10. andar.
- É um ofício bem desgraçado, o nosso! - disse Erik, emquanto percorriam o corredor e passavam pela boca do incêndio, para a oficina.
- Como? - preguntou o guarda.
- É que ... você pode dormir de dia? - preguntou.
- Porque não? -respondeu o guarda, rindo.
- Melhor para si. Eu não posso. E tirou do bolso o maço de cigarros, metendo-o na algibeira do peito do uniforme do guarda.
- Está aberto. - disse o homem, depois de ter feito deslizar a chave na fechadura.
-Sim? Ainda bem. - replicou Erik - Obrigado e boas-noites.
Hesitou um instante antes de entrar. "Liliana já lá está" - pensou. Sentiu-se cansado, como que vazio, incapaz de terminar o quadro.
"Que os demónios levem o prémio!" Tinha a impressão de não ter dormido havia semanas, sim, de não ter dormido desde que Nina o tinha deixado. Dominou-se e abriu
a porta.
Liliana não estava lá, a-pesar-do aposento parecer animado. A primeira coisa que viu foi uma folha de papel, espetada com um alfinete, no pano que cobria o retrato
que estava no cavalete. Deu dois passos e leu:
"Se faz favor deixe a Skimpy passar a noite consigo. Se acontecer alguma coisa, queira levá-la amanhã à mãe ao hospital Santa-Maria. Obrigado. Filipe."
Erik olhou à sua volta e não distinguiu a criança imediatamente. Skimpy tinha rolado até à orla do leito, antes de adormecer. Colocara em cima dela o sobretudo de
Erik; muito chegada ao nariz, estava a cabeleira de uma boneca. A respiração era regular; uma suavidade, uma calma, emanavam dessa criança adormecida. "Se tenho
a desgraça de me deitar-pensou Erik -adormeço imediatamente." Lançou sobre os objectos um olhar vago e acabou por se sentar numa cadeira, a um canto. Esperou, aborrecido
e cansado. O relógio da
torre deu onze horas. Esperou ainda. Liliana não chegava. Erik levantou o auscultador e Joé respondeu:
- Está lá, Joé ? Ninguém preguntou por mim ? Não há nada para mim ? Ouça Joé, espero um dos manequins, deixe-a entrar quando ela vier. Que tome a escada 5. Como
? Se tem uma licença ? Sim, naturalmente. Obrigado, boas-noites.
"Onze horas e meia. Que mulher fatigante, esta Liliana!" - pensava Erik. Doíam-lhe os membros, os olhos fechavam-se-lhe. Levantando o pano, descobriu o quadro. Não,
não valia a pena pintar. Skímpy respirava, no seu canto. Erik deitou-se junto dela e soltou um suspiro. Não queria dormir... no entanto... adormeceu imediatamente...
QUARTA-FEIRA à noite tenho visitas, quero apre sentar-te aos meus amigos" - tinha dito Steve Thorpe a Nina, depois da última noite frustrada. Fazia o que fazem muitos
homens da sua idade e da sua posição. Já que não podia possuir Nina, queria ao menos dar na vista. Mostrava-se com ela por toda a parte onde ia: no teatro, no restaurante.
Tinha-a forçado a aceitar alguns lindos vestidos e tratava-a, como se ela fosse uma rainha disfarçada. No seu foro intimo, desejava que Lúcia se encontrasse um dia
com Nina. O convite feito aos seus amigos, tinha mesmo um fim: a certeza de que um deles contaria à sua ex-espôsa que vivia com uma mulher em casa e que parecia
feliz. Era já a segunda semana que Nina passava na habitação de Thorpe, em White Plains. Tinha aprendido a apanhar a coberta emquanto dormia, para evitar que caísse,
a
sustentar o olhar do criado e a receber, à noite, os convidados de Steve. Muitas vezes sentia a cabeça pesada. Em geral vivia como num sonho, num espaço sem ar.
Não se atrevia a preguntar a Steve quando lhe alugava a casa prometida, e ele pelo seu lado, parecia ocupado demais para pensar nisso. Havia dois dias que tentava
iniciá-la nas bases do jogo de bridge, e ela ouvia, com os olhos fixos, sem perceber nada. Ele ameaçava-a também de lhe dar um professor de piano, pois tinha uma
vaga
inclinação para a música, e queria que Nina, com a sua vòzinha, lhe cantasse canções. Desde a noite em que a fizera beber, cessara com as suas assiduidades. Nina
não tinha a consciência tranquila, pagavam-lhe e ela nada dava em troca. Tinha adquirido na Central a idea confusa de que a compra e a venda formavam as bases da
vida. Valor e contra-partida. Pagamento e produção. Sabia que aquilo não podia durar muito tempo assim. De qualquer lado que a considerasse, a situação era torta
e falsa. Competia-lhe dar a Steve o que ele esperava.
-És amável em me dares tempo, para me decidir ... - murmurava Nina, receosa.
Emquanto que ou dormindo ou acordada, sonhasse com Erik, não estava ainda madura para o sacrifício.
Na quarta-feira à noite ela estava um pouco excitada. Steve voltou do escritório mais cedo que de costume, e desapareceu imediatamente no seu quarto de vestir.
- Que devo pôr ? - preguntou Nina, através da
porta.
- O vermelho- escuro. - respondeu Thorpe. Ela ficou, por momentos, admirada que conhecesse a cor dos seus vestidos... Vestiu o vermelho-escuro, mas teve que parar
para se sentar. Sentia-se aturdida. Os lábios, bruscamente, tornaram-se frios.
O ruído que o criado fazia a pôr a mesa, chegou até ela com a emanação discreta dum cheiro a galinha assada vindo da cozinha. Pensando na comida, Nina teve uma ligeira
náusea contra a qual lutou com energia. Não posso ter gripe, não faltava mais nada! - disse, descontente. Desceu e lançou uma vista de olhos para a casa de jantar.
O mordomo, que não se chamava James, estava limpando os copos, embaciando-os com o bafo e olhando-os depois à luz. Este espectáculo provocou em Nina uma nova náusea.
Tirou-lhe o copo da mão e pô-lo em cima da mesa. De resto, ela era mais competente do que ele a respeito de vidros e do arranjo
de uma mesa. "Está bem, Trompsted" - disse. Tinha conseguido saber o nome do mordomo.
- A senhora deseja que sirva Pomard com a galinha ou vinho do Reno ? - preguntou ele, impenetrável. Ela sabia que ele gostava de a troçar. As suas mãos encontraram,
como uma coisa familiar, a sensação dos copos e da porcelana.
- Não sei nada disso. Você, Trompsted, deve saber melhor do que eu. - disse.
O criado inclinou-se.
- O dr. Back é vegetariano. - acrescentou ainda Ele não gosta que insistam para o obrigar a comer carne.
- De que terra é, Trompsted ? - preguntou Nina. A sua pronúncia agrada-me.
- Sou dinamarquês - declarou ele, colocando, com a ponta dos dedos um cinzeiro e cigarros ao pé de cada talher. Depois recuou e inclinou a cabeça, para o lado, afim
de avaliar o efeito do seu trabalho.
-Oh! Dinamarquês... - exclamou Nina - Tenho... tenho amigos dinamarqueses. A condessa Bengtson. Esperava uma observação qualquer que não veio.
- A minha família era muito grande na Dinamarca
- disse Trompsted, e pôs-se a olhar sonhadoramente as taças de flores que Nina dispunha em cima da mesa.
- Está bem, Trompsted. - disse ela. O mordomo afastou-se.
Steve chegou de cima; cheirava a sabonete de barba e esfregava as mãos. Os cães saltavam à volta dele, como loucos. "Então, pequenos mendigos?"-disse com bom humor,
agarrando ambos nos seus braços. Max era um verdadeiro palhaço e Moritz possuía uma natureza trágica. Gostava das atitudes à Greta Garbo. A campainha soou à porta
de entrada: os primeiros convidados chegavam.
Steve tinha convidado cinco homens e Nina não achou nada de extraordinário na ausência de senhoras, Agora tinha mais acanhamento do que no dia em
que fora exposta na vitrina, nessa vitrina em que Steve falava constantemente. A cada um dos convidados contava a história: como tinha visto Nina na montra e como
tinha ido às informações inquirindo a forma de a comprar. Parecia orgulhoso da sua conquista ou da sua aquisição ou - qualquer que fosse a denominação-do facto de
ter tirado Nina da montra para a trazer para a sua mesa.
Os senhores, cujos nomes Nina não tinha compreendido, dirigiam-se a ela com uma benevolência a que não era estranho um certo embaraço. Dividiam a sua admiração por
Nina e pelos bassets. O dr. Back era um homem de cabelos brancos como a neve, e olhos azues, que pretendia ter um coração muito jovem. Como Steve tratasse Nina com
uma delicadeza requintada, os convidados estavam um pouco tímidos e, com discrição, Trompsted trouxe os cocktails. Nina olhou-o amigavelmente porque ele era dinamarquês.
O rádio tocava, todos falavam ao mesmo tempo, tinham vozes fortes e riam muito. De súbito, as paredes da biblioteca, onde estavam reunidos antes do jantar, pareceram
afastarem-se de Nina: era uma impressão esquisita como se ela não estivesse ali; as palavras não feriam o seu ouvido senão de uma forma indistinta. Tony, que envergava
às vezes a libré de criado, abriu a porta da sala de jantar. O dr. Back ofereceu o braço a Nina e ela ficou reconhecida que quisessem guiá-la através do nevoeiro
que a rodeava. Assim que Trompsted passou a lagosta pelo seu ombro, sentiu-se mal.
Visível e indubitavelmente doente. Supôs que fosse o efeito do cocktail, mas teve apenas tempo de se levantar da mesa e correr ao seu quarto. Trompsted continuou
a servir, impassível, e Steve ria com ar contrariado, "Ela não pode suportar o fumo. - disse - É tão delicada, uma verdadeira criança."
Os cinco senhores puseram-se a falar todos ao mesmo tempo, para afastar o embaraço... Como Nina
não voltava, Steve segredou qualquer coisa ao ouvido do mordomo. O criado afastou-se e voltou segredando também a resposta. "Continua doente" - disse Thorpe um pouco
aborrecido. "Gripe" - lembrou Green que tinha sido seu sócio. "Toda a gente tem gripe, por causa do calor"-aprovou outro. Puseram-se então todos a falar da gripe
e a discutirem as suas fases e se era verdade que os morangos se tratavam com arsénico e se constituíam um perigo.
Quando serviram o café, o dr. Back pousou o guardanapo e saiu. Fez ao seu amigo Steve um sinal e Steve, reconhecido, respondeu-lhe do mesmo modo. Ouviram o médico
subir as escadas, que iam dar aos quartos.
O cognac foi servido em grandes cálices e os convidados voltaram para aquilo a que chamavam a biblioteca: era um aposento que tinha de tudo, menos livros. Instalaram-se
para jogar o bridge e Steve sentou-se em frente de Green ao pé do fogão de sala, diante do jogo de xadrez. Mas não jogou imediatamente porque estava distraído e
aborrecido. A-pesar-de gostar de Nina não podia dissimular que ela representava um malogro em toda a linha. Assim que saiu para ir buscar cigarros para os convidados,
teve o sentimento preciso que troçavam dele em vez de o admirarem.
Mas os aborrecimentos de Steve Thorpe nessa noite ainda não tinham acabado. Mal colocara as marcas de xadrez e feito as três primeiras puxadas, apareceu Trompsted
na biblioteca, debruçou-se para o patrão e disse-lhe qualquer coisa ao ouvido.
- "Como ? Que está a dizer?" - preguntou Thorpe. Trompsted, imagem da dignidade e da discrição, repetiu a misteriosa nova. Thorpe, sufocado, balbuciou: "desculpem-me."
e correu para fora do aposento. A sua partida foi tão súbita, que até os jogadores de bridge foram por momentos arrancados à sua concentração. De mau humor, Green,
o parceiro de Thorpe, ficou sentado diante da partida começada.
- Onde está ela ? - preguntou Thorpe logo que, seguido pelo criado de quarto, chegou ao vestíbulo. com o queixo, Trompsted designou a porta da entrada: era um gesto
pouco respeitoso. "Porque a deixou lá fora, santo Deus ! - exclamou Thorpe em voz baixa. "Madame Thorpe não quis entrar, senhor." - disse o criado, um pouco vexado.
Thorpe empurrou-o para o lado e lançou-se para a porta entreaberta.
Fora, sob a lanterna da entrada, Lúcia estava de pé. Parecia muito infeliz.
-Lúcia... como estás magra!...-disse Thorpe, à queima-roupa.
- Obrigada, perdi vinte e dois arráteis - respondeu ela como mulher que, mesmo na adversidade, não se esquece de verificar todos os dias o seu peso.
- Que posso fazer por ti?... emfim ... não queres entrar... tenho algumas visitas... tu conhece-las... Green, o dr. Back... estou muito contente por te ver... -
balbuciou Thorpe.
- Justamente. Não quero ... visto que tens gente... é a ti só que desejo falar. - disse Lúcia. Ela tirava, nervosamente, o veuzinho que lhe cobria a testa e os olhos.
Um ramo de violetas artificiais enfeitava-lhe o chapéu, como exigia a moda dessa primavera, e pareceu a Thorpe que nunca tinha visto nada mais triste do que essas
violetas.
- Vem, eles estão a jogar o brídge, ninguém te verá.
- disse vivamente pegando-lhe na mão e atraindo-a para casa. Assim que chegaram ao vestíbulo, não soube muito bem para onde a devia levar. Ela tremia toda e, com
a breca, ele tremia também. Da biblioteca chegava o riso dos jogadores. Em cima, do lado dos quartos, podia ouvir-se a voz monótona e ensurdecida do dr. Back que
parecia quási que resava. Steve lembrou-se de-repente que tinha Nina em sua casa; subiu-lhe calor à cabeça. Afastou as portas do salão e fechou-as logo. Green, ofendido,
tinha-se ido sentar para diante do fogão de sala e
lia uma ilustração. A T. S. F. tocava. Na sala de jantar, Tony, fazia arrumações. Na cozinha, Trompsted entrechocava os copos, Tomando uma rápida decisão, Thorpe
levou Lúcia atrás de si para um aposento chamado a sala do ping-pong. Actualmente, os cães tinham ali os seus cestos. Saltaram em volta de Lúcia, os seus latidos
amigáveis pareciam quási lamentos, tão agitados estavam. Algumas palavras a respeito de Max e Moritz fizeram passar os primeiros minutos. Thorpe pediu a Lúcia para
se sentar numa poltrona e colocou a luz um pouco de lado para a afastar dela, Fazia-lhe mal olhá-la e admirava-se disso. Mil vezes tinha imaginado e sonhado como
seria, se ele se encontrasse em frente de sua mulher. Tinha imaginado tudo, desde o frio desdém até à ofensa mordaz, desde a recusa de a reconhecer, até ao assassinato.
Agora, ali estava em pé em frente dela, receando olhá-la e, com o coração a doer-lhe.
- Queres comer alguma coisa ? - preguntou. (O seu rosto parecia-lhe tão magro!) "Obrigada, estou de dieta." - respondeu. E ele lembrou-se que os regímens de Lúcia
tínham-no feito, muitas vezes, encolerizar.
Sem lhe fazer outra pregunta, foi à copa, encheu dois copos de cognac, rebuscou o frigorífico e encontrou um resto de lagosta. Sob os olhares da cozinheira, ofendido
com a sua invasão, dispôs os seus achados em cima de um prato e levou tudo a sua mulher. Era o instinto do troglodita: primeiro alimentar a esposa. O resto seguiria
ao acaso... E de facto, Lúcia bebeu o cognac, com reconhecimento, e pôs-se a mastigar alguns pedaços de lagosta como se se escondesse de si própria.
Tinha as pálpebras inchadas das lágrimas e a maneira como o rouge se espalhava um pouco por toda a parte, denotava um verdadeiro desespero. Steve meteu-lhe um cigarro
na boca, enxotou os cães, que mandou deitar nos seus cestos e sentou-se emfim ao lado de Lúcia. Agora, ela já não tremia.
- Não queres tirar o chapéu ? - preguntou.
- Não, obrigada, - disse vivamente puxando o véu para os olhos...
- Tens qualquer coisa a dizer-me? Podes contar-me tudo como se eu fosse teu advogado... não de outro modo. Estou habituado a ouvir... e se precisas de um conselho..
- Não preciso de nenhum conselho - disse Lúcia, sacudindo energicamente a cabeça, de forma que as violetas tristes do chapéu estremeceram um pouco.
- Dois e dois fazem muitas vezes cinco, nesta vida, graças a Deus. - disse Thorpe - Era uma sibilina máxima muitas vezes utilizada na prática dos seus negócios cuja
urbanidade e experiência produziam um efeito calmante, Lúcia olhou-o com atenção.
- Mudaste muito, Steve! - disse ela.
- Tomo isso como um cumprimento. - respondeu ele. Distraída, olhou-o sem ouvir:
- Assim que me fiz conduzir aqui, pensei logo que poderias ajudar-me. Mas tu falas em contar... É difícil, Steve...
Deixou escapar um soluço ruidoso, como fazem as crianças que já choraram muito. Aquilo não ficava bem com o seu rosto emmurchecido, mas comoveu Thorpe, Havia um
quarto de hora que ele tinha esquecido completamente Nina, era como se ela nunca tivesse existido.
- Não me casei com Peruggi. - disse Lúcia - Pu-lo
na rua.
- Nunca o considerei como uma pessoa estimável ... - concordou Thorpe, amavelmente.
E a onda, de súbito, quebrou todos os diques. Sua mulher lançou os braços em cima da poeirenta mesa de ping-pong e pôs-se a chorar lágrimas quentes, sem as poder
conter. Entre lágrimas e soluços contou a sua história, por fragmentos e, por vezes, de forma pouco compreensível.
- Estimável, não era, não... - soluçava ela com o rosto nas mãos. Era um intrujão, um criminoso. Viveu
à minha custa. Fez-se sustentar por mim ... pediu dinheiro emprestado .. sabes como o gastou? E roubou-me o meu anel de esmeralda. Sim, foi ele com certeza.. sempre
estive certa disso mas nunca lho disse. Calei-me ... Como poderia dizer a um homem : tu roubaste o meu anel ? Nem sequer confessá-lo a mim mesma, embora sempre estivesse
convencida disso. Ele tinha más maneiras, se bem que dissesse serem italianas ... há italianos ordinários, mas deve também havê-los bem educados. Emfim, era um conde
e não um vendedor de gelados. Palita os dentes à mesa depois de comer, e pragueja constantemente. Mas tudo isso ainda eu suportaria ... Gabava-se muito da sua família
aristocrática... e pedia-me dinheiro emprestado. Tinha prometido casar comigo em Verona... onde estão enterrados Romeu e Julieta ... era tão romântico!... e eis
que descubro que gastava o meu dinheiro com amantes... não sei a quantas mulheres, prometeu a mesma coisa: esse casamento na catedral de Verona. Então, naturalmente,
disse-lhe a verdade... que me tinha roubado o anel. "Dá-me o anel que me roubaste, é muito lindo para a canalha com quem andas." Então, dir-se-ia que estava louco,
um bruto, um verdadeiro bruto ... arrancou-me os cabelos, arranhou-me, bateu-me ... aqui..."
E Lúcia ergueu da mesa de ping-pong o rosto inundado de lágrimas, tirou o chapéu, o véu e descobriu a fronte arranhada e os vergões que lhe marcavam a face esquerda.
Thorpe ficou um pouco desconcertado por esta explosão. Assim que viu que lhe tinham batido na mulher, uma violenta cólera se apoderou dele, embora tivesse sentido,
também, muitas vezes, vontade de a espancar.
- Olha, bebe mais um copo de cognac. - aconselhou em voz grave, estendendo-lhe o seu próprio copo. Ela bebeu de um trago, tornou a pôr o chapéu, limpou os olhos,
baixou o véu, tirou a caixa de pó, da malinha, para
reparar a desordem das feições. O que mais sensibilizou Steve foi ela diligenciar sorrir, um pouco timidamente, para se desculpar... um pouco envergonhada !
- Alegra-te porque tudo isso tenha acontecido antes de teres casado com ele. - disse usando uma frase banal de consolação, que costumava dizer à sua clientela. O
sorriso de Lúcia tornou-se mais grave.
- Vocês, homens, são todos os mesmos. Tu também tens uma mulher cá em casa.
E duas lágrimas retardatárias, depois do grande dilúvio, desceram lentamente até aos cantos da boca. Thorpe compreendeu que essas duas lágrimas eram para ele e não
para o belo gigolô desleal.
- Isso não significa nada... Se te interessa, posso contar-te tudo ... - disse. Ela fez um pequeno gesto rápido, de recusa, que ele, de novo, reconheceu:
- Nada tenho a censurar-te... não tenho esse direito. - disse.
- Não se trata de direito, - ouviu-se Thorpe dizer. Reflectiu sobre o que devia agora fazer diante de Lúcia.
- Que intenções são as tuas ? - preguntou, prudente.
- Não sei... não sei, Steve. - disse ela, sonhadora É como depois de um tremor de terra, não me reconheço, já... Podem-se entregar os bilhetes do barco, perdendo
alguma coisa.
-As Companhias marítimas habitualmente dão 90? % do preço dos bilhetes pagos - disse ele no seu tom de advogado.
- Nem sequer desejo voltar ao hotel, tenho medo que ele venha.
- Não te tornará a bater, afirmo-te. - garantiu Steve, sombrio.
- Não... tenho medo que ele ... que me peça perdão... e eu... tu não o conheces, quando quere, ele sabe ser encantador.
- É disso que vive, de resto- disse Thorpe.
- Tens razão, disseste bem ... é disso que ele vive ... aprovou rapidamente Lúcia.
Olhava à sua volta e começou a sorrir vendo os dois cães que, até então tinham estado deitados com ar hipócrita nos seus cestos, começarem a saltar à sua volta.
Os seus ladridos mostravam toda a sua alegria.
- Vocês reconhecem-me... não me esqueceram... -disse, pegando-lhes pela pele bamba do cachaço, para os pôr ao colo. Os seus focinhos castanhos escuros dirigiram-se
para a cara da dona como que para a beijar. Thorpe, de pé, a um canto, reflectia. A partida de bridge, o dr. Back, Nina.
-Queres que te leve para outro hotel ou preferes viajar ?
- Não. - disse ela, resolvida. E ele preguntava a si próprio a razão da recusa.
-De-certo já... alguém te contou que tenho uma senhora no quarto de hóspedes. - disse - Mas tu podes passar a noite no nosso quarto de cama e eu fico na biblioteca.
- És muito bom ...- respondeu Lúcia. Sobre os seus joelhos os cães latiam. A porta abriu-se e o dr. Back meteu a cabeça branca: "Perdão" - disse, confuso. E desapareceu.
-Estás apaixonado pela senhora do quarto de hóspedes?-preguntou Lúcia com um sorriso.
- Tentei imaginá-lo durante certo tempo.. -respondeu Thorpe, sorrindo também - Dá-me o número do teu hotel, vou telefonar para que tragam para aqui as tuas bagagens.
- Obrigada. - murmurou Lúcia.
Ele viu que, maquinalmente, ela passava o dedo sobre a mesa de ping-pong. Na verdade, estava cheia de poeira. "A casa precisa de uma mulher" - murmurou ele ao pé
da porta. Lúcia levantou os olhos e começou a rir, com um tremeluzir de lágrimas nos olhos.
-No que diz respeito ao romanesco, nós podemos
também partir para Verona e casar lá segunda vez. O seu tom era de gracejo, mas a voz embargava-Se-lhe na garganta. Fechou a porta atrás de si e ficou frente a frente
com o dr. Back.
- Que estás a fazer ? Escutas ? - preguntou, e o constrangimento a que se tinha imposto, explodiu nestas palavras.
- Não, mas preciso falar-te com urgência. Tua mulher não podia ter escolhido um momento mais inoportuno para vir.
Thorpe dizia a si mesmo que não existia nenhuma lei determinando o instante em que uma mulher devia voltar para o seu marido.
- Que aconteceu ? - preguntou em tom breve.
- Vem comigo ao teu quarto. É o único lugar onde podemos conversar sem que nos incomodem-resmungou o médico.
Thorpe desejava subir, para telefonar. -Então? A pequena não vai melhor? É gripe?- preguntou, impaciente,
- Não... Ela vai bem... vai até muito bem - disse o dr. Back fechando a porta atrás deles.
As suas maneiras misteriosas começaram a irritar Thorpe.
- Acabemos. Preciso de telefonar - disse.
- Pois bem, meu caro, é uma história bem triste... Vai custar-te dinheiro. No entanto, as minhas felicitações... para um velho como tu...
Admirado, Thorpe olhou para o seu amigo por instantes. O médico respondeu-lhe com um olhar silencioso e cheio de segundo sentido. Subitamente, o advogado desatou
a rir.
-Mas é espantoso! Isso não podia calhar melhor. Ora ai está porque parece tão nervosa... Pobre pequena!-acrescentou, compadecido. Ela já sabe?
- Naturalmente que lho disse.-respondeu o médico.
- Sim ? E então ? Como tomou ela a coisa ?
- As mulheres naquele estado são sempre um pouco exquisitas - sentenciou o dr, Back, embora isso não fosse uma resposta.
Thorpe percorreu duas vezes o aposento dando estalos com os dedos.
- É um tanto excessivo para uma noite só. - pensava. Ao mesmo tempo louvava a delicadeza, a perfeição das suas relações com as mulheres.
- Ouve.- disse ao médico - Tu vais telefonar. Pede o Hotel SãO Moritz e diz que madame Thorpe não volta e que lhe mandem a mala e os objectos indispensáveis para
uma noite. Depois, vais à sala de ping-pong onde reterás Lúcia durante meia hora, podes administrar-lhe um calmante qualquer: brometo, um sonífero, qualquer coisa.
Depois tratarás de acabar com essa danada partida de bridge e de os mandar para casa. Negócios de mulheres fazem parte do segredo profissional, percebeste?
- Compreendo perfeitamente - disse o dr. Back com uma expressão de profunda perplexidade, no seu rosto barbeado.
Thorpe atravessou a passo rápido os dois quartos de vestir, que separavam o seu do quarto de hóspedes, esperou um instante diante da porta de Nina, e depois bateu.
"Sou só eu... Steve..."- disse. Veio-lhe o pensamento fugitivo de não ter, há anos, vivido coisas tão importantes e salutares como durante esta última hora. Nina
disse: "Entre" e ele entrou, com um sorriso de homem um pouco acanhado no rosto sobressaltado.
Mas encontrou uma outra Nina: uma Nina inteiramente diferente, transformada, em pé, delirante, fora de si, uma Nina absolutamente louca, que chorava e ria ao mesmo
tempo. Ele ignorava se era alegria ou dor -ela mesma não o sabia, provavelmente...
Ela só queria uma coisa: ir-se embora, partir dali imediatamente. Deixar, sem demora, esta casa onde os criados a desprezavam, onde os hóspedes eram impertinentes:
ela ia ter um filho, ela era mãe! Um filho, um novo Erik, um conde Bengtson! Gritou tudo isto no quarto, emquanto fazia as malas... ou antes, emquanto atirava tudo
para dentro delas... a barata roupa de baixo, as bonecas, o revólver. Thorpe estava ali petrificado, como imobilizado sob uma catarata. Não podia fazer nada senão
atirar para o monte os vestidos de que tinha feito presente a Nina e, às escondidas, meter-lhe em qualquer parte uma nota do Banco... para prever todos
os acontecimentos.
Tudo se fez de-pressa e de uma forma tão irresistível que, quando Nina lhe estendeu amavelmente a mão para lhe agradecer a hospitalidade, ele notou, pelo tom da
voz, que o seu espírito estava já distante.
Reteve-a, no entanto, um momento com a porta aberta pois acabava de perceber, pelo barulho, pelos risos, pelo cheiro de charuto, que o bridge havia terminado. O
dr. Back parecia ter trabalhado bem. com precaução, Thorpe atravessou o patamar; não queria que Lúcia e Nina, que tinham por momentos perdido o domínio de si próprias,
pudessem encontrar-se. No seu foro íntimo agradecia à Providência essa reviravolta súbita de Nina que lhe poupara muitas dificuldades.
Num piscar de olho, fez-lhe sinal para o seguir. Pediu a Trompsted para ir acima buscar-lhe a bagagem, pois não queria que a rapariga carregasse com nenhuma mala,
nem mesmo a sua pequena maleta de mão.
- Tony. - disse ao motorista que tinha ajudado Vá levar mademoiselle Nina a Fieldston, depois vá ao hotel São-Moritz buscar as bagagens de madame Thorpe. Diga que
eu passarei por lá amanhã para pagar a conta. E... não preciso do carro antes das dez horas.
Instalou Nina no automóvel. Distraidamente disseram adeus; ela estava já com Erik e ele com Lúcia...
- Vá de-vagarinho, Tony-ouviu ela dizer. Ele ficou de pé em frente da casa, emquanto o clarão dos faróis desaparecia, perdendo-se na obscuridade. Depois, meneou
a cabeça. No fim de contas, as mulheres são uma raça singular... -pensou.
E esse meneio de cabeça era a conclusão da tentativa que Nina fez para se vender. Era o princípio das segundas núpcias de Thorpe.
MEIA-NOITE e meia hora no relógio da Central. Os guardas de noite acabavam de terminar a sua segunda ronda e foram aquecer café à sua sala.
A campainha da noite soou no quarto de Joé, o porteiro. Abriu a porta pequena; fora estavam duas pessoas.
- Posso ir falar ao sr. Bengtson ?
-Tem licença ?-preguntou Joé à rapariga, pálida, com ar de dançarina.
- Sim. Naturalmente.
O porteiro pegou na licença e voltou ao seu cubículo, à luz eléctrica. Ele tinha um olho de vidro e era forçado a colocar o papel obliquamente, para ler.
- E esse rapaz? - preguntou.
- Este rapaz é que traz as coisas.
- Que coisas?
- As coisas para o sr. Bengtson.
- Tem licença?
- Não, mas eu tenho.
- Sem licença não o deixo entrar.
- Ele tem de lhe entregar as coisas... sem isso o sr. Bengtson não poderá trabalhar. - explicou a rapariga.
- Impossível,-disse Joé voltando o lado do olho de vidro para o rapaz para melhor examinar a rapariga. Foi nesse momento que recebeu uma pancada no queixo e caiu
por terra.
- Tocado! - disse o rapaz, satisfeito, e desapareceu no fundo do vestíbulo que levava ao pátio velho.
A rapariga voltou à rua. À esquina, um automóvel esperava. Dois indivíduos desceram e aproximaram-se. A mulher cruzou-se com eles, disse uma palavra e seguiu o seu
caminho. Depois, fazendo sinal a um táxi, afastou-se. Os dois tipos entraram na Central pela porta aberta que fecharam atrás de si.
Joé continuava no chão, sem sentidos, e com um sorriso nos lábios . Big Paw inclinou-se e transportou-o para o seu cubículo. Emquanto o ligava a uma cadeira fazendo-o
respirar clorofórmio, Bill viu à luz o plano desenhado por Liliana.
- Diz a Kid que entre. - disse a Big Paw.
- Onde está Bully? - preguntou este. Estava emocionado e não podia dominar-se. Bill deu-lhe um pequeno encontrão. Big Paw abriu a porta e inspeccionou a rua : um
homem, sonhador estava de pé diante da montra dos bars portáteis. Big Paw teve de esperar um certo tempo emquanto Bill, impaciente, espreitava atrás dele. O relógio
da torre deu três pancadas antes da uma hora. Finalmente o admirador tardio desligou-se da montra e marchava, indecisamente pela rua abaixo, como alguém que se aborrece
e espera uma aventura. Passaram dois automóveis, depois, tudo ficou vazio por um momento. Kid apareceu, de-repente, e deslizou pela porta, para dentro da Central.
Joé estava agora muito bem empacotado com adesivo na boca e uma boa narcose. Em silêncio, os dois homens seguiram Big Paw através do pátio; subitamente, este sobressaltou-se
diante do gato branco, que fazia rolar uma caixa vazia de conservas no chão de cimento. Através duma porta envidraçada, podiam ver a secção, mal iluminada, de confecção
para homens. Sem barulho, Bill pegou nas chaves que Liliana lhe tinha dado e abriu a porta de par em par. Havia só cinco chaves e encontrou a precisa sem hesitação.
Assim que chegaram ao interior, ficaram uns minutos imóveis, de ouvido à escuta; reinava um silêncio de morte. Um senhor loiro, de cera, vestido de branco, olhava
na sua direcção e sorria vagamente. Bully, o rapaz vestido de groom, tirou o pano branco que recobria as gravatas. "Deixa isso!" -disse Bill. "Mais baixo.
- respondeu o rapaz renunciando de má vontade ao seu roubo. "Por causa de idiotas da tua espécie é que os grandes negócios não triunfam." - sentenciou Bill.
Ele levou-os mais longe, ziguezagueando entre as secções mudas e cheias de fantasmas imaginários, chegando emfim à escada que ia dar à cave.
- Levo os dois rapazes comigo, tu vais ficar lá em cima à espreita - murmurou Bill.
- Entendido, chefe, - respondeu Big Paw em voz forte.
Tinha estado todo o tempo irritado por causa dessa marcha prudente através da Central vazia e por esses segredinhos inúteis, pois não estava lá ninguém que os pudesse
ouvir.
- E se vier alguém, mostra o teu revólver. Mas nada de ruído inútil... ouviste?
- Entendido, chefe - respondeu ainda Big Paw.
- A escada de socorro é no terceiro andar, encostada ao elevador. - explicou Bill, a todos - O carro espera à esquina sudoeste.
Big Paw viu-os desaparecer na escada. Pegou num cigarro e pôs-se a fumar. Tinha medo e a coragem de Bill não o animava: Bill tomava cocaína e isso é que lhe mantinha
o espírito empreendedor. Big Paw não tinha bebido bastante para se sentir à vontade.
Ele gostaria de percorrer o armazém vazio para examinar tudo, mas não teve coragem. Atirou fora o cigarro meio fumado e acendeu logo um segundo. Em bicos de pés,
foi até ao tapete rolante que, na sua imobilidade, tinha o mesmo carácter espectral do resto, e sentou-se no primeiro degrau. Pôs a cabeça
no braço e ouviu um choque rítmico que lhe meteu medo. "com a breca!" - exclamou, rindo incrèdulamente assim que notou que era apenas o bater do seu pulso que lhe
chegava ao ouvido, através da manga - Então ficou para ali sem se mexer e muito tempo passou..
Estava certo de não ter dormido, e tinha mesmo ouvido o relógio dar uma hora; no entanto para ele foi como um brusco despertar quando ouviu vozes vindas dos andares
superiores.
- Boas-noites, disse alguém lá em cima. Trata de ir direito para casa, já há muito tempo que devias estar no berço.
Depois ouviu uma gargalhada cujo eco se repercutiu contra as paredes. Metendo a mão no bolso, Big Paw, maquinalmente, pegou no revólver. Olhou à sua volta e, a-pesar-do
pânico, descobriu um excelente esconderijo. Uma cortina ocultava os fatos pendurados: ergueu-a e escondeu-se atrás. Durante esse tempo passos leves tinham descido
a escada. Arriscando um olhar por uma fenda, o bandido viu um ser de cabelos de um loiro pálido que descia a escada a dois e dois. "Vai descobrir o porteiro amarrado
e tocar a campainha de alarme." - pensou Big Paw, embora pensar não fosse o seu forte. Puxou do revólver, visou na direcção do rapaz; mas deteve-se... O rapaz parou
diante de um grande espelho, examinando o queixo; depois, tendo procurado à sua volta, tirou um chapéu branco da cabeça de um manequim vestido com um fato de linho,
penteou-se e mirou-se por todos os lados. Tateou a algibeira, tirou um cigarro que meteu na boca, sem acender, e continuou a admirar-se. Big Paw riu atrás da cortina.
O pequeno, depois de se ter contemplado bastante, tirou o chapéu, pôs o cigarro na algibeira e, inclinando-se respeitosamente diante do manequim, restituiu-lhe o
chapéu. Depois, tomou balanço e escorregou pelo oleado do soalho até à saída.
Big Paw, saiu do seu esconderijo e gritou: "Mãos
no ar!" O pequeno voltou-se estupefacto, e ficou de boca aberta, não levantou as mãos, pois, com certeza não tinha percebido do que se tratava. "Mãos no ar!" repetiu
Big Paw um pouco mais baixo - Lembrou-se de-repente que deviam estar mais pessoas lá em cima. Talvez, de noite, no armazém houvesse um formigueiro de gente ocupada
a trabalhar. Agora o pobre garoto levantou as mãos, como um fantoche, como se fossem puxadas para o alto por dois cordéis. Big Paw pensou no que iria fazer dele,
mas, antes que pudesse tomar uma resolução, o cabelo louro branco pareceu erguer-se, como que empurrado por uma corrente de ar, o rosto sardento ficou lívido e ele
caiu ao chão. Era a primeira vez que Big Paw tinha visto desmaiar alguém, e não sabia o que havia de fazer. Dirigiu-se para o pequeno, levantou-o, sentindo um certo
desagrado ao contacto desse corpo flácido.
Nesse instante, ouviu-se qualquer coisa que conhecia muito bem: tiros. Três tiros amortecidos partiram da cave. Deixou cair o garoto, olhou à sua volta com ar assustado
e correu pela escada até ao terceiro andar. Lá em cima, já sem fôlego, procurou o elevador, ao pé do qual ficava a escada de socorro. Roçou, a correr, por três senhoras
em roupão, obliquou e viu subitamente que um homem vinha para ele: atirou-se sobre o indivíduo como num desafio de foot-ball, ouviu a queda pesada de um corpo e
continuou na sua fuga. com a coronha do revólver, deu uma pancada num enorme vidro: o ar da noite bateu-lhe no rosto coberto de suor. Do alto da escada de socorro
onde estava, via o pátio no qual o gato brincava ainda agora; resolveu não se mexer. Em baixo, corria gente; bruscamente, todas as campainhas de alarme se puseram
a tocar; sons agudos encheram o vasto edifício. Era um barulho infernal e isso tornou-o tão nervoso que se endireitou imediatamente. Recebeu então uma pancada e
caiu.
uma coisa horrível, uma campainha a ressoar numa casa vazia. Era meia-noite. Em casa dos Bradley, ninguém. O vestíbulo estava vazio, os quartos vazios, o leito da
sr.a Bradley também vazio. Vazio o leito de Erik, vazio o de Filipe; nem Skimpy estava em casa e a campainha tocava. Um som longo, depois curto, depois mais longo
ainda; primeiro paciente, depois nervoso, depois como louco. Finalmente tudo se calou.
-Não está ninguém em casa-disse Nina ao motorista que esperava de pé, com as malas na mão.
- Devo levá-la outra vez para trás ? - preguntou ele, tornando a pôr as bagagens no carro.
- Não, de maneira nenhuma. - disse Nina. -Então aonde, se faz favor? - preguntou Tony
olhando para o carro com indiferença.
- Aonde? - repetiu Nina.
- Talvez a um hotel ? - propôs o homem.
- Sim, mas não a um hotel caro. - disse abafadamente Nina.
Tony levou-a a um hotelzito, longe, ao cimo de Broadway, onde a olharam de uma forma estranha. Mas, como ela tinha duas malas, deram-lhe um quarto, um quarto que
cheirava a fósforo. Aí, sentada na borda da cama, Nina telefonou. Três vezes tocou para a Central
e de todas recebeu a mesma resposta: "Não responde". "Não é possível, torne a tentar" - suplicou ela. Mas
isso nada fez.
- Quiseram matar ratos - pensou Nina aspirando o odor estranho do quarto. Tornou a pegar no telefone e, de vez em quando, tornava a pedir a casa de Bradley. A manhã
ia já muito avançada quando, emfim, uma voz respondeu: Era a voz infantil e aguda de Skimpy.
- Estás, Skimpy ? Aqui, a Nina, Posso falar à
mamã?
- Não.
- Ela saiu? Tenho uma coisa importante a dizer-lhe.
- A mamã está no hospital, mas vai bem. Esta
tarde vou vê-la.
- Oh!.. Que pena!... - murmurou Nina. Mas não tinha tempo a perder com amabilidades - Pois eu... gostava de falar ao sr. Bengtson... - disse ela.
- O sr. Bengtson foi preso.
- Como? Fala um pouco mais alto, Skimpy.
- O sr. Bengtson foi preso. - gritou Skimpy ao
aparelho.
- An ?... como assim ?... Não é... possível. balbuciou Nina, sentindo-se arrefecer. Os lábios estavam como que gelados, a pele da cabeça parecia esticada, agarrava-se
ao telefone.
- Ele roubou coisas. Fez um assalto. Deram tiros e ele é um gangster. Eu também lá estava - continuou Skimpy, com importância.
- Eu queria... falar a Filipe... - murmurou Nina ao aparelho. O cheiro a fósforo envolvia-a toda.
- Filipe está no posto de polícia. O seu retrato vem nos jornais - disse Skimpy. Ela esperou ainda um pouco, mas como Nina não respondesse, desligou, desceu prudentemente
do banco que tinha posto para telefonar, e, consciente da sua importância, foi para a escola.
Para Nina, correu um lapso de tempo de que, mais tarde, não se lembrava. De-facto, eram oito horas
da manhã quando tinha telefonado a Skimpy e, foi às dez horas somente, que se encontrou sentada no autobus que se dirigia para a Central. Do que tinha feito, durante
essas duas horas, não poderia mais, em toda a vida, recordar-se. No entanto, o seu cérebro estava absolutamente claro quando, chegando ao armazém, tomou a escada
móvel. Tinha comprado um Jornal na rua e, embora o nome de Liliana aí não figurasse, estava absolutamente certa de uma coisa: Liliana tinha levado seu marido à prisão
e era Liliana que devia fazê-lo sair.
Nina tinha sido sempre calma e meiga durante toda a sua vida. Mas, agora, haviam-se passado coisas de molde a transformar completamente esta criaturinha. Desde que
a tinham tirado da secção de porcelanas para a porem na vitrina, nunca mais tivera paz. Andava como um projéctil que ninguém pode reter, assim que é lançado, como
um pequeno cometa apaixonado, pronto a rebentar em mil pedaços. Exteriormente, todavia, este pequeno pedaço ardente de destino feminino não se distinguia das outras
clientes. Como todas as outras, lançou um rápido olhar para o espelho, diante do qual passou e parou um instante diante dos sensacionais pijamas de praia, da secção
de confecção. Essa secção estava à cunha nessa manhã: havia uma venda-reclamo de séries baratas e todos queriam o primeiro lugar junto ao balcão, para pescar os
artigos mais vantajosos. Fez calor, de-repente, nessa manhã de princípio de primavera e as ventoinhas funcionavam, as caixeiras transpiravam, as modistas estavam
nervosas, as clientes histéricas.
- Gostaria que me atendessem, menina. - disse Nina numa voz sem intonação a Liliana que saía da sala de costura. Nessa manhã, Liliana estava mais pintada que de
costume, sem dúvida porque se sabia mais pálida. A boca estava muito vermelha sobre a pele branca e o seu nervosismo concentrava-se na palpitação das narinas.
Prenderam todo o seu bando. Bill morreu, os outros estão presos. Nem peles, nem amigos, nem dinheiro, nem carreira em Broadway. Devia mesmo sentir-se feliz, por
todos se terem calado, não a comprometendo na aventura ...
- Gostaria que me atendessem, menina. - repetiu Nina com mais força. Liliana imobilizou se com um pequeno movimento de ancas que dantes a tinha distinguido entre
as suas colegas aprendizas e a tinha trazido até ao salão de costura.
- "Olha... a Nina!-disse ela-Talvez saiba qualquer coisa de novo." Foi apenas uma idea fugitiva...
Teria de boa vontade envenenado Erik Bengtson se, por esse meio, pudesse estar segura do seu silêncio. Mas a criança de peito, o menino de mama estava preso e era
de prever que ele a envolvesse no caso. Teria contado a história das chaves? com certeza, se isso pudesse servir-lhe de defesa. Seria então o fim de Liliana Smith,
saída a custo da obscuridade e que se sentia empurrada, irresistivelmente, outra vez, para a escuridão, para o abjecto.
- A senhora deseja? - preguntou ela, olhando Nina como se fosse um carteiro que, de noite, nos traz um telegrama.
- Queria provar este vestido. - disse Nina apontando para qualquer parte, por cima do ombro, na direcção do armário.
- com muito prazer. - respondeu Liliana, tirando um vestido ao acaso e abrindo a porta do gabinete de
prova.
- Que há de novo ? - preguntou ela assim que ficaram sós entre as paredes de espelhos.
- Que fizeste de meu marido ? - preguntou Nina.
Qualquer coisa nesta pregunta irritou Liliana: ela não podia suportar o que havia de burguês nesta expressão: meu marido. Não podia suportar esta pequena Nina meiga
e tranquila, esta provinciana que tinham posto na montra.
- Que me importa o teu marido ? Teu marido!
- Foste tu que o meteste na prisão, - disse Nina e és tu que o tens de fazer sair de lá.
Era a frase que, havia horas, ela tinha formado na cabeça.
- Tem cuidado com o que dizes, minha menina. Teu marido meteu se com ladrões. Eu não...-disse Liliana.
Falavam ambas em voz baixa, com os rostos aproximados um do outro e reflectidos nos seis espelhos ao mesmo tempo. Mas mesmo que tivessem falado mais alto, não as
teriam ouvido, pois em toda a secção de costura havia um zunido sussurrante de mulheres. No salão, a directora esvoaçava de um lado para o outro, dando ordens, com
o seu sotaque francês. Todos os gabinetes de prova estavam ocupados. Uma caixeira abriu a porta e disse: "Perdão", tornando-a a fechar. Liliana e Nina ficaram frente
a frente, ambas trémulas, cada uma dizendo à outra o que tinha a dizer-lhe.
Liliana estava ao rubro, ladeava um precipício. Mas Nina já não era a rapariguinha de antigamente, agora tinha sofrido muito.
- Estou farta, entendes? E repetiu o que exigia e que não era nada mais, nada menos do que isto: Liliana devia comparecer diante da justiça e provar a inocência
de Erik.
Liliana riu-se, provocante. Pôs as mãos nas ancas, gargalhando na cara de Nina.
Subitamente, ela viu que Nina levava um revólver, um grande revólver de polícia que segurava desajeitadamente.
- Se não tiras cá para fora o meu marido, mato-te! disse em voz grave, rouca, numa voz absolutamente nova.
Liliana segurou o pulso que agarrava a arma para a desviar de si.
- Endoideceste? - preguntou vivamente.
- Estou grávida. vou ter um filho! É preciso que meu marido volte. - gritou Nina.
Foi apenas um instante, um instante singular, a duração de um abrir e fechar de olhos... mas durante esse segundo, Liliana fraquejou. Um filho era uma palavra do
outro mundo. Nina... ia ter um filho. Dantes, elas haviam sido amigas. Juntas, como aprendizas tinham-se sentado nos bancos da escola, onde o grande armazém educava
as caixeiras ...
E o facto de Nina ter um revólver e parecer decidida a servir-se dele, revelou um sentimento que Liliana pôde compreender. Isso já não lhe era tão estranho, tão
hostil...
- Um filho ? - preguntou, largando, sem dar por isso, o pulso de Nina - Mas, um momento depois, reencontrou a sua dureza.
- Mas que me pode importar que tu tenhas um filho ? Que tenho com teu marido ? Deus sabe de quern é esse bastardo!
Ela não falava alto, mas as suas palavras soavam tão duras, como uma pedra batendo noutra pedra.
Então, Nina fechou os olhos e descarregou a arma. Nunca tinha disparado na sua vida e ficou aflita com o safanão que recebeu - houve depois um cheiro a pólvora.
Assim que abriu os olhos, Liliana ainda estava de pé, com as duas mãos apoiadas à mesita, depois, a taça dos alfinetes caiu e Liliana caiu também por sua vez. Dir-se-ia
que tentava sorrir com ar irónico e surpreendido. Talvez também sofresse...
Tudo isto se passou muito silenciosamente. Os gabinetes tinham tapetes espessos e o tiro não fez mais barulho do que uma rolha de garrafa de champagne.
A queda de Liliana também não foi ruidosa. Nina meteu o revólver na sua velha malinha de mão e saiu do gabinete.
Na secção reinava o ruído da venda-reclamo.
- V. Ex.a foi servida como desejava ? -preguntou madame Chalon.
- Fui, obrigada, - respondeu Nina.
Portas, portas e portas, escadas e escadas... O elevador... no edifício central. A saída à direita, portas envidraçadas, portas móveis e ainda flechas indicando
saída, saída, saída...
Nina transpôs emfim a última porta, que bateu pesadamente sobre ela. Cá fora, era Junho, cá fora, as mulheres compravam flores. Ninguém a seguiu. Respirou o ar a
grandes sorvos, as suas mãos já não tremiam. Fez sinal a um táxi. "Para a Grande Estação Central" - disse. Tinha dinheiro, a sua algibeira estava cheia de notas
provenientes do último presente de Thorpe.
Carros, pessoas, môços de fretes, de cor, informações, bilheteiras, pessoas. Bilhetes para Cleveland. Bilhetes para Boston, bilhetes para New Heaven.
- Para Lansdale, Connecticut... - disse Nina.
- Simples, ou de ida e volta ? - preguntaram da bilheteira.
- Isso é que eu não sei. - respondeu a jovem.
LAMENTO tê-lo feito esperar, - disse Filipe quando, às duas horas e dez, entrou no seu escritório. Estou cheio de trabalho, como pode calcular. A polícia... e depois
tive com o sr. Crosby uma longa conferência.
Sentia-se extraordinariamente bem disposto, pois tinha substituído a falta de sono pelo álcool. Trazia o braço ao peito.
- Foi grave ? - preguntou o rapaz, que se tinha levantado à sua chegada.
- Oh! já estou habituado. A bala desta noite foi a sexta que recebi no cadáver, desde que trabalho na Central - disse Filipe, em tom importante. Estava excitado
e como prestes a tomar voo, tal como um grande balão vermelho, novo. O rapaz escreveu à pressa algumas notas no caderno que tinha preparado.
- Eu sou Sanders, do Evening Star, como sabe. Pensamos que o senhor não teria hoje muito tempo livre, mas o chefe entregou-me o contracto que lhe diz respeito.
- Ah, ah - disse Filipe, lendo o documento. - Dois mil dólares por uma reportagem especial... espero que o seu chefe não fique desiludido. Não posso, evidentemente,
revelar tudo quanto sei, pois a polícia tem o assunto entre mãos.
- Limitar-me-ei a preguntar-lhe o que nós desejamos saber - disse Sanders, com benevolência. Prátt vai
primeiro tirar-lhe algumas fotografias. Já fotografámos o depósito e a escada de socorro, onde o senhor matou esse indivíduo. Vejamos como conseguiu fazer tudo isso
.. sozinho ?
- O instinto.- declarou o velho Filipe-Está tudo no instinto. Um detective deve possuir a intuição necessária, de outra forma nunca lhe viria à idea que, justamente
no dia em que sai com uma mulher, um bando de gangsters projecta um roubo de peles.
Depois de ter disparado esta flechazinha subtil a Ricardo Cromwell, que considerava como despedido, Filipe abriu o seu armário e vazou um copo de whisky puro. "A
minha novocaína" - disse alegremente.
Entretanto, Pratt tinha feito a sua entrada com o aparelho, chapas e magnésio, e instalava tudo no pequeno escritório: "Nós queremos também possuir uma fotografia
sua de quando esperava os tipos, no depósito". disse ele dando ao detective a atitude desejada. "É a décima quarta vez que me fotografo hoje" - notou Filipe colocando
bem à vista o braço ferido. O relâmpago de magnésio brilhou.
- Reparou como lá em baixo faz frio ? - preguntou ele - Não há mais de 28? Fahrenheit. Fique lá apenas um quarto de hora à espera de gatunos, e posso garantir-lhe
que dois mil dólares não são muito por isso.
- Vai-te agora embora, - disse Sanders a Pratt, e previne na redação que estou lá daqui a uma hora com a minha reportagem.
Assim que o fotógrafo desapareceu, Filipe pôs um copo diante do jornalista.
- Agora,-disse este-procedamos por ordem. Ponhamos de parte tudo quanto já foi dito na edição da manhã. Como foi ferido no braço?
- O indivíduo visou-me o cotovelo direito. Não era muito burro... mas, por felicidade, sou canhoto.
- Já lhe foi entregue a quantia de mil dólares que ofereciam pela captura de Big Bill?
- O chefe da polícia já mos prometeu. É curioso... ontem, estava mais teso do que um cão atropelado, hoje, recebo dinheiro de todos os lados! O sr. Crosby apertou-me
a mão e chamou-me herói; aumentou-me o vencimento e conserva-me o lugar durante a minha vida e o comissário de polícia levanta-se para me falar.
-Que vai fazer de todo esse dinheiro, sr. Filipe? preguntou Sanders estenografando rapidamente.
- Eis o problema, sabe? Sou celibatário e não posso gastar tudo a beber, senão o sr. Crosby punha-me na rua...
Sanders riu reconhecidamente, ao pensar no êxito que este gracejo alcançaria no jornal.
- Quantos tipos do bando se puderam escapar ? Não faz uma idea?
- Krocinsky... a quem eles chamavam Big Paw está no hospital e Big Bill na morgue, deitado num belo caixão novinho em folha. Dois fugiram, mas estou convencido de
que não era este o bando completo.
- Não receia que se vinguem de si ? Não se acha em perigo?
- Olhe, isso dá-me uma idea sobre o emprego do meu dinheiro; vou contratar uma guarda especial, com Toughy à cabeça-disse Filipe, encantado. Também este dito de
espírito foi igualmente estenografado com alegria.
- Qual é a sua opinião sobre esse Erik Bengtson, que prenderam por ser conivente com os bandidos?
Filipe bebeu só uma vez e reflectiu.
- Quere arranjar-me uma armadilha? Isso é com a polícia. O meu papel é velar porque nada desapareça da Central, o resto é negócio do comissário.
- No entanto, deve ter uma opinião ?..-preguntou Sanders, bebendo também, para criar um ambiente de camaradagem. -Vejamos... que pensa do homem, como indivíduo?
- Bem... como indivíduo, tive-o sempre por um leviano, por um desses endemoninhados estrangeiros que
não inspiram a mínima confiança e, além disso, por um grande pateta. Oficialmente, só se pode dizer uma coisa: foi com o molho de chaves de Bengtson, que Bill entrou
na Central. Todos nós temos o número numa chapinha presa às chaves... e o bando não teve o tacto de a fazer desaparecer. Mas...
-Mas?-preguntou Sanders agarrando-se avidamente à palavrinha que ficou em suspenso.
- Mas... mais nada. -disse o velho Filipe, teimoso.
- Posso escrever que considera Erik Bengtson o principal culpado? -disse Sanders. Filipe enguliu precipitadamente a isca e o anzol:
- Não se trata disso, Deus me livre de afirmar semelhante coisa !
- Emfim, é verdade que esse Bengtson dormia na oficina quando as campainhas de alarme tocaram ?
- É essa justamente a questão, Se ele realmente não ouviu as campainhas de alarme, é preciso confessar que a consciência de nada o acusava. Mas se na realidade ele
só fingia dormir, é muito suspeito, muito.
Sanders esperava, de caneta no ar.
- Skimpy afirma que ele dormia, que foi ela que o acordou, aos murros, quando ouviu os tiros e as campainhas, que a assustaram.
- Na edição da noite deve aparecer uma fotografia da pequena heroína.
- Queria, no entanto, acrescentar uma coisa a respeito de Bengtson. - continuou êle - Fizeram-no sofrer esta noite um interrogatório de terceiro grau. Sabe o que
isto quere dizer?
Sanders aquiesceu, com respeito. As pessoas que tinham sofrido esta prova, falavam dela mais tarde como os gazeados falavam da guerra.
- Pois bem, o rapaz não disse nada. Nem sequer abriu a boca. Isto dá-me que pensar. Tive-o sempre por um rapazola mal habituado e duvidoso. Mas... para ter aguentado
um interrogatório de terceiro grau
sem se mexer, caramba, é preciso ter sangue nas veias! Vi-o esta manhã às nove horas. Eles não o deixaram dormir, como sabe, e a luz aguda, que lhe projectaram nos
olhos, ia-o quási cegando. O comissário pensou que eu talvez pudesse tirar qualquer coisa dele, mas não disse nada, não tentou sequer afirmar que estava inocente.
Sabe o que ele repete?:- "Fui um idiota e o que me acontece é bem merecido". Tinha esperado outra coisa desse pateta.
Sanders levantou-se, pegou no frasco de whisky e encheu dois copos. Filipe bebeu: -"De resto, se ele se chama idiota, é a respeito da sua vida privada" - disse.
O braço começava a doer-lhe muito. Filipe desde a uma da madrugada que estava numa espécie de transe. Ergueu o copo e esvaziou-o.
Sanders deitou novamente mais.
- Posso então escrever que considera Bengtson inocente ? - preguntou de pena em riste.
- Também não disse isso. - murmurou Filipe que começava a sentir se ligeiramente ennevoado - Mas ouça bem ... promete-me segredo se eu lhe confiar uma coisa? Compreende,
isto não é destinado ao seu Jornal. É apenas ... um dado ... um palpite, como nas corridas .. mas queria provar-lhe que o velho Filipe sabe mais do que toda a polícia
... o comissário e todos esses interrogatórios de terceiro grau. Não sei ainda se Bengtson está inocente: mas sei que não está culpado.
- Quê ? - exclamou o jornalista.
- Chut! Chut!- disse Filipe.-Eu não disse nada. Só quero mostrar o que é um trabalho de detective, bem feito. Ligado a cada molho de chaves, está uma placazita,
não é verdade? Pois bem... siga-me com atenção... a placa do molho encontrado em poder de Big Bill cheirava ... a um certo perfume ... Que diz você a isto ?
Sanders não disse nada. O bloco de papel tremia-lhe nas mãos, pois estava possuído da verdadeira febre do caçador.
- As chaves estiveram numa certa malinha de senhora. Foi aí que a placa se impregnou de perfume. Quero dizer-lhe ainda mais uma coisa: eu conheço a mulher que usa
esse perfume. É uma das nossas caixeiras ... e se não atormentarem Big Paw ao ponto de o fazerem confessar todo o imbróglio... eu vejo-me obrigado a dizer o que
sei.
E Filipe, depois destas declarações, instalou-se na sua poltrona e pôs os pés em cima da mesa. As dores no braço tornavam-se horríveis, mas sentia-se feliz como
não era havia muitos anos. A pena de Sanders corria no papel.
- Prenderam a mulher ? - preguntou ele, sem levantar os olhos.
- Você, meu amigo, nunca daria um detective. Emquanto a pequena vier ao armazém e eu a puder vigiar, tudo irá bem. Mas assim que ela estiver na prisão, contará uma
data de mentiras e nós nada avançaremos. Deixemo-la livre e bastará segui-la para se encontrar o ninho onde se esconde o resto do bando. Não é simples?
Sanders escrevia ainda, murmurando que era realmente muito simples. Bruscamente, Filipe retirou os pés da mesa e endireitou-se na cadeira. Depois, esboçou um sorriso
para se desculpar. "Tenho ainda os tiros nos ouvidos, disse ele. Assim que se fecha uma porta julgo ouvir uma detonação."
- Talvez tenha um pouco de febre... por causa do seu braço... - replicou Sanders.
- Não tenho febre! - declarou o velho, com energia.
- Hoje, sr. Filipe limito-me a entrevistá-lo sobre coisas de actualidade, mas temos ainda sete continuações a fornecer, como deve ter compreendido, Amanhã terá de
me falar de si, da sua infância, dos seus estudos, etc. Uma verdadeira biografia. "O homem que abateu Big Bill." Dizia então que essa mulher... e como é ela?
Filipe não respondeu e riu cordealmente a este súbito ataque.
- Olhe que não me apanha com tanta facilidade. Não ouço nada, não vejo nada, não digo nada. E fez o gesto dos três macacos do templo de Nikko.
-É pena.-disse Sanders-Por uma informação semelhante o chefe daria ainda quinhentos dólares... eu conheço-o.
Filipe tinha caído numa profunda meditação. Não podia afastar Erik Bengtson do seu espírito. Erik com os olhos vermelhos, meio cego, meio louco por dores horríveis
na cabeça, o acabrunhamento do seu corpo, a tristeza da sua voz. O rapaz não era mau. E tinha coragem. Sabia calar-se e estava só, para se defender. E esse quadro,
na oficina, com as suas ondas verdes, a vela cor de laranja e Liliana Smith no primeiro plano. Era um idiota, com certeza, mas havia arrojo na sua falta, forçoso
era reconhecê-lo. "Como? Que dizia?" - preguntou, saindo da sua distracção - "Preguntava se posso servir me do seu telefone. Queria saber se o patrão daria mil dólares
caso o senhor consentisse em dar parte ao Evening Star das suas suspeitas."
- Pregunto a mim mesmo que hei-de fazer a tanto dinheiro. - disse Filipe - Vejamos... espere dois dias e... veremos. vou fazer uma outra proposta: suponha que nós
visitamos toda a Central - você fotografará doze caixeiras e depois escolherá. E eu digo depois se a mulher em questão faz parte delas. Que acha?
Sanders reflectiu, perplexo. Isto abria-lhe horizontes novos. Sob o ponto de vista jornalístico, a proposta não era má. Podiam fotografar doze bonitas mulheres e
abrir um concurso entre os leitores. "Qual das doze mulheres era a amante de Big Bill?" Antes que ele pudesse sair das suas reflexões, o telefone tocou. Maquinalmente,
pegou no auscultador e estendeu-o a Filipe. "É para si -disse.
- Como? O quê? Morta? Não, eu vou, - gritou
o detective ao aparelho e, precipitadamente saiu do aposento - Sanders, com a rápida compreensão do repórter experimentado correu atrás dele, através do corredor,
por diante da boca de incêndio até ao elevador.
- Que aconteceu? - gritou, já sem fôlego.
- O bando de Big Bill. Acabam de matar a rapariga. - respondeu o velho detective - E precipitaram-se os dois para o 3.? andar.
LADEADO por dois inspectores de polícia, o velho Filipe
estava no corredor branco da casa de saúde. Sanders, o repórter, estava sentado no banco vizinho. Cheirava a oleado recentemente encerado; o braço de Filipe doía-lhe.
Esperavam todos que a doente, Liliana Smith, estivesse preparada para o interrogatório.
- Que fazem aqui? - preguntou a enfermeira-chefe passando diante dos quatro homens.
- Esperam pelo N.? 14 - respondeu a enfermeira do andar, pois aqui cada doente tinha um número.
Liliana não era mais do que um fardo inconsciente, no momento em que madame Chalon a tinha encontrado no tapete do gabinete de provas, até a terem deitado na mesa
das operações. Pelo espaço de um segundo, tinha experimentado a sensação de uma luz aguda e dolorosa, depois, sob a influência do narcótico, ouvia a campainha da
loja de penhores, dling dling dling... Tiraram-lhe a bala do pulmão, coseram-na e transportaram-na para o quarto n.? 14.
Só à noite voltou a si; deram-lhe uma injecção, ergueram na um pouco e submeteram-na a um curto interrogatório, A enfermeira tomou lhe o pulso e os homens encostaram-se
à cama, pois Liliana só podia falar em voz quási imperceptível.
-- Conhecia a pessoa que fez fogo sobre si?
Liliana reflectiu:
- Não - respondeu. - Não.
- com certeza? - preguntou um dos comissários. -Não.
- Era um homem?
Liliana acenou negativamente com a cabeça na almofada.
- Uma mulher, então ?
- Sim.
- Como era ela ?
- Como uma cliente. - murmurou, a custo, Liliana.
- Isso não é uma descrição; que aparência tinha ? Liliana, cujo pulso na mão da enfermeira se tornava
lento e fraco, fez, em voz baixa, o retrato de uma mulher: alta, morena, enérgica, com uma voz forte e uma grande verruga na face, uma mulher, emfim, que não tinha
a mínima semelhança com Nina. A enfermeira fez um sinal ao comissário: basta.
Fora, no corredor branco da casa de saúde, Filipe dizia: "É claro. Ela não dirá nada. Foi qualquer do seu bando que lhe atirou." Têm medo que fale demais.
- Sim, é claro, - disse o comissário - Sanders, tomou notas apressadas no seu bloco; depois, todos juntos foram tomar cerveja.
Filipe tinha a impressão de que não poderia mais dormir na sua vida. Já fazia vinte e quatro horas que estava em pé e, no cotovelo, uma palpitação fazia-se sentir,
o que significava talvez um envenenamento do sangue.
No quarto N.? 14, Liliana estava deitada sem movimento. Sentia-se contente. Deram-lhe mais uma injecção e ela adormeceu: depois, voltou a si, tornando ainda a amodorrar.
Assim que abriu os olhos, era dia. Não tinha o cérebro ainda claro, mas a consciência de ter feito qualquer coisa certa. O que era forte em si, era sempre forte:
o bem no mal, a força no querer.
Nina quis matá-la. Liliana sorria quando pensava
nessa "maluquinha". Quem podia imaginar uma coisa dessas, da Nina! Havia também neste pensamento um pouco de respeito, um estranho elo, uma leve e curiosa simpatia.
- Então, como vai hoje ? - preguntou a enfermeira endireitando-a na cama. Liliana tinha uma estranha tendência a descair constantemente, o que era mau sinal.
- Obrigada, muito bem - respondeu, num sopro. Sim, ela sentia-se bem nesse leito. Não sofria.
Aqui, nada podia acontecer-lhe. Ninguém a podia vir prender. O ventilador sussurrava; havia um ventilador ao pé da janela. Lá fora oscilava um ramo de hera. De longe,
chegava o som amortecido de um rádio.
Depois ouviu o sino que, na Central, tocava para se fechar o armazém.
No corredor, um homem esperava.
- Chamo-me Sanders do Evening Star e queria tirar um retrato à menina Smith, para o meu jornal. Trago o fotógrafo, Pratt. Vamos, Pratt, venha cá.
- Ninguém pode ver a menina Smith. - disse a enfermeira.-Ela não está bem.
- Estado grave ?-preguntou Sanders, aflito com o pensamento de ver uma boa reportagem escapar-lhe. A enfermeira encolheu os ombros e foi-se sem ruído, nas suas solas
de borracha.
- Voltarei. - disse Sanders.
Mas só pôde ver Liliana ao fim de três semanas, dois dias depois do enterro do velho Filipe. "Cá está, outra vez, esse demónio do Evening Star-" - disse a enfermeira.
- Deixe-o entrar... espere... passe-me um espelho... e a minha malinha... diga-lhe que tenha paciência por cinco minutos ... - respondeu vivamente Liliana. Aborrecida,
a enfermeira saiu. Assim que Sanders entrou, Liliana estava espectaculosamente deitada: com as faces pálidas e os lábios vermelhos. Vestia uma camisa de noite cor
de rosa-chá.
Ah! emfim!- exclamou Sanders. New-York inteira espera ver o seu retrato. Tem um grande futuro diante de si e um passado cheio de experiência, Baby; acredite em Sanders
que tem visto subir muitas estrelas.
- Estou absolutamente num feixe - disse Liliana, sorrindo. Sanders arranjou-a um pouco e Pratt barulhava com o seu aparelho através da porta.
- Aqui está Pratt. - disse Sanders. - Desta vez, Pratt, nada de retoques. Deixe-nos andar, Baby, vamos valorizar a sua história como merece. O patrão oferece lhe
trezentos dólares pelas suas memórias a respeito de Big Bill e isto para começar. Que vai fazer quando sair deste galinheiro?
- A minha ambição tem sido sempre o teatro. disse prontamente Liliana. -Mesmo sob o cobertor de lã, marcado com as iniciais do hospital, podia ver-se quanto as suas
ancas eram belas. - Gostaria de ser rica e célebre, meus pais não são ricos e tenho duas irmãzinhas.
Encantado, Sanders estenografava. Tudo isso seria impresso no Evening Star.
- Minha filha - disse ele. em tom solene, - a tua carreira começa hoje. Dentro de três anos darão o teu nome a uma marca de cigarros!
O magnésio brilhou com um estalido surdo e uma nuvem de fumo pálido diluiu-se no ar, até ao teto, pintado de branco, do quarto da doente.
- DE quem é a vez agora ?-preguntou o Sr. Crosby
ao seu secretário. O secretário consultou a lista e disse:
- Da sr.a Bengtson, sr. Crosby.
O sr. Crosby levantou-se e passou por cada uma das quatro janelas colossais do seu escritório. Diante de todas via-se a mesma coisa : neve suja, bicos de torres,
de tal forma que New-York parecia uma péssima gravura de Jornal, impressa em rede grossa. Os dois rios e as colinas estavam invisíveis e a região do centro-oeste
pedia socorro, pois encontrava-se inundada, como todos os anos, em Março. No entanto, Crosby estava de bom humor. As acções da Central tinham subido meio ponto e
o seu açúcar tinha descido três décimas.
- Mande entrar a sr.a Bengtson. - ordenou. O secretário particular disse ao ditofone:
- A sr.a Bengtson pode entrar.
No vestíbulo de recepção estavam três secretárias prontas a executarem as ordens do todo-poderoso. Uma delas levantou se e foi chamar à sala de espera:
- A sr. Bengtson.
Ela tinha uma voz de mayonnaise rançosa. Nina levantou-se e entrou.
Os seus joelhos estavam ainda um pouco trémulos, pois o jovem Erik pesava mais de quatro quilos à nascença
e levou vinte e quatro horas a chegar. Mas, mesmo sem isso, ela teria os joelhos vacilantes no momento de comparecer diante do grande patrão. Vestia o seu casaco
azul-marinho e a condessa tinha-lhe emprestado luvas brancas, que eram muito grandes para ela. -Aqui está a sr.a Bengtson, sr. Crosby-disse o secretário, empurrando
uma cadeira incómoda para a frente do director da Central.
- Bons-dias, sr.a Bengtson - disse Crosby, sem olhar para Nina. Lia numa resma de papéis que o seu secretário colocara diante dele; quando acabou, suspirou alto
e passou outra vez diante de cada uma das quatro janelas de vidros cobertos de neve e voltou a sentar-se atrás da sua secretária gigante.
- Fez um pedido para voltar para cá, sr.a Bengtson ?
- preguntou, e o seu olhar ergueu-se bruscamente para Nina, de modo que ela ficou tão surpreendida que sentiu Cada uma das doze sardas do seu rosto.
É verdade, sr. Crosby. - respondeu prontamente, avançando para a borda da cadeira - A sr.a Bradley informou-me que iam contratar sessenta caixeiras novas para a
Central.
- A sr.a Bradley? A sr.a Bradley?-disse o sr. Crosby franzindo as sobrancelhas e procurando nos seus papéis.
- Ela já não trabalha na Central desde que Skimpy herdou do velho Filipe, mas aluga quartos aos empregados do armazém e sabe assim todas as novidades.
O sr. Crosby afastou, com um gesto de mão, essas explicações ociosas.
- Mandei-a chamar porque o meu amigo Thorpe escreveu-me de Paris por sua causa. -disse. Nina corou. Êle parece que se interessa muito por si, - acrescentou Crosby.
Pelo rizinho lisongeiro do secretário, Nina percebeu que o todo-poderoso acabava de ter espírito. Sorriu fracamente. Tinha muito medo. Querido e bom Steve, que mesmo
durante a sua segunda viagem de núpcias...
que com certeza não era um prazer para ele... não a esquecia..
- com certeza, sr. Crosby - disse ela.
- Thorpe disse-me que devia também receber seu marido, mas compreende que isso é completamente impossível. - disse o sr. Crosby.
- com certeza, sr. Crosby. - murmurou Nina com a garganta seca.
- Se o nosso bom Filipe não estivesse cá, a Central teria perdido centenas de milhares de dólares por causa de uma leviandade de seu marido. Eu digo leviandade...
porque não se pôde provar qualquer coisa pior.
Nina olhou para as luvas.
- Meu marido pagou duramente as suas faltas. disse ela-Transformou-se muito, também, desde que lhe foi levantada a prisão preventiva.
O sr. Crosby impacientou-se. Não queria meter-se em assuntos de psicologia privada.
- Bem - disse, atirando ao secretário o maço de papéis... - Por causa do meu amigo Thorpe... e por a senhora ser considerada como uma caixeira conscienciosa, vai
ser-lhe restituído o seu antigo lugar. Pode ir apresentar-se imediatamente na secção de louças e vidros... lá lhe darão as necessárias instruções. O seu marido deve
ver o que faz...
- Pinta. Será um dia um artista célebre! - não pôde deixar de dizer Nina.
Teria abafado, se tivesse que engulir isto. O sr. Crosby tomou um ar impacientado, mas franziu as sobrancelhas, o que era nele uma forma de sorrir.
- De quem é a vez agora ? - preguntou ao secretário.
- De madame Chalon: aumento de ordenado respondeu o rapaz.
Nina compreendeu que a despediam. Tinha o coração cheio de reconhecimento e não sabia como exprimi-lo.
- Obrigada, sr. Crosby - disse ela. Sinto-me feliz... emfim... quem já trabalhou na Central... embora esteja sempre a resmungar, troca tudo pela velha loja.
Assustada, ouviu como o sr. Crosby desatou a rir sonoramente, o que em breve se transformou numa tosse de bronquite crónica.
Nina desfilou diante das três secretárias do hall de recepção, diante das pessoas que estavam no salão de espera, diante dos avisos: "Pede-se o favor de guardar
silêncio" e dirigiu-se para o elevador.
Na secção de louças e vidros estavam já informados do seu regresso, pois na Central as notícias têm uma forma extraordinária de se propagar sem fios, por telepatia.
O sr. Berg estava sinceramente contente e miss Drivot fez como se estivesse.
- Sabe que nos tiram agora mais cinquenta cêntimos sobre 60 dólares ? Não faltava mais nada! Chamam a esta retirada: reforma para a velhice. Batatas, digo-lhe eu.
- anunciou ela a Nina.
Às escondidas, Nina acariciou a superfície lisa e fria de um vaso de cristal azul.
- Já lanchou? - preguntou o sr. Berg. Não? Então vá de pressa, porque pode começar a seguir. Como? Se precisamos de si? Creio bem. Temos uma venda antes do inventário:
vamos liquidar todos os objectos de importação inglesa. O serviço de 62 dólares está por 12 dólares, sem falar no resto.
- Os vidros, as porcelanas tomaram um grande desenvolvimento desde a sua saída - disse miss Drivot como um triunfo pessoal. Ao fundo, ouviu-se um ruído de vidro
partido; uma das novas caixeiras tinha quebrado uma fruteira. "Meu Deus!"-exclamou o sr. Berg, correndo para o local do sinistro.
A condessa esperava, com o seu inverosímil Ford diante da fachada oeste, justamente debaixo do aviso: "É proibido estacionar." Tinha metido conversa com o polícia
e este fazia, com sorridente complacência, uma
descrição da constituição de seu jovem irmão. Nina subiu para o carro.
- Pronto, Mutz - disse ela. A condessa falou amavelmente ao seu motor e, ao fim de um certo tempo, o carro consentiu em pôr-se em marcha. "Onde está Erik ? - preguntou
Nina. - "Espera-nos no "Rivoldi"... Ofereço-lhes uma garrafa de chianti.
- Eu não devo beber, pois começo a trabalhar logo a seguir ao almoço.
- Estás contente? - preguntou a condessa, olhando Nina emquanto ia aos ziguezagues perigosos.
- Sim ... se não fosse por causa do pequeno... -A sr.a Bradley e Skimpy tratarão dele. E tu ainda lhe podes dar de mamar duas vezes ao dia, de manhã e à noite.
- Sim, é verdade.
- E depois, Erik é mestre na arte de mudar os cueiros e de preparar biberons, deves reconhecê-lo...
- Querido Erik! - murmurou Nina, sorrindo sonhadoramente.
- Erik gosta muito de ti, Nina.- disse a condessa. Elas avançavam lentamente sobre a neve, por entre
a circulação do meio-dia. Nina não respondeu. A condessa afirmou:
- Nunca pensei que ele chegasse a amar tão profundamente.
- Não ? - preguntou Nina.
- Escuta, Nina. Eu aprendi qualquer coisa lá em baixo, em Lansdale. - disse a condessa fazendo habilmente uma volta para se colocar no lugar dos carros do "Rivoldi"
- O homem é uma máquina subtil e imperfeita. É muito bonito e muito bom sonhar com a perfeição : o ente perfeito, o casamento perfeito... o carácter perfeito...
mas isso não existe na realidade. Os defeitos são válvulas de segurança. Aprendi isto com os meus desgraçados de lá, da caixa dos malucos.
Nina reflectiu um instante. Desceram, e a condessa
teve um diálogo em voz muito alta com um italiano do parque dos carros; por fim, com um grande sorriso e um cumprimento, este deu-lhe a sua senha de estacionamento.
- Sim, creio que, quando se gosta de alguém, gosta-se tanto dos seus defeitos como do resto... - disse Nina quando elas empurravam já a porta e entravam na sala
do "Rivoldi , obscurecida pelo fumo.
Erik estava sentado a um canto, debruçado sobre o mármore da mesa : desenhava encarniçadamente. Quando viu as duas mulheres, apagou vivamente tudo com a palma da
mão. Nina instalou-se e, como havia muito que tinha aprendido a decifrar as garatujas de seu marido, reparou que se tratava de uma familia de pardalitos, de grandes
bicos abertos. A condessa esfregou as mãos e encomendou a comida.
- Nina resolveu trabalhar, emquanto tu não vendes o teu primeiro quadro. - disse ela a Erik.
- Não tardará muito tempo-respondeu, procurando debaixo da mesa, a mão de Nina. A jovem tinha ainda as grandes luvas e, surpreendido, ele tateou o final dos dedos
vazios. Durante esse tempo, a condessa lançou a Nina um olhar de muda compreensão. "Os homens são uma raça bem fraca... nós temos de os ajudar como pudermos..."
Era isto mais ou menos o que o seu olhar significava. Em Lansdale tinha ela tido muitas conversas sobre esse tema.
O chianti apareceu ao mesmo tempo que a sopa. O criado parecia estar apaixonado- pela condessa; uma nódoa de tomate manchava o seu avental branco.
- vou tentar pintar o que pensei durante o meu interrogatório de terceiro grau. - disse Erik subitamente. Era a primeira vez que falava disso.
- E que era, meu filho? - preguntou a condessa.
- Nina ... eis o que pensava. Dizia constantemente para mim: Nina ... Nina ... Nina..
Calaram-se um instante.
- Agora trata de não recomeçar, porque eu só posso pedir uma licença por ano. - disse a condessa, alegremente, vazando o vinho nos copos.
Às seis horas menos cinco, exactamente, a tal senhora
- a cliente para quem tudo era caro - fez a sua entrada na secção de vidros e louças. Passou pelos doze balcões, que tinham instalado para a liquidação geral e chegou
diante do serviço de rosas.
Nina apressou-se a servi-la.
-A senhora ainda se interessa pelo serviço? - preguntou ela - Baixou. Só custa nove dólares e setenta e cinco...
A mulher calculou, movendo os lábios.
Eram seis horas, a sineta tocou; por fim, a cliente tomou um ar encantado:
- Eu levo-o! -disse.
- Devo avisá-la, minha senhora, de que duas chávenas já estão rachadas -disse Nina dando um piparote nas duas peças de que saía um som velado.
- Não faz mal - afirmou a senhora - as coisas rachadas são as que duram mais.

VALHA ME Deus! Lá está ela outra vez! -exclamou intimamente Nina, ao ver a cliente que, às seis horas menos cinco, entrava a porta envidraçada que separava os novos dos velhos armazéns, e a secção de alimentação da das porcelanas.
Na secção dos alimentos era hoje o dia do peixe a preço único: cada qualidade a 20 cents o arrátel. Sentia-se o cheiro em todo o andar! Quanto à senhora, vinha pela quarta vez e, justamente uns minutos antes de fechar o armazém, Pertencia a essa categoria de pessoas que chegam sempre tarde. Embora os cinco degraus, que se seguiam à porta envidraçada, fossem assinalados por um letreiro, dizendo: "Atenção aos degraus!" a senhora tropeçou, deixou cair um embrulho e apertou a malinha de mão contra o seio frouxo. com o chapéu um pouco ao lado, as faces afogueadas, pertencia também a essa espécie de clientes que andam sempre à procura do que for mais barato.
Blusas manchadas, cafeteiras amachucadas, sacos de coiro desbotados pelo sol, meias de seda quási artificial, de ocasião - tais eram as suas compras. São mulheres de pequenos empregados, cheias de preocupações e de trabalho, mulheres que nunca, na sua vida, possuíram uma coisa, tendo-a pago pelo seu preço normal.
Agora era o serviço de porcelana para doze pessoas, guarnecido a rosas, que tinha dado volta à cabeça da boa senhora. Estava em cima da segunda mesa: pratos, travessas, chávenas de café -tudo. Porcelana já não muito branca, rosas de cor bastante carregada, folhas excessivamente verdes, com os bordos ligeiramente mordiscados, pouco doirados. " 39.80" anunciava a etiqueta; e esse preço, só por si, era uma obra de arte, uma sugestão que tornava o serviço ainda mais barato do que 40 dólares. Desde a fábrica, até esta mesa de armazém, centenas de pessoas tinham sido lesadas nos seus salários, para que o preço desse serviço pudesse ser calculado vinte cêntimos abaixo de quarenta dólares. Exposto agora, com todas as suas rosas e o seu luxo de segunda classe, atraía os clientes.

 

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A mulher parou diante do serviço: viram-na reflectir e calcular, emquanto que, com o olhar, procurava uma empregada.
"A mim não, Senhor, a mim não!"-implorou mentalmente Nina, tentando parecer desagradável - "Ao menos uma vez, miss Drivot pode muito bem atender a última cliente."
- pensava ela, quási zangada -Três rugas cruzaram-lhe a pequena testa. Erik pretendia que ela parecia um pequeno cão basset, assim que tinha qualquer preocupação...
Dizia também que era tão pequena e tão nova que devia ainda "precisar de crescer dentro da pele, dessa pele fina, brilhante e aveludada de rapariga de dezanove anos.
E quando Nina recordava as coisas que o seu amigo lhe dizia, essas coisas que mais ninguém no mundo podia inventar, sentia sempre um aperto angustioso e doce, no
coração. Agora, no seu trabalho, cinco-não, dois minutos e meio-antes de fechar, e com uma cliente desagradável à vista, sentia-o também, mas sem doçura.
- Está livre, menina?-preguntou a senhora, diante do serviço de porcelana - E Nina abandonou-se ao seu destino.
E devia ser esse o seu destino, pois toda a clientela
desagradável se lhe dirigia. Não sei o que tenho... as clientes caem em cima de mim como moscas -lamentava-se ao seu amigo Erik e à sua camarada Liliana.
-Oh! Tu tens com certeza qualquer atracção, pardal, pardalinho, pardalito - dizia ele.
Os clientes só servem para nos maçar! -replicava Liliana, sem dar atenção ao pedido de conselho que a queixa de Nina ocultava.
Isso é certo. - concordava Nina, sem verdadeira convicção.
com os cabelos brilhantes, cor de avelã, o olhar sério e interrogador, tudo nela parecia tão simples e era tão simpático, que não se tornava necessária muita psicologia
para compreender que, quem quisesse comprar um serviço de porcelana ou uma fruteira de cristal, se dirigisse a ela e não à magra e seca miss Drivot.
- Trinta e nove dólares ?-preguntou a senhora, parada diante do serviço de rosas - Eram então seis horas e um minuto; a sineta já tinha acabado de tocar.
- Trinta e nove dólares e oitenta.-rectificou polidamente Nina, fazendo soar, com uma pancada do dedo, uma chávena de onde saiu um lindo som - É uma bela porcelana.
Artigo de primeira qualidade.
Seis horas e dois! Erick devia já estar à espera em baixo, na escada 5. Drivot, naturalmente, já estava pronta, há que tempos! Cobria com panos os animais de vidro
e preparava-se para sair.
- Tão caro! Não se poderia... emfim, não se poderia fazer um abatimento ?
- Infelizmente não é possível. É pintado à mão, artigo de primeira qualidade.
- Não posso gastar tanto! É pintado à mão? E se se partir alguma peça, poderão substituí-la ?
- com certeza, minha senhora, com certeza.- respondeu Nina.
Esta conversa tinha lugar pela quarta vez; a mulher estava louca pelo serviço, mas não tinha o dinheiro preciso.
Seis horas e quatro! No meio da sua cólera e da sua impaciência, Nina experimentava como que um sentimento de compreensão por essa senhora, sentimento que era piedade,
embora ela não o reconhecesse como tal.
- É que eu festejo em breve as minhas bodas de prata ... - explicou a cliente.
- Ah! Sim?-interessou-se amavelmente Nina - Eu também estou para casar em breve, teria acrescentado de boa vontade. Mas a sua vida privada nada tinha que ver com
o trabalho. Seis horas e cinco, indicava o relógio sobre a porta envidraçada. Na secção musical, próxima, o último gramofone tinha-se calado. Erik esperava. Drivot,
evidentemente, havia-se eclipsado. Somente no fundo da galeria, na caixa 24, trabalhavam ainda. Era aí que a sr.a Bradley empacotava, mecanicamente, como uma máquina.
A sr.a Bradley era também uma espécie de vítima; era sempre a última a sair.
- Deve resolver-se. - tornou Nina - é uma ocasião
única...
O sr. Berg, chefe da secção, percorria pela última vez o seu domínio. Involuntariamente, Nina lançou lhe um olhar de submissa súplica. Experimentava pelo sr. Berg
o sentimento respeitoso que um jovem escritor pode sentir por um prémio Nobel. O sr, Berg possuia, com certeza, coração: toda a secção estava de acordo sobre este
ponto - coração e coragem. Veio em auxílio da empregada.
- O elevador não trabalha já, minha senhora. lembrou, cortesmente - Fechamos às seis horas. Esta senhora terá que descer a escada, quando tiver terminado a sua compra.
- Não posso resolver hoje. - disse a cliente - Volto cá noutra ocasião. E foi-se embora.
Nina tinha ainda de arrumar. A porcelana tilintava-lhe nas mãos, tão nervosa se sentia. Erik estava em baixo, na escada 5. O elevador reservado ao pessoal já não
funcionava. Era preciso descer a pé a escada 8 e seguir o longo corredor da cave até ao vestiário onde estavam os armários estreitos e alinhados, como no quartel.
Nina lavou as mãos, mirou-se um segundo ao espelho do toucador e, em seguida, pôs um sopro de pó no rosto e um traço de rouge nos lábios.
-Então? Tens pressa?-preguntou Liliana que arranjava as unhas e as sobrancelhas, pausadamente.
- Tenho. - respondeu Nina, com um braço já metido na manga do casaco -A sr.a Bradley já saiu?
- Não a vi - respondeu Liliana, pintando cuidadosamente os lábios.
- Tanto pior, eu não posso esperar, -retorquiu Nina, saindo.
- Espera um instante! Eu vou contigo! -gritou Liliana atrás dela; mas com as suas três rugas na testa, Nina fingiu não ouvir. Embora Liliana fôsse sua amiga, não
gostava que se lhe agarrasse todas as tardes. Muitas vezes Liliana e Erik entregavam-se a brincadeiras a que Nina, com a melhor boa vontade deste mundo, não podia
achar graça.
Transpôs, correndo, as portas da cave, deslisou entre as caixeiras que subiam, cujo grupo foi detido no antigo pátio de controle. Do portão vinha uma corrente de
ar: recebia-se aí uma poeirada no rosto e nos olhos, de fazer chorar. Nina ia meia cega quando conseguiu chegar à escada 5. Erik lá estava: tinha o ar de verdadeiro
gentleman, com a gravata de seda e o chapéu de coco. Havia já algum tempo que deixara crescer um pequeno bigode. Enlaçou amorosamente Nina.
- Então Spurv? Lille Spurv! - murmurou, arrastando-a. Isto era dinamarquês e significava: pardal, pardalinho. Pois Erik - Erik Bengtson era dinamarquês. Viera para
a América muito novo e frequentemente, evocava ainda os bosques de vidoeiros e as baías tranquilas do seu país. Diferia em muita coisa da espécie de rapazes que
Nina costumava conhecer. Ele parecia-lhe um estrangeiro que tivesse acabado de desembarcar no último
barco e não compreendesse bem o que representava New-York. Era muito mais alto do que Nina; uma expressão impertinente flutuava-lhe no rosto: dir-se-ia que tudo
quanto ele via o divertia loucamente.
Nina apertou com mais força o braço contra o do companheiro, e caminhou sem dizer palavra. Como exprimir a sua felicidade sempre que este Erik tinha o braço metido
no seu ombro junto à sua fronte? Ela regulava o mais possível o seu passo pelo dele e levantava, quanto podia, o rosto para o ver.
Era o rosto da tarde de todas as mulheres de grande cidade: a face jovem e fina, de pele frágil e delicada, de quem apanha pouca luz e pouco sol. Muito nova, terna,
um tudo-nada de petulância e algum cepticismo. "Estar cansada, sim, às vezes, mas não o mostrar nunca." Um leve círculo em redor dos olhos e o clarão agudo das lâmpadas
e dos reclamos luminosos sobre as faces e sobre a boca entreaberta.
- Um pouco atrasada, an ? - disse ele.
- Sim... À última hora apareceu-me uma velha maçadora...
- Não te rales, podemos ainda passar dez minutos no "Rivoldi" - e deu grandes passadas.
Não podiam avançar; era a hora em que a capital enlouquecia, em que de todas as casas de comércio saía gente, ondas de gente. Caça aos automóveis, aos metros, aos
eléctricos, filas de carros parados, mendigos, floristas tentando vender os últimos ramos, carritos de fruta voltando para casa, homens que querem apanhar uma rapariga
com quem passar a tarde, mulheres procurando um homem com quem passar a noite; gente casada que volta para casa, maridos que perdem tempo para não terem de recolher,
solitários parados às esquinas a seguir os namorados com o olhar.
- Ao "Rivoldi"? Não vamos para casa? É pena!...
- lamentou Nina, mergulhando rapidamente, o rosto na sombra.
- Que queres, tem que ser! E posso dar-me por feliz se tiver acabado amanhã de manhã, às seis horas.
- Trabalho extraordinário ? E que vais fazer ? - preguntou a rapariga.
- Pôr. Pôr ovos toda a noite. - disse Erik, não sem dignidade, empurrando a porta do pequeno restaurante italiano. Lá dentro cheirava a cebola e a cigarros ordinários;
o ar estava todo azul, Erik tinha um fraco por esse lugar fumarento; já fora à Itália, no tempo em que esperava tornar-se pintor célebre, e conhecia um pouco o italiano.
- Pôr ovos ? Para quê ? - preguntou Nina, rindo.
- Para as festas da Páscoa. - respondeu Erik, instalando-a num canto.
Ela encaixou-se atrás da mesita de tampo de mármore, olhando-o num ar encantado.
- Dá-me um cigarro. - disse, para não deixar ver muito a sua admiração - E deixa o meu joelho em paz. Não dês nas vistas.
Na verdade, Erik, esse grande maluco, não se comportava bem. Que ele era um grande maluco, lá nisso toda a gente estava de acordo,
- Raviolis, café, torta de damasco, - encomendou ao criado.
- Para mim também-resolveu Nina, que não percebera nada.
Erik tinha, mais uma vez, o lápis na mão e desenhava qualquer coisa no mármore da mesa, entre as rodelas que as chávenas de café, anteriormente servidas, haviam
deixado.
- Que é isso ? - preguntou Nina, aspirando profundamente a sua primeira fumaça.
Erik levantou os olhos um instante, quando o fumo saía pelas narinas pálidas e finas da sua companheira. Estava loucamente apaixonado por ela. - "Faz anéis".
- disse-lhe - Nina aspirou o cigarro e fez anéis. Erik contemplava o espectáculo, como se fosse um bom numero
de musiC'hall. Depois, continuou a desenhar. "Parece-me que tenho uma idea"... - murmurou, distraído.
- A respeito dos ovos ?
- Sim. Trata-se da decoração para a Páscoa.
- Que o demónio leve a decoração se tu tens que ficar lá todas as noites por causa disso. Parece-me que o teu chefe te apanhou mais uma vez.
- Apanhou-me bem, o velho rinoceronte. A ele não lhe vem outra coisa à cabeça senão pôr uma lebre e um vidoeiro em cada vitrina.
-E tu?
- Eu ? Oh! eu vou achar, com certeza, qualquer
coisa melhor.
- com certeza. - confiou Nina. Desde que conhecera este Erik, descobrira que ele era um génio. Um génio em montras e em todo o género de coisas: publicidade, desenhos,
balões fora dos novos edifícios, esboços para catálogos - sim, um génio em tudo e para tudo. Mas, por mais recente que fosse a sua experiência no que respeitava
a génios, ela já tinha compreendido que não é sempre fácil viver com eles.
- Fico outra vez sozinha esta noite! Estava tão contente pensando que a passaria ao pé de ti... - disse timidamente.
- Mete-te no teu ninho e dorme, Lille Spurv. - respondeu ele - Tens o ar de quem está um pouco cansada ... Eu vou despachar-me e talvez amanhã te vá dar os bons-dias
antes de tu saíres.
- Sim senhor... isto vai dar um bonito casamento! exclamou ela. - Quando eu sair do armazém, tens tu que entrar e quando tu saíres, entrarei eu!
- Um casamento de primeira qualidade. Garantido. - brincou ele abandonando, emfim, o desenho. Nina observava-o emquanto mastigava a sua dose de raviolis... Tinha
outra vez o ar de não estar ali ao pé dela, à mesa do "Rivoldi", mas Deus sabia lá onde...
Tu não te sentes cansado, dize ? - preguntou ela.
Nem nada - respondeu o rapaz.
Nina bebeu o seu café e comeu o seu bolo. Estava desiludida e triste. A noite, sem Erik, alongava-se na sua frente, sem fim, vazia como um deserto.
- Poderia talvez ir ao cinema... - arriscou, hesitante.
- Isso não! - retorquiu Erik - Ao cinema só vamos
juntos. Não quero que vejas sem mim todos os bons films. -Egoísta!
- Sou-o horrivelmente, quando se trata de ti. - afirmou Erik. Mas estava a brincar.
- Quando iremos ao cinema, os dois ? - preguntou Nina, meia consolada.
- Amanhã. - respondeu ele - E chamou o criado, murmurando palavras em italiano. A conta chegou pouco depois. Erik pagou.
A mesa estava coberta de garatujas, mas Nina não chegava a perceber do que se tratava. O criado trazia já uma rodilha molhada e apagou tudo.
- Agora vamos, pequenina, avante! Preciso voltar à loja - disse Erik, metendo o braço no da rapariga.
Lá fora, tiveram que afrontar o primeiro vento da primavera que desembocava da esquina. Só agora ela sentia a que ponto estava fatigada e só o pensar na sua cama,
causou-lhe prazer. Maquinalmente dirigiu-se para a estação do metro, mais próxima, mas Erik reteve-a no momento em que ela ia atravessar a rua.
- Anda, - disse - vamos tomar um táxi, dou-te um thaler para pagar e vais até casa. Ele disse thaler e isso parecia estrangeiro, dinamarquês.
- Meu Deus, como és gastador! E pensa isto em casar...
- Pst! Pare primeiro na Central Warehouse. A senhora vai mais-longe - disse Erik, empurrando Nina para o táxi, que acabava de parar ao seu sinal.
Para ir do "Rivoldi" à Central, de táxi, bastava minuto e meio, compreendendo duas paragens nos cruzamentos,
Durante esse minuto e meio a boca de Erik foi colada à de Nina.
- Boas-noites, Lille Spurv. - disse, descendo - Aqui
tens o teu thaler.
- Dá saudades â lebre da Páscoa,-recomendou ela e põe os teus ovos com todo o cuidado.
Na primeira esquina fêz parar o carro, deu ao motorista trinta cêntimos, meteu na sua carteira o dólar que tinha aquecido na mão, e depois meteu-se na boca do metro.
A Central Warehouse ocupava um quarteirão inteiro de casas no centro da cidade, com doze montras gigantescas, em cada uma das quatro fachadas e doze andares cheios
de mercadorias e de actividade. No meio, erguia-se um arranha-céus de dezoito andares, no qual estavam instalados os escritórios e aposentos da direcção.
Erik seguiu pelo lado oeste do edifício: todas as vitrinas estavam iluminadas. Na fachada norte, estores, atrás dos quais se agitavam sombras, velavam as montras
números 1 a 6, cuja decoração devia ser renovada durante a noite. O relógio monumental do edifício do centro, de disco luminoso, indicava sete horas menos dez.
- Adeus, Joé - disse o rapaz passando diante da casa do porteiro, que ficava à entrada 4 do pessoal.
- Trabalha de noite, sr. Bengtson ? - informou-se Joé, aparecendo à porta.
Ele tinha um olho de vidro. Depois do armistício, fôra uma idea fixa do sr. Crosby, o deus invisível que, reinava sobre todo o armazém, empregar cinquenta feridos
de guerra. Os jornais tinham falado muito e citado o sr. Crosby como um grande patriota. Sete ou oito desses veteranos estavam ao serviço; podia-se vê-los passar
por diferentes lugares. Um negro maneta ocupava-se do elevador do pessoal do lado norte, e um
irlandês apoplético, com uma perna artificial, tinha por missão aparar todos os lápis dos escritórios.
- Decoração de Páscoa - disse Bengtson estendendo ao guarda o seu maço de cigarros para que ele tirasse um.
- Obrigado. - agradeceu Joé, metendo o cigarro na
algibeira interior.
- O velho já lá está ? - preguntou Bengtson.
- Eu não vi o sr. Sprague - respondeu Joé.
Bengtson afastou-se em passo de gimnástica, assobiando. Fazia soar as chaves como castanholas. As salas vazias seguiam-se numa semi-obscuridade; panos brancos cobriam
as mercadorias que não tinham sido retiradas. De vez em quando, aparecia um manequim, impecavelmente vestido, que sorria, com ar petrificado.
Bengtson dava piparotes naquelas caras de cera, estava contente. Cantava-lhe ainda no sangue o beijo de Nina. Ele gostava do armazém, de noite, "a multidão do mundo",
pensava vagamente. Pensava em dinamarquês.
Abriu o elevador com a sua chave e estava quási a entrar, quando Pusch apareceu, ofegante, e também entrou. Pusch era aprendiz de decorador, um adolescente de dezoito
anos, em pleno crescimento. Ignoravam donde lhe vinha o apelido. Trazia uma pilha de amostras e vacilava com o peso do fardo.
- O sr. Sprague quere ver as cores - balbuciou sufocado, emquanto o elevador os levava. Erik assobiou um pouco mais forte. Tinha a convicção profunda de que o velho,
o sr. Sprague, o chefe dos decoradores, nascera daltónico. Assobiando sempre, indicou com o dedo uma amostra verde claro. Depois interrompeu o assobio e disse:
- É este que vamos escolher. - Depois continuou a
assobiar.
Chegaram ao 12º andar onde ficava a oficina,
- Diz-me cá, ó Pusch, é verdade que pintas o cabelo ? - preguntou ele, antes de sair.
-Não, porquê?- balbuciou o aprendiz cujas orelhas descoradas se tinham tornado encarnadas como fogo. Os seus cabelos eram tão claros, como os de jean Harlow antes
do protesto dos censores. Estava ainda no mesmo sítio com o maço de fazendas e as suas orelhas vermelhas e já Bengtson abria a porta da oficina.
Quando ia a entrar notou um vulto que saía do escritório de Filipe, o detective da casa.- Ah? -pensou, retirando a mão do fecho. A rapariga que avançava para ele
era Liliana, a amiga de Nina.
- Ah? Liliana? - admirou-se. A rapariga, de casaco no braço, abotoando o vestido, disse:
- Viva, Bengtson! - numa voz um pouco rouca Dê-me um cigarro, depressa.
Solícito, estendeu-lhe o maço emquanto riscava já o fósforo. Ela considerava o gesto amável com as sobrancelhas erguidas.
- Aconteceu alguma coisa? -preguntou ele.
- Porquê? Tenho ar de ter sido violentada pelo velho Filipe? Tranqúilize-se, não aconteceu nada.
- Fazia-me pena... por causa do pobre homem. disse ousadamente Bengtson.
Liliana estava na sua frente, com o vestido já abotoado mas tendo ainda as mãos trémulas. Fumava com violência, de uma forma completamente diferente de Nina - pensava
Erik.
- Julgava que já tinha saído há muito tempo. -disse ele, para dizer alguma coisa. Não podia suportar Liliana que se encontrava, sempre que não se desejava a sua
presença. Ela encostara-se a ele e olhava-o com um sorriso trocista.
- Eu não sabia que a Nina usava bâton...-zombe teou a rapariga. Pusch, o aprendiz, tinha-se, entretanto, aproximado e nem se mexia.
- Como? Nina?... - preguntou Erik pouco à vontade.
Liliana desatou a rir e dispòs-se a sair, dizendo:
- Ela tem sempre os lábios pálidos e acha que me
pinto muito.
- Não sei o que quere dizer .. - observou Erik,
que se sentia estúpido.
Pusch riu, passando a mão pelo rosto. Erik compreendeu e, tirando vivamente o lenço, limpou a cara. Envergonhado, apagou bruscamente o beijo do adeus de
Nina.
- Boas noites. - rematou Liliana - Tenho de me ir
embora.
- Quem a espera ? - preguntou Erik.
- Vanderbilt - chasqueou a rapariga, afastando-se. Erik viu-a partir. Ela tinha as mais bonitas ancas de todo o armazém.
- Espere. Eu levo-a. Não está ninguém no elevador.
Erik possuía as chaves de todas as portas pois trabalhava principalmente de noite. "Um gentleman é sempre um gentleman" - troçou Liliana emquanto o rapaz lhe abria
a porta - e isso desagradou-lhe. Ela tinha uma maneira de irritar as pessoas, como um mosquito que não se pode apanhar. O elevador ficou logo cheio do seu perfume
penetrante e vulgar.
- Sabe do que eu gostava agora ? - preguntou, antes do elevador chegar abaixo. -Dançar, divertir-me, beber... consigo. -continuou, emquanto ele a olhava-Sim, arranjar
uma brincadeira aqui mesmo.
- Está a chorar ? - preguntou Erik, levemente perturbado, olhando-a, sempre.
-Parece... Obrigada por me ter acompanhado. O seu perfume flutuava ainda, quando Bengtson subiu e saiu do elevador.
O velho-o sr. Sprague - parecia impaciente quando
Erik entrou.
Quando tiver acabado de namorar as raparigas, talvez possamos pensar um pouco nas vitrinas, - disse imediatamente.
Bengtson limitou-se a rir. O sr. Sprague parecia-se com Mark Twain - velhas maneiras, e boa aparência - e sentia-se orgulhoso com isso. Tinha um cérebro de mármore
e um coração de oiro.
-Um dos manequins estava a chorar, levei-a lá abaixo - respondeu Erik, despreocupado.
- Paladino das damas. -replicou Sprague, ciumento Sabe que ser revistado não tem nada de divertido ?
-Ser revistado? Como? -exclamou Bengtson Que quere dizer com isso?
- O quê, não sabe ? Roubaram qualquer coisa e o Filipe teve de revistar muitas empregadas.
- Rouba-se muito, nestes últimos tempos, não acha sr. Sprague?-notou Bengtson, brincando com as amostras.
A luz lançava um reflexo vivo sobre o tecido vulgar.
- É exactamente o que diz o sr. Crosby; roubam muito, nestes últimos tempos. Desta vez o velho Filipe vai pagá-las.
- Que aconteceu ? - interrogou Erik, deixando cair a amostra,
- Sabe, aqueles objectos de arte com que se fez uma exposição russa de peças raras e de objectos pertencentes a particulares, lembra-se?
Bengtson lembrava-se muito bem: tivera com o velho uma grande discussão a respeito dessa instalação e acabara por ganhar. O outro quisera fazer qualquer coisa de
exagerado, como nos bailados eslavos. Erik tinha pedido alguns móveis emprestados à secção de antiguidades e fizera instalar vários aposentos em estilo Império,
onde dispusera as obras de arte.
- Que roubaram ? - preguntou, mais para dar prazer ao velho, do que por interesse.
- Uma pequena imagem, um ícone todo incrustado de pedras preciosas valendo dois mil dólares.
Estava segura ? - informou-se Bengtson - Então,
ninguém perdeu.
Lembrou-se de-repente dos olhos brilhantes de Liliana que chorava sem lágrimas e parecia irritada. "Como podem ter suspeitado das raparigas da secção de costura,
é o que eu pregunto. O velho Filipe torna-se cada vez
mais idiota."
Sprague abafou o riso: - É o que nos acontecerá a todos se ficarmos aqui empregados muito tempo. Você ainda não percebeu isso?
Desta vez, Bengtson exaltou-se: imaginou Filipe revistando Liliana.
- Eu matava alguém que quisesse revistar a Nina! -
disse, com veemência.
- Quem é a Nina? - preguntou o velho,
- Vamos casar no dia de Páscoa, como já lhe disse
- confirmou Erik.
O velho pôs-se a rir.
- É verdade, é tempo de se acorrentar - E havia nas suas palavras admiração e inveja.
Subitamente, Erik deixou os seus negócios pessoais e voltou-se para os tecidos. Pusch continuava ao pé da grande mesa de desenho, sobre a qual colocara as amostras,
e segurava uma na mão. Tinha uma predilecção quási feminina pelas cores, as sedas e os tecidos brilhantes e, no fundo da sua alma, sentia uma certa vergonha por
isso.
- Vai dormir, Pusch. - disse Bengtson - Aqui não se
precisa de crianças.
O velho aproximou-se também da mesa e, através
dos óculos, observou os tecidos.
- Precisamos de trinta e seis metros por vitrina. disse Erik, num tom profissional, pondo um papel coberto de cifras e de notas na mão do sr. Sprague - Prefere o
tecido verde, mas eu gosto mais do amarelo.
O velho considerou as duas cores que Bengtson lhe metia debaixo dos olhos,
- Você não percebe nada, meu rapaz, o verde é que deve ser.
Bengtson tomou um ar agastado. Intimamente, rejubilava.
- bom. vou descer, Começamos pela vitrina sete. - anunciou pegando no tecido verde. O seu método de obrigar o velho a fazer o que ele queria, mostrou-se mais uma
vez infalível:
- Comece pela primeira vitrina, como já lhe disse ordenou o chefe em tom peremptório.
Bengtson mostrou um ar santamente desolado. -Senhor, seja feita a vossa vontade!-disse - Depois pegou nas amostras e retirou-se.
No elevador flutuava ainda o perfume de Liliana... Liliana era caixeira do salão francês, de costura, na secção de vestidos. Chamava-se Liliana Smith. Smith, porque
era filha do operário Smith, empregado nos trabalhos do canal; Liliana, porque desejava velar assim a vulgaridade do seu nome de família e da sua origem. Imaginava
às vezes, vagamente, o que daria esse nome nos cartazes: a actriz de cinema Liliana Smith, a star de music'all, a rainha de beleza Liliana Smith. Gostaria então
de reservar o "Liliana" e abandonar o "Smith". Havia nela ódio contra tudo quanto vinha de baixo: odiava o ! cheiro da cozinha, morar numa cave à janela da qual
não via passar senão pernas, odiava as baratas que, de noite, passeavam no sobrado, a racha do seu espelho de má qualidade, odiava o seu leito, o seu fato, as suas
próprias mãos que trabalhavam demais Mas sem se tornarem alguma vez verdadeiras mãos de senhora. Liliana odiava também a clientela, irremediavelmente. Odiava essas
mulheres ricas que chegavam nos seus automóveis, com as malinhas cheias de cheques, ou acompanhadas de homens que pagavam por elas. Sorria-lhes, com o seu sorriso
profissional, mas odiava-as ao mesmo tempo e profundamente, com todo o seu ser.
LILIANA era uma criança da rua; em garota, brincara às escondidas nos grossos canos de gás, que a demolição das casas mais velhas do bairro fazia aparecer. Depois
empregou-se como aprendiza, primeiro em minúscula lojeca de alfaiate, depois num armazém da União Square e finalmente no Central Warehouse. Aí, com olhos ambiciosos,
tinha frequentado a escola onde a direcção do armazém mandava educar as suas empregadas. Progressivamente, subira da secção de retrozaria à da roupa branca, depois,
graças aos seus bons serviços e esforços, chegou ao sector mais requintado: aos salões de prova. Aí, tudo era velado: as luzes, as vozes, as cores. Espessos tapetes,
onde a jovem Liliana adorava meter os pés, tapetes de um cinzento-rosa, paredes da mesma cor, candeeiros com reflectores cromados, projectavam a sua claridade no
teto. Madame Chalon, a directora francesa, reinava neste domínio. Era lunática, de génio alegre"! , nas horas sentimentais, contava às empregadas os seus amores
infelizes com um célebre desenhador de modas de Paris. Liliana fazia tudo para agradar aj madames, pois desejava avançar, ir mais longe subir mais alto. Depois de
dois meses, não só se ocupava da venda, mas
também da apresentação de modelos, estava quasi a
passar da escala de 16 dólares para a secção mais bem paga, dos manequins, de que assumira já lugar de destaque.
Fazia a sua entrada com um casaco de arminho ou com um vestido de baile - cópia de um modelo de Patou -ou com um roupão de seda azul-noite. Via-se ao espelho, virava-se
com um movimento que lhe tinham ensinado, alargando o vestido à sua volta e olhava por cima do ombro a cliente - essa cliente que odiava.
A jovem Liliana tinha uma figura perfeita de manequim quarenta, para nos exprimirmos em linguagem profissional. Numa palavra, era construída como uma rainha, delicada,
elegante, com os membros finos e as ancas largas e coleantes. Nela, tudo era alto e pequeno: joelhos, pernas, seios. Esta filha de operário era feita como se um
apurador de raças, depois de muitos esforços, produzisse o que há de melhor com feitio de mulher. Tinha umas formas maravilhosas e também um rosto, mas para o qual
ninguém olhava: viam apenas o corpo e os vestidos que vestia. O seu rosto não era tão belo: tinha linhas duras e, em redor da boca e do queixo, certos traços deixavam
transparecer o Smith de baixa origem, a vontade de trepar.
Apaixonava-se pelos vestidos que mostrava, por todas as sedas, gazes, veludos, rendas. Os casacos de peles endoideciam-na. O seu corpo sentia-se feliz sob a caricia
de belos tecidos. Erik chamara-lhe pouco tempo antes: um mármore frio. Não era justo, pois ela tinha em si a paixão e, muitas vezes, essa paixão ardia de uma forma
insuportável. O pior era ter de tirar os vestidos depois de os apresentar e ser obrigada a pôr o seu fatito pobre de 12 dólares.
Para mudar de vestido só dão a um manequim um " ou dois minutos. No salão, ela passeia lentamente, como uma rainha, diante da clientela mas, assim que sai, no gabinete
de despir, as mãos tremem-lhe ainda: diante do espelho de três faces, despe um vestido, a correr, passa a outro, de-pressa, de-pressa, tendo atrás de si a irritável
directora que resmunga. Mas o que mais a entristece ainda, é ver os vestidos, essas adoradas toilettes em
cima das clientes! Ver como um modelo pode perder o seu chic, ver de que forma todas essas mulheres muito curtas, muito grossas, muito velhas, se esforçam para entrar
nos vestidos, como se põem diante dos espelhos, como são insignificantes, como não sabem vestir se, e tornam vulgares as mais belas peles!
É tudo isso que acende o ódio na jovem Liliana.
-Ah! se eu tivesse a sua figura!-suspirava muitas vezes uma cliente, quando a jovem se apresentava.
"Evidentemente, se tivesses a minha figura... - pensava orgulhosamente Liliana - E se tivesses a minha figura, que aconteceria? com um corpo como o meu, ganha-se
um salário de dezasseis dólares por semana e mora-se numa cave, sim, tudo por baixo! com a minha figura não se tem mesmo um amante, pois, para a maior parte dos
homens é-se "bem demais". Quanto a esses que estariam à minha altura não há nenhuma probabilidade que apareçam neste armazém.
- A cintura é muito estreita. - com estas palavras, cortou madame Thorpe os pensamentos errantes de Liliana.
Madame Thorpe era uma mulher que os seus amigos qualificavam de imponente. Enchouriçada num vestido de seda preta, estava no meio do gabinete de prova e, no espelho,
parecia um pouco melhor do que na realidade era. Todos os espelhos do salão de alta costura eram um tanto lisongeiros. Colocando-os favoravelmente, as senhoras pareciam
logo mais delgadas do que na realidade eram. Na secção de confecção não se davam a esse trabalho: aí abundavam as clientes de medida 48 e 50 e essas são como Deus
as fez e contentam-se com a sua sorte. Quando acabam as compras, sobem lá acima, à pastelaria e banqueteiam-se com sandwichs e tortas de maçã com creme.
-A cintura é muito estreita.-repetia madame Thorpe
- Aqui as cinturas são sempre estreitas. Eu tenho uma linha francesa. Em Paris todos os vestidos me servem,
Liliana odiava esta cliente, esta madame Thorpe, ainda mais do que as outras. Era dessas mulheres que vão aos armazéns unicamente porque se aborrecem: durante horas
fazia com que lhe mostrassem vestidos e provava-os - nervosa, incoerente, histérica. Depois, diante do espelho, caia pouco a pouco no estado de depressão de uma
mulher que tem quarenta anos, e é obrigada a admirar a maneira como uma rapariga de vinte sabe apresentar, com vantagem, o seu corpo esplendoroso.
Muitas vezes o ar quente do pequeno gabinete estava carregado de tempestade. Liliana invejava as clientes pelo seu dinheiro; as clientes invejavam-na pela sua beleza.
O sabor agudo do ciúme aparecia sob os sorrisos recíprocos; o ar cheirava aos corpos, aos perfumes, à mulher, o raio estava a cada momento para estalar. No entanto,
nesse dia, madame Thorpe acabara por comprar um casaco de noite guarnecido de arminho verdadeiro, modelo Margot.
- Esta peste ennervou-me hoje até ao último momento - dizia Liliana à sr.a Bradley quando, no metro, iam para casa. As duas mulheres tinham por costume fazerem juntas
o mesmo caminho até à rua 42. Aí, a sr.a Bradley tinha que mudar. Seguravam-se ambas à mesma correia de suspensão e oscilavam com o movimento da carruagem que ia
completamente cheia; nem pensar num lugar sentado!
- Se vejo a venda da Páscoa passada! - disse a
sr.a Bradley.
- E eu então! Que direi eu? Se soubesse o que passamos neste momento... - replicou Liliana.
- Sim, mas a menina é nova, - queixou-se a sr.a Bradley, cujo rosto pálido tinha manchas de sardas.
- Pregunto a mim mesma quando poderei ir cortar o cabelo ?! - rematava Liliana.
Era o problema constante de todas as caixeiras. Precisavam de ter boa aparência, mas fechavam-lhes a
porta dos salões de cabeleireiro na cara, quando tinham tempo livre.
- Agora preciso de mudar. - disse a sr.a Bradley, conseguindo, a custo, passagem até à porta da carruagem.
- Obrigada por ter esperado por mim. - agradeceu Liliana, fatigada.
- É que eu queria saber como aquilo acabou. Não devia ter-se deixado revistar tão facilmente, digo-lho eu.
- afirmou ainda a sr.a Bradley, descendo.
E o comboio lá continuou, com o ritmo enraivecido e ensurdecedor.
Um homem estava agarrado à correia perto da mão de Liliana, um entre as centenas de homens que tinham feito olhos ternos à rapariga e lhos faziam ainda. Ele soprava-lhe
o seu hálito quente no pescoço e encostava o joelho ao dela, como se a pressão da multidão a isso o obrigasse. Liliana, agarrando-se à correia, sentia em todos os
membros, a pobreza do seu casaco como qualquer coisa que a magoava. A dobra das mangas estava rota, ela sabia-o. A manga que tinha debaixo dos olhos começara a ficar
lustrosa e também cinzenta nas costuras. Liliana sentia-se aborrecida. Tinha trabalhado muito durante todo o dia e depois ainda a retiveram uma hora para a apalpar
e revistar como a uma ladra. "Um dia hão-de pagar-me tudo isto.- pensava, desesperada - Sentia-se ferida e sem defesa. Uma força maldosa acumulava-se nela.
- Deixe-me em paz, senão temos barulho - disse ao homem. Sofria de saudades do casaco de seda comprado por madame Thorpe, como se fosse uma doença. "Esperem", pensava,
emquanto que, fatigada, viajava por debaixo da cidade, entre milhares de outros entes fatigados. "Esperem um pouco, esperem..."
O comboio parou na 125ª rua e ela saiu mecanicamente. Ainda tinha de andar até à 122ª onde moravam seus pais. Era um bairro cheio de mexicanos e italianos. Não sabia,
ao certo, como é que tinham vindo para
ali, sabia apenas que esse meio não lhe convinha e que um dia, muito breve, o mais breve possível, sairia de lá; Diante de um cinema, encimado por um anúncio luminoso,
em espanhol, agrupavam-se as pessoas. Dum café saía o som de um piano eléctrico. Na rua brincavam crianças e cães e a valeta estava cheia de detritos. Diante das
casas passeavam altas mulheres de carnes , caídas e homens em mangas de camisa, embora a noite estivesse fresca, como ao princípio da primavera.
"Assim tão só, minha linda menina?" -preguntou um homem, atrás dela - Não precisou de se voltar para ver como ele era; pele escura, calças estreitas e o cheiro a
alho dos mexicanos. Ela ia mais de-pressa. Ele seguiu-a. "Quere que chame a polícia?" - preguntou a meia voz, sem o olhar - "Não tem coração... não tem coração!...".-
disse, num tom melancólico - Os passos afroixaram. Chegou emfim a sua casa e hesitou um momento antes de descer os três degraus que precediam
a porta.
No próprio momento em que hesitava, surgiu, diante dos seus olhos, inesperadamente, a imagem de Bengtson. Ela não pensava nele - foi um puro acaso. Não estava apaixonada
- não se podia apaixonar. Tal como era, ele não lhe agradava: louco, atrevido, arrogante, superficial, distraído. Aquele que lhe havia de agradar devia ser absolutamente
diferente: rico, com um belo automóvel, fatos de bom corte, dinheiro e tudo mais. "Um homem habituado a comer caviar" - pensava vagamente.
Um gato malhado aproximou-se e deu-lhe marradinhas nas pernas. Liliana não se baixou, ficou direita diante da porta da habitação subterrânea: fixava os olhos na
luz do candeeiro, diante da porta. Erik tinha-lhe acendido o cigarro... acompanhara-a ao elevador... Possuía uma certa elegância e portava-se de forma diferente
dos homens do seu conhecimento. É pena que não tenha dinheiro. - pensava - É pena que vá casar com Nina... Não podia compreender porque o fazia. E,
sobretudo é pena que eu não tenha realmente roubado, pensou de repente-Foi como que um pensamento ardente e corrosivo, que fugiu logo.
Apertando os dentes, Liliana empurrou a porta e
entrou.
LILIANA vinha de baixo, mas aspirava às alturas. Como manequim de um salão de costura tinha já feito um bom pedaço de carreira. Quanto à sr.a Bradley era absolutamente
o contrário: vinha de cima e, irresistivelmente, descia o declive. Uma mulher que, aos quarenta e sete anos fazia embrulhos no serviço de embalagem de um grande
armazém, não podia ter grandes ambições na vida. É que, empacotar, era a única coisa que a sr.a Bradley ainda pôde aprender, depois que seu marido, um industrial,
se suicidou, quando da crise, não lhe deixando senão dívidas, derrocada e um desfazer de feira. Graças a certas protecções, a sr.a Bradley conseguiu ser empregada
na entrega de embrulhos e não se passava uma hora sem que ela não receasse perder o emprego.
Ali estava, entre as jovens principiantes de dezasseis anos, fazendo, sempre com o mesmo gesto, embrulhos
- centenas, milhares de embrulhos. Quando erguia os olhos, só via mãos estendendo-lhe uma senha de entrega, mãos e senhas, senhas e mãos. Ocupava um lugar difícil
onde todos são nervosos, impacientes e ninguém quere esperar. Ela empacotava, empacotava, pensando muitas vezes em Skimpy. "Oxalá Skimpy não fique atropelada! Queira
Deus não caia da janela! Oxalá não brinque com o petróleo do fogão. Skimpy era uma mulherzinhaA GRANDE LIQUIDAÇÃO
de oito anos que tratava da casa, emquanto a sr.a Bradley trabalhava.
Da época da sua opulência elas tinham conservado a sua habitação de Fieldston, esse vestígio de tempo mais feliz. Eram quartos grandes demais, muito numerosos, cheios
de mobília, muito ricos. A sr.a Bradley tinha feito tudo para se desembaraçar dessa casa.
Aparentemente, ninguém a queria. A pobre mulher viu-se obrigada a alugar quartos a pessoas de bem, a preços razoáveis; ao menos pagava as despesas.
No refeitório do armazém encontrava-se um quadro onde se afixavam os anúncios dos empregados. "Piano usado vende-se, ou então: Compra-se bicicleta em bom estado,
ou ainda: Gostaríamos de participar da excursão de domingo, rateando despesas. O quadro estava bem colocado no próprio lugar em que os empregados faziam bicha para
ir buscar o seu prato. Um ou mais dos quartos da sr.a Bradley estavam sempre para alugar.
Fora assim que Nina arranjara um alojamento quando, pobre criatura sem família, grão de poeira atirado pelo vento para a grande cidade, chegara do Texas a New-York.
Foi assim que ela se tornou vizinha de quarto de Erik Bengtson, que já habitava a pensão havia meses, e passava as noites a assobiar de uma forma horrorosa, a cantar,
a fazer barulho. Sem esse quadro, Nina nunca se teria provavelmente casado com esse louco do Erik, com esse génio da decoração.
O casamento realizou-se no domingo de Páscoa e correu de uma forma perfeita. Era, pelo menos, essa a opinião de Nina e também a de Liliana, sua dama de honor.
Erik tinha lutado para ter o sábado livre afim de instalar os seus aposentos. Passou primeiro a sua cama para o quarto de Nina, que se tornou assim um quarto Bradley
completo, com leitos iguais em mogno encerado. Depois, começou as suas operações no outro, no seu, que devia ser a sala, Trabalhou como para a preparação de uma
vitrina. Decorou primeiro as paredes, pintando palmeiras e lianas e pequenos macacos a baloiçar-se. Depois, ornamentou os móveis e plantou um arbusto num vaso chinês.
Pintou almofadas, estofou caixotes e fez mil coisas incompreensíveis.
Transpirava como um escravo, na sua bata manchada de cores, assobiando e cantando tão alto que Skimpy não podia estudar as lições. Por fim, saiu de todo esse trabalho
qualquer coisa que parecia um estúdio exótico. Nina ficou petrificada logo que entrou. "Ah! palavra... estou espantada..."- disse ela - E Foi preciso que, à sua
maneira, Erik a degelasse. Ela pôde sair do seu trabalho a horas, pois a secção de loiças tinha pouca clientela durante a Páscoa: a multidão afluía mais à confecção
e às modas. Mas, como sempre, às seis horas menos três minutos, apresentou-se um cliente que logo caiu sobre Nina. Desta vez, era um rapaz que também vinha com muita
pressa, um estudante ou coisa parecida, em todo o caso, um ente muito agitado. Desejava - ora vejam! duas taças para champagne, mais nada. Nina não pôde deixar de
rir; imaginava nitidamente a cena em que essas taças de champagne deviam figurar. Viu essa venda como um bom presságio: "Páscoa feliz!"- disse ela, emquanto o rapaz
se ia embora - "Obrigado, igualmente".-respondeu ele - Ora se isso não lhe havia de trazer felicidade! Raramente desejos tão cordiais foram trocados entre uma caixeira
e um cliente.
À noite, Liliana ajudou a confeccionar qualquer coisa como um vestido de noiva; Erik, que estava presente, fazia café emquanto a sr.a Bradley mexia a massa do doce
lutando contra o sono. Quanto a Skimpy tinham-na metido na cama, mas estava tão sobreexcitada que falava mesmo a dormir. Liliana tornou-se útil transportando os
fatos de Erik do quarto dele para o futuro quarto de cama. Assim que eles ficaram pendurados, muito bem passados, ao pé do seu modesto enxoval, Nina compreendeu,
pela primeira vez, que no dia seguinte
deveria estar realmente casada. Sentia-se tão fatigada, tão comovida, que via tudo como num sonho, como através de vidros espessos e turvos. Eram já duas horas da
manhã quando se dispôs a arrastar uma pesada mala de pele de búfalo: "posso pôr as minhas coisas na cave?"
- preguntou - A sr.a Bradley acordou e disse que sim, com a cabeça. "São os teus tesoiros?" - preguntou Erik "Precisamos de beber qualquer coisa," -declarou Liliana
- "Oh... coisas minhas. - disse Nina um tanto acanhada
- Velhas recordações..."
Erik tirou-lhe a mala das mãos para a descer à cave: em baixo cheirava ao aquecimento e à poeira, grandes aranhas agitavam-se nas suas teias. Erik abraçou Nina e
beijou-a. Ela ficou um grande momento assim, envolvida nesse abraço. Estava quente e era agradável: teria gostado de adormecer ali.
Vagamente, recordava a sua infância quando, fatigada, no regresso dos seus passeios ao domingo, o pai a trazia até casa. Por fim despertou e pôs-se de joelhos diante
da mala.
- Deixa-me ver o que tens aí.-pediu Erik, ajoelhando
junto dela.
Entreabriu-se-lhe a boca num sorriso mudo e tímido, quando ele abriu a mala.
- Olha! - disse, divertido. Havia uma velha boneca, datando da infância de Nina, com a cabeleira mal posta. Depois, outra, magra, com uns grandes olhos feitos de
botões. Erik lembrou-se que a rapariga o tinha conquistado logo que, pela primeira vez, foram juntos a Coney Island. Depois havia um retrato onde estavam agrupadas
quatro pessoas. Erik olhou para esse quadro, com uma expressão impertinente e garota.
- Este é o meu pai.- disse Nina.
- Morreu?-preguntou Erik, de-repente sério, aproximando-se dela.
- Mataram-no quando assaltaram um Banco. Era da polícia, não te disse já?
- Oh! - exclamou Erik. E calaram-se por um instante. Nina tirou-lhe a fotografia das mãos.
- Eu estou aqui. - disse - Parece que sou estrábica... é que não queria ser fotografada. Este, é meu irmão mais novo, esta, minha mãe...
Erik não ousou fazer preguntas. Olhava de revés o rosto de Nina. Por fim, ela pousou o retrato. "Todos mortos. A gripe..." - explicou, sorrindo tristemente. Ele
esperou um momento:
- Agora recomeçaremos tudo, Lille Sprorv - murmurou depois.
Quando se resolveu a fechar a mala, qualquer coisa havia no fundo. Erik quis ver:
- Que é ? - preguntou.
- Nada, é o revolver do papá.-E pôs prudentemente a arma no seu lugar.
- Está carregado?-preguntou Erik, fechando a mala.
- Não sei, deixámO-lo tal como estava quando da morte do papá.
- Sabes atirar ?
- Não. Mas é uma recordação.
- Estás a dormir em pé.- compadeceu-se Erik, levantando-se - Anda, vou meter-te na cama.
- Onde ?- preguntou Nina.
Ele apagou a pálida luz da cave e, na sombra, procurou a boca dela. Sentiu tudo andar-lhe à volta, em grandes círculos. "Como estou cansada!" -disse logo que emergiu
do turbilhão - Ao cimo da escada da cave, Liliana apareceu, fazendo tilintar copos.
- Desejam casar lá em baixo?-disse ela -Ou preferem subir para beber whisky?
Subiram a escada à pressa e tiraram os copos da mão de Liliana. Erik tinha a cara de um homem um pouco ébrio.
- De onde vem esta fortuna ? - preguntou ele.
- O velho Filipe tem lá que chegue para ele - respondeu Liliana, lacónica.
O sr. Filipe, o detective do armazém, morava também em casa da sr.a Bradley. Verosimilmente, Liliana tinha-o acordado e tirara-lhe uma garrafa de whisky. Erik esteve
quási a fazer uma pregunta, mas guardou-a para si. Liliana parecia já não querer mal ao velho Filipe por a ter submetido à revista. zoa " (1) - disse ele e bebeu
o conteúdo do seu copo. Detestava o whisky.
- Onde está a sr.a Bradley ? - preguntou.
- Deitada!-respondeu Liliana.
Durante a noite a pintura do seu rosto tinha-se apagado e a sua pele, muito branca, brilhava num reflexo mate.
- Já pousou para algum pintor?- preguntou incidentalmente Erik.
- Era o que faltava! Ir-me pôr toda nua para os idiotas dos artistas!-replicou vivamente Liliana. Erik desatou a rir.
- Também se fazem retratos de senhoras vestidas. explicou, muito divertido.
- Sim ? -preguntou Liliana, engulindo o segundo copo de álcool e exagerando a sua inocência - Sempre julguei que era preciso não ter a cicatriz da apendicite para
que nos pintassem.
Erik teve um rápido olhar para Nina, pois sabia que este género de brincadeiras não lhe agradava. Mas Nina adormecera na sua poltrona, justamente por baixo de um
dos macacos que ele tinha pintado na parede. As mãos pendiam-lhe, moles e abandonadas. Foi até junto dela e sacudiu-a docemente: - Spurv, lúh Spurv.- disse baixinho
- Ela moveu os lábios, mas não chegou a falar. Ele ergueu-a e, no sono, ela lançou-lhe um braço à volta do pescoço. Levou-a, assim adormecida, para a cama. Liliana,
de garrafa de whisky na mão, olhava-o
(1) A sua saúde, em dinamarquês.
com ar trocista. Ele deitou Nina e voltou, fechou a porta do quarto, sorrindo sempre.
- Comovedor! - disse Liliana.
- Como ?
- Disse só "comovedor" - repetiu ela.
-Deve estar fatigada, miss Smith?-preguntou Erik, aproximando-se - Quere que a acompanhe a casa ?
- Oh! por Deus, sr. Bengtson. - replicou - Eu não sou daquelas que é preciso levar a casa. De resto, não vou para casa. Trouxe o que me era preciso e durmo cá.
- Aqui? - preguntou ele, de sobrolho franzido.
- Por exemplo, ao pé de Nina, no vosso futuro leito de casados, a não ser que veja qualquer inconveniente ? - disse ela, irónica.
- Pelo contrário, será uma grande honra para o meu leito conjugal -. respondeu o rapaz, muito aborrecido.
Instalou-se numa poltrona, bocejou ostensivamente e esperou o seguimento. Sentia-se terrivelmente cansado, sentia-o agora, e era preciso que às dez horas da manhã
estivesse no registo civil.
- Adeus, boas-noites e bons sonhos. - disse Liliana. Pegou na garrafa e encheu mais um copo do líquido
que bebeu de um trago. Erik olhava-lhe para o pescoço muito branco emquanto ela bebia.
- Porque não me pode suportar?-preguntou, quando acabou.
- Instinto de defesa contra uma muito perigosa formosura. - replicou ele, depois de um momento de hesitação - Ela não compreendeu imediatamente, só percebeu a intenção.
- Muito obrigada. - disse, abrindo a porta - Erik levantou-se por delicadeza; sentia as pernas cansadas, pois tinha estado todo o dia em cima do escadote. Exibindo
um espelhinho de bolso e um bâton, Liliana contornava cuidadosamente os lábios. Disse ainda: "boas-noites" e fechou a porta atrás de si.
Desconcertado, Erik recaiu na poltrona e pôs-se a rir. Achava imensamente engraçado que Liliana pintasse os lábios antes de se deitar. Dependurou o sobretudo e atirou-o
para cima da cama, que tinha improvisado com mantas, estendeu-se e dispôs-se a dormir. Indubitàvelmente, a manhã vinha próxima. Apagou a luz, ouviu em qualquer parte
a buzina de um automóvel. Fechou os olhos. "Á minha última noite de solteiro" pensou, sentindo um pequeno aperto no coração.
Toda a casa estava cheia do perfume detestável e ordinário de Liliana.
NO dia seguinte, às sete horas da manhã, a campainha da entrada tocou; foi um espanto geral. Uma senhora estava diante da casa e dizia em voz enérgica:
- Sou a condessa Bengtson. Venho assistir ao casamento do meu filho.
A sr.a Bradley, que também tinha sido uma senhora de sociedade, agarrou no seu roupão da manhã e nas suas boas maneiras, e respondeu:
- Entre, sr.a condessa. Estamos ainda por arranjar, mas o pequeno almoço, daqui a pouco, está pronto.
A condessa Bengtson acedeu ao convite e entrou. Vestia um fato género alfaiate, preto, e calçava luvas brancas. Diante da casa, um miserável Ford estava parado.
A visitante entrou francamente no aposento acabado de pintar, de que a sr.a Bradley abria a porta, lançou um olhar divertido para os macacos das paredes e ficou
de pé, junto da cama onde Erik dormia.
- O sr. Bengtson não a esperava, quero dizer, o sr. conde Bengtson - balbuciou a sr.a Bradley.
- Eu não tinha a certeza de ficar livre. - respondeu a condessa - Trabalho no asilo de alienados de Lansdale.
Agora o sr. Bengtson dispunha-se a acordar: espreguiçou-se, queixou-se, abriu os olhos e disse: "Olá Mutz!", sem parecer admirado. Discretamente, a sr.a Bradley
retirou-se. Logo a seguir ouviu-se, através da porta, uma
conversa sonora, em dinamarquês. Correndo, a sr.a Bradley atravessou a cozinha, onde Skimpy fazia já o café, e atirou-se para o quarto onde dormiam as duas raparigas.
- Levantem-se.- disse - Vistam-se de-pressa. A mãe dele chegou, é uma condessa e ele é um conde.
Liliana sentou-se na cama, direita como uma vela. Nina precisou de alguns minutos para acordar e mesmo depois, conservou os olhos fechados.
- Que foi ? - preguntou.
- É, minha menina, que vais tornar-te condessa em te casando com ele. É de morrer a rir!-troçou Liliana, sacudindo-a.
Agora todas as torneiras funcionavam em casa; nas três salas de banho jorravam os chuveiros. O velho Filipe foi o primeiro a aprontar-se e a aparecer à mesa do pequeno
almoço, que Skimpy tinha posto.
- Eu sou testemunha - declarou, saudando a condessa. Cheirava ao whisky da véspera e ao da manhã.
- Muito prazer em conhecê-lo.-replicou a condessa, esfregando as mãos - Estou ainda entorpecida pela horrível viagem feita de noite.
O velho Filipe disse em voz pensativa: "Se lhe aconselhar a beber qualquer coisa vai com certeza recusar..." A condessa animou-se: "Ah, não recuso ! respondeu com
energia.
Filipe foi buscar a garrafa de whisky emquanto a sr.a Bradley aparecia com o café. As duas raparigas entraram. Erik estava ainda no banho. A condessa considerou
os dois rostos durante um segundo, depois, levantando-se, foi direita a Nina que, timidamente, estava no mesmo sítio, ignorando o que devia fazer.
- Bons-dias Nina. - disse ela - Caí aqui, de-repente, mas gostava de ver com quem o rapaz casava. Pôs as duas mãos nos ombros de Nina e sacudiu-a de bom humor.-
Vai ter muita arrelia com ele.
Nina procurava palavras.
- Chamam-me Mutz - disse a condessa.
- Sinto-me muito feliz por ter vindo. - respondeu Nina - Apresento-lhe a minha amiga Liliana. Esta é Skimpy, uma boa cozinheira. Foi ela que nos fez o bolo da boda.
A condessa puxou Nina para junto de si, para um canapé e pôs-se a saborear o copo de whisky, que o velho Filipe tinha posto diante dela. - É um verdadeiro reconfortante
do coração - disse - mas não se sabia se falava da noiva, se da bebida.
Liliana estava sentada a um canto sem dizer palavra. Era a primeira condessa que via na sua vida e isso fazia-lhe um certo efeito, embora o não quisesse confessar.
Olhou para Erik, com nova curiosidade, quando ele entrou com os seus cabelos claros puxados para trás, à força de água. Eis que um habitante de esferas superiores
penetrava no seu círculo... Ele devia saber o que era caviar ... Tratava sua mãe como uma encantadora irmã mais velha e a condessa brincava alegremente com ele.
Durante o pequeno almoço foi dado aos assistentes ouvirem uma boa parte da história dos Bengtson. Ao que parecia, a condessa tinha-se tornado enfermeira-mór do asilo
de alienados de Lansdale, depois que seu marido, conde Bengtson, se "afogou a beber". A condessa tinha uma forma agradável de chamar as coisas pelos seus verdadeiros
nomes. Foi assim que a clínica de luxo em que trabalhava passou a ser, na sua boca, a "caixa dos malucos". Foi tratando seu marido, confidenciou, que aprendeu a
tratar os agitados nas suas crises, Erik confirmava de bom humor. Soube-se ainda que seu pai perdera a vida em circunstâncias extraordinárias. Depois de uma caçada
real, na qual todos os senhores haviam tomado parte com casacas vermelhas, ele apostou - cheio como um odre - que iria, em traje de caça, ao prado onde estavam os
toiros. Ganhou a aposta (duzentas garrafas de Pommard, 1879) mas foi atirado ao ar pelos animais furiosos. Os Bengtson, mãe e filho, riram francamente, contando
esta aventura.
Nina calava-se. Mais do que nunca tinha a consciência de casar com um estrangeiro, com um homem que não nascera na América, um homem que viera de barco. No registo
civil confirmou-se que ela ficava a ser condessa Bengtson: era uma novidade difícil de digerir.
- Porque não me disseste nunca ? - preguntou a Erik, emquanto o táxi os trazia de novo a Fieldston.
- Para quê ? Vês-me com uma coroa de conde na cabeça a arranjar uma montra?
- Gosto da tua mãe. - disse Nina timidamente.
- Ela também gosta de ti, pardalito -declarou, muito satisfeito, apertando-lhe a mão.
Estava um tempo soberbo; doirados raios de sol caíam sobre o asfalto, as árvores começavam a florir. Quando os recém-casados chegaram a casa, encontraram convidados:
miss Drivot, o sr. Berg, Pusch, o aprendiz, e uma delegação de caixeiras que traziam um aparelho de T. S. F. como prenda de casamento. O velho Filipe fez um discurso
humorístico e estava em jejum; talvez os pormenores da cura de desintoxicação, contados alegremente pela condessa, lhe tivessem dado que pensar... Comeram o bolo
feito por Skimpy e elogiaram-no. O sr. Berg tornou-se um pouco impertinente com Liliana, que lhe disse: "Tire as mãos. Não é bastante fino para mim." Ele não ficou
ofendido.
Liliana mostrava uma alegria ruidosa e amarga. Insistia em chamar a Nina "sr.a condessa e, na sua boca, isto soava como uma ofensa.
Às duas horas da tarde, a condessa anunciou que se retirava. Convidou o jovem casal a fazer a viagem de núpcias no seu automóvel. Erik, para se despedir, beijou
todos. Não tinha bebido e, no entanto, dava a impressão de estar um pouco ébrio. Liliana voltou-se para a parede quando ele se aproximou. Miss Drivot, muito excitada,
limpou a boca. Todos disseram que a dama de honor devia beijar o noivo. De sobrancelhas franzidas,
Liliana passou fugitivamente com os lábios pelo ar que a separava de Erik, mas Erik apertou-a contra si: Assim não presta - disse, emquanto os outros riam quero
um beijo a valer!"
Liliana parecia zangada: "A valer?"-murmurou baixo. E sem esperar resposta pôs as mãos em volta do pescoço de Erik e beijou-o. Co'a breca!"-disse ele, um pouco sufocado,
assim que ela se desprendeu. Nina, de pé junto dos dois, tinha um sorrizinho contrafeito. Os outros deixaram de rir. A nova T. S. F. manipulada por Pusch, o aprendiz,
emitia sons horríveis.
Finalmente, depois de muitas palavras e lisonjas, a condessa conseguiu pôr o Ford em marcha. Erik e Nina instalaram-se com a sua maleta de fim de semana e partiram.
O ar estava fresco e eles sentaram-se bem junto um do outro com os seus casacos.
Ao crepúsculo, a condessa parou diante de uma velha estalagem, em qualquer parte, e deixou o motor em marcha emquanto desciam os dois.
- Adeus, meus filhos - disse ela.
- Adeus, Mutz - respondeu Erik.
O Ford afastou-se com o ruído de uma máquina de coser, escangalhada, depois tudo se calou. Nina olhou à sua volta. Estava um pouco desapontada. Já que tinham pedido
um dia de licença para a sua viagem de núpcias, imaginara outra coisa: barulho, gente, conversa. Atlantic City ou, pelo menos, Long Beach. Aqui, havia árvores muito
velhas, sobre as quais a folhagem da primavera acabava de reaparecer e um rebanho de carneiros, que passava no caminho, levantava poeira em grandes nuvens azues.
Por entre as árvores vislumbrava-se o mar. "É belo isto," - dizia Erik - é como na Dinamarca" e, de braços estendidos, espreguiçou-se. Nina envergonhava-se por não
ter gostado da paisagem.
À noite, ouviram música distante, foram à sua procura e descobriram por fim um baile campestre onde dançaram. Regressaram tarde, primeiro pela beira-mar e
depois atravessando a aldeia. Já não era calcetamento o que Nina tinha debaixo dos pés, eram nuvens: elas transportavam-na para a velha estalagem...
No meio da noite, Nina, a dormir, estendeu a mão. Sim, estava ali, o ente amado ...
Na manhã de terça-feira o despertador tocou, como de costume. Como de costume, Nina dormia ainda quando se levantou e quando fez alguns exercícios (tinha lido em
qualquer parte que a cultura física conservava a mocidade). Dormia emquanto fazia o café e mesmo emquanto tomava o pequeno almoço. Só acordou completamente quando
estavam sentados no metro dirigindo-se para a Central. Como de costume, Erik subiu a escada 5 e Nina correu aos relógios do ponto, no edifício 6.
E como de costume, miss Drivot notou:
- Olhe que vem atrazada, Nina, despache-se. - Embora Nina fosse agora casada e tivesse o direito de se chamar condessa Bengtson.
-Estou a fazer uma cura de emmagrecimento. Olhe, já perdi 11 arráteis - dizia madame Thorpe a Liliana.
- A senhora está maravilhosa. - respondeu Liliana, lançando um olhar sobre as redondezas da cliente.
- Uma verdadeira linha de rapariga - acrescentou, madame Chalon, a directora. - Que há-de ser hoje? Recebemos um vestido verde, com capa, da Lanvin. Deve ficar-lhe
lindamente.
Desta vez, madame Thorpe estava horrível. Tinha realmente emmagrecido um pouco, mas quatro novas rugas marcavam-lhe o rosto. Mandara pintar os cabelos com henné,
e fumava sem descanso, mostrando-se excessivamente nervosa. As jóias dos dedos e dos pulsos tilintavam, quando se agitava. Tinha levado com ela um rapaz, que se
estendeu no canapé, verificando os vincos das calças e admirando os seus sapatos novos.
- Querido, deixa-me dar só uma fumaça no teu cigarro. - disse madame Thorpe - E tirando-lhe, com os
dedos afusados, o cigarro da boca, aspirou-o profundamente e depois entregou-lho. Isto pareceu espantosamente inconveniente. O rapaz tirou logo o cigarro da boca,
fitando a marca vermelha deixada pelo rouge dos lábios, olhou à sua volta e, com ar adormecido, atirou o cigarro para um cinzeiro de metal, que tinha perto.
Madame Thorpe nada vira, mas Liliana examinava o rapaz com um olhar crítico. "Gigolô" pensou, e assim ficou arrumado. Madame Thorpe parecia absolutamente dominada
por esse indivíduo que era muito bonito, com os cabelos pretos, lisos e brilhantes, os dentes muito belos e um fato do melhor corte.
- Estou horrivelmente nervosa. - suspirou ela - É muito para uma vez só. Ora vejamos, preciso de um enxoval para viagem. Sim ... vou partir... uma voltazita ao mundo,
Palmeiras... entende... tecido branco, para os trópicos... Tem qualquer coisa deste género? vou divorciar-me em breve... e não imagina quanto isso me excita os nervos.
- Quere que lhe mostre a nossa nova colecção para o Sul? - preguntou madame Chalon, piscando o olho a Liliana - "EZ 24 até 32". - segredou-lhe. Liliana desapareceu,
obediente, com o seu passo ondulante, que lhe tinham ensinado na escola de manequins. Mal chegou ao gabinete, despiu apressadamente o vestidito negro, de caixeira.
"EZ 24 até 32". - gritou às duas aprendizas.
- De-pressa, Primeiro o vestido verde; a velha quere comprar muita coisa.
Uma das pequenas saiu a correr, a outra deixou-se ficar com ar estúpido. "O vestido de seda verde?" - preguntou - "Anda. Não sejas idiota. O vestido verde claro,
de capa, vá.. não fiques aí a olhar para mim". - gritou Liliana. Sentia sempre uma certa emoção de actriz, quando tinha de apresentar os vestidos.
- "Se vendermos a colecção pedirei uma percentagem."
- pensava, emquanto, rapidamente, punha pó na cara
e penteava os cabelos. Entre ela e a sr.a Chalon havia uma grande luta calma. Liliana reclamava uma percentagem, quando se vendia qualquer vestido apresentado por
ela. Pelo seu lado, madame Chalon afirmava que ela é que vendia o vestido sozinha, como se Liliana fosse apenas um manequim de madeira. Já duas vezes, depois de
se ter inundado de perfume, Liliana se fora queixar ao chefe de serviço. Ele tinha-lhe acariciado amigavelmente a nuca como a um cãozinho, dizendo que uma rapariga
que possuía a sua linha, não devia prender-se com tão medíocre percentagem; e fora assim que a discussão se desvanecera como fumo.
As aprendizas voltaram a correr com o seu carregamento de vestidos nos braços. No pequeno gabinete de mudas, a que chamavam a jaula dos macacos, cheirava a tecidos
novos, a oficina de alfaiate, a sabão ordinário. A um canto, uma velha costureira mordiscava uma sandwich que preparara em casa.
- Não podem andar mais de-vagar, não ? - rugiu Liliana, arrancando das mãos das raparigas o vestido verde. Como aprendiza, ela tinha sido mal tratada, era agora
a sua vez de maltratar as outras. Só quando a fina seda lhe deslizou pelas ancas, é que a calma veio, os seus nervos distenderam-se, a pele sentiu-se mais feliz.
Lançou a capa sobre os ombros, viu-se mais uma vez ao espelho e dirigiu-se para o salão.
Quando madame Thorpe a notou, tomou uma verdadeira expressão de dor de dentes: "Mas que idea! Não é a minha cor!" -disse, com ar desagradável. Liliana passeou diante
dela, lançando a capa para trás, descobrindo a blusa de fino plissado. O rapaz, no canapé, nem se mexeu, mas, sob as pestanas baixas, o seu olhar adormecido veio
errar sobre essa blusa.
- No entanto, o verde seria o ideal para os cabelos ruivos de V. Ex.a. - notou madame Chalon.
- Ah! não me aborreça, nervosa já eu estou!-gemeu a cliente. - Não posso suportar esta cor.
Madame Chalon fez sinal a Liliana e esta mexeu-se.
- Espere um pouco!-gritou madame Thorpe-Nem sequer sabe o que eu quero. Não têm nada de especial para os trópicos? Um vestido de seda para Hawai, compreende ?
- Ah! o amarelo! - exclamou madame Chalon entusiasmada, como se uma inspiração genial acabasse de lhe acudir - Miss Smith, apresente o vestido amarelo. Esse vestido
é um poema, querida senhora, um sonho, música...
Emquanto se despia, Liliana ouvia ainda o discurso exaltado da modista, que ia buscar as suas expressões ao estilo florido dos anúncios. Por uma razão qualquer,
o gabinete de muda estava sempre quente, provavelmente porque a velha costureira sofria de constipação crónica. Liliana sentia finas gotas de suor, na testa, emquanto
que, sem deixar de acelerar as aprendizas, se metia no vestido amarelo. Este era composto de muitas camadas de tule sobreposto. Na orla, a saia tinha oito metros
de roda. Quando Liliana estava vestida, viu que o penteado não condizia com o estilo do vestido. Foi buscar um pente e deitou pó na fronte húmida.
- Porque se demora tanto ? A cliente impacienta-se - gritou asperamente madame Chalon, metendo a cabeça entre as portas.
- Já vou... não pode ser mais de-pressa.-respondeu Liliana, enervada. Diligenciava todos os dias estar em boas relações com a modista, mas, todos os dias, a tensão,
que existia entre elas, se tornava maior - Saiam do caminho. - ordenou às aprendizas, que estavam ao pé da porta. Por pouco ia pisando as vítimas inocentes. Mas,
quando apareceu diante de madame Thorpe, tinha já o seu mais suave sorriso de manequim.
- Então ? - preguntou orgulhosamente a directora, emquanto Liliana se voltava, ondulante, erguendo a saia com as duas mãos e fazendo alguns passos de dança, apropriados.
- Não é feio... - concordou madame Thorpe, depois de uma pausa.
- Não é feio, minha senhora ? Mas é um sonho este vestido, é a lua de Hawai! Temos um casaco amarelo, palha de milho, com capuz, para a noite, se quiser passear
no tombadilho.
Madame Chalon conhecia as suas clientes. Uma expressão sonhadora passou um instante pelo rosto duro de madame Thorpe. O rapaz pareceu acordar: endireitou-se e parou
de fumar. Liliana desprezava-o profundamente, como só uma mulher jovem, que ainda se não vendeu, pode desprezar um homem que se vende. De súbito, ela viu-o deixar
cair lentamente uma pálpebra, emquanto os seus belos dentes brilhavam.
Era um sinal nítido e descarado, emquanto madame Thorpe voltava costas. Desconcertada, Liliana olhou-o. Estava habituada à desfaçatez, mas esta parecia-lhe demasiada.
Então, o rapaz tirou um cartão do bolso e meteu-o entre as almofadas do canapé onde estava sentado. Dava-lhe a direcção! Liliana começou logo a andar de um lado
para o outro, de contrário, teria rido.
- Esteja sossegada! Aproxime-se. - ordenou madame Thorpe.
Ela avançou com o seu passo leve, para a compra dora, que vista de perto, era quási digna de piedade. Subitamente, Liliana foi de novo acometida por esse ódio, que
sentia tantas vezes, pelas clientes do salão de costura. Viu-se a si própria, vestida com linda toilette, leve, elegante. Era uma vergonha que aquela velha se fosse
vestir assim. E, lentamente, subiu-lhe o calor à
cara.
Liliana foi tratada como um objecto: madame Chalon e madame Thorpe andavam à sua volta, tocavam-lhe, ou antes tocavam no vestido, trocando reflexões profissionais.
- Seria preciso encurtá-lo mais. -disse a cliente.
-Sim, dava-lhe mais chic - concordou a costureira.
Nesse instante, Liliana sentiu uma dor aguda, na espádua nua.
- Ai! - queixou-se baixo, voltando-se.
- Que foi? -informou-se madame Chalon, trocista.
- Não sei... peço desculpa ...-murmurou Liliana. Com dois dedos, chegou ao lugar dorido e retirou-os tintos de sangue.
Madame Thorpe exclamou, de súbito:
- O meu anel? Onde está o meu anel?
O rapaz tinha-se levantado, emquanto Liliana olhava para a ponta dos dedos. Abaixou-se e desprendeu o anel, do tule do vestido, no qual tinha ficado preso. Era um
anel pomposo com uma esmeralda rodeada de pequenos brilhantes. "Aqui está o teu anel, querida."-disse ele, suavemente, metendo-o no dedo de madame Thorpe.
- Vejam até que ponto emmagreci!- exclamou ela, triunfante.- Até os anéis me estão largos.
E para provar o que dizia, estendeu a mão por baixo do nariz do rapaz. Era uma branca mão preguiçosa, de longas unhas afiladas. O anel deslizava ao longo do dedo
emmagrecido, O rapaz pensou um instante no que podiam esperar dele, depois inclinou-se e beijou a mão de madame Thorpe.- Como os europeus são encantadores! - disse,
encantada, trocando com madame Chalon um olhar de compreensão feminina. De Liliana ninguém se ocupava.
Talvez o que aconteceu depois não houvesse acontecido, se madame Thorpe tivesse pedido desculpa à rapariga por causa do arranhão que sangrava, gota a gota. Mas não
o fez. Sem dúvida, não pensava que um manequim fosse um ente vivo, com desejos, invejas e ardentes cóleras.
- Tenha cuidado com o vestido, não apanhe alguma nódoa, miss Smith. - recomendou madame Chalon. Mas de-certo leu no rosto de Liliana qualquer coisa que lhe fez medo,
pois, tornando-se subitamente gentil, continuou:
- Agora pode ir dizer a toda a gente que foi ferida por uma esmeralda verdadeira.
Nesse momento, o rapaz tirou o seu fino lenço de baptista e tocou ligeiramente a gota de sangue nas costas de Liliana. "Seria pena que manchasse tão lindo vestido
-declarou, e Liliana não soube dizer se fôra ironia ou imbecilidade.
- Agrada-te este modelo, querido? Achas que devo
comprá-lo ?
O rapaz levantou-se e olhou para madame Thorpe. Deus sabe o que a quarentona descobriu na expressão desse rosto. com certeza uma coisa que o seu sorriso e os seus
olhos, em forma de amêndoa, não puderam esconder bastante. De-repente, o seu humor virou-se. "O vestido não me agrada!" -declarou bruscamente - "Não o quero. A saia
é muito larga. Vá, mostre-me outra coisa."
Nervosa, fazia girar o anel no dedo.- "Quero qualquer coisa de muito simples, em branco, um vestido com o qual se possa ir jogar o polo em Singapura, sem que os
ingleses nos apontem a dedo."
Liliana olhou para a directora.
- Mostre o nº 34 - disse madame Chalon, um
tanto sucumbida.
Madame Thorpe protestou, com agrura:
- Não mostre mais nada, peço-lhe. Eu mesma vou provar. Não serve a ninguém ver como os vestidos ficam no manequim. Sou eu que os tenho de trazer.
- É justo. - condescendeu madame Chalon, obsequiosa. Nas costas da cliente, ergueu os olhos ao céu num olhar implorativo: - "Traga o nº 34, miss Smith, o vestido
branco, género alfaiate."
Liliana retirou-se de novo para a jaula dos macacos.
- Que mais há ? - preguntou a velha costureira quando, ennervada, a rapariga despiu mais um vestido para tornar a envergar o seu fato de caixeira.
- A velha morre de medo de que eu possa agradar ao seu gigolô! - explicou Liliana - Que idea! A tipos como aquele nem sequer vale a pena a gente escarrar-lhe em
cima.
Madame Thorpe era ainda mais ciumenta do que Liliana supunha. Assim que ela chegou com o vestido branco nº 34 e que madame Chalon acompanhou a sua cliente ao gabinete
de prova, esta deteve o manequim, na passagem:
- Se faz favor, venha provar comigo, - disse claramente, num tom que não admitia réplica.
- com muito prazer, - respondeu Liliana tão amavelmente, que era quási uma insolência.
Nos últimos tempos perdia facilmente o domínio dos nervos. Isso tinha começado pouco antes do casamento de Nina, talvez mesmo na noite em que suspeitaram que ela
tivesse roubado o ícone russo. Desde então, a sua tensão interior tornou-se cada vez mais aguda e lutava contra a estranha apreensão de uma espécie de explosão iminente,
como se todo o armazém, um belo dia, devesse ir pelos ares, ou então arder completamente até não ser mais do que um pequeno monte de cinzas frias. O fino arranhão
ardia-lhe nas costas de uma forma insuportável e sentia uma louca vontade de puxar pelos cabelos pintados de madame Thorpe. A cliente pareceu adivinhar esta tensão,
ou então sentiu exasperar o seu ciúme, embora tivesse arrastado o manequim para longe do seu amante. Era uma obsessão. Vestia e despia os vestidos, mandando a directora
fazer uma nova escolha. As aprendizas andavam de um lado para o outro e madame Thorpe não consentia que Liliana se afastasse um segundo.
Estava calor no gabinete. As figuras das três mulheres multiplicavam-se no grande espelho de três corpos. Parecia que uma multidão de pessoas se agitava e comprimia
na estreita cela. Por fim, madame Thorpe mergulhou num delíquio. Apressada, madame Chalon foi-lhe buscar um copo de água. Liliana fez toda a diligência para dominar
a sua expressão, afim de que a cliente não pudesse perceber com que antipatia a olhava. Madame Thorpe estava agora paramentada com um vestido
preto, de cauda, que lhe exibia as espáduas muito nuas e muito gordas.
Quis ela própria desapertar, nas costas, o cordão da cinta: o anel de esmeralda deslizou e caiu sem ruído, no tapete cinzento e rosa que cobria o chão da casa de
prova, assim como todos os aposentos do salão de costura. Liliana não reflectiu, talvez nem soubesse mesmo o que fazia. Foi espontânea e instintiva: em vez de apanhar
o anel e de o entregar, com uma frase amável, pôs-lhe o pé em cima, para o esconder.
Madame Chalon voltou, trazendo um copo de água que a cliente bebeu, reconhecida. Não tinha dado por nada. Liliana estava em cima do anel e sentia a esmeralda, como
um ponto escaldante, sob a planta dos pés. Madame conseguiu tirar pela cabeça o estreito vestido: tinha perdido completamente o entusiasmo. E, depois de ter atormentado
a directora e a caixeira durante uma hora, decidiu-se bruscamente a não comprar nada.
- Tudo isto me parece muito ordinário! - disse ela - Decididamente, mandarei fazer em Paris o meu enxoval de viagem. Tenho lá uma costureirinha espantosa.
A frase soou de uma forma mesquinha, deselegante e snob. Madame Chalon tornou-se quási aliada de Liliana.
- Como v. ex.a desejar. - disse, lançando a Liliana um olhar que significava "que os diabos levem o velho camelo". Agora já não se preocupava com o facto de madame
Thorpe poder ver o seu gesto pelo espelho.
-Quere ter a bondade de me arrumar um pouco isto?-disse a directora, emquanto acompanhava a cliente.
O gabinete estava cheio de tule, de taffetãs, de folhos - sonhos floridos das costureiras para as noites de Hawai...
Quando Liliana pegou no anel, acariciou-o, mirou-o, sentindo um estremecimento: não era só medo e comoção
- era essa paixão, esse ardor indomável que experimentava
sempre, diante das coisas caras. Acariciou mais o anel e teve ainda tempo de o fazer desaparecer, quando as duas aprendizas entraram. "Nada feito?" - preguntou uma
delas, maliciosamente. - "Mete-te na tua vida". - replicou Liliana, Tinha o anel fechado na mão e não sabia que lhe havia de fazer. Pegou no fato branco nº 34, modelo
Emily e apertou-o contra si. "Eu arranjo isto".- disse, baixando-se para apanhar do tapete alguns alfinetes. As pequenas foram-se embora.
Liliana meteu o anel na algibeira direita do casaco do vestido modelo, de fazenda branca, pendurou cuidadosamente a saia e o casaco numa cruzeta e levou tudo para
o armário. Passou a mão pelo saco de celofane que devia proteger o fato claro, da poeira, respirou profundamente e deixou-o ali, suspenso entre centenas de outros
modelos de verão, prontos para a venda.
Meia hora mais tarde, madame Thorpe surgiu como um tufão. Eram quási cinco e meia e as caixeiras, extenuadas, serviam os últimos fregueses, impacientes. Houve um
certo ruído violento, mas logo reprimido, e a notícia da perda do anel espalhou-se. O velho Filipe foi chamado e as ondas informatórias chegaram ao santuário do
sr. Crosby, ao 18º andar da torre central. Embora madame Thorpe fizesse grande barulho, não podia, de maneira alguma, afirmar que tinha perdido o anel no salão de
prova ou em qualquer outro sítio. Pelo contrário, madame Chalon lembrava-se muito bem de ter visto o anel e de o ter dado ela própria à cliente. O criado, chamado
como testemunha, fez reparos adormecidos e despidos de senso. O velho Filipe fixava o seu olhar perscrutador e desconfiado sobre o rapaz. Não lhe agradava. Dois
homens da polícia privada estavam discretamente num segundo plano, mas não foram precisos. Procuraram por toda a parte e não encontraram nada. Por fim, madame Thorpe
acabou por confessar que tinha saído do armazém num táxi, cujo número ignorava. Tinha ido ao Olímpia Bar, bebera dois cocktails
passara alguns minutos na sua modista, na Madison Avenida e só no segundo táxi, tinha dado pela falta da jóia.
Lamentou-se o facto, fizeram-se promessas de mais buscas e, amavelmente, acompanharam à porta a nervosa senhora, porque era tempo de fechar o armazém. De resto,
madame Thorpe tinha a jóia no seguro, mas custava-lhe dirigir-se por causa disso ao sr. Thorpe de quem se estava a divorciar. Quando a sineta acabou de tocar para
fechar, o velho Filipe convidou o pequeno grupo de empregados a subir ao seu escritório para serem revistados. madame Chalon fazia parte desse número e ficou tão
emocionada que começou logo a falar francês e a pedir que a despedissem. As duas pequenas aprendizas, choravam. Liliana estava fria e calma. "A gente habitua-se"
disse ela irónica, emquanto se despia, sob a vigilância da enfermeira, pois, se o revistar era uma desagradável operação, era ainda assim praticada com delicadeza.
"Lamento, minha filha... -murmurou o velho Filipe, quando aquilo acabou. O seu rosto bondoso, de foca, parecia perturbado. Cheirava a whisky, como de costume. Desde
a data do casamento de Nina, conhecia mais Liliana, e tinha um fraco por ela. "Que é isso que tem aí?" preguntou a enfermeira, vendo nas costas de Liliana algumas
gotas de sangue resumando da arranhadura.
- "Isto? Foi madame Thorpe que me feriu com o seu famoso anel." -disse Liliana, com desprezo.
Sentia uma louca sensação de temeridade, como um dançarino em corda bamba, de pé, em cima de um fio fino, muito alto... "Espere, vou pôr-lhe iodo. -disse a enfermeira.
O ligeiro ardor foi para Liliana como uma promessa.
Durante quatro dias o anel ficou na algibeira do casaco branco, modelo Emily nº 34. Ninguém o comprou, pois começava a chover e as pessoas desejavam impermeáveis
e chapéus de chuva.
Ao quarto dia, o tempo melhorou e Liliana apresentou
o modelo a uma senhora que tinha uma linda figura e que o comprou sem hesitar. No último momento, Liliana teve que tirar o anel e escondê-lo na meia.
Estava doente de excitação. Se um médico lhe tivesse tomado o pulso, achar-lhe-ia febre. E se esse velho Filipe tivesse hoje a idea de a revistar, estava perdida.
Mas o velho Filipe tinha outras preocupações.
À noite, no seu reduto da cave, em casa dos pais, Liliana ficou acordada, acendendo e apagando a luz... Ao lado, seu pai resmungou, mas ela não podia dormir, tinha
que contemplar o anel...
Até que Liliana possuía, emfim, um belo anel de esmeralda, uma jóia sua, um segredo seu, um perigo seu!...
DESDE o décimo quinto andar da parte central até ao cimo, havia por toda a parte avisos com estas palavras. Pede-se silêncio. Quem saía do elevador não podia deixar
de ver este pedido que era antes uma ordem. Havia também avisos nas portas das salas de conferência onde se reunia o conselho para deliberar dos destinos da Central
Warehouse, assim como à entrada dos corredores dando para os escritórios particulares do director-chefe. O sr. Crosby tinha o seu trono lá em cima, no décimo oitavo
andar, num escritório guarnecido nos quatro lados por janelas, e que mais parecia a casa de vigilância de um faroleiro. Nos dias claros podiam ver-se os dois rios,
o Hudson e o Eastriver e as cadeias de colinas, longe, além, em New-Jersey. Mas o sr. Crosby não se interessava pela paisagem: estava muito preocupado. As acções
"da companhia estavam mal cotadas e ele possuía 51? 0 do total, justamente o preciso para lhe garantir a maioria na assembleia geral dos
acionistas.
Na segunda reunião tinha-se notado um certo descontentamento ; embora o armazém fizesse muito negócio, no último ano, fechara-se o balanço com déficit. O sr. Crosby
fazia dançar os algarismos na sua cabeça, sem encontrar solução. "Os impostos, senhores, os impostos ... Não devíamos, evidentemente, falar tão alto,
mas, o que se passa recentemente no nosso país, é uma espécie de comunismo disfarçado.
O sr. Crosby tinha memória matemática, podia-se confiar nela como numa prodigiosa máquina, contanto que se tratasse de acções e de números. Quanto aos rostos dos
seus dois filhinhos e aos aniversários dos seus amigos, esquecia-os sem cessar. No fundo, o sr. Crosby era um doente - sofria de diabetes - e isso roubava-lhe uma
porção de alegrias da vida. Bebia chá sem açúcar, com o seu biscoito seco de diabético, que sabia a papel. Cairam-lhe os dentes um após outro; pouco depois uma chagazinha
no dedo grande, do pé, causou-lhe inquietação : não era nada, uma chagazinha, sem importância, mas, para um homem diabético, podia significar o pior. O sr. Crosby
tinha as mãos frias e pesadas, inchadas, com as veias grossas. Nessa manhã, assinara o despedimento de duzentos empregados. Ninguém o estimava e ele não queria a
ninguém no mundo. Muitas vezes sentia a impressão de que o arranha-céus oscilava ligeiramente: os engenheiros haviam calculado que a ponta da torre central oscilaria
diariamente cerca de quatro polegadas.
Avaliavam a fortuna de Crosby em trinta e quatro milhões.
Filipe, o detective da casa, via o seu chefe superior pela primeira vez, depois da desaparição do anel de madame Thorpe. Ao levantar, tinha tomado como de costume
a sua ração de whisky, pois precisava de criar forças. Estava agora diante do grande patrão e obsecava-o a idea de que podiam notar a leve percentagem de álcool
que tinha no sangue.
O sr. Crosby olhou longamente para o seu subordinado, antes de dizer uma palavra:
- Chama-se Filipe ? Filipe... Filipe ? - preguntou, emfim, decifrando o nome num caderno que o seu secretário lhe estendia.
- Sim, sr. Crosby. Uma pequena brincadeira de meu pai.-murmurou o velho Filipe num tom deferente.
- Que idade tem ?
- Um pouco mais de cinquenta e oito anos - murmurou Filipe. Fazia sessenta daí a três dias e sentia uma espécie de vergonha...
O sr. Crosby olhou com atenção o seu detective. -Bebe.-Não era uma pregunta mas uma participação.
- Às vezes, um copinho... para estar acordado ... trabalho de noite, muitas vezes fico vinte e quatro horas fora de casa.
- Tem um assistente às suas ordens, não é verdade ? Não trabalham alternadamente?
- Sim, mas não descanso completamente nesse jovem detective, principalmente depois... que... várias vezes tivemos pouca sorte... isso não me deixa descansar... não
posso dormir... Por isso prefiro ser eu próprio a fazer a ronda.
- Parece-me que o seu zelo não tem tido grande êxito - disse o sr. Crosby, um pouco mais conciliador. Que um homem preferisse envelhecer no armazém em vez de dormir
na sua cama, compreendia-o bem. Ele mesmo passava a vida naquela torre e não podia admitir que certas pessoas fossem à Flórida ou à caça dos patos.
- Sr. Crosby, - disse Filipe num tom aflito, aproximando-se da secretária - reconheço que temos tido um período de infelicidade. Isso acontece. Asseguro-lhe que
vou redobrar os esforços... não consentirei que aconteça mais qualquer coisa... e se eu...
- Palavras não servem de nada. - disse Crosby. Recuou um pouco, assim que Filipe avançou para ele com o seu hálito saturado de whisky, e irritou-se de novo.
- Mandei-o chamar aqui, não para ouvir as suas explicações, mas para lhe dizer que somos obrigados a dispensá-lo, se tornar a haver o mínimo roubo.
Houve um instante de silêncio; só o secretário fazia mover uma folha de papel, para encobrir a sua perplexidade.
- Dispensar-me ? Não está a falar sério, sr. Crosby ? -disse o velho Filipe - Eu trabalho na Central desde que ela existe, faz daqui a pouco vinte e sete anos...
sr. Crosby...
- Lamento, Filipe, - disse o sr. Crosby - mas bem deve compreender que já não está à altura da sua missão. Isso acontece-nos a todos, um dia. Eu próprio terei de
me retirar e hei-de sabê-lo, exactamente, quando chegar o meu dia. Exijo a mesma coisa dos meus subordinados.
- Não poderá arranjar melhor. - disse Filipe, tocado pela sinceridade do patrão -Para mim... a Central significa tudo... Não é só um emprego... o meu salário...
sempre poderei arranjar trabalho... mas a Central... é como a minha própria casa... eu não tenho lar... sou um velho celibatário... passei toda a minha vida na Central...
não me podem mandar embora simplesmente porque se deram alguns roubos. Eu pertenço à Central... Desculpe-me, sr. Crosby, dizer-lhe assim tudo isto...
O sr. Crosby reflectia sobre o que acabava de ouvir. Desviou-se do ponto principal:
- A polícia descobriu alguma coisa a respeito do anel de madame Thorpe ? - preguntou secamente.
- Não, o caso foi abandonado. É ainda uma coisa que nos pesa às costas, se bem que seja quási certo que o anel não foi perdido em nossa casa. Mas com essas mulheres
não se pode tirar nada a limpo.
- Faço-lhe notar que madame Thorpe é uma das nossas melhores clientes, uma senhora da alta sociedade. Seu marido é meu amigo.
- Peço-lhe perdão, sr. Crosby. De qualquer forma, madame Thorpe deu ordem para acabarem com as investigações, e se me preguntar porquê, poderei dizer-lhe a razão.
O sr. Crosby olhou para o seu detective. Ele só tinha falado duas vezes a madame Thorpe, pois Thorpe, o advogado, não era, na realidade, senão uma relação de
club. No fundo, partilhava a aversão de Filipe pela cliente.
- Sabe que essas insinuações são muito injustas? disse ele.
Filipe lançou um olhar sobre o jovem secretário. Teve a necessidade urgente de uma golada de whisky e sentiu-se muito infeliz.
- Madame Thorpe mandou parar com tudo, porque receou descobrir que o seu... amigo tinha roubado o anel. É tudo. - disse, soltando um suspiro.
- Ela disse isso ? - preguntou Crosby. O velho Filipe não pôde deixar de sorrir a tanta ignorância do mundo no espírito de um grande homem de negócios.
- Disse? O senhor não conhece as mulheres, sr. Crosby. - exclamou. - Uma coisa dessas ? Elas não a confessariam nem mesmo a si próprias, em face da sua consciência.
Mas isso é-me indiferente, pode acreditar...
A leve jocosidade do sr. Crosby durou apenas um minuto, dissipando-se logo. Não sentia já senão impaciência e descontentamento em face deste empregado meio ébrio,
que não queria ser despedido. Abriu a gaveta do meio, da sua secretária, e tirou um frasquinho de remédio. Muito obsequioso, o secretário particular ofereceu-lhe
um copo de água: o director contou vinte gotas. A droga tinha um gosto amargo. Muitas vezes o doente sr. Crosby sentia repugnância por si próprio: o seu braço estava
cheio de picadas da seringa da insulina, que, ultimamente, mostravam uma desastrosa tendência para se inflamarem.
- Está então avisado, sr. Filipe - disse em tom peremptório - Na primeira ocasião, é despedido. Obrigado.
Era definitivo. Nada tinha a responder.
-Obrigado, igualmente, sr. Crosby-respondeu Filipe, retirando-se.
Lá fora, exausto, encostou-se uns minutos à parede, ao pé do aviso que reclamava silêncio. Depois dispôs-se a descer a escada que vai do 18º andar ao 12.?. Era um
hábito curioso: Filipe preferia a escada ao elevador. Três vezes, na sua carreira, tinha prendido nas escadas, ladrões que se julgavam em segurança. Chegou dez minutos
mais tarde ao seu escritório, chamou o piquete de detectives ajudantes, simples e frustes adolescentes sem nenhuma intuição psicológica, e recomendou-lhes uma grande
vigilância. Assim que partiram, acabou de esvaziar a sua garrafa de whisky, sem utilizar nem copo nem soda, pois começava a sua luta obstinada contra a ameaça de
despedida que pesava sobre ele.
OS empregados de uma grande casa só conhecem ? realmente uma pequena parte dela; estão incrustados à sua secção, como os corais ao fundo do mar. Mas aquele que,
constantemente, lhe percorre todos os cantos, como o velho Filipe, esse vê o conjunto, conhece essa imagem reduzida do universo, que é um grande armazém.
Ele via milhares de coisas emquanto, com o seu bondoso rosto ingénuo, de foca, e os olhos um pouco turvos pelo álcool, mas atentos, andava por todo o edifício. Ia
constantemente às escadas, às salas de venda que se estendiam até ao infinito. Na secção de branco, havia batalhas entre mulheres, pois era o dia de um dólar. No
salão de chá, três músicos faziam ouvir as árias em voga e, na secção de música, ouviam-se, outra vez, essas árias. Aí, uma rapariga anémica estava sentada ao piano
e tocava, como uma sonâmbula, tudo quanto punham diante dela: as notas pareciam espectros. Sem descanso, os camiões rolavam no pátio número 5, onde era descarregada
a mercadoria, pesada, registada e escolhida. Em todas as secções, Filipe distinguia as clientes que compravam sem reflexões, sem resistência, dessas que, de lábios
cerrados, calculam de pé, aos cantos, e por fim não compram nada. Mais além são os jovens negros dos elevadores que, na multidão de mulheres, anunciam os andares
como máquinas falantes, sem vida, cegos, surdos e insensíveis.
Ao romper da manhã, o armazém é ocupado por grupos de mulheres que tratam da limpeza e do encerado. De noite, os guardas vão e vêm na penumbra, marcando a sua passagem
nos relógios de verificação. Na cave, fica a reserva dos manequins das vitrinas: bonecas de cera, nuas, de sorrisos afectados, alinhadas em longas filas, contra
as paredes. Pares de braços e de pernas estão deitados ao lado delas no chão, e todas têm o ar de esperar alguma coisa. No 14º andar ficam as caixas, os cofres fortes,
metidos nas paredes, protegidos por um sistema secreto e complicado, vigiados noite e dia. É aí que, nos dias de pagamento, os empregados, em longas filas, esperam
o seu sobrescrito. Os caixas estão atrás das grades, vivem prisioneiros entre barras de ferro e campainhas de alarme e usam dedeiras de borracha, no polegar, para
protegerem a pele, que ficaria em sangue, à força de contarem todo aquele dinheiro.
Além, estão os escritórios da administração com os seus tickers, as campainhas, o martelar de centenas de máquinas de escrever. Eis o pequeno ramo de flores em cima
da mesa de uma estenotipista e um único raio de sol que, pelo meio dia, desliza pontualmente na sombria sala do empacotamento.
No vestiário das senhoras - onde as caixeiras vão à pressa fumar um cigarro quando estão cansadas - trocam-se mil bisbilhotices e chefes de secção contam historietas
emquanto se arranjam.
Mais longe, estão as mesas guarnecidas de seis, de quatro, de dois aparelhos telefónicos. Outras mesas têm vinte campainhas, e há gente que se deve precipitar assim
que as ouça tocar.
Eis aqui, em resumo, um bloco inteiro do edifício onde reina a febre da compra e da venda. A casa vibra e tudo isto, unicamente, para ganhar dinheiro.
Há longas mesas onde se escrevem, sobre etiquetas,
os preços que se marcam nas mercadorias. Certos preços são alterados, diminuídos, outra vez modificados. Isto interessa o velho Filipe; pode ficar ali muito tempo
a olhar, a ruminar, preguntando a si próprio como pode um rico modelo elegante descer até ao preço dos saldos, como um lindo móvel é um dia atirado para o subterrâneo,
ou liquidado por uma insignificância. "Que fazem dos monos?" - pregunta ele. Ninguém o sabe. - "Que fazem da mercadoria que não vendem?" - pregunta ainda. Parece
que existe uma casa que compra tudo quanto é inútil; aceita o rebotalho do grande armazém e manda-o, não se sabe para onde; para a Nova Guiné ou para quaisquer antropófagos
do fim do mundo.
E isto mergulha o velho Filipe em longas meditações. Ele também faz parte desse rebotalho... tornou-se inútil... Depois de vinte e oito anos passados na Central,
que podem fazer de um velho como ele? À noite, depois de ter ainda bebido meia garrafa de whisky, sonha que passeia com um cartaz gigantesco às costas, anunciando
um preço diminuído, rediminuído, reduzido a nada.
Um murmúrio percorreu subitamente o armazém, uma espécie de secreta inquietação. Filtrou-se não se sabe por onde: diziam que iam licenciar empregados. Muitas mulheres,
como a srª Bradley, tremiam ao pensar numa despedida. Esforçavam-se por todos os meios para se valorizarem entre os novos, os muito novos, os levianos, os mal vistos.
Havia algum tempo já que a sr.a Bradley sentia certa dor de um lado, que nem ousava confessá-lo a si própria, Skimpy, à noite, punha-lhe uma cataplasma e a sr.a
Bradley desculpava-se junto dos seus hóspedes e ia para a cama, emquanto Skimpy ficava com o velho Filipe e o casal Bengtson, a jogar. Jogavam a "beijinhos de chocolate",
pequenos bonbons negros, que a confeitaria da Central havia comprado em grande quantidade e de que não se tinha podido desembaraçar: saldavam-nos, por isso, aos
empregados, na cantina. Skimpy fazia batota sem vergonha e ganhava, com grandes gritos de alegria. Filipe perdia regularmente, não podia reter na cabeça as cartas
do jogo, embora fosse um bom jogador de xadrez. Às vezes, Nina lançava-lhe um olhar de inquietação e de
piedade.
O pior, para o pobre homem, é que tinha renunciado a beber e não ia já de noite à Central. Tinha medo do armazém, de noite, e medo de si mesmo. Sen tia muitas vezes
a impressão de que poderia, com as suas próprias mãos de detective, roubar uma garrafa de whisky, na secção. Para um bebedor, a sobriedade é uma dura doença, com
arrepios que fazem estremecer, e dores em todos os membros. Durante o tempo em que se conservou sóbrio, o velho Filipe registou um pequeno êxito e um verdadeiro
desastre.
Uma noite, descobriu um rapaz que se tinha escondido, durante as horas de trabalho, atrás de um alto rolo de tapeçaria, em pé, contra a parede do depósito de tapetes.
Uma simples intuição levou o velho Filipe a lançar um olhar para trás do rolo e a agarrar o jovem ladrão pelas orelhas.
A polícia prendeu o garoto, que não tinha ainda dezasseis anos. Ele jurou que não queria roubar nada, mas apenas brincar com os objectos da secção de sport. Isso
foi um triunfo um tanto atenuado e Filipe sentiu-o bem, Três dias mais tarde, passsou-se o seguinte ; emquanto passava pelo armazém próximo da porta de oeste, onde
vendiam tudo em pequenas quantidades, notou duas pessoas que lhe pareceram suspeitas. Lembrou-se de as ter já visto e desconfiado delas, mas o seu cérebro, perturbado
pela abstinência, não lhe deu nenhuma indicação precisa. O homem era do género "belo aventureiro"; a mulher, mais velha do que ele, estava pintada e parecia muito
nervosa. Filipe seguiu-os, sem ser notado, entre a onda da clientela que se espraiava, a essas horas da tarde, pelo armazém.
Tinha vestido o sobretudo e posto o chapéu, para ter também o aspecto de um freguês. Emquanto os vigiava, encostado a uma coluna, sentia-se cambaleante, como que
vazio. No entanto, a velha febre de caça do detective, aguilhoada pelo desejo de provar ao sr. Crosby que ainda podiam contar com ele, levou-o a agir.
As duas pessoas suspeitas deslizaram das malas de senhora para os perfumes, separaram-se, pararam em balcões diferentes, ele no das luvas, ela no dos lenços e Filipe
via-os, distintamente, trocarem sinais às escondidas. O coração pôs-se-lhe a bater: contornou a coluna, quando os viu afastarem-se, e não os perdeu de vista. Em
cima de uma mesa estavam objectos de metal prateado, nada de extraordinário, coisas que faziam mais efeito do que valiam. Shakers para cocktails, taças de fruta,
etc. Filipe sentiu de novo uma espécie de vertigem: entretanto, viu a mulher meter qualquer coisa na carteira, fazer sinal ao homem e dirigir-se com ele para a saída,
num ar indiferente.
Apanhou-os a poucos passos da porta, deitou a mão à malinha da senhora e disse brandamente: "siga-me, se faz favor, e sem fazer escândalo."
- Que aconteceu, sr. Filipe ? - preguntou a senhora. Quando ouviu esta voz teve uma sensação desagradável. No entanto, tudo teria corrido bem se, no mesmo instante,
um jovem assistente dos seus detectives não tivesse vindo em seu auxílio. Esse principiante lançou o seu punho de polícia à mão do homem e disse:
- Deixa-te de histórias, meu rapaz! Já roubaste bastante.
O escândalo estalou... O homem defendeu-se, a mulher pôs-se aos gritos, a multidão alarmou-se, a polícia da casa acorreu com as suas pesadas botas. Tudo se desenrolou
fatalmente, irresistivelmente, como numa tragédia grega.
A mulher era madame Thorpe... O conteúdo da
malinha: irrepreensível... O seu companheiro ameaçava fazer um processo por difamação. Finalmente a cena terminou na sala, pintada de branco, do posto de ambulância,
onde madame Thorpe se entregou a uma crise de nervos. A enfermeira deu-lhe brometo e o aprendiz Pusch, que estava em toda a parte onde havia qualquer coisa de interessante
a ver, foi buscar um carro para levar os dois.
- Se eu estivesse bêbado, semelhante coisa não me tinha acontecido! - dizia de si para si o velho Filipe - O pobre homem já sabia, agora, que seria despedido.
Efectivamente o sr. Crosby mandou-lhe o ordenado de três meses e um atestado para que pudesse arranjar outro emprego. Fizeram-lhe compreender que, no futuro, passariam
sem ele. Um novo chefe detective, moço e enérgico, foi nomeado. Chamava-se Ricardo Cromwell e tinha servido na marinha: foi por isso que o alcunharam logo de "Toughyj.
Desde o primeiro dia que as caixeiras o adoravam, e ele passeava por toda a parte, como um pachá que possue trezentas mulheres.
O velho Filipe estava em casa, jogava as cartas a beijinhos de chocolate e tentava não beber... A Central podia passar sem ele-bem o sabia, o pobre
- mas, Santo Deus, como poderia ele passar sem a Central ?- É preciso que alguém nos dê uma idea - dizia o
sr. Sprague, o velho, o chefe dos decoradores como iniciar essas novas ligas? Parece que a Central comprou a patente, Patente Fidélia! Uma verdadeira porcaria! Mas
a patente é nossa. Não rasga as meias. É preciso fazer uma vitrina inteira com isso. Pregunto-lhe como... Porque eu não posso colocar sessenta mil ligas como se
fossem cebolas, na montra... A não ser que fabricássemos uma árvore sobre a qual nascessem as ligas?
- Não. Já fizemos a árvore das gravatas. - interrompeu erik Bengtson que estava sentado em cima de um escadote, pintando uma senhora maior que o natural, mostrando
uma grande parte da perna, que era destinada à fachada do armazém - precisamos pensar nisso, a sério.
E mergulhou nas suas reflexões, assobiando:
"Contigo, querida, gostaria de ir a Bali dormir sob as palmeiras Contigo irià Austrália e subiria até à lua, Contigo, contigo ..
- Alto! Tenho uma idea, - disse ele - dezasseis bonecas mostrando todas o joelho, com a liga por cima.
Sim, mas... era preciso poder demonstrar que não rasga a meia...
- E como demonstrar isso ? - preguntou o velho, interessado.
Erik caiu em profunda meditação.
- Já sei. Precisamos de uma verdadeira mulier. disse, ao fim de um minuto.
- Como ?
- Uma verdadeira mulher. Dezasseis bonecas e uma mulher verdadeira, vestida exactamente da mesma forma. Ela dobra o joelho e mostra que a meia não se rasga. Admirável!
Eis a solução!
Por um momento, o velho não disse nada. A idea trabalhava no seu cérebro genial. "Não está mau..."murmurou por fim. - "Mas é preciso que tenha umas pernas bonitas"
- acrescentou Erik, do alto do escadote. O velho pareceu despertar.
- Ora! Pernas bonitas têm elas todas!
Erik desceu e pôs-se a gizar o vestido que as dezasseis bonecas e a mulher deviam vestir.
- Precisamos de procurar entre as caixeiras, temos bonitas raparigas na Central - disse ele, absorto.
- Sim. Eu encarrego-me pessoalmente de a descobrir - respondeu o velho.
E pôs-se à procura, nesse mesmo dia. Como por acaso, percorria todo o estabelecimento, cominando as caixeiras, quando elas subiam as escadas ou trepavam aos escadotes.
Tirou disso muito prazer, mas não conseguiu mais nada. No dia seguinte foi o próprio chefe do pessoal que tomou esse encargo. Estava combinado que as ligas deviam
ser expostas durante uma semana na montra número 7, do lado norte. Erik traçava já o esboço do fundo... A caixeira indicada devia receber uma gratificação de dez
dólars por dia, quantia extraordinária, comparada com o pequeno salário que tinham, quando as pernas não entravam em jogo. As mais belas raparigas da Central foram
convocadas
para a oficina de decoração e aí alinhadas. As mais belas raparigas, quere dizer, antes de tudo, os manequins e as alunas da escola de manequins. Segredando e rindo
ofereciam-se aos olhares do velho Sprague: embora se tratasse apenas de pernas, elas tinham dado ao rosto o brilho mais resplandecente. Todas eram ambiciosas e o
facto de serem expostas durante uma semana na vitrina, representava uma aventura excitante, e uma grande oportunidade de êxito.
Sem nenhuma dúvida, Liliana Smíth possuía as mais belas pernas; foi classificada em primeiro lugar na restricta selecção que fizeram. No fim, ficou só em campo.
O velho passeava ao longo da fila de raparigas, com um passo solene, como um general passando revista a um regimento. Erik fazia de ajudante, seguia atrás. O velho
discutia, em voz alta, as qualidades de cada uma, pois as suas relações de todo o ano com bonecas das vitrinas, tinham-no tornado indiferente às reacções humanas.
Erik Bengtson, pelo seu lado, fazia caretas nas costas do velho, o que obrigava a rir as concorrentes. Por fim, o sr. Sprague mandou embora todas, mesmo Liliana.
- Que tem o senhor a dizer às pernas dessa rapariga?-preguntou Erik, assim que ficou só com o chefe.
- Não as podemos utilizar. Ela não tem o tipo preciso, tem um ar ordinário.
- Acha ? -preguntou Erik, que estava habituado a Liliana.
- Meu rapaz-disse o sr. Sprague - pode-se ter excelentes ideas a respeito de decorações, mas não se saber nada do que é venda. E nós queremos vender, entendeu? Nós
queremos vender essas danadas sessenta mil ligas Fidélia. E a quem, pregunto eu? A gente modesta, às donas de casa que precisam de fazer durar as meias, a esses
dois milhões de mulheres que ficariam furiosas, se vissem uma rapariga como esta Smith. Se a pusermos na montra, teremos um montão de homens
diante da nossa fachada norte, e a patente vai-se pela água abaixo.
- Que é preciso fazer então ? - preguntou Erik, que começava a achar o assunto demorado.
- É preciso descobrir um tipo que convenha explicou o velho. - Deve, com certeza, existir uma rapariga que tenha as pernas bonitas e, ao mesmo tempo, um ar sério.
vou procurar mais uma vez. O chefe do pessoal é um burro, É preciso a gente ir em pessoa.
Ao lado do seu superior, Erik percorreu o armazém. Toda a gente estava agora ao facto do que eles queriam e as caixeiras arranjavam-se de tal maneira, quo as suas
pernas não podiam passar despercebidas. Mesmo as da velha guarda, como miss Drívot, da secção das louças, estavam cheias de esperança, pois, desta vez, não se tratava
da cara,
- Espere! É esta que eu quero! - disse o sr. Sprague, de-repente - Eis emfim o tipo de mulher que ety; procurava, como um pedaço de oiro absolutamente raro.."; Uma
rapariga que é bonita e que, ao mesmo tempo,'- tem um ar decente. É esta, acredite. Esta é que há-de vender as nossas ligas à clientela.
- Oh!... parece-me... que se engana.-disse Erik, estupefacto. A rapariga que estava em cima de um escadote, e que tinha encantado o sr. Sprague, não era outra senão
Nina.
- Ela é muito tímida para ser exposta assim - atalhou, tentando distrair o velho.
- Como sabe você, se ela é tímida ? Já lhe fez propostas ? Pois do que precisamos é justamente duma mulher deste género.
- Mas o senhor não a pode meter dentro de uma vitrina, pronto! - exclamou Erik, grosseiro. Mas, como há meses, com subtil diplomacia, tinha sempre levado o velho
a fazer o que não lhe aconselhava e a evitar o que ele queria, a sua oposição enraizou a idea do bom homem.
A GRANDE LIQUIDAÇÃO
- Como se chama, menina ? - preguntou o sr. Sprague, com os olhos erguidos para o escadote, sem se preocupar com o seu assistente.
- Nina. - disse ela.
Acabava de ver seu marido e o rosto iluminou-se-lhe.
- Desça. Tenho que lhe falar - ordenou o velho.
- Deixa-te ficar lá em cima, Nina! - gritou Erik - Na verdade, não desejo que a minha mulher se pespegue numa vitrina a exibir os joelhos.
O sr. Sprague ficou sufocado.
- Ah! bom ... casou com ela não ? As minhas felicitações. Mas... ouça-me bem: você não tem o direito de influenciar sua mulher. Ela talvez se sinta feliz, ganhando
uma pequena gratificação.
Nina descera do escadote e colocara-se ao pé de Erik, não tão perto que pudessem julgar que falavam em particular, mas, no entanto, próximo dele.
- Que gratificação? - preguntou.
- Setenta dólares por semana. - disse o velho, com ar importante - Sem contar que isso a pode fazer ir mais longe.
O sr. Berg, chefe da secção, havia-se aproximado. Miss Drivot passou perto deles, sorridente. Sabiam já todos que Nina era a escolhida e vinham cumprimentá-la, parecendo
tomar o facto como uma honra e uma distinção. No lavatório das senhoras começavam já os comentários ciumentos e os doze andares encheram-se com a notícia.
- Não quero que a minha mulher vá para a vitrina.-repetiu Erik, numa cólera fria.
- No entanto, ganhar dinheiro, só lhe pode ser agradável. Para mais, isso causa-nos a nós, à Central, um grande prazer. Estou convencido de que o sr. Crosby será
informado -continuou insidiosamente o sr. Sprague, emquanto Erik prometia, a si próprio, vingar-se na primeira ocasião. Podia sempre, emquanto decorava, deixar
cair um martelo em cima daquela maldita cabeça de intrigante.
À noite, no metro, os recém-casados discutiram. Erik mantinha que Nina devia recusar a proposta. Nina compreendia isso mal: seu marido fora sempre superficial, não
tomando nada a sério pelo facto de ser artista, e eis que, por esta história sem importância, fazia soar o seu título de conde. com aquele dinheiro podiam começar
a comprar o pequeno Ford e fazer mesmo mais qualquer coisa. Erik tinha um desejo louco de um pequeno Ford e fazia anos daí a pouco...
- Quer te agrade ou não, estou decidida, - disse ela
- Ambos temos desejo de avançar e não nos podemos permitir o luxo de desprezar semelhante ocasião. De resto, até te fica mal fazeres barulho por tão pouco. Ouvirei,
com certeza, menos reflexões desagradáveis dentro duma vitrina, do que quando sirvo os clientes.
A sr.a Bradley tomou o partido de Nina.
- Ela tem razão, se recusar, tomam-na de ponta. Erik resmungou ainda.
- Tenho a certeza que tua mãe não faria objecções - assegurou Nina lançando o seu último trunfo.
- Lá nisso podes estar descansada. Minha mãe até teria prazer nisso. - disse Erik, furioso.
- Bem vê... - concluiu a sr.a Bradley agarrando-se com força á correia, pois, nos últimos tempos, andava trémula. Devia ser por causa das dores no lado. Por instantes,
ela julgou ver os embrulhos, as etiquetas, as mãos girarem diante dos olhos e teve medo de cair. Mas era preciso não falar dessas coisas, se queria conservar o seu
lugar na Central. Bem vê! - continuou, deixando-se baloiçar da direita para a esquerda. Liliana, de pé, a seu lado, não dizia nada. Ia devorada pela cólera e pelo
ciúme. Pensar que a rejeitaram para pôr Nina na vitrina! Pensar que havia casado, emquanto ela tinha todas as noites que andar sozinha no seu ? bairro! Pensar que
esse cretino do Erik procedia como
se Nina fosse distinta demais para ser exibida! Tudo isto, punha Liliana fora de si: era como uma dor perfurã nte.
- Fazia muito mais efeito se soubessem que viam as pernas de uma condessa Bengtson - disse ela, por fim.
A flecha atingiu Erík, - e ela percebeu-o - mas era uma bem fraca consolação. Desceram os três na rua 42.a e Liliana continuou sozinha até à 125ª.
Não era que aquilo desse muito prazer a Nina, pelo contrário, afligia-a até. - "Setenta dólares". -pensava emquanto jogava com Skimpy. Setenta dólares" Erik resmungava
ainda, no entanto, deixava-a fazer o que quisesse. Nina via-se já quási a escolher o pequeno Ford. Nem podia adormecer. Estendida na obscuridade, assaltava-a a sua
empresa e construía castelos no ar.
- Pensa que nunca mais te aborrecerás - disse ela, noite alta. -Adivinhava, pela respiração de Erik, que ainda não conseguira adormecer.
- Quando? - preguntou.
Nina estendeu a mão para a outra cama:
- Ora quando ... por exemplo, quando tivermos o nosso automòvelzinho... À noite poderemos dar um passeio...
Nina conservava a mão estendida; aparentemente, Erik nem dava por isso.
- Eu não me aborreço - disse, algum tempo depois.
- Sim, continuou ela meigamente - eu sei, não é preciso que o digas: tu aborreces-te. Jogar todas as noites com a Skimpy e o velho Filipe não é, evidentemente, muito
interessante para ti. Mas tu verás... Ela calou-se um momento e depois veio a mão de Erik, da outra cama, ter com a sua.
- Querida inteligente, Lille spurv, - disse ele - estamos casados apenas há três semanas e já tens sustos a meu respeito...
Nina teve desejos de responder, mas não o fez. Erik
adivinhava sempre as suas mentiras; mesmo num quarto de dormir às escuras, ele sabia quando ela mentia. Tinha receios, sim... Ele andava distante... distraído, muito
amável... mas de noite para noite, a partida de cartas e a vida em casa dos Bradley, mais o irritavam. Um carrito para ele... ar ... movimento ... velocidade ...
- Sabes ?... é porque não me habituo aos beijos de chocolate - disse emfim Erik, do outro lado.
Nina pôs-se a rir baixinho, e adormeceram.
No dia seguinte, Nina exercitou-se no papel que devia representar. À noite Erik não foi a casa, mas jantaram juntos no "Rivoldi". Depois, ele voltou para a loja
para decorar a montra das ligas.
Foi a uma quarta-feira, que Nina tomou posse do seu novo posto. Tendo um vestidinho azul-claro, foi colocada na vitrina, no meio de dezasseis bonecas, de sorriso
idiota, e fez a demonstração das ligas Fidélia. Para dizer a verdade, ela admirava-se que as meias ficassem inteiras.
Três vezes, durante a manhã, Erik foi à rua e fazia guarda para vigiar a mulher por trás do vidro. Nina mal se atrevia a sorrir-lhe, como se se tivesse tornado actriz
de um drama de Shakespeare. Ao meio dia, houve uma pausa de meia hora; deixou ali as dezasseis bonecas e foi ter com Erik, à cantina. Ele não disse uma palavra sobre
o novo emprego de sua mulher e ela também não falou nisso. Liliana não se foi sentar em frente deles, como de costume. Na escada 5, os esposos separaram-se e Nina
retomou o seu lugar na montra 7.
Era fatigante. Horrivelmente fatigante e ennervante. Mas, ao fim de dois dias, tinha-se habituado, Às vezes, parecia-lhe que se tinha transformado também numa boneca,
com as costas duras, curvadas, e com um sorriso de madeira.
É vulgar dizer-se que os novaiorquinos nunca têm tempo. Mas quando uma bonita rapariga, exposta em carne e osso, mostra, nas suas próprias pernas, que
as meias não se rasgam, os mais ocupados arranjam logo tempo. De manhã até à noite havia uma multidão em frente da fachada norte, de tal maneira, que teve de ir
para lá um agente de polícia, afim de manter a ordem. Certos basbaques ficavam ali cinco minutos, olhando com um sorriso cheio de espectativa, como se esperassem
a conclusão divertida de uma boa anedota. Até o mendigo da esquina da rua pôs a tiracolo o seu letreiro "Sou cego" e se fez conduzir até ao armazém, pelo cão, arriscando
um olhar para Nina, Ela tinha esquecido completamente que a fitavam, e desempenhava o melhor possível o seu papel, sem se preocupar com a gente que estava lá fora.
- Ah! Tu nunca podias, na vida, ser um manequim ! - disse-lhe Liliana, à noite, quando, fatigadas de corpo e espírito, se dispunham a partir.
- Parece-me bem que não. - respondeu Nina, sem rancor.
Erik fora obrigado a ficar no armazém; os projectos para a estação de verão não estavam acabados.
- Emfim... compreendes, ao menos, a sorte que tiveste de seres assim exposta ?
- Porquê? -admirou-se Nina, a quem doíam as costas .
- Por causa de toda essa gente que olha para ti... todas essas ocasiões... Podes encontrar alguém que faça a tua felicidade.
- Que felicidade ? -preguntou Nina. Ela alegrava-se mas era ao pensar nos setenta dólares e no pequeno Ford ... Mas a felicidade era talvez outra coisa.
- Inocentinha, an ? - troçou Liliana. Tinham entrado no vestiário das senhoras e punham pó no rosto. Nina fazia-o negligentemente, Liliana com uma gravidade atenta.
- Emfim... não tens recebido propostas, cartas de amor ou coisas desse género?
- Mas eu sou casada! - replicou Nina. Liliana olhou-a com ar de desprezo:
- Eu é que devia lá estar. - disse, rancorosa. E havia de tudo neste pensamento: inveja, ciúme, raiva, até desdém e ódio por essa pequena Nina tão simples. Um pensamento
que queimava e estragava tudo: "Eu é que devia lá estar!..."
FACTO estranho, os habitantes de uma capital não conhecem verdadeiramente senão uma pequena parte da sua cidade. Fazem todos os dias o mesmo caminho, à mesma hora,
com a mesma luz. Steve Thorpe, por exemplo, não conhecia senão o caminho da sua casa de White Plains para o seu escritório da 5ª Avenida, e, além disso, o seu Club.
E mesmo, só conhecia esse bairro, através da porta do seu automóvel.
Que ele tivesse passado a pé, numa quinta-feira, pouco antes do meio-dia, diante da fachada norte da Central Warehouse, era um puro acaso e fora causa disso, também,
uma carta que tinha recebido. Essa carta, monumento epistolar, ao mesmo tempo atormentada e solene, era assinada por Filipe Filipe. Thorpe não se teria inquietado
muito se, entre frases confusas, não houvesse alusão, a sua mulher. O epistológrafo Filipe, pedia perdão pela ofensa que, em consequência de um mal-entendido, tinha
feito a madame Thorpe. Ao mesmo tempo que se censurava a si próprio, pedia instantemente ao marido, sr. Thorpe, para o ajudar: "Por causa de sua mulher perdi o meu
lugar que, durante toda a vida, ocupei o melhor que pude. Seja generoso, sr. Thorpe, e ajude-me a recuperá-lo. Sei que é amigo do sr. Crosby, uma palavra sua pode
restituir-me a felicidade", Assim terminava a confusa epístola.
O sr. Thorpe percebeu, pelo menos, que esse Filipe ignorava a acção de divórcio, posta por madame Thorpe contra ele, e ficou-lhe reconhecido, pois desde que sua
mulher o tinha deixado, andava de um lado para outro com a sensação de que toda a cidade o apontava a dedo.
Embora as culpas estivessem do lado de Lúcia, Thorpe não tinha a consciência tranquila. Em muitos processos, defendera a opinião de que, quando uma mulher se entrega
a certas faltas, é sempre por culpa do marido. Se a carta não falasse de sua mulher, ele tê-la-ia deitado fora, imediatamente. Mas Steve Thorpe queria bem à mulher
que o tinha abandonado, e tudo o que lhe dizia respeito o agitava extremamente. Ele metera-se em casa e não se dava com ninguém; quanto às pessoas que iam ao seu
escritório de advogado, possuíam o tacto preciso para não falarem de Lúcia. De-resto, Thorpe supunha que, havia muito tempo, ela tinha partido em viagem para a Europa,
como lhe dissera, quando se separaram. Só agora, esta carta lhe fazia saber que estava ainda em New-York. Esse Filipe devia ser um louco. Thorpe nada podia deduzir
da carta, mas o sangue subia-lhe ao rosto, ao pensar que um desconhecido tinha podido ofender Lúcia. Pegou no telefone para chamar Crosby, que conhecia como membro
do seu Club. Mas abandonou o auscultador, assim que viu os olhos atentos da sua velha secretária. Miss Tackle tinha a aparência e a vigilância dos cães de pedra,
que na China velam as portas dos templos e afastam os espíritos maus. Teve vergonha diante dela, diante da telefonista e diante do groom e, levantando-se, aproximou-se
da janela. O sol brilhava. Havia apenas três quarteirões de casas até à Warehouse. O grande relógio da torre central fez soar meio-dia. Havia anos que Thorpe tinha
por costume acertar por ele o seu relógio. "vou almoçar fora" - murmurou, e depois, deixando o sobretudo, pegou no chapéu e libertou-se do olhar de miss Tackle.
Assim que chegou à rua, respirou e olhou para o céu. Impaciente, esperou a luz verde para atravessar, pois tinha medo dos automóveis, como todas as pessoas que andam
sempre neles. O sol brilhante, aquecia-lhe as costas; à esquina da rua flutuava um cheiro a cravo. Uma mulher vendia flores; um homem empurrava um carrinho de pop-corn.
Thorpe sentiu-se agradavelmente englobado na onda dos passantes. "É preciso andar mais - pensou ele. - O pouco footing que faço ao sábado, não basta".
Thorpe era um homem alto e pesado, de cinquenta e dois anos. Havia quatro que estava um pouco calvo e ultimamente, a sua tensão arterial não era o que devia ser.
"A máquina gasta-se lamentava-se frequentes vezes. Era um trabalhador de uma resistência e de uma concentração colossais. Tinha ganho bom dinheiro e oferecido a
sua mulher todo o luxo que ela podia desejar. Era um dos milhões de maridos americanos, que passam o tempo a ganhar dinheiro para a mulher, de forma a não lhe ficar
nenhum tempo para gastar com as mulheres. Por isso é que ela o tinha deixado. Havia fugido com um gigolô, tal como o sr. Thorpe designava esse homem. Que o gigolô
se chamasse conde Di Péruggi e que quisesse desposar Lúcia, em nada alterava a situação.
Steve Thorpe estava na idade em que fere e faz doer horrivelmente uma mulher deixar um homem por causa dum gigolô. Mas, - com os diabos! - também ela estava na idade
em que as mulheres têm tendência para fugir com gigolôs. Pânico final, o desejo de agarrar a vida pelo último cabelo... Às vezes, sentia uma violenta cólera contra
Lúcia, outras, causava-lhe pena. Tinha conhecido muitos casos deste género, nos processos que estudara, para ser intransigente.
Foi por isso que Steve Thorpe se pôs a caminho, para tentar saber desse Filipe qualquer coisa de novo a respeito da sua mulher. Chegou diante da Central, parou
diante das vitrinas, olhando para tudo. Era novo para ele, isto desviava-o do motu-continuo dos seus pensamentos. Avançou entre a onda de gente, contornou o armazém,
deslizou ao longo da fachada norte e chegou diante da montra onde se fazia a demonstração das novas ligas Fidélia.
Thorpe parou e pôs-se a sorrir. Bonito, muito bonito. Muito bem" - pensou.
Cada uma das dezasseis bonecas tinha uma etiqueta de cartão, pendurada do joelho: "Preço: 2,80. A jovem, ao centro da vitrina, que, com um movimento regular levantava
a saia e puxava a liga, tinha também uma etiqueta pendente do joelho.
- Encantadora! - pensou Thorpe, olhando Nina e as bonecas - A rapariga é encantadora, muito mais bonita, do que parecia à primeira vista.
Parou, olhou e andou um pouco mais. Ao fim de um momento, voltou atrás. Tinha, entretanto, dado uma volta a todo o quarteirão; o sol brilhava e fazia-lhe bem
andar.
- Aqui está o que eu devia arranjar... uma amiguinha... - pensou.
Era o remédio infalível de todos os divorciados que conhecia. Uma amiguinha, uma coisa que se possa mostrar em público, que possa trazer um pouco de calor e de juventude.
Em Thorpe havia um fundo de bondade: amava os cães, as crianças, tudo o que era pequeno e necessitava de protecção. Teria sido terno, mas não tinha aprendido como
isso era.
Na sua casa de White Plains havia mesmo dois cães. A casa era muito grande para um homem só, pois a T. S. F. e a garrafa de whisky são uma companhia insuficiente.
Thorpe ficou ainda cinco minutos a olhar para a rapariga, depois entrou no armazém, pela porta norte.
No escritório de informações estava uma senhora de cabelo grisalho, que, a julgar pela sua aparência, devia
ser membro de numerosas associações de reforma. Thorpe, num acesso de bom humor, dirigiu-se a ela:
- Gostaria de comprar a jovem senhora que está exposta na montra - disse, tirando o chapéu.
- O quê ?
- A jovem senhora da montra. Tem o preço: dois dólares e oitenta. É um bom negócio. Onde a posso ir buscar?
- O senhor está a brincar! - respondeu "o escritório de informações" num tom adocicado. Em que posso servi-lo ?
A crise de Thorpe tinha já passado. Lembrou-se a que tinha vindo.
- Queria falar a um homem chamado Filipe . sabe se está empregado aqui ?
- Filipe ? O detective ? Um minuto ... - respondeu a senhora - vou chamar o sr. Cromwell.
Disse algumas palavras ao telefone e o resultado foi a aparição, passado um momento, de um rapagão com atitude de campeão de foot-ball, que a senhora das informações
apresentou com visível complacência.
- Este senhor deseja falar com o sr. Filipe. - disse ela - Este é o sr. Cromwell, que lhe dará informações.
- Chamo-me Thorpe -elucidou o advogado.-Tenho aqui uma carta que me foi dirigida por um tal sr. Filipe. Gostaria de o ver.
- Filipe, neste momento, está no depósito das peles, sr. Thorpe. Eu sou o novo detective da casa, tratando-se de qualquer coisa que...
- Não, não, obrigado,- disse vivamente Thorpe.- Queira apenas indicar-me o caminho desse depósito.
Cromwell teve um sorriso que significava: "Tu imaginas que as coisas se passam assim, meu homenzinho..."
- Como é natural, não é permitido a ninguém descer ao depósito das peles.- explicou com um sorriso condescendente,
- Bem. Então queira fazer o favor de mandar chamar aqui esse senhor.- propôs Thorpe.
Cromwell mirou-o com ar inquisitorial: "Talvez se trate de alguma situação para o velho Filipe" sugeriu, receosa, a senhora das informações. O novo detective piscou-lhe
o olho: "Trata-se de algum novo emprego?"
- preguntou. Mas Thorpe perdeu a paciência. "Quero falar com esse senhor, sim ou não?"
- Nunca, antes de meia hora. É preciso esperar que ele acabe a ronda, lá em baixo.
- Muito obrigado. Isso para mim não tem grande importância.- respondeu Thorpe. E, furioso, pôs o chapéu na cabeça e foi-se embora. Parecia, aos seus próprios olhos,
bem ridículo ter tanto trabalho por causa de uma baboseira escrita numa carta. Que lhe importava o que fazia a sua antiga mulher? Se foi vexada, foi muito bem feito.
O pequeno passeio ao sol de abril tinha enchido Thorpe de uma sensação desacostumada de frescura. Podia ser também por ter visto a pequena da vitrina. Para ser franco,
estava impaciente por tornar a vê-la. Mas, quando Steve Thorpe se encontrou na rua, a montra número 7 estava vazia. Ou antes, continha as dezasseis bonecas sorridentes;
pareceu-lhe vazia, porque a rapariga tinha desaparecido. Ruminou um pouco sobre este fenómeno, hesitou, e depois decidiu se, deu a volta ao armazém até à porta do
sul e entrou por esse lado. Era a secção de perfumaria. Um cheiro forte, a sabonete, flutuava no ar e Thorpe encontrava-se muito embaraçado nessa atmosfera de artigos
de beleza feminina. Também ali havia um "escritório de informações"; era uma senhora de meia-idade com um ar prodigiosamente distinto.
- Desculpe-me -pediu Thorpe -mas podia dizer-me para onde foi a senhora da vitrina?
Este "escritório de informações" tinha uma compreensão muito rápida. A senhora pôs-se logo a sorrir:
- Naturalmente essa senhora está no seu repouso do meio-dia,
- respondeu, depois de olhar para o relógio de pulso.
- Será possível revelar-me o seu nome ou onde poderei falar-lhe?
O sorriso do "escritório" desapareceu:
- Lamento, senhor, mas é-nos formalmente proibido dar informações desse género - replicou em tom gelado.
- Que o diabo leve todas as mulheres de quarenta anos!- resmungou Thorpe, saindo do armazém.
Se tivesse sido dado a Steve Thorpe ver Nina nessa manhã, a impressão fugitiva e agradável que sentira, teria provavelmente desaparecido. Mas, como deparou com o
impossível, ficou-lhe no sangue uma impaciência extraordinária, como de uma coisa esperada e que não teve ainda desenlace. Esse ligeiro aborrecimento deu-lhe uma
sensação de vitalidade nas veias, como, havia muito tempo, não sentira. Isso fazia parte desse dia de abril cujo ar, a-pesar-do calor do sol, era atravessado por
uma frescura estimulante que parecia vir de qualquer distante vento de montanha.
Como era meio-dia, a gente moça que saía dos escritórios estava espalhada um pouco por toda a parte, encostada às paredes das casas, fumando o seu cigarro. Thorpe
passou diante deles com ar atento: procurava a rapariga da montra. Ao canto da rua havia um grande drugstore, em que as pessoas estavam sentadas e apertadas, comendo
rapidamente a sua refeição. Subitamente, Thorpe teve um pressentimento, quási a certeza de que a jovem se encontrava ali. Entrou, atirou-se para a primeira cadeira
vaga e encomendou uma sandwich de presunto. Já tinham passado muitos anos sobre a época em que o advogado almoçava num drugstore. Os anos do seu triunfo, os anos
do seu infeliz casamento, os anos em que os cabelos lhe tinham caído e o ventre se lhe tinha arredondado. Entre essa gente moça, ele sentiu-se subitamente novo,
como no tempo da sua estreia,
A rapariga não estava entre o rancho de gentis criaturas que se amontoavam à volta do balcão, a mastigar. O advogado olhou para todas uma a uma, nenhuma lhe agradava
nem metade do que lhe agradara a rapariga da vitrina. Levantou-se, admirado de si próprio, pagou e voltou para o seu gabinete da 5ª avenida.
Uma multidão de clientes esperava-o já e mergulhou-se no trabalho até tarde. Às cinco horas, depois de ter acabado uma consulta delicada, pediu a miss Tackle que
lhe fizesse café. O ruído da cafeteira eléctrica e o perfume ligeiramente amargo que se espalhava no aposento, enchía-o de bem-estar.
- Pode ligar-me para o sr. Crosby, da Central ? preguntou subitamente e ficou surpreendido com isso. Não sabia de onde lhe vinha tal audácia, esse feitio "não te
rales". Que diabo lhe podia importar que miss Tackle, sua subordinada, ouvisse a conversa e desaprovasse as suas intenções?
Entre o escritório do advogado e o armazém houve as intervenções habituais de empregados subalternos até que miss Tackle obteve o escritório do grande director.
"O sr. Crosby está ao telefone" - anunciou ela emfim, com uma voz triunfante, estendendo a Thorpe o auscultador. O advogado lançou-lhe um olhar breve e, modelo de
discrição, ela saiu do aposento. (Ele sabia, que, de toda a forma, ela ouviria do vestíbulo a conversa telefónica ...)
- Bons-dias Crosby, como vai isso ? Aqui, Thorpe.
- Bons-dias, Thorpe. É você?
- Um lindo dia, não é verdade ?
- Sim! Ainda não tive tempo...
- Como vão essas percentagens ? Excepcionalmente, não se tratava do dividendo das
acções, mas do açúcar contido no sangue do sr. Crosby. A pregunta era uma amabilidade e como tal foi tomada.
- Obrigado, apenas 0,5 na última análise.
-Ainda bem. Está, com certeza, disposto a prestar um favor a um amigo...
- Se não custar nada...
- Ora vejamos, trata-se de um certo ... Filipe Filipe ... - disse Thorpe - puxando a confusa carta para si, pois tinha outra vez esquecido o nome. - Soube que este
homem perdeu o lugar por causa de minha mulher. Queria pedir-lhe por ele... emfim ... queria pedir-lhe que o conservasse. Parece que trabalhou durante muito tempo
na sua casa... e custa-me pensar que foi despedido por causa da minha mulher.
Ao telefone, o sr. Crosby calou-se.
- Está ? - fez Thorpe.
- Estou, sim, um instante. - respondeu Crosby - Estou a pensar. Lamento muito, Thorpe, mas não há nada a fazer. Creia-me, o facto não tem nenhuma ligação com madame
Thorpe. O indivíduo em questão é um bêbedo inveterado, é velho, em suma, não está já à altura do seu posto.
- Não há então nada a fazer, com certeza? - insistiu Thorpe.
- Infelizmente, não!-foi a resposta.
- Bem. Em todo o caso fiz o possível por ser agradável ao homem. Vai esta noite ao Club?
- Não me parece, sinto-me bastante abatido.
- É a primavera.- disse Thorpe, em cujas artérias ardia numa nova excitação - Escute Crosby... queria ainda qualquer coisa de si... muito fácil de fazer.
- Sim? - esperou Crosby de mau humor. A exuberância do advogado contrariava-o.
- Você tem uma rapariga na vitrina.. por causa de meias ou outra coisa parecida ... Gostaria de saber o nome dela, a morada e... Onde poderei informar-me?
Crosby teve um riso breve.
- Você precisa de uma caixeira para meias? Thorpe respondeu:
- Sim... pouco mais ou menos.
- Então, com muito prazer. O meu secretário vai dar-lhe as informações.
- Muito obrigado, Crosby. Adeus, até ao Club.
E Thorpe pôs-se a beber o café. Miss Tackle apareceu e tentou fingir que não tinha ouvido nada. Dez minutos mais tarde, o secretário de Crosby tocava. Secamente
e em tom protocolar, disse que a senhora a respeito de quem o sr. Thorpe tinha pedido informações, se chamava Nina Bengtson, de Houston, Texas, de 19 anos de idade,
empregada na secção de loiças e vidros, havia seis meses.
- Muito obrigado.
- Ora essa, às suas ordens.
Thorpe leu rapidamente um pacote de cartas que miss Tackle lhe entregara, assinou, pegou no chapéu, no sobretudo e saiu do gabinete.
- bom domingo, miss Tackle. - disse ele.
- Obrigada, igualmente. - respondeu miss Tackle e ele viu nas suas palavras uma pontinha de mordacidade impossível de dissimular.
Sentiu desejo de ir mais uma vez a pé até à Central, mas o seu motorista esperava-o diante de casa com o carro, e o relógio luminoso marcava seis horas menos cinco.
Subiu, deu a direcção da Central e saiu do carro no anoitecer cheio de gente e de luzes. Estavam já a fechar as portas. Assim que chegou diante da vitrina, um rapaz
extremamente loiro estava ocupado a fazer descer as cortinas de tom creme, que escondiam a montra dos basbaques da rua.
- Para casa, Tony - disse Thorpe secamente, assim que subiu para o automóvel.
Tinha dois cães bassets em casa, Max e Moritz. Podia, ao domingo, jogar o golf ou visitar o seu amigo dr. Back, em Rye. Agarrava-se a quanto o desprendesse da recordação
de sua mulher. E a rapariga da vitrina parecia ter essa qualidade, em larga escala.
Quando Thorpe, no dia seguinte, passou diante do armazém, à hora do lanche, não conseguiu encontrar a montra e foram-lhe precisos alguns minutos para compreender
que a decoração tinha sido mudada. Onde havia estado Nina Bengtson, exibiam-se agora móveis de jardim, pintados em cores vivas e aureoladas de promessas de verão.
Na terça e quarta-feira, Thorpe tentou apagar o incidente da memória. "Porque hei-de renunciar?"- preguntava a si próprio na quinta de manhã, rolando para o escritório.
No seu foro intimo germinava o másculo desejo de fazer a sua mulher, o que ela lhe tinha feito a ele. Fora sempre fiel a Lúcia principalmente por falta de tempo
e de interesse. Parecia-lhe agora que esse pequeno deslize, cometido mesmo depois, podia torná-lo mais atraente aos olhos dela.
Pode parecer espantoso que madame Thorpe que, no salão de costura, causava tão má impressão, fosse capaz de despedaçar o coração de um bom homem como o marido. Mas
os indivíduos têm tantas facetas como os olhos dos insectos e cada um só nota no outro as poucas facetas que estão voltadas para ele. Thorpe conhecia Lúcia; sabia
o que ela fora e no que se tornara. Via-a outra vez terna e tímida. A rapariga, com quem ele tinha casado, a jovem mulher que, por três vezes, tivera um parto prematuro
até que renunciara ao desejo de ter um filho, a boa camarada do seu difícil princípio de vida. A mudança tinha começado mais tarde, com o dinheiro que ele trazia
abundantemente para casa. Lembrava-se que lhe pedira, frequentes vezes, para se ocupar mais dela. "Mais tarde, mais tarde... ainda temos tempo" - respondera ele.
"A vida passa e nós não a gozamos" suspirava ela, e ele considerava isso uma injustiça do seu temperamento nervoso. Deu-lhe peles, jóias, um anel de esmeralda quando
fez quarenta anos. Em vez de se alegrar, ela tinha chorado. "Tu imaginas que a vida só é feita de segurança e de uma eterna partida de bridge,
dissera. Nessa época, aquilo havia-o surpreendido e encolerizado. Só agora começava a compreender. Um triste ressaibo era tudo quanto lhe restava do seu casamento
perdido.
- "Para que me hei-de preocupar com isso?" -repetia a si próprio. - Porque não arranjar a primeira distracção, que me aparece no caminho?"
Ao meio-dia desembaraçou-se da solicitude de miss Tackle e andou os três quarteirões que o separavam da Central. Hoje, o sol não brilhava, mas o ar estava pesado
sob um teto de nuvens que cobria o céu. Thorpe tomou o elevador até ao sexto andar e passeou o olhar, aparentemente distraído, pela secção de vidros e porcelanas.
Uma menina de aspecto rebarbativo ofereceu-se para o servir, mas não era isso que ele queria.
-Miss Bengtson não está? -preguntou-lhe sem rodeios. O chefe da secção aproximou-se e chamou em voz baixa: "Nina, Nina, um cliente para si-". A estas palavras, Thorpe
não pôde defender-se de uma lembrança cómica que se relacionava com uma casa célebre de Nova Orleans. "Nina, um comprador para si". De resto, era verdade; mas assim
que Nina apareceu, ele sentiu-se acanhado e não sabia bem o que dizer. "Um amigo aconselhou-me que me dirigisse a si; trata-se de um serviço de licores... vidro
sueco.."-balbuciou. "Vidro sueco?" - repetiu Nina reflectindo, emquanto três rugas lhe cruzavam a fronte... Ela tinha rosto de criança e corpo de mulher. Possuía
uma cor fresca e uma pele aveludada: irradiava mocidade e saúde. Um calor envolveu o coração de Thorpe, quando, atrás dela, se dirigiu para o lado dos copos de licor.
Emquanto o servia, ele tentou meter conversa, mas não foi longe. Não tinha prática e ela parecia séria e atenta ao trabalho. Enternecer um júri de coração duro,
era simples. Mas encontrar um princípio de conversa para uma caixeirinha de um grande armazém !.. Para lhe dar prazer comprou um serviço caro, de doze copos,
desejando, em silêncio, que ela tivesse uma percentagem.
- Está muito bem para esta secção -disse ele, emquanto Nina fazia tilintar com o dedo cada copo para mostrar que o cristal não estava rachado.
- Porquê ? - preguntou.
- Se lhe batessem assim, também, com o dedo, teria sonoridade, igualmente clara e fina. - disse Thorpe - Ela corou. "Não. Não diga isso..." -balbuciou com um sorriso
espantado. Não podia, no entanto, explicar à clientela, que só seu marido tinha o direito de lhe fazer reparos semelhantes. Thorpe passeou ainda um pouco, vendo
as jarras de flores e as fruteiras, achou tudo muito bem, prometeu voltar e por fim despediu-se descobrindo-se, o que mostrou ao mesmo tempo a Nina as suas boas
maneiras e a sua calvície.
Nina pensou em falar a Erik nesse amável cliente, mas não teve tempo. Esperou, como de costume, na escada 5, mas Erik não apareceu. O armazém esvaziou-se, ela ouviu
o andar dos empregados que saíam e o incessante pong pong pong do relógio do ponto, no pátio velho. Depois, tudo ficou silencioso, os elevadores deixaram de funcionar,
as luzes apagaram-se. Por fim, ouviram-se passos lá em cima, mas era só Pusch que lhe trazia uma carta. Curioso, ficou de pé junto dela emquanto a viu ler.
Gentil pardalinho,- escrevia Erick - estou condenado numa conferência interminável, peço-te que não me esperes, porque o caso não tem esperança. Vai ao cinema ou
ocupa a tua noite de qualquer forma distraída. Não te inquietes com o meu jantar, pois vou ao Rivoldi". Trezentos beijos da reserva.
Nas margens da carta, Erik tinha-se desenhado a chorar, apresentando um coração partido e assassinando o velho Sprague com um martelo. Embora ficasse aborrecida,
Nina não pôde deixar de rir.
-Não tem resposta, Pusch-disse. E depois de
dar um piparote nos caracóis inverosímeis do rapaz, foi-se embora.
- Meu Deus!-murmurou Nina, chegando à porta dos empregados e querendo sair para a rua.
- Sim, parece que chove, não é verdade minha senhora ? - disse o guarda Joé aproximando-se dela. Dentro do armazém dá-se pouco pelo ar e pelo tempo. Por uma ou duas
vezes Nina tinha notado uma crepitação semelhante a chuva, mas nunca esperara uma torrente de água comparada à que caía do céu. A rua estava deserta, largos regatos
corriam para os escoadoiros.
Gotas enormes estalavam no asfalto e uniam-se em milhares de pequenas fontes. Nina não tinha casaco nem guarda-chuva e olhava para o seu vestido bastante elegante.
Os quatro quarteirões que a separavam da estação do metro significavam catástrofe e ruína. Esperou um instante, viu passar diante de si vários autobus absolutamente
cheios, e, como aquilo parecesse não querer acabar, tomou uma decisão: "vou tomar um táxi até ao metro" pensou, e fez um sinal. Mas os motoristas dos táxis iam arrogantes
e irónicos, como sempre que chove. Continuavam o seu caminho, sem parar, limitando-se a salpicarem, com a água cinzenta das poças, as pernas de Nina. No próprio
momento em que ela ia a renunciar, surgiu um carro particular que parou mesmo diante da saída dos empregados... O senhor que ia no interior baixou o vidro e disse:
- Não poderei levá-la, menina? Embora esse convite fosse a coisa mais inocente e mais corrente em New-York, Nina respondeu como sua mãe lhe tinha ensinado em Houston,
Texas. - Muito obrigado, senhor, espero o autobus.
- Mas vai molhar-se, miss Bengtson! - teimou o senhor do automóvel.
E Nina reconheceu então o seu amável cliente da
tarde. Ele passou a cabeça calva pela portinhola e sorriu, com ar animador:
- Somos já velhos conhecidos ...
- Não sei... - respondeu Nina, hesitante.
Fazia frio, o lado direito do vestido estava já encharcado; o caminho até ao metro, debaixo de chuva, parecia de uma dificuldade insuperável. O que a levou a aceitar
foi o facto do senhor, deixando o abrigo do seu carro, sair de cabeça descoberta para a tempestade, abrindo a porta para ela entrar. "Vamos, suba. Não está tempo
para hesitações." - disse ele. E Nina subiu.
Lá dentro sentiu calor. O que primeiro caiu debaixo dos olhos de Nina foi um fresco ramo de junquilhos numa jarra; o aroma envolveu-a com a sua doçura cativante
e pesada.
- Onde quere que a leve ? - preguntou o sr. Thorpe.
- À primeira estação de metro, - disse Nina.
- Onde mora ? - informou-se Thorpe. Nina deu-lhe a sua direcção.
- Mas então é muito simples, eu passo em frente da sua casa e deixo-a lá.
O motorista guiou habilmente através das filas de automóveis; a chuva batia, impaciente, no teto do carro, os junquilhos cheiravam bem.
- É muito gentil da sua parte - agradeceu Nina. E Thorpe respondeu:
- Mas absolutamente nada... nada ...
Agora que tinha a rapariga tão perto de si, não sabia como poderia avançar mais ainda. Ela parecia séria, sentia que tinha de agir com prudência. - "Está molhada ? - preguntou, tateando o ombro do casaco de Nina. Ela encolheu-se imediatamente para um canto do carro. - "Não, obrigada" - disse. Até ao Central Park foram calados;
ao princípio o silêncio era opressor.
- "Onde pôs os lindos copos que comprou?" - preguntou a rapariga. Thorpe tinha deixado o serviço de licor no seu gabinete de trabalho. - "No escritório. - disse
-Sou advogado. Chamo-me Steve Thorpe . Nina esboçou um pequeno cumprimento. O auto avançava pela rua 62ª para a Riverside Drive. Agora chovia com mais força e, regularmente,
o asfalto parecia um mar cheio de luzes. - "Quere realmente ir para casa?" - preguntou Thorpe. - "Para onde hei-de ir ?" - exclamou Nina, surpreendida.
- Mas há mil coisas agradáveis a fazer numa tarde de chuva. Bar, cinema, concerto. A menos que a esperem ?
Emquanto Thorpe fazia esta pregunta, Nina entristeceu um pouco: era a quarta noite passada sem Erik.
- Não, ninguém me espera. - disse rapidamente.
- Temos então a mesma sorte. - replicou Thorpe. Olhou-o de revés. Ele pareceu-lhe muito velho, com a cabeça calva e uma ruga de preocupação ao canto da boca.
- Numa cidade tão grande há muita gente só. disse ela, sem querer.
Thorpe concordou com calor e no meio da conversa, obliquavam para a avenida de Fieldston, semeada de árvores. ?
- Como vê, levo-a conscienciosamente para casa. - , disse Thorpe - Mas é uma vergonha! Vai ficar lá sozinha e eu ficarei mortalmente melancólico. Porque não vamos
jantar juntos e passar a noite num cinema? Que lhe parece? Gosta do Gary Cooper?
Nina, tal como milhares das suas irmãs americanas, era louca por Gary Cooper e tanto mais que ela achava o Erik parecido com Gary. Erik também era alto magro e tinha
as faces vincadas e um ar desdenhoso quando julgava que ninguém reparava nele.
-Gary Cooper? Mas é o meu sonho! -disse ingenuamente.
Thorpe compreendeu mal a expressão sonhadora e abandonada do seu rosto que espiava à luz de um candeeiro emquanto, num cruzamento, esperavam que se
restabelecesse o trânsito. Aproximou-se dela e procurou-lhe a mão.
- Está entendido que vamos passear juntos? - preguntou, entusiasmado. Nina desprendeu-se, pôs-se logo a rir e repeliu-o sem o melindrar, mas muito claramente.
- Que imagina? - disse - Eu sou casada.
Thorpe não estava em disposição de se deter por semelhante dificuldade.
- Isso não tem a menor importância. - replicou Cada um de nós é mais ou menos casado, emquanto isso dura...
Sem querer, o seu tom tornou-se amargo e Nina reparou.
- Não o queria magoar. Tem sido tão amável comigo... - disse ela, preguntando a si própria se devia ou não descer.
- Somos ambos casados e estamos ambos sozinhos esta noite. E eu não acho isso bem.
Estas palavras atingiram o ponto vulnerável do coração de Nina, o ponto que lhe doía e onde reinava a ansiedade.
- Meu marido trabalha de noite. - disse vivamente.
Thorpe calou-se, mas com a expressão duma pessoa que sabe mais do que diz. Subitamente, sem ele mesmo saber como, encontrou-se a falar:
- Criança ... Criança... è muito nova, imagina ainda que o casamento é qualquer coisa de sagrado, de importante... toda a maçada do catecismo. Olhe à sua volta:
qual é a união que se possa garantir que não será um dia anulada ou quebrada -ou que não se transforme num verdadeiro inferno? O casamento! Uma bela instituição
que nós arrastamos, na nossa civilização. Poderia dizer-lhe como certos casamentos acabam pouco a pouco, a-pesar-da boa vontade dos cônjuges. Eu também já fui um
jovem casado, minha mulher era fresca e pequenina como a senhora é agora. Podia contar-lhe o que aconteceu depois... ao casamento e à mulher...
Nina ouvia sem dizer palavra. Aquele homem causava-lhe pena e ela acabara de o repelir ! Continuou a falar de si, da sua casa vazia, dos seus dois cães. Não podia
dormir, dizia, e os fins de semana eram tão longos!... Como era doloroso estar só! Por isso é que procurava... sem más intenções, um pouco de companhia.
Steve Thorpe podia fazer chorar os júris e saber encontrar, para os piores adversários, terrenos de entendimento, mas, como sedutor de mulheres, não tinha a menor
experiência. Outro qualquer ocultaria a Nina que era casado e ter-lhe-ia oferecido um anel de brilhantes, uma viagem à Flórida, e tentaria fazê-la beber. Foi justamente
porque ele não o fez, porque tudo quanto dizia, tinha um tom de verdade e despertava compaixão, que Nina foi tão confiante. Haviam já passado a casa de Bradley e
Nina não mandara parar. Parecia-lhe indelicado, impossível, interromper as recordações desse homem solitário e dizer-lhe: "Muito obrigada, cheguei a minha casa."
A chuva cessou e os junquilhos pareciam adormecidos. Assim que Thorpe deixou de falar, tirou o lenço e limpou a testa. O advogado mostrava-se infeliz e fatigado.
Nina olhava-o: "Pois bem, iremos jantar juntos e depois passaremos a noite no cinema. ouviu-se ela dizer subitamente. Surpreendeu-se, mas sentiu um sentimento ardente
ao pensar que alguém pedia o seu socorro e, na verdade, uma expressão de incomparável alegria inundou o rosto do seu companheiro.
Fez o carro dar meia volta e voltar para trás. Comeram num restaurante chic, ao pé de Grants Grab, e depois foram a um cinema de Broadway onde puderam ver um filme
de Gary Cooper. Thorpe portou-se impecavelmente e esteve satisfeito toda a noite. Estar feliz é uma coisa, e a paz sentida, depois de uma dor de dentes, é outra.
Parecia a Thorpe que o tormento ocasionado pelo casamento falhado, tinha cessado definitivamente ; sentia-se ainda um pouco fatigado, mas leve e livre.
Quando, mais tarde, convidou Nina para um bar, ela agradeceu delicadamente. Rolaram então, de novo ao longo da Riverside Drive, para Fieldston.
Seria uma ofensa para a sua mão se eu a agarrasse ?
- preguntou ele, sorrindo - E Nina sorriu também, respondeu que não e assim foram em silêncio. Nina pensava em Erik e em Gary Cooper; ele, em nada, nem sequer em
Lúcia. Sentia apenas o seu próprio pulso bater docemente contra a luva de Nina.
Quando ela chegou a casa, esperava-a uma surpresa. Erik tinha voltado. Estava no quarto, por baixo de um dos macacos, e parecia zangado.
- Já cá estás ? - preguntou ela, tolamente.
- Tenho vagamente essa impressão. - respondeu ele sem levantar os olhos. Acabava uma paciência complicada.
- Pensei que não voltasses antes da meia-noite... disse Nina, sem se atrever a beijá-lo.
- Matei o sr. Sprague, escondi o seu cadáver no subterrâneo, voltei para casa mais cedo e não te encontrei !
Via agora que ele não estava zangado.
- Onde estiveste, mulher ? - preguntou no tom das comédias francesas.
- Fui ao cinema, tinhas-me escrito dizendo que fosse ao cinema...
- Esposa obediente. - disse, aproximando-se dela E voltaste de táxi ? Ouvi parar um carro.
- Trouxeram-me de automóvel, por causa da chuva. uma senhora... - disse Nina.
A primeira mentira, que dizia depois do seu casamento, saiu sem esforço. Mal deu por que tinha mentido. Uma hora mais tarde, esquecera Thorpe, e o advogado não lhe
voltou a acudir ao espírito, senão no dia seguinte à chegada à Central, quando Joé lhe entregou um ramo de junquilhos e um cartão: "Obrigado pelo bom serão e até
breve."
Nina estava terrivelmente embaraçada. Erik encontrava-se a seu lado, cheirava os junquilhos olhando para o cartão e para a mulher.
- Foi alguém que me viu na vitrina.- balbuciou.
- Tem sem dúvida uma alma terna. - respondeu Erik, que parecia divertir-se prodigiosamente.
Depois não falaram mais no incidente.
TODOS os anos no mês de Maio, o Central-Club alugava um desses barcos especialmente apetrechados para reuniões amigáveis, que estão ancorados em East-River. E, por
uma noite de lua cheia e de bom tempo, organizavam um baile, emquanto o barco, lentamente, lentamente, subia o rio; primeiro ao longo dos arranha?céus de Manhattan
até ao Schiffs canal, depois voltando por Hudson até por detrás da ponte Jorge Washington, entrando por Downtown.
Muitas semanas antes, o armazém estava em efervescência, mas essa noite não era uma coisa sem importância na vida dos empregados. A lua cheia, o mês de Maio e o
bom tempo! Música e dança! Flirts e namoricos ! E a esperança de qualquer coisa inesperada e maravilhosa, sempre escondida no fundo do coração da gente modesta.
O aprendiz Pusch, por exemplo, mandou para uma certa morada 35 cêntimos e um boletim que cortou de uma revista. Em troca, recebeu uma brochura de cultura física
que prometia torná-lo em seis semanas, um verdadeiro Golias. Além disso, usou um creme garantido, com promessa de reembolso, se as sardas não desaparecessem, como
por encanto.
Madame Chalon mandou pintar as unhas dos pés vermelho escuro, Deus sabe com que esperanças. O sr. Berg tencionava festejar no barco o seu noivado
com uma senhora de Brocklyn, filha dum dentista judeu. Infelizmente, o noivado desmanchou-se antes da festa e Berg teve de se portar impecavelmente com uma caixeira
da secção de perfumaria. Efectivamente, ele tinha por princípio nunca se abalançar a tais coisas na sua própria secção. Toughy, o novo chefe detective, foi assediado
com quatro semanas de antecedência, por convites para danças. Prometeu a doze damas diferentes os seus favores para o serão e pediu a Filipe para o substituir nessa
noite, na Central. Quanto ao sr. Crosby, procurava, lá no alto da sua torre, um pretexto para não tomar parte na festa. Esse baile parecia-lhe uma demonstração demasiadamente
democrática, mas os empregados contavam absolutamente com a presença do grande Director da Central. Erik aceitou os setenta dólares que Nina lhe deu de presente
no dia dos seus anos, mas não dispôs de nada para a compra do automóvel. Pagou algumas dívidas e tirou o smoking do Montepio onde estava havia muito, acumulando
juros. Nina teve uma certa decepção, pois sabia quanto ele desejava um carrinho, mas por outro lado ficou orgulhosa que seu marido não quisesse dever nada a ninguém
e que possuísse um smoking. Erik estivera três anos desempregado, antes de consentir em renunciar ao seu sonho de ser pintor, e vender-se como decorador da Central.
Ganhava apenas dezasseis dólares por semana, pois consideravam-no como um principiante, um decorador sem experiência. Por isso é que tinha dívidas. Fez várias proezas
com os seus setenta dólares, pois ficou-lhe dinheiro ainda para comprar um vestido para Nina que ele mesmo escolheu: azul-claro, com um bordado, a prata, no cinto.
Nina sentia-se orgulhosa, mas não completamente feliz. Erik tinha mudado um pouco nas últimas semanas, andava nervoso, distraído, fazia muitos desenhos em papéis
que logo rasgava e deitava fora, encolerizado.
- Tua mãe não vem, em breve, a New-York? - preguntou Nina.
- Que queres tu a minha mãe ?
- Oh! Nada ... nada ... era cá uma idea.
Na verdade, gostaria de pedir conselho à enérgica e original condessa, sobre a forma de tratar o seu genial filho, principalmente para o fazer feliz.
Pouco antes da grande noite, aconteceu Steve Thorpe convidar Nina para um cocktail em sua casa, oficialmente, com o marido. O seu início de relações com ela não
tinha ido longe, mas também não se quebrara. Assim que se sentia infeliz e os seus espectros particulares vinham visitá-lo", ia até à Central Warehouse e comprava
coisas inúteis na secção de louças e vidros. Uma colecção de copos e jarras de todos os feitios acumulava-se já no seu escritório e miss Drivot não deixava de fazer
reparos irónicos a respeito dos clientes assíduos de Nina. De vez em quando, Thorpe fazia a Nina uma amabilidade: dois bilhetes para um concerto, (a que ela ia com
Erik, sem nada compreender) duas flores para pôr ao peito, um livro. Também a esperava muitas vezes no seu carro diante da saída dos empregados. Se ela saía com
Erik, levava amavelmente a mão ao chapéu e ia-se embora. Se saía só, então conduzia-a a casa; uma vez, mesmo, Nina acompanhou-o até White Plains. Tinha visto a casa
por fora, brincado com os cães bassets, que correram do fundo do jardim, mas recusou-se a entrar. Uma noite resolveu ser franca e confessou a Erik toda a história
inocente e oculta. Ele riu com gosto. "Nina, Nina, Lille Spurv, és uma grande màzinha". - disse "Passeias com senhores ricos, emquanto o teu marido trabalha. Uma
planta gangrenada da grande cidade, eis o que tu és."
Nina ficou desiludida. Tinha esperado outra coisa; ciúme, lágrimas e perdão, para terminar. Pelo contrário, ele tinha-lhe chamado Lille Spurv... O meigo nome fora
quási esquecido depois do casamento. Foi assim que Nina apresentou ao marido o advogado, uma tarde,
à saída, e que os dois homens trocaram algumas palavras amáveis.
Durante três dias, New-York ardera em calor, embora Maio mal tivesse começado, e fosse já de noite que a Central fechasse. Thorpe apertou a mão de Erik e convidou-os
para um cocktail em sua casa, na quarta-feira seguinte. Erik aceitou com entusiasmo. - "É um homem encantador. - disse ele a Nina - Deitaste a mão a alguém de primeira
ordem." Nina era jovem e vinha de Houston, Texas. Não compreendia de forma alguma esse laissez-faire, laissez aller, do conde Bengtson que vinha da maturidade, do
cansaço de um sangue velho.
Na quarta-feira, Erik não pôde libertar-se. A direcção tinha dado ordem para alterar completamente a secção de arte. Queriam fazer liquidação, e o sr. Sprague e
Erik tinham por missão dispor as coisas de uma Forma agradável e atraente nas montras de baixo: os irremediáveis bibelots, pinturas a óleo e estatuetas de bronze.
O velho quási chorou, assim que Erik disse que tinha um convite; Sprague portou-se como Cristo no jardim das Oliveiras: "Não poderá velar uma noite comigo ?"
- Ora que maçada! - disse, no vestiário das senhoras, Nina a Liliana, que se preparava - Erik não pode vir e Steve Thorpe está à nossa espera.
- Quem é que te espera ? - preguntou Liliana, deixando o seu bâton.
- O velhote, aquele que tem uma paixoneta por mim. Já te contei.
- Como lhe chamaste?
- Thorpe. Steve Thorpe.
- É o marido da nossa cliente ?
- Não sei. A mulher pediu o divórcio.
- Gostava de o conhecer... - declarou Liliana.
- Imediatamente, se quiseres. - respondeu Nina.
Cinco minutos mais tarde, rolavam as duas no automóvel de Thorpe para White Plains. Liliana ia alegre e faladora. Nina continuava calma. Thorpe sentia-se pouco à
vontade entre as duas raparigas. O carro depressa se impregnou do perfume de Liliana.
É difícil dizer porque Liliana mostrava tanto empenho em conhecer Thorpe. Sem dúvida tinha, sem dar por isso, o desejo de conhecer o homem que comprara o anel de
esmeralda, o anel que ela escondia em casa, nos colchões. Era um instinto de mulher, um instinto de caça, um instinto de prostituta. O homem que dava anéis a madame
Thorpe e fazia a corte a uma mulherzita como Nina, devia ser uma presa fácil. O seu melindre de amor-próprio não havia desaparecido, esse de Nina ser exposta na
vitrina e ela não! Que Nina se tivesse casado e ela não! Que Nina fosse cortejada por um homem rico e ela não! Era demais.
Ia roubar a Nina esse homem, que lhe havia de dar os anéis que ela quisesse e quando quisesse. Emquanto subiam o Grand Concourse, ela julgava o homem: a sua idade,
a sua calvície, o seu ventre. Era preciso que fosse rico para compensar o que lhe faltava. Avaliou a casa, os criados, o whisky. Liliana tinha crescido nos bairros
pobres, mas nascera com o instinto do luxo. "À nossa boa amizade!" -disse, com intenção, levantando o copo ao mesmo tempo que Thorpe. Ela chamava-lhe Steve, simplesmente,
embora apenas o conhecesse havia meia hora. Deu volta aos botões do rádio e fez alguns passos ondulosos de dança, ao ritmo da música. Exibia assim a sua coleante
linha de anos, como no armazém.
Durante esse tempo, Nina brincava com Max e iMoritz. Thorpe foi ter com ela, ao seu canto: "Quem é esta rapariga?" - preguntou.
- Liliana? A mais linda rapariga da Central. - disse logo Nina.
- Não gosto dela.
Às nove horas, Nina começou a bocejar e Thorpe propôs imediatamente levar as duas a casa. Desta vez, foi ele mesmo que guiou, tendo mandado Tony embora. Era um motorista
exageradamente prudente e lento. Durante todo o tempo, Liliana reflectiu sobre o que seria de melhor política: continuar só com ele ou descer com Nina. Ela não queria
que ele soubesse que morava na 122ª rua do bairro Leste. Tendo notado que a expressão do advogado, de minuto a minuto se mostrava mais fatigada, preferiu descer.
"Posso dormir em qualquer parte em tua casa?" - preguntou à amiga.
- Certamente, - respondeu Nina, contra vontade. -Boas-noites e obrigado pela vossa visita - agradeceu Thorpe, retendo um segundo a mão de Nina, quando ela descia.
No derradeiro momento, Liliana teve uma idea genial.
- Porque não convidamos Steve para o nosso baile? Seria admirável! - disse.
- Não sei se o sr. Thorpe gosta dessas coisas... respondeu Nina, hesitante. O advogado pediu pormenores do baile do Central-Club e confessou, com entusiasmo, que
morria de desejos de ir. Pobre Steve Thorpe! Aproveitava todas as ocasiões que o afastassem de sua mulher e o aproximassem de Nina.
- Combinado. - disse Liliana - Será o meu par e faremos ciúme a todas. "Fazer ciúme . Era bem uma idea de Liliana.
Assim que entraram em casa cheirava a naftalina. A sr.a Bradley ocupava-se em modernizar um vestido de seda preta, de noite, que lhe restava de melhores tempos.
Skimpy, excitada, estava sentada ao pé dela, a costurar. Nina tirou o seu vestido azul prateado do armário para o mostrar a Liliana, assim como o smoking de Erik,
que saíra do Montepio, e no qual ela tinha certo orgulho.
No dia seguinte, Erik trabalhou na cave, onde se encontravam os manequins da exposição. Estavam a oito dias do baile. O decorador colocara cinco bonecas na ordem
em que mais tarde seriam postas na montra e arranjava-lhes a atitude, abandonando o cigarro. Liliana entrou, seguida de Pusch que trazia um carregamento de vestidos
de verão.
Já não precisamos de si, Pusch - disse Liliana, logo que ele pousou o fardo.
No depósito de manequins era sempre noite; as lâmpadas eléctricas estavam acesas, o ar descia por tubos e havia o mesmo cheiro que no metro. "Trago os vestidos para
a montra 11" - disse Liliana colocando-se diante de Erik. "Grande honra".-disse ele-E, pegando num dos vestidos, sacudiu-o diante de si. As bonecas estavam à sua
volta e sorriam. "Queria falar-lhe a sós". - murmurou Liliana - Erik ergueu vivamente os olhos. Havia qualquer coisa na atmosfera - entre ele e Liliana - uma espécie
de inconfessada tensão. Ele pousou o vestido e sentou-se na borda da mesa.
- Onde é que se vai quando se quere empenhar qualquer coisa?-preguntou Liliana.
- Quere dizer que nunca pôs nada no prego ? exclamou ele.
- Não. É o meu primeiro ensaio. Mas gostaria de ter um lindo vestido para o baile.
- Eu costumo ir sempre à 6.a avenida, mas ouvi dizer que se encontra melhor na 2.a avenida. - disse Erik - Se quiser, passamos por lá depois de fecharmos. As casas
de penhores estão abertas até às sete horas.
- Obrigada. - agradeceu Liliana - Pediu mais alguns nomes e moradas e foi-se embora.
- Inscrevo-me para a primeira dança. - gritou Erik, atrás dela - Depois, voltou aos manequins. Às vezes estava tão farto de armar montras que tinha vontade de gritar.
No dia seguinte, à tarde, Liliana, hesitante, tomou o
caminho da 6.a avenida. Três vezes passou de largo sem ousar transpor o limiar da loja. Tinha a direcção de memória. Corria um perigo e sabia-o. Interiormente tremia,
mas era uma particularidade do carácter de Liliana: excitava-a o perigo.
Aspirou o ar quando entrou - havia ali o odor dos fatos muito usados. Objectos de todas as espécies jaziam um pouco por toda a parte - tudo parecia impreciso e apagado.
O homem pôs uma lente na órbita e examinou o anel. Que calma! Podia ouvir se o tique-taque do relógio.
- Quanto quere ? - preguntou o prestamista.
O coração de Liliana batia com tanta força, que ela podia ouvi-lo.
- Ignoro o valor do anel, foi um presente. O homem não desviou o olhar da pedra.
- Posso dar-lhe seiscentos dólares. - disse ele, de pois de um longo silêncio. A soma, importante e inesperada, caiu, grande e pesada, sobre Liliana.
- Sim ? - murmurou.
- É uma bela esmeralda. - afirmou o homem. Durante um instante, Liliana esperou que polícias
surgissem de cantos imprecisos da casa, para a prenderem.
- Só me quero separar dele por pouco tempo - disse, sem fôlego.
O prestamista tirou a lente e olhou-a.
- Precisamos dum documento. - esclareceu - É da lei... Seja qual for... passaporte ou bilhete de identidade ...
Liliana tinha um: todos os empregados da Central possuíam um cartão azul num sobrescrito de celofane. Parecia-lhe sentir o cartão como qualquer coisa de quente,
no seu saco, que ardia através do coiro. "Não tenho... não se pode dispensar?"
-Lamento, mas é impossível, - disse o homem e
Liliana iliana sorriu: os artifícios aprendidos na escola de manequins vieram em sua ajuda.
-Corro a casa a buscar o meu cartão.-disse-Daqui a dez minutos estou de volta.
Se vai de-pressa, fecharei a loja um pouco mais tarde - disse o prestamista, estendendo-lhe o anel. Bem; tinha outra vez o anel, não havia a menor suspeita, nenhum
polícia seguia Liliana, emquanto ela corria à próxima estação de eléctricos. Nesse instante, quási odiou o anel.
Era como uma obsessão, precisava desembaraçar-se daquela jóia que não lhe servia de nada, precisava comprar vestidos novos, precisava de ser a mais linda rapariga
do baile. Era uma ocasião maravilhosa: iriam vê-la, emfim, os dirigentes da Central que sairiam da sua torre de marfim e vagueariam entre os mortais. Liliana não
dormia: tinha as faces afogueadas, o rosto emmagrecido.
Três dias antes do baile encontrou-se na 2.a avenida; subiu a rua, lançou um olhar para a casa de penhores e por fim entrou resolutamente.
Aí era uma mulher que tratava do negócio, uma velha muito pintada. Outra vez a lente, o cheiro sujo a vestidos usados, a desordem, a tensão silenciosa.
Dois homens estavam encostados ao balcão, e olharam para Liliana com um olhar investigador, como se fosse um objecto.
- Pois bem, - disse por fim a mulher - dou trezentos, por ser a si, Como entrou em posse deste anel ?
- Um presente. - disse Liliana.
- Deve saber da coisa, para o seu amigo lhe dar presentes destes. - notou a mulher - A mim não mo davam.
Liliana forçou-se a sorrir.
-Posso acompanhá-la, menina?-preguntou um dos homens - Era alto e tinha os lábios inchados.
- Obrigado, tomo um táxi. - disse Liliana - Entretanto, a mulher havia lido um papel.
- O bilhete de identidade? -disse ela em tom indiferente.
- Diabo, nem pensei nisso! Não o trago comigo disse Liliana.
- Nem nada ? Veja na sua malinha. - aconselhou a mulher - Liliana pôs a malinha em cima da mesa e esvaziou-a.
- Tem aqui uma carta. - disse a prestamista - Os dois homens aproximaram-se e olharam.
- Sim, - disse Liliana - e esta carta basta ?
- Nós não somos exigentes; é apenas uma formalidade.-respondeu a mulher -Leu a direcção e copiou-a num livro: Madame Adriana Chalon, 367, West 72.a Street, City
Apartments.-Francesa? -preguntou a prestamista. Era um pouco estrábica, Liliana só então deu por isso.
- De origem francesa; meu pai veio do Canadá elucidou Liliana.
Ela tinha tirado do cesto dos papéis um envelope enviado à directora detestada. Assim que todas as formalidades foram preenchidas, e que meteu na malinha os trezentos
dólares, sentiu o mal que lhe ia no estômago.
- Voltarei a buscar o anel - disse fracamente.
- Dez por cento de juros pagáveis todos os meses - explicou a mulher.
- Um cigarro ? - ofereceu um dos homens. Era alto, novo e seria belo se a boca fosse menos vulgar.
- Obrigada.-respondeu Liliana-Embora tivesse uma frenética necessidade de fumar, rejeitou a oferta. Ding-ding-ding fez o relógio da loja emquanto ela saía.
- Bela rapariga! - exclamou o homem.
- Podíamos, justamente, precisar dela - disse o outro mais baixo que parecia um grego ou um arménio, negociante de frutas.
-Como pode uma mulher destas ter semelhante esmeralda ? - preguntou a prestamista, tornando a pegar na lente.
- Não está na lista ? - interrogou o rapaz bonito.
A mulher tornou a ler as folhas impressas e já meio apagadas: era a circular da polícia assinalando os objectos roubados com ordem de não os adquirirem.
- Não. - respondeu a mulher, terminando.
Donde lhe pode ter vindo o anel ? - repetiu o mais baixo dos homens.
O outro pôs-se a assobiar uma melodia sentimental.
- Veremos - disse subitamente. E, tirando as mãos dos bolsos, seguiu Liliana.
A lua brilhava, o tempo estava belo e dançava-se no tombadilho. A orquestra, embora composta apenas por quatro músicos, era excelente por fazerem parte dela dois
cubanos e um russo; os cubanos forneciam o ritmo, o russo a sentimentalidade. O sr. Crosby tinha-se, finalmente, resolvido a vir; estava até de casaca. Sentado em
baixo, no pseudo salão, onde a Central-Club lhe tinha preparado uma espécie de trono, bebia café, no qual, cuidadosamente, havia deitado dois comprimidos de sacarina.
De cada vez que absorvia um gole, agitava-se contrafeito. Steve Thorpe também viera. Vestia um fato de flanela cinzenta, pois nunca pensara que a gente da Central
desse um baile tão solene. Tinha trazido flores para Nina e Liliana. Como Nina já as tinha recebido de Erik, o decote do seu vestido desaparecia sob as flores. Erik
estava de smoking, com um cravo vermelho na lapela. Dir-se-ia que acabava de sair da mesa do rei da Dinamarca; era essa pelo menos, a confusa impressão de Nina.
No fundo, ela não sabia bem, se a Dinamarca tinha rei ou não.
Erik dançou com Liliana, depois com Nina, depois outra vez com Liliana. Elegante e digno, dançava primorosamente e Nina parecia inferior a seu lado. Os passos da
jovem revelavam ainda a sua origem de Houston, Texas, onde seu pai às vezes a levava a reuniões de sociedades. Ela sentou-se numa cadeira, no tombadilho,
ao pé do reeling, a ver. Que Erik dançasse menos com ela do que com Liliana era natural, não era? Se eram
casados...
Liliana estava encantadora com o seu vestido branco. Era um vestido sem enfeites, de linhas muito simples mas um vestido tão distinto e caro que não podia ter sido
comprado no salão da Central. Madame Chalon, que estava enfiada num vestido cor de tijolo, apalpou às escondidas, o tecido: "É o que eu disse sempre, é preciso saber
usar um vestido!"- disse ela - "Trinta e nove a cinquenta?"
- Cento e sessenta e cinco. - lançou Liliana, afastando-se pelo braço do chefe do pessoal. Madame Chalon levou bem uma hora a engulir a soma.
- Que quere beber, Nina ? - preguntou Thorpe.
- Qualquer coisa ... não muito forte porque me faz
sono - respondeu Nina.
Thorpe olhou-a; ela não parecia ter sono, parecia, pelo contrário, uma criança sobreexcitada por estar acordada até muito tarde. Os seus olhares seguiam Erik
pelo tombadilho.
- Vamos dançar ? - convidou Thorpe - Eu danço
muito mal.
- Eu também, - respondeu Nina.
Dançaram, mesmo assim, sempre à roda do tombadilho. Os cabelos de Nina tinham o cheiro da mocidade, sem que ela os perfumasse. Thorpe apertou-a um pouco contra si:
"Está-se bem aqui" -disse.
Quando a orquestra lançou as primeiras notas de um tango, todos os pares foram para as suas cadeiras ou para o bar improvisado. Só alguns inocentes pares abandonados,
continuaram a tropeçar no seu fox trot, sem saberem porque os seus passos já não iam a compasso.
- Tango! - exclamou Erik -Quem dança o tango?
Parecia de excelente disposição e no seu elemento. "Não bebas muito, querido". - segredou-lhe Nina, quando
ele se sentou um instante ao pé dela. - "Obrigado pelo conselho" - respondeu, muito frio. A observação pareceu encolerizá-lo excessivamente - "Quem dança o tango?"
- preguntou outra vez, fazendo das mãos porta voz. "Porque gritas tanto, Baby?" - preguntou Liliana, muito junto dele. No dia do casamento tinham combinado tratar-se
por tu, mas depois trataram-se sempre por você. Erik voltou-se bruscamente quando ouviu o tu.
- Embriagada, também ? - preguntou. Sem responder, Liliana abandonou se nos seus braços para o tango; ele inclinou a cabeça paralelamente à sua, como fazem os pares
célebres, no casino... Sob a mão, que encostava às costas nuaS, sentiu que ela tremia. - "Que é isso, Liliana?" - preguntou em voz baixa. A vibração do corpo da
jovem mulher contaminou o, entrou nele, nada podia fazer contra isso. - "Nada ... Porquê? Sinto-me feliz esta noite, mais nada" - murmurou ela. - "Sério?" - disse
ele. Dançaram. Nina estava sentada com Thorpe ao seu lado e observava o tango. Alguns dançarinos, entre eles Cromwell com uma rapariga da secção de perfumaria, continuavam
ainda na pista. Mas, ao fim dum instante, pararam todos para contemplarem os dois jovens. - "Um belo par!" -disse a sr.a Bradley, na ingenuidade do seu coração,
ao sr. Berg. Ela vestia o vestido de seda preta que, a-pesar-de tudo, estava ainda muito largo. - "Se nós descêssemos? Aqui começa a estar fresco" - propôs Thorpe
a Nina, depois de lhe ter estudado a expressão.
- Logo que o tango acabar... é tão bonito, não é?
- respondeu ela sem despregar os olhos de Erik e Liliana. Assim que o tango acabou, todo o tombadilho se posa aclamá-los e a bater palmas.
Levantando a cauda do seu vestido branco, ela desapareceu à maneira de uma artista depois da representação.-"Agora, sim, gostaria de beber qualquer coisa" disse
Nina a Steve Thorpe.
O sr. Crosby, no interior do barco, fazia justamente algumas tentativas de despedida. Gostaria de ir para casa e, por isso, de fazer parar o barco no Shiffs-canal.
- "Uma noite encantadora - disse ele à comissão que estava diante de si - mas eu estou doente, queiram desculpar-me."
Insistiram para que ficasse ainda, pois devia coroar a rainha de beleza, a mais bela rapariga que estivesse a bordo e, ao mesmo tempo, a mais bela rapariga da Central.
Resignado, vestiu o sobretudo e seguiu os delegados para a ponte onde, justamente, alguém espetava números nos vestidos das jovens mulheres colocadas numa longa
fila. Liliana tinha o nº 17, Nina o nº 4.
- Boas-noites, sr. Crosby- disse a sr.a Bradley, avançando para o campo visual do todo-poderoso. Ele tentou recordar-se. - "Sou a sr.a Bradley" - disse ela. "Bem
sei, desculpe, a minha vista vai enfraquecendo. Porque razão veio à nossa humilde reunião, sr.a Bradley?" - preguntou Crosby. Há muito tempo já que ele tinha esquecido
que dera à viúva do seu antigo camarada de club um emprego, na secção de embalagem. A sr.a Bradley desapareceu. Não se sentia doente nessa noite, mas sentia-se oprimida
com receio de que as dores voltassem de um momento para o outro.
- Olá, Crosby - disse Thorpe com um chapéu de papel na cabeça calva e um pequeno torniquete na mão.
- Meu Deus, que faz você aqui, Thorpe ? - exclamou o sr. Crosby para quem se tinha, entretanto, arranjado um novo trono. - Ele deixou-se cair emquanto a música tocava
e as raparigas numeradas começavam a andar à volta do tombadilho.
- Tenho amigos entre os seus empregados - respondeu Thorpe.
- Amigos ou amigas ? - preguntou Crosby.
- As duas coisas.- replicou o advogado. O seu olhar seguiu Nina, a sua figurinha leve, o seu sorriso ingénuo, os seus olhos que estavam húmidos de lágrimas
ao mesmo tempo cheios de espectativa, como se um grande divertimento ainda devesse chegar.
Já pensou alguma vez nisto, Crosby? - continuou Thorpe - Você tem uma casa cheia de coisas para vender e sofrem que se fartam para as vender, não é verdade ? NO
entanto... há na Central coisas que não se podem comprar... Crosby olhou na mesma direcção que o seu amigo e viu Nina. Não compreendeu completamente.
É uma reclamação ? - preguntou ele a Thorpe, com um vago sorriso.
Por fim compreendeu:
- Voto no nº 4.- insinuou -Não acha que é a mais bonita?
- Eu voto com certeza no nº 4.
O enfeite prateado do vestido de Nina cintilava, quando ela respirava, e as flores começavam já a murchar na noite quente.
Embora a eloquência de Thorpe levasse alguns a votarem em Nina -por exemplo o velho Sprague, que, de resto, estava completamente embriagado e Berg, o chefe de secção
e o próprio sr. Crosby, foi no entanto Liliana a eleita por uma esmagadora maioria. Sem admiração nem acanhamento, ela deixou porem-lhe na cabeça a coroa de papel,
apertou a mão de Crosby e, com o seu passo firme de manequim, deu mais uma vez volta ao tombadilho para se mostrar a todos. Os quatro músicos tocavam em surdina.
Bruscamente, Erik levantou-a muito alto para que toda a gente a pudesse ver.
O sr. Crosby voltou para casa, quere dizer que o barco parou alguns minutos à entrada da 225.a rua, e depois, vogou para mais longe. O sr. Thorpe ficou. Preocupava-o
Nina que murchava a olhos vistos, como as flores que tinha ao peito. De vez em quando, Erik passava como um vendaval, gritando: "Divertes-te, Lili Spurv?" E desaparecia
no turbilhão dos pares. "Não sejas idiota, monologava em pensamento o advogado,
Eis uma ocasião única para ti. A rapariga está um pouco embriagada e o marido abandona-a; ocasião mais favorável do que nesta noite não torna a aparecer." Dançou
outra vez com Nina; pesava inteiramente sobre ele, por leve que parecesse. Sob um lampião encarnado, ele beijou-a. Ela quási não se defendeu, disse apenas: "Tudo
isto é um disparate, Steve" e a sua voz estava fatigada. "Vamos beber um pouco mais?" - propôs ele cheio de esperança, levando-a ao bar.
Erik e Liliana estavam de pé, por baixo da escada que ia dar à ponte particular do capitão. Entrada rigorosamente proibida. Ninguém devia passar por ali; viam-se
as luzes de Manhattan na outra margem, a lua reflectia-se na água dando-lhe um aspecto metálico.
- Que se passou em ti, Liliana ? Pareces outra ..- notou Erik. E Liliana sorriu, orgulhosa.
- Deitei ao caixote os meus vestidos velhos, simplesmente. Vocês têm realmente olhos?
- Vocês, quem, nós?
- Vocês, os homens.
- Prefiro ser tratado como simples indivíduo,- resmungou ele.
Era um pouco forte para Liliana. Ele meteu o braço no do manequim. "Tens frio? -preguntou.
- Não, pelo contrário, tenho febre.
E dizia a verdade: havia semanas que ela tinha um pouco de temperatura. Sentia arrepios ao longo da coluna vertebral, mas as faces e as mãos escaldavam. Era devido
ao anel e às coisas perigosas e anexas que se tinham seguido.
- A tua febre é contagiosa. - ciciou Erik. Ele bebera, não muito, pois não gostava de cocktails, mas o bastante para estar alegre. Sentia ainda, nas suas próprias
articulações, a sobreexcitação nervosa de Liliana. E depois, santo Deus, ela estava tão bonita!
- Tenho a impressão de ter estado muito tempo
guardado na caixa da naftalina e ter saído bem sacudido e outra vez pronto a servir - disse ele.
- Falas demais, Erik. - murmurou Liliana - Não é necessário...
- Não? - preguntou o rapaz, olhando-a.
-Não.-respondeu ela, em voz quási imperceptível. Contiveram-se ainda um instante, sentindo vibrar ondas entre si, e depois Liliana lançou os braços ao pescoço de
Erik e beijou-o. Foi um beijo longo, esfaimado... A lua desapareceu atrás de uma pequena nuvem, depois tornou a surgir. Erik vacilava um pouco, quando Liliana lhe
descolou os braços da nuca. Ela ria silenciosamente. "Que quere dizer isto?"-preguntou ele - "Nada de maior importância ..." -retorquiu ela. E saiu do esconderijo.
Passagem rigorosamente proibida. "Fica mais um segundo" - suplicou ele em voz rouca.
Duas sombras caíram no tombadilho, quando a lua voltou a ser clara.
- Não se pode passar por aqui, Nina - disse Steve Thorpe.
-Em todos os sítios bonitos há avisos destes.-disse Nina.
- Vamos, deixe-se de discursos comunistas. - conciliou Thorpe.
Deram meia volta e tomaram a escada vizinha que ia dar ao bar. Por todos os lados, pares namoravam. Assim que vieram outra vez para a luz dos lampiões, Thorpe notou
que Nina tinha os lábios brancos. Um pensamento fugidio atravessou-lhe o espírito: ele nunca tinha reparado nessas coisas quando estava casado com Lúcia. É verdade
que Lúcia pintava os lábios. Mesmo ameaçado de morte, não poderia dizer se Nina tinha visto, como ele, os dois debaixo da escada da ponte. "Em que pensa, Nina?"
- preguntou bruscamente. E se nós aproveitássemos um fim de semana ou mesmo uma semana inteira?. para fazermos uma viagenzinha juntos?
- Porque me faz essa proposta justamente agora? preguntou ela.
- Tem razão... devia ter-lha feito há mais tempo. Talvez esta noite tenha mais coragem, porque bebi um pouco. Mas com certeza entendeu, desde o princípio, o que
espero de si, não é verdade?
Nina não respondeu. Tinha um ar tão infeliz que, subitamente, ele teve vergonha do seu ataque. "Sou um velho cínico, Nina" - disse. - "Já defendi muitas causas,
tenho observado muitas vezes, que as opiniões mudam e... as situações... e as relações entre as pessoas... e tenho a impressão de que um dia, talvez me possa suportar.
Compreende... Se qualquer.. emfim... se na sua vida qualquer coisa se modificar... pois bem, lembre-se... se um dia se sentir isolada... que o velho Steve cá está...
quero dizer... vá ter comigo... Promete-me isso?"
Nina fitava-o com atenção emquanto ele falava. Olhou para o lenço de seda em que ele pegou para limpar a testa e que depois colocou outra vez no bolso. A sombra
de um sorriso passou nos lábios pálidos da rapariga: "Fala-me como a uma idiota"-disse ela.-"Compreendo-o perfeitamente. Se um dia eu já não for casada .. entendido...
prometo que irei ter consigo. É isto?"
A música, depois do intervalo, estalou subitamente num ar de rumba sonoro e vivo. Cromwell passou a correr, gritando: "Onde está a rainha da beleza? Quero dançar
com a rainha da beleza."
- Vamos dançar? - preguntou Thorpe, pegando no braço de Nina.
- Obrigada. - respondeu ela, voltando-se vivamente. Liliana descia os degraus da ponte superior, docemente amparada pelo pretencioso detective.
- Onde está o Erik? - preguntou Nina, de lábios brancos.
- Como queres que eu saiba ? -replicou Liliana. E, agarrando na cauda do vestido, afastou-se, dançando.
DE noite, Nina, saindo de um mau sonho, quisera agarrar Erík. Ele não estava... Era como a continuação do pesadelo! Sonhando, tinha-o procurado e não o encontrara.
Só minutos depois ouviu o duche correr na sala de banho, às escuras. Pôs-se então à escuta:
- Tens alguma coisa, Erik ? - preguntou baixinho, quando, às apalpadelas, ele voltou para a cama.
- Nada. Não posso dormir. Faz muito calor aqui disse, vagamente.
As duas janelas estavam abertas e os primeiros clarões da aurora apareciam já. Nina estendeu as mãos e, como não acontecesse nada, tornou a passá-las para o seu
leito. Ficou muito tempo acordada, com os olhos abertos e ouviu os primeiros carros de leite rolarem na rua. Erik teria adormecido? Ignorava.
Ele trabalhou muito nos dias seguintes; a liquidação da secção de arte continuava, e a época dos banhos de mar tinha que ser anunciada com a exibição de fatos de
praia, e bonecas vestidas de maillot. Ele andava distraído e com mau parecer. Fosse onde fosse, estivesse em pé ou sentado, fazia esboços; depois rasgava os papéis
e deitava-os fora. Um dia, Nina revistou o cesto dos papéis e apanhou os pedaços rasgados. "Que foi?" - preguntou Erik, embora ela tivesse ficado muda.
- Mas... tudo isto se parece com a Liliana! - disse Nina com as três rugas na testa.
-Liliana? Que estupidez! Os manequins parecem-se todos. - explicou ele.
Nina continuou ajoelhada no chão diante dos pedaços de papel. Esperava que ele viesse levantá-la. Mas ficou ao pé da janela e acendeu um cigarro. Era domingo e Erik
estava ainda mais indecifrável que de costume. No quarto, por cima deles, ouviam o velho Filipe andar de um lado para o outro, sem descansar...
- Não posso mais!... - disse Erik - Tenho que sair. Saiu, sem chapéu nem casaco, não disse "Vamos
passear". Foi sozinho e só voltou a casa ao fim de quatro longas horas. Nina, tirou do cabide todas as calças do marido e passou-as cuidadosamente a ferro. Depois
desceu à cave, abriu a sua mala, tirou as velhas bonecas e tomou as nos braços. Por fim, subiu e foi procurar a sr.a Bradley.
- Quere que eu faça o jantar esta noite, sr.a Bradley ? - preguntou.
A sr.a Bradley, com o rosto amarelado, estava estendida em cima do canapé. Cansada, fez sinal que sim. Afligia-se ao pensar na segunda-feira, no tempo que tinha
de estar em pé, na embalagem, com aquela dor num lado. À noite jogaram uma triste partida de rummy. Nina, Filipe, a sr.a Bradley, Skimpy. A pequenita ganhou quási
sempre: feliz, soltava gritos de alegria emquanto os adultos, fatigados, sorriam. Cada um tinha as suas próprias preocupações, os seus próprios receios. Cada um
deixava errar os seus pensamentos.
- Onde se esconde sempre o seu jovem esposo ? preguntou o velho Filipe. Nina corou como se tivesse vergonha.
- É o sr. Sprague que o retém. Agora mudam a decoração das montras duas vezes por semana.
- É verdade - disse Filipe. Ele era céptico por
causa da sua profissão. Nina falou nas vitrinas como numa prova de que Erik não lhe mentira.
Assim que se cansaram de jogar, ela construiu com Skimpy castelos de cartas.
Deitada, conservou-se acordada até ao regresso do marido. Ele chegava a casa às três horas, às quatro, às sete. Mas Nina não dizia palavra e tinha os olhos fechados,
quando ele se inclinava para a ver. Muitas vezes beijava ao de leve aquele rosto, que julgava adormecido. Era uma grande consolação: Nina quási chorava. Cheirava
a cigarro, assim como a um perfume que a esposa, de sobrancelhas franzidas, adivinhava doce e forte, um pouco impudico - o perfume de Liliana.
As coisas continuaram assim durante três semanas. Certos dias, só se encontravam na cantina da Central. Às vezes, iam jantar ao "Rivoldi"; Erik mostrava-se de uma
alegria febril e forçada. Depois, no meio da refeição, tornava-se distante e distraído, punha-se a desenhar sobre o mármore da mesa, apagando depois com a palma
da mão.
- Porque não vem a Liliana comer agora connosco? preguntou-lhe Nina.
Ele encolheu os ombros. Queria ter um ar indiferente, mas mostrou a expressão que é costume ter-se no dentista quando, por acaso, a broca encontra um nervo. Nina
acompanhava-o até à entrada do armazém, depois, voltava para casa. Uma noite escreveu uma carta à mãe de Erik. Condessa Bengtson, Asilo de Alienados, Lansale, Connecticut.
Não era trabalho fácil. Assim que acabou de escrever, rasgou. Estava só. Nunca tinha sabido o que era estar só no mundo, antes de casar com Erik.
Meia-noite, duas horas, três... Como uma noite é longa, quando se espera o ente amado e ele não vem! Nina levantou-se, vestiu o seu roupão e dirigiu-se ao vestíbulo,
ao telefone. com voz em surdina, pediu a Central. Já não podia mais; era preciso que falasse
com Erik. Foi Joé, o porteiro, que respondeu; "Desculpe, Joé, eu queria dizer uma palavra a meu marido... o sr. Bengtson, deve estar do lado oeste... a decorar a
montra."
-Um momento... -disse Joé, com a sua voz de baixo, que inspirava confiança. Nina esperou. O coração batia-lhe debaixo do roupão: era como se fosse uma aventura proibida.
Depois de muito tempo, ouviu, ao telefone, uma voz que não pertencia a Erik.
- Está ? Quem fala ? - preguntou ela.
- Aqui, Donald Brooks, - responderam.
- Queria falar ao sr. Bengtson - repetiu Nina, intrigada.
Abriu-se uma porta no andar superior, e Filipe apareceu na estreita fenda iluminada, da porta.
- Que aconteceu ? -murmurou ele. Nina sacudiu a cabeça, com o auscultador no ouvido.
- Sou eu, o Pusch. - disse a voz ao telefone. O aprendiz renunciou ao nome elegante que ninguém conhecia.
- Oh! Pusch, ainda estão com as decorações ?
- Pois estão, minha senhora. - disse Pusch.
- Posso falar um segundo a meu marido ? - preguntou Nina. Entretanto o velho Filipe tinha descido a escada e estava agora ali. Ela fez-lhe sinal para a deixar só.
O seu coração tornara-se subitamente leve e alegre, ela queria implorar o perdão de Erik e desejava que Filipe não a ouvisse.
- Eles já saíram há cerca de hora e meia - disse Pusch, do outro lado do fio.
- Eles... quem ? - preguntou Nina.
- O sr. Bengtson e o modelo. - esclareceu Pusch. Mais nada ? - informou-se ao fim de um minuto, como Nina não falasse,
- Mais nada, obrigada. Parece-lhe que ele volta ?
- É possível... - disse Pusch num tom consolador. Obrigada, sr. Brooks, - agradeceu Nina, De-repente
o seu espírito tinha-se tornado tão claro e tão subtil que se lembrou do nome estranho. Via através da obscuridade, apercebia cada prega do velho roupão de felpa.
ouvia respirar Skimpy no outro aposento. No jardim da frente, um pássaro abria a garganta para os primeiros trinados da manhã.
- Posso fazer qualquer coisa por si ? - preguntou o detective. Nina olhou-o um momento, como se a pregunta precisasse de um certo tempo para chegar até ela.
- Não, obrigada, tudo vai bem. -disse delicadamente, pendurando o auscultador. O velho Filipe seguiu-a com o olhar, emquanto, através do patamar obscuro, ela voltava
para o quarto.
Os homens podem ser enganados pelas mulheres; as mulheres, não se podem enganar. Elas sabem tudo, elas sentem tudo. Nina tinha compreendido. Não fez cenas. Deitou-se
na sua cama, com os olhos secos, e sentiu que se tornava hirta, pequena figura de pedra rígida, quando Erik entrou. Pouco antes, o despertador tinha tocado. Sete
horas da manhã. Erik fez a sua aparição, de cigarro na boca com uma falsa naturalidade. Os cabelos vinham muito lisos, acabavam sem dúvida de serem passados por
água, para causar boa impressão.
- Bons-dias, Lille Spurv - disse, debruçando-se para a beijar na testa. Ela não se desviou, mas sentia que a testa devia estar fria e dura. Dura como pedra. Tinha
sempre sido meiga e doce, mas sabia ser dura quando se tratava de coisas importantes.
- Bons-dias. - disse saindo do quarto. No patamar, bateu à porta da sr.a Bradley.
- Quere fazer-me o favor, sr.a Bradley, de avisar que eu hoje não vou ao serviço?
- Está doente ? - preguntou a sr.a Bradley, inquieta.
- Não sei... tenho febre... talvez gripe.
- Pode ser. Eu também não me sinto bem. - disse a sr.a Bradley - Não se rale, tem direito a três dias com vencimento, mesmo que falte.
- Pois é... - concordou Nina, voltando para o seu quarto. Na cozinha, ouviu Skimpy preparar o pequeno almoço, antes de ir para a escola. Assim que Nina entrou, Erik,
que se tinha despido, estava debaixo do duche. Ela sentou-se e esperou.
- Não estás atrazada ? - preguntou, assim que saiu da sala de banho. Pequenos mares de água caíam dele sobre o sobrado.
- Não vou hoje à Central. - disse Nina - Ele lançou-lhe um olhar rápido, assustado, depois meteu-se na cama e puxou a coberta. Parecia tremer.
Maquinalmente, ela aconchegou-lhe a roupa, com a mão.
- Onde estiveste até agora?
- Tu bem sabes, Nina.
- Sim, eu sei. - disse ela. Seguiu-se um pesado silêncio.
- Ora vamos, não me faças cenas - pediu Erik, pegando na mão de Nina.
Ela não o repeliu mas estava sem vida.
- Não te faço cenas. - disse.
- Podia ter te explicado logo, mas quis fazer-te uma surpresa; estou a pintar Liliana para o concurso.
- Qual concurso?
- Tu bem sabes, o dos cartazes de verão.
Nina lembrava-se, vagamente, de Erik lhe ter dito qualquer coisa.
- Não era bonito se eu ganhasse o primeiro prémio e pudesse trazer-te mil dólares? - preguntou, acarinhando a mão da mulher para a aquecer.
Nina tentou sorrir, mas não conseguiu.
- E então? - disse ela.
- Não sei. Liliana endoidece-me. É um diabo perigoso. Mas, às vezes, preciso dela ... Excitação... Isso inspira, pois eu sou um pintor, Nina, mesmo quando me meto
nas montras às ordens do velho Sprague, a fabricar árvores de celofane.
Já me não amas?
Sim, Lille Spurv. Sim ...
- Mas gostas mais de Liliana.
Liliana ... é de outra maneira, Nina.
O pior é que ele não mentia nem se desculpava. Nina esperava um alívio, uma salvação que não veio.
Nada teria acontecido se eu não me tivesse metido a pintá-la. Mas o quadro será bom, Nina. Sentia-me completamente decaído... num verdadeiro lodaçal... eu não nasci
para forrar casas ... Dei-lhe entrevistas todas as noites, na oficina ... e assim ... só com ela ... Tu compreendes?
- Não. - disse Nina.
- Tinha preferido não me apaixonar por ela. Mas realmente apaixonei-me. Também há-de passar.
Nina esperou um momento, até poder engulir a dor.
-Que vai ser de nós?-disse.
- De nós? Não sei... se tu não sabes... -É-me impossível continuar ao pé de ti, se tu estás
apaixonado por outra. - declarou Nina. Ele sentou-se na cama.
- Não estás a falar a sério ?
- Que queres? Tu só podes ser como és. Eu só posso ser como sou. Não me é possível ficar contigo.
-Nina!-pediu Erik suplicante-Somos casados apenas há seis semanas!
Ele não podia dizer coisa pior; casados havia seis semanas e o seu coração já ia passear! Nina sentiu lágrimas subirem-lhe numa grande onda pesada.
- Acabou tudo entre nós.-disse ela, dirigindo-se para a porta. Ele voltou-se com a cara para a parede: ela viu-lhe as costas. Eram oito horas da manhã .. hora de
ir para a Central. "Preciso de renunciar a tudo.. a tudo - pensava Nina. - Não posso fazer outra coisa. ? Diante da janela, o pássaro da manhã lançava agora os seus
trinados claros e irónicos.
- Se tu pudesses prometer... que renunciavas a Liliana... - murmurou Nina, à porta. Ele não se voltou, pareceu reflectir.
- Eu, renunciar a Liliana? Deus! Mas ela é que não renunciará a mim! Agarra com força o que pode agarrar.-disse, voltando-se para a parede. Ele tinha, também, podido
agarrar num pau e bater na cabeça de Nina.
-Então... acabou-se - disse ela. O marido encolheu os ombros. Ela saiu do quarto e foi-se embora.
Ficou deitado na mesma posição, com a cara virada para a parede, para que ela não visse quanto era infeliz. O pássaro, fora, deixou de cantar. No vestíbulo, soaram
passos sonoros. O velho Filipe bateu a porta da entrada. Tudo tinha acabado.
- Fica ao pé de mim, Spurv, Lille Spurv... murmurou ele, no quarto vazio. Mas sua mulher, ajoelhada na cave, preparava as bagagens...
LEVANDO uma mala grande e outra pequena, Nina fez a sua entrada no vestíbulo atapetado da casa de Thorpe, como se um vento de tempestade a tivesse en purrado para
lá. Pretender que esta entrada fosse gloriosa, seria falso. Primeiro, o pessoal não a quis deixar entrar, depois, assim que se encontrou lá dentro, incomodou os
criados nos seus trabalhos. Um deles fazia funcionar o aspirador no tapete do vestíbulo; comovida, Nina apertava a argola das suas maletas emquanto o criado telefonava,
com ar importante, para o escritório de Thorpe.
Thorpe estava justamente em conferência quando o telefone tocou - conferência de um género desagradável com dois indivíduos cabeçudos que não chegavam a um acordo
sobre a exploração comum dos seus negócios de moagem.
- Está aqui uma senhora que deseja falar ao sr. Thorpe. - disse o criado.
- Como? Uma senhora? Neste momento não tenho tempo para falar a senhoras - resmungou o advogado ao telefone.
- A senhora diz que eu devo só dizer que é a Nina da Central, que está cá.
O rosto de Thorpe iluminou-se e sem se ocupar mais dos dois clientes disse:
- Ah! está aí ? Que quere ela ?
- A senhora chegou com duas malas.
- Bem... Bem ... que a senhora esteja à vontade, eu vou logo que possa. - disse Thorpe um pouco perturbado. Aquilo não parecia da Nina: irromper por casa dele com
duas malas...
Pôr-se à vontade consistiu nisto: Nina ficou sentada no vestíbulo em companhia da sua bagagem. E foi assim que Thorpe a encontrou, quando chegou a casa. Embora se
apressasse, era já tarde. "Então, cá estás?" disse simplesmente-Ele não preguntou nada; depois de um instante de hesitação, abraçou-a. Nina levantou os olhos, como
sempre que tinha medo, e aceitou o beijo de boas-vindas. Agora era preciso levar ao fim toda esta história, se queria, realmente, ferir Erik, feri-lo tanto quanto
ele a tinha ferido.
- Whisky, - ordenou Thorpe ao criado - E estas malas para o quarto de hóspedes.
Também estava um pouco aturdido pela forma súbita, como a felicidade lhe caía em casa. Bebeu o seu whisky e Nina deixou o dela.
- Quere explicar-me o que aconteceu, ou devo adivinhar? - preguntou ele. No espírito de Nina tudo estava já resolvido.
- Preciso separar-me de meu marido, - disse em voz resoluta. Não nos damos bem. Não me acomodo a ser casada com um génio. Compreendeu-o desde o princípio, não é
verdade? Não quero mais trabalhar na Central. Encontravamo-nos sempre no caminho um do outro... na cantina, em toda a parte... e não poderia suportar...
Evitou dizer que não se sentia com forças para afrontar Liliana, mas Thorpe compreendeu-o da mesma maneira.
- Não tenho dinheiro. - disse Nina - Preciso arranjar outro emprego e só o conheço a si.
- Tudo está perfeitamente entendido entre nós. disse Thorpe - A minha opinião é que durma hoje no
meu quarto de hóspedes, e amanhã procuramos uma casa bonita para si.
-É muito bom!...-disse Nina. Thorpe defendeu-se vivamente:
- Não vamos trocar cumprimentos - disse, emquanto pequenas pérolas de suor lhe apareciam na testa nua. Ambos sabemos do que se trata. Eu não sou bom, mas gostaria
que fosse minha. Pode talvez dizer-se que somos dois pássaros solitários... e... um pouco desiludidos, a certo respeito, e que, por causa disso, nos poderíamos sem
dúvida suportar, não é?
- É... - respondeu francamente Nina. Thorpe correu num impulso para ela e deu-lhe outro beijo. Ela recebeu-o com a expressão que tinha em criança quando engulia
o óleo de rícino. "Obrigada sr. Thorpe" - agradeceu.
- Chame-me Steve. - pediu ele, um pouco embaraçado.
O criado conduziu-a ao quarto de hóspedes e ela sentiu o seu olhar mirá-la com desdém. "Como se chama?
- preguntou, embaraçada - "Por excepção, não me chamo James". - disse o homem - Ela não sabia se isto seria uma insolência. Esperou, de pé, e como ela tentasse sorrir,
ele ficou sério: "Eu ajudo a senhora a desmanchar as suas malas" - disse por fim.
- Obrigada, prefiro eu tratar disso. - respondeu. Tinha vergonha das suas coisas, da sua roupa de
seda artificial, das suas meias cozidas, dos seus sapatos com meias solas. Thorpe entrou, passado um momento, quando ela olhava para as suas recordações: as duas
bonecas, a fotografia, o revólver.
- Como vai isso agora, Nina? -preguntou. Ele tratava-a por tu e ela tratava o por você, desculpando-se de vez em quando. Os olhos do advogado caíram no revólver
e encheram-se de receio. "Tu não tencionas fazer tolices, rapariga?"-preguntou, agarrando rapidamente na velha arma. "Não, é o revólver de serviço, de meu pai"
-explicou. Assim que ela voltou a pôr o revólver na mala, fechou os olhos, com medo, como quando do beijo do sr. Thorpe. Abaixando-se, ele apanhou um papel
que tinha caído.
- Não é nada - disse muito de-pressa pondo-o para um lado. - A conta de hotel da nossa noite de núpcias em Connecticut.
- Vai pôr-te bonita para ver se passamos um bom serão. - disse Thorpe e deixou-a só e hesitante.
Nina fez-se bonita com o único vestido capaz que possuía e que, infelizmente, era ainda uma prenda de Erik. Estava tão contente quanto podia estar, emquanto, de
vez em quando, fechava os olhos para receber um beijo de Thorpe. O belo serão não foi um triunfo, não lhe era fácil sentir-se à vontade, com um criado de cara dura
e severa em serviço ou oferecendo pratos de que não se gosta. Ao pé de cada prato estavam colocados talheres, com os quais Nina não se entendia. Mas fez o que pôde.
Logo depois da refeição passaram para outro aposento, ela cantou mesmo um pouco ao piano, tocando com um dedo, o acompanhamento, Isso pareceu agradar ao sr. Thorpe,
que lhe prometeu um professor de música.
O tempo passava e Thorpe tornou-se pensativo e silencioso. Passou um braço à volta do ombro de Nina: era desagradàvelmente quente, mas ela conseguiu suportar. Estava
resolvida a mergulhar nesta aventura, como se mergulha na água fria; sem reflectir e de um salto. Sorriu timidamente a Thorpe, quando ele a atraiu para o seu joelho.
Veio-lhe mesmo ao espírito a idea tranquilizadora de que ele também tinha tanto medo como ela.
Por fim, fatigou-se daquele silêncio e começou a bocejar. Ele levantou-se logo: "agora vamos deitar a menina" -disse, o que não agradou a Nina. Ela não podia supor
que, durante todo esse tempo, ele tinha tido um diálogo com o fantasma de sua mulher.
No patamar, pegou-lhe para a levar para o quarto mas foi uma tentativa falhada e, um pouco cansado, teve de a pôr no chão. Empurrando a porta do quarto de hóspedes,
deixou-a entrar primeiro: a lâmpada ardia na mesa de cabeceira, a cama ficava perto. O sr. Thorpe tinha o ar de um homem que desejasse ir buscar o seu chapéu ao
vestiário, e tivesse perdido o número. Quando a abraçou, ela começou a chorar. Tinha vergonha das suas lágrimas mas não podia sustê-las; sentia nas mãos a grande
cara do advogado, os seus grossos braços, o seu corpo pesado: tudo isto lhe era tão estranho, tão estranho, e não sentia em si a felicidade que sentia sempre que
Erik se aproximava dela com os seus membros finos e ágeis. E soluçava sem parar.
Tinha passado um dia muito cruel, não chorara ao descobrir que Erik a enganava, nem emquanto fazia as malas, nem ao sair de casa. Todo o dia tinha sido um pequeno
ídolo de pedra. Todavia um ente humano tem também o direito de chorar.
Thorpe ficou sinceramente comovido e consolou-a o melhor que pôde.
- Que queres tu? Que tens?- preguntou, acariciando a.
- Queria estar só ... queria chorar... - soluçou ela, com a consciência inquieta.
- Bem... eu não sou nenhum papão - disse o sr. Thorpe. E realmente não era, principalmente para com Nina. Largou-a, deixando-a sozinha na cama, cuja coberta de seda,
coisa nova para ela e muito incómoda, estava sempre a escorregar. Em casa da gente rica, as camas são realmente esquisitas." - pensou. E foi a única experiência
que tirou dessa noite.
No dia seguinte, Thorpe quis arranjar-lhe casa, mas, quando chegou ao escritório, encontrou um telegrama que o chamava imediatamente a Minneapolis. Tratava-se
do acordo entre as duas moagens e era importante, muito mais importante do que Nina.
Ela tinha tomado a resolução de ser amável com Steve assim que chegasse, mas ele não veio para casa. Telefonou ao criado dizendo que lhe levasse ao escritório a
mala, pronta. Dir-se-ia que tinha esquecido completamente a presença da jovem caixeira na sua habitação. Mas a verdade é que não ousava, na presença de miss Tackle,
telefonar a uma mulher que estava na sua própria habitação. Da gare mandou-lhe um telegrama. "Não te aborreças. Faz tudo que te apetecer. Estarei de volta daqui
a três dias." Nina sentou-se diante do fogão de sala com o telegrama na mão. O criado tinha acendido o lume, pois chovia e ela não sabia de nenhum lugar no mundo
onde se pudesse refugiar.
"Não te aborreças!" -pensava ela, ironicamente. - O seu coração estava despedaçado de angústia, de nostalgia, de desejo de tornar a ver Erik. Além disso, vinham
as coisas desagradáveis: olhares do pessoal, aborrecimento sem limites, ociosidade, refeições na grande sala de jantar, sozinha. E todas as vezes que, de noite,
estendia a mão, só encontrava o vácuo, nesse quarto horrívelmente estranho: nada de Erik, apenas a endiabrada coberta de seda que caía constantemente, o que a fez
sonhar que estava em camisa em cima de uma ponte, à chuva e ao vento ...
No dia seguinte, entregaram-lhe uma missiva de Thorpe, escrita da estação. As letras eram deitadas como se o vento também lhe tivesse passado por cima.
"Querida Nina pequena. Que pena não ter podido ficar aí! Rehaveremos tudo isso assim que eu chegue. compra lindos vestidos e tudo o que quiseres, pois vamos divertir-nos
muito. Adeus e até breve. Teu, Steve."
Um cheque em branco vinha junto à carta. Nina voltou-o entre os dedos, conteve o gesto de o deitar ao lume e, daí a pouco, sorriu.
Ao terceiro dia, como Thorpe não tivesse voltado,
ela fez tudo quanto o seu coração desejava: pediu ligação para a sr.a Bradley, depois do armazém fechar, quando ela já estaria com certeza em casa... A sr.a Bradley
gritou de admiração, ao telefone, e Nina podia ouvir Skimpy andar. Não preguntou se Erik estava em casa.
- Como vai isso por aí ?
- Obrigada, assim, assim.
- O velho Filipe está cada vez mais esquisito.
- E as suas dores ?
- Há dois dias que estou melhor. Faz-nos muita falta, Nina.
- Que diz a gente da Central, da minha saída ?
- Mordem se de inveja. Dizem que fez a sua felicidade ...
Nina esperou. Ela não podia conter a pregunta:
- E... e meu marido, que faz ?
- Meu Deus ... até agora, lá vai indo... -Ah!
Então, ele ia bem. Hesitou ainda. O criado passou, sentiu-se vigiada, como prisioneira. Esperou que desaparecesse.
- Escute, sr.a Bradley... o fato cinzento dele está ainda no tintureiro, é preciso ir buscá-lo. E que não fume muito, sr.a Bradley. Que ar tem ele ? À noite fica
em casa? Quem lhe passa as calças? Ele gosta tanto delas bem vincadas!... Não lhe diga que telefonei, sr.a Bradley... promete ?
Não, esta conversa não a aliviou absolutamente nada. No dia seguinte, telefonou outra vez. Depois pegou no seu cheque e foi à Central. Sim, estava decidida.
Na verdade, um grande armazém é um lugar onde quem quere pode ir. E se uma caixeira fez a sua felicidade e volta como cliente, deve ser tratada como cliente. Nina
evitou a escada 5 e subiu primeiro à secção de loiças, a sua secção, por assim dizer, a sua casa.
Aí, parou diante do balcão onde estava o serviço 279 E 14, decorado com rosas.
- Deseja ?-preguntou miss Drivot. Ela não viu a cara de Nina; a clientela não tem cara.
- Como vai isso, miss Drivot ? -preguntou Nina baixinho.
-Ah!... é você... Obrigada, vai bem. Deseja alguma coisa ? Quere fazer uma compra ? O serviço de rosas está mais barato.
O sr. Berg, que passou, lançou um olhar perscrutador para as duas.
-Desculpe-me, tenho que servir uma cliente-murmurou miss Drivot. Depois afastou-se, deixando Nina em pé diante da loiça de rosas, como uma estranha.
O sr. Berg olhou a com ar ofendido, fez-lhe um cumprimento distante e continuou o seu caminho.
A testa da jovem franziu-se. Atravessou o vestíbulo envidraçado, passou diante dos vestidos de verão para chegar ao lugar elegante, que era o salão de costura. O
coração batia-lhe furiosamente. Mas tinha um cheque em branco na sua malinha ...
- Queria que me atendessem - disse, logo que encontrou Liliana.
-Meu Deus, é a Nina!-exclamou Liliana.
- Desejo um vestido de noite, branco, qualquer coisa de muito bom - disse friamente Nina. - Liliana fez uma careta; daí a pouco surgiu madame Chalon, ignorando,
naturalmente, a situação. Nina tinha-se divertido antecipadamente com esta visita ao armazém. Sentou-se na poltrona e Liliana teve de andar dum lado para outro.
Ah ! fê-la mexer-se bem! Infligiu-lhe, em suma, todos os vexames que uma cliente aborrecida, mal humorada e inconsciente, pode infligir a uma caixeira. Mas, justamente
no momento em que Liliana não podia mais e ia perder a paciência, Nina sentiu-se igualmente esgotada de nervos. Não, ela não podia mais suportar aquilo: ver as belas
costas nuas de Liliana, o seu andar, a
sua cara, o seu corpo, o todo dessa mulher que lhe tinha roubado o marido. Levantou-se de um salto, murmurou uma desculpa, que soou como um soluço e saiu precipitadamente.
Liliana limpava as finas pérolas de transpiração, da testa.
Nina tomou o caminho de casa, entrou no carro elegante de Thorpe que o criado tinha posto à sua disposição. Tony, o belo motorista, tratava-a com tanto respeito,
como se ela fosse a própria rainha da Inglaterra. Refugiada no quarto de hóspedes, escovou os cães; sentia a garganta apertada com todos os sentimentos que tivera
de refrear.
Subitamente, os animais correram para a porta e ladraram com tanta força que Nina teve medo: o sr. Thorpe estava de regresso. Nina ficou surpreendida, ao notar que
também sentia alegria, e correu ao seu encontro. Desta vez recebeu o beijo sem fechar os olhos, Thorpe foi muito terno, tinha-lhe trazido um presente, um colar de
pedras verdes, Depois desapareceu na sala de banho para sacudir a poeira da viagem. O ruído do avião deixara-o um pouco surdo durante meia hora, mas depois passou.
- Agora mostra-me o que compraste com o cheque. - disse ele a Nina e, ante o embaraço dela desatou a rir. Ela subiu ao quarto de hóspedes, tirou rapidamente o cheque
da sua malinha e pô-lo diante de Thorpe. "Que os diabos me levem!" - disse ele, espantado. E Nina sentiu-se aliviada por não ter gasto esse dinheiro, por não se
ter ainda vendido completamente...
- Mas não tens que vestir!.. No entanto, é preciso que estejas bonita para sairmos. - disse Thorpe - Ele estava convencido que para obter os sorrisos das mulheres
era preciso cobri-las de presentes. No fundo, não tinha tratado Lúcia, a sua própria mulher, de outra maneira. Assim que diante do espelho esfregou a cabeça calva
com água de Colónia e se meteu no seu smoking, sentiu surdamente que Nina era uma coisa difícil de conquistar. As suas pantufas, os seus cães, um copo de whisky
e as últimas revistas ao pé do lume, eis quanto ele desejava. Mas tinha resolvido, nessa mesma noite, forçar a resistência. De resto, Nina estava resolvida.
Preparou-se com o seu vestido azul bordado a prata e o companheiro levou-a a um cabaret elegante: música, dança, champagne, sala cheia, turbilhão de vozes e de perfumes.
Tinham instalado esta casa luxuosa como o interior de um barco, o que dava aos clientes uma impressão de opulência e de romanesco, incitando-os a gastar dinheiro.
Os criados andavam de um lado para o outro, vestidos de marinheiros franceses com grandes ponpons nos bonés, o que, visivelmente, os incomodava um pouco.
- Então, menina ?-preguntou Thorpe, satisfeito, assim que encomendou a refeição.
Também havia mais talheres do que aqueles que eram precisos, mas agora, Nina já tinha experiência. Antes de se instalar deram um salto ao bar e Nina falava alegremente
e muito. Esforçando-se por chegar de-pressa à disposição de espírito que esperavam dela, tinha engulido os dois primeiros cocktails como uma desesperada. Durante
a refeição fumou muito. "Não vamos dançar, sr. Thorpe? quero dizer... Steve?" - preguntou - A música tinha acendido nela uma avidez que não compreendia. Mas assim
que fizeram desastradamente uma volta à pista, caiu em si. É melhor sentarmo-nos a ver... - disse - Ele continuou com brandy e aconselhou champagne a Nina.
- Ó champagne dá alegria, aquece. - explicou Numa obsessão, Nina bebia grandes taças, como se o champagne fosse um antídoto contra a sua infelicidade. Tinha realmente
as faces rosadas, sob a fina camada de pó de arrôs. Os olhos começavam a brilhar.
- És adorável! - declarou Thorpe.
- Tu o dizes...-sussurrou ela, na linguagem habitual do armazém.
Infelizmente, verificava-se que com o primeiro excesso da sua vida, se mostrava mais obstinada e rebelde. Ela, que era semPre meiga e aceitava as coisas como vinham,
agora revelava subitamente o fundo do seu ser.
-São todos uns indecentes...-disse, indicando com o dedo toda a gente fina do restaurante da moda-são uns indecentes - Ah! Nós podemos falar. Que fazem eles todos,
lá porque têm algum dinheiro ?
Olhou à sua volta, riu, às gargalhadas, do criado à maruja, depois os seus olhos caíram sobre Thorpe.
- Tu és como os outros, sabes, meu caro Steve ? Tu também imaginas que podes comprar-me... lá porque tens dinheiro. An ? Diz a verdade... não é verdade que julgas
... com o teu cheque... Também tu és simplesmente um porco, Steve... um gordo porquinho cor de rosa, com quatro pêlos na cabeça...
Thorpe alarmou-se. Acabou de-pressa, pagou, empurrou Nina para o automóvel, antes que a coisa desse escândalo. Tony, o motorista, lançou-lhe um olhar cheio de compreensão
masculina e, sem pressa, pôs o carro em marcha.
Entretanto, Nina seguia o curso das suas ideas: teimosa, fazia ao pobre Thorpe uma cena em regra. Na sua embriaguez, e embora o tratasse por tu, lançava-lhe reparos
tão desagradáveis que não tinha sido dado ao advogado ouvi-los desde que se separara de Lúcia. Censurava-lhe o dinheiro, o ventre, a calvície e a idade. Por fim,
ele sentiu se absolutamente infeliz. Mas justamente no momento em que ia decidir-se a descer e a deixar Nina voltar só para White Plains, a jovem lançou-lhe os braços
ao pescoço e desatou a soluçar. Para a acalmar, bateu-lhe nas costas, como tinha o costume de fazer a Max e a Moritz e rolaram assim, ao longo das avenidas calmas
do parque, para o bairro Norte.
Na sua embriaguez, Nina, desesperada, estava pronta para tudo. Mas, o diabo, era ele, Steve, que nada queria nessa noite, Não queria dela nenhum favor se o devesse
obter de uma maneira suja e desagradável. Acompanhou-a ao seu quarto onde ela se sentou imediatamente na borda da cama, na atitude resignada de quem espera a partida
do comboio. As lágrimas vertidas brilhavam ainda sôbr a pele lisa das faces. Fazia-lhe pena, mas não é com pena que se vai para uma aventura amorosa. À porta, ele
parou :
- Não podes gostar de mim, um pouco?- preguntou, hesitante.
Nina pareceu voltar não se sabe donde. com simplicidade, respondeu:
- Não. Emfim ... assim não ...
Thorpe tomou, sem demora, o caminho dos seus aposentos. Eram duas horas da manhã. com um copo de whisky ao alcance da mão, um dos seus cães ao colo, meteu-se ao
canto do fogão pois, de-repente, o pobre homem sentiu imenso frio ..
HAVIA longas semanas que Liliana tinha sempre o mesmo sonho: queria apanhar um comboio mas não o conseguia. Sufocada, ofegante, ficava no cais e via o comboio desaparecer.
Depois descia uma escada que se parecia com a do metro, mas maior e deformada, como acontece nos sonhos. Ela ia, descia sempre, sempre, sempre mais para baixo. Não
queria descer, mas, lá em baixo, alguém riscava constantemente um fósforo e então podia ver a escada que levava à escuridão, lá para baixo, lá para baixo... e ela
continuava a descer. Dling... dling... dling... tocava, durante esse tempo, a campainha da prestamista.
Liliana tinha deixado os pais e alugara casa na rua 44.a a oeste da cidade. A sua sala estava sempre cheia de fumo de cigarro, no sofá via-se sempre estirado qualquer
homem, algum dos amigos de Bill. Bill era aquele indivíduo duvidoso que a tinha seguido, assim que ela saíra da casa de penhores, uma espécie de grande animal, bonito,
violento, habitualmente complacente, mas conhecedor da sua força. Gostava de gatos e trouxera dois para casa de Liliana. Os outros homens, Jerky, Big Paw e Kid,
que tinham dezoito anos, pareciam-se com ele. Haviam-se instalado em casa da rapariga e viviam "na sua vida" por assim dizer, com as suas cartas, as suas pragas,
os seus licores, os seus revólveres e as suas amantes. Bill vinha irregularmente,
mas era o senhor. Tinham dinheiro com fartura que lhes restava ainda do último negócio feito. Liliana recebera, como presente, um belo vestido e um casaco de arminho.
Ia aos clubs nocturnos, frequentava os lugares onde Bill era um personagem respeitável. Bill tinha automóvel, relações e influência, numa palavra, Bill era poderoso.
Conseguira Liliana à força de ameaças, de promesas, de pancada e também mostrando-lhe o seu revólver.
Isto começara com o anel; com o anel roubado, foi ela agarrada. E com mais segurança e mais firmemente do que com uma corrente de ferro. Ela não sabia exactamente
no que o bando a queria empregar, mas era em qualquer empresa bem determinada, isso sentia-o. Bill não a deixava renunciar ao seu emprego. Mais tarde, afirmava ele,
seria contratada para uma grande revista de Broadway. "Posso ter em Broadway o que quiser, compreendes?" afirmava, e ela quási o acreditava. E, como agora vivia
numa atmosfera de receio e de febre e se sentia perdida, sem remédio, Liliana de-pressa se entregou à bebida. Um dia Bill fez-lhe mesmo tomar cocaína: ela experimentou
imediatamente um sentimento indescritível da sua grande importância, mas no dia seguinte, na Central, sentiu-se horrivelmente infeliz. Eles tinham a sua presa e
o que esta espécie de gente agarra, segura-o bem. Às vezes Liliana tinha quási desejo de rir quando madame Chalon ou uma cliente a maltratavam um pouco. Imaginava
o susto e os gritos se Bill, de revólver em punho, surgisse no meio delas. Bill possuía certas ideas cavalheirescas a respeito de Liliana, mas tinha também outra
amante, Máxima, uma mulher loura que o vigiava com um ciúme feroz. Liliana tremia muitas vezes, com medo que ela lhe atirasse vitriolo à cara. No entanto, tudo correra
bem até agora. Em certos dias sentia-se quási feliz com o caminho que as coisas tinham tomado: tivera sempre más tendências. Agora apanhava ar pela primeira vez
na sua vida; o ódio que sempre sentira pela gente do"
grande mundo, encontrava um motivo e uma justificação. Nos antros que frequentava, era quási uma rainha. Às vezes, entregava-se a uma esfusiante alegria. Outras
vezes, revoltava-se e Bill, em tom firme, punha-a no seu
lugar.
- Afinal, que queres de mim?- gritava-lhe, Bill
sorria com a sua boca vulgar. Tinha os lábios sempre secos, vermelhos, como que inchados pelo sangue. Nem o álcool nem a cocaína lhe faziam mal.
E eis que, pouco a pouco, Liliana compreendeu o fim dos seus carcereiros; queriam utilizá-la na Central, a loja objecto do seu ódio. Entretanto continuava a servir
a clientela. "Sim, minha senhora, certamente, minha senhora. Está encantadora, minha senhora". Tornou-se instrumento desses homens que saíam da sombra e desapareciam
na sombra. Liliana não os conhecia melhor do que se conhecem as personagens que se vêem em sonhos. Descia a escada, descia sempre cada vez mais baixo.
Dling, dling, dling, fazia a campainha...
- Bem mereço que tenham pena de mim - disse ela a Erik.
- Pena ? Porquê - preguntou ele.
- Tu não podes compreender. Não me faças preguntas estúpidas. Olha, dá-me um cigarro.
Erik acendeu-lhe um cigarro, e a sua mão tremia. Trocista, Liliana olhou para essa chamazinha de fósforo que oscilava sem descanso... - "Sonho muitas vezes com um
homem que está no fundo de uma escada sempre a acender um fósforo."
- Ah! Até em sonhos me enganas! - suspirou Erik, irónico. Estavam ambos sós na grande oficina onde os empregados da propaganda costumavam trabalhar nos seus esboços.
Liliana, com o vestido branco que estreara no barco e Erik, de mãos frouxas, pintava, fumava, tornava a pintar. Esse nervosismo tinha começado com
o primeiro beijo; depois, o rapaz não se havia mais acalmado.
Muito tempo reprimira o artista que havia em si. A crise tinha estalado, assim que viu Liliana com o seu vestido branco, nessa memorável noite do barco. "É como
o sarampo, queixava-se ele. Tem que sair, senão morro intoxicado." Liliana sorria sem compreender, mas consentia na pose. Na sua vida perturbada e destruída, as
horas com Erik eram as únicas que tinham algum valor. Sentia por ele uma paixão estranha, confiante: era como que uma despedida de qualquer coisa. Entretanto, o
quadro que pintava tomava forma, "não sou absolutamente eu, criticava Liliana considerando o retrato com ar zangado. "Que tens a objectar?" - preguntava o artista,
afastando-se do cavalete - Parece um sorvete de morango
- analisava o modelo numa gargalhada desdenhosa -Decididamente, tu não fazes de mim uma idea justa.
- Evidentemente, se eu quisesse pintar o diabo que tu és não ganharia com certeza o primeiro prémio no concurso de cartazes - disse Erik aproximando-se do seu trabalho
com ar ameaçador e acrescentando alguns retoques. O branco é a coisa mais difícil de pintar. - acrescentou - Conta-se que Renoir, quando envelheceu, dizia: "ficaria
contente se pudesse pintar um guardanapo branco, apenas um guardanapo branco."
Liliana seguia com aborrecimento esta incursão na história de arte.
-Tens a certeza de ganhar o prémio?-preguntava.
- Absoluta, meu amor. Ganhamos mil dólares e iremos juntos apanhar uma bebedeira e divertirmo-nos muito.- dizia Erik-Ela sabia que, no fundo, ele a odiava por Nina
o ter abandonado por sua causa. Parando de pintar, Erik, pensativo, pôs um pouco de branco na paleta: também pensava em Nina, em todos os projectos que tinham feito
com esses mil dólares, em todos os sonhos mortos.
- Vi-a ontem - disse Liliana como se os seus pensamentos tivessem falado alto.
- A quem ? - preguntou ele, afogueado, e começando a pintar precipitadamente. Liliana deixou passar a pregunta supérflua.
- O velho com quem ela vive parece que lhe dá muito dinheiro. Devias ver como se portou cá na loja. Menina para aqui, menina para ali... Tinha-lhe dado de boa vontade
um murro nos queixos, podes crer.
- Como... estava ela ? - preguntou Erik, sem querer, depois de um longo silêncio.
- Deliciosa, divina, encantadora. É esta a resposta que desejas?
Pousou os pincéis e avançou para Liliana. Ela deu um passo atrás, pois parecia que ia bater-lhe. Mas Erik não era o Bill e não usava revólver na algibeira.
- Porque não deixas a Nina em paz? Não te basta ter-nos separado?-disse pouco depois, em voz baixa e ameaçadora.
Liliana levou tempo a responder; teria gostado de dizer muitas coisas feias, mas conteve-as, pois embora tivesse ciúme de Nina, não o queria confessar. Gostava de
Erik à sua maneira, tanto quanto era susceptível de amar... mas isso não se podia dizer. Deitando o cigarro fora, desceu do estrado...
- Porque será que tudo em que eu toco se suja ?
- disse, de súbito. Era uma frase que podia ter um som brutal, mas saiu apenas triste. Erik notou-lhe uma pequena oscilação na voz e voltou ao seu cavalete.
O quadro ia em meio. Representava um pedaço de água verde sobre o qual vogava um barco com velas cor de laranja; encostada a um mastro, estava Liliana com o seu
vestido branco. Erik tinha-se cingido, na pintura, às linhas do seu corpo, o ombro direito e a cabeça estavam terminados, mas a anca esquerda estava ainda mal definida.
E só faltavam três dias para a data fixada para a entrega das provas. Erik tinha febre durante
as suas horas livres, antes e depois do serviço. Desde que Nina o deixara, afligia-o a idea de voltar para casa: o leito vazio no quarto de dormir... e um silêncio
absoluto. O velho Filipe e a sr.a Bradley já não lhe dirigiam a palavra; quanto a Skimpy aborrecia-o preguntando-lhe constantemente, quando é que a Nina voltava
e para onde tinha ido. Preferia ficar na Central onde dormia numa velha cama de campanha, na oficina, pintando a qualquer hora da noite. De vez em quando, Cromwell,
o novo detective, ia visitá-lo, Levava um frasco de gin e fazia, a respeito do quadro, reparos de arrepiar os cabelos. Erik tinha a vaga intuição de que entre Liliana
e o detective havia qualquer coisa, pois este não podia conter algumas observações sorridentes. "Ela não tem as pernas tão compridas como estão no quadro." -dizia
ele. Conheço-a bem; tem umas pernas compridas, mas ainda assim, não tanto. "Ou ainda": "Se eu fosse pintor, pintava-a deitada. É assim que os seus melhores pontos
se valorizam." Isso tornava Erik furioso a ponto de o fazer recusar o gin oferecido. "Quanto ao resto, é um cartaz espantoso. Tenho a certeza de que vai ganhar o
primeiro prémio."
- acrescentava Cromwell com um ar bonacheirão, retirando-se, Erik refreava a custo o desejo que sentia de dar um pontapé na tela e de se ir refugiar ao pé de sua
mãe, no asilo de alienados. Em vez disso, punha novas cores na paleta e tentava levar a obra a bom termo. Desde que Nina o tinha deixado, a pintura era a única coisa
que o interessava suficientemente e o fazia esquecer, durante algumas horas, o que se tinha passado. Fenómeno curioso: o sentimento que experimentava por Liliana,
essa funesta insatisfação e o entusiasmo que se tinham apoderado dele, enfraqueceram desde que perdera Nina. Á sua única consolação era agarrar-se a Liliana, tal
como um doente que não quere abandonar o leito no qual sofreu durante semanas.
As alusões de Ricardo Cromwell não eram os únicos pontos tenebrosos da vida de Liliana. Um sábado,
depois de Erik ter recebido o seu magro salário, levou-a a um club de noite, como Liliana desejara. Vestiu o seu smoking, pois ela parecia ligar a isso grande importância,
e Liliana pôs o seu casaco de arminho. Fizeram uma entrada no club onde todos olharam, com admiração, para a jovem mulher. Erik sentiu-se ao mesmo tempo orgulhoso
e pouco à vontade. Não ousou preguntar como é que, com os seus vinte e cinco dólares semanais, ela tinha podido comprar um casaco de arminho. Dois homens com atitudes
de gangsters piscaram-lhe os olhos, familiarmente.
- Quem são aqueles indivíduos? - preguntou ele.
- Amigos meus.-respondeu Liliana.
No fundo, Erik não sabia nada a respeito dela. Sabia que dançava bem o tango e que a sua boca tinha o gosto amargo da baunilha, por causa do bâton que usava. Nem
sequer sabia onde ela morava. Tinha lhe contado que saíra de casa dos pais, mas guardou segredo sobre a sua direcção. Nunca lhe consentia que a levasse a casa. Saltava
para um táxi e afastava se a toda a velocidade emquanto que, durante muito tempo ainda, ele errava pelas ruas, solitário, no turbilhão nocturno das luzes de Broadway
- pensando em Nina.
ErA quarta feira, o dia de venda a um dólar em todas as secções da Central. Na secção de sedas havia liquidação de retalhos. Dois agentes da polícia estavam à porta
sul, onde tudo era vendido à razão de dólar por três artigos; três camisas de homem, três pares de meias de seda, três lenços de linho, três clips de pedras falsas.
No sexto andar, Cromwell não sabia que fazer para manter a ordem. Aí, tudo se liquidava à dúzia: uma dúzia de copos de vinho; uma dúzia de chávenas, de café; uma
dúzia de pratos de bordos doirados, isto na secção de louças e vidros. Miss Drivot andava numa actividade febril, a sua face estava coberta de pequenas gotas de
transpiração e de veiazinhas. Parecia que a sua circulação sanguínea não lhe permitia resistir ao assalto dos clientes. O sr. Berg, chefe da secção, ajudava em pessoa,
embora não fosse essa a sua função. A nova caixeira que substituira Nina era desajeitada : não estava ainda a par do serviço e miss Drivot tinha de lhe dizer em
segredo, números e preços.
Na entrega, acumulava-se gente. Ouviu-se tilintar: a sr.a Bradley acabava de partir um prato de cristal.
- Que aconteceu ? - indagou o sr. Berg, que fazia a sua inspecção.
- Nada, não tem importância. - balbuciou a sr.a Bradley, receosa. Tinha febre, não via claro por causa da febre e do sofrimento, tudo estava desfigurado, tudo
oscilava à sua volta. Pousou um embrulho meio feito e dirigiu se para a escada do pessoal. Mal chegou diante da porta envidraçada, caiu desmaiada.
Levaram- na ... Tudo isso foi feito num abrir e fechar de olhos, sem ruído, sem escândalo: os serviços sanitários da casa trabalhavam bem e as caixeiras desmaiadas
não eram raras no Dollar-day. O pacote meio pronto permanecia ainda em cima da mesa, quando a sr.a Bradley já estava para entrar no carro da ambulância.
- Quanto tempo tenho de esperar pelo meu embrulho?- preguntou a freguesa, encolerizada.
O sr. Berg fez tudo para restabelecer a ordem.
- Imediatamente, minha senhora, um momentozinho, se faz favor. - disse, com solicitude. Uma rapariga correu a substituir a sr.a Bradley, uma rapariga ruiva, de grande
boca risonha. O embrulho foi acabado e a cliente servida. Era bem pouca coisa, afinal, a desaparição de um dos setecentos empregados da Central... Meia hora mais
tarde, a sr.a Bradley estava adormecida pelo éter, suspirava aliviada, como se flutuasse sobre grandes vagas. Um cirurgião de luvas de borracha, com o rosto tapado
pela máscara branca, operava-lhe o apêndice. com este, eram quatro mil oitocentos e sessenta e dois apêndices que extraía na sua vida, e, por isso, o facto afligia-o
pouco: "Um apêndice particularmente feio" -disse, em ar de censura à enfermeira que estava ao éter, emquanto lavava as mãos. A sr.a Bradley foi instalada no hospital
com um pequeno aviso à cabeceira da cama. Estivera em riscos de morrer e salvara-se, mas não o sabia. Continuava sob a influência do éter e, acompanhada pelo sr.
Bradley, ia a um pique-nique num automóvel muito esquisito que possuía e era dos mais elegantes no ano de 1924...
Agora, eram seis horas e cinco e a Central atirava os últimos clientes para a rua. No vestiário, as caixeiras,
extenuadas, punham pó no nariz suado, emquanto os caixas faziam, febrilmente, as contas.
Cromwell, o detective, subiu até ao 12.? andar para ir buscar o sobretudo. Logo que, assobiando, entrou no seu escritório, que era um pequeno buraco dando para o
pátio velho, encontrou Filipe.
- Olá, Filipe - disse, olhando para o velho que mexia em papéis amarelecidos, em cima da mesa.
- Olá, Cromwell - respondeu gravemente Filipe.
- Está a fazer arrumações? - preguntou Cromwell, jovial.
- Levo as minhas coisas. Os meus três meses terminam na próxima semana.- respondeu o velho detective.
Cromwell, que alisava os cabelos a um espelho de algibeira, deixou de assobiar. "É uma vergonha." - disse, sem intonação. Um instante depois, voltou ao seu problema
particular: "Diga-me cá, Filipe, quantas vezes por dia é obrigado a barbear-se?"-preguntou, enchendo a face com a língua e vendo no espelho de algibeira os resultados
obtidos.
- Todos os dias, se lhe interessa saber - respondeu Filipe, aborrecido.
- Pois eu, duas vezes ao dia sempre que desejo sair à noite. Senão, as raparigas queixam-se - gabou-se Cromwell.
E embaciou o espelho, limpou-o com a manga e tornou a guardá-lo.
A absurda insensatez de toda esta mímica desesperou Filipe.
- Mandou-me dizer que o esperasse ... - observou, um pouco irritado.
-Ah! sim, é verdade. Queria pedir-lhe para passar aqui a noite, hoje. Pode dormir, nada o inquieta, é apenas pro-forma. Tenho que fazer... compreende? De vez em
quando, preciso de ter uma noite minha... Cada um tem também a sua vida particular, não é verdade ?
- Hoje calha mal. -disse Filipe-A sr.a Bradley, em casa de quem moro, foi para o hospital. E eu queria ficar ao pé da criança que está sozinha em casa.
- Tudo isso é muito bonito, mas você não é criado de meninos, é detective. Lamento, mas prometi absolutamente ao manequim do salão de costura, sair esta noite com
ela. Você sabe o que é isto... com senhoras ...
- Então divirta-se. - cortou Filipe para acabar com a conversa - Eu cá fico a olhar por isto.
- Não é preciso olhar por nada: desde que eu cá estou, nem uma carta de alfinetes foi roubada. Durma... contente-se em fazer uma vez, à meia-noite, a ronda do costume.
-Bem, bem, eu conheço o trabalho melhor do que você. -resmungou Filipe.
Cromwell não levou a mal. O velho fazia-lhe pena. Foi ao pé dele e bateu-lhe no ombro:
- Fico-lhe sinceramente reconhecido por me querer substituir. A rapariga é diabòlicamente bonita e tenho de andar atrás dela, se a quiser apanhar -explicou.
Exasperado, Filipe viu a porta fechar-se atrás do homem.
Rebuscou ainda um pouco a gaveta donde queria tirar o que era seu: algumas cartas, velhos recortes de Jornais, restos emmurchecidos de uma vida ajuizada e descuidada.
Tentou reler alguns dos recortes, mas as letras tremiam-lhe diante dos olhos. Desde que tinha renunciado a beber, o velho Filipe vivia num mundo impreciso e desbotado.
Passava mal, tinha zumbidos nos ouvidos, às vezes mal ouvia o que lhe diziam e esquecia os nomes, os rostos e os números dos telefones. As costas vergavam-se-lhe
logo, mal se punha em pé. Subitamente, o olhar poisou numa garrafa que Cromwell deixara em cima da mesa: era o gin recusado por Erik.
Filipe notou, contrafeito, que lhe tremiam as mãos emquanto olhava para a garrafa. Voltou à gaveta e,
segundo o seu hábito, meteu o revólver na algibeira do lado do casaco. A sensação da arma contra o corpo deu-lhe mais segurança. Num passo brusco, foi ao pé da mesa,
fez saltar a rolha da garrafa - sentiu, com espantosa precisão, a pequena cápsula de estanho entre os dedos - depois bebeu três grandes goles. O gin, acre e quente,
descia-lhe pela garganta; já ele sentia o calor penetrar em largas ondas no interior do tórax. Durante alguns instantes, o ruído, nos ouvidos, tornou-se uma ameaça,
para depois cessar completamente. Atónito, o velho Filipe olhou à sua volta, pois uma claridade e um silêncio inesperados entraram em todo o seu ser. Bebeu outra
golada, depois, saindo do aposento, enfiou pelo corredor que ia dar à oficina dos decoradores.
- Ouça lá Bengtson, você pode ir agora lá a casa e trazer-me a Skimpy? A mãe está doente e eu encontro-me de serviço esta noite.
Erik permanecia de pé em frente de um cavalete em cima do qual estava colocado um quadro coberto com um pano velho. Agarrou nos pincéis e foi lavá-los à torneira.
- Lamento... pobre sr.a Bradley!... Liliana acabou de me contar. Mas eu não posso ir buscar a pequena. Toda a secção b8 deve ser remodelada esta noite.
B 8 era a secção das sedas estampadas, no 3.? andar. Depois do Dollar-day, essa secção parecia um campo de batalha, Filipe sabia-o.
-Que havemos de fazer então? -preguntou ele, voltando-se para Liliana, - A jovem esperava ao pé da mesa, com o seu vestidinho preto, de caixeira, o casaco no braço
e uma boina verde na mão. Era estranha esta nova lucidez com que o cérebro de Filipe apanhava outra vez tudo; imagens, ruidos, perfumes. Ouvia distintamente a torneira
pingar depois de Erik ter lavado os pincéis, o perfume de Liliana feriu-lhe o nariz, como qualquer coisa de palpável,
Sentia uma irritação ao respirar esse perfume pesado e voltou-se com ar pouco amável para a rapariga. "Tem passado muita vez a noite em nossa casa... Podia ir a
Fieldston e ficar ao pé de Skimpy."
Liliana encolheu os ombros. "Eu ia de boa vontade, mas tenho um encontro urgente" - respondeu. Erik despiu a bata manchada de tinta e vestiu o casaco. Filipe voltou-se,
indeciso: "É verdade... tinha-me esquecido completamente"... - disse, e as alusões de Toughy acudiram-lhe à memória. Eram agora tão notadas na sua memória, que tornou
a ver cada um dos pêlos da face do jovem detective. Erik olhou o com uma leve surpresa.
- Liliana tem ainda que me servir de modelo, esta noite, assim que eu acabar de arranjar a B-8 - disse. - O prazo expira amanhã de manhã e nos últimos dias quási
não pude trabalhar. E pegando na chave que tinha no bolso, dirigiu-se para a porta. vou só comer qualquer coisa à pressa - acrescentou. Liliana seguiu-o. Ao clarão
da luz, Filipe notou como Bengtson estava pálido. Um reflexo mate de suor cobria-lhe o rosto nervoso; os dois sulcos à Gary Cooper marcavam-se-lhe mais nas faces,
cheias de sombra. Filipe saiu com eles da oficina e observou os gestos de Erik, fechando a porta à chave. O par foi tomar o elevador. Emquanto ele os seguia com
o olhar, quando iam para o elevador, considerava a situação. Segundo todas as aparências, esta Liliana tinha prometido a noite a dois homens. "Hum... pensou, é preciso
que ela seja muito esperta, para ir aos dois encontros."
Agora a casa estava deserta e tranquila. Pertencia ao velho Filipe como lhe tinha pertencido durante numerosos anos. Errou pelas escadas, de andar em andar, inspeccionando
todos os cantos. Daí a pouco sentiu-se extraordinariamente descontente e agitado. Olhou para as mãos: tremiam quando as estendia. Pegou na sua chave, abriu um elevador
e subiu ao 12.? andar. 155
Todo o corredor cheirava a Liliana. Foi ao escritório e bebeu a metade do gin. Depois pegou no telefone e mandou ligar para Skimpy.
- Estás admirada de não termos ainda chegado a
casa?
- Sim, tio Filipe. Aconteceu alguma coisa?
- Escuta Skimpy, temos tido muito trabalho. Tens medo de estar sozinha em casa ? Não queres ser uma menina corajosa e ires dormir?
Passou-se um instante antes que Skimpy, no outro lado do fio, arrumasse tudo isso na sua cabecinha.
- Queres dizer que a mamã não vem para casa ? -Sim, é isso. Ela não está muito bem e a nossa
enfermeira está a tratá-la.
- Mas eu tinha feito o jantar para vocês!
- Queria saber se tens medo de estares sozinha em casa? -tornou a preguntar o velho Filipe.
Houve outra vez um instante de silêncio.
- Tenho sim, tio Filipe... - Isto foi murmurado com uma vòzinha, na qual já tremiam as lágrimas.
Filipe tinha agora o cérebro lúcido e não reflectiu um segundo:
- Presta muita atenção ao que te vou dizer, Skimpy. Daqui a uns minutos um automóvel há-de businar três vezes à porta. É um táxi que te mando. Metes-te nele e vens
para a Central. Quando chegares, preguntas por mim ao homem que está à porta, tu conheces bem o Joé, não é verdade? Ficas aqui ao pé de mim e ajudas-me a guardar
o armazém, queres?
- Os brinquedos também ?
- Sim, os brinquedos também. Mas avia-te, veste-te de-pressa que o carro vai já.
Filipe riu, pois não se ouviu nenhuma resposta: apenas o estalido seco do auscultador que Skimpy punha no descanso. Folheou a lista dos telefones e chamou para uma
garagem de táxis de White Plains, dando as instruções necessárias e dizendo que o táxi seria pago
assim que a pequenita chegasse à Central Warehouse. Bebeu mais um gole de gin e ligou para o hospital, para onde a sr.a Bradley tinha sido transportada. Disseram-lhe
que tudo ia bem. A operação correra perfeitamente, a doente estava ainda um pouco aturdida pelo narcótico, mas livre de perigo. Filipe soltou um suspiro de alivio.
Deslizou diante da garrafa mein vazia e saiu do 12.? andar. Calculou que Skimpy não poderia chegar antes de meia hora, justamente o tempo de fazer uma ronda ao estabelecimento.
Tal como tinha procedido durante vinte e sete anos, começou pela sala dos caixas. Examinou todos os postos de alarme no aposento semi-iluminado, encontrou, à saída,
um dos guardas da noite que acertava o relógio registrador ao pé da escada 8. Trocou algumas palavras com ele e continuou a sua ronda. No grande escritório das dactilógrafas,
as máquinas de escrever estavam arrumadas em boa ordem, todas cobertas com a capa de oleado. Continuou o seu passeio por todos os andares, acendendo aqui e acolá
a sua lâmpada de algibeira; parando, apurando o ouvido, espiando o silêncio do enorme edifício e continuando o seu caminho. No rés-do-chão parou um pouco ao pé da
porta de Joé.
- Ouça lá Joé, vão trazer aqui uma menina; é a filha da sr.a Bradley. Aqui tem dinheiro para pagar o táxi. Chame-me, assim que ela chegar, percebeu?
- Sim senhor, chefe.- respondeu Joé levando a mão ao boné. As vigílias comuns tinham-nos feito velhos amigos. Joé, além disso, havia ajudado, quando transportaram
a sr.a Bradley na maca para o carro da ambulância.
- Só me falta descer à cave e depois acabou-se. disse Filipe, continuando a ronda. Joé viu-o partir abanando a cabeça, até que a sua sombra desapareceu da parede.
"Que pena... pobre homem ! - comentou pensativo.
Filipe percorria o território plebeu da cave. Aí reinava um verdadeiro caos depois da batalha do Dollar-
Day- Atravessou a secção de armamento que tinha sido passada para baixo, seguiu a dos móveis baratos e chegou ao fim, à porta de ferro do depósito de peles, pegou
na chave e na lâmpada de algibeira e manobrou a complicada fechadura. Abriu a segunda porta, entrou. Estava escuro lá dentro e respirava-se um ar acre e frio. Fez
luz; todo o sortido de peles estava reunido no vasto aposento, cada uma delas cuidadosamente embailhada num resguardo contra as traças. Havia ali mais de cem mil
dólares entre as filas dos tubos do frigorífico. Filipe tivera sempre um fraco pelo armazém de peles; era como um mundo aparte, lá em baixo, um mundo frio e fechado.
A sala era muito alta e cruzada em todos os sentidos pelo complicado sistema de tubos que mantinham a temperatura a 28º. Meteu-se entre as peles, automaticamente,
segundo um hábito adquirido no decorrer de anos, encontrou tudo em ordem e voltou à porta. Maquinalmente, ligou a campainha e saiu do depósito, deixando o alarme
pronto a poder funcionar.
A entrada do armazém das peles era cheia de instalações automáticas, como na sala dos caixas. Como ele agisse de uma forma mecânica e habitual, o velho Filipe tinha
quási esquecido que as campainhas de alarme não roçavam. Mas, um segundo mais tarde, o silêncio caiu sobre ele como qualquer coisa de palpável, uma espécie de pano
negro ou uma pancada. Ficou petrificado no mesmo sítio, com as mãos estendidas, tremendo, tremendo desesperadamente. Pegou no revólver, mas era um movimento absurdo.
Agora ouvia o martelar do seu coração, no peito, nas fontes, em toda a parte... as campainhas de alarme não funcionavam !
Como o silêncio persistisse e não surgisse nenhuma sombra sobre que pudesse atirar, o velho detective julgou-se no dever de descobrir donde provinha a paragem dos
sinais. Podia ser apenas um desarranjo dos fios de que Toughy, na sua confiança em si próprio, nem dera conta. Tateou até ao botão secreto, abriu um pequeno
cofre de ferro incrustado na parede e tentou acender uma lâmpada encarnada. O sinal luminoso, tal como as campainhas de alarme, não funcionava. Fechou cuidadosamente
o cofre e, sempre na defesa, transpôs a porta. Havia ali instalações que deviam disparar automaticamente, das quais nunca fizera grande caso. Voltou ao depósito
e, no ar envinagrado e no pesado silêncio, inspeccionou todos os cantos: não descobriu nada. Não percebeu mesmo que agia de uma forma insensata e temerária, pois
se um ladrão se tivesse escondido entre as peles, Filipe estaria, havia muito, reduzido à impotência. Na angustiosa tensão de nervos provocada pela sua descoberta,
tinha mesmo esquecido Skimpy. Subitamente, lembrou-se da criança. Abandonou o depósito das peles, transpôs prudentemente a porta que fechou à chave. com a mão sobre
o gatilho do revólver que tinha no bolso, atravessou rapidamente a cave e tomou o elevador, para subir. Durante segundos, traçara o seu plano; não participaria nem
aos guardas da noite, nem à polícia as suas suspeitas. Se depois se descobrisse qualquer coisa nas instalações eléctricas, qualquer curto-circuito, fariam troça
dele. Se qualquer coisa de anormal tivesse que se passar no depósito das peles, e um instinto preciso, insinuante, angustioso, parecia adverti-lo, queria combatê-lo
só, queria reservar para si todo o perigo e toda a honra.
- Ah! cá estás! - disse ele, assim que chegou ao aposento de Joé e viu Skimpy. Ela vinha toda bonita: esfregara energicamente a cara e as mãos com sabonete, antes
de se lançar nesta grande aventura.
- O Joé disse que a minha mamã está no hospital.
- murmurou, de cabeça pendida para o peito, mas sem chorar.
- Sim, sim... mas está melhor e mandou-te dizer que não tenhas medo. Amanhã de manhã, iremos vê-la
- disse Filipe. Ele já não sabia o que fazer da criança pois tinha que voltar à cave. Tu não queres ficar aqui ao pé do Joé e dormir em cima do sofá ? - preguntou.
- Não. - disse vivamente Skimpy.
Era um velho sofá, cuja crina saía por todos os lados, que estava impregnado com cheiro de tabaco de cachimbo. Joé riu com bonomia.
-Quero ir para o pé dos brinquedos.-declarou Skimpy.
Ela estava quási a chorar, mas continha-se corajosamente. Filipe pegou-lhe nas duas mãos.
- Joé, - disse ele, antes de partir com a criança, escuta. Tem esta noite especial cuidado, se notares o que quer que seja de suspeito, chama imediatamente a polícia,
percebeste?
- Sim, chefe - disse Joé com um novo cumprimento. Não percebia nada. "O velho está cada vez mais velho", foi tudo quanto pensou.
Filipe entrou no elevador e subiu à secção dos brinquedos. A mãozita confiante tremendo na sua mão, acalmava-o um pouco, com o seu calor.
- Agora escolhe qualquer coisa para brincares, mas de-pressa e toma cuidado; é só emprestado. Não tens nada que ver como é feito por dentro. - disse ele, pois conhecia
as bonecas de Skimpy, cujas cabeças abertas tinham sido vítimas da tendência exploradora da criança. Skimpy, que tinha o sentimento de ser uma grande pessoa, fingiu
um interesse frio. Filipe meteu lhe nos braços uma boneca e uma paciência e subiu com ela até ao
12. andar.
- Escuta, - disse ao guarda que encontrou lá em cima - vigia bem esta noite, especialmente as escadas de socorro e a cave.
- Muito bem, chefe. - disse o homem, fazendo pouco caso da recomendação.
O velho detective não sabia ao certo o que devia fazer da criança. Todo o seu corpo ardia de impaciência, o seu escritório, ou antes, o escritório de Cromwell, era
um sítio miserável e Skimpy não queria lá ficar. Tomando uma rápida decisão, abriu a oficina de decoração, acendeu
a luz e olhou à sua volta: Bengtson não estava ainda de volta; no cavalete, o quadro continuava coberto... O perfume de Liliana flutuava pesadamente no ar.
- Bem ... podes instalar-te aqui a brincar... ou a dormir. - disse, rapidamente.-Eu volto já. Mas é preciso que não saias daqui, mesmo que ouças barulho. Compreendeste?
Erik vai chegar daqui a pouco. Poderás ajudá-lo a pintar.
- A Nina também cá está ? - preguntou Skimpy.
- Não. Saiu. - respondeu Filipe.
Esperou ainda um instante que Skimpy se instalasse na cama de campanha com a sua boneca, depois dirigiu-se para a porta. Num segundo, teve o pensamento de que a
criança fora a última pessoa que lhe tinha sido dado ver... Talvez uma bala lhe estivesse destinada nessa noite, na cave, no depósito ou nas escadas. Hesitou um
pouco, depois voltou em passo vivo ao escritório que fechou à chave. A garrafa lá estava, meia vazia. Bebeu alguns goles grandes, sentiu calor; a lucidez de espírito
e a decisão entraram em si e pôs-se a rir, pensando em Toughy.
-"Ele precisa de barbear-se duas vezes!" - murmurou, com desdém. Pôs a garrafa na algibeira, procurou com a mão o revólver, meteu algumas balas de reserva no bolso
do casaco e saiu. Parecia a Filipe que já tinham passado muitas horas desde que o armazém fechara.
Desceu ao depósito das peles e abriu as portas. O silêncio e o frio reinavam no interior. As peliças estavam alinhadas em boa ordem e os tubos, pintados de branco,
ziguezagueavam entre elas. Filipe tirou um dos casacos e envolveu-se nele, antes de se sentar a um canto para esperar. Daí a pouco tinha os dedos hirtos de frio,
doíam-lhe os dentes. O tempo passou.
Não acontecia nada.
Erik estendeu a mão por cima da mesa.
- Mas... é proibido... - hesitou ele.
- Proibido ? - replicou ela, rindo - Como háa"de acabar o teu quadro se eu não vier?
- Podes vir sem ter a chave.
- Quando, às nove horas ?
- Um pouco mais tarde. Tenho de acabar primeiro a B 8 e vai levar tempo.
- Então quando ? Às onze horas ? Posso esperar.
- Tu sim, eu não. - replicou Erik, aborrecido.
Estavam no "Rívoldi". Sim, agora estava com Liliana no "Rivoldi" atrás da mesa de mármore, sobre o velho banco de veludo.
-Vamos, dá-me a chave. vou às onze horas e subo directamente à tua oficina.
- Aborrece me entregar isto - disse Erik, hesitante, pousando sobre a mesa o pequeno molho de chaves.
- Então, não. - terminou Liliana, levantando-se - Estou farta de dar nas vistas e de falatório... quando, de noite, vou ter contigo, e me têm de acompanhar.
- Pronto. Aqui está a do elevador, escada 5 - decidiu-se Erik, indicando as chaves. Tinha-as posto em cima da mesa, mas Liliana nem para elas olhava. Já sabes, no
12. andar vais até à boca de incêndio, voltas à direita e
assobias. Se eu ainda lá não estiver, abre a porta da oficina e espera-me. Há cigarros na gaveta.
- Entendido, - retorquiu Liliana - não te canses muito. Adeus Baby.
Pegou nas chaves e meteu-as na malinha.
- Agora tenho de me aviar.
- Tão de-pressa!...
-Tenho muita. Descobri um cabeleireiro que me penteia depois das sete horas. Vou-me embora. combinado. As onze.
Erik viu-a sair. Possuía o mais belo corpo de mulher, que lhe tinha sido dado contemplar. Todos os comensais se voltaram; era uma dessas raras criaturas que, mesmo
com capa de borracha, parecem nuas. Assim que a porta se fechou atrás dela, Erik acendeu outro cigarro. Continuou sentado diante de uma chávena de café. O criado
aproximou-se, limpou a mesa e quis falar-lhe em italiano, mas Erik não respondeu. Também não tinha vontade de voltar de noite à loja para arranjar a secção das sedas,
não tinha vontade de acabar o quadro, era-lhe indiferente ganhar ou não o prémio. Sonhou um momento, pegou no lápis e desenhou qualquer coisa na mesa. Ao princípio,
alguns projectos para a secção de sedas, depois qualquer coisa que apagou com o dedo. Esperou uns minutos ainda, olhando fixamente na sua frente, com os olhos vagos,
Por fim, levantou-se, pagou e foi-se embora.
Sobre o mármore coberto de nódoas, distinguia-se um esboço um pouco apagado: não era o retrato de Liliana, mas o de Nina.
Durante esse tempo, Liliana seguia à pressa pela rua 41.a, depois tomou a 8.a Avenida. Um automóvel verde esperava-a, entre os carros parados diante de um hotel.
Liliana subiu. O motorista era um bonito rapaz de cabelos pretos, anelados. "Anda, anda, Kid. É tarde." - disse ela. Desceram rapidamente a avenida. "Bill está lá?"
- preguntou ela.
- Esperam desde as sete horas. Há qualquer coisa em vista?
-Anda e cala-te. - respondeu Liliana, muito nervosa. Fumava um cigarro que meteu na boca do rapaz. Contente, ele fez uma careta. O carro andou rápido, obliquou e
parou bruscamente. É melhor tu esperares aqui disse Liliana, descendo.
O prédio no qual Bill tinha alugado um andar, exibia um luxo burguês um pouco exagerado. Falso tapete do Oriente na entrada, uma jovem mulher com um olho de vidro
no escritório de recepção, um negro no elevador. Este teve uma piscadela de olho, interrogativa, levando-a para cima. "Isto vai bem, Pedro"-respondeu, aborrecida.
Na sua casa, tocava a T. S. F.
- Até que emfim!-disse preguiçosamente Bill, quando ela entrou. Como sempre, o aposento estava cheio de fumo: garrafas vazias, um balde de gelo, tudo em cima da
mesa. Um copo tinha-se entornado sobre o brocado e o álcool pingava pegajosamente para o chão. Liliana atravessou o aposento, encaminhando-se para o seu quarto de
dormir. Olá ?"-- limitou-se a dizer. Tirou o chapéu e, no espelho, viu-se pálida sob a pintura. "Não fui feita para estas coisas" - pensou fugitivamente.
As asas do nariz estavam quási verdes de medo. Bill seguiu-a ao quarto.
- Então, arranjaste tudo ? - preguntou. Ela tirou as chaves da bolsa.
- Aqui estão. - disse. Bill riu baixo. Não agarrou logo nas chaves. Liliana levantou-se e voltou à sala. Big Paw baloiçava-se molemente numa poltrona, tendo ao colo
Máxima, que se levantou à aproximação de Bill. Era loira, pálida e muito nova; tinha a figura de uma bailarina. Liliana percebeu que Bill estava sob a influência
da cocaína. Ele tinha dito que tomava sempre cocaína, quando empreendia algum golpe difícil. Os olhos brilhavam-lhe. O bando trouxera nesse dia um homem de
reforço, com ombros largos de boxeur desenhando-se sob o pano verde do seu uniforme de groom.
Bill mergulhou a mão no bolso e tirou um estojo. Fez-lhe saltar a mola e exibiu um broche ornado com uma grande esmeralda ... Atirou a jóia para a frente de Liliana.
"Lindo trabalho, an? A lapidação fez-nos perder dois quilates, mas agora ninguém conhece a pedra." disse, com ar amável. Num gesto brusco, Liliana pegou na jóia.
Era a sua recompensa por ter vendido Erik.
- Pronto.-respondeu, pondo sobre a mesa um plano traçado à pressa - Deixem-me fora de tudo isto. Levai Máxima, e está tudo acabado entre nós, assim o espero. Pôs
as chaves ao pé do plano, sobre a mesa, no sitio onde estava a nódoa de álcool. As suas mãos pareciam curiosamente alongadas e pequenas ao pé dos rudes punhos de
homem que se lançavam sobre as chaves.
- Ah! sim? Estás farta de nós? Mas talvez não estejamos nós fartos de ti, minha menina. - disse Bill. Galantemente, Big Paw interpôs-se:
- Deixa-a em paz, ela trabalhou bem. - reconheceu. Liliana olhava para todos, um após outro, como se
saísse de um sonho. Os rostos estranhos, as mãos estranhas, a esmeralda ...
- Devem ir. - disse ela - Às nove horas o gorila
vem-me buscar.
Bill teve um novo ataque de riso. Alisava ainda
mais os seus cabelos lisos.
- Divirtam-se. - gracejou.
- Obrigada. - respondeu Liliana, abstracta. Bill aproximou-se dela e bateu-lhe no ombro: - Se isto correr bem, dou-te um lindo presente-prometeu. Bruscamente, inclinou-se
para a rapariga e colou os lábios vermelhos aos seus. Máxima olhava-os com ar zangado.
Assim que partiram, Liliana abriu as duas janelas e preparou um banho quente, pois estava gelada. Quando saiu da água, sentiu-se com melhor disposição. VoLtando
à sala, rebuscou as garrafas quási vazias. Eles tinham também absinto. Fez uma mistura de bebidas e enguliu essa mistura, que sabia fortemente a Kummel. Logo depois
sentiu invadi-la um calor e a habitual sensação de temeridade subiu-lhe à cabeça. Pôs-se diante do guarda-fato, acariciou os vestidos novos e caros e escolheu, emfim,
um vestido verde, de seda pesada, que lhe modelou as formas. O telefone, ao lado da sua cama, tocou. O relógio marcava nove menos cinco. "O sr. Cromwell está aqui"-anunciaram.
"Que me espere no hall, daqui a um instante estou pronta."-disse Liliana. Ela detestava o jovem detective, que achava ridículo. Num capricho súbito, tirou do armário
o casaco de arminho e pô-lo nos ombros. Tomou mais um copo, sentiu-se um pouco embriagada e, rindo a bandeiras despregadas, pôs o broche de esmeralda. O telefone
fez-se ouvir pela segunda vez. "Sim, desço imediatamente." - disse, encolerizada. Cromwell era grotesco na sua impaciência. Liliana, de pé em frente do espelho,
deu mais uma gargalhada pensando no que se passava na Central, emquanto ela ia sair com Toughy!
"Santo Deus!" - exclamou Cromwell, assim que a viu sair do elevador.
Perplexo, fitava o vestido, o arminho, as grandes luvas brancas. Ele tinha também vestido o seu melhor fato azul-escuro, que lhe assentava muito bem. Como só aos
antigos oficiais assentam os fatos.
- Santo Deus. - repetiu ele. Liliana, sobreexcitada pelo absinto, respondeu:
- Ora vamos... não sabes que os manequins são as mulheres mais caras de New-York?
Às onze menos um quarto, com dores de cabeça e as mãos sujas, Erik saiu da secção de sedas. Em baixo, continuavam a trabalhar, mas sem ele. Tinha arrepios e sentia-se
aniquilado.
- Não é muito confortável para a noite, o armazém.
- resmungou. Teve que atravessar a secção de artigos japoneses, absolutamente às escuras. Tirou a lâmpada da algibeira: os Budas estavam aqui e acolá, surgindo da
sombra.
Chegando em frente do elevador, perdeu imenso tempo a procurar as chaves, até que se lembrou de as ter emprestado. "Diabo!"- disse. Os nove andares, desde o
3.? até à oficina pareciam-lhe extenuantes e intermináveis.
Sempre resmungando em voz baixa, dirigiu-se para a escada e começou a ascenção. ? Era como uma subida difícil, na montanha. Ele subia, subia, já lhe faltava o fôlego
e ainda estava no 8.? andar. Parou, escutou ouvindo passos; de facto, apareceu um guarda.
- Se faz favor leve-me até à oficina e abra-me a porta - disse, acanhado - pois acabava de se lembrar que não podia entrar na oficina porque Liliana tinha as chaves.
O guarda resmungou qualquer coisa, pois fazia as rondas num semi-sono e não lhe agradava nada ser incomodado. No entanto, decidiu-se e tomou o elevador com Erik,
até ao 10. andar.
- É um ofício bem desgraçado, o nosso! - disse Erik, emquanto percorriam o corredor e passavam pela boca do incêndio, para a oficina.
- Como? - preguntou o guarda.
- É que ... você pode dormir de dia? - preguntou.
- Porque não? -respondeu o guarda, rindo.
- Melhor para si. Eu não posso. E tirou do bolso o maço de cigarros, metendo-o na algibeira do peito do uniforme do guarda.
- Está aberto. - disse o homem, depois de ter feito deslizar a chave na fechadura.
-Sim? Ainda bem. - replicou Erik - Obrigado e boas-noites.
Hesitou um instante antes de entrar. "Liliana já lá está" - pensou. Sentiu-se cansado, como que vazio, incapaz de terminar o quadro.
"Que os demónios levem o prémio!" Tinha a impressão de não ter dormido havia semanas, sim, de não ter dormido desde que Nina o tinha deixado. Dominou-se e abriu
a porta.
Liliana não estava lá, a-pesar-do aposento parecer animado. A primeira coisa que viu foi uma folha de papel, espetada com um alfinete, no pano que cobria o retrato
que estava no cavalete. Deu dois passos e leu:
"Se faz favor deixe a Skimpy passar a noite consigo. Se acontecer alguma coisa, queira levá-la amanhã à mãe ao hospital Santa-Maria. Obrigado. Filipe."
Erik olhou à sua volta e não distinguiu a criança imediatamente. Skimpy tinha rolado até à orla do leito, antes de adormecer. Colocara em cima dela o sobretudo de
Erik; muito chegada ao nariz, estava a cabeleira de uma boneca. A respiração era regular; uma suavidade, uma calma, emanavam dessa criança adormecida. "Se tenho
a desgraça de me deitar-pensou Erik -adormeço imediatamente." Lançou sobre os objectos um olhar vago e acabou por se sentar numa cadeira, a um canto. Esperou, aborrecido
e cansado. O relógio da
torre deu onze horas. Esperou ainda. Liliana não chegava. Erik levantou o auscultador e Joé respondeu:
- Está lá, Joé ? Ninguém preguntou por mim ? Não há nada para mim ? Ouça Joé, espero um dos manequins, deixe-a entrar quando ela vier. Que tome a escada 5. Como
? Se tem uma licença ? Sim, naturalmente. Obrigado, boas-noites.
"Onze horas e meia. Que mulher fatigante, esta Liliana!" - pensava Erik. Doíam-lhe os membros, os olhos fechavam-se-lhe. Levantando o pano, descobriu o quadro. Não,
não valia a pena pintar. Skímpy respirava, no seu canto. Erik deitou-se junto dela e soltou um suspiro. Não queria dormir... no entanto... adormeceu imediatamente...
QUARTA-FEIRA à noite tenho visitas, quero apre sentar-te aos meus amigos" - tinha dito Steve Thorpe a Nina, depois da última noite frustrada. Fazia o que fazem muitos
homens da sua idade e da sua posição. Já que não podia possuir Nina, queria ao menos dar na vista. Mostrava-se com ela por toda a parte onde ia: no teatro, no restaurante.
Tinha-a forçado a aceitar alguns lindos vestidos e tratava-a, como se ela fosse uma rainha disfarçada. No seu foro intimo, desejava que Lúcia se encontrasse um dia
com Nina. O convite feito aos seus amigos, tinha mesmo um fim: a certeza de que um deles contaria à sua ex-espôsa que vivia com uma mulher em casa e que parecia
feliz. Era já a segunda semana que Nina passava na habitação de Thorpe, em White Plains. Tinha aprendido a apanhar a coberta emquanto dormia, para evitar que caísse,
a
sustentar o olhar do criado e a receber, à noite, os convidados de Steve. Muitas vezes sentia a cabeça pesada. Em geral vivia como num sonho, num espaço sem ar.
Não se atrevia a preguntar a Steve quando lhe alugava a casa prometida, e ele pelo seu lado, parecia ocupado demais para pensar nisso. Havia dois dias que tentava
iniciá-la nas bases do jogo de bridge, e ela ouvia, com os olhos fixos, sem perceber nada. Ele ameaçava-a também de lhe dar um professor de piano, pois tinha uma
vaga
inclinação para a música, e queria que Nina, com a sua vòzinha, lhe cantasse canções. Desde a noite em que a fizera beber, cessara com as suas assiduidades. Nina
não tinha a consciência tranquila, pagavam-lhe e ela nada dava em troca. Tinha adquirido na Central a idea confusa de que a compra e a venda formavam as bases da
vida. Valor e contra-partida. Pagamento e produção. Sabia que aquilo não podia durar muito tempo assim. De qualquer lado que a considerasse, a situação era torta
e falsa. Competia-lhe dar a Steve o que ele esperava.
-És amável em me dares tempo, para me decidir ... - murmurava Nina, receosa.
Emquanto que ou dormindo ou acordada, sonhasse com Erik, não estava ainda madura para o sacrifício.
Na quarta-feira à noite ela estava um pouco excitada. Steve voltou do escritório mais cedo que de costume, e desapareceu imediatamente no seu quarto de vestir.
- Que devo pôr ? - preguntou Nina, através da
porta.
- O vermelho- escuro. - respondeu Thorpe. Ela ficou, por momentos, admirada que conhecesse a cor dos seus vestidos... Vestiu o vermelho-escuro, mas teve que parar
para se sentar. Sentia-se aturdida. Os lábios, bruscamente, tornaram-se frios.
O ruído que o criado fazia a pôr a mesa, chegou até ela com a emanação discreta dum cheiro a galinha assada vindo da cozinha. Pensando na comida, Nina teve uma ligeira
náusea contra a qual lutou com energia. Não posso ter gripe, não faltava mais nada! - disse, descontente. Desceu e lançou uma vista de olhos para a casa de jantar.
O mordomo, que não se chamava James, estava limpando os copos, embaciando-os com o bafo e olhando-os depois à luz. Este espectáculo provocou em Nina uma nova náusea.
Tirou-lhe o copo da mão e pô-lo em cima da mesa. De resto, ela era mais competente do que ele a respeito de vidros e do arranjo
de uma mesa. "Está bem, Trompsted" - disse. Tinha conseguido saber o nome do mordomo.
- A senhora deseja que sirva Pomard com a galinha ou vinho do Reno ? - preguntou ele, impenetrável. Ela sabia que ele gostava de a troçar. As suas mãos encontraram,
como uma coisa familiar, a sensação dos copos e da porcelana.
- Não sei nada disso. Você, Trompsted, deve saber melhor do que eu. - disse.
O criado inclinou-se.
- O dr. Back é vegetariano. - acrescentou ainda Ele não gosta que insistam para o obrigar a comer carne.
- De que terra é, Trompsted ? - preguntou Nina. A sua pronúncia agrada-me.
- Sou dinamarquês - declarou ele, colocando, com a ponta dos dedos um cinzeiro e cigarros ao pé de cada talher. Depois recuou e inclinou a cabeça, para o lado, afim
de avaliar o efeito do seu trabalho.
-Oh! Dinamarquês... - exclamou Nina - Tenho... tenho amigos dinamarqueses. A condessa Bengtson. Esperava uma observação qualquer que não veio.
- A minha família era muito grande na Dinamarca
- disse Trompsted, e pôs-se a olhar sonhadoramente as taças de flores que Nina dispunha em cima da mesa.
- Está bem, Trompsted. - disse ela. O mordomo afastou-se.
Steve chegou de cima; cheirava a sabonete de barba e esfregava as mãos. Os cães saltavam à volta dele, como loucos. "Então, pequenos mendigos?"-disse com bom humor,
agarrando ambos nos seus braços. Max era um verdadeiro palhaço e Moritz possuía uma natureza trágica. Gostava das atitudes à Greta Garbo. A campainha soou à porta
de entrada: os primeiros convidados chegavam.
Steve tinha convidado cinco homens e Nina não achou nada de extraordinário na ausência de senhoras, Agora tinha mais acanhamento do que no dia em
que fora exposta na vitrina, nessa vitrina em que Steve falava constantemente. A cada um dos convidados contava a história: como tinha visto Nina na montra e como
tinha ido às informações inquirindo a forma de a comprar. Parecia orgulhoso da sua conquista ou da sua aquisição ou - qualquer que fosse a denominação-do facto de
ter tirado Nina da montra para a trazer para a sua mesa.
Os senhores, cujos nomes Nina não tinha compreendido, dirigiam-se a ela com uma benevolência a que não era estranho um certo embaraço. Dividiam a sua admiração por
Nina e pelos bassets. O dr. Back era um homem de cabelos brancos como a neve, e olhos azues, que pretendia ter um coração muito jovem. Como Steve tratasse Nina com
uma delicadeza requintada, os convidados estavam um pouco tímidos e, com discrição, Trompsted trouxe os cocktails. Nina olhou-o amigavelmente porque ele era dinamarquês.
O rádio tocava, todos falavam ao mesmo tempo, tinham vozes fortes e riam muito. De súbito, as paredes da biblioteca, onde estavam reunidos antes do jantar, pareceram
afastarem-se de Nina: era uma impressão esquisita como se ela não estivesse ali; as palavras não feriam o seu ouvido senão de uma forma indistinta. Tony, que envergava
às vezes a libré de criado, abriu a porta da sala de jantar. O dr. Back ofereceu o braço a Nina e ela ficou reconhecida que quisessem guiá-la através do nevoeiro
que a rodeava. Assim que Trompsted passou a lagosta pelo seu ombro, sentiu-se mal.
Visível e indubitavelmente doente. Supôs que fosse o efeito do cocktail, mas teve apenas tempo de se levantar da mesa e correr ao seu quarto. Trompsted continuou
a servir, impassível, e Steve ria com ar contrariado, "Ela não pode suportar o fumo. - disse - É tão delicada, uma verdadeira criança."
Os cinco senhores puseram-se a falar todos ao mesmo tempo, para afastar o embaraço... Como Nina
não voltava, Steve segredou qualquer coisa ao ouvido do mordomo. O criado afastou-se e voltou segredando também a resposta. "Continua doente" - disse Thorpe um pouco
aborrecido. "Gripe" - lembrou Green que tinha sido seu sócio. "Toda a gente tem gripe, por causa do calor"-aprovou outro. Puseram-se então todos a falar da gripe
e a discutirem as suas fases e se era verdade que os morangos se tratavam com arsénico e se constituíam um perigo.
Quando serviram o café, o dr. Back pousou o guardanapo e saiu. Fez ao seu amigo Steve um sinal e Steve, reconhecido, respondeu-lhe do mesmo modo. Ouviram o médico
subir as escadas, que iam dar aos quartos.
O cognac foi servido em grandes cálices e os convidados voltaram para aquilo a que chamavam a biblioteca: era um aposento que tinha de tudo, menos livros. Instalaram-se
para jogar o bridge e Steve sentou-se em frente de Green ao pé do fogão de sala, diante do jogo de xadrez. Mas não jogou imediatamente porque estava distraído e
aborrecido. A-pesar-de gostar de Nina não podia dissimular que ela representava um malogro em toda a linha. Assim que saiu para ir buscar cigarros para os convidados,
teve o sentimento preciso que troçavam dele em vez de o admirarem.
Mas os aborrecimentos de Steve Thorpe nessa noite ainda não tinham acabado. Mal colocara as marcas de xadrez e feito as três primeiras puxadas, apareceu Trompsted
na biblioteca, debruçou-se para o patrão e disse-lhe qualquer coisa ao ouvido.
- "Como ? Que está a dizer?" - preguntou Thorpe. Trompsted, imagem da dignidade e da discrição, repetiu a misteriosa nova. Thorpe, sufocado, balbuciou: "desculpem-me."
e correu para fora do aposento. A sua partida foi tão súbita, que até os jogadores de bridge foram por momentos arrancados à sua concentração. De mau humor, Green,
o parceiro de Thorpe, ficou sentado diante da partida começada.
- Onde está ela ? - preguntou Thorpe logo que, seguido pelo criado de quarto, chegou ao vestíbulo. com o queixo, Trompsted designou a porta da entrada: era um gesto
pouco respeitoso. "Porque a deixou lá fora, santo Deus ! - exclamou Thorpe em voz baixa. "Madame Thorpe não quis entrar, senhor." - disse o criado, um pouco vexado.
Thorpe empurrou-o para o lado e lançou-se para a porta entreaberta.
Fora, sob a lanterna da entrada, Lúcia estava de pé. Parecia muito infeliz.
-Lúcia... como estás magra!...-disse Thorpe, à queima-roupa.
- Obrigada, perdi vinte e dois arráteis - respondeu ela como mulher que, mesmo na adversidade, não se esquece de verificar todos os dias o seu peso.
- Que posso fazer por ti?... emfim ... não queres entrar... tenho algumas visitas... tu conhece-las... Green, o dr. Back... estou muito contente por te ver... -
balbuciou Thorpe.
- Justamente. Não quero ... visto que tens gente... é a ti só que desejo falar. - disse Lúcia. Ela tirava, nervosamente, o veuzinho que lhe cobria a testa e os olhos.
Um ramo de violetas artificiais enfeitava-lhe o chapéu, como exigia a moda dessa primavera, e pareceu a Thorpe que nunca tinha visto nada mais triste do que essas
violetas.
- Vem, eles estão a jogar o brídge, ninguém te verá.
- disse vivamente pegando-lhe na mão e atraindo-a para casa. Assim que chegaram ao vestíbulo, não soube muito bem para onde a devia levar. Ela tremia toda e, com
a breca, ele tremia também. Da biblioteca chegava o riso dos jogadores. Em cima, do lado dos quartos, podia ouvir-se a voz monótona e ensurdecida do dr. Back que
parecia quási que resava. Steve lembrou-se de-repente que tinha Nina em sua casa; subiu-lhe calor à cabeça. Afastou as portas do salão e fechou-as logo. Green, ofendido,
tinha-se ido sentar para diante do fogão de sala e
lia uma ilustração. A T. S. F. tocava. Na sala de jantar, Tony, fazia arrumações. Na cozinha, Trompsted entrechocava os copos, Tomando uma rápida decisão, Thorpe
levou Lúcia atrás de si para um aposento chamado a sala do ping-pong. Actualmente, os cães tinham ali os seus cestos. Saltaram em volta de Lúcia, os seus latidos
amigáveis pareciam quási lamentos, tão agitados estavam. Algumas palavras a respeito de Max e Moritz fizeram passar os primeiros minutos. Thorpe pediu a Lúcia para
se sentar numa poltrona e colocou a luz um pouco de lado para a afastar dela, Fazia-lhe mal olhá-la e admirava-se disso. Mil vezes tinha imaginado e sonhado como
seria, se ele se encontrasse em frente de sua mulher. Tinha imaginado tudo, desde o frio desdém até à ofensa mordaz, desde a recusa de a reconhecer, até ao assassinato.
Agora, ali estava em pé em frente dela, receando olhá-la e, com o coração a doer-lhe.
- Queres comer alguma coisa ? - preguntou. (O seu rosto parecia-lhe tão magro!) "Obrigada, estou de dieta." - respondeu. E ele lembrou-se que os regímens de Lúcia
tínham-no feito, muitas vezes, encolerizar.
Sem lhe fazer outra pregunta, foi à copa, encheu dois copos de cognac, rebuscou o frigorífico e encontrou um resto de lagosta. Sob os olhares da cozinheira, ofendido
com a sua invasão, dispôs os seus achados em cima de um prato e levou tudo a sua mulher. Era o instinto do troglodita: primeiro alimentar a esposa. O resto seguiria
ao acaso... E de facto, Lúcia bebeu o cognac, com reconhecimento, e pôs-se a mastigar alguns pedaços de lagosta como se se escondesse de si própria.
Tinha as pálpebras inchadas das lágrimas e a maneira como o rouge se espalhava um pouco por toda a parte, denotava um verdadeiro desespero. Steve meteu-lhe um cigarro
na boca, enxotou os cães, que mandou deitar nos seus cestos e sentou-se emfim ao lado de Lúcia. Agora, ela já não tremia.
- Não queres tirar o chapéu ? - preguntou.
- Não, obrigada, - disse vivamente puxando o véu para os olhos...
- Tens qualquer coisa a dizer-me? Podes contar-me tudo como se eu fosse teu advogado... não de outro modo. Estou habituado a ouvir... e se precisas de um conselho..
- Não preciso de nenhum conselho - disse Lúcia, sacudindo energicamente a cabeça, de forma que as violetas tristes do chapéu estremeceram um pouco.
- Dois e dois fazem muitas vezes cinco, nesta vida, graças a Deus. - disse Thorpe - Era uma sibilina máxima muitas vezes utilizada na prática dos seus negócios cuja
urbanidade e experiência produziam um efeito calmante, Lúcia olhou-o com atenção.
- Mudaste muito, Steve! - disse ela.
- Tomo isso como um cumprimento. - respondeu ele. Distraída, olhou-o sem ouvir:
- Assim que me fiz conduzir aqui, pensei logo que poderias ajudar-me. Mas tu falas em contar... É difícil, Steve...
Deixou escapar um soluço ruidoso, como fazem as crianças que já choraram muito. Aquilo não ficava bem com o seu rosto emmurchecido, mas comoveu Thorpe, Havia um
quarto de hora que ele tinha esquecido completamente Nina, era como se ela nunca tivesse existido.
- Não me casei com Peruggi. - disse Lúcia - Pu-lo
na rua.
- Nunca o considerei como uma pessoa estimável ... - concordou Thorpe, amavelmente.
E a onda, de súbito, quebrou todos os diques. Sua mulher lançou os braços em cima da poeirenta mesa de ping-pong e pôs-se a chorar lágrimas quentes, sem as poder
conter. Entre lágrimas e soluços contou a sua história, por fragmentos e, por vezes, de forma pouco compreensível.
- Estimável, não era, não... - soluçava ela com o rosto nas mãos. Era um intrujão, um criminoso. Viveu
à minha custa. Fez-se sustentar por mim ... pediu dinheiro emprestado .. sabes como o gastou? E roubou-me o meu anel de esmeralda. Sim, foi ele com certeza.. sempre
estive certa disso mas nunca lho disse. Calei-me ... Como poderia dizer a um homem : tu roubaste o meu anel ? Nem sequer confessá-lo a mim mesma, embora sempre estivesse
convencida disso. Ele tinha más maneiras, se bem que dissesse serem italianas ... há italianos ordinários, mas deve também havê-los bem educados. Emfim, era um conde
e não um vendedor de gelados. Palita os dentes à mesa depois de comer, e pragueja constantemente. Mas tudo isso ainda eu suportaria ... Gabava-se muito da sua família
aristocrática... e pedia-me dinheiro emprestado. Tinha prometido casar comigo em Verona... onde estão enterrados Romeu e Julieta ... era tão romântico!... e eis
que descubro que gastava o meu dinheiro com amantes... não sei a quantas mulheres, prometeu a mesma coisa: esse casamento na catedral de Verona. Então, naturalmente,
disse-lhe a verdade... que me tinha roubado o anel. "Dá-me o anel que me roubaste, é muito lindo para a canalha com quem andas." Então, dir-se-ia que estava louco,
um bruto, um verdadeiro bruto ... arrancou-me os cabelos, arranhou-me, bateu-me ... aqui..."
E Lúcia ergueu da mesa de ping-pong o rosto inundado de lágrimas, tirou o chapéu, o véu e descobriu a fronte arranhada e os vergões que lhe marcavam a face esquerda.
Thorpe ficou um pouco desconcertado por esta explosão. Assim que viu que lhe tinham batido na mulher, uma violenta cólera se apoderou dele, embora tivesse sentido,
também, muitas vezes, vontade de a espancar.
- Olha, bebe mais um copo de cognac. - aconselhou em voz grave, estendendo-lhe o seu próprio copo. Ela bebeu de um trago, tornou a pôr o chapéu, limpou os olhos,
baixou o véu, tirou a caixa de pó, da malinha, para
reparar a desordem das feições. O que mais sensibilizou Steve foi ela diligenciar sorrir, um pouco timidamente, para se desculpar... um pouco envergonhada !
- Alegra-te porque tudo isso tenha acontecido antes de teres casado com ele. - disse usando uma frase banal de consolação, que costumava dizer à sua clientela. O
sorriso de Lúcia tornou-se mais grave.
- Vocês, homens, são todos os mesmos. Tu também tens uma mulher cá em casa.
E duas lágrimas retardatárias, depois do grande dilúvio, desceram lentamente até aos cantos da boca. Thorpe compreendeu que essas duas lágrimas eram para ele e não
para o belo gigolô desleal.
- Isso não significa nada... Se te interessa, posso contar-te tudo ... - disse. Ela fez um pequeno gesto rápido, de recusa, que ele, de novo, reconheceu:
- Nada tenho a censurar-te... não tenho esse direito. - disse.
- Não se trata de direito, - ouviu-se Thorpe dizer. Reflectiu sobre o que devia agora fazer diante de Lúcia.
- Que intenções são as tuas ? - preguntou, prudente.
- Não sei... não sei, Steve. - disse ela, sonhadora É como depois de um tremor de terra, não me reconheço, já... Podem-se entregar os bilhetes do barco, perdendo
alguma coisa.
-As Companhias marítimas habitualmente dão 90? % do preço dos bilhetes pagos - disse ele no seu tom de advogado.
- Nem sequer desejo voltar ao hotel, tenho medo que ele venha.
- Não te tornará a bater, afirmo-te. - garantiu Steve, sombrio.
- Não... tenho medo que ele ... que me peça perdão... e eu... tu não o conheces, quando quere, ele sabe ser encantador.
- É disso que vive, de resto- disse Thorpe.
- Tens razão, disseste bem ... é disso que ele vive ... aprovou rapidamente Lúcia.
Olhava à sua volta e começou a sorrir vendo os dois cães que, até então tinham estado deitados com ar hipócrita nos seus cestos, começarem a saltar à sua volta.
Os seus ladridos mostravam toda a sua alegria.
- Vocês reconhecem-me... não me esqueceram... -disse, pegando-lhes pela pele bamba do cachaço, para os pôr ao colo. Os seus focinhos castanhos escuros dirigiram-se
para a cara da dona como que para a beijar. Thorpe, de pé, a um canto, reflectia. A partida de bridge, o dr. Back, Nina.
-Queres que te leve para outro hotel ou preferes viajar ?
- Não. - disse ela, resolvida. E ele preguntava a si próprio a razão da recusa.
-De-certo já... alguém te contou que tenho uma senhora no quarto de hóspedes. - disse - Mas tu podes passar a noite no nosso quarto de cama e eu fico na biblioteca.
- És muito bom ...- respondeu Lúcia. Sobre os seus joelhos os cães latiam. A porta abriu-se e o dr. Back meteu a cabeça branca: "Perdão" - disse, confuso. E desapareceu.
-Estás apaixonado pela senhora do quarto de hóspedes?-preguntou Lúcia com um sorriso.
- Tentei imaginá-lo durante certo tempo.. -respondeu Thorpe, sorrindo também - Dá-me o número do teu hotel, vou telefonar para que tragam para aqui as tuas bagagens.
- Obrigada. - murmurou Lúcia.
Ele viu que, maquinalmente, ela passava o dedo sobre a mesa de ping-pong. Na verdade, estava cheia de poeira. "A casa precisa de uma mulher" - murmurou ele ao pé
da porta. Lúcia levantou os olhos e começou a rir, com um tremeluzir de lágrimas nos olhos.
-No que diz respeito ao romanesco, nós podemos
também partir para Verona e casar lá segunda vez. O seu tom era de gracejo, mas a voz embargava-Se-lhe na garganta. Fechou a porta atrás de si e ficou frente a frente
com o dr. Back.
- Que estás a fazer ? Escutas ? - preguntou, e o constrangimento a que se tinha imposto, explodiu nestas palavras.
- Não, mas preciso falar-te com urgência. Tua mulher não podia ter escolhido um momento mais inoportuno para vir.
Thorpe dizia a si mesmo que não existia nenhuma lei determinando o instante em que uma mulher devia voltar para o seu marido.
- Que aconteceu ? - preguntou em tom breve.
- Vem comigo ao teu quarto. É o único lugar onde podemos conversar sem que nos incomodem-resmungou o médico.
Thorpe desejava subir, para telefonar. -Então? A pequena não vai melhor? É gripe?- preguntou, impaciente,
- Não... Ela vai bem... vai até muito bem - disse o dr. Back fechando a porta atrás deles.
As suas maneiras misteriosas começaram a irritar Thorpe.
- Acabemos. Preciso de telefonar - disse.
- Pois bem, meu caro, é uma história bem triste... Vai custar-te dinheiro. No entanto, as minhas felicitações... para um velho como tu...
Admirado, Thorpe olhou para o seu amigo por instantes. O médico respondeu-lhe com um olhar silencioso e cheio de segundo sentido. Subitamente, o advogado desatou
a rir.
-Mas é espantoso! Isso não podia calhar melhor. Ora ai está porque parece tão nervosa... Pobre pequena!-acrescentou, compadecido. Ela já sabe?
- Naturalmente que lho disse.-respondeu o médico.
- Sim ? E então ? Como tomou ela a coisa ?
- As mulheres naquele estado são sempre um pouco exquisitas - sentenciou o dr, Back, embora isso não fosse uma resposta.
Thorpe percorreu duas vezes o aposento dando estalos com os dedos.
- É um tanto excessivo para uma noite só. - pensava. Ao mesmo tempo louvava a delicadeza, a perfeição das suas relações com as mulheres.
- Ouve.- disse ao médico - Tu vais telefonar. Pede o Hotel SãO Moritz e diz que madame Thorpe não volta e que lhe mandem a mala e os objectos indispensáveis para
uma noite. Depois, vais à sala de ping-pong onde reterás Lúcia durante meia hora, podes administrar-lhe um calmante qualquer: brometo, um sonífero, qualquer coisa.
Depois tratarás de acabar com essa danada partida de bridge e de os mandar para casa. Negócios de mulheres fazem parte do segredo profissional, percebeste?
- Compreendo perfeitamente - disse o dr. Back com uma expressão de profunda perplexidade, no seu rosto barbeado.
Thorpe atravessou a passo rápido os dois quartos de vestir, que separavam o seu do quarto de hóspedes, esperou um instante diante da porta de Nina, e depois bateu.
"Sou só eu... Steve..."- disse. Veio-lhe o pensamento fugitivo de não ter, há anos, vivido coisas tão importantes e salutares como durante esta última hora. Nina
disse: "Entre" e ele entrou, com um sorriso de homem um pouco acanhado no rosto sobressaltado.
Mas encontrou uma outra Nina: uma Nina inteiramente diferente, transformada, em pé, delirante, fora de si, uma Nina absolutamente louca, que chorava e ria ao mesmo
tempo. Ele ignorava se era alegria ou dor -ela mesma não o sabia, provavelmente...
Ela só queria uma coisa: ir-se embora, partir dali imediatamente. Deixar, sem demora, esta casa onde os criados a desprezavam, onde os hóspedes eram impertinentes:
ela ia ter um filho, ela era mãe! Um filho, um novo Erik, um conde Bengtson! Gritou tudo isto no quarto, emquanto fazia as malas... ou antes, emquanto atirava tudo
para dentro delas... a barata roupa de baixo, as bonecas, o revólver. Thorpe estava ali petrificado, como imobilizado sob uma catarata. Não podia fazer nada senão
atirar para o monte os vestidos de que tinha feito presente a Nina e, às escondidas, meter-lhe em qualquer parte uma nota do Banco... para prever todos
os acontecimentos.
Tudo se fez de-pressa e de uma forma tão irresistível que, quando Nina lhe estendeu amavelmente a mão para lhe agradecer a hospitalidade, ele notou, pelo tom da
voz, que o seu espírito estava já distante.
Reteve-a, no entanto, um momento com a porta aberta pois acabava de perceber, pelo barulho, pelos risos, pelo cheiro de charuto, que o bridge havia terminado. O
dr. Back parecia ter trabalhado bem. com precaução, Thorpe atravessou o patamar; não queria que Lúcia e Nina, que tinham por momentos perdido o domínio de si próprias,
pudessem encontrar-se. No seu foro íntimo agradecia à Providência essa reviravolta súbita de Nina que lhe poupara muitas dificuldades.
Num piscar de olho, fez-lhe sinal para o seguir. Pediu a Trompsted para ir acima buscar-lhe a bagagem, pois não queria que a rapariga carregasse com nenhuma mala,
nem mesmo a sua pequena maleta de mão.
- Tony. - disse ao motorista que tinha ajudado Vá levar mademoiselle Nina a Fieldston, depois vá ao hotel São-Moritz buscar as bagagens de madame Thorpe. Diga que
eu passarei por lá amanhã para pagar a conta. E... não preciso do carro antes das dez horas.
Instalou Nina no automóvel. Distraidamente disseram adeus; ela estava já com Erik e ele com Lúcia...
- Vá de-vagarinho, Tony-ouviu ela dizer. Ele ficou de pé em frente da casa, emquanto o clarão dos faróis desaparecia, perdendo-se na obscuridade. Depois, meneou
a cabeça. No fim de contas, as mulheres são uma raça singular... -pensou.
E esse meneio de cabeça era a conclusão da tentativa que Nina fez para se vender. Era o princípio das segundas núpcias de Thorpe.
MEIA-NOITE e meia hora no relógio da Central. Os guardas de noite acabavam de terminar a sua segunda ronda e foram aquecer café à sua sala.
A campainha da noite soou no quarto de Joé, o porteiro. Abriu a porta pequena; fora estavam duas pessoas.
- Posso ir falar ao sr. Bengtson ?
-Tem licença ?-preguntou Joé à rapariga, pálida, com ar de dançarina.
- Sim. Naturalmente.
O porteiro pegou na licença e voltou ao seu cubículo, à luz eléctrica. Ele tinha um olho de vidro e era forçado a colocar o papel obliquamente, para ler.
- E esse rapaz? - preguntou.
- Este rapaz é que traz as coisas.
- Que coisas?
- As coisas para o sr. Bengtson.
- Tem licença?
- Não, mas eu tenho.
- Sem licença não o deixo entrar.
- Ele tem de lhe entregar as coisas... sem isso o sr. Bengtson não poderá trabalhar. - explicou a rapariga.
- Impossível,-disse Joé voltando o lado do olho de vidro para o rapaz para melhor examinar a rapariga. Foi nesse momento que recebeu uma pancada no queixo e caiu
por terra.
- Tocado! - disse o rapaz, satisfeito, e desapareceu no fundo do vestíbulo que levava ao pátio velho.
A rapariga voltou à rua. À esquina, um automóvel esperava. Dois indivíduos desceram e aproximaram-se. A mulher cruzou-se com eles, disse uma palavra e seguiu o seu
caminho. Depois, fazendo sinal a um táxi, afastou-se. Os dois tipos entraram na Central pela porta aberta que fecharam atrás de si.
Joé continuava no chão, sem sentidos, e com um sorriso nos lábios . Big Paw inclinou-se e transportou-o para o seu cubículo. Emquanto o ligava a uma cadeira fazendo-o
respirar clorofórmio, Bill viu à luz o plano desenhado por Liliana.
- Diz a Kid que entre. - disse a Big Paw.
- Onde está Bully? - preguntou este. Estava emocionado e não podia dominar-se. Bill deu-lhe um pequeno encontrão. Big Paw abriu a porta e inspeccionou a rua : um
homem, sonhador estava de pé diante da montra dos bars portáteis. Big Paw teve de esperar um certo tempo emquanto Bill, impaciente, espreitava atrás dele. O relógio
da torre deu três pancadas antes da uma hora. Finalmente o admirador tardio desligou-se da montra e marchava, indecisamente pela rua abaixo, como alguém que se aborrece
e espera uma aventura. Passaram dois automóveis, depois, tudo ficou vazio por um momento. Kid apareceu, de-repente, e deslizou pela porta, para dentro da Central.
Joé estava agora muito bem empacotado com adesivo na boca e uma boa narcose. Em silêncio, os dois homens seguiram Big Paw através do pátio; subitamente, este sobressaltou-se
diante do gato branco, que fazia rolar uma caixa vazia de conservas no chão de cimento. Através duma porta envidraçada, podiam ver a secção, mal iluminada, de confecção
para homens. Sem barulho, Bill pegou nas chaves que Liliana lhe tinha dado e abriu a porta de par em par. Havia só cinco chaves e encontrou a precisa sem hesitação.
Assim que chegaram ao interior, ficaram uns minutos imóveis, de ouvido à escuta; reinava um silêncio de morte. Um senhor loiro, de cera, vestido de branco, olhava
na sua direcção e sorria vagamente. Bully, o rapaz vestido de groom, tirou o pano branco que recobria as gravatas. "Deixa isso!" -disse Bill. "Mais baixo.
- respondeu o rapaz renunciando de má vontade ao seu roubo. "Por causa de idiotas da tua espécie é que os grandes negócios não triunfam." - sentenciou Bill.
Ele levou-os mais longe, ziguezagueando entre as secções mudas e cheias de fantasmas imaginários, chegando emfim à escada que ia dar à cave.
- Levo os dois rapazes comigo, tu vais ficar lá em cima à espreita - murmurou Bill.
- Entendido, chefe, - respondeu Big Paw em voz forte.
Tinha estado todo o tempo irritado por causa dessa marcha prudente através da Central vazia e por esses segredinhos inúteis, pois não estava lá ninguém que os pudesse
ouvir.
- E se vier alguém, mostra o teu revólver. Mas nada de ruído inútil... ouviste?
- Entendido, chefe - respondeu ainda Big Paw.
- A escada de socorro é no terceiro andar, encostada ao elevador. - explicou Bill, a todos - O carro espera à esquina sudoeste.
Big Paw viu-os desaparecer na escada. Pegou num cigarro e pôs-se a fumar. Tinha medo e a coragem de Bill não o animava: Bill tomava cocaína e isso é que lhe mantinha
o espírito empreendedor. Big Paw não tinha bebido bastante para se sentir à vontade.
Ele gostaria de percorrer o armazém vazio para examinar tudo, mas não teve coragem. Atirou fora o cigarro meio fumado e acendeu logo um segundo. Em bicos de pés,
foi até ao tapete rolante que, na sua imobilidade, tinha o mesmo carácter espectral do resto, e sentou-se no primeiro degrau. Pôs a cabeça
no braço e ouviu um choque rítmico que lhe meteu medo. "com a breca!" - exclamou, rindo incrèdulamente assim que notou que era apenas o bater do seu pulso que lhe
chegava ao ouvido, através da manga - Então ficou para ali sem se mexer e muito tempo passou..
Estava certo de não ter dormido, e tinha mesmo ouvido o relógio dar uma hora; no entanto para ele foi como um brusco despertar quando ouviu vozes vindas dos andares
superiores.
- Boas-noites, disse alguém lá em cima. Trata de ir direito para casa, já há muito tempo que devias estar no berço.
Depois ouviu uma gargalhada cujo eco se repercutiu contra as paredes. Metendo a mão no bolso, Big Paw, maquinalmente, pegou no revólver. Olhou à sua volta e, a-pesar-do
pânico, descobriu um excelente esconderijo. Uma cortina ocultava os fatos pendurados: ergueu-a e escondeu-se atrás. Durante esse tempo passos leves tinham descido
a escada. Arriscando um olhar por uma fenda, o bandido viu um ser de cabelos de um loiro pálido que descia a escada a dois e dois. "Vai descobrir o porteiro amarrado
e tocar a campainha de alarme." - pensou Big Paw, embora pensar não fosse o seu forte. Puxou do revólver, visou na direcção do rapaz; mas deteve-se... O rapaz parou
diante de um grande espelho, examinando o queixo; depois, tendo procurado à sua volta, tirou um chapéu branco da cabeça de um manequim vestido com um fato de linho,
penteou-se e mirou-se por todos os lados. Tateou a algibeira, tirou um cigarro que meteu na boca, sem acender, e continuou a admirar-se. Big Paw riu atrás da cortina.
O pequeno, depois de se ter contemplado bastante, tirou o chapéu, pôs o cigarro na algibeira e, inclinando-se respeitosamente diante do manequim, restituiu-lhe o
chapéu. Depois, tomou balanço e escorregou pelo oleado do soalho até à saída.
Big Paw, saiu do seu esconderijo e gritou: "Mãos
no ar!" O pequeno voltou-se estupefacto, e ficou de boca aberta, não levantou as mãos, pois, com certeza não tinha percebido do que se tratava. "Mãos no ar!" repetiu
Big Paw um pouco mais baixo - Lembrou-se de-repente que deviam estar mais pessoas lá em cima. Talvez, de noite, no armazém houvesse um formigueiro de gente ocupada
a trabalhar. Agora o pobre garoto levantou as mãos, como um fantoche, como se fossem puxadas para o alto por dois cordéis. Big Paw pensou no que iria fazer dele,
mas, antes que pudesse tomar uma resolução, o cabelo louro branco pareceu erguer-se, como que empurrado por uma corrente de ar, o rosto sardento ficou lívido e ele
caiu ao chão. Era a primeira vez que Big Paw tinha visto desmaiar alguém, e não sabia o que havia de fazer. Dirigiu-se para o pequeno, levantou-o, sentindo um certo
desagrado ao contacto desse corpo flácido.
Nesse instante, ouviu-se qualquer coisa que conhecia muito bem: tiros. Três tiros amortecidos partiram da cave. Deixou cair o garoto, olhou à sua volta com ar assustado
e correu pela escada até ao terceiro andar. Lá em cima, já sem fôlego, procurou o elevador, ao pé do qual ficava a escada de socorro. Roçou, a correr, por três senhoras
em roupão, obliquou e viu subitamente que um homem vinha para ele: atirou-se sobre o indivíduo como num desafio de foot-ball, ouviu a queda pesada de um corpo e
continuou na sua fuga. com a coronha do revólver, deu uma pancada num enorme vidro: o ar da noite bateu-lhe no rosto coberto de suor. Do alto da escada de socorro
onde estava, via o pátio no qual o gato brincava ainda agora; resolveu não se mexer. Em baixo, corria gente; bruscamente, todas as campainhas de alarme se puseram
a tocar; sons agudos encheram o vasto edifício. Era um barulho infernal e isso tornou-o tão nervoso que se endireitou imediatamente. Recebeu então uma pancada e
caiu.
uma coisa horrível, uma campainha a ressoar numa casa vazia. Era meia-noite. Em casa dos Bradley, ninguém. O vestíbulo estava vazio, os quartos vazios, o leito da
sr.a Bradley também vazio. Vazio o leito de Erik, vazio o de Filipe; nem Skimpy estava em casa e a campainha tocava. Um som longo, depois curto, depois mais longo
ainda; primeiro paciente, depois nervoso, depois como louco. Finalmente tudo se calou.
-Não está ninguém em casa-disse Nina ao motorista que esperava de pé, com as malas na mão.
- Devo levá-la outra vez para trás ? - preguntou ele, tornando a pôr as bagagens no carro.
- Não, de maneira nenhuma. - disse Nina. -Então aonde, se faz favor? - preguntou Tony
olhando para o carro com indiferença.
- Aonde? - repetiu Nina.
- Talvez a um hotel ? - propôs o homem.
- Sim, mas não a um hotel caro. - disse abafadamente Nina.
Tony levou-a a um hotelzito, longe, ao cimo de Broadway, onde a olharam de uma forma estranha. Mas, como ela tinha duas malas, deram-lhe um quarto, um quarto que
cheirava a fósforo. Aí, sentada na borda da cama, Nina telefonou. Três vezes tocou para a Central
e de todas recebeu a mesma resposta: "Não responde". "Não é possível, torne a tentar" - suplicou ela. Mas
isso nada fez.
- Quiseram matar ratos - pensou Nina aspirando o odor estranho do quarto. Tornou a pegar no telefone e, de vez em quando, tornava a pedir a casa de Bradley. A manhã
ia já muito avançada quando, emfim, uma voz respondeu: Era a voz infantil e aguda de Skimpy.
- Estás, Skimpy ? Aqui, a Nina, Posso falar à
mamã?
- Não.
- Ela saiu? Tenho uma coisa importante a dizer-lhe.
- A mamã está no hospital, mas vai bem. Esta
tarde vou vê-la.
- Oh!.. Que pena!... - murmurou Nina. Mas não tinha tempo a perder com amabilidades - Pois eu... gostava de falar ao sr. Bengtson... - disse ela.
- O sr. Bengtson foi preso.
- Como? Fala um pouco mais alto, Skimpy.
- O sr. Bengtson foi preso. - gritou Skimpy ao
aparelho.
- An ?... como assim ?... Não é... possível. balbuciou Nina, sentindo-se arrefecer. Os lábios estavam como que gelados, a pele da cabeça parecia esticada, agarrava-se
ao telefone.
- Ele roubou coisas. Fez um assalto. Deram tiros e ele é um gangster. Eu também lá estava - continuou Skimpy, com importância.
- Eu queria... falar a Filipe... - murmurou Nina ao aparelho. O cheiro a fósforo envolvia-a toda.
- Filipe está no posto de polícia. O seu retrato vem nos jornais - disse Skimpy. Ela esperou ainda um pouco, mas como Nina não respondesse, desligou, desceu prudentemente
do banco que tinha posto para telefonar, e, consciente da sua importância, foi para a escola.
Para Nina, correu um lapso de tempo de que, mais tarde, não se lembrava. De-facto, eram oito horas
da manhã quando tinha telefonado a Skimpy e, foi às dez horas somente, que se encontrou sentada no autobus que se dirigia para a Central. Do que tinha feito, durante
essas duas horas, não poderia mais, em toda a vida, recordar-se. No entanto, o seu cérebro estava absolutamente claro quando, chegando ao armazém, tomou a escada
móvel. Tinha comprado um Jornal na rua e, embora o nome de Liliana aí não figurasse, estava absolutamente certa de uma coisa: Liliana tinha levado seu marido à prisão
e era Liliana que devia fazê-lo sair.
Nina tinha sido sempre calma e meiga durante toda a sua vida. Mas, agora, haviam-se passado coisas de molde a transformar completamente esta criaturinha. Desde que
a tinham tirado da secção de porcelanas para a porem na vitrina, nunca mais tivera paz. Andava como um projéctil que ninguém pode reter, assim que é lançado, como
um pequeno cometa apaixonado, pronto a rebentar em mil pedaços. Exteriormente, todavia, este pequeno pedaço ardente de destino feminino não se distinguia das outras
clientes. Como todas as outras, lançou um rápido olhar para o espelho, diante do qual passou e parou um instante diante dos sensacionais pijamas de praia, da secção
de confecção. Essa secção estava à cunha nessa manhã: havia uma venda-reclamo de séries baratas e todos queriam o primeiro lugar junto ao balcão, para pescar os
artigos mais vantajosos. Fez calor, de-repente, nessa manhã de princípio de primavera e as ventoinhas funcionavam, as caixeiras transpiravam, as modistas estavam
nervosas, as clientes histéricas.
- Gostaria que me atendessem, menina. - disse Nina numa voz sem intonação a Liliana que saía da sala de costura. Nessa manhã, Liliana estava mais pintada que de
costume, sem dúvida porque se sabia mais pálida. A boca estava muito vermelha sobre a pele branca e o seu nervosismo concentrava-se na palpitação das narinas.
Prenderam todo o seu bando. Bill morreu, os outros estão presos. Nem peles, nem amigos, nem dinheiro, nem carreira em Broadway. Devia mesmo sentir-se feliz, por
todos se terem calado, não a comprometendo na aventura ...
- Gostaria que me atendessem, menina. - repetiu Nina com mais força. Liliana imobilizou se com um pequeno movimento de ancas que dantes a tinha distinguido entre
as suas colegas aprendizas e a tinha trazido até ao salão de costura.
- "Olha... a Nina!-disse ela-Talvez saiba qualquer coisa de novo." Foi apenas uma idea fugitiva...
Teria de boa vontade envenenado Erik Bengtson se, por esse meio, pudesse estar segura do seu silêncio. Mas a criança de peito, o menino de mama estava preso e era
de prever que ele a envolvesse no caso. Teria contado a história das chaves? com certeza, se isso pudesse servir-lhe de defesa. Seria então o fim de Liliana Smith,
saída a custo da obscuridade e que se sentia empurrada, irresistivelmente, outra vez, para a escuridão, para o abjecto.
- A senhora deseja? - preguntou ela, olhando Nina como se fosse um carteiro que, de noite, nos traz um telegrama.
- Queria provar este vestido. - disse Nina apontando para qualquer parte, por cima do ombro, na direcção do armário.
- com muito prazer. - respondeu Liliana, tirando um vestido ao acaso e abrindo a porta do gabinete de
prova.
- Que há de novo ? - preguntou ela assim que ficaram sós entre as paredes de espelhos.
- Que fizeste de meu marido ? - preguntou Nina.
Qualquer coisa nesta pregunta irritou Liliana: ela não podia suportar o que havia de burguês nesta expressão: meu marido. Não podia suportar esta pequena Nina meiga
e tranquila, esta provinciana que tinham posto na montra.
- Que me importa o teu marido ? Teu marido!
- Foste tu que o meteste na prisão, - disse Nina e és tu que o tens de fazer sair de lá.
Era a frase que, havia horas, ela tinha formado na cabeça.
- Tem cuidado com o que dizes, minha menina. Teu marido meteu se com ladrões. Eu não...-disse Liliana.
Falavam ambas em voz baixa, com os rostos aproximados um do outro e reflectidos nos seis espelhos ao mesmo tempo. Mas mesmo que tivessem falado mais alto, não as
teriam ouvido, pois em toda a secção de costura havia um zunido sussurrante de mulheres. No salão, a directora esvoaçava de um lado para o outro, dando ordens, com
o seu sotaque francês. Todos os gabinetes de prova estavam ocupados. Uma caixeira abriu a porta e disse: "Perdão", tornando-a a fechar. Liliana e Nina ficaram frente
a frente, ambas trémulas, cada uma dizendo à outra o que tinha a dizer-lhe.
Liliana estava ao rubro, ladeava um precipício. Mas Nina já não era a rapariguinha de antigamente, agora tinha sofrido muito.
- Estou farta, entendes? E repetiu o que exigia e que não era nada mais, nada menos do que isto: Liliana devia comparecer diante da justiça e provar a inocência
de Erik.
Liliana riu-se, provocante. Pôs as mãos nas ancas, gargalhando na cara de Nina.
Subitamente, ela viu que Nina levava um revólver, um grande revólver de polícia que segurava desajeitadamente.
- Se não tiras cá para fora o meu marido, mato-te! disse em voz grave, rouca, numa voz absolutamente nova.
Liliana segurou o pulso que agarrava a arma para a desviar de si.
- Endoideceste? - preguntou vivamente.
- Estou grávida. vou ter um filho! É preciso que meu marido volte. - gritou Nina.
Foi apenas um instante, um instante singular, a duração de um abrir e fechar de olhos... mas durante esse segundo, Liliana fraquejou. Um filho era uma palavra do
outro mundo. Nina... ia ter um filho. Dantes, elas haviam sido amigas. Juntas, como aprendizas tinham-se sentado nos bancos da escola, onde o grande armazém educava
as caixeiras ...
E o facto de Nina ter um revólver e parecer decidida a servir-se dele, revelou um sentimento que Liliana pôde compreender. Isso já não lhe era tão estranho, tão
hostil...
- Um filho ? - preguntou, largando, sem dar por isso, o pulso de Nina - Mas, um momento depois, reencontrou a sua dureza.
- Mas que me pode importar que tu tenhas um filho ? Que tenho com teu marido ? Deus sabe de quern é esse bastardo!
Ela não falava alto, mas as suas palavras soavam tão duras, como uma pedra batendo noutra pedra.
Então, Nina fechou os olhos e descarregou a arma. Nunca tinha disparado na sua vida e ficou aflita com o safanão que recebeu - houve depois um cheiro a pólvora.
Assim que abriu os olhos, Liliana ainda estava de pé, com as duas mãos apoiadas à mesita, depois, a taça dos alfinetes caiu e Liliana caiu também por sua vez. Dir-se-ia
que tentava sorrir com ar irónico e surpreendido. Talvez também sofresse...
Tudo isto se passou muito silenciosamente. Os gabinetes tinham tapetes espessos e o tiro não fez mais barulho do que uma rolha de garrafa de champagne.
A queda de Liliana também não foi ruidosa. Nina meteu o revólver na sua velha malinha de mão e saiu do gabinete.
Na secção reinava o ruído da venda-reclamo.
- V. Ex.a foi servida como desejava ? -preguntou madame Chalon.
- Fui, obrigada, - respondeu Nina.
Portas, portas e portas, escadas e escadas... O elevador... no edifício central. A saída à direita, portas envidraçadas, portas móveis e ainda flechas indicando
saída, saída, saída...
Nina transpôs emfim a última porta, que bateu pesadamente sobre ela. Cá fora, era Junho, cá fora, as mulheres compravam flores. Ninguém a seguiu. Respirou o ar a
grandes sorvos, as suas mãos já não tremiam. Fez sinal a um táxi. "Para a Grande Estação Central" - disse. Tinha dinheiro, a sua algibeira estava cheia de notas
provenientes do último presente de Thorpe.
Carros, pessoas, môços de fretes, de cor, informações, bilheteiras, pessoas. Bilhetes para Cleveland. Bilhetes para Boston, bilhetes para New Heaven.
- Para Lansdale, Connecticut... - disse Nina.
- Simples, ou de ida e volta ? - preguntaram da bilheteira.
- Isso é que eu não sei. - respondeu a jovem.
LAMENTO tê-lo feito esperar, - disse Filipe quando, às duas horas e dez, entrou no seu escritório. Estou cheio de trabalho, como pode calcular. A polícia... e depois
tive com o sr. Crosby uma longa conferência.
Sentia-se extraordinariamente bem disposto, pois tinha substituído a falta de sono pelo álcool. Trazia o braço ao peito.
- Foi grave ? - preguntou o rapaz, que se tinha levantado à sua chegada.
- Oh! já estou habituado. A bala desta noite foi a sexta que recebi no cadáver, desde que trabalho na Central - disse Filipe, em tom importante. Estava excitado
e como prestes a tomar voo, tal como um grande balão vermelho, novo. O rapaz escreveu à pressa algumas notas no caderno que tinha preparado.
- Eu sou Sanders, do Evening Star, como sabe. Pensamos que o senhor não teria hoje muito tempo livre, mas o chefe entregou-me o contracto que lhe diz respeito.
- Ah, ah - disse Filipe, lendo o documento. - Dois mil dólares por uma reportagem especial... espero que o seu chefe não fique desiludido. Não posso, evidentemente,
revelar tudo quanto sei, pois a polícia tem o assunto entre mãos.
- Limitar-me-ei a preguntar-lhe o que nós desejamos saber - disse Sanders, com benevolência. Prátt vai
primeiro tirar-lhe algumas fotografias. Já fotografámos o depósito e a escada de socorro, onde o senhor matou esse indivíduo. Vejamos como conseguiu fazer tudo isso
.. sozinho ?
- O instinto.- declarou o velho Filipe-Está tudo no instinto. Um detective deve possuir a intuição necessária, de outra forma nunca lhe viria à idea que, justamente
no dia em que sai com uma mulher, um bando de gangsters projecta um roubo de peles.
Depois de ter disparado esta flechazinha subtil a Ricardo Cromwell, que considerava como despedido, Filipe abriu o seu armário e vazou um copo de whisky puro. "A
minha novocaína" - disse alegremente.
Entretanto, Pratt tinha feito a sua entrada com o aparelho, chapas e magnésio, e instalava tudo no pequeno escritório: "Nós queremos também possuir uma fotografia
sua de quando esperava os tipos, no depósito". disse ele dando ao detective a atitude desejada. "É a décima quarta vez que me fotografo hoje" - notou Filipe colocando
bem à vista o braço ferido. O relâmpago de magnésio brilhou.
- Reparou como lá em baixo faz frio ? - preguntou ele - Não há mais de 28? Fahrenheit. Fique lá apenas um quarto de hora à espera de gatunos, e posso garantir-lhe
que dois mil dólares não são muito por isso.
- Vai-te agora embora, - disse Sanders a Pratt, e previne na redação que estou lá daqui a uma hora com a minha reportagem.
Assim que o fotógrafo desapareceu, Filipe pôs um copo diante do jornalista.
- Agora,-disse este-procedamos por ordem. Ponhamos de parte tudo quanto já foi dito na edição da manhã. Como foi ferido no braço?
- O indivíduo visou-me o cotovelo direito. Não era muito burro... mas, por felicidade, sou canhoto.
- Já lhe foi entregue a quantia de mil dólares que ofereciam pela captura de Big Bill?
- O chefe da polícia já mos prometeu. É curioso... ontem, estava mais teso do que um cão atropelado, hoje, recebo dinheiro de todos os lados! O sr. Crosby apertou-me
a mão e chamou-me herói; aumentou-me o vencimento e conserva-me o lugar durante a minha vida e o comissário de polícia levanta-se para me falar.
-Que vai fazer de todo esse dinheiro, sr. Filipe? preguntou Sanders estenografando rapidamente.
- Eis o problema, sabe? Sou celibatário e não posso gastar tudo a beber, senão o sr. Crosby punha-me na rua...
Sanders riu reconhecidamente, ao pensar no êxito que este gracejo alcançaria no jornal.
- Quantos tipos do bando se puderam escapar ? Não faz uma idea?
- Krocinsky... a quem eles chamavam Big Paw está no hospital e Big Bill na morgue, deitado num belo caixão novinho em folha. Dois fugiram, mas estou convencido de
que não era este o bando completo.
- Não receia que se vinguem de si ? Não se acha em perigo?
- Olhe, isso dá-me uma idea sobre o emprego do meu dinheiro; vou contratar uma guarda especial, com Toughy à cabeça-disse Filipe, encantado. Também este dito de
espírito foi igualmente estenografado com alegria.
- Qual é a sua opinião sobre esse Erik Bengtson, que prenderam por ser conivente com os bandidos?
Filipe bebeu só uma vez e reflectiu.
- Quere arranjar-me uma armadilha? Isso é com a polícia. O meu papel é velar porque nada desapareça da Central, o resto é negócio do comissário.
- No entanto, deve ter uma opinião ?..-preguntou Sanders, bebendo também, para criar um ambiente de camaradagem. -Vejamos... que pensa do homem, como indivíduo?
- Bem... como indivíduo, tive-o sempre por um leviano, por um desses endemoninhados estrangeiros que
não inspiram a mínima confiança e, além disso, por um grande pateta. Oficialmente, só se pode dizer uma coisa: foi com o molho de chaves de Bengtson, que Bill entrou
na Central. Todos nós temos o número numa chapinha presa às chaves... e o bando não teve o tacto de a fazer desaparecer. Mas...
-Mas?-preguntou Sanders agarrando-se avidamente à palavrinha que ficou em suspenso.
- Mas... mais nada. -disse o velho Filipe, teimoso.
- Posso escrever que considera Erik Bengtson o principal culpado? -disse Sanders. Filipe enguliu precipitadamente a isca e o anzol:
- Não se trata disso, Deus me livre de afirmar semelhante coisa !
- Emfim, é verdade que esse Bengtson dormia na oficina quando as campainhas de alarme tocaram ?
- É essa justamente a questão, Se ele realmente não ouviu as campainhas de alarme, é preciso confessar que a consciência de nada o acusava. Mas se na realidade ele
só fingia dormir, é muito suspeito, muito.
Sanders esperava, de caneta no ar.
- Skimpy afirma que ele dormia, que foi ela que o acordou, aos murros, quando ouviu os tiros e as campainhas, que a assustaram.
- Na edição da noite deve aparecer uma fotografia da pequena heroína.
- Queria, no entanto, acrescentar uma coisa a respeito de Bengtson. - continuou êle - Fizeram-no sofrer esta noite um interrogatório de terceiro grau. Sabe o que
isto quere dizer?
Sanders aquiesceu, com respeito. As pessoas que tinham sofrido esta prova, falavam dela mais tarde como os gazeados falavam da guerra.
- Pois bem, o rapaz não disse nada. Nem sequer abriu a boca. Isto dá-me que pensar. Tive-o sempre por um rapazola mal habituado e duvidoso. Mas... para ter aguentado
um interrogatório de terceiro grau
sem se mexer, caramba, é preciso ter sangue nas veias! Vi-o esta manhã às nove horas. Eles não o deixaram dormir, como sabe, e a luz aguda, que lhe projectaram nos
olhos, ia-o quási cegando. O comissário pensou que eu talvez pudesse tirar qualquer coisa dele, mas não disse nada, não tentou sequer afirmar que estava inocente.
Sabe o que ele repete?:- "Fui um idiota e o que me acontece é bem merecido". Tinha esperado outra coisa desse pateta.
Sanders levantou-se, pegou no frasco de whisky e encheu dois copos. Filipe bebeu: -"De resto, se ele se chama idiota, é a respeito da sua vida privada" - disse.
O braço começava a doer-lhe muito. Filipe desde a uma da madrugada que estava numa espécie de transe. Ergueu o copo e esvaziou-o.
Sanders deitou novamente mais.
- Posso então escrever que considera Bengtson inocente ? - preguntou de pena em riste.
- Também não disse isso. - murmurou Filipe que começava a sentir se ligeiramente ennevoado - Mas ouça bem ... promete-me segredo se eu lhe confiar uma coisa? Compreende,
isto não é destinado ao seu Jornal. É apenas ... um dado ... um palpite, como nas corridas .. mas queria provar-lhe que o velho Filipe sabe mais do que toda a polícia
... o comissário e todos esses interrogatórios de terceiro grau. Não sei ainda se Bengtson está inocente: mas sei que não está culpado.
- Quê ? - exclamou o jornalista.
- Chut! Chut!- disse Filipe.-Eu não disse nada. Só quero mostrar o que é um trabalho de detective, bem feito. Ligado a cada molho de chaves, está uma placazita,
não é verdade? Pois bem... siga-me com atenção... a placa do molho encontrado em poder de Big Bill cheirava ... a um certo perfume ... Que diz você a isto ?
Sanders não disse nada. O bloco de papel tremia-lhe nas mãos, pois estava possuído da verdadeira febre do caçador.
- As chaves estiveram numa certa malinha de senhora. Foi aí que a placa se impregnou de perfume. Quero dizer-lhe ainda mais uma coisa: eu conheço a mulher que usa
esse perfume. É uma das nossas caixeiras ... e se não atormentarem Big Paw ao ponto de o fazerem confessar todo o imbróglio... eu vejo-me obrigado a dizer o que
sei.
E Filipe, depois destas declarações, instalou-se na sua poltrona e pôs os pés em cima da mesa. As dores no braço tornavam-se horríveis, mas sentia-se feliz como
não era havia muitos anos. A pena de Sanders corria no papel.
- Prenderam a mulher ? - preguntou ele, sem levantar os olhos.
- Você, meu amigo, nunca daria um detective. Emquanto a pequena vier ao armazém e eu a puder vigiar, tudo irá bem. Mas assim que ela estiver na prisão, contará uma
data de mentiras e nós nada avançaremos. Deixemo-la livre e bastará segui-la para se encontrar o ninho onde se esconde o resto do bando. Não é simples?
Sanders escrevia ainda, murmurando que era realmente muito simples. Bruscamente, Filipe retirou os pés da mesa e endireitou-se na cadeira. Depois, esboçou um sorriso
para se desculpar. "Tenho ainda os tiros nos ouvidos, disse ele. Assim que se fecha uma porta julgo ouvir uma detonação."
- Talvez tenha um pouco de febre... por causa do seu braço... - replicou Sanders.
- Não tenho febre! - declarou o velho, com energia.
- Hoje, sr. Filipe limito-me a entrevistá-lo sobre coisas de actualidade, mas temos ainda sete continuações a fornecer, como deve ter compreendido, Amanhã terá de
me falar de si, da sua infância, dos seus estudos, etc. Uma verdadeira biografia. "O homem que abateu Big Bill." Dizia então que essa mulher... e como é ela?
Filipe não respondeu e riu cordealmente a este súbito ataque.
- Olhe que não me apanha com tanta facilidade. Não ouço nada, não vejo nada, não digo nada. E fez o gesto dos três macacos do templo de Nikko.
-É pena.-disse Sanders-Por uma informação semelhante o chefe daria ainda quinhentos dólares... eu conheço-o.
Filipe tinha caído numa profunda meditação. Não podia afastar Erik Bengtson do seu espírito. Erik com os olhos vermelhos, meio cego, meio louco por dores horríveis
na cabeça, o acabrunhamento do seu corpo, a tristeza da sua voz. O rapaz não era mau. E tinha coragem. Sabia calar-se e estava só, para se defender. E esse quadro,
na oficina, com as suas ondas verdes, a vela cor de laranja e Liliana Smith no primeiro plano. Era um idiota, com certeza, mas havia arrojo na sua falta, forçoso
era reconhecê-lo. "Como? Que dizia?" - preguntou, saindo da sua distracção - "Preguntava se posso servir me do seu telefone. Queria saber se o patrão daria mil dólares
caso o senhor consentisse em dar parte ao Evening Star das suas suspeitas."
- Pregunto a mim mesmo que hei-de fazer a tanto dinheiro. - disse Filipe - Vejamos... espere dois dias e... veremos. vou fazer uma outra proposta: suponha que nós
visitamos toda a Central - você fotografará doze caixeiras e depois escolherá. E eu digo depois se a mulher em questão faz parte delas. Que acha?
Sanders reflectiu, perplexo. Isto abria-lhe horizontes novos. Sob o ponto de vista jornalístico, a proposta não era má. Podiam fotografar doze bonitas mulheres e
abrir um concurso entre os leitores. "Qual das doze mulheres era a amante de Big Bill?" Antes que ele pudesse sair das suas reflexões, o telefone tocou. Maquinalmente,
pegou no auscultador e estendeu-o a Filipe. "É para si -disse.
- Como? O quê? Morta? Não, eu vou, - gritou
o detective ao aparelho e, precipitadamente saiu do aposento - Sanders, com a rápida compreensão do repórter experimentado correu atrás dele, através do corredor,
por diante da boca de incêndio até ao elevador.
- Que aconteceu? - gritou, já sem fôlego.
- O bando de Big Bill. Acabam de matar a rapariga. - respondeu o velho detective - E precipitaram-se os dois para o 3.? andar.
LADEADO por dois inspectores de polícia, o velho Filipe
estava no corredor branco da casa de saúde. Sanders, o repórter, estava sentado no banco vizinho. Cheirava a oleado recentemente encerado; o braço de Filipe doía-lhe.
Esperavam todos que a doente, Liliana Smith, estivesse preparada para o interrogatório.
- Que fazem aqui? - preguntou a enfermeira-chefe passando diante dos quatro homens.
- Esperam pelo N.? 14 - respondeu a enfermeira do andar, pois aqui cada doente tinha um número.
Liliana não era mais do que um fardo inconsciente, no momento em que madame Chalon a tinha encontrado no tapete do gabinete de provas, até a terem deitado na mesa
das operações. Pelo espaço de um segundo, tinha experimentado a sensação de uma luz aguda e dolorosa, depois, sob a influência do narcótico, ouvia a campainha da
loja de penhores, dling dling dling... Tiraram-lhe a bala do pulmão, coseram-na e transportaram-na para o quarto n.? 14.
Só à noite voltou a si; deram-lhe uma injecção, ergueram na um pouco e submeteram-na a um curto interrogatório, A enfermeira tomou lhe o pulso e os homens encostaram-se
à cama, pois Liliana só podia falar em voz quási imperceptível.
-- Conhecia a pessoa que fez fogo sobre si?
Liliana reflectiu:
- Não - respondeu. - Não.
- com certeza? - preguntou um dos comissários. -Não.
- Era um homem?
Liliana acenou negativamente com a cabeça na almofada.
- Uma mulher, então ?
- Sim.
- Como era ela ?
- Como uma cliente. - murmurou, a custo, Liliana.
- Isso não é uma descrição; que aparência tinha ? Liliana, cujo pulso na mão da enfermeira se tornava
lento e fraco, fez, em voz baixa, o retrato de uma mulher: alta, morena, enérgica, com uma voz forte e uma grande verruga na face, uma mulher, emfim, que não tinha
a mínima semelhança com Nina. A enfermeira fez um sinal ao comissário: basta.
Fora, no corredor branco da casa de saúde, Filipe dizia: "É claro. Ela não dirá nada. Foi qualquer do seu bando que lhe atirou." Têm medo que fale demais.
- Sim, é claro, - disse o comissário - Sanders, tomou notas apressadas no seu bloco; depois, todos juntos foram tomar cerveja.
Filipe tinha a impressão de que não poderia mais dormir na sua vida. Já fazia vinte e quatro horas que estava em pé e, no cotovelo, uma palpitação fazia-se sentir,
o que significava talvez um envenenamento do sangue.
No quarto N.? 14, Liliana estava deitada sem movimento. Sentia-se contente. Deram-lhe mais uma injecção e ela adormeceu: depois, voltou a si, tornando ainda a amodorrar.
Assim que abriu os olhos, era dia. Não tinha o cérebro ainda claro, mas a consciência de ter feito qualquer coisa certa. O que era forte em si, era sempre forte:
o bem no mal, a força no querer.
Nina quis matá-la. Liliana sorria quando pensava
nessa "maluquinha". Quem podia imaginar uma coisa dessas, da Nina! Havia também neste pensamento um pouco de respeito, um estranho elo, uma leve e curiosa simpatia.
- Então, como vai hoje ? - preguntou a enfermeira endireitando-a na cama. Liliana tinha uma estranha tendência a descair constantemente, o que era mau sinal.
- Obrigada, muito bem - respondeu, num sopro. Sim, ela sentia-se bem nesse leito. Não sofria.
Aqui, nada podia acontecer-lhe. Ninguém a podia vir prender. O ventilador sussurrava; havia um ventilador ao pé da janela. Lá fora oscilava um ramo de hera. De longe,
chegava o som amortecido de um rádio.
Depois ouviu o sino que, na Central, tocava para se fechar o armazém.
No corredor, um homem esperava.
- Chamo-me Sanders do Evening Star e queria tirar um retrato à menina Smith, para o meu jornal. Trago o fotógrafo, Pratt. Vamos, Pratt, venha cá.
- Ninguém pode ver a menina Smith. - disse a enfermeira.-Ela não está bem.
- Estado grave ?-preguntou Sanders, aflito com o pensamento de ver uma boa reportagem escapar-lhe. A enfermeira encolheu os ombros e foi-se sem ruído, nas suas solas
de borracha.
- Voltarei. - disse Sanders.
Mas só pôde ver Liliana ao fim de três semanas, dois dias depois do enterro do velho Filipe. "Cá está, outra vez, esse demónio do Evening Star-" - disse a enfermeira.
- Deixe-o entrar... espere... passe-me um espelho... e a minha malinha... diga-lhe que tenha paciência por cinco minutos ... - respondeu vivamente Liliana. Aborrecida,
a enfermeira saiu. Assim que Sanders entrou, Liliana estava espectaculosamente deitada: com as faces pálidas e os lábios vermelhos. Vestia uma camisa de noite cor
de rosa-chá.
Ah! emfim!- exclamou Sanders. New-York inteira espera ver o seu retrato. Tem um grande futuro diante de si e um passado cheio de experiência, Baby; acredite em Sanders
que tem visto subir muitas estrelas.
- Estou absolutamente num feixe - disse Liliana, sorrindo. Sanders arranjou-a um pouco e Pratt barulhava com o seu aparelho através da porta.
- Aqui está Pratt. - disse Sanders. - Desta vez, Pratt, nada de retoques. Deixe-nos andar, Baby, vamos valorizar a sua história como merece. O patrão oferece lhe
trezentos dólares pelas suas memórias a respeito de Big Bill e isto para começar. Que vai fazer quando sair deste galinheiro?
- A minha ambição tem sido sempre o teatro. disse prontamente Liliana. -Mesmo sob o cobertor de lã, marcado com as iniciais do hospital, podia ver-se quanto as suas
ancas eram belas. - Gostaria de ser rica e célebre, meus pais não são ricos e tenho duas irmãzinhas.
Encantado, Sanders estenografava. Tudo isso seria impresso no Evening Star.
- Minha filha - disse ele. em tom solene, - a tua carreira começa hoje. Dentro de três anos darão o teu nome a uma marca de cigarros!
O magnésio brilhou com um estalido surdo e uma nuvem de fumo pálido diluiu-se no ar, até ao teto, pintado de branco, do quarto da doente.
- DE quem é a vez agora ?-preguntou o Sr. Crosby
ao seu secretário. O secretário consultou a lista e disse:
- Da sr.a Bengtson, sr. Crosby.
O sr. Crosby levantou-se e passou por cada uma das quatro janelas colossais do seu escritório. Diante de todas via-se a mesma coisa : neve suja, bicos de torres,
de tal forma que New-York parecia uma péssima gravura de Jornal, impressa em rede grossa. Os dois rios e as colinas estavam invisíveis e a região do centro-oeste
pedia socorro, pois encontrava-se inundada, como todos os anos, em Março. No entanto, Crosby estava de bom humor. As acções da Central tinham subido meio ponto e
o seu açúcar tinha descido três décimas.
- Mande entrar a sr.a Bengtson. - ordenou. O secretário particular disse ao ditofone:
- A sr.a Bengtson pode entrar.
No vestíbulo de recepção estavam três secretárias prontas a executarem as ordens do todo-poderoso. Uma delas levantou se e foi chamar à sala de espera:
- A sr. Bengtson.
Ela tinha uma voz de mayonnaise rançosa. Nina levantou-se e entrou.
Os seus joelhos estavam ainda um pouco trémulos, pois o jovem Erik pesava mais de quatro quilos à nascença
e levou vinte e quatro horas a chegar. Mas, mesmo sem isso, ela teria os joelhos vacilantes no momento de comparecer diante do grande patrão. Vestia o seu casaco
azul-marinho e a condessa tinha-lhe emprestado luvas brancas, que eram muito grandes para ela. -Aqui está a sr.a Bengtson, sr. Crosby-disse o secretário, empurrando
uma cadeira incómoda para a frente do director da Central.
- Bons-dias, sr.a Bengtson - disse Crosby, sem olhar para Nina. Lia numa resma de papéis que o seu secretário colocara diante dele; quando acabou, suspirou alto
e passou outra vez diante de cada uma das quatro janelas de vidros cobertos de neve e voltou a sentar-se atrás da sua secretária gigante.
- Fez um pedido para voltar para cá, sr.a Bengtson ?
- preguntou, e o seu olhar ergueu-se bruscamente para Nina, de modo que ela ficou tão surpreendida que sentiu Cada uma das doze sardas do seu rosto.
É verdade, sr. Crosby. - respondeu prontamente, avançando para a borda da cadeira - A sr.a Bradley informou-me que iam contratar sessenta caixeiras novas para a
Central.
- A sr.a Bradley? A sr.a Bradley?-disse o sr. Crosby franzindo as sobrancelhas e procurando nos seus papéis.
- Ela já não trabalha na Central desde que Skimpy herdou do velho Filipe, mas aluga quartos aos empregados do armazém e sabe assim todas as novidades.
O sr. Crosby afastou, com um gesto de mão, essas explicações ociosas.
- Mandei-a chamar porque o meu amigo Thorpe escreveu-me de Paris por sua causa. -disse. Nina corou. Êle parece que se interessa muito por si, - acrescentou Crosby.
Pelo rizinho lisongeiro do secretário, Nina percebeu que o todo-poderoso acabava de ter espírito. Sorriu fracamente. Tinha muito medo. Querido e bom Steve, que mesmo
durante a sua segunda viagem de núpcias...
que com certeza não era um prazer para ele... não a esquecia..
- com certeza, sr. Crosby - disse ela.
- Thorpe disse-me que devia também receber seu marido, mas compreende que isso é completamente impossível. - disse o sr. Crosby.
- com certeza, sr. Crosby. - murmurou Nina com a garganta seca.
- Se o nosso bom Filipe não estivesse cá, a Central teria perdido centenas de milhares de dólares por causa de uma leviandade de seu marido. Eu digo leviandade...
porque não se pôde provar qualquer coisa pior.
Nina olhou para as luvas.
- Meu marido pagou duramente as suas faltas. disse ela-Transformou-se muito, também, desde que lhe foi levantada a prisão preventiva.
O sr. Crosby impacientou-se. Não queria meter-se em assuntos de psicologia privada.
- Bem - disse, atirando ao secretário o maço de papéis... - Por causa do meu amigo Thorpe... e por a senhora ser considerada como uma caixeira conscienciosa, vai
ser-lhe restituído o seu antigo lugar. Pode ir apresentar-se imediatamente na secção de louças e vidros... lá lhe darão as necessárias instruções. O seu marido deve
ver o que faz...
- Pinta. Será um dia um artista célebre! - não pôde deixar de dizer Nina.
Teria abafado, se tivesse que engulir isto. O sr. Crosby tomou um ar impacientado, mas franziu as sobrancelhas, o que era nele uma forma de sorrir.
- De quem é a vez agora ? - preguntou ao secretário.
- De madame Chalon: aumento de ordenado respondeu o rapaz.
Nina compreendeu que a despediam. Tinha o coração cheio de reconhecimento e não sabia como exprimi-lo.
- Obrigada, sr. Crosby - disse ela. Sinto-me feliz... emfim... quem já trabalhou na Central... embora esteja sempre a resmungar, troca tudo pela velha loja.
Assustada, ouviu como o sr. Crosby desatou a rir sonoramente, o que em breve se transformou numa tosse de bronquite crónica.
Nina desfilou diante das três secretárias do hall de recepção, diante das pessoas que estavam no salão de espera, diante dos avisos: "Pede-se o favor de guardar
silêncio" e dirigiu-se para o elevador.
Na secção de louças e vidros estavam já informados do seu regresso, pois na Central as notícias têm uma forma extraordinária de se propagar sem fios, por telepatia.
O sr. Berg estava sinceramente contente e miss Drivot fez como se estivesse.
- Sabe que nos tiram agora mais cinquenta cêntimos sobre 60 dólares ? Não faltava mais nada! Chamam a esta retirada: reforma para a velhice. Batatas, digo-lhe eu.
- anunciou ela a Nina.
Às escondidas, Nina acariciou a superfície lisa e fria de um vaso de cristal azul.
- Já lanchou? - preguntou o sr. Berg. Não? Então vá de pressa, porque pode começar a seguir. Como? Se precisamos de si? Creio bem. Temos uma venda antes do inventário:
vamos liquidar todos os objectos de importação inglesa. O serviço de 62 dólares está por 12 dólares, sem falar no resto.
- Os vidros, as porcelanas tomaram um grande desenvolvimento desde a sua saída - disse miss Drivot como um triunfo pessoal. Ao fundo, ouviu-se um ruído de vidro
partido; uma das novas caixeiras tinha quebrado uma fruteira. "Meu Deus!"-exclamou o sr. Berg, correndo para o local do sinistro.
A condessa esperava, com o seu inverosímil Ford diante da fachada oeste, justamente debaixo do aviso: "É proibido estacionar." Tinha metido conversa com o polícia
e este fazia, com sorridente complacência, uma
descrição da constituição de seu jovem irmão. Nina subiu para o carro.
- Pronto, Mutz - disse ela. A condessa falou amavelmente ao seu motor e, ao fim de um certo tempo, o carro consentiu em pôr-se em marcha. "Onde está Erik ? - preguntou
Nina. - "Espera-nos no "Rivoldi"... Ofereço-lhes uma garrafa de chianti.
- Eu não devo beber, pois começo a trabalhar logo a seguir ao almoço.
- Estás contente? - preguntou a condessa, olhando Nina emquanto ia aos ziguezagues perigosos.
- Sim ... se não fosse por causa do pequeno... -A sr.a Bradley e Skimpy tratarão dele. E tu ainda lhe podes dar de mamar duas vezes ao dia, de manhã e à noite.
- Sim, é verdade.
- E depois, Erik é mestre na arte de mudar os cueiros e de preparar biberons, deves reconhecê-lo...
- Querido Erik! - murmurou Nina, sorrindo sonhadoramente.
- Erik gosta muito de ti, Nina.- disse a condessa. Elas avançavam lentamente sobre a neve, por entre
a circulação do meio-dia. Nina não respondeu. A condessa afirmou:
- Nunca pensei que ele chegasse a amar tão profundamente.
- Não ? - preguntou Nina.
- Escuta, Nina. Eu aprendi qualquer coisa lá em baixo, em Lansdale. - disse a condessa fazendo habilmente uma volta para se colocar no lugar dos carros do "Rivoldi"
- O homem é uma máquina subtil e imperfeita. É muito bonito e muito bom sonhar com a perfeição : o ente perfeito, o casamento perfeito... o carácter perfeito...
mas isso não existe na realidade. Os defeitos são válvulas de segurança. Aprendi isto com os meus desgraçados de lá, da caixa dos malucos.
Nina reflectiu um instante. Desceram, e a condessa
teve um diálogo em voz muito alta com um italiano do parque dos carros; por fim, com um grande sorriso e um cumprimento, este deu-lhe a sua senha de estacionamento.
- Sim, creio que, quando se gosta de alguém, gosta-se tanto dos seus defeitos como do resto... - disse Nina quando elas empurravam já a porta e entravam na sala
do "Rivoldi , obscurecida pelo fumo.
Erik estava sentado a um canto, debruçado sobre o mármore da mesa : desenhava encarniçadamente. Quando viu as duas mulheres, apagou vivamente tudo com a palma da
mão. Nina instalou-se e, como havia muito que tinha aprendido a decifrar as garatujas de seu marido, reparou que se tratava de uma familia de pardalitos, de grandes
bicos abertos. A condessa esfregou as mãos e encomendou a comida.
- Nina resolveu trabalhar, emquanto tu não vendes o teu primeiro quadro. - disse ela a Erik.
- Não tardará muito tempo-respondeu, procurando debaixo da mesa, a mão de Nina. A jovem tinha ainda as grandes luvas e, surpreendido, ele tateou o final dos dedos
vazios. Durante esse tempo, a condessa lançou a Nina um olhar de muda compreensão. "Os homens são uma raça bem fraca... nós temos de os ajudar como pudermos..."
Era isto mais ou menos o que o seu olhar significava. Em Lansdale tinha ela tido muitas conversas sobre esse tema.
O chianti apareceu ao mesmo tempo que a sopa. O criado parecia estar apaixonado- pela condessa; uma nódoa de tomate manchava o seu avental branco.
- vou tentar pintar o que pensei durante o meu interrogatório de terceiro grau. - disse Erik subitamente. Era a primeira vez que falava disso.
- E que era, meu filho? - preguntou a condessa.
- Nina ... eis o que pensava. Dizia constantemente para mim: Nina ... Nina ... Nina..
Calaram-se um instante.
- Agora trata de não recomeçar, porque eu só posso pedir uma licença por ano. - disse a condessa, alegremente, vazando o vinho nos copos.
Às seis horas menos cinco, exactamente, a tal senhora
- a cliente para quem tudo era caro - fez a sua entrada na secção de vidros e louças. Passou pelos doze balcões, que tinham instalado para a liquidação geral e chegou
diante do serviço de rosas.
Nina apressou-se a servi-la.
-A senhora ainda se interessa pelo serviço? - preguntou ela - Baixou. Só custa nove dólares e setenta e cinco...
A mulher calculou, movendo os lábios.
Eram seis horas, a sineta tocou; por fim, a cliente tomou um ar encantado:
- Eu levo-o! -disse.
- Devo avisá-la, minha senhora, de que duas chávenas já estão rachadas -disse Nina dando um piparote nas duas peças de que saía um som velado.
- Não faz mal - afirmou a senhora - as coisas rachadas são as que duram mais.

 

                                                                  Vicki Baum

 

 

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