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Preguiçosamente Glória levantou-se um pouco na cama para ficar reclinada sobre os travesseiros encostados na cabeceira, e depois puxou o cobertor para encobrir os seios nus. Não era uma tentativa de falso pudor por causa do homem que se ocupava em puxar para cima dos ombros seus suspensórios bordados, porém mais uma tentativa de proteger-se do frio que reinava no cómodo devido ao ar encanado. Seus longos cabelos estavam espalhados e soltos sobre seu pescoço e seus ombros. Distraída, ela enrolava um de seus cachos dourados em volta do dedo indicador enquanto observava o homem enfiar seu casaco e depois pegar seu chapéu tipo "diplomata" pérola-acinzentado.
- Vou aceitar agora aquela moeda de cinco dólares. - Ela estendeu a mão para a moeda de ouro que ele lhe mostrara antes e que prometera pagar-lhe depois que ela tivesse ido para a cama com ele. Suas roupas, suas jóias, suas maneiras, tudo nele cheirava a dinheiro. Só por isso não ? insultara, insistindo em que ele pagasse adiantado.
- Gostei muito da trepada, Glória. Realmente gostei. - Ele tirou a moeda do bolso do colete e mostrou-a a ela. - Este é todo o dinheiro que tenho. Não me é possível dá-lo a você.
- Mas você combinou!
- De fato combinei. Infelizmente terei de voltar atrás em minha palavra. Nessa apertada bocetinha que você tem, está sua própria mina de ouro, srta. St.Clair. Não é provável que morra de fome como eu certamente morrerei. - Ele enfiou a moeda no bolso, tirou o chapéu para ela e disse: - Boa noite!
Enquanto ele caminhava para a porta, o choque inicial pela sua audácia transformou-se em indignação. Ela pulou fora da cama, gritando:
- Volte aqui! - Nos dois meses em que ela tinha deixado o serviço no restaurante e se dedicara em tempo integral a vender seus favores, este não fora o primeiro homem que se recusara a pagar.
Quando chegou na porta, ele já ia pelo meio do corredor. Dificilmente poderia persegui-lo na rua, quando tudo que lhe restava em cima do corpo eram suas meias de seda azuis e as ligas de estilo parisiense, artigos que o freguês que agora fugia pedira para não tirar. Apressadamente, ela enfiou suas calças bordadas de renda e seu corpete, depois calçou os sapatos bicudos e pegou o velho casacão forrado de pele que estava pendurado no cabide da parede. com o casacão encobrindo seu estado de seminudez, Glória correu pelo corredor e para fora da pensão.
Uma camada de neve recém-caída cobria a rua e mais flocos flutuavam e caíam, enfeitando o ar noturno. Não podia enxergar em lugar algum seu freguês, mas viu as pegadas que ele deixara na neve fresca e seguiu-as como um cão de caça, até que se misturavam a outras diante do bar de Jeff Smith. Ela hesitou apenas um momento, e depois entrou na casa de jogo.
Normalmente não frequentava bares e casas de jogo. As moças que trabalhavam nesses lugares consideravam-na uma intrusa, tentando roubar seus clientes. Glória em geral procurava fregueses nos vários hotéis e restaurantes de Skaguay - ou como, depois do estabelecimento recente dos correios passou a soletrar-se "Skagway".
A falsa fachada da casa de jogo escondia ardilosamente a grosseria do edifício que ficava por trás dele. A comprida e estreita sala era encardida e sem vida, suas paredes nuas e seu chão construídos com tábuas. A fumaça de charutos obscurecia sua visão quando Glória inspecionou a sala apinhada. Por entre o sussurro de vozes em tom baixo ouvia-se o rumor característico de fichas de pôquer, de dados, de bolinhas de roleta girando.
Sua atenção foi despertada pelo ativo apelo de um homem: "Façam seu jogo, senhores. Escolham seu número de sorte e ponham seu dinheiro nele."
A voz provinha de um homem de cabelos vermelhos postado diante de uma roda da fortuna. Quase no mesmo momento em que Glória localizou a origem da voz, ela descobriu o homem com o chapéu "diplomata" cinza sentado à mesa. Embora estivesse de costas para ela, reconheceu o chapéu e duvidava que houvesse dois assim em Skagway. Abriu caminho por entre as pessoas e agarrou-lhe o braço, dizendo:
- Quero meu dinheiro.
Após o susto inicial, ele recuperou sua pose e olhou-a com ar de desprezo.
- Que bobagem é essa? - Nunca vi você antes. Queira tirar sua? mãos de cima de mim!
- Isto não era o que você dizia há vinte minutos em meu quarto. De fato, havia muitos lugares em que você queria que eu pusesse as mãos lembrou-o ela, para divertimento dos circunstantes.
- Não sei do que está falando. - Mas"uma vermelhidão traiçoeira apareceu em seu pescoço.
O operador da roleta deu o impulso inicial para fazê-la girar; ela começou a rodar, enquanto ele entoava seu desgastado refrão: - "Lá vai ela rodando, rodando... onde ela vai parar ninguém sabe!"
- Você me deve cinco dólares e os quero agora - exigiu Glória.
- Nenhum homem vai roubar meu dinheiro e pensar que escapa.
- Deixe de bobagem! - Ele tentou rir-se da reclamação e procurou apoio entre os circunstantes: - Eu pareço o tipo de homem que roubaria dinheiro de alguém?
De repente, o Diácono Cole apareceu ao lado dela.
- Não sei não, cavalheiro. Não parece mesmo.
- É claro que não!
- A senhora aqui diz que você roubou seu dinheiro.
- Não ligo para o que ela diz.
Pela segunda vez, a pequena pistola materializou-se na mão do Diácono Cole. Ele enfiou o cano sob a ponta do queixo do homem e o manteve ali.
- Está chamando a senhora de mentirosa? - A voz dele continuava tão calma e inalterada como sua expressão.
A sala de jogo silenciou de uma forma que não era natural. Pararam as conversas, o barulho dos dados, o movimento de cartas e o tilintar de fichas. O único barulho era o da roleta girando.
- Não... - O pânico estampava-se nos olhos do homem. - Eu... eu não tenho nenhum dinheiro para pagar a ela. Juro!
- Ele tinha uma moeda de ouro de cinco dólares no bolso do colete, - disse Glória. - Ele mostrou-a para mim.
Quando o Diácono Cole começou a revistar os bolsos do colete o homem rapidamente confessou:
- Eu não a tenho. Está na mesa. Joguei na roleta.
A moeda de ouro estava colocada num dos quadrados numerados da mesa. Glória com facilidade localizou-a entre as outras fichas espalhadas pela mesa.
- Pinky! - chamou Diácono Cole, dirigindo-se ao operador da roleta. - Este cavalheiro colocou aquela meia-águia na mesa?
- Sim, foi ele. - O espaço entre as batidas da roleta no ponteiro diminuía à medida que ela desacelerava. Glória estendeu a mão para alcançar o dinheiro que por direito lhe pertencia.
- Desculpe - disse o homem de cabelo vermelho. - A aposta está feita e a roleta ainda está girando.
- Essa aposta agora pertence a essa senhora, Pinky. Qualquer ganho vai para ela. Não é isto, cavalheiro? - Ele empurrou o queixo do homem com o cano da pistola, levantando-o mais um pouco.
- Sim, sim. É dela. - Gotas de suor escorriam-lhe da testa enquanto tentava concordar vigorosamente com a cabeça.
- Tome nota disso, Pinky.
- Pode deixar!
Por um momento, Glória pensou que a roleta ia parar, mas ela continuou a girar vagarosamente os números passando pela seta, um a um. Então ela parou.
- A sorte sorriu para a senhora. Cinco por um para o vencedor! Os espectadores, que tinham permanecido tão silenciosos, gritaram
sua aprovação. Glória não podia acreditar: em vez de cinco dólares tinha ganho 25. O que ela ganhara foi empurrado na sua direção; reuniu as fichas com a mão, segurando-as contra seu velho casacão. Era quase mais do que ela podia pegar.
- Estou quebrado! - queixava-se o homem agora que a pequena pistola já estava escondida em seu lugar habitual.
- Talvez isso lhe sirva de lição. Não gostamos de intrujões nesta cidade - disse-lhe o Diácono, e depois pegou Glória pelo braço e afastou-a da mesa. - Vamos trocar suas fichas.
- Mas... eu pensei que podia jogar de novo - disse ela, voltando a cabeça para olhar de novo a roleta.
- Não faça isso, a não ser que queira perder o dinheiro que tanto lhe custou a ganhar.
- Por quê?
Quando ele respondeu à pergunta não se percebia quase qualquer movimento em seus lábios ao dizer-lhe em voz baixa:
- Porque aquela é a roleta mais viciada da cidade.
- Mas acabei de ganhar!
- Exatamente. Pinky devia-me um favor...
Glória não sabia como o amigo dele, Pinky, o havia feito, mas acreditava no Diácono Cole; não mais opôs resistência, mesmo ligeiramente, à pressão da mão dele.
- Onde está seu tio? - perguntou Cole.
- Meu tio?
- Sim, seu namorado, seu sócio, ou como quer que queira chamar o homem que cuida de você, assegura-se de que não seja maltratada ou que não a enganem. O homem com quem você divide seu dinheiro.
- O dinheiro é meu, todo meu. Ninguém cuida de mim; eu tomo conta de mim mesma. - Ela agarrou o que ganhara um pouco mais perto de seu colo. Quando ele fez uma parada, ela parou também, sentindo-se na defensiva embora sem saber o motivo.
- Você não está há muito tempo neste negócio, está?
- Não - disse ela, empinando o queixo.
- Tenho o pressentimento de que há muita coisa que você não sabe acerca dessa profissão.
- Talvez, mas aprendo rápido.
- Há sempre algumas coisas que a pessoa tem de aprender a duras penas, mas isto não significa que não se possa pegar alguns truques de alguém que seja... digamos... mais experimentado.
- Assim como... ?
Ele sorriu e aquela foi a primeira interrupção em sua impassível expressão.
- Venha até o hotel Golden North amanhã, por volta do meio-dia, e eu apresento você a tal pessoa. Ela poderá até dar-lhe um emprego.
- Não preciso de emprego.
- Se você está nisso por causa do dinheiro, pode-se fazer mais nos bares do que pegando fregueses na rua. Estarei lá ao meio-dia. Encontre-me lá, se quiser.
- Pensarei nisso. - Ela olhou para a pilha de fichas em sua mão e acrescentou: - Acho que lhe devo qualquer coisa por haver me ajudado a conseguir este dinheiro. Não sei como posso pagar-lhe.
- Isto é fácil. - O sorriso dele alargou-se, estendendo-se até os olhos. - Meus bolsos estão vazios. Eu preciso de um cacife de dez dólares para voltar àquele jogo de pôquer ali. - E ele indicou uma mesa ao lado da parede onde estavam sendo dadas cartas aos quatro homens sentados em volta dela.
- Está certo de que se trata de um jogo honesto?
- Minha cara srta. St.Clair, um jogo de pôquer honesto nesta cidade é tão raro quanto uma virgem.
Ela riu. Não podia deixar de rir. Se não fosse o Diácono Cole e o favor que lhe devia seu amigo Pinky, ela não teria todo aquele dinheiro. Ela deu-lhe um punhado de fichas e juntou mais uma para completar dez.
- Boa sorte!
- Por certo! - Tão logo pegou as fichas, ele pareceu esquecer-se dela. Antes que tivesse dado o primeiro passo para afastar-se dela, sua atenção já estava concentrada na mesa de pôquer.
O tráfego de cavalos e carretas tinha transformado a rua coberta de neve num atoleiro de poças d'água e lama. Glória levantou sua saia de cor vermelho-granada até que a barra ficou acima do cano de suas bolinhas abotoadas, e depois escolheu cuidadosamente seu caminho para atravessar a rua.
Do outro lado, a calçada de tábuas em frente ao Hotel Golden North fora varrida e estava limpa de neve. Glória subiu para a calçada, úmida com as pegadas enlameadas de muitos pés, e deixou a saia cair naturalmente até cobrir suas botas de pelica. Ela parou um instante antes da entrada do hotel e alisou com a mão a cintura de sua jaqueta, caprichosamente enfeitada com galões dourados na cintura, na pala e no antebraço de suas mangas bufantes e com macia pele de foca. Um pássaro de longas penas adornava o chapéu sem abas de pele de foca que usava. Enfiou as mãos no regalo de foca que estava preso em volta de sua cintura e entrou no hotel para seu encontro marcado para o meio-dia com o Diácono Cole.
Ao entrar, localizou o alto jogador, com seu casaco preto, examinando alguns avisos pregados numa parede do saguão quase deserto do hotel. Ao encaminhar-se para ele o roçagar de suas saias de tafetá chamaram-lhe a atenção e ele voltou-se.
- Estava pensando se você viria - disse ele, lançando um olhar avaliador para ela, mas sua expressão não registrou nem aprovação nem desaprovação.
- Decidi que não haveria prejuízo em escutá-lo. Além disso, não tinha nada melhor para fazer - replicou ela, fingindo indiferença. Como foi seu jogo de pôquer ontem à noite?.
- Saí-me bem.
- O que significa isso?
- Um jogador esperto nunca se proseia acerca de seus ganhos. Ele meteu a mão no bolso e tirou uma águia de ouro. - Mas saí-me suficientemente bem para poder devolver o dinheiro com que você me financiou.
- Eu devia isso a você - replicou Glória, sacudindo negativamente a cabeça.
- Fique com ela de qualquer forma. - E ele puxou-lhe a mão de dentro do regalo e pôs a moeda de ouro de dez dólares em sua palma. Eu posso encontrar-me em circunstâncias apertadas de novo algum dia no futuro, e saberei a quem apelar.
- Nesse caso, eu a guardarei para você. - Ela sorriu e ele correspondeu com uma ligeira curvatura de seus lábios finos.
O alto relógio na parede do saguão soou o quarto de hora.
- Estou certo que a srta. Rosie está ficando impaciente; vou levá-la para encontrar-se com ela.
- Onde está ela?
- No momento está esperando em meu quarto.
A srta. Rosie, como o Diácono a havia chamado, era uma mulher de aparência formidável, alta e com um farto busto, com um vestido branco engomado, apertado na cintura, enfeitado com um laçarote azulmarinho amarrado em volta do pescoço, e punhos apertados que completavam as amplas mangas. Seu cabelo era de um amarelo bronzeado, amontoado em cima da cabeça numa pequena coroa de cachos e preso nos lados com pequenos anéis formando cachos. Seu rosto empoado parecia sério e seus olhos azuis eram frios e implacáveis. De uma forma estranha, essa caftina fazia Glória lembrar de sua pudica tia solteirona.
Tão logo o Diácono completou as apresentações, a srta. Rosie despediu-o:
- Eu gostaria de falar em particular com a srta... St. Clair. - Ela enunciou o nome de Glória com um traço de desprezo. No momento em que a porta se fechou atrás dele a mulher perguntou: - Como é que você consegue fazer seu cabelo dessa cor? - E aproximou-se dela para examinar o cabelo mais de perto. Por um momento Glória pensou que ela iria inspecionar as raízes de sua cabeleira.
- Ele é naturalmente desta cor. Eu nada faço.
- É muito bonito, mas naturalmente você sabe disso... - Ela passou por trás de Glória. - Por que não tira seu casaco, srta. St. Clair? Não é prudente aquecer-se demais.
O quarto do hotel era esparsamente mobiliado com uma cama, uma cómoda e uma cadeira. com a exceção de uma tigela para fazer a barba e um pincel que estavam colocados ao lado da bacia e do jarro em cima da cómoda, não havia nenhuma outra indicação de que o quarto fosse ocupado por um homem.
Glória tirou o regalo e o casacão e depois colocou-os no leito, junto com as roupas da "madame". Da mesma forma que a srta. Rosie, ela também usava uma blusa que lhe ia até a cintura, só que a dela era de uma seda de um matiz de granada que combinava com a saia. O estilo era mais feminino, com pregas em voltas das mangas e delicadas dobrinhas rodeando o alto colarinho. Fitas de cetim enfeitavam as mangas bufantes.
- Muito bonita. - A srta. Rosie examinava-a com seu olho crítico.
- Gosto que minhas meninas se vistam na moda. Mas você precisa apertar esse corpete mais um pouco. Os homens gostam de uma cintura fininha.
- Tentarei lembrar-me disso - balbuciou Glória, embora as duras barbatanas de baleia apertassem-na tanto que mesmo como estavam já lhe custava respirar.
- Que idade você tem?
- Dezenove anos.
- Onde trabalhou antes?
- Num restaurante...
- Não, não... Num bar ou casa de tolerância...?
- Nisso nunca trabalhei. - Glória observava fascinada enquanto a mulher habilmente enrolava um cigarro, enfiava um dos extremos dele numa piteira de marfim entalhado e o acendia.
- Qual é sua especialidade? - Ela soltou um rolo de fumaça por entre seus lábios vermelhos em bico. Quando fechou a boca, nuvenzinhas gémeas de fumaça saíram de suas narinas. Glória ficou cismando como ela faria aquilo.
- Minha especialidade? Acho que não sei o que a senhora quer dizer.
- Você faz mais alguma coisa além de foder?
- Eu sei cozinhar e costurar... - Antes que Glória pudesse continuar a mulher começou a rir.
- O diácono estava certo. Você é nova nesse negócio - declarou ela. - Quero dizer outras coisas com um freguês... além de beijar e acariciá-lo.
Muito embora não gostasse de expor sua ignorância, Glória teve que Perguntar:
- O que mais há para fazer?
- Você nunca ouviu falar de bouchert?
Glória teve a distinta impressão que a srta. Rosie estava falando deliberadamente em termos chulos para embaraçá-la. E estava conseguindo. - Suponho que isto explica por que ainda não teve que enfrentar pedidos como esses. Que proteção você usa?
- Proteção? A senhora quer dizer... como uma arma de fogo? Uma rouca risada partiu da mulher.
- Quero dizer, para evitar pegar uma doença ou ficar grávida. Glória ficou de novo vermelha, odiando ter de admitir sua ignorância.
- Não sabia que havia alguma coisa que se pudesse fazer para impedir isso.
A srta. Rosie sacudiu a cabeça e disse:
- Recomendo a todas as minhas meninas que metam uma esponja dentro delas. E todas compram pacotes de camisas-de-Vénus... umas bainhas de borracha para enfiar os cacetes nelas. Alguns homens são contra seu uso, mas na maioria das vezes as compram para estarem certos de que não vão apanhar nenhuma doença. - Ela fez uma pausa e ficou estudando Glória por um minuto. - O homem que iniciou você nisso tudo nunca lhe disse nada sobre essas coisas? Não, provavelmente não! Foi ele a razão pela qual você se meteu neste negócio?
- Não exatamente. Eu precisava do dinheiro e isso me pareceu fácil. -Glória descobria que o Diácono estava certo; havia uma porção de coisas que não sabia.
- Mas houve um homem, não? Sempre há um...
- Ele foi para o Klondike. - Embora relutasse em discutir Justin com a srta. Rosie, também não via nenhuma razão para fazer dele um segredo.
- Suponho que ele prometeu que voltaria depois que ficasse rico. Isto em geral é o que dizem. Ele foi o primeiro homem que fez amor com você? - Rosie pareceu interpretar o silêncio de Glória como uma espécie de resposta. - A gente em geral quase nunca esquece esse primeiro homem, não importa quantos homens mais venham depois. Não sei por que isso acontece, mas é verdade. De qualquer forma fico contente que você não goste de mulheres. Tenho suficientes problemas com Belle e Cheyenne Sue neste momento. É muito mais fácil lidar com namorados ciumentos do que com mulheres ciumentas.
Glória não sabia do que ela estava falando, mas achou melhor não admiti-lo. A "madame" puxou uma última fumaça de seu cigarro, depois tirou a ponta da piteira e deixou-a cair na escarradeira.
- A tarifa que cobro de meus clientes é de três dólares; se eles querem ficar com uma de minhas pequenas a noite toda custa trinta dólares. Fico com a metade e você fica com a metade. Você fica com todas as gorjetas e ganha uma comissão sobre todas as bebidas ou camisinhas que possa persuadi-los a comprar. Seu quarto lhe custará sete dólares por semana. Tão logo o doutor a tiver examinado, e se assegure de que não tem sífilis ou qualquer outra doença, você pode trazer suas coisas para o Salão de Dança North Star.
- Eu ainda nem lhe disse que desejo trabalhar para a senhora disse Glória, ressentindo-se do autoritarismo da mulher.
- Você quer?
- Não. Estou me saindo muito bem. E certamente não vejo por que devo dar-lhe a metade do que ganho.
- Quanto você ganha por noite?
- Já fiz até trinta dólares. - Isto fora apenas em duas ocasiões, mas ela não o disse à mulher.
- Você fará duas vezes isso trabalhando para mim, talvez mais, se não for preguiçosa. E tenho homens em minha folha de pagamento que garantem que nenhum dos fregueses batam nas minhas meninas. Há alguns homens que gostam de fazer isso. Você. teve sorte em ainda não ter encontrado um desses. Esse seu belo rostinho não ficaria tão bonito quando ele tivesse acabado de surrá-la.
Tal comentário levou Glória a lembrar-se das histórias que a tia lhe contara acerca da forma como seu pai tinha maltratado brutalmente sua mãe, batendo-lhe e quebrando-lhe o braço. Ela reconhecia que havia homens capazes de cometer violência contra as mulheres.
- Talvez eu tivesse me enganado a seu respeito, srta. St. Clair. Talvez não seja tão inteligente quanto parecia. Tem aparência para atrair uma clientela constante e abonada. Poderá até adquirir a habilidade de mantê-la. Estou lhe oferecendo um emprego onde ganhará duas vezes o que está ganhando agora com menor risco físico e para você e sua saúde. - Ela pegou seu casaco de cima do leito, uma bela peça de foca enfeitada com passamanaria de seda e franja do mesmo material. - A casa de pensão onde você vive não continuará permitindo que mantenha suas atividades noturnas por muito tempo. Em breve acabará num barraco de um só quarto. Putas de barracos são as mais baixas. A senhorita pode ser inexperiente.
- Concordo inteiramente com a senhora, srta. Rosie. - Glória encaminhou-se para a cama e apanhou seu próprio casaco. - E não me considero estúpida. Quando posso marcar uma consulta para ver o médico?
Quando as primeiras hordas de faiscadores de ouro desceram sobre Skagway com destino ao Klondike, havia noites em que ela faturava mais de cem dólares entre comissões de bebidas, tarifas normais e gorjetas. E sempre conseguia fazer um dinheirinho paralelo apontando um freguês com a carteira recheada para Soapy Smith ou um de seus capangas.
Soapy Smith e sua quadrilha de vigaristas, jogadores, batedores de carteiras e ladrões comuns virtualmente controlavam Skagway. Soapy certificava-se de que seus homens caíssem apenas sobre aqueles de passagem pela cidade, deixando em paz os bons cidadãos de Skagway. Jefferson Randolph "Soapy" Smith ajudou até a a construir a primeira igreja de Skagway. A pregação dele era usar a cabeça, não a violência.
Seu domínio do poder, no entanto, teve vida curta. Em julho de 1898 ele foi atacado por uma turba de cidadãos zangados e morto num tiroteio, mas não antes que tivesse ferido fatalmente o homem que atirara nele: Frank Reid, o mesmo homem que no verão anterior havia conduzido outros a violarem a concessão do capitão Moore e que vendera os lotes da rebatizada cidade de "Skaguay".
O ambiente da cidade mudou depois de sua morte. O constante fluxo de forasteiros destinados aos campos auríferos ao longo do Yukon mantinha o comércio ativo, mas o dinheiro não corria tão facilmente. Mas também havia uma corrente constante de gente voltando do Klondike, a maioria quebrada e desiludida, sem nada para mostrar pelas agruras que haviam enfrentado a não ser calos e cintos frouxos.
Glória fizera algumas indagações acerca de Justin, mas ninguém parecia ter ouvido falar nele. Ela não sabia se ele havia ficado rico, se morrera no caminho como acontecera com muitos, ou se havia voltado capengando com o rabo entre as pernas, como muitos outros.
Aqueles que haviam estado lá e voltado tinham um ar mais velho, mais sabido. Ela podia sempre distinguir o rosto de um veterano do de um homem novo e ambicioso que ainda tinha de fazer a dura caminhada através do passo Branco, ao longo da trilha que havia sido apelidada "Trilha do Cavalo Morto", devido aos montes de carcaças e ossos de animais de carga que não haviam sobrevivido.
Sempre que desfilava pela rua vestida com seu último traje, ela especulava se Justin a reconheceria agora e se ele algum dia ouvira falar de Glória St. Clair e adivinhado quem ela era. Durante o inverno de 1898-99 praticamente todos os que passaram por Skagway espalharam a notícia acerca da Glória de cabelos de ouro no Salão de Dança North Star. Ela estava na invejável posição de poder escolher a quem desejava outorgar seus favores.
Tinha mais roupas do que jamais poderia usar, todas elas da última moda de San Francisco. Os homens derramavam presentes sobre ela; tudo, desde jóias até um enorme cão de tiro de olhos dourados que ela chamava de "Nugget" (pepita). Recebera incontáveis propostas de casamento, algumas de respeitáveis homens de negócios. No entanto, formara uma aliança duradoura com um único homem. Tinha tudo o que lhe era possível desejar: dinheiro, roupas, popularidade e a companhia de um homem do qual genuinamente gostava. Mesmo assim ela se sentia insatisfeita. A chuva martelava nas vidraças da suíte do hotel. Ela cobriu os ouvidos tentando isolar-se daquele ruído.
- Odeio quando chove. - A chuva sempre a recordava de Sitka.
- Prefiro nevascas a esta incessante chuva. - Ela ficou observando o Diácono Cole quando ele, com toda a calma e precisão, arrumou o rei de copas na guilhotina de aparar cartas e depois acionou a lâmina de cabo de marfim para tirar uma minúscula tirinha de um dos lados. - Eu juro que nada jamais aborrece você - queixou-se Glória.
- A chuva é um sinal da primavera. - Ele correu o dedo ao longo da beirada da carta recém-aparada e depois inseriu-a no baralho.
- Primavera! - Ela deu um suspiro e ficou a pensar se deveria culpar a estação por seu mau humor. - Gostaria que houvesse algo a fazer, algum lugar para se ir.
- Vem cá. - O Diácono embaralhou as cartas várias vezes e depois colocou-as na mesa. - Corte o baralho e veja se pode encontrar um ás.
Glória sabia que ele aparara as bordas de todos os quatro ases, fazendo que ficassem um fio de cabelo mais estreitos do que o resto das cartas do baralho, mas os dedos dela não podiam detectar a diferença. Por três vezes ela cortou o baralho e por três vezes não conseguiu encontrar um ás.
- Desisto - disse e empurrou o baralho para ele. Ele cortou-o quatro vezes em rápida sucessão, sem uma pausa perceptível para apalpar as cartas e mostrou a ela todos os quatro ases.
- Agora os reis. - Ele tornou a embaralhar as cartas.
- Você alterou estes também?
- Nos cantos. - De novo ele mostrou-lhe as quatro cartas. Depois ele embaralhou de novo e deu quatro mãos, com as figuras para cima. Numa delas estavam todos os quatro reis e noutra os quatro ases. Reuniu as cartas e repetiu o processo, desta vez alterando a posição das mãos que receberam os reis e os ases.
No decorrer do ano passado ela o havia observado a praticar inúmeras horas, às vezes com strippers (cartas com suas bordas alteradas), outras com um holdout, um dispositivo mecânico escondido numa manga ou na frente do paletó, até que seus movimentos eram impecáveis. SemPre ao lado dele havia uma folha de lixa para manter seus dedos lisos e sensíveis como os de um bebé. Ela olhou para aqueles dedos longos que eram igualmente sensíveis e hábeis quando a acariciavam.
- Por que você trapaceia? - Era uma coisa na qual muitas vezes ela pensava. - É assim tão importante para você vencer?
- Jogar é minha profissão, a forma como ganho a vida. Há um número demasiado grande de bons jogadores por aí para confiar-se apenas na perícia e na sorte. - Ele colocou os quatro ases em cima do baralho e os quatro reis embaixo, depois começou a embaralhar - ou parecia fazê-lo enQuanto praticava o falso embaralhado. - Se um jogador não sabe como trapacear, ele nunca saberá quando está sendo roubado.
Virou as quatro cartas de cima e revelou os quatro ases.
Ela colocou-se atrás da cadeira dele e suavemente massageou a curva de seus ombros, sentindo-lhe os músculos por baixo da camisa de linho. Observou o reflexo dele no espelho estrategicamente posicionado no lado oposto da mesa onde estava sentado, de forma que pudesse observar-se quando praticava dar cartas trapaceando.
Mas quando Glória olhava no espelho era sua imagem e não a dele que estudava. O vestido que usava era novo, um vestido solto, sem armação, de caxemira azul-real, que lhe caía em graciosas dobras da cintura franzida para baixo. Largas tiras de renda projetavam-se das mangas-balão e chegavam até os punhos franzidos. O cabelo estava penteado para cima da cabeça com o efeito de um halo dourado, com um único cacho caindolhe enrolado sobre a testa. Seu rosto estava discretamente empoado para ressaltar a pele naturalmente branca e suave. Um toque de sombra acentuava o negror dos olhos e uma muito ligeira aplicação de batom nos lábios dava um colorido ao formato cheio de sua boca.
Ela olhou para o reflexo do Diácono e viu que ele a estava observando, seu rosto tão inexpressivo quanto seus olhos azuis e duros. Distraidamente, ela alisou a parte de cima de seu duro e escuro cabelo, ficando a imaginar o que ele via quando olhava para ela. Ele nunca lhe dera dinheiro ou lhe comprara um único presente. E ela nunca tinha desejado que o fizesse, nem mesmo na primeira vez. Era uma loucura, ela sabia, mas não queria estabelecer um preço para sua amizade. Não podia dizer que o amava, mas confiava nele. E isto também era uma loucura. Ele era um jogador e um trapaceiro.
- Ouvi dizer que apareceu ouro no rio Nome, não muito longe da cidade de Council, na península de Seward. O Diácono desviou sua atenção para o baralho que tinha nas mãos. - Supõe-se que a ocorrência seja muito grande; alguns mineiros que perderam no Klondike estão se recuperando ali.
- É verdade? - Ela especulava se Justin seria um deles.
Ela não o havia esquecido. Talvez o que a srta. Rosie lhe dissera fosse verdade: que uma pequena nunca esquece o primeiro homem. Glória sabia que ela nunca tentara. Em sua nota, Justin dissera que voltaria quando ficasse rico. Talvez acontecesse. Os homens eram umas criaturas tão engraçadas, tão orgulhosas. Para ela não teria importado se ele voltasse rico ou não, mas o Justin de que ela se lembrava não enxergaria as coisas dessa maneira. Ele iria continuar procurando aquele ouro até encontrá-lo.
- Parece que a cidade de Nome vai ser a próxima a explodir. Não será tão difícil chegar até ela como ao Klondike. Está localizada bem na costa do mar de Bering. As pessoas já estão comprando passagens para o primeiro vapor, programado para partir no fim da primavera. - Ele deu uma mão, tirando as cartas do fundo do baralho. - Eu já tenho a minha.
- Você está indo? - O anúncio pegou-a de surpresa.
- Stagway está se tornando por demais civilizada para mim. Em breve estará terminada a estrada de ferro. O conselho da cidade está falando em instalar luz elétrica. A corrida para o Klondike está praticamente acabada. Um jogador esperto vai sempre onde há dinheiro. Está chegando a hora de eu me mudar.
Glória afastou-se da cadeira e dirigiu-se até a janela. Do lado de fora a chuva continuava caindo, como milhares de dedos batendo nos vidros da janela.
- Por lá neva - murmurou ela e depois virou-se de frente para a mesa. - Não creio que você gostaria de alguma companhia nesta viagem, gostaria? Estou ficando cansada desta cidade, também. Uma mudança de rostos e de cenário poderia ser bom.
Quando deu a última carta, ele levantou a mão esquerda e balançou duas tiras de papel.
- Tive um palpite de que você estava ficando descontente por aqui, de forma que reservei passagens para dois. - Ele esboçou um sorriso fraco como sempre, e Glória soltou uma risada.
A nova região aurífera estava situada na costa sul da península de Seward, o ponto de terra mais a noroeste do continente da América do Norte, a qual se estende para dentro do mar de Bering e forma o estreito entre o Alasca e a Rússia. O acampamento da mineração propriamente dito estava situado diretamente na costa marítima exposta, próximo à entrada do estreito Norton.
O gelo que bloqueava o mar de Bering no inverno e isolava o acampamento dos mineradores de ouro na boca do rio Snake, quebrava em junho. No dia 20, o primeiro navio ancorou a mais de uma milha da costa, a falta de um porto de águas profundas impedindo-o de chegar mais perto. Todos os passageiros e a carga eram transferidos para terra em barcaças de pequeno calado, reborcadas até dez metros da praia e depois deixadas correr com as ondas até que encalhavam na praia.
Vestida em seu melhor traje de viagem, Glória olhava com preocupação o trecho de água que tinha de atravessar para chegar à areia da praia. Os outros passageiros, todos homens, atiravam-se no mar, vencendo com água pelos joelhos os poucos metros que restavam até a praia, ansiosos demais em chegar ao campo de ouro para preocupar-se com pés ou roupas molhadas.
- Você faz uma ideia de quanto este traje me custou? - perguntou ela, sentada na borda da barca quando o Diácono pulou dentro d'água. Ele parecia divertido quando parou a fim de esperar por ela. - Não acho graça nenhuma!
- Monte nas minhas costas e eu a carrego para a praia - ofereceu-se ele.
Lutando com as compridas saias que se enroscavam em suas pernas, ela finalmente conseguiu trepar nas costas dele, passando os braços em volta de seu pescoço. Ele carregou-a, escorregando várias vezes e quase perdendo o equilíbrio na água que lhe batia nos joelhos. Quando atingiram terra firme, ele arriou-a na areia.
Enquanto rearrumava as saias, ela lançou os olhos para a patética desculpa do que se chamava uma cidade, oficialmente batizada Anvil City, mas universalmente conhecida como Nome. Algumas cabanas eram construídas de madeira jogada à costa pelo mar, mas era principalmente uma coleção de barracas de lona. O cenário era a própria desolação. O que se chamava de montanhas além da praia pareciam não mais do que altos morros varridos pelo vento, a tundra de suas encostas mostrando o verde do início do verão. Não se via nenhuma árvore, e não havia nenhuma por uma centena ou duas de quilómetros.
- Você nunca esteve antes numa bagunça que é um acampamento de mineradores de ouro, esteve? - observou o Diácono.
O comentário dele a fez suspeitar que sua expressão revelara seu desânimo com o local.
- Não se pode dizer que seja um lugar de animar ninguém!
- Vamos dar uma olhada - disse ele, pegando-a pelo cotovelo.
- E minhas malas? - Ela olhou para trás, onde a bagagem estava sendo descarregada e colocada na praia.
- Acredite-me, ela não irá a lugar nenhum... - assegurou-lhe em tom seco.
Caminhos serpenteavam entre as barracas e as cabanas de troncos espalhadas. Se a cidade tinha um centro, Glória decidiu que ele estava bem escondido. Ela não sabia como o Diácono escolhia que trilha tomar, mas confiava no instinto dele. Homens mal vestidos e com a barba por fazer observavam-nos enquanto passavam por precárias barracas de lona montadas ao longo da praia. O chapinhar de passos na lama e um murmúrio de vozes soavam atrás deles. Glória olhou para trás e viu o bando de homens vadios que os seguiam.
- Todo mundo está nos seguindo; devemos estar indo na direção certa - disse ela em voz baixa, suspendendo as saias para impedir que sua cauda se arrastasse pela lama.
- Eles estão seguindo você, minha doçura - informou-a secamente o Diácono. - Quem sabe há quanto tempo alguns deles não vêem uma mulher branca, especialmente uma como você? - Ele deu uma parada no meio do caminho, a pressão de sua mão fazendo-a estacar. A atenção dele concentrava-se numa enorme tenda de lona. Uma tabuleta de madeira entalhada, gasta pelas intempéries, estava encostada em sua parte da frente. Seu letreiro sujo de lama era difícil de ler, mas o emblema nela entalhado, com sua tinta amarela desbotada e falhada, parecia uma moeda de ouro de vinte dólares.
- Double Eagle. Será que é...? - murmurou o Diácono, depois apertou mais o braço dela e encaminhou-a em direção à entrada da tenda.
- Vamos entrar.
Havia apenas alguns poucos fregueses no "bar", mas eles pararam de falar quando Glória e o Diácono entraram. Os móveis eram tão grosseiros e improvisados quanto a própria estrutura. Barricas, ancorotes e caixotes tinham uma tripla finalidade: cadeiras, apoio para as mesas e para a comprida prancha de madeira que era o balcão do bar.
Um homem de cabelos grisalhos endireitou-se atrás do bar, sua roupa escura e seu colete de brocado destacando-o dos homens mais grosseiramente vestidos ali presentes. O olhar dele passou de Glória para o Diácono e estacou. Rugas formaram-se em sua testa quando apertou os olhos para o Diácono e tirou o charuto da boca.
- Diácono - disse ele, hesitante, e depois um sorriso iluminou-lhe o rosto. - Raios me partam se não é você! - Ele cruzou o recinto com um vigor inesperado para seus cabelos grisalhos. - Eu deveria saber que nenhum outro apareceria por aqui trazendo pelo braço uma pequena como essa.
- Vejo que ainda continua carregando com você aquela tabuleta, Ryan - disse o Diácono, apertando-lhe a mão calorosamente.
- É meu talismã. Ainda não fui à falência com ela. Da última vez que ouvi falar em você, estava em Skagway. - Mas seus olhos voltaram-se para Glória.
- E da última vez que ouvi falar de você, estava em Dawson - disse o Diácono e depois voltou-se ligeiramente para incluir Glória na conversa.
- Apresento-lhe Ryan Colby, dono do Double Eagle. Trabalhei como banqueiro de faraó para ele há alguns anos, em Juneau. Apresento-lhe a srta. Glória St. Clair.
- Já ouvi falar em seu nome, srta. St. Clair - cumprimentou-a Colby, inclinando ligeiramente a cabeça e sorrindo. - Aliás, quem não ouviu falar da famosa mundana de Skagway? Permite que eu lhe diga Que é mais bonita do que a descrevem.
- Obrigada - respondeu ela, sorrindo.
Isso pede um drinque, por conta da casa, naturalmente. Vamos para perto da estufa. - Ele levou-os em direção ao fogão de carvão Próximo ao centro da tenda. - Ei, Pete! Sirva-nos um uísque de meu estoque particular - disse ele para o homem por trás do grosseiro bar.
E traga minha cadeira lá de trás para a senhora.
Glória ficou perto da pesada estufa de ferro, apreciando o calor que irradiava depois do frio do ar lá de fora. O número de ancorotes e arxotes colocados em volta da estufa indicavam a popularidade daquela face Particular da tenda, embora nenhum deles estivesse ocupado no momento.
O ajudante do bar veio com o uísque e Ryan Colby passou os cálices para as visitas.
- Bem-vindos a Nome! - Ergueu um brinde a eles e Glória polidamente provou seu drinque, apreciando o calor que lhe trouxe para dentro do corpo, mas não o gosto da bebida. Ela nunca compreendera o que os homens apreciavam no álcool. - Embora eu admita que não pareça lá muito com uma cidade.
- Digamos que é fora do comum, como seu nome. - Glória segurou o pequeno copo em suas mãos enluvadas. - Suponho que exista um sr. Nome. - Na experiência dela, novas cidades no Alasca tinham sempre o nome de alguém.
- Na realidade não existe. A versão popular por aqui é que o nome da cidade foi tirado da frase esquimó "Kn-no-me", que quer dizer "Eu não sei". Supostamente esta foi a resposta que um esquimó deu quando alguém lhe perguntou o nome desta área. Na verdade ela adquiriu este nome inteiramente por acidente, há alguns anos. Um oficial num navio inglês nesta área notou que não havia sido dado nenhum nome no mapa para esta proeminente ponta de terra. Então, marcou um ponto de interrogação no mapa seguido da palavra "nome", com a intenção de mais tarde arranjar-lhe um. Acontece que se esqueceu disso. Quando um desenhista fez uma cópia daquele mapa, ele leu mal, pensou que o ponto de interrogação fosse um "C" e escreveu "Cabo Nome".
- Isto parece mais inacreditável do que a história do esquimó disse o Diácono.
- Em geral a verdade sempre parece, em minha experiência. - O velho dono do "bar" bateu a cinza de seu charuto e deixou-a cair no sujo imundo. - Não vai levar muito tempo para o nome desta cidade estar na boca de todo mundo. Aqueles três sortudos suecos descobriram ouro em Anvil Creek. Vai haver o diabo por aqui, e muito em breve... A madeira para meu novo bar deve estar no navio que trouxe vocês para cá. vou necessitar de um bom banqueiro de faraó, Diácono. Pago cem dólares por semana.
- É uma oferta generosa, Ryan, mas vou recusar. Acontece que convenci a srta. St. Clair a tornar-se minha sócia. Vamos construir nosso próprio estabelecimento.
- E eu estava esperançoso de poder convencer a srta. St. Clair de operar baseada no Double Eagle. Considerando quantos camaradas já apareceram apenas para dar uma olhada, a senhorita poderia ser uma grande atração no meu estabelecimento. - Ele indicou com a mão o grande número de fregueses, todos de pé no bar e olhando na direção de Glória. Creio que não posso convencê-los a mudar de opinião.
- Não. - Desde que o Diácono o havia sugerido, Glória ficara encantada pela ideia de ter um lugar só seu. Tinha aprendido muito trabalhando para a srta. Rosie e observado algumas coisas que ela faria de forma diferente. Graças à grande parada que o Diácono ganhara no pôquer e ao dinheiro que ela conseguira economizar, a despeito de seus extravagantes gastos, tinham os fundos para realizar o projeto, embora achasse que não escolheria Nome para seu lugar se soubesse do aspecto da cidade. Mesmo assim, comparado com o que havia por aqui, a casa deles seria um palácio. Ainda não havia encontrado um homem que não gostasse de conforto. Se houvesse tanto ouro aqui como Ryan Colby insinuava, eles iriam ficar ricos.
Efetivamente nossos materiais de construção e suprimentos estão sendo descarregados do navio - informou-lhe o Diácono. - Se você tiver qualquer sugestão de uma possível localização, estaríamos interessados em ouvi-la.
- Escolha à vontade. Quase todos os lotes na cidade estão à disposição de quem os agarrar. Há uma procura tão grande de lotes sendo ocupados quanto há de concessões de mineração. Um homem tem quarenta dias para fazer melhoramentos nos lotes que marcou, ou então os perde. Mas há pouca gente para verificar se o tempo expirou. As pessoas em geral constróem onde lhes convém e mais tarde se preocupam com quem detém o direito ao lote, como em qualquer cidade em grande progresso. Você sabe como é que a coisa funciona: a posse representa nove décimos da lei. Aquele que a tem, usualmente a mantém.
- Eu preferiria ter um título da terra do que esperar que a lei o dê a mim - disse Glória. No passado da sua família houvera muitas ocasiões em que eles haviam perdido propriedade devido à lei... ou à ausência dela.
- Foi apenas uma sugestão. - Ryan encolheu os ombros, indiferente. - Sei que o Diácono é um jogador que gosta de se arriscar. Sei de uns quantos que marcaram lotes para especular com eles. Até que isto aconteça, vocês estarão precisando de um lugar para ficar. Nome tem muito poucas acomodações. Terei muito prazer em oferecer-lhes meus aposentos particulares na parte de trás da tenda, até que tenham construído seu lugar, srta. St. Clair. É possível que ache o local um tanto barulhento à noite, mas espero que esteja acostumada.
- É muito generoso de sua parte, sr. Colby.
- Não há o que agradecer. Não haverá de passar muito tempo até que se espalhe a notícia entre esses mineiros nas montanhas esfomeados por mulher, de que Glória St. Clair está no Double Eagle. Então virão para cá para gastar seu ouro. Este bar vai ficar tão cheio que não terá espaço para mexer-se.
- Então o Diácono e eu teremos muita oportunidade de anunciar nosso novo negócio.
- com toda a certeza. - Ele reconheceu a agilidade do raciocínio da moça. Logo olhou para alguém que se aproximava por trás dela. Finalmente aí vem o Pete com sua cadeira. Um carpinteiro de navio que virou garimpeiro fez a cadeira para mim, a fim de acertar suas contas.
Espero que a achará muito confortável. - Quando Glória se virou, viu um homem vistoso, de cabelos brancos, caminhando em direção a eles, antes que sua atenção fosse distraída pelo homem do bar carregando uma cadeira finamente trabalhada e forrada de couro. - Eu diria a vocês o nome do homem, mas receio que o roubem de mim e necessito dele para construir meu novo bar - disse Ryan. - Coloque a cadeira ao pé da estufa, Pete.
Enquanto Glória admirava as costas da cadeira, caprichosamente trabalhada e muito bem polida para ressaltar o grão da madeira, ela ouviu alguém falar com o Diácono atrás dela.
- Não desejo intrometer-me - disse o homem -, receio, porém, haver ouvido sem querer sua conversa. Escutei-o mencionar que está interessado em comprar um lote para construir. Permita-me que me apresente. Meu nome é Gabe Blackwood, advogado.
Se um raio a tivesse atingido, Glória não teria ficado mais atordoada. Tudo parou. Ela não podia mover-se. Não podia respirar. Não podia falar. Estava paralisada de choque, duvidando se escutara corretamente. Ele havia de fato mencionado que era Gabe Blackwood? Haveria a possibilidade de existirem dois homens com aquele mesmo nome? Sempre fora levada a crer que seu pai deixara o Alasca e fora para os Estados Unidos, levando com ele os tesouros da família Tarakanov. Poderia ser ele? Seria este o pai que nunca vira?
Glória voltou-se vagarosamente, apertando mais em sua mão o copinho de uísque, surpreendida de não havê-lo deixado cair. O homem usava um gorro de pele pontudo com as orelheiras viradas para cima, revelando os cabelos brancos que ela notara antes. Suas roupas pareciam bem cortadas, embora um pouco sujas, embora isto fosse coisa de se esperar nesta cidade.
Seu pai teria quase sessenta anos. Aquele homem poderia ter isso ou mais; era difícil dizer. O consumo exagerado de álcool tendia a envelhecer uma pessoa além de seus anos, e havia indicações de que aquele ali bebia muito. Aliás, seu pai também bebia muito.
- Desculpem-me - disse Glória, interrompendo a conversa do Diácono com o homem. -Terei ouvido que o senhor sabia de alguma propriedade para venda, sr.... Blackwood, não é?
- Correto, madame. Gabriel Thornton Blackwood, advogado disse ele tirando o chapéu.
- Srta. Glória St. Clair - apresentou-se ela, estendendo a mão só bre a qual ele inclinou-se. Glória recordou que sua mãe muitas vezes observara como seu pai era galante.
Ela perscrutou seu rosto, tentando achar alguma semelhança com um velho daguerreótipo que vira uma vez. Ela o achara ao remexer numa mala de coisas da mãe, pouco depois de sua morte. Era uma foto de seu pai com o ministro Seward e várias pessoas da cidade. Sua tia mais tarde havia destruído o daguerreótipo, mas aquela imagem do pai, a única que ela já havia visto, ficara em sua memória. Agora tentava compará-la com o homem à sua frente.
A pele clara do homem estava avermelhada pela bebida. Ela podia sentir o bafo do álcool em sua respiração. Seus olhos castanhos claros eram injetados de sangue e as pálpebras inferiores estavam enrugadas e caídas. Um reticulado de pequenas veias azuis cruzava-lhe o nariz logo abaixo da pele. Suas bochechas eram redondas e uma barbicha amarela esbranquiçada cobria-lhe o queixo. Talvez cobrisse um queixo recuado, Glória não podia dizê-lo. O homem no daguerreótipo fora mais jovem e mais magro.
O senhor é do Alasca, sr. Blackwood?
- Não. Apenas cheguei há pouco tempo de San Francisco, via Council City. Represento alguns clientes com interesses de mineração na área.
- Então esta é sua primeira viagem ao Alasca.
A hesitação dele durou apenas o bastante para lançar uma olhadela a uma pessoa que estava atrás de Glória. Só poderia ser Ryan Colby.
- Não. Já estive nesta grande terra antes. Principalmente na área de Juneau.
Algo impediu-a de perguntar se ele havia estado em Sitka, embora no íntimo estivesse certa de que aquele homem era seu pai. Depois de todos esses anos, ela afinal o encontrara. Não sabia, porém, o que sentia. Mais do que qualquer coisa, estava confusa. Odiava-o? Como poderia amar alguém que nunca havia conhecido?
De acordo com sua tia, aquele era o homem que a havia desejado morta antes mesmo de ela ter nascido. Aquele era o homem que abandonara sua mãe, que a havia deixado sem vintém e sozinha com um bebé a caminho, o homem que roubara todos os objetos de prata feitos pelo seu avô, o homem que nunca voltara para ver a criança que gerara.
Glória lembrava-se da grande solidão de sua mãe, a forma como ela sempre se culpara pela deserção dele. Glória ressentia-se dele por causa disso, e por todos seus anos de crescer sem um pai, com pouca comida na mesa e roupas para cobri-la costuradas de velhos vestidos de sua mãe. Ela odiara aquela vida, seu vazio, a falta de sentimentos quentes e de ternura, e a miséria de não lhe ser permitido amar ou rir-se.
Se ele houvesse ficado, quão diferente tudo poderia ter sido. com um pai para amá-la e cuidar dela, provavelmente nunca teria vindo a este lugar onde o diabo perdeu as botas, nas selvagens plagas do norte.
Mas, por outro lado, nunca teria tido todas aquelas malas de belas roupas ou o saco de dinheiro escondido no corpete. Na verdade, Glória não sabia se deveria agradecer-lhe ou esbofeteá-lo. Não fez nenhuma das duas coisas.
- O senhor já conheceu meu sócio, o sr. Cole, não é verdade? Ela continuou a falar sem esperar a resposta afirmativa dele. - Estamos interessados em comprar um lote para construir. Creio que é muita sorte nossa que uma das primeiras pessoas que viemos a conhecer seja um advogado. Acho muito importante ter um título de propriedade legal da terra, e quem melhor para assegurá-lo do que um advogado? O senhor irá ajudarnos, não é verdade, sr. Blackwood?
- Ficarei encantado em fazê-lo. - Ele se empertigou, seu peito estofando um pouco, obviamente lisonjeado pela importância com que ela o olhava. - A senhorita é muito esperta em contratar uma ajuda legal neste assunto, srta. St. Clair, especialmente aqui em Nome. Como acontece em muitas cidades cujo progresso é explosivo, a letra da lei costuma muitas vezes ser negligenciada. Em minha opinião, a maioria das concessões de mineração em torno de Nome não são válidas.
- Por quê?
- Porque os suecos que supostamente descobriram o ouro e requereram concessões sobre todos estes riachos auríferos, em seus próprios nomes e nos de suas famílias e amigos, não são cidadãos americanos. São estrangeiros e, consequentemente, não credenciados a requererem concessões de mineração em solo americano. Como já tenho dito a muitos dos mineiros americanos daqui, minha opinião é de que estes alienígenas não têm direito ao ouro daqui. A terra e seus minerais pertencem aos americanos.
- Muito interessante! - murmurou Glória. - O senhor é casado, Sr. Blackwood?
- Graças a Deus, não! - respondeu ele rapidamente, perturbado pela pergunta. Depois, assumiu uma atitude de grande pesar. - Sou viúvo; minha esposa morreu há muitos anos. Era uma bela mulher, de ascendência russa. Deus guarde sua alma. - As palavras pareciam ensaiadas, sem nenhum sentimento por trás delas. Ficou a pensar se ele saberia mesmo que sua mulher havia morrido. - Por que pergunta? - indagou Gabe, franzindo a testa.
- Estava pensando se o senhor jantaria esta noite com o sr. Cole e comigo. Pelo que o senhor disse, há muito que precisamos conhecer acerca de nossa nova cidade e muitas questões nas quais necessitaremos de seus conselhos. Uma vez que acabamos de chegar e não estamos familiarizados com os lugares para jantar em Nome, talvez o senhor pudesse ter a bondade de escolher aonde iremos.
- Será um prazer para mim.
- Ótimo. Encontramo-nos aqui às sete. - Voltando-se ligeiramente, ela sorriu para o proprietário do bar enquanto este rolava o charuto na boca. - O sr. Colby teve a gentileza de oferecer-nos acomodações aqui.
- Olhou de esguelha para o Diácono. As feições dele eram por demais escoladas para mostrar qualquer expressão, mas Glória sabia que ele estava pondo em dúvida as ações dela e seu interesse em Gabe Blackwood, mas não tinha a menor intenção de esclarecê-lo. - Eu gostaria de mudar de roupa para o jantar, Diácono. Talvez devêssemos voltar até a praia e arranjar para que nossas malas sejam transportadas para cá.
- Talvez. - O tom dele denotava uma concessão aos desejos dela mais de que seu endosso.
- Até as sete então, sr. Blackwood. - Ela encarou de novo Gabe e estendeu-lhe a mão.
- Às sete. - Ele continuou a reter-lhe a mão enquanto olhava para ela com um vago ar intrigado. - Já nos encontramos antes, srta. St. Clair? Tenho a sensação de que já a vi antes em qualquer lugar.
Ela experimentou um ligeiro calor de satisfação.
- Se alguma vez esteve em Skagway, é possível que me haja visto, mas estou certa de jamais havê-lo encontrado antes, sr. Blackwood. Eu me recordaria do senhor. - Ela retirou a mão de seu aperto e virou-se, colocando sua bebida em cima de um ancorote de madeira. - Cavalheiros! - Fez um cumprimento para os dois homens, depois pegou o braço do Diácono e caminhou ao lado dele para a abertura da tenda.
Todo mundo ficou observando-a enquanto saía, incluindo Gabe e Ryan. No bar, vários homens engoliram seus drinques e apressaram-se a sair atrás dela, não desejando perdê-la de vista.
Ryan abaixou seu charuto e sorriu meio amargo, dizendo:
- Lá se vai meu negócio. Não que eu os culpe por isso. Ela é uma beleza de mulher.
- Ela me parece tão familiar - murmurou Gabe como se pensando em voz alta. - É algo na maneira como posiciona sua cabeça... ou como se tivesse a pose de...
- ... de uma princesa. - Ryan não viu o olhar espantado que Gabe lhe lançou. - Como prostituta, eu acredito que ela é uma espécie de rainha. De uma coisa eu sei: quando as putas e os jogadores chegam, isto é um seguro sinal de que o lugar vai prosperar.
Ele pousou.o olhar sobre o homem com o qual viajara para o Alasca há tantos anos e distraidamente ficou cismando por que uma mulher como Glória St. Clair teria ficado tão cativada por Gabe Blackwood, praticamente pendurada em cada palavra que ele dizia. Tinha de reconhecer que nem a idade nem o álcool haviam embotado o fio da língua de Blackwood. Ele ainda podia incendiar o sentido de injustiça de um homem com sua oratória.
Seus discursos sobre a América para os americanos causavam a maior impressão na grande maioria dos mineiros, os quais tinham chegado tarde demais e descoberto que meia dúzia de escandinavos haviam marcado concessões em praticamente toda a área. Para tornar as coisas ainda mais insensatas, os escandinavos não eram nem garimpeiros experimentados. Alguns deles haviam sido pastores de renas. No entanto, em menos de um mês de garimpagem, esses estrangeiros calouros tinham acertado em cheio com ouro. Isto não era coisa que pudesse ser engolida facilmente por homens que haviam passado a vida inteira faiscando ouro.
- Você está mudado, Gabe - observou Ryan.
- O que o faz dizer isso? - retrucou Gabe.
Ryan sabia que, embora fossem velhos conhecidos, não eram velhos amigos. Entre outras coisas, Gabe ressentia-se do que Ryan sabia acerca de seu passado.
- Já houve um tempo em que você não queria nada com pecado e corrupção. Entretanto, hoje à noite, você vai jantar com uma meretriz e um jogador - concluiu Ryan com um risinho ao retirar-se.
Com a assistência de Gabe Blackwood, Glória e o Diácono haviam conseguido, em menos de duas semanas, tomar posse de um lote de primeira na rua principal de Nome, que se chamava Front Street. A construção de seu edifício começara quase imediatamente. Mesmo assim Glória inventava uma porção de desculpas para procurar os conselhos de Gabe Blackwood em quase todos os detalhes, a despeito dos protestos do Diácono.
O verão em Nome trouxe 24 horas de luz durante o dia, permitindo que a construção fosse ininterrupta. Às dez e meia da "noite" Glória estava em frente ao local do edifício e inspecionava o progresso feito pelos carpinteiros, que no momento montavam a estrutura do segundo andar. O alto colarinho de sua capa de várias camadas de lã, enfeitada de dourado, roçou seu queixo quando ela voltou a cabeça para olhar o homem idoso à sua direita, seu braço enfiado no dele como dois camaradas.
- Sinto-me tão aliviada por você não achar que os trabalhadores deveriam estar mais avançados do que estão. - Ela encostou-se mais nele para fazer-se ouvir acima das marteladas e das ondas quebrando na praia próxima. - Fico sempre cismando se eles estão trabalhando de verdade quando estou dormindo. Seria tão fácil para eles tirarem vantagem da situação...
- Bem, você pode estar segura de que desta vez não é o caso. Ele deu uma batidinha na mão enluvada apoiada em seu antebraço.
- Meu sócio entende tão pouco acerca destas coisas! Confesso que não saberia a quem poderia perguntar senão a você.
- O prazer é todo meu, como sempre. - Ele fez uma pausa, franzindo ligeiramente a testa. - Onde está seu sócio nesta noite?
- No meio de um jogo de pôquer no Double Eagle.
- Pensando na senhorita, espero que não esteja perdendo.
- Quando saí ele tinha uma enorme pilha de fichas à sua frente. O Diácono tem muita sorte; raramente perde. Naturalmente, ele é um excelente jogador que acredita não ser preciso trapacear para ganhar - mentiu Glória. - Tão logo o pessoal local verifique que as mesas de jogo dele são honestas, nosso lugar será bem popular.
- Então isso aqui será uma casa de jogo e um bar. Isto nunca esteve muito claro para mim.
- Não, não exatamente. Haverá jogo e bebidas disponíveis, mas pretendemos operar o Palácio como uma espécie de clube particular. Um lugar onde um homem possa relaxar, tomar um ou dois drinques sossegado, jogar cartas ou dados e gozar da companhia de belas mulheres, se assim desejar. Não será um lugar para o homem comum das ruas. Alguns que tenho encontrado não tomam banho há meses... Essa não é a espécie de clientes que desejo - declarou Glória. - Esperamos atrair cavalheiros como o senhor.
Ela ouvira falar acerca de tais clubes, destinados a pessoal de dinheiro. Quer fosse chamado de saloon ou de clube, o custo do negócio era praticamente o mesmo. No seu julgamento fazia mais sentido chamá-lo de clube. Podiam cobrar mais pelos drinques; o preço pela companhia de mulheres seria mais alto e mais dinheiro poderia ser ganho nas mesas de jogo. Ela tinha visto algum do ouro em pó e das pepitas que os mineradores estavam tirando da correnteza nas montanhas. Um homem com dinheiro na mão sempre julgava ter direito ao melhor. Ela tencionava convencê-los de que iriam obter isso no Palácio.
- A senhorita é uma moça tão amável e inteligente; não se presta para esse tipo de negócio. - Suas sobrancelhas grisalhas estavam unidas num intenso sinal de preocupação. - Uma mulher assim deveria casar-se com um belo jovem de posição.
- Infelizmente, o jovem que eu encontrei não era nem belo nem de posição. No momento em que compreendi isso, estava arruinada. Nenhum homem decente deseja uma mulher decaída para esposa. - Há muito que Glória já aprendera que os homens preferem histórias assim do que a verdade. - Se eu tivesse encontrado alguém como o senhor, não estaria aqui
hoje.
- Agora está lisonjeando um velho - Gabe ralhou com ela, mas Glória notou que ele se empertigava um pouco. Notara também que ultimamente ele tomava mais cuidados com sua aparência, sempre decentemente vestido, as faces escanhoadas, a barba aparada. Ele não era tão velho que seu interesse não fosse despertado pelas atenções que ela lhe dispensava.
- O senhor não é velho - protestou ela, apertando um pouco o braço dele. - Nunca penso no senhor dessa forma. Tem a aparência por demais culta e distinta como alguma pessoa importante, um governador talvez. - Ela sorriu ligeiramente enquanto observava com atenção a reação dele. - Imaginem-me de braço com um governador!
A expressão dele suavizou-se com um ar melancólico quando olhou para ela.
- Qualquer governador ficaria orgulhoso de tê-la a seu lado, Glória. Posso chamá-la de Glória?
- Se eu puder chamá-lo de Gabe...
Ele sorriu. De comum acordo começaram a andar, afastando-se do barulho dos martelos e das serras e marchando vagarosamente em direção ao Double Eagle.
- Uma vez sonhei tornar-me governador do Alasca - divagou ele em voz alta.
- Ainda poderia tornar-se governador, não poderia? -.perguntou ela, olhando-o com curiosidade.
- Penso que não.
- Agora está sendo modesto. Não sou a única pessoa que o procura para aconselhar-se. Os mineiros também o escutam; já os vi. Ninguém no Alasca jamais destacou-se como um líder. Ouvi dizer que foi por isto que o Congresso sempre nomeou um homem de fora para governador. - Na verdade, ela jamais ouvira tal coisa, mas nenhum homem esperaria que uma mulher soubesse muito de política. - Você poderia ser tal homem.
- Fico lisonjeado por sua confiança em mim, mas receio que seja necessário mais do que isso.
- Sim, você necessitaria de dinheiro. É uma ironia, não é? Falar de dinheiro quando estas montanhas estão cheias de ouro! - Ela alongou o olhar para as montanhas a uma pequena distância da praia, banhadas pela luz dourada do sol da meia-noite. Manchas de flores selvagens criavam um pitoresco desenho. - E praticamente todo ele está nas mãos de um punhado de forasteiros. Por certo algo pode ser feito a respeito disso. Que tal aquele jovem tenente que o exército mandou para cá da guarnição militar de São Miguel?
- Falei com o tenente Spalding logo depois que ele chegou em Nome. Ele tem apenas um pelotão de soldados sob seu comando. Sua única responsabilidade é manter a ordem. Ele não tem autoridade para dirimir disputas sobre mineração.
- Se as concessões de mineração desses estrangeiros são ilegais, como você diz, por que alguém não convoca uma reunião de todos os mineradores e declara todas as concessões existentes nulas? Então todo mundo teria a chance de marcar novas concessões. Pareceria justo para mim, mas você, estou certa, sabe mais do que eu.
- Se tal coisa fosse feita, haveria um estouro da boiada naqueles morros. Todo o mundo estaria brigando pelas mesmas concessões.
- Suponho que seria uma questão de quem chegasse primeiro. É uma vergonha que alguém como você nunca seja alcançado pela bonança do ouro. Você poria o dinheiro a bom serviço, em vez de esbanjá-lo nas casas de jogo e nas casas de tolerância. - Ela deu uma pequena risada.
- O Diácono diz que uma pessoa faz sempre sua própria sorte. Não estou certa de que seja verdade. Se o fosse, eu seria agora a esposa de um governador.
- Falando de seu parceiro, aí vem ele. - com um gesto de cabeça, ele chamou a atenção dela para o homem magro e alto, no sóbrio casaco preto, movendo-se em direção a eles num passo ritmado e vagaroso. Gabe Blackwood virou-se de novo para ela e disse:
- vou dar-lhe boa-noite e deixá-la em suas competentes mãos. Como sempre, o tempo que passei com você foi uma alegria para mim, Glória.
- Ele pegou sua mão enluvada e levou-a aos lábios.
- Da mesma forma para mim, Gabe. - Ela observou-o afastar-se e o viu cumprimentar o Diácono, tirando-lhe o chapéu ao passar por ele.
- Lá estava você de novo com ele - disse o Diácono, voltando-se para olhar as costas do homem que se afastava. - Que diabo você vê nele? Ele não é rico, portanto não pode ser isso. É um alegre velho convencido, portanto não pode ser sua estimulante conversa. Então o que é?
- Ele me interessa.
- Isso é óbvio. O que não é óbvio é a razão.
- Talvez eu apenas sinta pena dele. Afinal de contas, é um velho sem família. - Era uma coisa que ela não podia explicar nem para si própria, pelo menos com qualquer lógica. Ela o odiava por muitas razões, no entanto estava também curiosa acerca dele. Desejava saber como ele era, o que pensava, com o que sonhava, e em que era vulnerável. Ela já descobrira que Gabe era fácil de levar, como naquela noite em que o alimentara com toda aquela conversa acerca de que poderia ser um bom governador e dando a entender que os mineradores e seu ouro podiam fornecer-lhe o apoio financeiro de que necessitaria. Às vezes desejava ferilo, e às vezes... às vezes desejava apenas que as coisas tivessem sido diferentes. Uma brisa fresca soprava do mar e levantou as camadas de sua capa enquanto olhava para o Diácono e perguntava:
- O que aconteceu com seu jogo de pôquer? Seus parceiros ficaram cansados de perder?
- Algo assim.
Ela notou a mulher esquimó parada pacientemente atrás dele. Era uma mulher baixa e gordinha, que parecia ainda mais gorda devido ao casaco tipo parka que usava, feito de fazenda listrada, e um pesado par àe-mukluks em seus pés. Tinha a cabeça descoberta, o capuz do casaco em grossas dobras rodeando seu pescoço. A brisa deslocava fiapos de seus negros cabelos por sobre sua testa e redondas bochechas.
- Quem é sua amiga? - perguntou Glória ao Diácono com um sorriso maroto. - Poderia me explicar o que vê nela!
- Oh, sim! Quase esqueci... - Virou a cabeça para trás e fez sinal à mulher para dar um passo à frente. Assim ela fez, dirigindo um sorriso envergonhado a Glória. - Na verdade, eu a estava trazendo para você. Esta é sua nova criada. Eu a ganhei no jogo de pôquer.
- Você... o quê?
- Ela faz parte do que ganhei. Veja só! O velho garimpeiro não possuía dinheiro suficiente para cobrir minha aposta, mas estava convencido de que tinha uma mão para ganhar. Então apostou esta mulher esquimó e jurou que ela sabe cozinhar, costurar e cuidar da casa.
- Você quer dizer que ela era mulher dele?
- Não. Ele alega que a apanhou em Kotzebue, para ter uma mulher para cozinhar, remendar-lhe a roupa durante o inverno, e mantê-lo aquecido à noite. Isto eu suponho, embora ele não tenha dito. De qualquer forma, eu a ganhei. Você irá necessitar de alguém. Pensei que seria melhor você treinar uma das nativas daqui para cuidar de sua casa, cozinhar ou o que quer que precise. Ela fala um pouco de inglês.
- Isto já é um alívio. - Glória sabia que o Diácono estava certo; em breve iria necessitar de uma empregada. Mesmo assim, olhava a esquimó com alguma incerteza. - Ela tem um nome?
- Matty - disse a mulher, batendo com a mão no peito. - Eu chamo Matty.
- Bem, meu nome é Glória St. Clair. Acha que gostaria de trabalhar para mim, Matty?
- Pode apostar que sim, dona Glória. Matty trabalha duro e trabalha bem.
A lona branca dos lados e do teto da tenda filtrava o brilho do sol do meio da manhã, enquanto permitia que o interior ficasse iluminado por seus raios. Glória estava sentada num ancorote sobre uma almofada, ainda vestida com sua camisola de dormir de linho, seu decote em forma de "V" guarnecido de renda. Suas mãos estavam cruzadas sobre o colo, quase ocultas pela larga renda que enfeitava os punhos justos da camisola. Tinha os olhos fechados e sua cabeça balançava com as passadas ritmadas da escova de cabelo que Matty manuseava ao longo da cabeleira que lhe caía até a cintura, retirando o mingau de milho que fora usado para limpá-la.
O couro cabeludo sentia a passagem dos fios da escova, entretanto a escovadela era suave e calmante. Parecia aliviar a solidão que ultimamente a afligia. Pensava que parecia estranho sentir-se solitária quando estava rodeada por hordas de homens ansiosos para fazer-lhe companhia. E havia o Diácono para abraçá-la à noite, de forma que ela não tivesse que dormir sozinha, pelo menos nas noites em que ele não estivesse jogando uma partida de pôquer que se estendia como uma maratona. O forte, sossegado e nunca exigente Diácono, sempre por perto quando ela dele necessitava, nunca julgando-a. No entanto, havia um vácuo que ele não preenchia...
Era uma dor que não desaparecia. Ficara consciente dela desde que encontrara Gabe Blackwood, o bandido do seu pai. Era como ter saudades de casa, o que era ridículo. Jamais desejaria voltar para Sitka ou para aquela vida onde havia conhecido a verdadeira solidão. Deu um profundo suspiro.
- Eu puxar seu cabelo, dona Glória? - A escova parou a meio caminho.
- Não, Matty, você está escovando muito bem. - Na realidade a mulher esquimó era uma ajuda maior do que Glória a princípio pensara.
Reconhecia que Matty ainda tinha muito que aprender, porém, em menos de uma semana, Glória ficava pensando como teria se virado sem ela. Era esperta e aprendia depressa. Poucas vezes Glória tinha que ensiná-la a fazer uma coisa mais de uma vez. Era de trato fácil, sorria ou ria prontamente, até para si mesma. Glória lembrava-se do dia em que Matty havia experimentado nela seu chapéu estilo Gainborough, com as plumas de avestruz e o véu de bolinhas. Tornou-se uma figura tão engraçada que Glória não pudera conter o riso. Isto, porém, não tivera importância, pois Matty também se rira de sua imagem no espelho. Quando acabaram de rir, Glória havia rompido os cordões de seu espartilho. Ela nunca rira tanto com ninguém, certamente jamais com outra mulher. Naturalmente Matty achava que ela apertava demais os cordões do espartilho, e sempre a ajudava com a maior relutância, continuamente ralhando com ela enquanto o fazia.
Com exceção da mãe, Glória jamais tinha sido íntima de outra mulher. Embora soubesse que sua tia Eva a amava a seu modo doentio, as restrições que lhe impusera tinham sido rígidas demais. Havia bastante ressentimento para que Glória pudesse sentir um forte apego a ela. E Glória não se tornara amiga de nenhuma das pequenas da srta. Rosie. Havia entre elas rivalidade demais.
O Diácono era a única pessoa em quem confiava e respeitava. Ele era seu sócio de negócios e seu parceiro na cama, porém em pouco mais se associavam. No entanto, ela havia compartilhado de muitas coisas com justin Sinclair: todos seus sonhos e desejos, suas frustrações e ressentimentos. Ele sabia de tudo acerca do seu passado: quem e o que ela era e de onde tinha vindo. Rememorando, via a forma como haviam Ixtado juntos e se agarrado um ao outro para aquecer-se naquele frio quarto. De muitas formas, ele a havia liberado, mostrando-lhe uma nova forma de vida e lhe ensinado os prazeres de seu corpo. Houvera uma forte ligação entre eles; quando ele partira sem levá-la, ela ficara ferida e nunca o perdoara.
Glória tentou liberar-se daquele sentimento de autocomiseração e abriu os olhos para observar o espelho de pé. Distraidamente estudou a mulher esquimó em sua imagem refletida no espelho - como o perfil de seu rosto era chato, a petulância de seu narizinho, o arredondado das gordas bochechas.
Havia poucos detalhes que conhecia acerca de Matty. Tinha 25 anos; o marido e um filho haviam morrido das doenças do homem branco que dizimaram a população esquimó. Durante os últimos dois anos Matty vivera com um ou outro homem branco, a maioria garimpeiros procurando ouro nas correntes do norte e nos tributários do rio Yukon. Glória acreditava que Matty também se sentia solitária.
- Você tem qualquer família, Matty? Irmãos, irmãs?
- Não. Não ter nenhum. Povo da mãe em aldeia muito longe. Eu nunca ver.
- E seu pai e o povo dele?
- Pai homem branco.
- Então você é meio-branca. - Glória examinou o rosto de Matty, procurando em suas feições predominantemente esquimós por alguma indicação de sua ascendência mista, mas não encontrou nenhum vestígio.
- Ele baleeiro. Ele capitão - afirmou ela com ar de importância.
- Levar muitos homens da aldeia. Escolher minha mãe. Ele velho, mas bom para mãe. Ela gostar muito dele. Triste quando ele partir. Ela feliz quando eu vir.
- Você jamais o viu de novo? - Glória indagava-se se Matty havia crescido como ela, sem um pai.
- Ele não voltar. Eu ter nome dele.
- Como se chamava?
- Capitão Stone.
- Stone! - Glória voltou-se no assento para encarar incredulamente a mulher. - Caleb Stone? - Não; não poderia ser, compreendeu ela.
Ele teria morrido há muito tempo. Mas o nome despertou lembranças de incontáveis histórias que a tia lhe contara acerca do passado de sua família. Sem pensar, ela recitou os fatos que lhe haviam sido contados acerca de Caleb Stone. "A neta de Tasha, Larissa, casou-se com um capitão ianque chamado Caleb Stone e partiu com ele em seu navio. A família nunca mais a viu." Possivelmente ela se lembrava disso porque lhe parecera tão romântico ou porque sua ancestral havia escapado de Sitka, como ela desejava fazer. Mais tarde souberam que havia morrido. Espere um minuto: ela tinha um filho. Foi esse filho que voltou e contou à família. Ele era um baleeiro. O nome dele era Matthew... Matthew Edmund Stone.
- Eu Matthew. Mesmo como ele.
- Matthew... Matty. Meu Deus! Você compreende o que isto quer dizer? - Glória riu, não querendo acreditar; depois colocou a mão em frente à boca para conter-se. Era quase mais do que ela podia admitir de uma só vez. Procurou a mão que segurava a escova de cabelo e seguroua com ambas as mãos. - Você e eu somos parentas, Matty! Somos primas de terceiro ou quarto grau, talvez, mas... Não é espantoso? Dificilmente posso acreditar!
- Você prima minha? - repetiu Matty, incerta.
- Sim - anuiu Glória. - Somos da mesma família. Seu pai teria sido primo-irmão de meu bisavô, ou qualquer coisa assim... Só sei que você é trineta de Tasha e sou tataraneta dela. - Ela riu de novo, contente por sua descoberta.
A ela pouco importava que Matty fosse meio esquimó. Glória supunha que devia isto à tia que nunca a deixara envergonhar-se de seu próprio sangue misto.
- Seu pai não era branco - disse ela a Matty. - Ele era parte americano, parte russo e parte aleúte. Sou todas essas coisas mais tlingit. Ela continuava balançando a cabeça num gesto de contínua admiração.
- Matty, estou tão contente porque o Diácono ganhou você naquele jogo de pôquer. De outra forma nunca teríamos nos encontrado.
- Eu contente também - replicou Matty solenemente. - Agora tem serviço. Agora tem família.
- Sim. - Embora ela já tivesse dito isto, Glória ficou comovida com as palavras de Matty. Lágrimas assomaram-lhe aos olhos. - Ambas temos família agora.
A aba da tenda foi afastada e o Diácono enfiou a cabeça pela abertura. Ele parou do lado de dentro, deixando a cortina voltar ao lugar. Glória piscou para enxugar os olhos.
- Os trabalhadores estavam no serviço? - Ele havia saído mais cedo para verificar a construção.
- Sim. Eles deverão começar o serviço de acabamento depois de amanhã. - Ele parecia tão bem disposto, apesar do jogo de pôquer a noite inteira.. Ela se maravilhava tanto por sua infatigável energia, que lhe permitia passar tanto tempo sem dormir e não demonstrar cansaço.
- Você precisa encontrar-se com o homem do papel de parede esta tarde. Eu encontrei um amigo seu.
- Quem? - Tinha consciência de que Matty recomeçara a escovar seu cabelo.
- Seu amigo, sr. Blackwood. Ele pediu para vê-la. Está esperando de lado de fora.
Ela não o via desde a manhã da malograda reunião dos mineradores, há quase duas semanas.
- Diga a ele... - começou ela mal-humorada; depois reconsiderou a recusa que estava prestes a fazer - ,.. para entrar. Pegue meu roupão, Matty, e uma fita para meu cabelo.
Quando o Diácono levantou a lona e passou para o outro lado pela abertura, Matty trouxe o roupão cor de ametista e ajudou Glória a vestilo. Enquanto Glória abotoava a frente dele, Matty amarrava uma fita que combinava com o roupão e amarrou-lhe os cabelos.
Gabe Blackwood entrou no aposento e tirou seu chapéu, mantendo-o na mão à sua frente.
- bom dia. Espero que não a esteja incomodando. Deixando os botões de baixo da saia do roupão sem abotoar, Glória virou-se para ele.
- Você me incomodou mais por sua ausência. Já faz tanto tempo que não o vejo que começava a pensar se você falava a sério que gostava de minha companhia. - Depois de continuamente inventar razões para vê-lo, ela parara de propósito com esta prática para ver se ele viria procurá-la.
- Eu pensava que você finalmente se cansara de mim.
- Isto dificilmente seria verdade. - Ela armou-se com seu mais encantador sorriso e fez sinal para ele sentar-se numa das cadeiras de couro ao lado de uma de suas malas. - Por favor, entre e sente-se. - Ele hesitou, seu olhar voltando-se para Matty e o desagrado aparecendo em sua expressão. Percebendo que ele não desejava a presença de Matty, ela sugeriu à esquimó:
- Matty, veja se o sr. Colby tem algum café e traga-nos duas xícaras. Gabe esperou que ela saísse do aposento antes de aproximar-se da cadeira e dizer a Glória:
- Não me agrada a ideia de você ter uma índia por perto. Não se pode confiar em índios. Eles mentem, trapaceiam e também roubam de você se não fiscalizá-los.
- Matty é esquimó, não é índia. - Glória repetia a distinção tão frequentemente feita pelos esquimós nativos.
- É a mesma coisa. - Ele não parecia contente com a defesa que ela fazia da mulher esquimó.
- Não para um esquimó. - Há muito ciente do preconceito racial de Gabe, ela sorriu, com intenção de provocá-lo. - Que tal se eu lhe dissesse que Matty não é esquimó pura? O pai dela era um baleeiro ianque.
- Ela ficou tentada a dizer-lhe que ela e Matty eram parentas, mas não Queria revelar sua identidade.
- Mestiça ou índia não faz nenhuma diferença. Não perco tempo Discutindo as tolices pregadas pelas alminhas misericordiosas como Sheldon Jackson acerca dos maus-tratos dos índios do Alasca pelo homem branco. Os índios são um monte de imprestáveis que deveriam ser embarcados para uma reserva em algum lugar longe daqui.
- Nunca imaginei que você tivesse uma opinião tão forte a respeito.
- Nenhum deles merece confiança. Se pudéssemos livrar-nos deles não haveria mais necessidade do Exército estar por aqui. Os militares têm sido a maldição do Alasca desde o princípio. Não precisamos de nenhum tenentinho de nariz arrebitado dizendo-nos o que podemos ou não fazer. Somos perfeitamente capazes de nos governar sem nenhuma interferência deles.
- Ouvi falar na reunião dos mineiros - disse Glória, sentando-se na mala ao lado da cadeira dele.
- Então sabe que fomos dispersados a ponta de baioneta. - Sua raiva pelo incidente permanecia fresca. - O atrevido daquele tenente ameaçou de fato usar de força para evacuar a tenda e proibiu a realização de quaisquer outras reuniões.
Ele omitiu que o propósito da reunião fora anular todas as concessões de mineração existentes no distrito, declarando os cursos d'água livres para novas marcações. Nem disse-lhe que, junto com certos parceiros, tinha arranjado para alguns de seus amigos acamparem em Anvil Mountain, aguardando que um sinal de fumaça avisasse que o negócio fora levado avante, permitindo assim que marcassem as melhores concessões. Mas Glória sabia do plano; decidira que era de seu interesse saber de tudo aquilo em que Gabe Blackwood estivesse envolvido.
- Sei que o Exército desde então decretou a proibição do porte de pistolas ou revólveres - observou Glória.
- É uma ordem impossível de ser cumprida e fiscalizada. Mineradores arruinados do Klondike estão chegando em Nome às centenas. Os conveses de todos os barcos que descem o Yukon estão abarrotados. Ninguém, e certamente não um punhado de soldados, será capaz de desarmar esses veteranos. E, acredite-me, após terem fracassado no Klondike, não estão se sentindo muito felizes em chegar aqui e descobrir que todas as concessões lucrativas já foram marcadas por alguns estrangeiros. Eles acham que têm direito a invadir essas concessões, e não os culpo.
- Você tem se ocupado recentemente tentando resolver disputas entre proprietários, antes que elas resultem em derramamento de sangue. Pelo menos foi o que me disseram. - Ela também ouvira dizer que várias das invasões eram simplesmente um meio de chantagem, já que o verdadeiro dono preferia pagar o invasor a ver sua concessão embargada até que um juiz pudesse decidir o caso. Até o momento o único juiz estava em Sitka e ninguém sabia ao certo quando ele viria por aqui.
- É por isso que não tem aparecido para me ver? - perguntou ele.
- Quando você tinha tantas coisas importantes para ocupar seu tempo, não seria correto de minha parte forçá-lo a tolerar minha companhia. - Ela estudava suas mãos caprichosamente cruzadas, evitando o curioso olhar.
- Minha cara: você nunca me impingiu sua companhia. - A cadeira geemeu quando ele mudou de posição, inclinando-se para ela. - Quando aparece para me ver, é sempre o ponto alto de meu dia. Fico à espera de que venha.
Você não imagina o quanto significa para mim ouvi-lo dizer isso.
Desejo tanto que você goste de mim. - O tremor na voz dela era genuíno. Glória sabia que ele dizia a verdade. Apesar de odiá-lo pela forma como havia tratado sua mãe, abandonando-a e à sua criança ainda por nascer, ainda desejava que ele gostasse dela, que realmente criasse uma amizade profunda por ela. Desejava saber que ele poderia tomar conta dela. Entretanto, de uma forma aloucada, ela desejava vê-lo destruído também. Sabia que cabia a ela fazê-lo, caso o desejasse.
- Gosto de você, Glória, muito mesmo. - Ele cobriu as mãos dela com as suas, como se tentando assegurar-lhe a sinceridade de suas palavras. - Quase desde o primeiro momento em que nos encontramos, eu me senti ligado a você, que veio a significar muita coisa para mim. É verdade: sou sincero nisso!
Fingindo ter ficado agitada, ela livrou suas mãos das dele e ficou de pé, afastando-se um pedasso e ouvindo o rangido da cadeira dele, que denotava que também se havia levantado.
- A gente da cidade está falando de nós. Você sabe disso, não sabe?
- Fez uma pausa, consciente da presença dele atrás dela. - Dizem que estamos tendo um caso.
- Que tolice! Nunca fui além de beijar-lhe a mão.
- Sei disso - disse ela, voltando-se rapidamente para encará-lo.
- Mas lembre-se de quem eu sou. Se você visse uma prostituta bem conhecida na companhia de um mesmo homem, dia após dia, acreditaria que seu relacionamento era platónico? Não, eu não acho. Nem eles.
- Não deve se perturbar por línguas viperinas. - com gentileza, agarrou-a pelos ombros.
- Você não compreende: não é por mim que me preocupo. É por você. O futuro governador do Alasca não deve ser visto com a notória Glória St. Clair. Tão logo ouvi os rumores, compreendi que não deveria mais vê-lo.
- Não sabia que você me considerava tanto.
- Considero. - E ela segurou as mãos dele. - Jamais desejei ferilo, Gabe. Acredite. Apenas desejava que gostasse de mim como pessoa, como um ser humano com sentimentos e necessidades, como todo mundo Você sempre me tratou com cortesia e respeito. Nunca saberá o quanto isto significa para mim.
- Minha doce e querida pequena! Você não me ofendeu. Você me deu alegria demais. Deixe que as pessoas falem. Eu não ligo nem um pouco Para o que dizem.
- Diz isso apenas para me animar. - Ela afastou-se um pouco para encará-lo, fazendo um ligeiro beicinho.
- Se eu estivesse preocupado com o que as pessoas poderiam dizer, não? estaria aqui agora. Meia dúzia de pessoas viram-me entrar em seu Quarto há alguns minutos.
- Você sabe o que eles pensam que estamos fazendo aqui, não sabe?
- Ela sorriu da forma mais marota possível.
- Acho que sim.
- Ora, Gabe! Acho que você está corando. - Ela riu. - É isso o que gostaria de fazer comigo?
- Creio que está bolindo comigo, srta. St. Clair.
Embora sua sugestão o houvesse encabulado um pouco, ela percebeu o olhar de Gabe: o hesitante desejo de um velho incerto de sua capacidade. Ela poderia levá-lo para a cama; aprendera bem demais sua profissão para não saber como induzir um homem a isso. com homens mais velhos, especialmente os cheios de cerimónias, era quase como seduzir um homem virgem; ambos tinham de ser levados como crianças. Essa era a razão pela qual ela evitava a ambos quando podia.
Ela largou as mãos dele antes que ele sentisse seu arrepio de nojo.
- Foi uma brincadeira maldosa de minha parte, não foi? - disse ela sorrindo enquanto se afastava, andando até a barriquinha ao lado do leito e apanhando um maço de cigarros turcos. Do lado da tenda onde ficava o "bar" várias vozes elevaram-se excitadas, mas Glória estava por demais acostumada ao constante barulho para prestar-lhe muita atenção.
- O que você pensa que é todo esse barulho? - perguntou Gabe.
- Talvez alguém esteja ganhando na mesa de faraó - disse Glória, encolhendo os ombros e acendendo um fósforo. Quando ela erguia o fogo para a ponta de seu cigarro, Matty voltava com duas canecas de estanho de café. Glória tragou o cigarro para acendê-lo e depois soprou a fumaça a fim de apagar a chama. - Que agitação é essa toda lá na frente, Matty?
- Apareceu um homem. Disse que encontrou ouro na areia. - E descansou o café no caixote que servia de mesa.
- Ouro? Na areia? Não me diga que a gente está acreditando numa história dessas! - escarneceu Glória e no mesmo momento notou que as vozes haviam diminuído.
- Todo mundo está saindo. Vá ver - replicou Matty. Curiosa, Glória andou até a abertura da tenda e afastou um pouco
a lona para enxergar o bar. Estava deserto. Passando pela lona levantada da entrada, ela podia ver uma fila contínua de gente em marcha, todos em direção à praia.
- Você acha que poderia ser verdade? - perguntou ela a Gabe, voltando-se para ele.
- Vestígios de ouro já foram achados na areia das praias em outros lugares na península de Seward - disse ele. - Os faiscadores de ouro usam isso como uma indicação de possíveis ocorrências de ouro no interior.
Glória olhou de novo para os mineiros passando pela tenda e disse:
- Vamos ver o que eles acharam.
Ela atravessou o quarto, deixando cair o cigarro recém-aceso na caneca de café quando passou pelo caixote, depois agarrou um xale de uma pilha de roupa em cima de uma mala. - Você vem?
Não ligou para a desaprovação no olhar dele pela sua negligência em vestir-se antes de aventurar-se na rua. No que tocava a ela, achava-se decentemente vestida. Arrumou o xale em volta dos ombros e dirigiu-se para a abertura, com Matty nos seus calcanhares. Relutantemente, Gabe seguiu-a.
Chegados à rua, foram envolvidos pela corrente humana que se movia em direção à praia. Os céticos moviam-se vagarosamente, dando risadinhas por causa dos crentes que se desviavam e furavam a multidão, apressando-se para chegar lá primeiro. Aqueles que não eram céticos nem crentes, mas que se situavam entre os dois, como Glória, caminhavam depressa, igualmente receosos de fazer papel ridículo caso não houvesse ouro e temendo não mais encontrá-lo, se houvesse. Como lemingues, eles nunca se afastavam de sua corrida em direção ao mar.
A área da praia imediatamente do lado de fora da cidade estava semeada de pequenas barracas de lona montadas pelos mineiros empobrecidos, recém-chegados do Klondike. Seu acampamento já estava cheio de gente escavando na areia quando Glória alcançou-os. Ela apertou o passo, procurando uma área menos densa para evitar os empurrões.
Viu um garimpeiro barbado reunir alguma areia em sua bateia e levála para a beira do mar. Quando ele se agachou, sentando-se em cima dos calcanhares, para lavar a areia na bateia metálica, Glória apressou-se, andando pela areia molhada e endurecida pelas ondas, a fim de observar o resultado. Ficou de pé atrás dele, observando-o por cima do ombro, enquanto o garimpeiro pacientemente mexia a água para lá e para cá, deixando os grãos mais leves de areia saírem pelo lado junto com a água, reduzindo vagarosamente a quantidade de areia na bateia e deixando o ouro mais pesado - se ali houvesse algum - assentar no fundo. Era um processo tedioso.
Os nervos de Glória irritaram-se com a demora e ela perguntou, impaciente:
- Há algum ouro nas areias?
Não foi preciso nenhuma resposta do garimpeiro, pois ela viu o reluzir do ouro em pó no fundo da bateia, não muito, o bastante para encher a parte de baixo de uma unha. Mas se aquilo existia no conteúdo de uma pá de areia, quanto mais poderia ser achado? Ela agarrou as beiradas de sua camisola e de seu roupão e correu de volta para Matty.
- Há ouro por aqui. - Ela falou num tom baixo de voz, como se fosse um segredo que pudesse ser escondido da gente que formigava por toda a praia, procurando a mesma coisa. Ela agarrou e apertou o braço da mulher com ambas as mãos. - Vamos ficar ricas, Matty! - Por um instante, cedeu ao entusiasmo que se apossara dela e abraçou Matty. O ouro é nosso. Por uma vez na vida os Tarakanov vão ser ricos.
- Dona Glória está bem? - perguntou Matty, preocupada com ela.
- Estou bem - disse ela e soltou uma breve exuberante risada. Você fica aqui. Eu volto tão ligeiro quanto puder.
As notícias confirmando a presença de ouro na praia tinham-se esPalhado rapidamente. Glória teve de disputar seu caminho de volta para a cidade contra uma torrente de garimpeiros, comerciantes, donos de bares e jogadores, que agora se juntavam ao estouro. Embora ela buscasse ver o Diácono, não perdeu tempo procurando por ele. Não sabia para onde Gabe tinha ido e não se importava. Comprou uma pá, um balde de zinco enferrujado, um pouco de mercúrio e um grosseiro aparelho de lavar ouro tipo "berço", de um comerciante cujos caixeiros o haviam desertado. Sem ninguém para ajudá-la a transportar seu equipamento recém adquirido até a praia, ela teve que lutar para carregá-lo.
Lá pelo meio da tarde, ela e Matty continuavam trabalhando em sua "concessão" e as primeiras palhetas de ouro estavam amarradas bem apertadas em um lenço de seda no bolso de seu roupão. Glória tinha inventado um sistema: ela jogava uma pá de areia cor de rubi no aparelho de madeira, que parecia um berço de criança; Matty enchia o balde com água do mar e derramava-a por cima da areia, enquanto Glória balançava o "berço" para frente e para trás, tão vigorosamente quanto podia, e Matty puxava para fora a areia que sobrava.
O princípio do "berço" era simples: a água lavava a areia mais leve através do depósito e do fundo; o ouro, mais pesado, ficava preso nas ranhuras do "lavadouro" que ficava no fundo do berço; as palhetas mais finas de ouro ficavam presas na placa de cobre revestida de mercúrio no fundo do aparelho.
Apesar da fresca brisa que soprava do mar, o suor escorria da pele de Glória. Enquanto Matty entrava dentro d'água para encher o balde metálico, ela encostou a enxada de encontro ao berço e endireitou-se, apertando uma das mãos contra a dor localizada na parte inferior de suas costas. Sentia a rigidez de seus músculos e pensava quanto tempo fazia desde que havia trabalhado na horta de sua tia. Limpou a transpiração que escorria pelo rosto com a mão e sentiu a ardência de um calo que rebentara na palma de sua mão. Rasgou uma tira de pano da bainha da camisola e enrolou-a em torno das mãos para protegê-las.
- Eu deveria ter comprado umas luvas - disse para Matty quando a esquimó voltou com o balde d'água. A visão da água balançando no balde a fez lembrar-se de como sua boca estava seca. - Deveria também ter trazido água para beber.
- Quer eu pega água?
- Não. - Glória engolia com dificuldade. - Agora não podemos parar. Ela fez um sinal com a mão embrulhada no pano para Matty derramar a água no "berço". - Mais tarde. Mais tarde descansaremos.
O sol de verão permanecia no céu para observar a atividade enlouquecida pelo ouro que se desenvolvia na praia, às vezes se escondendo atrás de uma nuvem para rir-se de um mundo que se tornara insano. Ao longo de toda a linha da costa do lado de fora da cidade homens formavam uma faixa ao longo da praia, cavando sua areia à procura de ouro. Alguns eram magros e barbudos mineradores - garimpeiros - há muito vítimas da febre do ouro, experimentados e amadurecidos no trabalho paciente e esgotante necessário para separar o brilhante metal da areia. Outros eram mercadores, comerciantes, jogadores, homens de várias profissões, como advogados e outros, homens que raramente tinham segurado uma enxada ou que jamais viram sujeira sob suas unhas. Toda a espécie de ferramenta era usada em seus frenéticos esforços para extrair o ouro da areia. Os que não tinham pás usavam as mãos para apanhar a areia aurífera. Grandes latas de zinco assumiam o lugar de baldes para retirar a água do mar. Quem não tinha "berço" usava as velhas e padronizadas bateias de ouro, ou em vez delas usavam tábuas de lavar roupa para segurar o ouro em suas ondulações metálicas. Alguns poucos construíam caixas de madeira para separar o metal da areia.
Quando o sól começou a deslizar para baixo, no seu ponto mais próximo ao horizonte nebuloso, Glória arriou-se ajoelhada ao lado do "berço" de madeira. Seus músculos tremiam de cansaço após sacudir constantemente o "berço" e alimentá-lo de areia. Cansada e com o corpo dolorido, ela não confiava em suas mãos e em seus dedos trémulos para retirar o ouro aprisionado no lavadouro do aparelho.
- Preciso descansar um minuto - disse ela a Matty, que parecia imune à fadiga que dominava Glória. Lambendo os lábios secos e respirando em profundos e cansados haustos, ela propôs a Matty: - Por que não vai até a cidade e nos traz um pouco de água e comida? Traga também alguns cobertores. Iremos dormir aqui esta noite. - Ela não queria que ninguém viesse à noite roubar seu equipamento.
Depois que Matty colocou o balde ao lado do "berço" e partiu para a cidade, Glória deixou o corpo cair sobre a estrutura de madeira do aparelho e resolveu parar alguns minutos para regularizar sua respiração e recuperar a força. com seu rosto descansando na madeira tosca de um dos lados do aparelho, ela observava o ouro preso em seu fundo. O metal brilhava, refletindo a luz, quase parecendo piscar para ela. Sonhara com isso desde criança, quando ficava maravilhada pela ornamentação de ouro e de prata do interior da catedral de São Miguel, e quando ouvia as histórias dos garimpeiros e via as amostras do minério de ouro.
Endireitando-se, meteu a mão no bolso e tirou o lenço de renda onde estava seu ouro. Colocou-o no fundo do "berço" e cuidadosamente desamarrou-o. Suas mãos estavam firmes quando ela com todo cuidado transferiu os grãos de ouro aprisionados nas frestas do fundo para a pequena pilha em seu lenço. Quando estava de novo amarrado com segurança, ela segurou o precioso pacote contra o peito e apertou-o ali. Lágrimas enchiam-lhe os olhos enquanto ria e chorava ao mesmo tempo. Desejava ouro. Agora o tinha.
Alguém tocou seu ombro. Em pânico, Glória agarrou a pá que estava encostada no "berço" e lançou-se contra o ladrão que iria roubar-lhe o ouro.
O homem pegou o cabo de madeira da pá antes que o atingisse.
- Pelo amor de Deus, Glória! Sou eu!
- Diácono! - A pá subitamente pareceu-lhe pesada, e ela deixou Que ele a tirasse de suas mãos e a pusesse de lado.
- Eu pensei... - Era óbvio o que ela pensara e ela riu-se aliviada.
- Estou contente de ser você. Onde tem andado?
- À sua procura. Encontrei-me com Matty e ela me disse onde poderia achá-la. - Ele agachou-se ao lado dela, sentado sobre os calcanhares, e limpou alguns grãos de areia das pernas de suas calças. - Não precisa preocupar-se acerca de encontrar o empapelador. Ele está em algum lugar por aqui, nesta loucura.
- Há ouro, Diácono; ouro aqui mesmo nesta areia. Você se lembra de quantas vezes passeamos por esta praia? E ele estava bem debaixo de nossos pés o tempo todo!
- Você faz alguma ideia de sua aparência?
Glória começou a limpar os grãos de areia que cobriam seu roupão, mas havia demais. Aquele ato chamou-lhe a atenção para as sujas tiras de pano que estavam enroladas em suas mãos e a imunda bainha de sua camisola que aparecia por baixo do veludo do roupão. Seu cabelo solto espalhava-se por suas costas e seus ombros, sujo e todo embaraçado pelo vento.
- Estou horrível - concordou ela.
- Só horrível? - ele zombou da expressão dela e levantou uma de suas mãos, provocando uma careta de dor em Glória quando a pressão da mão dele apertou um calo aberto. - Olhe para suas mãos. Seus dedos estão todos vermelhos e arranhados. As unhas estão quebradas e sem dúvida esses trapos estão cobrindo calos. Seu rosto está queimado pelo vento. Eu poderia continuar...
- Minhas mãos vão curar-se e um banho se encarrega da sujeira. E isto comprará todas as roupas novas de que necessito. - com um gesto de desafio, ela levantou o lenço com nó que continha seu ouro.
- Quanto você tem aí? - perguntou ele, puxando-o de sua mão. Ela não fez nenhuma tentativa de agarrá-lo de volta; em vez disso, ficou a observá-lo ansiosa, enquanto ele o sopesava na mão, avaliando seu peso.
- Cinquenta dólares, provavelmente menos - e ele jogou o lenço no colo dela. - Isso é tudo o que você conseguiu?
- Por enquanto. - Sua descoberta de ouro era uma coisa a comemorar, mas o Diácono a ridicularizava.
- Há quanto tempo está trabalhando nisso?
- Desde um pouco antes do meio-dia.
- Você trabalhou por mais de dez horas por cinquenta dólares. Ele sacudiu a cabeça, desgostoso. - Glória, você faz mais do que isso numa noite deitada de pernas abertas...
Ela negava-se a olhar para ele. Subitamente, o Diácono que nunca antes a tratara com brutalidade, agarrou-lhe o braço, obrigou-a a ficar de pé e depois virou-a com violência, fazendo-a olhar a praia atulhada de gente.
- Se é ouro o que você deseja, Glória, lá está ele: nos bolsos dos tolos ali cavando a areia da praia, como um monte de moluscos enlouquecidos! Você sabe o que eles vão fazer com seu ouro? Vão gastá-lo. Vão fazer a maior farra que já fizeram em sua vida... bebendo, jogando e gastando com mulheres. E quando aquele ouro tiver acabado, eles vão voltar para cá, cavar mais um pouco e repetir tudo! Jamais encontrei um garimpeiro rico, não importa quanto ouro ele tenha descoberto. Talvez haja um em mil que não morre falido, mas o resto morre.
Ele voltou-se para ela, os dedos cravados em seus doloridos músculos dos ombros. Glória ficou olhando a gravata preta do Diácono, incapaz de enfrentar o brilho agressivo daqueles duros olhos azuis.
- De uma forma ou de outra, vou ter o Palácio aberto para fazer negócio quando eles vierem à cidade comemorar, mesmo que tenha de colar aquele maldito papel de parede eu mesma. Terei certeza de que eles acharão um lugar para gastar seu ouro. Vai me dar um trabalho danado; você vai me ajudar?
Glória tinha consciência do lenço pesado de ouro em sua mão; era a realização de seu sonho.
- Você não entende, Diácono - insistiu ela. - É o meu ouro. Abruptamente ele a largou, fez meia-volta e foi embora. Ela lutou contra as lágrimas de frustração e ressentimento quando o viu partir. Olhou para o lenço de renda em sua mão e apertou ainda mais os dedos em volta dele.
Depois de algumas horas de sono interrompido, embrulhada num cobertor na areia, Glória levantou-se tão rígida e dolorida, que qualquer movimento era uma tortura. Em toda a praia, para um lado e para o outro, havia atividade, alguns dos homens trabalhando durante as horas crepusculares do meio da noite. Mas o ouro esperava. Ela acordou Matty. Alguém ali pela praia estava fazendo café e fritando toucinho defumado. Glória podia sentir o cheiro, mas decidiu-se por um pouco de água meio choca e um pedaço de pão de garimpeiro, que sobrara da refeição da noite passada, e sacudiu a cabeça negativamente à tira de gordura que Matty quis partilhar com ela.
Tão logo engoliu o último pedaço de pão seco com um gole d'água, Glória recomeçou a trabalhar. Seus músculos protestavam cada vez que levantava a pá para colocar areia no "berço", ou agarrava a estrutura de madeira para sacudi-lo. Finalmente, trocou de lugar com Matty e começou a carregar água para o aparelho. Durante algum tempo isso pareceu mais fácil, mas após algum tempo o balde cheio d'água pareceu tornar-se cada vez mais pesado.
A alça de arame do balde cortava-lhe dolorosamente a palma da mão com os calos abertos, a despeito da atadura que amarrara em torno dela. Quando Glória tentou passar o balde para a outra mão, ela por acidente Pisou num pedaço rasgado da bainha da camisola que se arrastava atrás dela; suas pernas se embaraçaram e ela caiu, derramando a água.
Frustrada, cansada e dolorida, ela ficou ali ajoelhada. Sentia-se cheia de areia por toda a parte. Suas roupas estavam tão sujas e impregnadas de areia que nunca mais poderiam ser limpas, mesmo se os rasgões pudessem ser remendados. A água do mar estragara seus sapatos de couro. Seu cabelo estava tão embaraçado que ela sabia que quebraria meia dúzia de pentes se tentasse desenredá-los.
Matty deixou cair a pá e correu para ela:
- Eu ajudar - disse e enfiou as mãos debaixo dos braços de Glória.
- Não tenho forças para me levantar - lamentou-se Glória.
Ela pensava que não teria forças para ficar de pé; tudo o que desejava era cair na areia e chorar. Matty, entretanto, havia trabalhado tão duro e por tanto tempo quanto ela e não se queixava. Espicaçada por um sentimento de culpa, Glória conseguiu erguer-se, ajudada pelo apoio das mãos de Matty. Quando Matty abaixou-se para pegar o balde virado, Glória impediu-a.
- Deixe-o. Vamos nos contentar com o ouro que conseguimos até agora - disse ela e forçou suas pernas pesadas como chumbo a conduzila até o lavador.
No dia anterior, ela limpara o ouro das canaletas quase depois que cada pá de areia havia sido lavada. Agora imitava mineradores ao redor, deixando o ouro acumular-se nas estrias. A areia da praia não tinha pepitas, apenas ouro fino ou "farinha", como era chamado. Cuidadosamente, ela o raspou das canaletas de madeira e juntou-o ao pó de ouro que já estava no lenço.
Desanimada, olhou para o pequeno montinho de poeira amarela.
- Não adianta. Todo esse trabalhão, e provavelmente só temos uns oitenta dólares. O Diácono estava certo, Matty. - Ela contemplou o trecho de praia que a rodeava, atulhado de homens baleando, operando "berços" e balançando-os à procura de ouro. - O ouro em Nome está nos bolsos destes homens; ali é onde nós devemos minerá-lo, em vez de fazêlo na areia. - Levantou-se, colocou as mãos em concha ao lado da boca e gritou: Ei, pessoal! Alguém está interessado em comprar um "berço" e uma pá? Os meus estão à venda!
Diversas cabeças se viraram na direção dela. Em breve, uma dúzia de mineiros em potencial se reuniu à sua volta, na maioria gente da cidade sem as ferramentas próprias ou o conhecimento ou a habilidade para construir "berços" ou caixas de madeira com a madeira jogada pelo mar que havia na praia. Glória vendeu tudo o que tinha: o "berço", a pá, o balde enferrujado, o frasco de mercúrio e até o cobertor, conseguindo o dobro do que havia pago por tudo... e em ouro em pó.
Quando os compradores se aproximaram para levar suas compras, Glória passou o braço em volta do de Matty e disse-lhe:
- Vamos para o Palácio. O Diácono deve estar lá. Depois quero um banho e uma refeição quente.
- Ei, espere um minuto! - Um homem de barba em desalinho dirigiu-se a ela.
- Desculpe, moço. Está muito atrasado; já vendi tudo - disse ela, continuando a andar.
- Marisha, espere!
Ela estacou ao ouvir seu nome de batismo. Ninguém a conhecia a não ser... Ela voltou-se e encarou o maltrapilho garimpeiro. Um chapéu de feltro desbotado e sujo cobria-lhe o cabelo, que estava crescido e enrolado por cima do colarinho da camisa xadrez e do sujo paletó; suspensórios seguravam-lhe as calças folgadas, grosseiramente remendadas nos joelhos. A barba completa e o bigode cobriam-lhe a maior parte do rosto, tornando sua idade quase indefinível, mas em seus olhos havia qualquer coisa de familiar.
- É você! - declarou ele. - Eu sabia que não podia haver no Alasca duas mulheres com o cabelo assim.
- Justin? - aventurou ela tentativamente. Apenas os olhos e a voz eram reconhecíveis.
Ele apalpou a espessa barba como se consciente da mudança em sua aparência.
- Creio que não sou mais um cheechako. Pareço um peludo e velho garimpeiro agora, não é? Passamos uns dois invernos no interior e ficamos assim. Chega até um ponto em que nem se olha para o que se come para continuar vivo.
- Sim... - Ela ouvira algumas histórias da vida dura contadas pelos garimpeiros veteranos, chamados sourdough por causa do fermento caseiro que usavam no lugar do fermento normal para fazer seu pão e sua bebida. Homens que eram velhos em experiências, mas não necessariamente maduros.
Glória continuou olhando-o, consciente da ironia daquela reunião. Sempre cismava se Justin iria reconhecê-la. No entanto, sua aparência agora - vestida com roupas sujas e sem qualquer feitio, o cabelo embaralhado e o rosto sem nenhuma maquilagem - era a da desmazelada Marisha Blackwood que ele conhecera. Era até possível que estivesse pior do que na última vez em que ele a vira. Não fora assim que imaginara seu reencontro.
- Não acredito que esteja aqui - disse Justin, sacudindo a cabeça com ar descrente. - Cheguei há apenas dois dias. Recebeu minha carta?
- Sua carta? Não, eu... não recebi nada, exceto aquela nota que você me deixou quando partiu para o Klondike.
- Eu simplesmente não podia levá-la comigo. - O olhar dele demonstrava hesitação. - Na verdade, o que aconteceu foi que aquele primeiro inverno foi horrível. Não era lugar para uma mulher. Eu estava preocupado que você talvez tivesse vindo por sua própria conta, em vez de permanecer em Skagway.
- E eu pensava que você provavelmente tivesse me esquecido.
- Não - disse ele, sorrindo, a pesada barba e o bigode se abrindo Para mostrar os dentes. - É óbvio, acho, que nunca acertei em cheio com ? ouro. Quando ouvi dizer que tinham encontrado ouro aqui, escrevi a você dizendo que vinha tentar a sorte em Nome. É claro que você nunca recebeu essa carta.
- Não. - E ela não a teria recebido, mesmo que estivesse em Skagway, porque a carta fora endereçada a alguém que há muito não existia.
- Ei, Glória! Você vai trabalhar com esse pedaço de areia? - Q grito viera de um minerador de cabelos grisalhos, de pé com seus parceiros no pedaço de praia que Glória demarcara.
- Não. Pode ficar com ele - gritou ela em resposta e depois notou o ar de perplexidade no rosto de Justin.
- Como foi que ele chamou você?
- Glória. Este é agora meu nome. Mudei-o para Glória St. Clair. O último nome eu tirei de você; pareceu-me justo, uma vez que você também tirou coisas que me pertenciam... - Ela observou o olhar de choque e descrédito que se espalhou pelo rosto dele.
- Você é Glória St. Clair? - O olhar de Justin corria pelos cabelos desgrenhados dela, por suas roupas sujas e rasgadas e por suas mãos cobertas de ataduras.
- Dentro de duas horas serei Glória, após ter tomado um banho e mudado de roupa. - Subitamente, ela não queria mais continuar a conversa, não enquanto tivesse aquela aparência. - Por que não nos encontramos esta noite?
- Certamente... - Ele ainda estava meio aturdido para absorver tudo aquilo. - Onde a encontrarei?
- Pergunte a qualquer pessoa na cidade; todos sabem onde moro.
- Ela sorri u enquanto começava a afastar-se, agora ansiosa para partir.
- Vamos, Matty.
- Verei você mais tarde - falou Justin, parecendo confuso e incerto, devido à surpreendente revelação.
- Ele... amigo? - perguntou Matty enquanto avançavam com dificuldade pela areia macia em direção à cidade.
- Sim. Conheci Justin há muito tempo. Ou pelo menos parece um longo tempo. - Ela desejava saber o que ele dissera naquela carta que lhe escrevera.
- Melhor ver ele. Eu não gostar do velho - declarou Matty, em óbvia referência a Gabe Blackwood.
Glória não fez nenhum comentário, guardando silêncio acerca de suas razões de ver Gabe. Ela adivinhava que Matty sentia sua aversão preconceituosa, por ela ou por qualquer pessoa de origem nativa, mas ela não tentou explicar sua atitude. Tinha coisas demais em que pensar agora.
Pararam primeiro no Palácio. Pelo lado de fora o edifício parecia completo, até mesmo o grande cartaz dourado que anunciava seu nome em caprichadas letras. Pelo lado de dentro, porém, muitos toques de acabamento ainda estavam para ser completados. As paredes continuavam em sua alvenaria grosseira. Os espelhos, as pinturas e os apliques de parede ainda não estavam afixados, mas as mesas de jogo recém-chegadas e suas cadeiras estavam colocadas na área de jogo; o arremedo de salão estava arrumado com poltronas e banquetas estofadas.
Não se via nenhum trabalhador; o lugar estava em silêncio. Glória estava quase achando que o Diácono, afinal de contas, não se achava ali.
Então ela ouviu o retinir de um copo vindo do bar de madeira trabalhada, que haviam importado de San Francisco.
- Diácono? - gritou ela, hesitante.
Ele levantou-se de trás do bar, sem paletó, os punhos da camisa branca enrolados, exibindo os antebraços nus. Seus dedos estavam enfiados nas alças de três canecas de cerveja e ele não sorriu ao vê-la. Glória parou, incerta quanto a ser bem recebida ou não.
- Vejo que finalmente recuperou seu bom senso - observou ele secamente, e voltou-se para depositar as canecas na prateleira atrás do bar espelhado. - Chegou exatamente na hora de dar-me uma ajuda para desempacotar estes copos. Posso usar você e Matty também.
- Neste minuto não posso. Nem tampouco Matty, pois vou precisar da ajuda dela - disse prontamente Glória. - Não estava certa se você ainda me queria como sócia.
- Seu dinheiro também está aplicado neste lugar.
- Antes que se comprometa, há algo que você deve saber; encontrei na praia um velho amigo. Vamos nos encontrar esta noite. Preciso da ajuda de Matty para me arrumar, de forma a parecer mais apresentável.
- E é por isso que não pode ajudar-me a preparar a casa para ser inaugurada - adivinhou o Diácono. - Obviamente esse "velho" amigo é um jovem.
- Sim. - Ela não queria perder a amizade do Diácono. Também não queria mentir para ele. Embora não soubesse como iria acabar a noite com Justin, o Diácono devia saber que Justin era alguém muito especial, e ela preferia que soubesse disso desde o princípio.
Ele pareceu hesitar um momento e depois disse:
- Não tenho nenhum direito sobre você, Glória. - E encolheu os ombros, surpreendendo-a com a indiferença de seu gesto. - Quando não precisar mais de Matty, diga a ela para trazer minhas coisas para um dos quartos do segundo andar aqui.
Ela sentiu uma ferroada de desapontamento por ele cedê-la assim tão facilmente para outro homem. O que de certo modo era idiota, considerando que ele nunca fizera a menor objeção à profissão dela. Mas Justin não era um freguês.
- Farei isso. - E, depois de uma hesitação: - Diácono, eu...
- Você não tem que me dar nenhuma explicação - interrompeu ele. - Vá encontrar seu amigo ou fazer com ele o que quer que deseje fazer. Tão logo se livre disso, tanto mais cedo você voltará aqui para me dar uma mão. Quero inaugurar a casa amanhã.
- É claro. - Ela nada mais tinha a dizer, embora desejasse que houvesse algo que a fizesse se sentir melhor sobre o assunto. Tentando descartar-se de qualquer sentimento de culpa, voltou-se e saiu, acompanhada de Matty.
De volta a seu alojamento no Double Eagle, Glória conseguiu assegurar-se do uso de uma banheira. Enquanto Matty trazia água do rio Snake, que era a fonte de água potável para Nome, e a aquecia num fogão atrás do bar, Glória penteou o cabelo embaraçado, seu couro cabeludo doendo dos puxões que dava nas raízes dos cabelos. Quando a banheira estava cheia, ela se despiu e ordenou a Matty que queimasse as roupas. Em seguida, ensaboou-se e esfregou-se até parecer que seu corpo estava em carne viva.
Depois, Matty esfregou-a com óleos perfumados e escovou o cabelo até ficar.seco. Ajudou-a a vestir-se, apertando os cadarços do espartilho e abotoando o vestido de cetim vermelho com o escandaloso decote que Glória vinha guardando para usar na estreia do Palácio. A despeito de todos os bálsamos e cremes que aplicou, nada pôde ser feito por suas mãos feridas e inapresentáveis, de forma que as escondeu num par de luvas compridas que subiam até acima dos cotovelos. Uma camada de pó-de-arroz disfarçava a vermelhidão do rosto queimado pelo sol e pelo vento.
Finalmente pronta, mandou Matty reunir as coisas do Diácono e leválas para o Palácio; depois sentou-se à espera de Justin. Por uma centena de vezes, segundo lhe pareceu, verificou sua imagem no espelho, procurando por alguma falha em sua aparência que pudesse ser corrigida. Estava ansiosa para causar uma boa impressão em Justin e apagar sua imagem anterior. Tinha certeza de que não ficara tão nervosa desde a primeira noite que fora trabalhar para a srta. Rosie.
Quando pegou a garrafa de uísque para encher um dos dois copinhos na bandeja, alguém pigarreou atrás dela. Voltou-se naquela direção. Justin estava um passo para dentro do aposento, rolando com os dedos o chapéu que tinha nas mãos. Glória olhou-o bem. Aquele era o Justin do qual se lembrava; a barba e o bigode tinham desaparecido, expondo suas feições familiares, que agora pareciam estranhamente pálidas. As compridas madeixas de seu cabelo escuro tinham sido cortadas, voltando ao ondulado natural. Sua camisa, calças e casaco eram todos novos.
Justin olhava-a como em transe. Seus lábios moveram-se duas vezes antes que pudesse dizer qualquer coisa.
- Disseram que você estava aqui... Eu teria batido à porta, mas isso é difícil de fazer em paredes de lona...
Ela sorriu, a reação dele enchendo-a de confiança.
- Entre, Justin. Gostaria de beber alguma coisa?
- Sim, eu tomaria um drinque. - Ele caminhou até ela e tomou o cálice de uísque que ela lhe serviu, sem desviar os olhos dela.
- Devemos beber à saúde de alguma coisa. - Ela ergueu o copo e esperou que Justin brindasse, mas ele parecia incapaz de falar. - Ao nosso reencontro em Nome. Não há um lugar como este. - Ela tomou um pequeno gole de uísque, mas ele não fez menção de imitá-la. - Há algo de errado?
Justin baixou os olhos, mas eles não desceram mais do que as brancas saliências dos empinados seios de Glória.
- Não sei como chamá-la - disse ele, sacudindo a cabeça. - Você agora nem se parece com Marisha...
- Não sou ela. Sou Glória.
- Acho que sim. - Ele engoliu uma talagada de uísque e depois ficou estudando o copo que tinha na mão.
Glória notou o franzido preocupado de sua testa e sentiu um assomo de embaraço.
- O que"há de errado? Não me diga que gostava mais de Marisha?
- disse ela, zombando dele, sabertdo muito bem que ele nunca encarara Marisha da forma como agora a olhava.
- Eu a conhecia.
- Você quer dizer que não me conhece. - Ela estava meio irritada pela atitude dele.
- Eu não compreendo. Quero dizer... quando eu parti, você tinha um emprego. - Ele fazia gestos largos, sem ligar para o chapéu que tinha na mão. - Você trabalhava naquele restaurante. Tinha um lugar para comer e para dormir. Eu imaginava que você estaria bem. O que aconteceu?
- Deixei o emprego.
- Mas por quê? Foi por culpa minha? Quando parti você não estava esperando criança ou qualquer coisa parecida, estava?
- Não; nada disso. - Ocorreu-lhe que ela poderia ter mentido, levando Justin a acreditar que ele, de alguma forma, fora responsável pela vida que havia escolhido. Enquanto o fato de Justin desejar pensar dessa forma a divertia, ela também considerava isso enfadonho. - Está vendo este vestido que estou usando, Justin? Mandei fazê-lo sob medida em San Francisco. Nenhuma garçonete poderia pagar por um vestido destes, mesmo que economizasse durante cem anos. De que outra forma poderia uma mulher conseguir bastante dinheiro sozinha para ser sócia do Palácio, que está sendo construído nesta rua? Ou ela encontra uma mina de ouro, ou se casa com um homem rico, tornando-se escrava dele. Escolhi tornar-me minha própria mina de ouro.
- Mas esta tarde, na praia, você estava...
- Tornei-me brevemente uma vítima da febre do ouro. Apenas por pouco tempo vi-me apanhada no sonho que tivemos há muito tempo. Lembra-se de como falávamos no ouro que íamos achar no Klondike? Fui levada a pensar que isto seria verdade aqui em Nome. Felizmente recuperei meu bom senso.
- Não encontrou nenhum ouro?
- Claro. Oitenta... talvez cem dólares, depois de dois dias de trabalho de quebrar as costas.
- O que há de errado nisso? Se pudesse fazer isso todos os dias, durante um ano, sabe a quanto montaria?
- E como imagina que seria minha aparência após um ano? Minha Pele estaria arruinada, e também meu cabelo. Teria músculos como um homem e calos nas mãos. Gosto de ser mulher, Justin. Gosto de ser macia e bonita. Gosto de cheirar a perfume em vez de cheirar a suor. Não quero ser rica e ter a aparência de uma velha bruxa. - Lágrimas zangadas surgiram-lhe nos olhos ao procurar fazê-lo entender. - Você sabe como foi quando cresci, sem jamais ter qualquer coisa, nem amigos, nem roupas, nem diversões, sempre com alguém a dizer-me o que fazer e como comportar-me. Jamais viverei dessa forma de novo, e não me importa o que tenho de fazer! Pensava que você, mais do que qualquer outra pessoa, entenderia isso.
- Eu entendo. Acho apenas que jamais pensei sobre a questão dessa maneira. É que nunca tive a intenção de feri-la quando a abandonei.
- Mas feriu. Não foi esta a razão pela qual me tornei uma puta. Estou nesta profissão pelo dinheiro. Para mim é um negócio.
- Acredito em você. Mas como fico nisso tudo?
- Você fica onde desejar ficar - replicou Glória. - Será que eu deveria perguntar-lhe por que veio esta noite? Talvez somente para acalmar sua consciência, ou para quê?
- Não estou certo de saber - admitiu ele enquanto continuava a estudá-la. - Em parte foi por curiosidade. Praticamente todo garimpeiro daqui até o Yukon já ouviu falar de Glória St. Clair. E eu queria rever Marisha. Nunca imaginaria que fosse sentir falta dela... de você... quando parti de Skagway. Pelo menos não tanto quanto senti. Foi um inferno! - Ele riu-se, mas era óbvio que estava meio desajeitado e um pouco encabulado.
- Quando meus sócios descobriram que eu ia me encontrar com você esta noite, eles me fizeram tomar um banho e arrastaram o barbeiro de sua lavra para me fazer a barba e o cabelo. Eu até comprei algumas roupas novas. Na verdade, não estou nem certo do que você espera de mim. O que dizem por aí é que você e aquele jogador têm um relacionamento...
- O Diácono é meu amigo, bem como meu sócio nos negócios, mas você não irá encontrar as coisas dele neste quarto. Não tenho nenhuma pessoa especial, ninguém de quem realmente goste.
- Ninguém?
- Você foi a única pessoa com quem já compartilhei de alguma coisa: meus pensamentos, meus sentimentos, meus sonhos. Ninguém mais me conhece da forma como você me conhece. Para os outros, sou apenas Glória St. Clair. Eles nem sabem onde arranjei esse nome.
- Maris... - ele interrompeu-se com um sorriso de menino aparecendo em sua boca. - Talvez eu devesse acostumar-me a chamá-la de Glória.
Ela aproximou-se dele e estudou a delicada linha de sua boca, lembrando-se daquele longínquo dia em que recebera seu primeiro beijo daqueles lábios.
- Talvez você devesse...
- Glória! - Ele moveu-se para tocá-la e então viu que suas mãos estavam ocupadas, o chapéu numa delas e o copo de uísque na outra. Por um segundo embaraçado ele não parecia saber o que fazer com elas. Depois riu-se e jogou o chapéu e o copo de uísque para o ar. No próximo segundo ela estava em seus braços e ele a beijava com a energia de um homem há muito sedento do gosto daqueles lábios.
Com a cabeça descansando no ombro de Glória, Justin estava deitado ao lado dela, sua mão acariciando a carne firme e redonda de um seio sob as cobertas. Distraída, Glória enrolava uma madeixa escura dos cabelos dele em torno de um de seus dedos. Fazer amor com Justin tinha sido bom. Ele não era tão perito na arte de excitá-la como o Diácono, porém compensou isso por sua avidez e intensidade - como se tivesse de provar que era melhor do que qualquer homem com quem ela tivesse trepado antes. Esta parte para ela não tinha importância; os outros eram negócio e isto era prazer, mas não estava certa se Justin perceberia a sutil diferença. Ela deu um beijo no alto da cabeça dele, depois esfregou ali seu queixo, num contentamento sublime.
- Foi um desperdício comprar todas essas roupas novas - murmurou Justin, sua voz grave vibrando de encontro ao corpo dela. - Creio que não as tive vestidas mais do que vinte minutos...
- Talvez... Mas estou contente de que você tenha tomado um banho e feito a barba e o cabelo. Esta é a maior queixa que tenho de Nome.
- Que os homens nunca tomam banho?
- Não. Que conseguir tomar um banho é um enorme sacrifício... coletar a água, aquecê-la. É a parte russa de meu sangue, acredito - brincou ela. - Sinto falta de tomar banho regularmente.
- Banhos, que droga! - disse ele, rolando em cima de Glória, descansando a cabeça no travesseiro ao lado. Levantou os braços acima da cabeça, expondo as axilas de escuros pêlos. - Sabia que não durmo numa cama desde que parti de Skagway? - O olhar dele descansou na lona do teto, manchada de água. - Que diabo! Eu e meus parceiros ficaríamos satisfeitos se tivéssemos uma barraca para dormir.
- Vocês não têm uma?
- Não. Nosso barco virou quando descíamos o Yukon. Perdemos a barraca, a maior parte de nossas ferramentas e equipamento, bem como nossos suprimentos. Tínhamos a esperança de conseguir um financiamento para compra de equipamento quando chegássemos aqui, mas até agora não tivemos essa sorte. É claro que estamos tirando ouro de nossa concessão na praia, de forma que dentro de algum tempo teremos nosso próprio dinheiro para comprar o que necessitamos. O problema é que não sabemos por quanto tempo vamos ser capazes de trabalhar na praia. Alguns dos proprietários das concessões na tundra dizem que seus direitos se estendem até o oceano e que invadimos as concessões deles. Outros dizem que a praia é propriedade pública e que ninguém pode marcar concessões nela. Até que uma corte de justiça diga quem está certo, vamos continuar por ali, trabalhando aquela areia.
- Enquanto isso dura, vocês vão simplesmente acampar ali, a céu aberto? - Uma noite dormindo naquela areia úmida, com aquele vento frio soprando do mar, tinha sido o bastante para ela. Não podia imaginar nada mais miserável.
- Tem alguma ideia melhor? - perguntou ele.
- Certamente. - Ela rolou para o lado dele, recostando-se no cotovelo. - Você pode dormir aqui.
- Não sei como meus parceiros iriam aceitar isso: eu dormindo num belo e macio leito, e eles lá no frio. Não que eu despreze a ideia, mas não seria justo para com eles.
Agora que ele rejeitara sua impulsiva oferta, Glória compreendeu que assim era melhor. A cama não estaria sempre disponível quando ele quisesse dormir, e seria estranho quando ela tivesse clientes para distrair. Mesmo assim, desejava ajudá-lo, e havia outra alternativa.
Glória rolou para fora da cama, arrastando o cobertor, e enrolou-se nele. Descalça, caminhou até uma enorme mala e ajoelhou-se no chão para abri-la. Encontrou um compartimento secreto escondido na parte de trás e removeu dali uma carteira de couro.
Tirou cinco notas da carteira, depois devolveu-a ao compartimento secreto e rearrumou as roupas dentro da mala, para de novo esconder sua localização. com o dinheiro na mão, ergueu-se e voltou para a cama.
- Você disse que precisava de uma barraca, algum equipamento e suprimentos. Será que quinhentos dólares pagam tudo?
Ele ficou olhando para as notas em sua mão estendida, depois olhou para ela, sacudindo vagarosamente a cabeça.
- Não posso aceitar isso de você.
- Por que não? Você estava à procura de um financiamento. Bem, aqui está ele. É a solução perfeita, porque dá a nós dois aquilo que desejamos. Sempre desejei ter uma concessão de ouro, e isto compra meu interesse em uma.
Após hesitar por mais um momento, ele pegou o dinheiro e contouo, como se custando a acreditar que as notas eram reais. - com isto, aposto que poderia comprar tudo o que precisamos ainda esta noite. Que diabo! Eles iam jogar linhas no mar a fim de pegar algum peixe para jantar. Talvez eu consiga pôr as mãos em alguma carne.
Jogando para o lado os lençóis, ele pulou da cama e pegou suas compridas e desbotadas ceroulas de flanela vermelha. Rapidamente, enfiou-se nelas; ainda as abotoava com uma das mãos quando com a outra já enfiava as calças. Em toda a sua vida, Glória nunca vira um homem vestir-se tão depressa.
- Imagino a cara deles quando eu chegar com todas as coisas disse ele, rindo. - Porra! Como vão ficar surpresos! - Ele nem se incomodou em abotoar a camisa, cujas fraldas enfiou apressadamente dentro das calças. Tinha seu casaco na mão e o chapéu colocado para trás na cabeça, quando contornou a cama e veio dar um rápido beijo nela.
- Preciso ir andando. Obrigado...
A excitação que Justin mal podia conter despertou um sorriso no rosto dela, um sorriso que se tornou pensativo quando ele saiu correndo da tenda. Era fácil imaginar como teria ficado excitado se estivesse lá naquela noite, quando ela voltou para o quarto com os dez dólares necessários para financiar sua ida para o Klondike. Muitas coisas haviam mudado desde então e quinhentos eram muito mais que dez. Ela suspirou, desejando que ele tivesse ficado mais um pouco, desejando que ele não fosse tão rápido em apanhar o dinheiro e correr. Ele ficara apenas excitado; era isso!
Por outro lado, foi bom que ele tivesse ido. Ela era necessária em outro lugar também. Havia um monte de trabalho ainda a ser feito para aprontar o Palácio. Mas, ao contrário de Justin, Glória levou tempo para vestir-se.
Embora o Palácio estivesse inacabado, o Diácono e Glória abriram as portas no dia seguinte, admitindo qualquer pessoa que tivesse pó de ouro em suas bolsas. O lugar ficou quase imediatamente apinhado de garimpeiros, prontos para comemorarem seus achados. com apenas um mínimo de empregados para fazer funcionar o estabelecimento, eles logo recrutaram Matty, colocando-a como encarregada da balança para pesar o ouro de um minerador e dar-lhe o equivalente em dólares de fichas que ele poderia gastar no Palácio. Eles estavam inteiramente conscientes que um mineiro não iria ligar para qualquer derrame "acidental" de seu pó por uma desajeitada mulher mestiça. Um cobertor forrava a prateleira do guichê fechado onde se localizavam as balanças; nele era recolhido o pó de ouro que derramava. Numa boa noite, podiam catar até uns cem dólares do cobertor.
Com a descoberta das praias de areias auríferas, a economia de Nome floresceu de repente. Nenhuma maquinaria cara era exigida para extrair o ouro da areia. Aquela era uma jazida para os pobres; todos na cidade tinham pó de ouro no bolso. As pessoas precipitavam-se para tirar vantagem da situação. De repente, os homens que haviam desertado de suas profissões para minerar nas areias, descobriram que havia tanto dinheiro a ser ganho em seu antigo trabalho quanto na areia e voltaram a ele.
As semanas seguintes foram caóticas para Glória e o Diácono. Os carpinteiros e empapeladores deram os toques finais no Palácio, trabalhando misturados com a contínua multidão de clientes. O piano chegou de Seattle; um músico, que fora da Sinfónica de Filadélfia, concordou em tocar para eles enquanto o mantivessem suprido de morfina.
Mais duas prostitutas foram contratadas, elevando o número das pequenas de Glória para quatro. Seguindo a orientação da srta. Rosie, Glória as havia selecionado com cuidado, exigindo que não tivessem doenças, que fossem razoavelmente limpas e bem-arrumadas e que pelo menos tivessem boas maneiras. Uma vez preenchidos tais requisitos, ela as selecionava na base de personalidade e aparência, tencionando dar aos clientes uma variedade de escolha. Junto com a ardente mulher franco-indiana, de pele cor de cobre, originária de Saskatchewan e que atendia pelo nome com o dom de ubiquidade de Frenchie (francesa), e com a gordinha, de olhos escurecidos de sombra, Alice a Louca (assim chamada por causa de seu temperamento volátil), havia a Gladys, com cara de menina, que logo foi apelidada pelos mineiros de Bunda Feliz, e a "Excelente" Betsy, uma antiga professora, que sempre elogiava seus fregueses quando eles eram "excelentes".
O arranjo de Glória com suas meninas era o mesmo da srta. Rosie, rachando a tarifa meio-a-meio, deixando que elas ficassem com as gorjetas, e debitando-lhes uma quantia fixa pelas camisas-de-Vénus, permitindolhes que as vendessem pelo que pudessem, e dando-lhes uma comissão Pelos drinques consumidos. Ela, no entanto, cobrava um aluguel maior Pelos quartos. As refeições e a lavagem de roupa, com exceção dos lençóis, eram extras. Além disso, Glória tinha um arranjo com seu costureiro em San Francisco, que permitia às pequenas debitarem as roupas na conta dela, que com isso recebia uma pequena comissão do costureiro pelo negócio adicional. A despeito das despesas com capangas, empregadas domésticas, o pessoal da cozinha, o pianista e a multa de dez dólares por prostituta, ultimamente imposta pelo governo recém-formado como taxa de "licença", mesmo assim os lucros eram amplos.
O Palácio tinha concorrentes. Em meados de setembro de 1899, havia vinte diferentes salões em operação, incluindo o Dexter, explorado por C.E. Hoxsie e pelo certa vez famoso pistoleiro e xerife de Tombstone, o barrigudo e velhusco Wyatt Earp. Atrás de alguns dos salões do lado norte de Front Street, prostitutas exerciam sua profissão baseadas em barracas de uma só cama e barracões de madeira, algumas delas tão rápidas em roubar a bolsa dos fregueses quanto em levá-los para a cama. O lugar era popularmente conhecido como a "Estacada" por causa da alta cerca construída em volta dele para proteger os cidadãos mais corretos da cidade de sua sórdida atividade.
Com a população de Nome explodindo para cinco mil pessoas, os negócios prosperavam para todo mundo. Mas não era isso que impedia Glória de ver Justin mais do que duas a três vezes por semana. A propriedade das concessões de mineração - tanto nos ricos depósitos de ouro de aluvião nas ravinas e despenhadeiros das montanhas do interior, quanto nas areias auríferas das praias - continuavam em disputa. No que se referia à praia fronteiriça da cidade, o consenso geral era que, de acordo com a lei dos Estados Unidos, as praias eram propriedade pública e, portanto, abertas a todos. Desde que um homem tivesse uma pá nas mãos, ele tinha direito àquela seção de praias, numa área que era mais ou menos, por comum acordo, um quadrado de seis metros medidos pelo longo cabo padronizado de pá de mineiros. As marés pintavam o sete com este sistema.
Num esforço de ocupar continuamente a seção que eles haviam demarcado, Justin e seus parceiros alternavam-se vindo para a cidade, de forma que dois deles sempre permanecessem no local da praia. Na realidade, Glória não reclamava da separação; esta apenas fazia com que o tempo que passavam juntos parecesse muito mais especial. Ela agora tinha algo para esperar no futuro. O Diácono parecia ter aceitado a mudança nas relações pessoais deles sem se perturbar, embora às vezes parecesse mais distante e arredio. No entanto, ele sempre fora assim, de forma que era difícil para ela dizer se a mudança era real ou imaginária. De qualquer forma, não tinha do que se queixar.
O sol de setembro brilhava no céu, mas as botas de borracha de Glória estavam pesadas com a lama nelas agarrada enquanto escolhia seu caminho através do lodaçal. As ruas de Nome eram uma ficção, traçadas num plano da cidade há muito abandonado, que não tinham nenhuma semelhança com as serpenteantes trilhas que as chuvas recentes haviam transformado em rios de lama, em alguns lugares com 60 centímetros de fundo. Era uma piada corrente na cidade que um homem nunca sabia se o próximo passo iria levá-lo à China.
Edifícios eram construídos onde quer que houvesse espaço; às vezes eram erguidos onde supostamente ficava a rua. Isto criava estreitas trilhas que em alguns lugares não tinham mais de dois metros e meio.
Uma extensão de água de cor marrom lamacenta confrontava Glória. Ela parou para erguer as saias mais alto e tentar julgar sua profundidade antes de pisar na lama. Matty, que vinha atrás dela, chocou-se com Glória, quase atirando-a dentro d'água, mas Glória conseguiu equilibrar-se.
- Por que a senhora pára aqui? - Matty enfiou os braços pela alça da cesta de mercado cheia de mantimentos.
- Estou decidindo se atravesso a pé ou se tenho que nadar nesta poça d'água - replicou Glória.
Embora Matty usualmente fizesse as compras diárias, Glória ia com ela sempre que havia compras maiores a fazer. Ela muitas vezes tinha a capacidade de persuadir os comerciantes, especialmente aqueles que ocasionalmente frequentavam o Palácio, a reduzir um pouco seus preços. com os boatos da possibilidade de uma carência de alimentos em Nome neste inverno, Glória tentava acumular um estoque de alimentos não perecíveis.
Ela tentou mudar o modo como pegava o pesado cesto que carregava, tentando aliviar o esforço em seu braço. Normalmente transportava suas compras num carrinho de rodas puxado por uma parelha de cães de trenó que o Diácono havia comprado para ela, mas a espessa camada de lama grossa tornava impossível o uso daquele veículo. Glória sabia, porém, que sua carga não iria tornar-se muito mais pesada, já que sua última parada era na padaria.
- Não pode ser muito mais longe - disse ela, olhando para a longa fila de frontispícios, examinando seus cartazes. Por todo o lado, em volta dela, homens chapinhavam pelo rio de lama, parecendo indiferentes à sucção que a lama exercia em suas botas. Os uivos lamurientos dos cães de tiro constituíam um barulho incessante que competia com as marteladas e o barulho das serras onde os carpinteiros se aplicavam para montar um novo edifício. - A padaria não era ao lado do relojoeiro?
Havia um espaço vazio onde ela pensava que deveria estar a padaria. O espaço, aliás, não estava totalmente vazio; a estrutura de um novo edifício ocupava agora o lote.
- Foi-se... - observou Matty. - Este lugar é louco; essa gente é maluca.
- Concordo. - Glória suspirou e voltou sobre seus passos para o negócio de frutas e cigarros que haviam acabado de passar. O proprietário estava arrumando um engradado de maçãs, virando-as de forma que as partes amassadas não aparecessem. - Desculpe-me - disse Glória.
O homem deu um pulo meio assustado, e depois começou ligeiro a esfregar a maçã que estava em sua mão na manga do paletó.
- Estava exatamente polindo estas maçãs, srta. St. Clair. - Havia Poucas pessoas na cidade que não a reconhecessem prontamente ao vêla. - Recebi um novo carregamento: são umas belezas, não são? Gostaria de levar algumas? Conhece o ditado: comer uma maçã todos os dias mantém o doutor longe de sua casa...
- Não acredito nisso. Mas pode me dizer o que aconteceu com a padaria que existia ao lado do relojoeiro?
- Alguém rebocou-a durante a noite enquanto o pobre sr. Parker ainda estava dentro da casa. Acho que eles atrelaram uma parelha de cavalos na casa e puxaram-na do lugar. com o arranco, o sr. Parker caiu da cama e, segundo ouvi, ficou com um belo galo na cabeça. O edifício que estão montando vai ser um armazém geral.
Glória não ficou surpreendida com a história; a invasão de lotes era uma coisa tão corrente quanto a troca de concessões de mineração em Nome.
- E o que aconteceu com a padaria?
- Receio não saber onde ela está montada agora - respondeu ele, sacudindo a cabeça em tom de desculpa.
- Obrigada.
- Leve esta maçã, srta. St. Clair - disse ele, fazendo-a parar quando começou a mover-se. Antes de entregá-la, porém, verificou se tinha algum amassado. - Se alguém perguntar onde comprou, mande para cá.
- Farei isso. - Quando virou-se em direção a Matty, ela enfiou a maçã na cesta de mercado já quase cheia. - Bem, e agora? Temos tudo menos pão.
- Tem uma outra padaria ali perto. - Matty indicou com a cabeça na direção de alguns edifícios de madeira que ficavam numa rua transversal.
Quando Glória virou-se para olhar, alguém do outro lado da rua acenou para ela. A constante passagem de pedestres pela rua bloqueou brevemente a pessoa de sua vista. Então o viu mover-se entre as pessoas para cruzar a rua lamacenta em sua direção. A gola de seu paletó estava puxada para cima e o chapéu enterrado na cabeça. Por um momento ela pôde ver seu rosto e reconheceu Gabe Blackwood. Ultimamente andava muito ocupado e ela raramente o via.
- Glória! Que sorte! Eu estava exatamente a caminho para ir vê-la.
- Ele abriu um largo sorriso, com toda a aparência de um distinto advogado, em vez daquele decrépito e derrotado rábula que ela encontrara ao chegarem Nome. Glória tinha bastante consciência de ser responsável em larga escala por sua renovada auto-estima, mas fora fácil de conseguir isso. Limitara-se a reforçar a vaidosa imagem que ele fazia de si próprio. O que ela ouvira dizer a respeito dele era verdade; já vira bastante de sua mesquinhez e de seus preconceitos para saber disso. Agora não mais se importava se ele gostava dela ou não.
- Já faz algum tempo, Gabe. Como vai? Muito ocupado, segundo tenho ouvido dizer.
- Tenho feito o possível - disse ele com falsa modéstia, mas balançando o corpo numa demonstração de alegria. - Você sabe como é dura a competição entre os advogados nesta cidade.
- Há quase tantos advogados quanto salões... - Ela notou, porém, que ele não mencionara as eleições locais, que se haviam realizado há dias.
As eleições transcorreram numa forma que era conhecida como um governo de "consentimento". Isto significava que o povo de Nome "consentia" em ser governado por um prefeito eleito, um conselho e um chefe de polícia; de ter leis e regulamentos impostos a eles, e voluntariamente de pagar vários impostos e taxas de licenciamento. O Congresso dos Estados Unidos ainda não aprovara legislação que permitisse a formação de governos municipais no Alasca com o poder de impor leis e lançar impostos sobre os cidadãos.
Na eleição, Gabe aliara-se ao grupo que representava a comunidade de negócios de Nome, incluindo seus dezesseis advogados. O grupo que representava os mineradores vencera a eleição disparado. As poucas mulheres da cidade puderam votar e Glória usara dessa regalia, mas ela não dissera a Gabe que votara no lado vencedor.
- Bem, neste inverno a cidade de Nome vai sentir falta de um advogado - anunciou ele, dando-se ares de importância.
- O que quer dizer? Vai embora daqui?
- Sim; era isto o que eu ia dizer-lhe. - Meteu a mão num bolso interno do paletó e tirou um envelope e uma passagem de navio. comprei passagem no próximo vapor com destino a San Francisco. Dali vou tomar o trem para Washington.
- Por que vai para lá? - Ela lutou para conter uma crescente sensação de pânico. - Não compreendo; de que se trata?
- Lembra-se de que eu lhe disse que conhecia algumas pessoas em Washington? - falou ele, abanando o envelope. - Bem, eu não me correspondia com eles há algum tempo, mas escrevi a um de meus velhos amigos no início do verão, contando-lhe acerca da situação aqui em Nome. Acabo de receber notícias dele. Parece que nesta primavera está sendo apresentado um projeto de lei ao Senado que trata da formação de um governo civil no Alasca. Pode também tratar de alguns dos problemas de mineração que estamos tendo de enfrentar aqui. Como tenho conhecimento de primeira mão acerca de muitos dos problemas locais, meu amigo sugeriu que seria conveniente eu ir a Washington e conhecer alguns dos senadores para discutir a situação.
- Creio que foi muito esperto por parte de seu amigo. - Ela respirou com um pouco mais de facilidade e riu para encobrir qualquer alarme que pudesse ter mostrado. - Devo admitir que quando você começou a dizer que estava partindo, pensei que quisesse dizer que não voltava mais. Fico contente de saber que não é este o caso. Teria sentido sua falta; vou senti-la enquanto estiver ausente. O inverno vai parecer ainda mais longo sem sua presença por aqui.
- E sentirei falta de você. Tem sido boa para mim. Mas voltarei no primeiro navio que vier para cá no próximo verão.
- Por que precisa ir tão cedo? Se esta lei não vai ser apresentada ao Senado antes da próxima primavera, certamente poderia esperar.
- Estamos perto do congelamento do inverno e não quero me arriscar a ficar preso aqui. De navio, em duas semanas chego a San Francisco, se o tempo cooperar. Mas se eu for forçado a ir por terra são três mil quilómetros ou mais viajando de trenó puxado por cães até o porto livre de gelo mais próximo. É uma jornada por demais cansativa para um homem de minha idade.
- Naturalmente que tem razão. Esse será meu primeiro inverno numa latitude tão ao norte. Disseram-me que o estreito de Norton fica sólido de gelo no princípio de novembro. Nem posso imaginar como é ficar isolada do mundo por oito meses. Quando voltar, provavelmente irei assediá-lo com perguntas.
- Espero ter algumas boas novas para contar-lhe. - A expressão dele era presunçosa quando enfiou o envelope e a passagem de volta no bolso.
- Que espécie de novidades?
- Se essa legislação passar, é bem provável que irão dividir o Alasca em vários distritos. O que significa que nomearão mais juizes federais. Agora não é nada prático, com um único juiz federal em todo o Alasca, e localizado em Sitka. - Fez uma pausa e piscou o olho para ela. - É possível que você tenha que dirigir-se a mim como "meritíssimo" quando eu voltar.
- Juiz Blackwood - murmurou Glória. No fundo de sua mente, ela sabia que quanto mais alta a posição de um homem, mais dura é sua queda de tal posição. Isso deu-lhe algo em que pensar.
- Mas trata-se apenas de uma possibilidade - advertiu ele; depois, conversou por mais alguns minutos antes de despedir-se.
Muitos dos habitantes da cidade apressaram-se a encontrar um lugar no último vapor que zarpou de Nome para não enfrentar o inverno ali, com a ameaça de falta de comida e uma possível epidemia de febre tifóide, consequente das condições sanitárias extremamente inadequadas, sem mencionar as nevascas e as temperaturas abaixo de zero apenas com o duvidoso abrigo de barracas e grosseiras cabanas de madeira para protegê-los. Vários dos tipos mais detestáveis de Nome foram deportados pelo governo de "consentimento" recém-eleito, junto com muitos dos miseráveis que não tinham meios de manter-se durante o inverno nem o dinheiro para comprar uma passagem.
Cerca de três mil pessoas permaneceram em Nome para enfrentar as condições do clima e proteger suas posses. Betsy a Excelente, a exprofessora, foi a única do Palácio que se recusou a ficar.
Justin e seus parceiros resolveram ficar. Cataram madeira por toda parte e construíram um barracão na praia com pedaços de madeira refugada, caixões quebrados e madeira que conseguiram encontrar das pilhas já bem diminuídas ao longo dos barrancos, na boca dos riachos. Muitos dos outros garimpeiros que mineraram as areias "douradas" naquele verão, que eram chamados de "penteadores das praias", optaram por permanecer em suas barracas.
Pelos meados de novembro, uma camada de gelo de um metro e meio bloqueava toda a costa e se estendia por quilómetros mar adentro. O estreito de Bering, a massa de água que separa o Alasca da Rússia, raramente ficava coberto por uma camada contínua de gelo. Para além do pacote de gelo havia trechos de água, em geral cobertos de pedaços de gelo flutuante.
Na região da tundra, toda a área era abrangida pela permafrost. Essa camada de terra abaixo do solo permanentemente gelada criava um problema maior para a cidade de Nome. Sem poços de água, os habitantes eram forçados a depender do rio Snake para sua água potável. E a permafrost não absorvia seus esgotos. Da mesma forma como tinham de trazer para a cidade toda a água potável, precisavam levar para fora seus excrementos. Durante o verão o esgoto havia sido jogado no rio Snake, uma prática que criara o receio da febre tifóide por causa da potencial contaminação da água potável. Como solução para o problema naquele inverno, os funcionários municipais transportaram o lixo e os esgotos para lugares bem distantes do mar sobre o gelo, de forma que, quando viesse o degelo da primavera, o gelo flutuasse para fora da costa e eventualmente os detritos fossem depositados no fundo do mar.
Mas a escassez de instalações sanitárias públicas não permitiu que o problema fosse totalmente eliminado. Quando chegou o mês de fevereiro, Glória não se aventurava a andar no beco ao lado do Palácio; fazê-lo significava patinar numa geleira de urina congelada. A Front Street era quase tão ruim.
Entretanto, com todos os casos de febre tifóide, hemorragia desentérica e pneumonia que ocorriam, a população de Nome cresceu naquele inverno. A inexistência de um escritório de contrastaria fazia com que um registro preciso da quantidade de ouro extraído na área vizinha a Nome naquele verão fosse impossível de determinar. Uma quantidade demasiado alta saía nos bolsos e nos sacos dos homens que não desejavam gabar-se acerca de quanto haviam extraído, receando que fossem roubados. Mas as melhores conjeturas estimavam que a quantidade total extraída apenas da praia variava de um a dois milhões de dólares, e que aproximadamente outro milhão e meio havia sido tirado das ocorrências no interior nas concessões de lavras ao longo dos riachos nas montanhas.
Embora os rumores da corrida de ouro houvesse atraído muitos garimpeiros, como Justin e seus parceiros, do Klondike para Nome durante o verão, as notícias das "minas dos homens pobres" na praia atraíram o resto. Uns 1.500 haviam tido a sorte de apinhar-se no último navio de roda que descera o rio Yukon de Dawson e que chegara ao fim do outono. A maioria esperou até que o inverno se firmasse e o rio ficasse inteiramente gelado. Então começou o louco êxodo para Nome, descendo a estrada de gelo do rio. Viajavam com o auxílio de cães de tiro ou com trenós puxados por cavalos; alguns faziam todo o caminho a pé, puxando pequenos trenós com suas tralhas. Outros amarravam nas pernas patins de gelo e patinavam até Nome. Uns poucos dos mais intrépidos faziam uso da última loucura: cruzavam toda a largura do Alasca, no mais duro do inverno, de bicicleta... Muitos chamavam essa gente de "nomers", mas a maioria olhava para a loucura de sua desesperada corrida para Nome e chamava-os de "nómades"...
Durante todo o inverno eles chegaram - exaustos, esfomeados, queimados pelo frio, ou semicongelados. Não eram apenas os garimpeiros provenientes do Klondike; muitos eram, como os descrevia a Polícia Montada do Canadá, a escória de Dawson: jogadores, prostitutas, batedores de carteiras, trapaceiros, vigaristas, ladrões e bandidos.
No fim de março um vento oeste trouxe um tempo mais ameno e um espetáculo de "luzes do norte" de prender a respiração; ao mesmo tempo soprou a neve que havia no chão, mudando-a de posição. A quantidade de neve que caía em Nome nunca era muito grande comparada com a que caía no interior, mas a que caía permaneceu ali, sendo soprada de um lado para o outro.
Havia poucos clientes no Palácio naquela noite quando Glória dirigiu-se a uma mesa próxima à estufa de carvão e sentou-se numa cadeira em frente à ocupada pelo Diácono.
- Está uma noite quieta, hoje - comentou ela.
- Hã-hã - resmungou ele sem levantar os olhos de seu jogo de paciência. - Acho que toda a cidade está no salão de baile ali adiante. Foi uma vergonha não sabermos do "nómade" que chegou na cidade. Todo mundo poderia estar aqui.
O recém-chegado trouxera diversos exemplares de jornais do "mundo exterior" com ele. Naquela isolada comunidade não importava que os jornais tivessem mais de três meses; para eles ainda era "novidade". Naquele momento, cada coluna de cada página dos jornais estava sendo lida em voz alta num outro estabelecimento da mesma rua.
- Ouvi dizer que o jornal de Seattle publicou uma notícia de que há milhares de pessoas reunindo-se naquela cidade, para embarcarem para Nome tão logo comece o degelo. Estão prevendo que a corrida de ouro para Nome atrairá mais gente do que no Klondike.
- Isto não me surpreenderia - disse o Diácono, colocando um nove vermelho sobre um dez preto. - Aqui é muito mais fácil de se chegar. Uma viagem pelo mar de dez dias a partir de Seattle coloca-os aqui, em comparação com uma viagem por mar seguida por uma caminhada brutal por um passo de montanhas, depois uma viagem num rio cheio de corredeiras. Aqui é como tirar umas férias.
Ao observar o Diácono jogando, Glória subitamente percebeu que as cartas estavam sendo tiradas do baralho fora de ordem e perguntou-lhe:
- Por que diabo você está jogando paciência com um baralho marcado?
- Não está pensando que eu iria deixar o diabo vencer?... - disse ele enquanto os cantos de seus olhos enrugavam-se num sorriso.
- Você é incorrigível - suspirou ela.
A pesada porta de mogno do Palácio abriu-se. Um homem embuçado até os olhos em várias camadas de roupas entrou, acompanhado por um redemoinho de ar frio e de flocos de neve. Glória reconheceu-o pelo modo de andar mesmo antes que Justin começasse a tirar seu cachecol.
Ela levantou-se da cadeira e cruzou a sala para recebê-lo.
- Não o esperava esta noite.
Quando ela se aproximou, Justin enfiou suas luvas forradas de pêlo nos bolsos do casaco, depois agarrou-lhe a fina cintura presa no espartilho com as mãos e levantou-a bem alto, rodando e rindo-se enquanto fazia isso. Ela apoiou as mãos no ombro dele para equilibrar-se, sentindo ao mesmo tempo o frio ar que o rodeava, enquanto eles rodopiavam. Finalmente, ele deixou que os pés dela tocassem o chão. Antes que Glória tivesse tempo de recuperar o fôlego, ele deu-lhe um demorado beijo nos lábios.
- Vim aqui para comemorar - declarou ele ao largá-la.
- Comemorar o quê?
- Nós escavamos hoje um longo filão de areia vermelha como rubi. É o material mais rico que já baleamos. - A neve do inverno e temperaturas muito abaixo de zero não haviam parado a mineração na praia. Cavavam a areia e levavam-na em baldes para dentro das barracas. No relativo calor das habitações, o ouro era lavado, peneirado e bateado de suas areias pelos mineradores. - Hoje à noite nem estou ligando para como o ouro foi parar na praia. Apenas fico contente de que esteja ali.
Incontáveis teorias haviam sido sugeridas para explicar como o ouro viera parar na areia. Alguns diziam que durante o período glacial, uma geleira deveria ter arrancado uma quantidade de quartzo aurífero das montanhas, depositando-a na praia. Outros pareciam certos de que um vulcão submarino vomitara o ouro das entranhas da terra e as marés o haviam espalhado pelas praias. Uns poucos acreditavam que chuvas de meteoros tinham depositado o ouro nas praias. A maior parte apoiava a teoria de que todo o fundo do mar de Bering estava coberto de ouro, que era constantemente carregado para a costa pelas ondas, criando um suprimento virtualmente inexaurível. Apenas uns poucos homens mais sensatos desprezavam essas imaginosas elucubrações para aceitar a probabilidade mais real de que o ouro das praias fora parar ali lavado dos depósitos das montanhas pelas chuvas e pelo degelo da primavera.
- Por um minuto pensei que você estava ali embaixo na rua, na casa de nossos concorrentes, ouvindo as últimas noticiass e que desejava beber à saúde de McKinley ter sido reeleito para a presidência, ou à vitória dos Estados Unidos sobre os rebeldes das Filipinas.
Ele enlaçou-a pela cintura e puxou-a para si.
- Você não pensaria realmente que eu iria a qualquer outro lugar pensaria? - censurou-a ele e depois relanceou o olhar pelo número de cadeiras vazias. - Vocês não estão muito ocupados esta noite. Parece que, para variar, terei você só para mim.
O casaco dele estava úmido e frio da neve. Glória encolheu-se ao contacto.
- Você está frio. Chegue-se à estufa e aqueça-se.
- Você é que poderia aquecer-me, sabe disso. Passei a maior parte de minhas horas acordado, encostado num fogão. Estava esperando algo diferente para me aquecer esta noite.
- Talvez se possa arranjar isso - disse Glória, caminhando para o balcão de mogno trabalhado do bar. - Uma garrafa de bom uísque, Paddy, e dois copos. - O homem do bar colocou-os em cima do polido balcão em frente a Glória. com os copos e a garrafa nas mãos, ela voltou para Justin. - Um pouco de "água de fogo" deverá aquecê-lo.
- Isto não era bem o que eu estava pensando, mas serve para começar. - Esfregando os dedos das mãos para restabelecer a circulação, ele a seguiu enquanto Glória o guiava para a mesa ao lado da estufa.
Ela colocou os copos na mesa e desarrolhou a garrafa de uísque. O Diácono continuou jogando, sem prestar atenção neles.
- Está com fome, Justin?
- Isto é o mesmo que perguntar se um urso polar é branco...
- Matty, diga ao cozinheiro para cortar umas fatias daquele presunto e fritar algumas panquecas de garimpeiro para Justin - encomendou ela, virando-se ligeiramente para trás; seu olhar demorou-se vagamente na roupa preta de Matty com seu alto colar de renda. Mais do que na aparência externa, Matty havia mudado; ela agora praticamente dirigia o lado doméstico do Palácio, além de cuidar da maior parte da costura e de remendar as roupas; e estava aprendendo a ler.
- Você vai ficar de pé aí o tempo todo? - reclamou Justin.
- vou me sentar. - Ela arrebanhou as saias de cetim e sentou-se na cadeira ao lado de Justin. Ele tomou um gole de seu uísque e depois olhou para o Diácono, chamando a atenção de Glória para o silêncio do jogador. Glória duvidava que o Diácono estivesse tão envolvido com seu jogo de cartas que não houvesse notado quem se juntara a ele na mesa.
- Você viu quem está aqui? - disse Glória, mexendo com ele. Nosso mais fiel e leal freguês.
- Por que estaria ele em qualquer outro lugar, quando pode ter aqui o que desejar sem gastar um centavo? - O Diácono juntou as cartas num monte e recuou sua cadeira da mesa.
Estupefata pelo sarcasmo dele, Glória acompanhou-o com o olhar quando ele afastou-se da mesa e foi para o longo bar, sem poder acreditar no que ouvira. Ele encostou os cotovelos no balcão, mantendo as costas voltadas para o lado deles, e apoiou sua bota no descansa-pé de bronze. Quanto mais pensava na insultuosa observação, menos ela lhe agradava. Não tencionava deixá-la passar sem um revide.
- Desculpe-me - disse ela para Justin e levantou-se da cadeira. Sua saia de cetim fazia um ruído contra suas pernas quando cruzou o salão até o bar. Ao parar ao lado do Diácono, ele olhou-a rapidamente e depois concentrou-se no copo de uísque que tinha na mão. Engoliu a bebida de um gole e depois esticou a mão para pegar a garrafa e reencher o copo.
- Seria melhor você explicar a observação que acabou de fazer, Diácono.
- Não vejo o que tenho de explicar. Deve ser óbvio para qualquer pessoa, mesmo para você. - Ele repôs a rolha da garrafa e levou o copo de uísque aos lábios, continuando de frente para o bar.
- Prefiro que você me diga.
- Muito bem! - E ele voltou a cabeça na direção dela, os duros olhos azuis sem darem uma piscadela sequer. - Desde que abrimos o Palácio ele tem vindo aqui duas ou três noites por semana, bebendo o melhor de nosso uísque e comendo o que deseja. E tudo isso de graça... sem mencionar a sua companhia lá em cima. Ele pode beber e comer do melhor e não lhe custa um miserável centavo. E tudo por conta da casa... Ele seria um tolo se fosse a qualquer outro lugar.
- Se é o dinheiro que está incomodando você, Diácono, pode deduzir o preço da comida e das bebidas dele de minha parte nos lucros disse ela. - Não desejo prejudicá-lo em nada. Afinal de contas, ele é meu amigo, não seu.
- Não sou eu que estou sendo prejudicado, Glória. É você. Será que não pode perceber?
- Não.
- Então abra os olhos, porque você está sendo explorada!
Ela nem teve consciência de erguer a mão, até sentir o brusco contacto com o queixo e a face do Diácono. Por um momento, ele ficou totalmente imóvel. com todo o cuidado, quase até que com exagerado cuidado, ele descansou o copo de uísque no balcão e levantou o corpo. Inconscientemente, Glória susteve a respiração, esperando alguma espécie de violento revide. Em vez disso, ele virou-se e dirigiu-se para a escada, seu andar tão controlado quanto seus sentimentos.
Imediatamente, ela arrependeu-se de tê-lo esbofeteado: A última coisa que desejava era um rompimento frontal com ele. Dirigiu o olhar para Justin exatamente quando Matty colocava um prato de comida à frente dele.
- Diácono! - gritou ela, e correu atrás dele. Ele parou ao pé da escadaria e esperou por ela. - Peço-lhe perdão, eu não queria bater em você.
- Bem, não estou aborrecido. Tudo o que disse foi sério.
- Você está errado acerca de Justin.
Ele sacudiu a cabeça ligeiramente, demonstrando sua discordância.
- Lembre-se de quando lhe avisei acerca do jogo das conchas e de quando lhe disse que a roleta era viciada. Então você me ouviu.
- Eu sei, mas desta vez está enganado.
- Você financiou a mineração dele. Você lhe dá comida e bebida. Você dorme com ele. Diga-me uma coisa, Glória, que ele tenha dado a você além da companhia, que você na realidade compra. Ele tem um saco cheio de ouro que tirou daquela areia, mas não gastou um só centavo com você.
- O que poderia ele comprar-me? - argumentou ela. - Tenho tudo!
- E você não gostaria de um presente dele, nem que fosse algo tão simples como uma bonita fita para enfeitar seu cabelo? Qualquer ninharia para mostrar que ele gosta de você? Ele é um daqueles que só sabem tomar. E se não pode ver isso, você é uma tola!
Ela não fez nenhum movimento para impedi-lo quando ele começou a subir as escadas. Por alguns segundos ficou a observá-lo, depois virou-se e caminhou de volta à mesa.
- O que aconteceu? - perguntou Justin.
- Nada. - Mas ela sabia que o Diácono havia levantado questões que não podiam ser tão ligeiramente ignoradas.
Glória estava parada ao pé do grande leito de quatro colunas e observava em silêncio a mulher com cara de bebé deitada à sua frente. Gladys quase parecia uma boneca dormindo. Uma fita amarela, amarrada com um belo laço, segurava seu cabelo solto de cor castanha. As sobrancelhas extraordinariamente compridas estavam suavemente fechadas. Ela era um quadro de inocência, exceto pela cor rosada que estava faltando em seu rosto redondo, da palidez de um fantasma.
Há duas horas, Matty achara Gladys caída numa poça de sangue, com um maldito ferro de abotoar sapatos nas mãos. Glória nem sabia que ela estava grávida, o que não era mais verdade. Certa vez uma prostituta em Skagway tinha morrido de hemorragia numa grosseira tentativa de aborto. Glória mal a conhecia, mas ficara impressionada com sua morte e a perda de duas vidas.
A gravidez podia colocar uma mulher fora da profissão; a despeito de todas as precauções, ainda podia acontecer. Era uma das pragas do ofício.
Após tomar-lhe o pulso, o doutor colocou o braço de Gladys sob a coberta, depois removeu o estetoscópio e acomodou-o de volta em sua maleta preta, na mesinha ao lado da cama. Quando ele começou a fechar amaleta, Glória ia perguntando, "Ela vai...", mas o médico silenciou-a, levantando um dedo e fazendo um sinal em direção a porta. Glória seguiuo para fora do quarto rumo ao saguão sem janelas, iluminado pela recéminstalada luz elétrica. - Ela vai ficar boa, dr. Vargas?
- Ela é jovem e parece bastante saudável. Creio que se sairá bem. Acredite-me, srta. St. Clair, infelizmente já vi casos piores - disse ele, falando enquanto andava em direção à escadaria. - Durante algum tempo ela poderá ter uma ligeira febre; é de se esperar. No entanto, se a febre subir, chame-me imediatamente.
- Assim farei - disse Glória, acompanhando-o ao descer a escadaria.
- Estou certo de que serão necessárias algumas semanas para que possa andar por aí de novo. Enquanto isso, ela necessitará de descanso e sossego.
- O descanso não é problema. Mas sossego? Receio que isso seja uma impossibilidade em Nome. - Glória parou ao pé da escada e olhou intencionalmente na direção da Front Street.
Do lado de fora a cacofonia nunca cessava - gente gritando, martelos batendo, serras guinchando, cães latindo, correntes se arrastando, cascos de animais ressoando, pés batendo na calçada de madeira, apitos soprando, carros rolando, tudo contra o ruído de fundo do mar quebrando na praia. A invasão de Nome por gente atrás de ouro e oportunistas, que havia sido prevista, ocorreu. com a chegada do primeiro navio no fim de maio, ocorrera um influxo quase diário de gente, numa estimativa de quinze mil pessoas, e mais navios estavam anunciados para chegar. Ninguém jamais vira nada semelhante. Era uma visão que excedia até a imaginação dos mais audaciosos sonhadores.
- A senhora tem razão - concordou o doutor com um sorriso. Bem, faça o melhor que puder.
- Naturalmente. - Glória levou-o até o bar e providenciou para que ele fosse pago pelos serviços. Pesarosamente, ele recusou o drinque que ela lhe ofereceu, dizendo que tinha muitos pacientes para ver.
Depois que ele se foi, ela não mais tentou esconder seus preocupados pensamentos. Naquela época do ano, o sol brilhava 24 horas por dia. Em geral havia tanta gente na rua à uma hora da manhã quanto à uma da tarde. No entanto, apenas poucos clientes estavam no Palácio naquela manhã.
O Palácio não parecia mais um salão ordinário. Todos os móveis novos, espelhos, pinturas e objetos de arte tinham chegado nos primeiros navios a atracar em Nome após o degelo. Agora parecia um clube exclusivo para cavalheiros, onde um homem endinheirado podia beber e jogar, numa mesa discretamente colocada, faraó, blackjack ou pôquer. As várias pinturas de nus e as lâmpadas do saguão na forma de um globo vermelho insinuavam outros entretenimentos providos pelas meninas de Glória, vestidas na última moda. O preço da entrada era apenas de 25 dólares.
Sendo substituído por outro banqueiro na mesa de faraó, o Diácono aproximou-se de Glória para perguntar sobre Gladys.
- Ela vai se sair bem, mas não poderá trabalhar por várias semanas - disse Glória e depois suspirou. - E nós tão cheios de serviço como estamos... Isso parece meio grosseiro, não é? Não tive essa intenção. É que com a Alice indo embora para casar-se com aquele fotógrafo, e agora Gladys, ficamos apenas com a Frenchie e aquelas três moças novas.
- Talvez você possa convencer Alice a adiar o casamento - sugeriu o Diácono.
- Já tentei. E o marido não quer que ela continue trabalhando depois de se casarem.
- Como ele é curto de visão... - murmurou o Diácono.
- Sim - disse Glória, entendendo depois que ele estava zombando dela. - Muito bem! Talvez ele não esteja pedindo nada demais. Mas eu apenas desejava que ela não estivesse se casando agora. Não é o caso de que ela talvez não receba mais nenhuma proposta. com a falta de mulheres no Alasca, qualquer uma pode arranjar um marido, se desejar.
- E você não quer um marido.
- Não agora - respondeu meio irritada, sabendo que o comentário dele referia-se a Justin. - Talvez nunca. - Ela estava cansada dessas sutis gozações. Como Matty se dirigia para eles, Glória esperava uma mudança de assunto.
- É por isso que Justin não tem aparecido por aqui há mais de uma semana? - perguntou o Diácono, de forma que Matty o ouvisse.
- Não faz tanto tempo assim - replicou Glória, e depois tentou ignorá-lo.
- Oliver pegou a correspondência - disse Matty, referindo-se ao ex-pugilista que trabalhava como leão-de-chácara e pau-pra-toda-obra no Palácio.
- Obrigada. - Ela pegou os envelopes que Matty lhe entregou e começou a examiná-los. Na maior parte era contas, uma de seu costureiro, outra do atacadista de bebidas. O envelope embaixo de todos trazia o nome de Gabe Blackwood.
- É melhor você pensar de novo, Glória - disse o Diácono. Faz pelo menos uma semana desde que Justin esteve por aqui a última vez.
- Vi Justin esta manhã, quando fui procurar o doutor - disse Matty.
- Ele estava na cidade? - A carta de Gabe Blackwood foi momentaneamente esquecida, enquanto Glória levantava os olhos, surpresa.
- Ele estava na lojinha da senhora que vende tortas quando passei por lá.
- Ouvi dizer que ele passa muito tempo por lá - observou o Diácono.
- Como sabe disso? - perguntou Glória.
- Eu me interesso por saber dessas coisas... - respondeu ele.
- O que estava ele fazendo por lá, Matty? - perguntou ela, decidindo ignorar a implicação do Diácono.
- Estava sentado e conversando.
- Sarah Porter é uma viúva de Portland que tem dois filhos jovens para alimentar. Como uma porção de outras pessoas, ela chegou quebrada, pensando que, como num passe de mágica, poderia colher ouro da areia. Agora está vendendo tortas para viver. Disseram-me que se tornou um bichinho de estimação dos mineradores desde que chegou, há duas semanas. - com sutileza, o Diácono ressaltou o espaço de tempo em que a mulher estava em Nome.
- Você parece saber muita coisa sobre ela. Pelo jeito, a conhece.
- Ouvi dizer que em Nome ninguém faz uma torta de maçã que rivalize com a dela. Verifiquei pessoalmente. A torta é mesmo boa.
- E a sra. Porter? - Glória teve vontade de morder a língua por ter perguntado isso.
- Muito agradável à vista. - Ele parecia tão divertido e complacente que ela sentiu vontade de gritar.
Abriu o envelope contendo a carta de Gabe Blackwood, não desejando que o Diácono tivesse a satisfação de saber o quanto suas insinuações a tinham afetado.
- Se essa mulher é tão popular como alega, acho estranho que nunca tivesse ouvido falar dela.
- Ora, Glória! - reprovou ele. - Ela é uma jovem mãe, inteiramente só, vivendo com dois filhos pequenos para criar numa cidade viciada como Nome. Certamente não acredita que algum homem fosse falar a você de alguém como ela.
- Sendo ela decente e respeitável e eu não, suponho.
- Não foi isso o que eu disse.
- Não foi preciso dizê-lo. - Ela virou-se para Matty. - Quer fazer o favor de dizer ao Oliver que vou precisar do cabriolé?
- Aonde você vai?
- vou visitar a sra. Porter e suas tortas. O Palácio sempre se orgulhou de servir a seus clientes o melhor que Nome tem a oferecer. Talvez tenhamos nos esquecido de alguma coisa. - Ela encarou o Diácono, desafiando-a a sugerir que ela teria qualquer outro motivo além do que expusera, mas ele permaneceu em silêncio. Ele atingira seu objetivo e plantara na cabeça de Glória a semente da suspeita de que Justin estava se encontrando com aquela jovem e respeitável viúva. - Não se esqueça de dar uma olhada em Gladys enquanto estou fora - disse ela a Matty e depois andou rapidamente para a escadaria; ao erguer um pouco as saias para começar a subir, amassou acidentalmente a carta que tinha na mão.
Chegando lá em cima, entrou em seu quarto e jogou as cartas na cama. Não se incomodou de passar para trás do biombo de vestir-se pintado à mão que ficava no canto, quando começou a desabotoar o vestido carmesim que usava. Dentro de minutos envergava um vestido de uso diário com uma gola respeitavelmente alta, e vestiu uma jaqueta tipo bolero por sobre as mangas estofadas do vestido.
Oliver cuidava do cabriolé quando Glória saiu do Palácio, alguns momentos mais tarde. Sempre excessivamente respeitoso e correto em suas maneiras, ele fez-lhe uma mesura e ofereceu-lhe uma de suas enormes mãos para ajudá-la a subir no cabriolé. As costas de sua mão estavam marcadas com uma teia de antigas cicatrizes, do tempo em que lutava boxe sem luvas.
- Gostaria que eu fosse com a senhora?
- Não, obrigada, Oliver. - Ela pegou as rédeas e bateu com elas no lombo do cavalo alazão.
Gente, cavalos, cachorros, viaturas de todos os tipos atravancavam a rua. Tudo se movimentava a passo de cágado, mas viajar no cabriolé era infinitamente preferível a ser obstruída, empurrada e às vezes pisada pela multidão. Uma nuvem de poeira de meio metro de altura cobria a rua arenosa, e era constantemente agitada para encher o ar.
Novos edifícios brotavam do chão como cogumelos, a maior parte do tipo desmontável, embarcados de Seattle e San Francisco e montados no local. Teatros, bancos, redações de jornais, restaurantes e mais de cem bares estavam sendo montados, todos na comprida rua principal. Nome, que alguns diziam ter sido construída com um pé na areia da praia e com outro na tundra, tinha duas quadras de largura e oito quilómetros de comprimento.
Às vezes Glória ficava a cismar se um dia se acostumaria ao mau cheiro de tantas pessoas acumuladas numa área tão pequena. A invasão apenas exacerbara o problema sanitário que antes já existia. Latrinas públicas haviam sido construídas em cima de estacas ao longo da costa, de forma que a maré levasse os detritos a cada 24 horas, mas tais instalações não eram suficientes para atender à explosão populacional.
Quando se aproximou da área onde o dr. Vargas tinha seu consultório, Glória começou a procurar a loja das tortas. Finalmente descobriu um letreiro pintado à mão pendurado numa barraca: TORTAS CASEIRAS - era tudo o que dizia. Julgando pelo número de homens que se amontoavam em volta da barraca, ela teve certeza de que estava no lugar correto. Parou o cabriolé na beira da calçada e apeou.
Todos os lados de lona da barraca, exceto o de trás, estavam enrolados para cima. Grosseiras pranchas de madeira em cima de caixões corriam pelos três lados abertos, servindo como balcões. Todos os espaços estavam tomados e homens enfileirados aguardavam a vez, suas cabeças bloqueando a pessoa atrás do balcão da visão de Glória.
Ela arrebanhou as saias para que não se arrastassem no chão poeirento e aproximou-se da barraca, onde pôde sentir o aroma de tortas recém-preparadas. Um homem virou-se, olhou na direção dela e ficou estático. Era Justin. Ela não teria ligado para a surpresa dele se não houvesse notado o lampejo de culpa e o olhar ansioso que lançou para a pessoa atrás do balcão. Apesar de tudo, ele tinha um sorriso aberto no rosto quando encaminhou-se para ela.
- Glória, o que está fazendo por aqui? - Ele não falou muito alto e teve o cuidado de não se aproximar demais, notou Glória.
- Ora, imagino que pela mesma razão que você. Ouvi dizer que as tortas daqui são as melhores da cidade.
- É verdade - disse ele, enfiando as mãos nos bolsos como se não soubesse o que fazer com elas.
- O que você recomenda? - Ela passou por ele em direção à barraca. - Ouvi dizer que a torta de maçã é muito boa.
- É, sim. Eu até que gosto mais da de passas. - Ele seguiu-a, mas tomando cuidado para parecer a um observador desinteressado que não estavam juntos.
O espaço em frente a Glória foi desocupado por um velho garimpeiro. Ela rapidamente aproximou-se para ocupá-lo. Um garoto sardento de uns nove anos parou do outro lado do balcão, agarrando com ambas as mãos a alça de arame de uma grande cafeteira esmaltada.
- Quer café, madame?
- Não, obrigada.
No fundo da barraca outro garoto, parecendo um ano mais moço, tinha os braços enterrados até os cotovelos lavando pratos. Então ela viu a mulher ocupada cortando uma torta em fatias. Seu cabelo castanho estava arrumado atrás da cabeça num coque, revelando suas orelhas, e uma massa de cachinhos caía bastante atrativamente por sobre sua testa. Ela usava uma blusa branca simples engomada com uma gravata escura, e uma saia escura e lisa, com um avental branco amarrado em volta. Era miudinha, a própria imagem da "patroa", pensou Glória sarcasticamente, dona-de-casa e mãe juntas numa só pessoa.
Glória viera preparada para detestar Sarah Porter à primeira vista e assim aconteceu. Igualmente irritante era a paciência dos mineradores e a ausência de seus usuais palavrões. Embora parte disso pudesse ser atribuído à presença dos dois meninos, Glória suspeitava que era mais por deferência à jovem viúva.
Quando a mulher notou Glória de pé no balcão, ela logo chamou o menino dos fundos.
- Timothy, quer vir servir esta torta para o sr. Sorrenson? Quando o menino prontamente abandonou a pia, a mulher caminhou em direção a Glória e perguntou: - Em que posso servi-la, madame?
Olhando-a mais de perto, Glória teve de reconhecer que a mulher era atraente, embora tivesse os olhos muito próximos um do outro.
- Gostaria de comprar umas tortas. Ouvi dizer que tanto a de maçã quanto a de passas são ótimas.
- A senhora deve ter estado conversando com o sr. Sinclair. - Ela sorriu na direção de Justin, que ficara discretamente de pé ao lado de Glória. - A de passas é a favorita dele.
- De fato, foi ele que a recomendou - admitiu Glória. - Acho Que vou levar uma de cada.
- Naturalmente. - Ela se voltou um pouco do balcão de madeira e dirigiu-se ao menino do café: - Andrew, traga um pouco de café para a senhora. Gostaria de um pouco, não?
- Não, obrigada. Seu filho já me ofereceu. Ele é seu filho, não?
- Sim. Casei-me muito jovem.
- Uma noiva-criança... - murmurou Glória. "Jovem uma ova", pensou. Ela tem no mínimo uns 28 anos.
- Sim. Perdi meu marido em circunstâncias trágicas no inverno passado. Somos originários do Oregon. Estou certa de que deve saber como é difícil para uma mulher com dois meninos para criar e nenhum homem para ajudá-la. Vendi tudo o que tínhamos para comprar nossas passagens até aqui, na esperança... - Ela fez uma pausa e sorriu com ar de quem se desculpa. - Perdoe-me. A senhora não veio aqui para ouvir minha triste história. É que é tão bom ver o rosto de uma mulher... Nós somos tão poucas nesta cidade. Mulheres respeitáveis, quero dizer...
- Sim. - Glória não estava convencida de que a mulher não suspeitasse da natureza da sua profissão, não quanto estava tão segura de como havia poucas mulheres em Nome. - A senhora parece estar indo muito bem aqui em seu negócio, no entanto.
- Estou. Nunca achei que pudesse ganhar a vida para minhas crianças com uma coisa tão simples como fazer tortas. Alguns desses pobres homens dizem-me que não haviam provado uma torta feita em casa há anos. Eu tive a bênção de Deus no dia em que encontrei o sr. Sinclair. Lá vou eu de novo contando histórias... vou buscar suas tortas. - A jovem viúva afastou-se, deixando Glória a cismar o que exatamente Justin teria com tudo aquilo. Ao lado dela, Justin movia-se pouco à vontade.
- Está indo para a cidade, Justin? - perguntou ela, inteiramente certa de que, se ele estava, não tinha nenhuma pressa de lá chegar, já que Matty o vira ali há quase três horas. - Terei prazer em lhe dar uma carona.
- Não... eu... isto é, tenho de voltar para as escavações. Vim apenas para apanhar uma torta. Uma espécie de um agrado para os colegas.
- Neste caso, levo você de volta.
- Será ótimo. - Mas a resposta dele não mostrava nenhum entusiasmo.
A jovem viúva voltou com as tortas.
- Eis aqui suas tortas; ainda quentinhas do forno.
- Quanto lhe devo? - Glória abriu o fecho ornamentado de ouro de sua carteira de bolso.
- Da primeira vez tenho de cobrar pelas formas de lata; depois a senhora as traz de volta e lhe cobro apenas pelas tortas - disse ela ao comunicar-lhe o preço.
- Naturalmente. - Glória notou que a diferença de custo era consideravelmente maior do que uma forma de torta custaria, mesmo aos preços inflacionados de Nome. A mulher não somente lucrava com as tortas mas também com as formas. Era muito esperta, pensou ela ao entregar-lhe o dinheiro.
Observou Sarah Porter contar cuidadosamente o troco. Quando a mulher passou o dinheiro para a outra mão, a fim de colocá-la na palma de Glória, ela teve no mesmo instante com uma suspeita. Em seu negócio ela se tornara consciente de todos os truques de manipulação para roubar alguém no troco, e a troca de mãos era uma maneira fácil de empalmar uma moeda. Glória olhou para o troco em sua mão e disse:
- Acho que a senhora ainda me deve vinte e cinco centavos.
- Devo? - A surpresa e a inocência na voz dela eram muito convincentes. Ela recontou o dinheiro que dera a Glória. - Acho que não tenho mesmo boa cabeça para essas coisas. - Quando ela se dirigia para a caixa, olhou casualmente para o chão. - Ah, está aqui no chão; devo tê-la deixado cair. - Ela se abaixou e fez os movimentos de quem está apanhando uma moeda no chão, mas Glória estava certa de que a tinha na mão o tempo todo. - Aqui está. Desculpe.
- Está tudo bem. - Mas Glória estava convencida de que aquilo tudo era uma farsa: a pobre mulher abandonada com dois meninos pequenos e sem jeito para negócios. Uma farsa muito convincente - para qualquer pessoa menos para outra mulher.
- vou levar minha torta de passas agora, sra. Porter. Já está na hora de voltar para o trabalho - disse Justin.
- Num momento. - Mas quando ela se virou foi para chamar seus filhos. - Timothy, Andrew. O sr. Sinclair está indo embora. Vocês não têm uma coisa para dizer para ele?
- Obrigado pelas balas, sr. Sinclair, - disseram ambos em coro.
- Não há de que - respondeu Justin e depois virou-se para Glória:
- Eles são realmente meninos bem-educados. Se você esperar um segundo, eu lhe ajudo a levar as tortas para o cabriolé.
- Por certo - murmurou ela, consciente de que ele havia arranjado uma desculpa para partir com ela.
Sarah Porter veio com a torta. Justin pagou-lhe, insistindo para que ficasse com o troco. Glória fervia de raiva quando ele a acompanhou até o cabriolé. Subiu para o banco sem dizer-lhe uma palavra. Ele arrumou as tortas no carro e subiu para o lado dela; sem esperar um minuto, ela bateu com as rédeas, fazendo com que o cavalo ganhasse a rua.
Um silêncio desconfortável reinou enquanto andavam pela trilha cheia de gente em direção à praia. A cena ali desafiava qualquer descrição, com homens e máquinas escavando a areia, criando uma confusa teia de buracos e trincheiras e montanhas de areia já trabalhada. Podiam ver as mais bizarras geringonças jamais inventadas para extrair ouro da areia. bombas de toda a espécie, moinhos de vento, máquinas a vapor, peneiras e enormes dragas que pareciam monstros pré-históricos de metal, eram operados lado a lado com os mais convencionais aparelhos, como lavadores, "berços", moinhos - e quase tudo estava brilhantemente pintado com todas as cores do arco-íris, dando à cena a aparência de um circo com suas atrações externas.
- Espere até provar as tortas dela - disse afinal Justin, competindo com o barulho e o estrépito das máquinas em atividade. - São realmente boas; ela é uma excelente cozinheira. Venho lhe dizendo que devia era abrir um restaurante ou uma pensão.
- Você fez isso? - murmurou Glória.
Era óbvio que Justin havia experimentado mais da cozinha da viúva do que apenas suas tortas. Em silêncio, ela ouviu mais elogios da comida da mulher, como se ele estivesse tentando convencê-la de que aquele era seu único interesse em Sarah Porter.
- Realmente a gente tem que admirá-la, vindo de tão longe para um lugar estranho para começar uma nova vida com seus filhos - disse Justin.
- Ela é uma mulher interessante; não há dúvida - declarou Glória secamente. - E ela parece ser muito grata a você pela ajuda que lhe tem dado.
- Realmente não fiz lá grande coisa. Apenas emprestei-lhe um pouco de dinheiro para comprar alguns suprimentos e coisas que ela precisava para começar seu negócio.
- Como você é generoso, Justin. - Extremamente generoso, pensou Glória, considerando que ele havia financiado o negócio, comprado balas para os filhos dela e pago pela torta que levara. E ela, no entanto, durante todo esse tempo, não havia recebido nenhuma coisa dele. Começava a parecer que o Diácono estava certo acerca de Justin há muito tempo.
- Eu ia perguntar-lhe como a praia estava dando resultado para você, mas deve estar indo muito bem, se pode emprestar dinheiro para a Sra. Porter. A esta altura minha participação em sua concessão já deve andar por uma boa quantidade de ouro. - Ela ainda não vira uma única onça de ouro em pagamento do financiamento que fizera no verão passado.
- Na verdade, não estamos tirando tanto quanto vínhamos fazendo. Experimentamos vários lugares novos, mas está começando a parecer que as areias já podem estar esgotadas. A maior parte da praia já foi muito trabalhada. com toda essa gente por aqui e suas loucas geringonças para tirar o ouro, quase não existe nenhum centímetro de espaço que não tenha sido trabalhado.
Embora fosse uma queixa que Glória já ouvira de mais de um garimpeiro que tinha trabalhado ali por mais de um ano. como Justin, desta vez aparentava mais uma tentativa para dar a impressão que a participação dela não seria lá grande coisa. Ele havia, com a maior satisfação, recebido tudo o que ela quisera dar-lhe, mas não parecia pensar que lhe devia qualquer coisa de volta - nem mesmo sua fidelidade.
O Diácono tentara alertá-la, mas ela não quisera entendê-lo. Ela pensara... O que pensara ela? Que Justin a amava? Que ela o amava? Não sabia de mais nada. Sentia-se como uma tola. Era uma repetição do que acontecera em Skagway, e Justin estava de novo pronto a abandoná-la.
Justin continuou a falar, mas Glória parou de ouvir. Resistiu à tentação de dizer-lhe que sua pobre e abandonada viúva Porter não era tão pura e branca como um lírio como ele acreditava. Foi muito difícil para Glória dar-lhe um até-logo educado quando o deixou em sua concessão na praia.
De volta ao Palácio, Glória informou ao rapaz do bar, Paddy, que se Justin Sinclair aparecesse por ali, teria que pagar por seus drinques ou pela comida que encomendasse, e instruiu-o a notificar todo mundo a respeito da mudança. O Diácono estava por lá, ouvindo cada palavra, mas Glória era por demais orgulhosa para admitir abertamente que ele estivera certo o tempo todo. Em vez disso, passou por ele sem dizer uma palavra e foi direto para seu quarto sem sequer incomodar-se em ver Gladys.
A correspondência estava em cima da cama onde a deixara. Por um momento, Glória ficou olhando para o envelope aberto de seu pai, Gabe Blackwood - o homem que haVia usado e abusado de sua mãe, que tirara o dinheiro dela e a abandonara, da mesma forma como Justin planejara fazer com ela. Chegara a hora de homens como estes receberem uma lição e sofrerem como sua mãe sofrera - e da forma como ela sofrera. Glória nunca pensara ter um instinto de vingança em sua mente, mas tinha. Jurou fazê-los pagar pelo que haviam feito.
Pegou o envelope e retirou a carta. Primeiro, correu os olhos rapidamente pelo seu conteúdo e depois releu-a, mais devagar.
Minha querida Glória.
Quando você receber esta carta provavelmente terei levantado ferro para Nome. Comprei passagem no vapor Senator que deverá chegar a Nome em meados de julho.
Você provavelmente já soube que o Congresso finalmente aprovou a legislação que permite a criação de governos municipais nas comunidades com uma população de trezentas pessoas ou mais. Houve muitos e calorosos debates sobre a aprovação dessa emenda, o que adiou meu retorno. Mas sinto-me satisfeito em dizer que meus esforços de influência junto aos legisladores tiveram sucesso, embora a letra da lei não contenha tudo aquilo que procurávamos.
Tenho muitas coisas a dizer-lhe, mas receio que não tenho nem o tempo nem o espaço para escrever tudo. Resumindo, estarei viajando com o juiz federal para o segundo distrito, recentemente nomeado, Arthur H. Noyes; o promotor público federal, Joseph K. Wood, e um outro influente homem de Dakota, Alexander Mackenzie. Ele é o presidente da Companhia de Mineração de Ouro do Alasca e um sujeito realmente dinâmico.
É com grande ansiedade que antecipo o prazer de renovar sua deliciosa companhia. Há tantas coisas excitantes no horizonte. Em breve estarei aí para compartilhar com você de todas estas maravilhosas novidades. Até então permaneço
Seu muito sincero, G. Blackwood.
Embora não tivesse recebido a nomeação para o novo lugar de juiz Que ambicionava, ele estava nas alturas, esperando que melhores coisas lhe acontecessem. E isto era exatamente o que Glória desejava.
Na praia reinava uma confusão infernal. Milhares de toneladas de carga de navios estavam espalhadas ao longo da costa, estendendo-se desde a parte mais ao mar da areia, lambida pela maré, até o cais, e isto por cinco quilómetros ao longo da costa. Tudo era carga que havia sido desembarcada dos navios que se achavam ancorados no canal, a várias milhas da costa. Empilhada na praia havia maquinaria de toda a espécie, desde prensas de tipografia até monstruosas engenhocas de extração de ouro, garantidas por seus fabricantes de dragar o ouro da areia ou do fundo do mar. Pianos, mobiliário para bares, fogões, máquinas de costura e cabriolés misturavam-se com milhares de pés de madeira, toneladas de carvão e de trigo, caixotes de enlatados e outras provisões e suprimentos. Juntando-se ao volume da carga havia bagagem: malas de porão e trouxas de passageiros dos navios.
Cada vez que um proprietário tinha a sorte de localizar as coisas que lhe pertenciam, ainda havia o problema de retirá-las da praia. Carroças puxadas por cavalos transportavam a maior parte. As cargas mais leves eram puxadas por seis ou doze cães atrelados a um pequeno carro. Os itens mais pesados eram usualmente carregados em batelões - uma espécie de barcaça para transferência de carga - depois rebocados para fora por lanchas a vapor ou com motores a gasolina.
O resultado era um caos de ensurdecer. Gritos de "Olhe!" "Puxe!" "Devagar aí!" "Vamos!" "Força!", misturados com o estalar de chicotes e a imprecação dos condutores. Brigas de cães estavam sempre irrompendo para juntar seus latidos, rosnados e gritos de dor ao barulho reinante, enquanto as ondas continuavam a quebrar na areia com seu estrondo ritmado. De vez em quando tudo era abafado pela passagem de uma lancha que cruzava com seu motor roncando. Para acrescentar algo à cacofonia havia os apitos dos navios ancorados bem fora da costa. Um navio anunciava sua chegada a Nome com vários apitos altos e todos os barcos que estavam no ancoradouro respondiam da mesma forma.
No momento parecia haver uma verdadeira armada estacionada ao largo da costa de Nome. Naquela manhã os apitos haviam anunciado a chegada do vapor Senator. Tão logo Glória recebeu a notícia de que aquele vapor estava no porto, ela dirigiu seu cabriolé para a praia a fim de aguardar os passageiros que iam desembarcar, sabendo que Gabe Blackwood estaria entre eles.
Ficou sentada à sombra da capota da carruagem, fora do sol forte, a observar a vagarosa aproximação do batelão. Como sempre, sua coberta plana estava cheia de gente; naquela multidão era impossível distinguir qualquer pessoa. Carregada pelas ondas, a embarcação com o formato de uma barcaça de fundo chato flutuou em direção à costa e encalhou a alguns metros da praia. Alguns dos passageiros tinham a sorte de calçar botas de borracha, mas o resto teve de caminhar por dentro d'água, molhando os sapatos, a não ser que algum amável passageiro concordasse em levá-los às costas.
Glória reconheceu Gabe Blackwood no momento em que ele pulou dentro d'água.
- Oliver - disse ela, inclinando-se para a frente e dirigindo-se ao corpulento ex-pugilista que estava de pé ao lado da cabeça do cavalo. O sr. Blackwood está vindo para a praia agora. Por favor, diga-lhe que estou aqui.
- Pois não, madame. - Ele inclinou a cabeça para ela e começou a abrir caminho através da corrente de passageiros que já estavam na praia.
De sua posição favorável em cima do cabriolé, Glória podia observar Oliver cumprimentando Gabe e o homem que parecia acompanhá-lo. Era alto, alguns centímetros mais alto do que Gabe, e mesmo àquela distância havia algo de imponente nele. Glória ficou pensando qual dos três homens citados na carta de Gabe seria este. Talvez o juiz. Gabe olhou na direção dela e acenou com a mão. Glória correspondeu da mesma forma.
Abrindo caminho para eles, Oliver conduziu Gabe e seu companheiro até o carro. Quando se aproximavam, Glória notou as mudanças em Gabe. Havia um marcante contraste entre o homem que ela agora via e aquele que conhecera há pouco mais de um ano. Seu cabelo e seu cavanhaque estavam mais brancos. Em vez da roupa malcortada e que lhe assentava mal, ele agora vestia um paletó de três botões de flanela de lã azul-marinho, com listras alternadas cinza e azul claro. O chapéu que usava era de feltro de boa qualidade e tinha uma banda de seda de cinco centímetros de altura. Era, porém, mais do que sua aparência externa que demonstrava a mudança: a confiança que agora emanava dele não vinha mais da bebida.
- Minha querida, que deliciosa surpresa! - declarou ele, aproximando-se da carruagem e tomando a mão enluvada que ela lhe estendia.
- Não esperava que estivesse aqui esperando por mim.
- Esteve fora por tanto tempo que certamente não iria acreditar que eu não estivesse aqui para dar-lhe as boas-vindas de volta a Nome.
- Um homem de minha idade não ousa ter a presunção de tais coisas, - disse ele, e então pareceu lembrar-se de seu companheiro de viagem e, voltando-se, chamou a atenção de Glória para ele. - Permita-me apresentar-lhe o sr. Alexander Mackenzie, presidente e gerente geral da Companhia de Mineração de Ouro do Alasca, que vai estabelecer seus escritórios aqui em Nome. Sr. Mackenzie, a srta. Glória St. Clair. Ela e seu sócio são proprietários do Palácio, um dos melhores estabelecimentos de Nome.
O encontro frente a frente reforçou a primeira impressão que tivera do homem. com mais de 1,80m de altura, ombros largos e um porte avantajado, Alexander Mackenzie tinha uma presença imponente. Seus olhos escuros eram duros, mas não da mesma forma que os do Diácono. No caso do Diácono era mais uma ausência de qualquer expressão emocional; com Mackenzie era uma frieza calculada. Ele tinha o rosto barbeado, exceto por um bigode escuro e completo que virtualmente lhe escondia a boca. Sua cabeça era erguida com o queixo proeminente, como se a desafiar qualquer um a experimentar golpeá-lo. Glória tinha a distinta impressão que este homem não era só agressivamente ambicioso como poderia também ser implacável.
- Bem-vindo a Nome, sr. Mackenzie.
- Obrigado. - Ele tocou a aba do chapéu. - É um prazer conhecêla, srta. St. Clair.
- Desejo-lhe sorte para encontrar espaço para escritórios aqui disse ela. - Quando se pode encontrar, custa uma fortuna. Uma sala acanhada como um armário vai custar-lhe sessenta dólares por mês, e isto sem aquecimento, luz ou zelador. E terá sorte se as paredes tiverem reboco. Nome se tornou superpovoada.
- Agradeço-lhe a informação, srta. St. Clair, mas estou certo de que encontrarei qualquer coisa que me satisfaça. - A confiança dele era quase assustadora.
- Devo admitir que do convés do navio parecia que toda a beiramar estava coberta de neve - disse Gabe. - Quando chegamos mais perto da costa, vi que eram barracas. Ouvimos dizer que vieram milhares de pessoas, mas a enormidade da coisa realmente não havia me tocado até agora.
- A praia não é nada comparada com a congestão no centro. A cidade está atulhada de gente. - Glória fez uma pausa e deixou seu olhar desviar-se para Mackenzie. - Devo confessar que ao vê-lo pela primeira vez com o sr. Blackwood, pensei que pudesse ser o novo juiz. Tinha compreendido que ele chegaria no Senator.
- O juiz Noyes estava se sentindo ligeiramente indisposto depois da longa viagem marítima. Ele decidiu permanecer em seu camarote por um dia ou dois.
- Estou satisfeita por saber que ele chegou. Sei como o sr. Blackwood tem estado ansioso para apresentar seus diversos casos perante um juiz, de forma que essas disputas sobre propriedade de concessões de mineração possam ser finalmente resolvidas.
- Sim. O sr. Blackwood e eu discutimos os casos de vários de seus clientes - confirmou Mackenzie.
Mas houvera mais do que apenas discussões, conforme Glória descobriu mais tarde naquele dia, ao ter a oportunidade de conversar em particular com Gabe. Ele concordara em entregar a Mackenzie os seus honorários de 50% do valor dos casos de invasão de concessões em troca das ações de Companhia de Mineração de Ouro do Alasca, a qual tinha um capital autorizado de quinze milhões de dólares. Outra firma de advocacia de Nome entrara num arranjo semelhante, disse Gabe e depois lhe confidenciara que Mackenzie dissera que ele "era dono" do juiz Noyes e do novo promotor federal. Embora Glória fosse cética acerca de que qualquer pessoa, mesmo Alexander Mackenzie, tivesse tanto poder sobre funcionários federais, ela não revelou suas dúvidas a Gabe.
Apenas dois dias mais tarde, descobriu como andara errada. Um advogado da outra firma apelou para o novo juiz e pediu-lhe uma injunção a favor de seu cliente contra várias das mais ricas concessões registradas pelos escandinavos - ilegalmente - de acordo com ele. O juiz não apenas concedeu a injunção contra a concessão Discovery de Jafet Lindenberg e várias outras concessões altamente produtivas, mas também nomeou a Companhia de Mineração de Ouro do Alasca como depositária das concessões até que a questão da propriedade fosse dirimida através de um processo litigioso. Além disso, ordenou que todas as propriedades pessoais nas minerações fossem confiscadas, inclusive qualquer ouro que houvesse sido recuperado, e que a Mackenzie fizesse um depósito de garantia de cinco mil dólares por mina. E tudo isso foi resolvido dentro de minutos, sem que houvesse oposição dos proprietários originais das concessões ou de seus advogados. Parece que alguém deixou de informar a eles que o pedido fora apresentado perante o novo juiz.
Após aprovar a injunção e nomear o depositante, o juiz Noyes suspendeu a sessão. Mackenzie tinha carroças cheias de homens esperando do lado de fora. Eles saíram disparados de Nome e tomaram posse da maioria das minas principais da rica região em ouro de Anvil Creek.
Nome ficou fervendo com essas notícias. Mackenzie não somente havia expulsado os mineradores e tomado posse de seu equipamento, ouro em pó e pepitas, como também tencionava trabalhar as concessões. Alguns alegavam que Mackenzie não havia sequer depositado a caução requerida. A maior parte acreditava que os cinco mil dólares eram de qualquer forma uma farsa. Os mineradores vinham tirando quinze mil dólares em ouro por dia das concessões da Discovery.
Naquela noite esse foi praticamente o único assunto discutido no Palácio. Embora muitos quisessem que as concessões dos chamados "estrangeiros" fossem canceladas, a maior parte pensava que o juiz dera a Mackenzie uma licença para roubar. Duvidavam que restasse qualquer ouro quando a questão da propriedade fosse resolvida. Em todo o lugar que Glória ia, a conversa era a mesma. Ela parou para apreciar um jogo de pôquer de alto cacife com uma pilha de fichas no meio da mesa.
- Ouvi dizer que os advogados de Jafet nunca tiveram uma oportunidade de apresentar seu caso - disse um dos homens. - Depois que descobriram que haviam perdido o controle de suas concessões, eles tentaram ver o juiz, mas ele não estava disponível. - O homem jogou na mesa uma pilha de fichas e acrescentou, quase desinteressado: - Cubro sua aposta.
- Sim... e você sabe por que o juiz não estava disponível? - O próximo jogador arriou suas cartas na mesa e depois forneceu a resposta para sua própria pergunta: - O juiz partiu muito convenientemente para St. Michael. Dizem que ele não voltará por duas semanas ou mais.
Uma discussão em altas vozes vinha da porta. Glória olhou na direÇão da entrada para ver qual era o problema. Sorriu ligeiramente quando viu Justin na porta, tendo sua entrada barrada pelo homem de roupa escura postado ali para coletar as entradas. Quando começou a mover-se em direção à porta, observou que Oliver já estava a caminho para resolver o distúrbio.
- Oliver - disse Justin, reconhecendo-o com um misto de alívio e exasperação -, quer fazer o favor de dizer a esse homem quem eu sou? Tentei explicar-lhe que sou um dos amigos de Glória, mas ele não quer me escutar. Fica insistindo que devo pagar-lhe.
- Desculpe-me, sr. Sinclair... - começou a falar Oliver.
- Está tudo bem, Oliver - interrompeu-o Glória, cruzando os últimos dois passos em direção à porta. - Eu cuido disso.
- Pois não, srta. Glória - disse Oliver, recuando um passo mas sem se afastar.
- Fico satisfeito de você aparecer - disse Justin, experimentando um sorriso. - Estava começando a pensar que teria de lutar para chegar até você. Esse cara não acreditava que eu era seu amigo.
- Não creio que seja culpa de Hawkins - replicou ela, tranquila.
- Afinal de contas, ele só está trabalhando para nós há três semanas, e em todo esse tempo você não esteve aqui uma única vez.
- Eu sei. - Ele pareceu compreender que seu sorriso não estava funcionando. - Desculpe se faz tanto tempo, mas tenho estado muito ocupado ultimamente; o tempo parece voar. - Começou a dar um passo para entrar, mas o novo empregado interveio para barrá-lo novamente. Impaciente e intrigado, Justin franziu a testa para Glória.
- Quer dizer a este cara para me deixar passar?
- Já lhe pagou a entrada? - perguntou Glória, sorrindo.
- Naturalmente que não. - As rugas em sua testa aumentaram.
- Desculpe-me, Justin. São as novas regras da casa.
- Desde quando?
- Desde que decidi que seria assim. - Ela mantinha a voz baixa, saboreando o momento. - Você paga pelas suas tortas de passas; por que não deveria pagar para entrar aqui?
- Então é assim? - Ele arregalou os olhos para ela. - Eu nunca lhe prometi nada.
- Eu é que nunca fiz a você nenhuma promessa, Justin. - Glória sentia prazer em apontar isso para ele. - Como um velho amigo você será bem recebido no Palácio a qualquer hora, mas de hoje em diante terá de pagar. Não haverá mais coisas grátis... se entende o que quero dizer.
Por um longo momento, Justin não se moveu e nem deu uma piscadela. Então, de repente, virou-se e saiu desabalado pela porta, batendo-a com força. Glória ainda permaneceu por um instante olhando para a porta e depois voltou para o salão. Do outro lado o Diácono observava-a, e ela julgou notar um sorriso de aprovação em seu rosto. Sorriu de volta para ele.
Pela madrugada, depois que a maioria dos clientes tinham partido, o Diácono foi ao quarto dela. Glória descobriu que a velha magia que ambos haviam partilhado continuava presente. Mais importante do que isso era que se sentia à vontade com ele; nunca pareceu haver qualquer necessidade de uma explicação. O Diácono entendia a diferença entre negócios e prazer.
O mês de agosto trouxe chuvas que transformaram as ruas arenosas de Nome num atoleiro, parecendo aumentar o lamaçal em que viviam os habitantes da cidade. A quantidade de ouro encontrado nas praias tornava-se cada vez menor, não importa quão engenhosos ou caros os artifícios usados para minerá-lo. As "areias douradas de Nome" não eram mais douradas.
Os ricos depósitos de aluvião nas montanhas despidas de árvores da ilha continuavam a produzir suas pepitas e seus grãos de ouro, mas a maior parte das concessões eram controladas por Mackenzie. Quase todo mundo estava convencido de que o ouro ia para os bolsos dele, e não como depositário dos legítimos donos. O juiz Noyes voltou de St. Michael, mas recusou-se a ouvir os protestos dos concessionários originais e negou sumariamente seus apelos para submeter a questão à corte de San Francisco. Desafiando tal decisão, os advogados partiram para San Francisco no fim do mês para apresentar a petição diretamente à corte de apelação para a revisão de seus casos.
Pelo fim do verão a prospecção nas montanhas do interior tinha virtualmente parado. Qualquer garimpeiro nas montanhas que descobrisse um depósito valioso inevitavelmente o recobria, temendo que se a descoberta fosse conhecida a concessão seria questionada, acabando - por meio de chicanas legais - nas mãos de Mackenzie.
Nome vivia sob grande tensão. A criminalidade crescia. O mês de agosto trouxe a proteção da escuridão para os elementos criminosos cometerem seus furtos, seus roubos e assaltos. No princípio de setembro, Wyatt Earp foi preso pela segunda vez por agredir um policial e um júri concluiu que a presença de mulheres nas salas de jogos e bares era á" maior causa das ações ilícitas. Uma ordem foi aprovada banindo as mulheres de tais lugares, com exceção das que cantavam ou que doutra forma se exibiam para os fregueses. Naquela noite, no Palácio, o pianista acompanhou as pequenas de Glória quando elas cantavam uma seleção de canções que iam desde Quando o sol desce no horizonte até Porque eu te amo e outras baladas populares.
Enquanto isso, Nome estava sob a ameaça da violência. Havia sempre a perspectiva de que, se as cortes lhes falhassem, os mineradores se encarregariam de executar a lei por suas próprias mãos. O resultado poderia ser uma guerra declarada entre os mineradores e os capangas de Mackenzie.
Ao meio-dia do dia 12 de setembro, Glória estava sentada na chaiselongue que ficava na pequena área de estar de seu quarto. Vestida com um traje leve caseiro, ela fumava distraidamente um cigarro em sua piteira e escutava a exposição de Gabe, como ele interminavelmente fazia, acerca do vasto poder e influência de Alexander Mackenzie. Do lado de fora rugia uma tempestade que ameaçava transformar-se em furacão. - Minhas ações na Companhia de Mineração de Ouro do Alasca irão valer uma pequena fortuna - declarou ele. - Mais até, tão logo ? Juiz invalide as concessões anteriores de mineração e dê os títulos legais
à companhia.
- Você parece tão confiante de que isto vai acontecer.
- Esses estrangeiros não têm o direito de marcar concessões em solo americano; todo mundo sabe disso - replicou ele com a paciência de um pai falando com um filho.
- Talvez. - Ela bateu a cinza da ponta de seu cigarro num cinzeiro de latão. - Mas, segundo a lei, o governo é a única entidade que pode questionar a cidadania de um minerador. Um outro minerador não tem o direito de usar a cidadania de uma pessoa como uma desculpa para apoderar-se de sua concessão. Como pode estar tão certo de que o juiz vai decidir a favor da Companhia de Mineração de Ouro do Alasca?
- Porque Mackenzie tem o juiz no bolso... O juiz fará o que quer que ele determine. Estou lhe dizendo, Glória, vai ser um grande dia quando ele finalmente publicar sua decisão. Aquelas ações não somente me farão um homem rico, mas, com Mackenzie por trás de mim, serei nomeado governador do Alasca. Espere e verá!
- Você não está nem um pouco preocupado com o que pode estar acontecendo em San Francisco, Gabe? Os advogados, tanto da Companhia de Mineração Pioneira Lindeberg, como os da Companhia de Mineração Ganso Selvagem, estão lá apresentando petições à Corte de Apelação para derrubar as sentenças do juiz Noyes.
- Nada resultará disso. Desde quando alguém do lado de fora incomodou-se sobre o que acontece no Alasca? Nunca. E isso não irá mudar agora. - Ele inclinou-se para a frente na cadeira e assumiu uma atitude confidencial. - E não se esqueça de que Mackenzie tem amigos importantes. O homem conheceu pessoalmente cada um dos presidentes dos Estados Unidos, de Cleveland a McKinley. Sua base de poder não tem paralelo. - E, depois de uma pausa, disse com um risinho: - Não é sem razão que o chamam de "Alexandre o Grande"...
Até agora, Glória tinha que admitir, Mackenzie parecia intocável. Não que estivesse além do alcance da lei, mas realmente porque a controlava. Ela não dava nenhuma importância a Mackenzie, mas o que a fascinava era a influência corruptora que tivera sobre Gabe. Sua mãe frequentemente mencionara seus altos ideais e seu sonho de se tornar governador. Ele nunca perdera aquele sonho. Agora ele encontrara um homem com o poder para tornar seu sonho realidade. A cada dia ele se tornava mais velho e o tempo corria; sabendo disso, ele estava deixando que os fins justificassem os meios. E seus preconceitos de uma vida inteira permitiam-lhe fazê-lo com a consciência tranquila.
O vento uivava e sacudia as janelas, sua fúria sublinhada pelo ronco das ondas quebrando selvagemente a apenas alguns metros da parede de trás do Palácio. O tumulto da procela quase afogou a batida na porta.
- Entre - gritou Glória.
Matty abriu a porta e entrou com um serviço de café de prata numa bandeja.
- Traga-a para cá, Matty. - Glória jogou os pés para fora da chaiselongue, apagando o cigarro no cinzeiro e depois removendo a ponta da piteira, enquanto Matty cruzava o quarto e colocava a bandeja numa mesa baixa ao lado da cadeira.
- A tempestade está ficando muito feia - disse Matty. - As ondas estão cada vez mais altas. O mar está zangado. Em breve, acho, ele vai chegar à praia.
- Espero que esteja enganada, Matty. Toda essa gente vivendo em barracas na praia... - e ela sacudiu a cabeça, não querendo pensar.
Tempestades vindas do sul assolavam a costa da península de Seward, sempre na primavera e no outono. Em sua localização altamente exposta, Nome sempre enfrentava o pior dessas tempestades adequadamente chamadas de tempestades equinociais.
- Quando tempestades como esta chegam, meu povo sempre abandona a costa e dirige-se às montanhas, onde é mais seguro. - Matty lançou um olhar ansioso para o céu cinza e ameaçador através da janela batida pelo vento. - Os sinais são maus; talvez a gente também devesse ir.
- Já vimos tempestades como esta antes - disse Glória. - Esta pode ser pior do que algumas das outras, mas não acho que tenhamos de tomar medidas tão drásticas.
- O Diácono diz que talvez tenhamos - disse Matty e depois moveu-se em direção à porta.
Quando Glória serviu o café da cafeteira de prata nas duas xícaras, ela ficou pensando sobre a última observação de Matty. O Diácono não era do tipo de ficar desnecessariamente alarmado. Ela passou uma xícara com o pires para Gabe e depois carregou a dela até a janela, vagamente consciente da porta fechando-se atrás de Matty. Olhou pela vidraça batida de chuva e notou a forma como o edifício tremia sob o impacto do violento vento. Embora mais fracamente, podia ouvir a queda e o barulho de coisas sendo jogadas pelo vento do lado de fora.
- "Os sinais são ruins" - disse Gabe atrás dela, imitando Matty e pigarreando com desprezo. - Isto é uma estúpida superstição nativa.
Lá embaixo ela podia apenas distinguir as enormes ondas da rebentação quando elas desabavam para bater contra as fundações da parte de trás do Palácio. Ela não esperava que a água estivesse assim tão perto.
- As ondas já estão na porta de trás.
- O que significa isso? - zombou ele. - Estas tempestades já lamberam antes os pés da cidade. Não se deixe impressionar por todas essas tolices. Eu pediria a Deus que você me escutasse e se livrasse daquela... mulher... de uma vez por todas. A raça dela não é boa!
- Já discutimos isso antes - disse Glória, afastando-se da janela.
- Compreendo que ela é uma mão-de-obra barata. Mas você não Pode confiar nela; essa gente mente e rouba, é de sua natureza. Você simPlesmente não precisa de gente de sua laia por aqui, acredite-me. Sei do Que estou falando. Já tive experiência com índios. Você precisa mantê-los na linha e mostrar-lhes seu lugar.
Quanto mais ouvia o palavrório dele, mais zangada ficava. Ela sabia muito bem como ele havia mantido sua mãe na linha.
- Qual é o lugar deles? - perguntou ela com frieza, mas ele pareceu não notar o gelo em sua voz.
- Não é viver no meio de gente branca decente. A melhor coisa que você pode fazer é livrar-se dela. - Ele apontou um dedo em riste para ela a fim de convencê-la da mensagem. - Tentar civilizar essa gente da forma como está fazendo com ela, é uma perda de tempo. Eles são como um leopardo: você pode domesticá-lo, mas não pode mudar suas manchas no pêlo. Eles sempre serão traiçoeiros e falsos. Deixe que ela vá embora para viver num iglu e comer gordura. É errado associar-se com gente da espécie dela.
- Que tal se eu lhe dissesse que sou da "espécie dela"? - Glória estava saturada dos preconceitos dele e desta vez Gabe fora longe demais.
Gabe olhou para ela espantado por um momento, depois deu um curto risinho para esconder sua confusão e perguntou:
- O que quer dizer com isso?
- Que tal se eu lhe dissesse que sou da raça dela? Ou melhor: talvez eu possa dizer de outra forma. Ela é da minha raça. Somos aparentadas. Matty e eu somos primas.
- Não acredito.
- É verdade. Qual é o problema, Gabe? Não pareço uma princesa índia para você?
- De forma alguma.
Depois de ter avançado tanto, algo estimulou Glória a ir até o fim.
- Que tal uma princesa russa?
Surpreendido pela pergunta, ele pareceu ficar subitamente nervoso e precavido.
- Russa? O que quer dizer?
- Sou conhecida profissionalmente como Glória St. Clair. Gostaria de saber qual é o meu verdadeiro nome?
- Qual é?
- Marisha. Marisha Blackwood, filha de Nadia Levyena Blackwood, cujo o nome de solteira era Tarakanov.
- Isto é impossível! - exclamou ele, saltando da cadeira.
- Nadia Levyena Tarakanov, de sangue misto aleúte, tlingit e russo, casou-se com o advogado americano Gabe Blackwood na catedral de São Miguel, em Sitka, Alasca. Certamente você se lembra daquele dia. - Ela andou na direção dele, observando o choque e a estupefação em seu rosto.
- Ou talvez sua memória seja mais clara acerca do dia em que partiu, o dia em que o avô de Nadia Tarakanov, Lobo Tarakanov, sofreu um ataque cardíaco após tentar impedi-lo de bater nela e matar a criança que Nadia carregava no ventre; o mesmo dia em que roubou toda a prata da casa e fugiu no navio do correio.
- Como... como você soube de tudo isso? Como descobriu? - Ele recuou, involuntariamente movimentando a cabeça de um lado para o outro num gesto de descrédito.
- Na maior parte pela irmã de minha mãe, minha tia Eva. Minha mãe falava a seu respeito, também, como você gostaria de ser governador.
- Não sei quem lhe contou tudo isso, mas é uma mentira - desembuchou ele. - Nenhuma palavra disso é verdade. Você se engana se pensa que pode chantagear-me com isso; não o tolerarei.
- Chantageá-lo? Que espécie de filha iria tentar chantagear seu pai? Você é meu pai!
- Não... não pode ser!
- Mas é! Não se recorda de dizer-me como eu lhe parecia familiar? Não é possível que eu lhe recorde minha mãe?
- Não!
- Pode negar tudo o que quiser, Gabe, mas é um fato. Sou sua filha e posso prová-lo. Minha mãe morreu, mas minha tia Eva continua viva. E há uma porção de gente em Sitka que ainda se lembraria de mim, a pobre pequena Marisha Blackwood. Estou fora de lá há três anos apenas. - Ele a encarava como se fosse um fantasma. Glória parou diante dele e correu os dedos pela lapela arredondada de seu jaquetão. - O que há com você, papai? Não parece feliz em haver-me encontrado!
- Não me toque! Afaste-se de mim! - Ele recuou, um selvagem pânico se espalhando por seu rosto.
- O que acha que Mackenzie pensará quando eu lhe disser que você é meu pai? Duvido que vá incomodá-lo, como incomoda a você, que eu tenha algum sangue índio. Mas para o futuro governador do Alasca ter como sua filha uma das mais famosas... ou deveria dizer infames... mulheres de vida alegre de todo o Alasca, creio que isto o faria pensar duas vezes antes de fazê-lo governador.
- Você não iria dizer a ele...?
- Oh, não iria? - Ela afastou-se dele. - Os jornais adoram escândalos. Não pode imaginar as manchetes? "Conhecida mulher perdida, filha do homem que está se candidatando a governador do Alasca!" Glória fez uma pausa e jogou a cabeça para trás, dando uma risada. Você nunca será governador, Gabe Blackwood. Torci para que isso chegasse a seu alcance, mas você jamais conseguirá. - Ela voltou-se de novo para encará-lo. - Cuidarei disso. Você nunca será nomeado governador, juiz ou lixeiro... Nada! Isto é o que você é, e é como permanecerá!
- Você me enganou. Todo esse tempo você me enganou! - Ele tremia de raiva. - Da mesma forma como ela fez. Vocês são todas iguais: não passam de um bando de miseráveis mentirosas! - Ele deu um passo ameaçador em direção a ela, mas Glória ficou firme sem demonstrar medo dele. Ele não iria intimidá-la como fizera com sua mãe. - Permiti uma vez que ela destruísse minhas chances, mas não ficarei parado, deixando Que você me arruine desta vez. Esperei muitos anos por esta oportunidade. Anos demais.
- E ainda ficará esperando quando estiver em seu leito de morte, - desafiou-o ela.
A mão dele pareceu surgir de repente à frente de Glória, vinda não se sabe de onde. Ela ainda a viu de relance, antes que a atingisse no rosto fazendo sua cabeça explodir de dor. Ela nem ouviu o grito que soltou quando recuou com a força do golpe, deixando cair a xícara e o pires.
Quando ele a agrediu repentinamente, Glória levantou os braços, tentando evitar os golpes. Continuou a recuar, subitamente recordando como sua mãe deveria ficar assustada e indefesa ante o brutal ataque dele.
Ela chocou-se contra um objeto, que impediu seu recuo; ele bateulhe de novo e ela caiu em cima da cama. Sentindo a maciez do colchão de penas debaixo dela, Glória tentou arrastar-se para a segurança do outro lado da cama. Mas ele agarrou-a pelo vestido; ela ouviu a frágil fazenda romper-se quando tentava nervosamente livrar-se dele. Antes que pudesse consegui-lo, ele estava em cima da cama, com as mãos a apertar-lhe o pescoço.
Glória gritou tão alto quanto pôde, duvidando que fosse ouvida com a crescente fúria da tempestade que rugia lá fora. Rapidamente, ele abafou seus gritos com as mãos. Lutando e se debatendo, ela cravou os dedos no rosto dele, arranhando-lhe a pele com as unhas e tentando atingir os olhos. Seus esforços tiveram sucesso em impedir que ele apertasse mais as mãos em volta de sua garganta e a privasse de respiração, mas os pulmões já pareciam prestes a estourar. Glória sabia que não poderia resistir por muito tempo. Se apenas tivesse uma arma, qualquer coisa, qualquer coisa para bater nele... Mas não havia nada por perto de suas mãos.
Suas forças esvaíam-se rapidamente. Sentia-se escorregando para as escuras paragens da inconsciência e tentou lutar contra isso. De repente, sentiu-se livre das mãos dele. com a primeira golfada de ar começou a tossir. com a mão na garganta, arrastou-se até o toalete ao lado da cama, tencionando pegar a pistola que tinha numa gaveta. Olhou para ver onde estava Gabe, mas foi o Diácono que ela viu de pé ao lado do leito. Gabe estava justamente se afastando da parede, com uma das mãos esfregando o queixo.
- Você está bem, Glória? - O Diácono virou-se para ela no mesmo momento em que ela viu Gabe meter a mão dentro de seu paletó e puxar um revólver.
- Cuidado! Ele tem uma arma!
O Diácono virou-se rapidamente. A pistola acionada por uma mola pulou na mão dele de seu esconderijo no coldre da manga. Antes que pudesse fazer pontaria, Glória viu uma chama amarela sair do cano do revólver de Gabe e uma explosão ensurdecedora rasgou o ar. O Diácono encolheu-se e agarrou o braço direito. A pistola disparou e a bala perdeu-se pelo forro sem acertar em nada.
- Não! - Gritou Glória e pulou do leito. Agarrou a pistola de cabo de madrepérola de dentro da gaveta e usou ambas as mãos para apontá-la para Gabe. Apertou o gatilho, fechando os olhos ao estrondo do tiro, enquanto a arma pulava de sua mão. O tiro se perdeu, atingindo a parede a vários metros dele. O choque estampava-se em seu rosto enquanto Glória se esforçava para rearmar o gatilho e ele saía disparado do quarto.
O Diácono estava de joelhos perto da cama, a mão esquerda agarrando o braço direito, perto do cotovelo. Seu rosto retorcia-se de dor enquanto aspirava o ar através dos dentes cerrados. Glória correu para o lado dele, esquecendo o fugitivo e suas próprias dores e ferimentos. Deu uma olhada no sangue vermelho que escorria entre os dedos dele e pelas costas de sua mão esquerda, e correu para a porta.
- Matty - gritou. - Venha cá! Depressa! - E voltou para o lado do Diácono. Suas mãos tremiam quando rasgou uma tira de pano da barra do vestido. - Temos que estancar a hemorragia. - Amarrou o pano em seu antebraço, bem em cima da ferida, e pegou uma colher de café da bandeja para torcer o pano, apertando-o, improvisando um torniquete.
- Seu rosto... - murmurou o Diácono.
A observação dele tornou-a consciente de seu lábio inchado e do sangue que escorria do corte - e da metade de cem outros lugares que latejavam.
- Estou bem - assegurou-lhe ela. Seus machucados pareciam extremamente sem importância comparados com a ferida dele.
- Vim aqui em cima para lhe dizer que a tempestade está piorando. A voz dele estava rouca com a dor. - Está sentindo o edifício balançar? São as ondas que o estão atingindo. Outros vizinhos aqui na rua estão tentando ancorar seus edifícios no chão. Teremos de fazer o mesmo. Enquanto isso, é melhor tirarmos todo mundo daqui e salvar o que pudermos. Glória! - Ele fez uma pausa e ela percebia a dificuldade com que respirava. - O que aconteceu aqui? Blackwood parecia um louco.
- Não fale. - A palidez dele assustava-a. - Mais tarde eu lhe conto.
- Ouviu os passos de Matty no corredor do lado de fora e olhou para a porta quando a mulher apareceu. - O Diácono foi ferido; precisamos levá-lo a um médico.
- É sério, não é? - disse o Diácono.
Ela não tinha coragem de dizer-lhe. Não era de forma alguma uma ferida fatal; ela duvidava que ele estivesse em perigo de sangrar até morrer. Mas notara algumas partículas de ossos quando colocara o torniquete. Temia que a bala houvesse espatifado seu cotovelo. Se fosse assim, seu braço direito poderia ficar permanentemente aleijado, e o Diácono era um jogador profissional.
Glória vestiu uma longa capa de chuva e um par de galochas enquanto Matty arranjava uma tipóia para o braço do Diácono e ajudava-o a enfiar uma manga de seu impermeável. Quando começaram a sair do quarto, Glória pegou o revólver que deixara cair no chão e meteu-o no bolso do casaco, não querendo perder tempo em recolocá-lo na gaveta.
No momento em que saíram do Palácio o vento fustigou-os com a velocidade de um furacão. Pedaços de coisas voavam por toda a parte. A água inundava a rua enquanto a tempestade açoitava as águas rasas do mar de Bering e lançava-as contra a terra. Não havia mais nenhuma barraca de pé em lugar nenhum. Algumas das estruturas de madeira mais leves do lado da praia da Front Street estavam desabando, incapazes de resistir às poderosas investidas do mar. Um edifício maior e mais forte fOra arrancado de suas fundações. Vários homens trabalhavam freneticamente para tentar ancorá-lo.
Quando procuravam cruzar a rua alagada, lutando contra os ventos Que quase os derrubava, Glória compreendeu que não era uma tempestade equinocial comum. Sua força destrutiva estava além de qualquer coisa que a cidade de Nome já vira. Antes de abandonar o Palácio, ela transmitira a recomendação do Diácono a Oliver, no sentido de evacuar todo mundo do edifício e tentar salvar o que pudesse. Agora estava contente por ter feito isso.
Tudo que não se achava seguramente amarrado ao terreno estava voando ou flutuando. Quando subiram na calçada de tábuas do outro lado da rua, uma enorme barrica quase atirou-os ao chão. As feições do Diácono estampavam uma dor que nem mesmo o comando férreo que tinha sobre suas expressões podia esconder. Glória pensou quanto teriam de andar até chegar ao consultório do médico. Nesta tempestade, seria uma provação para ele.
- Para o hospital! - gritou ela para se fazer entender acima do estrondo do vento e do mar. Era mais perto, apenas uns dois quarteirões. Matty fez com a cabeça que entendera e mudaram de direção, as duas flanqueando o Diácono.
Em poucos minutos, Glória estava ensopada até os ossos, suas roupas coladas ao corpo, a água correndo para dentro das botas. Toda a sua atenção concentrava-se em manter-se de pé num vento de 120 quilómetros por hora e livrar-se de ser atingida pelos pedaços de madeira de caixotes e partes de telhados que voavam.
A um quarteirão de seu destino, Glória viu um homem sair de um pequeno escritório e dirigir-se a eles, agarrando-se às paredes dos edifícios para manter-se de pé. Tinha uma espécie de mochila escolar apertada contra o peito enquanto andava aos arrancos para a frente, encolhido para enfrentar o vento. Em menos de um segundo Glória reconheceu Gabe, embora não pudesse ver claramente seu rosto. Subitamente, ela pareceu experimentar a sensação das mãos dele em sua garganta; a raiva e o terror que sentira ressuscitaram. Ele iria pagar pelo que fizera.
Quando ela começou a afastar-se do Diácono, Matty quis parar.
- Toque para a frente! - disse Glória, mandando-a continuar. O Diácono disse algo, mas a tempestade abafou suas palavras. Glória sabia que de qualquer forma não teria atendido a elas.
Quando Gabe a reconheceu, parou e olhou alarmado em volta. Ela lembrou-se do revólver em seu bolso e procurou a abertura em sua capa molhada, não afastando por um momento seu olhar de Gabe enquanto andava para frente, sempre fustigada pelo vento. Por fim, seus dedos localizaram o liso e polido metal e ela tirou-o do bolso. Não tinha a intenção consciente de matá-lo. Apenas queria fazê-lo pagar pelo que fizera, e não estava realmente claro em sua mente o que isto significava.
Algo bateu contra uma janela a alguns metros diante dela. Glória levantou os braços para proteger-se do vidro quebrado e com isto revelou o revólver em sua mão. Ele começou a recuar, mas depois, de repente, atirou-se na rua cheia de lama e alagada, na qual flutuavam as mais diversas coisas. Glória avançou também pela rua atrás dele, num ângulo para interceptá-lo; era difícil a progressão dela com as saias molhadas constantemente se enrolando em suas pernas. Tinha consciência de que ele tambem estava em dificuldades, com a desvantagem de sua idade e a tensão de seus recentes esforços.
No meio da rua, ele parou e deixou cair a mochila, depois começou a procurar por algo dentro de seu casaco, até que puxou um revólver. Glória hesitou um momento, e então viu uma folha de zinco vir voando pelo ar e atingir o braço dele. O choque arrancou-lhe a arma da mão e ela caiu no lamaçal a seus pés. Ele começou a procurá-la e depois, aparentemente, teve uma ideia melhor e começou a correr, cambaleando e tropeçando pelo meio do lamaçal. Erguendo as saias, Glória correu atrás dele.
Os edifícios do lado oposto da rua ofereciam um abrigo parcial contra o vento uivante. Glória conseguiu chegar aos tropeções até a calçada de madeira e continuou perseguindo Gabe. Ele escondeu-se entre dois edifícios bem à frente dela. Receando perdê-lo, ela deu uma corrida para diminuir a distância.
Quando chegou à esquina, ele estava justamente voltando; o mar que avançava pela rua bloqueava aquela via de escape. Não havia nenhum lugar para onde ele correr, estava encurralado e parado de frente para ela. Vagarosamente e hesitante, ele sacudiu a cabeça, como numa silenciosa negativa.
- Eu não sou minha mãe! - O vento arrastou-lhe as palavras. Glória levantou a pistola e encarou a figura patética daquele velho encharcado e enlameado.
Algo distraiu-a, um ruído que parecia um pouco mais alto. Levantou os olhos e, chocada, viu a grande onda que subia monstruosamente acima deles. Ficou sem poder mover-se e sem fala. Observou horrorizada quando a enorme onda rebentou de encontro ao lado de trás dos edifícios em ambos os lados e desabou sobre Gabe, engolindo-o.
Um segundo mais tarde, a onda estava atingindo-a. Ela tentou alcançar a relativa proteção do edifício, e então agarrou-se no canto dele, cravando os dedos furiosamente na madeira para evitar que a sucção da água a arrastasse para o mar. A força da água levantou o edifício e empurrou-o para a frente. Glória quase perdeu seu abraço de encontro à quina da parede, mas conseguiu manter-se. Tão logo retomou o pé, correu aos trancos para a rua a fim de evitar o novo vagalhão.
Alguém avistou-a e correu para ajudá-la a salvar-se. Ela olhou para trás apenas uma vez. Não havia nada a não ser coisas flutuando e a água que espadanava no lugar em que vira Gabe pela última vez.
A tempestade manteve seu furor e somente veio a atingir seu auge naQuela noite. Milhares de barracas foram rasgadas e levadas pela ventania. Todo o equipamento de mineração na praia foi destruído e carregado Pelo mar. Quatro embarcações inclusive a enorme barcaça Skookum foram lançados à terra e partidas na selvagem arrebentação. Quase a metade do distrito comercial de Nome, virtualmente todos os edifícios no lado do mar da Front Street, foram destruídos, incluindo o Double Eagle de Ryan Colby. O próprio Colby desapareceu, presumivelmente afogado.
Perderam-se muitas vidas, mas não houve uma estimativa precisa de seu número. Soldados e saqueadores de propriedades destruídas tiveram um grande trabalho.
Nada sobrou do Palácio, a não ser madeira para lenha. Uma testemunha visual disse a Glória que as ondas atingiram o edifício e o despedaçaram contra a construção do outro lado da rua. As pequenas sensatamente agarraram parte de suas roupas e Oliver já havia resgatado algumas das coisas mais valiosas, antes que tivessem de fugir da tempestade. Tudo o mais foi perdido.
Quanto ao Diácono, a bala de Gabe não lhe havia despedaçado o cotovelo, como Glória temera, mas tinha arrancado uma lasca do osso e danificado um terminal nervoso. Esta última era a razão de suas cruciantes dores, que somente doses regulares de morfina podiam anestesiar. O médico não podia especular até onde o nervo iria ser recuperado.
Como milhares de outras pessoas em Nome, eles estavam sem um teto. Cerca de quinze mil pessoas deixaram o Alasca rumo aos Estados Unidos naquele outono, muitas sem um centavo. Mas Glória, o Diácono e Matty permaneceram, e Glória começou a reconstrução do Palácio, mas desta vez não à beira mar.
No dia 15 de outubro, dois delegados da Califórnia prenderam Alexander Mackenzie, acusado de graves delitos, e o transportaram no último navio que deixou Nome para San Francisco, a fim de ser julgado. Glória quase desejou que Gabe estivesse vivo para ver seu grande sonho dissolver-se.
Naquele inverno, Glória descobriu que estava grávida. Poucos minutos após o doutor ter confirmado a suspeita, ela sabia exatamente o que iria fazer. Teria a criança e a criaria, sem ligar para as complicações que pudesse criar em sua vida. Ela crescera sabendo que seu pai não a desejara, que teria se livrado dela se a escolha lhe coubesse. Sua mãe a amara, mas isso nunca tinha compensado inteiramente o sentimento de rejeição que conhecera. Agora havia uma vida dentro dela e não iria rejeitá-la. Quando o Diácono soube da decisão, insistiu em que se casassem. Sua ferida havia cicatrizado, mas o nervo afetado não. Ele podia usar o braço e a mão sem restrições, mas perdera a maior parte da sensibilidade. A dor aguda e irritante permanecia; cada vez mais ele tinha que confiar na morfina para ajudá-lo a atravessar o dia.
Mas ele gostava dela; disto Glória não tinha dúvidas. E ela viera a gostar muito dele. Era amor - de uma certa espécie - talvez mais forte do que o tipo romântico com que certa vez sonhara. Seus dias como jogador profissional estavam acabados. Embora ainda pudesse jogar cartas e trabalhar como banqueiro, não podia mais fazer os truques de reter cartas, trocar o baralho por um frio ou reconhecer as cartas marcadas, devido ao acidente, causado por ela. Glória sentia-se responsável por isso, mas também sentia que lhe devia muito mais.
No dia 11 de fevereiro de 1901, o mesmo dia em que Alexander Mackenzie foi condenado e sentenciado a um ano de prisão na Califórnia, Glória casou-se com Robert Cole, o Diácono. Quando veio o degelo da primavera, construíram uma pequena casa, com um acabamento rococó, a alguns quarteirões do novo Palácio. Na sua condição, Glória não podia fazer mais do que supervisionar, e deixou a maior parte da direção do negócio para o Diácono e Matty.
O verão não trouxe uma horda de garimpeiros às praias de Nome. A areia se esgotara. Mais de dois milhões de dólares em ouro já tinham sido extraídos; agora o ouro se esgotara. A economia da cidade dependia agora das minas do interior, o que não era lá um grande problema, pois elas eram ricas e muito produtivas. O primeiro navio a chegar naquele verão trouxe a notícia que- o presidente McKinley havia perdoado Mackenzie, baseado em que sua saúde era "por demais frágil" para passar o resto de sua vida na prisão. As notícias diziam também que o supostamente doente Mackenzie tinha sido visto embarcando às carreiras no trem que partia de Oakland. Pareceu a Glória que Gabe estivera, afinal de contas, certo acerca das ligações de Mackenzie nos altos escalões.
Em julho, Glória deu à luz um menino de 3,5 quilos. O Diácono estava ao lado da cama, com o bebé de rosto avermelhado deitado no seu braço bom, o direito. Encostada em meia dúzia de travesseiros, Glória observava como ele olhava para o bebé que dormia.
- Glória - murmurou ele -, acho que nós recebemos um ás.
Foi assim que eles o chamaram: Ace Matthew Cole, o Matthew tirado de Matty, a outra pessoa que Glória mais estimava. Os três conseguiram estragar o menino fabulosamente, pois Ace era a espécie de criança feliz que era fácil de mimar. Glória estava tão contente com a nova família e sua nova vida que não lhe pareceu ter a menor importância quando ouviu falar que a viúva Sarah Porter, dona de uma popular pensão em Nome, se casara com Justin Sinclair.
Naquele verão o conselho da cidade colocou fora da lei tanto o jogo como a prostituição, mas ambos os empreendimentos floresciam abertamente. A vasta maioria dos habitantes da cidade não estavam prontos Para abrir mão de seus vícios. Naquele mesmo verão as ruas de Nome receberam calçadas de largas pranchas de madeira. Glória e o Diácono Podiam levar Ace a passear no carrinho de bebé sem que as rodas atolassem na lama.
No ano seguinte, Glória voltou a trabalhar no Palácio em tempo integral e deixou Matty cuidando de Ace. Os tempos foram bons naqueles primeiros anos depois que Ace nasceu. Embora os lucros que realizavam estivessem longe de igualar o que faturavam durante os anos selvagens da corrida do ouro, eram suficientes para Glória contratar um cozinheiro chinês, Chou Ling, para preparar as refeições em casa; e para instalar um piano na sala de estar e importar cristais e porcelanas para seu serviço de jantar. Se o Diácono desaparecia com mais frequência agora no escritório dos fundos do Palácio, onde ele mantinha seu estoque de morfina, Glória fingia não notar. Afinal de contas, quanta dor poderia ela esperar que ele suportasse sem procurar algum alívio?
Na noite de 12 de setembro de 1905, exatamente cinco anos depois da desastrosa tempestade, o Diácono promoveu uma luta de boxe no Palácio, ilegalmente, uma vez que o pugilismo, tal como o jogo e a prostituição, era proibido. O público pagou as entradas da mesma forma e amontoou-se lá dentro para ver a luta em dezesseis assaltos entre Waco Kid e Bruiser McGee. Cada centímetro de espaço disponível estava tomado, e os homens se acotovelavam em volta do ringue improvisado montado no centro do Palácio e apostavam em seu favorito.
Desde que a campainha tocou para anunciar o início do primeiro assalto, a gritaria não parou mais. A excitação contagiava, mas Glória não achava muita graça em ver os dois homens de peito nu e calções curtos arrebentarem-se um ao outro. É verdade que não sabia distinguir um gancho de um golpe nos rins, mas o espetáculo sanguinolento dos homens era bastante para convencê-la da extrema brutalidade daquele esporte. Ficou satisfeita por ter insistido em remover o tapete persa ao ver o piso ensanguentado do ringue. Na verdade, achou mais graça observar Oliver nas laterais, dando socos e se esquivando, balançando a cabeça e o corpo, como se ele próprio estivesse numa luta imaginária.
O favorito, Bruiser McGee, foi nocauteado no 14º assalto, mas a multidão não pareceu importar-se quando foi fazer fila no bar. Todos pareciam satisfeitos por terem visto uma boa luta, embora a maioria suspeitasse que tinha sido "arranjada". Na verdade assim ocorrera, mas Glória não o admitia para nenhum dos fregueses enquanto circulava pelo salão e os encorajava a beber.
Lutas eram um chamariz para atrair movimento no negócio. Naquela noite o pessoal ficou até muito depois da meia-noite, bebendo e jogando, e em geral se divertindo muito. Pouco depois das três horas, o movimento começou a acalmar-se. Glória dirigiu-se ao bar.
- O que vai ser? - perguntou Paddy sorrindo para ela, enquanto continuava a polir um copo.
- Café, se tiver algum. - Ela encostou-se cansada no balcão do bar. Um pequeno sorriso apareceu-lhe nos lábios quando pensou em seu filho de olhos azuis e cabelo cor de areia, imaginando-o dormindo em sua caminha, inocente e bonito como só uma criança pode ser.
- Como vão as coisas? - Era o Diácono que veio ficar de pé a seu lado.
- Bem. - Cautelosamente, ela não perguntou onde ele estivera na última hora. - Foi uma boa noite.
- Uma noite muito boa. - Ele tinha um aspecto fresco e animado. De repente, Glória reparou nas mudanças nele, mudanças que tinham aparecido tão devagar. Ele perdera peso, sabia, mas até então não notara como estava magro. Sua pele parecia pálida e os olhos não eram mais os mesmos, não possuíam mais aquela intensidade, como se estivessem permanentemente amortecidos pela dor ou pela droga. Ela se recordava do velho Diácono e tinha vontade de chorar.
Subitamente, veio da rua o clangor de um sino de incêndio, seguido por gritos de alarme. Por um instante, ela ficou olhando para a porta. Aqueles que estavam mais perto saíram para dar uma olhada-.Um deles voltou correndo e gritando:
- Fogo! Fogo na Estacada! - A notícia de que o fogo estava tão perto provocou uma corrida alarmada para a porta.
- Fique aqui - disse o Diácono e dirigiu-se para a saída.
Mas Glória não pretendia fazer nada disso. Correu para o escritório dos fundos e pegou aparka de peles que Matty fizera para ela. Jogou-a sobre os ombros e correu para a porta. Abriu caminho por entre a multidão na calçada de pranchas e na rua também revestida de tacos de madeira, arregalando os olhos para a fumaça que subia aos céus e o brilho das chamas por trás dos salões ao longo da rua.
Glória avançou pela estreita rua a fim de observar melhor, mas era difícil ver qualquer coisa. Os edifícios de madeira, de dois e três andares, alguns com varandas que se projetavam do segundo andar, flanqueavam os dois lados da rua, criando um estreito canyon. Os homens deslocavam-se em direção ao incêndio, alguns para ajudar os bombeiros, outros simplesmente para ver.
- Alguém sabe se é coisa séria? - perguntou Glória a um homem ao seu lado, pois sabia que as cabanas encostadas umas às outras na Estacada eram um combustível em potencial para atear um incêndio.
- O brilho daquele fogo não parece bom - disse o homem, sacudindo a cabeça. E está cada vez mais forte.
Dentro em pouco, um homem veio correndo pela rua, gritando: "O bar Alasca está pegando fogo!"
Esse bar ficava a menos de um quarteirão do Palácio. O fogo havia passado da Estacada, atravessando o beco que a separava do centro comercial de Nome. De repente, uma explosão lançou chamas para o ar, iluminando o fundo e destacando os fios elétricos que, como serpentes, estavam presos à linha irregular de postes ao longo da rua.
- Em nome de Deus! Um tanque de gasolina deve ter explodido. - declarou o homem ao lado dela.
Praticamente todos os edifícios ao longo da rua tinham um desses tanques. O incêndio já estava fora de controle. Glória sabia que se mais tanques de gasolina explodissem, isto espalharia ainda mais rápido o incêndio. Todo o quarteirão poderia transformar-se em chamas, talvez até a cidade inteira. No fim da rua, ela podia ver gente carregando coisas para fora dos edifícios mais próximos do fogo, desesperadamente procurando salvar o possível, caso o fogo se espalhasse, o que parecia que iria acontecer. Glória correu de volta ao Palácio.
Oliver, Paddy e um dos banqueiros de jogo estavam retirando das paredes os quadros mais valiosos. Glória mandou as meninas para cima, a fim de empacotarem seus pertences.
- Onde está o Diácono? - perguntou.
- O sr. Cole está no escritório - disse-lhe Oliver. - Não se preocupe, madame. Desta vez iremos salvar a maior parte das coisas.
- Sei que o farão - disse ela sorrindo, lembrando-se de como ele se sentira culpado depois da tempestade em que perderam tantas coisas.
Segurando as saias, ela correu para o escritório dos fundos. Quando lá entrou, o Diácono olhou-a e depois voltou a tirar o dinheiro do cofre e a amontoá-lo numa pequena bolsa de viagem. Ela aproximou-se do marido quando ele punha o último saco de moedas dentro da bolsa. Deu uma rápida olhada e viu o suprimento de morfina no fundo da bolsa de viagem antes que ele a fechasse.
- Quero que pegue isso e vá para casa - disse ele, passando-lhe a bolsa.
- Mas... - Havia tanta coisa a fazer aqui se não desejassem perder tudo.
- Sei que Matty cuidará de Ace, mas eu me sentirei melhor sabendo que você está com eles e que todos estão em segurança.
As vibrações de uma nova explosão, mais perto do que a última, sacudiram o edifício. O fogo estava se espalhando e a casa deles ficava apenas a dois quarteirões de distância. Subitamente, ela compreendeu que o Diácono temia que a casa corresse tanto perigo quanto o Palácio.
- Eu irei.
Observar a catástrofe da janela da frente de sua casa, enquanto o incêndio iluminava os céus de Nome como se fosse dia claro, não foi fácil para Glória. Quando chegou em casa, não houvera necessidade de acordar ninguém. Todos estavam de pé: Matty, Chou Ling e também Ace. Como precaução, ela mandou Matty e Chou Ling empacotarem muitas das coisas mais valiosas e essenciais, como roupas e objetos de toalete, bem como algumas coisas sentimentais insubstituíveis. Mandou até que Ace embrulhasse seus brinquedos.
Nada mais havia a fazer exceto esperar e observar o fulgor das chamas ficar mais brilhante e espalhar-se por uma área maior. Ace estava fascinado pelo incêndio e gritava deliciado toda vez que via chamas amarelas pulando para o ar. Ele queria ir vê-lo, apesar de jovem demais para compreender a maciça destruição que o incêndio causava ou por que sua mãe tinha lágrimas nos olhos quando o brilho do fogo engolfou o Palácio.
Quando finalmente o fogo foi extinto, dois quarteirões no centro da cidade tinham sido arrasados, destruindo diversos negócios, desde bares, restaurantes e hotéis, até mercearias e uma galeria de boliche, mais cerca de vinte choças na Estacada. Glória estava ao lado do Diácono, de frente para a área carbonizada que compreendia ambos os lados da rua principal. O cheiro de fumaça e de cinzas era grande. Não restava nada senão um lixo fumegante, com alguns pedaços de folhas de zinco queimadas aqui e ali e alguns cofres parcialmente chamuscados. Matty estava atrás deles segurando Ace com mão firme.
- Teremos que reconstruir de novo - murmurou Glória, consciente de que algumas pessoas já estavam trabalhando, removendo com pás os restos queimados de seus antigos negócios para limpar o terreno e recomeçar.
- Não - disse o Diácono.
- O quê? - Ela olhou para ele com surpresa. - Por quê?
- Chegou a hora de ir embora. Eles ainda estão tirando ouro destas montanhas mas o clímax já passou. - Aquela era a política de um jogador: comer o creme e ir embora, nunca ficando numa cidade por tempo demais. - Ouvi dizer que Fairbanks está crescendo rapidamente.
Da mesma forma como confiara no julgamento dele quando decidira que deveriam trocar Skagway por Nome, ela acreditava nele agora Se eles teriam que recomeçar tudo, melhor seria num lugar novo.
- À noite passada nós praticamente embalamos tudo. - disse-lhe.
- Eu sei.
Venderam a casa, o lote na Front Street e muitas das coisas que não quiseram levar; depois carregaram tudo e foram num barco a vela para St. Michael, todos os cinco: o Diácono, Glória, Ace, Matty e Chou Ling. Ali pegaram um dos últimos navios fluviais que subiam o Yukon, com destino a Fairbanks e pontos mais adiante.
Glória nunca se aventurara antes no interior do Alasca. Sua selvagem beleza estonteou-a: a grandeza de suas serras alcantiladas, a vibrante cor de encostas inteiras de montanhas cobertas de florestas de bétulas, suas douradas folhas de outono ainda agarradas aos galhos. Ela não fazia ideia de quanto sentira a falta de árvores, embora elas não fossem os majestosos cedros e pinheiros de sua nativa Sitka. Animais selvagens abundavam: alces, ursos, caribus, lobos. E ela descobriu que, afastado da costa, o céu era em geral claro em vez de coberto de nuvens na maior parte do tempo. À noite, uma multidão de estrelas brilhantes iluminavam o céu. Raramente parecia escuro, e as "luzes do norte" frequentemente executavam sua deslumbrante dança. O tempo era geralmente agradável, embora as noites fossem frias, mas não havia o vento incessante soprando a umidade e o frio do mar para a terra.
Fairbanks situava-se numa área plana nas barrancas do rio Tanana, um tributário do Yukon. Glória notou no primeiro dia que ela não tinha a atmosfera de um acampamento típico de mineração de ouro. Os bares, casas de jogo e a zona do meretrício achavam-se todos ali, mas os bandos usuais de vigaristas oportunistas e de ladrões estavam ausentes. A nova cidade fora fundada por garimpeiros experimentados, espertos demais para serem embrulhados por tipos como aqueles.
O ouro encontrado na região não era "mineração de homens pobres" como em Nome; na verdade era uma "jazida de homens ricos", o ouro contido num estrato de areião a algumas centenas de metros de profundidade, próximo à rocha-base. Era preciso cavar poços para localizar o areião aurífero e depois galerias para seguir o filão. Levaria anos para retirar o ouro do solo e era necessário empregar muitos homens.
O juiz James Wickersham escolhera Fairbanks como a sede de sua corte de justiça. Uma nova escola de dois andares havia sido construída. Os mineradores e os comerciantes trouxeram as esposas e famílias. Quando Glória, o Diácono e Ace andavam pelas ruas de Fairbanks para familiarizarem-se com a cidade, as mulheres falavam com ela e sorriam para o menino que levava pela mão, e os homens tiravam os chapéus para ela. Desde que deixaram Nome e embarcaram no navio fluvial, viajando como marido e mulher, ela havia sido tratada como uma mulher respeitável pelas pessoas que encontravam. Ninguém passara um braço em torno de sua cintura com familiaridade ou feito comentários sugestivos, nem mesmo aqueles poucos que a reconheciam. Ela nunca objetara a tais atenções no passado; na sua profissão isso era de se esperar. Agora Glória descobria que gostava do respeito que lhe demonstravam.
No Alasca, como já sabia, as pessoas eram muito mais tolerantes. Quando uma prostituta se casava e desistia de seu antigo modo de vida, aquilo era coisa resolvida. Ela não era perseguida pelo seu passado. Enquanto se comportasse como uma esposa e mãe correta, seria tratada como tal pelos que a rodeavam. Simplesmente havia muito poucas mulheres no Alasca para que fosse de outra forma.
Ao fim da primeira semana, o Diácono levou Glória para ver um salão que estava à venda.
- Não é tão grande quanto eu desejaria, mas talvez na próxima primavera possamos aumentá-lo. Este ano não teremos tempo de fazê-lo antes que a neve comece a cair. O lugar não vale o que está sendo pedido e sei que você não vai gostar da parte de cima. Mas no momento não há mais nada disponível. Assim, o que pensa você?
- Se está satisfeito com ele, Diácono, toque para a frente e compre. Mas há algo que você deveria saber.
- O quê?
- Decidi que não vou voltar a trabalhar. Esta é uma nova cidade, um lugar para começar vida nova. Tenho pensado muito acerca disso desde que chegamos aqui - admitiu ela. - Ace já tem quatro anos de idade; em breve estará indo para a escola. Não quero que se envergonhe de mim ou do que eu sou.
- Se é isso que você deseja, por mim está tudo bem. Mas... Glória, o que você vai fazer consigo mesma? - Ele sacudiu um pouco a cabeça.
- Desculpe, mas não posso imaginá-la em casa cuidando da cozinha e da limpeza da casa. O que Matty e Chou Ling irão fazer?
Glória respirou profundamente e pôs as cartas na mesa:
- Já pensei nisso.
- Como? - perguntou ele, levantando as sobrancelhas.
- Quero montar uma pensão. Chou Ling pode encarregar-se da cozinha e Matty ajuda com a limpeza. Tenho uma grande experiência como dona-de-casa e sei cuidar da escrituração. Para falar a verdade, acho que já encontrei uma localização perfeita.
- Onde fica isso? - perguntou o Diácono com um sorriso meio torto, compreendendo toda a extensão do plano dela.
- Há um velho barracão abandonado nos limites da cidade, exatamente na trilha de carga que leva a Valdez. À medida que Fairbanks crescer, aquela trilha vai tornar-se uma estrada muito ativa.
- Quanto custa?
- Esta é a única coisa que ainda não descobri.
- Isto é uma surpresa - brincou o Diácono. - Por um momento pensei que você já o tivesse comprado...
Além do salão, eles compraram o lote para a pensão de Glória. Durante o inverno inteiro ela trabalhou nos planos para a pensão, decidindo sobre o número de quartos, o tamanho da cozinha, da sala de refeições e da sala de estar, do arranjo das acomodações para eles nos fundos, e a roupa de cama, utensílios de cozinha e talheres de que ela iria necessitar. Planejou os cardápios, escolheu o papel de parede e o pano para cortinas.
A construção da pensão começou na primavera. No quinto aniversário de Ace já haviam se mudado e Glória recebeu seu primeiro pensionista dois dias depois. Ace começou a ir para a escola no outono e Glória decidiu que era chegada a hora de todos começarem a frequentar a igreja aos domingos.
No ano seguinte começou o trabalho para instalação de uma linha telegráfica e a melhoria da trilha de Fairbanks a Valdez, que ficava ao sul de Fairbanks e era um porto livre de gelo o ano inteiro. A maior parte das novidades que chegavam pela trilha referiam-se ao Sindicato do Alasca, um conglomerado formado por J.P.Morgan, pela família Guggenheim de mineradores e por outros. com o nome de Kennecott Copper company, eles compraram a concessão de um quilómetro e meio de extensão das montanhas de cobre no vale do rio Chitina - montanhas que continham de 60 a 70% de minério de cobre. Já começara a construção de uma estrada de ferro para levar o cobre minerado por 320 quilómetros até o mar.
Não satisfeito com suas ricas minas de cobre e a estrada de ferro, o sindicato comprara o controle da Northwestern Steamship Company e da Alaska Steamship Company, o que lhes deu o monopólio sobre todo o transporte marítimo de e para o Alasca. Além disso eles possuíam uma dúzia de fábricas de salmão enlatado ao longo da costa. Havia um rumor de que o sindicato tinha os olhos nos abundantes depósitos de carvão do Alasca, mesmo apesar de o presidente Theodore Roosevelt ter colocado tais depósitos fora das cogitações de desenvolvimento pela iniciativa privada.
Por volta de 1910, a estrada de Fairbanks para Valdez, chamada a trilha Richardson, em homenagem ao presidente da Comissão de Estradas de Rodagem do Alasca que havia autorizado, foi terminada. Um serviço regular de diligências entrou em operação, sendo a viagem feita em trenós puxados por cavalos no inverno e diligências no verão, uma viagem que levava cerca de uma semana só num sentido.
A pensão Cole ficava a apenas um quarteirão da estação das diligências e o negócio de Glória floresceu rapidamente, tornando-se um dos lugares para se ficar quando em Fairbanks. O bar do Diácono também ia indo bem. E o professor de Ace disse a ambos que menino inteligente eles tinham! Eram agora respeitáveis cidadãos da cidade, comparecendo aos serviços da igreja regularmente e fazendo doações. Glória cantava no coro da igreja e o Diácono entrou para o Templo Maçónico. Matty se casara com um mestiço esquimó que Glória empregara para fazer certos serviços, tanto na pensão quanto no bar. Matty e Billy Ray Townsend construíram uma pequena cabana nos fundos da propriedade.
A vida era boa e parecia destinada a continuar dessa forma. Em 1912 uma lei apresentada ao Congresso dos Estados Unidos pelo delegado James Wickersham, o antigo juiz de Fairbanks, foi aprovada, fazendo oficialmente do Alasca um território dos Estados Unidos, embora limitando o poder de sua legislatura territorial. Finalmente, 45 anos depois de o Alasca ter sido comprado da Rússia, ele era um território, com o direito de autogovernar-se e de ter uma representação no Congresso.
No ano seguinte, Glória viu o primeiro automóvel rodar pela trilha Richardson, tendo viajado desde Valdez, uma distância de cerca de 588 quilómetros. Então, em 1914, o jornal de Fairbanks anunciou que o trabalho de topografia para selecionar um traçado para uma nova ferrovia começara.
Um nevoeiro gelado cobria Fairbanks, reduzindo a visibilidade a quase zero - um fenómeno bastante comum no inverno quando a temperatura mergulhava bem abaixo de zero e não havia vento. Como Glória já aprendera, Fairbanks era um lugar de extremos: as temperaturas no verão podiam chegar aos trinta e muitos e no inverno cair a cinquenta abaixo de zero.
Há muito tempo que ela já concluíra que não havia uma coisa que se pudesse chamar de um clima perfeito no mundo, e que, se houvesse, uma pessoa em breve se cansaria dele. Pessoalmente ela não se importava com o frio abaixo de zero ou um ocasional nevoeiro gelado, preferindo-os muito mais a uma chuva depressiva ou a um vento constante soprando da costa.
Naquela manhã escura e cinzenta de inverno, alguns de seus pensionistas tinham sido servidos do desjejum, as mesas estavam limpas, as camas arrumadas e Chou Ling começara os preparativos para o almoço. Essa calmaria nas atividades do dia era a ocasião para ela descansar um pouco. Sentou-se na mesa de jantar de nogueira em seus aposentos particulares. O jornal da véspera estava à sua frente, havia uma xícara de café ali perto e um cigarro fumegava na piteira de marfim entre seus dedos. Glória restringia seu fumo e seus eventuais drinques à privacidade de seus próprios aposentos, nunca cedendo a seus pequenos vícios diante de ninguém fora de seu pequeno e fechado círculo.
Quando distraidamente ajeitava o grande pente de âmbar para certificar-se de que ele ainda mantinha seu cabelo em estilo pompadour firme em seu lugar, notou o Diácono andando até a janela pela quarta vez. Ia sugerir que ele se sentasse e tomasse uma xícara de café, mas havia algo na inquietude dele que a levou a não dizer nada.
Seus olhos permaneceram observando-o quando ele tirou o lenço e assoou o nariz. Embora as roupas lhe caíssem bem, Glória sabia como havia pouca carne por cima dos ossos. O cabelo dele agora estava quase grisalho; ele parecia mais velho, mais velho do que realmente era. Ela notou o brilho da transpiração em seu rosto quando ele voltou da janela e pensou se ele não estaria apanhando um resfriado. Mas como as perguntas acerca de sua saúde sempre provocavam uma resposta irritada, ela nada perguntou. Evitou o olhar dele e rapidamente transferiu sua atenção para o jornal à sua frente, examinando superficialmente o artigo relacionado com as notícias do conflito na Europa.
- O jornal acha que os Estados Unidos terão que envolver-se nesta guerra com a Alemanha - observou ela, embora tudo aquilo lhe parecesse por demais longínquo para preocupá-la.
O comentário não provocou nenhuma resposta do Diácono. Quando tornou a olhá-lo, ele estava de volta na janela. A porta de ligação que dava para frente da pensão abriu-se e Ace entrou, um rapaz alto e grandalhão, de quatorze anos, com cabelo castanho-claro e um sorriso cativante.
- Consertei aquela velha vitrola para o sr. Hammermill - anunciou ele orgulhosamente.
- Não sei como foi que você conseguiu. - Glória se maravilhava com a habilidade dele em entender como funcionavam as coisas mecânicas e depois arrumá-las. Ele parecia estar sempre mexendo com alguma coisa, quer fosse um utensílio de Chou Ling na cozinha ou uma chave de luz. Toda vez que via uma coisa nova, queria desmontá-la para ver como funcionava. Em geral conseguia montá-la de novo.
- Não foi difícil - disse ele, encolhendo os ombros. - O braço estava quebrado e tive de arranjar alguma coisa que funcionasse em seu lugar. Se você não tem nada para eu fazer, o sr. Cheevers convidou-me para um jogo de damas.
- Pode ir. Mas lembre-se de que você é convidado dele. Não lhe dê uma surra tão grande como fez à noite passada.
- Tentarei - anuiu ele, rindo.
Quando Ace deixou o aposento, ela olhou para o Diácono. Ele permanecia de frente para a janela, com seus ombros ligeiramente encurvados e um braço na cintura. Glória tomou um gole de café e voltou à leitura do jornal.
- Não acredito nisso - disse ela, relendo a história que lhe chamara a atenção. - De acordo com esta notícia, o traçado que está sendo recomendado para a nova estrada de ferro vai usar Seward na península de Kenai para o terminal oceânico e estender-se para o norte apenas até Nenana. Estão planejando terminá-la a uns oitenta quilómetros antes de Fairbanks. Como podem eles fazer isso? - protestou ela. - Você já tinha ouvido falar nisso, Diácono?
- Sim - respondeu ele bruscamente e voltou-se da janela.
- Não faz sentido eles não levarem-na até... - Subitamente, ela verificou que ele não estava escutando o que ela dizia enquanto atravessava o cómodo em direção à porta dos fundos. Quando ela o viu retirar seu casacão e seu chapéu do cabide, levantou-se rapidamente da cadeira, alarmada.
- Diácono! Onde é que você vai?
- Preciso ir até o bar.
- Agora? - Ela franziu a testa quando ele quase se dobrou em dois, como se apunhalado por uma dor violenta que rapidamente passou. Ainda é cedo; não há ainda necessidade de você estar lá. Pelo menos espere até que o sol se levante. É uma tolice aventurar-se naquele frio de gelo e cerração. Você quase não pode enxergar adiante do nariz. Mais tarde poderá melhorar e...
- Glória, se não fosse importante eu não estaria indo - retrucou ele em tom impaciente. - Esperei até quanto pude.
- Diácono, por favor... - Ela fez uma pausa quando ele começou a abotoar seu sobretudo, compreendendo que nenhum dos argumentos causava efeito. - Se tem que ir, pelo menos vista algo mais quente. Ela pegou a manta de lã e começou a enrolá-la em volta do pescoço dele, mas ele tirou-a das mãos delas e ajeitou-a no pescoço, levantando-a na frente para proteger o rosto. - Você tem suas luvas?
Ele acenou com a cabeça afirmativamente e abaixou-se para abotoar seus mukluks. Enfiou os pés dentro deles e depois puxou dos bolsos do casacão as pesadas luvas forradas de pêlo.
- Eu a vejo mais tarde.
Glória tremeu com a corrente de ar frio que entrou na sala da passagem para a porta externa, uma espécie de câmara de ar de isolamento entre as frígidas temperaturas do lado de fora e o calor no interior da casa. Ela ouviu a porta externa fechar-se e depois vagarosamente voltou para a mesa.
Algo não estava certo. Ela simplesmente não podia compreender o que poderia ser tão urgente para que o Diácono tivesse que aventurar-se do lado de fora naquele tempo, especialmente quando podia ver que ele não se sentia bem. Lembrou-se do suor escorrendo de sua fronte e a dor que ele demonstrara no rosto. Especulou se seu braço o estaria incomodando tanto. E se ele estava sentindo dor, por que não tomara alguma morfina antes de sair?
A não ser que - o pensamento ocorreu-lhe subitamente - ele não tivesse mais morfina aqui. Ultimamente ele tinha que tomá-la com mais frequência e em doses mais altas. Ela sabia que ele se tornara totalmente dependente da droga. Lembrou-se do pianista em Nome e como ele ficara doente e quanta dor sofrera naquela ocasião em que seu suprimento de heroína se esgotara.
Apressou-se a ir ao quarto e vasculhou a gaveta onde o Diácono sempre escondia a droga. Não estava lá. Procurou no resto das gavetas e em todos os lugares em que podia pensar, mas não encontrou nada.
Então ficou preocupada e amedrontada. Na sua condição, o Diácono poderia tornar-se violentamente doente a qualquer momento - como acontecera com o pianista. E o último lugar em que ele deveria estar era naquele nevoeiro gelado. Saiu do quarto e dirigiu-se para o telefone de parede na sala de estar. Levantou o fone, ficou escutando para certificar-se que a linha estava livre e depois acionou a manivela do magneto.
- Alo, Millie - disse ela tão logo a telefonista local atendeu na linha. - Aqui é a sra. Cole. Quer fazer o favor de me ligar com o bar?
- com muito prazer. Sabe? Helen Chambers teve o bebé à noite passada. Um outro menino. Eles queriam tanto uma menina desta vez! Depois de quatro rapazes não é de espantar. Ah! O velho Devereaux escorregou, caiu e quebrou o quadril.
- Que coisa horrível! - Murmurou ela automaticamente, desejando em silêncio que a mulher se calasse.
- Está tocando, sra. Cole, mas não há nenhuma resposta.
- Deixe tocar. "Papa" tom pode estar nos fundos. - "Papa" tom era o porteiro que o Diácono havia empregado para limpar o lugar depois que o bar fechava. Vivia num dos quartos dos fundos.
- Alo!
- "Papa" tom? - respondeu Glória agarrando o comprido bocal do telefone e aproximando-se para falar diretamente dentro dele. - Aqui é a sra. Cole. O Diácono saiu daqui há alguns minutos. Ele está indo para o bar. Quer pedir a ele para me telefonar tão logo chegue?
- A senhora quer que ele chame a senhora?
- Sim. Logo que ele chegar. É importante, "Papa" torn. Dirá a ele?
- Sim. É só isso?
- Sim. Obrigada. - Ela colocou o fone no gancho e rodou a manivela, terminando a ligação.
Meia hora depois, ainda não soubera dele. Chamou de novo o bar e "Papa" tom assegurou-lhe que ele não havia chegado, do contrário já teria dado o recado ao Diácono. Receando esperar mais tempo, ela contou a Matty acerca de sua preocupação e esta concordou que seria prudente mandar Billy Ray à rua para procurar o Diácono. Nesse ínterim, Glória telefonou para vários lugares no caminho onde o Diácono poderia ter parado, mas ninguém o tinha visto.
Naquela noite um grupo de vizinhos achou o corpo do Diácono. Ele morrera congelado, disseram, mas Glória sabia que a morfina o matara com tanta certeza quanto o frio.
Os meses que se seguiram à morte do Diácono foram os mais duros que Glória já tivera de enfrentar, embora Ace e Matty estivessem sempre por perto para confortá-la. Ela nunca imaginara que se pudesse sentir tanta falta de uma pessoa. O Diácono sempre estivera junto a ela. Lembrou-se de que ele jamais lhe pedira nada, exceto casar-se com ele. Além disso, Glória sempre fora totalmente livre para fazer o que desejasse e nunca se preocupara com a aprovação dele.
Num quente domingo de julho, Glória inclinou-se ao lado da lápide de seu túmulo e depositou nela um buquê de miosótis. Endireitando-se, observou através da rede escura de seu véu a inscrição gravada na pedra: AMADO ESPOSO - ROBERT "DIÁCONO" COLE. Um sentimento que era tão verdadeiro que trouxe lágrimas a seus olhos.
Uma irritante mosca negra zumbia em volta do seu rosto, procurando uma abertura no véu protetor. Quando a espantou com a mão, Glória notou as luvas negras e a manga negra da túnica de seu vestido. Certa vez jurara nunca mais usar preto ou uma cor triste de novo. Mas para o Diácono ela envergara o negro do luto.
- Ele não gostaria de me ver vestida desta cor - disse ela a Matty.
- Não, certamente não gostaria. Ele gostava mais quando a senhora vestia roupas coloridas e bonitas.
- Sim. - A vestimenta negra absorvia o calor do sol e mais aumentava a opressão da atmosfera que ameaçava sufocá-la. - Está na hora de começar tudo de novo, acho.
- Sim.
- Decidi vender a pensão - disse ela, respirando fundo e soltando um suspiro.
- O que a senhora vai fazer? - Matty encarou-a, surpreendida.
- Começar de novo. Está na hora de seguir em frente. Se o Diácono estivesse aqui, ele diria isso.
- Para onde a senhora vai?
- Estão construindo uma nova cidade em Cook Inlet, onde a estrada de ferro tem seu acampamento de construção. Estão chamando o lugar de Anchorage. Se Ace e eu vamos começar uma vida nova, pode bem ser numa nova cidade. - Ela agarrou a mão de Matty. - Você e Billy Ray virão conosco?
- Nós somos uma família. Uma família deve permanecer junta.
Glória juntou com o ancinho a pequena pilha de galharia cortada ao monte maior e fez uma pausa para recuperar o fôlego. Ela não estava acostumada a trabalho físico pesado e, próxima dos 45 anos, isto não tornava o trabalho mais fácil. Mesmo assim, era mais diversão do que trabalho. Ela estendia o olhar pelo longo campo, vendo a grande quantidade de pessoas trabalhando tão duro quanto ela.
Não muito longe, homens com pás afastaram-se do tronco de árvores que vinham escavando e ficaram observando quando um outro camarada fixou uma corrente em torno do tronco e prendeu-a ao tirante dos arreios de sua parelha de cavalos. Um trator passou resfolegando por Glória arrastando por uma corrente outro tronco arrancado. Quando o condutor acenou para ela, Glória reconheceu seu filho, Ace, e acenou de volta. Sempre que havia uma escolha entre cavalos e cavalos-vapor, ele escolhia os últimos, de forma que ela não se surpreendeu ao vê-lo operando o trator.
Por todo o lugar onde ela corria a vista, havia gente trabalhando, homens arrancando da terra troncos e cortando a vegetação rasteira, as mulheres e as crianças juntando os galhos em montes, todo o mundo trabalhando naquela área de 6,5 hectares. Era uma cena de confusão e de atividade - barulhenta com o ronco dos tratores, o relinchar dos cavalos, as pancadas dos machados em sua faina de corte, os gritos dos homens dando ordens e o riso alegre das crianças. Havia uma excitação por debaixo de tudo aquilo que, para Glória, era reminiscente de outra ocasião e de outro lugar.
- Você quer saber de que que isto me faz lembrar, Trudy? - disse ela à sua jovem nora.
- De quê, Mãe Cole?
Glória não estava muito certa de que gostava de ser chamada assim. Fazia-a sentir-se velha. Mas sabia que Trudy usava o termo por afeição e respeito. Sorriu para a moça que Ace havia desposado três anos antes. Filha de um trabalhador da construção da estrada, Gertrude "Trudy" Hannighan viera de Seattle com a família há quatro anos. No dia em que Ace a conhecera, ele tinha vindo para casa e dito a Glória que encontrara a moça com quem queria casar-se.
Glória nada achou de ruim na escolha. Trudy era uma moça inteligente e disposta que estava absolutamente convencida de que não havia nada que Ace não pudesse fazer. Às vezes Glória pensava que se seu filho sugerisse que ele e Trudy fossem para a lua, Trudy começaria imediatamente a arrumar a bagagem.
Trudy era uma moça atraente, com belas feições e um sorriso fácil. Seu cabelo curto era preso num nó, o que era a última moda no "exterior". Mais alta do que a média das moças, tinha um aspecto de fortaleza que Glória admirava. Um garoto de cabelos escuros e olhos também escuros, de uns dois anos, veio andando meio desequilibrado em suas perninhas rechonchudas em direção a ela e lançou os braços em torno das pernas de Trudy. Era o filho dela, e neto de Glória, Wylie Deacon Cole. Avó!... Glória não tinha certeza de sentir-se tão velha...
- De que isto faz a senhora lembrar-se, Mãe Cole? - Trudy puxou de novo por ela, enquanto suspendia o pequenino para seus braços.
- De Nome - respondeu Glória, olhando de novo para a cena. Daquele verão depois que descobriram ouro na areia da praia e as pessoas vieram correndo de todo lado. O barulho e a confusão daquilo tudo...
- Ela mudou a posição das mãos no ancinho, deixando que o cabo repousasse contra seu ombro. Ao fazer isso, Glória sentiu a irritação de um calo que começava a formar-se na palma de sua mão. Olhou para a mão calçada de luva de trabalho, largando o ancinho para abri-la, e riu-se mansinho, dizendo: - É dos calos...
- A senhora também garimpou ouro?
- Oh, sim, peguei a febre do ouro, como todo mundo.
- Deve ter sido excitante estar ali quando tudo isso estava acontecendo.
- Sim. Aquele verão de 1900 foi uma loucura - devaneou ela e depois sacudiu a cabeça de um lado para o outro. - E isto também é! Olhe para nós todos aqui limpando o terreno para um aeroporto. Não posso descobrir a razão, quando não há nenhum aeroplano em Anchorage.
- E nunca haverá se não tivermos um lugar onde eles possam pousar. Ace diz que algum dia a aviação vai abrir o Alasca de uma forma que as estradas de ferro nunca poderiam. É o caminho do futuro.
- Já ouvi dizer isso. - Pelo menos umas mil vezes, Glória estava segura.
Seu filho ficara fascinado por essas máquinas voadoras durante os anos da guerra, devorando toda a espécie de relatos sobre as batalhas aéreas nos céus da Europa e os ases da Primeira Guerra Mundial que as travaram. No ano anterior, sua fascinação transformara-se numa obsessão quando ele viu seu primeiro avião, um velho aparelho que pousava na água. Glória lembrava-se de que Ace se referira a ele como um Boeing anfíbio. Desde então, seu sonho tinha sido aprender a voar. Em nada o incomodava saber que o Boeing anfíbio estava no fundo do estreito de Cook após uma tentativa frustrada de levantar voo.
De uma certa forma, Glória sabia que ele nunca se contentaria enquanto não houvesse voado. Às vezes isto a incomodava, especialmente porque receava que esses aviões o atrairiam para deixar o Alasca a fim de ir para os Estados Unidos, onde poderia aprender a voar.
Nos Estados Unidos, os negócios iam de vento em popa, mas a economia do Alasca estava em recessão. Desde o fim da guerra ocorrera forte diminuição na demanda mundial de suas principais exportações: salmão e cobre. Na maior parte do tempo, a pensão que Glória construíra em Anchorage dava-lhe uma receita que apenas cobria as despesas. Nem isto ela teria se a Ferrovia do Alasca não tivesse feito de Anchorage seu quartelgeneral e a base para suas oficinas de manutenção, onde trabalhava seu filho. E duas das seis casas que ela possuía estavam vazias, sem esperança de encontrar ninguém para alugá-las. Ace e Trudy viviam numa das quatro restantes, Matty com Billy Ray numa outra. Mas Glória ainda tinha algum dinheiro guardado e era capaz de viver com isso, embora muito longe do que ela certa vez ganhara. Mas aquilo eram outros dias, outros tempos, outra vida. Ela não se arrependia de nada. Se tivesse que refazer tudo não haveria nada que quisesse mudar.
Ace aproximou-se de novo com o trator, parando para gritar acima do ruído da máquina:
- Vocês nada farão encostadas nos cabos desses ancinhos. Vamos voltar para o trabalho! - Abriu um sorriso e movimentou o trator.
No fim do dia, o campo de pouso estava limpo. Para comemorar o feito da cidade, montaram uma fogueira e todos festejaram com cachorros-quentes, regados por café ou limonada.
Pouco mais de um ano depois, Glória sentava-se no banco traseiro de seu Ford Modelo T com seu jovem neto Wylie ao lado. Seu filho Ace estava ao volante, conversando animadamente com Trudy acerca de seus assuntos favoritos - voar e aviões - enquanto venciam a estrada esburacada que levava ao campo de aviação de Anchorage. A fascinação dele tornara-se uma paixão que tudo dominava. Ele pouco falava em outras coisas.
Ace tinha conhecimentos para falar - e efetivamente falava - por horas a fio sobre os princípios científicos da aviação. Toda conversa dele era adornada com termos aeronáuticos, tais como "força ascensional", "resistência do ar", "estabilizadores" e "aerofólios". Mas seu entusiasmo realmente crescia sempre que começava a falar acerca dos benefícios potenciais que a aviação poderia trazer para o Alasca. O território era enorme, com poucas de suas cidades ligadas pelas estradas que o cruzavam. Para alcançar Nome, partindo de Anchorage, uma pessoa tinha que viajar de navio, ou tomar o trem até Fairbanks, e depois um navio fluvial pelo Yukon e mesmo assim ainda não chegava a seu destino. E tais viagens só eram possíveis no verão. No inverno a viagem se fazia por trenó; durante oito meses do ano toda a mala postal ia para Nome de trenó.
Aeroplanos, no entanto, não necessitavam de estradas cortadas através de quilómetros de terreno acidentado, da colocação de trilhos ou da construção de pontes. Um avião podia voar por sobre os riachos transbOrdantes e sobre passos de montanha afogados na neve. Uma viagem que levava mais de uma semana por trenó de cães ou um veículo puxado a cavalo, um avião podia fazer em um dia. E Ace apontou muito cedo que o Alasca estava colocado bem no meio da rota pelo grande círculo que ligava os Estados Unidos ao Extremo Oriente. Dentro em breve o correio e mercadorias seriam enviadas pelo ar, fazendo a viagem numa fração do tempo que levava um navio para cruzar o Pacífico. De acordo com ele, o Alasca seria a encruzilhada do mundo.
Quando se aproximaram do aeroporto improvisado, Ace diminuiu a marcha do Modelo T e parou-o no acostamento da estrada de terra. Ace não esperou que o motor parasse de funcionar para saltar do Ford, Quando levantou Wylie do banco traseiro, sua atenção já estava concentrada no avião no extremo do campo que se preparava para levantar voo. Distraidamente, ele ajudou Glória a sair do carro.
- Lá está ele! - declarou com a excitação de uma criança no Natal.
- Um Standard com motor Hisso.
O avião tinha sido despachado de navio dos Estados Unidos para Seward, e daí por estrada de ferro até Anchorage. Desde que chegara ao pátio da estação, Ace tinha passado todo o tempo de que dispunha observando o piloto, Noel Wien, e seu mecânico, William Yunker, montando o avião. Ele ainda estava decepcionado por não ter podido estar lá quando o avião foi submetido ao voo de teste.
Glória observava com uma mistura de ceticismo e apreensão quando o avião veio aos pulos pelo campo, ganhando velocidade. Não importa quantas vezes Ace lhe explicasse, ela não entendia como é que tal máquina podia levantar-se do chão. Mas exatamente quando ele passava à sua frente as rodas despregaram-se do chão e o avião estava no ar. Passou por eles roncando e gradualmente aumentando sua distância do solo.
- Olhe, Wylie! - disse Ace, apontando o avião para o filho de três anos de idade. - Algum dia seu pai vai voar num avião como aquele.
Mas cinco anos se passaram até que ele satisfizesse seu desejo e encontrasse um piloto disposto a ensiná-lo a voar. Depois disso nada mais podia fazê-lo parar. Pegou todo o dinheiro que ele"e Trudy tinham economizado para construir uma casa própria e tomou o resto emprestado de Glória para comprar um biplano Stinson acidentado com motor Wright e as peças para repará-lo. com a ajuda de Billy Ray, ele trabalhava até altas horas da noite para reconstruir o avião. Às vezes só tinha duas a três horas de sono antes de ir para o trabalho no pátio da ferrovia na manhã seguinte, e depois repetia tudo naquela noite. Trudy e Wylie traziam sua comida para o barracão onde trabalhava em seu amado aeroplano. Trudy muitas vezes brincava com Glória, dizendo que Ace amava mais o avião do que a ela ou a Wylie, mas parecia compreender que ele finalmente realizava seu sonho e nunca reclamava das horas que ele passava afastado da família.
Num fresco dia do outono de 1929, o pequeno Stinson pintado de vermelho estava pronto para seu voo de teste. Toda a família foi presenciar o acontecimento, inclusive Chou Ling. No extremo do campo, Billy Ray ajudou Ace a virar o avião contra o vento e colocou a cauda em posição. O coração de Glória pareceu subir-lhe à garganta quando o avião veio correndo pelo campo. Todo mundo bateu palmas quando levantou do chão, mas ela deu um suspiro de alívio. Por duas vezes, Ace passou rasante pelo campo e depois balançou as asas.
- Eu preferia que ele não se exibisse dessa maneira - murmurou Glória para Matty após seu último voo rasante, mas havia lágrimas de orgulho em seus olhos.
- Eu nunca o vi tão contente.
- Sei disso.
Dentro de uma hora, ele estava de volta, aterrissando o avião tão suavemente como um pássaro. Taxiou em direção a eles e desligou o motor. Sua expressão brilhava de orgulho e de realização quando saltou da carlinga.
- Comporta-se melhor do que qualquer coisa em que já voei antes.
- Insistiu ele enquanto todos se amontoavam ao redor para cumprimentálo. Considerando sua experiência limitada, aquilo não era o maior dos elogios, mas como ele virtualmente reconstruíra todo o avião das rodas para cima, o aparelho refletia muito sua habilidade. Ele afastou Glória das outras pessoas e convidou-a:
- Vamos, mamãe. vou levá-la para dar uma volta.
- Eu? - Ela recuou, resistindo quando ele tentava levá-la para perto do avião. - Não, Ace, de fato você devia levar Trudy primeiro.
- Parte deste avião também lhe pertence, mamãe. Acho que deveria ir primeiro.
- Suba com ele - aconselhou-a Matty. - Provavelmente será fácil, comparado com outras coisas que a senhora já fez na vida.
Glória deixou-se convencer. Voar não era lá uma tarefa muito fácil, seus movimentos restritos pelo vestido "tubo" e o casaco que usava. Ace assegurou-se de que ela estava bem amarrada e depois avisou-a:
- Não esqueça de abotoar o casaco. Lá em cima é meio frio. Na verdade, Glória estava nervosa e excitada ao mesmo tempo quando o biplano começou sua corrida para a decolagem. O aparelho rolava pesadamente aos trancos sobre o terreno irregular. Não parecia a Glória que o Stinson corresse tão rápido como quando vira Ace decolar sozinho. Então, subitamente, eles não estavam mais pulando; ela olhou para baixo e compreendeu que tinham saído do solo. Ela estava voando. Ela estava realmente voando, embora quase não houvesse nenhuma sensação de velocidade. Era uma experiência peculiar estar-se movendo, subindo, observando todo mundo e todas as coisas ficarem menores, no entanto sem sentir que estivesse se movendo, apenas as vibrações do motor do avião convencendo-a do contrário.
Quando Ace descreveu uma curva, afastando-se do campo, Glória sentiu o estômago contrair-se num enjoo. Agarrou-se ao assento, certa de que seria cuspida fora do avião, ou que este cairia do céu. Mas Ace nivelou as asas e estavam de novo voando suavemente.
- Mckinley! - gritou ele e apontou o norte.
A uma grande distância a montanha que os índios chamavam Denali "- "a alta" - dominava o céu fazendo os picos mais por perto parecerem anões. Para variar, sua imponente crista estava livre das nuvens que em geral a escondiam. Glória estava estupefata, nunca tendo imaginado que teria uma tão grandiosa visão da majestosa montanha vista do ar. Embaixo viam-se os trilhos da estrada de ferro que seguia para o norte
- a partir deste ano chegando até Fairbanks.
Então, Ace fez uma curva mais lenta com o avião e voou sobre a cidade de Anchorage. Glória não podia convencer-se de como as coisas pareciam diferentes vistas do ar. Ela nem reconheceu a pensão até que Ace a apontou para ela. Era um mundo inteiramente novo, e um mundo excitante. Por fim, compreendeu a paixão de seu filho pela aviação. Ela oferecia mais do que uma nova cidade e um novo começo de vida. Ela lhe dava um horizonte sempre em movimento e ele nunca poderia voar até seu fim.
Estava quase triste quando viu a pista de decolagem aparecer de novo, Ace preparar-se para a aterrissagem e as rodas tocarem no chão com uma sacudidela. Quando pararam, Glória pulou e deixou Trudy e Wylie tomarem seu lugar no Stinson. Antes do final do dia, Ace tinha levado toda a família para um giro em seu avião.
Uma semana mais tarde, Ace deixava seu emprego no Alaska Railroad e nascia a Ace Flying Service. Glória entrou como sua sócia financeira; Trudy cuidava dos livros, Billy Ray fazia as vezes de mecânico e equipe de terra. Naquele mesmo mês, a Bolsa quebrou e a Wall Street entrou em pânico.
Com o "exterior" nas garras da Grande Depressão, o desemprego foi geral. Gente que havia abandonado o Alasca para empregos que pagavam bem nos Estados Unidos começou a voltar. Os preços do ouro em ascensão tornaram viáveis operações de mineração em pequena escala. A indústria do salmão melhorou.
Quase que desde o princípio, Ace manteve-se ocupado. Alguém sempre tinha algum lugar para onde precisava ir - quer fossem mineradores, caçadores de peles, pescadores, engenheiros ou até prostitutas - e em geral queriam chegar depressa. Ou, se não precisavam ir, tinham algo que desejavam enviar ou que fosse recebido. Ou havia suprimentos que precisavam ser lançados do ar, uma emergência médica que requeria que um médico voasse para algum lugar ou que um paciente voasse para onde estava o médico.
Naqueles primeiros anos, Ace transportou tudo, desde um pequeno trator a gasolina, fraldas de bebé, carne congelada e colchões, até vitrolas e discos de fonógrafos. Tivera como passageiros brancos, esquimós, índios, cães, e até um defunto ou dois. Bêbados ou sóbrios, doentes ou saudáveis, loucos ou equilibrados, ele os havia levado aonde quer que quisessem ir, ou pelo menos tão perto quanto possível.
Os voos, porém, raramente decorriam sem incidentes. Na maior parte das vezes seus campos de pouso eram pequenos bancos de areia nos rios, lagos gelados ou topo de montanhas. Ele quebrara seu trem de aterrissagem, destruirá hélices, rasgara as pontas das asas, estourara estais e meia centena de outras coisas. Às vezes o avião ficava por demais danificado para poder levantar voo, e ele tinha que repará-lo no local com o que encontrasse à mão, caminhar quilómetros através de terreno selvagem, que na primavera parecia um pantanal até o primeiro sinal de civilização. Aí conseguia que as peças necessárias lhe fossem enviadas por via aérea e depois punha o avião em condições de voo.
Ele achatou as lâminas de sua hélice para máxima potência. Para levantar voo de campos curtos ele aprendera a esperar até o último segundo antes de levantar os flapes para obter o máximo empuxo e ângulo de ascensão. Em temperaturas abaixo de zero, quando o motor não estava girando, o óleo tinha de ser drenado para impedi-lo de congelar. Na enganadora brancura dos campos de pouso cobertos de neve, ele aprendera a "apalpar" o chão.
A sobrevivência significava aprender a cair em segurança. E como uma porção de outros "pilotos do mato", como eles eram chamados, Ace muitas vezes brincava, dizendo que seu Stinson não passava de um monte de partes sobressalentes voando em formação...
A navegação aérea no Alasca também não era uma operação fácil. Seu avião era equipado com uma bússola e um altímetro, mas ele nunca estava seguro de seu grau de confiabilidade. com toda a beleza das montanhas do Alasca, suas geleiras e lagos altos, ou os efeitos místicos de seus fenómenos naturais, como os brilhantes "cães do sol" em cima da neve ou as "luzes do norte" dançando, a terra podia ser cruel com seus ventos e nevoeiros, suas chuvas torrenciais e nevascas que podiam envolver um avião num "mingau" que fazia a terra e o céu parecerem a mesma coisa, sem "para cima" ou "para baixo".
Era uma terra sem trilhas, sem um vasto sistema de estradas entrecortando-se ou postes telefónicos ou trilhos ferroviários que pudessem ser usados como marcos no solo. Ace aprendera a reconhecer os rios e a distinguir um do outro - o que não era uma tarefa fácil, considerando os milhares de rios do Alasca e o igual número de pequenos regatos que no degelo da primavera corriam tão cheios como rios. Uma vez que uma árvore sempre cai na direção em que o rio corre, ele aprendera a distinguir montante de jusante apenas observando as árvores caídas. Para ele, cada pequena volta ou curva ou afluente de um rio era como um sinal de estrada: duas voltas depois da curva de anzol e lá está a cabana de Cosgrove. Morros de formas estranhas, picos que se destacavam, lagos de formas peculiares - ele os conhecia todos, quer estivessem nos mapas ou não. Houve ocasiões em que se perdeu, mas não muitas. E realmente nunca se sentia perdido, porque sabia que estava no Alasca.
A pequena Lisa Blomquist, de doze anos de idade, corria os olhos pelo salão apinhado, virando e esticando o pescoço num esforço para enxergar por cima e além das cabeças das pessoas sentadas nas longas mesas.
Ela não podia acreditar como seus irmãos mais moços poderiam ter desaparecido tão rápido. Há um minuto estavam brincando perto de suas cadeiras e no minuto seguinte tinham desaparecido. Ela prometera à mãe que ficaria de olho neles, de forma a ter certeza de que não se meteriam em encrencas. Ela não podia entender como seus irmãos se comportavam dessa forma quando o jantar de cerimónia tinha sido dado em sua honra.
Bem, não exatamente em sua honra, corrigiu-se ela, já que não passavam de crianças. Mas era para as famílias que tinham vindo para instalar fazendas no Alasca, num lugar chamado vale de Matanuska. E ela, Erik e Rudy faziam parte da família, e assim o jantar era para eles também.
Toda a cidade de Anchorage decretara feriado e comparecera à chegada do trem quando eles desembarcaram naquele dia. Havia uma banda tocando e bandeiras desfraldadas por toda parte. Ela não podia culpar seus irmãos por se haverem cansado dos intermináveis discursos. Tinha sido dessa maneira desde que eles e outras famílias de Minnesota deixaram St. Paul, viajaram de trem para Seattle e depois de navio para Seward, no Alasca. Por todo o trajeto, pessoas os haviam saudado e jornalistas fizeram-lhes perguntas. "Colonizadores" era como os jornalistas os chamavam - "colonizadores" e "pioneiros" marchando para a grande fronteira do Alasca.
Era tudo parte do New Deal do presidente Franklin D. Roosevelt, um programa de reassentamento para tirar lavradores de terras nas quais eles não podiam ganhar a vida e transportá-los para o Alasca. Lisa não entendia exatamente tudo, embora ela tivesse escutado quando o funcionário do plano de alívio o explicara a seus pais. Ela sabia que o governo tinha pago a viagem, suprido toda a família com as roupas convenientes - as primeiras que ela tivera que não eram de segunda mão, improvisadas ou roupas feitas de sacos de farinha - e fornecera a mobília necessária, chegando até a substituir a que era velha demais ou fraca. Sua mãe descobrira que eles tinham uma porção de móveis que não valia a pena transportar.
Toda aquela atenção e excitação a princípio tinham sido amedrontadoras. Lisa sempre se sentira muito encabulada entre estranhos, mas todo mundo que ela encontrara durante a longa viagem a fizera sentir-se importante - e valente. Todos estavam sendo tratados como se fossem algo de especial. Antes de deixarem Seattle, ela e seus irmãos, bem como o resto das crianças do grupo, tinham ganho brinquedos - verdadeiros brinquedos. Lisa estava muito contente por sua mãe ter encorajado seu pai a assinar a lista dos que queriam vir.
Quando ela estava quase perdendo as esperanças de localizar seus irmãos, Erik, o de nove anos, veio correndo por trás dela, agarrou-lhe a mão e depois começou a puxá-la para ir com ele.
- Vem. Lisa! Tenho que lhe mostrar uma coisa.
- O que é? Onde está seu irmão? - com relutância ela deixou-se puxar, enquanto examinava a área à frente deles, procurando por Rudy.
- Vocês deveriam ter ficado perto da mesa, os dois. Mamãe vai ficar zangada e então vocês vão realmente ver uma coisa!
- Mas nós achamos um índio - murmurou Erik, seus redondos olhos azuis brilhando de animação. - Você disse que não haveria nenhum aqui, mas nós achamos um.
- Isto é uma bobagem. Eu disse a vocês que não há índios no Alasca, só esquimós. Eles vivem muito mais lá para o norte em iglus, onde há gelo e neve o tempo todo, não aqui onde há árvores e tudo é verde. Um instante mais tarde, ela descobriu seu irmão de cabelos quase brancos e crespos balançando-se para lá e para cá contra um muro, sua cabeça ligeiramente virada de forma que ele pudesse olhar de esguelha algo que estava mais para diante. Erik puxava com mais força em seu braço para arrastá-la, embora ela não precisasse de que ninguém a apressasse para confrontar o irmão fujão. - Sabia que tenho procurado vocês dois por toda a parte, Rudy?
- Psiu! - Embora fosse um ano mais moço do que Lisa, ele sempre procurava mandar nela.
Erik chegou-se mais perto do irmão mais velho e, olhando em volta dele, disse a ela:
- Lá está ele, Lisa.
- Psiu! - fez Rudy de novo. - Ele poderá ouvir vocês.
- Pare com isso, Rudy! - declarou Lisa impacientemente e depois olhou para ver de quem eles estavam falando. Era um rapaz alto e de largos ombros, embora meio magricela; no entanto ela duvidava que ele fosse mais do que dois ou três anos mais velho que ela. Seu cabelo era negro e meio desgrenhado. Ele estava puxando o colarinho de sua camisa que abotoava na frente como se para fazê-lo mais folgado. - Ele não é índio nenhum, Erik. Vejam como ele está vestido com calças compridas e um paletó.
- Sim, mas olhe para seus cabelos e olhos negros - insistiu Rudy. - Veja como a pele dele é queimada. Você não é uma sabe-tudo, Lisa. O Alasca é uma fronteira e os índios vivem nas fronteiras e atacam os colonizadores como nós.
- Sim, eles fazem isso - Erik arriscou seu palpite de concordância.
- Ele provavelmente está por aqui espionando-nos, de forma a voltar para sua tribo e dizer a seu chefe quantos nós somos, de forma a terem um número suficiente de guerreiros para matar-nos quando nos atacarem. - Rudy riu-se do olhar amedrontado do irmão.
- Eu não quero ser morto. - Erik começou a fazer cara de choro.
- Não ligue para Rudy; ele está apenas bancando o esperto. - Ela notou que o rapaz olhava na direção deles e decidiu acabar com as táticas de intimidação de Rudy de uma vez e para sempre antes que começassem a causar pesadelos em Erik. Pegou o irmãozinho e disse: - Vamos. vou provar a você. - Quando Erik percebeu que ela o estava levando para o "índio", tentou livrar-se, porém sem fazer força demais, receando atrair atenção. - Desculpe-me - disse ela para o rapaz mais velho, indiferente à resistência de Erik, - mas meu irmão pensa que você é um índio. Por um momento o olhar inexpressivo do rapaz irritou-a um pouco, mas depois ele sorriu, e era um belo sorriso.
- O bisavô de minha avó tinha cinco oitavos de sangue índio, mas não sei se isto tem importância. Ela, entretanto, diz que pareço com ele.
- Está vendo? Eu lhe disse! - exclamou Rudy, triunfante. Lisa não estava segura se a resposta significava que ele era em parte índio ou não. Parecia ser assim.
- Você vive aqui? - perguntou ela.
- Sim; meu pai é um "piloto do mato".
- O que é isso?
- Ele pilota aviões levando gente e suprimentos para aldeias remotas, onde quer que queiram ir.
- Ah, essa espécie de piloto! - No norte de Minnesota não havia muitos aviões, mas ela tinha visto fotos e filmes deles.
- Você sabe pilotar um avião? - Rudy quis saber.
- Sim, meu pai ensinou-me.
- Puxa, isso é formidável! - Rudy estava totalmente impressionado. - Que idade você tem?
- Quatorze.
- Puxa! Eu também vou aprender a voar quando tiver quatorze anos; talvez até antes - declarou ele.
- E onde você pensa que vai arranjar um avião para voar? - Mas -isa achou melhor não meter-se numa discussão com o irmão e mudou rapidamente de assunto. - Desculpe-me. Meu nome é Lisa Blomquist e estes são meus irmãos, Rudy e Erik. Acabamos de chegar de Minnesota.
- Eu sabia disso. Sou Wylie Cole. - Mas foi mais do que a boa educação que levou Wylie a dizer-lhe seu nome. Em geral ele não gostava
de meninas; as que ele conhecia estavam sempre dando risinhos e comportando-se como bobas. Mas essa Lisa parecia diferente. Tinha que admitir que ela era bem bonita com aqueles grandes olhos azuis e o cabelo da cor de mel silvestre, com as longas tranças que lhe caíam bem abaixo dos ombros.
- Sim, nós somos de Minnesota, a terra dos dez mil lagos - disse Erik com ar importante.
- Nós não temos dez mil lagos no Alasca, - replicou Wylie..-. São mais de dois milhões. E a melhor caça e pesca que você pode encontrar em qualquer lugar. Existem alces e salmões, e cabras de grandes chifres nas montanhas.
- Há ursos por aqui? - Erik lembrou-se das histórias que Rudy lhe contara.
- Sim, será que nós iremos ver alguns desses grandes ursos brancos polares?
- Não. Eles não vêm tanto assim para o sul. Aqui por perto há mais ursos cinzentos. Matei meu primeiro na última primavera. - Wylie notou o modo como os olhos dela ficaram esbugalhados e sabia que a havia impressionado. - Eu caço e pesco muito. No próximo inverno meu pai me disse que posso montar umas linhas de armadilhas. Acho que vou ganhar dinheiro bastante com as peles para comprar um rifle novo para mim.
- Eu tenho uma espingarda - disse Rudy, mas Lisa notou que ele não se gabou acerca de quantos esquilos e coelhos matara com ela. Eles dificilmente se comparavam a um urso...
- Lisa, Rudy, venham aqui já, já! - com o impaciente chamado, Lisa virou-se com cara de culpada. Quando Wylie seguiu a direção do olhar dela, notou a mulher que andava apressada em direção a eles. Um chapéu em forma de sino escondia todo seu louro cabelo, exceto suas pontas encaracoladas" e emoldurava sua expressão séria.
Lisa virou-se para ele e explicou-lhe rapidamente:
- É minha mãe. Temos que ir agora. Adeus! - Mas ela deu uma última olhada para ele, virando o rosto para trás enquanto começava a guiar seus irmãos em direção à mãe. - Foi um prazer conhecê-lo.
- Da mesma forma. Talvez ainda nos vejamos - manifestou ele, cheio de esperança, e recebeu um rápido e ansioso sorriso em resposta.
Quando Lisa e seus irmãos chegaram perto da mãe, Wylie escutou o carão que ela lhes passou.
- Como puderam ser tão mal-educados? - admoestou-os ela. Agora voltem para lá e sentem-se em suas cadeiras até que eu diga que podem sair.
- Mamãe... - começou Rudy a protestar.
- Façam como estou dizendo ou pedirei a seu pai que os leve para fora e lhes dê uma surra. - A ameaça acabou com qualquer discussão.
Wylie suspirou, desapontado. Em primeiro lugar, não desejara ter vindo a esse jantar oferecido aos colonizadores. Nunca se sentia à vontade no meio de uma porção de gente; nunca sabia sobre que falar. Mas falar com Lisa Blomquist tinha sido fácil. Desejava que a mãe dela não a tivesse mandado voltar para a mesa deles. Teria sido gostoso se ele pudesse ter conversado com ela mais um pouco.
O Alasca provavelmente parecia estranho para ela. Esperava não havê-la assustado quando se referiu à existência de ursos na área. De alaurna forma, porém, ela não lhe dava a impressão de ser do tipo que se assustava com facilidade. De certa maneira, ela fazia-o lembrar de sua mãe e da avó Glória, o que era meio tolo, pois ela era apenas uma mocinha.
Ficou a cismar se ela iria gostar da terra. Uma porção de gente que chegava ao Alasca não gostava; sentiam-se por demais isolados do mundo e nunca paravam de queixar-se do frio e dos mosquitos. Desejava que tivesse tido tempo para contar-lhe acerca das coisas boas do Alasca e convencê-la de que era realmente um grande lugar para viver.
Com a esperança de ter novamente chance de conversar com ela, Wylie foi para o outro lado do salão, de onde podia avistar a mesa dela. Algumas vezes durante o resto da noite, a multidão em movimento abria uma brecha pelo tempo suficiente para ela notá-lo de pé junto à parede. De cada vez ela sorria para ele meio hesitante e Wylie sorria de volta. Ele não queria que ela se sentisse inteiramente só sem um único amigo no Alasca. Mas ela nunca se aventurou a sair do lado de sua mãe e ele não teve outra oportunidade de falar com ela.
Mais tarde, quando seguiu sua família para fora do salão comunitário, Wylie levou a mão ao pescoço e desabotoou o colarinho. Sua mãe observou seu gesto com um sorriso e comentou:
- Estava pensando quanto tempo você levaria para fazer isso. Estou surpresa que você não tenha arrancado o botão.
- Eu o teria feito, mas lembrei-me de que você me faria costurá-lo de volta. Então eu teria que lavar a camisa, porque a mancharia de sangue por haver picado meu dedo com a agulha muitas vezes. E não sou bom nesses afazeres de mulheres... - respondeu-lhe encolhendo os ombros.
- Há muito tempo que já compreendi que você nunca seria de nenhuma ajuda para mim nas tarefas caseiras, Wylie. Às vezes penso que se você pudesse escolher viveria do lado de fora. A maioria das mulheres se casa para não ter que viver sozinha. Mas aqui estou eu com seu pai, voando dias a fio para lugares desconhecidos, e você escapando de casa para caçar ou pescar em algum buraco escondido nos matos.
Ace colocou um braço em torno dos ombros dela e disse:
- Apenas pense que logo você ficaria cansada de nós se estivéssemos por perto todo o tempo.
- O choque provavelmente a mataria... - disse Glória, parando ao lado da porta traseira do seda e esperando que os outros a alcançassem. - Foi um grande jantar. O que você pensou desses cheechakos, Trudy?
- Tenho a impressão de que, não importa o que lhes tenham dito em sentido contrário, eles esperavam encontrar uma terra coberta com leite e neve. Essa era a imagem que eu fazia dela quando vim para cá: uma cheechako. Estou certa de que eles nunca esperavam que a terra fosse tão verde e o clima tão agradável e quente.
- Provavelmente não. - Glória abriu a porta traseira do carro e acomodou-se. Trudy também sentou-se no banco de trás, deixando Ace e Wyhe sentarem-se na frente. - Devo dizer que eles não correspondem à minha imagem de lavradores. Alguns deles pareciam pobres bastante para se qualificarem para este programa, mas um dos homens com quem conversei disse-me que trabalhara numa serraria a maior parte de sua vida e que cultivava além disso alguns hectares. Disse que produzia o bastante para alimentar sua família e criar uma vaca e alguns porcos. Não creio que isso faça dele um fazendeiro, mais do que umas partidas de pôquer faz de uma pessoa um jogador. E ele comentou que o destocamento em sua fazenda fora um problema; que ele espere até ver a altura das árvores no vale de Matanuska. Transformar aquela terra numa fazenda não vai ser tão fácil como ele pensa.
- Outros já o fizeram - disse Acé dando a partida no motor do carro. - Algumas famílias já demarcaram suas terras no vale; a senhora comeu algum alimento da produção delas no jantar.
- Sim, mas olhe para o número de pessoas que desistiram depois de dois anos - replicou Glória. - Você já voou por cima daquele vale muitas vezes, Ace. Sabe quantas terras demarcadas foram abandonadas tão bem quanto eu.
Wylie lembrava-se de haver visto isso também e tinha a esperança de que os pais de Lisa não se desencorajassem e abandonassem a terra. Ele não gostava da ideia de não vê-la nunca mais. A resposta do pai dele deu-lhe alguma nova segurança.
- Mas o governo está por trás deste projeto. Já há quatrocentos trabalhadores provisórios dos acampamentos de CCC ao longo da costa do Pacífico ali em Palmer, montando o acampamento central e as barracas para os colonizadores viverem enquanto não puderem ser construídas casas. Os provisórios vão ajudá-los a limpar o terreno, construir casas e galpões, abrir as estradas e fazer as pontes. Esses colonos não irão fazer todo o trabalho sozinhos, como os pioneiros antes deles tiveram de fazer.
- Ace levantou a lona da janela para impedir que a poeira invadisse o carro quando eles ganharam velocidade na estrada.
- Algumas das pessoas da cidade não estão muito contentes com os provisórios que foram trazidos para cá - disse Trudy. - Uma porção de gente daqui depende do trabalho que arranja durante o verão na estrada de ferro ou na comissão de estradas de rodagem. Estão preocupados que essa mão-de-obra barata de fora venha tirar seus lugares.
- Quer me parecer que se o povo do Alasca tiver que se preocupar sobre alguma coisa deveria ser com o Japão - afirmou Ace com ar sério.
- Levei de avião dois rapazes das fábricas de enlatados para Nushgak, na baía de Bristol, na semana passada. Enquanto estava ali, falei com um dos tripulantes de um barco pesqueiro. Ele me disse que avistaram um navio japonês nas Aleutas. Assegurou-me que estavam fazendo sondagens e disse que não era o primeiro navio japonês que viram em águas das Aleutas.
- Acho que todo o mundo no Alasca está preocupado acerca do Japão desde que seus exércitos invadiram a Manchúria há quatro anos - replicou Glória.
- Por que não deveríamos ficar? As ilhas Aleutas ocidentais ficam apenas a 650 milhas da base militar japonesa em Paramushiro. Quando o Tratado de Desarmamento Naval expirar, no ano que vem, é melhor que os Estados Unidos comecem a construir algumas bases naquelas ilhas. É o que estou dizendo: nós vamos entrar em guerra como o Japão. Apenas espero que, antes que isto aconteça, o Congresso comece a dar ouvidos a pessoas com o general Mitchell, ou ficaremos inteiramente indefesos no caso de um ataque. Neste momento, a única coisa que temos são quatrocentos soldados estacionados no quartel de Chilkoot. Não têm um campo de aviação nem uma estrada que leve até eles. O único jeito de chegar lá é por meio de rebocador.
Glória lembrava-se do aviso que o general Billy Mitchell dera ao falar na Comissão de Assuntos Militares da Câmara, em fevereiro último. Ele se referira ao Alasca como o "ponto chave em todo o Pacífico". "Quem ocupar o Alasca, domina o mundo", dissera ele. "O Alasca é o lugar mais estratégico do mundo. É o trampolim para esmagar o Japão. Se formos esperar para lutar nas Filipinas, levaremos cinco anos para derrotar o Japão."
- Não se incomode, mamãe - disse Wylie. - Se os japoneses atacarem o Alasca, eu levo a senhora e a vovó para um lugar seguro nas montanhas e ensino-as a cozinharem numa fogueira de acampamento.
Era um comentário feito meio de brincadeira, mas no entanto Glória suspeitava que tal perspectiva era da espécie que apelava para a imaginação de um menino de quatorze anos. A ela não causaria surpresa se Wylie pudesse viver e sustentar-se no mato. Mais de uma vez Ace comentara, após regressarem de uma expedição de caça ou de pesca com Wylie, que seu filho parecia mais à vontade no mato e nas montanhas do que na própria casa.
Para sua idade, Wylie era cheio de recursos e sua mente era como uma esponja quando se tratava de aprender as formas de sobrevivência dos nativos, desde fazer suas próprias raquetes de neve e preparar armadilhas até construir uma cabana de gelo e cercar animais. Ele fizera Matty ensinar-lhe a fazer seus próprios mukluks e parkas e Billy Ray lhe ensinara a utilizar-se de ossos para fazer armas.
Ainda no último inverno, Ace tinha saído num voo com Wylie, mas uma forte tempestade os obrigara a aterrissar num lago gelado. Fortes ventos ameaçavam virar o avião com as asas para baixo e Ace não encontrara nenhuma forma de amarrá-lo. Nessa hora, Wylie cavou um buraco no gelo, enfiou nele a corda de amarrar e depois urinou no buraco. Naquela temperatura abaixo de zero, a urina congelou em minutos, ancorando com segurança o avião.
Ace tinha um certo desapontamento, embora o escondesse bem, porque Wylie não partilhava de seu amor por voar. Para Wylie, o voo era aPenas um meio de chegar a um lugar remoto.
Wylie demonstrava todos os sinais de tornar-se um solitário. Nisto ele recordava Glória do Diácono. Wylie, como ele, não gostava de conVersa fiada. Trudy dizia que às vezes passavam-se horas sem que ele pronunciasse uma palavra. E ele tinha a cara de jogador de pôquer do Diácono, raramente deixando transparecer seus sentimentos.
Embora não fosse um rapaz indisciplinado, tinha problemas desta natureza na escola. Se o professor lhe dissesse para fazer alguma coisa que para ele não fizesse sentido, ele não a fazia. Sua resistência crescia na proporção da pressão aplicada. Glória às vezes cismava se ele teria herdado dela esse traço, e seu amor à caça do sangue dos índios e dos russos promyshleniki. Talvez Wylie fosse a resultante geral de todos seus ancestrais misturados.
- Diga-me, Wylie, quem era aquela pequena bonita com quem vi você conversando esta noite? - perguntou Ace, mexendo com ele. - Não me diga que arranjou uma namorada!
- Ora, papai! - protestou Wylie, corando ligeiramente.
- Você gostaria de ver isso, Trudy? Seu filho está corando.
- Não estou. - Mas seu rosto estava ficando cada vez mais quente. Ele sentou-se ainda mais para baixo no assento dianteiro, esperando que sua mãe e sua avó não notassem seu embaraço. - Era apenas uma pequena de uma dessas famílias de colonizadores; estava me fazendo uma porção de perguntas sobre índios e ursos polares.
- Ela tem um nome?
- Acho que sim. - Wylie fingiu que não sabia. Custava-lhe falar a respeito de Lisa Blomquist.
Pelo fim de maio, outros colonizadores de Michigan e Wisconsin chegaram ao vale de Matanuska, para elevar o número de famílias a duzentos, como planejado. Todos tinham estado nos programas de auxílio social de seu estado original e possuíam alguma experiência de agricultura. O governo havia selecionado famílias apenas da parte norte daqueles estados, especialmente a região desmaiada, que havia sido privada de suas florestas por atividades madeireiras quando se verificou que o solo era impróprio para a agricultura. A seleção se restringira à área daqueles três estados com base no seu clima semelhante ao do Alasca e que famílias, na maioria de origem escandinava, se adaptariam mais facilmente ao clima do extremo norte.
Os lotes de 16 hectares foram escolhidos por sorteio pelos chefes das famílias. Mas naquele primeiro verão limpou-se muito pouca terra. Os colonizadores e os provisórios despenderam a maior parte do tempo construindo um centro comunitário em Palmer para reuniões e culto religioso, e as casas de fazenda e galpões nos lotes individuais. Mas o trabalho era vagaroso, frequentemente perturbado pelas pesadas chuvas do fim do verão típica da região.
Wylie pensou muitas vezes em Lisa Blomquist naquele primeiro ano, imaginando como ela iria se dando e se estaria gostando dali. Quando ajudou sua mãe na horta naquele verão, ele desejou poder mostrar a Lisa os nabos de três quilos, os repolhos de trinta quilos e as enormes batatas que haviam colhido, de forma que ela pudesse ver como os vegetais vicejavam nas longas horas de sol do norte. No outono, quando ele matou seu primeiro alce da estação, pensou se ela já havia comido sua carne e se gostara de seu sabor.
Muitas vezes, quando fiscalizava sua linha de armadilhas naquele inverno, rodeado pelo silêncio da neve, ele parava e dirigia o olhar na direção noroeste, onde ficava o vale a cerca de oitenta quilómetros de distância na linha ferroviária que ia para os campos carboníferos - o vale de Matanuska, fechado por três lados por imponentes serras. Esperava que Lisa não se sentisse solitária.
No ano seguinte ouviram-se resmungos de descontentamento de alguns dos colonizadores. Antes de terminar o verão, algumas famílias desistiram e voltaram para os Estados Unidos. Em breve outras mais os seguiram, mas Wylie nunca descobriu se a família de Lisa Blomquist estava entre as que se foram.
Depois de algum tempo, parou de pensar na pequena de doze anos, em seus olhos azuis e suas tranças cor de mel.
Wylie caminhava atrás do cortador manual, apoiando seu peso ligeiramente no cabo para empurrá-lo, enquanto o cilindro de lâminas em espiral cortava o capim alto do gramado. Sua camisa de xadrez azul estava pendurada num moirão da cerca; ele a tirara depois de acabar de cortar a grama em frente da pensão de sua avó Glória. O sol da tarde esquentava-lhe as costas; seu calor, junto com o ligeiro esforço físico, fazia surgir a transpiração em sua pele.
Havia uma certa monotonia em cortar a grama - caminhar para a frente e para trás, para a frente e para trás, o ar cheirando a capim recémcortado e o barulho das lâminas do cortador. Ele chegou até o final do gramado dos fundos e manobrou o cortador para começar de novo em direção à frente.
Quando se virou, notou duas pessoas subindo pelo caminho que dava na entrada da pensão. Normalmente ele não teria prestado nenhuma atenção a uma ocorrência tão comum. A Europa estava em guerra e a maioria acreditava que era só uma questão de tempo até que os Estados Unidos se envolvessem no conflito. Os primeiros passos para a longamente negligenciada defesa do território do Alasca tinham começado com a previsão de quatro milhões de dólares para um laboratório para aviação em climas frios em Fairbanks e uma nova guarnição do exército em Anchorage que seria chamada de Forte Richardson. Oitocentos soldados do 4º Regimento de Infantaria já haviam chegado a Anchorage e estavam num bivaque nos limites da cidade até que o novo forte fosse construído. Os contratos militares haviam atraído uma horda de operários de construção para a cidade, todos eles necessitando de algum lugar para viver. Era uma visão comum ver homens dirigindo-se para a entrada da pensão Cole, mas não duas mulheres, especialmente quando uma delas era jovem e bonita. Wylie ficou olhando apreciativamente para a moça com o cabelo cortado a pajem até que o edifício bloqueou-lhe a visão. Então ele apoiou-se de novo no cortador de grama, lamentando que não houvesse quartos vagos.
Lisa Blomquist fez uma pausa nos degraus da frente e olhou para o grande e espaçoso edifício de dois andares, com uma pequena cerca em frente dos canteiros de flores. Depois de cinco anos de outra coisa senão má sorte em sua fazenda do vale de Matanuska, seu pai finalmente desistira e encontrara serviço com uma turma de construção ali em Anchorage. Agora Lisa e sua mãe estavam em busca de casa, tentando encontrar um lugar onde viver na cidade.
Tinham passado todo o dia fazendo isso, mas sempre havia qualquer coisa de errado com todas as casas que viam. Ou o aluguel mensal era mais alto do que podiam pagar, ou a casa era pequena demais, ou velha demais, ou numa vizinhança ruim. Finalmente alguém sugerira que fossem ver a sra. Cole, explicando que, além de sua pensão, ela possuía diversas propriedades de aluguel na cidade.
Lisa seguiu sua mãe nos degraus até a porta de entrada. Uma mulher esquimó de cabelos grisalhos atendeu-as quando entraram. Lisa notou a expressão mal disfarçada de desânimo que cruzou o rosto de sua mãe.
- Sra.Cole? - perguntou ela, hesitante.
- Não. - A mulher gorda sorriu. - Eu sou Matty Townsend. Se vieram procurar quartos, lamento dizer-lhes que estão todos ocupados no momento.
- Não. Vim para ver a sra. Cole acerca da possibilidade de alugar uma de suas casas.
- Um momento. vou chamá-la para falar com a senhora. Fiquem à vontade. - E ela indicou-lhes as cadeiras e sofás na sala de estar ao lado da entrada.
Quando a mulher esquimó se afastou, Lisa foi atrás de sua mãe até a sala. Pegou uma das revistas em cima da mesa e começou a folheá-la enquanto a mãe andava pela sala, inspecionando seus enfeites, tocando com inveja num vaso de porcelana e olhando com olhos compridos um lampião de cristal.
Com o som de passos que se aproximavam, Lisa colocou a revista de volta na mesa e virou-se para o lado da porta. Uma mulher alta e delgada apareceu na abertura, seu cabelo grisalho penteado para cima e para trás e enrolado num bonito coque na nuca. Lisa ficou espantada pelo contraste entre a coloração clara do cabelo e o negro profundo de seus olhos. Era difícil dizer a idade da mulher. Havia algo de muito jovial nela quando entrou na sala, sorrindo e com um ar confiante.
- Desculpe tê-la feito esperar - disse para a mãe de Lisa. - Sou a sra. Cole.
- Eu sou a sra. Blomquist e esta é minha filha Lisa.
- Como vai, Lisa?
A despeito do calor da acolhida, Lisa sentiu-se estranhamente encabulada e com a língua presa, como uma moça do interior. Tentou ficar de pé um pouco mais empertigada, imitando a postura da mulher, uma pose que era enfatizada pelos ombros bastante cheios do vestido azulreal que ela usava. Nem mesmo suas roupas tinham o ar desmazelado de uma mulher de idade, observou Lisa. Mulheres de uma tal idade em Palmer ou eram gordas ou sacos de ossos, seus rostos marcados de rugas e encarquilhados como uma ameixa seca. Ela nunca vira ninguém como a sra. Cole antes, exceto talvez no cinema.
Lisa estava tão interessada em observar a mulher que perdeu a conversa entre a sra. Cole e sua mãe. Não podia sequer lembrar-se de ouvir suas vozes até que a sra. Cole deu um passo para trás em direção à porta.
- Desculpem-me um momento. Meu neto está lá nos fundos. vou pedir a ele para mostrar-lhes a casa.
Quando ela saiu da sala, Lisa virou-se para a mãe e disse:
- Ela tem uma aparência muito bonita.
- Ela diz que é viúva - disse a mãe com uma fungadela de desaprovação. - Suponho que possa ser. - Seus olhos correram a sala e o que havia nela. - Mas tenho minhas dúvidas que isto sempre tenha sido uma pensão.
- Mamãe! - Lisa ficou chocada pela insinuação de que aquela pudesse certa vez ter sido uma casa de má fama, e que a sra. Cole fosse sua dona.
- Mais de uma pessoa já me disse que não é prudente fazer muitas perguntas acerca do passado de uma mulher aqui no Alasca. Diz-se que muitos que se tornaram cidadãos líderes da comunidade se casaram com mulheres decaídas. Dizem que havia tão poucas mulheres decentes no Alasca durante os primeiros dias que os homens, em desespero, tomaram a outra espécie como esposas.
- Mamãe! - Lisa sentia-se embaraçada por sua mãe ser capaz de insinuar que a sra. Cole tivesse sido uma dessas, e tinha fortes suspeitas de que ela estava com inveja.
Quando a sra. Cole voltou, vinha acompanhada por um rapaz alto de largos ombros vestindo uma camisa xadrez azul claro. Seu rosto parecia ter sido fundido em bronze. Os olhos eram quase negros, como os de sua avó, mas não tinham aquele brilho; ele parecia mais reservado e cauteloso.
- Gostaria de apresentar-lhes meu neto, Wylie Cole. Esta é a sra. Blomquist e esta sua filha Lisa. Elas vivem atualmente em Palmer, mas o pai foi contratado para trabalhar na construção do novo forte do Exército aqui em Anchorage. Estão procurando um lugar para morar aqui de forma que ele não tenha que ir e vir para o trabalho. "
Lisa Blomquist! Por um instante Wylie ficou tão atónito que não pôde fazer outra coisa senão olhar espantado para a moça. Imediatamente sua memória recuou como uma flecha até aquele primeiro encontro, há cinco anos. Lisa tinha a idade certa. As tranças haviam desaparecido e a cor do cabelo era talvez um pouco diferente, mas os olhos continuavam enormes e azuis. Wylie estava certo de que não podia haver duas moças chamadas Lisa Blomquist vivendo no vale de Matanuska; ela devia ser a mesma que conhecera.
Ela olhou para Wylie com firmeza mas sem qualquer sombra de reconhecimento em sua expressão. Não se lembrava dele. Wylie sentiu-se decepcionado pela descoberta e desejou poder ativar a memória dela, mas recordar um prévio conhecimento era um dos recursos mais batidos para estabelecer contacto. Escondeu seu desapontamento, dando-se conta de não ter causado nela a impressão que ela lhe causara.
- É um prazer - disse ele, dirigindo-se tanto a Lisa quanto à mãe dela. - Meu carro está aí fora. Terei muito prazer em levá-las até a casa.
Wylie! Era um nome pouco comum, entretanto soava familiar para ela. Lisa não podia atinar com o motivo até que se viu sentada no banco de trás do Chevrolet. Aí lembrou-se de que o piloto que morrera naquele desastre de avião próximo a Barrow, no Alasca, junto com Will Rogers, também se chamava Wiley. Na ocasião todo mundo comentara o acidente. Ela se lembrava do nome do piloto porque era o mesmo daquele rapaz que havia conhecido. Era isso!, compreendeu ela. Ela estava quase certa de que o nome dele era Wylie Cole. Mas fora há tanto tempo. Ela chegou-se para a frente do banco, tentando dar uma olhada no rosto dele. Os olhos e os cabelos negros, o perfil de índio - tinha de ser ele.
Desejava dizer alguma coisa, mencionar seu anterior encontro, mas com sua mãe sentada ali no banco da frente, ao lado dele, não tinha ânimo de fazê-lo. Ela voltou a recostar-se para trás no banco e ficou olhando pela janela, de vez, em quando espiando sua nuca e desejando ter a coragem de falar-lhe.
Chegados à casa, Wylie acompanhou mãe e filha pelos quartos. Tendo completado o circuito, voltaram ao ponto de partida na sala da frente.
- Há mais alguma coisa que a senhora gostaria de ver, sra. Blomquist? Alguma pergunta?
- Acho que gostaria de dar uma outra olhada na cozinha; pareceu-me um pouco pequena.
- Pode ir lá; não se preocupe com o tempo. Esperarei aqui pela senhora. - Ele não tinha vontade de acompanhá-la.
- Você não vem comigo, Lisa? - perguntou a sra. Blomquist quando se movimentou em direção à cozinha nos fundos da casa.
- Não, eu... acho que ficarei aqui. - Quando falou, ela estava de costas para Wylie. Ele ficou contemplando o brilho natural de seu cabelo castanho claro, comprido e macio, com as pontas voltadas para cima tocando-lhe nos ombros. Tinha vontade de avançar com a mão e tocálos, para ver se eram tão macios como pareciam. Ela esperou que sua mãe deixasse a sala, depois virou-se e sorriu hesitante para ele, dizendo:
- É uma boa casa.
- Sim.
- Sei que essa pergunta vai provavelmente parecer tola. - Ela parecia muito nervosa e conscientizada, como se não estivesse de forma alguma certa do que deveria estar falando. - Mas... seu pai é um "piloto do mato"?
- Sim, é. - Wylie franziu a testa com curiosidade, pensando no que teria provocado a pergunta.
- Assim pensei. - Seus lábios se abriram num largo sorriso que pareceu iluminar.seu rosto. - Já nos conhecemos antes, não sei se você se lembra...
- No jantar para os colonizadores, a caminho do vale de Matanuska, no salão comunitário - confirmou Wylie com um amplo sorriso.
- Você se lembra! - Lisa encarou-o admirada.
- Recordo-me de que você usava tranças até aqui. - Ele indicou com a mão a linha no alto de seu peito, incapaz de resistir ao impulso de tocá-la, embora só por um momento.
- E meus irmãos pensavam que você era um índio.
- Foi isso mesmo.
- Você ainda gosta de caçar e de pescar? - Ela parecia irradiar felicidade. - Lembro de você me contando como tinha matado um grande urso cinzento naquele inverno.
- Eu ainda caço. - Ele ouviu os passos da sra. Blomquist e Lisa olhou em direção à cozinha.
- É uma bela casa - repetiu.
- Faço votos que seus pais a aluguem.
- Eu também.
- Se for assim, provavelmente nos veremos de novo.
- Provavelmente sim. - Ela parecia tão contente com isso como ele.
- Talvez pudéssemos até ir a um cinema numa noite de sábado sugeriu Wylie quando a mãe dela apareceu na sala.
- Talvez pudéssemos. - Ela lançou-lhe um rápido sorriso e depois virou-se para encarar a mãe.
Lisa receava que sua mãe nem pensasse em alugar a casa devido às suspeitas acerca da senhoria. Logo na manhã seguinte, no entanto, ela levou o marido para vê-la. Dentro de uma semana já se haviam mudado. E, duas semanas mais tarde, Lisa foi ao cinema da cidade com Wylie.
No fim do filme, Lisa e Wylie deixaram o cinema pelo corredor que se afunilava para a rua. A multidão dispersou-se rapidamente espalhando-se em todas as direções enquanto Wylie a conduzia para seu carro estacionado no próximo quarteirão. O sol de verão ainda andava pelo céu espalhando seus longos e dourados raios pela cidade.
- É uma bela noite - observou Lisa.
- Sim. - Após ter segurado a mão dela durante todo o filme, ele sentia falta de sua leve pressão. Enfiou as mãos nos bolsos de sua jaqueta, de forma que elas não se sentissem tão vazias. De repente, ela riu-se ligeiramente e depois sacudiu a cabeça. - O que há? Eu perdi alguma coisa engraçada? - perguntou ele.
- Não - respondeu ela e depois sacudiu de novo a cabeça. - Ainda estou admirada de você lembrar-se de mim. Foi há tanto tempo!
- Não vejo por que deva causar tanta surpresa. O projeto de Matanuska foi uma grande novidade por aqui durante uns dois anos. Sempre circulavam histórias do que estava acontecendo em Palmer. Uma vez que você era a única pessoa que eu conhecera dali, era natural que pensasse em você sempre que as pessoas falavam sobre Matanuska. - E ele sorriu para ela. - Além disso, não muitas pessoas me tomaram por um índio...
- Erik e Rudy têm um jeito de causar uma impressão duradoura - disse ela, sorrindo com um ar arrependido, e depois perguntou: - Você tem irmãos ou irmãs?
- Não. Sou apenas eu.
- Deve ser meio solitário para você.
- Creio que sim. Quando eu era um garoto. - Lembrando-se do encontro anterior, Wylie cismava se o fato de vê-la com seus irmãos mais moços, observando o modo como ela cuidava deles e suas discussões particulares fora uma das razões pelas quais ela permanecera em sua mente todo aquele tempo. - Mas agora, em geral, gosto de ficar sozinho.
- Acho que sei o que quer dizer. Estou quase convencida de que ser a única menina é quase como ser filho único. Vivendo na fazenda como vivíamos, eu realmente não tinha ninguém com quem conversar ou com quem brincar. Nossos vizinhos mais próximos não tinham nenhuma menina da minha idade e minha mãe .. E minha mãe não é exatamente a pessoa que se possa ter como confidente.
- Eu sempre pensava se você não estava passando um mau pedaço por lá.
- Creio que todos passamos. O solo em nosso love era fraco demais para o cultivo de qualquer coisa, de forma que criávamos vacas de leite. Meu pai sempre deu duro, mas ele não conseguiu grandes resultados.
- Você está arrependida de ter vindo para o Alasca há cinco anos?
- Não! - A resposta dela foi uma rápida negativa e depois fez uma pausa. Era orgulhosa demais para admitir que até virem para o Alasca e se mudarem para a casa recém-construída na fazenda, ela nunca vivera numa casa onde o teto não tivesse goteiras ou o vento não penetrasse pelas frestas ou o reboco das paredes não vivesse caindo. A vida aqui tinha sido uma luta constante, mas pelo menos eram bem alimentados, com melhores roupas, e moravam em boas casas. - Quando morávamos em Minnesota, lá é que a vida era dura para nós. - Eles tinham sido muito pobres, com nada mais do que dias de pobreza à sua frente.
- Acho que o Alasca é uma grande terra. Naturalmente, tendo nascido aqui, minha opinião é preconcebida, mas uma porção de gente de fora não pode tolerar nossos longos invernos e os mosquitos.
- Os invernos são mais longos - admitiu Lisa. - Mas não são tão frios quanto os de Minnesota. E os mosquitos não são piores do que as mutucas que se espalham por todo Minnesota durante o verão.
- Você de fato gosta daqui, não gosta? - perguntou Wylie, chegando junto a seu Chevrolet.
- Realmente gosto.
- Fico contente com isto. - Ele abriu a porta do lado do passageiro para ela e esperou que se acomodasse dentro do carro. Depois fechou a porta e foi para o lado do motorista. Ele quase sentia vontade de assobiar.
Era apenas um curto trajeto até a casa dela. Cedo demais estavam chegando em frente à casa. Relutantemente, Wylie andou com ela até a porta, desejando que houvesse alguma forma de prolongar seu tempo junto dela.
Quando ela se virou para ficar de frente para Wylie, sua expressão parecia espelhar a dele.
- Diverti-me muito esta noite, Wylie.
- Eu também. Você não tem nenhum plano para a noite do sábado próximo, tem?
- Não, nenhum. - O sorriso de Lisa fez covinhas em seu rosto.
- Talvez pudéssemos ir a um outro cinema.
- Os anúncios dos filmes parecem bons.
- Pego você às seis e meia, se lhe convém.
- Ótimo.
Wylie hesitou, desejando dar-lhe um beijo de boa noite, embora fosse apenas seu primeiro encontro; depois amaldiçoou a demorada luz do dia que os expunha inteiramente a toda a vizinhança. Mas os vizinhos que danassem. Ela estava ali, olhando para ele, observando-o e esperando... Ele inclinou-se ligeiramente, beijou-a e sentiu a quente pressão de sua resposta.
- Às seis e meia no próximo sábado? - disse ele, levantando-se e respirando um pouco mais apressado.
- Sim.
Saíram no sábado seguinte e em todos os sábados depois dele pelo resto do verão e do outono, e mais algumas noites entre eles. Lisa ficou nervosa da primeira vez que Wylie convidou-a para o almoço de domingo com a família dele. Embora ele nunca tivesse efetivamente dito que estava interessado em estabelecer uma relação mais permanente, o encontro com os pais dele parecia a ela um passo possível para algo mais sério. Em vista disso, Lisa estava terrivelmente ansiosa em causar boa impressão. Mas tudo pareceu sair errado desde o momento em que chegou na casa dos pais dele. Uma nevasca de janeiro, seguida de temperaturas abaixo de zero, deixara trechos de gelo na calçada da frente. Quando saltou do carro e dirigiu-se para a casa na frente de Wylie, escorregou num pedaço de gelo e caiu antes que ele pudesse pegá-la. Abriu um buraco no único par de meias que possuía e ralou a perna. Sua entrada foi triste, capengando e com sangue correndo do joelho.
A mãe e a avó de Wylie fizeram um escarcéu, insistindo em que o corte fosse lavado, desinfetado e colocada uma atadura, quando tudo o que Lisa queria era pretender que nada havia acontecido. Ela ficou aliviada quando finalmente sentaram-se à mesa de refeições e a conversa orientou-se para algo mais que sua desagradável queda.
- Eu lhe disse, Wylie, que quando fui a Fairbanks na semana passada, a nova base aérea, Ladd Field, já estava terminada? - O pai dele serviu-se de batatas em seu prato e depois passou-as para Lisa. - Aquela pista de pouso que eles construíram tem mais concreto do que existe em todas as ruas e calçadas de Anchorage. Dizem que é tão grossa que não vai nem inchar a sessenta graus abaixo de zero.
- Eles vão ter oportunidade de testá-la neste inverno - replicou Wylie.
- Ouvi um desses pilotos do exército "lá de fora" queixar-se das condições de voo aqui - disse o pai com uma risadinha. - Ele tem estado a voar "pela onda" há tanto tempo que esqueceu-se de voar com seus próprios recursos.
- Voar "pela onda" é linguagem de piloto para navegação por meio de onda de rádio dirigida - explicou a mãe dele a Lisa. - Um piloto pode sintonizar seu rádio para o transmissor situado num aeroporto conhecido e voar direto para ele.
- Pode-se contar o número dos transmissores no Alasca provavelmente nos dedos de uma mão - acrescentou Ace Cole. - Esses pilotos militares estão descobrindo o que é voar aqui no norte. O frio é tanto que faz seu óleo virar algo parecido com a geléia de framboesa que a Trudy faz; o sistema hidráulico congela e os pneus de borracha tornam-se tão quebradiços que estouram como vidro. Isto para não dizer nada acerca da rapidez com que o gelo pode acumular-se nas asas de um avião. Eles realmente estão colocando aquele laboratório em Fairbanks para funcionar, tentando adaptar seus bombardeiros e caças para estas condições de clima frio. E quanto a bases aéreas... aposto que o Exército tem umas doze em construção.
- Os navios carregados de soldados e trabalhadores em construção que despejaram suas cargas em Anchorage neste último outono rivalizam-se com qualquer coisa que jamais vi em Nome - afirmou a avó de Wylie.
- Eles estão dormindo em barracas, em grandes caixotes... em qualquer coisa que tenha quatro paredes e um teto. Matty e eu convertemos a sala de estar em mais quartos de dormir, e mesmo assim ainda temos vinte pessoas na lista de espera.
- Tudo o que digo é que está na hora do Congresso acordar para o fato de que o Alasca necessita de algumas instalações militares. Eles despejaram mais de 450 milhões de dólares no Havaí, que está a mais de 2.500 milhas da costa oeste dos Estados Unidos. Na última primavera, como disse Ernest Gruening, um punhado de pára-quedistas inimigos poderia ter capturado o Alasca da noite para o dia. Agora poderá levar uma semana.
- Pelo menos alguma coisa está sendo feita sobre isto, Ace. - A sra. Cole não parecia muito preocupada acerca das sombrias previsões de seu marido.
- Acho que devíamos agradecer a Stalin por isso. Se ele não tivesse assinado aquele pacto com Hitler, o Congresso provavelmente nada teria feito. Agora estão preocupados com todas as bases militares que a Rússia tem na costa da Sibéria. Uma delas fica apenas a 150 milhas de Nome. Ainda continuo a dizer que é com o Japão que precisamos nos preocupar. Sei que o general Buckner mandou que todas as construções prosseguissem vinte e quatro horas por dia para completar todas essas instalações defensivas. Só espero que não seja tarde demais...
- Papai! - disse Wylie, olhando para Lisa enquanto falava. - Por que não falamos acerca de qualquer outra coisa? O senhor dá a impressão de que vamos entrar numa guerra a qualquer momento.
- Talvez vamos. Não podemos enterrar nossas cabeças na areia e fingir que o que está acontecendo na Europa e no Pacífico não irá afetarnos... e muito em breve.
- O presidente prometeu que os Estados Unidos não serão arrastados para uma outra guerra mundial - disse Glória, limpando o canto da boca com o guardanapo.
- O Japão e a Alemanha não fizeram tais promessas. Olhe para os suprimentos que os Estados Unidos estão embarcando agora para a Inglaterra. Por quanto tempo você pensa que Hitler vai deixar isto continuar? - Ace espetou seu garfo num pedaço do assado de alce. - Como é de costume, todo mundo está olhando para o outro lado do Atlântico. É por isso que se esqueceram do Alasca até que surgiu este susto com a Rússia. Aqueles generais congressistas em Washington deveriam ser capazes de olhar para um mapa-múndi e ver que se Fairbanks são quinze horas de voo até Tóquio, ou até Nova York, Fairbanks fica a apenas quatro mil milha de qualquer cidade importante da Europa, pelo amor de Deus!
- Ace, acalme-se - disse Trudy Cole pacientemente de sua cadeira no lado oposto da mesa; depois sorriu, desculpando-se com Lisa. - Você não somente está ficando todo transtornado, mas receio que está apavorando nossa visita com sua conversa de guerra.
- Lisa, me desculpe - disse Ace, olhando para ela com um ar que parecia de surpresa.
De novo ela estava no centro das atenções, a última coisa que desejava.
- Não, realmente está tudo bem - disse, sorrindo nervosamente.
Na verdade, muito do que havia sido dito não era coisa de seu conhecimento. Em casa, quando sua família discutia o que estava acontecendo no Alasca, a conversa em geral se concentrava no número de bons empregos disponíveis, no modo como subiam os preços das casas e da alimentação, o dinheiro que iriam ganhar e nas coisas em que poderiam gastá-lo.
- Trudy, acho que está enganada - afirmou o pai de Wylie. Talvez seja bom para alguém como Lisa ficar alarmada com o que eu disse. Afinal de contas, são os jovens que terão que lutar quando vier a guerra. Você e eu somos velhos demais para fazer mais do que aguentar a frente interna. Mas Lisa e Wylie...
- Papai- Wylie interrompeu-o de novo. - O senhor está realmente tornando as coisas difíceis.
- Por quê?
- Porque... recebi uma carta do Tio Sam dizendo: "Saudações!"
- Ele fez uma pausa e um grito sufocado de sua mãe encheu o vácuo.
- Tenho pensado como dizer a vocês e esta seria uma boa ocasião, com todo mundo aqui reunido, dando-lhes conhecimento de que fui convocado.
Lisa não podia dizer nada; sua mente subitamente encheu-se com imagens dele em uniforme e seu rosto aparecendo nos cinejornais mostrando as cenas de guerra na Europa.
- Wylie! - A mãe dele tinha lágrimas nos olhos e sua avó, sentada ao lado dele, voltou-se para Wylie e apertou-lhe a mão.
- Eu sabia que iria acontecer. - O pai dele parecia o único a receber o anúncio sem se perturbar."- Estava esperando que você se apresentasse como voluntário ao Corpo Aéreo do Exército antes de ser convocado. com a experiência de voo que tem, talvez ainda consiga. Eles precisam de bons pilotos.
- Desculpe, papai - disse Wylie, balançando a cabeça devagar. Se vou ter que lutar, quero ficar com os pés no chão.
- Quando você tem que partir? - perguntou suavemente a avó.
- Em breve.
- Dentro de quanto tempo? - Sua mãe parecia preparar-se para receber a resposta.
- Nesta semana.
Lisa simplesmente não podia falar; apenas olhava para ele.
- Meu Deus! - A mãe dele riu, nervosa, depois parou, antes que o riso se transformasse num soluço. Lisa compreendeu. A metade da razão pela qual ela não dissera nada era que receava, se tentasse, desmanchar em lágrimas. - Sabem... acho que deixei a torta no forno - declarou Trudy e deixou a sala de jantar quase correndo, para desaparecer na cozinha. Wylie colocou o guardanapo ao lado do prato e começou a levantar-se, mas seu pai fez-lhe um sinal para voltar à cadeira.
- vou ver se ela queimou a torta - disse ele e levantou-se da mesa. Mais tarde, depois que todos acabaram penosamente o almoço, Lisa
ofereceu-se para tirar a mesa e ajudar na cozinha a lavar os pratos, mas Glória Cole olhou uma vez para a mãe de Wylie e depois sugeriu gentilmente que talvez fosse melhor se fizessem o serviço sozinhas, dizendo a Lisa que fosse para a sala de estar com Wylie.
Ela foi incapaz de dizer-lhe uma palavra quando ele a conduziu para o grande sofá. Ela se sentia quebradiça, como se o menor choque pudesse parti-la em mil pedaços. Sentou-se, tentando controlar-se.
- Lisa, desculpe-me. - Ele ficou sentado, olhando para as mãos cruzadas, a cabeça baixa.
- Você tem mesmo que se desculpar. Aquele foi um modo horrível de dar uma notícia como esta às pessoas que gostam de você. - Ela estava zangada com ele, zangada por ele não ter lhe contado em particular, zangada por toda a família ter ficado a observá-la. Ele não achava que a notícia iria perturbá-la? Não sabia o quanto ela se importava?
- Sei que foi horrível, mas eu acreditava que com você aqui a reação de minha família não seria tão emocional. Sabia o quanto isso iria perturbar minha mãe. Sou filho único. - Olhou para ela e disse: - Eu não tencionava feri-la.
Ela não podia continuar zangada com ele, não agora, quando havia tão pouco tempo restante.
Após aquele desastroso almoço, Lisa viu Wylie mais uma vez antes dele partir. Ele parou o carro diante da casa dela e deixou o motor ligado. A luz da varanda estava acesa, mas Lisa não fez nenhum movimento para sair do carro. Durante toda a noite ele agira como se fosse apenas um outro encontro e não o último que teriam por um longo tempo. Ela se enrolara no assento a seu lado, embrulhada em sua manta, seu casaco e suas luvas. Desejava que ele dissesse algo - que ele se importava, que gostava dela - qualquer coisa que a fizesse saber onde ela se encontrava em relação a ele. Mas o silêncio apenas continuava.
- Acho que não vou vê-lo por algum tempo - disse ela por fim. Ele voltou-se para ela e passou o braço pelas costas do assento, dizendo:
- Provavelmente não.
Estava muito escuro para ver o rosto dele claramente, mas Lisa duvidava que sua expressão de qualquer modo revelasse algo. Sentiu a mão dele tocar sua nuca e afastar a manta de forma a poder acariciar seu cabelo.
- Você me escreverá? - perguntou.
- Claro. Você escreverá para mim? - Parecia como se ele estivesse brincando com ela.
- Naturalmente. - Ela escreveria todos os dias, se ele pedisse. Gostaria que você não tivesse de ir.
- Olhe! Não estou lá tão feliz por ter de entrar no Exército, mas não tive nenhuma escolha. Além disso, você não vai sentir falta de mim por muito tempo, não no Alasca. Aposto que já há uns dez sujeitos fazendo fila para tomar meu lugar.
- Não importaria se houvesse cem. Você me deixa tão zangada às vezes, Wylie! - Ela estava quase chorando. - Quer que eu espere por você?
- Ninguém sabe o que irá acontecer, Lisa. Não acho que seja a ocasião de fazer quaisquer promessas que amanhã não seremos capazes de cumprir. Uma porção de coisas pode mudar.
- Talvez para você. - Ela mantinha os olhos fixados em suas luvas, cruzadas fortemente no colo.
- Por que apenas não esperamos e vemos o que acontece quando eu voltar?
- Certo.
- Lisa, quer olhar para mim? - Relutantemente, quase cautelosa, ela levantou o queixo e olhou para ele. - Eu voltarei. Pode contar com isto. E é melhor que não me esqueça!
Os dedos de Wylie deslizaram por seus cabelos e seguraram sua nuca, forçando-a em direção a ele. Beijou-a longamente e com força, como se determinado a deixar nela sua marca. Lisa ficou agarrada a ele, igualmente determinada a que ele se lembrasse dela, não escondendo nada de seu desejo de mostrar-lhe o quanto gostava dele. Mas por dentro doía muito. Por fim ela afastou-se e pulou do carro, chorando enquanto corria para casa.
A escuridão do inverno continuava a reinar pela manhã quando Lisa se aproximou dos degraus da igreja para assistir ao serviço das nove horas, acompanhada por seus pais e, de má vontade, pelos irmãos mais moços. Ainda levaria mais duas horas até que a luz do dia iluminasse o céu. Um homem estava de pé de um lado das portas da igreja. Lisa teve uma ligeira hesitação em seus passos ao reconhecê-lo.
- Viu quem está aqui, Lisa? - murmurou sua mãe, quase sem mover os lábios. - Aposto que está esperando por você.
- Só porque ele está de pé do lado de fora não quer dizer necessariamente que o sr. Bogardus está esperando por mim. - Mas ela receava que sua mãe estivesse certa e não sabia o que fazer sobre a situação.
Era irónico quando ela pensava a respeito. Contra os desejos de sua mãe, deixara seu trabalho numa farmácia local há cinco meses para aceitar um emprego que pagava melhor como assistente da folha de pagamento em uma companhia de construção dos Estados Unidos que havia estabelecido uma filial em Anchorage para encarregar-se de seus contratos com o governo do Alasca. Alto, com um aspecto jovial, Steve Bogardus era sócio da companhia e gerente do escritório de Anchorage. Era o patrão dela.
Um mês após ter ido trabalhar para a companhia, ele a convidara para sair. Ela, naturalmente, recusara. Então, há dois meses, Bogardus descobrira que Lisa não tinha transporte próprio e andava vários quarteirões de sua casa até o escritório. Ofereceu-se para apanhá-la de manhã e deixá-la em casa à noite, insistindo em que isso não o afastava de seu caminho e que não era uma boa ideia para uma moça jovem e solteira caminhar sozinha pelas ruas escuras, sem mencionar o frio do inverno. Na ocasião parecera tolice recusar uma carona para ir e voltar do serviço, especialmente com o inverno iminente. Ela aceitara a oferta.
Sua mãe, naturalmente, o conhecera na primeira vez em que Bogardus a apanhara. No momento em que soube que ele tinha 29 anos, que era formado em engenharia, solteiro e sócio da firma, todas suas objeções ao novo emprego da filha esvaneceram-se. Então, Lisa cometeu o erro de mencionar que ele a convidara para sair e que recusara. Agora sua mãe apoquentava-a constantemente acerca dele e perguntava por que estava desperdiçando sua vida em alguém como Wylie Cole, que nunca seria coisa nenhuma, quando ela poderia ter um homem que tinha seu próprio negócio e um brilhante futuro. Não entendia por que Lisa ficava em casa todas as noites, quando poderia ter encontros com o sr. Bogardus. Não fazia diferença para ela o fato de Wylie estar estacionado no Alasca e Lisa ter a possibilidade de vê-lo, embora com pouca frequência. Aliás, isto até a fazia mais insistente. Várias vezes sua mãe insistira em convidar o sr. Bogardus para o jantar quando ele trazia Lisa para casa após o trabalho. Ele sempre aceitava.
Lisa estava numa situação incómoda. Para piorar as coisas, gostava da companhia de Steve Bogardus e isto lhe dava uma sensação de culpa. Ele era tão diferente de Wylie. Seu rosto era tão expressivo que ela sempre podia dizer quando ele estava cansado ou quando a pressão para completar um serviço crescia ou quando ele estava excitado acerca de alguma coisa. Era atencioso e delicado, sempre abrindo portas para ela ou elogiando seu trabalho, ou fazendo observações sobre sua roupa ou seu cabelo - às vezes até flertando com ela. Wylie tendia a ser mais desligado, raramente fazendo-lhe um cumprimento e pouco demonstrando suas afeições, a não ser que estivessem sozinhos. Lisa sabia que Wylie não tinha a experiência de seu empregador. Como poderia ter? Steve Bogardus era mais velho. Às vezes a diferença de idade assustava-a tanto quanto sua persistência. E seu patrão podia ser muito persuasivo quando queria alguma coisa.
- bom dia, sr. Bogardus - disse Lisa, forçando um sorriso enquanto subia os degraus.
- bom dia, Lisa. - Depois ele cumprimentou o resto da família com igual cordialidade. - Não vi vocês chegarem de carro. Não me diga que vieram para a igreja a pé esta manhã?
- Realmente não é longe. Nosso carro não quis dar partida. - com o alto salário que seu pai estava ganhando, finalmente tinham podido livrar-se do velho caminhão de fazenda no último verão e comprado um carro. - Acho que ele ainda não se acostumou a estes invernos do Alasca.
- Nem eu tampouco. - Ele estremeceu, fingindo uma reação à fria temperatura reinante. Embora meio contrafeita, Lisa sorriu. - Desejava ter sabido acerca de seu carro; poderia dar-lhes uma carona para a igreja.
- Deixaremos que nos leve para casa de volta, sr. Bogardus - disse a mãe. - Mas só se prometer ficar para o almoço.
- Como sempre, sra. Blomquist, a senhora me convenceu...
- Acho que devemos entrar - disse Lisa, evitando os olhos dele. - Creio que estamos bloqueando a entrada.
- Tem razão. E é provável que lá dentro esteja mais quente, também. - Ele abriu a porta e manteve-a aberta enquanto a família Blomquist entrava.
Lisa penetrou mais no vestíbulo iluminado e parou para tirar suas luvas e desabotoar o pesado casacão. Sorriu e cumprimentou os porteiros postados ao lado da porta interior do santuário, distribuindo os programas do dia. Quando Steve Bogardus se encaminhou para ficar com Lisa e o resto da família, ela notou a mãe e a avó de Wylie no extremo do vestíbulo.
- Desculpem-me. vou dar uma palavrinha com a sra. Cole por um minuto; encontro-os do lado de dentro. - Ela afastou-se de sua família e do patrão, na esperança de que a sra. Cole tivesse recebido notícias de Wylie. Mais de três meses já se haviam passado desde que ela o vira e quase o mesmo tempo desde que recebera carta dele, embora ela escrevesse regularmente. O aviso que lhe dera, de ser conhecido como mau correspondente, pouco servia de consolo.
- bom dia. - Ela saudou sorrindo as mulheres e, um pouco mais tarde, reconheceu a idosa mulher esquimó que as acompanhava e cumprimentou-a também: - Matty.
- Lisa. - Trudy Cole abraçou-a efusivamente. - Esperava vê-la na igreja esta manhã. Recebemos ontem uma carta de Wylie. Eu estava justamente mostrando para Mãe Cole. Ele diz que talvez não tivesse tempo de escrever-lhe e pediu-me para dar-lhe notícias dele.
- Notícias dele? - Ela pegou a folha de papel que a avó de Wylie estendeu-lhe. A carta era curta, abrangendo pouco mais que meia página.
- Sim. O Exército pediu voluntários com conhecimento do Alasca e de seu terreno para formar um grupo chamado Batedores do Alasca. Penso que na carta ele dá o nome completo.
- "Batedores de Combate e Informação do Alasca" - leu Lisa.
- É isso. Eles estão sendo submetidos a uma porção de treinamentos especializados. É por isso que ele não tinha certeza se teria tempo para escrever-lhe. .
- Ele mandou junto uma foto. - Matty entregou-lhe a fotografia que estivera contemplando. - Wylie é o que está no meio.
Lisa ficou olhando para os três homens na fotografia, vestidos iguais com parkas, cada um deles com um rifle em bandoleira. Por entre os capuzes forrado de pele e a parka e as barbas crescidas e desalinhadas, seus rostos quase não eram visíveis. De forma alguma se pareciam com soldados. De fato Lisa não estava certa se teria reconhecido Wylie imediatamente se Matty já não o tivesse apontado para ela.
- Ele deixou crescer a barba. - Aquilo não a entusiasmou muito.
- Sim. - O tom da voz da mãe dele parecia indicar que ela partilhava de sua opinião. - Ele diz que serve para manter o rosto quente.
- Suponho que sim - concedeu Lisa, mas pensou que fazia-o parecer-se com um selvagem e cabeludo homem das montanhas.
A ressonância dos acordes do órgão da igreja encheu o ar quando o organista feriu as primeiras notas do convite para o serviço.
- Acho que está na hora de procurarmos nossos lugares.
- Sim. - Lisa devolveu a carta e a fotografia. - Obrigada pelas notícias que me deram do Wylie.
- Não precisa me agradecer - assegurou-lhe Trudy Cole. - Numa noite destas, quando não tiver o que fazer, apareça lá em casa. Em geral estou sozinha. Entre o Exército e todos estes empreiteiros, Ace vive voando con peças e equipamentos por todo o Alasca. Dificilmente o vejo de algum tempo para cá.
- Farei isso - prometeu Lisa.
A família dela estava sentada num dos bancos mais atrás. Ela notou que a mãe tomara o cuidado de guardar um lugar para ela numa extremidade próxima a Steve Bogardus. Sentou-se ao lado dele e pegou no livro de hinos. Enquanto escutava o organista tocando, seus pensamentos se concentravam em Wylie. Ele não se havia esquecido dela, mesmo que não tivesse tido tempo para escrever. Então começou o serviço e ela prestou atenção a ele.
Lá pela metade do sermão do ministro, ela ouviu um ruído surdo e distante, parecendo explosões abafadas. Outros também o ouviram, cabeças se viraram e ouvidos se aguçaram para identificar o estranho som. Um fraco murmúrio de perguntas correu pela congregação.
Excepcionalmente, o ministro não prolongou seu sermão e o serviço da manhã terminou na hora certa. Quando Lisa tomou seu lugar na longa fila que se formou para sair pelas portas da igreja, todo mundo estava formulando uma variação da mesma pergunta: "Você ouviu aquele barulho?"
- A princípio pensei que era uma trovoada.
- O que acha que era? - perguntou Lisa, virando-se para Steve Bogardus.
- O mais provável é que estejam fazendo manobras no Forte Richardson. Provavelmente o que ouvimos foi o eco de seus tiros. - Ele sorria para indicar sua falta de preocupação.
A explicação parecia mais plausível do que uma trovoada em dezembro. Após apertar a mão do ministro, Steve Bogardus orientou a família para fora da igreja.
- Meu carro está estacionado um pouco adiante na rua.
Antes de alcançarem o sopé da escadaria, Lisa ouviu o gemido de uma sirene e depois viu que eram muitas. Parou, e assim fez todo o mundo ao seu redor. Então alguém veio correndo e gritando:
- Está dando no rádio: os japoneses estão bombardeando o Havaí.
- Não!... - murmurou ela.
- Vamos! - disse Steve, pegando no braço dela. - Em meu carro há um rádio.
Lisa saiu correndo. Todas as coisas que o pai de Wylie dissera passavam-lhe pela cabeça. Ela tentava dizer a si mesma que não era verdade, que tudo era um alarme falso. Na verdade não haveria guerra nenhuma.
Mas o locutor do rádio confirmou a história. Bombardeiros japoneses haviam atacado Hickam Field e a base naval de Pearl Harbor, no Havaí, e afirmou que um número superior a doze navios de guerra estavam em chamas no porto e que se previa perdas consideráveis. Todos os soldados de folga no Alasca tiveram que apresentar-se imediatamente às suas unidades, todos os aviões civis foram impedidos de levantar voo e as ruas deveriam ficar limpas de todo o tráfego. Todo mundo tinha de voltar para casa e aguardar instruções posteriores.
Quando o locutor começou a descrever processos de evacuação no caso de um ataque inimigo, Lisa murmurou:
- Meu Deus! Eles realmente pensam que os japoneses podem invadir o Alasca!
- Por que tivemos que vir para cá? Eu sabia que era um erro! Sua mãe estava em pânico. - Jan, o que vamos fazer?
- Vamos fazer o que o homem disse: vamos para casa e esperamos.
- Lisa, é melhor que eu vá para o escritório - disse Steve Bogardus, pegando a mão dela. - Talvez o Exército precise de buldôzeres ou de outros equipamentos. Você está bem?
- Sim. - No momento ela estava paralisada de choque. Abandonaram o carro e foram a pé, Steve para seu escritório e os Blomquist para sua casa. O grito das sirenes juntava-se à atmosfera de confusão e pânico enquanto caminhões de transporte de tropas corriam pela cidade apanhando soldados. Caminhões militares e veículos armados de toda espécie roncavam pelas ruas, bombardeiros e aviões de caça trovejavam pelo ar por sobre a cidade, partindo em patrulha.
O dia inteiro Lisa ficou ao lado do rádio de ondas curtas, como fez todo mundo. Ao lado da porta estavam as mochilas cheias com o suprimento de comida recomendado para duas semanas e equipamento de sobrevivência para uma fuga para as montanhas. Encostados na parede ao lado estavam os rifles de caça de seu pai e irmãos para o caso em que tivessem de oferecer resistência civil. Pesadas cortinas e cobertores já estavam em posição para observar as estritas ordens de blecaute.
Quando as estações de rádio do Alasca saíram do ar por ordem do general Buckner, para facilitar as comunicações militares, os Blomquist tentaram sintonizar seu rádio para uma estação canadense. Em vez disso, pegaram a rádio de Tóquio. Quando seu locutor anunciou que Dutch Harbour, nas Aleutas, e Kodiak tinham sido bombardeados e reduzidos a ruínas, Lisa começou a chorar. Supunha-se que Wylie estava estacionado no Kodiak. Então a rádio de Tóquio anunciou que Fairbanks tinha sido atacada pelo ar e que Sitka e Anchorage estavam em mãos japonesas. Lisa sabia que estava em Anchorage e que até agora não havia japoneses ali, o que permitiu-lhe duvidar da exatidão da notícia anterior sobre a destruição do Kodiak.
Naquela aflita primeira semana depois de Pearl Harbor, a aviação do Exército no Alasca - que consistia de seis bombardeiros obsoletos e doze velhos aviões de caça - estava no ar patrulhando o dia inteiro de dezoito horas. Na terça-feira, três caças derrubaram um balão meteorológico americano. Aviões da Marinha partidos de Sitka bombardearam um "submarino" que avistaram - e afundaram uma baleia. Depois disso, o Alasca pareceu recuperar seu equilíbrio e seu senso de humor.
A ameaça japonesa era real. Bastava olhar para as Filipinas, onde os japoneses tinham desembarcado depois de Pearl Harbor e onde as tropas de McArthur estavam em retirada, para saber disso. O Alasca estava localizado numa posição estratégica que os japoneses não podiam ignorar por muito tempo. Eles tinham que estar preparados para uma invasão. Todos os dependentes de militares foram evacuados do território, o qual foi declarado área militar.
A febre de projetos de construção, que começara no outono, atingiu a escala plena no inverno, à medida que a ameaça de invasão emprestava uma nova urgência às instalações defensivas. A carga de trabalho afetou todo mundo, desde empreiteiros como o Steve Bogardus e trabalhadores na construção como Jan Blomquist, até "pilotos do mato" como Ace Cole, que estava voando com homens e suprimentos para as paragens mais remotas. A despeito dos persistentes rumores de que o Alasca seria abandonado pelo Departamento de Guerra, e que não receberia os soldados adicionais, aviões e belonaves necessários para melhorar suas magras defesas, como acontecera nas Filipinas, todo o trabalho foi acelerado. Lisa deixou o departamento de folha de pagamentos e foi trabalhar preenchendo e arquivando numerosos formulários, dedicando longas horas num esforço para manter-se em dia com toda a burocracia criada pelos contratos adicionais e novas datas para terminá-los.
Era bem tarde no primeiro sábado de março quando Steve Bogardus levou Lisa para casa depois de ter trabalhado todo o dia no escritório. Lisa estava por demais cansada para importar-se quando sua mãe convidou-o para o jantar naquela noite, ou quando ela recusou sua ajuda na cozinha e empurrou-a para a sala de estar com seu patrão. Ela ligou o rádio para apanhar o último boletim da guerra, depois mergulhou na poltrona, desejando ardentemente poder livrar-se dos sapatos.
- Esta noite deveríamos estar de fato celebrando. - Steve Bogardus estava derreado contra as almofadas das costas do divã, suas feições joviais com seu complemento de sardas parecendo abatidas e cansadas.
- Aquele contrato que o governo entregou à nossa companhia para trabalhos na rodovia militar do Alasca para o Canadá vai representar uma porção de dólares.
Uma rodovia correndo pelo território canadense e ligando os Estados Unidos ao Alasca vinha sendo falada há tanto tempo que Lisa acreditava que ela não seria realmente construída durante sua vida. Mas a guerra com o Japão, e o conhecimento de que seu superior poderio naval poderia fechar as rotas marítimas para o Alasca haviam alterado tudo. A construção da estrada militar de 2.400 quilómetros fora autorizada e recebera a mais alta prioridade. O gigantesco empreendimento seria um esforço conjunto de empreiteiros e trabalhadores civis com o Corpo de Engenharia do Exército e seus regimentos.
- Estou segura que você está certo - disse Lisa com um suspiro.
- Mas fico pensando na quantidade de papelada que exigirá...
- Não se preocupe. Vamos contratar mais ajuda para o escritório.
- Esta é a melhor notícia que eu já ouvi há muito, sr. Bogardus.
- Quando é que vai começar a tratar-me por Steve?
Ela sentiu o braço dele passando pelas costas do divã e quão perto de seu ombro estava a mão dele.
- Não fica bem eu tratar meu patrão pelo primeiro nome.
- Eu pensava que também éramos amigos.
Ela sentiu os dedos dele nas pontas de seu cabelo e rapidamente levantou-se para evitá-los.
- Eu nunca disse que não éramos, sr. Bogardus. - Numa tentativa de esconder sua agitação, ela caminhou para o rádio.
- Você sabe que eu deveria estar convidando você para jantar comigo; está na hora de eu começar a pagar toda sua generosa hospitalidade. - Ele também levantou-se do divã e caminhou para o rádio.
- Minha mãe gostaria disso.
- Lisa, você sabe que eu quis dizer você, não sua família.
- Sim. - Ela virou-se e ficou olhando para a pequena foto que enfiara ao lado da fotografia emoldurada de Wylie. O retrato maior mostrava Wylie em seu uniforme militar e a menor era uma mais recente, tirada depois que ele entrara para os Batedores do Alasca.
- Este é seu namorado soldado? - perguntou ele, removendo o pequeno retrato do canto da moldura para examiná-lo mais de perto.
- Sim; este é Wylie.
- O nome dele é Wylie?
- Sim. Wylie Cole. Ele está nos Batedores do Alasca. - Ela nunca dissera nada a Steve, exceto que namorava alguém que estava servindo.
- Um dos desesperados de Castner - murmurou ele.
- Não entendi bem - questionou Lisa.
- Este é o apelido que deram ao pelotão de comandos que o coronel Castner escolheu a dedo. Diz-se que eles são um valente punhado de homens de todas as partes do Alasca: mineiros, caçadores de peles, caçadores nativos, todos atiradores de escol, capazes de sobreviver sozinhos no mato, vivendo do que a terra oferece. E que são muito perigosos, pelo que ouvi dizer. Alguns alegam que eles formam um grupo de inadaptados, aos quais não agradou a disciplina do Exército. - Ele olhou-a pensativamente. - Você não sabia disso, sabia?
- Wylie não é assim. - Ela pegou a foto e enfiou-a de novo na moldura, zangada pela tentativa dele de fazer Wylie parecer perigoso.
- Provavelmente é propaganda do Exército para criar a imagem de uma unidade de comandos dura. - O comentário parecia uma tentativa de satisfazê-la mais do que qualquer outra coisa. - Ele realmente espera que você fique em casa todas as noites e nunca saia e se divirta?
- Naturalmente que não.
- Então porque recusa cada vez que a convido para sair?
- Porque...
- Por que o quê?
- Steve, por favor!
- Pelo menos você disse o meu nome. Chocada pelo deslize, ela titubeou:
- Saiu de minha boca; eu não estava pensando...
- O que você quer dizer é que disse o que estava pensando. É encoraj ador saber que pensa de mim como Steve e não como aquele frio "sr. Bogardus"
Era verdade; ela pensava mesmo nele como Steve, de uns tempos para cá.
- Não quer dizer nada - insistiu ela.
- Quer dizer que podemos esquecer deste tolo sr. Bogardus? Ela ouviu a pisada forte de pés calçados com botas na varanda da frente e virou-se cheia de gratidão rumo ao ruído.
- Deve ser papai.
Mas quando a porta da frente se abriu, quem entrou foi um homem de aspecto rústico com uma enorme barba negra. Atónita, ela olhou para o estranho. Um brilho branco apareceu no meio da barba escura quando o homem sorriu.
- Mamãe me disse que devia telefonar, mas achei melhor surpreendê-la. Foi meio difícil, mas consegui arranjar um passe de fim de semana com o sargento.
- Wylie! - Ela reconheceu a voz dele, espantada ao descobrir que nem o instantâneo a havia preparado para a chocante mudança em sua aparência.
- Sou eu, debaixo de todos esses pêlos - disse ele, cofiando a barba. Desvencilhou-se da parka e pendurou-a no cabide de pé.
Aquele ato pareceu quebrar o encanto que a tinha mantido imóvel. Ela cruzou rapidamente a sala para o lado dele, mas quando ele começou a enlaçá-la pela cintura, Lisa recuou. De perto ele parecia mais magro e mais rijo do que ela se lembrava. Olhou por cima do ombro dele para Steve, tentando atribuir sua relutância à presença dele.
- Wylie, gostaria que conhecesse meu patrão, Steve Bogardus. Ela conduziu-o até Steve para apresentá-lo.
- Já ouvi falar muito de você, soldado Cole. - com um franco sorriso, Steve apertou a mão de Wylie, mas Lisa teve a consciência do modo como Wylie o estudou friamente.
- Receio não poder dizer o mesmo, Steve. Lisa nunca me mencionou você.
Lisa enrubesceu, sentindo-se culpada; embora ela não tivesse efetivamente saído num encontro com Steve, gostava da companhia dele.
- Mamãe convidou o sr. Bogardus para jantar conosco esta noite Wylie - disse ela.
- Eu não estava disposto a abrir mão da oportunidade de deliciar-me com uma refeição feita em casa - ajuntou Steve.
Lisa podia tê-lo abraçado pela forma como ele lhe deu apoio, fazendo tudo parecer muito inocente - como de fato era, reconheceu ela.
- Você não comeu, não é, Wylie? Mamãe sempre cozinha bastante para alimentar um batalhão. Sei que haverá bastante comida se quiser juntar-se a nós.
- Da mesma forma que Steve, não estou disposto a abrir mão de uma comida feita em casa.
Com sete pessoas para jantar, a mesa dos Blomquist estava cheia. Wylie achou que a escolha dos lugares fora satisfatória, já que colocara Lisa à sua esquerda e o patrão dela, Steve Bogardus, em frente a ele, do outro lado da mesa, permitindo-lhe observar a ambos.
Sempre soubera que Lisa poderia começar a namorar alguém. com tantos homens concentrados em Anchorage e tão poucas mulheres, era uma conclusão lógica que Lisa teria ampla oportunidade de arranjar um namorado. Quase conseguira convencer-se de que não seria justo esperar que ela ficasse plantada em casa sozinha, esperando por ele, que seria justo se tivesse encontros com alguns rapazes. Afinal de contas, havia uma guerra, e quem sabia o que poderia acontecer com ele? Quando voltasse, essa seria a oportunidade de decidir as coisas entre eles.
Cada vez, porém, que via Bogardus olhar para Lisa - embora acreditasse que eles ainda não estavam se encontrando - tinha vontade de pular a mesa e quebrar-lhe a cara. E a mãe de Lisa não ajudava em nada a situação, deixando bem clara sua preferência por Bogardus pela maneira como manipulava a conversa a fim de mostrá-lo sob uma luz favorável. Wylie sempre soubera que ela realmente não gostava dele. Agora, com a pressão que ela exigia sobre Lisa e a tentação natural de alguém como Bogardus, ele sabia que era apenas uma questão de tempo até Lisa entregar os pontos.
E não havia nada que ele pudesse fazer! Ele dera virtualmente licença a ela para ver outros homens enquanto ele estava fora. Como poderia ele objetar agora?
Bolas, ele não era cego! Podia ver o que Bogardus tinha a seu favor: ele estava aqui, no próprio local, em contato com Lisa a cada dia. E o homem estava provavelmente enriquecido às custas desses contratos com o governo. Era óbvio que tinha toda a família na palma da mão pelo modo como todos se riam das suas piadas. Wylie supunha que Bogardus era um bonitão se a pessoa gostava do tipo Van Johnson. Embora Lisa tentasse escondê-lo, ele podia dizer, pelo modo como ela olhava para Bogardus e depois afastava o olhar com jeito de quem é culpada, que se sentia atraída por ele. E a frustração de Wylie aumentava porque não tinha o menor direito de condená-la por isso.
O pai de Lisa e os irmãos praticamente afogaram Wylie em perguntas acerca do que estava acontecendo; para a maioria delas, entretanto, ele tinha que alegar ignorância mesmo quando sabia as respostas. Anexado, como era seu grupo, ao Serviço de Informações do Exército, havia uma porção de coisas que ele sabia - algumas por rumores, outras de fontes seguras e algumas pessoalmente.
Não podia falar sobre a descoberta de navios japoneses nas águas das Aleutas ou que sua presença e atividade indicava que estavam procurando locais para desembarque. Nem podia mencionar que estrategistas em Washington queriam montar uma invasão do Japão partindo de Nome, da Sibéria e do Kamchatka, uma impossibilidade sem a cooperação da Rússia, que ainda tinha de declarar guerra ao Japão. Não podia discutir as bases secretas que haviam sido construídas em Dutch Harbor e Cold Bay nas ilhas de Unalasca e Umnak sob o disfarce de uma instalação para enlatamento de peixes - bases que o general Buckner mandara construir sem autorização, uma vez que elas comandavam o canal que dava acesso de navios a Nome, à Sibéria, a toda a península superior do Alasca, e à metade das ilhas Aleutas.
No início daquela tarde ele havia despertado a curiosidade de sua avó com suas perguntas acerca da história da família, especialmente acerca de sua antepassada Tasha, que vivera não só no Kodiak, mas em Unalasca, Adak e Attu. Ela ficara desconfiada quando ele fez perguntas por demais específicas sobre as próprias ilhas, num esforço para obter qualquer espécie de informações, mesmo esquemáticas, que ela pudesse dar-lhe acerca do terreno, dos portos naturais, das cavernas, dos pontos de referência - qualquer coisa que pudesse ser-lhe útil.
Tudo parecia indicar que em breve haveria uma ação em alguma parte da cadeia das Aleutas. Ele conversara com alguns aleútes em seu pelotão, que haviam caçado com armadilhas em algumas das ilhas, e aprendera bastante com eles. Mas em geral muito pouco era conhecido acerca das ilhas. Nenhum mapeamento detalhado jamais fora feito; os pilotos usavam os mapas de estradas de rodagem da Rand McNally e a Marinha tinha cartas baseadas num levantamento feito pelos russos em 1864.
Havia ocasiões em que Wylie duvidava que o Departamento de Guerra soubesse exatamente quanto o Alasca era grande. Ele tinha 56 mil milhas de litoral, mais do que todos os Estados Unidos. Na maioria dos mapas, as ilhas Aleutas nunca eram mostradas em escala. Como resultado, elas acabavam parecendo os baixios da Flórida. Havia no entanto uma grande diferença. Elas se estendiam por dois mil quilómetros desde a ponta da península do Alasca. De Anchorage à ilha mais ocidental de Attu eram quase 3.400 quilómetros.
Isto era uma enormidade de um território para patrulhar, especialmente quando o Exército só tinha cinco esquadrões de combate em sua força aérea e cinco mil soldados de combate com vinte mil pessoas de suPorte, e a Marinha apenas três cúteres, talvez uma dúzia de destróieres - mais do que a metade da Primeira Guerra Mundial - cinco cruzadores, seis ultrapassados submarinos, alguns hidroaviões PBY e uma frota de botes Yippee, a maior parte pequenos barcos pesqueiros comprados pela Marinha para patrulhar as águas. E ninguém sabia onde os japoneses poderiam atacar.
Wylie nunca pretendera ser um brilhante estrategista militar, mas mesmo ele podia olhar num mapa e ver que o Alasca estava muito mais perto do Japão do que o Havaí. Se os japoneses tomassem o Havaí, ainda teriam que cruzar 2.500 milhas de oceano para atingir alvos na costa oeste da América. Mas se tomassem o Alasca, o Estaleiro Naval de Bremerton e a fábrica de bombardeios da Boeing, em Seattle, estariam a apenas três horas de voo de distância. Todo o Canadá e os Estados Unidos estariam expostos - e a Rússia estaria à queima-roupa. Estando o Japão tão perto, uma linha de abastecimento poderia ser facilmente estabelecida.
Mas Wylie não podia falar sobre nada disso. Tinha que agir como se fosse um tolo e parecer um estúpido recruta, enquanto Bogardus discutia cheio de conhecimento como a rodovia dos Estados Unidos para o Alasca iria ser construída e como os trabalhadores, civis e militares, seriam distribuídos ao longo de todo o percurso para começar a construção em vários pontos ao mesmo tempo.
O jantar daquela noite foi a refeição mais comprida que jamais tivera de suportar. Mas finalmente acabou. Embora a mãe de Lisa instasse para ficar mais um pouco, Bogardus insistiu que tinha algumas plantas para estudar. Wylie ficou observando em silêncio quando Lisa levou-o à porta.
- Pego você na segunda-feira de manhã - ele ouviu Bogardus dizer.
- Estarei pronta.
Wylie compreendeu que Lisa ia para o trabalho com ele todas as manhãs e provavelmente também voltava para casa à noite. E não estaria por ali para poder fazer qualquer coisa. A primavera estava chegando; as tempestades de inverno que se abatiam sobre os mares setentrionais iriam acalmar-se. Tinha um palpite de que se os japoneses fossem fazer um movimento contra o Alasca, isto aconteceria em breve. Se ou quando acontecesse, ele seria enviado para a linha de frente. Pertencia a uma unidade de comandos, treinada para realizar incursões e infiltrar-se nas posições inimigas. Não sabia quando teria outra ocasião de rever Lisa.
Depois que Bogardus saiu, o pai de Lisa discretamente enxotou os rapazes da sala para dar a Wylie uma ocasião de ficar sozinho com ela. Lisa caminhou para ele, esfregando as mãos nervosamente.
- Wylie, gostaria de explicar acerca do sr. Bogardus... - começou ela.
- Você não me deve nenhuma explicação, Lisa.
- Mas...
- Esqueçamos disso, está bem? - Ele estava zangado e sabia que o demonstrava.
- Está bem. - Mas ela parecia confusa e ferida pela atitude dele.
Era manhã cedo, apenas cinco e meia. Do pequeno acampamento na encosta da montanha Ballyhoo, Wylie observava a baía lá embaixo, cercada de montanhas. Houvera um intervalo na tempestade que havia assolado a cadeia de ilhas por quase duas semanas, dificultando os magros esforços da aviação e das patrulhas navais para localizarem a força-tarefa japonesa que, de acordo com o serviço de informações do CINCPAC (Comando-em-Chefe do Pacífico) dirigia-se para as Aleutas. Pesadas nuvens cobriam o céu, mas a chuva acompanhada de vento cessara e o forte vento - o temido williwaw - não mais bramia pelos desfiladeiros vulcânicos em torno de Dutch Harbor, achatando barracas e qualquer coisa em seu caminho. Para variar, nada obscurecia a visão de Wylie do porto, sua estação naval e o Forte Mears.
O sol nascente fez uma fraca tentativa para romper as nuvens enquanto Wylie perscrutava a extensão de água, alongada como um dedo, que era a baía de Unalasca, a mesma baía onde o capitão Cook ancorara em sua busca da passagem para o Noroeste, a mesma baía onde sua ancestral Tasha vivera na ocasião do primeiro levante contra os russos. Agora ali estava ele, parte de um pequeno destacamento de patrulheiros mandados para Unalasca a fim de reunirem informações, enquanto outros se encontravam no Kodiak, nas Pribilofs, na baía Fria e em Umnak.
Ouviu o ruído de uma lona sendo levantada atrás dele. Wylie virou-se quando Big Jim Dawson saía de sua barraca e parava para bocejar e espreguiçar-se, parecendo um enorme urso emergindo de sua hibernação. Antes da guerra ele fora um engenheiro de minas que virara garimpeiro e procedia das imediações de Circle. Era um homem robusto de altura média, com uma barba da cor de neve suja e o cabelo negro como carvão. Juntara-se aos Batedores do Alasca na mesma ocasião em que Wylie o fizera. Juntos, tinham suportado o árduo treinamento, feito as longas e exaustivas marchas através dos matos e na neve, desenhando incessantemente esboços e mapas e praticando tiro diariamente com toda a espécie de arma que um homem podia carregar, quer em seu ombro quer às costas. Tinham passado juntos pelo inferno e saíram deles duros e rijos
- e bons amigos, sua amizade cimentada por tudo o que haviam sofrido lado a lado.
- Estou com fome - disse Big Jim esfregando o estômago enquanto andava para postar-se ao lado de Wylie. - Certamente poderia comer uma grande pilha daquelas panquecas de garimpeiro que você faz. Nesta manhã é seu turno de cozinhar, lembra-se?
- Lembro-me. - Na maioria, todos os patrulheiros desprezavam as rações por sua falta de sabor. Em vez disso carregavam seu fogão portátil, carne gorda para frituras e o precioso fermento de garimpeiro. Suplementavam sua dieta com a caça e o peixe que pudessem matar.
- Alguma coisa acontecendo por lá? - Big Jim olhou para os seis navios ancorados no porto lá embaixo.
- Tudo quieto. Eles provavelmente ainda estão no berço depois daquele exercício de ataque aéreo que fizeram pouco antes do amanhecer. - Logo Wylie parou e franziu a testa, passando a escutar o alarme tocado por cornetas que ele ouvira vindo da baía. - Está ouvindo isso? Parece que um daqueles navios está tocando um alarme geral de "todos a postos".
Antes que Big Jim pudesse retrucar, o gemido das sirenes de ataque aéreo ecoou por toda a baía, misturando-se com os graves apitos dos navios ancorados quando eles chamavam suas tripulações a posições de combate.
- Por algum motivo, não me parece que isto seja um de seus malditos exercícios - resmungou Big Jim.
Wylie levantou o par de binóculos que trazia pendurado no pescoço enquanto Big Jim mergulhava de novo em sua barraca para pegar o seu próprio par. Lá embaixo todos os navios estavam se preparando para fugir do porto. Na estação naval e em Forte Mears, homens corriam para guarnecer os canhões antiaéreos e as posições de metralhadoras. Dutch Harbor não tinha pista de pouso devido a seu terreno excessivamente montanhoso. Os únicos aviões estacionados ali eram uns poucos PBY"s.
Quando ele correu o binóculo varrendo o céu, Wylie localizou os Zeros japoneses saindo de dentro das nuvens, vindos do sul em direção a eles. Big Jim juntou-se a ele, mas Wylie não tirou seu binóculo dos aviões inimigos, seguindo-os quando eles se separavam para o ataque.
- Posso ver quinze Zeros.
- Foi isso que contei também - confirmou Big Jim.
As primeiras explosões de fogo antiaéreo explodiram no céu por sobre o porto, mas as negras nuvenzinhas de fumaça foram rapidamente seguidas por um número maior quando as demais baterias de terra se juntaram para formar uma barreira de fogo antiaéreo por sobre o porto. Na baía, o hidroavião do correio, muito vagaroso, tentava desesperadamente levantar voo, mas foi metralhado por dois Zeros antes que estivesse no ar. Pegando fogo, ele caiu em direção à praia.
- Eles estão atrás dos PBY"s.
Os alvos iniciais deles pareciam ser os hidroaviões amarrados nas enseadas escondidas.
- Em Pearl Harbor também nada subiu ao ar contra eles.
- Bem, um parece que vai fazê-lo. - Big Jim apontou para um Catalina que se elevava aos ares para enfrentar o ataque japonês.
Localizando-o, um avião inimigo fez uma incursão por cima do PBY.
Quando o Zero voou por sobre ele, os canhões laterais do Catalina abriram fogo contra sua barriga exposta. No mesmo instante, o Zero foi atingido por fogo antiaéreo. Ele girou sobre si mesmo, despejando fumaça negra e chamas amarelas, e depois entrou em parafuso e caiu na água da baía.
Os ouvidos de Wylie vibravam com o constante estoure aos pesados canhões, o matraquear das metralhadoras, o zumbido dos traçadores e a poderosa explosão das bombas - tudo combinado para compor uma trovoada ensurdecedora que sacudia o chão sob seus pés. Todo aquele infindável treinamento o havia ensinado a observar o que estava acontecendo, os alvos do inimigo, sua estratégia, seus objetivos, mas uma parte dele não podia acreditar no que estava vendo. Esses aviões japoneses eram reais e também o eram suas bombas.
Quatro dos bombardeiros inimigos afastaram-se do porto e se dirigiram para o forte do Exército. E, em cima do alvo, deixaram cair suas bombas, reduzindo seus tanques de combustíveis a chamas e fazendo explodir um quartel. Quando a fumaça clareou, os feridos começaram a engatinhar para fora dos destroços escurecidos. Wylie afastou os binóculos daquela visão, seus olhos vermelhos, sua raiva impotente.
- Cuidado! - No mesmo momento em que Big Jim gritou seu aviso, deu um empurrão no ombro de Wylie, jogando-o no chão.
Instintivamente, Wylie rolou sobre si mesmo no momento em que caiu. Balas traçadoras de um Zero cortaram o chão onde ele estava de pé há um segundo. Sentiu o suor correndo por sua testa, a secura na garganta e o aperto no estômago. Mas o fuzil que sempre carregava já estava em suas mãos e seus nervos retesaram-se o bastante para ele disparar alguns tiros no Zero que os atacara, que se afastava para procurar um outro alvo mais importante.
- Filhos da puta traiçoeiros! - exclamou Jim, mas não fez nenhuma tentativa para ficar de pé e oferecer-lhes um alvo vertical. Wylie também não o fez, preferindo em vez disso ficar observando do chão a rápida e furiosa ação que se desenvolvia.
O ataque inimigo durou bem uns vinte minutos. com seu suprimento de bombas exaurindo, eles se afastaram e voaram de volta para o sul. De Ballyhoo, Dutch Harbor parecia praticamente destruída - uma massa esfumaçada de ruínas bombardeadas e detritos. Mas os danos não tinham sido tão graves como parecia. Os navios no porto estavam praticamente ilesos; a estação de rádio e seu equipamento continuavam intactos e as perdas humanas representaram um por cento da guarnição. Quase todas as 52 mortes ocorreram quando as bombas explodiram o quartel do Exército em Forte Mears.
Na tarde seguinte, os aviões japoneses atacaram Dutch Harbor de novo, acertando dois impactos num velho navio encalhado, o Northwestern, e explodindo quatro grandes tanques de combustível. As patrulhas americanas ainda não haviam localizado a força-tarefa japonesa nas linhas Aleutas.
Muito lá para o sul, na ilha Midway, uma grande batalha naval estava em progresso. Mas ela não parecia muito importante para os homens em Dutch Harbor. A guerra nas Aleutas começara; menos de uma semana mais tarde, soube-se que os japoneses haviam capturado a ilha de Attu.
Enquanto o bimotor Lockeheed taxiava em direção ao hangar que ostentava o desbotado sinal SERVIÇOS AÉREOS ACE, Ace Cole massageava os músculos doloridos da nuca. Era o fim de um longo dia para ele. Voar já não era mais o mesmo prazer que fora, ou talvez fosse porque estava se tornando mais fácil; com todos os instrumentos e as faixas de rádio já não era tão excitante.
Ele levou o avião até parar em frente ao hangar e automaticamente começou a desativar os motores e a desligar o sistema elétrico. Quando olhou para fora da janela da cabina viu o grandalhão Billy Ray com seus cabelos grisalhos trotando em direção ao avião, carregando na mão um jogo de calços para as rodas. Por um minuto Ace ficou olhando espantado, incapaz de lembrar-se da última vez em que vira Billy Ray mover-se tão rápido.
- Algo deve estar errado - murmurou para si mesmo.
Quase no mesmo momento, um punhado de soldados saiu da sombra do hangar. Sentiu como se o coração estivesse dando um enjoativo mergulho de cabeça em direção ao estômago. Wylie! Nada mais tinham ouvido a respeito dele desde o ataque japonês a Dutch Harbor, sua subsequente captura e a ocupação das ilhas de Kiska e Attu.
- Pelo amor de Deus, não! - Ele soltou o cinto de segurança e pulou para fora do avião mais rápido do que jamais fizera em toda sua vida.
No momento em que atingiram o asfalto, suas pernas pareceram virar borracha. Ele tremia por dentro, mais assustado que jamais estivera. Deu uma parada, tentando controlar seus nervos em geral calmos, quando os soldados começaram a andar em direção ao aparelho.
Billy aproximou-se dele e puxou um trapo manchado de óleo de seu sujo macacão, depois enxugou as mãos com ele. A despeito de sua idade, ele ainda era o melhor mecânico que Ace conhecera. Não havia motor que não pudesse consertar; hoje em dia apenas levava um pouco mais de tempo.
- Há quanto tempo eles estão aqui? - Ace indicou com a cabeça o tenente do Exército e sua escolta de soldados.
- Eles apareceram pouco depois que você chamou a torre pedindo instruções para aterrisar. - Ele lançou um olhar inquieto para Ace.
- Disseram o que queriam? - perguntou Ace após respirar profundamente.
- Não... mas há algo de estranho no ar - replicou Billy Ray. Esta observação não era da espécie que Billy Ray faria se pensasse que Ace estava para receber alguma má notícia acerca de Wylie. Ace franziu a testa, enfiou as mãos nos bolsos do blusão de couro e jogou a cabeça um pouco para trás a fim de encarar os soldados.
- Em que posso servi-lo, tenente? - perguntou.
O oficial avançou mais uns dois passos e depois parou.
- É o sr. Ace Cole?
- Sim, senhor.
- Este avião é seu? - É.
- É meu dever informá-lo que o Exército está exercendo seus poderes de emergência e requisitando seu avião para uso militar.
- O quê!? - A reação foi explosiva; de todas as coisas que ele se preparara para ouvir aquela não era uma delas.
- O Exército está se apossando de seu avião.
- Para fazer o que com ele? - inquiriu Ace.
- Isto é assunto do Exército, senhor.
- Esse avião é meu. Eu vivo dele e, portanto, isto é assunto meu.
- Quando cessar a emergência, o avião lhe será devolvido, sr. Cole.
- Que emergência? E em que condições ele estará? Já observei alguns de seus pilotos do Exército. Estou lhe dizendo uma coisa: ninguém voa neste avião a não ser eu. - E Ace espetou um dedo no peito para ser mais enfático.
- O Exército o indenizará por quaisquer danos em sua propriedade - assegurou-lhe o tenente.
- Oh, não! Vocês não farão isso! - disse Ace, sacudindo a cabeça. Se precisam de aviões, então, com toda certeza, necessitam de pilotos. Provavelmente tenho mais experiência voando neste país do que todo um esquadrão de seus pilotos do Exército juntos. Se vocês precisam deste avião podem levá-lo, mas eu o pilotarei. - Ele virou-se rápido para Billy Ray e disse: Encha o tanque dele de gasolina e que esteja pronto para voar enquanto eu e o tenente vamos conversar com alguém encarregado do assunto.
- Ace - Billy Ray fez um sinal para ele chegar mais perto e, virando as costas para os soldados, disse em voz baixa: - Se você não quiser que estes motores funcionem quando voltar, eles não funcionarão...
Ace olhou para o rosto de traços marcados e enrugados do esquimó e escondeu cuidadosamente um sorriso.
- Não - disse, pousando uma mão no ombro dele. - Quero esses motores roncando como um urso quando eu voltar.
- Como quiser - disse Billy Ray, sorrindo.
Quando Ace apresentou seus serviços como voluntário ao comandante do tenente, prazerosamente eles foram aceitos. Em breve ele descobriu que seu avião não fora o único que o Exército requisitara aquela noite. Eles tinham-se apossado na prática de todos os aviões que haviam cruzado a fronteira do território, incluindo 46 aviões comerciais pertencentes à United, Northwest e várias outras companhias aéreas. Ò Exército estava de posse de uma frota de cerca de 55 aviões - tudo desde Lodestars, trimotores Ford e anfíbios, até o C-53 do Exército, sem mencionar uma pequena coleção de "aviões do mato".
Na reunião que houve naquela noite, ele conheceu as intenções do Exército. O objetivo delas espantou-o. O que propunham parecia não somente um pesadelo logístico, mas uma virtual impossibilidade. Mas o impossível sempre o intrigara. Ele nem saberia contar o número de vezes em que aterrissara onde haviam dito que um avião não podia pousar.
Dois aviões PBY em patrulha haviam apanhado uma grande forçatarefa japonesa em seus radares, navegando a todo o vapor para o noroeste no mar de Bering, entre as Pribilofs e a ilha de St. Lawrence. O serviço de informações do CINCPAC em Pearl Harbor interceptara uma mensagem japonesa em código que sugeria que os japoneses estavam planejando invadir a parte oeste continental do Alasca, provavelmente Nome. O Exército pretendia levar pelo ar os soldados, munições e suprimentos necessários para defender a costa oeste. A velocidade era essencial, uma vez que ninguém sabia quando os japoneses atacariam. Um transporte aéreo maciço dessa natureza nunca tinha sido tentado antes, mas isso não parecia desconcertar o Exército.
Naquela noite, Ace chamou Trudy de Merrill Field pelo telefone.
- Alo, garota. Achei que devia dizer-lhe que estou de volta.
- Já estava na hora! O que está acontecendo por aí? Matty acaba de telefonar dizendo que falou com Billy Ray. Ele disse que uns caras do Exército levaram você.
- Eles têm alguns voos que querem que faça para eles. Alguns suprimentos e equipamentos que desejam enviar para suas bases com urgência urgentíssima. - Era difícil parecer despreocupado quando por dentro ele era todo ansiedade para tomar parte no monumental esforço.
- Não estou certo de quanto tempo vai levar. Provavelmente alguns dias se passarão até que eu esteja de volta, dependendo do tempo. Não fique preocupada se não der notícias por algum tempo.
- Você não está chegando e voltando a voar imediatamente, está, Ace? - protestou ela. - Você nem dormiu. E quanto a jantar? Você não vem até em casa?
- Não. Arranjo qualquer coisa para comer aqui e dou um jeito de dormir umas duas horas enquanto eles carregam o avião.
Houve uma hesitante pausa no outro lado da linha, depois Trudy falou, parecendo resignada:
- Muito bem. Mas tenha cuidado, Ace.
- Terei. - Ele lançou um olhar em volta para ver se alguém estava escutando e depois acrescentou: - Eu te amo!
- Eu também te amo!
Na luz diurna subártica da madrugada, Ace supervisionava a arrumação da carga destinada a seu avião. Um sargento apareceu para checar o manifesto enquanto dois soldados levantavam um caixote e empurravam-no para cima da porta de carga.
- Esperem um momento. Tirem isso - ordenou o sargento.
- Deixem! - falou Ace.
- Senhor, já está com quatrocentos quilos acima da capacidade. O sargento começou a mostrar-lhe o total da tonelagem listada no manifesto.
- Sargento, já carreguei seiscentos quilos acima da capacidade antes, e mesmo assim levantei voo. Acredite em minha palavra. Sei quanto este aparelho pode carregar e ainda voar. - Ele sorriu quando o sargento hesitou. - A ideia é chegar lá tão depressa quanto possível, não é?
- É sim, senhor. Mas se o senhor não chegar é meu olho que será chupado!
- É meu corpo que estará entre os destroços. - Ele pegou a prancheta do sargento e assinou seu nome no manifesto, depois devolveu-a.
- E, acredite-me, sargento: estou mais preocupado com meu corpo do que com seu olho... Empurrem-na para dentro, rapazes - ordenou aos soldados.
Eles esperaram um pouco, mas tudo o que o sargento disse foi "Boa Sorte". E afastou-se.
Por todo o lugar ao longo das plataformas de estacionamento, aviões de todas as descrições estavam sendo carregados com suprimentos, munições, canhões antiaéreos e tropas de combate armadas com munição suficiente para três dias e alimento para dez. "Operação Bingo", chamava-a o Exército. Ace achava que o nome era apropriado. Era como retirar números de um saco, colocar grãos de milho num cartão e esperar pela combinação certa - e esperando que ela chegasse a tempo para vencer.
Tão logo a carga foi colocada no bimotor e amarrada, Ace e seu copiloto, Skeeter Olson, prenderam-se nos assentos da carlunga e esperaram por sua vez de decolar. Quando o avião sobrecarregado rolou pela pista de decolagem, Ace convenceu-o a sair do chão, deixou-o voar em linha reta a alguns metros da pista para aumentar a velocidade, e depois manobrou para uma subida vagarosa.
Quando chegaram numa altitude suficiente, Ace colocou o avião numa velocidade de cruzeiro e virou-o numa direção oeste por noroeste.
- Você sabe muito bem que esta coisa nunca deveria ter sido capaz de decolar - resmungou Skeeter.
Ace apenas sorriu e agarrou os comandos para nivelar o avião.
À distância, podia ver o avião de linha aérea que havia decolado na frente dele. A maior parte dos outros pilotos civis nos aviões nunca tinha voado nesta rota aérea de mil quilómetros de Anchorage para Nome. Não havia nenhum mapa preciso da região, não havia facilidades de emergência e não se dispunha de operações de procura e salvamento. O Corpo de Sinaleiros estava às pressas estabelecendo estações de rádio ao longo da rota, mas decorreriam alguns dias até que estivessem em operação. Até então cada um estaria por sua conta. Alguns iriam sair da rota e perder-se, ou teriam problemas de motor e seriam forçados a aterrissar em algum lago gelado. Ace esperava não estar entre esses.
Perto das montanhas Kuskokwim, Ace notou uma camada de nuvens negras estendendo-se à frente de sua rota.
- É melhor você dar uma olhada lá atrás e certificar-se de que aquela carga está bem amarrada - avisou ele a seu co-piloto. - Parece que vamos ter um bocado de turbulência.
- Entendido. - Skeeter desamarrou seu cinto e começou a levantar-se de seu assento. - O que estamos levando aí, posso saber?
- Não pergunte.
Dentro de alguns minutos, Skeeter estava de volta. Ace cortou um pouco os motores quando eles encontraram a primeira turbulência forte, depois lançou um olhar de soslaio ao rosto pálido de seu co-piloto.
- Tudo bem amarrado lá atrás?
- Sim. - O pomo-de-adão dele subiu e desceu quando engoliu em seco e virou-se para encarar Ace.
- Aqueles caixotes estão cheios de granadas carregadas.
- Você estava esperando que o Exército fosse jogar pedras nos bombardeiros japoneses? - perguntou brincando Ace.
Skeeter não disse nada enquanto olhava de novo para a frente pela janela da carlinga.
- Que merda! - murmurou. - Nós estamos voando numa porra de uma bomba.
Ace nada respondeu. Estavam entrando nas nuvens e ele no momento tinha suas mãos cheias para manter o aparelho firme. Sem poder subir acima das nuvens e sem a menor vontade de voar abaixo delas com montanhas por toda a parte, Ace optou por voar por dentro delas.
Por mais de uma hora o bimotor batalhou contra aquela frente, jogado de um lado para o outro por fortes ventos e correntes de flutuação por debaixo dele que faziam-no sacudir-se até que os dentes deles batiam. O avião gemia e tremia como uma velha sem casaco numa noite fria.
- Puxa! quando vamos sair desta merda? - Skeeter rilhava os dentes para evitar que eles batessem alto.
- Você quer saber se podemos subir acima ou passar para baixo disso?
- Para cima. - Skeeter não teve nem que pensar sobre sua resposta. - com aquela carga lá atrás não quero baixar até chegarmos a Nome.
- Vamos jogar cara ou coroa: cara nós descemos, coroa subimos.
- Porra, Ace. Seu pai era um maldito jogador, mas não vejo por que você tem de sair a ele. - Sua voz oscilava com as fortes vibrações do avião. Mas ele tirou a moeda que Ace sempre mantinha no cinzeiro e jogou-a com cuidado para o ar; não pôde pegá-la e a moeda caiu no chão.
- Como caiu vale - disse Ace, sem tirar os olhos do painel de instrumentos.
Ouviu Skeeter praguejar em voz baixa e depois anunciar:
- Deu coroa!
- Mentiroso! - Ace virou devagar o nariz do avião para baixo.
- Nós vamos até quatro mil para ver se encontramos uma brecha nas nuvens.
- Pelo amor de Deus, Ace! Você não podia ter visto aquela moeda.
A 4.400 pés, Ace descobriu uma abertura nas nuvens e voou por dentro dela, depois nivelou o avião a dois mil pés, onde a camada de nuvens era fina e espalhada. Embaixo dele havia uma extensão d'água pontilhada de gelos flutuantes.
- Você tem alguma ideia de onde estamos? - perguntou Skeeter.
- A não ser que o vento tenha nos arrastado mais para fora do curso do que eu pensei, aquilo lá embaixo deve ser o estreito de Norton. Você pode ver a linha da costa para o norte?
- Sim. Você sabia que estávamos voando sobre água o tempo todo, não sabia? - acusou Skeeter. - Por que não disse, em vez de deixar-me suar frio o tempo todo?
- Havia sempre a chance de que eu estivesse errado. - Ace guinou o avião para o norte e seguiu a linha da costa até ver a cidade onde nascera empoleirada à beira do mar.
O aeroporto ficava no lado nordeste da cidade, do outro lado do rio Snake. Um forte vento cruzado soprava quando ele fez sua aproximação final para o pouso. Virou a asa contra o vento para manter seu curso no centro da pista. No último minuto nivelou o avião; um instante mais tarde, as rodas tocaram no asfalto. Ele cortou a velocidade de um motor, mas deixou o motor a barlavento acelerado para firmar o avião contra o forte vento, enquanto terminava sua corrida de aterrissagem e diminuía a velocidade. Um outro avião estava descendo quando ele taxiava para fora da pista.
Dentro de uma hora seu avião estava descarregado e reabastecido e se lançaram de novo ao ar, dirigindo-se a Anchorage para pegar outra carga. Ace fez três viagens até Nome naquele dia. Ao todo, os 55 aviões fizeram um total de 179 viagens, transportaram cerca de 2.300 soldados equipados para combate, vinte canhões antiaéreos e toneladas de suprimentos e equipamento. Dentro de 24 horas as tropas estavam entrincheiradas em Nome e seus canhões em posição.
Ace voou durante mais três dias, transportando suprimentos e equipamento. A ponte aérea continuou, numa escala reduzida, por mais três semanas. A comissão de recepção estava pronta para dar as boas-vindas aos japoneses, mas eles nunca apareceram... E os aviões de patrulhamento não puderam encontrar a força-tarefa que se supunha estar no mar de Bering.
A despeito do anticlímax, Ace sabia que a experiência fora uma que jamais esqueceria. Ele fora parte de algo que nunca se tentara antes e tinha ajudado a fazê-la um sucesso. Talvez fosse velho demais para ser um soldado, mas fizera sua pequena parte pela guerra.
Ingá Blomquist fez uma pausa na porta da cozinha, com a cafeteira na mão, e ficou estudando o par ainda sentado na mesa de jantar. Ambos descansavam os cotovelos na mesa e inclinavam-se um pouco para a frente, as cabeças voltadas de forma que podiam observar um ao outro enquanto falavam. Estavam tão interessados um no outro que se esqueceram completamente de sua presença. Ingá gostava do quadro que formavam sua filha Lisa, e Steve Bogardus. Esperava que aquilo significasse que Lisa iria finalmente esquecer Wylie Cole.
Durante certo tempo na primavera pareceu que ela o esquecera. Duas vezes tinha saido à noite com Steve. Depois, todo aquele barulho sobre o ataque japonês a algumas ilhas Aleutas tinha irrompido e Lisa ficara toda perturbada e preocupada que alguma coisa tivesse acontecido a Wylie. Começara a sentir-se culpada por causa dos encontros que tivera com Steve.
Às vezes ela ficava admirada por Lisa não perceber sua sorte ao ter um homem como Steve Bogardus interessado por ela. Ele daria um bom marido. Mas, na idade de Lisa, ela também ficara cega pelo sentimento. Nenhuma mulher deveria casar-se com seu primeiro amor. No dia em que ela e Jan se casaram, se tivesse sabido acerca de todos os anos de lutas e dificuldades e fome que a aguardavam, jamais teria se casado com ele. Jan Blomquist era pobre, mas ela era tão jovem que achava que o dinheiro não tinha importância, que bastava eles se amarem - mas não era assim. Ela nem sempre se queixava. Nem sempre tinha sido infeliz e cheia de ressentimentos. Muitas vezes desejara explicar isso para Lisa, mas nunca fora capaz de encontrar as palavras apropriadas.
Quando Steve começou a erguer o olhar, Ingá moveu-se rápido.
- Aqui está o café, fresco e quente. - Ela parou ao lado da cadeira dele e encheu a xícara à sua frente. - É tão bom ter um homem em casa. com Jan e Rudy longe de casa, a semana toda trabalhando naquela construção, a casa parece vazia. - Sorriu amavelmente para ele.
- Fico contente que tenha ficado para o jantar conosco esta noite.
- Não há outro lugar onde goste mais de ficar, sra. Blomquist. E, lançando um olhar a Lisa completou: - Ou ninguém com quem eu goste mais de estar.
Lisonjeada pelo comentário dele, Lisa pegou a xícara e estendeu-a à mãe.
- Também vou querer um pouco de café, mamãe. E se eu fosse você tomaria cuidado com o que diz em frente de Erik. Ele gosta de pensar que é o homem da casa quando papai e Rudy não estão. Você pode ferirlhe os sentimentos.
- Ele dificilmente está por aqui desde que encontrou aquela pequena.
- Ela serviu café a Lisa e depois encheu sua própria xícara e sentou-se.
- Eu estava exatamente dizendo a Lisa que planejo voar até Big Delta e verificar o progresso da construção da estrada. Considerando toda a papelada que ela vem enfrentando em nosso contrato da rodovia AlCan, penso que seria uma boa ideia se ela fosse junto e visse essa estrada que está dando tanto trabalho a ela. Mas Lisa está um pouco relutante em vir comigo. Penso que tem receio das aparências. - O sorriso dele zombava dela. - Ou talvez ela não confie em mim...
- Eu confio em você - mas o tom de Lisa ainda era hesitante.
- Ainda acho que você não deveria rejeitar uma chance de ver a história sendo feita - insistiu Steve e depois apelou para Ingá. - O que diz, sra. Blomquist?
- Creio que é uma oportunidade que Lisa não deveria deixar passar, - respondeu ela, mexendo uma colher de açúcar em seu café.
- Aí está! Encerro meu caso. - Ele recostou-se em sua cadeira e levantou as mãos num gesto que indicava que nada mais havia a dizer. - Até sua mãe aprova.
- Não sei - murmurou ela.
- Você precisará usar calças compridas, uma blusa de mangas compridas e algo para proteger o rosto. - Ingá Blomquist não tencionava permitir que sua filha desistisse dessa oportunidade mandada pelo céu para passar algum tempo sozinha com Steve Bogardus, longe do escritório. Deve lembrar-se de que podem ser incómodos os mosquitos e as moscas no interior durante o mês de agosto.
- É melhor usar também umas botas - recomendou Steve.
- Eu ainda nem disse que quero ir - protestou Lisa, mas o riso franco que se seguiu a isso marcou sua concordância.
A partir de Big Delta, eles viajaram num jipe aberto. Um chapéu de modelo antigo do Exército, com uma larga aba capaz de permitir pendurar um véu contra mosquitos, deixava o rosto de Lisa na sombra, protegendo-o do brilho do sol. Ela o enterrara bem na cabeça para impedir que o vento o arrancasse, mas o chapéu não impedia que o vento açoitasse as pontas do cabelo que lhe dava pelos ombros ou fizesse seus olhos arderem com a poeira da estrada macadamizada.
Vestido com uma calça Levi's, uma camisa xadrez azul e um blusão de zuarte, Steve a apanhara em casa naquela manhã antes do amanhecer. Seu avião fretado levantou voo tão logo rompeu a madrugada e dirigiu-se para o norte sob um céu claro. Lisa ficara encantada com a visão do ar dos trilhos da estrada de ferro e da nova estrada de rodagem que ligava Anchorage a Fairbanks. Até o monte McKinley havia gentilmente expulsado as nuvens e revelava sua venerável coroa de neve.
Quando eles ainda estavam ao sul do Big Delta, Steve instruíra o piloto a fazer uma volta para leste, de forma que Lisa pudesse ver a nova rodovia do ar. Agora estavam viajando pela bem nivelada estrada que ela vira do ar e que se estendia ao longo do vale do rio Tanana. De ambos os lados da planície aluvial erguiam-se montanhas. De vez em quando cruzavam com outro veículo ou com um comboio de caminhões, e o jipe ficava engolfado na nuvem de poeira que deixavam em sua esteira.
Ela podia sentir a poeira criando uma camada em sua pele e suas roupas, mas estranhamente não ligava. Estar ali com todo este selvagem país rodeado por um cenário magnífico, lembrava-lhe de sua chegada ao Alasca e como tudo tinha sido tão novo e excitante. Era dessa forma que se sentia agora - ansiosa para abraçar uma nova experiência.
Quando Steve diminuiu a marcha do jipe, o barulho do vento foi substituído por um ronco de uma espécie diferente. Lisa procurou espiar através do pára-brisa coberto de poeira, tentando ver o que estava à frente deles. Podia ver o vago formato de uma grande máquina.
- Por que estamos diminuindo a marcha?
- Chegamos ao fim da parte da estrada que está acabada. - Daqui em diante - disse ele, mudando a marcha do jipe -, ela está em construção.
Saíram da estrada principal e seguiram uma estrada de serviço paralela à estrada já empedrada, passando ao largo do equipamento pesado que gemia e roncava por um longo trecho alargando a estrada, levando-a ao nível acabado e acabando os acostamentos. Tanto os homens quanto as máquinas estavam meio escondidos numa nuvem de poeira.
A pista de serviço era pouco mais do que um caminho esburacado, com largura suficiente para um só veículo. Lisa agarrou-se no lado de seu assento e escorou-se com um braço contra o painel enquanto eles pulavam pela estreita trilha. Mais de uma vez foram forçados para fora da trilha por um caminhão que vinha em sentido contrário, tendo que desviarse pelo meio do capim alto, em alguns lugares já socado por tráfego anterior. Na frente deles podia ver as barracas de construção temporária do acampamento da obra. Alguns homens de capacetes estavam postados à frente de um deles discutindo sobre algumas plantas. Steve parou o jipe uns poucos metros afastado. Lisa custou a tirar a mão do painel como se seu corpo ainda não estivesse bem certo de que o trecho acidentado terminara.
- Desculpe - disse Steve -, aquele último pedaço foi meio brabo.
- Não me importei.
Ele pulou fora do jipe e fez a volta para oferecer-lhe a mão firme enquanto ela desembarcava. Ela bateu nas pernas das calças para tirar a poeira, mas depois verificou que era inútil e desistiu do esforço. Dois dos homens vieram em sua direção para cumprimentá-los e Steve apresentou-os como seu gerente do projeto e o capataz da turma da estrada.
Depois da usual troca de amabilidades e perguntas sobre a viagem deles de Anchorage, a conversa concentrou-se na estrada - o progresso, as dificuldades, as projeções. Lisa escutava atentamente, surpresa do quanto ela entendia por causa da leitura de todos os relatórios que cruzavam sua mesa, embora não entendesse a parte de jargão técnico. Mas estar aqui fazia com que todos os relatórios tivessem vida Eles não eram apenas palavras num papel, ou pontos num mapa, ou linnas num gráfico. E as pessoas que os haviam escrito tinham rostos, sentimentos e frustrações.
- Aqueles pretos do 97º Regimento estão realmente progredindo nestes trechos planos. Estão fazendo cerca de treze quilómetros por dia disse o engenheiro.
- De acordo com o relatório da noite passada no rádio, o Exército tem menos de 480 quilómetros para terminar e a estrada estará totalmente aberta. - O engenheiro sacudiu a cabeça. - Tenho que dar a esses soldados o crédito merecido. O que eles sabiam acerca da construção de estradas se poderia escrever na palma de sua mão. Quando eles começaram em março, calculei que teríamos sorte se a estrada estivesse toda aberta até o fim do ano que vem. Do jeito que eles vão, haverá caminhões trafegando por ela antes do Natal.
Era um pensamento de espantar que uma estrada de 2.400 quilómetros pudesse ser construída através de um terreno selvagem e virgem por uns dez mil soldados inexperientes e seis mil civis em menos de nove meses.
- O 97º chegou ao cruzamento do rio. Eles estarão passando seu equipamento em balsas hoje. Se tiver tempo, você poderá querer dirigir mais um pouco e dar uma olhada. - O engenheiro olhou para Lisa enquanto fazia a sugestão.
- Faremos isso - disse Steve. - Creio que Lisa achará interessante.
Uma hora mais tarde, depois de Steve ter discutido tudo com seu engenheiro e encarregado, eles subiram de novo no jipe e continuaram pela estrada inacabada. O tráfego era mais pesado com os caminhões carregados de suprimentos, maquinaria e equipamento revolvendo a mole e seca superfície. As nuvens cegantes de poeira produzidas pelos caminhões, andando a maior parte do tempo em marcha reduzida, forçaram Steve a diminuir a marcha do jipe.
Quando se aproximaram do lugar onde a estrada iria cruzar o rio Tanana, o caminho estava bloqueado por uma mistura de maquinaria, suprimentos e homens. Steve saiu da estrada e desviou-se do congestionamento, depois parou o jipe numa pequena elevação, de onde se tinha uma boa visão.
Lisa desembarcou do jipe coberto de poeira para apreciar a atividade que se desenvolvia no rio. Steve veio postar-se ao lado dela. Um enorme trator de vinte toneladas estava sendo carregado numa balsa improvisada, construída com cinco pontões. Não muito longe da área de embarque do cruzamento por balsa as primeiras estacas de uma ponte estavam sendo cravadas. Distante da congestão havia uma enorme pilha de tambores de 55 galões. Lisa já os havia notado espalhados às centenas por toda a rota. Sua presença tornava óbvia a razão da estrada ter obtido seu apelido de "Estrada dos Tambores de Óleo".
- O trabalho nunca cessa - disse Steve. - Tão logo aqueles pretos transfiram aqueles tratores de esteira por balsas para o outro lado do rio, eles dão partida em seus motores e começam a trabalhar. Neste ínterim, aquela equipe de construção de pontes de lowa estará cravando suas estacas para a ponte, de forma que quando minha turma de estrada chegar aqui, será um pulo até o outro lado.
A estrada. Aquilo era tudo sobre o que falaram todo o dia. Era como se a guerra não existisse; tudo parecia girar em torno da estrada. Tendo-a visto, Lisa sentia-se da mesma forma. Nada mais parecia tão importante.
Aquilo mudou até sua apreciação de Steve. Todo o dia ela o tinha escutado discutir a estrada, falando com autoridade sobre várias facetas do trabalho em progresso. Ela o vira em ação, fisicamente dirigindo o trabalho em vez de examinando relatórios ou falando no telefone. O trabalho que ele fazia era vital para todo o território. Ela estava impressionada com ele, mais impressionada do que jamais estivera quando ele era unicamente seu chefe.
Ao cair da noite, o avião deles aterrissou no Merrill Field, em Anchorage. Embora tivesse sido um longo dia, Lisa sentia-se estranhamente descansada. Ela diria que fora o resultado de todo aquele ar fresco se não estivesse tão consciente da camada de fina poeira que cobria todo seu corpo, roupas e tudo.
Enquanto caminhavam para o carro, Steve passou despreocupadamente o braço pelos ombros dela e perguntou-lhe:
- Está contente de ter ido?
- Oh, sim - respondeu ela, cheia de entusiasmo. - Eu não teria perdido aquilo por nada.
- Estava certo de que você iria sentir-se assim. - Quando chegaram ao carro, ele foi abrir a porta do passageiro para Lisa, depois parou, com uma das mãos na maçaneta e a outra no ombro de Lisa. - Por que não saímos e vamos jantar mais tarde esta noite?
- Acho que não... não com o aspecto que tenho. Ele recuou a cabeça para estudá-la melhor e disse:
- Não sei, não. Eu até que gosto de você com essa sujeirinha no nariz... - Ele correu o dedo pelo nariz dela. - Além disso, não estou mais limpo que você. Então, o que diz?
Ela hesitou, quase tentada, mas depois sacudiu de novo a cabeça.
- Não; é melhor eu ir para casa. Mamãe estará preocupada comigo.
- Não; ela não estará. Você sabe por quê? Porque você está comigo. - Ele enfiou a mão embaixo do cabelo dela e segurou sua nuca.
- E se você não acredita nisso, vamos telefonar-lhe e avisar que estamos de volta. Mas não vou aceitar sua mãe como uma desculpa para rejeitar meu convite.
O rápido beijo que ele lhe deu pegou-a de surpresa. Perturbada e encabulada, ela afastou o olhar do dele. Nunca tinha sido fácil para ela ignorar-lhe as atenções. Agora ela achava que não queria fazê-lo.
- É de novo aquele seu soldado? - Mas Steve não lhe deu uma chance de responder. - Lisa, uma das coisas que achei atraente em você desde o princípio foi a lealdade que demonstrou. Mas não achava que ela fosse justificada. Tenho que ser honesto e dizer que não me sinto nem um pouquinho culpado ao tentar roubá-la dele, pois acho que ele não tem nenhum direito sobre você. Ele teve muitas oportunidades de prendê-la, mas não vejo nenhuma aliança em seu dedo, e duvido que tenha havido promessa de uma.
- Não É isso... - Ela não estava nem pensando em Wylie.
- Olhe para mim, Lisa. - Ele forçou-a a levantar a cabeça. Já fiz tudo, menos plantar uma bananeira, para persuadi-la a sair comigo.
- Sei que você fez, Steve.
- Se é isto que é preciso para convencê-la de que a amo, eu o farei. .- Ele soltou-a e começou a abaixar-se, ficando apoiado nas mãos e nos joelhos.
Decorreu um segundo até que Lisa se convencesse de que ele realmente ia plantar uma bananeira.
- Steve! Não!
Quando segurou no braço dele para levantá-lo, seu pé escorregou no areião e ela começou a cair. Steve tentou pegá-la. No momento seguinte estavam caídos no chão, rindo-se da rapidez com que tudo acontecera. Ele rolou para o lado, apoiando-se num cotovelo para olhá-la.
- Você está bem?
- Estou ótima. - Ela olhou para ele, seu sorriso suavizando-se.
- E você não precisa plantar uma bananeira para me convencer, Steve.
Por um momento, ele olhou para os lábios dela, depois beijou-a vagarosamente.
O mar estava agitado. As fortes correntes submarinas fustigavam constantemente o submarino Trilon enquanto ele navegava submerso a uma milha da costa da ilha Adak, aproximando-se de seu destino ao largo da baía de Kuluk. Wylie olhava para os rostos artificialmente escurecidos dos outros dezoito Batedores amontoados nos exíguos espaços do alojamento da tripulação. Mais dezenove Batedores estavam a bordo do submarino Tuna. O grupo de comandos tinha um encontro programado ao largo dos recifes da baía de Kuluk.
Quando as grandes ondas jogavam o submarino para todo lado, o convés inclinava-se violentamente. Wylie calçou-se automaticamente com o primeiro movimento. Alguns dos Batedores não foram bastante rápidos; ele ouvia seus abafados palavrões quando eram jogados contra qualquer coisa. Quase todo mundo tinha machucado alguma parte do corpo durante essa viagem. Wylie notara alguns dos tripulantes com bandagens nas costelas e alguns ostentavam os rostos machucados ou cortes acima dos olhos.
Há alguns minutos o sargento tinha voltado com a notícia de que eles estavam ao largo da ilha Adak, cujo nome de código era "Lareira". A conversa diminuiu quando fizeram nova verificação em suas mochilas e suas armas. Wylie sentia a tensão no ar. As palmas de suas mãos estavam pegajosas, mas ele não estava certo sobre quanto disso era causado pelos nervos e pela angústia do submarino fechado. No momento, preferia de bom grado enfrentar um japonês a passar mais uma hora aprisionado neste esquife submarino.
Uma porta à prova d'água abriu-se e um dos oficiais do submarino entrou por ela.
- O comandante deu ordens para subir à superfície - anunciou.
- Isto é a melhor notícia que já ouvi até agora. - Wylie endireitou o corpo, mas manteve as pernas ligeiramente separadas para escorar-se contra o jogo do convés. - Este alojamento é tão confortável quanto uma camisa-de-força.
- Depois de algum tempo você se acostuma - assegurou-lhe o jovem guarda-marinha. - Parece como se estivesse em casa.
- Sua casa, talvez; a minha não... - replicou Wylie secamente. Momentos mais tarde, o submarino aflorou à superfície e a escotilha foi aberta. Em silêncio, um após o outro, os Batedores subiram pela escada para o tombadilho do Triton lavado pelo mar. Rodeados pelo negrume de tinta de uma noite coberta de nuvens e pelo escuro e tenebroso mar, eles rapidamente inflaram seus botes de borracha, comunicando-se com sinais de mão. Não muito afastado, outro submarino flutuava na superfície do mar agitado, sem mostrar nenhuma luz para revelar sua presença ao inimigo.
Tão logo os botes foram lançados ao mar, Wylie e os outros comandos escorregaram pelo costado e tomaram seus lugares neles. A uma milha de distância ele apenas podia distinguir o vago perfil da costa de Adak, marcado pela pesada rebentação das ondas. Remaram para afastar-se do submarino que jogava muito e dirigiram-se para a entrada da baía.
Dentro de alguns minutos, ambos os submarinos tinham mergulhado. Wylie sentiu um aperto na boca do estômago. Irrequieto, ele ficou observando a área, tentando detectar qualquer movimento que traísse uma posição japonesa - se houvesse quaisquer japoneses na ilha. Todos os nativos e civis da cadeia de ilhas haviam sido evacuados dentro de poucos dias após o primeiro ataque inicial japonês, a maior parte deles para acampamentos na estreita faixa a sudeste.
O Departamento de Guerra havia finalmente autorizado o estabelecimento de uma nova base na cadeia das Aleutas que ficasse mais perto das ilhas de Kiska e Attu em poder dos japoneses do que o aeródromo de Baía Fria, o qual estava a uma distância de 1.200 milhas de ida e volta. A Marinha escolhera a ilha de Adak para localização da nova base.
Dentro de dois dias, uma força de invasão de 4.500 homens estava programada para desembarcar em Adak. Era sabido que os japoneses regularmente desembarcavam pequenos grupos de soldados nas várias ilhas, incluindo Adak. Mas ninguém sabia se eles ainda estavam lá. A missão da unidade de comandos, sob a chefia do próprio coronel Castner, era descobrir quaisquer japoneses na ilha e certificar-se de que nenhuma mensagem de rádio seria transmitida para Kiska. Os longos meses de treinamento a que Wylie, Big Jim e outros Batedores tinham sido submetidos estavam para ser postos à prova.
O vento era constante e frio. Quase nada podia ser ouvido acima de seu incessante sopro e do ronco do mar. No momento em que Wylie sentiu o bote arrastar no fundo, ele pulou pelo lado e ajudou a carregá-lo para a praia. Em terra eles não se sentiam tão vulneráveis e expostos. Agora ele podia movimentar-se.
Furtivamente, os comandos se espalharam sob a coberta da escuridão e começaram a varrer a ilha de 780 quilómetros quadrados. Durante toda a noite Wylie vasculhou o áspero terreno e a esponjosa tundra, cobrindo o setor que lhe foi atribuído. A certa altura ele assustou um grande corvo negro, ou melhor, o corvo negro assustou-o. Ele nunca teve certeza de qual dos dois pulou mais alto antes que a ave levantasse voo, crocitando alto em protesto.
De madrugada, um nevoeiro espalhou-se sobre a ilha. Wylie juntou-se à sua unidade e comunicou que não encontrara nada, nenhum traço de japoneses, nem mesmo as cinzas de uma fogueira de acampamento. Ele se sentia derrotado e zangado, como um caçador que passou toda a noite procurando caça apenas para descobrir que não havia nenhuma na área. Pouco consolava saber que ninguém mais também tivesse visto um japonês.
- Eu me sinto como um noivo que foi deixado na igreja esperando - resmungou Big Jim Dawson.
- Acho que todos nos sentimos mais ou menos assim. - Wylie ouviu o ronco dos motores de um avião por sobre eles e olhando para cima reconhecendo o PB Y como um dos deles, que estava programado para voar por sobre a ilha naquela manhã. O coronel colocou um painel de pano no chão para sinalizar "Tudo Limpo" para o avião e os Batedores arrumaram-se para esperar que a força de invasão chegasse à ilha, deserta de população a não ser águias e corvos.
Os soldados chegaram no domingo, 13 de agosto, junto com uma tempestade. Fortes ventos e mar agitado pintaram o sete com as barcaças e as balsas que transportavam suprimentos, maquinaria e equipamento, virando várias delas e mandando sua carga para o fundo do mar, jogando umas contra as outras na praia e espalhando-as por toda a costa. No entanto, de um jeito ou de outro, quase tudo chegou à terra, incluindo canhões antiaéreos, uma variedade de equipamento de construção pesado e unidades especializadas do Batalhão de Engenharia da Aviação.
Enquanto o encarregado da praia organizava o desembarque espalhado pela tempestade, os engenheiros procuraram os Batedores para ajudá-los a escolher um lugar conveniente para uma pista de pouso. Eles se dividiram em pequenos grupos, com Wylie e Big Jim levando uma turma de engenheiros para uma volta através do terreno montanhoso da ilha. A tempestade continuava a rugir ferozmente. Os ventos eram tão fortes que Wylie tinha de inclinar-se em sua direção para poder permanecer de pé.
- Você arranjou um bom trabalho - gritou ele para um dos engenheiros. - Vocês não vão encontrar nenhum terreno plano nesta ilha a não ser que vocês o façam.
- Se o resto da ilha é como isto, você está certo.
- É assim mesmo.
Mas Wylie não tinha visto um lugar em Sweeper Cove que ficava inundado quando a maré subia. A título de brincadeira, outro Batedor mencionou o lugar a um outro engenheiro, mas ele não se riu. Dentro de poucas horas eles tinham seus homens construindo uma barragem, um conjunto de diques e uma comporta para conter as marés. Na maré baixa do dia seguinte, eles fecharam a comporta. Antes da manhã de lº de setembro, máquinas de movimento de terra rolavam pela lama. A tela de aço para a pista de pouso estava no fundo da baía. Buldôzeres comprimiram a areia para fazer uma pista de pouso.
Dez dias mais tarde, o primeiro avião pousou na nova base, cujo nome de código era "Longview". Dois dias depois, o 36º Esquadrão de B-17 chegou, junto com dezoito outros aviões e novo embarque de tela de aço para pista de pouso, o qual os engenheiros colocaram durante a noite. A nova base estava em plena operação e ainda não fora descoberta pelos japoneses.
Em fins de setembro, a unidade de comandos de Wylie foi enviada de novo numa incursão, desta vez em missão de reconhecimento para explorar a ilha de Amchitka, a apenas setenta milhas da ilha de Kiska, em poder dos japoneses. Novamente não encontraram nenhum japonês e voltaram informando que a ilha tinha o costumeiro vulcão e que, além disso, era um longo, estreito e raso pantanal.
Depois disso, voltaram para Adak. Chuva, vento e nevoeiro pareciam cobrir a ilha como um pálio. Não levara muito tempo para Wylie descobrir que o tempo nas Aleutas era tudo menos agradável. Embora a corrente tropical do Japão soprasse para o norte o ar quente do sul e o mar ficava livre de gelo e a temperatura agradável o ano todo, quando ela entrava em contato com a massa de ar frio do Ártico vinda do norte, o resultado inevitável eram tempestades. E a longa cadeia de ilhas assemelhava-se a bóias marcando o lugar onde os dois sistemas se chocavam.
Para os pilotos, era como um pesadelo voar num nevoeiro espesso como um mingau e simultaneamente no meio de ventos violentos com força de furacões. Nas Aleutas não havia uma coisa que se pudesse chamar de tempo bom para voo. Se um piloto podia enxergar o bastante para elevar-se do solo, o avião levantava voo. Mas ele não ousava subir acima do "mingau". Quanto mais alto voasse, mais fria se tornava a temperatura externa e gelo se formava nas asas. Incontáveis aviões se perderam quando suas asas congelaram e eles entraram em parafuso, fora de controle, e mergulharam no oceano.
A navegação aérea também não era tarefa simples. A combinação de ventos com nevoeiros podia jogar um piloto centenas de milhas fora de seu curso. Canais de navegação pelo rádio eram raramente eficientes devido ao ar carregado de eletricidade resultante do choque de frentes, que criava uma estática tão alta que afogava os sinais de rádio. A constante turbulência jogava os aparelhos fora de regulagem e os depósitos de minerais metálicos pesados nas ilhas de origem vulcânica afetavam as bússolas.
Numa tentativa de manter pressão sobre os japoneses, duas e três missões de bombardeio eram enviadas por dia - quando os aviões podiam decolar. Wylie observara os aviões voltarem avariados. Se os caças japoneses ou seu fogo antiaéreo conseguiam danificar um bombardeiro, o tempo em geral avariava seis. Estavam lutando contra dois inimigos: os japoneses e o tempo Mas os japoneses estavam no mesmo barco...
Soou o sinal para o rancho, mas Wylie não se moveu de sua cama de campanha na pequena barraca piramidal. Em vez disso, olhou para a lata de chili com carne em cima do pequeno fogão de metal que aquecia a barraca, com sua tampa de folha aberta. Ele jogou as pernas para fora da cama e pisou nos papéis encharcados de lama que serviam de piso da barraca.
Tudo o que a barraca do rancho tinha a oferecer eram rações C. Para isto dificilmente valia a pena patinhar pela lama e enfrentar o vento de gelar os ossos, quando podia comer chili quente, geléia e biscoitos no relativo conforto da barraca. com sorte, ele e Big Jim tinham arranjado e escondido bastante comida enlatada para durar até que estivessem de volta no quartel-general no Kodiak.
Ele tinha pena dos pobres camaradas que iriam ter que ficar ali. As condições eram tão miseráveis quanto o tempo. Os seabees (soldados do batalhão de engenharia naval) trabalhavam como loucos, construindo quartéis, depósitos, hangares, escritórios - virtualmente uma cidade inteira - mas neste ínterim os homens viviam em barracas montadas numa pequena elevação de terra afetivamente chamada de morro. Todo o tráfego de pedestres e de veículos tinha transformado o chão num atoleiro.
Wylie mexeu o chili e depois provou-o para ver se estava quente, mas estava apenas morno. Ele juntou mais dois pedaços de carvão no fogão e sentou-se de volta na cama de campanha para esperar. O chapinhar de passadas na lama soou do lado de fora. Ele ergueu os olhos quando a lona da entrada foi afastada e Big Jim entrou, permitindo a Wylie uma rápida olhadela para as nuvens cinzentas e desanimadoras do lado de fora.
- Brrr... - rosnou Big Jim, sacudindo-se como um cachorro saindo da chuva. - Este é o vento mais frio que já vi. Que inferno! Não fazia tanto frio nem no auge do inverno no rio Yukon. - Ele entrou batendo os pés e esticando as mãos enluvadas para o calor do fogão, esfregando-as.
- É a umidade.
- Você não vai acreditar nisso - disse Big Jim, metendo a mão dentro de sua parka -, mas alguma de nossa correspondência nos alcançou. - Ele jogou um par de magros envelopes na cama de Wylie. - Não me pergunte como ou por que, mas aí está ela.
Wylie pegou-os e olhou primeiro para os remetentes. Uma carta era de sua mãe e a outra de sua avó. Nada de Lisa. Ele olhou para o carimbo.
- Agosto. E hoje já é o último dia de setembro. Por que leva tanto tempo para vir correspondência de Anchorage?
- Ora, recebi cartas de parentes nos Estados Unidos que já tinham quatro meses. Se fosse você, não me queixaria. Temos sorte em receber correspondência de qualquer maneira. Às vezes penso que as pessoas até se esquecem de que estamos aqui.
- A maior parte delas não sabem que estamos.
Havia uma virtual censura de notícias relativas à campanha nas Aleutas. Duas semanas se passaram até a Marinha admitir que os japoneses haviam bombardeado sua base em Dutch Harbor e ocupado as ilhas de Attu e Kiska. Todos os jornalistas tinham sido "escoltados" para fora das Aleutas. Nem mesmo o Military Press, de quatro páginas, mimeografado mais ou menos diariamente em Dutch Harbor, podia publicar histórias acerca do que ocorria nas Aleutas sem a liberação do Departamento da Marinha em Washington. Três semanas depois do fato, o Military Press publicou um artigo sobre o ataque com bombas a Kiska. Qualquer menção ao Alasca era censurado de todo o jornal ou revista que chegava ao território. Nem mesmo os habitantes do Alasca sabiam o que estava acontecendo por ali - e isto incluía a família de Wylie.
Wylie podia adivinhar o argumento do Departamento da Guerra. Teria um efeito desmoralizante no público americano caso se tornasse amplamente divulgado que os japoneses tinham ocupado solo americano. Quando foram forçados a reconhecê-lo, acharam preferível atenuar o fato, dizendo que os japoneses haviam montado instalações temporárias numa ilha das Aleutas que não possuía significativo valor estratégico.
Quando abriu a carta de sua mãe, ele ouviu o ronco de um avião seguido pelo alto gemido de uma sirene de ataque aéreo. Tanto ele como Big Jim moveram-se automaticamente, agarrando seus fuzis. Os canhões antiaéreos abriram fogo enquanto saíam disparados da barraca e se dirigiam para as trincheiras, Wylie olhou para cima e identificou um "Rufe" japonês mergulhando contra eles, um avião anfíbio. A primeira bomba explodiu, seu estrondo juntando-se aos tiros dos canhões antiaéreos.
Por toda a parte os homens se espalhavam à procura de abrigo. Wylie escorregou para dentro da trincheira e girou rápido para trazer seu fuzil em posição para apontar no avião japonês. Disparou uns dois tiros no avião enquanto ele estava dentro do alcance da arma, juntando seu fogo ao pipocar dos canhões. O "Rufe" ganhou altura e fez uma curva para dar outra passada por cima da base. Wylie mantinha um olho nele enquanto observava o céu cheio de nuvens, esperando que mais aviões japoneses emergissem.
- Onde está o resto deles? - admirou-se Big Jim.
- Não sei. - Wylie observava seus próprios caças apressarem-se para levantar voo enquanto o "Rufe" voltava para metralhar o aeródromo, voando por entre as nuvenzinhas de fumaça dos antiaéreos que enchiam o ar.
Na hora em que o primeiro dos caças ganhou o ar, o japonês tinha se escondido nas nuvens. Ele não voltou e não veio mais nenhum. Soou o sinal de "Tudo Limpo".
- Bem, eu atirei no meu primeiro japonês - disse Big Jim quando engatinhavam para fora da escorregadia trincheira.
- Sim. E agora eles sabem onde estamos. - Quando Wylie entrou de volta na barraca, sentiu o cheiro do chili queimado no fogão e começou a praguejar.
A base de Âdak foi bombardeada por cinco dias seguidos, mas os japoneses nunca mandaram mais do que três aviões de cada vez, e suas bombas causaram apenas danos mínimos.
Em fins de novembro, todos os serviços telegráficos transmitiram a história da conclusão da estrada militar Alasca - Canadá no dia 20 do mesmo mês, oito meses e onze dias após o início da construção. Wylie leu a miríade de estatísticas com pouco interesse: 2.500 quilómetros de extensão, duzentas pontes, oito mil bueiros, dezesseis mil trabalhadores, e um custo de 138 milhões de dólares.
A estrada era tudo sobre o que Lisa falava em sua última carta recebida por ele em outubro; nada mais, nem mesmo uma pergunta sobre quando ele poderia de novo ter uma licença ou uma menção que ela pensava nele ou ansiava por vê-lo. Ele tentou não deduzir nada desse fato, mas no íntimo mordia-o a possibilidade de que Steve Bogardus fosse a causa de tudo.
Em meados de dezembro vieram ordens para estabelecer uma base avançada em Amchitka, virtualmente no quintal do inimigo. A unidade de Wylie já fizera um reconhecimento da ilha em setembro. Um bombardeiro solitário sobrevoou a ilha a fim de certificar-se de que alguns soldados japoneses tinham sido estacionados em Amchitka naquele intervalo para arrasar a aldeia nativa.
Quando Wylie e os Batedores desembarcaram na ilha, acompanhados por um grupo de topografia chefiado pelo coronel-engenheiro Benjamin Talley e o tenente-coronel Hebert, as casas dos nativos estavam em ruínas, incluindo a pequena igreja russa ortodoxa. Enquanto estavam explorando a ilha para localizar uma posição para a nova base aérea, um dos Batedores, um índio sioux, encontrou indicações de que os japoneses haviam estado lá antes, conduzindo um levantamento para estabelecer uma Pista de pouso deles próprios.
Ninguém queria permitir que os japoneses ganhassem outro pé nas Aleutas. As ilhas poderiam muito facilmente transformar-se em degraus para uma ofensiva. Imediatamente foram postos em ação planos para reunir uma força importante para ocupar a ilha. Como de hábito, os Batedores do Alasca foram escolhidos como pontas de lança do desembarque. No dia 5 de janeiro de 1943, Wylie e sua unidade de comandos embarcaram no destróier Worden, parte de uma força de combate de quatro destróieres, três cruzadores e quatro navios de transporte. A frota zarpou bem no meio de uma furiosa nevasca. A tempestade continuou por uma semana sem interrupção, enquanto a forçatarefa jogava no mar agitado, bem para fora da costa de Amchitka.
Após uma semana de confinamento debaixo do convés pela tempestade, Wylie estava inquieto e mal-humorado. Na noite do dia 11 de janeiro ele dormia um bom sono, amarrado em sua cama. Um instante antes que alguém tocasse seu ombro, ele estava inteiramente acordado e encarando a barba branca e suja de Big Jim.
- Não, não lhe empresto dinheiro nenhum e não ligo a mínima se você tem um royalflush ou não - resmungou irritado e começou a voltar-se no beliche. - Volte para seu jogo de pôquer e deixe-me ficar sozinho.
- Nós vamos desembarcar, Wylie.
- O quê?
- A tempestade amainou um pouco e os chefões decidiram que é agora ou nunca. Nossos suprimentos não vão durar muito mais. Assim vamos à terra.
- Que horas são? - perguntou Wylie, sentando-se.
- Mais ou menos uma da manhã. Isto tem importância? - disse Big Jim com um risinho. - Estamos navegando em direção ao porto agora; deveremos chegar antes da madrugada.
O mar continuava encapelado, com ondas de mais de seis metros. Quando o Worden entrou na boca do porto de Constantine um pouco antes do alvorecer do dia 12, as ondas atingiriam a ponte do destróier. Wylie e os outros Batedores conseguiram atravessar o convés varrido pelo mar e subiram para as baleeiras e depois dirigiram-se para a terra numa nevasca de cegar. Molhados, frios e meio congelados, eles enfrentaram ondas de seis metros até chegar com segurança à praia.
Minutos após arrastarem os barcos para cima da praia, o bramido da tempestade foi cortado pelo lúgubre gemido do apito de um navio, anunciando que estava em dificuldades. O som despertou arrepios pela espinha de Wylie.
- É o Worden - disse Big Jim, falando com dificuldade devido aos lábios congelados. - Tem de ser.
Instintivamente, Wylie chegou mais perto da arrebentação e perscrutou ansiosamente através da neve tocada pelo vento, esforçando-se para ver o navio avariado, mas a tempestade o escondia. O sinistro apelo de seu apito lembrava-lhe o grito agoniado de um animal ferido sendo arrastado por um predador. Sua mente se fixava na tripulação a bordo, naqueles homens com quem havia passado a última semana.
Não levou muito tempo até que o vento carregasse até eles o assustador sinal para abandonar o navio. O Worden estava afundando.
- Maldição! - praguejou Big Jim ao lado dele. - A água está congelando; os homens não vão durar muito nela.
- Vamos! - Wylie começou a andar pela praia, tentando aproximar-se de onde vinha o som.
Todos da turma de desembarque juntaram-se na procura de sobreviventes, espalhando-se ao longo da praia e procurando nas ondas por corpos dentro d'água. Como por um milagre, eles conseguiram resgatar vários homens da tripulação e arrastá-los para a areia. Através deles souberam o que havia acontecido com o Worden.
Quando o destróier zarpara do porto, uma forte corrente o havia jogado num afloramento de pedra, que lhe perfurara o casco e penetrara pelas chapas de aço, inundando a casa de máquinas. O destróier Dewey correra em seu socorro, mas a tentativa de livrá-lo das rochas falhara quando o cabo arrebentou. O Worden emborcou. O Dewey conseguira pegar a maior parte dos sobreviventes, mas quatorze marinheiros morreram antes que ele conseguisse chegar perto.
A força tarefa, porém, continuava comprometida com o desembarque. Os navios de transporte carregando 2.100 homens, compostos de soldados e engenheiros, conseguiu abrir caminho até o porto, cuidadosamente evitando o casco do destróier afundado, e descarregou sua tropa. Um transporte cometeu o erro de expor seu bordo para o forte vento quando estava saindo e foi jogado contra os recifes, ficando solidamente encalhado.
A nevasca continuava furiosa quando a noite caiu. Frio e úmido, Wylie movia-se todo o tempo para permanecer aquecido e guardar-se contra o inimigo, que era a mordida do frio, causadora de ulceração. Mentalmente amaldiçoou as bombas que haviam destruído a aldeia nativa e o abrigo que suas casas poderiam prover. Foi uma longa noite sem abrigo e somente com rações frias.
Pela manhã, a tempestade perdurava. Mas com a ilha em poder dos japoneses tão perto, um posto de observação tinha de ser estabelecido e guarnecido. Wylie e Big Jim estavam entre os Batedores escolhidos para formar um esquadrão e cruzar os 56 quilómetros da ilha até sua ponta mais para noroeste. Dali, os picos da ilha Kiska eram visíveis, quando o tempo o permitia.
Depois de uma semana, a tempestade finalmente passou. Tendo sido destacado para o remoto posto avançado, Wylie tinha que lutar diariamente contra o tédio e o aborrecimento em condições miseráveis. Seu saco de dormir estava no chão de lama da barraca. Seu par extra de botas e meias eram mantidos em cima do fogão, de forma que pudesse trocá-los a cada meia hora para impedir que seus pés congelassem. Foi quase uma diversão bem recebida quando os japoneses finalmente descobriram a base em Amchitka no dia 23 de janeiro. Pelo menos agora, quando ele assumia seu turno de observação, havia uma chance de ver alguma coisa.
Durante as duas semanas seguintes, ele teve amplas oportunidades quando os japoneses começaram o "Expresso de Amchitka". Dois e três, às vezes até seis, hidroaviões "Rufe" levantavam voo de Kiska e atacavam com bombas a pista em construção. Aviões de caça dos Estados Unidos forneciam alguma cobertura aérea, mas os "Rufes" em geral esperavam até os caças partirem para reabastecimento e então levantavam voo e faziam suas incursões sobre a base. Tão logo eram detectados pelo posto de observação em Aleut Point, como era chamada a ponta noroeste, um sinal de alerta era mandado para a base.
A despeito da perturbação do inimigo, os engenheiros acabaram a pista. Pelo fim do mês, o grupo de Tigres Voadores de Chennault tinha aterrissado seu esquadrão de Warhawks P-40 em Amchitka. Agora, quando Wylie sinalizava a aproximação de "pontoon Joe", como eles haviam apelidado o piloto que voava regularmente no Amchitka Express, os Tigres levantavam voo para formar um comité de recepção. As incursões de bombardeio do inimigo começaram a diminuir até cessar, depois da chegada do esquadrão dos P-40.
Após ter ficado estacionado no posto avançado isolado por um mês, Wylie estava acreditando no perigo real de apanhar o "olhar das Aleutas". Ele já o vira nos rostos de outros recrutas e entre as tripulações de voo e também de pilotos. Era o olhar vago de uma pessoa que não mais dá importância a coisa nenhuma. Alguns culpavam o clima desolador daquele olhar - o vento constante, o frio e o nevoeiro - as condições miseráveis de vida, a infinita monotonia de seu serviço, quer fosse voar no "mingau", reparar um avião pela centésima vez, sabendo que ele teria que ser reparado de novo, ou construindo coisas e observando um williwaw rolar das montanhas e derrubar tudo em segundos, ou cavar trincheiras e depois enchê-las de novo nas intermináveis tentativas do Exército de manter os soldados ocupados todo o tempo com alguma coisa, mesmo que para isso fosse preciso inventar trabalho.
Não havia rodízio dos efetivos e as diversões eram poucas, usualmente limitadas a escutar o rádio, alguns discos arranhados e, para aqueles estacionados, em Dutch Harbor, Umnak e recentemente Adak, velhos filmes tipo B de Hollywood. A bebida era rara. Em Adak, Wylie vira uma vez uma fila do tamanho de um quarteirão na cantina depois que esta recebeu um embarque de Coca-Cola.
Apatia, doenças fingidas, irritabilidade, insónia e desinteresse eram apenas alguns dos sintomas. Alguns perdiam seu senso de humor e não podiam nem ouvir piadas sobre sexo. Outros tornavam-se homossexuais. Todos os meses havia vários suicídios. Alguns apenas se recolhiam dentro de si mesmos e ficavam com o olhar parado. Em geral voltavam para casa - em camisa-de-força.
Como um membro dos Batedores do Alasca, Wylie não apenas escapara de boa parte da disciplina militar, mas também de uma porção de cansativa rotina. Ele sabia o que estava acontecendo, enquanto a maioria dos outros não sabia. Dos duzentos mil soldados agora estacionados no Alasca, a maior parte era de pessoal de apoio, não-combatentes, que nunca entrariam em ação. Wylie sabia que o comando estava empenhado em empurrar os japoneses para fora das Aleutas. Era apenas uma questão de tempo antes que fosse montada uma invasão contra as duas ilhas em poder do inimigo. Neste ínterim, entretanto, ele estava metido no posto de observação em Amchitka.
No fim de janeiro, um outro pelotão de Batedores veio substituí-los. Eles fizeram a caminhada de volta para o acampamento-base, onde Wylie descobriu que as condições não eram muito melhores do que no minúsculo posto avançado. O caminho mais direto para a barraca atravessava uma série de poças d'água que mais pareciam lagos. Ao lado dele Big Jim praguejava, enquanto eles se atolavam na lama para chegar a suas barracas e arriar suas mochilas dentro delas.
- Vamos para o rancho. Preciso comer uma comida decente queixou-se Big Jim.
- E você acha que lá tem? - mas Wylie ajustou a bandoleira meio solta de seu fuzil e voltou a enfrentar o vento frio.
Nesse momento, as sirenes de ataque aéreo dispararam. Automaticamente, Wylie voltou-se para observar o céu do lado noroeste, a direção de Kiska. Ao seu redor homens corriam apressados para guarnecer os canhões antiaéreos ou para procurar abrigo. Ele descobriu uma grande formação em "V" que se aproximava de Amchitka a grande altitude.
- Que inferno! Eles nunca mandaram mais que seis aviões - afirmou Big Jim, esforçando-se para identificar os aparelhos. - Deve haver uns trinta deles.
- Há algo de errado, - Wylie apertou os olhos para ver melhor, mas a formação estava muito longe. - Gostaria de ter um par de binóculos.
- É melhor darmos o fora daqui, e depressa. Quando eles deixarem cair suas bombas não vai sobrar nada da base. - Ele começou a empurrar Wylie na direção da montanha. Wylie deixou Big Jim apressá-lo para afastarse da área das barracas, mas continuava a observar a formação.
- Ei, onde é que vocês vão? - gritou-lhes alguém.
- Wylie reconheceu a insígnia de piloto da Marinha que o homem usava e parou. Ao longo da pista, os P-40 Warhawks dos Tigres Voadores estavam esquentando seus motores, as hélices girando e borrando os tigres de Bengala pintados no seu nariz que mostravam os dentes.
- É melhor andar depressa, senhor - aconselhou Wylie. - Se não o fizer, aqueles aviões japoneses vão reduzi-lo a pó.
- Se aquilo são aviões japoneses, eles são os primeiros que já vi que batem asas - zombou ele.
- Merda! São gansos - disse Big Jim e começou a rir.
Wylie juntou-se a ele e riu até que ficou com a barriga doendo e lágrimas nos olhos. Ainda rindo, Wylie e Big Tim patinharam na lama até a barraca do rancho.
- Isto me faz lembrar daquela ocasião em que aqueles PBY da Mannha pensaram que haviam apanhado a esquadra japonesa em seus andares e começaram a deixar cair suas bombas. Acontece que eles quase afundaram as ilhas Pribilof. - com a recordação, Big Jim desatou em nova gargalhada.
Durante todo o caminho trocaram histórias, tentando superar um ao outro contando as mais absurdas. A caminho do rancho, pararam para pegar a correspondência endereçada a eles. Ambos estavam tão fracos de tanto rir que mal podiam manter-se de pé.
Quando entraram no rancho, Big Jim parou para limpar seus olhos lacrimejantes.
- Aposto que todo mundo está pensando em que porra nós andamos bebendo.
- Que diabo! Eles apenas darão uma olhada para nós e pensarão que andamos provando nossa loção após a barba - replicou Wylie.
Cerca de uma dúzia de soldados estavam no rancho e mais alguns vinham entrando. Wylie e Big Jim andaram para assumir seus lugares na fila.
Um cozinheiro veio da área da cozinha, carregando uma bandeja fumegante de algum prato irreconhecível, e colocou-a num lugar vago na fila. Uma manta de lã estava enrolada no pescoço do cozinheiro e em sua cabeça havia um gorro de pele com protetor de orelhas; suas mangas estavam enroladas, expondo os antebraços nus.
Big Jim colocou sua bandeja de comida ao lado da de Wylie, depois passou a perna por cima do banco e sentou-se.
- Milho cozido e salsichas de Viena. - Big Jim espetou com o garfo uma panqueca que parecia couro e perguntou: - O que será isso?
- Acho que ouvi chamar de "tampão de cu".
- Porra! Mas ficarei contente quando voltar para Circle. Aposto que nem os ursos comeriam esta merda. - Mas, mesmo assim, ele meteu a mão na massa. - Não sei de que estou sentindo mais falta: de comida, de uísque ou de mulher. Você sabe desde quando não dou uma trepada? Eu não sei nem se me lembro de como se parece uma mulher.
- Do que está falando? - zombou Wylie. - Você não sabe que nas Aleutas há uma pequena atrás de cada árvore?
- Muito engraçado! - resmungou ele que sabia muito bem que não havia árvores nas ilhas Aleutas. Descansou os talheres na mesa e levantou-se. - Preciso pegar algum café para ajudar a comida a descer.
A comida tinha gosto tão ruim quanto sua aparência. Em vez de pensar no que estava colocando na boca, Wylie meteu a mão dentro da parka e puxou as cartas que havia apanhado. Correu os envelopes com os dedos e viu aquela pela qual estava esperando, a de Lisa. Deixou as outras de lado e abriu-a.
Querido Wylie,
Já faz muito tempo que não tenho notícias suas. Vi sua mãe na igreja no último domingo e perguntei-lhe se você mencionara que haveria uma chance de vir para casa em breve. Pensei que você pudesse arranjar um passe de fim de semana no feriado de Ação de Graças, mas ela me disse que você não lhe deu indicação de que viria.
Esperava que viesse. Tenho desejado falar com você de forma a poder explicar-lhe algumas coisas. Não queria escrevê-las numa carta. Mas, uma vez que não estou certa de quando você estará em casa, decidi que era melhor não esperar para contar-lhe. Não estou certa se você se lembra de Steve Bogardus, o homem para quem eu trabalhava, mas Steve e eu vamos nos casar em dezembro. Eu...
Dezembro. Wylie não se incomodou em ler o resto. Era dia lº de fevereiro; ela já estava casada. Inconscientemente, ele apertou mais a carta na mão, amassando um canto dela.
- Ei, Wylie! Olhe aqui. Eles têm uma revista cheia de mulheres nuas. - Big Jim abriu a revista na frente dele.
Estava aberta numa página que mostrava uma moça de cabelo ruivo, seu corpo nu arqueado em pose provocativa. Uma fúria incontrolável apossou-se dele. Wylie estendeu o braço às cegas, arrancando a revista das mãos de Big Jim; e, levantando abruptamente as pernas, virou a mesa e o banco. À distância podia ouvir Big Jim gritando com ele, mas a expressão zangada e espantada do rosto do amigo nada significava. Ele queria bater em alguma coisa - qualquer coisa - e Big Jim era o que estava mais perto. Ele deu um soco no meio daquela barba branca e suja e depois jogou-se sobre ele quando Big Jim caiu de costas.
A primeira coisa que sentiu foram vários pares de mãos separando-o de seu amigo. Sua agressividade esvaneceu-se ao ver Big Jim levantar-se vagarosamente, movimentando o queixo para ver se ainda estava no lugar.
- Que porra deu em você? - perguntou Big Jim, com os olhos arregalados.
- Desculpe-me. - Wylie desembaraçou-se das mãos que o seguravam, sentindo-se meio enjoado por dentro e sem querer encarar o amigo nos olhos. Relanceou o olhar pela mesa virada e a comida espalhada, depois abaixou-se e pegou o banco.
Os soldados que tinham apartado a briga levantaram a mesa e colocaram-na de novo em pé. Um deles apanhou a correspondência de Wylie do chão enlameado, incluindo a carta de Lisa. Quando Wylie viu que ele começava a lê-la, arrancou-a de suas mãos.
- Esta carta é minha, cara! - rosnou ele.
- Eu não ia ficar com ela! - retorquiu o soldado.
- Vai ver que a carta diz "Querido John..." Quer apostar? - falou um de seus camaradas.
Big Jim interveio, ficando de pé ao lado de Wylie.
- Você não tem nada a ver com isto, soldado, com o que a carta diz.
Mas todos sabiam. O silêncio no rancho demonstrou-o para Wylie. Ele amassou a carta, fazendo dela uma bola, e meteu-a no bolso interno de sua parka.
Um soldado de origem mexicana bateu acidentalmente no braço de Big Jim, quase fazendo-o derramar o café.
- Cuidado, Pedro! - resmungou ele e se enfiou no estreito espaço no banco ao lado de Wylie. - Você nunca teve a sensação de que submarinos não foram projetados para serem navios de transporte?
- Uma ou duas vezes.
O Nautilus era um dos maiores submarinos da esquadra, com um deslocamento de cerca de 2.700 toneladas, mas mesmo suas acomodações estavam superlotadas pela adição de uns 125 passageiros, parte da força de dez mil homens distribuídos entre os 34 vasos da esquadra de invasão. A tempestade tinha feito adiar o desembarque em Attu programado para o dia 7 de maio, repetidamente postergando essa data a cada 24 horas. Agora a tempestade tinha cessado e a operação "Landcrab" estava marcada para começar às primeiras horas da manhã do dia 11. Em vez de um desembarque em massa, a Divisão de Exército estava dividida em quatro segmentos. O maior contingente de soldados, a Força Sul, deveria desembarcar na baía do Massacre; a Força Norte deveria atacar o porto norte e a base de submarinos na baía Holtz; um regimento seria mantido em reserva a bordo; e o quarto grupo, formado de um batalhão de choque de 410 oficiais e soldados que havia sido organizado durante os últimos três meses pelo capitão Willoughby. Este Batalhão Provisório de Batedores, como era chamado, deveria desembarcar na praia Scarlet e cortar qualquer retirada de japoneses para as montanhas. Os Batedores do Alasca, que tinham treinamento de comandos, achavam-se dispersos entre os vários regimentos. Wylie e Big Jim acabaram ficando com o batalhão de Willoughby.
Um soldado magricela do Texas começou a sentar-se num lugar vago do outro lado da mesa em frente a Wylie e Big Jim, depois olhou para o barbado e de aspecto feroz e hesitou, perguntando com sua voz arrastada:
- Posso me sentar aqui?
- Acomode-se - respondeu Big Jim, encolhendo os ombros. O texano sentou-se e começou a colocar açúcar no café.
- A maior parte dos caras estão tentando dormir um pouco antes de entrarmos em ação, mas não pude fechar os olhos. Creio que vocês dois também não puderam dormir. - Ele meteu a colher no café e misturou o açúcar que estava no fundo. - Vocês acham que os japoneses estarão lá esperando por nós?
- É difícil dizer.
- É uma coisa de doidos, você sabe? - Ele sorriu nervosamente.
- Nós temos estado treinando há meses naqueles desertos da Califórnia, aprendendo a guerrear no deserto. Diziam que iríamos para a África do Norte a fim de enfrentar a turma do Rommel. Então, há três meses eles começaram a nos transformar numa unidade anfíbia. Quando embarcamos naquele navio em San Francisco, todos imaginamos que estávamos indo para as ilhas Salomão. Droga! Já devíamos estar no mar há três dias antes que eles nos dissessem que estávamos navegando para as Aleutas. Que merda! Eu nunca soube onde elas ficavam...
- Uma porção de gente não sabe - comentou Wylie, tirando um cigarro de um maço e acendendo-o.
Durante a semana em que tinham estado amontoados no submarino, Wylie ouvira a mesma história muitas vezes. Mesmo varrendo todas as bases no território, o Alasca não podia reunir bastantes soldados treinados para combate a fim de formar uma divisão completa e nenhum treinado para um assalto anfíbio. Mas o Departamento da Guerra tinha a Sétima divisão Motorizada pronta, treinada para guerra de tanques no deserto. Uma vez que ela não era mais necessária no norte da África, eles a designaram para a invasão anfíbia da ilha subártica aléute de Attu. Então, com o mesmo segredo com que haviam envolvido toda a campanha das Aleutas, os soldados não tiveram conhecimento de seu destino senão quando estavam a caminho. Chamar isso de coisa de doido era quase uma subafirmação. O que talvez fazia ainda mais insano era o fato que apenas o Batalhão Provisório de Batedores era o único que já havia posto os pés em solo das Aleutas, treinando por uma semana na neve e na tundra de Dutch Harbor. O resto da divisão não tinha quase conhecimento do terreno ou das condições em que teria que lutar.
Uma carência de fardamento para clima frio impedira o Exército de uniformizar corretamente a força de invasão. Willoughby conseguira invadir o depósito de suprimentos em Dutch Harbor e reuniformizara os Batedores com jaquetas próprias, meias e botas a prova d'água.
Sem isto Wylie duvidava que seu batalhão tivesse qualquer chance de sobreviver na caminhada por terra que teriam de fazer para se tornarem as "pinças" da Operação Landcrab.
Wylie dava crédito ao capitão por ter preparado seus homens da melhor maneira que ele pôde no tempo de que dispôs. Em vez de fuzis, metralhadoras portáteis e armas leves, ele tinha armado seus homens com fuzis automáticos, metralhadoras, morteiros e equipamento de demolição. Em vez de munição de balas, eles carregavam traçadoras e projéteis de perfuração de blindagem capazes de penetrar no gelo em vez de ricochetear. Suas mochilas estavam cheias de granadas, junto com um suprimento de comida para um dia e meio.
- Digo a vocês uma coisa com a qual estou satisfeito - disse o texano, falando constantemente de forma a não ter que pensar na batalha próxima. - É que não estou na Força Sul que vai desembarcar na baía do Massacre. Quero dizer... isso seria mal-assombrado, não seria? Por que alguém iria dar a um lugar um nome como esse?
- Há cerca de duzentos anos alguns caçadores russos assassinaram todos os homens de uma aldeia nativa naquela baía. Foi por isso que veio a chamar-se baía do Massacre - informou Wylie.
- Eu sentiria arrepios de medo se tivesse que desembarcar ali - declarou o soldado.
Soou um alarme chamando a tripulação do submarino para seus postos de combate. A voz do capitão surgiu no sistema de alto-falante:
- Apanhamos um navio não-identificado em nosso radar.
- Jesus! Aposto que é um submarino japonês! - A exclamação nervosa do texano abafou parte da explicação que o comandante do submarino oferecia a seus passageiros.
- Estamos nos aproximando agora do alvo.
Todo mundo fez silêncio. Wylie esperava tenso por algum ruído, alguma vibração do navio que indicasse que os torpedos tinham sido disparados.
Momentos mais tarde, foi dada ordem à tripulação para ficar à vontade. A nave não identificada, verificara-se, era o submarino irmão do Nautilus, o Narwhal, com seu contingente do batalhão de Batedores. Os torpedos estavam prontos para serem lançados quando o capitão reconheceu o Narwhal.
- Não gosto disso - falou Big Jim para Wylie. - Primeiro aqueles dois destróires se chocam no meio deste nevoeiro. Agora quase torpedeamos um de nossos próprios submarinos. Digo-lhes que não gosto!
- Não sabia que você era supersticioso.
- Escutem, vocês aí! - exclamou um soldado, entrando na cozinha. - Eles pegaram uma irradiação do Walter Winchell numa estação de rádio do Alasca, na qual ele disse: "Para o sr. e sra. América e todos os navios no mar: fiquem de olho nas ilhas Aleutas!"
- Que merda! - Big Jim arriou sua caneca, desgostoso. - Por que nós não soltamos uns foguetes de sinalização de forma a que os japoneses saibam que estamos chegando?
Uma hora depois da meia-noite, Wylie e Big Jim estavam próximos à frente da fila que se formava em direção às escotilhas quando o submarino subiu à superfície. À frente deles o tenente voltou-se e examinou a fila:
- Lembrem-se: movimentem-se tão silenciosos quanto possível e tão rápido quanto puderem - instruiu-os de novo. - Se qualquer inimigo for visto, este submarino irá mergulhar, quer estejamos a bordo dos botes ou não. Então temos que mover-nos rápido para fora. Entenderam?
As cabeças balançaram afirmativamente. Quando o submarino emergiu, um marinheiro na mesma hora girou a roda, abrindo a escotilha. Wylie recuou um pouco, evitando a água fria do mar que respingou para dentro. Subiu depressa pela escada à frente de Big Jim e quase não podia passar espremendo-se pela estreita abertura com sua mochila de combate cheia.
Movimentando-se rapidamente, eles inflaram os botes de borracha no convés de popa do submarino e subiram para dentro deles, amontoando-se. O tenente fez um sinal para a torre de comando; logo a seguir as escotilhas foram fechadas. Wylie observou as escuras águas do mar lavarem o convés do submarino quando ele começou a afundar. Um instante mais tarde, ele sentiu a água que subia levantar o bote e afastá-lo. Eles estavam a três milhas da costa ocidental de Attu, cujo nome de código era "Jackboot".
Levou-lhes duas horas para chegarem a um pequeno trecho de praia no lado oeste da ilha. Uma suave rebentação levou-os até a terra à luz da manhã. Wylie e Big Jim rapidamente pularam n'água pelo lado e avançaram para terra no meio da neve pesada que atingia até a linha da maré baixa. Montanhas formavam uma muralha em volta da praia coberta de neve, elevando-se diretamente da areia. A praia parecia não estar defendida.
A temperatura estava abaixo de zero quando Willoughby reuniu seus oficiais e homens na praia. Ele era um camarada musculoso, de 1,80m, e uma figura imponente, com cinturões de munição de metralhadoras cruzando-lhe o largo peito. Instintivamente, Wylie e Big Jim vigiavam o nevoeiro que se esvanecia nas montanhas enquanto o capitão ordenava que os botes de borracha fossem içados para terra acima da linha da maré e mandou um sinal para os submarinos que esperavam ao largo à profundidade de periscópio.
Quando o sol começou a subir no horizonte, o nevoeiro foi-se levantando. Willoughby encaminhou-se para Wylie e observou as paredes de montanha que cercavam a praia.
- Se os japoneses têm quaisquer sentinelas nessas montanhas, o nevoeiro não vai esconder-nos deles por muito mais tempo. Vamos descobrir um caminho para cima.
- Uma torrente cortou uma profunda ravina ali. - Wylie fez um sinal em direção ao corte na montanha. - Parece que poderá levar-nos até o cimo.
- Vamos andando!
Wylie e Big Jim assumiram a liderança na ravina onde a neve havia endurecido, enquanto Willoughby e o batalhão de Batedores enfileiravam-se atrás deles. Dois homens ficaram na praia para guiar o resto do batalhão programado para desembarcar em breve do destróier. O ar estava gelado e queimava-lhe os pulmões quando Wylie se esforçava pelo forte aclive acima. O sol estava alto, mas o vento continuava forte.
Ele não podia livrar-se da sensação que o inimigo estava justamente atrás do primeiro montículo de neve. Perscrutava constantemente a neve batida pelo vento à sua frente, colorida de azul pelo céu limpo de nuvens. Em outras circunstâncias, ele poderia ter visto a beleza do jogo de luz, mas no momento estava mais preocupado em saber onde estavam os japoneses.
O ronco de motores de avião cresceu acima do ruído de sua própria respiração forçada e da neve sendo amassada embaixo de seus pés. Wylie parou e, olhando em direção ao mar, detectou um grupo de Wildcats F do porta-aviões da esquadra de invasão. Quando os aviões fizeram uma curva em direção à praia, os outros soldados na longa linha irregular viraram-se para observá-los.
- Que diabo eles estão fazendo? - perguntou alguém.
Wylie ouviu a explosão dos tiros dos canhões deles um instante depois de ver o trajeto de seus traçadores quando eles metralharam a praia, estraçalhando os botes de borracha com suas balas e mandando os três homens que Willoughby deixara lá saírem disparados à procura de abrigo. Os botes foram destruídos.
- Uma porra de uma coisa está certa agora: nós não poderemos nos retirar - observou Big Jim cinicamente. - A gente chega a pensar que eles talvez o tenham feito de propósito.
Dando as costas para o mar, eles se lançaram de novo em direção aos altos picos acima deles, labutando através da neve e da tundra esponjosa. Wylie podia ouvir a trovoada dos canhões dos navios da Marinha bombardeando as praias onde as duas outras forças de assalto tinham que desembarcar.
O sol continuava a brilhar nas alturas da ilha, mas o nevoeiro se mantinha nos vales como nuvens de algodão. com a neve, os ventos frios e o terreno mole, a progressão era vagarosa mesmo para os homens em plena condição física. A barba de Wylie estava incrustada com cristais de gelo provenientes da umidade em sua respiração. Pelo fim da tarde, Wylie e Big Jim chegaram à crista da montanha, bem à frente do batalhão. Daquela posição elevada podiam ver à distância a baía Holtz, onde as defesas de retaguarda dos japoneses supostamente se localizavam. Eles se agacharam contra o vento que os fustigava e abanaram a Willoughby para indicar-lhe sua posição , depois esperaram ali, vigiando o terreno, enquanto dele voltava para trazer para cima seus homens.
- Ainda não ouvi nenhum fogo do inimigo. - O vento carregava a voz de Big Jim, tentando fazê-la desaparecer. - Você supõe que os outros chegaram às praias?
Wylie sacudiu a cabeça, relutando em dar palpite, e movimentou seus dedos dormentes para mantê-los flexíveis; depois apertou mais a mão que pegava no fuzil automático.
- Ouvi o general De Witt alegar que podíamos tomar esta linha em três dias. Quase já se passou um dia não vimos nenhum sinal de japoneses.
Um par de bombardeiros americanos roncou no céu por cima deles, depois voou num círculo em volta da posição deles para lançar, conforme programado, mais munição, medicamentos e alimentos para refazer seu magro suprimento de 36 horas. Wylie observou os pacotes caindo de um dos B-24, os pára-quedas se abrindo e enchendo com ar. Quando eles caíam para terra em direção à posição, o forte vento pegou-os e carregou os páraquedas além da crista da montanha. Wylie praguejou quando viu os páraquedas caindo numa profunda ravina, completamente inacessível.
Quando os bombardeiros continuaram a circular por cima deles como um par de gigantescos abutres, Big Jim resmungou, zangado:
- De que porra de lado eles pensam que estão? Se os malditos japoneses não sabiam que não estávamos aqui antes, eles certamente o sabem agora.
Não longe deles, seu comandante estava agitando furiosamente os braços, tentando sinalizar os bombardeiros para se afastarem antes de denunciarem a posição deles para o inimigo. Wylie limpou seu nariz molhado com as costas da mão enluvada, sentindo o muco que congelava nos cabelos de seu nariz.
- Talvez não haja japoneses nesta ilha.
Até agora ele não tinha ouvido nenhum barulho de resistência, presumindo que os outros desembarques tivessem sido executados de acordo com o programado. Ele não podia deixar de pensar se esta não iria ser como todas as outras missões nas quais eles haviam desembarcado, esperando dificuldades e não encontrando nenhuma.
- Eles estão aqui. - Big Jim lançava os olhos sobre as costas escarpadas e os vales cheios de névoa. - Posso cheirar os filhos da puta de olhinhos apertados.
Quando Willoughby deu ordem para se movimentarem, Wylie olhou pela última vez para os suprimentos no fundo da ravina, e depois apressou-se. Sabia que se não pudessem ligar-se com a Força do Norte, eles iriam passar fome.
O batalhão de Batedores passou sua primeira noite em Attu no topo de uma montanha, numa armadilha que lhes foi preparada pela escuridão e por um nevoeiro que os deixou cegos e açoitados por um vento gelado.
Quase sem poder ver um palmo adiante do nariz nesse terreno traiçoeiro, eles foram obrigados a acampar. Sem um fogo para aquecê-los, Wylie e Big Jim mantiveram-se andando, a despeito de seu cansaço, e juntaram-se a seu comandante, exortando o resto dos soldados a fazerem o mesmo. Alguns não o fizeram e pela manhã estavam sofrendo de sérias queimaduras de frio.
À primeira luz da manhã eles se dirigiram para o sudeste, forçando seus ombros meio congelados a carregá-los para o outro lado da montanha ocidental. Dali dominavam as posições defensivas do inimigo ao longo dos cismos a oeste da baía Holtz. Wylie não tinha mais que cismar se ainda havia japoneses na ilha. No momento o inimigo parecia ignorar que o batalhão de Batedores estava à sua retaguarda.
Movimentando-se com rapidez enquanto ainda não haviam sido detectados, eles desceram as íngremes escarpas, literalmente escorregando por elas abaixo. De repente, a artilharia japonesa abriu fogo. Wylie correu, procurando abrigo atrás de um bloco enorme de gelo. Embaixo, os japoneses abandonaram suas trincheiras em cima da crista e atacaram pela encosta acima. Wylie começou a atirar nos alvos humanos móveis, seu fuzil juntando-se ao estrépido das metralhadoras respondendo ao fogo do inimigo. Um grande morteiro da retaguarda forçou os japoneses a se retirarem para seu entrincheiramento na crista. Wylie e os outros enterraram-se nas encostas frias e cobertas de neve.
As coordenadas das posições de artilharia do inimigo foram transmitidas pelo rádio para o navio de guerra que estava ao largo da costa. Quando seu bombardeio demonstrou-se ineficiente, a aviação foi chamada para bombardear os alvos. Ao final do dia, os japoneses ainda os tinham imobilizados nas encostas. Tinham lutado para um impasse. Sob a coberta da noite, Wylie ajudou a levar alguns dos feridos para uma ravina na retaguarda, onde uma enfermaria improvisada tinha sido montada pelo médico do batalhão. Aquilo manteve seu corpo em movimento e sua mente afastada do frio que entorpecia e da fome que mordia seu estômago. Seu suprimento de comida esgotara-se naquela manhã.
O dia seguinte começou como uma repetição da luta na tarde anterior - sem comida, sem descanso, sem calor e ainda imobilizados pelos japoneses. Wylie ouviu um avião que os sobrevoava, mas as nuvens eram por demais espessas e baixas para poder vê-lo. O capitão não podia chamar ninguém no rádio, de forma que a situação das outras forças de ataque era desconhecida. A deles era bastante precária.
Naquela tarde, Willoughby comandou um ataque contra os cimos do inimigo. Correndo de um monte de gelo para o outro com o fogo de metralhadoras levantando neve e pedaços de tundra por toda a volta dele, Wylie avançou até a posição inimiga, atirando em qualquer coisa que se parecesse com um alvo. Arrastando-se sobre a barriga, ele rastejou por um trecho de gelo até um ninho de metralhadoras inimigo, enquanto Jim lhe dava cobertura de fogo. Quando enfiou o dedo no anel gelado do pino da granada, ele ficou consciente do suor que umedecia suas roupas e distraidamente se maravilhava que pudesse estar gelado até os ossos e ao mesmo tempo transpirando. Puxou o pino, lançou a granada no ninho dos japoneses e depois espremeu-se de encontro ao chão lamacento que a explosão da granada sacudiu. Então tudo passou de repente quando ele avançou com a arma disparando em direção ao buraco fumegante.
Depois de algumas horas de luta feroz, eles desalojaram os japoneses de sua posição a cavaleiro deles. Quando chegou a escuridão, eles estavam firmemente entrincheirados. Wylie retirou-se para uma caverna que tinha sido escavada num barranco de neve e manteve-se próximo ao minúsculo fogo que havia sido aceso. Depois de esquentar suas mãos nas pequenas chamas, ele retirou as botas e mudou um par de meias secas, ciente de quão rápido as coisas podem congelar naquelas temperaturas. Se isso acontecesse, uma área congelada - ou pior ainda, um membro congelado - era um fato consumado.
Wylie levantou os olhos quando Big Jim entrou na caverna de neve, uma figura respeitável com suas barbas, suas pestanas e suas sobrancelhas incrustadas de neve e de gelo. Wylie sabia que sua aparência não era nada melhor. com as mãos tremendo com o frio, Big Jim acendeu um cigarro, depois amassou o pacote vazio e jogou-o na pequena fogueira, que era alimentada por caixas de rações vazias e qualquer outra coisa que eles achassem e que queimasse.
Por trás do perímetro do pico, uma voz japonesa, ampliada por um megafone, provocava-os em inglês: "Cães americanos! Vocês vão morrer! Amanhã nós os matamos!"
- Que diabo! - resmungou Big Jim. - A única coisa que eles têm de fazer é ficar por lá e esperar que fiquemos congelados ou morramos de fome. - Ele tirou uma fumaça do cigarro e ofereceu-o a Wylie.
- Obrigado. - Os lábios dele estavam tão dormentes que quase não podia sentir o cigarro entre eles ao inalar a fumaça. A fumaça tonteou-o um pouco e ele passou o cigarro de volta para Big Jim. - A que distância você pensa que estamos do passo de montanha entre Holtz e o vale do Massacre?
- Três quilómetros, mais ou menos.
Esperava-se que eles fizessem ligação com a Força Norte naquele passo. Há dois dias que estavam sem comida; tanto sua munição quanto seus remédios estavam se esgotando. No momento, sua única esperança de obter os suprimentos necessários estava em alcançar suas próprias linhas. Mas em seu caminho havia um obstáculo...
- Ianque! Você vai morrer! - repetiu o verdugo japonês.
Wylie rangeu os dentes. Nas circunstâncias era difícil argumentar contra aquela predição. Esfregou seus pés, sentindo picadas como de finas agulhas enquanto tentava estimular o fluxo do sangue. Finalmente, enfiou as botas.
- Ei, o fogo está ficando baixo. Alguém tem alguma coisa que se possa jogar nele? - Big Jim olhou para os outros soldados amontoados na caverna de neve, aproveitando sua vez para roubar um pouquinho de calor. Procuraram em seus bolsos, mas a única coisa que retiraram foi um invólucro de chicletes.
Wylie olhava para as chamas que morriam por mais uns minutos, depois desabotoou sua parka e enfiou a mão dentro dela. Puxou a última carta que recebera de Lisa - aquela que lera tantas vezes que quase a decorara. Alisou-a e depois colocou-a com delicadeza no fogo. Observou quando ela queimou e enrugou-se quando as chamas a lamberam. Por um momento o que estava escrito apareceu claramente, depois o papel escureceu. Ele abotoou de novo a parka, enrolou os braços em volta do fuzil meio solto a tiracolo, e inclinou-se para frente, olhando para as chamas.
- Wylie - disse Big Jim hesitante, sua voz num tom baixo. - Tenho um favor a pedir a você.
- Peça. - Wylie observava a cinza de sua carta murchar e cair.
- "Steve e eu estamos nos casando." As palavras pareciam queimar-lhe por dentro a cabeça.
- Você se lembra de que mencionei que tinha essa mulher que cozinhava e tomava conta da casa para mim em minha cabana nos arredores de Circle?
- Sim. O que há com ela? - resmungou Wylie.
- Se alguma coisa acontecer comigo, Wylie, você daria uma olhada por ela? Você sabe, ver se ela está bem...
Acordado de seu próprio sonho pela inesperada solicitação, Wylie levantou a cabeça.
- De que você está falando, Dawson? Nada irá acontecer com você ou comigo... a não ser que conte congelar seus bagos. Você está falando tolices e sabe disso, Dawson.
- Sei. Mas, mesmo assim, se qualquer coisa acontecer, você irá vêla? - persistiu Big Jim. - O nome dela é Anita Lockwood e ela está morando em minha cabana no Yukon. Disse-lhe que podia ficar até eu voltar.
- Porra, Dawson! Quer parar com isso? - Wylie estava zangado com ele por falar daquela maneira.
- Você vai vê-la?
- Sim - disse ele bruscamente.
No breve silêncio que se seguiu, dois soldados dentro da caverna trocaram de lugar com dois que estavam fora do abrigo de neve. Chegaram-se bem perto do fogo, seus dentes batendo. Reverentemente, um deles juntou pedaços rasgados de uma caixa de rações para as gulosas chamas.
- Wylie. - De novo Big Jim, hesitante, chamou-lhe a atenção. Ela é uma mestiça... parte índia atabasca.
Por um instante, Wylie ficou imóvel, relembrando o número de vezes em que tinha visto avisos que diziam NATIVOS NÃO PERMITIDOS. Havia muitos estabelecimentos em que Matty não podia entrar, o que significava que sua avó tinha de fazer a maior parte das compras para a pensão. Quase todos os lugares públicos, tais como cinemas, tinham setores separados para os nativos. Esquimós, aleútes e atabascos não tinham permissão de entrar nos clubes de serviço do Exército. Agora Wylie entendia por que Big Jim não tinha falado muito sobre essa mulher antes, e por que ele pensava que faria alguma diferença para Wylie.
- E daí? - disse ele, olhando para seu amigo.
Gratidão brilhava na expressão de Big Jim antes que ele virasse o rosto e dissesse:
- Eu apenas queria que você soubesse disso.
- Você já me disse; esqueçamos. Não vai haver nenhuma razão para eu vê-la, de qualquer maneira. - Ele fez uma pausa e olhou para o fogo.
- E para sua informação, meus antepassados eram aleútes, tlingits e russos.
- Enquanto vocês estão aí sentados quentinhos e confortáveis, ao lado do fogo, contem suas munições - disse o capitão, entrando abaixado dentro da gruta.
- Ei, Joe! - gritou o japonês da escuridão. - Amanhã de manhã você morre!
- Gostaria que alguém desse um tiro nesse filho da puta! - rosnou Wylie.
No quarto dia da batalha, seu quinto na ilha, a exaustão, a fome e o frio assassino fizeram mais vítimas que o inimigo. Homens capengavam com os pés gelados e vomitavam neve. Mesmo assim eles tiveram sucesso ao desbaratar um contra-ataque japonês, mas para isso gastaram o resto da munição do morteiro. Wylie sabia que era o desespero que os fazia andar para a frente, mesmo que tivessem de engatinhar porque não estavam em condições de caminhar. Não podiam retirar-se; não havia lugar para onde ir. Sua única salvação estava no encontro das linhas americanas.
Quando o sol caiu naquela noite, as balas do inimigo, a doença ou as queimaduras de gelo tinham incapacitado a metade do batalhão. Pelas informações de rádio que Willoughby recebeu, nenhuma das duas outras forças das três pinças da invasão estavam tendo melhor sucesso. A Força Sul, na baía do Massacre, que era o principal grupo de assalto, não tinha avançado dez metros de sua primeira posição. O inimigo ocupava o passo e os altos cimos que dominavam o vale e a Força Sul estava sofrendo pesadas perdas em seus repetidos assaltos ao passo. O vale do Massacre estava fazendo jus a seu nome. E a Força Norte tinha avançado um pouco mais do que um quilómetro e meio.
Willoughby ordenou uma contínua perturbação do inimigo naquela noite, determinado a não lhe dar uma chance de descansar ou transferir reforços para enfrentar a Força Norte. Wylie passou a noite numa fria ravina, abrigado do vento, batendo com os pés e agitando os braços para manter-se quente e acordado. Periodicamente, ele engatinhava até a crista da ravina e atirava nas posições japonesas.
Na manhã seguinte cedo, os japoneses pararam de revidar seu fogo. Pelo rádio o capitão Willoughby avisou o comandante da Força Norte que o batalhão estava se movimentando. Quando eles avançaram - caminhando, capengando e de gatinhas - tornou-se rapidamente aparente que naquela noite os japoneses haviam-se retirado. O caminho estava livre.
Quando eles desceram penosamente para a baía Holtz, Wylie sabia que formavam uma unidade de aparência patética, Dos 320 homens que chegaram à baía de Holtz, ele e Big Jim estavam entre os quarenta que podiam caminhar sem sentir dor. O batalhão perdera onze homens e contava com vinte feridos. Todos os restantes estavam sofrendo de severa exposição à intempérie, especialmente nos pés. Em alguns a gangrena já se manifestara. Os casos de hospital foram evacuados, deixando atrás uma força de 165 homens dos originais 420.
Quando se sentaram para provar sua primeira comida quente em quase seis dias - e numa barraca aquecida - Wylie bateu com a mão no ombro de Big Jim e lhe disse:
- Eu não lhe disse, seu filho da puta, que nada iria acontecer conosco?
Big Jim deu um sorriso cansado, depois voltou os olhos para o distante fragor da batalha e disse, cauteloso:
- Os japoneses ainda não foram expulsos da ilha, Wylie.
No dia anterior, os navios da Marinha ao largo da costa de Attu tinham usado toda sua munição de bombardeio. Não podiam mais atingir as posições inimigas; se aparecesse uma força-tarefa japonesa, eles não estariam em condições nem de se defender. As tropas terrestres dependeriam de apoio aéreo das aeronaves do porta-aviões e dos bombardeiros baseados em terra em Amchitka. Na maior parte do tempo, pesado nevoeiro e nuvens baixas mantinham-nos em terra. Mas a batalha continuava. A Força Sul continuava presa na baía do Massacre, inutilmente jogando seus homens contra as inexpugnáveis linhas japonesas, mas a Força Norte atacava o inimigo nas cristas que este ocupava acima da baía Holtz, ganhando as cristas em selvagens combates corpo-a-corpo. Wylie dormiu a maior parte do tempo em que isto acontecia, cansado demais para se importar.
Pouco depois da meia noite na manhã do dia 18, Wylie e Big Jim saíram de sua barraca e se juntaram ao que restava do batalhão de Batedores reunidos do lado de fora. com dois dias de descanso e estômago cheio, ele se sentia disposto e vivo de novo. O capitão pedira voluntários para sair em patrulha e explorar o passo que levava ao vale do Massacre. Era um serviço que Wylie tinha sido treinado para fazer. Todo mundo sabia do inferno que os japoneses vinham causando aos caras do outro lado do passo. Se houvesse uma chance de romper as linhas do inimigo, Wylie queria tomar parte.
Wylie e Big Jim foram designados para o pelotão avançado. Eles partiram à frente da patrulha principal para explorar a entrada norte do passo da montanha. Antes de chegarem ao topo, ouviram o ruído abafado de passos na neve e chocalhar de equipamento. Pensando que fosse uma patrulha inimiga, eles se espalharam e procuraram abrigo. Quando os vultos emergiram do nevoeiro, Wylie pressionou o dedo de encontro ao gatilho de seu fuzil automático. E então percebeu o murmúrio de vozes falando em americano.
- Alto! Quem vem lá? - perguntou o líder do pelotão.
A esquadra que se aproximava parou e rapidamente identificou-se como um destacamento das tropas do coronel Zimmerman no vale do Massacre. Os japoneses tinham retirado suas tropas do passo. Depois de uma semana de sangrenta batalha, as forças americanas tinham finalmente atingido seu objetivo e feito contato no passo de montanha entre a baía de Holtz e o vale do Massacre.
Centímetro por centímetro de sangrenta batalha forçaram o recuo dos japoneses; eles tomaram o topo da montanha em Point Able, depois Sarana Nose, empurrando firmemente o inimigo em direção ao mar e seu acampamento principal em Chichagof Harbor. O extenso vale de Chichagof apresentava-se aberto frente às tropas americanas, mas aquela avenida era um convite à morte. Os tenazes japoneses estavam entrincheirados ao longo da linha de cumes que dominava todo o comprimento do vale. Não havia alternativa: eles tinham que arrancar os soldados inimigos da linha Fisk Hook Ridge.
Três dias antes chegara ordem através da cadeia de comando para tomar a linha. Há três dias que vinham tentando. Mas as colinas escarpadas incrustadas de neve de gelo apresentavam aos soldados um dos terrenos mais difíceis que eles tinham tido que enfrentar. E os japoneses restantes estavam todos concentrados ao longo de todas as empinadas e ásperas alturas que formavam o dorso da linha.
No dia anterior nevara e os japoneses haviam usado a neve para camuflar suas posições, ficando imóveis sobre sua brancura, retendo seu fogo enquanto uma esquadra americana avançava, depois soltando-o com devastador efeito ou então rolando granadas encosta abaixo sobre eles.
A manhã clareou fria e relativamente limpa de nuvens. Wylie estava sentado num abrigo, seu fuzil confortavelmente aninhado nos braços, quase uma permanente extensão de seu corpo. A lâmina da baioneta calada brilhava fria à luz da manhã. Big Jim estava ao lado dele, bem enrolado dentro de sua parka para aquecer-se, sua respiração vaporizando-se numa nuvenzinha branca, enquanto ele observava os cumes denteados da linha de cristas. Eles estavam a cerca de sessenta metros do topo - não muito longe, mas eles todos sabiam que tinham que lutar metro a metro pelo resto da distância.
- De acordo com aqueles dois prisioneiros que eles capturaram ontem, há menos de mil soldados japoneses naquela linha de cristas. - Big Jim virou-se para olhar para Wylie, o capuz revestido de pêlo de sua parka não regulamentar cobrindo a metade de seu rosto. - Nós devemos ter quatorze mil homens na ilha agora. Será que esses filhos da puta não sabem que não podem vencer?
- Alguém deve ter esquecido de dizer-lhes. - Wylie mantinha seu queixo enterrado dentro de sua gola e do capuz circular de sua parka, deixando que o pêlo esquentasse sua boca fria. - É a mesma coisa que alguém ter-se esquecido de dizer a esses prisioneiros japoneses que não falassem. Ouvi dizer que eles nunca pensaram em serem feitos prisioneiros vivos, de forma que não foram instruídos quanto a revelar o efetivo e a posição de suas tropas.
- Mas são menos de mil... - insistiu Big Jim, sacudindo a cabeça. Wylie olhou para os outros soldados amontoados com eles dentro do
abrigo - desfigurados, com frio e fome, esperando pela temida ordem que os enviaria por aquela encosta acima num assalto coordenado sobre as posições inimigas. Estavam embrulhados em cobertores japoneses. A maioria deles usava bonés, capuzes ou botas a prova d'água que tinham tirado dos corpos de japoneses mortos para substituir ou suplementar o inadequado suprimento do Exército, embora isto significasse que eles podiam ser tomados pelo inimigo e baleados pelos seus próprios companheiros.
- Não acho que eles se sintam melhor sabendo que estão enfrentando menos de mil japoneses - disse Wylie, apontando na direção dos soldados que batiam os dentes.
- É. Acho que todos estão cansados de toda essa luta e essas mortes - disse Big Jim depois de estudá-los por um momento.
- Cuide-se para não ficar tão cansado que deixe sua guarda abaixar porque, posso garantir-lhe, os japoneses não vão nos dar nenhuma chance. A neve rangeu sobre as pegadas de alguém que se aproximava do abrigo correndo. A atenção de Wylie já estava se voltando para aquele som quando ajuntou: - E não estou particularmente interessado em cuidar de sua mulher...
Apareceu um sargento, correndo meio abaixado, e enfiou-se rapidamente na proteção do abrigo.
- Ok, rapazes, nós vamos mover-nos. E eu quero ouvir seus fuzis falarem em vez de seus dentes. Tudo pronto? - com seus gestos afirmativos, ele desviou sua atenção para os outros soldados quando eles relutantemente despiram seus cobertores e os colocaram sobre os ombros no estilo índio. - E lembrem-se: quaisquer japoneses mortos que encontrarem, se não estiverem fedendo, metam-lhe a baioneta.
- Sim, sargento, estamos entendendo - resmungou um deles, ouvindo aquela ordem muitas vezes repetida.
- Vamos descobrir onde eles estão hoje. - E, com um gesto de seu braço por cima da cabeça, o sargento deu o sinal de ataque.
Wylie e Big Jim pularam de dentro do abrigo juntos, atirando em direção à última posição conhecida do inimigo quando o assalto por três lados para o alto da crista começou. Wylie mal dera três passos quando balas de metralhadora começaram a descer a encosta, marcando a neve e procurando a alça certa para alcançá-lo. Ele jogou-se no sentido contrário e rolou para trás de um amontoado de neve, pouco mais de um metro depois do abrigo. Ao longo de toda a linha, a barragem mortal dos japoneses forçava os soldados atacantes a procurarem abrigo, reduzindo a carga a um avanço metro a metro.
- Parece que eles têm um ninho de metralhadoras naquele monte de neve à direita! - gritou Big Jim.
Wylie engatinhou até encontrar uma posição para observar e depois estudou as reduzidas aproximações até o ninho.
- vou ver se consigo chegar até aquela depressão à esquerda. Cubra-me! - Ele encolheu-se atrás do monte de neve e depois fez sinal com a cabeça para Big Jim, que estava pronto para tentar.
Esse rebaixamento na empinada encosta era pouco mais do que uma depressão rasa, mas qualquer cobertura era melhor que nada. Quando Big Jim abriu fogo, Wylie pulou da duvidosa proteção do monte de neve correndo em zigue-zague direto para a depressão, atirando enquanto corria. Balas zuniam e penetravam na neve em todo o seu redor. Uma bala bateu na manga de sua parka. Mas ele conseguiu chegar lá e achatou-se dentro do cavado, ouvindo a batida das balas na neve, procurando pelo lugar onde ele havia afundado. Ele respirava com dificuldade e seu coração parecia resfolegar como uma locomotiva.
Cuidando para não se mostrar, Wylie olhou a rasa depressão. Um pouco mais para cima, ela fazia uma curva para a direita. Dali parecia que ele poderia ser capaz de fazer uma volta e acabar ficando acima da posição dos japoneses em seu lado cego. Começou a "rastejar de barriga no chão.
O ruído de metralhadoras e fuzis trocando tiros estava em toda a volta dele, acentuado pela explosão de granadas. À distância, bombardeiros pesados trovejavam pelo céu, deixando cair suas cargas sobre o quartelgeneral do inimigo em Chichagof. O barulho surdo de suas bombas explodindo reverberava por toda ilha. O ar recendia ao cheiro acre da fumaça da pólvora.
Entretanto, todos os sentidos de Wylie estavam afinados com suas cercanias imediatas. Quando ouviu a fraca batida de metal contra o gelo, seguido pela queda de alguma coisa abafada pela neve, ele ficou rígido. Um segundo mais tarde, uma granada de mão do inimigo passou por cima dele rolando pela rampa abaixo.
- Granada! - gritou ele o aviso para aqueles que estavam por baixo e colocou-se de encontro ao chão úmido e frio, abraçando-se com ele.
Uma explosão ensurdecedora rasgou o ar. A tundra coberta de neve tremeu debaixo dele quando pedaços de neve, de barro e de gelo batiamlhe nas costas. Esperou um momento e depois continuou a subir. Escutou alguém galgando a rampa atrás dele. Quando chegou na curva na rasa ravina, olhou para baixo e viu Big Jim. Sorriu-lhe fracamente e continuou.
Levaram quase uma hora para progredirem sem ser vistos, até o amontoado de neve onde a metralhadora inimiga matraqueava sobre a companhia de soldados lá em baixo. Wylie chegou-se devagar até o mais perto que pôde, depois arrancou uma granada de sua fiada e agarrou o pino. Ele fez um sinal a Big Jim de que pularia primeiro. Num movimento perfeitamente sincronizado, eles se levantaram, um depois do outro, e lançaram suas granadas para o ninho e depois recuaram para abrigar-se. Os gritos e as explosões soaram como uma única coisa quando pedaços de carne, equipamento e neve foram lançados para o ar. Quando cessaram de cair, Wylie e Big Jim lançaram-se para o monte de neve.
Quatro japoneses tinham estado no ninho. Não restava muita coisa de dois deles. Os outros dois estavam no lado alto do monte de neve rodeados por neve manchada de sangue e barro queimado. A mão de um deles mexeu-se; Wylie liquidou-o com quatro tiros.
Subitamente, balas zuniram por suas cabeças. Eles se atiraram na trincheira cheia de restos de coisas que se comunicava com o ninho do inimigo, enquanto os outros soldados começaram a escalar a encosta para juntar-se a eles. Eles esperaram até que vários soldados tivessem escorregado para dentro da trincheira molhada e depois rastejaram para a frente, a fim de localizar a próxima posição japonesa.
A trincheira era reta por uns vinte metros, depois fazia uma curva fechada ao longo da crista. Wylie chegou devagar até o canto e espiou cautelosamente para o outro lado. Seu olhar caiu direto no cano de um fuzil japonês a dez metros de distância dele e pulou rápido para trás quando uma chama quente mordeu-lhe o rosto. Levantou a mão para o rosto; quando retirou-a havia sangue em sua luva. A bala abrira uma trilha em sua barba e arranhara-lhe a bochecha. Wylie não ligou para a ferida; naquele frio o sangue coagulava rapidamente ou congelava.
Fizeram algumas tentativas para jogar granadas ao longo da trincheira, mas o soldado inimigo continuava incólume. Finalmente, Big Jim pegou dois soldados e subiu para fora da trincheira numa tentativa de esgueirar-se por trás do japonês, enquanto Wylie e outros soldados o mantinham ocupado.
Minutos mais tarde, Big Jim mandou um dos soldados de volta com um recado que os japoneses tinham dois embasamentos de metralhadoras mais adiante. Não havia jeito de ocupar uma sem ficar exposto ao fogo da outra. Tinham que atacar a ambas simultaneamente. Para fazer isso era preciso deslocar o atirador isolado da trincheira e Big Jim não podia chegar atrás dele por causa das metralhadoras.
- Muito bem. - Wylie encostou-se na parede da trincheira e ficou estudando os três soldados que tremiam com as mãos enfiadas debaixo das axilas tentando mantê-las quentes. - Nós vamos jogar nossas granadas em volta do canto da trincheira e depois segui-las. Certifiquem-se de que vocês as jogam bem em volta do canto ou elas vão estourar em suas caras.
Eles jogaram as granadas como orientados em rápida sucessão. Quando a primeira delas explodiu, Wylie correu atrás deles e pulou para o lado oposto da trincheira, batendo com o ombro nela e atirando no meio da terra, neve e lama que explodiam quando ele chegou lá. Os outros o seguiram, ocupando o que restava do apertado espaço. Um deles escorregou e caiu ao mesmo tempo atirando às cegas no chuveiro de coisas em explosão. Quando o ar ficou claro, não houve fogo em resposta. Eles andaram cuidadosamente para a frente agachados, até que puderam ver a primeira metralhadora em sua base. Wylie mandou o soldado de volta para Big Jim com a mensagem de que estavam em posição e que aguardariam seu sinal.
O pio de uma coruja foi o sinal mais bizarro que Wylie jamais ouviu num campo de batalha. Ele estava rindo para dentro quando se lançaram em seu ataque às posições japonesas, cruzando o espaço aberto que estava exposto ao fogo das metralhadoras pelos próximos metros adiante e acima deles. Mas elas estavam ocupadas com Big Jim.
Dentro de alguns minutos eles haviam silenciado as metralhadoras e Wylie tinha enterrado sua baioneta na espinha do último japonês que parecia ainda estar respirando. Virou-se para ver se Big Jim necessitava de algum auxílio, mas tudo parecia sossegado daquele lado. Reconheceu a barba cor de neve e suaparka quando uma figura acenou para ele, sinalizando seu sucesso. Wylie começou a acenar de volta. Quando levantou a mão, o chão atrás de Big Jim explodiu. Por um segundo Big Jim pareceu congelado em sua posição, depois caiu de frente, esparramando-se por sobre a borda do ninho de metralhadoras.
- Não! - gritou Wylie e depois, imprudentemente, correu e, de pé e de quatro, atravessou o espaço entre sua posição e a crista do morro.
Os outros soldados chegaram a Big Jim antes de Wylie. Ele os empurrou e ajoelhou-se ao lado de seu amigo. com dificuldade, Big Jim focalizou os olhos nele e sorriu fracamente.
- Eu...pensei que ele... estava morto! - O estertor da morte em sua garganta era inconfundível.
- Seu estúpido filho da puta, por que não me esperou? - Wylie gritou zangado, as lágrimas correndo-lhe pelo rosto e mergulhando em sua barba incrustada de gelo. Às cegas ele levantou a cabeça e gritou: - Médico!
- Anita... você... irá, Wil... - Um alto suspiro cortou o pedido, Big Jim nunca pôde pronunciar o resto.
- Porra, claro que sim! Eu cuidarei dela, mas você não vai morrer, Jim, você não pode morrer! - Wylie soluçava. - Puta que te pariu! Eu disse a você que nada iria acontecer a nós!
- Acho que ele está morto, senhor - aventurou-se a dizer um dos soldados.
- Cale-se! - Ele olhou selvagemente em volta. - Um médico! Onde estão os malditos médicos, porra?
Os soldados se afastaram e deixaram-no ajoelhado sozinho na neve com o corpo de seu companheiro. Eles, de boa vontade, lutavam com os japoneses, mas nenhum deles queria meter-se em encrencas com um dos "celerados" de Castner. Assim movimentaram-se para continuar com seu ataque às posições japonesas ao longo de Fish Hook Ridge.
Incapaz de dormir, Wylie jazia acordado com os olhos abertos e fixos no escuro teto da barraca. Ouvia os roncos dos outros homens que, como ele, estavam programados para serem evacuados. Todos tinham queimaduras de gelo. com Wylie o diagnóstico era fadiga de batalha.
Ele não tinha ideia de quanto tempo ficara sentado conversando com Big Jim, mas era noite quando o levaram para baixo e para fora daquele lugar. Depois daquilo ele ficara parado. Naqueles últimos dias vira tanta desgraça e mortes - camaradas com os pés congelados e enegrecidos, seus joelhos em carne viva de tanto rastejar, corpos estraçalhados por granadas do inimigo, ou homens com os intestinos para fora. A maior parte eram estranhos; alguns ele conhecia pelo nome; com alguns ele havia lutado junto; mas com Jim, era diferente! Talvez eles não tivessem sido tão ligados como irmãos, mas Wylie pensava nele como um irmão.
Por que Jim tivera que morrer? Por que ele ainda estava vivo? Jim tinha alguém esperando-o em casa. Ele não tinha ninguém, exceto seus pais. Não era justo.
Wylie fechou os olhos, tentando esquecer-se da culpa e do pesar. Tornava-se dolorosamente penoso para ele saber que podia escapar do mundo, mas não podia escapar dos pensamentos em sua própria cabeça. Sentou-se; estava completamente vestido e colocou sua parka. As mangas e a parte da frente estavam com uma crosta de sangue de segurar o corpo de Jim nos braços. Agora sentia-os inúteis e vazios.
Escapou da barraca, movendo-se com cuidado e em silêncio, e ficou vagando no meio do nevoeiro, sentindo falta do peso familiar de seu fuzil a tiracolo. O cheiro do café e do desjejum sendo preparado andava pelo frio ar da noite. Ele ficou olhando na direção da barraca do rancho envolta no nevoeiro, sabendo que os soldados estavam sendo trazidos da linha de frente para terem uma refeição quente antes de voltarem de madrugada para a batalha. Ele ouvira os soldados falarem da ofensiva planejada para a manhã a fim de acabar com os japoneses, embora não houvesse dado sinal de que estava escutando. Aquela não era a batalha dele; ele já dera sua parte na luta. Como Big Jim dizia, estava cansado dela.
Um grito agudo pairou na noite. A princípio, Wylie pensou que era o vento uivando numa ravina, mas soava mais como vozes, um coro inteiro de vozes. Virou-se ficando de frente para o morro do Engenheiro, pensando se estava ficando maluco. De repente soldados - soldados americanos - começaram a aparecer no topo do morro, correndo como se o diabo estivesse em seu encalço.
- Os japoneses! - Um soldado em pânico gritou para ele. - Eles vêm aí! Estão logo atrás de nós! Um exército inteiro de japoneses! - Lançou um olhar apavorado por sobre o ombro e continuou a correr, aos tropeções para a frente como se não pudesse fazer suas pernas mover-se mais rápido. - Corra! São os japoneses! Corra!
Mais uma porção deles apareceu por cima do morro, dando os mesmos gritos. com uma estranha sensação de desinteresse, Wylie andou até o topo do morro e olhou para baixo através do nevoeiro que se dissolvia. À fraca luz que precede a madrugada, ele podia ver soldados japoneses reunindo-se lá embaixo. com a calma de um observador desinteressado, Wylie estimou que haveria várias centenas deles.
Um pouco mais adiante no alto da montanha, um oficial americano começou a gritar ordens. Wylie não podia distinguir sua graduação, mas achou que ele era do posto de comando erigido no topo do morro para dirigir o fogo de artilharia pela manhã. Os soldados, atendendo às ordens berradas, espalharam-se ao longo da crista. Quando Wylie os examinou melhor, viu que eles eram todos não-combatentes, pessoal de apoio - cozinheiros e pessoal auxiliar de cozinha dos ranchos, médicos e padioleiros do centro de evacuação, pessoal de construção de estradas e operadores de equipamentos pesados das unidades de engenharia, oficiais de estado-maior e operadores de rádio do posto de comando. Não pôde identificar um só soldado combatente entre eles.
Aos poucos, ocorreu-lhe que o exército japonês tinha rompido as linhas de frente e que não havia tropas de combate para detê-los. Tinham sido precisos dezesseis dias de luta brutal para encurralá-los naquele vale. Agora eles tinham-se livrado da armadilha. Não havia nada de pé entre eles e as toneladas de suprimentos e munição atrás de Wylie, exceto essa coleção mista de pessoal de serviço que provavelmente nunca estivera em combate em suas vidas. Àqueles dezesseis dias de inferno tinham sido em vão. Ele se recusava a aceitar que Big Jim tivesse morrido para nada. Não podia deixar que isto acontecesse.
- Alguém me dê um fuzil, granadas, qualquer coisa! - gritou.
Alguém entregou uma M-1 em sua mão junto com uma porção de munição. Rapidamente ele enfiou-se entre dois soldados deitados em posição no topo do morro e assumiu uma posição de tiro mais alta. O soldado à sua esquerda empurrou uma pequena pilha de granadas para ele.
- Fique com algumas - ofereceu ele nervosamente. - Eu não manuseio uma destas desde meu treinamento básico.
Gritando como banshees* os japoneses reunidos embaixo atacaram a linha de cristas, seus gritos de Banzai ecoando sinistramente nos ouvidos de Wylie. O oficial que Wylie vira mais cedo no morro era o comandante da artilharia; de seu ponto de vista vantajoso ele apontava os alvos para granadas de mão tão calmamente como se estivesse dirigindo uma barragem de artilharia. Wylie puxou os pinos de segurança e arremessou suas granadas nos japoneses que corriam morro acima até que seu suprimento esgotou-se. Mas os claros abertos na maciça frente eram rapidamente preenchidos. A carga fanática não se interrompia.
Wylie pegou a M-1 e começou a disparar salva após salva nos objetivos fáceis. Mesmo assim, eles continuavam a avançar. Mesmo aqueles que eram atingidos continuavam para a frente cambaleando. O suor escorria pela testa de Wylie. Ele nunca vira nada como aquilo. O fogo partindo de cima do morro ceifava-os como fileiras de espigas de milho nos pés e, no entanto, nada parecia pará-los. Eles estavam tão perto agora que podia ver-lhes os rostos, suas bocas abertas gritando Banzai.
Ele acabou seu carregador e enfiou um outro, apressando-se nervosamente. Quando apontou de novo, viu a primeira linha hesitar. O fogo agora era à queima-roupa. Ele juntou a voz de seu fuzil ao matraquear de todas as pequenas armas que os homens ombro a ombro disparavam. Por um momento pareceu que eles estavam fazendo recuar a carga dos japoneses.
Mas quando os japoneses recuaram, eles pareceram recuperar o necessário impulso e jogaram-se para a frente de novo num avanço maníaco. Wylie continuava atirando, seu corpo vibrando com o constante recuo de sua arma quando ficou de pé, compreendendo que agora já não podiam parar os japoneses. Seu impulso iria levá-los a ultrapassar a crista.
Quando os japoneses atingiram os cimos, alguns engenheiros vindos da retaguarda apressaram-se a enfrentá-los. Wylie estava atirando em seus rostos de olhos oblíquos. Quatro caíram a seus pés antes que sua munição acabasse. Não havia tempo para recarregar. Amaldiçoou a falta de uma baioneta e usou o fuzil como um porrete, desesperadamente rodando-o por cima de sua cabeça para atingi-los quando eles galgavam o cimo. De repente, viu-se encarando um japonês com uma cicatriz na face esquerda, sua boca torcida numa careta. Wylie viu a baioneta vindo em direção a seu estômago, mas não lhe parecia possível fazer com que seu fuzil-porrete rodasse suficientemente rápido. No último momento, ele conseguiu jogar a ponta da baioneta para baixo. Ela feriu-o na coxa como um ferro em brasa. Quando o soldado japonês
*Espírito feminino do folclore gaélico que, com seus lamentos, anuncia morte iminente da família. (N. do T.)
arrancou a baioneta, sua perna faltou-lhe e Wylie caiu, esperando pela estocada mortal em suas costas, que nunca veio.
Os engenheiros que estavam atrás de Wylie quebraram o ataque do inimigo. Os sobreviventes do exército japonês se reagruparam nas encostas mais baixas e depois tentaram de novo ganhar o cume sem sucesso. Tendo que encarar a desonra da derrota frente aos americanos, uns quinhentos japoneses seguraram granadas de mão junto ao peito e retiraram os pinos, preferindo a morte. Como proclamava o ditado japonês: "É mais simples morrer que viver."
Quando Wylie descansava o olhar nas paredes de seu velho quarto, elas lhe pareciam familiares mas, de certa forma, diferentes - como algo que se destacava de um passado distante que para ele não parecia mais real. Só estava de volta há dois dias; o Exército deixara-o vir em casa de licença agora que sua perna tinha cicatrizado o suficiente. Tinha sido um longo e vagaroso processo. Ele ainda não podia usá-la inteiramente e necessitava de uma bengala para andar; dentro de algum tempo ele poderia também dispensá-la.
O ferimento mantivera-o fora da invasão de Kiska, mas aquilo terminara sendo pouco mais do que um exercício. Os japoneses tinham abandonado seu baluarte nas Aleutas e retirado suas tropas, de alguma forma conseguindo escapar através do bloqueio naval da ilha. A maior parte das perdas havia resultado de soldados atirando uns nos outros por engano, embora ele tivesse escutado que minas japonesas e armadilhas também tinham feito suas vítimas. Wylie não estava aborrecido por ter perdido o ataque.
Ouviu uma batida na porta do quarto. Imaginou que sua mãe vinha dizer-lhe que estavam prontos para ir à igreja. Desejava poder dizer-lhe para deixá-lo só. com relutância disse "Entre!" sem mover-se da cama.
- É sua avó. Posso entrar?
O leito gemeu sob seu peso quando ele suergeu-se mais alto nos travesseiros, fazendo uma careta com o esforço em seus músculos duros da perna.
- Por certo.
A porta abriu-se e ela entrou, depois hesitou um momento antes de fechar a porta atrás dela. Wylie se admirara como é que sua avó nunca parecia envelhecer. A não ser pelo cabelo cinza-azulado e por algumas linhas em seu rosto, ela realmente não parecia velha. Observou o vestido azul real com bolas brancas e mentalmente acrescentou que ela também não se vestia como velha, embora seus sapatos fossem mais conservadores do que os que ela deveria ter usado em sua juventude.
- Fico contente de ver que você está pronto para ir à igreja. - O olhar dela correu por seu uniforme muito bem-passado e pelo rosto escanhoado. Ficou impressionada como ele parecia magro e pálido, e quanto havia envelhecido. A provação havia-lhe roubado a juventude, compreendeu Glória. Ele nunca seria jovem de novo. Ela dirigiu-se à cadeira de espaldar reto que havia no quarto e chegou-a mais perto da cama.
- Eu tinha a esperança de uma oportunidade de falar com você antes que partisse.
- Avó Cole, eu realmente não me sinto disposto a falar sobre a guerra neste momento.
- Eu sei - disse ela, sentando-se. - Você já teve que responder a mais perguntas sobre isto do que devia desde que regressou, não é verdade? Mas você não deve incomodar-se com todas as perguntas que seus pais vêm-lhe fazendo. Eles não o fazem por mal, mas é que as informações que nós recebemos sobre a luta eram tão sumárias. - Ela abriu sua carteira e tirou um poema que havia recortado de um jornal que alguém lhe mandara. - Você já viu isso, Wylie?
Passou-o para ele e observou-o enquanto lia o pequeno poema escrito pelo subtenente Boswell Boomhower no verão passado. Glória já o havia decorado.
A soldier stood a t the Pearly Gate;*
His face was wan and old. He gently asked the man offate
Admission to the f old.
"What have you done", St. Peter asked,
"To gain admission here?"
"I"ve been in the Aleutians
For nigh unto a year. " Then the gates swung open sharply
As St. Peter tolled the bei/.
"Come in," said he, "and take a harp
you" had vour share of hell."
*Um soldado aguardava na Porta do Céu;
Seu rosto era pálido e envelhecido.
Delicadamente pediu ao guardião
Permissão para entrar no aprisco.
"Que fez você - perguntou São Pedro,
Para merecer entrar aqui?"
"Eu estive nas Aleutas
Durante quase um ano."
Então as portas logo se abriram
E São Pedro tocou o sino.
"Entre!, disse ele, e pegue sua harpa,
Você já teve seu quinhão de inferno!" (N. do T.)
Quando Wylie nada disse, Glória começou a falar de novo.
- Eu tive um hóspede conosco recentemente que lutou na Europa durante a Primeira Guerra Mundial. Quando veio a depressão, ele mudou-se para o Alasca e caçou animais de pêlo com armadilhas por algum tempo em várias das ilhas Aleutas. Ele falava muito sobre a guerra e suas experiências nas ilhas - o suficiente para eu saber que somente aqueles que passaram por aquilo podem apreciar o que significava. Mesmo assim, pode afetar cada um de modo diferente.
Ele devolveu-lhe o poema e franziu a testa enquanto sacudia a cabeça.
- Eu não compreendo como a senhora pode saber.
- Eu posso ser uma mulher, Wylie Cole, mas já vi muita coisa e fiz muita coisa em meus tempos - brincou ela com gentileza. - Além disso, dizem que as pessoas ficam mais sábias com a idade.
- Suponho que seja assim. - Embora fraco, aquele era o primeiro sorriso legítimo que ela via nele desde que voltara para casa.
- Wylie... todos nós sofremos coisas em nossas vidas. Quando tentamos falar sobre elas não parecemos ser capazes de exprimir a agonia, o medo e o pesar daqueles momentos... no entanto eles vivem em nossas mentes.
- Sim - murmurou ele. - Eles permanecem.
- O passado sempre estará conosco, Wylie. Jamais esqueceremos as coisas que acontecem em nossas vidas, e não penso que deveríamos, não importa quão dolorosas algumas dessas memórias possam ser. Mas chega um momento em que tudo deve começar de novo, quando devemos pegar os pedaços de nossas vidas e tocar para a frente.
- Eu sei, mas a guerra ainda continua.
- E seu serviço não está completo.
- Acho que não.
Trudy bateu na porta e disse:
- Está na hora de irmos para a igreja.
- Já estamos indo - respondeu Glória e depois sorriu para Wylie.
- Bem, você já ouviu um sermão esta manhã. Está pronto para outro?
- Não. - Ele não fez nenhum movimento para levantar-se.
- Você não pode ficar nesta cama para sempre.
- Suponho que não - murmurou. - com relutância, levantou sua perna ferida e jogou-a para fora da cama; depois estendeu a mão para a bengala de madeira encostada na mesa-de-cabeceira.
As encostas das montanhas Chugach nas vizinhanças de Anchorage ostentavam suas roupagens douradas do outono, os cimos rochosos lançando suas cabeças contra os céus de setembro. Folhas marrons secas dançavam na rua poeirenta quando Ace parou o carro em frente da igreja e desembarcou seus passageiros.
Wylie andava vagarosamente com a ajuda da bengala. Ao lado dele sua mãe praticamente estourava de orgulho quando as pessoas começaram a notá-los. Laboriosamente, ele subiu os degraus da igreja, galgando-os um de cada vez, enquanto ao longo de todo o percurso os conhecidos da família davam-lhe animadamente as boas-vindas.
Até sua avó falar-lhe naquela manhã, ele temia esse previsível assédio de perguntas e comentários que lhe soavam tão vulgares e sem significado. Agora ele os escutava, sorria, concordava com a cabeça e oferecia uma resposta apropriada.
"É tão bom ver você de novo." "Aposto que está contente de estar de novo em casa." "Quando voltou?" "Quando tem que se apresentar?" "Ouvi dizer que o negócio foi brabo!" "Rezei por você." "O sobrinho de minha irmã também está estacionado nas Aleutas." "Você é um rapaz tão valente!" "Um pouco da boa comida caseira lhe devolverá o peso que perdeu em pouco tempo." "Aposto que ensinou àqueles japoneses uma coisa ou outra." "Deus o abençoe, Wylie!"
Alguém abriu-lhe a porta. Ele entrou e parou no vestíbulo, apoiando-se pesadamente na bengala enquanto seus olhos se ajustavam à penumbra da igreja após o brilhante sol do lado de fora. Sua mãe e sua avó juntaram-se a ele.
- Provavelmente deveremos esperar aqui até que seu pai venha disse a mãe.
- Está bem.
Várias outras pessoas vieram e falaram com ele. Então, por sobre as cabeças delas, ele viu Lisa. Ninguém a havia mencionado para ele desde que voltara e ele não havia perguntado por ela. Ele pensou que sabia todo o tempo que a veria na igreja naquela manhã. Essa era a principal razão pela qual ele não desejara vir. Ficou cismando se sua avó estivera falando acerca de Lisa ou sobre a guerra quando ela aconselhou-o a aceitar as dores do passado e recomeçar tudo.
Lisa parecia-lhe diferente, mais madura e mais sofisticada. Parte disso era o abrigo e o chapéu de peles que usava, uma óbvia indicação de sua nova posição. Seu cabelo louro escuro ainda era cortado no estilo pajem e seus traços eram os mesmos, mas ela não se parecia com a menina encabulada e quieta de quem se recordava.
Ela notou-o, hesitou um momento, e depois disse algo ao homem que estava de pé ao lado dela. Era Steve Bogardus; Wylie reconheceu-o imediatamente. Apenas por um minuto ele sentiu uma picada de ciúme. Enrijeceu-se quando vieram na sua direção. A mãe tocou-lhe no braço; quando virou-se para ela, compreendeu que a mãe também os vira.
- Talvez devamos sentar-nos, de forma que você possa descansar a perna.
Mas ele sabia que nada havia a ganhar pelo adiamento deste encontro, não importa quanto ele desejasse adiá-lo.
- Estou bem, mamãe. Então ela chegou perto dele.
- Alo, Wylie.
- Lisa.
- Você se lembra de meu marido, Steve Bogardus, não lembra?
- Naturalmente. - Wylie transferiu a bengala para a mão esquerda de forma a poder apertar a mão do marido dela. - Alo, Steve. Meus parabéns, um pouco atrasados.
- Obrigado. É bom ver você inteiro. Ouvi falar que as coisas foram duras para você.
- Não mais duras do que para todo mundo.
- Estou contente de vê-lo de volta.
- Eu também estou. - Wylie não sabia o que dizer a ela; nem mesmo sabia o que desejava dizer-lhe. Pensava se alguma coisa tinha que ser dita depois que algo terminara. Pesar? Ele tinha algum. E não podia negar que ainda a desejava. Mas ela agora estava casada. Ainda doía, mas o tempo havia diminuído a intensidade da dor, bem como seu amargor.
- Você está mudado. - Uma vaga seriedade aflorou em seu rosto.
- É a barba. Ela crescerá de novo - disse ele, tocando em seu queixo liso.
- Penso que é. - Mas ela não parecia estar certa.
- Seu pai está aqui, Wylie - interrompeu a mãe dele. - Acho que agora devemos sentar-nos.
- Ok. - Desta vez ele aceitou a desculpa que ela oferecia. Ele jamais gostara de conversa fiada.
- Tive muito prazer em revê-lo, Wylie - disse Lisa.
- Da mesma forma. - Ele trocou a bengala de mão para apoiar adequadamente a perna e andou para a frente com seu usual passo capenga.
- É coisa séria? - perguntou Lisa quando ele passou por ela.
- Nada que não sare. Só que leva tempo - respondeu Wylie, apoiando-se na bengala e dando uma parada.
A mãe dele tomou-lhe o braço e caminhou a seu lado enquanto se afastavam.
- Lamento muito, Wylie - murmurou ela.
- Não há nada para se lamentar, mãe.
- Eu sei, mas...
- Não há nenhum "mas", mãe. Eu nunca pedi a ela que esperasse por mim.
Quando terminou o serviço na igreja naquela manhã, eles saíram na frente de Lisa. Wylie não falou com ela de novo. Na viagem para casa, ele ficou em silêncio, na maior parte do tempo olhando para fora da janela, notando as mudanças em sua cidade natal. Mesmo num domingo de manhã as calçadas estavam cheias de gente. Havia soldados para toda parte que ele olhasse. A Quarta Avenida estava cheia de bares; não havia falta de bebida nesta cidade. Se Anchorage já estava experimentando um grande progresso antes de começar a guerra, agora ela estava literalmente estourando as costuras. Ele pensou que ninguém podia voltar para um lugar e encontrar as coisas da mesma forma que deixara. Os lugares mudavam como as pessoas.
Quando se aproximavam da casa, ele olhou para seu pai e perguntou:
- O senhor vai estar muito ocupado na semana que vem, papai?
- De forma nenhuma. Combinei com Skeeter e Sledge Chadwick para fazerem a maior parte dos voos desta semana, de forma que eu pudesse ter algum tempo para passar com você. Pensei que poderíamos ver se as trutas estão beliscando.
- Eu gostaria que você me levasse de avião até Circle no princípio da semana que vem. Há alguém que preciso ver. - Mas ele sabia que eram necessárias mais explicações. - Um companheiro que morreu em Attu pediu-me que eu fosse ver sua pequena. Prometi que iria.
- Se é isso que deseja, certamente podemos ir. Escolha o dia e terei o avião pronto.
A cabana de troncos estava situada num bosque de bétulas. A luz do sol filtrando-se através das folhas amarelas lançava um brilho dourado sobre a pequena clareira enquanto uma brisa sussurrante agitava os ramos. Uma fina coluna de fumaça de lenha saía em espiral da chaminé da cabana, juntando seu acre aroma ao fresco ar de outono.
Wylie apoiou-se fortemente em sua bengala, com a respiração acelerada. Sua perna latejava da caminhada de um quilómetro. Ele começava a achar que estava mais fora de condições do que pensara. Enquanto parava para normalizar a respiração, ficou estudando a cabana. Era fácil visualizar Jim naquele cenário - em algum lugar lá para trás cortando lenha. O lugar parecia ser a casa dele, rústica e forte, básica e honesta, sem adereços.
Um par de cães esquimós de puxar trenós estavam presos a uma corrente em frente à casa. O maior deles, cinzento, ficou de pé e encarou Wylie; depois levantou o nariz, tentando reconhecer seu cheiro. Sem curvar as pernas, o cão andou até o fim da corrente. Wylie podia ouvir o ruído surdo de seu rosnado. A cadeia do segundo cão chocalhou quando ele trotou para frente a fim de dar uma olhada. O primeiro começou a latir e o segundo o acompanhou.
Com o canto do olho, Wylie detectou um movimento na janela da cabana. Ignorando a dor em sua perna, avançou apoiado na bengala. Os cães ficaram excitados, pulando e correndo até onde as correntes permitiam, ladrando furiosamente. A porta da cabana abriu-se e uma mulher de cabelos escuros assomou na pequena varandinha. Usava calças e uma camisa enxadrezada de homem. Seu cabelo era negro e liso, as pontas cobrindo os ombros. Mas a visão de uma criança de cabelos negros em seus braços quase fez Wylie parar.
- Stony! Rocky! - gritou a mulher para os cachorros. Seus latidos se transformaram em alegres gritinhos enquanto eles se remexiam e pulavam como se fossem filhotes.
Wylie parou no sopé da escada de pranchões de madeira.
- Você é Anita Lockwood? - Ela não era nada do que ele esperava. Os malares salientes, os cabelos negros como os olhos, e o nariz forte pareciam índios, mas suas feições não eram grosseiras. E a pele era mais da cor de um creme forte do que de um bronzeado sem brilho.
- Sim. - Ela ajeitou a criança nos braços enquanto o observava com um olhar cuidadoso.
- Sou Wylie Cole. Escrevi-lhe uma carta há uns dois meses sobre... Jim.
- Sim, eu a recebi. - Ela pareceu ficar um pouco mais relaxada.
- Muito obrigada. Não sei se eu... - Parou um pouco contrafeita e rapidamente mudou o que ia dizer. - Mandei sua carta para os pais dele nos Estados Unidos. Achei que eles gostariam de lê-la.
Wylie sabia que ela duvidava se seria notificada da morte de Jim. Fora por esta razão que lhe escrevera, porque achava que ela não o seria.
- Fez muito bem.
- Disse que viria aqui, mas eu não pensava que viesse.
- Eu prometi a Jim.
- Como chegou até aqui? Não veio a pé desde lá, veio? - Ela parecia estar tateando para prolongar a conversa. Ele sentia a mesma dificuldade.
- Meu pai me trouxe de avião de Anchorage. - Ele viu quando ela lançou o olhar pela trilha. - Ele está pescando um pouco. Eu arranjei uma carona de Circle até aqui.
- Entendo.
- Incomoda-se se eu me sentar? - Wylie arriou mais peso em cima da bengala para aliviar o esforço na perna ferida. - Minha perna está meio cansada depois de andar quase um quilómetro desde a estrada.
- Naturalmente. Desculpe-me, faça o favor de entrar. - Ela apressou-se a abrir a porta para ele enquanto Wylie subia com dificuldade os degraus. - É que não recebemos muitos visitantes...
O interior da cabana de dois cómodos era aconchegante e compacto, cada centímetro de espaço utilizado. Wylie entrou capengando no cómodo principal e parou para olhar seu simples mobiliário. As mesas, cadeiras, armários e aparador, todos pareciam feitos em casa e com muita arte, com exceção de uma cadeira estofada de couro ao lado do fogão. Os braços almofadados estavam gastos e mostrando rachaduras, e ele suspeitava que o velho cobertor dobrado no assento escondia um rasgão no couro. Sabia sem perguntar que aquela tinha sido a cadeira preferida de Big Jim.
- Sente-se - disse Anita Lockwood, fazendo um gesto em direção à cadeira. Pôs o menino no chão. - vou fazer um café.
Sem querer tomar o lugar de Jim, mesmo figurativamente, Wylie hesitou e acompanhou-a com a vista quando ela foi até o aparador e pegou uma lata de café. Ele teve uma visão rápida do interior do aparador quando ela abriu sua porta; nas prateleiras havia poucos suprimentos. Especulou como ela estaria se arranjando agora que Jim estava morto e ela não recebia mais dinheiro dele cada mês. Ele já tinha verificado e descobrira que ela não recebera o dinheiro do seguro de Jim. Andou devagar até a cadeira e sentou-se, fazendo uma careta quando esticou a perna ferida.
As almofadas estavam todas amassadas para adaptar-se confortavelmente ao corpo de um homem. Wylie acomodou-se e encostou sua bengala no braço da poltrona. O garotinho veio andando em direção a ele com um dedo enfiado na boca; olhou primeiro para Wylie, depois para a bengala. Parecia ter de dois a três anos. Wylie ficou pensando por que Big Jim nunca mencionara a criança.
- Alo - disse Wylie, sorrindo para ele. - Qual é o seu nome? O menino balbuciou qualquer coisa ininteligível e apontou com o dedinho molhado para a bengala. - Você está meio fascinado por isso, não? Receio que ela seja maior do que você.
Depois de colocar rapidamente a cafeteira no fogão a lenha, Anita pegou o garoto com um olhar de desculpas para Wylie e sentou-o no chão, um pouco distante, no meio de alguns blocos de madeira.
- Fique jogando aqui - disse ela com firmeza, depois deixou-o lá e veio sentar-se na borda de uma cadeira de balanço de madeira. - O café estará pronto em alguns minutos.
- O menino não estava me incomodando - disse Wylie, estudando a com curiosidade.
Ela baixou a cabeça e mordeu o lábio inferior; depois levantou a cabeça e encarou-o com firmeza:
- O nome dele é Michel. Jim deu-lhe o nome do pai dele, mas a maior parte do tempo chamava-o de Mikey. Quando era bebé, Mikey ficou muito doente e teve uma febre alta. Levamos três dias para encontrar um doutor. Fizemos tudo que podíamos, mas Jim sempre se sentia culpado, especialmente depois que soubemos que Mikey ficara retardado. Jim sempre se preocupava que as pessoas iriam zombar do menino porque ele tem um atraso mental. - Os olhos dela fixaram-se nas mãos. Provavelmente por isto é que ele não lhe contou sobre Mikey. - Ele não tinha vergonha dele... - ajuntou ela, na defensiva. - Era só sua maneira de protegê-lo.
- Entendo. - Embora o menino explicasse por que Jim estava tão ansioso que Wylie cuidasse dessa mulher, aquilo fazia-o cismar por que Jim não havia casado com ela, mestiça ou não. - Esta é uma bonita cabana - disse.
- Sim. Jim construiu a cabana e fez toda a mobília também. Ele era muito jeitoso com as mãos. - O orgulho e o profundo amor que tivera pelo homem eram claramente visíveis na expressão dela. Havia uma espécie de radiação em seu rosto enquanto falava dele; depois desaparecia. - Escrevi aos pais dele perguntando se poderia ficar aqui, mas ainda não recebi resposta.
- Você tem alguma família, Anita?
- Minha mãe ainda é viva, mas ela está muito velha. Meu irmão mais moço, Joe, está longe, no pensionato para nativos em White Mountain.
Desde o início do século tinha havido dois sistemas separados de educação no Alasca. Um era para os nativos e o outro para os brancos ou aqueles de sangue misto que vivessem uma vida "civilizada". Wylie perguntava-se por que o irmão de Anita não escolhera o último, mas talvez fosse mais fácil não lutar contra o preconceito existente.
- Foi lá que você frequentou a escola? - Era óbvio para Wylie que ela recebera uma educação além do nível elementar normal da maior parte dos nativos rurais.
- Não. Fui para a escola Sheldon Jackson, em Sitka. Queria ser professora mas... precisaram de mim em casa quando papai morreu. Ela olhou para um armário embutido cujas portas de vidro revelavam prateleiras cheias de livros. Seu rosto de novo tornou-se mais suave: - Jim frequentou a universidade. No inverno costumávamos ler muito e conversar sobre as coisas que líamos. Ele era muito inteligente e ensinou-me muita coisa. Acho que deveria empacotar todos os livros dele e mandálos para a casa de sua família com o resto de suas coisas.
- Acredito que Jim gostaria que você ficasse com elas. Ele teria desejado que você guardasse uma porção destas coisas - afirmou Wylie.
O café começou a ferver em cima do fogão, seu aromático vapor espalhando-se pela pequena cabana. Anita encheu uma xícara para cada um. Wylie não saberia dizer se o café merecia o crédito por isso ou não, mas o embaraço inicial passou e começaram a falar livremente. Wylie não pudera falar muito com ninguém sobre Big Jim; com ela podia abrir-se acerca de seu companheiro. O tempo passou muito rapidamente para ele; antes que pensasse nisso já havia chegado a hora de encontrar-se com seu pai.
Deu-lhe algum dinheiro, insistindo em que Jim o havia deixado com ele para entregar-lhe. Suspeitava que ela sabia que era uma mentira caridosa, mas ele também sabia que era o que Big Jim teria feito se houvesse pensado nisso. Depois ele partiu, prometendo que voltaria para vê-la e ao pequeno Mikey.
Durante o mês em que ficou em casa se recuperando, Wylie conseguiu voltar lá uma vez por semana. Viu-se antecipando as visitas e a chance de livrar-se do burburinho de Anchorage. Ele nunca fora daqueles que encontravam prazer sentando-se nos bares e bebendo ou entrando em fila numa casa de mulheres. E - Deus sabia - havia muito de ambas as coisas em Anchorage. Na cabana de Big Jim ele encontrava um certo grau de paz e contentamento. Não sabia se era o ambiente ou a companhia. Pensava que podia ser um pouco de ambos.
Com um golpe do machado, ele enterrou a lâmina na tora cortada ao meio. A madeira rachou ao partir-se em quartos. Wylie acabou de cortar os dois pedaços inteiramente, depois cravou a lâmina do machado no tronco cortado de uma árvore morta e começou a abaixar-se para pegar os pedaços de lenha sem protestos dos músculos de sua perna ruim. Tinha consciência do sangue correndo-lhe pelas veias e aquecendo sua carne. Ele trabalhara até suar bastante e sentia-se bem.
Um gaio chilrou para ele de um galho seco por cima de sua cabeça quando juntou a braçada de lenha ao longo empilhamento que representava o suprimento para o inverno. Ouviu um ruído de alguém caminhando sobre as folhas secas por trás dele. Wylie virou-se e viu o pequeno Mikey aparecer, correndo com um largo sorriso, agarrando alguns cavacos de madeira em suas mãos enluvadas. Andou depressa até a pilha de madeira e esticou-se o quanto pôde para colocar a lenha no topo, da mesma forma que Wylie fizera.
- Deixe-me levantá-lo até lá, Mikey. - Wylie pegou-o e sustentouo por cima da pilha, de forma que ele pudesse depositar suas pequenas estilhas no topo e depois colocou-o a cavalo em suas costas. - Você é um bom ajudante.
O boné dele estava torto e Wylie endireitou-o. O menino riu-se. Ele estava sempre rindo. Wylie nunca vira uma criança tão feliz todo o tempo. Para Mikey, o mundo era cheio de alegria; talvez viesse de ser retardado. Wylie não sabia, mas esperava que Mikey nunca descobrisse que era diferente das outras crianças; esperava que aquele sorriso dele nunca se desvanecesse.
As dobradiças da porta da cabana rangeram. Anita deu uns passos até o extremo da varanda, apertando os braços em volta do corpo para proteger-se da mordida fria do ar externo.
- Se vocês dois já acabaram, por que não entram? Acabei de tirar o pão do forno e o café está quente. Acho que poderíamos experimentar um pouco daquela geléia que sua mãe mandou.
- Boa ideia! - Wylie carregou Mikey nas costas até a porta, andando com facilidade, quase sem mancar. Quando Anita abriu a porta, ele fingiu um arrepio com o rangido das dobradiças. - Tenho pensado em passar óleo nesta porta.
- Esta foi a última coisa que Jim disse antes de partir... Wylie olhou pensativamente para a porta quando fechou-a atrás de si, depois virou-se. Anita fez um gesto para tirar o menino dele, mas ele sacudiu a cabeça e disse:
- Eu posso com ele.
- vou servir o café - respondeu ela sem discutir.
Ele sentou Mikey no chão e agachou-se ao lado do menino para tirar-lhe o boné, o casaco e as luvas, depois fez o mesmo com os seus e pendurou tudo nos cabides ao lado da porta. Andou até a mesa e sentou-se, distraidamente correndo a mão pelo tampo bem aplainado da mesa.
- Você sabe que eu gostava de Jim - disse ele com um sorriso contrafeito. - Nunca disse isso antes acerca de outro homem.
Ela olhou para ele por cima do pedaço de pão fresco que estava cortando, seu olhar demonstrando compreensão.
- Ele era um bom homem.
Mikey chegou-se e sentou no colo de Wylie.
- Acho que ele gosta de mim - disse Wylie, passando afetivamente a mão na cabeça de Mikey e misturando-lhe o cabelo; Mikey imitou o gesto dele e riu.
- Sei que ele gosta - disse Anita, sorrindo.
- Talvez o que eu vou dizer não soe bem mas... - Wylie fez uma pausa, tentando achar palavras que não o fizessem parecer estúpido. Nenhum de nós tem ninguém a não ser a família. O homem que você amava morreu e a pequena de quem eu gostava casou-se com outro. Creio que nos damos bem juntos. Jim é algo que temos em comum. Talvez isso seja uma razão horrível para duas pessoas se casarem, mas... Acho que isto é o que estou propondo. O Mikey aqui precisa de um pai e você poderia usar um homem para cuidar de você. É verdade que o Exército ainda pode me chamar a qualquer momento, mas eu já posso dispor de mim pelo menos uma parte do tempo, para começo de conversa.
Ele continuava a falar, porque ela não dizia nada. Nem olhava para ele. Enxugou as mãos no lado de suas calças e disse:
- Wylie, eu não estou certa se seus pais gostariam da ideia de você casar-se comigo. Os pais de Jim ficaram realmente abalados quando ele lhes contou a meu respeito. Não quero causar nenhum problema entre você e sua família. Eu...
- Por que você e Mikey não voam comigo de volta esta tarde e conhecem minha família? - interrompeu-a ele. - Você não tem que assu mir nenhum compromisso. Mais tarde, se você ainda pensar que é uma má ideia, esquecemos tudo.
Ela hesitou, mas finalmente concordou com a cabeça.
O encontro correu ainda melhor do que Wylie esperava. Aconteceu que sua mãe convidara Matty e Billy Ray para jantar naquela noite, dando a Anita uma oportunidade de ver o modo como eles eram tratados. Ele já havia dito a seus pais algo acerca da situação de Anita e eles sabiam como ele fora ligado a Big Jim. Quando ele apresentou Anita, deu a entender que a viagem fora uma oportunidade para Anita fazer algumas compras e não insinuou que havia algo mais do que isso.
Mais tarde naquela noite, quando sua mãe subiu para ajudar Anita a colocar Mikey na cama e Matty saiu para ver por quanto tempo mais Billy Ray e o pai dele iriam ficar consertando o carro, Wylie ficou sentado sozinho na sala de estar com sua avó, ouvindo o rádio. Olhou-a quando ela colocou um cigarro numa piteira de marfim e o acendeu.
- O que pensa de Anita, avó Glória?
- Ela é uma moça agradável e inteligente - respondeu ela prontamente. - É fácil ver por que seu amigo era tão caído por ela.
- Que tal se eu lhe dissesse que estamos pensando em nos casar?
- Estão? - A expressão dela nunca mudava.
- Fui eu que sugeri - admitiu Wylie.
- É por causa de Lisa?
- Não. É por causa de Jim, embora eu admita que se Lisa não se tivesse casado eu provavelmente não estaria pedindo Anita em casamento. Mas, como a senhora me disse, está na hora de começar tudo de novo, para Anita também.
- Haverá algumas pessoas que não aceitarão. Você sabe disso - disse ela e bateu com a ponta do cigarro no cinzeiro. - Antigamente, as coisas por aqui eram diferentes. O que você era ou o que fizera em seu passado não contava muito. Agora estamos mais civilizados Isto faz com que algumas pessoas se sintam de alguma forma superiores a outras.
- O problema é delas...
- Talvez. Mas você tem que estar preparado para lidar com isto.
- Acho que estou.
- Eu também - disse Glória e depois sorriu. - Só queria ouvir você dizer.
- Anita está preocupada sobre como papai e mamãe a receberão.
- Seu pai não ligará a mínima para isso. No entanto, se a escolha fosse de sua mãe, não creio que ela aprovasse Anita. As mães sempre querem mais para seus filhos. Raramente ficam felizes com a escolha que fazem de um parceiro ou parceira. Mas duvido que ela um dia deixe que você ou Anita percebam isso.
- E a senhora, avó?
- Sofrimento, felicidade, tristeza e contentamento... - Você vai experimentar todos estes sentimentos. Nunca tudo será um deles ou tudo um outro. Vivi minha vida sem arrependimentos. Este é um desejo que sempre tive para você e seu pai, e todas as pessoas a quem amo. - Ela estudou a piteira de marfim de seu cigarro. - Em todos os anos em que estivemos casados, o Diácono nunca me disse o que fazer ou como me comportar. Deixava-me decidir por mim mesma e aceitava o que eu escolhesse sem fazer um julgamento. Isto foi talvez o maior presente que ele jamais me deu. Foi desta forma que procurei ser com você e com Ace. Se Anita é sua escolha para esposa, então ela também é minha.
- Ela é a minha escolha, mas ainda não estou certo se ela concorda. A volta de Matty para a sala encerrou a conversa. Minutos depois dela voltar, sua mãe e Anita desceram. Vestida com uma simples blusa e uma saia, Anita de certa forma parecia mais feminina para ele, e mais vulnerável.
- Conseguiu fazer Mikey dormir?
- Sim. - Ela por certo ainda não era muito conversadora na presença da família dele, mas aparentava estar mais descontraída e menos na defensiva do que antes.
- Eu dei-lhe aquele velho ursinho de seu armário. Mikey agarrou-se com ele como se fosse ouro - disse Trudy, rindo. - Num instante estava dormindo.
- Creio que ele não vai querer abrir mão do ursinho com muita facilidade - disse Anita.
- Está muito bem. Ursinhos não devem ficar presos em armários quando há uma criança por perto que poderá amá-los. Mikey pode ficar com ele - disse Wylie.
- Alguém gostaria de um pouco de café? - perguntou Trudy. Já tenho algum pronto na cozinha.
Ace entrou neste momento, ainda esfregando as mãos recém-lavadas.
- Para mim parece uma boa ideia.
- Para mim também - ecoou Billy Ray, um passo atrás dele.
- Por favor, deixe-me pegar o café pela senhora, sra. Cole ofereceu-se Anita.
- Muito bem. As xícaras estão no armário do lado direito - disse Trudy sorrindo, após ligeira hesitação.
- Não se incomode, mamãe - interrompeu-a Wylie. - Eu lhe darei uma mãozinha. - Ele seguiu Anita até a cozinha e pegou as xícaras do armário, depois encostou-se de lado no balcão enquanto ela as enchia com o café. - O que você acha de minha família?
- Eles são muito simpáticos. - O sorriso dela aflorou rápido e com a mesma rapidez sumiu. Ela descansou a cafeteira no balcão e virou-se para ele, seus negros olhos examinando-o seriamente. - Wylie, você está certo de que quer se casar comigo? Quero dizer... não sou só eu. É Mikey" ele nunca será um rapaz normal. Ele vai sempre precisar de cuidados. Não acho que você esteja consciente de quanta responsabilidade está assumindo.
- Não mais do que você estava preparada para suportar sozinha - lembrou-lhe ele. - Considerei tudo isto antes mesmo de sugerir casar-me com você. Acredite você ou não, sei o que estou fazendo.
Ela sacudiu a cabeça, o gesto uma mistura de um vago divertimento e de admiração.
- Penso que sei por que Jim gostava tanto de você.
- Isto é um sim ou um não?
- Sim. Se você ainda quer a mim e ao Mikey, eu me caso com você. Hesitante, Wylie inclinou-se para ela, depois parou quando já estava bem próximo e levantou-lhe o queixo com as pontas dos dedos. Beijou-a com uma pressão de experiência e sentiu a incerteza na resposta dela. No entanto, o primeiro beijo fez o segundo mais fácil. Cada um deles tinha uma enormidade de amor para dar e a necessidade de compartilhálo com alguém. Tudo iria dar certo.
Fizeram do casamento uma cerimónia simples, só com a presença da família, e depois voltaram para a cabana por alguns dias para arrumar as coisas de Anita e Mikey e levá-las para Anchorage, de forma que sua família pudesse cuidar deles enquanto Wylie estivesse ausente. com a escassez de casas que existia, eles aceitaram a oferta de Glória de deixar que Anita e Mikey ficassem no pequeno apartamento de um quarto nos fundos da pensão que fora de Cnou Ling. O velho cozinheiro chinês falecera na primavera passada e o novo cozinheiro já tinha um lugar para morar. A solução parecia ideal, uma vez que não somente dava a Anita e Mikey um lugar para ficarem, mas também permitia que Anita ajudasse Matty com o trabalho da pensão e com isso ganhasse algum dinheiro extra. Os preços de todas as coisas no Alasca eram altos, mas pelo menos o território não estava sujeito ao programa de racionamento que havia sido instituído nos "48 lá embaixo".
Wylie apresentou-se de volta ao serviço, totalmente recuperado de seu ferimento. com os japoneses empurrados para fora do Alasca e perdendo terreno por toda a parte no Pacífico, a ameaça parecia terminada. Comentou-se durante algum tempo que a cadeia de ilhas Aleutas iria ser usada como palco para uma invasão das ilhas Kurilas, ao norte do Japão, por volta de junho de 1944, mas a Rússia ainda não havia declarado guerra ao Japão. com a península do Kamchatka tão próxima do Japão, a cooperação da Rússia era necessária. Esses planos ficaram na prateleira até que a Rússia entrasse na guerra do Pacífico.
Naquela primavera os Batedores do Alasca receberam novas incumbências, utilizando seu vasto conhecimento do território. Wylie e vários outros foram mandados para o deserto ártico no extremo norte. Inicialmente Wylie acompanhou um grupo de geólogos mandados para a área pelo Departamento da Guerra, a fim de explorar a grande extensão de terra, aproximadamente do tamanho de Indiana, que fora escolhida já em 1923 como a Reserva Naval de Petróleo nº 4 - "Pet 4" como era chamada. Já desde 1886 haviam sido descobertos afloramentos de petróleo naquela área. Uma exploração na década de 1920 confirmou a existência de uma área petrolífera de volume ignorado e o governo federal havia reservado a área para necessidades futuras.
Tendo que encarar a possibilidade de uma guerra longa, o Departamento da Guerra decidira que era melhor determinar o potencial de "Pet 4". Estudos geológicos do declive norte deveriam ser feitos e furados poços de sondagem. Enquanto um acampamento permanente de base estava sendo construído na aldeia esquimó de Barrow, no ponto mais ao norte do continente, para acomodar o equipamento de perfuração, homens e suprimentos, Wylie foi com os geólogos a um sítio no rio Colville a uns 130 quilómetros de um lugar chamado Umiat.
A erosão havia cortado parte de um morro, criando um barranco escarpado. O óleo escorria das camadas sedimentares expostas e poluía o rio. Os geólogos se espalharam por sobre toda a ribanceira, examinando os estratos expostos e usaram-nos como uma orientação para entenderem as camadas rochosas que formavam o Declive Norte.
Durante o verão ártico o sol nunca se punha por 36 dias a fio. A vegetação marrom da tundra, que fora varrida pela neve e por ventos gelados durante o longo inverno, explodia de vida. Uma brilhante e colorida variedade de flores silvestres abria-se e formava um tapete sobre a terra, fornecendo pasto para as manadas de caribus. Centenas de espécies de aves vinham aos milhares para fazer seus ninhos na área e saciar-se com as negras nuvens de mosquitos que enxameavam por sobre a tundra. Para o grupo de geólogos véus para a cabeça eram a única proteção contra os famintos insetos, mas havia ocasiões em que eles eram tão espessos na tela protetora que Wylie não podia enxergar através dela. Os pássaros em breve enchiam o acampamento para banquetear-se com os mosquitos.
Operações de perfuração em ampla escala foram programadas para começar no ano seguinte, 1945. Naquele inverno, Billy Ray morreu de um ataque cardíaco fulminante quando removia neve. Wylie conseguiu ir até em casa para seu funeral. Quando se apresentou de volta ao serviço encontrou-se designado para um grupo de Batedores cuja tarefa era levantar o traçado de um oleoduto de Barrow até Fairbanks.
A guerra na Europa estava arrefecendo. A derrota de Hitler parecia ser uma questão de meses. Mas não havia um otimismo semelhante no Pacífico. Já agora milhares de soldados e fuzileiros tinham ouvido o temido grito de Banzai e sabiam que os soldados japoneses preferiam a morte à derrota.
O trajeto do proposto oleoduto cortava diretamente através do coração da cordilheira Brooks, a formidável e proibitiva barreira de montanhas que separa o Declive Norte do interior do Alasca. Wylie já havia voado antes por sobre seus picos serrilhados, mas do chão eles eram ainda mais atemorizantes. O violento afloramento de rochas de cor marrom e de grandes blocos de pedra criavam um terreno de incomparável e cruel beleza.
Em agosto, na cordilheira Brooks, alcançaram Wylie as notícias de que aviões americanos haviam deixado cair uma bomba atómica na cidade japonesa de Hiroxima. Dois dias após, os russos finalmente declararam guerra ao Japão. Os exércitos soviéticos estavam invadindo a Manchúria ocupada pelos japoneses. Para Wylie havia mais boas notícias de uma natureza pessoal: ele era pai. Anita dera à luz uma menina.
No dia 15 de agosto de 1945, o Japão se rendeu, embora a cerimónia oficial não tivesse lugar até o dia 2 de setembro. A guerra finalmente acabara. Pelo fim de setembro, Wylie estava em casa e pela primeira vez segurou nos braços sua filha de dois meses, Dana Marie Cole.
A alegria de seu regresso para casa foi, porém, de curta duração. Matty, que andava pelos seus setenta anos, adoeceu. Glória lhe disse que, desde que Billy Ray morrera, Matty não andava passando bem. Em menos de um mês ela juntou-se a ele.
No cemitério, Wylie ficou ao lado de sua avó. Os olhos dela estavam brilhantes com as lágrimas que não derramavam, sua postura ereta, seus ombros levantados. Para ele, no entanto, ela parecia quebradiça, como uma frágil figura de porcelana que necessitava de um manuseio cuidadoso sem o que poderia partir-se. Tinha-se negado a usar o negro, insistindo em que Matty não o teria desejado. O casaco que usava contra o friozinho do outono estava fora de moda há dez anos, feito de uma lã cor de ferrugem clara, enfeitado com uma larga gola de uma grossa pele de raposa. O vento fresco constantemente mexia os pêlos da gola de raposa, criando um desenho que sempre mudava na espessa pele, soprando os pêlos contra seu queixo e sua face, mas ela parecia não notá-lo.
Depois dos serviços, a família ficou algum tempo perto do túmulo para falar com o punhado de amigos de Matty que tinham comparecido ao funeral. Uma vez Wylie viu sua avó secar os olhos com um lencinho de renda. Então seu pai veio até ela e pegou-a gentilmente pelo braço para levá-la até o carro. Wylie seguiu-o com sua mãe. Anita não tinha vindo ao cemitério. Ela decidira que não era sensato trazer o bebé ou Mikey para o serviço fúnebre e não havia ninguém de fora da família para tomar conta deles.
Wylie dirigia enquanto seus pais se sentavam no banco traseiro. Sua avó sentava-se na frente com ele. Ela quase não falou, apenas olhava pela janela, apreciando a paisagem. Wylie duvidava se ela via qualquer coisa, mas estava enganado.
- Tudo mudou tanto nos últimos anos - murmurou ela. - Edifícios e casas brotando por toda a parte como as ervas daninhas na horta de minha tia lá em Sitka. Existem ruas agora que eu nem tinha visto antes.
- Não é mais uma aldeia; é uma cidade, - explicou Ace do banco de trás. - Havia quatro mil habitantes aqui em 1939; agora dizem que a população de Anchorage está por volta de quarenta mil.
- Sim - suspirou Glória profundamente. - Não foi justo que Matty tivesse que morrer agora, depois que o legislativo do território aprovou essa nova lei proibindo a segregação. Havia tantas lojas em que Matty gostaria de entrar, apenas para especular a mercadoria. Ele nunca teve a oportunidade.
- Desde o princípio era uma prática estúpida - comentou Trudy.
- Estava na hora de ser abolida.
- Eu sei. Desejava que pegassem todos aqueles cartazes que haviam pendurados nas vitrines dizendo: "Não é permitida a entrada de nativos", ou "Não há emprego para pretos", e fizessem uma grande fogueira deles. Tantos sentimentos foram feridos por eles. - Uma ira surda vibrava na voz de Glória. - Toda vez que eu via esses cartazes na frente das lojas, eu odiava entrar nesses lugares, especialmente quando Matty tinha de esperar por mim do lado de fora. Como seria divertido entrarmos juntas nessas lojas hoje. - Ela terminou a frase com uma entonação triste e recaiu em silêncio.
Uma semana mais tarde, Glória telefonou e pediu a Wylie para dar uma chegada na pensão. Depois que deu baixa do Exército, ele alugara uma das casas que sua avó possuía e mudou-se com sua pequena família para ela. com toda a confusão de voltar para casa, a mudança e a morte de Matty, ele não tivera tempo de procurar um emprego. Na maior parte do tempo ele vinha ajudando o pai no serviço de voo.
Glória mal lhe deu tempo de sentar-se antes que anunciasse:
- Decidi fechar a pensão. com Matty e Chou Ling desaparecidos, não é mais a mesma coisa. Estou muito velha para dirigir este lugar sozinha.
- A senhora não é velha, avó Glória.
- Você tinha dois anos quando pela primeira vez me chamou de avó. Isto foi quando? Há vinte e dois anos? Bem, então eu não me sentia velha, mas hoje me sinto - disse ela, decidida. - Mas, velha ou não, está na hora de eu mudar e começar vida nova.
- O que planeja fazer? Vender tudo? - Ele não tentava fazê-la mudar sua decisão. Há muito tempo aprendera que, uma vez que ela decidia alguma coisa, não mudava mais. Ela tocava para a frente e nunca olhava para trás. - Onde é que a senhora vai viver? Está planejando viver com os meus pais?
- Não. Não estou tão velha que não possa cuidar de mim - disse zombando. - Você se lembra daquela cabana de quatro quartos que possuo? Pois bem, os atuais locatários estão se mudando. Ela vai ser minha nova casa, mas não pretendo vender este lugar aqui. Embora com o valor dos imóveis nas alturas em que andam, eu provavelmente deveria. O que planejo é converter a pensão em pequenos "apartamentos. - Ela passou às mãos dele uma folha de papel que tinha um esquema aproximado da proposta disposição. - Pensei que você talvez pudesse supervisionar o trabalho de remodelação para mim. Não me sinto disposta a discutir com carpinteiros e bombeiros.
- Se é isso que a senhora deseja...
- Isto é o que eu quero.
- com que a senhora vai ocupar-se? Não posso imaginá-la sem fazer nada - disse Wylie.
- Agora você fala como se fosse o Diácono... - riu-se ela. - Entre administrar minhas várias propriedades e brincar com meus bisnetos, espero manter-me adequadamente ocupada. Nesta primavera tenciono plantar um grande jardim de flores, um como Anchorage nunca viu. Sempre planejei ter um. Agora vou realizá-lo. E tome nota de uma coisa: não haverá nenhuma verdura ou hortaliça em qualquer lugar do jardim. Será estritamente de flores.
Wylie passou a maior parte daquele inverno fazendo a mudança da avó para sua nova casa, vendendo o excesso de coisas da pensão, móveis e roupas de cama e remodelando o edifício. Todos os apartamentos estavam alugados quando a última tira de papel foi colocada na parede. Naquela primavera Glória plantou suas flores por toda a frente de sua rústica cabana de troncos.
Wylie abria caminho por entre os milhares de pessoas que, para a celebração, haviam superlotado o parque Delaney, localmente conhecido como "O Parque". De vez em quando ele parava e analisava a multidão, tentando encontrar sua família no meio daquela gente toda. Ele estava voando para Anchorage naquela tarde em um voo de rotina de carga quando o rádio estourara com as notícias.
Ele nunca tivera a intenção de entrar para o negócio de aviação da família; simplesmente acontecera. No verão em que ele deu baixa do serviço seu pai se machucara num desastre de avião. Wylie o substituíra, temporariamente. Ele ainda o estava fazendo, gradualmente assumindo mais e mais da operação da companhia.
Há meia hora ele aterrissara em Merrill Field e vira as enormes manchetes no Anchorage Times, confirmando as notícias em duas palavras: NÓS ENTRAMOS. Ele abriu caminho através do tráfego de pára-choques contra pára-choques de carros buzinando o tempo todo até chegar em casa, onde encontrou a nota que Anita deixara para ele; apressou-se a ir a pé até o Parque para juntar-se à celebração da elevação do Alasca a estado.
Depois de seis dias de debate, o Senado finalmente aprovara a lei às oito horas da noite, tempo de Washington, permitindo que o Alasca se tornasse um estado. Agora era apenas uma questão de dois terços dos estados ratificarem a lei. E essa ratificação já estava assegurada. Por toda a parte carros buzinavam, sirenes gemiam e os sinos das igrejas repicavam com as notícias. No parque havia uma grande fogueira, com as chamas subindo muito alto, alimentada por 50 toneladas de madeira, 49 destas em honra do Alasca como o 49º estado da União. A 50ª tonelada era para o Havaí, um gesto de otimismo pela sua batalha para a elevação a estado.
De novo Wylie parou, tentando identificar Anita ou seus pais no meio daquele mar de rostos. Pensou ter reconhecido a cabeça escura de Dana no meio de um grupo de jovens no lado oposto da crepitante fogueira. Começou a abrir caminho para olhar de mais perto. Uma corrente de dançarinos bloqueou seu caminho.
- Wylie.
Ele ouviu seu nome acima de toda aquela barulhenta alegria em sua volta. Parou, já tendo reconhecido aquela voz familiar quando se virou em sua direção. Lisa estava a alguns metros de distância, usando um simples vestido azul que parecia informal e elegante. Ou talvez ele apenas parecesse caro, pensou Wylie.
Fazia muito tempo que não a via, usualmente na igreja, e ele estava por demais ocupado ultimamente para comparecer de forma regular. E seu marido e os dois filhos sempre estavam com ela e ele rodeado por sua família. Agora ela estava sozinha; não havia ninguém entre os dois.
Devagar, ele cruzou o espaço entre eles, aproveitando o tempo para estudar todos os pequenos detalhes que não ousara observar antes. Se fosse possível, ela se tornara mais bonita. Ele nunca pretendera para si mesmo que se houvesse esquecido dela. Não esquecera, da mesma forma que Anita não se esquecera de Big Jim.
- Alo! - A voz dela soava um pouco arquejante.
- Alo - disse ele, sorrindo.
- Faz um bocado de tempo que não vejo você - disse ela.
- Eu estava exatamente pensando a mesma coisa. - Então ele fez seus pensamentos recuarem da direção caprichosa que iam tomando e relanceou o olhar em volta. - Estava tentando encontrar minha família.
Eles devem estar todos por aqui em algum lugar. Você não os viu, por acaso?
- Não, mas uma pessoa pode perder-se com facilidade neste povaréu. Steve está à procura dos rapazes; num momento eles estavam aqui conosco e no seguinte desapareceram. Eles são piores do que Rudy e Erik jamais foram. - Ela deu um risinho nervoso. - É uma grande celebração.
-É.
- É difícil acreditar que o Alasca vai ser agora um estado. Não parece fazer tanto tempo que eu estava saltando do trem aqui com minha família em Anchorage numa aventura de fronteira... e meus irmãos estavam confundindo você com seu primeiro índio vivo.
- Devo admitir que não parece tanto tempo desde que mostrei a você e sua mãe a casa que minha avó tinha para alugar. - Por um enternecedor instante, Wylie sentiu os anos daquele intervalo se dissolverem. Ele sentiu a tentação de sugerir que eles poderiam ir a um cinema numa noite de sábado como fizera naquela ocasião. Mas não o fez.
Uma expressão pensativa estampou-se no rosto dela.
- Pode não parecer muito longe e a nenhum de nós dois, mas eu tenho dois rapazes adolescentes para prová-lo.
- Minha filha também tem treze anos.
- Estou contente de ter tido esta oportunidade de ver você antes de partirmos, Wylie. - Ela tentou sorrir, mas havia tristeza em sua expressão, talvez até mesmo um pouco de arrependimento.
- Você está indo embora? - perguntou ele quando percebeu o que ela havia dito, e franziu a testa.
- Sim. - E ela fez uma tentativa de demonstrar alegria. - Steve foi transferido de volta para o escritório central da companhia em San Francisco. Algum vice-presidente mais novo ficará encarregado do escritório da filial aqui em Anchorage. O consenso geral é que o estouro da construção está ultrapassado no Alasca, pelo menos por algum tempo.
- Então você irá viver nos "48 lá debaixo" de agora em diante. Por algum motivo uma frase veio-lhe à lembrança: "Eles sempre vão embora." Mas não podia se lembrar de onde a ouvira antes.
- Sim. Meus pais estão animados com isso. Você sabe que eles voltaram em 1952. Minha mãe finalmente conseguiu o que queria - ajuntou ela com frieza. - Naturalmente agora ela vive se queixando porque eles moram tão longe que ela não consegue ver seus dois netos com a frequência que gostaria.
- Ela sempre foi uma mulher difícil de agradar. - Mesmo com o alto custo de vida no Alasca, Wylie suspeitava que os Blomquist haviam conseguido economizar um bom pé-de-meia com os altos salários que Jan Blomquist ganhara durante a guerra e o progresso depois da guerra. Mas sua história era típica. Poucos daqueles que tinham vindo para tirar vantagem com os empregos de altos salários ficavam depois de ter juntado dinheiro. Vinham, ganhavam seu dinheirinho e partiam com ele para comprar alguma casa para aposentar-se nos "48 lá debaixo".
Fiquei contente de ter permanecido aqui quase o tempo suficiente para ver o Alasca transformar-se num estado - disse Lisa.
- Sim. - Ele compreendia que Steve poderia retornar a qualquer momento e não desejava vê-lo, não desta vez, desta última vez. - Bem, eu... eu... é melhor eu ir procurar minha família. Adeus, Lisa, e felicidades. - Ele não tinha suficiente confiança em si para tocar em Lisa, nem mesmo apertar-lhe a mão, e assim fez-lhe uma vaga saudação com o dedo e começou a recuar.
- Adeus, Wylie. - Quando ele se virou, ouviu-a acrescentar: Sentirei falta de você. - Mas ele fingiu que não tinha ouvido e caminhou às cegas para dentro da multidão.
Deixou-se ficar perdido no meio do barulho e da massa de gente, sem prestar atenção para onde seguia ou quem estava em volta dele enquanto tentava livrar-se da dor por algo que não poderia ter. Às vezes pensava se para Anita não era mais fácil. Pelo menos Big Jim estava morto, deixando-a apenas com lembranças. Para ele, Lisa existia na carne, ainda fora do seu alcance, mas muito viva. Agora que ela estava partindo estaria longe de suas vistas - talvez até fora de sua mente - mas duvidava que um dia a tirasse de seu coração. Talvez fosse dessa maneira que sempre acontecia com alguém que se amasse e perdesse, sempre fazendo uma pessoa pensar: "E se...?"
De repente, viu Anita parada quase à sua frente, olhando para a fogueira. Os pais dele também estavam lá. Eles tinham trazido uma cadeira de lona de jardim para sua avó Glória sentar-se, mas ela estava de pé ao lado da cadeira, ainda muito ativa para sua idade. Mikey estava ao lado de Anita e contemplava com os olhos arregalados a gigantesca fogueira, encantado pelas chamas que pulavam. Aos quinze anos, ele era quase tão alto quanto Anita, mas mentalmente se comportava como um menino de seis anos. Agora podia vestir-se e amarrar seus sapatos, sabia seu nome e endereço; todos esses feitos eram marcos em sua vida.
Dana, a filha de Wylie de treze anos, estava um pouco afastada da família, conversando e rindo com uma amiguinha. Era difícil dizer com qual dos dois ela se parecia mais, uma vez que seu cabelo negro, olhos escuros e feições marcadas vinham de ambos, mas ela era mais desembaraçada do que os dois juntos. Vestia um par de jeans azuis e uma velha camisa dele. Era a maneira "certinha" de se vestir, ou talvez fosse "quente" - Wylie sentia dificuldade em acompanhar todas as gírias que ela empregava. Na realidade ela era apenas menina meio moleque fazendo a complicada transição para uma jovem mulher. Às vezes ele cismava se essa transição jamais ocorreria. Não que ele se importasse; gostava de ter alguém para levar com ele para caçar ou pescar, mesmo que às vezes se sentisse como se necessitasse de um intérprete...
A atenção dele voltou-se para Anita. Seu negro cabelo estava levemente ondulado por um permanente. O vestido que usava era simples e atraente, longe de ser tão caro como o de Lisa. O negócio de cargas aéreas era bom, mas não tanto assim. E Anita não tinha retido sua forma juvenil da mesma forma que Lisa. Algum enchimento fora acrescentado a sua cintura e seus quadris com o passar dos anos. Mas ela era uma boa mulher. E seu casamento havia sido muito bom. De alguma forma, eles eram perfeitamente adaptados um ao outro. Se em seu casamento faltava qualquer paixão, eles mais do que compensavam isto com o profundo respeito e genuína afeição que partilhavam.
Wylie sentia-se calmo por dentro de novo quando se aproximou por trás e pôs o braço em volta dela.
- Você nos encontrou! - exclamou Anita depois de um sobressalto inicial de surpresa. - Viu o recado que lhe deixei?
- Sim, mas já estava começando a pensar que nunca acharia vocês no meio desta multidão.
- Eu sei. Não é formidável? Finalmente atingimos a condição de estado depois de todos esses anos.
- E foram mesmo muitos anos - acrescentou Glória. - Eu me lembro quando o juiz Wickersham propôs a admissão do Alasca na União, lá por volta de 1912, ou talvez fosse 1911. Naturalmente então ele não era um juiz; era um delegado ao Congresso. Naquela ocasião ele conseguiu fazer-nos um território.
- Eu disse a Dana que ela deve procurar lembrar-se de tudo o que aconteceu hoje - comentou Anita, corada pela excitação daquele momento. - É um acontecimento que ela poderá relatar a seus netos.
- Bem, posso dizer aos nossos que eu estava a quatro mil pés voando sobre o rio Tanana quando peguei uma transmissão de Fairbanks dizendo que o Alasca agora era o 49º estado. Admito que balancei um pouco as asas - disse Wylie sorrindo. - Eu poderia ter tentado um rolo horizontal se estivesse seguro que não havia nada de quebradiço nos caixotes que transportava.
Um grande pedaço de madeira no topo do fogaréu caiu, soltando um chuveiro de fagulhas. Mikey bateu palmas, excitado, e começou a aproximar-se da fogueira. Anita agarrou-o pelo braço quando uma fieira de fogos jogados na fogueira explodiu.
- Eu quero ver, mamãe. - Ele afastou-se dela, tentando soltar-se.
- É quente demais; você vai se queimar. Fique aqui perto de mim. - Ela agarrou-o com força e puxou-o para trás, mas ele já estava se tornando quase grande demais para ela dominá-lo.
- Eu quero ir. - Mas com a mesma rapidez esqueceu-se de seu desapontamento para ficar contemplando a fogueira que crepitava.
- Ele é tão fascinado pelo fogo. - Anita mantinha um olho cuidadoso nele.
- Ele me lembra de Ace quando tinha quatro anos - comentou Glória. - Metade de Nome ardia em chamas e lá estava ele, observando da janela de nossa casa, batendo palmas e rindo cada vez que um dos tambores de gasolina explodia e atirava chamas para o ar.
- Isto foi há muito tempo, mãe. - Num gesto afetuoso, Ace colocou um braço em torno dos magros ombros dela.
- Sim, foi. - Mas ela começou a se lembrar do passado, daquele louco verão em Nome quando as pessoas atiraram-se às praias aos milhares - todos à cata da fortuna, quer fossem garimpeiros, negociantes, jogadores, gatunos, trapaceiros, prostitutas ou pseudo-reis. Rememorando, Glória podia ver mais claramente as ciumeiras, os ressentimentos, a ambição e mesmo o ódio que haviam distorcido as vidas de tanta gente. Esta terra e suas riquezas pareciam ter uma forma de expor o pior e o melhor das pessoas.
Glória olhava para todos os rostos não familiares em torno da gigantesca fogueira e recordava os dias em que ela era o centro das aten?çoes onde quer que fosse. Sua família eram os únicos que tomavam conhecimento da sua existência agora. Para o resto, ela era apenas uma velha decrépita. Nenhum deles jamais imaginaria que ela fora um dia Glória St. Clair. Então ela se riu, compreendendo que eles provavelmente jamais tinham ouvido falar de Glória St. Clair.
- De que está achando graça, Mãe Cole?
- Estava apenas pensando acerca de algo que aconteceu há muito tempo. - Glória suspeitava que Trudy pensava que aquilo se tornara um hábito dela. - Você se lembra quando ajudamos a limpar este parque de forma que Anchorage pudesse ter uma pista de pouso? Wylie, você naquela época era apenas um garotinho. Toda a cidade declarou feriado e apareceu aqui para ajudar. E quando chegou a noite nós também fizemos uma fogueira.
- Era uma senhora pista de pouso, não era? - riu-se Ace. - Tinha até uma estrada que a cortava ao meio... Naturalmente, naquele tempo não havia muitos carros para a gente se preocupar.
- Gostei que a transformassem num parque - disse Trudy.
- Tudo mudou tanto - disse Glória, levantando sua mão com as marcas da idade para indicar o perfil da cidade contra o céu, o bracelete em volta de seu pulso tinindo fracamente. - Olhem para aqueles edifí cios altos. Num dia claro eu podia ver o monte McKinley da porta de trás de minha cabana. Agora lá existe um edifício de escritórios de cinco andares bloqueando minha vista.
Quase todas as construções haviam sido feitas nos últimos doze anos, um resultado da guerra fria com a Rússia, que fizera com que o Departamento da Defesa se engajasse num maciço crescimento e modernização das instalações militares no Alasca.
- Eu venho dizendo à senhora, Mãe Cole, que a senhora de fato deveria mudar-se para a nossa casa. Certamente temos bastante espaço em nossa nova casa e uma vista espetacular da enseada de Cook e das montanhas, incluindo o monte McKinley. - Trudy estava orgulhosa da casa que haviam construído para sua aposentadoria em um novo projeto urbanístico situado num terreno elevado com vista sobre a enseada de Cook, chamado Turnagain-Sobre-o-Mar. - E é tão tranquilo. Acho que a senhora gostaria de fugir do burburinho e da correria da cidade.
- Acontece que gosto muito do burburinho e da correria, assim como você os chama. E ainda não estou tão velha que não possa tomar conta de mim...
Ace já ouvira aquela discussão entre sua mulher e sua mãe por vezes demais para prestar qualquer atenção a ela.
- Nós não podemos mais dizer que o Alasca foi esquecido, não com os milhões e milhões de dólares que o Departamento da Defesa gastou aqui.
- Mas quanto disso ficou? - desafiou-o Glória. - A maior parte dos empreiteiros, equipamentos e trabalhadores vieram de fora. Eles gastaram um pouco aqui e levaram o resto para casa, sem pagar quaisquer impostos. Durante a corrida do ouro, calcula-se que 750 milhões de dólares foram tirados do Alasca. Isto não inclui os milhões em cobre que os Morgan e Guggenheim tiraram da operação de Kennecott. Uma grande parte de nossa riqueza nos foi tirada e nós nem podíamos taxar os que o faziam até 1949.
- Li no jornal que a Indústria de Salmão do Alasca, localizada em Seattle, conseguiu manter os estabelecimentos de pesca fora de nosso controle na lei sobre a criação do estado - disse Ace, e depois riu. - Mas eu acho que aquela descoberta de petróleo que eles fizeram no ano passado na península de Kenai, ao sul daqui, irá mais do que compensar isso. Um geólogo chutou uma árvore e disse: "Furem aqui!"; a Câmara de Comércio pegou a bota dele e mandou folheá-la a ouro. Podem imaginar isso?
- Eu me lembro quando estava no Declive Ártico, ao norte da cordilheira Brooks, em 44 e 45. Era realmente algo para admirar ver aquele óleo verde com uma sombra de vermelho pingando das areias nas escarpas. - Distraído, Wylie acariciou o ombro de Anita quando a conversa sobre petróleo fez recuar seus pensamentos. - Ouvi dizer que algumas companhias de petróleo têm grupos de geólogos examinando aquilo por lá, agora que a Marinha retirou seus grupos de perfuração para fora da área, em 1953. com essa descoberta de petróleo em Kenai, muitas das companhias maiores estão olhando seriamente para o Alasca. Penso que elas estão certas que há mais a ser descoberto.
Petróleo. Eles o chamavam de "ouro negro", lembrava-se Glória, e ouro sempre dava origem a uma febre. Os sintomas dela eram sempre os mesmos - a invasão das concessões e a invasão dos lotes, as demandas judiciais e as outorgas pela justiça, a ambição e a violência, as hordas de pessoas e as montanhas de equipamento. Ela cismava se teria energia para atravessar uma outra dessas explosões. Estas eram coisas para gente jovem.
- Avó Glória - Dana aproximou-se aos pulos para juntar-se a eles, as mãos enfiadas nos bolsos de trás de seus jeans. - É verdade que a senhora uma vez foi uma dançarina em Nome?
- Que idade tem você? - perguntou Glória sem ao menos piscar um olho.
- Tenho treze anos.
- Quando você for um pouco mais velha eu responderei a sua pergunta e lhe contarei tudo - replicou ela.
- Então você poderá contar-nos, Dana - disse Wylie, piscando os olhos para ela.
- Mas avó Glória, a senhora já é velha; pode não estar viva quando eu for mais velha - protestou Dana.
Glória Cole sobreviveu ao terremoto da Sexta-Feira Santa de 27 de março de 1974 - aquele que sacudiu o Alasca e destruiu grande parte de Anchorage. Viveu o bastante para ler acerca da fabulosa descoberta de petróleo na baía de Prudhoe, no Declive Norte do Alasca, e experimentou a explosão inicial quando outras companhias de petróleo, equipes de perfuração, fornecedores, trabalhadores em construção, prostitutas e caçadores de fortuna relacionados com o assunto convergiram sobre o Alasca para tomarem parte na corrida do petróleo. Ela acompanhou todas as amargas discussões sobre o proposto oleoduto - os impedimentos e demandas legais que foram propostos, o ódio que se acumulou contra os conservacionistas, o preconceito que renasceu contra os nativos do Alasca, as ambições e a luta por algo melhor.
Exatamente no dia em que foi dada a autorização para a construção do oleoduto da baía de Prudhoe até Valdez, quando faltavam quatro anos para seu centenário, Glória morreu tranquilamente, em paz no seu sono, rodeada por todos os membros de sua família. Morreu como vivera: sem arrependimentos e sem olhar para trás.
Ace comentou que ela não tinha realmente morrido, que ela simplesmente se mudara para outro lugar a fim de começar tudo de novo.
Janet Dailey
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