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A GUERRA DAS MULHERES Volume II / Alexandre Dumas
A GUERRA DAS MULHERES Volume II / Alexandre Dumas

 

 

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A GUERRA DAS MULHERES

Volume II

 

A VISCONDESSA DE CAMBES

Dois dias depois, avistaram Bordéus. Havia finalmente que decidir o modo como se entraria na cidade. Os duques e o respectivo exército estavam já a apenas dez léguas, pouco mais ou menos; podia-se assim tentar a entrada pacificamente, ou pela força. O que importava era saber o que mais convinha: se comandar em Bordéus, se obedecer ao Parlamento. A senhora princesa convocou o conselho, composto pela senhora Tourville, por Clara, pelas suas damas e por Lenet. A senhora Tourville, que conhecia o seu antagonista, insistira muito em que ele não assistisse ao conselho, dado que a guerra era uma guerra de mulheres, na qual os homens só serviam para combater. Porém, a senhora princesa declarou que, se Lenet a acompanhava por ordem do príncipe, seu marido, não podia excluí-lo da sala das deliberações, na qual, além disso, a sua presença não teria qualquer significado, visto que de antemão se combinara que podia dizer o que quisesse, pois não lhe dariam ouvidos.

 

O receio da senhora Tourville não era uma precaução inútil; havia utilizado os dois dias de marcha que acabavam de passar-se a convencer a senhora princesa da vantagem em seguir as suas ideias belicosas, para as quais, infelizmente, já tinha muita inclinação, e temia que Lenet conseguisse ainda destruir toda a sua obra, tão laboriosamente edificada.

Com efeito, reunido o conselho, a senhora Tourville expôs o seu plano, o qual consistia em mandar chamar secretamente os duques e o respectivo exército, adquirir à força ou por acordo determinado número de barcos, e entrar em Bordéus, descendo o rio e clamando: Vivam os bordeleses! Viva Conde! Fora Mazarino!

Desta forma, a entrada da senhora princesa na cidade tornava-se uma verdadeira entrada triunfal, e a senhora Tourville, por via deste processo, via pôr-se em prática, por linhas tortas embora, o seu famoso projecto de conquistar Bordéus pela força, e assustar a rainha com um exército cujo primeiro ensaio seria tão brilhante empresa.

Lenet aprovou todas as coisas com a cabeça, interrompendo a senhora Tourville com exclamações de admiração; depois, logo que ela acabou de expor o seu plano, afirmou:

- Tudo isso é magnífico! Agora, queira resumir quanto nos disse.

- É fácil, e fá-lo-ei em duas palavras - assentiu a boa da senhora, triunfante, e animando-se a si mesma para fazer a narrativa: - por entre a chuva de balas, o toque dos sinos e os gritos de furor ou de alegria das povoações, ver-se-ão débeis mulheres prosseguirem intrepidamente a sua generosa missão; ver-se-á uma criança, nos braços

da mãe, que suplica ao Parlamento a respectiva protecção. Este tocante espectáculo não deixará de enternecer as almas mais ferozes. Assim, venceremos em parte pela força, em parte pela justiça da nossa causa - o que, a meu ver, é o fim a que se propõe Sua Alteza a senhora princesa...

O resumo teve ainda maior efeito do que o discurso; a senhora princesa aplaudiu; Clara, cada vez mais agrilhoada pelo desejo de ser nomeada parlamentária na Ilha de São Jorge, também aplaudiu; finalmente, Lenet fez mais do que aplaudir: foi pegar na mão da senhora Tour-ville, e, apertando-a com tanto respeito como sensibilidade, exclamou:

- Senhora, ainda que não soubesse como é grande a sua prudência, a que ponto conhece de facto, por instinto, ou por estudo, a grande questão civil e militar de que nos ocupamos, decerto ficaria agora convencido, e me prostraria diante da mais útil conselheira que Sua Alteza poderá jamais encontrar...

- Não concorda, Lenet - disse a princesa - que é uma linda coisa?... Também sou do mesmo parecer. Depressa, vamos, Vialas, arme o senhor duque de Enghien com o espadim que lhe mandei fazer, e envergue-lhe o capacete e a armadura.

- Sim, Vialas, não perca tempo. Todavia, uma única palavra antes disso, senhora - disse Lenet, ao mesmo tempo que a senhora Tourville, segundos antes inchada de orgulho, principiava a tornar-se sombria, devido ao perfeito conhecimento que tinha das subtilezas de Lenet.

- Então que mais há? - perguntou a princesa.

- Nada, senhora, com toda a certeza, pois que jamais

se ouviu coisa que estivesse tanto de harmonia com o génio de uma princesa augusta como vós, e um parecer desses só da vossa casa podia proceder.

Estas palavras deram lugar a que de novo se pavoneasse a senhora Tourville, e chamaram de novo o sorriso aos lábios da princesa, que principiava a franzir as sobrancelhas.

- Porém, senhora - continuou Lenet, que apreciava o efeito desse terrível porém no rosto da fidalga sua inimiga - se bem que adopte, não direi sem repugnância, mas com entusiasmo, este plano, o único conveniente, proporei uma leve alteração...

A senhora Tourville deu meia volta sobre si mesma, empertigando-se toda, e preparou-se para a defesa. As sobrancelhas da senhora princesa franziram-se mais.

Lenet inclinou-se, e fez um gesto com a mão, indicando que pedia licença para continuar.

- O som dos sinos, os gritos de alegria das povoações - prosseguiu ele - enchem-me de antemão com uma alegria que não posso exprimir. Porém, não estou tão sossegado quanto desejaria acerca da chuva de balas de que a senhora falou...

A senhora Tourville continuou a empertigar-se, tomando um ar marcial. Lenet ainda mais se inclinou e, baixando o tom de voz, continuou:

- Realmente, seria admirável ver uma mulher e seu filho, serenos, no meio daquela tempestade, que normalmente põe em fuga os próprios homens. Mas eu recearia que uma dessas balas, ferindo às cegas, como é costume entre as coisas brutas, e sem inteligência, desse razão ao senhor Mazarino, em nosso prejuízo, e malograsse o nosso plano - aliás tão magnífico. Sou de parecer, como disse com tanta eloquência a senhora Tourville, que se veja o jovem príncipe e a augusta mãe abrirem caminho até ao Parlamento; isto, porém, através da súplica, e não pelas armas. Penso que terá maior beleza, enternecer assim os corações mais fortes. Penso, enfim, que um destes dois meios oferece muito maior probabilidade de um feliz êxito do que o outro, e que o fito da senhora princesa é, primeiro que tudo, entrar em Bordéus. Ora, sustento que, no meu entender, nada há mais incerto do que aquela entrada, caso travemos batalha...

- Verão - disse com azedume a senhora Tourville - que o senhor Lenet, como é seu costume, vai destruir o meu plano pedra por pedra, e propor com toda a doçura outro plano da sua imaginação.

- Eu?! - exclamou Lenet, enquanto a princesa sossegava a senhora Tourville com um sorriso e com um volver de olhos - eu, que sou o mais ardente dos seus admiradores?! Não! mil vezes não. Mas sei que, vindo de Blaye, entrou na cidade um oficial de Sua Majestade, chamado Dalvimar, cuja comissão é sublevar o povo contra Sua Alteza. E digo que o senhor Mazarino pode acabar a guerra de um só golpe, e assim o fará. É esta a razão por que me assusta a tal chuva de balas a que se referia agora a senhora Tourville, e, quanto às balas, talvez que ainda maior receio tenha das inteligentes do que das brutas e insanas.

Esta última tirada de Lenet pareceu fazer reflectir a princesa.

- Sabe sempre tudo, senhor Lenet - respondeu com voz trémula de raiva a senhora Tourville.

- Todavia, uma boa acção assaz encarniçada teria sido bonita - opiniou, endireitando-se e fazendo trejeitos como se estivesse numa sala de armas, o capitão das guardas, antigo soldado, que confiava nas suas forças, e esperava salientar-se se houvesse combate.

Lenet pisou-lhe com força o pé, ao mesmo tempo que o contemplava com o mais amável sorriso.

- Sim, capitão - disse ele - mas também pensa, não é verdade, que a salvação do duque de Enghien é necessária à nossa causa, e que, uma vez morto ou prisioneiro, o verdadeiro generalíssimo do exército dos príncipes estará prisioneiro ou morto...

O capitão das guardas, consciente de que o título pomposo de generalíssimo, dado na aparência a um príncipe de sete anos, fazia dele, capitão, primeiro brigadeiro do exército, reconheceu a tolice que acabara de cometer, e, dando o dito por não dito, apoiou com ardor o parecer de Lenet.

Entretanto, a senhora Tourville aproximava-se da princesa, e falava-lhe em surdina. Lenet viu que teria de sustentar uma nova luta. Com efeito, voltando-se para ele, Sua Alteza afirmou, com enfado:

- Não deixa, todavia, de ser muito estranho, que se destrua com tanto encarniçamento o que estava tão bem feito.

- Sua Alteza está enganada - disse Lenet. - Nunca incluí encarniçamento nos conselhos que tive a honra de lhe dar, e, se destruo, é para refazer. Se, mau grado as razões que tenho a honra de apresentar a Vossa Alteza, persistir em fazer-se matar, e ao seu inocente filho, pode fazê-lo, e morreremos a seu lado. Não é coisa difícil, e o primeiro criado do vosso séquito, ou o último dos farroupilhas da cidade, fará outro tanto. Porém, se quisermos ser bem sucedidos, apesar de Mazarino, apesar da rainha, apesar dos parlamentos, apesar da menina Nanon de Lartigues, apesar, enfim, dessas contrariedades, inseparáveis ainda da fraqueza a que estamos constrangidos - é isto, a meu ver, o que temos de fazer...

- Senhor! - exclamou impetuosamente a senhora Tour-ville, agarrando-se à última frase de Lenet - não há fraqueza onde estiver o nome de Conde, por um lado, e dois mil soldados de Rocroy, de Norlinga, e de Cens, pelo outro; e se, apesar disso, há fraqueza, estaremos de qualquer forma perdidos, e não há-de ser o seu plano, mesmo que magnífico, a salvar-nos.

- Li uma vez, minha senhora - respondeu Lenet com serenidade, saboreando de antemão o efeito que ia desencadear na princesa, que, contrariada embora, se mantinha atenta - que a viúva de um dos mais ilustres romanos, sob o mando de Tibério - a generosa Agripina, a quem a perseguição acabava de roubar Germânico, seu esposo - princesa que podia sublevar à sua vontade um exército ainda reactivo à recordação do general morto, preferiu entrar sozinha em Brindes, atravessar a Apúlia e a Campina vestida de luto, e levando pela mão duas crianças, e ir caminhando assim, pálida, com os olhos vermelhos de lágrimas, e cabeça baixa, enquanto os meninos soluçavam e imploravam com o seu olhar... e, então, todos os que a viam (e havia mais de dois milhões de habitantes, de Brindes a Roma) romperam em lágrimas, explodiram em imprecações e ameaças; li que a causa daquela mulher

ganha, não apenas perante Roma, mas perante toda a Itália; não somente aos olhos dos contemporâneos, mas aos da posteridade, pois não encontrou resistência alguma aos seus planos e aos seus gemidos, ao passo que às lanças teria visto oporem-se as lanças, e às espadas as espadas. Parece-me que a semelhança é grande, entre Sua Alteza e Agripina, entre o senhor príncipe e Germânico, enfim, entre Pisão, ministro perseguidor e envenenador, e o senhor Mazarino. Ora, sendo a semelhança tão grande, sendo a situação igual, peço que seja também o procedimento, porque, no meu entender, é impossível que aquilo que produziu tão bom resultado numa época, não provoque outro tanto em outra...

Um sorriso de aprovação alegrou o semblante da princesa, e assegurou a Lenet a vitória da sua alocução. A senhora Tourville foi entrincheirar-se no ângulo da sala, encobrindo-se com uma estátua antiga. A senhora de Cambes, que encontrara um amigo em Lenet, retribuiu-lhe o apoio que ele lhe dera, aprovando com a cabeça; o capitão chorava, como um tribuno militar; e o pequeno duque de Enghien exclamou:

- Mamã, levar-me-á pela mão e vestir-me-á de luto, sim?

- Sim, meu filho - respondeu a princesa. - Lenet, bem sabe que sempre foi minha intenção apresentar-me aos bordeleses vestida de negro...

- Tanto mais - disse em voz baixa a senhora de Cambes- que o preto fica muito bem a Vossa Alteza.

- Caluda, minha pequena! - comandou a princesa - a senhora Tourville apregoá-lo-á em voz alta, sem que nem sequer lho diga em voz baixa.

O programa da entrada em Bordéus foi, pois, preparado em conformidade com a proposta de Lenet. As damas da escolta receberam ordem para se prepararem. O jovem príncipe foi ataviado com um vestido branco guarnecido de passamanes pretos, e o chapéu fora coberto de plumas brancas e pretas. Quanto à princesa, afectando a maior simplicidade, a fim de se assemelhar a Agripina, a quem resolvera imitar em tudo, vestiu-se de preto, sem quaisquer jóias.

Lenet, empresário da festa, fazia quanto lhe era possível para que fosse esplêndida. A casa que habitava numa pequena cidade a duas léguas de Bordéus, estava cheia de partidários da princesa, os quais, com antecedência, queriam saber que género de entrada na cidade lhe seria mais agradável. Lenet, qual director de teatro moderno, aconselhou-lhes as flores, as aclamações e os repiques; depois, para fazer a vontade à belicosa senhora Tourville, propôs algumas salvas de artilharia.

No dia seguinte, 31 de Maio, a convite do Parlamento, a princesa pôs-se a caminho. Um tal Lavie, procurador-geral no Parlamento, e partidário acérrimo do senhor Mazarino, mandara fechar as portas na antevéspera, para impedir que a princesa fosse recebida, caso se apresentasse; porém, por outro lado, os partidários dos Conde não se haviam descuidado, e naquela mesma manhã, o povo, excitado por eles, reunira-se aos gritos de Viva a senhora princesa! Viva o senhor duque de Enghien!, e arrombara as portas à machadada - de forma que, por fim, nada se opunha já àquela famosa entrada, que, assim, tinha todo o aspecto de um triunfo. Para além disso, os observadores podiam descortinar nestes dois acontecimentos a inspiração dos chefes de ambos os partidos em que estava dividida a cidade, visto que Lavie recebia directamente os conselhos do duque dÉpernon, e o povo tinha os seus incentivadores, que eram aconselhados por Lenet.

Assim que a princesa franqueou a porta, a cena, preparada havia muito tempo, verificou-se em proporções gigantescas. A salva militar foi dada pelos navios que estavam no porto, e a artilharia da cidade correspondeu-Lhe. As flores caíam das janelas, ou atravessavam as ruas, em grinaldas, de modo que a calçada estava atapetada de flores que perfumavam o ar; as aclamações e os vivas eram dados por trinta mil zelosos partidários de todas as idades e de ambos os sexos, que sentiam o seu entusiasmo aumentar com o interesse despertado pela princesa e o filho, e com o ódio que tinham a Mazarino.

Para cúmulo, o pequeno duque de Enghien foi o mais hábil actor de toda esta cena. A princesa renunciara a conduzi-lo pela mão, com receio de que se fatigasse, ou ficasse sepultado sob as rosas; em contrapartida, era levado ao colo pelo seu gentil-homem, e como ficava com as mãos livres, atirava beijos à direita e à esquerda, e tirava graciosamente o chapéu de plumas.

O povo bordelês com facilidade se embriaga; o entusiasmo das mulheres cresceu de tal forma que se transformou em frenética adoração por aquele lindo menino, que chorava com tanta graça; os velhos magistrados comoveram-se, ao ouvirem as palavras do pequeno orador, que dizia: "Senhores, sirvam-me de pai, visto que o senhor cardeal me tirou o meu."

Debalde pretenderam os partidários do ministro tentar alguma oposição; punhos, pedras, e até alabardas, constrangiram-nos à prudência, e tiveram de resignar-se, deixando o campo livre aos triunfadores.

Contudo, a senhora de Cambes, pálida e grave, que caminhava atrás da princesa, não deixava também de atrair as atenções do público. Não conseguia pensar em tanta glória, sem se afligir interiormente, no receio de que o êxito desse dia talvez fizesse esquecer a resolução da véspera. Seguia, pois, aquele caminho, empurrada pelos adoradores, pisada e magoada pelo povo, inundada de flores e de respeitosos afagos, tremendo de ser levada em triunfo, tal como certos gritos pareciam anunciá-lo à senhora princesa, ao duque de Enghien e ao seu séquito; de súbito, fixando os olhos em Lenet, que ao notar o aperto em que ela estava lhe oferecia a mão para a ajudar a meter-se numa carruagem, disse-lhe, respondendo ao seu próprio pensamento:

- Ah! é bem feliz, senhor Lenet; faz prevalecer as suas opiniões em todas as coisas, e são sempre essas as que se seguem. Verdade seja dita que são boas,-que todos se dão bem com elas.

- Parece-me, senhora - respondeu Lenet - que não tem de que queixar-se, já que o alvitre que deu foi aceite.

- Como?

- Não ficou combinado que tentará proporcionar-nos a posse da Ilha de São Jorge?...

- Sim; mas quando me será permitido meter ombros à obra?

- Amanhã mesmo, caso me prometa vir a ser mal sucedida.

- Fique sossegado; receio demasiado ir ao encontro das suas intenções.

- Tanto melhor.

- Não consigo compreendê-lo!...

- Precisamos da resistência da Ilha de São Jorge, para obter junto dos bordeleses os nossos dois duques e respectivas tropas, pois que, devo confessá-lo - ainda que a minha opinião acerca deste ponto seja vizinha da que tem a senhora Tourville - parecem-me eminentemente necessários nas circunstâncias em que estamos.

- Sem dúvida - respondeu Clara; - porém, ainda que não tenha os conhecimentos da senhora Tourville quanto à arte da guerra, parece-me que se não deve atacar uma praça sem primeiro intimar a que se renda.

- O que diz é exactíssimo.

- Então, há-de ser enviado um parlamentário à Ilha de São Jorge...

- Sem a mínima dúvida!

- Pois então, peço que seja eu esse parlamentário. Os olhos de Lenet dilataram-se de surpresa.

- A senhora?! - disse ele. - A senhora?! Pelo que vejo, todas as nossas damas se tornaram amazonas!...

- Desculpe-me este capricho, meu querido senhor Lenet.

- Tem razão. Afinal, o pior que nos pode acontecer, será que acabe por conquistar São Jorge.

- Fica combinado, então?

- Sim, senhora.

- Mas, prometa-me uma coisa... -Qual é?

- Que ninguém saberá o nome nem a qualidade do parlamentário que for enviado, a menos que no caso de esse parlamentário vir a ser bem sucedido.

- De acordo - disse Lenet, dando a mão à senhora de Cambes.

- E quando partirei?

- Quando quiser.

- Amanhã!

- Seja então amanhã.

- Muito bem. Lá vai a senhora princesa a subir com o filho ao terraço do presidente Lalasme. Deixo o meu quinhão de triunfo à senhora Tourville. Desculpar-me-á junto de Sua Alteza, a pretexto de que me sinto indisposta. Mande que me conduzam ao alojamento que me destinaram; vou fazer os meus preparativos, e reflectir na minha missão, que não deixa de me inquietar, visto que é a primeira deste género que tenho de desempenhar, e tudo, segundo se diz, depende de uma boa estreia.

- Agora - disse Lenet-já me não surpreende que o senhor de Rochefoucauld quase tenha, por amor a si, cometido uma infidelidade para com a senhora de Longueville; vale tanto como ela em certas coisas, e muito mais em outras.

- É possível - condescendeu Clara - e não rejeito inteiramente o elogio; porém, se acaso tem alguma influência sobre o senhor de Rochefoucauld, meu querido senhor Lenet, faça-o agarrar-se ao seu primeiro amor, porque o segundo mete-me medo!

- Ora, pois, trataremos disso - disse Lenet sorrindo. - Esta noite dar-lhe-ei as suas instruções.

- Consente então em que vá tomar São Jorge?

- Não posso deixar de consenti-lo, uma vez que tanto o deseja.

- E os dois duques? E o exército?

- Tenho na minha algibeira outro meio de fazer que venha para aqui.

E Lenet, depois de ter fornecido o endereço da senhora de Cambes ao cocheiro, despediu-se dela, sorrindo, e foi ter com a princesa.

 

NO dia imediato ao da entrada da princesa em Bordéus, havia um grande almoço na Ilha de São Jorge, para o qual Canolles havia convidado os principais oficiais da guarnição e os outros governadores de praças da província.

Pelas duas horas - altura em que estava programado o início do almoço, Canolles via-se rodeado por uma dúzia de gentis-homens, à maior parte dos quais via pela primeira vez, os quais, referindo-se ao grande acontecimento da véspera, gracejavam acerca das damas que acompanhavam a princesa pouco se assemelharem a homens que estão para entrar em campanha e a quem estejam confiados os mais sérios interesses do reino.

Canolles, radiante, Canolles, magnífico, com a sua farda dourada, animava ainda mais aquela alegria com o seu exemplo. Chegara o momento de servir o almoço.

- Senhores - disse ele - peço-lhes desculpa, mas ainda falta um convidado.

- Qual? - perguntaram os mancebos, olhando uns para os outros.

- O governador de Vayres, a quem escrevi, embora o não conheça, mas que, por isso mesmo, tem direito a algumas atenções. Peço, pois, que me concedam uma espera de meia hora.

- O governador de Vayres?! - estranhou um antigo oficial, acostumado sem dúvida à pontualidade militar, e a quem esta demora arrancou um suspiro - o governador de Vayres?... Mas... esperem! Se me não engano, é o marquês Bernaz... Porém, não é ele quem comanda em Vayres, mas o respectivo lugar-tenente.

- Então - disse Canolles - não virá, ou o lugar-tenente fará as suas vezes. Quanto a ele, há-de sem dúvida estar na corte, que é o lugar dos validos.

- Mas, senhor barão - disse um dos presentes - parece-me que não é necessário estar-se na corte para ser promovido; e eu conheço um comandante que não tem qualquer razão de queixa. Em três meses, capitão, tenente-coronel, governador da Ilha de São Jorge! Parece-me que não tem andado mal, deve convir!

- Estou de acordo-disse Canolles, corando.-E como não sei a que atribuir semelhantes favores, tenho, na verdade, de confessar que na minha casa há algum bom génio, pois se assim não fosse, não poderia prosperar tanto.

- Conhecemos o bom génio do senhor governador - volveu, inclinando-se, o tenente que introduzira Canolles

na fortaleza. - É o seu merecimento.

- Não ponho em causa o merecimento, antes pelo contrário! - acrescentou outro oficial. - Sou o primeiro a reconhecê-lo. Porém, a esse merecimento juntaria a recomendação de certa senhora, a mais espirituosa, a mais benfazeja, a mais amável da França... depois da rainha, bem entendido.

- Nada de equívocos, senhor conde - alvitrou Canolles, sorrindo para o novo interlocutor. - Se tem segredos seus, guarde-os para si;-se são dos seus amigos, guarde-os para eles.

- Confesso - disse um oficial - que, quando ouvi falar do atraso, pensei que nos iam pedir desculpa em favor de alguma refulgente dama. Vejo agora, porém, que me enganei.

- Então havemos de almoçar sem mulheres? - perguntou outro.

- Raios, a não ser que convide a senhora princesa e o seu séquito - disse Canolles - não sei quem aqui poderíamos ter; além do que, não nos esqueçamos, senhores, de que o nosso almoço é sério: se quisermos falar de negócios, pelo menos só a nós próprios importunaremos.

- Diz muito bem, comandante; apesar de que, se não tivermos cuidado... as mulheres fazem neste momento uma verdadeira cruzada contra a nossa autoridade; e, como prova, chegará o que dizia o cardeal a D. Luís de Haro, na minha frente.

- Então que lhe dizia? - perguntou Canolles.

- "Sois muito felizes! As mulheres da Espanha só se preocupam com dinheiro, garridices e amantes, ao passo que as mulheres da França já não aceitam um amante sem o terem sondado acerca da questão política; e tanto assim é - acrescentou, com ar desesperado - que, nos encontros amorosos, o que hoje se trata seriamente são os negócios do governo."

- E por isso - disse Canolles - a guerra que fazemos se chama Guerra das Mulheres, o que não deixa de ser lisonjeiro para nós.

Neste momento, e quando a meia hora de espera pedida por Canolles se escoava, a porta abriu-se, e apareceu um lacaio, que anunciou que o almoço estava servido.

Canolles pediu aos seus convidados que o seguissem: mas, quando se punha em marcha, ouviu-se outro anúncio na antecâmara:

- O senhor governador de Vayres!

- Ah! ah! - disse Canolles - isto é uma grande gentileza da sua parte.

E deu um passo para ir ao encontro do colega que não conhecia. Porém, repentinamente, recuando sobressaltado, exclamou:

- Richon! Richon governador de Vayres!...

- Eu mesmo, meu querido barão - respondeu Richon, conservando, apesar da sua afabilidade, o ar grave que lhe era habitual.

- Ah! tanto melhor! mil vezes melhor! - disse Canolles, apertando-lhe cordialmente a mão. - Senhores - ajuntou - não conhecem este cavalheiro, mas eu conheço-o e digo em voz alta que não se podia confiar lugar de tanta importância a homem mais honrado.

Richon volveu em torno de si o seu altivo olhar, como o da águia que observa, e, não vendo em todos os olhos senão uma leve surpresa acompanhada de muita benevolência, disse:

- Meu querido barão, agora, que tão francamente respondeu por mim, peço-lhe que me apresentes a estes senhores, que eu não tenho a honra de conhecer.

E Richon indicou com os olhos três ou quatro gentis-homens para quem era, com efeito, inteiramente estranho.

Houve então a troca de cortesias, que davam um carácter tão nobre e tão amigável, a todas as relações daquele tempo. Passado um quarto de hora, Richon já era amigo de todos aqueles jovens oficiais, e poderia pedir a cada um deles as respectivas espada ou bolsa. O que tanto o abonava era o seu valor bem conhecido, a sua reputação sem mancha e a nobreza espelhada nos seus belos olhos.

- Há que confessar, meus senhores - disse o governador de Brannes - que, apesar de eclesiástico, o senhor Mazarino sabe conhecer os homens de guerra, e está a agir com acerto de algum tempo a esta parte. Fareja a guerra, e escolhe os seus governadores: Canolles aqui, e Richon em Vayres...

- Mas, combater-se-á mesmo? - perguntou Richon.

- Se se combaterá?... - ironizou um mancebo que chegava directamente da corte. - Pergunta se acaso se combaterá, senhor Richon?...

- Pergunto!

- Então, eu, perguntar-lhe-ei em que estado estão os seus bastiões.

- Estão quase novos, senhor; é que, embora esteja na praça só há três dias, mandei fazer mais reparações do que se tinham feito em três anos.

- Pois saiba que não tardarão a estrear-se - sentenciou o mancebo.

- Tanto melhor - disse Richon. - Que podem desejar os guerreiros? A guerra!

- Bom - cortou Canolles. - O rei pode agora dormir sossegadamente, porque tem os bordeleses entalados pelos seus dois rios.

- O facto é que quem ali me colocou pode contar comigo - assegurou Richon.

- Diz que está em Vayres desde quando, senhor?

- Há três dias. E você, Canolles, há quanto tempo está em São Jorge?

- Há oito. Fizeram-lhe acaso uma recepção como a mim, Richon? A minha entrada aqui foi esplêndida; e, na verdade, ainda não dei os devidos agradecimentos a estes senhores... Tive repiques, tambores e vivas... Só faltou a artilharia; mas prometeram-ma dentro de poucos dias, e isso consola-me.

- Ora pois - disse Richon - aí está a diferença que houve entre nós; a recepção que me fizeram foi tão modesta como a sua foi de magnífica. Tinha recebido ordem de introduzir na praça cem homens do regimento de Turenne, e não sabia como havia de fazê-lo, quando a nomeação chegou às minhas mãos, em São Pedro, onde estava, assinada pelo senhor dÉpernon. Parti imediatamente, entreguei a minha carta ao tenente, e, sem tambor nem trombeta, tomei posse da praça. Agora, lá estou.

Canolles, que a princípio ria, sentiu, pelo acento com que estas últimas palavras foram pronunciadas, apertar-se-lhe o coração sob o peso de um sinistro pressentimento.

- E está alojado numa casa sua? - perguntou ele.

- Preparo-me para isso - disse Richon, calmamente.

- Quantos homens tem? - interrogou Canolles. -Em primeiro lugar, cem homens do regimento de

Turenne, antigos soldados de Rocroy, com os quais se pode contar; além disso, uma companhia que formei na cidade, e que vou exercitando à medida que os alistados vêm ter comigo: burgueses, mancebos, obreiros... duzentos homens, pouco mais ou menos. Finalmente, espero um reforço de cem ou cento e cinquenta, recrutados pelo capitão da terra.

- O capitão Ramblay? - perguntou um dos convidados.

- Não, o capitão Cauvignac - respondeu Richon.

- Não o conheço - disseram várias vozes.

- Conheço-o eu! - disse Canolles.

- É um realista decidido?

- Não me atreveria a asseverá-lo. Contudo, tenho

razões para crer que o capitão Cauvignac pertence ao

senhor dÉpernon, e que é muito afeiçoado ao duque.

- Então, isso responde à pergunta: quem é afeiçoado

ao duque, é-o a Sua Majestade.

- Deve ser algum batedor da vanguarda do rei - disse o antigo oficial, que na mesa se desforrava do tempo que perdera a esperar. - Ouvi falar em qualquer coisa dessas.

- Dar-se-á o caso que Sua Majestade esteja a caminho?...- perguntou Richon, com a sua costumada tranquilidade.

- A esta hora - respondeu o mancebo que vinha da corte - o rei deve estar, pelo menos, em Blois.

- Tem a certeza disso?...

- Certezíssima. O exército há-de ser comandado pelo marechal de La Meilleraye, que nestas imediações deve fazer a sua junção com o senhor duque dÉpernon.

- Em São Jorge, não? - aventurou Canolles.

- Ou antes em Vayres - disse Richon. - O senhor de Meilleraye vem da Bretanha, e Vayres fica-lhe no caminho.

- Aquele que sustentar o choque dos exércitos arrisca fortemente os seus bastiões - disse o governador de Brannes. - O senhor de Meilleraye possui trinta peças de artilharia, e o senhor dÉpernon vinte e cinco.

- Há-de ser um lindo fogo - corroborou Canolles. -Infelizmente, não o veremos.

- Ah! - disse Richon - a não ser que algum de nós se declare pelos príncipes.

- Sim, mas Canolles pode ter a certeza de ver algum fogo. Caso se declare pelos príncipes, tem de ver o fogo do senhor de Meilleraye e do duque dÉpernon; e caso se conserve fiel a Sua Majestade, terá o fogo dos borde-leses.

- Oh! quanto a estes últimos - replicou Canolles - não julgo que sejam muito temíveis, e confesso que sinto alguma vergonha por só a eles ter de combater. Infelizmente, sou todo, em corpo e alma, do partido de Sua Majestade, e terei de me contentar com uma guerra de paisanos.

- E hão-de fazer-lha, não tenha a mínima dúvida - asseverou Richon.

- Tem então algumas suspeitas quanto a isto? - perguntou Canolles.

- Tenho mais do que suspeitas - disse Richon. - Tenho certezas. O conselho dos burgueses decidiu que primeiro que tudo se tomasse a Ilha de São Jorge.

- Muito bem - bradou Canolles. - Venham, que eu os espero.

A conversa estava neste ponto, e acabavam de atacar a sobremesa, quando, repentinamente, se ouviu o tambor às portas da fortaleza.

- O que significa isto? - perguntou Canolles.

- Ah! com todos os diabos! - exclamou o jovem

oficial que tinha dado as notícias da corte - teria a sua graça, que o atacassem neste momento, meu caro Canolles; um assalto e uma escalada, seria coisa linda, depois de um bom almoço.

- Os diabos me levem se assim não é! - disse o antigo comandante. - Aqueles miseráveis burgueses sempre pregam destas peças, vindo inquietar-nos às horas da comida. Estive nos postos avançados de Charnton, no tempo da guerra de Paris; nunca podíamos almoçar nem jantar sossegados.

Canolles tocou a campainha. A ordenança, que estava na antecâmara, entrou.

- Que história é essa? - perguntou Canolles.

- Ainda não sei, senhor governador; talvez seja algum mensageiro do rei ou da cidade.

- Vá informar-se, e venha dar-nos resposta. O soldado saiu correndo.

- Sentemo-nos outra vez à mesa, meus senhores - disse Canolles aos convidados, os quais, na maioria, se haviam levantado ao ouvir o rufar do tambor.

Todos os convidados se sentaram, rindo. Somente Richon, por cujo rosto passara uma nuvem, ficou inquieto e com os olhos fitos na porta, esperando o regresso do soldado. Mas, em lugar do soldado, quem se apresentou foi um oficial, de espada desembainhada, dizendo:

- Senhor governador, um parlamentário.

- Um parlamentário? - estranhou Canolles. - E da parte de quem?

- Da parte dos príncipes. -De onde vem?

- De Bordéus.

- De Bordéus?! - repetiram todos os convidados, excepto Richon.

- Então, a guerra a sério está declarada? - admirou-se o antigo oficial. - Se enviam parlamentários...

Canolles reflectiu um momento, durante o qual o seu rosto, que dez minutos antes estava risonho, se cobriu de toda a gravidade que exigiam as circunstâncias.

- Senhores - disse ele - o dever está primeiro do que tudo. É provável que tenha com o enviado dos senhores bordeleses alguma questão difícil a resolver. Ignoro quando poderei tornar a vê-los...

- Não! Não! - exclamaram em coro todos os convidados.- Pelo contrário, despeça-nos, comandante; o que lhe acontece é um aviso que recebemos, para voltarmos aos nossos postos respectivos... Convém, pois, que nos separemos desde já.

- Não me cabia a mim propô-lo, meus senhores - disse Canolles. - Porém, uma vez que assim se oferecem, não posso deixar de confessar que é o mais prudente, e aceito... Os cavalos e as equipagens destes senhores! - comandou.

Quase no mesmo instante, tão rápidos nos seus movimentos como se já estivessem no campo de batalha, os convidados saltaram para as suas selas, ou enfiaram-se nas suas seges, e, acompanhados pelos respectivos piquetes de escolta, afastaram-se em tantas direcções quantas as das suas residências.

Richon foi o único a ficar.

- Barão - disse ele a Canolles - não quis deixá-lo absolutamente, como os outros, visto que nos conhecemos há mais tempo do que conhece os outros. Adeus, agora; dê-me a mão, e... Deus o ajude!

Canolles apertou a mão a Richon.

- Richon - disse ele, encarando-o-já o conheço: tem alguma coisa na mente. Não mo diz, porque é provável que não seja seu o segredo. Contudo, vejo-o comovido, e quando um homem da sua têmpera está comovido, não é sem algum motivo de peso.

- Não vamos nós separar-nos?... -disse Richon. -Também estávamos para nos separar quando nos despedimos um do outro na estalagem de Biscarros, e, contudo, pareceu-me calmo...

Richon sorriu-lhe, tristemente.

- Barão, tenho um certo pressentimento de que não nos tornaremos a ver.

Canolles estremeceu, tão profunda era a melancolia da voz ordinariamente tão firme do aventureiro partidário.

- Pois então - disse ele - se não tornamos a ver-nos, Richon, é porque um de nós terá morrido... como morrem os bravos; e, em tal caso, aquele que morrer terá pelo menos a certeza de sobreviver no coração de um amigo. Abracemo-nos, Richon! Disse-me: Deus o ajude; eu dir-Lhe-ei: Deus o alente!

Os dois homens lançaram-se nos braços um do outro, e assim se conservaram por algum tempo, com os seus nobres corações unidos.

Quando se separaram, Richon enxugou uma lágrima, a única talvez que jamais sombreara o seu altivo olhar; depois, como se temesse que Canolles visse aquela lágrima, saiu sem hesitação do quarto, envergonhado sem dúvida de ter oferecido a um homem, cujo valor conhecia, uma tal demonstração de fraqueza.

 

A sala de jantar estava vazia, e os únicos que nela ficaram foram Canolles e o oficial que anunciara o parlamentário, e que estava em pé, no ângulo da porta.

- Que manda o senhor governador? - disse ele, passado um momento de silêncio.

Canolles, que a princípio ficara absorto nos seus pensamentos, estremeceu ao ouvir esta voz, levantou a cabeça, e, despertando da sua preocupação, perguntou:

- Onde está o parlamentário? - Na sala de armas, senhor. -Por quem é acompanhado?

- Por dois guardas da milícia burguesa de Bordéus.

- Que aparência tem?

- É um mancebo, que usa um grande chapéu.

- E como se anunciou?

- Como portador de cartas da senhora princesa e do Parlamento de Bordéus;

- Rogue-lhe que espere um instante - disse Canolles.

- Já vou ter com ele.

O oficial saiu para executar a ordem, e Canolles preparava-se para segui-lo, quando uma porta se abriu, e Nanon, enfiada e trémula, mas com o seu afectuoso sorriso, se lhe apresentou, e, tomando a mão do mancebo:

- Um parlamentário, meu amigo?... - disse ela - que quer isto dizer?

- Quer dizer, querida Nanon, que os senhores bordeleses querem assustar-me, ou seduzir-me.

- E que resolveu?

- Resolvi recebê-lo. -Não pode evitá-lo?

- É impossível! Há certos preceitos a que não podemos subtrair-nos.

- Oh! meu Deus!...

- Que tem, Nanon? -Tenho medo. -De quê?

- Não me disse que este parlamentário vinha para assustá-lo ou para seduzi-lo?...

- Quanto a isso, não há a mínima dúvida: um parlamentário não é bom senão para uma destas duas coisas. Tem medo de que ele me assuste?

- Oh! não; mas talvez que o seduza...

- Ofende-me, Nanon.

- Ah! meu amigo, eu digo o que temo.

- Tão pouca confiança tem em mim?! Então, por quem me toma?

- Por quem é, Canolles; quero dizer: por um coração generoso, mas terno.

- Ora vejamos - disse Canolles, a rir - que parlamentário me enviam! Será o Cupido em pessoa?...

- Talvez.

- Então, viu-o?

- Não o vi, mas ouvi a sua voz; é demasiado suave, para voz de um parlamentário.

- Nanon, está louca! Deixe-me desempenhar o meu cargo: fez-me governador...

- Para me defender, meu amigo!

- Então, julga-me tão cobarde que a atraiçoe?... Na verdade, Nanon, insulta-me, tendo-me em tão baixa conta!

- Está então decidido a receber esse mancebo?

- Assim o devo fazer, e aborrecer-me-ia que teimasse em opor-se ao cumprimento desse dever.

- Tem plena liberdade, meu amigo - disse tristemente Nanon. - Uma palavra mais, somente...

- Fale.

- Onde o receberá?

- No meu gabinete.

- Canolles, faça-me um favor... - Qual?

- Em lugar de o receber no seu gabinete, receba-o no seu quarto.

- Que ideia é essa!?

- Então, não me compreende?... Não.

- O meu quarto tem comunicação com a sua alcova, hem?

- E colocar-se-á à escuta?

- Atrás das cortinas, se mo permitir.

- Nanon!...

- Deixe-me ficar perto de si, meu amigo; tenha fé na minha estrela, dar-lhe-ei sorte.

- Contudo, Nanon, se o parlamentário...

 

 (nota da digitalização: o excerto que se segue estava em falta e foi tirado doutra edição)

 

- Se... o quê?.

- Viesse para confiar-me algum segredo de Estado.

- Não podeis confiar um segredo de Estado àquela que vos confiou a sua vida e a sua fortuna?...

- Ora pois, escutai-nos, Nanon, já que assim o quereis absolutamente, não me detenhais porém mais tempo, aquele parlamentário está à espera.

- Ide, Canolles, ide, mas antes disso, Deus vos abençoe pelo bem que me fazeis.

E a jovem senhora quis beijar a mão do seu amante.

- Louca, disse Canolles apertando-a ao seu peito, e dando-lhe um beijo na testa; estareis pois...

- Atrás das cortinas do vosso leito. Dali poderei ver e ouvir.

- Ao menos tende cuidado de não vos rirdes, Nanon, pois não são negócios de brincadeira.

- Podeis ficar descansado, disse ela, eu não rirei.

Canolles deu ordem que introduzissem o mensageiro, e entrou no seu quarto, vasta sala mobilada ao tempo de Carlos IX, e cujo aspecto era severo; dois candelabros ardiam na chaminé, porém só davam uma débil claridade no imenso quarto; a alcova, colo­cada no fundo do quarto, estava absolutamente às escuras.

- Estais aí, Nanon? - perguntou Canolles.

Um sim sufocado e palpitante lhe chegou aos omvidos.

Nesite momento ouviram-se passos; a sentinela apresentou armas. O mensageiro entrou, seguiu com os olhos aquele que o introduzira até que se achou, ou julgou achar-se só com Canolles; então levantou o seu chapéu, e deitou o Capote para trás. No mesmo instante caíram sobre os seus airosos ombros uns cabelos louros, e apareceu o talhe fino e delicado de uma mulher debaixo do boldrié de oiro; e Canol­les ao ver o seu olhar meigo e triste, reconheceu a viscondessa de Cambes.

- Eu tinha-vos dito que tornaria a encontrar-me convosco, cumpro a minha palavra, disse ela. Eis-me aqui.

Canolles, com um movimento de espanto e de angústia, torceu as mãos, e deixou-se cair numa poltrona.

- Vós! vós!... disse ele. Oh! meu Deus! que vindes vós fazer? que vindes vós procurar aqui?

- Venho procurar-vos, senhor; e perguntar-vos se ainda vos lembrais de mim.         Canolles arrancou um profundo suspiro, e pôs ambas as mãos diante dos olhos, para esconjurar aquela aparição encantadora e fatal ao mesmo tempo.

Então achou a explicação de tudo: do susto, da palidez, do tremor de Nanon, e sobretudo do seu desejo de assistir à entrevista. Nanon com os olhos do ciúme, reconhecera uma mulher no parlamentário.

- Venho perguntar-vos, continuou Clara, se estais pronto a cumprir a palavra que me destes naquele quartozinho de Jaulnay, de pedir a vossa demissão à rainha e de entrar no serviço dos príncipes.

- Oh! silêncio! silêncio! senhora, exclamou Canolles.

Clara estremeceu ao ouvir este acento de terror trémulo na voz do mancebo, e olhando com inquieta­ção em torno de si:

- Não estamos aqui sós? perguntou ela.

- Sim, senhora, disse Canolles, porém através destas paredes não poderia alguém ouvir-nos?

- Eu julgava que as paredes do forte de São Jorge

 

(fim do excerto)

 

Eram mais sólidas do que quer dar a entender - disse Clara, sorrindo. Canolles não volveu palavra.

- Vinha, pois, perguntar-lhe - replicou Clara - como pode acontecer que, estando o senhor aqui há oito ou dez dias, não tenha ouvido falar de si; e ainda agora ignoraria quem comandava na Ilha de São Jorge, se o acaso, ou para melhor dizer, a voz pública, não me desse a saber tratar-se do homem que me jurava, ainda não há mais de doze dias, que considerava a sua queda em desgraça uma fortuna, visto que lhe permitia consagrar o seu braço, o seu valor e a sua vida ao partido a que pertenço...

Nanon não pôde conter um movimento que fez estremecer Canolles, e voltar-se a senhora de Cambes.

- Que é aquilo? - disse ela.

- Nada - respondeu Canolles; - não é mais do que um dos ruídos habituais deste antigo quarto, onde, de vez em quando, se ouvem estes estalidos lúgubres.

- Se é outra coisa - disse Clara, pousando a mão no braço de Canolles - não mo oculte, barão, porque deve compreender, uma vez que me decidi a vir ter consigo, de quão importante é o objecto da nossa conferência.

Canolles enxugou o suor que lhe escorria das têmporas, e, forçando o sorriso, afirmou:

- Pode falar!

- Venho, pois, lembrar-lhe aquela promessa, e perguntar-lhe se está pronto a cumpri-la.

- Ai! senhora - respondeu Canolles - isso tornou-se impossível.

- E porquê?

- Porque, desde esse dia, muitas coisas inesperadas se passaram, muitos laços que julgava quebrados se renovaram; o castigo que eu julgava merecer, Sua Majestade substituiu-o por uma recompensa de que eu não era digno: hoje estou ligado ao partido de Sua Majestade pelo... reconhecimento.

Um suspiro atravessou o espaço: a pobre Nanon esperava sem dúvida outra resposta, que não era a que acabava de ser proferida.

- Diga antes pela ambição, senhor Canolles, e poderei compreender a razão disso. É nobre, de elevado nascimento; aos vinte e oito anos fazem-no tenente-coronel, governador de uma praça forte; é muito lisonjeiro, bem o sei; porém, não passa da recompensa natural do vosso merecimento, e esse merecimento, não é o senhor Mazarino o único a apreciar.

- Senhora - disse Canolles - peço-lhe que não diga mais nada!

- Desculpe-me, senhor - disse Clara: - desta vez, já não é a viscondessa de Cambes quem lhe fala, é a enviada da senhora princesa, que se encarregou de lhe transmitir uma missão; é, portanto, necessário, que essa missão se cumpra.

 

- Fale, senhora - respondeu Canolles, com um sorriso que se assemelhou a um gemido.

- Ora bem: a senhora princesa, conhecendo os sentimentos que manifestara em Chantilly, primeiramente, e depois em Jaulnay, inquieta por não saber a que partido pertence definitivamente, decidira enviar-lhe um parlamentário, a fim de fazer uma tentativa para se apoderar da sua praça; dessa tentativa, que qualquer outro parlamentário teria talvez feito com menor esperança em feliz resultado, encarreguei-me eu, pensando que, sendo confidente dos seus pensamentos secretos a este respeito, poderia desempenhá-la melhor do que ninguém.

- Muito obrigado, senhora - disse Canolles, rasgando o peito com a mão, pois durante o curto silêncio do diálogo ouvia a respiração anelante de Nanon.

- É isto, pois, o que lhe proponho, senhor... em nome da senhora princesa, já se sabe; porque, se o fizesse em meu nome - continuou Clara, com o seu encantador sorriso - teria invertido a ordem das proposições.

- Fale, que eu presto-lhe atenção - disse Canolles, com voz surda.

- Entregará a Ilha de São Jorge sob uma das três condições que vou apresentar-lhe, para que escolha a que melhor lhe convier. A primeira, é esta (não sou eu quem fala, tenha isso sempre presente): uma quantia de duzentas mil libras...

- Oh! senhora, não vá mais longe - interrompeu Canolles a conversação neste ponto. - Fui encarregado pela rainha de um comando; este comando é a Ilha de São Jorge: defendê-la-ei até à morte.

- Recorde-se do passado, senhor - exclamou tristemente Clara; - não foi isso o que me disse na nossa última entrevista, quando me propunha tudo deixar para acompanhar-me, quando já empunhava a pena para pedir a sua demissão aos mesmos... aos mesmos a quem hoje quer sacrificar a sua vida...

- Podia oferecer-lhe isso, senhora, quando tinha a liberdade de escolher o meu caminho; hoje já não a tenho...

- Já não a tem? Já não está livre? - exclamou Clara, pálida. - Que quer dizer com isso, senhor? Que quer dizer?

- Quero dizer que estou ligado pela honra. - Pois bem; ouça a segunda proposta.

- Para quê? - disse Canolles. - Não lhe disse já, e repeti, senhora, que nada seria capaz de me apear da resolução que tomei?... Não me tente, pois, visto que seria tempo perdido.

- Peço-lhe desculpa - respondeu Clara; - eu também estou encarregada de uma missão, e tenho de desempenhá-la completamente.

- Fale - murmurou Canolles. - Mas, na verdade... é muito cruel!

- Apresente a sua demissão, e obteremos do seu sucessor o que de si não podemos alcançar. Dentro de um ou dois anos, entrará no serviço do senhor príncipe, com a patente de brigadeiro.

Canolles abanou a cabeça.

- Ah! senhora - disse ele - por que razão só me pede coisas impossíveis?...

- E é a mim que dá semelhante resposta!... - lamentou Clara. - Na verdade, senhor, não posso entendê-lo. Não esteve a ponto de assinar aquela demissão? Não dizia àquela que então estava ao pé de si, e que o escutava com tanta alegria que era livremente e do íntimo do coração que a pedia? Por que razão não fará aqui, quando lho peço, o que propunha fazer em Jaulnay?...

Todas estas palavras eram outras tantas punhaladas que atravessavam o coração da pobre Nanon; e Canolles sentia-as penetrar.

- O que naquela época era um acto sem importância, seria hoje uma traição infame! - disse Canolles, com voz surda. - Nunca entregarei a Ilha de São Jorge! Nunca pedirei a minha demissão!

- Espere - insistiu Clara com a maior doçura possível, olhando em torno de si com inquietação, porque esta resistência de Canolles, e sobretudo o constrangimento que parecia tolher quem assim resistia, pareciam-lhe muito estranhos. - Ouça agora esta última proposta, pela qual eu queria principiar, pois bem sabia, e tinha-o dito de antemão, que havia de recusar as duas primeiras: as vantagens materiais, e agrada-me tê-lo adivinhado, não são coisas que tentem um coração como o seu; para si, são precisas outras esperanças além das da ambição e da fortuna; para os instintos nobres são exigíveis nobres recompensas. Preste-me, pois, atenção.

- Pelo santo nome de Deus, senhora! - disse Canolles - tenha compaixão de mim! E fez um gesto para se retirar. Clara julgou que ele estava abalado e, convencida de que as palavras que ia pronunciar deviam completar a vitória, deteve-o, e continuou:

- Se em vez de um vil interesse, lhe oferecessem um interesse puro e honroso; se pagassem a sua demissão, aquela demissão que pode pedir sem ignomínia (porque, não tendo principiado as hostilidades, esta demissão não é uma deserção nem uma perfídia, mas sim uma escolha pura e simples); se, digo eu, lhe pagassem esta demissão com um casamento; se uma mulher, a quem disse que a amava, a quem disse que sempre a amaria, e que, apesar desses juramentos, nunca correspondeu abertamente à sua paixão; se essa mulher viesse dizer-lhe: Senhor Canolles, estou livre, sou rica, amo-o, seja meu marido, partamos juntos... Vamos para onde quiser, para longe de todas as dissensões civis, para fora de França... Ora diga, senhor: desta vez ainda não aceitaria?...

Apesar do rubor, apesar da encantadora hesitação de Clara, apesar da lembrança do lindo castelinho de Cambes, que poderia ver da sua janela, se, durante a cena que acabámos de referir, a noite não tivesse baixado do céu, Canolles manteve-se firme e inamovível na sua resolução, pois via ao longe, pálida na sombra, sair das cortinas góticas a cabeça desgrenhada de Nanon, trémula de angústia.

- Mas responda-me, em nome do Céu! - continuou a viscondessa. - Realmente, eu já não posso dar explicação nenhuma para o seu silêncio. Estarei porventura enganada? Não é o senhor barão Canolles? Não é o mesmo homem que me disse, em Chantilly, que me amava? Que mo repetiu em Jaulnay? Que me jurou amar-me, só a mim, no mundo, e que estava pronto a sacrificar-me outro qualquer amor? Fale! fale! pelo santo nome de Deus, responda! Responda, pois!

Ouviu-se um gemido, tão perceptível, tão distinto desta vez, que a senhora de Cambes não pôde duvidar de que uma terceira pessoa assistia à conferência; os seus olhos espantados seguiram a direcção dos olhos de Canolles, e este não pôde desviar tão rapidamente os seus, que a viscondessa, guiada por eles, não divisasse aquela cabeça imóvel, aquela forma semelhante à de um fantasma,

Que seguia, anelante, todas as fases da conversação.

As duas mulheres, através da escuridão, trocaram entre elas um olhar chamejante, e ambas deram um grito.

Nanon desapareceu.

Quanto à senhora de Cambes, pegou apressadamente no chapéu e no capote, e, voltando-se para Canolles:

- Senhor - disse ela - sei agora a que chama dever e reconhecimento; sei qual é o dever de que não se quer separar, ou que não quer atraiçoar; conheço, enfim, que há afeições inacessíveis a todas as seduções, e portanto, deixo-o inteiramente entregue a essas afeições, a esse dever, e a esse reconhecimento. Adeus, senhor, adeus.

Fez um movimento para se retirar, sem que Canolles tentasse demorá-la; porém, deteve-a uma dolorosa recordação.

- Ainda uma vez, senhor - disse ela - em nome daquela amizade que lhe devo pelo favor que teve a bondade de fazer-me; em nome da amizade que me deve pelo favor que lhe fiz também; em nome de todos os que o amam, e a quem ama (eu não faço qualquer excepção), não se empenhe na luta: amanhã, depois de amanhã talvez, será atacado em São Jorge; não me faça passar pelo desgosto de saber que foi vencido ou morto.

A estas palavras, o mancebo estremeceu, e caiu em si:

- Senhora - disse ele - agradeço-lhe de joelhos a certeza que veio dar-me dessa amizade, que para mim é mais preciosa do que posso confessar-lhe. Oh! venham atacar-me! venham! oh meu Deus! eu chamo o inimigo com mais ardor do que ele jamais terá ao vir procurar-me. São-me necessários combatentes, são-me precisos perigos, para me elevar aos meus próprios olhos: venham os combatentes, venham os perigos, venha até a morte! A morte será bem-vinda, visto saber que morro rico com a sua

 

(nota da digitalização: o excerto que se segue estava em falta e foi tirado doutra edição)

 

amizade, forte com a vossa compaixão e honrado com a vossa estima.

- Adeus, senhor, disse Clara dirigindo-se para a porta.

Canolles seguiu-a. Chegando ao meio de um cor­redor escuro tornou-lhe a mão, e com voz tão baixa que até ele mesmo a custo podia ouvir as palavras que proferia:

- Clara, disse-lhe ele, amo-vos mais do que nunca vos amei; portem a infelicidade quer que não possa provar-vos este amor senão morrendo longe de vós.

Um ligeiro sorriso irónico foi naquele momento a única resposta de M.me de Cambes; porém assim que se achou fora do castelo, um doloroso soluço lhe rasgou a garganta, e torceu os braços, exclamando:

- Ali! ele não me ama, ó meu Deus! ele não me ama. E eu. desgraçada de mim., eu amo-o!

 

(fim do excerto)

 

UMA vez separado da senhora de Cambes, Canolles voltou para o seu quarto. Nanon estava em pé, pálida e imóvel, no meio do aposento. Canolles encaminhou-se para ela, com um sorriso triste; à medida que avançava, Nanon curvava os joelhos. Ele estendeu-lhe a mão, e ela caiu a seus pés.

- Perdoe-me! - disse ela - perdoe-me, Canolles! Fui eu quem o trouxe para aqui, fui eu que o fiz dar este passo difícil e perigoso; se morrer, eu serei a causa da sua morte. Sou uma egoísta, que só me ocupei da minha ventura. Fuja de mim, parta! Canolles levantou-a, brandamente. -Deixá-la, eu? - disse ele. - Nunca, Nanon, nunca; para mim, é sagrada; jurei protegê-la, defendê-la, salvá-la, e, ou hei-de salvá-la, ou morrerei!

- Diz isso do fundo do coração, Canolles, sem hesitação e sem premeditação?...

- Sim - disse Canolles, sorrindo-se.

- Muito agradecida, meu digno, meu nobre amigo! Muito agradecida te fico. Mas pensa bem: esta vida que eu prezava, sacrificá-la-ia hoje, sem arrancar um só queixume; porquanto, só hoje fiquei a saber o que fizeste por minha causa. Ofereciam-te dinheiro: mas não são teus os meus tesouros? Ofereciam-te amor: poderá jamais haver no mundo mulher alguma que te ame como eu? Ofereciam-te um posto!... Ouve o que te digo: vão atacar-te. Ora pois, compremos soldados, abasteçamo-nos de munições e armas; dupliquemos as nossas forças, defendamo-nos. Eu, da minha parte, combaterei pelo meu amor; tu, pela tua honra. Tu os derrotarás, meu bravo Canolles, farás com que a rainha diga que não tem outro capitão tão bravo; quanto ao teu posto, isso fica por minha conta; e quando fores rico e te vires carregado de glória e de honra, então me abandonarás se quiseres. Terei, para consolar-me, as minhas recordações.

E dizendo isto, Nanon olhava para Canolles e esperava a resposta que as mulheres sempre querem que se dê às suas palavras exageradas - isto é: louca e exaltada, como as palavras. Porém, Canolles baixou tristemente a cabeça.

- Nanon - disse ele - nunca sofrerá qualquer dano, nunca terá de suportar uma afronta enquanto eu viver na Ilha de São Jorge. Sossegue, visto que nada tem a temer.

- Muito agradecida - disse ela - apesar de que isso não seja tudo quanto peço.

Depois, em voz baixa:

"Ai de mim! estou perdida, já não me ama."

A Canolles não escapou aquele olhar chamejante, que brilha como um relâmpago, e a medonha palidez instantânea que tantos tormentos revela.

"Tenho de ser generoso até ao fim - disse ele consigo -pois se assim não o fizer, tornar-me-ei infame!"

- Vem comigo, Nanon, vem, minha querida; toma o teu capote, põe o teu chapéu; o ar da noite far-te-á bem. Posso ser atacado a cada momento; vou à minha ronda nocturna.

Palpitante de alegria, Nanon vestiu-se como o amante lhe dizia, e acompanhou-o.

Canolles era um verdadeiro capitão. Tendo assentado praça muito cedo, fizera um estudo real do seu rude ofício. Portanto, visitou a praça não somente como comandante, mas como engenheiro. Os oficiais que o tinham visto chegar como favorito, e que julgavam ter que haver-se com um governador de parada, foram interrogados pelo seu chefe, uns após outros, acerca de todos os meios de ataque e de defesa. Viram-se então forçados a reconhecer no jovem e frívolo mancebo um capitão experimentado; os mais antigos passaram a falar-lhe com respeito. Quanto a Canolles, a única coisa que podiam estranhar-lhe era a doçura da sua voz quando dava ordens, e a sua extrema educação quando interrogava. Receavam que esta cortesia servisse de máscara à fraqueza. Contudo, como cada um sentia o perigo iminente, as ordens do governador foram executadas com pontual presteza, o que forneceu ao chefe uma ideia sobre os seus soldados, em tudo semelhante à que eles tinham formado do chefe. Uma companhia de cantoneiros havia chegado naquele dia. Canolles ordenou alguns trabalhos que foram iniciados no mesmo instante. Em vão tentou Nanon fazê-lo regressar ao interior do forte, a fim de lhe poupar a fadiga de uma noite passada deste modo; Canolles continuou a sua ronda, e foi ele quem despediu com brandura Nanon, exigindo que ela recolhesse ao seu quarto. Depois de ter expedido três ou quatro batedores de campo, que o tenente lhe recomendara como os mais inteligentes dos que tinha ao serviço, foi deitar-se sobre um montão de pedras, de onde inspeccionou os trabalhos.

Enquanto, porém, os olhos seguiam maquinalmente o movimento das enxadas e dos alviões, o espírito de Canolles, alheado das coisas materiais que estavam em curso, aferrava-se absolutamente não só aos acontecimentos daquele dia, mas também a todas as aventuras especiais de que fora protagonista desde o dia em que vira a senhora de Cambes. Coisa na realidade singular, todavia, o seu espírito não vislumbrava além disso. Parecia-lhe que só desde então começara a viver, que até ali vivera num mundo diferente, onde só havia instintos inferiores e sensações incompletas. Desde aquela hora, raiava na sua existência uma luz que dava outro aspecto a todas as coisas, e, com esta nova luz, Nanon, a pobre Nanon, era desapiedadamente sacrificada em beneficio de outro amor, tão violento, desde o princípio, como aqueles amores que se apoderam de toda a vida em que penetraram.

Por isso, passadas as dolorosas meditações - acompanhadas de arrebatamentos celestes - à ideia de que era amado pela senhora de Cambes, Canolles acertou, consigo mesmo que apenas o dever lhe impunha ser homem de honra, e que a amizade sentida não tinha qualquer influência na sua determinação.

Pobre Nanon! Canolles chamava amizade ao sentimento que ela lhe inspirava. Ora, a amizade, em amor, não está muito distante da indiferença.

Nanon também velava, porque não pudera decidir-se a meter-se na cama; de pé, a uma janela, embuçada numa manta preta para não ser vista, não seguia a Lua, triste, encoberta e deslizante através das nuvens; nem os altos choupos graciosamente agitados pela brisa da noite; nem o majestoso Garona, que mais parecia um vassalo rebelde levantando-se para fazer guerra ao amo, do que um escravo fiel que vai pagar o seu tributo ao oceano. Seguia, sim, um magicar lento e penoso, em que labutava contra o pensamento do amante; via naquela forma escura, desenhando-se na pedra, naquela sombra imóvel agachada diante de um lampião, o fantasma vivo da sua ventura passada; ela, que tão enérgica, tão orgulhosa, tão destra fora outrora, perdera agora toda a destreza, toda a soberba e toda a energia. Dir-se-ia que os seus sentidos, exaltados pelo pressentimento da desgraça, ainda mais inteligentes e mais subtis se tornavam; sentia germinar o amor no fundo do coração do amante, tal como Deus, inclinando-se sobre a imensa abóbada celeste, sente germinar a sementezinha nas entranhas da terra.

Amanheceu, por fim, e só então Canolles recolheu ao seu quarto. Nanon também tornara a entrar no seu. Portanto, ele não pôde saber que velara toda a noite. Foi fardar-se com todo o cuidado, reuniu novamente a guarnição, inspeccionou as diferentes baterias, e, sobretudo, as que dominavam a margem esquerda do Garona; mandou fechar o pequeno porto com correntes, e colocar em diversos locais algumas chalupas carregadas de falcones e de bacamartes; passou revista à sua gente, animou-a de novo com a sua palavra tão persuasiva e tão generosa, e, com tudo isto, não recolheu antes das dez horas.

Nanon esperava-o com o sorriso nos lábios; já não era aquela orgulhosa e imperiosa Nanon, cujos caprichos provocavam tremuras no próprio senhor dÉpernon: era uma amante tímida, uma escrava medrosa, que já nem sequer exigia que a amassem, mas pedia unicamente que lhe fosse permitido amar.

Passou-se o dia sem qualquer outro acontecimento para além das diferentes peripécias do drama íntimo que decorria na alma de cada um dos jovens. Os batedores expedidos por Canolles foram chegando, um após outro. Nenhum deles trazia notícias positivas; o que se notava era apenas uma grande agitação em Bordéus, prova evidente de que ali se preparava alguma coisa.

Com efeito, a senhora de Cambes, de regresso à cidade, apesar de ocultar as circunstâncias da entrevista no mais íntimo do seu coração, transmitira o respectivo resultado a Lenet. Os bordeleses pediam em altos gritos que se tomasse a Ilha de São Jorge. O povo oferecia-se em massa para fazer parte da expedição. Só os chefes o continham, pretextando as faltas de um homem de guerra que pudesse conduzir a expedição, e de soldados regulares que pudessem sustentá-la. Lenet aproveitou esse momento para introduzir o nome dos dois duques, e para oferecer o equivalente exército. A proposta foi recebida com entusiasmo, e até os que na véspera haviam votado que se lhes fechassem as portas, chamaram-nos em grandes clamores.

Lenet correu a levar esta boa nova à princesa, que nesse mesmo instante convocou o conselho.

Clara pretextou fadiga, para não tomar parte em decisão alguma contra Canolles, e recolheu ao seu quarto, para poder chorar desafogadamente.

Desse quarto, ouvia as vociferações e as ameaças do povo. Todas aquelas vociferações, todas aquelas ameaças, eram dirigidas contra Canolles.

Em breve ressoou o tambor: as companhias reuniram-se, os funcionários da câmara armaram o povo, quie pedia lanças e arcabuzes. Retiraram-se as peças de artilharia do arsenal, distribuiu-se pólvora, e duzentos batéis ficaram apetrechados para subir o Garona com o auxílio da maré da noite, enquanto três mil homens, marchando pela margem esquerda, fariam o seu ataque por terra.

O exército do mar deveria ser comandado por Espagnet, conselheiro do Parlamento, homem valente e assizado, e o exército de terra pelo senhor de Rochefoucauld, que também acabara de entrar na cidade com uns dois mil gentis-homens. O duque de Bouillon só devia chegar dois dias depois, com outros mil. E por isso o duque de Rochefoucauld apressou o mais que pôde o ataque, para que o colega não pudesse participar nele.

 

VOLVIDOS dois dias sobre a apresentação da senhora de Cambes, em traje de parlamentário, na Ilha de São Jorge, andava Canolles, pelas

___ duas horas da tarde, rondando nas muralhas,

quando o informaram que um mensageiro, portador de uma carta para ele, pretendia falar-lhe.

O mensageiro foi logo introduzido, e entregou o seu despacho a Canolles.

Este despacho não tinha, à vista desarmada, nada de oficial; era uma carta mais comprida do que larga, escrita em caracteres muito finos, e um pouco tremidos, num papel azulado, lustroso e perfumado.

Mal pôs os olhos naquele papel, Canolles sentiu palpitar o coração.

- Quem te entregou esta carta? - perguntou.

- Um homem de cinquenta e cinco a sessenta anos. -Bigodes ruços?

- Sim, senhor.

- Costas um tanto arqueadas?... -Sim.

- Ar militarão?... - Isso mesmo.

Canolles deu um luís ao homem e fez-lhe sinal para que se retirasse no mesmo instante.

Depois, afastou-se, e, com o coração apertado, foi esconder-se no ângulo de um bastião para ler à sua vontade a carta que acabava de receber, a qual não continha mais do que estas palavras:

Está para ser atacado. Se não é já digno de mim, mostre-se pelo menos digno de si.

A carta não vinha assinada. Porém, Canolles reconheceu nela a senhora de Cambes, tal como reconhecera Pompeu; espreitou, para verificar se não era visto por alguém, e, corado como uma criança com o seu primeiro amor, levou o papel aos lábios, beijou-o com ardor, e pô-lo sobre o coração.

Depois, subiu ao topo do bastião, de onde podia distinguir a corrente do Garona ao longo de uma légua, e a planície circunvizinha, em toda a sua extenção.

Nada se vislumbrava, nem no rio, nem no campo.

"A manhã passar-se-á assim - murmurou ele. - Não hão-de vir em pleno dia; terão descansado no caminho, e hão-de iniciar o ataque esta noite."

Canolles ouviu uma leve bulha atrás de si, e voltou-se: era o seu tenente.

- Então, senhor Vibrac? - disse Canolles - que se diz?

- Diz-se, senhor comandante, que a bandeira dos príncipes se erguerá amanhã na Ilha de São Jorge.

- E quem diz isso?

- Dois dos nossos batedores, que acabam de voltar, e que viram os preparativos que fazem contra nós os burgueses da cidade.

- E que respondeu aos que lhe disseram que a bandeira dos senhores príncipes tremularia amanhã no forte de São Jorge?

- Respondi, senhor comandante, que isso me era indiferente, visto que de tal não seria testemunha.

- Nesse caso, roubou-me a minha própria resposta, senhor - volveu Canolles.

- Bravo, senhor comandante! Não desejávamos outra coisa, e os soldados combaterão como leões, quando souberem da sua resposta.

- Combaterão como homens, é tudo quanto lhes peço... E que se diz quanto ao ataque?

- Senhor general, é uma surpresa que nos preparam - disse Vibrac, rindo.

- Não é má surpresa! - disse Canolles. - Já vou no segundo aviso... E quem comanda os agressores?

- O senhor de Rochefoucauld, comanda as tropas de terra; Espagnet, o conselheiro do Parlamento, as tropas de mar.

- Assim sendo - disse Canolles - eu dar-lhe-ia um conselho...

- A quem?

- Ao senhor conselheiro do Parlamento.

- E que conselho?

- Que reforçasse as milícias urbanas com algum bom regimento bem disciplinado, que ensinasse aos burgueses como se apara um fogo bem municiado.

- Não esperou pelo seu conselho, comandante, porque, antes de ser homem de justiça foi, pelo menos assim o creio, de certo modo homem de guerra, e associou a esta expedição o regimento de Navailles.

- Como!? O regimento de Navailles?! -Sim.

- O meu antigo regimento?...

- Esse mesmo. Passou-se, segundo parece, com armas e bagagens, para os senhores príncipes. -E quem o comanda?

- O barão de Ravailly. -Palavra!?

- Conhece-o?

- Sim, é um belo moço, bravo como uma espada.

- Nesse caso, o combate há-de ser mais encarniçado do que eu julgava, e não nos faltará divertimento.

- Ora bem: que esta noite sejam reforçados os postos, e que os soldados se deitem vestidos, com as armas carregadas ao alcance da mão. Metade vigiará, enquanto a outra descansa. Não se retire ainda.

- Espero as suas ordens.

- Participou a alguém o relatório do mensageiro?

- A ninguém, absolutamente.

- Muito bem. Guarde segredo, por algum tempo ainda. Escolha uma dúzia dos seus piores soldados; deve ter alguns caçadores e pescadores...

- Desses temos nós de mais, comandante.

- Pois bem; como lhe digo, escolha uns dez, e dê-lhes licença até amanhã de manhã. Irão deitar as suas redes ao fundo do Garona, e armar os seus laços na planície. Esta noite, cairão em poder de Espagnet e de Rochefou-cauld, que não deixarão de interrogá-los.

- Não estou a perceber...

- Não percebe a necessidade de que os agressores julguem que estamos muito sossegados, e que não receamos coisa alguma?... Ora, aqueles homens, que não sabem, jurar-lhe-ão com convicção a que não poderão deixar de dar crédito, pois que não será fingido, que estamos dormindo sossegadamente.

- Ah! muito bem.

- Deixe aproximar o inimigo, deixe-o desembarcar, deixe-o arrimar as suas escadas à muralha.

- Mas então, quando se há-de fazer fogo?

- Quando eu ordenar; se um tiro partir das nossas fileiras antes da minha ordem, dou-lhe a minha palavra de governador que mandarei arcabuzar quem o der.

- Caramba!

- A guerra civil é duas vezes guerra; importa, pois, que a guerra civil não se faça como uma caçada. Deixe vir os senhores bordeleses; permita-se rir, se tiver prazer nisso, porém, somente quando eu disser que se ria.

O tenente partiu, e foi transmitir as ordens de Canolles aos outros oficiais, que olharam uns para os outros, espantados. Havia dois homens no governador: o gentil-homem cortês, e o comandante implacável.

Canolles voltou para cear, na companhia de Nanon; a única diferença que houve foi cear-se duas horas mais cedo, tendo Canolles decidido que não se apartaria das muralhas, desde o crepúsculo até ao amanhecer. Foi encontrar Nanon folheando volumosa correspondência.

- Pode defender-se afoitadamente, querido Canolles - disse-lhe ela - pois em breve será socorrido: o rei aproxima-se, o senhor de Meilleraye comanda um exército, e o senhor dÉpernon vem aí com quinze mil homens.

- Mas, entretanto, Nanon, ainda tardarão oito, ou talvez dez dias - acrescentou Canolles, sorrindo - e a Ilha de São Jorge não é inexpugnável.

- Oh! enquanto o senhor comandar, respondo por tudo.

- Sim, mas exactamente porque comando, posso ser morto...

- Sim - respondeu Nanon, sorrindo também. -Pois bem; tem os seus cofres prontos. Um barqueiro

estará num posto designado; se for preciso que meta pela água adentro, terá quatro dos meus homens, bons nadadores, com ordem de não a deixar, e que a transportarão para a outra margem.

- Todas essas precauções são inúteis, Canolles; se morrer, não precisarei já de coisa alguma.

Vieram então chamar para a ceia. Dez vezes, durante a ceia, Canolles se levantou, e chegou à janela que dava para o rio; antes de terminar a refeição, Canolles levantou-se da mesa... Principiava a anoitecer...

Nanon quis acompanhá-lo.

- Nanon - disse Canolles - recolha ao seu quarto, e jure-me que dele não sairá. Se soubesse que estava fora dele, que corria o menor perigo, já não responderia por mim. Nanon, nisso está comprometida a minha honra; portanto, não a tenha em pouca conta.

Nanon aflorou à face de Canolles os seus lábios de carmim, cujo vermelhão ainda mais se realçava com a palidez do rosto, e, depois, voltou ao seu quarto, dizendo:

- Obedeço-lhe, Canolles; quero que amigos e inimigos conheçam o homem a quem amo. Vá!

Canolles afastou-se; não podia deixar de admirar aquela natureza, que se moldava a todos os seus desejos obedecendo a todas as suas vontades. Mal chegou ao seu posto, logo caiu a noite, terrível e ameaçadora, como sempre parece, quando oculta no seu negro manto um segredo sanguinolento.

Canolles colocara-se na extremidade da esplanada. Dali, dominava o curso do rio e as suas duas margens. Não fazia luar; um véu de sombrias nuvens deslizava pesadamente pelo céu. Era impossível ser visto, mas também era quase impossível ver.

Todavia, à meia-noite, pareceu-lhe distinguir algumas massas sombrias movendo-se na margem esquerda, e vultos gigantescos deslizando pelo rio. Porém, não se ouvia outro ruído para além do vento da noite, sibilando nas folhas das árvores.

As mesmas massas detiveram-se; as formas fixaram-se a certa distância. Canolles pensou que se havia enganado; contudo, duplicou a vigilância; os seus ardentes olhos penetravam as trevas, e os seus ouvidos, constantemente à escuta, percebiam o mais leve movimento.

Soaram três horas na torre da fortaleza, e o tinido prolongado foi perder-se, lento e lúgubre, na noite. Canolles principiava a acreditar que recebera um falso aviso, e ia retirar-se, quando, de repente, o tenente Vibrac, que estava ao pé dele, lhe apoiou com vivacidade uma das suas mãos no ombro, apontando com a outra para o rio.

- Sim! sim! - disse Canolles - são eles. Vamos, nada teremos perdido por esperar. Vá acordar os homens que estão a dormir, e que venham ocupar os seus postos atrás da muralha. Não lhes disse que mataria o primeiro que fizesse fogo?...

- Disse, sim.

- Pois bem; diga-lhes isso outra vez. Com efeito, ao despontar da aurora, viam-se compridos barcos carregados de homens, que riam e conversavam em voz baixa, em aproximação, ao mesmo tempo que se podia distinguir na planície uma espécie de elevação que não existia na véspera. Era uma bateria de seis peças, que o senhor de Rochefoucauld estabelecera durante a noite. Os homens dos barcos apenas tinham tardado porque até então a bateria não estava em estado de principiar o fogo.

Canolles quis saber se as armas estavam carregadas, e, tendo recebido resposta afirmativa, fez sinal para que esperassem.

Os barcos vinham-se aproximando cada vez mais, e, ao romper do dia, não tardou Canolles a distinguir o fardamento e o chapéu próprios da companhia de Navailles, que, como já sabemos, fora a sua; na proa de um dos primeiros barcos estava o barão de Ravailly, que o substituíra no comando da companhia, e na popa o tenente, que era seu amigo e muito estimado entre os camaradas, pelo seu génio divertido e pelos seus intermináveis gracejos.

- Vão ver - dizia ele - que não se moveram, e que será preciso que o senhor de Rochefoucauld os acorde com a artilharia. Com todos os diabos! Como se dorme em São Jorge; quando estiver doente, hei-de vir para aqui.

- Aquele bom Canolles - respondeu Ravailly - faz o seu papel de governador como um pai de família; receia que os seus soldados se constipem, fazendo sentinelas de noite.

- Na realidade - disse outro - nem sequer se vê uma sentinela.

- Olá! - bradou o tenente, saltando em terra - acordem, vocês que estão lá em cima, e dêem-nos a mão, para subirmos.

Graças a este último gracejo, as gargalhadas correram toda a linha dos sitiantes; e, enquanto três ou quatro barcos se adiantavam do lado do porto, o resto do exército ia desembarcando.

- Vamos, vamos-disse Ravailly-agora compreendo; Canolles quer pretender que se deixa surpreender, para não se pôr mal com a Corte. Vamos, senhores, correspondamos à sua cortesia, e não matemos ninguém. Uma vez na praça, misericórdia para todos, excepto para as mulheres, que, para mais, talvez nem a peçam. Meus filhos, não nos esqueçamos de que é uma guerra de amigos; portanto, ao primeiro que desembainhar a espada, mando matá-lo.

E com esta recomendação, feita com uma jovialidade inteiramente francesa, os risos surgiram de novo, e os soldados participaram da hilaridade dos oficiais.

- Olá! meus amigos - disse o tenente - rir é bom, mas não deve estorvar a nossa tarefa. Venham as escadas, e subamos.

Os soldados trouxeram dos barcos grandes escadas, e arrumaram-nas à muralha.

Canolles levantou-se então, e, de bengala na mão e chapéu na cabeça, como homem que toma pela manhã o fresco para recrear-se, chegou-se ao parapeito, que o deixava a descoberto da cintura para cima.

Fazia bastante claridade, para que o reconhecessem.

- Oh! bons-dias, Navailles - disse ele, a todo o regimento. - Bons-dias, Remonenque.

- Olhem! é Canolles - exclamaram os mancebos. -Acordou finalmente, barão?

- Sim, acordei, que querem que faça? Levamos aqui uma vida de mandriões; deitamo-nos cedo e levantamo-nos tarde; mas que diabo vêm cá fazer tão cedo?

- Então não vês - disse Ravailly. - Viemos sitiar-te, e nada mais.

- E para que vêm sitiar-me? -Para tomar o teu forte. Canolles desatou a rir. -Vamos - disse Ravailly - capitulas, não é assim?

- Mas, antes de tudo, é preciso que saiba a quem me entrego. Como pode ser que o regimento de Navailles sirva contra o rei?

- O motivo é muito plausível, meu querido; porque nos fizemos rebeldes. Pensando no caso, reconhecemos que Mazarino era sem a mínima dúvida um bigorrilha, indigno de ser servido por bravos gentis-homens; passámos, por conseguinte, para os príncipes. E tu?

- Mas eu, meu querido, sou um epernonista furioso.

- Ora, deixa lá essa gente, e vem reunir-te connosco. -É impossível. Que fazem aí em baixo? Deixem em

paz as cadeias do porto. Bem sabem que são coisas para que se olha, mas de longe, e quando se lhes toca, vem também a desgraça. Ravailly, diz-lhes, pois, que não toquem nas cadeias - continuou Canolles, franzindo as sobrancelhas - pois se o fizerem, mando disparar sobre eles. Previno-te, Ravailly, olha que tenho excelentes atiradores.

O copo de vinho.

Gravura de David. Museu das Artes Decorativas, Paris.

- Estás zombando - respondeu o oficial. - Consente que entremos na praça; tu não tens força para resistir.

- Eu não brinco. Abaixo com as escadas, Ravailly! Peço-to. Olha que é a casa do rei que sitias, toma sentido nisso.

- São Jorge, casa do rei?!...

- Olha, e verás a bandeira na extremidade do bastião. Vejamos, manda pôr a nado os teus barcos, e recolhe as tuas escadas, quando não, faço fogo. Se queres conversar, vem só ou com Remonenque, e então conversaremos enquanto almoçamos; tenho um excelente cozinheiro, nesta Ilha de São Jorge.

Ravailly pôs-se a rir, e animou a sua gente com um olhar. Enquanto isso, outra companhia apressava-se a desembarcar.

Canolles percebeu então que o momento decisivo chegara, e, tomando a atitude firme e o ar grave que convinham a um homem encarregado de uma tão pesada responsabilidade como a sua, gritou:

- Alto lá! Ravailly! Basta de gracejos! Remonenque, nem -mais um passo, nem mais um gesto, senão mando fazer fogo! Tão certo como estar ali a bandeira do rei, e vocês marcharem contra as flores-de-lis de França.

E, juntando a acção à ameaça, derrubou com braço vigoroso a primeira escada que tinham arrimado à muralha.

Cinco ou seis homens mais apressados do que os outros, e que principiavam a subir por ela, caíram por terra, e a sua queda deu lugar a estrondosas gargalhadas, tanto entre os sitiantes, como entre os sitiados; dir-se-ia que se tratava de brincadeiras de rapazes.

Nesse mesmo momento, um sinal indicou que os sitiantes tinham franqueado as cadeias que fechavam o porto.

No mesmo instante, Ravailly e Remonenque pegaram numa escada, e aprestaram-se, por seu turno, a descer aos fossos, gritando:

- Sigam-nos, Navailles! À escalada! Subamos!

- Meu pobre Ravailly - gritou Canolles - peço-te que te detenhas.

Porém, no mesmo instante, a bateria de terra, que até ali estivera calada, fez fogo, e uma bala veio levantar terra em volta de Canolles.

- Vamos! - disse Canolles, estendendo a sua bengala -já que o querem, absolutamente: fogo! meus amigos, fogo em toda a linha!

Então, sem que se avistasse um só homem, viu-se uma enfiada de mosquetes baixar-se para o parapeito, uma cinta de chamas envolver o cume da muralha, enquanto a detonação de duas enormes peças de artilharia respondia à bateria do duque de Rochefoucauld.

Cerca de dez homens caíram por terra; porém, a sua queda, em vez de desalentar os camaradas, deu-lhes um novo ardor. Por seu turno, a bateria de terra respondeu à bateria do forte; uma bala despedaçou a bandeira real, e outra matou Elboin, o tenente de Canolles.

O comandante lançou novamente os olhos em torno de si, e viu que os seus homens tinham já carregado outra vez as armas.

- Fogo em toda a parte! - disse ele.

Esta ordem foi executada com tanta pontualidade como da primeira vez. Dez minutos depois, já não ficava inteiro um só vidro na Ilha de São Jorge; as pedras tremiam e voavam em estilhaços; a artilharia arrombava as paredes, e um denso fumo escurecia o ar, cheio de gritos, de ameaças e de gemidos.

Canolles viu que o que maiores estragos fazia no seu forte era a bateria do senhor de Rochefoucauld.

- Vibrac - disse ele - tome Ravailly ao seu cuidado, e não lhe deixe ganhar uma polegada de terreno na minha ausência. Quanto a mim, corro às nossas baterias.

Com efeito, Canolles correu às duas peças que respondiam ao fogo do senhor de Rochefoucauld, e dirigiu pessoalmente esse serviço, carregando, fazendo pontaria e comandando; num instante, fez calar três peças das seis que lhe faziam fogo, e deixou estendidos na planície uns cinquenta homens. Os outros, que não esperavam tamanha resistência, principiaram a desordenar-se e a fugir. O senhor de Rochefoucauld, ao querer reuni-los, foi ferido por um estilhaço de pedra, que lhe fez saltar a espada da mão.

Vendo este resultado, Canolles deixou o resto da acção ao chefe da bateria, e acorreu ao assalto que continuava a dar a companhia de Navailles, ajudada pelos homens de Espagnet.

Vibrac resistia com denodo, porém acabava de receber uma bala no ombro.

A presença de Canolles foi recebida com gritos de alegria, e duplicou o valor das suas tropas.

- Perdoa-me - clamou ele a Ravailly - se me vi obrigado a deixar-te por um momento, querido amigo, foi, como podes vê-lo, para fazer calar as peças do senhor de Rochefoucauld. Porém, sossega, aqui estou de novo.

E como, neste momento, o capitão de Navailles, excessivamente animado para responder ao gracejo, que, além disso, em meio de estrondo espantoso que fazia a artilharia e a mosquetaria, talvez não o ouvisse, levava pela terceira vez os seus homens ao assalto, Canolles tirou uma pistola da sua cinta, e, estendendo a mão para o seu antigo camarada transformado em inimigo, fez fogo.

A bala, dirigida por mão firme, foi quebrar o braço a Ravailly.

- Obrigado, Canolles! - disse ele, que .vira de onde vinha o tiro. Obrigado, hei-de pagar-te na mesma moeda.

Porém, apesar de todo o seu vigor e denodo, o jovem capitão viu-se obrigado a parar, e a espada caiu-lhe das mãos. Remonenque acudiu em seu socorro, e segurou-o nos braços.

- Queres vir tratar-te em minha casa, Ravailly? - bradou-lhe Canolles. - Tenho um cirurgião que nada deve ao cozinheiro.

- Não, volto para Bordéus, porém, espera-me a todo o momento, pois voltarei, prometo-to. Com a única diferença de que, então, escolherei a minha hora.

- Retirar! Retirar! - gritou Remonenque. - Lá em baixo já fogem. Até mais ver, Canolles; ganhaste a primeira partida.

Remonenque dizia a verdade: a artilharia fizera horrorosos estragos no exército da terra, que tinha perdido uns cem homens, pelo menos. Quanto ao exército do mar, perdera quase outros tantos. Porém, a maior perda fora na companhia de Navailles, que, para sustentar a honra da farda, quisera marchar sempre na frente dos burgueses de Espagnet.

Canolles levantou a sua pistola, descarregada.

- Cessar fogo! - comandou. - Deixemo-los retirar em paz. Não temos munições em excesso; é preciso poupá-las.

E, com efeito, os tiros ter-se-iam perdido quase todos. Os agressores retiravam-se apressadamente, deixando os mortos e levando os feridos. Canolles contou os seus; tinha dezasseis feridos e quatro mortos. Quanto a ele, nem sequer uma arranhadura recebera.

- Que sorte! - disse ele ao receber, dez minutos depois, as alegres carícias de Nanon - não tardaram, minha querida amiga, a fazer-me ganhar a minha patente de governador. Que louca carnificina! Matei-lhes cento e cinquenta homens, pelo menos, e quebrei o braço a um dos meus melhores amigos, para impedi-lo que se fizesse matar completamente!

- Sim - disse Nanon. - E está são e salvo...

- Graças a Deus! E foi sem dúvida, Nanon, o meu anjo da guarda. Mas cuidado com a segunda partida; não basta ter ganho a primeira! Os bordeleses são teimosos, e, além disso, Ravailly e Remonenque prometeram-me que voltariam.

- E então? - disse Nanon. - Não é o mesmo homem quem comanda o forte de São Jorge, e não são os mesmos soldados que o defendem?... Que venham, e da segunda vez serão ainda mais bem recebidos que da primeira, porque daqui até lá terá todo o tempo para aumentar os seus meios de defesa. Não pensa assim?

- Minha querida Nanon - disse confidencialmente Canolles - só se conhece bem uma praça com o uso; a minha não é inexpugnável, ainda agora o descobri, e se eu me chamasse duque de Rochefoucauld, apoderar-me-ia da Ilha de São Jorge amanhã pela manhã. A propósito: Elboin não almoçará connosco.

- Por que razão?

- Porque foi despedaçado por uma bala de artilharia.

 

O regresso dos habitantes a Bordéus constituiu um triste espectáculo. Os burgueses haviam partido triunfante, confiados no seu número e na habilidade dos seus generais, enfim, completamente seguros quanto ao resultado da empresa, graças ao hábito, a essa segunda fé do homem em perigo.

Com efeito, qual dos sitiantes não teria na sua mocidade corrido os bosques e os prados da Ilha de São Jorge, só ou em doce companhia? Qual o bordelês que não tivesse manejado o remo, o mosquete de caça, ou as redes de pescador, nos sítios que ia tornar a ver como soldado? Esta a razão por que, para os burgueses, a derrota foi muito mais sensível. As passagens nas localidades envergonhavam-nos, assim como o inimigo. Viram-nos, portanto, voltar cabisbaixos, ouvindo com resignação as lamentações e os gemidos das mulheres, que, contando os guerreiros ausentes, à maneira dos selvagens da América, iam descobrindo sucessivamente as perdas experimentadas pelos vencidos.

Então, um murmúrio geral cobriu a grande cidade de luto e de confusão. Os soldados recolheram-se a suas casas para contar o desastre, cada qual a seu modo. Os chefes foram ter com a princesa, que, como dissemos, estava alojada em casa do presidente.

A princesa de Conde aguardava à janela o regresso da expedição. Ela, que nascera de uma família de guerreiros, mulher de um dos maiores conquistadores do mundo, acostumada a olhar com desprezo a armadura ferrugenta e o penacho ridículo dos burgueses, não podia evitar uma vaga inquietação, lembrando-se de que os burgueses seus partidários iam combater um exército de verdadeiros soldados. Todavia, três coisas a sossegavam: a primeira, que o senhor de Rochefoucauld comandava a expedição; a segunda, que o regimento de Navailles marchava à frente da coluna; a terceira, que o nome de Conde estava inscrito nas bandeiras.

Porém, por um contraste fácil de compreender, tudo o que era esperança para a princesa, constituía dor para a senhora de Cambes, da mesma forma que tudo o que ia ser dor para a ilustre senhora, se tornava em triunfo para a viscondessa.

O duque de Rochefoucauld foi quem se apresentou em sua casa, todo coberto de pó e sangue; a manga do seu gibão preto estava aberta, e a camisa toda manchada de sangue.

- É verdade o que me dizem?... - exclamou a princesa, correndo ao encontro dele.

- E que dizem, senhora? - perguntou friamente o duque.

- Dizem que foi repelido.

- Não dizem o suficiente, senhora. Se quiserem falar verdade, devem dizer que fomos derrotados.

- Derrotados?! - exclamou a princesa, empalidecendo. - Derrotados?!... Não é possível!!

"Derrotados - cogitou a viscondessa - derrotados pelo senhor de Canolles!..."

- Então, como foi possível que isso acontecesse? - perguntou a princesa de Conde, em tom altivo, que manifestava a sua profunda indignação.

- Como isso aconteceu? Senhora, como acontecem todas as desgraças no jogo, no amor, e na guerra; atacámos quem era mais esperto ou mais forte do que nós.

- Então, é muito bravo, aquele senhor de Canolles? - perguntou a princesa.

O coração da senhora de Cambes palpitava de intensa alegria.

- Bravo como toda a gente!... - respondeu Rochefoucauld, encolhendo os ombros. - E, como tinha soldados frescos, boas muralhas, e estava alerta, tendo provavelmente sido prevenido, não lhe foi difícil vencer os nossos bordeleses. Ah! senhora, não posso deixar de confessá-lo: que tristes soldados! Fugiram à segunda descarga!

- Navailles?!... - exclamou Clara, sem reparar na imprudência desta exclamação.

- Minha senhora - disse Rochefoucauld - toda a diferença que houve entre Navailles e os burgueses, é que os burgueses fugiram e Navailles retirou-se.

- O que nos faltaria agora, para coroar tudo, era perder Vayres!

- Não digo que não - respondeu Rochefoucauld.

- Derrotados!... - repetiu a princesa, batendo com o pé no chão. - Derrotados por gentes de nada, comandados por um qualquer senhor de Canolles! Nome que até é ridículo.

Clara fez-se vermelha como um pimentão.

- Julga esse nome ridículo, senhora - replicou o duque. - Porém, o senhor Mazarino acha-o sublime. E quase me atreveria a dizer - ajuntou ele, lançando um olhar rápido e penetrante a Clara - que não é o único desse parecer... Os nomes são como as cores, senhora - continuou ele, sorrindo, com o seu sorriso bilioso. - Acerca deles não deve haver discussão.

- Julga então que Richon seja homem que se deixe derrotar?...

- Porque não? Eu mesmo não me deixei derrotar?... Cumpre esperar que esta má veia se esgote; a guerra é um jogo. Mais tarde ou mais cedo, havemos de tirar a nossa desforra.

- Isto não teria acontecido - disse a senhora Tourville - caso se tivesse seguido o meu plano.

- É verdade - disse a princesa. - Nunca fazem o que propomos, a pretexto de que somos mulheres, e nada entendemos da guerra... Os homens fazem o que muito bem lhes parece, e o resultado é serem derrotados.

- Não há dúvida que assim é, senhora; mas isso acontece aos melhores generais. Paulo Emílio foi derrotado em Canas, Pompeu em Farsalia, e Átila em Châlons. Só Alexandre e a senhora Tourville nunca foram derrotados. Vejamos o vosso plano.

- O meu plano, senhor duque - disse a senhora Tourville, em tom ríspido e severo - era que se fizesse um assédio em forma. Não quiseram ouvir-me, e preferiu-se um ataque repentino. Vê qual foi o resultado.

- Responda à senhora, Lenet - disse o duque. - Quanto a mim, não me julgo com forças bastantes para sustentar a luta.

- Senhora - disse Lenet, cujos lábios ainda se não tinham aberto senão para sorrir - havia uma circunstância que se opunha ao cerco que propunha: os bordeleses não são soldados, mas sim burgueses; é necessário que ceiem em casa e durmam no leito conjugal. Ora, um assédio em forma exclui uma infinidade de comodidades, a que não estão habituados os nossos bravos cidadãos. Foram, pois, sitiar a Ilha de São Jorge como simples curiosos; não os censure por terem ficado mal hoje; tornarão a andar as quatro léguas, e hão-de começar a guerra tantas vezes quantas forem necessárias.

- Julga que a recomeçarão?... - perguntou a princesa.

- Oh! quanto a isso, senhora - disse Lenet - posso asseverá-lo; gostam muito da sua ilha, e, portanto, não a deixarão ao rei.

- E tomá-la-ão?

- Sem dúvida; se não for num dia, será noutro...

- Pois no dia em que a tomarem - exclamou a senhora princesa - quero que seja arcabuzado aquele insolente Canolles, caso se não entregue debaixo de condições.

Clara sentiu circular-lhe um tremor mortal pelas veias.

- Arcabuzá-lo!... - disse o duque de Rochefoucauld - que tal, nem! Se é assim que Vossa Alteza entende a guerra, felicito-me muito sinceramente por estar no número dos seus amigos.

- Então, que se renda.

- Muito gostaria eu de saber o que diria Vossa Alteza se Richon se rendesse...

- Richon não está em causa, senhor duque; não se trata de Richon. Vamos! Tragam-me um burguês, um vereador, um conselheiro, alguma coisa, enfim, a quem eu possa falar, e que me certifique de que esta vergonha não há-de ser sem amargura para os que ma fizeram tragar.

- Eis uma coincidência maravilhosa - disse Lenet. - Aí está o senhor Espagnet, que solicita a honra de ser introduzido à presença de Vossa Alteza.

- Mande-o entrar - disse a princesa.

O coração de Clara, durante todo este colóquio, ora palpitava com violência, ora parecia ficar comprimido e que lhe impediam todo o movimento. Com efeito, pensava que os bordeleses não deixariam de fazer pagar caro a Canolles o seu primeiro triunfo. Porém, ainda maior foi o seu susto quando Espagnet veio, com os seus protestos, corroborar as certezas de Lenet.

- Senhora - dizia ele à princesa - fique Vossa Alteza sossegada. Em lugar de quatro mil homens, mandaremos oito mil; em lugar de seis peças de artilharia, apontaremos doze; em lugar de cem homens, perderemos duzentos, trezentos, quatrocentos, se for preciso. Mas havemos de tomar São Jorge.

- Bravo, senhor! - exclamou o duque. - Isso é que é falar! Sabe que sou o seu homem, quer como chefe, quer como voluntário, todas as vezes que tentar esta empresa. A única coisa a ter em conta é que, a quinhentos homens por cada vez (supondo quatro expedições como esta), o nosso exército estará bem reduzido, à quinta vez.

- Senhor duque - replicou Espagnet. - Somos trinta mil, os homens de Bordéus em estado de pegar nas armas.

Se for necessário, colocaremos todas as peças de artilharia do arsenal diante da fortaleza, e faremos um fogo capaz de reduzir a pó uma montanha de granito; passarei o rio, eu mesmo à frente dos sapadores, e tomaremos São Jorge. Ainda há pouco o jurámos, com toda a solenidade.

- Duvido que tomem São Jorge enquanto o senhor de Canolles estiver vivo - disse Clara, com voz quase ininteligível.

- Pois então - respondeu Espagnet - matá-lo-emos, e tomaremos São Jorge depois.

A senhora de Cambes sufocou um grito de terror prestes a sair-lhe do peito.

- Querem tomar São Jorge?!...

- Se a queremos tomar?!... - exclamou a princesa. - Quem pode duvidar disso! ? É tudo quanto queremos!...

- Pois então - disse a senhora de Cambes - deixem a coisa por minha conta, e comprometo-me a entregar a praça.

- Deixa-te disso! - respondeu a princesa. - Já me prometeste coisa semelhante, e saíste-te mal da empresa.

- Tinha prometido fazer uma tentativa junto do senhor de Canolles. Essa tentativa falhou; deparei com um senhor Canolles inflexível.

- E pensas que estará mais brando depois do triunfo?

- Não, senhora. Por isso mesmo, desta vez não afirmei que lhe entregaria o governador; o que lhe digo é que hei-de entregar-lhe a praça.

- Então como?

- Introduzindo os seus soldados no pátio da fortaleza.

- Será acaso fada, senhora, para se encarregar de semelhante empresa?... -perguntou Rochefoucauld.

- Não, não - interrompeu Lenet - vislumbro muitas coisas nas quatro palavras que acaba de proferir a senhora de Cambes.

- Então, já me chega - disse a viscondessa. - O parecer do senhor Lenet é tudo para mim. Repito, pois, que São Jorge está tomada, se consentirem em deixar-me dizer quatro palavras em particular ao senhor Lenet.

- Senhora - interrompeu a Tourville - eu também tomo São Jorge, se deixarem o assunto por minha conta.

- Deixe primeiro a senhora Tourville expor em voz alta o seu plano - pediu Lenet, detendo a senhora de Cambes, que queria encaminhá-lo para um canto. - Depois, dir-me-á o seu, em voz baixa.

- Fale, senhora - disse a princesa.

- Parto de noite, com vinte barcos, levando duzentos mosqueteiros; outros duzentos encaminhar-se-ão ao longo da margem direita; quatrocentos ou quinhentos subirão ao longo da margem esquerda; enquanto isto, mil ou mil e duzentos bordeleses...

- Tenha cuidado, senhora - disse Rochefoucauld. - Já tem mil ou mil e duzentos homens empenhados...

- Eu - interrompeu Clara - com uma só companhia tomo São Jorge; dêem-me o batalhão de Navailles, e respondo pelo bom êxito.

- Uma proposta digna de consideração - sentenciou a princesa, enquanto o senhor Rochefoucauld, sorrindo com desprezo, olhava com lástima para todas essas mulheres que tinham o atrevimento de dar o seu voto em assuntos de guerra, já de si bem complicados para os homens mais ousados e mais empreendedores.

- Agora, passo a ouvi-la - disse Lenet. - Venha, minha senhora.

E Lenet levou a viscondessa para o vão de uma janela. Clara contou-lhe o seu segredo ao ouvido, e Lenet não pôde conter um grito de alegria.

- Com efeito - disse ele, voltando-se para a princesa

- desta vez, se quiser dar carta branca à senhora de Cambes, São Jorge está tomada.

- E quando? - perguntou a princesa.

- Quando o quiserem.

- A senhora é um grande capitão - disse Rochefoucauld, com ironia.

- Terá que convencer-se, senhor duque - respondeu Lenet - quando entrar triunfalmente em São Jorge sem dar um só tiro.

- Então, aprovarei!

- Nesse caso - disse a princesa - se a coisa é tão certa como dizem, prepare-se tudo para amanhã.

- Será no dia e na hora que Vossa Alteza quiser - respondeu a senhora de Cambes. - E esperarei as suas ordens nos meus aposentos.

Dizendo estas palavras, saudou, recolheu-se e a princesa, que num instante acabava de passar da cólera à esperança, fez outro tanto. A senhora Tourville seguia-a. Espagnet, depois de ter renovado os seus protestos, também se retirou, e o duque ficou só com Lenet.

 

- MEU caro senhor Lenet - disse o duque - visto que as mulheres deitaram mão à guerra, penso que a nós, homens, conviria passarmos a intrigantes enleadores. Ouvi falar de um tal Cauvignac, encarregado por si de recrutar uma companhia, de quem me falaram como homem muito hábil e manhoso... Havia-o mandado chamar; haverá meio de vê-lo?

- Senhor, está ali, esperando - disse Lenet.

- Então, que entre.

Lenet puxou pelo cordão de uma campainha, e um criado apresentou-se.

- Introduza o capitão Cauvignac - comandou Lenet. Passado um instante, apareceu o nosso velho conhecido

à entrada da porta. Porém, sempre prudente, ali se deteve.

- Venha cá, capitão - disse o duque. - Sou o duque de Rochefoucauld.

- Excelentíssimo senhor - respondeu Cauvignac - conheço-o muito bem.

- Ah! tanto melhor. Deram-lhe a missão de armar uma companhia, não foi assim?

- Está composta.

- Quantos homens tem à sua disposição?

- Cento e cinquenta.

- Bem fardados e bem armados?

- Bem armados e mal fardados. Ocupei-me das armas, primeiro que tudo, por ser o mais essencial. Quanto ao fardamento, como não sou homem interesseiro, movido sobretudo pelo amor que tenho aos senhores príncipes, e não tendo recebido senão dez mil libras do senhor Lenet, faltou-me dinheiro...

- E com dez mil libras alistou cento e cinquenta soldados?...

- Sim, senhor.

- É uma coisa maravilhosa!

- Senhor, tenho meios que só eu conheço, e, ajudado por eles, nunca desanimo.

- E onde estão os seus homens?

- Estão ali. Verá, senhor, que bela companhia, mormente quanto ao moral; são todos de boas famílias. Não há um só deles que pertença à raça dos farroupilhas.

O duque de Rochefoucauld aproximou-se da janela, e, com efeito, viu na rua cento e cinquenta indivíduos de todas as idades, de todas as estaturas, e de todos os estados, alinhados em duas filas por Ferguzon, Barrabás, Carrotell e outros dois companheiros, estes cinco ataviados com os mais magníficos trajos. Aqueles indivíduos mais tinham a aparência de um bando de bandidos, do que de uma companhia de soldados.

Como Cauvignac dissera, estavam esfarrapados, porém muito bem armados.

- Recebeu alguma ordem relativamente aos seus homens? - perguntou o duque.

- Recebi ordem de conduzi-los a Vayres, e espero apenas do senhor duque a confirmação dessa ordem, para entregar toda a minha companhia nas mãos do senhor Richon, que a aguarda.

- Mas não ficará com ela em Vayres?

- Eu, senhor, tenho por princípio nunca cometer a loucura de me encerrar entre quatro paredes, quando posso andar solto pelo campo. Nasci para levar a vida dos patriarcas.

- Sendo assim, fique onde muito bem quiser, mas mande a sua gente para Vayres.

- Então, está decidido que fazem parte da guarnição daquela praça?...

- Está, pois.

- Sob as ordens do senhor Richon? -Sim.

- Mas, senhor - estranhou Cauvignac - que vai lá fazer a minha gente, visto que na praça já há uns trezentos homens?

- É muito curioso!

- Oh! não é por curiosidade, senhor; é por temor.

- E o que teme o senhor, então?

- Temo que os condenem a ficar inactivos, e isso seria um erro. Quem deixa criar ferrugem numa boa arma, faz mal.

- Sossegue, capitão, não se enferrujarão; dentro de oito dias, terão de combater.

- Mas então, matá-los-ão...

- É provável; a não ser que, já que tem um meio para recrutar soldados, tenha também um segredo para os tornar invulneráveis.

- Oh! não é disso que se trata; o que eu queria é que fossem pagos antes que os matem.

- Não disse que recebeu dez mil libras?

- A verdade é que as recebi, à conta. Pergunte-o ao senhor Lenet, que é pessoa muito séria, e que, estou certo, se lembrará dos nossos acordos.

O duque voltou-se para Lenet.

- É verdade, senhor duque - disse o irrepreensível conselheiro. - Demos ao senhor Cauvignac dez mil libras para as primeiras despesas; mas prometemos-lhe cem escudos por cada homem, além das dez mil libras.

- Então - prosseguiu o duque - são trinta e cinco mil francos que devemos ao capitão, não é assim?

- Justamente, senhor. -Há-de recebê-las.

- Não poderíamos falar no presente, senhor duque?... -Não, não é possível.

- Porquê?

- Porque faz parte dos nossos amigos, e os estranhos devem ser atendidos em primeiro lugar; sabe muito bem que só quando se tem medo das pessoas é que se torna necessário satisfazê-las.

- Excelente máxima - disse Cauvignac. - Contudo, em todos os negócios é costume fixar um prazo...

- Ora, pois, dentro de oito dias - prometeu o duque.

- Fiquemos assim. Dentro de oito dias, terá lugar o pagamento dessa quantia - replicou Cauvignac.

- E se, dentro de oito dias, não tivermos pago?... - perguntou Lenet.

- Então - respondeu Cauvignac - fico outra vez senhor da minha companhia.

- É muito justo - disse o duque.

- Farei dela o que bem quiser. -Visto que então lhe pertencerá.

- Todavia... - disse Lenet.

- Bah! - exclamou o duque - se nós a teremos encerrada em Vayres?!...

- Não gosto de contratos desta natureza - respondeu Lenet, abanando a cabeça.

- Pois olhe, apesar disso, estão muito em voga entre os normandos; chama-se a isto vender sob condição1.

- Estamos, pois, de acordo? - perguntou o duque.

- Sem dúvida alguma - respondeu Cauvignac. -E quando podem partir os seus homens?

- Desde já, se assim o ordenar. -Então, ordeno-o.

- Nesse caso, senhor, vão partir. O capitão desceu, disse duas palavras ao ouvido de Ferguzon, e a companhia de Cauvignac, acompanhada por todos os curiosos que o seu estranho aspecto juntara em torno dela, pôs-se em marcha rumo ao porto, onde a esperavam três barcos, nos quais devia ser transportada pelo Dordonha acima até Vayres, enquanto o chefe, fiel aos princípios de liberdade que pouco antes havia

 

(‘) Vente à rémeré - Sistema semelhante ao da venda com reserva de direitos.

 

manifestado na presença do duque, a via afastar-se com olhos de amante.

Entretanto, a viscondessa retirara-se para o seu quarto;

"Ai de mim! - dizia ela - não pude salvar-lhe a honra inteiramente, mas ao menos salvarei as aparências. Não deve ser vencido pela força, pois bem sei que morrerá, defendendo-se; deve ao menos parecer que foi vencido pela traição. Então, quando souber o que eu fiz por ele, e principalmente, com que fim, apesar de vencido, abençoar-me-á ainda."

E, tranquilizada por esta esperança, levantou-se, escreveu algumas palavras num bilhetinho que escondeu no seio, e foi ter com a princesa, que acabava de a mandar chamar, para com ela ir confortar os feridos, as viúvas e os órfãos.

A princesa reuniu todos os que tinham participado na expedição, exaltou em seu nome e no do senhor duque de Enghien os feitos daqueles que se haviam distinguido, e falou durante muito tempo com Ravailly, que, com o braço ao peito, lhe jurou estar pronto a ir de novo ao ataque, no dia seguinte. Pousou a mão no ombro de Espagnet, dizendo-lhe que o considerava, a ele e aos seus valentes bordeleses, os mais firmes esteios do seu partido, e ao fim e ao cabo reanimou de tal sorte todos os espíritos, que os mais desanimados juravam vingar-se, e queriam voltar à Ilha de São Jorge no mesmo instante.

- Não, ainda não - disse a princesa - repousem hoje e esta noite, e depois de amanhã hão-de instalar-se para sempre na ilha.

Esta certeza, dada com voz firme, foi acolhida com gritos de ardor guerreiro. Cada um desses gritos entrava profundamente no coração da viscondessa, porque eram

outros tantos punhais que ameaçavam a vida do amante.

- Vê em que te meteste, Clara - disse a princesa.

- Agora é tua obrigação fazer com que não falte à minha

palavra para com estes bravos.

- Tranquilize-se, senhora - respondeu ela. - Farei o que prometi.

Nessa mesma noite, um mensageiro partiu a toda a brida rumo a São Jorge.

 

O SUBTERRÂNEO

NO dia seguinte, enquanto Canolles procedia à sua > ronda da manhã, Vibtac juntou-se-lhe e entregou-lhe um bilhete e uma chave, as quais um desconhecido trouxera durante a noite, e entregara ao tenente de guarda, dizendo que não tinha resposta.

Canolles estremeceu, ao reconhecer a letra da senhora de Cambes, e todo trémulo, abriu o bilhete. Eis o respectivo conteúdo:

No meu último bilhete participava-lhe que durante a noite o forte de São Jorge seria atacado; neste, informo-o que amanhã o forte de São Jorge será tomado; como homem, como soldado do rei, não corre outro risco para além de ficar prisioneiro; porém, a menina de Lartigues está numa situação bem diferente, e o ódio que lhe têm é tal, que eu não responderia pela sua vida, caso caísse nas mãos dos bordeleses. Decida-se, pois, a fugir. E para tanto, providenciei eu os meios.

A cabeceira do seu leito, atrás de uma tapeçaria com as armas dos senhores de Cambes, a quem outrora pertenceu a Ilha de São Jorge, que fazia parte do seu domínio - de que o defunto visconde de Cambes, meu marido, fez doação ao rei - encontrará uma porta, cuja chave junto lhe envio. É uma das entradas que dão para uma grande passagem subterrânea, a qual, sob o leito do rio, vai ter ao Solar de Cambes. Faça fugir por essa passagem a menina Nanon de Lartigues... e, se a ama... fuja com ela.

Dou-lhe a minha palavra de honra de que respondo pela vida dela.

Adeus. Estamos pagos.

Viscondessa de Cambes.

Canolles leu e releu a carta, tremendo de susto a cada linha, e de cada vez que a lia, mais acabrunhado ficava. Sentia, sem poder aprofundar aquele mistério, que um poder estranho o envolvia e dispunha dele. Aquele subterrâneo, que ia ter da cabeceira da sua cama ao castelo de Cambes, e que devia servir-lhe para salvar Nanon, não teria podido ser utilizado, caso o segredo da passagem fosse revelado, para entregar São Jorge ao inimigo?

Vibrac observava no semblante do governador as últimas comoções que nele se reflectiam.

- Más notícias, comandante?... - perguntou ele.

- Sim; parece que seremos de novo atacados na próxima noite.

- Que gente teimosa! - disse Vibrac. - Julgava que se dariam por suficientemente coçados, e que não ouviríamos mais falar deles, pelo menos nos próximos oito dias!...

- Não é preciso - disse Canolles - recomendar-lhe a mais escrupulosa vigilância...

- Fique descansado, comandante. Tentarão provavelmente surpreender-nos, como da última vez; não?

- Não sei, mas estejamos prontos para tudo, e tomemos as mesmas precauções que então tomámos. Vá acabar a ronda em meu lugar. Eu vou recolher-me, porque necessito expedir algumas ordens.

Vibrac fez um sinal de obediência, e afastou-se, com aquela despreocupação militar que, à aproximação do perigo, experimentam os homens que estão sujeitos a enfrentá-lo, a cada passo.

Quanto a Canolles, retirou-se para casa, tomando todas as precauções possíveis para não ser visto por Nanon. Depois de se haver certificado de que estava só no seu quarto, fechou-se à chave.

À cabeceira do leito estavam as armas dos senhores de Cambes, bordadas na tapeçaria, e emolduradas por uma espécie de cordão de ouro.

Canolles levantou esse cordão, que, desprendendo-se da tapeçaria, deixou ver a fenda de uma porta.

Abriu a porta com a chave que a viscondessa lhe mandara, juntamente com a carta; e a abertura de um subterrâneo apresentou-se aos olhos de Canolles - subterrâneo esse que, visivelmente, seguia a direcção do castelo de Cambes.

Canolles ficou um instante mudo, e a testa alagou-se-Lhe em suor. Essa passagem misteriosa, que podia não ser a única, assustava-o, involuntariamente.

Acendeu uma vela, e preparou-se para uma inspecção.

Desceu primeiro vinte degraus íngremes, e depois, por uma inclinação mais suave, prosseguiu a penetração nas profundezas da terra.

Em breve ouviu o barulho surdo, que a princípio o assustou, por ignorar a causa; porém, avançando mais, reconheceu, sobre a cabeça, o imenso murmúrio do rio, que atirava as suas águas para o mar.

Havia muitas fendas na abóbada, pelas quais, em diferentes épocas, as águas deviam ter filtrado; porém, essas fendas, que sem dúvida haviam sido descobertas a tempo, foram tapadas com uma espécie de argamassa, que se tornara mais dura do que a própria pedra assim unida.

Durante quase dez minutos, Canolles ouviu correr as águas por sobre a cabeça. Depois, o fragor foi diminuindo a pouco e pouco. Em breve não passava de um ténue murmúrio. Finalmente, esse murmúrio extinguiu-se também. O silêncio substituiu-o, e, percorridos cinquenta passos em silêncio, Canolles chegou a uma escada igual àquela que descera, e que junto ao último degrau estava fechada por uma porta maciça, que dez homens reunidos não poderiam estremecer sequer, a qual era preservada do fogo por uma grossa chapa de ferro.

"Agora entendo - pensou Canolles. - Esperam por Nanon nesta porta, e levam-na."

Canolles regressou, passando novamente por debaixo do rio, tornou a encontrar a escada, recolheu-se aos seus aposentos, colocou de novo o cordão, e foi muito pen-sativo, ter com Nanon.

 

NANON estava, como de costume, rodeada de mapas, de cartas e de livros. A pobre mulher fazia, a seu modo, a guerra civil em favor do rei. Assim que viu Canolles, estendeu-lhe a mão, com transporte.

- O rei está a chegar - disse ela - e daqui a oito dias ficaremos fora de perigo.

- Está sempre para chegar - disse Canolles, sorrindo com tristeza. - Mas, desgraçadamente, nunca chega...

- Oh! desta vez estou bem informada, querido barão: antes de oito dias estará aqui.

- Por muito que se apresse, Nanon, chegará sempre tarde para nós.

- Que diz!?

- Digo que em lugar de se cansar com estes mapas e papéis, faria muito melhor em cogitar nos meios de fugir.

- Fugir!? E porquê?

- Porque tenho más notícias, Nanon. Prepara-se uma nova expedição. Quem me diz que desta vez não sucumbirei?

- Então, meu amigo, não ficou entendido que a sua sorte é a minha?...

- Não, não pode ser assim. Serei demasiado fraco, se tiver que recear por si. Não foi em Agen que a quiseram fazer morrer queimada?... Não quiseram deitá-la ao rio?... Nanon, tenha pena de mim: não se obstine em ficar aqui. A sua presença far-me-ia cometer alguma cobardia.

- Oh! meu Deus! Canolles, assusta-me!

- Nanon, suplico-lhe: jure-me que, se eu for atacado, fará o que lhe ordenar.

- Oh! meu Deus, para que é preciso semelhante juramento?...

- Para me dar a força de viver, Nanon. Se não me prometer obedecer cegamente, juro-lhe que na primeira ocasião farei com que me matem.

- Oh! tudo quanto quiser, Canolles, tudo! Juro pelo nosso amor.

- Graças a Deus, querida Nanon! Já fico mais sossegado. Reúna as suas jóias mais preciosas. Onde está o seu ouro?

- Num barril com arcos de ferro. -Prepare tudo isso, a fim de que tudo possa levar consigo.

- Oh! Canolles, bem sabe que o verdadeiro tesouro do meu coração não são nem o meu ouro nem as minhas jóias. Canolles! Não será tudo isso apenas para me afastar de si?...

- Nanon, acredita em que sou homem de honra, não é assim? Pois então, pela minha honra lho afirmo: quanto faço, é-me inspirado unicamente pelo receio do perigo que corre.

- E acredita seriamente nesse perigo?

- Acredito que amanhã a Ilha de São Jorge há-de ser tomada.

- Mas como!?

- Não posso saber como, mas acredito.

- E se eu consentir em fugir?

- Farei tudo o que puder para viver, Nanon; juro-lhe! - Dará as suas ordens, meu amigo, e eu obedecerei

- disse Nanon, estendendo a mão a Canolles, e esquecendo-se, no ardor com que para ele olhava, das duas grossas lágrimas que lhe sulcavam as faces.

Canolles apertou a mão a Nanon e saiu. Caso houvesse demorado mais um instante, teria recolhido aquelas duas pérolas com os seus lábios. Porém, pôs a mão sobre a carta da viscondessa, e, como se fora um talismã, essa carta deu-lhe forças para se afastar.

O dia foi cruel. Aquela ameaça tão positiva: "Amanhã a Ilha de São Jorge será tomada" - repetia-se constantemente aos ouvidos de Canolles. Como, por que meio, que certeza podia ter a viscondessa para falar em tais termos? Seria atacado pelo rio, ou seria atacado por terra? De que ponto desconhecido se abateria sobre ele aquela desgraça invisível, e contudo certa? Não era preciso tanto, para enlouquecê-lo.

Durante todo o dia, Canolles queimou os olhos ao sol, procurando em toda a parte o inimigo. De tarde, cansou os olhos a sondar as profundezas do bosque, os horizontes da planície, as sinuosidades do rio; tudo em vão: nada viu.

E, quando anoiteceu completamente, iluminou-se uma das fachadas do Palácio de Cambes. Era a primeira vez que Canolles ali via luz, desde que chegara à Ilha de São Jorge.

"Ah! - disse ela - eis os salvadores de Nanon que se colocam no seu posto."

E deu um profundo suspiro.

Que singular e misterioso enigma é aquele em que se encerra o coração humano! Canolles já não amava Nanon. Adorava a senhora de Cambes. E, todavia, no momento de se separar da mulher a quem já não amava, sentia dilacerar-se-lhe a alma; longe dela, ou quando estava para a deixar, é que Canolles sentia a verdadeira força do sentimento especial que aquela linda criatura lhe inspirava.

Toda a guarnição estava de pé, e velava nas muralhas. Cansado de olhar, Canolles interrogava o silêncio nocturno. Nunca a escuridão estivera mais muda ou parecera mais solitária. Nenhum ruído alterava aquele sossego, que parecia desértico.

De repente, acorreu a Canolles que talvez fosse pelo subterrâneo que o inimigo penetraria dentro do forte. Isso era pouco provável, porque em tal caso, não o teriam prevenido. Mandou preparar um barril de pólvora com a competente mecha, escolheu o mais bravo dos sargentos, fez rolar o barril até ao último degrau do subterrâneo, acendeu um archote, e entregou-o nas mãos do sargento. Outros dois homens conservavam-se ao pé dele.

- Caso se apresentem mais de seis homens por este subterrâneo - disse ele ao sargento - intima-lhes desde logo que se retirem; depois, se recusarem, larga fogo à mecha, e faz rolar o barril; como a passagem tem declive, irá rebentar entre eles.

O sargento pegou no archote; os dois soldados ficaram de pé, e imóveis, atrás dele, iluminados pelo reflexo avermelhado, enquanto a seus pés jazia o barril de pólvora.

Canolles voltou para cima sossegado, ao menos por aquele lado; porém, entrando no quarto, viu Nanon, que, tendo-o visto descer da muralha e recolher aos seus aposentos, o havia seguido para saber alguma notícia. Olhava assombradamente para aquela abertura, que lhe era desconhecida.

- Oh! meu Deus! - perguntou ela - que porta é esta!?

- A passagem por onde tens de fugir, querida Nanon.

- Prometeste-me que não exigirias de mim que te deixasse, senão em caso de ataque...

- E ainda to prometo...

- Tudo parece muito sossegado em torno da ilha, meu amigo...

- Também tudo parece muito sossegado dentro dela, não é assim? E contudo, a vinte passos de nós, está um barril de pólvora, um homem, e um archote. Se o homem chegasse o archote ao barril de pólvora, num segundo não ficaria pedra sobre pedra, de todo o castelo. É assim que tudo está sossegado, Nanon! A jovem senhora empalideceu.

- Nanon - prosseguiu Canolles - chame as suas criadas; que venham cá, e que tragam as suas jóias. O seu criado de câmara que venha também, com o dinheiro. Talvez me tenha enganado. Talvez não haja novidade esta noite, mas não interessa: estejamos prontos.

- Quem vem lá!? - gritou o sargento, no subterrâneo. Outra voz respondeu, mas não em tom hostil.

- Ouviu?...-Adisse Canolles.-Ei-los, que a vêm buscar.

- Ainda não atacaram, meu amigo; tudo está tranquilo; deixe-me ficar ao pé de si, eles não virão.

Quando Nanon acabou de proferir estas palavras, o grito Quem vem lá!? retumbou três vezes no pátio interior, e à terceira vez, foi seguido pela detonação de um mosquete.

Canolles correu para a janela e abriu-a.

- Às armas! - gritou a sentinela. - Às armas! Canolles viu, num ângulo, uma negra e movediça massa;

era o inimigo, que saía às ondas de uma porta baixa e arqueada que abria para um subterrâneo que servia de arrecadação de lenha; sem dúvida naquele subterrâneo havia, tal como na cabeceira do leito da Canolles, alguma saída desconhecida.

- Ei-los! - gritou Canolles; - apresse-se! Ei-los que chegam.

No mesmo instante, a descarga de uns vinte mosquetes respondeu ao tiro da sentinela. Duas ou três balas quebraram os vidros da janela que Canolles fechava.

Ele voltou-se. Nanon estava de joelhos.

Pela porta interior vinham correndo as criadas, e o lacaio.

- Não pode perder-se um momento, Nanon! - exclamou Canolles. - Venha! Venha!

E, tomando nos braços a jovem mulher, como se ela não pesasse mais do que uma pena, meteu pelo subterrâneo, gritando aos que acompanhavam Nanon que o seguissem.

O sargento mantinha-se no seu posto, com o archote na mão: os dois soldados, com a mecha acesa, estavam prontos a fazer fogo contra um grupo, no meio do qual aparecia, pálido, e fazendo mil protestos de amizade, o nosso velho conhecido Pompeu.

- Ah, senhor de Canolles! - exclamou ele - diga-lhes que somos as pessoas que esperava; não são brincadeiras, estas, que se façam a amigos.

- Pompeu-disse Canolles-recomendo-lhe a senhora; alguém que conhece, deu-me a palavra de honra de que respondia por ela; e você responderá por esse alguém com a sua cabeça!

- Sim, sim, respondo por tudo - disse Pompeu.

- Canolles, Canolles, não me separarei de si! - exclamou Nanon, pendurando-se ao pescoço do mancebo.

- Canolles, prometeu-me que me acompanharia...

- Prometi defender o forte de São Jorge, enquanto não for arrasado; e vou cumprir a minha promessa.

E, apesar dos clamores, dos prantos, e das súplicas de Nanon, Canolles entregou-a nas mãos de Pompeu, que, ajudado por dois ou três lacaios da senhora de Cambes, e pelo acompanhamento da própria fugitiva, a arrastou para o fundo do subterrâneo.

Por um instante, Canolles seguiu com os olhos aquele meigo e branco fantasma, que se ia afastando com os braços estendidos para ele. Porém, de repente, recordando-se de que o esperavam em outra parte, correu para a escada, gritando ao sargento e aos dois soldados que o seguissem.

Vibrac estava no quarto, sem chapéu, pálido, e com a espada na mão.

- Comandante! - gritou ele, vendo Canolles - o inimigo!... O inimigo.

- Bem o sei.

- Que se faz?

- Bela pergunta! Morrer!

Canolles correu ao pátio, e, no caminho, dando com os olhos no machado de um mineiro, apoderou-se dele.

O pátio estava pejado de inimigos. Sessenta soldados da guarnição, amontoados num grupo, defendiam a porta dos aposentos de Canolles. Ouviram-se do lado das muralhas gritos e tiros, anunciando que em toda a parte se combatia corpo a corpo.

- O comandante! o comandante! - gritaram os soldados, vendo Canolles.

- Sim! sim! - respondeu este - eis o comandante, que vem morrer convosco. Ânimo, amigos! Ânimo! Tomaram-nos de traição, não podendo vencer-nos.

- Tudo é bom na guerra - disse a voz zombeteira de Ravailly, que, de braço ao peito, incitava os seus soldados para que aprisionassem Canolles. - Entrega-te, Canolles, entrega-te, e serás muito bem tratado.

- Ah, és tu, Ravailly?... - gritou Canolles. - Eu, contudo, julgava que te havia pago a minha dívida de amizade. Não estás contente, espera...

E, dando um pulo em frente, de cinco ou seis passos, arremessou contra Ravailly o machado que tinha na mão, com tanta força, que foi fender, junto do capitão Navailles, o capacete e a gola de um oficial de burgueses, que logo caiu morto.

- Peste! - disse Ravailly. - É assim que respondes aos obséquios que te fazem?... Eu devia, todavia, estar acostumado ao teu modo de proceder. Meus amigos, ele está desarmado: fogo sobre ele! fogo!

O resultado desta ordem foi uma vigorosa descarga, que partiu das fileiras inimigas, e cinco ou seis homens caíram por terra, ao pé de Canolles.

- Fogo! - gritou este por seu turno. - Fogo! Porém, apenas se ouviram três ou quatro tiros. Surpreendidos no momento em que menos o esperavam, e turbados pela noite, os soldados de Canolles haviam desanimado.

Canolles viu que nada se podia fazer.

- Entre - disse ele a Vibrac. - Entre, e mande entrar os seus soldados Entrincheirar-nos-emos, e só nos entregaremos quando nos tiverem tomado de assalto.

- Fogo! - repetiram outras duas vozes, que eram as de Espagnet e Rochefoucauld. - Lembrem-se dos vossos camaradas mortos, que clamam vingança. Fogo!

E um furacão de ferro sibilou de novo à roda de Canolles, sem o ferir, mas dizimando segunda vez a sua pequena tropa.

- Retirar! - ordenou Vibrac.

- A eles! - gritou Ravailly - avante, amigos! avante! Os inimigos arremeteram então; Canolles, com uma

dúzia de homens quando muito, sustentou o choque; tinha pegado na espingarda de um soldado morto, e servia-se dela como de um varapau.

Os seus companheiros entraram, e ele foi o último a recolher-se, com Vibrac.

Então, encostaram-se ambos à porta, que conseguiram fechar, apesar dos esforços dos sitiantes, e escoraram-na com uma enorme tranca de ferro.

As janelas tinham grades.

- Venham machados, alavancas, e artilharia se for preciso! - gritou o duque de Rochefoucauld. - É necessário apanhá-los a todos, mortos ou vivos!

Um fogo espantoso seguiu-se a estas palavras; duas ou três balas atravessaram a porta, e uma delas quebrou uma perna a Vibrac.

- Pela minha fé, meu comandante! - disse ele - recebi o meu quinhão; arranje-se agora como puder; já nada tenho com isso.

E desapareceu, deslizando ao longo da parede, não podendo já ter-se de pé.

Canolles olhou em torno de si: uma dúzia de homens estava ainda em estado de defesa; o sargento que deixara de sentinela no subterrâneo, estava entre eles.

- O archote? - disse-lhe ele. - Que fizeste do archote?

- Atirei com ele para junto do barril, meu comandante.

- Ainda estará aceso?

- É provável.

- Está bem. Manda sair todos estes homens pelas portas e janelas traseiras. Alcança para eles e para ti as condições mais vantajosas que puderes; tudo o mais fica por minha conta.

- Mas, meu comandante...

- Obedece!

O sargento inclinou a cabeça, e fez sinal aos seus soldados para que o seguissem. Todos desapareceram no mesmo instante, metendo-se pelos quartos interiores; tinham adivinhado a intenção de Canolles, e não se sentiam com vontade de voar pelos ares com ele.

Canolles apurou os ouvidos um instante: arrombavam a porta à machadada, o que não impedia que o fogo fosse sempre continuando; atiravam ao acaso, e principalmente às janelas, atrás das quais supunham que podiam estar emboscados os sitiados.

Repentinamente, um grande tumulto anunciou que haviam arrombado a porta, e Canolles ouviu o tropel da gente que se precipitava no castelo, dando gritos de alegria.

"Bem, bem - murmurou ele - dentro de cinco minutos estes gritos de alegria tornar-se-ão em uivos de desespero."

E correu para a galeria subterrânea.

Porém, sobre o barril estava sentado um mancebo, tendo o archote aos seus pés, e a cabeça apoiada nas mãos.

O mancebo, com o ruido do recém-chegado, levantou a cabeça, e Canolles reconheceu a senhora de Cambes.

- Ah! - exclamou ela, levantando-se. - Ei-lo enfim.

- Clara! - exclamou - que veio fazer aqui?

- Morrer consigo, se quiser morrer.

- Estou desonrado, perdido, não tenho remédio senão morrer!

- Está salvo e glorioso... Salvo por mim!

- Perdido por si! Não os ouve?... Eles aí vêm, ei-los! Fuja, Clara! Fuja por esse subterrâneo! Tem cinco minutos, mais do que é preciso.

- Não me apetece fugir; fico aqui.

- Mas sabe para que desci aqui?... Sabe o que vou fazer?...

A senhora de Cambes pegou no archote, e aproximou-o do barril de pólvora.

- Tenho as minhas suspeitas acerca dessa razão - disse ela.

- Clara! - exclamouCanolles, espantado - Clara!... -Repita ainda uma vez que quer morrer, e morreremos juntos.

O semblante pálido da viscondessa indicava uma tal resolução, que Canolles percebeu que ela ia fazer o que dizia. Deteve-se.

- Mas enfim! Que quer? - perguntou.

- Quero que se entregue.

- Nunca! - bradou Canolles.

- O tempo é precioso - continuou a viscondessa. - Entregue-se. Ofereço-lhe a vida, ofereço-lhe a honra, visto que através de mim poderá desculpar-se por ter sido traído.

- Então, deixe-me fugir; irei depositar a minha espada aos pés do rei, e pedir-lhe a ocasião de me desforrar.

- Não fugirá. -Porquê?

- Porque não posso viver assim! Porque não posso viver separada de si! Porque o amo!

- Rendo-me! Eu entrego-me! - exclamou Canolles, prostrando-se aos pés da senhora de Cambes, e arremessando para longe o archote que ela tinha na mão.

"Oh! - murmurou a viscondessa - desta vez tenho-o seguro, não mo hão-de tirar mais."

Havia uma coisa estranha, de que, todavia, se pode dar uma explicação: que o amor agira, de forma totalmente oposta, nestas duas mulheres.

A senhora de Cambes, discreta, meiga, tímida, tornara-se resoluta, ousada e forte.

Nanon, caprichosa, indómita e ardente, tornara-se tímida, meiga e comedida.

A razão para que assim fosse residia no facto de a senhora de Cambes se sentir cada vez mais amada por Canolles, e Nanon sentir que o amor de Canolles diminuía todos os dias.

 

Este segundo regresso do exército dos príncipes a Bordéus foi muito diferente do primeiro. Desta feita havia louros para toda a gente, até para os vencidos. A delicadeza da senhora de Cambes havia reservado uma boa parte deles para Canolles, que, mal franqueou a barreira ao lado do seu amigo Ravailly, que por duas vezes estivera a ponto de o matar, se viu rodeado, como um grande capitão, e felicitado como valente soldado.

Os vencidos da antevéspera, e sobretudo os que haviam sido maltratados no combate, decerto que conservavam algum ódio contra quem os batera. Porém, Canolles era tão bom, tão formoso, e tão ingénuo, suportava simultaneamente com tanta alegria e tanta dignidade a sua nova posição, que apenas entrou se viu rodeado por um grande número de amigos. Os oficiais e soldados do regimento de Navailles faziam dele um tão grande elogio, quer como seu antigo capitão, quer como governador da Ilha de São Jorge, que os bordeleses em breve esqueceram os agravos de que podiam ressentir-se. Além disso, tinham outras coisas em que pensar. O senhor de Bouillon devia chegar, dentro de dois ou três dias, e, segundo as melhores informações, dentro de oito dias, o mais tardar, o rei estaria em Libourne.

A princesa de Conde tinha o mais ardente desejo de ver Canolles; vira-o passar, escondida atrás da cortina do seu quarto, e achou que tinha um rosto capaz de fazer conquistas, e que correspondia perfeitamente à reputação de que gozava entre amigos e inimigos. A senhora Tour-ville, sendo de parecer contrário ao da princesa, dizia que era falho de distinção. Lenet afirmou que o considerava um homem de bem; e o senhor de Rochefoucauld contentou-se em dizer:

- Ah! ah! É então este o herói!...

Designaram um alojamento a Canolles, na fortaleza principal da cidade, o castelo Trompette. Durante o dia, gozava de toda a liberdade, podia passear pela cidade, tratar dos seus negócios, ou divertir-se. À noite, recolhia-se - isto em virtude da palavra de honra que dera, de que não fugiria nem se corresponderia com os de fora.

Antes de fazer este último juramento, Canolles pedira licença para escrever quatro linhas; essa licença fora-lhe concedida, e enviara a Nanon a seguinte carta:

Prisioneiro, mas gozando de toda a liberdade em Bordéus, em virtude da promessa que fiz de não ter correspondência exterior, escrevo-lhe estas breves palavras, querida Nanon, para a assegurar da minha amizade, da qual o meu silêncio poderia fazer duvidar. Tenho toda a confiança em si, e consola-me saber que defenderá a minha honra perante o rei e a rainha.

Barão de Canolles

Nesta situação, muito benéfica, conforme se vê, podia adivinhar-se a influência da senhora de Cambes.

Canolles passou cinco ou seis dias em jantares e festas que lhe ofereciam os amigos. Encontravam-no sempre com Ravailly, que passeava dando o braço esquerdo a Canolles, e com o braço direito ao peito; quando o tambor tocava, e os bordeleses partiam para alguma expedição, ou acudiam a algum motim, estavam certos de, no caminho que seguiam, encontrar Canolles de braço dado com Ravailly, ou só, com as mãos atrás das costas, curioso, risonho e inofensivo.

Desde a sua chegada, só raras vezes vira a senhora de Cambes, e apenas lhe falara; parecia satisfatório, para a viscondessa, que Canolles não estivesse já ao pé de Nanon, e considerava-se feliz por o ter, como ela o dissera, perto de si. Então, Canolles escrevera-lhe para, brandamente, se queixar, e ela fizera com que o recebessem em uma ou duas casas da cidade, mediante aquela protecção invisível aos olhos, mas palpável, digamos assim, ao coração da mulher que ama, sem querer que adivinhem a sua paixão.

Todavia, isto não era tudo. Graças à intervenção de Lenet, Canolles recebera autorização para frequentar a corte da princesa de Conde, e o formoso prisioneiro ali aparecia algumas vezes, conversando e galanteando com as damas da senhora princesa.

Para além disto, não havia homem que parecesse mais desinteressado da política do que Canolles: ver a senhora de Cambes, trocar algumas palavras com ela; se não podia falar-lhe recolher o seu gesto afectuoso, apertar-Lhe a mão quando ela se metia na carruagem; sem embargo de ser huguenote, oferecer-lhe água-benta na igreja - estes eram os grandes assuntos em que o prisioneiro empregava o dia.

De noite, pensava nos grandes assuntos de que tratara durante o dia.

Passado algum tempo, porém, esta distracção já satisfazia o prisioneiro. Ora, como sabia qual era a extrema delicadeza da senhora de Cambes, que se preocupava mais com a honra de Canolles do que com a dela, procurou alargar o círculo das suas distracções. Em primeiro lugar, bateu-se contra um oficial da guarnição e dois burgueses, o que sempre o ocupou algumas horas. Porém, como desarmou um dos seus adversários, e feriu os outros dois, este divertimento em breve se acabou, porque não havia quem estivesse disposto a participar.

Depois, teve um ou dois encontros amorosos, o que não era de estranhar; para além de Canolles ser, como já dissemos, uma bonita figura, a partir do momento em que caíra prisioneiro havia-se tornado interessantíssimo. Durante três dias inteiros, e durante toda a manhã do quarto, falara-se do seu cativeiro; era, quase, dar-lhe tanta importância como ao do príncipe.

Um dia em que Canolles esperava ver a senhora de Cambes na igreja, e em que ela, talvez com medo de encontrá-lo, não apareceu, Canolles, que não deixara de ocupar o seu posto, junto da coluna, ofereceu água-benta a uma linda mulher a quem via pela primeira vez. A culpa não era dele, antes da senhora de Cambes. Se a viscondessa tivesse comparecido, só nela pensaria, só a ela veria, para só a ela oferecer água-benta.

Naquele mesmo dia, enquanto Canolles se interrogava sobre quem seria a linda trigueirinha, recebeu um convite para passar o serão em casa do procurador-geral Lavie, o mesmo que quisera opor-se à entrada da princesa, e a quem, mercê das suas funções, competia defender a autoridade real, sendo por esse motivo quase tão detestado como o senhor dÉpernon. Canolles, que sentia cada vez mais necessidade de se distrair, recebeu o convite com reconhecimento, e, às seis horas, dirigiu-se a casa do procurador-geral.

Os nossos elegantes contemporâneos talvez estranhem a hora; havia, porém, duas razões para que Canolles acudisse tão cedo ao convite do procurador-geral: a primeira, é que, naquela época, como se almoçava ao meio-dia, os serões principiavam muito cedo; a segunda, é que, como Canolles se recolhia regularmente ao castelo Trompette às nove horas e meia, o mais tardar, necessitava, caso quisesse demorar-se algum tempo, ser dos primeiros a chegar.

Ao entrar na sala, Canolles deu um grito de alegria; a senhora Lavie era a linda trigueirinha a quem cortesmente oferecera água benta, naquela mesma manhã.

Canolles foi recebido nos salões do procurador-geral como realista que dera provas de o ser: logo que a apresentação teve lugar, imediatamente se viu rodeado de homenagens capazes de aturdir um dos sete sábios da Grécia. Compararam a sua defesa, face ao primeiro ataque a São Jorge, com a de Horácio Cocles, e sua derrota, com a tomada de Tróia, destruída pelas artimanhas de Ulisses,

- Meu querido senhor Canolles! - disse-lhe o procurador-geral - sei de boa fonte que se falou muito de si, na corte, e que a sua bela defesa o cobriu de glória; por isso mesmo a rainha jurou que havia de trocá-lo logo que o pudesse fazer, e que no dia em que voltasse para o serviço dela seria com a patente de brigadeiro. Agora, diga-me: quer ser trocado?

- Pela minha fé, senhor! - respondeu Canolles, lançando um olhar penetrante à senhora Lavie. - Juro-lhe que o meu maior desejo é que a rainha se não apresse; teria de me trocar por dinheiro, ou por um bom militar; eu não valho semelhante honra! Esperarei que Sua Majestade tenha tomado Bordéus, onde me encontro maravilhosamente bem. Então, serei seu, sem que nada lhe custe. A senhora Lavie sorriu, com graça.

- Ora quem tal imaginaria! - disse seu marido. - Fala com muita indiferença da sua liberdade, senhor barão...

- E para que deveria eu desejá-la com ardor?... - respondeu Canolles. - Julga que me seja muito agradável voltar ao serviço activo, para de novo me encontrar sujeito a matar quotidianamente algum dos meus amigos?...

- Mas, que vida leva aqui? - replicou o procurador-geral. - Uma vida indigna de um homem com o seu merecimento, apartado de todo o conselho, de toda a empresa, condenado a ver os outros servirem a causa a que pertencem, enquanto o senhor se conserva de braços cruzados. Inútil e aborrecido, aí está como decerto se sente. Semelhante situação deve ser-lhe muito penosa. Canolles olhou para a senhora Lavie, que, por sua vez, também para ele olhava.

- Não, senhor - disse ele - está enganado. Não estou enfastiado, de modo algum. O senhor ocupa-se de política, o que é muito enfadonho; eu faço a corte às senhoras, o que é divertido. Estão divididos em dois partidos 114

 

uns, servidores da rainha; outros, da princesa. Eu não me ligo exclusivamente a uma soberana: sou o escravo de todas as mulheres.

Esta resposta mereceu aprovação, e a dona da casa exprimiu a sua opinião com um sorriso.

Em breve as mesas de jogo se organizaram. Canolles jogou também. A senhora Lavie entrou já a meio do jogo, contra o marido, que perdeu cinco mil libras.

No dia seguinte, o povo, não sei a que propósito, lembrou-se de fazer um motim. Um partidário dos príncipes, mais fanático do que os outros, propôs que fossem apedrejar as janelas do senhor Lavie. Depois de quebradas as vidraças, outro propôs que se lançasse fogo à casa. Já lançavam mão dos tições, quando Canolles chegou com um destacamento do regimento de Navailles. Pôs a senhora Lavie em segurança, e arrancou o marido das mãos de uma dúzia de furiosos, que, não podendo queimá-lo, queriam ao menos enforcá-lo.

- Então, senhor homem de acção? - ironizou Canolles ao procurador-geral, tolhido pelo terror. - Que pensa agora da minha ociosidade?... Não sigo o caminho mais acertado, quando nada faço?...

E, sem mais demora, recolheu-se ao castelo Trompette, visto que tocavam a recolher. Ao entrar, encontrou, sobre a sua banquinha, uma carta, cuja forma lhe fez palpitar o coração, e cuja letra lhe provocou um estremecimento.

Era a letra da senhora de Cambes.

Canolles abriu apressadamente a carta, e leu:

Amanhã, esteja sozinho na igreja das Carmelitas, pelas seis horas, e meta-se no primeiro confessionário que fica à esquerda, ao entrar. Encontrará a porta aberta.

"Aqui está uma singular ideia" - disse consigo mesmo Canolles. Havia um pós-escrito.

Não se gabe de ir aonde esteve ontem e hoje. Bordéus não é uma cidade realista, tenha isto sempre presente no seu espírito. E reflita na sorte que teria o procurador-geral, sem a sua intervenção, que isso o faça reflectir.

"Bom! - pensou Canolles. - Ela tem ciúmes. Então, diga ela o que disser, fiz muito bem em ir ontem e hoje, a casa do senhor Lavie."

 

CABERÁ aqui esclarecer que, desde a sua chegada a Bordéus, Canolles passara por todos os tormentos do amor frustrado. Vira a viscondessa acarinhada, rodeada e adulada, sem ter podido mostrar-se assíduo junto dela, e fora forçado a contentar-se com um ou outro relance de Clara, colhido de passagem, para evitar a indiscrição dos maldizentes. Depois da cena do subterrâneo, depois das ardentes palavras trocadas entre ele e a viscondessa - naquele momento supremo, este estado de coisas parecia-lhe mais do que frieza - gelo. Como, porém, no fundo daquela frieza Canolles sentia que era real e profundamente amado, aceitara o seu papel, que era o de ser o mais desafortunado dos amantes felizes. Além disso, a coisa era fácil. Graças à palavra que lhe haviam arrancado, de não se corresponder com o exterior da cidade, desterrara Nanon para aquele recanto da consciência destinado aos remorsos amorosos. Ora, como não recebia quaisquer notícias da jovem mulher, e consequentemente poupava-se ao enfado que sempre causa uma carta - isto é: a recordação palpável da mulher a quem se é infiel - os seus remorsos nem por isso eram insuportáveis.

De quando em vez, todavia, no momento em que o mais alegre sorriso assomava o rosto do mancebo, no momento em que a sua voz proferia palavras espirituosas e alegres, deslizava-lhe repentinamente pela fronte uma-sombra, e um suspiro rompia, senão do coração, pelo menos dos lábios.

Aquele suspiro era por Nanon, e a sombra era a recordação dos tempos passados que pairava sobre o presente.

A senhora de Cambes apercebera-se daqueles instantes de tristeza. O seu olhar sondara todas as profundezas do coração de Canolles, e concluíra que não podia deixá-lo abandonado a si mesmo neste mundo. Entre um antigo amor, que não estava inteiramente extinto, e uma nova paixão, que podia nascer, o excesso daquela seiva ardente - consumida outrora pelas ocupações militares, e pelo desempenho de um posto elevado - podia transformar-se em elemento adverso ao amor tão puro que ela procurava inspirar-lhe. Além do mais, ela apenas procurava ganhar tempo, a fim de que a recordação de tantas aventuras romanescas se apagasse total ou parcialmente, depois de haver sido alvo da curiosidade de todos os cortesãos da princesa. Talvez que a senhora de Cambes se enganasse; talvez que, caso tivesse publicamente denunciado o seu amor, conseguisse que dele se ocupassem menos, ou menos tempo.

De entre todos, porém, o que seguia com mais atenção, e com melhores resultados, os progressos daquela misteriosa paixão, era Lenet. Durante algum tempo, seus olhos observadores haviam reconhecido a existência do amor, sem lhe conhecer o objecto. Verdade seja dita que não adivinhara o estado exacto daquele amor; ignorava se era desdenhado ou correspondido. A senhora de Cambes, algumas vezes trémula e indecisa, outras forte e resoluta, quase sempre indiferente aos prazeres que se gozavam em torno dela, apenas lhe parecera verdadeiramente ferida no coração; repentinamente, porém, aquele ardor que mostrara pela guerra, apagara-se. Já não estava trémula, nem forte, nem indecisa, nem resoluta; antes pensativa, sorrindo sem razão, chorando sem causa, como se os seus lábios e os seus olhos respondessem às variações do seu pensamento, aos impulsos controversos do seu espírito. Havia seis ou sete dias que esta mudança se operara; seis ou sete dias em que Canolles, sem o suspeitar, era objecto daquele amor.

Para além disto, Lenet estava disposto a favorecer um amor que, algum dia, poderia dar um tão bravo defensor à princesa.

O senhor de Rochefoucauld talvez estivesse mais adiantado ainda do que Lenet na exploração do coração da senhora de Cambes. Porém, os seus gestos, os seus olhos e a sua boca, diziam tão estritamente o que ela lhes permitia que dissessem, que ninguém podia afirmar se teria amor ou ódio à senhora de Cambes. Quanto a Canolles, não falava dele, não olhava para ele, e tinha-o em tão pouca conta como se nunca tivesse existido. Além disso, batendo-se mais do que nunca, tomando os ares e o porte de um herói - pretensão em que era auxiliado por uma coragem a toda a prova, e por uma verdadeira habilidade militar - cada dia dava mais importância à sua posição de lugar-tenente do generalíssimo. O senhor de Bouillon, pelo contrário, trio, misterioso, calculador, servido admiravelmente na sua política por ataques de gota - às vezes de tal forma o acometiam a tempo, que os assistentes tinham tentações de lhes negar a autenticidade- negociava sempre, dissimulava o mais que lhe era possível, não podendo fazer-se à ideia de estudar o abismo que separava Mazarino de Richelieu, e receando sempre pela sua cabeça, que estivera a ponto de perder no mesmo cadafalso em que a perdera Cinq-Mars - e que só a resgatara dando Sedan, cidade sua, e renunciando, senão de direito, pelo menos de facto, à sua qualidade de príncipe soberano.

Quanto à própria cidade de Bordéus, era arrastada pela corrente dos galantes costumes, que a inundava de todos os lados. Entre dois fogos, entre duas mortes, entre duas ruínas, os bordeleses sentiam-se tão pouco certos do dia seguinte, que lhes era necessário adocicar aquela existência precária, que podia não ter futuro superior a alguns segundos.

Lembravam-se de La Rochelle, devastada outrora por Luís XIII, e da profunda admiração com que Ana de Áustria considerava aquele feito de armas; que razão haveria para que Bordéus não oferecesse ao ódio e à ambição daquela princesa, uma segunda edição de La Rochelle?

Esqueciam-se sempre de que aquele que apoiava o seu nível sobre cabeças e muralhas demasiado altas, havia morrido, e que o cardeal Mazarino era apenas a sombra do cardeal Richelieu.

Por conseguinte, cada um deixava-se vogar, e esta vertigem tanto atacava Canolles como os outros. Reconheça-se também que por vezes se duvidava de tudo, e nos seus acessos de cepticismo duvidava do amor da senhora de Cambes, como das outras coisas deste mundo. Naqueles momentos, Nanon elevava-se no seu coração, mais terna e mais extremosa, dada a sua própria ausência. Em tais momentos, se Nanon lhe tivesse aparecido, aquele inconstante espírito ter-se-ia prostrado aos pés dela.

Foi submerso em todas estas incoerências de pensamentos, que só os corações que alguma vez se encontraram entre dois amores podem compreender, que Canolles recebeu a carta da viscondessa. Não será necessário dizer que toda e qualquer outra ideia desapareceu no mesmo instante. Uma vez lida a carta, não concebia que tivesse jamais podido amar outra que não fosse a senhora de Cambes; e depois de a ter lido segunda vez, acreditou só a ter amado a ela.

Canolles passou uma daquelas noites febris que abrasam e repousam ao mesmo tempo, valendo a felicidade para contrabalançar a insónia. Apesar de em toda a noite não ter fechado os olhos, porém, levantou-se logo que amanheceu.

Sabe-se como os amantes passam as horas que precedem um encontro: a olhar para o relógio, a correr de um lado para outro, e a esbarrar com os mais queridos amigos, a quem não reconhecem. Pois Canolles, fez todas as loucuras exigíveis por tal estado de excitação.

Na hora designada (era a vigésima vez que entrava na igreja) dirigiu-se ao confessionário, que estava aberto. Através das sombrias vidraças, filtravam-se os raios de sol, já no ocaso; todo o interior da religiosa nave estava iluminado por uma misteriosa luz, tão doce e tão grata aos que rezam, e aos que amam. Canolles teria dado um ano de vida para não perder um desejo naquele momento. Olhou em torno de si, para se certificar de que a igreja estava deserta; examinou todas as capelas, e, depois de ficar convencido de que ninguém o podia ver, entrou no confessionário, cuja porta fechou.

 

UM instante depois, Clara, embuçada num denso manto, apressou-se à porta da igreja, junto da qual deixou Pompeu de sentinela; e depois de certificar-se também de que não corria risco de ser vista, foi ajoelhar num dos genuflexórios do confessionário.

- Enfim! - exclamou Canolles - ei-la aqui, senhora! Quer dizer que sempre teve compaixão de mim!

- Não podia deixar de proceder assim, pois o senhor estava a perder-se - respondeu ela, muito perturbada por dizer, no tribunal da verdade, uma mentira bem inocente, mas que nem por isso deixava de ser uma mentira.

- Quer dizer, minha senhora: é a- um simples sentimento de comiseração que devo o favor da sua presença... Oh! tenho direito a esperar mais alguma coisa de si!

- Falemos seriamente - disse Clara, tentando em vão retirar entoação à voz comovida, como aliás convinha fazer num lugar sagrado. - Perdia-se, torno a dizer-lho, indo a casa do senhor Lavie, inimigo jurado da princesa. Ontem, Sua Alteza soube disso pelo senhor de Rochefoucauld, que tudo sabe, e ela proferiu estas palavras, que me assustaram: Se temos de recear também as tramas dos nossos prisioneiros, ser-nos-á preciso tornarmo-nos severos contra as pessoas que tratávamos com indulgência; nas situações precárias, são necessárias decisões vigorosas; não só estamos prontos a tomá-las, mas decididos a executá-las.

A viscondessa pronunciou estas palavras com voz mais firme; parecia-lhe que, atendendo aos fins, Deus desculparia a acção. Era uma espécie de mordaça que punha na sua consciência.

- Eu não sou prisioneiro de Sua Alteza, senhora - respondeu Canolles. - Sou seu prisioneiro, e nada mais. Foi a si que me entreguei, a si somente. Sabe muito bem em que circunstâncias, e sob que condições.

- Não julgava que houvesse condições estipuladas...

- De boca, talvez não; porém, de coração. Ah, senhora! Depois do que me disse, depois da ventura que me deixou entrever, depois das esperanças que me deu!... Ah, senhora! francamente, convenha que foi muito cruel!

- Meu amigo - disse Clara - cumpre-lhe porventura censurar-me porque cuidei da sua honra, tanto como da minha?... Não compreende (pois não posso deixar de lho confessar, porque sem dúvida alguma o adivinharia), não crê que sofri tanto como o senhor, talvez mesmo mais, visto que não tive a força de suportar tal sofrimento?... Preste-me, pois, atenção, e queiram os céus que as minhas palavras, saídas do mais íntimo do meu coração, penetrem no mais íntimo do seu. Meu amigo, eu já lho disse, sofri mais do que o senhor, porque um receio me atormentava - receio esse que não podia ter também, porque bem sabe que não amo a mais ninguém. Ora, nesta sua permanência aqui, tem algumas saudades daquela que aqui não está? E nos sonhos quanto ao futuro, tem alguma esperança que não seja eu?...

- Senhora - disse Canolles - apela para a minha franqueza, e vou falar-lhe francamente. Sim, quando me abandona às minhas dolorosas reflexões, quando me deixa só face ao passado, quando, pela sua ausência, me condena a errar por maus antros, na companhia de parvos emplumados que cortejam essas pequenas burguesas; quando afasta de mim os olhos ou me faz comprar tão caro uma palavra, um gesto, um olhar, de que eu talvez seja indigno

- sim, tenho pena de não haver morrido combatendo, a mim mesmo me acuso de me ter rendido, tenho desgostos... tenho remorsos. - Remorsos?...

- Sim, senhora, remorsos. Porque, tão certo como estar Deus naquele sagrado altar, diante do qual lhe digo que a amo, há a esta hora uma mulher que chora, que geme, que daria a sua vida por mim, e que, contudo, dirá consigo mesma que sou um cobarde, ou que sou um traidor.

- Oh, senhor!...

- Sem dúvida, senhora. Não foi ela quem fez de mim tudo quanto sou?... Não lhe tinha eu jurado salvá-la?...

- Mas também a salvou, segundo me parece...

- Sim, dos inimigos, que teriam podido atormentar a sua vida. Mas não do desespero que lhe há-de dilacerar a alma, se souber que foi a si que me rendi.

Clara baixou a cabeça, e suspirou. - Ah! não me ama... - disse ela.

Canolles soltou, por seu turno, um suspiro. - Não quero tentá-lo, senhor - continuou ela. - Não quero fazer com que perca uma amante que vale mais do que eu; contudo, também o amo, bem o sabe. Vinha pedir-lhe o seu amor muito ardente, extremoso e muito exclusivo. Vinha dizer-lhe: sou livre, aqui tem a minha mão. Ofereço-lha, porque não tenho pessoa alguma que possa comparar-se a si, porque não conheço ninguém que lhe seja superior.

- Ah, senhora!-exclamou Canolles.-Sinto-me transportado de júbilo! Faz de mim o mais ditoso dos homens!

- Oh! - disse ela tristemente. - O senhor não me ama...

- Oh! eu amo-a! adoro-a! O que unicamente não posso exprimir-lhe é o muito que sofri com o seu silêncio e com a sua reserva.

- Oh, meu Deus! Então vocês, homens, nada adivinham?!... - admirou-se Clara, levantando os lindos olhos ao céu. - Não compreendeu, pois, que eu não quis que representasse um papel ridículo, que eu não quis que fosse possível julgar-se que a entrega de São Jorge era um negócio arranjado entre nós?... Não, o que eu queria era que, trocado pela rainha ou resgatado por mim, fosse todo meu, sem reserva. Ai de mim! Não quis esperar...

- Oh! agora, senhora, esperarei. Assegure-me uma hora como esta, uma promessa da sua meiga voz, que me ama, e eu esperarei horas, dias, anos!

- Ama ainda a menina de Lartigues? - replicou a senhora de Cambes, abanando a cabeça.

- Senhora - respondeu Canolles - se lhe dissesse que não tenho por ela um sentimento de gratidão, não falaria verdade. Acredite-me, e receba-me com este sentimento: dou-lhe todo o amor que posso dar, e é muito.

- Ah! não sei se deva aceitar - disse Clara. - Prova ter um coração muito generoso, mas também muito amante.

- Ouça - replicou Canolles. - Morreria, para lhe poupar uma lágrima, e no entanto faço chorar, sem me sentir comovido, aquela de quem fala. Pobre mulher! Ela tem inimigos, e os que a não conhecem amaldiçoam-na. A senhora, só tem amigos. Os que não a conhecem respeitam-na, e os que a conhecem, amam-na; julgue, pois, qual a diferença entre estes dois sentimentos, um dos quais é ditado pela minha consciência, e o outro pelo meu coração.

- Muito agradecida lhe fico, meu amigo. Mas talvez esteja a ceder a um impulso causado pela minha presença, do qual poderá arrepender-se! Pondere, pois, as minhas palavras. Dou-lhe até amanhã para responder. Se quiser mandar dizer alguma coisa à menina de Lartigues, se quiser ir ter com ela, tem toda a liberdade, Canolles, para fazê-lo. Pegar-lhe-ei pela mão, e conduzi-lo-ei eu própria para fora das portas de Bordéus.

- Senhora - respondeu Canolles. - É inútil esperar até amanhã, e digo-lho com um coração ardente, mas de cabeça fria: só a si amo, e jamais amarei outra pessoa.

- Ah! muito obrigada! Muito obrigada, meu amigo! - exclamou Clara, fazendo correr a gradezinha, e passando a sua mão pela abertura. - É sua a minha mão; é seu o meu coração!

Canolles pegou naquela mão, que cobriu de beijos. - Pompeu fez-me sinal de que é tempo de sair – disse Clara. - Vão sem dúvida fechar a igreja. Adeus, meu amigo; ou melhor: até à vista. Amanhã será feliz, pois que também eu o serei.

E, não podendo dominar o sentimento que a arrastava para o mancebo, também lhe tomou a mão, que chegou para si, beijou-lhe a ponta dos dedos, e fugiu com ligeireza, deixando Canolles tão alegre como os anjos, cujos celestes concertos pareciam retinir-lhe nos ouvidos.

 

TODAVIA, tal como dissera Nanon, o rei, a rainha, o cardeal e o senhor de Meilleraye haviam-se posto em marcha, para castigar a cidade rebelde, que ousara tomar abertamente o partido dos príncipes. Em boa verdade, aproximavam-se vagarosamente - mas aproximavam-se!

Chegado a Libourne, o rei recebeu uma deputação dos bordeleses, que ali se deslocara para testemunhar-lhe respeito e fidelidade. No estado a que chegara a situação, um tal testemunho era todavia coisa muito estranha. Foi este o motivo por que a rainha recebeu os embaixadores com toda a sua austríaca altivez.

- Senhores - disse ela - vamos continuar o nosso caminho por Vayres. Assim, poderemos em breve julgar por nós mesmos se o vosso respeito e a vossa fidelidade são tão sinceros como dizem.

Ao ouvirem o termo Vayres, os deputados, informados sem dúvida de alguma circunstância ignorada pela rainha, olharam uns para os outros, com uma espécie de inquietação. Ana de Áustria, a quem nada escapava, não deixou de observar aquele olhar.

- Partamos imediatamente para Vayres - disse ela.

- A praça é boa, segundo nos certifica o duque dÉpernon, e ali alojaremos o rei.

Depois, voltando-se para o capitão e para as pessoas do seu séquito:

- Quem comanda, em Vayres? - perguntou ela.

- Dizem, senhora - respondeu Guitaut - que é um novo governador.

- Homem seguro, e de confiança, não? - perguntou a rainha, franzindo as sobrancelhas.

- Uma criatura do senhor duque dÉpernon. A fronte da rainha desanuviou-se.

- Se assim é, ponhamo-nos em marcha, sem mais demora.

- Senhora - interpôs o duque de Meilleraye. - Vossa Majestade fará o que entender; porém, parece-me que não se deveria seguir mais depressa do que o exército. Uma entrada em força na cidadela de Vayres produziria um maravilhoso efeito; será bom que os súbditos do rei conheçam as forças de Sua Majestade, porque assim se daria alento aos fiéis, e far-se-ia desesperar os pérfidos.

- Parece-me que o senhor de Meilleraye tem razão

- disse o cardeal Mazarino.

- E eu digo que a não tem! - respondeu a rainha. -Nada temos que temer antes de chegar a Bordéus; o rei é forte por si mesmo, e não pelas suas tropas. O seu séquito será mais do que suficiente.

O senhor de Meilleraye baixou a cabeça, em sinal de obediência.

- A Vossa Majestade, como rainha, cumpre dar as suas ordens.

A rainha chamou Guitaut, ordenou-lhe que reunisse os guardas, os mosqueteiros e a cavalaria ligeira. O rei montou a cavalo e pôs-se à frente da coluna. A sobrinha de Mazarino e as damas de honor meteram-se numa carruagem.

Puseram-se desde logo em marcha para Vayres. O exército vinha atrás, e como só tinha de caminhar umas dez léguas, devia chegar três ou quatro horas depois do rei, para acampar na margem esquerda do Dordonha.

O rei tinha apenas doze anos, e, todavia, era um esbelto cavaleiro, governando o cavalo com graça e dando já no todo mostras daquele orgulho de raça que depois fez dele o rei da Europa mais exigente em matéria de etiqueta. Educado sob as vistas da rainha, mas perseguido pelas eternas mesquinharias do cardeal, que o mantinha na ignorância de coisas bem mais necessárias, esperava com impaciência furiosa a hora da sua maioridade, a qual devia soar no dia 5 de Setembro seguinte; e, por antecipação, deixava por vezes escapar, no meio dos seus caprichos de criança, certos arrebatamentos reais que denunciavam já aquilo que um dia havia de ser. Por consequência, esta campanha agradara-lhe muito: era de certo modo uma aprendizagem de comando, e um ensaio de realeza. Cavalgava pois, altivamente, ora ao lado da portinhola da carruagem, saudando a rainha, e olhando com ternura para a senhora de Frontenac - de quem diziam que estava enamorado - ora à frente do seu Estado-Maior, conversando com o senhor de Meilleraye e com o velho Guitaut acerca das campanhas do rei Luís XIII e das proezas do defunto cardeal Richelieu.

Enquanto assim conversavam e marchavam, iam encurtando a distância, e já principiavam a avistar as torres e as galerias do forte de Vayres. O tempo estava magnífico, a paisagem pitoresca, o Sol fazia cintilar os seus raios oblíquos no rio; poder-se-ia crer que era um passeio, tanta era a alegria e bom humor que a rainha afectava. O rei seguia entre o senhor de Meilleraye e Guitaut, olhando com um óculo para a praça, na qual se não observava o menor movimento, apesar de ser muito provável que as sentinelas, que já se avistavam, tivessem avistado a brilhante vanguarda da tropa real.

O cocheiro da rainha dobrou o passo e foi colocar-se na primeira fila.

- Uma coisa porém - disse Mazarino - me causa espanto, senhor marechal.

- Qual, senhor?

- Parece-me que, ordinariamente, os bons governadores sabem o que se passa em torno das suas fortalezas, e quando um rei se dá ao trabalho de encaminhar-se para uma delas, devem, pelo menos, mandar-lhe uma deputação.

- Nada disso - cortou a rainha, dando uma gargalhada estrondosa e forçada. - Nada de cerimónias. Para que serve isso? Eu prefiro fidelidade.

O senhor de Meilleraye cobriu o rosto com o seu lenço, para esconder, senão uma discordância, pelo menos a vontade que tinha de expressá-la.

- Na verdade, porém, ninguém se move - notou o jovem rei, descontente por ver esquecidas aquelas regras da etiqueta que mais tarde haveriam de ser as bases da sua grandeza.

- Senhor - respondeu Ana de Áustria - estão aqui os senhores de Meilleraye e Guitaut, que lhe dirão que o primeiro dever de um governador, sobretudo em país inimigo, é o de conservar-se, com receio de alguma surpresa, firme e abrigado atrás das muralhas. Não vê a sua bandeira, a bandeira de Henrique IV e de Francisco I, que tremula na cidadela?...

E apontou com orgulho para aquele emblema significativo, que provava quanta razão tinha na sua segurança.

O séquito continuou a marcha, e, aproximando-se, descobriu um posto avançado, que parecia construído há apenas alguns dias.

- Hum! - exclamou o marechal - parece que o governador é na realidade homem que sabe do seu ofício, este posto avançado é muito bem escolhido, e o entrincheiramento está habilmente desenhado.

A rainha deitou a cabeça fora da portinhola, e o rei levantou-se nos estribos.

Uma única sentinela passeava sobre a meia-lua; porém, quanto ao mais, o entrincheiramento parecia tão solitário e tão mudo como a cidadela.

- De qualquer modo - disse Mazarino - ainda que não conheça os deveres militares de um governador, não posso deixar de achar estranho este modo de proceder para com Sua Majestade...

- Avancemos na mesma - disse o marechal. - Veremos isso depois.

Quando a pequena tropa não distava já senão uns quinhentos passos do entrincheiramento, a sentinela, que até então marchara de um para outro lado, deteve-se. E, depois de um instante de exame:

- Quem vem lá?! - gritou ela.

- O rei! - respondeu o senhor de Meilleraye.

Ana de Áustria esperava que, ao ouvir-se esta única palavra, os soldados viessem correndo, os oficiais acudissem pressurosos, as pontes se baixassem, as portas se abrissem, e, por fim, refulgissem as espadas em riste.

Nada disso aconteceu!

A sentinela apontou o mosquete aos que chegavam e limitou-se a dizer em voz alta e firme: -Façam alto!

O rei sufocou de cólera. Ana de Áustria mordeu os lábios. Mazarino murmurou uma praga italiana pouco usada na França, mas de que nunca pudera desacostumar-se. O senhor de Meilleraye não fez mais do que olhar Suas Majestades; porém, este olhar foi eloquente.

- Satisfaz-me verificar medidas de precaução no meu serviço - disse a rainha, tratando de se enganar a si própria, porquanto, apesar da serenidade fictícia do seu rosto, no íntimo do coração principiava a inquietar-se.

- Dá-me gosto o respeito à minha pessoa - murmurou o jovem rei, fitando o seu olhar severo naquela sentinela impassível.

 

TODAVIA, o grito O rei! o rei!, proferido pela sentinela, mais como aviso do que como sinal de respeito, foi repetido por duas ou três vezes, e chegou até ao corpo da praça. Viu-se então

aparecer um homem no alto das muralhas, e a guarnição

toda reunir-se em torno dele. Aquele homem levantou ao ar o bastão do comando;

no mesmo instante, ouviram-se os tambores rufar a reunir,

os soldados do forte apresentaram armas, e um tiro de

artilharia retumbou, grave e solene.

- Bem vê - disse a rainha. - Ei-los que vão cumprir o seu dever; mais vale tarde do que nunca. Adiante.

- Perdoe, senhora - disse o marechal de Meilleraye. -Não vejo que abram as portas, e nós não podemos passar sem que as abram...

- Esquecem-se de o fazer devido ao espanto que lhes causou, e ao entusiasmo que neles produziu esta augusta visita, que não esperavam receber - atreveu-se a dizer um cortesão.

- Não são coisas que se esqueçam, senhor - respondeu o marechal.

Depois, voltando-se para o rei e para a rainha: - Permitir-me-ão Suas Majestades que lhes dê um conselho?... - acrescentou ele. -Diga, marechal.

- Suas Majestades deveriam retirar-se para quinhentos passos daqui, com Guitaut e os seus guardas, enquanto eu, com os mosqueteiros e a cavalaria ligeira, iria reconhecer a praça.

A rainha só lhe respondeu uma palavra:

- Avante! - comandou. - E veremos se ousam recusar-nos a passagem.

O jovem rei, encantado, deu de esporas ao cavalo, e colocou-se vinte passos adiante.

O marechal e Guitaut foram a correr juntar-se-lhe. -Não se passa! - disse a sentinela, com um gesto ameaçador.

Ao mesmo tempo, viram aparecer por cima do parapeito os chapéus e os mosquetes dos soldados que guarneciam o primeiro entrincheiramento.

Um longo murmúrio acolheu estas palavras, e esta aparição. O senhor de Meilleraye pegou no freio do cavalo do rei, e fê-lo voltar, ordenando ao mesmo tempo ao cocheiro da rainha que se afastasse. As duas majestades insultadas retiraram-se, portanto, até cerca de mil passos, pouco mais ou menos, dos primeiros entrincheiramentos, enquanto o séquito se espalhava como um bando de pássaros depois do tiro do caçador. Então, o marechal de Meilleraye, senhor da posição, deixou uns cinquenta homens de guarda ao rei e à rainha, e, reunindo o resto da tropa, voltou com ela para os entrincheiramentos.

Quando estava a cem passos dos fossos, a sentinela, que recomeçara a sua marcha serena e compassada, parou de novo.

- Chame uma trombeta, ponha o seu lenço na ponta da espada, Guitaut - comandou o marechal - e vá intimar aquele insolente governador a que se entregue.

Guitaut obedeceu. Arvorou os sinais pacíficos que em todos os países do mundo protegem os parlamentários, e avançou para o entrincheiramento.

- Quem vem lá? - gritou a sentinela.

- Parlamentário - respondeu Guitaut, agitando a sua espada e o trapo que a adornava,

- Deixe-o aproximar - disse o mesmo homem que já tinham visto aparecer na muralha da praça, e que sem dúvida descera até ao posto avançado por um caminho encoberto.

A porta abriu-se, e uma ponte baixou-se.

- Que quer? - perguntou um oficial que aguardava à porta.

- Falar com o governador - respondeu Guitaut.

- Aqui me tem - disse o homem que já aparecera uma vez nas muralhas da praça, e outra no parapeito dos entrincheiramentos.

Guitaut observou a grande palidez desse homem, que era acompanhada de muita serenidade e cortesia.

- É o governador de Vayres? - perguntou Guitaut.

- Sou, sim.

- E recusa abrir a porta da fortaleza a Sua Majestade, o rei, e à rainha-regente?...

- Tenho de passar por esse desgosto. -E que pretende com isso?

- A liberdade dos senhores príncipes, cujo cativeiro arruina e desola o reino.

- Sua Majestade não dialoga com os seus súbditos.

- Ah! nós bem o sabemos, senhor, e por isso estamos prontos a morrer, sabendo que morremos ao serviço de Sua Majestade, posto que aparentemente lhe façamos guerra.

- Muito bem - disse Guitaut. - É tudo quanto queríamos saber.

E, depois de haver saudado bastante polidamente o governador, que lhe correspondeu com uma saudação muito cortês, retirou-se.

Não houve o menor movimento no bastião.

Guitaut foi ter com o marechal, e deu-lhe conta da sua missão.

- É preciso que cinquenta homens - disse o marechal estendendo a mão para a Ilha de Ison - partam a galope para aquele lugar, e dali tragam, imediatamente, todas as escadas que conseguirem juntar.

Cinquenta homens partiram logo. E como a aldeia não estava muito distante, chegaram ali num momento.

- Agora, senhores - disse o marechal à sua gente - a pé. Metade, armados com espingardas, protegerão

o assalto; os outros subirão à escalada.

A ordem foi recebida com grandes gritos de alegria. Os guardas, os mosqueteiros e os soldados de cavalaria ligeira apearam-se imediatamente e carregaram as armas.

Enquanto isto, os cinquenta homens enviados à aldeia regressaram com cerca de vinte escadas.

Tudo se mantinha sossegado, no bastião; a sentinela passeava de um lado para o outro, e via-se sempre, por cima da galeria, aparecer a extremidade dos mosquetes e dos chapéus.

O séquito do rei pôs-se em marcha, comandado pelo marechal em pessoa; compunha-se, pouco mais ou menos, de quatrocentos homens, metade dos quais, como o marechal ordenara, se preparavam para subir ao assalto, e a outra metade para cobrir a escalada.

O rei, a rainha e a sua corte seguiam de longe, e com ansiedade, os movimentos da sua gente. A rainha parecia ter perdido toda a confiança; para poder ver melhor, mandara voltar a carruagem, que apresentava um dos lados às fortificações.

Apenas os agressores deram vinte passos, logo a sentinela se aproximou da borda da muralha, e com voz estrondosa:

- Quem vem lá!? - gritou ela.

- Não respondam - disse o senhor de Meilleraye - e vamos sempre andando.

- Quem vem lá!? - gritou segunda vez a sentinela, apontando a arma.

E terceira vez. -Quem vem lá!? E fez pontaria.

- Fogo sobre esse patife! - disse o senhor de Meilleraye.

No mesmo instante, uma descarga de mosqueteria partiu das fileiras realistas: a sentinela, ferida, cambaleou, deixou escapar das mãos a espingarda, que foi ter ao fosso, e caiu por terra, gritando:

- Às armas!

Um único tiro de artilharia respondeu ao princípio das hostilidades. A bala passou sibilando por cima das primeiras fileiras, derrubou quatro soldados, e foi estripar um dos cavalos da carruagem real.

Um grande grito de terror partiu do grupo que guardava Suas Majestades; o rei teve de recuar, Ana de Áustria esteve a ponto de desfalecer de raiva, e Mazarino de medo. Cortaram os tirantes do cavalo morto, assim como os dos outros, que, espantados, se empinavam e ameaçavam fazer em pedaços a carruagem. Oito ou dez guardas, acudindo à carruagem e puxando por ela, puseram a rainha fora do alcance das balas.

Neste Ínterim, o governador descobria uma bateria de seis bocas.

Quando o senhor de Meilleraye viu esta bateria, que ameaçava em poucos segundos fazer em postas as suas três companhias, entendeu que seria inútil continuar o ataque, e ordenou a retirada.

Assim que a comitiva do rei deu o primeiro passo à retaguarda, as disposições hostis da fortaleza cessaram.

O marechal voltou para junto da rainha, aconselhando-Lhe que escolhesse um ponto, qualquer que fosse, nos arredores, para seu quartel-general. A rainha avistou então, do outro lado do Dordonha, a pequena casa isolada, rodeada de árvores, que se assemelhava a um pequeno castelo.

- Vá saber - disse ela a Guitaut - a quem pertence aquela casa, e peça hospitalidade para mim.

Guitaut partiu no mesmo instante, atravessou o rio no escaler do barqueiro de Ison, e regressou, dizendo que a casa só era habitada por uma espécie de mordomo, o qual respondera que, pertencendo ela ao duque dÉper-non, estava às ordens de Sua Majestade.

- Então, partamos - decidiu a rainha, - Mas onde está o rei?...

Chamaram então o pequeno Luís XIV, que se afastara um tanto; voltou-se, e, muito embora tenha tentado ocultar as lágrimas, via-se muito bem que tinha chorado.

- Que tem, senhor? - perguntou a rainha.

- Oh! nada, senhora - respondeu o menino. - A única coisa em que penso é que um dia hei-de ser rei, se Deus quiser, e então... desgraçados daqueles que me tenham ofendido!

- Como se chama o governador? - perguntou a rainha. Ninguém soube responder-lhe. Toda a gente o ignorava. Foram então pedir informações ao barqueiro, que respondeu chamar-se ele Richon.

- Muito bem - disse a rainha. - Hei-de lembrar-me deste nome.

- E eu também - disse o jovem rei.

 

Cem homens da casa real, pouco mais ou menos, passaram o Dordonha com Suas Majestades; as damas ficaram com o senhor de Meilleraye, que, decidido a sitiar Vayres, esperava pelo exército.

Apenas a rainha se estabeleceu na pequena casa, a qual. graças ao fausto de Nanon, lhe pareceu infinitamente mais habitável do que esperava, e já Guitaut se apresentou para lhe dizer que um capitão, que assegurava estar incumbido de um caso importante, lhe pedia a honra de uma audiência.

- E quem é esse capitão? - perguntou a rainha.

- O capitão Cauvignac, senhora.

- Pertence ao meu exército?

- Creio que não, senhora.

- Informe-se disso; e se não é do meu exército, diga-Lhe que não posso recebê-lo.

- Peço perdão a Vossa Majestade, por não ser do seu parecer a esse respeito - disse Mazarino. - A mim, parece-me que, justamente por não ser do seu exército, seria conveniente recebê-lo!...

- E porquê?

- Porque, se é do exército de Vossa Majestade, e pede uma audiência à rainha, não pode deixar de ser um súbdito fiel; se, pelo contrário, pertence ao exército inimigo, talvez seja um traidor. Ora, neste momento, senhora, os traidores não são para desprezar, visto que nos podem ser muito úteis.

- Mandem-no entrar - ordenou a rainha - visto que é esse o parecer do senhor cardeal.

O capitão foi introduzido no mesmo instante, e apresentou-se com um desembaraço que causou espanto à rainha, habituada como estava a produzir nos que a rodeavam reacções bem diversas.

A rainha mediu Cauvignac dos bicos dos pés à cabeça; porém, este suportou maravilhosamente o real olhar.

- Quem é o senhor? - perguntou a rainha.

- O capitão de Cauvignac - respondeu o recém-chegado.

- Ao serviço de quem está?

- Ao serviço de Vossa Majestade, se assim lhe agradar.

- Se me agradar?... Sem dúvida que me agrada. Dar-se-á o caso que haja outro serviço no reino? Há, porventura, duas rainhas na França?...

- Por certo que não, senhora; há só uma rainha na França, e é aquela a cujos pés tenho a honra de depositar, neste momento, os meus mais humildes respeitos. Há, porém, duas ideologias, pelo menos, segundo ainda agora me pareceu.

- Que quer dizer com isso? - perguntou a rainha, franzindo as sobrancelhas.

- Quero dizer, senhora, que passeava, e passava  justamente por um outeirinho que domina toda a região, admirando a paisagem - que, como Vossa Majestade notaria, é belíssima - quando me pareceu ver que o senhor Richon não recebia Sua Majestade com o respeito que lhe é devido; e isto me tirou uma dúvida, de que na França havia dois partidos (o realista e um outro), e que o senhor Richon pertencia a esse outro.

O rosto de Ana de Áustria tornava-se cada vez mais carregado.

- Então, pareceu-lhe ver isso? - perguntou ela.

- Sim, senhora - respondeu Cauvignac, com perfeita correcção. - E pareceu-me também ver que havia partido da praça uma bala de artilharia, e que essa bala havia ofendido o coche de Vossa Majestade.

- Basta! Não me pediu audiência, senhor, para dar-me parte das suas loucas observações.

"Ah! tu és malcriada - pensou Cauvignac. - Nesse caso pagarás mais caro."

- Não, senhora; pedi-lhe audiência para lhe dizer que é uma grande rainha, e que a minha admiração em relação a Vossa Alteza não tem igual.

- Ah! decerto!... - disse a rainha, com um tom seco. -Em consequência dessa grandeza, e da admiração

que dela resulta, resolvi consagrar-me todo ao serviço de Vossa Majestade.

- Agradecida - volveu a rainha, com ironia. Depois, voltando-se para o capitão das guardas:

- Olha, Guitaut, tira-me daqui este fala-barato!

- Perdão, senhora - emendou Cauvignac - ir-me-ei de boa vontade, sem ser preciso que me expulsem; mas, se eu me for, decerto não se apoderará de Vayres.

E Cauvignac, saudando Sua Majestade com uma graça encantadora, fez uma pirueta sobre os calcanhares.

- Senhora - aconselhou baixo Mazarino - parece-me que fez mal em despedir assim este homem.

- Olhe! volte aqui - disse a rainha - e fale; parece-me extravagante, e divertido.

- Vossa Majestade é muito bondosa - respondeu Cauvignac, inclinando-se.

- Que diz então a respeito da entrada em Vayres?...

- Dizia, senhora, que se Vossa Majestade mantivesse a intenção, que me pareceu manifestar esta manhã, de entrar em Vayres, seria meu dever introduzi-la na praça.

- E como?

- Tenho cento e cinquenta homens às minhas ordens, em Vayres.

- Às suas ordens? E então?

- Cedo esses cento e cinquenta homens a Vossa Majestade.

- E depois?

- Depois!... -Sim?

- Depois, parece-me que seria obra do diabo se Vossa Majestade, com cento e cinquenta guardas-portões, não conseguisse uma porta aberta!

A rainha sorriu.

"O maroto tem espirito" - pensou ela. Cauvignac adivinhou sem dúvida o cumprimento, porque de novo se inclinou.

- Quanto pede, senhor? - perguntou ela.

- Oh! Meu Deus, quinhentos francos por cada guarda-portão; é o ordenado que dou aos meus.

- Tê-los-á.

- E para mim?

- Ah! pede também para si?

- Encher-me-ia de orgulho, receber uma patente real pela magnanimidade de Vossa Majestade.

- Então que posto quer?

- Desejava ser governador de Branne; sempre tive queda para os governos.

- Será governador.

- Nesse caso, salvo uma pequena formalidade, está o contrato feito.

- E que formalidade é essa?

- Terá Vossa Majestade a bondade de assinar este papelinho que eu já havia preparado de antemão, na esperança de que os meus serviços seriam aceites pela minha magnânima soberana.

- E que papel é esse?

- Leia, senhora.

E, movendo graciosamente o braço, e dobrando o joelho com o maior respeito, Cauvignac apresentou o papel à rainha.

A rainha leu:

No dia em que entrar em Vayres, sem dar um tiro, pagarei ao senhor capitão Cauvignac a soma de setenta e cinco mil libras, e nomeá-lo-ei governador de Branne.

- Pelo que vejo - disse a rainha, com uma cólera mal reprimida - o capitão Cauvignac não tem suficiente confiança na nossa real palavra, e quer um escrito.

- Um escrito, senhora; parece-me ser o que há de melhor quando se trata de negócios importantes - replicou Cauvignac, inclinando-se. - Verba volant - diz um antigo provérbio. Às palavras, leva-as o vento, e, queira Vossa Majestade desculpar-me, acabo de ser roubado.

- Insolente! - exclamou a rainha. - Desta vez, saia daqui!...

- Eu saio, senhora - respondeu Cauvignac. - Porém, não entrará em Vayres.

Desta vez ainda o capitão repetiu a mesma manobra que já lhe surtira bom efeito; fez uma pirueta sobre os calcanhares, e encaminhou-se para a porta. Porém, mais irritada agora do que da primeira vez, Ana de Áustria não tornou a chamá-lo.

Cauvignac saiu. -Prendam esse homem! - ordenou a rainha.

Guitaut fez um movimento para obedecer.

- Perdoe, senhora - disse Mazarino. - Parece-me que Vossa Majestade não tem motivo para se deixar arrebatar por um primeiro impulso de cólera.

- E porquê? - perguntou a rainha.

- Porque receio que precise desse homem mais tarde, e então, se Vossa Majestade o molestar de qualquer maneira, ver-se-á obrigada a pagar-lhe o dobro.

- Muito bem - aprovou a rainha. - Pagar-se-lhe-á o que for preciso; entretanto, não o percam de vista.

- Ah! quanto a isso é outra coisa, e sou o primeiro a aprovar essa precaução.

Guitaut saiu, e voltou passada hora e meia.

- Então? - perguntou Ana de Áustria. - Que é feito dele?

- Oh! Vossa Majestade pode estar inteiramente sossegada - respondeu Guitaut. - O nosso homem não tem a menor tenção de se afastar. Tirei informações a respeito dele. Está domiciliado a trezentos passos daqui, em casa de um estalajadeiro chamado Biscarros.

- E foi para lá que se retirou?

- Não, senhora; subiu a uma elevação, e dali examina os preparativos que faz o senhor de Meilleraye para forçar os entrincheiramentos. Esse espectáculo parece interessá-lo muito.

- E o resto do exército?

- Vai chegando, senhora. E coloca-se em batalha, à medida que chega.

- Então, o marechal vai atacar já?

- Parece-me, senhora, que seria melhor, antes de aventurar um ataque, dar uma noite de descanso às tropas.

- Uma noite de descanso?! - admirou-se Ana de Áustria. - O exército real será obrigado a deter-se um dia e uma noite diante de semelhante cochicholo?! Isso é impossível! Guitaut,. vá dizer ao marechal que ataque imediatamente. O rei quer ir dormir esta noite a Vayres.

- Mas, senhora... - disse Mazarino. - Parece-me que esta precaução do marechal...

- A mim parece-me - atalhou Ana de Áustria - que quando a autoridade real é insultada, toda a pressa é pouca para a vingar. Vá, Guitaut, e diga ao senhor de Meilleraye que a rainha tem os olhos postos nele.

E, despedindo Guitaut com um gesto majestoso, a rainha tomou o filho pela mão, saiu, por seu turno, e, sem lhe importar se a seguiam, subiu a escada que terminava num terraço.

Aquele terraço dominava todos os arredores.

A rainha lançou uma rápida vista de olhos à paisagem, a cerca de duzentos passos atrás dela, passava a estrada de Libourne, na qual sobressaía a alva casa do nosso amigo Biscarros. A seus pés, corria o Dordonha, sereno, rápido e majestoso; à direita, elevava-se o forte de Vayres, silencioso como uma ruína. Em torno do forte, estendiam-se em semicírculo os entrincheiramentos recentemente levantados. Algumas sentinelas rondavam pela galeria, cinco peças de artilharia passavam pelas canhoeiras os respectivos pescoços de bronze e as goelas abertas. À esquerda, o senhor de Meilleraye fazia as suas disposições para acampar. O exército inteiro - como dissera Guitaut - havia chegado, e ia-se apinhando em torno da praça.

Numa elevação, um homem atento seguia com os olhos todos os movimentos das sentinelas e dos sitiados; aquele homem era Cauvignac.

Guitaut atravessara o rio no barco do pescador de Ison.

A rainha estava em pé no terraço, imóvel, de sobrancelhas franzidas, dando a mão ao pequeno Luís XIV, que contemplava aquele espectáculo com uma certa curiosidade, e que, de quando em quando, dizia à mãe:

- Senhora, permita-me que monte no meu lindo cavalo de batalha, e deixe-me ir, eu peço-lhe, com o senhor de Meilleraye, que vai castigar aqueles insolentes.

Junto da rainha estava Mazarino, cujo semblante fino e escarnecedor tomara, naquele momento, um carácter de seriedade, de que somente se revestia nas grandes ocasiões; e, atrás da rainha e do ministro, estavam as damas de honor, que, imitando o silêncio de Ana de Áustria, apenas se atreviam a dizer entre si algumas palavras, à pressa e em voz baixa.

Tudo isto, à primeira vista, tinha uma aparência de sossego e de tranquilidade. Todavia, facilmente se conhecia que era a tranquilidade da mina que uma centelha vai converter em tormenta e destruição.

Em Guitaut, sobretudo, se fixavam todos os olhos, porque dele teria de vir a explosão esperada com tão diversas disposições de espírito.

Do lado do exército, também era grande a expectativa, porque, assim que o mensageiro chegou à margem esquerda do Dordonha, e o reconheceram, todos os olhos se voltaram para ele. O senhor de Meilleraye, avistando-o, deixou o grupo de oficiais em cujo centro se achava, e foi ao encontro do recém-vindo.

Guitaut e o marechal conversaram alguns instantes. Apesar de o rio ser bastante largo naquele local, e a distância que dividia o grupo real dos oficiais não ser pequena, era todavia suficiente para se poder ver o espanto que estava desenhado no semblante do marechal. Era evidente que a ordem recebida lhe parecia intempestiva, e por isso lançou um olhar de dúvida para o grupo no meio do qual se distinguia a rainha. Ana de Áustria, porém, que percebeu o gesto do marechal, fez simultaneamente com a cabeça e com a mão um gesto tão imperativo, que o marechal, desde há muito tempo habituado à sua altiva soberana, baixou a cabeça fazendo um aceno (senão de assentimento, pelo menos de obediência).

No mesmo instante, por ordem do marechal, três ou quatro capitães que junto dele cumpriam o serviço que hoje fazem os nossos ajudantes de campo, montaram a cavalo, e partiram a galope em três ou quatro direcções diferentes.

Em toda a parte por onde passavam, os preparativos para o acampamento, que acabavam de principiar-se, eram interrompidos imediatamente, e ao toque de tambores e ao som de trombetas, os soldados deixavam cair a palha que levavam, ou o martelo com que cravavam as estacas das tendas. Todos corriam às armas, que estavam ensarilhadas - os granadeiros pegando nas suas espingardas, os simples soldados nas suas lanças, os artilheiros nos seus instrumentos. Registou-se então um momento de inaudita confusão, causada pelo cruzamento de todos aqueles homens correndo em sentido oposto; depois, pouco a pouco, as casas daquele imenso xadrez foram-se definindo, a ordem sucedeu ao tumulto, cada um encontrou-se enfileirado junto à sua bandeira, os granadeiros no centro, a gente da comitiva do rei na ala direita, a artilharia na esquerda. As trombetas e os tambores cessaram de tocar.

Um só tambor respondeu para lá dos entrincheira-mentos; depois, também se calou, e um silêncio fúnebre reinou na planície.

Então, um comando claro, preciso e firme, ressoou. À distância a que se encontrava, a rainha não podia ouvir as palavras; porém, viu, no mesmo instante, as tropas formarem-se em colunas; tirou o seu lenço e agitou-o no ar, enquanto o jovem rei gritava com voz febril e batendo com o pé no chão: "Avante! avante!"

O exército respondeu com um só grito: "Viva o rei!" Depois, a artilharia partiu a galope, foi colocar-se numa colina, e, ao som dos tambores, que tocavam a investir, as colunas puseram-se em movimento.

Não era um assédio em forma, antes uma simples escalada. Os entrincheiramentos levantados à pressa por ordem de Richon, eram baluartes de terra: não se tornava pois, necessário abrir brecha, mas sim dar o assalto. Entretanto, tinham sido tomadas todas as precauções pelo hábil comandante de Vayres, e via-se que se aproveitara com uma habilidade pouco comum de todos os recursos do terreno.

Sem dúvida que Richon impusera a si próprio não ser o primeiro a fazer fogo, pois que desta vez ainda esperou a provocação das tropas reais; a única coisa que se viu, como no primeiro ataque, foi baixar-se aquela terrível fileira de mosquetes, cujo fogo tamanho estrago fizera na comitiva do rei.

Ao mesmo tempo, as seis peças da bateria real dispararam, e viu-se voar a terra dos parapeitos, bem como as estacas com que estavam coroados.

A resposta não se fez esperar muito. A artilharia dos entrincheiramentos também fez fogo, deixando vácuos profundos nas fileiras do exército real; porém, à voz dos chefes, aqueles sulcos sanguinolentos desapareceram, e os beiços da ferida, abertos por um instante, tornaram a fechar-se; a coluna principal, momentaneamente abalada, tornou a pôr-se em marcha.

Então, chegou a vez da mosqueteria, que fez as suas descargas enquanto se carregavam de novo os canhões. Passados cinco minutos, as descargas de artilharia de ambos os lados correspondiam-se de tal modo, que poderia dizer-se que davam um só tiro, semelhantes a duas  tempestades que lutassem juntas, ou a dois trovões que ribombassem ao mesmo tempo.

Depois, como o tempo estava sereno, nenhum sopro agitava o ar, e o fumo se amontoava por cima dos campos de batalha, cedo sitiados e sitiantes desapareceram numa nuvem, a qual, a intervalos, era rasgada com um estrondoso relâmpago de chamas lançado pela artilharia.

De quando em vez, eram vistos a sair daquela nuvem, na retaguarda do exército real, homens que se arrastavam a custo, e que iam cair por terra a distâncias diferentes, deixando atrás de si um rasto de sangue.

Em breve o número de feridos foi aumentado. O estrondo dos canhões e da fuzilaria continuava; contudo, a artilharia real já só atirava ao acaso, e com hesitação, porque no meio daquele fumo não podia distinguir os amigos dos inimigos.

Quanto à artilharia da praça, como não tinha diante de si senão inimigos, os seus tiros retumbavam mais terríveis e mais apressados do que nunca.

Por fim, a artilharia real cessou inteiramente o fogo; era evidente que subiam ao assalto e que combatiam corpo a corpo.

Houve da parte dos espectadores um movimento de angústia, durante o qual o fumo, deixando de ser alimentado pelo fogo dos canhões e dos mosquetes, foi subindo lentamente. Viu-se então o exército real repelido em desordem, deixando a proximidade das muralhas juncada de mortos. Uma espécie de brecha estava aberta; algumas estacadas arrancadas deixavam aparecer uma abertura. Mas esta abertura estava eriçada de homens, de lanças e de mosquetes; e, no meio desses homens, coberto de sangue, mas sereno e frio, como se fosse simples espectador da tragédia em que acabava de representar um tão terrível papel, erguia-se Richon. tendo na mão um machado já dentado, pelos golpes que dera.

Parecia que qualquer encanto protegia aquele homem, no meio do fogo. Estava sempre na frente, constante-mente em pé, e descoberto; nenhuma bala o ferira, nenhuma lança lhe tocara. Era tão invulnerável como impassível.

Três vezes o marechal Meilleraye comandou as tropas reais ao assalto, e três vezes foram repelidas, à vista do rei e da rainha.

Grossas lágrimas deslizaram pelas pálidas faces do monarca. Ana de Áustria torcia as mãos, murmurando: "Oh! aquele homem! aquele homem!... Se alguma vez cair em meu poder, hei-de dar com ele um terrível exemplo!"

Por felicidade, a noite vinha descendo, rápida e sombria. Era uma espécie de véu, estendido para ocultar o rubor real. O marechal Meilleraye mandou tocar a retirada.

Cauvignac abandonou o seu posto, desceu da colina aonde subira, e, de mãos nas algibeiras das calças, encaminhou-se pelo prado, até à estalagem de Biscarros.

- Senhora - disse Mazarino, apontando para Cauvignac com o dedo - ali vai o homem que, por um pouco de ouro, lhe teria poupado todo o sangue que acabámos de derramar.

- Senhor cardeal - volveu a rainha - é esse o conselho de um homem tão económico como o senhor?...

- Senhora - retorquiu o cardeal - é verdade que conheço o valor do ouro, mas também reconheço o valor do sangue; e, neste momento, o sangue sai-nos mais caro do que o ouro.

- Sossegue - respondeu a rainha. - O sangue derramado há-de ser vingado. Comminges - continuou ela, dirigindo-se ao tenente da sua guarda - vá procurar o senhor de Meilleraye, e traga-mo aqui.

- E você, Bernouin - disse o cardeal, mostrando Cau-vignac ao seu criado de câmara, quando o capitão já não estava senão a alguns passos da estalagem do Bezerro de Ouro - vê bem aquele homem?...

- Vejo,> sim.

- Pois bem, vá chamá-lo, da minha parte, e introduza-o esta noite, secretamente, no meu quarto.

 

No dia seguinte ao da entrevista com o amante na igreja dos Carmelitas, a senhora de Cambes deslocou-se ao alojamento da princesa, com a intenção de cumprir a promessa que fizera a Canolles.

Toda a cidade estava alvoroçada. Acabavam de anunciar a chegada do rei diante de Vayres, e, ao mesmo tempo, a admirável defesa de Richon, que, com quinhentos homens, repelira duas vezes o exército real, cujos efectivos somavam doze mil. A princesa foi uma das primeiras a saber da notícia. Nos transportes da sua alegria, exclamara, batendo palmas:

- Oh! se tivesse cem capitães como o meu bravo Richon!...

A senhora de Cambes participou na alegria geral, duplamente feliz por poder aplaudir em voz alta a conduta de um homem a quem estimava, e desse modo, ter ocasião para fazer com oportunidade uma súplica, cujo bom êxito teria sido comprometido pelo anúncio de um revés, ao passo que, pelo contrário, aquele êxito quase era garantido pela notícia de uma vitória.

Porém, no meio da sua alegria, a princesa tinha inúmeras coisas a fazer, o que originou que Clara não lhe pudesse apresentar a sua súplica. Era preciso enviar a Richon um reforço de que necessariamente precisaria, devido à próxima junção do exército do senhor dÉpernon com o exército real. Organizava-se este reforço no conselho. Vendo que os negócios políticos eram naquele momento preferidos aos negócios do coração, Clara contentou-se em fazer o seu papel de conselheira de Estado, e, nesse dia, não se falou de Canolles.

Uma mensagem muito concisa, porém muito terna, inteirou o querido prisioneiro da demora. Este novo adiamento foi-lhe menos cruel do que seria de esperar: há, na expectativa de um feliz acontecimento, quase tantas doces sensações como no próprio acontecimento. Canolles tinha no coração o mais delicado amor, portanto não podia deixar de se deliciar com aquilo a que ele chamava a antecâmara da ventura. Clara pedia-lhe que esperasse com paciência: ele quase esperou com alegria.

No dia seguinte, o reforço estava organizado: às onze horas da manhã, partiu, rio acima. Porém, como o vento e a corrente eram contrários, calculou-se que, por mais diligências que se fizessem, como só ia avançando a remos, não chegaria ao destino senão no outro dia. O capitão Ravailly, comandante da expedição, recebeu ordem para ao mesmo tempo fazer um reconhecimento na cidadela de Branne, que pertencia à rainha, e cujo governo se sabia que estava vago.

A princesa passou a manhã a vigiar os preparativos e disposições para o embarque. O resto do dia devia ser consagrado a um grande conselho, com o objectivo de se conseguir impedir - no caso de ser possível - a junção do duque dÉpernon com o marechal de Meilleraye, ou, pelo menos, retardar essa junção até ao momento em que o reforço enviado a Richon tivesse entrado na cidadela.

Clara viu-se na necessidade de esperar ainda até ao dia seguinte. Pelas quatro horas, porém, teve oportunidade de fazer a Canolles, que passava sob as janelas, um tão encantador aceno (e neste aceno ia tanto pesar e tanto amor), que Canolles quase se sentiu feliz por se ver obrigado a esperar.

Contudo, à noite, para se assegurar de que a demora não se prolongaria mais tempo, e também para ir por si própria fazer à princesa uma confidência, que não deixava de lhe causar alguma perturbação, Clara pediu uma audiência para o dia seguinte, a qual, como é fácil de supor, lhe foi concedida sem a mínima dificuldade.

À hora estipulada, Clara foi ter com a princesa, que a recebeu com o seu mais encantador sorriso; estava só, tal como Clara lhe havia pedido.

- Então, minha pequena? - disse a princesa - o que temos de tão grave, para que me peças audiência privada e secreta, quando sabes que a toda a hora do dia estou à disposição dos meus amigos?

- O que tenho, senhora - respondeu a viscondessa - é que, no meio da felicidade que a Vossa Alteza é muito devida, venho pedir-lhe, muito particularmente, que se digne pousar os olhos na sua fiel serva, que também tem necessidade de alguma ventura.

- Com todo o gosto, minha boa Clara! E nunca a felicidade que Deus te der igualará a que te desejo. Fala, pois: que graça desejas tu? E, se de mim depender, podes de antemão ter toda a certeza de que te será concedida.

- Viúva, livre... e demasiado livre, visto que esta liberdade me é mais pesada do que a escravidão... eu queria

- respondeu Clara - mudar a minha solidão numa condição melhor...

- Isto é, queres casar, não é assim, minha pequena?

- perguntou rindo a princesa de Conde.

- Creio que sim, senhora - respondeu Clara, fazendo-se muito vermelha.

- Ora então, seja assim; ocupar-me-ei disso. Clara fez um movimento.

- Sossega. Cuidaremos do teu orgulho. O que te convém, viscondessa, é um duque e par. Eu o procurarei, entre os que nos são fiéis.

- Vossa Alteza tem demasiada bondade - replicou a senhora de Cambes - mas eu não desejava dar-lhe tanto incómodo...

- Mas eu quero tomá-lo, porque devo retribuir-te em felicidade o que me deste em extremoso zelo e afecto; contudo, sempre terás de esperar o fim desta guerra, não achas?

- Esperarei o menos tempo que for possível, senhora

- respondeu a viscondessa, sorrindo-se.

- Falas-me como se a tua escolha já estivesse feita, como se já tivesses na tua mão o marido que me pedes...

- É porque, com efeito, acontece o que Vossa Alteza diz.

- Sério!?... E quem é esse ditoso mortal? Fala, nada receies.

- Ah, senhora - disse Clara - digne-se desculpar-me... Não sei qual seja o motivo, mas o certo é que estou toda trémula...

A princesa sorriu, pegou na mão de Clara, e puxou-a para si.

- Menina!... - disse-lhe ela.

Depois, olhando-a com uma expressão que duplicou a confusão da viscondessa:

- Eu conheço-o?... - disse ela.

- Creio que Vossa Alteza o viu muitas vezes. -Não é preciso perguntar se é moço, pois não? -Tem vinte e oito anos.

- Nobre?...

- É gentil-homem.

- E bravo...

- A sua reputação está bem estabelecida. -E rico, claro?

- Eu sou.

- Sim, minha pequena, sim, e disso não nos temos esquecido. Possuis um dos mais belos domínios da nossa província, e lembramo-nos, com sumo gosto, de que na guerra que fazemos, os luíses de ouro da senhora de Cambes, e os escudos dos seus camponeses, mais de uma vez nos tiraram dos apertos em que nos víamos.

- Vossa Alteza honra-me muito lembrando-me o zelo e o afecto que lhe dedico. - Muito bem. Fá-lo-emos coronel do nosso exército, se é só capitão, e brigadeiro, se é só coronel - pois é de presumir que seja do número dos fiéis.

- Estava em Lens, senhora - respondeu Clara, com toda a desenvoltura que tinha adquirido havia algum tempo nos estudos diplomáticos.

- Está bem. Agora só me falta saber uma coisa... - acrescentou a princesa.

- Qual, senhora?

- O nome do bem-aventurado gentil-homem que já possui o coração, e que em breve possuirá a pessoa da mais linda guerreira do meu exército.

Vendo-se acometida nas suas últimas defesas, Clara chamava em seu socorro quanto valor tinha, para pronunciar o nome do barão de Canolles, quando, de súbito, se ouviu o galope de um cavalo no pátio, seguido de um daqueles surdos rumores que acompanham as grandes notícias. A princesa ouviu este duplo ruído e correu à janela. O mensageiro, alagado em suor e coberto de pó, apeou-se do seu cavalo, e, rodeado de quatro ou cinco pessoas que a sua entrada atraíra, parecia dar conta de particularidades, que, à medida que lhes saíam dos lábios, derramavam a consternação pelos que o ouviam. A princesa não pôde dominar por mais tempo a curiosidade, e, abrindo a janela:

- Deixai-o subir! - exclamou.

O mensageiro levantou a cabeça, reconheceu a princesa, e correu pela escada acima. Cinco minutos depois, entrava no quarto, todo coberto de poeira como estava, desgrenhados os cabelos. E, com voz sufocada, disse:

- Perdoe-me, senhora, se me apresento diante de Vossa Alteza no estado em que estou, mas trago uma daquelas notícias terríveis que, só por serem pronunciadas, são capazes de arrombar as portas: Vayres capitulou!

A princesa deu um salto à retaguarda. Clara deixou cair os braços com desalento. Lenet, que entrara atrás do mensageiro, empalideceu.

Outras cinco ou seis pessoas, que, esquecendo por um instante o respeito devido à princesa, haviam invadido o quarto, ficaram mudas de espanto.

- Senhor Ravailly - disse Lenet, porque o mensageiro era o capitão de Navailles - repita o que acaba de dizer, porque custa-me muito acreditar.

- Eu repito, senhor: Vayres capitulou!

- Capitulou?! - replicou a princesa. - E o reforço que conduzia?

- Chegou muito tarde, senhora! Richon acabava de se render, no momento em que chegámos.

- Richon rendeu-se?!-exclamou a princesa. - Que cobarde!...

Esta exclamação da princesa fez correr um calafrio pelas veias de todos os circunstantes; todos, porém, se conservavam mudos, à excepção de Lenet.

- Senhora - disse ele, com severidade e sem nenhuma atenção ao orgulho da princesa de Conde - não se esqueça de que a honra dos homens está na palavra dos príncipes, como a sua vida está nas mãos de Deus. Não chame cobarde ao mais valente dos seus servidores, pois, de outro modo, os mais fiéis a abandonarão vendo o modo como trata os seus semelhantes. E Vossa Alteza ficará só, amaldiçoada e perdida.

- Senhor!... - disse a princesa.

- Senhora - replicou Lenet. - Repito a Vossa Alteza que Richon não é cobarde, que eu respondo por ele como responderia por mim mesmo, e que, se capitulou, foi com toda a certeza porque o não podia fazer de outra maneira.

A princesa, pálida de cólera, estava para atirar à cara de Lenet alguma daquelas extravagâncias aristocráticas com as quais julgava suprir suficientemente o bom senso. Porém, reparando em todos aqueles rostos que se desviavam dela, naqueles olhos que fugiam dos seus, em Lenet de fronte alta, em Ravailly de cabeça baixa, reconheceu que, na realidade, estava perdida se perseverasse naquele fatal sistema. Chamou, pois, em seu auxílio, o argumento que nela era habitual.

- Não há princesa mais infeliz do que eu - disse. -Tudo me abandona; a fortuna e os homens. Ah, meu querido filho, meu pobre filho! Ficarás perdido, como teu pai!

Este grito de fraqueza feminina, o impulso da dor maternal, ecoa sempre nos corações. Esta comédia, que já tantas vezes fora útil à princesa, desta vez ainda produziu efeito.

Enquanto isto, Lenet fazia com que lhe repetissem, acerca da capitulação de Vayres, tudo quanto Ravailly pudera saber,

- Ah! eu bem sabia - exclamou ele, passado um instante.

- E que sabia o senhor? - perguntou a princesa.

- Que Richon não era cobarde, senhora.

- E como o sabe?

- Porque se defendeu dois dias e duas noites; porque se teria sepultado debaixo das ruínas do seu forte, crivado de balas, se, ao que parece, uma companhia de recrutas não se tivesse revoltado, e o obrigasse a capitular.

- Devia antes morrer do que render-se, senhor - disse a princesa.

- Ah, senhora! Pode acaso morrer a gente quando quer?...-volveu Lenet. - Mas, pelo menos - acrescentou, voltando-se para Ravailly - lisonjeio-me que tenha ficado prisioneiro sob garantia...

- Receio que fosse sem garantia - respondeu Ravailly. -Disseram-me que foi um tenente da guarnição quem

negociou a entrega, de modo que poderia muito bem haver nisso alguma traição, e Richon, em lugar de ter estipulado condições, talvez fosse atraiçoado.

- Sim, sim - exclamou Lenet - atraiçoado, entregue, sem dúvida alguma; eu conheço Richon, e sei que é incapaz, não direi de uma cobardia, mas de uma fraqueza. Oh, senhora! - continuou Lenet, dirigindo-se à princesa - atraiçoado, entregue... ouve?... Não percamos tempo, ocupemo-nos dele. Não diz, senhor Ravailly, que houve um acordo feito por um tenente?... Alguma grande desgraça aconteceu ao pobre Richon. Escreva depressa, senhora, escreva, peço-lhe.

- Eu?! - perguntou com azedume a princesa - eu, escrever?! E para quê?...

- Para quê, senhora? Para o salvar!

- Isso é escusado - disse a princesa. - Quando alguém entrega uma fortaleza, toma as suas precauções.

- Mas não ouve que não a entregou, senhora? Não ouve o que diz o capitão: que foi atraiçoado, talvez vendido, e que um tenente, e não ele, foi quem fez o ajuste para a entrega?

- Que quer então que se faça a favor do seu Richon ? - perguntou a princesa.

- O que se lhe há-de fazer?... Esquece-se, senhora, do subterfúgio com que ele foi introduzido em Vayres? Que para isso nos servimos de uma assinatura em branco do senhor dÉpernon? Que resistiu a um exército real comandado pela rainha e pelo rei em pessoa? Que Richon foi o primeiro que levantou o estandarte da rebelião? Que, enfim, o condenaram à morte para servir de exemplo? Ah, senhora! Em nome do céu, escreva ao senhor de Meilleraye; mande-lhe um mensageiro, um parlamentado.

- E que ordens daremos a esse mensageiro, a esse parlamentado?

- A de impedir a todo o custo a morte de um bravo capitão; porquanto, se não se apressar... Oh, senhora! Eu bem conheço a rainha, e talvez que o seu mensageiro chegue muito tarde!...

- Muito tarde?! - admirou-se a princesa.-Não temos nós reféns em nosso poder? Não temos em Chantilly, em Montrond, e aqui mesmo, alguns oficiais do rei prisioneiros?

Clara levantou-se, espantada.

- Ah, senhora! senhora! - exclamou ela - faça o que lhe diz o senhor Lenet; as represálias não restituirão a liberdade ao senhor Richon.

- Não se trata da liberdade, trata-se da vida - disse Lenet, com a sua sombria perseverança.

- Ora, pois - disse a princesa - o que eles fizerem, far-se-lhes-á também; a prisão pela prisão, o cadafalso pelo cadafalso.

Clara deu um grito e caiu de joelhos.

- Ah, senhora! - disse ela - o senhor Richon é um dos meus amigos. Eu vinha pedir-lhe uma graça, e a senhora tinha prometido conceder-ma... Pois bem: peço-Lhe que utilize todo o seu crédito para salvar o senhor Richon.

Clara estava de joelhos. A princesa aproveitou a ocasião para conceder aos rogos de Clara o que recusava aos conselhos - um tanto ásperos - de Lenet. Aproximou-se de uma mesa, pegou numa pena, e escreveu ao senhor de Meilleraye, pedindo a troca de Richon por um dos oficiais que ela tinha em seu poder, sendo à escolha da rainha. Escrita esta carta, procurou com os olhos o mensageiro que havia de mandar. Então, se bem que ainda sofresse muito da sua antiga ferida, e estivesse muito cansado pela sua recente jornada, Ravailly ofereceu-se, com a única condição de que lhe dessem um cavalo folgado. A princesa autorizou-o a retirar das suas próprias estrebarias aquele que lhe conviesse, e o capitão partiu, incitado pelos gritos da multidão, pelas exortações de Lenet, e pelas súplicas de Clara.

Passado um momento, ouviram-se os rumores do povo reunido, a quem Ravailly acabava de explicar a comissão de que ia encarregado. Entregando-se à alegria, gritavam como desesperados:

- Queremos a senhora princesa! Queremos o senhor duque dEnghien!

Cansada destas manifestações diárias, que mais se assemelhavam a ordens do que a ovações, a princesa quis desta vez fazer o ensaio de uma recusa aos desejos da populaça; porém, como acontece em tais circunstâncias, o povo teimou, e em breve os gritos degeneraram em berros.

- Vamos lá! - disse a princesa, tomando o filho pela mão - vamos lá! Já que somos escravos, obedeçamos. E, compondo o semblante num gracioso sorriso, apareceu na varanda, e saudou aquele povo de quem era, simultaneamente, escrava e rainha.

 

QUANDO a princesa e o filho assomaram à varanda, por entre entusiásticas aclamações da multidão, ouviu-se ao longe os acordes de pífaros e tambores, acompanhados de um alegre alarido. Acto contínuo, aquele tumultuoso tropel de curiosos que se apinhava junto da casa do presidente Lalasne para ver a senhora de Conde, voltou a cabeça para o lado de onde vinha o alarido, e, pouco preocupado quanto às regras da etiqueta, a pouco e pouco foi ao encontro daquele burburinho, que se ia aproximando cada vez mais. Tratava-se de uma reacção natural. Já tinham visto dez, vinte, e talvez cem vezes, a senhora de Conde, ao passo que aquele ruído lhes prometia algo desconhecido.

- Estes, ao menos, são francos - murmurou Lenet, sorrindo atrás da indignada princesa. - Mas que significam a música e tais clamores? Confesso a Vossa Alteza que quase tenho tanto desejo de o saber, como aqueles maus cortesãos.

- Então abandone-me também, e vá correr as ruas, como eles.

- Fá-lo-ia neste mesmo instante, senhora - respondeu Lenet - se tivesse a certeza de lhe trazer qualquer boa notícia.

- Oh! boas notícias... - desabafou a princesa, com um olhar de ironia dirigido ao magnífico céu que resplandecia por cima da sua cabeça. - Já não espero disso. Não estamos em boa quadra.

- Senhora - disse Lenet - bem sabe que não me deixo iludir facilmente. Contudo, enganar-me-ia profundamente, se todo este motim não é anúncio de algum feliz acontecimento.

Com efeito, a aproximação cada vez maior do alarido, e o aparecimento, na extremidade da rua, de uma multidão pressurosa, com os braços levantados ao ar e agitando os lenços, convenceram também a princesa de que a notícia era boa. Apurou o ouvido, com uma atenção que momentaneamente lhe fez esquecer as ladainhas dos que lhe faziam corte, e ouviu estas palavras:

- Branne! O governador de Branne prisioneiro!...

- Ah! Ah! - exclamou Lenet. - O governador de Branne prisioneiro... o mal está reduzido a metade. Será um refém que responderá pela vida de Richon.

- Não tínhamos já o governador da Ilha de São Jorge?... - volveu a princesa.

- Considero-me feliz - disse a senhora Tourville - por o plano que propus para tomar Branne ter produzido tão bom efeito.

- Senhora-opôs Lenet-não nos congratulemos ainda por uma vitória tão completa; o acaso malogra os planos dos homens, e até algumas vezes os das mulheres.

- Contudo, senhor - insistiu a senhora Tourville, com modos altivos e o costumado azedume - se o governador está prisioneiro, a praça deve estar tomada,

- O que diz, senhora, não é um argumento absolutamente lógico. Fique, porém, sossegada; caso lhe devamos este duplo e feliz êxito, serei, como sempre, o primeiro a dar-lhe os parabéns.

- O que me admira em tudo isso - disse a princesa, procurando já naquele feliz acontecimento que tanto lhe agradava, a faceta ofensiva que alimentasse o aristocrático orgulho que era a base do seu carácter - é não ter sido a primeira a ser prevenida acerca do que se passa; é um descuido imperdoável, mas o senhor duque de Roche-foucauld procede sempre assim.

- Ah! senhora! - observou Lenet. - Temos falta de soldados para combater, e ainda quer que os arredássemos dos seus postos para fazer deles mensageiros!... Ah! não exijamos demasiado; e quando nos chega uma boa notícia, recebamo-la tal qual Deus a envia, e não reparemos em como chegou até nós.

Todavia, a multidão ia engrossando, porque todos os grupos isolados se reuniam ao grupo central, tal como os rios pequenos desaguam nos grandes. No centro do referido grupo principal, talvez composto por um milhar de indivíduos, salientava-se um rancho de soldados, cerca de trinta homens, e, no meio desses trinta homens, um prisioneiro, que os soldados pareciam defender contra o furor do povo.

- Morra! morra! - gritava a populaça.-Morra o governador de Branne!

- Ah, ah! - exclamou a princesa, com um sorriso de triunfo. - Parece não haver a mínima dúvida de que há um prisioneiro, e que esse prisioneiro é o governador de Branne.

- Sim! - notou Lenet. - Mas olhe, senhora: também parece que o prisioneiro está em perigo de perder a vida... Não ouve as ameaças? Não vê aqueles gestos furiosos?... Ah, senhora! Vão forçar os soldados, vão fazê-lo em postas! Oh! que tigres!... sentem o cheiro da carniça, e querem beber sangue!

- Bebam-no então! - sentenciou a princesa, com aquela ferocidade peculiar das mulheres, quando as suas más paixões estão exaltadas. - Bebam-no! É o sangue de um inimigo!...

- Senhora - apaziguou Lenet - esse inimigo está à guarda dos Conde, note-o bem; além do que, quem lhe afirma que neste momento Richon, o nosso bravo Richon, não corre o mesmo perigo que este desgraçado?... Ah! Estão a ponto de forçar os soldados... Se lhe tocam, está perdido. Venham vinte homens! - gritou Lenet, voltando-se- venham vinte homens decididos, que ajudem a repelir todos aqueles exaltados. Se arrancarem um só cabelo da cabeça daquele prisioneiro, responderão vocês por isso. Partam, depressa.

A estas palavras, vinte mosqueteiros da guarda da burguesia pertencentes às melhores famílias da cidade, desceram em tropel pelas escadas, romperam a multidão as coronhadas, e foram engrossar a escolta. Chegaram a tempo, pois algumas unhas mais compridas e mais agudas já haviam arrancado alguns pedaços do fato azul do prisioneiro.

- Muito obrigado, meus senhores - disse o prisioneiro - pois conseguiram evitar que eu fosse devorado por estes canibais. Cáfila de selvagens! Se assim devorarem os homens, no dia em que o exército real der assalto à vossa cidade não escapará um que seja. E pôs-se a rir, encolhendo os ombros.

- Ah! é um bravo! - exclamou a multidão, vendo a serenidade - talvez um tanto afectada - do prisioneiro, e repetindo aquele gracejo que lisonjeava o seu amor-próprio - é um verdadeiro bravo! não tem medo... Viva o governador de Branne!

- Pela minha fé! Sim - exclamou o prisioneiro - viva o governador de Branne! Convém-me bastante que viva...

O furor do povo converteu-se desde logo em admiração, e a admiração exprimiu-se no mesmo instante em termos enérgicos. Foi, portanto, uma verdadeira ovação que sucedeu ao sacrifício iminente do governador de Branne - isto é: do nosso amigo Cauvignac. Porquanto, como os nossos leitores já sem dúvida adivinharam, era Cauvignac quem, sob o pomposo nome de governador de Branne, fazia esta triste entrada na capital da Guiena.

Entretanto, assim protegido pelos seus guardas, e depois pela sua presença de espírito, o prisioneiro de guerra foi introduzido em casa do presidente Lalasne, e, enquanto metade da sua escolta guardava a porta, foi conduzido pela outra metade à presença da princesa.

Cauvignac entrou altivo e sereno no aposento da princesa de Conde; mas, cumpre dizer que, sob aquela aparência heróica, um coração palpitava com violência.

Assim que nele puseram os olhos, logo o reconheceram, apesar do lastimoso estado em que a pressurosa multidão pusera a sua linda farda azul, os seus galões de ouro e a pluma do chapéu.

- Senhor Cauvignac! - exclamou Lenet,

- O senhor Cauvignac, governador de Branne?!...

- acrescentou a princesa. - Ah, senhor! Isto cheira a traição...

- Que diz Vossa Alteza? - perguntou Cauvignac, reconhecendo ser a ocasião de chamar em seu auxílio todo o seu sangue-frio, e principalmente todo o seu espírito.

- Parece-me que Vossa Alteza proferiu a palavra traição...

- Sim, senhor: traição, pois a que título se apresenta diante de mim?...

- Sob o título de governador de Branne, senhora. -Traição, como muito bem o vê. Por quem são assinadas as vossas credenciais?

- Pelo senhor Mazarino.

- Traição, duplicada traição, bem dizia eu! É governador de Branne, e a sua companhia foi a que entregou Vayres: o título recompensou a acção.

Ao ouvir estas palavras, o mais profundo espanto se pintou no rosto de Cauvignac. Olhou em torno de si como para procurar a pessoa a quem estas estranhas palavras se dirigiam, e, convencido, pela evidência, de que ninguém além dele próprio era o objecto da acusação da princesa, deixou cair as mãos, num gesto do mais profundo desalento.

- A minha companhia entregou Vayres?... - disse ele. -Vossa Alteza é quem me faz semelhante acusação?...

- Sim, senhor, sou eu! Finja então que o ignora, pretenda estar surpreendido. Sim, é um bom cómico, segundo parece; porém, nem os seus gestos, nem as suas palavras, ainda que estejam em muita harmonia uns com os outros, me hão-de enganar.

- Não finjo nada, senhora - respondeu Cauvignac. - Como quer Vossa Alteza que eu saiba o que se passou

em Vayres, sem nunca lá ter estado?

- Subterfúgio, senhor, subterfúgio!

- Nada tenho a responder a semelhantes palavras, senhora, senão que Vossa Alteza parece estar descontente comigo... Queira, pois, Vossa Alteza, perdoar à franqueza do meu génio a liberdade da minha defesa; eu, pelo contrário, é que julgava ter razão de queixa de Vossa Alteza...

- Queixar-se de mim, o senhor?!... - exclamou a princesa, admirada por semelhante atrevimento.

- Sem dúvida, eu mesmo, senhora - respondeu Cauvignac, sem se perturbar. - Confiando na sua palavra e na do senhor Lenet, aqui presente, recrutei uma companhia de bravos, e contraí com eles obrigações (tanto mais sagradas, quanto todas estavam sob palavra). E eis que, quando venho pedir a Vossa Alteza a soma prometida... uma miséria... trinta ou quarenta mil libras, destinadas não para mim - pondere-o bem - mas para os novos defensores que alistei para os senhores príncipes, eis que Vossa Alteza ma recusa; sim, recusa-ma! Apelo paraotestemunho do senhor Lenet.

- É verdade - disse Lenet - que quando o senhor se apresentou não tínhamos dinheiro...

- E não podia esperar alguns dias, senhor? A sua fidelidade e a da sua gente era só por horas?...

- Esperei o tempo que o senhor de Rochefoucauld me pediu, senhora - isto é: oito dias. No fim desses oito dias apresentei-me novamente: desta vez, a recusa foi formal; de novo apelo para o senhor Lenet...

A princesa voltou-se para o conselheiro; os seus lábios estavam apertados, e os olhos chamejavam sob as sobrancelhas franzidas.

- Infelizmente - disse Lenet - vejo-me obrigado a confessar que tudo quanto este senhor diz é pura verdade.

Cauvignac endireitou-se, com ar triunfante.

- Então, senhora - continuou ele - numa tal circunstância, que teria feito um intriguista?!... Um intriguista ter-se-ia vendido à rainha, com a sua gente. Eu, que tenho horror à intriga, despedi a minha gente, desobrigando-a da palavra que me havia dado, e, quanto a mim, conservando-me em perfeita neutralidade, fiz o que aconselha o sábio em caso de dúvida: fiquei na inacção.

- Mas, e os seus soldados, senhor? Os seus soldados?! - exclamou, curiosa, a princesa.

- Senhora - respondeu Cauvignac - como não sou nem rei nem príncipe, mas somente capitão; como não tenho súbditos nem vassalos, são meus soldados apenas aqueles a quem pago; ora, como os meus, conforme lhe afirmou o senhor Lenet, não eram pagos de maneira nenhuma, ficaram livres. Então, talvez tenham tomado o partido do seu novo chefe. Que lhes havia eu de fazer?... Declaro que não sei.

- Mas, o senhor, que abraçou o partido do rei, que pode alegar em sua defesa? Que a sua neutralidade lhe era prejudicial?...

- Não, senhora: a minha neutralidade, ainda que inocente, tornou-se suspeita aos partidários de Sua Majestade. Um dia, fui preso na estalagem do Bezerro de Ouro, na estrada de Libourne, e conduzido à presença da rainha.

- E ali chegou a acordo com ela, não foi assim?

- Senhora - respondeu Cauvignac - um bravo, dotado de alguma sensibilidade, nem sempre pode resistir à delicadeza com que um soberano o sabe atacar. Eu tinha o coração magoado: fora repelido por um partido em que me lançara às cegas, com todo o ardor, e toda a boa fé da mocidade. Compareci ante a rainha entre dois soldados prontos a matar-me. Esperava recriminações, ultrajes, a morte (porque, na realidade, eu servia, pelo menos de intenção, a causa dos senhores príncipes); porém, precisamente ao contrário do que esperava, em lugar de me castigar, privando-me da liberdade, enviando-me para alguma prisão, fazendo-me subir ao cadafalso - aquela grande princesa disse-me: " - Bravo mancebo extraviado, eu posso, com uma palavra, mandar cortar-te a cabeça. Porém, tu bem o vês, foram ingratos contigo; aqui, ser-te-ão reconhecidos. Em nome de Santa Ana, minha protectora, serás doravante incluído entre os meus. Senhores - continuou ela, dirigindo-se aos meus guardas - respeitem este oficial, porque faço justiça aos seus merecimentos, e o nomeio vosso chefe. E a si - ajuntou ela, voltando-se para mim - faço-o governador de Branne. Aqui está como se vinga uma rainha da França." Que podia eu responder?... - prosseguiu Cauvignac, regressando ao seu tom de voz e aos seus gestos naturais, depois de ter imitado, de um modo meio cómico, meio sentimental, a voz e os gestos de Ana da Áustria. - Nada. Estava ferido nas minhas mais queridas esperanças; estava ferido no meu zelo extremoso e gratuito, que pusera aos pés de Vossa Alteza, a quem, e com que satisfação o recordo, tivera a ventura de prestar um leve serviço em Chantilly. Fiz como Coriolano: entrei na tenda dos Volscos. Este discurso, pronunciado com voz dramática, e  rematado com um gesto majestoso, produziu muito efeito nos circunstantes. Cauvignac percebeu qual o seu triunfo, ao ver a princesa empalidecer de furor.

- Mas enfim, senhor, a quem é fiel, então? - perguntou ela.

- Aos que saibam apreciar a correcção do meu procedimento - respondeu Cauvignac.

- Muito bem, é meu prisioneiro!

- Tenho essa honra, senhora; porém, espero que me trate como cavalheiro. Sou seu prisioneiro, na verdade, mas sem ter combatido contra Vossa Alteza; ia para o meu governo com a minha bagagem, quando deparei com um destacamento dos seus soldados, que me aprisionou. Não procurei ocultar nem o meu posto, nem o meu partido. Torno a repetir; peço, pois, que me tratem, não somente como cavalheiro, mas como oficial superior.

- Assim se fará, senhor - respondeu a princesa. - Terá a cidade por prisão; somente, jurará pela sua honra que não tentará passar dos respectivos muros.

- Jurarei, senhora, tudo o que Vossa Alteza quiser. -Muito bem; Lenet, dite a este senhor a fórmula do

seu juramento.

Lenet ditou os termos do juramento que Cauvignac devia proferir. Este, levantou a mão, e jurou solenemente que não sairia da cidade sem que a princesa o houvesse desobrigado do juramento.

- Agora, retire-se - disse a princesa. - Confiamos na sua lealdade de cavalheiro, e na sua honra de soldado.

Cauvignac não esperou que lho dissessem duas vezes. Saudou, e saiu; porém, ao sair, teve tempo para ver um gesto do conselheiro, que queria dizer: "Senhora, ele tem razão, nós é que somos os culpados: eis o resultado da poupança, em política."

O facto é que Lenet, apreciador de todos os méritos, reconhecera toda a finura do carácter de Cauvignac, e, justamente porque não fora de forma alguma iludido pelas razões especiais que ele dera, admirava como o prisioneiro saíra de uma das mais falsas posições em que um trânsfuga podia ter-se envolvido.

Quanto a Cauvignac, descia a escada muito pensativo, passando a mão pela barba, e dizendo consigo.

"Vejamos: agora, o essencial seria tornar a vender-lhes por cem mil francos os meus cento e cinquenta homens, o que é possível, visto que o honrado e inteligente Ferguzon obteve liberdade completa, para ele e para os seus. Portanto, mais tarde ou mais cedo se me oferecerá uma ocasião oportuna, decerto. Vamos lá, vamos lá... Vejo que, deixando-me apanhar, não fiz assim tão mau negócio como a princípio julguei."

 

RECUEMOS agora um pouco, e encaminhemos a atenção dos nossos leitores para os acontecimentos que se haviam verificado em Vayres acontecimentos que por enquanto só vagamente são conhecidos.

Depois de diversos assaltos, tanto mais terríveis quanto o general das tropas reais sacrificava mais homens para perder menos tempo, os entrincheiramentos haviam sido tomados; porém, os bravos defensores daqueles entrincheiramentos, depois de disputado o terreno palmo a palmo, depois de terem juncado o campo de batalha com mortos, retiraram-se através do caminho oculto, e estabeleceram-se em Vayres. Ora, o senhor de Meilleraye não podia ignorar que, se havia perdido quinhentos ou seiscentos homens para tomar um insignificante baluarte de terra, guarnecido por uma paliçada, teria de perder seis vezes mais, para conquistar um forte rodeado de boas muralhas e defendido por um homem cuja ciência estratégica e valor militar tivera ocasião de apreciar à sua custa.

Estava, pois, decidido a fazer um assédio formal, quando se avistou a vanguarda do exército do duque d'Épernon, que vinha juntar-se ao exército do senhor de Meilleraye. junção que duplicava as forças reais, o que mudou inteiramente o cariz das coisas. Com vinte e quatro mil homens, tenta-se o que se não ousa com doze mil. Assim, foi decidido que no dia seguinte se desse o assalto.

Com a interrupção dos trabalhos de entrincheiramento, com as novas disposições que se tomavam, e sobretudo perante o reforço chegado, Richon reconheceu que a intenção dos sitiantes era apertá-lo sem descanso. E, prevendo um assalto para o dia seguinte, reuniu a sua gente, a fim de julgar do estado dos espíritos, do que, aliás, nenhum motivo tinha para desconfiar dado o modo como se haviam portado na defesa dos primeiros entrincheiramentos.

Por esse mesmo motivo, foi grande o seu espanto quando viu a nova atitude da guarnição. A sua gente lançava olhares sombrios e inquietos ao exército real, e uns murmúrios surdos partiam das fileiras.

Richon não suportava gracejos na turma, e mormente gracejos dessa natureza.

- Eh lá! Quem tem o atrevimento de abrir a boca!?... - disse ele, voltando-se para o lado de onde o ruído de

desaprovação era mais distinto.

- Eu - respondeu um soldado mais afoito do que os outros.

- Tu?!

- Sim, eu.

- Então vem cá, e responde. O soldado saiu da fileira, e aproximou-se do seu chefe.

- Que te falta, de que te queixas? - perguntou Richon, cruzando os braços e cravando os olhos no amotinador.

- O que me falta?...

- Sim o que te falta? Tens a tua ração de pão?...

- Sim, senhor comandante.

- A tua ração de carne?...

- Sim, senhor comandante.

- A tua ração de vinho?...

- Sim, senhor comandante.

- Estás mal alojado? -Não, senhor. -Tens o pré em dia?

- Sim, senhor.

- Então fala: que desejas, que queres, e que significam estes murmúrios?

- Significam que combatemos contra o nosso rei, o que é muito duro, para soldados franceses.

- Então choras pelo serviço de Sua Majestade?

- Choro, sim.

- E desejas ir ler com o teu rei?

- Sim - disse o soldado, que, enganado pela serenidade de Richon, pensava que o assunto terminaria pela sua simples exclusão das fileiras dos Conde.

- Muito bem - disse Richon, segurando o homem pelo boldrié. - Como, porém, fechei as portas, será preciso tomares o único caminho que te resta...

- Qual? - perguntou o soldado, espantado.

- Este - disse Richon, levantando-o com o seu braço de Hércules, e arremessando-o por cima do parapeito.

O soldado deu uma guinada, e foi cair no fosso, que, por felicidade sua, estava cheio de água.

Este acto de vigor foi recebido com um protundo silêncio. Richon julgou ter apaziguado a sedição, e, como jogador que arrisca tudo por tudo, voltou-se para a sua gente.

- Agora - disse ele - se há aqui algum partidário do rei, que mo diga, e sairá como quiser.

Uns cem homens clamaram:

- Sim! sim! somos partidários do rei, e queremos sair!...

- Ah!...-exclamou Richon, vendo que já não era uma opinião parcial, mas uma revolta geral que se manifestava. - Ah! isso é outra coisa... Julgava não ter diante de mim senão um amotinador, e vejo que tenho de me haver com quinhentos cobardes.

Richon fizera mal em acusar a generalidade: cerca de cem homens, somente, tinham falado; os demais nada haviam dito. Porém, incluídos na acusação de cobardia, também murmuravam por seu turno.

- Vejamos - disse Richon - não falemos todos juntos; um oficial (se algum oficial há que consinta em faltar ao seu juramento) que fale por todos; e esse, juro-o, poderá falar impunemente.

Ferguzon deu então um passo para fora da fileira, e, saudando o comandante com refinada política, afirmou:

- Senhor comandante, ouviu o voto da guarnição; combate contra Sua Majestade, contra o nosso rei; ora, a maior parte de nós não estava prevenida de que era para fazer a guerra a semelhante inimigo que nos alistavam. Alguns dos bravos aqui presentes, violentados deste modo nas suas opiniões, poderiam, no meio do assalto, enganar-se na direcção das suas espingardas, e alojar-lhe uma bala na cabeça. Porém, nós somos verdadeiros soldados, e não cobardes, ao contrário do que, sem razão, acaba de dizer. Esta é a opinião dos meus companheiros, e a minha, e que lhe expomos respeitosamente/ Restitua-nos ao rei, se não quer que o façamos de nosso motu próprio.

Este discurso foi recebido com um estrondoso aplauso geral, que provava que a opinião manifestada pelo tenente era, senão a de toda a guarnição, "pelo menos a da maior parte dela. Richon reconheceu que estava perdido.

- Não posso defender-me só - disse ele - e não quero render-me; visto que os meus soldados me abandonaram, que alguém negoceie em nome deles, como entender, e como eles entenderem; porém, esse alguém não hei-de ser eu. Contanto que os bravos que se me mantiverem fiéis (se os há) conservem a vida, é tudo quanto desejo. Vejamos: quem há-de ser o negociador?

- Eu, senhor comandante, se estiver de acordo, e se os meus companheiros me honrarem com a respectiva confiança.

- Sim, sim! O tenente Ferguzon, o tenente Ferguzon! - gritaram quinhentas vozes, no meio das quais se distinguiam as de Barrabás e de Garrotei.

- Será, pois, o senhor - disse Richon. - Tem liberdade para entrar e sair de Vayres quando quiser.

- Não tem quaisquer instruções particulares que me dê, senhor comandante? - perguntou Ferguzon.

- A liberdade para a minha gente.

- E para si?

- Nada.

Uma tal abnegação teria chamado ao seu dever homens desencaminhados; porém, estes não estavam somente desencaminhados: estavam vendidos.

- Sim! sim! a liberdade para nós! - gritaram eles.

- Sossegue, senhor comandante - disse Ferguzon. -Não me esquecerei de si na capitulação.

Richon sorriu tristemente, encolhendo os ombros; entrou nos seus aposentos, e fechou-se no seu quarto.

Fergunzon foi ter no mesmo instante com os realistas. Porém, o senhor de Meilleraye nada quis fazer sem autorização da rainha; ora, a rainha saíra da pequena casa de Nanon para não ser testemunha, como ela mesma dissera, da vergonha do exército, e retirara-se para os Paços do Conselho de Libourne. Deixou, pois, Ferguzon guardado por dois soldados, montou a cavalo, e correu a Libourne. Encontrou o senhor Mazarino, ao qual julgou anunciar uma grande novidade; porém, ao ouvir as primeiras palavras do marechal, o ministro deteve-o com o seu habitual sorriso:

- Sabemos de tudo - disse ele. - O negócio arranjou-se ontem à noite. Arranje um acordo com o tenente Ferguzon, mas não vos obrigue a coisa alguma relativamente ao senhor, a menos que de palavra.

- Como!? Senão de palavra?!...-estranhou o marechal. - Mas, quando eu tiver dado a minha palavra, penso que vale tanto como um escrito!,..

- Não se preocupe com isso, senhor marechal; eu recebi de Sua Santidade indulgências particulares, em virtude das quais me é permitido desobrigar as pessoas dos juramentos que tiverem dado.

- É possível - replicou o marechal. - Mas essas indulgências não dizem respeito aos marechais da França.

Mazarino sorriu, fazendo sinal ao marechal que podia voltar para o acampamento.

O marechal regressou, resmungando. Entregou a Fer-guzon um salvo-conduto por escrito, para ele e para a sua gente, e, quanto a Richon, empenhou a sua palavra

Ferguzon voltou para o forte, que abandonou com os seus companheiros uma hora antes do amanhecer, depois de ter comunicado a Richon a promessa verbal do marechal. Duas horas depois, quando Richon avistava já das suas janelas o reforço que lhe trazia Ravailly, entraram no seu quarto e prenderam-no, em nome da rainha.

No primeiro momento, uma viva satisfação se manifestou no semblante do bravo comandante. Se ficasse livre, a princesa de Conde podia desconfiar da sua fidelidade; preso, a prisão respondia por ele.

Por causa desta esperança, em vez de sair com os outros, deixara-se ficar.

Não se contentaram, contudo, em tirar-lhe a espada, como ao princípio supusera. Depois de desarmado, quatro homens, que o esperavam à porta, lançaram-se sobre ele, e prenderam-lhe as mãos atrás das costas.

Richon não opôs a este indigno tratamento senão a serenidade e a resignação de um mártir. Era uma daquelas almas de têmpera rija, ascendentes de heróis populares dos séculos XVIII e XIX.

Richon foi conduzido a Libourne, e levado à presença da rainha, que o mediu arrogantemente com os olhos; à presença do rei, que o esmagou com um olhar feroz; e à presença do senhor Mazarino, que lhe disse:

- Jogou muito forte, senhor Richon!...

- Perdi, não é verdade, senhor? Agora, resta saber o que esteve em jogo.

- Receio que tenha jogado a sua cabeça - disse Mazarino.

- Mandem dizer ao senhor d'Épernon que o rei quer vê-lo - disse Ana de Áustria. - Quanto a este homem... espera aqui a respectiva sentença.

E, retirando-se com um soberbo desdém, saiu do quarto, dando a mão ao rei, seguida pelo senhor Mazarino e pelos cortesãos;

O senhor d'Épernon tinha, com efeito, chegado havia uma hora; porém, como verdadeiro velho enamorado, a sua primeira visita fora para Nanon. Soubera, no fundo da Guiena, a bela defesa que fizera Canolles na Ilha de São Jorge; e, como homem sempre cheio de confiança na sua amada, dava os parabéns a Nanon acerca da conduta do irmão, cuja fisionomia - dizia ele, com ingenuidade- não anunciava, todavia, nem tanta nobreza nem tanto valor.

Nanon tinha mais que fazer do que rir interiormente da mistificação. Tratava-se, naquele momento, não somente da sua própria felicidade, mas também da liberdade do seu amante. Amava tão apaixonadamente Canolles, que não podia acreditar que fosse capaz de uma perfídia, apesar de esta ideia ter surgido muitas vezes no seu espírito. Não vira, no cuidado que ele tivera em afastá-la, senão uma terna solicitude; julgando que ficava prisioneiro, só cedera à força; lamentava-o, e só aspirava ao momento em que, graças ao senhor d'Épernon, o pudesse libertar.

Eis a razão pela qual, em dez cartas que escrevera ao querido duque, apressara o regresso deste, com todo o seu poder.

Finalmente, o duque chegara, e Nanon apresentara-lhe a sua súplica em favor do suposto irmão, que ela desejava quanto antes arrancar das mãos dos inimigos, ou, para melhor dizer, das da senhora de Cambes, visto julgar que Canolles, na realidade, não corria outro risco para além de cada vez ficar mais enamorado da viscondessa.

Ora, este perigo era para Nanon um perigo capital. Pedia, pois, de mãos juntas, ao senhor d'Épernon, a liberdade do irmão.

- A ocasião para isso é muito oportuna - respondeu o duque. - Acabo de saber, neste mesmo instante, que o governador de Vayres se deixou apanhar. Ora, assim sendo, trocar-se-á pelo bravo Canolles.

- Oh! - exclamou Nanon. - Eis uma graça que vem do céu, meu querido duque!

- Ama então muito, a esse irmão, Nanon?...

- Oh! mais do que a minha vida!

- É estranho que nunca me tivesse falado nele, antes daquele célebre dia em que tive a loucura...

- Então, senhor duque?... - interrompeu Nanon. -Então, mando o governador de Vayres à princesa

de Conde, que em troca nos mandará Canolles; isto todos os dias acontece, na guerra; é uma troca, pura e simples.

- Sim; mas a princesa de Conde não dará mais valor ao senhor de Canolles do que a um simples oficial?...

- Pois, em tal caso, em lugar de um oficial, mandar-se-lhe-ão dois, mandar-se-lhe-ão três; arranjar-se-á tudo, enfim, de maneira que fique contente. Que quer mais, minha querida?... E quando o nosso bravo comandante da Ilha de São Jorge entrar em Libourne, recebê-lo-emos em triunfo.

Nanon não cabia em si de contente. Recuperar Canolles era o sonho ardente de todas as suas horas. Quanto ao que diria o senhor d'Épemon, quando visse quem era aquele Canolles, pouco cuidado lhe dava. Uma vez que Canolles estivesse salvo, ela confessaria que era sua amante: di-lo-ia em voz alta, di-lo-ia a toda a gente!

As coisas estavam neste pé, quando o mensageiro da rainha entrou.

- Veja - disse o duque - que tudo lhe sai às mil maravilhas, querida Nanon; vou ter com Sua Majestade, e trarei ordem para a troca.

- De maneira que meu irmão poderá chegar aqui...? -Talvez amanhã - disse o duque. -Vá então! - exclamou Nanon. - E não perca um instante. Oh! amanhã!... - acrescentou ela, levantando os braços ao céu, com uma admirável expressão de súplica. - Amanhã!... Deus o queira!

"Oh! que coração!..." - disse consigo o duque d'Éper-non, à saída.

Quando o duque d'Épernon entrou na câmara da rainha, Ana de Áustria, vermelha de cólera, mordia os grossos lábios, que faziam a admiração dos cortesãos, justamente porque era a parte defeituosa do seu rosto. O senhor d'Épernon, homem galante e habituado ao sorriso das damas, foi recebido como um bordelês revoltado.

O duque olhou a rainha com espanto; esta, não tinha correspondido à sua cortesia, e, de sobrancelhas franzidas, olhava para ele do alto da sua majestade real.

- Ah! é você, senhor duque... - disse ela, finalmente, depois de um momento de silêncio. - Venha cá, quero dar-lhe os meus cumprimentos acerca do modo como faz as nomeações para os cargos do seu governo.

- Então que fiz eu, senhora? - perguntou o duque, admirado. - Que aconteceu?

- Aconteceu que fez governador de Vayres um homem que abre fogo de artilharia contra o rei; nada mais.

- Eu, senhora?! - exclamou o duque. - Mas, Vossa Majestade está decerto enganada! Não fui eu quem nomeou o governador de Vayres... a não ser que tal acontecesse sem que eu o soubesse...

D'Épernon não asseverava absolutamente, porque a sua consciência o não autorizava a manter ser ele só quem fazia nomeações.

- Ah! esta é nova! - respondeu a rainha. - O senhor Richon não foi, se calhar, nomeado por si...

E carregou com profunda maldade naquelas duas palavras. O duque, que conhecia o talento de Nanon para escolher os homens próprios para os empregos, sossegou logo.

- Não me lembro de ter nomeado o senhor Richon - disse ele. - Porém, se o nomeei, o senhor Richon deve ser um bom servidor do rei.

- Com efeito - disse a rainha - o senhor Richon, na sua opinião, é um bom servidor do rei... Maldito seja o servidor que em menos de três dias nos mata quinhentos homens!

- Senhora - disse o duque, inquieto - se assim é, devo confessar que sou culpado. Porém, antes que eu seja condenado, deixe-me ver a prova de que fui eu quem o nomeou. E essa prova, eu a vou buscar.

A rainha fez um movimento para deter o duque; porém, logo se arrependeu.

- Vá - disse ela. - E quando tiver trazido a sua prova, apresentar-lhe-ei a que eu tenho.

O senhor d'Épernon saiu apressado, e, sem parar, foi ter a casa de Nanon.

- Então? - perguntou-lhe ela.-Traz a ordem para a troca, meu querido duque?...

- Não é disso que se trata, agora! - respondeu o duque. - A rainha está furiosa...

- E qual é a razão para o furor de Sua Majestade?

- Que a Nanon, ou eu, nomeámos o senhor Richon governador de Vayres, e esse governador, que se defendeu como um leão, segundo parece, acaba de nos matar quinhentos homens.

- O senhor Richon?!... - repetiu Nanon. - Não o conheço!

- Nem eu tão-pouco; os diabos me levem se o conheço! -Nesse caso, diga positivamente à rainha que está

enganada.

- Mas não estará você, talvez, enganada? Vejamos.

- Espere; nada quero ter que me repreenda, e vou confirmar-lho.

E Nanon, entrando no seu gabinete de trabalho, consultou o livro na letra R, e achou-o virgem de qualquer patente dada a Richon.

- Pode asseverar à rainha - disse ela, voltando - que está perfeitamente enganada.

O senhor d'Épernon foi num instante da casa de Nanon aos Paços do Concelho.

- Senhora - disse ele, entrando desassombradamente na câmara da rainha - estou inocente do crime que me imputam. A nomeação do senhor Richon é obra dos ministros de Vossa Majestade.

- Então, os meus ministros assinam d'Épernon?... - replicou com azedume a rainha.

- Como assim!?

- É como lhe digo, visto que a sua assinatura está aposta no fim da patente do senhor Richon.

- É impossível, senhora - respondeu o duque, no tom frouxo do homem que principia a duvidar de si mesmo.

A rainha encolheu os ombros. -É impossível?...-disse ela. - Ora, então leia.

E pegou numa patente abandonada em cima da mesa, e sobre a qual tinha posto a mão.

O senhor d'Épernon pegou na patente, correu por ela avidamente os olhos, examinando cada dobra do papel, cada palavra, cada letra, e ficou consternado: uma terrível recordação sobreveio.

- Poderei eu ver esse tal Richon? - perguntou.

- Nada mais fácil - respondeu a rainha. - Ordenei que ficasse no quarto imediato, para lhe dar essa satisfação.

Depois, voltando-se para os guardas que esperavam as suas ordens, à porta:

- Tragam aqui esse miserável - disse ela.

Os guardas saíram, e, passado um instante, trouxeram Richon, com as mãos amarradas e a cabeça coberta. O duque aproximou-se dele, e lançou um olhar ao prisioneiro, que este recebeu com a sua habitual dignidade. Como tinha o chapéu na cabeça, um dos guardas atirou-lho ao chão com as costas da mão.

Este insulto não provocou o menor movimento da parte do governador de Vayres.

- Ponham-lhe um capote sobre os ombros e uma máscara no rosto - disse o duque - e dêem-me uma vela acesa.

Obedeceram logo às duas primeiras ordens. A rainha olhava, atónita, para estes singulares preparativos. O duque andava à roda do Richon mascarado, olhando para ele com a maior atenção, esforçando-se por apelar para todas as suas lembranças, e parecendo duvidar ainda.

- Tragam a vela que pedi - disse ele. - Esta prova desvanecerá todas as minhas dúvidas.

Trouxeram a vela. O duque chegou a patente à luz, e, com o calor da chama, uma cruz, feita com tinta imperceptível sob a assinatura, apareceu no papel.

Ao ver isto, a fronte do duque serenou, e exclamou:

- Senhora, esta patente é assinada por mim, realmente. Porém, não foi nem para o senhor Richon nem para ninguém; foi-me extorquida quase à força. Antes, todavia, de entregar a minha assinatura em branco, havia decalcado no papel a marca que Vossa Majestade aqui pode ver, e que serve de prova clara contra o culpado. Veja!

A rainha pegou avidamente no papel, e olhou para o sinal que o duque lhe apontava com o dedo.

- Não posso entender uma só palavra da acusação que acaba de me fazer - exclamou muito ingenuamente Richon.

- Como!? - exclamou o duque. - Não será o homem mascarado a quem entreguei este papel no rio Dordonha?!...

- Nunca falei a Vossa Senhoria, até hoje, e nunca estive mascarado no rio Dordonha - respondeu friamente Richon.

- Se não foi você foi um homem enviado por si que ali foi em seu lugar.

- De nada me serviria ocultar a verdade - disse Richon, sempre com a mesma serenidade. - A patente que aí tem, senhor duque, recebi-a da senhora princesa de Conde, das próprias mãos do duque de Rochefoucauld; o senhor Lenet, cuja escrita talvez conheça, foi quem nela escreveu o meu nome e apelido. Como este documento foi parar às mãos da senhora princesa, como o senhor de Rochefoucauld estava de posse dele, em que lugar o meu nome e apelido foram escritos pelo senhor Lenet neste papel - são coisas que pouco me importam, nem me devem importar.

- Ah, é essa a sua opinião?...-perguntou o duque, em tom chocarreiro.

E, aproximando-se da rainha, contou-lhe em voz baixa uma história, que ela ouviu muito atentamente. Era a manobra Cauvignac, e a aventura do rio Dordonha; porém, como a rainha era mulher, compreendeu perfeitamente o impulso ciumento do duque.

Depois, quando ele acabou.

- É uma infâmia, para juntar a uma alta traição - disse ele. - Nisto, está tudo dito. Quem não hesitou em fazer fogo contra o seu rei, podia muito bem vender o segredo de uma mulher.

"Que diabo estão eles dizendo?..." - cogitou consigo Richon, franzindo as sobrancelhas, pois, não ouvindo o suficiente para compreender a conversa, ouvia, contudo, o bastante para adivinhar que a sua honra estava comprometida. Além disso, os olhos cintilantes do duque e da rainha, não lhe prometiam nada de bom, e, ainda que o comandante de Vayres fosse muito bravo, esta dupla ameaça não deixava de inquietá-lo, apesar de ser impossível distinguir no seu rosto, armado de uma altiva serenidade, o que se passava no seu coração.

- É preciso processá-lo - disse a rainha. - Convoquemos um Conselho de Guerra. Será o presidente, senhor duque. Escolha, pois, os seus acessores, e não percamos tempo.

- Senhora - interrompeu Richon - é escusado convocar o Conselho, pois não posso ser processado. Sou prisioneiro sob palavra, e quem ma deu foi o senhor marechal de Meilleraye; sou prisioneiro voluntário, e a prova disso é que podia sair de Vayres com os meus soldados; e que podia fugir antes ou depois da sua saída, e não o fiz.

- Não entendo nada desses negócios - volveu a rainha, levantando-se para entrar na sala contígua. - Se tem boas razões, alegá-las-á aos juizes. Não estará à vontade neste caso, para tomar a presidência, senhor duque?

- Estou muito bem, senhora - respondeu este.

E, no mesmo instante, escolhendo doze oficiais dos que se encontravam na antecâmara, constituiu o Tribunal.

Richon principiava a compreender; os juizes improvisados foram ocupar os seus lugares; depois, o relator perguntou-lhe o nome, o apelido, e a sua qualidade.

Richon respondeu a estas três perguntas. -É acusado de alta traição por ter feito fogo contra os soldados do rei - disse o relator. - Confessa ser culpado deste crime?

- Negar, seria negar a evidência; sim, senhor, fiz fogo contra os soldados do rei.

- Em virtude de que direito?

- Em virtude do direito de guerra, em virtude do mesmo direito que invocaram em iguais circunstâncias o senhor de Conti, o senhor de Beaufort, o senhor de Elboeuf, e muitos outros.

- Esse direito não existe, senhor, porque esse direito não é mais do que uma rebelião.

- Todavia, foi em virtude desse direito que o meu tenente assinou uma capitulação. Invoco essa capitulação.

- Capitulação?! - exclamou d'Épernon, com ironia, porque sabia que a rainha escutava, e a sua sombra lhe ditava esta palavra insultuosa, capitulação. - Negociou com um marechal da França?!...

- Porque não?... - respondeu Richon - visto que esse marechal de França negociava comigo...

- Então, apresente essa capitulação, e julgaremos qual seja o seu valor.

- É uma convenção verbal.

- Apresente as suas testemunhas.

- Só tenho uma que possa apresentar-vos. -Qual é?

- O próprio marechal.

- Chamem o marechal - disse o duque.

- É inútil - cortou a rainha, abrindo a porta por detrás da qual estava escutando. - Há duas horas que o senhor marechal partiu; marcha sobre Bordéus com a nossa vanguarda. E tornou a fechar a porta.

Esta aparição gelou todos os corações, porque impunha aos juizes a obrigação de condenar Richon. O prisioneiro sorriu amargamente.

- Ah! - disse ele - eis como o senhor de Meilleraye respeita a sua palavra!... Tem razão, senhor - acrescentou, voltando-se para o duque d'Épernon - fiz mal em negociar com um marechal da França.

A partir desse momento, Richon não disse nem mais uma palavra; para tudo olhou com desprezo, e a todas as perguntas que lhe fizeram não respondeu absolutamente nada.

Isto simplificava tanto o processo que as demais formalidades foram preenchidas no espaço de uma hora. Escreveu-se pouco e falou-se ainda menos. O relator condenou-o à morte, e a um sinal que fez o duque d'Épernon, os juizes votaram por unanimidade a pena de morte.

Richon ouviu esta sentença como se fora simples espectador, e, sempre impassível e mudo, foi entregue desde logo ao preboste do exército.

Quanto ao duque d'Épernon, foi ter com a rainha, a quem encontrou de excelente humor, e que o convidou a jantar. O duque, que entendia ter caído em desagrado, aceitou o convite, e passou por casa de Nanon para lhe dar parte da ventura que tinha de estar, afinal, na graça da sua soberana.

Encontrou-a sentada numa cadeira, junto de uma janela que dava para a praça pública de Libourne.

- Então - disse-lhe ela - descobriu alguma coisa?

- Descobri tudo - disse o duque.

- É possível!?... - disse Nanon, com inquietação.

- Sim, não há dúvida! Não se lembra daquela calúnia em que tive a loucura de acreditar, aquela denúncia a respeito dos seus amores com o seu irmão?...

- Sim, sim; e depois?

- Não se lembra da assinatura em branco que me pediam?...

- Sim, senhor; e que mais?

- O delator caiu-me nas mãos, minha querida; foi colhido nas redes da sua assinatura em branco, como uma raposa no laço!

- Palavra!?... - disse Nanon, espantada, porque ela sabia que o delator era Cauvignac, e, apesar de não ter muito afecto pelo verdadeiro irmão, não desejava que lhe acontecesse alguma desgraça; além disso, aquele irmão podia, para se salvar, dizer uma infinidade de coisas que Nanon tinha todo o interesse em manter em segredo.

- Ele mesmo, minha querida! - continuou d'Épernon.

- Que lhe parece semelhante aventura? Aquele patife, com o auxílio da minha assinatura em branco, tinha-se nomeado, por sua própria autoridade, governador de Vayres; porém Vayres foi tomada, e o culpado está nas nossas mãos.

Todos estes pormenores encaixavam tão bem nas imaginosas maquinações de Cauvignac, que Nanon sentiu duplicar o seu susto.

- E esse homem...-disse ela, com voz perturbada

- que fez dele?

- Ah! pela minha fé! - disse o duque. - Vai ver o que fizemos dele... Sim - continuou, pondo-se de pé - a coisa vem muito a propósito; levante a cortina, ou abra francamente a janela. É na realidade um inimigo do rei, e podemos muito bem vê-lo ser enforcado.

- Enforcado?! - exclamou Nanon; - que diz, senhor duque!? Enforcar o homem da assinatura em branco?!...

- Sim, minha querida. Não vê lá na praça, atado àquela trave, uma corda que bamboleia, e o tropel de gente que vem correndo?... Olhe, olhe! não vê os fuzileiros que vão levando um homem, lá em baixo, à esquerda?... Olhe: eis o rei que chega à janela.

O coração de Nanon palpitava com tal violência no seu peito, que parecia subir-lhe até à garganta: vira, contudo, num relance de olhos, que o homem que conduziam não era Cauvignac.

- Vamos, vamos - disse o duque - o senhor Richon será enforcado, e isto lhe ensinará a não caluniar as mulheres.

- Mas... - exclamou Nanon, pegando na mão do duque, e reunindo todas as suas forças - mas aquele infeliz não é culpado! Talvez seja um bravo soldado, talvez seja um homem honrado... e talvez que assassinem um inocente!

- Não, não! está muito enganada, minha rica; ele é um falsário e um caluniador. Além disso, mesmo que fosse apenas o governador de Vayres, nem por isso deixaria de ser réu de alta traição; e parece-me que ainda que não tivesse outro crime, este seria mais do que suficiente.

- Mas não tinha ele recebido a palavra do senhor de Meilleraye?...

- Assim o disse, mas não o acreditaram.

- Como é possível que o marechal não desse esclarecimento algum ao tribunal acerca de um ponto tão importante?!

- Tinha partido duas horas antes de o acusado comparecer perante os juizes.

- Oh! meu Deus, meu Deus, senhor! Alguma coisa me diz que aquele homem é inocente... - exclamou Nanon - e que a sua morte fará a nossa desgraça. Ah! senhor, pelo santo nome de Deus! O senhor, que é poderoso, que diz que nada me recusa, conceda-me o perdão daquele homem!

- Não é possível, minha querida; a própria rainha o condenou, e onde ela está, já não tenho poder algum.

Nanon soltou um suspiro que parecia um gemido.

Nesse momento, Richon tinha chegado à praça; conduziram-no, sereno e silencioso, até à trave de onde pendia a corda; haviam colocado ali uma escada; Richon subiu-a com passo firme, dominando com a sua nobre cabeça toda aquela multidão, sobre a qual lançava um olhar armado de um frio desprezo. Então, o preboste passou-Lhe o laço pelo pescoço, e o pregoeiro gritou em voz alta que o rei mandava justiçar "o senhor Estêvão Richon, falsário, traidor e vilão".

- Chegámos a um tempo - disse Richon - em que na França mais vale ser vilão, como eu sou, do que marechal.

Mal havia proferido estas palavras, quando lhe faltou o degrau debaixo dos pés, e o seu corpo, todo palpitante, balanceou sob a trave fatal.

Um movimento geral de terror dispersou a multidão, sem que se ouvisse um só grito de Viva o rei!, apesar de toda a gente ainda estar a ver as duas majestades à janela. Nanon cobriu o rosto com as mãos, e fugiu para o fundo do quarto.

- Ora, ora - disse o duque. - Apesar do que possa pensar disto, querida Nanon, creio que a execução servirá de exemplo; e quando virem em Bordéus que lhes enforcamos os governadores, tenho curiosidade de saber o que eles farão.

Com a ideia do que podiam fazer, Nanon abriu a boca para falar: porém, só pôde dar um grito terrível, levantando as mãos ao céu, como para lhe pedir que permitisse que não fosse vingada a morte de Richon; depois, como se todas as molas da vida se tivessem despedaçado, caiu desamparadamente no chão.

- Então!? Então!? - exclamou o duque - que tem, Nanon!? É possível que se aflija desta maneira por ter visto enforcar um vilão?! Vamos, querida Nanon, levante-se; sossegue! Mas... Deus me perdoe!... Ela perdeu os sentidos!... E dizem os ageneses(1) que é insensível... Eh lá! acuda aqui alguém! tragam sais! Socorro! água fria!

E o duque, vendo que ninguém acudia aos seus gritos, saiu a correr em busca do que inutilmente pedia aos criados, que não podiam ouvi-lo, sem dúvida, pois estavam ainda ocupados com o espectáculo com que a régia generosidade acabava de gratuitamente regalá-los...

 

(1) De Agenais, na Guiana francesa, departamento de Lot-en Qaronne.

 

ENQUANTO se desenrolava em Libourne o terrível drama que acabámos de referir, a senhora de Cambes, sentada a uma mesa de carvalho com pés retorcidos, tendo defronte de si Pompeu, que fazia uma espécie de inventário da sua fortuna, escrevia Canolles a seguinte carta:

Ainda um novo adiamento, meu amigo. No momento em que ia pronunciar o seu nome à senhora princesa, e pedir o consentimento dela para a nossa união, chegou a notícia da tomada de Vayres, que me gelou as palavras nos lábios; eu, porém, sei quanto deve sofrer, e não tenho forças para suportar ao mesmo tempo a sua dor e a minha. Os êxitos ou os reveses desta guerra fatal podem levar-nos muito longe, se não nos decidirmos a forçar as circunstâncias... Amanhã, meu amigo, amanhã às sete horas da tarde, serei sua esposa.

Eis o plano de acção que lhe peço que queira adoptar: é de suma urgência que o siga pontualmente.

Passará, depois do jantar, por casa da senhora Lalasne, a qual, desde que lhe foi apresentado, faz, bem como a irmã, muito caso de si. Jogar-se-á: jogue como os outros. Todavia, não se comprometa a ficar para a ceia. Faça mais: ao pôr-do-sol, afaste os seus amigos, se algum se mantiver junto de si. Depois, quando estiver absolutamente só, verá entrar um mensageiro (não sei ainda quem será), que chamará pelo seu nome, como se algum assunto exigisse a sua presença; seja como for, siga-o confiadamente, porque ele vai da minha parte, e a sua missão será conduzi-lo à capela, onde estarei à sua espera.

Bem gostaria eu que fosse na igreja dos Carmelitas, já que tem para mim tão doces recordações; porém, ainda não me atrevo a acreditar em tal coisa. Contudo, assim terá de acontecer, se consentirem em fechar a igreja por nossa causa.

Enquanto não chega a hora, faça da minha carta o que faz da minha mão, quando me esqueço de a tirar de entre as suas. Hoje, digo-lhe até amanhã; amanhã, dir-lhe-ei até sempre!

Canolles estava num dos seus momentos de misantropia, quando recebeu esta carta; durante todo o dia anterior, e naquela mesma manhã, nem sequer vira a senhora de Cambes, apesar de ter passado, nas últimas vinte e quatro horas, talvez umas dez vezes sob as suas janelas. Então, a reacção habitual operava-se na alma do apaixonado mancebo. Acusava a viscondessa de garridice, duvidava do seu amor; ressurgiam, a seu pesar, as saudades de Nanon, tão boa, tão extremosa e tão ardente, que quase se gloriava daquele amor de que Clara parecia envergonhar-se; e o seu pobre coração suspirava entre o amor satisfeito, que não podia apagar-se, e aquele amor feito desejo, que não podia satisfazer-se; a carta da viscondessa veio decidir tudo a seu favor.

Canolles leu e tornou a ler a carta; como bem imaginara Clara, beijou-a vinte vezes, como teria feito com a mão dela. Reflectindo nisto, Canolles não podia dissimular que o amor que tinha à viscondessa era e fora o mais sério da sua vida. Com as outras mulheres, esse sentimento sempre tomara outro aspecto, e, sobretudo, outro desenvolvimento. Canolles representara junto delas o seu papel de homem de boa estrela, tomara a posição de vencedor, e quase que reservava para si o direito de ser inconstante. Com a senhora de Cambes, pelo contrário, era ele quem se sentia subjugado por uma força superior, contra a qual nem sequer reagia, porque sentia que tal escravidão lhe era mais doce do que fora outrora o seu poder. Só nesses momentos de desalento concebia algumas dúvidas acerca da veracidade da afeição de Clara; nessas horas em que o coração entra em si mesmo, e aprofunda as suas dores com o pensamento, confessava, sem sequer se envergonhar de semelhante franqueza (a qual um ano antes teria considerado indigna de uma alma grande...), que perder a senhora de Cambes seria para ele uma calamidade insuportável.

Porém, amá-la, ser amado por ela, possuí-la de coração e alma, possuí-la em toda a independência do seu porvir, visto que a viscondessa nem sequer exigia dele o  sacrifício das suas tendências ao partido da princesa, e só queria o seu amor; vir a ser o mais feliz e o mais rico oficial do exército do rei (porque, enfim! para que se há-de esquecer a riqueza?... A riqueza não estraga coisa alguma); ficar no serviço de Sua Majestade, se recompensasse dignamente a sua fidelidade; deixá-lo, como muitas vezes acontece, se o rei lhe correspondesse com ingratidão - não era essa, na verdade, uma ventura maior, mais soberba, se assim se pode dizer, do que aquela a que, nos seus mais doces sonhos, jamais ousara aspirar?

Mas, e Nanon?...

Ah!... Nanon era o remorso surdo e pungente que se conserva no fundo das almas nobres! Só nos corações vulgares é que não faz eco a dor que esse remorso causa. Nanon, pobre Nanon! O que faria, o que diria, o que seria dela, quando recebesse a terrível notícia de que o amante era marido de outra?... Ah! ela não se vingaria, apesar de ter nas suas mãos todos os meios para se vingar, e este pensamento era o que mais mortificava Canolles. Ah! se ao menos Nanon tentasse uma vingança... (e mesmo que se vingasse fosse de que maneira fosse)... o infiel só veria nela uma inimiga, e isto, ao menos, livrá-lo-ia dos seus remorsos.

Contudo, Nanon não respondera à carta em que lhe dissera que não lhe escrevesse mais. Como justificar que ela tivesse seguido tão escrupulosamente as suas instruções? Se Nanon tivesse querido, teria na verdade encontrado processo para fazer passar dez cartas. Nanon não tentara, pois, corresponder-se com ele. Ah! se Nanon o não amasse já!...

E a fronte de Canolles enrugou-se com a hipótese de ser possível que Nanon já não o amasse. É cruel, encontrar assim, o egoísmo do orgulho, até no mais nobre coração.

Por felicidade, Canolles tinha um meio de esquecer tudo: ler e reler a carta da senhora de Cambes; leu-a e releu-a, e o meio de que se valeu surtiu efeito. O nosso enamorado conseguiu, pois, esquecer tudo o que não era a sua própria felicidade. E, para desde logo obedecer à amada, que lhe ordenava que fosse a casa da senhora Lalasne, procurou tornar-se elegante, o que não era difícil, em virtude da sua mocidade, da sua graça e do seu bom gosto; depois, encaminhou-se para a casa do presidente, no momento em que davam duas horas.

Canolles estava tão embrenhado na sua ventura, que, passando pelo cais, não viu o seu amigo Ravailly que, de bordo de um bote que se vinha aproximando à força de remos, lhe fazia muitos sinais. Os namorados, nos seus momentos de felicidade, caminham com passo tão ligeiro que parecem não tocar a terra. Canolles estava já longe, pois, quando Ravailly desembarcou.

Apenas saltou em terra, deu algumas ordens em voz baixa aos homens do bote, e correu rapidamente para o alojamento da princesa de Conde.

A princesa estava à mesa quando sentiu um certo rumor na antecâmara; perguntou que bulha era aquela, e responderam-lhe que era o barão de Ravailly, que ela enviara ao senhor de Meilleraye, e que chegava naquele mesmo instante.

- Senhora - disse Lenet - parece-me que seria bom que Vossa Alteza o recebesse sem mais demora; sejam quais forem as notícias que traga, são importantes.

A princesa fez um sinal, e Ravailly entrou; porém, estava tão pálido, e era tal a alteração que se lhe notava no rosto, que a princesa desde logo desconfiou que tinha diante dos olhos um mensageiro de desgraça.

- Então que nos diz, capitão? - perguntou ela. - Que aconteceu de novo?

- Desculpe-me, senhora, de me apresentar deste modo diante de Vossa Alteza; porém, julguei que a notícia de que sou portador não podia sofrer demora.

- Fale: avistou-se com o marechal?

- O marechal recusou receber-me, senhora.

- O marechal recusou receber o meu enviado?! - exclamou a princesa.

- Oh! senhora, e isto ainda não é nada. -Então que mais temos? Fale, fale!

- Aquele pobre Richon...

- Bem sei, bem sei: prisioneiro... visto que eu o enviara para tratar do resgate...

- Por maior diligência que fizesse, cheguei demasiado tarde.

- Como? Demasiado tarde?!... - exclamou Lenet. - Ter-lhe-ia acontecido alguma desgraça?...

- Está morto!

- Está morto?! - repetiu a princesa.

- Processaram-no, como traidor: foi condenado e executado.

- Condenado?! Executado?! Ah! ouve, senhora?... - disse Lenet, consternado. - Eu bem lho dizia!...

- E quem o condenou? Quem teve semelhante atrevimento?

- Um tribunal presidido pelo duque d'Épernon; ou, para melhor dizer: pela própria rainha. E não se contentaram com a morte, quiseram a difamação.

- É possível?! Richon!...

- Enforcado, senhora, enforcado como um ladrão, como um assassino! Vi o corpo dele, na Praça de Libourne.

A princesa levantou-se da cadeira como se uma invisível mola a fizesse mover. Lenet deu um grito doloroso. A senhora de Cambes, que se levantara, tornou a cair na sua cadeira levando a mão ao coração, como se faz quando se recebe uma ferida profunda; tinha desmaiado.

- Levem daqui a viscondessa - disse o duque de Rochefoucauld. - Não temos vagar neste momento para nos ocuparmos dos desmaios das senhoras.

Duas damas levaram a viscondessa.

- Eis uma declaração de guerra muito áspera - disse o duque, impassível.

- É uma infâmia! - exclamou a princesa.

- É uma ferocidade - lamentou Lenet.

- É falta de política - continuou o duque.

- Oh! mas espero que nos havemos de vingar! - exclamou a princesa; - e há-de ser cruelmente!

- Eu cá tenho o meu plano - exclamou a senhora Tourville, que ainda não tinha dito nada. - Represálias, senhora, represálias!

- Devagar, senhora - disse Lenet. - Não se apresse tanto! A coisa é bastante grave, e digna de toda a ponderação.

- Não, senhor, muito pelo contrário: devemos desde logo ocupar-nos disso - respondeu a senhora Tourville. - Quanto mais o rei se apressou a ferir, tanto mais  prontamente lhe devemos responder, dando sem a mínima tardança um golpe semelhante.

- Ah, senhora - exclamou Lenet - fala em derramar sangue como se fosse rainha da França! Ao menos, espere, para dar a sua opinião, que Sua Alteza lha peça.

- A senhora tem razão - disse o capitão das guardas. -Represálias, é a lei da guerra.

- Prestem atenção - disse o duque de Rochefoucauld, sempre sereno e impassível - que não devemos perder, como já fizemos, o tempo com palavras. A notícia vai circular pela cidade, e dentro de uma hora não poderemos já dominar os acontecimentos, nem as paixões, nem os homens. A primeira coisa de que Vossa Alteza deve cuidar é tomar uma atitude bastante firme, para que a julguem inabalável.

- Pois bem - disse a princesa. - Confio-lhe esse cuidado, senhor duque, e dou-lhe plena liberdade para vingar a minha honra e as suas afeições; porquanto, antes de entrar no meu serviço, Richon teria estado ao seu; de si o recebi, e deu-mo, mais como um dos seus amigos, do que como um dos seus servos.

- Pode ficar descansada, senhora - respondeu o duque, inclinando-se - lembrar-me-ei do que devo, tanto a si como a mim, e ao pobre finado.

E, aproximando-se do capitão das guardas, falou-lhe muito tempo em voz baixa, enquanto a princesa ia saindo, acompanhada pela senhora Tourville, e seguida de Lenet, que exprimia paixão e dor, comprimindo o peito com a mão.

A viscondessa estava à porta. Ao recobrar o uso dos sentidos, a sua primeira ideia fora voltar para a princesa de Conde; encontrou-a no seu caminho; porém, com um semblante tão severo, que não se atreveu a falar-lhe pessoalmente.

- Oh! meu Deus! meu Deus! que vão fazer? - exclamou timidamente a viscondessa, levantando as mãos ao céu.

- Vão vingar-se - respondeu a senhora Tourville, com majestade.

- Vingar-se?! E como? - perguntou Clara. A senhora Tourville foi passando, sem se dignar responder; não pensava senão em vingar-se.

- Vingar-se?!...-repetiu Clara. - Oh, senhor Lenet! Que querem dizer com isso?

- Senhora - respondeu Lenet - se tem alguma influência sobre o espírito da princesa, valha-se dele, a fim de que se não cometa algum horrível assassínio a pretexto de represálias.

E continuou o seu caminho, por seu turno, deixando Clara muito assustada.

Com efeito, por uma daquelas intuições singulares que fazem acreditar nos pressentimentos, o nome de Canolles apresentara-se logo dolorosamente ao espírito da jovem senhora. Ouviu no seu coração, como que uma voz triste que lhe falava daquele amigo ausente, e, recolhendo-se ao seu quarto com uma precipitação furiosa, principiou a preparar-se para ir ao sítio aprazado, quando reflectiu que o encontro não devia ter lugar senão três ou quatro horas mais tarde.

Todavia, Canolles tinha-se apresentado em casa da senhora Lalasne, segundo a recomendação que lhe fora feita pela viscondessa. Era o dia dos anos do presidente e faziam-lhe uma espécie de festa. Como se estava no mais belo tempo do ano, toda a sociedade escolhera o jardim, onde se ordenara um jogo de argolinha num grande tabuleiro de relva. Canolles era dotado de extrema destreza e suma graça; tomou parte no jogo, e, graças às suas habilidades, alcançou constantemente a vitória.

As senhoras riam da inépcia dos rivais de Canolles, e admiravam a habilidade deste; a cada vantagem que alcançava, ouviam-se prolongados vivas, tremulavam os lenços no ar, e pouco faltou para que os ramalhetes não lhes escapassem das mãos e fossem cair aos pés do cativo.

Este triunfo não era bastante para desviar do espírito de Canolles o pensamento que o preocupava, mas enchia-se de paciência. Por muita pressa que tenhamos de chegar ao fim, sofremos resignados as demoras da nossa marcha, quando estas demoras são ovações.

Todavia, à medida que a hora esperada se ia aproximando, os olhos do mancebo voltavam-se mais frequentemente para a cancela pela qual entravam e saíam os convidados, e pela qual devia, naturalmente, aparecer o enviado prometido.

Repentinamente, e quando Canolles se felicitava por não ter já de esperar, segundo toda a probabilidade, senão bem pouco tempo, um rumor singular espalhou-se naquela alegre multidão. Canolles observou que se formavam grupos aqui e além, que falavam em voz baixa e o contemplavam com interesse singular, e que parecia ter alguma coisa de doloroso; ao princípio, atribuiu este interesse à sua pessoa, à sua destreza, envaidecendo-se daquelas atenções, cuja verdadeira causa bem longe estava de suspeitar.

Principiou, contudo, a observar, como já dissemos, que havia alguma coisa de doloroso naquela atenção de que era objecto; aproximou-se, sorrindo, de um dos grupos; as pessoas que o compunham queriam sorrir, porém, no seu aspecto, era visível uma certa perturbação; os que não conversavam com Canolles afastavam-se.

Canolles voltou-se, e viu que pouco a pouco cada um deles ia desaparecendo. Dir-se-ia que uma notícia fatal, que gelara toda a gente de terror, se espalhara de repente por todos os que ali estavam. Atrás dele, passava e tornava a passar o presidente Lalasne, que, com uma das mãos debaixo da barba e a outra ao peito, passeava com ar lúgubre. A presidente, dando a sua irmã o braço, e aproveitando um momento em que ninguém podia ouvi-la, deu um passo para Canolles, e, sem dirigir a palavra a ninguém, disse num tom que lançou na alma do mancebo:

- Se eu fosse prisioneiro de guerra, ainda que sob palavra, com receio de que não cumprissem comigo a palavra dada, montaria num bom cavalo, chegaria ao rio, daria dez, vinte, ou cem luíses, se tanto fosse preciso, a um barqueiro, e pôr-me-ia a salvo...

Canolles olhou para as mulheres com espanto, e as duas mulheres fizeram ao mesmo tempo uma demonstração de terror, que para ele foi incompreensível. Aproximou-se delas com grande ansiedade, para tentar obter a explicação para as palavras que acabavam de pronunciar; porém, elas fugiram como se fossem fantasmas, uma pondo o dedo na boca, a fazer-lhe sinal que se calasse, e a outra, levantando o braço para lhe indicar que fugisse.

Nesse momento, o nome de Canolks ressoou na cancela.

- O senhor barão de Canolles está aqui? - perguntou uma voz forte.

- Sou eu - exclamou Canolles, esquecendo-se de tudo para somente se recordar da promessa de Clara - sou eu próprio.

- É com efeito o senhor de Canolles?... - disse então uma espécie de esbirro, franqueando o limiar da cancela, fora da qual se conservara até ao momento.

- Sim, senhor.

- O governador da Ilha de São Jorge? -Sim.

- O ex-capitão do regimento de Navailles?

- Exactamente.

O esbirro voltou-se, fez um sinal, e quatro soldados escondidos atrás de uma sege adiantaram-se no mesmo instante. A própria sege tanto se aproximou, que o seu degrau tocava no lumiar da cancela; o esbirro convidou Canolles a que entrasse nela. O mancebo olhou em torno de si, estava absolutamente só; somente viu, ao longe, no meio das árvores, semelhantes a duas sombras, a senhora Lalasne e a irmã, que, encostadas uma à outra, pareciam olhar para ele com ar de compaixão.

"Na verdade - dizia ele consigo - não compreendo nada do que se passa... A senhora de Cambes escolheu na realidade uma singular escolta! Mas - ajuntou, sorrindo do seu próprio pensamento - não sejamos tão difíceis de contentar quanto à escolha dos meios."

- Estamos à sua espera, senhor comandante - disse o esbirro.

- Perdoem, senhores - disse Canolles. - Cá vou eu.

E meteu-se na sege. O esbirro e dois soldados entraram também. Um, junto do cocheiro, e outro, atrás. E a pesada máquina partiu com a velocidade que podiam tirar os dois vigorosos cavalos.

Tudo isso parecia singular, e principiava a dar que pensar a Canolles; e, por isso, voltando-se para o esbirro :

- Senhor - disse ele - agora que estamos sós, pode dizer-me para onde me leva?

- Em primeiro lugar, para a prisão, senhor comandante- respondeu aquele a quem fizera a pergunta. Canolles olhou para o homem, com espanto.

- Como?... Eu, para a prisão?!... Não vêm da parte de uma mulher?...

- Vimos, senhor.

- E essa mulher não é a viscondessa de Cambes?... -Não, senhor: é a senhora princesa de Conde.

- A senhora princesa de Conde?! - exclamou Canolles.

- Pobre mancebo!... - disse uma mulher que passava; e fez o sinal da cruz.

Canolles sentiu correr-lhe pelas veias um agudo calafrio.

Mais longe, um homem que corria com um chuço na mão, parou vendo a carruagem e os soldados. Canolles inclinou-se para fora, e sem dúvida aquele homem o reconheceu, porque lhe mostrou o punho fechado com uma expressão ameaçadora e furiosa.

- Parece-me que a gente da vossa cidade está doida... - disse Canolles, querendo ainda gracejar. - Como é possível que de uma hora para outra eu me tenha tornado objecto de compaixão ou de ódio, para que uns se compadeçam de mim, e outros me ameacem?...

- Ah, senhor! - respondeu o esbirro - os que se compadecem de si não deixam de ter razão, e os que o ameaçam, talvez a tenham também.

- Enfim, se eu pelo menos pudesse compreender alguma coisa... - disse Canolles.

- Em breve compreenderá, senhor - respondeu o esbirro.

Chegaram à porta da prisão, e fizeram apear Canolles, no meio da multidão que principiava a juntar-se. A única diferença que houve, foi que, em vez de o levarem para o quarto que habitualmente ocupava, o fizeram entrar numa masmorra cheia de guardas.

"Vejamos... preciso saber a quantas ando" - cogitou Canolles.

E, tirando dois luíses da algibeira, chegou-se a um soldado, e meteu-lhos na mão.

O soldado hesitou em recebê-los.

- Toma, meu amigo - disse Canolles - pois a pergunta que te vou fazer em nada te compromete.

- Então fale, senhor comandante - respondeu o soldado, metendo primeiramente os dois luíses na algibeira.

- Ora bem: eu desejava saber a causa da minha súbita prisão.

- Parece - respondeu o soldado - que ignora a morte daquele pobre senhor Richon...

- Richon morreu?! - exclamou Canolles, dando um grito de profunda dor (pois muito bem nos devemos lembrar da amizade que os unia).-Tê-lo-ão morto?!... Oh meu Deus!...

- Não, senhor comandante: foi enforcado.

- Enforcado?! - murmurou Canolles, empalidecendo.

levantando as mãos ao céu, e, olhando para o sinistro aparato que o rodeava, e para a catadura dos seus guardas. -Enforcado?! oh! para longe tal ideia!... Esse é um acontecimento que poderá muito bem adiar indefinidamente o meu casamento.

 

A senhora de Cambes acabara de vestir-se; o trajo era simples, e elegante. Depois, colocou sobre os ombros uma espécie de capa, e fez sinal a Pompeu para que seguisse adiante dela. Era quase noite, e, pensando que chamaria menos as atenções indo a pé, do que de carruagem, dera ordem ao cocheiro para que a fosse esperar à saída da igreja dos Carmelitas, junto de uma capela, onde conseguira licença para se casarem. Pompeu desceu a escada, e a viscondessa foi-lhe no encalço. Estas funções de explorador recordavam ao velho soldado a famosa patrulha que fizera na véspera da batalha de Corbie.

No fundo da escada, e quando a viscondessa passava próximo da sala, onde havia grande tumulto, encontrou a senhora Tourville, que guiava o duque de Rochefoucauld para o gabinete da princesa, questionando ao mesmo tempo com ele.

- Oh! pelo amor de Deus, senhora! uma palavra! - disse ela. - Que se resolveu?

- O meu plano foi aceite - exclamou a senhora Tourville, triunfante.

- E qual é o seu plano, senhora? Eu nada sei dele. -Represálias, minha rica, represálias.

- Perdoe, senhora... Tenho a desgraça de não estar tão familiarizada como a senhora com os termos da guerra: que entende pela palavra represálias?

- Nada mais simples minha querida... -Mas, enfim, explique-se.

- Enforcaram um oficial do exército dos senhores príncipes, não é assim?...

- Sim; e depois?

- Depois, há-de buscar-se em Bordéus um oficial do exército real, e havemos de o enforcar.

- Oh! meu Deus! - exclamou Clara, aterrada - que diz, senhora?

- Senhor duque - continuou a senhora Tourville, sem dar mostras de reparar no terror da viscondessa - não foi já preso o governador que comandava São Jorge?...

- Foi, sim, minha senhora - respondeu o duque.

- O senhor de Canolles está preso?!... - exclamou Clara.

- Está, sim - disse friamente o duque. - O senhor de Canolles está preso, ou sê-lo-á em breve; a ordem foi dada na minha presença, e vi partir os homens que foram encarregados da execução.

- Então, sabia-se onde ele estava? - perguntou Clara, dando um profundo suspiro.

- Estava no jardim do senhor Lalasne, onde muito se distinguia, segundo me disseram, no jogo da argolinha.

Clara deu um grito; a senhora Tourville voltou-se, espantada, e o duque olhou para a jovem viscondessa com um sorriso imperceptível.

- O senhor Canolles está preso?! - replicou Clara. - Mas que fez ele, meu Deus!? E que pode haver de

comum entre ele e o horrível caso que tanto nos desgosta?...

- O que pode haver de comum?... Tudo minha rica. Não é um governador, como Richon?...

Clara quis falar, porém, o coração apertou-se-lhe de tal maneira, que a palavra se lhe gelou nos lábios. Pegando, todavia, no braço do duque, e olhando-o com terror, pôde por fim murmurar estas palavras:

- Oh! mas isto não deixa de ser algum fingimento, não é assim, senhor duque?... uma manifestação, e nada mais. Nada se pode fazer, segundo me parece, nada se pode fazer a um prisioneiro a quem se aceitou a palavra...

- A Richon também, minha senhora, se tinha aceitado a palavra...

- Senhor duque, suplico-lhe...

- Deixe-se de súplicas, senhora, que são inúteis. Eu nada posso fazer neste assunto, o Conselho é que tem de decidir.

Clara largou o braço do senhor de Rochefoucauld, e foi direita ao gabinete da princesa de Conde. Lenet, pálido e agitado, andava a passos largos de um lado para o outro; a princesa de Conde conversava com o duque de Bouillon.

A senhora de Cambes foi entrando e chegou ao pé da princesa, ligeira e pálida como uma sombra.

- Oh, senhora! - disse ela - pelo santo nome de Deus! Rogo-lhe que me ouça duas palavras.

A- h, és tu, pequena? Agora não tenho tempo - respondeu a princesa. - Mas depois do Conselho poderás dispor de mim.

- Senhora, senhora! É justamente antes do Conselho que tenho de lhe falar.

A princesa ia ceder, quando uma porta que estava em frente daquela por onde a viscondessa entrara se abriu, e o senhor de Rochefoucauld apareceu.

- Senhora - disse ele - o Conselho está reunido, e espera com impaciência por Vossa Alteza.

- Bem vês, pequena - disse a princesa de Conde - que não posso de modo algum atender-te agora; mas vem connosco ao Conselho, e quando tiver acabado, sairemos juntas e conversaremos.

Não lhe era possivel insistir. Deslumbrada e fascinada pela espantosa rapidez com que se iam sucedendo os acontecimentos, a pobre senhora principiava a ter vertigens; interrogava todos os olhos, interpretava todos os gestos, sem nada ver, sem que a razão lhe fizesse compreender o assunto de que se tratava, sem conseguir tirar-se daquele medonho pesadelo.

A princesa encaminhou-se para o salão. Clara seguiu-a, maquinalmente, sem se aperceber que o senhor Lenet lhe tomara a mão entre as dele, mão que ela abandonava inerte, como se fosse a de um cadáver.

Quando entraram na sala do Conselho, eram pouco mais ou menos oito horas da tarde.

Tratava-se de um vasto salão, já de si lúgubre, porém mais lúgubre ainda pelas suas sombrias e pesadas tapeçarias. Uma espécie de estrado fora levantado entre as duas portas frontais às duas janelas, pelas quais penetravam as últimas claridades do dia. Sobre aquele estrado havia duas poltronas, uma para a senhora de Conde, e a outra para o senhor duque de Enghien. De cada lado dessas poltronas, partia uma fileira de tamboretes destinados às senhoras que formava o Conselho privado de Sua Alteza. Todos os outros juizes deviam sentar-se em bancos ali colocados para esse efeito. O duque de Bouillon sentava-se ao lado da poltrona da princesa, e o duque de Rochefoucauld junto à do principezinho.

Lenet estava colocado em frente do secretário, e junto dele mantinha-se Clara, fora de si, em pé e toda trémula.

Introduziram seis oficiais do exército dos príncipes, seis membros da municipalidade, e seis jurados da cidade.

Todos tomaram lugar nos respectivos bancos.

Dois candelabros, cada um com três luzes, iluminavam a improvisada assembleia, colocados sobre uma mesa diante da princesa, alumiando o grupo principal, enquanto os outros assistentes se confundiam insensivelmente na sombra, quanto mais se afastavam daquele fraco centro de luz.

Soldados do exército da princesa guardavam as portas, com alabardas nas mãos.

• Lá fora, ouvia-se sussurrar a estrepitosa multidão. O secretário fez a chamada.

Depois, o relator expôs a questão; referiu a tomada de Vayres, a palavra do senhor de Meilleraye, violada, e a infame morte de Richon.

Nesse momento, um oficial postado ali de propósito, e que de antemão tinha recebido instruções, abriu uma janela, e ouviu-se entrar um sussurro de vozes:

- Seja vingado o bravo Richon! Morram os mazarinos!

Assim se designavam os realistas.

- Bem ouvem - disse o senhor de Rochefoucauld - o que pede a voz do povo. Ora, no prazo de duas horas, ou o povo terá desprezado o nosso poder, e terá feito justiça por si mesmo, ou as represálias não serão já oportunas. Assim, decretemos, senhores, a nossa sentença, e sem demora.

A princesa levantou-se.

- E para que havemos de sentenciar? - exclamou ela. -De que servirá uma sentença, se acaba de a ouvir?...

E foi o povo de Bordéus quem a proferiu...

- Com efeito - disse a senhora Tourville - nada há mais simples do que este caso. É a pena de Talião, e nada mais. Estas coisas deveriam fazer-se, por assim dizer, por inspiração, e de preboste'a preboste, simplesmente.

Lenet não quis ouvir mais, e do lugar onde estava, arremessou-se para o meio do círculo.

- Senhora! - exclamou ele - peço-lhe que não solte uma só palavra mais, porque um tal parecer seria fatal, a prevalecer. Esquece-se de que a própria autoridade real, castigando como muito bem quis, isto é, de um modo infame, ao menos manteve o respeito pelas fórmulas jurídicas, e fez confirmar o castigo, justo ou injusto, por uma sentença dos juizes. Julga ter o direito de fazer o que não se atreveu a fazer o rei?...

- Oh! - disse a senhora Tourville - basta que eu dê um parecer, para que o senhor Lenet seja de opinião contrária... Desgraçadamente, o meu parecer, desta vez, está de acordo com o de Sua Alteza...

- Sim: desgraçadamente - disse Lenet. - Senhor!... - exclamou a princesa.

- Àíi, senhora! - exortou Lenet - respeite ao menos as aparências; não terá de qualquer forma a liberdade de condenar?...

- O senhor Lenet tem razão - disse o duque de Rochefoucauld, compondo um ar severo. -A morte de um homem é assunto muito grave, sobretudo nestas circunstâncias, para que deixemos recair a responsabilidade sobre uma só cabeça, ainda que essa cabeça seja de uma princesa.

Depois, inclinando-se ao ouvido da princesa, a fim de que só o grupo dos íntimos pudesse ouvi-lo:

- Senhora - disse ele - escute o parecer de todos, e não siga, para proferir a sentença, senão o das pessoas em quem tem plena confiança. Deste modo, não teremos a recear sermos acusados de vingativos.

- Um momento, um momento! - interrompeu o senhor de Bouillon, apoiando-se no seu bordão, e levantando a sua perna gotosa. - Falou-se em desviar a responsabilidade da cabeça da princesa: eu não a recuso, mas quero que os outros nela participem, comigo. Nada desejo tanto, como continuar a ser rebelde, mas de companhia com a senhora princesa, de um lado, e o povo, do outro. Com todos os diabos! Não quero ver-me só em campo. Perdi a minha soberania de Sedan, por uma brincadeira deste género. Então, tinha uma cidade e uma cabeça. O cardeal Richelieu tomou a minha cidade; hoje só me resta a cabeça, e não quero que o cardeal Mazarino ma tome. Peço, portanto, por assessores, os senhores notáveis de Bordéus.

- Semelhantes assinaturas junto das nossas?! - murmurou a princesa. - Nada, nada!

- A cavilha segura a viga, senhora - respondeu o duque de Bouillon, a quem a conspiração contra Cinq-Mars tornara prudente para toda a vida.

- É este o vosso parecer, senhores?

- Sim - disse o duque de Rochefoucauld. -E você, Lenet?

- Senhora - respondeu Lenet - eu, felizmente, não sou príncipe, nem duque, nem oficial, nem jurado. Tenho, pois, o direito de me abster, e abstenho-me.

Então, a princesa levantou-se, convidando a junta que reunira a responder, por um acto enérgico, à provocação real. Apenas tinha acabado o seu discurso, quando a janela de novo se abriu, e se ouviu, pela segunda vez, penetrarem na sala do tribunal as mil vozes do povo:

- Viva a senhora princesa! Seja vingado Richon! Morram os epernonistas e os mazarinos!

A viscondessa de Cambes agarrou-se ao braço de Lenet.

- Senhor Lenet...-disse ela - eu morro!

- A senhora viscondessa de Cambes - disse este - pede a Sua Alteza licença para se retirar.

- Não! não! - disse Clara - eu quero...

- O seu lugar não é aqui, senhora - interrompeu Lenet. - Nada pode fazer em favor dele. Dar-lhe-ei conta de quanto se passa, e veremos o que poderá fazer-se para o salvar.

- A viscondessa pode retirar-se - disse a princesa. - As senhoras que não quiserem assistir a esta sessão,

podem sair. Aqui só queremos homens.

Nenhuma das senhoras arredou pé: uma das aspirações eternas da metade do género humano destinada a seduzir, é ambicionar o exercício dos direitos da parte destinada a comandar. Estas senhoras encontravam, tal como dissera a princesa, uma ocasião para fazer de homens em um momento; era uma circunstância demasiado feliz para que se não aproveitassem dela.

A senhora de Cambes saiu, amparada pelo senhor Lenet. Na escada, encontrou Pompeu, a quem ela mandara recolher informações.

- Senhor Lenet - disse Clara-já não tenho confiança senão em si, e esperança senão em Deus!

E entrou nos seus aposentos, desvairada.

- Que perguntas tenho a fazer àquele que vai aqui comparecer? - perguntava a princesa, no momento em que Lenet regressava ao respectivo lugar, junto do secretário.- E sobre quem deve recair a sorte?

- Nada há de mais simples, senhora - respondeu o duque. - Temos cerca de trezentos prisioneiros, entre os quais dez ou doze oficiais: interroguemo-los somente acerca dos seus nomes e dos postos que têm no exército real; o primeiro que for conhecido por comandante de praça, como era o meu pobre Richon, seja esse considerado como designado pela sorte.

- É inútil, perdermos o nosso tempo a fazer perguntas a dez ou doze oficiais diferentes - disse a princesa.- Senhor secretário, tem o livro de registo: abra-o, e nomeie os prisioneiros de graduação igual à do senhor Richon.

- Só há dois, senhora - respondeu o secretário. - O governador da Ilha de São Jorge, e o governador de Branne.

- Temos dois, pronto-exclamou a princesa.-A sorte, como vêem, favoreceu-nos. Estão presos, Labussière?

- Sem dúvida, senhora - respondeu o capitão das guardas. - E ambos esperam na fortaleza a ordem de comparecer.

- Compareçam, pois - afirmou a senhora de Conde.

- Qual deles se há-de ir buscar? - perguntou Labussière.

- Que venham ambos - respondeu a princesa. - Porém, principiaremos pelo primeiro que foi feito prisioneiro, pelo governador de São Jorge.

 

Ao silêncio de terror, perturbado apenas pelo ruído dos passos do capitão das guardas, que se ia afastando, e pelo sussurro continuado da multidão, seguiu-se a esta ordem, que ia lançar a rebelião dos príncipes numa senda mais terrível e mais perigosa do que aquela que até então haviam trilhado. Era, por meio de um só acto, pôr a princesa e os seus conselheiros, o exército, e, de certo modo, a cidade, fora de lei; era tornar responsável uma povoação inteira pelos interesses, e, sobretudo, pelas paixões de algumas pessoas; era fazer em ponto pequeno o que a Câmara Municipal de Paris fez a 2 de Setembro. Mas, como muito bem se sabe, a Câmara de Paris operava em ponto grande.

Nem um sopro se ouvia sussurrar na sala; todos os olhos estavam fixos na porta por onde devia entrar o prisioneiro. A princesa, para bem representar o seu papel de presidente, fingia folhear registos; o senhor de Roche-foucauld tomava uma atitude pensativa; o senhor de Bouillon conversava com a senhora Tourville acerca da sua gota, que muito o molestava.

Lenet aproximou-se da princesa para tentar o último esforço; não que tivesse alguma esperança, mas porque era um daqueles homens austeros, que cumprem um dever porque para eles é uma obrigação cumpri-lo.

- Medite bem, senhora - disse ele. - Veja o que arrisca, e que faz depender de um lance de dados o futuro da sua casa.

- Não há necessidade disso - volveu secamente a princesa.- Tenho toda a certeza de ganhar.

- Senhor duque - disse Lenet, voltando-se para Rochefoucauld - o senhor, que tão superior é às inteligências vulgares e às paixões humanas, não é verdade que aconselhará à moderação?...

- Senhor - respondeu hipocritamente o duque - estou neste mesmo instante debatendo isso com a minha razão.

- Discuta-a com a sua consciência, senhor duque - respondeu Lenet - e será muito melhor!

Nesse momento, ouviu-se um ruído surdo. Era a cancela, que tornava a fechar-se. -Esta bulha retumbou em todos os corações, visto que anunciava a chegada de um dos dois prisioneiros. Em breve se ouviriam alguns passos na escada, as alabardas ressoaram no pavimento de pedra, abriu-se a porta, e Canolles apareceu.

Nunca parecera tão elegante, nunca fora tão formoso. O seu rosto, onde reinava a serenidade, conservava a flor purpúrea da alegria e da tranquilidade. Caminhava com um passo ligeiro e sem afectação, como teria feito em casa do advogado Lavie ou do presidente Lalasne, e saudou respeitosamente a princesa e os duques.

A própria princesa ficou admirada com este perfeito desembaraço e, durante um momento, pôs-se a considerar o mancebo. Finalmente, rompeu o silêncio.

- Aproxime-se, senhor - disse ela. Canolles obedeceu, e saudou segunda vez.

- Quem é o senhor?

- Sou o barão Luís de Canolles, senhora.

- Que posto tinha no exército real?

- O de tenente-coronel.

- Não era governador da Ilha de São Jorge? -Tive essa honra.

- O que diz é a pura verdade?

- Sim, senhora.

- Escreveu as perguntas e as respostas, senhor secretário?

O secretário, inclinando-se, fez um sinal afirmativo.

- Então, assine, senhor - disse a princesa. Canolles pegou na pena, como homem que não compreende o fim para que se lhe faz uma intimação, mas que obedece por acatamento à hierarquia da pessoa que lha faz; depois assinou, sorrindo.

- Muito bem, senhor - disse a princesa. - Agora, pode retirar-se.

Canolles saudou novamente os juizes, e retirou-se com a mesma franqueza e com a mesma graça, sem manifestar nem curiosidade nem espanto.

Apenas tornara a passar a porta, e esta se fechara sobre ele, a princesa logo se levantou.

- Então, senhores? - perguntou ela.

- Então, senhora... votemos! - disse o duque de Rochefoucauld.

- Votemos! - repetiu o duque de Bouillon. Depois, voltando-se para os jurados:

- Estes senhores quererão dar o seu parecer? - acrescentou ele.

- Depois de vós, senhora - respondeu um dos burgueses.

- Não, de modo nenhum antes de vós! - exclamou uma voz estrondosa.

Esta voz tinha um tal acento de firmeza, que causou espanto a toda a gente.

- Que quer isto dizer!? - perguntou a princesa, procurando reconhecer o rosto de quem acabava de falar.

- Isto quer dizer - exclamou um homem, levantando-se, para que não houvesse dúvida alguma acerca de quem tinha falado - que eu, André Lavie, advogado do rei, conselheiro no Parlamento, reclamo, em nome do rei, e sobretudo em nome da humanidade, privilégio e segurança para os prisioneiros detidos em Bordéus sobre palavra. Por consequência, eis as minhas conclusões.

- Oh! oh! senhor advogado!... - disse a princesa, franzindo as sobrancelhas - nada de estilo forense diante de mim, porque não o entendo. O assunto em causa é um caso de sentimento, e não um miserável processo de trapaças. Suponho que cada um dos membros que compõem este tribunal não deixará de assim o compreender.

- Disse, e repito-o - afirmou Lavie, sem se perturbar com a apóstrofe da princesa. - Peço privilégio e segurança para os prisioneiros detidos sobre palavra. Isto não é estilo forense, é estilo do direito das gentes.

- E eu acrescento - exclamou Lenet - que Richon foi ouvido antes de o matarem tão cruelmente, e que, por isso, também devemos ouvir os acusados.

- E eu - disse Espagnet, o chefe de burgueses que atacara São Jorge com o senhor de Rochefoucauld - que a cidade se revoltará.

Um sussurro de fora pareceu responder a esta asserção, e confirmá-la.

- Não percamos tempo - disse a princesa. - A que havemos de condenar o acusado?

- Os acusados, senhora - disseram algumas vozes - porque são dois.

- Não lhes basta um só?... - disse Lenet, sorrindo em tom de desprezo, ao ver este sanguinolento servilismo.

- Qual, então? - repetiram as mesmas vozes.

- O mais gordo, canibais! - exclamou Lavie. - Ah! queixam-se de uma injustiça, gritam que é um sacrilégio, e querem responder a um assassínio com duas mortes!... Bela reunião de filósofos e de soldados, que se confundem com matadores!...

Os olhos chamejantes da maior parte dos juizes pareciam prontos a fulminar o corajoso advogado do rei. A princesa de Conde levantara-se, e, apoiada em ambas as mãos, parecia interrogar com os olhos os circunstantes, para se certificar se as palavras que ouvira haviam sido na realidade proferidas, e se existia no mundo um homem assaz atrevido para dizer coisas semelhantes diante dela.

Lavie compreendeu que a sua presença tudo empeçonharia, e que a sua maneira de defender os acusados, em lugar de os salvar, os deitaria a perder. Resolveu, pois, retirar-se, mas retirar-se como juiz que se escusa, e não como soldado que foge.

- Em nome de Deus- disse ele - protesto contra o que querem fazer; em nome do rei, eu proíbo-o.

E, derrubando a sua poltrona com um gesto de cólera majestosa, saiu da sala, de cabeça levantada e passo firme, como homem a que dá vigor o cumprimento de um dever, e que pouco se inquieta com as desgraças que lhe possa acarretar um dever preenchido.

- Insolente!-murmurou a princesa.

- Bom, bom!... Deixemo-lo por ora - disseram algumas vozes. - Ao senhor Lavie também lhe há-de chegar a vez...

- Vamos à votação - responderam quase unanimemente os juizes.

- Mas - disse Lenet - porque se há-de votar sem primeiro ouvir os acusados?... Talvez que um deles pareça mais culpado do que o outro; talvez que baste uma só cabeça para satisfazer a vingança que querem fazer cair sobre duas.

Neste momento, ouviu-se girar a cancela pela segunda vez.

- Não interessa - disse a princesa - votaremos sobre os dois ao mesmo tempo.

O tribunal, que já se levantara tumultuosamente, tornou a sentar-se. Novamente se ouviu o ruído dos passos e das alabardas, a porta abriu-se, e Cauvignac apareceu por seu turno.

O recém-chegado formava um notável contraste com Canolles; o seu trajo, mal reparado ainda dos insultos da populaça, tinha conservado sinais de desordem, apesar do cuidado que tivera em os disfarçar. Os seus olhos dirigiram-se com viveza aos jurados, aos oficiais, aos duques, e à princesa, volvendo-os em torno de si, e abrangendo com a vista todo o tribunal. Depois, com o ar matreiro de uma raposa, adiantou-se, sondando, por assim dizer, o terreno a cada passo que dava, com o ouvido atento, mas pálido e visivelmente inquieto.

- Vossa Alteza fez-me a honra de me chamar à sua presença?- disse ele, sem esperar que o interrogassem.

- Sim, senhor - respondeu a princesa. - Quis que me explicasse algumas coisas que lhe dizem respeito, e de que não estamos bem certos.

- Nesse caso - respondeu Cauvignac - aqui estou, senhora, pronto a responder ao favor que Vossa Alteza me fez.

E inclinou-se com o ar mais gracioso que pôde compor. Não deixava, porém, de ser visível que aquele ar era afectado.

- Isto não leva muito tempo - respondeu a princesa - sobretudo se responder de maneira positiva às perguntas que lhe fizerem.

- Cumpre-me fazer observar a Vossa Alteza - disse Cauvignac - que, sendo a pergunta sempre preparada de antemão, e a resposta não, é mais difícil responder do que interrogar.

- Oh! as nossas perguntas serão tão claras e tão explícitas, que lhe pouparemos todo o trabalho de reflexão. Como se chama?

- Eis justamente, senhora, logo para começar, uma pergunta bastante espinhosa...

- Como assim!?

- Acontece muitas vezes que temos dois nomes: o nome que recebemos da nossa família, e o nome que recebemos de nós mesmos. Por exemplo: eu julguei dever deixar o meu primeiro nome para tomar outro menos conhecido. Qual destes dois quer que declare?

- Aquele com que se apresentou em Chantilly, aquele com que se obrigou a organizar uma companhia, aquele com que a recrutou, aquele, enfim, com que se vendeu ao senhor Mazarino.

- Perdoe, senhora - disse Cauvignac - mas parece-me que já tive a honra de responder vitoriosamente a todas essas perguntas na audiência que Vossa Alteza teve a graça de me conceder esta manhã.

- Por esse motivo só o interrogo agora sobre um ponto - disse a princesa, que principiava a impacientar-se. Só lhe pergunto o seu nome!

- Ora, pois, senhora, eis precisamente uma pergunta bastante espinhosa.

- Escreva: barão de Cauvignac - disse a princesa. O acusado não fez reclamação nenhuma, e o secretário

escreveu.

- Agora, qual é a sua graduação? - interrogou a princesa. - Alegro-me por não ter dificuldade alguma em responder a esta pergunta...

- Pelo contrário, senhora, essa é precisamente uma pergunta que me parece das mais difíceis. Se me fala da minha graduação como sábio, sou bacherel em Letras, licenciado em Direito, doutor em Teologia, e respondo, como Vossa Alteza vê, sem hesitar.

- Não, senhor: falamos da sua graduação militar, do seu posto.

- Ah!... então, acerca deste ponto, é-me impossível responder a Vossa Alteza.

- Então porquê!?

- Trate, senhor, de responder positivamente acerca deste ponto, porque eu mesma o exijo.

- Pois bem: primeiramente, fiz-me tenente por minha própria autoridade; porém, como não tinha o poder de assinar a minha patente, e nunca tive mais de seis homens às minhas ordens em todo o tempo que tive esse título, creio, com razão, que não tenho o direito de me dar por tal.

- Mas eu... eu nomeei-o capitão; portanto, é capitão!

- Ah! aí está justamente onde o meu embaraço é maior, e onde a minha consciência mais clama. Toda a patente militar do Estado, disto me convenci depois, deve emanar da vontade real, para ter validade. Ora, Vossa Alteza tinha, não há dúvida, o desejo de fazer-me capitão; mas creio que lhe faltava o direito. Nesse caso, parece-me que não sou mais capitão do que tenente.

- Isso pouco importa, senhor; mas suponhamos que não tinha sido feito tenente por si mesmo, nem capitão por mim (visto que nem o senhor nem eu tínhamos poderes para assinar uma patente). Ao menos, é governador de Branne. E como desta vez foi o rei quem assinou as suas credenciais, não contestará a validade do acto...

- Eis precisamente, senhora - respondeu Cauvignac - dos três postos o que é mais contestável.

- Como! ?... - exclamou a princesa.

- Fui nomeado, concordo, porém não cheguei a entrar em exercício. O que constitui o título? Não é a posse desse título, é o desempenho das respectivas funções. Ora, eu não exerci nenhuma das funções do título a que fui elevado; não pus os pés no lugar do meu governo; não houve da minha parte princípio de execução; logo, não sou mais governador de Branne do que fora capitão antes de ser governador, e tenente antes de ser capitão.

- Contudo, senhor, foi encontrado a caminho de Branne...

- Não há dúvida; mas a cem passos do lugar onde fui preso, a estrada divide-se em duas. Um dos caminhos, vai a Branne; porém, o outro vai a Ison. Quem asseverará que eu não ia para Ison, em lugar de ir para Branne?...

- Muito bem - disse a princesa. - O tribunal apreciará a sua defesa; secretário, escreva "Governador de Branne".

- Não posso opor-me - disse Cauvignac - a que Vossa Alteza mande escrever o que lhe convier.

- Já escrevi, senhora - disse o secretário.

- Está bem. Agora, senhor - continuou a princesa, para Cauvignac - assine o seu interrogatório.

- Fá-lo-ia com o maior gosto, senhora - disse Cauvignac- e estimaria muito fazer alguma coisa que fosse do agrado de Vossa Alteza; porém, na luta que tive de sustentar esta manhã contra a populaça de Bordéus (luta de que Vossa Alteza tão generosamente me salvou pela intervenção dos seus mosqueteiros) tive a infelicidade de torcer o punho direito, e sempre me foi impossível escrever com a mão esquerda.

- Mencione a recusa do acusado, senhor - disse a princesa ao secretário.

- A impossibilidade, senhor: escreva a impossibilidade - emendou Cauvignac. - Deus me livre de recusar alguma

coisa a uma tão grande princesa como é Vossa Alteza, se essa coisa estivesse em meu poder.

E Cauvignac, saudando com o mais profundo respeito, saiu acompanhado dos seus dois guardas.

- Parece-me que tem razão, senhor Lenet - disse o duque de Rochefoucauld - e que nós é que fizemos mal em aproveitarmos os serviços deste homem.

Lenet estava muito ocupado para responder. Desta vez, a sua costumada perspicácia tinha-o servido mal; esperava que Cauvignac chamasse sobre si toda a cólera do tribunal; porém, Cauvignac, com os seus eternos subterfúgios, divertira mais os juizes do que os irritara. O seu interrogatório não fizera mais do que destruir todo o efeito que produzira o de Canolles, se é que tinha produzido algum, e a nobreza, a franqueza, a lealdade, do primeiro prisioneiro, tinham, se assim se pode dizer, desaparecido submersas pelas astúcias do segundo. Cauvignac fizera esquecer todo o interesse que Canolles podia ter inspirado.

Eis a razão por que, quando votaram, a unanimidade dos votos foi pela pena de morte.

A princesa mandou verificar os votos, e, levantando-se, proferiu com solenidade a sentença que acabavam de dar.

Depois, cada um foi assinar no registo das deliberações. O duque de Enghien em primeiro lugar (pobre menino, que não sabia o que assinava, e cuja primeira assinatura ia custar a vida de um homem); depois, a princesa; após ela, os duques, as damas do conselho, os oficiais, e, por fim, os jurados; desta maneira, toda a gente tomara parte nas represálias. Nobreza, burguesia, exército e Parlamento. Seria preciso castigar toda a gente; ora, é bem sabido de todos que, quando é preciso castigar toda a gente, em geral não se castiga ninguém.

Depois de todos terem assinado, a princesa, que finalmente conseguira vingar-se, e cujo orgulho estava muito lisonjeado com esta vingança, foi ela mesmo a abrir a janela que já fora aberta duas vezes, e, cedendo às obrigações da popularidade, que muito desejava alcançar, disse em voz bem alta:

- Senhores bordeleses, Richon será vingado! E de um modo digno... Tenham confiança em nós.

Esta declaração foi recebida com uma estrondosa algazarra, e o povo espalhou-se pelas ruas, ditoso de antemão com o espectáculo que lhe prometia a palavra da princesa.

Porém, mal a senhora de Conde voltou para o seu gabinete com Lenet, que a seguia tristemente, esperando ainda fazê-la mudar de resolução, eis que a porta se abriu, e a senhora de Cambes, pálida e lacrimosa, foi prostrar-se aos seus joelhos.

- Oh, senhora! - disse ela - em nome do céu, ouca-me! Em nome do céu, não rejeite a minha súplica!

- Então que tens, minha filha!? - perguntou a princesa- porque choras desse modo!?

- Choro, senhora, porque soube que votaram pela morte, e que confirmou aquele voto; e, contudo, não pode mandar matar o senhor de Canolles.

- E por que razão, minha querida?... Não mandaram eles matar Richon?...

- Mas, senhora, não foi este mesmo senhor Canolles quem salvou a Vossa Alteza em Chantilly?...

- Acaso devo eu ficar-lhe obrigada por se haver deixado enganar pela nossa astúcia?...

- Senhora, aí está o erro: o senhor de Canolles não foi enganado um só instante naquela situação. À primeira vista de olhos tinha-me reconhecido. -A ti, Clara?

- Sim, senhora. Nós tínhamos feito parte do caminho

(juntos, o senhor de Canolles conhecia-me. Enfim, o senhor de Canolles estava enamorado de mim: e naquelas circunstâncias, senhora... talvez ele tenha agido mal, porém não lhe compete a si criticá-lo por tal motivo... naquelas circunstâncias sacrificou o dever ao amor. -Então é a ele que amas? - Sim, senhora - disse a viscondessa.

- Com ele é que vieste pedir-me licença para casares?

- Sim, senhora.

- Como assim?...

- Era o próprio senhor de Canolles - exclamou a viscondessa. - O senhor de Canolles que a mim se entregou em São Jorge, e que se não fora eu sepultar-se-ia com os soldados de Vossa Alteza debaixo das ruínas do forte, que pretendia atirar aos ares... O senhor de Canolles, finalmente, que podia fugir, e que me entregou a espada para se não separar de mim. Compreende, pois, que se ele morrer, é preciso que eu morra também, senhora, porque sou a causa da sua morte!

- Minha querida - disse a princesa, com uma certa comoção - repara que me pedes uma coisa impossível. Richon morreu, e é preciso que seja vingado! Tomou-se uma deliberação, cumpre que se execute; ainda que meu esposo me pedisse o que tu me pedes, recusar-lho-ia.

- Oh! infeliz, infeliz de mim! - exclamou a senhora de Cambes, caindo redonda no chão, e debulhando-se em lágrimas. - Fui eu quem perdeu o meu amante.

Então, Lenet, que ainda não tinha falado, aproximou-se da princesa.

- Senhora - disse ele - não lhe basta, pois, uma vítima, e quer duas cabeças para vingar a do senhor Richon.

- Ah! ah! - exclamou a princesa. - Senhor homem severo, isto quer dizer que me pede a vida de um e a morte de outro. É isso justo, diga-mo?

- Senhora; é justo, quando têm de morrer dois homens, que morra um só, se possível, na suposição de que uma boca possa ainda soprar a luz acesa pela mão de Deus. Além disso, se pode fazer-se uma escolha, é justo que o homem honrado seja salvo, de preferência ao intriguista. É preciso ser judeu para pôr em liberdade a Barrabás, e crucificar um Jesus...

- Oh! senhor Lenet, senhor Lenet - exclamou Clara - fale em meu favor, eu peço-lhe. É homem, e talvez

o ouçam; senhora - continuou ela, voltando-se para a princesa - lembre-se que passei a minha vida ao serviço da sua causa.

- E eu também - disse Lenet. - E, contudo, por trinta anos de fidelidade, nada pedi ainda a Vossa Alteza; porém, nesta ocasião, se Vossa Alteza não tiver compaixão, pedir-lhe-ei em recompensa desses trinta anos de fidelidade, um só favor.

- Qual?

- O de permitir a minha demissão, senhora, a fim de ir lançar-me aos pés do rei, a quem consagrarei o resto da minha existência, que eu fizera voto de empregar no serviço da sua causa.

- Ora, pois - exclamou a princesa, vencida por estes duplicados rogos - não me ameaces, meu velho amigo.

 

Não chores, minha doce Clara, sosseguem ambos, por fim; um só morrerá, já que assim o querem, mas não me venham depois pedir a graça daquele que for destinado à morte. Clara tomou a mão da princesa, e cobriu-a de beijos.

- Oh! muito obrigada, muito obrigada, senhora - disse ela. - Desde este momento, a minha vida e a dele são suas.

- Procedendo assim, senhora - disse Lenet - será ao mesmo tempo justa e misericordiosa, o que, até agora, só foi privilégio de Deus.

- Oh! agora, senhora - exclamou Clara impaciente -posso ir vê-lo? Posso ir libertá-lo?

- Uma tal demonstração, neste momento, é impossível - disse a princesa. - Estragaria tudo. Deixemos os prisioneiros na prisão; far-se-ão sair ao mesmo tempo, um, para a liberdade, o outro, para a morte.

- Mas não posso eu ir vê-lo, sossegá-lo, consolá-lo ao menos? - perguntou Clara.

- Sossegá-lo, minha querida - disse a princesa -julgo que não tem o direito de fazê-lo: a populaça saberia qual fora a sentença, e faria comentários ao favor que lhe faço; não, impossível, contente-se em saber que está salvo. Eu anunciarei aos dois duques a minha decisão.

- Ora, pois, resigno-me. Muito obrigada, muito obrigada, senhora! - exclamou Clara.

E a senhora de Cambes retirou-se para chorar em liberdade e para agradecer a Deus, do íntimo do seu coração, que transbordava de alegria e de reconhecimento.

 

AMBOS os prisioneiros de guerra ocupavam quartos na mesma fortaleza. Estes dois quartos eram contíguos e térreos; porém, os quartos térreos das prisões podem passar por terceiros andares. As prisões não principiam como as outras casas, do solo para cima; têm, em geral, dois andares de masmorras subterrâneas.

Cada porta da prisão era guardada por um piquete de homens escolhidos entre os guardas da princesa; porém ia populaça, tendo visto aqueles preparativos que satisfaziam o seu desejo de vingança, fora-se pouco a pouco afastando das proximidades da prisão, para onde se dirigira quando soubera que Canolles e Cauvignac acabavam de ser para ali conduzidos. Então, os piquetes postados no corredor interior, mais para defender os prisioneiros contra o furor popular do que com receio de que se evadissem, afastaram-se.

- Com efeito, o povo, não tendo já nada que ver no lugar onde se achava, dirigira-se naturalmente para a praça central! As palavras lançadas do alto da sala do

Conselho à multidão, tinham-se no mesmo instante espalhado pela cidade; cada um comentava-as à sua maneira, porém, o que elas indicavam de mais claro, é que haveria algum terrível espectáculo naquela mesma noite, ou no dia seguinte o mais tardar; era um incentivo extra, para a populaça, não saber precisamente o que devesse esperar daquele espectáculo, porque, assim, restava-lhe o atractivo do inesperado.

Artistas, burgueses, mulheres e crianças, corriam, pois, para as muralhas, e o luar não principiaria senão à meia-noite; muitos levavam um archote na mão. Por outro lado, quase todas as janelas estavam abertas e em muitas havia lanternas e lampiões, como é costume nos dias de festa. Contudo, a julgar pelo rosto espantado dos curiosos, pelas patrulhas a pé e a cavalo que umas às outras se iam sucedendo, fácil seria compreender não ser uma festa normal, a que se anunciava com tão lúgubres preparativos.

De vez em quando, gritos furiosos partiam dos grupos que se formavam com uma rapidez só possível por influência de certos acontecimentos. Esses gritos eram a repetição dos que, por duas ou três vezes, haviam penetrado no interior do tribunal.

- Morram os prisioneiros! Seja vingado Richon!

Tais gritos, os clarões e o estrépito de cavalos, arrancaram a senhora de Cambes à sua oração; chegara à janela e examinava com terror todas aquelas mulheres, de olhos furibundos, dando berros selvagens, que pareciam outras tantas feras lançadas num circo, chamando com os seus rugidos as vítimas humanas que hão-de devorar; perguntava a si mesma, como era possível que tantos entes, a quem os dois prisioneiros nunca haviam feito mal algum, pedissem com tal encarniçamento a morte de ambos; e não sabia que explicação dar a si própria, pobre mulher, que das paixões humanas só conhecia as que agradam ao coração.

Da janela onde estava, para além das casas e dos jardins, a senhora de Cambes via aparecer o topo das altas

e sombrias torres da fortaleza. No respectivo interior estava Canolles, e ali se fixavam especialmente os seus olhos. Contudo, não podia evitar que, de vez em quando, se dirigissem esses olhos para a rua, e então via aquelas cataduras ameaçadoras, ouvia aqueles gritos de vingança, e um frio de morte percorria-lhe as veias.

- Oh! - dizia ela - por mais que me proíbam que o veja, tenho de arranjar processo de ir ter com ele. Poderia julgar que o esqueço, poderia acusar-me, poderia amaldiçoar-me. Oh! cada momento que passa sem que descubra o meio de sossegá-lo, parece-me uma traição; é impossível conservar-me nesta inacção, quando talvez me chama em seu auxílio. Oh! é preciso que o veja... Sim, mas como hei-de vê-lo? Oh! meu Deus! Quem me conduzirá àquela prisão? Qual o poder que me abrirá as portas? A senhora princesa recusou-me licença para lá entrar, mas acabava de conceder-me tanto, que bem podia fazer-me mais isso. Há guardas, há inimigos em volta daquela fortaleza; uma povoação inteira que ruge, fareja a carniça, e que não quer que lhe arranquem a presa; hão-de pensar que quero fazer com que fuja, e salvá-lo; oh! sim, salvá-lo-ia, se ele já não estivesse protegido pela palavra de Sua Alteza. Se lhes dissesse que quero simplesmente vê-lo, não acreditariam, e recusar-mo-iam. Além disso, tentar semelhante empresa contra a vontade da senhora princesa, não seria arriscar-me a perder o favor conquistado? Não será expor-me a que ela se desligue da palavra que me deu? E, todavia, deixá-lo passar assim, em angústia, as longas horas da noite; oh! sinto por ele, e por mim sobretudo: isso não é possível! Imploremos a Deus, e Deus talvez me inspire.

E então, a senhora de Cambes foi pela segunda vez ajoelhar-se diante do crucifixo, e rezou com um fervor que teria comovido a própria senhora princesa, se a tivesse podido ouvir.

- Oh! não irei lá, não irei lá - dizia a dama - pois compreendo perfeitamente que não é possível lá ir. Talvez que ele me acuse toda a noite... Porém, o dia de amanhã... sim, o dia de amanhã... não é verdade, meu Deus, que me absolverá junto dele?

Entretanto, o alarido, a exaltação da multidão, que ia sempre aumentando, os reflexos de uma luz sinistra que, como relâmpagos, penetrava e iluminava intervaladamente o seu quarto, que ficara na escuridão, causava-lhe um tal susto, que tapou os ouvidos com as mãos, e encostou os olhos cerrados à almofada do genuflexório.

Então, a porta abriu-se, sem que ela reparasse, e um homem entrou; parou um instante no limiar da porta, fixando nela um olhar de afectuosa compaixão, e, vendo estremecerem dolorosamente os ombros da jovem senhora, agitada por soluços, aproximou-se dando um suspiro, e pousou-lhe a mão no braço.

Clara levantou-se, assustada.

- Senhor Lenet... - disse ela - senhor Lenet, ah! pois então não se esqueceu de mim?

- Não - retorquiu ele. - Lembrei-me de que a senhora não estava ainda suficientemente acalmada e tive a ousadia de vir ter consigo para perguntar-lhe se podia ser-lhe útil em alguma coisa.

- Oh! querido senhor Lenet - exclamou a viscondessa

- como é bom, quanto lhe agradeço!

- Parece-me que não me enganei - disse Lenet. - Raras vezes nos enganamos, meu Deus, quando pensamos que as criaturas sofrem - acrescentou ele, com um sorriso melancólico.

- Oh! sim - exclamou Clara - sim, fala verdade: eu sofro!

- Mas não obteve o que desejava, senhora? E mais ainda do que eu mesmo esperava, confesso-lho, com franqueza.

- Sim, não há dúvida. Mas...

- Mas... entendo. Está assustada por ver a alegria da populaça sequiosa de sangue, e cornpadece-se pela sorte do outro desgraçado, que vai morrer em lugar do seu amante?

Clara ergueu-se, sobre os joelhos, e ficou um instante imóvel, pálida, e com os olhos fitos em Lenet; depois, levou a sua mão gelada à testa coberta de suor.

- Ah! perdoe-me! ou, para melhor dizer, amaldiçoe-me

- disse ela. - Sou egoísta, e nem sequer em tal pensara. Não, Lenet, não; confesso-lhe com toda a humildade do meu coração: estes sustos, estas lágrimas, estas orações são por aquele que deve viver. É que, inteiramente absorta no meu amor, havia-me esquecido daquele que vai morrer!

Lenet sorriu-lhe, com tristeza.

- Sim- disse ele- é natural, porque é próprio da natureza humana. Talvez que do egoísmo dos indivíduos dependa a salvação das massas. Cada um traça em torno de si e dos seus um círculo, com uma espada. Vamos, vamos, senhora - continuou ele - faça a sua confissão até ao fim. Confesse francamente que tardou a pensar no infeliz que vai sofrer tão triste destino, porque, com a morte, o desgraçado assegura a vida do seu desposado!

- Oh! eu ainda não tinha pensado em tal, Lenet, juro-Lhe. Mas não force o meu espírito a debruçar-se nesse ponto, porque amo-o tanto, que não sei o que seria capaz de desejar, arrastada pela loucura do meu amor.

- Pobre menina! - disse Lenet, em tom de profunda compaixão. - Porque não disse isso há mais tempo?

- Oh! meu Deus! Assusta-me. Será, pois, demasiado tarde, e ainda não estará inteiramente salvo?

- Está salvo - replicou Lenet - visto que a princesa de Conde deu a sua palavra; mas...

- Mas, o quê?...

- Mas, ah! podemos nós ter jamais a certeza de alguma coisa neste mundo? E a senhora, que, tal como eu, julga-o salvo: não chora em vez de estar alegre?

- Eu choro, porque não o posso visitar, meu amigo - respondeu Clara. - Repare em que ele deve ouvir estas horrorosas vociferações, e julgar iminente o seu perigo; note que pode acusar-me de esquecimento e de traição. Oh! Lenet, que suplício! Na verdade, se a princesa soubesse como sofro tanto, teria compaixão de mim.

- Ora, pois, viscondessa - disse Lenet - é preciso vê-lo.

- Vê-lo! É impossível! Sabe muito bem que, para isso, pedi licença a Sua Alteza, e que Sua Alteza ma recusou.

- Bem sei, até aprovo, no íntimo do coração, o que ela fez; e contudo...

- E, contudo, exorta-me à desobediência! - exclamou Clara, muito admirada, cravando os olhos em Lenet, que, turbado com aquele olhar, baixou os seus.

- Eu sou velho, querida viscondessa - disse ele - e precisamente porque sou velho, sou também desconfiado. Não nesta ocasião, porque a palavra da princesa é sagrada; só um dos prisioneiros tem de morrer. Ela assim o disse. Acostumado, porém, ao longo de uma larga vida, a ver ser tolhido pelo infortúnio aquele que mais favorecido se julga pela fortuna, tenho adoptado o princípio de que se deve sempre aproveitar a ocasião, quando ela se oferece. Vá ver o seu noivo, viscondessa, vá vê-lo, acredite-me.

- Oh! - exclamou Clara-juro-lhe que me assusta, Lenet.

- Não é essa a minha intenção; além disso, levaria a senhora a bem que a aconselhasse a que o não fosse ver?

: Não, na verdade. E, sem dúvida, criticar-me-ia muito mais se tivesse vindo dizer-lhe o contrário do que lhe afirmo.

- Oh! sim, confesso que sim. Porém, fala-me em vê-lo. Esse era o meu único desejo, era a súplica que dirigia a Deus, quando chegou. Todavia, não é isso uma coisa impossível ?

- Há porventura alguma coisa impossível para a mulher que tomou São Jorge? - perguntou Lenet, sorrindo.

- Ai de mim! - disse Clara. - Há duas horas que penso no processo de penetrar na fortaleza, e ainda não o achei.

- E se eu lho oferecer - interrogou Lenet - que me dará em troca?

- Dar-lhe-ei... Oh! sim, dar-lhe-ei a mão, no dia em que me encaminhar com ele ao altar.

- Muito obrigado, minha querida - disse Lenet.- Tem razão, pois, com efeito, eu amo-a como se fora seu pai. Muito obrigado.

- O processo! O processo!

- É este. Eu pedi à senhora princesa uma licença para entrar na prisão, a fim de falar aos prisioneiros, porque, se houvesse algum meio de salvar o capitão Cauvignac, bem quereria eu trazer esse homem ao nosso partido; porém, agora, esta licença torna-se inútil, visto que, com as suas súplicas em favor do senhor de Canolles, acaba de condená-lo à morte.

Clara estremeceu a seu pesar. -Fique, pois, com este papel - continuou Lenet.-Não tem nome algum, como bem vê.

Clara pegou no documento, e leu:

O carcereiro da fortaleza deixará comunicar o portador desta com aquele dos dois prisioneiros de guerra a quem quiser falar, e isso pelo espaço de meia hora.

Clara Clemência de Conde.

- Possui um trajo de homem - disse Lenet. - Vista-o. Tem a licença para entrar, faça uso dela.

- Pobre oficial! - murmurou Clara, não podendo expulsar do seu pensamento a ideia de Cauvignac executado em lugar de Canolles.

- Tem de sujeitar-se à lei comum - respondeu Lenet. - Se fraco, é devorado pelo forte; se sem protecção, paga

por aquele que é protegido. Lamentá-lo-ei, pois é um moço de espírito. Clara, contudo, virava e revirava o papel entre as mãos.

- Não sabe - disse ela - que me tenta cruelmente com esta licença? Não sabe que, uma vez que tenha o meu pobre amigo entre os meus braços, sou capaz de levá-lo ao fim do mundo?

- Aconselhar-lho-ia, senhora, se isso fosse possível; porém, essa licença não é uma carta branca, e, portanto, só para entrar na prisão pode ser-lhe útil.

- É verdade - disse Clara, tornando a ler. - E, todavia, concederam-me o senhor de Canolles; ele pertence-me! Não mo podem já arrancar!

- E por isso ninguém pensa em tal coisa. Vamos, vamos, senhora, não perca tempo; vista o seu trajo de homem, e parta. Esta licença concede-lhe meia hora; é muito pouca coisa. Porém, depois desta meia hora, virá a vida toda. É jovem, a vida será longa, Deus a faça feliz!

Clara pegou na mão de Lenet, e deu-lhe um beijo na fronte, como teria feito ao mais terno pai.

- Vá, vá - disse Lenet, afastando-a suavemente - não perca mais tempo; quem ama verdadeiramente, não tem resignação.

Depois, vendo-a passar para outro quarto, onde Pompeu, chamado por ela, a esperava para ajudá-la a mudar de trajo, murmurou, sozinho:

- Infelicidade! Quem sabe?

 

OS gritos, as ameaças e a agitação da populaça não tinham, com efeito, escapado a Canolles. Da grade da sua janela pudera, por seu turno, admirar o quadro movimentado e colorido que se desenrolava perante os seus olhos, e que, de uma extremidade à outra da agitada cidade, era o mesmo por toda a parte.

- Por Deus! - dizia ele - que contratempo malvado! . Aquela morte de Richon... pobre Richon! Era um bravo

oficial; a morte dele decerto veio redobrar o rigor do cativeiro; não me deixarão já correr a cidade, como dantes; nada já de encontros aprazados, nada já de casamento, a não ser que Clara se contente com a capela de uma prisão. Que remédio terá, senão dar-se com isso por satisfeita. Tão bem casados ficamos numa capela como noutra. Contudo, sempre é um triste agoiro... Porque diabo não haviam de receber esta notícia amanhã, em vez de a receberem hoje?

Depois, aproximando-se da sua janela, e inclinando-se para olhar:

- Que vigilância! - continuou ele. - Duas sentinelas. E que moléstia, pensar que tenho de estar aqui encurralado oito dias, quinze dias talvez, até que ocorra algum acontecimento que faça esquecer este. É uma felicidade, que os acontecimentos se sucedam uns aos outros rapidamente, no tempo em que estamos, e que os bordeleses tenham cabeça leviana. Entretanto, não deixarei de ter passado momentos muito desagradáveis. Pobre Clara! Deve estar desesperada; é uma sorte, ela saber que fui preso. Oh, sim, sabe-o, e, por conseguinte, que não há culpa da minha parte. Mas aonde diabo vai toda esta gente? Parece que se encaminham para a esplanada! Contudo, lá não há agora nem parada nem execução nenhuma; todos se dirigem para o mesmo lado. Poder-se-ia na verdade dizer que sabem que aqui estou, como um urso atrás das grades...

Canolles deu alguns passos pela divisória, de braços cruzados; as paredes de uma verdadeira prisão haviam-no atirado momentaneamente para as ideias filosóficas, com as quais pouco se preocupava normalmente.

- Pode haver coisa mais louca do que a guerra? - dizia ele, consigo. - Aí está, morto, o pobre Richon, com quem jantei há poucos meses. Ter-se-á feito matar sobre as suas peças de artilharia aquele homem intrépido, como eu o devera ter feito, e como efectivamente o faria, se outro que não fosse a viscondessa me tivesse sitiado. Esta guerra das mulheres é, na realidade, a mais temível de todas as guerras. Pelo menos, da minha parte, em nada contribuí para a morte de algum amigo. Deus seja louvado! Não desembainhei a minha espada contra um irmão; e isto me consola. Vamos, ao mau génio tutelar feminino é que também devo essa ventura; ora, tudo bem ponderado, a ele é que devo muitas coisas.

Neste momento, entrou um oficial, e interrompeu o solilóquio de Canolles.

- Quer cear, senhor? - disse-lhe ele. - Nesse caso, dê as suas ordens, pois o carcereiro também as recebeu para lhe mandar aprontar a comida que quiser.

- Vamos, vamos - disse Canolles - parece que, pelo menos, estão resolvidos a tratar-se honrosamente todo o tempo que aqui me demorar. Durante alguns momentos, receei o contrário, vendo o rosto afectado da princesa e a catadura carrancuda de todos os seus assessores...

- Espero a sua resposta - repetiu o oficial, inclinando-se.

- Ah! tem razão, peço-lhe desculpa. A sua pergunta, dada a extrema polidez com que foi feita, deu-me lugar a fazer certas reflexões... Tornemos, pois, ao nosso assunto: sim, senhor, desejo cear, tenho muita fome; porém, sou habitualmente sóbrio, e bastar-me-á uma ceia de soldado.

- Agora - replicou o oficial, aproximando-se dele e dando mostras de interesse - não tem alguma recomendação a fazer... na cidade... não espera alguma coisa? Disse que é soldado; eu também sou; disponha, pois, de mim como de um camarada.

Canolles olhou para o oficial com espanto.

- Não, senhor - disse - nenhuma recomendação tenho a fazer na cidade; não, nada espero, a não ser uma pessoa que não posso nomear. Quanto a dispor de si como de um camarada, agradeço-lhe o seu oferecimento. Aqui tem a minha mão, senhor; e mais tarde, se precisar de alguma coisa, aproveitar-me-ei da sua vontade.

Desta vez, foi o oficial quem olhou para Canolles com assombro.

- Muito bem, senhor - disse ele. - Dentro de um momento, será servido.

E retirou-se.

Um instante depois, dois soldados entraram trazendo a ceia, que logo serviram, e que era mais delicada do que Canolles recomendara. Sentou-se à mesa, e comeu com bom apetite.

Os soldados, por seu turno, olharam para ele com espanto. Canolles tomou aquele espanto por inveja que tinham da sua ceia, e, como o vinho era do melhor da Guiena:

- Meus amigos - disse ele - peçam dois copos.

Um dos soldados saiu, e voltou com dois copos.

Canolles encheu-os; depois, deitou algumas gotas de vinho no seu.

- À vossa saúde, meus amigos - disse ele.

Os soldados pegaram nos copos, tocaram maquinalmente no de Canolles e beberam, sem corresponder ao seu brinde.

"Não são cortezes - disse consigo Canolles - porém, bebem bem; alguma coisa lhes havia de faltar, não se pode ter tudo."

E continuou a ceia, comendo com desfastio.

Logo que concluiu, pôs-se em pé, e os soldados levantaram a mesa.

O oficial tornou a entrar.

- Ah! na verdade, senhor - disse-lhe Canolles - bem podia ter ceado comigo: a ceia era muito boa.

- Eu não podia ter essa honra, senhor, visto que há só um instante me levantei da mesa. Eu volto...

- Para me fazer companhia? - disse Canolles. – Se assim é, aceite os meus agradecimentos, senhor, pois é suma bondade da sua parte.

- Não, senhor; a minha missão é menos agradável. Venho para preveni-lo de que não há nenhum padre protestante na prisão, e que o capelão é católico. Ora, como sei que é protestante, e esta diferença no culto talvez lhe desagrade...

- A mim, senhor? Por que motivo? - perguntou ingenuamente Canolles.

- Para rezar as suas orações - respondeu o oficial, confundido já.

- As minhas orações! está bem - disse Canolles, rindo - pensarei nisso amanhã; só costumo rezar pela manhã.

O oficial olhou para Canolles com um assombro que se foi transformando em profunda comiseração. Saudou-o, e saiu.

- Parece-me - disse Canolles - que toda a gente anda desatinada. Desde a morte daquele pobre Richon, todas as pessoas que encontro parecem loucas ou furiosas. Com todos os diabos! Não vejo num só rosto alguma coisa de razoável.

Apenas acabava de proferir estas palavras, quando a porta da prisão se abriu de novo, e, antes que pudesse reconhecer quem era, uma pessoa precipitou-se nos seus braços, e inundou-lhe o rosto de lágrimas.

- Eis outro louco! - exclamou o prisioneiro, soltando as mãos. - Parece que estou num manicómio.

Porém, com o movimento que fez para recuar, deitou ao chão o chapéu do desconhecido, e os lindos cabelos louros da senhora de Cambes caíram-lhe nos ombros.

- Assenhora aqui? - exclamou Canolles, correndo para ela a fim de a tomar de novo nos seus braços.-Ah! perdoe-me de não a ter reconhecido, ou, para melhor dizer, de não a ter adivinhado.

- Silêncio! - disse ela, apanhando o chapéu, e pondo-o muito depressa na cabeça, - silêncio! porque se soubessem quem sou eu, talvez me tornassem a privar da minha ventura. Enfim, ainda me é. permitido vê-lo! Oh! meu Deus, meu Deus, quanto sou ditosa!

E Clara, sentindo dilatar-lhe o peito, rompeu em estrondosos soluços.

- Ainda! - repetiu Canolles. - Ainda lhe é permitido ver-me, não foi isso o que disse? E disse-o chorando! Então, não devia tornar a ver-me? - continuou ele, sorrindo.

- Oh! não se ria, meu amigo - disse Clara - essa alegria atormenta-me. Não ria, pelo amor de Deus. Custou-me tanto chegar aqui; se o soubesse! E por pouco não deixei de vir! Se não fosse aquele excelente homem... Mas, falemos de si, pobre amigo. Oh meu Deus! Está, pois, aqui? Consigo é que torno a encontrar-me?... É a si que ainda posso apertar ao coração!

- Sim, sim! não há dúvida de que sou eu, e com toda a certeza - assegurou Canolles, sorridente.

- Mas - disse Clara - é inútil, é escusado afectar um ar alegre, pois tenho conhecimento de tudo. Não sabiam que eu o amava, e, portanto, não me ocultaram coisa alguma.

- Então, o que é que sabe? - perguntou Canolles.

- Não é verdade - continuou a viscondessa - que me esperava? Que estava descontente com o meu silêncio? que já me acusava?

- Eu, atormentado, descontente! Sem dúvida que o estava, mas não a acusava; o que suspeitava era de que alguma circunstância mais forte do que a sua vontade a afastava de mim, e a minha maior desgraça, em tudo isto, era ver que o meu casamento tinha de ser adiado, transferido para daqui a oito ou quinze dias, talvez.

Foi a vez de Clara olhar para Canolles, com o mesmo espanto de que o oficial dera provas, momentos antes.

- Será possível - disse ela - que fale seriamente? Ou não está, na realidade, mais assustado do que mostra?

- Eu, assustado! - disse Canolles. - Assustado de quê? Por acaso - continuou ele, rindo - corro algum risco sem que o saiba?

- Oh! meu Deus! que desgraça! - exclamou ela. -Não sabe coisa alguma.

Depois, receando sem dúvida revelar repentinamente toda a verdade ao homem a quem essa verdade ameaçava com tanta crueldade, suspendeu, por um violento esforço sobre si mesma, as palavras que lhe haviam saltado do coração aos lábios.

- Não, eu nada sei - disse gravemente Canolles. - Mas vai dizer-me tudo, não é assim? Sou homem. Fale, Clara, fale!

- Sabe que Richon morreu - disse ela.

- Sim - respondeu Canolles. - Bem o sei.

- Mas sabe como morreu?

- Não, mas tenho as minhas suspeitas. Morreu no seu posto, não é verdade, na brecha de Vayres?...

Clara guardou silêncio por um momento; depois, grave, como um lúgubre dobrar de sino:

- Foi enforcado em Libourne - disse ela.

Canolles deu um salto para trás.

- Enforcado!-exclamou ele.-Richon, um soldado ?... Depois, empalidecendo repentinamente, e passando pela

testa a trémula mão:

- Ah! agora compreendo tudo - disse ele. - Agora sei qual é o motivo da minha prisão, do meu interrogatório; compreendo as palavras do oficial, e o silêncio dos soldados; compreendo o passo que deu e as suas lágrimas, vendo-me tão alegre; compreendo, finalmente, a populaça, aqueles gritos e aquelas ameaças. Richon foi assassinado! E em mim querem vingar Richon...

- Não! não! meu amado! não! pobre amigo do meu coração! - exclamou Clara, radiante de alegria, pegando em ambas as mãos de Canolles, e cravando os olhos nos dele.-Não! não é a ti que vão sacrificar, querido prisioneiro! Não te enganaste! Tinham-te na realidade designado! Estavas condenado; ias morrer! Viste a morte de muito perto, meu querido noivo! Porém, sossega, podes rir agora; podes falar de felicidade e de futuro! Aquela que te há-de consagrar toda a vida, salvou a tua! Alegra-te!... mas em voz baixa, porque poderás acordar o teu infeliz companheiro, aquele sobre quem vai cair a tempestade, aquele que deve morrer em teu lugar!

- Oh! Cale-se, cale-se, querida amiga! Enche-me de horror - disse Canolles, que, apesar das ardentes carícias de Clara, ainda não estava refeito totalmente do terrível golpe que acabava de receber. - Eu, tão sossegado, tão sereno, tão loucamente alegre, corria o risco de morrer! E então, quando? Em que momento? Justos céus! quando estava para ser seu esposo. Oh! pela minha alma, teria sido um duplo assassínio.

- Chamam a isso represálias - disse Clara, - Sim, sim; é verdade, eles têm razão. - Para quê, tornar-se agora sombrio e pensativo? - Oh! - exclamou Canolles - não é da morte que tenho medo; porém, a morte separar-me-ia de si.

- Se tivesse morrido, meu bem amado, eu também teria morrido. Porém, em lugar de se entristecer assim, alegre-se, comigo. Esta noite, talvez daqui a uma hora, | sairá da prisão. Então, ou eu mesma virei buscá-lo, ou esperá-lo-ei à saída. Depois, sem perdermos um minuto, sem perdermos um segundo, fugiremos. Oh! no mesmo instante; não quero esperar. Esta maldita cidade aterra-me! Hoje, ainda pude salvá-lo; porém, amanhã, quem sabe se alguma outra desgraça inesperada não viria ainda roubá-lo aos meus braços!

- Ah! - exclamou Canolles - não sabe, minha amada Clara, que me dá demasiada ventura de um só golpe. Oh! sim, na verdade, demasiada ventura, isto mata-me...

- Pois então - exortou Clara - recobre o seu à-vontade e alegria.

- Mas recobre também o seu... -Bem vê que estou sorridente.

- E esse suspiro?

- Este suspiro, meu amigo, é pelo infeliz que paga com a vida a nossa alegria.

- Sim, sim, tem razão. Ah! porque não pode levar-me neste mesmo instante! Vamos, meu bom anjo, abra as suas asas, e leve-me.

- Tenha paciência, meu querido esposo; amanhã o levarei!... Para onde, não sei; para o paraíso do nosso amor. Entretanto, aqui estou!...

Canolles tomou-a nos braços, apertou-a ao seu peito, e ela, segurando-se com ambas as mãos ao pescoço do mancebo, deixou-se cair arquejante sobre aquele coração, que, comprimido por tantos sentimentos diversos, apenas palpitava.

Repentinamente, e pela segunda vez, um doloroso soluço lhe subiu do peito aos lábios, e, por muito feliz que fosse, Clara inundou de lágrimas o rosto de Canolles, que se inclinara sobre o seu seio.

- Então! - disse ele - é essa a sua alegria, meu anjo?

- É o resto da minha dor.

Neste momento, a porta abriu-se, e o oficial, que já ali fora, avisou-os de que a meia hora que concedia a licença, já tinha expirado.

- Adeus - disse Canolles - ou esconde-me numa prega do teu capote e leva-me contigo.

- Pobre amigo - replicou ela em voz baixa - não fale, pois dilacera-me o coração! Não vê quanto desejaria poder fazê-lo? Tenha paciência, por amor de si, sobretudo por amor de mim; dentro de algumas horas, temos de reunir-nos para nunca mais nos separarmos.

- Tenho paciência - disse alegremente Canolles, sossegado de todo com esta promessa. - Mas é preciso que nos separemos; eis pois, ânimo. A palavra adeus, digamo-la: adeus, Clara! adeus!

- Adeus - disse ela tentando, sorrir - ad...

Mas não pôde acabar a palavra cruel; pela terceira vez, os soluços sufocaram-lhe a voz.

- Adeus! adeus! - exclamou Canolles enlaçando de novo a viscondessa, e cobrindo-lhe a fronte de ardentes beijos. - Adeus!

- É uma felicidade - disse consigo o oficial - saber eu que o pobre mancebo já não tem grande coisa que temer, quando não, aí estava uma cena que me despedaçaria o coração.

O oficial foi acompanhar Clara até à porta, e voltou.

- Agora, senhor - disse ele a Canolles, que se deixara cair sobre uma cadeira, ainda não serenado das suas comoções - não basta ser feliz, cumpre também ser compadecido. O seu vizinho, o seu infeliz companheiro, aquele que vai morrer, está só; ninguém o protege, ninguém o consola, diz que deseja vê-lo. Eu, da minha parte, concedi-lhe o que pedia; mas é também preciso que o senhor consinta também.

- Consinto! - exclamou Canolles, sem a mínima dúvida. - Pobre desgraçado, espero-o, e abro-lhe os braços! Não o conheço, mas não importa.

- Contudo, ele parece conhecê-lo.

- Sabe ele a sorte que lhe está reservada?

- Não, creio que não. Bem vê, pois, que é preciso deixá-lo na ignorância.

- Oh! não tenha a mínima inquietação a esse respeito.

- Ouça, pois: estão para dar onze horas, regresso para o meu posto; das onze horas em diante, só os carcereiros reinam no interior da prisão, O seu está prevenido, sabe que o seu vizinho estará no seu quarto, há-de vir buscá-lo no momento em que o deve fazer voltar para a respectiva masmorra. Se o prisioneiro nada sabe, não lhe diga nada; e se sabe alguma coisa, diga-lhe da nossa parte que nós, os militares, o lamentamos profundamente, do íntimo do coração. Porquanto, morrer não é nada, mas, com todos os diabos! Morrer enforcado, é morrer duas vezes.

- Está, pois, decidido que tem de morrer?... - Da mesma maneira que Richon. São represálias completas. Mas nós estamos tagarelando, e ele sem dúvida espera a sua resposta com ansiedade.

- Vá buscá-lo, senhor, e acredite que lhe fico muito agradecido, tanto por ele como por mim.

O oficial saiu, foi abrir a porta da masmorra vizinha, e Cauvignac, um tanto pálido, mas com passo firme e fronte alta, entrou na masmorra de Canolles, que deu alguns passos ao seu encontro.

Então, o oficial fez a Canolles um derradeiro sinal de despedida, olhou para Cauvignac com compaixão, e saiu, levando os seus soldados, cujos pesados passos ainda se ouviram algum tempo ressoar pelas abóbadas.

Em breve, o carcereiro fez a sua ronda. Ouviram-se tinir as chaves no corredor.

Cauvignac não estava abatido, porque neste homem havia uma inalterável confiança em si mesmo, uma inesgotável esperança no futuro. Contudo, sob a sua aparência tranquila, e escondida debaixo daquela máscara quase alegre, introduzira-se uma profunda dor que, como se fora uma serpente, lhe mordia o coração. Aquela alma céptica, que sempre duvidava de tudo, duvidava, por fim, ele mesmo, da dúvida...

Desde a morte de Richon, Cauvignac já não comia, já não dormia.

Habituado a zombar da desgraça dos outros, porque suportava a sua alegremente, o nosso filósofo nenhuma vontade tivera de rir de um acontecimento que dava lugar a este terrível resultado, e, a seu pesar, em todos aqueles fios misteriosos que o tornavam responsável pela morte de Richon, entrevia a mão impassível da Providência, e principiou a acreditar, senão na remuneração das boas acções, ao menos no castigo das más.

Resignava-se, pois, e meditava; porém, apesar da sua resignação, como deixámos dito, não comia, nem dormia.

E, singular mistério, àquela alma, sem todavia ser egoísta, preocupava-se, mais ainda do que com a sua própria morte, prevista de antemão, com a morte daquele companheiro que sabia estar a dois passos dele, esperando, ou a sentença fatal, ou a execução sem sentença. Tudo isto ainda mais lhe recordava Richon, o seu espectro vingador, e a dupla catástrofe, que era o resultado daquilo que ao princípio lhe parecera uma bela artimanha.

A sua primeira ideia fora fugir, pois, apesar de estar prisioneiro sob palavra, visto que tinham faltado aos contratos que com ele haviam combinado, levando-o para a prisão, também julgava poder da sua parte, e sem escrúpulo algum, faltar aos seus. Porém, apesar da perspicácia do seu espírito e da subtileza dos seus meios, reconheceu que não lhe era possível fazê-lo. Então, ficou ainda mais convencido de que estava nas garras de uma inexorável fatalidade. Desde então, já só pedia uma coisa: conversar alguns instantes com o seu companheiro, cujo nome parecera despertar nele uma triste surpresa, e reconciliar-se na pessoa dele com a humanidade inteira, a quem tão cruelmente ultrajara.

Não afirmaremos que todos estes pensamentos fossem remorsos, não... Cauvignac prezava-se de filósofo, e era demasiado corrupto para que os pudesse ter; todavia, quanto mais não fosse, era uma coisa muito parecida com remorsos - isto é: um violento despeito por ter feito o mal, sem que dele lhe resultasse fruto algum. Com o tempo, e com medidas que mantivessem Cauvignac nesta disposição de espírito, este sentimento talvez houvesse tido o mesmo resultado que o remorso; mas para isso faltava o tempo.

Entrando na prisão de Canolles, Cauvignac esperou desde logo, com a sua costumada prudência, que o oficial que o introduzira se tivesse retirado; depois, vendo a porta bem fechada, dirigiu-se a Canolles, que, como o dissemos, dera por seu turno alguns passos para o receber, e lhe apertou afectuosamente a mão.

Apesar da gravidade da situação, Cauvignac não pôde deixar de sorrir, ao reconhecer o elegante e belo mancebo, de espírito aventureiro, de génio alegre, que já duas vezes encontrara em situações muito diferentes daquela em que estava - uma, para enviá-lo a Mantes, encarregado de uma missão; e a outra, para o conduzir a São Jorge. Além disso, lembrava-se da usurpação momentânea do seu nome, e do completo logro imposto ao duque. E, ainda que a prisão fosse muito lúgubre, a lembrança era tão alegre, que o passado, durante um segundo, venceu o presente.

Em contrapartida, Canolles, logo à primeira vista, reconheceu o homem com quem estivera em contacto nas duas circunstâncias de que acabámos de falar; contudo, bem ponderado, naquelas duas circunstâncias Cauvignac fora para ele um mensageiro de boas novas, e por isso a sua compaixão relativamente à sorte reservada ao infeliz, foi ainda maior, e tanto mais profunda, exactamente por-porque sabia ser a sua salvação a causa da perda irrevogável de Cauvignac, e, numa alma tão delicada como a de Canolles, semelhante lembrança causava muito mais remorsos, do que poderia causar um crime verdadeiro na alma do seu companheiro.

Recebeu-o, portanto, com uma perfeita benevolência.

- Então! barão - disse-lhe Cauvignac - que lhe parece a situação em que estamos? É bastante precária, segundo julgo.

- Sim, eis-nos prisioneiros, e Deus sabe quando sairemos daqui - respondeu Canolles, dando mostras de serenidade, para ver se ao menos adoçava pela esperança a agonia do seu companheiro.

- Quando sairemos daqui! - replicou Cauvignac; - digne-se esse Deus a quem invoca, decidir na sua misericórdia, que seja o mais tarde possível! Porém, não creio que esteja disposto a conceder-nos largo adiamento. Vi da minha masmorra, assim como decerto terá visto da sua, correr um tropel furioso de gente, para um certo sítio, que deve ser a esplanada, se não estou muito enganado. Conheço a esplanada, meu querido barão, e sabe para que serve?

- Não pense em tal! Creio que exagera o perigo da nossa posição. Sim, era sem dúvida para assistir a alguma punição militar. Fazer-nos pagar, a nós, pela morte de Richon, seria uma coisa horrorosa, visto que nós, em todo o caso, estamos inocentes, um e o outro, daquela morte.

Cauvignac estremeceu, e cravou em Canolles os olhos que, de uma expressão sombria, foram, pouco a pouco, passando para uma expressão de compaixão.

"Ora - disse ele consigo - aqui está mais um que se ilude quanto à sua posição. Contudo, é necessário que lhe diga qual ela é, pois que outra coisa resultaria do seu engano, senão ser-lhe depois mais penoso o golpe? Quando temos tempo para nos prepararmos, a ladeira sempre nos parece um tanto menos íngreme."

Então, depois de um novo momento de silêncio e de observação.

- Senhor - afirmou ele a Canolles, pegando-lhe nas duas mãos, e continuando a fixar nele um olhar que muito o incomodava - meu querido senhor, se estiver de acordo, mandemos vir uma garrafa ou duas daquele bom vinho de Branne, que muito bem conhece. Ah! desse teria eu bebido à farta, se tivesse sido governador mais tempo, e até lhe confessarei que foi a preferência que dou àquele excelente vinho, que me fez escolher aquele governo: Deus castiga-me pela minha gulodice.

- Completamente de acordo - disse Canolles

- Sim, contar-lhe-ei tudo enquanto formos bebendo, e se a notícia é má, como, ao menos, o vinho há-de ser bom, uma coisa contrabalançará a outra.

Canolles bateu então na porta, mas não lhe responderam; tornou a bater, e, passado um instante, um rapazinho que brincava no corredor aproximou-se do preso.

- Que quer? - perguntou o menino.

- Vinho - disse Canolles. - Diz ao teu pai que traga duas garrafas. O menino afastou-se, e voltou passado um instante.

- O papá - disse ele - está agora ocupado a conversar com um senhor. Logo virá.

- Perdoe - disse Cauvignac - permite-me que também, por meu turno, lhe faça uma pergunta? - Pode fazê-la.

- Meu amiguinho - disse ele, com uma voz muito insinuante - com que senhor conversa o teu papá?

- Com um grande senhor.

- Este menino é muito amável - disse Cauvignac; - espere, e vamos saber alguma coisa. E como está vestido aquele senhor?

- Todo de preto.

- Bolas! Está a ouvir, todo de preto! E como se chama grande senhor todo vestido de preto? Sabê-lo-ás por

acaso, meu querido menino?

- Chamam-lhe senhor Lavie.

- Ah! ah! - disse Cauvignac - o advogado do rei; parece-me que desse não nos há-de vir grande mal. Aproveitemos, pois, o tempo que eles gastam a conversar, para também conversarmos.

E, metendo uma moedinha por debaixo da porta.

- Toma, meu pequeno - disse Cauvignac - aqui tens para comprares rebuçados... É bom, ter amigos em toda a parte - continuou ele, levantando-se.

O menino, muito contente, recolheu o dinheiro dando agradecimentos aos dois presos.

- Então, senhor - disse Canolles - que dizia ainda agora?

- Ah! sim - respondeu Cauvignac... - Dizia, pois, parece-me que está muito enganado quanto à sorte que nos espera ao sairmos desta prisão; fala de esplanada, de correcção militar, de fustigação para estranhos; e eu estou convencido de que tudo isto nos diz respeito, e que se trata de alguma coisa ainda mais séria.

- Não pense em tal - disse Canolles.

- Oh! - volveu Cauvignac - vê as coisas com cores menos sombrias do que eu; talvez seja porque não tem tantas razões para recear, como eu. Todavia, não se fie muito nisso; a sua posição não é também muito brilhante. Porém, o seu caso nada é comparado com o meu, que, devo dizê-lo - porque tal é a minha convicção - está diabolicamente embrulhado. Está certo de saber quem eu sou, meu querido senhor?

- Aqui está uma singular pergunta! É o capitão Cauvignac, governador de Branne, se não estou enganado.

- Assim é, neste momento; mas nem sempre usei este nome, não tive sempre este título. Tenho mudado muitas vezes de nome e ocupado diferentes postos; por exemplo, um dia chamei-me barão de Canolles, exactamente como o senhor.

Canolles enfrentou Cauvignac.

- Sim - continuou este último - compreendo, pergunta-se a si mesmo se não estarei doido, não é assim? Pois sossegue, gozo de todas as minhas faculdades mentais, e nunca fui mais integralmente sério que neste momento.

- Explique-se, então - disse Canolles.

- Nada há mais fácil. O duque d'Épernon... Conhece o duque d'Épernon, não é verdade?

- De nome, pois nunca o vi.

- O que foi uma felicidade para mim. Certo dia, o senhor d'Épernon encontrou-me em casa de uma dama, onde eu sabia que o senhor não era mal recebido, e tomei a liberdade de usurpar o seu nome.

- Que quer você dizer, senhor?

- Devagar, devagar; não deve levar o egoísmo ao ponto de ser ciumento por uma mulher no momento de casar com outra. E, além disso, se tivesse ciúmes – o que também não é estranho à natureza do homem, que decididamente é um feio animal - em breve me perdoaria. Sou muito chegado a Vossa Senhoria, para que nos queiramos mal.

- Não compreendo uma só palavra do que está dizendo, senhor.

- Digo que tenho o direito de exigir que me trate como irmão, ou pelo menos como cunhado.

- Fala-me por enigmas, e cada vez o compreendo menos.

- Ora, pois! Compreender-me-á, dizendo-lhe uma única palavra. O meu verdadeiro nome é Rolando de Lartigues, e Nanon é minha irmã.

Canolles passou da desconfiança a uma súbita expansão.

- O senhor, irmão de Nanon! - exclamou ele. - Ah! pobre mancebo.

- Tem razão! Sim, pobre mancebo - replicou Cauvignac. - Proferiu a palavra apropriada, disse a verdade; pois, além de uma infinidade de outros desgostos que resultaram da instrução do meu processo aqui, ainda por cima me chamo Rolando de Lartigues, e sou irmão de Nanon. Sabe muito bem que a minha querida irmã não é bem vista pelos senhores bordeleses. Quando souberem a minha qualidade de irmão de Nanon, nenhuma atenuante posso esperar, porquanto estão aqui um Roche-foucauld e um Lenet, que tudo sabem.

- Ah! - exclamou Canolles, subitamente assaltado, devido ao que lhe dizia Cauvignac, por antigas recordações - ah! percebo agora porque, numa carta, aquela pobre Nanon me chamou um dia seu irmão. Que excelente criatura!...

- Ah! sim - disse Cauvignac - é muito boa pessoa, e estou arrependido de não haver sempre seguido à risca as suas recomendações; mas que se há-de fazer? Se adivinhássemos o futuro, não precisaríamos já de Deus.

- E que é feito dela? - perguntou Canolles.

- Quem pode saber? Pobre mulher! Sem dúvida está desesperada, não por amor de mim, cuja prisão ignora, mas por sua causa, de cuja sorte talvez tenha conhecimento.

- Sossegue - volveu Canolles. - Lenet não dirá que é irmão de Nanon. O senhor de Rochefoucauld, por seu lado, nenhum motivo tem, para lhe querer mal. Portanto, nada se saberá de tudo isso.

- Se nada se souber de tudo isso, acredite-me, saber-se-ão outras coisas: saber-se-á que fui eu, por exemplo, quem deu uma certa assinatura em branco... Esqueçamos, porém, tudo isso, se é possível. Que desgraça, não trazerem vinho! - continuou ele, voltando-se para a porta.

- Nada há como o vinho, para fazer esquecer. -Vamos, vamos - disse Canolles - ânimo!

- Acaso crê que ele me falta? Ver-me-á no famoso momento, quando formos dar uma volta pela esplanada. Porém, uma coisa me dá que pensar: seremos nós arcabuzados, decapitados, ou enforcados?

- Enforcados! - exclamou Canolles. - Deus tal não permita! Nós somos gentis-homens! E não farão um tal insulto à nobreza.

- Ora, pois! Verá que até são capazes de suscitar dúvidas acerca da minha genealogia... E além disso...

- O quê?...

- Qual de nós será o primeiro?

- Meu querido amigo - amenizou Canolles - quem lhe meteu tais coisas na cabeça?... Veja que essa morte de que se ocupa de antemão, não se julga, não se condena, e não se executa assim, numa noite.

- Ouça - respondeu Cauvignac - eu ainda lá estava, quando fizeram o processo ao pobre Richon, Deus tenha a sua alma! Saiba, pois, que processo, sentença e enforcamento, tudo isso foi obra de três ou quatro horas, quando muito; aceitemos que não sejam aqui tão activos, porque Ana de Áustria é rainha da França, e a senhora de Conde só é princesa de sangue; isto conceder-nos-á uma demora de quatro ou cinco horas. Ora, como fomos presos há três horas, e há duas que comparecemos diante dos nossos juizes, feitas bem as contas, resta-nos ainda uma ou duas horas de vida; o que é bem pouca coisa.

- Em todo o caso - alvitrou Canolles - hão-de esperar que seja dia para nos executarem.

- Ah! isso não é certeza; uma execução feita com archotes deve ser coisa muito linda. Sai mais cara, na verdade. Porém, como a senhora princesa precisa muito dos bordeleses neste momento, poderia muito bem acontecer que se decidisse a ter essa despesa.

- Cale-se! - disse Canolles - ouço passos.

- Com os diabos! - exclamou Cauvignac, empalidecendo um pouco.

- É sem dúvida o vinho, que nos trazem - disse Canolles.

- Ah! sim - lembrou-se Cauvignac, fixando os olhos mais do que atentos na porta - pode ser que seja isso; se o carcereiro entra com garrafas, vai o negócio bem; porém, se, pelo contrário...

A porta abriu-se, e o carcereiro entrou - sem garrafas.

Cauvignac e Canolles olharam um para o outro de um modo expressivo; porém, o carcereiro não reparou nisso... Parecia tão apressado, o tempo era tão curto, reinava na masmorra uma escuridão...

Fechou a porta e entrou.

Depois, aproximando-se dos prisioneiros e tirando um papel da algibeira:

- Qual de vós - disse ele - é o barão de Canolles?

- Mal vai o negócio! - disseram juntos os dois homens olhando novamente um para o outro.

Contudo, Canolles hesitou antes de responder, e Cauvignac fez outro tanto: o primeiro, usara o nome demasiado tempo, e, portanto, não podia duvidar de que o chamamento se dirigisse a ele; o outro, porém, também fizera bastante uso do nome, e, por isso receava que lho lembrassem. Canolles entendeu, todavia, que era preciso responder.

- Sou eu - aventurou.

O carcereiro aproximou-se dele. -Era governador de praça? -Sim.

- Mas eu também era governador de praça; eu também me tenho chamado Canolles - disse Cauvignac. - Vejamos, expliquemo-nos bem, e nada de enganos. Bem basta o que já por minha causa aconteceu àquele pobre Richon, para que seja ainda causa da morte de outro.

- Então agora chama-se Canolles? - perguntou o carcereiro.

- Sim - respondeu Canolles.

- E o senhor chamou-se outrora Canolles? - perguntou de novo o carcereiro a Cauvignac.

- Sim - respondeu este - outrora, um dia somente, e começo a acreditar que tive muito má ideia, naquele dia.

- São ambos governadores de praça?

- Sim - responderam juntos Canolles e Cauvignac.

- Agora, com esta última pergunta, tudo há-de aclarar-se.

Os dois prisioneiros prestaram a mais viva atenção.

- Qual de vós - disse o carcereiro - é irmão da senhora Nanon de Lartigues?

Aqui, Cauvignac fez uma carantonha, que teria sido cómica num momento menos solene.

- Não lhe dizia eu - interrompeu, dirigindo-se a Canolles- não lhe dizia, querido amigo, que por aí me atacariam?

Depois, voltando-se para o carcereiro:

- E se eu - disse ele - fosse o irmão da senhora Nanon de Lartigues, que me diria, meu amigo?

- Dir-lhe-ia que me acompanhasse no mesmo instante.

- Bolas! - exclamou Cauvignac.

- Mas ela também me chamou irmão - interrompeu Canolles, tentando desviar, de algum modo, as nuvens da tormenta que se iam amontoando então visivelmente sobre a cabeça do infeliz companheiro.

- Espere, uma palavra mais - cortou Cauvignac, passando por diante do carcereiro, e tomando Canolles à parte - uma só palavra mais, meu cavalheiro; não é justo que seja irmão de Nanon em semelhante circunstância. Até agora, fiz que os outros pagassem por mim, é justo que eu também pague uma vez o que me pertence.

- Que quer dizer? - perguntou Canolles.

- Oh! isso levaria muito tempo, e, bem vê, o nosso carcereiro está impaciente, e bate com o pé... Muito bem, meu amigo, muito bem; sossegue, eu já o acompanho. Adeus, pois, querido companheiro - continuou Cauvignac

- eis, pelo menos, desfeitas as minhas dúvidas acerca de um ponto: sou eu quem vai em primeiro lugar. Deus queira que não tenha de seguir-me! Agora o que resta, é saber o género da morte. Com os diabos! Contanto que não seja enforcado... Eu já vou, já o sigo! Tem muita pressa, meu bom homem! Vamos, pois, meu querido irmão, meu querido cunhado, meu querido companheiro, meu querido amigo... Um derradeiro adeus, e boas-noites!

Cauvignac deu então um passo para Canolles estendendo-lhe a mão; Canolles apertou-lha afectuosamente entre as suas.

Entretanto, Cauvignac olhava para ele com uma singular expressão.

- Que me quer? - perguntou Canolles. - Tem alguma coisa a pedir-me?

- Sim - disse Cauvignac.

- Então fale com franqueza.

- Costuma rezar, algumas vezes?

- Sim - respondeu Canolles.

- Ora pois, quando rezar, faça-o por mim.

E, voltando-se para o carcereiro, que parecia estar cada vez mais impaciente:

- Eu é que sou irmão da senhora Nanon de Lartigues

- disse-lhe ele. - Venha, meu amigo.

O carcereiro não se fez rogar duas vezes, e levou-o com ele, apressadamente; do limiar da porta, Cauvignac fez o seu último aceno a Canolles.

A porta tornou depois a fechar-se, os seus passos foram-se afastando pelo corredor, e novamente reinou o mais profundo silêncio - silêncio que, para aquele que ficava, tinha semelhanças com a morte.

Canolles mergulhou numa profunda tristeza, vizinha do terror. Este processo de levar um homem, durante a noite, sem ruído, sem aparato, e sem guardas, era mais assustador do que os preparativos para o suplício feitos à luz do sol. Todavia, todas as apreensões de Canolles iam para o companheiro, porque a sua confiança na senhora de Cambes era tão grande, que, desde que a vira, apesar da fatal notícia que lhe anunciara, já nada receava relativamente à sua própria pessoa.

Era esta a razão por que a única coisa que realmente o preocupava naquela hora, seria a sorte reservada ao companheiro que lhe arrebatavam; então, lembrou-se da última recomendação de Cauvignac. Pôs-se de joelhos, e rezou.

Alguns instantes depois, levantou-se, sentindo-se consolado e forte, não esperando já senão uma coisa: a chegada do socorro prometido pela senhora de Cambes, ou a sua presença.

Enquanto isto, Cauvignac ia na peugada do carcereiro pelo corredor sombrio, não proferindo uma só palavra, e reflectindo com toda a seriedade possível no que se passava.

Ao fundo do corredor, o carcereiro também fechou cuidadosamente a porta, tal como fizera à da prisão de Canolles, e, depois de ter escutado alguns ruídos vagos que partiam do andar inferior, afirmou, voltando-se arrebatadamente para Cauvignac:

- Vamos, ponha-se a caminho, cavalheiro.

- Estou pronto - respondeu Cauvignac, com bastante majestade.

- Não grite tanto - pediu o carcereiro - e ande mais depressa.

E embrenhou-se por uma escada que ia ter às masmorras subterrâneas.

"Oh! oh! - pensou Cauvignac - será que querem degolar-me entre duas paredes, ou quererão enterrar-me vivo nalgum calabouço, atirando-me por qualquer alçapão? Ouvi dizer que por vezes se contentavam em expor os quatro membros numa praça pública, como fez César Bórgia a D. Ramiro d'Orco. Vejamos, este carcereiro está só, leva as chaves à cinta. Essas chaves devem abrir uma porta, seja ela qual for. Ele é pequeno, eu sou forte; ele vai à frente, e eu atrás; e se assim o entender, em breve o terei esganado. É claro que quero!"

E já Cauvignac. que a si próprio tinha respondido, estendia as mãos ossudas para dar execução ao projecto que acabava de engendrar, quando, de repente, o carcereiro se voltou com terror.

- Caluda! - disse ele - não está a ouvir?

"Na realidade - continuou Cauvignac, falando sempre consigo - há alguma coisa de estranho em tudo isto; e tantas precauções, se não me sossegam, devem inquietar-me muito."

Por isso, parando de súbito:

- Ora vamos lá a saber - disse ele. - Para onde me leva? Vejamos!

- Não está a ver? - perguntou o carcereiro. - Para o subterrâneo.

- Ui! - exclamou Cauvignac - quererão enterrar-me vivo?

O carcereiro encolheu os ombros, seguindo por um emaranhado de corredores, e, chegando a uma portinhola baixa, arqueada e húmida, atrás da qual se ouvia um ruído estranho, abriu-a.

- O rio! - exclamou Cauvignac, assustado ao ver a água que corria, sombria e negra como a do Aqueronte.

- Sim, o rio; sabe nadar?

- Sim... não... se... mas para que diabo me faz essa pergunta?

- Porque, se não sabe nadar, seremos obrigados a aguardar um barco que está lá em baixo, à espera, e é um quarto de hora perdido; além disso, podem ouvir o sinal que terei de dar, e, por conseguinte, podemos ser apanhados.

- Apanhados! - exclamou Cauvignac. - Pelo que vejo, meu amigo, fugimos?

- Sem dúvida alguma que fugimos.

- Para onde?

- Para onde quisermos. -Então, estou livre? -Livre como o ar.

- Oh! meu Deus! - exclamou Cauvignac.

E, sem acrescentar uma palavra sequer a esta eloquente exclamação, sem olhar em torno de si, sem lhe importar se o companheiro o acompanhava, saltou ao rio, e mergulhou mais rapidamente do que teria feito uma lontra perseguida. O carcereiro imitou-o, e ambos, depois de um quarto de hora de esforços silenciosos para romper a corrente, chegaram à vista do barco. Então, o carcereiro assobiou três vezes, nadando sempre; os remadores, reconhecendo o sinal convencionado, vieram ao encontro deles, içaram-nos prontamente para dentro do barco, e. sem dizer uma só palavra, remaram com toda a força. Em menos de cinco minutos, desembarcaram-nos a ambos na margem oposta.

- Oh! Deus! que ventura! - exclamou Cauvignac, que, desde o momento em que com tanta resolução se lançara ao rio, não proferira uma só palavra. - Estou então salvo! Querido carcereiro do meu coração, Deus o recompensará.

- Enquanto não chega a recompensa que Deus me reserva - disse o carcereiro - recebi quarenta mil libras, que hão-de ajudar-me a ter paciência.

- Quarenta mil libras! - desabou Cauvignac, estupefacto. - E quem diabo pode ter gasto quarenta mil libras por minha causa?

 

A ABADIA DE PEYSSAL

UMA palavra apenas de imprescindível explicação, e depois recuperaremos o fio da nossa história. Para mais, já é tempo de regressarmos a Nanon de Lartigues, que, perante a imagem do infeliz Richon expirando no mercado de Libourne, dera um grito e perdera os sentidos.

Contudo, Nanon, como já por certo se verificou, não era mulher de débil compleição. Apesar da delicadeza do seu corpo, e da pequenez das suas proporções, suportara pesados desgostos, resistira a grandes fadigas, arrostara com grandes perigos, e aquela alma, simultaneamente terna e vigorosa, dotada de uma têmpera pouco comum, sabia curvar-se e amoldar-se às circunstâncias, para ressurgir mais forte a cada folga que o destino lhe dava.

O duque d'Épernon, que a conhecia - ou, para melhor dizer, que julgava conhecê-la - devia admirar-se de a ver tão completamente abatida pelo que dir-se-ia ser uma dor física; ela que, no incêndio do seu palácio em Agen, estivera a ponto de ser queimada viva sem soltar um grito, com receio de dar uma alegria aos seus inimigos, que lhe desejavam o suplício - suplício que um de entre eles, mais exaltado do que os outros, preparara à favorita do governador detestado! - ela, Nanon, que no meio daquele tumulto, vira perecer duas das suas criadas, assassinadas em vez dela, e que não manifestara sintoma algum de susto...

O desmaio de Nanon durou quase duas horas, e culminou em horrorosos ataques de nervos, durante os quais não pôde falar, mas somente soltar gritos inarticulados. Esteve em tal estado, que a própria rainha, depois de ter mandado muitas mensagens à enferma, foi pessoalmente visitá-la, e o cardeal Mazarino, recentemente chegado, quis ficar à cabeceira da cama da enferma, para lhe receitar remédios, pois vangloriava-se muito dos seus conhecimentos de medicina: remédios físicos para aquele corpo ameaçado, e remédios espirituais para a alma em perigo.

Nanon, porém, só recobrou os sentidos com a noite muito adiantada. Então, foi-lhe ainda necessário algum tempo para coordenar as ideias; finalmente, porém, apertando a cabeça com ambas as mãos, exclamou com voz pungente:

- Estou perdida! mataram-mo!

Foi uma felicidade que estas palavras parecessem tão extravagantes, que os assistentes as atribuíram ao estado delirante em que ela caíra.

Contudo, estas palavras impressionaram de tal forma o espírito dos circunstantes, que não as esqueceram, e quando, pela manhã, o duque d'Épernon voltou de uma expedição que na véspera o afastara de Liboume, soube ao mesmo tempo da doença de Nanon, e as palavras que proferira ao recobrar os sentidos. O duque conhecia toda a efervescência daquela alma de fogo; sabia que nela havia mais do que delírio; tratou logo de ir ter com Nanon, e, aproveitando o primeiro momento de solidão que lhe deixaram as visitas, afirmou-lhe:

- Minha querida, eu soube de tudo o que sofreu por causa da morte de Richon, a quem tiveram a imprudência de enforcar sob estas janelas.

- Oh! na realidade, foi horroroso! É infame! - exclamou Nanon.

- Para a outra vez, pode ficar sossegada a este respeito - disse o duque. - Agora, que sei o efeito que em si provoca, mandarei enforcar os rebeldes noutro sítio. Mas, diga-me, a quem se referia, quando dizia "mataram-no"? Não podia ser a Richon, creio, porque nunca Richon significou para si coisa nenhuma, nem sequer foi um simples conhecimento.

- Ah! está aí, senhor duque? - perguntou Nanon, levantando-se sobre o cotovelo, e agarrando-lhe no braço.

- Sim, sou eu; e congratulo-me que me reconheça, o que é uma prova de que se vai restabelecendo. Mas de quem falava?

- Dele! senhor duque, dele! - disse Nanon, comum rosto de delírio. - Foi o senhor quem o matou! Oh! que desgraçado homem!

- Minha querida, assusta-me. Que está para aí a dizer?

- Digo que o matou. Não me compreende, senhor duque?

- Não, querida amiga - replicou o senhor d'Éper-non, tratando de fazer falar Nanon, e aproveitando-se do delírio dela. - Como podia eu matá-lo, se o não conheço.

- Não sabeis que está prisioneiro de guerra, que era capitão, que era governador, que tinha os mesmos títulos e a mesma patente que o pobre Richon, e que os bordeleses vão vingar nele o assassínio daquele que mandou assassinar? Pois por mais que lhe tenham dado a aparência da justiça, é um verdadeiro assassínio, senhor duque.

O duque, confuso com esta censura, com o fogo daqueles olhos chamejantes, com a acção febril daquele gesto enérgico, recuou e empalideceu.

- Oh! é verdade! é verdade! - exclamou ele, batendo na testa - tinha-me esquecido daquele pobre Canolles.

- Meu irmão! meu pobre irmão! - exclamou Nanon, feliz em poder desafogar a sua dor, e dando ao amante o título sob o qual o senhor d'Épernon o conhecia.

- Tem razão - disse o duque - eu é que tenho uma cabeça sem miolos. Como diabo pude eu esquecer o meu pobre amigo! Porém, não está ainda tudo perdido; apenas agora poderão saber desta notícia em Bordéus; o tempo de se reunirem, de sentenciarem... Para mais, eles hão-de hesitar.

- E a rainha, hesitou? - perguntou Nanon.

- Mas, a rainha é a rainha; ela tem o direito de vida e de morte. Quanto a eles, não são mais do que rebeldes.

- Ah! - disse Nanon. - Mais uma razão para que não respeitem coisa alguma; mas vejamos, diga, que quer fazer?

- Ainda não sei, mas tenha confiança em mim.

- Oh! - lamentou-se Nanon, pretendendo levantar-se - nem que eu vá a Bordéus, entregar-me no lugar dele.

Não morrerá!

- Sossegue, minha querida, este assunto fica por minha conta. Eu fiz o mal, e dou-lhe a minha palavra de que hei-de repará-lo. A rainha ainda tem alguns amigos na cidade; portanto, não se preocupe.

O duque fazia esta promessa do íntimo do seu coração.

Nanon leu-lhe nos olhos a convicção, a franqueza, e, sobretudo, a boa vontade; sentiu-se então dominada por tamanha alegria, que, pegando nas mãos do duque:

- Oh! senhor - disse, imprimindo nelas ardentes beijos - se conseguir isso, como o amarei!

O duque sentiu-se enternecido a ponto de derramar lágrimas: era a primeira vez que Nanon lhe falava com aquela expansão, e lhe fazia uma tal promessa.

Saiu imediatamente do quarto, assegurando de novo a Nanon que nada tinha a recear; depois, mandando chamar um dos seus criados, cuja destreza e fidelidade lhe eram bem conhecidos, ordenou-lhe que fosse a Bordéus, que entrasse na cidade ainda que tivesse de escalar as muralhas, e que entregasse ao advogado Lavie este bilhete, escrito pelo seu próprio punho:

Impedir que aconteça qualquer mal ao senhor de Canolles, capitão comandante de praça ao serviço de Sua Majestade.

Se esse oficial está preso, como se presume, pô-lo em liberdade por todos os meios imagináveis: seduzir os guardas com o oferecimento de todo o ouro que pedirem; chegar até cem mil escudos, um milhão, se for preciso, e ficar certo da protecção do duque d'Épernon para ser provido em algum emprego lucrativo.

Se a corrupção não surtir efeito, valer-se da força; não hesitar diante de obstáculo algum: a violência, o incêndio, a morte, tudo será desculpado.

Sinais:

Estatura alta, olhos pretos, nariz curvo: em caso de dúvida, perguntar: É irmão de Nanon?

Depressa; não se pode perder um momento.

O mensageiro partiu. Três horas depois, estava em Bordéus. Entrou numa quinta, trocou o trajo pelo de um camponês, e penetrou na cidade conduzindo um carro carregado de farinha.

Lavie recebeu a carta um quarto de hora depois da decisão do Conselho de Guerra. Conseguiu que lhe abrissem a porta da prisão, falou ao carcereiro-mor, ofereceu-Lhe vinte mil libras, que ele recusou; depois trinta mil, que também recusou; finalmente, quarenta mil, que aceitou.

Sabe-se como, enganado com aquela pergunta, que no entender do duque d'Épernon devia esclarecer qualquer dúvida: - É o irmão de Nanon? - Cauvignac, no último movimento de generosidade que talvez houvesse tido durante toda a sua vida, respondera: - Sim. - E, tomando deste modo o lugar de Canolles, encontrara-se em liberdade, para grande surpresa sua.

Foi levado num cavalo ligeiro para a aldeia de Saint-Loubés, que estava em poder dos epernonistas. Ali, encontrou um mensageiro do duque, que viera ao encontro do fugitivo numa égua espanhola de grande preço, que pertencia ao nobre.

- Está salvo? - exclamou ele, dirigindo-se ao chefe da escolta que conduzia Cauvignac.

- Sim - respondeu este. - Aqui o trazemos.

Era o que o mensageiro queria saber: fez, no mesmo instante, voltar a égua, e lançou-se a galope, com a rapidez de um raio, pela estrada de Libourne. Hora e meia depois, a égua, toda alagada em suor, tombou, na porta da cidade, arremessando o cavaleiro aos pés do senhor d'Épernon, que palpitava de impaciência por ouvir a palavra: Sim. O mensageiro, cansado e moído, teve ainda forças para pronunciar esta palavra, que tão cara custava; e o duque correu, sem perder um momento, a casa de Nanon, que, sempre de cama, fora de si, e com os olhos espantados, fixava na porta, sempre cheia de servidores, um olhar tresloucado.

- Sim - exclamou o duque d'Épernon. - Sim, está salvo, minha querida, vem atrás de mim, e vai vê-lo!

Nanon estremeceu de alegria; estas breves palavras arrancavam-lhe do peito o peso que a sufocava; levantou as mãos ao céu, depois, debulhada em lágrimas, que esta inesperada ventura lhe arrancava dos olhos tornados áridos devido ao desespero, exclamou com voz que não é possível descrever:

- Oh! meu Deus! meu Deus! - agradeço-Vos! Depois, baixando os olhos do céu para a terra, viu ao

seu lado o duque d'Épernon, tão feliz com a sua ventura, que parecia ter tanto interesse pelo prisioneiro como ela: então, somente, é que lhe ocorreu à mente este doloroso pensamento:

"Como será o duque recompensado da sua bondade e da sua solicitude, quando vir o estranho no lugar do irmão? O embuste de um amor quase adúltero substituindo o sentimento tão puro da amizade fraternal?"

A resposta que Nanon deu a si mesma foi curta e enérgica.

"Ora, pois, não importa - pensou aquele coração sublime, ao mesmo tempo de abnegação e de extremoso zelo - não o enganarei mais, confessar-lhe-ei tudo: expulsar-me-á, amaldiçoar-me-á; então, lançar-me-ei aos seus pés para agradecer-lhe o que há três anos tem feito por mim. Depois, pobre, humilhada, mas feliz, sairei daqui rica com o meu amor, e feliz com a vida nova que nos espera..."

Foi no meio deste sonho de abnegação, no qual a ambição era sacrificada ao amor, que a fileira de criados se abriu, e que um homem entrou no quarto, onde Nanon estava deitada, exclamando:

- Minha irmã! minha boa irmã!

Nanon sentou-se na cama, abriu com espanto os grandes olhos, tornou-se mais branca do que a almofada colocada atrás da cabeça, e segunda vez caiu como se fora ferida pelo raio, murmurando:

- Cauvignac; oh meu Deus! Cauvignac!

- Cauvignac! - repetiu o duque, volvendo em torno de si os olhos espantados, que evidentemente procuravam aquele a quem se dirigia esta interpelação. - Cauvignac!

- disse ele - quem é que se chama Cauvignac?

Cauvignac teve todo o cuidado em não responder: sentia-se ainda muito pouco salvo para se atrever a falar com franqueza, a qual, para mais, nem sequer nas circunstâncias habituais da vida lhe era familiar; fácil lhe foi compreender que, respondendo, deitava a perder a irmã, e, ao perder a irmã, arruinava-se infalivelmente a si mesmo; por muita inventiva que tivesse, não proferiu palavra, deixando Nanon falar, e reservando para si o encargo de corrigir as palavras dela.

- E o senhor de Canolles? - exclamou esta, em tom de furiosa repreensão e fulminando Cauvignac com o duplicado fulgor dos seus olhos.

O duque franziu as sobrancelhas, e principiava a morder o bigode. Os circunstantes, à excepção de Finette, que estava muito pálida, e Cauvignac, que fazia quanto lhe era possível por não desmaiar, ignoravam o que significava aquela inesperada cólera, e olhavam espantados uns para os outros.

- Pobre irmã - murmurou Cauvignac ao ouvido do duque - tamanho susto lhe deu o perigo em que estive, que está desvairada, e não me reconhece.

- A mim, oh miserável! é que deves responder - exclamou Nanon. - Sim, a mim! Onde está o senhor de Canolles? Que é feito dele? Responde, mas responde já!

Cauvignac tomou uma resolução desesperada: era preciso jogar e todo pelo todo, e firmar-se na sua imprudência, porque, procurar a salvação numa confissão, dar a saber ao duque d'Épernon a dupla personagem daquele Canolles, a quem ele favorecera, e deste verdadeiro Cauvignac, que recrutara soldados contra a rainha, e vendera à rainha estes mesmos soldados, era querer ir fazer companhia a Richon na trave do mercado. Aproximou-se, pois, do duque d'Épernon, e, com as lágrimas nos olhos, afirmou-lhe:

- Oh! senhor, já não é delírio, é loucura; e a dor, como vê, desarranjou-lhe a cabeça a ponto de não o reconhecer já os mais próximos parentes. Se há alguém que seja capaz de restituir-lhe o uso da razão, bem vê que sou eu; mande, pois, suplico-lhe, afastar todos os criados, à excepção de Finette, que deve ficar para socorrê-la em caso de necessidade; porque, tanto como eu, decerto teria desgosto por ver rir os indiferentes, à custa da minha pobre irmã!

Talvez que o duque não consentisse facilmente neste meio proposto por Cauvignac (pois, por muito crédulo que fosse, principiava a ter por ele alguma desconfiança), se um mensageiro não tivesse vindo da parte da rainha dizer-lhe que o esperavam no palácio, visto que o senhor Mazarino tinha convocado um Conselho extraordinário.

Enquanto o enviado cumpria a sua mensagem, Cauvignac inclinou-se para Nanon, e disse-lhe rapidamente:

- Pelo santo nome de Deus, acalme-se, minha irmã, para que, sem testemunhas, possamos dizer um ao outro algumas palavras, e tudo ficará remediado.

Nanon deixou-se tombar no leito, senão sossegada, ao menos senhora de si, porque a esperança, ainda que seja dada em pequena dose, é um bálsamo que ameniza os sofrimentos do coração.

Quanto ao duque, decidido a representar até ao fim o papel dos Orgons e dos Gerontes, chegou-se para Nanon e, beijando-lhe a mão, afirmou:

- Vamos, minha querida, a crise já passou, segundo me parece; recobre o uso da razão, deixo-a com o irmão a quem tanto ama, porque a rainha manda chamar-me. Pode ficar certa de que seria pelo menos preciso uma ordem de Sua Majestade para que a deixasse em tal momento.

Nanon sentiu que estava a ponto de perder o alento. Não teve forças para responder ao duque, e nada mais fez do que olhar para Cauvignac, e apertar-lhe a mão, como para dizer-lhe:

"Não me enganou, meu irmão, e posso na realidade ter alguma esperança?"

Cauvignac respondeu a este aperto de mão com outro igual, e, voltando-se tranquilamente para o senhor d'Éper-non:

- Sim, senhor duque - disse ele - a crise mais violenta está passada, minha irmã em breve se convencerá que tem junto de si um amigo fiel, um coração zeloso, pronto a tudo tentar para restituir-lhe a liberdade e a ventura.

Nanon não pôde conter-se mais, rompeu em soluços, ela que não costumava chorar, ela que era dotada de um espírito vigoroso; tantas coisas, porém, a tinham abalado, que já não era mais do que uma mulher comum

- isto é: fraca, e que experimentava a necessidade das lágrimas. O duque d'Épernon saiu abanando a cabeça, recomendando-a com um olhar a Cauvignac. Assim que ele saiu:

- Oh! quanto aquele homem me fez sofrer! - exclamou Nanon. - Caso se tivesse demorado um instante mais, parece-me que teria morrido.

Cauvignac fez com a mão um sinal que recomendava silêncio, depois foi encostar o ouvido à porta para certificar-se de que o duque realmente se afastava.

- Oh! que me importa a mim - exclamou Nanon

- que escute ou que não escute! Disse-me em voz baixa duas palavras para sossegar-me; fale, em que pensa? Que espera?

- Minha irmã - replicou Cauvignac, tomando um ar sério que não lhe era habitual - não lhe afirmarei que tenho a certeza de ser bem sucedido, porém, repetir-lhe-ei o que já lhe disse: que farei tudo quanto me for possível para que assim aconteça.

- Ser bem sucedido em quê? - perguntou Nanon.

- Entendamo-nos bem desta vez; não haverá ainda entre nós algum terrível desencontro?

- Em salvar o infeliz Canolles! Nanon cravou nele os olhos com fixidez assustadora.

- Está perdido! não é assim?

- Ai de mim! - respondeu Cauvignac - se me pergunta a minha opinião franca e completa, confesso que a posição dele me parece má.

- Com que serenidade ele o diz! - exclamou Nanon.

- Mas não sabes, desgraçado, o que representa para mim aquele homem?...

- Sei que é um homem que prefere a seu irmão, pois que o salvava de preferência a mim; e, quando em mim pôs os olhos, me recebeu amaldiçoando-me.

Nanon fez um movimento de impaciência.

- Ah! Mas estava cheia de razão! - continuou Cauvignac- e não o digo como repreensão, antes como uma simples observação; porquanto, preste-me atenção (e punha a mão sobre o coração), não me atrevo a dizer, em minha consciência, com medo de mentir; se ainda estivéssemos ambos na masmorra do Castelo de Trompette, eu, sabendo o que sei agora, teria dito ao senhor de Canolles: - Senhor, Nanon chamou-lhe irmão, é a si que procuram, e não a mim. E, então, ele teria vindo em meu lugar, e eu morreria no dele.

- Mas então, tem de morrer! - exclamou Nanon, com aquela explosão de dor, que é uma prova de que nos espíritos, por mais bem organizados que sejam, a ideia da morte só penetra como um receio, e nunca como uma certeza, visto que a afirmativa dá um golpe tão violento.

- Mas então, ele tem de morrer! - insistia a mulher.

- Minha irmã-respondeu Cauvignac-eis tudo quanto posso dizer, e o que deve servir de base ao que vamos fazer; são nove horas da noite. Desde as duas horas da tarde, fazem-me correr; talvez se tenham, entretanto, passado muitas coisas. Não se aflija desse modo, porque também pode acontecer que não se tenha passado coisa alguma, absolutamente. Vejamos uma ideia que me ocorre.

- Fale! Depressa!

- Tenho a uma légua de Bordéus cem homens, e o meu tenente.

- É homem seguro?

- É Ferguzon.

- E então?

- E então, minha irmã, apesar do que diga o senhor de Bouillon, do que faça o senhor de Rochefoucauld, e do que possa pensar a senhora princesa, que se julga muito melhor capitão do que aqueles dois generais, entendo que, com cem homens, cuja metade sacrificarei, poderei chegar até onde está o senhor de Canolles.

- Ah! está muito enganado, meu irmão; não chegará lá! Não chegará lá!...

- Hei-de chegar, ou far-me-ei matar.

- Ai de mim! A sua morte provar-me-á a sua boa vontade; porém, não o salvará! Está perdido! Está perdido!

- E eu digo-lhe que não, ainda que tivesse de entregar-me no lugar dele - exclamou Cauvignac, com um transporte quase de generosidade, que a ele mesmo surpreendeu.

- Entregar-se, meu irmão!?

- Sim, eu, sem dúvida; porque, afinal, ninguém tem motivo para incomodar aquele bom senhor de Canolles, e toda a gente o estima, enquanto a mim, pelo contrário, todos detestam.

- A si? E por que razão o detestam?

- A razão é muito simples: porque tenho a honra de estar ligado a si pelos mais estreitos vínculos do sangue. Perdoe, querida irmã, porém, para uma boa realista, é bem lisonjeiro o que lhe digo.

- Espere um momento - disse vagarosamente Nanon pondo o dedo nos lábios. Estou a ouvi-la.

- Diz, pois, que sou muito detestada pelos bordeleses?

- Quero dizer que a olham com execração.

- Ah! na realidade - disse Nanon, com um sorriso meio pensativo e meio alegre.

- Eu não julgava dizer-lhe coisa que lhe fosse tão agradável.

- Sim, sim - acrescentou Nanon. - Se não é agradável é pelo menos muito certo. Sim, tem razão - continuou ela, falando mais consigo mesma do que com o irmão. - Não é ao senhor de Canolles que detestam, não é a si tão-pouco. Espere, espere.

Levantou-se, passou à roda do flexível e ardente pescoço uma comprida manta de seda, e, sentando-se à mesa, escreveu à pressa algumas linhas, que Cauvignac, pela cor do rosto dela, e pelo arquejar do seu peito, julgou serem muito importantes.

- Tome isto - disse ela, fechando a carta. - Vá depressa, só, sem soldados, e sem escolta, a Bordéus; há na estrebaria um cavalo que pode andar esse caminho numa hora. Vá o mais depressa que possam permitir os meios humanos, apresente esta carta à senhora princesa, e o senhor de Canolles será salvo.

Cauvignac olhou para a irmã com espanto; porém, como sabia qual era a perspicácia daquele espírito vigoroso, não perdeu tempo a comentar as frases: correu à estrebaria, montou o cavalo designado e, passada meia hora, já tinha andado mais de metade do caminho; quanto a Nanon, assim que da sua janela o viu partir, pôs-se de joelhos, ela que era uma incrédula, fez uma breve oração, meteu o ouro, as jóias e os diamantes num cofre, mandou preparar uma carruagem, e disse a Finette que lhe vestisse as suas melhores roupas.

 

A noite abatia-se sobre Bordéus, e, a não ser o bairro da Esplanada, para onde toda a gente convergia, a cidade parecia deserta.

Mais nenhum ruído se ouvia nas ruas afastadas daquele lugar privilegiado, para além do passo das patrulhas; mais nenhuma voz, além da de alguma velha que se recolhia, fechando a porta com terror.

Porém, do lado da esplanada, lá ao longe, no negrume da noite, ouvia-se um rumor surdo e contínuo, como um sussurro da maré na vazante.

A senhora princesa acabava de concluir a sua correspondência, e mandara dizer ao duque de Rochefoucauld que podia recebê-lo.

Aos pés da princesa, humildemente, num tapete, estudando com a mais viva ansiedade o seu semblante e o seu bom ou mau humor, a senhora de Cambes parecia esperar o momento de falar sem ser importunada; porém, aquela paciência constrangida, aquela doçura estudada, eram sobejamente desmentidas pelas crispações das mãos, que amarrotavam e despedaçavam um lenço.

- Setenta e sete assinaturas! - exclamou a princesa.

- Bem vê, Clara, que no desempenho do papel de rainha, nem tudo é prazer.

- Perdoe-me, senhora - respondeu a viscondessa. - Porque, tomando o lugar da rainha, chamou a si o mais belo privilégio - o de perdoar.

- E o de castigar, Clara - replicou orgulhosamente a princesa de Conde, - pois uma destas setenta e sete assinaturas foi uma sentença de morte.

- E a septuagésima oitava será numa mercê de perdão, não é assim, senhora? - replicou Clara, com voz suplicante.

- Que dizes, pequena?

- Digo, senhora, que me parece ser tempo de ir libertar o meu preso; não quer que lhe poupe o horroroso espectáculo de ver conduzir o companheiro à morte? Ah! senhora, visto que teve a bondade de conceder-lhe o perdão, que seja pleno e completo.

- Pela minha fé, sim! Tens razão, minha pequena - disse a princesa. - Porém, o certo é que tinha esquecido a minha promessa, no meio destas graves ocupações, e fizeste bem em lembrar-ma.

- Então... - exclamou Clara muito alegre. -Então, faz o que quiseres.

- Então, mais uma assinatura, senhora - disse Clara, com um sorriso que teria comovido o coração mais duro, sorriso que nenhuma pintura poderia exprimir, porque só pertence à mulher que ama - isto é: à vida, na sua mais divina essência.

E pôs um papel sobre a mesa da senhora princesa, e indicou-lhe com a ponta do dedo onde devia assentar a mão.

A senhora de Conde escreveu:

Ordem ao senhor governador do Castelo de Trompette, para deixar entrar a senhora viscondessa de Cambes na prisão do senhor barão de Canolles, a quem damos plena e inteira liberdade.

- É isso que queres? - perguntou a princesa.

- Oh! sim, senhora - exclamou a senhora de Cambes. -E é preciso que eu assine?

- Sem dúvida que é preciso.

- Vamos, pequena - disse a senhora de Conde, com o seu mais encantador sorriso - não há remédio senão fazer o que tu queres.

E assinou.

Clara caiu sobre o papel como uma águia sobre a presa. Apenas se demorou o tempo necessário para agradecer a Sua Alteza, e, apertando o papel de encontro ao coração, saiu do quarto.

Na escada, encontrou o duque de Rochefoucauld, a quem um acompanhamento bastante numeroso de capitães, e de povo, sempre acompanhava nos seus passeios pela cidade.

Clara fez-lhe uma pequena e alegre cortesia. O senhor de Rochefoucauld, espantado, parou um instante no patamar, e, antes de entrar no quarto da senhora de Conde, seguiu Clara com os olhos, até ao fundo da escada.

Depois, chegando-se ao pé de Sua Alteza:

- Senhora - disse ele - tudo está pronto. - Onde?

- Lá em baixo!

A princesa pareceu querer recordar-se de alguma coisa.

- Na esplanada - continuou o duque.

- Ah! muito bem - respondeu a princesa, afectando muita serenidade, porque via que olhavam para ela, e que, apesar da sua natureza de mulher, que queria estremar, dava ouvidos à sua dignidade de chefe de partido, que lhe ordenava não mostrar fraqueza. - Pois bem, se tudo está pronto, vá, senhor duque.

O duque hesitou.

- Julga conveniente que eu tenha de assistir? - perguntou a princesa, com um tremor na voz, que, apesar do poder que tinha sobre si mesma, não pôde reprimir completamente.

- Como quiser, senhora - respondeu o duque, que talvez, neste momento, fazia um dos seus estudos fisiológicos.

- Veremos, duque, veremos; já sabe que perdoei a um dos condenados?

- Sim, senhora.

- E que lhe parece esta medida?

- Digo que tudo que Vossa Alteza faz, é bom.

- Sim - replicou a princesa - antes quero isso. Será mais digno de nós mostrar aos epernonistas que não tememos usar de represálias, tratar de potência a potência com Sua Majestade, mas que, confiados na nossa força, correspondemos ao mal sem furor e sem exagero.

- Isso é muito político.

- Não é verdade, duque? - disse a princesa, que buscava penetrar, pelo som da voz de Rochefoucauld, a sua verdadeira intenção.

- Mas - continuou o duque - o seu parecer é que sempre um dos dois expie a morte de Richon; pois, ficando aquela morte sem vingança, daria a entender que Vossa Alteza pouco se importa com os bravos que se consagram ao seu serviço.

- Oh! certamente; e um dos dois morrerá, dou-lhe a minha palavra! Pode ficar sossegado a esse respeito.

- Poderei eu saber a qual dos dois Vossa Alteza se dignou conceder graça?

- Ao senhor de Canolles. - Ah!

- Este Ah! foi pronunciado de um modo estranho. -Terá alguma coisa de particular contra este gentil-homem, senhor duque? - perguntou a princesa.

- Eu, senhora! Porventura tive eu jamais alguma coisa pró ou contra alguém? Classifico os homens em duas categorias: os obstáculos e os amparos. É preciso derrubar uns, e apoiar os outros... enquanto nos apoiarem. Eis a minha política, senhora, e quase que diria a minha moral.

"Em que diabo está ele cogitando, e aonde quererá ele chegar? - perguntava Lenet a si mesmo: - dá ares de detestar o pobre Canolles."

- Ora pois - replicou o duque - se Vossa Alteza não tem outra ordem a dar-me...

- Não, senhor duque.

- Retirar-me-ei, com licença de Vossa Alteza. -Então é esta mesma noite? - perguntou a senhora

de Conde.

- Daqui a um quarto de hora. Lenet dispôs-se a seguir o duque.

- Vai ver isso, Lenet? - perguntou a princesa.

- Oh! não, senhora - respondeu Lenet. - Eu não posso suportar comoções violentas, bem o sabe; contentar-me-ei a ir até meio caminho, isto é, até à prisão, e ver o quadro tocante da libertação do pobre Canolles pela mulher que ele ama.

O duque fez uma cara amuada de filósofo, Lenet encolheu os ombros, e o acompanhamento fúnebre saiu do palácio para se dirigir à prisão.

A senhora de Cambes não gastara cinco minutos para franquear aquela distância; chegou, mostrou a ordem à sentinela da ponte levadiça, depois ao porteiro do castelo, e mandou chamar o governador.

O governador examinou a ordem com os olhos embaciados de um governador de prisão, que nunca se altera, nem à vista de uma sentença de morte, nem de um perdão; reconheceu o selo e assinatura da senhora de Conde, saudou a mensageira, e, voltando-se para a porta: -Vão chamar o tenente - disse ele.

Depois, fez sinal à senhora de Cambes para que se sentasse; porém, ela estava demasiado agitada, e não podia deixar de combater a sua impaciência pelo movimento; deixou-se ficar em pé.

O governador julgou dever dirigir-lhe a palavra:

- Conhece o senhor de Canolles? - disse ele, com a mesma voz com que teria perguntado que tempo fazia.

- Oh! sim, senhor - respondeu a viscondessa. -Talvez seja seu irmão, senhora?

- Não, senhor.

- Seu amigo?

- É... é meu noivo - disse a senhora de Cambes, esperando que com esta declaração o governador se apressaria a pôr o preso em liberdade.

- Ah! - replicou o governador, no mesmo tom que até ali adoptara - dou-lhe os parabéns, minha senhora.

E, não tendo mais perguntas a fazer, o governador tornou a ficar imóvel e silencioso. O tenente entrou.

- Senhor d'Outremont - disse o governador - chame chaveiro-mor, e mande pôr em liberdade o senhor de anolles; eis a ordem de libertação.

O tenente inclinou-se, e pegou no papel.

- Quer esperar aqui? - perguntou o governador. -É-me, pois, proibido acompanhar o senhor?

- Não, senhora.

- Então, acompanhá-lo-ei, pois bem deve compreender que desejo ser a primeira a dar a notícia de que está salvo.

- Vá, pois, minha senhora, e fique certa do meu profundo respeito.

A senhora de Cambes fez uma vénia rápida ao governador, e seguiu o tenente.

Este, era precisamente o mancebo que já conversara com Canolles e Cauvignac, e desempenhava as suas ordens com toda a diligência da simpatia.

Num momento, a senhora de Cambes e ele estavam no pátio.

- O chaveiro-mor? - gritou o tenente.

Depois, voltando-se para a senhora de Cambes por a ver estremecer, disse-lhe:

- Não esteja inquieta, minha senhora, em breve chegará aqui.

O segundo chaveiro chegou.

- Senhor tenente - disse ele - o chaveiro-mor desapareceu; em vão o têm procurado.

- Oh! senhor - exclamou a senhora de Cambes - isto ainda nos demorará muito tempo?

- Não, senhora, a ordem é formal; por conseguinte, fique sossegada.

A senhora de Cambes deu-lhe os agradecimentos, fixando nele os olhos com uma expressão, que só pertence à mulher e ao anjo.

- Tem chaves duplicadas de todas as prisões? - perguntou o senhor d'Outremont.

- Sim, senhor - respondeu o chaveiro.

- O senhor de Canolles ocupa o número 2. -Isso mesmo, o número 2; abra depressa,

- Além disso - continuou o chaveiro - creio que estão juntos; escolher-se-á o pretendido.

Em todos os tempos os carcereiros têm sido gracejadores!...

Porém, a senhora de Cambes era demasiado feliz, e, portanto, não se escandalizou com este atroz gracejo. Pelo contrário, riu-se; até teria abraçado aquele homem, se preciso fosse, para que ele se apressasse, e ela pudesse ver Canolles, um segundo mais cedo.

Finalmente, abre-se a porta. Canolles, que ouviu passos no corredor, que reconheceu a voz da viscondessa, lançou-se nos seus braços, e ela, fora de si de contentamento, esquecendo-se de que ainda não é seu marido, aperta-o ao coração com toda a sua força.

O perigo que ele correra, aquela separação eterna, à borda da qual chegaram como à de um abismo, tudo desculpa, tudo purifica.

- Então, meu amigo - disse ela, radiosa de alegria e de orgulho - vê que cumpro a minha palavra, alcancei o seu perdão, e como prometera, venho buscá-lo e podemo-nos pôr a caminho.

E, enquanto assim falava, ia arrastando Canolles para o corredor.

- Senhor - disse o tenente - pode consagrar toda a vida à senhora, porque sem dúvida nenhuma, é a ela que a deve.

Canolles não respondeu coisa alguma, mas os seus olhos fixaram-se ternamente no anjo libertador; a sua mão apertou a mão da mulher...

- Oh! não se apressem tanto - disse o tenente, sorrindo - nada já têm que recear, e está livre; disponha-se, portanto, com todo o vagar, a abrir as suas asas.

Porém, a senhora de Cambes, sem dar ouvidos a estas palavras animadoras, continuava a arrastar Canolles pelos corredores. Canolles em nada se lhe opunha, fazendo sinais de despedida ao tenente, a que este correspondia. Chegaram à escada, que desceram como se os dois amantes tivessem aquelas asas de que o tenente acabava de falar. Finalmente, chegaram ao pátio; só lhes faltava franquear uma porta, e franqueada esta, a atmosfera da prisão já não pesaria sobre os seus dois nobres corações...

Afinal, abriu-se esta última porta.

Porém, do outro lado, uma tropa de gentis-homens, de guardas e de archeiros cobria a ponte levadiça; era o senhor de Rochefoucauld e os seus acólitos.

Sem saber porquê, a senhora de Cambes estremeceu. Sempre lhe acontecera uma desgraça todas as vezes que se encontrava com aquele homem.

Quanto a Canolles, se experimentou alguma comoção, essa ficou no íntimo do seu coração, e não se lhe manifestou no semblante.

O duque saudou a senhora de Cambes e a Canolles, e até parou para lhes fazer alguns cumprimentos. Depois, fez um sinal à fileira dos gentis-homens e dos guardas que o acompanhavam, e a fileira abriu-se.

No mesmo instante, lá no fundo do pátio, rompeu uma voz que saía dos corredores, e ouviram-se ecoar estas palavras:

- Olá! o número-está vazio, o outro preso não está no seu quarto; há cinco minutos que o procuro inutilmente, e não o encontro em parte alguma.

Estas palavras produziram um estremecimento em todos os que as ouviram; o duque de Rochefoucauld estremeceu, e, não podendo reprimir um primeiro movimento, estendeu a mão para Canolles, como para detê-lo.

Clara viu este movimento e empalideceu. - Venha, venha - disse ela ao mancebo - apressemo-nos.

- Perdoe, senhora - disse o duque.-Tenha paciência, por um momento. Rogo-lhe que nos dê tempo para aclarar este engano; asseguro-lhe que será coisa de um minuto.

E, com outro sinal do duque, a fileira que se havia aberto, tornou a fechar-se.

Canolles olhou para Clara, para o duque, para a escada de onde vinha a voz, e também empalideceu.

- Mas, senhor - perguntou Clara - para que hei-de eu esperar? A senhora princesa de Conde assinou a ordem de libertação do senhor de Canolles; ei-la aqui, eis o seu nome; veja, olhe.

- Sim, senhora, nisso não há a mínima dúvida, e a minha intenção não é negar a validade dessa ordem: daqui a um instante será tão válida como agora; tenha, pois, paciência; acabo de enviar alguém que não pode tardar a voltar.

- Mas que temos nós com isso? - perguntou Clara - e que há de comum entre o senhor de Canolles e o preso número 1?

- Senhor duque - disse o capitão das guardas que o senhor de Rochefoucauld enviara - acabamos de fazer uma busca inútil; ao outro preso, não é possível encontrá-lo; o carcereiro-mor também desapareceu; ele e o preso saíram pela porta secreta que dá para o rio.

- Oh! oh! - exclamou o duque. - Sabe alguma coisa disso, senhor de Canolles? Uma fuga!

Ao ouvir estas palavras, Canolles tudo percebe e tudo adivinha. Compreende que é Nanon quem o protege, compreende que a ele é que vieram buscar, e que a ele é que designaram debaixo do nome de irmão da menina de Lartigues; que, sem que o soubesse, Cauvignac tomou o seu lugar, e ganhou a liberdade onde julgava encontrar a morte. Todas estas ideias lhe ocorrem ao mesmo tempo, leva ambas as mãos à fronte pálida, e só se reanima ao ver que a viscondessa, trémula e palpitante, estava agarrada ao seu braço. Nenhum destes sinais de terror involuntário escaparam ao duque.

- Feche as portas - gritou este. - Senhor de Canolles: tenha a bondade de não sair daqui; é preciso, como compreenderá, que tudo isto se deslinde.

- Mas, senhor duque - exclamou a jovem senhora - creio que não tem a pretensão de opor-se a uma ordem da senhora princesa!

- Não, senhora - disse o duque. - Porém, julgo que é importante preveni-la acerca do que se passa. Não lhe direi: "Vou lá eu mesmo." Poderia pensar que a minha intenção é influir na opinião da nossa augusta ama; mas dir-lhe-ei: "Vá lá, senhora, porque melhor do que ninguém saberá solicitar a clemência da senhora de Conde." Lenet fez um sinal imperceptível a Clara.

- Oh! não me afastarei dele - exclamou ela, apertando convulsivamente o braço do mancebo.

- E eu - disse Lenet - vou ter com Sua Alteza; venha comigo, capitão, ou o senhor mesmo, senhor duque.

- Acompanhá-lo-ei, já que assim o quer. O senhor capitão aqui ficará, e continuará as pesquisas na minha ausência; talvez que se venha a encontrar o outro preso.

E, como para dar ainda maior peso à última parte da sua frase, o duque de Rochefoucauld disse algumas palavras ao ouvido do oficial, e saiu com Lenet. No mesmo instante, os dois jovens foram impelidos para o pátio por aquela vaga de cavaleiros que acompanhavam o senhor de Rochefoucauld, e atrás dos quais a porta se fechou.

Havia dez minutos que os assistentes, pálidos e mudos, olhavam uns para os outros e procuravam descobrir nos olhos de Canolles e de Clara qual dos dois era o que mais sofria. Canolles, compreende que a força toda deve proceder dele; é grave e afectuoso para com a amante, que, lívida, com os olhos vermelhos e joelhos trémulos, sorrindo-lhe com um ar medonho de ternura; depois vacila, lançando para um outro lado os olhos espantados, sobre todos aqueles homens, entre os quais em vão procura um amigo.

O capitão, que recebeu as ordens do duque de Rochefoucauld, fala também em voz baixa aos seus oficiais. Canolles, cujo olhar é seguro, e cujo ouvido está atento às menores palavras que podem tornar a sua dúvida em certeza, escuta-o, apesar da precaução que toma em falar tão baixo quanto lhe é possível, e ouve-lhe proferir estas palavras:

- Seria todavia necessário encontrar um meio de afastar esta pobre mulher.

Tenta ele não soltar o seu braço do carinhoso aperto que o segura. Clara percebe qual seja a sua intenção, e agarra-se a ele com todas as suas forças.

- Mas - exclama ela - é preciso continuar as indagações, talvez que não se tenha procurado bem, e que, por fim, venha a dar-se com aquele homem. Procuremos, procuremos todos, é impossível que tenha fugido. Porque não havia o senhor de Canolles ter fugido com ele, e tão bem como ele? Vejamos, senhor capitão, eu rogo-lhe, ordene que o procurem.

- Tem-se procurado, minha senhora - respondeu este.

- Neste mesmo momento ainda o andam procurando. O carcereiro bem sabe que incorre na pena de morte se não apresentar o preso; tem, portanto, muito interesse em fazer as mais activas pesquisas.

- Oh! meu Deus! - murmurou Clara - e o senhor Lenet que não volta!

- Tenha paciência, minha querida, tenha paciência

- disse Canolles, naquele tom de doçura com que se fala às crianças. - O senhor Lenet acaba de partir; neste mesmo instante, apenas terá tido tempo de chegar à presença da senhora princesa; dê-lhe tempo para expor o acontecimento, e voltar depois, para trazer-nos a resposta.

E, dizendo estas palavras, apertou brandamente a mão da viscondessa.

Depois, vendo a fixidez do olhar e a impaciência do oficial que comandava em lugar do senhor de Rochefoucauld:

- Capitão - disse ele - acaso desejaria falar-me?

- Sim, senhor, sem dúvida alguma - respondeu este, a quem a vigilância da viscondessa muito atormentava.

- Senhor - exclamou a senhora de Cambes - con-duza-nos à presença da senhora princesa, peço-lhe. Que dúvida pode ter nisso? Tanto faz conduzir-nos à presença dela como ficarmos aqui, na incerteza; Sua Alteza o verá, senhor, ver-me-á a mim mesma, falar-lhe-ei, e confirmará a sua promessa.

- Mas - disse o oficial, aproveitando ansioso esta ideia emitida pela viscondessa - ocorreu-lhe uma excelente lembrança, minha senhora; vá lá a senhora, vá; tem toda a probabilidade de ser bem sucedida.

- Que lhe parece, barão? - perguntou a viscondessa -julga que eu faria bem? Não quererá enganar-me;

que devo eu fazer?

- Vá, senhora - disse Canolles, fazendo sobre si mesmo um supremo esforço.

A viscondessa largou-lhe o braço, deu alguns passos, e depois, voltando-se para o amante:

- Oh! não, não - disse ela - Deus seja louvado, aí estão o senhor Lenet e o senhor duque, de volta.

Com efeito, atrás do duque de Rochefoucauld, que de novo se apresentava com o seu rosto impassível, vinha Lenet, com o semblante turbado e mãos trémulas. Logo que Canolles pôs os olhos no pobre conselheiro, conheceu que já não havia esperança alguma, e que estava condenado à morte.

- Então? - perguntou a jovem senhora, fazendo um movimento tão arrebatado para Lenet, que arrastou Canolles consigo.

- Então - balbuciou Lenet - a senhora princesa está indecisa...

- Indecisa!... - exclamou Clara. - Que significa isto? -Isso significa que a manda chamar - respondeu o

duque - e quer falar-lhe.

- É verdade, senhor Lenet? - perguntou Clara sem que lhe importasse o que esta interrogação tinha de insultante para o duque.

- Sim, senhora - balbuciou Lenet.

- Mas, e ele? - perguntou a viscondessa. -Quem?

- O senhor de Canolles.

- O senhor de Canolles tem de voltar para a sua prisão, e a senhora lhe levará a resposta da senhora princesa - disse o duque.

- Ficará com ele, senhor Lenet? - perguntou Clara.

- Senhora...

- Ficará você com ele? - repetiu a viscondessa. -Não me afastarei dele.

- Não se afastará dele; assim o jura?

- Oh! meu Deus! - diz em voz baixa Lenet, olhando para aquele mancebo que espera a sua sentença, e para aquela mulher, a quem uma palavra sua vai matar, - Oh! meu Deus! Já que um dos dois está condenado à morte, dá-me ao menos força para salvar o outro. -Não o jura, senhor Lenet?

- Eu juro - replicou o conselheiro, levando com esforço a mão ao coração prestes a despedaçar-se-lhe.

- Muito obrigado, senhor - disse em voz baixa Canolles. - Compreendo-o. Depois, voltando-se para a viscondessa:

- Vá, senhora - disse ele - bem vê que não corro perigo nenhum, entre o senhor Lenet e o senhor duque.

- Não a deixe partir sem a abraçar - disse Lenet. Um suor frio alagou a fronte de Canolles; sentiu uma espécie de nevoeiro que lhe passava por diante dos olhos; deteve Clara, que ia partir, e, fingindo ter que dizer-lhe algumas palavras em voz baixa, aproximou-a ao seu peito, e, inclinando-se para falar-lhe ao ouvido:

- Suplique sem baixeza - disse ele. - Quero viver para si; mas também deveis querer que eu viva com honra.

- Hei-de suplicar de maneira que te salve - replicou ela.-Não és tu o meu esposo diante de Deus?

E Canolles, recuando, conseguiu aflorar-lhe o pescoço com os lábios, mas com tanta cautela, que ela não o sentiu, e a pobre insensata afastou-se dele sem lhe restituir o derradeiro beijo. Contudo, no momento em que saía do pátio, voltou-se; porém, uma fileira de soldados separou-a do preso.

- Amigo - disse ela - onde estás tu? Não posso já ver-te: uma palavra, uma palavra ainda, quero apartar-me de ti ouvindo o som da tua voz!

- Vá, Clara - disse Canolles. - Fico à sua espera!

- Vá, vá, senhora - disse um oficial, caritativo. -Quanto mais depressa partir, mais depressa estará de volta.

- Senhor Lenet, querido senhor Lenet - bradou a voz de Clara, ao longe. - Tenho toda a confiança em si; responderá por ele!

E a porta fechou-se atrás dela.

- Na realidade - disse em voz baixa o duque, filósofo - só a muito custo conseguimos afastá-la. Mas, enfim,

eis-nos de novo de mãos livres.

 

MAL a viscondessa desapareceu, mal a sua voz se extinguiu ao longe, e a porta se fechou sobre ela, o círculo dos oficiais apertou-se em torno de Canolles, e viram aparecer, saindo sem que se soubesse de onde, dois homens de figura sinistra que, aproximando-se do duque, lhe pediram humildemente as ordens.

O duque contentou-se em responder, apontando para o prisioneiro. Depois, aproximando-se:

- Senhor - disse ele a Canolles, saudando-o com aquela placidez glacial que lhe era habitual. - Sem dúvida percebe que a fuga do seu companheiro de desgraça fez recair sobre si a sorte que o esperava a ele?

- Sim, senhor - respondeu Canolles. - Pelo menos, desconfiava disso, porém, o que tenho por certo, é que a senhora princesa perdoou expressamente à minha pessoa, designando-me pelo meu nome. Eu vi, e decerto também viu, mesmo agora, a minha ordem de liberdade nas mãos da senhora viscondessa de Cambes.

- É verdade, senhor - volveu o duque. - Porém, a senhora princesa não podia prever o caso que se deu.

- Então - replicou Canolles - a senhora princesa dá o dito por não dito, e não cumpre o que assinou?

- Sim - respondeu o duque.

- Uma princesa de sangue faltar à sua palavra! O duque conservou-se impassível. Canolles olhou em torno de si.

- É chegado o momento? - disse ele.

- Sim, senhor.

- Julgava que se esperaria a volta da senhora de Cambes; tinha-se-lhe prometido que nada se faria na sua ausência. Toda a gente falta, pois, à palavra dada?

E o prisioneiro fixou um olhar de repreensão, não no duque, mas em Lenet.

- Ah! senhor - exclamou este, com as lágrimas nos olhos - perdoe-nos. A senhora princesa recusou positivamente o seu perdão; contudo, não foi por falta de rogos da minha parte, disso é testemunha o senhor duque, e Deus também. Mas eram indispensáveis as represálias pela morte do pobre Richon, e a nada quis ceder, foi insensível como mármore. Agora, julgue-me o senhor barão; olhe, em lugar de permitir que a terrível situação em que se encontra fosse suportada, metade por si, e a outra metade pela viscondessa, tomei sobre mim - digne-se perdoar-me, porque estou consciente de que preciso do seu perdão - tomei sobre mim fazer com que o senhor a suporte sozinho, o senhor, que é soldado, que é um gentil-homem.

- Então - balbuciou Canolles, a quem a comoção sufocava - então não tornarei mais a vê-la! Quando me dizia que a abraçasse, era pela última vez!

Um soluço mais forte do que o estoicismo, do que a razão e do que o orgulho, rasgou o peito de Lenet; retirou-se, a recuar, derramando amargas lágrimas. Canolles, então, correu os olhos penetrantes por todos quantos o rodeavam; não viu em toda a parte senão homens endurecidos pela cruel morte de Richon, e que observavam qual seria a sua firmeza; mesmo assim, se um não dava indícios de compaixão, outro os daria, e, junto deste, um tropel de gente tímida que dilatava os músculos para dissimular as comoções, e tragar as lágrimas e suspiros.

"Oh! é horroroso pensar - murmurou o mancebo, num daqueles instantes de lucidez sobre-humana, que descobrem à alma infinitos horizontes sobre tudo quanto seja a vida - isto é: sobre alguns rápidos instantes de ventura, arremessados como ilhas no meio de um oceano de lágrimas e de sofrimentos... - sim, é horroroso! Agora, que tinha uma mulher adorada, que, pela primeira vez, acabava de dizer-me que me amava! Um longo e doce porvir! A realização do sonho de toda a minha vida! E eis que, num instante, num segundo, a morte ocupa o lugar de tudo isto!..."

O coração apertou-se-lhe, e sentiu um nervosismo nos olhos, como se estivesse para chorar. Mas, então, lembrou-se, como dissera Lenet, de que era um homem, um soldado.

"Orgulho - disse ele, consigo - que és a única coragem que existe realmente - vem em meu auxílio! Eu, chorar uma coisa tão fútil como a vida!... Quanto não ririam os homens, se pudessem dizer: - Canolles, sabendo que ia morrer, chorou! - Como me portei eu no dia em que foram sitiar-me em São Jorge, e em que os bordeleses queriam matar-me como hoje? Combati, gracejei, ri...

Pois então, pelo céu que me ouve, e que talvez seja duro para comigo, pelo Diabo que luta neste momento com o meu anjo bom, farei hoje como fiz naquele dia, e se já não combato, quanto mais não seja, ainda gracejarei, e sempre rirei."

No mesmo instante, o rosto tornou-se sereno, como se toda a comoção houvesse voado do seu coração; passou a mão pelos belos cabelos negros, e, aproximando-se, com passo firme e um sorriso nos lábios, do senhor de Rochefoucauld e de Lenet, afirmou:

- Senhores, bem sabem que neste mundo tão cheio de acidentes estranhos e inesperados, precisamos acostumar-nos a tudo! Fiz mal em não lhes pedir um minuto para me acostumar à ideia da morte; se é demasiado, peço-lhes me desculpem por os haver feito esperar.

Um profundo espanto espalhou-se pelos grupos; o próprio prisioneiro reconheceu que do espanto passavam à admiração; este sentimento, tão glorioso para ele, envaideceu-o e duplicou as suas forças.

- Quando quiserem, senhores - disse ele - sou eu quem espera.

O duque, momentaneamente dominado pelo assombro, recobrou a costumada fleuma, e fez um sinal.

A este sinal, as portas abriram-se, e o séquito aprontou-se para a caminhada.

- Um momento! - exclamou Lenet, para ganhar tempo.

- Um momento, senhor duque! É, com efeito, à morte

que conduzimos o senhor de Canolles, não é verdade?

O duque fez um movimento de surpresa, e Canolles

olhou com espanto para Lenet.

- Sem dúvida - assegurou o duque.

- Então - replicou Lenet - se assim é, este digno gentil-homem não pode passar sem um confessor.

- Perdoe, perdoe, senhor - replicou Canolles. - Pelo contrário, passarei perfeitamente sem ele.

- Como? - perguntou Lenet, fazendo sinais ao prisioneiro, que este não queria compreender.

- Porque sou huguenote - replicou Canolles - e hu-guenote decidido, declaro-lhe. Se quiser fazer-me um derradeiro favor, deixe-me morrer no estado em que estou.

E, ao mesmo tempo que recusava, um gesto de reconhecimento provou a Lenet que o mancebo percebera perfeitamente o seu pensamento.

- Então, se coisa nenhuma nos demora já, ponhamo-nos em marcha - disse o duque.

- Confesse-se! confesse-se! - gritaram alguns, furiosos. Canolles levantou-se na ponta dos pés, volveu em torno

de si os olhos, com serenidade e firmeza, e, voltando-se para o duque:

- Teremos ainda novas cobardias, senhor? - perguntou ele, severamente. - Parece-me que se alguém tem aqui o direito de fazer as suas vontades, sou eu, que sou o herói da festa; recuso um confessor, mas peço o cadafalso, e quanto antes. Pelo que me diz respeito, já estou cansado de esperar.

- Olá, silêncio! - exclamou o duque, voltando-se para os grupos.

Depois, logo que, imposto pela sua voz e pelo seu olhar, o silêncio ficou efectivamente restabelecido, dirigiu-se a Canolles:

- Senhor, fará como muito bem entender.

- Muito agradecido, senhor. Então, partamos, e apressemos o passo. Lenet tomou o braço de Canolles.

- Pelo contrário - disse-lhe ele - vá devagar. Quem sabe? Um adiamento, uma reflexão, um acontecimento, são coisas possíveis. Vá devagar, peço-lhe em nome daquela que o ama, e que tanto chorará se caminharmos com demasiada pressa...

- Oh! - replicou Canolles - não me fale dela, enca-recidamente lhe peço; todo o meu valor me abandona com a ideia de que vou ser para sempre separado dela; mas, que digo?... Pelo contrário, senhor Lenet, fale-me dela, repita-me que ela me ama, que me amará sempre, e, sobretudo, que me chorará.

- Vamos! querido e infeliz mancebo - disse Lenet - não se enterneça, lembre-se que olham para si e que não sabem de que falamos.

Canolles levantou altivamente a cabeça, e os seus belos cabelos, por um movimento que fez cheio de elegância, caíram-lhe em anéis pretos sobre o pescoço. Tinham chegado à rua; grande número de archotes iluminava a marcha, de forma que se podia ver o rosto sereno e risonho do condenado.

Ouviu chorar mulheres, outras dizerem, comovidas: -Pobre barão, tão moço e tão formoso.

Foram continuando silenciosamente o caminho; depois, subitamente:

- Senhor Lenet - disse ele - desejava muito vê-la, ainda uma vez.

- Quer que eu a vá buscar? Quer que lha traga? - perguntou Lenet, que já não tinha vontade própria.

- Oh! sim - disse Canolles.

- Pois então, eu lá vou, mas olhe que a mata. -Tanto melhor!

Era o egoísmo, que soprava estas palavras no coração

do mancebo - se tu a matas, jamais outro a possuirá.

- Depois, repentinamente, vencendo esta última fraqueza:

- Não, não - disse, detendo Lenet pela mão. - Prometeu-lhe que ficaria comigo; deixe-se, pois, ficar.

- Que diz ele? - perguntou o duque ao capitão das guardas.

Canolles ouviu a pergunta.

- Digo, senhor duque - respondeu ele - que não julgava que fosse tamanha a distância da prisão à esplanada.

- Ah! - acrescentou Lenet - não se queixe, pobre mancebo, porquanto eis-nos chegados.

Com efeito, os archotes que iluminavam a marcha, e a vanguarda que precedia a escolta, desapareciam naquele mesmo instante, ao voltar de uma rua.

Lenet apertou a mão do mancebo, e, querendo, antes de chegar ao lugar da execução, tentar um derradeiro esforço, aproximou-se do duque:

- Senhor - disse ele em voz baixa - ainda uma vez: rogo-lhe, perdoe! Deita a perder a nossa causa, fazendo executar o senhor de Canolles.

- Pelo contrário - replicou o duque - damos provas de que a consideramos justa, visto que não receamos usar de represálias.

- As represálias fazem-se entre iguais, senhor duque! E por mais que se diga, a rainha sempre há-de ser a rainha, e nós seus súbditos.

- Não discutamos semelhantes coisas diante do senhor de Canolles - respondeu o duque, em voz alta. - Vê perfeitamente que isto é indecoroso.

- Não fale de perdão diante do senhor duque - interrompeu Canolles - bem vê que está a ponto de executar ousadamente um feito estrondoso; não o perturbemos por tão pouca coisa...

O duque não replicou; porém, pelos seus lábios apertados e olhar irónico, viu-se que o tiro acertara no alvo. Enquanto isso, haviam continuado a caminhar, e Canolles, por sua parte, achava-se à entrada da esplanada; ao longe, isto é, na outra extremidade da praça, via-se a multidão apinhada, e um vasto círculo formado pelos canos refulgentes dos mosquetes; no centro, levantava-se alguma coisa negra e uniforme, que Canolles não conseguiu distinguir nas trevas; julgava que era um cadafalso normal; porém, os archotes, chegando de súbito ao centro da praça, iluminaram aquele objecto negro, ao princípio desconhecido, e deixaram ver distintamente o horrível perfil de uma forca.

- Uma forca! - exclamou Canolles, parando e estendendo a mão para a máquina. - Não é uma forca, o que vejo lá em baixo, senhor duque?

- Com efeito, não se engana - respondeu este, friamente.

O rubor da indignação corou a fronte do mancebo; afastou os dois soldados que caminhavam a seu lado, e de um pulo ficou defronte do senhor de Rochefoucauld.

- Senhor - disse ele - esquece-se de que eu sou gentil-homem? Toda a gente sabe, e o próprio carrasco não o ignora, que um gentil-homem tem o direito de ser degolado.

- Senhor, há circunstâncias...

- Senhor - interrompeu Canolles - não é em meu nome que eu lhe falo, mas sim em nome de toda a nobreza, entre a qual ocupa um lugar tão elevado, o senhor, que foi príncipe, e que é duque; será uma desonra - não para mim, que estou inocente, mas sim para todos - que um dos nossos tenha morrido enforcado.

- Senhor, o rei mandou enforcar Richon!

- Senhor, Richon era um bravo soldado, tão nobre de coração como quem quer que seja no mundo; porém, não era nobre por nascimento; eu, sou-o...

- Esquece-se - disse o duque - que se trata aqui de represálias: ainda que fosse príncipe de sangue, seria enforcado.

Graças a um movimento irreflectido, Canolles procurou no flanco a espada; porém, não a achando, a realidade da sua situação recobrou toda a força, a ira desvaneceu-se, e compreendeu que a sua superioridade residia na sua própria fraqueza.

- Senhor filósofo - disse ele - dupla maldição para os que, usando de represálias, não pertencem à humanidade! Não peço perdão, pedia justiça. Pessoas há que me amam, senhor; sublinho este termo, porque, bem o sei, o senhor ignora que se possa amar. Pois bem, no coração dessas pessoas vai imprimir para sempre, associada à recordação da minha morte, a ignóbil imagem da forca. Uma cutilada, uma bala de espingarda, é tudo quanto lhe peço; dê-me o seu punhal, para que eu me trespasse a mim mesmo com eleodepois de tudo isso enforcará o meu cadáver, se assim quiser.

- Richon foi enforcado vivo, senhor - respondeu friamente o duque.

- Muito bem. Agora, ouça-me: dia virá, em que será ferido por uma horrorosa desgraça; em que se lembrará de que essa desgraça é um castigo do céu; quanto a mim, morro convencido de que a minha morte é a sua.

E Canolles, todo trémulo e pálido, mas cheio de exaltação e de coragem, aproximou-se da forca. Altivo e desdenhoso diante da gentalha, pousou o pé no primeiro degrau da escada.

- Agora, senhores carrascos - disse ele - façam o vosso ofício.

- Não há mais um? - exclamou a multidão, admirada.- O outro! Onde está o outro? Tinham-nos prometido dois!

•-Ah! eis o que me consola - disse Canolles, sorrindo.

- Esta excelente gentalha nem sequer se dá por contente

com o que se faz por amor dele; não a ouve senhor duque?

- Morra! morra! seja vingado Richon! - uivavam dez mil vozes.

"Se eu os irritasse - pensou Canolles - seriam capazes de fazer-me em postas, e, então, não seria enforcado, e o duque ficaria danado..." São todos cobardes! - bradou ele. - Reconheço alguns, entre vocês, que participaram no ataque do forte de São Jorge, a quem eu vi fugirem. Hoje, vingam-se de mim, porque os derrotei.

Uma grande algazarra foi a resposta que lhe deram.

- São cobardes! - replicou ele - rebeldes, miseráveis! Viram-se cintilar milhares de facas, e muitas pedras

vieram cair ao pé da forca. "Muito bem" - murmurou Canolles. E depois, em voz alta: - O rei mandou enforcar Richon, e fez muito bem; quando tomar Bordéus, tem de mandar enforcar muitos mais...

Ao ouvir estas palavras, a multidão precipitou-se como uma torrente na esplanada, derrubaram os guardas, despedaçando as estacadas, e arremessou-se, bramindo, ao prisioneiro.

Todavia, a um gesto do duque, um dos carrascos levantara Canolles pelos sovacos, enquanto o outro lhe passava um laço ao pescoço.

Canolles sentiu a pressão da corda e duplicou as injúrias: se quisesse ser morto a tempo não podia perder um só minuto. Nesse momento supremo, olhou em torno de si, e em toda a parte só viu mais olhos chamejantes, e armas ameaçadoras.

Um homem somente, um soldado a cavalo, mostrou-lhe o seu mosquete.

- Cauvignac! É Cauvignac! - exclamou Canolles agarrando-se à escada com ambas as mãos, as quais não lhe tinham ligado.

Cauvignac fez com a sua arma um sinal ao homem que não pudera salvar, e apontou-lhe à cara. Canolles compreendeu-o.

- Sim! sim - exclamou ele, fazendo um movimento com a cabeça.

Agora, digamos como Cauvignac chegara ali.

 

VIMOS Cauvignac sair de Libourne, e sabemos qual a finalidade dessa saída.

Chegando ao sítio onde estavam os seus soldados comandados por Ferguzon, detivera-se um momento, não para tomar alento, mas para dar realização ao plano que uma galopada tão rápida permitira ao seu inventivo espírito gizar, em cerca de meia hora.

Em primeiro lugar - analisara ele, e com muita razão - caso se apresentasse diante da senhora princesa, depois do que se havia passado, ela, que mandara enforcar Canolles de quem não recebera agravo algum, não dexaria de o mandar enforcar a ele, de quem tinha motivos de queixa, e se preenchia a sua missão, na parte que dizia respeito à salvação de Canolles, malograva-a quanto a ele próprio, que ficava perdido... Tratou logo, pois, de mudar de trajos com um dos seus soldados, mandou vestir a Barrabás, que era menos conhecido da senhora princesa do que ele, as suas melhores roupas, e, levando-o consigo, tomou a galope a estrada de Bordéus. Contudo, uma coisa o inquietava: era o conteúdo daquela carta de que era portador, e que sua irmã escrevera com tão grande confiança, que, no entender dela, não era preciso mais do que entregá-la à princesa para que Canolles fosse salvo; ora, esta inquietação chegou a tal ponto, que decidiu pura e simplesmente saber o que ela continha, e fez consigo mesmo a observação de que um bom negociador não pode desempenhar bem a sua negociação, se não tem cabal conhecimento do assunto de que o encarregaram; e, além disso, cumpre dizê-lo, Cauvignac não pecava porque tivesse extrema confiança no seu próximo, e Na-non, apesar de ser sua irmã, podia muito bem conservar algum rancor por ele, primeiramente por causa da aventura de Jaulnay, e depois pela sua fuga inesperada do Castelo de Trompette; portanto, entendeu que seria indiscrição da sua parte expor-se aos riscos do acaso, quando podia inteirar-se do que ela continha.

Cauvignac abriu-a, pois, facilmente, porque só estava lacrada, e experimentou uma impressão estranha e muito dolorosa ao lê-la.

Eis o que escrevia Nanon:

Senhora princesa:

É necessária uma vítima para expiar o caso do infeliz Richon: não lance mão de um inocente, mas sim do verdadeiro culpado; não quero que o senhor de Canolles morra, porque matá-lo seria vingar um assassínio com um homicídio. No momento em que ler esta carta, só terei de andar uma légua para chegar a Bordéus, com tudo quanto possuo: entregar-me-á ao povo que me detesta, visto que já quis por duas vezes degolar-me, e guardará para si as minhas riquezas, que chegam a dois milhões. Oh! senhora, é de joelhos que lhe peço esta graça; eu, em parte, sou a causa desta guerra; uma vez que eu morra, a província ficará em sossego, e Vossa Alteza triunfará. Senhora, um quarto de hora de espera! Não dará a liberdade ao senhor de Canolles senão quando eu estiver em seu poder; mas então, pela vossa alma, dar-lha-á, não é verdade?

E eu serei a sua respeitosa e reconhecida,

Nanon de Lartigues.

Depois desta leitura, Cauvignac estava estupefacto por

sentir o coração opresso, e os olhos húmidos.

Ficou um instante imóvel e mudo, como se não pudesse

reditar no que acabava de ler. Depois, exclamou, de súbito:

- É, pois, verdade que haja no mundo corações generosos pelo prazer de o serem! Ora, pois, com todos os diabos! Ver-se-á que eu sou tão capaz como qualquer outro de ser generoso, quando cumpre sê-lo.

E, como estava à porta da cidade, entregou a carta a Barrabás, dando-lhe estas únicas instruções.

A tudo que te disserem, responde somente: "Da parte do rei", e não entregues esta carta senão em mão própria à senhora de Conde.

E, quando Barrabás caminhava apressadamente para o palácio habitado pela senhora princesa, Cauvignac tomava por seu lado o caminho do Castelo de Trompette.

Barrabás não encontrou obstáculo nenhum; as ruas estavam desertas, a cidade parecia despovoada, toda a gente tinha ido para o lado da esplanada. À porta do palácio, as sentinelas quiseram impedir-lhe que passasse; porém, segundo a recomendação feita por Cauvignac, mostrou a carta, gritando:

- Da parte do rei... da parte do rei!

As sentinelas tomaram-no por um mensageiro da corte, e levantaram as suas alabardas. Barrabás entrou, pois, no palácio, como entrara na cidade.

Ora, se bem nos lembrarmos, não era esta a primeira vez que o digno tenente do senhor Cauvignac tinha a honra de entrar no palácio da senhora de Conde. Apeou-se, pois, do cavalo, e, como conhecia o caminho, subiu rapidamente a escada, e por entre os criados azafamados penetrou até ao fundo dos quartos; ali parou, porque se encontrou defronte de uma mulher em quem reconheceu a princesa, aos pés da qual estava prostrada outra mulher.

- Ora! Senhora, perdão, em nome do céu! - dizia esta.

- Clara-respondia a princesa-deixa-me, sê razoável, lembra-te de que abdicámos da nossa qualidade de mulheres, assim como abdicámos dos nossos vestidos; fazemos as vezes do senhor príncipe, e a razão de Estado é que deve dirigir-nos.

- Oh! senhora, já não há razão de Estado em mim - exclamou Clara - já não há partido político, não há

senão ele neste mundo, que está a ponto de o deixar, e quando o tiver deixado, já para mim não haverá senão morte!...

- Clara, minha filha, já te disse que isso era impossível - replicou a princesa. - Mataram-nos Richon; se não lhes pagamos na mesma moeda, ficamos desonrados.

- Oh! senhora, nunca pode ser motivo de desonra o ter concedido perdão, nunca pode ser motivo de desonra o ter usado de um privilégio reservado ao Rei do Céu e aos reis da Terra; uma palavra, senhora, uma só! Aquele infeliz por ela espera!

- Mas, Clara, tu estás louca; não me ouves dizer-te que isso é impossível?

- Mas eu mesma disse-lhe que estava salvo; eu mostrei-lhe o seu perdão, assinado pela sua própria mão; eu disse-lhe que voltaria com a confirmação desse perdão.

- Eu tinha-o dado com a condição de que o outro pagaria por ele; por que razão deixaram fugir o outro?

- Ele não concorreu de modo algum para essa fuga, juro-lhe; além disso, talvez que o outro não tenha fugido; talvez que o tornem a encontrar...

- Ah! sim! esperem por ele - disse Barrabás, que chegava justamente naquele momento.

- Senhora, estão a pontos de levá-lo; senhora, o tempo vai correndo; cansar-se-ão de esperar!

- Tens razão, Clara - disse a princesa - pois ordenei que tudo estivesse concluído às onze horas, e eis onze horas que estão dando; tudo deve estar acabado.

A viscondessa deu um grito e levantou-se; levantando-se, viu-se em frente de Barrabás, cara a cara.

- Quem é o senhor? Que quer? - exclamou ela.-Vem já anunciar a morte dele?

- Não, senhora - respondeu Barrabás, compondo o seu ar mais gracioso - pelo contrário, venho para salvá-lo.

- Como? - exclamou a viscondessa. - Fale depressa.

- Entregando esta carta à senhora princesa.

A senhora de Cambes estendeu o braço, arrancou a carta das mãos do mensageiro e apresentou-a à princesa.

- Não sei o que contém esta carta - disse ela - mas, pelo santo nome de Deus, leia-a!

A princesa abriu a carta e leu em voz alta, enquanto a senhora de Cambes, empalidecendo a cada linha, devorava as palavras à medida que saíam dos lábios da princesa.

- De Nanon! - exclamou a princesa, depois de ter lido tudo. - Nanon está aí! Nanon vem entregar-se. Onde está Lenet? Onde está o duque? Venha aqui alguém, já, já, sem a mínima demora.

- Tem-me aqui - disse Barrabás - pronto a correr para onde Vossa Alteza quiser.

- Corra depressa à esplanada, corra ao lugar da execução, diga que suspendam; mas não, não o acreditariam!

A princesa, pegando arrebatadamente numa pena, escreveu no fim do bilhete: Suspenda, e entregou a carta aberta a Barrabás, que saiu precipitadamente do quarto.

- Oh! - disse consigo a viscondessa - ela ama-o mais do que eu; e, desgraçada de mim, a ela é que deverá a vida.

A esta ideia tombou, meio morta, sobre uma poltrona, a mulher que recebera, de pé, todos os abalos daquele dia terrível.

Todavia, Barrabás não perdera um instante; descera a escada como se tivesse asas, depois montara a cavalo, e tomara a galope o caminho da esplanada.

Enquanto ele se dirigia ao palácio, Cauvignac correra direito ao Castelo de Trompette. Ali, protegido pela noite, disfarçado com o seu grande chapéu cravado na cabeça até aos olhos, interrogara e soubera da sua própria fuga com todas as circunstâncias de que fora acompanhada, e de como Canolles ia pagar por ele. Então, como por instinto, e sem saber o que lá ia fazer, corre para o lado da esplanada, esporeando o cavalo com furor, rompendo a multidão, pisando, derrubando, atropelando tudo o que encontrava na sua passagem; tendo chegado à esplanada, deu com os olhos na forca, e soltou um grito perdido entre os uivos daquele povo, a quem Canolles excita e provoca, a fim de que o façam em postas.

Então Canolles vê-o, adivinha a intenção de Cauvignac, e Canolles faz-lhe com a cabeça o sinal de ser muito bem-vindo.

Cauvignac levanta-se sobre os estribos, olha à roda de si para ver se chega Barrabás, ou algum mensageiro da princesa, põe-se à escuta, esperando ouvir retumbar a palavra: Perdão! Porém, nada vê e nada ouve senão Canolles, a quem o carrasco vai empurrar da escada e lançar no vácuo, e que lhe mostra com uma das mãos o coração.

Então Cauvignac baixa o seu mosquete na direcção do mancebo, faz pontaria, e atira.

- Muito obrigado - disse Canolles, abrindo os braços. - Ao menos, morro como soldado. • A bala tinha-lhe atravessado o peito.

O carrasco impeliu o corpo, que ficou suspenso na extremidade da corda infame... porém já não era senão cadáver.

A detonação foi como um sinal; muitos outros tiros de mosquete são disparados ao mesmo tempo. Uma voz grita: - Suspendam! Suspendam! Cortem a corda!

Porém, a voz perdeu-se no alarido da multidão; além disso, a corda foi cortada por uma bala; a guarda em vão quer resistir, é rasgada pelas ondas do povo; a forca é despedaçada, arrancada, aniquilada; os carrascos fogem, a gentalha espalha-se como uma sombra; apodera-se do cadáver, dilacera-o, e arrasta-o pela cidade.

A gentalha, estúpida no seu ódio, entendia que agravava o suplício do gentil-homem, e muito pelo contrário, salvava-o da infâmia que ele tanto temia.

Durante todo este movimento, Barrabás pudera chegar ao pé do duque, e posto que visse que chegava muito tarde, entregou-lhe o despacho de que era portador.

O duque contentara-se, no meio dos tiros de espingarda, em retirar-se um pouco à parte, pois era frio e sereno na sua coragem, como em tudo o mais que fazia; abriu a carta e leu-a.

- É pena - disse ele, voltando-se para os seus oficiais - o que propunha aquela Nanon talvez tivesse valido

mais. Porém, o que se fez, feito está. Depois, passado um momento de reflexão:

- A propósito - disse ele - visto que ela espera a resposta do outro lado do rio, talvez houvesse meio de darmos seguimento a este negócio.

E, sem fazer mais caso do mensageiro, picou o seu cavalo, e foi ter com a princesa, seguido da escolta.

No mesmo instante, a borrasca, que desde algum tempo andava ameaçando, rompeu sobre Bordéus, e uma chuva acompanhada de relâmpagos caiu sobre a Praça da Esplanada, como se quisesse lavar o sangue do inocente.

 

ENQUANTO estas coisas se passavam em Bordéus, enquanto a gentalha arrastava pelas ruas o corpo do infeliz Canolles, e o duque de Rochefoucauld ia de novo lisonjear o orgulho da senhora princesa, dizendo-lhe que, para fazer o mal, era tão poderosa como uma rainha; enquanto Cauvignac voltava para as portas da cidade com Barrabás, julgando inútil levarem mais longe a sua missão, uma carruagem, tirada por quatro cavalos esbaforidos e cobertos de suor, acabava de parar na margem do Garona oposta a Bordéus, entre as aldeias de Belcroix e Bastide. Acabavam de dar onze horas.

Um criado que acompanhava a cavalo, apeou-se precipitadamente, logo que viu a carruagem parada, e foi abrir a portinhola.

Uma mulher desceu apressadamente, interrogou o céu todo vermelho com um reflexo sanguinolento, e pôs-se a escutar os rumores e os ruídos longínquos.

- Está certa - disse ela à sua camareira, que se apeava depois dela - que não fomos seguidas por ninguém?

- Não, senhora - respondeu esta. - Os dois pescadores que tinham ficado atrás por ordem da senhora, acabam de chegar, e nada viram nem ouviram.

- E vocês não ouvem coisa nenhuma do lado da cidade?

- Parece-me que ouço gritos longínquos.

- Não vêem alguma coisa?

- Vejo como que um clarão de incêndio.

- São archotes.

- Sim, senhora! Sim, porque se agitam como fogos-fátuos. Não ouve, senhora? A bulha vai crescendo, e os gritos tornam-se quase distintos.

- Oh! meu Deus! - balbuciou a jovem mulher, pondo-se de joelhos na terra húmida. - Oh meu Deus! meu Deus!

Era esta a sua única oração. Uma só palavra se lhe apresentava ao espírito, a sua boca não podia articular nada, além do nome d'Aquele que unicamente podia fazer um milagre em seu favor.

A camareira não se enganara: com efeito, os archotes agitavam-se e os gritos pareciam aproximar-se; ouviu-se um tiro de espingarda seguido por outros, depois um grande tumulto, e em seguida os archotes apagaram-se, os gritos foram-se afastando. A chuva principiou a cair, uma trovoada ribombava no céu; mas que importava tudo isto à jovem mulher? Não era do raio que ela temia. Tinha sempre os olhos fixos no sítio onde vira tantos archotes, onde ouvira um tão grande tumulto. Já nada via, já nada ouvia, e, ao clarão dos relâmpagos, parecia-Lhe que a praça estava vazia.

- Oh! - exclamou ela - não tenho forças para esperar mais tempo. Para Bordéus! Levem-me para Bordéus!

No mesmo instante, ouviu-se um estrépito de cavalos que se aproximava.

- Ah! - exclamou ela - por fim, aí chegam. Ei-los! Adeus, Finette, retira-te, é preciso que eu vá só; leva-a na garupa do teu cavalo, Lombard, e deixa na carruagem tudo quanto eu trouxe.

- Mas que vai fazer, senhora? - exclamou a camareira, muito assustada.

- Adeus, Finette, adeus.

- Mas adeus, por que razão, senhora? Para onde quer ir?

- Vou para Bordéus.

- Ah! pelo amor de Deus, não faça isso, senhora! Matá-la-ão.

- E então, para que julgas tu que eu lá quero ir?...

- Oh! senhora! Lombard, acuda em meu socorro, ajude-me, não deixemos ir a senhora...

- Silêncio! Retira-te, Finette. Lembrar-me-ei de ti; fica descansada, retíra-te, não quero que te aconteça alguma desgraça. Obedece, eles aproximam-se. Ei-los!

E, na realidade, um cavaleiro vinha correndo seguido a alguma distância por outro; ouvia-se antes rugir do que respirar o seu cavalo.

- Minha irmã! minha irmã! - exclamou ele.-Ah! Chego a tempo.

- Cauvignac! - exclamou Nanon. - Então, está tudo arranjado? Espera-me ele? Partimos nós?

Porém, em vez de responder, Cauvignac saltou do cavalo; tomou nos seus braços Nanon, que em nada se lhe opôs, conservando-se imóvel e inflexível como os espectros e os doidos. Cauvignac sentou-a na carruagem, mandou subir para junto dela Finette e Lombard, fechou a portinhola, e saltou para cima do seu cavalo. Em vão a pobre Nanon, havendo tornado a si, gritava e se debatia. -Não a larguem - disse Cauvignac - por coisa nenhuma deste mundo, não a larguem. Barrabás, guarda a outra portinhola, e tu, cocheiro, se deixares de galopar, faço-te saltar os miolos fora da cabeça.

Estas ordens foram tão rápidas, que houve um momento de hesitação; a pesada carruagem tarda a mover-se, os criados tremem, os cavalos hesitam em partir.

- Depressa, depressa, com todos os diabos! - vocifera Cauvignac - eles aí vêm, eles aí vêm.

E, com efeito, principiava a ouvir-se ao longe passos de cavalos retumbando, como se ouve o ribombo de um trovão que se aproxima rápido e ameaçador.

O medo é contagioso. O cocheiro, ouvindo a voz de Cauvignac, compreende que algum grande perigo estava iminente, e lança mão às rédeas dos seus cavalos. -Para onde vamos? - balbucia ele.

- Para Bordéus! Para Bordéus! - exclama Nanon, do interior da carruagem.

- Para Libourne, com mil milhões de diabos! - grita Cauvignac.

- Senhor, os cavalos cairão por terra antes que tenham andado duas léguas.

- Não há necessidade de que andem tanto caminho! - gritou Cauvignac, zurzindo com a espada. - Contanto

que cheguem ao posto onde está Ferguzon, é tudo quanto desejo.

E a pesada máquina pôs-se em movimento, partiu, e vai rodando com uma espantosa rapidez. Homens e cavalos mutuamente se animam uns com gritos, os outros com relinchos.

Nanon tentou resistir, lutar e saltar da carruagem; porém, as forças esgotaram-se-lhe na luta; caiu para trás sem forças e prostrada; já nada houve, já nada vê. A força de procurar Cauvignac, naquela confusão de sombras que lhe fogem, dá-lhe uma vertigem, fecha os olhos, solta um grito, e fica inerte nos braços da camareira.

Cauvignac passou para diante da portinhola da carruagem, e até para diante dos cavalos. A sua montada deixa um rasto de fogo na calçada por onde passa. -Vem ter comigo, Ferguzon! Apressa-te - grita ele. E ouve ao longe uma grande vozearia. -Inferno! - exclama Cauvignac-jogas contra mim, porém creio que hoje ainda tens de perder; Ferguzon! aproxima-te, Ferguzon!

Dois ou três tiros soam à retaguarda, aos quais respondem da frente com uma descarga geral.

A carruagem pára, dois dos cavalos caíram de cansaço, o terceiro foi ferido por uma bala.

Ferguzon e os seus homens caem sobre as tropas de Rochefoucauld; como são três vezes mais numerosos, os bordeleses, incapazes de resistir, voltam rédea, e, vence-ores e vencidos, perseguidores e fugitivos, semelhantes uma nuvem que o vento leva, desaparecem nas sombras a noite.

Cauvignac fica só com os criados e Finette, junto de Nanon, que se conserva insensível! Por felicidade não estão a mais de dois passos da aldeia e Carbomblanc; Cauvignac toma Nanon em seus braços até à primeira casa do arrabalde; ali, depois de ter dado ordem para que fossem buscar a carruagem, deitou a irmã numa cama, e, tirando do peito um objecto que Finette não pôde distinguir, meteu-o na mão gelada da pobre mulher.

No dia seguinte, despertando daquilo que ela tomava por um sonho horroroso, Nanon levou aquela mão ao rosto, e alguma coisa de macio e perfumado lhe afagou os pálidos lábios.

Era um anel dos cabelos de Canolles, que Cauvignac heroicamente conquistara, aos tigres bordeleses, arriscando a própria vida.

 

AO longo de oito dias e oito noites, a senhora de Cambes esteve em estado de choque, sem se levantar do leito para onde a tinham levado desmaiada, depois de ter recebido a horrível notícia.

As criadas velavam em torno dela, porém Pompeu é quem guarda a porta; este velho servo, ajoelhado diante da cama da infeliz ama, era o único que conseguia despertar nela algum reflexo de razão.

Visitas numerosas sitiavam aquela porta; porém, o fiel escudeiro, severo na sua senha como soldado velho, defendia a entrada com valor, em primeiro lugar, pela convicção em que estava de que toda a visita seria importuna para a sua ama, depois, por ordem do médico, que temia muito o abalo de uma comoção demasiado violenta.

Todas as manhãs Lenet se apresentava à porta da infeliz senhora; porém, Lenet não era mais bem recebido do que os outros. A própria senhora princesa em pessoa também ali se apresentou com um grande séquito, um dia que vinha de visitar a mãe do pobre Richon, que morava num arrabalde da cidade. A intenção da senhora de Conde, além do interesse que tomava pela viscondessa, era dar mostras de uma completa imparcialidade.

Apresentou-se, pois, para fazer o papel de soberana; porém, Pompeu fez-lhe respeitosamente observar que tinha recebido uma ordem, da qual não podia afastar-se; que todos os homens, até os próprios duques e generais, que todas as senhoras, até as princesas, estavam sujeitas a essa ordem, e a senhora de Conde ainda mais do que qualquer outra, visto que, depois do que se passara, a sua visita podia dar lugar a uma crise terrível para a doente.

A princesa, que cumpria, ou que julgava cumprir um dever, e o que mais desejava era retirar-se, não se fez rogar duas vezes, e partiu com o seu séquito.

Ao nono dia, Clara recobrara os sentidos; tinha-se observado que, durante o seu delírio, que durara oito vezes vinte e quatro horas, não cessara de chorar; sem embargo de que a febre ordinariamente seca as lágrimas, as suas tinham, por assim dizer, formado um sulco debaixo das pálpebras, rodeadas por um inchaço vermelho e azul-pálido, como as da sublime Virgem de Rubens.

Ao nono dia - como dissemos - no momento em que menos se esperava, e em que se começava a perder toda a esperança, recobrou de súbito, como por encanto, o uso da razão; as suas lágrimas cessaram de correr, volveu os olhos para todos os objectos que a rodeavam, e fixou-os com um triste sorriso nas criadas que tão bem a haviam servido,-em Pompeu que tão bem a guardara; então, ficou durante algumas horas sem falar e encostada ao cotovelo, prosseguindo com olhos ávidos o mesmo pensamento, que incessantemente renascia com mais força.

Depois, repentinamente, sem se importar se as forças corresponderiam à sua resolução: - Vistam-me! - mandou ela.

As criadas aproximaram-se, estupefactas, e quiseram fazer-lhe algumas observações. Pompeu deu três passos pelo quarto dentro, e pôs as mãos, como para implorar.

A viscondessa, entretanto, repetiu com doçura, mas com firmeza:

- Eu disse que me vestissem; vistam-me.

As criadas aprestaram-se a obedecer-lhe. Pompeu inclinou-se, e saiu, recuando.

Ah! nas faces, rosadas e nédias, sobreviera a palidez, a magreza dos moribundos; a mão, sempre bela e de forma encantadora, levantou-se, diáfana, e foi pousar-se no próprio peito, que estava mais branco do que a cambraia que o envolvia; sob a pele, sobressaíam as veias roxas, sintoma da prostração causada por um grande sofrimento. Os vestidos que, por assim dizer, largara na véspera, e que haviam desenhado o seu elegante talhe, caíam à roda dela em compridas e grandes pregas. Vestiram-na como desejava; porém precisaram de muito tempo, pois estava tão fraca, que por três vezes quase desmaiou; depois, quando se viu vestida, aproximou-se de uma janela; mas logo recuou, como se a vista do céu e da cidade a tivesse assustado; voltou para dentro, sentou-se a uma mesa, pediu uma pena e tinta,-escreveu à senhora princesa, a pedir-lhe o favor de uma audiência.

Dez minutos depois de ter mandado por Pompeu esta carta à senhora princesa, ouviu-se o ruído de uma sege que parava defronte da casa, e, quase no mesmo instante, informaram que era a senhora Tourville.

- Foi a senhora, na realidade - perguntou ela à senhora de Cambes - quem escreveu à senhora princesa, a pedir-lhe uma audiência?

- Sim, senhora - respondeu Clara. - Será que ma recusa?

- Oh! pelo contrário, minha querida, pois eu venho a toda a pressa dizer-lhe da parte dela que bem sabe que não precisa de audiência, e que pode entrar a qualquer hora do dia e da noite em casa de Sua Alteza.

- Muito obrigada - disse a viscondessa -, vou aproveitar-me dessa licença.

- Como assim? - exclamou a senhora de Tourville.

- Atrever-se-ia, pois, a sair, no estado em que está?

- Sossegue a esse respeito, senhora - respondeu a viscondessa. - Sinto-me perfeitamente boa.

- E quer ir já? -Daqui a um instante.

- Então, vou prevenir Sua Alteza da sua chegada. E a senhora Tourville saiu como entrara, depois de ter

feito à viscondessa uma cerimoniosa mesura. A notícia desta visita inesperada produziu, como é de supor, um grande abalo naquela pequena corte; a situação da viscondessa inspirava um interesse tão vivo como geral, pois não faltava quem condenasse a atitude da princesa nos últimos acontecimentos. A curiosidade havia, portanto, chegado ao auge: oficiais, damas de honor e cortesãos atulhavam o gabinete da senhora de Conde, não podendo acreditar na visita prometida, visto que ainda na véspera se havia afirmado que devido ao estado de Clara, não havia quase esperança alguma de que recuperasse.

Repentinamente, anunciaram a viscondessa de Cambes, e Clara apareceu.

À vista daquele rosto, pálido como a cera, frio e imóvel como mármore, e cujos olhos encovados e amortecidos não tinham já senão uma única centelha, derradeiro reflexo das lágrimas que derramara, um doloroso murmúrio elevou-se em torno da princesa.

Clara não pareceu dar por isso.

Extremamente comovido, Lenet foi ao encontro dela para oferecer-lhe a mão.

Porém, Clara, sem dar a sua, saudou com ar nobre a senhora de Conde, e adiantou-se para ela, atravessando a sala a todo o comprimento, com passo firme, muito embora estivesse tão pálida, que a cada passo que dava poder-se-ia crer que estava a ponto de cair.

A princesa, muito agitada e também muito pálida, viu chegar Clara com um receio que se assemelhava a terror, e não teve forças para ocultar este sentimento, que, para desgosto da soberana, se lhe espelhava no semblante.

- Senhora - disse a viscondessa, com voz grave - peço a Vossa Alteza uma audiência, que teve a bondade de conceder-me, para perguntar-lhe, diante de todos, se, desde que tenho a honra de a servir, anda satisfeita com a minha fidelidade e com o meu extremoso afecto.

A princesa levou o lenço aos lábios, e respondeu, balbuciando:

- Não há dúvida alguma, querida viscondessa, de que em todas as ocasiões sempre me agradou o seu procedimento, e, mais de uma vez, já lhe exprimi o meu reconhecimento.

- Este testemunho é precioso para mim, senhora - respondeu a viscondessa -, porque me autoriza a dispensar-me do seu serviço.

- Como! - exclamou a princesa. - Quer deixar-me, Clara?

Clara saudou-a respeitosamente, e calou-se. Em todos os rostos estavam estampadas a vergonha, o remorso e a dor. Um silêncio fúnebre reinava no salão.

- Mas porque me queres deixar? - replicou a princesa.

- Poucos dias me restam de vida, senhora - replicou a viscondessa - e a esses poucos dias, desejaria utilizá-los na obra da minha salvação.

- Clara, querida Clara - exclamou a princesa, - mas repare que...

- Senhora - interrompeu a viscondessa - tenho duas graças a pedir a Vossa Alteza; poderei crer que mas concederá?

- Oh! fale! fale! - exclamou a senhora de Conde -pois dar-me-ei por feliz se puder fazer alguma coisa

por si.

- Pode fazê-lo, senhora.

- Então, que pretende?

- Princesa! A concessão da abadia de Saint-Rade-gonde, que ficou vaga pela morte da senhora de Montivy.

- Uma abadia para si! querida menina! Que lembrança essa!

- A segunda, senhora - continuou Clara, com um leve tremor de voz - é que me seja permitido fazer enterrar nas minhas terras de Cambes o corpo do meu desposado, o senhor barão Raul de Canolles, assassinado pelos habitantes de Bordéus.

A princesa desviou o rosto apertando o coração com mão trémula. O duque de Rochefoucauld empalideceu e ficou perturbado. Lenet abriu a porta da sala, e saiu.

- Vossa Alteza não me dá resposta? - insistiu Clara; - recusa-me o que lhe peço? Talvez tenha pedido muito...

A senhora de Conde nem sequer teve forças para fazer um movimento de cabeça em sinal de assentimento, e caiu desfalecida na sua poltrona.

Clara voltou-se, como teria feito uma estátua, e todos se arredaram para lhe franquear o caminho. Passou, direita e impassível, por diante de todas aquelas frontes curvadas, e só depois de ela ter saído da sala repararam em que ninguém tratara de socorrer a senhora de Conde.

Passados cinco minutos, ouviu-se rodar lentamente uma carruagem no pátio; era a viscondessa, que saía de Bordéus.

- Que decide Vossa Alteza? - perguntou a marquesa Tourville à senhora de Conde, quando esta voltou a si.

- Que se ceda à senhora viscondessa de Cambes, quanto aos dois desejos; e que nos perdoe...

 

A ABADESSA DE SAINT-RADEGONDE DE PEYSSAC

Passou-se um mês sobre estes acontecimentos.

Uma noite de domingo, depois das vésperas, a abadessa do convento de Sainte-Radegonde de Peyssac regressava da última capela, situada na extremidade dos jardins do convento, lançando de quando em vez os seus olhos avermelhados de lágrimas para uma sombria tapada de tílias e de cedros, e fazia-o com uma tal expressão de pena, que dir-se-ia ter o seu coração ficado naquele local, de onde se não podia alhear.

À frente dela, numa longa e solitária álea a caminho da residência, as religiosas, mudas e veladas, pareciam formar uma procissão de fantasmas que regressassem ao túmulo, do qual sairia um outro fantasma rasgando a terra.

Pouco a pouco, e umas após outras, as freiras desapareceram sob as sombrias arcadas do claustro, e a superiora seguiu-as com os olhos, até à última; em seguida, deixou-se cair sobre um capitel de coluna gótica, meio embrenhado na erva, com uma indescritível expressão de desespero.

- Ah! Meu Deus! Meu Deus! - exclama ela, apoiando uma mão no coração - sois testemunha de que não posso suportar esta vida que desconhecia; era a solidão e a obscuridade o que eu procurava no claustro, e não todos estes olhos pespegados em mim.

Ergueu-se então, e deu um passo em direcção ao bosquezinho de cedros.

- Ao fim e ao cabo - prossegue - que me importa o mundo, uma vez que a ele renunciei? Esse mundo só me fez mal; a sociedade foi cruel para comigo; então, por que razão hei-de inquietar-me com os seus julgamentos, eu, que me refugiei junto de Deus, e que só a Ele me dedico; mas talvez que Deus haja proscrito este amor que vive no meu coração e que o devora. Pois seja! Então, Ele que o arranque da minha alma, ou então que arranque a alma deste meu corpo.

Todavia, mal a pobre desesperada havia pronunciado estas últimas palavras, quando, correndo os olhos sobre o hábito com que se cobria, sentiu horror por tal blasfémia, tão pouco em harmonia com esse mesmo hábito; com a mão branca e emagrecida, secou as lágrimas que lhe bordejavam as pálpebras, e, erguendo os olhos ao céu, ofereceu-lhe com um olhar apenas, em holocausto, os seus eternos sofrimentos.

Nesse momento, uma voz chegou-lhe aos ouvidos. A abadessa voltou-se; era a voz da irmã leiga.

- Senhora - diz ela - está uma mulher no parlatório que deseja autorização para falar-lhe.

- Como se chama?

- Só à senhora pretende dizê-lo.

- A que meio parece ela pertencer?

- Mas... a uma condição distinta.

- Uma vez mais, o mundo - murmura a abadessa.

- Que devo responder-lhe? - perguntou a irmã leiga.

- Que a recebo.

- Onde, minha senhora?

- Traga-a aqui; ouvi-la-ei neste jardim, sentada neste mesmo banco. Falta-me o ar; sufoco quando não estou ao ar livre.

A irmã leiga retirou-se, e um momento volvido regressou, seguida por uma mulher que, a ter em conta as suas vestes, ricas apesar da respectiva simplicidade, dava a conhecer uma pessoa distinta.

Era de estatura meã. O seu caminhar, rápido, teria talvez falta de nobreza, mas exprimia um encanto indizível. Debaixo do braço trazia um cofrezinho de marfim, cuja brancura mate contrastava com o negro cetim do vestido, guarnecido a jade.

- Senhora - informou a leiga - apresento-lhe a senhora superiora.

A abadessa desvelou o rosto, e encarou a estranha.

Esta, baixou os olhos; vendo-a pálida e com tremuras emocionais, a superiora olhou-a com carinho, e afirmou: -Pediu para falar-me; aqui estou, pronta a escutá-la, minha irmã.

- Senhora - respondeu a desconhecida - eu era tão feliz a ponto que o meu orgulho julgou talvez que nem o próprio Deus poderia destruir essa felicidade. Hoje, porém, Deus manifestou-se; necessito chorar e tenho necessidade de me arrepender. peço-lhe asilo a fim de que os meus soluços sejam abafados pelos espessos muros do seu convento, para que as minhas lágrimas, que traçam já marcas sobre o meu rosto, não sirvam de gáudio ao mundo. Para que, enfim, Deus, que talvez me julgue feliz em meio das festas, me avalie arrependida numa santa retractação, rezando aos pés dos Seus altares.

- A sua alma está profundamente ferida, bem o vejo, porque, também eu sei o que é sofrer - respondeu a jovem superiora. E, confusa, já não sabia distinguir perfeitamente o que era a realidade e o que ela própria desejava.

- Se o que lhe falta é o silêncio - prosseguiu a abadessa;- se o que lhe falta é martirizar-se; se o que lhe falta é a penitência, minha irmã, entre então aqui e sofra connosco. Todavia, se o que procura é o refúgio onde possa espraiar o coração através de um soluçar livre, onde possa soltar todos os gritos do seu desespero, onde nenhum olhar se detenha sobre si, triste vítima, oh! senhora, senhora - continuou ela abanando a cabeça - afaste-se, feche-se no seu quarto, o mundo vê-la-á aí muito menos do que aqui e as tapeçarias do seu oratório absorverão bem melhor os seus soluços do que as tábuas das nossas celas.

"Quanto a Deus, a não ser que não sejam crimes demasiadamente grandes aqueles que O levaram a afastar de si os olhos, Ele vê-la-á seja onde for."

A desconhecida ergueu a cabeça e, por seu turno, encarou com espanto aquela jovem abadessa que lhe falava de tal modo.

- Senhora - diz ela - não devem todos aqueles que sofrem chegar-se ao Senhor, e não é esta Sua casa uma santa estação a caminho do céu?

- Só há um processo de chegar até Deus, minha irmã.

De que se arrepende? Que chora? Que pede? - retorquiu, interrogativa e tolhida no seu desespero, a religiosa. - O mundo magoou-a, a amizade traiu-a, faltou-lhe o ouro, uma dor passageira fê-la acreditar numa dor eterna; deve ser isto, sofre neste momento, e julga que sofrerá sempre assim, da mesma forma que, se vimos uma ferida aberta, julgamos que ela jamais estancará. Engana-se; toda a ferida que não é mortal cicatriza. Portanto, sofra, e deixe o sofrimento seguir o seu curso. Curar-se-á, e então, se estiver acorrentada a nós, iniciará um novo sofrimento: este, porém, realmente é férreo, implacável, inaudito. Sonhará para além da clausura com o mundo no qual não poderá reentrar; maldirá então o dia em que sobre si se fechou o portão desta santa hospedaria, a qual toma por uma estação a caminho do céu.

"Isto que lhe digo talvez não esteja de acordo com os nossos regulamentos, visto que não sou a abadessa há tempo suficiente para conhecê-los bem; mas digo-o pelo coração, e é aquilo que eu vejo em cada instante, não em mim, graças a Deus, mas em torno de mim.

- Oh! não, não - exclamou a estranha - para mim, o mundo acabou; perdi tudo aquilo que fazia do mundo uma coisa amada. Não, fique tranquila, senhora, jamais me arrependerei. Oh! tenho a certeza disso... nunca!

- Nesse caso, aquilo de que se queixa é mais grave? Em vez de perder uma ilusão terá perdido uma realidade? Estará para sempre separada de um esposo, de um filho... de um amigo? Oh, nesse caso, lamento-a realmente, senhora, porque então o seu coração ficou desfeito em dois bocados, o seu mal é incurável; nesse caso, chegue-se a nós, senhora, o Senhor consolá-la-á, e Ele substituirá em vez de nós - que formamos uma grande família, um rebanho de que Ele é o pastor - os amigos ou os parentes que perdeu e, (aqui baixou a voz) se Ele não a consolar, o que também é possível, que importa! Restar-lhe-á a última consolação de chorar comigo, que para aqui vim tal como a senhora em busca de consolação, e que ainda a não encontrei de todo em todo.

- Infelicidade! - exclamou a desconhecida. - Seriam estas as palavras que eu vim procurar? É desta forma que ajudam os infelizes?

- Senhora - respondeu a superiora, estendendo a mão para a jovem mulher, como se para afastar o reparo que ela acabava de fazer-lhe. - Não fale de infelicidade na minha presença. Não sei quem a senhora é, não sei o que lhe aconteceu, mas de certeza que não conhece o que é a infelicidade.

- Oh! - exclamou a desconhecida, com uma entoação tão sofredora que fez estremecer a superiora. - Não me conhece, senhora, porque, se me conhecesse, não me falaria assim. Além disso, a senhora não é juiz do grau do meu sofrimento, porque para tanto seria preciso que tivesse sofrido o mesmo que eu; abra-me as portas da casa de Deus. E pelas minhas lágrimas, pelos meus gritos, pelas minhas agonias de cada dia, poderá aquilatar de quanto na realidade eu sou sofredora.

- Sim - volveu a superiora. - Pela sua entoação, pelas suas queixas, compreendo que perdeu o homem que amava, não é verdade?

A desconhecida soltou um fundo suspiro, e retorceu os braços. - Oh! sim, sim - exclamou ela.

- Seja! Se assim o quer - retorquiu a superiora - entre neste convento. Mas previno-a de que, caso sofra tanto como eu, apenas encontrará no claustro isto: eternos muros, impiedosos, que, em vez de conduzirem os nossos pensamentos ao céu, até onde deveriam elevar-se, enterrá-los-ão constantemente na terra, da qual estará separada. É que nada se extingue quando o sangue circula, quando o pulso bate, e o coração ama. Porque, por muito isoladas que estejamos e por muito escondidas que julguemos estar, os mortos chamam-nos do fundo das suas sepulturas; então, porque afastar-se da sepultura dos seus mortos?

- Porque tudo o que eu amei no mundo está aqui - respondeu a desconhecida com voz estrangulada, caindo de joelhos diante da superiora, que a encarava com estupefacção. - Agora já sabe do meu segredo, minha irmã; por isso pode apreciar o meu sofrimento, minha mãe. "Suplico-lhe de joelhos - e está a ver as minhas lágrimas - aceite o sacrifício que faço a Deus, ou pelo menos conceda a graça que lhe imploro. Ele está enterrado na igreja de Peyssac; deixe-me chorar sobre a sua tumba, que está aqui.

- Quem está aqui? Que tumba? De quem fala? Que quer dizer? - exclamou a superiora, recuando diante daquela mulher ajoelhada, para quem olhava quase com medo.

- Quando eu era feliz - prosseguiu a penitente, com voz baixa, mais baixa ainda do que aquela que o vento abafa, assobiando nas frinchas - e era bem feliz, chamavam-me Nanon de Lartigues. Reconhece-me agora, e sabe porque imploro?

A superiora ergueu-se como se uma mola a impulsionasse, e, com os olhos postos no céu e as mãos juntas, manteve-se por um momento muda e pálida.

- Oh! senhora - disse ela por fim, com uma voz aparentemente bastante calma, na qual, todavia, se apercebia a reverberação de uma última emoção. - Oh! senhora, será que também não me conhece a mim, a senhora, que me pede para aqui se enclausurar e chorar sobre um túmulo? Será que não sabe, então, que paguei com a minha liberdade, com a minha felicidade e com a renúncia ao mundo, com todas as lágrimas do meu coração, a triste satisfação cuja metade acaba de me pedir? A senhora é Nanon de Lartigues; pois a mim, quando tive um nome, chamavam-me viscondessa de Cambes!

Nanon soltou um grito, aproximou-se da superiora, e, soerguendo o capuz sob o qual se escondiam os braços olhos da religiosa, reconheceu o rosto da sua rival.

- Ela! - exclamou Nanon. - Ela, que era tão bela, quando esteve em São Jorge! Ah, pobre mulher!

Recuou um passo, com os olhos sempre fixados na viscondessa e sacudindo a cabeça.

- Oh! - exclamou por sua vez a viscondessa, tolhida por essa satisfação de orgulho que pretende sabermos nós sempre melhor sofrer do que os outros. - Ah! acaba de dar-me uma boa palavra, que me fez bem. Oh! quer dizer então que sofri tão cruelmente, que fiquei tão cruelmente mudada; quer dizer que chorei bem; quer dizer nesse caso, que sou bem mais infeliz do que a senhora, porque, a senhora, é ainda bela.

E a viscondessa, como se para encontrar Canolles, ergueu ao céu os olhos, resplandecentes da primeira centelha de alegria que desde há um mês neles brilhou.

Sempre de joelhos, Nanon escondeu o rosto nas mãos e debulhou-se em lágrimas.

- Infelicidade! - disse ela. - Senhora, ignorava a quem me dirigia pois que desde há um mês ignoro tudo quanto se passa; e não sabia que me havia mantido bela. Isso acontece sem dúvida porque fui louca. E agora, veja-me. Não quero de modo algum suscitar-lhe ciúme, até mesmo na morte. Peço para entrar aqui como a mais humilde das suas religiosas. Fará de mim aquilo que lhe aprouver, e usará contra mim a disciplina, o chicote, o inpasse, se lhe desobedecer. Todavia, de quando em vez, pelo menos - acrescentou ela, com voz exaltada - deixar-me-á ver, não é assim, o local em que repousa esse homem que tanto amámos?

E caiu, agonizante e sem forças, sobre a erva.

A viscondessa não respondeu. Encostada ao tronco de um sicómoro ao qual pedira apoio, parecia prestes, por seu turno, a expirar.

- Oh! senhora! Senhora! - exclamou Nanon. - Não me responde, recusa-me! Pois seja! Um único tesouro ainda me resta. Talvez, senhora, não tenha qualquer recordação dele. Pois bem, eu, tenho qualquer coisa; conceda-me o que lhe peço, e esse tesouro será seu.

E, retirando do pescoço um grande medalhão suspenso de uma corrente de ouro, que estava escondido no peito, ofereceu-o à senhora de Cambes. O medalhão mantinha-se aberto na mão de Nanon de Lartigues.

Clara soltou um grito e lançou-se sobre a relíquia, beijando com um transporte tão veemente aqueles cabelos frios e secos, que lhe pareceu que a alma lhe fugia para os lábios, a fim de recolher a sua parte no beijo.

- Pois bem! - prosseguiu Nanon, sempre de joelhos e sufocando aos pés da superiora-julga ter sofrido alguma vez tanto como eu sofro neste momento?

- Ah! trá-lo consigo, senhora respondeu a viscondessa de Cambes, ajudando-a a levantar-se e fechando-a nos seus braços. - Venha, venha, minha irmã, pois que a partir de agora a amo mais do que a tudo no mundo, a si, que partilhou comigo esse tesouro.

E, inclinando-se para Nanon, a quem soerguia docemente, a viscondessa aflorou com os lábios as faces daquela que havia sido sua rival.

- Ah! há-de ser a minha irmã e amiga. Sim, viveremos e morreremos juntas, falando dele, rezando por ele. Venha, tem razão. Dorme perto daqui, na nossa igreja. Foi o único favor que consegui obter daquela a quem consagrei a minha vida. Que Deus lhe perdoe, a ela!

A estas palavras, Clara pegou na mão de Nanon de Lartigues, e, passo ante passo, tão ligeiramente que quase só afloravam a relva, aproximaram-se do maciço de tílias e de cedros atrás do qual se escondia a igreja.

A viscondessa conduziu Nanon a uma capela, no centro da qual se erguia, a uma altura de quase dois metros, uma simples lápida. Nessa lápida, estava gravada uma cruz.

A senhora de Cambes contentou-se, sem dizer uma única palavra, em pousar a mão sobre a laje.

Nanon ajoelhou-se e beijou o mármore. A senhora de Cambes apoiou-se ao altar, beijando o anel de cabelos Uma, procurava habituar-se à ideia da morte; a outra, tentava sonhar uma última vez com a vida.

Um quarto de hora depois, ambas as mulheres reentraram em casa. Exceptuando o momento em que se dirigiram a Deus, não haviam rompido o seu lúgubre silêncio.

- Senhora - disse então a viscondessa - desde este momento tem a sua cela no convento. Deseja aquela que é contígua à minha, para que estejamos menos separadas?

- Agradeço-lhe humildemente, senhora - respondeu Nanon - a oferta que me faz, a qual aceito, reconhecida. Todavia, antes de abandonar o mundo de vez, permita-me que diga uma palavra de despedida a meu irmão, que me aguarda à porta, e que, ele também, está bastante marcado pelo sofrimento.

- Infeliz! - exclamou a senhora de Cambes, recordando-se, para seu pesar, que o bem-estar de saúde de Cauvignac havia custado a vida ao companheiro de cativeiro.- Vá, minha irmã, vá! E Nanon saiu.

 

IRMÃ E IRMÃO

Nanon falara verdade. Cauvignac aguardava-a, sentado sobre uma pedra, a dois passos do cavalo, o qual contemplava tristemente, enquanto o próprio animal, colhendo era seca tanto quanto lho permitia o comprimento da brida, e erguendo de quando em vez o cabeço, lançava olhares inteligentes ao dono.

Em frente do aventureiro, passava a estrada que, aparecendo a cerca de uma légua nos contrafortes de uma pequena montanha, parecia sair do mosteiro para se perder na imensidade.

Poder-se-ia dizer - e talvez que, apesar de turvado que estivesse o seu espírito por ideias filosóficas o pensasse o nosso aventureiro - que lá em baixo estivesse o mundo, e que o rumor desse mundo viesse expirar humildemente na portada de ferro encimada por uma cruz.

Com efeito, Cauvignac chegara a esse ponto de sensibilidade susceptível de nos levar a crer que ele pensasse em tais coisas.

Todavia, para um carácter como o dele, havia-se já por demasiado tempo embrenhado nesse sonho sentimental.

Chamou pois em seu socorro os sentimentos de dignidade masculina, e arrependeu-se de ter sido tão fraco.

- O quê! - exclamou ele - eu, que sou pelo espírito superior a todos esses sentimentais, não quererei ser-lhes igual pelo coração, e muito menos por fraqueza de coração!

"Que diabo! Richon morreu, é verdade. Canolles está morto, é verdade também. Mas eu, vivo, e, para mim, parece-me que isso é o principal.

"Sim, mas é precisamente por viver, que penso, e ao pensar recordo-me, e ao recordar fico triste. Pobre Richon! Tão bravo capitão! Pobre Canolles! Tão gentil-homem! Ambos enforcados, e isso, mil trovões! por minha culpa, por culpa de Roland Cauvignac; ufa! é triste, falta-me o ar.

"Não contando que minha irmã, que nem sempre esteve de bem comigo, deixando de ter qualquer motivo para me sustentar, uma vez que Canolles morreu, e que ela cometeu o disparate de se zangar com o senhor d'Épernon; não contando que minha irmã deva ter-me um ódio de morte, e mal disponha de um momento de lazer, irá aproveitar para me deserdar de tudo.

"Aí, na verdade, é que está a pouca sorte, e não nesse raio de recordações que me perseguem.

"Canolles, Richon, Richon, Canolles, pois seja! Mas não terei eu visto morrer centenas de homens, e esses dois seriam algo mais do que homens? Oh! é o mesmo, palavra de honra, há momentos em que creio lamentar não ter sido enforcado com ele, pois pelo menos teria morrido em boa companhia, ao passo que sabe-se lá junto de quem hei-de morrer."

Nesse momento, soaram as sete horas no campanário do mosteiro. Estes sons chamaram Cauvignac à vida. Lembrou-se de que a irmã lhe recomendara que a esperasse até às sete horas, que esse toque de sinos lhe anunciaria que Nanon iria reaparecer, e que deveria representar até ao fim o seu papel de consolador.

Com efeito, reabriu-se o portão, e Nanon reapareceu. Atravessou o pequeno pátio onde Cauvignac poderia tê-la aguardado, se o quisesse - porque os estranhos tinham direito a entrar nesse pequeno pátio, o qual não sendo embora um local profano, não era ainda local sagrado.

No entanto, o aventureiro não quisera penetrar tão longe, alegando que a vizinhança dos conventos, e sobretudo a dos conventos de mulheres, sempre lhe trazia maus pensamentos, e, tal como dissemos, quedou-se na estrada, e no exterior do portão.

Ao ruído dos passos que faziam estalar o saibro, Cauvignac voltou-se e, vendo Nanon, de quem estava ainda separado pelo portão, exclamou, com um enorme suspiro:

- Ah! ei-la de volta, irmãzinha. Quando vejo uma dessas malfadadas portas fecharem-se sobre qualquer pobre mulher sempre me parece ver a pedra do sepulcro recair sobre uma morta, e não espero já a primeira senão com o seu hábito de noviça, nem a segunda, a menos que com o sudário trespassado.

Nanon sorriu tristemente.

- Bem! - disse Cauvignac. - Já não chora, o que é qualquer coisa.

- É certo - respondeu Nanon -já não consigo chorar mais.

- Pode no entanto rir ainda; tanto melhor. Com sua licença, vamos de novo partir, não é verdade? Não sei bem porquê, mas este sítio inspira-me toda a espécie de meditações.

- Salutares? - quis saber Nanon.

- Salutares! Acha que sim? Bom! Não faremos disso discussão e estou encantado que tenha achado essas meditações tal como diz; com certeza que teve a sua conta, espero-o, querida irmã, e não terá necessidade de cá voltar, por uma longa temporada.

Nanon não respondeu. Pensava. - Entre essas meditações salutares - prosseguiu Cauvignac, atrevendo-se a duvidar - espero que terá enterrado as injúrias.

- Enterrei a recordação, ou, pelo menos, o perdão. -Preferiria o esquecimento, mas não importa. Não

é aconselhável fazermo-nos difíceis, quando se está em maré de azar. Portanto, perdoa-me as minhas ofensas, irmãzinha?

- Está perdoado - respondeu Nanon.

- Ah! deixa-me contente-afirmou Cauvignac.-Sendo assim, ver-me-á futuramente sem repugnância?

- Não só sem repugnância, mas até com prazer.

- Com prazer? -Sim, meu amigo.

- Seu amigo! Pois seja! Aí está, Nanon, uma palavra que me dá prazer, pois que não era forçada a prodigalizar-ma, ao passo que é forçada a chamar-me seu irmão. Sendo assim, a minha presença não a aborrecerá?

- Oh! - exclamou Nanon. -Não digo tanto. Há im-possibilidades, Rolando, e nós ambos respeitá-las-emos.

- Compreendo - afirmou Cauvignac, com um suspiro que continuou o antecedente. - Exilado! Vai exilar-me, não é verdade? Não a verei mais. Seja, então! Se bem que me entristeça não mais a ver, palavra de honra, Nanon, que reconheço merecer isso, e eu próprio a tanto me havia condenado. Além do mais, que faria eu na França, uma vez que a paz foi assinada, uma vez que a Guiena foi pacificada, uma vez que a rainha e a senhora de Conde vão ficar as melhores amigas deste mundo? Ora, eu não sou pretensioso ao ponto de querer estar nas boas graças de qualquer das duas princesas. O melhor que tenho a fazer, é, portanto, exilar-me tal e qual minha irmã mo diz. Por isso, irmãzinha, diga adeus ao viajante eterno. Há guerra na África. O senhor Beaufort vai combater os infiéis; irei com ele. Não é o caso, na verdade o confesso, que não me pareça que os infiéis deixem de ter cem vezes razão contra os fiéis. Mas isso não importa, é um problema dos reis, e não nosso. Morre-se, na África, e é tudo quanto preciso. Irei; minha irmã odiar-me-á menos quando me souber morto!

Nanon, que havia escutado este afluxo de palavras com a cabeça baixa, levantou para Cauvignac os seus grandes olhos, e perguntou-lhe:

- Isso é verdade? -O quê?

- Isso em que estava a pensar, meu irmão. Cauvignac deixara-se embrenhar no seu discurso tal

qual homem habituado, na falta de uma sensibilidade real, a aquecer-se a si mesmo com a ressonância das suas palavras. A pergunta de Nanon chamou-o à realidade. Interrogou-se a si próprio se deveria sair dessa ênfase para cair em qualquer cálculo um pouco mais vulgar. - Pois bem, sim, irmãzinha - disse ele. - Juro que sim; porquê? Não sei. Vejamos, juro à fé de Cauvignac, que me sinto realmente triste e infeliz após a morte de Richon e, sobretudo a de... enfim, olhe, agora mesmo, nesta pedra, fazia raciocínios sem conta para endurecer o meu coração, o qual até agora nunca eu ouvi falar, e que, nesta altura, não se contenta simplesmente em bater, mas fala, grita e chora.

"Diga-me, Nanon, será a isto que se chama remorsos?" Este grito foi tão natural e tão doloroso, apesar da burlesca selvajaria com que foi dito, que Nanon reconheceu vir ele do mais fundo do coração.

- Sim - volveu ela - é do remorso, e meu irmão é melhor pessoa do que eu pensava.

- Pois bem! - reagiu Cauvignac. - Uma vez que se trata de remorsos, que se vá para o campo, para Gigerry; decerto me dará qualquer coisita para as despesas de viagem e para o equipamento, não é verdade, irmãzinha? E pudesse eu carregar todos os seus desgostos juntamente com os meus.

- Não há-de partir meu amigo, e de agora em diante viverá em toda a prosperidade que um destino favorável lhe possa prover - respondeu Nanon. - Há mais de dez anos que luta contra a miséria; já não falo dos perigos que correu, pois que esses são os de um soldado. Desta vez, ganhou a vida aonde um outro a perdeu. Todavia, foi porque era a vontade de Deus que meu irmão vivesse, e o meu desejo, em concordância com essa vontade, é que, a partir de hoje, meu irmão viva feliz.

- Vejamos, irmãzinha: que é que está a dizer? Que pretende com essas palavras? - retorquiu Cauvignac.

- Quero dizer que irá à minha casa de Libourne antes que seja pilhada; lá, encontrará, no armário secreto escondido atrás do meu espelho de Veneza...

- No armário secreto? - estranhou Cauvignac.

- Sim, conhece-o, não é verdade? - volveu Nanon, com um fraco sorriso. - Não foi desse armário que retirou duzentas pistolas, o mês passado?

- Nanon, faça-me a justiça de que, se eu quisesse, poderia ter-me aproveitado, pois que esse armário estava cheio de ouro, e só retirei, estritamente, a soma de que necessitava.

- É verdade - consentiu Nanon - e se isso chega para desculpá-lo aos seus próprios olhos, empenho-me em estar consigo.

Cauvignac corou e baixou os olhos.

- Ai! Meu Deus! Não pensemos mais nisso, sabe bem que lhe perdoo.

- Uma prova? - aventurou Cauvignac.

- Eis a prova: irá a Libourne, abrirá o dito armário, nele encontrará tudo quanto consegui reunir da minha fortuna - vinte mil escudos em ouro.

- Que farei eu deles?

- Guardá-los-á.

- Mas, a quem destina esses vinte mil escudos!

- A si, meu irmão. É tudo quanto posso dispor, porque, sabe muito bem, que por não ter pedido nada para mim ao abandonar o senhor d'Épernon, as minhas casas e as minhas terras foram confiscadas.

- Que está para aí a dizer, minha irmã, e que se passa na sua cabeça?

- Passa-se, Rolando, que, conforme lhe digo, ficará com esses vinte mil escudos!

- Para mim! E então para si?

- Eu não tenho necessidade desse dinheiro.

- Sim, estou a perceber; tem mais, tanto melhor. Mas essa quantia é enorme, irmãzinha; reflita bem, é demasiado para mim, pelo menos assim, de uma assentada.

- Não tenho mais dinheiro, fico apenas com as minhas jóias. Gostaria de dar-lhas também, mas esse é o meu dote para entrar neste convento.

Cauvignac teve um sobressalto de surpresa.

- Neste convento! - exclamou ele. - Minha irmã quer entrar num convento?

- Sim, meu amigo.

- Ah! pelos céus, não faça isso irmãzinha. O convento! Não sabe como isso é aborrecido. Eu posso testemunhá-lo, eu, que estive num seminário. O convento! Nanon, não faça isso, vai morrer.

- Espero bem que sim - respondeu Nanon.

- Minha irmã, não quero o seu dinheiro por esse preço. Percebe? Raios, queimar-me-ia os dedos.

- Rolando - insistiu Nanon - não é para o tornar rico que entro aqui; é para buscar a felicidade.

- Òh! é uma loucura - disse Cauvignac. - Sou seu irmão, Nanon, não suportarei isso.

- Meu coração está já aqui, Rolando; que faria meu corpo lá fora?

- É uma coisa horrível de pensar - volveu Cauvignac. - Oh! minha irmã, minha boa Nanon, por piedade!

- Nem uma só palavra mais, Rolando. Percebeu? O dinheiro é seu, faça dele bom uso, porque a sua pobre Nanon não estará perto para lhe dar mais, seja à força, seja voluntariamente.

- Porém, para ser assim tão generosa para mim, minha irmã, qual foi o bem que de mim recebeu?

- O único que eu podia esperar, o único que eu ambicionasse, o maior de todos, aquele mesmo que me trouxe meu irmão de Bordéus, na noite em que ele morreu, e em que eu não consegui morrer.

- Ah! sim! agora me recordo, o anel de cabelos... O aventureiro baixou a cabeça; sentia na vista uma

sensação desconhecida. Levou a mão aos olhos.

- Qualquer outro choraria - disse ele. - Mas eu, não sei chorar; todavia, e em boa verdade, sofro como se chorasse, se é que não sofro mais.

- Adeus, meu irmão - acrescentou Nanon, estendendo a mão ao jovem.

- Não, não, não! - disse Cauvignac -jamais lhe direi adeus voluntariamente. Será o medo que a faz entrar para o convento? Pois bem! Abandonaremos a Guiena, e correremos mundo juntos. Também eu tenho no coração uma flecha que levarei para todo o lado comigo, cuja dor me tornará sensível à sua dor, minha irmã. Falar-me-á dele e eu falar-lhe-ei de Richon; chorará, e talvez que eu venha a chorar também. E a mim, far-me-á bem. Quer que nos retiremos para um deserto? Servi-la-ei respeitosamente na mesma, pois que é uma santa rapariga. Quer que me faça monge? Não, não poderia, confesso. Mas, não entre para o convento; não me diga adeus! - Adeus, meu irmão.

- Quer ficar na Guiena mau grado os bordeleses, mau grado os gascões, mau grado todo o mundo? Já não tenho a minha companhia, mas sempre tenho Ferguzon,  Barrabás e Garrotei. Os quatro, podemos fazer muitas coisas. Guardá-la-emos, e nem a rainha será tão bem guardada. E se chegarem a si, se lhe tocarem num único cabelo da cabeça, poderá dizer: morreram os quatro: Resquiescant in pace. - Adeus - finalizou ela.

Cauvignac ia responder com alguma nova súplica, quando se ouviu o fragor de uma viatura que rolava na estrada.

À frente dessa viatura galopava um batedor da rainha.

- Que é isto? - perguntou Cauvignac, voltando-se para a estrada, mas sem soltar a mão da irmã, que mantinha cerrada através do portão.

A viatura, que de acordo com a moda do tempo tinha as suas talhas maciças e os fundos abertos era puxada por seis cavalos e continha oito pessoas, com todo um mundo de lacaios e de pajens.

Atrás da viatura vinham os guardas e os cortesãos a cavalo.

- Deixem passar! Deixem passar! - gritava o batedor, ao mesmo tempo que dava um golpe de chicote no cavalo de Cauvignac que, no entanto, se mantinha com uma reserva plena de modéstia nas bermas da estrada.

O cavalo escouceou, assustado. -Eh! amigo - gritou Cauvignac, abandonando a mão da irmã. - Faça favor de ter cuidado com o que faz. - Deixem passar a rainha - gritou o batedor, prosseguindo o caminho.

- A rainha! Ah! diabo - exclamou Cauvignac - não vamos querer arranjar mais um problema por esta banda.

E coseu-se tanto quanto pôde contra o muro, segurando o cavalo pela brida. •

Nesse momento, um eixo da viatura partiu-se e o cocheiro, com um puxão vigoroso, forçou os seis cavalos a dobrar os joelhos.

- Que se passa? - perguntou uma voz diferenciável devido à pronúncia italiana. - Por que razão parou?

- Temos um eixo partido, monsenhor - explicou o cocheiro.

- Abram, abram - gritou a mesma voz.

Acorreram dois lacaios que abriram a portinhola; todavia, antes mesmo que os degraus fossem baixados, o homem de sotaque italiano já estava em terra.

"Ah! Ah! O senhor Mazarino - murmurou Cauvignac - e parece-me bem que não se fez rogado em apear-se."

Depois dele, desceu a rainha.

Depois da rainha, o senhor de Rochefoucauld.

Cauvignac arregalava os olhos.

Depois do senhor de Rochefoucauld, o senhor d'Épernon.

"Ah! Ah! - exclamou o aventureiro. - Porque não haveria de ser este o cunhado que foi enforcado em vez do outro?"

Depois do senhor d'Épernon, o senhor de Meilleraye.

Depois do senhor de Meilleraye, o duque de Bouillon.

Por fim, duas damas de companhia.

"Eu bem sabia que eles já não se combatiam, mas não adivinhava é que se dessem assim tão bem" - cogitou Cauvignac.

- Senhores - disse a rainha - em vez de esperarmos aqui o conserto do eixo, como está uma tarde bonita, e a temperatura é fresca, queiram caminhar um pouco.

- Às ordens de Vossa Majestade - aquiesceu o senhor de Rochefoucauld, inclinando-se.

- Venha para o pé de mim, duque, e diga-me algumas das suas máximas. Decerto arranjou muitas, desde a última vez em que nos vimos.

- Dê-me o seu braço, duque - pediu Mazarino ao senhor de Bouillon - sei que sofre da gota.

O senhor d'Épernon e o senhor de Meilleraye fecharam a comitiva, conversando com as damas de companhia.

Toda esta gente ria e abandonava-se às quentes carícias do pôr-do-sol como se fora um grupo de amigos reunido para uma festa.

- Falta muito, daqui até Bourcy? - perguntou a rainha. - O senhor bem pode informar-me, senhor de Rochefoucauld, uma vez que estudou a região.

- Três léguas, senhora; estaremos lá com certeza antes das nove horas.

- Está bem, e amanhã partirá de manhãzinha cedo, para dizer à nossa querida prima, a senhora de Conde, que ficaremos muito contentes em vê-la.

- Vossa Majestade - disse o duque d'Épernon - vê aquele belo cavaleiro que vira a cara para a muralha, e viu, antes, a bela dama que desapareceu mal descemos da viatura?

- Sim - respondeu a rainha - vi tudo isso; parece que as pessoas se dão bem no convento de Sainte-Rade-gonde de Peyssac.

Nesse momento, já reparada, a viatura passou a trote largo para alcançar a comitiva que tinha já dado cerca de cem passos para além do convento quando a reunião se deu.

- Vamos - comandou a rainha - não nos fatiguemos, senhores, bem sabem que o rei esta noite vos oferece violoncelos.

E todos regressaram ao interior da viatura com grandes gargalhadas que bem depressa fora abafadas pelo andamento da carruagem.

Absorvido pelo impressionante contraste dessa ruidosa alegria que passava pela estrada em comparação com a muda dor encerrada no convento, Cauvignac viu-os afastar-se, e depois, mal os perdeu de vista, comentou:

- Vai dar ao mesmo; estou contente por saber uma coisa: é que, por muito mau que eu seja, há ainda quem me não valha. E, raios me partam, vou tratar de fazer com que ninguém se me compare. Agora, sou rico, será fácil.

E, voltou-se, para se despedir da irmã; mas, tal como já se disse, Nanon havia desaparecido.

Então, soltou um suspiro, montou a cavalo, lançou um último olhar para o convento, meteu a galope pela estrada de Libourne, e desapareceu em sentido absolutamente oposto ao que havia tomado a viatura que transportava as ilustres individualidades que desempenharam o principal papel nesta história.

Talvez as encontremos um dia, pois que esta pretensa paz, mal cimentada com o sangue de Richon e de Canolles não passava afinal de uma trégua, e a guerra das mulheres não estava ainda terminada.

 

                                                                                            Alexandre Dumas  

 

                      

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