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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A GUERRA DE TRÓIA - P.2 / Lindsay Clarke
A GUERRA DE TRÓIA - P.2 / Lindsay Clarke

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

O LIVRO DE ARES

 

                 Reunião

A notícia da fuga de Helena percorreu Argos mais depressa do que a peste.

Sentados à lareira, nas suas fortalezas, os homens recordaram o juramento terrível que tinham feito em cima do corpo ensanguen­tado do cavalo de Poseídon e pensaram no que fariam quando che­gassem os arautos de Agamémnon — como viriam, certamente para lhes exigir que honrassem a palavra dada. Para os vassalos ime­diatos de Menelau, a questão nem sequer se punha. Para eles, a perda de Helena era pior do que um ferimento supurado. Ela era a sua Rai­nha sagrada, a sacerdotisa dos seus rituais, a alma de Esparta. Ela era o seu símbolo de beleza num mundo muitas vezes feio, e tinham difi­culdade em acreditar que uma tal graça os abandonara. Devia ter sido um acto de feitiçaria, ou alguma malícia por parte dos deuses. Helena fora raptada, ou levada por artes mágicas. Menelau provara ser um Rei generoso e amável e agora, na adversidade, exigia a sua lealdade. Se fosse preciso uma guerra para forçar o regresso da sua Rainha, ela que estalasse. Haveria causa mais nobre para um homem do que arriscar a vida para socorrer a dama Helena?

 

 

 

 

Outros, para lá dos montes lacadonianos, esperavam a chamada com menos entusiasmo. Tróia ficava muito longe, do outro lado de um mar imprevisível, algures a leste de qualquer senso comum. Já tinham sarilhos suficientes, não precisavam para nada de se preo­cupar com a mulher infiel de um irmão mais novo de um Rei. E sim, tinham jurado no altar de Poseídon, mas fora para proteger Menelau da inveja, não para ir atrás de uma galdéria que já não queria partilhar a cama com o marido!

Se um homem não era capaz de olhar pela mulher, que tinham eles a ver com isso? Fora uma loucura ter convidado os troianos para sua casa, uma loucura deixar uma beleza como Helena sozinha com eles. Nem os deuses podiam fazer nada contra tanta estupidez.

Tais sentimentos não eram murmurados na presença do Grande Rei, mas os espiões deste apanharam-nos no vento e em breve Aga­mémnon suspeitava que, apenas com os interesses do seu irmão direc­tamente postos em causa, seria muito difícil reunir uma força suficientemente grande para atacar Tróia.

Algumas das dificuldades apresentaram-se mesmo antes de os dois filhos de Atreu terem deixado Creta. Uma vez a par da situação, Deu­calião bajulara Menelau de tal maneira que o seu comportamento aproximou-se perigosamente de uma espécie de satisfação maldosa — mas quando Agamémnon o sondou a propósito do seu apoio em caso de guerra com Tróia, o Senhor do Labirinto mostrou-se ime­diatamente menos prestável. Sim, sentia no próprio coração o insulto de Tróia, mas os tempos iam difíceis. Teria de pensar cuidadosamente antes de empenhar os já escassos recursos da Casa do Machado numa campanha distante, na qual poderia haver muito a perder. Como Teseu reduzira o seu país a um mero estado vassalo de Atenas, havia pouco apetite para a guerra por parte dos barões de Creta. Estes já lhe conheciam os custos. Mas seria convocado um conselho e apesar de Deucalião prometer fazer os possíveis para influenciar as suas deli­berações, os dois irmãos, filhos de Atreu, teriam de compreender que o poder de um trono de Minos já não era o que fora. Para já, infelizmente, não podia prometer nada.

Agamémnon saiu da reunião a fumegar.

— Aquele velho bastardo é o Rei rato de um país podre gru­nhiu ele. Não admira que Creta tenha caído com tanta facilidade nas mãos de Teseu! Mas, enquanto temos estado aqui, tenho mantido os olhos bem abertos! Ele pode ser o herdeiro legítimo de um pai e de uma mãe degenerados, mas é muito menos pobre do que quer fazer parecer. Desaparecido Teseu e com Menesteu em Atenas, Creta está a enriquecer outra vez. Deucalião tem navios e sabe que nós pre­cisamos deles. Mas também está a pensar que se Argos e Tróia se des­gastarem mutuamente numa guerra longa, Creta pode voltar a coman­dar novamente os mares. — Agamémnon olhou para o irmão. — Vamos ter de lhe dizer que tem mais a perder se ficar de fora do que em ir connosco.

Menelau acenou com a cabeça.

— Reparaste em Idomeneu enquanto falávamos? Tenho a cer­teza de que ele despreza o pai. Devíamos falar com ele separadamente.

— Achas que somos capazes de os pôr um contra o outro?

— Não perdemos nada em tentar. Idomeneu e eu somos amigos. Ele foi um dos primeiros a jurar que me ajudaria. O pai dele já está velho e ele anda inquieto e tem muitas ambições. Creio que é capaz de gostar de uma guerra.

— Estou a ver que estás a aprender, irmão — disse Agamémnon, sorrindo. — O ódio é um professor formidável.

Pouco depois do seu regresso a Argos, Agamémnon chamou os seus principais aliados para um conselho de guerra no grande salão da Casa do Leão de Micenas. Menelau estava presente, ainda amargo e sombrio por ter encontrado o seu quarto vazio e demasiado deso­lado. Nestor, Rei de Pilos, estava entre os primeiros a ter chegado, já nos sessenta mas tão valente e eloquente como sempre e ansioso por assegurar aos filhos de Atreu que, fossem quais fossem as dificulda­des, podiam sempre contar com ele em matéria de aconselhamento e ajuda militar. Em breve se juntavam a ele Palamedes, príncipe de Eubeia, que estava autorizado a pôr os seus recursos do seu pai, Náu­plio, à disposição do Grande Rei e o herói Diomedes de Argos, que sempre amara Helena de tal maneira que tomara o rapto como uma ofensa pessoal. Tal como Menelau, Diomedes era um devoto de Atena e depois de os dois homens terem chorado um pouco, este disse ao despojado Rei de Esparta que a deusa lhe assegurara, num sonho, a sua especial protecção para os oitenta navios que ele empe­nharia na guerra contra Tróia.

Outros vassalos do Grande Rei começaram a chegar através das Portas do Leão. Alguns chegavam abertamente desejosos de aven­tura, mas outros mantinham-se discretos, preferindo ver para que lado soprava o vento. Mas, no conjunto, as coisas pareciam ir bem, até que chegaram notícias de duas recusas inesperadas.

Agamémnon contava com o temperamento guerreiro de Téla­mon para incendiar os príncipes que pudessem duvidar da eficiência de um assalto a Tróia. O velho guerreiro conhecia bem a cidade. Saqueara-a uma vez e enriquecera com a colheita. Foi um golpe duro, portanto, quando chegou de Salamina a noticia de que Télamon entrara em colapso depois de um turbulento banquete na noite ante­rior à sua suposta partida para o continente. Apesar de ter a respira­ção pesada e ter perdido a faculdade da fala, o velho continuava vivo. O seu filho Ájax e o seu enteado Teucro estavam à sua cabeceira, pedindo a Apolo, o Curandeiro, pela sua recuperação.

O arauto que enviaram no seu lugar prometeu que a ilha cederia seis navios para a expedição. Mas Agamémnon amaldiçoou a má sorte que o privava de um homem cuja experiência e força de carácter valiam mais para ele naquele momento do que um punhado de navios.

As notícias de Ítaca ainda eram mais desencorajadoras — de tal maneira que os dois irmãos decidiram conferenciar com Nestor antes de as darem aos senhores da guerra reunidos. A mensagem não viera por meio de um arauto, viera atada à pata de um pombo e dizia que as tempestades sopravam nas costas de Ítaca e que Odisseu e Penélope lamentavam muito a deserção da sua prima Helena. Ambos compreen­diam que, justamente encolerizado, Menelau desejasse vingar-se de Tróia, mas a traição fora obra de um único homem, não de uma cidade, não era verdade? Não seria mais apropriado, portanto, um acto de retaliação proporcional? Se bem que a sua lealdade ao Grande Rei não estivesse em causa, era sua opinião que os filhos de Atreu deveriam esperar pela resposta do Rei Príamo às suas mensagens antes de se armarem para uma guerra que poderia ser longa e árdua. Helena agira imprudentemente, sim, mas isso não era razão para que o seu marido, a quem amavam e respeitavam, fizesse o mesmo.

Agamémnon amarfanhou a mensagem na palma da mão.

— O patife olha pelos seus interesses, como sempre. Conseguiu o que queria em Esparta. Agora, pensa que se pode deitar a lamber as feridas e deixar que nós nos enforquemos.

Ainda humilhado, Menelau escutara, irritado, as notícias indese­jadas de Ítaca.

Precisamos dele? — perguntou ele de sobrolho franzido. — Ítaca fica longe, para ocidente, e nem sequer para cabras presta. Se o nosso primo não quer vir, que fique lá a apodrecer.

Não é só Ítaca. Agamémnon levantou-se e começou a pas­sear pela sala. — Todas as ilhas Jónicas fazem o que ele diz. Se os Senhores de Samos, Deucalião e de Zacinto sabem que ele não vem, por que hão-de eles mexer-se? Isto pode custar-nos mil homens.

- E Odisseu não é apenas um criador de carneiros de pé descalço com mais tomates do que miolos, é um pensador, um estratega. O melhor estratega que temos, com excepção do velho Nestor. É claro que pre­cisamos dele!

Nestor baloiçava a filha de Agamémnon, Ifigénia, nos joelhos enquanto esperava que a conversa acabasse. Finalmente, tirou os dedos dela da sua boca e levantou a cabeça prateada.

Odisseu não diz que não vem — disse ele calmamente. — Limita-se a sugerir que esperemos para ver o que os teus enviados têm para dizer.

— Nós sabemos muito bem o que eles vão dizer! Príamo sente-se forte e está farto de se rir porque não o ajudámos no assunto da irmã dele. Se não se sente, então é de esperar muita actividade diplo­mática, muita conversa fiada. Seja como for, é o que eu quero ouvir. Nunca mais teremos ocasião melhor para conquistar Tróia de uma vez por todas.

E Odisseu sabe que pensas assim? — perguntou Nestor enquanto afagava os caracóis da pequenita aninhada no seu colo, chu­chando no dedo e seguindo o pai com os seus grandes olhos enquanto ele passeava pela sala.

É evidente que sabe. Ele não é parvo. Partilhávamos infor­mações por ocasião das nossas campanhas. Ele sabia o que eu pen­sava muito tempo antes. Mas isso foi antes de ele se ter casado e de se ter tornado preguiçoso. Eu gostava mais quando ele não passava de um patife e de um pirata. Tal como a maioria dos príncipes de Argos, se lhes perguntássemos. Nenhum deles gostou muito do jura-mento que ele os obrigou a fazer no casamento, apesar de lhe terem admirado a astúcia! — Agamémnon sentou-se de novo batendo com os dedos das duas mãos no tampo da mesa. — O homem tem génio! Estraga-se a apascentar carneiros naquele rochedo nu. Temos de arranjar maneira de o tirar daquela grande cama de que tanto se gaba.

— Nesse caso, deixa-me ir lá falar com ele disse Menelau. — No fim de contas, foi ele que fez com que eu casasse com Helena.

— Mas se o teu casamento deu para o torto a culpa não é dele! — disse Agamémnon de sobrolho carregado. Apesar de a deserção de Helena lhe proporcionar a desculpa ideal para ir para a guerra, ainda sentia o ferrão da humilhação sofrida pela Casa de Atreu. — Odisseu não sabia que tu ias permitir que um garanhão troiano te entrasse pela casa dentro. Eu também não, aliás.

Chegados àquele ponto, Nestor desviou o olhar da criança cujo rosto sorridente se tinha fechado ao ouvir as vozes cada vez mais altas, ergueu um dedo peremptório que silenciou os dois irmãos sem ofender nenhum deles e disse:

— Os filhos de Atreu importam-se de ouvir o que penso deste assunto, ou Ifigénia e eu vamo-nos embora e deixamos-vos entende­rem-se como quiserem?

— Fala — disse Agamémnon. — É para isso que estás aqui.

— Muito bem. Pensai no seguinte: Todos nós sabemos que Odis­seu não é cobarde! Qualquer coisa o impede de sair de Ítaca. A última vez que tive notícias da ilha, dizia-se que Penélope estava grávida outra vez. A carta não fala nisso, mas se a mulher dele se aproxima do fim do tempo, Odisseu não sai do pé dela para o caso de o destino provocar outro desmancho.

Agamémnon cofiou a barba e olhou para a sua filha favorita, que descera dos joelhos de Nestor enquanto ele falava e que estava a ten­tar arrastá-lo para o jardim para brincar com ele.

— Agora não — disse-lhe o pai com o sobrolho franzido. — Está quieta, ou mando-te embora. — O Rei olhou de novo para Nes­tor. — Se tiveres razão e Penélope estiver a chegar ao fim do tempo, vamos ter dificuldade para o arrancar da ilha. Que sugeres?

— O meu primeiro pensamento — respondeu Nestor — é que não digas nada aos outros príncipes, pelo menos para já. Diz-lhes ape­nas que o tempo em Ítaca está mau e que Odisseu não vê a necessidade de fazer a viagem até Micenas nesta altura, mas que espera instruções. — Nestor sorriu e encolheu ligeiramente os ombros. — No fim de contas, não fica longe da verdade. — Segurando na pequenita gentilmente pelos pulsos, bateu com as mãos dela uma na outra. — Então, assim que o conselho terminar e eles regressarem a casa para recrutar as tropas, Menelau que vá a Ítaca, mas não sozinho. Deve levar alguém astucioso com ele. Alguém que se consiga medir com o patife do Odisseu. Estou a pensar em Palamedes. Ele ainda é jovem, mas é esperto e dedicado à causa. Pode ser o homem de que precisamos.

Agora que a história se vira para Ítaca, eu, Fímio, peço desculpa por introduzir uma nota pessoal porque, apesar de ainda nem sequer ter cinco anos quando Menelau veio até à nossa pequena ilha, ainda me lembro da festa que Odisseu deu para comemorar o nascimento do seu filho. Nesse dia, o meu pai, o bardo Terpis, cantou perante muitas pessoas reunidas. Lembro-me de me sentir inchado de orgu­lho como um pisco e de pensar que se nem todos podem ser prínci­pes, o melhor destino era ser poeta e cantar para os homens e para os deuses. Lembro-me da luz do Sol através dos plátanos e da espessa carícia do mel na minha língua. E digo também a mim próprio que tenho uma imagem de Odisseu na cabeça, o homem mais feliz do mundo naquele dia, usando folhas de videira nos cabelos e dançando sem dificuldade ao som da lira como a estátua viva de um deus.

Não posso dizer honestamente que me lembro da chegada de Menelau e de Palamedes. O que sei daquele fatídico encontro soube-o muito mais tarde dos lábios de Penélope quando ela, um dia, con­tou a história a Telémaco. Ele e eu ainda éramos jovens e grandes ami­gos. Telémaco tinha um grande desgosto por não se recordar do pai e outro maior ainda por a mãe estar a ser assediada por vários pre­tendentes. Irritado com os seus modos, exigira saber por que razão o seu pai os abandonara em Ítaca para ir atrás da loucura de uma guerra contra Tróia. Eu estava sentado a seu lado quando a mãe lhe respon­deu e penso que fiquei a saber a verdade sobre o que aconteceu quando Menelau e Palamedes vieram a Ítaca. É um pouco diferente da que as pessoas contam porque atribuem a um acto tresloucado o que foi, de facto, uma loucura provocada por um oráculo.

A história conta que Odisseu tinha tão pouca vontade de partir para a guerra que tentou convencer Menelau de que tinha perdido o juízo. Vestido como um camponês, atrelou um touro e um burro ao arado e começou a semear o campo com sal. Só quando Palamedes arrancou Telémaco dos braços da mãe e fez menção de o atirar para a frente do arado é que Odisseu agiu de maneira a trair a artimanha.

A verdade é mais subtil e mais dolorosa.

Naquele dia, a ilha estava tão embriagada de alegria e contentamento, que o navio vindo do continente passou despercebido durante algum tempo. Enquanto subiam, no calor da tarde, a encosta sobreposta à enseada a caminho do palácio para se encontrarem com Odisseu, Menelau e Palamedes ouviam sons de risos e de música. Os dois homens sentiram o cheiro de um boi a assar no espeto e souberam que o velho Nestor tinha razão nas suas especulações: o príncipe de Ítaca tivera, finalmente, um herdeiro.

A festa em si, porém, era mais rústica do que imaginavam. Laer­tes, pai de Odisseu e Senhor de Ítaca, estava sentado num trono escul­pido que fora tirado do palácio e colocado por baixo de uma ramada, onde ele cofiava a barba e irradiava alegria perante o feliz acontecimento. A sua roliça mulher, Antíclia, estava sentada a seu lado com uma criança de dias no colo e conversava com as mulheres reunidas à sua volta, arrulhando para o bebé adormecido. Mas Odisseu e Pené­lope não se distinguiam no meio dos pastores dançando e das respec­tivas mulheres. Só quando a música parou e o círculo se quebrou no meio de risos e aplausos é que Menelau reconheceu o homem pequeno de pernas arqueadas e vestido com uma túnica caseira que se aproxi­mou dele com os braços abertos em sinal de boas-vindas.

— O Rei de Esparta honra-nos — gritou ele e o espanto da mul­tidão transformou-se num som de conversas excitadas enquanto, por baixo da coroa de folhas de videira, os olhos de Odisseu brilhavam de prazer e desafio.

Penélope colocou-se a seu lado, tão graciosa no seu vestido campestre como no traje real que usara em Esparta. Se bem que os seus pensamentos se tivessem escurecido à vista de Menelau, o seu rosto, moreno e afogueado, não o dava a entender. Nem havia no seu sorriso nada do encanto malicioso de Helena. Podia muito bem ser uma serva não fora a sua pose descontraída na presença do Rei e as linhas majestosas das suas faces de maçãs bem salientes.

— Sede bem-vindos à nossa casa, meus senhores — disse ela. — Chegais numa ocasião bem feliz.

— Estou a ver que sim, estou a ver que sim. — Menelau fez uma vénia na direcção de Laertes e de Antíclia, que inclinaram as cabeças num tímido reconhecimento. Em seguida, o Rei de Esparta avançou para abraçar calorosamente Penélope. — Minha querida, estou tão feliz por ti! Finalmente! Já era tempo de os deuses se lembrarem de ti.

— Eles lembraram-se de mim quando me abençoaram com um bom marido e uma vida boa aqui, em Ítaca — respondeu ela. — Agora, deram-nos um filho para que a nossa felicidade fosse completa.

Menelau notou uma certa prudência no seu sorriso, mas desviou o olhar para cumprimentar o seu marido. O espartano abraçou o homem mais pequeno e apertou-o como um urso.

— És um homem com sorte, Odisseu. — E perante o contraste entre a evidente felicidade à sua volta e a amargura do seu casamento, sentiu na garganta um nó de dor e autocomiseração. Por um instante, com o rosto encostado ao do seu amigo, o Rei de Esparta quase se desfez em lágrimas.

Odisseu foi o primeiro a afastar-se.

— Não duvidas que não mereço menos, pois não? — disse ele, rindo. Vem, tu e o teu companheiro têm de molhar a cabeça do bebé.

— Hoje deve ser o dia em que lhe é dado um nome. Como lhe vais chamar?

Telémaco — respondeu Odisseu orgulhosamente.

Batalha Decisiva — disse Menelau, sorrindo. — Um bom nome e um bom presságio!

Com um olhar animador para Penélope, Odisseu olhou por cima do ombro de Menelau para a figura vagamente familiar do jovem ele­gantemente vestido cujos olhos argutos e encovados observavam a atmosfera campestre daquela festa. Menelau fez um gesto na direc­ção do seu companheiro.

Lembras-te de Palamedes, filho de Náuplio de Eubeia? Estava connosco em Esparta por ocasião do casamento.

Sorrindo, Palamedes apertou a mão estendida.

— Parece que nos encontramos sempre em ocasiões animadas, senhor Odisseu. Eu fui um dos que forçaste a pôr um pé descalço em cima de um pedaço de cavalo e a jurar lealdade até à morte a este tipo aqui.

— Lembro-me muito bem — disse Odisseu, sorrindo em troca. — Também me lembro de perder dinheiro no teu jogo de dados e de pedras! E ouvi dizer que inventaste um sistema novo de pesos e medidas em Eubeia. Vem, bebe um pouco de vinho e fala-me disso. Para onde foi o jovem Sínon com a faca? Os meus amigos precisam de carne. Arranjem espaço aí nesses bancos. — Mas nenhum dos dois homens deixara de sentir a hostilidade incipiente que passara invisivelmente entre eles, como se, por um momento, tivessem pisado a sombra um do outro e tapado o Sol.

Naquela noite, Odisseu sentou-se com Menelau e Palamedes numa varanda que dava para a falésia, onde ouviam o mar a bater em ambos os estreitos lados do istmo. Alguns foliões continuavam a cantar, sentados nos bancos por baixo das árvores. O bebé fora lavado, amamen­tado e deitado algumas horas antes, mas Odisseu sabia que Penélope ainda devia estar acordada na cama de madeira de oliveira que ele construíra com as suas próprias mãos quando a levara para Ítaca. Can­sado como estava, não esperava dormir muito naquela noite, mas naquele momento estava preparado para esperar.

Aqueles dois tinham ido à sua procura. Eles que começassem. Menelau, que estivera com os olhos fechados a passar a mão pela testa, emitiu um grande suspiro e estendeu as pernas:

— É preciso dizer que ficámos desapontados com a tua resposta ao pedido de Agamémnon?

Odisseu franziu os lábios e inclinou a cabeça.

— Contávamos com, pelo menos, sessenta navios teus — disse Palamedes.

Vocês viram como a minha ilha é pequena — respondeu Odisseu, ainda a sorrir. — Se conseguirem encontrar aqui sessenta navios, podem ficar com quatro quintos deles e com a minha bênção.

— Mas tens mais em Samos, em Deucalião e em Zacinto, que esperam as tuas ordens.

Odisseu arqueou as sobrancelhas.

— Agamémnon tem as hostes todas de Argos sob as suas ordens. A frota cretense vai juntar-se mele visto que ele pôs Idomeneu con­tra o pai e aqui estais vós, os poderosos de Eubeia e de Esparta. Para que vos dais ao trabalho de perturbar a paz dos nossos redis?

— Pareces bem informado — disse Palamedes, sorrindo.

Tento manter os ouvidos bem abertos.

Menelau tossiu para clarear a garganta.

Sê honesto connosco, Odisseu. Nós precisamos de ti.

Palamedes pegou no jarro que estava em cima da mesa. Com a desculpa de que o seu estômago não estava bem devido à viagem, bebera muito pouco, mas deitou mais vinho na taça do seu anfitrião.

— A tua reputação de coragem e astúcia ultrapassou o mar Egeu. Onde Odisseu vai, os outros seguem-no.

Nesse caso, que sigam o meu exemplo e que fiquem em casa. — Não posso fazer isso — disse Menelau. — Não posso, muito simplesmente, deixá-la ir.

Odisseu olhou durante alguns momentos para a angústia nos olhos do seu amigo.

Eu sei — disse ele — e o meu coração sangra por ti. Mas certamente que há maneiras melhores de apanhar uma égua tresmalhada do que pegar fogo à floresta? Certamente que este assunto pode ser resolvido com negociações? Télamon não precisa para nada de Hesíone, agora que está preso à cama. É tempo de ele ver a razão. Que haja uma troca de reféns. É a maneira de reaver Helena. O príncipe fez uma pausa, recordando o orgulho de Menelau naquele dia, em Esparta e depois acrescentou: — Se ainda a quiseres, é evidente.

Menelau bebeu um gole de vinho e desviou o olhar.

É demasiado tarde para isso.

Porquê? — perguntou Odisseu. — Porque o teu coração está tão ferido que só o sangue o pode curar? Ou porque a mente do teu irmão está virada para a guerra?

Quando Menelau não respondeu, Palamedes disse:

Os troianos deram a sua palavra a Menelau de que vinham como amigos a Argos em busca da paz. Esta guerra é provocada por eles. Sinto-me surpreendido por o príncipe de Ítaca mostrar tão pouco estômago pela empresa. Agamémnon levou-me a acreditar que tu e ele falaram muitas vezes em conquistar Tróia. Não é verdade?

— Sim, é verdade. Assim como falei uma vez ,a Teseu na hipótese de navegar para oeste, contornando a costa de África, só para ver o que havia lá! Nessa altura era mais novo e tinha a cabeça cheia de sonhos.

Palamedes disse:

Não vejo que a ideia de conquistar Tróia seja inútil. Já foi feito antes.

Sim, e Télamon não cessa de se gabar disso. Mas ele esquece-se sempre de mencionar que Poseídon já tinha arrasado a cidade e salgado os campos com uma grande vaga antes de ele e Héracles já terem chegado. E tudo isso aconteceu há trinta anos, numa época em que os Troianos estavam tão desesperados que estavam prontos a fazer sacrifícios humanos aos deuses. Desde então, as coisas muda­ram. Príamo construiu uma grande cidade a partir das ruínas da cida­dela do seu pai. E os Dárdanos, os Mísios, os Lidios e os Licios enri­queceram todos com ele. Príamo até é capaz de chamar as Amazonas e o império Hatti, para lá do Rio Vermelho, a leste. — Odisseu pros­seguiu, impedindo qualquer interrupção. — Tens razão, amigo. Eu pensei em conquistar Tróia, em tempos — até que me apercebi de que seria uma loucura. Aceita o meu conselho e limita-te aos teus dados, as probabilidades são melhores.

Palamedes estava ansioso por responder, mas Menelau estendeu uma mão para o deter.

Isso nem parece teu, Odisseu disse ele. — Nunca pensei que as dificuldades ou o perigo te fizessem tremer.

O meu coração continua forte e o meu cérebro também. Mas agora tenho uma mulher e um filho.

Menelau também tem mulher - disse Palamedes assim como muitos outros homens. Se todos pensassem assim, os nossos amigos Troianos sentir-se-iam livres de lhes raptar as mulheres. Quem sabe se a tua não será a próxima?

Odisseu semicerrou os olhos.

Este foi um dia feliz, meus senhores, e bebemos muito. O príncipe levantou-se. — Sois hóspedes da minha casa. Penso que é melhor irmos dormir em vez de estarmos para aqui a discutir.

Nós não queremos discutir disse Menelau. O que nós queremos é a tua ajuda. Toda a Argos precisa dela. Pensei que fosses nosso amigo, Odisseu.

E sou. E como vosso amigo aconselho-vos contra essa lou­cura.

Odisseu olhou para as vagas que batiam na base da falésia, à luz do luar e em seguida suspirou, abanou a cabeça e pareceu ter che­gado a uma decisão.

Eu sabia que viríeis e sabia o que me íeis pedir. Antes mesmo de Agamémnon me ter chamado a Micenas, consultei o oráculo.

E o que é que ele disse?

— Que uma guerra com Tróia se arrastaria por dez anos. Menelau estremeceu.

- Como é possível uma coisa dessas?

Depois de uma ligeira hesitação, Odisseu disse:

Tive um sonho.

— Ah - disse Palamedes — um sonho.

Um sonho que contei ao oráculo da nossa ilha. A velha sacer­dotisa que serve a Mãe Terra Dia. Ela tem a sabedoria de uma serpente e uma segunda visão. Foi ela que me interpretou o sonho.

Palamedes sorriu para a sua taça.

— Cada vez mais estranho!

Menelau disse:

Os meus próprios adivinhos da Casa de Bronze, em Esparta, asseguraram-me que Helena regressaria. Não disseram nada sobre esse tempo todo. Menelau fez de conta que não viu o encolher de ombros com que Odisseu desviou o olhar. Os dois homens sabiam muito bem que era costume os sacerdotes profetizarem o que eles queriam ouvir.

No silêncio que se seguiu, Palamedes disse:

És capaz de partilhar esse portentoso sonho connosco? Odisseu desviou o olhar do jovem e olhou para Menelau, que retri­buiu o olhar com uma súplica nos olhos. O eubiano acrescentou: — Ou os príncipes de Argos ficam a pensar que Odisseu fica em casa porque tem pesadelos?

Sem sequer olhar para ele, Odisseu sentou-se de novo. Quando falou, não foi para nenhum dos seus difíceis hóspedes, mas para a noite que cintilava por cima da sua cabeça e para o mar escuro por baixo de si.

No sonho, eu atrelava um touro e um burro ao arado e espa­lhava sal pelos regos enquanto lavrava. No fim do décimo rego, parei ao ver um bebé que alguém tinha atirado para a frente do arado.

Dos bancos viera uma acalmia e o silêncio era agora maior. Os outros dois homens esperaram, mas Odisseu não disse mais nada.

— Foi só isso? — perguntou Menelau.

Odisseu acenou sinistramente com a cabeça.

— Um sonho engraçado disse Palamedes. E o que é que a tua bruxa disse? Que Menelau era o touro e que eu era o burro? Odisseu recusou reagir à brincadeira.

Diotima sabia, sem eu lhe ter dito, que a guerra com Tróia estava na minha mente. Ela disse-me que o touro era a besta de Verão de Zeus e que o burro era a besta de Inverno de Cronos. Cada rego, no meu sonho, era um ano e que semeá-los com sal significava uma perda de dez anos. — O príncipe olhou para os dois homens. — Diotima profetizou outras duas coisas: que eu iria ter um filho em breve e que a batalha decisiva por Tróia aconteceria passados dez anos. A sua primeira profecia já se realizou.

— Portanto, o sonho também deu o nome ao teu filho — disse Palamedes, sorrindo. — Um sonho poderoso, parece, mas também engraçado, se a tua velha das serpentes o interpretou como deve ser.

Odisseu disse:

Quanto a mim, não duvido da Mãe Terra.

Nem eu. Mas os oráculos e os sonhos são verdadeiras adivi­nhas. E se os regos representassem meses e não anos? Por que não dez meses de Verão e dez meses de Inverno no espaço de dois anos?

Menelau, que se deixara envolver pela melancolia, animou-se perante a sugestão.

Dois anos! Isso já me parece mais razoável — especialmente se Odisseu for connosco para nos ajudar.

E Telémaco ainda mal teria aprendido a falar. Palamedes olhou para Menelau. Estou a ver que é a mãe que lhe dá de mamar, por isso tudo o que o nosso amigo perderia seria o prazer da compa­nhia da mulher durante dois anos de noites mal dormidas.

Quando fores sacerdote num santuário e perceberes de orá­culos — disse Odisseu sombriamente talvez procure os teus con­selhos. Entretanto, prefiro confiar na sabedoria dos deuses da minha terra. Mas havia menos confiança nos seus pensamentos do que na sua voz.

O príncipe levantou-se mais uma vez e já se ia despedir dos seus hóspedes quando Palamedes disse:

Tenho estado a pensar no teu filho.

O que é que se passa com o meu filho?

— Um dia, ele será o Rei desta ilha — e um corajoso guerreiro. Pelo menos, esperamos que sim.

Não duvido nem por um momento disse Odisseu.

Mas não seria uma grande vergonha para ele ir a Argos, então, e ouvir falar dos grandes feitos que os pais de outros homens fizeram em Tróia e não poder pedir ao bardo que lhe cante os feitos de Ítaca?

Odisseu permaneceu em silêncio com a cabeça meio turva por causa do vinho. O príncipe olhou para o solo a seus pés, como se já estivesse cheio de sal e viu o seu filho lançado abruptamente para a frente do arado.

Palamedes continuou a falar com uma voz seca, suavemente insidiosa, através da qual brilhava como uma lâmina o seu intelecto iró­nico.

E esses reis não teriam razão para perguntar a si próprios por que razão Odisseu se atrevera a dar ao filho um nome tão orgulhoso e não tivera a coragem de honrar o juramento que fizera a si próprio, guiando os seus amigos na batalha decisiva?

Por um momento, tal era a raiva que lhe ia no coração, Odisseu quase agarrou naquele jovem pela garganta para o atirar da falésia abaixo. Mas o príncipe escutou o som das vagas e talvez o solo tenha tremido sob os seus pés. Por isso, ficou onde estava, recordando-se que, apesar de nunca ter estado entre os pretendentes à mão de Helena, também prestara juramento em Esparta, com um pé descalço em cima de um pedaço do Rei Cavalo. Também ele pedira a Poseídon que levasse a ruína à sua ilha se faltasse à palavra dada a Menelau. E faltara.

Uma risada breve e trocista saiu asperamente dos seus lábios e a sua percepção da ironia dos deuses era tal que já sentia uma amarga premonição da angústia que estava para vir.

Quando chegou a Micenas, Odisseu já tinha recuperado todas as suas capacidades mentais, mas entretanto descera vertiginosamente às profundezas da sua alma como nunca antes na sua vida até ao seu regresso de Tróia, dez anos mais tarde.

No fim de contas, suponho que foi Penélope que o libertou do dilema que o destroçava, se bem que ela nunca tenha dito grande coisa sobre o assunto. Sempre equilibrada e com uma grande força interior, disse apenas que antes de Menelau e Palamedes terem embar­cado para o continente já o seu marido se tinha comprometido a levar mil dos seus ilhéus jónios a Tróia e que a honra lhe exigia que manti­vesse a promessa.

No entanto, talvez ela não soubesse que Odisseu também levaria com ele, escondido nas profundezas do seu coração, um ódio paciente por aquele jovem inteligente que o fizera regressar ao passado.

Quando os enviados de Agamémnon a Tróia regressaram, tra­ziam com eles duas surpresas.

Como previsto, o Rei Príamo pedira satisfações quanto ao assunto de Hesíone. Como era possível os filhos de Atreu quererem que ele desse razão à sua queixa quando pedia o regresso da sua irmã há tan­tos anos? De qualquer maneira, não sabia ao certo se o seu filho Páris estava envolvido no desaparecimento da Rainha de Esparta visto que o seu navio ainda não tinha regressado a Tróia.

Em nome de Hades, para onde foi o homem? perguntou Agamémnon.

Os enviados limitaram-se a dizer que os boatos diziam que Páris e Helena tinham sido vistos em Chipre, na Fenícia e no Egipto, mas não havia qualquer confirmação.

Nesse caso, devem estar escondidos, à espera que a tempes­tade passe — disse Nestor.

Agamémnon acenou com a cabeça.

Mas eles não podem andar fugidos eternamente, assim como Príamo não pode continuar a esconder-se por trás da sua ignorância.

E Eneias? — perguntou Menelau aos enviados. Ele não está em Tróia?

Os enviados não tinham visto o príncipe dárdano. No entanto, tinham conseguido uma entrevista com o conselheiro do Grande Rei, Antenor, para lhe perguntarem sobre o paradeiro de Eneias. O conselheiro disse-lhes que Anquises e Eneias não saíam do seu palá­cio de Lirnessos há algum tempo. Apesar da sua prudência, Antenor dera a entender que as relações entre Ilium e a Dardânia tinham arrefecido um pouco e os enviados ficaram com a impressão de que se o príncipe Páris nunca mais aparecesse no interior das muralhas de Tróia, o conselheiro não sentiria um grande desgosto.

Aquelas notícias foram bem recebidas, mas as outras, referentes à poderosa frota que Príamo construíra para a guerra, não tanto. Mas a segunda surpresa que eles trouxeram provou ser mais encoraja­dora. Na noite anterior à sua partida, tinham sido abordados por um vidente troiano chamado Calcante. Como sacerdote no templo de Apolo, em Tróia, consultara o oráculo, não vira um bom futuro para a cidade e queria ir para Argos com os enviados para oferecer os seus serviços ao Grande Rei em Micenas. Tendo decidido que o homem poderia tornar-se útil, os enviados tinham-no trazido e ele estava agora na Casa do Leão, esperando ansiosamente uma audiência com o Rei.

Ide buscá-lo — disse Agamémnon. — Veremos se esse vidente nos dá melhores notícias do que o sonho de Odisseu.

Enquanto Calcante não chegava, Palamedes disse:

Mais valia terem deixado o sacerdote em Tróia. Um amigo por trás das muralhas teria, provavelmente, mais valor do que uma com­panhia de arqueiros no lado de fora.

O sacerdote é servidor de Apolo murmurou Odisseu, sen­tado por trás de Nestor e à esquerda de Agamémnon. — Ele conhece o rumo da própria vida melhor do que tu ou eu. Em todo o caso, parece que já temos um amigo. Além disso, está bem posicionado se bem que possa levar algum tempo até que se decida.

— Temos? perguntou Agamémnon.

Odisseu está a falar de Antenor respondeu Menelau. Ele era o pai da criança que Páris matou e não gosta nada dele.

Suspeitas de alguma ligação com o sacerdote?

Quem sabe? - Odisseu encolheu os ombros. Esperemos para ver.

Naquele momento, Calcante entrou no salão sob escolta. Quando chegou em frente do trono do Leão, o sacerdote prostrou-se e per­maneceu naquela posição de humilhação à maneira asiática, com os braços estendidos e a cabeça apoiada nas lajes.

Agamémnon disse:

- Não gosto muito disso.    Calcante levantou-se, compôs o seu traje escuro e ficou de cabeça baixa em frente do Grande Rei.

— Também devo dizer-te que não gosto de traidores - acrescentou o Grande Rei - a não ser, claro, que sejam capazes de me entregar os meus inimigos.

Calcante ergueu o rosto. Por cima das faces trigueiras, uns olhos inteligentes olharam para o Grande Rei sem quaisquer sinais de medo ou deferência. Nem havia qualquer arrogância na voz que declarou calmamente:

Nós, os que servimos Apolo, Aquele que Vê Longe, no seu templo de Timbre, não respondemos perante o Grande Rei de Tróia nem perante o Grande Rei de Micenas. Só respondemos perante o deus.

Portanto, posso confiar tanto em ti como Príamo?

Se quiseres ouvir o que o Divino Apolo, o Assassino das Tre­vas, tem para dizer, podes confiar no que eu digo. Se não... — Cal-cante abriu as mãos, como se fosse deixar cair qualquer coisa.

Agamémnon recostou-se no trono do Leão, olhando com o queixo apoiado numa mão para o rosto impassível do sacerdote.

Bem, pareces-me um homem corajoso, caminhas com con­fiança por caminhos que outros homens nem sequer se atrevem a pisar. Os meus enviados dizem-me que consultaste o oráculo. Tenho curiosidade em saber o que o Deus do Arco Prateado tinha para te dizer.

Que Tróia cairá.

Ao ouvir aquela confidência, Agamémnon virou-se a sorrir para os seus conselheiros. Em seguida, o Rei virou-se de novo e olhou de novo severamente para o sacerdote.

Isso já nós sabemos, assim como sabemos que Micenas tam­bém cairá um dia, e Esparta, e Argos, e o próprio Monte Olimpo. A pergunta é quando? E como?

Só há uma resposta respondeu Calcante.

— Então, partilha-a connosco, amigo.

Calcante olhou para os príncipes à sua volta, um a um, como se estivesse à procura de alguém em especial. Em seguida, olhou de novo para o Rei e disse:

Não vejo os filhos de Éaco.

— O deus não te disse que o velho Télamon travou a sua última batalha? Está sepultado em Salamina, mas os seus filhos, Ájax e Teu­cro, juntar-se-ão a nós dentro de pouco tempo, seguidos pelos navios de Salamina.

Calcante acenou com a cabeça.

E o irmão de Télamon?

Nestor respondeu-lhe.

Há muitos anos que Peleu não sai da sua casa em Tessália. Não passa de um velho a matutar nas mortes que lhe ensombraram a vida. Creio que o Rei dos Mirmídones já só pensa na própria morte.

Não esperávamos que Peleu viesse a este conselho disse Agamémnon. Por que razão perguntas por ele?

Porque Éaco e Tróia estão ligados pelo destino. Foi Éaco que construiu as muralhas de Laomedonte sob a égide de Apolo e sob a orientação de Poseídon. Foi às mãos do filho dele, Télamon, que Tróia caiu, no sítio onde os muros estavam mais fracos.

Agamémnon suspirou, impaciente.

Télamon contou-nos essa história muitas vezes. Por que nos havemos de preocupar com ela agora?

— Porque o destino de Tróia está ligado ao de dois homens. O primeiro é o próprio filho de Príamo, Páris, que deveria ter morrido à nascença. Príamo foi avisado pelos sacerdotes de Timbre de que, se a criança vivesse, seria a causadora da destruição da cidade.

E é esse presságio que faz com que Tróia nos caia nas mãos? — perguntou Menelau.

Calcante virou-se para ele franzindo o sobrolho.

Como sabes, pela tua própria experiência em Esparta, um rei inteligente deve estar sempre atento ao oráculo de Apolo — seja qual for o preço.

Falaste em dois homens disse Palamedes.

Calcante acenou com a cabeça.

O oráculo diz que Tróia só cairá depois de o sétimo filho de Peleu regressar do lugar para onde se retirou e se juntar à refrega.

Agamémnon virou-se para Nestor com as sobrancelhas erguidas em sinal de interrogação.

— Sabes de quem é que ele está a falar?

Confuso, Nestor disse:

Que eu saiba, Peleu só tem um filho.

— Mas antes dele houve outros seis — acrescentou Odisseu. — Aquiles é o sétimo filho de Peleu.

— Óptimo — disse Agamémnon. — Nesse caso, Peleu que nos envie o seu filho.

Mas Odisseu manteve-se de sobrolho franzido.

— Eu conheço o rapaz. A última vez que visitei Peleu, há alguns anos, Aquiles tinha regressado da escola de Quíron. Ia ser treinado por Fénix, o Rei dos Dolopianos que preferiu ficar na Tessália.

Nesse caso, mandamo-lo vir da Tessália.

Odisseu abanou a cabeça.

Duvido que o encontrem. Peleu e Tétis lutaram por ele durante anos, mas agora Aquiles já está em idade de tomar as suas próprias decisões. Creio que ele está com a mãe e com o povo dela.

E onde está essa gente? — perguntou Agamémnon. — Na corte do Rei Licomedes, em Ciros.

Qual é a diferença? —Agamémnon juntou as duas mãos num gesto de satisfação. — Se foi para lá que ele se retirou, vamos lá bus­car o rapaz e sigamos em frente, para ver se ganhamos esta guerra.

Odisseu sabia onde Aquiles estava porque ele próprio tivera um papel na decisão que o jovem tomara de ir para Ciros. Acontecera como se segue:

Quando Aquiles tinha quase onze anos e ainda era aluno na escola do Monte Pélio, o Rei Quíron dos Centauros morreu tranquilamente durante o sono. O monarca foi encontrado na sua esteira por l uipe, que regressara para viver com o ancião depois de Tétis ter partido para Ciros. A pequena mulher centauro lançou gritos de dor que ecoaram pelo desfiladeiro e foi rapidamente imitada pelo resto da tribo.

Aquiles quase enlouqueceu de dor, mas embora ainda não o soubesse, iria perder muito mais do que um amado professor. O mundo estava a mudar e não havia lugar nele para a vida simples de Quíron. Quando Peleu soube que o moral do povo dos Centauros entrara em colapso com a morte do seu Rei, decidiu levar Aquiles para o seu palá­cio de Iolco. Ao mesmo tempo, Pátroclo foi chamado novamente pelo seu pai, Menécio. Os dois rapazes, que se tinham esmurrado mutuamente, no seu primeiro encontro, tinham-se tornado amigos inseparáveis durante os anos passados na montanha. Agora, iam ser separados pela primeira vez e nenhum deles aceitava bem a separação.

Em Iolco, as coisas começaram mal. O rosto belo e jovem de Aquiles recordou a Peleu a sua mulher, que queimara o seu outro filho, ao mesmo tempo que o jovem se mostrava tímido, a princípio, para com o pai e depois cada vez mais consternado por descobrir que o grande Rei que gabara tantas vezes aos amigos não passava de um velho rabugento e taciturno com uma perna estropiada. O jovem percorria os salões desconfortavelmente vestido com trajes princi­pescos feitos especialmente para si, com saudades dos sons e dos chei­ros da montanha e, acima de tudo, com saudades do amigo. Aqui­les andava cada vez mais aborrecido e mais rabugento. Quando sentiu que o seu pai tinha alguma relutância em falar da mãe que nunca conhecera, Aquiles fez pressão. Finalmente, tomou conhecimento do que lhe fora escondido, de modo a evitar qualquer suspeita de favorecimento na escola que Quíron não fora apenas o seu pro­fessor, fora também o seu avô materno.

Aquiles já se tinha apercebido de que amara o velho centauro como nunca conseguiria amar aquele estranho que era o seu pai. O jovem começava a acreditar, pelo facto de ter sido separado da sua mãe à nascença, que tinha sido espoliado de mais do que alguma vez teria sonhado. Sentindo-se ferido e traído pelo seu pai, começou a tor­nar-se incómodo na sua insistência para conhecer Tétis que era uma coisa que Peleu ainda não podia tolerar. Quando o assunto foi brus­camente encerrado, pai e filho viram-se apanhados numa incompreen­são e hostilidade mútuas. No entanto, Peleu gostava muito do rapaz e tinha cada vez mais medo de o perder por falta de afecto do que devido a uma fatalidade qualquer.

Um dia, foi ao quarto de Aquiles depois de uma tarde cansativa de audiências e descobriu que uma das mesas tinha sido movida para junto de uma das paredes e que a grande lança de freixo, presente de casamento de Quíron, desaparecera do sítio onde estava há muitos anos. Furioso por Aquiles lhe ter levado o seu objecto mais precioso sem autorização, Peleu foi à procura do rapaz e encontrou-o no jar­dim vestido apenas com a tanga e utilizando o tronco de um velho plátano como alvo. A lança era demasiado grande e pesada para a sua estatura, mas Aquiles lançava-a com uma surpreendente destreza de uma distância que o jovem estabelecera a si próprio. Dividido entre a irritação e o desejo de felicitar o seu filho pela sua destreza, Peleu disse friamente:

Essa lança, que acabas de roubar, é a lança de um guerreiro. Só um guerreiro com provas dadas tem o direito de a manejar. Aquiles respondeu, desorientado:

Como poderei eu ser um dia um guerreiro disse ele, abor­recido — quando me obrigas a ficar aqui como um vitelo num curral?

Pressentindo a energia frustrada no interior daquele robusto jovem, Peleu sentiu subitamente pena do seu filho e vergonha pela sua pró­pria rabugice.

Queres ser guerreiro? perguntou.

Aquiles desviou o olhar.

— Observei os Mirmídones a treinar no campo. Vi-os a lutar uns com os outros como se se odiassem, depois olearem-se e pentearem-se uns aos outros e perguntei a mim próprio se eles eram homens ou deuses. Que outra coisa havia eu de querer ser?

— O teu desejo será cumprido — disse Peleu. — Mas fico com essa lança até ter a certeza de que tenho um filho com capacidade para a manejar.

Cavaleiro experimentado, atleta e caçador, Aquiles nunca se preocupara com a sua própria segurança. Então, com o orgulho ferido e a ira fazendo agora parte, também, das suas emoções, entrou para o alegre mundo da soldadesca com o mesmo à-vontade com que entrara para o povo dos Centauros. Em breve, o jovem adquiria as capacida­des assassinas de um soldado profissional.

Um dia, o seu pai foi vê-lo a manejar a espada e a lança no campo de treino. Peleu ficou de tal maneira impressionado com os seus pro­gressos que, quando o filho lhe perguntou se Pátroclo poderia ser autorizado a treinar com ele junto dos Mirmídones, prometeu tentar saber. Menécio, que tivera as mesmas dificuldades com o seu filho sempre mal-humorado, consentiu de imediato e os dois rapazes cor­reram um para o outro para se cumprimentar como se tivessem estado desprovidos de ar e luz durante o tempo em que tinham estado sepa­rados.

Nos anos que se seguiram, cresceram juntos dois jovens uni-dos por um amor tão intenso que morreriam de boa vontade, ou matariam, um pelo outro.

Entre os seus mentores estava um comandante chamado Fénix, um homem que não tinha filhos e a quem Aquiles dava o afecto que negava ao seu pai. Fénix era um dos poucos dolopianos que perma­necera fiel a Peleu numa altura em que a maior parte do seu povo emigrava para Ciros e se bem que fosse antes de mais um guerreiro mirmíade, não renunciara a todos os costumes do seu clã. Assim, havia nele muita da antiga religião do seu povo. Fascinado com a tatua­gem azul na sua coxa, Aquiles ficou intrigado quando soube que aquilo era a marca de uma iniciação a que Fénix fora submetido por ocasião dos rituais de passagem da adolescência à maturidade. Durante algum tempo, o guerreiro teve alguma relutância em dizer mais fosse o que fosse, mas Aquiles recordou ao seu tutor que também ele tinha sangue dolopiano por parte da sua mãe e começou a bombardeá-lo com perguntas sobre a sua herança tribal. As respostas, a princípio, saíram lentamente, mas depois, quando Fénix viu que aquilo tinha muito significado para o rapaz, passaram a sair mais livremente. A vaga inquietação que por vezes continuava a perturbar Aquiles, tornou-se mais evidente. O jovem começou a sonhar com a mãe.

Odisseu visitou Iolco por essa época e testemunhou uma vio­lenta discussão entre Peleu e Aquiles. Peleu saiu dela com o rosto ver­melho e perturbado, pedindo vinho e queixando-se de que Tétis estava a afastar o filho dele por meios de poderes especiais com os quais ele não podia competir.

— Mas, o rapaz tem o direito de saber quem é a mãe dele — disse Odisseu — e em breve terá idade para ir, quer gostes, quer não. Tal-vez seja melhor, a longo prazo, que ele vá com a tua permissão.

Peleu abanou gravemente a cabeça.

— Tu nunca conheceste a feiticeira da minha mulher. Não sabes os poderes que ela tem. E Aquiles é o meu único filho e herdeiro. Tenho medo que, se o deixar ir para Ciros, nunca mais regresse.

— Essas coisas só os deuses é que decidem respondeu Odis­seu — mas de uma maneira ou de outra, ele precisa de saber. Por que não deixas que ele vá a Ciros e não insistes para que vá sozinho? No fim de contas, o laço mais forte da sua vida é para com Pátroclo. O rapaz não ia querer ficar separado dele durante muito tempo.

Peleu percebeu que seria uma decisão acertada e agiu como tal. Aquiles mostrou-se tão relutante em se separar de Pátroclo de novo que, durante algum tempo, pareceu não querer ir. Mas a atracção pela mãe mostrou ser mais forte do que a amizade. O jovem partiu para Ciros quando fez catorze anos. Como Peleu receara, ficou lá mais tempo do que Odisseu antecipara.

Ciros é uma ilha ventosa para lá de Eubeia, no mar ocidental, a meio caminho entre Micenas e Tróia. As pessoas, lá, contam uma história pitoresca acerca da expedição que Odisseu fez à ilha para reaver Aquiles.

Segundo elas, Tétis era uma deusa imortal com poderes proféti­cos, que sabia que a vida do seu filho seria longa, tranquila e obscura, ou plena de glória imortal e muito breve. Fora por essa razão que decidira colocar Aquiles longe, a salvo, na remota Ciros.

Quando Odisseu chegou à ilha não viu sinais do rapaz entre os jovens que viviam na corte do Rei Licomedes. Compreendendo que só a astúcia tiraria Aquiles do seu esconderijo, Odisseu regressou ao seu navio e desembarcou novamente no dia seguinte disfarçado de mercador sidoniano. Tendo conseguido entrar na corte, o príncipe espalhou a sua rica mercadoria no chão, perante um grupo de rapa­zes e raparigas excitados. A maioria dos tesouros que ele pôs a des­coberto foram escolhidos de propósito para atrair os seus olhares — vestidos bordados, tecidos, perfumes e cosméticos, colares, bracele­tes e outras bugigangas. No meio daquelas coisas bonitas, porém, Odisseu também colocara uma espada e um escudo que não atraíram quaisquer atenções, até que as raparigas, sempre conversando umas com as outras enquanto mexiam naquelas coisas deliciosas, ficaram espantadas com o súbito toque de uma trombeta no pátio. Quando se soube que a ilha estava a ser atacada por piratas, as raparigas fugi­ram da sala, assustadas todas menos uma, que pegou imediata-mente na espada e no escudo.

Sorrindo perante o sucesso da sua astúcia, Odisseu levou Aquiles consigo para a guerra.

É uma boa história e não deixa de ser boa só porque também é contada pelos povos do Indus, no longínquo leste, sobre o modo como os seus grandes heróis emergiram para a idade viril, e também na ilha de Apolo dos Hiperboreanos, no longínquo norte. Mas a ver­dade, que eu soube da boca de Odisseu, é algo diferente.

A partir do momento em que o seu navio chegou à praia por baixo da grande rocha onde estava empoleirado o castelo de Licome­des, virado para o mar e para a pequena cidade no outro lado, tornou-se evidente que Odisseu não seria bem recebido em Ciros. Os Dolopianos tinham deixado abertos os seus canais de informação com o continente e sabiam que ele estava a chegar. Odisseu foi polidamente impedido de ver Aquiles, ao mesmo tempo que Licomedes recordava ao seu hóspede que o seu povo escolhera um destino diferente dos outros Tessalianos, não desejando entrar numa guerra que não era da sua conta. Odisseu respondeu que respeitava a sua escolha, mas Aqui­les, filho de Peleu, não era dolopiano. O jovem era o único herdeiro de um grande Rei em Iolco e este exigia que ele cumprisse os seus deve­res reais e liderasse os Mirmídones na guerra contra Tróia.

Naquele momento, a conversa de ambos foi interrompida pela voz de uma mulher, vinda do fundo do ventoso salão.

O destino de um homem não é determinado apenas pelas exi­gências do seu pai.

Odisseu virou-se e viu uma mulher alta, imponente, usando um vestido verde-escuro e salpicado de cores como a cauda de um pavão. O tom de desprezo na sua voz estava de acordo com a frieza do seu olhar. Aquela mulher devia, pensou Odisseu, ter sido muito bonita, mas aqueles olhos ferozmente semicerrados deviam, no presente, exigir mais obediência do que adoração. O príncipe sentiu que o Rei Licomedes tinha um medo terrível dela.

Tendo começado a compreender por que razão Peleu achara tão difícil lidar com a sua mulher, Odisseu declarou-se honrado por conhecer Tétis, finalmente, depois de ter ouvido falar muito dela.

Mas apenas através daqueles que me caluniam  disse ela.

Através daqueles que respeitam o teu poder, senhora.

Se isso é verdade, então deves saber que não vou desistir, mais uma vez, do meu filho.

E se tu és mesmo mãe dele— respondeu Odisseu calmamente deixarás que ele escolha por si próprio, tal como o seu pai fez.

Tétis fez um gesto de rejeição com uma mão cheia de anéis.

Aquiles já escolheu. Nesta ilha conheceu a beleza do que lhe tem sido negado a sabedoria e a consolação que só se encontra servindo as mulheres. Aquiles foi o escolhido de Deidamia, filha do Rei Licomedes e já tem um filho dela. Aquiles decidiu fazer a sua vida aqui e sente-se feliz. Por isso, vai para a tua guerra de homens, se tens de o fazer. O meu filho só quer que o deixem em paz.

— Eu sou capaz de acreditar nisso disse Odisseu se o ouvir dos lábios dele.

A luz da candeia provocou uma sombra nas faces cavadas de Tétis. No seu pescoço brilhava um colar de esmeraldas.

Aquiles está a preparar-se para o ritual da Primavera que se realiza amanhã - respondeu ela friamente. Não te quer ver.

- Mas ele sabe que eu estou cá?

Não precisa de saber.

- Certamente que isso também lhe cabe a ele decidir?

Tétis limitou-se a encolher os ombros e a desviar o olhar.

Se não tens medo de mim — disse Odisseu — vai dizer-lhe que o amigo que tornou possível a sua vinda para Ciros deseja falar com ele.

— Eu não tenho medo de ti, príncipe de Ítaca.

Odisseu foi excluído do mistério oculto do ritual que teve lugar em Ciros no dia seguinte, mas não o puderam impedir de se juntar à multidão que testemunhou a procissão que se lhe seguiu. Depois de horas à espera à torreira do sol, o príncipe ouviu o tilintar de cam­painhas aproximando-se e de imediato a multidão começou a gritar e a cantar. O seu coração deu um salto quando a procissão surgiu vinda de uma rua estreita e viu a figura gigantesca de um homem encapuzado, vestido com peles de ovelha e sem rosto porque por baixo do capuz só se via uma máscara hirsuta de pele de cabra. O homem transportava um gancho de pastor e em volta da sua cin­tura e ancas tinha campainhas de cabras que tilintavam e se entre-chocavam enquanto ele dançava pela rua com um curioso gingar, coreografado de propósito para que as campainhas tocassem todas ao mesmo tempo. A seu lado dançava o que Odisseu pensou ser a figura velada de uma donzela usando saias longas e com folhos, mas à medida que mais figuras apareciam, o príncipe apercebeu-se de que aquelas figuras eram, de facto, rapazes vestidos de mulher.

Entre eles corriam outras figuras mais cómicas segurando abó­boras de grandes pescoços com as quais faziam gestos obscenos para deleite das mulheres velhas e da multidão. O ar começou a ficar empes­tado de vinho e suor. O barulho feito por centenas de campainhas era dificilmente suportável. Mas Odisseu foi apanhado por aquele tumulto barulhento e só lhe apetecia beber, dançar e entregar-se ao frenesim do deus. Então, apercebeu-se de que uma das figuras femininas, dan­çando hesitantemente, olhava para ele, chocada por o ter reconhe­cido e soube que por baixo daqueles véus e daqueles folhos estava a figura desconcertada do jovem que ele fora buscar àquela ilha.

Conversaram muito, naquela noite. Odisseu permitiu que Aqui­les lhe falasse da sua vida em Giros, do seu amor por Deidamia e pelo seu filho a quem tinham dado o nome de Pirro devido aos seus cabelos louros ligeiramente arruivados. O jovem falou do sentimento caloroso de regresso a casa que encontrara no meio do povo da sua mãe e de como a própria Tétis supervisionara a sua iniciação aos misté­rios que estavam fora do alcance das suas acanhadas emoções juvenis. O jovem declarou que nunca na sua vida nem sequer durante os anos na escola de Quíron — sentira tanta paz.

Odisseu escutou-o com a paciência e a simpatia que Aquiles nunca encontrara junto do seu pai. O príncipe disse que se sentia muito feliz por Aquiles ter encontrado, finalmente, a paz e a alegria; disse que compreendia as coisas que o jovem tentara contar-lhe visto que tam­bém conhecera essa vida tranquila em Ítaca; também ele tinha uma mulher que amava; também ele tinha um filho pequeno que era a luz dos seus olhos e que sabia como coisas como aquelas mudavam sem­pre a vida de um homem para melhor.

Nesse caso, por que os deixaste? — perguntou Aquiles.

Porque sou homem e dei a minha palavra num juramento, em Esparta.

Odisseu observou o jovem na sua frente a franzir o sobrolho e a abanar a cabeça. Em seguida, acrescentou como que por acaso:

O teu amigo Pátroclo vai para a guerra com Tróia pela mesma razão.

Pátroclo vai para a guerra?

Claro. Ele estava entre os que pretendiam a mão de Helena. Pátroclo jurou e vai honrar a palavra dada se bem que não seja a única razão por que vai lutar, claro. Ele e o resto dos Mirmídones estão ansiosos pela batalha. Eles sabem que vai ser a maior guerra que alguma vez foi travada na história do mundo. Eles sabem que a honra que está em jogo será cantada por todos os bardos durante gerações. Neste mesmo momento em que estou a falar, está a reunir--se um exército não muito longe daqui, em Áulis, no outro lado de Eubeia. Milhares de homens chegam por mar e por terra. O porto vai ficar repleto de navios. Todos os grandes heróis deste tempo vão lá estar — Agamémnon, Menelau, Diomedes de Temente, Ájax e Teu­cro, Nestor de Pilos, Idomeneu de Creta e muitos outros. Todos aque­les que se preocupam com a glória dos seus nomes.

Odisseu sorriu e abanou a cabeça, como se estivesse espantado com a maravilha de tudo aquilo. O príncipe deu algum tempo a Aqui­les, para lhe permitir que respondesse, mas quando o jovem não disse nada, acrescentou:

— O teu amigo Pátroclo não gostaria de ficar de fora de uma reunião assim, mesmo que não tivesse dado a sua palavra. Uns momentos depois, Aquiles disse:

— Ele não perguntou se eu ia?

Odisseu encolheu os ombros.

— Ele pensa que vais comandar os Mirmídones, especialmente porque o teu pai não está em condições de o fazer. Fénix também pensa o mesmo. — O príncipe olhou para o rapaz pouco à-vontade na sua frente. — Mas eles não sabem como tu te sentes feliz no meio destes pastores todos, aqui em Ciros. - Odisseu suspirou. - Quase tenho inveja de ti, Aquiles, por teres uma longa e pacífica vida na tua frente sem os tumultos da guerra e do mundo com o seu desejo de fama imortal. Como se lhe tivesse ocorrido um novo pensamento, o sorriso transformou-se numa careta. O teu pai vai ficar desapon­tado. Ele tinha a certeza de que levarias a lança de freixo dele até Tróia. Ele sabe que te transformaste num óptimo guerreiro. Via-te a ganhar a glória que lhe foi negada por aquele ferimento. Mas parece que tu, agora pertences à tua mãe. — Odisseu olhou para o mar. — Digo-lhe que decidiste, sensatamente, que é melhor dançar vestido de mulher do que morrer gloriosamente dentro de uma armadura?

 

                       Os Aos da Serpente

Tinham combinado reunir a frota em Aulis, um porto rochoso e abrigado no acanhado estreito entre Boetia e a ilha de Eubeia. Os Boe­danos já lá estavam e nem os seus vizinhos a norte, os Locrianos, nem os guerreiros de Eubeia, vinham de longe. Quando a frota de Aga­mémnon, composta por cem navios, chegou ao porto, Ajax e Teu­cro, os filhos de Télamon, também já tinham chegado vindos de Salamina com os doze navios que tinham prometido. Entretanto, Menelau juntara sessenta embarcações em Lacónia e se bem que ainda não tivessem notícias de Creta, os principais aliados de Argos juntavam-se rapidamente à sua causa. Diomedes trouxe oitenta navios de Tirinte, ao mesmo tempo que a bandeira de Nestor liderava outros noventa vindos de Pilos, contornando os muitos cabos do Peloponeso e Menesteu contornou a Cabeça de Sunião à frente de cinquenta navios de guerra atenienses. Mais impressionante ainda, Odisseu e os seus aliados das Ilhas Jónicas conseguiram lançar à água oito navios dos sessenta que Palamedes sugerira zombeteiramente.

Até a distante ilha de Rodes contribuiu com nove navios, mas o Rei Ciniras de Chipre foi menos audaz. Quando Menelau navegou até lá numa missão de recrutamento e com alguma esperança de avis­tar Helena e Páris no mar, algures, Ciniras prometeu enviar cinquenta navios para Aulis, mas só apareceu um navio cipriota — se bem que o seu capitão tenha lançado à água, antes de partir, quarenta e nove modelos de barcos feitos de barro em cumprimento da promessa feita pelo seu soberano.

Menelau ficou furioso por ter sido enganado daquela maneira, mas talvez não devesse ter esperado outra coisa de um rei que era também sumo sacerdote de Afrodite na ilha onde a deusa nascera. Pior ainda, o insulto confirmava a suspeita que lhe atormentara a mente ciu­menta enquanto estivera na ilha — que Ciniras fizera um pacto com Páris para esconder os dois fugitivos em Chipre enquanto ele próprio lá estivesse.

Agamémnon estabelecera o seu quartel-general no antigo forte empoleirado no promontório rochoso que dava para o porto onde os navios de uma imensa frota de cerca de mil embarcações se aco­tovelavam uns aos outros, prontos para largarem para Tróia. A cidade, na base do forte, há já algum tempo que estava superlotada e à noite os fogos de vigia, acesos pelas tropas bivacadas, estendiam-se ao longo da praia. Postado ao lado de Agamémnon, uma noite, o líder dos bardos boeotianos — um mestre famoso na arte da memória — assegu­rou ao Grande Rei que ninguém antes dele nem sequer Héracles ou Teseu, montara uma expedição àquela escala. O Leão de Micenas escondeu o orgulho com dificuldade.

Mas vários conflitos menores tinham já demonstrado a dificul­dade de conciliar uma força daquele tamanho, que falava dialectos diferentes e que abrigava numerosas invejas e contendas antigas. Aga­mémnon não tinha ilusões, sabia que muitos daqueles homens não estavam em Aulis por ele ou pelo seu irmão. Estavam ali por ganân­cia, pelos despojos de Tróia, pelas terras e pelos benefícios comer-ciais, ou simplesmente por amor à violência e à aventura, mas aquela hoste imensa estava sob o seu comando e o nome de Agamémnon, Rei dos Homens, viveria para sempre nas canções dos bardos.

Porém, o Rei de Micenas estava a exercer um trabalho bem menos glorioso, que consistia em discutir com um ministro de Delos, que sabia regatear, as condições de entrega do vinho, do óleo e dos cereais, quando chegou a notícia de que Aquiles e os seus Mirmídones tinham chegado.

— Manda-o cá acima imediatamente — disse ele. — Vejamos de que é feito esse filho de Peleu. O Rei despediu o ministro, exigindo-lhe que pensasse em preços melhores e chamou o seu estado-maior.

Muitos guerreiros de ar feroz oleavam as suas lanças e afiavam as suas espadas no meio da hoste, no exterior do forte, e Agamémnon sentia-se satisfeito por ter aquelas armas todas sob o seu comando.

Mas com o jovem susceptível que Odisseu trouxera de Ciros a ques­tão era muito diferente. Decidido a demonstrar que era um verda­deiro homem, Aquiles entrou na sala do conselho com uma arro­gância que não estava longe do desdém e escutou as deliberações, tenso como a corda de um arco, observando os outros com um ar taciturno que foi interpretado por alguns como vigilante e por outros como grosseiro.

Ninguém duvidava de que aquele jovem guerreiro tinha em si algo de divino. Se a sua mãe, Tétis, lhe dera ambrósia a comer, ou se o mergulhara no Estige, ninguém sabia, mas dos seus cabelos e dos seus penetrantes e metálicos olhos cinzentos emanava uma névoa esplendorosa de imortalidade, de tal maneira e com tal ardor que até o velho Nestor, mais velho do que ele quarenta e tal anos, teve difi­culdade em desviar o olhar da sua presença graciosa e flexível, porque aquele esplendor — Nestor sentiu-o com admiração e algum receio - tinha algo de assassino.

O jovem não viera sozinho. Apesar de o convite para se juntar ao conselho tivesse sido apenas para Aquiles, entrou com ele um com­panheiro, mais moreno e ligeiramente mais alto mas com a mesma atitude, como se a guerra tivesse sido planeada para sua mútua satis­fação. Quando Agamémnon questionou a sua presença, Aquiles ergueu o queixo e disse:

Este é Pátroclo, filho de Menécio e neto de Actor, Rei da Pítia. Para onde eu vou, ele também vai. E ficou imediatamente claro que, ou ficavam ambos, ou saíam ambos.

Vendo o irmão corar, Menelau apressou-se a recordar-lhe que Pátroclo fora um dos que fizera o juramento em Esparta e Odisseu aliviou a tensão observando que na última vez que vira Aquiles e Pátroclo juntos, tinham ambos seis anos de idade e lutavam como dois cães na margem de um ribeiro, na escolha de Quíron.

— Se continuais a lutar da mesma maneira — disse ele — os Troianos estão em maus lençóis.

Recordando-se que Apolo só prometera vitória se Aquiles se jun­tasse à luta, Agamémnon juntou-se ao riso geral e ordenou que se arranjasse espaço para outra cadeira.

Quando Nestor pediu notícias do seu velho amigo Peleu, Aqui­les respondeu com a rigidez de um jovem relutante em falar livremente sobre a sua vida pessoal.

O meu pai lamenta não poder ajudar a causa pessoalmente, mas os homens que eu comando são dele e deu-me esta lança, que foi um presente de Quíron, pedindo-me que fizesse bom uso dela. A divina Atena poliu-lhe a haste com as próprias mãos. O meu pai espera que a deusa nos conceda o seu favor.

Diomedes e Odisseu trocaram olhares perante a solenidade do jovem, mas Ájax, que era primo de Aquiles, deu uma risada bona.

— O teu pai também te deve ter dito para ficares do lado dos deuses, tal como o meu. Mas eu disse-lhe, quando saí de ao pé da sua cabeceira, que qualquer palerma conquista a glória se tiver os deuses do seu lado. Eu tenciono conquistá-la, com ou sem eles.

Quanto a mim disse Odisseu, retorcidamente — darei as boas-vindas a toda a ajuda que conseguirmos.

Nesse momento, o arauto de Agamémnon entrou na sala para anunciar a chegada de um enviado de Creta, que desejava uma audiên­cia com o Grande Rei.

Só um enviado? disse Agamémnon com o sobrolho fran­zido. - Era suposto Deucalião enviar-me navios. Onde estão eles? Tabíbius encolheu os ombros.

— Não há sinal deles.

Raios partam estes cretenses e mais as suas mentiras. Manda-o entrar.

Menelau reconheceu imediatamente o enviado devido à sua ante­rior visita à ilha. Um dos ministros de Estado mais perspicazes de Deucalião, em Cnossos, Dromeu apercebera-se do vento de mudança e passara-se para o lado dos dissidentes, tudo homens novos, que se tinham reunido em volta de Idomeneu. O facto de ser ele e não um dos lacaios de Deucalião a ir a Aulis era bom sinal. Mas onde esta­vam, exigiu saber Agamémnon, os navios de que estavam à espera?

Dromeu preferiu responder a uma outra hipotética pergunta.

Houve mudanças em Cnossos depois de os filhos de Atreu nos terem honrado com a sua presença — disse ele. — Deucalião atravessou o rio para o Mundo das Sombras. Agora, é o seu filho Ido­meneu que está sentado no trono do Grifo.

Seguiram-se alguns cumprimentos de condolências pela morte de Deucalião antes de Agamémnon dizer:

Mas, isso leva-nos a pensar que o vosso novo Rei olha para a nossa causa com mais optimismo do que o seu pai?

É o caso, Grande Rei.

Nesse caso, pergunto mais uma vez. Onde estão os navios? Dromeu abriu as mãos, levou-as aos lábios e sorriu.

A Casa do Machado está agora pronta para entregar cem navios.

Cem! Excelente! Agamémnon não escondeu a sua satisfa­ção.

O Rei virou-se, sorridente, para Menelau, que exclamou que era mais do que esperavam. A disposição em redor da mesa melhorou. Então, Palamedes disse:

— Quando é que os podemos ver?

Dromeu sorriu de novo.

Como calculais, é um compromisso generoso. Por isso, não ficareis surpreendidos se ele vier acrescido de uma condição.

Trazido por uma brisa soprando da base do monte, o grito dis­tante de um oficial, gritando com os seus homens, entrou na sala. Com um movimento irritado da mão, Agamémnon enxotou uma mosca que lhe zumbia ao ouvido.

Que condição é essa?

Como líder de uma força tão grande, o Rei Idomeneu deve partilhar o comando supremo de todas as forças aliadas.

O filho de Télamon, Ajax, um homem espadaúdo e de rosto franco, foi o primeiro a quebrar o silêncio com um resfolego de troça e, com uma palmada na coxa musculosa, disse:

— A coroa subiu à cabeça do teu novo Rei! Vai para casa e diz-lhe que já temos o líder de que precisamos.

Sempre sorrindo, Dromeu cofiou a barba encaracolada e virou-se para Agamémnon.

— Acrescento — disse ele — que os cem navios de Creta só são igualados em número pelo grande esquadrão que o próprio Grande Rei trouxe de Micenas. Os nossos navios estão prontos para zarpar. Só esperam as tuas ordens.

O rosto firme de Aquiles também estava à espera daquelas pala­vras.

Agamémnon apercebeu-se do olhar lançado por Pátroclo ao seu amigo, mas o de Aquiles, frio e intimidante, permaneceu fixo no rosto do Rei, suspenso da sua decisão.

Sentindo uma necessidade imediata de reacção, mas desorientado com aquela situação imprevista, Agamémnon tentava escutar o con­selho dos deuses. Quando nenhuma voz lhe entrou na mente silen­ciosa, decidiu que, apesar de cem navios terem um grande signifi­cado, a sua honra e autoridade tinha muito mais.

O Rei ia justamente declará-lo quando Nestor se endireitou depois de ter escutado as palavras que Odisseu lhe murmurara ao ouvido.

— Talvez — o ancião tossiu para aclarar a voz — talvez não fosse má ideia o conselho deliberar sobre a matéria?

Surpreendido, Agamémnon olhou para o aceno insistente de cabeça de Nestor.

Estava a pensar, precisamente, nisso — disse ele. — Se o enviado de Creta nos desculpar...

Inclinando-se polidamente perante cada um dos conselheiros, Dromeu saiu da sala às arrecuas, deixando um odor a perfume almis­carado no ar.

Assim que a porta se fechou, Ájax disse:

— Que segredinhos são esses? O Grande Rei é o nosso coman­dante. Ele já tem as forças de que necessita.

— Pensa, amigo — disse Odisseu, sorrindo e teria continuado se Palamedes não tivesse intervido.

— Este assunto requer que pensemos cuidadosamente. Creta promete oito vezes mais navios do que Salamina pode fornecer.

— Sim, mas a que preço? — perguntou Ájax. — Toda a gente sabe que um comando repartido só provoca sarilhos.

Concordo com Ájax — declarou Diomedes. — A mim, parece-me que não há nada a discutir. Tal como a maioria dos presentes, Idomeneu tem de cumprir o juramento de Esparta. Um homem não impõe condições quando jura perante um deus.

Sentindo-se fortalecido com aquele apoio, Agamémnon disse:

O risco de divisão nas nossas forças já existe. Cem navios a mais ou a menos não fazem diferença. Prefiro ficar sem eles a perder o controlo dos restantes. Se Idomeneu não quer vergar-se à nossa autoridade, ele que fique em casa.

Ó primo — disse Odisseu. — Infelizmente, ele não vai fazer isso.

— Que queres dizer? — perguntou Ajax, franzindo o sobrolho.

— Ouviste o que Dromeu disse. Os navios dele estão prontos a zarpar. Se Idomeneu limpou a ilha para conseguir apresentar esta frota considerável, não vai agora deixá-la apodrecer no porto de Cnos­sos. — Odisseu virou o seu sorriso irónico na direcção de Agamém­non. — Cem navios a mais podem não ter grande significado para ti, Rei dos Homens, mas acredito que Príamo é capaz de os receber de braços abertos.

Ajax deixou sair uma exclamação de ultraje. Menelau começou a abanar a cabeça.

— Idomeneu foi dos primeiros a jurar. Não acredito que ele seja capaz de nos trair.

Odisseu encolheu os ombros.

— Os Cretenses nunca faltaram à palavra?

— Já, mas o homem é meu amigo — protestou Menelau. Mas o príncipe apercebeu-se imediatamente de que todos os homens naquela sala estavam a pensar na mesma coisa: que o filho mais novo de Atreu demonstrara ser ingénuo no que tocava à escolha de amigos.

— De qualquer maneira — disse Nestor após um pequeno silên­cio —parece que o filho de Deucalião tem ambições. para o seu reino. É evidente que ainda não se esqueceu que, em tempos, Creta domi­nava os mares e cobrava tributo a muitas das nossas cidades. Com a ajuda de Tróia, é possível que volte a fazê-lo.

Diomedes disse:

— Nesse caso, que ganha ele se se juntar a nós?

— Uma boa parte do saque de Tróia — respondeu Odisseu. — Acesso livre às suas rotas de comércio através do Helesponto e em redor das costas asiáticas — ouro, prata, cereais, cinábrio madeira, âmbar, jade. Tudo isso e o reconhecimento da sua autoridade por parte de todos os reinos de Argos.

— O meu amigo Menesteu não permitirá uma coisa dessas — disse Palamedes.

Odisseu teve um gesto de desdém.

— Nesse caso, o Senhor de Atenas devia ter mantido o seu vas­salo sob rédea curta, tal como o seu antecessor.

Agamémnon grunhiu e encostou-se na sua cadeira.

— Creta já estava a crescer outra vez mesmo antes de Teseu o ter saltado da falésia em Ciros. Idomeneu limita-se a ter mais ambição do que o seu pai.

E mais coragem acrescentou Menelau.

Diomedes franziu o sobrolho.

Mas é pena essa coragem não ter a honra equivalente. Eu achei-o um homem a sério, em Esparta, e um valoroso pretendente a Helena.

A pergunta mantém-se — insistiu Odisseu. — Queremos os seus dez mil lanceiros nas nossas tendas a mijar para fora ou fora delas a mijar para dentro?

Um ligeiro sorriso passou pelo rosto de Aquiles.

Agamémnon surpreendeu-o pelo canto do olho e decidiu que che­gara a hora de se defrontar com aquele sangue jovem.

— O filho de Peleu parece divertido. Pergunto a mim próprio o que pensará ele?

O assunto é-me indiferente — respondeu Aquiles. Agamémnon franziu o sobrolho.

— Como assim?

Com o devido respeito pelos deuses, eu confio na minha pró­pria força e na do meu amigo. — Aquiles sorriu para Pátroclo. — Tanto faz que os Cretenses estejam por nós ou contra nós. O que nós queremos é lutar.

— Também nós — disse Ajax. --Mas, e quem comanda? A minha obediência vai para Agamémnon.

— E a minha — imitou-o Diomedes.

Nestor coçou os caracóis grisalhos que tinha na nuca.

— Porém, Idomeneu está à espera de uma resposta. Pergunto a mim próprio se não seria mais prudente ter as suas forças do nosso lado. — O ancião virou o seu olhar grave para Odisseu, que acenou com a cabeça e disse:

— Esta guerra terá de ser vencida no mar antes de ser vencida em terra. Cem navios podem fazer a diferença.

Agamémnon olhou para Palamedes, que disse calmamente:

— Concordo com essa opinião — e olhou para o outro lado da mesa onde Menelau brincava com o pesado anel de sinete que Helena lhe dera no dia do casamento. O Rei de Esparta olhava de sobrolho franzido para os dois leopardos nele representados quando Palame­des lhe perguntou:

Que tem a dizer o Rei de Esparta?

O filho mais novo de Atreu olhou, pouco seguro, para o seu irmão mais velho antes de responder.

— Como já disse murmurou ele com voz rouca — considero Idomeneu meu amigo. Acredito que será um aliado valioso. O prín­cipe continuava a mexer no anel, que lhe deslizou pelo dedo. — Mas a decisão cabe ao meu irmão.

Agamémnon mexeu-se de novo na cadeira, tentando avaliar o pensamento geral na sala. O seu rosto corara e os seus olhos iam de um para outro, evitando os rostos silenciosos e sem se deter em nenhum deles. Era a primeira vez, desde que decidira entrar naquela guerra, que se via a braços com uma decisão que podia decidir o des­tino da empresa. Que fazer? Todos os músculos do seu corpo se esforçavam por manter o controlo. Controle sobre as forças que reu­nira, controlo sobre o conselho, controlo sobre si próprio e os dois homens na sala com quem se sentia mais à-vontade esperavam que ele o exercesse. Mas Ajax e Diomedes eram homens de acção, não eram pensadores. E o mesmo se aplicava a Aquiles e a Pátroclo, ambos jovens e convencidos da sua força, da sua coragem e da sua inven­cibilidade. Nenhum deles, suspeitava, hesitaria um momento. Pre­feririam lutar a abdicar do seu orgulho. Os guerreiros eram assim, os homens eram assim e ele era Agamémnon, Rei dos Homens. Mas havia outras coisas em jogo naquela guerra para além do sangue, do medo, da bravura estúpida e dos momentos de glória e se o velho Nes­tor, sensato como era, e aquele astuto teórico de Eubeia concordassem com Odisseu, o orgulho passaria para segundo plano.

Agamémnon passou uma mão pela boca, arrependido de ter exposto tão cedo a sua posição. Se mudasse agora, poderia passar por fraco perante os que o respeitavam. No entanto, se eles estivessem enganados... Mais cem navios... mais dez mil homens... de um lado ou de outro. O Grande Rei viu a sua orgulhosa frota em chamas à sua volta e o pentakonter' cretense a aproximar-se da sua bandeira com um grifo à proa e o machado duplo pintado na vela. Um erro agora poderia ter custos elevadíssimos quando os seus navios estivessem no mar.

Mas não podia vacilar mais perante o olhar impaciente de Aquiles. O Rei de Micenas preparava-se para falar quando Odisseu se encos­tou com ar incrédulo e disse:

Falo apenas por mim próprio quando digo que se não houver acordo entre Idomeneu e Agamémnon, só eu sei para onde vai a minha lealdade?

Antes de todos os presentes se aperceberem das implicações da pergunta, tanto Ajax, como Diomedes, a quem era feito o desafio, declararam que o príncipe de Ítaca não falava apenas por si próprio.

Odisseu virou-se para Agamémnon com as sobrancelhas ergui-das e mãos abertas:

Parece que estamos todos de acordo.

Agamémnon semicerrou os olhos e viu que o seu dilema estava em vias de se resolver.

Muito bem. Já que assim é, que venham os cretenses.

Mas o Leão de Micenas já começava a sentir o peso do fardo do comando, mesmo naquele momento, em que ia desistir de metade dele.

Também não sabia que Odisseu não tinha razões particulares para duvidar das intenções de Idomeneu. Mas como o ítaco disse mais tarde ao seu primo Sínon, relatando-lhe a reunião:

Nós precisamos daqueles navios cretenses. De que outro modo conseguiria eu persuadir Agamémnon a desistir de metade do comando?

Quanto à necessidade da ajuda divina, Agamémnon estava mais inclinado a concordar com Odisseu do que com Ajax, por isso mar­cou para o dia anterior à partida da frota as orações e os sacrifícios aos deuses.

Todos os comandantes principais e ajudantes-de-campo se reu­niram no exterior da cidade, num recinto onde um grande plátano, consagrado a Hera, estava há séculos. Fora erguido um altar à som­bra da árvore, junto de uma nascente. Os sacerdotes invocaram o poderoso Zeus, Pai dos Deuses, e Calcante a sabedoria e a orientação de Apolo. Em seguida, Agamémnon fez o sacrifício.

O Rei já tinha a faca erguida quando os homens reunidos no recinto viram, espantados, surgir de debaixo do altar uma enorme serpente. Agamémnon recuou, alarmado, olhando para as listas escar­lates ao longo das escamas sarapintadas de negro do dorso do ani­mal. Com uma velocidade espantosa, a serpente trepou pelo tronco do plátano acima.

Calcante, que estava um pouco atrás de Agamémnon, aproximou-se rapidamente para observar o comportamento da serpente. O sacer­dote viu-a deslizar ao longo de um ramo, na direcção de um ninho de pardais. A ave agitou as asas e piou, mas foi impotente contra a força das presas do grande ofídio. A cobra mergulhou a cabeça oito vezes no ninho, engolindo uma cria de cada vez. Em seguida, ergueu a cabeça e balançou-a, observando o voo do pequeno pássaro proge­nitor. Um último ataque apanhou o pardal pela asa, que também foi engolido. Um momento mais tarde, a serpente estendia-se ao longo do ramo e ficava tão imóvel e rígida que os homens presentes jura­ram mais tarde que ela se tinha transformado em pedra.

A assistência foi percorrida por um murmúrio ao mesmo tempo maravilhado e alarmado.

Agamémnon ficou com a faca na mão, ainda a pingar sangue, a olhar para Calcante, que levou a mão à fronte e gritou:

— Aceitamos o oráculo — e permaneceu de olhos fechados.

O silêncio estabeleceu-se entre os homens ali reunidos. Nenhum deles se mexeu. Apenas o plátano estremeceu ligeiramente sob a brisa que vinha do mar. Calcante baixou a mão, abriu os olhos e sorriu para as centenas de homens que olhavam para ele, extasiados.

— Homens de Argos — gritou ele — o grande Zeus envia-vos este portento. Há muito que esperávamos por ele e teremos de espe­rar muito tempo para que se realize, mas a glória prometida por ele nunca morrerá.

Ainda em estado de choque, Agamémnon sentiu-se encorajado pelas palavras do sacerdote.

— Diz-nos, Calcante — disse ele — como interpretas o oráculo?

— Uma serpente não renova a sua pele todos os anos? — res­pondeu Calcante. — E as folhas do plátano não se renovam, também, todos os anos? Oito eram as crias no ninho. A sua mãe foi a nona vítima e a morte de cada um dos pássaros representa um ano. O pardal é uma das criaturas de Afrodite e Afrodite luta por Tróia. Assim, lutareis durante nove anos contra Tróia, mas no décimo as suas ruas largas serão tuas.

A voz do sacerdote exultava. Calcante abriu os braços, olhou para o céu e fechou-os de seguida numa prece silenciosa. À sua volta, os homens reunidos esperavam em silêncio, cada um mergulhado nos seus próprios pensamentos.

Agamémnon apercebeu-se de imediato que era preciso algo mais. — É a vontade de Zeus — gritou ele. — O deus falou. A vitória será nossa.

Menelau e Ajax juntaram-se a ele no momento seguinte, gritando e incitando os outros. Em breve se ouvia no recinto o grito de «a Vitória» será nossa vezes sem conta, mas Palamedes, o príncipe de Eubeia, enquanto gritava, apercebia-se, desconfortavelmente, de que Odisseu de Ítaca o fixava com um olhar frio e irónico.

No dia seguinte, acompanhada por trovões que foram geralmente interpretados como um sinal de encorajamento de Zeus, a frota zar­pou para Tróia.

Passaram-se duas gerações desde aquele dia e muitos homens contaram muitas histórias sobre a guerra. Mas as recordações tornam-se confusas com o passar dos anos e, por isso mesmo, muitas das his­tórias não são de confiança e alguns cronistas, por razões que servem apenas os seus próprios fins duvidosos, foram desmascarados por contarem perfeitas mentiras. A minha confiança vai para a palavra de Odisseu, que eu acho digna de todo o respeito e ele achou um disparate a história posta a circular, a qual dizia que alguns navios da frota se perderam e foram aportar a Mísia, onde lançaram um assalto, pen­sando ter chegado à costa de Tróia.

Os que acreditam nesta fábula dizem que a explicação para o erro reside na intervenção divina, dizem que Afrodite confundiu os nave­gadores de modo a protelar o ataque à cidade. Mas como Odisseu afirmou, Agamémnon ia bem fornecido de mapas e o próprio Mene­lau já tinha feito a viagem a Tróia sem dificuldades e entre os capitães da frota iam vários piratas experimentados dos mares jónico, Cre­tense e de Leste. Odisseu não era o único príncipe que enriquecera à custa da pirataria e um dos passatempos de Palamedes era, precisa-mente, a navegação e os seus problemas. Assim, a história foi aceite caridosamente como uma recordação confusa de uma guerra que durou muitos anos e envolveu muitas campanhas diferentes, das quais nem todas tiveram lugar na base das muralhas de Tróia.

É verdade que quando Agamémnon concebeu o ataque a Tróia, esperava fazê-lo num ataque rápido e devastador, semelhante ao que Télamon e Héracles tinham levado a efeito, entrando na cidade através de um trecho enfraquecido das muralhas. Mas o Rei Príamo for­talecera as suas defesas desde então, construíra uma nova frota de navios de guerra e desenvolvera intensas negociações diplomáticas no sentido de preparar os seus muitos aliados para o conflito que se aproximava das costas ocidentais da Ásia. O Grande Rei de Tróia teria menos navios do que o Grande Rei de Argos, mas não tinha o problema de transportar cem mil homens através do mar Egeu e a sua frota era suficientemente grande para guardar a entrada do Heles­ponto e oferecer apoio aos seus aliados.

E os seus aliados eram muitos. Segundo informações dos espiões de Agamémnon, provaram ser desencorajadores. De todos os ami­gos de Tróia, só os Dárdanos tinham decidido abster-se da guerra. Tento tentado e não conseguido persuadir Príamo de que Helena devia ser devolvida imediatamente a Esparta, o Rei Anquises decla­rara que não envolveria o seu povo num conflito militar que come­çara com a perfídia de Páris e que poderia acabar com a devastação das terras em redor da Montanhas de Ida e que também não apoiaria os invasores ou os reinos da costa, desde a Peónia e a Trácia Quersonesa ao norte, aos Iácios ao sul, que se tinham aliado rapidamente ao Rei Príamo. Os Frígios, Os Mísios, os Carianos e os Pelasgos de Larissa estavam a recrutar exércitos e Príamo recebera a promessa de apoio por parte de países ainda mais a leste se fosse necessário. As Amazonas, os Paflagonianos e até os distantes Halizonianos esta­vam prontos a enviar tropas para defender Tróia.

Perante aquela oposição concertada, Odisseu avisou os aliados que o melhor seria uma cuidadosa guerra de desgaste. Talvez Tróia pudesse ser conquistada com mais facilidade se esgotassem primeiro os seus aliados através de uma campanha de bloqueios navais e ata­ques aos pontos mais fracos. Até àquele dia agoirento de Aulis, nin­guém, salvo Odisseu, acreditava que a campanha se arrastasse por dez longos anos. Mas se era aquele o desejo de Zeus, dissera ele, os príncipes de Argos tinham de se resignar, fortalecidos pelo conheci-mento de que, no fim, seriam os vencedores.

Agamémnon escutou aquele argumento, mas o Rei de Micenas não tinha um temperamento paciente e acalentava a esperança de que o tamanho das suas forças levaria os Troianos à rendição, pro­vando que o oráculo estava errado. Quando expressou esse ponto de vista, o conselho dividiu-se com Nestor e Palamedes apoiando Odis­seu. O resto defendeu um ataque imediato a Tróia.

Quando viu que fora ultrapassado, Odisseu surgiu com um plano alternativo. Muito bem, sugeriu ele, em vez de arriscar tudo num único ataque, quando Tróia ainda possuía toda a sua força, seria sensato estabelecer uma testa-de-ponte o mais próximo possível da cidade. A pequena ilha de Ténedo, erguendo-se do mar ao largo de Tróia, era perfeita para o efeito. Dali, poderiam montar um assalto directo ao capitólio de Príamo, se lhes parecesse ser digno de sucesso, ou poderiam bloquear a boca do Helesponto e lançar ataques contra a Trácia a norte, e contra as fortalezas dos outros aliados a sul.

Toda a gente compreendeu que era uma atitude sensata e o plano foi aprovado.

Quando a frota chegou a Ténedo já Agamémnon decidira posi­cionar a maior parte dos seus navios de modo a conter os navios de guerra de Tróia enquanto a ilha era tomada por uma força mais pequena. O Rei convocou um conselho a bordo do seu navio e já ia anunciar a sua decisão de colocar Diomedes no comando da invasão quando Aquiles pediu a honra de liderar ele próprio o primeiro ataque.

O dia foi quente e cerrado. O conselho demorara a começar visto que Aquiles demorara em aparecer. A disposição geral era de nervosa antecipação.

Agamémnon hesitou. O Rei não queria entrar em conflito aberto com aquele voluntarioso jovem, mas também não queria entregar o sucesso do seu primeiro e crucial assalto a um guerreiro que ainda não entrara em qualquer batalha. Antes que tivesse oportunidade de dizer qualquer coisa, Aquiles semicerrou os olhos.

Calcante não te disse que esta guerra não pode ser vencida sem a minha ajuda? Se os deuses contam comigo para selar a vitória, pro­teger-me-ão neste primeiro ataque.

O jovem falara como se a força do oráculo estivesse por trás da sua declaração, não deixando espaço para quaisquer debates ou con­tradições.

As notícias do oráculo acerca do sétimo filho de Peleu tinham-se espalhado rapidamente e Aquiles já tinha o afecto das tropas, assim como o seu respeito. Os seus Mirmídones estavam preparados para dar a vida por ele, mas agora seguiam-se-lhe muitos outros e ele pas­sou a ser conhecido entre os soldados como a sorte do exército. Cons­ciente disso, Agamémnon já mordera a língua por diversas ocasiões quando o jovem falara com arrogância, mas agora não estava prepa­rado para se render.

— Elogiamos o teu ardor, filho de Peleu, e agradecemos a tua oferta — disse ele, olhando para o mapa de Ténedo em cima da mesa mas nós queremos confiar na experiência de Diomedes, o veterano de Tebas. Quando tiveres provado o teu valor em combate, como certamente provarás, sentir-nos-emos felizes por te dar um comando.

Agamémnon aclarou a garganta e já ia prosseguir com a discus­são sobre a táctica do assalto quando Aquiles disse:

O Grande Rei devia pensar duas vezes.

Agamémnon teve alguma dificuldade em engolir a raiva. — Não fui suficientemente claro?

Aquiles levantou-se.

Muito claro. O insulto que acabas de me infligir foi tão claro como o primeiro que sofri às tuas mãos.

Agamémnon olhou para ele, desorientado e impaciente. Ansioso, o velho Nestor procurou intervir.

Acalma-te, Aquiles — disse ele calmamente. — Tenho a cer­teza de que não houve intenção de te insultar.

— Não — grunhiu Agamémnon, fechando o punho para que se visse bem o leão dourado no seu anel — esclareçamos isto de uma vez por todas. Gostaria de ouvir o filho de Peleu dizer em que cir­cunstâncias o insultei.

Aquiles deixou cair o seu punho no tampo da mesa.

Desde o princípio que é evidente que me recrutaste para esta campanha por mero descargo de consciência. Se Calcante não tivesse tornado bem claro que Tróia não cairia sem a minha ajuda, ter-me--ias deixado em Ciros e terias ficado com a glória apenas para ti. Não é assim?

Irritado, Agamémnon disse:

— Se a tua fama fosse maior, teríamos pensado em ti mais cedo.

As narinas de Aquiles fremiram. O jovem hesitava entre deixar sair a sua fúria ou girar nos calcanhares e afastar-se para sempre quando Odisseu disse:

Aquiles, meu amigo, estás enganado se pensar que o Grande Rei te faltou ao respeito. Se eu tivesse saído de Ítaca mais cedo, tam­bém tu terias sido chamado mais cedo. Os deuses é que decidem estas coisas, mas se alguém tem culpa, esse alguém sou eu.

E hoje? perguntou Aquiles, praticamente imune às generosas desculpas do príncipe de Ítaca. A minha coragem não me foi atirada à cara?

Ninguém duvida da tua coragem — respondeu Odisseu mas estás a pedir muito.

Menelau agitou-se pouco à-vontade na sua cadeira, transpirando um pouco.

— O meu irmão só procura assegurar o sucesso do desembar­que.

— Nesse caso, devo entender que os filhos de Atreu duvidam da minha mestria?

Nestor sorriu-lhe.

Não mais do que eu e a resposta é sim. Terás muitas oportu­nidades para demonstrar a tua habilidade com as armas, rapaz.

Tu és velho — respondeu Aquiles — e eu respeito a tua sabe­doria. Mas, não foste jovem como eu, tu também, e ansioso por gló­ria?

— É precisamente essa tua impaciência que me preocupa — tro­çou Agamémnon. — Não me vou arriscar a um desastre apenas para alimentar a tua ambição.

Aquiles eriçou-se de novo e Odisseu ia intervir de novo, mas Ido­meneu antecipou-se. Uma coisa fora o Rei de Creta conseguir o reco­nhecimento formal do comando conjunto do empreendimento, mas outra era conseguir autoridade num conselho que estava unido em volta de Agamémnon e a quem todos prestavam vassalagem. A sua posição também estava enfraquecida pelo facto de ter trazido con­sigo de Creta apenas oitenta navios dos cem prometidos. Mas tendo observado aquela disputa com um distanciamento frio, o delicado cretense viu nela a sua primeira oportunidade para se afirmar.

Talvez haja uma maneira de resolvermos esta questão para satisfação de todos, ao mesmo tempo que damos avanço ao que aqui estamos a tratar hoje. Grato por sentir que conseguira a atenção de todos os presentes, o Rei de Creta manteve toda a gente na expec­tativa, mais do que o necessário. — Eu concordo com o meu real primo de Micenas, que Diomedes é o homem indicado para liderar o assalto. O conquistador de Tebas fará, certamente, um bom traba­lho em Ténedo. — Aquiles fungou, mas Idomeneu sorriu e ergueu uma mão para o refrear.

- Tem paciência, meu amigo. — Quando Aquiles se sentou de novo, Idomeneu olhou para os outros. — Príamo antecipou, certamente, o nosso plano para nos apoderarmos da ilha e certamente que a fortificou. Ele sabe que o único porto com tamanho suficiente para a quantidade de navios de que vamos precisar é aqui. O gene­ral apontou para o mapa. Um dos meus espiões disse-me que foi colocada uma grande quantidade de rochas nas falésias por cima do porto. Em caso de ataque, serão lançadas lá do alto, provocando grandes danos nos navios e nos homens. — Agamémnon ia perguntar por que razão não fora informado daquilo, mas Idomeneu continuou: — Eis a minha sugestão. Diomedes deve comandar o assalto principal ao porto, mas Aquiles deve comandar a força mais pequena que nadará para terra a coberto da escuridão, nesta enseada. Daqui, subirá à falé­sia pela retaguarda. Se o assalto for executado correctamente e con­duzido com ardor suficiente, evitará o lançamento das rochas e permi­tirá que a força principal chegue a terra sem ser molestada. — Os seus olhos negros sorriram para Aquiles. Este perigoso ataque trará uma grande honra ao seu vencedor. Além disso, os dois comandantes agirão em conjunto tal como Agamémnon e eu agimos em conjunto, para vantagem mútua e bem de todos.

Odisseu e Nestor elogiaram de imediato os méritos do plano. Quando Diomedes declarou que não punha objecções ao facto de partilhar o seu comando, Agamémnon aprovou o esquema na gene­ralidade desde que os pormenores tivessem o seu acordo. Mas ape­sar de o conflito entre Agamémnon e Aquiles ter sido contido, não tinha ficado resolvido e Odisseu saiu do conselho convencido de que, prometessem os oráculos o que prometessem, a hostilidade entre o Grande Rei e o perigoso jovem que trouxera de Giros tornar-se-ia, um dia, desastrosa para toda a campanha.

Nos anos posteriores, sempre que Odisseu falava de Aquiles, dizia que o jovem tinha uma aura de mistério que desafiavam a com­preensão, porque se o seu orgulho era impossível, a sua eficiência como guerreiro era igual à sua ternura que Odisseu não vira em mais nenhum homem. Em alguns aspectos, sugeriu ele uma vez, Aquiles tinha mais em comum com Helena do que com qualquer outra pes­soa que ele conhecesse. Tinham crescido ambos amando coisas e lugares selvagens Aquiles na escola de Quíron e Helena nas grutas agrestes de Artemísia — e ambos tinham uma espécie de caracterís­tica selvagem, palavras que eu interpreto como uma inocência quase amoral, capaz de coisas cruéis. Também é verdade que ambos tinham sido feridos pelo mundo dos homens num momento crucial do seu desenvolvimento e os seus destinos foram moldados por esses mesmos ferimentos. Acima de tudo, no entanto, pareciam ambos conscientes de que, apesar de os seus corpos serem mortais, os seus espíritos não o eram e tudo neles parecia tocado por um fogo imor­tal.

- Mãem - disse Aquiles no momento de se separar de Tétis - eu nasci para morrer novo, mas Zeus, no Olimpo, honrar-me-á por isso. — E foi assim que ele foi para a guerra, convencido de que nunca mais regressaria, ansioso pelo seu destino, decidido a que nada se inter­pusesse entre ele e a sua honra. Longe das forças que tinham amea­çado destroçá-lo — o conflito amargo entre a sua mãe e o seu pai, entre a velha religião e a nova, entre as pretensões da sua vida pací­fica em Ciros e a sua necessidade de glória Aquiles forjara-se a si próprio, transformando-se numa arma de guerra, e todo o seu ser ardia de desejo de se bater.

Era este, portanto, o jovem guerreiro encarregado de comandar o assalto-surpresa a Ténedo, e a sua determinação em provar que era algo mais do que um homem entre homens, gerou um tal ímpeto que o seu pequeno grupo de Mirmídones esmagou a retaguarda das defe­sas troianas com uma ferocidade aterradora. A falésia foi conquis­tada com o mínimo de perdas, foi enviado um sinal a Diomedes, dizendo-lhe que podia mandar entrar os seus navios e o pequeno comando adiantou-se de tal modo à força principal que foi o próprio Aquiles que espetou a sua lança no peito do Rei Tenes, o comandante da guarnição da ilha, e seguidamente matou o seu pai com um golpe selvagem na cabeça.

A resistência entrou em colapso. Cheio de sangue que não lhe pertencia e com os cabelos claros brilhando à luz da madrugada, Aquiles esperou no meio dos seus homens que Diomedes se juntasse a ele na cidadela. Mesmo que a sua morte estivesse para breve, o jovem guerreiro sabia agora que o seu nome, pelo menos, nunca morreria.

Assim que a testa-de-ponte de Ténedo foi estabelecida, Aga­mémnon decidiu enviar embaixadores a Tróia para oferecer condi­ções para a retirada das suas forças. Menelau, Odisseu e Palamedes foram os escolhidos para fazer as exigências que era evidente para todos mesmo antes de partirem Príamo acharia inaceitáveis. O verdadeiro propósito da missão era descobrir quão unidos os Troianos estavam por trás do seu aparente espectáculo de desafio e, com essa intenção em mente, o arauto de Agamémnon, Taltibius, conseguira que os enviados ficassem hospedados em casa de Ante­nor enquanto estivessem na cidade.

A princípio, os três enviados acharam o conselheiro do Rei des­confiado e reservado e pouco à-vontade com o conhecimento de que era responsável pela sua segurança numa cidade inimiga. Depois de algumas taças de vinho, no entanto, e instigado por Palamedes, Menelau e Antenor partilharam o que sentiam por Páris, no fim de contas o homem que ambos achavam responsável pela destruição da felicidade do Rei de Esparta. Entretanto, Odisseu exercia o seu encanto sobre a mulher de Antenor, Teano, que precisa de pouco encorajamento para expressar o seu ódio pelo homem que lhe matara o filho e que agora ameaçava a ruína de Tróia.

Pela primeira vez, os homens de Argos começavam a ter uma ideia de como as coisas se tinham desenvolvido na cidade desde que Páris saíra de Esparta com a sua refém. Os três homens souberam que Eneias apoiara Páris durante a fuga de Esparta apenas porque tinham jurado ajuda mútua, não porque aprovasse o comportamento traiçoeiro de Páris. Ele e o seu pai, Anquises, tinham tornado claro que o Grande Rei não poderia contar com a ajuda da Dardânia quando as hostes de Argos lhe fossem bater aos portões. Segundo Antenor, Príamo tentara protelar a decisão do seu primo, dizendo que só daria uma opinião sobre o assunto quando o seu filho regressasse. No entanto, a mente do Rei já estava virada para a guerra. O monarca sabia que, mais tarde ou mais cedo, teria de se haver com ela e estava pronto para a receber. Antenor até falara de uma certa satisfação nas feições habitualmente solenes de Príamo quando o Rei medira o alcance do insulto que o seu filho infligira ao orgulho de Argos.

Mas Príamo fora forçado a esperar vários meses antes que o Afro­dite regressasse a Tróia, porque Páris e Helena tinham ido para leste, para Chipre, na esperança de iludir a perseguição. Menelau estreme­ceu ao saber que a sua mulher e o seu amante tinham estado escon­didos na ilha durante a sua estadia e que tinham navegado para sul, para o Egipto, pouco depois da sua partida. O tempo estava bom, na ocasião, e o mar calmo e assim, depois de fazer as suas devoções no local de nascimento de Afrodite, Páris transformara a sua fuga numa prolongada viagem de amor. O príncipe calculara que uma demora no seu regresso daria tempo a que o seu pai e os seus irmãos aceitassem o que acontecera e que se resignassem. Talvez, até, estimulasse o apetite dos Troianos pela beleza fabulosa do seu amor raptado.

Quanto à última questão, os seus cálculos bateram certo porque, mal o Afrodite foi visto a aproximar-se da cidade, começou a reunir--se uma grande multidão ao longo da estrada que ia do porto à Porta ceias, (Uma das partes da cidade, onde estava acampado o destacamento grego.) enquanto outro tanto se alinhava ao longo das ruas. Para aumentar a excitação e o mistério, Páris arranjou maneira de Helena e Etra serem transportadas em liteiras com as cortinas corridas, para que pudessem passar do navio para o palácio sem serem expostas aos olhares embasbacados da multidão. As damas teriam ouvido alguns piropos obscenos vindos da retaguarda, mas também devem ter sen­tido como a rica procissão de servos, escravos, animais e troféus foi recebida pela maior parte com um temor alegre; intensificado por expectativas futuras. Por trás das cortinas transparentes seguia a Helena de Esparta que passava a ser, para glória eterna da cidade, Helena de Tróia. Era como se uma deusa tivesse aparecido no meio . deles, uma deusa cujo mistério não podia ser profanado. E Páris, o príncipe do povo — o vaqueiro das pastagens do Monte Ida — podia ser visto a cavalgar orgulhosamente ao lado da sua liteira. Quem seria capaz de argumentar fosse o que fosse quando um men­digo gritou que a era das maravilhas regressara ao mundo?

Antenor contou como o rosto de Helena ainda estava velado quando Páris, finalmente, apresentou a sua dama na assembleia de familiares de Príamo e de conselheiros no grande salão do palácio.

— Foi como ver um escultor a apresentar a sua obra-prima — comentou ele secamente, consciente da dor no rosto de Menelau, cuja imaginação sensível o fazia sentir-se, com cada novo facto, cada vez mais cornudo. — Esperámos tanto para a ver, que o salão estava todo de boca aberta. E, sim, tenho de admitir que Helena é uma mulher de uma beleza espantosa se bem que, na minha opinião, nenhuma mulher merece que se ponha um exército em risco.

Ou uma cidade disse Palamedes.

Exactamente.

— No entanto, nós somos homens razoáveis. A nossa inimizade vai para Páris, não para Tróia. Seria uma grande tragédia se morressem milhares apenas por causa da loucura de um homem. Não concordas?

Consciente de que estava a responder a outras perguntas, que não a que lhe tinha sido feita, Antenor disse:

Acreditai-me, se a minha mulher e eu pudéssemos evitar a guerra entregando-vos Páris, ele regressaria convosco esta mesma noite, acorrentado. Mas o Grande Rei ficou tão embasbacado com a beleza de Helena que decidiu perdoar ao filho. E o partido da guerra, no seu conselho, é mais forte do que os que preferem uma solução pacífica. Por isso, não espereis que Príamo aceite qualquer pedido para a devolução de Helena.

Quando os enviados de Argos se apresentaram no dia seguinte a Príamo, encontraram uma atmosfera ainda mais abertamente hostil do que esperavam. O próprio Páris estava ausente do conselho e Ante­nor fez o que pôde para que os embaixadores de Agamémnon fos­sem ouvidos como deve ser, mas não conseguiu evitar as piadas ultrajantes com que Deífobo e Antifo receberam o seu catálogo de exigências. Estas incluíam o imediato regresso de Helena, a entrega de Páris para que ele respondesse por assassínio e rapto, a compen­sação de Menelau pela injúria que recebera, a compensação de Agamémnon, de Idomeneu e de todos os príncipes sob o seu comando pelas despesas maciças a que se tinham visto obrigados devido às acções de Páris, o estabelecimento de colónias bem defendidas de Argos em localizações estratégicas no continente Asiático e o acesso livre e sem restrições ao Helesponto, ao Mar Negro e a todas as rotas comerciais mais importantes com o leste e o norte.

Só as exigências monetárias teriam sido suficientes para arruinar Príamo várias vezes, mas o Rei de Tróia escutou Odisseu de rosto fechado antes de silenciar os seus barulhentos filhos com uma mão e de dar a sua resposta.

— Quanto ao primeiro ponto, não temos culpa se o nosso real primo de Esparta não conseguiu satisfazer a sua mulher. Ao contrá­rio da minha irmã Hesíone, que está no cativeiro, em Salamina, há muitos anos, a dama Helena está em Tróia de livre vontade. Se fosse seu desejo partir, consideraria um acto contra a minha dignidade conservá-la aqui. Que os príncipes de Argos aprendam uma simples lição de cortesia a este respeito. — Consciente do fluxo sanguíneo no rosto marcado por uma cicatriz de Menelau, o soberano prendeu a respiração. Quanto às outras exigências, há muito tempo que sabemos que o Grande Rei de Micenas cobiça a nossa riqueza e o nosso poder. E por que não, quando os seus domínios são um mero case­bre comparado com os nossos? A nossa mensagem para ele também é simples. Em Tróia, esperam-no a ruína e a humilhação. Ele que livre as nossas águas da infestação dos seus navios e que leve os seus homens para casa, antes que as suas mulheres encontrem maridos mais a seu gosto.

Recordando-se da última vez em que estivera na presença de Príamo, e do modo amigável como se tinham separado, Menelau teve dificuldade em conter a fúria.

— Estou a ver que o teu filho não tem coragem para me olhar nos olhos — disse ele. — Se todos os teus seguidores são assim tão bravos, Rei Príamo, podes ter a certeza de que todas as suas mulhe­res serão violadas, a tua cidade será queimada e pilhada e a tua linha­gem extinguida. Eu recuperarei a minha mulher. Mas tu — tu amal­diçoarás o dia em que Páris te saiu dos tomates.

Odisseu levou uma mão ao braço de Menelau, refreando-o, e virou-se para Príamo com um olhar frio e desdenhoso.

Entregaremos a tua mensagem ao nosso Rei — disse ele. — Prepara-te para ter a sua resposta muito brevemente.

Os embaixadores de Argos retiraram-se rapidamente do salão e regressaram a casa de Antenor. Só muito depois de terem saído da cidade é que souberam que, se Deífobo e Antifo tivessem levado a sua avante, teriam sido os três assassinados naquela mesma noite. Só os protestos veementes de Antenor, reforçados pelo sentido de honra de Heitor, os impediram de cometer o crime.

O primeiro assalto a Tróia transformou-se num choque brutal e inconclusivo que deixou ambos os lados danificados e pensativos.

As coisas começaram bem para Argos quando um assalto noc­turno com archotes provocou estragos na frota de Príamo, enfra­quecendo muito a sua capacidade de conter a invasão. Mas o mesmo assalto avisara os Troianos para a iminência de um ataque e quando os navios de Agamémnon se aproximaram da costa, tinham à espera um exército bem posicionado para os repelir.

Para piorar as coisas, as tropas de Argos sentiram-se perturbadas com os rumores de uma profecia que dizia que o primeiro homem a pôr pé em terra morreria. Até Aquiles hesitou à proa do seu navio, relutante em desperdiçar a sua vida sem praticamente qualquer gló­ria. Entretanto, os troianos atiravam rochas e pedras sobre os navios amontoados, ao mesmo tempo que os seus gritos eram levados pelo vento áspero através da planície.

Finalmente, ofendido com os insultos vindos do inimigo na sua frente e com os vindos da retaguarda da parte de Agamémnon, um velho guerreiro chamado Iolaus, que fora cocheiro de Héracles, lan­çou um grito poderoso e lançou-se à água. O homem foi imediatamente rodeado e morto antes de ter conseguido dar um golpe sequer, mas o seu gesto temerário fora para ganhar a glória eterna. Foi-lhe concedido o título de Protesilau — «o primeiro na luta» — e foi sepul­tado com grandes honras naquela mesma noite, no Helesponto.

Como a primeira vida já se perdera, os outros guerreiros come­çaram a saltar dos navios. Aquiles e Pátroclo estavam entre os líderes, com Fénix e os Mirmídones logo atrás. Odisseu, porém, ficou um pouco para trás, observando o desenrolar da batalha. O príncipe de Ítaca fora contra um ataque imediato a terra, preferindo que se for­çassem mais os recursos de Príamo, mas Agamémnon ficara tão furioso com a resposta insolente do Rei às suas reivindicações, que estava disposto a fazê-lo engolir as próprias palavras. O preço da sua impa-ciência tornava-se evidente à medida que mais homens caíam perante as flechas que os atingiam enquanto caminhavam pela água aos tropeções a caminho da praia.

Por força do número, os de Argos forçaram o desembarque, mas viram-se enredados numa luta sangrenta ao longo da praia. A maior resistência surgiu de um sector da frente onde um herói troiano cha­mado Cicno abria caminho com o seu machado através dos invaso­res como se fosse invulnerável. Quando Aquiles viu o que estava a acontecer, gritou a Pátroclo para que o seguisse e caminhou pelo solo irregular até se encontrar perante o gigante troiano. Cicno riu-se-lhe na cara, fazendo-lhe sinal para que se aproximasse e se atrevesse. Um momento mais tarde, ficou espantado com a velocidade e ferocidade do ataque de Aquiles. Mesmo assim, a luta foi longa e desesperada, e podia ter terminado de outro modo se Cicno não tivesse tropeçado numa pedra quando procurava evitar um golpe de espada. O gigante caiu de costas, levando Aquiles consigo. Os dois homens perderam as respectivas armas na queda, mas Cicno ficou sem fôlego devido ao peso do adversário e respectiva armadura. Num frenesim de violên­cia, Aquiles agarrou-se à garganta do troiano e estrangulou o homem com as próprias correias do elmo.

Quando se levantou, com a respiração entrecortada e exultando com a morte, sentiu Pátroclo a puxar-lhe pelo braço. Ao som de uma trombeta vindo do navio de Agamémnon, os guerreiros de Argos retiravam.

Muitas recriminações se seguiram ao falhanço daquele primeiro ataque e as pesadas perdas persuadiram Agamémnon de que Odis­seu tivera razão ao insistir que Tróia só cairia após uma longa cam­panha de desgaste. Assim, a guerra entrou numa nova fase de vio­lência esporádica que se arrastou por um ano e depois por outro, até se tornar evidente que, se Tróia algum dia caísse, seria apenas após os longos anos da serpente.

Travaram-se batalhas no mar, muitos navios afundaram-se e mui-tos homens morreram queimados e afogados antes de Argos estabe­lecer a sua superioridade naval. A partir da sua fortaleza de Ténedo, podiam assaltar toda a costa Asiática. A ilha de Lesbos foi conquis­tada e outras cidades do interior, mais pequenas do que Tróia, tam­bém caíram. Os aliados mais a sul de Príamo, na Lídia, sofreram ata­ques. Colofon, Clazomenae, 1smirna e Antandrus foram pilhadas e queimadas, mas outras cidades importantes, como Sestos e Abido, em ambos os lados do Helesponto, aguentaram o cerco. Assim, os anos passaram-se, estação sangrenta após estação sangrenta e por toda a Ásia, do Mar Negro a Chipre, em lugares muito afastados do sítio onde os de Argos desembarcaram pela primeira vez, o nome de Aquiles inspirava medo no coração dos homens e impedia as crian­ças de dormir.

Também houve longos períodos de inactividade enquanto ambos os lados lambiam as feridas, ou quando a febre, a disenteria e a peste roubavam aos homens a vontade de andar, quanto mais de lutar. Por vezes, as tropas não aguentavam o calor tórrido e os escuros meses de Inverno eram também miseráveis e amargos. Um vento louco soprava pela planície troiana durante a maior parte do ano, mas no Inverno esse vento transportava gelo. Deixava as nascentes geladas, as tendas com os tectos cheios de neve e os guerreiros, habituados às misérias da guerra, gemiam por causa das frieiras e do frio. E mesmo quando o tempo se mostrava clemente, não se passava um dia sem que os homens perguntassem por que se tinham deixado arrastar para aquela loucura e se regressariam algum dia ao calor dos seus lares. Mas os que desertavam enfrentavam um longo caminho de regresso a casa através de um território hostil e a maioria dos naturais de Argos decidia de má vontade que, tendo sofrido tanto, não fazia sen­tido regressar a casa sem outra coisa que não os ferimentos e algumas histórias. Assim, a guerra continuou.

No nono ano, com as linhas marítimas de abastecimento cortadas e muitos dos seus aliados desmoralizados devido aos constantes ataques, Tróia começou a sentir que a guerra, finalmente, começava a pender para o lado de Agamémnon. No fim do Verão, o Rei de Micenas decidiu atacar Mísia.

Os Mísios são um povo trácio que fizera a travessia um século antes, vindo da Europa. O seu rei, Teléfo, era um filho bastardo de Héracles, que subira ao trono mísio com a ajuda de Príamo depois de se ter casado com uma das muitas filhas do Grande Rei. As suas ter­ras férteis é que abasteciam Tróia com cereais, azeitonas, figos e vinho, artigos que eram transportados por terra, fora do alcance dos corsá­rios. Agamémnon fora convencido por Odisseu de que, se Mísia caísse, talvez Tróia se rendesse devido à fome. Assim, deixando atrás de si uma força suficiente para assegurar a defesa de Ténedo, o Rei dos Homens levou a sua frota até à ilha de Lesbos e usou o porto de MitiIene como base para o seu assalto à parte de Mísia em redor da boca do rio Caicus chamada de Teutrânia. Mas, mais uma vez, calculou mal a força dos resistentes e a batalha teve o mesmo resultado do seu primeiro falhanço contra Tróia, muitos anos antes. O desembarque foi bastante mais rápido, mas os mísios tinham a vantagem do ter­reno e quanto Agamémnon viu metade da sua guarda chacinada, já lutava para evitar a debandada das suas tropas.

Aquiles e os seus Mirmídones foram de novo em seu socorro com um súbito movimento de flanco que desceu sobre Teléfo por trás das suas próprias linhas da frente, forçando-o a recuar ao longo da mar­gem do rio. Correndo em perseguição do Rei em fuga, Aquiles lançou a sua lança e atingiu Teléfo na anca, provocando a sua queda no meio de uma vinha. A batalha podia ter sido ganha naquele momento, mas os guarda-costas do Rei conseguiram reter Aquiles enquanto um deles retirava a lança do ferimento e transportava o ferido Teléfo para longe. Entretanto, os guerreiros mísios em terra não sabiam que o seu Rei quase fora morto e continuaram a lutar com tal determinação que, mais uma vez, Agamémnon foi forçado a retirar.

Relutante em regressar a Ténedo com notícias tão desencoraja­doras, o Rei ordenou que a frota seguisse para sul, em busca de locais mais fracos. Tendo queimado uma pequena cidade a norte de Esmirna, os líderes cansados passaram alguns dias a dar banho aos seus ferimentos e a descontrair os membros rígidos nas águas de algumas nascentes quentes que encontraram. Mais tarde, essas nascentes pas­saram a ser conhecidas como os Banhos de Agamémnon.

O tempo estava bom e podiam ter sido uns bons dias de descanso, mas a disposição dos comandantes frustrados ficava em breve tão acre e sulfurosa como a água que jorrava à sua volta. Aquiles conti­nuava furioso por o seu valor no campo de batalha ter sido novamente desperdiçado apenas porque a coragem do Leão de Micenas falhara. Ele e Pátroclo mantiveram-se à parte dos outros, encontrando conforto na companhia um do outro. Então, na segunda tarde, esta­lou uma querela entre Odisseu e Palamedes sobre se deveriam continuar com a campanha mísia ou concentrar as forças perto de Tróia. A hesitação de Agamémnon só piorou as coisas. Entretanto, Diome­des chorava a morte do seu amigo Tersandro, que caíra enquanto ele liderava a guarda avançada sobre os mísios e Menelau passava a maior parte do tempo a dormir ou a matutar sozinho.

Cansado da companhia e sentindo a necessidade de carne fresca, Agamémnon decidiu ir à caça. Só Palamedes teve a energia para o acompanhar. Os dois homens recrutaram um caçador local para conduzir a matilha de mastins que tinham pilhado de uma herdade queimada e passaram a maior parte do dia, inutilmente, em busca de caça. A meio da tarde, Agamémnon estava pronto a matar o taci-turno caçador por pura frustração, mas então, subitamente, os mas­tins animaram-se. Ladrando e uivando, os animais desataram à desfi­lada com Agamémnon seguindo-os, enquanto um veado serpenteava e corria a direito por entre o mato. Inconsciente do meio que o rodeava e determinado a matar o animal, o Rei mergulhou num bos­que silencioso, seguindo os movimentos oscilantes dos quartos tra­seiros do veado, até que o ofegante animal foi forçado a defender-se. O Rei ergueu a sua lança e lançou-a. O animal oscilou nas pernas esguias e caiu, sangrando.

Praguejando por não estar ninguém por perto para o ajudar, Aga­mémnon pôs a carcaça do animal aos °ombros e transportou-a ao longo do bosque. Finalmente, quando saiu para.a luz, a suar e cheio de sangue, viu Palamedes e o caçador a olharem para ele, muito páli­dos. Só então o Rei viu as oferendas penduradas nos ramos das árvo­res à sua volta. Agamémnon matara o veado num bosque consa­grado a Artemísia.

No outro dia, zarparam para Ténedo,.mas ainda não tinham ido muito longe quando um vento de nordeste caiu sobre a frota, vindo das planícies da Ásia. As vagas entrechocavam-se e erguiam-se, os navios vibravam e mergulhavam em terríveis desfiladeiros. Com aquele tempo traiçoeiro, o homem do leme tinha relutância em aproar a uma costa hostil, por isso tentaram enfrentar a tempestade com as velas risadas. Ao fim da tarde, a chuva começou.a cair obliquamente, tão densa que os navios mal conseguiam ver-se uns aos outros. O céu ficou verde-escuro e depois de um negro maligno, tormentoso. A tem­pestade rugiu durante toda a noite e de madrugada toda a frota de Agamémnon se dispersara como madeira à deriva pelo turbulento mar oriental.

Mais de dez anos depois, soube por Odisseu que o meu pai, Terpis, estava num dos navios que se perderam naquela tempestade. Com ele devem ter morrido muitos outros, de uma maneira miserável. Quanto aos restantes, um a um, no decurso dos dias que se seguiram, os navios entraram no porto de Aulis titubeando, abalados e avariados, de regresso ao ponto de partida, nove anos depois.

 

                 O Altar de Aulís

Uma mulher que detesta e despreza o pai e o marido é porque quer provar que é melhor do que qualquer homem. Era este, certa-mente, o caso de Clitemnestra e apesar de o seu corpo ter sido utili­zado para fornecer à Casa de Atreu um herdeiro e duas filhas, a sua vontade e a sua mente poderosa viraram-se para a melhor adminis­tração dos negócios do poderoso reino de Agamémnon.

As maciças muralhas de Micenas erguem-se sobre um rochedo escarpado, defendendo os desfiladeiros entre as ricas planícies de Argos e Corinto. Muitos salteadores as pilharam durante séculos antes de a casa de Atreu a tomar sob o seu controlo e começar a construir um império à sua volta. À medida que o seu poder aumentava, os tri­butos e os saques entravam na cidade e Agamémnon não estava a gabar-se quando disse a Clitemnestra que era o Rei mais rico de Argos. Mas as suas aptidões estavam viradas para a guerra e para o abuso do poder, não para o trabalho rotineiro da administração e a sua Rainha ainda não estava há muito tempo em Micenas e já o seu olhar arguto via quanto da sua riqueza se desperdiçava devido a uma má administração e a muita corrupção. Clitemnestra sugeriu que o seu marido colocasse espiões junto dos seus principais ministros e cobradores de impostos. Pouco depois, esses oficiais perderam os seus postos e as suas vidas.

Confrontado com o problema de encontrar sucessores de con­fiança, Agamémnon virou-se para a sua mulher e ficou impressio­nado com o imediato aumento dos seus rendimentos. Assim, come­çou também a confiar na sua opinião acerca de outros assuntos da sua política. De acordo com as suas recomendações, foram feitas mais nomeações. Em breve, de facto e não apenas por palavras, todo o complexo sistema da administração pública estava sob controlo.

Entretanto, nos anos que antecederam os da guerra, ouviu-se dizer em Micenas que Helena e Menelau estavam a renovar a cidade de Esparta. A princípio, Clitemnestra sentira-se pouco à-vontade no som-brio palácio que herdara. Os seus quartos cheios de correntes de ar tinham testemunhado assassínios, traições, incesto, a chacina involun­tária de crianças por parte dos pais e até — dizia-se — banquetes cani­bais. Quando se queixou a Agamémnon sobre aquelas condições, o Rei respondeu que o dinheiro não abundava e que tinha coisas melho­res para fazer com ele do que gastá-lo em luxos desnecessários. Furiosa com aquela mesquinhez, ela forçou-o envergonhando-o, sugerindo que o seu irmão mais novo estava a ultrapassá-lo e que toda a gente sabia. Agamémnon autorizou-a imediatamente a fazer os melho­ramentos que entendesse.

Foram contratados arquitectos, pedreiros, escultores e pintores. Sob a orientação da Rainha, foram feitos e aprovados desenhos. Gran­des quantidades de pedra de Esparta— o famoso pórfiro com laivos da sua terra — foram trazidas para Micenas juntamente com muitas toneladas de mármore verde e rosa das pedreiras do Peloponeso. No espaço de dois anos, a caverna em que Agamémnon nascera estava transformada numa cidade que passou a ser um ponto de referência para todos os reinos de Argos e que impressionava os embaixadores que vinham de mais longe ainda.

Agamémnon gostou do que a sua Rainha fez. Também gostou de ficar com os louros e dúrante algum 'tempo, à medida que o seu poder militar crescia e a cobrança dos seus tributos e dos seus acor­dos comerciais se estendiam por toda a Argos e ilhas, o Rei acreditou que a maldição que pairava sobre a casa de Atreu tinha, finalmente, sido levantada. Os deuses sorriam para a obra feita e havia mais para fazer. Mas o poder é um apetite que aumenta à medida que é alimen­tado e o Leão de Micenas tinha de enfrentar os custos sempre crescentes — e não só os provocados pela reconstrução majestosa da cidade por parte da sua mulher. Os ataques a cidades nas costas orien­tais forneceram ouro, prata, escravos, gado e outras coisas de que o Rei necessitava para alimentar a sua corte, recompensar os seus colaboradores e manter o seu exército equipado com cavalos, carros e armas. Mas quando os preços começaram a subir e as despesas do estado ameaçaram ultrapassar os rendimentos do marido, Clitemnes­tra percebeu que se poderia ganhar muito dinheiro com uma guerra no estrangeiro. A Rainha já lançara olhares invejosos para a riqueza da Ásia e sabia, por intermédio dos seus espiões e de conversas com delegações estrangeiras que visitavam Micenas, que o guardião do tesouro do oriente era Tróia. Assim, foi ela, antes de qualquer conse­lheiro ou camarada, que persuadiu Agamémnon a pensar na possibi­lidade de conquistar a cidade de Príamò.

O casamento de Menelau com Helena também foi planeado por Clitemnestra. A Rainha advertiu Agamémnon de que, se outro qualquer para além do irmão Grande Rei conseguisse a mão de Helena, Esparta poderia tornar-se numa ameaça ao poder de Agamémnon, numa época em que a sua atenção tinha de estar firmemente virada para leste. Com a astuciosa ajuda de Odisseu, o seu plano resultou. Assim, com os irmãos de Micenas casados com as irmãs de Esparta e com o provável casamento do seu filho Orestes com Hermíone, a filha de Helena, o Grande Rei e a sua Rainha podiam olhar com con­fiança para o futuro, para uma era durante a qual a Casa de Atreu governaria o mundo sem qualquer discussão.

Mas Helena estragara tudo ao fugir com Páris.

A princípio, Clitemnestra ficou furiosa com a irmã por lhe des­truir as ambições e só passado algum tempo é que admitiu que uma parte da sua fúria era devida, mais uma vez, à inveja.

Como será, pensou Clitemnestra, sentir umapaixão tão grande, ao ponto de arriscar a própria vida? Só um deus tinha a força suficiente para vin­gar a devastação que Helena provocara. Tal como a sua mãe Leda, Helena fora levada nas asas do amor e da paixão, enquanto Clitem­nestra ficava sozinha com os filhos em Micenas, restringida aos can­sativos deveres de mãe e Rainha, e ansiosa por notícias da guerra que a luxúria da sua irmã precipitara.

Também não lhe passara pela cabeça que a guerra se arrastaria por tanto tempo, porque os anos da serpente passavam-se lentamente na Casa do Leão, em Micenas. Os rumores iam e vinham. Às boas notícias sucediam-se as más. Por vezes, a riqueza fluía para os cofres da cidade, geralmente depois de uma cidade ter sido saqueada ao longo da costa da Ásia, mas depois, como as marés, saía de novo para ir ao encontro de mais uma exigência daquela guerra interminável. Assim, enquanto o seu marido abria caminho com dificuldade através da Trácia, ia à Lícia e regressava, e Tróia não dava sinais de que­rer cair, Clitemnestra permanecia em Micenas com todos os instru­mentos do poder nas mãos, esperando e observando.

Uma tarde, Clitemnestra tentava chegar a acordo com um difícil comerciante de sésamo da Mesopotâmia, o último de muitos daquele dia. O homem era muito falador e a Rainha deixara vaguear a mente porque tinham chegado rumores sobre o aparecimento inesperado da frota em Aulis. Era evidente que a culpa devia ser do tempo porque tinham, também ali, sofrido os efeitos de uma tempestade vinda de nordeste como não se via há muitos anos e os ventos tinham con­tinuado a soprar furiosamente durante as últimas três semanas. Mas também tinha recebido notícias alarmantes, se bem que não confirmadas, de que a tempestade tinha dispersado os navios quando regressavam de uma derrota maciça em Mísia. Tersandro, comandante dos Beócios, estava, certamente, entre os mortos e dizia-se que toda a região em redor de Aulis estava de luto. Também se soube que um outro grande herói, Filoctetes, sofria de um ferimento tão malchei­roso que ninguém se podia aproximar dele e que fora abandonado na ilha de Lemnos por decisão dos reis.

Alguns dias antes, o Rei Nauplius de Eubeia enviara a Clitemnestra uma mensagem tranquilizadora, dizendo que os principais líderes de Argos, incluindo o marido de Clitemnestra e o seu filho Palamedes, estavam vivos e sãos, se bem que a situação permanecesse confusa. Mas o próprio Agamémnon não havia meio de dar notícias, apesar dos pedidos constantes de Clitemnestra.

Aquilo era preocupante. E Clitemnestra começou a sentir-se irri­tada com os modos obsequiosos do comerciante de sésamo. No exte­rior, no pátio por baixo da varanda, a Rainha podia ouvir os seus filhos a trabalhar numa peça escrita por Orestes. O jovem também era o director do drama e tinha, ainda por cima, exigido o papel de Aquiles, que ele achava mais interessante do que o de Grande Rei, seu pai, que era desempenhado pelo filho gordo do grande sacerdote do templo de Zeus. Como de costume, as raparigas estavam condenadas a representar o papel de troianos efeminados - Ifigénia, de doze anos, representava um inconvincente Rei Príamo e Electra um Páris embirrento.

A sua mãe pensava que se aquela guerra se arrastasse por muito mais tempo, Orestes seria chamado a pegar em armas, mas no que dizia respeito aos rapazes da corte, naquela tarde a guerra de Tróia ia muito bem.

Entretanto, Orestes e Electra começaram a discutir e se ninguém fizesse nada, em breve haveria lágrimas. Clitemnestra já se ia levantar e despedir o ridículo mercador quando entrou na câmara um mensa­geiro e a saudou. A Rainha reconheceu o homem como pertencente ao grupo de oficiais de Taltíbio, por isso a mensagem devia ser do Grande Rei. Mas por que não enviara Agamémnon o próprio Taltí­bio, que fora nomeado por sua recomendação e do qual teria conse­guido respostas às muitas perguntas que tinha na cabeça — a não ser, claro, que fosse por essa mesma razão?

Instantaneamente, os seus sentidos ficaram todos alerta. O mer­cador foi sumariamente despedido. Clitemnestra estendeu o braço para receber o cilindro de bronze da mão do mensageiro e tirou do seu inte­rior uma folha de pergaminho selada com o leão do anel do seu marido. A mensagem não vinha escrita com a caligrafia desajeitada de Aga­mémnon devia ter sido escrita a seu mando — mas o tom era tipi­camente e peremptoriamente seu. As exigências que fazia espanta­ram-na.

Ifigénia ainda não tinha feito cinco anos quando o seu amado pai partira para Tróia. Quando pensava nele, mal conseguia imaginá-lo, recordando apenas um homem muito alto e muito cabeludo que por vezes lhe pegava ao colo, fazendo-a sentir-se segura. A jovem sabia apenas que ele estivera ali, perto, que depois se fora embora e que tudo o que ficara dele eram histórias.

Ifigénia sabia o que todos os outros sabiam, claro — que o seu pai era o Grande Rei de Argos, que grandes homens tremiam na sua presença, que era o líder do maior exército que o mundo alguma vez vira e que um dia, em breve, regressaria coberto de glória com os tesouros de Tróia para acrescentar à sua já grande riqueza. Mas Ifigé­nia tinha dificuldade em conceber uma figura tão terrível. Era como olhar para o Sol — ficava-se quase cego.

E talvez o seu irmão Orestes sentisse o mesmo, pensou ela, porque apesar de ser mais velho, a sua memória ser mais clara e passar a vida a gabar o pai, andava mais recentemente perdido de amores pela fogosa figura de Aquiles. Orestes insistia que Aquiles era o maior guerreiro que o mundo alguma vez vira. Aquiles era o melhor que havia a seguir aos deuses, o terror dos Troianos, tão belo quanto corajoso e viveria para sempre nos poemas dos homens. Dentro de um ano ou dois, quando Orestes tivesse idade suficiente para ir para a guerra, juntar-se-ia aos Mirmídones e lutaria ao lado de Aquiles e de Pátroclo, liderando o último assalto à Porta ceias e a sua coragem inspiraria de tal maneira o resto da hoste que a cidade, finalmente, cairia. Ifigénia, que amava perdidamente o irmão e tinha uma grande admiração por ele, tinha a certeza de que seria assim.

Infelizmente, nunca lhe seria permitido combater na guerra porque não passava de uma rapariga, mas enquanto escutava Orestes, sentia a sua alma encher-se de orgulho e glória e ansiava por qualquer coisa que lhe permitisse servir a causa. Porque também ela acreditava que estava destinada para coisas especiais. O mundo feminino da cos­tura, das conversas fúteis e dos bebés não era para ela. O seu coração e a sua imaginação eram demasiado selvagens para isso. E a sua mãe não provara já que uma mulher podia servir o estado tão cabalmente como qualquer homem? Ifigénia tencionava descobrir um meio de fazer o mesmo, mas de modo a que o povo a amasse em vez de a temer. Seria como a sua deusa favorita, Artemísia, que era a irmã virgem de Apolo, tal como ela era irmã de Orestes. Manter-se-ia pura, orgulhosa, solteira e livre.

A jovem pensava naquilo enquanto esperava no pátio batido pelo Sol, usando a barba estúpida que era suposto fazê-la parecer-se com o Rei Príamo, enquanto ouvia Electra dizer a Orestes que estava farta daquela peça estúpida e que queria ir para dentro de casa. A queixa transformara-se numa discussão, Electra desatara a chorar, não havia ninguém para desempenhar o seu papel e a peça fora um desastre, o que fez com que Orestes ficasse maldisposto. Ifigénia pensava no que fazer quando, o que não era costume, a sua mãe a chamara aos seus aposentos, dizendo-lhe que fosse imediatamente. Agora, estava à espera na antecâmara, enquanto a sua mãe falava com os seus conselheiros.

Ifigénia começou a ficar com medo. A jovem tentou lembrar-se do que poderia ter feito que a tivesse metido em sarilho, e estava assustada porque não se lembrava de nada. Por isso, como estar preparada para enfrentar a fria tempestade da raiva da sua mãe?

Então, a grande porta abriu-se, os conselheiros saíram e disseram--lhe para entrar. Mas havia algo estranho na maneira como aqueles velhos olharam para ela, como se alguém tivesse estado a falar mal dela e eles tivessem acreditado.

Ifigénia entrou na sala espaçosa com as suas paredes pintadas com frescos e os seus pilares de mármore sarapintado. A jovem viu a mãe junto da varanda, de costas para a porta, olhando para um per­gaminho. Quando a Rainha se virou, havia uma sombra nos seus olhos, mas não houve a libertação de raiva que Ifigénia tanto temera. Passado um momento até surgiu naquelas faces coradas e magras um pequeno sorriso.

Fecha a porta disse Clitemnestra e senta-te.

Ifigénia fez o que Clitemnestra lhe mandou. A jovem sabia que, no que dizia respeito à sua mãe, era melhor não falar até que ela lhe desse autorização e, por isso, sentou-se em silêncio e ficou a olhar para os pés, evitando assim olhar de perto para os olhos pintados da mãe e para as jóias que ela usava.

Que idade é que tens, filha?

Vou fazer treze anos.

É verdade, já me lembro, fizeste a tua oferenda a Artemísia há pouco tempo, por isso já podemos pensar em ti como mulher. Com o teu pai na guerra e com os assuntos do estado nas mãos, mal tive tempo para te ver crescer. Levanta-te e dá uma volta. Deixa-me olhar para ti. — Novamente, se bem que mais consciente da situação, Ifi­génia fez o que lhe era pedido. — Sim disse a sua mãe — tiveste mais sorte do que Electra. Ela tem as feições do pai. Tu és mais do meu lado. Dentro de um ano ou dois serás uma beleza. — Clitem­nestra acenou com a cabeça e suspirou, como se aquilo fosse tam­bém um fardo. Em seguida, disse: Senta-te. Tenho uma coisa para te dizer. Acaba de chegar uma mensagem do teu pai. Ele está em Argos, no porto de Aulis. Ele quer que eu te leve lá.

Ifigénia abriu os olhos, espantada. A sua respiração tornou-se mais apressada e a jovem sentiu o coração aos saltos ao pensar naquele estranho importante que regressava, finalmente, à sua vida. Mas não sabia bem se havia de sentir excitação, receio ou medo.

Orestes e Electra também vão? — perguntou ela, sem saber se devia dizer outra coisa qualquer.

— Isto não lhes diz respeito. Só tu e eu é que vamos, e em breve. Por isso, tens de te preparar. Vais casar-te, minha querida.

Ifigénia estava tão habituada a obedecer sem discutir com aquela formidável presença que quase disse:

— Sim, mãe, vou preparar-me imediatamente antes de se aper­ceber da grandiosidade do que acabava de ser dito.

A jovem ficou em silêncio, aterrada, agarrando os lados da sua cadeira com toda a força e sentiu, por um momento, que ia desmaiar. Então, apercebeu-se de que devia estar presente na sala um deus qualquer porque a atmosfera da sala alterara-se e sentia um formigueiro esquisito na pele.

Ao mesmo tempo, tornou-se evidente para Clitemnestra que a ideia de um casamento nunca passara pela cabeça da sua filha.

Não dizes nada? — perguntou ela, e quando aquela criança invulgar não respondeu imediatamente, acrescentou secamente: — Por exemplo, não queres saber quem vai ser o teu marido?

Quero — murmurou Ifigénia quero saber.

Creio que vais gostar. É claro que os teus sentimentos não são para aqui chamados. O teu pai decidiu sem sequer me consultar, por isso os teus desejos são-lhe indiferentes.

Clitemnestra fechou os olhos e durante algum tempo saiu da sala, regressando aos dias da sua juventude, quando o seu pai Tíndaro decidira sobre a preciosidade que era a sua vida. Subitamente, para sua surpresa e apesar de toda a autoridade e poder com que fazia que homens poderosos tremessem na sua presença, sentiu, como há muito não sentia, a dor imensa da vida de uma mulher. Mais cedo do que imaginara, ela e aquela sua filha estranha e sonhadora que mal conhe­cia estavam unidas no mesmo destino porque ambas estavam, finalmente, à mercê de Agamémnon, naquilo e em quase tudo o mais. E não havia lugar seguro para onde fugir.

Clitemnestra abriu os olhos e olhou de novo para a filha. Apesar de ter defendido os interesses da criança, a Rainha tinha a certeza que os motivos de Agamémnon se deviam ter baseado mais na política do que no afecto e sentia-se furiosa por não ter sido consultada — tão furiosa que só se conteve por causa da filha. Tão furiosa que quase chorou, porque havia dor na sua fúria — dor por si própria, dor pela jovem, acima de tudo dor pelas injustiças da vida.

Talvez Ifigénia tivesse razão em se manter silenciosa. Para que gastar palavras inutilmente?

- Vais casar-te com Aquiles — disse ela finalmente. Se os deuses forem bons, honrarás o nome que te demos e dar-lhe-ás filhos fortes. E agora vai. Marpessa ajuda-te com as tuas coisas. Partimos para Aulis amanhã.

Tinham-se passado quase três semanas desde que a frota procu­rara refúgio da tempestade em Aulis. Agamémnon achava que seria necessário uma semana para pôr de novo os navios em condições de navegar em segurança, zarpando depois para Ténedo na esperança de chegarem à ilha antes de Príamo perceber que a sua guarnição estava sem protecção. Seria à justa, mas era possível.

No entanto, feitas as reparações, o vento de nordeste que os fizera aportar a Aulis recusava-se a mudar de direcção. Agamémnon levan­tava-se todas as manhãs com a intenção de zarpar, mas o vento con­tinuava a soprar ferozmente. As telhas dos telhados voavam, as árvo­res eram arrancadas pela raiz e as vinhas ficavam arruinadas. Até as gaivotas se abrigavam onde podiam. Entretanto, os navios superlo­tados chocavam uns com os outros, provocando novos estragos. As provisões nos porões começaram a apodrecer. A cidade cheirava mal devido ao excesso de homens, ensopados por causa da chuva, embria­gados e ociosos, pensando nas respectivas mulheres a poucos quilómetros de distância e como a sua vida em Ténedo fora miserável. Mas o vento continuava a soprar, um vento enlouquecedor que fazia bater as portas, as janelas e as persianas, fazendo as vagas abaterem-se con­tra a muralha do porto, impedindo-os obstinadamente de partir.

Inevitavelmente, alguém começou a murmurar que por trás daquilo tudo devia estar a vontade dos deuses.

Calcante consultou o oráculo e descobriu que a responsável pelo vento era a Divina Artemísia. Alguém, na hoste, a ofendera. O vento continuaria até que a deusa se considerasse apaziguada. Palamedes, que estava junto de Agamémnon naquele momento, murmurou:

— O veado — e olhou para o rosto pálido do Grande Rei. — O veado pertencia a Artemísia.

A história daquela caçada infeliz, perto das nascentes quentes, fora mantida secreta com receio de perturbar ainda mais o moral incerto do exército. Mas a verdade é filha do tempo, o tempo passara e agora Agamémnon sentia-se responsável perante a deusa e os seus homens. Se quisesse evitar um desastre, teria de fazer um sacrifício que agra­dasse a Artemísia.

Calcante consultou novamente o oráculo.

O sacerdote tremia quando saiu do seu transe. Era visível o suor na sua fronte. O sacerdote sabia que Agamémnon não confiava nele. Agora, teria de enfrentar também a sua cólera, depois de ter enfren­tado a de um deus...

Fala, homem ordenou-lhe Odisseu. Que viste? Com voz rouca, Calcante disse:

Como mãe virgem das criaturas selvagens, a Divina Artemísia viu um dos seus filhos ser impiedosamente morto no seu próprio recinto sagrado. A deusa só aceitará um sacrifício. A vida da mais bela filha do blasfemo deve ser-lhe oferecida como compensação.

Como todos os que o acompanhavam, Agamémnon ficou petri­ficado. O Rei amarfanhou a bainha da sua capa, levou-a à boca e come­çou a recuar. De olhos esbugalhados, desviou o olhar do vidente e olhou para Palamedes, como se procurasse um sinal de conluio entre os dois homens.

— Não — disse ele - é impossível. - Girando nos calcanha­res, o Grande Rei abandonou o local sempre com a capa na boca.

Mas os ritos do oráculo tinham sido celebrados em frente de demasiadas testemunhas e não havia possibilidade de negar o que ele tinha dito.

Naquela noite, Agamémnon fechou-se nos seus aposentos com o irmão e os fantasmas da casa de Atreu sobrevoaram por cima das suas cabeças — crianças chacinadas, crianças assassinadas, inocência perdida. Tinham acontecido coisas terríveis no tempo dos seus pais e por mais que Agamémnon e Menelau fizessem para apaziguar os fados, parecia que a maldição lançada sobre esses actos atravessava as gerações e nunca lhe poderiam escapar.

Agamémnon sabia qual das suas filhas a deusa escolhera. Ifigénia recebera, à nascença, algo da beleza de Helena, se bem que ligeiramente aguçada pela angulosidade do rosto de Clitemnestra. Agamém­non recordou a criança como a vira pela última vez, nove anos antes, quando ela devia ter três ou quatro anos e ainda era suficientemente pequena para se aninhar nos joelhos de Nestor ou cavalgar nos seus ombros como um saco de algodão. O Rei recordou-se dos seus finos pulsos e de como os seus olhos brilhavam de prazer. Ifigénia era a única da sua prole que o impedia, por vezes, de se dedicar às coisas que realmente lhe interessavam. Enquanto Menelau deitava algum vinho numa taça de ouro que tinham saqueado de um palácio qual-quer — Agamémnon sentia-se furioso por ver os seus sentimentos mais ternos cortados à machadada e servidos como um prato san­grento que seria obrigado a comer.

Mas Clitemnestra nunca permitiria uma tal atrocidade. Já lhe tirara uma criança do peito e ordenara a sua morte. A sua Rainha nunca permitiria que lhe matassem outra, nem que tivesse de empenhar toda a sua riqueza e todo o seu poder. Clitemnestra poderia não ser a mãe mais carinhosa do mundo, mas assim que ficasse a par do que lhe era exigido, pegaria nos filhos e fugiria para Ciros antes que aquela coisa terrível acontecesse.

Uma coisa daquelas não poderia, nunca, acontecer.

Porém, o vento continuava a soprar selvaticamente. Os barcos continuavam a apodrecer no porto, a guarnição de Ténedo conti­nuava à espera de ser substituída e se a frota não chegasse lá dentro de pouco tempo, a ilha cairia, a testa-de-ponte perder-se-ia e os lon­gos anos de sacrifício da serpente não teriam servido de nada.

Fosse como fosse, Agamémnon tinha pela frente um desastre de que talvez nunca recuperasse.

Naquela noite, o Grande Rei bebeu até ficar inconsciente e acor­dou antes da madrugada a suar, de um pesadelo. Porém, apesar de todas as suas preces ouviu-o imediatamente — o vento que continuava a soprar.

Mais tarde, durante a manhã, os comandantes do seu exército apareceram na sua sala. O Rei pressentiu que eles já tinham estado a discutir, mas Palamedes insistira que o Grande Rei devia ser infor­mado do que tinha sido dito. Um certo número de homens, sem alma, já tinha desertado, mas Palamedes disse que a maior parte dos restantes queria continuar até à vitória, desde que a frota não ficasse muito mais tempo em Aulis. Como as coisas estavam, Agamémnon arriscava-se a enfrentar um motim. Algumas vozes já diziam que o Grande Rei é que era o causador daquilo tudo. Se ele não queria apla­car a ira da deusa e levá-los a Tróia, arranjariam outro líder.

Que tencionava fazer, portanto?

O Grande Rei tencionava revoltar-se contra a injustiça dos homens e dos deuses.

Apolo não lhe prometera que se aguentasse durante nove anos a vitória viria no décimo? Calcante não interpretara o oráculo naquele mesmo local? Não tinham eles visto a serpente? A promessa do deus não os amparara durante aqueles anos todos de guerra? Queriam que ele chamasse mentiroso a Apolo? Ou que acusasse o sacerdote troiano de duplicidade? Já não podia contar com a lealdade dos seus generais?

Os generais agitavam-se, nervosos, perante o Rei enfurecido. Nenhum deles parecia querer falar. Palamedes franziu o sobrolho, impaciente, para os seus camaradas e depois virou-se de novo para o Rei, observando calmamente que tinha de haver um conflito entre os dois oráculos. Sim, Apolo prometera a vitória e essa promessa podia ser válida, mas Apolo era irmão da Divina Artemísia e se o deus tivesse sido forçado a escolher entre a lealdade a um mortal e a lealdade à sua irmã ofendida, a promessa podia ser revogada. Cabia aos homens recuperar o favor dos deuses, não o contrário e isso podia ser feito fazendo as necessárias oferendas na altura própria.

Odisseu desviou o olhar, enjoado.

Palamedes parece tão pronto a confiar nas adivinhações de um troiano traidor como a ouvir as queixas dos homens.

Limitei-me a informar o Grande Rei — replicou Palamedes. Não é a minha lealdade que está em questão. Atreves-te a sugerir o contrário?

Meus senhores, meus senhores — disse o velho Nestor, tentando acalmá-los. Estamos todos desorientados com estes desenvolvimentos. Não pioremos as coisas.

Agamémnon virou-se para Odisseu em busca de apoio. -- Que estavas tu a dizer?

Num gesto que roçava o desespero, Odisseu abanou a cabeça.

— Estou a lembrar-me que esta questão entre Tróia e Argos come­çou quando Laomedonte ofereceu a filha em sacrifício! Que lucrou ele? O que quero dizer é que, quanto a mim, não quero ter nada ver com a morte de uma criança.

Nem eu disse Ájax. Não disse sempre que a glória que conseguir será devida aos meus feitos, não a um mero favor dos deuses?

Aquiles acenou com a cabeça.

— Apoio Odisseu e Ajax.

Nesse caso, ide discutir com o vento — disse Palamedes.

— Pelo menos, gosto mais do som dele disse Odisseu a Palamedes, que se limitou a encolher os ombros e a desviar o olhar, pelo que Odisseu se levantou e abandonou a sala. O vento espalhou alguns papéis quando ele abriu a porta. Aquiles levantou-se e seguiu-o. Um momento mais tarde, Ájax e Diomedes olharam um para o outro e também eles saíram, embrulhando-se nas respectivas capas.

Agamémnon virou-se para Nestor, sentado com a cabeça entre as mãos e os olhos no chão.

— E tu, que me dizes, velho amigo?

Nestor olhou para ele com uns olhos fatigados.

Pela primeira vez na minha vida, não encontro palavras. Parece que ambos os lados têm razão. Porém, como é possível? Perdoa-me, mas não sei o que dizer.

Agamémnon virou-se, angustiado, para o irmão.

Menelau?

O meu coração sangra por ti, irmão... mas...

— Mas o quê?

— Estou a pensar no que esta guerra já nos custou ao longo dos anos. Estou a pensar nos homens que deixamos em Ténedo...

E na mulher que perdeste, sem dúvida.

Menelau desviou o olhar do irmão. Agamémnon deu um suspiro sonoro tão profundo e sinistro que fez os outros dois estremecerem e quando ele se desvaneceu, a sala ficou silenciosa com excepção do gemido do vento no exterior.

— Só o próprio Rei pode consentir com este sacrifício - disse Palamedes após uns momentos. - É a ele que cabe decidir.

— Tu não tens filhos. É fácil, para ti, dizeres uma coisa dessas. Os quatro homens calaram-se, escutando o vento. Após uns momentos, Nestor disse:

Numa ocasião destas, tudo o que um homem pode fazer é entregar-se à misericórdia dos deuses.

— Que queres dizer? — perguntou-lhe Agamémnon.

Nestor abriu as mãos num gesto de impotência.

— Se o Grande Rei declarasse que estava pronto a fazer a ofe­renda, mandando vir a criança a Aulis, talvez a deusa se apiedasse dela.

Agamémnon olhou para o seu amigo com uma leve esperança, mas depois recordou-se.

— A mãe dela nunca consentiria — disse ele, abanando a cabeça. — E tu não me podes pedir que arraste a rapariga aos gritos até ao altar depois de a arrancar aos braços da mãe. É impossível, ouviste?

De novo, exceptuando o som do vento, o silêncio caiu sobre as suas palavras.

Mas Palamedes sentira que a recusa de Agamémnon não era absoluta e o seu cérebro desatou a trabalhar.

— Nesse caso, precisamos de um pretexto — sugeriu ele calma-mente.

O velho Nestor franziu o sobrolho.

— Continua. Não te estou a perceber.

— Precisamos de encontrar uma razão para compelir a Rainha a trazer a filha a Aulis.

Palamedes olhou para o Rei.

— Que idade tem a tua filha?

— Doze, treze? Não sei. Não me lembro.

— Já tem idade para casar. Por que não dizes à tua Rainha que tencionas casar a tua filha? Que decidiste dá-la em casamento como recompensa por um grande serviço prestado? — Um pequeno sorriso, de admiração pela sua própria engenhosidade, espalhou-se pelo rosto de Palamedes. Por que não lhe dizes que tencionas casá-la com Aquiles?

Talvez Ifigénia estivesse condenada a morrer muito antes de o seu pai ter cometido o sacrilégio de matar uma corça no interior do recinto sagrado de Artemísia? Talvez já estivesse condenada a mor­rer quando Agamémnon matou o bebé do marido de Clitemnestra, Tântalo? Os desígnios dos deuses são tão insondáveis que podia já estar condenada a morrer uma geração antes do seu próprio nasci-mento, quando Atreu chacinou a prole do seu irmão Tiestes. Os homens mais sábios não deixam de ser mortais e nenhum sabe a resposta para tais perguntas. Mas sei o seguinte: que um homem não pode ir para a guerra em busca de poder e riqueza sem ferir mortalmente a sua alma e quando a alma fica ferida e debilitada, toda a espécie de loucura pode acontecer.

Quando Ifigénia chegou a Aulis, todas as mulheres da comitiva estavam fatigadas devido à longa viagem desde Micenas, sempre contra o vento. As servas levaram-na para uns aposentos que tinham sido preparados. A jovem seguiu-as de imediato, pensando no dia seguinte, desejando tomar um banho e descansar para poder estar com bom aspecto e lamentando não ter podido ver o seu pai que andava, segundo lhe disseram, a tratar de assuntos relacionados com a guerra. Mas quando Clitemnestra exigiu conhecer o noivo que o seu marido escolhera para a sua filha, Agamémnon desviou o olhar, pouco à-vontade. O Rei abriu a boca, mas fechou-a logo a seguir. Menelau, que entrara na câmara à sua direita, é que teve de explicar o melhor que pôde e soube a desgraça que caíra sobre o filho mais velho de Atreu.

Seguiu-se um silêncio prolongado. Então, a tempestade que caiu sobre a cabeça do Grande Rei foi superior e mais perigosa do que a que soprava no exterior. Todos os anos de ódio e angústia que se tinham passado depois do terrível dia de Pisa soltaram-se de imediato e as bocas de ambos encheram-se de maldições. Apesar de o irmão do Rei lhe ter encostado os braços à parede, Clitemnestra foi sugada por um vortex frenético, chorando furiosamente e lançando impreca­ções por cima do ombro. Se Menelau não estivesse presente, usando toda a sua força para a dominar, ela teria arrancado os olhos a Agamémnon. Apesar disso, o Rei dos Homens ficou durante algum tempo com a cabeça inclinada como um homem preso a um pelourinho e esperou que a tempestade passasse.

Mas a tempestade não passou. Houve um momento em que Cli­temnestra fez uma pausa para recuperar o fôlego e em que ele mur­murou:

—Achas que não me sinto a morrer só por pensar nisto tudo? Mas ela destilava um ódio acumulado ao longo dos anos e não quis saber do apelo impotente nos olhos sem vida do Rei.

Com uma voz que gelou o sangue de Agamémnon, ela silvou: — Prefiro ver-te morrer em agonia mil vezes a permitir que toques com as tuas mãos de carrasco num único cabelo da minha filha. E afastou-se para bem longe dele.

Se ainda restasse alguma ternura entre os dois, talvez tivessem encontrado um meio de escapar à armadilha que o destino lhes mon­tara. Poderiam ter dito «Os deuses e o mundo que façam o que qui­serem, para nós não há nada mais precioso do que a vida da nossa filha. Por isso, não se fala mais no assunto.» Mas não havia qualquer ternura e quanto mais ela o censurava cruelmente, mais ele se sentia pronto a cometer o acto que ela estava determinada a evitar. A Rai­nha percebeu-o nos olhos dele. Sentiu-o no seu silêncio hostil.

Clitemnestra vergou perante a força das mãos de Menelau. Durante um momento, os dois irmãos pensaram que a sua fúria se tinha extin­guido. Mas assim que Menelau lhe largou os braços, ela correu na direcção da porta na intenção de ir em socorro da filha.

No lado de fora, os guardas esperavam por ela.

Alguns bardos dir-vos-ão que Ifigénia não morreu em Aulis. Alguns dizem que Aquiles ficou tão ultrajado ao saber que o seu nome fora usado que se apressou a proteger a jovem. Alguns dizem que quando Agamémnon ergueu a faca sacrificial ouviu-se um trovão e que Aqui­les desembainhou a espada por ordem de Artemísia, libertou a jovem do altar e levou-a consigo. Uma das histórias diz que ele a mandou para Ciros onde Artemísia, a assassina de homens, é a primeira entre os deuses. Um outro bardo diz que, no fim, Aquiles casou mesmo com Ifigénia e que foi ela, não Deidamia, a mãe do seu filho.

Esses bardos não passam de mentirosos, incapazes de contem­plar a verdade cruel das coisas. Eles que contem as suas histórias. Eu acredito no que me foi dito por Odisseu muitos anos mais tarde porque ele estava em Aulis e quer tenha gostado, quer não — e não gos­tou mesmo nada — tomou parte nas coisas terríveis que se fizeram naquele dia.

Acordada pelo vento, Ifigénia sentiu-se excitada e perturbada. As mulheres do palácio apareceram para lhe dar banho, vesti-la com uma túnica cor de açafrão que lhe chegava aos joelhos e penteá-la, sempre tagarelando. Mas da sua mãe não havia sinal.

Algum tempo depois, um homem de cabelos grisalhos entrou na câmara e mandou embora as mulheres, após o que lhe sorriu e disse com uma voz suave, ligeiramente rouca:

Estás muito bonita, minha querida.

- És o meu pai? — perguntou timidamente Ifigénia.

Não disse o homem, sorrindo. — Não te lembras de mim? O meu nome é Nestor e sou o Rei de Pilos. Costumavas trepar para os meus joelhos quando eu ia visitar o teu pai a Micenas. Já então eras a minha favorita. Fui eu que te dei aquele pónei tessaliano para tu montares... Mas foi há muito tempo. Se calhar, já não te lembras.

Lembro-me do pónei. Depois, Electra é que ficou com ele. Onde está o meu pai?

Vê-lo-ás daqui a pouco, pequena. Nestor embrulhou-se mais na capa devido à corrente de ar. — Ele pediu-me que te dissesse uma coisa.

— Tem a ver com o meu casamento?

Sim, mais ou menos.

Nesse caso, posso fazer antes uma pergunta?

— Podes, claro.

É verdade o que Orestes diz, que Aquiles é o melhor logo a seguir aos deuses?

Nestor recuou, surpreendido e esforçando-se por sorrir, mas com uma dor tão grande no coração que a ideia de um sorriso pareceu-lhe uma abominação.

— Escuta-me, minha querida - disse ele depois de uma ligeira hesitação. Tu não te vais casar hoje com Aquiles.

Ifigénia sentiu um sobressalto no coração, desapontada, mas também e principalmente — a jovem sentiu-se de imediato aliviada.

Quando, então? perguntou ela. - Tiro o vestido? — Não, deixa-o ficar, porque vai acontecer outra coisa. Nestor percorreu a sala com o olhar. Era como se a sua língua se tivesse transformado em pedra. De que lhe servia a sua eloquência tão famosa? Preferia que lhe cosessem a boca para sempre a dizer o que ia dizer.

— A minha mãe sabe? — perguntou a rapariga. — Eu não sei se ela ficou feliz com o facto de eu me ir casar ou não.

— A tua mãe sabe — disse ele. — Mas... estava justamente a pen­sar no que disseste... acerca de Aquiles. Sim, suponho que Orestes tem razão, Aquiles é o melhor logo a seguir aos deuses. E é por isso que o que te vai acontecer ainda é melhor. Tu não vais ser entregue a Aquiles, minha querida. Vais ser entregue a um deus.

— A um deus?

Quando Nestor acenou com a cabeça, ela disse:

— Qual é o deus que me quer?

Artemísia, minha querida. A Senhora dos Animais. É ela que te quer.

Um sorriso iluminou o rosto de Ifigénia.

— Mas a Divina Artemísia é a minha deusa preferida — gritou ela. — Eu vou ser sacerdotisa dela? — E antes que ele pudesse res­ponder, a jovem continuou: — Vou ficar virgem para o resto da minha vida?

Nestor ficou a olhar para ela e a acenar com a cabeça como fazem os velhos quando estão sozinhos, quando estão na natureza insólita das coisas. O ancião esperava um certo desapontamento — até uma recusa desafiadora — mas não. Em vez disso, aquela estranha rapa­riga olhava para o céu com uma expressão próxima do êxtase nos olhos, como se, finalmente, se estivesse a realizar um sonho e tudo começasse a fazer sentido.

— Creio que sempre soube que seria assim — murmurou ela. — Creio que é por isso que não tinha a certeza se queria casar com Aquiles, apesar de ele ser quase um deus. — A jovem olhou para os olhos ansiosos de Nestor e sorriu-lhe timidamente. — Acima de tudo, sempre adorei dançar para Artemísia. Creio que sempre soube que lhe pertencia. — Então, espantosamente, ela deu uma pequena risada. — Mas, por que é que o meu pai não me veio dizer isso pes­soalmente? Tinha medo que eu ficasse desapontada? Ele não me conhece mesmo, pois não? Não precisava de ficar preocupado!

Ifigénia dirigiu-se à janela e olhou para a cidade. Então, ocorreu-lhe outro pensamento:

— Em que templo é que eu vou servir a deusa? Vai ser aqui, em Aulis?

— Vai — respondeu Nestor com voz rouca — vai ser aqui em Aulis. — O ancião fechou os olhos. — Mas tu ainda não compreen­deste.

O quê? — perguntou ela, confusa. Os olhos dele permanece­ram fechados e ela começou a pensar se ele se estaria a sentir bem. — O que é que eu não compreendo?

As palavras saíram quase impacientemente.

O que a deusa quer é a tua vida.

— Eu sei isso respondeu ela, sorrindo. Compreendo muito bem. Assim que consagrar a minha vida à deusa, não haverá regresso possível. Mas eu estou pronta. Será uma grande alegria viver apenas para ela.

— Escuta o que eu digo, pequena - disse-lhe ele, quase impaciente. A deusa não quer que vivas para ela. A deusa quer que morras por ela. Vais ser-lhe oferecida num sacrifício. E vai ser hoje.

Uma pena da almofada da cama ergueu-se transportada pela corrente de ar, flutuou e voltou a cair no chão. No exterior, o vento batia nas persianas. Algures, mais longe, no molhe apinhado, o oceano des­fazia-se com estrondo.

Compreendes? perguntou-lhe o velho Nestor.

Porquê? murmurou ela. — Por que é que a deusa quer que eu morra?

— Porque — começou ele tem a ver com... para o bem de todos. Foi por isso que o teu pai quis que fosse eu a explicar-te. — O ancião ficou sem voz por momentos, evitou-lhe o olhar e tentou raciocinar. — Estás a ouvir o vento? Sabes há quantas semanas está assim? Este vento pertence a Artemísia. Enquanto ele soprar, os nos­sos navios não poderão partir para o mar, No entanto, o destino da guerra depende da possibilidade de o Grande Rei regressar em breve a Tróia. Se ele não chegar a tempo, estará tudo perdido. Morrerão muitos homens. Os nossos inimigos ficarão mais fortes e o teu pai será derrotado. Se isso acontecer, perderá o trono. Micenas cairá às mãos de outro príncipe qualquer. O teu pai morrerá e com ele toda a sua família tu, a tua mãe, o teu irmão e a tua irmã morrerão com ele. Se o vento não parar, será o que acontecerá.

O ancião apercebeu-se do impacto daquela sucessão de desastres no rosto da jovem, mas enquanto os enumerava, sentia-se ao mesmo tempo espantado como eles pareciam abstractos e vazios ao lado do ar quente e confuso daquela criança.

Mas porquê? — murmurou ela de novo. — Por que é que Artemísia está zangada connosco?

Nestor desviou de novo o olhar da espantosa inocência daqueles olhos.

— Não nos cabe a nós questionar a sabedoria dos deuses - disse ele finalmente. - Mas assim que temos conhecimento da sua vontade, é nosso dever aceitá-la.

Nestor olhou de novo para ela.

O teu pai está pronto para cumprir o seu dever. Posso dizer-lhe que tu também estás pronta para cumprir o teu?

Toda a hoste se juntou para assistir ao sacrifício. Tinha sido erguido um altar no cais para que ele pudesse ser visto das ruas e das falésias, para que todos soubessem que o Grande Rei pagava a sua dívida à deusa. Apesar de muitos dos soldados terem estado quase a amoti­nar-se uns dias antes, estavam ali em perfeita ordem e nem um só ergueu a voz quando os senhores da guerra se juntaram junto do altar onde Calcante já queimava incenso e invocava a presença da deusa. Metidos com os seus pensamentos, observavam.

Agamémnon estava entre eles, com a capa apertada contra o corpo por causa do vento e com Menelau a seu lado. O Rei olhava para o mar, para lá dos navios, para as vagas deslocando-se ruidosamente no estreito. A ilha de Eubeia não passava de um mero borrão no meio do mar e Tróia estava a trezentos quilómetros para lá do hori­zonte inultrapassável. Em redor, o ar turbulento enchia-se com o tilin­tar dos calcês e o ranger da madeira enquanto o vento sacudia e aba­nava os navios.

Perante o olhar de milhares de homens, cada um dos quais poderia dar, um dia, a vida por ele, Agamémnon sabia que era o homem mais solitário do mundo.

Ifigénia saiu em procissão do templo e aproximou-se do altar com os sacerdotes e as sacerdotisas na sua frente, agitando os incen­sórios e transportando os objectos sagrados tapados por tecidos pre­ciosos. A jovem seguia acompanhada por rapazes e raparigas can­tando hinos a Artemísia, se bem que a jovem, cuja voz fizera chorar muitos homens, caminhasse silenciosa. O cântico lembrava a todos como o forte coração de Artemísia desperta para a caça por entre as sombras da montanha e nos picos varridos pelo vento. Lembrava a todos como, depois de matar a sua presa, ela baixa o seu arco, vai para junto do seu irmão Apolo e ocupa o primeiro lugar entre os dançarinos quando a dança começa. Quando se aproximaram do altar, o hino terminou e o único som era o do vento.

Ifigénia vestia uma capa para se proteger do frio, mas uma das mulheres tirou-lha e todos viram que ela tinha uma pele de corça em redor dos ombros e que tinha os cabelos apanhados no alto da cabeça para que se lhe visse o pescoço extremamente branco. Quando Odis­seu falou daquele dia, disse que a rapariga quase sorria enquanto caminhava firmemente através da multidão com a cabeça levemente inclinada. A princípio, ele pensou que era porque, na sua inocência, ela se sentia feliz por entregar a sua vida em prol dos grandes heróis de Argos e dos milhares de homens em redor. Mais tarde, porém, ele pensou se ela não teria ouvido, de facto, a voz da deusa.

Fosse como fosse, no momento em que lhe tiraram a capa, Ifigé­nia viu o altar e começou a tremer e Odisseu viu pelos seus olhos que tanto tremia de medo como de frio.

Imediatamente, Agamémnon tirou a sua própria capa e surgiu ao lado da jovem com todas as suas insígnias reais. Parecia de tal modo o Grande Rei que Ifigénia olhou para ele timidamente e disse numa voz tão leve que ele mal a ouviu por cima do uivo do vento:

— Es o meu pai?

Tremendo, Agamémnon acenou com a cabeça. Durante um breve momento, ele olhou para o belo e jovem rosto que olhava para ele, esperando um abraço ou um beijo paternal. Mas ele deve ter sentido que o que ia fazer revogava quaisquer direitos que um homem pudesse ter a esses gestos de afecto e consolação. O Rei virou a cabeça, fixando o olhar nos que estavam prontos a ajudá-lo. Dois homens avança­ram; Ifigénia deixou sair um grito de espanto quando eles a levanta­ram e a deitaram em cima do altar. Alguém lhe meteu na boca um freio de cavalo e fez força, amordaçando-a, um outro homem puxou--lhe a cabeça para trás, para que o queixo ficasse erguido. Agamém­non gritou:

Grande Artemísia, aceita a oferenda e com um golpe rápido da faca que lhe fora metida na mão, cortou a garganta da própria filha.

Rapidamente, o Rei virou-se. Durante algum tempo, os seus tor­nozelos agitaram-se e estremeceram. Depois, ficaram imóveis e por cima do estrondo do mar e de uma momentânea acalmia do vento, ouviu-se o lamento baixo de um exército inteiro contemplando o sacri­fício, como se fosse a primeira vez que contemplavam a morte.

 

             A Ira de Aquiles

Pouco a pouco, o vento mudou. A frota zarpou e à medida que os navios a abarrotar navegavam ao longo dos estreitos de Eubeia, cada homem a bordo tomava sombriamente consciência de que, se o sacrifício de Ifigénia fora a primeira morte da última fase da guerra, em breve haveria inúmeras outras.

Encontraram a guarnição de Ténedo enfraquecida e meia-morta de fome, mas firme no seu porto. Com a sua testa-de-ponte nas mãos, Agamémnon percebeu que chegara a hora de planear o assalto final a Tróia mas depois de anos de empates, o Rei não sabia como fazê-lo • Antes de todos os comandantes terem zarpado de Aulis, já havia discordância quanto ao assunto e as discussões giravam em volta da neutralidade dos Dárdanos.

Durante alguns anos, Agamémnon andara convencido, instigado por alguns, que a decisão do Rei Anquises de ficar de fora da guerra era vantajosa para Argos. Como líderes dos que tinham essa opinião, Menelau e Odisseu diziam que a tarefa de conquistar a cidade seria muito mais difícil se os Dárdanos fossem provocados, acorrendo então com as suas forças para a defender. Palamedes discordava. A cidade cairia mais depressa, insistia ele, se Agamémnon abrisse uma segunda frente atacando-a pelo sul, através das terras dárdanas. Aquiles, Ajax e Diomedes tendiam a apoiar esta política agressiva, ao passo que Nestor e Idomeneu permaneciam na incerteza, entre as duas posi­ções. Mas depois do falhanço do primeiro assalto frontal a Tróia, Agamémnon tinha medo de que um movimento mais ambicioso pudesse precipitar o desastre. Assim, os seus conselheiros mais cau­telosos tinham ganho o debate e o esforço principal de Agamémnon concentrar-se-ia na tentativa de confinar os Troianos à cidade, enquanto os de Argos enfraqueciam os seus aliados em redor.

Mas agora a força principal estava de regresso a Ténedo, come­çara o décimo ano da serpente e a discussão recomeçou com uma urgência ainda maior.

Mas Agamémnon continuava a hesitar. O Leão de Micenas parecia um homem usurpado pelo seu próprio fantasma, apenas com a sua teimosia para o levar onde antes o levava a ambição e a chama. A verdade é que o fantasma da sua filha pendia, como uma maldição, sobre todos os seus pensamentos. Sim, o vento mudara depois da sua morte e a frota fora capaz de zarpar, mas Agamémnon ficara desani­mado devido a um grande sentimento de culpa. E como Aquiles soubera que o seu orgulhoso nome fora usado para atrair Ifigénia a Aulis, o seu desprezo por Agamémnon transformara-se num ódio inveterado. No fim daquele dia terrível, Agamémnon ganhara a hos­tilidade eterna da sua mulher, a quem entregara o seu reino durante a sua ausência, e do campeão mais amado do seu exército.

Aquiles deixara de tomar praticamente parte nos conselhos de guerra desde então e assim Palamedes passara a ser o principal defen­sor de uma incursão através das terras dardanianas. Mas Agamém­non desconfiava cada vez mais do príncipe de Eubeia. Fora Palame­des que falara aos outros na morte sacrílega da corça. Palamedes fora o homem que mais obstinadamente defendera o sacrifício de Ifigé­nia. Fora ele que imaginara o meio de a atrair a Aulis. Quando a hoste pensara num novo líder, fora o seu nome o mais pronunciado. De todos os seus generais, portanto, Palamedes era aquele que Agamém­non mais detestava e mais temia e o seu conselho era o último que o Grande Rei queria ouvir.

Uma manhã, depois de mais uma discussão inconclusiva, Palamedes abandonou a tenda do Rei zangado e frustrado e procurou Aquiles para se queixar dos medos de Agamémnon. já frustrado e aborrecido devido à prolongada inacção, Aquiles chamou Pátroclo e Fénix para uma breve reunião e depois ordenou aos seus Mirmí­dones que embarcassem. Os navios atravessaram o estreito e dirigi­ram-se para o continente, onde foram encalhados e ficaram guardados por alguns guerreiros. Os restantes avançaram pelas pastagens montanhosas dos Dárdanos. Ao fim do dia tinham morto os vaqueiros, espantado uma grande manada e atacado a cidade de Linnessus.

Apanhado de surpresa, Eneias tentou fazer frente aos invasores, mas os seus guerreiros não eram adversários para os Mirmídones, habituados à guerra. Os dárdanos foram rapidamente derrotados, Eneias e Anquises tiveram sorte em escapar vivos, Linessus foi dei­xada em chamas e as tropas-relâmpago de Aquiles regressaram em triunfo a Ténedo com gado, mulheres e outras coisas que consegui­ram pilhar.

Quando Aquiles se apresentou em frente da tenda de Agamém­non para entregar ao Grande Rei a sua parte do saque, já os soldados o aclamavam como seu campeão, como se ele tivesse conseguido uma grande vitória. Agamémnon não teve outra hipótese senão felicitar o jovem e insolente herói pelo seu sucesso e concedeu-lhe o desejo de ficar com uma bela jovem que trouxera cativa chamada Briseida.

Só mais tarde, em conversa com Odisseu, o Grande Rei admitiu que o assalto não autorizado dera um novo ímpeto à guerra. Os Dár­danos aliar-se-iam, certamente, aos Troianos, mas o avanço para Tróia seria feito através das suas terras.

Alguns dias depois, Agamémnon lançou um grande ataque. O Rei postou os seus arqueiros e fundibulários para forçar o inimigo a defender-se enquanto o grosso das forças desembarcava e durante o dia os combates foram ferozes, mas ao anoitecer os navios de Argos estavam encalhados em segurança em três filas ao longo da baía. Ficaram tropas frescas a guardá-los e no dia seguinte foi erguida uma paliçada para os defender.

Enquanto observava as suas tropas a montarem o acampamento, Agamémnon pensava para si próprio que as coisas tinham corrido bem melhor do que pensara, porque se sentia cada vez mais pes­simista a cada decisão que tomava. Palamedes e Aquiles insistiram com ele para que se continuasse na direcção de Tróia, mas o desem­barque fora difícil e o Rei tinha alguma relutância em forçar a sorte. Além disso, o Inverno estava a chegar e, assim, Agamémnon deu ordem para que cavassem trincheiras.

Com a recordação das tempestades ainda gravadas na pele, os soldados prepararam-se para mais um teste à sua resistência. Tróia, a cidade que tinham vindo conquistar, estava sitiada.

Apesar de aquele não ser o Inverno mais duro que tinham supor­tado, o vento carregado de neve que soprava na planície de Tróia era suficientemente penetrante para que os soldados de Argos sentissem inveja sempre que olhavam para os telhados da cidade sitiada. As muralhas pareciam inacessíveis e era evidente para todos que a pró­xima batalha teria de ser travada em campo aberto, na planície de Escamandro, entre a cidade e os navios, onde estava situado o túmulo do avô de Príamo, o Rei Ilus. Ou os de Argo esmagavam os Troianos e cercavam a cidade, ou seriam rechaçados para a frota em chamas. A catástrofe tinha de ser evitada a todo o custo, por isso os soldados começaram a cavar um dique em redor do acampamento e a fortifi­car o seu parapeito com uma forte paliçada. Esta era guardada por torres de madeira e tinha portões, através dos quais as carroças avan­çariam para a batalha.

Dentro daquele perímetro cresceu uma improvisada cidade de ten­das onde os arqueiros praticavam nas barricas e os soldados de infan­taria faziam a instrução militar. Mas à medida que o Inverno ia ficando mais duro e o vento lhes caía em cima, enchendo-lhes os rostos de chuva, granizo, neve e gelando-lhes os ossos, os homens regressa­vam a questões e invejas antigas. As discussões e as lutas eram fre­quentes em redor das fogueiras e algumas delas terminavam com algumas mortes. Entre os líderes também não havia muito calor, mas estes mantinham-se unidos por um sentido de propósito comum a todos, se bem que carrancudo e obstinado.

Agamémnon e Menelau faziam companhia um ao outro, quase sempre rabugentos e frequentemente embriagados. Por vezes, comiam mais alegremente com os seus velhos amigos Nestor, Odisseu, Ájax e Diomedes, mas Idomeneu.sentia-se melhor junto dos seus amigos cretenses. Aquiles, entretanto, mantinha-se à parte com Pátroclo e com os seus camaradas Mirmídones e durante as noites frias acon­chegava-se à sua bela cativa Briseida. A jovem foi a primeira mulher com quem ele fez amor desde que saíra de Ciros e apesar de ela ter tido medo dele a princípio, a rapariga dárdana acabou por respon­der às suas tentativas tímidas e surpreendentemente gentis. Só quando teve a certeza de que tinha o seu consentimento é que Aquiles a levou para a sua cama e em breve sentiam-se ambos seguros nos braços um do outro. Até Pátroclo, que não era estranho à capacidade de amar do seu amigo, ficou espantado com os modos ternos com que ele fez da sua cativa uma amante. Na verdade, sentia-se aliviado por ver como o forte espírito de Aquiles encontrava conforto e prazer nos abraços cada vez mais afectuosos da jovem.

Naquelas circunstâncias, Palamedes viu-se cada vez mais isolado. Se bem que tanto ele como Odisseu tivessem um malevolente res­peito pela inteligência um do outro, sempre se tinham detestado. Em muitas reuniões difíceis, os seus camaradas tinham assistido com um temor confuso ao choque intelectual dos dois homens, um cho­que com o ânimo que outros reservavam para o combate corpo-a--corpo, muito menos subtil. Só muito raramente chegavam quase a vias de facto, mas isso só aconteceu a meio do Inverno, quando as provisões de trigo no acampamento começaram a faltar e os navios de Odisseu regressaram de uma falhada expedição ao longo da costa da Trácia. O moral já estava baixo e ainda ficou mais baixo quando o príncipe de Ítaca relatou que a colheita tinha sido pobre e que os celeiros trácios estavam vazios.

Ou foi isso troçou Palamedes ou foi mais um exemplo da falta de entusiasmo de Odisseu por esta guerra. Talvez preferisse estar em casa a encher a barriga e a satisfazer a mulher do que a cum­prir o seu dever aqui?

Se Odisseu tivesse uma espada naquele momento, teria matado o homem. Mas como não tinha, atirou-se-lhe ao pescoço e tê-lo-ia estrangulado ali mesmo se Diomedes e Ájax não tivessem conse­guido afastá-lo. Ao mesmo tempo, Agamémnon dizia aos berros aos dois homens que se controlassem, enquanto os outros observavam consternados o incidente.

Se achas que és capaz de encontrar trigo ou centeio gritou Odisseu desafio-te a ir procurá-lo. Se não, cala essa boca malchei­rosa na presença de homens melhores do que tu.

Alguém vai ter de o encontrar disse Agamémnon, puxando a capa mais para cima dos ombros — ou morreremos à fome. Palamedes, sugiro que enfrentes o desafio.

Palamedes abandonou a tenda do conselho esfregando o pes­coço.

Antes de zarpar, o príncipe de Eubeia foi orar ao templo de Apolo, em Timbre, um local sagrado nos arredores de Tróia que era reconhecido por todos como campo neutro e onde aqueles, de ambos os lados, que adoravam o deus, podiam ir sem serem hostilizados. Não era a primeira vez que Palamedes ia ali e a sua devoção parece ter sido compensada porque três dias mais tarde os seus navios regressaram ao acampamento carregados de cereal.

Mais uma vez, enquanto os soldados esfomeados se lançavam ao trabalho, moendo o grão e acendendo os fornos, Palamedes era acla­mado. Mas Odisseu ficou desconfiado por o eubiano ter tido sucesso tão facilmente onde ele falhara. O príncipe de Ítaca decidiu partilhar as suas suspeitas com o Rei.

O que aconteceu depois permanece no segredo dos deuses. Os factos, tais como eu os colhi, foram como se segue. Algum tempo depois de Palamedes ter regressado com o grão, um espião troiano foi encontrado no exterior do acampamento com uma flecha no coração. Uma busca ao cadáver revelou um bilhete assinado pelo Rei Príamo, concordando com o preço pedido por Palamedes por trair o lado grego. O bilhete também falava de uma hora combinada no tem­plo de Apolo para o pagamento.

Palamedes foi imediatamente preso e forçado a comparecer perante o conselho. Quando ouviu a acusação, negou furiosamente e clamou que era vítima de uma calúnia. Odisseu sugeriu calmamente que o assunto podia ser facilmente resolvido de uma maneira ou de outra. O Rei que enviasse um homem de confiança ao templo de Apolo, em Timbre, dizendo que ia ali em nome de Palamedes. Se ele regressasse com o dinheiro, o caso ficaria provado.

Apesar de o príncipe de Eubeia insistir na sua inocência, foi o que aconteceu. Os cofres com as moedas troianas foram abertos em frente das tropas. Publicamente denunciado como traidor, Palame­des foi apedrejado até à morte por todo o exército. Mas as suas últi­mas palavras deixaram muitos deles convencidos de que Agamém­non e Odisseu tinham conspirado contra ele.

— Verdade, choro por ti — disse ele, momentos antes de as pedras começarem a ser lançadas - porque morres antes de mim.

Odisseu nunca mais falaria no assunto senão em termos depre­ciativos. O príncipe de Eubeia era um traidor, declarou ele e teve o fim de um traidor. E, pelo menos aparentemente, parece que foi o caso. Mas o Rei Nauplius de Eubeia, pai desconsolado de Palamedes, não acreditou e arranjou uma maneira de se vingar dos que, segundo ele, tinham traído o seu filho. O monarca visitou as mulheres deles e disse-lhes que os seus maridos tencionavam substituí-las pelas suas concubinas preferidas assim que regressassem.

Se a verdade é, como dizem os homens, a primeira baixa numa guerra, uma coisa é certa: a guerra de Tróia pode ter sido um festim sangrento de violência masculina, mas as questões aconteceram muitas vezes devido a mulheres raptadas. Em tempos violentos, a força de um rei é medida não só pela sua riqueza e poder, mas também pela qualidade das mulheres raptadas. Assim, Hesíone foi raptada por Téla­mon, iniciando-se a longa querela entre Tróia e Argos. Clitemnestra foi arrancada a Tântalo, o seu amado marido, e Micenas ganhou uma Rainha calculista. Helena foi raptada, primeiro por Teseu e depois por Páris e o mundo entrou em guerra. No decurso dessa guerra, Briseida foi arrancada de sua casa por Aquiles e então como que para demonstrar que também ele continuava a ser um formidável macho.

Agamémnon atacou a pequena cidade de Tebe e aprisionou Cri­seida, a filha do sacerdote de Apolo daquela cidade e foi o rapto dessa rapariga que provocou uma querela que quase destruiu o exér­cito de Argos.

A questão começou quando Crises, o pai da rapariga raptada, se apresentou no portão do acampamento de Argos com a coroa sagrada de sacerdote de Apolo e segurando na mão o bastão dourado. O digno ancião foi admitido perante o Rei e fez um apelo eloquente, exor­tando o Grande Rei a respeitar a vontade divina de Apolo e a devol­ver-lhe a filha.

O apelo do sacerdote foi tão comovedor e o resgate que ele ofe­recia era tão generoso, que o sentimento geral foi que o seu desejo devia ser respeitado. Mas Agamémnon andava a beber imenso e uma grande dor de cabeça tinha-o deixado com uma disposição trucu­lenta. O Rei disse rudemente a Crises que Criseida era cativa da sua lança, ganha merecidamente em combate, que ficara encantado com ela e que, longe de a libertar, tinha a intenção de a levar para Micenas para a juntar às mulheres do palácio.

— Portanto, desaparece da minha vista, velhote grunhiu ele — e afasta-te do meu acampamento. Se voltas a vir aqui incomodar--me, verás que o teu bastão e a tua coroa são fraca protecção.

Crises olhou para o rosto carrancudo do Grande Rei e percebeu que não conseguiria chamá-lo à razão. Mantendo a dignidade, o sacer­dote acenou com a cabeça, respirou fundo e abandonou a sala por entre os militares silenciosos, sem uma palavra.

Poucos dias depois, a peste caiu sobre o acampamento. Primeiro, atacou as mulas e os cães, mas depois espalhou-se pelas tendas. Quan­tos mais homens adoeciam e morriam e o cheiro a corpos putrefac­tos e a carne queimada se espalhava, tanto de dia como de noite, mais o moral do exército baixava.

No décimo dia, Aquiles exerceu o seu direito de pedir uma assem­bleia. De pé em frente da hoste e com o ceptro sagrado na mão, o jovem disse que Apolo Sangário, o provocador da peste, devia ter ficado ofendido com um voto qualquer quebrado ou com a não observância correcta dos seus ritos. O guerreiro insistiu que o orá­culo devia ser consultado para ver o que se poderia fazer para aplacar o deus zangado antes que a hoste ficasse tão esgotada pela doença que seria forçada a desistir da guerra e a regressar a casa.

Um murmúrio de concordância saiu da multidão de homens reu­nidos. Calcante deu dois passos em frente e disse que já consultara o oráculo, mas que só divulgaria o resultado se Aquiles prometesse solenemente protegê-lo da fúria que ele pudesse provocar. Quando Aquiles jurou que o adivinho não precisava de ter medo, Calcante declarou que não se tratava de votos quebrados ou rituais não cele­brados. A fúria de Apolo estava na razão directa da recusa de Aga­mémnon em permitir que o sacerdote troiano resgatasse a sua filha. Crises invocara a ajuda do deus e o deus ouvira-o. A peste não desapareceria enquanto Criseida não fosse devolvida ao seu pai sem o pagamento de qualquer resgate.

Agamémnon levantou-se de imediato, os olhos vermelhos de fúria, sentindo uma conspiração contra si. O Rei virou-a primeiro para Calcante.

— Sempre que abres a boca acontece-me um mal qualquer. Não és capaz de me profetizar uma coisa boa? Amaldiçoo o dia em que te trouxe para o pé de mim. — O Rei teria continuado, mas ao desviar o olhar do sacerdote reparou que a hoste estava toda a olhar para ele. — Se recusei um resgate pela rapariga — gritou ele — não foi para desafiar o deus, foi porque gostei dela. E por isso que quero ficar com ela. Ficaria com o coração destroçado se a deixasse partir.

O vento, soprando através da planície, apanhou-lhe as palavras e espalhou-as. O Rei não viu um só sinal de simpatia em todos aqueles rostos. Sentiu-se como um bêbedo a resmungar no meio de uma rua.

Mas quando um deus está contra um homem, que pode ele fazer? gritou o Rei para o vento. Se libertá-la é a única maneira de acabar com esta pestilência, libertemo-la. Que regresse para junto do pai imediatamente. E sem resgate.

Agamémnon reparou que os homens acenavam severamente com as cabeças. Dera-lhes o que eles queriam porque os fados não lhe tinham dado outra opção e odiava-os a todos por isso. Por que seria que, para onde quer que se virasse, perdia sempre? E quantas derrotas conseguiria aguentar a sua liderança? Devia haver uma maneira de resolver aquilo, sair dali sem perder totalmente a face. Então, os seus olhos fixaram-se em Aquiles e viram o desprezo no rosto insolente do jovem.

Mas não está certo que o vosso chefe tenha de desistir do seu saque quando outros abaixo dele podem ficar com o seu. Se tenho de entregar Criseida por vossa causa, nesse caso devo receber outra mulher como compensação pela minha perda.

A multidão começou a murmurar. Agamémnon olhou para Mene­lau em busca de apoio, mas este, franzindo o sobrolho, desviou o olhar. Nestor murmurou qualquer coisa acerca de o saque ter sido dividido equitativamente.

Então, Aquiles avançou de novo.

Se o Rei exigir aquilo a que não tem direito, será uma injustiça. Só tu é que estás em questão, mais ninguém. Obedece ao deus e devolve a rapariga. Assim que Tróia cair, terás as mulheres que qui­seres.

Aquilo era demasiado.

— Desde quando Aquiles tem o direito de dizer ao Grande Rei o que ele deve ou não deve fazer? Eu já disse que a rapariga será liber­tada. Podes levá-la de volta para Tebe no teu próprio navio, se quise­res, e faz os sacrifícios que forem precisos para aplacar o deus. Mas espero que a minha perda seja para o bem de todos e se o exército não me der uma satisfação, agarro numa mulher qualquer e fico com ela.

Agamémnon tremia de raiva enquanto falava. Aquiles aguentou-lhe o olhar por um momento e depois olhou para Pátroclo com um olhar que dizia tudo sobre o que pensava do palerma que os levara para aquela guerra.

Agamémnon reparou naquele olhar. O seu rosto transformou-se numa ameaça viva.

Fazias melhor se mostrasses algum respeito, filho de Peleu, porque senão pode ser que eu fique com a mulher que tu trouxeste da expedição que fizeste sem o meu consentimento.

O ódio acumulado entre Agamémnon e Aquiles ao longo dos anos explodiu.

Mas que liderança é esta? perguntou Aquiles. Como queres que os homens te sigam no combate se ficas com o espólio deles? Apolo é minha testemunha de que os Troianos nunca me fize­ram mal. Nunca me roubaram gado nenhum nem devastaram as minhas terras, assim como à maioria dos presentes. A verdade é que viemos para esta guerra para te ajudar e ao teu irmão a exigir satisfa­ções pelo que perdestes e agora queres que entreguemos o nosso espólio à tua ganância. Até te atreves a ameaçar-me — a mim, Aqui­les, filho de Peleu, que tenho aguentado o peso todo do combate desde o princípio. Se não fosse eu e os meus Mirmídones, ainda esta­vas em Ténedo. Estou farto de lutar por um louco ingrato que trans­forma os amigos em inimigos e coloca o seu orgulho à frente do bem da sua hoste. Não percebo por que hei-de sujar a minha espada por ti quando só recebo insultos em troca.

Agamémnon ouviu aquela tirada com o rosto branco como a cal, sabendo que a sua liderança estava em jogo.

Leva o teu navio, então — rugiu ele antes que Aquiles se virasse. — Vai para Ciros criar carneiros. Tenho amigos suficientes para lutarem ao meu lado, não preciso de suportar mais a tua inso­lência. — Respirando ruidosamente, o Rei semicerrou os olhos sinis­tramente. — Ninguém desafia o Grande Rei impunemente. Quero que me entregues a mulher que tens contigo antes de partires. A hoste verá qual de nós é mais poderoso se Aquiles, o adolescente, se Agamémnon, o Rei dos Homens.

Então, no auge da fúria, a mão de Aquiles dirigiu-se para o punho da sua espada. O jovem já a desembainhava e corria para o Rei quando uma voz no interior da sua cabeça lhe refreou o ânimo de tal maneira que foi como se uma mão invisível lhe tivesse puxado pelos cabelos. Era a voz da deusa Atena fazendo-o recuperar o bom senso, prome­tendo-lhe que um dia seria amplamente recompensado por aquele ultraje.

Aquiles ficou por um momento, de olhos esgazeados, mal se atre­vendo a respirar, a escutar o murmúrio. Em seguida, voltou a embai­nhar a espada, olhou para Agamémnon e tirou-lhe o ceptro da mão.

Tu és um bêbedo e um cobarde — disse ele, com desprezo. — Nunca te atreveste a liderar os teus homens em combate. Prefe­res esconder-te na tua tenda e esperar que os outros consigam o saque por ti. Pois bem, talvez os outros não tenham coragem para te enfrentar, mas eu juro por este ceptro que há-de chegar o dia em que pedirás a minha ajuda aos berros no auge da batalha, e veremos então a tua valentia, quando Heitor abrir caminho através dos guer­reiros de Argos enquanto tu engoles a tua cobardia, cheio de remor­sos por teres desgraçado o mais bravo dos teus guerreiros.

O jovem atirou o ceptro aos pés de Agamémnon e ter-se-ia ido embora se Nestor não se tivesse levantado da sua cadeira e não o tivesse apanhado por um braço.

— Vergonha, seus loucos —gritou o ancião. — Príamo e os seus Troianos vão dançar de alegria quando souberem disto. Eu posso estar velho, muito mais velho do que qualquer um de vós, mas lutei ao lado de homens melhores no meu tempo. Teseu e Pirítoo foram meus camaradas, grandes Reis, os dois, e pastores dos seus respecti­vos povos. Nenhum dos presentes lhes conseguiria fazer frente. E se heróis da qualidade deles estavam sempre prontos a ouvir o meu conselho, vós também. — Nestor olhou para Agamémnon ainda a tremer de raiva. — Lembra-te da tua dignidade. Há coisas mais importantes do que uma simples mulher. E tu, Aquiles, refreia os teus modos truculentos. Lembra-te que a autoridade do Rei deriva do próprio Zeus. Agamémnon merece o respeito de todos porque é o Rei e por-que é o melhor homem.

Agamémnon abanou a cabeça.

Este arrogante não sabe o que é o respeito.

Aquiles voltou-se para ele de imediato.

Porque não vejo valor nenhum em ti.

Nestor interveio de novo.

— A rapariga foi-te dada pelo próprio Rei. Como tal, o Rei tem o direito de ta tirar.

Aquiles olhou de Nestor para Agamémnon com o desprezo que os jovens reservam para a estupidez dos velhos.

Agora percebo quando vale a palavra de Agamémnon — disse ele. — Muito bem! Os homens são testemunhas. Mas se ele se atrever a tentar tirar-me qualquer outra coisa, seja o que for, juro que lhe espeto a minha lança no coração. — O jovem virou-se e afastou-se com Pátroclo a seu lado, por entre a hoste silenciosa.

Procurando recuperar o domínio da situação, Agamémnon deu imediatamente ordem a Odisseu que metesse Criseida no seu navio e que a fosse devolver ao pai juntamente com algumas cabeças de gado para serem oferecidas em sacrifício ao deus. Em seguida, reti­rou-se para tomar banho e fazer as suas próprias oferendas a Apolo num altar à beira-mar. Mas a fúria continuava viva. O Grande Rei dei­xou-se envolver pelo fumo que subia da carne de boi a assar, sabendo que perderia toda a sua autoridade se não conseguisse forçar Aquiles a dobrar-se perante a sua vontade.

Passaram-se duas horas sem que a rapariga aparecesse. Finalmente, Agamémnon chamou os seus mensageiros e disse-lhes que fossem ter com Aquiles e exigissem que lhes entregasse Briseida imediatamente.

Os mensageiros encontraram Aquiles ainda enfurecido junto dos navios mirmídones apoiados em estacas ao longo do lado ocidental da praia. Pátroclo estava ao lado dele a atirar pedras ao mar, zangado e espantado com o modo como o seu amigo fora tratado. Os Mir­mídones rodeavam-nos, sentindo a sua vergonha, murmurando entre si e observando a aproximação dos mensageiros.

Consciente da injustiça da sua missão, Taltíbio entregou com difi­culdade a mensagem, mas Aquiles sentiu a sua apreensão e pô-lo rapi­damente à-vontade. O jovem pediu a Pátroclo que fosse buscar Bri­seida e depois virou-se para o mensageiro.

— Sê minha testemunha perante os deuses, Taltíbio. Faço o que aquele louco me exige, mas nunca mais erguerei a minha lança para ir em seu socorro. Diz-lhe que se lembre desta minha promessa quando a hoste dele estiver a lutar pela vida nos navios.

Briseida saiu da cabana a chorar, Aquiles tratava-a bem e todos os presentes sabiam que a rapariga só sofreria humilhações às mãos de Agamémnon. Mas, de todos os que tomavam parte naquele conflito, ela era a que menos poder tinha sobre o seu destino. A jovem não podia fazer outra coisa senão pedir protecção aos deuses, enquanto era levada pelos mensageiros. Os seus gritos, transportados pelo vento, chegaram aos ouvidos de Aquiles.

Antes mesmo de ela desaparecer, ele virou-se e deixou-se ficar sozinho durante muito tempo, olhando para as ondas a bater na areia. Os olhos ardiam-lhe devido à fúria que sentia pelo orgulho ferido, ao mesmo tempo que pensava na fama e na honra que esperara ganhar por combater naquela guerra e no ódio que sentia por Agamémnon, que era tal que mal conseguia respirar. Os deuses tinham-lhe prome­tido que, se fosse a Tróia, a sua vida seria breve mas gloriosa, mas, agora, sofrera a ignomínia dos insultos de Agamémnon e banira-se a si próprio dos combates que se aproximavam. E que glória poderia haver naquele isolamento obstinado? Parecia que os deuses eram tão injustos como os homens.

Então, o jovem guerreiro lembrou-se da voz de Atena durante a sua fúria e da promessa que a deusa lhe fizera. Certamente que a sua vida ainda estava destinada a um glorioso desígnio. Ser-lhe-ia feita jus­tiça, mais tarde ou mais cedo.

 

                   O Duelo à Chruva

Após nove anos de guerra, o exército de Agamémnon suportou mais um Inverno rigoroso, testemunhou a lapidação de Palamedes, sofreu as investidas da peste e viu o ardor do seu campeão extinguir--se desgraçadamente em público. Os sintomas de amotinação, que já se tinham manifestado em Aulis, eram agora cada vez maiores e encontraram um porta-voz rancoroso num soldado muito feio cha­mado Tersites.

Este turbulento agitador era primo afastado de Diomedes, mas enquanto a frota estivera presa em Aulis gritara o seu apoio a Palamedes, um homem com mais qualidades de liderança do que o tem­peramental filho mais velho de Atreu. É provável que tenha sido Tersites a lançar o boato de que Agamémnon e Odisseu tinham cons­pirado contra Palamedes, mas o que é certo é que a sua sediciosa influ­ência começou a crescer a cada representação da sua sátira acerca das contendas dos lideres. Os soldados rasos assistiam, riam-se e aplau­diam, e cada vez mais se convenciam de que aquela expedição a Tróia fora mal comandada desde o início e que, no fim, se revelaria uma futilidade.

Só um grande optimista é que imaginaria que um exército num estado daqueles poderia estar ansioso pelos combates que se aproxi­mavam. Agamémnon não era o mais sensato dos homens, mas tam­bém não era nenhum tolo nem estava minimamente convencido, depois do sacrifício da filha, de que aquela guerra lhe correria de fei­ção. Por isso, ficou espantado, uma manhã, ao acordar de um sonho em que os deuses lhe tinham prometido uma vitória rápida.

O Rei chamou imediatamente os seus capitães e contou-lhes o seu sonho. Aparecera-lhe uma figura sob a forma do seu mais valioso conselheiro, Nestor, exigindo saber por que razão ele estava a dormir quando o próprio Zeus já abrira o caminho para Tróia. Agamémnon jurou que o sonho não lhe deixara dúvidas de que os acaianos deviam armar-se imediatamente e tirar proveito da boa vontade dos deuses porque a oportunidade de conquistar a cidade chegara final-mente.

Os seus capitães ouviram-no, silenciosos e espantados. Até Mene­lau ficou admirado com a brusca mudança dos modos de Agamém­non porque também ele se tinha sentido oprimido pelos modos irascíveis do irmão. No entanto, ali estava ele, andando de um lado para o outro no interior da tenda enquanto falava cheio de uma confiança que não parecia ter qualquer justificação porque o dia estava cinzento e o vento, ameaçando chuva, soprava sobre o acampamento ainda a recuperar da peste.

Agamémnon olhou, frustrado, para os rostos confusos.

O que é que se passa convosco? Só acreditais em presságios maus? Estou a dizer-vos que os ventos mudaram. Os deuses estão novamente connosco. Chegou a hora de atacar.

Secretamente lisonjeado por o deus o ter escolhido para se mani­festar, Nestor foi o primeiro dos conselheiros a responder:

- Creio que estão todos tão surpreendidos como eu, e devo admitir que... bem, nas actuais circunstâncias, se outra pessoa qualquer viesse ter comigo e me falasse de um sonho assim, só muito dificilmente o levaria a sério.    O ancião virou-se, sorrindo, para os seus camaradas. Mas, meus - senhores, este é um dia extraordinário. Zeus, o maior dos deuses, apareceu em sonhos ao nosso chefe. Podemos dar-nos ao luxo de o ignorar? Eu digo que devemos reunir as nossas forças imediatamente, visto que sabemos que os deuses estão connosco.

Incrédulo, Odisseu disse:

- Já reparaste no que se passa lá fora? Se disseres àquela gente toda para pegar em armas e marchar para o combate, o mais prová­vel é fugirem para os navios. Alguns deles ainda estão doentes. Outros estão quase a amotinar-se. Vai lá fora e ouve o que aquele insolente, aquele patife do Tersites lhes está a dizer. É óbvio que não estão em forma para o combate.

Apanhados entre o sonho e a dura realidade, Ajax e Diomedes olharam um para o outro, duvidosos. Idomeneu olhava para o chão.

— Não posso contar com ninguém, senão com Nestor e com o meu irmão? perguntou Agamémnon. Eu pensava que tinha trazido condutores de homens comigo, não um bando de cobardes. Mas veja-se o que acontece Palamedes traiu-me e Aquiles acobar­dou-se e agora está escondido dentro da tenda. E agora vós, os meus amigos mais chegados, fugis quando mais preciso de vós! Muito bem. Ide para casa, se é o que quereis. Se for preciso, ganho sozinho esta guerra. Pelo menos, sei que os deuses estão comigo.

— Ninguém falou em ir para casa disse Odisseu calmamente — se bem que alguns de nós gostássemos de o fazer. Limitamo-nos a pedir-te que faças uma apreciação realista das circunstâncias.

Achas que és capaz de julgar melhor do que os deuses? É isso? Nesse caso, perdoa-me se não estou de acordo. Não tenciono perder mais tempo a ouvir um palerma como Tersites. Agamémnon virou-se impacientemente, ordenando ao seu escudeiro que lhe fosse buscar a capa e o bordão. Em seguida, olhou para os seus derrotados generais.

Antes de me aconselhardes a ter cuidado, pensai no seguinte: Temos informações de que alguns dos aliados asiáticos de Príamo foram para casa durante os meses de Inverno. Por isso, neste momento, devemos ser mais numerosos do que eles. Sim, ainda há doença no acampamento, mas o pior já passou, depois de eu ter feito um sacri­fício a Apolo e, além disso, não podemos ficar eternamente a lamber as feridas. Esta guerra tem nove anos nove anos mas foi profeti­zado que no décimo Tróia cairia e este é o décimo ano. Finalmente, os presságios estão a nosso favor e os deuses disseram-me, em sonhos, que a vitória está garantida. Se sois homens e condutores de homens, saí e reuni as vossas tropas. Tróia pode ser nossa ao fim do dia se tiverdes a coragem necessária!

Há muito que nenhum deles via aquela chama nos olhos de Aga­mémnon e ouvia aquele fervor na sua voz. Menelau sentiu-se ani­mado com a renovação da paixão do seu irmão pela causa. Ajax e Diomedes sentiram-se encorajados perante aquele desafio e em vez de exigir a separação de comandos naquele momento crucial, Ido­meneu acenou com a cabeça. Só Odisseu continuava a abanar a cabeça ao sair da tenda, pedindo inspiração a Atena.

Os nove arautos percorreram o acampamento gritando a reunir. Quando todos, menos Aquiles e os seus descontentes Mirmídones, se juntaram em redor da tenda real, Agamémnon avançou com o grande bastão que fora feito por Hefesto e passado de Zeus para Hermes, depois para Pélope e, finalmente, para o seu filho Atreu. Agamémnon recebera-o ao subir ao trono de Micenas e toda a sua autoridade de Grande Rei se baseava nele. O seu exército escutou-o, incrédulo, proclamando a sua intenção de lançar um ataque a Tróia naquele mesmo dia e quando ele acabou de falar, a assembleia ficou silenciosa, apenas se ouvindo o rugido do vento.

Então, ouviu-se a voz de Tersites.

— Bem, nós sabemos que Aquiles vai ficar na cama, quentinho, com Pátroclo. O Grande Rei tenciona ir connosco nesta expedição, ou vai nomear outro maricas qualquer para fazer o saque por ele?

Ouviram-se algumas risadas grosseiras no meio da hoste.

Nestor levantou-se e gritou, exigindo silêncio e respeito.

Respeito! gritou Tersites em resposta. — Encontra-me neste exército dez homens que tenham respeito pelo seu chefe e eu próprio saquearei Tróia com eles.

Agamémnon sentia o sangue a bater-lhe nas têmporas.

Nem todos podem ser reis — rugiu ele. — Eu tenho a auto­ridade do poderoso Zeus para liderar este exército e juro pelos seus raios que tenciono levar-vos hoje à vitória.

Por outro lado — gritou Tersites também podemos ir para casa!

Dessa vez, as risadas foram em maior número e em tom mais alto. Encorajado, Tersites disse:

Quanto a mim, estou farto de andar para cima e para baixo nas costas da Ásia sem outro propósito que não o de encher os teus cofres! E nós?

Os que estavam a seu lado começaram a murmurar, concordando com ele. Ergueram-se, das fileiras, alguns gritos. Mas os soldados, na sua generalidade, estavam tão surpreendidos com o renovado vigor e confiança de Agamémnon como os seus comandantes e os rebeldes ainda não estavam em maioria.

Então, alguém gritou:

Ouçamos o que diz Odisseu. O que é que ele diz? — E o grito foi apoiado.

De todos os comandantes, Odisseu era aquele de quem mais os soldados gostavam. Palamedes tivera o seu afecto, ensinando-os a jogar aos dados e escutando as suas queixas, mas Odisseu sempre tivera o seu respeito. Os homens gostavam do seu ar de pirata e da sua hones­tidade, quer na discussão de assuntos de estado, quer nas disputas entre eles. O príncipe de Ítaca continuava a ter a desconfiança dos do partido de Palamedes, mas este tinha morrido e a maioria dos soldados ali reunidos atirara pelo menos uma das pedras que o matara, por isso olhavam para Odisseu em busca de um líder.

Embrulhado na sua capa por causa do vento, Odisseu levantou-se para falar, esperou que o silêncio caísse e quando ia começar, Ter­sites gritou:

Palamedes confiou nesse ítaco guedelhudo e vejam o que lhe aconteceu! Cuidado, rapazes, ou ele tira-vos a pele.

Quando as risadas esmoreceram, Odisseu disse:

Tersites tem uma mente rápida. Também tem a língua afiada e eu prometo-lhe que, ou a ensina a ter boas maneiras, ou eu arranco--lha! Quanto à sugestão dele de vocês irem para casa, bem, parece-me razoável. Eu tenho saudades da cama da minha mulher tanto quanto qualquer homem aqui presente, podeis acreditar. O príncipe olhou para a expressão sombria de Agamémnon e depois de novo para a assembleia: Seria bom continuou ele pegar no meu navio e zarpar amanhã para Ítaca. Mas já ouvi os meus carneiros balirem argumentos melhores do que esse fala-barato aí. Pensai um pouco. Já aguentastes esta guerra durante nove anos nove longos e por vezes terríveis anos, durante os quais fostes feridos e vistes velhos camara­das cair em combate ou a vomitar as entranhas, com peste. E durante este tempo acumulastes algum espólio e aqueles que não o gastaram nos dados ou nas mulheres poderão regressar a casa mais ricos do que quando saíram de lá. Mas no outro lado daquelas muralhas está a cidade mais rica de toda a Ásia. Está cheia de tesouros e está pronta para ser saqueada! Não sentis o cheiro das mulheres? Não ouvis o restolhar das sedas delas? Disseram-nos que a cidade demoraria dez anos a ser conquistada. Estáveis todos em Aulis. Todos vistes a serpente a comer os pardais de Afrodite na árvore. E eu sonhei a mesma coisa em Ítaca, por isso já compreendeis por que razão eu pensei duas vezes antes de me meter neste piquenique! O meu filho Telémaco vai fazer dez anos este ano e eu ainda não lhe ouvi a voz, quanto mais vê-lo a esticar um arco, e por isso estes anos foram tão longos para mim como para qualquer um de vós. Mas pensais que vou atirá-los fora, regressando a casa antes de acabar o trabalho? Onde está a vanta­gem, regressar de mãos vazias quando, com um pouco de paciência e coragem posso levar uma parte dos tesouros da Ásia comigo? Queríeis saber o que eu penso, bem, tenho dito. Este é o décimo ano da serpente, camaradas. Os deuses prometeram-nos que Tróia cairia. Os que tiverem coragem, farão como eu, pegam nas lanças e nas espadas, seguem o nosso Rei através da planície ventosa e deitam abaixo as portas de Tróia!

Apesar de ter começado um tanto hesitante, a voz de Odisseu ganhara poder, ao mesmo tempo que sentia a hoste a aquecer e quando no fim o seu discurso atingiu o clímax, as suas palavras foram recebidas com um grande rugido. Odisseu entregou o ceptro a Nes­tor e recuou, pensando no que tinha feito.

Mas o velho Nestor continuou o que ele tinha conseguido, recor­dando à multidão de soldados como, aquando da primeira partida de Aulis, há tantos anos, Zeus enviara um relâmpago para os saudar. Também ele foi delirantemente aplaudido e quando Agamémnon avançou para dar as suas ordens, o moral do exército mudara radi­calmente. Os homens lançaram-se ao trabalho afiaram as armas, inspeccionaram as correias dos escudos e as couraças, atrelaram os cavalos aos carros e alinharam em formação de batalha. Secundado pelos seus comandantes, Agamémnon sacrificou um boi a Zeus. O grão sagrado foi espalhado e as libações foram feitas. À medida que o fumo se elevava do altar, Agamémnon pediu ao Senhor do Olimpo que não permitisse que o Sol se pusesse enquanto ele não tivesse vencido o exército de Príamo e não devastasse as suas casas e os seus palácios. Então, os arautos gritaram para que o exército avan­çasse, os portões foram abertos e o exército de Argos marchou pela planície fora.

Densas nuvens escondiam os cumes das montanhas Ideanas naquele dia, lançando uma chuva gelada, miudinha, através da planí­cie do Escamandro, para os rostos da hoste em marcha. Os cavalos sentiam-se assustados. Os homens marchavam com as cabeças baixas ouvindo o som do seu progresso no estalar do couro, no entre-chocar dos arreios e no tilintar do metal, tudo misturado com o ruído dos seus passos. A chuva ainda não era suficientemente pesada para fazer com que a poeira assentasse e esta redemoinhava em redor deles, escurecendo o ar, e quando começaram a formar um grande leque, ouviram um som seco, como se fosse um enorme bando de grous migratórios, dirigindo-se para eles, transportado pelo vento. Quando ergueram os olhos, viram a hoste troiana a avançar, ululando, ao seu encontro.

Ouviu-se um ligeiro queixume nas fileiras quando os soldados viram o tamanho do exército que marchava contra eles ao longo do monte conhecido como monte Espinhoso. Odisseu ordenou que o seu carro se adiantasse para poder ter uma vista melhor. O ítaco viu uma figura alta usando um elmo emplumado exibindo-se num carro à frente do maciço batalhão de lanceiros no centro do exército e cal­culou que devia ser Heitor; reconheceu Eneias e os dárdanos à sua direita e por trás deles brilhavam os escudos e os estandartes dos frígios, dos mísios e das fileiras cerradas dos guerreiros trácios. No flanco esquerdo estavam os licios, os carianos e os pelasgos de Larissa, mas havia outras forças mais exóticas — arqueiros peónios com os seus arcos curvos, pafaglonianos das terras a sul do mar Negro e até um contingente dos distantes agilinos. A esperança de Agamémnon, de que as forças de Príamo eram menores, pareceu-lhe tão duvidosa e quimérica como o seu sonho.

O vento também soprava, atirando com a poeira para os olhos dos homens, mas quando Odisseu olhou para as linhas dos soldados de Argos sentiu o que a hoste de Príamo também devia estar a sen­tir. Mesmo sem Aquiles e os seus Mirmídones cuja falta se faria, provavelmente, sentir antes de o dia terminar - aquelas linhas eram grandes, fortes e bem armadas. E uma vez iniciada a batalha, os guer­reiros de Argos não poderiam fazer outra coisa senão seguir em frente, porque com o mar nas suas costas, não havia outro sítio para onde ir.

Odisseu virou o seu carro e foi juntar-se a Agamémnon e a Ido­meneu, em conferência no centro das linhas.

Eles têm a vantagem da colina - disse ele. - Heitor não nos vai atacar já, por isso nós devíamos cerrar os dentes e cair-lhes em cima.

Agamémnon acenou severamente com a cabeça.

— Vou mandar avançar primeiro os arqueiros locrianos. Idome­neu fará o mesmo com os seus arqueiros cretenses. Faremos, assim, um primeiro desbaste.

Está a levantar-se nevoeiro, também disse o cretense — é capaz de nos dar alguma cobertura.

Então, ataquemos e oremos disse Odisseu, sorrindo. Boa caçada, meus senhores. — O príncipe já se preparava para orde­nar ao seu condutor que virasse o carro quando Agamémnon disse:

Olá, o que é isto? Os três homens semicerraram os olhos na direcção das linhas troianas, onde um carro descia da colina erguen­do poeira e pedras, aclamado pela hoste. O veículo de guerra era puxado por dois cavalos negros com as crinas adornadas a vermelho, da cor da pluma do elmo do condutor. Vestido com uma pele de pantera e com um arco a tiracolo, o guerreiro transportava uma espada no também vermelho cinturão que lhe cruzava a couraça e tinha duas flechas fixas na calha a seu lado.

— Parece que vem ali um candidato a herói — disse Agamém­non. — Alguém o reconhece?

Os outros abanaram as cabeças. Então, das linhas troianas saiu outro carro, que seguiu o primeiro pela encosta abaixo. Na base, ambos os veículos pararam e seguiu-se uma breve troca de palavras entre os dois condutores antes de continuarem a avançar lentamente, lado a lado, através da planície.

— O segundo é Heitor — disse Odisseu. — Vi-o a ordenar o cen­tro da hoste ainda há pouco. — O príncipe virou-se ao ouvir o som de um carro e viu Menelau correr na sua direcção, abandonando as linhas espartanas, com o suor a fumegar no flanco dos cavalos. A poeira elevou-se quando os cavalos estacaram, ofegando e resfol­gando. Odisseu viu um ardor feroz nos olhos do Rei de Esparta.

O dos cavalos negros é guiado por Páris gritou Menelau. — Reconhecê-lo-ia em qualquer parte. Creio que chegou a minha hora, irmão.

Sem deixar de olhar para os dois carros que se aproximavam, Agamémnon acenou com a cabeça. O vento fez esvoaçar o penacho do seu cavalo.

Páris deteve o seu carro de combate a cerca de cinquenta metros das linhas gregas, mas Heitor aproximou-se mais, erguendo bem alto a sua cabeça emplumada. A luz do Sol, algo enevoada, reflectia-se no seu escudo. Ouviu-se um grito vindo das linhas gregas. Logo a seguir, uma pedra voou na sua direcção, passando a cerca de um metro dele, mas os cavalos assustaram-se e relincharam. Seguiu-se outra pedra, que caiu mais perto. Quando Heitor puxou as rédeas, os cavalos aba­naram as cabeças e os gregos puderam ver os seus olhos esgazeados e as suas narinas frementes.

Chega gritou Agamémnon para a sua retaguarda. — Estamos na presença de um príncipe troiano. Mostrai alguma cortesia antes de o fazermos morder o pó!

Heitor puxou o elmo para trás para poder ser visto e ouvido.

— Tenho a honra de me dirigir a Agamémnon, filho de Atreu, o Leão de Micenas e Grande Rei de toda a Argos? gritou ele por cima do vento.

Tens.

Nesse caso, bem-vindo a Tróia. Felicito-te por teres tido a coragem de nos defrontares, finalmente. O príncipe olhou para um e outro lado das linhas gregas e depois de novo para Agamémnon, sorrindo. - Se bem que lamente a ausência de Aquiles.

Lamenta-la mais do que eu troçou Agamémnon. Estamos aqui para combater, não para conversar. Diz o que queres e põe--te a andar.

— Muito bem! O meu irmão, o nobre príncipe Páris, está ali atrás pronto para se defrontar com qualquer dos teus campeões para resol­ver este conflito de uma vez por todas. Ele concorda com a ideia de que os seus actos é que são a causa desta guerra e não quer ver mor­rer desnecessariamente tantos homens por sua culpa. Por isso, que as tropas baixem as armas enquanto o duelo decorre e que quem ven­cer que fique com a dama Helena e com toda a sua fortuna, ao mesmo tempo que os restantes juram pela sua honra e pelo seu san­gue um pacto de paz e amizade.

Uma rabanada agitou as crinas dos cavalos de Heitor. Um deles mordeu o freio. A sua brida tilintou. Ao longo das linhas, os homens tentavam escutar.

Agamémnon encostou-se à balaustrada do seu carro. O Rei ia declarar que não trouxera o seu exército de Argos, atravessando meio mundo, para assistir a um duelo quando o seu irmão disse:

— A hora é minha, irmão. Deixa-me aceitar o desafio. Tenho esse direito.

Agamémnon viu a confiança nos olhos do irmão. O Grande Rei não tinha interesse em nenhum pacto de amizade, mas também não podia negar a Menelau a hipótese de vingança. O Rei dos Homens acenou com a cabeça e Menelau fez avançar o seu carro.

Conheces-me há muito tempo, Heitor!   gritou ele. Conhecemo-nos em tempos melhores do que este. Partilhei o pão e o vinho contigo e adorámos juntos os mesmos deuses. Lembro-te de um tempo em que falávamos de amizade, tu e eu. Mas se és o homem honesto que eu acredito que sejas, reconhecerás que o ofendido sou eu. Abusaram da minha confiança. A minha hospitalidade foi vio­lada. A minha amizade foi desonrada. E o vilão que fez tudo isto está atrás de ti, cada vez mais pálido à medida que eu falo.

Por um momento, Menelau prendeu o olhar de Páris e depois virou a cabeça, ignorando-o.

O que disseste ainda agora é verdade - continuou Menelau - basta mais uma morte e os deuses já apontaram para ele. Páris e eu ajustaremos as nossas contas de uma vez por todas. Talvez depois, quando eu tiver o meu pé em cima do cadáver dele, possamos, de novo, falar de amizade.

Agamémnon fez menção de intervir, mas Menelau ergueu uma mão para o deter.

       Manda vir dois carneiros para um sacrifício! - gritou ele para Heitor. — Um macho negro e uma fêmea branca, e nós faremos o mesmo. Depois, vai buscar o teu pai, Príamo, a Tróia, para que ele jure o acordo, porque não confio na palavra dos seus dois filhos.

Heitor olhou para Agamémnon, que suspirou antes de acenar com a cabeça. Dos dois exércitos, em frente um do outro, ergueu-se um murmúrio. Heitor e Páris retiraram-se e enquanto era enviado um mensageiro a Tróia para trazer Príamo, juntaram-se os carneiros para o sacrifício, os carros de guerra e os arqueiros saíram da frente de ataque e os soldados baixaram as lanças e os escudos.

Durante os anos difíceis que vivera no interior das muralhas de Tróia, Helena nunca sentira o seu coração tão pesado como naqueles momentos, no alto da muralha, por cima da Porta Ceias, vendo Páris guiar o seu carro pela planície fora para se confrontar com a hoste grega.

De madrugada, tentara convence-lo a não fazer o que tencionava. Mas ele, como fazia já desde há alguns anos, ignorou-a porque o seu orgulho era mais susceptível aos insultos dos seus irmãos do que o seu coração aos sentimentos complicados de Helena. O pior era que, adorando-a como a adorava, Páris não compreendia por que razão ela não queria que ele triunfasse sobre o homem a quem ele a roubara.

Para Helena, aqueles anos não tinham sido o sonho de amor que a tinham levado a fugir de Esparta. Venerada por alguns e odiada por outros, era uma solitária numa cidade estrangeira. Felizmente, Etra fazia-lhe companhia. Não fora isso e teria ficado reduzida ao amor de Páris, apesar de o Rei Príamo também ter ficado fascinado com a sua beleza. De certo modo, Helena sentia que o pai a compreendia melhor do que o filho porque Príamo também sofrera o suficiente e reconhecia os ferimentos por trás da beleza. O velho Rei sabia que ela sofria e que se sentia oprimida pela inveja e maledicências das mulheres à sua volta. Acima de tudo, compreendia a sua melancolia e sentimento de culpa por ter abandonado a sua filha -- uma criança que devia ser agora mais velha do que a própria Helena quando Teseu e Pirítoo a tinham raptado. O velho Rei compreendia por que razão Helena nunca poderia ser verdadeiramente feliz em Tróia.

Príamo compreendia, mas Páris não. Desde o princípio que este vivia um sonho de amor egoísta, extasiado. E Helena fora arrastada para esse sonho, transformando a sua vida, vivendo-a com uma inten­sidade que ela nunca conhecera. Era como se aquele amor os tivesse transportado a um reino excepcional, um reino cujas paisagens se reflectiam nas águas azuis povoadas por golfinhos dos mares que tinham atravessado, no encanto do templo de Afrodite, em Chipre, e nas dunas do Egipto onde a adoração de um pelo outro era total, como o amor eterno entre Ísis e ()siris. Mas, depois, tinham regres­sado a Tróia e após a primeira exaltação da entrada triunfal na cidade, o mundo fechara-se gradualmente à sua volta. Como poderia ter sido de outra maneira se o mundo estava em guerra e o seu amor era a causa?

Porque a vida, em Tróia, nos últimos anos, era mais dura do que os gregos, acampados nas suas trincheiras, poderiam imaginar. À medida que as cidades aliadas eram atacadas e queimadas, os Troia­nos perdiam os mercados dos seus produtos e a fonte dos seus abas­tecimentos. Os preços subiram e os luxos a que a população estava habituada deixaram de existir. A comida foi racionada. A ansiedade cresceu e quando os gregos desembarcaram na costa dárdana, o pânico percorreu a cidade. No meio daquilo tudo, Páris e Helena, que tinham sido os ícones da grandeza da cidade, eram agora olhados como a principal causa dos seus problemas. Ficaram cada vez mais isolados com um amor que perdera a intensidade arrebatadora de uma paixão ilícita e que não encontrara outra razão mais substan­cial para continuar a existir. Tornou-se difícil, para ambos, não se cul­parem mutuamente pelo que lhes estava a acontecer.

Havia noites em que ficavam deitados lado-a-lado, tensos e mudos, como dois prisioneiros confinados por um crime de que não se podiam arrepender ou que não podiam perdoar. Madrugadas, tam­bém, quando, depois de ter chorado a sua filha durante horas, Helena olhava para a forma indistinta, vulnerável e familiar do estranho dor­mindo a seu lado, perguntando a si própria como fora capaz de arris­car a paz do mundo apenas para estar com ele, amá-lo, segui-lo, derreter-se nos seus braços.

E agora, na muralha, vendo-o ir ao encontro de Menelau e da morte, era como se todo o amor e ternura da sua vida tivessem de se subordinar à violência dos dois homens que mais amava no mundo. Helena sabia que o homem a quem fugira devia odiá-la, ao mesmo tempo que o outro homem, causa dessa fuga, deixara o quarto de ambos perturbado e zangado por ela não ser capaz de rezar para que ele vencesse.

O Rei Príamo estava ao lado de Helena, na muralha, a sua capa esvoaçando ao vento que soprava pela planície onde o exército grego se preparava para atacar a sua cidade. O Rei era um ancião cuja con­fiança se evaporara com os anos. Tal como Agamémnon, também ele sonhara com um conflito rápido, durante o qual os poderes de ambos resolveriam a questão de uma vez por todas, mas aquela longa guerra de desgaste esgotara as forças e os cofres de ambos. À medida que chegavam as notícias de cidades queimadas umas a seguir às outras, de breves sucessos seguidos por imediatos recuos, de navios afundados e exércitos dizimados pela peste, de amigos e aliados mor-tos e respectivas mulheres violadas, o estado de espírito do velho Rei variava, umas vezes ultrajado e desafiador, outras melancólico quando era assombrado por imagens da sua juventude. Por vezes, acordava durante a noite, recordando-se de como os sacerdotes de Apolo e Cas­sandra, a sua louca filha, tinham profetizado a ruína da cidade e via vezes sem conta o corpo do seu pai Laomedonte chacinado por Héra­cles na cidadela de Ilium, enquanto as mulheres gritavam no palá­cio em chamas.

Príamo pedira a Helena, naquela manhã, que se juntasse a ele na muralha porque a sua presença era uma consolação constante para a sua perturbada mente, mas quando lhe pediu que lhe apontasse os heróis gregos que até ali não tinham passado de nomes, viu-se con­frontado com a gravidade da sua situação. Não viu apenas Agamém­non e Menelau, Ajax e Diomedes, Odisseu e Idomeneu, formidáveis nos seus uniformes de guerra: viu também, aterrado, o tamanho da hoste anónima à sua volta — milhares de guerreiros vindos das cida­des, das montanhas, das planícies e ilhas de Argos e de lugares ainda mais distantes, com o único propósito de esventrar as grandes muralhas em redor, chacinar o seu povo e saquear a sua cidade até ao último tostão. O que levara anos de engenho, astúcia e perseverança a construir, poderia ficar reduzido, no espaço de um dia, a um monte de fumo e cinzas.

Príamo rezara aos deuses, fizera-lhes oferendas e também tinha poder e aliados fortes do seu lado, recebera relatórios sobre doenças e deserções no campo grego e toda a gente em Tróia se alegrara ao saber que Aquiles, filho de Peleu, o jovem assassino feroz cujo nome e feitos gelavam até os corações mais corajosos, tinha retirado as suas forças. Assim, naquela manhã, havia esperança e perturbação no cora­ção de Príamo.

Então, apareceu o mensageiro com a notícia de que o assunto ia ser resolvido num combate singular entre Páris e Menelau, coisa que nunca fora sua intenção fazer. Ninguém lhe dissera nada antes de abandonarem a cidade. Príamo tinha mais confiança nas suas forças e na força das suas muralhas do que na habilidade e coragem do seu filho. Que teria acontecido para que Heitor concordasse em arriscar tudo num único golpe? Só podia ser o mesmo coração imprudente que ocasionara aquela guerra, tentando terminá-la rapidamente.

Príamo virou-se para Helena, que estivera a nomear os inimigos que em tempos tinham sido pretendentes à sua mão e viu-a a tremer.

— Sabias alguma coisa disto?

— Temia-o. — A sua voz era um murmúrio por cima do vento. — Temia-o desde o princípio.

Príamo virou-se e chamou Antenor.

— Podemos impedir esta loucura? perguntou ele. — O nosso exército tem a vantagem do terreno. Temos boas hipóteses de ganhar. Mas se Páris perde o combate... — O Rei deteve-se, abanando a ca-beça. — Não faz sentido. Temos de impedir isto.

Solenemente, Antenor disse:

— Está tudo nas mãos dos deuses.

Príamo olhou para ele, desconfiado.

— Eu sei que não gostas de Páris.

O conselheiro nem sequer pestanejou perante a acusação.

— Mas ninguém pode duvidar do meu amor pelo meu Rei e pela minha cidade — respondeu ele rapidamente. — Se Páris já lançou o desafio, não podemos forçá-lo a retirá-lo sem nos humilharmos. Os gregos pensarão que é cobardia e os nossos homens ficarão desa­nimados. Sinto nisto a mão dos deuses, meu senhor. Que esta guerra acabe como começou — nas mãos do teu filho.

Agamémnon e os seus comandantes viram Príamo a sair da Porta Ceias de Tróia com Antenor a seu lado, no carro de combate. Viram os seus homens aclamarem-no enquanto passava pelas linhas troia­nas, parando por momentos para falar com o chefe de uma compa­nhia de arqueiros e depois com Heitor e Páris, cujos carros se puse­ram atrás do seu. Em seguida, o Rei avançou com os seus arautos pela planície e aproximou-se de Agamémnon e do seu estandarte esvoaçando e batendo ao vento.

Os dois Reis aproximaram-se dos quatro carneiros prontos para o sacrifício e olharam um para o outro durante alguns momentos, sabendo ambos que o fardo que transportavam tinham mais a ver com cada um deles do que com os milhares de homens que os observa­vam enquanto erguiam as mãos numa saudação mútua. Agamémnon achou Príamo mais velho e mais cansado do que esperava, enquanto o Grande Rei dos Troianos achou que a coragem do Leão de Micenas era provavelmente menos forte do que o seu corpo vigoroso. No entanto, sabiam ambos que cada um podia extinguir o poder e a vida do outro para sempre e, durante alguns momentos silenciosos, o res­peito reinou entre eles.

Agamémnon quebrou o silêncio.

- Os nossos arautos combinaram os termos deste conflito. Concordas com eles? — Quando Príamo se limitou a acenar com a cabeça, acrescentou: — Então, prossigamos com o ritual.

Os dois Reis desceram dos seus carros. Depois de ter lavado as mãos, Agamémnon agarrou num dos carneiros, cortou alguns cara­cóis de lã da sua cabeça e passou-os a Taltíbio, que os distribuiu pelos capitães presentes. Em seguida, o Grande Rei de Argos ergueu a cabeça e os braços na direcção do Monte Ida envolto em nuvens.

— Pai Zeus gritou ele maior e mais glorioso dos deuses, tu que olhas pelo destino dos homens do alto do Monte Ida, convido-te neste dia, assim como convido o grande Sol que vê tudo, a Terra e os seus Rios, os Poderes do mundo subterrâneo, que guarda os homens responsáveis pelas suas palavras. Sê testemunha do nosso juramento e faz com que ele seja cumprido. Se Páris matar Menelau neste combate, ele que fique com a dama Helena e com toda a sua riqueza, que nós, pela nossa parte, abandonaremos Tróia, deixando-a em paz. Mas se o meu irmão Menelau vencer Páris, os troianos devem entregar-lhe a sua mulher Helena juntamente com o seu tesouro, reparando, ao mesmo tempo, a hoste de Argos de tal forma que as gerações vindouras recordem para sempre o preço da traição. Mais, se Páris morrer e o Rei Príamo não fizer tal reparação, ficarei aqui com o meu exército e continuarei a lutar até que a dívida seja totalmente paga. juro solenemente.

Agamémnon baixou os braços e virou o olhar para Príamo. O Rei de Tróia aguentou-lhe o olhar durante alguns momentos e, finalmente, disse:

— Também juro.

Os arautos agarraram nos carneiros, levantaram-nos, os dois Reis cortaram-lhes as gargantas e o sangue espalhou-se pelo solo. Momen­tos mais tarde, misturava-se com as libações de vinho enquanto Aga­mémnon dizia:

Que os cérebros daqueles que quebrarem este juramento se espalhem pelo chão até à segunda geração, tal como este vinho. Em seguida, os dois Reis inclinaram as cabeças numa oração silen­ciosa, enquanto as duas hostes testemunhavam o acto, ao mesmo tempo que o vento húmido levava consigo as palavras do Rei de Argos.

Menelau foi o primeiro a erguer a cabeça e olhou para Páris, medindo-o e achando que o troiano ganhara peso desde que o vira pela última vez. O seu rosto parecia mais balofo. O Rei de Esparta sentiu-se mais forte, enquanto Páris continuava a olhar em frente, impassível, recusando cruzar o olhar.

Afastando os cabelos brancos do rosto, Príamo virou-se para Agamémnon:

Sinto o peso dos anos e não quero observar estes dois homens a combater pelas respectivas vidas. Vou regressar à minha cidade, certo de que os deuses imortais já sabem qual deles receberão dentro em pouco. — Erguendo um braço numa saudação, o monarca virou-se para se agarrar à balaustrada do seu carro e, na companhia de Antenor, regressaram a Tróia.

Enquanto os arautos arranjavam espaço e mediam a distância a partir da qual as lanças seriam arremessadas, Odisseu colocou duas marcas no seu elmo — uma para cada um dos combatentes e pas­sou-o a Heitor, que o abanou até uma das marcas saltar. Odisseu bai­xou-se para a apanhar e ergueu-a na ponta dos dedos para que todos a vissem. Então, gritou:

O direito de fazer o primeiro arremesso pertence a Páris.

A chuva caía cada vez com mais força enquanto Páris e Menelau, com as gargantas secas, eram despojados das suas capas pelos seus ajudantes, satisfeitos pelo vinho e água que lhes era oferecido, ouvindo meio distraídos os seus conselhos enquanto as armaduras lhes eram ajustadas e tentando, até, brincar com a situação. Em seguida, os filhos de Atreu abraçaram-se e os filhos de Príamo fizeram o mesmo. Ambos os contendores puseram os elmos e colocaram-se em posi­ção, cada um com uma espada à ilharga, o escudo numa mão e uma longa lança na outra. Os gritos de encorajamento explodiram de ambos os lados. Depois, ficou apenas o som do vento.

Páris balançou a lança na mão, flectiu as pernas e testou o solo por baixo dos pés. Como se a sua vida tivesse sido direccionada para aquele momento fatídico, virou o rosto para o vento, tentando calcu­lar a sua força. O príncipe murmurou uma oração a Afrodite, olhou para cima e fixou o olhar na figura vestida de armadura na sua frente, a alguns metros de distância. O rosto de Menelau e os seus cabelos ruivos estavam escondidos por baixo da curva de bronze do seu elmo, mas Páris conhecia ambos muito bem. O príncipe recordou as vezes em que aquele rosto sorrira durante as muitas horas em Tróia e na Dardânia, quando ainda eram amigos, recordou Menelau com o avental cheio de sangue no templo de Atena e como ele o recebera em Esparta. A fúria acumulada durante aqueles anos todos devia estar prestes a explodir no interior daquele homem cujo ódio devia ser imenso. Quem o poderia culpar por isto? E quem os poderia cul­par aos dois por amarem Helena? Talvez, pensou Páris, com um súbito sobressalto no coração, não tivessem passado, os três, de simples brinquedos nas mãos dos deuses que olhavam agora do alto do Monte Ida para a única coisa, nas suas vidas imortais, que nunca poderiam sentir — o medo e a morte.

Num único e fluido movimento, Páris ergueu o escudo no braço esquerdo, passou o peso do corpo para a perna direita e distendeu os músculos, como uma serpente. A longa lança silvou e oscilou enquanto viajava pelo ar, atingiu o ponto mais alto da sua trajectória e depois mergulhou rapidamente para mergulhar a sua ponta de bronze no escudo do Rei de Esparta. Menelau vacilou sob o choque, mas a arma caiu ao chão, inútil. O soberano riu alto, certo de que não se ilu­dira quando sentira o cheiro da vitória no vento.

A terra pareceu viver sob os seus pés. O Rei de Esparta podia sentir o cheiro da chuva no vento. Menelau respirou fundo e mur­murou uma oração ao poderoso Zeus para que fizesse justiça, finalmente, contra o homem que tanto o enganara. Em seguida, concen­trou todos os seus sentidos na figura detestada na sua frente, ergueu o braço com o escudo e arremessou a lança com todas as suas forças.

Tão grande era a emoção por trás do lançamento que a lança atravessou o escudo de Páris e teria despedaçado a placa de bronze que protegia o coração do troiano se este não se tivesse desviado ins­tintivamente. A arma atravessou-lhe a túnica, no flanco, ferindo-o e fazendo-o sangrar. Desequilibrado pelo peso encravado no seu escudo, Páris viu que a ponta entrara demasiado no escudo para poder ser arrancada e, assim, não teve outro remédio senão deixá-lo, ao mesmo tempo que Menelau se aproximava brandindo a sua espada nua.

Nenhum dos homens ouviu o grande rugido que saiu das duas hostes. Nenhum dos homens teve tempo para se aperceber de que a chuva lhes zurzia os rostos e que uma névoa húmida os começava a rodear. Páris desviou-se, de modo que o golpe de Menelau falhou. No mesmo instante, freneticamente, o príncipe troiano tentou desem­bainhar a sua espada, mas Menelau virou-se rapidamente e quase o fez cair com um golpe do seu escudo. Os rugidos e os gritos eram levados pelo vento de ambos os lados das hostes, mas a chuva come­çou a cair com tanta força que dificilmente se percebia o que estava a acontecer. Páris recuava, na defensiva, apenas com a placa de bronze entre o seu corpo e a força ofensiva de Menelau. O príncipe troiano conseguiu deter dois ou três golpes mas, finalmente, um violento golpe do escudo de Menelau atirou-o ao chão. Instantaneamente, o Rei de Esparta ergueu a sua espada e deixou-a cair com uma força tremenda no elmo de Páris, mas a lâmina de bronze resvalou numa das suas esquinas e partiu-se.

Páris pôs-se de novo em pé, abalado pelo golpe. Amaldiçoando a sua má sorte, Menelau lançou o cabo da espada inútil ao seu adver­sário, agarrou-o pela pluma do elmo e ergueu-o do chão. Largando o escudo, atirou todo o seu peso contra o corpo de Páris e durante algum tempo os dois homens lutaram no chão como dois cães enquanto a chuva caía, transformando os sulcos em ribeiros e a poeira em lama. Menelau conseguiu pôr-se de pé e através da cortina provocada pela chuva todos viram que ele tinha Páris seguro pelas cor­reias do elmo e que o arrastava na direcção das linhas gregas.

Como se as nuvens se tivessem rasgado devido ao grito vindo da hoste de Argos, os céus abriram-se e a chuva desabou na planície com tanta força que os homens baixaram as cabeças e cobriram os rostos com as mãos. O céu estalou. Os cavalos, ao longo das duas linhas, assustaram-se e relincharam. O mundo parecia só água e durante algum tempo nenhum dos exércitos conseguiu avistar o outro. Quanto aos dois homens, era como se estivessem a lutar numa ilha remota qualquer, não conseguindo ver para além de um metro de distância. Então, Menelau desequilibrou-se. O seu corpo oscilou, inclinou-se, os seus pés escorregaram na lama e ele caiu, olhando, espantado, para as correias que se tinham rebentado.

Meio estrangulado, ferido e a sangrar, Páris rastejou pela lama e conseguiu pôr-se de pé. Antes que Menelau conseguisse recuperar da queda, o príncipe virou-se e fugiu na direcção das linhas troia­nas, procurando o local onde tinha deixado o seu carro de combate.

Mais tarde, os homens disseram que Zeus, por razões só dele conhecidas, teria permitido que Afrodite enviasse a tempestade. Só uma intervenção divina podia ter protegido Páris de uma morte que esperava por ele se Menelau tivesse conseguido arrastá-lo até onde o Rei de Esparta pudesse encontrar uma arma. Fora também, disseram alguns, uma espécie de justiça— porque Zeus respondera ao pedido que Menelau lhe fizera para que lhe concedesse a vitória e Afrodite levara o seu protegido para a câmara onde Helena o esperava para o socorrer. Mas a verdade é que, se bem que muitos homens espe­rassem fervorosamente que o conflito pudesse ser resolvido entre Páris e Menelau, poucos acreditavam que Agamémnon regressasse a casa se o seu irmão morresse na lama, ou que Príamo abrisse mão da sua riqueza, juntamente com o cadáver do seu filho.

Assim, parecia que, tanto os deuses, como os mortais, tinham as mentes fixas na guerra porque, se não, como se explica o facto de a chuva ter desaparecido tão depressa como apareceu, deixando ape­nas uma luz amarelada, no meio da qual se podia ver a figura solitá­ria de Menelau gritando furiosamente a Páris para que regressasse e lutasse com ele?

Nem foi o fim de tudo porque um arqueiro de nome Pândaro escolheu aquele momento para sair das linhas troianas, esticar o seu arco feito a partir dos cornos de um ibex, e desferir uma flecha em Menelau no momento em que o Rei de Esparta gritava no meio da planície encharcada. O filho mais novo de Atreu foi salvo da morte porque a ponta da flecha lhe acertou na fivela do cinto, de modo que a sua força já era menor quando lhe atravessou o colete e a jaqueta de pele.

Agamémnon viu o irmão vacilar e cair. Ultrajado com aquela vio­lação traiçoeira do juramento, o Rei gritou ao seu cirurgião, chico­teou os seus cavalos e aproximou-se do local onde Menelau jazia, san­grando, com a flecha espetada no corpo. Saía tanto sangue do ferimento que os dois homens pensaram que o golpe tinha sido mortal. Agamémnon rugiu de dor e de raiva, amaldiçoou os Troianos e clamou por vingança. Mas, tendo recuperado do choque inicial, Menelau apalpou o ferimento e percebeu que nenhum órgão tinha sido atin­gido. O Rei de Esparta já assegurava ao seu irmão que estava tudo bem quando o cirurgião Macáom apareceu com uma companhia de guardas que rodearam o guerreiro ferido. Agamémnon ficou a ver Macáon a expor o ferimento e a retirar a flecha. Quando o médico já limpava a chaga e lhe aplicava alguns unguentos, Agamémnon olhou para cima e viu que os troianos se preparavam para atacar.

O Grande Rei precipitou-se para junto das suas linhas e mandou tocar a reunir. Todos os seus comandantes se prepararam para a acção excepto Diomedes de Tiríntio cujos homens estavam demasiado afas­tados e ainda não se tinham apercebido do que estava a acontecer. Mas Diomedes respondeu rapidamente às ordens aflitivas de Aga­mémnon e mandou avançar rapidamente os seus homens, de modo que os dois exércitos entrechocaram-se com grandes gritos ao longo da grande linha.

Antíloco, um dos filhos de Nestor, foi o primeiro a matar. A lança que ele arremessou atingiu um troiano na testa, totalmente coberto com uma armadura, espalhando-lhe os miolos no interior do elmo. No outro lado, Antifo lançou um dardo a Ajax que falhou o alvo, mas que apanhou outro homem na virilha. Em seguida, o sangue come­çou a esguichar por todo o lado e como os gregos estavam furiosos com o ferimento feito a Menelau, o seu ímpeto foi tal que empurra­ram os troianos pelo monte acima.

Vendo o que estava a acontecer, Heitor conduziu o seu carro para a frente da batalha e tratou de reunir os seus guerreiros, lembrando-lhes que Aquiles não estava no campo de batalha. Os troianos reju­bilaram com aquele grito e a planície passou a pertencer a Ares, deus da guerra, com os seus dois filhos Fobo e Deimo, o Pânico e o Temor, rugindo, e os homens continuando o seu trabalho sangrento, cortando, espetando, protegendo-se dos golpes com os escudos ou caindo de joelhos agarrados às próprias entranhas quando o último grito lhes saía das gargantas e a escuridão descia sobre eles.

Tanto Agamémnon, como Idomeneu, provaram o seu valor como líderes no campo de batalha, naquele dia, mas quando os homens já lavavam as suas feridas e falavam dos grandes feitos cometidos, todos concordaram que, de todos, Diomedes se distinguira pela sua feroci­dade e valor. A ira de Agamémnon, no começo da batalha, deve tê--lo forçado a mostrar a sua coragem porque o seu carro de combate esmagou-se nas linhas troianas, espalhando o pânico. Quando o seu ombro recebeu outra flecha disparada por Pândaro, Diomedes pediu a um camarada que lhe arrancasse o projéctil, pediu a ajuda de Atena e avançou pelo meio dos carros troianos chacinando condutores e guerreiros.

Quando Eneias viu que aquele assalto furioso se arriscava a pro­vocar uma ruptura nas linhas dárdanas, chamou Pândaro para o seu carro e carregou sobre Diomedes. Mas o senhor de Tiríntio ouviu um grito de aviso e desviou-se, de modo que a lança arremessada por Pân­daro embateu primeiro no seu escudo e depois na armadura. Quando o carro de Eneias passou por ele, Diomedes arremessou a sua pró­pria lança. A arma atingiu Pândaro no queixo, partiu-lhe os dentes e entrou-lhe pela garganta abaixo. A força do golpe atirou-o do carro abaixo. Instantaneamente, Eneias refreou os seus cavalos para socorrer o seu amigo caído. Diomedes saltou do seu carro, apanhou uma pedra do chão e atirou-a a Eneias, atingindo-o no osso ilíaco com tanta força que o príncipe dárdano desmaiou de dor. Eneias teria, certamente, morrido no momento seguinte se alguns combatentes não se tivessem intrometido entre ele e o seu adversário.

Tão estranhos e poderosos foram os acontecimentos naqueles momentos que os homens sentiram a presença dos deuses. Alguns disseram que Afrodite protegeu o seu filho com o próprio corpo, de modo que foi a própria deusa que foi ferida num braço pela lança de Diomedes quando procurava levar Eneias para longe. Dizem que, então, Ares a socorreu, erguendo-a para o seu carro e afastando-a do campo de batalha para onde a sua mãe Dione a poderia consolar e tratar-lhe do ferimento. Entretanto, Diomedes continuava a lutar tentando furiosamente chegar a Eneias no meio da refrega e só foi impedido devido à intervenção do Divino Apolo, que o avisou do perigo que qualquer mortal corre por se atrever a pegar em armas contra os deuses.

A maré da batalha pareceu mudar naquele momento. Diomedes lutava com tanta ferocidade que os homens disseram que ele teria morto o próprio Ares se o tivesse encontrado em pleno combate, mas Heitor aguentou firmemente no centro e o flanco troiano encontrou as forças necessárias para repelir os gregos. Assim, a batalha foi conti­nuando através da planície durante todo o dia, com a vantagem a mudar de lado constantemente em diversos pontos ao longo das duas linhas.

Menelau juntou-se de novo ao combate sem se preocupar com o ferimento e ia em perseguição de um rico e jovem guerreiro chamado Adrestos quando viu uma roda do carro troiano emaranhar-se no ramo de uma tamargueira. O carro mudou de direcção, inclinou-se, o eixo partiu-se e Adrestos foi atirado ao chão. Enquanto os cavalos, relinchando, fugiam a galope, Menelau saltou do seu carro para tres­passar o guerreiro caído, mas Adrestos agarrou-se-lhe aos joelhos, pedindo-lhe que lhe poupasse a vida e prometendo-lhe que o seu pai lhe pagaria uma fortuna de resgate pelo filho amado. Menelau ia chamar ajuda para escoltar o prisioneiro quando Agamémnon apare­ceu, exigindo saber por que razão o seu irmão se mostrava tão amá­vel com aquele troiano.

Por que razão hás-de pensar num resgate quando poderás, dentro em breve, levar contigo o tesouro todo da família dele?  

berrou ele.    Acaba com ele.

Menelau arrastou Adrestos consigo. O Rei de Esparta ainda estava a olhar para o rosto aterrorizado do jovem guerreiro quando Aga­mémnon ergueu a sua lança e a cravou no flanco do jovem troiano. Lançando um grito, Adrestos caiu de costas no chão. Agamémnon colocou-lhe um pé no estômago, puxou a lança, virou-se e continuou a incitar os seus homens.

Ao crepúsculo, quando ambos os lados já estavam exaustos, houve uma acalmia na batalha. Apercebendo-se de que os seus troianos pre­cisavam de uma alma nova, Heitor colocou-se entre as duas frentes e gritou, desafiando quem quer que fosse para um combate singular, mas a sua reputação de guerreiro era tão terrível que nenhum dos cam­peões gregos se ofereceu para o defrontar. Menelau tê-lo-ia feito, mas o seu irmão impediu-o e Nestor começou a vociferar contra aquela geração nova de guerreiros sem coragem. Espicaçados pelas palavras do ancião, nove deles ofereceram-se, incluindo Diomedes, cujo ombro estava entorpecido devido ao ferimento que recebera antes. Foram lançadas sortes para ver quem teria a honra de defrontar Heitor e o felizardo foi o filho de Télamon, Ájax, o príncipe de Salamina.

Assim, o dia chegou ao fim como começara, com dois heróis defrontando-se entre as duas frentes. Mas de imediato se percebeu que, daquela vez, a luta seria mais equilibrada. Se bem que ambos os campeões se tivessem ferido um ao outro, nenhum deu a vitória ao outro e assim continuaram a combater, rugindo e arfando, trope­çando quando as suas espadas falhavam o alvo, até que a planície ficou às escuras. Finalmente, de mútuo acordo, os dois arautos — Taltíbio pelos gregos e Ideu pelos troianos intervieram com os seus bastões para separar os dois guerreiros exaustos.

É evidente que sois ambos amados pelo Grande Zeus, Aquele que Reúne as Nuvens — disse Ideu. - Mas já não há luz. Parai o combate.

Foi Heitor que me desafiou - disse Ájax, arquejante. – Só baixo a minha espada se ele der a sua palavra.

Heitor pensou apenas durante um momento, antes de tirar o elmo.

Temos tempo para descobrir qual de nós é melhor, mas o que Ideu diz é verdade. Esta batalha foi longa e dura, a luz é pouca e estamos ambos demasiado cansados para dar o nosso melhor. Acho que devemos dar o dia por terminado. — O príncipe troiano aceitou o aceno de cabeça de Ajax e sorriam um para o outro numa atitude de respeito mútuo.

Devíamos trocar lembranças em honra das nossas proezas mútuas disse Heitor para que os nossos amigos possam dizer que lutámos bem e que nenhum de nós regressou derrotado do campo de batalha. — Quando Ajax concordou alegremente com a oferta, Heitor ofereceu-lhe a espada com que, durante a hora anterior, ten­tara matá-lo. Ajax admirou o punho guarnecido a prata durante um momento e depois desapertou o seu cinturão intrincadamente deco­rado e deu-o ao príncipe troiano. Em seguida, cansados mas exultan­tes, os dois heróis separaram-se como amigos naquela noite. Entretanto, enquanto regressavam para celebrar com os seus respectivos camaradas, nenhum deles estava consciente do papel que aquelas duas lembranças desempenhariam nas circunstâncias das suas mortes.

 

                         Oferta de az

Heitor regressou à sua cidade, depois do duelo com Ájax, cons­ciente de que estivera quase a perder aquele combate. Os seus ombros estavam pisados, tinha sangue coagulado num dos joelhos e tinha a sensação de que o exército troiano não conseguiria aguentar por muito mais tempo aquele estado de coisas. A sua tentativa de fazer recuar os gregos até aos seus barcos falhara e eles tinham contra--atacado com tanta ferocidade que muitas mulheres, reunidas à som­bra do carvalho, junto das portas da cidade, não tinham conseguido encontrar os respectivos maridos, filhos e pais entre os guerreiros que regressavam. As ruas estavam cheias de lamentos e aquele era o pri­meiro dia de um tipo de guerra que Tróia não travava há muito tempo.

Quando olhou para trás, para o crepúsculo, onde milhafres e abu­tres se reuniam por cima dos cadáveres espalhados pela planície, Hei­tor sentiu, com o coração pesado, que os deuses tinham estado com os invasores gregos naquele dia. Agamémnon pedira a ajuda de Ateria e a deusa respondera favoravelmente.

Algo tinha de ser feito para restabelecer o equilíbrio.

O príncipe foi abraçar e tranquilizar a sua mulher Andrómaca e consolar o seu filho Astíanax, que ficara assustado com o sangue e equimoses que vira no seu corpo e que fugira quando Heitor, que ainda tinha o elmo emplumado posto, se inclinara para o beijar. Em seguida, depois de lavar as feridas e de se ter limpado, o troiano atra­vessou a cidadela de Ilimu e entrou no templo de Atena.

A sacerdotisa do templo era Teano, mulher de Antenor, uma mulher em tempos muito bela mas cujo rosto endurecera com os anos, condizendo com a austeridade da sua alma. A mulher assistiu às oferendas e respectivas libações de Heitor, escutou o fervor das suas ora­ções a Atena, para que a deusa libertasse a cidade da força da sua ira, mas depois chocou-o com a sua resposta.

A Divina Atena não te ouve disse Teano — tal como não ouviu a tua mãe esta tarde. Nos tempos mais próximos, a deusa está surda às nossas preces.

Ajoelhado, Heitor olhou para os olhos frios da sacerdotisa.

Eu senti o seu poder contra nós, na planície. Foi como se a própria deusa estivesse a guiar o carro de Diomedes. Que fizemos nós, em que a ofendemos para se virar contra nós desta maneira? Teano olhou para a estátua impassível de Atena.

Por que há-de a deusa ouvir as nossas preces quando somos leais àquele que a insultou?

— Estás a falar do meu irmão Páris?

Foi ele e mais ninguém que atraiu a ira de Atena sobre a cidade.

Heitor olhou para o rosto severo da sacerdotisa. A sua boca era uma linha fina, arqueada na direcção do queixo. O príncipe disse:

Eu sei que não suportas o meu irmão desde a morte do teu filho. Como poderia ser de outra maneira?

No meu coração só tenho ódio por ele. A voz de Teano era calma e franca. Nunca o neguei e este ódio nunca me abandonará. Mas isto é diferente do que ele me fez. Isto é um assunto entre Páris e a deusa. De certo modo, eu própria não compreendo, a não ser que começou com um rebaixamento dos seus rituais e do seu estatuto, o teu irmão atraiu a inimizade permanente de Atena. Durante uns momentos, com o coração gelado, Heitor sentiu que podia ter estado a olhar para o rosto da própria deusa e não viu qualquer possibilidade de remissão. - Ele é que é a causa dessa inimizade - disse Teano. E essa inimizade vai continuar até que haja uma reparação pela injúria. E essa reparação deve partir daquele que tem a culpa. Não chega tu, a tua mãe ou o próprio Rei Príamo fazerem oferendas. Páris é o autor dos nossos males. Foi ele que não quis saber de Atena e que escarne­ceu do seu poder. A questão é entre ela e ele. Ele que pague o preço.

Páris regressara à cidade em estado de choque e humilhado.

A sua visão estava enevoada e insegura. O príncipe sangrava do ferimento na ilharga provocado pela lança. As correias do elmo tinham-lhe esfolado a pele do pescoço c todos os ossos do seu corpo lhe doíam; estava ensopado, sujo e envergonhado com o silêncio que reinava na hoste troiana enquanto os soldados se afastavam para o deixar passar no caminho de regresso à cidade.

O mesmo silêncio esperava-o junto da porta, onde as mulheres estavam reunidas. As rodas do seu carro faziam barulho nos seixos da rua vazia que conduzia à cidadela; o príncipe ouvia a água a correr nos sulcos e como tinha o rosto e o cabelo ensopados, ninguém sabia se ele ia a chorar, mas ia ao entrar na mansão silenciosa onde vivia com Helena. O príncipe desapertou a couraça e as bragas, que dei­xou cair no chão e atirou-se para cima dos lençóis bordados da cama sem se preocupar com a lama que lhe cobria os braços e as pernas.

Uma escrava entrou para o ajudar, mas foi despedida rudemente.

O silêncio foi sendo cada vez maior, até que Páris percebeu que tinha parado de chover. Uma luz limpa e intensa entrou pela persiana e iluminou a grande tapeçaria onde Ares e Afrodite se abraçavam. No exterior, nos ramos de uma amendoeira, um pássaro começou a cantar.

Páris conseguira sair da sua derrota com a vida intacta e pouco mais. O seu orgulho desaparecera, assim como a sua honra. Os seus nervos estavam despedaçados de tal modo que saltou quando chegou até ele, trazido pelo vento do distante campo de batalha, um grande grito. Noutro dia qualquer, teria subido ao telhado para ver o que estava a acontecer, mas naquele sabia que era provocado pela contínua resistência dos soldados na planície e sentia uma vergonha imensa. O príncipe pensou na pele de pantera que vestira naquele dia. Devia jazer algures, na lama. Mais valia ter lá ficado e ter morrido. Por que não o fizera? Porquê?

Ainda sentia o cheiro do suor de Menelau. Ainda ouvia os seus grunhidos malevolentes. Conseguia ver, através do elmo de bronze, os seus olhos ferozes, cheios de ódio. Então, arrastado pelo pescoço, quase sufocado, o mundo começara a escurecer, transformando-se numa pequena câmara sem ar onde só conseguia ver a ameaça e o ódio no rosto do Rei de Esparta.

Finalmente, as correias do elmo tinham-se partido e a sua cabeça ficara, subitamente, livre e o seu primeiro pensamento fora fugir. Assim que começara a correr, não conseguira parar. O príncipe troiano sabia que nunca mais deixaria de fugir até ao fim dos seus dias.

1ntretanto, Helena estivera a fazer companhia, em silêncio, ao Rei Príamo, na vasta e vazia sala do trono onde ele preferira sentar-se porque não podia suportar mais, tal como ela, o duelo que decorria na planície. Tinham ficado os dois em silêncio, cada um imerso nos seus próprios pensamentos e não encontrando neles qualquer con­solação, mas encontrando conforto na presença silenciosa um do outro.

Na tranquilidade daquele espaço de mármore, tudo o que conse­guiam ouvir dos rugidos das duas hostes assistindo ao duelo dos dois homens era um distante sussurro, como o murmúrio do mar. Então, a luz que entrava pelas janelas fora diminuindo à medida que as nuvens se acumulavam e, finalmente, ouviram a chuva a cair no telhado. Naquele momento, os dois olharam um para o outro e Príamo quis confessar que dera ordens para que, caso o seu filho fosse derrotado, Menelau não saísse em triunfo do campo de batalha. O Rei quis dizer àquela mulher bela e silenciosa sentada na sua frente que, se os seus dois homens morressem, ele cuidaria dela até morrer. No entanto, tinha medo que ela recusasse e, assim, manteve-se calado e esperou, tal como Helena, pelo destino que os deuses lhes tinham reservado.

Então, Cassandra entrara na sala do trono branca como a cal, os cabelos em desordem, o rosto e as roupas ensopados pela chuva. A princesa sorria e agarrava as pregas encharcadas do vestido, como se tivesse vindo a correr à chuva. Príamo e Helena olharam para ela, alarmados. De todas as pessoas da cidade, aquela rapariga meio louca era a última que queriam ouvir naquele momento.

— Não sentem o cheiro do fumo que já rodeia a casa? — per­guntou ela. Está a chegar. Este palácio vai arder enquanto Helena e eu esperamos para ver quem nos vai levar. Eu não te avisei, pai? Não te disse que nunca devias ter aceitado aquela cria de urso em nossa casa? Vê o que aconteceu àquele cobarde, fugiu do campo de batalha sem o elmo, sem o escudo e sem a pele de pantera. O querido de Afrodite, a chorar, derrotado e ansioso pelos seios suaves da sua puta espartana.

— E Menelau? — perguntou o seu pai.

— Derrotado pela traição. Mas continua vivo, apesar dos teus esquemas. Os deuses não se deixam enganar, pai. Esta cidade já ardeu e voltará a arder. Em breve o filho ruivo de Atreu entrará por esta sala dentro para reclamar o que lhe pertence. Cassandra virou os olhos negros para Helena, cujo coração quase parou. Vais aquecê--lo mais uma vez? Creio que vais, de certeza que vais. E tal como um cão, ele vai saltar-te para o colo.

Príamo e Helena ficaram a olhar em silêncio enquanto Cassandra abandonava a sala. Em seguida, olharam um para o outro como dois estranhos hostis, cada um deles vendo a traição no rosto do outro e recusando-a interiormente.

Que fizeste? perguntou Helena. Querias que morressem ambos? Já não há honra em Tróia?

Príamo levantou as mãos num gesto vão que parecia querer dizer que a honra já não existia em lado nenhum.

Helena levantou-se e disse:

— Vou ter com o meu marido — mas não sabia, enquanto dizia aquelas palavras, a que homem se referia. A sua voz tremeu quando percebeu que não tinha para onde ir.

Quando entrou no quarto da casa dourada que Páris lhe mobilara com os despojos trazidos do leste, Helena viu-o deitado na cama, cheio de lama. Desviando rapidamente o olhar, ela tapou-o com um xaile, como se estivesse a protegê-lo de uma corrente de ar. Páris abriu a boca mas não conseguiu dizer nada.

Helena disse:

Helice disse-me que se ofereceu para te lavar, mas que tu recu­saste. Queres que a chame outra vez, ou queres continuar assim? Mais uma vez, ele não disse nada.

Creio que as tuas feridas precisam de cuidados.

Ele disse:

Tenho aqui uma ferida que só tu podes curar.

Há feridas que ninguém consegue curar. — Helena virou-lhe as costas e dirigiu-se à janela, onde ficou a ouvir o ruído da batalha, transportado pelo vento. Àquela distância, o barulho era parecido com o de uma multidão a assistir a uns jogos, com a diferença de que ali os homens lutavam e morriam e ambos sabiam que o seu amor — aquele amor triste, desgastado e quase extinto — era a causa.

Mas naquele momento, estranhamente, ele mal pensava nela. Ao falar na ferida que só ela podia curar, estava a pensar noutra pessoa.

Estava a pensar em Enone. Páris estava a recordar-se do que a rapa­riga lhe dissera no dia em que ele abandonara as montanhas para ir para Tróia, lembrava-se de que ela o avisara de que um dia seria ferido de maneira que só ela o poderia curar. As suas palavras tinham-lhe regres­sado à memória e durante um momento confuso foi como se esti­vesse a falar com a mulher errada.

E aquela mulher era-lhe quase tão estranha como o rapaz rude que expulsara os ladrões de gado gregos com o seu arco. Chamavam--lhe Alexandre, Defensor dos Homens. Quem diria que aquele rapaz aca­baria no interior daquele corpo derrotado, naquela cama de seda, num quarto perfumado, no recinto real de uma cidade que poderia arder dentro de pouco tempo só porque uma ursa lhe dera de mamar e porque ele crescera para trair um amigo?

Era enervante já não conseguir ler os pensamentos íntimos da mulher que estava na sua frente, olhando para a planície.

Por que não me fazes perguntas sobre o que aconteceu? perguntou-lhe ele.

Ela olhou para ele.

Fala, se é o que queres.

Páris olhou para a janela.

Havia tanto ódio nele. Olhei-lhe para os olhos, vi-me a mim próprio como ele me deve ver e senti-me tão mal por lhe ter feito o que fiz que não consegui enfrentá-lo.

Helena olhou para o seu rosto angustiado durante um momento antes de lhe virar as costas. O príncipe podia ver a sua nuca por baixo do cabelo e a curva suave das suas costas enquanto ela murmurava:

Creio que, se o tivesses matado, eu também teria morrido.

Ele olhou para ela, espantado.

— Tudo o que fiz — disse ele com a voz entrecortada — fi-lo apenas por ti.

Ela olhou novamente para ele e viu a verdade nos seus olhos. Esta­vam ambos sós no mundo, exilados para sempre por um crime pro­vocado pela paixão e a única esperança de compreensão estava nos olhos de ambos. Ela sentiu uma grande piedade no coração — pie­dade por ele, por Menelau, por si própria, por todos aqueles que achavam que o amor os podia guiar através de um mundo impiedoso e talvez a única consolação, pensou ela, estivesse na compaixão de um coração ferido. Certamente que, se havia feridas que não tinham cura, não tinham outro remédio senão tratarem-nas mutuamente.

— Vem — disse ela a água já está quente. Eu lavo-te as feridas.

Ela conduziu-o até aos banhos e despediu as escravas que esta­vam prontas para o servir porque nenhum deles se sentia com capacidade para suportar a presença de outros. Páris mergulhou na água tépida de olhos fechados e deixou que ela o livrasse do sangue e da sujidade. Em seguida, regressaram ao quarto, deitaram-se lado-a-lado e quando ele percebeu que ela chorava silenciosamente, também ele começou a chorar.

Estendendo uma mão para lhe afagar os cabelos negros, ele disse: — Lembras-te do nosso pequeno reino de Kranae onde só existíamos nós?

Ela acenou com a cabeça, encostando o queixo à carícia suave dos seus dedos.

— Era um lugar só nosso — murmurou ele. — Nós não perten­cemos a Esparta, ou a Tróia. Nós pertencemos a Kranae e só somos traidores se trairmos aquela ilha porque lá não há exércitos, não há disputas e este barulho, este entrechocar de armas não foi escolha nossa, não fomos nós que o provocámos.

Páris abraçou-a. Ela descansou a cabeça no peito dele e apesar de ambos saberem que aquelas palavras demonstravam a falsidade de um mundo fechado num conflito mortal, entregaram-se mais uma vez a Afrodite, regressando pela última vez à ilha isolada dos seus corações.

Foi Heitor que os acordou. As escravas tinham-lhe dito que eles estavam no quarto e ele bateu à porta até que Páris a abriu. O prín­cipe tinha uma túnica por cima dos ombros e ainda cheirava a suor e a sexo. Heitor olhou para o seu desgrenhado irmão com um des­prezo incrédulo.

Não basta - disse ele - teres dado um exemplo de cobardia em frente de todo o exército? Tinhas de te deitar com a tua mulher enquanto os homens lutam e morrem em teu nome, pela tua causa?

De todos os irmãos, Heitor era o único por quem Páris sentia uma afeição incondicional. O olhar que mais temia, ao correr para o seu carro, era o de Heitor. Mas, mil vezes pior, era enfrentar agora o escár­nio das suas palavras. Mais valia ter sido ferido mil vezes pela espada de Menelau, a sofrer aquele olhar de desprezo.

— Perdoa-me, irmão disse Páris. Nem todos têm a tua força.

Tu não és meu irmão, pelo menos enquanto não provares que és tão bom no campo de batalha como na cama.

Do local onde estava, na parte de trás do quarto, com o cabelo despenteado e com um vestido por cima do corpo nu, Helelena disse:

Não queres entrar em falar em particular, Heitor?

— Não, minha senhora, não quero respondeu-lhe secamente Heitor. — Esta cidade chora neste momento a perda de muitos dos seus filhos, alguns dos quais jazem na planície. Não tenho tempo para conversar contigo. Mas digo-te o seguinte: se ainda tens alguma ver­gonha, diz a este teu pinga-amor que vá ter à sala do conselho ime­diatamente e que se defenda como um homem no meio de outros homens. Diz-lhe, também, que não apareça na minha frente senão quando se achar capaz de ocupar o seu lugar ao lado de homens que não têm medo de lutar, e por uma causa mais nobre do que a de se divertirem enquanto nós morremos!

Enquanto percorria o corredor na direcção da sala do conselho, Páris podia ouvir as vozes que discutiam, mas quando ele entrou, todas se calaram. O príncipe permaneceu por um momento na soleira, aper­cebendo-se de que todos os príncipes e nobres de Tróia estavam ali reunidos, juntamente com os seus principais aliados. Consciente do olhar de Heitor e da reserva fria do seu antigo amigo Eneias, com quem trocara apenas algumas frases desde o seu regresso de Esparta, atra­vessou o chão de mármore para ocupar o seu lugar à esquerda do trono, onde Príamo estava solenemente sentado com a cabeça ligei­ramente inclinada, apoiada a uma mão nodosa. Páris fez uma pequena vénia ao seu pai, este fez-lhe sinal para que se endireitasse e depois virou-se para enfrentar os rostos hostis que o rodeavam.

— Perdoai o meu atraso disse ele. Não tenho estado bem. E ninguém aqui conseguirá envergonhar-me mais do que o que já estou. Portanto, não poupeis as vossas palavras.

Sobre o murmúrio que resultou das palavras de Páris, Príamo disse:

— Ouviste o meu filho, Antenor. Fala.

Antenor avançou, segurando ceptro de orador. O conselheiro inclinou o queixo magro, ponderando nas palavras que ia dizer. As suas faces estavam coradas e os nós dos dedos brancos devido à força com que apertava o ceptro.

Troianos, dárdanos, amigos aliados começou ele a maioria lutou corajosamente, hoje, e juntos detivemos o primeiro assalto da hoste de Argos. Mas também sabemos o preço que pagá­mos visto que muitos não regressaram da planície e muitos mais ainda estão feridos e terão de combater de novo. O número de guer­reiros já não é o mesmo e amanhã ainda morrerão mais. Pergunto a mim próprio durante quanto tempo conseguiremos suportar estas perdas? E para quê? Não nos enganemos, estamos a lutar não só con­tra homens, mas também contra os deuses. Atena está contra nós. Hera está contra nós. Até Apolo, que sempre foi venerado nesta cidade, nos avisou há muito de que Tróia cairia se um dos que está connosco não abandonasse a cidade.

Durante algum tempo, um silêncio pensativo caiu sobre a sala. Depois, Antenor continuou com a voz mais baixa, mais ardente.

Esse aviso foi ignorado e eu tenho mais razões do que a maioria o lamentar. Todos sabem que a minha mulher e eu não gostamos de Páris. Também sabemos que ele quebrou um juramento de ami­zade, violou as leis da hospitalidade e a santidade do casamento, pro­vocando longos anos de guerra e dificuldades a todos nós. No entanto, não é por essas razões que impugno a sua presença entre nós. Faço--o para o bem da nossa cidade. Faço-o porque é o que os deuses exi­gem. Ele podia ter morrido hoje com honra e tê-lo-ia feito se não lhe tivesse faltado a coragem para agarrar o destino que o esperava. Assim, esconde-se por trás das nossas muralhas e enquanto lhe for permitido que assim continue, a hoste grega não cessará de nos bater à porta e não nos dará descanso enquanto a sua vida não estiver nas mãos deles. - Antenor respirou fundo e ergueu a voz para lhe dar mais ênfase. Entreguemo-lo já, portanto. Entreguemos Páris ao homem enganado, ao homem de quem ele fugiu hoje. E ele que leve a espartana com ele, juntamente com o seu tesouro. Porque a sua trai­ção fez de todos nós traidores. Foi quebrado um pacto de amizade há muitos anos e foi ele que o quebrou. Foi quebrada uma trégua, hoje, e foi ele que a quebrou. A justiça já não está do nosso lado e aqueles que lutam sem justiça, atraem a ira dos deuses. — Antenor tremia enquanto falava. O conselheiro olhou para Príamo, que olhava para o tecto azul como se os seus pensamentos estivessem muito longe.

— Mas se o meu senhor Rei acha que não deve entregar o seu filho ao inimigo, pelo menos que o force a separar-se de Helena e do seu tesouro. Devolvamos a Menelau o que lhe pertence por direito e aca­bemos com esta guerra.

Antenor não olhara uma única vez para Páris durante o seu dis­curso. O conselheiro recuou para o meio da assembleia e os seus amigos rodearam-no, murmurando em assentimento. Páris esperou alguns momentos para ver se alguém avançava para falar em sua defesa, mas como ninguém o fez, avançou e fez-se silêncio na sala.

— Meu pai real, amigos começou ele há alguma verdade no que Antenor disse e eu confesso-me culpado das acusações que ele me faz. É verdade que sou culpado da morte do seu filho e eu tenho-o lamentado desde então. É verdade que quebrei um voto de amizade e que violei as leis da hospitalidade enquanto estive em Esparta. Também é verdade que, ao fazê-lo, provoquei esta longa guerra. Não nego nada e se pensais que devo pagar com a minha vida por isso, tendes o poder de me entregar para que os filhos de Atreu possam ter a sua vingança.

Fazendo uma pausa. Páris abriu as mãos, como se pretendesse mostrar-se desarmado e vulnerável.

Mas digo o seguinte em minha defesa. Primeiro, esta guerra já era inevitável muito antes de eu ter posto os olhos na dama Helena. Os meus actos podem ter sido a faúlha que provocou o fogo, mas a madeira seca já lá estava à espera, há anos. E há homens, aqui nesta sala, que desejavam esta guerra muito mais do que eu. Páris passou o olhar rapidamente pelos seus irmãos Dcífobo e Antifo antes de con­tinuar. — Segundo, como todos sabem, há mais deuses para além de Atena e de Hera, por muito grandiosas no seu divino poder e o que eu fiz foi ao serviço de outra deusa, tão poderosa como elas. O Rei Anquises dir-vos-á que assim que um homem se oferece a Afrodite deixa de poder agir como os outros homens. E a deusa que age por intermédio dele e se, por vezes, ela o faz de modo terrível através dele, esse homem é levado pela força viva do amor, que é uma lei em si. Essa lei tem o seu próprio tribunal e os seus próprios julgamentos e aos olhos desse tribunal eu estou inocente de todos os crimes, excepto o de não ter conseguido amar plenamente. Mas que nenhum homem duvide: o amor que sinto por Helena é tão grande que nunca o trairei. Tomai a minha vida, se quereis. Ficai com a minha fortuna e entregai-a, como reparação, aos gregos, e eu não direi uma palavra, sequer. Mas não entregarei a minha mulher a homem nenhum.

Durante longos segundos, depois de Páris ter terminado o seu discurso, a atmosfera da sala ficou tensa devido à paixão na sua voz. Então, para seu espanto, Deífobo avançou e disse:

Apoio o meu irmão - e, um momento depois, Antifo ace­nava com a cabeça a seu lado.

Antenor franziu o sobrolho e abanou a cabeça e a assembleia murmurou, incerta, até que o Rei Príamo se levantou do seu trono e falou.

— Ouvi as palavras do meu conselheiro Antenor disse ele - ouvi as palavras dos meus filhos. Agora, ouvi as minhas. Como habitualmente, vigiaremos o inimigo das nossas muralhas, Amanhã, o arauto Ideus irá ao campo grego e transmitirá a oferta do príncipe Páris, que é entregar a Menelau o tesouro roubado a Esparta, mas não a dama Helena. A essa soma será acrescentada uma boa parte da sua própria fortuna como reparação. Se os filhos de Atreu aceitarem a oferta, muito bem. Se não, continuaremos a lutar e que os deuses decidam.

E foi assim que ficou, se bem que ninguém na sala do conselho acreditasse que as coisas ficassem resolvidas daquela maneira. Heitor abandonou o conselho muito sombrio e regressou aos seus aposen­tos no palácio, onde a sua mulher Andrómaca o esperava ansiosamente. A dama percebeu imediatamente, pelo seu rosto, que a guerra ia continuar e durante algum tempo descarregou a bílis em Páris até que o marido a acalmou.

Ele defendeu-se bem - disse Heitor . e não está mais disposto a desistir da mulher que ama do que eu.

Portanto, ele vai continuar com ela mesmo que tu tenhas de morrer para isso? Ainda não sofri o suficiente com esta guerra? O meu pai foi morto por Aquiles no ataque a Tebe e todos os meus irmãos morreram com ele. Agora também tenho de perder o meu marido e o meu filho o pai dele só porque Páris quer ficar com a espartana?

- Esta guerra nunca foi só por causa de Helena - disse Heitor.

Não. - Andrómaca olhou para o marido com olhos acusadores.       Também é por causa do amor dos homens pelo poder e do seu apetite pela violência. De que valho eu, ou Helena, ou outra mulher qualquer neste mundo louco, senão como despojos de guerra? A guerra nunca existiria se não houvesse tantos homens ansiosos por ela. Eu acho que vocês adoram a guerra, tiram prazer da sua crueldade, pro­vam mais a vossa masculinidade matando outros homens do que amando as vossas mulheres. — Andrómaca olhou para o marido e viu a dor nos olhos do homem que amava. Impotente, abanou a cabeça. — Não viste como o nosso filho tremeu quando te viu vestido com a armadura? Ainda há pouco vocês eram todos crianças, mas não desistem enquanto não transformam os vossos filhos em homens violentos. Sois todos loucos, loucos varridos, todos vós. Páris pode estar louco de amor, mas os que lutam e morrem por ele ainda são mais loucos.

O que é que tu queres que eu faça? — perguntou-lhe Heitor. — Queres que fuja, tal como Páris fez hoje?

— Quero gritou ela — quero, por que não? A tua vida não te pertence só a ti. Pertence-me a mim e ao nosso filho. Ou achas melhor morrer por Páris do que viver para nós?

Nada disto é fácil disse ele. Além disso, se eu morrer, não será por Páris, será para manter os gregos afastados das nossas portas. Esta guerra está a acontecer, quer eu queira quer não e o peso desse fardo está todo sobre os meus ombros. Tentei impedi-la por duas vezes primeiro exigindo a Páris que entrasse num combate singular e de novo no conselho, esta noite. Mas parece que os deuses não querem que as coisas acabem assim. Que posso eu fazer?

O príncipe levantou-se do divã e começou a andar de um lado para o outro.

— O meu maior medo é que Agamémnon e a sua horda entrem nas nossas ruas e nas nossas casas e que alguns guerreiros matem o nosso filho e te arrastem para a escravidão. Prefiro mil vezes con­tinuar a lutar a permitir que isso aconteça.

Andrómaca olhou para o apelo desvairado no rosto nobre do seu marido.

Mas, tens de estar sempre no sítio mais perigoso? — pergun­tou ela. — Tens de estar sempre na linha da frente, sujeito aos golpes dos arqueiros e dos lanceiros? Não podes ficar connosco na muralha, ver daqui os pontos fracos deles e agir em conformidade?

Heitor abanou a cabeça.

Não percebes que seria um consolo para o inimigo poder dizer: «Vede como o herói troiano Heitor se esconde por baixo das saias das mulheres!» Além disso, como posso eu esperar que os meus camaradas lutem corajosamente se souberem que eu fico aqui contigo, em segurança? Os deuses sabem que eu quero viver em paz con­tigo, ver o meu filho crescer para ser um homem melhor do que o pai. Mas para que isso aconteça tenho de enfrentar este destino que me caiu sobre os ombros. — Heitor abraçou a mulher e tentou sorrir-lhe. — Terei mais força para tudo isto, meu amor, se não tiver também de lutar contigo.

Cedo, no dia seguinte, o arauto Ideus apresentou-se perante o conselho de Agamémnon para informar os líderes gregos que Páris não devolveria Helena a Menelau, mas que entregaria uma parte da sua fortuna como reparação. Os filhos de Atreu limitaram-se a olhar um para o outro e abanaram as cabeças.

Ainda exaltado com os seus feitos em combate, Diomedes falou pelos restantes capitães.

Os troianos não fariam uma tal oferta se não soubessem que o seu destino está traçado. Por que razão nos havemos de contentar com o que Páris nos dá se a cidade de Tróia vai estar, em breve, ao nosso dispor?

Já tens a nossa resposta disse Agamémnon.

Muito bem replicou Ideus mas não subestimeis a força da nossa resistência. Entretanto, o Rei Príamo manda dizer que há muitos mortos por sepultar no campo de batalha. Ele propõe um dia de tréguas para que ambos os lados os possam honrar.

Agamémnon concordou imediatamente e foram enviadas algumas carroças para recolher os cadáveres que enchiam a planície. O dia passou-se no meio de um céu enegrecido pelo fumo das piras fune­rárias e o ar que os homens respiravam cheirava a carne queimada. Mas os gregos também se aproveitaram do armistício temporário para reforçar as fortificações que tinham construído para defender os navios e quando os troianos viram a sua actividade, compreende­ram que a única maneira de salvar a cidade era empurrar os invasores para o mar.

O dia seguinte nasceu com o céu sombrio, cheio de nuvens vin­das do Monte Ida. Os dois lados combateram durante toda a manhã. Ambos os lados tiveram inúmeras perdas e nenhum deles ganhou terreno. Então, por volta do meio-dia, as nuvens tempestuosas abri­ram-se e despejaram um relâmpago tão próximo que o trovão ins­tantâneo ensurdeceu os combatentes. O raio caiu no meio das linhas gregas, deixando o ar a cheirar a enxofre e espalhando o terror e a con­fusão entre os homens e os cavalos. Por um momento, até os troianos ficaram aturdidos com o choque, mas Heitor recuperou rapidamente.

Zeus falou — gritou ele. — Zeus está connosco e encora­jou as suas forças a aproveitarem-se da confusão nas linhas inimigas.

O centro grego, que tinha estado mais perto da queda do raio, foi o primeiro a recuar e nem toda a ira de Agamémnon foi capaz de o impedir. Depois foi a vez de Idomeneu recuar e em breve toda a linha vacilava enquanto os homens entravam em pânico e fugiam. Antes que o velho Nestor tivesse tempo para virar o seu carro e reti­rar, Páris disparou uma flecha que atingiu um dos seus cavalos na cabeça, fazendo-o cair. Nestor saltou do carro para libertar o cavalo e teria sido morto se Diomedes não tivesse visto o carro de Heitor avançar sobre ele e não tivesse arremessado a sua lança. A arma atin­giu o condutor de Heitor no peito e o peso da haste puxou-o para o meio dos dorsos dos cavalos, fazendo-os assustar-se. Enquanto Hei­tor tentava recuperar o controlo das rédeas, Diomedes puxou Nestor para o seu carro e afastou-se. Mas a brecha nas linhas era grande. Não tinham outra hipótese senão retirar e foi o que fizeram com Heitor a lançar-lhes insultos nas costas. Enquanto recuavam na direcção da paliçada, ouviam os gritos e as maldições de Agamémnon dando ordens no meio da chuva, chamando os arqueiros para impedir o avanço dos troianos. Ajax e Teuco foram os primeiros a responder, colocando-se em posição e Ájax protegendo o irmão com o seu escudo de pele de vaca enquanto Teuco disparava flecha atrás de fle­cha sobre os troianos. Alguns homens caíram e o avanço podia ter sido detido, mas o ímpeto dos que vinham atrás era tão forte que os gregos foram forçados a recuar mais ainda na direcção dos navios.

Só a paliçada e o dique impediram que fossem completamente derrotados.

Mas assim que se viram fora da planície e a coberto da muralha, os comandantes detiveram a retirada e empurraram os homens para uma luta sangrenta em redor do dique e dos portões. Os homens lutaram e morreram durante toda a tarde, corpo-a-corpo, escorregando na lama. A matança só parou quando a luz provocada pelo céu cheio de nuvens era tão pouca que Heitor já não via suficientemente as suas linhas para as poder controlar e assim o príncipe troiano decidiu mandar retirar os seus homens totalmente esgotados.

O moral dos troianos melhorou muito com a vitória daquele dia e os guerreiros ainda se sentiram melhor com a presença entusias­mada de Heitor entre eles, prometendo-lhes a vitória no dia seguinte. O príncipe deu ordens para que o exército acampasse na planície, man­tendo os gregos amontoados entre a paliçada e os navios. Assim, naquela noite, os sitiantes passaram a sitiados e os vigias, por trás da paliçada, viram mil fogueiras acesas na planície, souberam que em redor de cada uma havia cinquenta guerreiros e que no dia seguinte o exército de Argos poderia ficar entalado entre o dique e o mar.

 

                     O Preço da Honra

Se bem que os seus navios estivessem ancorados muito a oeste das linhas, a alguma distância do sítio onde a batalha estava a ter lugar, Aquiles estava consciente de que a hoste grega escapara à justa de um desastre naquele dia. Por isso, o guerreiro não ficou surpreendido quando naquela noite Fénix foi ter com ele e com Pátroclo, que tocava a sua lira e lhe disse que Odisseu e Ajax queriam falar com ele.

Aquiles levantou-se para os receber.

— Há já algum tempo que não tenho visitantes e vós sois os que mais gosto de ver. Vinde, bebamos um pouco de vinho. O jovem permitiu-se outro sorriso retorcido. Deveis ter fome depois de um dia tão difícil. Por que não ficais e comeis connosco?

Os seus hóspedes instalaram-se confortavelmente na cabana de madeira coberta de colmo que Aquiles partilhava com Pátroclo enquanto o vinho era distribuído e pedaços de carne eram assados na fogueira. Pátroclo lançou as porções rituais para as brasas como oferendas aos deuses e depois de terem comido e terem enchido de novo as respectivas taças, Odisseu disse:

— Suponho que não é preciso explicar o motivo da nossa visita. Aquiles limitou-se a encolher os ombros e bebeu um pouco de vinho.

Odisseu suspirou.

— Permite-me que seja franco, então. Estamos metidos numa trapalhada. Se não tivéssemos aguentado até a luz ter desaparecido, teríamos sido completamente derrotados. Deves ter visto por ti pró­prio que o exército de Heitor controla a planície entre a paliçada e a cidade. Mal pode esperar que nasça o dia outra vez. Quando isso acontecer, é muito capaz de nos empurrar para o mar.

Aquiles continuou sem dizer nada. Pátroclo estava sentado com as mãos no queixo, escutando mas sem revelar o que sentia. À luz da fogueira, Odisseu podia ver o velho Fénix a cofiar a barba. O ítaco também sentia a agitação de Ájax, a seu lado.

— Há duas noites continuou ele o nosso glorioso coman­dante sonhou que Zeus lhe prometia uma vitória rápida e foi por isso que ele arrisca tudo desde então. Tivemos grandes perdas ontem e muitas mais ainda esta manhã. Como se não bastasse, caiu um raio no meio das nossas linhas, esta tarde, o que convenceu os troianos de que Zeus estava do lado deles e nós perdemos tantos homens na reti­rada que Agamémnon também está convencido disso. Por tudo isto, não ficarás surpreendido se souberes que ele está, novamente, profundamente deprimido. Diomedes e Nestor fizeram o que puderam para o impedir de nos mandar a todos para os navios o que teria sido um massacre. Heitor estava mesmo à espera disso. Os troianos dele ter-nos-iam massacrado.

Com os lábios franzidos num meio sorriso, Aquiles espevitou a fogueira com o graveto que tinha na mão. Na praia, as ondas que­bravam-se na areia.

Assim, o moral está mais baixo do que nunca e só uma coisa o pode erguer de novo. Odisseu respirou fundo. — Precisamos de ti. Precisamos que espevites os homens.

Aquiles ergueu os seus olhos frios.

Pensei que tinha sido perfeitamente claro.

— Foste — mas as coisas mudaram. Inclinando-se para a frente, Odisseu falou mais insistentemente. — Não há razão para que esta disputa continue. Agamémnon vê as coisas de outro modo. Está preparado para recuar. Podes ficar outra vez com Briseida, intacta ele jura que não lhe pôs um dedo em cima. Com ela virão mais sete mulheres que ele trouxe de Lesbos. Além disso, terás dez talentos de ouro e doze cavalos puro-sangue, suficientemente rápidos para que possas ganhar bom dinheiro com eles. — Quando viu que Aquiles o ia interromper, Odisseu ergueu rapidamente a voz. - E se isso não bastar para reparar o teu orgulho ferido, ele quer que sejas genro dele quando regressarmos. Podes escolher entre as filhas dele. Ela levará consigo um dote enorme, incluindo a senhoria de sete belas cidades com as respectivas terras, rebanhos e manadas.

Aquiles desviou o olhar.

Se bem me lembro, não é a primeira vez que Agamémnon usa o meu nome quando pensa em casar as filhas.

Odisseu, que sempre considerara aquela parte da oferta pouco sen­sata, expressou o seu embaraço abrindo as mãos num gesto de defe­rência e desculpa. Ájax disse:

Pensa, primo. Tudo isto pode ser teu. Tudo o que Agamém­non pede em troca é que regresses e lutes a seu lado.

Aquiles deu um piparote numa brasa e sorriu para Pátroclo.

Quem diria, o Rei dos Homens está desesperado! — Em seguida, o guerreiro virou novamente o seu olhar gelado para Odis­seu. — Agamémnon pensa que eu sou algum escravo, que posso ser comprado e vendido sem mais nem menos?

— Ele sabe muito bem que não. Ele pensa que...

Mas Aquiles interrompeu-o.

Se há coisa que eu detesto acima de tudo é um homem que pensa uma coisa e diz outra. Por isso, vou ser franco, coisa que ele nunca foi comigo. Foste tu que me trouxeste para aqui, Odisseu. Sabes o que eu fiz pela causa de Argos. Sabes quantas batalhas decidi, quan­tas cidades caíram por minha causa, os saques que consegui e depo­sitei aos pés de Agamémnon. Também sabes a recompensa que recebi. Fui humilhado em frente da hoste toda. Vi a minha mulher ser--me tirada e ser-lhe entregue a ele. Que interessa se ela era uma cativa — eu amava muito Briseida e a sua perda foi, para mim, tão penosa como o insulto à minha honra. O jovem guerreiro virou o seu olhar feroz para Odisseu. Os filhos de Atreu esqueceram a razão desta maldita guerra? Não foi para os ajudar a recuperar a mulher que foi roubada a um deles? Eles pensam que são os únicos que se preocupam com as respectivas mulheres? Não, meu amigo. Para mim, o Leão de Micenas é um pateta falso e mal agradecido.

O homem tem os seus defeitos concordou Odisseu. Não o nego. Mas todos temos. Não é por isso que precisamos uns dos outros, para compensar as próprias fraquezas?

— Se ele quer salvar os navios, que olhe para ti e para os outros senhores que o ajudam. Quanto a mim e aos meus amigos, zarpamos amanhã. Com sorte, dentro de três dias estaremos na Tessália. Por isso, diz ao teu Rei: foi ele que faltou à palavra dada e nem que me oferecesse todos os tesouros da Tebas egípcia, não voltaria a servi--lo. Não quero saber para nada dos subornos dele.

Odisseu acenou com a cabeça e suspirou.

Eu disse-lhe que seria essa a tua resposta e agrada-me saber que tinha razão. Mas não te estás a esquecer de qualquer coisa? Não vieste tu a Tróia por uma questão de honra? É uma pena partires com tão pouco.

Pelo menos, não se perdeu respondeu Aquiles rigida­mente. — Por isso, não me peças que a suje combatendo de novo a seu lado. Vou para casa, meus senhores. Se sois homens sensatos, apa­relhai os vossos navios, enchei-os com o vosso saque e segui-me. A gordura da carne estalou e espirrou nas brasas da fogueira. O vento vindo do mar agitou a pele que cobria a entrada da cabana. Fora isso, o silêncio era total.

Odisseu sabia que o resultado seria aquele, sabia que Aquiles não aceitaria aqueles termos, tal como Agamémnon não aceitara a oferta de Príamo no dia anterior. Agora, amaldiçoava-se a si próprio por estar rodeado de homens obstinados que preferiam ver o mundo a arder a admitir que estavam enganados.

Como Aquiles e Agamémnon eram dignos um do outro, pensou ele, nos seus diferentes comportamentos estúpidos. Mas, se quisesse evitar o desastre, tinha de fazer mais uma coisa, mas de momento não sabia como fazê-la porque não conseguia encontrar uma brecha no orgulho daquele jovem.

Para sua surpresa, foi Fénix que quebrou o silêncio.

Ouvi o que tu disseste, senhor Aquiles disse o velho mirmí­done calmamente e mantive-me calado. Conheço-te e amo-te desde pequeno e penso que esse amor me dá o direito de falar. Compreendo o teu estado de espírito. Partilhei-o contigo. Mas tudo tem um fim.

Aquiles procurou calá-lo.

Não é a altura indicada, Fénix.

Mas o ancião não se intimidou.

Um homem não deve recusar de ânimo leve um pedido de desculpas, pode ofender os deuses e atrair os fados para cima dos seus ombros. Penso que devias pensar menos no ódio que sentes por Agamémnon e mais no amor que tens aos teus amigos. Vai para o com-bate com eles e eles dar-te-ão mais amor e honra do que a que o senhor de Micenas te conseguirá tirar.

Odisseu viu um brilho de irritação e de incerteza nos olhos de Aquiles. Sentindo uma mudança, o príncipe de Ítaca tentou mais uma vez.

— A verdade é que tenho tanto respeito por Agamémnon como tu, mas Fénix tem razão; regressa e luta pelos teus amigos, não por ele, e eles honrar-te-ão como um deus.

Aquiles franziu o sobrolho.

— O meu amigo Fénix faria bem se se lembrasse que não tenho em grande consideração as opiniões dos homens de Argos. O seu dever é apoiar-me.

Fénix baixou os olhos e retirou-se para a obscuridade. Odisseu olhou para Pátroclo que, pouco à-vontade, desviou o olhar. Racioci­nando rapidamente, o ítaco fez urna última tentativa.

— Bem, compreendo a tua posição mas é uma pena. Se havia hipótese de conquistar a glória imortal, era agora, quando Heitor pensa que não há ninguém nas linhas gregas capaz de se lhe opor.

Por um momento, Odisseu pensou ter ganho. Aquiles hesitou. As pupilas dos seus olhos moviam-se rapidamente e Odisseu quase conseguia ouvir o jovem e terrível guerreiro a recordar a profecia que dizia que a sua vida seria curta se lutasse em Tróia, mas que a sua gló­ria seria eterna. O príncipe tentou projectar na mente de Aquiles o seu triunfo sobre Heitor, mas havia também outras imagens — a de Agamémnon todo sorrisos no momento em que Aquiles se lhe jun­tava e a da humilhação de voltar com a palavra atrás em frente de toda a hoste.

Aquiles franziu o sobrolho, impaciente.

— O que disse, está dito. Só pego em armas contra Heitor se ele atacar os meus navios ou os meus Mirmídones.

Ajax, que até ali se mantivera em silêncio, deixou sair a sua frus­tração:

— Vamos, senhor Odisseu — disse ele rispidamente — estamos a perder o nosso tempo. Regressemos e pensemos nas disposições a tomar visto que Aquiles não nos quer ajudar. - O príncipe levantou-se e olhou, abanando a cabeça, para o orgulhoso jovem. — Eu sempre te amei e sempre te admirei, filho de Peleu, mas essa petu­lância teimosa confunde-me. Até em casos de assassínio os homens aceitam dinheiro para acabar com uma questão, mas aqui, numa estú­pida questão por causa de uma mulher, viras as costas aos teus ami­gos e recusas ouvir a razão. Bem, tu é que sabes. Prefiro combater e ser derrotado a ficar aqui a pedir como um mendigo.

Pouco depois, Odisseu e Ajax estavam de regresso para dar conta da sua missão falhada. Os dois homens deixaram atrás de si, na cabana de Aquiles, um silêncio prolongado e apreensivo.

A oferta de Agamémnon era tão pródiga que o Rei nem sequer contemplara a possibilidade de Aquiles a rejeitar e a notícia da sua recusa deixou-o, a princípio, aterrorizado. Mas quando Diomedes o cri­ticou por ter tentado fazer concessões ao jovem intransigente, o cho­que arrancou-o do estado sombrio em que se encontrava, transfor­mando-se num êxtase de raiva presunçosa. No dia seguinte mostraria àquele arrogante de merda como se comportava um verdadeiro guer­reiro quando as hipóteses são contra.

A sua disposição melhorou com os acontecimentos daquela noite. Foi capturado um batedor troiano e de acordo com as informações que lhe foram arrancadas antes de lhe cortarem o pescoço, Odisseu liderou um ataque a uma área mal guardada das linhas inimigas, con­seguiu entrar num curral e capturar uma manada inteira de cavalos trácios. Assim, Agamémnon armou-se para a batalha no dia seguinte com mais confiança, sabendo que a mobilidade do inimigo seria sig­nificativamente menor. Mas o soberano também sabia que a sua situa­ção continuava a ser tão desesperada que só um contra-ataque esmagador poderia salvá-lo. Para inspirar as tropas, teria de as comandar em pessoa. Enchendo-se de coragem, lançou o seu carro sobre a hoste troiana.

Tendo conseguido passar pelas lanças que voavam à sua volta, o Rei chegou junto do carro de Antifo, filho de Príamo, conduzido pelo seu irmão bastardo Isus. Este caiu sob a lança de Agamémnon e a espada do soberano atingiu a cabeça de Antifo com tanta força que o guerreiro foi atirado para fora do carro. Como que possuído por uma visão de invulnerabilidade, Agamémnon continuou a avançar com a infantaria a gritar nas suas costas e conseguiram fazer recuar os Troianos quase até às muralhas da cidade antes que Heitor se conseguisse juntar a eles. Os gregos já estavam próximos da Porta Ceias e Agamémnon já aspirava o cheiro da vitória quando foi apanhado desprevenido por uma lança que lhe perfurou um braço.

Durante algum tempo, o ferimento não o deteve. O Rei abateu guerreiro e continuou a forçar o ataque esquartejando os inimigos à sua volta, até que os músculos do braço cederam e ele foi for­çado a ordenar ao seu condutor que retirasse. Sobrepondo-se ao fra­gor da batalha, o Rei gritou aos seus capitães para que continuassem, mas o ímpeto do ataque fora devido ao seu ardor e a sua força esmo­receu quando os gregos viram o seu comandante a retirar. Heitor lan­çou um grande grito de encorajamento aos seus homens e liderou-os num contra-ataque tão poderoso que os gregos foram totalmente repe­lidos.

Os homens fugiam, desesperados, atabalhoadamente, tropeçando, deixando cair os escudos na pressa de se verem longe dali. Alguns foram esmagados pelos carros, outros caíram sob os golpes das espa­das e das lanças enquanto corriam. Odisseu saltou do seu carro e ten­tou deter a retirada desordenada perto da sepultura de Ilus. Diome­des juntou-se-lhe. Avistando Heitor, este arremessou a sua lança. A arma atingiu o elmo do troiano de raspão, deixando-o meio ator-doado. Mais uma vez, o destino da batalha podia ter mudado naquele momento, mas Páris regressara ao combate com a sua arma favorita. O jovem disparou uma flecha e pensou que o tiro tinha sido curto, mas então ouviu Diomedes a gritar de dor. A flecha trespassara-lhe o pé, prendendo-o ao solo. Odisseu correu para proteger o seu camarada enquanto este arrancava a flecha e saltava para o seu carro para se afastar.

Odisseu ficou isolado com a sua pequena companhia, lutando como um javali acossado e aguentando o círculo de troianos que amea­çavam a sua posição.

O ítaco conseguiu matar cinco guerreiros antes de uma lança lhe atravessar o escudo, a armadura e ferir-lhe um dos flancos. Gemendo de dor, conseguiu arrancar a arma e arremessá-la ao seu adversário, mas foi forçado a ajoelhar com o sangue a escorrer-lhe pela perna. O seu primo Sínon acorreu em sua defesa, mas Menelau, que assu­mira o comando das operações na ausência de Agamémnon, também o vira ser ferido. Chamando por Ajax, aproximou o carro do ítaco e puxou-o para o interior do veículo enquanto Ajax e o seu irmão Teu­cro aguentavam os troianos.

Três dos comandantes gregos estavam fora de combate e enquanto eram afastados da frente, os homens começaram a perder a coragem. Ajax aguentou-se enquanto pôde, mas estava em inferioridade numé­rica e já estava a fraquejar quando olhou em volta e viu que dentro em pouco a hoste grega seria empurrada para lá do dique e da pali­çada. Nunca a sua situação fora tão desesperada em todos aqueles anos de guerra.

Sabendo que com as forças de Agamémnon em retirada poderiam, em breve, ter de defender os seus próprios navios, os Mirmí­dones vigiavam o andamento da batalha a partir da ponta oeste da paliçada. Quando Aquiles viu Nestor a conduzir o seu carro a grande velocidade, decidiu enviar Pátroclo para saber como iam as coisas.

Contente por poder fazer qualquer coisa, Pátroclo correu ao longo do areal até à cabana de Nestor, onde encontrou o ancião a tratar do cirurgião do exército, Macáon, que sangrava profusamente do feri-mento de uma flecha na coxa.

— Foi Páris que lhe fez isto arquejou Nestor. Tinha de o tirar de lá. Vamos precisar dos serviços dele. Agamémnon, Diomedes e Odisseu foram feridos. Ajax está a tentar conter os troianos, mas dentro de pouco tempo eles vão chegar à paliçada. O ancião olhou para Pátroclo com ar carregado. — O teu amigo vai ficar con­tente com a notícia.

Naquele momento ouviu-se um grande grito no portão principal da paliçada e um grupo de homens em pânico passou-o. Apesar de os respectivos comandantes os tentarem conduzir para o parapeito para defender os que vinham a seguir, alguns deles correram para os navios. Nestor olhou para Pátroclo, branco como a cal.

— Heitor deve estar perto do dique. Precisamos da tua ajuda, filho de Menécio. O teu pai é meu amigo e eu sei que ele morreria de vergonha se te visse aí especado enquanto os teus camaradas são chacinados. Precisamos dos Mirmídones. Vai ter com Aquiles. Fala-lhe no que está a acontecer. Se fores tu a falar, ele ouve-te. Diz-lhe que, se não vier em nossa ajuda, arrepender-se-á para o resto da vida.

Tal como o seu orgulhoso amigo, Pátroclo também se sentia ultra­jado, mas ficara fora da querela devido a uma feroz lealdade a Aqui­les. Mordera a língua, frustrado, quando Odisseu e Ajax tinham ido à cabana do seu amigo porque, tal como Fénix, acreditava que havia agora muito mais em jogo do que um simples orgulho ferido. O jovem sabia que não era o único dos Mirmídones a querer esquecer a querela e regressar ao combate e, além disso, sentia-se perturbado pelo facto de, ao contrário de Aquiles, ter sido um dos que tinha jurado em Esparta. Jurara ajudar Menelau, ao passo que Aquiles não e a disputa com Agamémnon abrira uma brecha na sua lealdade.

Essa brecha tornara-se demasiado grande para a conseguir trans­por. O jovem acenou com a cabeça na direcção de Nestor, deu-lhe a sua palavra de que faria tudo para persuadir Aquiles a regressar ao combate e partiu a correr pelo areal.

Pouco depois de ele ter partido, Agamémnon, Odisseu e Diome­des entraram na cabana de Nestor para tentar saber o que estava a acontecer para lá da paliçada. Os três homens tinham dores devido aos respectivos ferimentos e quando Agamémnon soube como a situação se deteriorara, a coragem faltou-lhe mais uma vez. Atordoados por momentos, os outros escutaram em silêncio enquanto ele gritava que os deuses estavam contra eles e que tinham de fazer o possível para evitar o desastre total.

Pelo menos, podíamos pôr ao largo a primeira linha de navios e esperar para ver o que acontece.

Odisseu disse:

Se os homens te vêem ir na direcção dos navios, entram em pânico e os troianos caem-lhes em cima.

Diomedes concordou.

Não combati aqui dez anos para abandonar os meus amigos no fim.

— Nem eu — disse Nestor.

Agamémnon virou-se e ficou a olhar para os navios, agarrado ao braço ferido. Durante um momento, de manhã, quase conseguira. Conseguia ver a glória na sua frente como um archote, chamando-o. Muitos homens orgulhosos tinham caído na sua frente, vira os seus carros esmagados, ouvira os relinchos dos seus cavalos, vira-os mor­rer em agonia, incrédulos. Então, vinda de parte nenhuma, aquela lança minara-lhe as forças e agora, mais uma vez, estava confrontado com a ruína. Parecia que, virasse-se para onde se virasse, tudo lhe era hos­til — se não era o inimigo, eram os seus próprios capitães, intratáveis e, se não eram eles, eram os deuses caprichosos. Se não fossem os três homens ali, a olhar para ele, ficaria ali na praia a mugir como um touro ferido.

— Aqueles navios estão cheios de despojos — disse ele. — Se conseguirmos pô-los ao largo poderemos, pelo menos, regressar e combater de novo. Mas vendo o descontentamento nos rostos dos três homens, desviou o olhar. Se alguém tem um plano melhor, estou pronto a ouvi-lo.

— Só há uma coisa honrosa a fazer respondeu Diomedes lutar, lutar sempre, tal como Menelau e Ájax. Feridos como estamos, não podemos fazer grande coisa, mas, pelo menos, podemos incitar os nossos amigos com a nossa presença no alto da paliçada. E os deuses querem a derrota dos de Argos, morramos com eles entre os troianos e o mar.

Enquanto falavam, o grande portão duplo da paliçada estava a ser fechado devido ao avanço das forças de Heitor. Muitos guerrei­ros em retirada ficaram do lado de fora em inferioridade numérica, desesperados e foram rapidamente chacinados. Os troianos come­çaram a bater no portão, mas apesar de as traves de madeira gemerem e protestarem, a trave do lado de dentro aguentou-as. Num acesso de fúria, Heitor pegou numa enorme pedra e começou a atirá-la ao portão. Um dos gonzos quebrou-se e a enorme porta dupla descaiu o suficiente daquele lado para que os atacantes começassem a entrar. Minutos mais tarde, o grande portão estava no chão. Com um enorme grito de triunfo, Heitor passou-lhe por cima e quando os guerreiros troianos o seguiram os gregos recuaram como homens em frente de um rio tormentoso. Momentos mais tarde, voltaram-se e fugiram na direcção dos navios.

Um destacamento de arqueiros locrianos tinha sido colocado junto dos navios como última linha de defesa. Os homens ergueram os arcos e largaram uma nuvem de flechas que deteve durante alguns momen­tos o avanço. Mas Heitor já tinha ido demasiadamente longe para recuar e incitou as suas tropas, gritando-lhes que ultrapassariam a parede de homens com a mesma facilidade com que tinham ultrapassado a de madeira. Encorajados pelos seus gritos, os troianos carregaram mais uma vez. Em diferentes pontos das linhas gregas em deban­dada, Idomeneu, Menelau e Ájax conseguiram reagrupar as tropas para os enfrentar e o solo entre a paliçada e os barcos estremeceram com o impacto de milhares de homens.

Aquiles estivera a observar a batalha da popa do seu navio. O seu coração galopava com o fragor e o jovem guerreiro estava consciente de que os seus Mirmídones olhavam para ele, irritados com a sua involuntária inactividade. Aquiles ouviu, algures no areal, um grito de aflição vindo das linhas troianas — um dos seus heróis devia ter caído, mas no meio daquela confusão de homens lutando corpo-a--corpo em frente dos barcos era impossível saber quem teria sido. Então, viu o jovem viu Pátroclo a correr na sua direcção ao longo da praia com a túnica manchada de sangue. Este levou algum tempo a recuperar o fôlego e quando olhou para onde Aquiles estava, à popa do navio, tinha os olhos rasos de água.

— Os nossos amigos estão todos a cair arquejou ele. Dio­medes, Odisseu e Agamémnon estão feridos. Ainda agora tratei de um ferimento na perna do meu amigo Eurípilo, provocado por uma seta. Ele pediu-me que a deixasse de modo a poder regressar ao combate.

Aquiles virou a cabeça e olhou na direcção do local da batalha onde os troianos tinham recuperado da perda que os tinha chocado por alguns momentos e atacavam agora os navios encalhados como se cada um deles fosse uma cidadela.

— Eurípilo sempre foi corajoso - disse ele sem emoção.

Fez-me sentir envergonhado gritou-lhe Pátroclo. Em nome dos deuses, Aquiles, somos precisos, além. Se não os ajudarmos, os gregos serão empurrados para o mar. Já está a acontecer, neste pre­ciso momento.

Quando Aquiles se limitou a acenar com a cabeça, impassivel­mente, Pátroclo perdeu a paciência.

Tu és meu amigo — gritou ele e eu sofri contigo quando foste insultado. Desde então, tenho estado sempre ao teu lado apesar da tua teimosia, tal como estive sempre ao teu lado em combate. Mas não me vou desonrar por tua causa.

Aquiles continuou calado.

Que te aconteceu? — perguntou amargamente Pátroclo. — É só o teu orgulho ferido que te impede de combater, ou perdeste a coragem?

Os olhos de Aquiles dilataram-se. As suas narinas fremiram.

Tu sabes por que razão me afastei desta batalha e sabes que tenho razão.

Sim, tens razão replicou Pátroclo. — Que te dê muita satis­fação, a tua razão, enquanto todos os teus amigos estiverem mortos e as pessoas disserem: «Aquele é Aquiles, filho de Peleu, que podia ter sido um grande herói mas que não defendeu os seus camaradas em Tróia. Por isso, perdemos a guerra e muitos homens bons morreram mas ele diz que tinha razão!»

Aquiles virou o rosto, zangado, e viu Fénix e os seus Mirmídones a olharem para ele numa reprovação silenciosa.

Naquele momento ouviu-se um lamento desesperado transpor­tado pelo vento que soprava do mar. Todos viraram os olhos naquela direcção e viram o primeiro dos navios a arder. As chamas irrompe­ram e vacilaram contra o céu cinzento da tarde antes de se transfor­marem numa enorme fogueira e de o ar, por cima da grande proa, ficar negro de fumo. Podiam ouvir os homens a gritar e alguns momentos depois sentiram o cheiro de alcatrão queimado.

Já começou disse Pátroclo. Os seus olhos faiscavam. — Vou juntar-me ao combate e acredito que os teus Mirmídones me vão seguir. Dá a ordem, Aquiles.

Aquiles olhou para o rosto suplicante do amigo. Durante um momento angustiante, o guerreiro recordou o dia em que se tinham conhecido, em rapazes, nas montanhas da Tessália como tinham discutido por causa de uma coisa de que nenhum deles se lembrava e como tinham lutado um com o outro com os punhos até os nari­zes de ambos sangrarem e ficarem com os braços cheios de equimo­ses. Desde esse dia, nunca mais tinham discutido. Se fosse preciso, enfrentariam o mundo inteiro juntos, mas agora esse mesmo mundo intrometia-se entre eles.

Insistentemente, Pátroclo suplicou-lhe.

Dá a ordem, assume o comando.

Aquiles engoliu em seco e abanou a cabeça.

— Jurei que não combateria mais por Agamémnon. O jovem ouviu o murmúrio dos Mirmídones atrás de si. Mas que não se diga que me pus entre um amigo e a sua honra. Vai, Pátroclo, leva os homens que quiseres e que os deuses vos acompanhem. Aquiles já se ia embora, mas o seu amigo ainda não tinha acabado.

É a ti que os troianos temem — gritou-lhe Pátroclo. — Já que não vens connosco, ao menos empresta-me a tua armadura para que Heitor e os irmãos dele pensem que Aquiles regressou ao campo de batalha.

Aquiles sorriu-lhe tristemente. O jovem estava a pensar que o seu desejo era ver Agamémnon e o resto da gentalha grega nos navios e Pátroclo e os Mirmídones a conquistarem a cidade. Seria um dia que os poetas cantariam até ao fim dos tempos. Mas respirou fundo e ergueu a voz para que todos pudessem ouvi-lo.

Leva a minha armadura. Leva o meu carro e os meus cavalos. Leva os meus homens para o combate contigo e faz por nós o que eu gostaria de fazer por ti se não tivesse dado a minha palavra. Empurra os troianos para lá da paliçada e depois de o teres feito vem ter comigo desarmado. — Em seguida, Aquiles virou-se para os Mirmídones.

Quanto a vós, ide e combatei como se o fizésseis por mim e dai ao meu amigo uma grande vitória.

Mais tarde, depois de aquele dia terrível ter terminado, os homens falaram em voz baixa dos feitos conseguidos. Contaram como o ânimo dos gregos que lutavam junto do navio a arder recuperara ao ouvirem o grito de que os Mirmídones iam em sua ajuda. Contaram como Pátroclo lançara o assalto contra os lanceiros peonianos matan­do-lhes o Rei e aterrorizando os seus seguidores, que pensaram que era o próprio Aquiles de regresso à guerra. Contaram como, ao ouvirem o temível nome, os troianos recuaram arrastando os outros consigo, de modo que a retirada se transformou numa debandada da qual Menelau, Ájax e Idomeneu se aproveitaram para fazer avançar as suas próprias tropas.

Tendo estado a poucos metros da possibilidade de queimarem a totalidade da frota, os troianos recuavam agora atabalhoadamente através do portão escancarado que tinham forçado. Mas tinham lutado durante a maior parte do dia e os seus braços e pernas, esgo­tados, não eram desafio para a força fresca dos Mirmídones que lhes caía em cima. No espaço de minutos, a trincheira no lado exterior da paliçada transformou-se num fosso de homens aos gritos, carros esma­gados e cavalos feridos.

Com o condutor de carros Automedonte a seu lado, incitando os poderosos cavalos de Aquiles, Pátroclo comandou a carga até ao outro lado da paliçada, chacinando todos os que passavam ao seu alcance. Quando um condutor troiano tentou tolher-lhe o passo, Pátroclo trespassou-lhe o maxilar com a lança esmagando-lhe os ossos e os dentes e depois, utilizando a arma como alavanca, ergueu o homem e atirou-o ao chão como um peixe arpoado. Aquela visão terrível espa­lhou o terror pelos homens à sua volta. Na confusão, só Sarpédon, dos Lícios, teve a coragem de enfrentar o campeão grego. O Rei arre­messou a sua lança, mas esta falhou o alvo e foi enterrar-se no pes­coço de um dos cavalos e quando o animal cambaleou os seus camaradas tentaram recuar, resfolegando e relinchando, de cascos no ar. Automedonte cortou arreios a torto e a direito, o animal caiu e depois o condutor tentou recuperar o controlo do carro, ao mesmo tempo que Pátroclo balanceava o corpo e arremessava a sua longa lança. Esta atingiu Sarpédon nas costelas. Nem Heitor conseguiu evitar que os troianos fugissem na direcção das muralhas da cidade.

Depois de ter recuperado a capacidade de pensar e de ter ouvido o relato apressado sobre as circunstâncias da morte do seu amigo, Aqui­les sentiu que era capaz de perceber o que acontecera naqueles momen­tos. Ele próprio liderara muitas cargas como aquela para saber que quando um homem vê uma massa confusa de guerreiros a fugir na sua frente a sua cabeça rodopia e incendeia-se, intoxicada com o ardor da batalha. Em tais ocasiões, apesar de estar a minutos da morte, um homem é capaz de se sentir imortal, acredita, como Pátroclo devia ter acreditado, que com os seus homens a segui-lo tudo é possível e precisamente por causa disso, os homens seguem-no. Assim, esquecendo as instruções de Aquiles no sentido de regressar assim que os troianos fossem repelidos para lá da paliçada, Pátroclo avançou sobre Tróia como se a cidade pudesse ser conquistada com meia dúzia de homens.

O guerreiro desceu do carro perto de uma velha figueira, num local onde se sabia que a muralha era mais fraca. Por três vezes, com os troianos a lançarem-lhe projécteis e pedindo a ajuda e a protecção de Apolo, Pátroclo tentou trepar a muralha e por três vezes foi repe­lido. Estava ele a recuperar da terceira queda quando Heitor saiu pela Porta Ceias liderando um contra-ataque e carregou sobre ele.

Olhando para cima, Pátroclo viu os cavalos galopando na sua direc­ção à luz cada vez mais fraca do dia. Instintivamente, o guerreiro pegou numa pedra e atirou-a ao condutor de Heitor com tal pontaria que lhe acertou na cabeça, fazendo-o cair do carro com uma cambalhota.

Quando os cavalos passaram por ele, Heitor saltou do carro e os dois heróis envolveram-se num corpo-a-corpo, até que os homens que lutavam à sua volta os obrigou a separarem-se.

Momentos mais tarde, Menelau desviou o olhar do homem que acabava de matar e viu Pátroclo a alguns metros de distância. Com pedras e flechas a caírem à sua volta, o Rei de Esparta viu-o cair desamparado para a frente com os braços erguidos, como se tivesse sido atingido nas costas. No entanto, não havia nenhum homem nas proximidades, por isso os homens disseram, mais tarde, que Pátroclo devia ter sido empurrado por Apolo. O elmo emplumado de Aquiles caiu-lhe da cabeça e rolou para debaixo dos cascos de um cavalo em pânico. Enquanto abanava a cabeça, aturdido, um soldado dárdano aproximou-se por trás e enterrou-lhe uma lança entre os ombros. Com um puxão de provocar náuseas, o homem arrancou a arma, mas levou um encontrão antes de poder espetá-la de novo.

Menelau viu o seu amigo cair lentamente no chão. Quando Pátro­clo se virou, arquejando e tentando levantar-se de novo, os seus olhos esgazeados fixaram-se por breves momentos na figura sombria de Heitor. O jovem guerreiro caiu de novo para trás e durante alguns segundos foi como se o fragor da batalha se tivesse extinguido para testemunhar o momento em que Heitor ergueu a sua lança e a espe­tou no ventre do homem caído no chão.

Quase uma hora mais tarde, Aquiles olhava na direcção de Ténedo quando ouviu alguém a correr pelo areal fora. O seu coração estivera durante toda a tarde a bater descompassadamente. Os seus receios aumentaram com a chegada do crepúsculo e naquele momento, ao olhar para a máscara de dor e mau presságio no rosto de Antffoco, filho de Nestor, soube imediatamente o que acontecera.

O chão faltou-lhe debaixo dos pés. O guerreiro sentiu um nó na garganta. De longe, apesar de o som chegar distorcido pelo vento, percebeu o que Antíloco dizia. Pátroclo estava morto. Uma lança nas costas. A seguir, Heitor espetara-lhe outra no estômago. Ajax e Mene­lau tinham ido ter com ele para proteger o corpo. Estavam ambos decididos a não ceder um palmo de terreno e a luta continuava quando Antíloco fora incumbido de ir dar a notícia a Aquiles. Pátroclo estava morto.

O vento continuava a soprar por baixo do céu turvo. Ao longe, o mar cantava a sua dor.

As pernas de Aquiles vacilaram. O guerreiro viu-se de joelhos a olhar para a areia escura. Com os braços cruzados e os punhos fechados nos ombros, balanceava o corpo como se estivesse a embalar uma coisa qualquer apertada contra o peito. Finalmente, as suas mãos abriram-se. Aquiles baixou-se, agarrou em punhados de areia e des­pejou-os sobre a cabeça e o pescoço.

O jovem ouvia os soluços de Antíloco. Então, a notícia chegou às cativas que tinham vivido com Pátroclo e que tinham aprendido a amá-lo e uma delas começou a gemer. As outras imitaram-na e em breve a escuridão enchia-se com o som medonho dos seus lamentos. Durante algum tempo, apenas Aquiles se manteve silencioso. Final-mente, a sua boca abriu-se, tentando soltar o som que o guerreiro tinha preso na garganta. Quando, finalmente, o grito saiu, começou por ser um gemido primitivo, transformando-se depois num uivo e finalmente num bramido de angústia. Aquiles, filho de Peleu, saquea­dor de cidades e assassino de homens, sabia, finalmente, qual era o preço da honra.

 

             Os Deuses em Guerra

O corpo de Pátroclo talvez nunca mais tivesse sido recuperado se Aquiles não tivesse encontrado a força necessária para converter a sua dor num ritual selvagem de violência. Ouvindo o fragor da batalha cada vez mais próximo, o guerreiro trepou a uma das torres da paliçada e olhou para a confusão de homens em luta. Os gregos recuavam, empurrados mais uma vez na direcção dos navios por um exército troiano que conseguira novas forças com a notícia da morte de Pátroclo. No mais aceso da refrega, o guerreiro conseguiu divisar as silhuetas de Menelau e de Ajax recusando-se desesperadamente a ceder terreno e percebeu que deviam estar a proteger o cadáver do seu amigo.

Aquiles lançou um grito irracional, um grito que se sobrepôs ao fragor da batalha, um grito prolongado, com uma única palavra «Heitor!» e quando o repetiu, mais alto e com mais força ainda, os homens que combatiam em volta do corpo de Pátroclo ergueram as cabeças para ver de onde vinha.

Os guerreiros viram uma figura sombria no ponto mais alto da paliçada com os últimos raios de sol a brilharem-lhe por trás da cabeça.

O nome de Aquiles, murmurado com um temor respeitoso, percorreu as linhas inimigas. Como se fosse uma grande máquina subi­tamente avariada, a batalha parou. O grito de Aquiles ouviu-se nova-mente à luz avermelhada do crepúsculo como se saído da boca de um deus, enchendo de ânimo os guerreiros gregos e de medo os guer­reiros troianos. A sorte da batalha mudou de novo. Heitor foi for­çado a ceder terreno e na obscuridade cada vez maior Menelau e Ajax conseguiram levar o corpo de Pátroclo para fora do campo.

Heitor já tinha tirado a armadura do cadáver. Os dois homens tiraram-lhe a túnica rasgada e ensanguentada e lavaram-no. Em seguida, untaram-no com azeite, taparam-lhe os ferimentos com unguentos e deitaram-no numa padiola coberta com um lençol e um manto branco. Aquiles e os seus Mirmídones reuniram-se em redor dele e os guerreiros desfilaram durante toda a noite perante o cadá­ver de Pátroclo.

Menelau e Ájax aproximaram-se de Aquiles, contaram-lhe como o seu amigo liderara a hoste contra o inimigo e como eles se tinham aguentado junto do corpo para que Heitor não o levasse. Aquiles ouviu-os em silêncio e depois, já num lugar isolado, onde mais nin­guém tinha acesso, continuou sem dizer nada quando Odisseu se apro­ximou para o tentar consolar.

O guerreiro passou a noite a contemplar o cadáver do amigo, recordando as inúmeras vezes que tinham combatido lado-a-lado, protegendo-se mutuamente com os escudos e as espadas, gritando vitória perante o inimigo a fugir na sua frente e lavando mutuamente as feridas depois do combate. Numa ocasião, Aquiles delirara de febre durante dias e quando acordara vira diante de si o rosto do amigo, primeiro ansioso, aflito, perturbado e depois mais suave, aliviado. Aquiles recordou os dias de depressão durante os quais, por uma razão ou por outra, Agamémnon perdera a vontade de lutar e ambos tinham dado livre curso ao escárnio ou se tinham retirado com as mulheres que os amavam para cantar, dançar e fazer amor como se, profeticamente certos de que nenhum deles viveria muito tempo, tivessem de aproveitar cada hora e cada dia com a máxima intensi­dade.

As recordações só lhe aumentaram a dor e a dor intensificou-lhe a raiva. Durante toda a noite, ao lado do amigo, Aquiles transformou--se num instrumento com um único propósito. Na escola de Quíron, em rapaz, muitos eram os destinos que se abriam na sua frente. A sua voz era das mais belas que tinham ecoado naquele desfiladeiro e poderia ter-se tornado bardo, cantando os feitos de outros homens. Sob a tutela de Quíron, demonstrara ter o dom de curar e adquirira o conhe­cimento do poder das ervas medicinais e, por isso, podia ter prefe­rido curar ferimentos em vez de os provocar, salvar vidas em vez de as tirar. Era um bom caçador e um bom bailarino e se Odisseu não o tivesse levado para aquele banquete de violência que era a guerra de Tróia, talvez tivesse vivido uma vida tranquila em Ciros, nos braços do seu primeiro amor, Deidamia, vendo crescer o seu filho Pirro.

Porque Aquiles também tinha um grande talento para o amor. Amara os seus pais, mas a vida dividira o seu coração entre um e outro. Gostara do tempo que vivera em Ciros com a mulher e o filho, mas a vida afastara-o deles. Amara Briseida, a sua cativa, mas tam­bém ela lhe fora tirada. Acima de todos, amara Pátroclo e Pátroclo também partira. Assim, no seu coração já não havia espaço para o amor. A partir daquele dia seria, completa e absolutamente, aquilo que o mundo sempre quisera que ele fosse. Depois, não quereria saber mais dele.

Durante a noite, a chuva começou a cair e continuou a cair durante o dia seguinte, pesada e empurrada pelo vento.

Não tendo dormido, Aquiles levantou-se da cadeira onde estivera até ali sentado e tirou da arca, onde estava guardada, a sua armadura ricamente trabalhada, último presente da sua mãe. Um artesão habi­lidoso, ao serviço de Efesto, fizera o peitoral e as caneleiras em bronze e em latão e forjara-as com ouro e prata até o metal parecer feito de luz. O elmo ajustava-se-lhe perfeitamente às têmporas, as peças das faces eram intrincadamente ornamentadas e tinha uma crista dourada. E o escudo que Tétis lhe dera era uma obra de arte, com imagens do estilo de vida que ela desejara para ele. Entre o aro que representava o Rio Oceano rodeando o mundo e a bossa central onde brilhava o Sol, a Lua e as estrelas, Aquiles podia contemplar uma visão do reino humano, no qual a guerra era apenas uma activi­dade entre muitas outras e onde o maior espaço era dedicado às artes pacíficas da agricultura, como o arar, a ceifa, a pastorícia e as vindi­mas, da música e da dança.

A armadura fora fabricada com intenções cerimoniais, não para entrar em combate e Aquiles imaginara-se a si próprio muitas vezes entrando em Tróia com ela vestida, triunfante. Pátroclo levara a outra, menos trabalhada, que usava em batalha e fora essa que Heitor lhe tirara do corpo. Assim, a armadura da sua mãe teria de ir para a guerra.

Aquiles usava-a quando saiu da sua cabana e atravessou o areal até onde Agamémnon e os seus capitães estavam reunidos em con­selho por baixo de um toldo que os protegia da chuva. Todos eles estavam desolados com a morte de Pátroclo e com o insucesso do seu esforço tremendo, da sua tentativa de esmagar os troianos contra as muralhas de Tróia. Alguns deles ainda recuperavam dos ferimen­tos recebidos e poucos tinham dormido. Naquele momento, sob aquela chuva incessante, nenhum deles tinha grande vontade de regres­sar ao campo de batalha. Assim, observaram a aproximação de Aqui­les com algum receio e perturbação nos olhos. Agamémnon, que ainda tinha dores provocadas pelo ferimento da lança num dos braços, mal olhou para ele.

Filho de Atreu - começou Aquiles - parece que ninguém tirou partido da nossa querela senão Heitor e os seus troianos. Che­gou a hora de lhe pormos termo. Chama a hoste às armas mais uma vez e veremos se algum dos teus inimigos se atreve a defrontar a minha lança.

O toldo bateu sob a acção do vento e espalhou a água acumulada no topo. O ar que lhes batia nos rostos era húmido e ao longe, para lá dos navios, a manhã não era mais do que um borrão cinzento de céu e mar. Algures, um cavalo relinchou e ouvia-se o som dos ferrei­ros e dos carpinteiros consertando os eixos e as rodas dos carros de combate.

Agamémnon levantou-se lentamente. O seu braço continuava ligado e pendurado ao pescoço e o Rei olhou apenas de relance para Aquiles antes de falar, mas a sua voz foi suficientemente alta e todos a ouviram.

Eu sei que alguns de vós me culpais por esta querela, mas eu acho que no dia em que tirei a Aquiles o seu prémio, Zeus, o Destino e a Fúria cega devem ter-me toldado a mente. E quando os deuses decidem agir assim que pode um mortal fazer? Agora, sei que a minha decisão foi injusta porque os deuses me cegaram e quero repa­rar o meu erro. O monarca virou-se por breves instantes para Aquiles, se bem que o seu olhar se mantivesse ligeiramente de lado. — Terás tudo o que o senhor Odisseu te prometeu quando foi à tua cabana. Vou mandar imediatamente os meus servos aos navios para te trazerem os objectos.

O Rei preparava-se para dar a ordem quando Aquiles disse:

       Isso pode esperar. Temos coisas mais importantes entre mãos. Os troianos estão a preparar-se novamente para o combate neste mesmo momento. Devíamos ir ao encontro deles.

Agamémnon grunhiu e recostou-se na cadeira onde estava sen­tado. Pálido, olhou para Odisseu, que estava apoiado ao cabo de uma lança para aliviar a pressão do seu ferimento.

— É bom ter-te outra vez connosco Aquiles — disse Odisseu — mas os homens ainda não recuperaram da batalha de ontem e ainda não comeram. Temos tempo. Por que é que tu e o senhor Agamém­non não tratam dos teus presentes? Depois, podemos celebrar a vossa reconciliação com uma festa!

Rigidamente, Aquiles disse:

—Não consigo pensar em comer quando o meu amigo jaz morto e os corpos dos nossos camaradas continuam na planície. Os homens que lutem primeiro e que comam depois. É assim que eu penso e eles seguir-me-ão.

Mas quando a sua insistência não conseguiu demover os outros comandantes, Aquiles retirou-se para a sua cabana enquanto eles fes­tejavam com um javali oferecido a Zeus por Agamémnon. A manhã já ia avançada quando os cavalos foram atrelados aos carros e Aqui­les, finalmente, lançou o seu grito de batalha, liderando a hoste grega numa carga pela planície fora.

Houve ocasiões, no decurso da guerra, em que o equilíbrio de poderes entre as duas forças pareceu tão estável que os bardos, obser­vando as batalhas, disseram que Zeus tinha perdoado aos deuses que tinham emprestado o seu peso a cada um dos lados. Naquele dia, porém, a violência andou à solta no campo de batalha com tal selva­jaria que se tornou evidente que os deuses tinham entrado na guerra. Estavam presentes nas nuvens de tempestade que se acumulavam. Estavam presentes na chuva contra a qual os homens e os cavalos tinham de lutar. Estavam presentes nos gritos com que os homens se incitavam uns aos outros e nas orações que balbuciavam quando viam a morte aproximar-se.

Mas Aquiles não pensava nos deuses. O guerreiro estava para além de qualquer pensamento, estava no mundo puro da acção irreflectida, onde a sua única preocupação era chacinar enquanto abria caminho através das fileiras troianas à procura de Heitor. Vinte homens caí­ram na ponta da sua lança na primeira investida, o último dos quais agarrado aos seus joelhos, tentando oferecer uma fortuna como res­gate no preciso momento em que Aquiles erguia a lança e lhe esma­gava o rosto. A determinada altura, o guerreiro viu-se confrontado com Eneias, que o enfrentou como poucos e lhe arremessou a sua lança. A arma embateu no grande escudo, mas não o penetrou e Eneias já se ia juntar aos que Aquiles tinha matado quando um movimento inesperado da linha o afastou. Aquiles virou-se e viu um jovem guer­reiro troiano, praticamente ainda um adolescente, a olhar para ele, à chuva. Era o filho mais novo do Rei Príamo, Polidoro, bastardo e meio-irmão de Heitor, que fora para o campo de batalha contra a vontade do seu pai. Girando rapidamente nos calcanhares, o jovem começou a correr, mas a lança de Aquiles foi mais rápida, apanhando--o nas costas e projectando-o na lama.

Da posição onde estava, a vinte metros, Heitor viu o rapaz mor­rer. Furioso, o príncipe pôs de lado quaisquer precauções e lançou-se sobre Aquiles. No mesmo momento, ouviu-se um trovão e a chuva ficou mais espessa, caindo com uma força torrencial. Heitor lançou a sua lança, mas falhou o alvo. Depois, os dois guerreiros deixaram de se ver um ao outro, de tal modo era densa a tempestade.

Aquiles ergueu a voz num grito terrível, encorajando os mirmí­dones a repelir os troianos na direcção da cidade. Os guerreiros res­ponderam instantaneamente brandindo as lanças e o inimigo come­çou a recuar na direcção do rio Escamandro, onde poderiam passar a vau e regressar a Tróia. Mas a passagem era estreita e muitos dos homens tentavam atravessar o rio ao mesmo tempo. O terror que Aquiles lhes inspirava era tal que muitos deles decidiram atravessar onde a água era mais profunda, morrendo afogados numa confusão de carros e cavalos a nadar.

Quando viu o que estava a acontecer, Aquiles ordenou aos mirmí­dones que se adiantassem aos inimigos em fuga e eles fizeram-no rapi­damente, apanhando muitos dos guerreiros troianos numa curva do rio. A maioria era composta por carianos guerreiros que iam para o combate com ornamentos dourados a tilintar, como as raparigas e que não tiveram outra hipótese senão lançar-se nos braços da corrente musculosa do rio para não enfrentarem as espadas dos mirmídones.

Aquiles comandou o assalto contra eles. O mundo quisera que ele fosse um assassino e ele fazia o seu trabalho com rapidez e com limpeza, sem qualquer pensamento ou sentimento e com a tranquili­dade de um carniceiro. O sangue esparrinhava à sua volta. Os seus braços, pernas e rosto estavam vermelhos. Invólucros que tinham sido homens eram agora sacos de ar, sangue e excrementos reben­tando e expirando à sua volta. Os sons das suas mortes misturavam--se, na sua mente, com a corrente do rio. O jovem guerreiro estava imerso num transe assassino, cortando, espetando e arrancando a sua lâmina sem maior ódio ou repugnância do que se se tivesse transfor­mado na sua própria armadura, abrindo caminho através dos mortos na direcção da imortalidade.

Enquanto assim fazia pela margem do rio, um guerreiro tentou levantar-se da lama a seus pés. Aquiles reconheceu o rosto de Liácon, filho de Príamo, que lhe escapara antes, e decidiu que dessa vez não falharia. Quando ergueu a espada, Liácon prostrou-se, pedindo-lhe que o poupasse.

— Nenhum de nós é poupado — respondeu Aquiles. — Pátro­clo não foi poupado. Nem eu serei quando chegar a minha hora. Este mundo transformou-se num campo mortal. Sê corajoso, amigo e enfrenta isto fraternalmente, de um mortal para outro. Enquanto Liacon olhava para ele, Aquiles deixou cair a espada e cortou o pes­coço ao troiano. Em seguida, deu um pontapé no corpo e ficou a vê--lo ser arrastado pela corrente.

A carnificina continuou. Aquiles estava a usar, certamente, o manto da invencibilidade, porque passava tranquilamente por entre as lan­ças e as espadas sem receber qualquer ferimento. No entanto, os mor-tos e os moribundos jaziam empilhados à sua volta e em breve os úni­cos homens que faltava matar tentavam evitar morrer afogados mais longe, agarrando-se às rochas. Como se cada vida fosse um obstáculo a ser removido até conseguir chegar junto de Heitor, Aquiles mergu­lhou no rio em sua perseguição e ficou surpreendido com a força da corrente, mas continuou pela água ensanguentada e matou mais três homens antes de se aperceber de que a corrente, cada vez mais rápida, poderia arrastá-lo.

Vários quilómetros mais longe, nos abismos dos Montes de Ida, um dique, formado por árvores que tinham caído devido à tempes­tade, cedera devido à pressão a montante. A água corria pela montanha abaixo e corria por entre as margens com tanta força que arras­tava consigo pedras, animais afogados e troncos de árvores.

Ouvindo rugir o rio, Aquiles olhou para montante e viu uma turbulenta parede branca precipitar-se na sua direcção. O guerreiro virou-se e já fugia na direcção da margem quando o seu punho foi agarrado por uma mão que surgiu subitamente à superfície da água. Enquanto tentava libertar-se, Aquiles viu distintamente as feições bar­budas do homem a olhar para ele. O braço era vigoroso e musculado e agarrava-se com tanta força que parecia que os dedos brancos esta­vam fechados a cadeado em redor do seu punho. Então, a torrente caiu em cima de ambos e o corpo de Aquiles foi arrastado para um mundo de sombras castanhas, cada uma das quais parecia possuída pelo desejo de o manter debaixo de água até os seus pulmões terem consumido todo o ar que guardavam.

Então, durante um certo período de tempo, Aquiles sentiu-se com a sua mãe no reino aquático das Nereides respirando água, pen­sando em água e sonhando com água, ao mesmo tempo que o rio procurava engoli-lo. E quando Tétis lhe perguntou por que chorava, ele disse-lhe que a morte de Pátroclo tinha tornado fútil a sua busca de glória e que a morte do seu amigo só poderia ser redimida com a morte de Heitor. «Mas assim que Heitor morrer», disse-lhe a mãe, «também tu deves morrer», e Aquiles ia responder-lhe que não tinha outro desejo quando recuperou a consciência, tossindo e vomitando água castanha. O guerreiro olhou para cima e viu Fénix a olhar ansio­samente para ele. Instantaneamente, passaram-lhe pela mente dois pensamentos: ainda estava vivo; e Heitor também.

Do alto das muralhas de Tróia, o Rei Príamo vira a debandada do seu exército. O Rei vira os seus guerreiros caírem perante a primeira investida de Aquiles e dos mirmídones. Vira como o batalhão de carianos fora apanhado e chacinado na curva do Escamandro e o seu velho coração estremeceu à vista das torrentes castanhas de água arras­tando homens no meio de uma confusão de árvores, pedras e carros de combate desconjuntados. O monarca dera ordens para que os por­tões se abrissem, para que os que escapassem à fúria de Aquiles pudes­sem fugir para a segurança das muralhas e eles tinham-se apinhado ali como carneiros num redil, sem sequer se preocuparem com os feridos. Mas quando Heitor ficou no exterior, apressando os retarda­tários, Príamo sentiu que o mais nobre dos seus filhos devia estar a pen­sar se também devia retirar ou se devia ficar para enfrentar o homem que espalhara o terror na hoste troiana.

Ao longo dos anos, Príamo acordara muitas vezes de noite a pen­sar se estaria no seu perfeito juízo ao desperdiçar o tesouro do seu reino e ao arriscar as vidas dos seus filhos naquela guerra brutal. Mas naquele momento, pela primeira vez, contemplava a possibilidade de uma derrota total e com Aquiles de regresso ao campo de batalha, só Heitor seria capaz de liderar as forças troianas na defesa da cidade. A sua vida não podia ser desperdiçada.

Príamo virou-se para Deífobo, que se mantinha a seu lado, san­grando de um golpe num dos braços e ordenou-lhe que fosse buscar a Rainha. Em seguida, o Rei olhou novamente por uma seteira para o carro de Heitor, na base da rampa que ia dar à Porta Ceias. A tem­pestade amainara, finalmente, apesar de as aves por cima da torre de vigia continuarem a lutar contra o vento. Mais longe, na planície, junto das margens inundadas do Escamandro, os milhafres e os abutres sobrevoavam os mortos. Entretanto, o exército grego aproveitava a pausa para reagrupar, tratar os seus ferimentos e transportar os seus feridos. Não compreendendo como um dia que começara tão esperançoso se transformara num desastre tão grande, Príamo orde­nou a Heitor que entrasse na cidadela.

       O dia ainda não acabou — respondeu-lhe Heitor. — Não tarda, estão outra vez em cima de nós.

— Eu sei — disse Príamo — mas não me posso dar ao luxo de perder mais filhos — e muito menos tu, em quem estão depositadas todas as nossas esperanças.

Sem lhe responder, Heitor olhou para a planície. O príncipe incli­nou a cabeça, como se estivesse a farejar o vento que lhe agitava a pluma do elmo e apesar de, aparentemente, parecer tranquilo, a sua cabeça era um turbilhão de pensamentos. O dia tivera um momento crítico, quando as suas linhas tinham sido abaladas pela investida de Aquiles e os seus capitães tinham-no aconselhado a retirar ordena­damente para que se pudessem abrigar por trás dos muros da cidade e pensar na nova situação. Mas o sangue de Heitor ainda estava em fogo devido ao sucesso anterior. O príncipe decidira ficar e lutar com os mir­mídones e as consequências dessa decisão eram evidentes para todos.

O seu espírito orgulhoso recusava-se a fugir para o interior das muralhas e deparar com as recriminações dos que tinham pago o preço da sua loucura com as vidas de maridos, irmãos, filhos e ami­gos. Preferia ficar ali, na Porta Ceias, mostrando a Aquiles a sua pró­pria armadura, na certeza de que o filho de Peleu ainda estava no campo de batalha e que acorreria em breve para vingar o seu amigo Pátroclo.

O príncipe ouviu o seu pai a chamá-lo do alto da muralha, mas não se virou. Um dos seus cavalos cinzentos resfolegou e os arreios tilintaram. Heitor viu que o céu estava a ficar azul e que a luz se espa­lhava pela planície com o brilho que se segue frequentemente a uma tempestade. No alto das montanhas, Íris, a deusa do arco-íris, fazia brilhar o seu véu por cima das nuvens. Heitor pensou se o seu filho Astíanax a teria visto. Como era bom, pensou ele, estar vivo.

Então, o príncipe ouviu a voz angustiada da sua mãe, a Rainha, chamando-o, pedindo-lhe que entrasse na cidade.

Pensa na tua mulher e no teu filho gritava ela. E eu, que te dei a vida, tenho de ficar a vê-la ser ceifada por aquele demónio do Aquiles? Vem para dentro, peço-te. Entra e deixa-nos fechar as portas.

Durante um momento, Heitor estremeceu ao pensar na sua mulher sentada ao tear, tentando acalmar-se e pensando na paz que tinham vivido em tempos. Certamente que os gregos estavam tão fartos de sangue como os troianos? Ambos os lados tinham sofrido baixas ter­ríveis. No entanto, Tróia continuava inexpugnável na sua crista var­rida pelo vento e não podia ser submetida pela fome. Como era pos­sível alguém querer ainda mais anos de sangue derramado? Se tirasse a armadura e fosse ao encontro de Aquiles desarmado, oferecendo-se para devolver Helena a Menelau juntamente com metade do tesouro de Tróia, a oferta não seria aceite? Não aceitaria qualquer homem no seu perfeito juízo um acordo daqueles, partindo depois em paz?

Mas Aquiles já não estava no seu perfeito juízo e os gregos não partiriam agora que o filho de Peleu os comandava, ansioso pela matança. E Aquiles só desistiria do combate quando Heitor estivesse morto. Os factos brutais eram aqueles e quanto o príncipe desviou o olhar do seu breve transe de esperança viu um certo tumulto nas linhas gregas e o carro de Aquiles a avançar na sua direcção através da planície.

Heitor ouviu um gemido de ansiedade vindo das muralhas atrás de si quando os mirmídones começaram a avançar atrás do seu coman­dante.

Heitor — chamou-o Deífobo     temos de fechar as portas.

O príncipe acenou com a cabeça. Os seus cavalos agitaram-se, irritados. Heitor ouviu outra voz urgente, pedindo-lhe que entrasse — a voz de Páris, por causa de quem aquela querela amarga come­çara mas ele não se virou. Então, ouviu-se uma grande agitação nas suas costas, ordens, uma voz anulando essas ordens do alto das muralhas e uma breve discussão. Com um ranger de madeira contra os enormes gonzos, a grande Porta Ceias começou a fechar-se.

O príncipe estava sozinho entre a cidade e a planície e Aquiles avançava sozinho na sua direcção.

Heitor pensava na estranheza de o destino de um homem já estar escrito na hora do seu nascimento e no entanto nenhum o conhecer senão quando os deuses o desdobravam na sua presença. Quanto a ele, venerara os deuses, honrara os seus pais, amara a sua mulher e o seu filho, servira a sua cidade e combatera os seus inimigos com coragem e valentia. No entanto, tudo aquilo seria obliterado nos minutos que se aproximavam.

Heitor viu Aquiles brandindo a sua lança. Então, o sol brilhou através das nuvens que cobriam a planície, cintilando no elmo de Aqui­les de tal maneira que a silhueta aos comandos do carro poderia não ser a de um mortal.

O coração de Heitor começou a tremer como um pano ao vento.

O príncipe viu, demasiado tarde, que não estava preparado para morrer. No entanto, a grande porta estava fechada e se se virasse, pedindo que lha abrissem, morreria como o seu irmão Polidoro, com uma lança enterrada nas costas. A sua mãe continuava a gritar do alto da muralha. Ou lutava, ou fugia.

Heitor chicoteou os seus cavalos e afastou-se do carro que se aproximava, passou pela velha figueira junto da porta e disparou na direc­ção do carreiro na base das muralhas. Um grande grito de troça par­tiu dos mirmídones, mas o príncipe só ouvia o som das rodas do carro de Aquiles nos sulcos e nos seixos do carreiro, atrás de si. Heitor con­seguia cheirar o vapor que se erguia dos flancos dos cavalos enquanto passava com o seu carro pelas nascentes quentes, pelas antigas tinas de pedra onde as mulheres costumavam lavar a roupa e conversar nos dias de paz e dava a curva apertada em volta das muralhas da cidade, como se estivesse numa corrida com Aquiles e um deles emergisse a rir como vencedor da perseguição.

Os dois príncipes deram três vezes a volta às muralhas e deram três vezes a volta ao mundo ao esplendor sombrio do Heles-ponto, à baía com paliçada onde os gregos tinham encalhado os seus navios, à distante e enevoada ilha de Ténedo, às margens do Escamandro ainda juncado de cadáveres e às escarpas do Monte Ida, de onde os deuses observavam tudo. A paisagem da juventude e da idade adulta de Heitor desfilava enquanto o carro saltava e guinava no terreno acidentado. Os cavalos suavam e forçavam o andamento, como que fugindo do terror que ele sentia no coração. Quando passaram pela Porta Ceias e se aproximaram mais uma vez das tinas de pedra, o príncipe olhou para trás e viu Aquiles mais próximo e nesse preciso momento a roda direita do carro foi de encontro a uma pedra.

Desequilibrado, Heitor agarrou-se à balaustrada enquanto os raios de madeira voavam em estilhas, os cavalos espantavam-se e o carro resvalava e parava com o eixo partido a arrastar pela poeira.

Heitor saiu a cambalear do veículo sinistrado e procurou as suas armas. O sangue saía-lhe da boca por ter mordido a língua no momento do choque. O príncipe viu Aquiles apear-se do seu carro, segurando na sua longa lança. Nas suas costas, o Sol brilhava. Heitor limpou o sangue da boca enquanto agarrava com força nas correias do seu escudo e sopesava a lança na outra mão.

Aquiles parou a alguns metros de distância. Quase nada do seu rosto era visível por trás do elmo de bronze, apenas os olhos cinzentos, fixos na sua presa, implacáveis.

Heitor ergueu a voz.

Acabemos com isto, filho de Peleu. Mas jura-me que o vence-dor tratará o corpo do vencido com respeito.

Não obteve qualquer resposta.

Heitor ia falar outra vez, mas com os sentidos de um homem receoso pela sua vida totalmente alerta, reparou que os músculos do braço de Aquiles que segurava a lança se estavam a retesar. Prepa­rado, o príncipe troiano encolheu-se para que a lança lhe passasse por cima e se enterrasse no solo.

— Que os deuses me dêem sorte!  disse Heitor e começou a andar em volta para tirar a luz do Sol dos olhos, sopesando a sua lança. Aquiles acompanhou-o no movimento, esperando pelo arre­messo. Quando ele aconteceu, a lança bateu no escudo com um som metálico, de bronze no ouro, mas a arma de defesa tinha levado tan­tas camadas de metal e couro que a arma de arremesso não teve força para o perfurar.

Desequilibrado pelo peso da lança, Aquiles deixou cair o escudo. Heitor desembainhou a sua espada. No mesmo momento, o príncipe troiano apercebeu-se de que o seu movimento circular fizera com que Aquiles ficasse ao alcance da lança que lhe arremessara. Heitor encur­tou o espaço entre ambos, mas o seu assalto não foi suficientemente rápido para evitar que Aquiles agarrasse na arma. Num único movimento pleno de agilidade, o filho de Peleu ergueu a lança e mergu­lhou-a vigorosamente no único ponto fraco da armadura usada por Heitor. Em seguida, com um torção, arrancou-a e viu Heitor cair no chão com um fio de sangue a sair de um golpe no pescoço.

Primeiro, Heitor caiu de joelhos, ficou nessa posição durante uns momentos, como se estivesse a rezar e depois caiu de borco. Com a ponta do pé, Aquiles pontapeou-o nas costas para poder olhar para o seu rosto moribundo. Os olhos do príncipe troiano estavam a esfu­mar-se e o sangue saia-lhe em golfadas do pescoço, mas Heitor con­seguiu fazer um último pedido, no sentido de que o seu corpo pudesse ser resgatado.

Mas a voz que ouviu era sem piedade.

— Tu terias pendurado a cabeça de Pátroclo nas muralhas de Tróia se os seus amigos não o tivessem defendido, por isso não me peças favores, Heitor. Tenho prazer em que morras sabendo que o teu pai nunca mais verá o teu rosto.

Heitor já não ouviu aquelas palavras. A morte caiu sobre ele. Aquiles levantou a cabeça e gritou para o céu.

Na torre de vigia, o Rei Príamo olhou para baixo e puxou os cabelos ao ver os mirmídones a espetarem as suas lanças nos membros de Heitor. A seu lado, Hécuba chorava a sua dor e ao longo das muralhas os cidadãos de Tróia assistiram, chocados, ao espectáculo dos mir­mídones a despirem a armadura a Heitor.

Afastando os seus homens, Aquiles pegou no cinturão púrpura que pertencera a Ajax, atou-o em redor dos tornozelos de Heitor e arrastou o seu corpo mutilado até ao seu carro, onde o atou à balaus­trada. Em seguida, subiu para o veículo e lançou-se a galope, arrastando o corpo de Heitor em redor das muralhas de Tróia com a cabeça do príncipe a saltar nas pedras e os seus longos cabelos a rojarem na poeira.

Quando regressou ao campo grego, Aquiles desatou o cadáver da balaustrada do seu carro e atirou-o para a padiola onde jazia o corpo de Pátroclo, mas não parecia um caçador de regresso com a sua presa, parecia um rapaz procurando desajeitadamente reparar um erro que cometera.

Aquiles desatou a soluçar em cima do corpo do seu amigo.

Algum tempo depois, Fénix aproximou-se dele e colocou-lhe uma mão no ombro, pedindo-lhe que fosse tomar o banho que lhe tinham preparado e que fosse, depois, comer com Agamémnon e com os outros comandantes gregos. Aquiles empurrou-o e foi sentar-se no areal a olhar para o mar.

A noite estava escura, quase não se via uma estrela no céu. Aqui­les era a imagem da dor — uma dor tão imensa que parecia um abismo negro, o abismo para onde ele tinha lançado o corpo de Heitor e os de inúmeros outros homens. No entanto, esse abismo nunca ficaria repleto, nem que exterminasse toda a hoste troiana. Só lhe restava a dor, nada mais do que a dor.

O corpo de Pátroclo foi queimado no dia seguinte. Cada mirmí­done cortou uma mecha do seu próprio cabelo e colocou-o em cima do cadáver e Aquiles cortou a mecha que o seu pai lhe pedira para não cortar senão quando regressasse à Tessália, onde a ofereceria aos deuses em sacrifício. O guerreiro colocou-a na palma da mão do seu amigo e os homens em seu redor perceberam que Aquiles não tinha intenção de regressar a Tróia.

Em seguida, foi encostado um archote à imensa pira. A mecha pegou, mas como não havia vento naquela manhã e a madeira ainda estava húmida da chuva, a madeira recusou-se a arder.

Aquiles olhou desesperado para o imenso holocausto que fizera para Pátroclo, cujo corpo imóvel pairava entre o mundo da luz e o mundo das sombras. Os homens tentaram novamente acender a pira e mais uma vez ela se recusou a arder.

Chorando de frustração, Aquiles pediu a todos, excepto aos seus mirmídones, que abandonassem o local.

Em seguida ficou em frente da pira, pedindo a Apolo que o ilu­minasse. Algum tempo depois, o guerreiro foi à cabana que parti­lhara com Pátroclo e saiu com a taça dourada de duas asas. Enchendo-a de vinho, virou-a para norte e derramou um pouco do liquido em honra de Bóreas, o deus do vento norte. Em seguida, virou-se para oeste e derramou novamente um pouco de vinho em honra de Zéfiro. Depois de pedir aos dois deuses trácios que dessem a força dos seus ventos ao fogo, esperou durante todo o dia por uma resposta à sua prece.

Ao fim da tarde levantou-se uma brisa, vinda da baía. Acendeu-se, de novo, um archote, juntou-se à madeira uma nova mecha e dessa vez as chamas pegaram, alimentando-se do azeite que fora derramado sobre a madeira. A carne dos animais sacrificados começou a assar, a gordura a estralejar e a gotejar. Em breve, o ar em redor da pira agi­tava-se com o calor das chamas altas e a brisa vinda do mar agitava uma coluna de fumo avermelhado, libertando faúlhas à luz do cre­púsculo através da planície, em direcção a Tróia.

Depois de o fogo ter morrido e as cinzas arrefecido, recolheram os ossos calcinados de Pátroclo e guardaram-nos numa urna dourada. Aquiles levou-a para a cabana e guardou-a num local onde ficaria até que as suas próprias cinzas se misturariam com as do amigo. Em seguida os gregos ergueram uma pilha de pedras em redor do local da pira e construíram uma grande elevação de terra por cima como um monumento ao nome de Pátroclo.

Aquiles declarou que ofereceria ricos prémios para os vencedo­res dos jogos funerários em honra do seu amigo, mas assistiu com indiferença às corridas a pé e de carro, aos combates de luta-livre, de pugilismo e ao tiro com arco. O guerreiro não conseguia encontrar consolo na companhia de Briseida, que lhe fora devolvida por Aga­mémnon, porque ela lhe fazia recordar dolorosamente os tempos que passara com Pátroclo e porque já não se achava capaz de amar. Assim, devolveu a liberdade à rapariga e enviou-a, a chorar, para o seu povo. De noite, dormia sozinho na cabana vazia e todas as manhãs, num cada vez mais fútil ritual de vingança, arrastava o cadáver de Heitor em redor da sepultura de Pátroclo, apenas para descobrir que o deus da sua dor continuava insatisfeito.

Uma noite, Aquiles sonhou que via o fantasma de Pátroclo olhan­do tristemente para o cadáver de Heitor, como se o estivesse a chorar e quando estendeu um braço para o abraçar pela última vez, descobriu que estava a apertar contra o peito o corpo do príncipe troiano.

Aquiles acordou aos gritos.

No dia seguinte, o guerreiro decidiu visitar o santuário de Apolo, perto de Escamandro, para pedir ao deus que fosse misericordioso com Pátroclo. Apesar de mal ter falado com Laocoonte, um filho de Antenor que era sacerdote no templo, Aquiles deve ter encontrado algum consolo no silêncio tranquilo do lugar sagrado, porque regressou urna segunda vez.

Na sua terceira visita encontrou urna jovem troiana, talvez de uns quinze anos de idade, ao lado do sacerdote. A jovem usava o traje de sacerdotisa e enquanto ele fazia a sua oferenda, ela ficou a olhar para ele com uma expressão ao mesmo tempo de modéstia e ansiedade.

Depois de terminado o sacrifício, Laocoonte disse hesitantemente no silêncio do templo.

— Esta é Políxena, uma serva do deus. Ela quer falar contigo.

Aquiles hesitou. O guerreiro tinha ido ali em busca de solidão, só queria falar com o deus e depois do que tinha feito nas margens do Escamandro e na base das muralhas de Tróia, não via como poderia falar tranquilamente com uma jovem que poderia ser filha ou irmã de um dos muitos homens que matara.

A voz dela tremia quando disse:

Tu és Aquiles, filho de Peleu?

Ele acenou com a cabeça e desviou o olhar dos seus olhos acusa-dores.

Parecendo ter encontrado a coragem suficiente, Políxena disse:

Foste tu que mataste o meu irmão Heitor.

Apesar de as palavras o terem atingido como uma lança, o guer­reiro permaneceu imóvel. Foi ela que ficou perturbada quando os dele a fixaram ferozmente.

Tu és filha do Rei Príamo? — Quando ela confirmou, ele disse com a voz rouca:

Se vieste aqui para me amaldiçoar, ficas a saber que a minha vida já está amaldiçoada. Nada do que disseres pode aumentar a minha angústia.

Ele era uns dez ou onze anos mais velho do que ela e o seu nome aterrorizava-a desde criança, porém a jovem não esperava aquilo. O brilho de ferocidade tinha desaparecido do rosto do guerreiro e com ele muita da sua luz. Os seus cabelos louros estavam a ficar grisa­lhos aqui e ali e a sua pessoa parecia ensombrada por uma certa aura de impotência que ela nunca vira antes noutro homem. Políxena fora naquele dia ao templo presa de uma grande ansiedade, na esperança de lhe incutir alguns escrúpulos e alguma vergonha. Mas, agora, os seus receios tinham diminuído, talvez devido à presença do deus naquele recinto sagrado, ou a alguma deficiência de lealdade da sua parte. A jovem descobria, espantada, alguma piedade no rosto de Aquiles.

— Choras a morte do amigo que amavas — disse ela.

Ele limitou-se, mais uma vez, a acenar com a cabeça porque a dor crescia-lhe novamente no peito e uma só palavra poderia esmagá-lo.

E eu choro o irmão que amava — atreveu-se ela a dizer.

O guerreiro não conseguiu olhar para ela. Aquiles queria virar-se, atravessar o solo de mármore, sair para o ar livre e cobrir os cabelos de terra, tal como fizera quando soubera da morte de Pátroclo. Mas não conseguiu mexer-se.

Os olhos dele também não conseguirem evitar os dela.

Quando olhou para ela, Aquiles pensou que aquela jovem devia ser a filha mais nova do Rei Príamo, que devia ser ainda uma criança quando aquela guerra começara. Quantas raparigas mais teriam cres­cido conhecendo apenas a guerra? Então, lembrou-se de Ifigénia, a rapariga que fora para Aulis convencida de que ia casar com ele quando, afinal, ia casar com a morte, de lleidamia, apertando o filho contra o peito e da festa dos pastores, em Ciros, quando se vestira de rapariga para servir a deusa e se sentira, familiar e estranhamente, no êxtase da dança, na condição de mulher. Como teria sido se tivesse nascido mulher? Se, em vez de se ter transformado num assassino, tivesse sido fadado, tal como elas, para esperar, sabendo que um dia um homem rude qualquer, a cheirar a suor e a sangue, poderia arrombar-lhe a porta na intenção de a violar?

Fosse como fosse, no fim, a única coisa que ficava era a dor. Políxena disse:

— Não és o que eu pensava.

Na tranquilidade do templo, ele disse:

— Nem eu.

— Mas o divino Apolo sabe. — A voz dela tornou-se mais con­fiante. — Quero fazer-te uma pergunta em nome dele.

— Fá-la ao deus, não a mim. Eu já não sei quem sou.

— Mas tens a tua dor. Perdeste um amigo.

Mais uma vez, Aquiles teve de fazer um grande esforço para não se deixar submergir pelos seus sentimentos.

— O meu pai também sabe o que é a dor — disse ela. Tu perdeste um amigo e ele perdeu um filho. E sois ambos inimigos, eu sei. Mas também sois irmãos na dor.

Com um sobressalto no coração, ele soube, então, o que ela lhe ia pedir.

Foi tudo combinado em segredo. Sem o conhecimento de Aga­mémnon, o arauto Taltíbio falou com Ideus, o arauto de Príamo, no templo de Timbre, sob os auspícios de Hermes, arauto dos deuses. No entanto, a missão talvez se tivesse revelado impossível se ambos os exércitos não tivessem beneficiado de uma trégua e se os navios de Aquiles não estivessem encalhados mais a oeste das linhas, onde só havia mirmídones de vigia nas torres. Naquelas condições, numa noite sem lua, uma carroça podia passar pela planície sem ser vista.

Aquiles tinha acabado de comer com os seus amigos Fénix e Automedonte quando foi anunciada a chegada de Ideus.

Ele que entre — disse Aquiles, mas quando olhou para a porta viu entrar dois homens e Ideus não era o primeiro. O primeiro era uma figura ligeiramente curvada com o rosto na sombra das pregas da capa que lhe cobria a cabeça. O homem virou-se para Ideus, que lhe tirou o manto dos ombros. Os cabelos brancos surgiram à luz das candeias e quando o estranho se virou, Aquiles e os amigos ficaram espantados por se verem na presença das feições enrugadas do Rei Príamo.

O velho Rei permaneceu por alguns instantes pouco seguro, cofiando os caracóis brancos da sua barba. Automedonte foi o pri­meiro a mexer-se, mas ao ver que o seu amigo procurava uma espada, Aquiles impediu-o com um gesto. Príamo ergueu as mãos para que todos vissem que não estava armado.

— Podemos falar em particular? —perguntou ele e fez sinal com a cabeça para que Ideus saísse. Um momento mais tarde, Aquiles indi­cou aos amigos que deviam segui-lo e o jovem guerreiro e o velho Rei ficaram a olhar um para o outro pouco à-vontade no interior da cabana.

Aquiles disse:

— Não estava à espera disto. — O jovem guerreiro estava a pen­sar no cadáver mutilado do filho daquele homem no exterior da cabana, como um cão abandonado.

— Nem eu — respondeu Príamo — mas quando um deus ordena, um mortal deve obedecer e a minha vida não tem qualquer valor desde que mataste o meu filho. Em todo o caso, tinha de ter a certeza que cumprias o combinado.

Aquiles endireitou-se.

— Eu sou um homem de palavra. Jurei perante Atena que mataria o teu filho e matei-o. Disse à tua filha que devolveria o seu corpo e cumpro o que disse. Não sou nenhum troiano para que ponham em dúvida a minha honra.

Durante uns instantes, o ódio do ancião pelo jovem guerreiro que lhe matara o filho tornou-se quase palpável, como a lâmina de uma faca. Aquiles sentiu que, se tivesse forças, Príamo tê-lo-ia tentado matar naquele momento e também sentiu que teria agarrado na mão trémula do ancião, que a teria torcido e que lhe teria enterrado a lâmina no coração. Mas o momento passou e os dois homens limitaram-se a olhar um para o outro, conscientes de que, fossem quais fossem os seus dese­jos, os deuses tinham outras exigências.

O Rei Príamo suspirou e abanou a cabeça. Quando o monarca ergueu as mãos num gesto de remorso, Aquiles viu que elas tremiam. Então, o velho Rei atravessou a cabana na sua direcção e caiu de joe­lhos como um suplicante.

— Perdoa a fraqueza de um velho — disse ele. — Pensa no teu pai, senhor Aquiles. Ele deve ter a minha idade. Ele também está pró­ximo da morte. No entanto, tem uma consolação que eu não tenho. Tem um filho.

— Tu tens mais filhos. O traidor Páris ainda é vivo. E tens outros, certamente.

— Mas o melhor deles todos — o único em quem eu podia con­fiar — morreu.

Aquiles empertigou-se.

— Heitor morreu num combate limpo. A sua morte não me pesa na consciência. As Filhas da Noite não me visitam por causa da sua morte.

Príamo baixou o rosto. Um momento mais tarde, espantou Aqui­les ao agarrar-lhe na mão e ao pousar nela os lábios. Quando Aquiles a retirou, Príamo olhou para ele com uma expressão de total desolação.

Eu fiz o que nenhum homem fez antes de mim. Beijei a mão que matou o meu filho. Sê misericordioso, filho de Peleu, devolve--me o seu corpo.

Aquiles apercebeu-se de que também estava a tremer.

Peço-te — disse ele — levanta-te.

O pensamento do próprio pai pesava-lhe no coração. Aquiles mal conseguia respirar devido à confusão e à agitação. Ajudando Príamo a levantar-se, disse:

Demonstraste coragem ao vir aqui. E sofreste muito. Senta-te aqui ao pé de mim. Deves estar cansado. Come qualquer coisa, se quiseres. Conversemos um pouco.

A voz do príncipe era gentil e a oferta fora sincera, mas o orgu­lho do ancião eriçou-se.

Não posso pensar nisso enquanto o corpo de Heitor não esti­ver sepultado. Lá fora, na carroça, está uma fortuna. Fica com ela e deixa-me ir embora com o meu filho.

Aquiles aprumou-se novamente.

-- Pensas que és o único a sentir dor? Asseguro-te que não. E duvido que o meu pai olhe um dia para o meu corpo como tu vais olhar para o do teu filho. Por isso, não me insultes com o resgate que me vais pagar. Eu só o aceito para poder pagar aos que me seguem, que têm sofrido muito com esta guerra. Eu sofro tanto como tu, Rei de Tróia. Se sofres por Heitor, eu sofro pelo amigo que o teu filho matou. Somos irmãos na dor, tu e eu. Devemos tratar-nos com respeito e cortesia.

Sentindo-se castigado por um homem que pensava mais perto de um lobo do que o seu nobre filho, o Rei Príamo ficou desconcertado. Como uma vaga apanhando-o por trás, a exaustão subjugou-o. Aqui­les sentiu-o na súbita palidez do seu rosto, ouviu na voz que segre­dou:

Perdoa-me. Foi a minha dor a falar.

Aquiles puxou uma cadeira e o velho Rei sentou-se com a cabeça entre as mãos.

— Eu nunca teria matado Heitor daquela maneira se ele não esti­vesse a usar a minha armadura. Sei qual é o ponto fraco dela. Mas quando o trespassei com a minha lança, foi como se a estivesse a espe­tar em mim mesmo e se tratei daquela maneira o corpo do teu filho, foi por detestar o meu que ainda aqui vês, vivendo e respirando, inú­til, quando já não devia ser outra coisa senão cinza e pó e eu já devia estar junto de Pátroclo e de Heitor. Sou eu quem deve pedir o teu perdão, Rei de Tróia, mas não nasci para isso.

Quando Aquiles abriu os olhos, viu as lágrimas a escorrerem pelas faces do ancião. Um momento mais tarde — como se fossem pai e filho chorando ambos a mesma dor — os dois homens chora­vam juntos.

Algum tempo depois, Aquiles saiu da cabana e deu ordem para que o corpo de Heitor fosse lavado e untado com azeite, vestido com uma túnica limpa e envolto num manto para que o ancião não visse os seus ferimentos. Em seguida, voltou a entrar e persuadiu o Rei a comer qualquer coisa com ele e a descansar um pouco na cama que lhe tinha sido preparada, antes de regressar a Tróia.

Naquela noite, Aquiles não dormiu e acordou o Rei antes de nas­cer o dia para que ele pudesse regressar sem ser detectado pelos gre­gos. O príncipe ajudou o Rei Príamo a subir para a carroça que agora levava, também, o corpo de Heitor. Ideus subiu para junto do seu Rei e pegou nas rédeas. O arauto já ia chicotear as mulas quando Aquiles disse:

—Diz-me quantos dias vais dedicar ao funeral.

Príamo abanou a cabeça.

— É difícil para nós, fechados como estamos no interior da cidade. Vai demorar algum tempo até conseguirmos arranjar a madeira neces­sária para a pira.

Aquiles acenou solenemente com a cabeça.

— Diz aos teus homens que podem ir à montanha buscar a madeira de que necessitarem. Não serão perturbados pelos nossos guerreiros. Prometo-te que a memória do teu filho será honrada por nós.

Nesse caso, ficas a saber que vamos chorá-lo durante dez dias. Depois, procederemos ao ritual. Ao décimo segundo dia estaremos prontos para combater de novo.

A madrugada já surgia no céu de leste. Aquiles disse:

— Tens a minha palavra de que os gregos não irão para o campo de batalha antes desse dia.

O Rei Príamo inclinou-se um pouco e ofereceu a sua mão. Aqui­les estendeu o braço, apertou-a firmemente e, quando se separaram, Ideus chicoteou as mulas e estas puseram-se em andamento. Príamo embrulhou-se na capa por causa do frio e não olhou para trás, mas Aquiles ficou a ver a carroça a rolar vagarosamente na direcção da madrugada que começava para lá do rio.

 

                   Assassínio no Santuário

Helena foi acordada pelo som dos lamentos de Cassandra no exte­rior do palácio. A seu lado, Páris estremeceu nas profundezas do seu sonho intoxicado, mas não acordou. Helena sentia o cheiro do vinho e do ópio na sua respiração. A atmosfera, no interior da câmara, era espessa e viciada.

Suavemente, para não o acordar, ela deslizou para fora da cama, envolveu-se num lençol contra a madrugada fria e foi até à janela, de onde podia ver a larga praça da cidadela. Cassandra gemia e andava de um lado para o outro como uma bailarina magricela representando um ritual qualquer de dor. junto dela estava uma carroça e Helena, espantada, viu o arauto Ideus ajudando o Rei Príamo a descer, com alguma dificuldade, da boleia. Só então ela reparou na silhueta coberta com um manto na retaguarda e compreendeu que o corpo mutilado de Heitor regressara a casa.

Helena quis chorar, mas não conseguiu, se bem que o seu coração se sentisse quebrado, destroçado, como um dique mal construído.

As pessoas começavam a aparecer na praça, algumas delas meio vesti‑das. As mulheres começaram a fazer ouvir os seus lamentos. Andrómaca devia estar a aparecer a correr, vinda da casa onde emagrecera de tanto chorar a morte do marido. Depois, apareceria Hécuba com Políxena a seu lado, amparando-a. Helena sabia que os seus gritos lhe rasgariam o coração, assim como rasgariam o céu da manhã. Tróia era a capital da dor e ao saber-se a sua causa, a dama só desejava o esquecimento onde Páris se refugiara desde que assistira à morte de Heitor.

O príncipe continuava mergulhado no sono apesar dos sons inconsoláveis na praça e Helena não suportou mais. A Rainha de Esparta atravessou o quarto e afastou o lençol que cobria o seu corpo nu. O prín­cipe levou imediatamente as mãos cruzadas aos ombros, protegendo-se do frio. Páris resfolegou e abanou a cabeça, mas só abriu os olhos quando ela o esbofeteou como em Esparta, muitos anos antes.

Páris acordou sobressaltado e ficou de olhos muito abertos, espe­rando ter pela frente o riso trocista de Menelau e viu, em vez disso, o rosto magro de Helena a olhar fixamente para ele.

O teu irmão regressou para te atormentar - disse ela e afas­tou-se dele.

Páris ouviu os lamentos no exterior e compreendeu o que devia estar a acontecer.

Parece que o teu pai teve a coragem que te faltou a ti disse Helena, sentando-se em frente do seu toucador e olhando para o rosto reflectido no espelho de bronze. O teu pai foi ter com Aqui­les e convenceu-o a devolver o corpo de Heitor.  

A ex-Rainha de Esparta ouviu-o a arrastar-se pelo quarto, mas continuou a falar para o espelho. Só uma vez, desde que cá estou, Heitor me censurou, apesar de o facto de estar nesta cidade colocar todo o seu mundo em perigo. Parece que desde que Heitor morreu a nobreza desapareceu de Tróia.

— E quando é que tu te vais embora? A voz dele chegou-lhe com uma crueldade que ela ainda não lhe tinha ouvido. Pensas que não me sinto espantado por acordar todos os dias e ver que ainda estás aqui — que não fugiste durante a noite para te lançares aos pés de Menelau, pedindo-lhe perdão? — O seu desespero era tão grande que acrescentou:

Traíste-o facilmente. Por que não me hás-de fazer o mesmo?

Helena olhou para ele, espantada com o ódio nos seus olhos e na sua voz. O choque não podia ter sido maior se ele a tivesse empur­rado pelo quarto fora.

Seria possível terem começado a odiar-se? Seria possível o seu amor ter-se virado contra si próprio, como um animal esfomeado, que começa a comer os próprios membros? Como podiam ter che­gado àquilo?

No exterior, as mulheres continuavam a chorar a sua dor. Páris afastou-se dela, fechando-se num silêncio impossível.

Ela olhou para a sua sombra, projectada no chão do quarto, esperando qualquer coisa, mas quando ele não se virou, ela olhou para o espelho e ficou espantada por ver uma mulher estranha e fria a olhar para ela.

A cidade chorou durante dez dias o seu herói. No décimo pri­meiro, os habitantes construíram um monte de terra em redor da urna dourada que continha as suas cinzas e eram tais os lamentos que as aves, no céu, ficaram assustadas.

Durante aqueles dias de luto, os gregos deixaram os troianos em paz, aproveitando para lamber as próprias feridas e reunir forças para o que pensavam seria o último assalto à cidade. Heitor, o grande cam­peão de Tróia, tinha morrido e o moral dos troianos não podia estar pior. O fim daquela maldita guerra estava à vista.

Era assim que os guerreiros se encorajavam uns aos outros en­quanto se preparavam, mais uma vez, para o combate. Mas não tinham contado com a vontade indomável do Rei Príamo, porque mesmo durante o luto tomara disposições. Quando os homens foram buscar madeira, durante a trégua, ele recebeu alguns mensageiros. Estes tinham ido ter com o meio-irmão do Rei Príamo, o Rei Titono, em Susa, na Assíria, pedindo-lhe que enviasse a ajuda há muito prome­tida. A resposta chegou por intermédio de um pombo-correio, e Príamo deu a conhecer que um regimento de etíopes estava a atra­vessar a Frígia vindo da Arménia, a caminho de Tróia, sob o comando de Mémnon, um guerreiro negro que tinha a reputação de ser o homem mais belo do mundo.

Assim, a guerra recomeçou, mas com um cansaço que deixou ambos os exércitos esgotados. Nem Aquiles foi visto a combater com o mesmo fervor que em tempos tinha aterrorizado os troianos e alguns dos seus amigos começaram a acreditar que ele só andava à procura de uma coisa na planície troiana, a própria morte.

Só uma vez foi visto com o mesmo furor assassino que demons­trara nas margens do Escamandro. O alvo desse furor era apenas um homem, um homem do exército grego. Aquiles regressava da planí­cie ao fim de mais um dia de combates quando viu Tersites a tirar os olhos da Rainha amazona Pentesileia com a ponta da sua lança, que morrera naquele dia depois de ter sido derrubada do seu carro pra­teado. Furioso, o filho de Peleu saltou do seu carro e derrubou o homem violentamente com o seu escudo. Alguns momentos mais tarde, Diomedes viu Aquiles a arquejar junto do cadáver da mulher guerreira e censurou-o por chorar o inimigo. Os dois senhores da guerra ter-se-iam confrontado se os amigos não os tivessem separado, mas a animosidade não terminou ali. Quando Aquiles ouviu dizer que Diomedes ordenara a Tersites para que lançasse o corpo da Rai­nha amazona ao Escamandro, atravessou a planície e retirou-o do rio com as próprias mãos. O príncipe tinha acabado de o depositar na margem e tirava-lhe gentilmente a lama do rosto com uma ponta da sua capa quando Tersites gritou que Aquiles devia estar muito desesperado, já que estava pronto para se satisfazer com o cadáver de uma bárbara.

Aquiles deixou cair a sua espada na cabeça do homem com tanta força que os dentes deste saltaram-lhe da boca. Furioso com o assas­sínio do seu parente, o ressentimento de Diomedes ainda aumentou quando Aquiles ordenou aos seus mirmídones que sepultassem a galante mulher com a maior reverência.

Dois dias mais tarde, Mémnon e os seus etíopes chegam a Tróia e apesar de a princípio se terem visto em maus lençóis, conseguiram entrar na cidade. Para os olhos cansados de Agamémnon e dos seus comandantes, as grandes muralhas de Tróia pareciam mais inexpug­náveis do que nunca. As disputas entre os sitiantes eram cada vez mais frequentes e mais rancorosas. Diomedes dizia que fora uma loucura ter concedido tréguas aos troianos, em vez de terem tirado partido da morte de Heitor. Aquiles não lhe respondeu, mas Ajax defendeu o primo, cuja bravura admirava apaixonadamente desde a chacina da curva do rio. Nestor, como sempre, agiu como intermediário entre os dois partidos em luta, enquanto Idomeneu e os seus cretenses se impacientavam cada vez mais com os seus rabugentos aliados, ao mesmo tempo que Odisseu sonhava com o regresso a casa.

Aquiles passou a ir mais vezes ao templo de Apolo, no Escaman­dro, esperando encontrar Políxena. Na sua mente desolada, ela parecia-lhe a única coisa incorruptível em toda a planície juncada de cadá­veres de Tróia. Mas nunca a via e quanto mais desapontado ficava, mais necessidade tinha de a ver, ao ponto de perguntar ao sacerdote por que razão a rapariga deixara de ir ao santuário.

Pouco à-vontade, L.aocoonte desviou o olhar.

— O pai dela acha que é muito perigoso ela sair da cidade.

— E se eu te desse a minha palavra de que nada de mal lhe acon­tecerá?

— O filho de Peleu pode falar por todo o exército grego?

— Eu só posso falar por mim próprio. A minha palavra basta. O sacerdote acenou com a cabeça.

— E o que é que eu lhe respondo quando ela me perguntar a razão do teu interesse?

Aquiles franziu o sobrolho e olhou para o chão de mármore do templo.

— Diz-lhe — disse ele após uns momentos — que a dor dela é a minha dor.

Desconcertado com a inocência daquele homem terrível, Lao-coou-te acenou novamente com a cabeça.

— Regressa amanhã — disse ele. Vou falar com o Rei. Verei o que posso fazer. E agora faz a tua oferenda ao deus, filho de Peleu.

Mas havia forças que se movimentavam em redor de Aquiles, for­ças que o seu coração orgulhoso desconhecia. Ainda rancoroso quanto à morte de Tersites, Diomedes foi ter com Odisseu, uma noite, e per­guntou-lhe se ele achava bem que Aquiles, tal como Palamedes antes dele, passasse tanto tempo no templo de Apolo, no Escamandro.

— Palamedes era um traidor — respondeu Odisseu. — Aquiles não.

— Como podes ter tanta certeza?

Porque a mente de Palamedes era tortuosa, ao passo que a de Aquiles é tão recta como a espada do seu pai. Por que pensas o con­trário?

— Nunca achaste estranho — disse Diomedes — Aquiles ter permitido que os troianos chorassem Heitor, em vez de enviar os seus mirmídones, aproveitando-se da sua fraqueza?

Odisseu, na verdade, achara aquilo tão esquisito que o dissera a Aquiles em privado. A princípio, Aquiles tentara enganá-lo, dizendo--lhe que a morte dos heróis devia ser honrada, fosse de que exército fosse. Mas Odisseu apercebera-se do olhar fugidio do príncipe e insis­tira, até que soubera, finalmente, da história da ida de Príamo ao campo grego. Espantado por uma coisa daquelas ter acontecido, Odisseu concordara em não dizer nada aos outros líderes, mas sentiu-se pouco à-vontade por saber da existência de comunicações secretas entre os mirmídones e Tróia. O príncipe de Ítaca ainda se sentiu menos à-vontade com as perguntas que Diomedes lhe fez, mas estava consciente da hostilidade entre os dois líderes gregos.

Estás a sugerir — perguntou ele secamente que Aquiles está a pensar em fazer uma paz separada com Tróia? Quando Dio­medes respondeu que Aquiles mostrava tanta falta de entusiasmo que não se sentiria surpreendido se o fizesse, Odisseu disse: Atre­veste-te a sugerir-lhe isso na cara? Até Ajax era capaz de te cortar os braços se te ouvisse chamar-lhe traidor.

Não vou tão longe respondeu Diomedes. Limito-me a sugerir que as suas frequentes visitas ao Santuário levantam algu­mas suspeitas. Lembro-me que houve homens que disseram que Palamedes não podia ser um traidor quando tu formulaste essa suspeita.

Odisseu estava a sentir-se pouco à-vontade.

— O que queres dizer com isso? — perguntou o príncipe de Ítaca. — Acho que seria sensato vigiá-lo quando ele for a próxima vez ao templo. Não concordas?

Odisseu encolheu os ombros.

Penso que Aquiles é tanto traidor como tu, meu amigo. Mas, se ficas descansado, vai em frente. No entanto, creio que Ájax devia ir contigo. Não precisas de lhe dizer nada sobre as tuas suspeitas limita-te a dizer que Aquiles está a arriscar-se inutilmente ao expor-se assim e que os seus amigos decidiram vigiá-lo de perto para o caso de ser necessário.

Quando Aquiles se dirigiu ao templo na tarde seguinte, foi seguido por Diomedes, Ajax e Odisseu a longa distância, de modo que o herói não se apercebeu da sua presença. O guerreiro entrou no silêncio frio do templo, pagou a taxa à entrada e teve de esperar mais do que pen­sava.

Finalmente, o sacerdote Laocoonte apareceu.

— A pessoa por quem perguntaste está aqui — disse ele — mas tem um certo receio de te ver de novo.

Não precisa de ter medo — respondeu Aquiles — Eu só quero conversar um pouco com ela.

O sacerdote acenou com a cabeça, pouco à-vontade e retirou-se. Aquiles voltou a esperar, pensando no impulso que o levara ao templo. Como fora possível ter imaginado que a jovem olharia com sim­patia para o assassino do seu irmão? Estava a sonhar com quê? Que podia ele dizer que Políxena quisesse ouvir? Sentindo-se subitamente corar, o guerreiro já se ia levantar e abandonar o templo quando ouviu ranger a porta interior e viu surgir Políxena. Usando um ves­tido azul-pálido e de mãos unidas com força, a jovem caminhava com os olhos no chão de mármore.

Aquiles corou de novo.

Obrigado por vires disse ele roucamente.

A jovem não olhou para ele quando disse:

Não percebo por que quiseste ver-me de novo.

Para conversar um pouco. Há coisas que não consigo tirar da cabeça e que me pesam muito.

Estás a falar da morte do meu irmão? — perguntou ela friamente. — Foi muita bondade da tua parte teres devolvido o seu corpo. Quando olhou para Aquiles, o guerreiro viu o medo e a hostilidade nos seus olhos.

O jovem guerreiro disse:

— Preferias que eu tivesse morrido no lugar dele!

Ela não lhe respondeu, limitando-se a desviar o olhar ansioso e a fixá-lo na estátua de bronze de Apolo.

Aquiles disse:

Heitor e eu éramos inimigos. Não achas que ele me teria matado se os deuses estivessem com ele?

Tenho a certeza que sim. Mas ele defendia uma boa causa. Ninguém te pediu para vires aqui atacar a nossa cidade.

O filho de Peleu disse:

O meu amigo Menelau também defende uma boa causa.

Políxena olhou para ele e depois encolheu os ombros antes de desviar o olhar. Mas o jovem não queria discutir com ela. Calmamente, disse:

— O que provocou a guerra entre Argos e Tróia foi uma fatali­dade. — Aquiles fez uma pausa e depois acrescentou: — Tenho andado a pensar que o amor entre o príncipe Páris e a dama Helena deve ter sido muito grande, para não se importarem de mergulhar o mundo numa guerra terrível.

Finalmente, ela olhou para ele, surpreendida com a ternura da sua voz, mas continuou a não dizer nada.

O jovem teve de pensar durante alguns segundos antes de dizer:

— Eu sei que só deves ver em mim um homem de guerra. Como poderia ser de outra maneira? Mas desde a morte do meu amigo Pátro­clo que a minha vida não tem sentido. Aquiles olhou para ela numa espécie de súplica. Estou cansado de matar, Polixena. Estou can­sado de um mundo que me tira tudo o que amo para que eu me possa transformar num melhor instrumento de ódio. Não quero continuar a ter este tipo de vida.

Polixena olhou nervosamente em volta, como que desconcertada com a sua honestidade e sem saber como reagir.

A jovem levou os nós brancos dos dedos à boca.

Nesse caso, afasta-te disse ela abandona Tróia. Vai-te embora e deixa-nos viver em paz.

Se fosse livre respondeu ele — zarpava já amanhã. Mas tenho uma dívida de honra para com os meus amigos.

E, por isso, vais continuar a matança. E os homens que mata­res são meus amigos. Que devo dizer a isso?

Aquiles estava de tal modo concentrado no que queria dizer, que foi como se ela nem sequer tivesse falado.

— Se eu fosse livre... - disse ele de novo pedir-te-ia que partisses comigo.

Ela olhou para ele com os olhos muito abertos. O homem estava louco? Como seria possível sentir outra coisa que não medo por aquele homem violento que lhe chacinara os irmãos e inúmeros outros homens?

No entanto, ele parecia totalmente vulnerável.

Polixena olhou, como que pedindo ajuda, para a estátua do deus, para a presença serena que presidia em silêncio àquele encontro estra­nho.

O deus falou através dela.

Tu não me queres a mim — disse ela. — Creio que andas à procura da tua alma perdida.

Aquiles ficou a pensar naquelas palavras. O filho de Peleu tomou consciência da pessoa que ela devia ver nele — uma figura patética em busca do amor entre todos os povos do mundo, tinham mais razões para o odiar e temer. O guerreiro olhou também para a estátua de Apolo e não encontrou nela qualquer simpatia ou con­solação. Aquiles estava sozinho numa terra estrangeira, demasiado longe do lugar onde os seus amigos podiam compreendê-lo. Os seus actos tinham-no deixado isolado para sempre dos laços humanos que pensara ter sentido no seu encontro com o Rei Príamo e que pensara ter atingido novamente na presença daquela rapariga.

Aquiles olhou para Políxena e sentiu-a vacilar perante o seu olhar. Era evidente que a única coisa que ela queria era desaparecer da sua presença. Por que fora ter com ele, então? Não interessava não a perturbaria mais. Com um suspiro involuntário, girou nos calca­nhares e abandonou o templo.

O guerreiro já tinha atingido a porta quando ela o chamou uma vez apenas, tensamente, como que para o avisar. Ele parou e quase se virou, mas já vira que as palavras não serviriam de nada e, abanando a cabeça, saiu para o brilho ofuscante do dia.

Aquiles estava no topo da escadaria quando a seta lhe atingiu a parte de trás da perna. O jovem vacilou, como se tivesse levado um pontapé, mas não caiu imediatamente. Só quando se inclinou para o que o tinha ferido é que perdeu o equilíbrio e caiu no már­more dos degraus.

Do local onde estavam, à sombra do pequeno bosque no exterior do templo, os três capitães gregos pensaram, a princípio, que Aquiles tropeçara, mas quando acorreram para o ajudar viram a haste da fle­cha a sair da sua perna direita.

Com um grito de «Traição!», Ajax correu para proteger o corpo caído do primo. O jovem chegou à base da escadaria no preciso momento em que apareciam dois homens à entrada do templo, um deles segurando um arco curvo. Quando viram Odisseu e Diomedes acorrerem com as espadas prontas, os dois homens olharam rapida­mente um para o outro e regressaram a correr para o interior do tem­plo. Ájax e Diomedes lançaram-se pela escadaria acima em persegui­ção dos troianos, gritando-lhes que ficassem e lutassem. Odisseu inclinou-se para Aquiles, que olhava para a flecha com uma expres­são espantada no rosto.

Tiveste sorte -disse Odisseu. - O tipo tinha má pontaria. A mão deve ter-lhe tremido ao pensar que ia matar Aquiles! O jovem guerreiro olhou para o amigo, desorientado.

— Não compreendo — murmurou ele. — Que estais vós a fazer aqui?

Odisseu desembainhou a faca que trazia à cintura

- Ajax estava preocupado com o facto de tu vires para aqui sozinho, tinha medo que algo te acontecesse. — Olhando para o ter­reno em volta, o ítaco continuou: — Eu vou arranjar um pau para tu morderes enquanto eu puxo a flecha. Ficas bem?

Quando Aquiles acenou com a cabeça, Odisseu levantou-se e regressou ao bosque, onde cortou um graveto suficientemente grosso para o seu amigo morder. De regresso, sentou-se nos degraus ao lado de Aquiles e cortou um pedaço de tecido da sua túnica, preparado para ligar o ferimento assim que a flecha saísse.

— Uns centímetros acima e ter-te-ia atingido no traseiro — tro­çou ele. — Morde isto.

O príncipe de Ítaca entregou o graveto a Aquiles, que ficou a olhar para ele com um sorriso pálido, abanou a cabeça e aproximou a mão da haste que lhe saía da perna. A ponta tinha rasgado a carne, e o san­gue já começava a sair do ferimento. Odisseu praguejou e aproximou o pedaço de tecido para estancar o fluxo vital.

— Tu e o teu maldito orgulho — disse ele. Mas quando olhou para o rosto de Aquiles viu que havia algo esquisito nos seus olhos e o sorriso fixo no seu rosto estava a transformar-se num sorriso mau.

— Veneno — murmurou Aquiles. — A flecha está envenenada.

Tranquilamente, como se estivesse a rir-se de uma anedota, o filho de Peleu começou a rir-se.

Odisseu olhou horrorizado para o ferimento. Rapidamente, com o bico da sua faca, cortou um pedaço de carne em volta para aumen­tar o fluxo de sangue, esperando drenar a toxina. Aquiles arquejou perante a dor súbita, abanou novamente a cabeça, sorriu confusamente para Odisseu e deixou cair o corpo nos degraus. O guerreiro olhou para o céu. Aquiles murmurava qualquer coisa para si próprio e quando Odisseu se debruçou, conseguiu ouvir as palavras:

Apolo também acabou comigo.

Tu não estás acabado — disse Odisseu com lágrimas nos olhos. — Vamos ter com Macáon. Ele conserta-te num instante.

Mas Aquiles começou a falar por entre os lábios cerrados.

— Lembras-te do que Apolo disse quando matou o dragão Tífon? Apodrece no solo que alimenta os mortais. Tu, pelo menos, não viverás para lhes provocares mais males. — As palavras terminaram com uma risada retorcida e irónica e com um pouco de saliva a sair-lhe pela boca. Em seguida, a sua cabeça inclinou-se para um lado e o filho de Peleu olhou para além de Odisseu, como se estivesse a ver alguém a aproximar-se.

Alarmado com a dilatação das suas pupilas, Odisseu ia gritar-lhe para que se aguentasse quando Ajax e Diomedes se aproximaram vindos do interior do templo.

— Os filhos da puta conseguiram fugir — disse Ajax, vermelho de fúria. — Tinham um carro nas traseiras do templo. Estava uma mulher com eles. Deve ter sido uma espécie de armadilha.

— O que tinha o arco era Páris — disse Diomedes, embai­nhando a espada. — Creio que o outro era Deífobo, mas não tenho a certeza.

Limpando o suor da fronte com as costas da mão, Ajax desceu os degraus, dizendo:

— Como é que ele está? Conseguiste tirar a flecha?

Odisseu pestanejou e mordeu o lábio.

— A ponta estava envenenada — disse ele, respirando com difi­culdade. — Creio que ele está a morrer.

Ajax olhou para ele, incrédulo e depois, olhando para o rosto de Aquiles, deu um grunhido de angústia, um grunhido saído das entra­nhas. O seu lábio superior recuou, de modo que os dentes ficaram à vista. O guerreiro ajoelhou-se para segurar na mão do primo, mas depois deixou-a cair como uma coisa inútil.

Quando se levantou, Ajax, filho de Télamon, o homem que dis­sera uma vez não precisar da ajuda dos deuses, começou a gritar mal­dições com o rosto virado para o céu.

A notícia de que Aquiles fora morto provocou grande alegria nas ruas de Tróia.

Após a morte de Heitor, o povo entrincheirara-se por trás das muralhas, preparando-se para o cerco. Nem sequer a chegada de Mémnon e dos etíopes o alegrara, porque apesar da ajuda ser bem-vinda, os guerreiros africanos tinham também trazido consigo outro regimento de bocas para alimentar com o que havia na cidade. Mas agora que Aquiles tinha morrido, seria certo que a coragem deixaria de estar presente nos corações dos gregos? Era apenas uma questão de tempo. O exército de Argos ia desistir daquela luta vã.

E fora Páris, o causador de todos os males de Tróia, o seu salva-dor. O príncipe fizera o necessário em tempos desesperados e a cidade estava pronta a saudá-lo como herói.

No entanto, no alto da cidadela de Ilium, sorrindo para a multi-dão que o aclamava, com o seu pai e Deífobo a seu lado, Páris já sabia que o seu triunfo fora em vão. Helena recusara-se a aparecer a seu lado e não saía do seu quarto apesar de a multidão gritar o seu nome. Antenor sorrira-lhe, desdenhoso e Príamo, apesar se mostrar sorri-dente à multidão ao lado do filho, quando se virou para entrar no palá­cio o seu rosto era ameaçador. Quando a presença real dispersou, Príamo chamou Páris e Deífobo.

Por que razão não fui informado sobre a emboscada a Aqui­les? — perguntou ele calmamente.

Deífobo disse:

Pensámos que nos proibirias de arriscar as nossas vidas.

E por isso preferiram agir sem o meu conhecimento e sem o meu consentimento?

— Pelo bem da cidade — respondeu Deífobo. — O que aconte­ceu não o justifica?

Príamo olhou para ele com uns olhos cansados.

Há alguma justificação para a profanação do templo de Apolo? Aquele que Vê Longe protege há muito esta cidade. Por quanto tempo mais achas que Ele o fará se se cometem assassínios no seu santuário?

Nós esperámos até que Aquiles saísse do templo — disse Páris. — Foi por isso que usei o arco.

Príamo olhou para ele.

Ou foi porque não ousaste enfrentá-lo de homem para homem? Páris recuou, furioso.

Posso recordar-te que até o teu amado Heitor fugiu dele? Dá--te por feliz por ele ter sido vingado.

Bruscamente, Príamo respirou fundo.

Estás a rebaixar os nomes deles ao pronunciá-los. — O Rei virou-se abanando a cabeça. Uma seta envenenada disparada de um esconderijo! A tua mão tremeu muito?

A seta ter-lhe-ia ido direita ao coração se Políxena não me tivesse puxado o braço.

Eu falei com Políxena. — A voz do Rei tremia enquanto ele falava. — Ela e o sacerdote contaram-me como tudo se passou. Os meus filhos não têm honra? Era preciso usardes a vossa irmã?

Que interessa? — disse Deífobo. — Aquiles está morto e isso é que interessa.

— Achas? respondeu Príamo. Foi o que estes longos anos de guerra nos fizeram? Houve um tempo que eu tinha orgulho nos meus filhos. Houve um tempo em que acreditei que a justiça estava do nosso lado e que os deuses, por isso mesmo, nos dariam a vitória. Mas vede no que vos tornastes. Sinto-me enjoado por ter participado nesta charada de triunfo perante o nosso povo.

Preferias que Aquiles tivesse ficado vivo para queimar a tua cidade? — perguntou Deífobo, trocista. Talvez gostasses que ele fosse teu filho?

Príamo desviou o olhar.

— Preferia que os meus filhos fossem homens como ele, mais nada. E agora desaparecei da minha vista, vós os dois. Preciso de chorar a morte da honra.

Helena penteava os seus longos cabelos à janela quando Páris entrou. Etra, agora uma anciã, trabalhava na sua tapeçaria no canto mais longínquo da câmara.

— Por que não apareceste quando o povo te chamou? — per­guntou ele.

Calmamente, Helena disse:

— Porque não quero partilhar a tua desgraça.

— A cidade prestou-me uma grande honra.

— A cidade não sabe o que as mulheres do palácio sabem. — Com a cabeça inclinada na direcção da luz que entrava pela janela, Helena continuou a escovar os cabelos.

Páris olhou na direcção da fiandeira.

— Deixa-nos sós.

— Fica, Etra disse Helena.

Etra hesitou.

— O herói de Tróia acha, evidentemente, que não temos respeito suficiente por ele — disse Helena. — Como é que achas que devemos honrar o homem que matou Aquiles?

Páris reparou que ela estivera a beber.

— Se o que fiz te envergonha — disse ele — fica sabendo que o fiz por ti e, portanto, também és responsável. O que fiz, fi-lo para tua protecção.

Helena não podia negar o horror que sentia pelo que ele fizera nem a verdade do que ele acabava de dizer. Estavam tão próximos da vergonha como tinham estado do amor. No entanto, o amor ainda lhe fazia exigências, apesar de se lhe opor. O conflito ensombrava o rosto de Helena, mas tudo o que ele via era um olhar frio, do qual ele desviou os olhos, magoado. Em seguida, o príncipe olhou para as ricas tapeçarias penduradas nas paredes do quarto e para os muitos belos objectos que tinham coleccionado — coisas trazidas de Chipre e do Egipto, presentes de amigos e admiradores de todo o leste, peças que tinham encomendado aos melhores artesãos e artistas de Tróia. Todas as recordações de um amor derrotado, recordações que tinham enchido cada momento das suas vidas. Páris só quisera ser livre com ela, adorá-la como adorava Afrodite. No entanto, de certo modo, quase sem se aperceber, perdera-a e não via como recuperá-la.

Houve uma época em que eu era o teu orgulho — disse ele.

Houve uma época em que tu começou ela, mas faltando-lhe a vontade e a força de discutir com ele, ela abanou a cabeça e des­viou o olhar.

— Diz o que estavas a pensar — exigiu ele — diz o que ias dizer. Quando ela olhou de novo para ele, não havia reprovação ou des­dém no seu olhar, apenas um desgosto infinito.

— Se ainda houvesse uma réstia de esperança, di-lo-ia. Mas já não tens esperança?

A voz de Páris enrouqueceu. Os seus olhos eram os olhos de um homem no limite da apelação, recusando sempre a evidência. Recu­sando-se a dar um veredicto, Helena reclinou-se no parapeito da janela e fechou os olhos.

Páris disse:

Achas que já não há esperança para nós.

O príncipe viu os cabelos dela brilharem sob a luz que entrava pelas persianas. Quando ela se recusou novamente a responder, foi como se um deles, ele ou ela, estivesse à deriva no mar, longe do alcance do outro.

Páris olhou, pouco à-vontade para Etra, que continuava a traba­lhar de olhos baixos. Quando olhou de novo para Helena, o príncipe viu que a luz a tinha transformado numa estátua de mármore, tão bela como sempre fora, mas muda e esperando, sem paixão, pela escuridão.

Durante algum tempo, Agamémnon perguntou a si próprio se o seu exército recuperaria algum dia da morte de Aquiles. Os soldados choraram dias a fio a morte do seu campeão e nem sequer o ardor com que competiram nos jogos funerários abrandou o sentimento brutal de desolação. Guerreiros veteranos, habituados a ver a morte de perto, jaziam pelos cantos, deprimidos. Aquiles fora, para eles, quase um deus — nunca temera pela própria vida, tirara as dos outros com a indiferença de um deus e os seus seguidores começavam a acreditar que ele era imortal. Para eles, não fazia sentido ele ter caído tão ingloriamente em solo sagrado, às mãos envenenadas de um assassino. Todos os comandantes — incluindo Diomedes — tinham ficado chocados e incrédulos e a dor de Ajax, em particular, não conhecia limites.

Incapaz de perdoar a si próprio o facto de ter estado à sombra, a comer figos, a uns miseráveis metros de distância do local onde Aqui­les fora abatido, Ajax transportara-o até ao campo grego, tentando desesperadamente encontrar ajuda médica. Mas quando, finalmente, o pousou no chão, Aquiles estava morto e aquele falhanço suplemen­tar só aumentara o seu intolerável sentimento de culpa.

A dor de Ajax transformou-se rapidamente numa raiva terrível. Gritando que o maior guerreiro do seu tempo fora morto à traição e que a sua alma clamava vingança, foi para a planície e começou a matar, com uma selvageria terrível, os troianos que tinham a pouca sorte de se atravessar no seu caminho.

A guerra já destroçara os nervos de muitos homens, que vaguea­vam agora pelo acampamento chorando e tremendo até que alguém perdia a paciência e lhes acabava com a miséria, ou entravam clandes­tinamente para um navio de abastecimentos e regressavam a casa. Mas a loucura de Ajax começou apenas como uma espécie de dedicação fanática ao combate e a princípio passou despercebida. Os homens diziam que ele estava a tentar rivalizar com Aquiles, lutando como o seu primo lutara no banho de sangue no Escamandro. Mas quando ele regressou de uma investida, usando um colar feito de orelhas, Odisseu começou a temer pela sanidade mental de Ajax.

No último dia dos rituais funerários em honra de Aquiles, as cin­zas do herói foram misturadas com as de Pátroclo e a urna dourada foi enterrada sob um grande monte de terra erguido no promontório em frente do Helesponto. Os jogos funerários acabaram e nada res­tou senão decidir quem herdaria a maravilhosa armadura, presente de Tétis ao seu filho.

A decisão coube a Agamémnon, uma decisão difícil porque todos os comandantes a cobiçavam, tanto pela sua riqueza como pela recor­dação do homem que a usara. Agamémnon decidiu que os principais pretendentes deviam ser os que tinham estado com Aquiles na hora da sua morte e entre esses três homens o mais sensato seria entregar a armadura àquele que mais dela dependia — Odisseu.

A decisão não foi aceite por Ájax. Não fora ele o que mais tentara apanhar os assassinos de Aquiles? Não transportara o corpo nos seus braços? Os seus feitos desde a morte do seu primo não tinham mos-trado que era o verdadeiro sucessor de Aquiles como terror dos Troianos? Por tudo aquilo, a armadura devia ser sua. Se Aquiles fosse vivo, declarou ele, Agamémnon não se atreveria a desonrá-lo ofere­cendo-a a um homem menos merecedor.

Mas Agamémnon tomara a sua decisão e não voltaria atrás.

Nem sequer Teucro, o seu meio-irmão, conseguiu consolar Ajax. Gritando que já não havia justiça, tanto no mundo dos homens como no dos deuses, o jovem guerreiro retirou-se furioso da assembleia.

Calcante declarou que Atena lhe instalara a loucura na mente por ter insultado os deuses e aconselhou Teucro a mantê-lo confinado à sua cabana até recuperar a razão. Mas Odisseu, ao ver Ajax afastar--se, convenceu-se de que, como muitos outros, o jovem também não aguentara a tensão daquela guerra.

Fosse qual fosse o caso, Ajax foi encontrado naquela noite a vaguear com a espada na mão pelo meio do gado que fora capturado nas pasta­gens dárdanas. Os animais baliam e mugiam à sua volta enquanto ele os golpeava, amaldiçoando os nomes de Agamémnon e de Odisseu. Ninguém se atreveu a aproximar-se, até que ele caiu de exaustão.

Ajax recuperou a razão, não no campo de batalha onde acreditara estar, mas sob um céu escuro e no meio de uma série de bois e car­neiros chacinados. Recusando qualquer ajuda, o guerreiro levantou-se e afastou-se. Quando Teucro foi ter com ele, Ájax gritou-lhe que Atena lhe dissera para se lavar do sangue no mar. Mas quando che­gou à praia, o guerreiro só deve ter encontrado uma escuridão seme­lhante à da sua mente, porque pegou na espada que Heitor lhe dera, enterrou-a na areia e deixou-se cair em cima dela.

Levantou-se uma discussão sobre o que se devia fazer ao corpo. Teucro insistia que Ájax devia receber as honras devidas a um grande guerreiro. Mas o guerreiro tinha morrido pelas próprias mãos, não no campo de batalha e Merielau disse que o seu corpo devia ficar onde estava, à mercê dos milhafres e dos abutres. Como filho de Télamon, que sempre fora amigo de Agamémnon, Teucro apresentou o caso perante o Grande Rei. Vendo-se entre a lealdade a Télamon e o medo de ofender os deuses, Agamémnon não conseguia tomar uma deci­são. Odisseu pressionou-o para que permitisse os rituais funerários e ofereceu-se para ajudar, mas Teucro, orgulhosamente, declinou a oferta. Finalmente, o assunto foi resolvido por Calcante, que disse que Ájax tinha perdido o direito à pira funerária de um guerreiro, mas que o seu corpo deveria ser sepultado num caixão, em vez de ficar a servir de pasto às aves de rapina.

Quando o sombrio funeral terminou, Agamémnon entrou nova-mente em depressão. Aquando da morte de Heitor, o Rei acreditara que a guerra, finalmente, se decidiria, mas depois do assassínio de Aquiles e da loucura do suicídio de Ájax, parecia que tudo se estava novamente a desmoronar. Ainda por cima, o exército troiano fora reforçado com a chegada dos etíopes e as muralhas da cidade conti­nuavam tão inexpugnáveis como nunca. Sem saber o que fazer, Aga­mémnon seguiu o conselho de Odisseu e pediu a Calcante que con­sultasse o oráculo.

Calcante regressou dos seus rituais proféticos com notícias encorajadoras. Páris incorrera na ira de Apolo com o seu acto sacrílego. Tróia não poderia continuar a contar com o apoio do deus, mas eram necessárias duas coisas antes que a cidade pudesse cair.

Primeira, os mirmídones precisam de um novo líder, de um novo guerreiro. Temos de mandar vir Pirro de Ciros, o filho que Dei­damia deu a Aquiles.

— O rapaz ainda nem deve ter doze anos — opôs-se Diomedes. — Ele é filho de Aquiles e neto de Peleu — respondeu Fénix. — Os mimnídones segui-lo-ão.

Nesse caso, ele que venha — disse Agamémnon. Em seguida, o Rei olhou cautelosamente para Calcante. — A segunda?

Tróia caiu uma vez às mãos do poderoso Héracles — disse o sacerdote. — A cidade voltará a cair quando o grande arco do herói regressar à guerra.

—E onde, em nome de Zeus, está ele?

Não muito longe — respondeu Odisseu. — Está em Lemnos, onde Filoctetes continua a tratar-se do ferimento.

Recordando-se do fedor provocado por aquele ferimento, Aga­mémnon franziu o sobrolho.

— E ele entrega o arco?

— Duvido — disse Odisseu — mas certamente que somos capa­zes de aguentar o mau cheiro se isso significar a queda da cidade?

Como a ilha de Lemnos estava apenas a setenta quilómetros a oeste da costa troiana, o navio que transportava Filoctetes foi o pri­meiro a regressar. O ferimento na sua perna ainda cheirava mal, mas Agamémnon ordenou que o seu cirurgião cortasse a carne pútrida e que o seu físico o tratasse com cataplasmas de ervas medicinais. As notícias dos dois sábios foram boas. O paciente poderia, em breve, fazer novamente uso da perna.

Odisseu e Menelau visitaram Filoctetes enquanto ele recuperava e depois de terem conversado durante algum tempo, Odisseu pegou no grande arco de Héracles, que estava junto da padiola em que Filoctetes estava deitado.

— Pergunto a mim próprio se tu continuas a ser tão hábil com isto como costumavas ser.

Filoctetes sorriu.

— Dá a esta perna mais um dia ou dois de descanso e eu mos­tro-te.

— Ó primo - disse Menelau. - Isso é óptimo. Sabes que Páris tem a mania que é bom com o arco. Seria óptimo se o desafiasses para um duelo.

— Achas que o cobarde se atreve a enfrentar-me?

— Ele é o filho mais velho dos que restam a Príamo — disse Odisseu. — Hoje em dia, é o herói de Tróia. Não se atreverá a recu­sar um desafio público.

Páris estava a beber vinho, sozinho, quando um arauto lhe levou a notícia de que estava um guerreiro no lado de fora das muralhas a desafiá-lo para um duelo. Quando o príncipe perguntou quem era, o arauto só lhe pôde dizer que o guerreiro tinha um grande arco curvo e uma aljava cheia de setas e que nunca o tinha visto antes.

Em seguida, Deífobo apareceu à porta da sua câmara.

— E Filoctetes, o melhor arqueiro que eles têm. Vais ter de o defrontar.

Apesar de terem combatido juntos na planície de Tróia e de terem conspirado, depois da morte de Heitor, para assassinar Aquiles, Páris sabia que o seu irmão nunca lhe perdoara por lhe ter partido o nariz durante o combate de pugilismo, anos antes. Aquele murro distorcera a estrutura óssea do rosto de Deífobo, provocando o sorriso com que ele agora o fixava.

Páris levantou-se e já ia pegar no seu arco quando, com um sobressalto no coração, viu que Helena estava atrás de Deífobo.

O príncipe sempre soubera que o seu irmão desejava Helena, mas ela mantivera-se sempre afastada dele e quando lhe falava fazia-o sempre com um ligeiro ar de escárnio. Mas aquilo começara a mudar. Páris sentia uma tensão diferente entre eles, uma animosidade quase sensual, na qual o desespero da dama se misturava com o desejo do seu irmão de um modo que o punha doente e o humilhava.

Helena fixava o chão, em silêncio, esperando pela sua reacção.

Páris não desejava continuar a combater e a matar, mas aquela guerra, que ele começara, recusava-se a deixá-lo em paz. O príncipe reparou no sarcasmo nos olhos do irmão. Sem dizer uma palavra a nenhum dos dois, Páris virou-se em busca do seu arco.

Menos de vinte minutos mais tarde, os seus servos carregaram-no de regresso à sua câmara. O seu olho esquerdo fora perfurado por uma seta que fizera ricochete na armadura. Uma outra saía-lhe da coxa e uma terceira entrara-lhe por baixo das costelas, no lado direito. Os cirurgiões tinham medo de a retirar, por isso o príncipe perma­neceu deitado vendo o seu pai e a sua mãe a chorarem por ele enquanto ele tentava consolá-los com um sorriso cansado.

Pouco segura de si, Helena aproximou-se do leito. A dama fez um esforço e olhou para Páris meio cego, ligado para impedir o fluxo de sangue e ainda trespassado por uma seta tão fina que dir-se-ia não lhe poder fazer qualquer mal. A dama sentiu-se desmaiar.

— Parece que tinhas razão — murmurou ele, sorrindo-lhe. — Não havia esperança para nós.

Havia um tal desgosto no seu rosto desfigurado que ela não con­seguiu suportá-lo. No entanto, permaneceu durante muito tempo ao lado do leito segurando-lhe na mão e incapaz de falar porque tam­bém ela se sentia trespassada por uma angústia tão grande e tão insu­portável que todas as forças do seu corpo estavam concentradas nela.

Páris não se sentiu consolado com a sua presença porque sempre que olhava para ela via apenas a magnitude da sua perda. Assim, após algum tempo, por consideração, ele disse:

— Deixa-me. Já sofremos o suficiente.

O crepúsculo chegou. Acenderam-se as candeias. Apenas a sua mãe e as suas damas-de-companhia permaneciam à sua cabeceira e como estava a demorar muito tempo para morrer, Páris começou a ficar com medo. Como um caçador perdido num bosque escuro, o príncipe procurava nas suas recordações uma saída para a luz. Então, teve uma ideia e a esperança regressou. Páris estendeu uma mão na direcção da mãe e puxou-a para junto de si.

— Eneias — arquejou ele. — Pede a Eneias que venha ter comigo.

O tempo passou. A noite ficou cada vez mais escura. Finalmente, Eneias chegou e aproximou-se do leito. Páris reuniu todas as suas forças, mas a sua voz já só era um murmúrio.

— Nós fomos amigos, em tempos — disse ele — e se a amizade entre nós faltou, a culpa foi minha. Peço-te que me perdoes. Eneias sentiu compaixão pelo príncipe e disse:

— Um homem deve seguir o seu destino. Tu estavas sob o poder da deusa, tal como o meu pai, em tempos.

Páris tentou sorrir de novo.

— Vê tu como Afrodite é capaz de nos cegar. — O príncipe aba­nou a cabeça. — Quem diria que um vaqueiro dárdano provocaria tantos males ao mundo? — Eneias sentiu a mão de Páris a apertar a sua. — Quero pedir-te uma coisa. Lembras-te da rapariga que viste no templo de Apolo Sangário — quando Menelau fez lá as suas ofe­rendas?

Páris viu Eneias franzir o sobrolho. Estremecendo, o príncipe continuou:

O nome dela era Enone. Ela amava-me. Ela disse que se um dia eu me ferisse, que a mandasse chamar... porque me podia curar. Duvidoso, Eneias acenou com a cabeça.

Quando Páris abriu de novo a boca para dizer mais qualquer coisa, começou a tossir. O sangue apareceu a um dos cantos da sua boca. Eneias disse:

—Não fales.

Páris agarrou-lhe na mão.

— Vais buscá-la?

Eneias franziu de novo o sobrolho.

— Isso foi há muito tempo.

O amor dela era mais verdadeiro do que o meu — disse Páris. — Deve ter durado mais. Ela vem. Tenho a certeza que vem.

Páris aguentou a noite e o dia seguinte, mas delirando a maior parte do tempo e se Helena esteve à sua cabeceira, não a viu.

Eneias regressou na tarde seguinte, só e apreensivo e quando Páris olhou para o rosto do seu amigo sentiu morrer a sua última esperança.

Ela não quis vir?

Eneias abanou a cabeça.

— Nem disse nada?

Consciente de que não conseguiria transmitir-lhe a amarga men­sagem de Enone, Eneias ia dizer que não encontrara Enone, mas percebeu que Páris adivinharia que estava a mentir. Assim, ficou em silêncio, vendo a morte a aproximar-se.

Algum tempo depois, Páris arquejou, vomitou sangue e saliva, virou a cabeça para a parede e morreu.

Algumas horas mais tarde, angustiada por o orgulho se ter sobre-psto à caridade, Enone chegou a Tróia. Os guardas não lhe abriram a porta. Quando a jovem lhes tentou explicar a razão da sua preten­são, eles encolheram os ombros e disseram-lhe que era demasiado tarde.

 

                       Um Cavalo para Atena

Com doze anos de idade, irrequieto e grande para a idade — quase suficientemente grande para vestir a armadura do pai — Pirro, o filho de Aquiles, chegou a Tróia. O jovem encheu de ânimo o coração dos mirmídones, que lhe chamaram Neoptólmo, o novo guerreiro. Aga­mémnon decidiu que a sorte tinha regressado, os gregos regressaram ao campo de batalha, os dois exércitos combateram-se selvaticamente e a guerra arrastou-se.

Então, o tempo piorou, o vento varreu a planície e o mar, provo­cando vagas tão altas que os navios de abastecimento não puderam atracar. Ensopada e com o moral em baixo, a hoste acaiana agrupou--se em redor das fogueiras e começou a resmungar. Apenas o mau tempo impedia muitos dos guerreiros de fazer as malas e regressar aos navios.

Uma tarde, depois de uma escaramuça com um pequeno bando de dárdanos que se renderam surpreendentemente depressa, Odis­seu recebeu o líder, um homem que dizia ser primo de Lneias. O homem entregou-lhe uma mensagem de Antenor, oferecendo-se para abrir um canal secreto de comunicação e indicando a hora em que Antenor podia ser encontrado no tempo de Apolo, perto do Esca­mandro.

Odisseu disse:

— Se bem me lembro, os gregos não têm boas recordações da santidade desse local.

O dárdano acenou com a cabeça.

— Também te deves lembrar que Antenor odiava aquele que vio­lou a sua santidade. Além disso, o sacerdote é filho de Antenor. Lao­coonte não estava a par dos planos de Páris e de Deífobo e ficou ultrajado com o sacrilégio. Antenor também te lembra que foste, em tempos, seu hóspede. Esse laço mantém-se. A minha vida é refém do vosso encontro. Só recuperarei a minha liberdade depois de falares com ele.

Acompanhado pelo seu primo Sínon, Odisseu dirigiu-se ao tem­plo onde Aquiles fora assassinado. O príncipe encontrou Antenor à sua espera, só e desarmado. Enquanto o vento soprava no exterior, os dois homens conversaram durante muito tempo. Antenor infor­mou Odisseu que o Rei Príamo era um homem destroçado, um homem afastado dos assuntos de estado. Deífobo era, agora, o comandante das forças troianas.

-- Mas há muita discórdia na cidade — disse ele. — Muitos de nós estamos desesperados para que a guerra acabe e eu não sou o único a pensar que Helena devia regressar para junto de Menelau como parte de um tratado de paz imediato. Eneias e o pai dele estão comigo — já morreram demasiados dárdanos numa guerra que nenhum deles queria. Mas Deífobo é o herdeiro do trono e tem mui-tos apoiantes. — Antenor desviou o olhar. — Há outra coisa que deves saber. Helena está a viver com Deífobo. — O conselheiro olhou de novo para Odisseu e viu que o príncipe estava chocado. — Ele não a entrega, está convencido que ainda pode vencer esta guerra. A sua confiança nas nossas muralhas é total e duvida que as tuas tro­pas consigam aguentar mais um Inverno na planície.

Odisseu disse:

— Pode ser que tenha razão. Mas o Inverno ainda vem longe, temos tempo de sobra para nos matarmos uns aos outros.

— Nesse caso, não podemos chegar a acordo — perguntou ansiosamente Antenor — como homens razoáveis?

Odisseu ergueu as sobrancelhas.

— Há muito que perdi a fé na razão humana.

Mas os dois homens continuaram a conversar, discutiram os pos­síveis termos de um armistício e antes de abandonar o templo Odis­seu prometeu fazer os possíveis para acabar com a guerra.

Parece que os nossos espiões tinham razão — disse Sínon enquanto subiam para o carro. — Tanto Antenor, como os dárda­nos, estão mais interessados em sobreviver do que em vencer a guerra.

Odisseu sorriu retorcidamente para o primo.

— Esperemos que também tenha sobrado alguma sanidade men­tal no nosso lado, ou nunca mais regressaremos a Ítaca.

Menelau estava tão perturbado com a notícia de que Helena se entregara a Deífobo que permaneceu em silêncio durante a reunião do conselho, na qual Odisseu deu conta do seu encontro com Ante-nor. Quanto ao resto dos senhores da guerra, as divisões na liderança grega eram o espelho do que se passava entre os troianos e os seus aliados. Odisseu e Idomeneu estavam dispostos a iniciar conversa­ções de paz, mas Diomedes declarou que era uma loucura ter lutado durante aqueles anos todos e ter perdido tantos amigos para desistir agora, quando a queda da cidade estava próxima. Neoptólemo concordou com ele. Falando com a uma gravidade e uma implacabili­dade que lembrou Aquiles a todos, o jovem guerreiro declarou que só abandonaria Tróia depois de os que tinham conspirado para a morte do seu pai terem morrido.

Odisseu ouviu o rapaz com um peso no coração. O príncipe pen­sava no próprio filho, Telémaco, que tinha mais ou menos a mesma idade e perguntava a si próprio se a herança horrível daquela guerra também passaria, um dia, para ele, como uma maldição, para os filhos de todos os outros, de geração em geração. Entretanto, o velho Nes­tor pairava entre as duas facções, consciente da futilidade da guerra, mas consciente, também, de que nenhum dos heróis da sua juven­tude teria aceitado outra coisa que não a vitória total. Agamémnon ouviu os argumentos através de uma névoa de álcool. O seu mau temperamento começava a subir à superfície. Dentro de pouco tempo, os insultos começariam a chover.

Então, Menelau ergueu os olhos da sua taça de vinho.

— Esta guerra começou com uma injúria feita à minha pessoa. Em Esparta, todos vós jurastes perante Poseídon que defenderíeis os meus direitos. Ainda estais ligados a esse juramento. — A sua voz era ameaçadora. — Espero que o honreis.

Até Agamémnon ficou espantado com a sua veemência. Esfor­çando-se por manter a incredulidade afastada do seu tom de voz, disse:

— Estás a dizer que ainda a queres?

— Quero ver Deífobo morto, tal como Páris — respondeu Mene­lau. — Quero ver esta cidade a arder.

Seguiu-se um longo silêncio, durante o qual todos os ali reunidos contemplavam um futuro negro de morte e fumo.

— Ouvistes o meu irmão — disse Agamémnon, finalmente. — A guerra continua.

Naquela noite, Odisseu acordou de um sonho sangrento e per­guntou a si mesmo se não estaria, também, a enlouquecer. Então, compreendeu o motivo — Menelau fizera-o recordar o maldito juramento que fizera em Esparta. Tanto quanto sabia, já ninguém se lem­brava do juramento. Apesar dos motivos por que a guerra começara, o conflito desenvolvera uma lógica insensata muito própria, uma lógica que os mantinha a todos presos. No preciso momento que podiam começar a negociar o fim daquele longo pesadelo, Menelau erguia de novo o espectro do juramento. Por isso ele regressara para atormen­tar os sonhos do seu inventor!

Ao recordar o sonho, Odisseu estremeceu. Vira o cavalo em peda­ços sacrificado em Esparta a juntar-se de novo, pedaço a pedaço. O cavalo ficara de novo inteiro e, um a um, os líderes gregos tinham sido forçados a entrar para a sua barriga, ficando todos fechados no interior daquela medonha caverna de sangue.

O príncipe abanou a cabeça para afastar as terríveis imagens. Depois, permaneceu deitado durante muito tempo pensando na sua mulher, recordando os seus tempos de juventude em Esparta, como tinham embarcado para Ítaca, finalmente, contentes por abandonarem a azáfama ambiciosa daquele mundo particular, desejando ape­nas a alegria de viverem juntos na sua pequena ilha. Porém, Menelau e Palamedes tinham aparecido, trazendo consigo a recordação do cavalo desmembrado para o atormentar.

E Palamedes, Pátroclo e Ajax — cada um dos quais também jurara sobre o cavalo mutilado — estavam agora mortos; e Aquiles, Heitor e Páris vagueavam pelos campos da Terra das Sombras com eles. Mesmo assim, parecia que aquele cavalo maldito não o queria deixar em paz.

Odisseu ansiava pela sua mulher. Queria tocá-la, sentir-lhe o peso suave nos braços, cheirar-lhe o corpo fresco, perfumado. Devia haver um local qualquer naquele mundo onde não cheirasse a suor, a cólera e a medo. Um mundo onde um homem pudesse pensar noutras coi­sas para além da matança e da morte.

Cansado e com medo de estar fechado para sempre naquele mundo sangrento, condenado a nunca mais ver Penélope e o seu filho, Odisseu levantou-se para enfrentar outro dia intolerável.

Ainda tinha na cabeça dorida o sonho quando Menelau entrou na sua cabana. O Rei de Esparta trazia consigo um homem pequeno, de barba grisalha, aleijado de uma perna e com um brilho astuto nos olhos. Odisseu não se lembrava de o ter visto alguma vez.

       Este é Prílis  disse Menelau. - É ferreiro e pertence aos Lápidas. Veio ter comigo com uma ideia interessante. Quero discuti-la contigo.

Odisseu grunhiu intimamente. A energia malevolente do reno­vado apetite de Menelau pela guerra estava entre as muitas coisas que não lhe apetecia nada enfrentar naquele dia. O príncipe recordou o filho mais novo de Atreu no dia do seu casamento, em Esparta, de coração aberto e generoso, cheio de ternura para com a sua noiva, tentando compensar as maneiras agressivas do seu irmão e magnâ­nimo na hora do triunfo. De todos os pretendentes à mão de Helena, Menelau fora o mais merecedor e Odisseu sentia pena por ver no que a vida o tinha transformado.

O príncipe fez um gesto para que os dois homens se sentassem.

Que ideia é essa?

Uma ideia que talvez nos faça vencer a guerra — disse Mene­lau, sorrindo.

Odisseu olhou duvidosamente para o pequeno homem.

Estou pronto para ouvir qualquer coisa que me faça regressar a casa disse ele.

Lisonjeado por ter a atenção daqueles homens poderosos, Prílis falou dos seus tempos de pirata e de soldado da fortuna enquanto jovem. O velho guerreiro tinha embarcado para leste com Pirítoo e Teseu, atravessara o Helelesponto e entrara no mar Negro, onde por azar fora feito prisioneiro e vendido como escravo. Como todos os Lápidas, percebia de cavalos e provara o seu valor como domador daqueles animais.

— Devo esta perna neste estado a um garanhão — disse ele — mas aguentei-me e no fim ele estava manso como um cordeiro.

Prílis contou como fora vendido três vezes e se fora deslocando para sul e para leste, até que fora parar ao serviço de um general de um povo guerreiro chamado Assírios, que vivia entre os rios Tigre e Eufrates, numa cidade enorme chamada Babilónia.

Sim — disse Odisseu, que ouvira falar daquele povo, mas qual seria o objectivo da história?

Os Assírios eram grandes guerreiros, disseram-lhe, e tinham inven­tado grandes máquinas de guerra, máquinas nunca vistas em Argos ou em Creta. Aquelas máquinas eram usadas contra cidades fortificadas, cidades como Tróia, e ele gostara particularmente de uma delas porque se chamava Cavalo. A máquina era construída como se fosse uma casa com rodas e era coberta com peles de cavalo humedecidas para a proteger do fogo. Os homens que seguiam protegidos por ela empurravam-na até chegarem aos portões da cidade que estavam a atacar. Então, utilizavam um aríete e, finalmente, os portões abriam-se. Se o Cavalo fosse construído com suficiente solidez, os soldados nas muralhas não poderiam fazer nada contra ele.

Prílis vira com os seus próprios olhos eles conquistarem uma grande cidade daquela maneira. O homem teria continuado a contar mais coisas, mas Menelau interrompeu-o.

Deve ser possível construirmos um cavalo assim? — excla­mou ele. Se uma grande cidade caiu perante um engenho assim, por que não outra?

Sínon, o primo de Odisseu, estivera a ouvir com interesse as pala­vras do lápida.

— Não deve ser muito difícil construir uma coisa assim — disse ele. — Há muita madeira nas montanhas e podemos esfolar alguns cavalos.

— Tróia poderia ser nossa no espaço de uma semana — acres­centou Menelau. — Que dizes?

Cofiando a barba, Odisseu pensou no assunto durante alguns momentos. Há anos que pensava numa maneira de ultrapassar as muralhas maciças de Tróia, mas nunca lhe passara pela cabeça uma ideia daquelas. Seria assim tão simples? O príncipe começou a imaginar a situação.

Então, rapidamente, viu a dificuldade.

— Sou capaz de imaginar casos em que a coisa pode funcionar — disse ele — mas pensai na localização de Tróia. Para que o aríete consiga abrir as portas, o cavalo tem de lá chegar. Os troianos ainda têm força para nos manter afastados da muralha com os carros e a infantaria. Mesmo que não o façam, como conseguiriam os homens empurrar uma máquina dessas por aquela rampa acima? Teria de ser puxada, não empurrada e teríamos de o fazer enquanto éramos atacados? — Sorrindo, Odisseu abanou a cabeça. — É uma ideia interes­sante, mas não vejo como pode funcionar —pelo menos por enquanto. Só quando os troianos estiverem mais fracos.

Prílis franziu o sobrolho, desapontado, e Menelau tentou discutir durante mais algum tempo, mas em breve os dois homens capitula­vam perante as muralhas a pique e salientes daquela cidade.

Odisseu colocou uma mão no ombro do lápida.

— Quem sabe, amigo Prílis, talvez o teu cavalo ainda possa vir a ser útil. Para já, ainda temos pela frente muito combate corpo-a-corpo. — O príncipe de Ítaca olhou com ar cansado para Menelau antes de acrescentar:

— Se ainda tivermos estômago para o fazer.

Naquela noite, Odisseu teve outro sonho. A deusa Atena apare­ceu-lhe armada e com o elmo na cabeça, usando o peitoral por cima da armadura e segurando na mão um bastão dourado. O príncipe olhou, temeroso, para a sua figura poderosa e viu que os seus olhos cinzentos o fixavam com uma expressão de censura e desapontamento. Odisseu viu Penélope e o seu filho Telémaco escondidos atrás dela, como dois reféns impossíveis de resgatar.

— Ofereceste um cavalo a Poseídon, Odisseu — disse a deusa. — Por que não me ofereces também um?

Odisseu acordou sobressaltado e não conseguiu adormecer de novo. O príncipe de Ítaca ficou deitado a pensar no sonho.

Uma vez mais, Odisseu pensou no que Prísis dissera sobre o cavalo dos assírios, mas não conseguiu contornar os obstáculos que erguera contra a ideia. Se a rampa fosse menos longa e menos íngreme e se as portas não estivessem tão bem guardadas, a coisa poderia ser feita. A entrada em Tróia passaria a ser possível. Como as coisas estavam...

Odisseu amaldiçoou mais uma vez o velho Éaco de Egina por ter feito um trabalho tão bom ao reconstruir as muralhas de Tróia. O ítaco virou-se na cama e fechou os olhos, tentando adormecer.

Então, lembrou-se do outro sonho. Viu, de novo, os capitães gre­gos a entrarem no corpo refeito do cavalo que fora oferecido em sacrifício a Poseídon. O horror da imagem impediu-o de dormir.

Finalmente, Odisseu levantou-se e foi passear pela praia onde as ondas se quebravam com estrondo. Quando a luz da madrugada começou a avistar-se no céu turbulento, a leste, o cavalo de Poseídon e o cavalo dos assírios tinham-se juntado na sua mente e Odisseu ficou a saber o caminho a tomar.

Várias semanas mais tarde, enquanto uma brisa fresca soprava de leste através da planície de Tróia, os vigias na torre de Ilium esfrega­ram os olhos perante uma visão espantosa. À parte o fumo de algu­mas fogueiras, não havia os habituais sinais de actividade no campo grego. Para lá da paliçada, as proas curvas dos navios alinhados ao longo da praia da baía durante uma boa parte do ano tinham desapa­recido. Os vigias também não viam nenhuns navios a navegar para lá do Helesponto.

Durante um momento, os dois homens olharam um para o outro, incrédulos. Então, um deles atreveu-se a dizer em voz alta o que ambos estavam a pensar:

— Foram-se embora! Os gregos foram-se embora.

Deífobo estava a dormir com um braço por cima do peito de Helena quando os seus dois irmãos sobreviventes, Cápis e Timetes, o foram acordar. Sentindo a cabeça pesada e estando ainda maldisposto por ter descoberto que Helena, drogada com ópio na noite anterior, se mostrara uma parceira desinteressada, teve alguma dificuldade em compreender o que lhe estavam a dizer.

-- Tens a certeza? — perguntou ele. — Pode ser só um estrata­gema para nos atrair para fora das muralhas.

Os batedores dizem que não -- insistiu Timetes. As cabanas foram queimadas, os navios foram-se embora e não está nin­guém no campo. Parece que aproveitaram o facto de o vento ter mudado para irem para casa.

Permitindo a si próprio começar a acreditar, Deífobo deu uma pequena gargalhada.

— Eu não disse que eles não aguentavam outro Inverno? Vencemos. Em nome de todos os deuses, vencemos.

Mas Cápis tinha o sobrolho franzido.

— Há qualquer coisa de estranho nisto tudo.

O quê? — perguntou Deífobo, imediatamente desconfiado.

Eles deixaram qualquer coisa na praia. Um cavalo, disseram os batedores. Um grande cavalo de madeira.

— Que quer dizer com isso, um cavalo de madeira?

Isso mesmo. Uma coisa enorme feita de madeira e com a forma de um cavalo. Os batedores disseram que nunca tinham visto uma coisa assim antes. Eles dizem que o cavalo tem uma inscrição gra­vada, mas nenhum deles sabe ler. Nós íamos agora mesmo dar uma vista de olhos, mas pensámos que também quisesses ir.

Helena acordara com as vozes no exterior da câmara. A dama mexeu-se na cama, inquieta, quando Deífobo regressou para acabar de se vestir e perguntou-lhe o que se passava.

Parece que os teus amigos gregos ganharam juízo, finalmente. Helena sentou-se, segurando a cabeça com as duas mãos.

Não compreendo.

O campo deles está vazio. Os navios foram-se embora. — Virando-se para ela, com o lençol ricamente bordado a tapar-lhe o peito, Deífobo apanhou o momento em que os seus olhos incré­dulos começaram a pestanejar de alarme. — Não gostas da notícia? Talvez estivesses à espera que Menelau te viesse buscar para te levar para Esparta?

Quando Helena desviou o pálido rosto, ele percebeu que quase acertara no alvo.

Que cabra infiel me saíste! — disse ele. — Mas parece que estás com azar.

Vendo-o sair da câmara em passos largos, Helena sentiu-se aterrada ao pensar que ia passar o resto dos seus dias no interior daquela cidade. A dama podia ouvir o rumor que as pessoas faziam nas ruas, espantadas com a notícia. Por entre os latidos dos cães, um homem gritava, algures. Uma mulher começou a cantar uma das canções com que as prostitutas costumavam insultar os gregos do alto das muralhas e pouco depois outras vozes se lhe juntaram. As pessoas riam e festejavam por toda a parte.

Devia ser verdade, então. Menelau e Agamémnon estavam fartos dos custos daquela longa guerra. Tinham largado as amarras e tinham ido para casa, deixando-a sozinha com os troianos como uma coisa inútil. O pânico apoderou-se dela. A sua mente encheu-se de ima­gens sombrias. Helena via o futuro que a esperava. O tempo, o vinho e as drogas apagariam a sua já cansada beleza e Deífobo cansar-se-ia dela; teria de sobreviver como pudesse, passando, como uma prosti­tuta qualquer, de homem para homem porque haveria sempre alguém pronto a gabar-se de ter dormido com Helena de Esparta, com Helena de Tróia.

Helena levantou-se, tremendo à luz da manhã e foi até à janela. Dali, do alto do palácio, na cidadela, conseguia ver a planície para onde as pessoas já corriam para dançar em triunfo no que restava do campo grego.

Durante dez anos, o povo daquela cidade sofrera as angústias de uma guerra por sua causa e agora o seu sofrimento tinha acabado. Mas Páris tinha morrido, Heitor também, e Antifo, Polidoros e muitos outros. O Rei Príamo era um homem derrotado, trémulo, reme­loso e estupidificado pela dor. No entanto, as pessoas cantavam, dan­çavam e brindavam com vinho porque tinham sobrevivido e já não tinham de pensar, quando acordavam de manhã, se estariam mortos ao fim do dia.

A guerra terminara e não havia vencedores nem vencidos. O con­flito limitara-se a parar como a coisa inútil que era e ela — causa prin­cipal de todos aqueles anos de luta — fora esquecida devido ao alívio provocado pelo seu fim.

Helena estava sozinha e aterrorizada.

Para lá da paliçada, o campo era um amontoado esquálido de cabanas queimadas, carros destroçados, equipamento abandonado e res­tos de comida disputados pelos abutres e pelos coiotes. O fumo ele­vava-se daquela confusão ao longo da praia onde as pessoas viam os sulcos na areia provocados pelas quilhas dos navios gregos ao serem empurrados para a água. O casco chamuscado do navio que ardera quando Heitor ultrapassara a paliçada e devastara o campo, oscilava como algo estripado. No calor crescente da manhã, a brisa levava até à cidade um fedor imenso, provocado pelas latrinas.

Sobre tudo aquilo reinava a enigmática figura do cavalo.

Feito dos troncos e pranchas dos pinheiros das Montes de Ida, erguia-se sobre umas pernas espessas e afastadas, cada uma delas um caibro retirado de um celeiro ou de um estábulo. Os carpinteiros — ou quem quer que tinha construído aquele animal espantoso tinham ligado as pernas aos flancos anteriores e posteriores de tal maneira que a barriga pendia entre elas como um barril. A cauda des­cia até à plataforma onde o cavalo estava montado, actuando como contrapeso do pescoço arqueado e da longa e esplêndida cabeça que se erguia a uns dez metros de altura e onde, entre as orelhas, brilhava a crina. Os olhos do animal eram bulbosos e as suas narinas enormes. Havia uma energia e um vigor nas suas linhas que parecia aligeirar a tonelagem de madeira inerte de que fora feito. O tamanho daquela coisa deixava as pessoas silenciosas durante alguns momentos, como se aquele cavalo tivesse fugido de uma qualquer cavalariça do reino dos deuses para lançar a sua majestosa sombra sobre o mundo dos mortais.

No seu flanco fora gravada uma inscrição. O Rei Príamo, que insis­tira em ser transportado até à praia para testemunhar a deserção dos gregos, leu as palavras em voz alta: Oferecido à Divina Atena para que ela nos conceda uma boa viagem de regresso a casa. Em seguida, o Rei virou-se, sorrindo, para Deífobo:

— Parece que tinhas razão. Finalmente, os gregos foram-se embora. — As lágrimas caíram-lhe pelo rosto abaixo. — Oxalá o meu filho Heitor estivesse vivo para testemunhar este dia.

Impaciente por o velho pensar primeiro no seu irmão morto, quando aquela hora de triunfo era inteiramente sua, Deífobo virou-se e viu Cápis a olhar desconfiado para aquele cavalo maciço.

— É isto? — perguntou Cápis. — Por que razão deixaram uma coisa tão improvável como esta para trás?

— Ele fala por si próprio — respondeu Deífobo. — Foi uma oferenda à deusa. Os gregos sempre pediram a ajuda e a protecção de Atena.

— Nesse caso, por que razão havemos de confiar nele? — per­guntou Cápis. — Acho que devíamos queimá-lo. Acho que devía­mos fazer dele uma oferenda e limpar a nossa costa, fazendo desa­parecer todos os sinais da presença deles.

Um murmúrio de assentimento ergueu-se das pessoas reunidas em volta da família real. Que melhor maneira de se verem livres daque­les longos anos de guerra do que uma imensa fogueira na qual o cavalo seria incinerado juntamente com os detritos que poluíam a praia? O ar ficaria limpo.

— O cavalo pertence à deusa — disse Timetes. — Não dará azar destruir a sua propriedade?

O Rei Príamo olhou para a enorme e nobre cabeça do cavalo e franziu o sobrolho.

— É uma coisa muito bela — disse ele, indeciso.

— E é o símbolo do nosso triunfo. Deífobo saltou para a plata­forma do cavalo e dirigiu-se à multidão junto de uma das pernas da frente. — Se tiverem sorte, talvez a Divina Atena conceda aos gregos uma boa viagem de regresso, mas a deusa negou-lhes a vitória aqui. Digo que devemos ficar com este cavalo e levá-lo para dentro das muralhas para que os filhos dos nossos filhos possam olhar para ele e recordar como os Troianos lutaram para salvar a cidade.

A multidão agitou-se ao ouvir aquelas palavras. A nova ordem estava em acção.

Mais uma vez, tudo era possível.

Deífobo virou-se e olhou para o pai, que acenava com a cabeça.

— Os deuses favoreceram-nos — disse Príamo — e devemos estar agradecidos. Vamos levar este ídolo para o templo de Atena e vamos consagrá-lo à deusa.

Mas era uma coisa mais fácil de dizer do que de fazer. Alguns dos troncos da paliçada grega foram derrubados e utilizados como ala­vancas. Com um enorme esforço, a parte da frente da plataforma foi erguida o suficiente para que o primeiro de muitos cilindros de madeira pudesse ser colocado por baixo. Foram atadas espessas cordas ao pescoço do cavalo com nós a intervalos regulares, de modo a que duas longas colunas de homens pudessem puxar o cavalo através da paliçada derrubada.

Porém, a enorme estátua era extremamente pesada e quando o Sol subiu no céu o calor tornou-se quase insuportável. Durante horas, o cavalo progrediu desajeitadamente em cima dos cilindros de madeira, mas o solo era irregular e o progresso lento. Os homens magoavam--se frequentemente ao transferir os cilindros, visto que era preciso manter o andamento. A cada inclinação de terreno, o peso do cavalo aumentava e quando havia uma descida, por mais pequena que fosse, a estátua tinha de ser puxada por trás, em vez de pela frente. Só a meio da tarde, depois de grandes esforços e utilizando os homens por tur­nos, o cavalo chegou à base da rampa que ia dar à Porta Ceias. Então, já era evidente que não conseguiriam empurrar o cavalo até ao topo, a não ser que utilizassem um sistema eficiente de guinchos e molinetes. Mesmo assim, se conseguissem, o parapeito por cima da porta teria de ser demolido para deixar passar a cabeça do cavalo.

Durante algum tempo, muitos dos homens resmungaram, dizendo que aquilo era um trabalho impraticável e que não valia o esforço que lhes estava a custar. Mas Deífobo estava determinado a que o cavalo fosse levado para Tróia como símbolo da força da cidade e o seu entusiasmo fizera com que o progresso, naquele dia, fosse grande. Mas, finalmente, até ele ficou desencorajado com o que ainda faltava.

Cápis olhou para o irmão enquanto bebia água de um odre.

Devíamos ter queimado isto, tal como eu disse.

Ou podíamos deixá-lo aqui       sugeriu Timóetes.

Sentindo os braços doridos pelo esforço feito a puxar uma das cordas, Deífobo imaginou Agamémnon e Odisseu a rirem-se daquele esforço para fazer entrar o cavalo no interior da cidade. O príncipe olhou de sobrolho franzido para aquela montanha de madeira que ameaçava derrotá-lo. Talvez os seus irmãos tivessem razão.

Porém, desistir depois de terem percorrido aquilo tudo, quando já só faltava a rampa...

Deífobo continuava a pensar, sem se decidir, quando se aperce­beu de um certo reboliço na retaguarda do cavalo. Levantando-se, o príncipe viu o sacerdote Laocoonte a aproximar-se à cabeça de um pequeno grupo de dárdanos, empurrando diante de si um prisio­neiro. Desde o sacrílego assassínio de Aquiles, no templo, que havia uma grande hostilidade entre Deífobo e o sacerdote que se apresen­tava agora na sua presença de olhar gelado. A tensão era palpável quando Laocoonte disse:

— Este grego foi encontrado perto do templo de Apolo, escon­dido.

O homem foi empurrado até ficar perto de Deífobo, com os olhos no solo; tinha os pulsos atados, estava sujo e desgrenhado e era evi­dente que temia pela vida. Interrogado, disse que o seu nome era Sínon, que era de Ítaca e que fugira do campo grego na noite ante­rior.

E por que é que fizeste isso? — perguntou-lhe Deífobo.

— Porque eles iam oferecer-me em sacrifício aos Ventos. Há sema­nas que queriam ir para casa, mas o tempo estava contra eles. Calcante disse que teriam de fazer um sacrifício aos Ventos e Odisseu tratou de arranjar maneira de que a sorte me calhasse a mim.

— Um natural de Ítaca? Acho isso esquisito. Ele tinha alguma coisa contrati?

Sínon olhou para ele de olhos semicerrados.

— Tinha medo de mim. Eu era o único ainda vivo que sabia que ele tinha montado uma armadilha a Palamedes para que este parecesse um traidor. Odisseu andava à procura de uma maneira de se ver livre de mim antes de regressar a casa.

— No entanto, estás aqui, vivo — disse Deífobo.

— Tive sorte. Eles estavam a preparar o altar, ontem à noite, quando o vento mudou e correram todos para os navios. Consegui fugir no meio da confusão.

Deífobo franziu os lábios, pouco convencido.

— Se isso é verdade, por que razão não contaste a Agamémnon o que sabias sobre Odisseu e não te colocaste à sua mercê?

Com o ar de um homem que já vira o suficiente do mundo e da sua corrupção, Sínon encolheu os ombros.

— Porque ele não queria saber. Nenhum deles queria saber. Todos eles tomaram parte na lapidação, não tomaram? Não queriam ouvir falar da inocência de Palamedes. A única pessoa que quer é o pai de Palamedes, o Rei Náuplio, em Eubeia. Ele já desconfia do que acon­teceu e se conseguir provas há-de tentar vingar-se. Odisseu sabe-o — e era por isso que me queria eliminar.

Impressionado com o modo como a história de Sínon se coadu­nava com o que já sabia sobre a mente tortuosa de Odisseu, Deífobo aconselhou-se em voz baixa com os irmãos.

Cápis virou-se para Sínon e perguntou-lhe:

-- Que estavas tu a fazer em Timbre?

Pareceu-me o local ideal para me esconder até os barcos se irem embora. Esperava regressar a Argos por terra e atravessar depois para Eubeia. Quando Náuplio souber o que eu sei, proteger-me-á — e tratará de Odisseu!

Chegados àquele ponto, Antenor falou do alto da muralha, ao lado do Rei Príamo.

Fala-nos desse cavalo.

Sínon olhou para cima e depois novamente para Deífobo.

A ideia foi, mais uma vez, de Calcante. Quando tudo começou a correr mal, há algumas semanas, ele consultou o oráculo e disse-nos que Atena nos virara as costas. Aquiles sempre fora o seu favorito, disse ele, e as hipóteses de conquistar Tróia tinham morrido com ele. Calcante disse que as coisas estavam tão más que, se quiséssemos regressar a casa sãos e salvos, teríamos de oferecer à deusa um grande sacrifício.

Mas, por que oferecer-lhe um cavalo? perguntou Cápis.

Isso foi ideia de Odisseu. Ele disse que tinha tido um sonho. Esta guerra começou com o sacrifício de um cavalo a Poseídon, em Esparta. Odisseu disse que devíamos acabá-la oferecendo um cavalo a Atena em Tróia.

Por que não um cavalo verdadeiro, então, como o que foi ofe­recido a Poseídon? perguntou Antenor.

Sínon lançou-lhe um olhar desdenhoso.

Depois de tantos já terem morrido? A carne de cavalo está barata na planície de Tróia, ou não reparaste?

Desagradado com o tom de voz do homem, Deífobo esbofe­teou-o. Sínon levou uma mão ao rosto e olhou para o chão. — Continua ordenou Deífobo.

Não tenho mais nada para dizer. Creio que Calcante consul­tou outra vez o oráculo. Deve tê-lo feito porque disse que Atena queria que lhe construíssem um ídolo. — Sínon encolheu de novo os ombros. — Só o podíamos fazer com madeira.

Mas por que o fizeram tão grande? — perguntou Cápis.

Para que não o pudésseis meter na cidade, claro.

— Explica lá isso.

Calcante disse que os Troianos tentariam conseguir as boas graças de Atena consagrando o cavalo no templo dela. Se conseguissem, talvez o feitiço se virasse contra o feiticeiro e os Troianos inva­dissem Argos.

A multidão estivera a ouvir atentamente a história do prisioneiro e agora as pessoas começavam a falar umas com as outras. Mas cala­ram-se de novo quando Laocoonte ergueu a voz.

Por que havemos de acreditar no que este homem diz? Parece-me mais um chorrilho de mentiras arquitectadas por Odisseu. A devo­ção dos gregos nunca me convenceu. Não confio neles e ainda menos quando nos dão presentes.

A voz de uma mulher fez-se ouvir, vinda do alto da muralha.

O sacerdote diz a verdade.

Deífobo olhou para cima e viu Cassandra com os cabelos a esvoa­çarem.

Esse cavalo será a nossa destruição. Traz a morte dentro da barriga. Acredita em mim, irmão, vejo Menelau suspenso por cima de ti. Vejo-te deitado num leito de sangue.

Levai-a para dentro gritou Deífobo. Impacientemente, o príncipe resmungou para os irmãos que Cassandra via destruição em toda a parte. Convencido de que Laocoonte queria estragar-lhe o triunfo, Deífobo virou-se para se confrontar com o sacerdote. — E tu disse ele não é segredo nenhum que não gostas de mim e também não mostraste grande estômago durante esta guerra. Pelo menos até agora, quando já não há combates. Terias feito bem se tives­ses demonstrado mais cedo essa hostilidade que sentes pelos gregos.

Laocoonte desviou o olhar.

       Eu digo o que o deus me diz para dizer.

— Nesse caso, vai ter com ele e reza por bons presságios neste dia feliz.

Antenor mostrou o seu desagrado pelo modo como Deífobo estava a tratar o seu filho. O conselheiro virou-se para o Rei e disse alto e bom som, para que todos o pudessem ouvir:

Laocoonte diz sempre a verdade. É uma loucura ignorá-lo.

O meu filho tem coragem — respondeu Príamo, irritado. Naquele momento, uma outra voz — a voz de Eneias — juntou‑se à discussão.

— No entanto — disse ele — o meu pai Anquises e eu partilha-mos os sentimentos de Antenor.

Preocupado com a possibilidade de as diferentes opiniões poderem virar-se contra si, Dífobo subiu alguns metros pela rampa acima, de onde podia falar à multidão de homens preocupados reunidos em redor do cavalo de madeira.

— Todos vós ouvistes o que este grego disse. É evidente que não tem motivos para gostar de Odisseu ou de outro grego qualquer. Nem veio ter connosco para nos iludir com a sua história. Teve de vir amar­rado até à nossa presença desde o sítio onde estava escondido. O meu primo Eneias que pense o que quiser nós, os Troianos, sabemos que os Dárdanos não queriam entrar nesta guerra e só vieram em nossa ajuda quando Aquiles os provocou. Se não quiserem tomar parte nas nossas celebrações, que vão para casa. Quanto à minha irmã, ela não regula bem da cabeça e só vê o mundo através de um manto escuro. Troianos, a hora é de triunfo. Que os gregos saibam que somos mais fortes do que eles pensavam. Um último esforço e conseguiremos fazer entrar este cavalo de madeira no interior da cidade e a Divina Atena sorrir-nos-á para sempre.      O príncipe

olhou para o alto da muralha.   Não tenho razão, pai?

O meu filho diz a verdade disse o Rei Príamo. A Divina Atena negou a vitória aos gregos e, por isso, devemos honrá-la. Mas o velho Rei estava triste por, até na hora do triunfo, o seu povo estar desunido. Virando-se para Eneias, Príamo disse: — Vós, os Dárdanos, lutastes corajosamente ao nosso lado. Não partilhais esta vitória connosco?

— O meu pai está velho respondeu Eneias e nem ele nem eu vemos motivo para celebrar uma guerra que não foi vencida nem perdida e pela qual pagámos um preço bem alto em sofrimento. Preferimos regressar às nossas montanhas e deixar as celebrações para os Troianos.

— Como queiras. — Príamo virou-se abruptamente e olhou para o filho na base da muralha. Não possuindo a nobreza de Heitor ou o poder de sedução de Páris, Deifobo nunca fora, entre os seus nume­rosos filhos, um favorito, mas o destino quisera que ele liderasse os Troianos no fim daquela guerra amarga e Príamo não lhe ia negar a sua hora de glória. — Deitai abaixo a muralha por cima da Porta Ceias — ordenou ele. — Trazei o cavalo de Atena para o interior da cidadela.

O som daquela discussão viajara através das orelhas e narinas do cavalo, que tinham sido perfuradas para permitir a entrada do ar, até à barriga do cavalo. Vinte e três guerreiros gregos, sentados em ban­cos de madeira, tinham escutado tudo na escuridão com a respiração suspensa, esperando a todo o momento que os troianos pegassem fogo ao cavalo, ou que o destruíssem.

A seguir a Odisseu, no banco imediatamente por cima da porta escondida, sentava-se Fepeu, um ereus rechonchudo que fora durante muitos anos o fornecedor oficial de água à casa de Atreu. A sua ver­dadeira profissão era a de mestre artesão e fora ele que desenhara o cavalo e supervisionara a sua construção. Se não tivesse, como todos os outros à sua volta, esvaziado os intestinos antes de entrar para a barriga do cavalo que construíra, teria agora as bragas todas sujas devido ao terror que sentia. Epeu suplicara que o deixassem de fora da força de invasão, mas a experiência dizia que só ele seria capaz de fazer funcionar as engenhosas dobradiças que ele próprio imagi­nara para fechar o alçapão e mantê-lo invisível: assim, fora forçado, na ponta de uma espada, a juntar-se à expedição. Tendo sido o último a entrar, seria o primeiro a sair e o pensamento aterrorizava-o de tal maneira que várias vezes, durante o dia, Odisseu fora obrigado a tapar--lhe a boca com uma mão para que os seus gemidos não se ouvissem.

Espantosamente, porém, estava tudo a correr às mil maravilhas. Odisseu e Menelau trocaram um sorriso de alívio quando Sínon apa­receu, mesmo a tempo de evitar o fracasso desastroso da sua missão. Apesar da estratégia do duplo simulacro, Odisseu ficou satisfeito por ouvir Laocoonte, Antenor e Eneias manobrarem Deífobo no sen­tido de este tomar a decisão que eles desejavam, dizendo simplesmente a verdade.

Os guerreiros gregos ouviram Eneias e os seus Dárdanos a aban­donar a cidade e quando a longa fila de homens desapareceu e a rampa ficou novamente livre, ouviram gritos, o som dos martelos e dos pés-de-cabra dos troianos demolindo a porta que tinha mantido os gre­gos afastados durante dez longos anos. O barulho deu aos homens no interior do cavalo algum descanso. Os guerreiros estenderam as pernas há muito imóveis e beberam um pouco da água que tinham trazido consigo, sabendo que dentro de pouco tempo o cavalo con­tinuaria o seu caminho.

Mais ou menos uma hora mais tarde, os gregos ouviram um grito de aviso seguido do súbito colapso de uma grande quantidade de pedra quando o lintel por cima da porta caiu no chão. Uma nuvem de pó de pedra entrou pelas orelhas e narinas do cavalo, bran­queando os rostos de Neoptólemo e de Acamante, que estavam sen­tados perto da cabeça. Momentos mais tarde, ouviram o som de homens trepando pelo pescoço e garupa do cavalo, atando cordas em redor do enorme animal. Os gregos ouviram o guinchar de rolda­nas e guinchos. Alguém começou a contar de três em três e, lentamente, com os cilindros de madeira a gemerem por baixo da plata­forma, o cavalo começou a deslizar sacão a sacão, pela rampa acima.

Só os cintos de pele que os amarravam solidamente aos bancos os impediram de ser arrancados dos bancos quando a barriga do cavalo colidiu com a muralha ao passar pela soleira da porta. Os guerreiros ficaram presos naquele pequeno espaço, mal se atrevendo a respirar enquanto, no exterior, os homens discutiam sobre a melhor maneira de alargar a passagem. Tendo lutado até ali para conseguir meter o seu troféu no interior da cidade, Deífobo não parecia preocupado com os danos feitos na muralha. As pedras voltaram a cair e a passa­gem foi alargada. Com alguma dificuldade, um dos cilindros, esmagado, foi retirado. Em seguida, o cavalo entrou em Tróia.

A noite já tinha caído quando o Rei Príamo completou o ritual a Atena, no exterior do seu templo, na cidadela de Ilium.

A parte a voz do Rei e de Teano, mulher de Antenor, a sacerdo­tisa de Atena, o ritual fora celebrado num silêncio reverencial, ao mesmo tempo que os Troianos, exaustos, meditavam nos longos anos de guerra, durante os quais tanto tinham sofrido. Com excep­ção dos balidos e mugidos dos animais imolados e do choro de uma criança, algures, a multidão compacta reunida em redor do cavalo man­tivera-se num silêncio total.

Entretanto, no interior do cavalo, a escuridão era total. Proibidos de falar e incapazes de se encorajarem mutuamente com acenos de cabeça e sorrisos, os homens estavam virados para dentro de si mes­mos, desconfortáveis e ansiosos. Então, ouviu-se o som de música e a multidão começou a entoar um hino de louvor a Atena. Odisseu murmurou as palavras para si mesmo, reflectindo no número de vezes que a hoste grega cantara aquele mesmo hino à deusa que vela pelos homens que vão para a guerra, preside aos gritos de batalha, à des­truição das cidades e que vela pelo seu regresso a casa.

Os Troianos ergueram as vozes nos acordes finais:

«Adeus, deusa, concede-nos a fortuna e a felicidade; louvar-te-emos noutro hino» — esquecidos de que tinham trabalhado ardua­mente durante todo o dia para fazer entrar a morte na sua cidade. Em seguida, foi a vez de festejar. Os hinos solenes deram lugar a uma música mais bárbara e a noite encheu-se com os seus acordes. Os vivas e os aplausos ecoaram nas muralhas da cidadela. Os homens subiram para a garupa do cavalo, pendurando grinaldas nas cordas. As crianças saltavam e brincavam em redor dos seus cascos.

Confinados à escuridão abafada da sua caverna, os gregos ouviam o bater dos pés e os outros sons das danças no exterior. O cheiro a carne e a peixe assados misturava-se com o cheiro do seu suor e os seus estômagos começaram a protestar ao pensarem na comida e no vinho que eram consumidos naquela festa. Após anos de medo e pri­vações, a cidade, desde os príncipes aos sacerdotes, às prostitutas e aos escravos, soltava os cabelos e entregava-se a um banquete de exces­sos. Todo o esforço e sofrimento fora lançado para trás das costas. Agora, era hora de homens, mulheres e crianças comerem, beberem, dançarem, cantarem, beijarem-se, abraçarem-se e fazerem loucamente amor até caírem de exaustão.

Durante horas, os sons de folia percorreram as ruas. Depois, gradualmente, os risos foram-se esvaindo e as pessoas começaram a regressar a suas casas, ou a adormecerem onde estavam, embriagadas.

No interior do cavalo, a atmosfera era tensa, os homens suavam de ansiedade, mas na parte mais afastada da praça um grupo de homens embriagados continuava na patuscada, cantando uma música obscena muito popular na hoste troiana, que insultava os lideres gre­gos. Odisseu, Menelau, Diomedes e Idomeneu nunca tinham ouvido aquelas palavras com tanta clareza como naquela noite. Os quatro guerreiros rangeram os dentes no interior da barriga do cavalo.

Então, os gregos ainda ficaram mais tensos quando ouviram alguém a trepar para a plataforma por baixo deles e ouviram a voz de uma mulher.

—Vieste para me levar? — murmurou ela. — É por isso que estás aqui, para me levar? — Por um momento, cada homem pensou que as perguntas eram para si; depois, perceberam que a mulher estava embriagada e que estava a falar com o cavalo. — Um dia — dizia ela — os grandes príncipes de Argos juraram sobre os membros de um cavalo despedaçado que me protegeriam e me honrariam. Mas agora, olha para mim. Repara no que me tornei. Não admira que não queiram saber do que me possa acontecer — o meu gentil Menelau, o meu querido amigo Odisseu, Diomedes, que costumava suspirar de amor por mim — todos eles se foram embora deixando-nos aqui, a ti e a mim, sob este céu tão triste. Por isso, só tu me podes levar.

Cada um dos príncipes de Argos, no interior do cavalo, sentiu o coração na garganta e Menelau ficou tão perturbado com os pri­meiros sons da voz de Helena que Diomedes e Idomeneu, que esta­vam a seu lado, tiveram de o impedir de saltar. Alguns momentos mais tarde, ao ouvir o seu nome ser pronunciado por Helena, Dio­medes quase perdeu o controlo. Os guerreiros sobressaltaram-se de novo quando uma voz chamou do outro lado da praça:

— Helena, onde estás? Que estás a fazer aí?    

E reconheceram a voz de Deífobo. — Anda, vamos para dentro, já é tarde.

Uma risada embriagada partiu do grupo de bêbedos que tinham estado a cantar.

— Vai tu dormir, se te apetece disse Helena.

— Vem, vamos para casa.

Quero ficar aqui com o cavalo.

Um dos homens no outro lado da praça gritou:

— Deífobo monta-te melhor, querida! — E os outros riram-se em voz alta antes de desaparecerem na noite. Em seguida, ouviu-se novamente a voz de Helena:

Deixa-me em paz. Não quero ir. Quero ficar aqui. -- Mas Deífobo arrastou-a. Finalmente, tudo ficou em silêncio.

Mais uma hora se passou antes de os guerreiros gregos ouvirem a voz de Antenor directamente por baixo deles.

— Chegou a hora — disse ele. — A cidade está calma. Podeis sair. Odisseu ordenou a Epeu que abrisse o alçapão enquanto os homens abriam os cintos e começavam a desempacotar as armas e as armaduras. Epeu continuava tão aterrorizado que os seus dedos tremiam e levou algum tempo a abrir o fecho e a colocar as dobradiças em posição. Finalmente, o alçapão abriu-se e o ar da noite entrou na cabina abafada enquanto Epeu deixava cair a escada de corda. Empur­rado por Odisseu, o artesão desceu e ficou, a tremer, no centro da cidade de Tróia.

Descendo rapidamente atrás dele, Odisseu apertou com firmeza a mão de Antenor e virou-se para olhar para a planície onde um sinal luminoso, aceso por Sínon, brilhava na escuridão a partir do alto do monte tumular de Aquiles. Tranquilizado por a frota de Agamémnon já estar de regresso a Ténedo, Odisseu sorriu de novo para Antenor e começou a vestir a armadura.

Lembraste-te de pintar o sinal do cavalo por cima da tua porta? Muito sério, Antenor acenou com a cabeça. - Nesse caso, fecha‑te em casa com a tua família disse Odisseu. Amanhã, por esta hora, serás o Rei de Tróia.

Um a um, os outros desceram do cavalo, esticaram os membros entorpecidos e aspiraram o ar puro. Odisseu levou um dedo aos lábios e fez um gesto na direcção dos bêbedos a dormir em redor da praça. Em seguida, o príncipe de Ítaca levou o mesmo dedo à garganta. Neoptólemo e três outros apressaram-se a despachá-los enquanto Idomeneu liderava outro grupo na direcção da Porta Ceias. Ali, des­cobriram que os troianos tinham fechado provisoriamente a porta, mas as sentinelas tinham bebido tanto como toda a gente e estavam adormecidas.

Não acordaram do sono. No espaço de minutos, a porta ficou totalmente aberta, à espera do ataque da hoste grega quando desem­barcasse dos navios e corresse através da planície. A nuvem que cobria a Lua afastou-se. Os palácios, templos e ruas da cidade condenada brilharam sob o seu esplendor.

Deve haver poucas coisas mais terríveis para um homem do que uma cidade a ser saqueada. O esplendor da pedra e do mármore tão laboriosamente erguidos, os frontões trabalhados, as estátuas, os palá­cios, os recintos sagrados, os painéis delicadamente pintados, os pavi­mentos em xadrez, as arcadas, as piscinas e os fontenários tudo reduzido, no decurso de uma única noite, a um conjunto de objectos sem mais valor do que a graça e dignidade das mulheres violadas, a sabedona e coragem dos homens trespassados pelas espadas, ou a ino­cência da cabeça de uma criança esmagada contra uma parede.

É muito mais fácil destruir a beleza do que construí-la meticulo­samente — destruir o que outros fizeram do que criar algo maravi­lhoso com as próprias mãos. Por isso, é surpreendente como as cida­des não caem com mais frequência.

Assim que o saque começa, o mal é libertado e os homens, no fim, sentem-se aturdidos e incrédulos.

O altar de Zeus estava localizado por baixo de um velho loureiro, no pátio do palácio do Rei Príamo. Foi para aquele asilo sagrado que Hécuba levou as suas filhas quando foram acordadas pelo barulho do exército invasor e pelos gritos nas ruas por baixo do palácio. Ape­sar da sua debilidade, Príamo queria levar a sua lança com ele, pronto para enfrentar os gregos, mas Hécuba agarrou-se a ele, gritando-lhe que era uma loucura um homem da sua idade de lança na mão. Assim, estavam juntos por baixo da árvore, tremendo enquanto os sons ter­ríveis lhes chegavam vindos da cidade, quando Neoptólemo entrou no pátio vestido com a armadura dourada do seu pai, seguido por um bando de mirmídones.

Ainda meio vestido, Cápis, um dos filhos de Príamo, acorreu em defesa do pai e foi imediatamente morto perante o olhar horrorizado de Hécuba. Gritando de raiva, impotente, Príamo inclinou-se para pegar na lança do filho, mas foi agarrado antes de a conseguir arre­messar. O monarca ficou entre dois mirmídones e quando olhou para o seu chefe ficou espantado com a idade do jovem guerreiro da armadura dourada que olhava para ele com desprezo, como se esti­vesse a olhar para um monstro de um circo. O Rei Príamo estava ves­tido apenas com a sua túnica de dormir. As suas pernas eram finas e brancas à luz da Lua. Envergonhado por ser visto naquela figura, o soberano baixou os olhos e viu o sangue do seu filho a fazer uma poça espessa no pavimento. Cápis jazia tão sem graça no sítio onde tinha caído que Príamo pensou estar a olhar para uma qualquer des­locação da realidade, que tudo aquilo era uma aberração da sua mente débil. Mas o soberano ouvia os gritos das mulheres atrás de si e a sua mulher estava a seu lado, orgulhosa, mais digna do que nunca apesar de o vestido que usava ser demasiado fino e o seu coração bater desordenadamente de terror.

Durante alguns momentos, nada aconteceu. O velho Rei come­çou a pensar que o rapaz de armadura estava impressionado com os seus prisioneiros e não sabia bem o que fazer com eles. Príamo ganhou coragem e já se preparava para afirmar os seus sessenta anos de auto­ridade real quando viu o jovem fazer um sinal descendente com a ponta da sua espada. Nem uma palavra foi proferida, mas os mirmí­dones compreenderam. Hécuba levou uma mão à boca, arquejando, quando dois homens forçaram o seu marido a ajoelhar-se e lhe empur­raram a cabeça branca para a frente. Então, ágil como um bailarino, Neoptólemo deu três passos rápidos na sua direcção, ergueu a espada que pertencera a Aquiles e decepou Príamo.

As mulheres, aos gritos em redor do corpo decapitado, foram rapidamente levadas para junto dos outros cativos, amontoados na praça ao lado do cavalo de madeira. Cassandra e Andrómaca não estavam entre elas.

Cassandra não dormira durante toda a noite. Jazera na sua cama num frenesim de alucinações à medida que a pressão provocada pelo conhecimento profético crescia na sua mente. Assim, quando os gre­gos irromperam pela cidade com tremendos rugidos, rugidos que arrancaram os Troianos do seu sono, ela ouviu-os quase que aliviada. O pesadelo de sangue e fumo que lhe atormentava a alma há tanto tempo libertara-se, finalmente, do interior do seu cérebro, libertando, também, a certeza de que não estava louca, a certeza de que tinha um poder terrível, um poder que quase a enlouquecera.

Então, estranhamente, o seu primeiro pensamento não foi para a sua segurança, foi para dar graças.

Sem sequer se dar ao trabalho de pôr um vestido por cima da camisa, Cassandra correu pelos corredores do palácio até que che­gou a um pátio vazio e entrou por uma porta usada apenas pelos sacerdotes para entrarem no templo de Atena. Na praça onde estava o cavalo de madeira, ouvia os homens a gritar por cima do choro das mulheres e das crianças, mas ali, no interior do templo, prevale­cia um ar de paz sagrada. Cassandra postou-se perante o Paládio, a velha imagem de madeira de Atena que estava impregnada do poder da deusa e que guardava no interior do seu mistério a alma secreta de Tróia.

Por essa razão, os gregos há muito que desejavam o ídolo, sendo a sua captura uma das suas maiores prioridades quando a cidade foi tomada de assalto. Assim, Cassandra estava a rezar à deusa há alguns momentos apenas quando a porta do templo se abriu de rompante e um bando de guerreiros fortemente armados irrompeu naquele lugar tranquilo. O chefe era um capitão locriano chamado Aias, um homem pequeno de pés ligeiros que ganhara a reputação de ser um dos lan­ceiros mais habilidosos do exército acaiano. Consciente de que quem capturasse o Paládio poderia esperar uma boa recompensa, encami­nhara imediatamente a sua companhia para o templo, esperando não encontrar lá ninguém. No entanto, ali estava ele a olhar para os olhos furiosos de uma jovem pálida e muito bela, usando apenas uma camisa leve e que se levantara para o enfrentar com uma madeixa de cabelos negros em frente do rosto. Aias não fazia ideia de quem ela era nem queria saber.

Este local é sagrado, pertence a Atena gritou Cassandra. - A tua presença impura aqui é um sacrilégio. Cuidado com a fúria dela.

Aias riu-se.

Atena está do nosso lado, pequena. disse ele e estendeu uma mão para lhe abrir a camisa. Tomando consciência do perigo da sua situação, Cassandra fugiu ao guerreiro e correu para o Paládio.

Os locrianos rodearam-na.

Primeiro tu, Aias disse um deles. Tira-lhe o fogo.

Aias caminhou na direcção de Cassandra, fazendo-lhe sinal com o dedo para se aproximar. Cassandra cuspiu-lhe no rosto.

Carregando o sobrolho, Aias limpou a saliva da barba. Cassandra virou-lhe as costas, agarrou-se ao ídolo de madeira, fechou os olhos com força e começou a entoar um cântico de orações e imprecações. Aias olhou para os seus homens, riu-se, estendeu uma mão e ergueu-lhe a camisa.

Meio nua, Cassandra ainda estava agarrada ao Paládio quando Agamémnon irrompeu no templo com o seu guarda-costas e viu Aias a tentar penetrá-la por trás.

Em nome de Hades, que se passa aqui? — berrou ele. — Que­res atrair a ira da deusa? — O Rei avançou, puxou Aias e deu-lhe um pontapé no rabo quando ele tentava puxar as bragas para cima, fazendo-o perder o equilíbrio e atirando-o para o meio dos locrianos, que se viraram e saíram do templo.

Agamémnon olhou para o corpo da jovem durante alguns momen­tos e depois forçou-a, com uma mão, a fazer-lhe face. Os olhos que olharam para ele estavam cheios de ódio.

Quem és tu? — perguntou ele.

— Cassandra - respondeu ela com a fúria de uma serpente.

Filha do Rei Príamo!

Sacerdotisa do deus.

Agamémnon sorriu perante a fúria febril daquele rosto jovem. Em seguida, virou-se para Taltíbio, que estava a seu lado.

Esta é minha. Quero-a na praça sã e salva.

Tendo dado ordens para que o Paládio fosse cuidadosamente desmanchado, o Rei abandonou o templo para continuar o saque da cidade, mas quando chegou às ruas da cidadela proferiu uma maldi­ção perante o cheiro a queimado que lhe chegou às narinas. Um fumo espesso erguia-se de uma das áreas baixas de Tróia, muito populosa, onde estavam situadas as fábricas de têxteis. Trepando ao plinto de uma estátua de mármore para conseguir uma visão melhor, Aga­mémnon viu que as chamas já começavam a lamber o telhado de um armazém. O Rei saltou do plinto, gritando que, se o incêndio não fosse controlado, metade da cidade arderia antes de terem hipótese de a saquear. Em seguida, correu pela praça berrando ordens e amal­diçoando os homens, demasiado absorvidos pela matança para ouvirem o que lhes dizia.

Tendo deixado uns guardas junto do corpo decapitado de Príamo, Neoptólemo liderou os seus mirmídones através do barulho violento das ruas, em busca da casa que pertencera a Heitor. O jovem encon­trou Andrómaca à espera, consolando as suas servas aterrorizadas e com o filho Astíanax a seu lado.

Uma das mulheres gritou quando os mirmídones entraram e ati­rou-se em pânico aos pés da dama num pranto histérico.

Calma, Climene — disse Andrómaca, colocando uma mão na cabeça da mulher. Mas os seus olhos já estavam pregados no pequeno guerreiro que usava um peitoral dourado que ela reconheceu — um peitoral um pouco grande demais para ele. O jovem tirou o elmo, limpou o suor da fronte com as costas de uma mão ensanguentada e sorriu-lhe.

Andrómaca ficou espantada com a sua juventude.

Como se estivesse a avaliar uma propriedade passível de compra, Neoptólemo olhou em redor para a rica mobília daqueles aposentos, para os tapetes caros e para as pinturas delicadas nas paredes, repre­sentando banquetes e danças nos bosques.

Estou a ver que o nobre Heitor vivia bem disse ele. Ao ouvir aquela voz leve e quase amigável, a serva histérica calou-se.

Quando não obteve resposta, Neoptólemo olhou para Andró­maca.

Reconheces esta armadura, senhora?

Demasiado orgulhosa para mostrar medo, Andrómaca limitou-se a acenar com a cabeça.

Pertencia ao meu pai disse ele. Compreenderás, por isso, que eu te reclame como minha por direito. Ficarás guardada até à divisão do saque.

E as minhas mulheres? — perguntou Andrómaca. Neoptólemo encolheu os ombros.

— Podem ficar aqui contigo. Os meus mirmídones velarão para que nada lhes aconteça. — O jovem sorriu ao ouvir os agradecidos queixumes de alivio provocados pelo seu gesto casual de misericórdia.

Espantada com aquele tratamento cortês, a voz de Andrómaca tremia um pouco quando disse:

Estou a ver que o filho de Aquiles é tão nobre como o pai. Neoptólemo agradeceu o cumprimento com um aceno de cabeça.

O jovem virou-se para sair, mas depois olhou novamente para ela.

Porém, ainda não falámos do teu filho.

Andrómaca rodeou imediatamente os magros ombros de Astía­nax com um braço. O pequeno usava apenas uma camisa de noite por cima das bragas.

Astíanax é um miúdo disse ela. — Ainda é mais novo do que tu.

A princesa percebeu instantaneamente o erro que cometera.

Deixa-me olhar para ele    disse Neoptólemo.

Com os seus seis anos, a tremer, mas provocadoramente cons­ciente de que aquele guerreiro era um dos homens que lhe tinham matado o pai, Astíanax disse:

Podes olhar à-vontade.

Pois posso. — Neoptólemo sorriu. — E vejo o que estava à espera de ver.

Uma criança arquejou Andrómaca, desesperada. — Não passa de uma criança.

Pois é, dama, mas como vês pela minha pessoa, as crianças crescem, tornam-se guerreiros e vingam-se daqueles que lhes mata­ram os pais Neoptólemo sorriu para a criança. Gostavas de fazer isso, não gostavas, Astíanax?

Se tivesse uma espada, mostrava-te.

É claro que mostravas. Mas não tens uma espada e eu não quero que se diga que matei uma criança desarmada. - Sorrindo, o jovem guerreiro estendeu uma mão. Vem comigo. Quando Andró­maca estendeu um braço protector na direcção do filho, Neoptólemo pegou no rapaz por uma orelha e afastou-se com ele.

— Para onde o levas? gritou Andrómaca.

— Vou-lhe mostrar o túmulo do meu pai.

Os mirmídones avançaram para a deter quando ela tentou impe­dir que Neoptólemo levasse Astíanax até uma varanda de onde se via a cidadela de Ilium. Os reposteiros esvoaçavam sob a brisa nocturna e da praça vinha o som medonho do choro das mulheres a verem os namorados, os maridos, os irmãos e os filhos a ser arrastados dos locais onde se escondiam para serem atormentados e chacinados pelos gre­gos, que se riam a bandeiras despregadas.

Durante uns instantes, Andrómaca viu os cabelos dos dois rapa­zes iluminados pelo tom avermelhado que cobria o céu nocturno. Num outro mundo melhor, podiam ter sido irmãos lado-a-lado enquanto Neoptólemo apontava com a mão esquerda para o túmulo onde Sínon colocara o sinal, para lá das muralhas.

Estás a ver aquele monte de terra? — disse ele. - É onde o meu pai está sepultado.

Então, com a outra mão, o filho de Aquiles agarrou na criança pela orelha, ergueu-o e atirou-o da varanda abaixo.

Muito antes destes acontecimentos — antes de Astíanax morrer, antes de Andrómaca, Cassandra e Hécuba serem conduzidas para a praça como gado, antes de o Rei Príamo ficar sem a cabeça, Mene­lau entrara na cidade com um único pensamento. Consciente desse pensamento, Agamémnon ordenara a Odisseu que se mantivesse perto do irmão assim que saíssem do cavalo. Assim, enquanto os bêbedos adormecidos na praça eram degolados e a Porta Ceias era protegida, Menelau e Odisseu atravessavam as ruas silenciosas da cidadela à pro­cura da casa que Páris construíra para Helena e que era agora a resi­dência de Deífobo. Um pequeno destacamento de guerreiros espar­tanos seguia-os.

Antenor dera-lhes instruções e a casa não foi difícil de encontrar. Mas, conforme tinha sido combinado, os dois homens e o pequeno destacamento esperaram no exterior durante algum tempo, esperando que Diomedes e os seus homens controlassem todas as entradas para o grande armazém onde estava aquartelados os etíopes de Mémnon. Estes ficariam fechados no edifício até que Tróia fosse despojada dos seus tesouros. Em seguida, o armazém seria queimado com eles lá dentro, juntamente com o resto da cidade.

Enquanto esperavam, Odisseu subiu para um parapeito de onde podia olhar para o mar. À luz do luar, o príncipe viu os navios de Agamémnon a aproximarem-se da praia. Os telhados da cidade esten­diam-se na sua frente e não se ouvia, praticamente, um som. Tinham tido sorte. Nem sequer se ouvia um cão a ladrar.

A mensagem chegou. Estavam todos nos seus lugares. Menelau empurrou o portão, esperando que estivesse fechado, mas, suavemente, ele abriu-se.

A mansão, de três andares e com varandas que davam para as montanhas de Ida, a sul e para o mar, a norte, rivalizava com o palá­cio de Príamo. O pátio cheirava a jasmim, a lírios e às flores das árvo­res. A porta principal estava escancarada.

Assim que entraram, viram os corpos adormecidos dos servos e servas em cima de divãs e no chão, como se uma guarda avançada de saqueadores já por ali tivesse passado. Conscientes de que a força prin­cipal ainda não tinha desembarcado e que ainda era demasiado cedo para iniciar o ataque, Odisseu fez sinal para que fossem todos mortos. Assim, os guerreiros deslocaram-se silenciosamente pela casa verifi­cando cada divisão e cortando gargantas à medida que iam avançando.

Movendo-se cautelosamente ao longo daquele rasto de sangue, Mene­lau chegou, finalmente, ao que era, nitidamente, o quarto senhorial. Em silêncio, o Rei de Esparta ordenou aos seus seguidores que pro­curassem nos quartos restantes e depois hesitou um momento no lado de fora da porta delicadamente apainelada com Odisseu a seu lado. Os dois homens olharam um para o outro. Pareceu a ambos que, tanto um, como o outro, respiravam ruidosamente. Ambos treme­ram um pouco com o mesmo sentimento sacrílego de transgressão. Menelau girou o fecho dourado e abriu a porta.

A luz do luar entrava, juntamente com a brisa nocturna, através dos cortinados transparentes da janela. A grande cama estava na parede mais afastada da câmara, em cima de um estrado encerado. Uma can­deia ardia num trípode e à sua luz os dois príncipes puderam ver as figuras de Ares e de Afrodite abraçados na grande tapeçaria pendurada na parede por cima da cama. A atmosfera cheirava a incenso.

Deífobo jazia nu, de barriga para cima, e ressonava. No outro lado do leito, Helena dormia com as pernas encolhidas sob o lençol amarrotado. Os seus cabelos, tão brilhantes e negros como Menelau se recordava deles, espalhavam-se pela almofada, mas o Rei de Esparta não lhe via o rosto.

Prendendo a respiração, este aproximou-se da cama.

Num impulso de discrição, Odisseu ficou junto da porta, mas fechou-a silenciosamente nas suas costas e, de espada em punho, ficou a ver Menelau aproximar-se do lado em que Helena dormia. O príncipe viu-o tirar o elmo que lhe tapava o rosto e colocá-lo silen­ciosamente no chão. Quando se endireitou, Menelau inclinou-se sobre a mulher adormecida, colocou-lhe uma mão no ombro e aba­nou-o gentilmente duas ou três vezes. Helena mexeu-se.

Odisseu ouviu o seu súbito sobressalto. Em seguida, Helena deve ter sentido a ponta da espada de Menelau encostada ao seu pescoço e a sua mão tapando-lhe a boca.

A parte o som do ressonar de Deífobo, o quarto continuou silen­cioso.

Como figuras imóveis num quadro alegórico qualquer, o marido traído e a esposa delinquente olharam um para o outro ao fim de mais de dez anos e só quando teve a certeza de que ela não faria um único som é que Menelau tirou a mão. Endireitando-se, o Rei deslocou-se para o outro lado, ao mesmo tempo que apontava um dedo na direc­ção de Helena para que ficasse onde estava, de olhos esgazeados, a olhar para ele.

Menelau apanhou um guardanapo manchado de vinho que estava em cima da mesinha-de-cabeceira, junto de uma taça. Com um arquejo de raiva, meteu-o firmemente na boca aberta de Deífobo e juntou-lhe-a-mão. Deífobo acordou sobressaltado ao sentir a respiração presa e ao ver um grande homem, vestido com uma armadura, junto do seu rosto. No mesmo momento, Menelau ergueu um joelho e apoiou-lho com firmeza no pescoço. A luz cintilou no interior da cabeça de Deífobo.

Quando teve a certeza de que o homem estava perfeitamente acor­dado e que sabia exactamente o que estava a acontecer, Menelau mur­murou:

Sabes quem eu sou?

A cabeça escura acenou sob o peso da sua mão. À luz da candeia, os olhos estavam brilhantes de terror.

Tens uma coisa que me pertence — disse Menelau. — Che­gou a hora de pagares.

Menelau aliviou o peso do seu joelho, ergueu a espada e, segu­rando nela como se estivesse a empunhar um punhal, enterrou pro­fundamente a lâmina no estômago nu de Deífobo. O Rei torceu-a três vezes antes de a retirar. Espantado com a dor, Deífobo ergueu as duas mãos para se agarrar ao punho que lhe mantinha o guardanapo na boca. Os seus olhos abriram-se desmesuradamente perante a súbita erupção de sangue que lhe saiu do ferimento. Os seus pés pontapea­ram num esforço vão para se libertar.

Menelau manteve o troiano preso durante muito tempo. Finalmente, os olhos de Deífobo reviraram-se e deixou de respirar. Com um suspiro, Menelau tirou a mão. O guardanapo caiu da boca de Deí­fobo. Seguiu-se-lhe uma golfada de sangue.

Menelau olhou para o morto. Frustrado por a coisa ter termi­nado tão depressa, rosnou e rangeu os dentes. O Rei de Esparta levan­tou-se da cama, parou, voltou para trás e então, como se se tivesse sentido ofendido com o contacto, pegou na mão esquerda de Deí­fobo e tentou cortar-lhe o punho com a espada. O sangue espalhou--se pela cama. À terceira tentativa, o membro soltou-se. Menelau olhou para aquela mão grotesca, ainda quente, fechada no interior da sua. Virando-se, atirou-a para longe, através do quarto.

Ainda insatisfeito, o Rei de Esparta deixou cair com força a espada no rosto do morto e ouviu os ossos a partirem-se. Arquejando, como se o esforço lhe tivesse custado, Menelau olhou para o que fizera, limpou a boca com as costas da mão e ficou a oscilar na obs­curidade do aposento.

Com o corpo todo salpicado de sangue, Helena choramingava com as mãos na boca, como uma criança. Quando Menelau olhou para ela, puxou o lençol até à boca.

Então, a mulher e os dois homens são sobressaltados por um súbito rugido na noite, o som da hoste grega irrompendo pela cidade ador­mecida. Em breve, Tróia enchia-se de choros e gritos que ecoariam pelos séculos fora. No interior daquele aposento, porém, o silêncio é aterrador. Menelau aproxima-se da mulher que lhe despedaçara o coração e o espírito, porque desde o dia em que a mulher o abando­nara o Rei de Esparta deixara de conseguir fazer amor com outra mulher qualquer.

As olheiras em redor dos olhos dela são negras. E os próprios olhos — olhos da cor do mar ao meio-dia, que tinham olhado para ele vezes sem conta com uma ternura de que ele não se achava digno — estão esgazeados de terror.

Aquela é a mulher que ele amou com toda a sua alma, que ele ten­tou fazer feliz por todos os meios. O seu coração estremece quando pensa no modo como ela o abandonou enquanto ele estava ausente para se entregar a Páris. Pior ainda, quando pensa em Deífobo pos­suindo-a brutalmente. O cheiro a sexo, a vinho e a incenso enche a atmosfera do quarto.

Os nós dos dedos de Menelau embranquecem quando ele fecha a mão no punho da espada. O Rei de Esparta deseja aquilo há muito tempo, encontrá-la naquela cama vergonhosa e obrigá-la a pagar com sangue o insulto sofrido. Menelau vê a luz da candeia reflectida nos olhos dela quando ergue a espada e ouve o suspiro de Helena numa súplica muda, vindo de um lugar qualquer, para lá de quaisquer palavras, para onde o medo a baniu. Então, algo acontece — algo tão óbvio e evidente que a sua simplicidade só é igualada pela sua beleza e pelo seu poder. Como que aceitando o sacrifício, Helena deixa cair lentamente o lençol, deixando aparecer primeiro o pescoço, depois os ombros, depois o peito e, finalmente, os seios.

Menelau permanece na sua frente, na mesma posição. O tempo passa. No exterior, na parte baixa da cidade, o fogo espalha-se, de casa em casa, aumentando o terror e a confusão; mais perto, nas praças e jardins da cidadela, os gritos enchem as ruas. Como se muitas estre­las se estivessem a extinguir subitamente, a escuridão cai sobre os troianos, um após outro, parecendo nunca mais acabar.

Finalmente, perante o olhar de Odisseu, Menelau baixa a mão que segura a espada. A arma cai no chão e momentos mais tarde, com o ar de um homem que lutou durante demasiado tempo com o seu destino e que não sabe que mais pode fazer, Menelau senta-se na cama ao lado da sua mulher e silenciosamente, começa a chorar.

 

                     O Fantasma

Estas coisas aconteceram há muito tempo e os homens e mulheres cujos destinos foram forjados pelaguerra de Tróia há muito que abandonaram a sua forma mortal e entraram para o reino imortal da História. Até nós, que os recordamos como eles eram, não temos muito mais tempo de vida. Com a passagem do tempo, a nossa memória vai-se esvaindo e o que é a memória em si senão um acto da imaginação?

Outros, portanto, contarão estas coisas de maneira diferente e se uns dizem uma coisa e outros outra, não acontece o mesmo com as querelas do dia-a-dia, ou com as brigas de taberna? Porque, se há bardos que acreditam que o Deus Apolo, com o seu olho para a ordem e a harmonia, é a divindade da nossa arte, eu estou com os que sabem que Hermes também anda porperto, pregando-nos as suas partidas e fazendo dançar as sombras.

Assim, estas histórias continuarão a viver, a crescer e a mudar enquanto hou­ver bardos para as cantar e aquele que reclamar para si a verdade sobre a guerra de Tróia é um vaidoso, um louco. No entanto, a minha benevolência, por vezes, vai para outras histórias fantasiosas que me chegam aos ouvidos e a mais estra­nha de todas é a que nos diz que Helena nunca esteve em Tróia.

Ouvi esta história da boca de um comerciante egípcio, que me disse que ela é contada nas Salinas de Canopo, no delta do Nilo, onde Páris e Helena aporta­ram durante a sua triagem a caminho de Tróia. Segundo esta história, dois dos servos de Páris fugiram do navio enquanto estiveram ali aportados e procuraram refu­gio num templo onde os escravos fugidos estavam autorizados a procurar asilo. Desse lugar seguro, espalharam a notícia de que Páris raptara Helena de Esparta. Quando a acusação chegou aos ouvidos do Rei Proteu, em Nlél, o monarca orde­nou que Páris fosse preso. Após um longo interrogatório, Páris fòi deportado do I gipto, o seu tesouro roubado foi confiscado e Helena ficou em Alênfis até que Mene­lau a foi buscar e a levou de volta para Esparta.

A minha primeira reacção, foi achar esta história absurda. É evidente que Helena esteve em Tróia. Odisseu viu-a lá. Além disso, Telémaco visitou Esparta depois da guerra e viu-a com Menelau. O príncipe ouviu a história dos seus próprios lábios. Que disparate!

Mas o Egípcio tinha uma explicação para a diferença entre a minha versão e a dele. O comerciante disse que a verdadeira Helena ficou em Mênfis até ao fim da guerra, enquanto a bela mulher que foi com Páris para Tróia era um mero fantasma — uma ideia de Helena tão poderosa nas mentes dos homens que estes a confundiam de bom grado com a realidade.

O egípcio estava tão convencido da sua versão que os meusprotestos não valeram de nada. Os factos dele e os meus não coincidiam e apesar de os dois podermos estar enganados, não havia nada a fazer. No entanto, quando penso no assunto, pergunto a mim mesmo se não haverá, afinal de contas, uma verdade poética na história do egípcio.

Porque me parece possível que a jovem tímida que se transformou na Rainha de Esparta e que foi, depois, com Páris para Tróia, fosse uma criatura totalmente diferente da que vivia na sua imaginação arrebatada. Páris já sonhava com Helena muito antes de a conhecer. O príncipe troiano amava o sonho. E se esse sonho era tão apaixonado que ele só acordou quando já era demasiado tarde, a Helena que ele levou para Tróia pode muito bem ter sido um fantasma. Se assim foi, então só Helena é que sabia a verdade.

Isto não é tudo, porque são sempre os fantasmas que nos arrastam para a guerra quer seja o sonho pelo poder, pela riqueza ou pela glória, ou o medo de que os nossos irmãos homens sejam criaturas diferentes e hostis que nos querem fazer mal! As causas da guerra de Tróia devem ter parecido meros fantasmas àqueles que choraram sobre as ruínas da cidade! E aqueles que regressaram como vitoriosos para descobrir que os seus trabalhos ainda mal tinham começado?

Mas isso é outra história — uma história que, por lealdade para com Odísseu e na esperança de que a minha quota-parte de verdade sobreviva à passagem do tempo, eu, Fímio, bardo de Ítaca, contarei um dia. Porque no mundo dos homens só as histórias são mais estranhas do que a morte e o deus que eu sirvo exige que eu as conte.

  

                                                                  Lindsay Clarke

 

 

                      

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