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Series & Trilogias Literarias
Tudo terminaria da mesma maneira que começou, uma batalha por poder, por dominação, uma batalha que não sabia se sairíamos vivos.
“Estávamos no campo de batalha. A neve havia parado de cair alguns momentos antes e tudo parecia estranhamente calmo e brilhante ao nosso redor. Não podia acreditar quando percebi que Annie estava ao meu lado, apertando minha mão com força, tentando esconder a dor e a tristeza que sentia, o espelho da dor que todos sentiam, mas ainda assim ela sorria para mim, o mesmo sorriso doce e gentil que me deu a primeira vez que falei com ela na ACV.
– Susano, se isso acabar bem, se sairmos vivos dessa...
– Nós vamos sair! Nós vamos acabar com Higarath e vamos ficar bem! Todos juntos! – Senti um nó na garganta ao dizer isso, pois nem todos estaríamos naquele final feliz. Olhei para o lado onde Siorin, Nyumun e Caalin estavam com suas armas em punho, não fazia ideia de como Caalin estava suportando ver Nike naquele campo de batalha, eu já teria surtado àquela altura, mas algo no olhar de pânico dele ao olhá-la ao lado daquele monstro, me fez entender que ele não estava calmo como achei.
Ayrana também estava ali protegida por seu guardião que sobrou. Porém agora parecia vulnerável demais, sem o brilho etéreo de antes. Ela olhava com tristeza para mim, como se ainda pedisse meu perdão, como se com aquele olhar, pudesse de alguma forma amenizar o que ela havia feito. A escolha dela havia custado muito mais do que poderíamos pagar.
Mas Higarath ia pagar aquela dívida de sangue e eu mesmo iria cobrá-la, pelo pequeno sorriso Nike me lançou, do outro lado do campo de batalha, sabia que ela não deixaria que eu cobrasse aquela dívida sozinho, não quando ela perdeu tanto quanto eu, só não tinha certeza do que estava se passando em sua mente.
– Vamos estar juntos quando tudo isso acabar! Vamos fazer valer a pena! – Sussurrei para Annie, ela apertou suas espadas de vitrino na mão e assentiu, a neve espiralou em volta de nossos pés, o mundo de gelo estava vibrando, torcendo por nós, só mais alguns segundos e estaríamos enjaulados ali e Higarath não teria como fugir caso começasse a perder aquela luta.
– Até o fim, eu estarei aqui! – Annie beijou meu rosto e sorriu com a ferocidade que só ela tinha, enquanto seus cabelos de fogo dançavam ao seu redor.
Os dois sóis brilharam ainda mais fortes no céu, em seguida desapareceram, deixando-o como um breu, mas logo em seguida as estrelas apareceram e eram brilhantes o suficiente para que não precisássemos de magia para enxergar. O relâmpago que rasgou o céu, seguido de um trovão que sacudiu o mundo, então aquele brilho roxo se espalhou, cobrindo Vegahn com mandalas gigantes.
– Está na hora!
Capítulo 1
Nikella:
Aquele parecia ser o dia mais bonito que já tinha visto em toda minha vida, o sol iluminava o Castelo de Cristal, fazendo com que ele brilhasse em centenas de cores diferentes, a brisa suave trazia até mim o doce e suave perfume de todas as flores espalhadas por aquele jardim colorido. Estiquei-me preguiçosamente aproveitando a sensação do sol passando através das folhas da cerejeira que eu estava deitada à sombra.
Susano vinha com Docinho no ombro até o jardim principal do castelo, enquanto esperava Caalin, vovô, Hisana, Sylvia e Ericko acabarem a reunião no interior do castelo, eles estavam lá desde o começo da manhã. Os soberanos dos mundos que já tinham alianças formadas estavam analisando possíveis novas alianças entre os outros mundos e lendo relatórios de seus “olhos” espalhados pelos Doze, para saber dos movimentos de Higarath. Dessa vez não quis participar, em parte por que o dia estava bonito demais para ficar dentro daquela sala, e também por que eu não estava me sentindo muito bem e não queria passar mal dentro daquela sala e de qualquer forma, eu veria tudo nas memórias de Caalin depois.
Susano sentou ao meu lado à sombra da Cerejeira e passou docinho para meu colo, ela estava tão grande e pesada que mal podia acreditar que só haviam se passado alguns dias desde que deixei que Susano ficasse com ela.
– Como está Nyumun? – perguntei, ela havia passado mal dias atrás no casamento de Ericko, só então seus pais descobriram sobre a gravidez. Susano esticou as longas pernas e arqueou as sobrancelhas, encarando-me com os olhos verdes vivos e o esboço de um sorriso divertido.
– Acho que está bem, não a vi desde o casamento, o mestre a levou direto para o palácio submerso. Mas tenha certeza de que Siorin está condenado! – Ele respondeu dando uma gargalhada divertida, tive que rir também, porém senti um pouco de pena do meu antigo mestre.
– Gostaria de ir até lá ver como ela está! – tinha me apegado bastante a Nyumun, não entendia o porquê, já que nós mal nos falávamos.
– E as coisas no Castelo de Gelo? – Ele perguntou, passando os braços por trás da cabeça e fechando os olhos, o vento movimentou seus longos cabelos escuros deixando-o com uma aparência tranquila, aproveitei-me da situação para deitar a cabeça em suas pernas, o sol agora mirava direto em meu rosto, aquecendo minha pele.
– Fora o fato de que todos estão se borrando de medo de Caalin e de mim, Oriel está me deixando doida! Ela quer fazer o casamento da forma mais ostentosa possível! Se eu desvio do assunto, ela começa a cuspir gelo e raios! Estou com medo dela! – resmunguei, Susano riu um pouco mais.
– Eu te disse que malvarmos eram assustadores, até mesmo os híbridos! – Tive que concordar com ele, Oriel era terrível. Fiquei afagando a cabeça de Docinho enquanto ela cochilava em meu colo.
– Minha mãe levou o livro das sombras até Holon, ele realmente desmanchou quando ela mergulhou na fenda.
– Bom, uma coisa a menos para se preocupar, já que Hobner ainda parece ter planos errados na cabeça. – Susano franziu o cenho.
– Acha que ele ainda pode tentar algo contra vocês? Quero dizer, a história sobre a Vila Nakhlans sendo destruída por Caalin se espalhou.
– Sim, a maioria lá já sabe sobre a Vila, mas Ericko disse que o que os metamorfos fizeram foi um ato de traição, que seu pai poderia quebrar a aliança caso eles não fossem punidos, e bom... o que Caalin fez foi quase um presente pela aliança, não é? – Dei um sorriso sem alegria, lembrando-me dos raios cobrindo os céus de Ciartes e da Vila se desmanchando, caindo dos céus como poeira.
Cada vez mais, os sombrios desapareciam. Sombrios de todas as raças começaram a migrar para Vastrus, o mundo dos gigantes, fazendo com que os Soberanos dos outros mundos começassem a formar alianças para se defenderem e defenderem seus mundos do mau que estava por vir.
– No dia em que ela foi levar o livro até Holon, ela trouxe água da fonte das ondinas. Hisana curou grande parte seu exército e sua corte da maldição da Licantropia, assim eles ficam fora da lista dos dominados pelas sombras dele. – Disse Susano tentando me manter acordada, estava quase cochilando sob a sombra da árvore, o som dos galhos dançando ao vento e o doce perfume das flores da cerejeira, acrescentando o carinho preguiçoso que estava recebendo na cabeça por Susano, parecia um conjunto perfeito de sensações, sons e cheiros para dormir.
– Acha que se eu ainda tivesse minhas sombras...
– Nem tenha essas ideias, Nike! Quando você usa os poderes para dominar outras pessoas, você se corrompe também! É por isso que você era uma maga negra diferente. Nunca usou aquele poder para controlar ninguém! – Susano vociferou e eu assenti calmamente, esticando os braços, ouvindo o vitrino neles estalar.
– Entendi, desculpe. – Era apenas um pensamento equivocado, tomar o controle de Higarath dos sombrios, mas se pudesse... Era melhor nem pensar.
Hoje estava sendo um dos poucos dias depois que havia me tornado completamente malvarmo que eu não tinha acordado passando mal, colocando as tripas para fora. Eu tinha certeza que era por causa da transformação, por ainda não estar acostumada com o “novo” corpo, com a força e a intensidade dos sentidos, mas tinha ainda mais certeza que me acostumaria em breve, sempre me adaptei a tudo para viver, não seria dessa vez que perderia. Porém o sono era algo quase impossível de controlar, e embora Caalin me dissesse que os malvarmos dormiam menos de cinco horas por dia e que meu sono não era algo normal, quando me mandou ver uma curandeira, eu me recusei. Susano cutucou minhas costelas com o nó dos dedos para que eu acordasse e riu quando rosnei para ele.
– Não tenho dormido o suficiente ultimamente. – murmurei num bocejo preguiçoso.
– Isso é por causa do novo corpo ou porque Caalin não deixa você dormir? – perguntou Annie Aparecendo atrás de nós sem que eu notasse, se ainda tivesse sangue vermelho nas veias, meu rosto teria corado.
– Annie! – Chamei sua atenção, ela apenas revirou os olhos e estendeu a mão para mim, tirando-me de cima de Susano e enrolando os braços ao meu redor. Não protestei, pois o tempo em Vegahn sem eles quase me corroeu de saudades.
– Venha! Vamos até o palácio dos Nove Dragões na Cidade das Tormentas ver Nyu! – Ela chamou e levantei de bom gosto, pois finalmente ia conhecer o famoso Palácio submerso, coloquei Docinho no chão e a deixei na sombra da árvore.
– Vá passear. – ordenei, como se tivesse me entendido, ela espirrou um pouco de ácido no chão e saiu voando, toda desengonçada, mas voou por cima dos muros.
– Ela é muito temperamental! – Susano resmungou. – Nem Lua aguenta com ela! – Comecei a rir.
– Os bichos realmente se parecem com os donos! – Comentei. Susano revirou os olhos e ficou entre nós duas, pegando nossos braços. Inspirei fundo preparando-me para teleportar, Annie deu algumas risadinhas antes da luz branca de Susano nos cobrir. Meu estômago começou a se revirar e tive que fazer uma força fora do comum para manter o café dentro dele.
– Está tudo bem, Nike? – Susano perguntou apertando de leve meu braço.
– Horrível, odeio magia de teleporte! – Resmunguei apoiando-me em Annie, respirei fundo e estiquei o corpo, só então vi onde aparecemos e sorri automaticamente. Estávamos dentro de uma bolha de ar que Susano havia conjurado, em frente a um imenso palácio submerso, todo construído em corais gigantes vermelhos com nove torres tão grandes quanto, ao seu redor.
Susano passou pelos guardas com um aceno, atravessamos os grandes portões dourados, enfeitados com duas sereias de pedras azuis apontando para cima e usando coroas de corais.
– Pode apenas criar bolhas de ar como essa? – Perguntei sobre outra coisa, tentando não demonstrar o quanto estava eufórica com o palácio. Susano fez um gesto com os ombros:
– Criar, fazer desaparecer... posso fazer todo o oxigênio de Amantia desaparecer se quiser. – O empurrei com o cotovelo depois de ver um sorriso sinistro lhe repuxar os cantos dos lábios.
– Sem você, meu fogo não acende. – Annie comentou, encarando-o com faíscas nos olhos e tão rápido quanto tinha desviado a atenção do mundo ao nosso redor, minha atenção se voltou para a sala em que estávamos.
Aquela salinha era uma espécie de antecâmara, pois após poucos minutos lá dentro, a água foi sugada de dentro da sala por pequenos cones em espiral nas paredes. No momento em que tudo ficou seco, Susano desfez a bolha ao nosso redor a uma segunda porta se abriu, revelando o interior daquele lugar incrível.
O palácio era ainda mais impressionante por dentro, as janelas eram grandes e estavam abertas, coloquei a mão para o lado de fora de uma delas, sentindo a água fria do lado de fora. Susano e Annie riram dos gritinhos que eu dei colando as duas mãos e parte do corpo para fora da janela.
– É magia, mantém a água do lado de fora. – explicou Susano para mim. As paredes do palácio por dentro eram azuis, cobertas por desenhos dourados de conchas, estrelas do mar e cavalos marinhos.
– É lindo aqui! – Falei olhando para fora, para a cidade submersa e para todos os sereianos nadando tranquilamente por ali, só então lembrei exatamente de onde estávamos e o que nos cercava. Andei até onde Susano e Annie estavam e me enrosquei nos braços deles, com os olhos arregalados e coração desesperado.
– Medrosa! – Susano riu.
– Olha quem fala! Você tem medo até de mim se eu me transformar! – Retruquei, Susano franziu o cenho olhando minhas mãos e Annie riu ainda mais.
– Deixem disso os dois! Vamos logo, temos que ir ver como Nyu está! – Annie nos arrastou pelos corredores até uma escada em espiral num corredor estreito, quase como uma entrada secreta. Subimos a escada e caminhamos por outro corredor até chegar à uma porta branca trabalhada com conchas azuis no final dele, ali outra janela estava aberta, revelando uma linda vista para um penhasco submarino, onde alguns dragões nadavam tranquilamente sobre algas azuis e violetas. Era tudo tão lindo, tão colorido, como estar dentro de uma caixa de joias.
Annie bateu na porta algumas vezes, até que uma voz chorosa nos mandou entrar. Susano franziu o cenho novamente e passou a frente de Annie, abrindo a porta e entrando rapidamente no quarto. Nyumun estava sentada numa cadeira próxima a janela, as pernas encolhidas sobre a cadeira e os braços em volta dos joelhos, seus olhos estavam vermelhos e ela segurava com força uma manta nos punhos fechados.
– Nyu? O que aconteceu? – Susano ajoelhou-se em frente à sua irmã, ela não olhava para ele, não olhava para nenhum de nós, também não respondeu, continuou mexendo na manta e olhando triste para fora.
– Se você não falar o que foi... – Susano se levantou e segurou o rosto dela, forçando-a a encará-lo. – Vou entrar na sua mente e ver o que aconteceu. – Disse ele firme e sério, mas de forma suave.
– Ele se foi... – Nyumun limpou uma lágrima que escorreu por seu rosto.
– Quem se foi? – Annie perguntou, aproximando-se dela também. Só que eu não conseguia me aproximar, observei Annie e Susano a envolverem em abraços, quando ela começou a soluçar e murmurar algo para os dois, saí do quarto de fininho sem que os três percebessem e voltei pelo corredor, descendo as escadas e passando por outro corredor longo até encontrar uma janela aberta, então me apoiei nela e fiquei observando o movimento da cidade repleta de sereianos ali fora. Algo no olhar de Nyumun naquele quarto, me fez ter a certeza de que eu não deveria estar ali.
Não muito longe de onde eu estava, pude escutar um barulho de algo sendo partido, alguém estava quebrando algo ali dento. Andei com cuidado pelo corredor, mais à frente havia uma porta entreaberta, uma espécie de escritório. Entrei sorrateiramente para matar minha curiosidade, mas parei onde estava ao ver Siorin com as mãos apoiadas sobre uma mesa de madeira, os móveis em volta estavam completamente destruídos.
– Mestre? – chamei, os olhos vermelhos dele encontraram os meus e por um breve momento eu senti medo dele. Os cabelos cinzentos estavam bagunçados e ele tinha um olhar arrasado no rosto.
– Saia daqui... – Ele rosnou passando a mão nos cabelos e virando de costas para mim, em minha alma, algo alertava para que eu saísse dali, mas eu não era mais humana, minha força não era mais a mesma, nem meu corpo, então eu não teria medo dele, afinal, se não fosse pelos seus treinos, eu não estaria ali. Dei alguns passos para perto dele, ele se virou e rosnou novamente para mim.
– Está tudo bem... – Falei estendendo a mão para ele, ele olhou para minha mão estendida, para a cor mais clara de minha pele e para as garras, só então olhou em meus olhos, eu estava na forma malvarmo completa, devia estar com os olhos cor de vinho. Dei mais um passo em sua direção e se afastou assustado, erguendo a espada para mim.
– Sou eu mesma! – arrisquei erguendo as mãos – Tive que mudar um pouquinho para fazer algumas coisas darem certo! – Dei mais um passo e o alcancei, tirando a espada de sua mão. – O que houve, mestre? – Ele respirou fundo e sentou-se na soleira da janela atrás de si.
– Nyumun... ela perdeu o bebê, foi depois do casamento, eu a trouxe direto para cá. Acredito que o calor tenha feito mal para ela, talvez não devêssemos ter ido. – Ele sussurrou, novamente senti meu estômago afundar, não sabia o que dizer, eu sempre fui muito ruim em demonstrar sentimentos, mas apertei sua mão ele olhou nossas mãos unidas, o contraste do branco com o azulado e me encarou tenso.
– Eu sinto muito, mestre. – Falei.
– Ela estava tão feliz...
– Haverá outra chance! Agora com essa guerra se aproximando, talvez seja mais seguro assim! – Tentei animá-lo, ele assentiu lentamente e franziu o cenho.
– Eu sei disso, sei que por um lado pode ter sido melhor, mas não suporto vê-la daquela maneira. – Ele suspirou e tocou a água do lado de fora da janela, fazendo com que as marcas em seus braços brilhassem um pouco. Fascinantes e assustadores os sereianos.
– Ela vai ficar bem, vai se recuperar, só precisa que o senhor fique ao lado dela e tudo vai se acertar no final. – Siorin me encarou com as sobrancelhas erguidas.
– Mas e você? – Ele perguntou.
– O que que tem eu?
– Não está com medo de estar assim durante essa guerra? Afinal, você tem uma das almas!
– Desculpe... não entendi!
– Você não sabe então... – parecia que ele tinha dito aquelas palavras para ele mesmo, Siorin deu um meio sorriso e se levantou.
– Não sei o quê?
– Se você não percebeu, não cabe a mim falar, Nike! – Ia começar a protestar, perguntar o que ele quis dizer e estava escondendo de mim, porém, Annie e Susano entraram na sala, com olhos arregalados.
– Céus, Nike! Não faça isso! – Susano estava pálido como uma vela quando se aproximou.
– O quê?
– Você morre de medo de sereianos, achei que tivesse fugido do palácio! – Annie estava séria, toda a diversão do começo do passeio havia desaparecido. Olhei novamente para Siorin, ele e Susano se olhavam de forma estranha, trocando informações com olhares misteriosos, e eu fiquei irritada por estar de fora de tal conversa mental.
– Su, vou ficar um pouco mais, tentar animar Nyu. – Informou Annie se aproximando de Susano e lhe dando um beijo no rosto, ele assentiu e desviou o olhar para mim.
– Nike, acho melhor voltarmos outra hora. – Susano pegou meu braço, ele parecia ansioso para voltar ao castelo de Cristal, na certa avisaria Leona do que havia acontecido.
– Sinto muito, mestre! – Falei uma última vez, antes de sairmos pela porta do escritório em direção à entrada principal, mal pude ver o aceno em resposta.
– Sabe uma coisa que me irrita bastante? – indaguei, Susano ergueu as sobrancelhas e me encarou. – Essas suas conversas silenciosas com os outros sempre me deixando de fora! – Ele revirou os olhos e bufou.
– Nike, não é culpa minha se você é curiosa demais com coisas que não são da sua conta! – Levei a mão ao peito e semicerrei os olhos para ele.
– Tá me chamando de bisbilhoteira?
– Estou dizendo que você é curiosa demais, só isso! – Ele pigarreou e nos conduziu até as portas do palácio, colocando a bolha novamente ao nosso redor, fiquei um pouco triste por acabar o passeio antes da hora, mas haveriam outras chances, em dias menos ruins.
Saímos dali flutuando na água dentro da bolha, como num submarino que via nos filmes da terra, fiquei observando o movimento dos Sereianos na cidade submersa e senti um arrepio, mas o braço dele ao meu redor passava segurança suficiente. Susano parecia querer estender aquele passeio aquático um pouco mais.
– E Nyumun? Acha que ela vai ficar bem? – perguntei, notando que ele ainda tinha um semblante entristecido.
– Nyumun é muito forte! Ela vai se recuperar, só precisamos deixar passar alguns dias, talvez assim seja menos perigoso... – Sua voz foi morrendo aos poucos e ele me olhou de soslaio com uma expressão ainda mais tensa.
– O que foi! – Gritei perdendo totalmente a paciência e o empurrando contra a bolha de ar, Susano não pareceu assustado com minha investida um tanto violenta, ele apenas segurou minhas mãos gentilmente e me afastou, eu o deixei me afastar, estava envergonhada por deixar novamente a ferocidade do corpo malvarmo subir a minha cabeça.
– Desculpe... – Choraminguei.
– Nike, você não está sentindo nada diferente?
– Susano, estou sentindo TUDO diferente! – Retruquei irritada querendo bater nele. – Desde que acordei no corpo malvarmo é como se tivesse que me adaptar novamente! É horrível! – Ele suspirou pesadamente.
– Não assim, quero dizer... algo que acha ainda mais fora do comum, que não tenha nada a ver com a transformação! Afinal, apesar de ser outro corpo, algumas coisas são iguais... – Ele começou a murmurar, eu o olhei de cara feia.
– Susano, se você está escondendo algo de mim, não está? Você está agindo estranho desde o dia que eu separei os corpos! – Ele estava ligeiramente pálido. Havíamos nos afastado bastante da cidade, agora estávamos bem perto de uma espécie de plantação de algas azuladas.
– Vamos voltar, acho que a reunião já acabou. – Ele desconversou deixando-me ainda mais irritada, mas não iria discutir com ele depois do que havia descoberto no palácio sobre sua irmã. Susano nos levou de volta ao Castelo de Cristal, porém, ao aparecermos no pátio do castelo, meu estômago embrulhou e minha visão começou a embaçar, não consegui sentir mais nada antes de cair e ser aparada por Susano.
Abri os olhos assustada, olhando em volta procurando por algum sinal de perigo, mas estava deitada em uma maca, numa sala clara e arejada dentro do Castelo de Cristal, meu estômago ainda parecia querer sair do corpo, mas o mantive sob controle para não alertar Susano e Eirien, minha bisavó. Eles estavam discutindo baixo, provavelmente para que eu não acordasse e os escutasse. Me inclinei para frente, para poder me sentar na cama, mas alguém me impediu de ficar de pé.
– Muita calma agora! – Disse a mulher empurrando-me de volta para o travesseiro, ela tinha a pele num tom marrom dourado e olhos escuros, penetrantes, os cabelos caiam em tranças vermelhas até a cintura fina. Ela colocou a mão sobre minha testa e eu a afastei assustada.
– Tainar, como ela está? – Perguntou Eirien aproximando-se e segurando minha mão, olhei assustada de uma para a outra, fazendo uma checagem mental de meu corpo, tentando achar algo errado.
– Melhor, não foi nada demais. Mas ela deveria se alimentar! – Ela deu um breve sorriso antes de testar meu pulso uma última vez.
– O que houve? – Consegui perguntar, agora sentando-me na cama sem protestos e encarando Susano, ele fez uma careta e explicou baixinho.
– Você apagou quando teleportamos para cá! – Suspirei aliviada e me levantei da cama.
– Sempre tive problemas com a magia de teleporte. – Reclamei. – Nada contra portais, mas teleportar... – Fiz uma careta.
Tainara ergueu as sobrancelhas e abriu a boca para falar, mas Susano não deixou que ela falasse, ele me pegou pelo braço e seguimos para fora da sala de cura do castelo.
– O que está havendo, afinal? – Perguntei, Eirien deu um meio sorriso, os olhos dela brilhavam e seu rosto estava levemente corado. – Não estou gostando da cara de vocês! A sua – disse apontando o rosto de Susano – Está me deixando curiosa e a dela está me assustando! – Disse olhando para Eirien, que revirou os olhos e começou a mudar seu caminho.
– Vou até o escritório ver se eles já acabaram a reunião! – Disse ela sumindo por um corredor em passos imponentes, para mim, ela ainda parecia uma rainha. Nós dois continuamos até a cozinha, entramos de fininho e pegamos algumas tortinhas, uns sanduiches e um bule de chá que na certa, eram para a reunião. Peguei uma garrafa de vinho que estava sobre a mesa, mas Susano a tomou de mim e a devolveu para a mesa antes de sairmos pela porta dos fundos, em direção ao jardim principal.
– Quem era aquela na sala de cura? – Perguntei curiosa. A mulher, Tainar, parecia ser completamente humana, tinha cheiro de humana, mas algo nela não parecia ser humano.
– Uma bruxa de Dartaris, uma das irmãs Strick, já ouviu falar delas! – Novamente, meu sangue gelou.
– As gêmeas Strick? Tori e Tainar? – Susano assentiu, senti lágrimas brotarem em meus olhos e só não voltei naquela sala para abraçar aquela bruxa, pois estava com fome demais para voltar agora. – Elas são Sorcys! – O olhei boquiaberta.
– São sim, o braço direito e esquerdo de Júlia, a Senhora da Lua, Tainar é ótima com cura e Tori é uma caçadora assustadora...
– Eu sei quem são! As conheci no primeiro ano da ACV! – Sorri ao lembrar que a primeira arma que ganhei, foi uma adaga que Tori me deu no primeiro dia que pisei na Academia, uma pena que a perdi menos de um mês depois. – O que elas estão fazendo aqui em Amantia? – Perguntei.
– Monitorando... esperando um certo mago negro se manifestar.
– Ele vai poder controlá-las? – Senti um embrulho no estômago.
– Não creio, as Sorcys são inflexíveis com outras raças, ninguém as domina, elas respondem apenas à sua líder, a Senhora da Lua, mas os Mardans... – Seu olhar ficou sombrio, analítico.
– Uma das últimas notícias que tive de Dartaris, foi que as Sorcys e os Mardans reataram a aliança entre os clãs, mas isso tem um certo tempo. Se eles estiverem a nosso favor nessa guerra... – Fiquei irritada ao ver que Susano havia conseguido me fazer desviar do assunto que eu estava realmente interessada, mas não pude brigar com ele, já que quem começou aquela conversa fui eu, mesmo assim, tinha algo que precisava pôr para fora:
– Como vai ser agora que ele não pode rouba as almas?
– Ele vai tentar nos separar, ou nos matar! – Susano desviou o olhar, era isso que temia ouvir.
– Queria que as Almas tivessem ao menos me explicado como nós podemos matá-lo, não foi uma informação muito precisa dizer apenas que precisávamos das seis Almas para isso! – Susano suspirou em concordância.
Passamos pelos arcos do jardim, pelos pequenos canteiros de flores amarelas e brancas que os cercavam e nos sentamos na grama, à sombra de um carvalho, mas antes de começar a comer, precisava de respostas, ou ficaria louca.
– Susano, por favor, por favor! Eu te considero meu melhor amigo! Então, por favor me fale logo o que está acontecendo! – Pedi apertando suas mãos, Susano respirou fundo e olhou para o céu, os olhos verdes cintilando sob a luz do sol que passava pela copa da árvore e nos alcançava.
– Acho que você vai surtar, então, sente-se primeiro! – Obedeci sem questionar, sentando na grama com as costas na árvore e arqueei as sobrancelhas coo se dissesse “agora fale! ” Susano engoliu em seco e sentou ao meu lado, parecia estar escolhendo as palavras para começar a falar, e eu, quase surtando.
– O que está havendo? Desde aquele dia em Vintro você está agindo muito estranho comigo! – Resmunguei, então por um momento, um pensamento errado veio em minha mente e minha garganta oscilou, esperava estar errada quanto a isso, não poderia corresponder aos sentimentos dele se fosse o que eu estava pensando. Quando fiz menção de me afastar um pouco, ele segurou minha mão.
– Nikella, você está grávida. – Ele disse pausadamente encarando-me sério, o sangue em minhas veias se tornou gelo. – Eu percebi aquele dia, quando você separou os corpos, ficou bem claro para mim! – Não tinha certeza se estava respirando, havia um zumbido alto em meus ouvidos e toda minha pele parecia dormente, junto com algo que estava fazendo minha mente flutuar para longe.
– É mentira... – Sussurrei.
– Não, não é! – Ele apertou minhas mãos. – Por isso te levei para Áries aquele dia, para que ela confirmasse, já que ela é uma malvarmo também. Quando ela percebeu, quase surtou também e ficou torcendo para sua alma não se perder no caminho de volta quando você conseguisse liberar as Almas. – Eu fiz força para respirar e apoiei a cabeça na árvore.
– Você não está entendendo. Não tem como! A ferida feita pelo Aswang aquele dia sobre a muralha da academia... Não tem como, Susano! – Comecei a murmurar e toquei onde deveria estar a cicatriz. “Malvarmos não tem marcas. ” Lembrei das palavras de Caalin e meu sangue transparente sumiu do rosto.
– Era você! – Susano ajoelhou em minha frente e cobriu a boca.
– O quê?
– A aluna que deu o alerta de invasão aquele dia há seis anos! – Ele estava com os olhos arregalados.
– Como sabe?
– Candace passou correndo por mim no corredor aquele dia, indo chamar a chefe da enfermaria para levarem uma aluna ferida até a instalação de cura da Cidade do Sol, mas os guardas não me deixaram chegar perto, eu poderia ter curado você! – Ele me observava com cautela.
– Susano, elas disseram que isso não poderia acontecer! – Sussurrei ajoelhando-me na grama e olhando para ele, Susano mantinha uma expressão serena no rosto, tentando me manter calma na certa, mas se era isso, não funcionou.
– Quando você se tornou hibrida de malvarmo, e respondeu ao chamado de sangue... todas as suas marcas se curaram, toda elas, não só marcas, mas também qualquer cicatriz ou ferida. – Eu o puxei para mim e o abracei o mais forte que pude.
– Eu estou com medo! – Sussurrei ainda mais baixo.
– Eu imagino! Estava com medo por Nyu, mas quando descobri sobre você também... Ahh! Isso não vai ser fácil!
– Precisamos estar todos juntos para detê-lo! – Consegui botar para fora, só então entendi o porquê de a alma da terra ter ficado comigo e o motivo de eu não conseguir usá-la. Solucei e comecei a chorar, um misto de medo, alegria e mais medo tomava conta de mim. Susano me afastou e limpou minhas lágrimas.
– Não sei como Caalin não percebeu ainda! – Ele franziu o cenho e cruzou os braços.
– Talvez por que eu tenha dito a ele que não podia, teve um dia que me perguntou sobre isso de manhã, mas eu neguei, não sabia que tinha sido curada... – Minha voz falhou. – Susano, não conte a ele, não deixe Eirien contar também! E não diga nada a ninguém! Se Annie souber, não a deixe abrir a boca também! – Ele parecia incrédulo.
– O quê?
– Isso mesmo! Se Caalin souber... – Senti um frio em minha espinha. – Ele vai me trancar dentro do Castelo de Gelo, ou vai me trancar aqui! E eu não posso ficar trancada, Susano! – minhas palavras saíram tão desesperadas quanto as imaginei, ainda dei ênfase apertando os braços dele, enterrando as garras nos seus músculos que mais pareciam pedras.
– E como pretende esconder? Uma hora ou outra, ele vai perceber, Nike! – Susano fez um gesto com as mãos, mostrando uma barriga grande em minha frente, respirei fundo, tentando lidar com o fato de que não possuía mais magia além da Alma do gelo.
– Eu vou dar um jeito! Apenas, guarde segredo! – Implorei.
– Não acho certo você não contar, ele vai ficar furioso por você ter escondido isso quando descobrir! – Engoli em seco, a raiva dele por mim passaria logo, mas não sei se conseguiria suportar meses e meses trancada dentro de um palácio enquanto os outros se arriscavam, ainda mais pois precisávamos estar os cinco portadores das almas juntos.
– Não tem outra maneira, precisamos das seis Almas! – Expliquei, tentando fazê-lo aceitar meu argumento, Susano bufou e olhou para longe.
– É um assunto de vocês, não posso me intrometer nem julgar você por suas decisões por mais que as ache perigosas... – Disse Susano pegando uma tortinha para comer. – Mas quero que saiba que não concordo com isso! E se você se colocar em risco... se você se ferir, Nike! Eu vou contar tudo a ele e ainda o ajudo a te prender em algum lugar! – Ele ameaçou.
– Está se esquecendo quem sou eu? – Dei um sorriso convencido a ele.
– Nunca! – Ele sorriu e passou um braço em volta de meus ombros, dando-me uma das tortinhas. – Ainda é a mesma Nikella, só que com garras e presas mais afiadas! – Nós dois rimos, mesmo assim, algo bem lá no fundo ainda gritava em pânico, incrédulo com a possibilidade de que eu teria uma família de verdade, assim como o mestre Taures havia dito. Fechei os olhos e deixei minha mente vagar até a casa na floresta em Vale do Sol e sorri com a ideia de estar ali com Caalin e nosso filho.
Sim! Aquele parecia ser um bom final!
E eu lutaria por ele.
Capítulo 2
A reunião acabou por volta de meio dia, Susano me levou para dentro do castelo contra minha vontade, para que pudéssemos nos reunir com eles para almoçar. Antes, só de falar em comida, eu já estaria onde ela estava sendo servida. Mas agora, só de lembrar em como eu estava, meu estômago se embrulhava, em parte por medo de Caalin descobrir e me trancar com medo, pelo que aconteceu a Mary, e em parte por medo de passar mal e todos descobrirem minha real condição. Nessas horas, a magia fazia muita falta, pois podia muito bem me esconder com ela.
Atravessamos o castelo em passos largos, eu estava distraída demais olhando as paredes brilhantes e coloridas para notar que estávamos entrando no salão principal. Ao escutar o som de vozes alteradas, eu parei subitamente e observei o salão chocada com aquela cena no mínimo incomum. Caalin e vovô estavam discutindo aos berros, vovô estava vermelho e Caalin soltava raios pelas mãos em punhos, Ericko sentado em uma cadeira, observava com ar de riso os dois, Lupinus e Nelin comiam avidamente sem se importar com a cena, Hisana e Leona tentavam acalmar os dois a uma distância segura e Sylvia estava sentada ao lado de Kuran alisando seu braço com um sorriso malicioso, Kuran mantinha a mais pura expressão de tédio que eu já o vira fazer, na certa tentando não parecer rude, enquanto Asahi estava com os dentes a mostra, os olhos dourados brilhando e a mão apertada no punho da espada em seu cinto, observando Sylvia com olhar psicótico.
Kuran notou minha presença e bufou, franzindo o cenho para mim. Aparentemente, ele odiava minha nova condição de Malvarmo, mas a cara feia podia ser por qualquer outro motivo, então o ignorei.
– Caalin? Vovô? – Chamei alto, suficiente para que me ouvissem mesmo com os berros, não conseguia entender uma palavra do que eles diziam.
– O que está havendo? – Perguntei aproximando-me de Asahi.
– Estão brigando por quê papai quer que você se case aqui em Amantia, como foi combinado por eles no dia que Caalin voltou ao trono, mas, aparentemente, o Rei de Vegahn – disse ela com tom cortante e a voz um pouco mais alta. – Quer que se casem em Vegahn! – ela explicou, soltei um gemido sofrido e cai pesadamente na cadeira ao lado de Asahi, mandando uma pequena onda congelante para a mão de Sylvia, que soltou um gritinho e se afastou de Kuran esfregando os dedos semicongelados. Eu olhei os dois ainda aos berros, e não podia acreditar que eles estavam realmente brigando por algo tão idiota.
– PAREM! – Berrei socando a mesa com os punhos, fazendo até Susano pular como um gato assustado. Os dois me olharam espantados, assim como Hisana e Leona, que tentavam controlar a situação como damas, mas, elas não haviam notado que não estavam lidando com cavalheiros, e sim com duas bestas territoriais, um elfo e um malvarmo, dois reis com uma enorme vontade de disputar quem tinha mais autoridade.
– Nike? – Foi Caalin que falou, franzindo o cenho para mim, retribui o olhar irritado, tamborilando os dedos sobre a mesa, fazendo uma fina camada de gelo cobri-la.
– Acho que estão esquecendo quem vai se casar aqui! Notei que até agora vocês – apontei para os dois – E Oriel, estão tomando todas as decisões, e eu estou ficando de fora para não frustrar ninguém! Mas acontece que ninguém nem sequer pensou em pedir a minha opinião! – rosnei, Caalin endireitou-se um pouco desconfortável e vovô arqueou as sobrancelhas surpreso. Então dei um dos meus melhores sorrisos zombeteiros ao completar: – Ah! Esqueci! Eu sou só a parte que liga os dois mundos, a “moeda de troca” entre vocês dois! A porcaria da minha opinião não interessa a ninguém! – Falei da forma mais sarcástica que pude, deixando o salão completamente em silêncio. Até Leona e Hisana pareceram sem graça agora.
– Cuidado, Caalin! Ela pode te deixar esperando no altar! – Kuran debochou encarando Caalin com um sorriso que claramente pedia por uma surra. – Não sabe como ela é boa em deixar as pessoas com expectativas e depois ir embora! – Não era uma alfinetada, e sim uma facada.
– Kuran, acho melhor ficar fora disso, já que você não tem nada a ver com a história. – Vovô retrucou, apertando o braço de Caalin para que não avançasse sobre Kuran, notei que Susano fazia a mesma coisa comigo, e que minhas mãos estavam cobertas de gelo. Kuran me olhava de canto de olho com um sorriso zombeteiro no rosto. Para um dia que havia começado tão bom, estava ficando horrível fácil demais.
– Acho melhor todos pararem de brigar para resolverem isso de forma civilizada! – Disse Leona apertando o braço de vovô e o levando até a mesa. Então os ânimos se acalmaram, todos sentaram-se a mesa ainda com um clima tenso e começaram a comer. Caalin havia se sentando em minha frente, e de vez em quando olhava de forma estranha de Susano para mim, engoli em seco, com medo de que ele percebesse. Susano pouco se importou, ele pegou meu prato e o serviu, colocando um pedaço generoso de carne assada, alguns de batata e um pouco de salada. Ele parecia ler minha mente, pois todas as outras coisas na mesa faziam meu estômago revirar. Aquele pequeno gesto amigável de Susano e meu sorriso de agradecimento, fez Caalin franzir ainda mais o cenho, revirei os olhos e comecei a comer, tentando manter meu estômago calmo.
O silêncio era agoniante, mas ninguém ousava quebrá-lo, olhando uns aos outros como se qualquer palavra pudesse trazer a discórdia de volta. Implorei silenciosamente por alguém capaz de acabar com aquilo, e minhas preces foram imediatamente ouvidas:
As portas do salão se abriram subitamente e uma mulher simplesmente linda entrou saltitando no salão, os cabelos castanhos claros na altura dos ombros dançavam e os olhos, um de cada cor brilhavam com a luz que entrava pela abóbada cristalina no centro do salão, ela tinha um sorriso incrível no rosto. Atrás da mulher, veio um elfo negro, bonito, mas com a aparência assustadora, e junto com eles, vinham Hasan e Serena, com um menino de aproximadamente quatro anos em seu colo. A mulher que vinha a frente, saltitou até o lado de Lupinus e Nelin e os abraçou, enchendo-os de beijos. Lupinus revirou os olhos e corou, Nelin começou a rir, ficando vermelha também.
– Mãe! – Reclamou Lupinus esquivando-se dela, mas ela mordeu os lábios e passou a mão nos cabelos dele.
– Ranzinza igual seu pai! – Ela brincou, depois passou os olhos sobre os presentes e gargalhou.
– Quem tentou matar quem aqui para estarem todos com essas caras de luto? – Ela parou os olhos coloridos em mim e arqueou as sobrancelhas, então seu olhar passou de Susano para mim umas dez vezes antes de ela se voltar para vovô e começar a falar:
– Essa é a neta de Belve? – Vovô se encolheu um pouco e assentiu, ela sorriu alegremente. – Dá para dizer que são irmãos! Claro! Se ela não fosse tão branquinha! – Então a mulher veio até mim e me abraçou, beijando-me também. Nelin e Lupinus riram da minha cara de assustada e vovô cobriu o rosto.
– Nike, essa é minha sobrinha, Lórien! – Vovô nos apresentou. – E esse com cara de que vai arrancar a cabeça de alguém é Medras! Pai de Lupinus e Nelin.
– É um prazer! – Apertei a mão de Medras e ele deu um breve sorriso, Hasan me deu um “oi” silencioso por cima do ombro ao passar por mim e ir sentar-se ao lado de Leona, Serena nem sequer olhou para mim, como se eu não existisse, então, sentou-se ao lado de Hasan, trocando algumas palavras baixas com Leona. Meu temperamento de malvarmo se acendeu, se eu tivesse sangue vermelho ainda, meu rosto teria ficado incandescente, mas a mão de Susano apertando minha perna sob a mesa me fez ficar em silêncio.
– Então, qual era o assunto antes de chegarmos, se é que existia algum!
– Eles estavam discutindo sobre o local onde será realizado o casamento de Nike e Caalin. – Susano respondeu, quando viu que ninguém mais ia fazer.
– Caalin? O rei de Vegahn? Você? – Ela perguntou surpresa apontando para Caalin, que assentiu estendendo a mão para ela e a apertando.
– É um prazer conhecê-la, Lórien! – Ele sorriu gentilmente e Medras franziu o cenho, pelo visto, ciúme estava incluído nas características primárias dessa família.
– Oras! Como discutindo onde será o casamento? Ele é o rei de Vegahn! Deve se casar em seu mundo! – Disse ela pegando comida do meu prato, puxando a cadeira ao meu lado e sentando. Caalin deu um sorriso triunfante e ergueu o copo em sinal de que concordava com ela, mas fazendo isso, trouxe a discussão de volta.
– Mas ele é natural de Amantia! – Vovô esbravejou. – E a família de Nikella está aqui! – Revirei os olhos.
– E eu sou natural de Ciartes e o que sobrou da minha família adotiva está lá! Por essa lógica, eu deveria me casar lá! – Retruquei irritada.
– Ela está certa! Karin nasceu em Evenox, e se casou com o rei de Ciartes em seu mundo! Não foram para Evenox se casar lá! Então o certo seria que eles se casassem em Vegahn. – Lórien disse aquilo em tom de que estava decidido. – O que acha, Nike? – Ela me perguntou, passando a mão em volta de minha cintura e encarando-me com aqueles olhos surpreendentes, um verde outro azul. Vovô e Caalin me observavam atentamente, e eu me sentia como se estivesse prestes a escolher entre qual dos dois eu teria de suportar por alguns meses de cara feia, como não vivia no Castelo de Cristal, e certamente veria vovô menos que Caalin, respondi:
– Quero me casar em Vegahn, Oriel já começou a preparar tudo por lá mesmo! E foi lá que comecei a gostar dele. – Apontei com o queixo para Caalin, e percebi que minhas palavras foram um tanto frias, então respirei fundo e continuei: – Quero me casar em minha casa. – Me referi ao castelo, novamente, senti meu rosto esquentar ao ver o sorriso feliz de Caalin para mim e agradeci por não poder mais corar.
– Viu? – Lórien sorriu. – Simples assim! – Vovô não gostou muito da ideia, mas no fim ele suspirou e deu de ombros, voltando sua atenção para o prato ainda cheio.
– Quando vocês voltam para Vegahn? – Serena perguntou direto a Caalin, dando-lhe um sorriso intimo demais, e novamente a mão de Susano apertou minha perna, pois mal percebi que meus cabelos agora estavam brancos, e provavelmente meus olhos deveriam estar cor de vinho. Ah! Se ela soubesse o quão selvagens minhas emoções estavam agora, não creio que se atreveria a me provocar daquela maneira.
– Amanhã! O casamento será em uma semana. Ficaremos esta noite apenas para o evento de hoje! – Respondeu Caalin suspirando e dando um pequeno sorriso para Leona, que corou e desviou o olhar, tive vontade de fazer aquelas bochechas perderem a cor a base de tapas, mas contive a minha vontade, ou vovô tentaria defendê-la ou me segurar, e aí a briga seria feia.
– Eu vou com vocês! – Disse Susano, fazendo-me olhar para ele um tanto surpresa e temerosa, mas ele não me olhou de volta, ao invés disso, fez um pequeno aceno para Kuran e Asahi:
– Nós também vamos. – Disseram em uníssono.
– O que vão fazer lá? – Foi Leona que perguntou.
– Quero conhecer o mundo de gelo! – Susano deu um breve sorriso.
– E eu quero testar se consigo derreter o Castelo de Gelo com minhas chamas! – Kuran falou com um tom malicioso demais e se encolheu sob o olhar psicótico que vovô lançou a ele, quase retruquei que com o fogo que ele tinha, mal poderia derreter a neve em volta do castelo, talvez vovô fosse rir, mas Caalin não entenderia aquilo como uma brincadeira.
– Acho que não tem problema, Leona. – Caalin falou quando ela parecia prestes a protestar. – Eles estarão bem seguros lá! – Ela não parecia mais tranquila com isso, mas também não disse mais nada.
– Por acaso alguém viu Yurin e Melanie esses dias? Não as vejo desde o casamento de Ericko! – Perguntou Lórien mudando de Assunto. Kuran, ao ouvir aquilo, perdeu completamente a cor.
– Elas estão em Dartaris com Demétrius, tratando de assuntos com os Cyfars. – Vovô respondeu olhando de forma ameaçadora para Kuran, eu olhei discretamente para ele também, e parecia que ele estava prestes a sumir embaixo da mesa. Asahi também estava com o rosto corado, olhei para Susano e ele moveu a cabeça num movimento quase imperceptível, um “te conto depois”.
Quando o almoço acabou, esperava poder conversar mais com Susano, mas Caalin me chamou para dar uma volta com ele e meu estômago pesou uma tonelada. Estava suando frio enquanto caminhávamos para fora do castelo, em direção ao pequeno portal no meio do pátio central que levava à cidade abaixo de nós. Seu braço estava um pouco apertado demais ao redor de minha cintura e sua expressão era tensa.
Passamos pelo pequeno círculo de pedras brancas e pisamos na superfície do que parecia ser um lago, mas era apenas um portal para a cidade abaixo de nós, Alamourtim. Por um milagre, aquele portal não me deu enjoo, não queria colocar meu almoço para fora, ou então Caalin descobriria.
Caminhamos em silêncio e de mãos dadas pela cidade, as lojas grandes e repletas de compradores estavam um caos total, como se algum evento grande fosse acontecer em breve ali. Algumas pessoas faziam breves reverências ao passarem por nós e não entendia o porquê, ao olhar para Caalin, notei que ele usava as marcas douradas acesas, revirei os olhos e tentei não sorrir.
– Não sabia que você gostava de se exibir tanto! – Cochichei.
– Não estou me exibindo, apenas abrindo caminho da forma mais fácil. – Ele estava sério, carrancudo e olhava-me de canto de olho. Continuamos a caminhar até sair pelos portões da cidade, em direção à um rio ali próximo.
– Algum problema? – Perguntei quando nos afastamos bastante da cidade, Caalin continuou em silêncio, olhando para frente. Seus olhos estavam completamente negros e as garras estavam maiores, respirei fundo, percebendo que ele estava irritado com algo que eu não tinha percebido ainda. Parei entre as árvores na margem do rio e me sentei, Caalin ficou de pé ao meu lado, observando as águas do rio em silêncio, eu bufei e puxei sua mão com força, para que ele se sentasse ao meu lado.
– Pode falar, o que está te incomodando agora? – Ele me encarou por um tempo, os dedos roçando de leve sobre os meus, sua boca estava pressionada numa linha fina e os olhos se mantinham sérios.
– Não sei como era o relacionamento de Susano e você antes que fosse para Vegahn, mas ele parece...
– Ele parece que está apenas cuidando de mim, Caalin! Não comece com essas paranoias! – Vociferei apertado seu rosto estre minhas mãos. – Por favor, não comece com ciúme dele! Eu o trato como tratava Merian antes de descobrir que ele me odiava!
– Não estou com ciúme, Nike! – Ele alisou minha bochecha com um dedo e deu um meio sorriso. – Só...
– Só o quê?
– Está bem! Eu confesso, estou com ciúme sim! – Acabei rindo dele e o beijei, com carinho, com mais delicadeza do que imaginava ter naquele corpo.
– Então não fique! Acredito que Susano nunca me veria de forma diferente! Para ele, somos como irmãos também! E se fosse pelo vovô, poderíamos ser mesmo! – Caalin gargalhou e apertou os braços ao meu redor, beijando de leve a curva de meu pescoço.
– Gostei do que você disse, sobre se casar em casa!
– Eu percebi!
– Não gostei da forma que a irmã de Leona te tratou! – Ele franziu o cenho e bufou.
– Também não, teria dado uns tapas nela se Susano não estivesse me segurando! Não tenho culpa de Hasan ser babão!
– Não é só isso, tem algo a ver com o rei. Ter você por perto, fruto de uma relação que elas não tinham conhecimento, meio que mancha a ilusão que as duas deviam ter dele.
– Talvez... mas Lórien, eu gostei dela! Parece ser uma ótima pessoa! – Caalin assentiu e respirou fundo, puxando-me para seu colo e enrolando mais os braços ao meu redor, seu corpo então ficou tenso e ele me afastou um pouco para poder me olhar, os olhos negros faiscando encaravam os meus.
– Algo errado? – Estava suando frio.
– Tem alguma coisa diferente em você!
– Tem, estou tentando ao máximo controlar as emoções as vezes para não ver cabeças rolando! – Disfarcei saindo de seu aperto e andando pela beirada do rio. Caalin riu e apoiou a cabeça no tronco da arvore, fechando os olhos.
– Zion foi pior quando se transformou. Ela não tinha controle algum! Ela teve que ficar presa nos calabouços por mais de um mês até conseguir conviver com gente novamente!
– Então estou orgulhosa do meu autocontrole!
– Não exatamente, sua transformação aconteceu aos poucos, você era humana e se tornou híbrida antes de se tornar malvarmo por completo. Então, você se adaptou a transformação! – Ele sorriu, seus olhos agora haviam voltado ao azul normal e brilhavam contra a luz do sol que passava entre as folhas da árvore. – Mas não era isso que eu ia dizer. Está diferente de outra maneira!
– Como então? – Me encolhi um pouco.
– Não sei explicar!
– Talvez um efeito da magia negra ter desaparecido! – Caalin franziu o cenho.
– Sua magia negra não sumiu, Nike! – Ele se levantou e veio até mim, o olhei incrédula.
– Claro que sumiu! Eu sacrifiquei aquele poder para que as almas se soltassem. Foi o pagamento exigido por Gaia! – Porém o olhar de Caalin me fez ficar em silêncio.
– Você sacrificou um poder imensurável para libertar as almas que precisavam de uma quantidade exata de energia para se soltar do controle de seus mestres? – Ele sorriu. – O poder dos magos negros não tem um limite igual dos magos comuns! Ele não tem fim!
– O que está acontecendo então? Por que não posso usar minha magia?
– Tem duas possibilidades... – ele me encarou sério. – Uma delas, não... essa não tem como, você já disse que não pode... – Ele desviou o olhar, pensativo. – É provável que a mudança tenha deixado a magia solta! Quando seu corpo humano morreu, o poder foi liberado dele, mas não encontrou o caminho para o corpo novo, ainda! Mas isso é só uma teoria.
– Caalin, aquele poder era limitado! No dia que fiz a barreira ao redor do Castelo de Gelo, eu fiquei fraca na hora! – Caalin gargalhou, me puxou para um abraço e ficou roçando de leve os dedos no meu pescoço.
– Nike, como você sabe que um mago ou bruxo é forte?
– Não sei... pelas habilidades? – Me afastei um pouco para olhá-lo, ele maneou a cabeça negativamente, ainda com o sorriso manso no rosto.
– Pela idade! Embora o poder dos magos seja ilimitado, eles precisam de décadas para aperfeiçoá-lo, para aumentar a própria resistência e aprender usar o poder de forma plena! Magos precisam de anos para liberar a totalidade de seus poderes!
– Isso não faz sentido, Caalin! Então porque Fairin queria tanto usar meu corpo?
– Por que ele tinha a experiência necessária para liberar seu poder, e foi roubando as memórias dele que você se tornou tão poderosa com a magia negra e com o Yinemí.
– Então eu não seria tão boa se não tivesse roubado as memórias dele, é isso? – Franzi o cenho, irritada, mas no fundo sabia que era verdade, minha habilidade com magia durante os treinos com Susano, era limitada a criar barreiras, nem sequer atacava usando magia, só a usava como defesa.
– Não se sinta mal! Eu demorei muito para aprender a usar todas as minhas habilidades! – Ele tinha um sorriso malicioso no rosto enquanto descia os dedos pelo meu corpo, bufei irritada com sua tentativa de ser engraçadinho.
– Não se ache tanto assim! Velhinhos sempre sabem como fazer as coisas, mas não tem mais ânimo para isso! – Debochei apenas para provocá-lo, ele sempre caia em minhas provocações. Algo perverso e malicioso dançou em seu olhar e ele me mostrou um sorriso predatório.
– Não sou eu que estou dormindo praticamente o dia todo depois das nossas noites... – Ele roçou a boca em minha orelha e uma onda de calor percorreu meu corpo, mas ao lembrar do motivo de todo aquele meu sono, meu estômago pesou e meu sangue transparente-azulado congelou nas veias.
– Acho melhor voltarmos! – Desvencilhei-me de seus braços, ele franziu o cenho para minha reação e ficou por alguns instantes olhando em meus olhos, com os braços ainda em volta de minha cintura.
– Desde o casamento de Érico, você anda um pouco estranha... você está realmente bem, Nikella? – Os olhos dele haviam se tornado de um negro profundo, queria revirar os olhos para ele, mas o entendia, eu também ficaria preocupada e com ciúmes.
– É que... hoje mais cedo nós fomos no palácio dos dragões, Susano, Annie e eu. A irmã de Susano, Nyumun, ela perdeu o bebê e eu estou chateada por ela, só isso! – Menti, sentindo-me um monstro por não me importar tanto quanto fiz parecer para ele. Mas Caalin mordeu a desculpa e suspirou, abraçando-me e beijando o topo de minha cabeça.
– Está tudo bem, coisas assim são comuns ainda mais com casais de raças diferentes!
– Diz isso pro vovô! Leona é meio humana e meio metamorfa e tem quatro!
– Disse comuns, não constantes! – Ele riu. – Estou muito curioso a ponto de querer lançar um feitiço sobre as árvores da sala dos espíritos e ver mais quantos filhos ele tem! – Caalin começou a rir.
– Agora fiquei curiosa quanto a sua! – Respondi, Caalin perdeu o sorriso na hora e empalideceu, como se fosse possível, mas a pele branca dele quase ficou azulada. – Deveria me preocupar com essa sua reação?
– Não seja boba! Não vai ter nada lá!
– Certeza? Vou pedir para Susano me levar lá! – Caalin bufou irritado e revirou os olhos.
– Vai ver apenas nomes apagados, Nike. – Engoli em seco, toda a graça da brincadeira havia desaparecido. – Os herdeiros que deixei se foram antes de mim.
– Desculpe.
– Não precisa se desculpar! – Ele segurou meu rosto e beijou minha testa gentilmente, senti um nó na garganta e tive que morder a língua para conter a vontade de lhe contar logo toda a verdade, de recolocar um sorriso em seu rosto. Mas ele ficaria louco, iria querer que eu ficasse longe de problemas, e isso atualmente era impossível.
– Vamos voltar! – Puxei sua mão e começamos a caminhar de volta à cidade pela trilha de pedras cinzentas entre as árvores.
Susano:
O castelo estava silencioso demais na parte da tarde, parecia que todos haviam sumido depois do almoço, para colocar em dia as fofocas da discussão durante aquela hora. Nike havia deixado todos completamente sem graça por ter insinuado ser apenas uma moeda de troca entre Vegahn e Amantia, na certa, ela não percebeu como Caalin quase desabou de vergonha enquanto discutia sem pedir a opinião dela, teria rido deles se não fosse acrescentar mais a confusão.
Caminhei pelo castelo em passos preguiçosos, observando as paredes brilhando conforme o sol começava a se mover em direção ao horizonte, banhando o castelo em luzes coloridas que se projetavam para todos os lados.
Fui até a torre norte, onde havia todo o aparato de astronomia de vovô Farahdox. Não o via desde o casamento de Karin e Érico, provavelmente estava passeando entre os mundos, ou, vigiando os movimentos de Higarath. Conhecendo ele da forma que eu conhecia, tinha certeza de que não estava apenas desfrutando das paisagens deslumbrantes dos outros mundos, ainda mais porque vovó estava em Amantia.
Fiquei sentado na sacada da torre, observando Alamourtim abaixo de nós, a cidade estava animada, bastante movimentada pois todos se preparavam para o aniversário de minha mãe. Ela era muito querida pelo povo, sempre que chegava a época de seu aniversário, eles enfeitavam Alamourtim para uma grande festa em conjunto com a recepção feita no castelo, porém, na maioria das vezes, ela apenas mudava de aparência e se misturava com o povo na festa das ruas, dizia ser mais divertida!
– Desanimado? – Annie perguntou, aparecendo na sacada e sentando-se do outro lado, encarando-me com cautela, voltei a observar a cidade.
– Um pouco.
– Sua mãe foi para o Palácio dos Dragões agora a pouco! Nyu está melhor... – As palavras foram morrendo, desviei o olhar da cidade abaixo de nós para ela. Annie me olhava como se me pedisse perdão.
– Eu conheço esse olhar, o que você fez? – Perguntei, ela deu alguns passos em minha direção e passou os braços ao redor de meu pescoço, os olhos vermelhos faiscando, brilhando com a luz do entardecer.
– Apagamos as lembranças sobre o bebê da mente dela!
– O quê?
– Não surte! – Ela tirou os braços de mim e ergueu as mãos – na verdade, pedi para Leona e Lórien irem lá me buscar, e dei a ideia a elas de que se Nyumun não se lembrasse, ela deixaria de sofrer!
– Annie! Isso é perigoso!
– Eu sei! Eu sei! Mas eu não queria que ela ficasse daquele jeito! O pior é que o mestre estava sofrendo ainda mais por vê-la mal e não conseguir animá-la! Ele chegou a me dizer que a traria de volta para cá e voltaria para Ciartes! – Ela estava com os olhos marejados. – Ia me partir o coração se ele a deixasse e voltasse pra lá!
– E por que ele faria isso?
– Ora, porque ele acha que a culpa disso é dele!
– E o que houve depois? Que minha mãe alterou as memórias dela?
– Acho que ficou tudo bem, Nyu disse que estava com um pouco de dor, tomou uma poção que Lórien preparou para ela, e em seguida estava bem, sorrindo! – Annie deu um sorriso fraco.
– Espero só que não dê problemas depois!
– Nyu não tem poderes. Não pode tomar as memórias dos outros, então, acho que não devemos ter problemas com isso! Todos foram alertados para não falarem nada sobre o assunto também! Siorin ainda ameaçou fazer cabeças rolarem caso alguém falasse algo.
– Imaginei isso! – Passei os braços ao redor dela e voltei a olhar a cidade, Annie beijou minha bochecha, depois meu maxilar, meu pescoço. Desci da sacada e apertei sua cintura, colocando-a sentada na mureta. Beijei sua testa com suavidade, depois seus olhos, a ponta de seu nariz e sua boca, aquela boca quente e macia que me tirava o sono as vezes. Deslizei a língua sobre seus lábios e sorri quando ela gemeu, prendendo as pernas ao redor de mim. Quando comecei a desabotoar os botões de sua camisa de seda vermelha, ela deu um risinho constrangido.
– Lórien me disse que você, Kuran e Asahi iriam para Vegahn amanhã à noite com Caalin e Nike. – Sua voz estava embargada quando falou contra meus lábios.
– Sim.
– Não ia me chamar?
– Não, Annie, eu ia te levar junto! – Revirei os olhos mentalmente e lhe dei outro beijo.
– Achei que fosse me deixar para trás! – Ela estava olhando em direção aos portões de Alamourtim. Segui seu olhar e ajustei minha visão para ver os rostos que ela observava. Annie estava vendo Caalin e Nike entrando na cidade de mãos dadas. Eles formavam um belo casal. Nike batia pouco a baixo do ombro de Caalin e andava séria, como se estivesse prestes a morder alguém, ela levava muito a sério o seu posto de guardiã, ele não percebia, mas ela andava procurando perigo para protegê-lo. Os longos cabelos negros destacavam ainda mais a pele branca dela e mesmo de longe, dava para ver as garras de vitrino cintilando. Caalin tentava parecer distraído com sua volta, mas para minha surpresa ele estava sorrindo, prestando atenção na postura defensiva de Nike.
– Como ele não percebeu ainda? – A voz de Kuran fez nós dois nos sobressaltarmos e olharmos em sua direção, Annie começou a ajeitar a roupa com uma calma letal enquanto encarava o irmão irritada. Kuran e Asahi estavam sentados acima de nós, na proteção do telhado.
– Não faço ideia! Dá para sentir a segunda presença vindo dela. Talvez ele pense ser da Alma da Terra. – Asahi comentou.
– Eu acho que talvez ele já tenha desconfiado, mas por causa do acidente de Nike, ele deve ter achado que era só imaginação!
– Que acidente? – Asahi, Kuran e Annie perguntaram juntos, eu passei os olhos por eles, que estavam surpresos e curiosos.
– Vocês não sabem? – Perguntei, os três menearam as cabeças negativamente ainda me encarando.
– Achei que eu soubesse de tudo sobre ela. - Annie resmungou.
– Ela teve um ferimento feito por um Aswang nos muros da ACV quando tinha uns treze anos, num dia que ficou de castigo e teve que fazer a guarda. Não poderia ter filhos. – Resumi, sem graça por estar falando de coisas que talvez ela não gostaria que eles soubessem. Kuran agora olhava para onde os dois caminhavam na cidade, sua pele avermelhada tinha adquirido um estranho tom esverdeado.
– Kuran? – Asahi segurou o rosto dele. Mas ele parecia prestes a desabar.
– Encontrei com Merian no corredor da ACV numa noite alguns anos atrás, ele passou por mim e me contou o que Nike estava aprontando. Na época eu não gostava dela, então contei a Candace que uma aluna estava preparando armadilhas nos banheiros... – Kuran se encolheu.
– Estou com um pouco mais de vontade de partir sua cara. – Rosnei para ele, fazendo com que uma ventania o desequilibrasse do telhado, mas Asahi estava agarrada em seu braço e evitou que ele caísse. Ela me olhou feio e mostrou os dentes.
– Isso está no passado, Su! – Asahi vociferou.
– Se eu der uma surra nele, daqui a um minuto, os dentes que eu quebrar também ficarão caídos no passado!
– Está esquecendo que sou mais velho que você! – Kuran rosnou.
– Está esquecendo que eu estou em primeiro lugar na ACV! Sua idade não significa nada, já que não tem quase nenhuma habilidade! – Retruquei irritado, mas Annie segurou meus braços com força, sua pele estava tão quente que fez com que eu me acalmasse.
– Ela sabe! E se ela mesma não fez nada sobre isso, você também não vai fazer. Ela é orgulhosa e vai se ofender caso o faça, Su. – Annie falou num tom calmo. Logo em seguida fez um gesto para que Asahi a seguisse e foi em direção à sala.
– Vamos, quero arrumar as malas com roupas bonitas para o frio! Arrancar uns olhares e suspiros daqueles picolés de Vegahn! – Ela deu uma piscadinha para mim antes de passar pela porta.
– Acho que vou te deixar em casa! – Gritei para ela e ouvi sua risada de deboche como resposta.
Quando Kuran e eu ficamos sozinhos ali, joguei uma parede de vento contra ele, fazendo-o pular do telhado para a sacada.
– É estranho demais todo esse seu cuidado com ela! Se aquele velho congelado perceber...
– Perceber o quê, Kuran?
– Que você gosta dela.
– Eu, ao contrário de você, não cuido e protejo apenas das pessoas que tenho interesses românticos, Kuran! Eu cuido de todos que são importantes pra mim, e isso faz com que eu me importe com quase todo mundo, pois estão todos ligados de certa forma. Então, pare de achar que você só deve se preocupar com aqueles que te interessam! – Ele franziu o cenho, um sorriso de deboche estava estampado em seu rosto.
–Vai negar que gosta dela, então?
– Eu amei a Nike no momento em que ela sentou ao meu lado naquela sala pela primeira vez, mas saber que ela gostava de outro, de você, me fez mudar o tipo de amor que sentia por ela. – Kuran desviou o olhar e respirou fundo, não pareceu engolir a mentira.
– Só é estranho... nunca vejo você e Annie juntos. Só agora que flagrei qualquer tipo de carinho entre vocês!
– Isso é porque eu sou muito discreto, Kuran! Não preciso ficar agarrando sua irmã na frente de todos para provar que estamos juntos. – O encarei irritado e dei o melhor sorriso debochado que pude. – A não ser que você goste de ver...
– Annie sabe? – Ele me cortou, o rosto ainda mais vermelho que o normal.
– Nunca escondi nada dela. Mas amo Annie, e muito, caso não tenha percebido! Do contrário, não teria me casado com ela. Não sou de brincar com os sentimentos das pessoas! Annie é quem escolhi para viver ao meu lado.
– Você é igual a seu pai! – Ele riu, meneando a cabeça negativamente. Sorri em resposta.
– Você não faz ideia do quanto.
Depois de alguns momentos de silêncio, Kuran voltou a falar:
– Acha que ele vai demorar a se manifestar?
– Não sei, temos que ficar atentos, Higarath pode aparecer a qualquer momento com os sombrios, e a vantagem que tínhamos da Nike também dominar as sombras está adormecida...
– Por isso que você decidiu ir para Vegahn, não é? Porque ela está sem os poderes!
– Também. Além do mais, se estivermos sempre perto uns dos outros, a chance de destruir Higarath se os encontrarmos é maior, basta invocar Hisana.
– Estou com um pressentimento ruim sobre isso.
– Também estou, e torcendo para estar errado! – Bufei. Levantei-me da sacada e abri minhas asas, sentindo a brisa acariciando a pele sensível entre as penas cinzentas.
– A festa hoje não será no palácio! Será na floresta à Leste do castelo, onde a cachoeira do jardim deságua. Encontro com vocês lá! – Avisei, então saltei da torre em direção a cidade.
Capítulo 3
Voei por cima da cidade, contornando os prédios de Alamourtim, iluminados pelo sol poente, mergulhando a cidade numa luz alaranjada nostálgica, só depois de algumas voltas decidi ir até onde Caalin e Nike estavam. Os dois estavam olhando a vitrine de uma loja de Vestidos, Caalin, pelo menos, Nike estava olhando para o outro lado, para um artesão que estava fazendo uma espada, os olhos dela brilhavam com certo interesse, mas com tristeza também.
– Ele não faz armas tão boas quanto as suas! – Falei, Nike sorriu e olhou para mim, seus olhos pareciam amarelos, como olhos de gato contra o sol.
– Eu sei disso, ninguém faz armas como as minhas! – Ela deu um sorriso ainda maior e tocou Siferath no pescoço.
– O que o príncipe está fazendo a essa hora na rua? – Caalin me encarava sério.
– Estava procurando por vocês, a festa vai ser na floresta à Leste do Castelo. – Expliquei, Nike parecia confusa e olhou para Caalin procurando por respostas.
– Aniversário de Leona é hoje, prometi que ficaríamos por causa da festa, Nike! – Ele segurou o rosto dela e beijou sua testa. Nike suspirou e olhou de canto de olho para mim.
– Festa na floresta... se não tiver comida, eu nem vou! – Ela bufou.
– Até onde eu sei, senhora Malvarmo, você não precisa mais de comida humana! – Seu rosto ficou pálido e ela desviou o olhar, baixando o rosto.
– Eu ainda gosto do sabor que tem... – Acabei rindo, mas Caalin parecia irritado, como se a qualquer momento fosse avançar em mim. Talvez ele tivesse percebido o que eu sentia desde Ciartes, quando foi nos encontrar na praça do Castelo.
– Acho que Asahi e Annie estão esperando você no castelo para se arrumarem!
– Acho que estão me esperando para me torturarem! Elas acham que podem me transformar em uma boneca só porque sou menor que elas! – Ela rosnou e estalou os dedos de forma ameaçadora.
– Nike, só as crianças são menores que você! – Ela me encarou, um olhar prometendo uma morte lenta, depois apertou de forma carinhosa as mãos de Caalin e saiu em direção ao portal que levava ao castelo acima de nós.
– Vou levar Lupinus e Nelin também! – Falei virando-me para Caalin.
– Por quê?
– Porque eu, Nike, Lupinus e Nelin éramos os mais fortes e mais avançados da ACV, se nós três estivermos por perto dela, vai ser mais seguro... – Só então me dei conta de que havia falado um pouco demais, Caalin franziu o cenho. – Ela falou algo sobre Hobner e outro governante, eles podem arrumar problemas ainda, melhor ter mais caçadores por perto, não acha?
– Realmente, acho que pode ser melhor! – Ele relaxou. – Só não quero gracinhas!
– Nunca fiquei de “gracinhas” com ela, nem nenhum de meus primos, exceto Kuran, mas Kuran e ela no mesmo cômodo agora seria algo engraçado! Uma briga épica, talvez! – Queria rir, mas ao lembrar de que Nike havia sido ferida por causa dele, senti vontade de voltar ao castelo e dar-lhe a surra que estava precisando fazia muito tempo.
– Vamos ver como ele vai se comportar em Vegahn! Talvez Oriel coloque uma coleira nele.
– Não diga isso perto de Asahi! – Caalin ergueu as sobrancelhas.
– Achei que ele estivesse com Melanie.
– No dia em que estávamos brigando com Higarath em Vintro, Kuran percebeu que era ligado a Asahi, como você e Nike...
– E você e Annie! – Ele completou, os olhos semicerrados estavam em mim, me obriguei a não rir de seu ciúme.
– Você ficou com Nike, porque descobriu que eram ligados? Aí se sentiu na obrigação de ficar com ela por isso?
– O quê? Claro que não! Eu gostei dela quando a conheci no castelo, no aniversário do atual rei de Ciartes! – Ele ficou claramente irritado com minha pergunta. – Nem imaginava que compartilhávamos a alma!
– Então, se não gostasse dela, não fosse com a cara dela por nada, mas descobrisse que tinham as almas ligadas, você forçaria algum sentimento inexistente por isso? – Ele bufou e desviou o olhar para o homem que dobrava um metal em brasa na ferraria próxima a nós.
– Não, não acho que seja esse o propósito de termos as almas ligadas! Acho que seríamos qualquer coisa, desde inimigos, até bons amigos mesmo sabendo da ligação, mas nunca tentaria forçar um sentimento onde não coubesse! – Dei um breve sorriso.
– Eu sabia desde que Annie se aproximou pela primeira vez na academia, pois quando ela chegou perto, além do laço, meu poder aumentou em resposta a ela. Mesmo assim, não sentia nada. Primeiro nos tornamos amigos, para depois eu aceitar os sentimentos dela por mim, e criar meus próprios por ela! Não um forçado.
– Você é sábio demais para alguém tão jovem! – Ele agora me encarava.
– Você é devagar demais para alguém tão velho! Talvez seja a coisa da idade! – Ele franziu o cenho, mas riu de forma que fez os cabelos da minha nuca se arrepiarem.
– Vocês dois são iguais! Abusados demais. – Ele meneou a cabeça, virei-me para ir em direção à floresta, mas Caalin segurou meu braço num aperto nada amigável. – Mesmo que não fôssemos ligados, eu teria os mesmos sentimentos, e ainda lutaria por ela, ligada a outro ou não! – Algo brilhava em seus olhos negros, algo vivo e feroz.
– Eu sei! Também faria! Kuran foi um idiota e perdeu a chance dele, não faça o mesmo! – E me soltando de seu aperto, voei para fora da cidade, mudando o rumo para leste antes que ele percebesse o que realmente quis dizer. Talvez tenha percebido pela forma que rosnou como um lobo selvagem quando saí.
Caalin:
Fiquei ali, no meio da rua observando Susano voar por cima da cidade em direção a floresta. Aquele menino era muito mais esperto do que supunha, e talvez muito mais controlado do que podia imaginar também. Nike era muito esperta, pensava rápido e também era inteligente, mas não percebia o quanto ele gostava dela. Eu sinceramente esperava que não percebesse nunca, pois ela ia acabar sentindo-se mal com isso e ia se afastar dele.
Ou não.
Alamourtim permaneceu exatamente como era nos tempos de Ayrana, com apenas a diferença na tecnologia, mas a cidade em si permanecia a mesma, as pessoas ainda eram iguais, os sorrisos, a alegria. Diferente de Vegahn, que mesmo que houvessem pessoas felizes e em paz, não tinham aquela espontaneidade, aquela vida no olhar. Seria um prazer depois que tudo aquilo acabasse, que toda a guerra tivesse fim, voltar a viver em Amantia.
Fui até o portão Leste da cidade e caminhei pela trilha, banhada com os últimos raios de sol da tarde. O caminho estava enfeitado com orquídeas e flores de lis, era tudo para o aniversário de Leona. A cachoeira que caía da parte de trás do castelo flutuante até o meio da floresta, deixava um véu de névoa pelos ares até chegar a copa das árvores e um arco-íris enfeitava o céu. A trilha acabou perto de uma clareira na floresta, onde havia um lago com uma queda d’água e um imenso Ipê em floração, coberto de flores roxas tão belas que podia passar o dia inteiro observando-as.
Próximo à margem do lago, foi armada uma grande fogueira, que seria acesa ao anoitecer. Notei que os próprios moradores da cidade de Alamourtim estavam montando a festa, arrumando as mesas e as comidas e bebidas, trazendo também instrumentos e cadeiras. Era tudo simples, mas belo, e principalmente alegre.
– Não parece gostar muito de festas. – Leona me surpreendeu, aparecendo silenciosamente com um prato de doces nas mãos, ela vestia um vestido longo, verde claro de tecido esvoaçante, e vinha acompanhada de um tigre celestial negro.
– Gosto muito de festas! Estou apenas surpreso com essa!
– Muito simples para seu gosto?
– Na verdade, está exatamente a meu gosto, nada exagerado. Os componentes principais de uma festa boa estão aqui!
– Doces? – ela ergueu a bandeja sorrindo, revirei os olhos, não conseguia entender como ela e Nike não se entendiam, eram duas formigas.
– Não! Alegria, simplicidade... – Olhei para o Ipê e sorri. – Beleza! – Leona acompanhou meu olhar e encarou o Ipê, como se ele fosse alguém importante, então colocou a bandeja sobre uma das mesas, deu um pequeno sorriso triste e se aproximou da árvore, tocando a casca escura com as mãos.
– Minha guardiã está aqui! Sempre faço as festas perto dela... um modo de dizer que nunca a esqueci! – Ela limpou algumas lágrimas que rolaram por seu rosto.
– Guardiã? – Encarei a árvore novamente.
– Amaterasu, uma Waheela. Ela me acompanhou numa briga contra Fairin para salvar Karin dele, no fim, eu recuperei minha filha, mas perdi minha amiga peluda. – Ela mordeu os lábios e alisou a casca com as mãos, pegando uma pequena flor roxa que caiu. – Trouxe Karin, Asahi e Nyu aqui todos os dias desde que acordei depois de voltar de Mogyin.
– Por que um Ipê? – Leona sorriu.
– Quando eu era pequena, quando ainda vivia na Terra, fui a São Paulo com minha mãe numa viajem de férias. Chegando lá eu adoeci por causa do clima e minha mãe me levou num parque chamado Ibirapuera, estava quase no fim da tarde e eu só queria voltar para casa, estava me sentindo horrível. Aí eu vi uma árvore de flores roxas na beira de um lago e me senti melhor na mesma hora, eu fiquei apaixonada pelo Ipê! – Ela passou uma unha sobre a casca. – Acho que escolhi essa árvore porque Amaterasu me lembrou aquela árvore! Algo lindo e vivo que preencheu meu mundo de cor!
– A vida é frágil, um presente divino e que muitas vezes se perde antes da hora... – Ela me encarou e pegou minha mão, então colocou a flor em minha palma.
– Dói perder um guardião, Caalin. Você se sente seguro ao lado deles e acredita que eles são de ferro, que nada os vence! Mas as vezes, eles precisam de proteção mais que nós! – Ela parecia olhar dentro de minha alma, a flor em minha mão estava morna como se estivesse viva, então, Leona mudou, ela deu um sorriso alegre e saiu girando até onde Ewren estava chegando.
Ela ficou nas pontas dos pés e o beijou, ele sussurrou algo para ela, depois deu espaço para que Nyumun e Asahi a abraçassem. Um sereiano que chegou junto com Nyu, mantinha uma expressão serena no rosto, embora seu olhar estivesse triste, mas ainda assim ele passou os braços ao redor de Nyu quando ela se afastou da mãe, e aquela tristeza pareceu amenizar. Eles eram uma família feliz, todos eles, cheios de problemas e com uma guerra a enfrentar, mas ainda assim mostravam seus melhores sorrisos uns aos outros.
Conforme foi escurecendo, as pessoas foram chegando e a música começou a tocar num ritmo contagiante, os violinos e tambores faziam a terra vibrar junto com os passos dos primeiros que se arriscavam a dançar. Fiquei observando a festa começar, Asahi apareceu em minha frente com um sorriso travesso no rosto:
– Vamos dançar? – Ela estendeu a mão. Asahi estava em um vestido lilás de renda, com uma coroa com as flores do Ipê e estava descalça.
– Acho melhor não...
– Ora, vamos! Não sabe dançar? Um velho como você? – Ela colocou as mãos nos quadris e franziu o cenho.
– Esse tipo de provocações não funciona comigo, Asahi.
– Tenho uma coisa interessante para te contar sobre Nike, mas só conto se você aceitar! – Ela estendeu a mão novamente, bufei irritado mas peguei sua mão e fomos até o centro, onde todos dançavam como se não houvesse amanhã. Segurei sua cintura e a girei, Asahi sorria triunfante por ter conseguido me fazer ir até ali.
– O que ia me contar?
– Nada! Só queria que você saísse daquele canto, estava assustando alguns convidados. – Ela deu uma gargalhada notando minha frustração.
– Vocês são mesmo parentes! – Murmurei. – Onde elas estão?
– Annie e Nikella estavam se arrumando no castelo, Kuran foi buscar Ericko e Karin em Ciartes e Susano... – Asahi olhou em volta e franziu o cenho. – Ele deveria estar por aqui! Talvez tenha voltado ao castelo para buscar Annie e Nike.
– Entendi. – Não a soltei até que a música acabasse, para não parecer grosseiro.
Antes da música acabar, eles apareceram. Susano, Kuran, Ericko, Annie, Karin e Nike. Ela estava simplesmente encantadora, os cabelos escuros presos com uma coroa de flores amarelas, combinando com o vestido salmão de tecidos leves, quase translúcido que usava, provavelmente obra de Annie. Quando percebeu que eu a encarava com meio sorriso, sua pele ficou pálida e ela desviou o olhar com um sorriso no canto dos lábios.
Os cinco recém-chegados pareciam brilhar com a lua crescente no céu, Ericko e Karin foram direto onde Leona estava dançando com Farahdox, e Ewren com a antiga rainha, Eirien. Susano tirou Annie para dançar e Kuran ficou me fulminando com os olhos ao perceber que estava dançando com Asahi, lhe dei um sorriso preguiçoso, provocativo, apenas para ver seu temperamento explodir.
Nike estava um pouco distante de Kuran, ela olhava para mim com um sorriso no rosto e piscou quando percebeu que eu estava apenas provocando o príncipe salamandra. Porém, o príncipe teve a mesma ideia, ele segurou o braço de Nike e deu um passo na direção de onde todos dançavam, mas antes que desse outro passo, Nikella pressionou uma adaga de vitrino contra as costelas de Kuran, a pressão da adaga e os olhos irritados dela foram o suficiente para o príncipe soltá-la e se afastar um pouco com o rosto sem cor.
Quando a música parou, soltei Asahi e Nike ocupou o seu lugar em minha frente. Ela tinha um sorriso divertido no rosto ao olhar para Kuran, que estava resmungando algo com Asahi, provavelmente sobre nossa dança. Segurei a cintura de Nike, ela deu um sorriso tímido e seguiu meu ritmo.
– Eu mataria Annie, se não tivesse visto seu queixo quase cair quando me viu! – Ela mordeu os lábios, evitando sorrir ainda mais.
– Acho que metade dos convidados masculinos aqui estão pensando que gostariam de estar o meu lugar. – Admiti reparando nos olhares que a observavam.
– Eles devem é estar morrendo de medo, isso sim! – Ela deu uma risadinha histérica e completou: – Mas eu não queria estar com mais ninguém. – então ficou nas pontas dos pés e roçou os lábios de leve nos meus, sempre pronta para me provocar. Tive que controlar a vontade de lhe dar um beijo de verdade, pois seu controle sobre o Yinemí estava frágil ultimamente, queria evitar que ela congelasse a clareira e estragasse a festa.
– Percebi isso, Kuran quase levou uma facada! – Ela riu e descansou a cabeça em meu peito, balançando suavemente com a música agora mais lenta dos violinos, desci os dedos devagar por sua cintura, acariciando, sentindo a pele macia por baixo daquele vestido fino.
Seria tão bom se já estivéssemos em paz. Se esse fosse o nosso final feliz, mas ainda não era agora. Rezei em silêncio para que desse tudo certo, para que pudéssemos estar ali naquele mesmo lugar no próximo ano, comemorando o aniversário da rainha de Amantia novamente, talvez o nosso...
– Nós vamos conseguir, não vamos? – Nike sussurrou, sua voz soou quase chorosa, e aquilo fez algo inquieto se revirar dentro de minha mente, era como se ela estivesse pensando o mesmo que eu.
– Não tenha dúvidas.
– Mas...
– Sem mas! – A apertei nos braços, deslizando a ponta do nariz na curva de seu pescoço, fazendo-a arquear o corpo e pressionar as unhas em mim.
– Dá pra parar de tentar chamar atenção pra nós?
– Difícil... – Sussurrei, beijando a curva de seu obro, respirando fundo para tentar absorver o máximo de seu perfume, aquele cheiro doce de mel e hortelã. Mas algo estava diferente, havia algo diferente no cheiro dela, como se sua essência tivesse mudado. Talvez tivesse a ver com a transformação e eu ainda não tivesse reparado, pois não havíamos tido muitos momentos de paz desde a coroação para que prestasse atenção aos detalhes que mudaram.
– Caalin? – Nike segurou meu rosto e me encarou.
– O quê?
– Está tudo bem?
– Sim... – Só então notei que a música havia mudado, e que agora uma melodia alegre embalada pelos tambores fazia a clareira vibrar. Nike me puxou para fora do círculo de dança e foi para perto das mesas das comidas, ela começou a encher um prato com vários salgados e sentou-se ao lado de Nelin para comer. Sentei-me ao seu lado e fui obrigado a comer alguns petiscos que Nike trazia em direção a minha boca.
– Nike, por que ainda come essas coisas? Achei que malvarmos só precisassem de sangue! – Nelin estava ao lado dela, brincando com as tranças em volta da coroa de flores de Nike.
– Ahh... – Nike deu um sorriso zombeteiro e colocou mais um pedaço de empanado na boca. – Eu ainda gosto do gosto da comida! Ficar sem comer me faz sentir vazia! Eu prefiro forrar o estômago com coisas gostosas, não sei explicar, mas me deixa feliz! – Nelin e eu caímos na gargalhada, deixando Nike constrangida.
– Em falar em comida, qual foi a última vez que se alimentou de verdade, Nike? – Ela baixou os olhos e não me respondeu, continuou beliscando os salgadinhos. Quando ia perguntar novamente, alguém apareceu girando em nossa frente, com cabelos vermelhos como fogo e um sorriso vivo.
– Comer deixa qualquer um feliz! – Disse Annie aparecendo de repente, tirando o prato da mão de Nike e a levando para a roda de mulheres que dançavam em volta da fogueira. Kuran estalou os dedos, e o fogo ficou roxo e parou de emitir calor, deixando apenas fitas coloridas de fogo dançando junto com as mulheres.
Elas giravam e ao redor da fogueira, todas com os braços unidos, sorrindo e pulando. Nike as vezes virava o rosto para me olhar e sorria, aquele mesmo sorriso doce que vi no dia do aniversário do príncipe, e de alguma forma eu sabia que ficaria tudo bem.
Nikella:
Não queria dançar, estava com sono, cansada e com o corpo dolorido, mas Caalin estava perto demais, e quando ele colocou o rosto em meu pescoço, quando ele sentiu meu cheiro, percebi que ele sentiu algo diferente. Ah! Como queria minha magia de volta para poder me cobrir com as sombras, ele não podia perceber.
Quando a roda de dança se desfez, fiquei entre voltar para o banco e comer, ou ir chamar Annie para dançar mais, mas ela já havia ido até Ericko e o tirado para dançar. Antes que eu chegasse no banco, alguém segurou meu braço e me girou, pousando a mão em minha cintura.
– Susano! Que susto! Não viu que agora a pouco quase atravessei uma faca nas costelas de Kuran? – Grunhi quando ele me ignorou, puxando-me para dançar. Os olhos de Caalin estavam em nós agora, olhos negros, contive a vontade de revirar os olhos e me concentrei em não pisar em Susano.
– Não tenho medo quando você está nessa forma meio humana! – Ele piscou e riu. – Além do mais, até eu tenho vontade de enfiar uma faca em Kuran as vezes! – Não pude evitar uma gargalhada contida.
– Achei que eram amigos... estou desde aquele dia na árvore de fogo para te perguntar o que aconteceu entre vocês! – Susano franziu o cenho e olhou na direção de Kuran, que estava dançando com Asahi, mantendo o fogo agora num tom azulado, tão alto quanto as árvores ao nosso redor.
– Depois de ele te jogar no calabouço do castelo e te deixar lá por quase cinco dias, sem sequer ouvir sua versão? Eu tive que ir falar com Ericko para que ele te ouvisse, Nike. – Susano estava alterado, podia sentir seu coração acelerado nas palmas das mãos. – Fora que depois daquilo, ele ainda te levou para o Castelo de Cristal, com o risco de você matar Nyu... Sem ofensa! – O rosto dele ficou corado de vergonha.
– Não me ofende, eu sabia dos riscos e não queria ir mesmo.
– Isso não é o suficiente para ter raiva dele? Colocar você e minha família em risco desnecessário?
– Acho que sim. – Olhei em volta, os outros casais dançando e percebi que Lupinus agora estava sentado perto de Caalin, olhando de forma assustadora para o meio do círculo de dança. Segui seu olhar para ver o motivo da cara zangada e notei que Nelin estava no meio dos outros dançarinos, em uma dança empolgada com um Sereiano que não reconheci.
– Irmão ciumento, ou cuidadoso demais? – Perguntei, apontando Lupinus com o queixo. Susano deu uma gargalhada divertida.
– Ciúme, mas não da forma que você pensa.
– Não entendi, de que forma então?
– Não percebeu mesmo? – Ele estava com as sobrancelhas erguidas quando meneei a cabeça negativamente. – Eles são um casal, Nike!
– Sim, eu sei! Gêmeos né.
– Não... Eles são um casal como você e Caalin. – Parei de dançar para olhar Susano incrédula.
– É sério?
– Sim...
– Os pais deles sabem? – Olhei em volta, procurando por Lórien e Medras. Os dois estavam um pouco mais distantes, dançando ao próprio ritmo na beira do lago.
– Acho que todos sabem... Mas eles não ligam, desde que os dois estejam felizes, acho que é isso que importa! – Susano e girou, fazendo o vestido levantar um pouco.
– Não acha estranho? – Insisti.
– Não, sabe Jocelinne? A Sacerdotisa do fogo?
– A do templo que nós fomos ver o Mestre Taures?
– Essa. Ela é casada com o meio irmão, Arcádius.
– Eu acho... – Senti um nó na garganta ao lembrar de Merian.
– Não é dessa forma, Nike! – Susano limpou uma lágrima solitária que escorreu em meu rosto. – Foram escolhas deles, eles se amam, ninguém tenta impedir isso! – Assenti devagar. A música mudou, mas Susano não me soltou, ao invés disso, Annie largou Ericko, e foi até Caalin, o tirando para dançar, ela parecia que ia recusar, mas ninguém recusava um pedido de Annie, não quando ela estava em chamas.
– Não teria sobrevivido a ACV sem ela. – Confessei, Susano seguiu meu olhar e sorriu ao ver Caalin de cara amarrada dançando com Annie.
– Ela disse algo parecido com isso sobre você.
Susano me rodou novamente, e eu ri, mas o movimento fez minha vista embasar e apoiei as mãos nos ombros de Susano, forçando minha respiração a sair corretamente.
– Acho que você não vai conseguir esconder isso por muito tempo. – Ele apertou os braços em volta de minha cintura e me acompanhou para fora da roda. Sentamos perto da mesa de doces e roubei alguns chocolates sem que ninguém visse.
– Eu tenho que conseguir, e você vai me ajudar! – Susano me encarou e ergueu as sobrancelhas, os olhos verdes pareciam ainda mais claros contra a luz da fogueira, seu cabelo escuro estava trançado para trás e a túnica verde oliva que usava, estava úmida devido ao calor.
– Você é louca! Eu acho que está sendo...
– Uma resposta antes que termine essa frase: Precisamos das seis almas para destruir o poder sombrio de Higarath! Então, não adianta eu me esconder! Nós precisamos lutar, Su! Precisamos acabar com isso de uma vez! Eu quero paz, quero dormir sem medo de acordar e perceber que alguém mais se foi! – O nó voltou a minha garganta e eu apertei suas mãos com força.
– Mas...
– Era um dos meus sonhos, sabia? Não em primeiro lugar, mas...uma família, ter um filho um dia e viver agarrada com ele ou ela, pois eu mal tive os meus pais perto de mim! Não pense que estou fazendo isso por teimosia! Mas e se eu me esconder? Esperar ele nascer? E correr o risco dele ser o portador da alma da terra.
– Acha? Eu tenho certeza!
– Acha que Higarath não vai aumentar o exército? Ele vai caçar a todos nós! Não porque quer as almas, agora ele não pode tê-las mais! Mas para se livrar das únicas ameaças a ele! – Minha voz ficou cada vez mais baixa, com medo de que alguém escutasse aquela conversa. Aquela era uma festa, não era momento para isso.
– Você tem razão, me desculpe. – Susano ajeitou a mecha de cabelo que caiu da coroa de flores em minha cabeça e deu um sorriso triste.
Nesse momento, a música parou e Ewren apareceu levantando a taça e chamando a atenção de todos.
– Eu quero fazer um brinde, a mulher mais maravilhosa dos Doze, mãe dos nossos quatro filhos lindos! – Ele deu um sorriso e Leona corou, os convidados começaram as ovações, mas Ewren fez um movimento pedindo silêncio.
– Ela foi a luz quando eu achava que o mundo era apenas escuridão, ela me deu a mão e me tirou do lugar bem fundo que eu havia me escondido e me mostrou que com os mesmos olhos, tudo podia ser visto de forma diferente! – Ele estendeu a mão e Leona a segurou, com o rosto mais vermelho do que antes. – Mais um milênio seria pouco para viver ao seu lado! – Ele a abraçou e a beijou, e só percebi que estava chorando quando mãos quentes limparam minhas lágrimas.
– Eu podia te dizer a mesma coisa, mas não existem palavras para descrever todas as maneiras que você me salvou, Nike! – Caalin estava atrás de mim, ele me envolveu com os braços e eu me virei para abraçá-lo.
– Não me faça chorar! Vai fazer a maquiagem que Annie passou em mim ficar toda borrada! – Ralhei apertando-o um pouco mais.
– Nossa! Esperava uma resposta mais abusada vindo de você, está doce demais esses dias. – Ele riu e segurou meu rosto.
– Estou tentando ser legal! Muito ruim?
– Só estou surpreso. Nunca vi você chorando com demonstrações de carinho.
– Não costumo ver muitas demonstrações de carinho ultimamente, Caalin! – Ele ergueu as sobrancelhas.
– Você nem estava prestando atenção nos votos de Karin e Ericko então, não é? – Eu quase ri.
– Não, estava viajando em um universo paralelo! Parei de prestar atenção, parecia entediante! – Caalin revirou os olhos e deu um sorriso aliviado.
– Aí está a Nikella que eu conheço! – Ele beijou o topo de minha cabeça.
Ainda tive tempo para dançar com vovô depois que Leona cortou o enorme bolo de amendoim e chantilly, comi quatro pedaços e tive que ouvir piadinhas de Susano, pelo assunto que apenas nós sabíamos. Porém, no começo da madrugada, a festa não tinha acabado e eu estava pronta para começar a reclamar.
Caalin me chamou para voltarmos ao castelo, notei que Susano, Annie, Kuran, Asahi e Lupinus e Nelin nos seguiam.
– O que está acontecendo? – Perguntei encarando-os com cautela.
– Vamos para Vegahn agora. Assim evitamos chamar atenção para nossa partida daqui e nossa chegada em casa. – Caalin explicou.
Annie e Asahi foram até os quartos buscar as malas e Susano abriu o portal. Kuran estava afastado de nós, de vez em quando me dando olhares cruéis, imagino que por conta da adaga que usei contra ele. Me senti tentada a provocá-lo, mas não queria parecer tão infantil quanto ele. Quando as duas voltaram com as bolsas, atravessamos o portal dourado.
O frio de Vegahn acariciou minha pele quase toda exposta naquele vestido quando chegamos a Velezar, a sensação de voltar para casa era maravilhosa. Caalin pareceu tão aliviado quanto eu com o frio, e nessa hora, me perguntei se não seria melhor que ficássemos em Vegahn no fim das contas.
Mesmo de fora das muralhas, dava para ver a escultura do dragão no vitrino, dei um pequeno sorriso, pois ele me lembrava o que vivi ali e parecia me dar boas-vindas. Enquanto caminhávamos pela estrada até a entrada do castelo, fiquei alguns passos atrás de Caalin após ter sentido uma estranha energia vinda das árvores ao redor das muralhas. Susano diminuiu o passo e ficou ao meu lado, observando a floresta de cenho franzido.
– O que foi? – Perguntou Caalin virando-se para nos olhar.
– Estou sentindo algo estranho por aqui... – Murmurei, tirando Siferath do pescoço. Caalin olhou em volta e parecia não sentir nada, porém, Susano segurava a espada na mão:
– Também senti.
– Acho que vocês dois beberam demais! – Annie deu um sorriso debochado.
– Eu não bebi, Annie! – Lhe lancei um olhar significativo e ela entendeu e corou, murmurando desculpas silenciosas.
– Vamos entrar então, vou pedir para Zion e os guardas vasculharem a área. – Caalin fez um sinal para que atravessássemos os portões, onde estaríamos automaticamente dentro de minhas barreiras, eu olhei uma última vez as florestas, mas antes que eu me virasse e desse um passo à frente, Susano entrou em minha frente e gritou:
– Cuidado! É uma armadilha! – Ele nos envolveu com uma barreira de vento, quando algo explodiu contra sua barreira, fazendo um fino pó laranja se espalhar no ar. Cobri a boca automaticamente, pois a barreira de vento fez o pó se espalhar mais rápido. Siferath caiu de minha mão na neve, e não estava com as adagas no momento.
“Pó das folhas de fogo! Estavam tentando nos envenenar! ”
Antes que pudesse reagir, correntes me derrubaram no chão junto com Susano, e um grupo de soldados vestidos com uniformes cor vinho e que usavam máscaras surgiram em meio as árvores, armados até os dentes. Eram malvarmos do exército de Hobner! Eles correram em direção ao castelo, atacando os outros com fúria. Tentei usar o Yinemí para congelar as correntes, mas o poder estava dormente. Susano fez uma forte rajada levar o pó para longe, só então vi que Caalin não estava usando a Alma dos raios, apenas o machado, e percebi que ele não estava usando seu poder para não ferir Susano e os outros. Um medo me tomou e por um breve momento, pude sentir as sombras dançando ao meu redor, como se tentassem se libertar.
Em meio aos sons de metal se chocando, Kuran correu para nós com as mãos em brasas. Ele ia derreter as correntes de prata que nos prendiam, mas um Ferman voou por cima de nós, jogando um jato de água quase congelada sobre ele, o fazendo recuar.
– Susano, nos solte! – Pedi, minha voz estava baixa por causa do pó e meus pulmões pareciam apertados.
– Não consigo! A prata está me neutralizando! – Ele tentou se erguer sem sucesso, as correntes grossas eram pesadas demais. Meu desespero aumentou ao perceber que minhas correntes estavam tão apertadas que começaram a cortar minha pele.
Não demorou para que os soldados do castelo aparecessem, eles vinham com Zion e Ira, e ela parecia um demônio prestes a destruir o mundo, nunca tinha a visto em sua forma completa. Susano perdeu o resto da cor que tinha ao vê-la correndo para nós e derrubando cinco invasores com apenas um giro de sua lança. Ela tirou a cortina de cabelos dourados da frente do rosto quando avançou para os outros, espalhando ondas de gelo junto com seus ataques rápidos e mortais.
– Zion! – Tentei gritar. – Nos solte! – Ela olhou em nossa direção e saltou por cima de um dos guardas, apoiando as mãos nos ombros dele e enterrando as garras em seu pescoço e torcendo-o todo para trás quando aterrissou na neve, arrancando sua cabeça com o movimento. Ela chegou perto com um rosnado de frustração.
– É você aparecer que traz os problemas junto! – Ela resmungou, puxando as correntes de Susano primeiro.
– Sei que sentiu saudades! Não se faça de durona! – Falei, tentando manter a calma, mas estava assustada vigiando Caalin lutando com dois invasores.
– Claro que senti! Oriel não foi embora, só conseguia pensar em quando você voltaria para ela parar de torrar minha paciência!
Zion conseguiu arrebentar as correntes de Susano, mas quando se virou para mim, enquanto ele se livrava das correntes, uma magia a atingiu no peito, lançando-a contra o chão congelado e ela caiu desacordada. Susano tentou invocar seus poderes para criar uma barreira, porém quem atacou Zion com magia, nos mergulhou numa espécie de poço brilhante de luz. Susano me segurou antes de cairmos num lugar escuro.
Ele me ajudou a levantar, e soltou as correntes de mim, xingando várias vezes baixinho, a prata parecia queimar suas mãos.
– Onde acha que estamos? – Ele perguntou depois que me soltou, meus poderes ainda estavam dormentes e não conseguia mudar para minha forma completa para analisar o local, mas sentia que conhecia aquele lugar.
– Não sei... – Comecei a tossir, sentindo um forte gosto metálico na garganta, Susano tentou me curar, mas foi em vão.
– Hisana uma vez disse que só existe uma cura para o pó das folhas... mas tudo bem! Não estou tão mal assim! – Murmurei sentando-me na pedra fria do chão. Olhei com calma o lugar onde estávamos, e para meu espanto, percebi que era um calabouço. Meu estômago revirou e sentia o coração acelerado, tive que apertar os joelhos para tentar respirar melhor, mas o pó em meus pulmões só piorava minha situação.
– Não é o que parece! – Ele se aproximou e sentou ao meu lado, o cheio de bolor, maresia e poeira foi sumindo aos poucos conforme ele fazia um ar fresco circular ao nosso redor.
– Não pode explodir as grades e nos tirar daqui? – Perguntei.
– Posso, e aí é só fugir por um caminho que não conhecemos e contando com a sorte de não sermos pegos! – disse ele sarcasticamente. – Se você não se lembra, está grávida, cheia de pó de folhas nos pulmões, muito movimento vai fazer o veneno se espalhar e quer que chegue ao bebê? – Eu abaixei a cabeça e soltei um soluço.
– Você pode se transformar em ar! Porque não sai daqui e vai buscar ajuda?
– Primeiro, porque eu não posso te transformar e te levar junto, e te deixar aqui sozinha sem saber quem nos sequestrou, não é uma opção. Segundo, quem nos trouxe para cá é uma pessoa de influência...
– Hobner! – Grunhi ao me lembrar dos uniformes cor de vinho – Eu vi os uniformes! Estamos em Rodsen, no castelo em cima do penhasco das cinco lanças.
– Estamos próximos ao mar então.
– Sim... – Fechei os olhos e me concentrei, podia ouvir o som do mar quebrando muito abaixo de nós.
– Ele não é poderoso, acho que você pode ir...
– Eu não saio daqui sem você! – Ele grunhiu apertando meu braço, então pegou um lenço no bolso da túnica e limpou um ferimento feito pela corrente de prata. – Era pra isso estar cicatrizando.
– Não é por causa do veneno? – Perguntei.
– Não.
– Su, você não consegue pelo menos espalhar seu poder? Para verificar o castelo em busca de algo?
– Já fiz, logo vou poder escutar tudo que estão dizendo dentro dessas paredes...
Susano parou de falar e se colocou em minha frente, assumindo uma posição defensiva. Pude escutar passos próximos, uma risada de deboche e uma voz conhecida começou a falar antes que sua figura aparecesse em nossa frente.
– Ora, ora, ora! Mandei meus cães de guarda trazerem a noivinha do rei e eles me trouxeram um bônus! Um príncipe de Amantia! – Os olhos vinho foram a primeira coisa que vi, em seguida, os cabelos cinzentos e a pose altiva de sempre. Hobner bateu palmas, os anéis nos dedos fizeram um barulho irritante ao se chorarem. Ele estava encarando Susano com um olhar triunfal. Atrás dele, escondidos nas sombras estavam quatro guardas sujos de neve e sangue...
“Sangue! ” Minhas pernas tremeram, mas não sentia nada através da ligação. Não sabia se era por Caalin estar bem ou se era um dos efeitos do pó das folhas.
– O que quer com ela? – Susano perguntou chegando mais perto da grade escura. Hobner riu e meneou a cabeça.
– Quer que eu comece por onde? Por sua sobrinha ter destruído meu arsenal de vitrino... – Hobner deve ter percebido nossos olhares espantados e se moveu para mais perto. – Ah... eu sei tudo sobre vocês, quem são, o que são... E ela me deu muito prejuízo! Aí quando eu estava prestes a tomar o Castelo de Gelo, você veio como herdeira Ascardian e trouxe um rei há muito desaparecido, de volta! – Hobner urrou batendo na grade, mas Susano não recuou, ele mostrou os dentes as marcas douradas acesas, mostrando que seus poderes não estavam dormentes, Hobner franziu o cenho e se afastou um pouco. Me levantei com dificuldade e segurei a mão de Susano. Susano me deu uma rápida olhada, sem querer perder o contato visual com Hobner, aquele covarde traiçoeiro a nossa frente.
– Por que me sequestrou? Por que não me matou se era o que queria?
– Ahh, querida! Morta você não me serva para nada, apenas fazer com que Caalin solte sua ira sobre nós! E acredite, não quero de Rodsen acabe como Nakhlans. – Hobner mexeu nos anéis das mãos e me encarou, o olhar brilhando de forma maligna. – Viva eu posso pedir que ele entregue a coroa para mim, para que eu a deixe sair! – Ele sorriu, mas minha gargalhada fez aquele sorriso vacilar.
– Acha que ele faria isso? Hobner... Ele vai varrer essa porcaria que você chama de casa do mapa! Ele vai apagar você das árvores dos mundos!
Hobner passou um dedo sobre um dos anéis, o maior deles, que notei, parecia ter um vidrinho no lugar da pedra. Ele estalou a língua e fez um sinal para os guardas saírem, quando ficamos a sós, ele se aproximou da grade, o máximo que pode e bateu no anel.
– Ele vai fazer, minha querida! Pois aquele pó estava adulterado! Quando você destruiu meu arsenal, deixou seu sangue no chão... – O sorriso dele aumentou enquanto algo frio descia por minha coluna. – Ele reage especialmente a você, e em menos de quarenta e oito horas, você vai morrer se não tomar esse antídoto. Então, ou ele faz o que eu mandar, ou fica sem você!
– Você é um porco, inútil e desalmado! – Gritei.
– Um porco desalmado que terá a coroa de gelo em poucas horas! E vou concertar os podres do MEU mundo! Tirando principalmente a escória humana e híbrida como você daqui! – Ele virou as costas e saiu batendo os pés.
Susano se virou para mim, e segurou meus braços, dessa vez, a tranquilidade havia desaparecido completamente de seu olhar, mas havia algo em seu sorriso que me deixou confusa. Antes que eu perguntasse, ele ergueu uma bolha de ar na mão e a aproximou de meu rosto. A imagem de Hobner falando conosco estava gravada na bolha.
– Você...
– Minha mãe vivia na Terra, conheço todas as tecnologias de lá, então tive a ideia de transmitir a mensagem dele ao vivo para todos em Vegahn, em alto e bom som! – Susano riu.
– Ele vai descobrir e voltar a qualquer momento! – Murmurei, colocando a mão sobre o peito.
– Não, não vai! Fiz uma barreira ao redor do calabouço. – Susano franziu o cenho quando soltei um baixo gemido de desconforto. – Está se sentindo mal? – Ele tocou em meu rosto com as costas da mão, senti como se minha vista estivesse escurecendo e me encostei nas grades.
– Me sinto fraca...
– Não é o veneno que ele falou, pois só funcionaria se você ainda fosse meio humana! – Explicou segurando minha mão, verificando meus batimentos.
– Ele acha que ainda sou híbrida. – Susano assentiu.
– O que está sentindo é só o efeito do pó das folhas de fogo, mas como você não o engoliu, o risco é pequeno, é só ficar parada um pouco e esperar. Em poucas horas esse castelo vai estar cercado! Se não corresse o risco do pó se espalhar mais, sairíamos daqui agora! – Susano sorriu, tranquilizando-me.
– Hobner não é tão esperto quanto imaginava.
– Ah, ele é! Mas eu sou mais e você tem sorte de eu ter sido pego junto! Ele é que teve azar de eu estar aqui! – Susano riu.
– Convencido! – O empurrei com o cotovelo, mas o movimento me fez escorregar sobre a grade. Susano me segurou para impedir que eu caísse.
– Céus, Nike! O que está acontecendo?
– Minha garganta está doendo tanto! – Reclamei esfregando o pescoço, como se isso ajudasse a aliviar o incômodo. Susano respirou fundo e colocou a mão na testa, meneando a cabeça negativamente.
– Pelo amor... Nike! Esqueceu tudo que aprendeu na Academia em tão pouco tempo?
– Do que está falando?
– Você é completamente Malvarmo, lembra?
– E?
– Quando foi a última vez que se alimentou de verdade? – Quando ele perguntou, eu entendi o porquê de estar demorando tanto a cicatrizar a ferida da corrente de prata, o excesso de sono e a fraqueza.
– Mas Caalin falou que não precisavam se alimentar com frequência! Só para aumentar os poderes!
– Malvarmos fêmeas grávidas também? – Ele perguntou em tom de zombaria. Revirei os olhos e bufei.
– Assim que sairmos daqui, vou procurar alguém para enfiar as presas, não se preocupe! – Retruquei me sentindo envergonhada. Susano estava perto demais, e aquilo me incomodou o suficiente para eu querer me afastar, mas apenas o encarei com olhar mais intimidador possível.
– Sabe que esse machucado vai desaparecer se você se alimentar, não sabe? E sabe também que responder ao chamado vai limpar seu organismo do pó de fogo e seu poder vai voltar, não sabe? – Ele me encarava sério, parecia uma batalha para ver quem desviaria o olhar primeiro.
– Afinal, por que meus poderes de maga desapareceram quando fiquei grávida? – Perguntei, tentando desesperadamente mudar o assunto.
– Por que o poder dos magos cura qualquer coisa que faça dano ao seu corpo. Bem no começo, ou dependendo de como a mulher fica durante toda a gravidez, o poder desaparece para não reconhecer a criança como algo que está prejudicando a mãe. Alguém criou esse “desligamento” dos poderes como uma forma de evitar que as magas perdessem seus filhos. – Ele explicou e me arrependi de ter perguntado, pois me sentia completamente desconfortável tratando daquele assunto com ele.
– E quem inventou isso?
– Não sei, mas deve ser algo bem antigo! Do contrário, teríamos menos magos hoje!
Estava aliviada por ter conseguido fazer Susano esquecer a história do “chamado”, preferia mil vezes esperar que viessem nos buscar, do que me alimentar dele. Só de pensar, calafrios subiram por minha pele. Susano estava de costas para mim agora, com a mão sobre a boca e de cabeça baixa, na certa pensando em uma forma de sairmos mais rápido dali.
– Algum problema? – Perguntei, quando comecei a ficar preocupada com seu silêncio. Susano se virou em minha direção, os olhos dourados brilhando no escuro da cela e um pequeno sorriso nos cantos de seus lábios manchados de sangue.
Capítulo 4
Susano:
Nike estava com os olhos assustados me encarando, por um momento, cheguei a pensar que seria errado o que estava prestes a fazer, mas queria que ela ficasse bem! Queria liberar seus poderes e sair logo dali, antes que seja lá qual forem os magos de Hobner, derrubassem minha barreira e ajudá-la a se recuperar era uma boa desculpa para o que eu queria fazer.
Ela olhou para minha boca antes de me encarar novamente com o cenho franzido:
– O que está fazendo? – Ela deu um passo para trás, colando o corpo na parede, então, com o corte se fechando na palma da mão e antes que me sentisse culpado demais, avancei em sua direção, prendendo-a contra a parede e segurei seu rosto. Nike estava sem reação, olhando-me surpresa ou assustada demais para entender. Peguei seu queixo entre o polegar e o indicador e a beijei, deixando que o sangue escorresse de minha boca para a sua.
Quando ela percebeu o que eu estava fazendo, Nike tentou me empurrar, mas eu a segurei firme, porém delicadamente para não machucá-la. No instante em que acabou, ela estava petrificada, respirando com dificuldade, os olhos de cor vinho fixos nos meus e as marcas dos flocos acesas nos braços.
– Por que... – Antes que ela terminasse a pergunta, eu a beijei novamente, mas de verdade. Segurei seus pulsos para que não me afastasse e forcei seus lábios a se abrirem com os meus. A sensação de tocar minha língua em sua boca fez o rugido preso em meu peito por todo aquele tempo, desde o primeiro momento na ACV diminuir. Nike ainda estava com o corpo tenso, contraído quando rocei minha língua contra o céu de sua boca, quando deslizei e pressionei minha boca contra a sua, mordendo seus lábios macios com os meus.
No instante em que terminou, eu sabia que havia feito errado, e finalmente a peça que eu queria saber se era a certa, estava em seu lugar, aquilo me fez sentir como se fosse um monstro, como se algo estivesse errado comigo. Nike ficou de olhos arregalados, espantada, talvez surpresa, mas no instante seguinte estava com fogo nos olhos quando me afastei, mas não do tipo bom, que via nos olhos de Annie quando eu fazia aquilo, era um fogo de destruição.
Nike rosnou mostrando as garras para mim, mudando de forma e ficando completamente malvarmo, fazendo-me recuar alguns passos.
– Eu vou matar você! Eu vou te retalhar em pedacinhos! E vou te usar para alimentar Docinho! – Gelo apareceu nas pontas de seus dedos, e começou a congelar o chão ao seu redor.
– Calma, Nike! Eu só queria te ajudar!
– Enfiando a língua na minha boca? – Ela rosnou, e dessa vez, as sombras apareceram ao seu redor, não as de Higarath, as dela e as marcas negras em seguida acenderam-se em seus braços, aí tive a certeza de que fiz uma merda sem tamanho.
– Nike, pelo amor de Gaia se acalme! Olhe-se! – Implorei apontando as marcas negras em seus braços.
– Como eu vou me acalmar! – Ela berrou – Você é meu tio! É casado com minha melhor amiga e a ama! Você ficou maluco, Susano?!
– Eu sei! Eu sei... – ergui as mãos em rendição e dei um passo para trás ao mesmo tempo que ela deu outro para frente. – E fazendo isso, peço desculpas, Nike, mas percebi que era pra ser a Annie mesmo! – Ela parou e semicerrou os olhos, colocando as mãos nos quadris, aquela pose que Annie também fazia e que eu sabia que algo pior estava por vir.
– Tão ruim assim? – Ela perguntou, voltando a aparência quase humana.
– O quê?
– O beijo... – Ela se encolheu e tive que cravar as unhas no corte da mão para não rir.
– Claro que não! Só... foi estranho, como se tivesse beijado Asahi, Karin ou Nyu... – Menti tentando acalmá-la. Nike desviou o olhar e assentiu.
– Sinceramente, não entendo como Lupinus e Nelin conseguem. – E a fúria havia passado tão rapidamente quanto começou e respirei fundo, agradecido por ela não ter explodido, mas havia algo de diferente em seu rosto, algo que me lembrava culpa.
– Realmente, nada mal! – Cocei o rosto, constrangido com o olhar malicioso que ela me lançou depois daquilo.
– Acho que sei porque Annie tem tanto ciúme de você, eu também ficaria! – Ela deu um pequeno sorriso e revirou os olhos. – O fogo dos Ascardian é o mais forte! – Dessa vez foi impossível não rir.
– Por que meu poder voltou? – Ela perguntou, erguendo as mãos e movendo as sombras, então sua respiração ficou entrecortada e ela levou as mãos a barriga. – Será que...
– Não, ainda sinto a segunda presença vindo de você, mas não sei o motivo de terem voltado, e não acho que seja um bom sinal! Precisamos sair logo daqui! – Nike tocou a ponta dos dedos nas grades, e essas congelaram e viraram pó, abrindo a passagem para nós. Nike ergueu a palma com uma massa negra que se movia ali como uma sombra viva, então ela a apertou e as sombras se espalharam, entrando em fendas nas pedras, por baixo das portas e pelas pequenas janelas gradeadas do calabouço.
Quando ia dar um passo para fora da cela, ela me segurou pela camisa e me empurrou contra a parede, um dedo cruel apontado para meu rosto:
– O que aconteceu aqui, morre aqui! – Ela rosnou semicerrando os olhos.
– Eu sei e de novo, me desculpe! Você é minha melhor amiga ainda! Espero não ter estragado isso! – Nike assentiu e deu um meio sorriso.
– Não quero que Caalin mate você, Su. Ainda é meu melhor amigo também! – Fiz que ia sair, mas ela me mantinha ainda contra parede, com um olhar sádico em seu rosto. – Mas Susano, eu juro por tudo que é mais sagrado! Se você me olhar diferente, eu vou te congelar de dentro pra fora e fazer você virar confete de Susano em meu casamento! Ouviu? – As garras estavam pressionadas com tanta força em mim que estavam perfurando minha pele. Assenti rapidamente, para não lhe dar dúvidas sobre minhas intenções, só então, ela me soltou e pudemos sair.
Nikella:
Depois que soltei Susano, ainda o encarei por um instante, para saber se quem estava lá ainda era o meu amigo, o mesmo que conheci na ACV e que me fez ser alguém melhor. Nunca pensei nele de forma diferente de um amigo, tentava evitar qualquer outro pensamento quando estávamos juntos, principalmente em respeito a Annie, mas pela atitude dele agora... preferia nem pensar nisso, pois no fim das contas, Caalin tinha motivos verdadeiros para ter ciúme. Porém, algo estava inquieto em meu peito agora. Nervoso, culpa... sacudi a cabeça tentando me livrar de meus pensamentos traidores e voltei a atenção para nosso caminho.
Não sabia o motivo dos meus poderes terem voltado, uma vez que Susano tinha explicado o motivo para os poderes desaparecerem durante a gravidez, e isso me deixou bastante preocupada, mas eu precisava aproveitar os poderes e nos tirar logo dali.
– Temos que dar um jeito de purificar sua magia negra, Nike. Ela pode ser muito perigosa para você agora! – Disse Susano observando enquanto eu fazia aparecer as marcas negras em meus braços, preparando-me para espalhar as sombras.
– Só depois que matarmos Higarath, aí eu aceito água de Holon para me purificar. – Retruquei, havia a possibilidade de usar a magia negra para controlar parte dos sombrios, ou tomar o controle de Higarath sobre elas, e isso era uma vantagem que eu não aceitaria perder.
– Verônica Dragkan. – Susano cruzou os braços e me encarou, esperando que eu lembrasse de algo. No momento em que a verdade me atingiu, quase deixei as marcas negras se apagarem de susto.
– Verônica, conhecida como a Dama das tempestades, uma maga negra que fazia experiências com seu poder, estava grávida quando perdeu o controle da magia negra... lembra o que os livros de história mágica relatavam o que aconteceu com ela? O que ela pariu?
– Um demônio de sombras. – Respondi, sentindo meus olhos se encherem de lágrimas. – Vou dar um jeito nisso assim que sairmos daqui.
Relutante, espalhei as sombras pelo castelo e me permiti ver pelos olhos escuros delas. Pude enxergar cada detalhe enquanto elas serpenteavam pelos corredores de pedras frias do castelo, os detalhes da decoração minimalista de cada cômodo, mas o mais importante, onde os magos estavam, me concentrei nas sombras que estavam naquela sala, desligando minha mente de todas as outras sombras.
Todos estavam junto à Hobner, na sala do Trono, onde assistiam a uma bolha de vidro que flutuava acima das mãos de uma mulher de pele azulada, parada no meio do salão escuro. Seu olhar era temeroso enquanto observava a reação de Hobner as próprias palavras. Quando as imagens sumiram da bolha, a mulher a fez desaparecer e se curvou um pouco, ela mantinha os olhos em Hobner.
– Isso foi visto por todos em Vegahn, senhor. – Disse ela com a voz vacilante.
– Aquela pirralha... – Ele começou a literalmente espumar pela boca, os olhos estavam de um vermelho vivo quando ele explodiu, erguendo os braços e fazendo gelo se espalhar pela sala. Minha surpresa passou rápido, pois lembrei que alguns Malvarmos também possuíam a habilidade de criar gelo assim como alguns salamandras controlavam o fogo. Hobner partiu em direção à saída da sala, mas ao passar ao lado da maga que havia lhe mostrado as imagens, ele puxou uma adaga oculta em seu manto e num movimento rápido, cortou sua garganta, deixando-a sufocar no próprio sangue, caída no chão. Havia sido rápido demais para que eu usasse alguma magia através das sombras para ajudá-la.
Nenhum, nenhum dos guardas que estavam ali sequer se moveram para ajudar a mulher, quando Hobner desapareceu da sala, e os magos que o acompanhavam não olharam para ela, eles a ignoraram como se não fosse nada. Olhei uma última vez para o corpo agora sem vida, a mancha de sangue vermelho, não transparente, vermelho vivo. Ela não significava nada para ele pois era hibrida.
Uma ira tomou conta de mim de forma tão intensa, que mesmo através dos olhos das sombras eu enxerguei em vermelho em minha frente. Fiz as sombras se dissiparem e voltei minha atenção para meus próprios olhos. Susano estava de pé, alguns metros longe de mim observando o chão congelado a minha volta.
– Nike, acho bom se acalmar! – Disse ele aproximando-se ao perceber que agora eu o ouvia.
– Voe, Susano. – Minha voz saiu como um rosnado terrível, o ódio em minha garganta queimava. Havia derrubado Siferath quando fui derrubada pelas correntes, mas ainda tinha minhas garras e meu treinamento.
– Mas... – Ele deu outro passo, mas ergui minha mão para que ele não se aproximasse e o encarei.
– Vai, encontre os outros! – Susano não tentou insistir, ele juntou as palmas das mãos, e então ele desapareceu numa ventania.
Não ia demorar para Hobner alcançar os calabouços, mas eu queria destruí-lo na frente de todos. Então, com aquela raiva crescendo cada vez mais, derrubei a pesada porta de madeira e ferro com o punho congelado, fazendo-a esfarelar-se com meu golpe.
Corri pela escada em espiral, saltando os degraus de dois em dois e podia sentir que cada passo meu deixava um rastro de gelo. Podia sentir o poder sob minha pele, movendo-se com muito mais força do que o habitual, não sei se pelo sangue de Susano ou se por minha raiva daquele demônio que queria apenas poder. Não bastasse Higarath, precisava lidar com Hobner também!
Quando alcancei a porta do corredor, fiz o mesmo que com a porta do calabouço e saí, entrando no corredor principal do castelo sem sequer me incomodar em liberar as sombras para me cobrirem, não, eu não precisaria delas. Virei-me rapidamente escutando os passos virando o corredor a alguns metros de distância, as chamas das velas nos castiçais nas paredes tremeluziram fazendo minhas sombras parecerem mais assustadoras quando me movi em direção a eles.
Me cobri com uma fina camada de gelo, formando uma armadura sobre meu corpo; Hobner parou em choque quando deu de cara comigo ao virar o corredor, os magos que o acompanhavam me olharam com espanto e pararam alguns passos atrás dele, na certa pensando se não deveriam fugir. Hobner me encarou, os olhos vermelhos desceram e subiram por mim e ele deu um breve sorriso.
– Ora, ora... não fazia ideia de que ele tinha te transformado em Malvarmo completa! Se soubesse, não teria perdido tempo tentando te envenenar! – Ele rosnou, estalando os dedos, os magos atrás dele, os quatro senhores Malvarmos bem vestidos que deixaram aquela pobre mulher morrer, ergueram as mãos e conjuraram bolas de fogo, eles usariam fogo para me deter.
Uma risada terrível escapou de mim quando eles atiraram aquelas bolas em minha direção, mas se desfizeram antes mesmo de tocar em mim, eles olharam ainda mais espantados e cambalearam para trás conforme o meu gelo ia consumindo as paredes e o chão ao meu redor. Não estava usando nem um décimo do Yinemí para me defender, mas sentia que podia engolir aquele castelo inteiro com ele caso quisesse, e era isso mesmo que faria, mas antes...
– VAMOS! ACABEM COM ELA! – Hobner gritou, mas eu fui mais rápida, não esperei que eles atacassem novamente, e mesmo desarmada, avancei para eles e cravei as garras no peito dos dois que estavam mais próximos a Hobner, fazendo com que eles congelassem e se desmanchassem em cacos de gelo ao chão. Os outros dois ainda tentaram correr, porém duas adagas de gelo apareceram em minhas mãos. As atirei contra eles com toda força que pude, fazendo as adagas cravarem em suas cabeças, e como os dois anteriores, eles se desfizeram em cacos.
Hobner olhou os magos desmanchando-se em gelo, e mesmo com o olhar alarmado em seu rosto, ele gargalhou e bateu palmas, os sons mais forçados e falsos que ouvi em toda minha vida. Ele me encarava, a mão sobre o punho da espada de vitrino amarelado presa no cinto. Hobner deu um meio sorriso quando me viu olhar a arma:
– Que tal uma última dança? Vai arriscar o que carrega aí? – Ele apontou com o queixo para minha barriga, rosnei novamente, o canalha sabia e estava tentando jogar comigo! Eu ia rasgá-lo em partes tão pequenas que não sobraria nada para o povo raivoso. Ele sacou a espada mais rápido do que esperava, e em um piscar de olhos estava em cima de mim, os corredores do castelo não ofereciam muitas opções de movimento, então me esquivei para a esquerda, fugindo se seu primeiro golpe.
Hobner era rápido, mas não tanto quando Caalin, e o treinamento com ele nos dias na cabana fizeram grande diferença. Hobner girou a espada, que passou milímetros acima de minha cabeça quando abaixei, ela passou rasgando a parede como se fosse feita de papel, saltei para longe dele, aterrissando a poucos metros, usando as garras para não escorregar no chão congelado. Com outro sorriso diabólico Hobner abriu as mãos sobre o cabo, revelando uma de minhas armas.
– Feita por uma armeira incrível de Ciartes, todas as armas dela têm uma propriedade mágica, a conhece? – Ele riu com deboche. – Apritan... significa devoradora.
Ele mostrou o rasgo na parede, que havia começado a se desfazer como se o corte da espada a tivesse consumindo. Hobner girou a espada em punho e veio para cima de mim novamente, tive menos de um segundo para pensar em algo contra aquela espada, mas só podia usar uma coisa contra ela, e Siferath não estava ali comigo. O tempo que levei para pensar no que usar contra ele, me custou muito, antes que percebesse, Hobner enrolou o punho em meus cabelos e com um puxão me fez arquear a garganta, ele ia arrancar minha cabeça!
Usei magia das sombras para fazer meu corpo pesar, desequilibrando-o para frente e fazendo com que a espada errasse meu pescoço, mas o movimento não foi o suficiente que eu fugisse pois ele ainda segurava firme, então a espada passou poucos centímetros acima de mim cortando o cabelo que ainda estava enrolado na mão de Hobner. Saltei longe suficiente para ficar fora do alcance da espada e ele riu, soltando os longos fios que se desmanchavam ao chão.
Hobner atacou outra vez enquanto eu tentava desviar dos golpes cada vez mais rápidos, mas os móveis e adornos de pedras do corredor me atrapalhavam. Não podia usar a magia negra mais do que o necessário, não sabia o que significava seu retorno e o que podia acontecer caso a usasse. Usei o cotovelo para desviar um soco de Hobner que afundou a parede ao meu lado e o ataquei com as garras para rasgar seu braço, mas o tecido aparentemente fino de sua túnica, era na verdade uma espécie de couraça, porém o meu ataque não foi de todo um desperdício de esforço, ele deixou a espada cair com o golpe.
– Malvarmo, minha querida! Sei me defender contra minha própria espécie, ao contrário de você! – Ele girou o corpo, dobrando um pouco o joelho e acertando a outra perna na lateral de meu corpo. Aceitei a parede com força perdendo o ar e vendo pontos brilhantes em minha visão. Consegui erguer os braços como um escudo para evitar o próximo chute, que teria acertado minha barriga. Hobner se virou para pegar a espada e, cambaleando, consegui me levantar. Mesmo que o sangue de Susano tivesse me livrado da maior parte do dano do pó de fogo, ainda não estava totalmente recuperada. Tinha que acabar com aquilo e já!
Quando Hobner avançou novamente com a espada erguida, achando que eu estava perdendo, girei nos calcanhares como se fosse desviar da lâmina que descia impiedosa, do golpe fatal que ele desferiria contra mim, mas apenas ajoelhei-me rápido e forcei meu corpo a suportar o impacto quando ergui as mãos e segurei a lâmina. O metal se chocou, ressoando com os meus ossos, fazendo com que um choque passasse por meu corpo, mordi os lábios com força e fechei as mãos, mesmo sentindo a carne partida em minhas palmas protestar contra o movimento. Hobner olhou assustado e o encarei de volta com um pequeno sorriso.
– Congele! – E o sangue que pingava de minhas mãos, escorrendo para a lâmina congelou conforme o Yinemí saiu numa rajada, destruindo a arma de Hobner. Ele não soltou as mãos rápido o suficiente, e antes que percebesse, suas mãos continuaram agarradas no cabo da espada quando ele puxou os braços, separando as mãos dos pulsos.
Hobner urrou conforme o gelo subia por seus braços e se espalhava rapidamente por seu corpo, ele caiu de joelhos, partes de seu corpo começaram a soltar escamas congeladas, estava se desmanchando. Ele me encarou com os olhos cheios de ódio quando me aproximei, apreciando a visão dele se desfazendo aos poucos.
– MALDITA! VOU TE ENCONTRAR NO INFERNO ANTES QUE... – Enfiei as mãos dentro de sua boca, imitando uma memória terrível de Fairin que não consegui apagar, cravei as garras no céu da boca de Hobner e na pele sob sua língua.
– Não vou pro inferno! Mas espero que você encontre Fairin por lá e que queimem juntos! – Grunhi forçando sua boca a abrir enquanto ele sufocava, aumentei a força até que a pele do seu rosto começasse a rasgar, sangue transparente-azulado ameaçou fazer minhas mãos escorregarem, mas antes, rasguei sua cabeça ao meio com um estalo terrível que fez meu estômago embrulhar.
Ele se despedaçou aos meus pés, numa pilha de lascas de gelo azulado. Minhas mãos ainda estavam feridas, mas o corte estava quase fechado quando olhei para elas. Não sabia o que fazer agora, tinha que sair dali o mais rápido possível, pois o gelo que havia espalhado pelo chão estava fazendo o piso afundar. Com a dor irradiando pela lateral do meu corpo, corri pelo castelo procurando por uma saída. Parecia que todos os habitantes do castelo haviam desaparecido, pois conforme passava pelos corredores, não encontrava uma alma viva, nem sequer os guardas de Hobner estavam no castelo.
Não conseguia teleportar dali de dentro mesmo com os poderes de volta, na certa por culpa das barreiras de proteção dos magos que se mantinham intactas, mesmo com a morte deles. Passei por um corredor longo com pinturas de paisagens da neve pela terceira vez e tive que admitir que estava perdida. A dor irradiando na lateral do meu corpo indicava que algo estava muito errado, na certa Hobner tinha quebrado algumas costelas com o chute.
O castelo era maior do que pensava, não tinha jeito de sair dali sem usar as sombras para encontrar um caminho para fora, então as conjurei novamente, espalhando-as pelo castelo e procurando uma saída com urgência, embora estivesse morrendo de medo de usar as sombras depois do lembrete de Susano, precisava achar a saída e não conseguiria sozinha. Havia caminhado pelo mesmo corredor várias vezes e pelos olhos das sombras, notei que um dos quadros mais altos escondia uma passagem secreta, uma escada em espiral que levava ao alto da muralha do castelo, por ali eu conseguiria sair pelos portões principais.
Enquanto subia as escadas com dificuldade, por causa da dor terrível que estava fazendo-me encolher cada vez mais, notei no topo da escada uma porta e um longo corredor, onde quase no fim havia um portal que saía na parte de cima da muralha principal. Mas ao começar a andar pelo corredor, escutei o som de vozes, muitas gritando ao som de passos apressados. Juntei o gelo nos nós dos dedos e concentrei a energia, esmurrando a parede com força. O gelo se espalhou rapidamente, fazendo com que a parede cedesse e desmoronasse. O rombo na parede me levou direto ao pátio central, onde s habitantes do castelo estavam fugindo em direção aos portões, porém, esses estavam selados com magia.
Ao redor do castelo, uma grande bolha vermelha brilhava fortemente, e aos poucos, uma intensa energia maligna me deixava mais fraca. Em meio à multidão de serviçais e guardas tentando escapar do castelo, notei uma menina de pele cor de ébano e olhos vermelhos, adornos azuis safira no rosto e ombros, ela era exatamente igual a Hisana e estava saindo do meio deles em direção à fenda na muralha. Passei pela multidão que se empurravam, acotovelavam e chutavam, desesperados para arrebentarem os portões. Consegui com dificuldade chegar no canto da muralha onde a menina se escondia.
– Você é parente de Hisana? – Perguntei, forçando minha voz acima dos gritos, fazendo com que minhas costelas doessem ainda mais. A menina assentiu e segurou firme minha mão, não parecia ter mais que sete anos.
– Ela está aqui? – A menina negou e começou a chorar. – Está tudo bem! Eu vou nos tirar daqui, sou uma caçadora! – Lhe dei um sorriso fraco, mas suficiente para que ela se acalmasse. Nós precisávamos quebrar aquela estranha barreira para sair, mas a presença maligna que sentia, parecia ter anulado completamente minha magia negra, restando apenas o Yinemí. Estava me sentindo exausta e dolorida, mas não podia desistir agora, tinha que tirar aquela gente dali.
– O que está acontecendo? – Perguntei para um dos guardas, que me ignorou, ele continuou batendo como louco na barreira que protegia o portão, até que aquela luz penetrou nele e ele explodiu como um balão. Olhei horrorizada para os restos do homem no chão, sangue transparente amarelado havia sido borrifado em cima da multidão desesperada, e aquilo só tinha piorado a situação.
– SE ACALMEM! – Berrei com todas as minhas forças, sentindo a vista escurecer, mas não cairia agora, se fosse para morrer, morreria contra Higarath, e não ali.
– O CASTELO TEM UMA PROTEÇÃO, SE O MESTRE MORRER, O CASTELO É DESTRUIDO E ENGOLIDO PELO PENHASCO! - Gritou um malvarmo atrás dos outros, vestido ainda com roupas de dormir, e pela elegância das roupas, devia ser um conselheiro ou alguém de importância.
Caminhei até ele, forçando o caminho entre as pessoas, com a menina agarrada em minha cintura. Quando o alcancei, segurei-o pelo colarinho da camisa e o sacudi.
– Como podemos anular essa magia? – Ele me encarou com desespero no olhar.
– Não podemos, está programada para ser assim!
– Então Hobner queria que sua casa fosse engolida com todos dentro quando ele morresse, e vocês continuaram a servi-lo? – Berrei, ignorando a dor, a raiva naquele momento estava maior. – Me deem um motivo para tirá-los daqui! Vocês são iguais a ele no fim! – Gritei, sentindo a dor aumentar, então, uni as mãos e soltei uma rajada de gelo contra a barreira. Ela não cedeu, mas o meu era o poder de uma das Almas Elementais e eu não morreria ali!
Forcei o poder até o limite e além, mas a barreira parecia disposta a não ceder, nem sequer consegui cobri-la totalmente com o Yinemí.
– Vamos... – murmurei, ajoelhando-me e apertando as mãos contra o chão. Uma vez Caalin me disse que os malvarmos foram criados com o Yinemí e Vegahn também, então, talvez conseguiria aumentá-lo puxando forças do mundo. Ouvi os estalos do penhasco sob o castelo cedendo e os gritos e desespero aumentaram, eu mesma comecei a entrar em pânico e lágrimas escaparam dos meus olhos.
– Por favor! Reaja a mim! – Implorei, cravando as unhas no gelo espesso que cobria o pátio.
Uma corrente elétrica passou por meu corpo, junto com uma onda de frio intenso e algo cruel e sem fim me atingiu de dentro para fora. Uma dor terrível em meus braços fez com que eu tentasse tirar as mãos do chão, mas uma fina linha de gelo me mantinha ligada ao gelo do solo. O poder aumentou tanto, que com um olhar, apenas um olhar a muralha do castelo congelou e começou a rachar e se despedaçar, junto com a barreira vermelha ao redor do castelo. Blocos de pedra que agora eram gelo puro se estilhaçavam ao se chocar com o chão do pátio, fazendo finos cristais de gelo voarem em direção as pessoas, mas da mesma forma que consegui congelar a muralha, fiz com que aquele gelo ficasse parado no ar. As pessoas que estavam ali, ficaram paradas olhando boquiabertas o gelo flutuando.
– CORRAM! – Gritou o Malvarmo atrás de mim. Foi como se o transe que matinhas as pessoas vidradas olhando o gelo tivesse sido quebrado, e eles voltaram a correr aos berros para fora dos limites do castelo, porém, eu ainda estava presa ao chão. O malvarmo nem sequer tirou a menina de perto de mim, ela continuou abraçada comigo, olhando-me com um meio sorriso assustador.
– Vá com eles! – Falei, mas ela negou com a cabeça e o sorriso aumentou.
– Não pode fugir, não é? – A menina se curvou e seu corpo começou a mudar de cor e tamanho, até um Salamandra corpulento estar de pé ao meu lado, com uma adaga de prata na mão.
– Ausiet! – Rosnei tentando me soltar, fazendo força com os pés para quebrar o gelo que me mantinha ao chão.
– Hobner não aproveitou a chance, mas eu vou!
– Gostou? Posso mudar com poções de minha criação! – Ele sorriu e se abaixou ao meu lado puxando meu cabelo, curvando meu pescoço para traz e pondo a faca contra minha pele. O metal parecia morno contra minha pele, então notei que meus braços e pernas estavam quase congelados, e tudo à minha volta estava congelado também. Cada pedra, cada pedaço de madeira... tudo havia se tornado gelo sólido. A terra estremeceu sob nossos pés, mas Ausiet não me soltou.
– Ultimas palavras? – perguntou forçando a adaga um pouco mais, senti o sangue gelado escorrer por minha pele e um arrepio percorreu minha espinha.
– Faça logo, covarde! – falei baixo e fechei os olhos. Mas quando a adaga foi puxada contra minha garganta, ouvi o som irritante do metal arranhando gelo, e Ausiet berrou, fazendo-me abrir os olhos para vê-lo sendo atravessado por várias estacas de gelo que subiam do chão ao meu redor fazendo o sangue vermelho fumegante empoçar e congelar a meu redor. Confusão me tomou quando olhei para mim, e vi que estava congelado de dentro para fora e que sobre a pele de meu pescoço havia uma camada de gelo, a sentia marcada pela lâmina que ele pressionou ali, todo o gelo ao meu redor estava reagindo a mim, como se estivesse me tornando parte dele, ou melhor, como se minha mente estivesse unida a ele.
Ainda assim não conseguia me soltar do gelo no chão, e comecei a sentir uma calmaria, uma tranquilidade tão boa, que o mundo todo parecia estar silencioso. Só escutava o som do gelo estalando e rachando e aquilo me deu paz, não estava mais sentindo dor, apenas frio.
Levantei olhos e aproveitei a escuridão da madrugada, nunca havia percebido o quão lindo era o céu em Vegahn, o quanto as estrelas eram maiores e brilhavam com mais intensidade. Fechei os olhos e aproveitei a sensação daquele frio deixando-me dormente. Um rosto lindo de uma mulher apareceu dentro de minha mente, ela era branca como a neve e tinha olhos negros, vorazes, mas tranquilizadores de certa forma. Eu a conhecia:
“Yin...emí?” Minha mente perguntou a ela.
“Oi, Nikella. ”
“Achei que gostasse de mim, por isso quis ficar...” Ela deu um pequeno sorriso para mim.
“Gosto de você, minha pequena flor, por isso ainda estou aqui! ”
“Então porque está me matando? ” Minha pergunta foi calma, não tinha medo do que estava prestes a acontecer, não estava com medo de morrer, mas por um momento me lembrei de Caalin em frente ao castelo e meu peito doeu. A mulher sorriu ainda mais e estendeu as mãos.
“Você está fazendo isso consigo! Você quis negar o que se tornou, me negando também, e isso a está consumindo, não eu! É assim que Malvarmos morrem quando seu poder se esgota! Todos têm uma parte de mim e a usam para partir desse mundo quando acham que já é hora! ”
“Entendi, obrigada por ficar aqui. ”
“Não vou te deixar. Até o fim, lembra-se? ” Assenti mentalmente.
Não sabia quanto tempo estive de olhos fechados conversando com a Alma dentro de mim, um minuto, uma hora... um curto ou longo momento de paz, estava morrendo e não ligava, pois terminaria tão fácil...
Porém luz azul explodiu ao meu redor, não luz, chamas. Chamas azuis que derretiam o gelo, mas não me queimavam. Não sentia o calor daquelas chamas como se fossem me queimar, estava apenas morno ao meu redor. Senti que alguém me abraçava, e essa pessoa tinha um cheiro agradável, amadeirado e um abraço quente e vivo.
– Vamos, Nikella! Não deixe isso te consumir. – Era Kuran, a voz dele, as chamas negras estavam ao meu redor e ele as controlava para que não me ferissem. Abri os olhos devagar e vi o par de olhos vermelhos, assustados, esperando que eu reagisse. Deitei o rosto no ombro dele e respirei fundo, estava cansada demais e fraca demais para reagir, mas o fogo se intensificou, derretendo o gelo ao meu redor. Kuran me tirou do chão e correu para fora do pátio me carregando. Ele só parou de correr quando um som alto de um desmoronamento o fez se virar. Olhei pelas fendas dos olhos, o castelo que havia se tornado gelo e acabara de ser engolido pelo penhasco das Cinco Lanças.
Observamos em silêncio enquanto terra e gelo caíam no mar a poucos metros de nós. Kuran se ajoelhou no chão e apertou os braços em volta de mim, quando olhei para ele, ele estava boquiaberto e com os olhos vidrados.
– Você é um perigo! – Ele deu um meio sorriso. Olhei para a destruição que havia causado junto com a barreira de Hobner.
– Por que veio? – Perguntei, minha voz não passava de um sussurro.
– Susano foi até o castelo e disse o que estava acontecendo. Ele queria vir, mas a capitã da guarda estava muito ferida e ele ficou lá para curá-la.
– E os outros?
– Annie e Asahi estão afastando as pessoas da cidade, até terem certeza que aquilo – disse apontando com o queixo para a nuvem de gelo que se formou na borda do penhasco agora mais longo e irregular – Não destrua a cidade também. Lupinus e Nelin estão conduzindo as pessoas que habitavam o castelo para locais seguros.
– E...
– Ele ficou no castelo. O pó de fogo o enfraqueceu e Oriel não o deixou sair! – Kuran sorriu. – Precisou que Ericko e Annie usassem fogo para fazê-lo ficar lá!
Mal escutava suas palavras, agora que a sensação do frio havia passado, a dor estava voltando com tudo. Arquejei, soltando um gemido quando tentei respirar normalmente.
– Vamos, vou te levar pra casa.
– Não respondeu minha pergunta... – Kuran franziu o cenho.
– Além de ser uma caçadora de Ciartes, líder da minha equipe... ainda é minha amiga. Não sou um monstro, sabe. – Assenti devagar olhando uma última vez para o penhasco para evitar um sorriso, quando fechei os olhos, a luz azul nos circulou e o puxão da magia de teleporte me fez apagar de vez.
Capítulo 5
Acordei com as vozes exaltadas de Caalin e Kuran, que discutiam aos berros sobre o motivo de eu estar parecendo um caco enquanto caminhávamos sabe-se lá deuses para onde, fazendo minha cabeça pulsar de dor. Junto aos berros deles, Susano tentava se manter calmo, pedindo que os dois parassem de gritar. Ainda estava no colo de Kuran, notei pelo calor intenso, que agora começava a fazer meu corpo doer. Só abri os olhos quando ele me colocou em cima de uma maca em uma sala branca cheia de janelas abertas, revelando o céu escuro borrifado de estrelas do lado de fora, estava na instalação de cura do Castelo de Gelo, ou pelo menos numa das três salas de cura. Teria gritado ao ser colocada na cama, mas minha força me limitou a um fraco gemido sofrido enquanto eu tentava tocar minhas costelas.
– Vou encontrar com os outros! – Kuran saiu da sala batendo a porta irritado.
– Céus, Nike! O que aconteceu quando eu saí? – Perguntou Susano, fazendo suas mãos brilharem e minha roupa ser imediatamente substituída por uma camiseta branca e um short. Não conseguia forças para responder, mas olhei para Caalin achando estranho seu silêncio. Os olhos negros dele não saíam da lateral do meu corpo, que logo percebi estar mais fria que outras partes. Olhei para baixo, para onde as mãos de Susano agora estavam liberando sua magia de cura, Hobner não havia apenas quebrado algumas costelas com o chute, ele havia rasgado a pele sobre as costelas e estava horrível.
Caalin soltou um rugido terrível, na certa havia visto as imagens que Susano transmitiu a todo Vegahn e deve ter imaginado coisas erradas sobre o que aconteceu quando Susano me deixou lá, pois ele olhava para Susano como se prometesse uma morte lenta e dolorosa.
– Ele ainda está no castelo? – Perguntou Caalin referindo-se a Hobner.
– Não tem mais ninguém no castelo, Caalin. – Sussurrei encolhendo-me quando Susano apertou a mão em minhas costelas.
– Desculpe! – Ele murmurou, uma mancha azul cobria grande parte do meu tronco, embora a dor começasse a diminuir, era algo bem feio de se ver.
– Você o matou? – Caalin passou a mão delicadamente em meu rosto, encarando-me ainda com a ira brilhando nos olhos.
– Matei... Hobner e Ausiet... e ainda ajudei a magia de destruição de Hobner a derrubar o castelo e quase que a cidade também foi parar no penhasco.
Susano ergueu as sobrancelhas, mas sem desviar a atenção da mancha em meu corpo. Caalin meneou a cabeça e abriu a boca para falar algo, mas as portas da sala se abriram novamente e Annie, Lupinus e Kuran entraram na sala, todos querendo falar ao mesmo tempo, mas foi Kuran que falou mais alto:
– Você não a ensinou a expandir a magia para usar a Alma Elemental, não foi? – Ele estava fulminando Caalin com o olhar, ignorando os rosnados ameaçadores de Caalin em resposta.
– Do que está falando? – Perguntei, a voz rouca e baixa fazendo-me parecer pior do que estava, ou não. Annie foi para o lado de Susano e ficou pálida ao ver o que ele estava curando.
– Não, como a magia negra equilibrava o poder do Yinemí, achei que não precisasse de treinamento mágico... – Caalin explicou, para minha surpresa, pois achei que ele só iria botar Kuran para correr da sala.
– Depois eu que sou o ignorante, não é? Ela quase foi consumida pela Alma do gelo! – Kuran gritou, apontando um dedo na cara de Caalin, suguei o ar assustada, esperando que a cabeça de Kuran rolasse a qualquer momento, até Annie e Susano olhavam os dois assustados, e para Lupinus, só faltava pipoca para o espetáculo ficar mais interessante. Caalin baixou os olhos assustados para mim:
– Ela estava morrendo quando cheguei lá, quase completamente congelada! Se não tivesse usado o fogo ela e o...
– Já chega, Kuran! – Berrou Annie movendo-se rapidamente, arrastando Kuran para fora da sala, cobrindo sua boca, Lupinus aproveitou a situação para escapulir da sala com os dois. Meu coração chegou a pular desesperado quando percebi que Kuran ia falar sobre o bebê. Caalin teria um troço se soubesse que eu havia enfrentado Hobner e Ausiet assim, não sabia muito sobre malvarmos velhos e o que seus corações podiam aguentar quando se tratava de emoções. Olhei para Caalin, ainda estava com os olhos fixos em meu rosto, ele apertou minha mão com delicadeza e franziu o cenho.
– Nós conversamos sobre isso em Catadh, Nike.
– Sou imortal agora, não era pra ele me consumir assim! Era? – Caalin assentiu.
– Você ainda não tem o total controle da magia, se liberá-la de forma errada... – Ele trincou o maxilar, apertando com força a barra de proteção da maca. – Susano, pode ir até a outra sala e ver se Zion já despertou? – Caalin pediu, a voz calma, mas os olhos estavam negros como carvão. Não fazia ideia do motivo dele estar zangado, uma vez que ele não me ensinou a usar os poderes de forma correta.
– Não acabei aqui ainda! – Respondeu ele, olhando alarmado para mim.
“Estou usando a Alma dos Ventos para esconder! ”
“Acho que consigo cuidar disso! ” Respondi.
– Não se preocupe, eu posso cuidar disso. – Caalin ficou sério e tomou o lugar de Susano ao meu lado. Fechei os olhos quando ele tocou a lateral de meu corpo e algo morno começou a pulsar ali.
– Achei que não fosse bom com cura. – Falei.
– Está esquecendo do dia que achou o ovo de docinho? Eu curei seu braço, lembra? Eu sou bom com tudo. – Ele resmungou baixo, sem nenhuma pontada de humor. Seu cenho estava ainda mais franzido enquanto ele olhava para a marca azulada em minhas costelas, estava curando mais devagar do que com Susano, mas pelo menos os cortes feios já haviam desaparecido.
– Caalin... está tudo bem! – Afirmei apertando de leve seu braço, tentando ignorar a dor, mas quando uma das costelas voltou pro lugar, tive que me virar e esconder o rosto no travesseiro para evitar gritar.
– Não está nada bem, droga! – Ele rosnou esmurrando a mesinha de metal ao lado da maca, partindo-a ao meio. – Ele não deveria ter conseguido te capturar! Aquela porcaria daquele pó não podia ter efeito sobre nós! – Ele encolheu os ombros. – Eu não podia ser fraco!
– Você não foi, Caalin! Não é sua culpa que as folhas tenham aquele efeito sobre nós! – Tentei fazê-lo se sentir melhor, mas o conhecia suficiente para saber o que aquela captura significava para ele, a possibilidade de perder mais alguém que amava.
– Ele te feriu... não te treinei adequadamente, não contra outros de nós! Nem mesmo te ajudei a aperfeiçoar a magia do Yinemí! Você podia ter morrido! – Ele voltou a se concentrar na mancha, as mãos estavam trêmulas de raiva.
– Olhe pelo lado bom... nos livramos Hobner e Ausiet! Quando formos embora e deixarmos Aliver no poder novamente, ele não vai se preocupar com os dois malucos querendo a cabeça dele.
– E para isso eles quase tiveram a sua! – Ele rosnou. – Aqueles dois Salamandras...
– Você teria ido atrás de mim sem seus poderes, e aí?
– Não dependo só de meus poderes, Nikella! – Para ele usar meu nome junto ao tom de voz que mais parecia um trovão, preferi fechar os olhos e ficar deitada em silêncio, esperando que ele terminasse de me curar pois nada que eu dissesse iria fazê-lo se sentir melhor agora. A dor enquanto as costelas eram concertadas era terrível, mas me concentrei ao máximo em parecer tranquila, não precisava dele se culpando de não conseguir usar os poderes de cura da mesma forma que Susano. Depois de alguns momentos de olhos fechados, quando a dor havia desaparecido por completo, percebi o silêncio na sala, mas sentia a presença de Caalin ao meu lado e abri os olhos devagar.
Caalin estava parado de olhos arregalados, encarando minha barriga, sua palma aberta estava a poucos centímetros acima dela e uma fraca luz verde e viva saía de mim. Me apoiei sobre os cotovelos para olhar o que significava a luz, e por um momento achei que fosse ele que estivesse fazendo aquilo mas ao olhar com mais atenção, percebi que pouco abaixo do meu umbigo, havia o símbolo de uma folha verde de quatro pontas, do tamanho de um anel ou uma moeda e dela que saía a luz.
– O que é isso? – Perguntei encarando a marca também, então, meu coração parou e senti o sangue sumir de meu rosto.
– Você está grávida... – Ele murmurou, colocando a mão quente sobre a marca. Ele fechou os olhos com força e colocou a outra mão no rosto. – E você sabia! – Caalin me encarou, os olhos agora azuis, faiscando num misto de alegria, raiva e um medo que fez o nó em minha garganta oscilar.
– Caalin...
– O sono, a fome, as oscilações de humor, a falta dos poderes... – Ele cambaleou para trás, apoiando se na outra maca e esfregou o rosto com as duas mãos, podia ver a ira aumentando a cada respiração que ele dava, não por eu ter escondido, mas pelo que havia acontecido a pouco com Hobner e Ausiet.
– Só soube ontem. – Omiti parte da verdade, tentando pelo menos livrar Susano da confusão.
– E mesmo assim não me contou? – Mágoa brilhava em seus olhos quando ele me encarou novamente.
– Não queria dar falsas esperanças... podia ser alarme falso. – Murmurei encolhendo-me na maca, porém, num instante Caalin já estava ao meu lado novamente, abraçando-me com tanto cuidado que poderia ter feito meu coração se partir com a culpa. Ele segurou meu rosto e me beijou várias vezes e me abraçou de novo:
– Desde quando?
– Não sei... – Ele se afastou um pouco, pensativo, encarando o nada. Podia escutar enquanto ele calculava mentalmente, até uma sombra cobrir sua expressão, ele estava ligando os pontos e olhando para mim novamente, disse:
– A alma da terra... por isso ficou com você! E se isso aconteceu depois que você se curou mordendo Zion... – Novamente ele estava calculando, olhando assustado para mim. – Tem pouco mais de duas semanas.
– Isso é bom ou ruim?
– Bom porquê você não tem mais a magia negra, se ainda a tivesse isso seria um problema! – Explicou, novamente aquela horrível sensação de que algo estava errado afundou em meu estômago, então ergui a mão, movendo as sombras do quarto. Caalin soltou um baixo assovio e meneou a cabeça.
– E agora?
– Como seu poder foi despertado? – Ele segurou minhas mãos, pressionando a palma fazendo com que as marcas negras aparecessem em meus braços.
– Isso importa? – Comecei a suar frio, olhando de relance para a porta.
– Apenas uma situação que gera um medo intenso ou stress pode trazer os poderes de uma maga grávida de volta, uma situação que a deixaria muito nervosa. Foi durante a luta com Hobner? – Caalin quis saber, tocando gentilmente minha bochecha com o polegar.
– Não, foi quando eu a beijei! – Disse Susano entrando na sala. – Ela estava sem se alimentar e não queria me morder, então fiz ela tomar meu sangue a força, do contrário ela não teria saído daquele calabouço! Mas creio que meu não foi o suficiente, se não ela não teria perdido o controle da força do Yinemí. – Susano estava parado ao lado da maca, encarando Caalin sem medo.
– Você fez o quê? – Caalin urrou soltando pequenas fagulhas quando avançou para cima de Susano, que não se moveu um milímetro e nem se intimidou com a raiva de Caalin.
– Era preciso! Você nem sequer se preocupou em fazê-la se alimentar direito! Eu estava apenas cuidando dela e do seu filho, que aliás, ela não teria descoberto se eu não tivesse contado!
Susano era louco e estava certamente querendo morrer! Me levantei da maca rapidamente ficando entre os dois, pois os rosnados de Caalin estavam cada vez piores, mas fiquei tonta e meus joelhos ameaçaram ceder quando vi pequenos pontos pretos em minha frente, num minuto Caalin estava com os braços ao redor de mim. Corrigi a postura, soltando-me calmamente dos seus braços e encarei Susano:
– Ei! – Apontei um dedo para Susano, uma ameaça silenciosa. – Não preciso de uma babá, Caalin não é meu dono para me fazer comer ou me adestrar a fazer as coisas no tempo que ele quer! E você não devia ter feito aquilo, para ajudar ou não! Eu posso cuidar de mim sozinha! Então, parem de palhaçada os dois! Vocês não são cachorros para ficarem mostrando os dentes por ai! – Susano deu um passo para trás, as sobrancelhas arqueadas com minha resposta.
– Me desculpe. – Disse ele virando-se de costas para nós, enquanto eu mantinha Caalin afastado com a outra mão, céus, era como tentar manter uma avalanche parada com uma pá! – Mas independente do qual zangada você esteja, Nike, eu vou fazer o que for preciso para te salvar, sempre! Goste você ou não! – Ele fez uma breve reverência e um sorriso malicioso apareceu em seu rosto. – Quem você acha que mandou Kuran até lá? Eu sempre cuido daqueles que amo. – E dizendo isso, ele saiu da sala.
Consegui afrouxar os braços de Caalin ao meu redor e me virei para ele, Caalin ainda olhava para o lugar que Susano estivera parado na porta alguns segundos antes, com o choque transparecendo em seu rosto como se alguém tivesse lhe dado um tapa. Ergui as mãos para tocar em seu rosto e ele segurou firmemente meus pulsos, soltando um longo suspiro frustrado. Meu coração ficou apertado, como se eu fosse culpada de tudo aquilo, talvez fosse...
– O pior de tudo é que eles estão certos. Não te ensinei as coisas da forma como deveria, não cuidei de você. – Senti meu rosto esquentar, droga! Eu sabia cuidar de mim! Não precisava deles querendo me ensinar como eu devia fazer aquilo! Eu sobrevivi com Merian, sobrevivi a ACV, à Fairin e a todo resto!
“Mas não pode sobreviver nesse corpo sem se alimentar! ” Murmurou a voz dentro de mim.
A voz dentro era alta e clara e pareceu despertar algo em mim, fazendo-me dobrar o corpo e forçar o ar para meus pulmões, de tanta dor que senti.
– Nike?! – Caalin me segurou pela cintura, colocando-me de volta sobre a maca.
– Não era a Alma do gelo que estava me matando... era eu. – Murmurei, cravando as garras no colchão fino da maca, a cobertura com uma textura semelhante a couro cedeu sob a pressão das garras. Torci os dedos no interior suave, tentando manter a cabeça calma, pois aquela era uma lembrança difícil e mesmo com tudo que havia passado, talvez fosse uma das piores que tinha.
– O que quer dizer? – Caalin perguntou, levantando meu rosto entre as mãos, esperando que eu o encarasse, mas eu só queria fugir daquilo.
– Foi numa das primeiras viagens que fizemos na ACV. Nossa professora de herbologia nos levou à floresta de Cibrés, no continente leste de Ciartes, Murlavia...
– O que isso tem a ver com...
– Não me interrompa! – Rosnei, a sede já estava me deixando louca a ponto de querer brigar até com ele, suspirei cansada, mas mesmo assim continuei a falar. – Nós estávamos procurando por uma erva medicinal capaz de regenerar tecidos rapidamente. Era uma turma pequena, trinta e cinco alunos, mas só haviam três caçadores formados escoltando o grupo. Lola, a professora, nos dividiu em sete grupos de cinco alunos e nos espalhou pela floresta, dando-nos dardos de paralisia para o caso de encontrarmos alguma criatura, assim poderíamos paralisá-la e correr de volta até os caçadores no meio da floresta. – A floresta preencheu minha mente. Ainda podia ver claramente as árvores altas de cascas grossas e escuras, os galhos retorcidos de folhas grandes e densas que não deixavam quase nenhuma luz passar, o cheio de musgo e folhas se decompondo e a caverna escavada numa rocha grande bem próxima onde colhíamos as plantas.
– Continue. – Caalin pediu, não havia percebido que estava perdida em meus pensamentos.
– Eu e os outros quatro alunos, três garotos e uma garota, fomos para longe do rio que cortava a floresta, pois quanto mais longe da água, mais chance de achar o Fhinadaris. Nós nos aproximamos demais de uma caverna e aquela parte era a mais densa e escura da floresta. Tive um pressentimento terrível ali, mas havíamos encontrado a erva bem próxima as rochas. Eu não me aproximei muito, fiquei revirando o chão perto dos arbustos, o mais distante possível da caverna. Não tive muito tempo para registrar o que aconteceu, pois uma neblina negra fez a floresta desaparecer ao nosso redor. Tudo que via eram sombras, o cheiro da floresta havia desaparecido e tinha sido substituído por um cheiro de morte e medo...
Parei de falar, me concentrando em colocar ar suficiente em meu corpo, as mãos de Caalin subiam e desciam em minhas costas enquanto escorava a cabeça em seu peito, a tranquilidade que ele estava tentando me passar me deu força para terminar de falar.
– Eu vi no meio das sombras um par de olhos vermelhos! Eles eram terríveis, eu só queria puxar meus colegas para longe dali e chamar os caçadores, mas estava paralisada de medo e não conseguia ver onde eles estavam. Foi então que comecei a ouvir os gritos deles, implorando por ajuda. Consegui enxergar com muito esforço a criatura em meio as sombras, ele estava rasgando o pescoço de meus colegas com as presas e os secou. E eu, como uma boa covarde, fiquei em silêncio, mordendo meu próprio braço para não gritar e atrair a atenção daquele monstro. Ele ainda ficou um tempo do lado de fora, observando em volta como se soubesse que havia mais alguém. Mas por sorte eu estava escondida entre arbustos de melandria, ele não sentiu meu cheiro, então voltou para dentro da caverna levando a névoa com ele.
– Que idade tinha? – Ele me perguntou depois de um longo momento de silêncio.
– Treze. – Ele franziu o cenho e me apertou ainda mais nos braços.
– E você...
– Lola bloqueou aquilo na minha mente quando os caçadores me acharam, mas no dia que mordi Zion, aquilo veio em minha mente. Eu lembrei da satisfação no rosto dele enquanto matava meus colegas... e do som que o vampiro fazia enquanto os esvaziava. Quando Zion apagou, quando ela ficou mole em meus braços aquele dia... eu me senti o mesmo monstro que ele.
Caalin:
Nike estava com o rosto em meu peito, respirando de forma alterada. Sabia o quanto estava se esforçando para não chorar, mas algo havia me deixado inerte. Eu a havia mordido sem pedir permissão e aquilo me sacudiu por dentro. “Podia ter sido eu a despertar aquela lembrança. ”
– Não... aquilo foi só uma demonstração territorial de posse. – Ela sussurrou como se tivesse lido meus pensamentos, ou minha expressão passando os dedos em meu rosto e pegando-me de surpresa. Baixei os olhos para ela, Nike estava encarando-me, os olhos verdes brilhando cansados, já estava quase amanhecendo e ela não havia dormido nem sequer um minuto antes de... ah! Inferno! Antes daqueles desgraçados nos atacarem.
– Não somos a mesma coisa, Nike. – Embora eu já tivesse sido assim.
– Eu só não quero machucar ninguém. Eu tentei negar o que me tornei por medo de não ser mais...
– Você mesma?
Ela baixou os olhos e assentiu, senti meu estômago embrulhar, tinha que tentar fazê-la saber o que era de verdade, saber que não ia ferir ninguém daquela maneira, pois se Susano havia a feito tomar seu sangue daquela forma, significava que ela não havia adquirido energia suficiente e em breve estaria sendo consumida novamente. Seria diferente se não estivesse grávida. Oh! Gaia! Sorri por dento enquanto a apertava em meus braços. Aquele moleque ia se ver comigo mais tarde!
– Nike, você está mais boazinha como malvarmo do que estava quando te conheci humana! – Ela fez um ruído como uma tosse, ou uma risada e negou com a cabeça.
– Não é pela transformação.
– Ah, não? – Segurei seu rosto entre as mãos, ela estava séria, parecia olhar dentro de minha alma. – Porque então?
– Humana eu tinha que parecer ameaçadora o tempo todo, já que era a presa favorita de muita gente, já como malvarmo, eu sou a predadora, fica mais fácil não precisar parecer um monstro desalmado para me defender, todos vão ter medo de mim naturalmente! – Quando ela viu que não sorri, acrescentou: – Susano morre de medo de Malvarmos, então, acredito que mais gente tenha também!
– Ele tem é? Bom saber! – Nike deixou escapar um gemido sofrido e se encolheu em meus braços, um choque passou por minha espinha: Ela precisava se alimentar.
– Venha, vamos subir.
– Quero ver Zion...
– Zion está mil vezes melhor que você, Nike! Ela está sendo monitorada por Glyph e por Susano. Então, primeiro vamos cuidar de você. – Podia ver o pânico nos olhos dela quando a peguei no colo e saí da sala de cura. Atravessei o castelo levando-a comigo, cada passo entre as paredes de gelo azuladas e silenciosas pareciam uma tortura para ela. Nike estava de olhos fechados, as garras quase abrindo minha pele de tanto que ela me apertava. A levei até meu antigo quarto no castelo, havia me apegado muito a ele embora fosse menor e mais simples que os aposentos reais, não ligava para desocupá-lo, mantive Aliver como conselheiro e preferia que ele ficasse com os aposentos reais, afinal, em breve não estaríamos mais ali e aquela seria uma mudança desnecessária.
Não conseguia parar de pensar em Nike presa e nas mãos de Hobner, na ferida horrível em suas costelas e aquele cabelo curto irregular, cortado por uma lâmina, minha mulher... ainda por cima grávida nas mãos daqueles demônios. Se algo tivesse acontecido, não seria Higarath a destruir os mundos, seria eu. Notei que Nike agora me encarava com um olhar preocupado, as mãos apertadas em meus ombros, me forcei a tranquilizar minha expressão antes que a assustasse mais.
Entrei no quarto, mas me recusei a colocá-la no chão, Nike tremia da cabeça aos pés com os dentes trincados e olhos apertados. Quando caminhei até a cama para deitá-la, ela soltou um chiado e negou com a cabeça:
– Quero ir tomar um banho...
– Tudo bem. – Susano a havia deixado limpa com magia antes de começar a curá-la, mas talvez a água morna pudesse deixá-la mais calma. Mesmo não sendo o culpado por sua transformação, comecei a pensar se ela não teria escolhido manter o corpo humano ao invés do malvarmo quando liberou as almas, se não fosse por mim.
– Nike, me responda uma coisa... – comecei, sentando-me à beira da banheira e fazendo pequenas bolhas de luz azul flutuarem pelo ambiente, luzes azuis e calmantes, talvez por isso o castelo tivesse aquele brilho azul fantasmagórico, para acalmas os ânimos de criaturas como nós, e naquele momento eu precisava manter a calma ou atravessaria os corredores até os outros quartos de hóspedes para ter uma conversinha com Susano. – Você teria escolhido sua forma humana se não fosse por mim?
Ela escorregou de meu colo com cuidado, ainda com a camiseta branca e o short que Susano havia feito aparecer quando começou a curá-la. Ela suspirou e deu um pequeno sorriso ao afundar na água morna, e ficou em silêncio por um tempo com os olhos fechados, o único som era o de uma torneira pingando que estava começando a me deixar maluco.
– Então? – Insisti, ela abriu os olhos e me encarou.
– Teria escolhido continuar humana. Eu detestava o calor quando era humana e detesto ainda mais agora! Mas não foi por você que quis ficar com o corpo malvarmo, foi porque quando e separei os corpos e vi as mãos do corpo humano, notei que tinha perdido as garras de vitrino. Me apeguei muito a elas. – Ela deu um pequeno sorriso exibindo as presas e brincando com as pontas azuladas de suas garras.
– Certeza de que não foi por minha causa? – Ela olhou novamente para mim com malícia brilhando naquele olhar e mordeu os lábios.
– Primeiro, nunca mudaria nada em mim para tentar te agradar, segundo, acredito que você gostaria que eu tivesse continuado humana só para poder colocar essas presas em mim novamente! – Foi minha vez de rir, deixando-a desnorteada.
– Nike, sangue malvarmo é adocicado. Diferente do sangue humano, ou élfico... ou de qualquer outra raça, que tem gosto de ferrugem e é salgado. Não se lembra do gosto do sangue de Zion? – A pele dela se arrepiou e encolheu os ombros.
– Me lembro...
– Eu gosto de você assim, tanto quanto gostava quando não era. Não faz diferença para mim, vou te amar de qualquer maneira! – Sussurrei para ela, entrelaçando os dedos nos fios curtos na altura dos ombros e fazendo-a arquear o pescoço, então passei suavemente as presas e os lábios na curva de seu ombro até sua orelha, inspirando profundamente e fazendo-a gemer. O som trêmulo de sua voz e o calor que subiu de seu corpo foi o suficiente para me fazer tirar a roupa e entrar na banheira junto com ela.
– Tenho que fazê-los crescer novamente... – Disse ela passando os próprios dedos pelos fios.
– Eu gostei assim, ficou mais bonita e mais selvagem... – Sussurrei beijando a curva de seu pescoço.
– Hmm... talvez eu deixe eles assim por um tempinho então! – Ela sorriu afastando-se um pouco na banheira. Não mudaria nada por mim, não é? Sorri discretamente para não falar aquilo alto.
Nike deixou que eu me sentasse e em seguida, subiu em meu colo, passando as pernas por cima de mim e prendendo-me com elas. Tirei sua roupa devagar, sem tirar os olhos dos seus, não podia me distrair com seu corpo, não agora que precisava fazê-la se alimentar. Ela deitou a cabeça em meu ombro, colando o corpo no meu, sua respiração estava alterada e sabia que não era por excitação.
– Eu notei uma coisa... queria saber se estava certa. – Disse ela depois de alguns minutos de silêncio, as palavras contra meu pescoço fizeram cócegas lançando uma corrente elétrica por meu corpo e tive que me conter para não tomá-la naquela banheira, para me distrair, peguei a esponja e comecei a passá-la por seu corpo em círculos suaves com o óleo de mel e hortelã.
– Diga.
– Malvarmos com sangue transparente azulado podem conjurar gelo mesmo quando não tem magia, enquanto os de sangue transparente amarelado não podem, estou certa? – A surpresa que tive com aquela observação me fez rir.
– Qual é a graça?
– Como percebeu isso? – Perguntei.
– Zion tem sangue azulado, hoje mais cedo a vi usar gelo contra os invasores, Luviah também pode usar gelo. Porém quando estava na guarda, notei que quase nenhum dos guardas podia usar poderes de gelo. Hobner também podia...
– Está certo. – A interrompi, sentindo a raiva por aqueles dois retornar, respirei fundo tentando me acalmar. – Não sei o porquê disso, mas apenas malvarmos com sangue azulado podem conjurar e manipular o gelo, assim como transformar outras raças em malvarmos. O sangue amarelado não tem poder para isso, embora eles sejam em maior número que nós. Acontece algo similar com os salamandras, apenas os que tem olhos vermelhos ou azuis podem conjurar e manipular as chamas, os que tem olhos cinzentos ou negros não podem...
– Gostaria de saber mais sobre isso! Fora que a Alma falou algo interessante comigo, sobre todos os malvarmos terem uma parte dela...
– Talvez porque Ayrana usou a alma do gelo para criar os malvarmos, não? – Nike assentiu e bocejou esticando as costas, ela fez menção a se levantar da banheira, mas prendi seus quadris com as mãos e a coloquei de volta em meu colo, ela arqueou as sobrancelhas e cruzou os braços.
– Quero ir dormir, Caalin! Não dormi direito nos últimos dias! – Ela resmungou tentando tirar minhas mãos de sua cintura para escapar.
– Você não vai sair daqui até se alimentar de verdade. – O rosto dela ficou ainda mais pálido e seu coração disparou num ritmo tão acelerado que cheguei a me preocupar com aquilo.
– Caalin...
– Não quero desculpas, Nike. Só pense em uma pessoa agora, alguém que precisa de você ainda mais que eu. – deslizei os dedos sobre a pele macia de sua barriga, só de lembrar que ela esperava o nosso filho meu coração disparou, não tinha palavras para expressar a alegria e o medo que sentia. Nossa guerra ainda não havia nem começado e se o que aconteceu com Hobner fosse uma prévia do que estava por vir...
Nike ficou em silêncio mordendo os lábios e olhando para mim com cara de quem implora por algo, mas aquilo nunca funcionava comigo. Antes que ela tentasse escapar novamente, levei a mão até meu ombro pressionando uma garra na curva de meu pescoço, fazendo um pequeno furo e deslizando-a para fazer um corte. Ao ver o que havia feito, Nike deu um pulo, tentando livrar-se de meu braço que ainda estava ao redor de sua cintura.
– Não vai sair daqui se não fizer isso. – Era meu último aviso, ela olhava assustada o corte, o sangue escorrendo por meu peito e gotejando na água turva da banheira. – Nike, por favor, não me obrigue a forçar você!
– Estou com medo de te machucar! – Ela se inclinou um para longe mordendo os lábios.
– Não vai me machucar, prometo. Se me machucar, eu te deixo no altar e fujo! – Ela rosnou e seus olhos faiscaram.
– Ahh, experimente! Vai ter outra pessoa no seu lugar antes mesmo que saia do templo! – Deixá-la irritada era a maneira mais fácil para fazê-la concordar com algo, mas sua resposta me afetou mais que minha provocação a ela, pois sabia que era verdade. Nike tomou folego como se fosse mergulhar, expirou e se inclinou para frente, fechei os olhos e esperei, porém, quando ela passou a língua sobre a ferida, quando senti o fluxo do sangue aumentar, algo como uma explosão aconteceu dentro de mim.
Nike apertou os braços ao redor de meus ombros e pressionando os lábios contra o corte, sugando o sangue avidamente. O misto de prazer e alívio que me tomou por ela finalmente ceder ao chamado se intensificou quando ela deixou escapar um gemido de satisfação, pressionando o corpo ainda mais contra o meu. Me obriguei a ficar parado até que ela terminasse mesmo com o desejo que ameaçava me fazer avançar nela como um animal selvagem e faminto, pois tive medo de que se quebrasse o transe em que ela estava, ela poderia parar antes do tempo. Será que ela teve a mesma sensação quando eu a mordi?
Alguns minutos se passaram e ela me soltou, passando a língua suavemente sobre a ferida que havia aumentado com suas próprias presas e fechando-a por completo. Ela estava arfando assim como eu, olhando para mim com um estranho brilho nos olhos. Ao perceber que estava tudo bem, que nós estávamos bem, nossos corpos se moveram ao mesmo tempo e nossas bocas se encontraram num beijo faminto. A levantei da banheira, deixando que a água se espalhasse por todo banheiro e a levei de volta para o quarto, deitando-a sobre a cama, me apoiei nos cotovelos e sem quebrar o beijo e segurei seu joelho, dobrando-o para cima, mas ela sorriu e me impediu meneando a cabeça negativamente, prendendo meu quadril com as pernas.
– O que foi?
Ela não respondeu com palavras, apenas empurrou meus ombros para que me deitasse de costas, em seguida começou a traçar uma linha com a língua em meu corpo, descendo cada vez mais, alternando entre lambidas, mordidas e beijos. Ela o segurou na mão, fazendo-me tremer, lançando-me um sorriso predatório, então o guiou para a boca. Soltei um gemido, enrolando meus dedos em seus cabelos e com a outra mão, cravei as garras no colchão. Sua boca macia e quente quase me destruiu, ao mesmo tempo que se a movia lentamente, enrolando a língua ao redor dele e roçando as presas suavemente.
Xinguei baixo quando ela o guiou mais para o fundo da garganta, quase me levando ao êxtase, então Nike deu um risinho, ela mordeu os lábios subiu em cima de mim, montando-me bem devagar, testando o limite de minha fome por ela. Quando chegou ao seu limite, ela estalou a língua e arqueou o corpo para trás rebolando em círculos com as garras segurando firme minhas coxas.
– Nike... – Sussurrei e gemi apertando seu quadril, deslizando as mãos sobre sua pele macia, circulando os seios com as pontas dos dedos, fazendo-a gemer alto. Ergui o corpo e a beijei, roçando a língua contra o céu de sua boca enquanto ela aumentava o ritmo apertando o corpo contra o meu.
– Eu sei que você quer fazer, faça logo! – Sussurrou ela para mim, virando a cabeça para o lado e tirando o manto de cabelos negros do ombro, deixando exposta a curva do pescoço para mim.
– Nike... – Não pensei duas vezes antes de mordê-la, ela gemeu e tremeu em meu colo no momento que o prazer irrompeu por meu corpo e Nike arquejou, acariciando minhas costas com as garras.
Mal conseguia respirar, passando a língua sobre a linha de pequenos furos que ainda vertiam aquele belo sangue transparente azulado. Deitei-me, puxando ela sobre meu corpo e percebi que ela ainda tremia com um sorriso malicioso e ao mesmo tempo satisfeito no rosto.
– Nunca havia deixado ninguém me morder. – Falei, Nike ergueu o rosto para me encarar, as sobrancelhas erguidas surpresa.
– Ninguém?
– Ninguém.
– Nem Zion? – Gargalhei.
– Nem ela, só você. – Não era mentira, embora tivesse oferecido uma vez para Aelita, mas ela riu de mim e retrucou que “não gostava de sangue frio”. Eu nunca havia provado sangue malvarmo até Zion, então, cheguei à conclusão que Aelita também não havia provado para dizer aquilo.
Me virei na cama para que Nike deitasse sobre meu peito, foi então que notei que onde deveria estar a marca de três pontas do selo sombrio em seu ombro, havia agora uma linha de flocos de neve brancos e brilhantes fazendo uma espiral de seu ombro até o pulso.
– O que é isso? – Ela perguntou quando ergui sua mão para olhar melhor as marcas. Um sorriso se formou em meu rosto mais rápido do que pude registrar:
– A marca do gelo eterno, do Yinemí... Sua magia foi purificada! – Segurei seu rosto e a beijei novamente não conseguindo conter a alegria que estava sentindo e o alívio por ter certeza de que não ia mais perdê-la para as sombras. Nike estava em choque, olhando para o nada de boca parcialmente aberta.
– Você não é mais uma maga negra, Nike! As sombras se foram!
Quando ela finalmente entendeu o que havia acontecido, baixou o rosto para olhar as marcas em seu ombro e um pequeno sorriso se formou em seu rosto ao mesmo templo que algumas lágrimas escapavam de seus olhos.
– Como isso aconteceu? – Ela perguntou, sua voz não passava de um sussurro.
– Não tenho certeza... – Na verdade, não tinha nenhuma ideia de como ela havia se purificado ou o porquê aquilo aconteceu.
– Então, sem risco de ter um bebê... assustador? – Ela perguntou.
– Não! Ele vai ser perfeito igual a mãe! – Beijei a curva de seu pescoço, fazendo-a sorrir ainda mais.
– Mas eu estava meio humana quando o fizemos... será que ele pode nascer meio humano também?
– Acho difícil, Nike. Tem uns setenta e cinco por cento de chance de nascer malvarmo. – Expliquei, ela assentiu deitando em meu ombro e fechando os olhos.
– Daqui a nove meses saberemos então...
– Nike?
– Hum?
– Você não prestava muita atenção nas aulas, não é? – Ela abriu um olho para olhar-me.
– Por que está falando isso?
– A gestação de malvarmos dura apenas quatro meses e meio. – Ri da expressão de pânico no rosto dela, Nike bufou e virou de costas para mim.
– Isso não é bom. – Ela resmungou com a voz sonolenta.
– Por quê?
– quase cinco meses a menos para comer o que eu quiser sem ouvir reclamações! – Ela grunhiu. Tive que gargalhar e por um instante, em nossa pequena e grande alegria, esqueci dos problemas que estavam por vir.
Capítulo 6
Susano:
Atravessei os corredores azuis do castelo de gelo em direção à sala de cura uma última vez antes do fim da madrugada, queria ver se a capitã da guarda estava bem. Zion era o nome da jovem malvarmo que agora cochilava em uma das macas no canto da grande sala branca. Ao lado dela, uma bela garota de cabelos longos trançados estava sentada tomando nota de algo em uma prancheta. Ela tinha a pele ébano e olhos num tom marrom dourado e sorria enquanto escrevia, deixando aparente suas longas presas.
– Como ela está? – Perguntei aproximando-me sorrateiramente para olhar por cima de seu ombro e descobrir o que ela tanto escrevia. A garota ergueu os olhos e soltou um rosnado de irritação, afastando-se de mim.
– Zion é muito forte, alteza, graças ao senhor ela está apenas dormindo agora. – Corei quando ela usou aquele tratamento comigo, mas dei de ombros e olhei a longa cicatriz no abdome de Zion.
– Uma pena ficar marcada assim.
– Não vai ficar, assim que ela despertar e se alimentar adequadamente, a cicatriz vai desaparecer. – Ela murmurou pressionando o polegar na barriga de Zion, ela pareceu incomodada com o toque, pois se virou na cama, fazendo com que os cabelos loiros e curtos lhe caíssem sobre o rosto.
– Como se chama? – Perguntei.
– Glyph Nerain. – Mesmo para uma malvarmo, ela parecia muito jovem, não aparentava mais que dezesseis anos.
– É curandeira a muito tempo? – Perguntei tentando obter algum indício de sua verdadeira idade.
– Aqui no castelo, menos de um ano. – Disse ela entre os dentes, na certa havia entendido mal minha pergunta, e com certeza estava irritada pois estava dormindo na hora que o ataque aconteceu e eu estava perto para fazer seu trabalho. Aparentemente ela não gostava de ajuda. – Precisa de mais alguma coisa, alteza? – Glyph me lançou um olhar irritado, as garras azuladas cravadas na prancheta e as narinas dilatando, enquanto podia quase ver gelo saindo delas.
– Não, obrigado por sua atenção, Glyph. – Lhe lancei um sorriso que a deixou com um olhar inquieto e saí da sala fechando a porta suavemente atrás de mim. O castelo parecia silencioso na hora que saí da sala de cura, num breve instante eu senti que as sombras do castelo se dissiparam e o ambiente ficou mais leve, como se tivesse ganhado vida.
Olhei para o céu escuro apoiando os cotovelos numa das muitas janelas do longo corredor que levava ao salão principal. O vento gelado parecia apenas circular ao redor do castelo, não entrava pelas janelas abertas com a mesma força que balançava as árvores ao redor do lago, derrubando a neve dos galhos no lado de fora. Apenas uma suave brisa entrava no castelo, porém o frio não me incomodava, ao contrário, ele era muito agradável.
– Achei você! – Annie surgiu das sombras como um gato silencioso e passou os braços ao meu redor, ela ficou nas postas dos pés, pressionando seu corpo no meu e afastando os cabelos para beijar minha nuca. O sussurro de um beijo de seus lábios quentes contra minha pele fria fez meu corpo se arrepiar.
– Por sorte a destruição que Nike causou no castelo do tal Hobner não afetou a cidade, voltei ao penhasco para ver se a terra não iria ceder, por isso chegamos pouco depois de Kuran e Nike. – Explicou ela brincando com os dedos em minhas costas. – Como ela está? – Perguntou.
– Zion ou Nike? – Virei-me para ela e a apertei em meus braços, o nó na garganta reapareceu quando Annie me encarou com os olhos vermelhos brilhando como brasas, dando vida ao castelo frio.
– Nike, claro! – Ela revirou os olhos.
– Está bem... mas creio que Caalin esteja planejando me matar.
– Por que ele faria isso? – Ela colocou as mãos nos quadris e franziu o cenho. Respirei fundo, havia prometido a ela nunca haver segredos entre nós e agora não seria diferente e mesmo que ela brigasse ou resolvesse acabar com tudo, não ia esconder aquilo dela.
– Por que eu me aproveitei da situação quando fomos levados para o calabouço daquele castelo... – Annie estreitou os olhos, sua boca estava numa linha fina e eu quase podia ver seus punhos se tornando brasas antes mesmo que eu terminasse a frase.
– E?
– Eu a beijei. – Annie desviou o olhar para suas mãos, as brasas desapareceram e ela encolheu os ombros um pouco. Dei um passo em sua direção mas ela ergueu a mão, mantendo-me longe. Pela sua reação, eu sabia que tinha acabado com tudo em um minuto de pura curiosidade, para descobrir meus verdadeiros sentimentos por Nike, havia destruído tudo que conquistei com Annie.
– O que ... sentiu? – Ela perguntou, o leve tom mais alto em sua voz vacilante lançou calafrios por mim, mas ela me encarou firme e séria a alguns passos de distância.
– A verdade? – Quis saber, ela assentiu.
– Sem mentir, jamais, você me prometeu. – Respirei fundo e deu um passo à frente, rezando para que ela não se afastasse novamente. Quando ela não se afastou, graças a um milagre, segurei sua mão na minha e entrelacei nossos dedos, fazendo a marca dourada em minha mão brilhar um pouco mais.
– Eu agradeci a quem une os destinos por ter me trazido você. – Não era uma mentira, mas não era toda a verdade também. Annie deu um pequeno sorriso.
– Acabou então?
– O quê?
– Seu amor platônico por ela?
– Beijá-la foi um erro que eu garanto nunca mais tentar, mesmo que ainda gostasse dela pois ela ama Caalin mais que qualquer coisa no mundo. Quando eu fiz aquilo, ela quase me matou! – Annie gargalhou jogando os braços ao redor do meu pescoço e me beijando, fazendo com que uma corrente de calor percorresse meu corpo.
– Eu avisei desde que você me falou dela, eu sempre achei que ela fosse ficar sozinha, ela tem sorte de ter achado Caalin. – Ela murmurou contra meus lábios.
– Obrigado. – Agradeci apertando seu quadril contra mim, ela ergueu as sobrancelhas e se afastou para poder me encarar,
– Pelo quê?
– Por ainda me amar depois disso.
– Ah, Su! – Ela deu um largo sorriso. – Eu sabia que uma hora ou outra você iria fazer isso, na verdade, fiquei aliviada por ter sido só um beijo e mais ainda por ela ter rejeitado! Afinal, você tem sangue de seu pai e ela também e depois do que li naquele diário... – Gargalhei abraçando-a mais forte.
– Mas não estávamos dispostos a testar esses dons herdados um com o outro. – Sussurrei, passando a língua pelo seu pescoço, fazendo-a arquear o corpo e soltar um baixo gemido de aprovação.
– Só para você saber... se fizer algo assim de novo, vou te transformar numa tocha viva. – Ela murmurou com a voz embargada enquanto eu subia os dedos por seu corpo. – Melhor sairmos daqui, Su. Malvarmos escutam muito, muito bem! – Ela riu segurando-me pelo braço e seguindo para o quarto de hóspedes que Luviah, uma das ex caçadoras que agora trabalhava no castelo, preparou para nós.
– Aqui é mais emocionante! – Falei segurando-a em frente a uma janela quando alcançamos o segundo andar, a lua ainda brilhava do lado de fora mesmo perto do amanhecer. Prendi Annie contra a parede de gelo e acariciei seu pescoço com o polegar, enquanto descia a outra mão por seu corpo.
– Su... – Ela gemeu, desabotoando minha camisa e beijando meu peito, desci mais as caricias, por sorte ela havia colocado um vestido de veludo quando saímos de Amantia, só foi preciso erguê-lo um pouco e afastar sua calcinha para o lado. Ela me deu um sorriso travesso e mordeu meus lábios com os seus, lhe devolvi a provocação à altura, girando o indicador no ponto macio e quente entre suas pernas.
– Mais... – Sussurrou contornando minha boca com a língua. Fiz o que ela pediu deslizando dois dedos para dentro dela. Seu calor se intensificou e ela gemeu em minha boca abrindo um pouco mais as pernas e arqueando o corpo, tirando as mãos de mim e apoiando-as na parede. Enrolei minha língua na sua, adorando o gosto de doce e apimentado que só ela tinha. Annie quebrou o beijo e me afastou, cobrindo a boca para não rir e se virou para a parede. As marcas profundas das impressões de suas mãos estavam por todas as partes atrás de nós, ela corou e mordeu os lábios.
– Melhor irmos para o quarto, Caalin não vai gostar se nós derretermos o castelo todo! – Sussurrei, em seguida a peguei no colo e segui para o quarto no final do corredor leste do segundo piso, onde tudo havia sido preparado para acolher uma salamandra com o verdadeiro fogo ardendo dentro de si.
Mal consegui entrar no quarto antes de Annie começar a incendiar novamente, seu corpo estava tão quente que podia me queimar. Então ao invés de ir para a cama, a levei para o banheiro e fazendo nossas roupas desaparecerem com magia. Entrei com ela na banheira de louça azul que mais parecia uma piscina e liguei a água fria. Sua pele chiou quando a água semicongelada a tocou, em seguida, a água ficou morna, enquanto Annie a aquecia ao mesmo tempo que brincava com os dedos por meu peito, ela se inclinou para frente, esfregando o corpo no meu e mordeu minha boca de leve.
– Ann...
Seu calor passou para mim com ainda mais intensidade quando comecei a descer por seu corpo, usando a magia para manter os lábios e a língua gelados. Annie arqueou o corpo e gemeu quando segurei firme suas coxas e fiquei brincando com a língua no ponto macio e muito, muito quente entre elas. Os gemidos e gritos de Annie que eu escutava abafados pela água, eram altos o suficiente para que todos no palácio os ouvissem, não ia diminuir o ritmo por isso. Introduzi dois dedos dentro dela movimentando-os lentamente enquanto continuava a fazer movimentos circulares com a língua, intercalando lambidas e pequenas mordidas, isso fez com que ela abrisse mais as pernas e gritasse pouco antes de seu corpo inteiro começar a tremer.
Annie me puxou para fora d’água pelos cabelos, empurrando-me contra a borda da banheira com um sorriso selvagem no rosto. Respirando rapidamente, ela subiu em meu colo, montando-me devagar, provocando, deixando cada centímetro entrar lentamente. Quando quis protestar por sua provocação, ela me beijou, traçando uma linha com a língua em meus lábios, colocando-a em seguida dentro de minha boca e roçando-a contra a minha. Segurei sua língua com os lábios e a suguei, roçando os nós dos dedos em seus seios. Ela gemeu baixinho em minha boca, aumentando a velocidade em que movia o quadril sobre mim, girando, subindo e descendo, fazendo meu corpo estremecer com o prazer. Porém, antes que terminasse, Annie parou e um sorriso cruel apareceu em seu belo rosto avermelhado.
– Um castigo por hoje! – Ela murmurou, dando-me um sopro de um beijo e saiu da banheira, quando ergueu os braços seu corpo e seus cabelos estavam secos e ela se virou para mim e piscou antes de sair do banheiro.
Com um rugido preso no peito, saí da água quase escaldante e corri para o quarto, onde ela estava colocando uma fina camisola de seda vermelha e se preparava para dormir.
– Ahh, não senhora! – Rosnei segurando-a pela cintura e destruí aquela camisola, mordendo seu pescoço um pouco mais forte do que pretendia, deixando uma linha marcada ali. Annie gemeu e tentou me afastar, mas sabia que era apenas uma encenação, pois o sorriso que peguei de soslaio, disse muito sobre suas intenções perversas.
– Não? – Ela enrolou os dedos em meus cabelos conforme a ergui no colo e a derrubei sobre a cama macia e fria.
– Não... não vai fugir. – Murmurei passando a língua na marca em seu pescoço, prendendo seus braços atrás do corpo, deixando-a de quatro e presa sob mim. Annie riu quando usei os joelhos para abrir suas pernas e invadi seu corpo com uma vigorosa penetração, fazendo-a gemer ainda mais alto, abafando o som com o travesseiro que ela destruiu com o fogo que saía das suas palmas. Não me contive ao sentir a umidade e o calor dela, puxei seu quadril, enterrando-me mais fundo em seu corpo, eu seus desejos enquanto eu sussurrava seu nome, beijando suas costas nuas.
Annie gritou novamente quando atingiu o ápice do prazer junto comigo e seu corpo quase incandescente começou a ficar frio quando ela desabou sobre os travesseiros, com o corpo brilhando com o suor, as costas subindo e descendo rapidamente pela respiração acelerada. Deitei ao seu lado, puxando-a para meus braços e beijando seu rosto até que sua respiração estivesse calma novamente.
– O sol já vai nascer... – Ela murmurou, fechando os olhos e passando uma perna por cima de mim.
– Duvido muito que depois dessa madrugada, alguém acorde antes do almoço. – Retruquei apertando-a um pouco mais, agradecendo por ter sido escolhido por ela, mesmo com algo incompleto dentro de mim.
Nikella:
Escorreguei para fora da cama quando o sol já estava alto no céu, porém o frio do Castelo de Gelo não permitiu que eu sentisse o calor quando os raios bateram em minhas costas nuas e em meu rosto, me fazendo levantar. Meu corpo parecia estar solto, estava leve e relaxada, então percebi que foi a primeira vez em muito, muito tempo que não tive meus sonhos invadidos pelas sombras e em nenhum momento as ouvi na minha cabeça.
“Elas se foram” – Sussurrou a voz da Yinemí em minha cabeça.
“Ah... sim, me lembro! Acredite, sua voz é ótima de se ouvir! ” – Pensei em resposta, meu humor estava maravilhoso demais enquanto olhava as linhas de flocos brancos acesos em meus braços.
Algumas batidas soaram apressadas na porta, o ritmo frenético indicava que era Luviah e que eu estava atrasada para alguma coisa. Me enrolei no lençol da cama e abri a porta para ela usando magia, ahhh era maravilhoso tê-la de volta!
– Menina! O almoço será servido em dez minutos e você ainda nem tomou banho! – Ela resmungou entrando no quarto como um furacão, os cabelos brancos presos num coque acima da cabeça e o vestido de uniforme azul claro movendo-se ao seu redor. Luviah era mais cheinha e também aparentava ser mais forte, diferente das outras malvarmos que havia visto nas cidades próximas ao castelo. Luviah foi correndo até o armário para procurar uma roupa. Com um sorriso travesso, enquanto ela remexia as peças penduradas, usei a magia para conjurar um vestido de lã azul marinho e arrumar o os cabelos curtos para que as pontas ficassem iguais menos de dois dedos acima dos ombros, fiz aparecer também um par de botas pretas curtas com um salto pequeno. Quando Luviah se virou com um vestido creme nas mãos, ela me olhou de cima a baixo e bufou.
– Poderia ter me avisado! – Ela jogou o vestido em cima da cama e veio até mim, olhando o vestido mais de perto. – Um bom trabalho! – sussurrou passando os dedos pelo padrão de flores de lã que formavam o vestido.
– Como estão os ânimos hoje? – Perguntei olhando de canto de olho para Luviah, ela franziu o cenho e sua boca se retorceu um pouco antes de ela pigarrear e começar a remexer a barra de seu uniforme, lhe lancei um olhar penetrante exigindo uma resposta.
– As coisas estão um pouco tensas... todos viram o que Hobner disse sobre tomar a coroa... alguns simpatizantes de Hobner e Ausiet estão acusando o príncipe de Amantia de manipulação para proteger a sobrinha, dizendo que ele só fez aquilo para encobrir a destruição que você causou e para justificar a morte dos dois governantes...
A olhei incrédula, pronta para explodir e mandar mais alguns para o buraco também, porém uma rainha não deveria pensar assim.
– E o que o povo pensa a respeito? – Insisti tentando manter a calma, Luviah deu um sorriso travesso e suspirou, pegando meu braço e me guiando para a porta do quarto.
– Eles sabem que você é a maga negra que destruiu as minas, os escravos que foram libertos contaram sobre os planos deles para o Vitrino, e os guardas que sobreviveram à queda do Castelo das Lanças, contaram sobre o arsenal de vitrino e sobre as plantas do Castelo do Sol, provando que eles queriam atacar Ciartes. Acredito que esteja acima de suspeitas, Nike. – Ela me deu um sorriso e caminhou ao meu lado pelos corredores brilhantes e frios. A paisagem do lado de fora era a mesma de sempre, neve branca, pura e brilhante cobria tudo como se fosse chantilly sobre um bolo gigante, Luviah também olhava pelas janelas com um pequeno sorriso no rosto.
– Sabe o que isso tudo me lembra? – Ela perguntou, apontando a brancura do lado de fora.
– O quê?
– Ciartes... – Fiz uma pequena careta, tentando decifrar o motivo da neve lhe lembrar o mundo árido e quente dos salamandras.
– Me diga o porquê?
– Me faz lembrar do tempo que fiquei lá para treinar e o quanto eu queria vir para casa... Eu odiava o calor! Não me canso de ver todo esse gelo e amar estar de volta! – Ri e assenti, eu também estava amando viver em Vegahn depois de uma vida fritando na Cidade do Sol. Continuamos nosso até o salão principal em silêncio.
Quando as portas foram abertas, senti que o sangue de meu corpo fluiu para os pés e ficou lá enquanto cada pensamento de minha cabeça desaparecia. O Salão estava lotado, vários convidados que chegaram de outros mundos para o casamento na semana que vem, incluindo a rainha de Saldazaris, alguém que imaginei ser o rei de Evenox, pois era um sereiano de pele verde azulada escura, uma barba cinzenta no mesmo tom dos olhos e uma coroa de conchas na cabeça, ao seu lado havia uma Sereiana de pele bronze e olhos de um tom magenta tão incrível que poderia passar o dia inteiro encarando-a, mas ela logo desviou o olhar para a mulher sentada a sua frente, Hisana, que mantinha um sorriso feral no rosto ao encarar a Sereiana. Queria muito saber o motivo daquela troca de olhares selvagens. Ericko e Karin pareciam entretidos demais para me notar, conversando com o homem de pele chocolate e longos dreads na cabeça, sentado ao lado de Hisana, o mesmo que vira no dia do casamento de Ericko.
Respirei fundo e encarei Caalin, que estava a cabeceira de mesa, usando uma túnica azul na mesma cor que meu vestido com detalhes prateados e um sorriso imenso no rosto. Andei até ele calmamente, com a cabeça erguida e mantendo minha melhor cara de paisagem ao ouvir risinhos vindos da mesa ao lado direito, onde estavam Annie, Susano, os gêmeos que apelidei carinhosamente de “Gêmeos do amor”, Annie, Kuran e Oriel, que me olhava como se fosse me comer viva.
Me aproximei da mesa e fiz uma breve reverência ao passar por eles e me sentei na cadeira ao lado de Caalin. Por baixo da mesa, ele apertou minha mão gentilmente, ainda com um sorriso no rosto. Com um aceno dele, o almoço foi servido, travessas com várias comidas diferentes eram trazidas, desde carnes malpassadas às estranhas gelatinas frias que faziam meu estômago embrulhar, o almoço dos Salamandras. Era estranho ter um Salamandra e um sereiano na mesma mesa, uma vez que a dieta dos Salamandras era baseada em carnes cruas, especialmente peixes crus.
Tive que beliscar minha perna com força para evitar gargalhar ao imaginar o soberano de Evenox temperado sobre a mesa. Mas quando ele expos os dentes de agulhas para comer, a graça desapareceu. Senti o olhar de Susano em mim, ele estava do outro lado da segunda mesa e ergueu um pouco a taça de vinho, na certa, pegaria aqueles meus pensamentos mesmo que eu estampasse a melhor cara de inocência que podia. Mostrei minhas próprias presas a ele, mas o que o deixou pálido não foi o sorriso sinistro que lhe lancei, foi a linha de flocos brilhantes sob as mangas de meu vestido.
O almoço estava barulhento e muito animado, enquanto todos conversassem sobre diversos assuntos e ignorassem a destruição que eu causei em Paliath ontem, estaria tudo bem.
– Gostei do novo cabelo, Nikella! – Disse Hisana sorrindo gentilmente para mim, Karin e Ericko concordaram com ela, olhando distraídos para meu cabelo. O rei de Evenox subitamente parou de falar sobre guerras com Caalin e virou o corpo na minha direção, como se suas juntas estivessem duras e ele não conseguisse virar somente a cabeça. Os dentes de agulhas estavam parcialmente expostos no que parecia ser um sorriso amistoso, mas que me parecia assustador demais.
– Obrigada. – Murmurei sentindo-me incomodada com a atenção do rei de Evenox. Os olhos dele estavam fixos no meu rosto. Você é uma caçadora, Nikella, não uma princesinha medrosa! Obriguei-me a erguer o olhar para encará-lo, ignorando as boas maneiras. O Velho sereiano franziu o cenho e murmurou em Sirênio para sua rainha: “Ela não te lembra alguém, Hellidy? ” A sereiana ao seu lado, direcionou os olhos incríveis para mim e soltou algo que parecia um chiado, baixando os olhos novamente.
– Me pareço com quem, majestade? – Perguntei a ele, usando sua língua natal.
– Fala Sirênio? – Ele ficou surpreso, erguendo as sobrancelhas e fechando os dedos em volta do garfo de bronze. De soslaio, vi Caalin abrir a boca para responder a ele, mas eu não lhe dei tempo para falar:
– Falo todas as línguas dos Doze, majestade. Fui treinada para ser uma caçadora e pretendia me juntar a guarda real de Amantia quando completasse o treinamento, conhecer a língua de todos os mundos e suas variações era algo fundamental! – Retruquei, deixando até Ericko com aboca parcialmente aberta e Hisana com um brilho divertido no olhar. Caalin pigarreou e tentou esconder o sorriso o máximo que pode:
– O que dizia, Miriel, sobre ela te lembrar alguém? – Caalin perguntou, desviando a atenção de Miriel para ele, o sereiano fez um som semelhante a um grunhido e encarou Caalin com malícia no olhar.
– Ela me lembra uma velha amiga... Aelita Orisher, lembra-se dela? – O sereiano perguntou, o sorriso em seu rosto aumentando consideravelmente enquanto Caalin ficava cada vez mais pálido.
– Não acho que as duas se assemelhem em nada. – Retrucou Caalin, a voz mais calma que já ouvira sair dele. Caalin voltou a atenção para seu prato que lhe parecia suspeitosamente interessante depois de seu comentário e Miriel me encarou novamente.
– Ainda acho que são muito parecidas, não fisicamente, embora todos os malvarmos se pareçam um pouco... acho que é algo na forma que olha para os outros... – Ele se inclinou um pouco para frente e suas narinas estreitas se dilataram. Coloquei a mão no pescoço, procurando por Siferath, mas lembrei que não a usava desde ontem, estava dentro do bolso no vestido de crochê. Disfarcei o movimento, passando as garras contra a pele, fingindo que o vestido estava dando coceira.
– Desculpe, majestade, não sei quem é essa de quem o senhor fala, gostaria de saber mais a respeito. – Tentei parecer interessada, mas a verdade é que eu queria arrastar minha cadeira e ficar ao lado de Susano, bem longe da linha do olhar daquele sereiano antigo e assustador.
– Aelita Orisher, a mais famosa general dos exércitos brancos. – Foi Hisana que falou, sua voz se ergueu um pouco – Ela servia a rainha Frayena, era simplesmente incrível, as histórias dizem que ninguém podia derrotá-la.
– Você a conheceu? – Perguntei.
– Ahh, não! Ela viveu muito antes de eu sequer existir! – Hisana riu, corando um pouco. – Meu avô lutou ao lado dela uma vez. Ele dizia que nunca existiria outra como ela.
– Mas ela morreu por teimosia numa emboscada... – Retrucou Miriel, detectei o deboche em sua voz e estava prestes a perguntar mais, porém Caalin pigarreou, encarando Miriel com os olhos negros e uma raiva silenciosa neles... um ódio frio e cruel que eu nunca havia visto antes.
– Acho que não é hora nem lugar para falar sobre isso, Miriel! – Caalin piscou e num segundo aquele brilho mortal havia desaparecido de seu olhar. – Vamos falar de coisas boas! – Ele sorriu para mim, segurando minha mão por cima da mesa e a beijando.
– Boas notícias são sempre bem-vindas. – Disse Hellidy, estremeci ao ouvir sua voz e quase saí da mesa para procurar um livro e pedir que ela o lesse para mim, sua voz era como a voz de um anjo.
Caalin se levantou segurando a taça na mão e sorriu:
– Quero propor um brinde! – Ele puxou delicadamente minha mão para que eu ficasse ao seu lado e passou o braço em volta de minha cintura. – À futura rainha de Vegahn, e nosso meu filho que está por vir! – Meu estômago pesou uma tonelada e mais uma vez em menos de uma semana, agradeci por não poder mais corar. Dei o melhor sorriso que pude mesmo querendo me esconder dos olhares pervertidos de Zion e Oriel. Os convidados da mesa principal começaram a dar os parabéns, e comemorar, mas os que estavam na mesa esquerda ficaram em silêncio, dando apenas risadinhas e bebendo.
– Não foi uma notícia agradável para vocês? – Caalin parecia irritado ao encarar Susano e os outros.
– É uma ótima notícia, mas para nós é notícia velha! – Susano deu um sorriso afiado e ergueu um pouco a taça.
– O quê?
– Ah, sim! Nós sabemos desde o dia que liberamos as almas! – Susano e Annie riram, mas Caalin parecia estar prestes a explodir e eu pude imaginar bem o porquê. Eles sabiam e não haviam contado nem para mim! Caalin estava petrificado encarando Susano, que ria como se tivesse contado a melhor piada do mundo.
– Desculpe, vossa majestade, nós não lhe contamos nada pois se nós percebemos, achamos que você perceberia também! – Kuran sorriu e ergueu sua taça também. – Fora que não sabíamos se sua noiva gostaria de guardar segredo e lhe fazer uma surpresa! Desejo felicidades! – Ele piscou para mim e se sentou novamente.
Apertei a mão de Caalin com força, notando que ele ainda estava de pé em silêncio encarando Susano e Kuran, suas mãos tremiam e soltavam pequenas faíscas, podia contar nos olhos dele a quantidade de torturas que ele estava se imaginando praticando com os dois. Porém, estávamos na frente de uma possível aliança, e demostrar descontrole ali, não seria aceitável. Ah! Que merda! Estava pensando como uma pessoa racional ao invés de apenas colocar todos para correr usando magia ou meus punhos! Eu definitivamente não queria ser rainha por mais tempo do que fosse necessário, não aguentaria uma vida tentando colocar minha personalidade nos eixos.
Caalin sentou-se novamente, a raiva agora dançava viva e incandescente em seu olhar, que vagava indiscretamente para Susano e ou outros na mesa lateral. Eles estavam calmos e até risonhos, e eu tive vontade de congelar suas bundas nas cadeiras, que assim, quando tentassem se levantar... Ri da minha própria ideia maligna e estava me preparando para colocá-la em prática discretamente, porém, antes de o almoço terminar, Oriel se levantou e veio até mim, fazendo com que o gelo em meus dedos desaparecesse. Ela fez uma breve reverência aos soberanos sentados à mesa e me tirou dela.
– Peço licença, Caalin, majestades, vou tirar Nike dessa mesa antes que ela tenha que sair daqui rolando e não caiba mais no vestido que tem de experimentar! – A fulminei com o olhar, mas deixei que ela me levasse, era um alívio ter um motivo para sair dali, uma vez que o clima ficou tenso depois do comentário de Susano sobre saber da gravidez a muito tempo. Sentia o peso dos olhares de todos sobre mim quando saí do salão, Zion fechou as portas atrás de nós e nos acompanhou em silêncio.
– Está zangada? – Perguntou Oriel quando alcançamos a escada para a torre sul, onde ficava o ateliê de Frani. Respirei fundo deixando que a luz do sol que estrava pelas longas janelas me aquecesse um pouco e olhei de soslaio para Oriel, que me observava, ela mordia os lábios e remexia o pingente de rubi em seu pescoço.
– Se ele fosse seu melhor amigo, soubesse que você estava grávida e percebesse que você não sabia, e escondesse isso de você... como reagiria?
– Nike... você agiu como uma perfeita dama. Eu teria arrancado a cabeça dele! – Ela deu um risinho histérico. – Embora ele seja lindo demais para desperdiçar matando... – Zion soltou um rosnado terrível atrás de nós, que fez Oriel se encolher para perto de mim, então ela continuou: – Eu ficaria com raiva, e com certeza me vingaria independente daquela carinha de anjo que ele tem! – Gaguejou claramente provocando Zion, que bufou mais alto.
– Você agiu bem, Nike. Em alguns dias será a rainha e tem que agir como tal! – Zion estava com a voz dura e um olhar frio fixo em Oriel, que se encolheu ainda mais perto de mim.
– Porque está vindo junto? – Perguntei à Zion, ela parou subitamente arqueando as sobrancelhas e colocando a mão na lateral do corpo.
– Por que Caalin me encarregou de cuidar de você e mesmo se ele não tivesse feito isso, eu o faria da mesma forma! – Ela ralhou – Mas se você está incomodada com a minha presença...
– Está tudo bem, Zion! Só queria saber, desculpe se ofendi. – Suspirei e voltei a caminhar ao lado de Oriel, sentindo Zion nos observando em silêncio. – Só perguntei porque ontem você não estava muito bem...
– Estou ótima, Nike, Susano é excelente com cura, seu tio tem mãos mágicas! – Foi a vez dela dar um sorriso malicioso para Oriel, que corou e amarrou a cara. – A gravidez te deixou mole... ou talvez você seja a primeira malvarmo com coração quente. – Zion murmurou.
– Talvez eu tenha ficado mole antes disso... – Algo que ela disse fez uma lâmpada se acender em minha cabeça, quase pude escutar o clique.
– Nike? – Oriel puxou meu braço, quando parei no meio do corredor e encarei a neve que agora começava a cair do lado de fora. Dei alguns passos para perto da janela aberta e estendi a mão para fora, pegando alguns flocos e os observei.
– Os corações dos malvarmos são feitos de gelo! – Exclamei mais alto do que pretendia, fazendo as duas se sobressaltarem.
– Nem todos, apenas os dos malvarmos transformados! Nunca parou para prestar atenção no som que seu coração faz? – Zion se aproximou, tocando meu peito com a palma da mão e me dando um breve sorriso. Fechei os olhos e me concentrei para escutar apenas o som das batidas de meu coração. As batidas eram mais altas e produziam um som quase metálico, dando-me uma estranha sensação de torpor quando parei para as escutar.
– Bestas com coração de gelo... por isso o fogo afeta mais rapidamente uns que outros, não é? – Perguntei. Zion assentiu, então tomou meu braço e voltou a caminhar.
– O que isso tem de mal? – Oriel se aproximou olhando-me de por baixo dos cílios cinzentos e espessos.
– Nada... só está me ajudando a montar um quebra-cabeças. – Sussurrei, deixando que me levassem até a sala de Frani.
As peças estavam quase todas sobre a mesa, só esperando que eu as observasse e juntasse num grande quadro. Por que Ayrana não matou Higarath quando ainda tinha todas as almas? Mesmo com a traição, mesmo com o ataque covarde dele, ela poderia tê-lo detido usando as almas, mas ao invés disso, ela se deixou morrer e dividiu as Almas com seus filhos, mas levou com ela a Alma do gelo. Por que mandar a Alma do gelo para mim ao invés de tê-la mandado para outro guardião antes? Tinha quase certeza de que a coloração e o poder do sangue dos malvarmos tinha algo a ver com a alma do gelo, uma vez que ela mesma disse que todos tinham uma parte dela, só precisava descobrir o quê.
– Ah! Antes que eu esqueça. – Zion puxou algo de dentro do bolso do uniforme, puxou minha mão e soltou a corrente fina de vitrino nela. – Eu a recuperei ontem. – Ela deu um pequeno sorriso. Olhei para Siferath em minha mão e suspirei aliviada, pois achava que a tinha perdido de vez.
– Obrigada! – Ela piscou para mim e seguimos nosso caminho até chegar a uma porta vermelha ornada com folhas douradas, contrastando com a frieza azul do castelo.
Oriel e eu entramos no ateliê, mas Zion deu a volta e sumiu pelo corredor como se tivesse visto uma bola de fogo dentro da sala. A sala era muito grande e diferente de todos os cômodos em tons azuis e brancos do castelo, o ateliê era todo dourado com detalhes de flores vermelhas, roxas e verdes nas paredes, formando mosaicos e padrões de flores como se fossem um grande texto. Os manequins, fitas e tecidos finos espalhados de forma nada organizada por todo o ambiente, deixava muito mais aconchegante, era como entrar no meu quarto na casa da Cidade dos Cata-ventos, só que a bagunça aqui era mais glamorosa.
Frani surgiu rodopiando por trás de uma cortina de renda rosa clara, ela estava com uma calça cinza escura e uma blusa creme, os óculos pendendo perigosamente na ponta do nariz e várias fitas, grampos e alfinetes presos na roupa. Os cabelos curtos vermelhos e olhos cinzentos pousaram em mim e ela soltou um muxoxo.
– Eu tinha planejado trançar seu cabelo com flores de lis! – Ela se aproximou e me virou para olhar o comprimento do cabelo.
– Frani, acho que dá para dispensar os penteados, deixar o cabelo solto e colocar uma coroa prateada... – Oriel começou a falar, dando palpites de como poderiam fazer meu cabelo, e Frani recusava todas as ideias. Revirei os olhos e deixei que elas discutissem até minha paciência ficar perigosamente curta.
– Eu não vim provar um vestido? – As interrompi com o tom de voz mais doce que consegui, brincando com as pontas das garras.
– Desculpe, querida! – Frani corou, dando um passo para trás das cortinas e puxando um dos manequins em nossa direção. – Perdoe-me, mas amo fazer vestidos de noiva, e com Aliver no trono... bom, eu não tinha esperança de fazer um tão cedo! Sem ofensas, Ori! – Ela piscou para Oriel e virou-se para o manequim, soltando alguns grampos e alfinetes que estavam nas dobras do emaranhado de tecidos. Só quando ela soltou uma fina capa que cobria o manequim, que eu pude ver sua obra.
– Frani... – Admirei aquela obra de arte e não tive coragem de esticar a mão para tocá-la, com medo de estragar algo com as garras.
– Eu sei, meu bem. É lindo demais! – Frani estufou o peito e retirou cuidadosamente o vestido do manequim. – O corpete é feito de Zibeline, as anáguas de tule e a saia superior é de Chifon e Renda! – Ela explicou sorrindo e observando o próprio trabalho. O corpete do vestido era trabalhado com cristais em forma de flocos de neve, que desenhavam o busto e desciam até a borda inferior do corpete e faziam pequenas ondas que iam da frente até a parte dos laços de seda nas costas, de onde saia um véu longo de chifon com o mesmo trabalho em renda da saia e da cauda do vestido. A saia era lisa e branca até a altura dos joelhos, onde a roda abria mais e o tecido começava a ficar azul e cheia de flocos de neve de renda azuis e brilhantes.
– Eu... nem sei o que dizer! – Com muito cuidado, estiquei as mãos para tocar os cristais no corpete.
– Vamos, precisa provar! – Frani me guiou até o provador perto de uma das janelas douradas e Oriel nos seguia, dando pulinhos e soltando gritinhos histéricos.
– Talvez não caiba mais! Ela engordou! – Oriel mordeu a boca para evitar rir quando me virei para trás, rosnando para ela.
– Ah! Pelo amor dos céus! Estou grávida a duas semanas e a única coisa que para no meu estômago é carne! Não engordei nada. – Ralhei, Oriel sacudiu as mãos com um gesto apressado para que eu entrasse no provador e eu o fiz. Tirei o vestido de tricô, incomodada com o olhar de Oriel sobre mim e o coloquei sobre o banquinho ao lado, deixando que Frani entrasse no provador para me ajudar a colocar o vestido.
Ele havia ficado perfeito! Olhei no espelho longo do provador e senti um nó na garganta ao me ver naquela obra de arte. Nunca sonhei com isso nenhum dia em minha vida, mas estava sendo melhor do que eu imaginava. O vestido apertado até o quadril valorizava ainda mais o busto, e como não tinha mangas ou alças, deixava as marcas do Yinemí a mostra descendo pela parte de trás do meu pescoço até o ombro, onde ia em espiral até meu pulso. A saia descia numa cascata branca e azul e se abria na cauda de renda bordada por cristais em formato de flocos de neve.
– Uma semana, Nike! Por favor, controle a boca ou no dia ele não vai fechar! – Resmungou Oriel ajustando a fita nas costas enquanto Frani arrumava alguns detalhes na saia.
– É tão lindo... – Murmurei. – Você escolheu o modelo? – Perguntei à Oriel, que deu um risinho e saiu do provador, voltando pouco depois com uma caixinha preta nas mãos.
– Foi Caalin. – Ela sorriu, mostrando-me o conjunto de colar e brincos que Elister havia feito para mim. O caroço voltou a minha garganta quando os vi. – Ele disse que queria um vestido que combinasse com isso... a minha ideia era muito diferente! – Ela sorriu e fechou a caixa, entregando-a para mim. – Disse que ia mandar fazer uma coroa parecida também e mandou eu não contar pois era segredo. – Ela gargalhou da própria língua comprida.
– Tudo bem, não gosto muito de surpresas.
– O rei tem muito bom gosto! – Frani riu, colocando alguns alfinetes na barra do vestido. – E você é mais baixinha do que parecia.
Nós três rimos, embora eu não me sentisse tão mal, já que Oriel tinha a mesma estatura que eu e era tão temida quanto.
Depois de mais meia hora de pé, levando algumas alfinetadas e de ouvir Oriel falar mais de cem vezes para Frani alargar a cintura pois eu engordaria naquela semana, saímos da sala e começamos a caminhas sem rumo pelo castelo. Aproveitei que estávamos sozinhas para saber algo que estava me corroendo por dentro.
– O que foi aquele rosnado de Zion quando você falou de Susano? – Quis saber. Oriel ficou ainda mais pálida e desviou o olhar.
– Nada demais...
– Não minta para mim! Eu sou uma maga, posso fuçar sua mente e descobrir. – Ameacei, Oriel revirou os olhos e me mostrou a língua.
– Não seja boba! Acha que eu não sei que magos só podem vasculhar as mentes de outros que tem selos mágicos? – Devo ter ficado com a expressão tão surpresa que Oriel gargalhou. – Você não sabia, não é?
– Não...
– Magos, bruxos ou outros mágicos, só podem entrar nas mentes de quem tem os selos, as marcas de magia! – Ela gesticulou mostrando a testa vazia. – Nunca conseguiria entrar na mente de alguém comum como eu!
– Ori, nem de longe você é comum! – Retruquei, ela deu um sorriso tímido e me encarou com os olhos vermelhos brilhantes.
– Obrigada, acho!
– Agora diga qual o problema de Zion! – Insisti. Oriel bufou e cruzou os braços sobre o peito. Nessa altura já havíamos alcançado a saída lateral do castelo e começamos a caminhar em direção ao jardim branco.
– Acho que ela ficou com ciúmes... – Oriel corou e se encolheu um pouco.
– Ciúmes... vocês estão...? – Ela me lançou um sorriso malicioso e deu de ombros.
– As outras damas não queriam minha amizade pois sempre achavam que eu tinha segundas intenções, então elas se mantinham distantes.
– Ah! Entendo. – Me senti um pouco desconfortável por nunca ter percebido, mas a reação dela quando falei sobre “domar fêmeas” fez mais sentido agora, ela não havia ficado com vergonha do que eu disse, havia ficado sem graça pois gostou da sugestão maliciosa. Acabei rindo sem querer da lembrança.
– O que é engraçado? – Ela parecia tensa.
– Só estava lembrando do dia que nos conhecemos, só isso! Mas se vocês estão bem assim, eu fico feliz! – Fui sincera, Zion era uma ótima pessoa e Oriel também, difíceis, mas maravilhosas.
– Aliver vai ficar irritado... – Ela torceu os lábios e encarou o nada por um tempo. Arqueei as sobrancelhas e segurei seus ombros.
– Aliver não tem que se meter na sua vida, se ele reclamar, morde ele que rapidinho ele volta pro seu lugar! Comigo sempre funciona! – Oriel gargalhou passou os braços ao redor de mim.
– Obrigada, Nike! – Pisquei para ela e voltei para dentro do castelo, ainda tinha uma coisa a fazer. Corri pelos corredores de gelo, minha respiração se condensando no ar enquanto eu usava a magia para procurar por Caalin. Quando virei no corredor para o salão principal, dei de cara com Susano, Kuran e Annie, que estavam conversando baixinho.
– Vocês... – Rosnei aproximando-me. – Ahh... Eu me acerto com vocês depois! Mas eu não esqueci! – Apontei para Susano, ele parecia surpreso e confuso, mas desviou para me dar passagem quando avancei para o salão. Caalin estava só no salão, sentado em uma das janelas brincando com a coroa nas mãos, um olhar distante, entristecido e mal disfarçado no rosto. Quando ele me viu, a expressão mudou para um sorriso radiante, ele apontou com o queixo o espaço na janela em sua frente, mas eu não queria me sentar.
Fui até Caalin e me encostei nele, passando os braços ao redor de seu pescoço e lhe dei um beijo.
– Como sabia do colar de Elister? – Perguntei, sentando-me sobre suas pernas entrelaçadas e deitando a cabeça em seu ombro.
– Não sabia... o vi junto com a carta de sua mãe quando fomos para Ciartes, achei que se estava lá, era importante para você. E pelos enfeites de gelo, sabia que não tinha nada a ver com um certo príncipe salamandra.
– Você é um amor! – Sussurrei, roçando os lábios de leve contra os dele, Caalin franziu o cenho e riu.
– Quase arranquei as cabeças de Susano e Kuran quando eles disseram já saber sobre você... não sou tão bom assim!
– Isso reforça minha teoria de que você só é gentil com mulheres, não falou nada de arrancar a cabeça de Annie! – Caalin deu um sorriso maldoso e revirou os olhos, apertando-me com os braços.
– Não se preocupe com isso, você é única para mim. – Ele beijou pouco abaixo de minha orelha e suspirou.
– Algo errado? – Questionei.
– Hisana... Ela disse que estão quebrando todas as barreiras de Pollo... todas as barreiras que ela colocou para defender as cidades dos sombrios estão caindo. Eu sabia que seria logo... – Ele estava falando distraído, acariciando minha barriga com as pontas dos dedos. – Mas estava rezando para que tivéssemos mais tempo para nos preparar.
– Às vezes, quando o ataque vem sem que esteja preparado, a reação imediata é o que te salva. Muito tempo para pensar, pode te deixar dependente demais das estratégias que criou. Isso faz com que sua reação diminua... planos demais podem dar errado. – Expliquei.
– Tem razão... – Ele respirou fundo e se levantou, me pegando no colo e me levando para fora do salão.
– Para onde está me levando? – Caalin deu um sorriso travesso e assobiou baixo, num instante Ira apareceu saltitando e abanando a cauda.
– Vamos para casa! Para o Vale do Sol.
– Ficou louco? – Caalin riu e meneou a cabeça.
– Voltamos de madrugada, não vão sentir nossa falta!
– Eles vão perceber que o Rei sumiu, Caalin! – O repreendi.
– Sim, mas o rei tem que levar seu bichinho para caçar! Ira não gosta de ser acompanhado por outro. – Revirei os olhos e deixei que ele nos tirasse do castelo, algumas horas fora não podiam fazer muita diferença!
Capítulo 7
Os dias se passaram tão rápido que mal tivemos tempo para nos preparar para o casamento com tudo que estava acontecendo ao nosso redor. Caalin evitava ao máximo me contar o que ouvia nas reuniões que conseguiam fazer com alguns líderes dos Doze, após Miriel aceitar se unir à causa para lutar contra Higarath. As notícias vindas de Vastrus e Pollo eram cada vez piores, mais e mais sombrios apareciam e desapareciam nos mundos, até em Amantia a situação estava começando a ficar fora de controle com os vampiros, que graças a uma burrada antiga de Serena, eles estavam soltos da prisão que sua mãe havia imposto a eles, nas Ilhas Monarcas.
Mas sempre que queria, eu arrancava as verdades de Caalin e por mais que ele tentasse me manter afastada para que ficasse segura, para que a preocupação não me prejudicasse, eu era firme em querer saber sobre tudo e dar minha opinião sempre que achava necessário. Às vezes, acho que Caalin esquecia que estava prestes a casar com uma guerreira, com uma caçadora, não com uma princesa e isso também me preocupava, não era alguém que precisava ser protegida daquela forma.
Na maior parte do tempo, eu ficava junto com Lupinus e Nelin e tentava ao máximo escapar de Oriel, que todos os dias tinha novas ideias para fazer o meu cabelo e ficava testando os penteados em mim por horas, aquilo estava me deixando doida. A melhor solução que encontrei, foi ficar junto com os dois, pois ela estava acostumada com Susano e Annie, Kuran e Asahi nunca estavam por perto, na maior parte do tempo eles ficavam com Zion monitorando as muralhas, mas Lupinus e Nelin metiam medo em Oriel e ela se mantinha distante. Fora a bronca que tinha dado em Kuran, Annie e Susano pelo fato de terem escondido de mim a minha gravidez, e eles debocharam por horas, falando do meu péssimo dom de percepção.
Vovô, Leona e os convidados de Amantia, chegaram na quinta de manhã e durante o almoço eu tive que entrar em um estado de espírito para não rasgar a garganta de Serena, que como não havia vindo com Hassan, ficava tentando provocar Caalin numa espécie absurda de vingança pelo que fiz na luta da ACV. Melanie chegou com sua mãe, a irmã gêmea do vovô e seu pai, o sereiano mais lindo e assustador que eu já havia visto em toda minha vida. Ela entrou no salão na hora do almoço com a cabeça erguida e olhar tranquilo, ignorando completamente a existência de Kuran. Mesmo sem querer demonstrar, ele ficou abalado por ela não ter dirigido a palavra a ele quando cumprimentou a todos e se sentou à frente de Susano.
Enquanto comia, permaneci em silêncio, prestando atenção ao máximo nos detalhes e no comportamento de todos ali. A maioria parecia estar socializando bem, tirando Serena, que não parava de tentar me provocar, mexendo com Caalin, parecia que estávamos todos no caminho certo. De vez em quando olhava para a mesa da direita, só para ver como Kuran estava reagindo à Melanie e percebi que Asahi estava com uma cara péssima, não do tipo triste e abalada, mas do tipo furiosa. Só depois entendi que era porque Kuran não parava de encarar Melanie. Desviei o olhar dele para Mel, e notei que ela estava ainda mais linda. A pele havia adquirido um tom bronze brilhante pelo tempo que passou em Evenox, destacada ainda mais pelos cabelos ruivos ondulados, agora mais curtos na altura dos ombros. Ederon, irmão de Hisana que estava sentado diante de mim e ao lado da irmã, não conseguia desviar o olhar de Mel, com a boca parcialmente aberta e os olhos cinzentos fixos nela. Ao perceber que eu havia reparado para quem ele estava olhando, Ederon deu um meio sorriso e ergueu uma sobrancelha.
“Sabe algo sobre ela? ” – Quase pulei com o susto ao ouvir sua voz firme e melodiosa em minha mente. Controlei minha expressão ao perceber que ele realmente falava em minha cabeça.
“Melanie...? ” – Respondi mentalmente, Ederon deu um breve aceno com a cabeça.
“Até onde eu sei, é sobrinha de Ewren, é hibrida...”
“ Ela está sozinha? ” – Ele perguntou olhando novamente para Melanie, que pela primeira vez reparou no olhar dele e sorriu em resposta. Não precisei responder depois do aceno que ela deu para ele. Porém fiquei bastante curiosa sobre o poder dele, e sobre ele ter achado que eu sabia algo sobre Melanie.
Quando o almoço acabou, fugi de Oriel como os malvarmos fogem do fogo e corri para meu quarto, escoltada por Ira, Lupinus e Nelin. Queria conversar com Karin e Mel, mas Karin acompanhou Ericko em uma reunião após o almoço e por mais que eu pedisse para ir junto, Lupinus insistiu que eu deveria descansar um pouco e ler sobre a cerimônia dos malvarmos. Havia mentido para Oriel, dizendo que sabia como era e só um dia antes, confessei para Nelin que não sabia de nada, agora teria que ler para não passar vergonha, ou pior, deixar Caalin em situação ruim.
Já estava no fim da tarde quando terminei o livro, que li pulando muitas partes e ignorando várias coisas que me pareciam constrangedoras ou muito chatas. Desejava de todo coração que Caalin não seguisse totalmente a tradição dos malvarmos, e se ele por acaso me perguntasse algo sobre, ia lhe dizer que ele havia nascido humano e esperava que isso bastasse para que ele não seguisse metade dos costumes entediantes daquele livro.
– O casamento é amanhã ao entardecer, Nike. – Disse Nelin quebrando o silêncio e fazendo com que eu saísse do transe que me encontrava, imaginando o quão brega era o ritual de casamento dos malvarmos, diferente do lindo dos salamandras. Ela esticou as costas e alongou os braços como um gato preguiçoso. – Não devia deixar que a fadinha branca comesse a te paparicar? – Ela gesticulou em direção à porta, certamente também havia escutado os passos apressados e dançantes que subiam as escadarias.
– Não preciso ser paparicada!
– Precisa sim, está com uma cara péssima, parece que não dorme a um mês! – Caçoou ela mostrando a língua para mim. Bufei rolando de bruços na cama e soltando o livro sobre a mesinha de cabeceira. Lupinus que estava sentando na janela observando a neve caindo, respirou fundo e caminhou até Nelin, enrolando os braços em volta de sua cintura e lhe dando um leve beijo na curva do pescoço. Imediatamente me lembrei de Susano no calabouço de Hobner e foi difícil conter a careta. Lupinus percebeu, entendendo muito errado minha careta e riu afastando-se um pouco de Nelin.
– Desculpe. – Murmurei escondendo parcialmente o rosto nos braços cruzados.
– Não tem problema. – Ele piscou para mim. – Passamos a semana de guarda e precisamos de uma folguinha... – Vi seu rosto ficar com um leve tom corado, os olhos negros como carvão tinham um brilho divertido e malicioso e novamente não consegui conter uma careta, mas desta vez foi por quão estranho aquilo me parecia. Nelin gargalhou e se abaixou para apertar meu rosto.
– Nos vemos amanhã! Por favor, se for deixar Caalin no altar, me avise com antecedência para eu conseguir preparar falsas lágrimas de pena! – Ela deu uma risadinha e segurou Lupinus novamente.
– Nossa, Nelin! Você é má por dentro! – Caçoei, ela me mostrou a língua e eu devolvi a ofensa com um gesto vulgar, então, sem aviso ela segurou o rosto de Lupinus e o beijou. Soltei um gritinho histérico e atirei um travesseiro neles.
– Tá! Você venceu! Sumam daqui! – Vociferei ameaçando jogar o outro travesseiro neles, Nelin riu ainda mais e desapareceram numa névoa brilhante e azul poucos segundos antes de Oriel escancarar as portas e entrar dançando pelo quarto.
– Olá! – Ela pulou sobre a cama, caindo a poucos centímetros de mim.
– E aí... o que vamos fazer? – Perguntei, o sorriso de Oriel foi de orelha a orelha.
– Vamos, temos a noite da noiva a partir de agora! – Ela se levantou num pulo, arrastando-me para fora da cama. Levantei e tentei me empolgar, mas por mais que eu tentasse, não conseguia.
– Você não está com cara de uma noiva feliz, Nike. – Oriel comentou enquanto descíamos as escadas para a sala de banhos no primeiro andar. Tentei dar um meio sorriso, mas foi inútil.
– Sabe... com tudo que anda acontecendo nos Doze, o risco de um ataque da parte dos sombrios, de Higarath... me pergunto se não é algo fútil, desnecessário me casar dessa maneira, fazer essa festa toda enquanto muitos já estão sofrendo em alguns dos mundos. – Observei. Oriel parou de caminhar e segurou meu braço gentilmente para que eu parasse também. Ela colocou as mãos no meu rosto e me encarou:
– O que esse casamento significa para você? – Ela quis saber. Não havia pensado nisso até ela me perguntar.
– Não sei dizer...
– Vai te fazer feliz? Sem pensar nos outros agora, só em você!
– Eu não consigo pensar dessa maneira, Ori. – Ela bufou.
– O que você acha que significa para os outros? O que acha que trouxe a eles, principalmente para os habitantes de Vegahn e Amantia?
– Hmm... – Ela revirou os olhos quando eu não soube responder.
– Esperança, Nike! – Ela sorriu. – Você é da família dos guardiões! E todos sabem disso agora, assim como sabem que Caalin é o filho da criadora! Para eles, ter vocês como os soberanos de Vegahn significa que eles estarão protegidos, seguros! No mínimo, saberão que vocês lutarão por eles! Entendo seu ponto de vista sobre a festa e a cerimônia, mas isso será uma distração para as pessoas que estão com os pensamentos em coisas ruins! Você não saiu do castelo essa semana, mas nas ruas, só se fala do casamento! Não dos ataques e nem das invasões.
– Isso é o que me preocupa! Tudo está acontecendo lá fora enquanto ficamos aqui planejando festas! – Vociferei. – Pessoas estão morrendo em Pollo porque parte do mundo já foi tomado por Higarath! Não é hora de festas, Oriel. É hora de lutar! – Meu coração estava disparado, a frustração por estar parada, sem ação e sem ajudar estava começando a me deixar maluca. Eu era uma caçadora, droga! Oriel suspirou e afrouxou o aperto em meus ombros.
– E se essa for a única chance? O último momento de paz de vocês, de nós? E se for a última oportunidade para você provar a ele o quanto o ama e para viver um momento feliz? – As palavras de Oriel me atingiram como um choque. – Vai deixar a oportunidade passar ou vai vivê-la? Caalin fica o tempo inteiro sério, preocupado, mas quando falamos com ele sobre o casamento, ele quase explode de alegria! Então, não perca a chance de mostrar o que sente, Nike, pode ser a última vez! – Ela ficou me encarando, esperando uma reação ou resposta, porém eu apenas a segui, pois sabia que ela estava certa.
Passava da uma da manhã quando Oriel adormeceu deitada num sofá na sala de banho. Ela havia me levado para fazer uma série de massagens, hidratações e sabe-se lá deuses quantas outras coisas! Eu me desliguei completamente enquanto tentava relaxar, a única parte que eu prestei totalmente atenção, pois não conseguia parar de rir, foi quando uma das senhoras que estavam cuidando de nós tentou lixar minhas garras. Não conseguia parar de rir enquanto ela gastava as lixas metálicas tentando, sem sucesso, tirar as pontas afiadas das garras.
Senti a falta das outras mulheres ali conosco, Zion, Karin, Annie... Mas Oriel disse que fazia parte do ritual de preparação dos malvarmos, como se fosse um tempo para refletir e se preparar sem a influência de outras mulheres.
Deixei Oriel na sala, não queria acordá-la e precisava urgente de uma boa noite de sono. Atravessei os corredores escuros em silêncio, ouvindo apenas o som dos meus passos e da neve que caía pesadamente do lado de fora. Ao passar em frente às portas da biblioteca na ala norte do castelo, ouvi vozes baixas, porém exaltadas numa discussão:
“... não adianta! Você não muda nunca, Kuran! ” Era a voz de Asahi.
“ Já disse que você está imaginando coisas! ” Ele rosnou em resposta, o que me fez querer entrar na sala e lhe dar uns tapas, apenas pelo tom de voz que estava usando com ela.
“ Sabe, acho que você está precisando de um tempo sozinho para decidir o que quer. ” Asahi falou, escutei os passos dela se aproximando da porta e me afastei instintivamente, porém, apenas me cobri usando magia para não ser detectada.
“ O quê? ” A voz de Kuran soou tanto incrédula quando frustrada “Está terminando comigo? ”
“ Terminando o que, Kuran, se você nunca deixou claro o tipo de relacionamento que temos! Você está acostumado demais a ter tudo o que quer e não dar nada em troca! Você veio para mim novamente não porquê percebeu a ligação, mas porque Melanie o deixou por causa disso! Você não me vê como sua primeira opção, mas como alguém que vai estar sempre lá para você! Quer saber, Kuran, eu não preciso das migalhas que você me atira, e não preciso que fique comigo por causa desse laço que temos! Então faça-me o favor, mude, melhore, se cure dessa doença que você tem de se achar o centro do universo, e talvez, eu disse TALVEZ, EU resolva te dar uma chance para se redimir. Até lá, quero você bem longe de mim! ” Eu podia ter aplaudido se não corresse o risco de ser descoberta.
“Asahi! ” Ele a chamou, mas era tarde, ela escancarou as portas e saiu da sala desfilando de cabeça erguida e expressão séria, porém tranquila. A segui como uma sombra até o quarto de hospedes que ela estava instalada, quatro quartos de distância do meu e dois de Susano e Annie. Ela entrou, deixando uma brecha na porta por tempo suficiente para que eu me esgueirasse para dentro.
Observei ela se sentar na cama, depois se jogar para trás, abraçando um travesseiro e desatando a chorar.
– Eu o amo, sabia? Amava antes mesmo de saber que éramos ligados, desde a primeira vez que ele pisou no Castelo de Cristal com os pais dele. Ele sempre soube dos meus sentimentos, ele sabia o que eu sentia quando ficou comigo a primeira vez e se aproveitou daquilo pois sabia que eu não negaria nada a ele! – Ela se sentou na cama, cruzando as pernas em posição de lótus e abraçando o travesseiro, olhando diretamente para mim.
– Asahi... – Engoli em seco, deixando a magia desaparecer, havia esquecido dos dons que Susano disse certa vez que ela tinha, “visão radiante”, Asahi enxergava através de qualquer magia.
– Ele não falou isso para você, não é? – Perguntou, limpando as lágrimas usando seu travesseiro como um lenço.
– Ele disse que você estava disputando algo com Nyu... – Asahi deu uma gargalhada amarga e bateu na cama, para que eu sentasse ao seu lado.
– Nyu e eu só disputávamos força, quando treinávamos escondido de mamãe com as lanças de fogo que tio Hasan conjurava para nós. – Ela suspirou, brincando com uma mecha de seu cabelo. – Fui visitar a academia uma vez com Susano e Kuran me levou para conhecer os alojamentos. Eu fiquei tão feliz quando ele me beijou, quando me tocou... Achei que fosse me corresponder, mas no outro dia, Annie falou que ele gostava de outra. – A vontade que eu tinha de descer as escadas e dar uma surra em Kuran foi tão grande, que a única coisa que me impediu de fazê-lo foi a mão de Asahi, que estava apertando a minha.
– Eu sinto muito...
– Não sinta. Não sinta pena de mim, nem raiva dele! Eu quero que aquele idiota melhore, mude e perceba que ele não é melhor que ninguém e que não está sabendo amar... eu vi uma pessoa boa nele naquele dia em Vintro! É aquele Kuran que eu quero, protetor, amigável... eu sei que ele está lá, mas enquanto ele achar que eu estarei ao alcance dos estalos dos dedos dele, ele continuará sendo um idiota! Ele precisava de um choque de realidade! – Ela sussurrou.
– Foi por causa de Melanie, não é? – Perguntei, Asahi desviou o olhar e começou a brincar com as fitas do travesseiro.
– Ele discutiu com Ederon quando se aproximou para falar com Mel... como se ainda estivessem juntos! – Pude sentir a mágoa, a raiva na voz de Asahi, mas ela limpou as lágrimas e suspirou.
– E...
– Ederon quase o esfolou vivo. Ele é bem cabeça quente!
– Lobisomem... irmão de Hisana, e bem velho! – Expliquei, Asahi riu. Os olhos azuis iguais aos de vovô me encararam no escuro.
– Está tudo bem, vou ficar bem! – Ela respirou fundo e se deitou. – Você deveria ir dormir! Amanhã, certamente Oriel vai te pegar cedo para começar a te arrumar! – Quando ela falou, soltei um gemido sofrido e comecei a caminhar para a porta.
– Asahi... – A encarei novamente. – E se ele não estiver lá? O Kuran que você espera que exista por baixo de todo aquele.... Aquilo... – não sabia explicar sem falar algo que podia magoá-la. – E se não houver outro Kuran?
Asahi deu um pequeno sorriso e suspirou.
– Ligado a ele ou não, eu vou ser feliz com alguém que mereça! Ou sozinha, se não achar alguém para mim, dane-se! – Ela gargalhou de forma louca e assustadora, mas eu podia entendê-la. – Talvez seja apenas minha TPM, mas eu estou muito afim de uns chocolates agora! – Eu ri e revirei os olhos, estalando os dedos e fazendo uma caixa de bombons aparecer na cama ao lado dela, Asahi piscou para mim e desejei ter tido mais chances de ficar perto dela, seríamos amigas facilmente, ainda podíamos ser pois teremos todo tempo do mundo para isso! Me obriguei a acreditar nisso, me agarrando a todas as esperanças possíveis.
– Quer ver Kuran soltado fogo pelos olhos? – Perguntei antes de passar pela porta. – Vá ao casamento acompanhada de Aliver! – Os olhos de Asahi brilharam com malícia e um sorriso malvado se formou em seu rosto enquanto ela engolia alguns chocolates e assentia lentamente.
Corri para meu quarto e entrei de mansinho, imaginando que Caalin já estava dormindo, porém, ele estava sentado sob a janela, observando as grossas nuvens que encobriam o céu e a neve caindo em lufadas, deixando tudo puro demais. Era difícil admitir, pois parte de mim amava o frio e o branco puro de Vegahn, mas sentia saudades das cores vivas e vibrantes das árvores, flores e até mesmo dos desertos de Ciartes.
– Achei que não fosse te ver até amanhã! – Ele se levantou e veio até mim, passando os braços ao meu redor e beijando minha testa. O apertei contra mim e inspirei fundo, absorvendo seu cheiro o máximo que pude, com medo das palavras que Oriel me disse mais cedo.
– Oriel dormiu, eu escapuli! – Caalin riu e me levou para a cama, onde Ira estava deitado todo espalhado.
– Melhor dormir então, pois é provável que ela esteja de volta antes do sol nascer. – Ele sussurrou. Deitei sobre seu peito e instantaneamente me acalmei, aproveitando o calor de sua pele e o ritmo calmo de sua respiração.
– Imagino... acho que até amanhã já esqueci tudo daquele livro! – Resmunguei, Caalin se ergueu um pouco e soltou um “Hum? ” – O livro de tradições de casamento!
– Ahh, aquela coisa antiga... Nem Frayena seguia aquelas regras, são horríveis! – Apoiei as mãos na cama para encará-lo.
– Eu decorei tudo aquilo atoa? – Grunhi fazendo-o rir.
– Sinto muito, mas se quiser, podemos seguir...
– Não! Não quis dizer nesse sentido, graças aos céus por não ter que refazer aquilo! – Ele riu ainda mais, deitei novamente sobre ele, mas dessa vez aproveitei a minha posição para provocá-lo, passando a língua por seu pescoço.
– Não! – Ele me tirou de cima dele, deitando-me gentilmente ao seu lado. O choque em meus olhos devia ser óbvio, pois ele sorriu passando o polegar em minha bochecha. – Desculpe, mas não posso te tocar hoje, eu sou bastante supersticioso e dizem que o unicórnio do trovão rouba as mulheres que são tocadas na véspera do casamento! – Eu comecei a rir.
– Sim, claro! A morte vai me levar por eu quebrar uma tradição boba como essa!
– Não disse a morte, disse o Unicórnio do trovão! E não vou arriscar. – Ele deu um pequeno sorriso e me apertou conta ele, de maneira que eu não pudesse me mover.
– Caalin! Você acredita mesmo nisso?
– Acredito! - eu não conseguia acreditar, franzi o cenho e esfreguei o rosto irritada, parecia que estava diante de uma criança muito velha, que acreditava em histórias de terror. Resolvi não discutir, afinal, precisava realmente dormir depois de passar o dia todo com Oriel, então apenas enrosquei-me ao lado de Caalin e fechei os olhos, esperando que o sono me recolhesse rapidamente.
Fui desperta por uma centena de beijos no rosto e no pescoço e acordei rindo, abrindo apenas um dos olhos para ver o que Caalin estava aprontando com aquele mimo todo. Ao lado da cama, estava uma bandeja com café da manhã, um bule de vidro cheio de chocolate quente e pães de queijo. Podia chorar de alegria ao ver os pães fumegando, soltando um aroma maravilhoso de parmesão.
– O que é tudo isso? – Perguntei, sentando-me de pernas cruzadas enquanto Caalin servia uma xicara para mim. Ele sorriu de lado e me entregou a xícara, depois ajeitou o cabelo que lhe caia sobre o rosto e observou enquanto eu comia.
– Só um mimo, por estar fazendo com que eu tenha o melhor dia da minha vida! – Sorri e murmurei algo que nem eu entendi, mas depois de um gole do chocolate, minha mente começou a funcionar melhor.
– Me comprando com comida para que eu diga um “sim”? – O sorriso dele aumentou, então virou o rosto para o lado, escondendo-o de mim.
– Talvez...
– Só porque não sei cozinhar, está tentando me prender pelo estômago... que feio, Caalin! – O Repreendi em tom de brincadeira, mas ele me encarou com malícia no olhar e apoiou as mãos grandes na borda da cama, chegando bem perto e roçando a boca de leve no meu pescoço. Era tão estranho alguém como ele, uma montanha de músculos e força fazendo aquele tipo de mimos, parecia errado de certa forma, mas eu adorei.
– Posso te comprar de muitas formas... – Estremeci com o sussurro do beijo, antes que pudesse agarrá-lo, alguém começou a bater na porta como se o mundo estivesse desabando lá fora, talvez estivesse mesmo...
– Entre, Annie! – Caalin falou, levantando-se e afastando-se um pouco da cama. Annie entrou sorrindo e fechou a porta, ela foi direto na cesta de pães de queijo, pegou um e sentou na cama, ignorando Caalin como se ele nem estivesse ali.
– Adoro pão de queijo! – Ela mordiscou e só então se virou para Caalin e falou: – Meu sogro chegou com a rainha de Dartaris e os líderes do Clã Cyfar, estão querendo te ver!
– Já estou indo... – Ele se inclinou para frente, mas quando foi me beijar, Annie segurou o queixo dele e o afastou.
– Nada disso, vai ter muito tempo depois! – Eu rosnei para ela, e ela gargalhou, empurrando Caalin para fora do quarto, antes de sair ele piscou para mim da porta e murmurou um “te vejo mais tarde no altar” ou algo assim. Sabia que ele havia deixado que ela o expulsasse, mas no fim, dei de ombros e terminei meu café.
– O que pretende fazer comigo? – Perguntei levantando-me e esticando as costas, Ira bocejou preguiçosamente ao lado da cama e saiu andando de fininho, como se imaginasse que pudesse sobrar para ele também. O sorriso de Annie foi tão assustador que por um momento, me arrependi de tê-la deixado entrar.
– Vamos te preparar! – E com um assobio dela, Karin, Oriel, Asahi, Nyu e Melanie invadiram o quarto aos berros e saltaram sobre a cama.
– Se não tiver algum doce, eu nem saio daqui! – Choraminguei enquanto era arrastada para fora por elas.
Caalin:
Aliver encontrou comigo pouco depois de sair do quarto e passar pelo bando que estava se preparando para entrar e atacar Nike, cheguei a sentir pena dela e pediria para as meninas terem calma, mas ela precisava daquele momento de distração.
– O que está acontecendo lá embaixo? – Perguntei a Aliver, ele tinha uma expressão dura no rosto e bufava enquanto caminhava.
– Não sei, mas não parece que o líder do clã de bruxos está aqui só para a cerimônia. – Aliver murmurou olhando para os lados como se as paredes pudessem ouvi-lo. – Ele parece muito suspeito, Caalin. Disse que tinha algo de extrema importância a tratar com Nike...
– Vou ver isso agora mesmo. – Apressei o passo e fui direto ao escritório principal, onde todos estavam esperando. Ao entrar no escritório e seguir para a sala de reuniões ao fundo, me deparei com quase todos os soberanos dos Doze em um círculo ao redor da longa mesa de vidro. Os olhos se voltaram para mim e suspirei cansado, esperava acabar logo com tudo aquilo para poder desaparecer na floresta de Arcádia com Nike.
– Bem-vindos, reis e rainhas dos Doze. – Saudei, eles fizeram a saudação do Gelo Eterno em uníssono e parecerem ainda mais tensos sobre as cadeiras. Hisana e Miriel estavam mais próximos a Ewren, Ericko e de Sylvia e esses pareciam os mais confiantes e relaxados. Do outro lado da mesa estavam Iriel, a rainha de Dartaris, ao lado dela estavam Maddox e Júlia, os líderes dos clãs bruxos do mesmo mundo, os Mardans e Sorcys, que juntos eram o clã Cyfar. Maddox tamborilava na mesa com sua mão mecânica e me encarava com os olhos castanhos, Julia, a senhora da lua, estava com expressão de puro tédio e brincava com as longas garras e os cabelos curtos e negros estavam presos em um rabo de cavalo. Caçadores e semisselvagens de fato.
Os outros que não conhecia, mas que por suas aparências revelavam seus mundos.
– Apresentem-se, por favor. – Pedi olhando o pequeno grupo mais próximos ao fundo da sala. A mulher de aparência sombria, que aparentava pouco mais de quarenta anos foi a primeira a falar.
– Sou Mendal Asterath. Rainha do Oitavo céu. – Ela se apresentou, sem reverências e sem muita formalidade. A mulher vestia uma túnica chumbo e saia longa bordada de raios me parecia estranhamente familiar. Seus olhos eram prateados e os cabelos brancos estavam amarrados firmemente sobre a cabeça, repuxando sua pele de forma que me pareceu incômoda. Não sabia onde era Oitavo Céu, mas me pareceu indiscreto perguntar. O próximo a tomar a palavra foi um ser baixo de pele azulada marcada por desenhos que davam a impressão de serem pétalas coladas em seu corpo, a cabeça sem um fio de cabelo tinha marcas como um labirinto ou mapa. Ele tinha os olhos de um tom vinho e não era mais alto que uma cadeira, talvez por isso estivesse tão longe da mesa.
– Silsiron Valeries, Imperador de Mairdok, o mundo gêmeo de Treezer, e esses são os governantes dos sete continentes das flores! – Ele moveu a mão miúda ao seu redor, mostrando os outros sete como eles, eram todos pequenos e com as peles em diversos tons de azul e verde.
– Detéria Ahanann. – Disse uma figura que emergiu das sombras, os olhos dele eram os olhos da própria morte e seu corpo disforme, escondido pelo grosso manto negro que vestia, emanava uma aura maligna que me fez querer sacar Siellen e não o deixar sair com vida do castelo, mas tinha certeza que ele não seria morto por algo como Siellen, mesmo feito por Nikella.
– Detéria... – Hisana deu um sorriso feral ao encarar o vampiro. – Sei quem é você! O primeiro vampiro.
– Eu já estava na Terra quando Yellen nem sonhava em nascer... – Ele sussurrou com a voz gutural. – E por muito pouco, não faria parte do pó, das cinzas da história. Mas Yellen fez um mundo de escuridão para que eu vivesse tranquilamente e estou lá até hoje. Embora a oferta que Higarath me fez de espalhar a noite eterna pelos mundos seja mais tentadora... não teria passado do primeiro século de vida sem ajuda da maga. – Ele completou ao escutar o som de metal sendo desembainhado.
– Todos têm a mesma gratidão, Detéria! – Disse Hisana entre os dentes, curvando-se de volta ao seu lugar. Não havia notado o momento em que as facas de vitrino de Júlia foram parar em suas mãos, mas algo no olhar divertido dela dizia que não teria dificuldades em enfrentar Detéria. Ele seria um problema se resolvesse lutar, um vampiro com aquela idade... não quis imaginar os poderes que poderia ter. Um jovem pigarreou na ponta da mesa e se apresentou:
– Calarrar Montressis. – O jovem ruivo se curvou e tirou do bolso o que parecia ser uma moeda de ouro do tamanho de seu punho. – Sou general do exército Gilliat.
– De Vastrus? – Ewren perguntou, erguendo as sobrancelhas ao observar o jovem com olhar analítico.
– Sim, sou um gigante. – Calarrar deu um sorriso presunçoso e se recostou na cadeira, sem tirar os olhos de Ewren.
– Não parece tão grande. – Mendal provocou, apoiando a palma na mesa.
– Esse é meu tamanho de bolso, senhora! – Ele sorriu de forma maliciosa em resposta e revirei os olhos mentalmente.
– Porquê Gaaris não está aqui? – Perguntei desconfiado.
– O rei encontra-se doente e não pode vir, majestade. Irei relatar tudo a ele assim que voltar. – O jovem explicou.
Olhei para todos os soberanos que estavam ali, mesmo com todos juntos, sabia que as chances contra Higarath sem utilizar as Almas Elementais eram limitadas, mas não estava disposto a arriscar Nikella, nem pedir que ela entrasse num campo de batalha na situação em que se encontrava.
– Sei que não estão aqui apenas por causa de meu casamento com a herdeira de Amantia... – Comecei a falar, olhando para Ewren ao dizer aquilo, ele fez um gesto quase imperceptível com a cabeça, então continuei: – Precisamos dos Doze unidos para ter uma boa chance contra Higarath, para acabar com ele e com sua sombra e assim, podermos finalmente ter paz. – Houveram murmúrios, mas todos concordaram, com exceção de Detéria, que deu uma gargalhada sombria e a sombra maligna ao redor dele pulsou.
– Antes que peça, alteza, vou logo lhe dizendo... Vim aqui apenas deixar bem claro que por gratidão à Yellen, não pretendo me unir a Higarath contra vocês... – No instante que ele disse aquilo, nos preparamos para enfrenta-lo, porém, não só eu, mas todos os outros soberanos pareciam estar paralisados, petrificados em seus lugares encarando Detéria.
– ... pois caso não se lembrem, minha raça, meus filhos vêm sendo caçados e destruídos por vocês a muitas eras! Então, por pura bondade, não irei ajudar Higarath a massacrar vocês, no entanto, se meus filhos assim desejarem, estão livres para fazerem o que bem entenderem, para lutarem ao lado de quem quiserem!
– Detéria... – Hisana rosnou. – Minha raça é caçada da mesma forma que a sua, e a maioria de nós aqui já foi a presa de alguém, a caça de alguém, então não use isso como desculp... – Hisana engasgou nas próprias palavras e seu olhar ficou desfocado, então Detéria voltou a falar como se não tivesse sido interrompido.
– Felicidades ao rei de Vegahn e sua pequena caçadora assassina e o pequeno herdeiro... pois pelo que sei, o rei dos malvarmos não tem tanta sorte com suas esposas e filhos... Vida longa a eles então! - Detéria terminou de falar e se virou para mim, os olhos cor de sangue brilhando na escuridão ao seu redor, uma ameaça silenciosa gravada naquele olhar cruel e antigo. Um tremor passou pelo meu corpo, junto com a Ira que cresceu e que poderia ter destruído o castelo se não estivesse com meus poderes bloqueados. Ele sorriu mostrando os dentes amarelados e pontudos e desapareceu numa nuvem negra, levando com ele a aura maligna que cobria a sala.
Não conseguia fazer a sensação de desespero desaparecer. Aquilo tinha sido uma provocação, apenas isso. Respirei fundo e observei com cautela os outros soberanos, que pareciam tão chocados quanto eu, ainda mais Ewren. Ele me olhava como se compreendesse exatamente o medo que tomou conta de mim naquele momento.
– Está tudo bem, Caalin. Ninguém vai fazer mal a ela... – Ericko falou baixo, em seguida ergueu a cabeça e respirou fundo: – Cada caçador em Ciartes, cada soldado e cada um que carregue uma espada ou magia, defenderá o círculo com fogo e brasas! – Disse ele colocando a mão sobre o peito.
– Essa será a última batalha, nós lutaremos por todos que vivem nos mundos que ela criou. – Ewren pegou sua espada e apertou o punho com força.
– Pelos Doze! – Silsiron moveu os dedos, fazendo uma estranha névoa brilhante cobrir sua palma e rodopiar. – Lutaremos pelos Doze!
– Que as tormentas do Oitavo Céu caiam sobre nossos inimigos! – A rainha do Oitavo, Mendal, para minha surpresa era uma manipuladora dos raios, ela moveu suas mãos e raios saltaram das pontas deles, sorri para ela em agradecimento.
– A guerra dos Doze Mundos... que seja a última! – Pela primeira vez Miriel falou, ele estendeu as mãos sobre a mesa e um rolo de pergaminho azul e dourado a cobriu, um mapa com os Doze Mundos em espiral, representando cada um em seus mais variados tamanhos e cores.
– O que é isso, Miriel? – Perguntou Hisana num ronronar.
– Um acordo de paz. – Ele nos encarou, um a um, tamborilando os dedos no pergaminho. – Quero selar um acordo aqui e agora com todos vocês, independente de quem sobreviva ou não a essa guerra, esse acordo servirá para que nos lembremos de que estivemos todos juntos pela mesma causa, e que as alianças que formarmos para essa guerra seja eterna e passada de geração em geração... – Miriel me encarou e pigarreou. – Ou de reis a reis.
Miriel estendeu a mão sobre o globo azul e brilhante que saltou para fora do mapa assim que ele colocou os dedos em cima do pergaminho, então, passou uma unha sobre a palma estendida e algumas gotas de sangue pingaram sobre o mundo. Todos olharam atentos o mundo brilhar em vermelho, depois voltar ao mapa e sobre ele aparecer um selo brilhante prateado.
Fui o próximo a entender a mão sobre o mapa, Vegahn se soltou do pergaminho e flutuou sobre a mesa. O globo branco e puro ficou girando lentamente, porém, quando cortei a palma para o sangue fechar o tratado, algo me veio à mente de que não devia ser eu a fazer aquilo, mas não seria bem visto se deixasse que Aliver tomasse meu lugar naquela hora, os outros podiam não entender minhas intenções. Acabei deixando meu sangue pingar sobre o mundo, que brilhou intensamente depois voltou ao sétimo lugar na espiral.
Os outros soberanos fizeram o mesmo, incentivados por minha atitude de ir em frente sem questionar e Calarrar, mesmo não sendo o soberano de Vastrus também cortou sua mão e fez o gesto para selar a paz entre os mundos. A última a cortar sua mão foi Mendal, ela deixou cair apenas uma gota de sangue espeço cor de chumbo sobre a borda do pergaminho e todos estranharam a reação.
– Sou rainha de um dos oito Céus, mas sou apenas uma, de sete reis e um Imperador, e meu mundo não está nesse mapa, embora nós estejamos sendo afetados pelas sombras desse demônio que ousa querer nos dominar! Mas meu exército, mesmo não muito grande vai ser uma boa ajuda nessa luta. – Ela sorriu.
– Obrigado, a todos. Significa muito para mim! – Falei antes de saudar a todos.
– Agora, deveria se preparar, Caalin! Se não a noiva que vai ficar te esperando no altar! – Disse Ericko dando um tapinha em minhas costas. Ri mais pelo gesto amigável do que da piadinha.
– Eu quero comer! – Júlia resmungou e saiu da sala em passos largos, os outros concordaram com ela e Aliver os seguiu para leva-los até o salão para o almoço. Porém, Maddox ficou na sala e deu um assobio para a janela aberta, e do lado de fora surgiu voando um Sorcys de asas brancas, assim como seus cabelos, porém os olhos eram de um vermelho vivo. Ele trazia uma menina loira nos braços, ela devia ter entre doze e quatorze anos no máximo. Meu estômago afundou ao perceber do que se tratava a visita dos Cyfars, além da aliança contra os sombrios de Higarath.
– Temos um presente para a noiva! – Cantarolou o Sorcys deixando a menina descer de seu colo.
Capítulo 8
Não vi Nikella em parte alguma do castelo depois da reunião, onde quer que aquele bando tivesse a levado, estava longe de meus olhos até a hora do casamento. Não conseguia tirar a ameaça de Detéria da cabeça, ele certamente não tomaria partido nem a atacaria diretamente, mas acredito que em Ciartes, ela tenha enfrentado alguns como ele, ou no mínimo irritado muitos outros vampiros, e só seria preciso que um desses demônios soubesse sobre o estado dela para atacar. Maravilha, além de ter que me preocupar com Higarath, teria que me preocupar com os vampiros também.
Caminhei pensativo até o quarto, deixando que Aliver e Zion ficassem à disposição dos convidados, afinal, eu precisava me preparar para a cerimônia. Ao passar por uma janela no meio do corredor, olhei para o jardim central do castelo onde estava sendo arrumado o local da cerimônia. Os sacerdotes andavam de um lado para o outro dando instruções e preparando o altar de gelo e cristais de purificação azuis com máximo de cuidado. Essa seria a terceira vez que me casaria ali, e esperava que o castelo não fosse amaldiçoado... não... talvez os outros tivessem acabado para que eu a encontrasse! Sorri um pouco com aquela ideia, que não estaria mais sozinho, então segui para o quarto, onde me tranquei e caí na cama com a cabeça a mil, estava velho demais para essas coisas, mas tinha certeza de que essa seria a última vez e que teria um final feliz, não tinha cometido tantos pecados assim para sofrer ainda mais.
Ver o “presente” de casamento de Nike foi algo tão estranho quanto maravilhoso, esperava que Maddox só mostrasse a ela quando a cerimônia tivesse acabado, ou ela com certeza estragaria a maquiagem de tanto chorar, não que ela fosse muito sentimental, mas sabia que dessa vez ela seria. Ao pensar na frieza que Nike demonstrava algumas vezes com certas pessoas e até comigo, e na sua força, no seu poder, Aelita me vinha a mente, mas sabia que embora tivessem a mesma alma, não era pela alma de Aelita que estava apaixonado.
Depois que descobri aquilo, que Nike tinha a mesma alma, me testei diversas vezes para saber a quem pertencia realmente todos os meus sentimentos e fiquei muito mais tranquilo e feliz ao perceber que era apenas por Nike, a Nikella, caçadora de Ciartes, dona do meu coração de gelo. Embora tivessem a mesma alma, seus espíritos, suas essências eram completamente diferentes. Uma, Aelita, fria, calculista, séria e focada em seus objetivos a ponto de passar por cima até de seus sentimentos para conseguir alcançá-los.
Já Nike, embora tivesse uma casca grossa, fosse muito teimosa e persistente, ela jamais colocava os próprios interesses acima dos outros e bem no fundo da casca de gelo de seu novo coração, o antigo coração mole e quente e sensível de uma jovem humana ainda estava lá.
Não percebi que havia cochilado até Ira saltar sobre a cama em seu tamanho grande e começar a rosnar.
– O que... – Olhei para a janela aberta, o céu estava limpo e começando a ficar manchado em tons de púrpura e salpicado de estrelas. Levantei-me e saí do quarto, indo direto até uma das janelas do corredor para ver como estava o movimento lá fora. Os convidados que chegaram de todos os mundos e de partes de Vegahn, se reuniam no jardim central.
– Caalin? Não está pronto ainda? Falta menos de meia hora para a cerimônia começar! – Zion estava parada ao lado de minha porta, ela estava com um vestido longo verde oliva, os cabelos loiros presos num coque no alto da cabeça. Ela colocou as mãos na cintura e bufou irritada.
– Acabei cochilando... – Murmurei voltando ao quarto e usando magia para me arrumar, não daria tempo para fazer mais nada. – Podia ter me acordado antes! – Ralhei com Ira, que apenas bocejou e rolou na cama como se não fosse com ele.
– Não culpe o gato, Caalin! Ninguém mandou dormir! – Zion rosnou, entrando no quarto e fingindo que ajeitava a gola da túnica azul escura que eu havia feito aparecer em mim. Zion desviou os olhos vermelhos da gola para me encarar e então deu um pequeno sorriso cruel:
– Se você a magoar... – Antes que ela terminasse a frase, segurei seus pulsos e a afastei um pouco.
– Eu nunca a magoaria, Zion. Eu faria tudo para vê-la feliz!
– Mesmo que tivesse que deixar o caminho livre para outro? – Ela questionou, sorri.
– Não preciso deixar o caminho livre para ninguém, só preciso ser o melhor para ela sempre, isso basta. – Zion sorriu.
– Bom... isso é o suficiente! – Ela pegou meu braço e me conduziu para fora do quarto. Descemos as escadas em silêncio, cada passo para perto daquele jardim fazia minha pele formigar e meu coração acelerar.
– Calma... ela já deve estar chegando também. – Zion sussurrou quando alcançamos o jardim.
– Como ela está? – Perguntei antes de soltar seu braço e seguir para o altar.
– Tão linda que Oriel quase a roubou de você! – Ela piscou para mim e ficou ao lado de Toghus na última fila. Segui para o altar e me coloquei diante do sacerdote, Claris, o mesmo que verificou minha linhagem e realizou a coroação. Passei os olhos uma única vez nos convidados para não ficar ainda mais nervoso, o único que não estava ali era Ewren, mas eu já esperava por isso.
– Não achei que fosse vê-lo tão cedo! – Sussurrou ele curvando-se um pouco.
– Fico feliz que tenha sido numa ocasião tão boa! – Falei, ficando ainda mais nervoso depois de ver o outro sacerdote tirar a coroa que eu havia mandado fazer para Nike de dentro da caixa dourada, forrada de veludo azul e colocá-la sobre o altar ao lado da esfera cerimonial ainda vazia. Os olhos de Claris encontraram os meus por um breve momento e ele pigarreou desconfortável.
Quando me casei com Mary, sabia que a esfera com o meu sangue jamais reagiria a ela, pois não éramos compatíveis, Mary precisaria ser uma malvarmo para ser vista como uma igual ao meu lado e jamais a transformaria por algo tão fútil quanto aquilo. Não sabia o que esperar quando visse Nikella carregar a esfera para aquele altar, pois ela era exatamente como eu, uma humana que havia sido transformada então, tudo era possível.
Estava tão perdido em pensamentos que mal escutei os murmúrios quando Ewren atravessou o portal do jardim de gelo, conduzindo Nike até o começo do caminho de cristais azuis e brilhantes.
Todos os pensamentos desapareceram de minha mente quando coloquei os olhos nela e a única reação que tive, foi sorrir.
Ela estava absolutamente linda!
O cabelo curto estava solto, porém com pequenos cachos negros contrastando com a pele branca e com o vestido branco e azul bordado com cristais em formato de flocos de neve, os olhos verdes fixos em mim, só não conseguia entender porque ela ainda estava em sua aparência humana. Ela estava séria quando Ewren beijou seu rosto e seguiu para seu lugar na primeira fileira.
Nike continuava me encarando, parada no começo do caminho de cristais até Hellidy começar a cantar. Um pequeno sorriso repuxou os cantos de sua boca e ela se transformou, ficando em sua real aparência como malvarmo. Não tive como esconder o enorme sorriso ao ouvir as exclamações dos sacerdotes atrás de mim.
Nikella:
Estava tremendo da cabeça aos pés quando Saí da sala de Frani, após Oriel terminar de me maquiar e desaparecer pela porta dizendo que queria estar na primeira fila quando eu chegasse ao jardim. Dessa vez estava sozinha e não tinha nenhuma das meninas comigo para que não me sentisse tão perdida em como proceder. Porém, no final do corredor, vovô me aguardava de braços cruzados e um sorriso bobo no rosto.
– Estou com cara de tão nervosa quanto sinto estar? – Perguntei sentindo as palmas das minhas mãos começando a esquentar, se é que isso era possível. Vovô estava lindo, usando uma túnica negra com detalhes dourados, combinando com a calça e os detalhes da espada ao lado do corpo, seus cabelos trançados para trás e os olhos azuis estavam brilhantes.
– Está linda... – Ele sorriu ainda mais. – Se parece tanto com Susano que quase posso dizer estar levando uma de minhas filhas para se casar!
– Isso seria bem legal para mim! Mas não muito para Leona! – Ri, ele suspirou e pegou meu braço.
– O passado do seu companheiro não deve importar, se você realmente ama. Leona nunca se importou com isso, embora tenha ficado abalada por você, por eu ter mais descendentes... mas não foi bem pelo motivo que está pensando. – Vovô me ajudou a descer as escadas, eu preferia usar magia para flutuar até lá embaixo, mas do jeito que estava nervosa, podia fazer algo errado e destruir o que as meninas passaram o dia todo tentando arrumar em mim.
– Sei disso... – Sussurrei usando toda minha concentração para não pisar no vestido enquanto descia os últimos degraus.
– Nikella, quero que saiba, que sempre que precisar, estaremos lá para você! Pode parecer difícil no começo, mas saiba que sempre vamos estar lá caso queira conversar. – Vovô havia parado de andar para que eu o encarasse.
– Mais difícil do que encarar um mago negro monstruoso? – brinquei.
– O casamento tem seus próprios monstros, Nike! Porém, precisam de mais do que lâminas e força para enfrenta-los, alguns requerem tanta destreza para serem encarados, que deixariam o mais enfurecido Glácio parecendo um gatinho manso. – Nós dois rimos, por um momento ele havia conseguido tirar todo o nervosismo de mim.
– Se eu precisar de ajuda, vou procurar vocês primeiro! – Prometi.
– Porque não está em sua aparência malvarmo? – Vovô questionou e eu lhe respondi com um enorme sorriso malicioso.
– Quero deixar aqueles sacerdotes tão surpresos que eles sempre vão lembrar desse dia! – Respondi.
– Dramática como Yurin! – Ele riu.
Perto da entrada do Jardim, um sacerdote me aguardava segurando em suas mãos uma caixa escura de veludo. Me aproximei com cuidado, tirando a esfera de vitrino azulada e gelada da caixa, que ficou morna imediatamente ao meu toque. “Ainda não, fique calma! ” Pensei, segurando-a cuidadosamente para que não mudasse antes do tempo.
– Pronta? – Vovô perguntou.
– Não, mas vamos mesmo assim! – Respirei fundo, o máximo que o vestido permitiu e atravessei os arcos de braços dados com vovô. Como Oriel havia instruído, ao passar pelos arcos esqueci completamente de que haviam pessoas ali me observando, foquei somente nos Sacerdotes e em Caalin, deslumbrante com a roupa de um azul escuro e os cabelos brancos soltos ao redor dos ombros, apenas o sorriso que ele deu ao me ver, fez aquele dia sofrido nas mãos de Oriel e das outras ter valido a pena.
Vovô me soltou murmurando algo que não consegui entender e deu um beijo em minha testa, depois desapareceu entre as cadeiras e mais uma vez respirei fundo, preparando-me para o que estava prestes a fazer. Quando a voz mágica e melodiosa de Hellidy me alcançou, fazendo um arrepio subir por minha espinha e meus olhos ameaçarem lacrimejar, soube que era a hora.
Fiz um esforço para conter o sorriso presunçoso ao mudar para a forma malvarmo, deixando que minhas marcas de mago se acendessem e ouvindo as exclamações de assombro e surpresa dos sacerdotes no altar. A esfera de vitrino em minha mão esquentou e brilhou num vermelho intenso e ao redor dela uma névoa de gelo circulava, enquanto eu caminhava tranquilamente em direção ao altar. A canção de Hellidy parecia me conduzir para frente num doce e suave balaço.
Caalin mantinha um sorriso de orelha a orelha quando o alcancei e estendi a esfera na frente de meu corpo, fazendo uma reverência conforme fui instruída mais cedo.
– Uma grande honra, quando um casamento é celebrado entre duas almas semelhantes! – Disse o sacerdote mais próximo a nós, colocando a mão acima da esfera e fechando os olhos. – A esfera reagiu à senhorita, marcando-a como uma verdadeira herdeira de Vegahn!
– Acho que não preciso perguntar à vontade das duas partes... – O outro sacerdote deu um breve sorriso, então estendeu uma bolha de vitrino vazia para mim, ela não era maior do que uma maçã. Como havia lido no livro, ele passou uma adaga branca em minha palma e quando o sangue começou a empoçar, o sacerdote então colocou a esfera sobre minha palma, fazendo-a absorver o sangue até que ficasse completamente cheia e uma luz prateada começasse a pulsar dentro dela.
Caalin estendeu a mão e pegou a esfera, que reagiu a ele, ficando vermelha também. Estávamos ambos segurando as esferas um do outro nas mãos direitas então seguramos nossas mãos esquerdas, entrelaçando os dedos.
– Rei Caalin Ascardian Arbarus, é da sua vontade que essa jovem seja sua rainha? – O sacerdote perguntou.
– Sim. – Ele respondeu alto e claro com um sorriso no rosto.
– Então, que sejam ditas as palavras que unirão seus destinos para sempre. – Disse o sacerdote afastando-se. Meu coração acelerou novamente, Caalin ergueu minha mão com a sua na altura da boca e a beijou.
– Nikella, deste dia em diante, eu reivindico sua alma, sua força e seu corpo e prometo ser sua luz, sua espada, seu ombro amigo e seu companheiro, não importa o que aconteça, até o fim dos meus dias. – Caalin falou, fazendo com que um nó se formasse em minha garganta, sabia que tinha que respondê-lo, mas não conseguia parar de sorrir.
Caalin segurava minha mão suavemente, aqueles votos fizeram com que eu esquecesse cada palavra daquele livro idiota, pois nenhuma delas fazia jus ao que eu estava sentindo, não seria justo eu dizer algo que havia sido escrito por outro para ele. Ergui sua mão, segurando-a pelo pulso e a aproximei dos lábios, beijando sua palma aberta para mim. A surpresa nos olhos de Caalin foi melhor que eu imaginava.
– Eu sabia que seria você... no momento em que decidi fazer aquele juramento, eu sabia que era você que eu queria ter ao meu lado para sempre! – Caalin sorriu ainda mais quando a marca prateada brilhou em meu braço.
– Quero fazer meus votos a você como uma forma de completar aquele juramento... – Ouvi alguns murmúrios em reprovação vindo dos sacerdotes, pois estava saindo completamente de suas tradições ao fazer aquilo, não dizer apenas um “Para sempre sua”. Porém, eu tinha apenas um coração e uma alma de gelo, mas meu espirito ainda era humano.
– Deste dia em diante, prometo ser a mesma que te fez aquele juramento, prometo estar ao seu lado em cada momento, bom ou ruim, prometo ser a luz nos seus dias sombrios. Quando estiver triste, prometo te fazer sorrir, e se não conseguir, vou estar ao seu lado até que seu sorriso volte, serei aquela que estará te protegendo, ao seu lado mesmo em seus sonhos e estarei aqui por você mesmo quando não precisar mais de mim. Te amarei até o momento em que meu coração de gelo parar de bater nesse mundo e quando minha alma despertar no outro... ainda estarei lá por você! Para sempre sua!
Ao terminar meus votos, um laço brilhante e roxo deslizou da mão de Caalin para a minha e uma orquídea brilhante na mesma cor apareceu em meu anelar. Entre as marcas de flocos de neve em meus braços, as marcas da Alma do gelo, apareceram para minha surpresa, pequenas orquídeas, deixando-me com um mosaico brilhante branco e lilás nos braços. Pelo sorriso de Caalin, aquilo era obra dele.
– Eu jamais ficarei triste, Nike, pois eu tenho você e você disse sim para mim! Para sempre e isso é o suficiente para que eu seja eternamente feliz! – As esferas em nossas mãos flutuaram e se uniram, ficando num tom azul arroxeado. O sacerdote, sem tocá-la, colocou a caixa em volta da esfera e a fechou. O outro que estava mais próximo a nós, trouxe nas mãos uma coroa feita em vitrino azulado com flocos de neve e safiras entre eles, então a colocou em minha cabeça e disse:
– Scutum glaciem, Nikella Ascardian Arbarus, rainha de Vegahn! - E se curvou, todos que estavam presentes fizeram o mesmo, mas não tive tempo para me sentir tímida, pois Caalin passou os braços ao redor de minha cintura e me beijou como se não houvesse ninguém assistindo. Ouvi as ovações e as saudações, mas não prestei atenção em mais ninguém enquanto estava nos braços dele. Não tinha como ficar mais feliz do que estava naquele momento, não conseguia soltar meus braços de Caalin, com medo de que aquilo não fosse real e que a qualquer momento eu acordaria atrasada para ir para a ACV e ele não estivesse lá para mim.
– Precisamos ir para o salão! – Caalin sussurrou para mim, colocando uma mecha de meus cabelos atrás da orelha.
– Não podemos pular direto para a noite de núpcias? – Perguntei, Caalin gargalhou e apertou os dedos em minha cintura.
– Não, minha rainha, não podemos, pois, os convidados querem te ver e te dar alguns presentes! – Ele me beijou novamente e me deu a mão, para que seguíssemos pelo corredor de convidados até o salão principal do castelo.
– Achei que fosse ficar ansiosa para comer o bolo... mas o vestido não vai deixar. – Murmurei baixinho para Caalin, ele teve que segurar o riso enquanto me acompanhava para a valsa tradicional após a cerimônia, pelo menos essa parte das tradições antigas era boa.
– Vou deixar você comer quanto bolo quiser mais tarde! – Ele sussurrou em resposta, guiando-me para o centro do salão, onde os convidados fizeram uma roda com seus respectivos pares ao nosso redor.
– Me responda uma coisa?
– Hum?
– Malvarmos tem dor de barriga? – Dessa vez, o vi morder a boca com força para não gargalhar.
– Garanto que se você comer metade daquele bolo... vai ficar reinando em outro trono por algumas horas. – Ele riu, posicionando-me para a dança.
– Acho que vou ficar com um pedaço só, então!
Os músicos começaram uma valsa suave, e nos movimentos lentos, pude reparar em toda a decoração do salão.
Longas fitas de cetim em tons de lilás, roxo, dourado e branco pendiam do alto do teto fosco espelhado, formando flores e arabescos em cascatas nos quatro cantos do salão. Em todas as mesas ao redor do centro, tinham pequenos jarros de vidro com orquídeas de todas as cores. Os convidados giravam e dançavam ao som da melodia, que embora não fosse das minhas favoritas, tornou-se maravilhosa pelo evento.
Bem perto de nós, Susano e Annie valsavam e ao lado deles havia um casal que desconhecia completamente, mas que me eram estranhamente familiares. Os olhos escuros do homem pousaram sobre mim e ele deu um breve sorriso, fazendo um gesto de honra com a mão sobre o peito.
Quando a música aumentou, os casais começaram a trocar de par com quem estava ao seu lado e Caalin soltou minha mão, mas sem tirar os olhos de mim quando o homem estranho pegou minha mão e passou o braço ao redor de minha cintura, mas me manteve um pouco afastada.
– Desejo-lhe todas as felicidades, alteza. – Disse ele com sua voz firme e profunda. Agradeci, quando ele me girou, percebi que a mão que segurava minha cintura era metálica, um membro mecânico. Perdi o fôlego ao encará-lo novamente e perceber com quem estava dançando.
– Maddox Agarathis, líder do clã de bruxos Mardans. – Ele sussurrou ao perceber minha expressão de assombro e admiração.
– E senhor das tempestades! – Completei, ele sorriu e assentiu.
– Fui abençoado com uma parcela da energia da Alma dos raios, assim como os Vernuns... – Ele sorriu, mas não me deu tempo de perguntar o que eram Vernuns. Fui puxada delicadamente por ele para fora da área de dança e levada para uma mesa próxima as janelas de frente para o jardim cerimonial.
Uma jovem mulher muito semelhante a Maddox estava sentada a mesa, ao lado de um bruxo ruivo com olhar penetrante e indecifrável e, de braços dados com o ruivo, estava uma garota loira que me encarou com os olhos azuis quase cinzentos e deu um sorriso tímido, o sorriso que reconheci de uma foto que vi uma única vez sobre a estante de minha casa em Ciartes. Meus joelhos ameaçaram ceder e meus olhos se encheram de lágrimas, mas me esforcei para não chorar ali.
– Nikella, quero que conheça sua irmã gêmea, Gwendollyn! – Disse Maddox para mim, sorri para a menina, tentando ao máximo não chorar. Pelo visto, minhas contas sobre a passagem do tempo em Dartaris não estavam erradas, pois Gwendollyn não parecia ter mais que quatorze anos.
– É um prazer conhece-la, majestade. – Disse ela curvando-se um pouco. Sem cerimônia, eu segurei seu braço e a apertei nos meus. Embora a reação dela tenha sido ficar congelada no lugar, não pude deixar de fazer aquilo.
– Me chame do que quiser, menos de majestade, por favor! – Pedi. Ela pareceu relaxar um pouco e fechou os braços finos ao meu redor e soluçando baixinho
– Mamãe queria voltar para Ciartes e te buscar, mas não teve tempo... – Ela começou, mas essa era uma história que eu precisava saber depois, mais detalhada.
– Sabia onde estava! Me desculpe se não fui te procurar assim que descobri a verdade, fiquei com medo de que não me quisesse por perto! – Admiti. Gwynn se afastou um pouco e sorriu.
– Oras! Quem não ia querer uma irmã rainha? Poderia te pedir qualquer coisa de presente! – Ela sorriu e eu acabei rindo junto com os outros que estavam na mesma mesa.
– Sempre que quiser! – Falei.
– Ao que parece, Tori a criou muito mal! – Maddox ralhou, olhando feio para Gwynn.
– Não tem problema! Eu pensei a mesma coisa quando descobri que era Ascardian! – Menti. Maddox levantou as sobrancelhas e riu.
– Parece que não são tão diferentes assim! – Disse o ruivo piscando para Gwynn, que franziu o cenho e lhe mostrou a língua.
– Obrigada por trazê-la! – Falei. Mais tarde conversaria mais com ela e se ela aceitasse, depois que tudo isso passasse, a chamaria para viver conosco em Amantia, porém, pelo olhar do Sorcys de pé perto da mesa, não creio que fosse ser tão fácil tirá-la deles.
Passei por muitos convidados, que cumprimentavam, desejavam felicidades e falavam sobre estarem dispostos a lutar ao nosso lado contra Higarath. Agradecia de coração, percebendo que não estavam ali apenas pela festa, mas que também lutariam por todos. Caalin estava no meio do salão, agora dançando com Karin, que parecia animada contando algo a ele.
– Gostaria de uma dança com a nova rainha de Vegahn. – Disse uma voz masculina atrás de mim. Me virei com um sorriso no rosto, mas o mesmo desapareceu ao encarar aqueles olhos negros. Minha vista escureceu um pouco com o susto, ao notar que sua pele tinha um brilho etéreo. Diante de mim, estava um homem quase idêntico a Caalin, se não fossem o sorriso e o cheiro diferentes, poderia facilmente ter confundido os dois.
– Quem...
– Me chamo Lenios, filho de Caalin. – Ele prendeu minhas mãos de forma que não pudesse me mover, mas sem me machucar. – Calma! Só viemos conversar! – Ele deu aquele sorriso encantador novamente.
– Viemos... – Olhei para trás de mim a tempo de ver o segundo aparecer, só que esse com os mesmos olhos azul safira, porém, diferente de Caalin.
– Ela está esperando na porta. – Disse o segundo, ele olhou rapidamente para onde Caalin dançava distraído com Annie. – Olá, Nikella! Bem-vinda a família! – Disse ele seriamente. – Sou Ayran, irmão mais velho dessa besta selvagem que está segurando suas mãos!
Lenios soltou um risinho enquanto me levava em direção as portas do salão. Quis me virar para falar com Caalin, mas estava em choque com aqueles dois para conseguir fazer meu corpo me obedecer. Se eles haviam morrido, como estavam ali, no meu casamento?
Passamos pelas portas do salão, a música foi ficando mais baixa conforme nos afastávamos, logo Caalin perceberia minha ausência e viria atrás de mim, estava prestes a encrencar com aqueles dois por me tirarem da festa daquela maneira, e desconfiando de quem diziam ser, porém, ao virarmos no segundo corredor depois do salão, uma figura feminina de presença impressionante me fez congelar.
– Nikella, é um prazer finalmente conhecê-la pessoalmente! – Disse a mulher cujo rosto via estampado em vários livros antigos da criação dos mundos. Ayrana, a criadora dos Treze Mundos estava de pé diante de mim. –Viemos de Mogyin usando formas corpóreas temporárias para prestigiar o casamento do meu caçula, meu filho predileto! – Ela sorriu de forma que fez os pelos dos meus braços se arrepiarem.
Seguimos em silêncio para a biblioteca particular, que ficava dentro do escritório principal do castelo. Meu coração estava na garganta batendo violentamente enquanto aquele braço estranhamente quente estava em volta do meu, o sorriso eternamente curioso e divertido de Lenios não deixava seu rosto enquanto ele me encarava, observando-me de cima a baixo.
Era difícil acreditar que os três haviam vindo de Mogyin, não conseguia parar de olhar a mulher com um brilho etéreo à minha frente, a aura serena que emanava dela não era suficiente para me acalmar. Ayran abriu a porta da sala e gesticulou para que eu me sentasse no pequeno sofá cinza bordado de dourado e azul em frente a lareira.
Ele mal se moveu e a lareira acendeu com um estalo, fazendo meu corpo inteiro formigar com um medo irracional. Não acreditava que eles pudessem me fazer mal, mas algo em mim parecia estar querendo desesperadamente sair daquela sala e procurar por Caalin.
– Ele virá logo, pedimos à Áries que o trouxesse! – Disse Ayran como se tivesse lido meus pensamentos e sentando-se ao sofá em minha frente, pouco menos de dois metros, era o que me separava dele. Não havia reparado em Sirius e Áries na festa, mas sabia que eles estavam lá.
Lenios sentou ao meu lado e passou o braço ao redor de meu ombro, num gesto casual e acolhedor, mas que fez meu coração acelerar ainda mais. Ayrana caminhou pela sala, observando tudo até seus olhos pousarem sobre mim. Eles eram de um verde claro impressionante, assim como o tom dourado dos cabelos, que pareciam ouro derretido. Ela sentou-se ao lado de Ayran e deu um pequeno sorriso para ele, depois voltou a me encarar.
Não podia acreditar que estava diante da criadora dos mundos, muito menos que era mãe de Caalin! Minha sogra... teria rido da piadinha que surgiu em minha mente sobre minha sogra estar no mundo dos mortos, se não fosse o medo do malvarmo com o braço ao meu redor.
– Então... Nikella, como se sente por estar casada com o guerreiro mais velho dos Doze Mundos? – Perguntou Ayran com um brilho malicioso no olhar.
– Me esqueço da idade que ele tem, isso não faz diferença para mim, e na maior parte do tempo ele parece mais jovem que eu. – Retruquei asperamente, fazendo Ayran franzir o cenho e Lenios gargalhar.
– Gostei dela! – Ele me apertou um pouco mais, beliscando minha bochecha.
– Então... o que anda acontecendo de bom por Mogyin? – Perguntei tentando quebrar o gelo e me sentindo uma idiota assim que a pergunta saiu. O sorriso de Lenios foi de orelha a orelha e ele escorregou as pontas dos dedos por meu braço.
– Ah, sabe como é! Tudo muito morto! – Teria rido se não tivesse ficado constrangida.
– Lenios, por favor. Comporte-se! – Rosnou Ayran para ele, olhando fixamente para a mão do irmão que deslizou do meu braço para minha barriga.
– Tudo bem, Ay. Não vou tirar pedaço! – Lenios riu.
– Olha... acho bom que você tenha gostado de mim, mas se não tirar sua mão daí eu vou fazer você ficar com bastante raiva de mim, pois espírito corpóreo ou não, vou te fazer voltar pra Mogyin com alguns dedos a menos. – Falei entre os dentes, Lenios não me soltou e o sorriso não saiu de seu rosto. Ayrana me olhava com as sobrancelhas erguidas e a boca aberta, talvez não acreditando que eu realmente tinha dito aquilo para o filho de Caalin.
Graças aos céus a porta se abriu, pois estava prestes a invocar Siferath e arrancar os dedos de meu enteado pelo abuso ao ouvir meu aviso e ignorá-lo. Caalin entrou seguido de Áries, ela não demonstrou surpresa ao ver Ayrana ali, mas Caalin ficou parado em choque na porta, olhando os filhos como se não acreditasse no que seus olhos estavam vendo.
Ele deu um passo vacilante adiante e seus olhos passaram de Lenios para mim, ele olhou o braço de Lenios ao redor de meus ombros e a mão em minha barriga e franziu o cenho, soltando um baixo rosnado que me surpreendeu, filho ou não, ele não estava disposto a deixar que outro me tocasse daquela forma tão casual. Dessa vez, Lenios teve o bom senso de parecer abalado, tirou o braço de mim e se afastou um pouco, porém o sofá não oferecia espaço suficiente para que nós três ficássemos ali e Lenios parecia disposto a não se levantar.
– O que está acontecendo aqui? – Caalin perguntou entre os dentes, passando os olhos pelos três novamente e encarando Ayrana.
– Oras! Vim ver o casamento de meu filho caçula! – Ayrana se levantou e encerrou o espaço entre ela e Caalin, fechando os braços em volta dele num abraço apertado. Ayran se levantou também, abraçando Caalin de um jeito um tanto frio, apenas Lenios não se levantou para cumprimentá-lo, ficou ao meu lado o tempo todo.
– Nossa, pai! Sua nova esposa é quase cinco milênios mais nova que sua bisneta! O senhor não tem vergonha? – Lenios perguntou, sorrindo de forma maldosa para ele. Caalin retrucou com um olhar tão frio que fez com que eu me encolhesse no sofá, de repente, o vestido maravilhoso de Frani pareceu uma prisão sufocante, a tensão na sala parecia que iria explodir numa briga a qualquer momento. Então, o olhar de Caalin passou de frio a surpreso.
– Bisneta? – Ele perguntou.
– Melhor explicar desde o começo, ou as coisas vão ficar estranhas demais! – Ayrana falou, apontando uma poltrona perto dela para que Caalin sentasse, longe demais de mim, ele ficou por um longo momento de pé, encarando-a de forma estranha, então suspirou e sentou-se. Áries ficou de pé atrás de mim, a mão pousada em meu ombro me confortando silenciosamente, como se soubesse onde aquela conversa toda ia terminar, meu estômago embrulhou e eu me obriguei a encarar Ayrana.
– Tenho perguntas... – comecei, ela fez um aceno para mim e suspirou.
– Sei disso, um dos maiores motivos para eu estar aqui agora é porque precisava dar suas respostas, Nikella. – Assenti, duvidando um pouco disso.
– Então, a primeira... – talvez única – Por que eu tenho a Alma do gelo? – Ayrana fez uma careta e olhou para Caalin, ele parecia curioso com minha pergunta e se inclinou um pouco para frente, uma confirmação para que ela falasse.
– Essa é uma história um pouco longa...
– Temos a noite toda, a cerimônia acabou e eles não precisam de nós para curtir a festa! – Retruquei irritada, Caalin mordeu os lábios nervoso com minha resposta, estava sendo grosseira demais, mas eu não a considerava uma divindade, embora ainda a achasse incrível.
– Creio que já conheça a história da criação dos Treze Mundos completamente mágicos, então, vou pular um pedaço da história. – Ela pigarreou e continuou: – O último mundo para os vivos que criei foi Vegahn, logo em seguida abri os portais em várias partes da terra e de suas dimensões escondidas para que todas as criaturas mágicas passassem para os mundos que criei. Depois, eu voltei para a terra em busca da minha antiga aldeia para me despedir do que quer que tivesse sobrado dela. Então, numa das ruínas, achei um casal de crianças humanas quase mortas pelo frio... sem pensar duas vezes e sem pedir permissão à Yinemí, eu a usei para transformar o menino numa criatura semelhante aos humanos, porém que pudesse suportar a qualquer frio, qualquer situação extrema para sobreviver. Quando desejei isso, o menino rapidamente mudou de cor, ficando branco como a neve e seus olhos ficaram de um negro profundo... imediatamente, ele parou de sentir frio.
“Quando fui fazer o mesmo pela menina, algo saiu errado, e o coração dela parou de bater. Eu entrei em pânico e implorei para a alma do gelo me ajudar, para fazer com que ela voltasse. Ela então ordenou que eu pressionasse as mãos sobre o coração da menina, mas quando o fiz, uma lâmina feita de gelo saiu de minhas mãos, atravessando o peito dela. Eu fiquei com raiva e amaldiçoei a Alma do gelo por ter me enganado, porém, a menina despertou e diferente do garoto, ela ficou com os olhos e os cabelos brancos e o gelo ao nosso redor começou a responder a ela e não mais a mim... A Yinemí havia sido passada de mim para ela, seu sangue havia se transformado em algo semelhante a um metal líquido, coisa que só vi acontecer com a lava de um vulcão em Amantia quando o toquei sem querer... – Ela começou a divagar.
– Está dizendo que quando você criou Fryn como malvarmo, você transferiu a Alma do gelo para ela? – Caalin a interrompeu, trazendo-a de volta para o assunto principal. Ayrana corou mas assentiu. – Então...
– Foi por isso que não pude matar Higarath aquele dia, filho. Eu não tinha a Alma do Gelo comigo e não tive tempo de chamar Fryn para que me ajudasse.
– Então, Yinemí te enganou para sair de seu controle? – Perguntei, imediatamente, a voz dentro de minha mente começou a soltar uma torrente de palavrões contra Ayrana, mas eu a calei com um: “Mais tarde me conte sua versão! ”
– Sim... – Ayrana pigarreou e encolheu os ombros. – Eu trouxe aqueles dois para cá e os deixei junto com os Ymir’s, em seguida parti para Amantia e nunca mais os vi. – Caalin bufou e a encarou com um olhar repreensivo.
– Isso não respondeu minha pergunta, porque EU tenho a Alma do gelo? – Ayrana sorriu de forma doce e disse:
– Porque você tem a mesma alma da primeira malvarmo, a alma de Fryn Aelita estava unida à Alma do gelo. – O chão sob meus pés começou a se mover de repente, e eu tive que conter a vontade de gritar, pois o vestido não permitia que eu inspirasse profundamente o suficiente para isso.
– Como... – Caalin estava alarmado, olhando para a mãe.
– Eu ouvi Miriel falando sobre essa Aelita, mas não sabia que ela era a primeira malvarmo... – Sussurrei, Caalin perdeu ainda mais a cor do rosto, mas não tirava os olhos de Ayrana.
– Ele nunca te falou dela, não é? – Lenios perguntou, piscando para mim.
– Não. – Olhei para Caalin, que agora me encarava em silêncio.
– Fryn Aelita Orisher, a primeira malvarmo, foi quem transformou Caalin em malvarmo também, ela podia fazer isso pois seu sangue possuía a magia da Yinemí, a mesma magia que a mudou, mas Genis, o menino que eu transformei primeiro não tinha essa magia, então a maioria dos descendentes malvarmos dos dois, tinham o sangue amarelado, sem o dom da transformação, apenas dois deles podiam passar isso adiante.
– Ela mentiu... – Caalin sussurrou, desviando o olhar, não estava entendendo até que algo escorreu frio pela minha coluna.
– Quando Leona foi à Ciartes dezenove anos atrás em busca de uma aliança com Hargas, ela abriu uma brecha em sua magia, deixando que eu visse o que estava se passando em seu coração, naquele momento eu sabia que ela não teria coragem para matar seu pai e acabar com a maldição, ela era doce demais para fazer algo assim. Então, eu soube que era preciso que as seis Almas Elementais se unissem novamente, pois em breve Higarath despertaria. Eu estava observando os mundos através do espelho, procurando por um bebê que não resistiria ao nascimento para enviar a alma de Fryn. Mas Leona havia puxado parte da magia de Vegahn ao usar gelo em Ciartes, e eu me distraí, observando a neve caindo no mundo de fogo. Foi quando vi você nascer, uma maga com a minha linhagem e percebi que sua magia estava desaparecendo, que você ia morrer... – Algumas lágrimas escaparam dos olhos de Ayrana, não havia notado que algumas estavam se acumulando em meus olhos também. Eu as limpei e forcei minha expressão a ficar imparcial.
– Ah, Nike... Fryn me pediu para descer, para unir a alma dela à sua, para que você não desaparecesse, porque ela sabia que você era uma guerreira, pois você estava lutando contra a morte naquele momento enquanto chorava naquela instalação de cura nos braços de Tiena. Eu já havia quebrado muitas regras mesmo, o que uma a mais poderia significar? – Ela deu um sorriso triste. – Mas para mandar a alma de Fryn para que ela se unisse a você, eu teria que apagá-la completamente, não só a personalidade, como também todas as memórias que ela acumulou em vida, pois uma vez que uma alma fracionada como a de vocês une-se a outra parte para renascer completa, ou com uma parte a mais, a personalidade mais forte destrói a mais fraca, e como você era um bebê, a essência de Fryn subjugaria a sua. – Ela explicava calmamente, e cada vez mais meu corpo formigava e minha vista escurecia.
– Quando ela aceitou ser apagada para se unir a você, eu o fiz, deixando apenas sua alma forte, porém vazia que guardava a Yinemí, então aproveitei a brecha de Leona e a enviei para você, que teria mais de uma parte da mesma alma, você seria mais forte e mais intensa... seu corpo não teria nenhuma memória do poder que carregava e você só o despertaria quando estivesse preparada para usá-lo, uma vez que era completamente humana. Eu não sabia que seu pai bloquearia sua magia, por isso, você atrasou muito a evolução de seus poderes, ainda assim você lutou e se tornou uma guerreira incrivelmente forte mesmo sem sua magia.
– Você está dizendo, que minha alma está fundida com a da primeira malvarmo e com a Alma do Gelo? – Perguntei, mal conseguindo disfarçar a voz embargada, um torpor tomava conta de mim enquanto confusão e medo me invadiam e impediam que eu raciocinasse normalmente.
– Sim. – Ela só disse aquilo e ficou me observando em silêncio.
– Se Fryn e o marido tiveram apenas dois filhos com sangue azulado, então quer dizer que todos os malvarmos que tem esse sangue, foram transformados? – Caalin tentou desviar do assunto, mas já era tarde.
– Não todos... como eu disse, eles tiveram descendentes com o dom da transformação, mas a maioria sim... – Ayrana se virou para Lenios, que deu um risinho e beijou a mão de Áries que estava sobre meu ombro.
– Lítian – Ele ergueu a mão de Áries – hoje conhecida como Áries, e Ravena... são as netas de Malazar, seu filho com Aelita. – Quando o escutei falar aquilo, deitei a cabeça no encosto do sofá e usei magia para fazer o vestido de casamento desaparecer, substituindo-o por um vestido longo cinza-claro de algodão macio. Respirei fundo com meus pulmões agora totalmente livres.
– É mentira! – Caalin vociferou, levantando-se num pulo e encarando Ayrana. – Aelita não teve nenhum filho meu!
– Ela ficou quase um ano longe de você uma década depois que estavam juntos, não foi? Disse que foi passar um tempo com a família por estar estressada e não te deixou ir! – Ayrana observou e Caalin ficou em choque, olhando para o nada. – Ela foi para a Cidade de Grohat, no continente Sul, onde os netos dela viviam e quando teve a criança ficou apenas um pouco por lá, o deixou com os netos e voltou para Blizzion. – Caalin caiu de volta no sofá cobrindo o rosto com as mãos.
– Dois séculos... e eu jamais soube desse filho. – Ele falou.
– Fora que os nossos descendentes também têm o sangue transparente-azulado. – Disse Ayran quebrando o silêncio que havia tomado a sala e o silêncio que estava dentro de mim.
– Seus...?
– Boghkar e Treezer não foram destruídos quando Antares morreu, ela usou o resto da magia dela para os separar do círculo, abrindo um portal para que a magia de Higarath não os destruísse. – Ayrana explicou, sua voz estava mais baixa agora.
– Nós vivemos lá até poucas décadas atrás. – Continuou Ayran. – Nós não morremos, mas quando nossa mãe morreu, decidimos ir até Mogyin para sermos os protetores da guardiã de lá, pois soubemos de tudo que estava acontecendo dentro do círculo e sabíamos que o mundo de descanso também estaria condenado de Higarath conseguisse se libertar. – Ele explicou.
– Quando cheguei à Mogyin assim que fui morta por Higarath, eu escutei uma voz sombria, que me repreendeu por eu ter criado um mundo para as almas dos mortos, e por ter criado aquele mundo sem permissão, eu deveria viver nele sem jamais poder retornar, eu teria que ficar lá e proteger aquele lugar, cuidando de todas as almas que entrassem e saíssem dele. Eu não encarei como um castigo, achei muito bom poder cuidar de todos aqueles que eu havia ajudado a encontrar um lugar melhor para viver e para facilitar, eu criei a árvore dos laços, para poder observar as almas fracionadas e as juntar sempre que tivesse a chance.
Ela deu um sorriso e olhou para Caalin.
– Você compartilhava a alma com Fryn Aelita antes mesmo de eu criar a árvore. Quando a criei, eu vi você, vi a quem estava ligado e fiquei feliz de tê-la salvo aquele dia na terra, pois você era o único dos meus filhos que deixei sozinho quando parti, mas haviam mais alguns fios que saíam da mesma folha dourada... – Ela esticou a mão para tocar o rosto dele, mas ele a segurou, impedindo que o tocasse.
– Antares, nos céus por toda a vida dela até morrer... – Caalin rosnou, mas eu já estava estranhamente fria e calma por dentro, mesmo que parecesse que o meu mundo, que cada tijolinho que formava a torre que eu era, havia desmoronado.
– Caalin... – Chamei. Ele ficou sério, tenso e me encarou, os olhos azuis expressivos como os de Ayrana, faiscando contra a luz das chamas da lareira. Só tinha uma pergunta a fazer e meu coração estava apertado, preparando-se para a resposta.
– Nike? Você está... – Ergui a mão o interrompendo.
– Você sabia... que eu tinha a alma dela... de Aelita? – Quis saber. Caalin me encarou com os olhos cheios de culpa, ele deu um suspiro pesado desviou o olhar. Aquilo resposta suficiente para mim, toda felicidade que sentia poucas horas antes, parecia ter evaporado como água num dia comum em Ciartes. Respirei fundo novamente para ter certeza de que o ar estava mesmo entrando em meus pulmões e me levantei do sofá, afastando a mão de Áries que estava sobre meu ombro. Não dei mais nenhum olhar pela sala antes de seguir para a porta. Caalin me alcançou rapidamente e segurou meu braço.
– Nike, temos que conversar... – Mas uma onda de raiva, misturada com mágoa e incerteza tomou conta de mim e eu o afastei mostrando as garras e as presas, o gelo brilhando nas pontas das garras parecia querer me ajudar.
– Não. Me. Toque. – Soltei entre os dentes e me virei, deixando a sala sem olhar para trás. Caminhei em passos largos e rápidos até o fim do corredor e virei à esquerda, usando magia para me esconder e passar invisível pelos arcos que davam para o salão principal, onde a festa ainda acontecia. A música e o clima agradável em que todos estavam só piorou as coisas, fazendo com que o nó que estava em minha garganta se desmanchasse e subisse aos olhos, escorrendo por meu rosto. Corri para fora, em direção ao pátio central, onde a estátua do dragão eternamente congelado em vitrino, rugia para o portão.
Não havia ninguém do lado de fora, então aproveitei o vento gelado e o silêncio e caminhei até a beirada do lago, onde me sentei num banco de pedra semicongelado e fiquei olhando o gelo brilhando na escuridão através das grossas lágrimas que se acumulavam em meus olhos. A dor me atingiu tão forte que me curvei para frente, escondendo o rosto nas mãos e deixando que as lágrimas descessem livremente por elas.
– Não devia estar lá dentro? – Perguntou uma voz masculina muito próxima, mas meu corpo estava entorpecido demais para que eu me virasse e o enxotasse dali.
– Vá embora, Su. – Murmurei, tentando fazer minha voz parecer apenas entediada. Ainda podia sentir a presença dele, mas escutei passos indo embora e olhei por cima do ombro, mesmo com as lágrimas atrapalhando minha visão, pude ver Annie se distanciando.
– Eu já disse uma vez, e vou dizer de novo, Nikella – Ele sentou ao meu lado, pegando-me pela cintura e me apertando num abraço. – Eu jamais vou te deixar, enquanto eu achar que você precisa de mim por perto, eu estarei aqui para te salvar mesmo que seja de você mesma. – Ele sussurrou, apertando-me mais. Não consegui controlar a vontade de chorar, nem os soluços e as lágrimas que mancharam a túnica verde escura que Susano vestia.
– O que houve? – Ele perguntou quando finalmente me acalmei, depois do longo tempo que eu passei chorando. Não queria falar, na verdade não conseguia, pois o nó em minha garganta me impedia. Então fiz o que achei que seria mais fácil, segurei o rosto quente de Susano entre minhas mãos e toquei sua testa na minha, forçando todas aquelas memórias para ele. Num segundo todas as imagens daquela eternidade conversando na sala com Ayrana, os filhos de Caalin, ele e Áries, passaram de mim para Susano.
– Eu... não sei o que dizer. – Susano disse finalmente, quando terminou de processar todas as informações que eu havia jogado sobre ele. Sua expressão era um misto de compreensão, espanto e dor.
– E eu não sei o que sentir, não sei o que pensar... não sei mais o que eu sou! – Choraminguei, apertando os joelhos contra o peito. Susano manteve os braços ao redor de mim e suspirou.
– Mas Nike, ela não disse que apagou totalmente quem a tal de Fryn... Aelita era? – Ele perguntou.
– E se a vontade dela de vê-lo novamente, de viver com ele fosse tão grande que nem mesmo a magia de Ayrana possa tê-la apagado? E se meus sentimentos por ele não passam dos sentimentos dela, que ainda permanecem em algum lugar escuro em mim? E se o que eu sentia por Kuran, aliás, o que eu não sentia por ele fosse obra disso? Ela querendo me afastar de todos para que pudesse encontrar Caalin e viver com ele novamente através de mim? – Meu coração saltava desesperado enquanto a dor e a incerteza me consumiam.
– Nike, primeiro: Se acalme! – Susano segurou meu rosto, o hálito quente condensando entre o pouco espaço entre nós. – Não se esqueça que está grávida! E que malvarmos são dez vezes mais sensíveis a sentimentos do que humanos e que normalmente malvarmos não passam do começo da gravidez por isso! – Outro choque de realidade, seguido de um gemido e um lamento meu.
– Eu... não sei mais o que pensar!
– Infelizmente, eu não posso te ajudar nisso. – Ele confessou. – Mas se serve de ajuda, de alguma forma... eu sabia desde antes que era ligado à Annie, que nós compartilhávamos a alma e lutei contra isso, queria provar para mim mesmo que não teria nenhum sentimento por ela que não fosse MEU, queria um sentimento verdadeiro, que não fosse relacionado à nossa ligação e a necessidade de estarmos perto um do outro. Nike, a ligação nem sempre significa que você tenha que se relacionar de forma amorosa com quem é ligado! Quer saber como sei disso? – Ele perguntou, roçando os dedos em minha bochecha, eu assenti fracamente. – Karin e Nyumun tem as almas ligadas, e elas são melhores amigas, e foram melhores amigas antes dessa vida!
– Mas elas são mulheres, e são irmãs. – Contestei.
– Dois exemplos: Oriel e Zion, e Lupinus e Nelin!
– Oriel e Zion são ligadas? – Fiquei surpresa.
– Não, Nike! – Susano riu. – São duas mulheres... e mesmo assim se amam. Lupinus e Nelin se amam de maneira nada fraternal e são irmãos. Agora eu te pergunto, e se você jamais soubesse que sua alma, digo novamente, SUA alma é ligada à dessa guerreira que tinha a própria alma fundida com a Yinemí, você ainda o amaria?
– Esse é o problema, Su... eu sei o que tem dentro de mim, e não sei se o que sinto é apenas meu... – Ele suspirou e olhou para o castelo.
– Então deixa eu mudar minha pergunta... o que ele sente, ele sentia antes de saber sobre sua alma ser ligada à dela?
– Não perguntei desde quando ele sabia..., mas o fato dele saber e nunca ter me dito, foi o suficiente para que eu não acreditasse mais nos sentimentos dele por mim... – Minha garganta se apertou novamente e tive que fazer força para manter os sentimentos trancados e não chorar novamente.
– O que eu sou... Eu sei que eu sou EU, Susano! Eu tenho certeza que tudo que sou, foi forjado a partir do que houve comigo, da minha vida e da forma que eu a vivi, mas e se lá no fundo, eu só lutei dessa maneira, só fui boa em tudo porque havia a alma de uma guerreira comigo?
– Você vai ter que buscar dentro de você essas respostas, se Ayrana disse que apagou, e você nunca teve nenhuma memória dela, ou lampejo da sua existência, então eu acredito que você é você! A Nike é quem eu conheço e que esteve ao meu lado naquele último ano na ACV. Você não precisa ter a alma de uma guerreira para ser forte! Mas se acha que a resposta de alguém que tenha vivido o mesmo que você poderá te ajudar, fale com minha mãe, mas deixe isso para amanhã, está bem? – Ele piscou, mas não deixou que eu perguntasse mais nada. Susano limpou minhas lágrimas usando magia e começou a caminhar comigo de volta para dentro do castelo.
– Não quero voltar para a festa, Su! Perdi o ânimo para estar lá com toda aquela gente! Não vou conseguir disfarçar... – Reclamei.
– Não vamos para a festa. – Ele retrucou, desviando da entrada principal do castelo, então suas asas cinzentas se abriram e ele me pegou no colo, voando para cima antes que eu pudesse protestar. Susano pousou na sacada de meu quarto e abriu a janela também usando magia. O quarto estava escuro e vazio, a não ser pelo enorme glácio esticado na metade de minha cama, Ira ronronava alto dormindo sobre meus travesseiros.
– Durma um pouco, descanse e deixe sua mente se ocupar enquanto dorme... – Ele me colocou na cama e deu um beijo em minha testa.
– Obrigada, Su. Estaria perdida sem você! – Confessei.
– Eu sei disso! – Ele gargalhou, acenando para mim e fechando as portas da sacada atrás de si. Ira me acertou com o focinho, fazendo com que eu me deitasse ao seu lado. Seu pelo macio estava quente e levemente perfumado com cheiro de lavanda. Na certa, havia ganhado banho para aquela festa. Eu o abracei, fazendo com que diminuísse seu tamanho até ficar como um gato, então ele se enrolou sobre minha barriga e adormeceu, ronronando. Logo em seguida, com uma imensa dor no coração, exausta e cheia de pensamentos barulhentos, acabei me entregando ao sono também.
Capítulo 9
Caalin:
Depois de brigar com minha mãe por algumas horas após a cena com Nikella, saí da sala furioso. Parecia que ela havia vindo apenas para destruir o pouco de alegria que tínhamos conseguido ter nos últimos dias. Ela havia vindo para deixar as coisas “claras” e com seus guardiões, meus filhos, veio para nos ajudar com Higarath e contar como as Almas elementais podiam pará-lo, mas precisava dos seis guardiões das Almas presentes, e duvidava que depois do que aconteceu, Nike estaria com humor para aquele tipo de reunião.
Com o resto de paciência que me restou, pedi para minha mãe aguardar o dia seguinte, uma vez que todos os guardiões das almas estavam no castelo para o casamento, então seria mais fácil reuni-los no dia seguinte antes que fossem embora.
Passava das três da manhã e a festa ainda estava acontecendo no salão, a música ainda tocava e todos pareciam se divertir. Fiquei de longe observando para ver se por acaso Nike não tinha voltado para lá, talvez para ficar perto da irmã ou das tias. No canto do salão, estava Gwendollyn, ela sorria e dançava com o mesmo Sorcys que a levou mais cedo para que eu pudesse conhece-la, Halles era o nome dele. Passei os olhos uma segunda vez pelo salão e tive certeza de que não era no salão que ia encontrá-la.
Me virei para ir ao pátio de entrada, talvez Nike estivesse perto da estátua de vitrino da mãe de docinho, mas ao passar pelos portais, dei de cara com Susano e Annie, os dois me encaravam com fogo nos olhos e pareciam querer minha cabeça numa bandeja de prata.
– Caalin. – Annie murmurou entre os dentes. – Estou pensando seriamente em ajudar Zion a tirar seu couro para fazermos um tapete de dança! – Ela ergueu as mãos em brasas, mas Susano segurou seus pulsos e o fogo desapareceu.
– Tudo bem, Annie... eu falo com ele. – Disse Susano beijando o rosto dela, Annie manteve os olhos em mim, mas foi se afastando lentamente em direção ao salão. Pela reação dela, era provável que soubesse o que aconteceu e ele devia saber onde Nike estava, eu estava exausto demais para puxar pela magia de guardiã dela para encontrá-la e como sabia que ela sentiria o puxão, era melhor não tentar.
– Sabe onde Nike está? – Perguntei rispidamente.
– Dormindo, no quarto dela. – Susano respondeu no mesmo tom, suspirei cansado, então me virei para ir até o quarto, mas a mão de Susano pousou em meu ombro, virei-me para ele pronto para mandá-lo cuidar da própria vida, mas a expressão calma em seu rosto e os olhos verdes no mesmo tom dos olhos dela me fizeram deixar a grosseria para outra hora.
– Caalin, o que foi que você fez?
– Olha, eu não fiz nada, foi minha mãe, Ayrana que chegou falando o que não devia para ela...
– Nossa! Você é tão velho que seus miolos começaram a falhar, é isso? – Susano rosnou e eu arqueei as sobrancelhas, será que ele fazia alguma ideia de com quem estava falando?
– Como é? – Rosnei em resposta afastando sua mão. Seu humor estava péssimo. Bom, pois o meu estava bem pior.
– A culpa não foi de Ayrana por falar sobre a alma de Aelita e de Nike serem unidas, a culpa foi sua por saber e não falar nada para ela! Você é idiota ou o quê? – Susano grunhiu empurrando-me contra a parede, teria ficado chocado com sua força excepcional se não estivesse ainda mais chocado por suas palavras.
– Eu não contei a ela quando descobri que as duas partilhavam a mesma alma por medo da reação dela! Se ela soubesse quem Aelita foi para mim...
– Teria a mesma reação que teve agora? Pelo amor de Gaia, Caalin! Ela teria a mesma reação, mas assim ela ia saber que você contou porque confiava nela, ela teria certeza que seus sentimentos eram por ela e por isso você foi sincero! – Susano elevou a voz. – Você escondeu isso e só provou para ela que os sentimentos que você tem são por uma parte da alma que ela carrega e não por ela!
– Não é nada disso, garoto! Não diga coisas que não sabe! – Urrei segurando o braço dele para tirá-lo do meu caminho. – Eu descobri que era ligado a ela, descobri com quem ela partilhava a alma muito depois de já gostar dela.
– Então devia ter dito a verdade! Pois não foi o que pareceu para ela, e agora, ela não vai mais confiar em você. Você tinha que ter sido sincero desde o começo, Caalin! – Ele suspirou e deixou a mão cair de meu ombro então esfregou o rosto. – Ela é muito sensível, não é porque é uma caçadora casca grossa que por dentro ela é uma pedra de gelo como você, seu velho burro! – Pisquei incrédulo, não podia acreditar que aquele moleque estava realmente falando comigo daquela maneira.
–Eu...
– Se fosse o contrário? Você ainda acreditaria nela? Ainda teria certeza dos sentimentos dela por você? Ou acharia que ela só gostava de você por alguém que amou no passado e voltou para poder ficar junto com você novamente?
– Não é assim que funciona, Susano! – Resmunguei desviando o olhar.
– Acho que você está mais confuso que ela. Mas pelo menos, não é você que está começando a duvidar de quem é! Nike acha que tudo o que é e o que sente, pode ser por causa dessa fração de Aelita que está nela!
– Mas minha mãe disse que só mandou a alma vazia, para fortalecer a própria alma de Nike e levar junto a Yinemí! – Susano deu um sorriso que fez um estranho medo escorrer por minha espinha.
– Nenhum dos dois estava prestando totalmente atenção nas palavras de Ayrana, pelo visto. – Ele falou baixinho. – Talvez isso signifique que qualquer laço que a alma de Aelita tivesse com você, foi consumido pelo próprio laço que Nike tinha. Significa também, que a alma de vocês está ligada à de mais pessoas, talvez mais uma, ou mais dez. Pense, Caalin “haviam mais fios saindo da folha dourada” Cada folha na árvore da vida de Mogyin, representa uma alma, inteira ou fracionada! Nunca leu sobre a criação dos Mundos? – Novamente eu fiquei em choque, fazia muito mais sentido. – Treze mundos criados por ela, dois que se separaram, que achávamos ter sido destruídos, e Onze restantes, ligados pelas raízes da árvore inclusive à Terra... só imagino a quantidade de gente que é ligada a ela e a você, a todos nós. Vários fios, Caalin, formando um imenso mosaico.
– Ela era ligada a mim antes de Yinemí e de Aelita se unirem a ela...
– Foi o chamado dela que te despertou do gelo, não a profecia que minha mãe fez cumprir. – Susano sussurrou e deu uns tapinhas em meu braço. – Sugiro a você, dar um jeito de fazer ela se lembrar de quem é, ou fazer Ayrana explicar melhor a ligação das almas e daquela árvore. Ou você vai ficar sozinho de novo! – Ele se afastou um pouco, indo na direção que Annie havia ido.
– Ela não vai me deixar! – Retruquei, Susano se virou para trás, um sorriso debochado e cruel nos cantos dos lábios.
– EU vou matar você depois que nos livrarmos de Higarath se você não der um jeito nisso, Rei de Vegahn! Nike não vai ficar tão triste e sozinha se eu achar uma das outras almas e apresentar para ela! – Ele fez uma reverencia e me encarou. – Você é velho, deve ser um pouco sábio também, não tanto quanto eu, claro! Então tente pensar mais com a cabeça de cima e dar um jeito nisso. – Sem pensar, deixei um raio escapar em sua direção, mas ele o parou como se não passasse de uma faísca. As marcas douradas em seus braços se acenderam e ele gargalhou de forma fria que teria assustado qualquer um. Ele era absurdamente forte para a pouca idade que tinha.
– Vamos, sei que está nervoso com tudo que está acontecendo, principalmente depois da ameaça de Detéria, mas tente dormir um pouco também e pensar direito, Caalin! Sei quem você é e o que é! – Ele ficou sério novamente e colocou as mãos nos bolsos. – Você é melhor que isso. Então seja melhor para ela também, para todos! Pois vamos precisar de todas as nossas forças tanto físicas quanto mentais para acabar com aquele demônio. Então, volte a ser aquele guardião sensato e racional que conheci em Ciartes no casamento de minha irmã. – Então ele desapareceu dentro do salão, deixando-me no corredor, boquiaberto e ainda mais irritado.
Ele tinha razão, mas não era por isso que estava sendo tão irracional. Era por ela. Havia perdido tanto, tantas vezes que a ideia de a perder, o simples pensamento de que tudo podia dar errado e de que muito dependia de nós, estava sendo o suficiente para começar a me enlouquecer.
Entrei no quarto como uma sombra, sem fazer nenhum barulho e mal respirando, para ter certeza de que não a acordaria. Ira mexeu as orelhas e abriu os olhos, encarando-me na escuridão, percebendo que era apenas eu, voltou a enterrar a cabeça entre as patas. As garras de vitrino de Nike brilharam quando ela ergueu a mão para coçar a cabeça de Ira e os olhos dela se abriram, pousando em mim.
– Perdão... não queria te acordar. – Falei, sentando-me na beirada da cama. Em resposta, Nike encolheu as pernas, afastando-se de mim. Aquela reação de rejeição foi como ter agulhas sendo atravessadas em minha carne.
– Se não quisesse me acordar, nem teria entrado em meu quarto.
– Nike... eu preciso falar com você, não é como você está pensando...
– Então como é, Caalin? – Ela vociferou, erguendo o tronco e se apoiando nos cotovelos. – Você não me disse nada, NADA! Você sabia e não confiou em me dizer o que eu carregava além da Alma do Gelo! Você me enganou assim como fez sobre Kuran no início! – Algumas lágrimas escaparam de seus olhos. – Você mentiu pra mim! – Ela soluçou, imediatamente estendi a mão para tocar em seu rosto, mas ela foi ágil, afastando minha mão antes que chegasse a ela.
– Já disse para não me tocar! Não entendeu isso? – Ela rosnou, levantando da cama e saindo de perto de mim.
– Nike, por favor! Você precisa entender, posso te mostrar todas as minhas memórias se quiser. Vai saber que eu só descobri muito depois de já estar apaixonado por você! – Tentei, por um minuto ela pareceu inclinada a não fugir, tentei um passo para perto, cedo demais. Num segundo Siferath estava em sua mão, mesmo que encolhida. O choque de vê-la segurar a arma para me manter longe foi a gota d’água. Rosnei e fui até ela, segurando-a com força e arranquei a arma de sua mão, apertando-a contra a parede. A única coisa que havia em seus olhos era mágoa.
– Não era assim que pretendia te agarrar na luta de mel! – Murmurei segurando suas mãos na frente do corpo com força e tomando seu queixo na outra.
– Então é assim que você se revela depois de casado? Um bruto que não se importa em machucar sua esposa? – A mágoa passou para raiva num instante quando ela mostrou os dentes para mim.
– Sempre fui uma besta com coração de gelo, lembra? – Então, toquei sua testa com a minha e lhe mostrei partes, pequenas, de quem era realmente Aelita, Fryn Aelita, uma verdadeira fera com coração de gelo. Mostrei quando a conheci, como me senti quando a vi a primeira vez, quando ela me transformou, quando vi o laço vermelho, mostrei todas as vezes que ela me afastou, se mostrou fria e distante e, por fim, o momento em que ela morreu, deixei que Nike sentisse todos os meus sentimentos, fortes, porém, não os mesmos que mostraria a seguir.
Nike me encarou quando lhe dei menos de um palmo de espaço, mas sem soltá-la. Porém, antes que ela dissesse algo, mostrei outra memória, mas essa completa.
“ Usando o corpo de ira para investigar quem estava levando vitrino para Ciartes, segui o cheiro de uma arma desse metal até a Academia dos Venox. Foi fácil para mim entrar usando o corpo de Ira pois perto do amanhecer, havia a troca dos guardas e na muralha haviam brechas estreitas o suficiente para que um gato pudesse passar.
Saltei pelas árvores em volta do prédio mais próximo, o dormitório feminino, então comecei a correr pelo telhado, seguindo o cheiro do vitrino que vinha daquele lado. As janelas estavam quase todas fechadas, exceto por uma no meio do prédio, uma fraca luz acesa denunciava que ainda havia uma aluna na escola na véspera do fim de semana. Saltei mirando a janela do quarto, voando do telhado pelo vão entre as calhas e a janela, uma distância grande demais, mas fácil quando se podia usar magia para aumentar a força do corpo felino e aterrissar sem erro. Mesmo que só pudesse usar uma fração da magia, deu certo, aterrissei sobre uma cama macia a poucos centímetros das pernas da garota. Fiquei como uma estátua observando-a, esperando que não acordasse, ela apenas se virou um pouco, deixando uma cortina de cabelos negros pendendo para fora da cama. Assim que percebi que estava tudo certo, pude relaxar e respirar fundo.
Seu aroma feminino alterado por excitação me atingiu como uma pedrada, junto com um perfume doce e refrescante de hortelã e mel, havia outro bem mais sutil, era masculino, amadeirado e com um toque de carvão, mas o dela ainda dominava meus sentidos. Sem poder resistir, me deitei sobre a cama e fiquei ali absorvendo aquele perfume esquecendo completamente o que havia ido fazer ali. Não conseguia tirar os olhos da garota na cama, a pele rosada e clara, porém bronzeada e brilhante pelo suor que se acumulava, parecia macia e convidativa. Sua boca estava entreaberta e ela respirava tranquilamente.
Não se passou nem uma hora desde que pulei na cama e ela despertou, ainda sonolenta se sentou e esfregou os olhos, só então, notou minha presença no quarto e se espantou.
– O que está fazendo aí? – Ela perguntou, mesmo com a voz embargada de sono, aquela poderia ter sido a voz mais bela que já escutara em minha longa vida. Ela se debruçou sobre a cama, e estendeu a mão em minha direção, por um momento pensei em escapar, mas não sairia dali sem ser tocado por ela primeiro. Ela tocou meu rosto, de Ira, mas que eu estava usando temporariamente, então passou os dedos entre os pelos, não pude evitar que Ira reagisse aquele toque também, deixando um ronronar escapar. – Já que você não é o meu ex irmão monstruoso, pode ficar aí até eu achar seu dono! – Disse ela dando um pequeno sorriso para mim. Em seguida ela se levantou da cama, mas não tirou os olhos de mim, então percebi que olhava os nós nos pelos e a sujeira, ela então bufou me pegou no colo, levando-me através de uma porta.
Ela abriu o chuveiro do pequeno banheiro do quarto e deixou a água fria cair, fiquei feliz, pois o corpo de ira com todos aqueles pelos estava quase me fazendo voltar a atenção total para meu próprio corpo. Ela me deixou embaixo do chuveiro e se virou para o cabide na parede, começou a despir-se. Parte de mim sabia que era errado estar ali e ver aquilo, mas o que de mal poderia acontecer? Ela tirou a roupa e voltou para mim, meu coração disparou ao ver o corpo, as curvas belas e marcantes, os seios rijos empinados quando ela se abaixou para me pegar, só conseguia imaginar qual seria a sensação de estar em seus braços em meu verdadeiro corpo.
A jovem pegou um shampoo na prateleira, e me esfregou com ele, fazendo com que boa parte do pelo fosse ralo abaixo, quando me colocou no chão, para passar um pingo de normalidade felina, fiquei brincando com a tira de couro trançado que ela usava amarrada no tornozelo. Depois que acabou o banho, ela me levou de volta ao quarto, onde para minha surpresa, me secou e desembaraçou os pelos usando magia. Uma maga! Uma maga humana em Ciartes, treinando na academia de caçadores. Quase ri da ideia, se não tivesse visto cada detalhe do corpo, cada cicatriz que carregava e que mostrava que ela não estava ali para brincar. Antes de vê-la tirar a toalha para se arrumar, alguém chamou a minha atenção em meu corpo real e abandonei a mente de ira. ”
– Isso só torna você um depravado! – Ela grunhiu empurrando-me quando a memória desapareceu, mas não me movi nenhum centímetro.
– Você é difícil, caçadora! – Numa última tentativa, encostei minha testa na sua e lhe mostrei apenas o que sentia desde a primeira vez que a vi no Castelo do Sol com meus próprios olhos, quando a encontrei na caverna de gelo, enquanto ela viajava comigo até Vale do Sol, e nos momentos no castelo de gelo, até o momento em que, quando estava prestes a morrer afogado, vi o laço em sua mão.
– Por que a trouxe de volta? – Nike vociferou com a voz já rouca, focando apenas na pergunta que eu fiz a Ayrana aquele dia, dessa vez usou sua magia para criar uma barreira entre nós. – Você então realmente achava que eu era ela? – Nike grunhiu e percebi que ela novamente havia entendido errado.
– Ayrana disse naquela sala que nossa alma está fracionada em mais de duas partes, Nike! Que você também era ligada a mim antes! Antes de ela enviar a alma VAZIA de Aelita para você! VAZIA, nada restou dela, nem essência, nem memórias, nada! Só a usou como uma força e um recipiente para levar a Yinemí até você, uma vez que a Alma do Gelo estava presa a dela pela criação!
– Mas você achava que eu tinha a alma dela...
– Por favor... – estava a ponto de implorar. – Por mais de uma vez eu pensei, eu comparei e analisei meus sentimentos para ter certeza de que quem eu amava era apenas você! – Desfiz a barreira dela e me aproximei. – Acredite em mim! – Relutante, peguei sua mão e a beijei.
Nike estava séria, como uma pedra de gelo, encarando-me com expressão irredutível.
– Você não confiou em mim para me contar. – Ela suspirou cansada e voltou para a cama.
– Me perdoe.
– Não perdoo não. – Ela olhou-me por cima do ombro e franziu o cenho. – Vai ter que me provar que o que sente é por mim...
– Eu provei ontem quando me casei com você, Nike, quando fiz aqueles votos! – Ela deu uma gargalhada amarga e fria que fez uma corrente elétrica percorrer minha espinha.
– Por favor... você só se interessou por casamento depois que Susano revelou que era o rei de Vegahn e que podia usar isso contra Hobner e Ausiet. Antes disso, nunca havia tocado no assunto! E seus votos foram exatamente os mesmos do livro! Os meus foram de coração! Mesmo que Ayrana tenha apagado Aelita da alma que enviou para mim, quem me garante que sua vontade não permaneceu? – Eram pedras atrás de pedras, fazendo com que minha mente cansada se partisse ainda mais. Ela me encarava de forma tão fria que parecia que a Nike havia desaparecido novamente sob a fera que havia criado para se defender em Ciartes. Tudo que havia conquistado, tudo que havia feito por ela, por nós... foi jogado fora no minuto em que decidi não falar sobre um dos fantasmas que atormentava meu passado.
– Eu jamais te contei sobre Aelita, pois foi minha culpa sua morte. Eu podia tê-la impedido, podia ter feito com que ela não marchasse no meio daquela noite fria. Não percebi os inimigos e deixei que ela morresse por que ela quis partir e me deixar. Nunca te contei por vergonha.
– Se Hobner tivesse me matado, ia se sentir culpado também? – Ela quis saber.
– Ia...
– Então porque deixou que dois salamandras o parassem? – Os olhos dela faiscaram. – Eu derrubei uma guerreira de cinco mil anos e quase dei uma surra em Higarath sem usar as seis Almas por você naquele dia que você soube que estava ligado a mim! Eu! Uma caçadora de dezenove anos! Mas você, um guerreiro de mais de vinte mil... parado por dois salamandras com nem três décadas de treinamento. – Nike deu um risinho, fazendo com que o pouco de energia que me sobrava, desaparecesse.
– Sinto muito.
– Esse está sendo seu problema, sabia? Está sentindo demais, quando deveria agir.
– Porque está agindo assim? – Minha voz não passou de um baixo lamento. – Você foi purificada, mas está tão fria, mesmo eu admitindo meu erro!
– Admitir o erro não concerta nada, Caalin. Só ameniza um pouco a dor... no fundo, talvez eu tenha sido sempre fria e sombria. No momento em que eu soube que meu pai morreu, a criança doce que havia em mim desapareceu e eu me tornei uma caçadora... ou talvez ela tenha sido mais forte mesmo apagada.
– Ayrana disse...
– Ayrana está ainda mais confusa que nós sobre tudo! Ela mentiu, enganou e fez coisas erradas também! Não pense que ela era um amor, Caalin! Li o diário dela e vi o que ela fez para ter as Almas e o porquê não as libertou! Foi uma covarde! – Ela grunhiu.
– Acho que não vai adiantar discutir com você, mas te digo uma coisa... Aelita era apenas forte e eu a amava sim, porém ela era egoísta e não aceitava que suas vontades fossem feitas depois, ela queria tudo na hora sem se importar de passar por cima dos outros e de seus sentimentos para conseguir, ela me ajudou e me transformou por puro interesse e nunca me amou de verdade, só disse aquelas coisas quando estava morrendo por remorso, por achar que aquilo poderia me fazer sentir melhor. – Tomei folego, sentindo meu peito espremido. – Você não tem nada a ver com ela, Nike, NADA! Você calcula tudo, percebe tudo e abandonou seu sonho para lutar mesmo depois de ter sido enganada, lutou contra as sobras que transformaram meu pai no monstro que ele é, e mesmo noutro mundo, colocou a vida e a felicidade dos outros acima da sua quando decidiu invadir as minas de vitrino e de ir até Aliver para ajudá-lo. Eu admiro isso acima de qualquer outra coisa em você. Fiquei apaixonado pela menina linda que conheci na Academia pelos olhos de Ira, mas amei a mulher forte, determinada e protetora que descobri que você era.
Nike se mexeu desconfortável na cama, os olhos cheios de lágrimas, ela as limpou com o lençol.
– Vou estar no outro quarto, se precisar... – Andei até a porta, esperando, implorando que ela me chamasse de volta, mas ela não o fez. Só podia esperar e torcer para que aquilo passasse.
Nikella:
Não disse nada enquanto Caalin saía do quarto e ia embora. Parte de mim implorou para ele ficar, mas eu calei essa parte, sufocando-a dentro de mim com toda minha força. Não podia deixar que ele visse o quanto aquilo me abalou, mas ele tinha que aprender que não era assim que funcionava um relacionamento.
Ele precisava confiar em mim, e uma grande parte de mim, ainda acreditava que os sentimentos que eu tinha, poderiam ser dela, que sobreviveram de alguma maneira. Por mais que soubesse o quanto o amava, por mim mesma, precisava buscar respostas para todas as perguntas que eu tinha agora, mas um pedaço sombrio que havia despertado em mim quando Ayrana falou sobre Caalin e Aelita, ficou calmo quando ele disse que me amou pelo que eu era.
Mesmo assim, não conseguia acreditar nele, parte de mim não queria acreditar, pois acreditar naquelas palavras sem saber realmente o que eu sentia, era aceitar que ELA podia controlar minhas emoções, então, não lhe daria nenhuma chance até ter certeza de que o que veio para mim foi apenas uma parcela de alma vazia carregando o Yinemí. Deitei a cabeça no travesseiro novamente, Ira se enroscou em cima de mim, deitando sobre minha barriga e ronronou.
– Uma péssima hora para eu ter sido curada, sabia? – Murmurei para ele. – Agora que eu mais preciso lutar, provar o que sou, estou assim... vulnerável! – Resmunguei tapando o rosto com o travesseiro. Amanhã iria até vovô e Leona para conversar, talvez eles pudessem me ajudar com o assunto sobre minha alma, mas antes iria esclarecer algumas coisas com Ayrana.
Susano:
Acompanhei Hisana e Kuran pelos corredores do castelo de gelo assim que o dia nasceu. Ayrana havia convocado uma reunião com os guardiões das Almas para explicar como deveríamos proceder para prendê-lo. Algo nisso não me parecia certo, havia muita coisa sem explicação sobre o poder das Almas e sobre a magia de Higarath, como por exemplo, o motivo dele ter se tornado um mago negro depois que Ayrana deu seu poder a ele.
– Vi a criadora ontem, depois que saí da festa de casamento... – Hisana sussurrou, olhando de Soslaio para Kuran e para mim. – Não fui com a cara dela.
– Isso é jeito de falar dela? – Kuran rebateu.
– Também não gostei muito dela. – Falei, mas estava falando sobre a Ayrana das memórias de Nike, algo no olhar dela era falho. Ela não passava a força que eu imaginava que alguém como ela teria, me passava insegurança e medo.
– Vocês dois estão malucos. – Kuran meneou a cabeça e bufou.
– Essa sua falha em julgar as pessoas que te deixa tão vulnerável, meu jovem! – Hisana deu um breve sorriso, sua pele ébano dava vida a brancura entediante do castelo, observei o ornamento em sua testa, a pequena meia esfera de vidro azul e fiquei curioso sobre ela.
– O que é esse ornamento, Majestade? – Perguntei. Ela deu um sorriso lupino em resposta e bateu com a unha no vidro.
– Poeira de Panmat, a terceira lua de Pollo. Ela serve para que eu possa me transformar a qualquer hora que eu precise, sem ter que esperar pela lua cheia.
– Mas você não havia usado água de Holon pra se curar? – Ela gargalhou e passou a mão em meu cabelo, com um sorriso travesso no rosto.
– Libertei minha corte da maldição, mas a minha hora não chegou ainda, querido. Se eu me curar da maldição antes da guerra, vou perder o controle que tenho sobre muitos outros amaldiçoados... isso pode ser útil quando eu virar boa parte do exército de Higarath contra ele.
– Você deixou que seu mundo fosse tomado? – Não conseguia acreditar no que estava ouvindo. Parei no meio do corredor para encará-la incrédulo.
– Meus súditos são fiéis a mim, jovem príncipe. Se eu lutasse, se resistisse a invasão dele, nós perderíamos muito mais. Preferi deixar que ele achasse que estava vencendo, tomando meu mundo, quando na verdade eu pedi que os amaldiçoados e os lobos não resistissem e se unissem a ele caso fosse necessário! Não posso governar um mundo de gente morta! Às vezes, é preciso recuar e esperar a hora certa de avançar!
– Mas e os humanos de lá? – Kuran tirou a pergunta de minha boca.
– Protegidos, foram poucos os que recusaram a abandonar suas casas, a grande maioria foi para os abrigos subterrâneos que estão por quase todo o mundo.
– Mas Pollo é imenso... só é menor que o mundo dos gigantes! – Hisana sorriu novamente.
– Gente demais para proteger, requer medidas extremas de segurança! Mesmo com magia, foram cinco séculos para que pudéssemos construir todas as cidades subterrâneas. E não se enganem, Pollo é grande, mas boa parte dele, mais de setenta por cento do meu mundo é tomado por água.
– Interessante... então as partes de mares de Pollo, são maiores até mesmo que Evenox?
– Sim. Dava para colocar dividir todos os sereianos de Evenox nos mares de Pollo e ainda sobraria muito espaço sem habitação!
– Quem foi que descobriu isso? – Kuran perguntou.
– Farahdox e Yurin. – Hisana sorriu. – Eles faziam pesquisas em Pollo, com minha autorização, claro! E descobriram que as águas de Pollo tem as mesmas propriedades que as de Evenox, a mesma vida marinha, tanto animal quanto vegetal, mas por alguma razão, não existem sereianos lá.
– Então foi você que treinou Yurin? – A olhei boquiaberto, ela piscou para mim e assentiu, não havia como expressar a admiração que senti, Yurin e Siorin eram os melhores professores de luta que eu tive. – Por falar em Farahdox, você o viu recentemente? – Perguntei a ela. Hisana assentiu novamente e mordeu os lábios.
– Estava em Evenox, até ontem, pelo menos. Achei que ele viria para o casamento, mas ele não apareceu.
Não fazia ideia do que vovô estava fazendo por lá, mas esperava que estivesse tudo bem. Não podia usar magia para me comunicar com ele, uma vez que ele havia bloqueado de o encontrarmos assim.
Estávamos virando o corredor, quase chegando na biblioteca quando demos de cara com Nikella acompanhada de Ira e Zion. Nike estava com cara de poucos amigos, o olhar irritado e não parecia ter dormido bem, Zion também parecia irritada, e Ira não sabia onde tinha se metido, pois ficava olhando para mim como se implorasse por socorro.
Caalin apareceu poucos segundos depois, acompanhado por Lenios e a jovem curandeira, Glyph. Ela fez uma breve reverência quando nos viu, mas manteve sua expressão dura e distante.
– Com sua licença, majestade. Vou ver minha avó, volto em poucas horas. – Disse a jovem para Caalin, depois virou-se para Nike e fez uma reverência e disse: – Se precisar de algo, senhora, o rei ou Ira sabem onde nos encontrar. – Não soube interpretar aquilo de maneira correta, mas o olhar cruel de Nike para Caalin me fez crer que ela pensou o mesmo. Caalin coçou a cabeça desconfortável e Glyph saiu pelo corredor de cabeça erguida.
– É neta daquela senhora que você salvou de um vampiro logo que chegou a Vegahn. – Caalin explicou, mas o olhar frio de Nike me fez querer rir dele, ao mesmo tempo que senti uma grande dose de pena.
– Não te perguntei nada, perguntei? – Ela murmurou e seguiu para a biblioteca com Ira em seus calcanhares, Zion soltou um rosnado para Caalin antes de seguir Nike.
– Eu sempre fui sincero com ela, e sofri com aquela cruel indiferença por anos, então, bem-vindo ao clube! – Kuran brincou com Caalin, para minha surpresa, ele só bufou cansado e seguiu para a sala.
– Dela eu gosto! – Disse Hisana com um sorriso travesso, apontando para Nike entrando na sala.
– Algum motivo em particular, ou só pelo atrevimento? – Perguntei.
– Ela enfrenta todos, sem se importar com classe ou raça, gosto de pessoas verdadeiras como ela e como você! – Hisana apertou minha bochecha, senti meu rosto corar, mas pigarreei e andei até a sala.
No instante em que cruzamos as portas, senti uma forte energia negativa ao nosso redor e não fazia ideia de quem a trouxe para o castelo, mas não parecia ser boa coisa. Pelos olhares tensos de Hisana e Nike, percebi que elas tinham notado também, mas os outros estavam alheios aquela aura maligna ou fingiam não notar.
As janelas da biblioteca estavam abertas, deixando uma brisa gelada e calmante entrar, as cortinas claras esvoaçavam suavemente e o cheiro que vinha de fora era de bétulas e neve. Só então percebi o que tanto me incomodava naquele lugar, Vegahn era estagnado. O gelo sempre o mesmo, nada ali mudava, era sempre inverno e isso dava uma estranha sensação de estar parado no tempo.
Observei os outros enquanto se sentavam nos sofás ao redor da lareira, Caalin e Lenios mais distantes, mas Nike andou até onde eu estava sob a janela e ficou ao meu lado, apoiada em min e de braços cruzados, com Ira aos seus pés. Além de nós cinco, guardiões e portadores das almas, apenas Zion e Lenios estavam na sala.
– Sua mãe já voltou para Amantia? – Nike perguntou.
– Sim... foi hoje bem cedo com Serena.
– Hmm...
– Ia falar com ela?
– Acho que estou precisando. – Ela lançou um olhar pela sala, Caalin estava sentado de frente para nós, os olhos negros fixos em Nike estampados com um Ciúme monumental que me fez revirar os olhos. Nike encarou de volta de forma tão fria que podia sentir seu gelo escorrer pelos sentidos. Pelo visto, a parte de “conversar com ela” não saiu muito bem.
Ayrana entrou seguida por Ayran pouco depois de todos estarem acomodados e mergulhados num silêncio desconfortável. Todo o clima de festa havia desaparecido e não parecia que estávamos no dia seguinte a um casamento, muito menos que os recém-casados estavam naquela sala conosco, praticamente trocando olhares raivosos, pelo menos da parte de Nike.
– Bom dia a todos... – Disse ela andando até o meio da sala. Para minha surpresa, os olhares para ela eram de indiferença e de reprovação, nenhum de admiração. De soslaio, vi Nike abrir a boca e fechá-la, na certa com uma resposta maldosa, mas seu bom senso foi maior, graças aos céus. De certa forma estava feliz em ver que a Nike, a caçadora Venox ainda estava lá, não havia se perdido por trás dos mimos que Caalin ofereceu. Mas a forma que fez ela voltar ao normal era o que me preocupava.
– Então... os chamei aqui hoje pois gostaria de lhes dar uma explicação sobre o poder que carregam... – Ayrana estava tão sem jeito que me fez sentir pena.
– Sabemos o poder que carregamos, criadora, o que queremos saber é como eles irão nos ajudar a derrotar Higarath! Não precisamos de explicações sobre as Almas Elementais, pois elas nos conhecem e as conhecemos muito bem! Queremos saber dos poderes dele e como derrotá-lo. – Nike questionou, foi direto ao ponto num rosnado que deixou todos nós estupefatos. Ayran olhava para Nike com as sobrancelhas arqueadas e Lenios riu, já Caalin estava analisando Nike cautelosamente.
– Achei que essa história de odiar sogra fosse alguma brincadeirinha dos humanos da Terra, pelo visto, não é bem assim! – Zion deu uma gargalhada divertida, porém o olhar severo de Caalin a fez perder a cor do rosto e murmurar umas desculpas antes de escapulir da sala rapidamente.
– Bom, Nikella, sobre o poder de Higarath você deve ter uma noção de como funciona. – Ela disse com um tom de voz carregado de malícia, o que fez Caalin parecer ainda mais irritado. – Magos negros tem o poder ilimitado. Ele tinha parte da minha magia, mas como a usou de forma errada, seu poder foi poluído e ele acabou se tornando um mago negro.
Depois de sua explicação, Nike e eu cruzamos olhares, sabia exatamente o que ela estava pensando. Ayrana não fazia a mínima ideia de como o poder de um mago negro realmente funcionava e muito menos como Higarath se tornou um. Para mim, ela estava escondendo algo.
– Como exatamente os poderes dele escureceram? – Perguntei, Ayrana ficou pálida e tensa, seu brilho oscilou e ela desviou o olhar.
– Ele fez escolhas erradas, usando o poder que lhe dei de forma errada, por ele ter corrompido aquele poder, não pude tomá-lo dele.
– Então porque não usou as Almas para matá-lo quando teve a chance? – Hisana parecia mais sombria que nunca, inclinou-se para frente no sofá, as presas a mostra quando perguntou.
– Por que ela não tinha as seis almas. – Nike resmungou. – Ela usou uma para criar uma malvarmo e a Alma escapuliu do controle dela e fundiu-se com a alma da garota. – Hisana ergueu as sobrancelhas supressa e desviou o olhar de Ayrana para Nike.
– Como sabe?
– Ela me contou ontem, enquanto dizia também que eu tinha a mesma alma dessa primeira malvarmo comigo. – Nike estava mais que irritada com aquilo, era óbvio. Mas ela só queria que Ayrana esclarecesse melhor a situação de sua alma fundida a da primeira malvarmo, eu havia entendido, mas Nike queria saber se era verdade que sua mente era realmente SUA.
– Nike... não é assim que funciona! – Ayrana respirou fundo, mas antes que continuasse a falar, uma explosão de escuridão, sombras e névoa negra tomou a sala. Ouvi o som das armas sendo desembainhadas, mas menos de um segundo depois, parei de sentir meu corpo. Estava num estado de torpor, onde apenas minha visão e audição funcionavam, o pânico começou a tomar conta de mim, foquei-me nos sons da sala e só conseguia ouvir o som das respirações entrecortadas dos outros guardiões.
– Ora, ora, ora! – A voz que escutei a seguir, fez meu sangue congelar nas veias. – Uma reuniãozinha após o casamento de meu filho, e não fui convidado para nenhum dos dois! Que falta de cordialidade! Não foi assim que o eduquei, Caalin! – As trevas se dissiparam e pude ver quem estava por trás daquilo. Ele tinha pele de um tom cobre e olhos na mesma cor, um sorriso sarcástico no rosto e cabelos de um castanho escuro na altura do queixo. Estava vestido com um traje fino de seda e linho e não haviam armas à vista, a não ser por um colar em seu pescoço com duas miniaturas de espadas de vitrino.
– Higarath... – A voz de Ayrana saiu mais como um choramingo, me forcei a olhar para ela e vi seus olhos esverdeados brilhantes o encarando com uma expressão muito errada para observar um assassino como aquele. Isso me deixou em choque, pois agora sabia o real motivo dela não o ter matado.
Ayrana ainda o amava.
– Você não apareceu aqui agora? Não invadiu? Podia ter feito o mesmo no casamento! – Nike retrucou e meu coração saltou. “Ela estava louca? ”
– Ahh você! – Ele sorriu de forma assustadora, se pudesse teria entrado na frente dela, mas meu corpo estava paralisado. – Não gosto de você! Enganou-me aquele dia na montanha, achei que tivesse morrido, mas só se tornou uma das minhas recriações favoritas, uma besta com o coração de gelo. Agora seu corpo faz jus a sua alma sombria, querida! – Ele ergueu as garras e Caalin começou a rosnar, os raios querendo liberdade enquanto ele tentava se levantar, mas estava preso também.
– Não se preocupe, não vim matar vocês agora! Vim só dar meu presente de casamento! – Ele sorriu e ergueu as mãos, uma massa negra pulsou ali, logo em seguida, imagens borradas começaram a tomar forma diante de nossos olhos. Eram destroços. Destroços de um mundo.
Ao ver aqueles destroços que ele nos mostrava com tanta naturalidade, meu estomago se revirou e só conseguia pensar em Amantia, em meus pais e todos que amava. Pelos olhos de Kuran, ele pensava o mesmo de sua casa. Higarath passou a mão sobre os destroços e murmurou palavras que fizeram minha pele se arrepiar, era o dialeto místico dos magos de Cazarys, traidores, criadores das magias mais terríveis já descritas em todos os tempos.
“Espero que minha voz alcance a todos os habitantes dos Doze mundos, bom... Dez mundos dos vivos, e também aos novos recém-chegados a Mogyin! Aqui quem fala é seu futuro Imperador, Higarath Ascardian, o senhor das sombras” – Higarath falou com a voz firme e cruel. Um soluço saiu de Ayrana quando ele disse aquilo.
“Na madrugada passada, enquanto quem deveria estar protegendo vocês festejavam um casamento grandioso...” - Higarath deu um sorrisinho para Nike “Fui até o Castelo dos Mares em Evenox para negociar uma união com seu rei. Como não encontrei ninguém, destruí o sexto mundo, não deixando nada, nem ninguém escapar de lá! ” – Higarath gargalhou quando Ayrana desmaiou, caindo no chão com um som abafado.
– Seu monstro! – Hisana rosnou fazendo força para se soltar. Todos estavam em choque, mas ninguém conseguia sequer reagir.
“Digo mais uma coisa... Todos que eu oferecer uma aliança, serão poupados, só precisarão se curvar a mim e me aceitarem como líder, então, estarão sob minha proteção. Os que recusarem quando eu fizer a oferta, terão o mesmo destino! ” – Ele falou contra a massa negra em sua mão, que pouco depois, pulsou e desapareceu.
– Entendam, crianças... eu nunca precisei das Almas, tê-las era apenas um capricho meu! Não preciso delas para dominar os mundos, só as queria para evitar que tentassem usá-las contra mim! Mas pelo que percebo, uma delas está adormecida assim como da última vez e vocês não terão chance de usá-las para tentar me deter. – Ele sorriu, aproximando-se de Nike, que o encarava com expressão impassível.
– Mas mesmo assim, nós dois temos umas coisas a acertar, não é? Com as Almas, eu poderia tornar o processo de me apoderar dos mundos menos doloroso, mas você me atrapalhou e está me devendo muito! – Ele rosnou, tocando uma das garras em seu pescoço.
– Como, menos doloroso? – Nike perguntou, não tentou mandar ele se afastar ou xingá-lo, mas ela REALMENTE perguntou como ele usaria as Almas.
– Simples, pequena curiosa. Com as Almas, eu teria unido os mundos num só! Não precisaria tomar um por um usando a força!
– E porque acha que tomar um mundo com todas as criaturas juntas seria mais fácil que tomar eles separadamente? – Higarath a encarava inexpressivo, mas curiosidade brilhava em seus olhos escuros, a curiosidade passou para outro sentimento, o que me apavorou ainda mais.
– Um esforço de tempo, recursos e vidas. Já disse uma vez, não quero destruir...
– Você só quer controlar tudo! Quer tomar de Ayrana o que ela construiu por pura pirraça, pois você a traiu e ela tentou tomar seu poder quando descobriu isso! – Higarath rosnou alto, mostrando os dentes e fazendo com que uma longa espada aparecesse em sua mão. A lâmina foi pressionada contra a garganta de Nike e Caalin gritou.
– PARE! Não basta tudo de ruim que já fez? – Urrou Caalin desesperado ao ver a linha de sangue azulado escorrer no pescoço de Nike, que em nenhum momento alterou sua expressão. – Por favor, a deixe em paz! – Ele implorou, Higarath riu e se virou para ele.
Um brilho cruel tomou conta de seus olhos quando Higarath fez as sombras voltarem.
– Alguém já me ofereceu algo de muito valor pela cabeça da caçadora, meu filho, e como a dívida dessa aqui é muito maior do que a de sua rainha comigo... – Ele virou o rosto de Ayrana com o pé, ela ainda estava desacordada no chão. – Vou deixar que Ele cobre a dívida com Nikella. Mas uma coisa eu lhes digo: Ayrana mente! – Disse num rugido.
E num segundo, a névoa negra havia desaparecido junto com Higarath. Hisana e Kuran que estavam de pé presos ao feitiço dele, caíram no chão tremendo e vomitando, os outros mantinham silêncio e expressões de choque no rosto, Caalin correu para Nike e pressionou um lenço em seu pescoço, mas ela não se alterou, agora olhava para Ayrana com ainda mais raiva.
– Você está bem? – Caalin perguntou, Nike assentiu lentamente e ele a abraçou, mas ela não correspondeu ao abraço, Caalin se afastou um pouco, preocupado com a reação dela. Nike esperou Hisana se recompor e pediu:
– Acorde ela, se eu fizer, garanto que ela vai preferir ter morrido ao ter apenas desmaiado! – Hisana olhou para Nike assustada, depois para Ayrana e com um estalar de dedos, muita água fria caiu sobre a criadora, fazendo-a recobrar a consciência. Nike andou até ela e a segurou pelos braços, tirando-a do chão, seus guardiões quiseram se meter quando Nike a sacudiu pelos ombros, mas foram impedidos por Kuran e por mim.
– Tem algo cheirando muito mal em tudo isso, Ayrana, então é bom você começar a falar, ou eu vou te mostrar as técnicas de interrogatório dos Venox, e creio que você não vai gostar! – Nike rosnou, mas Caalin foi para cima dela, segurando seus braços e tirando-a de cima de Ayrana.
– O que está fazendo? – Ele grunhiu. – Pare com isso, Nike! Vai acreditar nele? – Caalin a virou para si e novamente os olhos dela eram como gelo.
– Toda história tem dois lados, não se deve julgar antes de saber os dois! – Ela retrucou, afastando-o.
– Eu te dei meu lado de uma história ontem e você ainda está me julgando mal!
– Não, eu estou pensando sobre, nunca disse que julgava rápido! Se eu não estivesse pensado naquilo, você não estaria tocando em mim agora, estaria congelado e estirado no chão! – Ela rosnou, todos na sala a olhavam espantados e surpresos, como se a frieza dela fosse mais assustadora do que a aparição do mago negro que destruiu um mundo.
– Não acredito nele, e você também não deveria acreditar! – Foi a resposta de Caalin.
– Vai mesmo defendê-la? E se ela tiver uma parcela de culpa nisso tudo? – Nike vociferou. Todos olhavam espantados para os dois agora, inclusive Ayrana que estava molhada e assustada, se esgueirando para perto da lareira.
– É minha mãe!
– Eu sou sua esposa. – Ela ergueu a mão onde a marca lilás brilhava com força em seu anelar.
– Não me faça escolher em qual lado ficar, Nike! Não posso...
– Você ainda não confia em mim.
– Sua intuição pode falhar...
– Infelizmente, Caalin, ela nunca falha. – Nike suspirou e desviou o olhar, mesmo com seu esforço para esconder, pude ver sua dor. – Eu li o diário dela, sabe o porquê ela não libertou as Almas depois de ter criado os mundos? – O olhar de Nike ficou quase cruel. – Ela não queria sacrificar sua imortalidade. Ela não cumpriu o acordo com Gaia e não contou a ninguém sobre isso! – Olhamos para Ayrana, que estava em choque apoiada na lareira. – Tudo tem um preço, Ayrana, se você não pode pagar, você não deve nem começar! – Nike grunhiu. – Sacrifiquei meu corpo humano, a parte que eu mais amava de mim para libertar as Almas, e sabe porque elas voltaram? Por que eu pedi por favor para que ficassem e nos ajudassem, não as obriguei a ficar até destruirmos o monstro que você criou!
– Não é bem assim... – Ayrana murmurou e Nike rosnou ainda mais alto, fazendo com que Ayran e Lenios entrassem na frente da mulher.
– Evenox... – comecei, percebendo que a situação iria sair do controle a qualquer momento, pois Siferath estava brilhando presa ao pulso de Nike e Ayran agora estava com a mão sobre a espada presa em sua cintura.
– Temos que falar com Miriel e Hellidy. – Nike murmurou por fim.
– Meu avô estava lá! – Senti um nó em minha garganta. Farahdox. Não podia nem pensar em qual foi a reação de vovó ao saber daquilo. Mas do jeito que o conhecia, esperava que ele tivesse dado um jeito de escapar.
– Eu sinto muito. – Nike me abraçou. – Vamos, tenho que pedir perdão a Miriel e Hellidy, talvez agora Oriel entenda o que eu quis dizer quando disse que a festa era desnecessária. – Ela lançou um último olhar frio pela sala, parando em Caalin que a observava em choque e saiu, levando-me consigo.
Capítulo 10
Susano:
Estávamos quase na entrada da sala do trono quando Nike parou e respirou fundo, ela segurava minha mão com tanta força que suas garras começaram a perfurar minha pele. Ela estava com a cabeça baixa olhando para os pés, o peito subia e descia rapidamente e por um momento achei que estivesse passando mal, ou que o choque de encontrar com Higarath só havia caído sobre ela agora.
– Nike, você está bem? – Perguntei, levantando seu queixo e encontrando seus olhos cheios de lágrimas.
– Ele não me escolheu.
– Nike. – Respirei fundo, nada que eu dissesse poderia afastar aquela dor. Confiança era a base de tudo e Caalin não havia confiado no seu julgamento e isso a feriu. – Às vezes o tempo concerta algumas coisas, outras o tempo dá chance para que as pessoas concertem suas escolhas. Dê um tempo e ele vai perceber que escolheu o lado errado. – Falei baixinho.
– Você também percebeu, não é? – Assenti devagar olhando para a sala que deixamos para trás. Nikella limpou os olhos e corrigiu a postura, pegando meu braço novamente e me guiando para o salão, para oferecermos nosso apoio a Miriel, como se consolo pudesse de alguma maneira, ajudar alguém que perdeu tudo e todas as vidas que era responsável. Um nó apareceu em minha garganta, Karin, Asahi e Nyu nasceram lá e agora Evenox não existia mais...
Respiramos fundo e tocamos as grandes portas de gelo fosco, segurando os puxadores frios feitos de pedra azul ciano, ornamentos vindos dos mundos dos sereianos. Era para Caalin estar aqui com ela, ele deveria entrar naquela sala e tentar amenizar a dor daquelas pessoas, uma vez que era seu casamento, mesmo não sendo culpa deles. Nike olhava pesarosa para as portas, como se conseguisse enxergar claramente através delas, então, ela as empurrou e nós adentramos o salão preparados para encarar os Soberanos abissais.
Choque, foi o que tive ao adentrar o salão. Lá estavam Miriel e Hellidy com seus semblantes abatidos e ao lado deles estavam meus pais, junto com Karin, Jocelinne, Arcádius, Aristes e meu avô, Farahdox.
– Mas... como? – Perguntei aproximando-me e segurando seu ombro, ele realmente estava ali, vovô deu um sorriso triste e deu um tapinha em meu ombro.
– Estava em Evenox quando senti a energia dele pousar sobre o castelo, percebi que aquilo ia consumir o mundo e destruir tudo em poucos minutos, então mandei um chamado urgente a Amantia e pedi ajuda! – Explicou.
– Recebi o chamado de Farah, mas quando cheguei em Evenox, percebi que não podia desfazer a magia de Higarath e nem a mandar para fora do mundo, então pedi que eles fossem até lá para contermos a magia por tempo o suficiente para evacuarmos Evenox antes da magia explodir. Enquanto Ewren, Arcádius e eu contínhamos o poder, elas evacuaram todas as cidades. – Explicou Aristes, sob seus olhos haviam sombras escuras e a longa trança branca estava desarrumada, todos tinham aparências similares de cansaço.
– Evacuaram o mundo inteiro em algumas horas? – Nike perguntou surpresa.
– Em alguns minutos, querida! – Minha mãe falou, passando o braço em volta da cintura de meu pai e descansando a cabeça em seu ombro.
– Viemos apenas avisar Miriel e Helly que todos os habitantes de Evenox estão nos mares de Lastar e Mantum. Estamos voltando para construir cidades provisórias até que possamos negociar com Hisana a ocupação dos mares e oceanos de Pollo. – Explicou vovô.
– Vocês vão para Amantia agora construir essas cidades? – Nike perguntou, vovô assentiu.
– Podemos fazer isso em alguns dias com magia. – Disse Karin para ela com um sorriso doce.
– Quero ir também, posso ajudar. – Nike falou, deixando todos surpresos.
– Não precisa, sabemos que está gra... – Meu pai começou a falar, mas os rosnados de Nike o fizeram cortar a frase.
– Não estou doente! E foi por causa desse casamento que Evenox ficou sem proteção! – Disse ela aproximando-se deles e segurando o braço de vovô. Farahdox riu e assentiu.
– Com sua ajuda vai ser ainda mais fácil. Se pudermos contar com o rei Caalin também...
– Deixe ele aqui, ele tem muito o que pensar. É dispensável para essa tarefa! – Eles se entreolharam, mas no fim concordaram com Nike. Zion que estava sentada do outro lado da sala nos observando me fez um aceno silencioso quando lhe enviei minha mensagem.
“Avise a eles onde fomos e peça para que não se preocupem! ”
Nike colocou Siferath ao redor do pescoço e vovô passou um braço ao redor de seus ombros, então deu uma risada abafada e cochichou para Nike:
– Você lembra Eirien e Ewren até demais! ” – Nike ficou um pouco pálida, talvez uma estranha forma de Malvarmos corarem e sorriu em resposta. Em poucos segundos, saímos do castelo e abri o portal pelo qual partimos para Amantia imediatamente.
Nikella:
Agradeci de coração por não enjoar quando passamos pelo túnel branco até encontrarmos a saída. Quando as luzes desapareceram, senti o solo embaixo de meus pés ceder um pouco e fui atingida pelo agradável aroma da maresia, o calor do fim da tarde e as cores avermelhadas no horizonte pareciam nos cumprimentar em recepção. As palmeiras e a vegetação atrás de nós possuíam os mais variados tons de verde, marrom e vermelho.
– Onde estamos? – Perguntei.
– Perto das Montanhas das cinzas, uma praia escondida entre elas, na verdade. – Explicou Farahdox para mim. Afastei-me um pouco para apreciar a paisagem e reparar melhor em meu bisavô, ele era muito parecido com Ewren, tirando a cor dos olhos, mas a pele e os cabelos eram iguais, pelo menos eu me parecia um pouco com eles, só que eu era branquela como Susano e Karin. Vovô estava olhando sério para mim, então, soltei sem pensar:
– Sabe o que percebi só agora? – Vovô arqueou as sobrancelhas e se virou para mim. – A cor da pele de vocês se assemelha muito a dos salamandras. – Ele acabou rindo, junto com Farahdox, mas Leona olhava para os dois e de volta para mim.
– Salamandras se parecem com os nativos da Terra, mas desde que cheguei aqui, só vi alguns elfos parecidos com vocês. – Disse ela olhando para os dois.
– Isso porque havia um clã élfico do Deserto do Fogo, não éramos muitos, então, unimos o clã com os elfos de Górtia muitas eras atrás. – Explicou Farah para nós.
– Nos unimos... você estava lá? – Perguntei, Farah deu um sorriso e assentiu. Fiquei curiosa para perguntar, mas não era hora para aquela conversa. Pelo menos, consegui me distrair da raiva e mágoa que começava a sentir por Caalin. – Bom... o que estamos esperando?
– Nossa carona. – Vovô deu um sorriso e olhou para o mar que brilhava com as cores do entardecer. Alguns minutos depois, as águas se movimentaram e subiram num estrondo, duas cabeças gigantes ergueram-se das águas e urraram. Meu coração quase saltou para fora quando identifiquei o imenso dragão negro com olhos azuis e três esferas translucidas na testa, abaixou a cabeça até mim e me empurrou levemente com o focinho.
– Docinho! – Exclamei, afagando-a. Minha mão parecia a mão de uma criança contra seu focinho, ela era pelo menos dois metros maior que o dragão azulado de Leona, Lua.
– Um dragão de fogo que espirra ácido e respira embaixo d’água como um dragão aquático! – Leona riu. – O que eu tenho de azar com animais, você tem de sorte. – Disse ela acariciando Lua.
– Como ela está tão grande? Faz uma semana que a vi!
– Ah, tivemos que dar sangue de Aswang para ela... foi atacada por um Laziris negro quando voava com lua. – Leona explicou, mostrando-me uma grande cicatriz torta no pescoço de Docinho.
– Laziris...
– Aqueles bichos semelhantes a morcegos gigantes com cara de cobra e garras lupinas. – Susano me lembrou, mas conclui que se voltasse para a ACV um dia, teria que reler as enciclopédias das criaturas mágicas novamente, não que eu fosse ter tempo para isso depois da criança nascer.
Não se passaram nem cinco minutos e Siorin emergiu das águas com seus cabelos prateados brilhantes e barbatana negra, ele era o tipo de sereiano que me fazia querer correr para longe da água. Junto com ele surgiu uma sereiana incrivelmente bela, de longos cabelos verdes e outro sereiano, Demétrius. Eles fizeram uma reverência e sorriram para nós, mostrando seus dentes de agulhas.
– Estão os aguardando! – Foi o sinal de Siorin para que partíssemos, montei com Susano em docinho e Leona e vovô em lua. Os outros entraram na água e em redor deles, apareceram bolhas transparentes, como bolhas de sabão. Fiquei encantada vendo Hellidy se transformar. Sua forma abissal era incrível, ela tinha a barbatana de um lilás brilhante furta-cor, os cabelos no mesmo tom e a pele branco-azulada. Os olhos ficaram de um vermelho vivo e em seu tronco e braços, riscos de um lilás brilhante apareceram, pareciam com as marcas do corpo de um tigre.
Estávamos indo cada vez mais profundamente, protegida pela bolha de ar de Susano, não me incomodava de estar cercada de Sereianos por todos os lados. Fiquei observando as cores ficarem cada vez mais bonitas, vivas e brilhantes conforme descíamos, ao contrário do que esperava, por causa da escuridão.
Aos poucos pude diferenciar plantações de algas esverdeadas entre os imensos corais que se espalhavam pelo fundo do mar. Observava os peixes, dragões marinhos e criaturas das mais diversas cores, formas e tamanhos passeando ao nosso redor como se não representássemos nenhum perigo.
Percebi também, que quanto mais fundo, mais brilhantes eram as nadadeiras de Hellidy e dos outros, mas Demétrius, tinha algo diferente no brilho dele, pois tinha um ar ainda mais sobrenatural, sua nadadeira também era de uma cor rara, era de um cinza quase chumbo, os cabelos ruivos se movimentavam com graça, mas o que me chamava a atenção eram os chifres que formavam um diadema em sua cabeça, quase unindo-se na testa.
– Ele é hibrido, Sereiano e Incubo. – Susano reparou que eu estava olhando, então desviei rapidamente e ele riu. – Eu sei, é difícil resistir a beleza dele.
– Onde está Annie? – Perguntei tentando rapidamente mudar de assunto sentindo meu rosto esquentar.
– Ela tinha saído de manhã para encontrar com Sheriah, em Ciartes. Deve estar aqui antes de escurecer totalmente.
– Ahh, tudo bem então. – Não disfarcei tão bem quanto esperava.
Seguimos para um lugar um pouco afastado das áreas de plantações, onde a movimentação de animais marinhos de grande porte era menor. Estávamos longe das Fendas de Holon, meio caminho da Cidade das Tormentas, pelo visto, pois podia ver a silhueta das torres de corais vermelhos do palácio dali.
Susano cutucou meu ombro, fazendo-me olhar na direção oposta, um frio passou por minha espinha ao perceber a quantidade de Sereianos que estavam ali. Eram milhares! Diferentes dos Sereianos que vi em Amantia que tinham peles azuladas e marcas safira pelo corpo, os sereianos de Evenox tinham barbatanas mais curtas e de cores mais vivas, até mesmo fluorescentes, suas peles também eram de outra cor, um esverdeado suave e bonito e suas marcas eram num belo tom esmeralda.
No meio de todo aquele povo, haviam tantos bebês! E eles eram tão fofinhos, nadando em volta de suas mães... sentia vontade de apertar! Notei que muitos deles, dos sereianos, encaravam a mim com espanto e desconfiança, mesmo dentro da bolha eles podiam me ver.
– Malvarmos são predadores de quase tudo, Nike. – Susano soltou um risinho para minha cara surpresa. Ele então soprou a palma da mão e cobriu meu rosto com ela, fazendo com que um ar diferente me circulasse.
– O que é isso?
– Vou estourar a bolha agora, essa magia vai permitir que você respire dentro d’água. Algum problema com água fria? – Ele deu um sorrisinho sarcástico.
– Nenhum. – Respirei fundo quando ele estendeu a mão e a bolha ao nosso redor se desfez. A água me encharcou, estava tão fria que parecia que eu havia mergulhado num mar em Vegahn.
– Agora só precisamos esperar mais alguns minutos, Arcádius está desfazendo as barreiras mágicas daqui, essa era uma área de conservação, mas isso é uma situação de emergência... – ele deu um sorriso triste e suspirou. – Assim que elas caírem, começaremos o trabalho.
Minha pele para um pouco luminosa dentro d’água, a princípio pensei ser por causa da magia de Susano, mas depois percebi que eu meus pulsos, minhas veias é que brilhavam.
– Meu sangue... – Franzi o cenho, então puxei Siferath, tendo o cuidado de mantê-la encolhida e notei que ela brilhava também. Susano estava boquiaberto olhando para mim, ele tirou uma lança de vitrino muito bonita e bem trabalhada e a olhou brilhar.
– Os cristais de purificação da Montanha Azul em Vintro... Eles são vitrino? – Ele Exclamou olhando também para o pingente azulado em seu colar.
– Vintro... vitrino. Até se parece! – Conclui. – Mas porquê?
– Não é a mesma coisa! – disse Aristes aproximando-se de nós, seguido por Mel que tinha aparecido não sei de onde. Fiquei boquiaberta olhando para Mel. Dentro da água, ela assumia forma sereiana também. Sua barbatana era longa e vermelha e seus cabelos ruivos pareciam chamas acesas no fundo do mar, movendo-se ao redor de seu corpo. Ela piscou para mim ao perceber que eu não parava de olhar.
– E então? – Perguntei, tentando rapidamente tirar a atenção dela de mim.
– Os cristais de purificação da Montanha Azul tem um elemento de Luz em comum com o vitrino. Como Amantia foi criado com poderes básicos das seis Almas Elementais, algumas propriedades ficaram mais fortes e contidas em certas regiões. A Alma dos raios, foi mais forte na região de Vintro enquanto Amantia nascia, então, seu puder de purificação ficou contido lá. – Aristes explicou, brincando com Siferath em meu pescoço. Fiquei paralisada, só então me dei conta do motivo de ter sido purificada da magia negra. Foi porque eu havia mordido Caalin.
– Mas se aqueles cristais tem o elemento de purificação em comum com o Vitrino, isso significa que o vitrino também tem uma parte dessa Alma? – Susano perguntou e Aristes assentiu.
– Apenas o vitrino azulado, o amarelado não.
– Agora faz sentido. – Murmurei. – Nunca purifiquei ninguém quando usei Siferath. – Aristes riu, soltando a arma em meu pescoço. Aquilo também significava que em alguma parte da criação de Aelita, uma pequena parte da Alma dos raios vasou para ela ou misturou seu poder a Yinemí.
Uma corrente morna de água nos atingiu enquanto eu divagava sobre o que Aristes tinha dito, olhei para cima, acompanhando todos os olhares e fiquei maravilhada ao ver uma flor de lis branca se abrir acima de nós no mar, no centro de uma imensa mandala cheias de símbolos nos idiomas dos Sereianos.
– A barreira caiu. – Aristes informou, em suas mãos, um longo cajado verde jade brilhava, ele estava canalizando uma grande quantidade de energia nele.
– Vamos começar? – Susano estendeu a mão para mim e sorriu.
– Só se for agora! – Sorri juntando energia nas palmas também.
Todos que estavam ali, portadores de magia, começaram a erguer as mãos e recitar antigos cânticos, dos tipos que lia nos livros da ACV. Percebi que ao cantarem enquanto usavam a magia, a música desenhava o chão ao nosso redor e também passava entre os sereianos, que estavam de olhos fechados, e aos poucos pegavam o ritmo da melodia, e com suas vozes maravilhosas começavam a cantar também.
Em poucas horas, a primeira cidade foi erguida. A magia que usamos, em conjunto com a essência que os Sereianos liberavam ao cantar, fez uma das cidades de Evenox, Apranalir, ser recriada com perfeição minimalista no mar de Amantia. Antes do início da madrugada, fomos levados ao Palácio dos dragões para podermos descansar por lá. Cortesia de Siorin e Nyumun.
Fiquei junto com Annie naquela noite e pude conversar com ela por horas a fio, como fazíamos na ACV, desabafar e contar tudo que havia acontecido depois que saí de Ciartes, foi bom ter minha amiga de volta, para estar completo só faltava Sayuri e Liilac, que a essa altura, deveriam estar servindo a Higarath. Aquilo partiu meu coração e desejava haver uma forma de livrá-las também.
Os dias seguintes foram corridos, pois sem ajuda de vovô e Leona, que haviam partido para Vintro na quarta para resolver alguns problemas, eu tinha que me esforçar um pouco mais para mantermos o ritmo do trabalho. Usava magia dentro de um certo limite, pois começava a sentir meu corpo doer, um esforço que podia ser prejudicial não para mim, então tentava não o ultrapassar. Sempre que voltávamos para o palácio à noite, Susano, Annie e eu apagávamos, os três juntos embolados e jogados em cima de travesseiros e almofadas numa pequena sala no topo da torre principal onde o teto era de vidro e podíamos ver o mar brilhar durante a noite.
Não tive nenhuma notícia de Caalin ou qualquer notícia vinda de Vegahn, isso me deixava apavorada, com medo de que Higarath pudesse fazer algo, mas não sentia nada através da ligação, às vezes, alguns picos de raiva ou de tristeza e solidão, e tinha que fazer um esforço para não voltar correndo e fazer aqueles sentimentos sumirem. Mas não faria até ele assumir que errou, até perceber que agiu mal comigo.
No final da semana, conseguimos criar nove cidades para os sereianos vindos de Evenox, todas maiores que as originais para que pudessem comportar todos eles até que Pollo pudesse recebe-los também. Susano suspeitava que grande parte deles ficariam em Amantia mesmo, pois ao que percebemos, eles adoraram o lugar.
Ficar aqueles dias em Amantia me deixaram muito mais calma, embora tivesse saudade de Vegahn e de Caalin e Ira, docinho ficava o tempo todo comigo, e raramente me deixavam sozinha. Quando não era Susano e Annie ao meu lado, eram Melanie e seu pai, Demétrius, ou Siorin e Nyu, que não parava de me perguntar sobre o bebê, que eu ainda não sentia nada de diferente, embora tivesse ganhado pelo menos uns dois quilos durante a semana.
Depois do almoço de sábado, quando Annie, Susano e eu estávamos entupidos de comida, observando as águas pelas longas janelas do quarto de hóspedes que eu estava acomodada, Susano decidiu que iríamos para Vintro no fim da tarde para que ele pudesse analisar os cristais da Montanha Azul, e depois voltarmos para Vegahn, uma vez que já havíamos acabado com a construção das cidades. Aquele tempo nos mares foi bom para mim, pois me fez perder o medo dos Sereianos. Ia sentir falta dali, mas estava com mais saudades da minha casa no gelo.
Chegamos em Vintro pouco depois das seis da tarde, os últimos raios de sol ainda batiam no pátio e o vento soprava suavemente, fazendo com que as árvores balançassem e colorissem o gramado de pontos alaranjados de luz. Era outono naquele continente e ali tinha um suave perfume ipê e canela, um aroma agradável e inspirador, talvez me ajudasse um pouco mais na conversa que eu precisaria ter com vovô e Leona, aproveitaria a “passadinha” de Susano ali como desculpa para conversar com eles. Mesmo uma semana sem ver Caalin, meu coração estava apertado e eu não podia voltar e conversar sem ter a certeza de que só havia “EU” dento de minha mente.
Annie passou por mim sorrindo e girando de braços abertos, apreciando a luz do sol depois de uma semana na escuridão dos mares de Amantia, até eu na minha atual condição de malvarmo, senti falta dos raios dourados em meu rosto. Susano a observava com um sorriso carinhoso no rosto e seu olhar de canto de olho para mim, deu a entender o que ele queria que eu fizesse.
Sem perder tempo, deixei Susano e Annie se divertindo no pátio da fortaleza, aproveitando um pouco aquele momento juntos e um tempinho ao sol, então caminhei pelo corredor, observando os detalhes de cada centímetro do lugar. As cortinas eram alaranjadas brilhantes e leves esvoaçando ao vento, um detalhe para lembrar quem vivia ali, um salamandra. Os quadros tinham cores calmantes e a decoração minimalista me lembrava uma mistura de Amantia e Ciartes, o melhor da primavera com o melhor do verão. O lugar parecia ter sido construído para acalmar as pessoas, e era exatamente de mais um pouco de paz e calma que eu estava precisando.
Andei até a sala principal da fortaleza, o escritório junto com a biblioteca que havia estado antes quando Susano me ajudou a separar o corpo humano do malvarmo, mas não havia ninguém ali. Tinha certeza que eles estavam na fortaleza, pois na noite anterior, vovô havia enviado uma mensagem a Susano, avisando que estaria o dia todo em Vintro resolvendo alguns problemas e que não iria para o Castelo de Cristal. Só então pensei que eles pudessem estar no terraço arborizado, pois uma vez ouvi Susano falar que era o lugar favorito de Leona na fortaleza, então eles poderiam estar lá tomando um pouco de sol também.
Subi as escadas em espiral por cinco andares até o terraço, porém ao chegar lá, quem encontrei foram Serena e Neruo, brincando de esconde-esconde entre os plátanos. O menininho sorria e corria de um lado para outro, escondendo-se muito mal atrás das árvores, ele tinha os cabelos louro-escuros escorridos na altura do queixo e olhos escuros brilhantes. Ele era igual a Hasan, a não ser pela cor clara da pele, puxada de Serena. Quando ela viu que eu estava ali, parou de brincar e me lançou um olhar frio, maldoso, ela se endireitou pegando o menino no colo e o abraçou.
– O que quer? – Perguntou com um tom de voz cortante que me fez querer socar a cara dela, mas não faria isso na frente do menininho.
– Vim falar com vovô e Leona...
– Vovô? Porque o chama assim? Ele é o rei de Amantia! – Ela vociferou.
– E é meu avô! Se ele transou com a minha avó, e teve a minha mãe, então, eu sou neta dele! Não o chamaria diferente! – Retruquei calmamente, vendo seu rosto corar de raiva ou de vergonha.
– Você é muito irritante.
– Porque você tem tanta implicância assim comigo? Só porque seu marido se distraiu com meu corpo e eu o venci? – Tive que morder a boca para não rir.
– Você se aproveitou disso! – Ela rosnou dando um passo à frente, ergui minhas mãos, exibindo indiscretamente as garras de vitrino nas pontas dos dedos e o gelo nelas, então ela recuou.
– Não se atreva a falar sobre coisas que não sabe! E goste você ou não, Ewren Ascardian Lomérius é meu avô e eu gosto dele e vou continuar chamando-o assim, e se reclamar eu peço a ele para morar no castelo de Cristal e fico mais perto ainda! – Retruquei, começando a ficar irritada.
– Você é muito abusada...
– Sou sincera. Ele é tudo que me restou de uma figura paterna, talvez de uma família e fiquei muito feliz quando descobri pelas memórias de Fairin que era neta dele, sobrinha de Susano e das gêmeas, senti que poderia ter uma família novamente. – Ela estreitou os olhos para mim.
– O que... houve com sua família? – Ela quis saber, seu rosto ficou corado mais uma vez.
– Meu pai foi morto por uma armadilha que Fairin provocou, minha mãe foi sacrificada para ressuscitar três matriarcas bruxas e minha família adotiva não teve um destino melhor. – Pensei em Gih e Ariel e meu coração se apertou, eles ainda estavam lá e precisariam de mim.
– Eu...
– Não fale nada, sei que não teve intenção. Aliás, eu tirei a parte de cima da armadura na luta com Hasan pois ela estava me sufocando e eu não queria perder a luta porque meu espartilho me traiu. Não foi intencional... – ... distraí-lo com meu corpo lindo, foi o que não deixei minha língua ferina e mais rápida que a mente dizer. Serena pareceu relaxar e soltou Neruo no chão novamente, pois ele se debatia em seu colo pedindo liberdade.
– Então... eu soube que está grávida.
– Pois é.
– Feliz? – Ela perguntou, e novamente mil pensamentos vieram em minha cabeça querendo explodir para sair, dos menos assustadores, era lutar grávida e sobrevivermos a guerra, mas me limitei a uma resposta menos afiada:
– É um pouco difícil nessa situação. Preferia esperar mais... – mais uns séculos. – Embora fosse um sonho meu ser mãe, eu queria viver bastante primeiro, ter uma história para contar pros meus filhos, talvez de minhas caçadas ou das coisas que enfrentei...
– Entendo... então você sonhava em ser, viver antes de criar. – Assenti. Serena olhou para Neruo correndo entre as árvores e deu um breve sorriso, o olhei também, aquilo era um sonho, mas não em primeiro lugar em minha vida;
– Queria ser mestra de caçada da ACV, tinha escolhido isso depois de desistir de me vingar de Ericko, não contei isso pra ninguém. – Falei. – Mas estou bem com isso agora também, afinal, tudo acontece quando tem que acontecer! – Um meio sorriso se formou em meu rosto ao me lembrar da felicidade no rosto de Caalin quando ele descobriu.
– Você torturaria os alunos, não é? – A encarei surpresa e fiz força para não soltar uma risada que podia ser considerada muito má.
– Professores rigorosos geram melhores resultados em seus alunos! Misty é um bom exemplo disso! – Ela gargalhou e se virou para onde Neruo agora brincava com as folhas vermelhas caídas dos plátanos.
– Sabe onde estão vovô e os outros? – Perguntei por fim, depois de um longo momento de silêncio em que via os últimos raios alaranjados do sol se projetarem no horizonte, manchando o céu de púrpura, rosa e azul escuro.
– Eles foram até Lastar falar com Sirius, para ver se achavam algo sobre magia de recriação...
– Eles querem recriar Evenox? – Poderia sugerir que perguntassem a Ayrana, massa preferia arrumar qualquer outra maneira a ter que pedir algo a ela. Foi de repente, alguns segundos antes
– Não, querem recriar tudo que está nas memórias dos sereianos sobre Evenox e seus lares, para poder construir as cidades submersas em Pollo exatamente como eram no mundo das águas e trazer de volta pertences pessoais.
– Ah...
– Eles devem chegar a qualquer momento, Ewren e Leona disseram que jantariam aqui hoje... está convidada, se quiser. – Assenti e lhe dei um pequeno sorriso, era o máximo que eu conseguia sendo cordial com ela.
– Neruo! Vamos entrar! – O menino saltou para a pilha de folhas e rolou algumas vezes, teimando com Serena e resmungando sobre não querer entrar. Ela caminhou até a escadaria e pigarreou. – Se não vier, vai ficar aí sozinho! – Mesmo assim, o menino não ligou.
Enquanto eu olhava ele rolar senti uma estranha sensação, algo tão errado, tão terrível que fez meu estômago rolar.
– Serena, acho melhor sairmos daqui. – Murmurei, colocando a mão sobre Siferath e buscando perigo em volta. Tentei buscar através da corrente que me conectava a Caalin pelo juramento de guardiã, mas ele estava aparentemente seguro como em todos os outros dias da semana, percebi então que era uma sensação minha.
Serena estava em choque olhando para trás de mim, onde Neruo havia ficado em silêncio, então, olhei em sua direção e os vi. Olhos que assombraram alguns de meus piores pesadelos no fim da infância, os olhos vermelhos e sedentos do demônio que matou os meus colegas da academia. Meu corpo inteiro ficou frio, paralisado com o pânico das memórias enquanto aqueles olhos dançavam de mim para Serena. Neruo estava do outro lado, perto demais da criatura e longe demais de Serena, apenas alguns passos mais próximos de mim.
– Que surpresa agradável. Não esperava encontrar a rainha de Vegahn aqui... – Sua voz fez com que meu estômago se revirasse novamente e quase não pude conter a ânsia.
– Marglan. – Serena conseguiu dizer. – O que faz aqui? – Sua voz saiu tremida. O menininho alheio ao perigo, deu alguns passos à frente, perto demais do vampiro. O olhar de pânico de Serena ao ver o vampiro mover as garras foi perturbador.
– Ah, eu tinha contas a acertar com Lupine, por ter me trancado naquela ilha por séculos. Mas agora, à beira de uma guerra entre os Doze, fui forçado a servir meu antigo mestre e estou muito descontente com isso, pois podia ter vivido com mais alegrias se não estivesse preso aquela maldita barreira! – O vampiro mostrou os dentes numa careta que se parecia com a tentativa de um sorriso.
– Eu libertei você! – Ela choramingou.
– Você o libertou? – Vociferei, saindo momentaneamente do choque.
– Ahh! Sim, ela me libertou, destruiu as defesas que me mantinham preso dentro de minha casa e fui liberto junto com todo meu clã. – Olhei incrédula para Serena, mas o vampiro continuou. – Uma pena que foi muito tarde. – O sorriso dele aumentou, então ele se virou para mim.
– E você, hmm você! – Marglan apontou uma garra longa para mim e inspirou profundamente, fazendo meu sangue congelar. – Lembro-me do seu cheiro, um pouco mais doce agora, mas me lembro dele há alguns anos em Cibrés. – Ele riu. – Você estava bem escondida, não é?
– Vá pro inferno. – Rosnei. Olhei irada para Serena, que em nenhum momento desviou os olhos de Neruo, como se esperasse a chance de pegá-lo e correr. Numa tentativa de dar a ela essa oportunidade para depois pedir uma explicação sobre o “Libertei você”, puxei Siferath e tentei transformá-la, porém, percebi que meus poderes estavam dormentes. Marglan gargalhou e deu um passo fluido como a noite na direção do menino, as garras expostas, preparando-se para um ataque letal.
– Ah, estranhas as habilidades adquiridas ao tomar o sangue de uma Arbarus virgem amaldiçoada! Privilégio que fui um dos últimos a ter. – Ele deu outro passo, meu coração acelerou temendo pelo menino. – Quando Serena me libertou vinte anos atrás e me deu seu sangue, consegui uma habilidade peculiar, mas que me rende o favoritismo de Detéria, o poder de anular os poderes de qualquer criatura mística! – Marglan estava a um passo do garoto agora.
– Marglan... por favor, eu te ajudei, te libertei! – Serena não reagia, estava em lágrimas perto da porta.
– Sinto muito, minha querida, mas quero que seu filho e você façam uma visitinha a vovó esta noite! – Ele rugiu erguendo a mão, Neruo olhava para as garras como se elas não pudessem lhe fazer mal. O vampiro fechou a mão em punho, um golpe mesmo que fraco de um vampiro como aquele, partiria a criança ao meio. O mundo ficou mais lento conforme minha cabeça se esvaziou e eu forcei minhas pernas, saltando em direção ao menino enquanto escutava o grito agudo de Serena. Mal senti o que aconteceu, não percebi o quão grave era nossa situação sobre aquele terraço até empurrar o menino para baixo do banco de pedras e receber o golpe em seu lugar, não senti dor alguma, como se o ataque destinado ao menino não tivesse feito nada a mim, apenas uma dor no ombro, onde tinha batido no chão. Os olhos surpresos e assustados do vampiro ao me olhar foram rapidamente para outra direção.
– NIKELLA! – Annie Gritou da entrada do terraço, avançando contra o vampiro com uma bola de fogo nas mãos. Um guincho ensurdecedor veio de onde Annie havia saído, e isso deixou Marglan ainda mais espantado. Ou ele havia ficado surpreso demais com sua chegada para evitar o poder dela, ou suas chamas não podiam ser controladas por mais ninguém. Annie atirou chamas contra ele, fazendo-o urrar e desaparecer. Ela correu até mim, voltando a sua aparência normal e segurou meu rosto.
– Nike, céus, você está bem? – Eu tentei falar, mas não havia ar em meus pulmões, então tentei respirar calmamente antes de lhe responder. Estiquei a mão para onde Neruo chorava escondido embaixo do banco, Annie rapidamente entendeu e o retirou dali, verificando se estava tudo bem. Quando constatou que só haviam uns arranhões e que ele chorava de susto, ela se voltou para mim, olhando-me ainda deitada e tonta no chão de cima abaixo.
Só podia ter sido o choque de reencontrar aquele monstro que me fez ficar lenta, eu era uma caçadora, não fazia sentido ter medo dele, eu tinha que odiá-lo e me odiei por ter sentido medo. Apoiei-me nos cotovelos e ergui o tronco do chão, ao olhar para porta percebi o porquê Annie chorava e escondia o rosto de Neruo em seu colo. Serena estava morta na entrada do terraço, as cinzas do vampiro que a atacara pelas costas estavam espalhadas pelo chão e se levantavam com o vento. O peito de Serena havia sido transpassado por uma lança que jazia partida ao lado do corpo, ela ainda estava com os olhos abertos para o céu escuro.
Ao lado dela, Susano fazia o melhor que podia tentando curá-la, com lágrimas nos olhos e as mãos estendidas, brilhando sobre o corpo.
– Su... já chega. – Annie chorou escondendo o menino, mas ele não havia aceitado aquilo, ele meneava a cabeça enquanto seu poder vasava cada vez mais para tentar curar o que já não tinha mais jeito, pois por um instante, vi um pequeno fio vermelho como o que havia visto em Taures envolver seu corpo e desaparecer. Um segundo após isso, Susano urrou e uma ventania fez as folhas das árvores serem arrancadas aos montes e voarem sem rumo.
Forcei minhas pernas trêmulas a me obedecerem e me porem de pé, queria me desculpar por não ter conseguido ajudar os dois, mas ao abrir a boca, vomitei o almoço e caí novamente, sentindo uma dor tão intensa que fez minha visão escurecer.
Respirava rápido, tentando manter a calma e a consciência, olhando para o céu e para as estrelas e temendo fechar os olhos de tão intensa que era a dor, mil cólicas não se comparavam a aquilo. O céu ficou encoberto em um instante, as nuvens negras e os relâmpagos se juntaram a ventania de Susano e eu podia até imaginar quem era o causador delas enquanto esperava a dor diminuir.
Num piscar de olhos, mais gritos se juntaram ao choro de Neruo e ao olhar para o lado, vi Leona abraçar o corpo de Serena e chorar desesperada, tirando os cabelos que cobriam o rosto da irmã da frente e beijando sua testa. Vovô se juntou a ela em seguida e recolheu o corpo de Serena, mas fez um sinal para que Leona pegasse Neruo de Annie, talvez, apenas talvez, os dois pudessem acalmar um ao outro.
– Su... – Annie choramingou, passando os braços livres ao meu redor. Dessa vez não tive como conter um grito abafado e encolher o corpo. Susano veio até nós rapidamente e se abaixou em minha frente.
– Nike, onde ele te feriu? – Ele esticou a mão para me curar.
– Não sei, eu não senti.
– Vamos, tem uma enfermaria no final do andar inferior, Terinis pode te examinar antes que a tempestade chegue. – Ele apontou para o horizonte.
– Não era pra ele já estar aqui? – A voz de Annie soou preocupada.
– Era, mas as defesas mágicas de Vintro se ergueram, passou das sete. – Explicou rapidamente passando um dos braços por baixo de meus joelhos e outro em minhas costas para me levantar. A dor voltou quando ele me mexeu, senti o vestido pesar de certa forma e Susano xingou várias vezes ao olhar para o chão, depois para o braço coberto de sangue transparente azulado.
Foi nesse momento que percebi onde Marglan havia atingido o punho.
– Su... – A voz de Annie não passou de um gemido quando ele se virou para as escadas, descendo numa velocidade que só pude ver um borrão através das grossas lágrimas que escorriam por meus olhos.
Naquele momento descobri o poder das palavras e dos desejos, e que todos os pensamentos ruins, por mais que só tenham manchado minha mente por alguns momentos, eram os primeiros a serem realizados.
Fui colocada numa maca, ainda sentindo sangue escorrendo por entre minhas pernas e uma dor pulsante em mim. Havia sentido a magia de Susano tentando me curar, mas parecia não estar funcionando. Ele xingou alto dessa vez e sua mão pousou em meu rosto.
– Nike, eu... – As palavras morreram em sua garganta ao ver Annie ainda agarrada em meu braço chorando e uma névoa verde e brilhante se soltar de mim e rodear a sala como se despedisse, antes de sair pela fresta da porta e desaparecer na noite.
Antes que ele me falasse o que havia acontecido, eu já tinha entendido. A dor me fez fechar os olhos e respirar com força várias vezes tentando controlar a imensa vontade de chorar, de gritar e esmagar todos que aparecessem em minha frente.
– Sinto muito. – Susano estava chorando. Lágrimas de ódio escorriam por seu belo rosto enquanto ele olhava para o chão enquanto mantinha as mãos sobre mim, curando meu corpo. Fechei os olhos e fiquei quieta até que terminasse, até que não sentisse nada além de um leve desconforto, mas Susano não parava de chorar.
– Eu não estava lá... eu prometi pra você...
– A culpa não foi sua. – Murmurei, engoli a dor, o pesar e aquela estranha sensação de voltar a ser uma pessoa que só desejava acima de tudo se vingar pela partida das pessoas que amava. Eu teria outra hora para chorar de verdade, para ter meu momento de luto, mas não era essa a hora, tentei me levantar, mas os dois me impediram. Susano estava me olhando com o cenho franzido e sua mão agora apertava meu braço com força, mantendo-me sobre a cama.
– Você está bem? – Seu tom de voz era cuidadoso demais, Annie também estava olhando para mim de forma estranha, sua mão quente apertando minha mão esquerda e os olhos vermelhos fixos nos meus.
– Não, não estou nada bem! Eu acabei de perder meu filho porque estava buscando respostas pra uma pergunta que não saía da minha cabeça, estou me sentindo um lixo pois estou em uma maca pela terceira vez em menos de dois meses e me sentindo a pior caçadora do mundo por não ter conseguido enfrentar uma porcaria de vampiro! – vociferei, só queria gritar, colocar aquilo para fora de alguma maneira.
– Nike... se acalme! Lembre-se de Nyu? Não era hora... – Levantei-me da cama num pulo e agarrei seus braços, afastando-o de mim.
– Nunca é a hora para mim! Aconteceu com meus pais, aconteceu com Kuran, com Elister, Merian... e agora isso. – Ironizei, senti uma tonteira, mas não era nada que eu não pudesse lidar. Ouvi Susano e Annie me chamando enquanto eu saia rapidamente da sala e corria para o lado de fora da fortaleza. Ignorei o alvoroço terrível no pátio onde estive antes do sol se pôr com Susano e Annie.
Ao usar magia e escancarar os portões, saindo da fortaleza, dei de cara com Caalin e Docinho, ele estava prestes a entrar, seus punhos cerrados soltavam raios, mas quando me viu sua expressão se suavizou, porém não por muito tempo. Ele chegou até mim antes mesmo que eu abrisse a boca para falar algo e me abraçou apertado o suficiente para que aquela dor voltasse e se derramasse por meus olhos. Chorei em seus braços até a garganta doer, mas quando a dor passou, a raiva voltou. Se ele tivesse me contado tudo desde o começo, aquilo não teria acontecido.
– Nike. – Ele segurou meu rosto, seus olhos brilhavam no escuro e podia enxergar o pesar neles, mas Caalin não derramou uma lágrima.
– Sinto muito. – Sua voz estava fria.
– Não faz diferença para você, não é? Você já tem filhos demais. – Ele ficou tão chocado que me soltou, não pensei duas vezes em desviar dele e ir em direção a Docinho, que estava deitada na grama olhando para mim com mais dor nos olhos do que ele.
– Não acredito que disse isso! – Caalin rosnou, puxando meu braço e me virando para ele. – Eu te amei, te amo mais que tudo que já tive! E você tem coragem de dizer isso para mim?
Abri a boca para retrucar, mas ele segurou meu rosto firmemente.
– É você quem parece não ligar, foi egoísta e pensou só em você quando deixou o castelo e veio para cá de pirraça! Me recuso a acreditar que você seja má assim por dentro, a Nike que eu amo não é assim.
– Talvez eu seja, você só não teve muito tempo para me conhecer. – Solucei afastando-me dele também. Mas dessa vez fui impedida de continuar pela cauda de docinho que estava ao meu redor, formando uma barreira para que eu não seguisse adiante.
Traidora, sem vergonha! Eu choquei você!
– Não vai me deixar de novo, não vai sair de perto de mim até que eu permita. – Ele sussurrou apertando-me novamente.
– Não pode me obrigar. – Choraminguei quase me entregando.
– Ah, posso sim. – Ele ergueu meu pulso, mostrando a marca prateada. – Vai ficar por perto até que eu a libere, é uma ordem. – E a marca queimou como brasa, soltei um gemido e o encarei com raiva, pois meu corpo reagiu como se não me pertencesse e Caalin apenas segurou meu braço e me guiou de volta a fortaleza.
No pátio principal, havia uma pira funerária e sobre ela o corpo de Serena. Não olhei para quem estava em volta, apenas para o corpo imóvel sobre a pedra num lindo vestido amarelo claro e uma coroa de flores sobre a cabeça, em suas mãos sobre o corpo, uma flor de lótus branca emanava um suave brilho iridescente. Leona chorava na beirada da pedra e vovô a estava amparando em silêncio, do outro lado, ainda tocando o rosto de Serena estava Hasan, o rosto manchado de lágrimas e contorcido da dor silenciosa que carregava, mas mesmo assim não consegui sentir pena. Algo que queimava por dentro, talvez remorso por não sentir pena de seu fim, uma vez que por ela ter feito a prisão das Ilhas Monarcas ser aberta, muitos morreram por aquela decisão mal tomada.
Hasan tocou sua bochecha uma última vez, com lágrimas nos olhos ele a beijou suavemente na testa, então um fogo azul se espalhou sobre ela. Caalin não me soltou em nenhum momento, e mesmo se tivesse me deixado livre, com a ordem que ele me deu não conseguiria me afastar sem que me liberasse.
Ficamos todos em silêncio até o fogo começar a se extinguir, até que alguém começou a cantar com uma voz suave e rouca. Olhei para os lados procurando o dono daquela voz maravilhosa e descobri que era Demétrius quem cantava, fazia sentido, ele era um sereiano.
No momento em que o fogo se extinguiu, uma névoa brilhante vermelha rodopiou a pedra e seguiu para o céu escuro, mas o que pairava acima da fortaleza fez meus joelhos fraquejarem e por pouco não caí. Um unicórnio do trovão magnífico, translúcido em tons de prata e azul, cavalgava sobre uma nuvem leve. Nunca havia visto um embora Taures nas noites mais estreladas nos fins de semana que eu passava com eles, sentava comigo no telhado da Solaris e me contava histórias sobre o Unicórnio que levava as almas para o outro mundo, ou as guiava para uma nova vida. O unicórnio sobre nós trazia com ele mais almas brancas e brilhantes, no meio delas, uma única alma de cor verde clara vibrava entre as outras. Um soluço engasgado saiu de mim e Caalin me apertou forte.
– Não chore, se você chorar, ela não vai ficar tranquila por ter partido. – Suas palavras só me fizeram chorar ainda mais.
Por fim, a luz vermelha se juntou as outras e o Unicórnio desapareceu num flash de luz junto com elas. Caalin pousou a mão suavemente em minhas costas e me guiou para o interior da fortaleza, não fazia ideia de onde ele estava indo enquanto virávamos em corredores e subíamos escadas até chegarmos no último andar.
Caalin abriu a porta do quarto simples, porém confortável e me levou até a cama.
– Já estou livre? – Perguntei sarcasticamente com um nó ainda em minha garganta pela visão no pátio.
– Não mesmo. – Ele se deitou e me puxou para a cama, deitando minha cabeça em seu braço e ficou por um longo tempo apenas me encarando com os olhos como duas pedras preciosas brilhando no escuro. Ahh inferno! Eu ficava completamente idiota perto dele.
Depois de um bom tempo, ele ergueu a mão, onde o símbolo lilás brilhava. Caalin pousou a mão suavemente na minha, depois começou a traçar linhas em meu rosto e meu ombro. Meu corpo relaxou e novamente, algumas lágrimas escaparam de meus olhos.
– Eu sinto muito... – Falei por fim. – Queria apenas proteger o menino...
– Eu sei. – Ele suspirou. – Sinto muito também, principalmente por não ter ficado ao seu lado naquele dia.
– Você me magoou.
– Me perdoe. – Ele beijou a marca em minha mão e a apertou firme, fechando os olhos tão apertados que achei que estivesse sentindo dor, embora não pudesse perceber nada através da corrente. – Nada disso teria acontecido se eu tivesse sido sincero... pelo visto aquela vez com Kuran no Castelo do Sol não foi suficiente para me ensinar uma lição.
– Então, dessa vez aprenda direito. – Retruquei, ele abriu os olhos, mas não havia malícia quando ele me encarou novamente, apenas uma pontada de tristeza.
– Vegahn sem você é apenas gelo cinzento e sem vida. Perde as cores, perde a essência e a magia. Quando você pisou lá a primeira vez, eu vi a mudança no meu mundo... – Ele segurou meu rosto e engoliu em seco, vi seus olhos brilharem como se fizesse força para não chorar. – O que é real para mim só vai existir se você estiver lá. Sem você, meu mundo não passa de fantasia, gelo e sombra, Nike.
Não lhe respondi, o caroço em minha garganta impedia que eu falasse algo, então apenas fiquei deitada em silêncio no seu braço.
– Tenho medo de que você deixe de me amar. – Ele falou quando eu já estava quase fechando os olhos.
– Idiota, eu jamais deixaria de te amar.
– Promete que vai estar ao meu lado no fim? – Aquilo me rasgou por dentro, o medo de perde-lo também e acabar ficando só.
– Prometo.
– Você confessou... – Ele murmurou, fazendo-me abrir os olhos de novo. – Aquele dia quando confrontou minha mãe, você acabou falando que se desfez da sua parte humana, da sua parte que mais amava para poder liberar as almas.
– O que tem isso?
– Quando te perguntei sobre ter escolhido malvarmo...
– Não disse que não preferia continuar humana, Caalin. Disse que me apeguei as garras de vitrino e minha parte humana não as tinha, então escolhi a malvarmo, mas gostava mais de ser humana! – Retruquei.
– Você é você para mim, não importa qual aparência resolva vestir, Nikella. – Ele beijou minha testa. Não consegui conter um sorriso antes de fechar os olhos e adormeci sentindo-me em paz, triste, mas pela primeira vez naquela semana, eu dormi sem culpa.
Deixei Caalin dormindo no quarto pouco antes do dia amanhecer e saí pela fortaleza, precisava falar com Leona, pelo menos dar os pêsames por Serena. Porém, assim que virei o corredor encontrei com Hasan, que estava com os olhos fundos e o cabelo despenteado, segurando Neruo adormecido no colo.
– Eu...
– Ele só dormiu agora. – Hasan murmurou, sua voz estava rouca e arrastada. – Sempre dormiu no colo de Serena, não conseguia fazê-lo dormir.
– Hasan, sinto muito por não ter conseguido ajudá-la. – Falei, aproximando-me para lhe tocar o ombro. Hasan deu um sorriso triste e olhou para Neruo, os olhos negros estavam tão apagados que me fizeram sentir um monstro por não ter tido pena dela, mas infelizmente ela procurou por aquilo.
– Annie me disse... que você entrou na frente, que o protegeu e o que perdeu para que ele vivesse. – Mesmo com o menino no colo, Hasan se ajoelhou. – Obrigado, minha dívida com você será eterna.
– Está tudo bem, Hasan, não me deve nada! – O levantei, a situação era desconcertante demais para mim.
– No dia em que fomos até as Ilhas, eu devia tê-la deixado na costa. Jamais devia ter permitido que Serena seguisse Marglan... isso foi culpa minha...
– Ela escolheu seu próprio destino, Hasan. Temos que conviver com nossas escolhas, boas ou ruins, pois uma hora ou outra elas voltam para nos assombrar ou acalentar... Sinto muito por sua perda. – Antes que dissesse algo mais cruel mesmo sendo a mais pura verdade, apertei sua mão carinhosamente e saí.
Encontrei vovô próximo à entrada da biblioteca, mas Leona não estava com ele.
– Vovô. – Fiz uma reverência, ele deu uma risadinha e quando olhei para ele, ele estava corado e coçando a cabeça.
– Não consigo me acostumar com você me chamando de vovô. Me sinto mais velho do que sou.
– Se quiser eu paro.
– Não se preocupe com isso! – Ele afagou o topo de minha cabeça e me puxou para um abraço. – Sinto muito por ontem. Sei exatamente o que é e como se sente.
– Está tudo bem. Mesmo. – Não estava, mas tinha certeza de que ia ficar, precisava ficar. Vovô se afastou um pouco para me olhar, um pouco surpreso, mas por fim ele suspirou e fez um gesto para que eu o seguisse. Ele estava com uma roupa bem simples, uma calça cinza de moletom e uma camisa preta, os cabelos amarrados num coque e estava descalço, vovô andava casualmente com as mãos nos bolsos, olhando pelas janelas abertas o sol nascer, pintando o céu de vermelho e fazendo a montanha Azul brilhar com os cristais.
Segui vovô até a sala que Susano e eu ficamos uma vez para que eu lhe contasse os planos que tinha para libertar as almas, porém, vovô foi até a sacada e me pediu para sentar à mesa, que num segundo ficou cheia. Tinha chá, café, creme, pães de queijo e bolinhos. Ele se sentou com um movimento gracioso e começou a servir café para ele e para mim.
– Como sabia que eu gostava de café? – Perguntei, pegando a xícara e colocando um pouco de creme.
– Susano fala bastante, ele não é tão discreto quanto parece a maioria das vezes.
– Ahh... – Fiquei um pouco constrangida, mas tomei um gole e peguei um pãozinho de queijo. – E Leona, como está? – Vovô respirou fundo e pegou um bolinho, passando um pouco de geleia por cima.
– Está muito abalada, ela e Serena eram muito unidas... vai demorar pra que se recupere do choque.
– Imagino.
– Soube por Susano que você tinha um assunto sério para tratar conosco ontem...
– E o assunto perdeu a importância quando aquilo aconteceu. – Peguei outro pãozinho, mas tinha um nó em minha garganta que o impedia de descer.
– Quer me falar mesmo assim? – Ele perguntou, colocando a mão sobre a minha que estava apoiada na mesa, encarei os olhos dele, eram de um azul bonito, rajados de cinza, diferentes do azul profundo e puro de Caalin, mas muito parecidos com os olhos de Gwyn.
– Estava preocupada que tudo que sinto por Caalin seja coisa da alma de Aelita, algo da essência dela que permaneceu, que não sumiu com a magia de Ayrana...
– Sabe o que descobri esses tempos? – Vovô me interrompeu, soltando minha mão e olhando na direção do sol nascente. Meneei a cabeça negativamente, sabendo que ele veria. Vovô voltou a me encarar com um meio sorriso. – No dia em que Emma morreu, minha primeira esposa e irmã de sua avó, eu vi o Unicórnio indo em direção ao templo do Castelo de Cristal. Achei que fosse algum presságio para que eu fosse lá conversar com a sacerdotisa ao invés de ir caçar os lobisomens e os matar. – Engoli em seco, não fazia ideia de que ele tinha perdido uma esposa, achava que vovô era apenas um pervertido. – Ao chegar no templo, não havia nenhuma sacerdotisa, mas as curandeiras estavam limpando o lugar pois alguém havia acabado de ter um bebê ali. Então saí do templo e fui atrás do cheiro de quem estivera ali antes e me deparei com Lupine, a sacerdotisa dos ventos, ela estava abrindo um portal para ir embora. Ela estava com uma cesta e um bebê e pediu que eu tomasse conta da criança enquanto ela abria o portal. Quando olhei nos olhos da menina, senti como se a dor que eu estava carregando desaparecesse aos poucos. Era Leona, com a mãe dela antes de irem embora de Amantia... mas o que descobrimos esses dias, é que aquele Unicórnio havia levado a alma de Emma de volta, para aquela menininha recém nascida no templo, porque Emma havia partido sem cumprir seu propósito.
– E qual era o propósito dela? – Vovô sorriu largamente.
– Me purificar completamente. Emma sabia o que eu era e havia prometido isso quando nos casamos, embora ela só tenha me visto naquela forma uma vez antes de morrer...
– Então Leona... se lembrou?
– Não, mas uma das curandeiras ainda vive no castelo, e esses dias o assunto simplesmente surgiu, ela era aprendiz de Dymesia na época e podia enxergar a ligação entre as almas igual Susano. – Não percebi que estava chorando até vovô se virar para mim e limpar uma lágrima. – Nike, não é uma parte de sua alma fragmentada que te faz ser você, é o que tem aqui – Vovô tocou em meu peito - E aqui. - Disse tocando minha cabeça também. - São suas memórias, seus sentimentos e suas emoções que fazem você ser você, ser especial! Nikella, você é o que acreditar ser!
Queria com todas as forças acreditar naquilo, mas algo ainda se inquietava dentro de mim quanto a isso, talvez pelo fato de a Yinemí ficar falando comigo o tempo inteiro, apenas esses dias ela estava em silêncio, deixando-me recuperar depois da construção das cidades e agora do luto de perder o bebê.
– Susano havia me dito que eu deveria falar com o senhor e com Leona sobre isso, que passaram por algo parecido, agora entendi o que ele quis dizer com isso. – Falei, tomando mais um gole de café.
– Susano é incrível, mas ele herdou uma parcela da loucura de Lórien e isso as vezes me preocupa. – Vovô e eu rimos, mas ele quase engasgou com o café ao perceber Susano e Annie parados na porta da sacada olhando para nós.
– Uma parcela da loucura de Lórien, hein? – Ele conjurou duas cadeiras para que Annie e ele pudessem se sentar, meu rosto queimava como se tivesse sido pega em uma travessura. Annie ainda estava com semblante triste, mas Susano parecia tranquilo. Me senti terrivelmente culpada por estar ali, conversando, rindo com vovô poucas horas após aquela tragédia, mas o tempo treinando para ser uma caçadora me ensinou que se você está vivo, a vida tem que seguir, e não importa o tamanho da dor, tudo pode ser curado, tudo precisa ser curado. Deixar-se abater, por maior que seja a dor ou a perda pode te lavar à destruição.
– Amo a loucura dela. – Vovô pigarreou tentando se corrigir, mas já era tarde.
– Sem a loucura, a sanidade não valeria de nada. – Susano retrucou, em seguida, piscou para mim com um leve sorriso no rosto.
– Viu? Até falam igual! – Vovô sorriu e serviu café para os dois. Aquele minuto de tranquilidade, normalidade e alegria, me fez sentir um pouco mais esperançosa, pois sabia que não estava sozinha. Que nunca estaria sozinha.
Capítulo 11
Susano:
Nike estava sentada de frente para meu pai, com um café na mão e um sorriso no rosto quando Annie e eu aparecemos para procurar por ele. Não importava o quanto eu visse aquele sorriso, eu sempre a acharia a pessoa mais forte do mundo por ter passado um inferno em seus poucos anos de vida até agora e ainda assim ter força para sorrir. Eu estava fazendo um esforço monumental para conseguir conter a tristeza pela morte de tia Serena e Nike havia acabado de perder um filho, mas estava sorrindo.
Annie a olhava com um brilho nos olhos, ela considerava Nike como uma irmã, a adorava de uma maneira que eu conseguia compreender bem, e tudo começou com um aperto de mão entre ela e uma menina humana que odiava Salamandras.
Ficamos por um bom tempo sentados, conversando e tomando café, estava tudo aparentemente tranquilo, e faltavam poucas horas para a reunião dos soberanos em que veríamos quem ainda estava do nosso lado, pois após as ameaças de Higarath, não sabíamos quem podia ter desistido da aliança. Minha maior preocupação era com a Tarinmari, a Alma da terra, que havia se desprendido e desaparecido, não sabia se poderíamos conter Higarath sem ela.
– Estão escutando isso? – Nike quebrou o silêncio que caiu sobre a fortaleza alguns minutos antes do céu ficar encoberto. Um arrepio passou por mim ao sentir um sopro, um aviso de Vensis, minha Alma dos ventos de que algo estava muito errado. Annie franziu o cenho e inclinou a cabeça um pouco, tentando escutar além dos trovões carregados que estavam vindo em direção a Vintro.
– Majestades... está um tumulto no salão principal! – Lucci, uma das guardas entrou correndo e bufando na sala, seus olhos estavam arregalados e sua pele havia perdido a cor.
– Nem um dia de paz? – Nike murmurou, levantando-se com o pingente de Siferath na mão.
– O que está acontecendo lá? – Meu pai perguntou à guarda e fez um aceno discreto para que eu me preparasse, mas minha mão já estava sobre o punho da espada em minha cintura.
– Não sei dizer ao certo, majestade. – Lucci corou – Uma mulher apareceu com dois guardiões malvarmos procurando pelo rei de Vegahn e Leona encrencou com ela! – O rosnado de Nike fez Lucci pular assustada.
– Ayrana! – Ela ralhou, girando Siferath nos dedos.
– Nike, tenha calma! – Adverti segurando-a pelo braço, Annie segurava o outro braço firmemente.
– Primeiro vamos ver o que está acontecendo, tudo bem? Depois pode dar uma surra nela se quiser! – Annie sabia exatamente como acalmá-la, uma promessa de violência foi o suficiente para Nike relaxar e seguir conosco para as escadas. Esperava de todo coração que a criadora tivesse algo importante para dizer, mas para mim, ela parecia querer disputar Caalin com Nike.
Corremos para baixo, chegando no salão central da fortaleza em menos de três minutos e o que encontramos foi algo perturbador. Caalin segurava minha mãe pela cintura, impedindo que ela avançasse sobre Ayrana que era protegida pelos dois filhos dele. Meu pai odiou ainda mais a cena, pois rosnou e avançou para cima de Caalin, fazendo-o soltá-la.
– O que está havendo aqui?! – Exigi, aproximando-me deles com a lança em punho.
– Ela veio pra cima de mim...
– Fale alguma besteira pra ver como não te faço engolir os dentes, Ayrana! – Minha mãe rosnou, mudando de aparência. Nike estava olhando para minha mãe com um sorriso crescendo nos cantos dos lábios e um olhar divertido, minha mãe tinha acabado de ganhar Nike também.
– O que aconteceu, Leo? – Nike perguntou a ela, mas não pude deixar de notar que dessa vez Caalin foi para o lado de Nike, ao invés de ir para o lado de sua mãe, Ayrana também percebeu isso e minha desconfiança se confirmou nesse momento, pois os olhos da criadora faiscaram para Nike de forma nada amigável.
– Ela chegou aqui procurando pelo rei de Vegahn, fazendo um escândalo dizendo que todos estávamos condenados pois a Nike deixou a Alma da terra escapar! – Minha mãe grunhiu, dessa vez tentando se soltar dos braços de meu pai. – Ela nem sequer respeitou o luto que estamos! Nem ligou para o neto que perdeu!
– Tudo bem, Leona. Ela não é muito educada mesmo, não viu que ela chegou e estragou meu casamento também? – Nike rosnou, ficando ao lado de minha mãe. Caalin estava com a mão sobre o rosto, Ayran estava com cara de nada enquanto Lenios só faltava sentar para assistir ao espetáculo que aquilo estava prestes a virar.
– Vamos nos acalmar. – Pedi com o máximo de suavidade que pude, cheguei perto de minha mãe e a abracei. – Todos estão muito exaltados com o que está acontecendo, mas precisamos ter calma para resolver isso.
– Resolver o quê? – Ayrana bufou, ela passou à frente dos seus guardiões e nos encarou com raiva. Suas vestes finas e sua aura brilhante agora me pareciam uma fachada para esconder alguém completamente desequilibrado. – Nós precisávamos das seis Almas para lacras os poderes dele! Agora não temos mais a Alma da terra! – ela gritou apontando um dedo para Nikella. Antes que Caalin entrasse no meio das duas, Hasan apareceu e segurou o braço de Ayrana, empurrando-a gentilmente para longe de Nike.
– Ela fez um sacrifício para salvar meu filho. – Ele olhou para Nike e fez uma curta reverência. – Acharemos outro jeito de acabar com Higarath. Ninguém é indestrutível!
– Ele é! – Ayrana retrucou, soltando-se do aperto de Lenios.
– Ninguém é invencível! – Nike reforçou.
– Vocês não estão entendendo! Apenas a força das seis Almas pode fazer um lacre para os poderes dele!
– Ah, é? E como exatamente esse lacre seria feito? – Perguntei começando a me irritar com ela. – Se precisaríamos usar nossos poderes para controlar o poder das seis para formar um lacre, como exatamente a alma da terra presa a um bebê ainda na barriga nos ajudaria a formar um lacre? – Nike ergueu as sobrancelhas e virou-se para Ayrana, esperando uma explicação.
– Os... poderes, eles tomariam forma... – Ela gaguejou. – Eles poderiam anular a magia negra de Higarath...
– Ela nem sequer sabe como impedi-lo, não sabe como a magia negra funciona! – Nike urrou jogando os braços pro alto. – Quer saber como a magia negra funciona? Ela não é ilimitada como pensam, ela é limitada, mas se alimenta de dor, sofrimento e medo, e isso tem em todos os mundos, em todo lugar! Por isso ela acha que ele não pode ser enfrentado, pois vai se alimentar de nós, das sombras em nossos corações!
– Ela está certa... – Ayrana balbuciou. – É assim que a magia negra funciona, ela é criada a partir de um ponto de dor, de terror e desespero, e conforme cresce, se alimenta de tudo que as sombras podem lhe proporcionar. Aí que as Almas Elementais entrariam... são espíritos da pureza, da criação.
– Está errada de novo. – Nike a encarou com os olhos carregados de raiva. Porém quando abriu a boca para falar novamente, sombras e escuridão tomaram conta da sala, de cada brecha, as janelas pareciam ter sido fechadas com blackouts e nada podia ser visto ao nosso redor. Um tremor passou por meu corpo e senti Annie apertar minha mão com força. Seus olhos brilhando como brasas era tudo que eu podia ver.
– Ela sempre está errada! – Disse a voz gutural que fez meu coração acelerar. – Ayrana só acertou quando criou os mundos!
– Higarath! – Ayrana choramingou, num instante, as luzes foram acesas novamente graças a magia de minha mãe. Para minha surpresa, ela ainda podia usar seus poderes.
– Destruiu mais algum mundo? – Nike zombou, olhei incrédulo para ela, mas não havia medo nenhum em seu rosto. Caalin estava prestes a soltar raios pelos olhos, mas Nike o mantinha atrás dela não sei como.
–Não, minha querida. Apenas parte de um... Não precisei destruir Saldazaris inteiro para Sylvia mudar de lado! – Ele gargalhou.
– Higarath! Por favor, pare com isso! – Ayrana implorou tentando, se aproximar, mas foi impedida pelas duas vampiras que saíram de trás de Higarath com lanças em punho. Quando as reconheci, meu sangue congelou. Nike reparou nas mulheres e soltou um baixo assovio.
– Liilac, Sayuri! – Eram as colegas de quarto dela. As duas vampiras de peles pálidas e longos cabelos cinzentos baixaram os rostos e não a encararam, mas mantinham a postura.
– Qual é o seu problema? – Minha mãe gritou, lançando um círculo lilás ao redor de Higarath, uma magia temporária de imobilização que deixou todos boquiabertos. Ela havia conseguido neutralizá-lo. Não, pelo sorriso no rosto dele, ou estava blefando, ou ele havia deixado que ela o prendesse ali.
– Eu estou apenas cobrando uma dívida que minha ex esposa tem comigo! Ela tirou algo muito importante para mim, agora eu estou tirando o que é importante para ela! – Ele rosnou. Ayrana deu um passo para trás, seus olhos estavam cheios de lágrimas e a mão apertada sobre o peito.
– Você me traiu! – Ela choramingou. A face de Higarath se contorceu em ira e as sombras se intensificaram ao seu redor quando ele trovejou.
– É isso que você contou para eles? Que eu traí você e por isso eu fiquei assim? – Ele gesticulou, mostrando a magia negra e as sombras ao seu redor. – Nike, minha querida. Escutei você e ela falando sobre a magia negra pouco antes de minha entrada, e me corrija se estiver errado, a magia negra é criada com flores e carinho? – Ele zombou.
– Ela nasce de uma ferida na alma. Um ponto de dor e sofrimento e mancha a magia, tornando-a escura. – Nike o respondeu, e voltou a encarar Ayrana. – O que você fez? – Ela rosnou.
– Ahh, ela não contou, não é? – Higarath ficou sério – Ayrana matou Muriel, a mulher que eu amava, quando descobriu que mesmo com a diferença no tempo dos mundos, eu ainda ia na Terra vê-la!
– Então porque aceitou o poder de Ayrana, porque aceitou se casar com ela se amava outra? – Minha mãe perguntou.
– Porque eu era um soldado! Não tinha nada a oferecer para ela, não poderia dar tudo que Muriel merecia! Eu aceitei o acordo de Ayrana porque sabia que com aquele poder eu poderia dar a Muriel uma vida boa, feliz.
– Deveria ter tentado conseguir tudo para ela de forma honesta, sem enganar uma mulher apaixonada! – Esbravejei.
– Ora moleque! Você nasceu em berço de ouro. Tem tudo que precisa e muito mais! Nunca precisou mover um dedo para ter o que quisesse! - Ele retrucou encarando-me com desdém.
– Eu sei o que é não poder dar tudo a alguém que se ama e mesmo assim não enganei ninguém para fazer isso! - Nikella gritou apertando a foice nas mãos. Os olhos de Higarath faiscaram ao encará-la, havia algo de perturbador no jeito que ele a olhava e isso me incomodava. Caalin também parecia ter reparado naquele olhar, mas ela não o deixou se mover. Queria arrastá-la para longe dele mas qualquer movimento agora poderia ser Letal, uma vez que a magia negra dançava nas pontas dos dedos de Higarath. Ele era um mago negro de verdade, não como Fairin, apenas um fantoche para as sombras, Higarath as dominava completamente.
Minha mãe ainda o mantinha naquele pequeno lacre enquanto Ayrana agora com um olhar perdido, encarava o nada, o poder vazando de suas mãos. Não havia nada de curasse Higarath, nada que curasse o mal que ela causou ao matar aquela mulher humana por ciúme, não sabia se sentia pena dela ou raiva, pois tudo que passamos, foi por ela não ter conseguido controlar sua raiva.
– Então, por vingança por ela ter matado Muriel você quer destruir os mundos? – Meu pai perguntou.
– Eu quero apenas que ela saiba exatamente como me senti aquele dia, quero que ela sinta a mesma dor, mas a brincadeira tem um gosto melhor com todos os mundos nas palmas de minhas mãos... E agora sem a Alma da terra... – O sorriso dele aumentou. – Vocês não podiam contra mim antes, agora mesmo é que não poderão me fazer nada! – Ele gargalhou.
– Então porque não nos mata de uma vez? – Nike perguntou.
– Não, eu prefiro ver vocês quebrarem a cara no fim, quando eu possuir todos os mundos, vou gostar de ver vocês ajoelhados perante mim! – Ele piscou para Nike.
– Eu sinto muito! – Ayrana deu um passo à frente, esticando a mão, ela queria tocá-lo. Caalin se adiantou e avançou para impedi-la. Higarath queria fazê-la sofrer, tirando dela o que ele achava que ela mais amava, que eram os mundos que criou, mas ele estava errado. Eu havia percebido o que a destruiria quando Ayrana prendeu o fôlego no momento em que Caalin ergueu o machado para impedir o golpe da espada de sombras de Higarath acertar Ayrana.
O olhar de desespero dela ao ver seu último filho vivo tentar defendê-la. Se a magia dela escurecesse também... Mas Higarath não teria pena, ele poderia nos matar bem ali se quisesse, e naquele momento, sua raiva foi maior do que a vontade de vingança, quando desceu aquele espada de sombras e metal sobre Ayrana e Caalin.
O estranho som daquele metal negro chorando-se contra carne e metal fez com que todos prendessem as respirações, até mesmo o lacre de minha mãe se desfez. Nike estava entre Higarath e Caalin, uma mão segurava o machado de vitrino de Caalin e com a outra mão erguida poucos centímetros acima da cabeça, segurava aquela espada negra em seu punho fechado, sangue transparente azulado escorria de sua mão, mas sua expressão era de raiva, não de dor. Ela olhou para trás, encarando os olhos chocados e irados de Higarath e rosnou para ele.
– Ela é minha! – Uma explosão de gelo saiu de Nike, lançando Caalin e Higarath para trás, tentei alcançá-la, mas não podia me mover pois estava congelado da cintura para baixo, não só eu, como todos dentro da sala também.
– Nike, o que está... – As palavras de Caalin morreram em sua garganta ao ver as sombras dançando ao redor de Nike, subindo por seus braços onde suas marcas brancas e lilases haviam sido substituídas pelas marcas negras do selo sombrio. – NIKE! – Ele gritou, tentando se levantar, mas o gelo dela o impedia de se mover.
Nike andou até ele lentamente com um sorriso sinistro no rosto, ela lambeu a mão, curando o ferimento da espada de Higarath e se abaixou perto de Caalin, mas longe suficiente para que ele não pudesse tocá-la.
– Eu disse que você tinha escolhido o lado errado naquele dia.
– Eu voltei por você! – Ele urrou, tentando usar magia para sair do gelo, mas ela o intensificou e não deixou que ele saísse. Um traço de tristeza brilhou em seus olhos por um milésimo de segundo.
– Foi tarde. – Ela sussurrou e se virou para Ayrana, ergueu Siferath sobre o ombro. – Você é uma idiota! Uma covarde! Uma mulher rejeitada não corre atrás até que o homem goste dela, ela ergue a cabeça e segue em frente! Toda essa merda que aconteceu, tudo! Desde a maldição das Arbarus é culpa sua! Podiam estar todos em paz se você não o tivesse matado aquela mulher! Lembra o que te falei sobre pagar um preço por seus atos? – Ayrana estava pálida, olhando Siferath perigosamente perto do seu rosto. Ayran e Lenios lutavam contra o gelo, tentando defender Ayrana, mas sabia que nada adiantaria.
– Pague o preço agora, Ayrana. – Ela murmurou entre os dentes e voltou a encarar Caalin, que a essa altura estava apenas a observando chocado demais para reagir. – Você estava errado, Caalin. Não é a esperança que mantém as pessoas domadas, é o medo! O medo faz as pessoas, faz inimigos se unirem contra outro inimigo em comum. Talvez o certo seja dominá-las através do medo. Talvez se tomarmos os Mundos com as sombras, todas as batalhas e pequenas desavenças acabem! – Ela virou as costas para nós e andou até Higarath, o espanto dele escorreu e mudou para algo sombriamente divertido.
– A oferta de rainha para o que restou dos Doze está de pé? – Ela perguntou em tom de deboche. Não acreditei naquelas palavras nem por um momento. A Nike nunca, jamais mudaria de lado.
– Mas é claro! – Ele gargalhou e estendeu o braço para ela. Quando Nike olhou de volta para nós, seus olhos estavam cor de carvão e nada além de ódio podia ser visto estampado em seu rosto. Até mesmo as vampiras atrás de Higarath estavam em choque sem saber como reagir aquilo.
– NIKELLA! – Caalin gritou. – EU TE ORDENO QUE VOLTE! – A marca prateada no braço dela brilhou intensamente, fazendo-a se curvar de dor. Ele estava usando o laço de guardião para tentar trazê-la de volta. Mas Nike rugiu e colocou a mão sobre a marca, forçando o corpo para a direção oposta, lutando contra a corrente que a puxava em sua direção.
– Caalin Ascardian Arbarus. – Ela ofegou – Deste momento em diante não serei mais sua guardiã. Eu ofereço meu sangue em pagamento para que a corrente seja desfeita e nada mais me une a você com o propósito de protege-lo. – Nike disse entre os dentes, passando as garras sobre a marca da corrente, rasgando a pele e deixando o sangue escorrer, porém ele tinha uma cor errada, escorreu prateado por alguns segundos antes de se tornar transparente azulado novamente até a ferida cicatrizar. A marca em seu pulso parou de brilhar e se desfez como se tivesse sido partida. Caalin gritou, encolhendo o corpo e estendendo a mão em direção a Nike. Mas ela o ignorou, pegou o braço de Higarath e me lançou um último olhar suplicante antes de dizer:
– Aproveitem bem seus últimos dias de liberdade.
Num minuto, Nikella, Higarath e as vampiras desapareceram e tudo que sobrou foi uma dor que não era minha, mas me atingiu da mesma forma. O gelo havia desaparecido e Caalin estava ajoelhado no chão, lágrimas manchavam seu rosto, mas tudo que havia em seus olhos era raiva.
– Você... – Ele olhou para Ayrana quando ela se aproximou para tocá-lo. – Porque mentiu? – Ele rosnou.
– Eu o amava. – Ela choramingou. – Eu o amava e me destruiu saber que ele era casado com outra! Quando eu fui até ela pedir para que o deixasse, vi que ele tinha usado a magia que lhe dei para dar tudo a ela, e em todo aquele tempo ele nunca havia feito nada por mim! Ele não cuidava dos próprios filhos, ele só queria ela! – Ayrana chorou.
– Nike estava certa... – Caalin se levantou afastando-se de Ayrana e de seus filhos. – O verdadeiro monstro aqui é você! – Dizendo isso, raios cresceram ao seu redor e ele desapareceu numa explosão de luz, uma luz tão intensa que me fez cerrar os olhos e sentir uma estranha calmaria.
“Ela percebeu! ” Vensis murmurou para mim.
“Percebeu o quê? ” Perguntei esperando apenas sua confirmação.
“Que a fraqueza de Ayrana, o que a destruiria, era perder o filho mais novo, o último que sobrou para ela. ” Vensis deu uma risadinha. “Porque acha que ela deu sua alma mais forte para ele? Os outros filhos dela eram mais fortes, mesmo assim, ela escolheu seu caçula totalmente humano para entregar Yezélami para ele! ”
“Yezélami? A Alma dos raios? ” Novamente Vensis gargalhou em minha mente, acariciando-a com sua brisa espiritual.
“A Alma da Luz Divina. ” Congelei no lugar que estava, ignorando até Annie que me sacudia pelo braço sem saber de minha conversa mental.
“Caalin tem o elemento sagrado! ”
“Sim, a mais forte das seis almas! ” Vensis bufou irritada. “E ele não faz a mínima idéia de como usá-la, pois a está usando da maneira mais primária, invocando apenas raios com ela! ”
Outro choque de realidade me atingiu. Lembrei-me de alguns dias antes do casamento de Caalin e Nike, quando ela apareceu no salão para almoçar, suas marcas estavam claras.
“Nunca foram necessárias as seis almas, não é? ”
“Nós, as cinco almas físicas, podemos despertar a luz da sexta se o guardião que a obtém não conseguir. Mas se ele souber como despertar a luz de Yezélami, nós podemos apenas ajudar a destruí-lo quando a escuridão se for! ”
“Porque nunca me disse isso antes? ” Resmunguei.
“Você nunca perguntou! ” Ela deu uma risadinha.
– SUSANO! – Annie gritou, sacudindo meu braço com força. Seus olhos estavam cheios de lágrimas.
– Desculpe.
– Achei que tivesse ficado em choque. – Ela choramingou, abraçando-me com força.
Olhei em volta, tentando planejar de alguma forma o que faria a seguir. Precisava encontrar Caalin imediatamente, mas também precisava pensar em uma forma de liberarmos o verdadeiro poder de Yezélami. O olhar que Nike me deu naquele último instante me disse tudo. Ela sabia exatamente o que estava fazendo, queria apenas tirar Higarath dali antes que ele matasse Caalin, ela novamente se sacrificou para nos dar uma chance. Torci para que ela ficasse bem, por ter quebrado o juramento de guardiã, ela fez Caalin acreditar que ela havia realmente mudado de lado, e aquele ato com certeza conquistou Higarath, então enquanto ele acreditasse que ela estava ao seu lado, Nike estaria segura.
Enquanto saia do transe em que minha conversa mental com Vensis me deixou, percebi minha mãe aos berros com Ayrana, brigando pelo fato de ela ter unido todos os guardiões, todas as almas dos guerreiros, não por amor, mas para lutar pela causa dela. Ayrana havia manipulado os fios das almas, ela havia nos unido para que fossemos mais fortes e tivéssemos uma chance de derrotar Higarath.
– Você não é digna de ser guardiã de Mogyin, não devia estar no controle daquela árvore! – Minha mãe gritou, erguendo Ayrana pela gola do vestido. Ayran e Lenios ainda tentaram avançar para defende-la, mas usei uma rajada de vento para jogá-los contra a parede. Eram os filhos de Caalin, talvez fortes como ele, mas não tinham o mesmo poder que eu.
– Não se metam nisso. – Rosnei para os dois, Annie apertou meu braço e franziu o cenho.
– Eu as trouxe de volta para você, não foi?
– VOCÊ PRECISAVA DELAS! NÃO FOI POR MIM! – Mamãe a sacudiu e Ayrana não reagiu. Nem podia, ela estava errada, se reagisse iria apanhar de verdade, sendo uma maga branca ou não. Me aproximei de minha mãe e soltei as mãos dela de Ayrana.
– Eu tentei... juro que tentei! Eu queria purificá-lo, não matá-lo! Mas ele não me deixou fazer isso! Então dividi as almas com meus filhos e parti.
– Tentou errado, Ayrana. – Falei. – Não adianta agora falar o que devia ou não ter feito, precisamos concertar isso. Onde acha que Caalin pode estar?
– Eu... talvez no Castelo de Gelo. – Revirei os olhos, ela não fazia idéia de onde seu filho poderia estar, mas sabia de alguém que com certeza saberia. Meu pai já estava se aproximando para tirar minha mãe dali. Já bastava seu stress e tristeza por tia Serena, não precisava de mais o peso que Ayrana colocou sobre nós.
– Annie, vamos. – Segurei sua mão e deixei a sala em passos rápidos.
– Já tem um plano, não é? – Ela quis saber.
– Um. – Suspirei. – E espero que dê certo!
– Sabia que você tem a alma de um velho sábio? – Ela deu um breve sorriso esperançoso.
– E você de uma salamandra pervertida. – Ela gargalhou e apertou minha mão. – Precisamos encontrar o Rei de Vegahn. – E imaginava onde ele poderia ter ido. Se não fosse a semana que passamos com Nike nos mares, construindo cidades para os sereianos de Evenox, jamais saberíamos sobre a casa de Caalin dentro de uma barreira de proteção em Blizzion. Do lado de fora da fortaleza, encontramos Docinho fazendo um som alto e agudo que fez meus ossos estremecerem.
– Ela está chorando. – Annie se aproximou, mas foi repelida por um jato de ácido que Docinho espirrou.
– Calma, menina! – Tentei me aproximar, erguendo a mão o máximo que pude, ela me olhou com aqueles grandes olhos azuis e bufou.
– Su... cuidado!
– Tudo bem. – Murmurei, aproximando-me mais até que toquei seu focinho. – Ahh, você nasceu dentro daquela barreira, não é? Se pudesse falar, nos diria onde é... – Um estalo em minha mente me fez saber exatamente como encontraria Caalin. – Menina, que tal andar sobre duas patas? – Brinquei. Docinho não pareceu gostar da ideia, pois abriu as asas e fez um vento forte, porém, eu era o vento. Sorri para ela e pressionei a palma aberta em sua cabeça, um brilho fraco passou de mim para ela enquanto usava um antigo feitiço de transformação que encontrei num dos livros da árvore do fogo.
Docinho urrou e grunhiu quando seu imenso corpo começou a encolher e clarear, as escamas negras tornando-se uma pele fina e esticada, que encolhia conforme o corpo diminuía. As asas desapareceram, formando uma tatuagem de um dragão nas costas expostas e uma cortina de cabelos negros ondulados cobriu o pequeno novo corpo dela. Annie soltou um gritinho exasperado quando Docinho ergueu os olhos azuis para nós. Em sua testa, ainda estavam lá as três pequenas esferas brilhantes com aquele líquido dentro, os lábios cheios estavam retorcidos para trás, exibindo os dentes brancos e pontiagudos. Docinho havia se tornado uma garota, com aparência de no máximo sete anos de idade, pele ébano e brilhante como a de Hisana.
Movi as mãos, colocando-a dentro de um traje de couro, como o uniforme de batalha da ACV, talvez ela se sentisse mais confortável assim, mas só conseguia imaginá-la dentro de um vestido bonito com babados. Abaixei-me em sua frente e segurei seu rosto, então toquei sua testa na minha, ela se debateu grunhindo, mas mesmo assim, passei para ela instruções de como falar, andar e lutar.
– Não precisava disso, menino humano! – Ela rosnou, levantando-se agarrada na gola de minha blusa.
– O quê? – A olhei surpreso.
– Nós, dragões, ao sermos formados ainda dentro de nossas mães, recebemos todo o conhecimento acumulado de nossos progenitores, e acumulamos o conhecimento de nossa mãe enquanto somos carregados em sua bolsa interna. Os aquáticos ficam por quase cinquenta anos antes de sermos expelidos para fora afim de serem chocados. – Annie estava boquiaberta olhando para Docinho em forma humana. – Porém como sou híbrida, só fiquei dentro de minha mãe por oito anos antes se ser expelida. Presumo que isso seja algo dos dragões negros.
– Desculpe.
– Saberia falar, pois absorvi parte do conhecimento de minha mãe adotiva enquanto ela carregava meu ovo e falava comigo.
– Sua mãe adotiva... Nikella? – Quis saber, ela assentiu sem tirar os olhos dos meus. Seu olhar era antigo e penetrante, fez com que uma estranha sensação passasse por mim. Ela parecia inteligente demais para um filhote.
– Mas agradeço pelo conhecimento em combate usando esse corpo, será útil caso não consiga voltar a minha forma, e não sei se esse corpo pequeno é forte o bastante.
– Pode mudar de forma quando quiser, basta pressionar as esferas em sua testa. – Expliquei, ela assentiu novamente e encarou Annie, que ainda estava com a boca aberta.
– Ela ficou linda! Posso... – Annie estendeu a mão, tentando tocar o rosto de Docinho, mas essa deu um pequeno avanço, como se fosse mordê-la. – Nike escolheu o nome errado para você! – Ela resmungou.
– Era para ser uma piada, acho. – Docinho ponderou, virando a cabeça para o lado como um cão.
– Docinho, sabe onde podemos encontrar Caalin? Ele saiu bastante irritado daqui. É urgente, precisamos achá-lo para ensiná-lo a usar seu poder corretamente, assim ele pode salvar a Nike.
A dragona deu um pequeno sorriso e olhou para cima, inspirando profundamente.
– Meu pai adotivo está em Ciartes. Na antiga casa dela.
– Como sabe? – Annie perguntou. Docinho novamente mostrou aquele sorriso feral e encarou Annie.
– Para onde iria, caso pensasse que perdeu alguém que ama?
– Para um lugar onde a presença dela fosse mais forte... – Falei.
– A casa na cidade dos Cata-ventos está impregnada com lembranças dela, com o cheiro dela e com coisas pessoais que ela não levava para a ACV.
– Como sabe tanto assim... quero dizer, nomes, localizações...
Docinho revirou os olhos e começou a se afastar da muralha da fortaleza, a seguimos em passos rápidos enquanto ela caminhava adaptando-se as pernas humanas.
– Enquanto ela me chocava, pude absorver lembranças e hábitos dela, até mesmo traços de personalidade. É assim que Dragões ficam tão perigosos, absorvemos informações de tudo à nossa volta durante os últimos dias na casca e primeiros dias de vida. – Ela nos deu um sorriso travesso semelhante ao de Nike.
– Você deve ser muito perigosa então, se absorveu parte da personalidade de Nike. – Murmurei, ela apenas riu e parou. Estávamos fora dos limites de proteção da fortaleza.
– Pode nos teleportar agora. – Disse ela.
– Eu podia ter feito isso lá dentro! – Retruquei.
– Não, sua mãe lançou uma magia de proteção contra teleporte no minuto que Higarath saiu, senti a magia cobrir o local. – De novo, surpreso com a dragona. Annie e Docinho deram as mãos, então segurei as duas e abri rapidamente um portal para Ciartes. As luzes douradas do portal pareciam fascinar docinho enquanto ela caminhava pelo curto túnel brilhante até a rua deserta do outro lado do portal.
Ainda era dia, cedo, na verdade, mesmo com os sóis a pino a cidade estava deserta. Não havia uma alma viva na rua, as casas pareciam ter sido abandonadas às pressas. Docinho apontou para uma casa quase no final da rua, só então percebi o motivo que fez todos correrem. Raios escapavam por todos os cantos, janelas, portas e frestas da casa simples de madeira.
– Meu pai está ali. – Quis revirar os olhos, era óbvio o local onde Caalin estava, mas o olhar penetrante de Docinho me fez pensar duas vezes. Era um filhote, com mente de um adulto, num corpo da criança mais fofa que já tinha visto em toda minha vida.
Criei uma barreira de proteção ao nosso redor e caminhamos até a casa. Subi os degraus de madeira com cautela, esperando que os raios pudessem ter causado danos a estrutura, mas percebi que eles estavam apenas vazando por todas as direções. Abri a fechadura com magia, imaginando que poderia levar um choque caso a tocasse. A casa parecia intacta por dentro, sem nenhum grão de poeira ali, varri a cozinha e a sala com os olhos antes de ir até as escadas. Docinho puxou a manga de minha camisa e apontou para cima, as esferas em sua testa brilhavam iluminadas pelos raios espalhando-se pela casa.
Ela passou minha frente e subiu as escadas saltitando pelos degraus.
– Docinho! Ele não vai te reconhecer assim! – Sussurrei para ela, mas ela apenas mostrou a língua e desapareceu pelo corredor. Annie revirou os olhos e pegou meu braço.
– A Nike era igual quando entrou na ACV. – Logo estávamos subindo as escadas atrás dela. Ao chegar no topo da escada, percebi que os raios haviam cessado e um silêncio sobrenatural havia tomado conta do ambiente. Haviam três portas no corredor e apenas uma estava aberta, lá dentro, encontramos Caalin sentado sobre a cama com docinho pendurada em seu pescoço. Ele estava de olhos arregalados, com as mãos apoiadas na cama.
– É sério isso...? – Annie ralhou. – Nike vai embora com um mago negro das trevas e você vem chorar no antigo quarto dela?
– Ele não veio pra chorar, Annie. – Docinho apertou mais os braços ao redor do pescoço de Caalin. – Veio procurar por algo que pudesse despertara mente dela! Não é? – Docinho o encarou e sorriu, mostrando as pequenas presas para ele. Os olhos azuis dos dois eram semelhantes, porém as pupilas dos olhos de Docinho eram duas fendas.
– Quem é você?! – Ele perguntou, soltando os braços de Docinho de seu pescoço e a afastando, Docinho pareceu magoada, mas mostrou as esferas na testa para ele.
– Esqueceu tão fácil de mim! Mas ontem quando precisou que eu te levasse rapidamente até a fortaleza, sabia quem eu era! – Ela resmungou apertando o rosto dele.
– DOCINHO!
– Eu mesma, sua filha adotiva.
– Você é um dragão!
– Nike me adotou, se ela é minha mãe, então você é meu pai, e não adianta dizer que não, pois lembro-me perfeitamente de você dizendo que eu não saberia diferenciar um dragão de outro! - Um esboço de um sorriso se formou no rosto de Caalin.
– Não imaginei que fossem me achar aqui.
– Então estava realmente fugindo. – Ironizei.
– Só queria alguns momentos de silêncio para pensar, no castelo teria que ouvir as perguntas incansáveis de Zion e Oriel, se fosse para Vale do Sol, meus filhos me achariam... aqui foi o único lugar que pensei que ninguém me procuraria.
– Então me ame, pois te achei fácil! – Docinho bufou, subindo no colo de Caalin novamente. Dragão? Ela estava mais para um gato pedindo por carinho.
– Preciso dar um jeito de trazer Nike de volta. – Ele apertou a mão, fazendo a marca lilás brilhar. – Não consigo acreditar... ela me prometeu que estaria comigo no fim. – Ele suspirou pesadamente, encarando a marca com tristeza no olhar. Docinho se agarrou a ele novamente. Caalin não havia percebido que aquilo era apenas encenação, mas poderia me aproveitar disso, forçá-lo a despertar e usar seu verdadeiro poder. Precisávamos dele, aquilo era óbvio demais, apenas luz derrotam trevas.
– Caalin. – Ele voltou sua atenção para mim, mas fechou os braços ao redor de Docinho, que pareceu satisfeita com a rendição. – O que você sabe sobre a Alma Elemental que carrega?
– A Alma dos raios é muito instável... uma vez minha mãe disse que a Alma do gelo era a mais forte, mas sempre duvidei disso, para mim, essa que possuo parece ser a mais forte.
Vensis resmungou e se encolheu em um canto em minha mente, não pude deixar de notar a pontada de inveja quando fez isso.
“Para mim, você é única e especial! ” Disse para ela.
“Você diz isso para Annie o tempo inteiro, Susano! É pior que seu pai, hein! ”
– Mas Yezélami nunca falou com você o que ela realmente é? – Ele me olhou surpreso, como se eu estivesse ficando maluco.
– Elas não falam, Susano! São poderes sem nenhuma consciência.
Nesse momento, um forte vento rodopiou dentro do quarto e se manifestou numa massa transparente brilhante, tomando forma de uma mulher.
– Somo espíritos totalmente conscientes, rei de Vegahn, porém apenas Yinemí e eu falamos com nossos mestres, temos uma grande amizade com eles, laços que nenhum dos outros guardiões tentou fazer! Nikella aceitou Yinemí como uma parte dela, como uma amiga, não como apenas uma extensão de seu poder, como vocês, egoístas fizeram! Subjugando as outras Elementais como se fossem seus donos! – Ela ralhou apontando um dedo translúcido para Caalin.
– Não sei se fico feliz em conhecer a voz que passa tanto tempo conversando com Su, ou se fico com ciúme! Por que nunca me contou que Vensis era ELA? – Annie cruzou os braços e me fuzilou com os olhos. Vensis só piorou a situação enrolando os braços em meu pescoço.
Logo em seguida Caalin soltou um rosnado medonho que fez docinho saltar do seu colo e se agarrar a Annie e Vensis desapareceu novamente, escondendo-se em minha mente.
– O que você tinha em mente quando me perguntou sobre a Alma silenciosa que eu carrego? – Ele parecia irritado, o tom de voz que usou foi claramente para chamar atenção de Yezélami.
“Ela é a mais durona, fria e teimosa. Não vai falar com ele nem que ele se ajoelhe! ”
“Ela? ”
“Sim, Eu, Yezélami, Yinemí e Suujanim, a Alma das águas, somos espíritos femininos. ”
“Agora tudo faz sentido. ” Não falei mais nada enquanto ela perguntava aos berros o que eu queria dizer com aquilo.
– Já se perguntou porque mesmo depois de ter perdido Aelita, achar que perdeu Mary e seus filhos, e agora, ter Nike tomada de você, seu poder jamais escurece? – Perguntei a ele, que na certa estava gritando para dentro dele mesmo em busca de Yezélami.
– Porque eu nunca deixei que isso fosse mais forte que eu. – Ele retrucou.
– Não Caalin. Por que você não tem nenhuma Alma dos raios, mas sim A Alma da Luz Divina. – Ele me encarou chocado. – A alma que você tem é a mais forte das seis, e a única, repito, ÚNICA que pode ferrar com os poderes de Higarath.
– Mas os raios...
– São a forma mais bruta de se conjurar a luz. – Usei as exatas palavras de Vensis.
– Foi por isso que Nike se purificou aquele dia...
– Sim. Então se você souber como usar... perdão – Falei para Vensis que bufou irritada quando disse “usar” – Se você descobrir como pode manifestar o verdadeiro poder de Yezélami, você pode destruir Higarath e purificar a Nike novamente. – Não ia dizer a ele que ela só havia ido embora para protegê-lo, talvez Nike não tivesse se dado conta do real poder de Caalin, isso poderia ser um problema, pois ela poderia se colocar em risco caso achasse que é a única capaz de enfrentar Higarath agora, precisava que ela soubesse o quanto antes o que descobrimos. Mas ela com Higarath era o incentivo que precisava para Caalin se forçar a aprender seu verdadeiro poder.
– A questão é: Como iremos fazer isso? – Annie perguntou.
– Precisamos de alguém que realmente conheça as Almas e seus poderes. – Pensei alto.
– Alguém ou algo! – Caalin sorriu e se levantou, ele fechou as mãos em punho e sua aparência ficou completamente humana, a pele cor de bronze e os cabelos negros escorridos. Annie ficou completamente vermelha e soltou um risinho histérico, mas pigarreou quando a encarei feio.
– Qual a sua ideia? – Perguntei.
– Vamos à Arvore do fogo! – Caalin estendeu a mão, Docinho saltou em seu pescoço e Annie e eu seguramos seu braço, num minuto fomos sugados pela magia de teleporte.
Capítulo 12
Nikella:
No momento em que a massa negra de sombras se dissipou, senti um alívio percorrer minha espinha, mas mantive minha expressão mais indiferente que pude estampada no rosto. Higarath soltou meu braço e inspirou profundamente. Estávamos em um salão grande, adornado com fitas negras esvoaçantes de cetim que pendiam de enfeites de crânios vermelho-sangue no teto e dos longos ossos amarelados e gigantes que eram as colunas daquele castelo. As luzes acesas dos dois lados do salão e a escuridão que invadia a sala pelas grandes sacadas abertas por todos os lados. Se não fosse o trono no final da sala feito com ossos de crânios lupinos denunciando a dona desse castelo, saberia onde estávamos pelas luas que brilhavam nos céus infinitos de Pollo.
– Está perto do amanhecer. – Disse ele apoiando as costas numa coluna próxima a sacada, na verdade, era um fêmur de um gigante. Se sobrevivesse para ver Hisana pisar nesse castelo novamente, a primeira coisa que faria, seria perguntar a ela como o castelo havia sido construído com ossos de gigantes como fundação e estrutura.
– O legal de Pollo são as noites, não os dias. De sol já tive muito em Ciartes. – Retruquei. Higarath arqueou as sobrancelhas e deu um meio sorriso.
– Sempre tão gentil...
– Tive uma ótima educação. – Zombei, ele gargalhou e bateu palmas deixando-me ainda mais irritada. Minha vontade era de puxar Siferath do pescoço e parti-lo ao meio, mas as sombras que o rodeavam em Pollo eram tão intensas que eu provavelmente seria morta antes de tentar. Esperava que Susano tivesse entendido a minha mensagem quando lhes mandei aproveitar o tempo que tinham, ele precisava entender! Saber que usei aquela distração, que tirei Higarath daquela sala para que tivessem tempo de procurar a Alma da terra, ou pelo menos descobrirmos uma forma de acabar com ele definitivamente.
– Fiquei surpreso com sua repentina mudança de lado. Achei que nunca daria o braço a torcer. – Ele estendeu a mão, tocando o selo sombrio em meu ombro. Meu estômago se revirou ao sentir as sombras tentando invadir minha mente, mas Yinemí criou uma barreira, mantendo-as do lado de fora.
– Não mudei de lado. Apenas percebi quem estava realmente certo na história e resolvi que essa era a melhor maneira de ter paz. Como eu disse, medo funciona melhor que esperança. – Menti. Do outro lado da sala, Liilac e Say me olhavam espantadas.
– Nunca vi um guardião quebrando um juramento ao seu mestre.
– Viu um. – Retruquei.
– Quero lhe fazer um pedido, Nike querida. – Ele tinha um sorriso assustador no rosto. – Depois, vamos fazer um pequeno teste, tudo bem?
– Que tipo de teste? – Me odiei por perguntar, Higarath passou os olhos por meu corpo fazendo com que eu soubesse exatamente o que ele pediria a seguir. Um frio passou por minha coluna, devia ter pensado nessa possibilidade antes de vir com eles. Mas aquela seria uma chance de descobrir uma fraqueza, algo que poderia derrubá-lo caso Susano não conseguisse encontrar a Alma da terra.
– Eu quero que você vá até a arvore do fogo e traga um livro para mim. – Ergui as sobrancelhas chocada.
– O livro das sombras foi destruído.
– Não pedi o livro das sombras, pedi? – Podia tê-lo mandado para o inferno, mas tinha que admitir que estava me respondendo no mesmo nível.
– Que livro?
– Você já deve ter ouvido falar dele. Adraph. Conhece? – Franzi o cenho, Adraph era o livro de magia branca mais antigo registrado. Havia uma cópia dele na biblioteca da ACV, antes de ser levado para a Arvore do fogo. O que Higarath queria com um livro daquele?
– Já ouvi falar.
– Ótimo! Traga-o para mim, e vou ter certeza que está ao meu lado!
– Vai estar me devendo um favor depois disso, Higarath! Sabe que a árvore do fogo pode me matar. – Resmunguei, ele deu uma risadinha e se aproximou, segurando meu pulso, onde as marcas das minhas garras ainda permaneciam. Higarath as soprou, fazendo com que meu vestido azul claro, mudasse para um vestido longo e negro de veludo, as barras das mangas soltas eram bordadas com símbolos do selo sombrio em vermelho, e sobre minha cabeça apareceu um diadema. Não queria nem olhar para saber como era.
– Agora parece mais com uma rainha. – Ele se afastou. – Poderá me pedir o que quiser depois que me trouxer aquele livro, Nikella. – O olhei por cima dos ombros enquanto saía da sala, era como um demônio no corpo de um anjo.
Passei pelas portas da sala do trono, sentindo meu corpo relaxar ao perceber que as sombras ficaram para trás. Andei pelos corredores sem rumo, mantendo minha mente fazia por um longo tempo. Me livrei do vestido assim que soube que estava muito distante da sala do trono, fiz meu uniforme negro aparecer, mas a porcaria da coroa vermelha que ele tinha colocado em mim, estava agarrada. Os criados de Hisana que passavam por mim, olhavam-me com olhos carregados de ódio, sabia que todos haviam sido curados da maldição, mas fiquei me perguntando quantos não desejariam poder se transformar novamente ao verem o emblema dos caçadores no meu peito e aquela coroa sobre minha cabeça, queria lhes dizer que estava ali para tentar ajudar, mas tudo que fiz foi sorrir com desdém e manter meu caminho para lugar nenhum.
Passei por uma grande porta de vidro escura, que dava para uma sala grande e aberta. Como estava trancada, usei magia para entrar. Ali dentro haviam esferas de metal grandes o suficiente para caberem uma pessoa de cócoras dentro, onze delas. Dez com luzes pulsantes em seu interior e uma completamente escura. As cortinas soltas bloqueavam as janelas e no centro da sala havia uma plataforma metálica brilhante que mais parecia um espelho. Quando olhei para cima, percebi que o teto da sala era aberto com magia para um céu infinito. Achei estranho aquilo ali, pois Pollo era o mundo da noite eterna.
– Não pode entrar aqui! – Sayuri rosnou.
– É muita audácia da sua parte fazer esse som para mim, sabendo quem eu sou. – A queimei com o olhar. Traidora. O olhar dela vacilou, Say baixou a lança e se aproximou lentamente de mim, em seguida segurou minha mão, mostrando-me a marca lilás que agora brilhava fraca em meu anelar.
– Eu sou obrigada a servi-lo pelo chamado do meu mestre. Marglan pode nos obrigar a fazer qualquer coisa, você sabe disso, mas você... você tinha uma escolha, Nike. Quem está traindo alguém de verdade? – Ela me soltou e mostrou a porta. – Higarath não quer ninguém nessa sala, a ordem é matar quem entrar, considere isso um favor de alguém que um dia te considerou uma amiga, rainha. – Meus ombros encolheram como se fosse atingida fisicamente, mas eu sabia o que estava fazendo e porque havia escolhido aquele caminho, ela não podia saber, então me forcei a sorrir e andei para fora da sala, desaparecendo das vistas de Say.
Do lado de fora, o castelo parecia imponente, intimidador com todos aqueles ossos em sua estrutura, me fez sentir estranhamente ligada a ele, pois por dentro, por mais que a decoração fosse obscura, tinha algo bom. Me sentei em uma fonte no meio do pátio e admirei as luas ficado cada vez mais opacas. O dia estava prestes a nascer em Pollo. Não havia ninguém do lado de fora, estava tudo deserto. Não era pra menos, com aquelas sombras eu evitaria ficar por perto também.
No momento em que os primeiros raios do sol apareceram no horizonte, a dor do que eu havia feito pareceu finalmente me atingir. A quebra do juramento havia me afetado como uma dor física e agora havia algo silencioso e um profundo vazio dentro de mim.
“Às vezes, o caminho certo é aquele que mais dói. ” Yinemí murmurou bem no fundo de minha mente.
“Se ela tivesse seguido esse caminho, não estaríamos aqui hoje. ”
“Se ela não tivesse feito tudo o que fez, você não estaria aqui hoje também. ” Ela retrucou.
“E não sentiria nada, e não precisaria intervir em nada... ”
“Mas já aconteceu, não adianta focarmos no “se” e sim focar no próximo passo. ”
“Já dei o próximo passo, dei o tempo que eles precisavam para recuperar a Alma da terra, caso aja como. ” Yinemí deu um risinho.
“Eles não precisam dela, nem de nós, na verdade. ”
“O que quer dizer com isso? ”
“Caalin pode dissipar a magia negra de Higarath para nos dar uma chance de atingirmos ele com um golpe mortal. Ele tem Yezélami, minha irmã gêmea. ”
“Yin... não estou te entendendo. ”
“No começo, existiam apenas as quatro Elementais. Tarinmari a Alma da terra, Vensis a Alma dos ventos, Suujanim a Alma das águas e Farahdox a Alma do fogo...”
“Farahdox? ” Ri “meu bisavô tem o nome de uma das Elementais? ”
“Sim, não me interrompa de novo. ” Ela rosnou. “Um dia, elas resolveram brincar com seus poderes, Vensis e Suujanim uniram seus poderes, vento e água e delas eu nasci. Por isso que sou tão forte e temida, pois tenho a união dos poderes dos dois. ”
“Interessante...”
“Então, elas pensaram: se com o poder de dois, formamos ela, se juntarmos nossos cinco poderes, o que nasceria? ”
“Já até imagino o fim dessa história, só não entendo como com cinco poderes Elementais, formaram logo raios! ” Falei brincando, mas o silêncio de Yinemí foi perturbador.
“Nós criamos Yezélami, uma luz tão forte, tão pura e tão poderosa que podia afastar ou destruir quaisquer resquícios de trevas em qualquer ser, em qualquer lugar...” Precisei apoiar as mãos na pedra fria da fonte para respirar normalmente.
“Caalin não sabe disso, não é? ” Minha voz, mesmo que dentro da minha mente saiu chorosa.
“Ele usa Yezélami da forma mais bruta. Mas por ela ser uma mistura de todas nós, toda vez que ele manifesta os poderes dela, ele traz junto a tempestade, mas a luz que ele possui pode limpar o poder de Higarath se ele aprender a manifestar o verdadeiro poder dela. ”
“Porque nunca me disse isso antes? ” Rosnei quase entrando dentro de mim para dar uma surra nela.
“Você nunca perguntou! ”
“Ah, obrigada! ”
“Assim é melhor, Nike. Caalin achando que te perdeu, vai se esforçar para despertar o poder de minha irmã. Você só precisará ser bem forte para acabar com Higarath quando as sombras forem extinguidas, pois Caalin vai estar drenado e não vai conseguir lutar. ”
“Eu sou forte! ” Retruquei.
“Sim, mas não o suficiente, Higarath ficou consciente durante todo tempo no lacre, Nike, suas sombras pegaram informações, seu corpo absorveu força, habilidades e inteligência! Como acha que ele manipulou Fairin? Não o subestime. ”
“Entendi. ”
“Ele é inteligente, frio e cruel, não pense nem por um instante que ele é bom e que apenas Ayrana errou, afinal, ele destruiu Evenox sem pensar duas vezes. ”
“Mas está evitando nos matar...”
“Ele não considera vocês como uma ameaça, na luta em Vintro ele quase massacrou vocês usando um Summon, então, não se sinta confiante. Se esforce, mas mantenha a força, vai valer a pena! ”
“Não tenho mais tempo para treinar, Yin. ”
“Então, vai precisar da força de seu mundo! ” Ela deu um sorriso e pude sentir o poder vibrar dentro de mim.
“Vegahn? ” Questionei.
“Óbvio! Você é ligada a mim, logo é ligada a Vegahn! ” Ela retrucou, era ainda mais grossa que eu. “Mas primeiro deve fazer Higarath não desconfiar de você! E eu tenho algumas ideias para te ajudar. ”
“Para a arvore do fogo primeiro então? ” Perguntei.
“Tem que levar o livro para Higarath, não é? ”
“Grossa! ” Resmunguei.
“Aprendi com você! ” Retrucou ela com uma risadinha maldosa, revirei os olhos e abri um portal, precisava ir até a árvore de fogo pegar o livro que Higarath me mandou pegar. Ficar por perto dele poderia me fazer enxergar alguma vantagem sobre ele.
Todos tinham que ter um ponto fraco.
Susano:
Estávamos a quase duas horas revirando as prateleiras dos livros de magia antiga, procurando por algum vestígio de como despertar o poder de Yezélami, mas parecia que em nenhum deles as Almas eram mencionadas, em outros, os elementais eram apenas descritos como parte livre da natureza.
“Seria muito mais fácil se Yezélami parasse de frescura e falasse com ele logo! ” Ralhei atirando um livro em cima da mesa e esfregando o rosto com as mãos.
“Seria, mas ela é pirracenta e não vai falar! ” Vensis resmungou.
“Será que ela não falaria comigo? ”
“Ela não vai falar com ninguém, Su! Caalin precisa descobrir isso sozinho! Ele teve quase vinte mil anos para isso. Se não conseguir descobrir uma maneira de despertar ela, não vai conseguir usar o poder que ela vai emprestar... ”
– A questão é que nós não temos tempo! – Rosnei alto demais. Annie e Docinho que estavam mais perto de mim se sobressaltaram e me olharam como se eu fosse louco. Annie estreitou os olhos e fez um bico para mim.
– Falando com Vensis de novo? – Perguntou, assenti e comecei a revirar o livro novamente.
– Achou algo aí, Caalin? – Gritei mesmo sabendo que me ouviria se tivesse falado normalmente.
– Nada. – A voz dele parecia um trovão mesmo na forma humana. Annie bufou e revirou os olhos, soltando um livro em cima da mesa e olhando em direção a saída do escritório.
– Vou lá ajudar ele, tenta mais um pouco aqui. – Ela deu um beijo em meu rosto e subiu as escadas para fora. Estava com Adraph nas mãos, mas ele não tinha nada que pudesse nos ajudar com Yezélami. O livro antigo com capa de couro branca era um dos maiores dali e tinha magias antigas que invocavam poderes devastadores, que moviam espaço-tempo e quebrava todas as leis da física e da magia, mas nunca foi considerado um livro perigoso, pois eram poucos os que conseguiam o ler.
Havia desistido de procurar algo ali, talvez nos livros da biblioteca principal pudesse ter algo escondido que estávamos deixando de lado. Talvez não um livro de magia, podia ser qualquer coisa que ensinasse a despertar a luz.
Ao chegar no andar superior, vi Annie e Caalin sentados lado a lado, ela estava apoiada no sofá e tentava ler algo no livro que ele estava segurando. Caalin estava rindo enquanto ela franzia o cenho irritada por sua provocação. Annie ascendeu as mãos em brasas, mas ele apenas riu e apontou para a página, em seguida falou algo baixo e ela corou e se afastou pegando outro livro, mas ainda o olhava de rabo de olho. Docinho olhou para eles, depois para mim e pigarreou.
– Ciúme? – Ela deu uma risadinha cruel.
– Não preciso ter. – Retruquei sentindo um calor em meu pescoço, mas me aproximei deles lançando um olhar frio a Caalin.
– Algo interessante no livro? – Perguntei olhando para o conteúdo, estava escrito em Vegahniano.
– Estava apenas ensinando Annie a ler em Vegahniano.
– Não estamos com tempo para isso agora, não é? Talvez mais tarde... – Ele deu um pequeno sorriso, estava apenas querendo pagar na mesma moeda as provocações com Nike? Sentei no sofá ao lado de Annie e deixei que deitasse a cabeça em meu ombro.
– Não vamos conseguir nada com esses livros, Su! – Annie resmungou atirando o livro sobre a mesinha na frente do sofá.
– Talvez... – Caalin deitou a cabeça no encosto do sofá e suspirou.
Um treinamento duro não faria diferença. Caalin já era um guerreiro! Ele já tinha a força e a destreza necessária, mas só conseguia controla-la de forma bruta. O que ele não tinha era paciência, embora fosse uma pessoa aparentemente serena e tranquila, no fundo seu temperamento era explosivo, isso não ia ajudar a evocar um poder de paz como aquele.
– Já sei! – Annie gritou, fazendo-me quase pular do sofá. – Quem poderia saber mais sobre uma magia de tamanha pureza do que um mago branco? – Annie deu um sorriso travesso e mordeu os lábios.
– Aristes! – Quase gritei também, agarrando Annie e lhe dando um beijo que a deixou corada. – Ele pode saber como fazer Caalin liberar o poder de Yezélami.
– Quem é esse? – Caalin perguntou fazendo uma careta desconfiada.
– Irmão de Fairin e Arcádius. O único mago branco a andar pelos Doze. – Sorri ao dizer. – Ele é um cientista também, estudou em vários mundos e foi quem salvou minha mãe de Fairin a primeira vez.
– Não fazia ideia que existisse um mago branco. – Vivo – Caalin sussurrou. Um mago branco era raro, alguém com o dom da magia que nunca foi corrompido por nada nem ninguém, era de fato quase impensável, ainda mais num mundo com tantas criaturas malignas.
– Vamos até ele? – Caalin se levantou rapidamente quando perguntei, estendi a mão para Annie, mas ela puxou docinho nos braços, que protestou e tentou mordê-la, mas Annie não ligou, apenas deu um sorriso que só eu reconhecia e disse:
– Leva ele até lá, depois volta que quero descobrir o que Kuran disse que tinha escondido na copa. – Ela era terrível para dar desculpas, Caalin tentou evitar que seu sorriso aparecesse, mas pude ver o leve movimento mesmo assim.
– Não vou demorar. – Dei um beijo na testa e lhe disse baixinho: “Djesperainim evenon. ” Significava doce amada em Ignis. Annie corou ainda mais e piscou para mim. Saí da árvore com Caalin e abri um portal direto para Torre das Nuvens.
– Sem gracinha com Annie. – Rosnei quando ele fez menção de passar pelo portal. Caalin apenas bufou e retrucou.
– Você está vendo maldade onde não tem, Susano. – Seus olhos estavam sérios o suficiente para eu acreditar. – Vamos.
Mesmo irritado, passei pelo portal no segundo em que senti aquela estranha presença fria novamente, mas talvez fosse apenas imaginação, pois não sentia presença de ninguém além de Annie e Docinho dentro da árvore.
Nikella:
O calor de Ciartes pareceu um soco no estômago quando apareci perto da árvore do fogo, os sóis pareciam duas chamas de fornalhas gigantes prontas para aquecer o metal em meu sangue e me transformar numa sólida peça de vitrino. Me concentrei em minha magia para tentar fazer a transformação ceder, mas era difícil até pensar com aquele calor. Não precisei pedir para que Yinemí me colocasse dentro de uma pequena redoma de gelo.
“Você separou sua forma humana da malvarmo, lembra? Não vai mais poder voltar a forma humana verdadeira, só aquela aparência menos bestial que Caalin insiste em ser ‘mais humana’! ”
“Não sabia disso. ” Respirei curto, com medo de inalar algum pó das folhas de fogo. “E agora, como vou entrar? ” Perguntei.
“Pode entrar com essa redoma que fiz ao seu redor, mas isso não vai durar muito. A magia da alma do fogo é mais forte que a minha. ”
“Achei que você fosse a mais forte. ” Retruquei de forma zombeteira, Yinemí bufou e vacilou a redoma para me assustar.
“Sou a mais perigosa, mas se você parar para prestar atenção, minha defesa é falha! Todas nós temos nossas fraquezas. ” Ela ralhou, depois voltou a ficar silenciosa.
Depois que sacrifiquei o corpo humano para liberar as almas, o poder de Yinemí havia aumentando bastante e meu controle sobre ela também, mas isso a tinha deixado com uma certa autonomia sobre seus poderes e as vezes isso me preocupava, pois muitas vezes ela escapava de meu controle.
Enquanto caminhava para perto da árvore, percebi imediatamente uma presença naquele lugar, algo ali estava errado. Olhei discretamente ao meu redor com Siferath nas mãos. Por mais que procurasse, não conseguia enxergar e nem sentir de onde aquela presença vinha, parecia que era apenas impressão minha.
Andei bem próxima a árvore, mas sem tocar sua casca pois mesmo protegida pela cobertura de Yinemí, não queria arriscar começar a sufocar com ela. Localizei a grande porta em arco entalhada na casca poucos minutos depois, ela ficava quase de frente para a cidade do Sol. Ia usar magia para abrir a porta, porém para minha surpresa ela estava aberta. Dei uma última olhada ao meu redor, não conseguindo ignorar aquela estranha presença, então entrei.
Mesmo com a proteção de Yinemí ao meu redor, o ar ali dentro fez minha garganta ficar ardendo. Passei pelo longo corredor iluminado pelas folhas incandescentes e reparei desta vez que haviam mapas espalhados pelas paredes. Mapas de Ciartes, das cidades e vilas. Cheguei na sala principal e notei que haviam ainda mais livros que da última vez, então percebi também que a sala parecia maior, ri silenciosamente ao perceber que a árvore crescia conforme o conhecimento aumentava.
Quase caí na passagem no centro da sala, não havia percebido que os móveis haviam sido arrastados e a passagem para a biblioteca subterrânea estava aberta. Fiquei em alerta e ao mesmo tempo temerosa, pois alguém podia ter ido até ali roubar Adraph. Saltei para dentro da passagem sem pensar duas vezes, e me virei para a segunda porta que também estava aberta, saquei as adagas de vitrino, pois não queria causar nenhum dano ao local caso tivesse que lutar com alguém ali, então entrei sorrateiramente, varrendo o local com os olhos. As folhas incandescentes iluminavam a biblioteca em forma de cone, dando uma estranha sensação de estar entrando numa espécie de portal para outro mundo.
Nos andares superiores não havia ninguém e a estranha presença havia sumido quando entrei na árvore. Andei até a plataforma no centro da espiral e quando olhei para baixo, meus olhos se encheram de lágrimas e meu coração apertou. Desci as escadas correndo para encontrar com Annie que estava deitada num dos sofás no centro da biblioteca, mas quando estava quase chegando, lembrei que eu era a vilã agora e que ela talvez não fosse entender o que estava acontecendo se eu chegasse correndo e a abraçasse.
No instante em que parei nas escadas e pensei em voltar para trás, uma menina que estava sentada no sofá em frente a Annie, deu um gritinho histérico e correu em minha direção. Não fazia a mínima ideia de quem era a menina, ela tinha a pele ébano, porém olhos azuis brilhantes, mas o que me fez reconhece-la foram aas três esferas em sua testa.
– Docinho! – Sorri quando ela saltou sobre mim, apertando meu rosto com as mãos e murmurando coisas que eu não fazia ideia do que significavam. – Não estou entendendo nada! – Sorri a apertando também. – Como foi que você ficou assim?
– Susano me deu forma humana. – Ela sorriu, mostrando pequenas presas brancas e brilhantes.
– Nike... – Annie estava com a mão sobre o peito, olhando-me desconfiada. Só então percebi que ainda estava com as adagas em punho. As guardei e encarei Annie pelo que pareceu uma eternidade.
Quando abri a boca para falar, Annie pulou em minha direção e me abraçou o mais forte que pode, ignorando a barreira de Yinemí e quase me sufocando com seu corpo quente. Correspondi ao seu abraço, passando meus braços ao seu redor mesmo que aquilo fizesse correntes elétricas passarem por mim.
– Annie...
– Eu conheço seu coração. – Ela choramingou, pude sentir suas lágrimas quentes caindo sobre meu ombro, escorrendo como brasas por minha pele. – Eu sei o que você está fazendo! – Ela se afastou e sorriu, passando as mãos em meu rosto.
– Susano te falou? – Perguntei.
– Não preciso que ele me diga, Nike! – Ela limpou as lágrimas no rosto e sorriu. – Eu te conheço melhor do que conheço meus dois irmãos. Sei o que você está aprontando só pelo jeito do seu olhar! – Seu sorriso aumentou ainda mais.
– Mas eu estou mesmo ajudando ele, Annie. – Choraminguei. – Eu preciso de tempo para que Caalin desperte a magia dele. Preciso levar um livro para Higarath, por isso estou aqui.
Annie me encarou por um tempo, por fim, desceu as escadas novamente e voltou a se jogar no sofá.
– Caalin e Susano foram até Amantia, na Torre das Nuvens procurar por Aristes, um mago branco, para saber se ele pode ensinar Caalin a liberar o poder de Yezélami. – Annie tamborilou os dedos sobre sua barriga e fez um biquinho, depois me lançou um olhar malicioso e mordeu os lábios. – Caalin em forma humana é um doce... tipo aqueles doces de caramelo. – Revirei os olhos.
– Eu sei! E ele não me deixou provar naquela forma! – Nós duas gargalhamos. – Voltando ao assunto... acha que Aristes pode ajudá-lo?
– Tenho certeza, Nike. – Ela piscou para mim. – Faça o que você tem que fazer, ou ele pode acabar enviando sombras para saber o motivo de sua demora. – Meu coração quase parou ao pensar nisso, na possibilidade de ele estar vendo o que estava acontecendo ali entre nós, e as palavras que trocamos.
“As sombras não estão aqui! ” Yinemí me tranquilizou, mas mesmo assim, não podia correr risco, não era apenas a minha vida que estava em jogo.
– Onde está Adraph? – Perguntei de forma mais seca, quase hostil, Annie disfarçou um sorrisinho e apontou para o escritório reservado no final da escadinha em espiral naquele corredor. Docinho não desgrudou de mim, acompanhando-me pelas escadas com pequenos pulinhos de dois em dois degraus. Agora eu estava um pouco mais tranquila, uma vez que Caalin estava procurando uma maneira de despertar a magia. Depois disso, iria até Vegahn e seguiria as instruções de Yin para poder aumentar minha força para o momento de acabar com aquele mau de uma vez.
O escritório era ainda mais quente e o poder de Farahdox ali era tão intenso que fez parte da barreira de Yin ceder, tive que usar minha própria magia para fazer uma barreira ao nosso redor e manter o ar fresco. Me esquecia do quanto Ciartes era resistente a magia. Toda a facilidade que o vitrino em meu corpo humano me proporcionou, sumiu quando me tornei malvarmo e fiquei fraca contra o calor.
Passei os olhos sobre a grande mesa de madeira que ocupava a maior parte da sala, ali estava uma zona, como se alguém tivesse acabado de revirar os livros, na certa tinham feito mesmo. Adraph estava logo acima dos outros, sua capa branca de couro, trabalhada com ornamentos de ouro e uma folha de doze pontas no cento, faziam-no parecer apenas um livro antigo e belo de história, um disfarce para um livro perigoso. Sabia que podia estar fazendo algo terrível levando-o a Higarath, mas Yin me disse para ir em frente, e eu confiava nela.
Voltei até a sala principal, onde Annie ainda estava deitada no sofá, mas agora parecia ter algo errado com ela. Ela estava olhando para o nada com uma expressão estranha no rosto, como se estivesse sob hipnose.
– Annie? – Chamei mas ela não respondeu, então Docinho começou a rosnar, olhando para o topo das escadas. Acompanhei seu olhar, mas não havia nada ali. Uma sensação horrível passou por minha espinha e meu intestino pareceu dissolver. Algo estava muito errado.
– Annie... precisamos sair. – Sussurrei aproximando-me dela.
– Vá. Vou reativar as barreiras em volta da árvore assim que você sair, vou esperar Susano aqui, como prometi a ele. – Ela deu um sorriso duro, mecânico que fez meu corpo se arrepiar. Sua voz também estava estranha, desprovida de qualquer emoção.
– Tem certeza de que está bem? – Eu era horrível com detecção de magia de controle, mas não parecia que ela estava sendo controlada por alguém.
– Pode ir, Nike! – Ela pareceu um pouco mais viva naquele instante.
Novamente os rosnados de Docinho me trouxeram um pequeno surto de pânico. Não ignorei o aviso dessa vez. Subi correndo até o salão principal da mansão, porém ali não havia nada.
– Tenho medo de fantasmas. – Murmurei para Docinho. – Se tiver algum aqui, vou destruir a arvore toda. – Docinho continuou em silêncio, suas mãos seguravam um par de adagas de prata de forma correta, então ela sabia como usá-las.
– Do lado de fora! – Docinho rosnou correndo em direção a porta. A segui receosa, já com as adagas em punho.
Do lado de fora da árvore, uma rajada de vento e Areia escaldante me fez encolher o corpo e lançar uma barreira de gelo ao meu redor novamente.
– Que diabos... – Meus olhos perderam o foco por alguns instantes, porém quando voltei a enxergar, tive uma surpresa.
– Lenios? – Ele estava de pé, longe da porta da árvore e um cetro em punho. Murmurei para Docinho voltar e cuidar de Annie, ela me obedeceu sem pestanejar, pois a sensação ruim aumentou ao vê-lo ali.
– Achei que você estivesse encenando, cheguei a comentar com Ayran que você não tinha cara de traidora... mas vejo que minha avó tinha razão. – Ele rosnou, sua mão se fechou com força ao redor do cetro e ele se posicionou para um ataque.
– Alguém precisa colocar ordem na bagunça que ela fez, não é, meu enteado menos favorito? – Provoquei, mostrando uma careta a ele e girando as adagas nas mãos. – Um cetro? Não tem habilidades com armas físicas, não é? – Gargalhei, fazendo com que ele parecesse ainda mais raivoso.
– Fui mandado aqui para vigiar se Adraph ou o livro das sombras não seriam retirados daqui. Caso fossem, eu deveria impedir. – Ele sorriu de forma maldosa. – Não imaginei que teria a honra de matar você!
– Estranho, no meu casamento você disse que gostou de mim.
– Pois é... mas eu costumo pegar raiva de traidores fácil. – Lenios moveu-se para o lado, um passo depois do outro, as marcas em seu braço direito eram de um azul água, na certa as marcas de sua mãe.
– Devia estar com raiva de sua avó então, não de mim! E é certo querer matar sua madrasta? – Dei uma risadinha debochada de volta, preparando-me para um ataque, sua magia seria fraca contra a minha, mesmo que eu estivesse apenas falsificado minhas marcas negras.
– Desde que estamos em Mogyin, ela se mostrou amável e nos ensinou tudo que podia sobre nossa magia, ao contrário de meu pai que nunca nos deu atenção de verdade! – Ele gritou, fazendo-me erguer as sobrancelhas. – Ele só se preocupava com os assuntos reais, não dava atenção para seus filhos! Ele nos despachou para longe de Vegahn dizendo ser para nosso bem, mas no fim, quando achou que Treezer havia sido destruído, ele se escondeu ao invés de ir saber se era verdade ou não!
– Você então virou um rebelde revoltadinho por falta de atenção do papai? – Ri novamente, mas dessa vez de forma cruel. – Me poupe! Eu vivi sozinha com um irmão que me odiava e tudo que fiz foi lutar! Quem quer ter a vida transformada, luta, quem senta e faz pirraça são os fracos que só enxergam o problema. – Uma onda de magia me atingiu, fazendo com que ficasse temporariamente cega e fosse arrastada alguns metros para trás. Rapidamente ergui uma barreira, esperando o impacto de um ataque físico a qualquer momento, um ataque que não veio.
No instante seguinte, Lenios estava parado atrás de mim com uma espada na mão.
– Ainda bem que você perdeu o bebê, seria frustrante quando tudo isso acabasse, você ver que seu pirralhinho bastardo não teria atenção do poderoso rei de Vegahn! – Aquilo fez meu sangue frio ferver mais do que qualquer calor que o fogo de Ciartes pudesse me proporcionar. Mas apenas me virei para ir embora, fazendo um gesto vulgar para Lenios. No instante em que virei as costas, uma forte corrente de magia me atingiu, abrindo um longo corte em meu braço.
O sangue transparente azulado pingou no chão e cristalizou, o som que fez ao tocar o solo despertou uma ira em mim, fazendo-me virar para trás como um animal selvagem. Saltei sobre Lenios, usando as adagas para desferir golpes precisos, mas que ele de alguma maneira estava conseguindo evitar. Cada golpe que eu dava e que ele defendia me deixava com mais raiva.
O som das adagas batendo contra o metal me fez desconfiar de algo, pois a espada de metal comum já teria se partido. Outra coisa estranha, foi em que nenhum momento ele tentou atacar, nem com a espada nem com magia, apenas desviava com aquela expressão de deboche estampada no rosto. Ataquei mais rápido, rodando as adagas e as colocando contra o antebraço. Lenios saltou para longe de meu alcance mas não tentou atacar novamente.
– Com medo, Covarde? Ou só consegue atacar com magia quando seus oponentes estão de costas? – Gritei, respirando forte devido a barreira que havia caído. Meu pulmão estava ficando cheio do pó das folhas de fogo.
– Estou me divertindo com isso! – Ele zombou. – Você não tem nada dela, de Aelita! Ela pelo menos sabia lutar. – Disse gargalhando. Num segundo estava em cima dele novamente, mas dessa vez a magia não foi rápida o suficiente para que ele se afastasse. O derrubei contra o chão, prendendo seus braços sob minhas pernas e ergui o punho para lhe dar um soco, mas ele soprou algo contra meu rosto que me fez perder o ar. Um fino pó como brasas, não eram folhas da árvore, era como fogo mesmo.
– Não vai sair daqui viva com esse livro, menina. – Ele riu mesmo preso embaixo de mim.
– Sacrifícios precisam ser feitos numa guerra. – Coloquei a adaga em sua garganta. – Mas em respeito a Caalin, não vou matar um inútil como você! – Grunhi. – Fico com pena dele, por ter dois filhos tão fracos! Por sorte Áries é uma guerreira de verdade, ele não precisa se envergonhar dela.
Levantei, deixando Lenios no chão e me afastei, dando um assovio para chamar Docinho, pegando o livro no chão e preparando um portal para sair de Ciartes. Porém quando Docinho apareceu na porta, gritando algo em draconiano, Lenios se levantou e correu para cima dela ainda com a espada na mão.
– NÃO SE ATREVA! – Gritei, puxando uma das adagas de arremesso de vitrino presa em minha coxa e a arremessei contra ele. A Adaga acertou um palmo abaixo de seu coração e ele caiu no chão urrando de dor e envolvendo Docinho com os braços.
– MÃE, NÃO! O QUE VOCÊ FEZ! – Ela gritou, puxando Lenios para cima de suas pequenas pernas dobradas.
– Saia de perto dele! – Gritei.
– Dele? – Docinho estava olhando-me espantada. Então uma dor irradiou por meu peito e minha garganta fechou, fazendo-me quase desabar. Uma estranha névoa rodopiou ao redor de Lenios e sua aparência ficou distorcida, até que outra pessoa apareceu em seu lugar. Minhas pernas fraquejaram e eu caí de joelhos, me arrastando até ela.
– ANNIE! – Gritei, tirando-a de cima de Docinho. Annie estava chorando, com a mão sobre a adaga de vitrino em seu peito, ela era exatamente um palmo mais baixa que Lenios.
A adaga havia acertado seu coração.
– Eu tentei... – Murmurou ela, o sangue estava escorrendo por sua boca e nariz.
– Calma... – Não sabia o que estava acontecendo, puxei a adaga e coloquei a palma sobre o corte que jorrou sangue. – Ahh céus! Annie! Eu sinto muito, eu não sabia! Era Lenios! – Chorei usando o máximo de magia para curá-la. Annie apertou minha mão, ela estava tão fraca que mal conseguiu fazer pressão.
– Eu sei... você jamais me machucaria. – Ela passou a mão em meu rosto. – Vitrino, Nike. – Sabia o que ela queria dizer, mas não queria aceitar, não podia acreditar que não conseguiria salvá-la.
Ouvi uma risadinha atrás de mim, onde Lenios estava de pé segurando Adraph.
– Sinto muito, não achei que você teria coragem de matar um filho de seu marido! – Ele começou a se afastar, mas um portal dourado o fez congelar no lugar. Do portal saiu um elfo com longos cabelos dourados e olhos como brasas, ele vinha com uma lança em punho e atacou Lenios, jogando-o de costas conta a arvore do fogo.
– Susano. – Engoli em seco, mas ele nem sequer olhou para mim, apenas tirou Annie dos meus braços e a apertou no colo. Annie segurou seu rosto e tocou sua testa com a dele. Por um minuto, marcas laranjas acenderam o corpo dela, Annie lhe deu um sorriso, fechando a mão de Susano ao redor do pingente da árvore do fogo e ele a beijou. Porém, quando ela o soltou e suas marcas se apagaram, ela se foi.
Foi como se um pedaço de mim tivesse acabado de morrer.
Susano ficou segurando-a, respirando forte, suas lágrimas pingavam sobre o rosto dela, lavando o sangue que ainda escorria e tudo que eu conseguia pensar era que ela tinha acabado de morrer por minhas mãos.
Minha melhor amiga, minha irmã, minha Annie.
Uma ira tomou conta de mim de forma tão violenta e intensa, que me virei para onde Lenios estava prestes a atravessar um portal para fugir com Adraph e não lhe dei chance para escapar. Lancei um lacre sobre o portal, fazendo-o se fechar. Avancei para cima dele, vendo apenas minha presa, como Caalin havia explicado uma vez. Somos predadores, atacamos para matar.
Eu era o predador agora, Lenios, minha presa.
Lenios puxou a espada para se defender dos primeiros golpes que lhe dei com as garras, pois deixei as armas de lado. Queria mata-lo com minhas próprias mãos, sentir seu sangue em minhas garras, sentir seu medo escorrer por mim enquanto ele morria. Avancei, atacando-o mais rápido, mas num descuido meu, ele sacou outra arma e a brandiu conta minha cabeça.
Mas minha ira era maior que sua velocidade.
Parei a espada com as presas, transformando-a em gelo sólido e a reduzindo a farelo quando contraí o maxilar. Lenios pulou para trás, arrastando-se na areia quente e tropeçou na cauda de Docinho, que havia voltado a sua real aparência.
– Eu disse que te mandaria de volta pra Vegahn com dedos faltando... – Rosnei. – Me enganei. Será que um corpo sem cabeça entra em Mogyin?
Como uma cobra num bote, projetei meu corpo para frente, prendendo suas mãos e avançando para sua garganta. Foi fácil demais fechar os dentes ali e lhe rasgar a garganta como um pedaço de carne qualquer. Para minha surpresa, seu sangue era vermelho, vivo e salgado. Lenios era um híbrido.
Mesmo que o choque daquele sangue fez com que eu sentisse a necessidade de me alimentar, cuspi o sangue em minha boca enquanto ele se afogava e morria. Sangue de verme não devia fazer bem a saúde de qualquer forma.
Quando ele estava morto, realmente morto, quando o sangue voltou a esfriar em minhas veias a dor e o desespero voltou com tudo. Me levantei correndo até Susano que ainda segurava e acariciava o rosto de Annie.
– Su. – Eu olhei para ele, seus olhos estavam fixos nela, havia uma dor tão profunda em sua alma que nada que eu dissesse iria concertar aquilo. Eu matei sua esposa, sua amiga, minha melhor amiga.
– Pegue o livro, pegue Docinho e vá. – Disse ele secamente.
– Mas...
– Ela se foi.
– A culpa foi minha. Eu...
– A habilidade dele era de ilusão. – Dessa vez ele me encarou, não havia mágoa em seu olhar, apenas aquela dor, gêmea da minha. – Só, vá embora, Nike. Faça o que tem que fazer. – Ele baixou os olhos e voltou a chorar, segurando o corpo apertado contra o peito.
Não conseguia dizer nada, mas queria me sentar ali e chorar ao lado dele.
“Higarath, Nike. ” Yin murmurou baixinho.
“Dane-se ” Retruquei.
“Ele não vai poupar ninguém. Lembre-se de Evenox! ” Ela alertou.
Com muito esforço, me ergui e me afastei, abrindo um portal. Docinho que já estava novamente em forma humana me abraçou e entrou comigo naquele círculo de luz branca e logo emergimos na escuridão de Pollo.
Capítulo 13
Deixei docinho no corredor do Palácio dos Ossos e entrei pela porta do salão como um cão raivoso, havia perdido a pose, perdido a vontade de atuar e manter minha farsa como a rainha de Vegahn que mudou de lado. Meu rosto estava ainda manchado de lágrimas, mas não me importei em entrar daquela maneira no salão. O corte em meu braço havia cicatrizado, mas ainda estava suja com o sangue de Annie e de Lenios.
– Aqui! – Bati o livro na mesa com força. Higarath desviou os olhos da janela para poder me olhar. Seu sorriso frio e elegante vacilou por um minuto.
– Problemas para conseguir o livro?
– Seu neto fez com que eu matasse minha melhor amiga, minha Annie! – Gritei enfurecida. – E eu matei ele também!
– Pessoas morrem todos os dias, principalmente aquelas que mais amamos. – Seu olhar era frio ao me encarar.
– Se eu não tivesse ido até lá...
– Não se preocupe minha querida, ela está em paz agora, livre da guerra que vem aí! – Ele deu um sorriso debochado, então saquei Siferath e rosnei para ele, mas suas sombras me colocaram de joelhos e minha foice foi parar longe, no canto mais afastado da sala.
– Não me desafie. – Ele rosnou de volta, enterrando as garras em meu pescoço.
– Dane-se! – Cuspi no chão, mas ao invés de me matar como esperava que ele fizesse, Higarath ficou sério e me tirou do chão.
– É isso que aprecio em você, essa coragem de me enfrentar e falar o que quer sem medo de morrer. – Ele franziu o cenho e continuou. – Mas não estava mentindo quando disse que ela está em paz. Ayrana está aqui, não é? Então quem chegou em Mogyin enquanto ela não está lá, pode ir descansar sem interferência dela! – Higarath me soltou e se levantou, voltando sua atenção para o livro. Fiz Siferath voltar para mim e me apoiei nela enquanto ainda o observava atentamente, sentindo por onde sua magia corria com mais dificuldade.
– Se não precisar mais de mim... quero me retirar. – Falei entre os dentes. Higarath não olhou em minha direção, fez apenas um gesto gracioso com a mão, dispensando-me.
– Mais tarde mandarei te chamar. – Disse ele ainda com o nariz enterrado no selo da capa, tentando descobrir como abri-lo, pois em sua capa havia um lacre de sangue, talvez feito ali por Susano.
Saí da sala da mesma maneira que entrei, com os pés batendo no piso escuro e brilhante e com raiva e dor, parecia que todos que eu amava seriam retirados de mim até o fim dessa guerra... E se eu tivesse feito a escolha errada? E se estar ao lado de Higarath não fosse me fazer ter nada de útil para usar contra ele? Se não tivesse ido buscar o livro, Annie estaria viva, minha melhor amiga. Escorreguei pela parede de pedra e ossos do castelo e Docinho me aparou, apertando seus bracinhos ao meu redor.
– Não fique assim, mãe. – Ela se apertou a mim. – Não foi sua culpa.
– Foi! A adaga que a matou era minha, quem a atirou fui eu! Eu a matei! – Chorei ainda mais.
– Lenios a enfeitiçou! – Docinho segurou meu rosto estre as mãos, me fazendo olhar para ela. – Ele foi o culpado, não você! Annie foi vingada...
Say e Liilac apareceram no corredor naquele instante fazendo Docinho interromper o que estava falando e soltar um baixo rosnado em alerta, as duas estavam de cabeças baixas e os olhos cheios de lágrimas. Elas me encararam e em seguida seguraram meus braços e me tiraram do chão. Docinho rosnava agarrada a mim, mas elas não ligaram, apenas me conduziram pelos longos corredores escuros com suas janelas abertas, revelando a noite escura do lado de fora.
Subimos e descemos alguns lances de escadas até chegar num quarto grande, onde havia uma cama com dossel feito de ossos e com cortinas e lençóis negros e vermelhos de cetim, velas vermelhas em formatos de lobos e outros animais.
– Sentimos por Annie. – Disse Liilac soltando-me e fechando a porta atrás de si. – Ela era nossa amiga também.
Limpei as lágrimas do rosto e respirei fundo, só conseguia pensar em Susano abraçado com ela, os olhos tristes, como se quem tivesse morrido fosse ele. Era para eu ter ficado lá, ao lado dele como ele esteve ao meu nos momentos que mais precisei, era para ter ficado pois parecia que algo em mim havia morrido junto com ela, e agora sentia um pedaço a menos no meu coração, um buraco profundo que sangrava.
– Porque estão servindo a ele? – Quis saber, as duas se entreolharam e baixaram as cabeças.
– Marglan nos transformou. – Sayuri começou a falar, os braços em volta da cintura da irmã. – Nós o obedecemos, existe um vínculo que ele usa para nos obrigar a servi-lo, ele nos capturou numa missão pouco depois que você foi embora de Ciartes e fomos levadas para as Ilhas Monarcas. Então quando Higarath retornou, Marglan nos ofereceu a ele como prova de lealdade. – Ela fez uma careta de nojo e esfregou os braços com força.
– Então Higarath...
– Ele nos obriga a servi-lo na cama também. – Meu estômago se revirou, já sabia exatamente o que ele me cobraria como forma de provar que estava realmente ao lado dele.
– Eu sinto muito. – Falei, embora não sentisse tanto por elas pela dor que sentia pela perda de Annie, afinal, elas estavam ali e não havia ferida interna ou externa que o tempo não pudesse de alguma forma curar. Cai sentada na cama e Docinho me rodeou, ficando agarrada comigo, com os braços em volta de minha cintura. Ela estava com medo das vampiras.
– Ele vai mandar que você vá para cama com ele também. Vai querer usar isso contra você, contra Ayrana e especialmente contra Caalin. – Liilac sussurrou, aproximando-se de mim e limpando a mancha de sangue em meu rosto.
– Eu não vou. – Retruquei num rosnado.
Sayuri então se aproximou também e se ajoelhou em minha frente. Ela segurou minhas mãos e fechou os olhos, contendo algumas lágrimas que ameaçavam rolar das pontas de seus longos cílios cinzentos.
– Nike. Preciso que faça isso. – Sayuri me encarou séria. – Mas você vai ser a Nike que conhecemos, e vai fazer isso em troca de um favor.
– Tá de brincadeira né? Quer algo dele? Peça você! Ofereça o seu corpo! – Ralhei, tentando me soltar de seu aperto, mas ela fez força me segurando, seu rosto agora estava manchado com as lágrimas que escorriam. Nem mesmo sabia que vampiros choravam.
– Nós não podemos pedir contra nosso mestre, Nike! Mas se você pedir, ele pode matar Marglan! – Algo frio passou por minha espinha, talvez medo, mas também uma pontada de raiva misturada com uma dívida que aquele vampiro desgraçado tinha que me pagar e com o poder que ele tinha de desligar o poder dos outros... talvez pudesse mesmo usar Higarath para me livrar dele.
– O que eu ganho com isso? – Elas se entreolharam.
– Nós vamos estar livres de Marglan, não obedecemos a Higarath, então podemos te mostrar o que ele vai fazer com o livro. – Sayuri cochichou.
– Relaxe, ele não usa as sombras para bisbilhotar agora que está livre, ele é egocêntrico demais, acha que ninguém tem coragem de peitá-lo, exceto você! Mas como você trouxe o livro, imagino que ele esteja confiando, ou pelo menos desacreditando de alguma trapaça de sua parte. – Liilac deu um sorriso curto e se levantou.
– Faça isso por nós, e vamos ajudar você em qualquer coisa, Nike!
Sayuri se levantou também, ela soltou minhas mãos e apontou para a porta no canto esquerdo do quarto. – Se serve para aumentar um pouquinho que seja sua vontade de nos ajudar, Marglan pagou a Higarath para que a entregasse a ele. Aquele dia que Marglan matou a irmã da rainha de Amantia, ele tinha ido até lá pois foi avisado que você estava lá também, ele queria você. – Liilac piscou. Se era me enfurecer que ela queria, conseguiu.
– Higarath deve mandar te chamar depois do jantar. – Sayuri acenou e saiu levando Liilac com ela.
Quando escutei seus passos bem longe do quarto, olhei para Docinho que me encarava de forma tensa.
– E Caalin? – Ela perguntou, já imaginando qual seria minha resposta quando ele mandasse me chamar.
– Não quero fazer isso, Docinho. Mas eu posso precisar delas! Ainda mais agora que talvez a única amiga que sabia que eu não havia me tornado um monstro se foi.
“ Ele ainda está desconfiado de você, Nike. ” Yinemí murmurou para mim.
“ E acha que se eu me deitar com ele, ele vai achar que eu estou no papo? Que estou ao lado dele? ” Ironizei.
“Ele acha que você está contra Ayrana, e que está ao lado dele apenas porque quer a cabeça dela também, mas na certa ele acha que você não está contra Caalin. ”
“Então ele é burro, pois eu poderia tê-la matado hoje mais cedo se fosse esse o caso! ”
“Ele acha que você não a matou em respeito a Caalin! Mas nenhum guardião, por mais raiva que tenha do seu mestre, quebra um juramento, isso foi uma demonstração de que você estava realmente sentida, mas se você estiver com Higarath... ainda mais por não ter rompido o laço do casamento, ele vai achar que você quer vingança de Caalin também, por ter escolhido Ayrana aquele dia. ”
“Como ele sabe? Não estava lá! ”
“Mas as sombras estavam! ” Yinemí retrucou. “Entenda, Nike! Higarath estava por trás de Fairin. Fairin queria controlar você, logo, Higarath queria controlar você! Pois você é uma das mais poderosas descendentes dele! Se não for a mais forte! ”
“Como sabe tanto? ” Perguntei desconfiada.
“ Vegahn é parte de mim, não o contrário. Posso recolher informações de lá desde sempre. Fora que eu estava o tempo todo dentro de você, lembra? ” Ela deu uma risadinha.
“Acha mesmo que isso vai funcionar? ”
“Tem que funcionar. ”
– MÃE! – Docinho gritou, sacudindo meus ombros.
– Ah, desculpe, estava ouvindo Yinemí. – Docinho bufou e franziu o cenho para mim.
– Já sei porque Annie se irritava tanto quando Susano estava dando atenção pra Vensis... – Ela se calou e baixou a cabeça, quando encolhi o corpo pela menção dos dois. – Desculpe.
– Tudo bem. – Murmurei levantando-me e indo até o banheiro, talvez afundar em água me ajudasse a me sentir menos pior. O banheiro era escuro, decorado em tons de marrom, cinza e preto, com velas vermelhas espalhadas. Hisana tinha um gosto um tanto obscuro. Toda aquela escuridão me fez sentir saudade de Vegahn, de todo o branco, azul puro e frio, de Caalin... sacudi a cabeça e olhei minha aparência no grande espelho sobre a pia.
Estava uma bagunça, suja de sangue azulado, o sangue vermelho de Lenios que havia secado em meu rosto e no resto a areia do deserto completava o desastre. Joguei a roupa no chão do banheiro e enchi a banheira. A pedra escura me fez sentir como se estivesse entrando num caldeirão negro. Eu era a única coisa que clareava aquele lugar, minha pele estava com um estranho brilho azulado.
Docinho parou na porta do banheiro e ficou me olhando preocupada. Seus olhos azuis também pareciam acesos naquele lugar.
– Lua das fadas, ela brilha sempre aqui. – Ela parecia ter lido meus pensamentos.
– Porque está em forma de criança? – Questionei olhando para ela, Docinho em forma de dragão passava dos vinte metros de altura depois de ter tomado sangue de Aswang, mas estava ali como uma criança.
– Embora eu tenha menos de um ano de vida fora do ovo, tenho quase nove anos agora. Nós vivemos dentro de nossos ovos e dentro das nossas progenitoras por décadas absorvendo conhecimento, assim nascemos prontos para enfrentar o mundo, pelo menos, em sabedoria. Demoramos em média seis anos para chegar a forma adulta, porém eu fui posta antes, talvez por ser hibrida...
– Mas não respondeu porque está como criança! – Retruquei, Docinho revirou os olhos e se sentou na beirada da banheira.
– Porque eu nasci da casca ano passado, sou um filhote ainda, e fiquei com medo quando percebi que Susano estava me dando forma humana, se eu ficasse com aparência adulta, linda do jeito que seria ele poderia se apaixonar! – Ela mexeu na cortina de cabelos negros, não sabia que dragões eram tão convencidos.
– Pode ficar adulta? – Ela me encarou e assentiu, num piscar de olhos, seu corpo brilhou e se modificou. Ela ficou realmente linda, os cabelos negros ao redor da cintura fina, a pele ébano brilhante e marcas azuladas ao redor dos pulsos, semelhantes as marcas que ligavam as três esferas em sua testa.
– Tem razão. Annie ia ficar com ciúme! – Brinquei, mas meu coração se apertou e baixei os olhos para água, nada me faria parar de pensar que fui culpada pela morte de minha amiga e nada taparia aquele buraco vazio em mim.
– Você está começando a congelar. – Ela apontou para um ponto brilhante na água. Ao redor de meu umbigo, havia um círculo de gelo, como se minha pele estivesse congelando ali. – Tem que se alimentar.
– Vou achar um dos serviçais para enfiar os dentes então. – Eu revirei os olhos.
– Pode me morder se quiser. – Ela estendeu o braço.
– Nem pensar! – Levantei da banheira e me enrolei na toalha e fui em direção ao quarto. Docinho me seguiu, olhando-me de cara feia. – O que foi? Não vou morder você Docinho!
– Nojo só porque sou um dragão? Que preconceito feio!
– Ah! Claro que não, só... é estranho.
– Nunca ouviu falar das propriedades místicas do sangue de dragão, não é? Não sabe porque estava com medo das vampiras?
– Ariel havia me falado sobre isso... – Ele retirava pequenas porções do sangue de dragões que ele domesticava para vender aos boticários, pois sangue de dragão podia aumentar temporariamente a energia de um mágico.
– Vamos logo. – Ela passou a unha no pulso e estendeu a mão para mim. Seu sangue era mais escuro e espesso que sangue humano e tinha um cheiro mais forte também. Docinho fez cara feia ao perceber que eu ia recuar, mas eu já estava começando a congelar, não podia me dar ao luxo de morrer na beira da praia depois de nadar tanto.
O sangue me deu uma dose de energia quase como uma poção de restauração, e com uma quantidade muito pequena, fez com que eu ficasse satisfeita.
– Viu? Não foi tão ruim assim! – Ela deu um sorriso, lambendo o pulso fazendo a ferida fechar. Então, voltou para a forma infantil.
– Prefiro você assim também. – Lhe dei um sorriso, afagando sua cabeça.
– Assim fica menos estranho quando te chamo de mãe. – Ela me abraçou.
Deitei na cama e fiquei olhando os tecidos do dossel brilhando contra a luz das velas, Docinho se esticou ao meu lado e no instante seguinte estava apagada. Fechei os olhos também, mesmo exausta, triste e bastante infeliz, consegui dormir um pouco.
Fui acordada por batidas rápidas na porta do quarto. Não sabia se era dia, tarde ou noite, pois ali estava quase sempre escuro. Uma senhora alta, de porte atlético e grandes olhos vermelhos entrou no quarto, colocando uma longa camisola de seda negra sobre a cama.
– O rei a espera. – Disse ela com a voz carregada de irritação, certamente por estar servindo a outro mestre, não a rainha de Pollo.
– Já estou indo. – Peguei a camisola e meu estômago se revirou. A mulher ficou me encarando, esperando que eu me vestisse, apenas lancei um olhar irritado esperando que ela saísse do quarto, ela suspirou pesadamente e saiu batendo a porta atrás de si.
– O que eu faço! – Murmurei para Docinho, olhando aquela camisola longa de seda e renda em minhas mãos.
– Não quer isso, não é?
– Não.
Docinho se levantou da cama, pegou uma das minhas adagas na mão e veio com um pequeno sorrisinho no rosto.
– Lance uma barreira no quarto, contra as sombras. – Ergui as sobrancelhas, ia protestar quando a mulher murmurou do lado de fora. Então obedeci Docinho e rapidamente fiz uma cortina, isolando o quarto da magia negra de Higarath.
– E agora?
– Já ouviu falar da magia de Antares? – Ela sorriu, entregando-me a faca.
Alguns minutos depois, quando parei na frente da porta daquele quarto no último andar do Palácio dos Ossos, senti uma onda de náusea me invadir, já sabia o que ele esperava de mim e o que aconteceria caso eu não o fizesse, mas precisava que ele confiasse em mim, que acreditasse que eu estava do seu lado. Então abri a porta e fiquei parada ali com minha melhor expressão inocente de curiosidade. Parado na sacada, observando as sete luas de Pollo estava Higarath com seu cabelo brilhando contra a luz das luas. Olhando a expressão tranquila em seu rosto, nem parecia um monstro. Mas quando ele se virou para mim, com os olhos cruéis brilhando no escuro como olhos de uma fera, o sorriso frio no rosto enquanto me observava de cima a baixo me fez querer virar e correr. Mas respirei fundo e entrei no quarto, fechando a porta atrás de mim.
– Estava certo de que não viria. – Disse ele aproximando-se para tocar meu rosto. Podia congelar aquela mão, mas sabia que nem o Yinemí seria forte o suficiente para acabar com ele, pois a magia negra, as sombras que emanavam eram tão fortes que quase me poram de joelhos novamente.
– Deixei bem claro que estava do seu lado para tudo. - Respondi secamente, ele gargalhou.
– Eu estava certo, então. No fundo você é tão fria e sombria quanto eu.
– Pois é, malvarmo, lembra? Coração de gelo. – Retruquei batendo com a ponta das garras no peito. Higarath deslizou as mãos por meu corpo dentro daquela camisola. Eu apenas o encarei séria.
– Não vai ter graça se for tão fria assim, querida! Vamos, me mostre o que fez Caalin ficar de quatro por você. – Ele pressionou os lábios na base da minha garganta e apertou as mãos em minha cintura. Passei os braços ao redor de seu pescoço e fechei os olhos, deixando minha mente começar a se soltar do corpo.
– Entendi... – Sussurrei arqueando o corpo quando seus dentes se fecharam de leve em meu queixo.
Talvez eu fosse realmente fria e sombria por dentro, mas se era esse o caso eu ia cair agora, ia ser um alguém que lutei para não ser, mas se eu caísse, eu ia levá-lo para o fundo comigo depois. Higarath estava apenas cavando sua própria cova e eu estava ali para chutá-lo para dentro quando ele terminasse. Esperava que ele levasse Ayrana com ele.
Apertei os olhos e deixei que me tocasse. Podia ter meu corpo, mas nunca tocaria em minha alma. "Elas fariam o mesmo por você ” me obriguei a pensar antes de cair no vazio de meus pensamentos.
Estava deitada com Docinho na cama quando o sol começou a subir no céu. Manter a bolha ao redor do quarto, deixando-o invisível para as sombras era cansativo, porém nada que pudesse me esgotar. Docinho estava inquieta, toda hora andava pelo quarto, tomava banho ou voltava a se deitar aguardando notícias.
Não demorou muito para a porta do quarto se abrir e Eu entrar. Ainda estava com aquela camisola negra, que agora com a claridade percebi que revelava muito mais do que gostaria. Docinho correu para porta e puxou meu outro eu para dentro, ela se deitou na cama ao meu lado com uma calma estranha, então cobriu o rosto com as mãos.
– E...? – Quis saber. Ela me encarou, depois bufou e franziu o cenho.
– Não desconfiou de nada, não percebeu que sua consciência deslizou pra fora do corpo antes de tudo acontecer. – Ela murmurou.
– Foi... muito ruim? – Não devia ter perguntado, pois ela rosnou e se apoiou no braço para me olhar.
– Vai saber quando eu desmanchar daqui a algum tempo e você receber minhas memórias! – Retrucou. – Ele queria saber como você pôs Caalin de quatro! – Ela disse quase berrando, fiz um gesto para que falasse mais baixo e pedi desculpas.
– Sinto muito. – Falei.
– Eu vou desaparecer e minha consciência vai passar a ser sua, tecnicamente você vai sentir muito mesmo depois! – Ela rosnou. Era estranho olhar para meu próprio corpo, conversar comigo mesma.
– Mantenha a mente aberta para mim. – Falei, levantando-me da cama e indo em direção a porta do quarto.
– Ele te espera em meia hora na Sala principal. – Ela resmungou e soltou um palavrão quando se moveu devagar, deitando-se na cama erguendo o quadril como se estivesse sentindo dor.
– Sabe o motivo? – Questionei.
– Não sei! Só sei que ele tem problemas se acha que depois de uma noite inteira acordada eu iria querer ficar mais boa parte do dia discutindo a dominação dos mundos ou sei lá o quê! – Ela grunhiu enterrando o rosto no travesseiro e gemendo de novo. A noite inteira acordada.
– Deve ser genético. – Docinho falou quando saímos juntas do quarto para ir em direção ao salão, teria achado graça se quando a Summon desaparecesse eu não fosse receber aquelas memórias. Deixei meu Summon dormindo e protegi o quarto com magia, caso alguém entrasse ali, só veriam a cama arrumada e o quarto vazio.
Entrei no salão, olhando atentamente em volta. Havia alguma coisa diferente ali, algo que dava uma estranha sensação viva e pulsante vinda dali.
Higarath estava no fim da sala, perto das janelas com o livro aberto nas mãos. Adraph estava aberto, sem o selo e era dele que vinha aquela estranha magia viva.
– Achei que iria para o seu quarto dormir depois dessa madrugada. – Ele deu um sorriso estranho, convencido e arrogante quando ergueu os olhos para mim.
– Não sou uma humana fraquinha. – Retruquei sem querer imaginar o que ele queria dizer com isso e com medo de quando tivesse que receber as memórias dela. – Você me queria aqui, não é? Posso dormir mais tarde. – Higarath assentiu e continuou a folhear o livro.
– De fato.
– O que vai fazer com isso. – Perguntei, olhando o livro de soslaio.
– Abrir um portal direto para Mogyin e resgatar uma alma que está lá. – Fiquei surpresa com a sinceridade, não achei que ele fosse responder.
– Isso é impossível. Apenas a guardiã de lá pode liberar as almas e mandá-las de volta. – Retruquei ainda mais zangada, Annie morreu para que eu levasse um livro para Higarath, para nosso inimigo, e pior, que não poderia fazer nada com ele? – Mesmo se conseguisse abrir um portal, você não conseguiria passar por ele.
– Sei disso, por isso preciso de um corpo puro, para que vá até lá receber a alma, assim ela voltará com todas as memórias que tinha quando morreu... – Foi aí que eu entendi o que ele realmente queria, o segundo motivo por trás de tomar os mundos, ele queria trazer a amada dele de volta.
– Porque não fez um acordo com Ayrana desde o início então? Não podia ter pedido a ela que devolvesse sua amada e em troca você deixaria os mundos em paz?
- Ahh, Nikella, minha querida, tão inocente! Bom, nem tanto assim! – Ele riu. – Ela nunca aceitaria isso, talvez preferisse que eu destruísse todos ao me ver com Muriel novamente. Fora que depois que uma alma sai do mundo dos mortos, ela passa por um véu que a faz perder todas as memórias da vida anterior. São raras as vezes que isso não acontece. Preciso dos mundos alinhados para poder usar uma magia antiga contida nesse livro para levar o corpo de uma fêmea até Mogyin para resgatar a alma de minha amada com todas as lembranças! Para isso, preciso atravessar os Doze com um corpo puro que não se desfaça ao entrar nos portais, assim colocarei a alma dela no corpo e a trarei de volta com as memórias de nossa vida juntos.
– Isso é impossível! Mas e as almas que são levadas a outros corpos pelo unicórnio do trovão? – Perguntei sentindo meu coração acelerar.
– Essas são almas com pendências, mas o próprio corpo tem suas barreiras mágicas, eles automaticamente limpam qualquer lembrança que existia na alma quando ela deixa sua última vida. – Ele deu um sorriso divertido. – Achava mesmo que Aelita ainda dividia a consciência ou a inconsciência com você? Ayrana é leiga nos assuntos sobre as almas, Nike, pois ela nasceu sem uma. – Seu olhar se tornou cruel e perdido.
– Mas... agora não entendo mais nada.
– Ayrana é uma mentirosa, Nike. – Ele murmurou, seus olhos agora estavam com um brilho vinho e o livro em sua mão estava prestes a rasgar com a pressão que ele fazia ao apertá-lo.
– Isso eu já sei, mas em que mais ela mentiu para mim?
– Ela não apagou nenhuma memória de Aelita quando a mandou para você, é como uma proteção natural de Mogyin, as barreiras ao redor do mundo se encarregam de limpar uma alma de suas memórias quando esta deixa o mundo. Seu caso é muito raro, único talvez, nunca vi outro corpo habitado por duas almas, mesmo que uma esteja vazia de memórias e emoções... Quanto a Ayrana – Ele disse o nome como uma maldição. – Ela sabia que se dissesse que você tinha a alma da mulher que Caalin amava, você ficaria com raiva dele.
– Não estou entendendo! Porque ela faria algo assim com o próprio filho? – Minha mente não conseguia achar uma resposta, afinal, ela mesma tinha dito que ele era seu favorito...
– Já viu ele em forma humana, não é? Não te lembra alguém? – Ele deu um sorriso do tipo que nunca imaginei ver no rosto dele, um sorriso lindo. Então meu coração acelerou com o choque.
– Ele se parece com você...
– Ayrana é doente, Nikella, ela é louca! Não sei que diabos aconteceu na vida miserável que tinha na Terra antes de mim para ter ficado assim, mas ela sempre o amou mais que os outros filhos por ter nascido igual a mim...
– Não sei se dá para chamar aquilo de amor. – Ele meneou a cabeça.
– Ela fez Aelita ser pega naquela emboscada no gelo, é estranho, não? Haverem salamandras em Vegahn justo no meio de uma guerra entre Malvarmos. – Meu coração acelerou ainda mais.
– E Mary? – Higarath assentiu.
– Ayrana que espalhou o boato da destruição dos dois mundos... afinal, ela podia fazer summons com qualquer aparência e andar por onde quisesse. Ela foi de corpo e alma paga Mogyin.
– Ela não morreu! – Quase gritei cobrindo a boca com as mãos e assustando docinho.
– Não. Sobreviveu. – Ele rosnou.
– Porque está me contando isso? Quero dizer... sendo... legal comigo. – Ele deu um sorriso que arrepiou os cabelos da minha nuca.
– Eu te disse que faria qualquer favor se me trouxesse o livro. Você o trouxe! Posso ter me tornado um monstro, mas cumpro minha palavra. Pena que Caalin nunca vai saber sobre isso, não é? – Ele gargalhou. Não adiantava procurar mesmo que as vezes parecesse ter algo de bom nele, era apenas uma ilusão achar isso. Talvez eu quisesse pensar que houvesse, ou talvez ela por sua aparência que passava uma certa bondade.
Um silêncio caiu sobre a sala enquanto Higarath passava as páginas do livro, que era o único som ali, o arrastar das páginas pesadas e antigas. Estava observando-o, procurando por alguma brecha naquela magia, embora soubesse que era difícil haver uma, já que quando eu tinha a magia negra, quando minhas sombras me envolviam, era difícil que conseguissem me atacar.
– Pare de me olhar assim, não tenho nenhum sentimento por você e não vou ter nunca, estava apenas me divertindo com você ontem, não comece a ter pensamentos errados sobre o que tivemos, embora você seja bastante... intensa. – Quase rosnei, deveria ter dado ordem para que o meu outro Eu se controlasse.
– Uma pena. – Menti. – Achei que rainha dos Doze fosse me dar alguma exclusividade. – Zombei conseguindo voltar ao papel que estava interpretando. Talvez o ponto fraco dele fosse juntamente a mulher que ele esperava resgatar no mundo dos mortos e saber disso, que ele me deu essa informação tão facilmente me fez sentir mais esperançosa.
Higarath me olhou com as sobrancelhas erguidas e deu outro sorriso assustador.
– Quando recuperar Muriel, ainda vou te manter por perto, para que a proteja, sabe? Uma dama de companhia, mas creio que posso te dar alguma atenção até que ela cresça, já que Muriel não tinha ciúmes, ela me dividia com Ayrana... – Ele continuou a folhear o livro.
– Como assim até que ela cresça? – Franzi o cenho sentindo meu estômago se revirar.
– Foi muito difícil achar uma jovem pura com a aparência similar a dela, mas ainda é muito criança... entendeu? – Um frio passou por minha espinha quando ele disse aquilo.
– E quem será a felizarda? – Tentei parecer curiosa, porém não muito. Higarath estalou os dedos, então Say e Liilac saíram das sombras trazendo uma menina loira de olhos azuis assustados. Se não estivesse apoiada em Siferath e com Docinho agarrada em mim, teria desabado de joelhos no chão.
– Gwyn... – Minha voz mal saiu.
– Imagino que vai cuidar bem dela, não é? – Higarath deu uma risada debochada enquanto olhava-me de soslaio. – Mesmo que não seja mais sua irmãzinha que esteja lá dentro, não acredito que mataria sua irmã de sangue para impedir meus planos. – Ele piscou para mim e foi até Gwyn, segurou o queixo dela e passou um dedo por seu rosto. Gwyn rosnou e liberou sua magia, fazendo com que correntes elétricas o acertassem, mas elas fizeram apenas as sombras se agitarem ainda mais.
– É arisca como a irmã! – Ele riu.
– Nike! – Ela choramingou. – Me solte! Me ajude! – Seus olhos estavam vermelhos de tanto chorar. Docinho apertou mais os braços ao meu redor e olhava-me nervosa. Gelo estava vazando de mim, junto com pequenas rajadas de vento.
– Oras. Comporte-se! – Ele me encarou. – Você disse que estava ao meu lado e ela nem viveu ao seu lado! Não se esqueça que sua verdadeira irmã morreu ontem por suas mãos. – Ele zombou. Encolhi o corpo para trás, mas Yinemí murmurou para que eu me mantivesse de pé, que nãos saísse do papel.
– Realmente. Essa eu mal conheço. – Falei olhando fixamente para Gwyn, que era jovem e inocente demais para entender o alerta em meu olhar, a mensagem que estava tentando dizer para ela. As vampiras que a seguravam, me encararam e Say acenou para mim, um pedido silencioso, talvez essa fosse a hora certa para fazê-lo, mesmo entrando em pânico ao perceber que ele queria usar Gwyn para receber a alma de Muriel.
– O que posso te pedir quanto aquele favor que estava me devendo pelo livro? – Perguntei, desviando os olhos delas para Higarath, ele franziu o cenho olhando de mim para Gwyn e as sombras começaram a espiralar ao nosso redor.
– Não vou escolher outra... – Ele rosnou aproximando-se de mim. Ergui as sobrancelhas e dei uma risadinha.
– Não ia pedir isso. – Falei rapidamente. – Quero te pedir outra coisa, aí, pode me pedir o que quiser, até posso ficar quietinha cuidando de Gwyn... ou melhor, Muriel. – Ele me encarou desconfiado, Gwyn parecia não acreditar que eu não iria ajuda-la.
– O que quer? – Ele fez um gesto para que as duas saíssem.
– ESPERE! POR FAVOR, ONDE ESTÁ HALLES? O QUE FEZ COM ELE? POR FAVOR! – Gwyn gritou enquanto era arrastada para fora da sala.
– Não vai precisar mais dele. – Higarath deu um olhar raivoso para ela, o olhar de quem achava ser dono de algo ou alguém. Senti vontade de saltar sobre ele e rasgar sua garganta, mas sabia que ele não faria mal a ela, pelo menos não ao seu corpo.
– Vai me dar o que eu quero? – Perguntei, seus olhos faiscaram e ele me circulou, ignorando os rosnados de Docinho.
– O que quer, Nike? – Ele parou em minha frente e sorriu, segurando meu queixo com a mão.
– Primeiro, se eu não vou ter exclusividade, não fique me tocando como se achasse que é meu dono! –Lhe dei um tapa na mão, afastando-a de mim. – Segundo. Quero um jantar especial hoje! – Ele ergueu as sobrancelhas.
– Achei que fosse pedir algo mais interessante... – Ele sentou-se à mesa e começou a folhear o livro novamente. – O que quer para o jantar?
– A cabeça e o coração de Marglan numa bandeja de prata, e os restos dele queimando numa pira lá fora. – Higarath ergueu os olhos surpreso e um esboço de sorriso repuxou os cantos de seus lábios.
– Marglan é um dos meus maiores contribuintes, Nike querida.
– Detéria é o rei dos vampiros, não Marglan. Ele é só um subordinado. Eu o odeio, ele causou a morte de meu bebê e eu quero ele morto. – Higarath ficou me observando por um tempo longo demais, então ele se levantou e deu um passo em minha direção novamente. Docinho se afastou, escondendo-se completamente atrás de mim.
– Marglan não me fez nada de mal.
– Não consegue? – Sorri de forma debochada. Higarath suspirou pesadamente. – Você disse qualquer favor. Me deu as informações sobre Ayrana por sua própria vontade, não te pedi, então, tecnicamente ainda está me devendo. – Ele meneou a cabeça estalando a língua.
– Esperta demais. O jantar será servido as oito. – Ele se voltou para o livro, dessa vez na mesa haviam outros livros que estavam sendo abertos e controlados por magia, suas páginas estavam passando lentamente e pequenas sombras as circulavam. Higarath não sabia como ler Adraph! Fiquei aliviada, pois sabia que ele levaria algum tempo para decifrar o livro e mais aliviada ainda por ele não ter me pedido para levar alguém que soubesse lê-lo. Talvez não confiasse em ninguém para isso, não sabia se naquele livro podia conter algum encantamento para prendê-lo novamente.
– Se não se incomoda, vou dormir um pouco. Caso precise só mandar me chamar.
– Quero esse seu bichinho me fazendo companhia. – Higarath apontou Docinho com o queixo e ela estremeceu.
– Nem pensar. Docinho é minha, não sou boa em dividir minhas coisas, porque acha que perguntei sobre ter exclusividade?
– Não foi um pedido... – Ele começou a se levantar, mas ergui a mão e lhe lancei um olhar irritado.
– Não vim obrigada, você não me trouxe a força, então não sou obrigada a seguir suas ordens, estou fazendo por vontade própria! Já tem minha irmã, mas meu dragão... Ahh não! – Ele novamente ergueu as sobrancelhas e riu, dispensando-me.
Docinho suspirou aliviada quando saímos de dentro do salão, mas eu não. Meus pulmões se fecharam e eu precisei apoiar as mãos na parede para não ir ao chão.
– Gwyn... – Docinho apertou minha mão e deu um leve puxão.
“ Nike, você precisa ir para Vegahn! ” Yinemí me alertou e Docinho começou a me puxar em direção ao quarto, eu estava em silêncio, pensativa. Não sabia como cuidaria de Gwyn e iria para Vegahn fazer o feitiço ao mesmo tempo. Era estranho pensar, mas não confiava em minha Summon, ela tinha personalidade terrível! Será que eu era assim para os outros?
– Eu sei. – Respondi alto, andando pelo corredor junto com Docinho. Minha cabeça estava girando enquanto pensava numa solução. Nós já tínhamos uma em três. Pelo menos, Caalin estava aprendendo a lidar com o poder de Yezélami, ou esperava que estivesse. Se Susano não tivesse ido levá-lo até o mago, ele teria conseguido desfazer a magia de Lenios e eu não teria matado minha melhor amiga, nem meu enteado, mesmo sendo um idiota.
“Espere! ” Yinemí gritou, fazendo-me parar abruptamente no meio do corredor, quase derrubando Docinho.
“O quê? ”
“A menina chamou por alguém na sala, perguntou por um homem... Mardans ou qualquer um que é marcado como eles em rituais deles, recebem uma marca de proteção! Se ela tiver esse selo de proteção, Higarath não vai conseguir colocar outra alma dentro do corpo dela! ”
“ Ele deve ter matado qualquer um que estava com Gwyn, Yin. ”
“Mas e se não fez? ”
“Se não fez ele deve estar preso nas masmorras, duvido que esse castelo não tenha uma! Ele é quase todo uma masmorra gigante! ” Falei.
Não tinha controle sobre as sombras mais, então não poderia espalhá-las para encontrar as masmorras, mas tinha certeza de que se as tivesse e as usasse, Higarath desconfiaria de mim, então a melhor maneira era perguntando para algum serviçal ou procurando.
“Só não demore! Agora é que precisamos ir para Vegahn para você absorver a força dele, pois tenho um péssimo pressentimento quando ao que Higarath quer fazer! ”
“Não diga! ” Revirei os olhos, peguei Docinho no colo e comecei a andar na direção oposta à que estava indo, depois do salão principal num longo corredor havia visto uma escadaria em espiral para baixo. No caminho, pouco antes de alcançar as escadas, encontrei com Say que vinha lá de baixo com uma pequena esfera de luz nas mãos. Ela me lançou um olhar sério e apontou com o queixo para as escadas. Ao passar por mim, quando nossos ombros emparelharam ela sussurrou: “Ela está segura. ”
Acenei rapidamente com a cabeça e continuei meu caminho, Docinho estava apertada em meu pescoço, com medo da escuridão que espiralava ao nosso redor enquanto descíamos as escadas. Conforme descíamos, o ar ia ficando cada vez mais frio, parecia que estava respirando gelo puro. Embora não me incomodasse, parecia estar fazendo mal para Docinho.
– Quer me esperar lá em cima? – Ela meneou a cabeça negativamente e se agarrou a mim com mais força, suspirei e comecei a descer mais rápido para que não ficássemos muito tempo ali.
Capítulo 14
Demorou mais do que eu esperava para que chegássemos ao fim das escadarias, o ar ali era pesado com um cheiro horrível de podridão, morte e bolor. Não haviam luzes, não havia nenhuma claridade e eu mal podia enxergar além das marcas brilhantes de meu anelar. Olhei as marcas e fiz força para ignorá-las, lembrando-me das marcas de Annie se apagando e de Susano com ela. Eu ainda tinha Caalin, e precisava ser firme, ser forte pois estava nessa por ele! Pois tive que tirar Higarath daquela sala antes que ele o matasse.
Sacudi a cabeça tentando tirar isso de minha mente, a incerteza de que não sabia se estava fazendo o certo ou errado, mas já tinha feito minha escolha e a seguiria até o fim, pois queria mais que tudo aquela vida de paz dentro da floresta de Arcádia.
Percebi que ali embaixo, estava escuro apenas por ser um lugar completamente fechado, sem janelas ou claraboias. Estávamos muito abaixo da superfície, mas o lado bom é que não haviam sombras aqui, não as sentia, pelo menos. Havia me esquecido completamente que podia mudar minha visão para enxergar no escuro, então o fiz.
Quando passei a enxergar o lugar em que estava, meu estômago se revirou e nem sequer tive força para dar a volta e correr. Agora entendia o porquê de Docinho ter enterrado o rosto em meu pescoço e estar respirando curta e rapidamente. Haviam corpos dentro das selas, alguns em avançado estado de decomposição, outros apenas ossos, não parecia haver ninguém vivo ali. Quando consegui dar um passo adiante, o som que minha bota fez pareceu errado e alto demais para o lugar, fazendo minha pele se arrepiar.
Esses corpos já deviam estar a muito tempo aqui, antes mesmo de Higarath tomar o castelo e isso fez uma onda de terror percorrer minha espinha, não podia esquecer o que Hisana era, e que ela provavelmente tinha inimigos também.
Uma voz grave e melodiosa no fundo daquela masmorra quase me fez ter um ataque e morrer:
– Se veio acabar comigo, seja rápido, por favor! O cheiro está me matando! – Andei rapidamente até o fundo de onde aquela voz havia vindo e ergui a luz. O homem tinha a pele tão branca quanto a de um malvarmo, longos cabelos prateados trançados para o lado e uma cicatriz que ia da testa até seu queixo na parte direita do rosto, mesmo com a cicatriz ele era lindo.
– Quem é você? – Perguntei abaixando-me perto da grade para olhá-lo. Ele estava bastante ferido, com grilhões de prata prendendo seus pulsos, tornozelos e pescoço, quase como um animal selvagem numa gaiola.
– Um alguém que vai te devorar viva caso Gwyn morra. – Ele rosnou encarando-me com os olhos vermelhos brilhando.
– Está acorrentado até o pescoço aí, acha que poderia fazer algo contra mim? – Zombei, ele deu um sorrisinho curto e a bolha de luz que eu havia feito, desapareceu, deixando apenas a luz dos olhos dele como dois faróis na escuridão. Quando a luz voltou a brilhar, ele estava solto, sem as correntes e com o rosto a milímetros do meu.
– Eu escapei de uma prisão no Vale da Lua, o lugar que os prisioneiros nunca saem. – Ele sorriu, pegando uma mecha do meu cabelo e puxando delicadamente para frente. – Mas se sua irmã morrer porque você resolveu mudar de lado, eu vou caçar você, e vou torturar você, rainha de Vegahn.
– Se pode se soltar tão fácil, por que continua aqui? – Quis saber.
– Eu a sinto. – Ele suspirou e enrugou o nariz para o cheio podre que vinha até nós. – Sei que ela está bem, não está ferida, mas está com medo. Então estou aqui ainda, porque sei que não posso enfrentar ele, eu não vou sair daqui sem ela. – Ele me encarou.
– Ela é marcada? – Questionei.
– Sim. Foi marcada a semanas... – Ele deu um largo sorriso convencido, depois pigarreou. – Por?
– Precisava apenas saber... que tipo de proteção essa marca dá?
– Eu... não sei explicar exatamente, não fui criado no clã e nunca liguei muito para os costumes deles. – Ele murmurou baixando a cabeça.
Bufei irritada, mas usei magia para manter a cela limpa e joguei uma bolha de ar ao redor dela, por um momento ele pareceu aliviado, mas voltou a me encarar desconfiado.
– Muito gentil para alguém que mudou de lado na guerra.
Não lhe respondi, apenas comecei a andar de volta para as escadas, tentando não olhar para os lados.
– Se quer saber, a marca das sombras une todos do clã, sendo um Cyfar ou não, estendendo a proteção do líder a todos os marcados, ele sempre sabe onde estamos.
– Entendi. – Então, ele poderia encontra-los facilmente, mas não tinha certeza se isso era bom o bastante para ajudar Gwyn. Subi as escadas correndo, agradecendo pelo ar puro enquanto subia e dessa vez corri direto para o quarto.
Joguei Docinho em cima de meu Summon, que acordou xingando e esperneando.
– Céus! Quer me matar? – Ela grunhiu, empurrando Docinho para o lado, que estava quieta e com cara de assustada.
– Docinho, vou para Vegahn agora. Preciso que fique com ela – Apontei a Summon que franziu o cenho, me mostrou um dedo e depois voltou a deitar. – Higarath vai perceber algo estranho se você sumir, pode achar que estou tramando...
– NÃO VOU FICAR! – Ela gritou e se ergueu na cama, preparando-se para pular em mim novamente, mas meu outro eu a segurou e tapou sua boca.
– Comporte-se! Você é um Dragão, não uma criancinha! – Tive que concordar com a Summon nisso, me senti mal em ter que deixar Docinho com ela ali, mas era necessário. Docinho me olhou com a expressão de cachorrinho pidão mais triste que eu já vira.
No momento em que ia explicar novamente o motivo porque não podia leva-la, a porta se abriu de supetão e Sayuri entrou respirando rápido, mas ficou em choque ao olhar para mim e para eu novamente em cima da cama. Ela arregalou os olhos e fechou a porta atrás de si.
– Quem é a verdadeira? – Ela perguntou estreitando os olhos para nós.
– Nós duas somos verdadeiras! – Obriguei aquelas palavras a saírem dos meus dois corpos ao mesmo tempo, pelo menos sabia que tinha controle total do Summon. Say abriu e fechou a boca, então revirou os olhos e começou a arrumar as fitas do corpete vinho que vestia.
– Não importa, eu tenho que ser rápida aqui! – Ela parou de se arrumar e me encarou novamente. – Ouvi ele falando com as sombras naquela sala, Nike. Dois dias, é o tempo que precisa para abrir o portal até Mogyin. – Meu estômago afundou. Levaria pelo menos duas semanas para absorver o que precisava de Vegahn segundo Yinemí.
– Fique, isso é uma ordem Docinho! Prometo que volto para te buscar! – Havia acabado de confessar quem era a verdadeira, mas não me importei com isso, sabia que Sayuri manteria a língua atrás dos dentes se quisesse viver.
Saí do quarto rapidamente procurando por aquela sala cheia de globos que vi aquele dia.
“Precisamos ir para Vegahn! ” Yinemí alertou.
“Precisamos arrumar um jeito de descobrir como atrasá-lo! ” Retruquei nervosa quase correndo pelos corredores.
“Não há nada que possamos fazer! ”
“Sempre tem um jeito para tudo. ”
Abri as portas de vidro da sala e me deparei com Higarath sem camisa, o tronco marcado pelos selos sombrios e as sombras que vasavam dele eram tão intensas que fizeram-me recuar um passo. Higarath olhou por cima do ombro, mas voltou a se concentrar no que estava fazendo.
Suas mãos estavam erguidas sobre um globo de vidro grande que flutuava pouco acima de sua cintura e brilhava azulado enquanto era tomado por aquelas sombras, parecia tinta negra misturando-se lentamente com água.
– Achei que estivesse dormindo. – Disse ele com a voz macia, parecia divertido, satisfeito, na verdade.
– Dormi um pouquinho, mas malvarmos tem sono de ovelha. Posso perguntar o que está fazendo? – Ele franziu o cenho e a magia sombria preencheu a sala com uma escuridão sem fim, fazendo aquele buraco no centro da sala brilhar.
– Mexendo no círculo dos Doze.... Onze agora – Respondeu casualmente.
– Pode explicar ou é algo secreto? – Tentei outra vez, sentindo Yinemí se encolher um pouco quando as sombras nos tocaram de forma que fez com que minhas falsas marcas negras pulsarem.
– Sirius e Áries abriram um caminho uma vez, usaram as raízes de Cahidén como uma ponte, na verdade eles criaram túneis pelas raízes dela, fazendo uma ligação mágica onde antes havia apenas uma ligação espiritual.
– O que é Cahidén?
– A arvore prateada das almas.
– Então era através dessas raízes que as almas iam até os mundos?
– É por elas que elas ainda chegam aos mundos. – Ele retrucou, sua expressão de irritação era ainda maior agora. – Porém, as almas agora estão indo e voltando livres, sem intromissão daquela maluca que acha que pode mexer no destino das pessoas!
– Você está mexendo com o destino de muita gente também, então, não sei se pode reclamar disso. – Higarath revirou os olhos e voltou sua atenção para mim.
– Mogyin é autônomo, ele não precisa do controle dela, as almas vêm e vão, unindo-se quando querem, escolhendo onde e quando querem voltar. Com Ayrana lá, elas eram controladas contra suas vontades. Eu estou mexendo com o destino dos vivos que não me obedecerem, só isso. – Explicou, voltando a ficar em silêncio e concentrando-se em passar a magia para aquela bolha.
– Não me disse o que está fazendo ai! – Ele se mexeu inquieto, os músculos tensos sob o peso da magia. Às vezes, olhava para ele e cada minuto parecia não ser tão ruim quanto o pintaram, tinha medo disso, de começar a julgar errado. Mas ao lembrar de Gwyn, do que ele queria fazer com ela...
– Estou abrindo um portal, como te disse que faria.
– Mas dessa forma, não é um portal direto, é uma ponte entre eles!
– Sim, o portal direto para Mogyin vai ativar barreiras perigosas para as almas. Não estou querendo destruir o que é valioso para mim, apenas resgatá-la. – Ele franziu o cenho, aquela magia parecia estar drenando sua força. Alguns minutos de silêncio e foi o bastante para que o globo fosse completamente preenchido pelas sombras e ele se esticou, então passou para outro globo, Amantia. Meu estômago rolou desesperado novamente e ele sorriu satisfeito ao olhas os três globos já escurecidos, Pollo, Saldazaris e Vastrus.
– Conseguiu decifrar Adraph fácil assim?
Ele ergueu as sobrancelhas, mas não tirou os olhos do centro do globo, onde a massa escura começava a aparecer.
– Sim e não, apenas o feitiço que eu precisava. Na verdade, percebi que sem os sóis guardiões, o círculo fica desprotegido contra a magia negra. O que os impedia antes de serem tomados por magia negra eram Sirius e Áries. Leona fez um favor a mim quando soltou os dois e colocou Fairin no lugar deles, pois ele era fácil de corromper uma vez que era um dos meus subordinados. – Ele me olhou de soslaio. – Desculpe por ter te usado para me soltar... mas sabe como é, não é? – Rosnei automaticamente, lembrando-me de que ele havia manipulado Fairin, que manipulou meu pai e outros para tentar se libertar através de mim. No fim, era tudo parte do plano de Higarath. Isso me fez lembrar o monstro que ele era, ou pelo menos que havia se tornado.
Apertei firme Siferath entre os dedos. Ia matar ele, mas queria Ayrana morta antes dele.
Porém, uma ideia começou a tomar forma em minha mente, se Sirius e Áries podiam manter a magia escura de Higarath sob controle antes do selo que o prendia ser quebrado, talvez soubessem uma forma de retardá-lo até conseguir absorver a força de Vegahn e até Caalin poder usar Yezélami para banir a magia negra.
– Acho que era melhor eu ter continuado dormindo. – Bufei afastando-me em direção a porta. – Só tem uma coisa me incomodando agora... – Higarath desviou os olhos amendoados para mim novamente, levantando uma sobrancelha numa pergunta silenciosa. – Porque juntou exércitos sombrios se você só pretendia pegar sua amada de volta? – Higarath gargalhou.
– Às vezes, você parece mais inocente que é de verdade! – Ele deixou a bolha de lado e caminhou até o centro da sala, onde uma pequena bola de cristal brilhava. Higarath a tocou e ela pulsou fazendo uma luz vermelha tomar a sala.
– Eu nunca disse que queria apenas Muriel de volta, Nikella. Eu vou ter os mundos aos meus pés! Quero ser o rei de todos, Ayrana não tinha poder na época para domá-los pois tinha um ideal diferente. Não se controla nada com mãos frouxas, você precisa de um punho firme para manter uma ordem, é como andar a cavalo, se você afrouxar as rédeas, o cavalo anda por onde quer! Medo e obediência andam lado a lado. Jamais se esqueça disso.
– Você não me dá medo. – Ele sorriu novamente, mas de uma maneira que fez meu interior se dissolver como açúcar na água quente.
– Eu nunca tentei te colocar medo, minha querida. Não preciso, sei o que te prende, pois eu conheço seu interior. – Ah se ele soubesse o quanto não me conhecia.
– A dominação pelo medo é frágil, uma vez que descobrirem um ponto fraco, a esperança ganha força e as pessoas tentarão lutar. Esse é um jogo arriscado. – Retruquei.
– Só aprender a cortar as asas dos rebeldes, mostrando-lhes os castigos aplicados aos que desobedecerem, mas oferecer também recompensas aos que se mantiverem obedientes e fiéis. É assim que se domina o povo, como adestrar um animal: Você o castiga quando desobedece e lhe dá prêmios caso ele faça o truque corretamente. Acredito que conheça esses métodos, domadora de feras. – Ele riu e voltou ao seu trabalho. Me perguntei o quanto de mim as sombras haviam contado para que ele soubesse como lidar comigo daquela maneira.
No fundo, não éramos tão diferentes. Queríamos a mesma coisa, vingança, e a nossa felicidade também, mas a diferença é que Higarath estava disposto a destruir tudo e todos em seu caminho, já eu só queria destruir a ele e sua criadora.
– Mande me acordarem na hora do JANTAR. – Enfatizei para que ele não se esquecesse de seu favorzinho. Higarath deu um sorrisinho e me olhou de soslaio.
– Seu jantar já está sendo caçado, querida. – Ele piscou e meu estômago se revirou, não pela caçada a Marglan, mas pelo modo casual que Higarath falava comigo. – Vou convidar sua irmãzinha para jantar conosco essa noite, o que acha?
– Acho que ela não gosta muito de vampiro na brasa. – Retruquei saindo da sala e seguindo em direção ao quarto. Quando percebi que as sombras se dissiparam, mudei de rumo e corri para o corredor norte do castelo. Queria sair longe das portas principais, não sabia quem ali podia fofocar algo para Higarath afim de ganhar um salvo conduto, então me aproximei de uma sacada que estava aberta, revelando a escuridão e as luas brilhantes de Pollo. Me escondi nas sombras do lado de fora da sacada, então abri um portal sob meus pés e fui engolida pela luz branca, despedindo-me da escuridão.
O doce frio e os ventos gelados carregados de flocos de ne neve de Vegahn me receberam como um cãozinho recebendo seu dono em casa, abracei meu corpo ao sentir o frio, ver a luz clara e branca do meu mundo novamente. Mesmo sem ter nascido ali, mesmo não sendo uma malvarmo desde sempre, não me sentia bem assim em nenhum outro lugar. Não por causa de Caalin, não por causa de Yinemí, mas pela sensação de liberdade e alegria que aquele mundo me passava.
Olhei para o norte de onde apareci, estava diante de Gither, a mina onde encontrei Caalin pela primeira vez. Dei um pequeno sorriso ao lembrar daquele dia e desejei que as coisas pudessem voltar a ser simples daquela maneira.
“Precisa de um lugar isolado, protegido e silencioso, Nike. ” Yinemí falou. “De preferência uma caverna ou clareira. ”
“Para quê? Como vou treinar num lugar pequeno? ”
“Só ache um lugar assim, te explico quando chegarmos lá! ” Havia um lugar não muito distante dali que eu poderia ficar, a caverna onde ele me encontrou dentro de uma montanha de gelo. Segui pela trilha sinuosa em direção a montanha enquanto cantarolava distraidamente o hino da ACV. Não sei porque aquele hino veio a minha mente, talvez pelo juramento de dar nossas vidas para proteger.
“Indo para a montanha Ceo? ” Yinemí estava claramente tentando puxar conversa, vendo que eu ia pela trilha tentando manter minha cabeça vazia. Gwyn, Susano, Caalin... o medo de perde-los estava cada vez maior e eu tinha que agir rápido.
“Achei que esse lugar poderia ser isolado o suficiente. ” Respondi de forma áspera, fazendo-a se contrair, mas ela ficou em silêncio o resto da viagem montanha acima. A passagem para a caverna havia se estreitado, pois a quantidade de gelo bloqueando-a era muito maior agora. Andei pela caverna indo o mais fundo que pude, até uma parte em que a passagem se fechou completamente, dando espaço suficiente para apenas um gato pequeno passar.
“ Estamos aqui! ”
“Desarme-se ” Ela ordenou, bufei mas acabei obedecendo e retirando as armas presas em meu uniforme negro e as empilhando na parede de gelo mais próxima.
“E agora? ”
“Agora você vai se sentar, cruzar as pernas e iniciar uma meditação mágica; ”
“O quê? Pode traduzir, por favor? ”
“Uma meditação em que você vai mergulhar no próprio poder. ”
“E como eu faço isso? ”
“Feche os olhos, esvazie a mente de todos os pensamentos, relaxe e repita isso: Inter animam vitarum. ”
“Tá. ” Sentei-me no chão semicongelado e cruzei as pernas, apoiando as mãos nos joelhos, então fechei os olhos e respirei fundo, deixando cada pensamento se esvair da minha mente com certa dificuldade. Sentia o gelo ao meu redor estalando, fazendo baixos ruídos e podia sentir como se cada parte de mim estivesse vibrando de ansiedade.
Inter animam vitarum.
Senti um puxão em meu umbigo, então num piscar de olhos estava caindo por um imenso túnel brilhante feito de cristais de gelo, fogo e pequenas pedras arco-íris. Logo percebi que enquanto caía naquele túnel, minhas memórias passavam por mim, por vezes senti vontade de entrar em algumas delas, memórias alegres com Annie na ACV, nos tempos que era feliz e não sabia, quando estava apenas focada numa vingança boba.
No fim do túnel, notei uma escuridão, algo diferente do que imaginava. Não havia luz no fim daquele túnel. Me encolhi esperando pelo impacto da queda, mas estava dentro de mim, então eu podia controlar o que acontecia ali, certo? Errado. Bati naquele breu com força, porém aquilo era algo estranho, pegajoso e frio demais.
Me debati, tentando me soltar daquela poça gosmenta, mas quanto mais me movia, mais aquilo me puxava para baixo. Parei de me debater e olhei em volta procurando escapatória daquela escuridão, mas não havia mais nada ali.
“Você caiu no poço de rancores, Nike. Para se libertar disso e alcançar seu poder interior você precisa perdoar todos aqueles que lhe fizeram mal! ” Era a voz de Yinemí. Ela falava mais alto aqui, podia escutar como se estivesse no mesmo cômodo que ela.
Haviam sombras em minha mente, manchas deixadas por pessoas que jamais conseguiria perdoar. Mas eu tinha que ter controle sobre aquele lugar, aquilo era eu! Forcei minhas mãos para fora da poça e fiz uma foice aparecer, era Siferath, mas numa versão de gelo.
Fiz força com a foice, erguendo os braços para o alto o máximo que pude, então brandi a foice com toda força que pude contra aquela poça, transformando-a em gelo sólido, só então a destruí com golpes da foice, soltei as pernas e me levantei.
“Pois é... dessa maneira também dá! ” Yinemí deu um risinho, então um clarão explodiu ao meu redor, fazendo-me ficar temporariamente cega. Me encolhi, protegendo os olhos daquela luz, só depois de um tempo consegui enxergar onde estava. Um olhar pelo lugar em minha volta me fez pensar que estava em Vegahn. Não havia nada até onde a vista podia alcançar, apenas uma imensidão branca para onde quer que olhasse.
“Onde estamos? ”
“Dentro de você. ” Sua voz agora não vinha de todas as partes, mas sim de um único ponto. Me virei para trás e olhei para a dona daquela voz, a criatura que eu mais tinha curiosidade de conhecer. Yinemí tinha a aparência de uma mulher lá pelos seus quarenta anos, olhos cinzentos e longos cabelos na mesma cor. Sua pele parecia feita de neve e tinha um leve brilho. Ela estava vestida com um kimono branco enfeitado com flocos prateados.
“Oi... ” Ela estendeu a mão e pegou a minha, então começamos a caminhar por aquele imenso deserto branco.
“Vou fazer algo por você, isso vai te dar o controle sobre Vegahn... o controle total sobre o mundo de gelo e sobre todas as criaturas que vieram comigo da Terra. ” Ela começou quando paramos em frente a uma flor de vidro azulada com centenas de pétalas e folhas que desciam em cascatas ao redor do caule, protegida por uma redoma brilhante que pulsava como um coração.
“Achei que fossemos treinar. ” Retruquei.
“Não temos tempo para um treinamento convencional, não é? ” Ela sorriu e se ajoelhou ao lado da flor de vidro, logo percebi que a redoma viva ao redor da flor reagia a ela como se fossem ligadas, então o choque me fez abaixar e me aproximar da flor também.
“Essa... ”
“É a alma de Frinn Aelita. ” Yinemí sussurrou, tocando a alma com a mão. “Eu me apaixonei pela criança cheia de vida que ela era, aquela criança morrendo de frio, mas que estava se esforçando para manter seu amigo vivo. Quando Ayrana usou meu poder para salvá-la, eu trapaceei para saltar de corpo, uma vez que já imaginava que ela fosse dar para trás e não devolveria as Elementais a Gaia ”
“Então você escolheu ficar com ela? Com Frinn? ” Perguntei.
“Com ou sem acordo, uma hora nós voltaríamos para casa, então porque não prolongar nosso passeio? ” Yinemí me encarou e deu um sorriso travesso.
“Você nunca falou comigo antes. ”
“Você nunca me desejou, quando percebeu o poder que tinha, não me queria. Susano recebeu Vensis como uma forma de livrar a irmã de ser alvo de Higarath, mas também não desejava seu poder. Quando você e ele decidiram nos libertar, nós escolhemos ficar pois sabíamos que não conseguiriam sem nós, e porque foram verdadeiros conosco. Nós criamos amizade com vocês! ” Ela tocou meu rosto suspirou, voltando a observar os movimentos circulares da alma ao redor da flor.
“Obrigada, por ter ficado. ” Ela deu um pequeno sorriso.
“Vou quebrar a proteção de Frinn ao redor de sua alma, Nike, vou soltá-la, libertar você dela e vou deixar que você me absorva. ”
“O QUÊ? ” Gritei fazendo a alma se agitar.
“Essa flor, ela é sua alma. Cada pétala representa uma memória e cada folha um sentimento. Aelita era só uma barreira que impedia que sua flor derretesse nesse deserto. ” Yin fez um gesto mostrando o nosso redor. Aquilo tudo era areia, areia do deserto de fogo.
“E o que impedirá que eu me desfaça quando ela se for? ” Olhei a alma que agora começava a serpentear em volta do braço de Yinemí, tornando-se uma fita vermelha e brilhante que ia para cima além do céu de minha mente.
“Olhe! ”
Quando a proteção deixou a flor, percebi que ela não era de gelo, nem de vidro, mas estava coberta por uma casca de vitrino.
“Yin... ”
Ela sorriu para mim e ergueu as mãos, então a fita vermelha começou a se desmanchar como fios de seda espalhando-se ao vento.
“Como se sente? ” Yin perguntou depois de alguns momentos em silêncio enquanto eu observava a flor brilhando, para ter certeza de que ela não se desmancharia.
“Nada de diferente. ”
“Então, é hora de dizer adeus. ” Ela se aproximou e fechou os braços ao redor da flor. Rapidamente me abaixei também e a abracei, não queria deixá-la ir.
“Não quero que você desapareça! ” Choraminguei.
“Eu sou uma criação de Vensis e Suujanim, não pertenço a Gaia, nem Yezélami pertence a ela! Porque acha que eu me livrei do acordo e escapei para Aelita? ”
“Mas você vai desaparecer! ” Já estava chorando novamente.
“Ahh, Nike! ” Ela riu. “Eu estou em tudo! Vegahn é parte de mim! E agora eu vou ser parte de você! Eu nunca vou te deixar. Vou estar lá, basta saber ouvir. ”
Assenti, apertando-a ainda mais. Ali dentro não fazia frio nem calor e assim como os malvarmos ela não era fria, sua pele era morna e suave, então não me importei de ficar agarrada a ela.
“Seis dias é o tempo que vou demorar a ser absorvida pela sua magia, para me tornar parte de você. Após isso, cada vida em Vegahn será parte de você também, então você jamais poderá ficar muito tempo longe do mundo de gelo, entendeu? É um fardo que você precisa carregar. Mas em troca, eles estarão sempre prontos a enfrentar tudo por você. ”
Assenti novamente, não me importava, não pretendia sair de Vegahn mesmo. Cruzei as pernas e respirei fundo enquanto começava a sentir o frio começar a tomar meu corpo, Yinemí se afastou um pouco de mim, então seu corpo começou a cristalizar aos poucos enquanto onda após onda de magia deixava seu corpo e fazia aquela flor brilhar.
Mas antes de apagar totalmente naquele imenso mundo branco, tive um terrível vislumbre de uma cabeça e um coração numa bandeja de prata sobre uma mesa com toalha de veludo vermelha.
Susano:
Passava da meia noite quando deixei o Castelo do Sol, disparando para o ar morno da noite em Ciartes voando por cima dos muros da cidade. Fiquei até o último minuto com Sheriah enquanto a pira de Annie transformava-se apenas em cinzas, fazendo meu coração se partir e sangrar. Em seus últimos instantes, Annie pediu que eu perdoasse a Nike, pois ela tentou, tentou com todas as forças desfazer a ilusão de Lenios sobre a visão de Nikella. Annie morreu por tentar tirar Docinho de lá, com medo de que Lenios pudesse usá-la em uma ilusão também.
“Seja feliz, sorria, ame... mesmo que eu não esteja mais ao seu lado. ” Foram as últimas palavras que ela disse em minha mente antes de partir. Não sabia como explicar para Sheriah a morte de sua caçula, entre colocar a culpa em quem quase tirou a vida de seu segundo filho, que teve a aparência usada para matar o rei, e agora Annie, ou dizer que o guardião da criadora havia feito aquilo...
Não conseguia me conformar com o fato de que Nike havia o matado, era para eu ter quebrado o pescoço daquele parasita e não ela! Porém, talvez ela tenha tido até mais motivos que eu, Annie era quem mais estava nos pensamentos de Nike quando vi sua mente pela primeira vez.
Agora o que não saía de minha mente era a covardia de Lenios, era dele a presença que eu sentia quando saí da árvore para levar Caalin até Amantia. O que ele estava fazendo lá? Será que Ayrana havia o mandado para caçar Nike e matá-la por ter mudado de lado e representar risco? Não... isso parecia algo muito mais grave, mais complexo. Ele brincou com as duas, ele queria fazer Nike sofrer antes de matá-la, ou queria usar aquilo para enfraquecê-la, mas porquê? Um pensamento fez gelo descer por minhas entranhas.
Eles viviam em Mogyin, então sabiam sobre as almas, sobre as ligações de maneira que nós não sabíamos. Mas não podia ser... Se Nike tivesse uma ligação com Annie, eu teria visto!
Já estava quase no meio do caminho para a árvore do fogo, estava voando rápido demais e com a cabeça a mil sem fazer ideia para onde estava indo. Parei abruptamente e juntei energia, adicionando minha própria raiva a ela, então abri um portal direto para Vegahn. Se existia alguém que tinha que me dar explicações, era Ayrana.
Logo que que atravessei o portal, pisando novamente na neve endurecida e sentindo o vento gelado de Vegahn no rosto, percebi que não estava na frente do Castelo de Gelo, onde eu concentrei a magia do portal, estava na margem oposta do lago Stanaj olhando o castelo ao longe. O brilho azulado do castelo estava fraco, quase opaco e a vida que sentia pulsar no castelo nas outras vezes que estive lá parecia ter desaparecido.
Talvez fosse a certeza de que quando voltasse para casa, não encontraria Annie mais, ou talvez fosse a ausência da única pessoa que fazia aquele lugar ter vida de verdade. Suspirei pesadamente e comecei a andar na direção do castelo sobre o lago congelado, não me preocupei com a espessura da camada de gelo sob meus pés, nem com os ventos gelados que pareciam cortar minha pele, mas aquele frio estava fazendo com que o calor de Ciartes desaparecesse, levando lembranças com ele.
Um puxão de magia me fez parar no meio do lago e sacar Enaras, a lança que Farahdox havia feito para mim. Não havia nada ao meu redor, mesmo assim uma presença esmagadora de energia pura vinda do gelo ao meu redor me fez procurar por uma ameaça. Demorei a perceber que o puxão na magia vinha da mesma presença mágica, porém ela não vinha de apenas uma direção, vinha de todos os lados, circulando e movimentando-se como o gelo e a neve ao meu redor.
“Se acalme, Susano! ” Vensis gritou em minha mente depois de uma barreira de vento surgir ao meu redor.
“O que é isso? ”
“Yinemí... não sei o que ela está fazendo, mas é algo perigoso! ”
“Entendo. ” Resmunguei transformando a lança em pingente, pendurando-a no colar de Annie que estava amarrado em meu pulso e voltando a caminhar pelo gelo.
“Não quer saber se isso afeta a Nike? ”
“Ela deve estar bem. ” Retruquei asperamente, ignorando aquele peso de magia que parecia estar preso a mim, tentando puxar minha atenção para longe.
“Susano... ela não teve culpa! ” Vensis gritou e tive que pressionar a cabeça, sua voz parecia irritante demais hoje.
“Eu sei. ” Tentei silenciá-la, mas desde que ela começou a falar comigo, era quase impossível fazê-la se calar.
“Não parece! ”
“Você está dentro da minha mente, Vensis! Pode ver tudo aí, inclusive os meus sentimentos. ”
“Sabe que não é assim, Su. Você tem barreiras assustadoras aqui dentro. ” Ela retrucou. “Ela e Annie... ”
“Sério Vensis. Tudo bem! Eu sei que foi Lenios que matou Annie, não a Nike! Eu só preciso de um minuto de silêncio agora, entende? ” Ouvi ela bufar, mas pelo menos ficou apenas resmungando baixinho.
Continuei caminhando em direção ao castelo, ignorando o som do gelo que parecia estar rachando abaixo de mim, podia usar o poder de Vensis para manter uma plataforma sob meus pés, então, não cairia na água.
Zion estava fazendo ronda próxima ao portão que dava acesso ao jardim branco quando me aproximei do castelo. Me espalhei, transformando-me em vento assim que notei que a guarda do castelo havia sido reforçada, então Zion não me viu quando passei pelos guardas usando minha habilidade de furtividade, era bom as vezes não ser notado por ninguém. Tinha certeza que Zion me ajudaria a esfolar Ayrana viva se eu pedisse, mas isso era algo que eu precisava esclarecer sozinho antes de colocar cabeças para rolar.
Atravessei sorrateiramente os corredores silenciosos do castelo de gelo em busca de Ayrana. O lugar parecia quieto demais, apagado e muito mais frio do que de costume, as cortinas azuis mesmo muito leves não se moviam com a brisa que estava espalhando pelo castelo, usando-a com magia para encontrar Ayrana. Tudo ali estava estranho demais, mas o pior eram as sombras que se projetavam de forma estranha, como se estivessem vivas, observando, vigiando...
Um frio passou por minha coluna e fui obrigado a não levar a mão até minha lança. Conhecia aquela presença sobrecarregada.
Higarath.
Então percebi que a estranha sensação que eu estava sentindo, era a energia das sombras que estavam circulando o castelo, procurando por ameaças, elas não me percebiam por causa da furtividade! Como vento, estava invisível a elas! Sem demora, lancei a magia de detecção mais uma vez, buscando não só a presença de Ayrana, mas a de Higarath também. Não demorou para que os encontrasse no último andar do castelo, no quarto que Ayrana estava instalada. Parte de mim teve medo que Higarath a matasse, mas a outra parte, a maior, bem maior, estava torcendo para ele quebrar o pescoço dela e acabar de uma vez com a guerra que ainda nem havia começado, mas que ela havia provocado.
Ao entrar no corredor que dava para o quarto, as sombras estavam mais intensas, até mesmo hostis. Mas o vento só pode ser sentido por seres corpóreos, e não podia ser visto por ninguém. Não foi difícil me espalhar e entrar pela fresta da porta do quarto de Ayrana e ver o que poderia ter sido a visão mais perturbadora de minha vida, depois de ter visto um Aswang tendo um filhote.
Higarath estava próximo a janela aberta do quarto de Ayrana, não era exatamente ele, era apenas um summon de sobras, mas a criadora não parecia ter percebido isso, pois ela estava seminua na cama, exibindo o corpo para ele. Pela forma que os dois estavam parados, Higarath devia ter acabado de chegar.
Ela estava se oferecendo!
– Por favor, Yellen. Recomponha-se! Passamos dessa fase a muito tempo! – Higarath debochou mostrando um meio sorriso cruel a ela. Ayrana parecia desconcertada enquanto cobria a parte do corpo exposta e corrigia a postura.
– Antes ou depois de você me trair com a humana? – Ela retrucou. Higarath a encarou de forma ameaçadora, mas apenas suspirou e ficou olhando pela janela aberta.
– Tecnicamente, eu traía ela com você! – Ayrana bufou, então se ergueu da cama e foi para perto dele, mas era apenas a barreira negra a mantinha afastada, não os rosnados ameaçadores de Higarath, ou ela era idiota o bastante para não ter medo... ou tinha algo que o mantinha naquelas rédeas curtas, pois eu já a teria matado.
– O que quer aqui? – Ela sussurrou com um tom de voz quase venenoso.
– Eu vim barganhar com você... – Ele se afastou mais alguns passos, a túnica negra que ele vestia oscilou com a brisa, sua escuridão formava gavinhas ao seu redor conforme a claridade da lua refletida na neve iluminava o quarto. A semelhança entre ele e Caalin em sua forma humana era assustadora, não tinha ideia de como Nike nunca teve nenhuma cisma com isso.
– Barganhar? – Ela deu um risinho de deboche e tornou a tentar se aproximar de Higarath, movendo o corpo de uma forma completamente errada.
– Meu portal para Mogyin estará pronto em no máximo dois dias, quero que me entregue a alma de Muriel e prometo não devastar os mundos. Eu saio em paz, fico apenas com Pollo. – Ele explicou com a voz carregada de um sentimento que não sabia que havia nele. Esperança? Ayrana então riu e deu meia volta, deixando as costas desprotegidas contra o olhar psicótico no rosto de Higarath.
– Só pode estar brincando comigo, não é? – O sorriso sarcástico desapareceu de seu rosto quando ela voltou a encará-lo. – Eu não vou entregá-la para você!
– Vou invadir Mogyin, vou encontrá-la sem sua ajuda e se for esse o caso, não vou ter piedade de nenhum que carregue sua herança! – Ele rosnou. Estava prestes a me materializar e obrigar Ayrana a aceitar o acordo, mas ela começou a rir novamente.
– Invadir Mogyin? Com as barreiras que eu deixei, qualquer portal aberto mesmo que pelo feitiço dos tempos contido em Adraph, o portal só permanecerá aberto por meia hora! Mogyin é duas vezes maior que Vastrus, será que conseguirá achá-la nesse tempo? – Ela andou até ele e fez a barreira negra desaparecer, então tocou seu peito. – Você não é ligado a ela, como vai encontrá-la no mundo das almas sem uma ligação? – Ela deu outro risinho, então Higarath segurou seus pulsos e a afastou, a ira estava fazendo sua máscara tranquila se transformar numa careta de irritação.
– Eu não dou a mínima para essas ligações, Yellen! Se não soubesse que as almas foram divididas, diria que você inventou essas ligações para me prender a você! – Ele grunhiu e a empurrou para longe, pousando a mão no cabo da espada. Dessa vez, Ayrana teve o bom senso de se afastar e o encarar com a mesma raiva estampada no rosto.
– Não vou entregar ela a você, pode mandar sua nora atrás de todos os livros que quiser, mas nunca vai conseguir manter os portais abertos por tempo suficiente para encontrá-la sem minha ajuda e se eu não tiver você de volta, você não a terá também! – Ayrana vociferou, lágrimas começaram a se acumular em seus olhos e aquilo fez Higarath abrir um sorriso de deboche.
– Eu nunca fui seu, minha querida. Se eu não tiver Muriel, ficarei com Nikella, mas jamais aceitaria você novamente! Não cometo o mesmo erro duas vezes! – Aquilo fez meu poder congelar, sem querer fiz os ventos ao redor do castelo ficarem mais fortes, levando rajadas de vento para dentro, porém não foi uma mudança diferente das comuns no mundo, para minha sorte eles não ligaram.
– O que... – Ayrana estava de olhos arregalados, encarando Higarath estupefata. O olhar de satisfação dele ao perceber o quanto aquilo a afetou me fez pensar que podia ser um blefe, ou talvez não. Não havia percebido até então o cheiro de Nike preso a ele.
– Ah! Minha nora é muito interessante também! Forte, poderosa, inteligente... e tem muito mais fogo que você jamais teve! – Ele deu um risinho quando Ayrana tornou a sentar-se na cama. –Uma joia rara, me fez perceber que pelo menos um de meus filhos herdou meu bom gosto! Não estou falando de você, claro que não! Mas se eu não tiver Muriel de volta... eu fico com ela e com a irmã, que aliás, irei usar como um novo corpo para Muriel.
– Você dormiu com ela? – Ayrana balbuciou, ignorando as coisas realmente importantes que ele estava dizendo.
– Dormi? – Ele gargalhou alto desta vez. – Não, não. Eu dormia com você! Ela não me deu chance de dormir. Não desperdiça tempo com isso. – Era uma provocação e Ayrana estava caindo como um patinho, embora o cheiro de Nike estivesse nele, não acreditava que ela realmente pudesse ter feito algo como aquilo, ela não trairia Caalin. Ayrana o encarou, mostrou os dentes e apontou para a porta.
– Se depender de mim, não vai ter nenhuma delas! Lenios não conseguiu, mas outro vai! SUMA DAQUI AGORA! – Ela gritou, pegando um vaso na mesa de cabeceira para atirar contra Higarath, mas o vaso foi engolido pelas sombras e se espatifou a alguns centímetros da cabeça de Ayrana. Aquilo era com certeza uma ameaça.
– Prefere perder para mim todos os mundos que você criou ao invés de me entregar alguém que você nem deveria ter me tomado? – Ele parecia tão incrédulo quanto eu, aquela era a expressão mais humana que havia visto em seu rosto. Ayrana não respondeu, apenas ficou encarando Higarath até ele se irritar e desaparecer numa explosão de sombras.
Estava em choque observando a mulher a minha frente, ainda sentada sobre a cama com os braços em volta dos joelhos e observando o nada. Não podia acreditar no que ela havia feito, que havia arriscado nossos pescoços porque se recusava a devolver a alma da mulher que Higarath amava e ainda havia enviado Lenios para matar Nikella! A esposa de seu filho!
Ayrana quase saltou da cama quando me manifestei em sua frente, voltando a minha forma física. Ela me encarava com os olhos arregalados, e num instante eles estavam cheios de lágrimas e vermelhos.
– Você por acaso é louca? – Praticamente gritei. – Era só dar o que ele queria! – Gritei sacudindo seus braços.
– Pare! – Ela choramingou tentando se soltar de meu aperto.
– Porque não a entregou? Porque matou aquela mulher? Olha quanta desgraça você provocou, Yellen! – Gritei, sentindo-me descontrolado.
– É um jogo! – Ela retrucou parando de se mover, ficou apenas me encarando com os olhos profundos.
– Não entendo que espécie de jogo é esse! Você está manipulando a mesa e não se importa em perder todos os seus peões porque eles se renovam? Assim como as almas eram passadas adiante, então você sempre teria alguém para lutar por você no fim, não é? – Eu soltei um rosnado, afastando-me dela também, bile queimava minha garganta, nunca havia perdido o controle daquela forma antes.
– Ele está jogando! Eu errei, admito, quando matei aquela mulher por ciúme... – Ela suspirou e se sentou na mesinha de cabeceira, apertando o estranho colar em forma de espiral brilhante em seu pescoço. – Mas ele não vai parar enquanto não dominar tudo. Higarath não joga para perder, nem para ficar com pouco, Susano.
–Annie se foi...
– Lenios só estava cumprindo a ordem de não permitir que ninguém tocasse em Adraph! – Ela retrucou. Ódio puro me cegou.
– ANNIE MORREU POR CAUSA DAQUELE LIVRO! PORQUE VOCÊ MANDOU SEU GUARDIÃO IMBECIL MATAR QUEM TENTASSE ROUBAR O LIVRO? EU PERDI MINHA ESPOSA! SABE O QUE FEZ?! – Dessa vez avancei para cima dela, saquei minha lança e apontei para seu peito, minhas mãos tremiam assim como todo meu corpo.
– ME RECUSO A ACREDITAR QUE VOCÊ ESTAVA REALMENTE QUERENDO SE LIVRAR DE NIKE TAMBÉM!
– Era preciso, ele não podia deixá-la ir com o livro! Não sabe do que Higarath é capaz com aquele instrumento nas mãos!
– E pra isso ele precisava usar magia para fazer Nike matar Annie? Ele não era homem suficiente para enfrentá-la? – Ayrana se encolheu quando o aço gelado tocou seu pescoço, minha vontade era de rasgar sua garganta e achar a alma da mulher, mas não foi isso que meu pai me ensinou, não foi assim que me criaram, embora fosse o que a ACV me instruiu a fazer. Matar monstros que ameaçassem a paz. Ela era um deles.
– Sinto muito por ela...
– Seu sentimento não significa nada. – Retruquei. Um silêncio perturbador caiu sobre a sala enquanto esperava que me acalmasse suficiente para voltar a ser racional.
– Como podemos impedi-lo de entrar em Mogyin? – Questionei retirando a lâmina de seu pescoço, mas logo cortei o olhar esperançoso de Ayrana para mim. – Não pense que é por você, só quero proteger a irmã de Nikella. – Um brilho gélido tomou conta dos olhos dela.
– Os guardiões... Sóis guardiões, eles impediam a entrada e saída de qualquer um dos mundos. Sem eles, o círculo fica desprotegido.
– Eles não voltariam mesmo que você oferecesse tudo a eles. – Retruquei.
– Apenas os sóis poderiam impedir Higarath de atravessar para Mogyin. Ou pelo menos, atrasá-lo.
– Vamos ter que fazer algo sem eles. – Bufei tentando acalmar minha raiva.
– Ele só... – Ela estava claramente assustada. Agora sabia o porquê da relutância que tinha e porque não o matou antes, eles compartilhavam a alma e Ayrana não queria abrir mão dele. Em parte, eles combinavam, dois monstros, um que perdeu o coração e outra que não enxergava a verdade, que não bastava uma alma ligada para haver amor.
– Quantos mais você vai esperar morrer para nos ajudar a matá-lo? Toda a sua descendência? Espero que não! Pois todos que eu amo estariam inclusos nessa lista, e se eu perder mais alguém nessa guerra, Ayrana, eu juro que vou mandar você para o inferno com minhas próprias mãos! Nem que tenha que ir até Mogyin para te matar de novo e te arrastar até o lago de fogo! – A luz da magia de teleporte me engoliu antes que eu perdesse o restante da calma e a matasse ali mesmo, espirito ou não, eu iria fazê-lo.
Capítulo 15
O cheiro de Annie ainda estava no quarto de hóspedes que ficamos no castelo de gelo durante o casamento. Havia me teleportado direto para dentro do quarto, com medo de voltar atrás e destruir Ayrana ou encontrar o gêmeo de Lenios no corredor e lhe dar uma surra só para me acalmar. Não conseguia engolir a desculpa de Ayrana, dizendo que ele só estava cumprindo ordens dela, ficou bem claro que ela a odiava e depois da provocação de Higarath, duvidava que ela não fosse tentar algo contra Nike. Porém pela falta de sentimentos da parte Ayrana, ou Lenios estava bem em algum canto de Mogyin, ou ela realmente não se importava com mais ninguém além dela e de seu amor doentio, aliás, sua obsessão por Higarath.
Me sentei o mais longe da cama que pude pois ela era a fonte daquele cheiro, atirei-me numa das pequenas poltronas de veludo cinzentas próximas a janela e estiquei as pernas, pensando em algum plano, algo que pudesse nos ajudar enquanto Caalin não aprendia a usar os poderes de Yezélami, pois nós tínhamos pouco tempo. Meu estômago embrulhou novamente ao me lembrar de Higarath coberto com o cheiro de Nike, de Annie sobre a pedra lisa do pátio no castelo do Sol enquanto todos davam seu último adeus, das chamas azuis de Kuran que a envolviam.
E era tudo culpa de Ayrana.
“ Estávamos no campo de batalha. A neve havia parado de cair alguns momentos antes e tudo parecia estranhamente calmo e brilhante ao nosso redor. Não podia acreditar quando percebi que Annie estava ao meu lado, apertando minha mão com força, tentando esconder a dor e a tristeza que sentia, o espelho da dor que todos sentiam, mas ainda assim ela sorria para mim, o mesmo sorriso doce e gentil que me deu a primeira vez que falei com ela na ACV.
– Susano, se isso acabar bem, se sairmos vivos dessa...
– Nós vamos sair! Nós vamos acabar com Higarath e vamos ficar bem! Todos juntos! – Senti um nó na garganta ao dizer isso, pois nem todos estaríamos naquele final feliz. Olhei para o lado onde Siorin, Nyumun e Caalin estavam com suas armas em punho, não fazia ideia de como Caalin estava suportando ver Nike naquele campo de batalha, eu já teria surtado àquela altura, mas algo no olhar de pânico dele ao olhá-la ao lado daquele monstro, me fez entender que ele não estava calmo como achei.
Ayrana também estava ali protegida por seu guardião que sobrou. Porém agora parecia vulnerável demais, sem o brilho etéreo de antes. Ela olhava com tristeza para mim, como se ainda pedisse meu perdão, como se com aquele olhar, pudesse de alguma forma amenizar o que ela havia feito. A escolha dela havia custado muito mais do que poderíamos pagar.
Mas Higarath ia pagar aquela dívida de sangue e eu mesmo iria cobrá-la, pelo pequeno sorriso Nike me lançou, do outro lado do campo de batalha, sabia que ela não deixaria que eu cobrasse aquela dívida sozinho, não quando ela perdeu tanto quanto eu, só não tinha certeza do que estava se passando em sua mente.
– Vamos estar juntos quando tudo isso acabar! Vamos fazer valer a pena! – Sussurrei para Annie, ela apertou suas espadas de vitrino na mão e assentiu, a neve espiralou em volta de nossos pés, o mundo de gelo estava vibrando, torcendo por nós, só mais alguns segundos e estaríamos enjaulados ali e Higarath não teria como fugir caso começasse a perder aquela luta.
– Até o fim, eu estarei aqui! – Annie beijou meu rosto e sorriu com a ferocidade que só ela tinha, enquanto seus cabelos de fogo dançavam ao seu redor.”
Acordei sobressaltado, não tinha percebido que havia pego no sono na poltrona sob a janela que agora revelava resquícios do amanhecer. Quando me dei conta de que havia sonhado, meu peito apertou e engoli em seco. Não podia chorar agora, não quando ainda tinha muito a perder e não estava disposto a abrir mão de mais ninguém.
Tomei um banho gelado para despertar de vez e apagar os últimos instantes daquele sonho que ainda estava nítido em minha mente, então saí do quarto rapidamente, procurando por Zion e Hisana. Ia pedir para que Zion ficasse de olho em todos os movimentos de Ayrana e me informasse, e para Hisana, ia pedir para que me passasse memórias da planta do Palácio dos Ossos, assim poderia ter uma noção de como invadir. A única coisa que havia conseguido pensar em fazer, era entrar lá e resgatar Gwyn e Nike com ajuda dos bruxos Mardans. A ligação que Maddox tinha com cada membro do clã seria o suficiente para encontrar Gwyn a tempo.
Estava indo em direção à saída que dava para o pátio principal, onde Zion poderia estar fazendo a primeira ronda da manhã, porém ao passar em frente ao salão principal, senti os cabelos da minha nuca se arrepiarem. Parei automaticamente, olhando para dentro da sala e percebi que algo de ruim estava para acontecer.
Meus pais estavam parados de frente para Ayrana, com as mãos em punho em seus corações e olhos fechados, os dois vestiam longas túnicas brancas e seus cabelos estavam soltos ao redor dos ombros, Ayrana estava diante deles, com duas esferas de luz pulsante nas mãos e estas cresciam cada vez mais enquanto seu próprio brilho desaparecia.
– O que está havendo aqui?! – Vociferei entrando na sala com a arma em punho, dessa vez, não me importava a desculpa que ela arrumasse, se Ayrana estivesse aprontando mais uma...
– Está tudo bem, filho! – Minha mãe deu um pequeno sorriso, estendendo a mão para que eu me aproximasse. Ayrana me seguiu com os olhos, observando atenta a lança em minha mão.
– Nós vamos assumir o lugar de Sirius e Áries, uma vez que foi sua mãe que os libertou do lacre. – Olhei incrédulo para meu pai, ele nunca diria algo assim.
– Ela usou isso como forma de manipular vocês? Fazer vocês se sentirem obrigados a cometer esse erro? – Grunhi enfurecido, voltando-me para Ayrana, ela tinha uma máscara inocente estampada no rosto, porém algo fluía diferente em sua magia, uma energia estranha que estava me dando calafrios. – Mãe! Você nem teria sido amaldiçoada se não fosse essa mulher! – Rosnei segurando firme a mão de minha mãe.
– Não é nada disso, eles se ofereceram para assumir a guarda dos Onze depois de eu explicar a condição de Gwyn... do que Higarath quer fazer com ela! – A voz de Ayrana saiu tremida e chorosa, nunca havia visto tamanha falsidade em toda minha vida.
– Não... – Olhei a mão de meu pai pousada em meu ombro e encarei seu olhar firme, havia um brilho naquele olhar, palavras escondidas nas conversas silenciosas que ele me ensinou.
“Os sóis podem intervir, ela não poderá nos dominar! ” Foi o que li em seus olhos.
Sirius e Áries, durante meu treinamento com eles, haviam me contado que quando eram os sóis guardiões, apenas o juramento os impedia de destruir tudo que queriam, pois se intervissem tirando uma vida, perderiam suas formas físicas, mas quando Fairin voltou, perceberam que aquela “punição” podia ser desfeita de algum modo.
– Ela está manipulando vocês! Há outra maneira! Sempre tem outro caminho! – Tentei, mas minha mãe apenas sorriu e segurou meu rosto. Ela beijou minhas bochechas, depois minha testa e por mim cochichou algo para que apenas eu ouvisse:
– Você vai ser um ótimo rei! Vai cuidar de suas irmãs, de sua sobrinha, e de Feroz e Lua... – Sua voz oscilou, senti as lágrimas quentes pingando em meus ombros e meu coração se apertou ainda mais.
– Por favor, não me deixem também! Sinto que algo vai dar errado, mãe! – Implorei apertando-a com força, com medo de que se fosse também.
– Eu vou estar lá! Vou olhar todos os dias para você e vou me orgulhar de você, porque você vai continuar a ser forte e corajoso como sempre foi e vai ser muito feliz! – Ela beijou meu rosto de novo, seus olhos agora um de cada cor brilhavam com as lágrimas. – Eu te amo!
– Não façam isso. Por favor! Isso não vai ajudar nada! – Meu pai abraçou a nós dois, então em seguida estenderam rapidamente as mãos para Ayrana, pegando as esferas de poder que ela ofereceu.
–NÃO! – Gritei, vendo seus corpos começarem a brilhar fortemente e marcas douradas como aros aparecerem em seus pulsos. Um clarão de luz me cegou, então no instante seguinte, eles haviam desaparecido.
Ayrana tinha um sorriso satisfeito no rosto, enquanto olhava pela janela do salão os dois Sóis que agora brilhavam lado a lado no céu de Vegahn, um azulado e outro laranja. Não consegui evitar mudar de forma e avançar contra Ayrana, mas parei ao notar que seu brilho etéreo havia desaparecido por completo e no lugar daquele brilho havia uma mulher humana comum com marcas do selo sombrio espalhadas pelo corpo e sombras rodeando seus pés.
– Para o caso de você pensar que nada daquilo me afetou. – Ela murmurou. – Eu era uma maga branca até isso acontecer. – Ayrana ergueu um pouco a blusa, mostrando a marca entre seus seios, uma cicatriz mal curada de um corte profundo.
– Fez por merecer, creio eu. – Retruquei no mesmo tom frio, mantendo a lança em punho perto demais de seu rosto.
– Confie em mim, dê esse voto de confiança! Tenho um trunfo contra Higarath e dessa vez eu vou pará-lo, vou impedir a guerra antes que ela comece!
– Não consigo confiar em você! – Rosnei contra seu rosto.
– Vai valer a pena, não vai perder mais ninguém, prometo! – Ela sussurrou apertando aquele estranho colar nas mãos mais uma vez. Ela não era uma maga negra, era apenas uma sombria, pois não tinha domínio daquelas sombras, mas era dominada por elas, ou pelo menos, influenciada. Virei as costas e deixei a sala em passos rápidos antes que fizesse algo que me arrependesse.
Sem Annie, sem meus pais...
Ayrana e Higarath tinham muito a me pagar, pois a culpa não era só dela e eu ia cobrar cada valor daquela dívida.
Saindo da sala do trono percebi que o castelo estava vazio demais, nenhum dos empregados estavam à vista, também não via nenhum dos guardas ou mesmo os moradores do castelo. Procurei por Aliver com meu poder, mas não conseguia senti-lo dentro das barreiras de Nike ao redor do castelo, nem ele, nem Oriel, Glyph... não havia ninguém ali.
Estendi os ventos como teias por cada canto do castelo, formando uma trama e ligando todos a mim, quando os fios de ar tencionavam, senti pelas ligações quem estava naquela direção. Não estava enganado, não haviam nem metade dos moradores do castelo ali, Ayran andava pelos pátios e por sorte, Zion estava na torre oeste, era para lá que eu estava indo.
Zion estava sentada no beiral da torre, olhando para o nada em silêncio, seu rosto estava inexpressivo e se não fosse o vapor condensando na frente de seu rosto, acharia que ela havia morrido olhando o horizonte, onde agora dois sóis começavam sua subida. Um nó se formou em minha garganta, e antes que eu percebesse Zion passou um braço ao meu redor e me segurou contra si.
? É como estar com Nike... ? Ela murmurou deitando a cabeça em meu ombro como se fossemos amigos desde sempre.
? Obrigado.
? Ela acabou com tudo, não é? – Sabia que ela se referia a Ayrana, me limitei a acenar para não ter que dizer tudo que estava pensando a respeito dela.
? Onde estão todos, Zion?
? Vegahn os chamou. – Ela respondeu baixinho, olhando fixamente para o horizonte.
? Não entendo.
? Houve um chamado ontem, como se cada criatura do gelo fosse puxada por uma força do além. Poucos voltaram até agora. Eu mesma estava no caminho para Madras quando percebi que aquela força me soltou.
? Estranho... bom, e Hisana? ? Não os havia sentido pelas teias.
? Está com Maddox e alguns bruxos na cidade de Hima, não muito longe seguindo a estrada principal. Zion estendeu a mão e tocou algo atrás de mim, não havia percebido Ira se aproximando até que ele encostou o focinho nela.
? Vou encontrar com eles. Zion, me faça um favor?
? Hmm;
? Vigie Ayrana. – Ela deu um sorriso feral, mostrando as presas malvarmos para mim, então assentiu.
? Com todo prazer. – Então ela saltou para fora do parapeito, pousando na neve macia que se acumulou na sacada abaixo de nós, em seguida ela entrou pelas portas da sacada e desapareceu dentro do castelo. Ira deitou-se na neve, apoiando a cabeça em minha perna.
? Vai ficar tudo bem. – Falei mais para mim do que para o glácio apoiado em mim. ? Preciso acreditar nisso.
Não pensei duas vezes ao teleportar para fora do castelo e seguir pela estrada de gelo em passos rápidos para a cidade que Zion havia me dito. Um estampido baixo me fez olhar para trás e perceber que duas mulheres estavam entrando pelos portões do castelo, sabia que uma delas era salamandra, pela pele avermelhada e os longos cabelos cor de terra, mas a outra tinha um estranho ar sobrenatural.
Outro choque me fez parar e ficar olhando na direção do castelo. Nem mesmo Caalin podia teleportar direto lá para dentro, então, como eu conseguia? Não estava curioso suficiente para voltar lá e saber o que estava acontecendo, já que eu podia enxergar ao longe as barreiras ao redor do castelo.
“Vensis? ” Chamei.
“Se assustou aí lembra que eu existo? ” Ela estava bem, pelo sarcasmo sabia que não podia estar melhor.
“Só queria saber se estava aí. ” Menti, não ia dar o braço a torcer.
“Sei... ” Preferi ignorar a tagarelice dela enquanto caminhava pela estrada, mas sua voz estava ajudando-me a manter a calma.
A cidade não ficava muito distante do castelo no fim das contas, pouco menos de meia hora de caminhada, uma caminhada que me ajudou a acalmar um pouco meus nervos.
“Você não fez nem dezenove anos ainda Susano! E ainda vai viver tanto quanto seu pai ou mais, não está na hora de começar a se estressar dessa maneira! ”
“ É bom saber que você não faz ideia de quando eu faço aniversário. ” Zombei sem conseguir evitar uma careta, que deve ter sido mal interpretada pelos guardas na entrada da cidade.
“Eu não sinto a passagem do tempo, Su! ”
Quando entrei na cidade, espalhei meu poder novamente, procurando por Hisana e Maddox. Por conta de Suujanim eu conseguia encontrar a impressão de Hisana facilmente. Eles estavam numa pousada perto da entrada. Estava perto da porta quando uma pequena esfera de luz branca apareceu diante de meu rosto e uma voz feminina deu uma risadinha, quando a bolha me tocou, pude sentir como se todas as tristezas e sombras em minha mente fossem varridas para fora.
“Susano! É Yezélami! ” Vensis deu um gritinho animado.
“Ele conseguiu? ” Não acreditei que Caalin pudesse ter dominado o poder de Yezélami tão rápido.
“Sim! Ele pode usar a luz agora! ”
Sabia o que precisava fazer para tirar Gwyn e Nike do castelo. Enviei um recado para Caalin e segui pela cidade. A pousada era construída em madeira e coberta de betume para evitar que o frio entrasse, Hima era uma cidade bastante medieval comparada as outras de Vegahn. Caminhei silenciosamente pelas ruas quase desertas até o estabelecimento, e logo ao passar pelas portas duplas, vi Hisana, Maddox e as gêmeas Strick, estavam todos sentados à mesa no fundo do estabelecimento próximos a janela e com canecas de vinho quente em suas frentes.
? Reuniãozinha... posso participar? – Me anunciei mesmo sabendo que eles teriam me percebido assim que entrei na cidade. Hisana fez um breve aceno e mostrou a cadeira em sua frente, então me fitou por um tempo antes de bufar, tomar um longo gole do vinho fumegante da caneca em sua mão e quando abriu a boca para falar, Maddox tomou sua palavra:
? Como estão as coisas no Castelo de Gelo?
? Uma bosta. Ayrana acabou de mandar meus pais para o centro do Círculo. ? Hisana franziu o cenho e soltou um rosnado medonho enquanto as duas bruxas e Maddox olhavam pela janela para o alto.
? Os sóis... – Maddox respirou fundo e me encarou. ? Eles são como Sirius e Áries agora? – Assenti devagar, estendendo a mão para a luz morna que atravessava os vidros da janela e aquecia minha pele, era como o toque de minha mãe.
? Bom, quanto a isso não podemos fazer nada agora. – Hisana, fria como sempre.
? Continue, Hisana. – Maddox pediu, voltando-se para ela.
? Qual era o assunto? – Quis saber.
? Estava ensinando Maddox a passar por minhas barreiras no palácio. – Hisana deu um meio sorriso e suspirou.
? Pode me passar as informações do palácio? – Hisana não pareceu surpresa com a pergunta.
? Você também vai? – Tainar ergueu as sobrancelhas e me olhou com curiosidade.
? Tenho contas a acertar com Higarath. – Retruquei.
? Melhor do que lhe passar as informações é ir junto! – Hisana virou a caneca num único gole.
? Gwyn está assustada, posso sentir que Halles está lá também, mas ele deve estar preso, pois já teria tentado tirá-la de lá. – Maddox bufou.
? Vai ser perigoso. Higarath a quer para colocar outra alma em seu corpo, não creio que vai ser fácil invadir o castelo e pegar a garota, mas preciso fazer isso.
? O quê! – Tori gritou, levantando-se bruscamente e derrubando a cadeira para trás. ? O que aquele demônio quer fazer com o meu bebê!?
? Foi o que escutei ele falando com Ayrana. – Tori rosnou e puxou as adagas em seu cinto.
? Me leve para lá agora, garoto!
? Se acalme Tori! – Tainar puxou seu braço. ? Precisamos de um plano.
? Eu tenho um. ? Todos olharam surpresos para mim, revirei os olhos. ? Não é porque eu sou jovem, que eu não saiba como fazer as coisas.
Eles murmuraram umas desculpas e ficaram em silêncio esperando uma explicação. Tori se aproximou, quase tocando em mim esperando pela magia de teleporte, podia ler o medo nos olhos dela.
? Eu vou distrair Higarath, vou manter ele ocupado enquanto vocês tiram as garotas de lá.
? As? – Maddox perguntou.
? Como vai distrair ele? – Hisana também parecia desconfiada.
? Confiem em mim! – Maddox estreitou os olhos, mas a marca cinzenta em seu braço normal começou a pulsar em vermelho e ele fez uma careta de dor.
? O que é isso? – Hisana e eu perguntamos juntos, Tori e Tainar se entreolharam apreensivas, apertando suas armas com força.
? Eu sou o líder do clã Cyfar, as mesmas sombras que marcam todos no clã me mantêm informado da situação de cada um, e nesse momento, algo está acontecendo com Gwyn! – Maddox se levantou e seguiu para fora da pensão. Hisana deixou algumas moedas de ouro sobre a mesa e terminou o vinho de Maddox, ela piscou para mim antes de seguir os três bruxos.
Do lado de fora, a neve havia recomeçado a cair em flocos grossos, deixando a paisagem nebulosa e encoberta, não podíamos ver nada depois de uma certa distância. Maddox olhou a marca pulsante em seu braço, depois me encarou, um aceno silencioso foi o suficiente para saber que estávamos indo para Pollo.
? Para Adrenire. – Disse Hisana pegando meu rosto e pressionando sua testa na minha, mostrando-me uma cidade deserta na saída sul do Palácio dos Ossos. ? Ela não é habitada e ninguém vigia aquele lugar.
? Então é para lá que vamos. ? Abri o portal direto para a pequena cidade abandonada. As luzes do portal estavam estranhas, diferentes do dourado habitual, a magia estava branca e fria.
Atravessamos o túnel curto que foi escurecendo quanto mais nos aproximávamos a saída para Pollo, estava com a lança na mão pois uma sensação terrível tomava conta de mim.
Ao saímos do portal, nossa atenção foi presa por um imenso anel de nuvens negras sobre a torre principal do palácio. O anel de nuvens soltava raios e dentro dele havia o céu negro, estrelado e com uma longa ponte de luz branca desaparecendo para dentro dele.
? Um portal... – Tori estava sem fôlego.
? Um portal com uma ligação entre os mundos. – Maddox murmurou. ? Como a passagem das estrelas!
? Não temos tempo. Precisamos impedir que ele entre lá!
Tainar brilhou, então seu corpo se deformou e ela transformou-se num imenso dragão branco, Tori saltou sobre suas costas e voou com ela em direção ao palácio. Abri as asas para voar até lá também e estendi a mão para Hisana, mas essa tinha um sorriso cruel no rosto, Maddox olhava com a mesma surpresa para ela, quando a rainha tocou a pequena esfera em sua testa e transformou-se num ser lupino com o dobro do tamanho que tinha em sua forma humana, ela ficou de pé nas patas traseiras, pegou suas espadas e seus olhos vermelhos brilharam no momento em que disparou para o palácio.
Maddox não perdeu tempo, lhe dei um aceno e disparei para o céu, emparelhando o voo com Tainar e Tori.
? Não vão direto para cima de Higarath, ele pode matar vocês! Procurem pelo bruxo que Maddox disse estar preso que eu cuido do mago! ? Gritei para elas, Tori fez uma careta para mim, mas obedeceram, o dragão mergulhou em direção ao pátio principal fazendo com que muitos dos servos saíssem correndo desesperados.
Voei até a torre sem nenhum problema, não havia nada para me impedir, nem barreiras, nem sombras. O caminho estava livre até lá e o cheiro de armadilha ficava cada vez mais notável. O telhado da torre havia sido removido, deixando uma sala grande cheia de globos de vidro negros a vista do céu, aquela ponte de luz brilhante estava conectada às esferas e aquilo fez um arrepio subir por minha espinha. Fiz uma volta ao redor da torre, observando tudo lá dentro até ver Higarath aparecer junto com as vampiras, levando Gwendollyn acorrentada até as esferas.
Mergulhei em direção à sala, pousando diante deles, entre Higarath e a entrada portal. Say e Liilac se sobressaltaram, elas não sabiam como reagir a minha chegada e olhavam para Higarath como se esperassem por uma ordem. Higarath franziu o cenho e ergueu a mão, envolvendo-a com sombras.
? Saia do caminho, garoto. – Uma ordem.
? Nem pensar! – Sorri provocando-o.
? Disse a ela que não mataria você, mas se ficar no meu caminho, não vou te poupar! VAMOS SAIA! – Ele rosnou fazendo as sombras se espalharem pela sala, as vampiras se encolheram, mas não soltaram as correntes que prendiam Gwyn. A garota, estava amordaçada, vestia uma túnica azul escura e seu corpo estava marcado por símbolos vermelhos, na certa feitos com sangue. Ela me olhava implorando por ajuda, tentava se soltar das correntes.
? Tem que haver outro jeito! Pegue a alma de volta, tome-a de Ayrana, mas deixe a menina em paz! – Pedi. Higarath riu e olhou diretamente para Gwyn, que se encolheu.
? Saia, Susano. – Precisava de tempo para que Caalin aparecesse, não podia contra agora com meus pais, pois haviam acabado de subir ao centro do círculo, mas não pareciam ter conseguido fazer qualquer diferença sobre aquele portal. Higarath seguiu meus olhos até o interior do portal, onde os Sóis brilhavam um de cada lado.
? Ah, dei uma estimativa de tempo errada para Ayrana. ? Ele sorriu. ? O portal se abriria em poucas horas. Ele já estava aberto quando Leona e Ewren foram transformados em Sóis. ? Ele sabia!
? Não pode ser... Mas o portal, ela disse que só durava meia hora!
Higarath meneou a cabeça positivamente e estalou os dedos, então Liilac se aproximou trazendo Gwyn com ela. Porém quando viu que eu ia avançar para cima dela, Liilac colocou uma adaga no pescoço de Gwyn e me deu um olhar repreensivo, mas calmo. Elas tinham um plano também?
? Sim, mas acontece que eu li Adraph por completo, haviam algumas notas sobre durabilidade de feitiços! ? Higarath virou-se e pegou a mão de Say, ela não reagiu ao seu toque, parecia perdida e seu olhar agora estava sem foco.
Sayuri subiu numa plataforma circular entre os globos negros e ficou de pé, olhando para o nada. Higarath então se aproximou dela, segurou seu rosto e soprou seus lábios. Liilac olhava desconfiada, com medo de que a irmã se ferisse, mas não parecia que ele ia machucá-la.
? Existe um método simples de manter qualquer portal aberto por quanto tempo você quiser... – Say soltou um gemido e se encolheu, para meu assombro percebi que seu rosto estava rosado, seus olhos estavam num tom castanho mel, na mesma cor que os cabelos escorridos. Ela estava humana!
? Say! – Liilac tinha um sorriso no rosto ao perceber que a irmã estava curada, mas ela não havia visto a adaga na mão de Higarath. Não me movi rápido o suficiente, antes daquela lâmina deslizar sobre a garganta de Say. O grito de Liilac fez meu corpo inteiro tremer. Higarath não se importava com ninguém além dele mesmo, ela avançou para cima dele, mas foi derrubada por um golpe de uma sombra que acertou em cheio seu peito e caiu desacordada no chão. Gwyn tentou se aproximar de mim, mas foi impedida por uma salamandra que não faço ideia de onde saiu. O sangue de Say Escorreu e empoçou sobre a plataforma, que começou a brilhar e marcar todos os globos de vidro com símbolos antigos de magia negra.
? O que você fez! – Urrei puxando a lança e me preparando para lutar, mas Higarath apenas ergueu uma sobrancelha e limpou despreocupadamente a lâmina da adaga.
? Sabia que Haalin odiava os humanos? Ele os caçava e os matava sem lhes dar chance de defesa? – Higarath soltou o corpo sem vida de Sayuri no chão e se aproximou de mim. ? Adraph foi escrito pelo primeiro elfo que veio da Terra para o primeiro mundo que a filha dele fez..., mas ele odiava humanos, e uma grande parte dos feitiços mais duradouros do livro dele, envolvem sacrifícios de humanos.
? Fico impressionado com sua falta de compaixão! – Retruquei mantendo a lança firme nas mãos. Gwyn chorava e murmurava uma oração na língua nativa de Dartaris, na certa esperando que as divindades deles pudessem ouvi-la.
? Não é falta de compaixão, é foco! ? Ele deu um sorriso então andou até Liilac caída perto de mim, mas girei Enaras e o ataquei, Higarath puxou a mão um segundo antes que a lâmina arrancasse seu braço. Higarath soltou um rosnado e avançou para cima de mim, lançando sombras em minha direção. O escudo de magia que fiz se desmanchou com aquele golpe, e eu fui derrubado pelas sombras e atingido diversas vezes por elas, o gosto metálico de meu sangue logo subiu a boca e mesmo que tentasse, não conseguia me mover.
? Vou te transformar em nada se entrar em meu caminho novamente garoto! ? Ele grunhiu, soltei um risinho, fazendo várias lâminas feitas de vento sólido o atacarem e causarem cortes profundos por todo seu corpo. Ele saltou para longe, usando magia para se curar e olhando ainda mais irado para mim.
Onde estava Caalin? Se ele chegasse logo, podíamos acabar com a guerra que estava por vir ali mesmo! Higarath era um mago negro mais ainda era humano! Ele morreria facilmente com um ferimento fatal assim que as sombras desaparecessem.
? Não tenho tempo a perder com você!
“Use uma barreira agora! ” Vensis gritou e no instante seguinte, fui envolvido por uma névoa negra densa e meu corpo ficou dormente.
“O quê... ”
“Veneno. ”
Fiquei no canto da sala escorado na parede enquanto tentava respirar normalmente. Higarath não devia ser bom em combate físico, ou não se incomodava em tentar.
? Vamos logo com isso. – Higarath pegou Gwyn e ela começou a se debater e gritar enquanto era arrastada para aquele portal. ? Não tenha medo minha querida, eu vou logo atrás de você! ? Disse para Gwyn ao empurrá-la na direção da entrada. Tinha certeza de que ele ia conseguir atravessar o portal com ela, mas um raio atingiu o centro da sala pouco antes que eles alcançassem a entrada. Nunca senti tanto alívio ao ver Caalin saltar de dentro de outro portal e aterrissar perto de nós. Higarath empurrou Gwyn na direção da Salamandra que a pegou e rapidamente saiu da linha de fogo.
Algo em mim tremeu ao perceber quem era a Salamandra, ela piscou para mim e começou a se afastar devagar com Gwyn. Era Lay, uma antiga mestra V9.
Caalin girou seu machado e deu um passo adiante, encarando Higarath irritado.
? Fazendo uma visitinha ao seu pai? ? Higarath riu e segurou aquelas duas espadas negras nas mãos.
– Vim te mandar para a cova, pai. – Caalin rosnou de volta, mas Higarath não se importou, ele apenas riu e se alongou, firmando as espadas.
– Sinto que isso não será possível! – Higarath se moveu rápido demais, tão rápido que eu mal registrei, apenas ouvi o som de metal se chocando. Caalin estava com o machado erguido, havia parado o primeiro golpe de seu pai com facilidade. Higarath mostrou os dentes, então espalhou as sombras pela sala e as concentrou para atacar Caalin. Ele deu um puxão rápido no machado, fazendo Higarath perder o equilíbrio e se afastar, porém ele não parou de atacar, envolvendo suas espadas com aquelas sombras que se projetavam das armas a cada golpe. Higarath era bom! Ele era forte e preciso em seus golpes e Caalin parecia estar em desvantagem com o machado, pois as espadas de Higarath dançavam em ritmos diferentes e Caalin só conseguia se defender.
Os dois travavam uma luta feroz, Higarath afastou-se quando o peso de Sielem começou a ser demais para ele, o mago afastou-se em direção as esferas de vidro, então girou nos calcanhares e se abaixou, desferindo um golpe com as espadas direto no peito de Caalin, mas Caalin soltou o machado, usando as lâminas como um escudo, em seguida puxou a ponteira acima das lâminas, fazendo uma alavanca com a arma e usando a ponta de lança para abrir um rasgo da barriga ao ombro de Higarath.
Ele grunhiu com o ferimento, mas a névoa negra o cobriu e fechou o ferimento como se não passasse de um arranhão. Higarath avançou novamente, com as espadas erguidas e as brandia em todas as direções, apenas em pontos vitais, mas Caalin conseguia desviar dos golpes com facilidade. Higarath ainda era um humano, apenas a magia negra o mantinha daquela forma imortal, mas suas habilidades ainda eram de um simples guerreiro humano. Se não fossem as sombras, eu também teria vantagem sobre ele.
Caalin parecia um espelho de calma letal, os ataques com Sielem estavam ficando cada vez mais firmes e precisos e ele tinha apenas cortes superficiais enquanto Higarath já estava começando a ceder. Num movimento ousado, Higarath soltou uma das espadas e lançou a outra em direção ao pescoço do filho, onde sua guarda estava aberta. Para evitar a espada, Caalin teve que erguer uma cortina de raios, que derreteram a espada em um segundo, mas deu chance de Higarath se afastar e se curar novamente. Caalin lançou o machado, acertando uma das esferas negras que se rachou e começou a vazar aquela massa negra.
— Quero esse machado para mim! — Brinquei, tentando me acalmar. Caalin tossiu uma risada e me encarou meneando a cabeça.
— Quando eu morrer, pode pegar! Não vou conseguir levar ele para o além-mundo mesmo.
Higarath soltou um grunhido ao perceber que o portal oscilou e a ponte começou a perder o brilho. Ele então lançou uma onda de magia negra contra Caalin, rápido demais, nem Caalin conseguiria escapar daquelas farpas negras que se projetaram para mata-lo, porém, seu corpo brilhou levemente, fazendo as sobras dissiparem. Ele deu um sorriso presunçoso e Higarath deu um passo para trás, assustado. Caalin veio até mim, estendendo uma fina linha brilhante de luz, que fez a dormência desaparecer e num segundo estava de pé ao seu lado com a lança em punho. Higarath olhou para onde Lay segurava Gwyn, então olhou de volta para nós dois.
— Acho que está na hora de chamar reforços... – Higarath deu uma risadinha, então assoviou baixo de uma forma que fez os cabelos da minha nuca se arrepiarem. Caalin parecia não entender o que estava acontecendo.
A porta de vidro então se abriu e meu estômago rolou ao ver Nikella entrar na sala com uma camisola fina, vermelha na altura dos joelhos e bocejando. Ela passou os dedos entre os fios bagunçados dos cabelos e parou para nos observar. Seus olhos encontraram os meus primeiro, depois ela olhou para Caalin com a boca pressionada com força, havia algo muito errado com ela, e o mais assustador, o fio que a ligava a Caalin não estava lá.
— Que bagunça é essa? — Ela resmungou, pousando a mão no quadril e inclinando o corpo para o lado.
— Nike... — Caalin a olhava boquiaberto, olhou as roupas, a expressão em seu rosto e a casualidade que ela andou até o lado de Higarath e se pôs entre eles. — O que...
— Um deleite, não é? – Higarath sorriu, passando a língua sobre os lábios e deslizando os dedos pelo braço dela, percebi que Nike tinha o cheiro dele sobre ela, e aquilo me atingiu quase como uma dor física. Ela havia se entregado, feito uma distração para que pudéssemos ter tempo de bolar um plano.
Ódio puro brilhava nos olhos de Caalin quando ele olhou novamente para Higarath.
— Eu vou acabar com você! – Ele urrou avançando para cima de Higarath com duas adagas nas mãos, porém, Nike entrou na frente e parou o golpe com Siferath, gemendo e dobrando os joelhos contra a força de Caalin. Ele se assustou e cambaleou, surpreso demais com a reação dela. Nike deu uma risadinha debochada, então avançou para cima de Caalin, desferindo golpes com Siferath com força que nunca a vira usar. Caalin estava tão chocado que não fazia nada além de se defender até o momento que Siferath acertou seu ombro, causando um corte profundo que fez sangue transparente azulado escorrer e ensopar a túnica dele.
“Ajude-o! Ele está em choque, ela vai matá-lo assim! ” Vensis gritou, não podia fazer muito contra ela, mas precisava que Caalin impedisse Higarath de entrar naquele portal, não por ele pegar a alma de sua amada no mundo dos mortos, mas porque depois daquilo, ele destruiria a todos pela negligência de Ayrana. Se Higarath morresse ali, a guerra teria fim.
Avancei contra Nike, para tentar impedir o próximo golpe dela contra Caalin. Quando parei Siferath com a lança, um misto de alívio e preocupação apareceu no rosto dela. Ela deu uma rápida olhada na direção de Higarath, ele estava concertando o globo que Caalin havia destruído, Nike então ergueu a foice e me acertou com força, o som das armas de vitrino se chocando e o peso do impacto fez meus ossos gemerem, mas Nike continuava me encarando como se quisesse dizer algo.
Gwyn! A súplica no olhar dela era pela irmã.
— Caalin! A menina! – Gritei, fazendo-o sair do transe. O ferimento em seu ombro estava fechando-se lentamente. Mas Nike não ousou olhar para ele, dava para ver a tristeza em seu olhar agora, mesmo quando ela deferia golpe após golpe, mantendo-me distante dos outros. Ela estava apenas me impedindo de aproximar-me de Higarath.
— Caalin! – Gritei outra vez, usando a lança para parar um golpe de Nike, que por pouco não atinge meu peito. Higarath lançou outra parede de sombras contra Caalin, mas as mesmas desapareceram antes de tocar seu corpo. Caalin levantou-se segurando o machado com força e foi para cima de Higarath novamente.
Lay saiu de trás de Higarath naquele momento com uma adaga em punho, ela ficou entre Higarath e Caalin, então o piso sob nossos pés tremeu e uma raiz grossa e coberta de terra úmida atravessou o piso, jogando terra, cascalho e pedaços do piso para todos os lados e envolveu Caalin, prendendo-o ao chão. A poeira e o barulho distraíram Nike tempo o suficiente para que eu a desarmasse e a derrubasse, prendendo-a sob mim, cravei a lança no chão e inclinei a lâmina em direção ao seu pescoço, pressionando-a ali. Ela pareceu aliviada ao estar presa e ter que parar de me enfrentar.
Caalin urrou, tentando usar os raios para se soltar, mas o brilho verde que saia das mãos de Lay confirmaram o que suspeitei ao ver aquele poder. Ela estava com a Alma da Terra. Lay nem sequer piscou, ela pegou uma adaga presa em sua perna e a desceu na direção do peito de Caalin. Nike ficou sem folego abaixo de mim, mas nada saiu dela, nem sequer um rastro de magia para tentar impedir aquilo, parte de sua encenação ou não, aquilo era perturbador.
A adaga de Lay foi virada para trás no último segundo, antes de se enterrar na carne de Caalin, ela virou-se como um bicho e mirou a garganta de Higarath, meu coração saltou com a esperança, que ele acabaria ali.
Mas parecia ele já esperava uma traição dela.
A espada de Higarath atravessou o peito de Lay, direto no coração.
— Esperava mais de você. – Disse ele girando a arma arrancando e a arrancando do peito da salamandra, fazendo com que ela cuspisse sangue e caísse ao lado de Caalin. Ela olhou para ele uma última vez e a raiz se desfez, soltando-o no chão.
— Desculpe... irmão. Eu tentei... – Ela respirou com dificuldade, engasgando-se com o sangue, então seus olhos perderam o brilho e uma névoa verde soltou-se de seu corpo.
— Antares... – Caalin sussurrou, fechando olhos da mulher.
— Uma pena... — Caalin não deixou Higarath terminar a frase, pegou a adaga da mão de Lay, mas ao redor dele havia uma barreira tão intensa de luz violeta e sombras que repeliu Caalin. Higarath puxou Gwyn pelas correntes, ela se debatia e urrava, mas não conseguia se soltar.
— A barreira do portal. — Nike sussurrou. — Eles estão dentro do limite dela... agora é tarde. — Levantei-me tirando Nike debaixo de mim, mas mantive a lâmina da lança em seu pescoço, prendendo seus braços para trás. Higarath deu um olhar desconfiado para ela, mas a linha de sangue sob a lâmina que eu matinha precisamente pressionada contra seu pescoço talvez o tenha convencido que não estava de brincadeira. Ele deu um sorrisinho, sem se importar o que acontecia com ela. Como todos ao seu redor, ela era descartável para ele.
— Ele não pode entrar em Mogyin! Como está se aproximando do portal? — Questionei.
— Sangue puro derramado para abrir o portal, Say era virgem. — Nike sussurrou baixo demais. — O sangue puro serviu como um pagamento, uma troca. Agora Higarath entrará em Mogyin e pegará o que quer e Gwyn estará condenada.
Meu coração se apertou ainda mais ao ver as lágrimas silenciosas rolarem pelo rosto de Nike, ao me lembrar de meus pais que agora guardavam o círculo, me senti ainda pior, pois o sacrifício deles havia sido em vão.
Higarath e Gwyn desapareceram por aquela estrada de luz pouco antes de Maddox e outro bruxo aparecerem na sala, cobertos de sangue e uma gosma negra, ambos ofegando. Maddox baixou os olhos para as mãos e suspirou cansado, ao ver que tínhamos falhado.
Ao não encontrar Gwyn ali, o bruxo rosnou e se virou para Nike, que facilmente se soltou de meu aperto, livrando-se da lâmina em seu pescoço. O bruxo foi para cima dela, mas Caalin e eu fomos mais rápidos e entramos no caminho.
— Eu disse que se ela fosse ferida... – O bruxo apontou para Nike, mas ela apenas deu de ombros, virou as costas e começou a sair da sala. Novamente ele tentou ir para cima, mas o impedi com a lança, Maddox também apertou o ombro do bruxo, trocando com ele um olhar abatido. Caalin moveu-se rápido, pegando o braço de Nike e a pressionando contra a parede, sua respiração estava entrecortada e a ferida em seu ombro ainda estava se fechando.
— Você prometeu que estaria comigo no fim! — Ele rosnou. — Por quê? Por que está fazendo isso, Nikella! — Ela engoliu em seco, mas não desviou os olhos dos dele.
— Porque tive que escolher entre dois lados errados, e escolhi o que menos ia ferir as pessoas que eu amava. — Ela se soltou do aperto com um puxão e o encarou de forma fria. — Seu filho não hesitou em me fazer matar minha Annie, Ayrana o mandou até lá para me caçar, mas ao invés de me enfrentar, ele me manipulou e pagou com a vida por isso. Ayrana só teve consideração pelos outros quando criou os treze mundos, até com você ela falhou, Caalin... — Nike mordeu os lábios, ela certamente ia falar algo mais, mas preferiu ficar em silêncio ao ver o choque no rosto dele.
Caalin deu um passo hesitante para trás, Nike apenas respirou fundo e colocou Siferath sobre o ombro, ela olhou os corpos de Liilac e Sayuri no chão, depois olhou para todos nós:
— Posso sentir que algo de ruim está prestes a acontecer. — Ela sussurrou encarando o portal fechado que soltava gavinhas de escuridão, luz e uma magia violeta que mantinha a barreira de pé. — Vão embora, preparem-se! — Ela tornou a encarar Caalin. — Na próxima eu não vou ficar brincando.
Sem mais uma palavra, Nike saiu da sala, levando os corpos das duas irmãs com ela.
— O que houve lá embaixo? — Perguntei a Maddox depois de um longo momento de silêncio enquanto observava o chão coberto com sangue.
— Muitos lobisomens sob controle das sombras... — Maddox respirou fundo e me entregou uma esfera azul brilhante que reconheci ser o pingente que ficava preso a testa de Hisana. — Eles não a reconheceram e ela se recusou a enfrentar, lutar contra seu povo. Fechei os dedos ao redor do ornamento, ele deveria ser entregue a Ederon, e eu o faria.
— E quanto a Tainar e Tori?
— Foram para o continente Sul em busca de algo. Não me deram mais informações, elas só reportam a Júlia. — Assenti.
Caalin ficou parado observando o nada até que toquei em seu braço e reabri o portal para Vegahn. Não havia mais nada a ser feito ali. Perdemos muito mais em uma tentativa de acabar com a guerra antes que começasse do que se tivéssemos apenas esperado.
— Quando ele tiver Muriel, vai vir com tudo para cima de nós. Precisamos estar preparados. — Sussurrei, arrastando-o para o portal aberto.
— Nem despertando o poder de Yezélami eu consegui fazer algo de bom. — Caalin desabafou olhando uma última vez para a porta por onde Nike havia desaparecido.
Ele havia desistido de lutar.
— Treinou duro para conseguir isso rápido, talvez nem tenha conseguido despertar Yezélami totalmente, está exausto e não podemos esquecer de que é um velhinho. — Caalin não riu, mas pelo menos suspirou resignado.
— Com sorte, teremos pelo menos cinco dias antes que ele volte de Mogyin, espero. Vou te ajudar a liberá-la. — Caalin deu um pequeno sorriso, então seguiu comigo para dentro do portal.
Capítulo 16
Depois de quatro dias de brigas constantes de vários guardiões com Ayrana no Castelo de Gelo, de Caalin soltar os cachorros nela por conta de Lenios e das noites de treinamento árduo tentando fazer Caalin invocar luz, coisa que não conseguiu mais fazer depois de ver Nike ao lado de Higarath, com o cheiro dele enquanto aquela marca lilás do casamento ainda brilhava nos dedos dela, eu estava esgotado. Depois do treinamento daquela noite iria tirar uma hora para fazer algo que estava contribuindo com os outros problemas para me deixar sem sono.
As gêmeas não haviam aceitado nada bem nossos pais presos ao céu como sóis, ainda mais depois que Áries contou como era viver lá, mas infelizmente não podíamos ajudá-los por enquanto. Pensaríamos em algo depois.
Caalin andou comigo para fora do castelo no fim da tarde, a neve havia parado de cair poucos minutos antes de sairmos do castelo, a paisagem branca e pura das florestas ao redor do castelo parecia estranhamente vivas naquele dia, algo no gelo parecia pulsar e me chamar. Caalin ostentava um semblante abatido, embora estivesse quase conseguindo manifestar luz novamente, parecia que sua própria luz havia desaparecido.
Paramos no meio do lago de gelo, assim ele era obrigado a treinar apenas com a luz, pois os raios podiam derreter o gelo e nos afundar. Caalin então começou a manipular uma esfera de luz, mas seu olhar estava perdido além da neve.
— Nike me atacou como se eu não fosse nada para ela... — Ele choramingou, fazendo a bolinha de luz pulsar. Revirei os olhos e respirei fundo, contando até dez para não começar um discurso, mas Caalin fechou a mão ao redor da esfera e deixou a luz se desfazer.
— Você não percebeu nada, Caalin? — Tentei manter meu rosnado sob controle.
— Percebi que ela quase me partiu com a foice. — Retrucou.
— Caalin... — Respirei fundo, sem saber se contava a verdade ou se o deixava naquela fossa um pouco mais.
— Nike não me ama. Talvez nunca tenha amado. — Dessa vez, pisquei surpreso com aquela afirmação louca.
— Do que está falando? — Caalin pegou um montinho de neve no chão e o espremeu, soltando um bloco de gelo no lago, provocando uma pequena rachadura.
— Eu fui uma âncora num momento que ela precisou. Eu a encontrei no gelo e curei seu coração partido, estendi a mão quando ela estava sozinha, sentindo-se abandonada. Fui apenas aquele que ofereceu um ponto de luz quando ela achava estar se perdendo naquelas sombras. Mas na verdade ela que me salvou. — Ele suspirou pesadamente e olhou para o céu, onde os dois Sóis começavam a se aproximar do horizonte, pintando o céu e a neve de púrpura e azul.
— Isso que está dizendo não faz sentido. — Tentei amenizar mesmo sabendo que podia ser verdade, lembrando de como a Nike era com Kuran. — E o laço entre vocês?
— Faz todo sentido, Susano. Ela apenas se apegou a quem estava mais próximo naquele momento difícil. — Ele bufou. — No fim ela se afastou, não morreu, mas se foi como todos que eu amava se foram. Ela quebrou o juramento de guardião... — E aquelas palavras me irritaram a ponto de me fazer lhe dizer as verdades que merecia ouvir.
— Caalin! Você a afastou! Ela só queria que você confiasse nela e você não fez! Você é velho, viveu demais e acha que devia saber mais por causa disso, pelas suas perdas eu até entendo que queria mantê-la segura! Mas você não confiou nela! NIKE É UMA CAÇADORA! Ela foi treinada para PENSAR, LUTAR E LIBERTAR! — Esfreguei o rosto irritado.
— E se...
— Você sente demais quando o assunto é Nike, e age de menos. Quer conseguir ela de volta? Ganhe essa guerra! Faça essa luz brilhar e acabe com os poderes de Higarath e peça perdão. Aí saberá se ela te ama ou não. — Não esperei que ele falasse nada, apenas virei as costas e atravessei o portal que havia aberto para Ciartes.
Não acreditei no quanto consegui dormir tranquilamente naquele sofá no centro da biblioteca da árvore do fogo. Embora cada parte de minha alma sofresse pelo cheiro daquele lugar, parecia que a árvore havia me acolhido para me confortar. Levantei-me lentamente, esticando as costas, mas ao olhar para o diário de Annie em cima da mesinha no centro, minha raiva fervilhou. Feroz estava deitado em meus pés olhando-me triste.
– Sinto muito, garoto. Eles não vão voltar. – Nunca senti tanta dor e raiva ao mesmo tempo em toda minha vida. Primeiro Annie, agora meus pais também! Cada parte de minha alma vibrava com a raiva que ameaçava subir à cabeça a qualquer momento.
– Não pode ficar assim, Susano. – Vensis havia se manifestado em minha frente novamente.
– Eu perdi tudo.
– Tem suas irmãs ainda. Tem Nike... – Ela sussurrou, sentando-se ao meu lado no sofá. – Ela precisa de você, precisa do melhor amigo dela, agora que a Amiga dela se foi. Precisam um do outro, então por maior que seja sua dor, não se atreva a se perder nas sombras. Por favor! – Ela implorou segurando minhas mãos.
– Ela tem Caalin. – Retruquei, Vensis revirou os olhos e deu um sorriso triste, colocou uma mecha de meu cabelo atrás de minha orelha.
– Ele não teria conseguido despertar Yezélami sem você, as vezes é um idiota.
– Annie não teria morrido se não fosse o filho idiota dele! – Grunhi levantando-me do sofá.
– E Nike já se vingou por você. – Suspirei olhando de soslaio para ela.
– Uma morte não ameniza outra, Vensis.
– Sei que não, mas...
– Sem mas. – Acariciei as orelhas de Feroz. Vensis ficou sentada me observando revirar as páginas do diário de Annie por um bom tempo antes de se levantar e vir até mim novamente.
– Infelizmente, não posso te ajudar agora. Não tenho palavras que façam sua dor parar, nem algo mágico a te oferecer para concertar todo o mal...
– Pode me dar um pouco de paz. Só preciso de um pouco de silêncio agora, entende? – Ela pareceu magoada, mas compreendeu.
– Estarei dentro de você se precisar de mim. – Dizendo isso, desapareceu.
Respirei fundo, esfregando o rosto e encarando as raízes enroladas no topo da biblioteca em espiral. Aquele lugar fazia meu coração se espremer, mas eu precisava estar ali, pelo menos uma última vez. Aquilo me daria força para enfrentar o que estava por vir.
Quatro dias... faziam quatro dias que Higarath havia entrado naquele portal com Gwyn, não demoraria muito para ele aparecer triunfante com sua amada no corpo de Gwyn e marcharia seus exércitos sombrios pelos mundos restantes para toma-los e vingar-se de Ayrana por sua omissão.
Não havia dado nenhum passo quando um estrondo do lado de fora fez meu estômago se embrulhar com o nervoso. Assoviei para que Feroz me seguisse, corri para fora da árvore e observei a nuvem negra de tempestade cobrir quase todo o céu de Ciartes.
Uma esfera lilás brilhou diante de mim e uma voz quase desesperada me deu um alerta:
“Filho! Ele conseguiu passar por nossas barreiras e já está em Vegahn com todo o exército sombrio! Fique longe de lá por favor! ”
Era a voz de minha mãe... e se o Ele significava Higarath, então ele havia finalmente conseguido pegar a alma de Muriel.
Ficar em segurança? Dei um sorriso e olhei para o céu, pedindo perdão silenciosamente a minha mãe, mas eles não haviam criado um covarde que se esconde na hora da luta. Feroz bateu o focinho em mim, pedindo para ser levado também.
— Não, amigo! Você vai ficar na cidade do Sol e proteger a vovó Gih, Nike não gostaria de que ela se ferisse, caso a guerra chegue aqui.
Feroz voltou-se para a cidade e disparou pela areia do deserto enquanto eu abri um portal para Vegahn. Queria ver no que aquilo ia dar, então um momento antes de chegar ao mundo de gelo, usei minha magia para enviar mensagens a todos os aliados que tinha conhecimento.
Do outro lado dos portais, parecia que o Caos tinha desabado sobre Vegahn. O gelo estava cinzento devido as pesadas nuvens tempestuosas encobrindo o céu, raios faziam o cenário parecer de terror. Corri em direção ao castelo apenas para encontrar Zion montada Ira vindo correndo ao meu encontro:
— Susano! — Ela ofegou, estendendo a mão para mim, sem entender, dei a mão a ela e num rápido movimento, ela me atirou atrás dela sobre ira e esse disparou pela neve.
— O que aconteceu? — Questionei.
— Higarath enviou uma mensagem agora a pouco, ele está em Dakshin, o continente Sul.
— Ele e... ?
— E todo exército de sombrios... ele urrou algo sobre Ayrana ser uma mentirosa covarde e que vai massacrar a todos para tomar a alma de Muriel.
Meu interior congelou quando pensei na possibilidade. Ayrana o enganou mesmo sabendo da ameaça que sofríamos. A alma de Muriel não estava em Mogyin! Ela estava naquele pingente que Ayrana tentava esconder de Higarath dias atrás quando ele foi até ela! Um rosnado de fúria me escapou do peito e Zion soltou um gritinho, pois estava apertando-a com força e não havia percebido. Ela bufou e olhou por cima do ombro com os olhos vermelhos brilhando com a irritação:
— Deixe essa força para aquele campo, vai precisar! — Ela ralhou.
— Porque ele não veio até aqui? — Era mais uma pergunta interna, mas que saiu alta demais.
— A barreira de proteção da Nike se expandiu durante a noite, Blizzion inteiro foi coberto por ela e ninguém pode entrar e sair daqui por portais. — Olhei para cima incrédulo, só então percebi que entre as nuvens o céu estava coberto por mandalas de cor vinho que brilhavam como constelações contra o céu escuro. Estava prestes a amanhecer, mas não havia sinais dos sóis em parte alguma no horizonte e aquilo me deu um mal pressentimento.
— Espera... você disse que ninguém pode entrar e sair de Blizzion por portais? — Gelo desceu por meu estômago ao ver Zion acenar.
— E apenas o exército de Miriel e Hellidy estavam em Vegahn. — Dava para sentir a tensão de Zion quando seus músculos tencionaram sob a armadura de couro de dragão cinzento. — Não sei se os outros chegarão a tempo...
— Vamos conseguir. — Encorajei a nós dois. — Para onde estamos indo?
— Um único lugar que dá para teleportar depois dessa barreira... Planície Gelikans, a quarenta minutos daqui! — Esse tempo podia ser tarde demais.
Antes que Zion mudasse a rota, abri um portal diante de nós, fazendo Ira das um pinote assustado, mas não rápido suficiente para evitar o portal. Zion olhou para mim chocada, mas voltou a encarar o céu, quando aparecemos numa planície coberta de gelo entre duas florestas congeladas.
Eu devia ter calculado um outro lugar para aparecermos, mas não conhecia muito daquele continente para saber que estávamos na maior área aberta de Dakshin. A escuridão aqui estava tão intensa que mal víamos a lua brilhando no céu, por sorte, tinha aquela bendita visão élfica.
— Foi aqui que a guerra do gelo começou. — Zion murmurou cutucando meu ombro para que eu olhasse para trás. O local onde aquelas nuvens estavam surgindo e mesmo que estivesse recitando um mantra por dentro para não ter medo, meu interior ficou líquido de repente. Uma legião de sombrios se estendia até onde as vistas podiam alcançar, pareciam surgir de dentro das nuvens de tempestade e estavam envoltos naquela escuridão. Diante deles, Higarath vinha furioso, pois onde pisava, a neve escurecia.
Zion deu outro puxão em meu braço e dessa vez apontou os que surgiam do outro lado do campo. Caalin, Ayrana, Aliver e Ayran vinham seguidos de um exército de malvarmos, junto com eles, vinham Hellidy e Miriel com centenas de abissais vestidos para batalha, em suas armaduras azuis brilhantes. Nós estávamos em um número esmagadoramente menor e tudo que pude fazer foi enviar mais mensagens aos nossos aliados, com o local onde estávamos, mas talvez eles não chegassem a tempo mesmo com os portais. Corremos ao encontro do exército que Caalin reuniu, mas ao me aproximar percebi que ele ainda estava com aquele vazio nos olhos, mesmo com a armadura branca reluzente e os cabelos trançados, ele nem de longe lembrava um rei pronto para uma batalha.
De novo, meus olhos se voltaram para o horizonte, procurando por qualquer sinal de meus pais, porém eles não estavam lá.
— Ayrana... — Cheguei rosnando, mas ela nem sequer olhou para mim, seus olhos estavam fixos no outro lado do campo, exatamente no ponto ao lado de Higarath, onde Nike vinha com Siferath sobre os ombros, dentro do uniforme negro de caçadora. Caalin também a olhava com expressão perdida. Tinha vontade de dar-lhe um soco para ver se ele voltava a si.
Todos os soldados ao nosso redor tinham o mesmo olhar sem esperança estampado no rosto, alguns estavam apavorados, e pareciam hesitantes.
— Ele tem vinte vezes o nosso número. — Ayran comentou, mexendo em sua espada nervoso.
— Nossos aliados não estão aqui! — Hellidy completou encarando Ayrana de forma cortante.
— Nós ainda temos uma chance. — Ponderei olhando de soslaio para Caalin, ele fez um aceno com a cabeça, mas não tirou os olhos da massa negra que marchava lentamente em nossa direção, pareciam querer nos amedrontar a ponto de não termos força na hora da luta.
— Hellidy, arrumou a manopla em sua mão e me deu um olhar significativo, ela já havia lutado numa guerra semelhante, mas não com tanta desvantagem.
— Vamos todos morrer. — Comentou Ayran olhando as nuvens se espalhando cada vez mais.
— Não sabia que gente morta podia morrer de novo. — Lati em resposta. Não precisávamos daquilo.
“Eles precisam de motivação, Su! Mostre o que tem de Eirien em você, mostre que é um líder, já que os lideres aqui estão fraquejando. ” Vensis sussurrou em minha mente, mas não conseguia pensar em nada para dizer.
Uma gargalhada cruel se espalhou pelo ar, fazendo minha pele se arrepiar:
— Satisfeita, Yellen?! — Higarath urrou, fazendo sua voz soar como mil trovões. — Vocês serão massacrados por sua culpa! Por sua negligência! Você os tirou da Terra para morrerem longe de casa! — Ele gritou.
Ayrana mantinha a expressão vazia contida, mas por um instante a vi olhar para o céu e proferir duas palavras que não pude entender, então um sorriso frio apareceu em seu rosto.
— Você devia estar nesse campo sozinha! Ninguém aqui tem obrigação de lutar por sua causa. — Rosnei para ela. — Eles estão aqui por suas casas, suas famílias e seus mundos, você não é digna da força deles, Ayrana.
Ela me olhou com raiva. Mas a minha raiva era maior.
Uma luz dourada brilhou a alguns metros de distância de nós, e dele saíram Sheriah, Ericko, Karin, Asahi e Kuran, seguidos por Misty e todos os mestres da ACV junto com os caçadores Venox e muitos dos alunos do V9 e V8. Ericko andou até mim e pôs a mão no coração.
— Rei de Amantia... — Ele deu um sorriso triste. — Recebemos o seu chamado. — Ericko olhou para o horizonte e sua expressão endureceu.
— Eles... — Karin se aproximou, apertando meu braço com a respiração entrecortada.
— Eu sei.
— Saldazaris não virá. — Sheriah comentou desembainhando sua espada. — Higarath destruiu parte de seu mundo e ela se escondeu em seu castelo com medo.
— Mas pelo menos, os silfos não estão lá acrescentando ao exército dele. — Retruquei — E Amantia? — Questionei. Havia me esquecido completamente que sem meus pais, eu era o responsável por Amantia e meu estômago afundou, porém mais luzes douradas apareceram ao nosso redor e Eirien junta com Farahdox, Arcadius, Sirius, Aries e Aristes apareceram com o exército élfico de Amantia. Noutro portal, surgiram os Cyfars sob comando de Maddox, Ceiran e Gwyndion, que reconheci pela brutal cicatriz em seu rosto, eles eram seguidos por todo o clã dos bruxos, com as Sorcys montadas em vespas gigantes. Uma ponta de esperança acendeu-se em meu peito quando os vi ali. Jocelinne, Siorin e Nyumun apareceram no último portal, trazendo as tribos das bruxas de Amantia e os abissais das Tormentas com eles.
— Graças aos céus. — Murmurei baixo e percebi também que Higarath havia parado seu avanço. Porém, não foi por causa do nosso número que sofreu um notável aumento, mas sim pelas duas figuras e envoltas em brilho etéreo que apareceram ao lado de Ayrana.
— Mãe... Pai! — Karin choramingou. Andando até eles, porém, raios solares escaparam na direção dela, e o olhar deles estavam completamente apagados.
Não tive tempo de me virar para Ayrana e obrigar ela a dizer o que havia feito com eles, pois a ordem dela preencheu meu coração com uma súplica desesperada:
— Matem a garota. — Ayrana ordenou e no mesmo instante, minha mãe sacou uma lança feita de fogo vermelho e brilhante e meu pai duas espadas de luz azul e ambos avançaram para aquele exército negro, direto na direção de Nike.
Caalin olhou incrédulo para a mãe e urrou:
— FICOU LOUCA! ORDENE QUE PAREM! — Ele a sacudiu, mas Ayran o afastou dela com aquela estranha espada pesada. Não perdi tempo com a discussão, fiz um aceno para Karin para que me seguisse.
— Se eles a matarem, ficarão presos! – Gritei enquanto corríamos lado a lado em direção aos dois, ouvimos os protestos de Ericko, mas antes da ACV, Karin era minha parceira de treino.
— Apenas impedi-los. — Ela concluiu sacando sua lança e dando-me um sorriso.
Ouvimos as palavras de motivação de Eirien, e numa rápida olhada para trás, pude ver claramente ela esbofetear Ayrana antes de avançar com Hellidy e os outros adiante. Nossa cobertura, talvez.
Higarath nos ignorou completamente, passando direto por nós como um borrão negro, partindo em direção a Ayrana, mas não sem deixar um rastro de escuridão atrás dele.
Haviam sombrios de todas as espécies avançando para cima de nós, desde lobisomens a afogadores de nível inferior. Girava e descia a lança contra eles, usando o poder de Vensis para conjurar lâminas de vento que partiam qualquer um que entrasse no limite de nossas lanças. Partíamos carne, ossos e cabeças como se não houvesse amanhã, mas não conseguíamos alcançar os Sóis, que agora travavam uma intensa batalha com Nike. Ela estava conseguindo segurar os golpes de minha mãe facilmente, o que era estranho para uma malvarmo, mas os de meu pai com aquelas espadas azuis... pareciam estar deixando-a lenta.
— Mãe! Pai! Parem! – Gritei tentando abrir caminho, mas o número de sombrios parecia cada vez maior. Atrás de nós, os exércitos aliados não conseguiam nem chegar ao nosso alcance devido ao número e ferocidade do ataque dos sombrios. Não haviam se passado nem dez minutos e já via uma quantidade irreal de caídos dos dois lados.
O desespero começou a tomar conta de mim, procurei Caalin com os olhos e com magia, queria saber porque ele não estava usando a luz. Ele estava quase no começo do campo, enfrentando Higarath novamente. Ayrana estava escondida atrás de seu guardião e parecia murmurar algo para si enquanto observava aquela luta. Por um momento de descuido, quase fui estraçalhado por um lobisomem que saltou para cima de mim, mas uma foice o partiu ao meio no instante em que senti seu hálito quente tocar meu rosto.
Nike estava perto de mim, encarando-me com expressão de alívio no rosto, segurando a foice com as mãos trêmulas e respirando pesadamente. Ela virou-se rapidamente para impedir o próximo golpe de minha mãe, então, mesmo que me partisse por dentro usar magia contra ela, prendi minha mãe e meu pai numa bolha e tomei o ar de seus pulmões.
— Parem! — Vociferei.
— Não estão ouvindo, estão sendo controlados por Ayrana, Susano! — Nike cobriu o rasgo em seu ombro com a mão e logo esse se fechou, não havia uma gota de sangue em sua roupa, então entendi o que estava acontecendo. Nike deu um pequeno sorriso tristonho, confirmando o que estava imaginando, mas se aquela não era a Nike verdadeira...
— Su! Precisamos fazer eles pararem! — Karin gritou aproximando-se da barreira e golpeando com sua lança, arremessando uma onda de magia pelo campo ao nosso redor, evitando que alguns sombrios os atacassem.
— CAALIN! VAMOS, ACABE COM ISSO! — Urrei usando os ventos para levarem minha voz até ele. Caalin olhou por cima do ombro uma vez, mas estava circulado por sombrios e sua luz era suficiente apenas para fazê-lo ficar imune aos ataques mágicos de Higarath.
Olhei Ayrana atrás deles, protegida por Ayran, ela ainda recitava algo, provavelmente estava incitando meus pais com sua magia contra Nike. Quando minha barreira se quebrou, eles começaram a atacar Karin também.
— Karin! — Dei um grito de alerta ao ver a lança de minha mãe passar raspando em seu ombro, mas uma barreira de chamas irrompeu ao nosso redor, mantendo-os distante. Ericko aproximou-se e apenas tocou o rosto de Karin, uma confirmação que ela estava bem, então juntou-se a nós contra os sombrios que vinham das nuvens.
— São portais! Precisamos fechá-los, Susano! — Ericko Suplicou, observando o massacre ao nosso redor.
Raiva me consumia por dentro, tinha muito o que fazer ali, mas tudo que eu queria era rasgar a garganta de Ayrana e acabar com aquilo de uma vez por todas.
— Kuran! — Gritei por cima das vozes exaltadas, dos gritos de dor e agonia e dos sons das armas se chocando. Apontei para os portais, o leve aceno dele me fez compreender que ele sabia o que fazer, mas foi Hellidy que se aproximou primeiro das nuvens ela inspirou e deu um grito alto, estridente e tão sobrenatural que fez o ar ao nosso redor vibrar, partindo os portais e fez com que as tormentas dissipassem. Fiquei com meus sentidos comprometidos por um tempo que parecia eterno, uma tonteira terrível e um apito nos ouvidos, pareciam que todos no campo que estavam mais próximos a ela estavam assim também. O canto Sirênio, o poder puro e supremo de quatro gerações das herdeiras de Evenox. Não pude deixar de sorrir quando Hellidy virou-se para trás e repetiu aquilo, fazendo um quarto do exército sombrio simplesmente se desfazer em nada. Um problema a menos. Minha prioridade agora era quebrar o controle mental que Ayrana exercia sobre os sóis, se eles matassem alguém naquele campo, nunca mais poderiam descer.
Disparei em direção a “criadora” deixando Nike e Karin virando-se com os sóis, porém, no meio do caminho reparei que Higarath e Caalin haviam parado de lutar e ambos olhavam para Ayrana. Minha corrida acabou na metade do caminho até eles ao ver o corpo de Ayrana brilhar e ela se encolher berrando e contorcendo-se de dor.
— O QUE VOCÊ FEZ! — Higarath urrou, fazendo as sombras se intensificarem. Fui ao encontro deles e vi aos pés de Ayrana o pingente partido que estivera com ela desde que chegou a Vegahn. Ela ergueu a cabeça e deu um meio sorriso, olhando para Higarath com expressão de vitória no rosto.
— Absorvi a Alma de Muriel. Se a quiser, Higarath, vai ter que ficar comigo também! — Ayrana Anunciou, Caalin estava em choque observando-a e Higarath rosnou e avançou para ela com as espadas em punho, mas rapidamente, Ayran usou uma magia, mandando Higarath para o outro lado do campo, onde Karin e Nike lutavam com meus pais.
— Está brincando com a vida dos outros! — Caalin Exclamou virando-se para ela e a pegando pelo braço.
— Ele vai parar assim! Eu posso barganhar... — Ela então engasgou e cravou as unhas no pescoço enquanto tentava procurar por ar.
— SOLTE MEUS PAIS CADELA DOS INFERNOS! — Gritei na direção dela, Ayran preparou uma magia para mim, mas antes que a lançasse, Caalin deu-lhe um soco que o lançou longe na neve. Vensis choramingou pela forma que estava usando seus dons, mas minha ira era maior que minha razão naquele momento.
Um olhar alarmado de Caalin para mim quando sua mãe começou a revirar os olhos bastou para que eu a soltasse. Ayrana começou a gaguejar desculpas, mas um grito de dor trazendo o cheiro do sangue de Karin me fez virar para o local em que ainda lutavam. Nike havia protegido Karin do golpe, entrando na frente da espada de meu pai, o golpe transpassou seu peito e atingiu o braço de Karin.
Não foi preciso eu ordenar novamente, com Nike caindo ao chão, Ayrana soltou o controle de meus pais, que ao perceberem o que estava acontecendo, curaram Karin e começaram a criar uma bolha mágica sobre eles.
— Eles vão explodir o campo! — Sirius gritou do ponto em que estava lutando ao lado de Áries contra um grande grupo de elfos negros.
Higarath estava em cima deles agora, lançando ondas de magia negra para destruí-los. Aquilo podia ser o fim deles se não fosse um urro colossal e um tremor que fez a neve das árvores desabar ao nosso redor.
Todos haviam parado para olhar dez montanhas vivas, caminhando na direção daquele campo de batalha, seguidas por bolas de pelo voadoras e um imenso dragão negro que voava baixo em nossa direção.
Do meio das árvores surgiram criaturas que pareciam feitas de gelo e rochas, serpentes com olhos de água e... pelos céus! Yetis! Muitos deles! As montanhas que se moviam, eram Ymir’s! E montada naquele dragão negro, estava Nikella, deixando um rastro de estalagmites de gelo por onde passava. Meu coração deu um salto quando a vi aproximar-se do centro de onde aquela batalha acontecia, então a neve espiralou ao redor de nossos pés e uma rachadura percorreu o campo, rasgando-o em dois.
Nike, a verdadeira Nike sobrevoou o campo e deu um rasante onde a outra Nike estava quase perto de Higarath, a outra atirou a foice para cima e gritou, fazendo seu corpo desfazer-se em cinzas e gelo.
No momento em que a falsa Nike desapareceu, meus pais se libertaram no controle de Ayrana, que havia tentado retomar o controle deles por causa da verdadeira. Eles mantinham as armas em punho, mas estavam confusos. Karin conseguiu se aproximar deles e murmurar algo que os fez brilhar e desaparecer do campo numa explosão de luz. Logo em seguida, eles brilharam nos céus acima de nós e uma mandala de purificação apareceu, ajudando um pouco a nossa causa.
Docinho fez uma curva no ar e se voltou para nós, voando baixo até passar raspando sobre nossas cabeças. Nike saltou de cima dela e nos encarou, não havia nenhum indício do que ela estava fazendo, mas com um movimento do punho para o alto, com seus olhos completamente brancos, fez aqueles monstros como montanhas pararem e rugirem, entrando no campo de batalha e avançando contra os sombrios.
Olhamos boquiabertos os Fermans voarem sobre os campos e espalharem rajadas de água congelante para todos os lados, os Yetis derrubando vários sombrios com seus porretes. E mesmo com toda aquela ajuda, os sombrios se erguiam contra nós, atacando, massacrando e lutando ferozmente, como formigas atacando doces.
Nike se voltou para nós, ela me deu um rápido sorriso antes de se virar para Caalin e ficar séria como nunca havia visto ela ficar. Caalin parecia não entender o que estava acontecendo, ele a olhava com um misto de tristeza e alívio que me fez sentir pena dele.
— Nike... o que está...? — Ela não o deixou terminar, apenas atirou os braços ao redor do seu pescoço e o beijou. Mais rápido do que poderia imaginar, os braços de Caalin se fecharam ao seu redor. Ayrana sibilou e fez menção a interromper, mas uma parede criada por mim a fez ficar parada no lugar.
— Te amarei até o momento em que meu coração de gelo parar de bater nesse mundo e quando minha alma despertar no outro... ainda estarei lá por você! — Ela disse novamente uma parte de seus votos e sorriu mesmo com o lampejo de dor em seus olhos. — Não disse aquelas palavras à toa! — Caalin a apertou ainda mais e mesmo com o inferno ao nosso redor, aquilo me pareceu como esperança.
— Senti sua falta. — Caalin sussurrou apenas para ela, mas consegui ouvir graças a Vensis.
— Ele está voltando! — Ayrana grunhiu interrompendo aquele momento, precipitando-se e ficando entre Caalin e Nike, ela me lançou um olhar cruel e antigo e despedaçou com magia um Aswang não muito longe de nós que corria em direção aos sereianos em volta de Hellidy e Miriel. Havia algo muito errado com ela.
— Precisa de um resumo? — Perguntei a Nike, posicionando-me com a lança na mão. Nike encolheu os ombros e soltou algo como um gemido incomodo, estendi a mão para ela, mas ela meneou a cabeça. Ela esfregou os braços e olhou furiosa o mago negro que avançava para cima de nós.
— Ele está exausto, sua magia negra foi consumida pelos portais que usou para chegar em Mogyin e pelos que trouxeram os sombrios aqui. — Ela rosnou. — Eu vou fazer ele encontrar Érebo no inferno e devolver o poder pessoalmente!
Ayrana estava em silêncio olhando para Nike e soube o que ela queria fazer, mas a adaga que puxou não foi rápida suficiente, foi congelada na mão de Ayrana antes mesmo que essa pensasse em usá-la. Ayran
— Tenho contas com você. — Nike murmurou para ela, seu punho rápido acertou a boca e o nariz de Ayrana, que caiu para trás espirrando sangue na neve. Ayrana encolheu o corpo e gemeu. Nike olhou para trás e viu Ayran desacordado no chão e deu um risinho divertido. Ela fez outro estranho som com a boca, então os Ymir’s, os nove que ainda se mantinham de pé começaram a literalmente separar os exércitos sombrios de nossos aliados.
— Caalin, por favor! Diga que aprendeu a lidar com Yezélami!
Ele assentiu e mostrou os dentes num sorriso feral:
— Aprendi uns truques com seu tio!
— Então use-os agora. — Nike comandou, girando Siferath na mão e lançando uma onda de gelo contra o exército sombrio que havia conseguido ultrapassar a garganta que ela criou no chão.
— Vou fazer essa luz brilhar por nós! — Disse ele. Não pude evitar revirar os olhos, ela era a luz que ele precisava para iluminar o próprio mundo. Disparamos para o centro daquela batalha, onde as duas forças se chocavam e lutavam com todas as suas forças, com os últimos pingos de energia que lhes restavam. Caalin girou o machado nas mãos batendo de frente contra Higarath com toda sua força, o rei de Vegahn se ergueu ali, num grito de guerra e sua magia irrompeu.
Num segundo depois o mundo brilhou com uma luz tão intensa que fez com que toda minha raiva fosse varrida.
Capítulo 17
Nikella:
Os raios de luz branca e pura foram diminuindo aos poucos, até que desapareceram por completo, deixando apenas algumas esferas brilhantes espalhadas pelos céus. Ayrana estava encolhida atrás de mim, seu corpo tremia e seu rosto estava enterrado nas mãos enquanto ela chorava baixinho.
Higarath estava diante de nós com os olhos arregalados, olhando para seu próprio corpo. Não haviam mais marcas do selo sombrio, nem um vestígio da magia negra que o cobria. Os sombrios que não haviam se afastado com aquela luz, pararam de lutar no minuto em que perceberam que suas mentes estavam livres das sombras, que elas não os atormentavam mais. Até eu que já estava me sentindo incomodada com os sussurros, fiquei mais leve como se o mundo fosse um lugar de paz e nunca fora nada diferente disso.
Higarath soltou um rosnado e avançou contra Caalin, que desviou do golpe da espada de metal simples que antes era recoberta por escuridão. Caalin sorriu ao girar Sielem em punho e defender golpe atrás de golpe desferido por Higarath, que parecia cada vez mais irado.
– Eu teria conseguido! Eu teria mantido a ordem! E só queria Muriel ao meu lado! – Higarath berrou enfurecido, lágrimas escorriam pelo seu rosto, não sabia ao certo se eram de ódio ou de tristeza, depois de testemunhar pelos olhos do meu Summon, tudo que ele fez para recuperá-la em vão. – Vocês são tolos! Não importa o quanto salvem os mundos, eles sempre vão pagar o bem com ingratidão, sempre vão lutar! Sempre terão uma nova ambição que os colocará no meio de guerras e não poderão impedir isso! – Ele gritou, em seguida fixou os olhos em mim. – Confiei em você...
– Eu te avisei uma vez, não se brinca com uma mulher apaixonada, Higarath, mas pior que mexer com mulher apaixonada, é mexer com uma que tem tudo a perder. – Retruquei mesmo sabendo que a maior parte da culpa de tudo aquilo era de Ayrana, ainda estava segurando Siferath firmemente nas mãos. Susano ao meu lado deu um pequeno sorriso, ele mantinha sua espada na mão, o golpe final seria dele.
Porém Caalin não queria saber, ele investiu contra Higarath mesmo tendo usado toda sua magia para liberar o poder de Yezélami. Sabia que devia pará-lo, mas não queria intervir. Não quando ele tinha suas próprias contas a acertar.
– Caalin. – Susano rosnou, um pedido para que trocassem de lugar, para que Caalin parasse de avançar contra Higarath, mas aquilo era pessoal, mesmo não sendo minha mente que estava dentro de minha Summon, era meu corpo e Higarath o provocou quando disse o que ele havia feito comigo.
– Caalin, basta! – Ayrana gritou, seu rosto estava manchado de lágrimas e sangue e ela ainda segurava aquele pingente vazio que antes carregava a alma de Muriel, a mulher de Higarath que foi morta por ela. Ayrana foi uma tola ao absorver a alma dela achando que isso faria Higarath parar o ataque, mas aquilo só o enfureceu ainda mais.
Higarath ergueu a espada, distraindo-se por um minuto enquanto olhava com ódio mortal para Ayrana, tempo suficiente para Caalin empunhar a ponta com a lança de Sielem violentamente contra ele, que não teve tempo de se esquivar. O grito de Ayrana foi sem dúvida o som mais sofrido que ouvi em toda minha vida. Ela não gritava pelo golpe implacável de seu filho contra seu eterno amor, sua louca obsessão, mas sim por que num ato desesperado, ela entrou entre os dois, recebendo o golpe junto com ele.
– NÃO! – Caalin soltou Sielem, olhando os dois caindo ao chão, Ayrana ainda abraçada a Higarath, unidos pela haste do machado que os atravessava. Ela engasgava no próprio sangue, mas seus braços apertaram Higarath e ela sorriu.
– Pelo menos dessa vez, eu posso fazer o que te prometi... morrer ao seu lado. – Ela sussurrou para ele acariciando seu rosto com os dedos sujos de sangue. Higarath a olhava com uma expressão estranha em seu rosto, era uma expressão de... ternura?!
– Eu queria dizer que sinto muito... – Ele respondeu, acariciando aninhando seu rosto numa concha em sua mão. Só então reparei que os olhos de Ayrana tinham mudado de cor, estavam num castanho escuro vivo e brilhante. – Eu devia ter ficado com você mesmo que a velhice e a pobreza nos consumissem...
– Muriel... ela tomou a mente dela no último minuto. – Susano sussurrou para mim. Quase sorri pela vitória da única inocente dessa história, era trágico, mas bonito de certa forma. Higarath estava abraçado a ela, Sangue empoçava em volta deles enquanto aproveitavam seus últimos segundos, pelo menos no fim ele havia conseguido uma parte do que queria.
Ficamos observando, sempre de olho no inimigo até que uma pequena luz se soltou deles, e depois de um último suspiro, os corpos tombaram ao chão sem vida. Só então respiramos e olhamos em volta, para a destruição que aquilo causou. Susano foi até onde Karin estava ajoelhada ao lado de Ericko, perto de Sheriah que tinha uma ferida profunda no peito. Ele se ajoelhou, tomando o lugar de Kuran que também estava quase esgotado e curando-a o mais rápido que podia.
Todos ainda olhavam a cena chocados, os corpos de Higarath e Ayrana sem saber o que fazer, agora que finalmente tudo havia acabado. Embora quiséssemos comemorar, muitos dos nossos haviam perdido suas vidas também. Ayran se encontrava encolhido contra o tronco congelado de uma arvore, na certa sentindo a dor do laço que havia se desfeito, mas não podíamos fazer mais nada por ele.
Os sombrios que antes estavam com as mentes tomadas começaram a se afastar, mas não podiam ir embora pois Vegahn não era o mundo deles. Pensei em abrir um portal para manda-los de volta, mas alguém me envolveu num abraço enquanto eu estava distraída.
– Não acredito... – Caalin me apertou ainda mais, segurou meu rosto nas mãos e sorriu. – Achei que tivesse perdido você! – Ele acariciou meu rosto com o polegar. Desvencilhei-me de seus braços, sentindo o remorso me consumindo quando as memórias do Summon que voltaram para mim, invadiram minha mente. As lembranças daquelas horas na cama de Higarath, de ter matado Lenios e de não ter feito nada para impedir a morte de Sayuri e Liilac.
– Não mereço você. Eu fiz coisas terríveis Caalin! Eu quebrei o juramento! – Choraminguei afastando-me dele.
– Foi para me proteger, então para mim ainda estava apenas sendo a melhor guardiã do mundo. – Ele apertou minhas mãos.
– Eu... – Não tive tempo de completar o que diria, pois Caalin me empurrou para o lado, derrubando-me na neve ensanguentada. Olhei para o lado sem entender, apenas para ver um borrão branco avançar contra Caalin.
O som de metal rasgando pele, destruindo ossos fez meu sangue tornar-se água gelada em minhas veias. Caalin estava drenado, sem magia e não conseguiu criar uma barreira ao nosso redor, tudo que conseguiu foi me afastar para que a espada de Ayran não me atingisse. Ayran girou a espada no peito dele antes de a puxar, fazendo com que uma torrente de sangue azulado empoçasse no chão.
– Ayran... – Caalin murmurou caindo de joelhos na neve. Uma terrível sensação de torpor se apossou de mim, fazendo com que o mundo ficasse em silêncio ao meu redor, tudo que eu podia ouvir foi um zumbido alto que fez minha cabeça doer.
– Você a matou! – Ayran urrou apontando para o corpo de Ayrana. Ergui meus olhos para o rosto contorcido de raiva de Ayran. – E você... matou meu irmão. – Ele grunhiu, puxando a espada do peito de Caalin e andou até mim.
– Espero... – Lutei para que as palavras saíssem de mim. – Que sua estadia no inferno junto com o merda de seu irmão, seja a pior possível. Ayran. – Me movi calmamente, como se tudo estivesse em câmera lenta e eu em alta velocidade. Levantei-me da neve com Siferath em minha mão num piscar de olhos, e avancei para cima dele.
– Você e seu irmão foram dois mimados de merda que não tiveram nada, NADA de ruim durante a vida porque tinham um pai que não deixava faltar nada! Mas escolheram ver o lado ruim! Escolheram ver as suas babaquices como prioridade e nunca pensaram nele! – Gritei avançando conta ele apenas com o cabo de Siferath, Ayran e Lenios foram treinados em magia, não em combate, para o azar dele. Sorri de forma predatória girando Siferath com a lâmina contra ele dessa vez. Mesmo com a espada formando uma barreira, o golpe pesado que desferi foi suficiente para partir a espada dele e Ayran ao meio também, enviando uma rajada de gelo junto, fazendo com que seu corpo explodisse em milhares de pedacinhos de gelo. Não dei tempo para que ele reagisse com magia, para que tivesse uma luta justa, só queria acabar com ele e o fiz.
Virei-me rapidamente para Caalin, jogando-me ao seu lado e segurando seu rosto com as mãos.
– Por que fez isso! – Gritei.
– Pelo menos você... eu consegui salvar. – Ele sorriu, os olhos que antes estavam cor de carvão, agora brilhavam como os céus de Amantia.
– Susano! – Minha voz saiu como uma suplica, antes mesmo que eu erguesse os olhos, ele já estava ao meu lado com as mãos sobre o peito de Caalin.
– Eu sinto muito, Nike. Mas aquela vida calma em Arcádia vai ficar para a próxima vida, talvez. – Ele murmurou passando o polegar em meu rosto.
– Você não vai morrer! – Chorei apertando sua mão.
– Achei que você não fosse cumprir sua promessa... que não estaria comigo no final, mas está aqui...
– Por favor, não se esforce. – Implorei, Susano olhou rapidamente para mim, seu olhar estava carregado de preocupação, quando olhei para seu peito, percebi que o ferimento não estava fechando e minha garganta se fechou.
– Eu estou muito velho para me curar de um ferimento fatal...
– Não diga bobagens! Agora quer dizer que é um velho? – Tentei sorrir, mas sei que não passou de uma careta de dor.
– Assim que eu partir... você não vai mais chorar, não vai sofrer... você vai ser a Nike durona e forte que eu sei que é, e vai ser a melhor rainha que Vegahn já teve. Não vai deixar eles desprotegidos... – A voz de Caalin falhou e eu gritei seu nome. – Me prometa.
– Não prometo nada! Eu não vou te perdoar se você morrer! – Gritei segurando seu rosto frio entre as mãos. – Por favor... não...
– Você sempre esteve ao lado dela... – Disse ele para Susano, apertando sua mão firmemente, interrompendo o processo de cura. – Não a deixe sozinha, dê a ela o que ofereceu uma vez.
– Nunca a deixarei. – Susano respondeu encarando Caalin.
– Eu te amo. – Caalin sussurrou para mim antes de fechar os olhos e não os abrir mais.
Não consegui lhe responder, não consegui dizer o quanto o amava antes sua respiração cessar e de seu corpo se desfazer em gelo em minhas mãos. Tudo ao meu redor era frio, era vazio. Olhei para os flocos de gelo em minhas mãos e gritei o mais forte que pude, tentando fazer aquela dor parar, por um segundo, senti que algo dentro de mim havia se partido e desaparecido.
– Nike... eu tentei... – Susano tentou se explicar, mas ergui a mão para ele.
– Eu sei, eu vi. – Foi tudo que consegui falar. Forcei meus joelhos a me erguerem e olhei o campo ao nosso redor, todas aquelas pessoas mortas... Ayran matou o próprio pai por ódio, pois considerava Ayrana mais importante que ele. No campo, percebi que os sombrios que haviam saído do controle de Higarath agora estavam com medo, pois os nossos que restaram no campo queriam atacá-los, pareciam não entender que havia acabado. As palavras de Higarath atingiram minha mente como pedras:
“... eles sempre vão pagar o bem com ingratidão, sempre vão lutar! Sempre terão uma nova ambição que os colocará no meio de guerras e não poderão impedir isso. ”
Era um círculo vicioso, sempre existiria um fator que criaria um novo transtorno, uma nova destruição, um mau para que a paz fosse ameaçada. Não havia saída daquela escuridão, nenhum futuro de paz mesmo sem aquele demônio. Só tinha uma coisa a fazer: Eu estava certa, apenas o medo domava as pessoas. Abri os braços e chamei por elas, busquei pelas sombras dentro de mim, e pelas sombras que ainda se espalhavam pelo mundo depois que a luz as dissipou. As marcas negras em meus braços me mostraram que elas não haviam desaparecido por completo.
“Ainda estamos aqui, mestra! ” Elas sussurraram, mas dessa vez com suavidade, nem de longe tinham a agressividade de antes, não tentaram invadir minha mente ou me tomar.
Num piscar de olhos, minha energia estava de volta, todo o meu poder e eu sabia o porquê. Olhei para as pessoas que me olhavam como se eu fosse o monstro agora e tudo que pude fazer, foi lançar uma onda de escuridão para afastá-los dos sombrios. Em seguida, estalei os dedos e um portal se abriu sob mim. Fechei os olhos e me deixei cair na escuridão dele.
Susano:
Nike havia desaparecido dentro daquele portal logo após suas marcas negras se reaparecerem, um tremor passou pelo meu corpo, sabia a dor que ela estava sentindo, mas o meu pânico foi maior ao perceber pela primeira vez que havia um laço preso aos nossos pulsos, segundos antes de ela desaparecer.
“A ligação de vocês era suprimida pela ligação de Aelita com Caalin. Quando Ayrana mandou a alma dela mesmo vazia para Nike, a ligação deles cobriu a de vocês. ”
“Então... Annie, Nike e eu...”
“Nike não era ligada a Caalin, apenas a alma vazia de Aelita era, então, a ligação deles por ser mais antiga cobriu a de vocês três ” Vensis murmurou.
Embora estivesse sentindo a dor por ela, por sua perda e pela minha que ainda era recente, fiquei aliviado ao perceber que tinha uma explicação para tê-la amado por todo aquele tempo e mesmo amando Annie, aquele sentimento não ter ido embora. Ela era minha melhor amiga, e eu precisava estar ao lado dela de alguma forma, pois quando Annie se foi, ela quis ficar.
“O que vamos fazer agora? ” Olhei para o campo de batalha, onde todos estavam eufóricos com medo da transformação de Nike antes dela desaparecer, quando ela jogou aquela barreira de sombras entres os dois exércitos. Cheguei a ouvir murmúrios sobre caçá-la por ser uma maga negra e pelo que a morte de Caalin podia provocar nela.
“Eles nunca vão parar, não é? ”
“Higarath estava certo nisso. ” Vensis ponderou “Eu menti para você mais cedo quando disse que não poderia ajudar mais, oferecer algo que pudesse ajudar a pará-lo, mas eu vou te dizer isso agora, por que eu não sei o que ela planeja fazer... E você precisa ter o poder para pará-la caso seja necessário. ”
“Diga. ”
“Você pode subjugar a nós cinco. ” Ela chorou em minha mente.
“Não vou obrigar vocês a me servirem! ” Retruquei “Nós fizemos de tudo para soltá-las, não vou voltar atrás! ”
“Será uma honra, Susano, servir a um mestre como você! ” Outra voz. Fechei os olhos para ver em minha mente uma jovem de longos cabelos brancos e olhos dourados me encarando na escuridão de minha mente, ela segurava o braço de Vensis.
“Yezélami! ”
Ela sorriu e assentiu, então ao lado dela apareceu um menino pequeno, olhos verdes e pele cor de terra, cabelos cor de musgo e um sorriso fácil. Tarinmari. Uma sereiana azul brilhante de cabelos de água veio de mãos dadas com um ignium de olhos vermelhos e cara de poucos amigos.
“Você e ela foram os únicos que nos trataram como amigos. ” Vensis falou sorrindo. “Yinemí se uniu a ela, tornou-se parte dela por que a amava e nós faremos o mesmo por você, para que possa banir a escuridão. ” Vensis sorriu, os outros Elementais fizeram o mesmo, então deram as mãos e começaram a recitar um encanto. As senti fluir por mim aos poucos até que me senti completo de certa forma.
Era como se meu interior estivesse começando a se curar. Fechei os olhos e vi Annie sorrindo para mim, brincando com suas chamas no dia que a vi pela primeira vez no Castelo de Cristal. “Eu vou sempre estar com você, Su. ” Suas últimas palavras ficaram em minha mente, mas dessa vez eu não chorei, eu sorri, pois sabia que ela estaria comigo onde quer que eu fosse.
Abri os olhos e segui aquela ligação, procurando para onde Nike havia ido. Docinho atravessou o campo correndo e se jogou contra mim, apertando suas pequenas mãozinhas em meu pescoço.
– Me leve até ela, por favor! – Ela choramingou.
– Sim, mas antes... – Olhei para Asahi e Kuran, precisava falar com eles antes de ir atrás de Nike. Abri um portal para que os sombrios se fossem e me aproximei deles, que estavam ajudando os feridos, mas parei ao perceber que uma massa negra cobria o céu.
– O que acontece agora? – Asahi se encolheu, olhando as sombras dançando sobre nós.
– Já acabou... pelo menos, quase. – Peguei suas mãos e as apertei firme. – Asahi, eu preciso de um favor. – Ela ergueu as sobrancelhas, mas assentiu.
Nikella:
Quando abri os olhos, estava novamente dentro das masmorras do castelo dos ossos. Foi o lugar para onde meu Summon levou Gwyn pouco depois que Higarath retornou de Mogyin destruindo tudo em seu caminho. Gwyn quase foi morta naquele surto, mas meu outro Eu conseguiu o convencer a deixá-la presa, que se tomasse a alma de Ayrana, teria perdido o corpo para colocá-la. Ele teve uma pontada de esperança que Ayrana estava fazendo aquilo para provoca-lo, então talvez a alma de Muriel estivesse intacta, mas presa com ela.
Fui até a penúltima cela e a abri, Gwyn se encolheu quando me aproximei, mas talvez algo em meu olhar tenha feito ela saltar em mim e me abraçar. Não esperei sairmos daquele lugar podre, abri um portal ali mesmo para Dartaris, para a entrada do Vale da Lua.
– Vá para casa, em breve eles estarão lá! Envie um aviso a Maddox dizendo que está no Vale e está em segurança. – Ela apenas assentiu.
– Vou te ver novamente? – Seu peito subia e descia rápido demais e lágrimas escorriam por seu rosto. Meneei a cabeça negativamente. Gwyn me deu um abraço e um beijo em meu rosto, não ligando para eu estar coberta de sangue, então falou: – Ela quis voltar por você, estávamos voltando para Ciartes para te buscar quando ela foi pega. Nós nunca te abandonamos.
Com um aceno, ela disparou para o portal sem esperar eu dizer mais nada, talvez não conseguisse dizer nada, de toda forma.
Fui rapidamente até a sala dos portais que Higarath usou para tentar abrir um caminho para Mogyin. Olhei as esferas que representavam os mundos, todas agora estavam acesas e brilhantes, livres da magia dele, mas não por muito tempo.
“Porque estão assim? ” Perguntei para as sombras que se moviam como gatos ao meu redor, era estranho, apesar de toda a dor que estava sentindo, de alguma forma elas estavam me consolando.
“Assim como, mestra? ”
“Mansas... ”
“ Existe o Um mago negro a quem servimos, com quem foi feito o primeiro acordo, mas quando este morre, buscamos pelo seu sucessor. Há muito a senhora nos aceitou ainda na Vila Nakhlans, lembra-se? Quando fomos aceitas, a senhora entrou na sucessão dele. Mas nós obedecíamos a ele e o que ele queria era que tomássemos sua mente. Mas quando o mago branco lhe deu seu sangue nós ficamos adormecidas esperando seu chamado. Como o Um mago morreu, agora servimos apenas a você! A maga negra alpha, os que virem a seguir serão magos negros também, porém sempre obedeceremos a você até que... ”
“Até que eu morra. ” Pensei nas palavras de Érebo. “Vê-los se matarem é a única diversão que eu tenho. ” Um jogo, jogado por outro ser ainda mais antigo e cruel. Ri amargamente pois estava certa sobre o círculo vicioso. Talvez fosse um passatempo dele e de Gaia no fim.
“ Um mago negro vai ser sempre um mago negro. Quando você se for, se não houverem outros, nos juntaremos ao poder do nosso primeiro mestre, de onde saímos. ”
“Então vocês não são ruins? ”
“Nós somos neutras, dependemos da forma que nosso mestre age ou do quão destruído está seu coração. ” Acabei dando uma risada amarga enquanto tocava na esfera que representava Vegahn, sem querer a escureci com as sombras.
“Era para vocês estarem varrendo os mundos agora, então. ” Falei amargamente apertando o pingente de Sielem contra meu coração.
“Você nunca foi má. Não está guardando rancor, até porque quem tomou o que você amava, você já destruiu. ”
“Eu quero que isso acabe...”
“Vai dominar os mundos, essa é sua vontade? ” Elas perguntaram.
“Eu quero paz, nem que seja através do medo. ” Respondi.
“Então assim faremos, é só ordenar. ”
Houve um longo período de silêncio enquanto elas aguardavam meu comando. Havia um canto escuro e silencioso agora dentro de mim, não escutava mais Yinemí, não sentia mais Caalin... olhei a marca em meu anelar, ela havia desaparecido. Um nó se formou em minha garganta e as lágrimas voltaram a lavar meu rosto.
Depois daquela decisão, estaria sozinha.
Higarath havia montado aquela representação do círculo como um modo de reunir os mundos quando conseguisse reabrir o portal para Mogyin e enviar Gwyn para lá, para voltar com a alma de Muriel. Independente de qual mundo estivesse, podia quebrar o círculo a partir de qualquer um por causa da magia que possuía.
Andei entre as esferas e toquei novamente na grande bola branca que representava Vegahn. Eu fazia parte dele agora, tinha a alma dele e ainda era a rainha de lá. Respirei fundo me preparando para a hora em que precisaria entrar naquele castelo novamente.
Espalhei as sombras pelas esferas, até que todas escureceram e senti a magia vibrar, mostrando-me que estava conectada a todos eles agora. Tomei folego e fechei os olhos, vendo tudo ao mesmo tempo, tudo que as sombras viam como pequenos flashes sombrios. Precisava demostrar o que podia fazer antes de passar minha mensagem, então foquei-me em Amantia, onde mercenários aproveitavam o tumulto que as sombras haviam gerado para roubar e atacar pessoas nas ruas. Bastou uma ordem silenciosa para que as sombras encontrassem os desordeiros e os matassem. Os gritos das pessoas ao redor foram substituídos pelo silêncio ao verem os corpos dos bandidos no chão por todos os lugares:
“Atenção, habitantes dos Onze Mundos. ” Senti como se cada ser vivo com o mínimo de inteligência para me entender, estivessem alertas a minha voz que fiz ecoar por cada parte dos mundos restantes.
“Aqui quem fala é Nikella Ascardian, sua rainha, A maga negra que espalhou a escuridão pelos mundos, que se livrou Amantia desses insetos desordeiros! Acredito que tenham percebido que minhas sombras não estão sendo hostis com quem presta, então, eu também não serei e enquanto não me desafiarem, estarão seguros! ” Suspirei pesadamente sentindo o medo tomar a maioria deles.
“Em cada cidade, vila e aldeia em todos os mundos, haverá portais abertos que os levarão para cada um dos mundos que desejarem ir. Vou manter esses portais durante duas horas. Ouçam bem! Recolham suas coisas, seus parentes e suas famílias e voltem para seus mundos de origem. Isso é uma ordem! Duas horas é o prazo que vocês terão. Após isso, os portais serão fechados e eu quebrarei o círculo que une os mundos, separando-os para sempre. Ninguém poderá atravessar por portais entre eles, pois não haverá mais uma ligação que os une. Espero que tenham entendido, duas horas a contar de agora! ” Terminando de falar, usei toda minha concentração para abrir os portais por todos os cantos e mesmo sentindo minha magia sendo drenada, me mantive firme, assim como quando choquei o ovo de docinho por oito horas convertendo Yinemí em calor.
Estava em silêncio, mantendo meu poder fluindo pelas esferas de vitrino, até que comecei a sentir pessoas passando pelos portais. Bom. Eles entenderam minha mensagem.
Uma estranha luz branca inundou a sala escura me fazendo virar para ver quem tinha se juntado a mim.
– Su... o que faz aqui? – Ele me encarou por um momento, respirou fundo e deu um passo adiante.
– Queria te ver, saber que estava bem.
– Não estou bem, Su. Talvez nunca mais fique bem...
– Não pode se abater agora! – Ele vociferou chegando bem perto de mim, fechando os braços ao meu redor. – Não pode se desfazer, não quando ainda precisamos de você.
– Não sobrou ninguém que precisa de mim.
– Eu preciso, não me sobrou ninguém também.
– Vá para casa, Su.
– Não tenho mais uma casa. – O encarei forma zombeteira.
– Você é o rei de Amantia. Tem suas irmãs, tem Lórien...
– Asahi é a rainha de Amantia, vai governar junto com Kuran. E eles também são sua família, caso não se lembre eu sou seu tio. – Suspirei, estava tão cansada que não tinha forças para discutir.
– Eu vou quebrar o círculo, vou dividir os mundos e vou controlar todos eles, vou destruir todos que começarem guerras ou brigas e manter a paz mesmo que precise manter o medo acima dela. – Falei tentando fazê-lo entender.
– Eu sei. Estou aqui e vou te ajudar nisso, não vai conseguir sozinha, Nike! – Ele tocou sua testa na minha, pude sentir a essência de cada mundo naquele toque. – As almas vieram para mim, estou encarregado por elas de manter sua magia negra sossegada e por Caalin de te manter segura.
– Não precisa se obrigar a ficar por perto, prometo que não vou me deixar levar pelas sombras.
– Não sinto como se fosse obrigação. Amigos nunca dizem adeus e você é a melhor amiga que eu tenho. – Ele deu um breve sorriso, um sorriso quebrado, carregado de tanta tristeza, talvez tanta quanto eu mesma sentia, tão longe dos sorrisos alegres que ele tinha antes. Mas em seus olhos havia uma ponta de um brilho esperançoso. O abracei mais forte que pude, abafando o choro em seu peito. Sua mão acariciou minhas costas de forma que fez com que soubesse que realmente não estava sozinha.
– Você nunca mais vai ver suas irmãs, seus amigos... tem certeza que pode abrir mão disso?
– Às vezes, o caminho certo é aquele que mais dói... – Ele sussurrou – Mas quando se tem alguém para trilhar esse caminho com você, a dor diminui. Eu prometi que estaria sempre lá, não é? Eu não quebro minhas promessas, Nike.
– Eu quero as minhas.
– Você não prometeu a ele que seria forte, que não choraria, mas ele fez esse único pedido no fim para você. Annie me pediu para que eu fosse feliz mesmo sem ela e por mais que doa, eu vou tentar. – Ele mostrou o pingente da árvore do fogo em seu pescoço.
Apertei firme sua mão ao redor daquele pingente, sentindo que ali havia uma parte de nós, uma lembrança ruiva que jamais deixou de ser minha Annie, aquela peste que me tirava do sério, mas estava sempre lá.
– Rainha dos Mundos hein... você estaria perdida sem mim. – Revirei os olhos e bufei, mas consegui levantar o canto dos lábios numa tentativa de sorriso.
Podia sentir milhares de pessoas, animais e todos os tipos de criaturas atravessando os portais que eu havia aberto por terra, água e céus em todos os mundos. A magia as vezes oscilava, mas a mantive firme. Susano se aproximou e aumentou minha energia ao tocar, de certa forma, aquela energia me deu certo equilíbrio.
O tempo passou devagar enquanto eu mantinha aqueles portais com ajuda de Susano, era como se duas horas tivessem se transformado em dez. Quando olhei para o tempo na ampulheta, vi que faltava alguns segundos apenas, e muita gente ainda atravessava de um lado para outro. Mandei um último aviso e quando o tempo se esgotou, fechei os portais sem pensar duas vezes, mesmo que ainda houvessem pessoas atravessando. Senti as sombras voltarem como um elástico esticado que foi solto na outra extremidade.
– E agora?
– Vou levar essas esferas para Vegahn, para a sala de observatório e vou fechar o círculo. – Susano assentiu e abriu um portal, deixando-me confusa.
– Vou pegar algumas coisas que são importantes para mim, te encontro lá. – Ele ergueu as sobrancelhas e antes de passar pelo portal, perguntou: – Quem pode saber que não virou um demônio bebedor de sangue sedento por vingança? – Se não estivesse destruída por dentro, teria rido.
– Quem souber ficar de boca fechada enquanto eu viver. – Respondi.
– Asahi está excluída da lista então. – Dessa vez não consegui evitar soltar um risinho.
Susano desapareceu no portal no mesmo momento que eu forcei minha magia um pouco mais e abri uma passagem para Vegahn. Quando já havia atravessado todas as esferas percebi alguns olhos me observando da porta da sala. Ederon e Melanie estavam ali parados, olhando para mim com seus olhos arregalados e assustados.
– Adeus. – Falei. Novamente, tive que me forçar a não chorar ao ver Mel e Ederon se curvando para mim.
– Vida longa, rainha dos Mundos. – Eles disseram com os punhos sobre o coração. Lágrimas escorreram do rosto de Mel, então percebi que ela havia escolhido Ederon ao invés de seus pais. Me doeu imaginar quantas famílias separei, mas acreditava ser a escolha certa.
Na sala do observatório, os ventos gelados que entraram pelas janelas abertas acariciaram minha pele com um cumprimento doloroso, Vegahn seria como uma tortura partir daquele momento. Sequei as lágrimas quentes que cismaram em rolar por meu rosto e terminei de arrumar as esferas, fazendo algumas flutuarem pela sala de forma que ficassem exatamente como as imagens que via dos Mundos e aguardei por Susano.
Conforme os minutos foram passando, imaginei que ele tivesse desistido e me preparei para quebrar o círculo. Será que Zion, Oriel e Aliver haviam ido embora? O Castelo parecia completamente deserto, sem nenhuma vida.
Cortei a palma da mão e derramei algumas gotas sobre a esfera que representava o mundo número um, respirei forte algumas vezes, tentando afastar o medo, o desespero e o arrependimento que estava me batendo. Quando estendi as mãos sobre o globo e comecei a recitar o encantamento, uma explosão de luz dourada quase me fez cair de joelhos de alívio.
– Ia fechar o círculo sem mim? – Susano resmungou. Olhei para ele sem conseguir conter as lágrimas de tristeza pelo que ia fazer, mas também de alegria de vê-lo ali. Ele tinha Docinho pendurada no pescoço em sua forma humana, Ira encolhido num braço e feroz no outro, agarrado ao braço dele havia um jovem de pele pálida e uma longa trança de cabelos azul marinho. Ele lembrava um sereiano, olhos negros e cara de quem queria matar alguém, até mesmo os dentes de agulhas.
– Achei que tivesse desistido. – Murmurei. Docinho se jogou em mim, apertando seu rosto no meu e choramingando palavras estranhas que pareciam grunhidos e som de borbulhas.
– Ela não entende draconiano, Docinho! – O jovem resmungou.
– Não seja um chato, Lua! – Ela retrucou, mostrando a língua para ele. Susano tinha ido buscar o tigre celestial e o dragão de sua mãe e meus bichinhos também.
– Desculpe a demora, Ira havia atravessado um dos seus portais e estava escondido em Arcádia. – Ele se aproximou e me ergueu do chão, então entrelaçou os dedos nos meus e começou a recitar o feitiço. O acompanhei, misturando nossos poderes de forma que cobriam rapidamente todos os mundos representados pelas esferas, enchendo-as com luz e sombras.
No momento em que eles começaram a pulsar no mesmo ritmo, parecendo um coração, um estrondo fez o castelo tremer. Olhamos rapidamente pelas janelas e vimos algo como vidro estilhaçado caindo dos céus, mas ao chegar a uma certa altura, se transformou em chuva fina, linda e prateada.
Susano sorriu ao ver a chuva caindo marcando a neve ao redor do castelo, ela fazia subir o cheiro de neve, terra e folhas mortas até nós, era como uma chuva de estrelas.
– Tem certeza que vai aguentar ser a vilã a partir de agora? – Ele me encarou.
– Acho que sempre fui um pouco vilã, meu único objetivo por anos foi fazer a cabeça do seu cunhado rolar. – Resmunguei. Susano assentiu e fez uma esfera de luz nas mãos:
“Aqui quem fala a vocês é Susano Ascardian Lomérius e estarei ao lado da rainha dos Mundos. Nós somos a lei, a justiça e a ordem, mas também seremos as trevas, a destruição e caos. Nós protegeremos e julgaremos os Onze Mundos. Se houverem guerras por quaisquer motivos, todas as partes envolvias serão destruídas, sem misericórdia, a partir de agora, aprenderão a resolver seus problemas sem guerras. Não haverá mais um caminho entre os mundos, mas ainda estaremos o tempo todo vigiando vocês. ”
O encarei por um instante, lembrando das palavras de Higarath sobre controle, completei:
"Se durante o período de onze meses não houverem problemas, se conseguirem manter a paz por esse tempo, durante uma semana os portais serão reabertos para que visitem quem deixaram do outro lado e para que comemorem a paz. Se houverem lutas ou guerras, além da destruição dos envolvidos, o castigo que aplicaremos será de cinco anos sem a abertura dos portais. ”
“Vocês foram avisados. Vivant et tenebrae. ”
Estava feito.
Tudo ao meu redor ficou claro, calmo, mas mesmo assim, fechei os olhos exausta e cai para trás sobre um colchão que na certa Susano havia conjurado ali.
– Acabou? – Perguntei.
Susano caiu ao meu lado, espalhando uma cortina de cabelos negros para todos os lados. Parecia que estávamos de volta ao palácio submarino, faltava apenas Annie entre nós rindo e debochando de Siorin e Nyu.
– Creio que sim. – Ele sussurrou passando a mão na cabeça de Ira, que havia se deitado sobre minha barriga. Feroz fez o mesmo com Susano e bateu com seu focinho na mão de seu dono, pedindo carinho também.
Lua e Docinho foram até a janela e ficaram olhando a chuva cair.
– Vamos ver o que ou quem sobrou nas cidades e ajudar os que ficaram a limparem os campos. – Docinho saltou pela janela, no minuto seguinte um imenso dragão negro passou voando rente à janela. Lua resmunou e revirou os olhos, mas por fim se foi também.
– Me promete uma coisa? – Pedi.
– O quê?
– Que quando eu acordar... – Bocejei. – Vai ter muita comida e muitas tortas para nós. Tomar os mundos e destruir o círculo me deu muita fome.
Susano riu e afagou minha cabeça.
– Vai ter isso e muito mais. Zion e Oriel ainda estão aqui. – Susano dormiu antes mesmo que eu fechasse os olhos novamente, fiquei menos triste em saber que elas estavam aqui ainda. Olhei para o teto, vendo aquele azul safira brilhar de forma intensa. Meu estômago se revirou, mas me forcei a sorrir o máximo que pude.
Fechei as mãos em concha, fazendo uma pequena bolha cinzenta, transformando-a num espelho. Nele e através dele pude ver os campos infinitos, cobertos de flores, onde galhos de folhas prateadas se estendiam com seus fios vermelhos pendurados até onde a vista podia alcançar.
“Eu quero te ver! ” Implorei sabendo que ele me ouviria.
A bolha flutuou pelo campo, passando por centenas de pessoas de todas as raças, sorridentes, conversando, comendo ou simplesmente descansando. Até que parou ao lado de um casal de malvarmos juntos com uma salamandra de longos cabelos ruivos. Ele estava segurando a ruiva que dormia tranquila em seu colo enquanto a malvarmo estava com a cabeça apoiada em seu ombro. Aquela visão me deu um pouco paz, por que eu não o havia deixado sozinho, ele não estaria sozinho também. Aelita estava ali com ele, não fazia ideia de como, talvez Yinemí não a tenha desmanchado, apenas a soltou de mim. Tanto Caalin quanto ela, estavam cuidando de Annie por nós.
“Eu te amo, e prometo que vou ser forte, prometo que vou ser durona, que não vou mais chorar nem sofrer, e vou ser a melhor rainha e vou cuidar de todos. Mas acima de tudo, eu prometo estar aqui e te amar até o fim. ”
Caalin olhou para cima, na direção da bolha e sorriu para mim.
“Sorria, seja feliz e saiba que vou estar esperando por vocês aqui quando a hora chegar! Ou vou voltar com essa louca aqui se sentir muito a sua falta! Eu te amo, Nike. ” Ele piscou e acariciou a cabeça de Annie quando ela se virou em seu colo.
Quando a bolha se desfez, apertei firme a mão de Susano que estava solta ao lado da minha.
Deixei de me odiar por amar Susano também, por ter ficado tão feliz quando ele prometeu que não me deixaria e por dividir aquele fardo comigo.
– Vamos estar todos juntos no fim. – Sussurrei e o vi dar um sorriso, então deixei que o cansaço me vencesse também e fechei os olhos. Mesmo triste e quebrada, dormi sentindo que podíamos nos concertar, podíamos concertar os mundos com o tempo.
Initium et finis.
Epílogo
Sabia que estava sonhando.
Tinha certeza de que era um sonho pois estava correndo pela floresta do Vale do Sol. Nunca mais havia entrado em Vale do Sol, não desde o dia em que quebrei o círculo e fechei os portais dos mundos trinta anos atrás.
Olhei através das cortinas de neblina que embaçavam minha visão, tentando enxergar melhor o local da floresta em que estava. Não estava longe da cachoeira onde havia a entrada para a mina de vitrino, pois escutava o barulho das águas caindo no bolsão, fazendo uma melodia suave nos metais sob a cortina de água, fazendo um acompanhamento para o som dos galhos das árvores e das folhas dançando contra o vento do fim da tarde.
Mesmo num sonho, aquilo me dava uma nostalgia, não que eu tenha vivido ali tempo o suficiente para ter lembranças inesquecíveis, mas poucos momentos foram suficientes para que eu sonhasse com aquele lugar pelo menos uma vez por mês. Andei lentamente através das árvores pelo caminho sinuoso que levava a cabana ali próxima, ouvindo a melodia da natureza viva daquele lugar, diferente da imensidão branca e fria do gelo fora daquela barreira.
A cabana agora estava a alguns passos de mim, a névoa tinha dissipado e eu podia ver claramente a construção de madeira ainda do jeito que estava quando a vi pela primeira vez. As heras crescendo ao redor dela, o banco de madeira na varanda e fumaça subindo pela chaminé da lareira. Parei a alguns passos dos degraus da varanda, mesmo depois de trinta anos, e num sonho, não tinha força para entrar ali, meu coração ainda doía. Talvez aquela ferida, sangue nenhum jamais curaria, ela ficaria aberta para sempre e eu jamais conseguisse visitar o Vale do Sol novamente.
– Nike? – Uma voz suave me chamou, me virei procurando de onde vinha aquela voz, mas eu estava sozinha ali. – Nike! Vamos....
Um sonho, era apenas um sonho, se era um sonho então havia alguém me chamando do outro lado...
– Eu sei que seu sono é sagrado, mas em poucas horas precisaremos abrir os portais! – Susano segurou meu rosto e beijou minha testa, depois minhas bochechas e meu queixo.
– Ainda é cedo. – Murmurei esticando-me e puxando o cobertor para cima. Susano riu e pegou uma bandeja, trazendo até mesinha ao lado da cama. Ele tirou a coberta de cima de mim e arrumou os travesseiros para que eu me sentasse para tomar café com ele.
Desde que acordamos depois da Guerra dos Doze, depois de termos destruído o círculo, aquele era um hábito diário dele, tentava comprar meu bom humor com comida.
– É só uma vez a cada dez anos, Nike!
– E dessa vez tinha que cair justamente na data da abertura dos portais? Isso vai ser uma confusão! – Reclamei arrastando-me para fora das cobertas e me sentando encostada na cabeceira forrada de veludo azul, na montanha de travesseiros que Su havia feito. Vovô e Leona, além de serem os sóis guardiões, agora eram também os responsáveis por Mogyin, fiquei muito feliz ao saber que vovô destruiu a alma de Ayrana assim que ela voltou ao mundo dos mortos.
– Olha pelo lado bom, vai ser tudo de uma vez só! Fora que por causa da destruição que houve em Vastrus, estamos a cinco anos sem abrir os portais. – Susano tirou-me de meus devaneios. Ele acariciou meu rosto com o polegar e piscou.
– Pelo menos, nisso Higarath estava certo! Retaliação e recompensas funcionam melhor que bondade. – Retruquei. Susano fez uma careta, encolhi o corpo e murmurei umas desculpas.
– Tudo bem, eu sei que está certo. Era assim que Nalrevi governava Amantia antes de vovó Eirien. Funcionou até ele resolver separar ela de Farahdox.
– Nunca ouvi essa história.
– Peça para ela te contar mais tarde! – Ele trouxe a caneca cheia de chocolate quente e cremoso com avelã para mim, mas eu sorri e a coloquei de volta na mesinha. Susano ergueu as sobrancelhas curioso, então eu passei os braços ao redor de seus ombros e o puxei para mim. Susano suspirou quando desabotoei a parte de cima da gola de sua túnica branca e prateada, deixando a parte de seu ombro a mostra e toquei com os lábios a curva de seu pescoço, lhe pedindo permissão para aquilo.
– Sabe que não precisa pedir, Nike. – Ele respondeu afrouxando seu aperto ao meu redor. Sem pensar muito, perfurei sua pele com as presas fazendo o sangue fluir para mim. Susano nunca se incomodava com aquilo, nem eu para dizer a verdade. Não me incomodava em me alimentar dele, parecia natural, simples, talvez porque soubesse que não ia machucá-lo. Quando o soltei, passando a língua sobre a ferida das presas, Susano deu uma risadinha. Logo em seguida me entregou a xicara novamente.
– Desculpe. – Murmurei sentindo meu rosto esquentar, então dei uma golada no chocolate para disfarçar meu constrangimento.
– Queria que você tivesse feito isso desde aquela vez no calabouço de Hobner. – Ele pegou um pedaço de bolo de chocolate e uma xícara de café e se apoiou nos travesseiros também. Suspirei pesadamente, talvez estivesse pronta para dizer aquilo agora.
– Eu percebi que não gostava de você como um irmão naquele dia. Percebi que estava apaixonada por você e aquilo, aquele beijo me destruiu, acabou com o controle que eu tinha sobre meus sentimentos e me fez sentir como se fosse um monstro pois não entendia como podia gostar de você e de Caalin ao mesmo tempo, e porque você era de Annie... – Susano segurou meu rosto e beijou a ponta de meu nariz.
– Me senti horrível também, mas não pude resistir ao chamado épico do sangue Ascardian em minhas veias. – Nós dois rimos e ficamos ali em silêncio por um tempo, tomando nosso café juntos. A marca em nossos dedos agora não pertencia mais a família Ascardian, nós criamos a nossa própria, longas gavinhas brancas e brilhantes, adornados com pequenas flores negras.
A marca de Gadyen, dos verdadeiros guardiões.
Havíamos nos casado na última visita dos sóis, dez anos atrás. Fomos casados por vovô e Leona, numa cerimônia escondida do mundo para que ninguém pensasse que havíamos amolecido, afinal, éramos os monstros que tomaram o controle dos mundos e os matinha em rédeas curtas com severidade e rigor.
Depois do café, Susano saiu do quarto para arrumar Kiara e Fares e os enviar à Retiro das Folhas com Oriel e Zion e um pequeno grupo de caçadores. Não queríamos que ninguém os visse durante a cerimônia e o poder deles já podia ser sentido nos arredores do castelo por qualquer um que passasse ali, logo logo teríamos que ensiná-los a controlar e ocultar seus poderes para que pudessem viver em paz. Não podíamos arriscar que eles fossem vistos, ou pior, pegos por ninguém, então antes da abertura dos portais, durante a noite de “festa” nós os esconderíamos fora do castelo.
Me levantei ainda com um pouco de preguiça e fiquei olhando pela janela, havia nevado bastante durante a madrugada, a neve estava fofa brilhava do lado de fora, iluminada pelos dois sóis que se erguiam juntos no céu.
“Oi vovô! Daqui a pouco vamos nos ver. ” brinquei acenando para o céu, não sabia se ele podia me ver, mas acenei mesmo assim. Eles vinham até nós, a cada dez anos e mostravam aos mundos que estavam ao nosso lado, na verdade, fingiam serem comandados por nós, assim, o medo de punições aumentava, com isso a “paz” também.
Não demorei muito a me vestir, coloquei um longo vestido negro de veludo com um decote em “V” que ia até a base de minha coluna, a frente era lisa, apertado até a cintura e ali se abria numa roda grande trabalhada com renda de cor vinho e tinha as barras bordadas de jaspes vermelho-sangue. Outro dos magníficos trabalhos de Frani, que para minha sorte ainda estava conosco, pois ela sabia me transformar numa tirana apenas com o vestido certo.
Coloquei a coroa de flores negras sobre a cabeça, mas não prendi os cabelos que havia deixado crescer novamente a pedido de Susano, também pintei os lábios no mesmo tom de vinho da renda, mas deixei os olhos limpos, maquiagens me incomodavam demais e eu não havia aprendido a usá-las. Se Annie estivesse aqui, poderia muito bem fazer um escândalo para que eu a deixasse me maquiar. Peguei o pingente da árvore de fogo na caixinha sobre minha cômoda e a coloquei, pois era um lembrete de onde eu vim e de quem eu jamais esqueceria, um lembrete de onde eu havia deixado parte de meu coração. Ainda bem que não tinha passado mais nada além do batom, pois algumas lágrimas rolaram por meu rosto ao encarar o pingente em meu pescoço, talvez estivéssemos os três juntos ali, e não me incomodaria de dividi-la com Su, pois ele a amava tanto quanto eu, mas não mais.
Susano entrou no quarto alguns minutos depois, ele estava todo de branco e prata, com aquela coroa de gavinhas brancas sobre a cabeça. Era para mostrar que ele era meu oposto, que sua luz podia manter minhas trevas sob controle, era essa a justificativa, que mantinha as pessoas mais “seguras”, achavam que ele me impedia de ser um monstro. Mal sabiam que eu não precisava ser controlada, e que quem as vezes evitava que um de nós pegasse mais pesado, era eu, pois Susano tinha ficado cabeça quente com o passar do tempo.
Susano ficou parado na porta me olhando de cima a baixo com a boca um pouco aberta. Tive que sorrir pela expressão boba no rosto dele.
– Tão linda... – Ele se aproximou e beijou meu rosto novamente.
– E as crianças?
– Zion e Oriel acabaram de partir com elas. Kiara mordeu Fares de novo! – Ele resmungou. – Quando entrei no quarto os dois estavam brigando por causa da mordida.
– Eles já têm cinco anos, deveriam entender o que isso significa! Vamos ter que conversar com ela de novo sobre isso. – Passei os braços ao redor dele e descansei a cabeça em seu peito. Kiara era totalmente malvarmo, enquanto Fares havia nascido híbrido, como Aliver e Oriel. Tinha sangue vermelho das veias, os olhos verdes e cabelos negros e lisos e embora fosse um doce, precisava se alimentar como nós. Kiara tinha cabelos cacheados prateados e olhos de um vermelho vivo, sangue azulado e era muito bravia. Susano dizia que ela havia herdado minha personalidade. Pena que quando Higarath se foi, não levou a maldição que lançou sobre os malvarmos junto.
– Precisamos ir para o solar abrir os portais, já está quase na hora. – Ele levantou meu rosto e me beijou suavemente, quase como um sopro de um beijo. Sempre assim, suave como o vento, as vezes quente como brasas, mas sempre Susano.
– Vamos logo então. – Falei pegando sua mão e seguindo em direção ao corredor.
A mão quente e grande dele envolvia a minha e podia sentir seu pulso acelerado, era o nervoso de sempre quando estávamos prestes a abrir os portais. Mesmo que fossemos rigorosos, porém justos, mantendo a ordem, as pessoas tinham medo de nós, e o medo sempre criava pseudo-heróis. Todas as vezes que abríamos os portais, Susano esperava por alguém que resolvesse nos desafiar, nos destruir e devolver a todos a “liberdade” que tiramos, embora nunca tivéssemos aprisionado ninguém de verdade. Para ser sincera, eu também tinha medo, o medo era quase constante ainda mais agora com as crianças, mas eu mantinha as sombras espalhadas por todas as partes sempre vigiando e com a nova ACV de Vegahn, mantinha os melhores e mais confiáveis caçadores ao nosso redor.
Siorin e Nyu haviam vindo para cá na última abertura dos portais, seis anos atrás, desde então eles lecionam na ACV. Vários outros conhecidos nos ajudaram com a Academia também, os poucos de confiança e que sabiam o que éramos de verdade: A filha do mago que treinou Caalin para despertar Yezélami, Brigith, Siorin e Nyumun, Misty...
As esferas que representavam os onze mundos do círculo agora quebrado, continuavam na torre que agora chamávamos de Solar. Havíamos escurecido a sala, transformando-a numa espécie de planetário, um fim estético que deixava o lugar mais legal. Susano pegou minha mão e juntos pressionamos nossas palmas na primeira esfera que representava Amantia e começamos a recitar o feitiço. Nossas marcas brilharam enquanto uma ponte de luz unia os mundos novamente.
“Como foi prometido, depois dos eventos em Vastrus, não abrimos os portais durante cinco anos após o extermínio do exercido de Grizzar Domenas. Agora, lhes damos o que prometemos quando acabamos com a guerra, os portais estão abertos e vocês poderão transitar entre os mundos normalmente! Não preciso os lembrar do que acontece caso nos desafiem! ” Falei através das sombras em todos os mundos, nesse momento, as espalhei causando uma série de tremores em vários pontos dos mundos, a maioria desabitados, mas que poderiam ser sentidos em partes habitadas. Aquilo consumia uma grande quantidade de energia, mas eu podia mantê-los assim pelos sete dias.
“Aguardamos os reis e rainhas em Vegahn para as festividades dos Sóis e para que mostrem sua fidelidade a nós, os soberanos dos mundos. ” Susano reforçou piscando para mim. Depois, seguimos para o salão principal do castelo, onde iria abrir uma mandala para receber vovô e Leona.
Enquanto caminhávamos pelos corredores de gelo, observava pelas janelas um dos portais que estava aberto próximo aos portões do castelo. Me dava uma certa alegria ver as pessoas chegando, se abraçando e cumprimentando felizes os seus parentes, amigos ou companheiros que deixaram para trás.
Ao chegarmos as portas do Salão, olhei de canto de olho para Susano, ele respirou fundo e entrou em seu estado de calmaria, sua aparência e seu olhar não passavam nada além de serenidade infinita. Não pude evitar dar um risinho e passar os dedos entre seus cabelos. Inspirei profundamente e endureci minha expressão, cobrindo-me com as sombras como se fossem um manto, elas sussurraram e cumprimentaram antes de se espalharem ao nosso redor, evitando tocar em Susano e na luz que emanava dele. Não havia uma alma viva no Castelo de Gelo que não soubesse a verdade sobre nós, mas pela paz que estavam vivendo, não ousariam abrir a boca para ninguém e nós nunca precisamos ameaçar ninguém para isso.
Dei um passo à frente, distanciando-me um pouco de Susano e me preparei para entrar no salão, enfrentar os olhares acusadores, alguns invejosos e outros cobiçadores dos reis dos mundos, mas eu podia fazer isso. Porém, Susano puxou meu braço antes que eu desse a ordem para que as portas fossem abertas, ele me segurou contra a parede e me beijou com vontade, apertando meu corpo contra a parede de gelo e deslizando sua língua para dentro de minha boca, tirando-me completamente o ar.
– Se comporte! – Resmunguei arrumando o batom com magia.
– Só pra não deixar essa escuridão toda te subir à cabeça! – Ele piscou para mim e abriu as portas do salão.
Por sorte, os reis ainda não haviam entrado no castelo, deviam estar passando pela rigorosa revista dos caçadores e isso me dava alguns minutos para recompor minha cara de má. Mas era difícil não rir com a cena no centro do salão.
Docinho estava aos berros com Lua, seus longos cabelos negros estavam trançados para trás e ela segurava um ovo grande azulado nos braços e fazia o impossível para manter Lua afastado do ovo, girando em todas as direções para driblá-lo.
– Você não vai colocá-lo no fogo, Docinho! – Lua rosnou segurando-a pela cintura e fazendo menção a arrastá-la para uma das janelas, mas Docinho se desvencilhou e rosnou para ele, dando alguns pulinhos para longe dele com o ovo nas pontas dos dedos. Lua estava com os olhos arregalados, com medo de ela o deixar cair, ele estava quase arrancando seus cabelos azuis.
– Ele não quer chocar na água! Talvez nas brasas...
– ELE NÃO TEM NADA DE DRAGÃO NEGRO! VAI COZINHAR O FILHOTE, SUA LOUCA! – Ele gritou, passando a frente dela e tomando o ovo de suas mãos.
– Eu sou mais dragão negro que aquático e fui chocada na água! Não é, Nike? – Ela me olhou, pedindo ajuda para aquela discussão. Susano estava fazendo força para não rir e eu não sabia se ria ou se chorava de pena.
– Docinho, eu te usei de cobaia, não sabia se você chocaria. Foi só um teste bem-sucedido! – Respondi, deixando-a boquiaberta. – Seu ovo não tem nada de dragão negro, Docinho, ele vai chocar na água. – Expliquei aproximando-me e tomando o ovo de Lua, que rosnou irritado para mim.
– Então...
– Está sendo apressada. – Lua bateu o pé no chão e tomou o ovo de mim, então ele foi até a janela e saltou para fora, mudando de forma e ganhando os céus com seu imenso corpo azulado. Docinho me encarou irritada:
– Agora ele não vai mais me deixar cuidar do bebê! – Ela choramingou.
– Nem eu deixaria! – Ri e apertei suas bochechas.
– Tenha paciência, Docinho. Lua tem ciúme de tudo. Logo ele vai entender que você estava tentado! – Susano a confortou.
– Tentando errado... – Fingi uma tosse, Docinho ficou ainda mais irritada e saiu em direção a janela batendo o pé. Ela apontou para mim antes de saltar pela janela e resmungou algo em draconiano que eu imaginava ser uma torrente de palavrões, então desapareceu no céu segundos antes dos guardas anunciarem a chegada dos reis.
– Eles vêm vindo. – Susano estendeu a mão para mim, fomos até os tronos e nos sentamos, dando um sinal para que as portas fossem abertas.
Os reis dos mundos começaram a chegar em fila e se ajoelhavam diante de nós antes de se sentarem em seus lugares na longa mesa de gelo pouco abaixo dos tronos. Reconheci os reis de Evenox, Miriel e Hellidy, que vinham com expressões sérias, mas Helly conhecia nosso segredo e deu um breve sorriso ao se sentar. Asahi e Kuran vieram em seguida, mas eles dois sabiam disfarçar melhor que os outros, pelo menos Asahi, pois Kuran nos odiava genuinamente por causa de Annie e as vezes chegava a ter pesadelos com ele caçando meus filhos por vingança. Mal sabia ele que ela era uma parte de nós e que isso podia muito bem ter acabado com nós três tomando os mundos.
Mel e Ederon vieram de braços dados, ele havia assumido o trono de Pollo após a morte de Hisana na tentativa de resgate ao Palácio dos Ossos. Ederon casou-se com Melanie pouco depois da nossa paz tomar conta de tudo.
Silsiron Valeries, imperador de Mairdok veio com um grupo pequeno e mal nos olhou, ficou apenas encolhido em seu canto como de costume. Ceiran e Ellyn vieram com Iriel, os dois agora eram os líderes do clã Cyfar, fiquei curiosa para perguntar de Gwyn e Halles, mas sabia que tinha de manter a postura ali, mais tarde mataria minha curiosidade, iria com Susano até o Vale da Lua para vê-la. Calarrar tomou o lugar de Grizzar quando esse morreu no ataque seis anos antes. Ericko e Karin, que carregava Elean nos braços, chegaram por último, na certa deixaram os outros filhos em Ciartes com a avó. Agora era só esperarmos o pôr dos sóis e suas descidas para que a festa de verdade começasse.
– Vivant et tenebrae. ” – Os soberanos saudaram e uníssono.
– Bem-vindos, reis e rainhas! E que estejam sempre com as suas mentes no lugar certo para se manterem com suas cabeças sobre os ombros. – Os saudei com um pequeno sorriso cruel erguendo a taça de vinho sem ousar sair do meu papel, em seguida dei início as festividades ignorando a pontada de diversão no olhar de Susano para evitar rir de verdade.
Emilly Amite
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