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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A GUERRA DOS MUNDOS / H. G. Wells
A GUERRA DOS MUNDOS / H. G. Wells

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A GUERRA DOS MUNDOS

 

A chegada dos Marcianos

A véspera da Guerra

Nos últimos anos do século XIX, ninguém teria acreditado que este mundo estava a ser aguda e estreitamente observado por seres mais inteligentes do que o homem e, no entanto, tão mortais como ele; que, enquanto se ocupavam com os seus múltiplos problemas, os homens eram examinados tão pormenorizadamente como o são, sob a lente do microscópio, as criaturas efémeras que abundam e se multiplicam numa gota de água. Com uma complacência infinita, os homens moviam-se de um lado para o outro do seu globo, tratando dos seus pequenos negócios, serenamente, na certeza do seu poder sobre a matéria. É possível que se passe o mesmo com os infusórios no microscópio. Ninguém imaginou que os mundos mais antigos do espaço pudessem constituir perigo para os homens. Se alguém pensou nisso, foi unicamente para rejeitar a ideia de que a vida existisse sobre eles, pois este facto parecia impossível ou improvável. É curioso recordar alguns dos hábitos mentais desses dias remotos. Quando muito, os homens imaginavam que poderia haver outros homens em Marte, talvez inferiores e prontos a acolher uma obra de apostolização. No entanto, nas profundezas do espaço, mentes que estão para as nossas como estas estão para as dos animais, inteligências vastas, frias e insensíveis, fixavam a Terra com olhos invejosos e traçavam, lenta mas seguramente, os seus planos de conquista. E, nos princípios do século XX, chegou a grande decepção.

O planeta Marte - deve ser praticamente desnecessário lembrá-lo ao leitor - gira em torno do Sol a uma distância média de 224 milhões de quilómetros, e a luz e o calor que recebe do Sol mal chegam a metade dos que o nosso mundo recebe. Caso a teoria das nebulosas contenha alguma verdade, Marte deve ser mais velho do que a Terra, e muito antes de esta deixar de ser uma massa em fusão, a vida deve ter iniciado o seu curso na superfície de Marte. É provável que o facto de contar apenas cerca de um sétimo do volume da Terra tenha acelerado o seu arrefecimento até atingir a temperatura que possibilita o início da vida. Tem ar e água e tudo quanto é necessário para a manutenção da existência.

No entanto, o homem é tão vaidoso e a sua vaidade cega-o tanto que nenhum escritor, até ao fim do século XIX, exprimiu qualquer opinião sobre a possibilidade de se ter desenvolvido, tão longe, vida inteligente, ou, de qualquer modo, acima do nível que esta atinge na Terra. Nem sequer se costumava admitir que o facto de Marte ser mais antigo do que a Terra e de estar mais afastado do Sol significasse, necessariamente, que não só estava mais distante do início da vida, como também mais perto do seu fim.

O arrefecimento secular que um dia surpreenderá a Terra encontra-se já, certamente, numa fase muito adiantada no planeta dos nossos vizinhos. Em grande parte, as suas condições físicas permanecem um enigma, mas já sabemos que, mesmo na região equatorial, a temperatura ao meio-dia mal se aproxima da que se verifica nos nossos Invernos mais frios. A sua atmosfera é muito mais rarefeita do que a nossa, os seus oceanos alargaram-se até cobrirem dois terços da superfície do planeta e, quando se verifica a lenta mudança das estações, vastas extensões nevadas acumulam-se e derretem-se em redor de cada pólo e inundam periodicamente as suas zonas temperadas. A última fase da exaustação, que, para nós, ainda está incrivelmente afastada, tornou-se um problema actual para os habitantes de Marte. A pressão imediata da necessidade avivou as suas inteligências, alargou os seus poderes e endureceu-lhes o coração. E olhando através do espaço com instrumentos que mal concebemos, viram, apenas a 56 milhões de quilómetros de distância mínima, uma esperançosa estrela da manhã: o nosso planeta, cheio de vegetação verde e em parte coberto de água cinzenta, com uma atmosfera nebulosa que sugeria fertilidade, e aparições fugazes, através de aglomerados de nuvens, de largas extensões de terras com países populosos e mares estreitos coalhados de navios.

E nós, homens, as criaturas que habitam a Terra, devemos ser para eles, pelo menos, tão estranhos e desprezíveis como os macacos e os lémures são para nós.

O lado intelectual do homem já admite que a vida constitui uma luta incessante pela existência, e pareceria que também esta é a crença dos marcianos. O arrefecimento do seu mundo já se encontra numa fase muito adiantada e o nosso ainda está super-povoado, mas apenas com espécies animais que eles consideram inferiores. Levar a guerra em direcção ao Sol era, sem dúvida, a única possibilidade de fuga à destruição que, geração após geração, os persegue.

Antes de formularmos a seu respeito um juízo demasiado severo, devemos recordar-nos que destruímos, implacável e totalmente, não apenas animais, como o bisão e o dodó, mas também raças inferiores. Os dasiúros, apesar da sua semelhança com os homens, foram inteiramente aniquilados no decorrer de uma guerra de extermínio empreendida por imigrantes europeus no espaço de cinquenta anos. Seremos tão piedosos que tenhamos o direito de nos lamentar se os marcianos fizerem a guerra movidos pelo mesmo espírito?

Parece que os marcianos calcularam a sua descida com uma subtileza espantosa - é evidente que os seus conhecimentos matemáticos são muito superiores aos nossos - e levaram a cabo os seus preparativos com uma unanimidade quase perfeita. Se os nossos instrumentos o tivessem permitido, poderíamos ter visto a crescente agitação no seu planeta, nos princípios do século XIX. Homens como Schiaparelli observaram o planeta vermelho - é curioso notar, a propósito, que durante muitos séculos Marte foi a estrela da guerra -, mas não conseguiram interpretar as aparições instáveis que localizaram tão bem. Os marcianos deviam ter estado a preparar-se no decorrer de todo esse período.

Durante a oposição de 1894, foi visto um enorme clarão na parte iluminada do disco, primeiro pelo Observatório Lick, depois pelo Perrotin de Nice e em seguida por outros observadores. Os leitores ingleses tiveram pela primeira vez conhecimento deste facto através da edição de Nature datada de 2 de Agosto. Creio que este clarão se devia à fundição, no vasto fosso escavado no seu planeta, do enorme canhão do qual eram disparados os projécteis que nos atingiram. Sinais peculiares, embora inexplicáveis, foram vistos nas imediações do local onde se verificara a erupção durante as duas oposições seguintes.

A tempestade abateu-se sobre nós há seis anos. Quando Marte se aproximava da oposição, Lavelle, de Java, entusiasmou os meios astronómicos com a espantosa notícia de uma imensa erupção de gás incandescente sobre o planeta. Isto verificou-se cerca da meia-noite do dia 11; e o espectroscópio, ao qual recorreu imediatamente, indicou uma massa de gás em chamas, principalmente hidrogénio, que se movia a uma velocidade enorme na direcção da Terra. Esse jacto de fogo tornou-se invisível cerca da meia-noite e um quarto. Comparou-o a uma lufada colossal de chamas que esguichara do planeta súbita e violentamente, “como a explosão de gases em chamas de uma espingarda”.

Esta frase provou ser singularmente apropriada. No entanto, no dia seguinte, não havia nenhuma referência nos jornais a este facto, salvo uma pequena notícia no Daily Telegraph; o mundo continuou na ignorância de um dos perigos mais graves que têm ameaçado a raça humana. Eu não teria sabido nada acerca da erupção se não tivesse encontrado Ogilvy, o célebre astrónomo, em Ottershaw. Achava-se tremendamente excitado com as notícias e, movido pelo seu entusiasmo, convidou-me a fazer-lhe companhia, nessa noite, na observação do planeta vermelho.

Apesar de tudo quanto aconteceu desde então, ainda recordo com muita clareza essa vigília: o observatório sombrio e silencioso, a lanterna que projectava um débil clarão sobre o solo, ao canto, o tique-taque uniforme do maquinismo de relojoaria do telescópio, a pequena fresta no telhado - uma profundeza oblonga através da qual se via vogar a poeira estelar. Ogilvy andava de um lado para o outro, invisível mas audível. Ao olharmos através do telescópio, víamos um círculo de azul-escuro e o pequeno planeta redondo vogando no raio visual. Parecia uma coisa diminuta, brilhante e calma, debilmente marcada por faixas transversais e ligeiramente achatada. Mas era tão pequena, de um prateado tão quente - aquela cabeça luminosa de alfinete! Parecia estremecer, mas, na realidade, tratava-se da vibração do telescópio devida à actividade do sistema de relojoaria que mantinha o planeta no campo visual.

Quando o observava, o planeta parecia aumentar e diminuir, avançar e recuar, mas isso era apenas o resultado da fadiga dos meus olhos. Separavam-nos sessenta e quatro milhões de quilómetros - mais de sessenta e quatro milhões de quilómetros de vazio. Poucas pessoas compreendem a imensidade do vácuo no qual voga a poeira do universo material.

Lembro-me de que no campo visual, perto do planeta, se viam três fracos pontos de luz, três estrelas telescópicas infinitamente distantes; em redor, a escuridão impenetrável do espaço vazio. Sabem qual a impressão que nos causa esta escuridão numa noite gelada e carregada de estrelas? Vista por um telescópio parece ainda mais profunda. E, invisível para mim, dado que estava muito afastada e era muito pequena, vogando rápida e uniformemente através de tantos milhares de quilómetros, mais próxima em cada minuto que passava, vinha a Coisa que eles nos enviavam, a Coisa que devia trazer tanta luta, calamidade e morte à Terra. Em momento algum imaginei este facto ao olhar através do telescópio; ninguém suspeitou da existência desse míssil infalível.

Naquela noite verificou-se outra erupção de gás do distante planeta. Vi-a. Um relâmpago de orla avermelhada numa estreita faixa ao longo dos contornos, precisamente quando o cronómetro marcava meia-noite. Nesse momento informei Ogilvy e ele tomou o meu lugar. A noite estava quente e eu tinha sede. Dirigi-me até à pequena mesa onde se encontrava o sifão, estirando as pernas desajeitadamente e tacteando o caminho na escuridão. Entretanto, Ogilvy soltava exclamações ao ver a nuvem de gás que vinha na nossa direcção.

Nessa noite, outro míssil invisível partiu de Marte a caminho da Terra, cerca de vinte e quatro horas depois da partida do primeiro. Lembro-me de que palpei a mesa às escuras, com manchas esverdeadas e carmesim vogando em frente dos olhos. Desejava ter qualquer coisa perto com que acender o cigarro. Mal suspeitava o significado do pequeno clarão que vira e de tudo o que me traria. Ogilvy esteve de vigia até à uma e depois desistiu; acendemos a lanterna e fomos até casa dele. Ottershaw e Chertsey estavam às escuras e todas as suas centenas de habitantes dormiam em paz.

Nessa noite, ele falou incessantemente acerca das possíveis características físicas de Marte e zombara da ideia vulgarizada de que houvesse habitantes que estavam a fazer-nos sinais. Ele supunha que estava a cair um grande número de meteoritos sobre o planeta, ou que estava a verificar-se uma imensa explosão vulcânica. Salientou que era improvável que a evolução orgânica tivesse tomado a mesma direcção nos dois planetas vizinhos.

“As probabilidades contra a existência em Marte de qualquer coisa semelhante ao homem são de um milhão para um”, afirmou.

Centenas de observadores viram as chamas nessa noite, e cerca da meia-noite do dia seguinte, e de novo uma noite depois, e assim aconteceu durante dez noites consecutivas; uma erupção de chamas em cada uma. Ninguém conseguiu explicar por que razão não houve mais erupções além da décima. Pode ser que os gases libertados pela descarga se mostrassem inconvenientes para os marcianos. Densas nuvens de fumo ou de poeira visíveis da Terra através de um telescópio poderoso, manchas pequenas, cinzentas, flutuantes, projectavam-se através da atmosfera clara do planeta e obscureceram as suas feições mais familiares.

Os próprios jornais começaram por fim a referir-se ao que se passava e apareceram notas populares aqui, ali, por todo o lado, acerca dos vulcões marcianos. Recordo que o periódico sério-cómico Punch fez feliz uso dos acontecimentos numa caricatura política. E, sem que alguém se apercebesse, os mísseis disparados contra nós pelos marcianos aproximavam-se da Terra, movendo-se agora a uma velocidade de muitos quilómetros por segundo, através do abismo vazio do espaço, aproximando-se com o escoar das horas e dos dias. Hoje em dia, parece-me incrivelmente maravilhoso que os homens pudessem andar de cá para lá, a tratar dos seus negócios insignificantes, quando tinham suspenso sobre eles, tão próximo, aquele destino. Lembro-me do júbilo que Markham manifestou ao conseguir uma fotografia do planeta para o jornal ilustrado que então editava. Nestes últimos tempos, as pessoas dificilmente compreendem a abundância e a iniciativa dos nossos jornais do século XIX. Pela minha parte, achava-me muito ocupado a aprender a andar de bicicleta e a escrever uma série de ensaios literários acerca da provável evolução das ideias morais em relação ao progresso da civilização.

Uma noite (nessa altura, o primeiro míssil devia estar a uma distância máxima de 16 milhões de quilómetros), fui dar um passeio com a minha mulher. O céu estava estrelado e eu expliquei-lhe os sinais do Zodíaco e apontei para Marte, um ponto luminoso que cintilava perto do zénite, para o qual estavam apontados muitos telescópios. A noite estava quente. Quando regressámos a casa, passou por nós, cantando e tocando, um grupo de excursionistas vindos de Chertsey ou de Isleworth. Via-se luz nas janelas dos pisos superiores das casas enquanto as pessoas se deitavam. De longe, da estação de caminho de ferro, chegava o ruído produzido por comboios em  manobras, ruído este que a distância tornava suave, transformando-o quase numa melodia. Minha mulher apontou-me os sinais luminosos, verdes, vermelhos e amarelos, que, num poste, se projectavam contra o céu. Tudo parecia seguro e tranquilo!

 

A estrela cadente

Seguiu-se a noite da primeira estrela cadente. De manhã cedo, voando sobre Winchester em direcção leste, viu-se um traço de chamas a grande altura, na atmosfera. Deve ter sido visto por centenas de pessoas que o tomaram por uma vulgar estrela cadente. Albin, ao descrevê-la, afirmou que deixava atrás de si um rastro esverdeado que luzia durante alguns segundos. Denning, a nossa maior autoridade em meteoritos, disse que a altura a que se verificou a sua primeira aparição foi de cerca de cento e quarenta ou de cento e cinquenta quilómetros. Parecia-lhe que devia ter caído a uma distância de cento e cinquenta quilómetros a leste.

Eu encontrava-me em casa, a essa hora, a trabalhar no meu ensaio; e, apesar de as janelas deitarem para Ottershaw e de a persiana estar levantada (pois gostava de olhar para o céu à noite), não vi nada. No entanto, esta coisa, a mais estranha de todas as que chegaram à Terra vindas do espaço exterior, deve ter caído enquanto eu estava sentado e tê-la-ia visto se tivesse, simplesmente, olhado para cima quando passou. Algumas das pessoas que observaram o seu voo dizem que a acompanhava um ruído sibilante. Eu não ouvi nada. Muitas pessoas em Berkshire, Surrey e Middlesex devem ter visto a sua queda e, quando muito, julgaram que se tratava de outro meteorito. Nessa noite, não parece que alguém tenha ficado preocupado com a massa em queda.

No entanto, de manhã, o pobre Ogilvy, que vira a queda da estrela e estava convencido de que algum meteorito jazia nos baldios entre Horsell, Ottershaw e Woking, levantou-se muito cedo na intenção de encontrá-lo. Na realidade, encontrou-o pouco depois do alvorecer e não muito longe dos fossos de areia. O impacte do projéctil abrira um enorme buraco e a areia e o cascalho tinham sido arremessados com violência em todas as direcções, por cima da urze, formando montes visíveis a milha e meia de distância. A parte oriental do urzal estava em chamas, e erguia-se na alvorada uma delgada coluna de fumo azul.

A Coisa estava quase inteiramente enterrada na areia, entre as lascas dispersas de um pinheiro que se despedaçara em fragmentos ao cair. A parte a descoberto tinha a aparência de um enorme cilindro, de contornos duros, suavizados por uma espessa incrustação escamosa de cor mate. Tinha cerca de trinta metros de diâmetro.

Aproximou-se do objecto, surpreendido com o tamanho e ainda mais com a forma, dado que a maioria dos meteoritos são mais ou menos completamente redondos. No entanto, encontrava-se ainda tão quente devido ao seu voo através da atmosfera que se tornava impossível aproximar-se mais. Atribuiu um ruído proveniente do interior do cilindro ao resultado do arrefecimento desigual da sua superfície, pois, nesse momento, não lhe ocorreu que pudesse ser oco.

Permaneceu à beira do fosso que a Coisa abrira para si mesma, admirado com a sua aparência estranha, surpreendido principalmente com a invulgaridade do seu aspecto e cor e apercebendo-se confusamente de alguns aspectos evidentes do desígnio da sua vinda. A alvorada estava maravilhosamente tranquila e o sol, que iluminava apenas os pinheiros de Weybridge, já começava a aquecer. Não se lembrava de ter ouvido quaisquer pássaros nessa manhã, não bulia decerto nenhuma brisa e os únicos sons que se ouviam eram os que provinham dos débeis movimentos no interior do cilindro coberto de cinza. Ele achava-se absolutamente só no baldio.

De súbito, verificou, estremecendo, que uma parte da escória, a incrustação acinzentada que cobria o meteorito, estava a despegar-se da borda circular da ponta. Desprendia-se a escorria em lascas para a areia. Bruscamente, despegou-se um grande bocado e caiu com um ruído agudo que o fez reter a respiração.

Durante cerca de um minuto não conseguiu compreender o que aquilo significava e, embora o calor fosse excessivo, desceu ao fosso, rente ao objecto, para ver melhor a Coisa. Chegou a imaginar que o arrefecimento do corpo pudesse estar relacionado com isto, mas tal hipótese não explicava o motivo pelo qual a cinza caía unicamente da extremidade do cilindro.

Verificou então que o topo circular do cilindro rodava muito lentamente sobre o corpo. Era um movimento tão gradual que só o descobriu ao verificar que a marca preta que estivera perto dele havia cinco minutos se encontrava nesse momento do lado oposto da circunferência. Mesmo então não conseguiu compreender o que aquilo significava, até ouvir o som abafado de algo que rangia, amortecido, e viu a marca preta distanciar-se numa sacudidela cerca de uma polegada. Nesse momento, a explicação surgiu-lhe bruscamente. O cilindro era artificial - oco - com uma ponta que se desaparafusava. Alguma coisa, no interior do cilindro, estava a desaparafusar o topo!

- Céus! - exclamou Ogilvy. - Está um homem lá dentro! Há homens lá dentro! Quase a morrer assados! Estão a tentar fugir!

Imediatamente, numa rápida transição mental, relacionou a Coisa com as erupções observadas em Marte.

O pensamento de que uma criatura estava presa no interior do cilindro era-lhe tão insuportável que esqueceu o calor e aproximou-se do cilindro a fim de ajudar a abri-lo. Mas é provável que a radiação entorpecedora o detivesse antes de queimar as mãos no metal ainda incandescente. Hesitou durante alguns momentos, depois voltou-se, saiu do fosso e começou a correr como um selvagem na direcção de Woking. Deviam ser então, aproximadamente, seis horas. Encontrou um carroceiro e tentou fazer-lhe compreender o que se passava, mas a história que narrava e o seu aspecto eram tão extravagantes - o chapéu tinha caído para dentro do fosso - que o homem limitou-se a tocar os cavalos e a prosseguir o seu caminho. Também não teve êxito com o empregado que abria nesse momento as portas da cervejaria perto de Horsell Bridge. O homem pensou que se tratava de um lunático e tentou em vão fechá-lo no bar. Este facto moderou um pouco a sua excitação; e, quando viu Henderson, o jornalista londrino, no seu jardim, chamou-o por cima da cerca e explicou-lhe o que se passava.

- Henderson - gritou -, viu aquela estrela cadente, na noite passada?

- E então? - disse Henderson.

- Encontra-se neste momento em Horsell Common.

- Meu Deus! - exclamou Henderson. - Um meteorito! Isso é bom!

- Mas é algo mais do que um meteorito. É um cilindro, homem, um cilindro artificial! E há qualquer coisa lá dentro.

Henderson ergueu-se, com a pá na mão.

- O quê? - perguntou. Era surdo de um ouvido.

Ogilvy contou-lhe tudo o que tinha visto. Henderson levou cerca de um minuto a perceber o que se passava. Depois, deixou cair a pá, pegou no paletó e saiu para a estrada. Os dois homens regressaram imediatamente a toda a pressa ao baldio e encontraram o cilindro ainda na mesma posição. No entanto, os sons provindos do interior já tinham cessado e via-se um delgado círculo de metal brilhante entre o topo e o corpo do cilindro. O ar estava a entrar ou a sair na borda com um som débil e chiante.

Puseram-se à escuta, bateram no metal com um pau e, como não receberam resposta, concluíram que o homem ou os homens que se encontravam no interior estavam, provavelmente, inconscientes ou mortos.

Como é natural, nenhum deles sabia o que devia fazer. Gritavam consolações e promessas e, em seguida, regressaram à cidade para pedir ajuda. Podemos imaginá-los, cobertos de areia, excitados e com as roupas em desalinho, subindo a correr a pequena rua sob o sol brilhante, precisamente no momento em que os lojistas desciam as persianas e as pessoas abriam as janelas dos quartos. Henderson dirigiu-se imediatamente à estação de caminhos de ferro a fim de telegrafar as notícias para Londres. Os artigos dos jornais tinham preparado as mentes humanas para a recepção da novidade.

Cerca das oito horas, um certo número de rapazes e de homens desempregados encontravam-se no baldio para ver “os homens mortos vindos de Marte”. Era essa a forma que a história tomara. Ouvi-a pela primeira vez da boca do ardina, cerca das nove menos quinze, quando saí para comprar o Daily Chronicle. Naturalmente, fiquei espantado e não perdi tempo algum a sair e a atravessar a ponte de Ottershaw em direcção aos fossos de areia.

 

Nos baldios de Horsell

Encontrei uma pequena multidão de cerca de vinte pessoas rodeando o imenso buraco no qual se encontrava o cilindro. Já descrevi a aparência daquela massa colossal enterrada no solo. O relvado e o cascalho que o cercavam pareciam ter sido carbonizados como que por uma súbita explosão. Este impacte causara certamente uma irrupção de chamas. Henderson e Ogilvy não estavam presentes. Penso que se apercebiam de que não havia nada a fazer por enquanto e tinham ido tomar o pequeno-almoço em casa de Henderson.

Havia quatro ou cinco rapazes sentados à beira do fosso, com os pés a balouçar, divertidos - até que os fiz parar-, a atirar pedras para o gigantesco objecto. Depois de os ter repreendido, começaram a “atingir” o grupo de curiosos.

Via-se um casal de ciclistas, um jardineiro de empreitada ao qual dera trabalho algumas vezes, uma rapariga com um bebé, Gregg, o homem do talho, e o seu neto, dois ou três vadios e golf caddies (Rapazes que, no golfe, transportam a saca dos apetrechos. (N. do T.) que estavam habituados a vaguear perto da estação de caminhos de ferro. Falavam muito pouco. Nesse tempo, poucas pessoas em Inglaterra sabiam alguma coisa, além de ideias gerais, acerca da astronomia. A maioria dos presentes fitavam calmamente a extremidade do cilindro, semelhante a uma grande mesa. O cilindro encontrava-se ainda na mesma posição em que Ogilvy e Henderson o tinham visto. Eu imaginava que a expectativa popular de um amontoado de cadáveres carbonizados fora desiludida perante esta massa inanimada. Alguns foram-se embora e outros chegavam. Desci ao fosso e pareceu-me sentir um débil movimento sob os meus pés. O topo já não rodava.

Foi só quando me aproximei, muito rente, que se me tornou evidente o que havia de estranho neste objecto. A primeira vista não era, na realidade, mais excitante do que uma carruagem voltada ou uma árvore atravessada na estrada. Nem tanto como isso, sem dúvida.

Parecia como que um carro enferrujado. Era necessária uma certa cultura científica para nos apercebermos de que a capa cinzenta da Coisa não era de nenhum óxido vulgar, que o metal branco-amarelado que raiava na fenda entre a tampa e o cilindro tinha uma coloração exótica. “Extraterrestre” não significava nada para a maioria dos espectadores.

Nesse momento, eu já tinha a certeza de que a Coisa viera do planeta Marte, mas não me parecia provável que contivesse qualquer criatura viva. Pensava que o desaparafusamento devia ser automático. Apesar das afirmações de Ogilvy, continuava a acreditar que existissem homens em Marte. Dava largas à imaginação, pensando na possibilidade de se encontrar um manuscrito no interior do cilindro, nas dificuldades de tradução que poderiam surgir, na descoberta de moedas ou desenhos e por aí adiante. No entanto, tudo isto era um pouco inverosímil. Estava impaciente por vê-lo abrir-se.

Cerca das onze horas, como nada acontecia, regressei, absorvido pelas ideias que me tinham ocorrido, à minha casa em Maybury. Mas tornou-se-me difícil continuar o meu trabalho de investigação abstracta.

De tarde, o aspecto do baldio sofrera uma grande transformação. As primeiras edições dos jornais da tarde tinham assombrado Londres com enormes cabeçalhos:

 

UMA MENSAGEM DE MARTE

IMPORTANTES ACONTECIMENTOS EM WOKING

 

E por aí adiante. Além disto, o telegrama de Ogilvy para o Centro de Intercâmbio Astronómico excitara todos os observadores dos três condados.

Na estrada de acesso aos fossos de areia viam-se três cabrioles, vindos da estação de Woking, uma carruagem de Chobham e mais alguns veículos de casas nobres. Além disto, havia uma verdadeira multidão de bicicletas. Deve ter chegado um grande número de pessoas de Woking e Chertsey, apesar do calor, de modo que também se encontrava ali uma considerável multidão - incluindo algumas damas vistosamente vestidas.

Estava um calor terrível. Não havia nenhuma nuvem no céu nem um sopro de vento, e a única sombra provinha dos poucos pinheiros dispersos. O incêndio do urzal fora extinto, mas, nas imediações de Horsell, a planície estava enegrecida até onde a vista alcançava e continuavam a subir no ar volutas de fumo. Um negociante oportunista de doçarias de Chobham Road tinha enviado o filho com um carrinho de mão carregado de maçãs verdes e refresco de gengibre.

Quando me aproximei da beira do fosso, deparou-se-me um grupo de cerca de meia dúzia de homens - Henderson, Ogilvy e um homem alto e louro que, conforme soube mais tarde, era Stent, o astrónomo real, e vários operários que empunhavam pás e picaretas. Stent dava instruções numa voz clara e aguda. Estava de pé em cima do cilindro que se achava agora, evidentemente, muito mais frio; tinha o rosto carmesim e escorria suor. Parecia irritado por qualquer motivo.

Já estava a descoberto uma grande parte do cilindro, embora a base se encontrasse ainda soterrada. Mal Ogilvy me viu entre a multidão pasmada que se achava à beira do fosso, disse-me para descer e perguntou-me se me importaria de procurar Lord Hilton, o proprietário da herdade.

A crescente multidão, afirmou, estava a tornar-se um sério obstáculo para o prosseguimento das escavações, em especial os rapazes. Queriam uma cerca de protecção e precisavam de ajuda para manter as pessoas afastadas. Contou-me que se ouvia ainda, de vez em quando, um débil ruído de movimento provindo do interior do objecto, mas os operários não tinham conseguido desaparafusar o topo, pois não eram capazes de lhe tocar. O objecto parecia ser extremamente espesso e era possível que os fracos sons que se ouviam representassem um tumulto ruidoso no interior.

Senti-me bastante satisfeito por fazer o que ele me pedia e, assim, tornei-me um dos espectadores privilegiados que se encontravam dentro do recinto vedado. Não encontrei Lord Hilton em casa, mas informaram-me que devia chegar de Londres no comboio que parte às seis horas de Waterloo. E, como nesse momento eram quase cinco e um quarto, voltei a casa, tomei chá e dirigi-me para a estação onde esperei que ele chegasse.

 

A abertura do cilindro

Quando regressei ao baldio já era pôr-do-sol. Via grupos dispersos que chegavam, apressados, dos lados de Woking e uma ou outra pessoa que se afastava. A multidão aumentara em redor do fosso e recortava-se, escura, no amarelo-limão do céu - umas duzentas pessoas, talvez. Falavam em voz alta e parecia desenrolar-se, perto do fosso, uma espécie de luta. Imaginei que estavam a acontecer coisas estranhas. Quando me aproximei, ouvi a voz de Stent:

- Voltem para trás! Voltem para trás!

Um rapaz passou por mim a correr.

- Está a mexer-se - disse-me -, aparafusa e desaparafusa. Não gosto daquilo. Vou p’ra casa, vou.

Aproximei-me da multidão. Na realidade, creio, encontravam-se ali duzentas ou trezentas pessoas que se acotovelavam e empurravam umas às outras, e as duas ou três damas que se achavam presentes não eram, de modo algum, as menos activas...

Caiu no fosso - gritou alguém.

Voltem para trás - diziam várias pessoas.

A multidão hesitou durante alguns momentos e eu abri caminho com os cotovelos. Todos pareciam extremamente excitados. Ouvi um zunido peculiar provindo do fosso.

- Ouçam! - gritou Ogilvy. - Ajudem a afastar esses idiotas. Bem sabem que não fazemos ideia do que está dentro desta maldita coisa!

Vi um jovem, creio que era empregado de balcão em Woking, em cima do cilindro, tentando sair do buraco. A multidão empurrara-o para lá.

A extremidade do cilindro estava a ser desenrascada do interior. Viam-se sessenta centímetros de dois extraordinários parafusos. Alguém tropeçou em mim e quase fui arremessado contra a ponta do parafuso. Voltei-me e, neste momento, o parafuso deve ter saltado, pois a tampa do cilindro caiu sobre o cascalho com um estrondo atroador. Bati com o cotovelo na pessoa que se encontrava atrás de mim e fitei a Coisa novamente. Durante alguns momentos, aquela cavidade circular pareceu inteiramente negra. O Sol, no ocaso, batia-me nos olhos.

Penso que todos esperavam ver emergir um homem - possivelmente, algo um pouco diferente dos homens terrestres, mas, nos aspectos essenciais, um homem. Sei que estavam à espera disso. Mas quando olhei vi qualquer coisa que se agitava na sombra: duas formas esverdeadas em movimentos revoltos, uma sobre a outra e, depois, dois discos luminosos - como olhos. A seguir, alguma coisa parecida com uma pequena serpente cinzenta, com a espessura aproximada de uma bengala, serpeou, projectando-se do meio que estremecia, e ziguezagueou na minha direcção - e, em seguida, surgiu outra coisa igual.

Senti bruscamente um arrepio. Ouviu-se o guincho agudo de uma mulher atrás de mim. Voltei-me para trás, de olhos ainda fixos no cilindro do qual saíam outros tentáculos, e comecei a abrir caminho para me afastar da beira do fosso. Vi o espanto dar lugar ao horror nos rostos das pessoas que me cercavam. Ouvia exclamações sem nexo provindas de todos os lados. Assistia-se a um movimento geral de recuo. O empregado de balcão debatia-se ainda à beira do fosso. Eu estava sozinho. Do outro lado, a multidão corria, até mesmo Stent. Olhei novamente para o cilindro e senti um terror incontrolável. Fixei-o, petrificado.

Uma grande massa redonda, acinzentada, com o tamanho aproximado de um urso, erguia-se lenta e penosamente do cilindro. Quando saiu e foi banhada pela luz, reluziu como couro molhado.

Dois grandes olhos escuros fitavam-me, imperturbáveis. A massa que os emoldurava, decerto a cabeça, era redonda e podia-se dizer que tinha um rosto, com uma boca debaixo dos olhos, cuja orla sem lábios tremia, arquejava e gotejava saliva. Toda a criatura ofegava e pulsava convulsivamente. Um apêndice delgado, tentacular, aferrava-se à superfície do cilindro; outro retorcia-se no ar.

Aqueles que nunca viram um marciano vivo mal podem conceber o horror que causava a sua estranha aparência. A característica boca em forma de V, o lábio superior pontiagudo, a ausência de rugas na testa e o queixo debaixo do lábio inferior cuneiforme, a agitação incessante da boca, os gorgóneos grupos de tentáculos, a respiração tumultuosa dos pulmões numa atmosfera que lhes era estranha, a lentidão e custo evidente dos movimentos por causa da maior energia gravitacional da Terra - sobretudo, a extraordinária intensidade dos olhos imensos -, tudo isto era simultaneamente vital, intenso, inumano, mutilado e monstruoso. Havia qualquer coisa de fungoso na pele castanha oleosa, algo indescritivelmente repelente nos movimentos desgraciosos e monótonos. Mesmo neste primeiro encontro, neste primeiro olhar, senti asco e náuseas.

Bruscamente, o monstro vacilou. Perdera o equilíbrio na borda do cilindro e caíra no fosso, com um baque semelhante ao da queda de uma grande massa de couro. Ouvi-lhe um característico grito abafado e, sem demora, a outra criatura emergiu indistintamente da profunda sombra da abertura.

Voltei-me e corri como louco ao encontro das árvores mais próximas, a cerca de noventa metros de distância, mas corria obliquamente e aos tropeções, pois não podia desviar os olhos daquilo.

Detive-me entre um grupo de pinheiros jovens, arquejante, e aguardei por novos acontecimentos. Em redor, pelos areais do baldio espalhavam-se pessoas mergulhadas, como eu, num terror meio fascinado, ora fitando aquelas criaturas, ora o monte de cascalho à beira do fosso. E, então, ainda mais horrorizado, vi uma forma preta, redonda, que aparecia e desaparecia à beira do fosso. Era a cabeça do empregado de balcão; parecia um pequeno objecto negro, desenhando-se no céu quente do oeste. Conseguira erguer o ombro e o joelho e pareceu escorregar novamente até se ver só a cabeça. De súbito, vacilou e pareceu-me ouvir um débil grito. Senti um impulso momentâneo de voltar para trás e ajudá-lo, mas o medo que sentia foi mais forte.

Nesse momento não se via nada; estava tudo oculto pelo profundo fosso e pelo monte de areia que o impacte do cilindro provocara. Qualquer pessoa que viesse pela estrada de Chobham ou Woking ficaria assombrada com o espectáculo que se lhe depararia aos olhos - uma multidão que diminuíra continuamente, de cerca de cem pessoas ou mais, disposta num grande círculo irregular, em valas, atrás de arbustos, atrás de portões e de sebes, proferindo poucas ou nenhumas palavras e essas em gritos breves e excitados e fitando, fitando intensamente, alguns montes de areia. O carrinho de mão do refresco de gengibre, abandonado, desenhava-se negro no céu rubro e, nos areais, via-se uma fila de veículos abandonados, cujos cavalos comiam das cevadeiras ou raspavam o chão.

 

O raio da morte

Depois da rápida visão que tivera dos marcianos ao emergirem do cilindro no qual tinham chegado à Terra, vindos do seu planeta, os meus movimentos estavam paralisados por uma espécie de fascinação. Ainda me encontrava enterrado na urze, até à altura do joelho, fitando o monte que os ocultava. Travava-se em mim uma batalha entre o medo e a curiosidade.

Não me atrevi a aproximar-me novamente do fosso, mas sentia um desejo ardente de observar o que se passava no seu interior. No entanto, comecei a andar, descrevendo uma larga curva, à procura de um local vantajoso. Fitava continuamente os montes de areia que ocultavam os recém-chegados à Terra. Um feixe de espessos chicotes pretos, como os braços de um polvo, reluziu à luz do ocaso e ocultou-se imediatamente e, mais tarde, ergueu-se uma vara delgada que exibia na extremidade um disco circular que girava com um movimento vacilante. De que poderia tratar-se?

A maioria dos espectadores reunira-se num ou dois grupos - um deles constituído por uma pequena multidão que se dirigia para Woking, outro por pessoas que se encaminhavam para Chobham. Era evidente que todos partilhavam o meu conflito mental. Havia poucas pessoas ao pé de mim. Aproximei-me de um homem - verifiquei que era meu vizinho, embora desconhecesse o seu nome - e abordei-o. Mas havia pouco tempo para conversarmos.

- Que feios animais! - exclamou. - Meu Deus!

- Que feios animais! - repetia incessantemente.

- Viu um homem no fosso? - perguntei. Não me respondeu. Ficámos em silêncio, e durante algum tempo, lado a lado, gozando, creio, de um certo conforto pela companhia que nos fazíamos mutuamente, observámos o que se passava. Em seguida, mudei de posição e escalei um pequeno outeiro que me dava a vantagem de um metro ou mais de elevação e quando olhei para o meu vizinho vi-o encaminhar-se na direcção de Woking.

Caiu o crepúsculo antes de acontecer mais alguma coisa. Ao longe, à esquerda, a multidão que se dirigia para Woking ia desaparecendo e ouvia agora débeis murmúrios provindos dela. O pequeno grupo de pessoas que se encaminhava para Chobham dispersou-se. Quase não havia indícios de movimento no fosso.

Foi isto, mais do que qualquer outra coisa, que insuflou coragem às pessoas e creio que os recém chegados de Woking também contribuíram para restaurar a confiança. De qualquer modo, quando se fez crepúsculo começou um movimento lento, intermitente, nos areais, um movimento que pareceu ganhar forças; nas imediações do cilindro, a calma do entardecer não fora quebrada. Começaram a avançar figuras negras, em grupos de duas ou três; paravam, observavam e tornavam a avançar, distribuindo-se num delgado crescente irregular que parecia envolver o fosso entre as suas extremidades adelgaçadas. Comecei também a andar em direcção ao fosso.

Em seguida, vi alguns cocheiros e outros homens que se dirigiam corajosamente para os areais e ouvi um tropel de cascos e o chiar de rodas. Vi um rapaz que empurrava o carrinho de maçãs. E então, a uns trinta metros de distância do fosso, avançando de Horsell, avistei um pequeno grupo indistinto de homens, à frente dos quais se via uma bandeira branca.

Era a deputação. Houvera uma consulta apressada e, dado que se tornava evidente que os marcianos eram, a despeito da forma repugnante, criaturas inteligentes, fora resolvido que se lhes mostrasse, aproximando-nos deles com sinais, que também somos inteligentes.

Tremulando, tremulando, a bandeira inclinava-se primeiro para a direita, depois para a esquerda. A distância era demasiado grande para que se pudesse reconhecer alguém, mas, mais tarde, soube que Ogilvy, Stent e Henderson acompanhavam os outros nesta tentativa de comunicação.

O pequeno grupo, ao avançar, arrastara para dentro, por assim dizer, a circunferência do círculo de pessoas, agora quase completo, e era seguido a distância discreta por um grupo de indistintas figuras negras.

De súbito, verificou-se uma explosão de luz, e uma certa quantidade de fumo luminoso esverdeado saiu do fosso em três baforadas distintas, as quais subiram no ar calmo, direitas, uma após outra.

Este fumo (ou chamas, pois talvez fosse esta a palavra apropriada) era tão brilhante que o céu azul-escuro e a superfície enevoada do baldio castanho, para os lados de Chertsey, plantada de pinheiros escuros, pareceram escurecer bruscamente quando as baforadas se ergueram, e ficar mais escuros depois de se terem dispersado. Ao mesmo tempo, ouviu-se um fraco som sibilante.

Nas imediações do fosso via-se ainda o pequeno grupo de pessoas em forma de cunha com a bandeira branca à frente, imobilizadas por este fenómeno, um pequeno grupo de pequenas formas negras sobre o solo escuro. Quando o fumo verde subiu, os seus rostos foram iluminados de verde-claro e desvaneceram-se novamente quando se dispersou. Então, lentamente, o som sibilante deu lugar a um zunido, um ruído prolongado, alto, monótono. Vagarosamente, saiu do fosso uma forma corcovada e o fantasma de um clarão de luz pareceu chamejar dela.

Em seguida relâmpagos de chama real, um clarão brilhante pulando de um para outro, brotaram do grupo disperso de homens. Era como se um jacto invisível colidisse com eles e os transformasse de súbito em chamas brancas. Como se cada homem se incendiasse brusca e momentaneamente.

Depois, à luz da sua própria destruição, vi-os a cambalear e a cair e os seus acompanhantes voltaram-se e começaram a correr.

Fiquei pasmado, sem compreender que isto significava a morte pulando de homem para homem naquela pequena multidão, ao longe. Apenas sentia que se tratava de alguma coisa muito estranha. Um relâmpago quase silencioso e ofuscante e um homem caiu e ficou imóvel e, quando o raio invisível de calor passou por eles, os pinheiros começaram a arder e todos os arbustos secos de tojo tornaram-se, com um ruído surdo, numa massa em chamas. E mais longe, para os lados de Knaphill, observei a rápida inflamação das árvores, sebes e casas de madeira.

Esta morte em chamas, esta espada de calor invisível e inevitável, propagava-se rápida e regularmente. Apercebi-me de que se aproximava de mim ao ver os arbustos começarem a arder quando ela lhes tocava. Estava demasiado perplexo e estupefacto para me mover. Ouvi o ruído produzido pelo fogo nos fossos de areia e o súbito relincho de um cavalo, que se calou bruscamente. Em seguida, parecia que um dedo invisível, embora intensamente aquecido, fora apontado para o urzal entre mim e os marcianos; o chão escuro fumegou e estalou ao longo de uma linha curva defronte dos areais. Caiu alguma coisa com estrondo, muito longe, à esquerda, onde a estrada que vem da direcção de Woking desemboca no baldio. Em seguida, o som sibilante e o zunido cessaram e o objecto negro, parecido com uma cúpula, afundou-se lentamente e desapareceu no fosso.

Tudo isto acontecera com uma tal rapidez que fiquei paralisado, ensurdecido e cego pelos relâmpagos. Se aquela morte se tivesse propagado num círculo maior eu teria sido, inevitavelmente, aniquilado. Mas passou e poupou-me, deixando a noite, subitamente, escura e estranha.

O baldio ondulante parecia agora completamente sombrio, com excepção dos tons cinzento e claro das veredas sob o céu azul-escuro do princípio da noite.

Estava mergulhado na escuridão e os homens tinham sido bruscamente varridos. Viam-se estrelas e, a oeste, o céu era ainda de um azul-claro, brilhante e quase esverdeado. As copas dos pinheiros e os telhados de Horseíl desenhavam-se, a oeste, pontiagudos e escuros, no arrebol da tarde. Os marcianos e os seus utensílios continuavam invisíveis, salvo o delgado poste sobre o qual o seu espelho girava continuamente. Restos de arbustos e árvores isoladas fumegavam aqui e ali e ardiam ainda, e as casas perto da estação de Woking projectavam espirais de chamas na quietude do ar nocturno.

Nada se modificara salvo aquilo e um espanto terrível. O pequeno grupo de manchas negras com a bandeira da paz fora aniquilado e a tranquilidade da tarde, ao que me parecia, mal fora quebrada.

Apercebi-me de que me encontrava neste baldio escuro, abandonado, desprotegido e só. De súbito, algo se abateu sobre mim - o medo.

Voltei-me, penosamente, e comecei a correr, cambaleando, através do urzal.

O medo que me dominava não era racional, mas um pânico provocado não apenas pelos marcianos, como também pela escuridão e pela quietude que me cercavam. Deprimia-me de tal modo que corri, chorando silenciosamente como o faria uma criança. Já não me atrevia a olhar para trás.

Lembro-me de sentir uma convicção extraordinariamente profunda de que estavam a brincar comigo, de que agora, quase a alcançar a segurança, esta morte misteriosa - tão rápida como a passagem da luz - correria atrás de mim, desde o fosso, perto do cilindro, e abater-me-ia.

 

O raio da morte em Chobham Road

Continua a ser matéria de discussão a maneira pela qual os marcianos podem aniquilar os homens tão rápida e silenciosamente. Muitos pensam que eles são capazes de gerar, por um determinado processo, um calor intenso numa câmara de condutibilidade praticamente nula. Projectam este calor num feixe de raios paralelos contra qualquer objecto escolhido, por intermédio de um espelho parabólico, polarizado, de composição desconhecida; trata-se de um processo semelhante àquele pelo qual o espelho parabólico de um farol projecta um feixe de luz. Mas ninguém provou a veracidade destas hipóteses. No entanto, está provado que um raio de calor é a essência do fenómeno. Luz quente e invisível em vez de visível. Tudo quanto seja combustível incendeia-se ao seu contacto, o chumbo flui como água, amacia o ferro, quebra e funde o vidro e quando cai sobre a água, esta vaporiza-se imediatamente.

Nessa noite, cerca de quarenta pessoas jaziam à luz das estrelas, perto do fosso, de tal modo carbonizadas e distorcidas que se tornava impossível reconhecê-las. Durante toda a noite, o baldio entre Horsell e Maybury ficou deserto e mergulhado em chamas brilhantes.

É provável que as notícias do massacre tenham chegado ao mesmo tempo a Chobham, Woking e Otter-shaw. Em Woking, as lojas fecharam quando a tragédia se verificou e um certo número de pessoas, lojistas, etc., atraídas pelas histórias que corriam, atravessaram Horsell Bridge e a estrada bordada por sebes que desemboca no baldio. Podem imaginar-se os jovens, escovados depois do seu dia de trabalho, fazendo desta novidade, como fariam de qualquer outra coisa, um pretexto para passearem aos pares e desfrutarem do namoro habitual. O leitor pode imaginar o rumor provocado pelas vozes ao longo da estrada, ao crepúsculo...

No entanto, naturalmente, poucas pessoas em Woking sabiam sequer da abertura do cilindro, embora o pobre Henderson tenha enviado um mensageiro de bicicleta ao correio com um telegrama especial para os jornais da tarde.

Quando estas pessoas chegaram ao descampado, em grupos de duas e três, encontraram pequenos conjuntos de outras pessoas que conversavam excitadamente e fitavam o espelho que girava por cima dos areais. Os recém-chegados foram, sem dúvida, imediatamente contagiados pela excitação do momento.

Cerca das oito e meia, quando a deputação foi aniquilada, devia achar-se uma multidão de trezentas pessoas ou mais neste local, além daquelas que tinham saído da estrada para se aproximarem mais dos marcianos. Também estavam presentes três polícias, um dos quais a cavalo, cumprindo o melhor que podiam as instruções de Stent para manter as pessoas a distância e fazer com que não se aproximassem do cilindro. Havia um certo rumor provindo dos indivíduos mais inconscientes e excitáveis, para os quais uma multidão é sempre ocasião de barulho e de grosseria.

Stent e Ogilvy, prevendo algumas possibilidades de luta, tinham telegrafado de Horsell para os quartéis, mal os marcianos emergiram, requisitando uma companhia de soldados para proteger da violência estas estranhas criaturas. Depois disto, regressaram para dirigir aquele malfadado avanço. A descrição da sua morte, tal como foi relatada pelos seus espectadores, condiz em todos os pormenores com as minhas próprias impressões: as três baforadas de fumo verde, a baixa nota do zunido e os relâmpagos de chamas.

Mas as possibilidades de fuga de que a multidão dispunha eram muito menores do que as minhas. Só a salvou o facto de estar separada do Raio da Morte por uma elevação de areia coberta de urze. Se o espelho parabólico estivesse alguns metros mais alto, ninguém teria sobrevivido para contar a história. Viram os relâmpagos e os homens a cair, e o que parecia ser uma mão invisível incendiou os arbustos uns após outros. Em seguida, com uma nota sibilante que sobressaiu do ruído provindo do fosso, um raio ziguezagueou muito perto das suas cabeças, incendiando os caixilhos das janelas e reduzindo a migalhas uma parte da empena da casa mais próxima.

Após o súbito estrondo, o silvo e o clarão das árvores em chamas, a multidão agitou-se, hesitando durante alguns momentos. Faíscas e galhos a arder começaram a cair na estrada, bem como folhas que pareciam lufadas de chamas. Os chapéus e os fatos começaram a arder. Em seguida, ouviu-se um coro de gritos no baldio. Houve guinchos, berros e, de súbito, um polícia a cavalo atravessou a galope a confusão, com as mãos agarradas à cabeça e gritando estridentemente.

- Aproximam-se! - gritou uma mulher. Voltaram-se todos imediatamente e empurraram os que estavam atrás, a fim de abrirem caminho para Woking. Devem ter fugido tão cegamente como um rebanho de carneiros. No sítio onde a estrada se estreita e escurece entre altas ribanceiras, a multidão apinhou-se e lutou desesperadamente. Não escaparam todos; pelo menos três pessoas, duas mulheres e um rapazinho, foram esmagadas e pisadas, e morreram no meio do terror e da escuridão.

 

Como cheguei a casa

Por meu lado, não me lembro de nada da minha fuga, com excepção da violência com que embatia nas árvores e do facto de cambalear enquanto corria através do urzal. Tudo em meu redor sugeria e aumentava o terror invisível dos marcianos; a impiedosa espada de calor parecia voltear de um lado para o outro, floreando por cima da minha cabeça antes de descer e me aniquilar. Entrei na estrada num ponto situado entre a encruzilhada e Horsell, e corri em direcção à encruzilhada. Por fim, não pude continuar; estava exausto devido à intensidade das minhas emoções na fuga; cambaleei e caí à beira da estrada. Isto aconteceu ao pé da ponte que atravessa o canal que ficava perto das fábricas de gás. Caí e fiquei imóvel.

Devo ter permanecido ali bastante tempo.

Levantei-me, perplexo. Durante alguns momentos não consegui compreender com clareza como tinha chegado ali. Despira-me do meu terror como de uma peça de roupa. O chapéu desaparecera e o colarinho desprendera-se do botão. Alguns minutos antes só havia três coisas reais para mim - a imensidade da noite, do espaço e da natureza, a minha fraqueza e angústia e a proximidade da morte. Agora, era como se qualquer coisa tivesse mudado e os meus pontos de vista se tivessem alterado bruscamente. Não houvera nenhuma transição sensível de um estado mental para o outro. Voltara, bruscamente, a ser o mesmo de todos os dias - um cidadão decente, vulgar. O baldio silencioso, o impulso que me levara a fugir, as chamas, pareciam-me um sonho. Perguntava a mim mesmo se estas últimas coisas tinham, na realidade, acontecido. Mal podia acreditar.

Ergui-me e dirigi-me despreocupadamente para a ponte. Tinha o espírito livre de preocupações, mas levava os músculos e os nervos exaustos. Vacilava como se estivesse embriagado. Vi uma cabeça aparecer sobre o arco e surgir a figura de um operário com uma cesta. Ao lado dele corria um rapazinho. Passou por mim, desejando-me boa-noite. Lembrei-me de falar com ele, mas não o fiz. Respondi à sua saudação com um murmúrio sem sentido e continuei.

Sobre o arco de Maybury rolava um comboio - um tumulto revolto de fumo branco, em chamas, e uma comprida “lagarta” de janelas iluminadas, rodando para o sul -, pouca-terra, pouca-terra, e desapareceu. Um grupo indistinto de pessoas conversava ao pé do portão de uma das bonitas casas da pequena rua... a que se chamava Oriental Terrace. Era tudo tão real e tão familiar! E aquilo que se achava atrás de mim! Algo demasiado fantástico! Coisas dessas, dizia a mim mesmo, não podiam existir.

É provável que eu seja um homem de carácter excepcional. Não sei até que ponto a minha experiência é vulgar. Às vezes, sofro de uma estranha sensação de afastamento de mim mesmo e do mundo que me cerca: parece-me que observo tudo de fora, de algum sítio inconcebivelmente afastado, longe do tempo e do espaço, onde estão ausentes a tensão e a tragédia que rodeiam todas as coisas. Esta sensação mostrava-se muito pronunciada nessa noite; era outra faceta do sonho em que me achava mergulhado.

Mas o problema residia na completa incongruência desta serenidade e na morte rápida, além, a menos de três quilómetros.

Ouvia-se o ruído produzido pelas fábricas de gás e as lâmpadas eléctricas estavam acesas. Detive-me perto do grupo de pessoas.

- Quais são as notícias do baldio? - perguntei.

- Encontravam-se dois homens e uma mulher junto do portão.

- Hem? - exclamou um dos homens, voltando-se.

- Quais são as notícias do baldio? - repeti.

- Mas o senhor não esteve lá? - perguntaram os homens.

- As pessoas que se encontram no baldio parecem doidas varridas - disse a mulher, do outro lado do portão. - Que é que se passa?

- Não ouviu dizer nada acerca dos homens que vieram de Marte? - perguntei. - As criaturas vindas de Marte?

- Ouvi o bastante - respondeu a mulher, por cima do portão. - Obrigada. - E começaram a rir.

- Senti-me ridículo e zangado. Tentei contar-lhes o que vira, mas descobri que isso era impossível. Riram-se de novo enquanto eu pronunciava frases entrecortadas.

- Ainda hão-de ouvir mais - disse, e continuei o meu caminho para casa.

A minha mulher sobressaltou-se quando a encontrei no limiar da porta, tão desfigurado estava. Penetrei na sala de jantar, sentei-me, bebi algum vinho e, mal readquiri o equilíbrio, contei-lhe o que vira. O jantar, que estava frio, já fora servido, ficando esquecido na mesa enquanto contava a minha história.

Há um facto importante - disse eu, para suavizar os receios que provocara -, eles são as coisas mais vagarosas que alguma vez vi. Podem ficar no fosso e matar as pessoas que se aproximarem, mas não podem sair dele. Mas são tão horríveis!

Não penses mais nisso, querido! - disse minha mulher, franzindo as sobrancelhas e pousando uma das mãos sobre a minha.

Pobre Ogilvy! - exclamei. - Pensar que pode estar ali morto!

Por fim, a minha mulher acabou por acreditar no que eu lhe contava. Quando vi o seu rosto empalidecer mortalmente, calei-me de súbito.

- Eles podem vir para aqui - dizia ela, sem cessar.

Obriguei-a a beber vinho e tentei animá-la.

- Mal se podem mexer - tranquilizei-a.

Comecei a reconfortá-la e a mim mesmo, repetindo tudo quanto Ogilvy me dissera acerca da impossibilidade de os marcianos se estabelecerem na Terra. Em particular, salientei as dificuldades criadas pela maior gravitação. A superfície da Terra, a força da gravidade é três vezes superior à força correspondente na superfície de Marte, um marciano, portanto, pesaria três vezes mais na Terra, embora a sua força muscular fosse a mesma. O seu corpo pesar-lhe-ia tanto como uma capa de chumbo. Tal era, com efeito, a opinião corrente. Tanto The Times como o Daily Telegraph, por exemplo, insistiam neste ponto na manhã seguinte, e ambos esqueceram, como eu, duas óbvias influências que poderiam contrabalançá-lo.

A atmosfera da Terra, como já sabemos, contém muito mais oxigénio ou muito menos argónio (conforme o ponto de vista pelo qual se encare a questão) do que a atmosfera de Marte. As influências revigorantes deste excesso de oxigénio nos marcianos contribuem em muito, inegavelmente, para contrabalançar o aumento de peso dos seus corpos. E, em segundo lugar, ninguém considerou o facto de as inteligências tão mecânicas como as que os marcianos possuíam poderem perfeitamente prescindir do esforço muscular em caso de emergência.

Mas, nesse momento, não considerei estes pontos e, portanto, só encontrava obstáculos às possibilidades dos invasores. Com o vinho e a comida que ingerira, com a tranquilidade que sentia por estar sentado à minha mesa, a necessidade que tinha de serenar a minha mulher, ganhei coragem e segurança.

- Eles fizeram uma asneira - disse eu, palpando o copo de vinho. - São perigosos porque estão, sem dúvida, loucos de terror. Talvez não esperassem encontrar coisas vivas - certamente não esperavam encontrar coisas vivas inteligentes. Se acontecer o pior - prossegui -, uma bomba no fosso acabará com eles.

A intensa excitação provocada pelos acontecimentos deixara, certamente, os meus poderes de percepção num estado de eretismo. Lembro-me, ainda hoje, daquela mesa de jantar com uma clareza extraordinária. O querido rosto terno e ansioso da minha mulher, espiando-me sob o quebra-luz da lâmpada cor-de-rosa, a toalha branca com a louça, os copos e os talheres de prata - nesses dias até os escritores e filósofos tinham muitos pequenos luxos -, o vinho carmesim no copo, vejo tudo isto com uma nitidez fotográfica.

Sentei-me, por fim, fumando um cigarro, lamentando a imprudência de Ogilvy e ridicularizando o estúpido medo que as pessoas tinham dos marcianos.

Deve ter sido da mesma maneira que algum respeitável dronte, na ilha Maurícia, encarou e discutiu a chegada daquela nave de marinheiros implacáveis à procura de comida animal. “Acabamos com eles amanhã, meu caro.”

Não o sabia, mas aquele era o último jantar decente que devia comer durante muitos dias estranhos e terríveis.

 

Noite de sexta-feira

Aquilo que mais me impressionou, de todas as coisas estranhas e fantásticas que sucederam nessa sexta-feira, foi a coexistência harmoniosa dos hábitos da nossa ordem social com os primeiros acontecimentos de uma série que faria, mais tarde, cair abruptamente essa mesma ordem. Se na noite de sexta-feira o leitor pegasse num compasso e desenhasse um círculo com um raio de oito quilómetros em redor dos fossos de areia de Woking, duvido que encontrasse fora dele qualquer ser humano - com excepção de Stent, dos três ou quatro ciclistas e das pessoas de Londres que jaziam mortas no baldio - cujas emoções e hábitos tivessem sido completamente afectados pelos viajantes do espaço. Na realidade, muitas pessoas tinham ouvido falar do cilindro e falaram acerca dele nos seus momentos de lazer, mas não causou decerto a sensação que um ultimato alemão teria provocado.

Nessa noite, em Londres, o telegrama do pobre Hendersòn, descrevendo o gradual desaparafusamento do projéctil, foi considerado uma peta; o jornal da tarde em que ele trabalhava, depois de lhe ter telegrafado, pedindo que o autenticasse - o homem estava morto -, decidira não publicar uma edição especial, pois não recebera resposta.

Mesmo no interior do círculo de oito quilómetros, a grande maioria das pessoas mostrava-se apática.

Já descrevi o comportamento dos homens e das mulheres com quem falei. Todas as pessoas do distrito estavam a jantar e a cear, os operários passeavam nos seus jardins depois do dia de trabalho, os jovens erravam pelas vielas, namorando, e os estudantes estavam agarrados aos livros.

Talvez houvesse um rumor nas ruas da cidade, um tópico novo e dominante nas cervejarias e, aqui e ali, um mensageiro, ou talvez alguma testemunha visual dos últimos acontecimentos, causava um redemoinho de excitação, exclamações, corridas de um lado para o outro; no entanto, na maior parte dos casos, a rotina diária - trabalhar, comer, beber e dormir - continuava igual ao que fora durante anos inumeráveis - como se não existisse o planeta Marte. Mesmo na estação de Woking, e em Horsell e Chobham, as coisas passavam-se desta maneira.

No entroncamento de Woking, até muito tarde, os comboios chegavam e partiam, outros eram manobrados para os desvios, os passageiros apeavam-se e esperavam e tudo decorria da maneira mais natural. Um rapaz, vindo da cidade, do monopólio Smith, vendia jornais com as notícias da tarde. O impacte retumbante dos vagões, o silvo penetrante das locomotivas, no entroncamento, misturavam-se com os seus gritos de “Homens de Marte!”. Alguns homens, excitados, entraram na estação, cerca das nove horas, com novidades incríveis; não causaram maior perturbação do que um grupo de bêbados. Algumas pessoas que se dirigiam de comboio para Londres perscrutavam a escuridão através das janelas e viam apenas um clarão bruxuleante, débil, dos lados de Horsell, um clarão vermelho e um delgado fio de fumo que subia para as estrelas; e pensaram que não estava a acontecer nada mais grave do que um incêndio no urzal. Só nas imediações do baldio era possível notar-se algum distúrbio. Havia uma dúzia de villas a arder na orla de Woking, luzes em todas as casas das três cidades perto do baldio, e as pessoas mantiveram-se acordadas até de madrugada.

Uma curiosa multidão movia-se desassossegadamente; as pessoas iam e vinham, mas a multidão ficava, tanto na ponte de Chobham como na de Horsell. Soube-se mais tarde que um ou dois indivíduos audaciosos avançaram no escuro e aproximaram-se dos marcianos, mas que nunca mais voltaram. Um raio de luz, como o clarão de um farol, varria incessantemente o baldio e o Raio da Morte estava pronto a segui-lo. Com excepção destas pessoas, a grande área do baldio estava silenciosa e abandonada e os corpos carbonizados ficaram ali durante toda a noite, sob as estrelas, e durante todo o dia seguinte. Muitas pessoas ouviram o ruído de marteladas provindo do fosso.

Era este o estado de coisas na noite de sexta-feira. No centro, cravado na pele do velho planeta Terra como um dardo envenenado encontrava-se o cilindro. Mas o veneno ainda mal produzira efeito. Era redor, achava-se um trato de baldio silencioso, queimado em certos sítios, e na penumbra, indistintos, jaziam alguns objectos contorcidos. Aqui e ali via-se um arbusto ou uma árvore em chamas. Mais longe, havia uma certa excitação e, além, ainda não começara a perturbação. No resto do mundo, o curso da vida fluía como fluíra durante anos imemoriais. A febre da guerra, que deveria encher as veias e as artérias, aniquilar os nervos e destruir o cérebro, ainda não se propagara.

Durante a noite, os marcianos martelaram e agitaram-se, sem dormir, incansáveis, atarefando-se com as máquinas que estavam a aprontar, e uma coluna de fumo verde-claro elevava-se continuamente para as estrelas.

Cerca das onze, chegou a Horsell uma companhia de soldados que se espalhou em redor do baldio para formar um cordão. Mais tarde, uma segunda companhia atravessou Chobham para se desdobrar no lado norte do baldio. Alguns oficiais dos aquartelamentos de Inkerman estiveram ali de manhã cedo e um deles, o major Éden, foi dado como desaparecido. O coronel do regimento esteve na ponte de Chobham a fazer perguntas à multidão, à meia-noite. As autoridades militares preocupavam-se decerto com a gravidade da situação. Cerca das onze, os jornais da manhã afirmavam que um esquadrão de hussardos, dois Maxim e cerca de quatrocentos homens do regimento de Cardigan tinham partido de Aldershot.

Alguns segundos depois da meia-noite, a multidão que se encontrava na estrada de Chertsey-Woking viu uma estrela cair do céu sobre os pinhais, a noroeste. Tinha uma cor esverdeada e provocou um clarão com um brilho semelhante ao do Sol no pino do Verão. Este era o segundo cilindro.

 

A Batalha começa

O sábado vive na minha memória como um dia de suspense. Também foi um dia de lassidão, quente e abafado, e disseram-me que o barómetro oscilava rapidamente. Dormi pouco, embora a minha mulher tenha conseguido adormecer, e levantei-me cedo. Fui para o jardim antes do pequeno-almoço e pus-me à escuta, mas nada se movia para os lados do baldio, com excepção de uma cotovia.

O leiteiro chegou, como habitualmente. Ouvi o chiar da sua carroça e fui até ao portão para perguntar as últimas notícias. Contou-me que, durante a noite, os marcianos tinham sido cercados por tropas e que se esperavam armas. Em seguida - um som familiar, tranquilizante -, ouvi um comboio que se aproximava de Woking.

- Não serão mortos - disse o leiteiro -, se for possível evitá-lo.

Vi o meu vizinho a trabalhar no jardim, tagarelei com ele durante alguns momentos e depois voltei para dentro a fim de tomar o pequeno-almoço. Era uma manhã muito vulgar. O meu vizinho supunha que as tropas poderiam capturar ou destruir os marcianos durante o dia.

- É uma pena que tornem difícil a aproximação - disse ele. - Seria curioso saber como se vive noutro planeta; poderíamos aprender algumas coisas.

Aproximou-se da sebe e deu-me uma mão-cheia de morangos - era tão generoso quanto entusiástico. Ao mesmo tempo, informou-me acerca do incêndio ocorrido nos pinhais nas imediações de Byfleet Golf Links.

- Dizem - afirmou - que caiu outra dessas mal ditas coisas, o número dois. Mas uma chega, certa mente. Este grupo vai custar bastante dinheiro à segurança das pessoas antes de estar tudo arrumado.

- Riu, com um ar do mais natural bom-humor, ao dizer isto. - Os bosques - continuou - ainda estão em chamas. - Apontou para o fumo. - Hão-de queimar-nos os pés durante alguns dias por causa da espessa camada de agulhas de pinheiro e de turfa.

Em seguida, falou, com uma expressão grave, do “pobre Ogilvy”.

Depois de tomar o pequeno-almoço, em vez de trabalhar decidi dar um passeio até ao baldio. Debaixo da ponte da via férrea encontrei um grupo de soldados - penso que eram sapadores, homens com pequenos quépis redondos, jaquetas vermelhas, sujas e desabotoadas, debaixo das quais se viam blusas azuis, calças escuras e botas que chegavam até à barriga das pernas. Disseram-me que ninguém estava autorizado a atravessar o canal e, ao fixar a estrada para os lados da ponte, vi um dos homens de Cardigan de sentinela. Conversei com estes soldados durante alguns momentos; contei-lhes que vira os marcianos na tarde anterior. Nenhum deles os notara e, como só tinham ideias vagas acerca da sua conformação, importunaram-me, portanto, com perguntas. Disseram que não sabiam quem tinha autorizado os movimentos das tropas; pensavam que houvera discussão nos Horse Guards.

O sapador vulgar é muito mais instruído do que um soldado. Discutiram, com certa agudeza, as condições peculiares da possível luta. Descrevi-lhes o Raio da Morte e começaram a discutir entre si.

Devemos avançar sob cobertura e atacá-los bruscamente- dizia um.

Logo vi! - disse outro. - De que é que serve uma cobertura contra esse calor? Paus para a fogueira que nos poderá assar! O que temos a fazer é avançar o mais que o solo nos permitir e então cavar uma trincheira.

Vai para o diabo com as tuas trincheiras! Só pensas em trincheiras. Deves ser filho de um coelho, Snippy.

Eles não têm pescoço? - perguntou um terceiro, abruptamente. Era um homem baixo e trigueiro, contemplativo, que fumava cachimbo.

Repeti a minha descrição.

Octópodes - disse ele -, é o que eu lhes chamo. Trata-se de pescadores de homens... Chegou a altura de combater contra peixes!

Não há animais mais ferozes do que esses - tornou o primeiro que falara.

Porque é que não bombardeiam essas malditas coisas e acabam com elas? - perguntou o homem trigueiro.

Onde estão as tuas bombas? - exclamou de novo o primeiro. - Não há tempo para isso. Acho é que devemos atacar de surpresa e já.

Continuaram a discutir neste tom. Abandonei-os passados momentos e continuei o meu caminho até à estação dos caminhos de ferro, onde ia comprar os jornais da manhã que houvesse.

Mas não vou maçar o leitor com uma descrição dessa longa manhã e dessa longa tarde. Não consegui deitar um olhar ao baldio, pois mesmo as torres das igrejas de Horsell e Chobham estavam sob controle das autoridades militares. Os soldados que interpelei não sabiam de nada; os oficiais mostravam-se enigmáticos e atarefados. Encontrei algumas pessoas na cidade, tranquilizadas graças à presença dos militares, e soube em primeira mão, por intermédio de Marshall, o armazenista de tabacos, que o filho se encontrava entre os mortos no baldio. Os soldados tinham obrigado as pessoas nos arrabaldes de Horsell a fechar as portas e a abandonar as suas casas.

Cerca das duas horas, voltei a casa para almoçar, muito cansado, pois, como já disse, o dia estava extremamente quente e abafado; de tarde, a fim de refrescar, tomei um banho frio. Cerca das quatro e meia dirigi-me à estação para comprar um jornal da tarde, pois os jornais da manhã continham apenas uma descrição muito incompleta da morte de Stent, de Ogilvy e dos outros. Porém, li poucas coisas que desconhecesse. Os marcianos não tinham mostrado uma polegada de si mesmos. Pareciam atarefados no fosso, ouvia-se martelar e via-se uma serpentina quase contínua de fumo. Aparentemente, ocupavam-se dos preparativos da batalha. “Fizeram-se há pouco tentativas para comunicar com eles, mas sem êxito.” Era esta a fórmula estereotipada dos jornais. Um sapador contou-me que estas tentativas tinham sido levadas a cabo por um homem, entrincheirado com uma bandeira espetada numa vara comprida. Os marcianos importaram-se tanto com estas manifestações amistosas como nós nos teríamos importado com o mugido de uma vaca.

Devo confessar que me entusiasmei bastante ao ver todo este armamento, ao notar todos estes preparativos. A minha imaginação, sobreexcitada, desafiou os invasores de uma dúzia de maneiras. Reviveu fragmentos dos meus sonhos de estudante, de batalhas e de heroísmos. Nesse momento, nem me parecia tratar-se de um combate justo. Os marcianos dir-se-iam indefesos no seu fosso.

Cerca das três horas, começou a ouvir-se, a intervalos regulares, o disparo de uma peça, situada em Chertsey ou Addlestone. Informaram-me de que o pinhal no qual caíra o segundo cilindro estava a ser bombardeado, na esperança de se destruir aquele objecto antes de ele ser aberto. Foi só cerca das cinco que chegou a Chobham uma peça de campanha para utilizar contra o primeiro grupo de marcianos.

Perto das seis horas da tarde, quando me achava a tomar chá com a minha mulher no pavilhão do jardim, conversando animadamente acerca da batalha, ouvi uma detonação abafada provinda do baldio e, logo a seguir, uma rajada. Quase simultaneamente ouviu-se um estampido violento, muito próximo, o qual fez estremecer o solo; e, sobre o relvado, as copas das árvores que bordam o Oriental College começaram bruscamente a arder com uma chama vermelha e fumegante, e a torre da pequena igreja vizinha desabou, feita em pedaços. O pináculo da mesquita sumira-se e o telhado do colégio parecia ter sido alvejado por uma arma de cem toneladas. Uma das nossas chaminés ruiu como se tivesse sido atingida por um projéctil, e um dos fragmentos caiu despedaçando as telhas; destroços vermelhos cobriram o canteiro de flores ao pé da janela do meu escritório.

Eu e a minha mulher ficámos assombrados. Compreendi que a crista de Maybury Hill devia estar ao alcance do Raio da Morte, pois o colégio desaparecera.

Quando compreendi este facto, agarrei no braço da minha mulher e empurrei-a sem cerimónia para a estrada. Em seguida, fiz sair a criada, dizendo que eu mesmo subiria as escadas para ir buscar a caixa que ela reclamava.

- É provável que não possamos ficar aqui - disse eu, e, ao dizer isto, o tiroteio recomeçou durante alguns momentos no baldio.

- Mas para onde vamos? - perguntou a minha mulher, aterrorizada.

Reflecti, perplexo. Lembrei-me, depois, dos seus primos de Leatherhead.

- Leatherhead! - gritei, mais alto que o ruído que se produzira subitamente.

Ela fitou a colina. As pessoas saíam de casa, atónitas.

- Como poderemos chegar a Leatherhead? - perguntou.

Avistei, no sopé da colina, um pequeno grupo de hussardos a cavalo, debaixo da ponte da via férrea; três deles atravessaram a galope os portões, abertos, do Oriental College. Os outros dois desmontaram e começaram a correr de casa em casa. O Sol, cujos raios se filtravam através do fumo que se erguia das copas das árvores, parecia de vermelho-sangue.

- Deixa-te ficar aqui - disse eu. - Aqui estás a salvo.

Parti imediatamente em direcção ao Spotted Dog, pois sabia que o proprietário desta estalagem tinha um cavalo e um cabriole. Corri, pois apercebia-me de que em breve se verificaria uma debandada geral deste lado da colina.

Encontrei-o no bar. Desconhecia inteiramente o que se estava a passar atrás de sua casa. Um homem, de costas para mim, conversava com ele.

Ofereci-lhe duas libras pelo aluguer do cabriole. Disse-lhe que estaria de volta, com o veículo e o animal, cerca da meia-noite.

- Duas libras e devolve-mo? Que é que se passa? - perguntou o proprietário.

Expliquei-lhe apressadamente que tinha de sair de casa e, portanto, precisava de utilizar o cabriole. Nesse momento, não me parecia que ele tivesse a mesma urgência em abandonar a sua casa. Levei o cabriole e desci a estrada; e, deixando-o a cargo da minha mulher, fui a casa e embrulhei alguns objectos de valor, toda a baixela que possuíamos, etc. As faias nas imediações da casa ardiam, assim como as paliçadas que davam para a estrada. Entretanto, um dos hussardos que desmontara aproximou-se a correr. Andava de casa em casa, avisando as pessoas para que as abandonassem. Preparava-se para partir quando saí pela porta da frente, com os tesouros embrulhados numa toalha de mesa.

Gritei-lhe:

- Que novidades há?

Ele voltou-se, fitou-me, murmurou qualquer coisa acerca de “saírem numa coisa parecida com uma tampa de metal” e correu para o portão da casa no topo da colina. Uma súbita nuvem de fumo negro, na estrada, ocultou-o durante alguns momentos. Corri para a porta do meu vizinho e comprovei que tinha partido para Londres com a mulher e haviam fechado a porta à chave. Entrei de novo em casa para cumprir a minha promessa de trazer a caixa da criada, coloquei-a na retaguarda do cabriole e pulei para o assento do cocheiro, ao lado de minha mulher. No momento seguinte, estávamos livres do fumo e do ruído e voávamos, descendo o declive oposto de Maybury Hill, em direcção a Old Woking.

Encontrámo-nos perante uma paisagem calma e soalheira, uma seara de trigo do outro lado da estrada e a estalagem de Maybury com o seu letreiro colorido. Avistei a carroça do médico à nossa frente. No sopé da colina, virei a cabeça para lançar um olhar à colina que abandonávamos. Espessas colunas de fumo negro, entrelaçadas com fios de chamas, erguiam-se no ar calmo e projectavam sombras negras sobre as copas verdes das árvores, a leste. O fumo estendera-se já de leste a oeste - para leste até aos pinhais de Byfleet e para oeste até Woking. A estrada estava semeada de gente que corria na direcção que seguíamos. E, muito fraco mas distinto, através do ar quente e calmo, ouvimos o zumbido de uma metralhadora, em breve emudecida, e o ruído intermitente da descarga de espingardas. Aparentemente, os marcianos incendiavam tudo o que se encontrava ao alcance do Raio da Morte.

Não sou um condutor experimentado; tive de voltar de novo a minha atenção para o cavalo. Quando tornei a olhar para trás, a segunda colina já ocultara o fumo negro. Açoitei o cavalo com o chicote e dei-lhe rédeas até que Woking e Send se interpuseram entre nós e o tumulto de agitação. Alcancei e ultrapassei o médico, entre Woking e Send.

 

Sob a tempestade

Leatherhead encontra-se a cerca de vinte quilómetros de distância de Maybury Hill. O aroma do feno pairava sobre os prados viçosos das imediações de Pyrford, e multidões de rosas bravas davam frescura e alegria às sebes que bordavam a estrada. O tiroteio pesado que se ouvira enquanto descíamos Maybury Hill cessara tão abruptamente como tinha começado, restituindo à tarde a sua placidez. Chegámos a Leatherhead sem incidentes, cerca das nove horas. Dei uma hora de descanso ao cavalo enquanto ceava com os meus primos e recomendava a minha mulher que tivesse cuidado.

A minha mulher manteve-se estranhamente silenciosa durante a viagem e parecia deprimida por maus presságios. Tentei serená-la, salientando que os marcianos estavam amarrados ao fosso pelo seu peso e, quando muito, poderiam percorrer uma pequena distância; no entanto, ela limitou-se a responder-me por monossílabos. Se não fosse a promessa que eu fizera ao estalajadeiro, estou certo de que ela teria instado comigo a ficar nessa noite em Leatherhead. Oxalá tivesse ficado! Lembra-me de que o seu rosto estava muito pálido quando parti.

Por meu lado, estivera febrilmente excitado durante todo o dia. Alguma coisa muito semelhante à febre da guerra que se propaga ocasionalmente numa comunidade civilizada instilara-se-me no sangue e no coração. Não lamentava muito ter de regressar a Maybury nessa noite. Receava mesmo que a última fuzilaria que ouvira significasse o extermínio dos invasores marcianos. Só posso exprimir o meu estado de espírito dizendo que queria estar presente quando morressem.

Eram cerca das onze horas quando iniciei a viagem de regresso. A noite estava inesperadamente sombria; depois de atravessar o corredor iluminado da casa dos meus primos, parecia realmente negra e estava tão quente e abafada como o dia. As nuvens deslocavam-se rapidamente, embora nem um sopro de vento agitasse os arbustos que nos cercavam. O criado do meu primo acendeu ambas as luzes do cabriole. Felizmente, eu conhecia bem a estrada. A minha mulher ficou sob a luz da porta de entrada e observou-me enquanto eu tomava lugar no veículo. Em seguida, voltou-se bruscamente e entrou, enquanto os meus primos me desejavam boa viagem.

A princípio, senti-me um pouco deprimido, contagiado pelos receios da minha mulher, mas em breve os meus (pensamentos se orientaram para os marcianos. Nesse momento, desconhecia inteiramente o decurso do combate da tarde. Nem sequer conhecia as circunstâncias que tinham precipitado o conflito. Quando atravessei Ockham (pois foi este o caminho que tomei, em vez de Send e Old Woking) avistei a oeste, na linha do horizonte, um clarão vermelho-sangue que se elevava lentamente à medida que me aproximava.

As nuvens da trovoada que ameaçava explodir entremeavam-se ali com massas de fumo negro e vermelho.

Ripley Street estava deserta e, com excepção de uma ou outra janela iluminada, a vila não mostrava nenhuns sinais de vida; mas dificilmente evitei um acidente na curva da estrada, onde se encontrava um grupo de pessoas de costas voltadas para mim. Não me disseram nada quando passei. Desconheço o que sabiam acerca do que acontecera na colina, nem se as casas silenciosas por que passava dormiam tranquilamente, ou se se achavam abandonadas e vazias, ou se os seus moradores perscrutavam, aterrorizados e vigilantes, o terror da noite.

Desde Ripley até Pyrford, atravessei o vale de Wey e perdi de vista o clarão vermelho. Ao subir a pequena colina perto da igreja de Pyrford, descobri-o de novo; as árvores que me cercavam estremeciam sob as primeiras ameaças da tempestade que se aproximava. Ouvi bater a meia-noite na igreja de Pyrford, Em seguida, vi a silhueta de Maybury Hill, com as copas das árvores e os telhados desenhando-se, negros, no fundo vermelho.

Precisamente no momento em que observava isto, um clarão verde-claro iluminou a estrada e mostrou os distantes bosques para os lados de Addlestone. Senti um puxão nos rins. As nuvens pareciam ter sido trespassadas por um fio de chamas verdes, que iluminara de súbito a sua massa confusa e caíra no campo, à minha esquerda. Era a terceira estrela cadente!

Imediatamente a seguir à sua aparição, de um violeta ofuscante por contraste, luziu o primeiro relâmpago da trovoada e o trovão ribombou por cima da minha cabeça como um foguete. O cavalo tomou o freio nos dentes e disparou.

Descemos o declive suave que parte do sopé de Maybury Hill. Mal começou a relampejar, os relâmpagos seguiram-se numa sucessão tão rápida como jamais vira. Os trovões, logo a seguir uns aos outros e com um estranho acompanhamento de estrondos, atroavam mais como o trabalho de uma gigantesca máquina eléctrica do que como as habituais reverberações detonantes da trovoada. A luz fulgurante ofuscava e perturbava a vista, e um granizo miúdo golpeou-me violentamente o rosto quando descia a ladeira.

De início, pouco mais via do que a estrada diante de mim, e, depois, a minha atenção foi despertada bruscamente por alguma coisa que descia rapidamente pelo declive oposto de Maybury Hill. A princípio pensei tratar-se do telhado molhado de uma casa, mas um relâmpago e logo outro mostraram que se achava em rápido movimento de rotação. Era uma visão ilusória - um momento de escuridão desconcertante, e a seguir, sob um relâmpago tão intenso como a luz do dia, as massas vermelhas do Orfanato, próximo do topo da colina, as copas verdes dos pinheiros e aquele objecto discutível, apareceram nítidos, distintos e brilhantes.

E a Coisa que eu vi! Como poderei descrevê-la? Um trípode monstruoso, maior do que muitas casas, passando por cima dos jovens pinheiros, esmagando-os ao passo que caminhava; um engenho móvel de metal luzente, caminhando agora através do urzal; pendiam dele cabos articulados de aço e o estrépito produzido pela sua passagem misturava-se com o ribombar do trovão. Viu-se nitidamente sob um relâmpago, com dois pés no ar, e desaparecer e reaparecer quase instantaneamente, quando relampejou de novo, uns cem metros mais perto. Podeis imaginar um banco de ordenhar, balançando e rolando com violência ao longo do solo? Foi esta a impressão que os relâmpagos deram nesse momento. Mas em vez de um banco de ordenhar, imagine-se um grande corpo mecânico sobre uma plataforma trípode.

Em seguida, as árvores do pinhal defronte de mim apartaram-se, tal como os frágeis juncos são separados por um homem que abre caminho através deles; foram quebrados e empurrados bruscamente, e surgiu um outro trípode enorme, arremetendo, ao que parecia, na minha direcção. Eu galopava velozmente ao seu encontro! Ao ver o segundo monstro, o meu sangue-frio abandonou-me completamente. Sem parar para fitá-lo de novo, torci com violência a cabeça do cavalo para a direita e, no momento seguinte, o cabriole saltou por cima do cavalo, os varais partiram-se ruidosamente e eu fui atirado para o lado, caindo pesadamente num charco de água pouco profundo.

Saltei para fora quase imediatamente e agachei-me, com os pés ainda dentro de água, debaixo de uma moita de tojo. O cavalo jazia imóvel (partira o pescoço, o pobre animal!), e, à luz dos relâmpagos, vi a massa escura do cabriole virado e a silhueta da roda que continuava a girar lentamente. Nesse mesmo instante o mecanismo passou perto de mim e subiu a colina em direcção a Pyrford.

Visto de perto, o objecto era incrivelmente estranho, pois não se tratava de uma simples máquina insensível seguindo o seu caminho. Era, na realidade, uma máquina cujo passo metálico ressoava e tinha tentáculos compridos, flexíveis e reluzentes (um deles agarrou um jovem pinheiro) que balouçavam e chocalhavam em redor do seu estranho corpo. Escolhia cuidadosamente o seu caminho e o capuz de latão que a sobrepujava movia-se de um lado para o outro, sugerindo uma cabeça a olhar em redor. Atrás da parte principal do corpo achava-se uma massa enorme de metal branco, semelhante a um cesto de pescador, gigantesco; baforadas de fumo verde esguichavam das juntas dos membros quando o monstro passou ao pé de mim. Desapareceu instantaneamente.

E foi esta a visão que tive dele, vagamente, iluminado pela luz fulgurante dos relâmpagos, intervalada por densas sombras negras.

Quando passou, soltou um berro entusiástico e atroador que abafou o trovão - Aloo! Aloo! - e, um minuto depois, alcançou o companheiro que se achava cerca de um quilómetro de distância, curvado sobre alguma coisa que ali se encontrava. Não tinha dúvida nenhuma de que essa coisa era o terceiro dos dez cilindros com que nos tinham alvejado de Marte.

Permaneci ali durante alguns minutos, à chuva e às escuras, observando, por sobre o topo das sebes e à luz intermitente dos relâmpagos, estes monstruosos seres de metal que se moviam a uma certa distância. Começara a tombar um granizo miúdo e as figuras deles tornavam-se mais indistintas e relampejavam de novo sob os relâmpagos. De vez em quando havia um intervalo em que não relampejava e a noite engolia-os.

Eu estava ensopado de granizo por cima e pela água enlameada, em baixo. Se fosse alguns momentos antes, o espanto faria com que me arrastasse pela ladeira à procura de uma posição mais enxuta, ou pensasse unicamente acerca do iminente perigo que corria.

Não muito longe, no bosque, avistei uma pequena cabana de colono, de um só compartimento, bordada por um terreno cultivado por tomatais. Pus-me de pé, por fim, e, agachado e utilizando todas as possibilidades de cobertura, corri na sua direcção. Bati à porta, mas não consegui que me ouvissem (se é que havia alguém no interior) e desisti passados alguns momentos. Aproveitando uma vala durante a maior parte do caminho, consegui chegar, sem ser notado por estas máquinas monstruosas, ao pinhal nas imediações de Maybury.

Prossegui a coberto do pinhal, molhado e a tremer de frio, a caminho de casa. Caminhei entre as árvores, tentando encontrar a vereda. Na verdade, fazia muito escuro no bosque, pois os relâmpagos eram agora menos frequentes e o granizo caía torrencialmente, em grossas cordas, entre as aberturas da folhagem densa.

Se tivesse compreendido inteiramente o significado de todas as coisas que vira, teria feito um desvio, encaminhando-me de Byfleet para Chobham e, assim, ter-me-ia juntado a minha mulher em Leatherhead. Mas, nessa noite, a estranheza das coisas que me envolviam e as minhas más condições físicas impediram-mo, pois estava contundido, cansado, molhado até aos ossos, ensurdecido e cego pela tempestade.

Tinha uma vaga ideia de continuar o meu caminho para casa e esse era o meu único objectivo. Cambaleava através das árvores, caí numa vala e esfolei os joelhos numa tábua e, finalmente, patinhei na ladeira a seguir ao College Arms. Disse que patinhei, pois a água da chuva estava a arrastar a areia da colina numa torrente enlameada. Na escuridão, um homem chocou comigo e fez-me cambalear. Soltou um grito de terror, saltou para o lado e acelerou o passo antes que eu me recompusesse o bastante para lhe dirigir a palavra. A violência da tempestade era tal, neste sítio, que se me tornou muito difícil subir a colina. Passei rente a uma cerca, à esquerda, e continuei ao longo das suas paliçadas.

Perto do topo, tropecei em qualquer coisa macia e, à luz de um relâmpago, vi, entre os meus pés, um monte de fino tecido negro e um par de botas. Antes que pudesse distinguir claramente em que estado o homem se achava, a luz desvaneceu-se. Permaneci ao pé dele, aguardando outro relâmpago. Quando este se verificou, vi que se tratava de um homem robusto, envergando roupas baratas mas não miseráveis, com a cabeça debaixo do corpo. Jazia, amassado, rente à cerca, como se tivesse sido projectado com violência contra ela.

Vencendo a repugnância natural de quem nunca tocou num cadáver, curvei-me e voltei-o para palpar-lhe o coração. Estava morto. Aparentemente, partira o pescoço. Relampejou de novo e o seu rosto foi iluminado. Era o proprietário do Spotted Dog, cujo veículo pedira emprestado.

Passei cuidadosamente por cima dele e continuei a subir a colina. Passei pelo posto da polícia e pelo College Arms, em direcção à minha casa. Não vi nada a arder no declive, embora chegasse ainda, do baldio, um clarão vermelho e um tumulto de fumo em remoinho, avermelhado, batido pelo granizo. Tanto quanto os relâmpagos me permitiam ver, a maioria das casas das imediações não estava danificada. Próximo do College Arms jazia, no solo, um vulto escuro.

Enquanto descia a estrada na direcção da ponte de Maybury, ouvia vozes e o ruído de passos, mas não tive coragem de gritar ou de me aproximar.

Entrei em casa, utilizando a chave de trinco, cerrei a porta, fechei-a à chave e tranquei-a. Cambaleei ao pé da escada e sentei-me. A minha imaginação estava povoada por aqueles monstros metálicos e pelo cadáver esmagado contra a cerca.

Agachei-me ao fundo das escadas, encostado à parede, tremendo com violência.

 

À janela

Já afirmei que as minhas tempestades emocionais amainavam, habitualmente, por si mesmas. Passados alguns momentos, descobri que tinha frio e estava molhado e que havia em meu redor pequenas poças de água na passadeira. Levantei-me quase mecanicamente, entrei na sala de jantar e bebi uma porção de whisky e, depois, mudei de roupa.

Em seguida, subi as escadas e penetrei no escritório, mas não sei qual o motivo que me impeliu a fazer isto. Da janela do escritório viam-se as árvores e a via férrea, nas imediações de Horsell Common. Na precipitação da nossa partida, deixáramos a janela aberta. O corredor estava sombrio, e, por contraste com a imagem emoldurada pelo caixilho da janela, o aposento parecia mergulhado numa escuridão impenetrável. Detive-me repentinamente no limiar da porta.

O temporal passara. As torres do Oriental College e os pinhais em volta tinham desaparecido e, muito mais longe, banhado por um clarão vermelho-vivo, via-se o baldio nas imediações dos fossos de areia. A luz, moviam-se diligentemente enormes formas negras, grotescas e estranhas.

Na realidade, era como se todo o campo daquele lado estivesse em chamas. Sobre uma larga extensão da colina divisavam-se pequenas línguas de fogo, oscilando e retorcendo-se sob as rajadas de vento do temporal moribundo, e projectando nas nuvens uma sombra vermelha. De vez em quando, uma neblina de fumo, provinda de alguma deflagração mais próxima, penetrava pela janela e ocultava os vultos dos marcianos. Não conseguia ver o que estavam a fazer, nem as suas formas nítidas, nem reconhecia os objectos negros com que se ocupavam. Também não podia ver os incêndios mais próximos, embora os seus reflexos dançassem sobre a parede e o tecto do escritório. Pairava no ar um cheiro penetrante a incêndio, picante e resinoso.

Fechei a porta sem ruído e rastejei para a janela. Nesse momento, a luz tornou-se mais intensa e pude ver, de um lado, as casas vizinhas da estação de Woking e, do outro, os pinhais carbonizados e enegrecidos de Byfleet. Brilhava uma luz no sopé da colina, na via férrea, perto do arco da ponte, e algumas das casas da estrada de Maybury e das ruas ao pé da estação estavam em ruínas. De início, aquela luz na via férrea intrigou-me; havia um vulto negro e um clarão vivo, e à sua direita uma fileira de quadriláteros amarelos. Em seguida, apercebi-me de que se tratava de um comboio descarrilado, com a parte da frente esmagada, em chamas, e as carruagens traseiras ainda assentes sobre os carris.

Entre estes três principais pontos luminosos - as casas, o comboio e o incêndio nas imediações de Chobham -, estendiam-se tratos irregulares e escuros, entremeados aqui e além por intervalos de chamas, vagos e fumegantes. Esta negra extensão em chamas era o espectáculo mais estranho que se pode imaginar. Fez-me lembrar, mais do que qualquer outra coisa, as Potteries (Região oleira em Staffardshire. (N. do T.) à noite. A princípio, não avistei ninguém, embora fosse essa a minha intenção. Mais tarde, à luz que provinha da estação de Woking, vi algumas figuras negras que corriam, uma após outra, atravessando a linha.

E era este o pequeno mundo no qual vivera em segurança durante anos, este caos ardente! Não sabia ainda o que acontecera nas últimas sete horas; também não conhecia, embora começasse a suspeitá-lo, a relação que havia entre estes colossos mecânicos e as massas informes, vagarosas, que vira emergir do cilindro. Com uma estranha sensação de vago interesse, virei a cadeira da secretária para a janela, sentei-me e fixei o campo às escuras e, em especial, as três gigantescas coisas negras que se moviam de um lado para o outro, sob a luz, nos areais. Pareciam espantosamente atarefadas. Comecei a perguntar-me o que poderiam ser. Seriam mecanismos inteligentes? Sentia que isto era impossível. Ou estaria um marciano no interior de cada um deles, controlando, dirigindo e utilizando, tal como o cérebro humano ocupa e regula o seu corpo? Comecei a comparar estas coisas com máquinas construídas pelo homem e perguntei-me, pela primeira vez na minha vida, em que medida um couraçado ou uma máquina a vapor poderia parecer-se com um animal inferior inteligente.

A tempestade deixara o céu límpido e, por cima do fumo que se evolava dos incêndios, o pequeno ponto desmaiado do tamanho da cabeça de um alfinete - Marte - desviara-se para ocidente. Nesse momento, um soldado entrou no meu jardim. Ouvi um débil ruído de raspagem provindo da cerca e, libertando-me da letargia que me dominava, olhei para baixo e vi-o vagamente, saltando a vedação. O torpor que me envolvia desvaneceu-se ao ver outro ser humano, e debrucei-me ansiosamente à janela.

- Psst! - proferi, num sussurro.

Ele deteve-se, escarranchado na cerca, hesitante. Em seguida, aproximou-se e atravessou o relvado, em direcção à quina da casa. Dobrou-a e deu um passo, cuidadosamente.

- Quem está aí? - perguntou, também num murmúrio, encostado à janela e espreitando para o interior.

- Aonde vai você? - perguntei.

- Só Deus sabe.

- Anda à procura de um esconderijo?

- É isso.

- Entre - disse eu.

Desci as escadas, abri a porta, deixei-o entrar e fechei a porta novamente. Não podia ver-lhe o rosto. Vinha sem chapéu e trazia o casaco desabotoado.

- Meu Deus! - exclamou, enquanto eu lhe ensinava o caminho.

- Que aconteceu? - perguntei.

Que é que não aconteceu? - Na obscuridade, pude ver que fazia um gesto de desespero. - Eles liquidaram-me... simplesmente, liquidaram-nos - proferia repetidas vezes.

Seguiu-me, quase mecanicamente, até à sala de jantar.

- Beba um pouco de whisky - ofereci, deitando uma boa dose num copo.

Ele bebeu. Em seguida, bruscamente, sentou-se à mesa, envolveu a cabeça nos braços e começou a soluçar e a chorar como uma criança, profundamente comovido; esquecendo o meu recente desespero, fiquei de pé ao seu lado, surpreendido.

Escoou-se um longo momento antes que estivesse suficientemente calmo para responder às minhas perguntas, o que fez com um ar de perplexidade e aos poucos. Era condutor da Artilharia e só tinha entrado em acção por volta das sete. Nessa altura, o tiroteio atroava no baldio e dizia-se que o primeiro grupo de marcianos se encaminhava lentamente para o segundo cilindro, a coberto de um escudo de metal.

Mais tarde, este escudo foi montado sobre uma base trípode e tornou-se a primeira máquina de combate que eu vi. O carro que ele conduzia fora desengatado perto de Horsell, a fim de dominar os fossos de areia, e tinha sido a sua chegada que precipitara a acção. Quando os atiradores que se encontravam na parte dianteira do carro passaram para a retaguarda, o cavalo meteu os pés numa lura de coelhos e tombou, atirando-o para uma depressão no solo. No mesmo momento, a arma explodiu atrás dele, as munições rebentaram, achou-se rodeado de chamas por todos os lados e deu consigo sob um monte de cadáveres carbonizados e corpos de cavalos.

- Fiquei imóvel - disse ele -, fora de mim, debaixo do quarto dianteiro de um cavalo. Tínhamos sido liquidados. E o cheiro... meu Deus! Como carne assada! Ferira-me nas costas ao cair do cavalo e tive de ficar ali até me sentir melhor. Precisamente um minuto antes parecia uma parada; depois, um passo em falso, bumba, zzzt! Liquidados! - exclamou.

Durante longos momentos, estivera sob o cadáver do cavalo, espreitando furtivamente o baldio. Os homens de Cardigan tinham tentado uma investida em ordem de ataque mas foram muito simplesmente aniquilados. Em seguida, o monstro pusera-se de pé e começara a andar, indolentemente, no baldio, de um lado para o outro, com o capuz semelhante a uma cabeça, rolando precisamente como a cabeça de um ser humano encapuçado. Uma espécie de braço segurava uma complicada caixa metálica, em redor da qual fulguravam relâmpagos verdes, e o Raio da Morte era expelido do seu funil fumegante.

Tanto quanto a vista do soldado alcançava, passados alguns minutos não havia nenhuma coisa viva no baldio, e os arbustos e as árvores ou eram já um esqueleto enegrecido ou ainda ardiam. Os soldados encontravam-se na estrada do lado de lá da curvatura do solo, e não viu vestígios deles. Ouviu durante algum tempo o estrondear das “Maxims” e, depois, fez-se silêncio. O gigante poupou a estação de Woking e o aglomerado de casas até à última; então, repentinamente, o Raio da Morte entrou em acção e a cidade ficou transformada num montão de ruínas chamejantes. Em seguida, a Coisa desligou o Raio da Morte e, voltando as costas ao artilheiro, começou a andar, num passo bamboleante, em direcção aos pinhais em combustão que envolviam o segundo cilindro. Entretanto, saía do fosso outro titã resplandecente.

O segundo monstro seguiu na peugada do primeiro e, ao ver isso, o artilheiro começou a rastejar, muito cuidadosamente, através das quentes cinzas da urze, em direcção a Horsell. Conseguiu chegar são e salvo à vala aberta ao lado da estrada e, assim, fugiu para Woking. Neste ponto, a sua história tornava-se jaculatória. Era impossível passar dali. Parecia que se achavam nesse local algumas pessoas vivas, na maioria desvairadas e muitas delas queimadas e escaldadas. O fogo obrigou-o a fazer um desvio e esconder-se no meio de alguns restos de parede quase ardentes, quando um dos gigantescos marcianos regressou. Viu-o perseguir um homem, agarrá-lo com um dos seus tentáculos acerados e esmagar-lhe a cabeça de encontro a um dos pinheiros. Finalmente, quando se fez noite cerrada, aventurou-se e subiu o aterro da via férrea.

Desde então, fugiu em direcção a Maybury, na esperança de alcançar Londres a salvo. As pessoas escondiam-se em valas, caves, e muitos dos sobreviventes tinham fugido para as vilas de Woking e Send. Foi torturado pela sede até que encontrou um cano de água quebrado, nas imediações do arco da estação dos caminhos de ferro, donde a água borbotava como de uma fonte sobre a estrada.

Foi esta a história que consegui arrancar-lhe, palavra após palavra. Acalmou-se à medida que falava e tentou fazer-me compreender as coisas que vira. Não comera nada desde o meio-dia, conforme me disse no início da narrativa; descobri na despensa carne de carneiro e pão e ofereci-lhos. Não acendemos nenhuma luz, pois receávamos chamar a atenção dos marcianos. Víamo-nos, assim, obrigados a tactear na escuridão à procura do pão ou da carne. Enquanto ele falava, as coisas que nos rodeavam destacaram-se do escuro, e os arbustos quebrados e as roseiras pisadas que se viam da janela tornaram-se distintos. Parecia que um certo número de homens ou de animais tinha investido através do relvado. Comecei a ver-lhe o rosto, enegrecido e desfigurado, como, decerto, o meu também se achava.

Quando acabámos de comer, subimos devagar as escadas para o meu escritório, e olhei de novo pela janela aberta. Numa única noite, o vale transformara-se num vale de cinzas. O incêndio já desfalecia. De onde houvera chamas saíam agora colunas de fumo, mas as ruínas inumeráveis das casas despedaçadas e inteiramente calcinadas, e das árvores destruídas e enegrecidas que a noite ocultara, viam-se agora, descarnadas e terríveis, sob a luz impiedosa da alvorada.

No entanto, aqui e ali, havia um objecto que tivera a sorte de escapar - aqui, um sinal branco da via férrea, ali a extremidade de uma estufa, claros e frescos no meio dos destroços. Jamais houvera, na história das guerras, uma destruição tão indiscriminada e geral. E reluzindo à luz que vinha de oriente, viam-se no fosso três dos gigantes metálicos, com os capuzes girando como se observassem a desolação que tinham provocado.

Parecia-me que o fosso fora alargado, e baforadas de um vapor verde-vivo jorravam continuamente para a alvorada luminosa - jorravam, turbilhonavam, rompiam-se e desvaneciam-se.

Para lá disto, achavam-se as colunas de fogo em redor de Chobham. Ao primeiro contacto da luz do dia tornavam-se em colunas de fumo vermelho.

 

O que eu vi da destruição de Weybridge e de Shepperton

Quando se fez mais dia, retirámo-nos da janela de onde observáramos os marcianos e descemos muito silenciosamente as escadas.

O artilheiro concordou em que a casa não era um sítio onde se pudesse ficar. Fazia tenção, disse, de continuar a caminho de Londres e dali juntar-se à sua bateria - nº 12 da Artilharia Montada.

Eu tencionava regressar imediatamente a Leatherhead; os marcianos tinham-me impressionado de tal maneira que estava resolvido a levar minha mulher para Newhaven e sair com ela sem demora do país, pois já me apercebera claramente de que a região em redor de Londres seria inevitavelmente o palco de uma luta desastrosa, antes que tais criaturas pudessem ser destruídas.

No entanto, entre nós e Leatherhead, achava-se o terceiro cilindro com os seus gigantescos guardiões. Se estivesse sozinho, teria tentado a minha sorte e atravessaria rapidamente a região. Mas o artilheiro dissuadiu-me.

- Não é gentil para a sua esposa - disse - fazer dela uma viúva.

Acabei por concordar em acompanhá-lo, a coberto dos bosques, para norte, até Street Chobham, antes de me separar dele. Chegado aí, faria um grande desvio, passando por Epsom, para chegar a Leatherhead.

Eu queria partir imediatamente, mas o meu companheiro, que estivera no serviço activo, considerou melhor a situação. Obrigou-me a rebuscar a casa à procura de um frasco e encheu-o de whisky; atafulhámos todos os bolsos com pacotes de biscoitos e fatias de carne. Em seguida, saímos de casa e descemos o mais depressa possível a estrada ruim que eu tomara na noite anterior. As casas pareciam abandonadas. Na estrada, jaziam três corpos carbonizados, perto uns dos outros, calcinados pelo Raio da Morte; espalhados por aqui e por ali, viam-se coisas que as pessoas tinham deixado cair - um relógio, um chinelo, uma colher de prata e outros objectos. Na esquina, perto dos Correios, via-se uma pequena carroça, sem cavalo, inclinada sobre uma roda partida, cheia de caixas e móveis. Debaixo dos destroços, encontrava-se um cofre que fora apressadamente arrombado.

Com excepção do pavilhão do Orfanato, que ainda ardia, nenhuma das casas das imediações fora gravemente danificada. O Raio da Morte cerceara o topo das chaminés e passara. No entanto, salvo nós mesmos, parecia não haver nenhum ser vivo em Maybury Hill. Creio que a maioria dos habitantes fugira pela estrada de Old Woking - a estrada por onde seguira para ir a Leatherhead - ou achavam-se escondidos.

Descemos a azinhaga, passámos perto do corpo do homem de preto, ensopado pelo granizo da noite anterior, e penetrámos nos bosques do sopé da colina. Atravessámo-los em direcção à via férrea sem encontrarmos uma única pessoa. Do outro lado da linha, os bosques não eram mais do que ruínas carbonizadas e enegrecidas; a maioria das árvores caíra, mas algumas mantinham-se em pé, de troncos sombrios e folhagem de um castanho-escuro em vez de verde.

Do nosso lado, o fogo limitara-se a chamuscar as árvores mais próximas; não conseguira ganhar terreno. Os lenhadores tinham trabalhado, no sábado, em determinado sector; as árvores, tombadas e desbastadas recentemente, jaziam numa clareira, com montes de serradura provocada pela serra mecânica. Muito perto, via-se uma cabana provisória, abando nada. Não havia sequer uma aragem nessa manhã e todas as coisas estavam estranhamente imóveis. Mesmo as árvores estavam quietas e, enquanto caminhávamos, eu e o artilheiro falávamos em sussurros e olhávamos constantemente em volta. Parámos uma ou duas vezes, à escuta.

Volvidos alguns momentos, passámos perto da estrada e ouvimos o tropel de cavalos; avistámos por entre os troncos das árvores três soldados de Cavalaria que trotavam vagarosamente em direcção a Woking. Chamámo-los e eles detiveram-se enquanto corríamos ao seu encontro. Eram um tenente e duas ordenanças do 8.° dos Hussardos, com um aparelho semelhante a um teodolito; o artilheiro informou-me que se tratava de um heliógrafo.

- Vocês são os primeiros homens que encontrei por aqui esta manhã. Que é que andam a tramar?

Tinha a voz e o rosto ansiosos. Os homens, atrás dele, fitavam-nos com curiosidade. O artilheiro saltou da ribanceira para a estrada e fez a continência.

- Arma destruída a noite passada, Sir. Tenho estado escondido. A tentar juntar-me à bateria, Sir. Creio que poderá ver os marcianos a cerca de meia milha adiante.

- Qual é o aspecto desses demónios? - perguntou o tenente.

- Uma armadura gigantesca, Sir. Trinta metros de altura. Três pernas e um corpo parecido com alumínio, com uma enorme cabeça dentro de um capuz.

- Desapareça! - gritou o tenente. - Que maldita falta de senso!

- Há-de ver, Sir. Andam com uma espécie de caixa, Sir, que dispara fogo e mata repentinamente.

- Que é isso... uma espingarda?

- Não, Sir - o artilheiro começou a fazer um vívido relato do Raio da Morte. O tenente interrompeu-o a meio e fitou-me. Eu encontrava-me ainda na ribanceira, à beira da estrada.

- É absolutamente verdade - garanti-lhe.

- Bem - proferiu o tenente -, creio que não tenho outro remédio senão vê-los também. Ouça - disse para o artilheiro -, nós fomos destacados para aqui a fim de fazermos evacuar as pessoas. É melhor que você continue o seu caminho e faça o seu relatório ao brigadeiro-general Marvin, e diga-lhe tudo o que sabe. Ele encontra-se em Weybridge. Sabe o caminho?

- Sei - respondi. E ele voltou de novo o cavalo para o sul.

- Disse meia milha? - perguntou.

- Quando muito - respondi, e apontei as copas das árvores, a sul. Ele agradeceu-me, tocou o cavalo, e nunca mais os vimos.

Mais adiante, encontrámos um grupo de três mulheres e duas crianças que evacuavam uma cabana. Serviam-se de um pequeno carrinho de mão e enchiam-no com embrulhos de aspecto sujo e móveis miseráveis. Estavam demasiado atarefadas para nos dirigirem a palavra quando passámos por elas.

Emergimos dos pinheiros perto da estação de Byfleet; a região achava-se tranquila e em paz, sob o sol matutino. Neste local, encontrávamo-nos muito longe do alcance do Raio da Morte, e se não fosse o abandono silencioso de algumas das casas, o ruído da evacuação vindo de outras, e o grupo de soldados, na ponte, sobre o caminho de ferro, que fitavam a linha para os lados de Woking, o dia pareceria muito semelhante a qualquer outro domingo.

Ao longo da estrada de Addlestone, moviam-se ruidosamente vários carros e carroças e, de súbito, através do portão de uma propriedade, num tracto plano de veiga, vimos seis peças de doze libras colocadas a distâncias aproximadamente iguais, apontando na direcção de Woking. Os atiradores estavam ao pé das armas, à espera, e os carros de munições achavam-se a conveniente distância. Dir-se-ia que os homens se encontravam numa parada.

- Isso é bom - disse eu. - De qualquer modo, farão bom tiro.

O artilheiro hesitou ao pé do portão.

- Tenho de continuar - disse ele.

Mais adiante, perto de Weybridge, precisamente sobre a ponte, havia um certo número de homens que envergavam casacos de faxina. Estavam a escavar uma comprida trincheira. Na retaguarda, viam-se algumas espingardas.

- Seja como for, são arcos e flechas contra a luz - declarou o artilheiro. - Eles ainda não viram aquela bateria de fogo.

Os oficiais que não estavam activamente ocupados fitavam o sudoeste por sobre as copas das árvores, e os homens que procediam à escavação interrompiam frequentemente o trabalho para olhar na mesma direcção.

Byfleet achava-se em tumulto; as pessoas reuniam bagagens, e um grupo de hussardos, alguns desmontados, outros a cavalo, apressavam a evacuação. Três ou quatro carros negros do Governo, com os distintivos de cruzes no centro de círculos brancos, e um velho autocarro, entre outros veículos, estavam a ser carregados na rua. Havia grupos de pessoas, na maioria bastante sabáticas para envergarem as melhores roupas. Os soldados tinham a maior dificuldade em fazê-los compreender a gravidade da situação. Vimos um velhote encarquilhado, com uma grande caixa e vinte ou mais vasos de orquídeas, a discutir iradamente com o cabo que ameaçava deixá-los para trás. Detive-me e segurei-lhe o braço.

Você sabe o que está a aproximar-se? - perguntei, apontando para as copas dos pinheiros que ocultavam os marcianos.

Eh! - exclamou, voltando-se para mim. - Eu estava a explicar que isto é valioso.

A morte! - gritei. - A morte está a aproximar-se. A morte! - e, deixando-o a digerir isto, se é que podia, corri na peugada do artilheiro. Olhei para trás quando cheguei à esquina da rua. O soldado abandonara o velhote, e este encontrava-se ainda ao pé da caixa, com os vasos de orquídeas em cima da tampa, fixando vagamente por sobre as árvores.

Em Weybridge ninguém soube dizer-nos onde se localizava o quartel-general; todo o local estava mergulhado numa grande confusão como nunca vira em qualquer outra cidade. Havia por todo o lado carroças, carruagens, a mais espantosa miscelânea de veículos e de animais de tracção. Os respeitáveis habitantes da cidade, homens em vestes de golfe e de remo, senhoras elegantemente vestidas, faziam as malas, ajudados energicamente pelos vadios da beira-rio. As crianças mostravam-se excitadas e, na maioria, extremamente deliciadas por esta espantosa variante das suas experiências de domingo. No meio de tudo isto, o digno vigário dirigia corajosamente uma breve celebração, e o sino repicava por sobre todos os ruídos.

Eu e o artilheiro, sentados nos degraus de uma fonte, tomámos uma refeição muito agradável com o que tínhamos trazido. Patrulhas de soldados - aqui não havia hussardos, mas granadeiros de uniformes brancos - avisavam as pessoas para se irem embora ou procurarem refúgio nas caves mal começasse o tiroteio. Quando atravessámos a ponte da via férrea, vimos uma multidão de pessoas cada vez maior que se reunira no interior e nas imediações da gare; a plataforma estava atulhada de caixas e de bagagens. O trânsito habitual fora interrompido, julgo que para permitir a passagem de tropas e de armas para Chertsey, e ouvi dizer, mais tarde, que se travara uma violenta disputa de lugares nos comboios especiais que se formaram a uma hora mais adiantada.

Ficámos em Weybridge até ao meio-dia, e, nesse momento, demos connosco nas imediações de Shepperton Lock onde se reúnem o Wey e o Tamisa. Gastámos parte do tempo a ajudar duas velhas a carregar uma pequena carroça. O Wey tem uma foz em delta onde há barcos para alugar e um ferry-boat que faz a travessia do rio. Na margem de Shepperton achava-se uma estalagem com um relvado em volta e, mais adiante, a torre da igreja de Shepperton - que foi substituída por um pináculo - erguia-se por sobre as árvores.

Encontrámos neste local uma excitada e ruidosa multidão de fugitivos. Embora o pânico ainda não se tivesse propagado, já se achava ali um número de pessoas muito maior do que aquele que os barcos poderiam transportar. As pessoas arquejavam sob as pesadas cargas; um casal transportava uma pequena porta de um anexo, em cima da qual estavam empilhados alguns dos seus artigos domésticos. Um homem contou-nos que tencionava fugir pela estação de Shepperton.

Ouviam-se muitos gritos e um homenzinho divertia-se a dizer pilhérias. Dir-se-ia que toda esta gente supunha que os marcianos eram apenas formidáveis seres humanos, que poderiam atacar e saquear a cidade, mas acabariam decerto por ser destruídos.

As pessoas relanceavam continuamente um olhar nervoso através do Wey para os prados vizinhos de Chertsey, onde tudo parecia tranquilo.

No Tamisa, com excepção do preciso local onde os barcos carregavam, tudo estava calmo, apresentando um nítido contraste com as margens do Surrey. As pessoas que desembarcavam neste ponto desciam penosamente a viela. O grande ferry-boat acabara de fazer uma viagem. Três ou quatro soldados encontravam-se no relvado da estalagem, fitando e ridicularizando os fugitivos, sem lhes oferecer ajuda. A estalagem estava fechada como se fossem horas normais de encerramento.

- Que é aquilo? - gritou um barqueiro.

- Cala-te, maluco! - exclamou um homem, que se achava ao pé de mim, para um cão que latia. Então, o som voltou a ouvir-se, desta vez do lado de Chertsey; um estrondo abafado - a descarga de uma arma.

A batalha começara. Quase imediatamente, baterias ocultas pelas árvores juntaram-se ao coro, na outra margem, à direita, disparando estrondosamente uma após outra. Uma mulher soltou um grito estridente. Todas as pessoas ficaram petrificadas pelo súbito tumulto da batalha, perto de nós e, no entanto, invisível. Apenas se viam os prados, vacas a pastar, na sua maioria indiferentes, e salgueiros prateados, imóveis ao sol quente.

- Os magalas não os deixam passar - disse uma mulher ao meu lado, num tom de dúvida. Erguia-se uma neblina cor-de-rosa por cima das copas das árvores.

Então, de súbito, vimos uma torrente de fumo ao longe, sobre o rio, uma baforada que se ergueu no ar e ficou suspensa; e, logo a seguir, o solo estremeceu e o ar foi agitado por uma tremenda explosão que despedaçou duas ou três janelas nas casas vizinhas. Ficámos atónitos.

- Ei-los! - gritou um homem que envergava uma camisola azul. - Além! Não os vêem? Além!

Rapidamente, um após outro, um, dois, três, quatro dos marcianos couraçados apareceram, ao longe, por sobre as árvores pequenas; atravessaram as planuras que se estendiam nas imediações de Chertsey, e caminharam apressadamente em direcção ao rio. De início, pareciam minúsculas figuras encapuçadas, caminhando com um movimento bamboleante e tão veloz como o voo das aves.

Em seguida, avançando obliquamente ao nosso encontro, aproximou-se um quinto marciano. As couraças que revestiam os seus corpos cintilavam ao sol enquanto avançavam velozmente em direcção às armas, tornando-se rapidamente maiores à medida que se aproximavam. Um deles, no extremo esquerdo, isto é, aquele que se achava mais afastado, agitou uma grande caixa a grande altura e o Raio da Morte, que já vira em acção na noite de sexta-feira, foi projectado na direcção de Chertsey e fulminou a cidade.

Ao ver estas criaturas estranhas, velozes e terríveis, a multidão que se achava nas margens do rio pareceu ficar momentaneamente muda de pavor. Não se ouviam guinchos nem gritos. Havia um silêncio absoluto. Em seguida, ouviu-se um murmúrio rouco e um tropel de pés - um chapinhar na água. Um homem, demasiado assustado para deixar cair o sobretudo que levava aos ombros, nadou em círculo e fez-me cambalear com uma pancada da sua carga. Uma mulher empurrou-me com a mão e ultrapassou-me rapidamente. A arremetida das pessoas fazia-me vacilar, mas como não estava demasiado assustado podia raciocinar. O terrível Raio da Morte obcecava-me. Nadar debaixo de água! Era isso!

- Nadem debaixo de água! - gritei, sem ser ouvido.

Olhei de novo em redor, investi na direcção do marciano que se aproximava, desci precipitadamente a praia pedregosa e mergulhei na água. Outros fizeram o mesmo. Um barco carregado de gente que regressava passou por mim aos solavancos. Sob os meus pés, as pedras eram lodosas e escorregadias e o rio ia tão baixo que devo ter corrido uns vinte pés com água apenas pela cintura. Depois, quando o marciano estava a uns duzentos metros de distância, mergulhei e nadei sob a superfície da água. O ruído de chapinhar provocado pelas pessoas que saltavam dos barcos para a água soava como trovões aos meus ouvidos. As pessoas desembarcavam rapidamente em ambas as margens.

Mas a máquina marciana não prestava mais atenção àquela gente que corria de um lado para o outro do que um homem o teria feito à confusão de formigas que se escapassem de uma toca pisada. Quando, meio sufocado, ergui a cabeça acima da água, o capuz do marciano apontava para as baterias que continuavam a disparar do outro lado do rio e, quando avançou, brandiu aquilo que devia ser o gerador do Raio da Morte.

No momento seguinte, achava-se na margem e atravessou com uma passada metade do rio. Os joelhos das pernas dianteiras dobraram-se sobre a outra margem e ergueu-se completamente, logo a seguir, frente à vila de Shepperton. Nesse preciso instante, as baterias que se ocultavam nos arrabaldes da vila, e cuja existência era desconhecida na margem direita, dispararam ao mesmo tempo. A concussão repentina, a última descarga imediatamente a seguir à primeira, fez-me sobressaltar. O monstro erguia já o gerador do Raio da Morte quando a primeira bomba explodiu seis metros acima do capuz.

Soltei um grito de espanto. Não via nem pensava nos outros quatro marcianos; a minha atenção concentrava-se no incidente mais próximo. Simultaneamente, duas outras bombas explodiram no ar perto do corpo, e o capuz rodou a tempo de ser atingido pela quarta bomba.

A bomba explodiu em cheio no rosto da Coisa. O capuz abaulou, despedaçou-se e esvoaçou num turbilhão de fragmentos de carne vermelha e metal reluzente.

 - Acertámos! - gritei, num tom onde transparecia terror e alegria.

Ouvi em resposta os gritos das pessoas que se achavam na água, em meu redor. Estive quase a ser projectado da água por aquele regozijo momentâneo.

O colosso decapitado cambaleou como um gigante embriagado; mas não chegou a cair. Recuperou miraculosamente o equilíbrio e, já sem escolher o caminho e com a câmara do Raio da Morte erguida rigidamente, precipitou-se, cambaleante, para Shepperton. A inteligência viva, o marciano que se encontrava no interior do capuz, fora morto e espalhado aos quatro ventos e a Coisa era agora apenas um complexo instrumento metálico que avançava velozmente para a destruição. Caminhava a direito, incapaz de conduzir-se. Embateu na torre da igreja de Shepperton, despedaçando-a, tal como o teria feito o impacte de um aríete, virou-se de lado, cambaleou e tombou no rio com uma violência tremenda, fora da minha vista.

O ar estremeceu sob uma violenta explosão e um jacto de água, vapor, lodo e metal despedaçado foi projectado a grande altura. Mal o gerador do. Raio da Morte tocou na água, esta fumegou, num clarão. No momento seguinte, uma enorme vaga, qual onda lamacenta de maré, mas escaldante, varreu o rio contra a corrente. Vi pessoas a arrastarem-se penosamente para a praia e ouvi os seus guinchos, mal perceptíveis, mas sobressaindo do ruído da efervescência e do estrondo provocados pela queda do marciano.

Durante alguns momentos não prestei a mínima atenção ao calor e esqueci a necessidade óbvia de preservar a minha vida. Patinhei através dos remoinhos da água, empurrei um homem de preto e alcancei uma posição que me permitia olhar em redor. Meia dúzia de barcos abandonados arfavam por sobre a confusão das ondas. Viu-se o marciano, caído a juzante, atravessado no rio, quase completamente submerso.

Elevavam-se dos destroços espessas colunas de vapor, e, vi, através dos remoinhos tumultuosos, intermitente e vagamente, os gigantescos membros a agitar a água e a arremessar no ar um esguicho de espuma e um borrifo de lama. Os tentáculos toreiam-se e agitavam-se como braços vivos e, se não fosse a falta de sentido destes movimentos, pareceria que uma coisa ferida estava a lutar pela vida, entre as ondas. Enormes quantidades de um fluido castanho-avermelhado esguichavam da máquina em jactos ruidosos.

A minha atenção foi desviada desta agitação por um grito furioso, semelhante ao ruído produzido pela sereia de uma fábrica. Um homem, perto do caminho do reboque, com água pelos joelhos, gritava inaudivelmente para mim e apontava na minha direcção. Quando olhei para trás, vi que os outros marcianos avançavam com passadas gigantescas, descendo as margens do rio, vindos dos lados de Chertsey. As armas de Shepperton dispararam, desta vez em vão.

Quando os vi, meti-me imediatamente debaixo de água e, retendo a respiração o mais que pude, movi-me penosamente sob a superfície da água. Havia remoinhos à minha volta e a água aquecia rapidamente.

Quando ergui a cabeça por um momento para respirar e tirar os cabelos e a água dos olhos, o vapor elevava-se num nevoeiro rodopiante, branco, que ocultou de início os marcianos. O ruído era ensurdecedor. Depois, avistei-os, confusamente: figuras colossais cinzentas, ampliadas pela neblina. Tinham passado por mim e dois estavam curvados sobre as ruínas espumosas e tumultuosas do seu camarada.

O terceiro e o quarto estava ao seu lado, na água, um deles a cerca de duzentos metros de mim, e o outro perto de Laleham. Os geradores dos Raios da Morte volteavam a grande altura e os raios sibilantes varriam tudo em redor.

O ar vibrava de sons - um conflito ensurdecedor e atordoante de ruídos; o barulho clamoroso dos marcianos, o estrondo provocado pelo desabar das casas, o baque das árvores, cercas e barracões em chamas e o fantástico crepitar do fogo. Um denso fumo negro subia e misturava-se com o vapor que se elevava do rio, e quando o Raio da Morte varria Weybridge, o seu impacte era assinalado por relâmpagos de um branco intenso que davam imediatamente lugar a uma dança fumegante de chamas lúgubres. As casas mais próximas continuavam intactas, aguardando o seu destino, sombrias, indistintas e lívidas através do vapor. Entretanto, o fogo ganhava terreno atrás deles.

Durante um momento fiquei ali, com água quase a ferver até à cintura, aturdido pela situação em que me encontrava, sem esperanças de sobreviver. Via, através da fumarada, as pessoas que tinham estado comigo no rio, saindo da água, nos canaviais, como se fossem pequenos sapos em fuga de um homem, ou a correr de um lado para o outro, no maior pavor, no caminho do reboque.

Então, bruscamente, os relâmpagos brancos do Raio da Morte aproximaram-se de mim. As casas desabavam como se se dissolvessem ao seu contacto, e dardejavam chamas; as árvores incendiavam-se com um rugido. O Raio varria o curso do reboque, lambendo as pessoas que corriam, e desceu até à água a menos de cinquenta metros de distância do local onde eu me encontrava. Rastejou sobre o rio em direcção a Shepperton e a água na sua esteira erguia-se numa chicotada fervente, coroada de vapor. Voltei-me para a margem.

No instante seguinte, a onda imensa, quase ao ponto de ebulição, alcançava-me. Gritei alto e, escaldado, meio cego e torturado por dores atrozes, cambaleei enquanto progredia, através da água em remoinho e sibilante, em direcção à praia. Se tivesse tropeçado seria o fim. Sentia-me desamparado, inteiramente à mercê dos marcianos, sobre a larga e desguarnecida ponta de terra coberta de cascalho que desce e assinala a junção do Wey e do Tamisa. Esperava só pela morte.

Tenho uma vaga memória do pé de um marciano, pisando o terreno a uns vinte metros da minha cabeça. Caminhava a direito por sobre o cascalho solto, arrastando-o em rodopio de um lado para o outro e tornando a erguê-lo; recordo-me também de um longo momento de suspense e, depois, dos quatro marcianos que transportavam entre eles os restos do seu companheiro, ora claros, ora indistintos, através de um véu de fumo, recuando interminavelmente, ao que me parecia, pela vasta extensão do rio e dos prados. E, depois, muito lentamente, compreendi que tinha escapado por milagre.

 

Como encontrei o coadjutor

Depois de receberem esta inesperada lição do poder das armas terrestres, os marcianos retiraram-se para a sua posição original nos baldios de Horsell; e, na sua precipitação, carregados com os restos despedaçados do seu companheiro, negligenciaram, sem dúvida, a vítima extraviada e desprezível que eu era. Se tivessem abandonado o seu camarada e continuado a avançar, como então não havia nada entre eles e Londres senão baterias de peças de doze, teriam decerto alcançado a capital antes das notícias da sua aproximação; a sua chegada seria tão súbita, terrível e destruidora como o terramoto que destruiu Lisboa há dois séculos.

Mas eles não tinham pressa. Os cilindros seguiam-se no seu voo interplanetário; todas as vinte e quatro horas recebiam reforços. Entretanto, as autoridades militares e navais, agora inteiramente conscientes do tremendo poder dos seus adversários, trabalhavam com uma energia furiosa. Minuto a minuto chegavam armas que eram colocadas em posição, e, antes do crepúsculo, todos os matagais, todas as ruas de vilas suburbanas nos declives da colina, perto de Kingston e Richmond, dissimulavam a negra boca de uma arma à espera. E através da área carbonizada e desolada - cerca de cinquenta quilómetros quadrados, na totalidade - que rodeava a base marciana de baldios de Horsell, através das vilas carbonizadas e em ruínas rodeadas por árvores verdes, através das arcadas enegrecidas e fumegantes do que tinham sido, um dia antes, pinhais, rastejavam os devotados batedores com os heliógrafos com que avisavam os atiradores da aproximação dos marcianos. Mas estes já conheciam o poder da nossa artilharia e o perigo da proximidade humana, e nem sequer um homem chegou a um quilómetro de distância de qualquer cilindro, salvo pelo preço da sua vida.

Parece que estes gigantes gastaram as primeiras horas da tarde a andar de um lado para o outro, transferindo tudo quanto se encontrava no segundo e no terceiro cilindros - o segundo em Addlestone Golf Links e o terceiro em Pyrford - para o original fosso dos baldios de Horsell. Além disso, um deles vigiava o urzal enegrecido e as construções arruinadas que se erguiam por toda a parte, enquanto o resto abandonava as máquinas de combate e descia ao fosso. Estiveram muito atarefados até noite alta, e a formidável coluna de denso fumo negro que se erguia nesse ponto podia ser vista das colinas das imediações de Merrow e até, ao que parece, de Banstead e Epsom Downs.

E enquanto atrás de mim os marcianos se preparavam assim para a sua próxima surtida, e defronte de mim o género humano se reunia para a batalha, eu afastava-me, penosamente e cheio de dores, do fogo e do fumo de Weybridge em chamas, em direcção a Londres.

Vi um barco abandonado, muito pequeno e distante, flutuando a jusante; despi a maior parte das minhas roupas encharcadas, nadei ao seu encontro, alcancei-o e escapei desta maneira. Não havia remos no barco, mas consegui remar, tão bem quanto as minhas mãos, queimadas, o permitiram. Assim, com muito custo, desci o rio em direcção a Halliford e Walton. Como se compreende, olhava constantemente para trás. Segui pelo rio, pois achava que a água me dava maiores possibilidades de fuga se aqueles gigantes regressassem.

A água, quente devido à queda do marciano, levava-me para jusante; devido ao vapor que subia, mal pude ver, durante cerca de um quilómetro, a outra margem.

No entanto, distingui um grupo de figuras negras que corriam, nos prados, vindas de Weybridge. Parecia que Halliford fora abandonada, e algumas das casas defronte do rio eram pasto das chamas. Era estranho ver este local completamente silencioso, desolado, sob o quente céu azul, onde o fumo e os pequenos fios de chamas se erguiam verticalmente. Jamais vira casas a arder sem o acompanhamento de uma multidão em luta com as chamas. Um pouco mais longe, os canaviais secos da margem fumegavam e ardiam e, no lado de lá, uma linha de fogo ganhava rapidamente terreno através de um campo de feno. Naveguei à deriva durante muito tempo, pois estava cheio de dores e cansado pelo violento esforço que fizera, e porque o calor da água era muito intenso. Em seguida, o medo dominou-me novamente e recomecei a remar. O sol queimava-me as costas nuas. Finalmente, quando a ponte de Walton surgiu à minha vista numa curva do rio, a febre e a fraqueza venceram os meus receios e desembarquei na margem de Middlesex; deitei-me, sentindo-me mortalmente doente, sobre a relva alta. Creio que eram então cerca das quatro ou cinco horas. Levantei-me, pouco depois, andei cerca de meia milha sem encontrar um ser vivo e deitei-me novamente à sombra de uma sebe. Creio que falei sozinho e delirei durante a última caminhada. Também estava cheio de sede e lamentava-me amargamente por não ter bebido água. É curioso que me sentisse zangado com a minha mulher; não sou capaz de explicar as razões deste sentimento. O meu desejo de alcançar Leatherhead preocupava-me demasiado.

Não me lembro bem da chegada do coadjutor; provavelmente, dormitava quando chegou. Ele estava sentado, tinha as mangas da camisa sujas de fuligem e o rosto, bem barbeado, fixava um débil clarão bruxuleante que se projectava no céu, o qual estava, por assim dizer, salpicado - filas e filas de pequenas nuvens baixas, levíssimas, matizadas por um pôr-de-sol no pino do Verão.

Sentei-me. Ao ouvir o ruído do meu movimento, fitou-me logo.

- Tem água? - perguntei, bruscamente.

Ele abanou a cabeça.

- Há uma hora que está a pedir água - disse.

Ficámos calados durante alguns momentos, enquanto nos avaliávamos mutuamente. Ele achou-me, decerto, bastante estranho, nu, só com as calças e as peúgas ensopadas, queimado, e com o rosto e os ombros enegrecidos pelo fumo. Quanto a ele, via-se-lhe no rosto uma nítida fraqueza, tinha o queixo retraído, o cabelo encrespado, e os caracóis revoltos, quase louros, caíam-lhe sobre a testa; os olhos eram muito grandes, de um azul-claro, inexpressivos. Falou abruptamente, olhando com ar vago para mim.

- Que significa isto? - perguntou. - Que significam estas coisas?

Fitei-o sem compreender.

Estendeu a mão fina e branca e falou quase num tom de queixa.

Porque é que estas coisas são permitidas? Que pecados fizemos? O serviço da manhã já estava feito, passeava para descansar o espírito para a tarde, e então - fogo, terramoto, morte! Como se fosse Sodoma e Gomorra! Todo o nosso trabalho desfeito, todo o trabalho... Que são estes marcianos?

Que somos nós? - perguntei, aclarando a garganta.

Ele pousou as mãos sobre os joelhos e olhou novamente para mim. Fitou-me em silêncio durante cerca de um minuto.

- Estava a passear para descansar o espírito - tornou. - E de súbito ... fogo, tremor de terra, morte!

Calou-se de novo, com o queixo quase afundado entre os joelhos.

Começou a fazer largos gestos com a mão.

- Todo o trabalho - todas as escolas de catequese... Que fizemos nós?... Que fez Weybridge?

Tudo se foi... tudo destruído. A igreja! Reconstruímo-la há apenas três anos. Desapareceu! Já não existe!

Porquê?

Fez uma pausa, e tornou a falar como um demente.

- O fumo do seu incêndio sobe eternamente! - gritou.

Os olhos dele chamejavam, e apontou com um dedo magro na direcção de Weybridge.

Neste momento, eu já começara a avaliá-lo devidamente. A tremenda tragédia na qual estivera envolvido - era, evidentemente, um fugitivo de Weybridge - quase o enlouquecera.

Estamos longe de Sunbury? - perguntei, num tom natural.

Que podemos fazer? - perguntou. - Estas criaturas estão por toda a parte? A terra foi-lhes dada?

Estamos longe de Sunbury?

Ainda esta manhã, cedo, celebrei missa...

As coisas mudaram - disse eu, calmamente. - Mantenha a cabeça no seu lugar. Ainda há esperança.

Esperança!

Sim. Muita esperança... apesar de toda esta destruição.

Comecei a explicar-lhe o meu ponto de vista acerca da situação em que nos encontrávamos. Ouviu-me, a princípio, mas, passados alguns momentos, o interesse que lhe assomava nos olhos deu lugar à fixidez inicial, e desviou o olhar.

- Isto deve ser o princípio do fim - disse, interrompendo-me. - O grande e terrível dia do Senhor!

Quando os homens pediram às montanhas e às rochas para cair sobre eles e escondê-los... escondê-los do rosto d’Aquele que está sentado no trono!

Comecei a compreender a situação. Abandonei os meus trabalhosos argumentos, pus-me de pé e pousei a minha mão no seu ombro.

- Seja um homem! - disse-lhe. - Você está fora de si! Para que serve a religião se fraqueja nas calamidades? Pense no que os terramotos e inundações, guerras e vulcões têm feito ao homem! Julga que Deus poupou Weybridge? Deus não é um agente de seguros.

Ele guardou um silêncio absoluto durante algum tempo.

- Mas como podemos escapar? - perguntou, bruscamente. - Eles são invulneráveis e impiedosos.

- Nem uma coisa nem, talvez, a outra - respondi. - E quanto maiores forem, mais sensatos e prudentes devemos ser. Um deles foi morto, além, ainda não há três horas.

- Morto! - exclamou, fitando-me. - Como é possível que os ministros de Deus sejam mortos?

- Vi isso acontecer - disse eu. - Tivemos a sorte de o conseguir quando o combate era mais aceso, e é tudo.

Que luz é aquela, no céu? - perguntou, de súbito.

Expliquei-lhe que se tratava do heliógrafo a fazer sinais - que era o sinal, projectado no céu, da ajuda e do esforço humano.

- Estamos no meio disto - contei-lhe -, embora tudo pareça calmo. Aquela luz no céu é o sinal de que o temporal se aproxima. Creio que os marcianos estão acolá, e, para os lados de Londres, sob as árvores daquelas colinas nas imediações de Richmond e Kingston, estão a erguer-se fortificações e a colocar-se armas. Agora, os marcianos devem tornar a passar por aqui.

Enquanto eu falava, ele levantou-se e fez-me um gesto para me calar.

- Escute! - disse.

Do lado das baixas colinas da outra margem do rio chegava a triste ressonância da descarga de armas, ao longe, e um longínquo grito sobrenatural. Um escaravelho passou a zumbir por cima da sebe e desapareceu. A ocidente, alta, via-se a Lua, em quarto crescente, indistinta e pálida por sobre o fumo de Weybridge e Shepperton, e o esplendor quente e calmo do pôr-do-sol.

- É melhor seguirmos por este caminho - disse eu-, para norte.

 

Em Londres

O meu irmão mais novo estava em Londres quando os marcianos chegaram a Woking. Era estudante de Medicina, preparava-se para um exame próximo e não ouvira nada acerca da chegada deles até à manhã de domingo. Os jornais matutinos deste dia traziam, além de grandes artigos especiais sobre o planeta Marte, a vida nos planetas, etc, um telegrama curto e vago que chocava pelo seu laconismo.

Os marcianos, alarmados pela aproximação de grande multidão, tinham morto um certo número de pessoas com uma arma de fogo rápida. Tal era a versão dos acontecimentos. O telegrama concluía com as seguintes palavras: “Embora pareçam formidáveis, os marcianos não se moveram do fosso onde caíram e, certamente, são incapazes de o fazer. Isto deve-se, provavelmente, à maior força relativa da energia gravitacional da Terra.” O redactor-chefe assinava o último texto, no qual se mostrava muito optimista.

Como é natural, todos os estudantes da superlotada aula de Biologia, à qual o meu irmão assistiu nesse dia, achavam-se intensamente interessados; no entanto, não havia indícios de uma excitação desusada nas ruas. Os jornais da tarde traziam notícias fragmentárias encimadas por grandes cabeçalhos. Até às oito horas, além dos movimentos das tropas em redor do baldio, e do incêndio dos pinhais entre Woking e Weybridge, nada mencionavam de especial. Então, o St. Jame’s Gazette, numa edição extra-especial, anunciou o simples facto da interrupção de comunicações telegráficas. Isto devia-se, provavelmente, à queda de pinheiros queimados sobre a linha. Nessa noite, nada mais se soube acerca da batalha; foi nessa noite que fiz a viagem de ida e volta a Leatherhead.

O meu irmão não estava preocupado a nosso respeito, pois sabia, através dos jornais, que o cilindro se encontrava a umas boas duas milhas de distância da minha casa. Planeava ir ter comigo, com o fim de, disse ele, ver as Coisas antes de serem mortas. Cerca das quatro horas despachou um telegrama, que nunca recebi, e passou a noite num music-hall.

Também em Londres houve trovoada na noite de sábado. O meu irmão dirigiu-se num cupé à estação de Waterloo. Na plataforma de onde parte habitualmente o comboio da meia-noite foi informado, depois de algum tempo de espera, que não havia comboios para Woking devido a ter-se verificado um acidente. Não especificaram a natureza do acidente; as autoridades dos caminhos de ferro ainda não sabiam, decerto, o que se passava na realidade. Gerou-se pouca agitação na gare quando os funcionários, desconhecendo que acontecera algo mais do que um desastre entre Byfleet e o entroncamento de Woking, desviaram os comboios para Virgina Water ou Guilford. Estavam atarefados a fazer os preparativos necessários para alterar a rota das excursões das Ligas de Domingo de Southampton e Portsmouth. Um repórter da vida nocturna, confundindo o meu irmão com o chefe do tráfego, com quem parece ter uma ligeira semelhança, tentou entrevistá-lo. Poucas pessoas, com excepção dos funcionários da via férrea, relacionaram o desastre com os marcianos.

Noutro relato destes acontecimentos, li que, na manhã de domingo, “Londres inteira estava electrizada pelas notícias provindas de Woking”. Como é natural, nada justificava aquela frase extravagante. Muitos londrinos não ouviram dizer nada acerca dos marcianos até ao pânico da manhã de segunda-feira. Esses precisaram de algum tempo para compreender o real significado dos apressados telegramas dos jornais de domingo. A maioria dos habitantes de Londres não lê os jornais de domingo.

Além disso, o hábito de segurança pessoal está tão profundamente arreigado no espírito do londrino, e são tão habituais as notícias assustadoras dos jornais, que podiam ler sem qualquer espécie de receio: “Na noite passada, cerca das sete horas, os marcianos saíram do cilindro e, protegidos por uma couraça de escudos metálicos, destruíram completamente a estação de Woking e as casas vizinhas, e massacraram um batalhão inteiro do regimento de Cardigan. Não se conhecem pormenores. As Maxim revelaram-se inteiramente inúteis contra a sua couraça; inutilizaram as peças de campanha. Avançam para Chertsey hussardos a cavalo. Parece que os marcianos se dirigem lentamente em direcção a Chertsey ou Windsor. Reina grande ansiedade em West Surrey, e estão a erguer-se fortificações para deter o avanço para Londres.” Era desta maneira que o Sun de domingo relatava a situação, e um breve artigo, notável e arguto, no Referee, comparava os acontecimentos às consequências que adviriam a uma aldeia onde se abandonasse um grupo de feras.

Em Londres, ninguém conhecia ao certo a natureza dos marcianos couraçados, e reinava ainda uma ideia fixa de que estes monstros fossem lentos: “rastejar”, “arrastar-se penosamente”, eram expressões transcritas em quase todos os relatos mais recentes. Nenhum dos telegramas poderia ter sido redigido por uma testemunha visual do avanço dos marcianos. Os jornais de domingo publicaram novas edições à medida que chegavam as notícias, algumas vezes mesmo na sua falta. No entanto, não houve praticamente mais nada a dizer às pessoas até uma hora adiantada da tarde, quando as autoridades deram às agências de informações as notícias que detinham na sua posse. Declarava-se que as pessoas de Walton e de Weybridge, e de todo o distrito, se precipitavam ao longo das estradas a caminho de Londres. E era tudo.

O meu irmão foi à igreja do Foundling Hospital, de manhã, desconhecendo ainda o que acontecera na noite anterior. Ouviu então algumas alusões acerca da invasão, e uma prece especial para a paz. Ao sair, comprou o Referee. Ficou alarmado com as suas notícias e foi de novo à estação de Waterloo para saber se as comunicações tinham sido restabelecidas. Autocarros, carruagens, ciclistas e inumeráveis pessoas nos seus fatos domingueiros pareciam pouco afectados com as estranhas notícias espalhadas pelos ardinas. As pessoas mostravam-se apenas interessadas ou, se alarmadas, estavam-no unicamente por pensarem na situação dos residentes locais. Soube na estação, pela primeira vez, que as linhas de Windsor e Chertsey se achavam interrompidas. Os carregadores disseram-lhe que tinham sido recebidos, de manhã, vários telegramas interessantes das estações de Byfleet e Chertsey, mas que tinham cessado bruscamente. O meu irmão só conseguiu pormenores pouco precisos acerca do seu conteúdo.

“A batalha prossegue nas imediações de Weybridge.” Era tudo quanto sabiam.

O serviço de comboios já estava bastante desorganizado. Só se achava na estação um certo número de pessoas que tinham estado à espera de amigos da linha do sudoeste. Um cavalheiro idoso, de cabelos brancos, injuriou asperamente a Companhia do Sudoeste, dirigindo-se ao meu irmão.

- Precisa de ser desmascarada - afirmou.

Chegaram um ou dois comboios de Richmond,

Putney e Kingston, transportando pessoas que tinham saído para um dia de remo e a quem se haviam deparado os canais fechados e uma sensação de pânico que pairava no ar. Um homem, envergando um casaco de regatas azul e branco, dirigiu-se ao meu irmão, cheio de estranhas notícias.

- Estão a chegar a Kingston mares de gente em carroças e outros veículos, com caixas, objectos de valor e coisas do género - disse ele. - Vêm de Molesey, Weybridge e Walton, e dizem que se ouve em Chertsey a descarga de armas, fogo pesado, e que soldados montados lhes disseram para fugir imediatamente antes que os marcianos chegassem. Nós ouvimos tiros na estação de Hampton Court, mas pensámos que fosse trovoada. Que diabo significa isto tudo? Os marcianos não podem sair do fosso, pois não?

O meu irmão não soube responder-lhe.

Verificou mais tarde que a vaga sensação de alarme se propagara aos utentes do metropolitano e que os excursionistas de domingo começavam a regressar de todo o “pulmão” de sudoeste - Barnes, Wimbledon, Ricbmond Park, etc. - muito cedo, contrariamente ao habitual; mas uma alma não podia dizer mais do que vagos boatos. Todos aqueles que tinham pessoas conhecidas no término pareciam de mau humor.

Cerca das cinco horas, a crescente multidão que se encontrava na gare mostrou-se bastante excitada pela abertura da linha de comunicação, quase invariavelmente encerrada, entre as estações de sudeste e sudoeste, por onde passaram vagões carregados de armas pesadas e carruagens abarrotadas de soldados. Eram as armas que chegavam de Woolwich e Chatham para cobrir Kingston. Houve uma troca de gracejos: “Vocês vão ser comidos!”, “Nós somos os domadores de feras!” e coisas do género. Pouco depois chegou à estação um grupo de polícias que começou a fazer evacuar o público das plataformas, e o meu irmão saiu de novo para a rua.

Os sinos das igrejas tocavam as vésperas e um grupo de rapariguitas do Exército de Salvação desceu, a cantar, pela estrada de Waterloo. Sobre a ponte, um grupo de ociosos observava uma curiosa escuma castanha que descia o rio impelida pela corrente. O sol estava precisamente a pôr-se e a Torre do Relógio e as Casas do Parlamento desenhavam-se contra um dos céus mais calmos que é possível imaginar-se, um céu de ouro, barrado por listas transversais de nuvens vermelho-púrpura. Falava-se acerca dum corpo que aparecera a flutuar. Um dos homens que se encontravam no local, que disse ser reservista, informou o meu irmão de que vira os sinais do heliógrafo a ocidente.

Na Wellington Street o meu irmão encontrou um par de mariolas robustos que tinham acabado de desembocar de Fleet Street com jornais de tinta ainda húmida e placarás. “Horrível catástrofe!”, apregoavam enquanto desciam Wellington Street. “Combate em Weybridge! Descrição completa! Revés dos marcianos! Londres em perigo!” Teve de pagar três dinheiros por aquele jornal.

Foi nesse momento, e só então, que compreendeu alguma coisa do enorme poder e do terror que estes monstros inspiravam. Soube que eles não eram simplesmente um punhado de pequenas criaturas lentas, mas sim cérebros que governavam imensos corpos mecânicos; e que podiam mover-se rapidamente e atacar com tal poder que mesmo as armas mais pesadas não podiam fazer-lhes frente.

Eram descritos como “vastas máquinas parecidas com aranhas, com trinta metros de altura, aproximadamente, capazes da velocidade de um comboio expresso e de disparar um raio de calor intenso”. Baterias camufladas, principalmente constituídas por peças de campanha, estavam colocadas em toda a volta dos baldios de Horsell e, especialmente, entre o distrito de Woking e Londres. Viram-se cinco das máquinas a mover-se em direcção ao Tamisa, e uma delas, por um feliz acaso, fora destruída. Nos outros casos, as bombas tinham falhado e as baterias haviam sido imediatamente aniquiladas pelos Raios da Morte. Mencionavam-se duras perdas de soldados, mas o tom da informação revelava optimismo.

Os marcianos tinham sofrido um revés; não eram invulneráveis. Tinham batido em retirada para o seu triângulo de cilindros, no círculo centrado em Woking. Acercavam-se deles, de todos os lados, sinaleiros com heliógrafos. As armas moviam-se rapidamente de Windsor, Portsmouth, Aldershot, Woolwich - até do norte; entre outras, compridas peças eléctricas de noventa e cinco toneladas, vindas de Woolwich. No conjunto, cento e sessenta estavam em posição ou a ser apressadamente colocadas, cobrindo especialmente Londres. Nunca se vira na Inglaterra uma concentração tão vasta ou tão rápida de material militar.

Esperava-se que quaisquer cilindros que caíssem pudessem ser imediatamente destruídos por potentes explosivos, que estavam a ser rapidamente manufacturados e distribuídos. Não havia dúvidas, segundo o relato, de que a situação era muitíssimo estranha e grave, mas exortava-se o público a evitar e a desencorajar o pânico. Os marcianos eram decerto extremamente estranhos e terríveis, mas somavam, supunha-se, uns vinte contra os nossos milhões.

As autoridades tinham razão para supor, dado o tamanho dos cilindros, que, quando muito, haveria cinco marcianos em cada um deles - ao todo, quinze. E um, pelo menos, fora posto fora de combate - talvez mais. O público seria devidamente avisado da aproximação do perigo, e estavam a ser tomadas as medidas necessárias para a protecção da população dos arrabaldes ameaçados de sudoeste. E, assim, com reiteradas garantias acerca da segurança de Londres e da capacidade das autoridades para enfrentar a dificuldade, terminava esta quase-proclamação.

Isto fora impresso em enormes caracteres, tão recentes que ainda estavam húmidos, e não houvera tempo para acrescentar uma palavra de comentário. O meu irmão disse que era curioso ver como o conteúdo habitual do jornal fora impiedosamente cortado e retirado para lhe dar lugar.

Ao longo de toda a Wellington Street viam-se as pessoas a agitar as folhas cor-de-rosa e a lê-las; o Strand tornara-se bruscamente ruidoso com as vozes de um exército de pregoeiros que seguiam estes pioneiros. Os homens saíam a correr dos autocarros para se apossarem de algum exemplar. Não havia dúvidas de que estas notícias excitavam intensamente toda a gente, fosse qual fosse a apatia que tivesse revelado anteriormente. Os postigos de uma loja de mapas, no Strand, estavam a ser descidos, disse o meu irmão, e um homem, no seu fato domingueiro, com luvas amarelo-limão, afixava apressadamente, nos vidros, mapas do Surrey.

Do Strand a Trafalgar Square, com o jornal na mão, o meu irmão viu alguns dos fugitivos vindos de West Surrey. Havia um homem com a esposa e dois filhos e alguns móveis, numa carroça semelhante às que são usadas pelos hortaliceiros. Vinha da direcção da ponte de Westminster; e, na sua peugada, aproximou-se um carro de feno com cinco ou seis pessoas de aspecto respeitável e algumas caixas e trouxas. Os rostos destas pessoas estavam macilentos, e a sua aparência contrastava claramente com o aspecto festivo das pessoas dos autocarros. Dos cupés, indivíduos elegantemente vestidos espreitavam-nos através das janelas. Pararam na Square, como se estivessem indecisos acerca do caminho a tomar, e voltaram, por fim, para leste, atravessando o Strand. Atrás deles, a uma certa distância, vinha um homem em fato de trabalho, montado num daqueles triciclos antiquados que têm uma pequena roda dianteira. Tinha o rosto sujo e pálido.

O meu irmão encaminhou-se para Victoria e encontrou outro grupo de pessoas com o mesmo aspecto. Tinha uma vaga ideia de que poderia saber, através delas, alguma coisa a meu respeito. Notou um número desusado de polícias a regular o trânsito. Alguns dos refugiados trocavam informações com as pessoas dos autocarros. Um deles afirmava que vira os marcianos. “Caldeiras em cima de andas, digo-lhes, caminhando como se fossem homens.” A maioria deles mostrava-se excitada e animada pela sua estranha aventura.

A seguir a Victoria as cervejarias estavam a fazer um bom negócio com estes recém-chegados. Havia grupos de pessoas, em todas as esquinas, a ler jornais, a conversar excitadamente, ou a fitar estes invulgares visitantes de domingo. O seu número parecia aumentar à medida que a noite se adiantava, até que, por fim, disse o meu irmão, as avenidas faziam lembrar Epsom High Street num dia de Derby (Corridas de cavalos em Epsom. (N. do T.). Ele dirigiu-se a alguns destes fugitivos e recebeu respostas pouco satisfatórias da maioria deles.

Ninguém lhe soube dar notícias de Woking, com excepção de um homem que lhe assegurou que Woking tinha sido inteiramente destruída ina noite anterior.

- Venho de Byfleet - disse ele. - Chegaram ali homens de bicicleta, de madrugada, e andaram de porta em porta a avisar-nos para fugirmos. Depois vieram soldados. Saímos de casa para dar uma olhadela; havia nuvens de fumo a sul - nada mais do que fumo, e nem sequer uma alma chegou dessa direcção. Em seguida, ouvimos tiros em Chertsey; de Weybridge, estavam a chegar famílias inteiras. Então, fechei a porta e vim embora.

Nessa altura, reinava nas ruas uma forte convicção de que as autoridades mereciam censuras pela incapacidade que revelavam de derrotar os invasores sem toda esta perturbação.

Por volta das oito horas, ouviu-se nitidamente um ruído de fogo pesado em todo o sul de Londres. O meu irmão não o ouviu devido ao trânsito nas principais vias públicas, mas quando passou pelas silenciosas ruas traseiras em direcção ao rio pôde distingui-lo com bastante clareza.

De Wesjtminster dirigiu-se ao seu apartamento, perto de Regent’s Park. Eram talvez duas horas. Estava muito preocupado por minha causa e perturbado pela evidente magnitude do problema. A sua imaginação discorria, tal como me acontecera no sábado, acerca de pormenores militares. Pensava em todas aquelas armas silenciosas, à espera, na região subitamente nómada; tentava imaginar “caldeiras sobre andas”, de trinta metros de altura.

Duas ou três carroças, carregadas de refugiados, passavam ao longo de Oxford Street, e várias por Marylebone Road, mas as notícias propagavam-se com tanta lentidão que Regent Street e Portland Place estavam cheias dos habituais passeantes das noites de domingo, embora conversassem em grupos; e, ao longo da orla de Regent’s Park, havia muitos casais silenciosos, “passeando”, sob os dispersos lampiões de gás. Tudo decorria como habitualmente. A noite estava quente e calma, e um pouco abafada; o ruído de tiros continuava a ouvir-se, intermitentemente e, depois da meia-noite, viu-se o que pareciam serem lâminas de luz, a sul.

Leu e releu o jornal, receando que me tivesse acontecido o pior. Estava inquieto e, depois de cear, saiu novamente de casa e vagueou sem destino. Regressou e tentou, em vão, concentrar-se no estudo das suas notas para exame. Deitou-se um pouco depois da meia-noite e foi despertado às primeiras horas de segunda-feira por um ruído de pancadas nas portas, um tropel de passos precipitados na rua, um tamborilar distante e o repicar de sinos. Estivera mergulhado em lúgubres pesadelos. No tecto dançavam reflexos vermelhos. Durante alguns momentos ficou imóvel, atónito, perguntando-se se já era dia ou se o mundo enlouquecera. Em seguida, saltou da cama e correu até à janela.

O quarto ficava numa água-furtada. Quando deitou a cabeça de fora da janela ouviu uma dezena de ecos do ruído do correr da vidraça e viu assomarem pessoas em todas as espécies de trajos de noite. Gritavam-se perguntas.

- Estão a aproximar-se! - berrava um polícia, batendo a uma porta. - Os marcianos estão a aproximar-se! - e corria para a porta da casa vizinha.

O ruído do tamborilar e do toque de trombetas provinha dos quartéis de Albany Street e todas as igrejas ao alcance do ouvido atarefavam-se a matar o sono com um veemente e desordenado toque de sinais a rebate. Ouvia-se o ruído de portas a abrir-se e, janela após janela, as casas defronte saíam da escuridão para uma claridade amarelada.

Uma carruagem fechada subiu a galope a rua, irrompendo brusca e ruidosamente da esquina, passando sob a janela num tumulto de rodas que morreu lentamente na distância. Na peugada deste veículo surgiram dois cupés, os precursores de uma longa procissão de veículos, a maioria dos quais se dirigia para a estação de Chalk Farm, em vez de descer a rampa para Euston. Na estação de Chalk Farm estavam a ser carregados os comboios especiais para o noroeste.

Durante um longo momento, meu irmão ficou à janela, completamente atónito, observando os polícias a bater às portas e a transmitir a sua incompreensível mensagem. Em seguida, atrás dele, a porta abriu-se e entrou o homem que morava do outro lado do patamar. Só tinha vestido uma camisa, calças e chinelos; os suspensórios caíam-lhe da cintura e tinha o cabelo revolto.

- Que diabo é aquilo? - perguntou. - Um incêndio? Que raio de algazarra!

Debruçaram-se ambos à janela, esforçando-se por ouvir o que os polícias estavam a gritar. Surgiam pessoas das ruas da vizinhança e formavam grupos nas esquinas, conversando.

- Que diabo se passa? - exclamou o colega de hospedagem do meu irmão.

O meu irmão respondeu-lhe vagamente e começou a vestir-se. À medida que se vestia, corria à janela para não perder nada da excitação crescente. Nesse momento, apareceram alguns homens a vender, desusadamente cedo, alguns jornais. Apregoavam:

- Londres em perigo de sufocação! As defesas de Kingston e Richmond foram forçadas! Horríveis massacres no vale do Tamisa!

E, por toda a parte - nos quartos dos pisos inferiores, nas casas de ambos os lados da avenida, por trás, no Park Terrace e numa centena de outras ruas dessa parte de Marylebone, e no distrito de Westbourne Park e em St. Pancras, e para oeste e norte, em Kilburn, St. John’s Wood e Hampstead, e para leste, em Shoreditch, Highbury, Haggerston e Hoxton e, sem dúvida, através de toda a vastidão de Londres desde Ealing até East Ham -, as pessoas esfregavam os olhos e abriam as janelas para olhar para fora e fazer perguntas sem nexo; vestiam-se apressadamente ao primeiro sopro do temporal de Medo que se aproximava, fluindo através das ruas. Era a alvorada de um grande pânico. Londres, que se deitara, na noite de domingo, absorta e apática, acordava, às primeiras horas da manhã de segunda-feira, para uma profunda sensação de perigo.

Como da janela não podia aperceber-se do que se estava a passar, o meu irmão desceu e saiu para a rua. Precisamente nesse momento, o céu, sobre os telhados das casas, era matizado de cor-de-rosa pela alvorada que nascia. As pessoas em fuga, a pé e em veículos, tornavam-se em cada momento mais numerosas. - Fumo Negro! - gritavam todos, e de novo: - Fumo Negro! O contágio de um medo tão unânime era inevitável. Quando o meu irmão hesitava <no degrau da porta, viu aproximarem-se outros ardinas, e comprou imediatamente um jornal. O homem corria com o resto, e vendia os jornais à medida que corria, por um xelim cada um - era uma grotesca miscelânea de espírito de lucro e de pânico.

O meu irmão leu no jornal a seguinte comunicação da catástrofe, assinada pelo comandante-chefe:

“Os marcianos podem disparar enormes nuvens de um fumo negro e venenoso por intermédio de foguetes. Sufocaram as nossas baterias, destruíram Richmond, Kingston e Wimbledon, e estão a avançar lentamente em direcção a Londres, destruindo tudo à sua passagem. É impossível detê-los. Não existe salvação possível do Fumo Negro senão uma fuga imediata.”

Era tudo, mas bastava. Toda a população da grande cidade de seis milhões de habitantes se agitava, escapava e corria; começava a fluir en masse em direcção ao norte.

- Fumo Negro! - gritavam as vozes. - Fogo!

Os sinos da igreja vizinha soavam desagradavelmente; uma carroça conduzida sem cuidado embateu e esmagou-se, entre gritos e pragas, contra o bebedouro ao cimo da rua. Nas casas, moviam-se fracas luzes amarelas de um lado para o outro, e alguns dos cupés passavam com as luzes ainda acesas, tremulando. E a alvorada ganhava mais brilho, claridade e sossego.

Dos outros quartos, e a subir e a descer as escadas atrás dele, ouvia o tropel de passos. A dona da casa veio à porta, mal envolvida por um roupão e um xaile; o marido seguia-a, falando com veemência.

Quando meu irmão começou a compreender a importância de todas estas coisas voltou apressadamente ao quarto, meteu nos bolsos todo o dinheiro que encontrou - cerca de dez libras, na totalidade - e saiu de novo para a rua.

 

O que aconteceu no Surrey

Foi enquanto o coadjutor esteve sentado e me falou daquele modo, sob a sebe, nos prados vizinhos de Halliford, e enquanto o meu irmão fixava a corrente de fugitivos de Westminster Bridge, que os marcianos retomaram a ofensiva. Tanto quanto é possível afirmar através dos diferentes relatos que foram apresentados, a maioria deles permaneceu ocupada com preparativos, no fosso de Horsell até às nove horas dessa noite; executavam a toda a pressa uma operação que libertava enormes quantidades de fumo verde.

No entanto, é certo que três saíram por volta das oito horas, avançando lenta e cuidadosamente, e prosseguiram através de Byfleet e Pyrford em direcção a Ripley e Weybridge, surgindo deste modo, banhados pelo sol no ocaso, à vista das baterias que os aguardavam. Estes marcianos não avançavam num corpo, mas segundo uma linha, cada um deles a uma distância de cerca de três quilómetros do seu camarada mais próximo. Comunicavam uns com os outros por intermédio de uivos semelhantes aos de uma sereia, percorrendo a escala de uma nota para outra.

Foram estes uivos e o tiroteio em Ripley e St. Geor-ge’s Hill que ouvimos em Upper Halliford. Os atiradores de Ripley, voluntários inexperientes de artilharia, que nunca deviam ter sido colocados naquela posição, dispararam insensatamente uma descarga prematura e ineficaz, fugindo depois a cavalo e a pé através da vila abandonada, enquanto o marciano, sem usar o Raio da Morte, passeava serenamente por cima das armas, parava cautelosamente entre elas e chegava assim, de um modo inesperado, ao pé daquelas que se encontravam em Painshill Park, que destruiu.

No entanto, os homens de St. George’s Hill eram mais bem comandados ou mais corajosos. Ocultos por um pinhal, a sua presença parece ter passado despercebida ao marciano que se achava mais perto deles. Apontaram as peças (tão deliberadamente como se estivessem numa parada, e dispararam a uma distância de cerca de cem metros.

As bombas rebentaram em redor do marciano, e viram-no dar alguns passos, vacilar e cair. Houve um alarido unânime e as armas foram recarregadas com uma pressa frenética. O marciano atingido soltou um ulular contínuo e, logo a seguir, um segundo gigante reluzente, respondendo-lhe, apareceu a sul por sobre as árvores. Parecia que uma perna do trípode tinha sido despedaçada por uma das bombas. A segunda descarga passou longe do marciano que se achava por terra e, simultaneamente, os seus dois companheiros dispararam o Raio da Morte sobre a bateria. As munições explodiram, os pinhais em redor das peças incendiaram-se, e só escaparam um ou dois dos homens, que já corriam pela crista da colina.

Em seguida, pareceu que os três se consultavam, parados, e os batedores que os vigiavam relataram que tinham ficado absolutamente quietos durante a meia hora seguinte. O marciano que fora derrubado rastejou lentamente para fora do capuz da couraça - uma figura pequena, castanha, que sugeria singularmente, àquela distância, uma mancha de geada; parecia atarefado a reparar o seu suporte. Cerca das nove horas tinha terminado o seu trabalho, pois o capuz via-se de novo por sobre as árvores.

Foi nessa noite, alguns minutos depois das nove, que outros quatro marcianos se reuniram a estas três sentinelas. Cada um dos recém-chegados transportava um espesso tubo negro, e o mesmo se passava com os outros três. Os sete começaram a distribuir-se em distâncias iguais ao longo de uma linha curva entre St. George’s Hill, Weybridge e a vila de Send, a sudoeste de Ripley.

Uma dúzia de foguetes rebentou por sobre as colinas, .defronte deles, mal começaram a mover-se, avisando as baterias que aguardavam nas imediações de Ditton e Esher. Ao mesmo tempo, quatro das suas máquinas de combate, igualmente armadas de tubos, atravessaram o rio; duas delas, desenhando-se negras contra o céu a ocidente, surgiram à minha vista e do coadjutor quando corríamos, penosamente, ao longo da estrada que sai de Halliford em direcção ao norte. Moviam-se, ao que me parecia, por sobre uma nuvem, pois uma neblina leitosa cobria os campos e erguia-se a um terço da sua altura.

Quando o coadjutor os viu soltou um grito e começou a correr; mas eu sabia que não valia a pena fugir a correr de um marciano; assim, voltei para trás e rastejei sobre urtigas orvalhadas e silvas para a larga vala que se abria à beira da estrada. Ele olhou para trás, viu o que eu estava a fazer e veio juntar-se a mim.

Os dois marcianos pararam; o que estava mais próximo de nós enfrentava Sunbury e o mais afastado era uma forma cinzenta, indistinta, na noite, para os lados de Staines.

Já não se ouvia o ocasional uivo dos marcianos; eles tomaram as suas posições num vasto crescente em redor dos cilindros, num silêncio absoluto. O crescente tinha a extensão de vinte quilómetros. Nunca, desde a invenção da pólvora, houvera um início de batalha tão calmo. O efeito seria precisamente o mesmo para nós e para um observador nas imediações de Ripley - os marcianos pareciam deter a posse exclusiva da noite escura, apenas iluminada pela lua esguia, as estrelas, o clarão rubro que se via em St. George’s Hill e nos pinhais de Painshill.

Mas as armas esperavam, enfrentando, de todos os lados, este crescente - em Staines, Hounslow, Ditton, Esher, Ockham, atrás das colinas e dos bosques a sul do rio, através dos prados relvados a norte dele, onde quer que um grupo de árvores ou as casas de uma vila permitissem uma cobertura suficiente. Os foguetes de sinal explodiam, derramavam na noite as suas faíscas, desvaneciam-se, e o espírito de todas aquelas baterias emboscadas sofria uma tensa expectativa. Bastava que os marcianos penetrassem na linha de fogo e, instantaneamente, aquelas formas negras de homens, imóveis, aquelas peças que reluziam tão sombriamente às primeiras horas da noite, explodiriam numa fúria tempestuosa de batalha.

Sem dúvida que o pensamento que predominava num milhar daqueles cérebros vigilantes, assim como no meu, era o enigma - o que é que eles pensavam a nosso respeito. Compreenderiam que os nossos milhões estavam organizados, disciplinados, trabalhando em conjunto? Ou interpretariam os nossos jorros de fogo, a súbita picada das nossas bombas, a nossa firme investida sobre o seu acampamento, como nós interpretaríamos a furiosa unanimidade da arremetida de uma colmeia de abelhas? Suporiam que nos podiam exterminar? (Nessa altura ninguém sabia de que comida precisavam.) Revolvia na minha cabeça uma centena de perguntas semelhantes, ao passo que observava a imensa forma da sentinela. E, no fundo do meu espírito, reinava a sensação da existência de todas as forças desconhecidas e ocultas que se encontravam nas imediações de Londres. Teriam preparado armadilhas? Estariam as fábricas de pólvora de Hounslow devidamente preparadas? Teriam os londrinos o ânimo e a coragem de fazerem da sua imensa área de casas uma grande Moscovo?

Em seguida, passado um momento interminável, ao que nos parecia, agachados e espreitando através da sebe, ouviu-se um ruído semelhante à descarga longínqua de uma peça. Depois, outro mais perto e ainda outro. Então, o marciano ao nosso lado ergueu o seu tubo e descarregou-o, à maneira de uma espingarda, com um forte estampido que fez estremecer o solo. Aquele que se encontrava para os lados de Staines seguiu-lhe o exemplo. Não havia luz, nem fumo, simplesmente aquela pesada detonação.

Estes disparos, de minuto a minuto, excitaram-me de tal modo, um após o outro, que esqueci a minha segurança pessoal e as minhas mãos escaldadas; trepei pela sebe e fitei na direcção de Sunbury. Neste momento, seguiu-se outro estampido e um grande projéctil voou na direcção de Hounslow. Esperava ver, pelo menos, fumo ou fogo, ou qualquer evidência semelhante do seu trabalho. Mas só via o azul-cseuro do céu, com uma estrela solitária, e o nevoeiro branco que se derramava a baixa altura numa grande extensão. E não houvera nenhum estalido, não se ouvira nenhuma explosão em resposta. O silêncio restabelecera-se; o minuto alongou-se em três.

- Que aconteceu? - perguntou o coadjutor, levantando-se, ao meu lado.

- Só Deus sabe! - respondi.

Um morcego esvoaçou perto e desapareceu. Começou a ouvir-se um ruído longínquo de tiros, que em breve se extinguiu. Olhei de novo para o marciano, e vi que estava a mover-se para leste, seguindo a margem do rio, com um movimento rápido e balouçante.

Esperava a todo o momento ouvir os tiros de qualquer bateria oculta; mas a calma da tarde não foi quebrada. A figura do marciano tornou-se mais pequena à medida que ele recuava, e o nevoeiro e a noite cada vez mais cerrados acabaram por tragá-lo. Movidos por um impulso comum subimos um pouco mais. Para os lados de Sunbury, via-se um vulto escuro, como se tivesse repentinamente surgido ali um outeiro cónico, ocultando as regiões mais afastadas; e depois, muito para além do rio, por sobre Walton, vimos outra elevação do mesmo tipo. Estas formas, semelhantes a colinas, perdiam altura e tornavam-se mais largas enquanto as fitávamos.

Movido por um súbito pensamento, olhei para norte e vi que se erguera uma terceira destas pequenas colinas de nuvens negras.

Tudo se tornara de súbito muito tranquilo. Mais longe, para sudeste, rompendo o silêncio, ouvimos os marcianos a gritarem uns aos outros e, em seguida, o ar estremeceu novamente com o estrondo longínquo das suas armas. Mas a artilharia de terra não deu nenhuma resposta.

Nessa altura não compreendíamos estas coisas, mas, mais tarde, conheceria o significado destas ominosas pequenas colinas que se formavam ao crepúsculo. Cada um dos marcianos, dispostos no grande crescente que descrevi, descarregara, por intermédio do tubo semelhante a uma espingarda, uma enorme granada por sobre qualquer colina, mata, grupo de casas, ou outro possível esconderijo de armas que pudesse existir defronte dele. Alguns dispararam unicamente um destes projécteis, outros, dois - como fora o caso daquele que observáramos; afirma-se que o marciano que se encontrava nas imediações de Ripley não descarregou menos de cinco, dessa vez. Estas granadas esmagavam-se ao embaterem no solo - não explodiam - e desenvolviam imediatamente um enorme volume de vapor pesado e escuro que se enovelava e fluía numa nuvem de cúmulos, enormes e da cor do ébano, uma colina gasosa que tudo submergia e se derramava lentamente por sobre a região em redor. O contacto deste vapor, a inalação deste acre fogo-fátuo, significava a morte para todo aquele que o respirasse.

Este vapor era pesado, mais pesado do que o mais denso fumo; assim, depois dos primeiros jactos e fluxos tumultuosos do seu impacto, baixava e fluía sobre o solo mais como um líquido do que como um gás, abandonava as colinas, e escorria nos vales, nas valas e nas correntes de água tal como acontece, segundo ouvi dizer, com o ácido carbónico gasoso exalado pelas fendas vulcânicas. E quando tocava na água, ocorria uma determinada acção química, e a superfície cobria-se instantaneamente de uma escuma pulverosa que se submergia lentamente e abria caminho a mais. A escuma era absolutamente insolúvel e é estranho, considerando o rápido efeito do gás, que se pudesse beber, sem causar dano, a água no qual se filtrava. O vapor não se difundia como aconteceria com um gás verdadeiro. Aglomerava-se, suspenso, escorrendo lentamente pelos declives e movia-se relutantemente quando o vento o impelia. Misturava-se pouco a pouco com o nevoeiro e a humidade do ar, e descia sobre a terra em forma de poeira. Ignoramos ainda por completo a natureza desta substância; a única coisa que conhecemos é a existência de um elemento desconhecido, com um grupo de quatro linhas no fundo azul do espectro.

Depois de tumultuosa ascensão, se já cessara a sua dispersão, o fumo negro aderia tão estreitamente ao solo, mesmo antes de se precipitar, que a dezasseis metros de altura, nos telhados, e nos andares superiores das casas altas, em cima de grandes árvores, havia uma possibilidade de escapar totalmente ao seu veneno; nessa mesma noite verificou-se este facto, em Street Cobham e Ditton.

O homem que escapou, no primeiro local mencionado, conta uma história maravilhosa acerca da estranheza desta corrente remoinhante, e de como olhara para baixo do pináculo da igreja e vira as casas da vila sobressaindo como fantasmas do seu vazio de tinta. Ficou ali durante um dia e meio, cansado, faminto e queimado pelo sol; debaixo do céu azul, com a perspectiva, ao fundo, das distantes colinas, a terra era uma extensão de negro de veludo, onde assomavam telhados vermelhos e árvores verdes, e onde, mais tarde, se erguiam aqui e ali, velados de negro, arbustos e portões, celeiros, telheiros e velhos muros.

Mas isto passou-se em Street Cobham, onde o fumo flutuou até descer, automaticamente, ao chão. Em geral, os marcianos, depois de ele ter servido os seus propósitos, limpavam novamente o ar, varrendo o fumo por intermédio de um jacto de vapor.

Fizeram isto com as aglomerações de vapor perto de nós; vimo-lo, à luz das estrelas, da janela de uma casa abandonada de Upper Halliford, onde havíamos regressado. Dali, podíamos ver os holofotes sobre Richmond Hill e Kingston Hill, varrendo a noite, de um lado para o outro e, pelas onze horas, as janelas tilintaram, e ouvimos o ruído da descarga das pesadas armas de cerco que tinham sido colocadas nesse local. Os disparos continuaram intermitentemente no espaço de um quarto de hora, disparando projécteis ao acaso sobre os marcianos invisíveis que se encontravam em Hampton e Ditton; em seguida, os débeis feixes de luz eléctrica extinguiram-se e foram substituídos por um brilhante clarão vermelho.

Depois, caiu o quarto cilindro - um meteorito de um verde brilhante - em Bushey Park, como soube mais tarde. Antes de começar a ouvir-se a descarga das armas nas linhas das colinas de Richmond e Kinsgston, ouviu-se um canhoneio intermitente, ao longe, a sudoeste, que se devia, penso, aos disparos ao acaso das peças antes de o vapor negro sufocar os atiradores.

Então, metendo mãos à obra tão metodicamente quanto os homens enchem de fumo um ninho de vespas, os marcianos derramaram aquele vapor sufocante por sobre os arrabaldes de Londres. As extremidades do crescente separaram-se lentamente, até formarem, por fim, uma linha desde Hanwell a Coombe e Malden. Durante toda a noite, os seus tubos destrutivos avançaram. Nunca mais, desde a queda do marciano em St. George’s Hill, deram à artilharia a sombra de uma possibilidade contra eles. Onde quer que se pudessem ocultar armas, descarregavam uma granada de vapor, e onde as peças estavam a descoberto, utilizavam o Raio da Morte.

Perto da meia-noite, as árvores em chamas ao longo dos declives de Richmond Park e o clarão que se elevava de Kingston Hill, projectavam a sua luz sobre uma cortina de fumo negro, que manchava todo o vale do Tamisa e se estendia até perder de vista. E dois marcianos patinhavam no rio, lentamente, projectando numa ou noutra direcção os seus jactos de vapor sibilante.

Nessa noite, economizaram o Raio da Morte, ou porque tivessem uma quantidade limitada de material para a sua produção, ou porque não quisessem destruir a região, mas apenas esmagar e intimidar os seus adversários. Na realidade, o seu segundo objectivo obteve pleno êxito. A noite de domingo foi o fim da oposição organizada aos seus movimentos. Depois disso, nenhum grupo de homens se ergueu contra eles, tão desesperada era a empresa. Mesmo as tripulações dos torpedeiros e dos destroyers, que apontavam as suas bocas de fogo rápido sobre o Tamisa, recusaram-se a ficar, amotinaram-se e desceram novamente o rio. A única operação ofensiva que os homens ousaram empreender, depois dessa noite, foi a preparação de minas e armadilhas, e mesmo neste trabalho os seus esforços eram frenéticos e espasmódicos.

É preciso que se imagine, tanto quanto se puder, o destino daquelas baterias nas imediações de Esher, numa espera carregada de tensão, ao crepúsculo. Não houve nenhuns sobreviventes. Podemos imaginar a sua expectativa ordenada, os oficiais atentos e vigilantes, os artilheiros prontos, as munições empilhadas, ao alcance da mão, as carretas das peças com os seus cavalos e carros, os grupos de espectadores civis tão perto quanto lhes permitiam, a calma da tarde, as ambulâncias e as tendas do hospital, com os indivíduos queimados e feridos, vindos de Weybridge; em seguida, a ressonância triste das descargas dos marcianos, e os projécteis que rodopiavam sobre as árvores e as casas e se esmagavam nos terrenos vizinhos.

Também podemos imaginar o súbito desvio da atenção, os remoinhos e inchaços daquela escuridão a avançar rapidamente, erguendo-se no céu, transformando o crepúsculo numa escuridão palpável - um antagonista vaporoso, estranho e horrível, passeando por cima das suas vítimas; os homens e os cavalos viam-se vagamente, a correr, a gritar estridentemente, a cair; gritos de terror, as armas abandonadas subitamente, os homens caídos no chão, a retorcer-se, e a rápida expansão do cone opaco de fumo. E, depois, noite e aniquilamento - nada mais senão uma massa de vapor silenciosa e impenetrável que ocultava as suas vítimas.

Antes da alvorada, o vapor negro fluiu ao longo das ruas de Richmond, e o aparelho governamental, em desintegração, num último esforço, moribundo, avisava a população de Londres da necessidade de fuga.

 

O êxodo de Londres

Compreende-se assim a tumultuosa vaga de pânico que se expandiu na maior cidade do mundo, precisamente ao alvorecer de segunda-feira - a torrente da fuga que se alargou rapidamente num tumulto fervente em redor das estações de caminho de ferro, que se transformou numa luta horrível nos locais de embarque do Tamisa, fluindo velozmente por todos os canais praticáveis para norte e para leste. Cerca das dez horas, a organização da polícia, tal como aconteceu ao meio-dia com as organizações de caminhos de ferro, perdia coerência, forma e eficácia, perdia coragem, amolecia e fluía finalmente naquela rápida liquefacção do corpo social.

Todos os utentes das vias férreas a norte do Tamisa, e também os do sudoeste, em Cannon Street, tinham sido avisados à meia-noite de domingo; os comboios iam enchendo e, pelas duas horas, as pessoas lutavam ferozmente por um lugar em pé nalguma carruagem. Às três, as pessoas eram pisadas e esmagadas em Bishopsgate Street, a uns duzentos metros ou mais de distância da estação de Liverpool Street; disparavam-se revólveres, as pessoas injuriavam-se, e os polícias que tinham sido enviados para controlar o trânsito, exaustos e enfurecidos, partiam as cabeças das pessoas que deveriam proteger.

À medida que o dia avançava e os maquinistas e os fogueiros se recusavam a regressar a Londres, a pressão da fuga impelia as pessoas numa multidão sempre crescente, que saía das estações e progredia ao longo das estradas para o norte. Perto do meio-dia, foi visto um marciano, em Barnes, e uma nuvem de vapor negro que se afundava lentamente passou por sobre o Tamisa e atravessou as planícies de Lambeth, cortando, no seu vagaroso avanço, todas as possibilidades de fuga pelas pontes. Outra nuvem passou sobre Ealing e cercou uma pequena ilha de sobreviventes em Castle Hill, vivos, mas impossibilitados de fugir.

Depois de uma luta ineficaz para embarcar num comboio para noroeste, em Chalk Farm - as locomotivas dos comboios que tinham sido carregados nos depósitos de mercadorias, aravam através da multidão aos gritos, e uma dúzia de homens destemidos teve de lutar para impedir que o maquinista fosse empurrado para a fornalha -, o meu irmão entrou na estrada de Chalk Farm, furou por entre um formigueiro veloz de veículos, e teve a sorte de ser dos primeiros no saque de uma loja de bicicletas. O pneu dianteiro da máquina que arranjou furou-se quando a arrastou pela janela, mas, não obstante, conseguiu pôr-se em movimento sem mais danos do que um corte no pulso. Não se podia passar pelo sopé escarpado de Havestock Hill devido aos vários cavalos que se encontravam por terra, e o meu irmão tomou a estrada de Belsize.

Conseguiu desta maneira escapar à fúria do pânico e, tomando a estrada de Edgware, alcançou a vila cerca das sete horas, em jejum e cansado, mas muito à frente da multidão. Viam-se pessoas de pé ao longo da estrada, curiosas, surpreendidas. Foi ultrapassado por um certo número de ciclistas, alguns cavaleiros e dois automóveis. O aro da roda partiu-se a dois quilómetros de distância de Edgware, e a máquina ficou inutilizada. Abandonou-a à beira da estrada e encaminhou-se penosamente para a vila. Havia lojas meio abertas na rua principal da localidade, e as pessoas apinhavam-se nos passeios, nos umbrais e nas janelas, fitando com espanto esta procissão extraordinária de fugitivos que começava a chegar. Conseguiu arranjar alguma comida numa estalagem.

Permaneceu durante algum tempo em Edgware, sem saber o que devia fazer em seguida. O número dos fugitivos aumentava. Muitos deles, como o meu irmão, pareciam dispostos a demorarem-se na localidade. Não havia mais notícias acerca dos invasores marcianos.

Nessa altura, a estrada estava apinhada de gente, mas ainda muito longe de congestionada. Muitos dos fugitivos montavam em bicicletas, mas depressa surgiram automóveis, cupés de duas rodas e carruagens; a poeira elevava-se em nuvens pesadas ao longo da estrada para St. Albans.

Provavelmente, foi uma vaga ideia de se dirigir para Chelmsford, onde viviam alguns amigos seus, que induziu o meu irmão, por fim, a seguir por uma tranquila azinhaga que ia para leste. Alcançou uma vedação, ultrapassou-a, e seguiu um atalho para nordeste. Passou perto de vários casais e alguns pequenos lugarejos cujos nomes não conhecia. Viu alguns fugitivos; numa azinhaga relvada que ia para High Barnet, encontrou duas senhoras que se tornaram as suas companheiras de viagem. Chegou precisamente a tempo de salvá-las.

Ouviu os seus gritos e, ao desembocar duma curva, viu dois homens que se esforçavam para arrastá-las para fora de uma pequena carruagem descoberta, enquanto um terceiro, com dificuldade, segurava a cabeça do assustado pónei. Uma das senhoras, uma mulher baixa, vestida de branco, limitava-se a chorar; a outra, uma figura de escuro, magra, açoutava o homem que lhe segurava o braço com um chicote que empunhava na mão livre.

O meu irmão compreendeu imediatamente a situação, gritou, e correu em direcção à cena de luta. Um dos homens desistiu e voltou-se para ele, que, ao compreender pelo rosto do adversário ser inevitável uma luta, e como era um hábil pugilista, foi imediatamente ao seu encontro e atirou-o ao chão de encontro à roda da carruagem.

Não havia tempo para respeitar as regras pugilísticas; assim, imobilizou-o com um pontapé, e agarrou pelo colarinho o homem que puxava o braço da senhora magra. Ouviu o tropel de cascos, o chicote bateu-lhe no rosto, um terceiro antagonista desferiu-lhe uma pancada entre os olhos, e o homem que ele segurava libertou-se e correu pela azinhaga, na mesma direcção de onde viera.

Parcialmente aturdido, o meu irmão deu consigo defronte do homem que tinha segurado a cabeça do cavalo, e verificou que a carruagem se afastava dele, descendo a azinhaga, aos ziguezagues; as duas mulheres olhavam para trás. O homem que se achava defronte dele, um mariola corpulento, tentou aproximar-se, mas deteve-o com um murro no rosto. Em seguida, compreendendo que estava abandonado, esquivou-se-lhe e desceu a azinhaga atrás da carruagem, perseguido de perto pelo homem robusto, e, mais longe, pelo fugitivo que voltara para trás.

Bruscamente, tropeçou e caiu; o seu perseguidor mais próximo apressou-se, e, quando se ergueu, defrontava de novo dois antagonistas. Teria poucas possibilidades contra eles se a senhora magra não tivesse, muito corajosamente, vindo em seu auxílo. Parecia que tinha um revólver escondido debaixo do assento quando ela e a sua companheira foram atacadas. Disparou a seis metros de distância, e por pouco não acertava no meu irmão. O menos corajoso dos ladrões fugiu e o seu companheiro seguiu-o, amaldiçoando a sua cobardia. Detiveram-se ambos no local onde jazia, insensível, o terceiro homem.

- Tome isto! - disse a senhora magra, e deu o revólver ao meu irmão.

- Volte para a carruagem - disse ele, limpando o sangue que lhe escorria do lábio fendido.

Ela voltou-se, sem pronunciar uma palavra - estavam ambos arquejantes - e juntaram-se à senhora de branco, que se esforçava por segurar o assustado pónei.

Era evidente que os ladrões tinham desistido. Quando o meu irmão os fixou, batiam em retirada.

- Se me permitem, sento-me aqui - disse o meu irmão. Sentou-se no assento da frente, desocupado.

A senhora olhou por cima do seu ombro.

- Dê-me as rédeas - disse ela, e bateu com o chicote no flanco do pónei. No momento seguinte, numa curva da estrada, perderam de vista os três homens.

Assim, inesperadamente, o meu irmão achou-se, arquejante, com um golpe na boca e os nós dos dedos cheios de sangue, rodando ao longo de uma azinhaga desconhecida na companhia destas duas mulheres.

Soube que eram a esposa e a irmã mais nova de um cirurgião que vivia em Stanmore, o qual regressara às primeiras horas da manhã, depois de tratar de um caso grave que ocorrera em Pinner. Tinha ouvido falar, no regresso, acerca do avanço dos marcianos. Correra para casa, despertara as mulheres - a criada abandonara-os dois dias antes -, embrulhara algumas provisões, pusera o revólver debaixo do assento - felizmente para o meu irmão - e dissera-lhes que se dirigissem para Edgware, a fim de embarcarem ali num comboio. Ficara para trás para avisar os vizinhos. Encontrar-se-iam, disse ele, cerca das quatro e meia da manhã; já eram quase nove horas, neste momento, e não tinham sabido nada dele. Não puderam ficar em Edgware devido ao trânsito crescente no local, de modo que tinham seguido por esta azinhaga dos subúrbios.

Foi isto o que contaram, em fragmentos, ao meu irmão, quando pararam de novo, nas imediações de New Barnet. Ele prometeu fazer-lhes companhia, pelo menos até que pudessem determinar o que deviam fazer, ou que o homem chegasse, e afirmou-lhes que era um hábil atirador de revólver - arma que desconhecia - a fim de lhes dar confiança.

Fizeram uma espécie de acampamento à beira da azinhaga, e o pónei satisfez-se com uma sebe. Falou-lhes da sua fuga de Londres, e de tudo o que conhecia acerca dos marcianos e do seu comportamento. O Sol subia no céu, e passado algum tempo a conversa morreu e deu lugar a um estado de inquieta expectativa. Passaram pela azinhaga várias pessoas, e o meu irmão extraiu delas as notícias que pôde. Todas as respostas entrecortadas que recebia convenceram-no ainda mais da necessidade imediata de prosseguirem a fuga. Falou-lhes acerca do assunto.

- Nós temos dinheiro - disse a mulher magra, hesitando.

Os seus olhos encontraram os do meu irmão e recobrou a confiança.

- Eu também tenho - respondeu.

Ela disse que levavam trinta libras em ouro, além de uma nota de cinco libras, e sugeriu que poderiam, com esse dinheiro, embarcar num comboio em St. Albans ou New Barnet. O meu irmão pensava que isso era inútil, dada a fúria que os londrinos tinham revelado ao abarrotarem os comboios, e mencionou a sua ideia de seguirem por Essex a caminho de Harwich, e escaparem, assim da região.

Mrs. Elphinstone - era este o nome da senhora de branco - não queria saber de nada e continuava a chamar pelo “George”; mas a cunhada mostrava-se espantosamente calma e decidida, e acabou por concordar com a sugestão. Assim, encaminharam-se para Barnet, a fim de atravessarem a grande estrada do norte; o meu irmão conduzia o pónei, poupando-o o mais possível.

Quando o Sol subiu no céu, o dia tornou-se excessivamente quente; debaixo dos pés, uma areia espessa e esbranquiçada queimava e ofuscava, e eram forçados a caminhar muito lentamente. As sebes estavam cinzentas de poeira. E, à medida que avançavam em direcção a Barnet, crescia um rumor tumultuoso.

Começaram a encontrar mais gente. Na maioria, estas pessoas tinham um olhar vago, murmuravam perguntas indistintas, estavam fatigadas, macilentas e sujas. Um homem, em trajo de noite, passou por eles a pé, de olhos no chão. Ouviram a sua voz e, olhando para trás, viram que ele agarrava o cabelo com uma das mãos e batia, com a outra, em coisas invisíveis. Quando lhe passou o paroxismo de raiva, retomou o seu caminho, sem olhar para trás uma só vez.

Prosseguiram em direcção às encruzilhadas, a sul de Barnet; viram uma mulher que se aproximava da estrada, vinda dos campos à esquerda, com uma criança ao colo e seguida por duas outras crianças; depois, passou um homem de fato preto, sujo, com um cajado numa das mãos e um pequeno sobretudo na outra. Em seguida, descrevendo a curva da azinhaga por entre as vivendas que a bordam no local onde desemboca na estrada principal, aproximou-se uma pequena carroça puxada por um pónei negro, coberto de suor; era conduzida por um jovem pálido, com um chapéu de feltro, cinzento de poeira. Havia três raparigas, operárias das fábricas de East End, e duas pequenas crianças, apinhadas na carroça.

- Por aqui vamos ter a Edgware? - perguntou o condutor, com uma expressão selvagem no olhar e o rosto lívido; quando o meu irmão lhe disse que deveria virar à esquerda, tomou imediatamente o cavalo, sem agradecer.

O meu irmão avistou uma fumaça de cinzento claro, ou neblina, que subia de entre as casas defronte deles e velava as fachadas brancas de um renque de outras habitações do lado de lá da estrada, entre as traseiras das vivendas. Mrs. Elphinstone gritou bruscamente, ao ver um certo número de línguas de chamas vermelhas fumegantes que se desenhavam no céu quente e azul. O ruído tumultuoso desvaneceu-se numa miscelânea desordenada de muitas vozes, no ruído áspero de muitas rodas, no rangido dos carros e no staccato dos cascos. A azinhaga descrevia bruscamente uma curva, a menos de cinquenta metros de distância das encruzilhadas.

- Meu Deus! - gritou Mrs. Elphinstone. - Para que lugar é que nos leva?

O meu irmão deteve os cavalos.

Pela estrada principal, seguia uma corrente tumultuosa de gente, uma torrente de seres humanos que corriam para o norte, empurrando-se uns aos outros. Tudo quanto se encontrava a seis metros do solo aparecia cinzento e vago através de uma grande nuvem de poeira, que o resplendor do sol tornava branca e luminosa. A poeira era perpetuamente renovada pelo tropel de uma densa multidão de cavalos e de homens e de mulheres a pé, e pelas rodas de veículos de todas as espécies.

- Abram caminho! - gritavam vozes. - Abram caminho!

Era como uma cavalgada, entre o fumo de um incêndio, em direcção ao ponto de encontro da azinhaga com a estrada; a multidão rugia como fogo, e a poeira era quente e acre. E, perto da estrada, uma vivenda ardia e enviava para a estrada massas revoltas de fumo negro, o que aumentava a confusão.

Passaram por eles dois homens. Depois, uma mulher suja, que transportava uma pesada trouxa e chorava. Um cão de caça, perdido, com a língua de fora, vagueava, hesitante, assustado, com um ar infeliz, e fugiu quando o meu irmão o ameaçou.

Tanto quanto podiam ver da estrada para os lados de Londres, entre as casas à direita, fluía uma corrente tumultuosa de pessoas sujas e apressadas, encurraladas entre as vivendas de ambos os lados; as cabeças negras, as formas humanas, tornavam-se mais distintas à medida que se aproximavam da curva, rapidamente ultrapassada, e perdiam de novo a sua individualidade na multidão que se afastava e era finalmente tragada por uma nuvem de poeira.

- Andem! Andem! - gritavam as vozes. - Abram caminho! Abram caminho!

As mãos de cada um empurravam as costas do outro. O meu irmão, de pé, na azinhaga, puxava a cabeça do cavalo. Irresistivelmente atraído, desceu lentamente, passo a passo, a azinhaga.

Edgware fora uma cena de confusão, Chalk Farm um tumulto desenfreado, mas isto era a população inteira em movimento. É difícil imaginar aquela multidão. Não tinha uma característica própria. As figuras descreviam a curva e afastavam-se, de costas voltadas para as pessoas que se encontravam na azinhaga. À beira da estrada, caminhavam aqueles que receavam as rodas das viaturas, tropeçando nas valas e chocando uns com os outros.

As carroças e as carruagens rodavam coladas umas às outras, deixando uma pequena margem para os veículos mais rápidos e mais impacientes que avançavam velozmente sempre que havia uma oportunidade de o fazerem, atirando as pessoas de encontro às cercas e aos portões das vivendas.

- Empurrem! - gritava-se. - Empurrem! Eles aproximam-se!

Passou numa carroça um homem cego, com o uniforme do Exército de Salvação, gesticulando, com os dedos torcidos, e apregoando: “Eternidade! Eternidade!” A sua voz era rouca e muito alta e, assim, o meu irmão ouvia-o ainda, muito tempo depois de o ter perdido de vista na poeira. Algumas das pessoas que se apinhavam nas carroças chicoteavam estupidamente os cavalos e discutiam com os outros condutores; algumas estavam sentadas, imóveis, fitando o vazio com uma expressão infeliz; outros mordiam as mãos, cheias de ansiedade, ou jaziam prostradas nos assentos dos veículos. Os freios dos cavalos estavam cobertos de espuma, e os animais tinham os olhos injectados de sangue.

Havia cupés, carruagens, carros de lojistas, galeras em quantidade inumerável; um carro de correio, uma carroça limpa-estradas onde se lia “Concelho de St. Pancras”, uma grande galera de madeira, apinhada de gente. Um carro baixo, de cervejeiro, rodava ruidosamente; as rodas da esquerda estavam salpicadas de sangue fresco.

- Eternidade! Eternidade! - ecoava na estrada.

- Abram caminho! - gritavam as vozes. - Abram caminho!

Caminhavam ao acaso mulheres tristes e pálidas, bem vestidas, com crianças que gritavam e tropeçavam; os vestidos elegantes estavam sujos de poeira, tinham os rostos cansados e enlambuzados de lágrimas. Com muitas delas vinham homens, uns procurando ajudar, outros ameaçadores e selvagens. Ao lado destes, viam-se alguns párias da rua, cansados, vestidos de farrapos negros e desbotados, de olhos dilatados, falando em altas vozes e prontos a dizer obscenidades. Abriam caminho robustos operários; passavam também, debatendo-se espasmodicamente, homens com um ar infeliz e em desalinho, vestidos como empregados ou lojistas; o meu irmão viu um soldado ferido, homens com uniforme de carregadores dos caminhos de ferro, e uma criatura miserável, em camisa de noite, com um casaco atirado sobre as costas.

Mas, embora este mar de gente tivesse uma composição muito variada, havia algumas coisas que tinha em comum. No rosto das pessoas havia medo e dor, e o terror perseguia-as. Um tumulto na estrada, uma luta por um lugar numa viatura, faziam apressar o passo a toda aquela gente. Mesmo um homem tão assustado e cansado que caminhava de joelhos dobrados galvanizou-se durante alguns momentos e desenvolveu uma actividade renovada. O calor e a poeira já tinham atacado a multidão. As peles das pessoas estavam secas, os lábios negros e fendidos. Todas tinham sede, fadiga, e os pés doridos. E, entre os vários gritos que se ouviam, as disputas, as censuras, gemidos de cansaço; as vozes da maioria eram roucas e fracas. Do meio de todos estes ruídos, sobressaía o refrão:

- Abram caminho! Abram caminho! Os marcianos aproximam-se!

Alguns pararam e afastaram-se da corrente. A azinhaga desembocava obliquamente na estrada principal por uma abertura estreita, e tinha a aparência enganadora de vir da direcção de Londres. No entanto, uma espécie de redemoinho de pessoas entrou na sua embocadura; as criaturas fracas eram atiradas pelo fluxo para os lados, e a maioria delas descansava durante alguns momentos antes de mergulhar novamente na torrente. Um pouco abaixo da azinhaga, jazia um homem com uma perna nua, envolvido em farrapos sangrentos; dois amigos curvaram-se sobre ele. Era um homem feliz por ter amigos.

Um velhote, com um bigode de corte militar cinzento e uma imunda sobrecasaca negra, veio, coxeando, sentar-se ao lado do veículo, tirou a bota - tinha a peúga salpicada de sangue -, extraiu um pequeno seixo e continuou o seu caminho, a coxear. Em seguida, uma rapariguinha de oito ou nove anos, sozinha, correu para a sebe ao pé do meu irmão, a chorar.

- Não posso andar mais! Não posso andar mais!

O meu irmão despertou do seu torpor de espanto e levantou-a, falando-lhe com doçura, para entregá-la a Mrs. Elphkistone. Mal o meu irmão lhe tocou calou-se, como que assustada.

 Ellen! - gritou uma mulher na multidão, com lágrimas na voz. - Ellen! - E a criança afastou-se rapidamente do meu irmão, gritando: - Mãe!

- Aproximam-se! - gritou um homem, a cavalo, galopando ao longo da azinhaga.

- Aí, saiam do caminho! - berrou um cocheiro, de pé; e o meu irmão viu uma carruagem fechada que virava para a azinhaga.

As pessoas empurravam-se para evitar o cavalo. O meu irmão fez recuar o pónei e a carruagem para a sebe, e o carro passou por ele indo deter-se na curva do caminho. Era uma carruagem com uma lança para dois cavalos, mas só com um nos tirantes. O meu irmão viu vagamente, através da poeira, dois homens que tiravam do interior do veículo uma coisa numa padiola branca e a colocavam docemente sobre o relvado, por baixo da sebe de arbustos.

Um dos homens aproximou-se, a correr, do meu irmão.

- Onde posso encontrar água? - perguntou. - Ele está a morrer de fome e cheio de sede. É Lord Garrick.

- Lord Garrick! - exclamou o meu irmão. - O presidente do Tribunal?

- A água? - perguntou o homem.

- Deve haver torneiras em algumas das casas - disse o meu irmão. - Nós não temos água. Não me atrevo a abandonar a minha gente.

O homem furou por entre a multidão, em direcção ao portão da casa da esquina.

- Continuem! - gritavam as pessoas, empurrando-o. - Eles aproximam-se! Continuem!

Nesse momento, a atenção do meu irmão foi despertada por um homem barbudo, de rosto de águia, que transportava uma pequena mala de mão; precisamente no momento em que o meu irmão o observava, a mala rebentou e vomitou uma massa de soberanos que pareceu dividir-se em moedas quando embateu no solo. As moedas rolaram de cá para lá, na confusão de pés de homens e de cavalos. O homem parou e fitou com um olhar estúpido o montão, e o varal de um cupé bateu-lhe no ombro e fê-lo cambalear. Soltou um grito estridente e recuou, e a roda de uma carroça passou-lhe rente ao corpo.

- Abram caminho! - gritavam os homens, em seu redor. - Abram caminho!

Mal o cupé passou, arremessou-se sobre o montão de moedas de mãos abertas, e começou a meter mãos-cheias no bolso. No momento seguinte, semi-erguido, foi atirado para debaixo dos cascos de um cavalo.

- Parem! - gritou o meu irmão; empurrou uma mulher que lhe obstruía a passagem e tentou segurar os freios do cavalo.

Antes que pudesse agarrá-lo, ouviu um grito debaixo das rodas, e viu, através da poeira, o aro passando sobre as costas do desgraçado. O condutor da carroça açoutou o meu irmão com o chicote e este correu para trás do veículo. O tumulto de gritos confundia-o. O homem estorcia-se na poeira entre as moedas espalhadas, incapaz de se erguer, pois a roda quebrara-lhe as costas e as pernas jaziam, flácidas e mortas. O meu irmão pôs-se de pé e gritou para o condutor mais próximo; um homem, montado num cavalo preto, veio em seu auxílio.

- Vamos tirá-lo da estrada - disse ele; e, agarrando o colarinho do homem com a mão livre, o meu irmão arrastou-o para a beira da estrada. Mas ele continuava agarrado às moedas, e fitava ferozmente o meu irmão, batendo-lhe no braço com um punhado de ouro.

- Continuem! Continuem! - gritavam vozes iradas, atrás. - Abram caminho! Abram caminho!

Ouviu-se um estrondo quando a lança de uma carruagem se esmagou contra a carroça que o homem montado a cavalo deixara parada. O meu irmão olhou para cima, e o homem ferido torceu o pescoço e mordeu o pulso que lhe segurava o colarinho. Houve um choque, o cavalo preto desviou-se, cambaleante, para a beira da estrada, e o cavalo da carroça desviou-se para o lado. Por um triz, o pé do meu irmão não foi pisado por um casco. Largou o homem caído e saltou para trás. Viu a raiva dar lugar ao terror no rosto do desgraçado, no chão, que em breve foi ocultado. O meu irmão sentiu-se arrastado, empurrado para lá da entrada da azinhaga, e teve de lutar com violência para voltar para trás.

Viu Mrs. Elphinstone a cobrir os olhos, e uma criancinha, com a falta que todas as crianças têm de imaginação compassiva, fitava com os olhos dilatados, na poeira, algo que jazia negro e imóvel, triturado e esmagado pelas rodas dos veículos.

- Vamos voltar para trás! - gritou, e começou a fazer virar o pónei. - Não podemos atravessar este... inferno.

Recuaram cerca de cem metros pelo caminho de onde tinham vindo, até perderem de vista a multidão que se debatia. Quando descreveram a curva da azinhaga, o meu irmão viu o rosto do homem moribundo, na vala, sob o arbusto, mortalmente branco e chupado, reluzindo de suor. As duas mulheres não pronunciaram uma palavra; estavam encolhidas nos assentos, e estremeciam.

Um pouco mais adiante, o meu irmão parou de novo. Mrs. Elphinstone estava branca e pálida, e a sua cunhada chorava; sentia-se tão infeliz que nem chamava “George”. O meu irmão estava horrorizado e perplexo. Quando recuaram, ele compreendeu como era urgente e inevitável atingir a encruzilhada. Voltou-se para Mrs. Elphinstone, subitamente resoluto.

- Temos de seguir por aquele caminho - disse ele, e fez o pónei virar de novo.

Pela segunda vez naquele dia, a jovem provou a sua qualidade. Para forçar o caminho na torrente humana, o meu irmão mergulhou no trânsito e reteve o cavalo de um cupé, enquanto ela dirigia o pónei, montada no pescoço do animal. Uma galera fechada rodou e arrancou uma lasca comprida à carruagem. No momento seguinte, foram alcançados e empurrados pela torrente. O meu irmão, com o rosto e as mãos marcados pelas chicotadas desferidas pelo homem do cupé, trepou para a carruagem e tirou as rédeas à rapariga.

- Aponte o revólver para o homem que vem atrás, se nos empurrar demasiado - gritou ele. - Não! Aponte para o cavalo!

Em seguida começou a procurar uma oportunidade de virar para a direita, para a estrada. Mas, no meio da torrente, pareceu perder vontade própria, tornar-se uma parte daquela turbamulta coberta de poeira. A avalancha empurrou-os ao longo de Chipping Barnet; encontravam-se, aproximadamente, a um quilómetro de distância do centro da cidade, antes que tivessem conseguido atingir o lado oposto do caminho. Havia um ruído e uma confusão indescritíveis; mas, dentro da cidade e para além dela, a estrada bifurca repetidamente, e isto aliviou de certo modo a pressão.

Rodaram para leste através de Hadley e ali, de ambos os lados da estrada e noutro local mais adiante, depararam com uma grande multidão de pessoas que bebia na corrente; algumas delas lutavam para conseguirem chegar à água. E, mais adiante, de uma colina perto de East Barnet, viram dois comboios que rodavam lentamente, um após o outro, sem qualquer sinal ou ordem - comboios apinhados de gente onde mesmo entre os carvões, atrás das locomotivas, se viam homens -, para norte, ao longo da Great Railway. O meu irmão supõe que devem ter sido carregados fora de Londres, pois, nessa altura, o terror furioso das pessoas tornara impossível a utilização dos términos centrais.

Descansaram nas imediações deste local durante o resto da tarde, porque a violência do dia deixara os três extremamente esgotados. Começavam a sofrer as primeiras ameaças de fome; a noite estava fria, e nenhum deles se atreveu a dormir. E, de noite, muitas pessoas passaram pela estrada, perto do local onde descansavam, fugindo dos perigos desconhecidos que as perseguiam, e encaminhando-se na direcção de onde o meu irmão viera.

 

O Thunder Child

Se o único objecto dos marcianos fosse a destruição, poderiam ter aniquilado, na segunda-feira, toda a população de Londres, enquanto esta progredia vagarosamente ao longo dos condados nacionais. A mesma turbamulta frenética fluía não apenas ao longo da estrada de Barnet, mas também ao longo da de Edgware e Waltham Abbey, das estradas de leste para iSouthend e Shoeburyness e para sul do Tamisa, para Deal e Broadstairs. Se, naquela manhã de Junho, alguém tivesse subido num balão, no azul resplandecente, por sobre Londres, todas as estradas para norte e para leste que saíam do labirinto emaranhado das ruas ter-lhe-iam parecido pontilhadas de negro pela torrente dos fugitivos; cada ponto representava um ser humano angustiado pelo terror e deprimido pela fadiga. No último capítulo, demorei-me na transcrição do relato feito pelo meu irmão acerca da sua fuga pela estrada de Chipping Barnet, a fim de que os leitores pudessem compreender o que pareceria, a um dos fugitivos, aquele formigueiro de pontos negros. Jamais, na história do mundo, se movera e sofrera em conjunto uma tal massa de seres humanos. Os exércitos legendários dos Godos e dos Hunos, os maiores exércitos asiáticos, seriam apenas uma gota naquela corrente. E não se tratava de uma marcha disciplinada; era uma debandada gigantesca e terrível - sem ordem e sem destino; seis milhões de pessoas desarmadas e sem provisões, caminhando precipitadamente. Era o princípio da derrota da civilização, do massacre da humanidade.

Precisamente por baixo, o aeronauta veria a imensa e vazia rede das ruas, as casas, igrejas, largos, pracetas, jardins - tudo abandonado -, estendendo-se como um vasto mapa; a sul, teria visto um borrão. Por sobre Ealing, Richmond, Wimbledon, era como se uma caneta monstruosa tivesse entornado (tinta sobre o mapa. Constante e incessantemente, cada um dos salpicos negros avolumava-se e estendia-se, projectando ramificações para um e outro lado, ora amontoando-se perante uma elevação do terreno, ora fluindo rapidamente de uma crista para um vale, precisamente como uma gota de tinta se derramaria sobre mata-borrão.

E, mais além, por sobre as colinas azuis que se erguem a sul do rio, os marcianos reluzentes andavam de um lado para o outro; espalhavam, calma e metodicamente, a sua nuvem venenosa sobre um ou outro tracto da região, desfaziam-na com os jactos de vapor quando ela já tinha servido os seus propósitos, e tomavam posse da região conquistada. Não pareciam pretender o extermínio, mas sim a completa desmoralização e destruição de qualquer oposição. Faziam explodir todos os depósitos de pólvora que encontravam, cortavam todas as linhas do telégrafo, e destruíam, num ou (noutro sítio, os carris da via férrea. Estavam a mutilar a humanidade. Pareciam não ter pressa de estender o campo das suas operações, e não penetraram nesse dia no centro de Londres. É possível que durante a manhã de segunda-feira ainda se encontrasse em Londres, em casa, um número considerável de pessoas. É certo que muitas morreram em casa, sufocadas pelo Fumo Negro.

Até cerca do meio-dia os cais do Tamisa foram teatro de uma cena espantosa. Encontravam-se ali barcos a vapor e embarcações de todas as espécies, cujos donos eram tentados pelas enormes somas de dinheiro oferecidas pelos fugitivos; diz-se que muitos daqueles que nadaram em direcção a essas embarcações foram repelidos com croques e afogaram-se.

Perto da uma hora da tarde o remanescente adelgaçado de uma nuvem de fumo negro apareceu entre os arcos da ponte de Blaekfriars. Nesse momento, os cais tornaram-se numa cena de loucura, luta e colisão e durante algum tempo a multidão de barcos e barcaças comprimiu-se junto ao arco norte da Ponte da Torre de Londres, e os marinheiros e os fragateiros tiveram de lutar ferozmente contra as pessoas que caíam, aos montes, sobre eles, da beira-rio. As pessoas que se encontravam na ponte começavam a descer os pilares.

Quando, mais tarde, apareceu um marciano do lado da Torre do Relógio e desceu o rio, nada senão destroços flutuava sobre Limehouse.

Devo referir-me agora à queda do quinto cilindro. A sexta estrela caiu em Wimbledon. O meu irmão, que se encontrava na companhia das mulheres, dentro da carruagem, num prado, viu o relâmpago verde muito além das colinas. Na terça-feira, o pequeno grupo, ainda na intenção de atravessar o mar, encaminhou-se através do formigueiro em direcção a Colchester. Confirmavam-se as notícias de que os marcianos estavam já de posse de toda a cidade de Londres. Tinham sido vistos em Highgate e noutros locais. Mas o meu irmão só os viu no dia seguinte.

Nesse dia, as multidões dispersas começaram a compreender a necessidade urgente de provisões. Quando a fome se tornou mais premente, os direitos da propriedade deixaram de ser respeitados. Os lavradores não estavam presentes para defenderem de armas na mão os seus currais, celeiros e frutos maduros. Um certo número de pessoas, como o meu irmão, visava o leste, e alguns indivíduos desesperados regressavam a Londres para arranjarem comida; tratava-se, principalmente, de pessoas oriundas dos arrabaldes setentrionais, que apenas conheciam o Fumo Negro através de boatos. Ele ouviu dizer que cerca de metade dos membros do Governo se reunira em Birmingham, e que estavam a ser preparadas enormes quantidades de poderosos explosivos para serem utilizados em minas automáticas ao longo dos condados do centro de Inglaterra.

Também ouviu dizer que a Companhia dos Caminhos de Ferro do Centro preenchera as deserções provocadas pelo pânico do primeiro dia, restabelecera o trânsito e estavam a partir para norte, de St. Albans, comboios destinados a aliviar o congestionamento dos condados nacionais. Em Chipping Ongar, fora afixado um placar, que informava que podiam ser utilizados largos depósitos de farinha nas cidades do Norte; informava igualmente que, dentro de vinte e quatro horas, começaria a ser distribuído pão, nas imediações, às pessoas famintas. Mas esta notícia não o fez abandonar o plano de fuga que arquitectara, e os três caminharam durante todo o dia para leste; não ouviram mais nada acerca da distribuição de pão do que a sua promessa, nem, como é natural, alguém tornou a ouvir falar no caso. A sétima estrela caiu naquela noite, sobre Primrose Hill. Caiu enquanto Mrs. Elphinstone estava de sentinela, pois cumpria este dever, alternadamente, com o meu irmão. Ela viu-a.

Na quarta-feira, os três fugitivos - tinham passado aquela noite numa seara verde de trigo - alcançaram Chelmsford, onde um grupo de habitantes que se intitulava a si próprio o Comité de Salvação Pública se apoderou do pónei como mantimento, sem dar nada em troca senão a promessa de uma parte do animal, que seria entregue no dia seguinte. Nesta localidade, corriam boatos de que os marcianos se encontravam em Epping, e notícias acerca da destruição das fábricas de pólvora de Waltham Abbey, numa vã tentativa de fazer explodir um dos invasores.

As pessoas ocupavam as torres das igrejas, de onde observavam os marcianos. Felizmente para ele, o meu irmão preferiu continuar imediatamente em direcção à costa do que esperar por comida, embora os três estivessem verdadeiramente famintos.

Cerca do meio-dia, passaram por Tillingham; esta localidade parecia inteiramente calma e abandonada, o que era bastante estranho; apenas se viam alguns saqueadores furtivos, em busca de comida. Perto de Tillingham, deparou-se-lhes bruscamente o mar e a mais espantosa multidão de embarcações que é possível imaginar-se.

Desde que se tornou impossível aos marinheiros subirem o Tamisa, contornaram a costa de Essex, para Harwich, Walton e Clacton, e, mais tarde, para Foulness e Shoebury, a fim de evacuarem as pessoas. Estavam ancorados numa vasta curva em forma de foice que desaparecia na neblina, perto de Naze. Próximo da praia, encontrava-se um formigueiro de barcos de pesca - ingleses, escoceses, franceses, holandeses e suecos; lanchas a vapor vindas do Tamisa, iates, barcos a motor eléctrico; e, além destes, havia navios de grande calado, uma multidão de navios carvoeiros, navios mercantes, navios de transporte de gado, barcos de passageiros, petroleiros, vapores de carga, e até velhos transportes brancos, paquetes brancos e cinzentos de Southampton e Hamburgo; e, ao longo da costa azul através da Blackwater, o meu irmão distinguiu, vagamente, um denso formigueiro de barcos cujos proprietários discutiam o preço com as pessoas, na praia, um formigueiro que também se estendia pela Blackwater, quase até Maldon.

A cerca de três quilómetros da costa, via-se um couraçado, muito mergulhado na água; quase parecia ao meu irmão, àquela distância, um navio saturado de água. Era o Thunder Child, navio com esporão. Era o único barco de guerra à vista, mas ao longe, à direita, sobre a superfície polida do mar - pois nesse dia havia calmaria - erguia-se uma serpente de fumo que assinalava a posição dos outros couraçados da Channel Fleet, que, no decurso da conquista marciana, flutuavam numa extensa linha, com as máquinas a trabalhar e prontos para a acção, no estuário do Tamisa; apesar da sua vigilância não tinham sido capazes de evitar o avanço dos marcianos.

Quando Mrs. Elphinstone viu o mar, a despeito das afirmações da sua cunhada, deu largas ao pânico. Nunca saíra de Inglaterra, preferia morrer a viver sem amigos num país estranho, e por aí adiante. A pobre mulher parecia imaginar que havia poucas diferenças entre a França e os marcianos. Mostrara-se cada vez mais histérica, apavorada e deprimida durante os dois dias de jornada. A sua ideia fixa era regressar a Stanmore. As coisas tinham sempre corrido bem e com segurança em Stanmore. Encontrariam George em Stanmore.

Foi com a maior dificuldade que a fizeram descer à praia, onde meu irmão conseguiu atrair a atenção de alguns homens que se encontravam num vapor de rodas provindo do Tamisa. Mandaram um barco a terra e ajustaram o preço de trinta e seis libras pelo transporte dos três. Os homens informaram que o vapor seguia para Ostende.

Perto das duas horas, depois de pagar o preço das passagens, o meu irmão, encontrou-se a salvo a bordo do vapor. Havia lá comida, embora a preços exorbitantes, e os três tomaram uma refeição num dos bancos da proa.

Já se encontravam a bordo uns quarenta passageiros, alguns dos quais tinham gasto o resto do dinheiro para conseguir uma passagem; no entanto, o capitão não deu ordem de partir senão às cinco horas da tarde, recolhendo passageiros até que o convés ficou perigosamente apinhado. Provavelmente, teria ficado mais tempo se não se tivesse começado a ouvir um canhoneio a sul. Como que em resposta, o couraçado disparou uma pequena peça e içou uma fiada de bandeiras. Saiu um jacto de fumo das suas chaminés.

Alguns dos passageiros eram da opinião de que este tiroteio provinha de Shoeburyness, até que se verificou que crescia em volume. Ao mesmo tempo, a sudeste, ao longe, os mastros e as obras mortas dos três couraçados ergueram-se do mar uns após outros, debaixo de nuvens de fumo negro. Mas a atenção do meu irmão tornou rapidamente ao canhoneio longínquo a sul. Julgou ver uma coluna de fumo que se erguia no meio da distante neblina cinzenta.

O pequeno vapor já vogava para leste da grande meia-lua de embarcações, e a costa baixa de Essex cobria-se com um tom azul e enevoava-se, quando apareceu um marciano, pequeno e indistinto à distância, avançando ao longo da costa lodosa, vindo da direcção de Foulness. Ao vê-lo, o capitão, que se encontrava na ponte, amaldiçoou a demora, com uma voz onde transparecia o medo e a raiva, e as pás pareceram contagiadas pelo seu terror. Todas as pessoas a bordo se imobilizaram nas amuradas ou nos assentos, fitando aquela forma longínqua, maior do que as árvores ou as torres das igrejas, que caminhava vagarosamente, numa imitação grotesca dos passos de um homem.

Foi o primeiro marciano que o meu irmão viu e, mais atónito do que aterrorizado, observou este titã que avançava deliberadamente para as embarcações, mergulhando cada vez mais na água à medida que a costa descia. Em seguida, além do Crouch, veio outro, passando por cima de algumas árvores enfezadas, e mais outro, ainda longe, patinhou através de uma brilhante planura de lama que parecia suspensa a meia altura entre o mar e o céu. Avançavam ambos rapidamente em direcção ao mar, como se quisessem interceptar a fuga das numerosas embarcações que estavam a ser ocupadas entre Foulness e Naze. A despeito dos esforços vibrantes das máquinas do pequeno vapor de rodas, e da espuma que as rodas deixavam para trás, o barco afastava-se com uma lentidão medonha daquele avanço ominoso.

Ao lançar um olhar para noroeste, o meu irmão viu que a larga meia-lua de embarcações já se debatia à aproximação do terror; um navio passava por detrás do outro, outro virava o costado, os barcos a vapor silvavam e lançavam grandes rolos de fumo, os veleiros largavam o pano, as lanchas precipitavam-se para cá e para lá. Este espectáculo, e o perigo que se aproximava da esquerda, fascinavam-no de tal modo que não via mais nada. E, então, um rápido movimento do barco (virara bruscamente para evitar ser metido a pique) arrancou-o do assento onde estivera sentado. Ouviu gritos em seu redor, um tropel de passos, e uma exclamação que pareceu ser debilmente secundada. O barco guinou e fê-lo rolar.

Pôs-se de pé e olhou para estibordo: a menos de cem metros de distância do vapor, inclinado e balouçante, viu um enorme vulto de ferro, como a lâmina de um arado, que dilacerava a água, agitando-a de um lado para o outro em ondas imensas de espuma que lambiam o vapor, deixavam as pás fora da água e engoliam o barco até quase à sua amurada.

Um banho de espuma cegou o meu irmão durante alguns momentos. Quando pôde abrir os olhos, viu que o monstro passara e investia para a margem. Sobressaíam da sua estrutura enormes engrenagens de ferro, e as chaminés (projectavam uma rajada de fogo e de fumo. Era o navio torpedeiro, o Thunder Child, que vogava em socorro das embarcações ameaçadas.

Oscilando no oonvés, agarrado à amurada para não cair, o meu irmão fitou os marcianos depois da passagem do monstro. Os três estavam juntos novamente, tão dentro do mar que os seus suportes trípodes mergulhavam quase inteiramente. Assim submersos, e vistos de longe, pareciam muito menos formidáveis do que a imensa forma de ferro na esteira da qual o vapor balouçava. Parecia que fitavam este novo adversário com espanto. É possível que considerassem este gigante como um deles. O Thunder Child não disparou nenhum tiro; limitou-se a vogar a toda a velocidade ao encontro deles. Foi provavelmente o facto de não ter disparado que lhe permitiu aproximar-se tanto do inimigo. Eles não sabiam o que fazer dele. Uma bomba, e teriam disparado imediatamente o Raio da Morte.

Navegava a tal velocidade que, num minuto, pareceu encontrar-se a meio caminho entre o barco a vapor e os marcianos - uma forma negra cujo tamanho diminuía contra a extensão horizontal da costa de Essex.

De súbito, o marciano mais próximo desceu o seu tubo e descarregou contra o couraçado uma granada de gás negro. Atingiu o navio a bombordo e explodiu, num jacto de tinta que desceu para o mar, uma torrente cada vez maior de fumo negro, da qual o couraçado se desembaraçou. Para os espectadores que se achavam no vapor, a pouca altura e com o sol a bater-lhes nos olhos, parecia que o navio já se encontrava entre os marcianos.

Viram as suas figuras a separar-se e a erguer-se da água à medida que recuavam para a margem, e um deles ergueu o gerador do Raio da Morte. Apontou-o obliquamente para baixo, e uma nuvem de vapor ergueu-se da água ao seu contacto. Deve ter deslizado pelo costado de ferro do navio, como uma vara de ferro incandescente sobre papel.

Através do vapor que subia, ergueu-se uma chama bruxuleante e, em seguida, o marciano cambaleou. No momento seguinte foi derrubado, e levantou-se no ar um grande volume de água e de vapor. As peças do Thunder Child disparavam através do vapor, uma após outra, e um dos projécteis esparrinhou a água perto do vapor, ricocheteou em direcção aos outros navios, a norte, e fez uma sumaca em estilhaços.

Mas ninguém prestou grande atenção a este acontecimento. Ao ver a queda do marciano, o capitão, na ponte, gritou inarticuladamente, e todos os passageiros que se apinhavam na popa do vapor gritaram igualmente. E, depois, tornaram a gritar, pois, emergindo do redemoinho branco, ergueu-se algo comprido e negro, do meio do qual jorravam chamas e de cujos ventiladores esguichava fogo.

O navio ainda vivia; os comandos, ao que parecia, estavam intactos, e as máquinas trabalhavam. Investiu contra o segundo marciano, e encontrava-se a uma distância de cem metros quando o Raio da Morte entrou em acção. Então, com um estrondo violento e um relâmpago ofuscante, as cobertas e as chaminés saltaram. O marciano cambaleou com a violência da explosão e, no momento seguinte, os destroços em chamas, vogando ainda a direito com o ímpeto da velocidade, embateram no marciano e amarrotaram-no como uma espécie de cartolina. O meu irmão gritou involuntariamente. Um tumulto efervescente de vapor ocultou tudo novamente.

- Dois! - gritou o capitão.

Todas as pessoas gritaram. O vapor, da proa à popa, ressoava de aclamações frenéticas que foram secundadas primeiro por uma, depois por todas naquele formigueiro de embarcações que vogavam para o alto mar.

O vapor pairou durante muitos minutos sobre a água, ocultando o terceiro marciano e toda a costa. E, entretanto, o navio de rodas vogava rapidamente, afastando-se do teatro da batalha; e quando, por fim, a confusão se desvaneceu, interpôs-se a nuvem de vapor negro e não se pôde distinguir nada do Thunder Child, nem do terceiro marciano. Mas os couraçados achavam-se agora muito perto e vogavam a caminho da praia.

A pequena embarcação continuou o seu caminho para o mar, e os couraçados afastavam-se em direcção à costa, ainda oculta por uma nuvem marmórea de vapor, em parte vapor de água, em parte gás negro, redemoinhando e combinando-se da maneira mais estranha. A frota de refugiados dispersava-se para nordeste; várias sumacas navegavam entre os couraçados e os barcos a vapor. Passados alguns momentos, e antes de alcançarem o grupo de nuvens, os navios de guerra voltaram para norte e depois, bruscamente, acercaram-se e ultrapassaram a espessa cerração a sul. A costa desvanecia-se e perdeu-se finalmente de vista no meio das nuvens que se reuniam em redor do Sol no ocaso.

Então, subitamente, na dourada neblina do pôr-do-sol, ouviu-se a vibração das peças e viu-se uma forma de sombras negras em movimento. Todas as pessoas se precipitaram para a amurada do vapor e perscrutaram a fornalha ofuscante a ocidente, mas não se distinguia nada com clareza. Uma massa de fumo elevou-se obliquamente e ocultou o Sol. O barco a vapor vibrava numa atmosfera de intensa expectativa.

O Sol afundou-se entre nuvens cinzentas, o céu enrubesceu, escureceu e as estrelas da noite começaram a tremeluzir. O crepúsculo já ia muito adiantado quando o capitão soltou um grito e apontou para longe. O meu irmão forçou a vista. Algo se erguia no céu, destacando-se do cinzento - erguia-se oblíqua e muito rapidamente na claridade por sobre as nuvens, a ocidente; alguma coisa lisa e larga, muito larga, que descreveu uma grande curva, perdeu tamanho, afundou-se lentamente, e desapareceu de novo no mistério cinzento da noite. E quando desapareceu, derramou a escuridão sobre a terra.

 

A Terra dominada pelos marcianos

Espezinhados

No primeiro livro desviei-me de tal modo das minhas aventuras para narrar o que aconteceu ao meu irmão que, nos dois últimos capítulos, eu e o coadjutor ficámos esquecidos na casa abandonada de Halliford para onde fugíramos a fim de escaparmos ao fumo negro. Vou resumi-las. Permanecemos toda a noite de domingo e todo o dia seguinte - o dia do pânico - numa pequena ilha isolada do resto do mundo pelo fumo negro. Quedámo-nos na expectativa, sofrendo por não podermos fazer nada durante aqueles dois fastidiosos dias.

Estava preocupado com a minha mulher. Imaginava-a em Leatherhead, aterrorizada, em perigo, chorando-me já como se eu fosse um homem morto. Passeava-me pelas salas e gritava, pensando no nosso afastamento, em tudo aquilo que poderia acontecer na minha ausência. Sabia que o meu primo era suficientemente corajoso para enfrentar qualquer emergência; porém, ele não era a espécie de homem que apreende rapidamente o perigo, que age com prontidão. Não se precisava agora de bravura, mas de circunspecção. Alimentava uma única esperança: a de que os marcianos ainda a não tivessem encontrado. Tais dúvidas faziam-me sofrer. Os constantes juízos do coadjutor aborreciam-me cada vez mais; o seu desespero já me enfastiava. Depois de o ter censurado em vão, afastei-me dele, e fui para uma sala - que servia, sem dúvida, de escola, pois continha globos, bancos e cadernos de exercícios. Como ele fosse atrás de mim, refugiei-me num sótão. Queria estar só com a minha dor; fechei a porta à chave.

Estivemos totalmente cercados pelo fumo negro durante todo esse dia e a manhã do seguinte. No domingo à noite avistámos sinais de gente na casa vizinha - um rosto que assomou a uma janela, movimentos de luzes e, por fim, o bater de uma porta. Mas não sei de quem se tratava nem do que lhes aconteceu. Não vimos sinais deles no dia seguinte. Durante toda a manhã de segunda-feira, o vento impeliu o fumo negro em direcção ao rio. Crepitava cada vez mais perto de nós e, finalmente, dirigiu-se ao longo da estrada de acesso à casa que nos servia de refúgio.

Cerca do meio-dia, um marciano atravessou os campos, destruindo tudo à sua passagem com um jacto de vapor sobreaquecido, o qual se elevou contra as paredes, despedaçou todas as janelas em que tocou e queimou a mão do coadjutor quando este fugia da sala da frente. Finalmente, atrevemo-nos a espreitar de novo para fora, e pareceu-nos que a região a norte tinha sido assolada por uma tempestade de neve negra. Quando olhámos na direcção do rio, ficámos atónitos ao vermos o vermelho que se misturava com o negro das veigas crestadas.

Durante alguns momentos, não nos apercebemos de quanto isto afectava a nossa posição. Sentíamo-nos apenas vagamente libertados do fumo negro. Porém, mais tarde, notei que já não estávamos cercados e que podíamos sair. Mal compreendi que o caminho de fuga estava livre pensei em agir. No entanto, o coadjutor encontrava-se num estado letárgico, como que inconsciente.

- Aqui estamos seguros - repetia. - Aqui estamos seguros.

Resolvi-me a abandoná-lo - oxalá o tivesse feito!

Mais prudente agora, graças à lição que recebera do artilheiro, procurei mantimentos por todo o lado. Encontrei óleo e trapos com que cobrir as queimaduras e peguei também num chapéu e numa camisa de flanela que encontrara num dos quartos.

No entanto, quando ele se convenceu de que eu queria sair sozinho, embora antes se mostrasse conformado, resolveu de súbito acompanhar-me.

E, na quietude da tarde, seguimos pela estrada enegrecida que conduzia a Sunbury.

Em Sunbury, e espaçados ao longo da estrada, jaziam alguns cadáveres contorcidos de cavalos e de homens, carroças viradas, bagagens, tudo coberto por uma espessa poeira negra. Aquela mortalha de cinza recordou-me o que lera acerca da destruição de Pompeia. Chegámos sem incidentes a Hampton Court, com o cérebro povoado por imagens estranhas e, aí, esforçámo-nos por descobrir um tracto verde que tivesse escapado ao turbilhão sufocante. Atravessámos o Bushly Park onde os veados corriam de um lado para o outro, sob os castanheiros, e vimos alguns homens e mulheres, ao longe, correndo na direcção de Hampton. Dirigimo-nos em seguida para Twickenham. Aquelas foram as primeiras pessoas que avistámos.

Ao longo da estrada, os bosques fronteiros a Ham e Petersham ainda estavam em chamas. Twickenham não fora atacada nem pelo Raio da Morte nem pelo Fumo Negro, e via-se mais gente nesta região, que, todavia, não pôde dar-nos informações. A maioria dessas pessoas encontravam-se numa situação idêntica à nossa, aproveitando a trégua para mudar de abrigo. Tenho a impressão de que muitas das casas ainda estavam ocupadas por habitantes demasiado assustados para fugir. Também aqui eram evidentes os sinais de um tropel precipitado ao longo da estrada. Recordo mais claramente um amontoado constituído por três bicicletas despedaçadas, esmagadas pelas rodas de carroças. Cerca das oito e meia, alcançámos a ponte de Richmond. Como é natural, atravessámo-la rapidamente, pois encontrava-se a descoberto, mas consegui divisar um certo número de vultos vermelhos, com alguns metros de largura, vogando. Não sabia do que se tratava - não havia tempo para um exame minucioso - e fiquei-me por uma interpretação mais horrível do que aquela que mereciam. Também aqui, do lado de Surrey, se via poeira negra que outrora havia sido fumo, e cadáveres - um monte junto à entrada da estação -, mas só vislumbrámos os marcianos quando nos encaminhámos na direcção de Barnes. Avistámos, ao longe, um grupo de três pessoas que desciam a correr por uma rua marginal em direcção ao rio, que nos parecia deserto. No cimo da colina, a cidade de Richmond ardia com rapidez; nas imediações desta cidade não havia vestígios do Fumo Negro.

Então, de súbito, perto de Kew, aproximou-se, a correr, um certo número de pessoas e o topo de uma máquina de combate marciana assomou por cima das casas, a menos de uma centena de metros de distância. Ficámos aterrorizados ao vermos o perigo que corríamos. Se o marciano tivesse olhado para baixo, pereceríamos imediatamente. Estávamos tão assustados que não nos atrevemos a prosseguir. Voltámos para trás e escondemo-nos debaixo do alpendre de um jardim. O coadjutor agachou-se, chorando silenciosamente, e recusou tornar a mover-se.

Mas a minha ideia fixa de alcançar Leatherhead não me deixou em sossego e, quando o crepúsculo desceu, aventurei-me novamente. Atravessei um grupo de arbustos e uma álea, ao lado da casa grande, que se mantinha firme, e desemboquei em seguida na estrada para Kew. Abandonara o padre no alpendre, mas ele veio a correr atrás de mim.

O segundo passo a dar era a coisa mais temerária que jamais fizera, pois sem dúvida os marcianos encontravam-se perto de nós. Mal o padre me alcançou, avistámos a máquina de combate que víramos antes, ou uma outra, ao longe, atravessando os prados na direcção de Kew Lodge. Quatro ou cinco pequenas figuras escuras atropelavam-se diante dela, por sobre o verde-acinzentado do campo, manifestamente perseguidas por este marciano. Não usou o Raio da Morte para destruí-las: limitou-se a agarrá-las uma a uma. Aparentemente, arremessava-as para o interior do grande carregador metálico que sobressaía por detrás da máquina, tal como a cesta que um trabalhador carrega às costas.

Compreendi pela primeira vez que o propósito dos marcianos não deveria ser, simplesmente, a destruição dos humanos derrotados. Ficámos petrificados durante alguns momentos, depois voltámo-nos e fugimos por um portão, que se encontrava atrás de nós, para um jardim murado; deixámo-nos cair num fosso que surgiu oportunamente e ali ficámos até surgirem as estrelas. Entretanto, mal nos atrevemos a cochichar.

Suponho que deveriam ser umas onze horas quando ganhámos coragem para continuar. Desta vez, não nos atrevemos a seguir pela estrada. Rastejámos, antes, ao longo das sebes e através das plantações perscrutando penetrantemente a escuridão. Ele seguia à direita e eu à esquerda, procurando vislumbrar os marcianos que pareciam encontrar-se muito perto de nós. Casualmente, deparou-se-nos uma área crestada e enegrecida, agora arrefecida e coberta de cinzas, e um certo número de cadáveres de homens, espalhados, com a cabeça e o tronco horrivelmente queimados, mas com as pernas e o calçado na maioria intactos, e mais adiante, a alguns metros de distância de quatro espingardas rachadas e de algumas carretas de peças feitas em pedaços, cadáveres de cavalos.

Sheen, ao que parecia, escapara à destruição, mas a região estava despovoada e mergulhada no silêncio. Não encontrámos aqui nenhum cadáver; no entanto, a noite estava demasiado escura para que pudéssemos proceder a buscas nas estradas que marginavam a zona. Em Sheen, o meu companheiro queixou-se, de súbito, de fome e de sede, e decidimos explorar uma das casas.

A primeira casa onde entrámos, com certa dificuldade, pela janela, era uma pequena vivenda isolada, e não encontrei nada que comer, salvo alguns queijos cheios de bolor. No entanto, havia água, e apoderei-me de uma machadinha que poderia ser útil para arrombar a casa seguinte.

Encaminhámo-nos, em seguida, para o local onde a estrada descreve uma curva, na direcção de Mortlake. Vimos, aí, uma casa, no interior de um jardim murado. Na despensa, achámos uma certa quantidade de provisões -dois pães inteiros dentro de uma panela, um bife cru, e metade de um presunto. Faço um inventário preciso, pois, como na realidade aconteceu, deveríamos subsistir com esta comida durante uma quinzena. Debaixo de uma prateleira havia garrafas de cerveja, dois sacos de feijão e algumas alfaces frescas. A despensa dava para uma espécie de cozinha, com alguma lenha. Num guarda-louça, descobrimos uma boa porção de garrafas de Borgonha, sopa e salmão enlatados e duas caixas de biscoitos.

Sentámo-nos, às escuras, na cozinha adjacente - não nos atrevemos a acender a luz-, comemos o pão e o presunto, e bebemos cerveja pela mesma garrafa. O coadjutor, embora ainda amedrontado e inquieto, mostrava-se agora singularmente activo e eu incitava-o a comer, para que conservasse as forças, quando aconteceu aquilo que significava uma ameaça de encarceramento.

- Ainda não pode ser meia-noite - disse eu.

Nesse momento viu-se um clarão ofuscante de luz verde. Todas as coisas que se encontravam na cozinha pareceram claramente visíveis no verde e na escuridão, e sumiram-se de novo. Em seguida, ouvimos um estrondo, como eu jamais ouvira ou ouviria. Um momento depois, ouvi um baque atrás de mim, um ruído produzido pelo estilhaçar de vidros, um estampido e o estrondo provocado pelo desmoronamento da alvenaria, à nossa volta. A cal do tecto caiu em cima de nós, desfazendo-se numa miríade de fragmentos por sobre as nossas cabeças. Bati com a cabeça no fogão e fiquei aturdido. Contou-me o cura que estive inconsciente durante muito tempo. Quando voltei a mim, estava de novo escuro, e ele, com o rosto molhado - descobri mais tarde que escorria sangue de um golpe na testa -, borrifava-me com água.

Durante alguns momentos, não fui capaz de recordar o que tinha acontecido. Depois, gradualmente, tudo se tornou nítido. Uma contusão na testa afirmava-o por si.

- Sente-se melhor? - perguntou o coadjutor, num sussurro.

Respondi-lhe, por fim. Soergui-me.

- Não se mexa - disse ele. - O chão está coberto de cacos de louça que caiu do armário. Não poderia mover-se sem fazer ruído, e eu creio que eles estão lá fora.

Ficámos tão silenciosos que mal ouvíamos a respiração um do outro. Tudo parecia mortalmente imóvel, salvo, em dado momento, qualquer coisa, um pedaço de estuque ou tijolo, que resvalou junto de nós com um som atroador. No exterior, muito perto, ouvia-se um ruído metálico intermitente.

- Aquilo! - exclamou o cura quando o ouvimos outra vez.

- Sim - disse eu. - Mas o que é?

- Um marciano - respondeu ele.

Prestei de novo atenção.

- Não me pareceu o ruído provocado pelo Raio da Morte - afirmei, e durante alguns momentos julguei que uma das grandes máquinas de combate tinha embatido na casa, como quando assistira ao choque de uma delas com a igreja de Shepperton.

A nossa situação era tão estranha e incompreensível que mal nos mexemos durante três ou quatro horas, até nascer o dia. E depois a luz infiltrou-se não pela janela, ainda sombria, mas através de uma abertura triangular entre uma trave e um montão de tijolos partidos, na parede atrás de nós. Pela primeira vez, víamos o interior da cozinha mergulhado numa espécie de penumbra.

A janela despedaçara-se sob a pressão de uma massa de terra do jardim, que resvalara para cima da mesa à qual estivéramos sentados e jazia debaixo dos nossos pés. No exterior, a terra acumulara-se contra as paredes da casa. No cimo do caixilho da janela, via-se um tubo de algeroz, arrancado. No chão, achavam-se espalhados pedaços de ferragens; o fundo da cozinha aluíra, e logo que surgiu a luz do dia tornou-se evidente que a maior parte da casa desabara. Contrastando vivamente com este espectáculo de ruína, via-se o elegante armário, colorido, à moda, verde-claro, com um certo número de recipientes de cobre e de lata em baixo, o papel da parede a imitar azulejos azuis e brancos, e papéis coloridos colados na parede por cima do fogão da cozinha.

Quando o dia aclarou mais avistámos, através da brecha na parede, o corpo de um marciano que fazia sentinela, creio, defronte do cilindro ainda incandescente. À vista disto, rastejámos tão cautelosamente quanto possível da penumbra da cozinha para a escuridão da copa.

Bruscamente, a interpretação exacta do que se passava surgiu no meu cérebro.

- O quinto cilindro - sussurrei -, o quinto tiro disparado de Marte atingiu esta casa e soterrou-nos sob as ruínas!

Depois de alguns momentos de silêncio, o coadjutor murmurou:

- Deus tenha piedade de nós!

Recomeçara a lastimar-se.

Salvo os seus murmúrios, guardámos um silêncio absoluto, mergulhados na escuridão; pelo meu lado, mal me atrevia a respirar e mantinha os olhos fixos na luz fraca que se infiltrava pela porta da cozinha. Só podia ver o rosto do padre, uma forma escura, oval, o colarinho e os punhos da camisa. No exterior, o martelar metálico recomeçou, seguido de um tumulto violento e, após uma pausa, um silvo semelhante ao de uma máquina. Estes ruídos, na sua maioria de explicação problemática, continuaram espaçadamente e, quando muito, pareciam crescer à medida que o tempo passava. Neste momento, começava, para prosseguir, um ruído cadenciado de pancadas e uma vibração que faziam estremecer todas as coisas que nos cercavam e retinir e deslocar os recipientes que se encontravam na despensa. A luz eclipsou-se e o sombrio vão da porta escureceu totalmente. Devemos ter permanecido ali durante muitas horas, agachados, silenciosos e trémulos, até não conseguirmos mais resistir ao sono...

Acordei finalmente, cheio de fome. Creio que a maior parte do dia se deve ter escoado antes de acordarmos. A minha fome tornou-se de um momento para o outro tão insistente que me forçou a agir. Disse ao cura que ia procurar comida e, tacteando, encaminhei-me para a despensa. Ele não me respondeu, mas quando comecei a comer, o débil ruído que produzia incitou-o a erguer-se, e ouvi-o rastejar atrás de mim.

 

O que vimos da casa arruinada

Depois de comermos regressámos à copa, e devo ter dormitado novamente, pois quando olhei em volta achava-me sozinho. O ruído da vibração continuava com uma persistência monótona. Chamei o cura várias vezes, em voz baixa, e fui, tacteando, até à porta da cozinha. Ainda era dia, e avistei-o encostado à fenda triangular, pela qual se viam os marcianos. Tinha os ombros de tal modo curvados que a cabeça estava encoberta.

Ouvia um certo número de ruídos semelhantes aos produzidos numa casa de máquinas, e o terreno oscilava com a trepidação. Através da abertura da parede, divisava-se a copa de três árvores banhadas de ouro e do azul quente de um céu calmo ao entardecer. Observei o padre durante cerca de um minuto e em seguida aproximei-me, agachando-me e caminhando com um cuidado extremo sobre a louça partida que juncava o chão.

Toquei na perna do cura e ele estremeceu com tanta violência que uma porção de estuque deslizou e caiu com estrondo. Segurei-lhe o braço, receoso de que gritasse, e ficámos imóveis durante um longo momento. Em seguida, voltei-me para ver o que restava do nosso baluarte. O desprendimento do estuque tinha deixado uma fenda vertical nos escombros, e quando me ergui cuidadosamente sobre uma viga, vi, através desta brecha, aquilo que fora na tarde anterior uma  tranquila estrada suburbana. Na realidade, era muito grande a transformação que sofrera.

O quinto cilindro devia ter caído mesmo no meio da casa onde entráramos em primeiro lugar. O edifício sumira-se, completamente destroçado, pulverizado e disperso pelo choque. O cilindro achava-se agora nos alicerces originais - enterrado num imenso buraco, mais largo do que o fosso que vira em Woking. Todo o terreno em volta tinha esparrinhado sob o tremendo impacte - esparrinhado era a palavra exacta - e acumulara-se em montões que escondiam os vultos das casas vizinhas. Parecia um tracto de lama a que se tivesse aplicado uma violenta martelada. A casa onde nos encontrávamos tinha aluído sobre as traseiras; a fachada da frente, mesmo no rés-do-chão, fora completamente destruída; por felicidade, a cozinha e a copa tinham escapado e achavam-se agora soterradas debaixo do solo e das ruínas, cercadas por todos os lados, salvo do lado do cilindro, por toneladas de terra.

Além disso, encontrávamo-nos agora suspensos à beira do fosso circular que os marcianos abriam. Era evidente que o ruído de pancadas fortes provinha de trás de nós, e um vapor de um verde brilhante subia continuamente, como um véu, através da fresta.

O cilindro já estava aberto no centro do fosso e, na margem mais distante deste, no meio dos arbustos despedaçados e cobertos de areia, encontrava-se, firme, alta, recortando-se no céu, uma das grandes máquinas de combate, abandonada pelo seu ocupante. De início, mal distingui o fosso e o cilindro, embora seja conveniente descrevê-los em primeiro lugar, por causa dos extraordinários engenhos reluzentes que trabalhavam na escavação e das estranhas criaturas que rastejavam lenta e penosamente por sobre os montões enlameados.

Foi um destes mecanismos, sem dúvida, que atraiu em primeiro lugar a minha atenção. Era um desses engenhos complicados a que se chama manipuladores, e cujo estudo deu um impulso tão grande à invenção terrestre. À primeira vista, parecia uma espécie de aranha metálica com cinco ágeis pernas articuladas e um extraordinário número de alavancas, barras e tentáculos para alcançar e apresar, que lhes saíam do corpo. Quase todos os braços estavam contraídos, mas utilizava três compridos tentáculos para arrancar um certo número de hastes, chapas e barras que revestiam a cobertura do cilindro e lhe fortaleciam, aparentemente, as (paredes. À medida que as extraía depositava-as atrás de si, num tracto de terra plana.

Os seus movimentos eram tão rápidos, complexos e perfeitos, que não a julguei a princípio uma máquina, mau grado o seu brilho metálico. As máquinas de combate eram coordenadas e animadas com uma perfeição extraordinária, mas não se podiam de modo algum comparar a este engenho. As pessoas que nunca viram estas máquinas e apenas têm como guia os esforços da imaginação doentia dos artistas ou as descrições imperfeitas das testemunhas visuais dificilmente poderão compreender esta natureza viva.

Recordo em particular a ilustração de um dos primeiros panfletos destinados a dar uma visão das consequências da guerra. Era evidente que o artista tinha feito um estudo apressado de uma das máquinas de combate, e nisso se resumiam os seus conhecimentos. Representava-as como trípodes empinadas e rígidas, sem flexibilidade ou subtileza, conjuntamente com uma enganosa monotonia de efeito. O panfleto que continha estas informações teve uma voga considerável, e se o menciono aqui é com a única intenção de prevenir o leitor contra a impressão que pode ter criado. Essa ilustração não era mais parecida com os marcianos do que uma boneca holandesa com um ser humano. A meu ver, o panfleto teria sido mais útil se não a incluísse.

No primeiro momento, como afirmei, a manipuladora não me pareceu uma máquina, mas uma criatura semelhante a um caranguejo, com uma membrana reluzente; o controlador marciano, cujos tentáculos delicados controlavam os seus movimentos, pareceu-me simplesmente o equivalente à parte cerebral do caranguejo. Mas apercebi-me, depois, da semelhança da sua membrana cinzento-acastanhada, brilhante, com a dos outros corpos que se arrastavam pelo fosso, e compreendi a verdadeira natureza deste hábil operário. Nesse momento, a minha atenção desviou-se para as outras criaturas, os verdadeiros marcianos. Já os tinha visto de relance e a náusea inicial desvaneceu-se rapidamente. Além disso, eu estava oculto e imóvel, e não havia necessidade urgente de acção.

Eram, como via agora, as criaturas menos terrestres que se pode imaginar. Com enormes corpos redondos - ou melhor, cabeças - de cerca de 1,20 m de diâmetro, cada corpo tinha, à frente, um rosto. Este rosto era desprovido de fossas nasais - na realidade, os marcianos não pareciam possuir sentido do olfacto, mas tinham um par de olhos escuros muito grandes, e, precisamente entre estes, uma espécie de bico carnudo. Na parte posterior desta cabeça ou corpo - nem sei como lhe chamar - encontrava-se um único tímpano, estreito, conhecido anatomicamente como orelha, embora não se deva ter revelado muito útil na nossa atmosfera de ar denso. Agrupados em redor da boca achavam-se dezasseis tentáculos delgados, semelhantes a chicotes, dispostos em dois feixes de oito. Estes feixes foram denominados, com mais propriedade, pelo distinto anatomista professor Howes, de mãos. Mesmo quando vi os marcianos pela primeira vez, estes pareciam esforçar-se por se erguer sobre estas mãos, mas, sem dúvida, dado o maior peso na Terra, era-lhes impossível. Há razões para supor que em Marte caminhem sobre elas com relativa facilidade.

Como já foi mostrado pela dissecação, posso salientar que a anatomia interna era de uma simplicidade quase igual. A maior parte da estrutura era ocupada pelo cérebro, de onde derivavam enormes nervos para os olhos, orelha e tentáculos tácteis. A par destes, encontravam-se os volumosos pulmões (nos quais se abria a boca), o coração e as veias. Os simples movimentos convulsivos da pele exterior demonstravam o mau funcionamento pulmonar provocado pela maior densidade da nossa atmosfera.

E eram estes os órgãos dos marcianos. Por muito estranho que possa parecer a um ser humano, todo o complexo aparelho digestivo, que constitui a maior parte dos nossos corpos, não existia nos marcianos. Eram cabeças - meras cabeças. Não tinham entranhas. Não comiam, muito menos digeriam. Em vez disso, ingeriam o fresco e vivo sangue das outras criaturas, e injectavam-no nas suas próprias veias. Eu mesmo observei esta operação, como mencionarei na devida altura. Mas, embora vos possa parecer melindroso, não consigo obrigar-me a descrever aquilo a que nem sequer suportava assistir. Deve bastar dizer que o sangue obtido de um animal ainda vivo, na maioria dos casos de um ser humano, escorria directamente, por intermédio de uma pequena pipeta, para o canal recipiente...

A simples ideia deste facto causa-nos uma repugnância natural, mas, ao mesmo tempo, julgo que deveríamos pensar na repulsa que um coelho inteligente sentiria perante os nossos hábitos carnívoros.

As vantagens fisiológicas da prática da injecção são inegáveis, se pensarmos na tremenda perda de tempo e energia humanos originada pela função de comer e pelo processo digestivo. Metade do nosso corpo é constituída por glândulas, tubos e órgãos, que se ocupam na transformação de comida heterogénea em sangue. O processo digestivo e a sua reacção sobre o sistema nervoso aniquila a nossa força e confunde o nosso espírito. Os homens são felizes ou desgraçados consoante tenham fígados saudáveis ou doentes, ou glândulas gástricas sãs, mas os marcianos estavam acima de todas estas flutuações orgânicas de humor e de emoção.

A sua inegável preferência por homens como fonte de alimentação explica-se, em parte, pela natureza dos restos das vítimas que trouxeram com eles, como provisões, de Marte. Estas criaturas, a julgar pelos restos ressequidos que caíram em mãos humanas, eram bípedes com frágeis esqueletos siliciosos (quase iguais aos das esponjas siliciosas) e débil musculatura, com uma altura de 1,80 m e cabeças redondas, erectas, e grandes olhos em órbitas duras. Pareciam trazer dois ou três em cada cilindro, e foram todos mortos antes de chegarem à Terra. Tanto lhes fazia, pois o simples esforço de permanecer de pé sobre o nosso planeta teria quebrado todos os ossos dos seus corpos.

E uma vez que estou a fazer esta descrição, posso acrescentar mais alguns pormenores que, embora desconhecêssemos nessa época, ajudarão o leitor que os não conhece a formar uma imagem mais clara destes agressores.

A sua fisiologia diferia estranhamente da nossa em três outros aspectos. O seu organismo não dormia, tal como o coração do homem não dorme. Dado que não possuíam um mecanismo muscular extensivo que tivessem de recuperar, esse apagamento temporário da vida era-lhes desconhecido. Julga-se que tinham pouco ou nenhum sentido de fadiga. Na Terra, nunca se poderiam mover sem esforço; no entanto, mantiveram-se em acção até ao fim. Em vinte e quatro horas faziam vinte e quatro horas de trabalho, como se julga ser, entre nós, o caso das formigas.

Em segundo lugar, por maravilhoso que pareça num mundo sexual, os marcianos eram totalmente assexuados e, portanto, desprovidos de qualquer das tumultuosas emoções que derivam dessa diferença entre os homens. Um jovem marciano, com efeito - e este facto é decisivo -, nasceu na Terra durante a guerra, e achava-se profundamente ligado ao parturiente do qual desabrochara, precisamente como os bolbos desabrocham, ou os pequenos pólipos de água doce.

Este método de reprodução extinguiu-se entre os homens e em todos os animais terrestres superiores; no entanto, mesmo na Terra deve ter constituído o método primitivo. Entre os animais inferiores, mesmo nos primos em primeiro grau dos vertebrados, os tunicados, os dois processos ocorrem lado a lado, mas o método sexual sobrepõe-se por fim ao seu competidor. No entanto, em Marte, parece que a evolução se processou no sentido inverso.

É digno de nota que determinado escritor de ficção de reputação quase científica tenha previsto, muito antes da invasão marciana, que, no topo da sua evolução, os homens apresentassem uma estrutura não diferente das actuais características dos marcianos. Lembro-me de que a sua profecia apareceu em Novembro ou Dezembro de 1893 numa publicação póstuma, Pall Mali Budget, e que a sua caricatura foi publicada por um periódico pré-marciano intitulado Punch. Salientou - num tom de loucura, de facécia - que a perfeição dos utensílios mecânicos deve acabar por sobrepor-se aos membros, a perfeição dos dispositivos químicos à digestão; órgãos como o cabelo, nariz externo, dentes, orelhas e queixo já não constituíam partes essenciais do corpo humano, e que a tendência de selecção natural se inclinava para a sua pronta redução nas gerações futuras. Só o cérebro continuava a ser uma necessidade fundamental, e apenas uma outra parte do corpo tinha fortes probabilidades de sobrevivência; a mão, “professor e agente do cérebro”. Enquanto o resto do corpo se devia reduzir, as mãos tornar-se-iam maiores.

Há muita verdade que se escreve a brincar, e os marcianos são uma prova patente da supressão do lado animal do organismo pela inteligência. Não me custa acreditar que os marcianos descendam de seres não diferentes de nós próprios, por um desenvolvimento gradual do cérebro e das mãos (dando as últimas lugar, por fim, aos dois feixes de delicados tentáculos) à custa do resto do corpo. Sem este, o cérebro tornar-se-ia, sem dúvida, mera inteligência, desprovida por completo do substratum emocional do ser humano.

O último aspecto importante pelo qual os sistemas destas criaturas diferiam do nosso, poderia ser considerado por algumas pessoas um fenómeno muito trivial. Os microrganismos, responsáveis por tantas doenças e sofrimentos na Terra, nunca apareceram em Marte ou foram eliminados pela ciência sanitária marciana em épocas remotas. Uma centena de doenças, todas as febres e infecções de que sofremos, cancros, tumores e males semelhantes, não entraram nunca no esquema da sua vida. E, falando das diferenças entre a vida em Marte e a vida terrestre, posso aludir à curiosa propagação das plantas vermelhas.

Aparentemente, o reino vegetal de Marte, em lugar de ter como cor predominante o verde, é de uma coloração de um vívido vermelho-sangue. De qualquer modo, as sementes que os marcianos (intencional ou acidentalmente) trouxeram com eles, deram lugar, em todos os casos, a plantas vermelhas. No entanto, só a que é conhecida geralmente como papoila dos campos obteve algumas vitórias na competição com as formas terrestres. A trepadeira vermelha era, em absoluto, uma planta transitória, e poucas pessoas a viram crescer. No entanto, durante algum tempo, esta planta cresceu com um espantoso vigor e exuberância. Brotou das margens do fosso no terceiro ou quarto dia do nosso cativeiro, e os seus ramos, semelhantes a cactos, formaram uma franja de carmim nas vizinhanças da nossa janela triangular. Mais tarde, encontrei-a disseminada pela região, especialmente onde quer que houvesse uma corrente de água.

Os marcianos tinham o que parecia ser um órgão auditivo, um único tímpano redondo atrás da cabeça-corpo, e olhos com um alcance visual não muito diferente do nosso, excepto que, de acordo com Philips, o azul e o violeta eram para eles como o preto. Admite-se geralmente que comunicavam por intermédio de sons e de gestos dos tentáculos; esta opinião é secundada, por exemplo, pelo útil panfleto, embora compilado à pressa (escrito, evidentemente, por alguém que não foi testemunha visual das acções dos marcianos) a que já aludi e tem sido até agora a principal fonte de informações a seu respeito. Nenhum ser humano sobrevivente viu tanto dos marcianos em acção como eu. Não me cabe mérito algum, dado que foi um acidente, mas esse é o facto. E asseguro que os observei com minúcia e continuadamente e vi quatro, cinco e (uma vez) seis deles executando, com indolência e esmero, as mais complicadas operações sem que utilizassem sons ou gestos. A sua algazarra peculiar precedia invariavelmente a refeição; não tinha modulações e creio que não era de modo algum um sinal, mas simplesmente a expiração de ar preparatória da operação de sucção. Tenho a pretensão de possuir, pelo menos, alguns conhecimentos de psicologia, e estou convencido, neste caso - tão firmemente como estou convencido de qualquer coisa - que os marcianos trocavam entre si pensamentos sem qualquer interveniência física. E tenho esta convicção a despeito de fortes preconceitos. Antes da invasão dos marcianos, como é provável que algum leitor ocasional recorde, pronunciara-me com alguma violência contra a teoria telepática.

Os marcianos não usavam roupas. As suas concepções de adorno e decoro divergiam necessariamente das nossas e não só eram, evidentemente, menos sensíveis do que nós às mudanças de temperatura, como também as mudanças de pressão não parecem ter afectado, seriamente, a sua saúde. No entanto, apesar de não usarem vestuário, era noutros complementos artificiais dos seus recursos físicos que residia a sua grande superioridade sobre os homens. Nós, homens, com as nossas bicicletas e carros, as nossas máquinas voadoras Lilienthal, as nossas espingardas, etc, encontramo-nos precisamente no limiar da evolução que os marcianos sofreram. Tornaram-se praticamente meros cérebros, usando corpos diferentes conforme as suas necessidades, tal como um homem muda de fato e anda de bicicleta se está apressado, ou pega no guarda-chuva quando chove. e, de tudo isto, talvez nada seja mais maravilhoso do que o facto de estar ausente o factor dominante de quase todos os nossos progressos mecânicos - a roda. Entre todas as coisas que trouxeram consigo, não há indícios ou sugestão de que usem rodas. Esperar-se-ia, pelo menos, que as utilizassem na locomoção. E, relacionado com este facto, é curioso notar que mesmo a Natureza terrestre nunca descobriu a roda, nem preferiu outros expedientes para o seu desenvolvimento. E não só os marcianos ignoravam a roda (o que é inacreditável) ou se abstiveram de usá-la, como também fazem pouco uso, nos seus aparelhos, do eixo fixo, ou do eixo relativamente fixo, com movimentos circulares aproximadamente confinados a um plano. Quase todas as articulações das suas máquinas apresentam um sistema complicado de partes corrediças, movendo-se sobre pequenos rolamentos de fricção, mas admiravelmente encurvados. Ao mesmo tempo, para além deste aspecto de pormenor, é digno de nota que as compridas alavancas das suas máquinas sejam, na maioria dos casos, activadas por uma espécie de musculatura simulada dos discos, num estojo elástico; estes discos polarizam-se e unem-se firme e poderosamente quando são atravessados pela corrente eléctrica. Atingia-se, deste modo, o curioso paralelismo com os movimentos animais, tão pasmoso e inquietante para o observador humano. Estes quase-músculos abundavam na manipuladora semelhante ao caranguejo, que vira, pela primeira vez, no acto de abrir o cilindro. Ao pôr-do-sol, parecia infinitamente mais viva do que os verdadeiros marcianos que arquejavam, agitando tentáculos ineficazes e movendo-se com dificuldade depois da sua grande jornada através do espaço.

Quando observava os seus movimentos indolentes, e notava todos os pormenores estranhos que descrevi, o cura recordou-me a sua presença, puxando-me com violência pelo braço. Voltei-me e encarei um rosto carrancudo, de lábios silenciosos mas eloquentes. Queria servir-se da fenda, que só permitia que espreitasse um de cada vez; tive de renunciar por um momento à observação, enquanto ele gozava desse privilégio.

Voltei a olhar e vi que a atarefada manipuladora já tinha disposto várias das peças de aparelhos que retirara do cilindro numa forma que apresentava uma semelhança manifesta consigo mesma; e, abaixo, à esquerda, surgira uma pequena escavadora que esguichava baforadas de vapor verde e rodava em volta do fosso, escavando e carregando metodicamente. Era esta a causa do ruído de pancadas regulares e de choque ritmados que faziam estremecer o nosso arruinado refúgio. Chiava e sibilava enquanto trabalhava. Tanto quanto podia distinguir, não era manobrada por nenhum marciano.

 

Os dias de cativeiro

A chegada da segunda máquina de combate obrigou-nos a abandonar a fresta e a fugir para a copa, pois receávamos que os marcianos nos pudessem ver. Mais tarde, começámos a sentir-nos mais tranquilos a esse respeito, pois, para quem se encontrasse banhado pela deslumbrante luz do sol, o nosso refúgio deveria parecer uma escuridão confusa; mas, de início, a mais leve sugestão de se aproximarem impelia-nos em retirada para a copa, de coração a latejar. Por muito terrível que fosse o risco que corríamos já não conseguíamos resistir à atracção que a fresta exercia sobre nós. Causa-me espanto recordar que, a despeito do perigo de morrermos de inanição ou de sofrermos morte ainda mais terrível, disputávamos com violência o horrível privilégio de espreitar. Corríamos de um modo grotesco através da cozinha, divididos entre a avidez e o receio de fazer ruído, e batíamo-nos, empurrávamo-nos e trocávamos pontapés, tudo isto no espaço de uns escassos metros.

Procedíamos deste modo, pois os nossos caracteres e os nossos hábitos de pensamento e acção eram absolutamente incompatíveis, e o perigo que corríamos e o nosso isolamento acentuavam ainda mais essa incompatibilidade. Já em Halliford começara a odiar as vãs e manhosas exclamações do cura, a sua estúpida rigidez mental. O interminável monólogo que ele proferia entre dentes não me permitia imaginar uma linha de acção. Houve momentos em que quase perdi a razão. Era tão falto de comedimento como uma mulher estúpida. Podia, até, chorar durante horas seguidas, e acredito sinceramente que esta criança amimada pela vida esteve sempre convencida de que as suas fracas lágrimas serviam de alguma coisa. Não me deixava em sossego. Comia mais do que eu, e era em vão que chamava a sua atenção para o facto de que a nossa única possibilidade de sobrevivência consistia em permanecer naquela casa até que os marcianos abandonassem o fosso; em breve, faltar-nos-ia comida. Comia e bebia impulsivamente, em refeições lautas, separadas por longos intervalos. Dormia pouco.

Com o decorrer dos dias, a sua negligência aumentou de tal modo a nossa tortura e o perigo que corríamos que me vi obrigado, por muito que isso me custasse, a recorrer a ameaças e, por fim, a bater-lhe. Isto restituiu-lhe a razão durante algum tempo. Mas era uma dessas fracas criaturas sem amor-próprio, timoratas, almas cheias de ódio, manhosas, que receiam Deus e os homens, que nem sequer ousam encarar a si mesmas.

Desagrada-me recordar e escrever estas coisas, mas relato-as para que nada falte à minha história. Deve ser fácil àqueles que escaparam aos aspectos sombrios e às facetas terríveis da vida condenar a minha brutalidade, os meus relâmpagos de cólera no epílogo da nossa tragédia. Conhecem o que está errado tão bem como qualquer pessoa, mas não aquilo que um homem torturado pode fazer. Mas, aqueles que atravessaram dias sombrios, aqueles que atingiram, por fim, as coisas mais elementares da vida, mostrar-se-ão mais compreensivos.

E, enquanto nos debatíamos com o desconhecido, sussurrávamos discussões obscuras, lutávamos pela comida e pela bebida, enquanto nos agarrávamos e esbofeteávamos - lá fora, sob o sol impiedoso desse terrível Junho, encontrava-se a estranha maravilha, a invulgar rotina dos marcianos no fosso. Vou retomar o fio da narrativa das minhas aventuras. Passado um longo momento, atrevi-me a regressar à fresta e descobri que os marcianos tinham sido reforçados pelos ocupantes de, pelo menos, duas das máquinas de combate. Estes últimos tinham trazido mais utensílios, os quais se encontravam arrumados com certa ordem nas proximidades do cilindro. A segunda manipuladora já estava pronta e ocupava-se no serviço de uma das novas engenhocas trazidas pela grande máquina. Tinha uma aparência de conjunto semelhante à de uma vasilha de leite, por cima da qual oscilaria um receptáculo em forma de pêra, do qual escorria uma poeira esbranquiçada para uma bacia circular que se encontrava por baixo.

O movimento pendular era comunicado a este conjunto por um tentáculo da manipuladora que, com duas mãos espatuladas, desenterrava massas de argila e as arremessava para o receptáculo em forma de pêra, enquanto com outro tentáculo abria, periodicamente, uma porta e removia os tijolos grossos e enegrecidos que se acumulavam na parte central da máquina. Outro tentáculo, acerado, conduzia o pó desde a bacia, ao longo de um canal estriado, até um presumível receptáculo oculto por um montão de poeira azulada. Deste recipiente invisível elevava-se, verticalmente, na quietude do ar, uma pequena espiral de fumo verde. Neste momento, a manipuladora, com um fraco tinido musical, dilatava, à maneira de um telescópio, um tentáculo que fora antes uma mera projecção grosseira, até que o extremo deste desapareceu, por fim, atrás de um montão de argila. Logo a seguir, surgia à minha vista uma barra de alumínio branco de pureza inigualável, depositando-a numa pilha cada vez maior de barras que se encontravam ao lado do fosso. Desde o pôr-do-sol até noite cerrada, esta máquina deve ter feito, com argila crua, mais de uma centena de barras semelhantes. O monte de poeira azulada cresceu rapidamente até atingir a margem do fosso.

Havia um contraste nítido entre os movimentos rápidos e complexos destas engenhocas e o arquejar desgracioso e apático dos seus operadores, e durante dias tive de repetir a mim mesmo que, na realidade, eram estes últimos os seres vivos.

O cura detinha a posse da fresta quando chegaram ao fosso os primeiros marcianos. Eu estava sentado; acotovelei-o, de ouvido atento. Recuou de súbito e, receando que nos descobrissem, agachei-me, num espasmo de terror. O seu vulto indistinto deslizou sobre a caliça e rastejou até mim, gesticulando. Partilhei o seu pânico durante alguns momentos. Os seus gestos sugeriam que renunciara à fresta e, passados momentos, instigado pela curiosidade, passei por ele e voltei à fresta. Nos primeiros momentos, não vi nada que justificasse o seu estranho comportamento. Já era crepúsculo, as estrelas mal se apercebiam, mas o fosso era iluminado pelas chamas verdes, vacilantes, produzidas pela fabricação do alumínio. A imagem do conjunto era uma forma bruxuleante de clarões verdes e sombras negras que se deslocavam e cansavam a vista. Por cima de tudo e por todo o lado, pairavam descuidadamente alguns morcegos. Já não se viam os marcianos, pois o montão de poeira azul-esverdeada crescera até os ocultar. Uma máquina de combate, com as pernas contraídas, dobradas e atrofiadas, encontrava-se atravessada no fosso. E então, no meio do clangor dos maquinismos, sobressaiu um pequeno coro de vozes humanas que rapidamente se extinguiu.

Agachei-me, observando, atentamente, a máquina de combate. Pela primeira vez, estava convencido de que esta continha um marciano no bojo, pois quando as chamas verdes subiam via-lhe o clarão oleoso da membrana e o brilho dos olhos. Bruscamente, ouvi um alarido e vi que um comprido tentáculo passava por cima do ombro da máquina em direcção à pequena gaiola que lhe pendia das costas. Em seguida, uma coisa - algo que se debatia com violência- foi erguida, um enigma negro e indistinto, banhado pela luz das estrelas; à medida que este objecto negro descia, apercebi-me, à luz do clarão esverdeado, de que era um homem. Por um momento, viu-se nitidamente. Era um homem de meia-idade, robusto, rosado, bem vestido; três dias antes devia correr o mundo, devia tratar-se de um homem de importância considerável. Via-lhe os olhos espantados e as cintilações dos botões da camisa e da corrente do relógio. Desapareceu atrás do montão, e fez-se silêncio durante alguns momentos. E então começou a ouvir-se uma algazarra aguda, contínua e alegre dos marcianos.

Desci, esforcei-me por me pôr de pé, tapei os ouvidos com as mãos e fechei-me na copa. O padre, que estivera agachado em silêncio, com os braços à volta da cabeça, olhou para cima quando passei, censurou-me em voz muito alta por tê-lo abandonado e correu na minha peugada.

Nessa noite, escondidos na despensa, fomos assaltados, simultaneamente, pelo terror e pela terrível fascinação que a fresta exercia sobre nós; embora sentisse uma necessidade urgente de agir, não consegui conceber nenhum plano de fuga, mas, mais tarde, no segundo dia, achei-me em condições de avaliar a nossa posição com maior clareza. O cura achava-se absolutamente incapaz de discutir; a recente e culminante atrocidade roubara-lhe todos os vestígios de razão ou de antevisão. Descera praticamente ao nível de um animal. Mas, como ia dizendo, deitei as mãos à cabeça. Mal me vi em condições de enfrentar os factos, fiquei cada vez mais certo de que, por muito terrível que fosse a nossa situação, não se justificava, no entanto, um desespero absoluto. A nossa melhor oportunidade dependia de os marcianos estacionarem temporariamente no fosso. Ou, ainda que o ocupassem permanentemente, poderiam não considerar necessário guardá-lo, e teríamos deste modo uma possibilidade de fuga. Ponderei igualmente com muito cuidado a hipótese de escavarmos um túnel que nos conduzisse para lá do fosso, mas as possibilidades de emergirmos à vista de alguma máquina de combate de sentinela pareceram-me, de início, muito grandes.

Foi no terceiro dia, se a memória não me falha, que vi o cadáver do homem. Foi essa a única ocasião em que assisti à refeição dos marcianos. Depois desta experiência, evitava o buraco da parede durante a maior parte do dia. Entrei na copa, tirei a porta e escavei o solo durante algumas horas com a machadinha, tão silenciosamente quanto era possível; no entanto, depois de abrir um buraco de cerca de sessenta centímetros de profundidade, não me atrevi a continuar. Faltou-me a coragem, e fiquei estendido no chão da copa durante muito tempo, sem forças sequer para me mover. Em seguida, abandonei por completo a ideia do túnel como meio de fuga.

Diz muito acerca da impressão que os marcianos me provocaram o facto de sentir inicialmente poucas ou nenhumas esperanças de fuga, sugestionado pela inutilidade de todos os esforços que os homens tinham feito para se lhes opor. Mas, na quarta ou quinta noite ouvi um ruído semelhante ao disparo da artilharia pesada.

A noite já estava muito adiantada, e a lua brilhava vivamente. Os marcianos tinham levado a escavadeira e, com excepção de uma máquina de combate que se encontrava na margem mais afastada do fosso e de uma manipuladora oculta num recanto, muito perto da fresta, tinham abandonado o local. Salvo o brilho lívido da manipuladora e das barras e os remendos brancos do luar, o fosso achava-se mergulhado na escuridão e, sem contar com o tinido da manipuladora, absolutamente silencioso. Essa noite apresentava-se de uma bela serenidade. A Lua parecia repartir a posse do céu com um único planeta. Ouvi o uivar de um cão, e foi esse som familiar que me fez prestar atenção a todos os rumores. Em seguida, ouvi, com muita nitidez, um estrondo precisamente igual ao que é provocado pelo disparo de canhões de grande calibre. Ouvi seis estampidos distintos, e, escoado um longo intervalo, outros seis. E foi tudo.

 

A morte do Coadjutor

Foi no sexto dia do nosso cativeiro que utilizei pela última vez a fresta, e nesta ocasião achava-me sozinho. Em lugar de se agarrar a mim e de tentar desalojar-me da fenda, o coadjutor voltara para a despensa. Fui assaltado por um súbito pressentimento. Regressei rapidamente e em silêncio à despensa. Na escuridão, ouvi-o a beber. Tacteei, às escuras, e os meus dedos apalparam uma garrafa de borgonha.

Lutámos durante alguns minutos. A garrafa caiu no chão e partiu-se; desisti e levantei-me. Arquejávamos. Ameaçámo-nos um ao outro. Por fim, interpus-me entre ele e a comida, e informei-o da minha determinação de fazer respeitar uma disciplina daí em diante. Dividi a comida da despensa em rações, de modo a durar dez dias. Não o deixaria comer mais nesse dia. De tarde, ele fez um débil esforço para alcançar a comida. Eu estivera a dormitar, mas acordei imediatamente. Ficámos sentados frente a frente durante o resto do dia e toda a noite; eu sentia-me cansado mas resoluto, enquanto ele chorava e se lamentava de uma fome imediata. Sei que foi uma noite e um dia mas pareceu-me - continua a parecer-me - uma extensão interminável de tempo.

Deste modo, a nossa profunda incompatibilidade redundou por fim em conflito aberto. Durante dois longos dias altercámos em voz baixa. Por vezes, furioso, bati-lhe e dei-lhe pontapés; outras, adulei-o e tentei persuadi-lo, e de uma vez tentei seduzi-lo com a última garrafa de borgonha, pois, como havia uma bomba, poderia conseguir água. Mas nem a força nem a delicadeza triunfaram; na realidade, ele achava-se muito longe da razão. Não desistiria de lutar pela comida nem da sua barulhenta tagarelice. Não observaria as precauções mais elementares para que o nosso cativeiro fosse suportável. Comecei a compreender gradualmente a completa ruína da sua inteligência, a aperceber-me de que o meu único companheiro nesta escuridão cerrada e doentia era um louco.

Lembro-me confusamente de que delirei por vezes. Sempre que dormia tinha sonhos estranhos e horrendos. Parece um paradoxo, mas julgo que a fraqueza e a insanidade mental do padre foram um aviso para mim, fortaleceram-me e permitiram-me continuar são.

No oitavo dia deixou de murmurar e começou a falar em voz alta, e a única coisa que eu podia fazer era moderar as suas dissertações.

- É justo, meu Deus! - dizia, repetidas vezes. - É justo. Que o castigo recaia sobre mim e sobre os meus. Nós pecámos, não cumprimos o nosso dever. Havia pobreza, sofrimento; os pobres eram calcados sobre o pó, e eu defendi a minha paz. Preguei tolices agradáveis - meu Deus, que tolices! - quando deveria erguer-me, ainda que isso me custasse a vida, e ter gritado que se arrependessem - arrependessem!... Opressores dos pobres e dos necessitados!... O lagar de Deus!

Voltou de súbito ao tema da comida que eu lhe tinha recusado. Rezou, implorou, chorou e acabou por proferir ameaças. Começou a altear a voz - roguei-lhe que não o fizesse. Descobriu-me um ponto fraco - ameaçou gritar e atrair os marcianos. Esta ameaça assustou-me durante algum tempo. Mas qualquer concessão teria diminuído incalculavelmente as nossas possibilidades de fuga. Desafiei-o, embora não tivesse a certeza de que não cumpriria a sua ameaça. De qualquer modo, não o fez nesse dia. Falou durante a maior parte do oitavo dia e do nono - ameaças, súplicas, de mistura com uma torrente de arrependimentos, vãos e semiloucos, pelas vergonhosas faltas que cometera ao serviço de Deus, de tal modo que tive pena dele. Em seguida, dormiu durante algum tempo e recomeçou com as forças renovadas, tão alto que fui obrigado a fazer com que se calasse.

- Cale-se! - implorei.

Ele estivera sentado perto da caldeira, mas ergueu-se ao ouvir-me.

- Calei-me durante tempo demasiado - exclamou, num tom que deve ter atingido o máximo - e agora tenho de pedir perdão à minha testemunha. Maldita seja esta cidade infiel! Malditos! Malditos! Malditos! Malditos! Malditos sejam os habitantes da Terra, por causa das outras vozes da trombeta...

- Cale-se - gritei, levantando-me apavorado ao pensar que os marcianos nos podiam ouvir. - Por amor de Deus...

- Não - gritou-me ele, tão alto quanto pôde, erguendo-se completamente e abrindo os braços. - Eu ouço a palavra de Deus!

Em três passadas, alcançou a porta da cozinha.

- Tenho de pedir perdão à minha testemunha!

- Vou! Já foi por demais adiado!

Libertou-se da minha mão e tacteou o cutelo de carne que estava pendurado. Segui-o imediatamente. O medo enfurecera-me. Alcancei-o antes que atravessasse metade da cozinha. Com uma última parcela de humanidade, peguei pela lâmina e bati-lhe com o cabo. Caiu de cabeça para baixo e ficou estendido no chão. Tropecei no corpo, arquejante. Continuou imóvel.

De súbito, ouvi um ruído proveniente do exterior, de cal a escorregar e a ser esmagada, e a abertura triangular da parede escureceu. Olhei para cima e divisei a parte de baixo de uma manipuladora aproximando-se lentamente do buraco. Um dos membros de preensão ziguezagueou através dos destroços; surgiu outro membro, abrindo caminho por entre as vigas derrubadas. Fiquei petrificado, atónito. Divisei em seguida, através de uma espécie de chapa de vidro, junto ao corpo, o rosto, se assim o podemos chamar, e os grandes olhos escuros de um marciano, espreitando: depois, um tentáculo, como que uma comprida serpente metálica, abriu caminho vagarosamente através do buraco.

Voltei para trás, penosamente, tropecei no padre e parei à porta da copa. O tentáculo achava-se agora dois metros ou mais dentro da sala, torcia-se e girava, com movimentos súbitos e singulares, de um lado para o outro. Durante alguns momentos, fiquei fascinado por esta marcha lenta e espasmódica. Em seguida, soltando um grito fraco e rouco, fiz um esforço para atravessar a copa. Tremia violentamente; mal conseguia endireitar-me. Abri a porta da carvoeira e mergulhei na escuridão, com o olhar fixo no vão da porta da cozinha, na penumbra, de ouvido atento. Teria sido visto pelo marciano? Que estaria ele a fazer agora?

Então, tornei a ouvir o fraco tinido metálico. Imaginei-o a abrir caminho, lentamente, através da cozinha. Já o ouvia mais perto - talvez na copa. Pensei que o seu comprimento não devia chegar para que me alcançasse. Rezei. Passou, raspando levemente na porta da carvoeira. Seguiu-se um período de expectativa quase intolerável; ouvi-o, em seguida, a remexer no trinco. Tinha encontrado a porta! Os marcianos sabiam o que eram portas!

Manobrou a lingueta durante cerca de um minuto e a porta abriu-se, por fim.

Por causa do escuro, mal conseguia ver aquilo - mais parecido com a tromba de um elefante do que com qualquer outra coisa -, ondulando na minha direcção, tacteando e examinando a parede, pedaços de carvão, madeira e tecto. Era como que uma minhoca negra agitando a cabeça cega de um lado para o outro.

De uma vez chegou a tocar no tacão da minha bota. Durante alguns instantes, não ouvi os ruídos do tentáculo. Parecia que se tinha retirado. Neste momento, prendeu qualquer coisa com um clique abrupto - pensei que fosse eu! - e pareceu sair de novo da carvoeira. Só sosseguei um minuto depois. Aparentemente, levara um pedaço de carvão para examinar.

Aproveitei a oportunidade para mudar ligeiramente de posição, pois sentia-me comprimido, e esperei de novo, às escuras. Murmurava sentidas preces pela minha salvação.

Ouvi novamente o ruído, leve, provocado por algo que rastejava na minha direcção. Aquilo aproximava-se lentamente, raspando nas paredes e chocando com os móveis.

Cheio de dúvidas, ouvi-o bater com violência na porta da carvoeira e fechá-la. Encaminhou-se para a despensa: as latas de biscoitos ressoaram e partiu-se uma garrafa, seguindo-se uma forte pancada na porta da carvoeira. Depois, silêncio, e uma expectativa infinita.

Teria partido?

Convenci-me, por fim, de que fora isso que acontecera.

Não voltou à copa; no entanto, não saí daquela escuridão cerrada durante todo o décimo dia, soterrado sob carvão e madeira, sem me atrever sequer a arrastar-me para saciar a sede que me devorava. Só ousei abandonar o meu esconderijo no décimo primeiro dia.

 

O sossego

Antes de entrar na despensa, a primeira coisa que fiz foi trancar a porta que separava a cozinha da copa. Mas a despensa estava vazia; todas as sobras de comida tinham desaparecido. Aparentemente, o marciano retirara tudo no dia anterior. Quando fiz esta descoberta, senti-me, pela primeira vez, desesperado. No décimo primeiro e no décimo segundo dia não comi nem bebi.

A princípio, tinha a boca e a garganta ressequidas e as minhas forças declinavam sensivelmente. Sentei-me na copa, às escuras, sentindo-me desesperadamente infeliz. Estava obcecado pela ideia da comida. Julgava que tinha ensurdecido, pois os ruídos do fosso, que estava habituado a ouvir, tinham cessado totalmente. Se me achasse com forças suficientes para deslizar silenciosamente até à fresta, tê-lo-ia feito.

No décimo segundo dia, doía-me tanto a garganta que resolvi correr o risco de alertar os marcianos; utilizei a bomba de água, que se encontrava perto da pia, e bebi dois copos de água negra e empestada. Senti-me bastante refrescado e mais animado, pois nenhum tentáculo surgira após o ruído chiante do bombear.

Pensei muito, durante estes dias, desconexa e inconclusivamente, acerca do coadjutor e de como morrera.

No décimo terceiro dia bebi mais alguma água, dormitei e pensei intermitentemente em comer e em vagos e impossíveis planos de fuga. Quando dormia sonhava com fantasmas horríveis, com a morte do padre ou com jantares sumptuosos; mas, acordado ou a dormir, sentia uma dor penetrante que me instava a beber continuadamente. A luz que entrava na copa já não era acinzentada, mas vermelha. Na minha imaginação tão transtornada parecia a cor do sangue.

No décimo quarto dia entrei na cozinha e fiquei surpreendido ao verificar que a folhagem das plantas vermelhas crescera através do buraco da parede, transformando a penumbra da sala numa obscuridade de tom carmesim.

Foi no princípio do décimo quarto dia que ouvi uma curiosa sequência de sons familiares, provenientes da cozinha; prestei atenção e identifiquei-os com o farejar de um cão. Quando entrei na cozinha, vi o focinho de um cão a espreitar através de uma fenda entre as ramagens rubras. Fiquei muito surpreendido. Ao ver-me, ladrou um pouco. Pensei que, se conseguisse induzi-lo a aproximar-se calmamente, poderia matá-lo e comê-lo; e, de qualquer modo, seria aconselhável matá-lo, antes que chamasse a atenção dos marcianos.

Rastejei na sua direcção, proferindo meigamente: “Cãozinho!”; mas ele retirou de súbito a cabeça e recuou.

Pus-me à escuta - não estava surdo - mas o fosso achava-se silencioso. Ouvi um som semelhante ao adejar das asas dos pássaros, e um grasnido roufenho, e foi tudo.

Permaneci colado à fresta durante muito tempo, mas não me atrevia a remover as plantas vermelhas que a obstruíam. Ouvi, uma ou duas vezes, um débil ruído de passos, como de um cão indo e vindo na areia, ao longe, e ruídos de pássaros, mas nada mais. Passado um longo momento, encorajado pelo silêncio, olhei para fora.

Com excepção do local onde uma multidão de corvos saltitava e lutava por cima do crânio da cabeça que os marcianos tinham sugado, não havia no fosso nenhuma coisa viva.

Fiquei atónito, mal acreditando no que os meus olhos viam. Todas as máquinas tinham desaparecido. Salvo o grande monte de poeira de um azul-acinzentado que se via num dos cantos, algumas barras de alumínio noutro, os corvos e os restos do assassinado, o sítio era apenas um fosso circular, vazio, escavado na areia.

Constrangi-me a sair, atravessando lentamente as plantas vermelhas, e detive-me perto do monte de cascalho. Podia ver em todas as direcções, salvo para trás de mim, para o norte, e não se via nenhum marciano nem indícios deles. O fosso abria-se abruptamente aos meus pés, mas uma vereda entre o entulho fornecia uma rampa praticável para o topo das ruínas. Chegara a minha oportunidade de fuga. Comecei a tremer.

Hesitei durante alguns instantes e, depois, num gesto de resolução desesperada, de coração a palpitar violentamente, trepei ao cimo do montão de terra sob o qual estivera durante tanto tempo soterrado.

Olhei de novo em redor. Também não se via nenhum marciano a norte.

Da última vez que vira esta parte de Sheen, de dia, era uma rua desviada, de confortáveis casas vermelho e branco, entremeadas por árvores de vasta sombra. Agora, tudo se resumia num amontoado de alvenaria em pedaços, argila e cascalho, sobre os quais se multiplicavam multidões de plantas vermelhas em forma de cactos, à altura do joelho, sem que alguma solitária planta terrestre lhes disputasse o terreno. À minha volta, as árvores estavam mortas e acastanhadas, mas para lá de uma rede de filamentos vermelhos erguiam-se troncos ainda vivos.

Todas as casas vizinhas tinham sido destruídas, mas nenhuma delas ardera; as paredes mantinham-se, por vezes até ao segundo andar, mas as janelas estavam despedaçadas e as portas esmigalhadas. As plantas vermelhas cresciam luxuriantemente nas suas salas destelhadas. Na minha frente havia o grande fosso, onde os corvos disputavam a sua presa. Na expectativa, entre as ruínas, achava-se um certo número de outros pássaros. Ao longe, um gato descarnado fugia, rente a uma parede, mas não havia qualquer vestígio de presença humana.

Em contraste com a minha recente prisão, o dia parecia de um brilho deslumbrante, o céu de um azul resplandecente. Uma leve brisa fazia ondular docemente as plantas vermelhas que brotavam de todo o baldio. Oh! E como o ar era ameno!

 

O trabalho de quinze dias

Fiquei durante algum tempo na colina, hesitante, indiferente à minha segurança. No antro insalubre de onde emergira só pensara, intensamente, acerca da nossa segurança imediata. Não compreendia o que acontecera ao mundo, não antevira esta visão aterradora de coisas estranhas. Esperava ver Sheen em ruínas - deparava-se-me, à minha volta, a paisagem sobrenatural de um outro planeta.

Vivi nesse momento uma emoção que ultrapassava a vulgar medida humana, bem conhecida, no entanto, dos pobres animais que dominamos. Sentia-me como um coelho ao regressar à toca, dando de súbito com o trabalho de uma dúzia de cabouqueiros atarefados a escavar os alicerces de uma casa. Era o primeiro indício de uma realidade que se ia clarificando no meu espírito e que me oprimiu durante muitos dias, uma sensação de destronamento, uma convicção de que já não era um senhor, mas um animal entre os animais, espezinhado pelos marcianos. Para nós, como para aqueles, tratava-se de esconder e espreitar, de fugir e esconder; passara a época em que os homens eram receados, e do seu império.

Mas mal dei conta deste estranho facto, ele esfumou-se, e o meu pensamento dominante tornou-se a fome provocada pelo longo e sombrio jejum. Avistei, longe do fosso, do outro lado de um muro pintado de encarnado, um tracto de verdura que não fora queimada. Isto deu-me uma ideia: avancei por entre a erva vermelha que me dava pelos joelhos e, por vezes, me chegava até ao pescoço. A densidade da erva dava-me a sensação tranquilizante de que estava oculto. O muro tinha dois metros de altura e verifiquei que não poderia, como julgara, saltar por cima dele. Assim, contornei-o até alcançar um local onde havia um rochedo que me permitiria trepar até ao topo, e caí no jardim que cobiçava. Encontrei algumas cebolas novas, um par de bolbos de gladíolo, uma certa quantidade de cenouras verdes, e guardei tudo; em seguida, saltei por cima de um muro em ruínas e desemboquei na vereda que conduzia a Kew através de árvores escarlate e carmesim - era como passear numa avenida de gigantescas gotas de sangue - obcecado por duas ideias: arranjar mais comida e afastar-me, tão depressa e tão longe quanto as minhas forças o permitissem, desta amaldiçoada e sobrenatural região onde se achava o fosso.

Mais adiante, num local relvado, brotavam alguns cogumelos que também devorei, e alcancei depois um lençol castanho de água de pouca altura, antigamente rodeado de veigas. Estes bocados de comida apenas serviram para exacerbar a fome que sentia. A princípio, surpreendeu-me este caudal num Verão quente e seco. mas descobri mais tarde que era provocado pela exuberância tropical das plantas vermelhas. Conjuntamente com este crescimento extraordinário, ao encontrarem água, tornavam-se imediatamente gigantescas e de uma fecundidade sem paralelo. Bastou que as suas sementes se espalhassem nas águas do Wey e do Tamisa: o seu rápido crescimento fez com que gigantescas ramagens fluviais obstruíssem rapidamente ambos os rios.

Em Putney, como mais tarde verifiquei, a ponte quase desaparecia num emaranhado destas plantas, e também em Richmond a água do Tamisa fluía numa corrente larga e de pouca altura entre as várzeas de Hampton e Twickerham. As plantas brotavam onde quer que a água escorresse, e as villas em ruínas do vale do Tamisa ficaram ocultas durante largo tempo neste pântano vermelho, cujas margens explorei; deste modo se ocultavam muitos dos estragos que os marcianos tinham provocado.

Por fim a vegetação vermelha sucumbiu quase tão rapidamente como tinha brotado. Foi aniquilada em breve por uma doença gangrenosa, que se devia, julga-se, à acção de uma certa bactéria. Nos nossos dias, graças a uma selecção natural, todas as plantas terrestres adquiriram o poder de resistirem às doenças bacteriológicas - nunca sucumbem sem uma luta violenta -, mas a vegetação vermelha apodrecia como uma coisa que já estivesse morta. As ramadas embranqueceram, engelharam e quebraram-se. Partiam-se ao menor contacto, e as águas que tinham estimulado o seu rápido crescimento arrastavam para o mar os seus últimos vestígios.

O meu primeiro acto ao chegar a estas paragens foi, naturalmente, saciar a sede. Bebi muita água e, movido por um impulso, roí algumas folhas das plantas vermelhas; mas eram aguadas e tinham um gosto doentio e metálico. Verifiquei que a água levava altura bastante para que a atravessasse com segurança, embora a vegetação vermelha me estorvasse um pouco; mas era evidente que o caudal se tornava mais profundo à medida que me aproximava do rio, e voltei para Mortlake. Consegui localizar a estrada por meio das ruínas ocasionais das suas vivendas, vedações e candeeiros. Assim, afastei-me da inundação e segui em direcção à colina, subindo para Roehampton, e desemboquei em Putney Common.

O cenário, aqui, perdia as características de estranheza e exotismo e resumia-se a uma acumulação de destroços de coisas familiares: porções de solo exibiam a devastação provocada por um ciclone, mas alguns metros adiante havia espaços completamente tranquilos, casas com as persianas cuidadosamente descidas e portas fechadas, como se os seus moradores as tivessem deixado por um dia, ou estivessem a dormir. A vegetação vermelha era menos abundante; as árvores altas que se erguiam ao longo da rua estavam livres das trepadeiras vermelhas. Procurei comida por entre as árvores, em vão, e fiz também uma incursão em duas casas silenciosas, mas já tinham sido violadas e saqueadas. Permaneci durante o resto do dia num pequeno bosque, pois que o meu estado de fadiga me impedia de continuar.

Durante todo este tempo não descobri nenhum ser humano nem indícios de marcianos. Encontrei dois cães com aspecto famélico, mas ambos se desviaram rapidamente quando me tentei aproximar. Perto de Roehampton, vi dois esqueletos humanos - não corpos, mas esqueletos, limpos - e no bosque vizinho encontrei os ossos esmagados e dispersos de vários gatos e coelhos e o crânio de um carneiro. Mas, embora roesse parte deles, não consegui aproveitar nada.

Depois do pôr-do-sol, caminhei penosamente ao longo da estrada para Putney, onde pensava que o Raio da Morte fora utilizado. E, passado Roehampton, descobri, num jardim, batatas ainda não maduras, em quantidade suficiente para enganar a fome. Do jardim, observei Putney e o rio. O aspecto da região, mergulhada em poeira, era singularmente desolador: árvores enegrecidas, ruínas negras e sombrias e, no sopé da colina, o rio transbordava, tinto de vermelho pelas plantas. E, por sobre tudo - silêncio. Fui presa de um terror indescritível ao pensar na rapidez com que se operara esta desoladora transformação.

Durante breves instantes, julguei que a Humanidade sucumbira e eu estava ali sozinho: o último homem vivo. Perto do topo de Putney Hill, encontrei outro esqueleto, com os braços separados e a alguns metro de distância do resto do corpo. À medida que caminhava, estava cada vez mais convencido de que a exterminação da Humanidade fora total nesta parte do mundo, salvo o caso de alguns vagabundos como eu próprio. Julgava que os marcianos tinham prosseguido e abandonado esta região, procurando comida noutro sítio. Talvez destruíssem, neste momento, Berlim ou Paris, ou tivessem partido em direcção ao norte.

 

O homem de Putney Hill

Passei aquela noite na estalagem que se encontra no topo de Putney Hill e, pela primeira vez desde a minha fuga para Leatherhead, dormi numa cama. Não vou referir-me às vãs preocupações que senti ao forçar a entrada naquela casa-  descobri depois que a porta da frente estava trancada - nem como percorri todas as salas à procura de comida até que, à beira do desespero, descobri uma côdea mordida pelos ratos e duas latas de ananases, num aposento que devia ser o quarto da criada. A casa já tinha sido explorada e esvaziada. Mais tarde, encontrei no bufete alguns biscoitos e sanduíches que tinham passado despercebidos. Não pude comer estas últimas, pois estavam demasiado apodrecidas mas os biscoitos não só me saciaram a fome como enchi os bolsos com eles. Receando que alguns marcianos pudessem andar a esquadrinhar aquela parte de Londres, não acendi nenhuma lâmpada, de noite, para procurar comida. Antes de me deitar tive um intervalo de desassossego e corri de janela para janela, procurando vislumbrar qualquer indício dos monstros. Dormi pouco. Já deitado, dei comigo a pensar continuamente - uma coisa que não me lembrava de fazer desde a última discussão que tivera com o padre. Durante todo o período de tempo intermédio, a minha situação mental resumira-se numa sucessão apressada de confusos estados emocionais ou uma espécie de receptividade estúpida.

Mas, de noite, o meu cérebro, provavelmente reforçado pelos alimentos que ingerira, serenou e pude pensar.

Três coisas disputaram a posse da minha mente: a morte do cura, a localização provável dos marcianos e o destino da minha mulher. A recordação da primeira não me trouxe nenhuma sensação de horror ou remorsos; encarei-a, simplesmente, como algo que pertencia ao passado, uma recordação infinitamente desagradável, mas totalmente desprovida de qualquer sombra de remorso. Tal como agora, ao recordar este facto, via-me conduzido, passo a passo, para aquele golpe precipitado, vítima de uma sequência de acontecimentos que me tinham arrastado inevitavelmente. Não me julgava digno de castigo, mas a recordação, estática, obcecou-me. No silêncio da noite, com aquele sentido da proximidade de Deus, perceptível, por vezes, no silêncio e no escuro, submeti-me a julgamento, o meu único julgamento, por aquele instante de furor e de medo. Recordei todas as palavras que trocámos, desde o momento em que o encontrei sentado ao meu lado, indiferente à minha sede, observando as chamas e o fumo que se erguiam das ruínas de Weybridge. Não fôramos capazes de cooperar um com o outro - a má sorte não o permitiu. Se eu prevesse o que se iria passar, tê-lo-ia abandonado em Halliford. Mas não adivinhei. Mencionei este facto, como o resto da história, tal como aconteceu. Não havia testemunhas - podia guardar segredo de todas estas coisas. Mas transcrevi-as, e o leitor poderá julgar-me como quiser.

E quando afastei a custo a imagem daquele corpo prostrado, encarei o problema dos marcianos e do destino da minha mulher. Não dispunha de dados respeitantes ao primeiro; podia imaginar uma centena de coisas, e o mesmo acontecia, infelizmente, em relação ao último. E, de súbito, aquela noite tornou-se terrível. Dei comigo sentado na cama, de olhos fixos na escuridão, a rezar para que o Raio da Morte a tivesse aniquilado rapidamente e sem dor. Não rezava desde a noite em que regressara de Leatherhead. Murmurara preces, feitiços, rezava como um pagão ao murmurar os seus sortilégios quando me encontrava em perigo de morte iminente. Mas rezava verdadeira e racionalmente, frente a frente com Deus. Que noite estranha! O mais estranho de tudo foi que mal surgiu a aurora, eu, que falara com Deus, rastejei para fora de casa como um rato ao abandonar o buraco - uma criatura um pouco maior, um animal inferior, uma coisa que podia ser perseguida e morta por qualquer capricho passageiro dos seus amos. Talvez também os ratos rezem com fé em Deus. Esta guerra ensinou-nos, pelo menos, a piedade - piedade por aquelas criaturas desgraçadas, sujeitas ao nosso domínio.

O dia amanheceu belo e luminoso, e a oriente o céu reluzia, cor-de-rosa, e adornava-se de pequenas nuvens douradas. Na estrada que desce do topo de Putney Hill até Wimbledon, via-se um certo número de tristes vestígios da torrente de pânico que deve ter inundado a região londrina na noite do domingo que se seguiu ao começo da batalha. Uma pequena carroça de duas rodas, matriculada em nome de Thomas Lobb, Greengrocers, New Malden, com uma roda partida e uma mala de lata abandonada; um chapéu de palha espezinhado sobre a lama endurecida e, no topo de West Hill, uma porção de corpos manchados de sangue, perto de um alguidar de água, virado. Os meus movimentos eram lânguidos, os meus planos extremamente vagos. Fazia tenção de ir a Leatherhead, embora soubesse que as possibilidades de encontrar aí a minha mulher eram muito limitadas. Se não tivesse morrido, os meus primos e ela deviam ter fugido da vila; parecia-me que deveria encontrá-los ou saber onde estavam se me encaminhasse para o local para onde fugira o povo de Surrey. Sabia que queria encontrar a minha mulher, que o meu coração sofria por causa dela e do mundo, mas não tinha nenhuma ideia precisa de como poderia encontrá-la. Achava-me, igualmente, ciente da minha intensa solidão. Havia uma grande distância entre o local onde me encontrava, a coberto de uma mata, e as vizinhanças de Wimbledon Common.

Aquela sombria extensão era iluminada a espaços por tojo amarelo e giestas; não se via nenhuma planta vermelha. O sol nasceu enquanto eu errava, hesitante, e encheu tudo aquilo de luz e de vida. Num local pantanoso, entre as árvores, deparou-se-me uma multidão de sapos, buliçosos. Observei durante alguns momentos estes animais que me davam uma lição da sua firme determinação de viver. Em seguida, voltando-me de súbito, vi alguma coisa que rastejava entre um grupo de arbustos. Imobilizei-me, fixando aquilo. Dei alguns passos na sua direcção, e a coisa ergueu-se e surgiu um homem armado de um cutelo. Aproximei-me, lentamente. Silencioso e imóvel, o homem fitava-me. Quando cheguei mais perto, verifiquei que vestia roupas tão cobertas de pó e tão imundas como as minhas; parecia, na realidade, que tinha sido arrastado através de um cano de esgoto. Mais próximo, consegui distinguir o limo verde dos fossos misturado com o castanho-claro de cal suja e pedaços brilhantes de carvão. O cabelo era preto e caía-lhe sobre os olhos, e o seu rosto estava escuro, sujo e queimado pelo sol, de tal modo que não o reconheci nos primeiros momentos. Tinha um golpe na parte inferior do rosto.

- Pare! - gritou, quando me achava a uns dez metros de distância. Parei. Ele estava rouco.

- De onde vem? - perguntou.

Pensei, enquanto vigiava.

Venho de Mortlake - respondi. - Estive soterrado perto do fosso que os marcianos abriram com o cilindro. Consegui sair e fugir.

Não há comida para estes lados - disse ele. - Esta região pertence-me. Toda esta colina até ao rio, para trás de Clapham, e para cima até às proximidades do baldio. A comida só chega para um. Para que lados vai?

Respondi vagarosamente.

- Não sei - disse. - Estive soterrado nas ruínas de uma casa durante treze ou catorze dias. Não sei o que aconteceu entretanto.

Ele fitou-me, desconfiado, depois estremeceu e encarou-me com outra expressão.

- Não desejo de modo algum ficar por aqui - afirmei. - Acho que devo ir para Leatherhead, pois a minha mulher encontrava-se aí.

Ele gritou, apontando um dedo para mim.

- Você é o homem de Woking? Não foi morto em Weybridge?

Reconheci-o, no mesmo instante.

Você é o artilheiro que entrou no meu jardim!

Temos sorte! - exclamou. - Somos tipos com sorte! Imagine você! - Estendeu-me a mão, que apertei. - Eu fugi para um cano de esgoto. Mas não mataram ninguém. E, depois de se terem ido embora, fui para Walton. Mas... ainda não passaram dezasseis dias, e você já tem o cabelo acinzentado. - De súbito, olhou para trás. - É uma gralha - disse.

- Agora, até a sombra dos pássaros nos assusta. Estamos a descoberto. Vamos conversar para debaixo daqueles arbustos.

Tem visto os marcianos? - perguntei. - Desde que fugi...

Saíram de Londres - disse. - Devem ter encontrado um sítio melhor. De noite, em toda aquela região, Hampstead, o céu resplandece com as suas luzes. É como se fosse uma grande cidade; você até pode vê-los a mover-se, banhados por aquele clarão. De dia não se vêem. Mas, mais perto, já não os vejo... (contou pelos dedos) há cinco dias.

“Nessa altura, vi dois deles a caminho de Hammersmith, transportando qualquer coisa grande. E na noite de anteontem - fez uma pausa, e em seguida falou num tom solene -, as mesmas luzes, mas havia qualquer coisa no ar. Creio que construíram uma máquina voadora e estão a aprender a voar.

Desviei-me, de gatas, pois tínhamos chegado aos arbustos.

- Voar!

- Sim - disse ele -, voar.

Penetrei num pequeno caramanchão, e sentei-me.

- A sorte voltou-se contra a Humanidade - volvi.

- Se conseguirem fazer isso poderão correr o mundo facilmente de uma ponta à outra.

Ele assentiu.

- Fá-lo-ão. Mas... isso aliviará um pouco as coisas por aqui. E, além disso - fitou-me -, não está convencido de que já soou a última hora dos Homens? Eu estou. Estamos em baixo. Fomos derrotados.

Fitei-o. Por muito estranho que possa parecer, não pensara neste facto... um facto que se me tornou perfeitamente óbvio, mal ele falou. Nutrira uma vaga esperança, melhor, conservara os hábitos de pensamento que tivera durante toda a vida. Ele repetiu as suas palavras “Fomos derrotados.” Soavam com um tom de convicção absoluta.

- Acabou-se! - exclamou. - Eles perderam um - só um. Assentaram bem os pés e estropiaram a nação mais poderosa do mundo. Passaram por cima de nós. A morte daquele, em Weybridge, foi um acidente. E estes são apenas os pioneiros. Continuarão a chegar. Estas estrelas verdes... não vi nenhuma nestes últimos cinco ou seis dias, mas tenho a certeza de que caem todas as noites, algures... Não há nada a fazer. Estamos em baixo. Fomos derrotados.

Não respondi. Estava sentado e olhava em frente, tentando, em vão, descobrir um argumento que pudesse opor-lhe.

- Isto não é uma guerra - disse o artilheiro.

- Nunca foi uma guerra, do mesmo modo que não se poderia falar de guerra entre os homens e as for migas.

De súbito, lembrei-me da noite que tinha passado no laboratório.

- Depois do décimo tiro, não dispararam mais.

Pelo menos, até que chegou o primeiro cilindro - afirmei.

- Como sabe isso? - exclamou o artilheiro. Expliquei-lhe, e ele ficou pensativo durante alguns momentos. - Há qualquer coisa errada com essa arma disse. - Mas mesmo que haja? Arranjá-la-ão de novo. E ainda que isso leve tempo, em que é que isso altera o fim? É tal qual como entre homens e formigas. As formigas constroem as suas cidades, vivem as suas vidas, têm guerras, revoluções até que os homens querem afastá-las do seu caminho, e elas afastam-se do caminho. É o que nós somos agora precisamente formigas. Só que...

- Sim - disse eu.

- ...somos formigas comestíveis.

Fitámo-nos.

E o que é que eles vão fazer de nós? - perguntei.

É nisso que tenho estado a pensar – respondeu -, é no que tenho estado a pensar. Depois de sair de Weybridge fui para o sul - a pensar. Vi o que tinha acontecido. A maioria das pessoas esfalfavam-se a gritar, na maior excitação. Mas não sou um grande apreciador de guinchos. Estive uma ou duas vezes à beira da morte; não sou um soldado decorativo e, melhor ou pior, a morte é sempre a morte. Vi que todas as pessoas debandavam em direcção ao sul. Disse a mim mesmo: “a comida vai desaparecer daqui”, e voltei precisamente na direcção oposta. Fugia dos marcianos tal como os pardais fogem dos homens. Por todo o lado - fez um gesto largo - morrem de fome aos montes, fogem e atropelam-se uns aos outros.

Fitou-me e fez uma pausa, como que envergonhado.

- Não há dúvida de que a maioria das pessoas com dinheiro fugiu para França - disse. Pareceu hesitar, como que pedindo desculpa, e continuou:

- Aqui há comida por todo o lado. Coisas em conserva nas lojas, vinhos, licores, águas minerais; e os canos de água e os esgotos estão desimpedidos. Bem, ia dizer-lhe aquilo que tinha pensado: “Eis coisas inteligentes”, disse a mim mesmo, “e parece que nos querem comer. Em primeiro lugar, destruirão tudo o que temos - navios, máquinas, armas, cidades, toda a ordem e organização. Tudo isso vai desaparecer.

- Se nós fôssemos do tamanho de formigas, poderíamos livrar-nos do aperto. Mas não somos. Tudo tem proporções demasiado grandes para que se venha a deter.

- Esta é a grande certeza.” Hã?

Concordei.

- Pois é; cheguei a essa conclusão. Muito bem, continuemos; actualmente, apanham-nos, à medida que precisam de nós. Um marciano só tem de andar algumas milhas para alcançar uma multidão em debandada. E vi um deles, certo dia, arrancar casas aos bocados e esquadrinhar por entre os destroços. Mas não procederão sempre desta maneira. Mal tenham destruído todas as nossas armas e navios, despedaçado os nossos caminhos de ferro e acabado de fazer o que começaram, começarão a apanhar-nos sistematicamente, escolhendo os melhores e armazenando-nos em gaiolas e coisas do género. É o que vão fazer em breve. Meu Deus! Ainda não começaram a ocupar-se de nós. Está a compreender?

- Não começaram ainda! - exclamei.

- Não começaram. Tudo o que tem acontecido deve-se a não sabermos conservar a calma - importunando-os com a artilharia e parvoíces desse género, e por perdermos a cabeça, precipitando-nos em massa para onde não havia maior segurança do que no sítio donde fugíamos. Eles ainda não querem incomodarmos. Estão a fazer as suas coisas - a fazer tudo aquilo que não puderam trazer com eles, a preparar as coisas para o resto dos seus homens. É muito provável que tenha sido por essa razão que os cilindros deixaram de cair durante algum tempo, com receio de ferirem aqueles que se encontravam aqui. E, em lugar de vaguearmos como cegos, aos gritos, ou de procurarmos dinamite numa tentativa de os fazermos explodir, deveríamos adaptar-nos ao novo estado de coisas. É assim que eu penso. Não é nada daquilo que um homem deseja para a sua espécie, mas sim o que se pode fazer, atendendo às circunstâncias. E foi com base neste princípio que eu agi. Cidades, nações, civilizações, progresso - tudo desapareceu, já acabou. Fomos derrotados.

- Mas se é assim, como é possível subsistir?

O artilheiro fitou-me durante alguns momentos.

- Não haverá mais nenhum daqueles abençoados concertos durante um milhão de anos, ou qualquer coisa desse género; não haverá nenhuma Academia Real das Artes nem acepipes nos restaurantes. Se procura divertir-se, creio que esse tempo já passou. Se tem maneiras cerimoniosas, se lhe repugna comer ervilhas com faca ou pronunciar mal as palavras, é melhor deitar fora essas maneiras... De futuro, não valem de nada.

- Quer dizer...

- Quer dizer que os homens como eu vão continuar a viver... por amor à espécie. Afirmo-lhe que estou firmemente decidido a viver. E, se não estou em erro, também você, em breve, mostrará o que existe dentro de si. Não vamos ser exterminados, nem tão-pouco apanhados, cevados e criados como um boi pachorrento. Diabo! Pense naqueles répteis castanhos!

- Você não quer dizer que...

- Quero. Vou continuar. Espezinhados. Pensei em tudo. Cheguei a esta conclusão. Nós, homens, fomos derrotados. Não temos conhecimentos bastantes. Temos de aprender antes que se nos depare uma oportunidade. E temos de viver e de conservar a nossa independência enquanto aprendemos. Tente compreender! É isto que temos de fazer.

Fitei-o, atónito, e senti-me encorajado pelo seu ar de firme determinação.

- Meu Deus! - gritei. - Mas você é mesmo um homem! - E, num impulso, apertei-lhe a mão.

- Eh! - exclamou ele, de olhos a luzir. - Sei raciocinar, hem?

- Continue - disse eu.

- Bem, os que quiserem escapar têm de andar depressa. Tome nota: nem todos fomos feitos para ser animais selvagens; e é o que vai acontecer. É por isso que tenho estado a observá-lo. Tenho as minhas dúvidas. Você é delgado. Não sabia quem você era, compreende? nem tão-pouco que tinha estado soterrado. Todos estes: a espécie de gente que vivia nestas casas, aqueles abençoados empregaditos que estavam habituados a viver à sua maneira - não teriam préstimo algum. Não têm a mínima centelha de espírito - nenhuns sonhos ambiciosos nem orgulho; e um homem destes - Meu Deus! - que é, além de um animal apavorado e cauteloso? Costumavam por assim dizer, escapulir-se para o trabalho - tenho visto centenas deles de pequeno-almoço na mão, a correr como selvagens lustrosos para apanharem o comboio de tarifa reduzida, com receio de serem despedidos se o perderem; se são empregados de comércio, receiam constantemente ter a maçada de compreender; escapam-se com medo de não chegar a tempo para o jantar; ficam em casa depois de jantar, com medo das ruas dos subúrbios, e dormem com as esposas não porque as desejem, mas porque tinham algum dinheiro que lhes daria um pouco de segurança na sua mesquinha e miserável fuga precipitada através do mundo. Seguro de vida e um pequeno investimento com medo de acidentes. E, nos domingos - medo do outro mundo. Como se o inferno tivesse sido feito para os coelhos. Pois bem, os indivíduos deste género vão considerar os marcianos como um dom do céu. Jaulas confortáveis, comida de engorda, criação cuidadosa, nenhumas preocupações. Depois de uma semana de fuga, como animais acossados, de estômagos vazios, aproximar-se-ão e deixar-se-ão apanhar de boa vontade. Depressa se aclimatarão. Perguntarão a si mesmos o que as pessoas faziam antes de os marcianos tomarem conta deles. E os madraços que passam a vida no bar, peralvilhos e cantores... imagino-os facilmente - disse ele, com uma espécie de sombrio deleite. - Perderão toda a réstia de sentimento e de religiosidade. Há centenas de coisas que vi com os meus próprios olhos e que só comecei a compreender claramente nestes últimos dias. Muitos vão tomar as coisas tal como elas são - gordos e estúpidos; e muitos outros deixar-se-ão imbuir de uma espécie de sensação de que tudo está errado, e de que têm de fazer qualquer coisa. Não importa que o aspecto actual das coisas leve muita gente a sentir que tem de fazer qualquer coisa; os fracos e aqueles que se deixam enfraquecer envolvidos numa teia de raciocínios complicados, seguem sempre uma espécie de religião não-te-rales, muito piedosa e superior, e submetem-se à perseguição e à vontade de Deus. É muito provável que você tenha assistido às mesmas coisas.  energia soprada por uma rajada de cobardia e aproveitada às avessas. Essas gaiolas vão estar cheias de salmos, hinos e piedade. E os que não forem tão simples, trabalharão por um pouco de... como se diz?, erotismo. Fez uma pausa. É muito provável que os marcianos transformem alguns deles em animais domésticos; que lhes ensinem a fazer habilidades - quem sabe?-, que se mostrem sentimentais para com o bicho-rapazinho que cresceu e tem de ser morto. E talvez treinem alguns para nos darem caça.

- Não – exclamei -, é impossível! Nenhum ser humano...

- De que serve continuarmos a mentir a nós próprios? - proferiu o artilheiro. - Há homens que o fariam de boa vontade. É insensato afirmar que não existem!

Rendi-me à sua convicção.

- Se vierem atrás de mim - disse ele. - Meu

- Deus, se vierem atrás de mim! - Mergulhou numa sombria meditação.

Meditei durante alguns momentos acerca do que ele dissera. Não conseguia descortinar nenhum argumento que pudesse opor ao raciocínio deste homem. Nos dias anteriores à invasão, ninguém teria posto em dúvida a minha superioridade intelectual sobre ele - eu, um escritor declarado e reconhecido de temas filosóficos, e ele, um soldado vulgar; e, no entanto, ele já formulara uma situação que eu ainda mal tinha compreendido.

- Que tenciona fazer? - perguntei-lhe, daí a momentos.- Quais são os seus planos?

Hesitou.

- Bem o problema é este - disse -, que devemos fazer? Temos de inventar um tipo de vida que permita aos homens viver e procriar, e que seja suficientemente segura para cuidar das crianças. Sim - espere um momento, pois já lhe explico melhor o que acho que deve ser feito. A domesticação dos nossos semelhantes será igual à de qualquer animal; dentro de algumas gerações, serão grandes, belos, saudáveis, estúpidos... lixo! Nós, os animais bravios, corremos o risco de nos tornarmos selvagens - degenerando numa espécie de ratazana grande e selvagem... Compreende, a vida que proponho é uma vida subterrânea. Tenho estado a pensar acerca dos esgotos. Como é natural, aqueles que não conhecem esgotos pensam em coisas horríveis; mas, debaixo desta cidade de Londres, há quilómetros e quilómetros - centenas de quilómetros -, e alguns dias de chuva, com Londres deserta, deixá-los-ão frescos e limpos. Os esgotos principais são bastante grandes e arejados para qualquer pessoa. Além disso, há caves, casernas, armazéns que podem ser ligados aos esgotos por meio de corredores. E os túneis dos caminhos de ferro e as passagens subterrâneas. Hem? Começa a compreender? Formaremos um bando - homens válidos, de cabeça no seu lugar. Não vamos escolher qualquer lixo que ande por aí. Os enfezados não nos interessam.

- Nem eu, quer você dizer?

- Bem, isto é conversar, não é verdade?

- Não vale a pena discutirmos isso. Continue.

- Aqueles que não estão dispostos a obedecer a ordens. Também precisamos de mulheres válidas e de cabeça no seu lugar - mães e professoras. Não queremos senhoras lânguidas, de olhos revirados. Não podemos ter entre nós nenhum fraco ou imbecil. A vida é novamente real e os inválidos são um estorvo e são nocivos: têm de morrer. Devem morrer. Devem estar dispostos a morrer. Afinal de contas, é uma espécie de deslealdade, viver e corromper a raça. E não podem ser felizes. Além disso, morrer não é assim tão terrível como se pensa: a cobardia é que dá esse aspecto à morte. Vamos reunir-nos em todos os sítios de que falei. O nosso distrito será Londres. E até poderemos dar uma olhadela e passear a descoberto quando os marcianos se forem embora. Talvez possamos jogar críquete. É assim que vamos salvar a raça. Hem? Será possível? Mas salvar a raça não é nada em si mesmo. Como digo, é apenas ser-se rato. O importante é salvar os nossos conhecimentos e aumentá-los. Nesse plano, entram homens como você. Há livros, há modelos. Temos de construir lugares seguros e amplos, subterrâneos, e reunir todos os livros que pudermos; não novelas e porcarias de poesia, mas ideias, livros de ciência. É aí que os homens como você são precisos. Temos de ir ao Museu Britânico e levar todos aqueles livros. Em particular, temos de conservar a nossa ciência - aprender mais. Temos de observar os marcianos. Alguns de nós têm de servir de espias, talvez eu mesmo, quando tudo estiver a funcionar; têm de deixar-se apanhar, quero eu dizer. E o importante é deixarmos os marcianos sozinhos. Nem sequer devemos espreitá-los às escondidas. Se passarem pelo nosso caminho, fugiremos. Devemos mostrar-lhes que não representamos nenhum perigo para eles. Sim, eu sei. Mas eles são coisas inteligentes e não devem querer perseguir-nos se tiverem o que querem, e pensarão que não somos mais do que vermes inofensivos.

O artilheiro fez uma pausa e pousou no meu braço uma mão bronzeada.

- No fim de contas talvez não precisemos de aprender muito. Imagine isto: quatro ou cinco das suas máquinas de combate, de súbito levantam voo - raios ardentes à esquerda e à direita e nem sequer um marciano no interior. Nenhum marciano, mas homens - homens que aprenderam a fazê-lo. Isso pode acontecer ainda no meu tempo - esses homens. Imagine que tem uma dessas coisas sedutoras, com os seus raios da morte de longo alcance, a funcionar! Imagine que os dominou! Que importância teria ficar feito em bocadinhos depois de uma proeza destas? Calculo como os marcianos abrirão os seus belos olhos! Não os vê, homem? Não os vê a fugir, a fugir, a bufar, a soprar e a chiar, procurando refúgio nos seus instrumentos metálicos? Zás, bangue, pum, zás! Tal como eles o manobram actualmente, o Raio da Morte sibila e, vejam... o homem recuperou o que lhe pertence.

Durante alguns momentos, o arrojo imaginativo do artilheiro e a segurança e a coragem de que dava mostras dominaram inteiramente os meus pensamentos. Acreditei, sem hesitar, nas suas profecias acerca do destino humano e na praticabilidade dos seus planos assombrosos. O leitor que me julgar crédulo e louco não se deve esquecer de que está a ler tranquilamente, concentrado, ao passo que eu, acocorado entre os arbustos, de ouvido atento ao mínimo rumor, estava dominado pelo medo.

Conversámos neste tom durante o resto da manhã e, mais tarde, abandonámos os arbustos e esquadrinhámos o céu à procura dos marcianos. Em seguida, dirigimo-nos precipitadamente para a casa de Putney Hill que lhe servia de covil. Era a carvoeira do sítio, e quando vi o resultado do seu trabalho durante uma semana - uma toca que mal tinha dez metros de comprimento, pela qual tencionava atingir o esgoto principal de Putney Hill - suspeitei pela primeira vez do abismo que existia entre os seus sonhos e as suas capacidades. Era um buraco que eu poderia escavar num único dia. Mas ainda acreditava nele o bastante para o ajudar desde manhã à tarde no trabalho de escavação. Utilizámos um carrinho de mão e atirávamos a terra que removíamos para o fogão de cozinha. Refrescámo-nos com uma lata de sopa de cabeça de vitela e vinho que se achavam na cozinha adjacente. É curioso notar que me tenha sentido aliviado da estranheza dolorosa do mundo ao executar este serviço monótono. Enquanto trabalhávamos, dei voltas na cabeça ao seu projecto e começaram a brotar objecções e dúvidas; mas trabalhei ali durante toda a manhã, de tal modo me bastava ter novamente um objectivo. Ao cabo de uma hora de trabalho, comecei a especular acerca da distância que nos separava da cloaca e das possibilidades que tínhamos de falhar. A minha preocupação imediata referia-se à necessidade de escavarmos este comprido túnel, quando se poderia chegar imediatamente ao cano de esgoto, bastando, para isso, descer por uma das aberturas, e voltar para casa pelo mesmo caminho. Também me parecia que a casa fora mal escolhida, pois requeria, inutilmente, um túnel muito comprido. E, no momento preciso em que começava a ponderar estes factos, o artilheiro interrompeu o seu trabalho e fitou-me.

- Estamos a trabalhar bem - disse. - Acho que chegou a altura de irmos ao telhado dar uma olhadela.

Preparava-me para o seguir. Após uma breve hesitação, ele pegou novamente na pá. Bruscamente, fui assaltado por uma ideia.

- Por que razão andava você a vaguear pelo baldio, em vez de estar aqui? - perguntei.

- Fui tomar ar - respondeu. - Nessa altura, estava de regresso. É mais seguro de noite.

- Mas, o trabalho?

- Oh, não se pode estar sempre a trabalhar - respondeu ele, e, num curto instante, compreendi o verdadeiro carácter do homem. Hesitou durante alguns momentos, segurando a pá.

- Temos de ir agora - disse -, pois se algum se aproximar daqui, ouve o ruído das pás e cai-nos em cima sem darmos por isso.

Eu já estava disposto a protestar.

Subimos ao telhado e observámos as imediações da casa, empoleirados numa escada de mão. Como não se via nenhum marciano, aventurámo-nos a subir para cima das telhas, e deslizámos para debaixo do resguardo do parapeito. Desta posição, a maior parte de Putney ficava escondida por um pequeno bosque, mas podíamos ver o rio, em baixo, uma massa espumosa de plantas vermelhas e as águas do curso inferior do Lambeth, transbordantes e vermelhas. As trepadeiras encarnadas envolviam as árvores nas vizinhanças do velho palácio e os seus ramos alongavam-se, delgados e ressequidos, com folhas encarquilhadas, por vezes em cachos. Era estranho como estas coisas dependiam inteiramente da água corrente para a sua propagação. Perto de nós, nenhum tinha ganho terreno; laburnos, cravos de maio, bolas de neve e arborvitae brotavam dos loureiros e das hortênsias, verdes e brilhantes, banhados pelo sol. Defronte de Kensington subia um fumo denso, que conjuntamente com um nevoeiro azulado ocultava as colinas do norte.

O artilheiro começou a falar-me acerca do destino das pessoas que permaneciam em Londres.

- Certa noite, na semana passada - disse -, alguns loucos arranjaram a luz eléctrica e toda a Regent Street e o Circus resplandeciam, formigando de ébrios, rubicundos e esfarrapados, homens e mulheres que dançaram e gritaram até de madrugada. Isto foi-me contado por um homem que se encontrava lá. E, quando nasceu o dia, viram que uma máquina de combate se achava perto do Laugham, observando-os. Só Deus sabe há quanto tempo estava ali. Encaminhou-se para eles e agarrou perto de uma centena, demasiado embriagados ou assustados para fugirem.

- Que imagem grotesca de uma época que nenhuma história poderá alguma vez descrever completamente!

Em seguida, em resposta às minhas perguntas, voltou de novo aos seu planos grandiosos. Estava cada vez mais entusiasmado. Referiu-se com tanta eloquência à possibilidade de capturar uma máquina de combate que quase acreditei nele novamente. Mas, agora que começava a compreender alguma coisa do seu carácter, podia adivinhar a importância que ele dava a não fazer nada precipitadamente. E notei que desta vez não fazia questão em ser ele, pessoalmente, a capturar uma máquina de combate e a lutar no seu interior.

Passados alguns momentos descemos à carvoeira. Nenhum de nós parecia disposto a continuar a escavação e, quando sugeri que comêssemos, não me achava nada relutante a fazê-lo. Ele tornou-se de súbito muito generoso e, depois de comermos, saiu e regressou com alguns charutos excelentes. Acendemo-los e o optimismo jorrou. Ele estava disposto a encarar a minha chegada como uma ocasião especial.

- Há algum champanhe na carvoeira - disse.

- Poderemos escavar melhor com este Borgonha das margens do Tamisa - respondi.

- Não - disse ele. - Você hoje é meu hóspede. Champanhe! Meu Deus! Temos uma tarefa bastante pesada à nossa frente! Vamos descansar e ganhar forças enquanto nos for possível. Olhe para estas mãos cheias de bolhas!

E, prosseguindo na sua ideia de um feriado, insistiu em jogarmos às cartas quando acabámos de comer. Ensinou-me a jogar, e dividimos Londres ao meio, cabendo-me o norte e a ele o sul. Por muito grotesco e louco que isto possa parecer ao leitor sóbrio, é absolutamente verdadeiro e, mais curioso ainda, achei este jogo e vários outros muito interessantes.

Que estranha é a mente do homem! Com a nossa espécie à beira da exterminação ou de uma degradação pavorosa, nenhum futuro feliz à nossa frente, antes a possibilidade de uma morte horrível, estávamos ali sentados, acompanhando a sorte dos cartões pintados, jogando o “trunfo” com um vivo prazer! Mais tarde, ele ensinou-me a jogar poker e eu ganhei-lhe dois jogos renhidos de xadrez. Quando escureceu, decidimos arriscar-nos e acendemos uma lâmpada.

Depois de uma série interminável de jogos, ceámos e o artilheiro acabou o champanhe. Continuámos a fumar charutos. Ele já não era o enérgico regenerador da sua espécie que eu encontrara de manhã. Continuava optimista, mas o seu optimismo era menos cinético, mais reflectido. Recordo-me que se referiu longa e monotonamente à minha saúde, mostrando-se inquieto. Peguei num charuto e subi as escadas para ver as luzes de que ele tinha falado, que chamejavam com um verde tão vivo ao longo das colinas de Highgate.

A princípio, fitei estupidamente o vale de Londres. As colinas setentrionais estavam mergulhadas na escuridão; as luzes, perto de Kensington, espargiam clarões avermelhados e, de vez em quando, uma língua de chamas vermelho-laranja rompia e desvanecia-se no azul-escuro da noite. Todo o resto de Londres estava mergulhado na escuridão. Em seguida, mais perto, avistei uma luz estranha, um clarão fosforescente, pálido e violeta púrpura, estremecendo sob a brisa nocturna. Durante alguns momentos não consegui identificá-la, mas depois percebi que esta débil irradiação deveria provir da vegetação vermelha. Quando me apercebi deste facto, o meu sentido adormecido de espanto, o meu sentido de proporção das coisas despertou de novo. Relanceei o olhar para Marte, vermelho e claro, luzindo muito alto a ocidente e, depois, perscrutei longa e intensamente a escuridão que envolvia Hampstead e Highgate.

Deixei-me ficar durante muito tempo em cima do telhado, pensando nas grotescas mutações verificadas ao longo do dia. Recordei os estados mentais que atravessara desde a oração da meia-noite até à loucura do jogo de cartas. Sofri uma violenta revulsão de sentimentos. Lembro-me de que atirei fora o cigarro com um certo simbolismo pródigo. A loucura voltou a tomar posse de mim, com um exagero berrante. Sentia-me um traidor à minha mulher e à minha espécie; estava cheio de remorsos. Resolvi abandonar este estranho e indisciplinado sonhador de grandes coisas à sua bebida e glutonice, e partir para Londres. Julgava encontrar aí a melhor oportunidade de saber o que os marcianos e os meus camaradas estariam a fazer. Achava-me ainda em cima do telhado quando nasceu a tardia lua rosada.

 

Londres morta

Após me ter separado do artilheiro, desci a colina e, perto de High Street, atravessei a ponte que conduz a Fulham. Nesta região, a vegetação vermelha era luxuriante e quase obstruía a rodovia da ponte; no entanto, as folhas já estavam embranquecidas, devido à epidemia que começou a eliminá-las tão rapidamente.

Na esquina da viela que conduz à estação de Putney Bridge, vi um homem estendido no chão, tão enegrecido pela poeira negra que mais parecia um limpa-chaminés; embora se encontrasse vivo, estava irremediável e mudamente embriagado. Não consegui que dissesse nada senão pragas; além disso, desferia sobre a minha cabeça murros violentos. Creio que teria ficado ao pé dele, se não fosse a expressão brutal do seu rosto.

Passada a ponte, havia poeira negra ao longo da estrada, e tornava-se mais espessa em Fulham. As ruas estavam horrivelmente silenciosas. Encontrei comida - azeda, dura e bolorenta, mas suficientemente comestível - numa padaria. Mais próximo de Walham Green, não havia poeira nas ruas, e passei por uma fileira de casas brancas que ardiam; o crepitar das chamas ouvia-se nitidamente. Mais adiante, no caminho para Brompton, as ruas estavam de novo silenciosas.

Aqui, enfrentei mais uma vez a poeira negra; cobria as ruas e os cadáveres. Vi cerca de uma dezena de corpos ao longo de Fulham Road. Estavam mortos havia muitos dias, pelo que me afastei rapidamente deles. A poeira negra cobria-os por completo e diminuía-lhes os contornos. Um ou dois tinham sido semi-devorados pelos cães.

Os locais onde não havia poeira negra recordavam, curiosamente, um domingo na cidade, com as lojas e as casas fechadas, as cortinas descidas, o abandono e a tranquilidade. Alguns sítios tinham sido saqueados, mas tratava-se quase sempre de lojas de mantimentos e de vinho. A montra de uma joalharia estava quebrada, mas, aparentemente, o ladrão tinha sido incomodado, pois um certo número de correntes de ouro e um relógio achavam-se espalhados no pavimento. Não me dei ao trabalho de lhes tocar. Mais adiante, encontrava-se uma mulher esfarrapada e enrodilhada no degrau de uma porta; a mão que lhe pendia sobre o joelho estava ferida e sangrava sobre o desbotado vestido castanho, e uma garrafa de champanhe formava uma poça no pavimento. Parecia dormir, mas estava morta.

Quanto mais penetrava no interior de Londres, mais profundo se tornava o silêncio. Mas não era propriamente a tranquilidade da morte - era a calma do suspense, da expectativa. Em qualquer momento, a destruição que já tinha chamuscado a região a noroeste da metrópole e aniquilara Ealing e Kilburn, poderia arremessar-se sobre estas casas e deixá-las transformadas em ruínas fumegantes. Era uma cidade condenada e desamparada.

Em South Kensington, não havia mortos nem poeira negra nas ruas. Foi perto de South Kensington que ouvi, pela primeira vez, o bramido. Insinuou-se quase imperceptivelmente nos meus sentidos. Era uma alternância soluçante de duas notas: “Ula, ula, ula, ula”, que se repetiam incessantemente. Cresceu em volume quando atravessei as ruas em direcção ao norte, e as casas e as construções pareceram novamente amortecê-lo e silenciá-lo. Desceu, muito alto, ao longo de Exhibition Road. Parei, fitando na direcção de Kensington Gardens, pensando neste queixume estranho e longínquo. Era como se aquele imenso deserto de casas tivesse encontrado uma voz que exprimisse o seu intenso medo e solidão.

“Ula, ula, ula, ula”, choravam as sobre-humanas ondas de som, as formidáveis notas, varrendo a avenida larga e banhada pelo sol, entre os altos edifícios que a bordavam. Virei para norte, maravilhado, em direcção aos portões de ferro de Hyde Park. Tinha a vaga ideia de arrombar o Museu de História Natural e procurar orientar-me do topo das torres, com o fim de ver para além do parque. No entanto, decidi manter-me no solo, onde era possível esconder-me rapidamente, e, assim, subi Exhibition Road. Todas as grandes mansões que ladeavam a estrada estavam abandonadas e silenciosas e os meus passos ecoavam contra as fachadas das casas. Ao cimo, próximo do portão do parque, deparou-se-me uma estranha visão: um autocarro voltado, e o esqueleto, limpo de carne, de um cavalo. Isto deixou-me perplexo durante alguns momentos e, em seguida, segui pela ponte sobre a Serpentine. A voz crescia e crescia, longe, para lá das árvores, embora não conseguisse ver nada por cima das casas do lado norte do parque, salvo a neblina de fumo que se elevava a noroeste.

“Ula, ula, ula, ula”, gritava a voz, que provinha, ao que me parecia, da zona de Regent’s Park. O grito desolador fazia-me pensar. O ânimo que me apoiava desfaleceu. O queixume apoderou-se de mim. Descobri que me achava intensamente fatigado, com os pés doridos, e de novo faminto e cheio de sede.

Já passava do meio-dia. Por que motivo deambulava, só nesta cidade da morte? Por que razão estava sozinho quando Londres inteira jazia em câmara-ardente na sua mortalha sombria? Senti-me intoleravelmente só. Perpassavam pela minha mente velhos amigos que esquecera havia anos. Pensei nos venenos das farmácias, nos licores armazenados pelos comerciantes de vinhos; recordei as duas criaturas encharcadas, desesperadas, que, pelo que sabia, compartilhavam comigo Londres.

Cheguei a Oxford Street atravessando o Marble Arch e também aqui havia poeira negra e vários corpos e um odor diabólico e ominoso que provinha dos respiradouros das caves de algumas casas. O calor provocado pela longa caminhada enchera-me de sede. Com infinitos cuidados, consegui arrombar uma cervejaria e arranjar comida e bebida. Depois de comer, senti-me cansado e entrei numa sala de estar situada atrás do bar e dormi numa poltrona preta, de crina de cavalo, que se achava ali.

Ao acordar, o lúgubre bramido vibrava novamente nos meus ouvidos, “Ula, ula, ula, ula”. Era já crepúsculo e, depois de ter achado no bar alguns biscoitos e um queijo - encontrara um guarda-comida, mas só continha vermes -, vagueei através dos silenciosos bairros residenciais em direcção a Baker Street - só me lembro de Portman Square - e, assim, desemboquei finalmente em Regent’s Park. E, quando emergi no topo de Baker Street, vi ao longe, para lá das árvores, recortada na claridade do ocaso, a carcaça do gigantesco marciano do qual provinha este bramido. Eu não estava aterrorizado. Aproximei-me dele como se se tratasse de um facto natural. Fitei-o durante alguns momentos, mas não se moveu. Parecia estar a bramir, imóvel, por qualquer razão que eu não conseguia descobrir.

Tentei formular um plano de acção. Aquele som contínuo de “Ula, ula, ula, ula” confundia-me. Talvez estivesse demasiado cansado para ter medo. Na realidade, este grito monótono despertava-me mais curiosidade do que medo. Voltei para trás e entrei em Park Road, a fim de ladear o parque, prossegui sob o resguardo das varandas e, de Jahn’s Wood, observei este marciano imóvel e queixoso. A uns duzentos metros de Baker Street, ouvi um coro de latidos e vi, em primeiro lugar, um cão com um pedaço de carne vermelha em putrefacção nas mandíbulas. O cão corria apressadamente na minha direcção, perseguido por um bando de animais famintos; descreveu um largo círculo para me evitar, como se receasse que eu pudesse mostrar-me um novo concorrente. Quando os latidos se desvaneceram na avenida silenciosa, voltou a destacar-se o som queixoso de “Ula, ula, ula, ula”.

Alcancei a manipuladora arruinada que se encontrava a meia distância da estação de St. John. De início, julguei que tinha desabado uma casa sobre a estrada. Só quando penetrei entre as ruínas vi, com um sobressalto, o Sansão mecânico por terra, com os tentáculos torcidos, despedaçados e emaranhados entre as ruínas que provocara. A parte dianteira estava despedaçada. Era como se tivesse embatido cegamente contra a casa e ficasse submergido nas ruínas que provocara. Parecia que isto se devia ao facto de uma manipuladora ter escapado ao controle do seu tripulante. Não pude escalar as ruínas para vê-lo, e já estava tão escuro que não se via o sangue que lhe manchava o assento nem a cartilagem que os cães tinham mordido.

Cada vez mais obcecado pelo que vira, caminhei apressadamente em direcção a Primrose Hill. Mais adiante, através de uma clareira nas árvores, vi outro marciano, tão imóvel como o primeiro, silencioso, no parque vizinho ao Jardim Zoológico. Um pouco além das ruínas, perto da manipuladora despedaçada, avistei de novo as plantas vermelhas e encontrei, no Regent’s Canal, uma massa esponjosa de plantas vermelho-escuras.

Ao atravessar a ponte, deixou de ouvir-se, bruscamente, o som de “Ula, ula, ula, ula”. Fez-se um silêncio tão profundo como o que se segue ao ribombar de um trovão.

As sombrias casas das imediações erguiam-se, indistintas, altas e escuras; perto do parque, as árvores escureciam. À minha volta, por todo o lado, as plantas vermelhas brotavam das ruínas, ondulando. A noite, mãe do medo e do mistério, aproximava-se. No entanto aquela voz soara na solidão, a desolação fora suportável; graças a ela, Londres parecia viver ainda, e o sentido de vida que me cercava apoiara-me. Depois, uma súbita mutação e um silêncio profundo. Nada mais, além desta sombria calma.

À minha volta, Londres fitava-me fantasmagoricamente. As janelas das casas brancas eram como as órbitas de crânios. A minha imaginação descobria milhares de inimigos silenciosos que se moviam em meu redor. O terror apoderou-se de mim, um horror da minha temeridade. Para a frente, a estrada tornava-se negra como azeviche, como se estivesse alcatroada, e divisei uma forma contorcida, estendida no caminho. Não tive coragem de continuar. Voltei pela estrada de St. John’s Wood, e fugi precipitadamente desta quietude insuportável, na direcção de Kilburn. Escondi-me da noite e do silêncio até muito depois da meia-noite, num abrigo de cocheiros, em Harrow Road. Mas a minha coragem voltou antes da madrugada, e, quando as estrelas ainda luziam no céu, encaminhei-me novamente para Regent’s Park. Perdi-me nas ruas e vi, ao fundo de uma comprida avenida, à meia-luz da madrugada, os contornos de Primrose Hill. No topo, subindo para as estrelas que se desvaneciam, erecto e imóvel, como os outros, achava-se um terceiro marciano.

Apoderou-se de mim uma louca determinação. Morreria e acabaria com tudo isto e, deste modo, poupar-me-ia a maçada de me suicidar. Continuei a avançar, temerariamente, na direcção deste titã e, depois, quando me aproximei e a luz se tornou mais intensa, vi uma multidão de corvos que voavam em círculo sobre a carcaça. Ao ver isto, sobressaltei-me, e comecei a correr ao longo da estrada.

Precipitei-me através das plantas vermelhas que obstruíam St. Edmund’s Terrace (mergulhei até ao peito numa torrente de água que escorria dos canos na direcção de Albert Road) e emergi no gramado ao nascer do sol. Tinham sido erguidas, perto do topo da colina, grandes barreiras, tornando-a num vasto reduto - era a última e a mais larga praça construída pelos marcianos - e, por detrás destes montículos, subia uma delgada coluna de fumo que se desenhava no céu. No horizonte, surgiu um cão a correr impetuosamente, e desapareceu. O pensamento que se apoderara de mim tornou-se mais real, mais verosímil. Não sentia medo algum, apenas uma exaltação selvagem e trémula, quando escalei a colina em direcção ao monstro imóvel. No exterior da carcaça estavam suspensas tiras delgadas de castanho, que os pássaros famintos debicavam e dilaceravam.

Em seguida, escalei a plataforma de terra e detive-me no topo: na minha frente achava-se o interior do reduto. Era um espaço imenso, com máquinas gigantescas aqui e ali, vastos montões de material e estranhas construções. E, espalhados por ali, alguns nas suas máquinas de guerra, viradas, outros nas manipuladoras agora rígidas, e uma dúzia deles enfileirados, rígidos e silenciosos, estavam os marcianos - mortos! - aniquilados pela bactéria da doença e da putrefacção contra a qual os seus organismos não estavam preparados; aniquilados como o tinham sido as plantas vermelhas, depois de todos os engenhos humanos terem falhado, pelas coisas mais humildes que Deus, na sua sabedoria, colocou na Terra.

Porque fora isto que acontecera, como, certamente, eu e muitos homens teríamos previsto, se os nossos cérebros não estivessem cegos pelo terror e pela desgraça. Estes gérmens de doença tinham cobrado direitos à Humanidade desde o começo das coisas - tinham cobrado direitos aos nossos antepassados pré-humanos mal a vida brotou na Terra. Mas, graças a esta selecção natural da nossa espécie, desenvolveu-se em nós o poder de resistência; não sucumbimos a nenhuns gérmenes sem uma luta, e a muitos deles - os que causam a putrefacção da matéria morta, por exemplo - os nossos corpos vivos são totalmente imunes. Mas não existem bactérias em Marte e, mal estes invasores chegaram, mal comeram e beberam, os nossos aliados microscópicos começaram a trabalhar para a sua destruição. Quando eu os observara já estavam irremediavelmente condenados; embora andassem de um lado para o outro, estavam a morrer e a apodrecer. Isto era inevitável. Pelo preço de um milhão de mortos, o homem comprou o seu direito de viver na Terra, e este pertence-lhe contra todos os forasteiros; continuaria a pertencer-lhe ainda que os marcianos fossem dez vezes maiores. Pois os homens não vivem nem morrem em vão.

Achavam-se espalhados por aqui e por ali cerca de cinquenta, naquela grande fortaleza que tinham construído, vencidos por uma morte que lhes deve ter parecido tão incompreensível como qualquer outra teria sido. Também para mim, nesse momento, esta morte era incompreensível. Tudo quanto sabia era que estas coisas, outrora vivas e tão terríveis para os homens, estavam mortas. Durante alguns momentos, julguei que se repetira a destruição de Senaque-rib, que Deus se tinha arrependido, que o Anjo da Morte os aniquilara durante a noite.

Fitava o fosso, e no meu coração repicavam sinos alegremente, tal como se o sol nascente incendiasse o mundo que me cercava com os seus raios. O fosso ainda se encontrava mergulhado na escuridão; os enormes engenhos, tão grandes e maravilhosos na sua potência e complexidade, tão cósmicos nas suas formas tortuosas, erguiam-se, fantástica, vaga e irrealmente das sombras para a luz. Uma multidão de cães (ouvia-os) lutava pelos corpos que jaziam, sombrios, nas profundezas do fosso, muito longe de mim. Na orla mais afastada do fosso, achatada, imensa e estranha, jazia a grande máquina de voar que eles tinham experimentado na nossa atmosfera densa quando o enfraquecimento e a morte os detiveram. A morte atingira-os no momento próprio. Ao ouvir um crocitar por cima da minha cabeça, fitei a imensa máquina de combate, que nunca mais lutaria, as esfarrapadas tiras vermelhas de carne que escorriam dos assentos virados, no topo de Primrose Hill.

Voltei-me e observei o fundo do declive da colina onde, aureolados agora por aves, se encontravam os outros dois marcianos que vira de noite, tal como a morte os encontrara. Um deles morrera gritando, porventura, para os seus companheiros; talvez fosse o último a morrer, e a sua voz atroara continuamente até que a força do seu maquinismo se esgotou. Agora resplandeciam, inofensivas torres trípodes de metal brilhante, banhadas pelo sol nascente.

Em redor do fosso, salva como que milagrosamente da destruição eterna, estendia-se a grande Mãe das Cidades. Aqueles que apenas viram Londres envolta nas suas sombrias vestes de fumo mal podem imaginar a claridade límpida e a beleza do número atordoante de casas silenciosas.

A leste, por cima das ruínas enegrecidas de Albert Terrace e do pináculo estilhaçado da igreja, o sol brilhava, ofuscante, num céu límpido, e aqui e ali, algumas facetas na grande multidão de telhados capturavam a luz e resplandeciam com uma intensidade branca.

A norte, achavam-se Kilburn e Hampstead, azuis e formigantes de casas; a oeste, a grande cidade estava escurecida e, para sul, além dos marcianos, desenhavam-se sob o sol nascente as ondulações verdes de Regent’s Park, o Hotel de Laugham, a cúpula do Albert Hall, o Imperial Institute e as gigantescas mansões de Brompton Road, nítidas e diminuídas pela distância. As ruínas de Westminster erguiam-se, nebulosas, mais adiante. Longe, azuis, viam-se as colinas de Surrey e as torres do Crystal Palace brilhavam como duas barras de prata. A cúpula de St. Paul erguia-se, negra, sob o sol; vi pela primeira vez que estava machucada por uma vasta cavidade que se escancarava no sector oriental.

E, ao olhar para esta vasta extensão de casas, fábricas e igrejas, silenciosas e abandonadas; ao pensar nas numerosas esperanças e esforços, nas inumeráveis hostes de vidas que tinham construído este recife humano, e na rápida e implacável destruição que se abatera sobre tudo; ao compreender que a sombra desaparecera e que os homens poderiam viver de novo nas ruas, e que esta minha querida e imensa cidade morta voltaria, poderosa, à vida, senti uma vaga de emoção e estive quase a debulhar-me em lágrimas.

O tormento passara. Ainda nesse dia começaria o restabelecimento. Os sobreviventes do povo, dispersos pelo país - sem chefes, sem lei, sem comida, como carneiros sem pastor -, os milhões que tinham fugido pelo mar, começariam a regressar; o pulso de vida seria cada vez mais forte; bateria novamente nas ruas vazias e fluiria através das praças abandonadas. Por muito grande que tivesse sido a destruição, a mão do destruidor fora detida. Todas as ruínas descarnadas, os esqueletos enegrecidos das casas que se erguiam tão sombriamente sobre o verde da colina banhada pelo sol, ecoariam com as marteladas dos restauradores e ressoariam com as pancadas dos trolhas. Quando penso que estendi as mãos ao céu e comecei a agradecer a Deus! Daqui a um ano - pensei - daqui a um ano...

Com uma força arrebatadora, pensei em mim, na minha mulher, e na vida antiga de esperança e ternura que cessara para sempre.

 

Restos do naufrágio

E chegou agora o momento da parte mais estranha da minha história. No entanto, talvez não seja inteiramente estranha. Recordo, nítida, fria e vivamente, tudo quanto fiz naquele dia até me achar no topo de Primrose Hill, lamentando-me e louvando a Deus. Esqueci o que se passou em seguida.

Não me lembro de nada dos três dias seguintes. Soube depois que não fui a primeira pessoa que descobriu que os marcianos tinham morrido - bem longe disso! -, pois vários vagabundos como eu já tinham conhecimento desse facto na noite anterior. Um homem - o primeiro - fora a St. Martin’s-le-Grand e, enquanto eu me abrigava na barraca do abrigo dos cocheiros, achou meios de telegrafar para Paris. Desta cidade, as alegres notícias tinham corrido mundo; um milhar de cidades deprimidas por horríveis temores cintilaram, de súbito, de iluminações frenéticas; souberam em Dublim, Edimburgo, Manchester, Birmingham, na altura em que me encontrava à beira do fosso. Imediatamente, homens pulando de alegria, conforme me disseram, clamando e suspendendo o trabalho para trocar apertos de mãos e dar vivas, começaram a encher alguns comboios, mesmo tão perto como Crewe, para seguirem para Londres. Os sinos das igrejas, silenciosos durante uma quinzena, souberam de súbito as notícias e começaram a repicar por toda a Inglaterra. Homens em bicicletas, magros, desgrenhados, voaram ao longo de todos os caminhos, clamando a inesperada libertação, gritando as notícias às figuras do desespero, sombrias e pasmadas. E quanto à comida! Através do Canal, através do mar irlandês, através do Atlântico, vogavam velozmente os socorros, trigo, pão e carne. Naqueles dias, parecia que toda a navegação do mundo rumava para Londres. Mas não me lembro de nada disto. Vagueava - um homem enlouquecido. Dei por mim numa casa de gente amável que me encontrara no terceiro dia, errando, chorando e delirando através das ruas de St. John’s Wood. Disseram que estava a entoar uma cantilena qualquer acerca de “O último homem vivo! Hurrah! O último homem vivo!”. Embora estivessem muito preocupados com os seus próprios problemas, estas pessoas, cujos nomes não conheço apesar de desejar ardentemente expressar-lhes a minha gratidão, recolheram-me e protegeram-me de mim próprio. Aparentemente, tinham sabido por mim mesmo, durante os dias em que estive inconsciente, alguma coisa da minha história.

Muito docemente, quando recuperei a consciência, revelaram-me o que sabiam acerca do destino de Leatherhead. Dois dias mais tarde, soube que tinha sido destruída com todas as suas vidas por um marciano. Ao que parecia, aniquilara-a sem qualquer provocação, assim como um rapaz esmaga uma formiga numa mera demonstração de poder.

Eu era um homem solitário e eles foram muito amáveis para mim. Permaneci em casa deles durante os quatro dias que se seguiram à minha recuperação. Sentia entretanto uma ânsia vaga, cada vez maior, de ver mais uma vez o que restava da pequena vila que fora tão feliz e radiante no meu passado. Era um simples desejo doentio de me deleitar com a minha desgraça. Eles dissuadiram-me. Fizeram tudo quanto puderam para me afastar deste desejo mórbido. Mas, por fim, não pude resistir mais ao impulso e separei-me destes amigos de quatro dias, devo confessar, com lágrimas nos olhos. Saí novamente para as ruas que tinham estado recentemente tão escuras, tão estranhas e tão desertas.

Já formigavam de gente que regressava; havia mesmo, em alguns locais, lojas abertas e vi uma fonte da qual escorria água potável.

Lembro-me de como o dia me parecia zombeteiramente luminoso à medida que regressava, na minha peregrinação melancólica, à pequena casa de Woking; de como as ruas formigavam de gente e de como era animada a vida que transparecia nos movimentos em redor. Havia tantas pessoas por todo o lado, ocupadas em mil tarefas, que parecia inacreditável que tivesse morrido uma grande parte da população. Mas, depois, notei a cor amarelada da pele das pessoas com quem me cruzava, os cabelos desgrenhados dos homens, os seus olhos inchados e brilhantes e que um homem em cada dois envergava ainda os seus farrapos poeirentos. Todos os rostos mostravam uma de duas expressões - um entusiasmo e uma viva energia, ou uma resolução rígida. Se não fosse a expressão dos seus rostos, Londres pareceria uma cidade de mendigos. Nas sacristias distribuía-se, indiscriminadamente, pão enviado pelo Governo francês. Viam-se, lúgubres, as costelas de alguns cavalos. Polícias especiais, de rosto encovado, com distintivos brancos, estavam postados nas esquinas de todas as ruas. Vi poucos dos danos provocados pelos marcianos até chegar a Wellington Street, onde as plantas vermelhas brotavam dos suportes de Waterloo Bridge.

Também avistei, no ângulo da ponte, um dos contrastes vulgares daquela época grotesca - uma folha de papel que tremulava ao vento, numa moita de plantas vermelhas, perfurada por um pau que a mantinha presa. Era o placar do primeiro jornal que se voltava a publicar - o Daily Mail. Comprei um exemplar com um xelim enegrecido que encontrei nos bolsos. A maior parte estava em branco, mas o compositor solitário que o fizera divertira-se a fazer um esquema grotesco de um anúncio impresso a estereotipo, na última página. O texto que imprimira era sentimental: as organizações de notícias ainda não tinham conseguido restabelecer-se. Não li nada de novo, com excepção de que o exame dos mecanismos marcianos iniciado na semana anterior já chegara a resultados que se tinham revelado surpreendentes. Entre outras coisas, o artigo assegurava aquilo em que não acreditei na altura, que o “segredo de voo” fora descoberto. Em Waterloo havia comboios que transportavam gratuitamente as pessoas para suas casas. Os primeiros momentos de agitação já tinham passado. Havia poucas pessoas no comboio e eu não tinha vontade de conversar. Arranjei um compartimento só para mim e sentei-me de braços cruzados, fitando com tristeza a devastação banhada pelo sol que perpassava através das janelas. Precisamente no término, o comboio rolava aos solavancos sobre carris provisórios e de ambos os lados do caminho de ferro as casas eram ruínas enegrecidas. Vista de Clapham Junction, Londres parecia suja de poeira do Fumo Negro, apesar de dois dias de temporal e chuvadas e, em Clapham Junction, a linha também fora destruída; centenas de desempregados e lojistas trabalhavam lado a lado com os trabalhadores habituais, e continuámos depois de os carris terem sido recolocados apressadamente.

Daí em diante, a região mostrava-se sombria e estranha; em particular, Wimbledon sofrera bastante. Walton, graças aos seus pinhais, que tinham escapado às chamas, parecia o local menos atingido ao longo da linha. Wandle, Mole, todas as pequenas correntes de água eram um amontoado de plantas vermelhas com uma aparência entre a de carne de talho e a de repolhos em conserva. No entanto, os pinhais de Surrey estavam demasiado ressequidos devido às grinaldas das trepadeiras vermelhas. Além de Wimbledon, em algumas hortas, viam-se os montões de terra que rodeavam o sexto cilindro. Achava-se aí um certo número de pessoas e alguns sapadores atarefavam-se no local. Por oima, a Union Jack tremulava, oscilando alegremente sob a brisa matinal. Todas as hortas tinham um tom carmesim provocado pelas plantas vermelhas, uma vasta extensão de cor clara entremeada por sombras púrpura, que faziam arder a vista. Era um alívio infinito abandonar o cinzento chamuscado e o vermelho-escuro do primeiro plano e mergulhar a vista na suavidade azul e verde das colinas a leste.

Como, na gare de Woking, a linha do lado de Londres estava em reparação, desci na gare de Byfleet e tomei a estrada para Maybury. Passei perto do local onde eu e o artilheiro tínhamos conversado com os hussardos e também pelo sítio onde vira o marciano no meio do temporal. Aqui, movido pela curiosidade, fiz um desvio e encontrei, entre uma massa emaranhada de ramagens vermelhas, o cabriole empenado e partido; os ossos embranquecidos do cavalo estavam espalhados e roídos. Fitei durante um longo momento estes vestígios.

Em seguida, atravessei o pinhal, onde a vegetação vermelha me chegava, por vezes, até ao pescoço e fui informado de que o proprietário do Spotted Dog já fora sepultado; assim, tomei novamente o caminho para minha casa, passando pelo College Arms. Um homem, parado junto da porta aberta de uma casa de campo, saudou-me pelo meu nome quando passei.

Fitei a minha casa com um breve relâmpago de esperança que se desvaneceu imediatamente; a porta tinha sido forçada; estava aberta e escancarava-se lentamente à medida que me aproximava. Fechei-a novamente, com ruído. As cortinas do meu escritório tremulavam no exterior da janela, aberta, da qual eu e o artilheiro observáramos o romper do dia. Ninguém a fechara desde então. Os arbustos despedaçados achavam-se precisamente tal como os deixara havia cerca de quatro semanas. Cambaleei no hall, e a casa parecia vazia. A passadeira estava amarrotada e desbotada no sítio onde me agachara, molhado até aos ossos pelo temporal, na noite da catástrofe. Viam-se ainda as pegadas enlameadas que provocara ao subir as escadas.

Encaminhei-me para o escritório. Em cima da secretária, sob o pisa-papéis de selenite, achava-se ainda a folha que deixara na tarde da abertura do cilindro. Durante alguns instantes, reli as minhas teses abandonadas. Tratava-se de um ensaio acerca da provável evolução das Ideias Morais com o desenvolvimento do processo de civilização; a última frase era a abertura de uma profecia: “Dentro de cerca de duas centenas de anos”, escrevera, “é provável que...”

A frase terminava abruptamente. Recordei a minha incapacidade de me concentrar naquela manhã, mal passara um mês, e como tinha interrompido o trabalho com o fim de comprar ao ardina o Daily Chronicle. Lembrava-me de como descera ao portão do jardim quando ele chegou, e de ouvir a sua história bizarra acerca de “Homens vindos de Marte”.

Desci as escadas e entrei na sala de jantar onde encontrei carne de carneiro e pão, ambos estragados havia muito tempo, e uma garrafa de cerveja, precisamente tal como eu e o artilheiro a tínhamos abandonado. O meu lar estava deserto. Apercebi-me de como era louca a débil esperança que acalentara durante tanto tempo. E, nesse momento, aconteceu uma coisa estranha.

- Não vale a pena - dizia uma voz. - A casa está abandonada. Ninguém veio aqui durante os últimos dez dias. Não fique aqui a atormentar-se. Só você escapou.

Eu sentia-me alarmado. Teria proferido em voz alta os meus próprios pensamentos? Voltei-me. Atrás de mim, as persianas estavam abertas. Dei um passo na sua direcção, e olhei para fora.

E ali, tão maravilhados e receosos como eu, encontravam-se o meu primo e a minha mulher - a minha mulher, pálida e de rosto enxuto. Soltou um débil grito.

- Vim - disse ela. - Eu sabia... sabia... - Levou a mão à garganta e cambaleou. Dei um passo em frente e apertei-a nos meus braços.

 

Só posso lamentar, agora que estou a chegar ao termo da minha narrativa, ter tão poucas possibilidades de contribuir para a discussão das numerosas questões em debate que ainda não estão esclarecidas. Num dado aspecto, devo, certamente, ser alvo de críticas. O meu ramo de conhecimento é a filosofia especulativa. Os meus conhecimentos acerca da fisiologia comparada resumem-se a um ou dois livros, mas parece-me que as sugestões de Carver quanto à causa da rápida morte dos marcianos são tão prováveis que podem ser encaradas quase como uma conclusão provada. Admiti-as no corpo da minha narração.

De qualquer modo, em todos os corpos dos marcianos que foram examinados depois da guerra não foram encontradas nenhumas bactérias além das que já são conhecidas nas espécies terrestres. O facto de não terem enterrado nenhum dos seus mortos e a carnificina despreocupada que perpetraram também apontam para a sua completa ignorância do processo de putrefacção. Mas, embora pareça tão provável, isto não está, de modo algum, provado.

A composição do Fumo Negro, que os marcianos empregaram com um efeito tão mortal, também não é conhecida, e o gerador dos raios ardentes continua a ser um enigma. Os terríveis desastres que se verificaram nos laboratórios de Ealing e South Kensing-ton desencorajaram os analistas de novas investigações sobre o assunto. A análise espectral da poeira negra indica, indiscutivelmente, a presença de um elemento desconhecido com três traços brilhantes sobre um fundo verde; é possível que este se combine com argónio, formando um composto que actua imediatamente com efeitos mortais sobre alguns constituintes do sangue. Mas estas especulações não provadas devem despertar pouco interesse ao leitor comum a quem se dedica este livro. Nenhuma das escórias castanhas que desceram o Tamisa depois da destruição de Shepperton foi examinada na altura, e não apareceu mais nenhuma.

Já descrevi os resultados do exame anatómico dos marcianos, tão perfeito quanto foi possível realizar depois do que os cães lhes fizeram. No entanto, todos eles apresentam analogias com o magnífico e quase completo exemplar conservado em álcool, que se encontra no Museu de História Natural, e com os esboços inumeráveis que se fizeram deles. Para além disto, o interesse pela sua fisiologia e estrutura é puramente científico.

Uma questão de interesse mais grave e universal é a possibilidade de outro ataque dos marcianos. Acho que não se está a dar a devida atenção a este aspecto do caso. Actualmente, o planeta Marte está em conjunção, mas prevejo, pela minha parte, uma renovação da sua aventura em todas as oposições. De qualquer modo, devíamos estar preparados. Parece-me que seria possível definir a posição da arma que dispara os cilindros, manter em vigilância contínua essa parte do planeta e prever o início do próximo ataque.

Em qualquer caso, o cilindro poderia ser destruído com dinamite ou artilharia antes que estivesse suficientemente arrefecido para permitir a saída dos marcianos, ou poderiam ser massacrados mal se desenrascasse um parafuso. Creio que perderam uma vantagem considerável ao falhar a sua primeira surpresa. Provavelmente, encaram o problema da mesma maneira.

Lessing expôs razões excelentes para supor que os marcianos tenham conseguido, na verdade, efectuar um desembarque no planeta Vénus. Há sete meses, Vénus e Marte encontravam-se em alinhamento com o Sol; isto é, do ponto de vista de um observador de Vénus, Marte estava em oposição. Imediatamente a seguir, uma luminosidade peculiar e marcas sinuosas apareceram na parte não iluminada do planeta e, quase que ao mesmo tempo, uma débil mancha escura de características igualmente sinuosas foi detectada numa fotografia do disco marciano. É preciso observar os esboços destes fenómenos para apreciar inteiramente a notável semelhança das suas características.

De qualquer modo, esperemos ou não outra invasão, os nossos pontos de vista acerca do futuro da Humanidade devem sofrer uma grande modificação em consequência destes acontecimentos. Sabemos agora que não podemos olhar este planeta como uma fortaleza e um lugar onde o Homem poderá residir em segurança; nunca podemos prever o bem ou o mal que pode chegar de súbito até nós, vindo do espaço; é possível que nos mais latos desígnios do universo esta invasão dos marcianos se venha a mostrar benéfica para os homens: roubou-nos aquela serena confiança no futuro que é a mais fértil fonte de decadência; os dons que ofertou à ciência humana são enormes e contribuiu grandemente para promover a concepção da comunidade humana. É possível que os marcianos, através da imensidade do espaço, tenham observado o destino destes seus pioneiros, tenham aprendido a sua lição e que tenham achado no planeta Vénus uma colónia mais segura. No entanto, seja como for, não haverá decerto, durante muitos anos, afrouxamento do exame ansioso do disco marciano e aquelas setas ígneas do céu, as estrelas cadentes, trarão com elas, ao caírem, um temor inevitável a todos os filhos do Homem.

O alargamento das concepções do homem que daqui resultou não podia ser maior. Antes da queda do cilindro, havia uma convicção generalizada de que nas profundezas do espaço não existia vida, salvo na superfície insignificante da nossa diminuta esfera. Agora vemos mais longe. Se os marcianos podem alcançar Vénus, não há razões para supor que os homens o não possam fazer e, quando o lento arrefecimento do Sol tornar a Terra inabitável, como deve acontecer por fim, é provável que a corrente de vida que aqui brotou transborde e capture o nosso planeta irmão nas suas redes.

É confusa e maravilhosa a visão que imaginei da vida a expandir-se lentamente deste pequeno leito do sistema solar, através da vastidão inanimada do espaço sideral. Mas é um sonho longínquo. Por outro lado, pode ser que a destruição dos marcianos seja apenas uma trégua. O futuro destina-se a eles, talvez, e não a nós.

Devo confessar que o perigo e a tensão daquela época deixaram na minha mente uma duradoura sensação de dúvida e de insegurança. Estou sentado no meu escritório, a escrever à luz do candeeiro e, de súbito, vejo novamente, lá em baixo, o vale a arder em chamas bruxuleantes, e sinto atrás de rnim e à minha volta a casa vazia e abandonada. Saio para a Byfleet Road e os veículos passam por mim, o rapaz de um talho numa carroça, um cabriole cheio de visitantes, um operário numa bicicleta, crianças a caminho da escola e, bruscamente, tudo se torna vago e irreal e eu corro de novo, com o artilheiro, através do silêncio abafado de uma atmosfera tempestuosa. De noite, vejo a poeira negra escurecendo as ruas silenciosas, e os corpos contorcidos, amortalhados por aquela coberta, erguem-se diante de mim rasgados e mordidos pelos cães. Por fim algaraviam e enfurecem-se, mais lívidos, mais medonhos, loucas distorções de homens, e eu acordo, gelado e triste na escuridão da noite.

Vou para Londres e vejo as multidões atarefadas em Fleet Street e no Strand, e imagino que são apenas os fantasmas do passado, assombrando as ruas outrora silenciosas e abandonadas, andando de aqui para ali, fantasmas numa cidade morta, o arremedo de vida num corpo galvanizado. E também é estranho deter-me em Primrose Hill, como o fiz no dia anterior àquele em que escrevi este último capítulo, a ver o grande número de casas, escuras e azuladas, através do fumo e do nevoeiro, desvanecendo-se finalmente num vago céu mais baixo, ver as pessoas andar de um lado para o outro entre os leitos de flores da colina, ver os excursionistas perto de uma máquina marciana que ainda se encontra ali, ouvir a algazarra das crianças a brincar e recordar o tempo em que vi isto tudo brilhante e distinto, opressivo e silencioso, na alvorada daquele último grande dia...

E o mais estranho de tudo é apertar de novo a mão da minha mulher e pensar que a julguei, como ela me julgou, entre os mortos.

 

                                                                                            H. G. Wells

 

 

                      

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