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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A HARPA DE ERVAS / Truman Capote
A HARPA DE ERVAS / Truman Capote

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

Quando é que pela primeira vez ouvi falar da harpa de ervas? Muito antes do Outono em que nos instalámos na árvore da China. Portanto, num Outono anterior. E foi com certeza Dolly quem mo disse; mais ninguém seria capaz de dar esta designação: uma harpa de ervas.

Saindo da cidade pelo caminho da igreja, depressa se alcança o outeiro de lousas brancas como ossos e de flores bronzeadas: é o cemitério baptista. Está ali enterrada a nossa gente: os Talbos, os Fenwicks. Minha mãe jaz perto de meu pai, e as sepulturas dos parentes, vinte ou mais, espalham-se em volta como raízes estendidas de uma árvore petrificada. Abaixo da colina existe um campo de certa planta índia que muda de cor com as estações; ide vê-la nos fins de Setembro, quando se apresenta rubra como um pôr do Sol, e as sombras escarlates, semelhantes a labaredas, oscilam sobre ela, e os ventos outonais sopram nas folhas secas entoando música de suspiros humanos: uma harpa de vozes.

 

 

 

 

 

No extremo do campo principia o negrume de River Woods. Devia ter sido num desses dias de Setembro, quando lá nos encontrávamos a colher raízes, que Dolly observou: "Ouves? É a harpa de ervas, sempre a contar histórias: conhece a de cada pessoa da colina, de todos quantos aqui viveram e, depois de morrermos, contará também a nossa".

A seguir ao falecimento de minha mãe, meu pai, caixeiro-viajante, mandou-me viver com as primas, Verena e Dolly Talbo, duas irmãs, ambas solteiras. Antes disso, nem sequer me permitiam entrar na sua casa. Por motivos que jamais se esclareceram, Verena e meu pai não se falavam. Talvez o pai pedisse dinheiro a Verena e ela lho recusasse; ou então emprestou-lho e ele nunca o devolveu. Não há dúvida que a questão proveio de dinheiro, pois outra coisa lhes não interessava, em especial a Verena, a pessoa mais rica da cidade. A drogaria, a loja do fanqueiro, uma bomba de gasolina, mercearia, um edifício ocupado por escritórios, tudo isto era dela; mas a verdade é que tamanho lucro não havia contribuído para lhe adoçar o temperamento.

       Fosse porque fosse, meu pai declarava que não poria mais os pés na residência das primas. Dizia coisas tremendas a respeito das senhoras Talbos. Nunca deixou de circular uma das histórias que espalhou: que Verena tinha gostos anormais. Não podendo suportar o ridículo com que ele cumulava Dolly Talbo, minha mãe observava-lhe que devia envergonhar-se de troçar de uma criatura tão meiga e inofensiva.

Creio que se queriam muito um ao outro, meu pai e minha mãe. Ela costumava chorar sempre que o marido empreendia uma viagem para vender frigoríficos. Casara aos dezasseis anos e não chegou aos trinta. Na tarde em que morreu a pobrezinha, meu pai, clamando em altos brados o seu nome, rasgou o fato e saiu nu para o quintal. Foi no dia seguinte ao enterro que Verena veio à nossa casa. Lembro-me do terror com que vi chegar essa mulher nada feia, magra como um pau, de cabelo curto e grisalho, sobrancelhas pretas, algo viris, e com um sinal brejeiro na face. Abriu a porta da entrada e avançou direita para o interior do prédio. Desde o funeral que o pai estivera a quebrar coisas, não com fúria, mas calmamente, aplicadamente: fora à sala, apoderara-se de uma estatueta de porcelana, observando-a uns segundos, e lançara-a contra a parede. O chão e os degraus da escada ficaram repletos de cacos dos mil e um objectos partidos. Do corrimão pendia uma camisa de dormir de minha mãe, toda em tiras. Cintilaram os olhos de Verena sobre aqueles destroços. "Eugene, preciso de falar consigo", participou a recém-vinda no seu tom de voz natural, ao mesmo tempo frio e indignado. "Pois sim, Verena, sente-se", respondeu o pai. "Já calculava que aparecesse por cá. "

Nessa tarde, Catherine Creek, grande amiga de Dolly, veio empacotar a minha roupa e o pai levou-me de carro para a moradia de Talbo Lane, tão sombria e tão impressionante. Quando me apeei, ele tentou abraçar-me, mas eu estava assustado e fugi-lhe ao amplexo. Agora lamento que não nos houvéssemos abraçado, pois uns dias mais tarde, no seu caminho para Mobile, o carro dele resvalou por uma ribanceira de cinquenta pés de altura e caiu no abismo. Quando o tornei a ver, pesavam-lhe sobre as pálpebras moedas de prata de um dólar.

Excepto para notar que eu era muito pequeno para a idade, uma espécie de anão, os outros não faziam caso de mim. Mas, depois de ficar órfão, apontavam-me a dedo, exclamando: "Não é triste: Coitado do Collin Fenwick!" Tratei de me tornar digno dessa compaixão, pois sabia quanto isso agradava aos demais. Não houve senhor da cidade que não me oferecesse sorvetes e outras guloseimas, e no colégio apanhei boas notas pela primeira vez. Levou, pois, muito tempo a que eu serenasse o bastante para reparar em Dolly Talbo.

Mas, logo que o fiz, estimei-a de todo o coração.

Imagine-se o que devia ter sido para essa mulher a chegada à sua casa de um rapazinho de onze anos, turbulento e curioso. Fugia ao simples som dos meus passos e, se não podia evitar-me, retraía-se como folha de mimosa. Era dessas criaturas que sabem disfarçar-se como um móvel no quarto, uma sombra no canto, e cuja presença, quando descoberta, constitui agradável surpresa. Usava sapatos silenciosos, vestidos simples, virginais, com a bainha a roçar- lhe pelos tornozelos. Embora mais velha do que a irmã, dir-se-ia alguém que Verena houvesse adoptado, como a mim. Atraídos pela força da gravitação do planeta de Verena, girávamos separadamente no espaço de Talbo Lane.

No sótão - confuso e fantástico museu de todos os velhos manequins da loja de Verena - havia muitas tábuas desconjuntadas e, premindo-as, podia-se espreitar para quase todos os quartos. O de Dolly, diferente dos restantes (que se atravancavam de mobília gorda e grave), continha apenas um catre, uma secretária e uma cadeira; viveria ali uma freira, se não fossem as paredes e o próprio soalho de um cor-de-rosa inexplicável. Sempre que eu enfiava a vista para lá, Dolly estava invariavelmente a fazer uma destas coisas: ou defronte do espelho a tosquiar, com tesoura de jardim, o cabelo branco e amarelado, já muito curto, ou a escrever a lápis num bloco de papel espesso. Molhava a ponta do lápis na boca e, às vezes, proferia em voz alta as frases que escrevia: "Se não usardes coisas doces, como o açúcar, o sal matar-vos-á com certeza. "Agora sei que eram cartas que ela redigia. Mas, de começo, aquela correspondência intrigou-me. No fim de contas, só tinha uma amiga, Catherine Creek; nunca falava com mais ninguém e jamais saía, a não ser uma vez por semana, em que iam ambas a River Woods, onde colhiam ingredientes para o remédio contra a hidropisia, que Dolly preparava e engarrafava. Mais tarde descobri que havia comprado esse medicamento em toda a região, e era a eles que ela dirigia as cartas.

O quarto de Verena, que comunicava com o da irmã por um corredor, apresentava o aspecto de um escritório. Ali existia uma papeleira, ficheiros e estante com livros de escrituração comercial. Depois da ceia, com uma pala verde sobre os olhos, sentava-se ela à secretária, somando parcelas e voltando as páginas do livro-mestre até se apagarem os lampiões da rua. Se bem que conservasse relações corteses e diplomáticas com muita gente, Verena não tinha amigos íntimos. Os homens receavam-na e ela, por seu lado, parecia temer as mulheres. Anos antes afeiçoara-se a uma loira jovial chamada Maudie Laura Murply, a qual esteve empregada na estação do correio e acabou por casar com um rapaz de St. Louis que negociava em bebidas. Verena mostrou-se azeda com o facto e declarou publicamente que esse homem não passava de um valdevinos. Foi, pois, surpresa, saber-se que oferecera aos noivos, como prenda de casamento, uma viagem de núpcias até ao Grand Canyon. Maudie e o marido nunca mais regressaram. Abriram uma garagem perto do Grand Canyon e, de tempos a tempos, mandavam a Verena alguns instantâneos deles próprios. Essas fotografias constituíam um prazer e uma fortuna. Houve noites em que ela não tocava nos livros de escrituração e ficava sentada, com a testa apoiada nas mãos e os retratos espalhados na secretária. Após guardá- los, passeava então no quarto, com as luzes apagadas e, por fim, ouvia-se como que um grito rouco e doloroso, tal como se ela houvesse tropeçado e caído no escuro.

A parte do sótão donde eu poderia ver para a cozinha estava defendida com um montão de malas. Por esse tempo era a cozinha precisamente o que eu mais desejava investigar: ali ficava o verdadeiro centro da casa e aí gastava Dolly a maior parte do dia tagarelando com Catherine Creek.

Quando criança e órfã, Catherine fora assalariada pelo senhor Uriah Talbo, e as três pequenas haviam crescido juntas na velha herdade, que se transformou depois em estação do caminho-de-ferro. À Dolly chamava Catherine querida Dolly", mas à Verena só designava por aquela"". Vivia nas traseiras do prédio, num alpendre coberto de zinco, entre girassóis e caniçadas de feijoeiros. Intitulava-se índia, o que fazia sorrir muita gente, pois era preta como os anjos de África; mas podia ter sido verdade, tanto mais que se vestia de índia. Usava um colar de contas azuis e pintava a cara com muita tinta escarlate, que lhe brilhava nas bochechas como as lanternas da retaguarda dos carros. Perdera a maior parte dos dentes e atafulhava as gengivas com algodão. Verena, que não percebia patavina da linguagem da criada, queria obrigá-la a ir ao dentista tratar da boca. De facto, custava bastante a entendê-la. Dolly era a única pessoa capaz de lhe traduzir essa fala constituída por sons surdos e mastigados. Para Catherine bastava que Dolly a compreendesse. Andavam sempre na companhia uma da outra e comunicavam mutuamente tudo o que sentiam. Aplicando o ouvido ao barrote do sótão, eu conseguia escutar o frémito dessas vozes escorrendo como seiva espessa através da madeira velha.

Para se chegar ao sótão, subia-se por uma escada de mão colocada no roupeiro, em cujo tecto havia um alçapão. Certo dia, quando eu para ali trepava, vi que o alçapão fora aberto e, escutando, ouvi por cima de mim um murmúrio suave, como fazem as pequenas que brincam sozinhas. Ia voltar atrás quando o rumor cessou e uma voz inquiriu:

- És tu, Catherine?

- Sou eu, o Collin - repliquei, apresentando-me.

Surgiu o floco de neve que era a cara de Dolly, e desta vez não se dissolveu.

- Com que então é para aqui que tu costumas vir. Já calculávamos - observou num tom brando como o amarfanhar de papel de seda. Tinha olhos bondosos, claros, transparentes, de um verde de licor de hortelã. Fitando-me na obscuridade, pareciam acreditar na minha inocência. - Gostas de brincar cá em cima? Já disse a Verena que vives muito só. - Inclinando-se, pôs-se a vasculhar nas profundezas de um caixote. - Anda aqui, ajuda-me nisto. Procuro uma arvorezinha de coral e um saquinho de seixos de todas as cores. Catherine havia de apreciá-los. Num aquário, que te parece: É para o dia dos seus anos. Tínhamos um aquário de peixes tropicais. uns diabinhos que se comeram uns aos outros. Lembro-me de quando o comprámos. Fomos a Brewton, vinte e tantas léguas de caminho. Nunca tinha ido tão longe e creio que não tornarei a ir. Ah, já descobri a árvore.

Daí a pouco eu encontrava as pedrinhas. Eram como grãos de milho, ou torrõezinhos de açúcar.

- Tome um torrão de açúcar - disse-lhe eu oferecendo o saco.

- Obrigada. Gosto muito de açúcar, ainda que saiba a pedra.

Éramos amigos, Dolly, Catherine e eu. Tinha onze anos. Assim cheguei aos dezasseis. Embora nenhuns privilégios me distinguissem, foi o tempo mais feliz da minha vida.

Nunca trouxe ninguém a casa, nem me apetecia fazê-lo. Certa vez levei uma pequena às fitas e no regresso ela perguntou-me se podia entrar para beber um pouco de água. Se soubesse que realmente sentia sede, ter-lhe-ia satisfeito o pedido; mas percebi que dizia aquilo só para meter o nariz na minha residência, de forma que a aconselhei a aguentar até que alcançasse a sua.

- Toda a gente sabe que Dolly Talbo é zuca, e tu também és - ripostou-me. Eu gostava bastante dessa rapariga, mas dei-lhe um empurrão. Ela, por sua vez, ameaçou que o irmão me castigaria, o que ele fez: ainda tenho ao canto da boca a cicatriz, no ponto em que me atingiu com uma garrafa de Coca-Cola. Diziam, bem o sei, que Dolly era a cruz de Verena, assim como afirmavam que na casa de Talbo Lane se passavam coisas incríveis. É possível. Contudo, foram para mim anos agradáveis aqueles em que lá vivi.

Nas tardes de Inverno, logo que eu regressava do colégio, Catherine destapava um boião de doce, enquanto Dolly punha ao lume a cafeteira e metia no forno o tabuleiro de bolos; e esse forno, abrindo-se, exalava um cheiro quente de baunilha, pois Dolly, que só se alimentava de gulodices, estava sempre a preparar a sua provisão. Nunca tocava em hortaliça e, fora da doçaria, apenas apreciava miolos de galinha, que não são maiores do que uma ervilha e desaparecem antes de se lhes sentir o gosto. Com o fogão de lenha e a lareira, a cozinha estava morna como língua de vaca. O Inverno limitava-se a gelar as janelas com o seu hálito azul de zero graus. Se algum feiticeiro quiser dar-me um presente, que me dê uma garrafa cheia de vozes daquela cozinha, do crepitar e sussurrar do lume, uma garrafa que também contenha o aroma dos bolos. Aquilo assemelhava-se mais a uma sala aconchegada do que a uma simples dependência para fazer comida. Havia no chão um tapete, cadeiras de recosto aos cantos, estampas de gatos nas paredes: estas últimas revelavam as preferências de Dolly. Via-se ainda um gerânio que dava flor todo o ano e, sobre a mesa coberta de oleado, o aquário de Catherine, onde um peixe dourado espanejava a cauda através da árvore de coral. Às vezes fazíamos jogos de paciência, dividindo entre nós as peças de cartão. Catherine escondia então algumas destas quando desconfiava que alguém ia acabar primeiro do que ela. Ou então ajudava-me a fazer os exercícios escolares, o que representava uma catástrofe.

Dolly era extraordinária a respeito de todas as coisas da natureza. Possuía o instinto da abelha que sabe onde há-de achar a flor de suco mais doce. Suspeitava de uma tempestade com um dia de antecedência, pressentia as figueiras que tinham frutos maduros, levava-nos ao sítio onde se encontravam cogumelos, mel silvestre e ovos de pintada nos seus ninhos ocultos. Olhava em torno de si e adivinhava tudo. Mas, quanto a exercícios escolares, era tão ignorante como Catherine.

-A América deve ter-se chamado América ainda antes de Colombo cá chegar. Compreende-se. De outra maneira, como saberia ele que estava na América? - dizia ela.

-Com certeza - replicava Catherine. - América é uma antiga palavra índia.

Das duas, Catherine era a pior. Insistia na sua infalibilidade e, se não se escrevesse textualmente o que ditava, punha-se nervosa e entornava o café ou o que tivesse na mão. Mas não voltei a dar-lhe ouvidos depois do que me contou a respeito de Lincoln: que o sangue do presidente era de negro e de índio, e apenas com uma gota de branco. Até eu sabia que isto não era verdade. Mas devo a Catherine um favor especial: se não fosse ela, eu não seria muito maior do que Biddy Skinner, o qual recebera propostas de um empresário de circo. Aconselhou-me a não me afligir. O que precisa, meu filho, é de uns esticões. E puxava-me pelos braços e pernas, parecia querer arrancar-me a cabeça como se fora maçã presa a ramo tenaz. O certo é que em dois anos conseguiu esticar-me de quatro pés e nove para cinco pés e sete, e posso demonstrá-lo pelos entalhes à faca praticados na porta da despensa, pois ainda hoje, quando tanta coisa desapareceu e só há vento na chaminé e Inverno na cozinha, lá se conservam essas marcas de crescimento a testemunharem o facto.

Apesar de ser, segundo parecia, geralmente benéfico o efeito do remédio de Dolly, vinham de vez em quando cartas dirigidas à senhora Talbo a participar que já não precisavam de mais remessas do medicamento contra a hidropisia, porque a infeliz prima Belle (ou quem quer que fosse) havia dado a alma ao Criador na semana passada. Nessas ocasiões, a cozinha era lugar de desolação. De mãos cruzadas e com acenos de cabeça, as duas amigas relembravam melancólicas as circunstâncias do caso presente. "Fez-se o que se pôde", concluía Catherine. "Mas Deus tinha outros desígnios. "Também Verena tornava triste a cozinha, sempre com a mania de introduzir novas regras ou de reforçar as antigas. "Faz, não faças, pára, começa!"Dir- se-ia sermos relógios em cujo mostrador ela punha o olhar atento para ver se estava certo pelo seu. E desgraçados de nós se tínhamos uns minutos de avanço ou uma hora de atraso! Verena surgia como o cuco. " Aquela. ", murmurava Catherine. E Dolly dizia logo: "Psiu, psiu", como se quisesse impor silêncio não à amiga mas a um sussurro íntimo e rebelde que teimava em se fazer ouvir.

No fundo do coração, Verena desejava, suponho, vir para a cozinha, ser parte componente dessa quadra; mas parecia-se demasiadamente com um homem sozinho numa casa cheia de mulheres e crianças. A única maneira que lhe restava de entrar em contacto connosco era através das suas explosões: "Dolly, tira-me daqui essa gata. Queres agravar-me a asma? Quem deixou a torneira aberta no quarto de banho? Qual foi de vocês que partiu o guarda-chuva?"A sua má disposição espalhava-se pela casa como um incómodo nevoeiro pardacento. Aquela. psiu, psiu! Uma vez por semana, quase sempre ao sábado, íamos a River Woods. Para estas digressões, que duravam o dia inteiro, Catherine preparava uma galinha e cozia uma dúzia de ovos e Dolly fazia um bolo de chocolate e merengues. Assim equipados, e levando três sacos vazios, seguíamos pelo caminho da igreja, passávamos pelo cemitério e atravessávamos o campo de plantas índias. Logo à entrada do bosque existia uma árvore da China, de tronco duplo; na realidade eram duas árvores, mas os ramos estavam tão entrelaçados que se podia andar de uma para a outra, tanto mais que eles se encontravam ligados por uma casa arbórea. Espaçosa, sólida, verdadeiro modelo do género, julgar-se-ia uma jangada a flutuar num mar de folhas. Os rapazes que a construíram, se é que ainda vivem, devem ser velhos agora. Datava bem de quinze ou vinte anos, essa cabana, quando Dolly a descobriu; e isso acontecera um quarto de século antes de ela ma ter mostrado. Alcançá-la era tão fácil como subir uma escada, pois os nós da casca formavam apoio para os pés e havia trepadeiras resistentes para nos agarrarmos. A própria Catherine, que possuía ancas opulentas e se queixava de reumatismo, não tinha dificuldade em subir. Contudo, não apreciava a casa arbórea. Ignorava, ao contrário de Dolly (que mo fez saber), ser aquilo um navio; que estar lá no alto equivalia a navegar pela costa nebulosa de todos os sonhos. "Reparem", dizia Catherine, "que estas tábuas envelheceram, que estes pregos se escapam como vermes. Mais dia menos dia racham e a gente cai e parte a cabeça."

Depois de armazenarmos os mantimentos na casa suspensa, dirigíamo-nos para a floresta, onde nos separávamos, cada qual levando um saco para encher de ervas, folhas, raízes. Ninguém, nem sequer Catherine, sabia ao certo de que se compunha o remédio, porque se tratava de um segredo que Dolly guardava para si mesma. A nenhum de nós era permitido observar a colheita do seu saco, como se lá dentro transportasse cativo um príncipe encantado, um menino de cabeleira de oiro. Eis como ela me contou a sua história:

- Noutros tempos, quando a Verena ainda tinha dentes de leite e Catherine não seria maior do que uma estaca de vedação, afluíam ali ciganos como pássaros a uma sebe de amoras. Não era como no presente, em que só se encontra meia dúzia deles em todo o ano. Chegavam com a Primavera, de repente, com o tom róseo dos noveleiros, e aí estavam a andar cá e lá na estrada e nas matas vizinhas. Mas a nossa gente detestava-os, e meu pai, que era o teu tio-avô Uriah, declarou que desfecharia um tiro no primeiro cigano que encontrasse na nossa propriedade. Por isso nunca eu lhe dizia nada quando os via tirar água da fonte ou furtar as nozes secas do chão. Então um dia - em pleno Abril chuvoso - saí para ir ao estábulo, onde á Fairybell tivera um bezerro. Achavam-se acolá três ciganas, duas velhas e uma nova; esta, torcendo-se de dores, jazia nua sobra a palha de milho. Ao ver que eu me não assustava, que não fugia para as denunciar em casa, uma das velhas pediu-me que lhe trouxesse luz. Fui buscar uma vela e, ao comparecer outra vez no estábulo, notei que essa mulher segurava uma criança pelos pés, uma criança rubra que vagia. A outra ordenhava Fairybell. Ajudei-a a lavar o recém-nascido no leite morno e a embrulhá-lo num xaile. Uma delas pegou-me na mão e disse: "Agora, como paga, vou ensinar-lhe uma receita. " Era uma cantiga em que se falava de plantas, dessas que há nos bosques, e acabava sempre com o estribilho: "Coze até ficar negra e pura, Se da hidropisia queres a cura. " De manhã foram-se embora. Procurei-as na estrada, nas terras. Dessas criaturas não ficara vestígio: só a cantiga na minha memória.

Chamando uns pelos outros, piando como corujas perdidas à luz do Sol, trabalhávamos até ao meio-dia em diferentes pontos do bosque. À tarde, com os sacos atulhados de cascas de árvores, plantas e raízes, voltávamos para o verde abrigo da casa suspensa e exibíamos os mantimentos. Havia boa água da fonte, numa bilha, ou, se o tempo estava frio, uma garrafa-termo de café quente. Com um punhado de folhas limpavam-se os dedos engordurados de galinha ou pegajosos de bolos. Depois, tirando sortes com flores e falando de coisas adormecidas, tínhamos a sensação de flutuar através da tarde na jangada arbórea. Aquilo pertencia-nos, era o nosso domínio como era o dos noitibós e das folhas prateadas pelo sol.

Uma vez por ano vou rever a casa de Talbo Lane e divago pelo quintal. Estive lá um dia destes: topei com um velho caldeirão de ferro perdido no meio das ervas, qual negro meteoro ali caído. Dolly. Dolly. Inclinada sobre o caldeirão, despejava o conteúdo dos nossos sacos na água fervente, mexia com um cabo de vassoura a tisana cor de tabaco. Fazia sozinha a mistura do remédio, enquanto Catherine e eu olhávamos como aprendizes de feiticeira. Depois ajudávamo-la a engarrafar o medicamento, pois este produzia um vapor que fazia explodir as rolhas vulgares, e a minha missão era preparar batoques de papel higiénico enrolado. Vendia-se cerca de seis frascos por semana, a dois dólares cada um. Esse dinheiro, dizia Dolly, pertencia a nós três e gastávamo-lo logo que vinha. Encomendavam-se coisas anunciadas nas revistas: "Aprenda a Gravar Em

Madeira, Sem Mestre." "Entretenimento de Novos e Velhos, Qualquer Pessoa Pode Tocar Ocarina."

Certa vez, mandámos buscar um livro de lições de francês. Foi ideia minha, com o intuito de termos uma linguagem secreta que Verena e os outros não pudessem entender. Dolly mostrou boa vontade, mas o mais que conseguiu foi "Passez-moi uma colher." Quanto a Catherine, depois de aprender a frase "Je suis fatiguée", não tornou a pôr os olhos no livro. Aquilo era tudo o que ela precisava saber.

Verena observou, por diversas ocasiões, que seria uma calamidade se alguém ficasse envenenado; mas, no que se refere ao tratamento da hidropisia,

nunca mostrou grande interesse. Houve um ano em que, fazendo as contas, apurámos ter lucrado o bastante para pagar imposto de rendimento. Daí em diante Verena começou a fazer perguntas. O dinheiro era como um gato-bravo cujo rasto ela seguia com passos cautelosos de caçador e olhos atentos a cada ramo quebrado.

- Afinal, de que se compõe o remédio? Gostaria de saber.

Dolly, sufocando o riso, abanava frouxamente as mãos e respondia:

- Isto e aquilo. Nada de especial.

Verena pareceu abandonar o assunto. Todavia, sentada à mesa do jantar, muita vez os seus olhos se fixavam interrogadores na cara da irmã. E um dia, quando estávamos no quintal em volta do caldeirão fervente, olhei para cima e descobri Verena a espiar-nos da janela. Nessa altura, suponho, já tinha em mente o seu projecto, mas não deu o primeiro passo antes de chegar o Verão.

Duas vezes por ano, em Janeiro e Agosto, Verena ia em viagem de negócios a St. Louis ou a Chicago. Naquele Verão em que fiz dezasseis anos, foi ela a Chicago e, passadas duas semanas, voltou acompanhada por um tal doutor Morris Ritz. É claro, todos perguntaram a si mesmos quem seria esse Morris Ritz. Usava gravatas de lacinho e fatos vistosos; tinha lábios azulados, olhos fugidios: no conjunto, assemelhava-se a um ratinho esperto. Soubemos que ocupava o melhor quarto do Hotel Lola e que se alimentava de bifes no Café Phil. Pavoneava-se pelas ruas, cumprimentando todos os transeuntes com uma inclinação da cabeça luzidia. Contudo, não arranjou amigos e só o viam acompanhado de Verena, que aliás nunca o trouxe a casa nem lhe mencionou o nome, até que um dia Catherine teve o descaro de lhe perguntar:

- Menina Verena, quem é esse doutor Morris Ritz de aspecto tão esquisito?

E Verena, de beiços pálidos, respondeu:

- O seu aspecto é muito menos esquisito do que o de certas pessoas que eu conheço.

Que escândalo, murmuravam, o modo como Verena procedia com aquele judeuzinho de Chicago! E ele vinte anos mais novo do que ela! Constava que urdiam qualquer coisa respeitante à velha fábrica de conservas, no outro extremo da cidade; ficou demonstrado não ser mentira, mas não se tratava, afinal, daquilo que criam os frequentadores do salão de bilhar. Quase todas as tardes se podia ver Verena com o doutor Morris Ritz, a caminho da fábrica, edifício de tijolos, abandonado e já em ruínas, de janelas como dentes de serra e portas abauladas. Há muitos anos que ninguém ali entrava, a não ser pequenos da escola para fumarem cigarros e se exibirem nus. Então, nos princípios de Setembro, soubemos por uma notícia do Courier que Verena comprara a antiga fábrica. Não se dizia, porém, o que ela tencionava fazer daquilo. Pouco depois, Verena mandou Catherine matar duas galinhas, porque o doutor Morris Ritz ia almoçar lá a casa, no domingo.

Durante todo o tempo que ali morei, jamais convidaram outra pessoa além do doutor Morris Ritz. Por esta e outras razões, foi um acontecimento memorável. Catherine e Dolly entregaram-se a grandes limpezas; bateram tapetes, trouxeram porcelanas do sótão, deixaram todos os quartos a cheirar a cera e a aguarrás. Devia haver galinha assada, presunto, ervilhas, batata-doce, pãezinhos de rolo, pudim de banana, duas espécies de bolo e sorvete tuttfrutti, proveniente de um dos estabelecimentos de Verena. No domingo, ao meio-dia, veio esta inspeccionar a mesa. Com o seu centro de rosas cor de pêssego e longos festões de objectos de prata, dir-se-ia preparada para vinte convivas pelo menos; na realidade, só em dois lugares estavam colocados talheres. Verena juntou mais dois pratos e, perante esse gesto, Dolly observou com voz débil que o Collin talvez quisesse comparecer à mesa, mas que ela ficaria na cozinha, com a Catherine. A irmã pôs os pés à parede.

- Não te faças tola, Dolly. Isto tem importância. Morris vem cá expressamente para te conhecer. Agradecia-te que erguesses mais a cabeça. Incomoda-me ver-te com esse ar sucumbido.

Dolly ficou aterrada. Escondeu-se no quarto e, muito tempo depois de chegar o nosso convidado, encarregaram-me de a ir buscar. Estava deitada no seu leito cor-de-rosa, com uma toalha húmida na testa. Junto dela encontrava-se Catherine, toda aperaltada, de faces rubras como papoulas e boca mais do que nunca atafulhada de algodão. - Vamos - dizia esta -, tem de se levantar. Assim, amarrota o seu lindo vestido.

Era um vestido de chita que Verena trouxera de Chicago. Dolly sentou-se, alisou-o e logo se tornou a deitar.

- Se Verena soubesse quanto me custa - murmurou, desesperada.

Retirei-me e fui participar a Verena que Dolly estava doente. Verena disse que ia ver o que havia e afastou-se, deixando-me sozinho com o doutor Morris Ritz.

"Oh, que homem abominável!"

- Com que então, tens dezasseis anos - observou, piscando os olhinhos petulantes, um após outro. - E começa-se a ter necessidade de aventuras, hem? Convence a velhota a levar-te contigo na próxima vez que ela for a Chicago. Lá não faltam boas ocasiões.

Deu um estalo com os dedos e agitou os pés calçados de sapatos bicudos, como se marcasse o compasso de uma música de café-concerto. Poder-se-ia tomá-lo por dançarino de sapateado ou por criado de clube se a pasta que transportava não indicasse ocupação mais séria. Perguntei a mim mesmo que espécie de doutor seria aquele e ia interrogá-lo a esse respeito quando Verena voltou, conduzindo Dolly pelo cotovelo.

Não conseguiram absorvê- la as sombras do vestíbulo e as cadeiras forradas de tapeçaria; sem erguer os olhos, estendeu a mão, a qual o doutor Ritz agarrou e sacudiu tão brutalmente que Dolly quase perdia o equilíbrio.

- Ah, que prazer em conhecê-la! - exclamou ele, apertando o nó da gravata.

Sentámo-nos para almoçar. Catherine trouxe a galinha. Serviu Verena, em seguida Dolly e, quando chegou a vez do doutor, este observou:

- Para falar verdade, só uma coisa aprecio nas aves: os miolos. Ainda os deve ter na cozinha, não é verdade?

Catherine fixou a ponta do nariz, quase envesgando os olhos, e respondeu com a língua entaramelada pelo algodão:

- Os miolos tem-nos a menina Dolly no seu prato.

- Ah, este sotaque do Sul! - comentou o doutor, desanimado. - Não há quem o entenda.

- Diz ela que os miolos estão no meu prato - explicou Dolly, de faces tão vermelhas como as de Catherine. - Mas, se me dá licença, passo-os para o seu.

- Se, de facto, se não importa.

- Não se importa nada - afirmou Verena. - Aliás, ela só gosta de doces. Olha, Dolly, serve-te do pudim de banana.

Neste instante o doutor Ritz começou a espirrar.

- As flores. estas rosas. a antiga alergia.

- Oh, meu Deus! - balbuciou Dolly, E, vendo naquilo um pretexto para se escapar, agarrou na jarra de rosas; esta, porém, escorregou-lhe das mãos, partiu-se, as flores caíram no molho e o molho sobre todos nós.

- Vês o que fizeste? - disse ela, falando consigo mesma e com os olhos rasos de lágrimas. - E de desesperar.

- Não vale a pena tanto desgosto, Dolly. Senta-te e acaba o teu pudim - aconselhou Verena em voz enérgica. - Além disso, temos uma agradável surpresa para ti. Morris, mostre a Dolly os lindos rótulos.

Murmurando"Não fez dano", o doutor Ritz cessou de limpar os pingos de molho na manga e foi ao vestíbulo, donde voltou com a pasta. Os seus dedos remexeram um maço de papéis até descobrirem um sobrescrito avultado, que ele entregou a Dolly.

O referido sobrescrito continha rótulos triangulares onde se liam os seguintes dizeres em letras amarelas: "Anti-hidrópico da Rainha das Ciganas. "A ilustrar o dístico, a cara de uma mulher de lenço na cabeça e argolas nas orelhas.

-De primeira ordem, hem! - exclamou o doutor Ritz. - Feito em Chicago. Foi um amigo meu quem desenhou a cabeça. É um verdadeiro artista, aquele rapaz.

Dolly folheava os rótulos com ar intrigado e apreensivo.

- Então, não estás contente? - perguntou Verena.

Os papelinhos, de goma no reverso, enrolavam- se nas mãos de Dolly.

- Não sei se compreendo.

- Decerto que sim - retorquiu Verena, com um sorriso contrafeito. - É mais que evidente. Contei a Morris aquela tua velha história e ele achou que isso fazia um nome admirável.

- Anti-hidrópico da Rainha das Ciganas é um título que impressiona - interveio o doutor. - Como publicidade não conheço melhor.

- O meu remédio? - disse Dolly, sem erguer a vista. - Mas eu não preciso de rótulos, Verena. Eu mesma os escrevo.

O doutor Ritz deu um estalo com os dedos.

- Óptimo! Podemos imprimir a sua caligrafia nos rótulos. Fica mais pessoal.

-Já gastámos muito dinheiro - acudiu Verena. E, voltando-se para a irmã, acrescentou: - Morris e eu vamos a Washington esta semana para registar os rótulos e a patente do remédio. em teu nome, é claro. O que tens é de nos dar a fórmula completa, por escrito.

Alterou-se o rosto de Dolly e os papéis espalharam-se no chão. Apoiando as duas mãos na mesa, levantou-se da cadeira. A pouco e pouco, a fisionomia recompôs-se-lhe, e ela, de cabeça erguida e olhos pestanejantes, fitou o doutor Ritz e em seguida Verena.

- Isso, não - declarou em voz calma. Dirigiu-se à porta e pôs a mão no puxador. - Isso, não, porque não tens nenhum direito. Nem o senhor tão-pouco.

Ajudei Catherine a tirar da mesa as rosas desfolhadas, os bolos intactos, os legumes em que ninguém tocara. Verena e o convidado tinham saído ambos e pela janela da cozinha vimo-los afastarem-se em direcção à cidade, inclinando e meneando a cabeça. Então cortámos um dos bolos e levámo-lo para o quarto cor-de-rosa.

-Psiu! Psiu! - fez Dolly quando Catherine começou a falar contra "aquela". Mas era como se o murmúrio de revolta interior se houvesse transformado em voz rouca, num adversário a quem devia impor silêncio em altos brados; de tal modo que Catherine acabou por abraçar Dolly e fazer "psiu" também.     Fomos buscar um baralho de cartas para jogarmos e estendemo-las sobre a cama. É claro, Catherine não deixou de nos lembrar que era domingo, que nos arriscávamos a ter mais uma bola preta no Juízo Final; mas já havia muitas, referentes ao nome dela. Depois de ponderarmos no assunto, resolvemos ler a sina em vez de jogar às cartas. Ao fim da tarde Verena regressou. Ouvimos-lhe os passos no vestíbulo. Abriu a porta sem bater, e Dolly, que estava a predizer-me o futuro, apertou com mais força a minha mão.

- Collin, Catherine, podem retirar-se. Catherine de boa vontade subiria comigo para o sótão se não tivesse envergado o seu melhor vestido. Por isso subi sozinho. Havia no soalho um bom buraco donde se abrangia o aposento cor-de-rosa; mas Verena encontrava-se mesmo por baixo e eu só consegui ver-lhe o chapéu, com que ela saíra e que ainda não tirara. Era um chapéu de palha enfeitado com um cacho de uvas de celulóide.

- Eis os factos - dizia ela, e os frutos tremiam, brilhavam na penumbra azulada. - Dois mil dólares pela fábrica velha, Bill Tatum e quatro carpinteiros a trabalharem ali a oitenta cêntimos à hora, sete mil dólares de máquinas já encomendadas, sem mencionar o que custa um especialista como Morris Ritz. E tudo porquê? Só por tua causa.

- Só por minha causa? - E Dolly parecia triste, declinante como o dia. Vi a sua sombra quando atravessava o quarto. - És do meu sangue e tenho- te a maior afeição; quero-te muito. Podia prová-lo agora, dando-te a única coisa que de facto me pertence, e então possuirias tudo. Mas peço- te, Verena, deixa-me ficar com essa única coisa.

Verena acendeu a luz.

- Falas em dar - retorquiu Verena numa voz tão crua como o súbito clarão do quarto. - E durante todos estes anos que trabalhei como uma negra, o que é que não te dei? Esta casa, este...

-Deste-me tudo - interrompeu Dolly em tom suave -, assim como à Catherine e ao Collin. Mas merecemo-lo um pouco. Sempre zelámos pelo bom arranjo do teu lar, não é verdade?

- Que belo lar! - replicou Verena, tirando o chapéu. Tinha o rosto afogueado. - Tu e essa trapalhona. Nunca pensaste que não convido ninguém? E sabes porquê? Pela simples razão de que tenho vergonha. Vê o que aconteceu hoje.

Eu podia ouvir a respiração de Dolly.

- Lastimo muito - disse ela em voz débil. - Sempre pensei que era aqui o nosso lugar,      que precisavas de nós. Mas tudo se arranjará, Verena.

Vamo-nos embora.

Verena suspirou.

-Pobre Dolly! Coitadinha! Para onde havias de ir?

A resposta, que tardou um pouco, foi tão frágil como um voo de borboleta:

- Conheço um abrigo. Mas tarde, esperei na cama que Dolly viesse beijar-me e dar as boas- noites. O meu quarto, por trás da sala, num canto afastado da casa, fora outrora ocupado pelo pai das minhas primas, o senhor Uriah Talbo. Tendo enlouquecido, já velho, fora transferido da herdade, por Verena, e ali morrera sem saber onde se encontrava. Embora isso ocorresse há mais de dez anos, ainda saturava o colchão e a mesinha-de-cabeceira o cheiro da urina e do tabaco. Sobre essa mesa havia a única coisa que ele trouxera consigo, um tamborzinho amarelo: quando era da minha idade, prestara serviço no regimento de Dixie, tocando tambor e cantando. Dolly dissera- me que, em pequena, gostava de acordar, nas manhãs de Inverno, ouvindo o pai cantar enquanto acendia o fogão dos vários quartos da casa. Depois da morte dele, continuou a escutar-lhe a voz no campo de plantas índias. É o ventou, dizia Catherine. E Dolly retorquia-lhe:

- Mas o vento somos nós: recolhe e rememora as nossas vozes, e manda- as reproduzir-se através das folhas, dos campos. Ouvi a de meu pai, tão clara como o dia.

Em noites como aquela - estava-se em Setembro - os ventos outonais deslizavam pela erva rija e vermelha, exalando todas as vozes pretéritas, e eu pensava se cantaria no meio delas a do velho em cuja cama eu nesse momento adormecia. Depois calculei que Dolly sempre viera beijar-me, porque acordei, sentindo-a perto de mim, no quarto. Era, porém, quase manhã, começava a luz a compor grinaldas nas janelas e os galos a cantar nas capoeiras distantes. "Psiu, Collin", murmurava Dolly, inclinando-se para mim. Envergava um vestido de Inverno, de lã, e tinha um chapéu com véu de viagem, que lhe sombreava o rosto.

-Queria apenas participar-te para onde vamos.

- Para a casa suspensa? - redargui, supondo que falava durante o sono.

Dolly fez que sim com a cabeça.

- Agora mesmo. Até que amadureçam os nossos planos.

Percebeu que eu estava assustado e pôs-me os dedos na testa.

- Ambas, sem mim? - Percorreu-me o corpo um calafrio. - Não me deixem só.

Ouviram-se as badaladas do relógio da torre. Dolly parecia esperar que ele se calasse, para tomar a sua decisão. Três, quatro, cinco. Mal se extinguiu o último som, dei um pulo da cama e vesti-me a toda a pressa.

- Não te esqueças do pente - foi tudo o que ela acrescentou.

Catherine reuniu-se-nos no quintal. Vinha curvada ao peso de um saco de oleado, cheio até às bordas. Chorava e tinha os olhos inchados. Dolly, singularmente calma e segura de si, observou-lhe:

-Não te rales. Mandaremos buscar o teu aquário logo que estejamos instalados.

Assomavam, acima de nós, as janelas fechadas e silenciosas de Verena. Passámos por baixo delas cautelosamente e em silêncio nos dirigimos para a porta. Ladrou um cão, mas não havia ninguém na rua e ninguém nos viu atravessar a cidade, salvo um preso que, insone, olhava através das grades da cadeia. Alcançámos o campo de ervas índias ao mesmo tempo que o sol. O véu de Dolly resplandecia à brisa matinal. Dois faisões, cujo ninho era à beira da vereda, saltaram à nossa aproximação, roçando com as asas metálicas a crista encarnada das ervas. A árvore da hina era uma taça outonal, verde e dourada.

- Vai rachar, e a gente cai e parte a cabeça - disse Catherine quando em volta de nós as folhas da árvore entornaram a sua chuva de orvalho.

 

Se não fosse Riley Henderson, duvido que alguém chegasse a saber - pelo menos tão depressa que nós estávamos na árvore. Catherine enchera o saco de oleado com as so bras do almoço do domingo, pelo que saboreávamos uma primeira refeição de bolos e galinha quando ouvimos ecoar um tiro de espingarda através do bosque. Ficámos com o bolo suspenso a caminho da boca. Em baixo, vimos passar um cão de caça, logo seguido de Riley Henderson, que levava a arma a tiracolo e um colar de esquilos sangrentos pendurado do pescoço. Dolly desceu o véu, como para se disfarçar entre a folhagem.

O rapaz deteve-se a pouca distância. Contraíra-se-lhe o rosto moço e tisnado e, empunhando a espingarda, preparou-se para o que desse e viesse.

A expectativa era demasiada para que Catherine se mantivesse tranquila. E gritou:

-Não se lembre de atirar sobre nós, Riley Henderson!

Oscilou a arma, virou- se o caçador e o colar de esquilos baloiçou-lhe ao pescoço. Descobriu-nos então na árvore e disse daí a pouco:

- Viva, Catherine Creek! Como está, senhora Talbo? Que fazem aí em cima? Perseguiu-as um gato-bravo?

- Ora, estamos aqui - volveu imediatamente Dolly, talvez com medo de que eu ou Catherine respondesse. - Sim, senhor, arranjou uma bela colecção de esquilos.

- Tome um par deles - disse o rapaz, tirando dois do colar. - Comemos esquilos ontem à noite, eram tenríssimos. Espere um instante, eu levo-os lá.

- Não se incomode. Deixe-os no chão. Ele, porém, declarou que podiam aparecer formigas e trepou à árvore. Tinha camisa azul salpicada de sangue, e gotas também de sangue a luzirem-lhe no cabelo basto e acastanhado. Cheirava a pólvora. O rosto, de feições grossas mas bem proporcionado, era de um trigueiro de canela. !Bravo, isto é uma casa a valer!", exclamou batendo com o pé como se quisesse experimentar a rijeza das tábuas. Catherine advertiu-o de que talvez fosse uma casa naquele momento, mas que não duraria muito se ele continuasse a dar patadas. "Foste tu que a construíste, Collin?"

Ao verificar que era interpelado, senti um abalo, mas de satisfação. Julgava que Riley Henderson nem soubesse o meu nome. Eu é que o conhecia, evidentemente.

Não havia mais ninguém na cidade de quem tanto se falasse como Riley Henderson. As pessoas idosas referiam-se-lhe suspirando, e os mais próximos da sua geração, como eu, achavam prazer em tratá-lo de mau e rude. Talvez porque só nos permitia invejá-lo, não nos deixando lugar para a amizade.

Qualquer pessoa poderá testemunhar.

Riley nasceu na China, onde o pai, missionário, fora morto durante uma rebelião. A mãe era da nossa terra e chamava-se Rose. Nunca a vi, mas afirmam que foi muito bonita até ao dia em que começou a usar óculos. Possuía bastante dinheiro, por ter sido herdeira do avô. Quando veio da China, trouxe consigo Riley, então de cinco anos, e duas pequenas mais novas. Viveram em casa do irmão dela, o juiz de paz Horace Holton, que era solteiro, gordo e amarelo como uma cidra. Com o tempo, Rose Henderson tomou atitudes esquisitas: ameaçou Verena de a processar porque esta lhe vendera um vestido que encolheu com a lavagem; quando queria castigar Riley, obrigava-o a dar a volta ao quintal, a pé-coxinho, recitando a tabuada. Fora disso, deixava-o medrar à vontade, e quando o pároco lhe falou a este respeito ela declarou que detestava os filhos e que preferia vê-los mortos. Devia ser verdade, pois certa manhã de Natal fechou-se à chave no quarto de banho e tentou afogar as duas pequenas na tina. Parece que Riley rebentou a porta à machadada, o que se me afigura difícil para um rapaz de nove ou dez anos, que mais não teria então. Depois disso mandaram Rose para um reformatório da costa do Golfo, e é provável que ainda viva lá. Pelo menos, não ouvi dizer que houvesse morrido. Riley e Horace Holton jamais se entenderam. Uma noite aquele furtou o carro ao tio e foi a um clube nocturno com Mamie Curtiss, mulher nada virtuosa e uns cinco anos mais velha do que ele, que nessa época orçaria pelos quinze. Horace soube que estavam os dois no clube e pediu ao xerife que o acompanhasse lá: tencionava, explicou, dar uma lição a Riley e prendê-lo em seguida. Mas Riley disse ao xerife que se enganara na porta; e aí mesmo, publicamente, acusou o tio de lhe sonegar o dinheiro que pertencera à mãe e que era dele e das irmãs. Sugeriu até que resolvessem já a pendência, mas, como Horace se esquivasse, o sobrinho avançou e atingiu-o num olho com um soco. O xerife meteu o rapaz na cadeia, porém o juiz Cool, velho amigo de Rose, procedeu a investigações e averiguou ser tudo certo: Horace pusera em seu nome os bens de Rose. De maneira que Horace fez as malas, sem dizer mais nada, e meteu-se no comboio de Nova Orleães; ali, meses depois, soubemos que, com o nome de "Sacerdote do Amor", casava os pares que subiam o Mississípi em viagem de recreio, nas noites de luar. A partir dessa data, Riley governou-se a si próprio. Com dinheiro que pediu emprestado sob garantia da herança a liquidar, comprou um automóvel encarnado, espaventoso, e percorreu o país com tudo o que a cidade possuía em matéria de aventureiras. As únicas raparigas sérias que utilizaram o carro foram as irmãs, que Riley, aos domingos de tarde, levava a passeio, numa volta lenta e respeitável pelas ruas.

Eram bonitas, aquelas irmãs, mas não deviam divertir-se muito, porque ele as vigiava de perto e os rapazes tinham medo de se aproximar.

Ocupava-se da casa uma preta de confiança e, se não fosse esta, elas viveriam sem mais nenhuma companhia. A que se chamava Elisabeth frequentava a minha classe, no colégio, e tirava sempre as melhores notas. Riley é que deixara de estudar; contudo, não ia jogar bilhar e preferia gastar o tempo na caça e na pesca. Realizou vários melhoramentos na sua residência (onde vivera o velho Holton) e, sendo bom carpinteiro e bom mecânico, fazia pequenos inventos, como uma buzina de automóvel que imitava o apito dos comboios; não era raro ouvir-se, à noite, esse silvo na estrada, quando ele ia a toda a velocidade dançar a qualquer povoação vizinha.

Quanto desejei ser seu amigo! A coisa não me parecia impossível, pois Riley tinha só mais dois anos do que eu. No entanto, lembrava-me da única vez que me falara. Muito elegante, de calças brancas de flanela, entrou na drogaria de Verena, onde eu costumava ajudar, nas noites de sábado. Queria uma caixa de preservativos, mas eu não sabia bem o que isso era e ele tomou a iniciativa de ir buscá-los atrás do balcão, onde estavam numa gaveta. Desatou a rir, sem maldade, o que se me afigurou ainda mais cruel, pois equivalia a considerar-me um pateta e era sinal de que nunca seríamos amigos.

- Aceite uma fatia de bolo - disse Dolly. Riley perguntou se costumávamos fazer piqueniques àquela hora da manhã. E acrescentou que achava a ideia excelente.

- É como nadar de noite - observou ele. - Quando ainda está escuro, venho até aqui e nado no riacho. Se voltarem a fazer um piquenique, previnam-me, sim ?

- Será sempre bem recebido em qualquer manhã que apareça. Parece -me que vamos ficar cá por algum tempo.   

Riley devia ter pensado que era um convite um tanto original, mas não fez comentários. Tirou um maço de cigarros e ofereceu-os em roda.

Catherine serviu-se, o que levou Dolly a notar que isso não estava nos seus hábitos. Mas a outra confessou que lhe apetecia fumar, pois havia de ser agradável, visto tanta gente elogiar o tabaco.

- Querida Dolly, quando se chega à nossa idade, é natural que se procure tudo o que é bom.

- Realmente, não julgo que possa fazer muito mal - retorquiu Dolly, mordendo os lábios, e tirando também um cigarro.

Há duas coisas capazes de desnortear um rapaz, segundo me ensinara o senhor Hand, que me apanhara a fumar na retrete do colégio. A uma delas eu renunciara - o cigarro - e sobre isto já se tinham passado dois anos. Não que acreditasse que tal vício me pudesse desnortear; mas porque supunha estorvar-me o crescimento. Agora, porém, com o meu tamanho, que considerava normal não me parecia que Riley fosse muito mais alto do que eu. Contudo, dava essa impressão por se deslocar com o ar fatigado de um vaqueiro, esse ar que têm muitas vezes os homens grandes e magros. De forma que me servi de um cigarro. Dolly, expelindo nuvens de fumo, que ela não engolia, opinou que, a haver enjoo, mais valia que o mal atacasse a todos. Catherine declarou que, na primeira ocasião, experimentaria fumar cachimbo. "Cheira tão bem!", ajuntou. A propósito, Dolly revelou um facto que me surpreendeu: que Verena possuía um cachimbo.

- Não sei se ainda fuma, mas o caso é que o tinha, assim como uma lata de Prince Albert, com a metade de uma maçã lá dentro. Mas agora não vá contar isto. - concluiu, dando subitamente fé da presença de Riley, que soltou uma gargalhada.

Em geral, quando o víamos na rua ou ao volante do carro, notava-se em Riley uma expressão contida, violenta; mas ali, na árvore da China, parecia repousado e ria com frequência, como se pretendesse conquistar simpatias, ou quem sabe se amizades. Dolly, por sua banda, mostrava-se muito à vontade, satisfeita na companhia dele. Com certeza que não tinha medo, talvez por estarmos na árvore e a árvore ser pertença nossa.

- Muito obrigada pelos esquilos - disse ela, quando o rapaz se preparava para descer. - Não se esqueça de voltar.

Riley saltou para o chão.

- Querem uma boleia? O carro está lá adiante perto do cemitério.

- É muito amável, mas a verdade é que não temos para onde ir - respondeu Dolly.

Sorrindo, Riley ergueu a espingarda e apontou -a para nós. Catherine gritou:

- Precisava de uns açoites, menino!

Ele continuou a rir, acenou e partiu a correr, com o cão ladrando à frente.

- Fumemos um cigarro - propôs Dolly. O maço havia ficado em nosso poder.

Quando Riley chegou à cidade, já zumbiam como abelhas os boatos referentes à nossa fuga durante a noite. Sem nos dizer nada, Dolly deixara um bilhete que Verena descobriu quando foi tomar o primeiro almoço. Conforme apurei, esse bilhete comunicava-lhe pura e simplesmente que nos íamos embora e que a não incomodaríamos mais. Verena telefonou logo para o Hotel Lola, ao seu amigo Morris Ritz, e ambos foram depois acordar o xerife. Este tinha sido nomeado mercê da influência de Verena. Era um rapagão sagaz e sem escrúpulos, de queixo saliente e olhar servil. Chamava-se Junius Candle (quem havia de dizer? O mesmo que é hoje senador). Reuniu-se um grupo de homens para iniciar a busca. Mandaram-se telegramas para os xerifes das cidades próximas. Anos depois, na liquidação da herança dos Talbos, achei por acaso o original desse telegrama, escrito, suponho, pelo doutor Ritz. "Procuram-se as seguintes pessoas, que viajam juntas: Dolly Augusta Talbo, branca, sessenta anos, cabelos de um grisalho-amarelado, delgada, altura cinco pés e três polegadas, olhos verdes, provavelmente louca mas não perigosa, dar sua descrição nas pastelarias, porque é grande consumidora de bolos. Catherine Creek, preta, pretende ser índia, cerca de sessenta anos, desdentada, maneira de falar confusa, baixa e gorda, possivelmente perigosa. Collin Talbo Fenwick, branco, dezasseis anos, parece mais novo, altura cinco pés e sete polegadas, loiro, olhos cinzentos, magro, má postura, cicatriz no canto da boca, feitio arisco. Procuram-se estas três pessoas como fugitivas. "Não fugiram para muito longe", disse Riley no correio. E a empregada, a senhora Peters, correu ao telefone para anunciar que Riley Henderson nos vira nas matas atrás do cemitério.

Enquanto isto acontecia, ocupávamo-nos com toda a tranquilidade do conforto do nosso abrigo. Do saco de Catherine tirámos um edredão cor-de-rosa e oiro; tínhamos também um baralho de cartas, sabão, rolos de papel higiénico, laranjas e limões, velas, uma frigideira, uma garrafa de vinho de amoras e duas caixas de sapatos repletas de mantimentos. Catherine gabou-se de haver feito uma limpeza à despensa, sem sequer deixar uma fatia de pão para o primeiro almoço de " aquela".

Mais tarde fomos todos ao riacho e lavámos os pés e a cara na água fria. Em River Woods existem tantos arroios como nervuras numa folha; límpidos, sussurrantes deslizam até ao rio que se arrasta através da floresta, qual lagarto verde. Valia a pena ver Dolly de pé dentro de água, com a saia de fazenda grossa arregaçada e o véu a importuná-la como uma nuvem de mosquitos. Perguntei-lhe porque andava de véu e respondeu-me:

-Então não é costume as senhoras usá-los quando viajam?

De regresso à nossa árvore, enchemos uma bilha de laranjada deliciosa e falámos do futuro. Possuíamos quarenta e sete dólares em dinheiro e várias jóias, entre as quais um anel de oiro que Catherine encontrara nas tripas de um porco, num dia em que estava a fazer chouriços. Na opinião de Catherine, quarenta e sete dólares chegavam e sobravam para irmos de caminheta até onde quiséssemos: conhecia uma pessoa que fora ao México por quinze dólares. Dolly e eu, porém, não concordámos com o México, pela simples razão de não sabermos a língua. Além disso, observou Dolly, era preferível não sair do Estado; e, para onde quer que fôssemos, devia ser perto de uma floresta, por causa da fabricação do remédio anti-hidrópico.

- Para falar com franqueza, acho que faríamos

bem em nos instalarmos de vez aqui - disse, lançando em volta um olhar pensativo.

- Nesta árvore velha? - replicou Catherine.  

Tire essa ideia da cabeça, querida Dolly.     

E acrescentou: - Lembra-se de termos lido uma vez no jornal que um sujeito comprou um castelo no outro lado do mar e que o trouxe para o seu país todo aos bocadinhos? Não se lembra? Talvez pudéssemos pôr a minha casinha numa carroça e trazê-la para aqui. - Mas como Dolly fizesse notar que a casa pertencia a Verena e, portanto, não apanhamos o jeito de a transportar, Catherine respondeu:

- Engana-se, minha rica, quando se faz a comida a um homem, se lhe lava a roupa, se lhe dá filhos, está-se casada com ele, pertence-nos. Quando se varre uma casa, se acende o lume e se enche o fogão, e se a gente fez tudo isso com amor, está-se casada com esse prédio é nosso. Quanto a mim, as duas casas pertencem-nos. Aos óleos de Deus, temos o direito de possuir aquela.

Ocorreu-me uma ideia. À beira do rio encontrava-se um barco abandonado, verde de lodo, meio submerso. Fora propriedade de um velho que ganhava o seu sustento com a pesca e se vira obrigado a sair da cidade por ter pretendido casar com uma pretinha de quinze anos. Eis, pois, a minha ideia: porque não arranjarmos o barco de modo a vivermos nele?

Catherine observou que, sendo possível, preferia passar o resto da vida em terra firme. "Onde o Senhor quis que vivêssemos", acrescentou. E citou outras intenções divinas, entre elas a de que as árvores tinham sido feitas para habitação de macacos e pássaros. Por fim calou-se e, tocando-nos com o cotovelo, apontou admirada para o lugar onde o bosque termina e começa o campo de ervas.

Ali avançavam em direcção a nós, em grupo solene, estas pessoas ilustres: o juiz Cool, o reverendo Buster e a senhora Buster, a senhora Macy Wheeler. E, à frente de todos, o xerife Junius Candle, de botas altas e pistola à cinta. Em volta deles cintilavam raios de Sol, como borboletas doiradas; as silvas arranhavam- lhes o traje citadino, e a senhora Macy Wheeler, assustada com um ramo que lhe roçou na perna, deu um grito agudo e um passo rápido para trás. Eu desatei a rir.

Ouvindo-me, ergueram a cabeça, com uma expressão de horror e perplexidade estampada na face. Dir-se-iam visitantes de jardim zoológico que houvessem entrado desprevenidamente numa das jaulas. O xerife Candle aproximou-se, bamboleando-se e apertando a pistola. Fitou-nos, piscando os olhos, como se encarasse o Sol, e começou:

- Oiçam lá...

Mas foi interrompido pela senhora Buster, que lhe disse:

- Senhor xerife, está combinado que isto compete ao reverendo.

Tinha como norma de que o marido, como representante de Deus, é que devia proferir em tudo a primeira palavra.

O reverendo Buster pigarreou e esfregou as mãos, que eram como as antenas secas e duras de um insecto.  

- Dolly Talbo - principiou, com voz demasiadamente profunda para um homem tão enfezado como aquele. - Venho aqui em nome de sua irmã, essa mulher clemente e generosa.

- Assim é - entoou a esposa, e a senhora Macy Wheeler repetiu a frase como um papagaio.

- Que hoje recebeu um golpe doloroso.

- Assim foi - disseram ambas as senhoras na sua voz afeita aos coros da congregação.

Dolly olhou para Catherine e tocou-me no braço, a pedir que lhe explicasse o que significava aquele grupo de pessoas que nos olhavam lá de baixo como cães ao pé de uma árvore onde se refugiaram sarigueias. Inadvertidamente, e julgo que só para ter qualquer coisa nas mãos, tirou um cigarro do maço que Riley nos deixara.

- Que vergonha! - guinchou a senhora Buster, agitando a cabeça de cabelos ralos. Os que a chamavam ave de rapina, e eram bastantes, não se referiam apenas ao seu carácter: além da cabecinha repulsiva, possuía corpo espesso e ombros encolhidos. - Que vergonha! Como pôde afastar-se de Deus ao ponto de se empoleirar numa árvore como uma índia bêbada, fumando cigarros como se fosse uma vulgaríssima.

- Marafona - concluiu a senhora Macy Wheeler.

- Marafona, enquanto a sua irmã passa por tão grande desgosto.

Talvez tivesse razão em descrever Catherine como perigosa, porque esta se levantou e disse:

- Senhora pregadora, não nos chame marafonas, a Dolly e a mim. Senão, desço e prego-lhe um par de cacholetas que a deixam aleijada para o resto da vida.

Felizmente que ninguém a compreendeu, aliás o xerife ter-lhe-ia desfechado um tiro; não exagero, e muita gente branca da cidade lhe teria dado razão. Dolly parecia espantada, sem deixar todavia de manter o sangue-frio. Limitou-se a sacudir a saia e replicou:

- Pense um momento, senhora Buster, e compreenderá que estamos mais perto de Deus do que qualquer dos senhores.

- Muito bem, senhora Talbo. Boa resposta! - O homem que falava era o juiz Cool. Aplaudiu com ambas as mãos e soltou um risinho de apreço. - Não há dúvida, estão mais perto de Deus - ajuntou, sem se perturbar com os rostos severos e reprovativos que o cercavam. - Encontram-se em cima da árvore e nós cá em baixo.

A senhora Buster virou-se para ele:

-Julgava-o cristão, Charlie Cool. A ideia que faço de um cristão não admite facécias nem incitamentos a uma pobre louca.

- Veja lá a quem chama louca, Thelma - retorquiu o juiz. - Isso também não é cristão.

Nesse instante acudiu o reverendo Buster.

- Responda-me, senhor juiz. Porque se reuniu a nós se não foi para cumprir a vontade de Deus com espírito de caridade?

- A vontade de Deus? - volveu o juiz com ar incrédulo. - Não a conhece melhor do que eu. Talvez fosse Deus quem ordenou a esta gente que viesse instalar-se na árvore. Ele nunca Lhe disse que a desalojasse dali. a menos que Verena Talbo seja o próprio Deus, teoria aceite por vários de vós, não é verdade, senhor xerife? Não, eu não vim para satisfazer a vontade de ninguém senão a minha, o que significa que tive apenas o desejo de dar um passeio. O bosque é muito bonito nesta quadra do ano. - Falando assim, colheu algumas violetas e pô-las na lapela do casaco.

- Diabos levem tudo isto - começou o xerife; de novo foi interrompido pela senhora Buster, a qual disse que em Nenhumas circunstâncias admitia pragas.

- Não é verdade, reverendo?

E o reverendo, dando-lhe razão, respondeu que raios o partissem se também as admitia.

- Eu é que estou encarregado do assunto - continuou o xerife, avançando o queixo ameaçador. - Este caso diz respeito à lei.

- A lei de quem, Junius? - retorquiu serenamente o juiz Cool. - Lembre-se de que presidi vinte e sete anos ao tribunal, mais tempo do que você tem de existência. Tome cuidado. Nenhuma lei nos concede o direito de nos imiscuirmos na vida da senhora Dolly Talbo.

Impávido, o xerife içou-se um pouco na árvore.

-Não arranjem mais complicações – disse ele, em tom conciliador; e pudemos ver-lhe a dentadura de cão. - Desçam, todos. - Como continuássemos no alto quais três aves no ninho, mostrou ainda mais os dentes e, talvez para nos fazer cair, sacudiu um ramo com toda a fúria.

- Dolly Talbo, a senhora sempre foi uma pessoa pacífica - interveio Macy Wheeler. - Volte para casa connosco. Com certeza não quer ficar sem jantar.

Muito naturalmente, Dolly replicou que não tínhamos fome. E eles?

- Há uma perna de galinha para quem quiser.

- Está a dificultar a minha missão - disse o xerife. - E içou-se um pouco mais. Cedendo ao peso, um ramo lançou através da árvore um ribombo sinistro.

- Se ele deitar a mão a algum de vós, dai-lhe um pontapé valente na cara - aconselhou o juiz Cool. - Ou então dou-lho eu - ajuntou, com repentina galantaria belicosa. E, num pulo de rã, agarrou numa das botas pendentes do xerife. Este, por seu turno, apanhou-me pelos tornozelos, e Catherine teve de me segurar pela cintura. Escorregávamos, a queda parecia inevitável, o esforço era enorme. Foi então que Dolly despejou no pescoço do xerife o resto da nossa laranjada. O homem largou-me de repente, proferindo um palavrão, e ele e o outro desabaram, o xerife por cima do juiz, e o reverendo Buster esmagado debaixo de ambos. Para aumentar o desastre, Macy Wheeler e a senhora Buster tombaram sobre eles, soltando gritos de aflição.

Aterrada pelo que acabava de acontecer e pelo papel que desempenhara, Dolly ficou tão trémula que deixou cair a bilha com um baque surdo e atingiu o crânio da senhora Buster. "Peço-lhe perdão", murmurou, embora, naquela barafunda, ninguém a ouvisse.

Desfeita a confusão, afastaram-se uns dos outros, constrangidos, cada qual apalpando-se cautelosamente. O reverendo parecia um tanto ama chocado mas não tinha nada partido, e só a senhora Buster, em cuja cabeça desguarnecida avultava já uma bossa piramidal, podia com razão queixar-se de ofensas corporais. E fê-lo sem hesitar.

- Atacou-me, Dolly Talbo, não negue. Toda a gente aqui é testemunha, todos a viram atirar-me à cabeça aquela bilha pesadíssima. Junius, prenda-a!

O xerife, entretanto, estava ocupado a regularizar as suas contas. De mãos nos quadris, bamboleando-se, avançou para o juiz, que repunha as violetas na lapela.

- Se não fosse velho, desancava-o!

- Não sou tão velho como isso, Junius; só o bastante para achar que os homens não se devem bater na presença de senhoras - retorquiu o juiz. Possuía bela estatura, ombros largos, corpo bem aprumado. Embora orçasse pelos setenta anos, ninguém Lhe daria mais de cinquenta. - Mas se está pronto para a luta, também eu estou - acrescentou com ar carrancudo.

Naquele momento, os dois equiparavam-se. E o xerife já não parecia tão seguro de si mesmo. Com decrescente fanfarronice, cuspiu entre os dedos e acabou por dizer que ninguém poderia acusá-lo de ter batido num velho.

- Nem de o haver enfrentado - replicou o juiz Cool. - Vamos, Junius, meta a fralda da camisa nas calças e raspe-se para casa.

Erguendo os olhos para a árvore, o xerife tentou mais uma vez convencer-nos:

- Evitem aborrecimentos futuros. Desçam daí e venham comigo.

Não nos movemos, excepto Dolly, que baixou o véu como quem corre o pano no último acto de um espectáculo.

Semelhante a um unicórnio, com aquele galo na cabeça, a senhora Buster interveio, cheia de petulância:

- Deixe-os, senhor xerife. É lá com eles. - E então acrescentou, olhando para Dolly e em seguida para o juiz: - Julgam talvez que as coisas ficam por aqui. Enganam-se. Hão-de ter o que merecem, não no céu mas aqui mesmo, neste mundo.

- Neste mundo - ecoou a Macy Wheeler.

Tornaram pela vereda, erectas, altivas, e assim passaram ao campo inundado de sol, onde as ervas altas, rubras e ondulantes as absorveram. O juiz ficou debaixo da árvore, sorriu para nós e, com um cumprimento cortês, interpelou-nos:

- Lembram-se de ter oferecido uma perna de galinha a quem lhe apetecesse? Poder-se-ia julgá-lo feito de bocados de árvore, pois o nariz assemelhava-se a um taco de madeira, as pernas vigorosas a raízes velhas e as sobrancelhas espessas a pedaços de casca. Dos ramos mais altos pendiam farrapos de musgo prateado da cor dos seus cabelos, apartados ao meio, e as folhas que tombavam de um sicômoro próximo tinham o tom cobre das suas faces. Apesar dos olhos de gato manhoso, a fisionomia dava a impressão de timidez campónia. Em geral, não era homem para se pôr em evidência, o juiz Charlie Cool, e muitos se haviam aproveitado dessa modéstia para lhe passar à frente. No entanto, nenhum se podia gabar, como ele, de ter estudado na Universidade de Harvard e andado em viagem pela Europa, pelo menos duas vezes. Não faltavam, contudo, invejosos que o acusassem de pretensioso: pois não constava que lia uma página de grego todas as manhãs antes do primeiro almoço? E que pensar de um homem que usava sempre flores na lapela? E se não fosse presumido, perguntavam os outros, por que razão procurara noiva em Kentucky em vez de casar com uma rapariga da sua terra? Não me recordo da esposa do juiz; morreu antes de eu ter idade para reparar nela, de modo que me limito a repetir o que me disseram. A cidade nunca simpatizou muito com Irene Cool e, segundo parecia, por culpa desta. Fogosas, de língua destemida, as mulheres de Kentucky são de convivência difícil, e Irene Cool, que pertencia à família dos Todds de Bowling Green (uma das primas, Mary Todd, casara com Abraham Lincoln) não tinha pejo em dizer que as pessoas de cá eram todas ordinárias. Não recebia nenhuma das senhoras da cidade, mas a menina Palmer, que costurava para ela, contou que Irene Cool transformara a casa do juiz numa residência de bom gosto, com tapetes orientais e móveis antigos. Ia à igreja e voltava num Pierce Arrow com todas as janelas abertas, e, no próprio templo, conservava sempre no nariz um lenço perfumado de água-de-colónia. Para Irene Cool nem Deus cheira bem. Além disso, não consentia que nenhum dos médicos locais lhe tratasse da família, embora ela própria fosse doente: uma leve deslocação da coluna vertebral obrigava-a a dormir sobre tábuas. Corriam muitos gracejos picantes acerca do juiz e do seu leito conjugal. Todavia, teve dois filhos, Todd e Charles, ambos nascidos em Kentucky, onde a mãe os foi dar à luz com o fim de eles poderem dizer-se originários do Blue Grass State. Os que tentavam compreender o juiz avaliavam o peso da irritabilidade da mulher, diziam que ele era um pobre diabo, que nunca tivera um processo de vulto a resolver. E mesmo depois de viúvo, os críticos mais severos houveram de concordar que o velho Charlie amara a sua Irene. Nos últimos dois anos da vida dela, durante o pior da sua doença, o juiz renunciou às suas funções e levou-a ao estrangeiro para rever os lugares onde tinham passado a lua-de-mel. Irene não voltou; ficou sepultada na Suíça. Não há muito tempo, uma das nossas professoras primárias, Carrie Wells, foi num grupo de excursionistas à Europa. As únicas coisas que há naquele continente relacionadas com a nossa terra      são os túmulos dos soldados e o de Irene Cool.

Carrie, munida de máquina fotográfica, propôs-se visitá-los; e embora errasse uma tarde inteira num cemitério alcandorado entre nuvens, não conseguiu encontrar o da mulher do juiz. Tem graça pensar que Irene Cool, jazendo serenamente na encosta da montanha, ainda se nega a receber visitas. Quando o juiz regressou viu que muito pouco lhe haviam deixado: certos políticos, como Meiself Tallsap e o seu grupo, tinham tomado conta do poder. Esses rapazes não podiam permitir-se o luxo de um juiz como Charlie Cool. Causava pena ver um homem tão bem-parecido e com fatos tão elegantes, de fumo de seda no braço e rosa na botoeira, vaguear assim desocupado, sem ter mais nada que fazer senão ir ao correio ou entrar por momentos no banco. Aqui trabalhavam os filhos, sujeitos prudentes e cerimoniosos que poderiam ser gémeos: ambos tinham pele branca, dorso curvado e olhos lacrimosos. Charles Junior, o que perdeu o cabelo quando ainda andava no colégio, era vice-presidente do banco, e Todd, o mais novo, desempenhava o cargo de guarda-livros. Não se assemelhavam nada ao pai, excepto quanto ao facto de terem casado com mulheres do Kentucky. Estas noras apoderaram-se da casa do juiz e dividiram-na em duas, com entradas independentes. Fora combinado que o velho habitaria ora com um filho ora com outro. Não admira, pois, que ele gostasse de passear no bosque.

- Obrigado, senhora Talbo - disse ele, limpando a boca com as costas da mão. - Há muito tempo que não me sabe tão bem uma perna de galinha.

-O senhor mostrou-se muito corajoso; desculpe ser tão pouco o que lhe podemos oferecer. - Notei na voz de Dolly uma comoção, um tremor feminino que se me afiguravam pouco decentes, pouco dignos. Catherine também devia ter a mesma impressão, porque lançou a Dolly um olhar de censura. - Não quer mais nada? Uma fatia de bolo?

- Não, obrigado, já estou satisfeito. - Tirou do colete um relógio de oiro e respectiva corrente e pendurou esta num galho sólido, por cima da cabeça. O relógio ficou pendente como um adorno de árvore de Natal, e o seu tiquetaque leve e discreto poderia ser o pulsar do coração de um ente delicado, de um pirilampo ou de uma rã. - Quando se ouve decorrer o tempo o dia prolonga- se. Aprecio muito os dias compridos. - Com a mão afastou os esquilos que jaziam a um canto, enrolados, como se dormissem. - Em cheio na cabeça; belo tiro, meu rapaz.

Como era justo, dei o seu a seu dono.

-Ah, foi Riley Henderson? - continuou o juiz. E acrescentou que tinha sido Riley quem revelara o nosso esconderijo. - Antes disso, despenderam uma centena de dólares em telegramas - informou-nos, sorrindo àquela ideia. A lembrança de tanto dinheiro gasto é que decerto fez Verena recolher à cama.

Sombreou-se o rosto de Dolly.

-É injustificável a maneira como nos trataram. Pareciam dispostos a matar-nos, de tal modo estavam furiosos. Não compreendo porquê nem percebo o que Verena tem com isso; sabia que partíamos para que ficasse em paz. Deixei- lhe um bilhete a preveni- la, além de já lho haver dito. Mas, se ela está doente. Estará de facto? Nunca adoeceu, que eu me lembre.

- Nem uma só vez - confirmou Catherine.

- Transtornaram-na, numa palavra - atalhou o juiz, não sem íntima satisfação. - Mas Verena é dessas mulheres que só têm doenças que se curam com comprimidos de aspirina. Recordo-me daquela vez que pretendeu fazer modificações no cemitério, construir uma espécie de mausoléu para ela e todos os da família Talbo. Uma das senhoras da terra veio ter comigo e disse-me: "Não acha que Verena Talbo é a criatura mais mórbida da cidade? Que ideia, querer mandar fazer para si mesma um jazigo tão avantajado!" Eu respondi que não, que a única coisa realmente mórbida era meter-se em tão grande despesa quando jamais pensou que pudesse algum dia morrer.

-Não gosto de ouvir dizer mal da minha irmã - observou secamente Dolly. - Tem trabalhado bastante e merece possuir as coisas tais como as deseja. A culpa foi nossa. Não há lugar para nós naquela casa.

Agitaram-se na boca de Catherine os seus chumaços de algodão, como se estivesse a mascar tabaco.

- Não reconheço a minha querida Dolly. Será uma hipócrita que fala? O senhor juiz é nosso amigo, devemos contar-lhe a verdade, ou seja, que "aquela" e o judeuzinho se queriam apropriar do nosso remédio.

O juiz pediu explicações, mas Dolly declarou que eram tolices. Não valia a pena repeti-las. E, para mudar de assunto, perguntou-lhe se sabia como se esfolavam os esquilos. Com ar pensativo, ele desviou a vista, olhou para cima, como que a perscrutar as folhas debruadas de céu, que a brisa fazia ondular. "Talvez não haja lugar para nenhum de nós; apenas sabemos que ele existe, mas onde? Se o encontrássemos e aí vivêssemos, nem que fosse um instante, considerar-nos-íamos felizes." Estremeceu, como se, no céu, se espalhasse a sombra de umas asas abertas. "Quem sabe se este é o vosso? E possivelmente o meu."

A pouco e pouco, conforme o relógio tecia o som do tempo, ia-se a tarde dobrando para o crepúsculo. A névoa do rio, bruma outonal, arrastava tons lunares através das árvores azuis e cor de bronze, e um halo, imagem do Inverno, cercava o Sol no declínio. Mas o juiz prosseguiu:

- Duas mulheres e um rapaz, à mercê da noite? E Junius Candle e os outros idiotas. Que querem eles? Eu fico convosco.

Na verdade, de nós os quatro, era o juiz quem se achava mais à vontade na árvore. Dava gosto vê-lo erguer o nariz, farejando como uma lebre, e sentir-se outro homem, ou mais do que isso, um protector.

Esfolou os esquilos com um canivete, enquanto, na penumbra, eu apanhava lenha e acendia o lume debaixo da árvore para a frigideira entrar em função. Dolly abriu a garrafa de vinho, com o pretexto de que o tempo arrefecia. Os esquilos, além de tenros, ficaram muito saborosos, e o juiz disse com orgulho que ainda havíamos de provar um dia peixe frito por ele. Bebemos o vinho em silêncio; do lume esmorecente evolava-se o cheiro de folhas e de fumo que nos fazia recordar outros Outonos, e nós suspirávamos ao ouvir, como rumor de vagas, o harpejo do campo de ervas.

Tremulou uma vela no gargalo de uma garrafa e, esvoaçando de roda da chama, as borboletas pareciam arrastar-lhe entre os ramos a faixa de oiro.

Foi então que sentimos, não positivamente, passos mas a impressão vaga de uma presença intrusa; poderia julgar-se ser apenas a Lua que surgia. Mas não havia Lua nem estrelas. Estava escuro, tão escuro como o vinho de amoras.

- Parece-me que há alguém. Qualquer coisa lá em baixo - disse, exprimindo a sensação de todos nós.

O juiz ergueu a vela. Fugiram à luz investigadora bichos da noite rastejantes. Entre as árvores voou um mocho branco.

- Quem vem lá? - perguntou ele com a energia de um soldado. - Responda. Quem vem lá?

- Eu, Riley Henderson. - E era verdade. Destacou-se das trevas e, à claridade, o seu rosto erguido e sorridente tinha um aspecto contorcionado e mau. - Venho somente ver como estão. Espero que não se zanguem comigo. Nunca eu diria onde se encontravam se soubesse do que se tratava.

- Ninguém te censura, meu rapaz - volveu o juiz, e eu lembrei-me de como ele patrocinara a causa de Riley contra o tio Horace Holton: existia entendimento entre ambos. - Saboreamos uma pinga de vinho. Tenho a certeza de que a senhora Talbo se regozijará com a tua companhia.

Catherine queixou-se de que não havia mais espaço, mais uma onça de peso e as tábuas velhas cederiam. Contudo, apertámo-nos para dar lugar a Riley e, logo que ele se juntou a nós, Catherine agarrou-o pelos cabelos.

- Isto é para o castigar por nos ter apontado a espingarda, quando dissemos que não o fizesse. E isto - acrescentou, com voz bem distinta para que todos a compreendessem e puxando- lhe novamente pela melena - é por ter posto o xerife na nossa pegada.

Achei Catherine impertinente, mas Riley, resmungando de bom humor, replicou que talvez ela tivesse melhores razões para arrepelar alguém antes que a noite acabasse. Porque - ajuntou - havia agitação na cidade: o reverendo Buster e a mulher em especial excitavam os espíritos. Sentada na varanda, a senhora Buster mostrava às visitas a bossa na cabeça. O xerife Candle persuadira Verena a autorizar um mandado de captura sob pretexto de termos subtraído coisas que lhe pertenciam.

- E quanto a si, senhor juiz - continuou Riley, em tom grave e perplexo - conceberam a ideia de o mandar prender também, por ter perturbado a paz e estorvado a acção da justiça. Talvez eu não devesse contar-lhe isto, mas encontrei à porta do banco um dos seus filhos, o Todd, e perguntei-lhe o que tencionava fazer para impedir que levassem avante aquele propósito. Respondeu-me: "Nada!" E disse ainda que já estavam há muito tempo à espera de qualquer coisa desse género, e que o senhor o merecia.

O juiz abaixou-se e apagou a vela. Julgar-se-ia querer ocultar a expressão que lhe acudira ao semblante. Na sombra alguém chorava e daí a pouco percebemos que era Dolly, e o som do seu choro despertou silenciosas explosões de amor que, correndo o círculo, nos uniram mais uns aos outros. Suavemente, murmurou o juiz:

- Quando vierem, estaremos prontos para eles. Agora, ouçam-me todos.

 

- Para defender uma posição devemos conhecê-la. Esta é uma regra fundamental. Por conseguinte: que é que nos reuniu? A adversidade. A vida corre mal à senhora Talbo e aos seus dois companheiros. E a ti e a mim também, Riley. O nosso lugar é nesta árvore, senão, porque estaríamos aqui? - Dolly mantinha-se silenciosa, subjugada pela voz confiante do juiz. - Hoje, quando me pus a caminho com o bando do xerife, estava convencido de que passaria uma existência retraída, dessas que não deixam rastro. Começo a crer que não serei tão infortunado. Há quanto tempo seria, senhora Talbo? Cinquenta ou sessenta anos? Lembro-me de que era então uma menina tímida, corando por tudo, que vinha à cidade no carro do seu papá e nunca se apeava para que não a víssemos descalça.

- Dolly e "aquela"usavam sapatos - resmungou Catherine. - Eu é que não.

- Há muitos anos que a vejo, sem a conhecer. Nunca compreendi, como agora, o que a senhora é: um espírito voluptuoso.

- Voluptuoso? - repetiu Dolly, alarmada mas cheia de curiosidade.

      - Pelo menos um espírito, alguém que não se avalia só pelo aspecto. Os espíritos aceitam a vida, reconhecem as subtilezas e, por consequência, arranjam sempre dissabores. Eu nunca devia ter sido magistrado; fui e estive muitas vezes do lado contrário ao da razão. A lei não admite subtilezas. Recordam-se do velho Carper, o pescador que residia num barco à beira do rio? Expulsaram-no da cidade por querer casar com aquela pretinha engraçada que hoje trabalha em casa da senhora Postun. Ela tinha-lhe amor; via-os muito quando ia à pesca e pareciam-me felizes na companhia um do outro. A rapariga era para ele o que jamais alguém foi para mim, a única pessoa do mundo, essa a quem nada se esconde. Todavia, se Carper chegasse a desposá-la, o dever do xerife seria prendê-lo e o meu seria condená-lo. Há ocasiões em que penso que todos os que sentenciei como culpados lançaram sobre mim a verdadeira culpa; em parte por causa disso é que desejo, antes de morrer, estar do lado da razão.

- Neste momento está, senhor juiz. "Aquela" e o judeu...

- Psiu! - fez Dolly.

- A única pessoa do mundo? - Era Riley quem repetia a frase de Charlie Cool. A voz arrastava-se- lhe, inquiridora.

- Quero dizer - explicou o juiz -, uma pessoa a quem se pode confiar tudo o que se pensa. Serei tolo em pretender semelhante coisa? Ah quanta energia despendemos para dissimular, receosos de que nos identifiquem! Mas cá estamos nós identificados: cinco patetas empoleirados numa árvore. Bela oportunidade, contanto que saibamos aproveitá-la: nada de preocupações com o espectáculo que oferecemos, e liberdade de nos mostrarmos tais como somos. Se sabemos que ninguém nos pode expulsar daqui! A dúvida em que se acham é que impele os nossos amigos a conspirarem para negar a subtileza. Noutros tempos, ora uma vez ora outra, abandonei-me a estranhas criaturas que desapareceram no extremo da ponte de desembarque ou se apearam na estação seguinte: reunidas, talvez formassem o ser único. Mas ele não existe com uma dúzia de caras diferentes, caminhando por diversas ruas. Chegou a ocasião de eu encontrar esse ente: é a senhora Talbo, o Riley, todos nós.

- Eu não tenho uma dúzia de caras. Que ideia tão disparatada! - exclamou Catherine, o que irritou Dolly, a qual a aconselhou a dormir, já que não podia falar respeitosamente.

- Mas, senhor juiz - disse Dolly -, não percebi bem o que devemos contar uns aos outros. Segredos? - ajuntou em voz balbuciante.

- Segredos, não. - O juiz riscou um fósforo e tornou a acender a vela. No rosto patenteava-se-lhe uma expressão dolorosa, inesperada: devíamos ajudá-lo, porque nos suplicava. - Conversemos da noite, do facto de não haver luar. O que se diz pouco importa; só tem importância a confiança com que falamos e a simpatia com que nos escutam. Irene, minha mulher, era uma pessoa notável, poderíamos partilhar fosse o que fosse, e no entanto nada em nós se harmonizava, nada tínhamos de comum. Morreu-me nos braços e, no último momento, perguntei-lhe: "És feliz, Irene? Fiz- te feliz?" "Feliz, feliz, feliz", foram as suas derradeiras palavras. Palavras ambíguas. Nunca cheguei a saber se ela pretendia responder "sim"ou se apenas repetia o que eu dissera, como um eco. Sabê-lo-ia se a conhecesse. Quanto aos meus filhos, não me estimam. Gostaria que me tivessem amizade, mais como homem do que como pai. Infelizmente, imaginam que sabem a meu respeito algo de vergonhoso. Já lhes digo do que se trata.

- Os seus olhos viris, facetados pelo clarão da vela, perscrutaram-nos um após outro como para verificar a nossa atenção e confiança - Há cinco ou seis anos tomei o comboio e sentei-me num lugar onde qualquer garoto deixara uma revista infantil. Ia folheá-la quando vi, nas costas da capa, vários endereços de crianças que desejavam corresponder-se com outras. Havia entre elas uma pequena do Alasca cujo nome me agradou: Heather Falls. Mandei-lhe um bilhete-postal ilustrado; Deus sabe como isso me parecia coisa bem inofensiva. Respondeu-me imediatamente e a sua carta deixou-me surpreendido: era uma narrativa inteligente da vida no Alasca, descrições encantadoras de auroras boreais e da herdade onde o pai criava ovelhas. Tinha treze anos, e incluíra uma fotografia sua; não seria bonita, mas o rosto inculcava bondade e sisudez. Procurando em velhos álbuns, descobri um retrato que me haviam tirado aos quinze anos durante uma pescaria... um instantâneo ao sol. Com uma truta na mão! Escrevi-lhe como se fosse ainda esse rapazinho, falando-lhe da espingarda que me haviam dado pelo Natal, da cadela que tivera filhos e dos nomes que eu lhes pusera, e descrevi-lhe também um espectáculo de circo a que assistira. Voltarmos à idade do crescimento e termos uma namorada no Alasca é coisa divertida para um velho solitário sentado a escutar o tiquetaque do relógio. Mais tarde, escreveu-me a participar que se apaixonara por um rapaz seu conhecido, o que me fez sentir a dor do ciúme como se eu fosse um adolescente. Mas ficámos bons amigos. Há dois anos, quando a informei que ia entrar na Faculdade, mandou-me uma pepita de oiro, para me dar sorte, segundo disse. - Tirando-a do bolso, o juiz estendeu o braço a fim de a mostrar, gesto que fez Heather Falls vir até nós como se a amável prenda luminosa a oscilar naquela palma fosse uma parcela do seu coração.

- E que acham nisso de vergonhoso? - observou Dolly com mais espanto que indignação. - Que mal há em fazer companhia a uma criança isolada no Alasca? É um país onde neva tanto!

Charlie Cool dobrou os dedos sobre a pepita.

- A mim nunca aludiram ao facto. Mas uma noite ouvi uma conversa dos meus filhos e noras pela qual percebi que haviam mexido nas cartas. Não gosto de fechar as gavetas à chave. É pouco natural que tenhamos de o fazer na nossa própria casa. Pois eles julgam que tudo isto é sintoma de... - E o juiz completou a frase batendo na testa.

- Também já uma vez recebi uma carta. Menino Collin, deite-me aqui uma pinguita – disse Catherine, indicando-me o vinho. - Sim, senhores, recebi uma vez uma carta, e devo tê-la ainda guardada em qualquer parte. Há vinte anos que a conservo, sem saber quem ma escreveu. Rezava assim: "Querida Catherine, vem ter comigo a Miami para nos casarmos. Gosto de ti. Bill.

- Catherine! Pediram-te em casamento e nunca me contaste nada!            

A preta encolheu os ombros.

- A Dolly não ouviu o que disse o senhor juiz? Não se pode contar tudo. Além disso, conheci um ror de Bills. e nunca pensei em casar com nenhum deles. O que mais me aborrece é não saber qual foi que me escreveu, tanto mais que se trata da única carta que me enviaram em toda a minha vida. Talvez o Bill que fez o telhado da minha casa; é certo que já eu estava velha quando a obra ficou pronta, e nem me lembrava do homem. Seria o que veio cavar o jardim na Primavera de mil novecentos e treze? Ou então o Bill que construiu a capoeira e mais tarde arranjou emprego nos Caminhos de Ferro; talvez fosse este o que me escreveu. E ainda há o Bill... Não, não, esse chamava-se Fred. Muito bom é o vinho, menino Collin!

- Também vou beber mais uma pinga - declarou Dolly -, pois Catherine causou-me tal emoção.

- Hum - resmungou a criada.

- Se falasse mais devagar ou mastigasse menos.

O juiz pensava que os tampões de algodão de Catherine fossem tabaco de mascar.

Riley afastara-se um pouco de nós; cabisbaixo, olhava fixamente para as trevas. U. u. u. piou uma ave.

- Creio que está enganado, senhor juiz.

- Que dizes, meu rapaz?

Espalhou-se na face de Riley o embaraço que eu sempre associava à sua pessoa.

- Não me encontro em apuros, como todos vós. Nada sou. Ou será isto a minha infelicidade? De noite, quando estou acordado, pergunto a mim mesmo: "Que sabes tu fazer? Caçar, guiar automóveis, divertires-te com mulheres." E atemorizo-me ao imaginar que será sempre assim. Outra coisa: não tenho amor a ninguém, senão a minhas irmãs, mas isso é diferente. Por exemplo, há mais de um ano que ando com aquela rapariga de Rock City, e nunca estive tanto tempo ligado à mesma mulher. A semana passada ela zangou-se comigo: "Onde está, afinal, a tua amizade por mim?", disse-me. E acrescentou que, se eu não gostava dela, antes queria morrer. Parei então o carro na passagem de nível. "Muito bem", respondi. "Esperemos aqui, porque o rápido deve passar dentro de vinte minutos. "Não desviávamos a vista um do outro, e eu pensava: "Que vergonha, fitar-te assim e não sentir nada senão..."

- Orgulho - concluiu o juiz.

Riley não protestou.

- E se as minhas irmãs estivessem em idade de se governar sozinhas, de boa vontade esperaria que o comboio passasse por cima de mim.

Custou-me ouvi-lo falar deste modo. Quereria dizer-lhe que a minha ambição era parecer-me com ele.

-Há pouco, a sua conversa versou sobre o único ente no mundo. Por que não podia eu pensar nela nesses termos? Bem o desejaria. mas não sinto nada. Se conseguisse amar alguém desse modo, talvez fizesse planos e os realizasse. Comprava os terrenos atrás de Parsons Place e construía prédios; mas para isso é preciso paz de espírito.

Levantou-se vento, de súbito, arrancando folhas e separando as nuvens nocturnas; libertas, as estrelas fulguraram em cascatas. A nossa vela tombou como se intimidada pela incandescência do firma, mento, e pudemos ver lá no alto uma lua de Inverno, pachorrenta e distante; dir-se-ia uma talhada de neve. De todos os lados a chamaram, rãs atarracadas de olhos redondos, gatos-bravos de voz lancinante. Catherine pegou no edredão e insistiu para que Dolly se abafasse com ele; depois enlaçou-me com os braços e coçou-me a cabeça até eu repousar inerte no seu seio. "Tem frio?", indagou. Aninhei-me mais no seu colo; era confortável e quente como a cozinha velha.

- Meu rapaz, começas pelo fim - disse o juiz, dirigindo-se a Riley. - Como seria possível gostares de uma mulher? Por acaso já sentiste amor por uma folha de árvore?

Escutando o apelo do gato-bravo com o olhar inquieto de caçador, Riley deitava a mão às folhas que volteavam como borboletas nocturnas; viva, palpitante, pronta a voar para longe, ficou-lhe uma presa entre os dedos. O juiz apanhou outra, e tinha mais valor na sua mão do que na de Riley. Encostou-a à face, brandamente, enquanto proferia em tom pensativo:

- Falávamos de amor. Através de uma folha, de um punhado de sementes, comecemos por isso, aprendemos um pouco o que é o amor. Em primeiro lugar a folha, uma bátega de água, e em seguida alguém para compreender o que a folha ensinou, o que a chuva fez amadurecer. Não é fácil, acreditem-me; pode levar uma existência inteira, como no meu caso... e ainda não domino o assunto. Ao certo, só sei que o amor é uma cadeia de ternura, como a natureza é uma cadeia de vida.

- Sendo assim - disse Dolly, respirando fundo - tenho estado sempre enamorada. - Enroscou-se debaixo do edredão e acrescentou em voz sumida: - Parece-me que não, afinal. Nunca amei. - Enquanto ela buscava a palavra, o vento brincava-lhe com o véu. - Nunca amei um homem. Só o meu pai. - Calou-se, pensando talvez que falara de mais. Como o edredão, envolvia-a estreitamente uma gaze de luz sideral; qualquer coisa, o coaxar das rãs, o fio de vozes que se elevava do campo de ervas, qualquer coisa a incitou a prosseguir: - Mas tive amor a tudo o resto. Por exemplo, sempre gostei muito do cor-de-rosa; o único lápis que possuí em pequena era desse tom. Desenhava gatos cor-de-rosa, árvores cor-de-rosa! Durante trinta e quatro anos habitei um quarto cor-de-rosa. E a caixa que eu guardei, deve estar em qualquer parte do sótão; tenho de a pedir a Verena, para matar saudades dos meus primeiros amores. Que existe nessa caixa? Um favo de mel seco, um ninho de vespões vazio e outras ninharias, como uma laranja salpicada de cravos-da-índia e um ovo de gaio. Sentia ternura por tudo isso, o amor acumulava-se em mim e acabava por transbordar, espraiando-se como um pássaro num campo de girassóis. Mas é preferível não deixar transparecer estas coisas, porque aborrecemos os outros e tornamo-los infelizes sem que saibamos porquê. Verena censura-me por me esconder nos cantos, como diz minha irmã, mas tenho sempre receio de assustar as pessoas mostrando a amizade que lhes dedico. Como aconteceu à mulher de Paul Jimson. Quando o marido adoeceu, ela é que o substituiu na distribuição dos jornais, recordam-se? Coitadinha, tão enfezada, mal podia com o peso do saco. Um dia chegou à nossa porta com o nariz a pingar e os olhos cheios de lágrimas de tanto frio que havia. Entregou o jornal e eu disse-lhe "Espere" e puxei do lenço para lhe limpar os olhos. Tencionava dizer-lhe, se fosse possível, que a lastimava e lhe queria muito, mas, assim que lhe rocei a mão pela cara, soltou um grito e desceu os degraus a correr. Desde então, passou a atirar da rua os jornais e, sempre que eu os ouvia cair na varanda, aquele som doía-me, repercutia-se dentro de mim.

- Se vale a pena afligir-se por criaturas como a mulher de Paul Jimson! - comentou Catherine despejando as últimas gotas de vinho. - Tenho um aquário com peixes e o facto de eu gostar deles não é motivo para gostar do mundo inteiro. Vão falando, vão, se lhes apetece, mas acho que só pode fazer mal recordar coisas que mais valia esquecer. Aquilo que se guarda para nós ainda é o melhor. Se contamos os nossos segredos a toda a gente, que é que nos fica? Na opinião do senhor juiz, estamos aqui por via de aborrecimentos. Ora, ora! Se estamos é por motivos muito simples. Primeiro, porque esta cabana é bem nossa; segundo, porque "aquela" e o judeu queriam apoderar-se do que nos pertencia; terceiro, vieram todos para aqui porque assim o quiseram. Esta última razão não se aplica à minha pessoa. Gosto de ter um tecto por cima da cabeça. Dolly, dê a menina ao senhor juiz um bocadinho de edredão; coitado, está a tremer como se visse almas do outro mundo.

Num gesto tímido, Dolly ergueu uma ponta do edredão e chamou o juiz, o qual, sem se fazer rogar, logo se enfiou por baixo dele. Os galhos da árvore oscilavam como remos mergulhando em mar revolto. Encolhido no seu canto, Riley ficou sozinho qual um órfão triste.

- Chegue-se para aqui, seu casmurro. Não tem mais calor do que os outros - disse Catherine, oferecendo a Riley, à sua direita, o lugar que eu ocupava à esquerda.

A proposta não o tentou; talvez notasse o cheiro a catinga de Catherine, ou então não quisesse dar parte de fraco. Mas eu incitei-o a vir: "Anda, ela é quente, muito melhor que um cobertor." e Riley acabou por se aproximar de nós. Tanto tempo reinou silêncio que julguei todos adormecidos. Então senti Catherine endireitar-se.

-Já sei quem me escreveu a tal carta - declarou. - Não foi nenhum Bill, foi o aquelau. Tão certo como eu me chamar Catherine Creek, encarregou qualquer preto de me mandar uma carta de Miami, imaginando que eu abalava daqui e nunca mais me poria a vista em cima.

- Psiu! - atalhou Dolly em voz ensonada. - Fecha os olhos e dorme. Não temos nada a recear. Estão aqui homens para nos defender.

Afastou-se um ramo e o luar abrasou a árvore. O juiz agarrara a mão de Dolly. Eis a última coisa que vi.

 

Riley foi o primeiro a acordar e, em seguida, despertou-me. No horizonte desmaiavam três estrelas de manhã na vermelhidão do sol-nascente. Reluziam as folhas, com aljofres de orvalho; ao encontro da claridade matutina, voavam bandos de melros. Riley fez-me sinal que o acompanhasse e ambos descemos da árvore no maior silêncio. Catherine, que ressonava, não nos sentiu partir, nem tão-pouco Dolly e o juiz, que, tal qual duas crianças perdidas numa floresta encantada, dormiam de faces unidas.

Dirigimo-nos para o rio. Riley ia à frente, com as pernas das calças de cotim a sussurrarem uma de encontro à outra. De vez em quando parava e espreguiçava-se como se tivesse passado a noite num comboio. A certa altura topámos com um formigueiro, e Riley, desabotoando a braguilha, pôs-se a inundar os insectos; não sei se teria muita graça, mas ri-me para lhe fazer companhia. É claro, quando deu meia volta e me urinou o sapato, senti-me deveras ofendido. Achei falta de consideração. Perguntei-lhe porque fizera semelhante coisa.

- Não percebeste que foi por brincadeira? - replicou, passando-me o braço por cima do ombro.

Se é que se podem dar tais factos, direi que foi esse o momento em que nos tornámos amigos, ou pelo menos o momento em que Riley Henderson começou a ter por mim afeição semelhante à que eu lhe dedicava. Através de sarças escuras, sob árvores acobreadas, embrenhámo-nos no mato em direcção ao rio.

Quais mãos escarlates flutuavam folhas na corrente esverdinhada. A ponta de um tronco submerso parecia a cabeça de um animal a espreitar-nos. Aproximámo-nos do barco velho, onde a água estava mais limpa. Era uma barcaça um tanto desmantelada; os detritos de um loureiro tinham-se amontoado no tecto e na ponte inclinada, formando cintilante camada de bolor. Lá dentro, o camarote apresentava aspecto muito estranho. Viam-se espalhados pelo chão diversos exemplares de um jornal de aventuras e, sobre uma mesa, junto do candeeiro de petróleo, enfileiravam-se garrafas de cerveja vazias; a tarimba tinha colchão e almofada, e nesta sobressaía a marca de lábios pintados. Depressa compreendi que o barco servia de esconderijo a alguém; depois, pelo sorriso de Riley, percebi de quem se tratava.

- E ainda por cima - disse ele - podemos entreter-nos a pescar. Mas não contes a ninguém.

Prometi calar-me, cheio de admiração por esse rapaz.

Enquanto nos despíamos tive uma espécie de sonho. Imaginei que a barcaça fora lançada ao rio e nos encontrávamos ali todos cinco. A nossa roupa lavada adejava como velas suspensas das cordas, no fogão cozia um bolo de coco, floria um gerânio no peitoril da janela, e lá íamos todos juntos, vogando em rios diferentes entre variadas paisagens.

O final do Verão aquecia ainda o Sol ascendente, mas a água, ao primeiro contacto, fez-me retroceder a tiritar para a coberta do barco, onde fiquei a observar Riley, que, muito à vontade, nadava cá e lá. Num sítio pouco fundo havia uma ilha de bambus, altos como pernas de grou, e Riley penetrou aí, de olhar pesquisador. Acenou-me. Embora me custasse, tornei a mergulhar no rio glacial e juntei-me a ele. Era límpida a corrente que dobrava os bambus, dividida em poças onde a água não nos subia acima do joelho. Riley havia-se curvado para um desses buracos; ali, sonolento e cativo, estava um peixe-gato, negro como carvão. Cercámo-lo, de dedos estendidos, e logo, num pulo desastrado, veio parar-me direito às mãos. Arranhavam-me a palma os bigodes rijos e aguçados, mas tive o bom senso de não o largar, graças a Deus, porque foi o único peixe que até hoje pesquei. Em geral não me acreditam quando digo que apanhei em siluro à mão, e eu respondo:    "Perguntem ao Riley Henderson." Enfiámos-lhe uma vareta de bambu através da guelra e voltámos a nado para a barcaça, transportando-o suspenso por cima da cabeça. Riley afirmou que nunca vira peixe tão gordo; levá-lo-íamos para a árvore e, já que o juiz se gabava de ser entendido em matéria de fritos pedir-lhe-íamos que o preparasse para o almoço. Quis o destino que o peixe nunca chegasse a ser comido.

Entretanto, passavam-se coisas trágicas na casa arbórea. Durante a nossa ausência, o xerife Candle voltara acompanhado de polícia e de um mandado de captura. Sem suspeitarmos do que acontecia, Riley e eu regressávamos em passo vagaroso, dando pontapés nos cogumelos e parando de vez em quando para atirarmos pedras à água.

Encontrávamo-nos ainda a certa distância quando chegou até nós o barulho de motim, vozes que se repercutiam nas árvores como se fossem machadadas. Ouvi Catherine gritar, ou melhor, rugir. Fiquei sem forças nas pernas, a ponto de não poder seguir Riley, que se muniu de um pau e desatou a correr. Fiz zigue e depois zague, tomei uma direcção errada e acabei por ir ter à orla do campo de ervas. Aí descobri Catherine.

Tinha o vestido rasgado à frente, o que equivale a dizer que estava nua. Aos empurrões, levavam-na através do campo Ray Oliver, Jack Mill e o gordo Eddie Stover, três adultos amigos do xerife. A minha vontade foi matá-los. Catherine tentava fazê-lo, mas em vão, embora os atacasse com a cabeça e os cotovelos. Eddie Stover era legalmente filho de... mas os outros mereceram o epíteto pelo seu procedimento. Como Eddie avançasse para mim, bati-lhe com o peixe em cheio na cara.

-Deixe em paz o meu menino, que ele é órfão - disse Catherine. E, ao vê-lo agarrar-me pela cintura, gritou: - Dê-lhe um pontapé em certo sítio! Um pontapé valente, Collin!

Assim fiz. A cara do homem tornou-se verde. Jack Mill, aquele que um ano depois ficou fechado numa geleira e aí morreu (bem-feito!), arremessou-se a mim, mas escapuli-me pelo campo fora e agachei-me no meio das ervas mais altas. Não se maçaram muito a procurar-me; Catherine já lhes dava trabalho suficiente. Esta debateu-se durante todo o caminho, e eu segui-a com a vista, angustiado por não poder prestar-lhe auxílio, até o grupo desaparecer atrás do cemitério.

Por cima da minha cabeça crocitavam dois corvos, voando cá e lá como sinal de mau agoiro. Rastejei em direcção ao bosque; perto de mim, soavam passos a pisar a erva. Era o xerife, acompanhado de um tal Will Harris, homem alto, de espáduas de búfalo, a quem um cão raivoso dilacerara a garganta: as cicatrizes não apresentavam bonito aspecto, mas a voz danificada ainda era pior: parecia uma vozinha tola de criança, espécie de voz de anão. Passaram tão próximo que eu poderia desatar os sapatos de Will. Este, em tom de falsete, falava ao xerife acerca de Morris Ritz e de Verena. Não percebi muito bem, mas tive a impressão de que sucedera qualquer coisa a Morris Ritz e que Verena mandara Will chamar o xerife.

-Que diabo quer afinal essa mulher? Um exército? - replicou Candle.

Depois de desaparecerem, corri para o bosque. Chegado perto da árvore, escondi-me atrás de um leque de fetos, receando que um dos homens do xerife se encontrasse ainda nas proximidades. Mas não dei por nada, além de um pássaro solitário a cantar. E ninguém na casa arbórea; nebulosos como fantasmas, os raios de Sol iluminavam a gruta de ramos deserta. Devagarinho, aproximei-me e apoiei a cabeça no tronco da árvore. Então de novo me surgiu a visão da barcaça; a nossa roupa flutuava ao vento, o gerânio estava em flor, o rio levava-nos para a vastidão do mar.

- Collin! - O meu nome tombou do céu. - És tu que estou a ouvir chorar? Era Dolly que me chamava donde eu a não conseguia lobrigar; mas, trepando até ao âmago da árvore, vi a certa altura o seu sapatinho oscilante.

- Cuidado, rapaz - acudiu o juiz, que estava ao lado dela. - Se sacodes a árvore, dás connosco em terra.

Na verdade, como gaivotas na ponta de um mastro, empoleiravam-se ambos no mais alto da árvore. Mais tarde, Dolly confessou que o panorama dali desfrutado a impressionara tanto que lamentava não haver ocupado antes aquele posto. Depreendi que Charlie Cool percebera a aproximação do xerife e dos seus apaniguados e por isso tivera tempo de se refugiar lá no cimo.

- Espera, já lá vamos - disse Dolly e, amparada pelo seu companheiro, desceu como uma rainha que pisa os degraus da escadaria do paço.

Beijámo-nos. Não queria largar-me.

- Ela foi à tua procura. a Catherine. Não sabíamos onde estavas e eu afligia-me bastante.

O medo de Dolly fazia-me formigueiros nas mãos. Assemelhava-se, minha prima, a um animalzito assustado, um coelho que se tira da armadilha onde caiu. O juiz olhava-nos receoso, baixando a vista, humilde; tinha o ar de quem se considera a mais, pensando talvez que nos traíra não evitando a prisão de Catherine. Mas que poderia ter feito? Se fosse auxiliá-la, seria do mesmo modo capturado. Não eram para brincadeiras, o xerife, o colosso Eddie Stover, e os restantes. Eu é que devia sentir-me culpado. Se Catherine não partisse à minha procura, decerto jamais a apanhariam. Contei-lhes o que sucedera no campo de ervas.

Afinal, Dolly não queria ouvir-me. Como para afastar um pesadelo, puxou o véu para cima.

- Gostaria de acreditar que Catherine se foi embora, e não posso. Se pudesse, correria no seu encalço. Também desejaria que isto fosse obra de Verena, e da mesma forma o não posso. Collin, que te parece? Será o mundo, no fim de contas, um lugar mau? Ontem à noite via-o de maneira tão diferente?

O juiz fitou-me; tentava, suponho, sugerir-me a resposta. Eu, porém, já não sabia como responder. Sejam quais forem as paixões que os compõem, todos os mundos privados são bons. Dolly fora muito apurada pelo seu, aquele que ela compartilhava com Catherine e comigo, para sentir as rajadas de maldade que sopram nos outros. "Não, Dolly, o mundo não é mau."

Passou a mão pela testa.

- Se dizes a verdade, Catherine não tardará a aparecer debaixo desta árvore. Não os encontrou, a ti e ao Riley, mas há-de regressar.

- A propósito - atalhou o juiz. - Que fim levou Riley?

Corria à minha frente a última vez que o vira.

Tomados da mesma inquietação, o juiz e eu levantámo-nos e começámos a chamá-lo em altos brados. A nossa voz, dando um giro lento pelo bosque, voltava ao ponto de partida, recambiada pelo silêncio. Eu sabia o que sucedera. Ele havia caído num velho poço dos Índios. Não faltavam exemplos! Estava quase a comunicar a minha suspeita quando o juiz pôs um dedo nos lábios. Aquele homem devia ter um ouvido de cão; eu por mim, não sentia nada. Mas ele acertara: andava alguém no atalho.

Daí a pouco reconhecemos Maude Riordan e a irmã mais velha de Riley, Elisabeth. Amigas íntimas, usavam camisolas brancas iguais. Elisabeth trazia uma caixa de violino.

- Escuta, Elisabeth - disse o juiz, sobressaltando as raparigas, que não tinham dado ainda pela nossa presença. - Viste o teu irmão?  

Maude foi a primeira a refazer-se do susto e respondeu categórica:

-Já se sabe que o vimos. Eu acompanhava Elisabeth a casa, depois de ela receber a sua lição de violino, quando Riley passou a noventa à hora. Quase nos esmagava! Devias ralhar com ele, Elisabeth. Enfim, pediu-nos que viéssemos aqui participar-lhes que não há motivo para apoquentações.

Mais tarde o próprio lhes explicará. Eu é que não percebo nada.   

Tanto Maude como Elisabeth haviam andado comigo no colégio, na mesma classe. Depois passaram-me adiante e obtiveram aprovação final no mês de Junho anterior. A primeira eu conhecia muito bem, porque durante um Verão a mãe dela me dera lições de piano. O pai ensinava violino e Elisabeth era uma das suas alunas. A própria Maude tocava na perfeição esse instrumento. Na outra semana eu lera numa gazeta local que a rapariga fora convidada a tomar parte num programa de rádio, em Birmingham, o que me causou satisfação. Gente simpática, esses Riordans, atenciosos, bem-dispostos. Não foi por gosto musical que me inscrevi como discípulo da senhora Riordan, mas sim porque apreciava a sua conversa de pessoa educada e me comprazia a ouvir o que ela dizia, quando estávamos sentados diante do piano - belo piano vertical que cheirava a polimento e denotava escrúpulos de limpeza doméstica. O que sobretudo me seduzia era o convite que, em seguida, me dirigia Maude para tomar limonada em sua companhia, na frescura da varanda. Com o seu nariz arrebitado e orelhas transparentes, essa pequena nervosa herdara do pai os olhos pretos, como os Irlandeses, e da mãe o cabelo platinado como a madrugada, e era em tudo diferente da sua melhor amiga, a sentimental e tenebrosa Elisabeth. Não sei de que se ocupavam as duas quando estavam juntas, talvez de livros, talvez de música. Mas, comigo, a conversa de Maude convergia sempre para o assunto dos rapazes, dos encontros, das bisbilhotices de café. Não te parece uma coisa horrível isso de Riley Henderson lidar com semelhantes mulheres? Mostrava-se cheia de piedade por Elisabeth e achava extraordinário que esta conseguisse preservar a sua pureza. Não seria preciso ser profeta para adivinhar que Maude gostava de Riley. Entretanto eu supunha estar apaixonado por ela. Em casa tanto falei no seu nome que a Catherine acabou por dizer.

- Ah, Maude Riordan!. É muito escanzelada.

Não tem nada que se belisque. Só um louco perderia tempo com essa rapariga, nos tempos que correm.

Certa vez proporcionei a Maude uma noite bem passada. Eu próprio compus um ramo de ervilhas-de-cheiro, para ela exibir no corpo do vestido, em seguida levei-a ao Café Phil, onde comemos bifes de Kansas City, depois fomos dançar ao Hotel Lola. Contudo, Maude procedeu como se não esperasse um beijo de despedida. "Julgo que não é indispensável, Collin. Mas foste muito amável comigo esta noite." Fiquei desiludido, percebem porquê. Como, porém, me não deitei a reflectir no caso, a nossa amizade não sofreu grande alteração. Um dia, no fim da lição, a senhora Riordan não me indicou o costumado trecho para estudar em casa; pelo contrário, informou-me delicadamente que achava preferível eu não continuar estudando piano.

- Gostamos muito de ti, Collin, escuso acrescentar que serás sempre bem recebido cá em casa. Mas a verdade é que não tens queda nenhuma para a música. São coisas que acontecem, e não seria justo ocultá-lo.

Ela tinha razão, porém, o meu orgulho não deixou de sofrer com isso. Só em pensar nos Riordans me sentia infeliz a valer. Até que a pouco e pouco - conforme esquecia as noções ali aprendidas - me foi possível descer por completo o pano sobre aquela cena. A princípio, Maude costumava deter-me à saída do colégio e convidava-me a acompanhá-la a casa. Eu, porém, esquivava-me sempre com qualquer pretexto, tanto mais que estávamos no Inverno e me agradava ficar na cozinha com Dolly e Catherine. Esta perguntou-me por que já não falava de Maude. "Porque não", limitei-me a responder. Mas, embora não falasse, continuava a pensar nela; e então, vendo-a ali em baixo, sob a árvore, os sentimentos de outrora confrangeram-me o coração. Pela primeira vez, perscrutei a consciência. Aos olhos de Maude e Elisabeth não pareceríamos nós, Dolly, o juiz e eu, um tanto ridículos? Estavam aptas as duas para formular opinião a meu respeito, por serem da minha idade. Mas, a avaliar pela sua atitude, dir-se-ia que nos havíamos encontrado na rua ou na loja da prima Verena.

- Maude - perguntou o juiz -, como passa o teu pai? Consta-me que anda adoentado.

- Não tem motivo para se queixar. No entanto, sabe como são os homens. Consideram-se sempre doentes. E o senhor juiz?

- Lastimo - retorquiu este, que parecia distraído. - Dá-lhe recomendações minhas. Estimo muito as suas melhoras.

-Serão entregues - volveu Maude, atenciosa. - Ele há-de apreciá-las bastante. - Depois de compor a saia, sentou-se no chão e forçou a esquiva Elisabeth a tomar lugar junto dela. Ninguém tratava Elisabeth por qualquer diminutivo. Podiam começar a chamá- la Betty, mas ao fim de uma semana voltava a ser Elisabeth. A culpa era do seu feitio. Lânguida, sem energia, tinha cabelos    pretos rebeldes e rosto apático, com o ar doloroso, por vezes, de uma santa. Num medalhão de esmalte trazia ao pescoço de caule de lírio a miniatura do pai quando era missionário.

- Repara, Elisabeth, o chapéu da senhora Talbo não é elegante? De veludo, com um véu.

Dolly ergueu-se e tacteou a cabeça.

- Em geral não uso chapéu. Mas como tencionávamos viajar.

- Ouvi dizer que tinham abandonado a casa - observou Maude. E continuou com maior franqueza: - Realmente, não se fala de outra coisa. Não é verdade, Elisabeth? - Sem entusiasmo, a interpelada fez um gesto afirmativo. - Contam-se histórias tão esquisitas! No caminho para cá encontrámos Gus Ham e ele disse-nos que aquela preta Catherine Crook, ou lá como se chama, havia sido presa por ter atingido a senhora Buster com uma vasilha de barro.

- Catherine. nada tem a ver com isso - replicou Dolly, baixando sucessivamente de tom.

- Alguém o fez - insistiu Maude. - Vimos esta manhã a senhora Buster no correio. Mostrava a toda a gente um galo na cabeça, e não era pequeno. Não é verdade, Elisabeth? - Esta bocejou. - Fosse quem fosse, acho que o autor da proeza merece uma medalha.

- Não - suspirou Dolly. - Antes não acontecesse. É caso para lastimar.

Maude, finalmente, deu fé de mim.

      - Queria falar contigo, Collin - declarou com certa pressa, como se quisesse esconder o embaraço (o meu, não o dela). - Elisabeth e eu projectamos uma reunião para a véspera de Todos-os-Santos. Há-de ser com máscaras terríveis e lembrámo-nos que te podias vestir de esqueleto. Instalavas-te num quarto forrado de negro, para leres a sina. Tens jeito para isso.

- Tolices - comentou Elisabeth, desinteressada do assunto.

- Também ler a sina não é grande coisa. - anuiu Maude.

Não sei o que lhes sugerira a ideia de que eu podia desempenhar esse papel. Talvez porque no colégio mostrava habilidade para truques semelhantes. Afirmei que achava o plano excelente, acrescentando:

- Mas é melhor não contarem comigo. Por essa ocasião podemos estar no calabouço.

- Nesse caso. - redarguiu Maude, como se aceitasse uma das minhas desculpas de outro tempo, quando evitava defender a sua causa.

- Maude - começou o juiz, ajudando-nos a quebrar o silêncio que se estabelecera. - Caminhas para a celebridade. Li no jornal que ias tocar no programa de rádio.

Como se falasse para si mesma, ela explicou que essas emissões eram o termo de um concurso oficial. Se ganhasse, obteria uma bolsa para estudar música na Universidade. Tirando apenas o segundo prémio, ficaria com direito a meia bolsa.

- Vou tocar uma página do papá, uma serenata. Escreveu-a no dia em que nasci. Mas é surpresa. Não quero que ele saiba.

- Peça-lhe que a execute - sugeriu Elisabeth, abrindo a caixa do violino.

Maude, que era generosa, não se fez rogada.

O instrumento cor de borra de vinho, apertado sob o queixo da rapariga, trinou quando ela se pôs a afiná-lo. Uma borboleta, que cintilava no arco, saltou em espiral no momento em que este, ferindo as cordas, entoou uma música que parecia temporal de neve feito de voo de insectos, fogo-de-artifício primaveril, tão agradável de ouvir nesse bosque onde o Outono dominava. O som foi esmorecendo, mais triste, e a cabeça platinada descaiu sobre o violino. Batemos palmas. Quando acabávamos, outras mãos, misteriosas, aplaudiriam. Riley saiu de trás de um tufo de plantas e, ao vê-lo, as faces de Maude ruborizaram-se. Não creio que ela tocasse tão bem se soubesse que ele a escutava.

Riley mandou as raparigas para casa. Pareceram relutantes em partir, mas Elisabeth não estava habituada a desobedecer ao irmão.

- Tranca as portas - recomendou. - E tu, Maude, farias grande favor se ficasses esta noite em nossa casa. Se perguntarem por mim, digam que não sabem onde estou.

Ajudei-o a trepar à árvore, pois ele trazia a espingarda e o saco de campismo repleto de provisões: uma garrafa de vinho, laranjas, sardinhas, salsichas, pãezinhos da padaria de Katydid, uma lata de bolachas. A aparição de cada objecto reanimava o nosso moral, e Dolly, entusiasmada com as bolachas, declarou que Riley merecia um beijo. Mas foi com ar circunspecto que escutámos a sua narrativa.

Quando nos separáramos na floresta, era na direcção dos gritos de Catherine que ele ia a correr. Desembocara no campo de ervas e tinha presenciado a minha altercação com o corpulento Eddie Stover.

- Porque não vieste em meu socorro? - perguntei.

- Defendias-te bem. Não creio que o Eddie te esqueça tão cedo. O pobre diabo foi todo o caminho a coxear e dobrado em dois.

Além disso, Riley lembrara-se que ninguém sabia ser ele um dos nossos, que se nos reunira na árvore. Mantendo-se oculto, pudera seguir Catherine e os amigos do xerife até à cidade. Haviam-na atirado para dentro da carripana do Eddie e conduzido directamente à prisão. Riley fora-lhes na peugada. Ao chegar à cadeia, Catherine mostrara-se calma. Formou-se à porta um grupo de curiosos, na sua maioria garotos da rua, e dois ou três velhos camponeses.

-Teriam orgulho na Catherine se a vissem passar no meio deles aconchegando as saias e de cabeça assim erguida. - E Riley empinou a sua numa atitude régia. Quantas vezes eu vira Catherine fazer esse gesto, sobretudo quando a censuravam por esconder peças do jogo de paciências, ou dar informações falsas, ou não tratar dos dentes) E Dolly, que também conhecia de sobra aquele movimento altaneiro, assoou-se para disfarçar a comoção.

- Mas - continuou Riley - mal pôs os pés na cadeia, desatou a barafustar. Ali há só quatro celas, duas para as pessoas de cor, duas para os brancos. Catherine protestou porque a meteram numa das primeiras.

O juiz acariciou a barba, meneou a cabeça.

- Não tiveste oportunidade de lhe falar? Ela ficaria mais consolada se soubesse que um de nós estava lá.

- Errei por ali a ver se me aparecia à janela. Foi então que soube outras notícias.

Pensando bem, não compreendo como é que Riley esperou tanto tempo para as contar.

- Pois façam favor de ouvir: o nosso amigo de Chicago, o execrável doutor Morris Ritz, deu às de vila-diogo, após haver surripiado, do cofre de Verena, doze mil dólares em papéis de crédito e mais setecentos dólares em notas. E aquilo era, soubemo-lo mais tarde, apenas metade do roubo. Eis o que contava ao xerife aquele falinhas mansas do Will Harris.

Não me admira, pois, que Verena gritasse ó da guarda. Os dissabores que passara por nossa causa não eram nada em comparação com isto. Riley sabia pormenores: sabia que Verena, descobrindo que a porta do cofre se achava aberta (aquilo acontecera no escritório que fica por cima da loja do fanqueiro), correu ao Hotel Lola. para ser lá informada de que o Morris Ritz liquidara a conta na véspera. Desmaiou e, voltando a si, tornou a desmaiar!

Encovou-se o rosto flácido de Dolly. Hesitava entre o desejo de ir com a irmã e a vontade, mais profunda, de permanecer onde estava. Olhou para mim, pesarosa.

- Mais vale que saibas já, Collin. Não será preciso que atinjas a maioridade. Este mundo é lugar muito mau!

No juiz verificou-se uma transformação, rápida como um golpe de vento. Pareceu subitamente ter a idade que tinha, tornou-se outonal, desamparado, como se acreditasse que Dolly, aceitando a ideia da perversidade, se houvesse esquecido dele. Eu, porém, sabia que assim não era. O juiz chamara-lhe espírito, ela mostrava- se realmente mulher. Desrolhando a garrafa de vinho, Riley entornou nos quatro copos o líquido cor de topázio. Ao fim de algum tempo, encheu um quinto copo: o de Catherine. O juiz, levando o seu à boca, propôs um brinde: "A Catherine, para que confie em nós!" Erguemos também os nossos, e Dolly, de olhos dilatados por um pensamento repentino, declarou:

- Collin, tu e eu somos os únicos capazes de compreender o que ela diz!

 

O dia seguinte, que foi o primeiro de Outubro, quarta-feira, é um desses que jamais esquecerei.

Para começar, Riley acordou-me pondo os pés, ao passar, em cima dos meus dedos. Dolly, já desperta, obrigou-me a pedir desculpa por o ter mandado bugiar. A delicadeza, explicou ela, é mais importante de manhã do que a outra qualquer hora do dia, em especial quando se vive num espaço tão acanhado. O relógio do juiz, sempre pendurado de um ramo como uma pesada maçã de ouro, indicava seis horas e seis minutos. Não sei quem teve a ideia, mas o caso é que o nosso primeiro almoço se compôs de laranjas, bolachas e cachorros quentes, frios. O juiz formulou a opinião, resmungando, de que o corpo de uma pessoa só começa a sentir-se humano depois de uma xícara de café, e todos concordaram que o café nos fazia falta. Riley ofereceu-se para o ir buscar; de caminho, averiguaria em que ponto estavam as coisas. Convidou-me a acompanha - lo, observando que ninguém me descobriria se eu me escondesse bem no fundo do carro. O juiz achou que seria imprudência, mas Dolly percebeu que eu fazia gosto em aceitar. Desejava tanto passear no automóvel de Riley que mesmo nessa ocasião, sabendo que o público me não veria, a custo reprimi o meu entusiasmo.

- Não há mal nenhum nisso - comentou Dolly. - No entanto, precisas de uma camisa lavada. Na gola dessa que tens vestida até se podiam cultivar nabos!

No campo de ervas não havia vozes, nem roçal de faisões, nem rumores furtivos; as folhas pontiagudas aguçavam-se, de um rubro de sangue, como frechas ao termo de uma chacina, e quebravam-se, frágeis, sob os nossos pés quando subimos o outeiro em direcção ao cemitério. O panorama, dali, era belo: a superfície trémula e sem limites de River Woods, cinquenta milhas de campos cultivados, moinhos de vento. E, ao longe, a torre do tribunal, as chaminés fumegantes da cidade. Detive-me perante o jazigo de meus pais. Não ia lá muitas vezes, porque a sua vista me deprimia: o frio da pedra sepulcral surgia-me tão diferente da ideia que eu conservava deles, da sua vivacidade, ou da inquietação de minha mãe quando o pai partia a fim de vender os frigoríficos, ou ainda do dia em que ele saíra nu para o quintal. Apeteceu-me pôr flores nas jarras de barro que ali estavam, vazias sobre o mármore estriado e enlameado. Riley ajudou-me. Arrancou vários galhos de uma camélia em que despontavam botões e, enquanto me via dispô-los, murmurou:

- Felizmente que a tua mãe foi boa pessoa. Em geral são umas desavergonhadas.

       Referir-se-ia à mãe dele, a infeliz Rose Henderson, que o forçava a dar a volta ao quintal, num pé só, recitando a tabuada? Achei, todavia, que ele se desforrara desses maus tempos. No fim de contas, possuía automóvel, que conforme se dizia lhe custara três mil dólares. E em segunda mão, vejam bem! Era de marca estrangeira, um Alfa Romeo descapotável (o Alfa do Romeu, diziam por graça) e comprado em Nova Orleães a um político que ia cumprir castigo na penitenciária.

Durante todo o percurso por esse caminho de mau piso que conduz à cidade, fui sempre desejando que alguém nos visse. Havia certas pessoas que eu gostaria que presenciassem a minha intimidade com Riley Henderson. Mas era muito cedo e andava pouca gente na rua. Os quebra jejuns estavam ainda na cozinha, a avaliar pelo fumo que saía da chaminé de todas as casas por onde passávamos. Dobrámos a esquina da igreja, entrámos no largo e parámos na suja travessa que fica entre as cocheiras de Cooper e a padaria de Katydid. Aí me deixou Riley, com ordem de me conservar escondido: ele não se demoraria mais de uma hora.

Por isso, estirado no assento, escutava o pipilar dos pardalitos vorazes nos molhos de feno da cocheira e aspirava o cheiro do pão fresco que se evolava da padaria. O casal que dirigia este último estabelecimento, o senhor e a senhora C. C. County, começava o seu dia às três horas da manhã a fim de poder abrir as portas às oito. Era uma padaria muito asseada, que prosperava bastante. A senhora County permitia-se o luxo de comprar os vestidos mais caros da loja de Verena.

Enquanto eu ali estava sentindo aquele aroma delicioso, abriu-se a porta das traseiras e apareceu o dono de vassoura na mão, a fim de varrer a farinha que juncava a entrada. Desconfio que ficou admirado por ver o carro de Riley e igualmente surpreendido por me descobrir lá dentro.

- Que fazes aí, Collin?

- Nada, senhor County - repliquei, pensando se ele estaria ao corrente do que se passava.

- Ainda bem que chega Outubro - acrescentou palpando o ar com os dedos, como se a frescura da atmosfera fosse uma coisa material.

O Verão foi tremendo, de mais a mais com este forno sempre aceso! Entra, rapaz, tens aqui um boneco de pão de espécie à tua espera.

Àquele convite não se seguiria, por certo, uma denúncia ao xerife. A senhora County estava à porta do forno e achou naturalíssimo que eu lhe surgisse acolá. Quem não simpatizava com essa mulher tão amável? Gorda, calma, tinha tornozelos de elefante, braços enormes e face sempre congestionada pela proximidade do lume. Os olhos eram de um azul que lembrava o açúcar colorido com que se cobrem certos bolos, o cabelo dava a impressão de ter sido utilizado para esfregar uma barrica de farinha. Usava um avental que lhe chegava aos pés. O marido também tinha avental, e às vezes, daquela maneira, atravessava a rua para ir beber cerveja com os homens que se encostavam à esquina do Café Phil: dir-se-ia então um palhaço rico, elegantemente enfarinhado.

Cedendo-me lugar à mesa de trabalho, a senhora County serviu-me uma xícara de café e um prato de pãezinhos ainda quentes, daqueles que Dolly tanto apreciava. O marido observou que talvez eu preferisse outra coisa.

- Prometi-lhe. Que é que prometi? Ah, um boneco de espécie!

- Isso é bom para miúdos - volveu a mulher, modelando um bocado de massa. - Que idade tens agora ao certo, Collin?

- Dezasseis anos.

- O mesmo que Samuel - comentou ela, falando do filho, que nós alcunhávamos de Mula, pela sua escassez de inteligência. Pedi notícias dele, pois no Outono passado, depois de frequentar três anos sempre a mesma classe no colégio, Samuel fora para Pensacola e entrara na Marinha. - Segundo a última carta estava no Panamá - respondeu, enrolando a massa em forma de torta. - Nem sempre sabemos dele. Escrevi-lhe uma vez, recomendando: "Samuel, manda-nos cartas, senão sou eu que escrevo ao Presidente a denunciar a tua idade. "Não sei se sabes que se alistou com documentos falsos! O que eu me enfureci, então! Insultei o senhor Hand, lá do colégio. Foi por causa dele que Samuel partiu. Não suportava a ideia de ficar sempre na mesma classe, já tão crescido no meio dos miúdos! Mas agora acho que o senhor Hand tinha razão: não era justo passar Samuel sem que o rapaz trabalhasse um pouco. Assim foi melhor. Mostra a fotografia ao Collin - concluiu, dirigindo-se ao marido.

Sobre um fundo de palmeiras e mar verdadeiro, quatro marinheiros sorriam afectadamente, de braço dado. Lia-se por baixo: "Que Deus guarde a Mãe e o Pai. Samuel." Aquilo enfureceu-me. O Mula a viajar pelo mundo, ao passo que eu. sim, talvez merecesse o boneco de massa de espécie. Quando eu devolvia o retrato, disse o senhor County:

- Concordo que os moços sirvam a sua pátria. O que me aborrece é que Samuel podia estar aqui a ajudar-nos. Assim, tenho de recorrer ao trabalho de um preto, que mente e rouba. Nunca se sabe do que são capazes!

- Não percebo - atalhou a mulher - porque é que te ralas a esse ponto. Sabes que me desagradas com isso. Os pretos não são piores do que os brancos, e até às vezes melhores. Já tenho dito isto, e repito. Olha o caso da Catherine Creek. Até me faz aflição! Sem dúvida que é um tanto desequilibrada e extravagante, mas no fundo boa mulher. Apetece-me enviar-lhe qualquer coisa lá à cadeia. O xerife não há-de cuidar muito em lhe matar a fome.

Quando as coisas mudam, já não voltam a ser o que foram. Não tornaríamos a sentir o encanto dos dias quentes. Na imaginação, vi o Inverno chegar, aproximar-se de uma árvore fria, e chorei, chorei, como um pano ensopado que se torce. Tinha tanta vontade de o fazer, desde que saíra de casa. A senhora County pediu desculpa de me haver impressionado; com a aba do avental enxugou- me as lágrimas e então desatámos a rir: a cara ficou-me cheia de uma pasta de farinha amassada no pranto. Mas senti-me aliviado, de coração mais leve. Por motivos de natureza varonil, que eu compreendi mas que não me envergonharão, o senhor County afastara-se para outro lado do estabelecimento, aborrecido com a minha explosão sentimental.

Sentou-se a mulher à mesa e serviu-se de café.

-Não pretendo estar completamente ao corrente do assunto - observou - mas, se bem ouvi, Dolly Talbo abandonou a casa depois de uma questão entre ela e a irmã. - Ia responder-lhe que a situação não era tão simples como isso, porém, reflectindo nos acontecimentos, fiquei na dúvida se aquela não seria a verdade. - Talvez pareça que eu estou contra Dolly, mas não é assim - continuou ela com ar pensativo. - Contudo, a minha opinião é que deviam voltar todos para casa. Dolly faria bem em se reconciliar com Verena; aliás, nunca procedeu de outra forma, e já não está em idade de mudar de hábitos. Além disso, não é bonito exemplo para a cidade duas irmãs se zangarem e ir uma delas instalar-se numa árvore. Quanto ao juiz Charlie Cool, é a primeira vez que tenho pena dos filhos. Quem ocupa posição de certa evidência deve mostrar dignidade, senão é um desastre. Viste aquela carroça, no largo? Não? Pois aconselho-te que a vás ver. É uma família de vaqueiros, e diz meu marido que são evangelistas; o que sei é que têm dado que falar, assim como falam de Dolly. - Num gesto de fúria, soprou um saco de papel. - Repete-lhe o que te disse: voltem para casa. E leva-lhe estes bolinhos de canela. Sei que Dolly os adora.

Ao sair da padaria, soavam oito badaladas no relógio do tribunal, o que significa que eram sete e meia. Esse relógio andava sempre adiantado meia hora. Uma vez mandaram vir um perito para o consertar; depois de lhe ter mexido durante uma semana, declarou que o único remédio eficaz seria um cartucho de dinamite. A vereação deliberou que se pagasse integralmente ao homem, pois toda a gente sentia uma espécie de orgulho à ideia de o relógio ser incorrigível. Em volta do largo alguns comerciantes dispunham-se a abrir as lojas; as vassouradas erguiam nuvens de poeira à entrada das portas, o arrastar dos caixotes do lixo dominava o silêncio frio das ruas. Na Early Bird, mercearia muito melhor que a de Verena, dois pretos colocavam na montra caixas de ananases do Havai. Ao sul do largo, por trás dos bancos onde, em todas as estações do ano, se sentavam velhos, esperando serenamente pela morte, avistei a carroça de que me falara a senhora County, na realidade um antigo camião, a que o toldo dava certa semelhança com os veículos tradicionais do Oeste. Isolado na praça vazia, apresentava um aspecto deveras estranho, disparatado. Dominava a frente do carro uma tabuleta improvisada, de cerca de quatro pés de altura, qual barbatana de tubarão. "Deixai que o menino Homer nos apanhe a alma a laço para a oferecer ao Senhor. n Pintada no outro lado sorria uma cara verde e empolada, que um chapéu de vaqueiro coroava. Não se acreditaria que fosse o retrato de um ser humano, mas, de acordo com a inscrição, tratava-se do pequeno Homer, criança extraordinária. Como não houvesse mais nada para admirar, pois não estava ninguém nas proximidades do camião, dirigi-me para a cadeia, edifício de tijolos em forma de caixote, pegado à agência da Ford Motor Company. Já eu ali entrara uma vez. Levara-me lá o corpulento Eddie Stover, acompanhado de uma dúzia de homens e rapazes.

       Eddie aparecera na loja de Verena e dissera: "Se querem ver uma coisa, venham comigo à cadeia. "

A atracção era um moço cigano, esbelto e bonito, que tinham feito apear-se de um comboio de mercadorias. Eddie deu-lhe dinheiro e mandou-o desabotoar as calças; ninguém suspeitaria de tais dimensões, e um dos homens comentou: "Ó rapaz, como se compreende que te engaiolassem quando possuis uma coisa desse tamanho?"Durante semanas, podia-se saber quais as raparigas que estavam ao facto deste gracejo: essas riam-se sempre que passavam em frente da prisão.

Numa das paredes laterais há a decorá-la um emblema inesperado. Interroguei Dolly a respeito diso e ela informou-me de que, no tempo da sua mocidade, se lembrava de ser aquilo um anúncio de rebuçados. Fosse como fosse, as letras desapareceram, e o que resta é uma espécie de tapeçaria alvacenta onde dois anjos cor-de-rosa, de trombeta na boca, pairam acima de uma cornucópia enorme repleta de frutos como as meias de Natal. Embutida assim no tijolo, dir-se-ia um fresco desbotado, uma tatuagem gasta. Sabia eu o perigo que corria passeando deste modo à vista de toda a gente; contudo, andei cá e lá, assobiei, proferi num murmúrio "Catherine, Catherine", na esperança de a ver assomar à janela. Calculei logo qual seria a janela de Catherine, pois, no peitoril, por trás das grades, havia um aquário de peixes dourados. Fora o único objecto (como depois nos contaram) que ela pedira que Lhe trouxessem. Os peixes afagavam a arvorezinha de coral com as suas caudas alaranjadas, e eu lembrei-me daquela manhâ em que ajudara Dolly a procurar o coral e as pedrinhas de tons de nácar. Havia sido o começo; e, arrepiado à ideia de que pudesse ser agora o fim...

- Catherine, sombra fria, espreitando cá para fora -, desejei que ela afinal não aparecesse à janela. Se apareceu, não viu ninguém, porque parti a correr.

Riley fez-me esperar no carro mais de duas horas. Quando chegou, vinha com tão mau humor que não me atrevi a manifestar o meu. Consoante explicou, fora a casa e encontrara as irmãs, Anne e Elisabeth, e Maude Riordan (que passara lá a noite) ainda refasteladas na cama; e não só isso, como garrafas de Coca-Cola e pontas de cigarro espalhadas por toda a sala. Maude chamou a si a responsabilidade dos factos: confessou ter convidado vários rapazes para ouvir rádio e dançar. As irmãs, porém, é que sofreram o castigo. Riley arrancara-as da cama e dera-lhes uma tareia.

- Uma tareia? Como? - indaguei. - Pu-las de rabo para o ar sobre os meus joelhos e açoitei-as com um sapato de ténis.

Não consegui imaginar a cena, que discordava da impressão que eu tinha quanto à dignidade de Elisabeth.

- És muito severo para as pequenas - observei, ajuntando para me vingar: - Maude é que não presta para nada. Tomou-me a sério, confirmou o que eu dissera e declarou que tencionava açoitá-la também, nem que fosse só por ela lhe ter chamado nomes que ele não admitia a ninguém; mas sem dar tempo a que a agarrassem, a rapariga escapulira-se pela porta de serviço. "Talvez", pensei, "que Maude acabe por se aborrecer de ti. "

Os cabelos revoltos de Riley apresentavam-se agora lustrosos de brilhantina, e toda a sua pessoa rescendia a loção capilar e a talco perfumado. Não lhe foi preciso dizer-me que fora ao barbeiro, nem porque fora.

Embora depois trespassasse a loja, era naquele tempo dono da barbearia um homem extraordinário: Amos Legrand. Tipos como o xerife e Riley Henderson (pensando bem, toda a gente, afinal) chamavam-no maricas, mas sem má intenção, pois a maioria das pessoas simpatizava com Amos e só lhe desejava bem. Era uma espécie de macaquinho que se via obrigado a empoleirar-se num caixote para poder cortar o cabelo aos fregueses. Estava sempre agitado e falava pelos cotovelos. Tratava todos, homens e mulheres, por "amorzinho". "Já é tempo, amorzinho, de se lhe fazer uma tosquia, senão terei de lhe oferecer travessas para os caracóis. "Amos possuía um dom tremendo: era capaz de discorrer sobre assuntos de real interesse perante homens de negócios como diante de meninas de dez anos. Tudo lhe servia, desde o preço pelo qual Ben Jones vendera a sua colheita de amendoim até às pessoas que Mary Simpson convidaria para a sua festa de aniversário.

Seria, pois, natural que Riley fosse à barbearia em busca de notícias. Enquanto mas repetia, eu imaginava a figura de Amos, parecia-me ouvir- lhe o zumbido de moscardo.

"Aí tem, amorzinho, o que sucede quando se deixa o dinheiro em casa. E logo foi Verena Talbo quem fez isso! Nós a julgarmos que ela corria ao banco de cada vez que recebia um cêntimo! Doze mil e setecentos dólares. E ainda não é tudo. Parece que Verena e o doutor Ritz se haviam associado para certo negócio, e até compraram, com esse fim, a velha fábrica de conservas. Ora veja: deu a Ritz mais de dez mil dólares para adquirir máquinas, ou sabe Deus o quê, e, no fim de contas, ele não comprou nem uma. Meteu todo o dinheiro ao bolso. Fugiu e não se lhe apanha o rasto. Se alguma vez o encontrarem será na América do Sul. Não sou homem para insinuar que existisse qualquer coisa entre os dois. Verena Talbo é muito especial, isto digo eu. E, amorzinho, aquele judeu tinha caspa como eu nunca vi em cabeça humana. Mas uma mulher como ela podia, no fim de contas, apaixonar-se por semelhante homem. E depois houve aquela trapalhada com a irmã. Não admira que o doutor Carter tivesse de lhe dar injecções. O que me espanta é Charlie Coll. Que diabo o levou a fazer semelhante asneira?

Abandonámos a cidade numa correria incrível; tap, tap, faziam os insectos chocando no pára-brisas. Assobiava-nos aos ouvidos o ar lavado e azul, não havia uma nuvem, E, contudo, posso jurar que sentia nos ossos o prenúncio da tempestade, o que é frequente nos velhos, mas raras vezes acontece à gente nova. Parecia-me que um trovão húmido me ribombava nas juntas. A avaliar pelas dores, era pelo menos um ciclone que se preparava, e assim o disse a Riley, que retorquiu:

- És doido! Repara no céu.

Estávamos a fazer uma aposta quando, ao entrar naquela curva perigosa tão a propósito situada próximo do cemitério, Riley estremeceu e travou o carro; resvalámos o tempo bastante para revermos com vagar a nossa existência nos seus mínimos pormenores.

A culpa não foi de Riley; mesmo a meio da estrada, o camião do menino Homer avançava em passo de boi. Com um barulho de latas, parou a certa altura e, daí a instantes, apeou-se a mulher que o conduzia.

Não era nova, mas havia certa mocidade no bambolear das ancas. Os seios roçavam a blusa cor de pêssego, fazendo-a espetar-se de forma provocante. Usava saia franjada de camurça e botas de vaqueiro, que lhe subiam até aos joelhos, erro evidente, porque se percebia que as pernas, se estivessem à mostra, seriam o melhor da sua pessoa. Veio encostar-se à portinhola do nosso carro. As pálpebras desciam-lhe como se as pestanas fossem um peso intolerável; com a ponta da língua molhava os lábios escarlates.

- Bom dia, rapazes - disse numa voz lânguida, arrastada. - Agradecia-lhes uma pequena informação.

- A senhora anda na lua? - exclamou Riley readquirindo o sangue-frio. - Por um triz nos fazia revirar.

- Admiro-me que fale assim - volveu amigavelmente a mulher, meneando a cabeça. Os cabelos, de um tom artificial de damasco, estavam encaracolados a capricho, e os caracóis, agitando-se, eram como campainhas sem música. - Ia com excesso de velocidade, meu caro - observou ela, ralhando com ar complacente. - Creio existir uma lei que proíbe tal coisa. Há leis para tudo, em especial aqui.

- Contra esse camião é que devia haver umalei - respondeu Riley. - Uma caranguejola dessas não tem o direito de circular.

- Bem sei - volveu a mulher, rindo. - De boa vontade trocaria o meu carro pelo seu, embora não acredite que coubéssemos todos aí. Por acaso tem um cigarro que me dê? Obrigada, você é um anjo. - Enquanto acendia o cigarro, reparei quanto eram rugosas e descarnadas as suas mãos; as unhas não tinham verniz, e uma delas apresentava-se negra como se houvesse sido entalada numa porta. - Disseram-me que, tomando esta direcção, encontraríamos uma tal senhora Talbo. Dolly Talbo. Segundo parece, vive numa árvore. Se fizessem o favor de nos indicar onde é. Atrás dela, o camião despejava como que um asilo de órfãos completo. Nenés que mal sabiam andar, garotos loiros e ranhosos, pequenas em idade de usar corpete e um bando de rapazes, alguns dos quais já homens feitos. Contei até dez, in cluindo dois gémeos vesgos e um nené de cueiros transportado ao colo por uma criança que não teria mais de cinco anos. E apareciam mais, multiplicando-se como coelhos de prestidigitador, até que a estrada ficou literalmente cheia.

- Isto é tudo seu? - perguntei com genuína inquietação. Segunda soma dera-me um total de quinze. Um dos rapazes, cerca de doze anos e com óculos de aros de aço, deambulava por ali sob um chapéu enorme de abas largas, como um cogumelo movediço. Na sua maioria usavam qualquer peça de vestuário de vaqueiro, como botas e lenços de pescoço. Mas formavam um grupo confrangedor, de aspecto pouco saudável. Dir-Se-ia que se alimentavam todo o ano de cebolas e batatas cozidas. Comprimiam-se em volta do carro, imóveis e silenciosos como fantasmas, com excepção dos mais novos, que batiam nos faróis e saltavam para cima do guarda-lamas.

- Evidentemente que isto é tudo meu - respondeu a mulher, dando um sopapo num dos petizes, migalha de gente que lhe trepava pelas pernas como se estas fossem um mastro. - Às vezes penso que talvez dois ou três não me pertençam - acrescentou, encolhendo os ombros, e vários dos pequenos sorriam. Pareciam adorá-la.

- Álguns dos pais já morreram; outros devem viver algures, mas para nós vem dar ao mesmo. Pelo que vejo, não assistiram ontem à nossa reunião. Sou a evangelizadora Ida, mãe do menino Homer.

Inquiri qual dos filhos era o Homer. Olhou em volta e designou-me o rapazinho de óculos, que, aproximando-se, nos saudou:

-Jesus seja louvado. Querem um apito?E, enchendo as bochechas de vento, fez soar um apito de lata.

- Com um silvo destes - explicou a mãe, compondo os caracóis da nuca - podem afugentar o demónio, além de outros usos práticos.

- Vinte e cinco cêntimos - declarou o pequeno. Possuía uma facezita pálida e atormentada. O chapéu descia-lhe até aos olhos.

Se trouxesse dinheiro comigo, sem dúvida lhe compraria o apito. Era evidente que o bando passava fome. Decerto que Riley também notou isso, porque puxou de cinquenta cêntimos e deu-os em troca de dois daqueles canudos de folha.

- Deus lhe pague - disse o menino Homer; e meteu a moeda entre os dentes para a trincar com toda a força.

- Circula por aí tanto dinheiro falso - comentou a mãe, à laia de justificação. - No nosso ramo de actividade não se devia temer semelhante coisa - observou, suspirando. - Mas se quisessem indicar-nos o sítio. Não podemos ir muito longe, por falta de gasolina.

Riley respondeu-lhe que ela perdia tempo.

- Já lá não está ninguém - declarou, com o pé no acelerador. Atrás de nós, tocava a buzina outro motorista imobilizado.

- Não há ninguém na árvore? - A sua voz lastimosa dominava o ronco impaciente do mo- tor. - Mas, então, onde podemos encontrar Dolly Talbo? - Com as duas mãos, parecia querer impedir o afastamento do carro. - Temos um assunto importante a tratar.

Riley arrancou bruscamente. Olhei para trás e vi-os a olhar-nos no meio de uma nuvem de poeira. Não sem algum mau humor, disse a Riley que devíamos ao menos ter indagado o que a mulher pretendia de Dolly.

- Talvez eu já o saiba - respondeu-me. Sabia até de mais, pois Amos Legrand dera-lhe informações completas acerca da evangelizadora Ida.

Embora ela nunca tivesse aparecido antes na cidade, Amos, que fazia as suas digressões de tempos a tempos, dizia tê-la visto uma vez na feira de

Bottle, terreola pouco distante. Pelos modos, o reverendo Buster também a conhecia, porque, logo à sua chegada, correra a casa do xerife a fim de lhe pedir que proibisse ao bando do menino Homer organizar quaisquer reuniões. Apelidava-os de impostores e afirmava que a denominada evangelizadora Ida não passava de uma rameira. Imagine-se, quinze filhos e nem sombra de marido!

Amos também estava convencido de que ela nunca fora casada, mas, no seu parecer, pessoa tão industriosa merecia algum respeito. À proposta do reverendo o xerife replicara: "Acha que já não tenho bastantes problemas a resolver? Talvez aqueles loucos procedessem com acerto em se empoleirarem numa árvore, sem mais preocupações. Quase sinto vontade de me juntar a eles." Perante isto, o velho Buster aconselhara-o a pedir a demissão, visto não ter estofo de xerife. Entretanto, Ida, sem interferência da lei, convocara toda a gente para a sessão religiosa debaixo dos carvalhos do largo Nesta cidade apreciam muito os predicantes; a sua aparição significa música, oportunidade de cantar e de se reunirem ao ar livre. Ida e os filhos obtiveram grande êxito. Opróprio!

Amos, em geral tão difícil de satisfazer, disse a Riley que este perdera um bom espectáculo: aqueles garotos tinham boa goela, e o menino Homer interessou a assistência com os seus passinhos de dança e demonstrações de laço. Todos se divertiram bastante, excepto o reverendo Buster e a mulher, que tinham comparecido para fazer escândalo. Ficaram furiosos quando os pequenos começaram a esticar o Estendedoiro de Deus, que era uma corda com molas de enxugar roupa, nas quais os adeptos suspendiam a sua oferenda. Pessoas que jamais punham um cêntimo na colecta do reverendo prendiam à corda notas de um dólar. Aquilo passava as marcas! Buster deu meia volta, correu à casa de Talbo Lane e teve uma conversa com Verena, cujo auxílio achava indispensável. Segundo Amos, incitara Verena contando-lhe que uma evangelista louca alcunhava Dolly de infiel, de inimiga de Jesus, e dizendo-lhe que, para honra do nome, devia expulsar aquela mulher da cidade. Era pouco provável que até esse momento Ida tivesse ouvido pronunciar o nome de Talbo. Mas Verena, apesar da sua doença, pôs-se em campo; telefonou ao xerife nestes termos:

- Oiça, Junius. Quero que esses vagabundos sejam postos na fronteira.

Tratava-se de uma ordem, e o velho Buster achou-se na obrigação de zelar pelo seu cumprimento. Acompanhou o xerife até ao largo onde Ida e a sua prole desarmavam a feira depois do espectáculo. Aquilo terminou por uma verdadeira zaragata, pois Buster, alegando lucros ilegais, pretendeu confiscar o dinheiro recolhido no Estendedoiro de Deus. E conseguiu-o realmente, não sem alguns arranhôes. Não fez diferença que vários assistentes tomassem o partido da evangelista. O xerife aconselhou esta a ir-se embora antes das doze horas do dia seguinte.

Depois de ouvir tudo isto, eu disse a Riley:

- Então se essa gente foi tratada com tanta injustiça, porque não te mostraste mais prestável?

Jamais adivinharíeis a resposta que me deu. Com o ar mais sério do mundo, declarou que uma mulher perdida como aquela não era pessoa para se relacionar com Dolly.

Debaixo da árvore crepitava uma fogueira. Riley apanhava folhas para a alimentar, enquanto o juiz, com os olhos a arder do fumo, se ocupava a preparar a refeição do meio-dia. Dolly e eu mandriávamos.

- Lastimo - disse ela, com o baralho de cartas na mão -, lastimo que Verena nunca veja aquele dinheiro. E sabes, Collin? Duvido que essa perda seja o que mais a aflige. Por qualquer razão que desconheço, minha irmã depositava confiança nele, no tal doutor Ritz. Isto traz-me à lembrança Maudie Laura Murphy, aquela empregada do correio. As duas eram muito amigas. Que abalo sentiu Verena quando Maudie Laura se casou com o comerciante de vinhos! Não posso censurá-la, pois era natural que ela gostasse do homem. Isto não impede que Maudie Laura e o doutor Ritz fossem talvez os únicos seres em que Verena confiou. Eambos. Sim, é de partir o coração. - Deu cartas com ar distraído e murmurou: - Disseste- me ainda há pouco qualquer coisa a respeito de Catherine.

- Falei dos peixes. Vi-os à janela.

- E não viste Catherine?

-Não, só os peixes dourados. Asenhora County foi muito amável. Prometeu mandar provisões a Catherine.

Abriu um dos bolos de canela e tirou as passas.

- Collin, se a gente as deixasse fazer o que pretendem? Isto é, se transigíssemos? Obrigávamo-los a pôr Catherine em liberdade, não achas?

Os olhos dela ergueram-se para a copa da árvore, talvez em busca de uma passagem através dos ramos entrançados.

- Parece-te que devo. render- me?

- É a opinião da senhora County: que voltemos para casa.

- Explicou-te porquê?

- Porque a prima Dolly sempre foi a primeira a fazer as pazes, sempre optou pela reconciliação.

Dolly sorriu, alisou a saia comprida. Os raios filtravam-se, pondo-lhe anéis de sol em todos os dedos.

-Já alguma vez tive possibilidade de optar? Quem me dera! Saber que podia levar outra vida, feita inteiramente das minhas decisões. Isso é que representaria a verdadeira paz. - Contemplou a cena no sopé da árvore, Riley a partir raminhos, o juiz inclinado sobre a panela fumegante. - E Charlie? Se nos rendêssemos, deixá-lo-íamos mal colocado. Sim - ajuntou, enlaçando os seus dedos nos meus -, estimo-o muito. - Uma pausa incomensurável fez prolongar este instante. O coração pulou-me no peito, a árvore cerrou-se no interior como um guarda-chuva que se fecha.

- Esta manhã, durante a tua ausência, ele pediu-me em casamento.

Como se a ouvisse, o juiz ergueu a cabeça, com um sorriso de criança rejuvenescendo-lhe a face rude. Acenou, e seria difícil não notar o encanto da expressão de Dolly quando este lhe correspon deu ao gesto. Dir-se-ia que se limpava um retrato de familia e se lhe descobriam agora luminosidades dé pele, tons até então ocultos. Fosse qual fosse a sua existência, Dolly não voltaria a ser uma sombra no canto.

- Agora, não te sintas infeliz - volveu ela, percebendo decerto o que se me passava no espírito.

- E a prima vai. ?

-Nunca tive o privilégio de tomar decisões. Quando for da vontade de Deus saberei qual a solução justa. - Afastou-me um pouco e mudou de assunto. - Quem viste na cidade?

Desejaria inventar alguém, uma história que a retivesse, pois parecia- me dirigir-se para o futuro enquanto eu, incapaz de a seguir, continuava no mesmo ponto. Quando, porém, lhe descrevi a evangelizadora Ida, o camião, as crianças, quando Lhe contei as razões da sua expulsão da cidade e como encontrara na estrada aquela gente à procura da senhora da árvore, então de novo fluímos juntos, qual corrente que por instantes uma ilha separou. Embora ficasse desgostoso se Riley me ou visse traí-lo, cheguei a repetir o que ele dissera: que uma mulher como Ida não devia relacionar-se com Dolly. Esta riu-se de semelhante observação, mas logo se tornou séria.

- Que grande maldade arrancar o pão da boca das crianças. E serviram-se do meu nome para fazer isso! Que infámia! - Endireitou o chapéu com ar resoluto. - Olha, Collin, vamos dar uma volta.

Aposto que aquelas pobres criaturas ainda estão onde as deixaste. Veremos.

O juiz tentou impedir-nos, ou pelo menos propôs-se acompanhar-nos, já que Dolly queria dar um passeio. Diminuiu bastante o meu rancor ciumento quando a ouvi responder que mais valia ele continuar o seu trabalho; Collin era bom guardião, e ela só pretendia desentorpecer as pernas.

Como de costume, Dolly não queria que a apressassem. Tinha por hábito, mesmo quando chovia, deambular nos caminhos mais vulgares como se estivesse num jardim, procurando com a vista plantas medicinais, poejos, melissa, hortelã, ervas úteis e aromáticas que lhe deixavam a roupa impregnada do seu perfume. Era sempre a primeira a fazer descobertas, e a sua única vaidade consistia no facto de ser ela a nos chamar a atenção para certas coisas: o rasto de um pássaro, pingentes de gelo numa goteira. A cada instante nos convocava para ver uma nuvem com a forma de um gato, um navio nas estrelas, um rosto desenhado na geada. Deste modo lento atravessámos o campo de ervas. Dolly encheu o bolso de taráxacos ressequidos, apanhou uma pena de faisão. Convenci-me de que antes do pôr do Sol não chegaríamos à estrada.

Felizmente, não nos foi preciso ir tão longe: ao entrar no cemitério encontrámos Ida e os filhos acampados no meio dos túmulos. Dir-se-ia uma cerca de recreio fúnebre. As irmãs mais velhas cortavam o cabelo aos dois gémeos vesgos, e o menino Homer dava lustro às botas com saliva e um punhado de folhas. Encostado a uma sepultura, um rapaz já crescido tirava harpejos melancólicos de uma viola. Ida amamentava o nené, enroscado de encontro ao peito como um gatinho cor-de-rosa, e não se ergueu à nossa aproximação.

-Parece-me que está sentada sobre o meu pai - observou-lhe Dolly.

De facto, era aquele o jazigo do senhor Talbo. Olhando para a inscrição tumular "Uriah Fenwick Talbo, 1844-1922, bom militar, esposo fiel, pai amantíssimo", a evangelista murmurou: "Desculpe, soldado"e, abotoando a blusa, o que fez o miúdo desatar num berreiro, dispôs-se a se levantar.

- Não, não se mexa. Quis apenas apresentar-me.

Ida encolheu os ombros.

- Ora, já tinha isto a doer - replicou, esfregando o ponto a que se referia. - Outra vez?Interpelou-me, olhando-me divertida. - Onde está o seu amigo?

- Disseram-me que. - Dolly calou-se, desconcertada pelo enxame de crianças que a rodeavam. - Segundo parece - continuou, esforçando-se por não fazer caso de um garoto de palmo e meio que lhe erguera a saia e examinava as pernas atentamente - queria falar comigo. Sou Dolly Talbo.

Ida mudou o nené para o outro lado, enlaçou Dolly pela cintura, e, apertando-a a si, disse, como se fossem velhas amigas:

-Bem sâbia que podíamos contar consigo Dolly. Meus filhos - e brandiu a criança como um bastão de comando -, digam a Dolly se proferimos alguma palavra contra ela!

Os pequenos abanaram a cabeça, balbuciando qualquer coisa. Dolly mostrou-se comovida.

- Fartei-me de repetir que não podíamos sair da cidade - tornou Ida, que se embrenhou no relato das suas infelicidades. Gostaria de as fotografar juntas, Dolly muito senhoril, tão fora de moda como o véu, a evangelista com os seus lábios de cereja e rosto alegre e amável. - Foi uma questão de dinheiro. Tiraram-me tudo. Eu devia mandá-los prender, àquele nojento Buster e ao outro, o xerife: julga que é não sei quem. - Ida interrompeu-se para tomar fôlego. As suas faces pareciam um canteiro de framboesas. - A verdade é que estamos encravados aqui. Mesmo que falássemos da senhora, não temos o costume de dizer mal de ninguém. Oh, bem sei que foi apenas um pretexto! Em todo o caso, penso que a senhora talvez pudesse pôr as coisas nos devidos eixos.

- Sou a pessoa menos indicada, Deus bem o sabe - redarguiu Dolly.

- Mas que hei-de fazer, só com meio galão de gasolina, quinze bocas a sustentar e um dólar e dez cêntimos? Mais valia estar na cadeia.

- Tenho um amigo - declarou então Dolly. É inteligente e sem dúvida encontrará solução para o seu caso. - Pelo tom ufano da sua voz percebia-se que estava cem por cento convencida do que dizia. - Collin, vai à frente e previne o juiz de que haverá mais convivas ao jantar.

Atravessei o campo numa corrida, com as ervas a fustigarem-me as pernas; sentia-me ansioso por ver a cara de Charlie Cool. Não fiquei desiludido.

- Deus do céu! - Recuou, espantado, para de novo avançar, cambaleando. - Dezasseis pessoas! - e batia na cabeça, olhando para o escasso guisado que fervia ao lume.

Por causa de Riley, esforcei-me por dar a impressão de que nada tinha a ver com o encontro de Dolly e de Ida. Ele, porém, fulminava-me com os olhos, e aquilo decerto acabaria em troca de palavras azedas se o juíz nos não incitasse a trabalhar.

Enquanto ele ateava a fogueira, Riley foi buscar água. Deitámos na panela salsichas, sardinhas, folhas de louro, tudo o que se encontrou à mão, incluindo uma caixa de bolachas de água e sal que, opinião do juiz, engrossariam o molho. Alguns dos ingredientes foram parar ali por engano, como, por exemplo, borras de café. Atingido o estado de excitação alegre que a fadiga provoca nos cozinheiros quando há reuniões de famlia, tivemos o desplante de nos determos uns minutos para nos felicitarmos mutuamente. Riley deu-me uma palmada amigável, indicativa de perdão e, quando surgiram as primeiras crianças, o juiz assustou-as com a exuberância do seu acolhimento. Nenhuma se aproximou enquanto não se reuniu todo o rebanho. Então Dolly, tão apreensiva como se mostrasse os resultados de uma compra em hasta pública, mandou-os avançar para que se apresentassem: Beth, Laurel, Sam, Lillie, Cleo, Homer, Harry. Aqui interrompeu-se a cantilena porque uma das petizas se negou a declinar o nome. Era segredo, segundo disse. A mãe concordou: se ela considerava segredo, nesse caso era melhor não o revelar.

- Estão maldispostos - comentou, impressionando favoravelmente o juiz com a sua voz arrastada e com as suas pestanas que pareciam ervas. Charlie Cool prolongou o aperto de mão e exagerou o sorriso, o que me pareceu esquisito da parte de um homem que, não havia ainda três horas, pedira uma senhora em casamento. Esperei que Doliy, se reparasse nisso, desse uma resposta negativa ao pretendente. Ela, porém, dizia:

- Sim, estão mal dispostos, com certeza. Morrem de fome.

E o juiz, esfregando as mãos, satisfeito, e indicando com a cabeça a panela do guisado, prometeu remediar o caso sem grande demora. Entretanto achava que seria boa ideia as crianças irem lavar os dedos ao arroio. Ida afirmou que elas tinham mais alguma coisa a lavar. E bem precisavam de um banho, digo eu.

Houve complicações com a pequena que não desejava dizer o nome. Não iria, não, excepto se o papá a levasse às cavalitas. "Tu és o meu papá", disse ao Riley, que não a contrariou. Pô-la aos ombros e a miúda pareceu encantada. Todo o ca minho até ao arroio fez imensas tropelias. Quando Riley, com os olhos tapados pelas mãozinhas da garota, tropeçou num tufo de plantas, ela soltou gritos de alegria. Já farto daquilo tudo, ele colocou-a no chão. "Escuta, vou dizer-te o meu nome ao ouvido. "Mais tarde lembrei-me de perguntar a Riley como se chamava a pequena. Era Texaco Gasoline, por serem palavras muito bonitas.

Em nenhum ponto do ribeiro sobe a água acima dos joelhos. Lustrosas camadas de musgo atapetam as duas margens. Na Primavera, as campainhas-de-neve e as violetas silvestres florescem ali quais migalhas florais atiradas às abelhas cujos enxames pendem dos loureiros à beira de água. Ida escolheu um lugar na margem, donde podia superintender no banho. "E agora nada de brincadeiras, quero que se lavem a sério." E assim foi.

Bruscamente surgiram, sem a sombra de um véu, raparigas já núbeis; e rapazes também, grandes e pequenos, lá estavam juntos, nus de cima a baixo.

Foi bom que Dolly ficasse para trás, com o juiz. E oxalá que Riley não tivesse vindo, porque o seu embaraço era embaraçoso. Contudo - e não estou a brincar - só hoje, conhecendo a espécie de homem em que ele se tornou, é que eu compreendo o paradoxo da sua pudicícia. Queria tanto ser respeitável que as liberdades dos outros lhe davam a impressão de que eram também suas. Ah, famosas paisagens de juventude e de águas florestais! Quantas vezes, nos anos que se seguiram, me detive numa fria sala de museu perante uma pintura deste género! Ficava diante do quadro durante largo tempo, evocando aquela cena de outrora, não como foi na realidade (grupo de crianças de pele arrepiada, a patinhar num riacho de Outono), mas como a pintura ma sugeria, rapazes vigorosos e raparigas sadias salpicadas de gotas diamantinas. E perguntava então - como agora

- em que se tornaram eles, em que parte do mundo se encontra essa extraordinária família.

- Beth, lava bem o cabelo. Laurel, deixa-te de chapinhar. Estou a falar contigo, Buck. Limpem todos as orelhas, por trás, sabe Deus quando terão outra oportunidade. - Por fim Ida cansou-se e deixou à vontade os pequenos. - Foi num dia como este. - Afundou-se no musgo e, de olhar ardentemente fixo em Riley, murmurou: - Há qualquer semelhança: a boca, as mesmas orelhas despegadas. Dá-me um cigarro, meu caro? Parecia indiferente à antipatia que ele lhe demonstrava. Certa expressão de suavidade insinuou-me por instantes a ideia da rapariga que ela devia ter sido. - Foi num dia como este, mas num sítio mais triste, quase sem árvores, como uma casa no meio de trigais isolada como um espantalho. Não me queixo: morava na companhia de minha mãe, de meu pai e de minha irmã Geraldine, vivíamos em certa abastança, tínhamos uma porção de animais e um piano, e toda a gente possuía boa voz. Não seria existência fácil, com todo aquele trabalho pesado e só um homem para o fazer. Além disso, o pai não gozava de boa saúde; com dificuldade se arranjavam criados, ninguém queria demorar-se muito tempo naquele lugar perdido. Havia lá um velho, de quem gostávamos muito, mas um dia embebedou-se e quis incendiar a casa. Geraldine ia nos dezasseis anos, tinha mais um ano do que eu e era bonita, ambas o éramos, quando se lhe meteu na cabeça casar com um homem que ajudasse o nosso pai. Mas onde estávamos não havia por onde escolher. A mãe é que nos ensinou o pouco que aprendemos, e a povoação mais próxima ficava a dez milhas de distância. Chamava-se Youfry essa terra, situada no cimo de uma monta nha; faziam grande propaganda daqueles bons ares, e costumavam lá veranear pessoas ricas. De modo que, em certo Verão, Geraldine ajustou- se como criada no Lookout Hotel de Youfry. Aos sábados eu ia fazer-Lhe uma visita e passar a noite com ela. Era a primeira vez que estávamos longe de casa. Geraldine não mostrava grande apreço por aquela vida citadina, mas eu esperava por esses sábados como se cada um fosse o dia de Natal e o dos anos. Havia um pavilhão onde se dançava sem pagar um cêntimo, a música era de graça, assim como as luzes coloridas. Ajudava minha irmã no trabalho a fim de podermos ir o mais cedo possível. Descíamos a rua a correr, de mãos dadas, e eu principiava logo a dançar, sem sequer tomar fôlego. Nunca precisava de me pôr à espera que aparecesse par. Escasseavam ali as raparigas e, além disso, éramos as mais bonitas. Os rapazes não me entusiasmavam, o que me agradava era o baile. Às vezes ficavam todos parados a ver-me valsar, e eu mal tinha tempo de perceber com quem dançava, tão depressa mudava de par. Não faltavam rapazes que nos seguissem até ao hotel. Punham-se a gritar debaixo da nossa janela: "Apareçam, apareçam!" e faziam-nos serenatas. Que tolos! Geraldine esteve por um triz a perder o emprego. Depois do bailarico, ficávamos acordadas, discutindo os incidentes da noite do ponto de vista prático. Não era romântica, a minha irmã; só lhe interessava saber qual dos nossos pretendentes seria capaz de nos facilitar a vida em casa. Decidiu-se por Dan Rainey, homem já feito, de vinte e cinco anos, mais velho que os outros. Não era bonito, com as suas orelhas despegadas, a cara sardenta e queixo fugidio, mas parecia desembaraçado e bastante forte para levantar uma pipa. No fim do Verão veio a nossa casa e ajudou-nos a recolher o trigo. Meu pai simpatizou com ele desde o primeiro dia e, embora a mãe achasse Geraldine muito nova, não opôs objecções. Chorei no casamento, e pensava que todo o meu desgosto provinha do facto de se haverem acabado os bailes e de não voltar a dormir no aconchego da cama de Geraldine. Mas logo que Dan Rainey tomou conta da quinta, tudo correu às mil maravilhas; extraía da terra o que existia de melhor, e de nós também, talvez. Entretanto, veio o Inverno e, quando nos sentávamos de roda do lume, o calor, ou qualquer outra coisa, fazia-me desfalecer. Saía para o quintal, só com o vestido em cima da pele, insensível ao frio, e valsava, valsava. E uma noite sem que o ouvisse aproximar-se, Dan Rainey tomou-me nos braços e dançou comigo, como por brincadeira. Mas não era. Ele gostava de mim; desde o princípio que dei por isso, porém, não dizia nada, eu nada lhe perguntava, e tudo seria diferente se Geraldine não houvesse perdido o filho. Foi na Primavera. Minha irmã tinha um medo horrível de cobras, e aconteceu-lhe ver uma quando andava a recolher ovos na capoeira. Não era cobra venenosa, mas Geraldine assustou-se tanto que a criança nasceu morta, quatro meses antes do termo da gravidez. Não sei o que lhe sucedeu, mas tornou-se má, rabugenta; zangava-se por tudo. Dan Rainey é que sofria mais com isso, e afastava- se da mulher tanto quanto possível; pegava num cobertor e ia dormir nos campos de trigo. Eu sabia que se ficasse ali. E então resolvi ir para Youfry e tomar o antigo lugar de Geraldine no hotel. O salão de baile era o mesmo do Verão anterior, e eu ainda estava mais bonita; dois rapazes quase se mataram um ao outro para decidir qual me pagaria uma laranjada. Não posso dizer que não me divertisse, contudo, o meu espírito andava muito distante dali. No hotel perguntavam-me onde é que tinha a cabeça, porque levava o tempo a fazer asneiras, deitando açúcar no saleiro e dando colheres para cortarem carne. Nunca visitei a famlia durante todo o Verão. Quando chegou o momento de me ir embora. Foi num dia semelhante a este, azul como a Eternidade. Não preveni ninguém da minha chegada; apeei-me da camioneta e percorri três milhas a pé, entre medas de trigo, até que encontrei Dan Rainey. Não proferiu uma palavra, deixou-se cair por terra, chorando como uma criança. Tive pena dele e amei-o mais do que é possível dizer.

O cigarro apagara-se-lhe. Ida parecia haver perdido o fio da história, ou, pior ainda, julgaria preferível não a continuar. A minha vontade seria dar pateada e assobiar como fazem os garotos no cinema quando a tela se torna branca de repente. Riley, embora menos excitado do que eu, estava também impaciente. Riscou um fósforo para acender o cigarro de Ida: o som reanimou-a, recuperou a voz: dir-se-ia, porém, que, nesse intervalo, ela se ausentara para muito longe.

- Meu pai, então, jurou matá-lo. Várias vezes Geraldine me pedia: "Dize quem é, e Dan dá-lhe um tiro. "Eu ria até chorar, ou vice-versa. Noutras ocasiões declarava-lhe que não fazia a mais pequena ideia, que havia cinco ou seis rapazes em Youfry: não poderia deixar de ser um deles. Como sabê-lo? A mãe esbofeteou-me quando me saí com esta resposta. Mas acreditaram-me, e suponho que Dan Rainey também o acreditou, ou pelo menos assim o queria, coitado! Durante esses meses não saí de casa, e entretanto meu pai morreu. Não me deixaram ir ao enterro, tanta vergonha tinham de que me vissem. Foi nesse dia que travei conhecimento com Deus, enquanto me encontrava sozinha e lá fora se levantava uma tempestade de areia. De nenhum modo merecia ser predestinada. Até então só à força é que a mãe conseguia ensinar-me os versículos da Bíblia; mas depois disso decorei cerca de mil, em menos de três meses. Ora oiçam: estudava eu certa música ao piano quando de súbito se parte um vidro da janela. O quarto fica todo de pernas para o ar, depois tudo se endireita outra vez. Alguém estava comigo e pensei que fosse o espírito de meu pai. O vento, porém, amainou. E ali se encontrava Ele. e eu de pé, erecta; abri os braços para o receber. Passou-se isto a três de Fevereiro, há vinte e seis anos. Eu tinha nessa altura dezasseis, hoje vou nos quarenta e dois, e a minha fé nunca esmoreceu.

Quando tive a criança, não chamei ninguém, nem Geraldine nem Dan Rainey, ou fosse quem fosse. Fiquei para ali, murmurando os versículos uns atrás dos outros, e ninguém percebeu que Danny viera ao mundo senão depois de Lhe escutarem os vagidos. Foi Geraldine quem lhe pôs este nome. O pequeno era seu, toda a gente o julgava, e de todos os cantos vinham pessoas para o ver. Traziam presentes e os homens davam palmadas no ombro de Dan Rainey, felicitando-o pelo filho que lhe nascera. Logo que pude mexer-me fui a Stoneville, que fica a trinta milhas de distância, cidade com o dobro do tamanho de Youfry e onde há minas importantes. Eu e outra rapariga abrimos uma lavandaria, o que não é mau negócio, porque ali abundam os solteiros, visto tratar-se de uma região mineira. Cerca de duas vezes por mês ia ver Danny. Assim decorreram sete anos. Essas visitas constituíam toda a minha alegria, e alegria deveras estranha, sabendo-se que me dilaceravam a alma. Que bonita criança! Não tenho palavras com que a descreva. Geraldine, porém, não me permitia que lhe tocasse. Se eu a beijava, enfurecia-se. Também Dan Rainey não era condescendente, assustava-o a ideia de que o não deixasse em paz. Na última vez que fui a casa pedi-lhe que viesse ter comigo a Youfry. É que eu concebera uma ideia louca: repetir a aventura, ter outro filho que fosse como que uma réplica de Danny. Mas estava iludida ao pensar que o pai podia ser o mesmo. Olhei para Dan Rainey. Que dia tão frio! Es távamos sentados sós no salão de baile e lembro-me que ele nunca tirou as mãos dos bolsos. De modo que o despedi sem lhe revelar o verdadeiro motivo da entrevista. Então, durante anos, andei obcecada por descobrir alguém que se lhe parecesse. Um dos mineiros de Stoneville tinha também sardas e olhos amarelados: um bom rapaz, gratificou-me com Sam, que passa por ser o meu primogénito. Se bem me recordo, o pai de Beth era o retrato de Dan Rainey, mas a filha não lhe herdou as feições. Esqueci-me de dizer-lhe que vendi a minha parte na lavandaria e fui para o Texas, onde trabalhei no Amarillo e no Dallas. Mas só quando encontrei o senhor Honey é que com preendi que Deus me escolhera e qual era a minha missão.

O senhor Honey possuía a Palavra da Verdade. Depois de o ouvir pregar a primeira vez, fui pro curá-lo e conversávamos havia só vinte minutos quando ele me declarou que casaria comigo se eu fosse ainda solteira. Disse-lhe que estava nas condições mas que tinha filhos. Nesse tempo, eram já cinco. A confissão não o impressionou mesmo nada, e nós casámos oito dias depois. Não se tratava de um rapaz nem ele se parecia com Dan Rainey. Descalço, mal me chegava ao ombro; mas, quando Deus nos reuniu, sabia o que estava a fazer. Tivemos Roy, depois Pearl, e Kate, e Cleo, e o Homer, nascidos quase todos no camião que vê lá adiante. Percorremos todo o país a pregar a Sua Palavra ao povo que ainda a não escutara, pelo menos como o meu marido a pregava. Agora devo dizer-lhes uma coisa triste: perdi o senhor Honey. Certa manhã, numa parte misteriosa da Luisiana, a dos Cajuns, ele encaminhou-se pela estrada além a fim de fazer compras de mercearia. Nunca mais o tornámos a ver! Evaporou-se. Não acredito no que diz a polícia; não era homem para abandonar a família. Não, senhores, aquilo foi outra coisa.

- Talvez amnésia - sugeri. - Esquece-se tudo, até o nome.

- Uma pessoa que tinha a Bíblia na ponta da língua! Acha que se esqueceria do próprio nome?

Devia ser um dos Cajuns que o assassinou, depois de lhe roubar o anel de ametista. É claro que tornei a conhecer outros homens. Mas sem amor. Daí nasceram Lillie, Ida, Laurel e os outros. É caso para dizer que tenho de sentir sempre uma vida nas minhas entranhas. Sem isso, não me sabe bem a existência.

Quando as crianças se vestiram, algumas com o fato do avesso, voltámos à árvore, onde as raparigas mais velhas, inclinadas para o lume, secaram e pentearam o cabelo. Durante a nossa ausência, Dolly ocupara-se do mais novo dos pequenos, e dir-se-ia não o querer restituir.

- Quem me dera que uma de nós houvesse tido um menino, minha irmã ou Catherine!

Ida concordou; os nenés eram um entretenimento e também uma alegria.

Sentámo-nos, finalmente, em volta do fogo. O guisado estava quente de mais para se lhe sentir o gosto, o que talvez explique o seu êxito total, e o juiz, que tinha de o servir por turnos, pois só possuíamos três tigelas, fez uma porção de brincadeiras que deixaram os pequenos extasiados. Texaco Gasoline declarou que se enganara: o seu papá era o juiz e não Riley, e o juiz recompensou-a com um passeio à Lua, isto é, ergueu-a e pôs-se a baloiçá-la por cima da cabeça.

- O senhor é muito forte - disse Ida. É claro, Charlie Cool acreditou-a, e pouco faltou para convidar a mulher a lhe apalpar os músculos. De instante a instante olhava para Dolly no intuito de ver se ela estava a admirá-lo. E estava.

Entre os últimos raios de Sol tremeram os arrulhos de um pombo-torcaz. Filtravam-se no ar tons verdes e azuis como se um arco-íris se dissolvesse à nossa volta. Dolly teve um arrepio.

- Há tempestade próxima. Todo o dia a senti.

Lancei a Riley um olhar de triunfo. Que lhe dissera eu?

- E vai-se fazendo tarde - observou Ida. - Buck, Homer, corram para o camião, meus filhos. Só Deus sabe quem vem aí. Não é que - acrescentou, seguindo com a vista os pequenos até desaparecerem na vereda sombria - haja lá muito para roubar, nada de precioso a não ser a máquina de costura. Então, Dolly, já...

-Já discutimos o assunto - respondeu Dolly, voltando-se para o juiz a fim de obter confirmação.

- A senhora ganharia a sua causa no tribunal, não me resta dúvida - declarou ele profissionalmente. - Ao menos por uma vez a lei estaria do lado da razão. Contudo, nas condições presentes...

- Nas condições presentes - repetiu Dolly, e meteu na mão de Ida os quarenta e sete dólares que representavam o nosso pecúlio. Além disso, deu-lhe o volumoso relógio de ouro do juiz. Contemplando essas dádivas, Ida abanou a cabeça como se recusasse.

- Eu não devia. Mas agradeço.

Ecoou no bosque um trovão e, no silêncio inquietante que se seguiu, Buck e Homer irromperam na vereda como uma carga de cavalaria.

-Aí vêm! Aí vêm! - gritaram ao mesmo tempo. E Homer, lançando o chapéu para a nuca, ajuntou, ofegante: - Corremos todo o caminho.

- Vê se te explicas, filho. De quem falas? Homer engoliu a saliva antes de informar:

- Aqueles homens. O xerife e não sei quem mais. Vêm pelo campo de ervas e trazem espin gardas.

Ribombou outro trovão; levantou-se vento que fez agitar a nossa fogueira.

- Ora muito bem - acudiu o juiz, assumindo o comando. - Não percam a cabeça. - Dir-se-ia que ele preparara tudo para este momento, e devo confessar que ele enfrentava brilhantemente o perigo. - As senhoras, e os mais pequenos, subam para a árvore. Tu, Riley, faz com que o resto se disperse pelas outras árvores com uma provisão de pedras.

Acatámos as instruções e ele ficou sozinho. De queixo firme, ali se manteve no silêncio crepuscular, como um capitão que não quer abandonar o seu navio perdido.

 

Do nosso lado, cinco empoleiraram-se no sicômoro que sombreava a vereda. Homer foi um desses, assim como o irmão Buck, de ar carrancudo e com um punhado de pedras em cada mão. Mais adiante, encavalitado nos ramos de outro sicômoro, estava Riley, cercado pelas pequenas mais crescidas; nos últimos clarões da tarde, as faces pálidas brilhavam-lhe como lanternas. Pareceu-me sentir um pingo de orvalho, mas era uma gota de suor a escorrer-me pela cara; no entanto, apesar de a trovoada haver amainado, um cheiro de chuva intensificava o odor das folhas e da lenha fumegante. A nossa cabana suspensa, sobrecarregada, dava estalidos assustadores; do meu posto de observação parecia que os ocupantes eram uma criatura única, uma aranha de patas e olhos múltiplos, sobre cuja cabeça de Dolly assentava à laia de coroa de veludo.

Na árvore onde me encontrava todos se muniram de apitos de lata como os que Riley havia comprado ao menino Homer - óptimos para afogentar o diabo, conforme Ida dissera. Em seguida, Homer tirou o chapelão, sacou do fundo da copa enorme corda grossa e comprida (talvez o Estendedoiro de Deus) e começou a fazer um nó corrediço. Enquanto Lhe experimentava a eficácia, apertando e desapertando o nó, os óculos de aro de aço lançavam centelhas tão ameaçadoras que eu, afastando-me, pus entre nós dois a distância de outro ramo. O juiz, que patrulhava a nossos pés, assobiou para nos impor silêncio; era a sua última ordem antes do início da invasão.

Aliás os invasores não faziam nenhum esforço para se dissimularem. Brandindo as espingardas de encontro às moitas como os apanhadores de cana-de-açúcar, avançavam provocadoramente pelo atalho; contei nove, doze, vinte. Abria a marcha Junius Candle, com a sua estrela de xerife a brilhar no crepúsculo. Atrás dele, o gordo Eddie Stover, piscando os olhos para melhor nos lobrigar, lembrou-me um desses enigmas de almanaque: encontrar cinco rapazes e uma coruja no desenho de uma árvore. Mas para isto seria necessário ter mais esperteza do que Eddie Stover. Olhou-me em cheio e passou sem me ver. Nesse grupo não havia muitos cuja inteligência nos assustasse. No entanto reconheci o senhor Hand, director do colégio, pessoa bastante digna que ninguém jamais imaginaria ver com tais companheiros e em tão vergonhosa empresa. Apresença de Amos Legrand explicava-se pela sua curiosidáde; o mais extraordinário era que desta vez não falava. Servindo-se dele como de uma bengala, Verena apoiava-lhe a mão na cabeça, a qual Lhe chegava apenas à cintura. Um soturno reverendo Buster segurava-lhe cerimoniosamente o outro braço. Quando descobri Verena senti o mesmo terror paralisante que experimentara quando ela me foi buscar a casa depois da morte de minha mãe. Apesar da aparente claudicação, Verena caminhava com a sua autoridade habitual e, acompanhada pelo séquito, parou debaixo do nosso sicômoro.

O juiz não cedeu uma polegada. Em frente ao xerife, permaneceu no seu campo como se hou vessem traçado uma linha que nem um nem outro devia transpor.

Foi neste momento crucial que reparei no menino Homer. Fazia descer gradualmente o laço e a corda rastejou, baloiçando como uma serpente. O amplo nó, aberto como uma queixada, enfiou-se com o estalido próprio no pescoço do reverendo Buster, cujo grito se estrangulou com o violento puxão dado à corda.

Os amigos do velho Buster não tiveram tempo de considerar a sua situação, o seu rosto congestionado, os seus braços oscilantes, pois o êxito do menino Homer inspirou uma ofensiva geral: voaram pedras, os apitos lançaram guinchos agudos de animais selvagens, e os homens, empurrando-se uns aos outros, refugiaram-se onde puderam, em especial sob o corpo de camaradas já abatidos. Verena teve de dar murros na cabeça de Amos Legrand, que tentava esconder-se-lhe debaixo das saias. Foi a única, talvez, que se portou como um verdadeiro homem: mostrava-nos os punhos cerrados e cobria-nos de insultos.

No auge da contenda, soou um tiro, como uma porta de ferro que se fecha. Aquele som emudeceu-nos a todos, mas no silêncio que se produziu ouviu-se qualquer coisa pesada a restolhar através do sicômoro fronteiro.

Era Riley que tombava, mole como um gato acabado de matar. As pequenas taparam os olhos e desataram aos gritos quando um ramo se quebrou em dois e Riley, oscilando como as folhas arrancadas, veio abater-se num monte sangrento sobre o solo. Ninguém se aproximou dele.

Por fim, o juiz murmurou: "Meu rapaz, meu rapaz", e, num impulso, deixou-se cair de joelhos. "Por piedade, responde, meu filho", disse, acariciando as mãos inertes de Riley.

Outros homens se agruparam em volta, tímidos e assustados, dando conselhos que o juiz parecia incapaz de compreender. Um a um descemos das árvores, e o murmúrio das crianças "Está morto? Está morto?" era como o bramido plangente de um búzio. Tirando o chapéu respeitosamente, abriam alas à aproximação de Dolly, que passou sem reparar neles, ou sequer em Verena.

- Gostaria de saber - disse esta num tom que reclamava atenção - qual foi o idiota que desfechou a espingarda.

Os do bando entreolhavam-se, desconfiados; a maioria fixou a vista no gordo Eddie Stover, que, de bochechas a tremer, lambeu os lábios.

- Eu. não tencionava matar ninguém; cumpria o meu dever, nada mais.

-Nada mais? - replicou Verena severamente. - É o responsável desta desgraça.

A isto, Dolly voltou-se de repente para ela e, por trás do véu, envolveu a irmã num olhar que excluía todos os outros assistentes.

- Ninguém é responsável; só nós.

Ida substituíra o juiz junto de Riley e rasgava-lhe a camisa de altó a baixo.

- Agradeçam à sua boa estrela. Foi o ombrodeclarou, e os suspiros de alívio, em especial o de Eddie Stover, fariam altear um papagaio de papel. - No entanto, foi deveras atingido. Será melhor irem chamar um médico. - Estancou a he morragia com uma tira da camisa.

O xerife e três homens entrelaçaram os braços, formando padiola a fim de o transportarem. Mas Riley não foi o único que tiveram de levar. O reverendo Buster também não se encontrava em muito bom estado; de pernas bambas como um bonifrate e demasiadamente transtornado para reparar que conservava ainda no pescoço o nó corredio, necessitou de vários ajudantes para subir a vereda. O menino Homer corria atrás dele, gritando:

- Eh! Dê cá a minha corda!

Amos Legrand esperou para acompanhar Verena. Esta, no entanto, aconselhou-o a partir só, pois não tencionava ir-se embora, a não ser que Dolly...

Hesitante, olhou para nós, sobretudo para Ida.

- Gostava de falar com minha irmã em parti cular.

Com um aceno, Ida retorquiu:

- Não se preocupe connosco. Já nos vamos. Apertou Dolly nos braços e acrescentou: - Queremos- lhe muito. Não é verdade, meus filhos?

- Venha connosco, Dolly - pediu Homer.

Havemos de nos divertir bastante. Ofereço-lhe o meu cinto de pregos de latão.

Texaco Gasoline agarrou-se ao juiz, suplicando-lhe que fosse com eles. A mim é que ninguém parecia desejar.

- Nunca esquecerei esse convite - disse Dolly, relanceando-os a todos como para fixar a fisionomia dos pequenos. - Felicidades e adeus. Fujam depressa. - Elevou a voz acima da trovoada que recomeçara, agora mais próxima. - Corram, principia a chover.

Era uma chuva ténue como uma cortina de gaze e, quando nas suas dobras Ida desaparecia com os filhos, Verena observou à irmã:

- Se bem compreendo, és conivente com essa mulher. e depois de ela haver coberto de ridículo o nosso nome!

- Não acho que possas acusar-me de ser conivente seja lá com quem for - redarguiu serenamente Dolly. - E muito menos com selvagens que roubam o pão das crianças e metem velhas na cadeia - ajuntou, perdendo um pouco da sua calma. - Não posso ter muita consideração por um nome que abona tais métodos. Merece que se o cubra de ridículo.

Verena recebeu isto sem pestanejar.

- Não pareces a mesma - comentou, como se fizesse um diagnóstico.

- Repara bem e verás que sou a mesma - replicou Dolly como se pronta para uma inspecção, e com uma segurança não inferior à de Verena. - Segui o teu conselho, isto é, deixei de baixar a cabeça. Bastantes vezes me disseste que isso te fazia vertigens. E não há muitos dias declaraste que eu te envergonhava, assim como a Catherine. Depois de viver tantos anos contigo magoou-me com preender que fosse puramente inútil. Saberás o que isto é, a sensação de inutilidade?

Com voz quase imperceptível, Verena respondeu:

- Não sei.

Julgar-se-ia que ficara estrábica, que os seus olhos contemplavam lá dentro uma paisagem petrificada. Era a expressão que eu lhe surpreendera quando, espreitando pelo soalho do sótão, a vira numa noite meditar sobre as fotografias de Maudie Laura Murphy, do marido e dos filhos destes. Cambaleou e apoiou-se-me ao ombro. Se eu não estivesse ali creio que ela teria caído por terra.

-Imaginei que essa ferida me sangraria até à hora da morte. Mas não. Contudo, não me dá alegria, Verena, dizer que também me causas vergonha.

A noite descera e as rãs celebravam a lenta queda da chuva. Víamo-nos uns aos outros esfumados, como se a humidade nos diluísse as feições. Verena encostou-se a mim.

- Não me sinto bem - disse em voz sepulcral. - Estou doente, Dolly.

Embora não muito convencida, Dolly aproximou-se da irmã e tocou-lhe, como se a ponta dos dedos pudesse sentir a verdade.

- Collin e senhor juiz - disse ela -, ajudem- me a levá-la para a árvore.

Verena protestou: não estava apta a trepar árvores. Mas, logo que se afez à ideia, eom facilidade subiu para o nosso abrigo. Este mais do que nunca parecia uma jangada, flutuando num mar de bruma; no entanto, a chuva mansa não trespassara o toldo de folhas. Navegámos numa corrente silenciosa até Verena dizer:

- Preciso de falar contigo, Dolly, mas sentia-me mais à vontade se estivéssemos sós.

O juiz cruzou os braços.

- Suponho que terá de suportar a minha presença, Verena Talbo. - Não se mostrava provocador, apenas categórico. - De certa maneira, o resultado da sua conversa também me interessa...

- Ponho em dúvida. Em que o interessaria? - replicou Verena, recuperando até certo grau as suas maneiras imperiosas.

Charlie Cool acendeu um coto de vela e, sobre nós mesmos, debruçaram-se de súbito as nossas sombras.

- Não gosto de falar às escuras - observou. Havia um propósito na sua atitude orgulhosa: queria, pensei, mostrar a Verena que ela estava a lidar com um homem, coisa que raras vezes lhe teria acontecido.

-Lembra-se, Charlie Cool? Há cinquenta anos, ou talvez mais, vocês, pequenos, vieram furtar amoras ao nosso quintal. Meu pai agarrou um, o seu primo Seth, e eu apanhei-o a si. Assentei-lhe uma boa bofetada, nesse dia.

O juiz recordou-se. Corou, sorriu e volveu nestes termos:

- Não procedeu com lealdade, Verena.

- Fui justa - ripostou ela secamente. - Mas tem razão, não falemos às escuras, visto que nenhum de nós gosta disso. Com franqueza, Charlie, não me agrada muito vê-lo. Minha irmã não se meteria nestas alhadas se você a não incitasse. Agradecia-lhe, pois, que se retirasse. Este assunto não lhe diz respeito.

- Mas. - atalhou Dolly - o juiz Cool...

Charlie hesitou e, pela primeira vez, pareceu que perdia a confiança em si.

-Dolly quer dizer que eu a pedi em casamento.

- Ora aí está - começou Verena, depois de uns segundos de silêncio - uma coisa - continuou, mirando as mãos enluvadas - uma coisa notável. Mesmo muito. Nunca pensaria que tivessem tanta imaginação, um e outro. Ou eu é que estarei a devanear? É o mais provável. Deve ser um sonho, em que me vejo encarrapitada no cimo de uma árvore, numa noite de chuva e de trovoada. Mas a verdade é que nunca tenho sonhos. Ou então esqueço-os. Proponho que esqueçamos este.

- Concordo que seja um sonho. E faço-lhe notar que um ser humano que não sonha é como uma pessoa que não transpira: armazena uma porção de toxinas.

Verena fimgiu não o ouvir; só prestava atenção a Dolly, e Dolly só nela fixava a vista. Dir-se-iam sozinhas num quarto deserto, comunicando entre si através de sinais estranhos, de subtis movimentos de olhos, tal como fazem os mudos. E pareceu então que Dolly dera uma resposta que tirou toda a cor ao rosto de Verena.

-Compreendo. Tu aceitaste, não é verdade?

A chuva engrossara, os peixes podiam nadar na atmosfera. Como uma escala mais profunda de notas de piano, as gotas despertavam sons melancólicos, tamborilando num aguaceiro que, embora ameaçador, nos não atingiu logo: a água escorria pela folhagem, mas a casa suspensa continuava como uma semente seca numa planta ensopada. Ojuiz abrigou a vela com as mãos; esperava a declaração de Dolly, tão ansioso como Verena. A minha impaciência igualava a deles e, no entanto, sentia-me estranho à cena, de novo tornado espião a observar do sótão. Não optava por uns nem por outros, ou melhor, optava por todos. Em fios como da chuva, destilava-se uma ternura que ia por igual aos três. Não os podia separar, caíam da mesma forma numa unidade humana.

Dolly também. Não estremava o juiz da pessoa da irmã. Por fim, com voz dorida, exclamou: "Não posso!", como se revelasse uma derrota incomensurável. E prosseguiu:

- Disse que saberia qual a solução justa. Mas não sou capaz. E os outros, sabê-la-ão? Escolher, pensava eu, usufruir uma existência feita das minhas próprias decisões.

-Já tivemos a nossa vida - retrucou Verena - e a tua não foi de desdenhar. Não creio que desejasses mais do que possuíste. Sempre te invejei. Volta para casa, Dolly. Deixa que eu tome as decisões. Isso sempre competiu a mim.

- É verdade, Charlie? - perguntou Dolly como uma criança perguntaria onde caem as estrelas. - É verdade que já tivemos a nossa vida?

- Não estamos mortos - retorquiu o juiz; resposta irrefutável mas pouco satisfatória, que equi valia a dizer à criança que as estrelas caem no espaço.

Dolly não podia aceitá- la.

- Não é preciso estar morto. Lá em casa, na cozinha, temos um gerânio sempre em flor. Algumas plantas só dão flor uma vez, quando dão. Existem, mas não têm vida.

- Isso não acontece consigo - volveu o juiz. E aproximou a cara da de Dolly como se quisesse que os seus lábios se juntassem. Hesitou, porém, sem se atrever. A chuva abrira um túnel entre os ramos e tombava com todo o seu peso. Escorria água do chapéu de Dolly, o véu colava-se-lhe às faces; a vela tremeu e apagou-se. - Nem comigo tão-pouco.

Como veias de lume palpitaram no céu raios sucessivos, e Verena, iluminada por esse clarão permanente, não me parecia ninguém que eu conhecesse; era uma mulher cansada, abatida, de olhos novamente estrábicos fixos num mundo interior. Extinguiram-se os relâmpagos e, quando o murmúrio da chuva nos encerrou nos seus múltiplos sons, ela falou então, mas numa voz débil que se diria vir de muito longe, e sem esperança de se fazer ouvir.

- Invejei-te, Dolly. O teu quarto cor-de-rosa. Bati à porta de quartos semelhantes, não muitas vezes, mas o suficiente para ficar sabendo que só tu agora me podes deixar entrar. Porque, infelizmente, eu gostava do Morris. Não da maneira como as mulheres gostam, mas simplesmente porque havia entre nós afinidades de espírito. Olhávamo-nos de frente, víamos o mesmo e não nos assus;  távamos. Era divertido. Morris, porém, foi mais maligno do que eu. Já sabia que ele o poderia ser, mas esperava que o não fosse. Afinal. E agora, é muito tempo, é uma vida inteira para estar só. Vagueio pela casa, nada me pertence. O quarto cor-de-rosa, a cozinha, a casa, tudo é teu, e de Catherine também, suponho. Não me abandones, deixa-me viver contigo. Sinto-me velha; preciso de ti, minha irmã.

Misturando a sua voz à de Verena a chuva separava Dolly e o juiz, muro transparente através do qual Charlie podia vê-la perder a solidez, recuar à sua frente como antes recuara diante de mim. Mais ainda: a própria cabana parecia dissolver-se.

Uma rajada de vento dispersou as nossas cartas encharcadas, os nossos papéis de embrulho. As bolachas desfaziam-se, as bilhas cheias de água transbordavam como fontes, e o belo edredão de Catherine estava numa sopa. Como os barcos condenados se vão numa cheia, a casa arbórea ia a pouco e pouco desaparecendo. E o juiz parecia estar ali prisioneiro, acenando-nos, a nós, sobreviventes, que ficáramos na margem. Porque Dolly lhe dissera: - Perdoe-me, também eu preciso de minha irmã.

O juiz não podia alcançá-la, nem com os braços nem com o coração. Era definitivo o direito de Verena.

Cerca da meia-noite a chuva afrouxou e acabou de vez. Soprava o vento, secando as árvores.

Isoladas, como convidados que chegam com atraso a um baile, surgiram estrelas no céu. Era altura de partir. Nada trouxemos connosco. Deixámos o edredão a apodrecer, as colheres a enferrujarem-se e as madeiras da cabana abandonámo-las ao Inverno.

 

       Durante muito tempo Catherine teve o costume, para marcar a data dos acontecimentos, de indicar se haviam sucedido antes ou depois da sua prisão. "Antes do dia", começava a explicar, "em que aquela me meteu na gaiola." Também nós poderíamos dividir a história mais ou menos da mesma forma, isto é, antes ou depois da casa arbórea. Esses breves dias de Outono constituíam um marco miliário.

Excepto para ir buscar as suas coisas, o juiz nunca mais entrou na casa que partilhara com os filhos e noras, facto que lhes devia ter agradado, porque não protestaram quando ele alugou um quarto na pensão da senhora Bell. Era um edifício escuro e solene, transformado ultimamente em agência funerária por um negociante que viu não serem necessárias grandes obras para obter a atmosfera conveniente.

Eu detestava passar por ali, pois as hóspedas da senhora Bell, damas tão espinhosas como as roseiras crestadas do quintal, ocupavam a varanda de manhã à noite, quais sentinelas vigilantes. Uma delas, a duas vezes viúva Mamie Canfield, era especialista em notar sinais de gravidez. (Contava-se que certa personagem lendária dissera um dia à es posa: "Para quê gastar dinheiro com médicos. Basta que passes em frente da casa da senhora Bell. Mamie Canfield logo anunciará a toda a gente se estás grávida ou não.") Até à chegada do juiz, Amos Legrand era o único homem na pensão da senhora Bell. As hóspedas consideravam-no enviado de Deus. Para elas, nada mais sagrado do que os momentos depois da ceia, quando Amos, baloiçando-se na cadeira sem que os pés lhe tocassem no chão, desatava a trinar com a língua como um despertador. Faziam-lhe as meias e as camisolas, vigiavam a sua dieta: à mesa, iam para o prato dele todos os bocados melhores, e a senhora Bell tinha dificuldade em conservar a cozinheira, porque as ditas damas se acotovelavam em torno do fogão para confeccionarem qualquer petisco destinado ao seu protegido. Teriam procedido de igual modo quanto ao juiz se este lhes prestasse atenção. Mas Charlie Cool não se dignava (conforme elas se queixavam) ajudá-las a passar o tempo.

A última noite da árvore provocara-me uma constipação bastante forte, e mais forte ainda a Verena. A nossa enfermeira, Dolly, espirrava a todo o instante. Catherine não nos queria auxiliar; dizia:

- Querida Dolly, faça como entender. Despeje o bacio de "aquela" até não poder mais, mas não conte comigo para nada disso. Já findei os meus trabalhos.

Levantando-se a qualquer hora da noite, Dolly trazia-nos xaropes, para nos acalmar a tosse, e espevitava o lume que nos manteria reconfortados. Verenajá não recebia estas atenções como outrora, ou seja, como um tributo que lhe fosse devido. E chegava a prometer à irmã coisas como estas:

- Na Primavera iremos ambas viajar. Podemos ir ao Grand Canyon visitar Maudie Laura. Ou à Florida. Nunca viste o oceano.

Mas Dolly achava-se bem onde estava, não tinha vontade de viajar.

- Não me divertirei nada a ver aquilo que sei ser inferior a espectáculos mais interessantes.

O doutor Carter visitava-nos amiúde. Certa manhã Dolly perguntou-lhe se se importava de tirar-lhe a temperatura: sentia-se tão encalorada e tão fraca das pernas! Ele mandou-a imediatamente para a cama e, quando ele diagnosticou uma "pneumonia ambulante", Dolly achou imensa graça e observou mais tarde ao juiz:

- Há-de ser uma novidade. Nunca ouvi falar dessa doença. Mas, na realidade, sinto-me como se levada pelo espaço, sobre um par de andas. É tão bom!

E adormeceu.

Durante três, quase quatro dias, manteve-se naquela sonolência. Catherine velava, cabeceando na cadeira de vime e resmungando sempre que Verena (ou eu) entrava no quarto em bicos de pés. Insistia em abanar a doente com uma estampa de Jesus Cristo, como se estivéssemos no Verão, e não fazia caso das instruções do médico. "Não daria isto a um porco", declarava a propósito de algum remédio que ele prescrevera. Por fim o doutor Carter participou que não tomava a responsabilidade se Dolly não ingressasse num hospital. O mais próximo ficava em Brewton, a sessenta milhas de distância. Verena mandou buscar a ambulância. Poderia ter evitado esta despesa, porque a preta se ferrolhou no quarto da enferma, informando que quem arrombasse a porta precisaria de ser também hospitalizado. Dolly ignorava para onde a queriam levar. Mas, fosse para onde fosse, rogava que desistissem do intento.

- Não me acordem - dizia. - Não quero ver o oceano.

Lá para o fim da semana já se sentava no leito. Poucos dias mais tarde readquiria forças bastantes para tornar a corresponder-se com os seus clientes do remédio anti- hidrópico. Preocupava-se com as encomendas que se haviam acumulado e que ninguém satisfizera. Catherine, que se ufanava das melhoras de Dolly, respondia:

- Não tarda muito que se não recomece nas nossas infusões.

Todas as tardes, às quatro horas em ponto, o juiz aparecia à porta do quintal e assobiava por mim, para que eu o convidasse a entrar. Utilizando aquela entrada em vez da principal, arriscava-se menos a dar de cara com Verena. Não que esta contrariasse as visitas de Charlie Cool; pelo contrário, até punha à sua disposição uma garrafa de xerez e uma caixa de charutos. Em geral, ele trazia um presente a Dolly, bolos ou flores: crisântemos bronzeados, do feitio de bolas, que imediatamente Catherine confiscava sob o pretexto de que absorviam toda a sustância do ar. Catherine nunca chegou a saber da proposta de casamento; no entanto, farejando uma situação que não era muito do seu agrado, assistia a todas as visitas dojuiz e, além de beber o xerez posto ali para ele, fazia as despesas da conversa. Penso, contudo, que nem Dolly nem Charlie tinham nada de muito íntimo a dizer. Aceitavam-se um ao outro, com serenidade, como pessoas bem estabelecidas na sua afeição. Se, noutros pontos de vista, o juiz era um homem desiludido, Dolly não influíra nisso, pois creio que esta se tornou no que ele mais desejava: o único ente do mundo, aquele a quem se pode dizer tudo. Mas quando se disse tudo talvez já não haja nada a revelar. Charlie sentava-se junto da cama de Dolly, contente por se encontrar ali e sem pretender que o entretivessem. Muitas vezes, prostrada pela febre, ela adormecia, e se, durante o sono, soltava gemidos ou crispava o rosto, o juiz acordava-a, acolhendo o seu regresso com um sorriso luminoso.

Antigamente Verena protestava sempre que falávamos em possuir uma telefonia. A "música ordinária", retorquia, "estraga-nos o espírito; seria só mais um gasto inútil". Foi o doutor Carter quem a convenceu de que Dolly devia ter um aparelho receptor no seu quarto, para a ajudar na convalescença, que ele previa longa. Verena comprou então o rádio e certamente que o pagou por bom preço, apesar do feio formato de capuz e da camada grosseira de verniz. Levei-o para o quintal e pintei-o de cor-de-rosa. Mesmo assim, Dolly hesitou em tê-lo no quarto: depois não poderia renunciar a ele, se lho pedissem. Serviria até para chocar ovos o calor daquele aparelho, tanto era o uso que Dolly e Catherine lhe davam. Acima de tudo, preferiam os relatos de desafios da bola. "Não diga", suplicava Dolly quando o juiz tentava explicar as regras do jogo. "Adoro os mistérios. Nem aquele entusiasmo, nem aqueles gritos me pareceriam tão grandiosos se eu soubesse a razão." A princípio, o juiz mostrava-se aborrecido por não conseguir que Dolly se interessasse mais por um clube do que por outro. Ela achava que ambas as partes deviam ganhar. "São todos bons rapazes, estou certa."

Por causa do rádio, Catherine e eu tivemos uma discussão. Foi na tarde em que Maude Riordan tocava numa emissora para o concurso musical. Como é natural, eu queria ouvi-la; Catherine sabia-o mas, absorvida no relato do desafio Tulane- Georgia Tech, nem me deixava aproximar do aparelho. "És uma egoísta, Catherine!", bradei-lhe. "Só pensas em ti, só fazes o que te apetece, estás pior do que Verena foi noutros tempos." Dir-se-ia que, para substituir o prestígio que os desaguisados com a polícia lhe tinham feito perder, se empenhava em redobrar de autoridade na casa de Talbo. Pelo menos, nós ver-nos-íamos obrigados a respeitar o sangue índio, a aceitar a sua tirania. Dolly submetia-se sempre; todavia, no caso de Maude Riordan, tomou o meu partido. "Deixa Collin procurar a estação que deseja. Seria falta de cristandade não ouvirmos a Maude. É uma das nossas amigas."

Todos os que escutaram Maude foram unânimes em achar que ela merecia o primeiro prémio.

Obteve o segundo, o que alegrou a familia, pois que representava meia bolsa de estudo no departamento de música da Universidade. Contudo, não foijusto, porque ela tocou lindamente, muito melhor que o rapaz a quem deram o primeiro prémio. Interpretou a serenata do pai, que me pareceu tão bela como na vez em que a ouvira no bosque. Desde esse dia eu passara horas a rabiscar o nome de Maude, a pensar na sua beleza e nos seus cabelos cor de sorvete de leite-creme. O juiz chegou a tempo de ouvir a emissão, e sei que Dolly ficou contente com isso: era como se estivéssemos de novo reunidos em cima da árvore, com música à volta, cujas notas se assemelhavam a borboletas voando.

Dias depois encontrei na rua Elisabeth Henderson. Vinha do cabeleireiro e apresentava-se de cabelos ondulados e unhas envernizadas. Parecia mais velha. Felicitei-a pelo seu aspecto.

- É para a festa. Espero quejá tenhas o teu fato pronto.

Só então me recordei da festa de Todos-os-Santos, para a qual ela e Maude haviam solicitado a minha cooperação como leitor de sinas.

-Pois tu esqueceste! - exclamou. - Oh Collin, temos trabalhado como negras! A senhora Riordan anda a preparar um ponche. Não me admirarei se vir alguns bêbados nessa noite. No fim de contas, é em honra de Maude, porque ganhou o prémio e porque. - Elisabeth percorreu com o olhar o panorama desenxabido de casas silenciosas e postes telegráficos -. e porque vai partir para a Universidade, como já deves saber.

Envolvia-nos a solidão, não queríamos ir cada um para seu lado. Ofereci-me para a acompanhar a casa.

Pelo caminho, detivemo- nos na padaria da senhora County, onde Elisabeth encomendou o bolo tradicional para a véspera de Todos-os-Santos. Com o avental a luzir de açúcar pilé, a dona do estabelecimento surgiu do canto do forno para se informar sobre Dolly.

- Folgo saber que vai bem tanto quanto possível - disse ela com voz lamentosa. - Imagine-se! Uma pneumonia ambulante. A minha irmã teve mas foi a forma vulgar, a deitada. Enfim, dêmos graças a Deus por haverem todos regressado à sua verdadeira casa. Ah, ah!, agora podemos rir dessa loucura. Olhem, acabo de tirar do forno estas roscas. Levem-nas a Dolly, com lembranças minhas.

Elisabeth e eu comemos metade da oferta antes de chegarmos a casa dela. À porta, convidou-me a entrar para tomar um copo de leite e acabar o resto.

Actualmente há um depósito de gasolina onde era a residência dos Hendersons. Compunha-se a moradia de quinze divisões ao acaso, cheias de correntes de ar - um desses lugares que os animais vadios reivindicam para si quando não há, para o evitar, um carpinteiro habilidoso como Riley. Possuía ele, no quintal, um barracão que era um misto de oficina e santuário; aí passava as manhãs a serrar madeira, a aplainar tábuas. As prateleiras da parede curvavam-se ao peso de relíquias de todas as manias que tivera: cobras, abelhas, aranhas conservadas em álcool, morcegos em frascos, já estragados, e ainda modelos de barcos. Certo entusiasmo juvenil pela taxidermia dera como resultado um triste jardim zoológico de animais nauseabundos: um coelho sem olhos, com a pele comida pelos vermes e orelhas pendentes como as de um sabujo - coisas que mais valera enterrar.

Eu fora ultimamente visitar Riley várias vezes. A bala do gordo Eddie Stover despedaçara-lhe o ombro, e o pior é que ele precisava de usar uma forma de gesso que lhe fazia comichão e pesava (conforme dizia) cerca de cem arráteis. Como não podia guiar o carro nem martelar convenientemente um prego, não lhe ficava outro recurso senão passar o tempo em meditações e ociosidade.

- Se queres ver Riley - lembrou Elisabeth -,  achá-lo-ás na oficina. Calculo que Maude esteja com ele.

- Maude Riordan?

       Eu tinha motivo para me admirar, pois nas ocasiões em que visitava Riley este insistia por que ficássemos no barracão; aí as raparigas não nos incomòdariam, porque, afirmava, nenhuma fêmea tinha licença de transpor aquele limiar.

- Está a ler-lhe. Poesias, peças de teatro. Maude não podia ser mais simpática. E não porque meu irmão a tratasse jamais com deferência. Mas o que lá vai, lá vai, pensa ela. Creio que isto de ver a morte tão de perto modifica uma pessoa. torna-a mais sensível às atenções. Deixa-a ler em voz alta durante horas.

A oficina, sombreada por figueiras, ficava no quintal de trás da casa. Em volta dos degraus andavam imponentes galinhas de Plymouth entretidas com as sementes caídas de girassóis do Verão anterior. Na porta, lia-se um aviso "Cautela"escrito a giz meio apagado já. Senti-me intimidado. De dentro vinha a voz de Maude, voz poética com certa entoação desfalecida que alguns imbecis do colégio se compraziam em imitar. Se alguém soubesse que Riley Henderson chegara àquele ponto julgaria que a queda do sicômoro lhe afectara o cérebro. Aproximei-me sem rumor da janela e espreitei: Riley estava ocupado a separar as peças do maquinismo de um relógio e, a avaliar pela expressão da cara, dir-se- ia não escutar nada de mais interessante do que o zumbido de uma mosca. Coçou uma orelha como para aliviar qualquer comichão. Em seguida, no momento em que eu ia bater à janela para o assustar, pôs de lado as peças do relógio e, passando por trás de Maude, avançou a mão e fechou o volume que ela estava a ler. Com um sorriso, agarrou-lhe nalgumas madeixas de cabelo, e logo a rapariga se levantou como um gato a quem erguessem pela pele do pescoço. Pareciam aureolados de uma claridade que feria os olhos. Via-se bem que não era a primeira vez que se beijavam.

Uma semana antes, devido à sua experiência nesses assuntos, fizera de Riley meu confldente e revelara-lhe os meus sentimentos por Maude. E afinal. assistia àquela cena. Desejei ser um gigante e sacudir o barracão até reduzi-lo a miga lhas, ou arrombar a porta e dizer-lhes o que pensava de ambos. No entanto, de que podia eu acusar Maude? Por muito mal que lhe falasse dele sempre me dera a perceber que gostava de Riley.

Entre mim e ela não existia nenhum compromisso; éramos bons amigos, e nem sequer isso, nos últimos anos. Retrocedi através do quintal, com as galinhas a cacarejarem maliciosamente atrás de mim.

- Não te demoraste - observou Elisabeth. - Ou não estavam lá?

Respondi-lhe que me parecera mais conveniente não os perturbar. Entendiam-se tão bem sozinhos!

Mas os sarcasmos nunca atingiam Elisabeth. Era muito positiva, embora o não indicassem os seus ares langorosos.

- É estupendo, não achas?

- Estupendíssimo.

- Collin, porque fungas dessa maneira?

- Por nada. creio que estou constipado.

- Espero que isso não te impeça de ir à festa. Mas tens de arranjar fato. Riley vai mascarar-se de diabo.

- Nada de mais apropriado para ele.

- É claro, queríamos que te vestisses de esqueleto. Bem sei que só falta um dia.

Não tinha intenção nenhuma de comparecer na festa. Assim que entrei em casa sentei-me para escrever a Riley. "Caro Riley. Caro Henderson". Aboli o "caro". Bastava Henderson, sem mais nada. "Henderson, a sua traição não me passou despercebida". Enchi páginas a relembrar a origem da nossa amizade e o seu prosseguimento. A pouco e pouco, pus-me a pensar que talvez laborasse em erro: tão bom companheiro nunca poderia ser desleal. Até que por fim dei comigo a escrever, em termos delirantes, que o considerava o meu melhor amigo, meu irmão. Concluída a carta, atirei todos aqueles desvairos ao lume e, cinco minutos depois, encontrava-me no quarto de Dolly a fim de Lhe perguntar se haveria probabilidades de arranjar um traje de esqueleto até à noite seguinte.

Dolly não tinhajeito para a costura, nem sequer sabia fazer uma bainha em condições. O mesmo acontecia com Catherine; esta, porém, julgava-se sumidade em tudo, especialmente naquilo em que mostrava menos competência. Mandou-me à loja de Verena comprar sete metros de cetim preto, e do melhor.

- De sete metros devem ficar uns bocaditos; eu e Dolly poderemos aproveitá-los para guarnições de saias.

Depois, tirou-me as medidas, o que seria muito sensato se ela soubesse como aplicar essas indicações ao tecido e à tesoura.

- Este pedaço - disse, cortando cerca de um metro de cetim - dará uns belos calções para al guém. E este. - novo corte - talvez uma gola para tornar mais janota o meu vestido estampado.

Com o que restou para o meu fato, um anão mal conseguiria esconder as partes vergonhosas.

- Catherine - admoestou a Dolly -, não é em nós que devemos pensar.

Coseram sem descanso toda a tarde. Durante a sua visita habitual o juiz teve de enfiar agulhas, trabalho que Catherine detestava. "É uma coisa que me arrepia tanto como pôr minhocas em anzóis". À hora da ceia fez ela um intervalo para ir comer na sua casa cercada de feijoeiros.

Dolly, todavia, estava desejosa de acabar o fato e, naquele frenesi tagarelava sem cessar. A agulha entrava e saía do cetim e, como os pontos que fazia, as frases de Dolly encadeavam-se em linhas tortuosas.

- Achas que Verena me deixaria dar uma festa? Agora tenho tantos amigos! O Riley, o Charlie. Talvez se pudesse convidar também a senhora County, a Maude e a Elizabeth. Uma festa ao ar livre, na Primavera, com fogo-de-artifício. Meu pai cosia na perfeição. É pena não lhe ter herdado essa habilidade. Noutros tempos havia muitos homens que sabiam costurar; um amigo de meu pai ganhou não sei quantos prémios com as suas colchas de retalhos. O pai costumava dizer que isso o descansava depois de um dia de trabalho rude na quinta. Collin, serás capaz de me prometer uma coisa? Nunca concordei com a tua vinda para cá, não achava bom para uma criança ser educada numa casa cheia de mulheres. E de velhas, com todos os seus preconceitos. Mas vieste, e agora já não me aflijo muito: livrar-te-ás disto e seguirás o teu caminho. O que eu queria que me prometesses é o seguinte: não sejas mau para Catherine, não te afastes muito dela enquanto ainda estás a crescer. Às vezes nem durmo de noite a pensar que ela pode ficar abandonada. Toma - e Dolly entregou-me o fato de máscara. - Vamos a ver se te fica bem.

Apertava-me entre pernas e tinha folga a mais no traseiro; as calças estavam tão largas como as dos marujos, uma das mangas não chegava ao punho, a outra tapava-me a ponta dos dedos. Faltava-lhe elegância, conforme Dolly confessou.

- Mas depois de pintarmos os ossos. - disse ela. - Com tinta prateada. Verena comprou uma grande porção para pintar um mastro de bandeira. antes de tomar partido contra o Governo. A lata deve estar no sótão. Olha para debaixo da cama e vê se encontras as minhas chinelas.

Proibiam-na de se levantar; nem a própria Catherine lho permitia.

- Se começas a ralhar-me não terá graça nenhuma - volveu Dolly, e ela mesma procurou as chinelas.

Tinham acabado de soar onze badaladas no relógio do tribunal, o que significava dez e meia, hora tétrica numa cidade onde todas as portas respeitáveis se trancavam às nove. Ainda parecia mais tarde porque, no quarto contíguo, Verena fechara os seus livros comerciais e fora-se deitar. Munidos de um candeeiro de azeite que existia no roupeiro, subimos ao sótão em bicos de pés. Sentia-se frio, lá em cima. Poisámos o candeeiro sobre um barril e deixámo-nos ficar junto dele como se fosse um fogão. Enquanto se procurava a lata de tinta, observavam-nos nessa busca várias cabeças estofadas de serradura que noutro tempo haviam servido para expor chapéus na loja. Onde quer que metêssemos a mão, ouvia-se o rumor de patinhas em corrida acelerada. Virou-se uma caixa de bolas de naftalina, que se despejou no chão com grande estardalhaço.

-Jesus! - exclamou Dolly, rindo. - Se Verena sente este barulho manda chamar o xerife.

Achámos inúmeros pincéis. A tinta, descoberta sob um monte de grinaldas secas, era afinal dourada e não prateada.

- Melhor ainda, não te parece? De oiro como o fantasma de um rei. Mas vê o que encontrámos mais. - Indicou-me uma caixa de sapatos atada com um cordel. - Os meus tesouros - participou, abrindo-a próximo do candeeiro. Ali se revelou um favo de mel, um ninho de vespões, uma laranja coberta de cravos-da-índia, a que o tempo roubara o perfume. Dolly mostrou-me um ovo de gaio, cuja linda cor azul sobressaía no seu leito de algodão. - Sempre fui pessoa de princípios. Quem furtou este ovo foi Catherine, e ofereceu-mo pelo Natal. - Sorriu; a sua face fez-me lembrar uma borboleta suspensa, rente à chaminé do candeeiro, tão ousada e tão destrutível. - Charlie diz que o amor é uma cadeia de ternura. Julgo que o ouviste e o compreendeste. Porque, quando se sente ternura por uma coisa - e Dolly pegou no ovo com a mesma delicadeza com que ojuiz segurara na folha - está-se apto a gostar de outra. E isso pertence-nos, faz parte da nossa vida. Mas, com toda esta conversa - concluiu, suspirando -, já me ia esquecendo da pintura. Quero deixar Catherine boquiaberta. Vamos dizer-lhe que, enquanto dormíamos, os sete anões acabaram o teu fato. É capaz de desmaiar.

De novo o relógio do tribunal emitiu a sua mensagem. Cada badalada como uma brincadeira a palpitar por cima da cidade friorenta e adormecida.

- Bem sei que isto faz cócegas - disse Dolly, traçando-me no peito uma série de costelasmas, se não te pões quieto, sairá daqui uma trapalhada. - Mergulhou o pincel e passou-o nas mangas e nas cabeças, desenhando-me cúbitos e tíbias de ouro puro. - Grava na memória todos os elogios que te dirigirem. E não hão-de ser poucos - ajuntou, contemplando desvanecida a sua obra. - Oh, meu Deus! - dobrada para a frente, o seu ri so, casquinou até às vigas do tecto. - Pois não vês. É que eu, pintado de fresco por trás e por diante, estava prisioneiro do meu fato; linda situação, de que tornei Dolly responsável, ameaçando-a com o dedo.

- Tens de andar à roda - ordenou, para me arreliar. - Girando, secar-te-ás. - Estendeu os braços, contente, e começou ela mesma a descrever círculos lentos, desgraciosos, por cima das sombras do chão. O quimono ondulava, os pezinhos agitavam- se nas chinelas. Então pareceu embater noutro dançarino e cambaleou, com uma das mãos na testa e outra no coração.

Ululou à distância o apito de um comboio e esse som fez-me consciente do pavor que Lhe dilatava os olhos, das contracções que lhe abalavam a face. Com os braços em volta dela e a pintura estampando-se-lhe no quimono, chamei por Verena:

- Acudam! Socorro!

- Psiu! Psiu! - murmurou Dolly. De noite, as casas anunciam as catástrofes pela sua súbita iluminação. Catherine correu de quarto em quarto acendendo luzes que ninguém utilizara durante anos. Tiritando dentro do meu fato estra gado, vi-me sentado num banco com o juiz em plena claridade do vestíbulo. Charlie Cool viera sem demora, apenas com um impermeável sobre a camisa de noite de flanela. De cada vez que Verena se aproximava ele unia cautelosamente as pernas nuas, como uma rapariga. Os vizinhos, atraídos pelas janelas iluminadas, vinham saber do que se tratava. Verena falou-lhes da varanda: sua irmã, Dolly, tivera um ataque. O doutor Carter não deixava entrar ninguém no quarto. E nós aceitámos o facto, mesmo Catherine, que, depois de acender todas as lâmpadas, ficou de pé com a cabeça apoiada na porta do quarto de Dolly.

Existia no vestibulo um cabide com espelho. Ali estava o chapéu de veludo de Dolly, e ao nascer do Sol, quando a brisa se insinuou na casa, o espelho reflectiu o véu palpitante.

Soube então, sem a menor dúvida, que Dolly nos deixara. Momentos antes passara sem que ninguém a visse. E eu segui-a em imaginação. Atravessou o largo, chegara à igreja e agora atingia a colina. Abaixo dela cintilavam as ervas índias. Era até ali que tinha de ir. Eu próprio fui até lá com o juiz Cool em Setembro do mesmo ano. Durante os meses intermediários raras vezes nos víramos; só uma ocasião o en contrei no largo e ele disse-me que fosse visitá-lo quando me apetecesse. Tinha intenção de o fazer mas, sempre que passava em frente da pensão da senhora Bell, eu virava a cara para outro lado.

Li algures que o passado e o futuro são uma espiral; cada volta, portanto, faz parte da que se segue. Talvez seja assim, mas a minha vida mais me parece uma série de círculos fechados. Para mim, ir de um anel a outro representa um salto, não um deslize. O que me aflige é o intervalo entre ambos, a espera antes de saber onde deverei dar o pulo. Depois da morte de Dolly andei muito tempo de roda do mesmo círculo.

Só uma ideia me obcecava: distrair- me. Frequentava o Café Phill só para ganhar cervejas nos jogos eléctricos. (Não seria muito legal servirem-me cerveja, mas Phill estava convencido de que eu, herdando um dia o dinheiro de Verena, o faria gerente de um hotel. ) Untava o cabelo de brilhantina e ia dançar nas cidades mais próximas; alta noite, atirava pedras e dirigia os raios da minha lâmpada eléctrica às janelas das raparigas. Relacionei-me com um preto, que vendia certa aguardente chamada "Demónio Amarelo". Cortejava fosse quem fosse que possuísse automóvel. E tudo isto porque não queria passar um só instante na casa Talbo. A atmosfera ali era muito pesada. Ocupava a cozinha uma estranha: rapariga de cor, de pés disformes, e que entoava todo o dia um canto trémulo de criança que pretende animar-se no lugar onde se sente medo. Era uma triste cozinheira. Deixou morrer o gerânio. Achei bem que Verena a tomasse ao serviço, pensando que isso induziria Catherine a voltar ao trabalho.

Ao contrário, Catherine não mostrou nenhum interesse pela aprendizagem da nova criada. Retirara-se para a sua casa no extremo da horta, levara consigo o aparelho de rádio e vivia com todo o conforto. "Pousei a minha carga e deixo-a onde ficou. Agora quero é descanso", dizia. Esse descanso engordou-a; os pés incharam-lhe a ponto de ela ter de abrir fendas nos sapatos. Adquiriu, exagerando, os hábitos de Dolly, em especial o seu apreço pelos doces. Mandava vir quantidades enormes de sorvete, e isso constituía uma refeição. No seu regaço havia sempre o restolhar de papéis de rebuçados. Enquanto a obesidade lho permitiu, comprimiu-se nos vestidos de Dolly, como se desse modo guardasse junto de si a velha amiga.

Considerava grande maçada vir visitá-la e só o fazia contrariado, aborrecido com a ideia de que ela contasse comigo para companhia. Deixava passar um, dois, três dias sem ir vê-la, chegando a faltar uma semana inteira. Quando, depois de uma ausência, lhe aparecia em casa, os seus silêncios e maneiras distantes afiguravam-se-me uma forma de censura. Sentindo-me culpado, não compreendi que, na realidade, lhe era indiferente eu visitá-la ou não. Deu-me a prova disso certo dia, tirando simplesmente os algodões que Lhe estofavam as bochechas. Sem esses chumaços, a sua fala era-me tão ininteligível como o fora sempre para os outros. Fê-lo numa ocasião em que eu inventava um pretexto para abreviar a visita. Ergueu a portinhola do fogão bojudo e cuspiu os algodões no lume. As faces cavaram-se-lhe, ficou com ar famélico. Penso agora que não seria gesto de vingança mas apenas meio de me dar a entender que eu não tinha para com ela nenhuma obrigação. O futuro era uma coisa que preferia não compartilhar.

De tempos a tempos, Riley dava-me passeios de carro, mas eujá não podia confiar muito nele nem no seu automóvel. Um e outro raras vezes estavam livres desde que Riley se metera em negócios. Tinha por sua conta vários tractores a desbravar noventa acres de terreno que ele comprara nos arredores da cidade e onde se propunha construir casas. Mostravam-se impressionadas com outro dos seus projectos algumas das pessoas importantes do concelho: Riley achava que se devia fundar uma fábrica de fiação de seda, da qual cada munícipe seria accionista. Além dos lucros prováveis, semelhante indústria aumentaria a população.

Em artigo de fundo, o jornal apoiou entusiasticamente essa ideia, chegando ao ponto de dizer que a cidade podia ter orgulho em ter produzido homem tão empreendedor como Riley Henderson.

Este deixou crescer o bigode, alugou um escritório e tomou como secretária a irmã Elisabeth.

Maude Riordan encontrava-se então na Universidade, e quase todos os fins-de-semana ele levava lá as irmãs, com o pretexto de que as raparigas tinham saudades da amiga. Os esponsais de Maude Riordan e Riley Henderson vieram anunciados no Courier de 1 de Abril.

Casaram-se em meados de Junho. Cerimónia de espavento. Fui um dos cavalheiros de honor e o juiz o padrinho do noivo. Com excepção das irmãs Hendersons, todas as damas de honor eram meninas da sociedade, que Maude conhecera no meio universitário. O Courier qualificou-as de beldades juvenis, designação deveras galante. A noiva levava um ramo dejasmins e lilases; o noivo tinha polainas e afagava constantemente o bigode. Ficaram com a mesa cheia de prendas sumptuosas.

Ofereci-lhes meia dúzia de sabonetes e um cinzeiro.

Depois do casamento voltei para casa com Verena, à sombra do seu guarda-sol preto. Estava um dia ardente, as ondas de calor pareciam vibrar como o som dos sinos da igreja, que celebravam o evento. Diante de mim estendia-se o final do Verão, numa perspectiva tão árida como a rua sob a luz vertical. Sim, o final do Verão, mais um Ou tono, e outra vez o Inverno. Não uma espiral mas um círculo restrito como a sombra da umbela. Se eu queria preparar-me para o salto, era o momento de o fazer.

- Verena, desejo ir-me embora daqui. Encontrávamo-nos à porta do quintal.

- Bem sei, e também eu gostaria de partir - replicou, fechando o chapéu-de-sol. - Esperava fazer uma viagem com a Dolly, para que ela visse o mar.

Verena dava a impressão de ser alta por causa do seu porte arrogante, mas agora estava um tanto curvada e a cabeça tremia-lhe. Eu não chegava a perceber como lhe tivera tanto medo, pois tornara-se feminina, tímida; receava os ladrões, aferrolhava as portas e mandara cobrir o telhado de pára-raios. Antigamente, era seu costume, no primeiro dia de cada mês, ir ela mesma a casa dos locatários a fim de receber as rendas. Quando deixou de o fazer, toda aquela gente, aliviada dessa visita desagradável, sentiu compaixão de Verena. As mulheres diziam: "Coitada, perdeu a irmã, não tem família." Os homens censuravam o doutor Morris Ritz: "Tirou-lhe o gosto de viver", comentavam. E, esquecendo as suas razões de queixa contra Verena, era a ele que todos queriam mal. Há três anos, quando voltei a esta terra, o meu primeiro cuidado foi pôr em ordem os papéis da propriedade de Talbo, e entre os objectos pessoais de Verena (as suas chaves, as fotografias de Maudie Laura Murphy) encontrei um bilhete-postal. Fora escrito dois meses depois da morte de Dolly, pelo Natal, e viera do Paraguai: "Como se diz aqui, Feliz Navidad. Tem saudades minhas? Morris. "Ao ler estas palavras, pensei como os olhos de Verena tinham acabado por ficar eternamente turvos, numa espécie de contemplação interior e angustiante, e recordei-me de que nesses mesmos olhos, lacrimosos, no dia do Casamento de Riley, havia luzido o brilho momentâneo de uma esperança. "Pode ser uma viagem longa. Já me lembrei de vender uns prédios. Iríamos de barco. Nunca viste o mar. "Apanhei um raminho da madressilva que guarnecia o muro do quintal e Verena viu-me desfolhá-lo como se asssistisse ao desmoronar do seu sonho - a viagem que idealizara fazer comigo. "Oh!"Passou a mão pelo sinal, que lhe sobressaía na face como uma lágrima. "Quais são, pois, as tuas ambições?", perguntou já noutro tom, com voz de pessoa prática.

Só em Setembro visitei o juiz, e foi para lhe dizer adeus. As malas estavam prontas. Amos Legrand cortara-me o cabelo. "Amorzinho, não regresses calvo. Isto é, hão-de querer esfolar-te, in trujar-te de todas as maneiras. "Eu tinha um fato novo, sapatos novos, chapéu de feltro cinzento. "Com que então, vais ser advogado?", exclamou a senhora County. "O traje já o indica. Não, filho, não te beijo. Sujava-te de gordura e farinha, e era pena. Escreve-nos, sim?"Naquela tarde o comboio levar-me-ia para o Norte, até uma cidade onde em minha honra flutuavam galhardetes.

Na pensão da senhora Bell informaram-me que o juiz saíra. Encontrei-o no largo e fez-me certa impressão vê-lo acolá, aprumado, vigoroso, de rosa na botoeira, acampado entre velhos que falavam, cuspiam e esperavam. Agarrou-me no braço e levou-me para longe deles. E enquanto amavelmente me aconselhava, recordando a sua vida de estudante de Direito, passámos diante da igreja e fomos pela estrada de River Ioods. Aquele caminho e aquela árvore. Fechei os olhos para reter a sua imagem, pois não pensava tornar ali nem adivinhava que haveria de fazer de novo esse trajecto e sonhar com a árvore, até que me obrigassem a voltar.

Nem um nem outro parecíamos saber para onde íamos. Em silêncio, contemplámos o panorama do alto da colina e, de braço dado, descemos até ao campo queimado pelo Estio e brunido pelo começo do Outono. Nas folhas secas e cantantes derramava-se uma cascata de cores. Quis então que o juiz ouvisse o que Dolly me dissera: tudo aquilo era uma harpa de ervas, recolhendo sons e transmitindo-os, uma harpa de vozes a rememorar uma história. Escutámo-la.

  

                                                                  Truman Capote

 

 

                      

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