Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A HARPA DOS REIS / Juliet Marillier
A HARPA DOS REIS / Juliet Marillier

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Maldito seja Archu! Por que temos de lutar com o raio desta carga de água? Engancho a minha perna esquerda em volta da direita de Brocc e jogo todo o meu peso para trás, derrubando-nos aos dois no chão. Rolamos, cobrindo-nos de lama. Merda! Quem gostaria de fazer isto para o resto da vida? Devo estar louca.
O vento sopra, direto do mar do Norte, espalhando a chuva. Brocc pragueja. Ofega um pouco. Estou quase a apanhá-lo.
— Agarra-lhe os tomates! — grita alguém.
— Puxa-lhe os cabelos! — berra outra pessoa. Dau, suponho. Gosta de me ver perder.
Não há necessidade de olhar para Archu, mesmo que eu conseguisse virar a cabeça. Sei o que ele está a pensar: isto não é uma rixa atrás do salão das bebidas, é um treino a sério. Tens vantagens. Usa-as.
Altura superior, digo para comigo, ao mesmo tempo que Brocc se debate e consegue elevar-se sobre um joelho e, por um instante, afrouxa a pressão que exerce no meu braço direito. Vontade mais forte de vencer. Pura ferocidade. Agarro numa mão-cheia de lama e atiro-lha à cara. Ele blasfema, larga-me e leva as mãos aos olhos. Rodo de joelhos e aplico um soco bem calculado no seu maxilar. E ele cai.
— Parem. — Archu ergue a mão. — Liobhan ganhou o combate.
Terminou, graças aos deuses do vento e do tempo. Ouvem-se alguns aplausos dispersos da parte dos nossos camaradas encharcados, que são obrigados a observar todos os combates, faça o tempo que fizer. Archu acredita que há sempre alguma coisa a aprender, sobretudo vendo as pessoas cometer erros. Estendo uma mão para Brocc e iço-o.
— Devia ter previsto isso — resmunga ele, a limpar o rosto com a manga ensopada em lama.

 


 


O que posso dizer? Lutamos juntos desde pequenos. Ele sabe que eu usarei truques sujos para ganhar se for preciso. Com grande frequência, ganho a Brocc; ele é honrado de mais para seu bem.

— Combate desordenado — diz Archu. — Brocc, estiveste em posição de vantagem por breves instantes, mas perdeste-a. Não deixes os teus pensamentos andar à deriva, sobretudo nestas situações. Aguça a vista, aguça os ouvidos, sente o que se passa em todas as partes do teu corpo. Mesmo quando contra-atacas o golpe dela, deves estar já a prever o golpe seguinte. Se ela te apanha despreparado, estás feito. Cometes um erro como este numa situação real e podes morrer. O que seria muito inútil para quem estiver a pagar pelos teus serviços. Toma. — Extrai um pano com mau aspecto de algum canto escondido da sua volumosa capa de pele, a veste é quase lendária, e entrega-lho. — Limpa essa coisa do teu rosto. — Vira-se para mim. — Liobhan, raciocínio rápido ali. Espero que não tenhas causado nenhuma lesão ao teu irmão. Existem formas mais honestas de terminar o combate. Diz-me uma.

Tenho estado a pensar no combate, visto que Archu pergunta sempre isto.

— Se tivesse sido mais rápida quando ambos caímos, podia ter lançado todo o meu peso em cima dele. Ou antes ainda, quando apliquei o golpe do bloqueio e arremesso, se tivesse aberto mais os pés, podia tê-lo impedido de se levantar de um salto.

— O salto foi bem executado. — O olhar duro de Archu desvia-se para Brocc e ele faz um breve aceno de aprovação. — És ágil, sem dúvida nenhuma.

— Está talhado para ser um artista ambulante. — Dau outra vez, o sacana arrogante. — Um homem de muitos talentos: canto, harpa, acrobacia e truques.

Cerro os dentes sobre a réplica mordaz que este comentário merece. O autodomínio faz parte do código da Ilha dos Cisnes e Archu está presente; Archu que a seu tempo ajudará a decidir quais de nós, instruendos, se tornarão membros permanentes da equipa de guerreiros e quais serão enviados para casa com o peso do fracasso em cima dos ombros. Quanto a Brocc, não profere uma palavra.

— Ias ficar surpreendido — observa Archu — com os talentos que um guerreiro da Ilha dos Cisnes pode usar para adquirir vantagem estratégica. Alguns desses talentos poderão não ser competências de combate. Se algum de vocês tiver a sorte de continuar no curso e obter um lugar a longo prazo na ilha, descobrirá que os serviços que oferecemos são diversos. Nem tudo tem a ver com sair por aí engrinaldado com armas brilhantes e matar o outro homem antes que ele nos mate. Embora precisem também de aprender isso. Mais alguém tem alguma observação a fazer?

Claro que têm. O nosso grupo está na ilha há duas voltas da lua e o treino tem sido intensivo. Treinamos todos os dias e muitas vezes também de noite. Temos de estar aptos em qualquer situação. Archu é o instrutor-chefe de combate na Ilha dos Cisnes, mas temos também outros instrutores. Há especialistas no manejo da espada, tiro ao arco, luta com bastão e com as mãos nuas, como se esperaria de uma escola de arte da guerra. Aprendemos a melhor forma de escalar as faces de um rochedo, o que fazer se alguém ficar preso ou cair e como nos defendermos de atacantes quando estamos a meio da subida de um penhasco, agarrados com unhas e dentes. Ensinam-nos a cuidar e a fazer a manutenção do nosso equipamento, desde armas a botas. Há controlos a intervalos regulares e se um de nós for encontrado com uma faca mal limpa ou calçado enlameado, todos pagamos por isso. Uma mulher parecida com um rato chamada Eabha ensina-nos a abrir portas trancadas e a esconder-nos com eficácia mesmo sob o nariz das pessoas. É mais difícil para uma pessoa alta e de porte robusto do que para uma pessoa pequena e franzina, como tenho motivos para saber. A cor do meu cabelo, um ruivo-intenso, também não ajuda.

Uma competência que não podemos aprender na ilha é o combate a cavalo. Não podemos ter cavalos aqui, não há muito terreno plano e o que existe está ocupado com as instalações de treino e os alojamentos. O resto da ilha, elevações íngremes, depressões repentinas, penhascos abruptos, está consagrado a ovelhas, focas e papagaios-do-mar. A Ilha dos Cisnes tem uma frota de pequenos barcos, alguns para pesca, alguns para transporte de pessoas e mercadorias entre a ilha e o continente e alguns, como descobrimos, para podermos praticar o combate num convés pouco firme sem cairmos borda fora. O nosso instrutor nesse campo é Haki, um nórdico gigante.

Nunca esquecemos que estamos aqui à experiência. Os exercícios para nos testar podem acontecer a qualquer hora do dia ou da noite. E os nossos orientadores observam-nos o tempo todo. Quem é o melhor, o mais forte, o mais promissor? Não faz sentido perguntar quem o deseja mais. Todos nós o desejamos, ou não estaríamos a passar por isto. Brocc e eu preparámo-nos durante meses para conquistar lugares no curso de treino, do qual talvez dois ou três, dos vinte, sejam escolhidos para membros permanentes da força da Ilha dos Cisnes. Ninguém quer ser mandado para casa.

Se fosse eu a escolher, escolhia Dau. Poderá ser o menos simpático dos instruendos, mas distingue-se em todas as tarefas físicas e é inteligente a resolver quebra-cabeças e a delinear estratégias. Brocc não é o lutador mais forte do grupo, mas tem outras capacidades que poderão ser valiosas para a Ilha dos Cisnes. Parece-me que os nossos instrutores reconhecem os seus talentos invulgares, embora nenhum deles diga nada. O meu irmão tem uma capacidade notável para manter as outras pessoas calmas em situações difíceis. E tem uma forma de usar os seus sentidos que ultrapassa o normal, não apenas quando está a tocar música, mas o tempo todo. Quanto a mim, sei que sou suficientemente boa. Mas embora existam muitas mulheres a trabalhar e a viver na comunidade da Ilha dos Cisnes e vários orientadores do sexo feminino, o grupo de combate de elite conta apenas com dois membros do sexo feminino. Duas mulheres numa força de mais de cinquenta. E neste grupo de instruendos sou a única mulher. As probabilidades não são a meu favor. Mas vou provar o meu valor. Não vim aqui para falhar.

— Se queres a minha opinião — diz Dau agora —, Brocc é benevolente com Liobhan porque ela é mulher. Não vai com certeza trilhar-lhe o peito ou enterrar o cotovelo nas suas partes íntimas. E nunca ficaria de braços cruzados se alguém atacasse a irmã. A expressão do seu rosto neste momento prova-o.

Consigo não olhar para Brocc, embora saiba o que deve estar a sentir. Maldito Dau! Junto com os seus outros talentos, possui uma capacidade infalível para detetar e explorar o ponto fraco de uma pessoa. Percebo que isso pode ser útil, mas preferiria que ele não a empregasse em nós.

Nenhum comentário da parte de Archu. Está à espera do momento certo. A dar-nos corda para nos enforcarmos.

— Isso é uma treta, Dau.

Diz o nosso instruendo nórdico, Hrothgar, um homem grande e barbudo. Dou-me bem com Hrothgar. Contou-me como era o lugar onde cresceu, como as mulheres podem ser líderes e lutadoras e chefes de família se houver necessidade e como são respeitadas pelo que fazem. A irmã queria vir com ele para a Ilha dos Cisnes, mas tem apenas treze anos; cinco anos mais nova do que eu.

— Brocc é um belo lutador — continua Hrothgar. — Como achas que Liobhan se tornou tão boa? Treinando com ele durante anos, foi o que foi. Tem o seu estilo próprio, só isso. Quanto a ficar de braços cruzados enquanto alguém ataca um dos nossos camaradas, homem ou mulher, farias isso?

— Poderia haver alguma ocasião em que tivesse de o fazer — responde Dau. — E se estivéssemos numa missão secreta e o facto de defender o meu camarada implicasse destruir o nosso disfarce? Não nos disseram que o cumprimento da missão deve vir sempre em primeiro lugar?

Lança uma olhadela para Archu, mas se o nosso instrutor responde, as suas palavras são afogadas por um agravamento repentino e violento da chuva. Retumba pela ilha, obscurecendo tudo o que está à vista e pondo um fim abrupto à conversa. Archu aponta na direção geral do edifício mais próximo e corremos em busca de abrigo.

Ainda chove torrencialmente lá fora, horas depois, quando nos sentamos no salão depois da ceia. É nesta altura que toda a comunidade se reúne para desfrutar da comida, bebida e da boa companhia. Contam-se histórias diante da lareira, distribuem-se canecas de hidromel ou cerveja e aqueles de nós que sabem tocar ou cantar proporcionam o entretenimento musical. Brocc e eu adoramos música. Em casa, a nossa banda era solicitada para casamentos e festivais. Até tocámos em algumas reuniões grandiosas na casa do príncipe herdeiro de Dalriada, que não fica longe da nossa casa de família. A comunidade da Ilha dos Cisnes logo percebeu que éramos músicos: a chegada de Brocc com a sua harpa amarrada às costas tornou-o bastante evidente.

Archu também é músico. Os braços do homem são só músculo; maneja o tamborim bodhrán como maneja a espada, como se fosse uma extensão de si. Quando toca, conseguimos ouvir os pés do guerreiro a marchar e o seu coração a bater e os sons da natureza na ilha: as grandes asas do albatroz, o mergulhar e rolar de uma foca, o zumbido do vento no telhado de colmo. É tanto mestre a tocar tamborim como o é em quase todas as formas de combate. Archu não fala da sua vida antes da ilha, nem de onde ou como desenvolveu essas aptidões. E nós não perguntamos. Mas eu gostaria um dia de ouvir a sua história.

Na noite depois daquele combate na lama, Haki conta uma história do tempo em que era um ulfhednar, um Pele-de-Lobo. O papel destes guerreiros sem par é saltar da proa do navio longo mal este chega à costa e espalhar o terror no coração dos inimigos. São fiéis aos deuses e, ao que parece, mais do que meio loucos. Este conto em particular diz respeito a um machado que foi abençoado pelos deuses e que, durante muito tempo, trouxe sorte ao homem que o brandia. Mas quando caiu nas mãos de outro, tudo mudou. Estamos todos fascinados pela história e percebo pela intensa concentração do meu irmão que já está a transformá-la numa canção.

— E na noite em que Brynjolf soltou o seu último suspiro... — a voz de Haki baixou para um quase sussurro — ... os homens que o velavam juraram que apesar de o machado descansar a seu lado no ataúde, ouviram a sua voz no ar por cima de Brynjolf, cantando a verdadeira canção de uma bela lâmina: Para casa, meu companheiro fiel, vem para casa agora, para o salão dos deuses! E ao que te roubou de mim, digo: que a maldição caia sobre ti por traíres um amigo! Que a tua espada seja embotada e o teu braço fraco e que os teus inimigos se riam na tua cara até ao dia em que morreres!

É uma bela história. Não importa se é verdadeira ou não. A seguir é a nossa vez de entreter as pessoas: uma banda improvisada composta por mim, Brocc, Archu e Eimear, uma rapariga que é boa na flauta. Também sou competente na flauta: numa banda, a quanto mais coisas se conseguir deitar a mão, melhor. Eimear e eu estamos a executar uma dança muito viva, do género pergunta e resposta, tocando oito compassos à vez e acelerando aos poucos. No fim, os aspirantes a dançarinos tropeçam nos pés e estão sem fôlego de tanto rir. Parece tudo estranhamente certo. Os guerreiros da Ilha dos Cisnes são os melhores dos melhores em combate e os seus feitos são mencionados em voz baixa em toda Erin, alimentando os contos à lareira. Contudo, em alturas como esta, são uma grande e calorosa família.

Os pedidos de canções chovem. Felizmente, conhecemos quase todas. O entretenimento de um serão pode começar com canções que contam histórias, canções grandiosas que falam de viagens épicas, de monstros chacinados e cativos libertados. Seguem-se canções mais modestas, por exemplo como um desafortunado terceiro filho conquistou a mão de uma princesa que depois provou representar mais problemas do que ele esperara. Há canções libertinas adequadas para um salão de bebidas, baladas trágicas de amores condenados e canções de marcha que põem os homens mais velhos a cantar o refrão, quer se recordem ou não da letra. Tanto eu como Brocc gostamos de inventar versos e melodias. As nossas vozes combinam bem, a minha forte e intensa para uma mulher e a dele leve e pura com um timbre que vai direito ao coração. Em casa, pedem-nos com frequência as nossas canções de amor, que são perfeitas para cerimónias de união.

São uma opção menos óbvia para a Ilha dos Cisnes, mas esta noite vejo Dau sentado lá atrás, a bocejar de indisfarçado tédio, e, em vez de escolher uma coisa que ache que lhe poderá agradar, embora saiba-se lá o poderá ser, decido dar-lhe a canção mais doce e mais romântica do nosso repertório.

— O Adeus — murmuro para os meus colegas músicos. Brocc ergue um pouco as sobrancelhas, mas nem ele nem Archu fazem qualquer comentário.

O Adeus é uma balada que faz chorar homens e mulheres adultos. O nosso arranjo começa só com a harpa, Brocc a tanger a melodia que começa em tom baixo e depois se eleva antes de se acalmar, não no fim do modo, mas na sexta, deixando a sensação de uma viagem inacabada ou de uma pergunta não respondida.


Virás comigo para onde quer que eu vá?

Ficarás a meu lado na alegria e na adversidade?

Quando o sol aquece as colinas, quando o temporal agita o mar,

Na sombra e na luz caminharás comigo?


Oh, irei contigo para onde quer que tu vás,

E ficarei a teu lado na alegria e na adversidade,

Caminharei perto de ti durante a tempestade e a bonança,

E manter-te-ei a salvo com a força do meu braço.


A canção segue os amantes no seu caminho juntos. Há um dia de casamento jubiloso; o momento em que o homem ergue o filho recém-nascido nos braços; a construção de uma casinha com vista para o mar. Uma caminhada lado a lado, como tinham prometido. Mas chega uma altura em que o marido sofre um ferimento e a ferida infecta e ele fica mortalmente doente. Isso leva-o para um caminho onde ela não o pode seguir, ainda não. Há uma criança para criar e, apesar de toda a sua tristeza, ela tem de viver para criar o filho e ensinar-lhe força, coragem e sabedoria. O marido fala:


Não posso ir contigo para onde quer que tu vás,

E não posso ficar a teu lado na alegria e na adversidade,

Mas estarei junto de ti, embora longe da tua vista,

Amar-te-ei e proteger-te-ei até nos encontrarmos na luz.


Brocc canta este último verso não acompanhado, a voz a ficar cada vez mais fraca. As notas finais soam num profundo silêncio; a assistência mantém o silêncio muito tempo antes de alguém se mexer. Depois aplausos estrondosos preenchem o salão e entrevejo várias pessoas a limpar os olhos, algumas de forma furtiva, outras à frente de todos, pois qual é o propósito de uma boa canção senão despertar sentimentos, sejam eles quais forem?

Punhos martelam nas mesas.

— Mais! — gritam as pessoas.

Mas Brocc está exausto; percebo-o bem e o dia fatigou-o muito tanto no corpo como no espírito.

— Mais um pedido — clamo acima do burburinho das conversas. — E nada triste.

— O Salto de Artagan! — brada alguém.

— Então vamos lá dançar o melhor possível!

Levando as flautas aos lábios, Eimear e eu lançamo-nos na jiga e Archu percute o ritmo. Quatros compassos a seguir, a harpa de Brocc começa a tecer a sua magia na melodia. Algumas pessoas energéticas dançam, mas é tarde e a maioria contenta-se em bater os pés, martelar com os punhos nas mesas ou bater palmas. Chegamos a um fim triunfante. Desejo boa-noite a todos, a sorrir, e ensaio uma meia vénia para mostrar que o entretimento da noite terminou. As pessoas vão buscar as capas e xailes que dispuseram perto da lareira para secar e saem do salão. Parece que a chuva amainou, talvez até tenha parado. Com sorte, conseguirei chegar aos alojamentos das mulheres sem ensopar outro conjunto de roupa.

E lá está Dau, encostado à ombreira da porta, a bloquear-me a passagem.

— Boa atuação, esta noite.

— Obrigada — respondo, surpreendida. — Não achava que tivesses interesse na música.

As outras pessoas estão a passar por nós, querendo aproveitar a acalmia no tempo.

— Já ouvi a minha quota-parte de menestréis, desde excelentes a execráveis. — O tom de voz de Dau é neutro, que é o mais próximo que chega de parecer amigável. — Tu cantas bem. Isso faz-me pensar por que razão quererias combater como modo de vida, quando podias estar a fazer alguma coisa mais... — Não termina a frase.

Desde muito antes de o meu irmão e eu virmos para a Ilha dos Cisnes, tenho-me esforçado por controlar o meu temperamento, sabendo que se alguma coisa me pode causar problemas aqui, é a minha tendência para falar sem pensar, sobretudo quando estou furiosa. Conto em silêncio até cinco antes de falar de novo.

— Apropriada para uma mulher? — Ergo as sobrancelhas. — Decorosa?

— Decorosa não é termo que usaria para falar de ti, Liobhan, mesmo quando estás vestida dessa maneira.

Inclina a cabeça para indicar o traje que uso quando atuo: por baixo da capa tenho um vestido de lã castanho-avermelhado e, por cima deste, um vestido-avental de linho creme, em vez das minhas habituais calças e túnica. Tenho os pés calçados com escarpins macios em vez de botas e o meu cabelo foi libertado da trança apertada e presa com ganchos que uso nos treinos.

— Pergunto a mim mesmo por que razão uma mulher passaria os seus dias a aprender formas mais eficazes de matar — diz Dau — e as noites a cantar canções de amor. Isso não significa que não consegue estar de alma e coração em nenhuma das duas atividades?

No salão atrás de mim, as pessoas estão a limpar as mesas, a abafar a lareira e a dizer boa-noite. Espreito por trás de Dau para a escuridão lá fora, onde algumas tochas iluminam o caminho que liga o salão às instalações residenciais. Não posso deixar sem resposta a pergunta bizarra dele. Mas é tarde, a chuva regressará a qualquer momento e manter uma multidão entretida é um trabalho cansativo. Quase tão esgotante como uma tarde de combates no pátio dos treinos.

— Estás a sugerir que uma pessoa com dois talentos não pode exercer ambos com êxito? — pergunto.

— Se estão em conflito, será mais sensato direcionar os teus esforços para um ou para o outro. — Dau descontraiu-se na sua posição encostado à porta; não parece ter pressa em sair dali. — Digamos que eras um líder de homens, um rei ou chefe de clã, e a outra coisa em que eras boa era... era...

— Acalmar bebés rabugentos?

Quando ele me lança um olhar carrancudo, acrescento:

— Bordar? Esculpir madeira?

— O meu raciocínio era sério.

— O meu também.

— Tretas, Liobhan. Os reis não fazem bordados nem cuidam de bebés.

Sorrio, mesmo sem querer.

— Podiam querer fazê-lo — digo. — Não é mais estranho do que uma mulher tornar-se uma boa lutadora. E as competências aprendidas nessas ocupações, bebés, bordados e afins, podiam ser muito úteis quando lidassem com conselheiros argumentativos, questões delicadas. Paciência, por exemplo. E precisão.

— Mostra-me um rei que borde e admito que tens razão.

— Não tenho a certeza se terei essa oportunidade, uma vez que por estes lados os reis são um tanto escassos. — Não vou partilhar a informação de que o meu irmão e eu temos boas relações com o príncipe herdeiro de Dalriada, ou que os nossos pais são amigos pessoais do pai dele. — Não tens algum outro talento, Dau? Um rapaz capaz como tu?

— Não tens nada a ver com isso. — A expressão dele mudou num instante; penso numa criatura a rosnar defronte da ponta de uma lança. Como consegui provocar aquilo?

— Não foste tu que iniciaste este tema de conversa? — Tento manter o tom de voz trivial.

— Um exercício inútil, como se viu. Desejo-te boa-noite.

— Não há necessidade de te esforçares. — Puxo a capa para cima dos ombros e dirijo-me para a saída.

— Ei, Liobhan! — A voz dele segue-me.

— Que é? — Não me viro.

— Vence-me num combate sem armas, dois de três, e admito o argumento.

— Já me esqueci do que se tratava — minto.

— Com medo de lutar contra mim?

— Nem um pouco, como bem sabes. Mas desconfio de apostas, sobretudo se estivermos a infringir alguma regra da ilha.

— Tornamos a coisa oficial. Pedimos a autorização de Archu.

Claro que direi que sim. Nunca consegui resistir a um desafio. Dau deve saber disso; é observador.

— E isso é para provar o quê, exatamente? — Virei-me para olhar para ele, mesmo sem querer.

Dau hesita. A tocha colocada por cima da entrada transformou as suas feições numa máscara bruxuleante de olhos sombreados. Sob os seus modos irónicos e pronta perspicácia, há mais alguma coisa, creio. Alguma coisa que ele esconde com perícia.

— Que, para ser o melhor, nos devemos entregar de corpo, alma e coração — diz ele. — Temos de nos entregar por inteiro ao que escolhermos fazer. Isso significa uma vocação e só uma; se formos o melhor, não há mais nada para dar.

Fico ali a olhar para ele durante alguns instantes, em silêncio.

— Aceito o desafio — digo por fim, quando a chuva começa outra vez a cair, de forma constante e silenciosa. — Mas não para contestar essa teoria. Só porque sei que consigo vencer-te. E só se Archu der a sua bênção. E só se isto não for um truque qualquer que inventaste.

A boca dele contorce-se.

— Nenhum truque. A não ser que seja contra mim. Boa-noite, então.

— Boa-noite — murmuro e corro para os aposentos das mulheres.

Que bicho mordeu ao homem? É filho de um chefe de clã com todas as vantagens que isso oferece e é também um espécimen apresentável de masculinidade, alto e bem musculado, com cabelo dourado como o trigo e feições que muitos considerariam formosas, embora o efeito seja muitas vezes estragado pela expressão que ele escolhe mostrar ao mundo. Se eu estivesse disposta a levar qualquer dos meus colegas instruendos para a cama, o que não estou, visto que isso poderia fazer com que fosse expulsa à pressa da ilha, haveria alguns que escolheria primeiro do que Dau. Para mim, um bom carácter supera de longe a beleza. Embora deva admitir que ajuda se possuírem ambas as coisas.

Quando penduro a minha capa húmida e procuro a minha roupa para a noite, ocorre-me que o meu irmão não foi mencionado nem uma vez naquela estranha conversa. E se Dau acha que eu não consigo ser bem-sucedida como guerreira se quero também ser música, com certeza que o mesmo se aplica a Brocc. Ainda mais no caso de Brocc, visto que se alguém se entrega de alma e coração à sua música é ele. Eu gosto de tocar e cantar e tento fazê-lo bem. Mas Brocc perde-se na música; quando terminamos uma atuação, precisa de algum tempo para voltar à realidade. É por essa razão que eu falo entre baladas, árias e danças.

Desconfio que o verdadeiro motivo para a aposta de Dau não tem nada a ver com música. Venci-o numa luta com bastão e, várias vezes, marquei mais pontos no arco e flecha. Ele não consegue apenas aceitar que uma mulher o possa superar em atividades tão masculinas. Isso fará com que vencer o desafio vá ser particularmente gratificante.


Capítulo 2

DAU

Sexagésimo terceiro dia na Ilha dos Cisnes. Acrescentei os resultados dos combates de ontem ao meu registo. Não mantenho esta anotação por escrito, visto que os nossos aposentos partilhados não têm os materiais necessários. Felizmente, possuo uma memória excelente. Os totais cumulativos de hoje ainda me colocam no topo da tabela, embora quatro outros estejam agora demasiado perto. Um deles é Liobhan. Estava à espera que a sua inicial potencialidade promissora tivesse vida curta, um produto da sua energia e da sua autoconfiança ilimitada. Mas sou obrigado a admitir que é forte para mulher e que foi bem treinada, embora, como é evidente, não por peritos. O irmão também, classificá-lo-ia entre os primeiros, embora com menos probabilidade de conquistar um lugar do que ela. A diferença entre ambos é impressionante. Liobhan é alta e de constituição atlética, embora com formas inegavelmente femininas. O irmão é mais baixo e mais magro. A irmã é forte e ele é rápido e flexível. Não tem as feições imponentes e de ossos definidos de Liobhan, mas tem uma intensidade no olhar que prende a atenção, sobretudo quando canta. Se uma batalha pudesse ser ganha com música, seria Brocc a fazê-lo. O cabelo de Liobhan é de um ruivo-chamejante; o de Brocc é escuro. Os olhos dela são verdes; os dele castanhos. Talvez cada um se pareça com um progenitor diferente, quem sabe? É possível que nenhum deles fique no curso. Os anciãos da ilha poderão pensar duas vezes em relação a aceitar um irmão e uma irmã, por razões que deviam ser óbvias. Numa missão, com certeza que o instinto de proteger um irmão atrapalharia o discernimento ajuizado. E não prejudicaria as operações se fosse preciso ter cuidado para não enviar os dois juntos?

Se eu estivesse no lugar de Archu, quem do nosso grupo escolheria? Eu, é óbvio. E consideraria seriamente Hrothgar. É bom em tudo o que faz e tem um autocontrolo admirável. O nórdico nunca usaria truques sujos como faz Liobhan. De entre todos os instruendos, seria ele que eu escolheria para ficar ao meu lado na batalha.

O meu registo atual mostra Liobhan em segundo lugar, Hrothgar em terceiro, muito perto, e Brocc num surpreendente quarto lugar, com Cianan e o armoricano, Yann, empatados em quinto. Claro que as nossas capacidades de combate constituem apenas uma medida de avaliação da nossa qualidade. Quem sabe que outro género de raciocínio seguirão os nossos instrutores quando selecionarem os poucos que querem manter? Observei a sua equipa permanente, os membros que, de momento, não estão fora da ilha numa ou noutra missão. Anotei as qualidades que exibem, os de constituição física mais comuns entre eles, o seu comportamento geral, os seus hábitos diários. Isso poder-me-á dar alguma vantagem sobre os meus colegas instruendos.

Quanto a Liobhan, não me arrependo de ter lançado um desafio pessoal. Como poderei não triunfar numa competição de o melhor-de-três? Até agora, os nossos instrutores não nos puseram a lutar um contra o outro num combate sem armas, embora já tenhamos lutado com a maioria dos restantes. Liobhan venceu quinze combates e perdeu dois. Os lutadores que derrota são aqueles indivíduos que a veem primeiro como mulher, guerreira em segundo lugar. Fazem cedências, oferecem concessões. Liobhan aproveita ao máximo. Não posso criticá-la por isso. Se estivesse na situação dela, faria o mesmo. A lama foi um truque sujo, sim. Mas beneficiar do momento em que o nosso adversário está desprevenido, confundido, é utilizar um bom pensamento estratégico. Todos esses exemplos serão registados pelos nossos instrutores.

Mas lamento ter baixado a guarda quando falei com ela à porta. Para ser o melhor, devemos entregar-nos de corpo, alma e coração. O que me terá passado pela cabeça para lhe dizer isto, logo a ela? Tinha pensado em perturbá-la. Tinha pensado em pôr à prova o seu verdadeiro empenhamento. Mas a conversa derivou. Perdi o controlo das minhas palavras. Fazê-lo é sinal claro de fraqueza e não posso ser fraco. Tenho de vencer, custe o que custar. Tenho de ficar na ilha. Dê lá por onde der, voltar para casa seria o meu fim.


Capítulo 3

BROCC

Embora não muito distante em quilómetros, este lugar parece tão afastado de casa como um país de histórias antigas. Há uma particularidade nesta ilha que me perturba, uma estranheza que as palavras não conseguem descrever. Entrei numa gruta perto da ponta oeste, um lugar de grande quietude, com um lago subterrâneo que capta a luz de uma abertura lá muito em cima. Quando olhei para a água, vi um reflexo que não era o meu.

Pelo menos, Liobhan está a tirar o máximo partido da sua oportunidade na Ilha dos Cisnes. Isso justifica a minha decisão de vir para aqui com ela. Ninguém sabe o quanto essa escolha me custou e assegurar-me-ei que ninguém o saberá nunca. Os meus pais deram-me a melhor família em toda Erin e o lar mais afetuoso que qualquer filho poderia desejar. Deixar esse lar provocou tristeza no meu coração e laivos frios de medo no meu espírito. Não tenho medo de combater. Mas tenho medo de caminhar para o desconhecido e talvez encontrar respostas para perguntas que não quero fazer.

Apesar disso, estou a esforçar-me por conquistar um lugar na ilha. O nosso treino foi muito útil para Liobhan e para mim. Conseguimos rivalizar com os filhos de chefes de clã, homens que foram treinados com perícia pelos mestres-de-armas dos seus pais. Liobhan tem mais habilidade natural do que eu, bem como uma determinação mais forte de ser bem-sucedida. Atira-se para a frente com uma intensidade que é quase assustadora. Vejo os outros a observá-la e creio que estão divididos entre a inveja e a indignação por uma mulher saber lutar tão bem. O facto de o fazer com um propósito tão claro, direcionando a sua força para a tarefa, desconcerta-os. Alguns tentam acicatá-la com comentários irónicos; sugerem que podia aquecer a cama de um ou de outro homem. Ela não lhes liga nenhuma.

Graças aos deuses pela música. A harpa é o meu mapa e a minha pedra-íman, o meu bálsamo e o meu consolo. Aquieta os meus pensamentos rodopiantes como nada mais consegue. Canto e toco todas as noites. Mesmo quando estou a lutar, a minha mente fervilha de melodias e versos. Estou contente por termos aqui oportunidade de alegrar os corações das pessoas com a nossa música. Pensei, naqueles primeiros dias, que a paixão de Liobhan em provar o que vale no campo de combate pudesse fazer com que deixasse de lado os seus outros passatempos por poderem ser uma perda do seu tempo e força. Mas não; ainda canta e as pessoas calam-se para a ouvir.

Gostava de poder escrever uma carta à minha mãe e ao meu pai. Relataria a história das nossas experiências na ilha. Enviaria o meu amor para Galen e os meus cumprimentos para o príncipe Aolu. E terminaria dizendo que embora sinta saudades deles todos, as oportunidades que aqui se oferecem são tão grandes que não pensaria em ir-me embora. Quem não quereria distinguir-se? Quem não quereria a oportunidade de alterar o curso de batalhas ou influenciar as mentes dos poderosos?

Mas não direi mentiras. Nem nos meus pensamentos.


Capítulo 4

LIOBHAN

—Quê? — Vejo a expressão do rosto de Archu e inspiro fundo. — Desculpa. Podes repetir, por favor?

— Foram selecionados para uma missão. Vocês os dois.

É Cionnaola que fala, o líder da ilha, um veterano de barba grisalha. Quando o mensageiro me levou e a Brocc até à pequena câmara do concelho e encontrámos Cionnaola e Archu à nossa espera, tive a certeza que nos iam mandar para casa. Isto é inacreditável.

— Não têm de se preparar muito — continua Cionnaola. — Alguns dias, é tudo. A viagem é longa e o tempo será reduzido mal cheguem ao vosso destino. Visto que ainda estão em formação, vou dar-lhes a hipótese de dizerem que não a isto, sem sanções. Não é habitual serem enviados em missão antes de conquistarem um lugar entre nós, como sem dúvida saberão. Isto não é nenhum exercício de treino. A missão é real e o perigo também. E a vossa preparação está longe de estar terminada. Mas precisamos de vocês.

Pelas bragas de Morrigan, é verdade! Isto está mesmo a acontecer-me. Mal posso acreditar. Os instruendos não são enviados em missões. Isto deve significar que estamos a ir bem. Excecionalmente bem. Abro a boca para dizer Sim! Sim!

— Com todo o respeito, senhor Cionnaola — diz Brocc, a voz não muito firme —, seria pouco sensato tomar uma decisão quando não sabemos quase nada sobre a missão. O que nos podes contar?

— Sentem-se — diz Cionnaola.

Sentamo-nos e ele estende uma folha de pergaminho sobre a mesa. É um mapa, com uma rota marcada a tinta vermelha ao lado das linhas e símbolos pretos do litoral, floresta, rios, povoações, trilhos e caminhos. Cionnaola traça uma linha com o dedo.

— Aqui fica a Ilha dos Cisnes. A nossa equipa viajará a cavalo até um destino mais para o sul, a alguns dias de caminho, aqui. — O Reino de Breifne; os dedos dele tapam o nome, mas sei o que estou a ver. — A equipa viajará disfarçada. Não vos darei os pormenores completos, a não ser que concordem em participar. Quando empreendemos este tipo de trabalho, não divulgamos as informações de forma mais alargada do que precisamos. Nem aqui, onde todos são de confiança e a toda a prova.

Exceto os instruendos. É a parte que não diz, mas faz sentido. A maioria vai acabar por não ficar na ilha. E quando os que fracassarem forem enviados para casa, não há certezas de que todos cumprirão a promessa que fizemos quando fomos aceites na instrução, que foi de não falarmos de nada que tivéssemos visto ou ouvido, fosse lá o que fosse.

— Compreendo que haja perguntas a que não podes responder neste momento — digo. — Podes dizer-nos o que iremos fazer? Quero dizer, em termos gerais? E quantas pessoas estariam na equipa? — Consigo parecer mais firme do que Brocc, o que é um milagre, visto que o meu coração martela com muita força.

— Três — responde Cionnaola.

— Quem é o terceiro? — pergunta Brocc.

— Sou eu. — Archu parece levemente divertido. — Enviaremos também uma equipa de apoio, para estar por perto em caso de problemas imprevistos. Tratarão de observar e escutar, mas o seu objetivo principal é ajudar-nos se tivermos dificuldades. Viajarão separados de nós e o contacto com eles será mínimo. Quanto à atividade, desapareceu uma coisa, uma coisa insubstituível, e uma certa pessoa importante precisa que seja encontrada e devolvida antes do solstício de verão. Tem de ser feito sem ninguém descobrir que a coisa desapareceu. Não será fácil. Precisaremos de manter os nossos disfarces até o trabalho estar concluído e voltarmos em segurança para cá. E não poderemos fazer perguntas diretas às pessoas sobre a coisa em falta, pois pode levantar suspeitas. Isso exigirá discrição, subtileza, observação. E capacidade para desempenhar um dado papel.

— Não temos a certeza de quem está por trás disto — continua Cionnaola —, mas, se forem descobertos, não só a missão falhará como também poderão correr perigo. O disfarce com que viajarão não vos permitirá transportar armas abertamente. Talvez uma pequena faca no cinto. Mais nada. Se concordarem com isso, Archu fornecerá as regras do compromisso.

— Então isto é mais espionagem do que combate.

— Correto. O que dizem?

Olho para Brocc. Ele olha para mim.

— Sim — exclamamos juntos.

Tento impedir que um grande sorriso se espalhe pelo meu rosto. Por que razão nos escolhem em vez de guerreiros experientes, não faço ideia. É melhor não perguntar; Cionnaola podia pensar que estava a questionar a sua decisão.

— Muito bem — diz ele. — É um pouco um alívio, já que, neste momento, não temos outros músicos com a vossa mestria disponíveis e, para esta missão, é isso que os três serão: menestréis ambulantes, artistas. Precisamos de vos pôr na corte de Breifne sem levantar suspeitas.

É como um soco na barriga. Menestréis ambulantes. Fomos escolhidos não por causa das nossas capacidades em combate ou por causa da nossa coragem e engenho, mas porque sabemos cantar e tocar. Fico sem palavras.

— E o que procuraremos? — pergunta Brocc, não parecendo nem um pouco aborrecido.

— Uma harpa. Uma harpa muito particular. É antiga, única, e só é tocada no ritual de coroação de Breifne. O instrumento é conhecido como Harpa dos Reis. Para o povo de Breifne tem um significado profundo. Se não for tocada no ritual, o homem que se propõe para o trono não será aceite pela populaça. Mesmo que, como é o caso, o seu direito ao trono seja muito forte.

Apesar do meu desapontamento, estou intrigada.

— Quem cuida dessa harpa fora dos períodos raros em que é tocada?

— Os druidas locais. Mantêm-na bem trancada. Agora desapareceu. Roubada, escondida, talvez tenham mentido a respeito, quem sabe? Parte do trabalho será descobrir quem poderá querer arruinar o ritual e porquê.

— Uma harpa precisa de ser tocada — diz Brocc. — Não só uma vez de tantos em tantos anos para uma ocasião especial, mas sim todos os dias. Uma harpa antiga precisará de muita manutenção e, mesmo assim, as harpas não duram para sempre. Esse instrumento é assim tão antigo?

— Não consigo responder a isso — retorque Cionnaola. — E não poderás perguntar na corte de Breifne. Não de forma direta. Mas se alguém mencionar a Harpa dos Reis, como poderá muito bem acontecer visto o ritual estar próximo e tu seres um harpista, podes conversar sobre isso.

— O que nos pode dizer sobre o homem que ascenderá a rei no solstício de verão? — pergunto.

— O velho rei, Aengus, faleceu há vários anos. Este jovem é seu filho. Breifne não coroa um rei antes do seu décimo oitavo aniversário e isso é sempre feito no solstício de verão. Desta vez, Rodan já tem idade suficiente.

— Quem tem tido a tarefa de governar o reino desde que o último rei morreu?

— Um regente, Cathra; um parente do rei anterior. Foi Lorde Cathra que pediu a nossa ajuda. Infelizmente, a mensagem demorou algum tempo a chegar e é por isso que temos pouco tempo para realizar a missão. Será com ele que falarão, embora seja sobretudo Archu que o fará. Os que sabem do desaparecimento da harpa contam-se pelos dedos de uma mão. O druida-chefe e um ou dois dos seus irmãos de maior confiança. O conselheiro mais antigo de Cathra. O herdeiro, Rodan, não foi informado. Cathra receia que se a verdade se souber, considerem conspurcado o direito ao trono de Rodan, mesmo que encontrem a harpa a tempo. O pretendente ao trono tem de ser aceite por todos, ou haverá reptos. Precisamos de devolver a harpa aos druidas e guardar segredo de tudo.

A sensação de peso no meu estômago diminuiu. Estão a depositar imensa confiança em nós, inexperientes que somos. Se tivermos êxito, as nossas oportunidades de ficar na Ilha dos Cisnes serão muito maiores, mesmo que nenhum de nós ponha a mão numa arma.

— Nenhum aspecto da vossa verdadeira identidade irá convosco quando partirem daqui em missão — diz-nos Cionnaola. — Receberão um novo nome, uma nova família, uma nova história. Esses pormenores estão a cargo de Brigid. É a vossa instrutora para esse tipo de coisa e vai preparar-vos. Vão precisar de aprender muito depressa. A parte mais difícil, quando somos novatos nestas questões, é saber como manter a boca fechada sob pressão. Não revelar de onde de facto vieram e porquê; não trair os vossos camaradas. Não se adquire essa capacidade numa sessão rápida de treino.

Está a sugerir que se o nosso objetivo se tornar conhecido poderemos ser sujeitos a tortura? Recordo as palavras de Dau depois daquele combate na lama, a dizer que não faria nada quando o seu camarada fosse atacado se fosse a única forma de proteger a missão.

Sinto o olhar de Archu pousado em mim, como se soubesse o que estou a pensar.

— Não vos estaríamos a dar esta oportunidade se não acreditássemos que o conseguem fazer — diz. — É real, é importante e não vos poríamos em risco se não fossem capazes. Treinarão com os outros como de costume esta manhã. Mais tarde, mudar-vos-emos para a povoação do continente, para uma preparação mais especializada, incluindo aperfeiçoar as histórias dos vossos disfarces. Escusado será dizer que não dirão nada aos vossos colegas instruendos. Ajam como se fosse um dia normal até eu aparecer para vos ir buscar depois da refeição do meio-dia.

— Entendido — respondo. O que pensarão os outros quando desaparecermos de repente? Que história contarão para encobrir a nossa ausência? — Obrigado pela oportunidade. Daremos o nosso melhor.

— Agradeçam-nos quando terminar — diz Cionnaola.

Não ficamos surpreendidos quando nos dizem para levarmos pouca coisa. Partiremos de forma célere e silenciosa enquanto os restantes instruendos estiverem noutro sítio da ilha a aprimorar as suas capacidades de escalada de cordas. Faço uma pequena trouxa com os itens permitidos, uma faca embainhada é a única arma aprovada e tenho de deixar todo o meu equipamento protetor, visto que serei música, não guerreira. Guardo as minhas três flautas. Um par de calças que me autorizam a vestir por baixo de uma saia para andar a cavalo. Alguns itens pessoais, uma camisa e meias extras, o vestido e vestido-avental bons que uso para as nossas atuações noturnas. Não é muita coisa.

O meu irmão está à minha espera à porta do alojamento, com o seu saco já arrumado e a harpa, no seu estojo protetor de couro, presa às costas. Além dele, o sítio parece deserto.

— É melhor irmos andando para o cais — digo. — Parece estranho não nos despedirmos de ninguém, mas suponho que voltaremos em breve.

Brocc esboça um sorriso retorcido.

— Será ainda mais estranho regressar, se lhes tiverem dito que fomos para casa. Será a explicação mais provável quando desaparecermos de repente. Dau deve ficar contente, visto que te considera como sua arquirrival. E ficará furioso quando regressares.

— Vão escolhê-lo para ficar. — Os anciãos da ilha presumirão que Dau tem aptidões para futuro líder, visto que é filho de um chefe de clã. As probabilidades estão a seu favor. — Embora me custe admitir — acrescento —, ele é bom em tudo.

— Oh, tem excelentes capacidades de combate, não o nego. Mas isto não tem só a ver com ser capaz de lutar bem. Viste como as pessoas da ilha são umas com as outras. Sabes quais os códigos de conduta que seguem. Dau precisa de aprender tolerância, camaradagem, abertura de espírito, flexibilidade e... bem, percebes o que quero dizer. Para algumas pessoas, esse género de coisa é muito mais difícil de aprender do que acertar no alvo nove vezes em cada dez ou vencer o adversário com o bastão.

— Hum. — O cais está à vista agora e há mais pessoas a aguardar do que eu esperava. Semicerro os olhos por causa da luz do Sol, a tentar identificá-las.

— Archu — diz Brocc, prestável, quando descemos o caminho íngreme. É abençoado com uma visão misteriosamente nítida. — Brigid. Dois barqueiros. E aquele ali é Illann... sabes, o rapaz alto e magro que costuma trabalhar no continente... e... não vais gostar disto.

Já vi quem é a última figura. Mais ninguém na Ilha dos Cisnes tem aquele cabelo dourado, nem aquele ar de superioridade lânguida, percetível, mesmo à distância, na sua postura.

— Pelas bragas de Morrigan, o que está ele aqui a fazer? — Tem um saco como o nosso. Tem uma capa passada pelos ombros. Não pode vir connosco. Ou pode?

— Archu não disse qualquer coisa sobre uma equipa de apoio? — pergunta Brocc.

— E por que escolheriam logo Dau? — Isto parece muito estranho. É como se, de alguma maneira, o tivéssemos feito aparecer como por encanto ao discutir as suas perspetivas. — Ele não é músico. E não é um guerreiro experiente.

— Talvez — diz o meu irmão — o que nos contaram tenha sido apenas metade da verdade. Talvez isto não seja tanto uma missão, mas sim um teste.

— A respeito de quê?

— Do que cada um de nós precisa mais de aprender.

Ao atravessarmos para o continente, ficamos a saber que Illann e Dau são a equipa de apoio. Tal como no nosso caso, os papéis deles foram escolhidos para se adequarem a uma casa real que vai lidar com um afluxo de visitas. Illann tinha o ofício de ferrador antes de ir para a Ilha dos Cisnes e vão precisar de mais trabalhadores nas cavalariças reais de Breifne. Dau vai desempenhar as funções de seu assistente. Poderá não ser muito puxado para um homem com as suas raízes. Caçar é parte integrante da vida de um nobre. Ele deve perceber de cavalos, embora deva estar habituado a entregar a sua montada a algum subordinado, mal a caçada acaba. Dau é forte e fisicamente capaz. Sob a supervisão de Illann, isso poderá ser o suficiente.

Sabemos que as instalações do continente albergam cavalariças e uma zona de treino para combate a cavalo. Sabemos que as pessoas que aí vivem prestam serviços de apoio à comunidade da Ilha dos Cisnes. Até ao momento, não sabíamos do Celeiro. Esta estrutura abrigou outrora sem dúvida gado, feno e alfaias agrícolas. Agora é um labirinto sigiloso de câmaras e oficinas em que certas competências são ensinadas e praticadas longe dos olhares do público. Numa extremidade, existem aposentos para dormir, as zonas para homens e mulheres separadas por uma divisória bastante inadequada.

— Não que vão descansar muito — é o comentário de Brigid quando nos mostra as enxergas duras e estreitas. — Têm muito a aprender e não muito tempo para o fazer. Arrumem as vossas coisas e vão ter comigo à sala comprida, por ali.

Desde o princípio, faz-nos usar apenas os nomes que vamos utilizar na missão. Brocc é Donal; eu sou Ciara. Archu é Art e é meu tio. Somos mais ou menos parecidos, altos, de ombros largos e pele clara, o que torna a coisa crível. O tio Art não é casado; trata-me como se fosse sua filha. Brigid decidiu que Donal e Ciara não serão o irmão e irmã que Brocc e eu somos na realidade, visto que não nos parecemos nada. A história é que Donal se juntou ao tio Art e a mim na esperança de ver o mundo. A nossa aldeia natal fica longe, no sudeste, longe o suficiente para ser improvável que alguém dessa região esteja presente na corte de Breifne. De qualquer forma, Brigid faz-nos aprender tudo o que conseguimos sobre a zona, só por precaução. O nome da aldeia é inventado, a sua localização remota e a minha história é que tenho andado a viajar com o meu tio desde que os meus pais morreram de uma epidemia quando eu tinha catorze anos.

— Então, Ciara — diz-me Brigid na primeira manhã, quando revemos esta história —, digamos que um homem qualquer te puxa de lado depois da atuação da noite e te enfia a mão no corpete ou te apalpa o traseiro. O que fazes?

Eu sei o que faria na vida real; seria rápido, decisivo e doloroso para o homem em questão. Mas Ciara não seria tão forte como Liobhan, nem tão rápida. E com certeza que não seria tão sanguinária.

— Dou-lhe uma bofetada na cara — respondo. — E grito pelo tio Art.

— E se o tio Art não se encontrar ao alcance da voz?

— Uma joelhada nas partes, com força suficiente para magoar, mas não para causar danos irreparáveis. E diria: vais ver quando o tio Art souber disto. — Penso naquilo um instante. — Mas, para começar, não deixaria que isso acontecesse. Nada de ir para cantos escuros com homens desconhecidos.

— A tua primeira reação à abordagem grosseira de um homem poderá surgir antes de te lembrares do papel que estás a desempenhar — diz Brigid. — Poderás agir com a rapidez de um raio e estropiar o sujeito, fornecendo assim uma demonstração assustadora das tuas capacidades de combate, que é o que não queremos. Uma coisa é dizeres-me o que farias e outra pôr isso em prática. Por outro lado, qualquer pessoa vê que és uma rapariga grande e forte e, com um pouco de sorte, isso fará com que as pessoas sejam cautelosas.

Desvia o olhar para Brocc. Brigid é uma mulher de cerca de quarenta anos, magra e bem musculada; quando olha para uma pessoa, é como se o seu olhar nos atravessasse até ao íntimo. Não faço ideia como faz aquilo. Se me escolherem para ficar na Ilha dos Cisnes, espero que me ensine aquele truque.

— Então, Donal — diz com frontalidade. — Se algum desconhecido tentar seduzir a tua colega menestrel, qual será a tua reação?

— Dou a Ciara oportunidade de lidar sozinha com a situação. Mas fico de olho no que está a acontecer, e se o homem em questão olhar na minha direção, verá que estou zangado. Quando e se Ciara pedir a minha ajuda, ajudo. Não me meto em brigas. Falo com firmeza com o homem. Talvez o ameace com o tio Art.

— Quê, não tratavas do assunto com as tuas mãos?

Brocc devolve o olhar de Brigid, descontraído e calmo.

— Não, a menos que ache mesmo que Ciara está em perigo. Sei que é bem capaz de se defender. Se isso me retratar como cobarde aos olhos do agressor, que assim seja. Idealmente, nenhum de nós se meterá em brigas. E o tio Art também não se devia meter. Não andamos a esmurrar alguém durante o dia e depois a usar as mãos para tocar música à noite. Embora, desde que estamos na ilha, seja isso mais ou menos o que Liobhan e eu temos andado a fazer.

Faz-se um silêncio eloquente.

— Quero dizer Ciara, claro — diz Brocc.

— Não te enganes outra vez, Donal. O mais pequeno erro pode pô-los a todos em grandes apuros e a missão em perigo. Isso afetaria de forma muito negativa a Ilha dos Cisnes e os seus líderes. Estamos a assumir um risco calculado ao confiar-vos isto, sem treino e inexperientes como são.

Vejo a expressão no rosto de Brocc, sente-se desiludido consigo, e sinto-me obrigada a falar.

— Somos novatos na arte da espionagem, sim, mas, como músicos, não somos inexperientes. E não somos maus guerreiros, nós os dois, caso essas capacidades sejam necessárias a qualquer momento do projeto. — Detesto ver o meu irmão criticado por um erro tão pequeno. — E Dau então? Ele não tem mais treino nem experiência em missões secretas do que nós. E nem é músico.

Brigid olha-me fixamente. Brocc fita as mãos. Percebo que acabei de cometer um erro muito pior do que o dele.

— Sinto muito — tartamudeio. — Isto foi inapropriado.

— Mas de certa forma oportuno — diz Brigid. — Um exemplo de como é fácil perder o autocontrolo. Explica-me por que foi um erro.

— Acabei de chegar à ilha e tenho uma sorte incrível por me ser dada esta oportunidade. — Faço o possível por parecer contrita, embora esteja sobretudo furiosa. Não com Brigid; não há nada de errado com o autocontrolo dela. Furiosa comigo, por não saber quando manter a minha grande boca fechada. — Não me cabe a mim questionar as decisões dos meus superiores.

Brigid surpreende-me desatando a rir-se.

— Vamos lá, Ciara, podes fazer melhor do que isso. Não insultes a minha inteligência com menos do que uma resposta honesta, por favor.

— A primeira parte era verdade, sobre ser novata e apreciar a oportunidade. Entendo que num trabalho como este os líderes da missão e os que como tu nos preparam tenham a experiência necessária para fazer escolhas acertadas. Essas escolhas incluem quem é escolhido para ir e o que faz. Não devia ter dito nada sobre Dau, nem questionado nada sobre a execução da missão.

— Assim é melhor. Pelo menos, disseste o que pensavas agora, na segurança do Celeiro. Nem penses em dizer coisas do género depois de partires. O mesmo vale para ti, Donal. Fazemos as nossas escolhas com cuidado. Pesamos os riscos e as vantagens. Todos vocês têm um ponto fraco. Até o mais experiente de nós tem. Têm de esquecer o facto de que competirão um dia para arranjar lugares na nossa comunidade e fazer o que vos foi confiado, executar esta missão com a habilidade, discrição e bom senso que esperamos de toda a nossa gente. Mencionei cooperação? Isso também. Quanto a Dau, isto é, Nessan, poderá explicar-te o seu papel antes de partirmos. A equipa de apoio viajará para Breifne separadamente; percorrerem juntos a estrada poderá chamar a atenção. Mal cheguem à corte, mantêm-se longe uns dos outros. Será necessário que o teu tio Art troque informações com o ferrador temporário, Eoan, uma ou outra vez e claro que a segunda equipa estará preparada se ele a chamar. — Faz uma pausa como se considerasse o que dizer a seguir. — Os teus instrutores mencionaram que tens o hábito de dizer o que pensas e vejo que não se enganaram.

Isto não é justo. E Dau então? Se alguém tem o hábito de se pôr logo a dizer o que pensa, é ele. Talvez o que estou a pensar se revele no meu rosto, embora eu não diga nada, porque ela acrescenta:

— É uma preocupação razoável, Ciara. És conhecida por não teres papas na língua. Nessan também. Mas o papel que ele vai representar facilitará o exercício da discrição exigida.

— Porque está fechado nas cavalariças? — pergunta Brocc.

— Não — responde Brigid. — Porque, para efeitos desta missão, Nessan é mudo. Não dirá uma palavra a ninguém.


Capítulo 5

DAU

Sexagésimo sétimo dia. Estou no continente e a preparar-me para uma missão. Uma oportunidade de sonho, mas por que me deram um papel tão desgraçado? Não me queixo. Todas as palavras que proferimos, todas as ações que empreendemos devem contar para as nossas oportunidades futuras. De resto, percebo o valor estratégico de um mudo. Um homem que não consegue falar não pode transmitir o que ouve. Além disso, presumirão que o assistente de um ferrador não sabe ler nem escrever. As pessoas não terão cuidado nenhum com o que dizem na sua presença. Poderão até pensar que ele é de raciocínio um pouco lento.

Será suportável? Tendo em vista o que depende disto, devo de facto aguentar todos os momentos de humilhação. Imagino Liobhan a sorrir; Brocc a inventar alguma canção humorista sobre a minha situação difícil. Penso neles a gozar comigo baixinho. Depois considero a possibilidade de alguma mensagem falada, alguma coisa que a pessoa que fala nunca suspeita que ouvirei, muito menos transmitirei, poder fornecer o passo vital para resolver o mistério, encontrar e recuperar a harpa misteriosa e depois regressar à Ilha dos Cisnes coberto de glória. Embora de facto seja mais provável que voltemos sem dar nas vistas, como pessoas vulgares a tratar das suas coisas habituais. O desaparecimento e recuperação da Harpa dos Reis será uma história conhecida apenas pelo regente e seus confidentes próximos. E por nós cinco, claro; mas manteremos a coisa em segredo.

Estou decidido a não dizer nada sobre a injustiça dos nossos papéis, nem para mim mesmo. Não considerarei que Liobhan e o irmão são já músicos talentosos e que tudo o que precisam fazer na corte de Breifne é serem eles a manter os ouvidos atentos. Não compararei isso com o trabalho que me deram: representar o papel de um labrego meio bronco. Ignorarei a iniquidade da situação e desempenharei o meu papel na perfeição. Se houver nisto alguma justiça natural, darei tão bem conta do recado que Archu não poderá deixar de fazer um bom relatório sobre mim aos anciãos da ilha. Engolirei o desejo de ver Liobhan cometer erros. Isso poderia reduzir as suas oportunidades e reforçar as minhas, mas poderia levar também ao fracasso do empreendimento para o qual o regente nos contratou. Além disso, tenho quase a certeza que os pensamentos de Liobhan seguem o mesmo caminho do que os meus. Vi nela uma vontade feroz de se distinguir. Quase igual à minha. Mas não propriamente; no fim de contas, é uma mulher.

E Brocc? Brocc fará o que Brocc faz: cantar como um anjo, tanger a harpa e fazer chorar as pessoas. Pode ser que descubra pistas com mais facilidade do que a irmã ou do que eu. Há qualquer coisa nele que atrai as pessoas. Entre nós os três, é nele que as pessoas, com mais probabilidade, confiarão. Talvez Brocc se destaque nesta missão. Com toda a certeza, isso não pode ser descartado.

Praticamos as nossas histórias vezes sem fim. Os nossos instrutores surpreendem-nos com perguntas quando estamos a comer, quando nos estamos a preparar para dormir, quando estamos concentrados numa tarefa. Já ouvi Liobhan e também Brocc cometer erros, reagir aos seus nomes verdadeiros. O meu silêncio forçado facilita as coisas... posso virar a cabeça ou fazer algum movimento quando alguém diz Dau, mas isso não precisa de significar que pense que é o meu nome. Desde o nosso segundo dia no Celeiro que me proibiram de falar, com a condição de, até ao dia em que partirmos, o poder fazer numa emergência. Também, na nossa última noite aqui, terei permissão para falar à hora do jantar. Daqui se conclui que quando monto a cavalo tenho de controlar a minha montada sem usar a voz; ainda bem que sou um cavaleiro com algumas faculdades. E isso significa que não posso fazer perguntas a Illann, Eoan a partir de agora até que a missão esteja terminada, sobre o uso de ferramentas ou qualquer outra coisa sobre o trabalho que temos de fazer juntos. Cá me arranjarei; tenho de me safar. Utilizarei gestos, grunhidos, caretas, o que for melhor. Este disfarce poderá ter sido inventado com o único propósito de me fazer parecer tolo.

Acordo a meio da noite, consciente de que há alguma coisa errada, embora não haja qualquer som nas instalações, a não ser a respiração lenta de Brocc. Sento-me. Um instante depois, alguém enfia um pano na minha boca e prende-o ali, com força. Engasgo-me a tentar respirar. A outra mão do homem está emaranhada no meu cabelo e empurra para a frente. Dou pontapés e torço-me com toda a força e depois surge um segundo homem, que me agarra nas pernas, içando-me da enxerga. O meu coração martela como louco; um suor frio brota-me na pele. São rápidos e silenciosos, arrastando-me em direção à porta. O meu grito sai como um gemido mudo. Brocc mexe-se. Do outro lado da divisória, Liobhan, meio adormecida, murmura «Cala a boca!» e emudece outra vez.

Quase a atravessar a porta. A minha mente rodopia. O que é isto? Ataque ou teste? Continuo a lutar ou deixo que isto aconteça? Seguimos pelo corredor às escuras, entramos numa câmara, ouço o ferrolho de ferro fechar a porta e, à luz irregular de uma única vela, vejo duas pessoas com capas com capuz, com panos a taparem-lhes as feições. Assim são quatro. Nenhuma esperança de os dominar a todos, nem no meu melhor. Amaldiçoo Brocc e Liobhan e amaldiçoo o longo dia que os deixou demasiado esgotados para acordarem! Nós os três juntos podíamos ter dado conta do recado.

A mão sai da minha boca; o pano é removido e consigo respirar. Um instante depois, qualquer coisa passa por cima da minha cabeça, uma saca, e deixo de ver. Os homens que me seguram soltam-me. Antes de poder fazer alguma coisa, alguém agarra-me os pulsos e prende-os atrás das minhas costas. Certo: é um exercício de treino. Um ataque-surpresa ao Celeiro feito por desconhecidos não terminaria aqui nesta pequena câmara, com Brocc e Liobhan ilesos nas suas camas, ainda ao alcance da voz. Para não falar de Archu e dos outros.

— Fala! — vocifera alguém. — Quem és e o que estás aqui a fazer?

Concentro-me na minha respiração. Endireito as costas e mantenho a cabeça erguida, sob a cobertura escura.

— Disse para falares!

Um golpe de mão aberta na minha face, através do pano, com força suficiente para magoar. Isto é um tanto severo, mesmo pelos padrões da Ilha dos Cisnes. Grunho em resposta, como Nessan poderia fazer. O que se seguirá? O que querem de mim, lágrimas? Gritos que levarão Liobhan e Brocc a vir em meu auxílio? Se soltar um grito mudo e eles vierem a correr para me salvar, isso significará que passo o teste e eles falham?

Um golpe correspondente na outra face; o pescoço dói-me e também os pulsos. As cordas estão dolorosamente apertadas. Como querem que faça o trabalho de um ferrador com a carne em ferida? Emito outro ruído, mais alto do que o primeiro. Com os pulsos atados, não posso usar gestos para explicar que sou mudo. É um truque, Dau, digo para comigo. Recordas-te quando os teus irmãos te trancaram dentro da arca velha? Ou quando te ajudaram a subir ao cimo do grande olmo e depois te deixaram lá? Ou daquela vez que te abandonaram no meio do pântano? A tua inteligência salvou-te. Usa-a agora.

Mas não preciso, porque alguém começa a martelar na porta e a gritar.

— O que estão a fazer? — É Liobhan. — Tio Art? Vem depressa! Donal! Donal, onde estás?

Maldição de Morrigan, ela parece aterrorizada. Com certeza que não está a representar. Mas deve estar. Porque usou aqueles nomes. Baixo a cabeça e começo a soluçar sem ruído. Ao menos a distração poderá dar-lhe tempo para fazer o que quer que tenha planeado fazer.

Alguém puxa o ferrolho. A pessoa que me batia parou, pelo menos por agora. Recomponho-me e preparo-me para me movimentar, com os pulsos atados e tudo. Se conseguir pôr-me de pé, posso esmagar a cabeça no rosto de um homem e partir-lhe o nariz. Posso pontapear-lhe as pernas e fazê-lo cair. Posso... mas não. A voz de Liobhan surge de novo, deve estar com certeza à porta, e recordo-me que sou Nessan e estou com tanto medo que não me levanto para lutar, nem por causa de uma mulher em apuros. Em vez disso, faço o que qualquer homem mudo aterrorizado faria num momento como este, que é libertar um fluxo de urina pelas pernas abaixo e para o chão.

— O que estão a fazer? — A voz de Liobhan treme, esganiçada, pouco reconhecível. — Por que tem aquela coisa na cabeça?

— Não tens nada com isso, rapariga — diz um dos homens. — Volta para a cama, esquece que nos viste. Para teu bem.

— Não vou, não me podem obrigar! — A voz sobe um pouco, como se estivesse tão assustada que perdeu o bom senso. — Por que aquele homem está amarrado? Por que estão aqui às escuras, a meio da noite?

Ela deve estar a planear alguma coisa, ou ter-se-ia retirado e deixado que eles continuassem com o que pretendem, talvez dar-me uma tareia mestra antes de me dizerem que é algum tipo de representação. Embora isso seja estúpido se querem mesmo que vá a Breifne daqui a poucos dias e desempenhe um papel convincente quando lá chegar.

Alguém faz um movimento abrupto. Ouve-se o barulho de uma estalada e um gemido da parte de Liobhan.

— Não podem fazer isso — diz ela e agora a voz é como a de uma criança ferida. — Não podes bater-me! Quero o tio Art.

— Ciara? Estás bem?

Através do saco que tenho na cabeça, discirno mais luz. É Brocc que entra e deve ter parado para apanhar uma lanterna pelo caminho.

— O que se passa aqui? — pergunta.

— Cessar.

Esta voz conheço; é Brigid. Removem a cobertura da minha cabeça e consigo outra vez ver. Liobhan encontra-se à porta, com um xaile passado por cima da sua roupa de dormir. Tem uma marca vermelha na face no sítio em que lhe bateram. E tem uma faca na mão, não muito escondida nas pregas da saia, a luz reflete um brilho revelador. Isso significa que estava preparada para ambas as possibilidades, teste ou ataque verdadeiro. Ao lado dela está Brocc a segurar na lanterna e, embora os seus modos sejam calmos, o rosto está branco como um lençol. Eu tinha pensado se os dois estariam envolvidos nesta coisa toda. Mas é evidente que foi um teste para todos os três.

Archu e Illann entram; os outros, além de Brigid, são homens da Ilha dos Cisnes que não sabíamos que estavam no continente. Sentam-se à mesa. Estou a tremer; parece que não consigo parar. Dou ordens a mim mesmo para respirar devagar. A expressão de Liobhan é como uma tempestade à espera de rebentar. Avança a passos largos com a faca à vista e corta as cordas dos meus pulsos. Quando dá um passo atrás, vejo que enruga o nariz. Claro, visto que fedo a mijo. Há muita coisa que eu podia dizer, a ela, a Archu e a Brigid, a todos eles, mas Nessan mudo não diz uma palavra.

— Não vou apresentar desculpas — declara Brigid, fitando-nos aos três, à vez. Liobhan e Brocc ainda estão de pé. — Reconheceram todos com rapidez que isto era um exercício, não um ataque; é o que esperaria de vocês, mesmo com o vosso treino algo limitado. Ciara, pareces um pouco aborrecida. Alguma coisa a dizer?

O queixo de Liobhan contrai-se e também os punhos. Abana a cabeça.

— Vamos então ouvir a vossa opinião sobre o desempenho dos três — diz Archu. — O que fizeram bem? Como podiam ter feito melhor?

Liobhan inspira fundo e solta devagar o ar.

— Não vi o que aconteceu a Nessan. Só acordei depois de ele ter desaparecido do aposento. Ouvi um rebuliço. Sons que me disseram que não era apenas alguém a ir à privada ou a dar um passeio porque não conseguia dormir. Nessa fase, não sabia se era um teste ou outra coisa qualquer. Parecia que Nessan estava em apuros, talvez lhe estivessem a bater, por isso segui as vozes e passos até aqui. Antes de entrar, pensei que devia ser um teste, porque quem criaria tanta agitação dentro do Celeiro, com pessoas a dormir tão perto? Durante um instante, quando abriram a porta, não tive bem a certeza. — O olhar de fúria voltou-lhe ao rosto, embora esteja a tentar manter a calma. — Parecia desconfortavelmente real. Não gostei do que fizeram. Mas isso não é relevante. Foi um teste. Reagi como Ciara. Gritei por ajuda. Chamei os outros pelos seus nomes corretos.

— Mas? — Brigid parece severa; nenhum vestígio de compreensão ali.

— Querias que agisse mais como uma menina? — responde Liobhan, a voz também afiada. — Podia ter acordado Donal, ter-lhe dito que estava assustada, mandá-lo a ele em vez de vir sozinha. Podia ter ficado na cama com as cobertas puxadas por cima da cabeça. Mas só porque Ciara é mulher e música, isso não precisa de significar que não tem coragem. Serei mais convincente no meu papel, se não tiver de fingir que sou uma florzinha delicada.

Quase podia sorrir com aquilo, se não me estivesse a sentir tão desconfortável com as calças molhadas e os pulsos a doer.

— Donal — diz Archu. — O que fez ela mal?

Brocc pigarreia. Parece que preferiria estar noutro sítio qualquer.

— Fala — pede Brigid. — Põe de lado os teus sentimentos pessoais. Avalia o desempenho dela como se fosses tu o instrutor.

— Ela veio armada. Não escondeu a arma tão bem como deveria. E embora tivesse representado o seu papel, revelou que tinha perdido as estribeiras.

— Ciara está autorizada a ter a faca — respinga Liobhan. — Trazê-la foi uma questão de bom senso. Não é guerreira, percorre um edifício desconhecido a meio da noite, sabe que há alguma coisa suspeita a acontecer. Seria estúpida se não levasse a arma com ela. E quanto a escondê-la, nem pensaria nisso.

— Tem calma — pede Archu. — O autocontrolo é crucial naquilo que fazemos. Agora diz-nos, em palavras ponderadas, o que Donal fez bem e em que errou.

— Teria sido melhor se ambos tivéssemos acordado mais depressa, presumo que Nessan foi levado à força da sua cama e imagino que deu luta. Donal interpretou bem a sua personagem e veio com rapidez mal o chamei. — Faz uma careta. — Manteve-se calmo. No geral, um desempenho melhor do que o meu.

— E Nessan?

Liobhan fica em silêncio durante uns momentos, a fitar-me. Agora não consigo adivinhar o que está a pensar, mas a mão sobe para tocar na marca vermelha que tem no rosto.

— Não vi tudo o que lhe fizeram. Mas diria que fez um trabalho impecável a representar um moço de estrebaria aterrorizado. — Um curto silêncio. — Está ferido. Os pulsos. E a cara.

— Não te diz respeito — objeta Brigid. — E não tão ferido que um pouco de unguento não o possa curar antes de partir. Tudo o que fazemos é calculado, Ciara. Tudo. Não teríamos a reputação que temos se fizéssemos estes exercícios sem cuidado.

Se eu pudesse falar, diria a Liobhan que não preciso de uma defensora. Não preciso que ela se zangue por mim. Mas, por outro lado, se eu fosse Dau e não o fraco Nessan, poderia tê-la chamado e ao irmão para me ajudarem quando fui atacado. Ainda bem que não o fiz; teria se calhar feito com que fôssemos todos mandados para casa.

— Ciara? — Archu está a olhar com atenção para Liobhan.

Ela não desvia o olhar.

— Está bem, perdi as estribeiras e isso revelou falta de disciplina. Não vou fingir que achei o exercício correto e razoável, porque não achei. Proíbem alguém de falar e depois arrastam-no para fora da cama no escuro, amarram-no e maltratam-no? De que forma isso é necessário? Conseguimos fazer isto, nós os três. Devem ter fé em nós ou não teríamos sido escolhidos.

Brigid faz um gesto para um dos homens.

— Vai buscar-nos um pouco de hidromel, está bem? — Volta-se para Liobhan. — Senta-te. Tu também — acrescenta para Brocc.

Quando eles se sentam, diz:

— De manhã, depois de alguma reflexão, isto fará mais sentido para todos. — Fita-me a direito nos olhos. — Muito bem. Não foi fácil para ti. Mas é apenas uma amostra do que vais sentir a partir de agora até ao solstício de verão. É muito tempo para ficar em silêncio. Até ao momento, o teu autocontrolo parece bom. Agora vai trocar de roupa. Certifica-te que essa roupa é lavada e fica seca a tempo da tua partida. Quando te tiveres mudado, volta aqui para eu te tratar dos pulsos. O ferimento não é com certeza tão grave como Ciara parece pensar; seria uma tolice provocar-te alguma lesão séria mesmo antes de te enviarmos em trabalho. Mesmo assim, a aplicação de unguento não fará mal nenhum.

Pego numa vela e saio, contente com a oportunidade de me limpar. Nos nossos aposentos, dispo as calças molhadas, deixo-as cair num canto e visto o meu outro par, sem ter a certeza se estou furioso com Brigid e Archu por engendrarem um desafio destes ou satisfeito por, ao que parece, me ter saído bem. Melhor do que Liobhan. Talvez esteja apenas cansado. Estamos todos com falta de sono.

— Nessan?

Estou quase a rosnar Que é?, mas vejo a expressão de Liobhan e reprimo as palavras. Só me apetece voltar para a cama, puxar o cobertor por cima da cabeça e esquecer a coisa toda até de manhã. Além de tudo o resto, o pescoço dói-me. Mas lá está ela junto à divisória, com um pano e um potinho de qualquer coisa nas mãos. À luz das velas, o seu cabelo é da cor das folhas de carvalho ao sol de outono, um dourado-avermelhado brilhante.

— Unguento — diz. — Ataduras. Faço-o antes de voltarmos.

Abano a cabeça, puxo as mangas da camisa por cima dos pulsos, não consigo evitar um estremecimento.

— O que é pior — pergunta Liobhan —, deixares-me a mim fazer ou ser Brigid a fazer e transformar tudo noutro exercício de treino? Senta-te e não olhes para mim assim. Cresci na casa de uma curandeira. Se queres que os teus pulsos estejam a funcionar bem antes de partirmos, este unguento é a tua melhor esperança. Foi por isso que trouxe algum comigo, mesmo com os limites do que podíamos levar connosco.

Quando continuo a não me mexer, sobretudo porque estou surpreendido por ela me contar alguma coisa do seu passado, ela repete:

— Senta-te, por favor. Faço isto depressa.

Não está a mentir. É evidente que já fez este género de coisa centenas de vezes. As suas mãos são fortes, isso já sabia, mas suaves quando precisam de o ser. Não posso perguntar-lhe o que tem a coisa que ela está a usar, que tem uma cor castanho-esverdeada com um forte cheiro a madeira, e ela não dá nenhuma explicação. Depois de aplicar o unguento nos meus pulsos, ela usa os dentes para cortar tiras do pano e liga-me as feridas, prendendo as ataduras com nós bem feitos.

— Pronto. Agora essas pisaduras na tua cara. Não há problema, não vou estragar a tua beleza, esta coisa não se vê depois de secar.

Não me dá hipótese de fazer um gesto de Não, obrigado e aplica um pouco do unguento nas minhas bochechas. Quando termina, aponto para o rosto de Liobhan. A marca onde alguém a esbofeteou destaca-se com nitidez na sua pele clara.

Liobhan encolhe os ombros.

— Isto? Não é nada. Não vale a pena desperdiçar o unguento. Quem sabe quando terei oportunidade de fazer mais? A maioria dos componentes encontra-se no meio da floresta que é um pouco escassa por estas partes. Agora, se quiseres, é melhor voltarmos.

Sigo-a, a pensar como seria e o irmão quando eram pequenos. Não sei quem é o mais velho; pensava que era Brocc, mas imagino que Liobhan adotou o comando, deu-lhe ordens, assumiu a liderança apesar de ser menina. Faz-me pensar, de novo, nos pais deles. É evidente que não têm uma posição elevada. Um deles é curandeiro, muito provavelmente a mãe. Porém, aqui estão irmão e irmã, com experiência quer como músicos, quer como guerreiros. Por que razão Liobhan não seguiu o ofício da mãe, visto que parece ter também queda para isso? Talvez o pai seja guarda nalguma família nobre; isso explicaria as capacidades de combate. Olho para a marca no rosto dela e penso: que homem no seu juízo perfeito permitiria que a filha fosse guerreira?


Capítulo 6

BROCC

Não gosto de ver a minha irmã magoada. Não gosto de ficar de braços cruzados e deixar a coisa acontecer porque recebi ordens para representar o papel da personagem a que estou vinculado: aquele homem não tem irmã, apenas uma camarada música. Devo ter-me saído bem, por mais desconfortável que me sentisse com o exercício da meia-noite. Quando terminou, elogiaram-me pelo meu autodomínio. Na verdade, fiquei muito perturbado com o que sucedeu. Durante o resto da noite não dormi nada, mas revi repetidas vezes os acontecimentos, a pensar se o ataque simulado tivesse sido real e eu não tivesse percebido até ser tarde de mais? Liobhan podia ter sido morta. Outros também. Um banho de sangue enquanto eu ficava ali parado e deixava a coisa acontecer.

Temos treinado observação ativa, discrição e silêncio. Estamos a aprender a mover-nos como sombras e a ouvir como criaturas selvagens. Mas os nossos instrutores não esqueceram a nossa necessidade de praticar talentos mais familiares. Todos os dias temos tempo para ensaiar e acrescentar novas produções às canções e danças que já conhecemos. A pedido dos nossos instrutores, providenciámos entretenimento depois do jantar de hoje. A assistência era pequena, mas apreciadora: os dois homens da segunda equipa; os nossos instrutores; e algumas outras pessoas da Ilha dos Cisnes que, presumo, estejam aqui a preparar-se para uma missão muito diferente; sabemos que não devemos perguntar essas coisas. Havia também guardas; guerreiros da ilha que são enviados para aqui à vez para desempenhar a tarefa de manter em segurança a povoação e todos os que aqui trabalham. Perguntei-me qual deles teria batido na cara de Liobhan e se reparou que ela ainda tem a marca desse golpe. Fiquei a pensar se saberiam que um murro daqueles faz com que seja desconfortável cantar e tocar flauta, senão mesmo impossível. Não disse nada. Liobhan trava as suas batalhas e não ia achar que esta valesse a pena.

Ao jantar, Dau teve permissão para participar na conversa. Na ilha, tinha sempre muito que dizer. É um homem cheio de opiniões. Esta noite, com permissão para falar, mal o fez. Comeu, assistiu à nossa atuação e respondeu a perguntas com uma ou duas palavras. Eu pensava que ele, logo ele, abordaria esta missão com total autoconfiança; a sua convicção nas suas capacidades parecia inabalável. Mas a expressão do seu rosto sugeria que tinha o estômago embrulhado de desassossego, tal como o meu.

Sinto saudades dos nossos pais. Sinto saudades de casa. Sinto falta do cheiro fresco e limpo da despensa da mãe. Bem desejava poder falar com o pai, ou caminhar com ele em silêncio pelos bosques, ou ajudá-lo a cavar um poço, ou a construir um muro de pedra, ou a lidar com o gado problemático de alguém. Gostava de poder estar em Winterfalls, a tocar música para amigos. Não quero partilhar as minhas canções numa corte distante cheia de desconhecidos. Desejava não ter de ir para tão longe. Sinto saudades do meu irmão. Gostava que estivesse aqui para me dizer que sou tolo e para me garantir que, no fim, todos voltaremos em segurança para casa.


Capítulo 7

LIOBHAN

Quanto mais cedo chegarmos a Breifne, melhores hipóteses temos de encontrar essa harpa a tempo. Mas viajar demasiado depressa atrairia atenções. Na maioria das noites, encontramos uma estalagem de estrada ou a casa de um proprietário de terras e oferecemos entretenimento em troca de comida, alojamento e uma cavalariça segura para os cavalos. Se o nosso público quiser atirar-nos algumas moedas de cobre, ainda melhor. Mal cheguemos ao nosso destino, Lorde Cathra garantirá que somos contratados para o período que antecede o ritual, quando a casa real se encherá de visitas.

Não podemos andar com os mesmos cavalos o trajeto todo. Quando faço perguntas a Archu sobre isto, ele diz que existem pessoas de confiança em vários locais que nos podem fornecer montadas novas, sem levantar quaisquer questões. Não explica quem são essas pessoas, mas calculo que estejam de alguma forma ligadas à Ilha dos Cisnes. Isso faz-me pensar até onde se estenderá a influência da comunidade da ilha e como conseguem manter secretas as suas operações. A combinação com os cavalos permitir-nos-á chegar a Breifne com um pouco mais de uma volta da lua para completar a nossa missão. Não é muito tempo.

Não há grandes adeuses. Brigid dá-me e a Brocc algumas instruções finais, Archu verifica os nossos sacos, selamos os cavalos, carregamos as nossas coisas e está na hora de partir. Ainda é cedo; Illann e Dau partiram ainda mal amanhecia. Uma névoa fria estende-se sobre os campos quando saímos da povoação a cavalo. Brocc tem os lábios cerrados. Archu insistiu que a harpa fosse carregada no cavalo de carga e o meu irmão não está nada satisfeito: aquele instrumento é quase como um filho para ele e presumiu que cavalgaria com ele preso nas costas. Mas Archu é o líder da missão e a sua palavra é lei.

— Puxa a saia para baixo, Ciara — ruge Archu, quando nos aproximamos de uma povoação ao fim da manhã. — Parece indecoro.

A mim parece-me bem, mesmo com a bainha enfiada no cinto, visto que estou a usar as calças por baixo. Mas volto a puxá-la para baixo, na medida do possível, pois estou escarranchada no cavalo.

— Desculpa, tio. — Ensaio um tom contrito e Brocc, que vem mesmo atrás de mim, solta uma risada. — Não tem piada, Donal!

— Eu podia inventar uma canção sobre isso — diz Brocc. — Havia uma rapariga a dançar. Por insistência do público, ergue a saia para mostrar o tornozelo e depois para mostrar a barriga da perna e depois ainda mais alto. Ia ter muito êxito nos salões dos copos, não achas?

É evidente que a cavalgada da manhã lhe melhorou o humor.

— Os homens sem dúvida que iam gostar — digo. Consigo imaginar a cena com muita clareza. A assistência turbulenta na sala ia incentivar-me a ilustrar a canção com gestos. — Por que a rapariga da tua canção não inverte a situação? Talvez tenha uma arma mortífera escondida debaixo da saia e a use para roubar os homens dos fundos que lhes restem. Ou talvez mal a saia chegue a um certo nível se revele que não é nada uma mulher, mas... outra coisa qualquer.

— Um homem? — sugere Archu.

— Estava a pensar que podia ser uma criatura estranha de algum tipo. Alguma coisa com tentáculos, talvez, ou muitas pernas peludas.

— A donzela sedutora podia ser uma velha murcha disfarçada. — Uma certa inflexão na voz de Brocc diz-me que já está a pensar em versos. — O seu aspecto nojento impedi-los-ia de pedir outra vez para ver as pernas de uma rapariga. Pelo menos, por uns tempos.

— Eu cá prefiro os tentáculos — digo. — Essa donzela que é secretamente uma velha já existe em muitas histórias. Mas tu é que sabes. Podes cantar tu essa e eu toco a flauta. Assim, ninguém vai ficar à espera que eu faça coisas.

Brocc murmura versos e cantarola trechos de melodia todos os dias enquanto cavalgamos, está sempre a inventar alguma coisa nova. Quando fica satisfeito com a canção da saia, obriga-me a memorizar as palavras e também a música.

— Pelo sim pelo não — diz.

— Pelo sim pelo não o quê? Disse-te que não queria cantar essa.

— E se eu ficar com a garganta dorida? Podes precisar de cantar a letra toda.

— Então cantamos uma coisa diferente.

— Esta vai ser popular, vais ver. Vão bater com os punhos nas mesas. Vai-se saber antes de chegarmos e seremos inundados de pedidos.

— É com isso que estou preocupada — redarguo. — Um bando de homens a comportar-se como galos no celeiro.

Lá em casa, quando atuamos para uma multidão, as pessoas não gritam comentários obscenos nem me lançam olhares sugestivos. De qualquer forma, não com frequência e, quando acontece, não são os habitantes locais que o fazem. Qualquer pessoa que me conheça, pessoalmente ou por reputação, sabe que não se deve meter comigo. Não só consigo reagir da mesma maneira, com força, como também tenho a minha versão do tio Art na pessoa do meu pai: Mestre Grim, um gigante de um homem, de mais formas do que as óbvias. Mas o meu pai não está aqui. E não se encontra perto para garantir que qualquer pessoa que me falte ao respeito recebe uma lição. O que torna o facto de andar na estrada como Ciara, que veste vestidos mesmo quando anda a cavalo e usa o cabelo a esvoaçar sobre os ombros, ainda mais desconfortável.

— Esqueceram-se de mim, é? — intervém Archu. — Posso cantar, se tiver de ser. Quanto aos galos, silenciei alguns no meu tempo. Lembra-te só de respirar fundo antes de agires. Se houver uma briga, é melhor estar eu no meio do que tu.

Estou prestes a prometer que me manterei afastada de problemas, mas detenho-me. As promessas têm o hábito de voltar para nos causar problemas.


Capítulo 8

DAU

Décimo segundo dia do trajeto da Ilha dos Cisnes para a corte de Breifne. Illann vai à frente por um trilho secundário sinuoso, com o dia a extinguir-se no longo crepúsculo de verão. Os cavalos estão cansados. No fim desta estrada fica uma casa de amigos. Deixaremos estes cavalos na propriedade deles, onde terão montadas novas prontas para nós. Pergunto-me como as mensagens passam da ilha para estes amigos a tantos dias de viagem. Talvez tenham pombos-mensageiros no povoado da Ilha dos Cisnes no continente. Se assim for, as aves estão bem escondidas.

Illann ainda não me deu autorização para usar aqui a minha voz. Devo manter o silêncio durante toda a nossa viagem, à exceção das nossas conversas sussurradas quando temos a certeza que estamos sozinhos. Faço o possível por aceitar isto; a disciplina faz parte do percurso do guerreiro e tenho de demonstrar que consigo praticá-la na perfeição.

Um cão anuncia a nossa chegada, um grande cãozarrão de pelagem escura que se lança na nossa direção a ladrar. Controlamos com rapidez os nossos cavalos assustados. Desmonto em silêncio e pouso uma mão tranquilizadora no pescoço do meu cavalo. O cão parou a não mais de uma passada larga de mim, todo encrespado, ainda a ladrar com força. Pode parecer que quer comer-me, mas é um cão de quinta e está apenas a fazer o seu trabalho. Não o fito; em vez disso, olho um pouco para o lado. A minha pose é o mais descontraída possível.

Ela aquieta-se... sim esta criatura temível é fêmea. Os nossos cavalos param de levantar os cascos, torcer as orelhas e revirar os olhos. Não podemos avançar, porque a cadela, tendo recuado um pouco, está agora com as patas grandes plantadas no chão, mesmo no meio do caminho. Uma rosnadela sai do fundo da sua garganta sempre que um de nós faz o menor movimento.

— Alguém deve ter ouvido isto — murmura Illann. — Logo virão.

E assim acontece: pelo trilho da pequena propriedade vem um par de homens, um jovem, outro mais velho. Um dos homens assobia; a cadela, instantaneamente obediente, vira-se e vai ter com ele. Seguimo-los até à casa de habitação.

Levam os nossos cavalos cansados, mostram-nos aposentos para dormir onde guardamos as nossas coisas e depois passamos para uma câmara maior com a lareira acesa: pode ser o início do verão, mas as noites são frias. Torna-se evidente que Illann confia mesmo nestas pessoas. São um grupo impressionante. Pai e filho são altos e magros com ar reservado. Diria pelo seu aspecto que os seus ancestrais teriam sangue mouro. A mulher tem pele clara e sardas. O rapaz é filho dela, mas não se parece nada com ela. Faz-me lembrar Brocc e Liobhan, um irmão e irmã que não têm parecenças nenhumas. Por que continuo a pensar neles? Eles têm a sua tarefa, eu tenho a minha. Não vou pensar neles.

Illann trata o homem por Oschu, um nome que significa cão de caça ao veado. Parece ter a idade de alguns dos guerreiros mais velhos da Ilha dos Cisnes. Era costume naquela época, quando um homem era aceite na ilha, adotar o nome de um animal. Muitas vezes, tatuavam os rostos com um desenho que sugeria esse animal: um cão, um corvo, uma foca. Esta história foi-nos contada por Brigid, como parte do nosso treino. Não explicou por que razão os guerreiros mais jovens não têm esses nomes, ou por que razão apenas alguns dos homens da ilha usam essas tatuagens. Se vier a fazer parte da comunidade, perguntarei a Archu. Mas creio que adivinho. Para um guerreiro, tal desenho é sinal de que faz parte do grupo. É um distintivo de honra, um elo entre irmãos. Quem não o quereria? Talvez, nesses primeiros tempos, a Ilha dos Cisnes também não treinasse espiões.

— Podes falar, Nessan. Aqui encontramo-nos em segurança.

Illann contou a Oschu e à sua família os nomes que usamos na viagem. Eles já sabiam para onde nos dirigíamos e que traríamos os cavalos deles de volta, depois do solstício de verão. Mas a natureza exata da missão permanecerá secreta. É mais seguro para todos.

— Obrigado pela vossa hospitalidade — tartamudeio e emudeço de novo.

Parece errado falar. Parece perigoso, apesar de estas pessoas serem de confiança. Em parte, preferia estar no chão junto à lareira, a observar a respiração lenta da cadela que agora dorme tão pacificamente como qualquer cão doméstico. Gostaria de me esticar com a cabeça no seu flanco quente. Uma parte de mim é tão fraca como uma criança.

— Vocês não estão assim tão longe da corte de Breifne — diz Illann com cuidadosa descontração. — Ouvi dizer que há um novo rei que vai ser coroado no solstício de verão. Há muitas pessoas a viajar para lá? Ou é demasiado cedo para isso?

— Algumas já passaram, dizendo que vão para esse lugar. Muito trabalho para um ferrador experiente por aqueles lados, diria eu.

— Como está a estrada até lá? Alguma coisa que nos possa atrasar?

— Depende da vossa pressa — responde Oschu. — Tenho um par de cavalos fortes para vocês e há outro par nosso à vossa espera na vossa próxima paragem, mas não quero que os meus animais caiam de exaustão.

— Não terão muito tempo para fazer o que quer que seja preciso fazer — acrescenta a mulher de Oschu, que foi apresentada como Maen. Interrogo-me se esses nomes são tão falsos como os que nós usamos.

— Tempo suficiente — afirma Illann com uma confiança que não partilho. — Quanto aos cavalos, sabes que cuidarei deles, Oschu.

— A estrada é boa. — É a primeira vez que o filho fala, à exceção do primeiro cumprimento cortês. — O vosso próximo dia será sobretudo terras de pastagem planas. Poderão ser atardados por pessoas a movimentar gado. O terreno torna-se mais acidentado quando se aproximarem de Breifne, algum dele densamente florestado. Terão de ter cuidado nessa zona. É mais rápido pelos bosques, mas parte do terreno é muito íngreme. Muitas pessoas optam pelo caminho mais longo, pelo vale, apesar de haver vaus para atravessar. — Faz uma pausa e olha para o pai.

— Há uma ou duas histórias associadas ao caminho pela floresta — diz Oschu. — Narrativas estranhas. Não deverão impedir-vos de seguir por essa estrada se tiverem pressa. Mas fiquem atentos.

De que está a falar? Vagabundos à espera no trilho para nos atacar e roubar os nossos poucos objetos de valor? Illann e eu devemos ser mais do que capazes de lidar com isso. Ou será que devemos manter o nosso papel de ferradores inofensivos enquanto eles nos cortam as gargantas e atiram os nossos corpos para um buraco algures?

— Hum-hum — retruca Illann, assentindo. É evidente que percebeu aquilo melhor do que eu. — Podem ficar de olho num grupo de músicos itinerantes? Grupo de três, dois homens e uma mulher. Se passarem por aqui, poderão querer oferecer-lhes o mesmo tipo de assistência que com tanta gentileza nos providenciaram.

Oschu sorri. Pergunto a mim mesmo se ele e Illann são velhos amigos. Talvez tivessem feito o treino juntos na Ilha dos Cisnes, há muitos anos. Depois descarto a ideia. Por que um guerreiro da Ilha dos Cisnes escolheria viver aqui neste sítio tão afastado de tudo? Não preferiria qualquer homem estar na ilha, a usar as suas competências de combate? Até um homem com a idade de Oschu podia continuar a manter as suas capacidades.

— Se passarem por aqui, com certeza que o faremos — retorque Oschu. — Eu conhecia um sujeito, o melhor tocador de tamborim bodhrán em toda a Dalriada, embora se dedicasse sobretudo a outras coisas. Gostaria de saber por onde anda agora.

Illann sorri.

— Por onde andará?

O tempo fica chuvoso quando alcançamos o caminho da floresta que Illann diz estar a menos de um dia do nosso destino. Seguir por este caminho não só será mais rápido, mas as árvores providenciarão também alguma proteção da chuva. Montamos as éguas que levaremos para a corte connosco, a de Illann grande e ruana e a minha robusta e cinzenta. Na última noite da nossa viagem dormiremos ao relento, a não ser que encontremos hospedagem apropriada. Temos duas sacas de aveia para os cavalos, que nos deram na última casa de amigos, mas não vão durar muito. Podíamos chegar à corte antes do anoitecer. Mas Illann prefere que cheguemos de manhã. Acha que haverá mais pessoas a entrar e sair da propriedade real, por isso atrairemos menos atenção.

— Procura uma posição estratégica, um sítio onde possamos ter uma boa vista para oeste — diz quando atravessamos um trilho sinuoso na encosta. — Existe outro trecho de floresta perto da corte de Cathra e uma povoação de tamanho considerável. Daqui a mais alguns quilómetros, deveremos conseguir vê-la à distância. A casa real fica numa elevação, não propriamente um monte, mas destaca-se bem, uma torre construída em pedra e uma muralha fortificada.

Grunho em resposta. Estou a pensar se conseguirei ficar calado se formos atacados por malfeitores no caminho. Oschu não explicou bem o que as pessoas diziam sobre este trecho da estrada. E se eu avistar alguém a apontar uma flecha para Illann? Como devo avisá-lo?

Afinal, quando cavalgamos através desta floresta não somos atacados por um grupo heterogéneo de habitantes locais a brandir mocas e a exigir os nossos objetos de valor. O que acontece é um fenómeno muito mais estranho. Illann vai à frente. O cavalo dele avança com passo firme apesar do terreno difícil; o meu companheiro é um cavaleiro experiente. O caminho aqui é mais estreito, uma elevação íngreme para um dos lados, uma queda acentuada para o outro, com árvores naquela encosta mais baixa que obscurecem a visão do vale. Ainda está a chover, embora estejamos bastante protegidos pelos ramos pendentes. Mas a minha égua fica agitada; sinto-o no seu corpo. À nossa frente, a égua ruana abranda. Escuto como me ensinaram. O sussurro da chuva; cascos no caminho; o tinir dos arreios. O vento nas árvores.

Então, de forma repentina e silenciosa, alguma coisa voa à minha frente, a menos de um braço da minha cara. Retraio-me, erguendo uma mão para escudar os olhos. A égua assusta-se e eu caio, aterrando com força, rolando impotente até mesmo à beirinha da ribanceira. Um pontapé do cavalo aterrorizado e acaba-se tudo, ou fico muito ferido sem hipótese de me salvar. Estendo as mãos para agarrar as rédeas que balouçam e sinto uma onda de dor nas minhas costas. Durante um momento, consigo segurá-las, depois o animal afasta-se. Pelas bragas de Morrigan, e se cair?

— Nessan. — A voz de Illann, parecendo muito mais calma do que eu me sinto. — Não te levantes, estás mesmo na beirinha. Consegues mexer-te? Acena só com a cabeça se assim for.

Aceno com a cabeça. Parece que tenho uma faca no crânio. O que foi aquilo? Um corvo gigante? Ou não era um pássaro? Será que imaginei o cheiro estranho, como peixe podre?

— Arrasta-te na minha direção sobre a barriga — diz Illann. — Certifica-te que estás em segurança no caminho antes de te tentares levantar.

Alguma coisa ecoa na floresta, uma coisa que não se parece com nenhum pássaro que já tenha ouvido. Faço o que me dizem, rastejo até um lugar seguro, ponho-me de pé com esforço. A minha cabeça lateja, as costas ardem-me e sinto-me como se fosse desmaiar ou vomitar as entranhas. Estou mais ou menos direito. E o meu cavalo desapareceu, se calhar fugiu para o sítio de onde viemos. Várias imprecações prediletas sobem-me aos lábios, mas não falo. Tudo isto aconteceu sem que o mudo Nessan soltasse um resmungo sequer. Por isso, embora tenha perdido o cavalo e quase me matado, poder-se-á dizer que me portei muito bem.

— Pronto — continua Illann, a falar devagar e com cuidado como se acalmasse uma criança. — Vamos avançar um pouco — estás a ver onde o caminho se alarga, junto àquelas rochas? — e tu vais esperar enquanto eu volto para trás para apanhar a tua égua. Espero que não tenha ido muito longe. Precisas da minha ajuda para andar?

Um pouco mais tarde, lá estou eu sentado sozinho numa rocha chata, a beber do odre de Illann. Não podemos deixar a égua voltar sozinha para a sua cavalariça; transporta não só o saco com os meus pertences, mas também metade das nossas ferramentas essenciais. Isso poderia levantar suspeitas em relação à nossa credibilidade quando aparecêssemos na casa real à procura de trabalho. Seremos contratados, suponho, visto que esse regente sabe que as duas equipas vêm procurar a harpa e com estes disfarces. Mas não queremos que as pessoas façam perguntas embaraçosas. Se deixassem Nessan ter voz, pergunto-me se seria convincente como vulgar trabalhador. Ou o meu discurso denuncia a minha educação? Pego numa pedrinha e atiro-a para os arbustos. Alguma criatura solta um som agudo assustado. Agora o pulso também me dói.

Illann já partiu há muito tempo; tempo suficiente para eu começar a imaginar desgraças. Até onde perseguiria o cavalo que fugiu antes de desistir? E se a égua desceu pela ribanceira algures e partiu a perna e ele passou por ela sem reparar? E se a coisa que me atacou fez o mesmo a Illann? Não faço ideia nenhuma de que criatura era. Mas vi-lhe os olhos, as asas, as garras estranhas. O seu odor nauseabundo ainda paira no ar. E se houver mais dessas criaturas?

O dia alonga-se. A chuva ainda cai, leve mas persistente. Obrigo-me a mexer-me; a dor parece pior se ficar sentado demasiado tempo na mesma posição. De pé é melhor, mas quando me levanto logo me sinto tonto. Maldição! E se eu não conseguir montar? E se não conseguir fazer o trabalho que tenho de fazer quando chegarmos à corte?

Tenho de o fazer. Tenho de ser capaz. Não me posso tornar o elo fraco da missão. Um guerreiro tem de aprender a aguentar a dor. Tem de continuar a lutar, aconteça o que acontecer.

Volto a afundar-me na rocha, sabendo que desmaiarei se não me sentar. Estou a ficar com frio. Devia andar um bocado, fazer alguns exercícios, manter-me quente. Mas estou cansado e tudo me dói. Fecho os olhos para não poder ver as árvores, o céu e as rochas a rodopiar, e então tenho outra vez seis anos e os meus irmãos levam-me para a floresta, dizem-me que há um cachorrinho preso num buraco e que o espaço é demasiado estreito para qualquer deles descer para o salvar. Quando chegamos ao sítio, não consigo ouvir o cachorro a ganir e os meus irmãos dizem que deve estar quase morto e dizem-me que se eu não descer depressa o cachorro morrerá e a culpa será minha por não ter sido corajoso. O buraco tem apenas tamanho suficiente para eu caber. Seanan segura-me pelos tornozelos e baixa-me de cabeça no espaço estreito. Está escuro. Tenho medo. Não consigo ver nada. E se houver água no fundo e eu me afogar antes de ele me puxar outra vez para cima? Grita quando o agarrares, Dau!, exclama Seanan, mas mal o ouço, o meu coração bate com tanta força que é como um tambor nos meus ouvidos. Espero que as minhas mãos estendidas sintam o pelo quente do cachorrinho, mas o buraco desce e desce e não há nada. Não sinto nada!, berro, mas a terra engole o som. Depois o meu irmão larga-me.

— Não estás bem — diz alguém e os meus olhos abrem-se de rompante e estou outra vez em Breifne, sou outra vez um homem, embora o meu coração bata com tanta violência como naquele dia em que os meus irmãos tentaram matar-me.

Há uma velhota no caminho, com um cão. Está enrolada numa grande capa de lã com capuz que tira enquanto a fito, inexpressivo, a minha mente ainda meio no passado. Ela dá um passo em frente e põe-me a capa em volta dos ombros. O cão, uma criatura peluda cinzenta com alguma coisa de lobo, está parado a seu lado. Os seus olhos cor de âmbar estão vigilantes.

Tento desviar a capa, mas ela impede-me com um gesto rígido. A veste é como um abraço quente. Debaixo dela, tremo por todo o lado. Há quanto tempo estou aqui sentado à chuva? O que aconteceu a Illann?

— Não me afastes, camarada — diz ela. — Não deixo pessoas em apuros desenrascarem-se sozinhas. O que te aconteceu? Estás ferido? Perdido?

Explico por gestos que não consigo falar. Que tenho um companheiro que seguiu numa determinada direção. Que ele vai voltar, com cavalos. Não sei o que ela entende; as minhas mãos trémulas não facilitam nada a coisa.

— A minha casa não fica longe — explica a mulher. — Posso dar-te abrigo por esta noite.

Gesticulo, Não. Espero aqui pelo meu amigo. Porque, se não o fizer, é provável que Illann passe por essa casa dela e eu vá ter de ir a pé o caminho todo até à corte de Breifne. Com uma amolgadela no crânio e uma perna coxa. Uma bela contribuição para a missão.

— Fazes tenções de ficar aqui sentado à espera?

Lança uma olhadela à chuva que cai à nossa volta, com muito mais força do que antes. Pequenas poças estão a formar-se no caminho. Está lamacento agora e em breve ficará perigoso. Penso em Illann a tentar regressar, montado num cavalo e a guiar o outro. Se tiver juízo, procurará abrigo para passar a noite e virá procurar-me de manhã.

— O que quer que tenha acontecido deve ter-te baralhado o tino — diz a mulher. — Os teus companheiros vão buscar-te a minha casa. É a única por estes lados e o lugar óbvio para procurares abrigo. Mesmo que estivesses bem, há uma data de razões para não deveres ficar aqui mais tempo. Consegues andar? Põe a mão no meu ombro.

Obedeço, visto que o que ela diz é sensato. Quando lhe toco, o cão-lobo rosna profundamente na garganta.

— Calma, Storm. Por aqui, jovem.

Depois daquilo, as coisas tornam-se imprecisas. Uma caminhada íngreme, que consigo fazer cerrando os dentes e tentando ignorar a dor. A mulher avança de um lado e o cão-lobo do outro. Sem o seu apoio, não conseguiria subir por este caminho. A casa fica ao nível do solo no topo, com um riacho a passar e carvalhos de ambos os lados. É um lugar estanho, misterioso e sombrio. Há coisas a balouçar em cordas na parte da frente da casa, coisas que estou demasiado cansado e tonto para identificar. Penas? Ossos? Cadáveres secos? Há uma fileira de passarinhos no telhado de colmo, as penas eriçadas por causa da chuva.

Lá dentro, não se vê mais ninguém. A mulher atiça o lume na sua pequena lareira, pendura uma panela numa engenhoca de ferro com três pés para aquecer e depois ordena-me que dispa as roupas molhadas. Passa-me uma manta para me embrulhar enquanto estende as minhas roupas numa corda da roupa improvisada por cima da lareira. Sinto-me como se me tivesse transviado para algum sonho estranho. Visões de tempos há muito passados vêm-me à mente, nenhuma delas feliz. Teria havido épocas felizes? Risos, sol, bondade? Se houve, não consigo recordá-las. Apenas uma e, no fim, provou ser a mais dolorosa de todas.

Tento não fazer caretas quando a mulher examina as minhas pisaduras, me fita os olhos, franze a testa e depois começa a misturar uma poção qualquer. Vai curar-me ou envenenar-me? Não posso perguntar. Não vou perguntar. Ela aquece o caldo, dá-me uma porção. A colher chocalha na tigela enquanto como; as minhas mãos não me obedecem. Não consigo manter os olhos abertos.

Acordo sobressaltado com a primeira luz da madrugada; há claridade entre as aberturas das portadas. Durante um instante, não sei onde estou. Mal sei quem sou. A minha mente está cheia de histórias, ou talvez sejam sonhos meio recordados. Consigo ouvir qualquer coisa a raspar no telhado e imagino todo um bando de coisas-corvo a reunir-se, prontas para outro ataque. Preciso de ir embora. Preciso de sair deste sítio. E, no entanto, não quero mexer-me. A cama é quente e estou confortável. Estranhamente confortável. Com cuidado, mexo um braço. Viro a cabeça para um dos lados, depois para o outro, à espera da dor lancinante que senti depois de cair. Mas não sinto nada. Faço uma tentativa para rolar de lado, à espera que as minhas costas protestem. Nada. O que haveria naquela bebida que ela me deu?

Sento-me e olho para a sala. No chão, perto da lareira fria, a velha dorme num cobertor. O cão-lobo está deitado ao lado dela, bem juntinho, mas ergue a cabeça, virando o olhar para mim. A mensagem é clara: Olhas para ela da maneira errada e morres, desconhecido.

Decido que levantar-me e procurar uma privada pode esperar um pouco mais. Deito-me de novo e fecho os olhos. E logo a minha cabeça se enche de imagens, outra vez as coisas-corvo, desta vez abrindo caminho a voar através de uma floresta escura, um lugar onde as árvores crescem mais juntas do que aqui e os trilhos são de um tipo apenas conhecido por criaturas selvagens. Um lugar onde toca uma música estranha, não as canções e danças vigorosas com que Liobhan e os outros entretêm as pessoas na ilha, mas alguma coisa que faz com que os pelos no meu pescoço se arrepiem. Alguém vagueia por ali, um homem com uma capa cinzenta e uma trouxa nos braços, mas o que essa trouxa contém não sei dizer. As criaturas acompanham-no, lá no alto, chamando-se umas às outras. Uma parte de mim fica a assistir. Uma parte de mim percorre esse caminho, segura nessa trouxa, ouve os pássaros, ouve o bater do seu coração, ouve o chamamento da música...

— Chamas-te Nessan?

Os meus olhos abrem-se de rompante. A pequena casa está muito mais brilhante; um conjunto de portadas está aberto e a luz do Sol entra. Na lareira arde um lume incipiente. O cão observa da porta fechada.

Sento-me, a esfregar os olhos. Como pude adormecer de novo? O que pareceu um instante de descanso durou muito mais tempo. E é difícil enxotar o sonho. O que havia naquela bebida que ela me deu? Ter-me-á contado histórias enquanto eu dormia? Talvez eu tenha falado no sono. O treino mais rigoroso oferecido pela Ilha dos Cisnes não pode impedir isso.

Percebo, de repente, o que a pergunta dela deve significar. Esforço-me por sair da cama, assentindo com a cabeça. Illann deve estar ali. As minhas roupas...

— Mais devagar, rapaz. Um passo de cada vez, ou cais de novo do cavalo de pura exaustão e não me terás a mim para ajudar da próxima vez. O outro homem esperará por ti. Não para sempre, mas durante tempo suficiente. — A mulher vai buscar a minha túnica, calças, botas, capa, tudo notavelmente seco.

Ouço-o agora, em tom fraco, a chamar: «Nessan!» Não do lado de fora da porta; deve estar no trilho principal, lá em baixo. Não posso perguntar se ela falou com ele; se ele sabe que estou aqui. Transmitir isso por gestos será muito lento. Não posso deixar que ele prossiga sem mim. Visto as roupas à pressa enquanto ela se atarefa ao lume. A privada pode esperar. Coloco a capa, dirijo-me para a porta e o cão levanta-se, de olhos fixos em mim. Olho para a mulher. Está agachada junto à lareira, a fitar-me, e não sei o que está a pensar. Ocorre-me que um homem da minha posição devia oferecer algum tipo de compensação pelo trabalho que ela teve. A bolsa ainda se encontra no meu cinto com o seu pequeno suprimento de moedas de cobre, Illann leva a maior parte dos nossos fundos. Enfio lá a mão, pesco algumas moedas e deixo-as cair em cima da mesa.

A velha não se mexe. Ainda tem os olhos fixos em mim e sinto que estou a ser avaliado. Será que ela está a sugerir que o pagamento não é suficiente? Este sítio é um casebre degradado, longe de tudo. Com certeza que mesmo só uma moeda seria bem-vinda.

— Nessan! — chama Illann de novo. Parece estar mais longe.

Preciso de sair daqui. Mas o cão encontra-se entre mim e a porta. Tento gestos: o meu amigo vai-se embora, tenho de ir. Tanto o cão como a mulher me ignoram. Ela vai buscar um recipiente arrolhado, tira qualquer coisa com a colher para a panela, acrescenta água, põe a panela ao lume. O cão observa-a. O que é isto? O que estou a fazer errado?

Exasperado, ergo a bolsa. O conteúdo estrepita em cima da mesa, formando um pequeno monte. O cão rosna. Mas a mulher levanta-se e aproxima-se de mim. Tira-me a bolsa vazia da mão e, com destreza, volta a pôr lá dentro todas as moedas de cobre. Aperta o fio com força e dá-me outra vez a bolsa.

— Guarda as tuas moedas, jovem. Se te pudesse dar sabedoria para levares, daria. Talvez não consigas falar. Mas podes olhar e ouvir. Consegues entender, se ao menos abrisses um pouco mais a tua mente. — Sorri. — Vai então. Vai ter com o teu amigo. Storm! Aqui.

O cão-lobo avança e senta-se perto dela. Posso ir-me embora.

— Storm guiar-te-á e ao teu amigo até à orla da floresta — diz a velha. — Enquanto a cadela for contigo, o Povo Corvo não te incomodará.

Estou na soleira da porta quando alguma coisa me faz parar. Ela devolveu-me o dinheiro, ofereceu os serviços da sua única companhia para ir comigo, providenciou abrigo e comida e, muito provavelmente, curou-me. Em parte, estou muito desconfiado: por que faria isso? Por que recusaria pagamento quando vive tão mal? Por que deixaria a cadela ir comigo quando está sozinha e vulnerável? Por que fez fosse lá o que fosse para me pôr a dormir e tirar as dores, a menos que quisesse alguma coisa de mim? Outra parte de mim, uma parte que não diz muitas vezes o que pensa, pergunta-se se a solução não é muito mais simples. Não posso dizer Obrigado em voz alta. Mas viro-me, pouso o punho direito sobre o coração e ensaio uma vénia.

A velha sorri de novo. Desta vez, vejo afeto nos seus olhos.

— Ótimo — profere. — Consegues aprender então. Talvez com passos lentos. Mas isso não é assim tão mau. Storm, leva-o até à orla. Vai lá então, jovem. Não protestes, deixa a cadela ir contigo. Storm conhece o caminho seguro.

O conselho é bom. Lá em baixo no trilho principal, Illann espera com os dois cavalos; o seu rosto em geral trombudo abre-se num sorriso quando me vê chegar.

— Graças aos deuses, estás safo — diz. Quando me aproximo, reparo que ele está muito pálido. E tem algumas pisaduras que não tinha ontem. — Um cão — acrescenta Illann. — Ou será um lobo? Não podemos levá-lo connosco.

Tento explicar por olhares e gestos que a cadela pertence a alguém ali perto e que só vem até a um ponto algures mais à frente e que depois volta para trás. Não consigo fazê-lo e recorro aos desenhos na areia com um pau. Tenho mais êxito com isso.

— Qualquer coisa que torne a viagem mais rápida — diz Illann. — Consegues montar? Foi uma grande queda.

Aceno com a cabeça e depois aponto para as equimoses no rosto dele, erguendo as sobrancelhas.

— Meti-me num certo problema. Levei algum tempo a localizar a égua cinzenta, graças a uns locais empreendedores que pensaram em guardá-la no seu celeiro. Levou ainda mais tempo a libertar tanto o cavalo como os teus sacos. Quando tudo ficou resolvido, era demasiado tarde para voltar em segurança. Passei a noite num local de abrigo. Ainda bem que tínhamos trazido forragem para eles. — Vê-me a passar a mão pelos flancos da égua cinzenta e pelas pernas, uma de cada vez. — Não está ferida. E agora está bem descansada. Deve estar boa para continuar.

Subo para a sela, sabendo que devia estar cheio de dores. A minha gratidão em relação à velha condiz com a preocupação persistente de que de algum modo, em dado momento, haverá um preço a pagar pelos seus serviços. Entretanto, Storm esperou apenas até que tanto Illann como eu estivéssemos montados para seguir pelo caminho. A cabeça está levantada, os olhos brilhantes, e é evidente que sabe muito bem para onde vai.


Capítulo 9

BROCC

Quando éramos crianças, a nossa mãe contava-nos histórias de Morrigan, corvo e mulher, deusa e criatura, picando baixo sobre o campo de batalha empapado de sangue, recolhendo os espíritos dos caídos. Contava histórias de corvos sábios e corvos pérfidos. Essas histórias tinham sempre uma ligação com a morte. Nenhum pássaro nessas histórias era como os que vimos quando nos aproximámos de Breifne. Não muito longe do nosso destino final, seguimos por um caminho alto através da floresta. Tem uma alcunha local: o Caminho dos Corvos. Mais tarde, perguntei às pessoas qual a origem desse apelido. Superstição, respondeu um homem; e outro: O caminho serpenteia através da floresta. Há aí todo o tipo de pássaros. Mas um terceiro disse: Há coisas nesse sítio que te gelariam o sangue nas veias. Coisas que poderias pensar serem pássaros, até as veres mais ao perto. Não que algum homem no seu juízo perfeito quisesse fazer isso.

Talvez um bardo não tenha um juízo perfeito. Quando vislumbrei as criaturas, quis aproximar-me para ver o que eram. Não corvos, isso de certeza, apesar de darem ares a esse pássaro. Pareciam seres além do mundo dos homens e das mulheres, grandes de mais, poderosos de mais, astutos de mais para serem naturais. Estou a escrever uma canção sobre eles, embora talvez não a vá cantar aqui na corte do regente. Como previsto, Lorde Cathra contratou-nos até ao solstício de verão, por isso vamos precisar do nosso repertório inteiro para não repetir muitas coisas para a nossa assistência e também de canções novas. Não posso envolver-me tanto na escrita que esqueça o nosso verdadeiro propósito. Mas sou músico e continuarei a sê-lo, não só para manter o nosso disfarce, mas porque não consigo fazer o contrário. As melodias surgem-me na cabeça; as rimas e histórias brotam na minha mente. Não conseguiria impedi-lo mesmo que quisesse. Liobhan diz-me que nasci com essa música dentro de mim. Não tenho a certeza que seja assim tão simples.

Quando cavalguei por aquela floresta, quis parar, desmontar, vaguear pelas sombras por baixo das árvores à procura de alguma coisa que não sabia designar. Era uma insanidade e não obedeci ao impulso. Ao sair daquele sítio, imaginei ouvir a minha harpa a chamar, embora estivesse guardada em segurança na sua bolsa e amarrada ao cavalo de carga. Os outros não deram sinal de ter ouvido alguma coisa e não pude dizer-lhes nada. Devia passar isto também para uma canção. Não que capturar uma coisa selvagem assim a possa amansar; mas talvez ajude o meu coração perturbado a aceitá-lo.

Assim, aqui estamos na corte de Breifne. A minha harpa sobreviveu à viagem; depois de a afinar e substituir duas cordas, soa tal como deveria. Liobhan está de bom humor e pronta para o desafio que iremos enfrentar. Fica irrequieta quando está inativa. A Ilha dos Cisnes é boa para ela, com o seu sistema de treinos de combate, escalada de penhascos e cordas e outros exercícios físicos. Ainda não estamos na corte há meio dia e já a vejo a fazer o pino, depois a usar o ramo dobrado de uma árvore para fazer elevações, repetidas vezes. Não relato isto a Archu, mas lembro-lhe que um músico não faria tais coisas e brinco dizendo-lhe que ainda bem que ela estava a usar calças. Recordo-me bem como era quando ela era criança. Tudo o que o pai fazia ela tinha de fazer também. Subir a escadas altas, cortar lenha com o machado grande, levar um toiro feroz de um campo para outro. A maioria dos pais não teria ligado aos pedidos de uma filha pequena, ou até de uma maior, para tentar executar este género de tarefas. O nosso pai ensinou-a a fazer estas coisas de forma segura. Caso não consigamos conquistar os nossos lugares na Ilha dos Cisnes, ela podia tornar-se mestre colmeiro como ele, embora nem ela conseguisse fazer as criaturas para as arestas como o pai faz. Penso por vezes que há magia nas suas mãos, embora ele fosse sorrir e encolher os ombros se eu lhe dissesse isso.

Talvez a razão para Liobhan estar tão interessada em manter a sua força seja porque mal regressemos à Ilha dos Cisnes pretenda derrotar Dau em combate. Ele se calhar não tem qualquer necessidade de fazer o pino ou baloiçar-se nas árvores. Manejar o martelo de um ferreiro aumentará bastante a força de um homem, imagino. Quando voltarmos, Archu devia ensiná-lo a tocar o tamborim bodhrán.

Pronto, fiz-me sorrir. Dau, músico? Acho que não; o homem está tão pouco preparado para ser menestrel como eu estaria para a vida de filho de um chefe de clã. Dau regressará à ilha e será aceite para lá ficar; ou regressará às terras do pai e retomará aí a sua existência privilegiada. A primeira hipótese, espero. Será o melhor homem para o lugar.

Tocamos para a casa real na nossa primeira noite na corte. Com tão pouco tempo, Archu acha que é melhor tornar logo a nossa presença conhecida e que melhor oportunidade do que esta? Estão todos reunidos, desde o príncipe Rodan e o regente até aos servidores, palafreneiros e um grupo de crianças sob supervisão pouco rigorosa. Escolhemos canções testadas e seguras, as que são mais populares entre o nosso público lá em casa. Enquanto cantamos e tocamos, tento observar, como nos ensinaram, mas é difícil; a minha mente perde-se na música. A dada altura, alguém pede dança e as pessoas afastam as mesas e os bancos para trás para arranjar espaço. Assim, damos-lhes algumas danças e, a seguir, O Salto de Artagan, o que permite a Liobhan mostrar os seus dotes na flauta. As crianças adoram a jiga; tentam bater palmas a compasso, apesar de a melodia ir ficando cada vez mais rápida, e executam a sua versão da dança acompanhada de muitas risadas. À exceção de uma delas que está sentada muito quieta, afastada das outras, observando-nos com tanta concentração que é um pouco enervante. Quando lanço um sorriso na sua direção, ela desvia o olhar como se apanhada numa transgressão.

As pessoas gostam da atuação. Até o príncipe Rodan se aproxima para falar connosco quando estamos a arrumar as coisas. Traz com ele um guarda-costas muito grande, um homem quase tão alto como o nosso irmão, Galen, que desempenha um papel semelhante para o príncipe de Dalriada.

— Obrigado pelos vossos esforços — diz Rodan com um sorriso. — Sei muito pouco de música. Mas as pessoas gostaram. Espero que os possamos ouvir mais vezes.

Archu explica que fomos contratados até ao solstício de verão e que partilharemos a tarefa com outros músicos já presentes na corte. O guarda-costas está a falar com Liobhan. Qualquer coisa sobre dançar.

— Oh, não temos muitas oportunidades de dançar — explica ela, interpretando Ciara, lisonjeada pelo interesse, mas um pouco tímida. — Só com três pessoas no grupo, todos temos de tocar ou cantar as canções todas, mais ou menos.

— Talvez quando o outro grupo estiver a tocar? — O homem grande parece empenhado.

— Seria bom — responde Liobhan, lançando um olhar rápido na direção de Archu como se receasse uma reprimenda. — Veremos.

— Garbh!

É uma ordem. O príncipe afasta-se e o guarda não tem outra opção senão segui-lo, embora olhe para a minha irmã por cima do ombro.

— Acho que Garbh gosta de ti — murmuro enquanto recolhemos os nossos pertences, prontos para nos irmos embora.

— Guarda as tuas ideias para ti. — Dá-me um encontrão nas costelas, não com demasiada força.

— Poderá ser útil — intervém Archu em voz baixa. Ainda há pessoas perto que nos podem ouvir. — É melhor falar com o outro grupo. Não queremos interferir no seu território. Mas todos juntos conseguiríamos um som fantástico. Creio que têm um gaiteiro.


Capítulo 10

LIOBHAN

Archu lembra-me para não atrair o tipo errado de atenção sobre mim agora que estamos na corte do regente. Nada de trepar a árvores. Nada de fazer exercícios quando alguém pode aparecer e ver-me. Nada de levantar a saia. Tenho de pensar antes de falar, sempre. O meu papel na missão é fazer amizade com as mulheres da casa real e conseguir qualquer informação útil. Todas me ouvirão tocar e cantar ao serão, por isso não deverei precisar de apresentar o tema da música e talvez das harpas. E toda a gente está animada com o ritual da coroação que se aproxima. Archu diz-me, e não pela primeira vez, que estou ali para ouvir.

Fico sentada em silêncio enquanto ele me prega este sermão e quando digo «Sim, tio Art», estou a falar a sério, embora Brocc já me tenha dito mais ou menos a mesma coisa e eu não precise de a ouvir outra vez. O meu irmão é apenas um bocadinho mais velho do que eu, ou é o que julgam os meus pais, e ele parece achar que isso lhe dá algum tipo de responsabilidade especial. Nunca, mas nunca pensei ser a irmãzinha mais nova de ninguém. Nem de Galen e ele é quase dois anos mais velho e visivelmente mais alto.

Tento fazer isso. Converso com algumas criadas que me ouviram cantar na nossa primeira noite. Elas não estão interessadas em música, exceto mencionar que o nosso harpista é muito formoso, sobretudo quando tem aquela expressão ausente no olhar. Perguntam-me que ervas uso para ficar com o cabelo tão brilhante. Isto leva a uma conversa sobre que estilos de penteado me ficarão melhor e ofertas para me virem ajudar a entrançar o cabelo antes da nova atuação. Esforço-me muito por sorrir e ouvir, embora seja uma dificuldade. Não fico a saber nada.

Encontro-me com as mesmas mulheres no dia seguinte e no outro a seguir e deixo que me penteiem o cabelo em tranças complicadas decoradas com fitas e flores. Espero que Garbh, o grande guarda-costas, não interprete que faço isto por causa dele. Faço perguntas às mulheres sobre o ritual, mas o interesse delas tem só a ver com o que vão vestir para a ocasião e se haverá dança depois do banquete de comemoração. Começo a ficar impaciente. No dia seguinte, quando não há ninguém por perto, aproveito a oportunidade para trepar a um certo carvalho grande que tenho tido em mira e fico surpreendida ao encontrar-me, a meio, com a saia enfiada no cinto, cara a cara com uma criança empoleirada num ramo. Abro a boca para soltar um guincho de surpresa, mas a criança, uma menina, leva um dedo urgente aos lábios, a pedir silêncio. Estamos muito alto, mesmo pelos meus critérios, e não vi mais ninguém por ali. Se tivesse visto, não estaria a fazer uma coisa que infringe tanto as ordens de Archu como os conselhos fraternos de Brocc.

Ficamos ali sentadas no nosso ramo, a mirar-nos em silêncio durante algum tempo. Não sei quase nada sobre crianças. Esta parece ter uns seis ou sete anos e acho que estava no salão enquanto tocávamos, sentada um pouco afastada das outras crianças. Será perigoso para ela se eu descer e fingir que não a vi? Estava à espera de encontrar apenas pássaros e talvez um ou dois esquilos. Não esta pessoa pequena e solene.

Olho bem para ela a tentar raciocinar como um espião. O que posso deduzir? A menina está a infringir regras, tal como eu, ou não me teria dito para não falar. Talvez esteja a fazer um jogo, escondida e à espera de ser encontrada. Mas não consigo ouvir outras crianças a gritar. Não há sinais de mãe ou ama solícitas. Deteto um laivo de preocupação na expressão da garota. Talvez esteja aqui em cima porque tem medo. Escondida e não querendo ser encontrada. As roupas são de muito boa qualidade: um vestido-avental tingido de azul com bordado de lã trabalhado na bainha e no pescoço, por cima de um vestido solto de linho fino. Se tem sapatos, deixou-os ao fundo da árvore. As meias estão com buracos. Cabelo: castanho. Olhos: castanhos. Nariz arrebitado, queixo com covinha, um rosto que seria bonito se não estivesse tão acabrunhado. Parece que esteve a chorar. Apetece-me perguntar se está bem, mas ela mandou-me ficar calada. Talvez fiquemos aqui sentadas a manhã toda, lado a lado, e não digamos uma palavra uma à outra.

Quando a minha pequena companheira fala, é tão baixinho que quase não dou por isso.

— Conheço-te — diz. — Tocas flauta. E cantas canções.

— Sim, é... — Interrompo-me quando o dedo dela volta aos lábios, premente desta vez.

— Sussurra! Ou vais acordar Máire.

Olho em volta como se Máire, seja lá quem for, pudesse estar empoleirada algures no carvalho.

— Quem é Máire? — segredo.

— Ela devia estar a tomar conta de mim. Mas adormeceu. Posso tocar a tua flauta?

— Isso ia mesmo acordá-la, não era? Mas também não a tenho comigo.

— Oh.

A tristeza na palavra é demasiado grande para ser mero desapontamento por causa de uma coisa tão trivial. Reparo então que ela tem um saco de pano ao lado dela no ramo. Dele espreita uma cabeça, com um par de olhos cosidos a lã castanho-escura. A coisa parece antiquíssima; o tecido grosso está manchado e puído. A julgar pelo formato das orelhas, suponho que pretenda ser um cão ou um gato.

— Posso mostrar-te noutra ocasião — digo. — Se Máire disser que pode ser. Sabes tocar?

— Podias ensinar-me.

Não foi isto que vim fazer a Breifne. O que posso ficar a saber de uma criança pequena? Mas talvez a ama, ou irmã mais velha, ou seja lá quem for a adormecida Máire, seja uma fonte de informações mais útil. Os olhos suplicantes da menina são como os de um cachorrinho abandonado.

— Posso mostrar-te como tocar algumas notas. É preciso muita prática antes de conseguires tocar melodias.

Ela pega no saco e no brinquedo e aperta-os contra o peito, fitando-me, solene. A pele do rosto e das mãos é muito clara e tem as unhas limpas. Apesar de ter trepado à árvore, o cabelo comprido está reluzente e foi entrançado com cuidado, embora algumas madeixas se escapem. Não é filha de um serviçal.

— Só que não pode haver música aqui em cima desta árvore — digo-lhe. — Poderia deixar cair a minha flauta e não ressalta muito bem.

— Oh. Está bem. Gosto daquela música que é muito rápida, mesmo muito rápida, com muitas notas.

— E toda a gente se levanta para dançar?

Ela acena com a cabeça, a expressão ainda séria.

— Essa música chama-se O Salto de Artagan. É muito difícil de tocar. Podemos começar com uma coisa mais simples.

— Podemos fazer isso agora?

— Não, porque temos de arranjar um sítio sossegado e tens de perguntar à Máire se ela aprova, ou vais arranjar-me problemas. Além disso, se te vou deixar tocar uma das minhas flautas, tenho de saber como te chamas. Eu chamo-me Ciara.

A criança sussurra a sua resposta mesmo no momento em que uma mulher chama lá de baixo:

— Aislinn! Onde estás?

— É a Máire — diz Aislinn, ainda em voz baixa. — Ela não sabe desta árvore. — Agora parece assustada.

— Desces tu primeiro então e eu espero até te teres ido embora.

Ela desliza com rapidez do ramo, fazendo com que o meu coração se sobressalte de susto. Mas é tão ágil como um esquilo; observo com admiração o seu rápido progresso pela árvore abaixo, a desejar conseguir ainda fazer aquele tipo de coisa com tanta rapidez e silêncio. Quase a chegar lá baixo, ela para e olha para mim.

— Não te esqueças — articula com os lábios.

Aceno com a cabeça e ela desaparece num instante. Nem sei de quem é filha ou onde a poderei encontrar outra vez.

Espero até achar que Aislinn já sumiu de vista, desço da árvore, liberto a minha saia e dirijo-me para os alojamentos das mulheres. A casa real de Lorde Cathra está cheia a deitar por fora de visitas e os dormitórios comunitários estão quase a transbordar. As pessoas de estatuto elevado, chefes de clãs, ricos proprietários de terras, conselheiros e homens de leis seniores, estão alojadas em zonas privadas da casa principal, algumas com as famílias. Como músicos, não nos encaixamos em sítio nenhum. As nossas capacidades granjeiam-nos respeito, mas não pertencemos ao círculo de pessoas bem-nascidas que inclui Lorde Cathra e a mulher e o herdeiro, Rodan. Tratam-nos de forma cortês e provêm às nossas necessidades, com água quente para o banho, enxergas confortáveis e comida excelente. Mas as pessoas que dormem ao nosso lado e se sentam connosco à mesa são criados. Se Archu pensava que teríamos acesso fácil ao príncipe e ao seu círculo, ou aos seus rivais ao trono, enganou-se. A única vez em que convivemos com os de nascimento nobre é quando os entretemos no grande salão de Cathra. E a isso dificilmente se pode chamar conviver. Eles ficam sentados e escutam, ou, no caso de certas pessoas mal-educadas, continuam a falar e a rir-se enquanto nós tocamos e cantamos, ignorando-nos, e nós ficamos na nossa plataforma, a trabalhar, até chegar a altura de arrumarmos as coisas e irmos dormir. Poderá até não ser mau arranjar-me para ir dançar, se a oportunidade surgir.

— Ciara! Andava à tua procura.

Ainda bem que estou de volta ao nível do solo, pois Archu e o meu irmão aproximam-se por um trecho inclinado de relvado que fica entre a pequena mata onde se encontra o carvalho de Aislinn e a entrada para a grandiosa torre de pedra. Essa estrutura abriga os apartamentos reais, o grande salão e várias câmaras de conselho. Em volta, existem vários edifícios de taipa e barro, menos grandiosos do que a torre, mas mesmo assim sólidos. Aí se incluem os alojamentos para dormir, uma área comunitária para os banhos e uma enorme cozinha. Mais adiante fica um celeiro, cavalariças com um pasto atrás, uma forja, um açougue, um curtidouro e outros postos de trabalho.

Uma muralha alta de estacas de madeira afiadas circunda todo este conjunto que se ergue em terreno elevado. Há pelo menos quatro guardas de serviço no portão o tempo todo e mais postados de sentinela em volta da muralha. Tochas ardem à noite para iluminar os caminhos. Na extremidade leste do povoado fica o portão principal, que dá para a estrada. Há um pequeno número de habitações de ambos os lados deste caminho. A oeste, perto do carvalho de Aislinn, as árvores aglomeram-se perto da muralha do lado exterior. Se a fortificação fosse mais baixa, seria um ponto fraco nas defesas, mas, tal como é, apenas esquilos e martas usarão com toda a probabilidade esta via de entrada.

— Lorde Cathra quer falar connosco — diz Archu.

Já não era sem tempo, penso, mas não digo. Se é urgente encontrar a harpa, acho que o regente nos devia ter chamado mal tivéssemos chegado.

— Quer falar com nós todos?

— Pediu para estarmos os três presentes, sim. — Archu lança uma olhadela por cima do ombro. Não há ninguém por perto, mas baixa a voz. — Falem apenas se eles fizerem uma pergunta direta. Caso contrário, fiquem sentados sossegados e observem.

— Disseste eles — intervém Brocc quando Archu nos leva em direção à torre. — Lorde Cathra e quem mais?

— Não ficou bem claro — responde Archu. — Fui avisado de que todos os presentes sabem por que razão aqui estamos. Esperem, no entanto, até que isso esteja definido sem margem para dúvidas. — Aproximamo-nos da entrada grandiosa para a residência real; há guardas cá fora. — Pensa antes de falares — murmura, olhando para mim.

— Sim, tio Art.

Três homens aguardam numa câmara de conselho, ao fundo da rede de corredores que atravessam a torre. Há um guarda corpulento à porta. Miro-o, a pensar quanto tempo levaria a derrubá-lo e a apanhar-lhe aquela lança que ele tem na mão. Sinto falta do treino de combate.

— Ah.

Um homem levanta-se. Dois permanecem sentados. Apontaram-me Lorde Cathra no salão de jantar: um homem robusto, de estatura média, com cabelo grisalho cortado curto e um olhar duro. Neste preciso momento, parece cansado; tem papos sob os olhos. O homem que se levantou é o conselheiro sénior do regente, Brondus, mais alto, mais jovem, de cabelo escuro, com o aspecto de uma pessoa sem tolerância para tolos ou indivíduos que o façam perder tempo. Nunca vi o terceiro homem, mas parece um druida: veste de cor creme com uma capa cinzenta por cima, pequena bolsa de couro pendurada ao pescoço com um cordão, tranças compridas de cabelo branco. O druida-chefe, talvez?

— A porta está fechada e guardada — diz Brondus — e assim permanecerá até esta reunião estar concluída. Dentro destas quatro paredes podemos falar livremente. Meu senhor, continuo?

Cathra acena com uma mão a indicar que sim.

— Chamo-me Brondus. Sou conselheiro de Lorde Cathra. Temos a honra de ter connosco o irmão Marcán, chefe da nossa comunidade local de druidas.

— Já foram informados de quem somos. — Archu parece à vontade nesta nobre companhia. — Chamo-me Art. Tenho comigo a minha sobrinha, Ciara, e o meu companheiro músico Donal. Agradecemos-te, Lorde Cathra, pela tua hospitalidade. Receberam-nos bem na tua casa.

— Sim, sim. — O regente parece impaciente. — E serão bem pagos, claro, desde que façam o que vos é exigido. Temos pouco tempo. Muito pouco. Sem dúvida que terão perguntas. — O homem está tão tenso como uma mola.

— Com tua licença, senhor, resumirei o que já sabemos e o senhor Art pode fazer as perguntas depois. — Após o aceno de Cathra, Brondus continua. — Será provavelmente a única reunião aberta a todos três; repeti-la seria arriscar atrair atenções indevidas. Mas haverá necessidade contínua de partilhar informação. Será melhor fazê-lo entre nós os dois. Posso depois notificar Lorde Cathra e o senhor Art pode informar Ciara e Donal, caso isso seja necessário. Entendem, suponho, a importância vital de manter este assunto confidencial?

Está a olhar para mim, como se, dos três, fosse eu que, com mais probabilidade, revelasse segredos em público. Reprimo a primeira resposta que me vem aos lábios e aceno apenas.

— As informações que temos baseiam-se na comunicação enviada por Lorde Cathra — diz Archu. — Podemos sentar-nos?

— Por favor.

Sentamo-nos, nós os três do nosso lado da grande mesa e eles os três do outro. Considerando que nós representamos a sua principal esperança de resolver um problema bastante grande, a atmosfera não é amigável. O druida, Marcán, não proferiu uma palavra. Se confiam em nós para encontrarmos a sua preciosa harpa, têm uma forma estranha de o demonstrar.

Brondus diz-nos o que já sabemos, mais ou menos, embora com um pouco mais de pormenores. A harpa é, ou era, guardada nos Nemetons, o santuário druida situado naquela zona de bosques do lado oeste da casa real. O instrumento só aparece para a coroação de um novo rei. A tradição manda que seja tocado em todos esses rituais.

— Posso fazer uma pergunta?

Os três desviam o olhar para Brocc. Faz-se silêncio.

— És o harpista, não és? — O irmão Marcán fala por fim. O seu tom é cortês.

— Sou. Também canto e escrevo músicas e versos. Pergunto-me com que frequência tocam a Harpa dos Reis nos Nemetons e quem cuida da sua manutenção: preservar as peças de madeira, substituir cordas, etc. Creio que é um instrumento de grande antiguidade. Ajudará se soubermos quem tem em geral acesso ao instrumento e com que frequência.

É uma boa pergunta, mesmo que esteja a antecipar-se um pouco.

— A harpa é guardada numa caverna — responde o druida. — É hábito da maioria dos druidas viver entre as árvores; a nossa ordem não é diferente. Os nossos abrigos são feitos de ramos, ervas, musgos. No bosque, existe uma colmeia de grutas, algumas de tamanho bastante generoso. Essas cavernas estão bem protegidas dos excessos de humidade, calor e frio. Guardamos aí a Harpa dos Reis.

— Uma caverna? Isso não significa que qualquer pessoa poderia entrar e sair à sua vontade? Está guardada?

Archu lança uma olhadela a Brocc, que se calhar esqueceu a ordem para nos mantermos calados a não ser que nos façam uma pergunta direta.

Marcán esboça um sorriso de esguelha; isso fá-lo parecer menos distante.

— Nunca nos ocorreu que tais precauções pudessem ser necessárias. A harpa tem-se conservado em segurança no seu local desde tempos imemoriais. Que uma pessoa pensasse em roubá-la era... inimaginável. Constituiu um ato da mais profunda ofensa aos deuses e não conseguimos perceber como pode ter sido feito sem ninguém ver. Três dos nossos noviços mais musicais ocupam a câmara adjacente e, em geral, pelo menos um deles está presente durante o dia. Regras estritas aplicam-se ao manuseio da Harpa dos Reis. O nosso bardo-mor, Farannán, cuida das questões práticas que mencionaste. Quanto a tocar o instrumento, apenas o bardo-mor o faz e nunca é retirado do sítio onde está guardado exceto na sua presença.

Brocc abre a boca para fazer outra pergunta e depois fecha-a de novo, a olhar para Archu.

— Há alguma porta trancada? Uma barreira de algum tipo? — pergunta Archu.

— Não verão aí grades de ferro nem portas de carvalho. Aquela caverna e o seu conteúdo estão protegidos por feitiços.

Uma imprecação grosseira surge-me nos lábios. Consigo não a proferir. Durante uns momentos, ninguém diz uma palavra. Nem a equipa mais experiente da Ilha dos Cisnes tem capacidade para lidar com um desafio deste género. Ou será que tem? Tento que as minhas feições se mantenham inexpressivas, o que é um feito extraordinário nestas circunstâncias.

— Feitiços — repete Archu. — Magia druídica. Executada no coração do santuário da ordem. E no entanto...

Outro silêncio.

— E no entanto aqui estamos, com a Harpa dos Reis desaparecida. — O tom de Marcán é sombrio. — Desaparecida sem deixar rasto, após tantos anos em segurança. Não devia ter sido possível.

Tenho imensas perguntas. Se houve magia envolvida, por que estão a pedir a uma equipa da Ilha dos Cisnes para resolver o problema? Talvez a harpa não esteja desaparecida, mas tenha sido escondida por uma questão política, como por exemplo desacreditar um pretendente ao trono para propor outro? É uma possibilidade que discutimos antes de partirmos do Celeiro. Como pode uma barreira construída apenas através de feitiços ser forte o suficiente para durar centenas de anos, muito depois de quem a criou ter morrido e desaparecido? E se a barreira era invisível, os druidas na caverna adjacente não veriam se a harpa desaparecesse? Pensava que só um punhado de pessoas sabiam que tinha desaparecido.

— Tenho de inquirir o óbvio, irmão Marcán — diz Archu. — Podes confiar plenamente em todos os membros da tua comunidade, incluindo os teus recrutas mais novos? Não estou a falar de feitiços, compreendes, mas de acesso à Harpa dos Reis e de quem poderá ter conseguido passar o instrumento para um local fora dos Nemetons sem ser visto. Creio que devemos considerar primeiro essa possibilidade mais simples. Claro que tal como pode usar magia para manter alguma coisa em segurança, um druida pode também usar magia para neutralizar um feitiço. Para retirar esse objeto do seu local seguro. Lembrem-se que nós os três não sabemos quase nada sobre as subtilezas dos feitiços. Mas estamos aqui para resolver o vosso problema e, para o fazermos, precisamos de todas as informações que puderem fornecer.

Fala com calma, como se de assuntos correntes. Isso faz-me pensar se lidar com o oculto é, afinal, parte integrante do nosso trabalho. O nosso treino nunca mencionou tais coisas. Talvez essa parte só aconteça depois de sermos admitidos na elite da Ilha dos Cisnes.

— Se me tivesses feito essa pergunta antes de a harpa desaparecer, teria dito que sim, sem dúvida — responde Marcán. — Mesmo o mais novo dos nossos noviços entende o significado profundo da Harpa dos Reis. Na verdade, não posso acreditar que algum dos meus irmãos seja responsável. E, porém, nenhum estranho põe os pés naquele lugar.

Brocc pigarreia. Lança uma olhadela a Archu.

— Para investigar na íntegra — diz Archu — será necessário que pelo menos um de nós visite os Nemetons. Ah... — ergue a mão quando o druida-chefe faz menção de interromper — ... não, asseguro-te, à maneira de um homem de leis que procura fazer perguntas difíceis. Compreendemos que este assunto tem de ser mantido secreto. Até, pelo que entendi, do príncipe Rodan.

De repente, todos os três homens à nossa frente mostram um ar constrangido. É Brondus que responde:

— Lorde Cathra achou melhor que o príncipe não fosse informado. Quanto menos pessoas souberem, melhor. Não consigo imaginar como algum de vós conseguirá entrar nos Nemetons sem levantar suspeitas. O irmão Marcán talvez possa explicar.

— A nossa ordem é muito rigorosa — esclarece o druida. — Admitimos poucos visitantes e os nossos irmãos só saem dos Nemetons em determinadas circunstâncias. Por exemplo, os nossos curandeiros poderão viajar para lá das nossas fronteiras para oferecer os seus serviços se requisitados com urgência. Temos dois irmãos laicos que vão e vêm com as provisões essenciais. E há rituais; realizamos cerimónias de compromisso na comunidade, os rituais de enterro e bênçãos.

— E a coroação de reis — acrescenta Archu.

— Continuemos. — Lorde Cathra fala por fim. A sua voz é calma, mas as mãos entrelaçadas sobre a mesa à sua frente têm os nós dos dedos brancos. — O irmão Marcán intervém como meu conselheiro em muitos assuntos; não é invulgar para ele visitar esta casa. Mas eu não o visito. Embora tão perto das nossas muralhas, os Nemetons estão separados.

— A coroação de reis — repete Archu. — Um bardo-mor, música para ser tocada, uma harpa. Deve haver outros harpistas entre os irmãos, incluindo, imagino, alguns dos mais jovens. Eu não pensaria em entrar na comunidade druida; saltaria à vista como um rafeiro peludo num grupo de gatos de pelo liso. E Ciara, claro, estaria fora de questão. Suponho que a vossa ordem rigorosa não seja uma dessas que conta com mulheres entre os seus membros.

— De facto não.

É óbvio que Marcán está chocado com a ideia, embora eu tenha ouvido falar de comunidades de druidas que acolhem homens e mulheres, lugares onde uma pessoa pode ser casada e ter filhos ao mesmo tempo que leva uma vida dedicada à oração e às boas obras. Mas o meu trabalho não é educar o druida-chefe de Breifne.

— Entre esses poucos visitantes, há eruditos em viagem? — pergunta Brocc no seu tom mais cortês.

— Há sim, jovem; recorda-me o teu nome?

— Donal, irmão Marcán. Estou sempre interessado em falar com outros músicos sobre canções e histórias antigas e seus significados e talvez tocar juntos e aprender alguma coisa nova. Sei que os druidas passam os longos anos do noviciado a memorizar o saber tradicional e são mananciais de sabedoria na interpretação de contos antigos. Mas poderei também contribuir com alguma coisa, visto que viajei muito e falei com muitos músicos e contadores de histórias. Espero que não pareça presunçoso sugerir que, caso tenha autorização para passar algum tempo na vossa comunidade, a aprendizagem se faça de parte a parte. Talvez me seja permitido trocar ideias com alguns dos druidas mais jovens, em particular os que têm interesse em tradições e música.

Um milagre acontece: o druida sorri.

— Todos nós temos interesse nisso, Donal.

— Donal é um músico talentoso — intervém Archu em voz baixa.

— Senhor — diz Marcán, dirigindo-se ao regente —, creio que o bardo-mor poderá dar um parecer favorável à sugestão de Donal, visto que o irmão Farannán é considerado um grande erudito. O tempo urge, eu sei. Se concordarem, falarei com ele hoje e, se ele concordar, enviaremos um mensageiro para vir buscar Donal amanhã. Traz a tua harpa, jovem.

E assim, rapidamente, tomaram uma decisão.

— Levarei. Obrigado, irmão Marcán. Obrigado, meu senhor.

O entusiasmo de Brocc parece genuíno. Espero que ele não fique tão absorvido pelas músicas e tradições que se esqueça que está a entrar nos Nemetons como espião. Tirar alguém de lá de dentro poderá ser tão difícil como fazê-lo entrar.

Quero falar com Brocc e Archu em particular, só nós os três à porta fechada. Há coisas que preciso perguntar antes de Brocc entrar nos Nemetons. Há aquela informação intrigante sobre os feitiços e a caverna sem porta. Uma questão mais importante, se bem que menos urgente, prende-se com o príncipe Rodan, o rei anunciado. Já sabíamos que não estava a par do segredo. Mas, quanto mais penso nisso mais estranho parece. Ou o regente e seus conselheiros têm total confiança que nós vamos encontrar a harpa a tempo, fazendo com que seja desnecessário perturbar o herdeiro, ou têm outro motivo qualquer para não partilhar com ele uma coisa tão significativa. Talvez tenha alguma relação com os guarda-costas, Garbh e o outro, que vigiam o príncipe com tanto cuidado. Parece de facto que Cathra está preocupado com a segurança pessoal de Rodan.

Não é exagerado imaginar que, caso a harpa tenha sido feita desaparecer por um rival ao trono, esse rival possa ter outro plano em mente, só para o caso de o instrumento ser encontrado e devolvido a tempo. Assassínio, talvez disfarçado de acidente desagradável. Cathra pode ter pedido ao príncipe para se manter sempre perto dos seus guarda-costas. Precisamos de saber quem são os outros possíveis pretendentes ao trono e se estão aqui na corte ou devem chegar em breve. Mencionaram o nome Tassach quando nos deram as informações sobre o caso. Tem de haver outros, com a maioria dos parentes do sexo masculino do falecido rei elegíveis, embora nenhum tão provável como o filho desse rei.

— Ensaio — murmura Archu quando saímos da torre. — Agora. No local habitual.

Os ensaios providenciam um bom disfarce para conversas particulares, desde que estejamos atentos a qualquer pessoa que decida aparecer sem ser convidada com a desculpa de querer ouvir-nos tocar. O «local habitual» é uma dependência onde se guardam ferramentas. Foi esvaziada antes de chegarmos à corte e forneceram-nos alguns assentos, bem como uma porta que pode ser fechada e trancada. O local abre para o pátio das cavalariças, conveniente se Archu precisar de passar informações à equipa de apoio, e, em geral, ninguém nos incomoda ali. Atribuo essas disposições ao facto de o regente saber qual o nosso verdadeiro propósito na sua corte; não é provável que tais acomodações sejam oferecidas a todos os grupos de músicos itinerantes.

— O pretendente mais provável é Tassach — murmura Archu, enquanto trabalhamos no que é mais conselho secreto do que ensaio. Brocc está a dedilhar uma música lenta enquanto escuta; não tem qualquer problema em fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Se alguém tentar bisbilhotar, o som da harpa fará com que seja mais difícil ouvir o que dizemos. — Chefe do clã Glendarragh, uma grande propriedade a oeste. O emblema da família é um dragão. Tassach é primo direito do falecido rei. É respeitado. Eoan diz que os moços de estrebaria gostam de cuidar dos cavalos dele, são particularmente belos, parece, e sempre em excelentes condições. Ninguém fala em público sobre a possível pretensão de Tassach ao trono de Breifne, nem eu esperaria isso, embora, se ele decidir tentar, terá um apoio sólido. Teria de atuar com rapidez se quisesse desafiar Rodan. Por outro lado, se a harpa não for encontrada, o desafio podia acontecer no dia da coroação. Espero que não chegue a isso. Sem a harpa, nenhum homem poderá ser considerado aceitável como rei. Tens alguma coisa a relatar, Ciara?

Penso na reunião em que acabámos de participar, na qual eu quase poderia ter sido invisível.

— Nada ainda, desculpa. Tio Art, tenho uma pergunta. Sobre o herdeiro. Existe algum motivo para Cathra e os seus conselheiros não lhe terem confiado uma coisa tão importante? Vai ser rei dentro de pouco tempo. Terá poder para lhes dar ordens a todos. E... — Hesito, consciente de repente que não tenho provas reais que sustentem as minhas desconfianças.

— E? — repete Archu em voz baixa.

— O guarda-costas está em alerta máximo, mesmo quando Rodan se encontra no seu salão, com a sua gente. Para onde quer que o príncipe vá, é seguido de perto por um ou outro desses dois guardas, ou é o que parece. Pergunto a mim mesma se estão a prever alguma atividade criminosa. Talvez um rival com um plano.

— É possível — responde Archu. — Alguém que saiba da harpa? A pessoa responsável pelo desaparecimento?

— Esse indivíduo precisaria de um contacto nos Nemetons. — Brocc toca uma pequena melodia complicada enquanto fala. — Uma pessoa vulgar não podia lá entrar e retirar a harpa da sua caverna protegida por feitiços. Ou o irmão Marcán está a mentir ou a confiança que deposita nos seus irmãos é imerecida.

— Terás tu de investigar isso — diz Archu. — Com o maior cuidado e subtileza, Donal. Se fizeres mal as coisas poderás causar grande ofensa. Não queremos que sejas proibido de visitar os Nemetons. Serás os nossos olhos e ouvidos lá dentro. Fala com os druidas mais jovens, os rapazes que não estão lá há assim tanto tempo e que se calhar têm saudades de casa. Poderão abrir-se mais contigo. Eu vejo a questão de Tassach. O homem não está na corte neste momento, mas é esperado algum tempo antes do ritual, com a família. Farei perguntas discretas sobre os outros pretendentes. Com o solstício de verão tão próximo e não tendo nenhum deles apresentado ainda nenhuma pretensão, não é provável que essa linha de investigação dê muitos frutos. Mas tens razão em relação à segurança do príncipe. Devemos estar atentos a qualquer indício de problemas no reino. Disputas entre os chefes de clãs. Desentendimentos com territórios vizinhos. Comuniquem-me qualquer coisa. Mesmo que pareça ser apenas mexerico.

Lembro-me de uma coisa.

— Donal? Devias perguntar aos druidas como é a Harpa dos Reis. É uma das primeiras perguntas que devíamos ter feito. Neste preciso momento, não reconheceríamos a coisa se estivesse mesmo à nossa frente.

— Terá um aspecto antigo — retorque Brocc com um sorriso. — Muito antigo.

— Há uma coisa no relato de Marcán que não faz sentido — digo. — Quem tirou a harpa devia ter competência para desfazer o feitiço ou encantamento que a mantinha em segurança. Isso significa que o ladrão foi um druida. Mas por que os druidas arrasariam o seu ritual?

Brocc passa os dedos pelas cordas da harpa.

— A resposta pode estar numa velha lenda — diz. — Os druidas têm um manancial enorme de histórias. Espero que estejam dispostos a partilhá-las com um humilde menestrel.

— Não toques nenhuma das nossas canções mais irreverentes quando lá estiveres. Não vais querer ser expulso por corromper os noviços.

— Vou portar-me bem — garante o meu irmão, a tocar distraidamente alguns compassos de uma canção cuja letra faria corar qualquer druida. — Prometo.


Capítulo 11

BROCC

Na manhã seguinte, sou escoltado até aos Nemetons por um druida de meia-idade, de veste verde, não creme como a de Marcán, e tranças não brancas como o inverno, mas escuras como o corvo. Chama-se irmão Olann. Encontra-se comigo no portão principal da casa real e leva-me pelo trilho no lado de fora da muralha da fortaleza. Um dos guardas reais segue-nos a uma distância discreta, mas quando chegamos à ramificação do caminho que conduz àqueles bosques, os bosques dos druidas, o guarda para.

— Vai deixar-nos — explica Olann. — Só pessoas convidadas podem passar pelo Portão de Danu.

Continuamos a andar e o portão aparece a meio da floresta: um arco formado a partir de vime habilmente entretecido. Parece aberto, como se qualquer pessoa pudesse atravessá-lo. Não há sinal de nenhum guarda. Uma canção começa a formar-se na minha mente. Mas através desse portão ninguém podia passar, a menos que soubesse a palavra.

Se existe alguma palavra, qualquer coisa para desfazer o encantamento que tenha sido colocado no Portão de Danu para manter os intrusos afastados, o meu companheiro não a profere em voz alta. Mas quando passamos por baixo do arco, a harpa que levo às costas solta uma única nota.

— Ah — diz Olann com suavidade. — Parece que és bem-vindo.

— Se assim é, sinto-me honrado.

Isto é solene e sério. Devo seguir o conselho da minha irmã e não tocar nenhuma das músicas mais brejeiras enquanto aqui estou. Embora com certeza que até os druidas devem apreciar algum divertimento de vez em quando.

Olann leva-me pelo caminho largo. O que parece do monte da fortaleza real um bosque compacto, revela agora ser uma floresta muito maior, os carvalhos gigantes fortes a esticar os seus membros escuros em direção ao céu, os azevinhos guardiões temíveis dos mistérios mais além. Há teixos, os seus grandes troncos tingidos de rosa à luz da manhã, os seus ramos a oferecer um amplexo emaranhado. Não receies deter-te, viajante, dentro deste caramanchão antigo. Esta clareira abrigou muitas almas em horas sombrias e incertas... Com toda a probabilidade as árvores também providenciaram abrigo em horas felizes e tranquilas. Mas a outra hipótese daria uma canção melhor. O viajante parava, claro, e descansava sob os teixos e talvez sonhasse com a morte, visto que os teixos são muitas vezes associados à passagem de um mundo para outro.

À medida que nos embrenhamos mais na floresta, começo a ver sinais de habitação humana, embora não sejam casas da forma como a maioria das pessoas usa esse termo. Estas habitações foram construídas com grande habilidade mesmo no meio das árvores, ou encostadas a afloramentos rochosos, e parecem fazer parte natural da paisagem, embora, quando olho com mais atenção, consiga ver a mão do homem: pontes simples de tábuas sobre riachos; uma clareira na qual há canteiros bem organizados de legumes entre faixas de erva não cortada. Pássaros minúsculos precipitam-se atrás de insetos voadores. Um druida jovem com vestes azuis trabalha com uma forquilha, espalhando palha entre os legumes. Quando passamos, endireita-se, escudando os olhos quando olha na nossa direção. Durante um instante, faz-me lembrar alguém, mas não consigo imaginar quem possa ser. O homem de vestes azuis sorri, acena na nossa direção e depois volta ao seu trabalho.

— Cultivamos a maior parte do que comemos — esclarece Olann. — Os nossos noviços compreendem a roda do ano e o dar e receber necessário para sobreviver no mundo físico. De facto, isso está no cerne do nosso ritual. Mas não há nada como sujar as mãos para aprender bem a lição. É o que sempre digo. Alguns discordarão, é claro.

Talvez eu pareça surpreendido, porque ele sorri e acrescenta:

— Os druidas adoram discussão, Donal. Aprenderás isso logo, se passares tempo connosco. Até os mais seniores entre nós se envolvem em debates acalorados.

— Posso fazer uma pergunta?

Ele ergue as sobrancelhas.

— Claro.

— Não me explicaram bem se esta visita é para um dia inteiro ou apenas algumas horas. Ou se poderá ser a primeira de várias. Não quero ser presunçoso, irmão Olann. Sinto-me honrado por ter sido convidado e ficarei satisfeito com o que for oferecido.

— Mas?

Agora está a sorrir. Talvez consiga ver o meu verdadeiro eu. Perceber o que estou a pensar: Gostaria de não estar aqui para espiar. Gostaria de poder descontrair-me e divertir-me, porque isto é a melhor coisa que me acontece desde há muito, muito tempo.

— Creio que haverá muita coisa a aprender aqui. Tenho a certeza que os vossos músicos estarão ocupados, com os seus estudos ou... ou a sujar as mãos de uma maneira ou de outra. Mas espero que possam arranjar tempo para mim. E que eu possa partilhar o que sei com eles.

— Sim?

Pergunto a mim mesmo se isto é uma coisa que os druidas fazem, oferecer uma pergunta em vez de uma resposta. Mas, por outro lado, ainda não fiz a minha pergunta. Não pensei que precisasse de o fazer.

— Não acredito que algumas horas ou um único dia sejam suficientes para isso — digo, pontapeando-me no íntimo por ser descortês. — Desculpa, irmão Olann. Sei como é raro deixarem pessoas de fora entrar. Não me cabe a mim dizer quanto tempo devo ficar. Creio que este lugar está a lançar-me o seu feitiço. A chamar-me.

— Talvez ainda façamos de ti um druida, Donal. — O sorriso dele é caloroso; não está a zombar de mim. — O irmão Farannán, o nosso bardo-mor, sabe que nos visitas hoje. Não é provável que o vejas, mas disse-nos para decidirmos. Sei que tu e os teus colegas menestréis em geral entretêm a corte ao serão, por isso vais querer regressar antes da hora do jantar. Por hoje, comerás a refeição do meio-dia connosco e passarás algum tempo com alguns dos nossos músicos. Infelizmente, não sou um deles; as minhas competências têm a ver com a horta, o galinheiro e as panelas. Pelo menos, posso oferecer-te uma boa refeição. E se tudo correr bem, haverá um novo convite para nos visitares sempre que desejares.

É a minha vez de sorrir.

— Obrigado. E peço de novo desculpas se falei quando não devia.

— Tenho a certeza que não foi por mal. Há duas regras que deves seguir aqui, além de mostrares bom senso e consideração. Os noviços mostrar-te-ão como está organizada a nossa comunidade e explicarão onde podes ou não ir, quer nas nossas habitações, quer aqui sob as árvores. Se um visitante não respeitar esses limites, com certeza que nunca mais entrará outra vez aqui.

Aceno com a cabeça, enregelado pela mudança súbita no seu tom.

— Compreendo, irmão Olann. E a outra regra?

— Lembra-te que os noviços têm regras próprias a seguir; regras cuja transgressão poderá fazer com que percam o seu lugar na nossa comunidade. Tenho a certeza que imaginas o que isso significaria para um homem quase a completar uma fase do seu noviciado.

Saberá que estou aqui por causa da Harpa dos Reis? O seu nome não foi mencionado na reunião com Lorde Cathra e os outros; devo presumir que não.

— Prometo que isso não acontecerá, irmão Olann. Espero que os noviços me avisem se acidentalmente me aventurar perto de terreno proibido, seja um caminho trilhado por pés humanos ou apenas por pensamentos humanos. Digo-o porque não sei quais são as regras deles. Exceto, como mencionaste, mostrar bom senso e consideração. — Por Morrigan, maldição, agora pareço Dau, todo importante. — Farei o melhor possível. Prometo.

Encontro-me na companhia de três noviços vestidos de azul, todos mais ou menos da minha idade e todos harpistas e cantores capazes. O tempo passa sem nos darmos conta enquanto partilhamos as nossas histórias e canções favoritas. Discutimos de forma amigável a melhor maneira de criar rimas invulgares e como tornar um ritmo mais marcante ou uma melodia mais expressiva. É apaixonante comparar instrumentos, discutir as melhores cordas e onde as obter e o que distingue o tom de uma harpa de outra. Calculo que a nossa conversa possa ser considerada entediante por algumas pessoas. Com certeza que os meus colegas instruendos na Ilha dos Cisnes depressa se cansariam dela. Posso imaginar Dau a esconder um bocejo extravagante. Mas estou feliz. Sinto-me seguro. Estou satisfeito.

E porém. E porém tenho um trabalho a fazer. Se não fosse por causa da Harpa dos Reis, nunca teria sido admitido aqui. Nenhum destes noviços mencionou essa harpa preciosa ou o ritual do solstício de verão e não encontro forma de perguntar. Estamos numa câmara de rocha, mas não sei se fica perto da caverna onde a Harpa dos Reis é em geral guardada. É um bom sítio para música. O som torna-se mais intenso e nítido com as paredes de pedra; lá fora sob as árvores perder-se-ia. Além disso, está agora a cair uma chuva miudinha: quando outro homem entra, traz um xaile por cima da cabeça, o tecido de lã a cintilar à luz da lamparina com pequenas gotas de humidade.

— Um dia húmido — observa.

É o druida que estava a cuidar da horta. Tenho outra vez a estranha sensação de já o ter visto antes, embora não perceba como isso pode ser possível. O cabelo dele é de um castanho suave, não entrançado, mas solto sobre os ombros. Tem feições agradáveis, sem serem particularmente memoráveis. Gosto do seu sorriso.

— Irmão Faelan, bem-vindo — diz um dos outros, o irmão Ross de cabelo ruivo. Todos três se levantaram como se o irmão Faelan fosse sénior, embora calcule que não seja muito mais velho. Levanto-me também; como alguém de fora, devo mostrar respeito se for devido. — Não estávamos à tua espera esta manhã.

— Não posso demorar-me — diz o recém-chegado. Tem voz de cantor. — Ouvi dizer que tínhamos um bardo entre nós e quis cumprimentá-lo. Donal, não é? Essa é uma harpa interessante e antiga; parece bem querida e muito usada.

— Foi-me dada pelo meu professor. — É desconfortável mentir a este homem. — Viajou muitos quilómetros comigo. Uma companheira fiel. Uma segunda voz. Também és harpista, irmão Faelan?

— Toco um pouco. — A expressão dos rostos dos outros mostra-me que é um eufemismo. — Lamento não poder ficar com vocês; o irmão Farannán está à minha espera. Vais ficar muito tempo nos Nemetons?

— Se receber aprovação, virei todos os dias durante algum tempo.

— Interesso-me por contos — diz o irmão Faelan. — Trabalho muito com o irmão Odhar, o nosso mestre das tradições e saber. Isto é, quando não estou ocupado a ensinar os meus colegas noviços aqui. Gostaria de ter hipótese de falar contigo quando surgir essa oportunidade. Talvez possamos tocar um pouco juntos?

— Seria uma honra — digo.

Pela forma como os outros noviços ouvem atentos as palavras dele, calculo que esta pessoa despretensiosa seja boa naquilo que faz. Ensinar? Quando ainda é noviço? Não é altura de fazer perguntas, pois é óbvio que Faelan tem pressa. Está a sair da caverna agora, com uma pequena vénia contrita.

— Mais tarde então, meu amigo. Bem-vindo entre nós.

O irmão Ross facilita-me as coisas. Depois de Faelan sair, diz:

— Um harpista invulgarmente bom; esteve sempre muito à frente de nós. O irmão Farannán confia nele para nos ensinar, a maior parte do tempo. Claro que ele está aqui há algum tempo.

Não tenho a certeza se se refere a Faelan ou ao bardo-mor, mas um dos outros, Sioda, fornece-me a resposta:

— Vai passar para a segunda fase do noviciado, o Lughnasadh, o festival da primeira colheita.

Quem me dera saber mais sobre druidas. Sei que muito do que fazem é secreto e não quero ofender estes homens fazendo-lhes perguntas embaraçosas.

— É muito longo? O treino? — É melhor parecer ingénuo ou estúpido do que fazer asneira com alguma coisa mais contundente.

— Três vezes três — diz o outro noviço, Flann. — Isto é, anos. Três fases de aprendizagem. No fim da primeira, sabemos uma data de histórias. E canções, se formos promissores como bardos. Não veremos Faelan muitas vezes quando ele subir na hierarquia.

— Talvez vejamos — retorque Ross, a ensaiar um ritmo na sua harpa, que acabou de afinar para um modo que é raro usar, com meios-tons em sítios estranhos. O resultado é perturbador. Percebo como podia criar uma melodia naquilo, mas não tenho a certeza se quero. Ocorre-me que certos modos ou ritmos podem em si conter uma espécie de magia; tocá-los pode gerar espíritos estranhos ou, de alguma maneira, alterar a natureza das coisas. Fazer um riacho correr para trás, se calhar. Ou fazer uma árvore florir no inverno. Ou virar um homem contra o seu melhor companheiro.

— Comporias um cântico ou canção nesse modo? — pergunto.

Ross parece apanhado de surpresa e interrogo-me se infringi alguma regra. Depois, lembro-me que estávamos a falar sobre o irmão Faelan e o seu progresso no noviciado.

— Estou impressionado por o irmão Faelan ser suficientemente conhecedor para vos ensinar — digo, forçando a minha mente a voltar a essa conversa. — Disseste qualquer coisa sobre não o verem tanto depois de ele completar os seus primeiros três anos. Por que será? Desculpem, talvez eu faça demasiadas perguntas.

— Fazemos uma troca contigo — retorque Flann, a sorrir. — Ensinas-nos a jiga mais difícil que sabes tocar e nós respondemos a mais cinco perguntas.

Os outros olham-no de soslaio, mas nenhum faz qualquer comentário.

— Dez — digo eu.

— Dez por uma jiga e uma canção. O tipo de canção que tocas para animar as pessoas. E não me estou a referir a druidas.

— Combinado — respondo. — Desde que isso não signifique que o irmão Farannán ou o irmão Marcán entrem por aí adentro e me expulsem por colocar pensamentos impuros nas vossas cabeças.

Desatam os três às gargalhadas.

— Chiu — cicia Sioda, com um dedo nos lábios. — Não desvendes o grande segredo.

— Qual é? — pergunta Flann.

— Que já poderão existir um ou dois desses pensamentos nas nossas cabeças. Não na do irmão Faelan, claro; os seus pensamentos são todos sobre assuntos mais nobres. Mas nós os três...

— Falas de mais, Sioda — diz Ross, mas está a sorrir como os outros. — Quanto a essa pergunta sobre os três anos, Donal, grande parte do nosso trabalho na primeira fase do noviciado é cantar e tocar, aprender histórias e rimas, memorizar as tradições druídicas. Na segunda fase, trabalhamos outras aptidões essenciais, em particular tratamentos e herbalismo. Embora nós músicos continuemos com a nossa prática: todos temos esperança de ser escolhidos para tocar em rituais. Quando completar os seus três anos, Faelan estará menos connosco. É provável que não nos ensine; um dos outros druidas mais seniores assumirá essa responsabilidade.

— Mais sénior, menos qualificado — murmura Sioda. — Mas lá está. Faelan diz que estamos a melhorar na ajuda que damos uns aos outros. Isso é animador.

Antes de eu poder agarrar a oportunidade oferecida por aquele comentário sobre rituais, Ross diz:

— Fizeste uma pergunta sobre o modo que eu estava a usar, com a segunda subtónica. Os monges cristãos têm os seus nomes para os modos, mas nós druidas chamamos a este o modo teixo. Estou a compor um cântico baseado nele, mais por desafio do que por qualquer expectativa que os meus irmãos o usem, já que as pessoas acham os intervalos difíceis de cantar. Sentem-se mais confortáveis no modo carvalho, ou, para alguma coisa impregnada de tristeza, talvez o modo salgueiro. Se ficares por aqui algum tempo, poderás também aceitar um desafio. Escrever uma música de dança no modo teixo. Ora agora, imagino, isso é que seria difícil.

Na verdade não. Seria uma dança estranha, melancólica, encantadora na sua estranheza. Imagino uma pequena figura a executar os passos, sozinha numa clareira com bosques escuros de todos os lados e sombras a observar. O dançarino não é humano; é uma entidade com olhos anormalmente grandes num rosto ansioso de nariz comprido. Se der um passo errado, as sombras avançarão. Chamarei à melodia Cabriola de Olhos de Coruja...

— Donal?

— Perdão, o que estavas a dizer? — Tenho de me concentrar. Um deles poderá largar uma pista e não darei por ela porque estou absorto num sonho.

Ross está a fitar-me com perplexidade.

— Perguntei se conseguias escrever uma música de dança no modo teixo. Mas creio que já começaste a fazê-lo, já vi qualquer coisa semelhante no rosto de Faelan quando ele está no auge da criação. Nessas alturas, fica surdo a tudo menos à sua voz interior.

— Admito-o — respondo, com um encolher de ombros e um sorriso. — As minhas desculpas. Quanto à melodia, não sei dizer-te se as pessoas a dançariam.

— Quando estiver pronta, toca-a e nós dizemos-te — diz Flann.

— Os druidas dançam?

— Espera tempo suficiente e descobrirás. Agora não ias ensinar-nos uma jiga?


capítulo 12

DAU

Desde que chegámos à corte, mantive a cabeça baixa e fiz todos os trabalhos que Illann me deu. Mal as pessoas perceberam que ser mudo não me tornava incapaz, apareceram-me também outros trabalhos. O ferrador da corte, Mochta, tem mais trabalho do que consegue despachar e Illann está na forja a maior parte do tempo. Eu estou mais nas cavalariças a tratar dos cavalos, visto que o chefe das cavalariças depressa percebeu que eu tinha jeito para eles. Há aqui um velho cão pastor, Bryn, e quando ele não está a fazer o seu trabalho, fica perto de mim, só a ver o que eu faço. Não me importo com este tipo de companhia.

Os palafreneiros dormem numa zona junto às cavalariças e usam a bomba de água no pátio para as suas abluções. Illann e eu ficámos com uma divisória da cavalariça vazia para os nossos pertences e estendemos os nossos cobertores numa pilha de feno. É mais sossegado e isso significa que podemos conversar baixinho quando o sítio está vazio, à exceção dos cavalos. Illann falou com Archu algumas vezes, contou-lhe o que me aconteceu no caminho. Archu transmitiu algumas informações de uma reunião com o regente e os seus conselheiros.

Temos de manter as regras da missão. Isso significa que as duas equipas não falam uma com a outra a não ser que precisem e, nesse caso, só Archu e Illann. A sala de ensaio dos músicos não fica longe das cavalariças, ouço-os de vez em quando a tocar ou a cantar. Mas não vou aparecer por lá. Tenho de manter o meu disfarce. O mudo. O rapaz que não pode transmitir o que ouve. Faz-me pensar se Archu e Cionnaola escolheram este papel para mim porque acham que sou demasiado propenso a dar as minhas opiniões. Outro motivo para desempenhar sem falhas a minha parte na missão.

Enquanto estou curvado sobre um casco a retirar uma pedra, ou a atar um animal para o tratar, ou na bancada de trabalho a consertar uma fivela, escuto com toda a atenção. Atento ao mexerico que nos poderá levar à harpa desaparecida. Os palafreneiros e moços de estrebaria ouvem muita coisa. São mais ou menos invisíveis para as pessoas que se consideram superiores: chefes de clã, regentes, príncipes. Um palafreneiro é um par de mãos que mantém o cavalo quieto enquanto montam. Um moço de estrebaria ainda dá menos nas vistas. Por causa dele, o cavalo passa a noite numa cavalariça limpa e seca, com palha fresca sob as patas. Por causa dele, o animal tem água limpa para beber e comida boa para comer. O moço de estrebaria esfrega a montada quando chega exausta da caçada. Fala suavemente com ela; toca-lhe com mãos cuidadosas. Mas as pessoas importantes mal pensam nisso. Mesmo quando o moço está diante dos seus olhos, mal o veem. Os meus irmãos são assim: tão seguros do seu lugar no mundo que não pensam nos que estão abaixo deles na ordem das coisas. Aprendi a copiar os seus modos. Evita que as pessoas se aproximem demasiado.

Durante muito tempo soube o que era ser invisível. Eu era a criança cujas pisaduras passavam despercebidas; cujas lágrimas abafadas não eram ouvidas. Aprendi a ficar quieto e silencioso. Aprendi a aguentar golpes sem gritar. Aprendi que as coisas boas nunca duram. Aos treze anos, quando o golpe mais forte me atingiu e eu tentei pôr fim à vida, encontrei um amigo. Tentei afastá-lo, mas ele não se foi embora. Na Ilha dos Cisnes, usei as capacidades guerreiras que ele me ensinou. E agora, nas cavalariças reais de Breifne, estou a aplicar as duras lições da minha infância.

É o fim da tarde e acabei de voltar de ajudar Illann na forja. Estou na nossa baia, sentado na minha enxerga a descansar um pouco antes de iniciar a minha próxima tarefa que é ajudar a encher as gamelas de água. Bryn está deitado ao meu lado. Alguns dos outros rapazes estão a encher baldes de água no poço: ouço o tilintar no pátio das cavalariças. E ouço outra coisa: vozes de homens à conversa, algures ali perto. Não me conseguem ver; estou oculto pelo tabique entre as baias, a não ser que alguém decida passar pela frente.

— Sabes que algumas pessoas dizem que não são deste mundo? Mágicos, como qualquer coisa nas histórias antigas?

— Queres dizer, não pássaros, mas... quê? Monstros? Demónios?

Não são vozes de trabalhadores, de servidores. São tons de pessoas bem-nascidas.

— Tolice. — Esta voz conheço; é do futuro rei, o príncipe Rodan. Ouvi-o no salão à hora da ceia. — Sabes tão bem como eu que não existe tal coisa, Cruinn. Esse tipo de conversa devia ser travada antes que se espalhe pela comunidade. É um disparate e só serve para provocar inquietação.

— Não é o que dizem os druidas. — É o terceiro homem que fala. — Ouvi certa vez um druida contar uma história — continua. — Falava de as pessoas irem para um mundo diferente, através de um Portal, e havia lá pessoas que eram metade homem, metade lobo, ou águia ou gato. Esses corvos podem ser assim. As pessoas dizem que são demasiado grandes para serem pássaros vulgares. Talvez sejam uma espécie de bruxa ou demónio. Pergunta àqueles agricultores que perderam os cordeiros novos na primavera. Ou àquela mulher a quem quase roubaram um bebé do berço.

— Parvoíce, Coll! As águias levam cordeiros todas as estações. Quanto à criança no berço, isso é uma patranha. A mulher viu uma sombra, assustou-se e, porque as pessoas tinham andado a espalhar tolices supersticiosas, chegou a uma conclusão precipitada. Depois fez um bicho-de-sete-cabeças, entretendo metade da aldeia com isso. — O príncipe ergue a voz. Está a ficar irritado. — Quanto mais cedo se acabar com isto, melhor. Os druidas têm de assumir parte da responsabilidade por causa das suas historietas tolas de magia. Quanto a vocês os dois, são homens feitos. Não acredito que amigos meus possam levar a sério essa tolice, nem por um instante. Metade lobo, metade homem? Histórias para crianças, é só isso.

Faz-se silêncio durante algum tempo. Pergunto a mim mesmo o que diria se estivesse envolvido naquela conversa. A coisa que me atacou na estrada não era nenhum corvo vulgar, isso tenho a certeza. Mas uma criatura do Outro Mundo? Nesse ponto, concordo com o príncipe Rodan, mesmo que os seus modos me lembrem, de forma desagradável, o meu irmão Seanan.

Cruinn fala outra vez:

— Mas não são só cordeiros. E então a estrada e pássaros a picar em cima das pessoas quando estas menos esperam? Não ias querer caçar nesse trecho da floresta, a menos que gostasses de pernas partidas e cabeça ferida. Já ouvi as pessoas dizerem que é só uma questão de tempo até que alguém morra. Os corvos não voam assim. Talvez se tiverem filhotes no ninho, mas estamos adiantados de mais na estação para isso. Fala-se muito do assunto. As pessoas querem que se faça alguma coisa. E visto que vais ser rei...

Silêncio outra vez. Devem ser os amigos de Rodan; não creio que mais ninguém falasse com o herdeiro do trono de uma forma tão descontraída, sobretudo não quando ele está a perder as estribeiras. Espero que ele dê uma descasca a Cruinn, mas, quando fala, o seu tom é calmo e frio.

— Alguma coisa se fará. Se houver perigo à espreita nessa parte específica da floresta, as árvores serão derribadas. Há sempre necessidade de madeira boa. Tens razão em relação à estrada. Tem de haver segurança. Isso será a curto prazo. A longo prazo, irei limitar a influência dos druidas. Estão na origem dessas crenças primitivas. Têm de receber instruções para pararem de espalhar estes disparates na comunidade.

— Não há uma velha que vive lá? Na floresta?

De novo, Rodan leva tempo a responder.

— Creio que sim — diz por fim. — Outra fonte de histórias jocosas. Terá de sair de lá antes de começar o derrube das árvores, como é óbvio. Uma abordagem decidida, é o que é necessário. — Quando nenhum dos amigos responde, prossegue: — Pareces duvidoso, Coll. Não confias em mim? Desbastar aquelo trecho da floresta criará bom terreno de caça. De momento, é demasiado arborizado, não é seguro para os cavalos. As pessoas vão-me agradecer.

— Senhor?

Aquela voz é do guarda-costas, o que se chama Garbh. O outro guarda, Buach, tem um sotaque nortenho, ao passo que Garbh parece um homem local.

— O que é? — Rodan parece um pouco irritado. Calculo que estivesse à espera que os amigos acolhessem as suas ideias com mais entusiasmo.

— Está na hora de ir, senhor. O senhor Brondus diz que quer dar-te uma palavra.

— Maldito seja Brondus — murmura o herdeiro do trono, mas ouço os homens a sair da cavalariça e a afastar-se, deixando-me algumas coisas em que refletir.

Aquela mulher e a sua estranha casinha. A cadela. A sua bondade. A minha suspeita de que me tivesse estado a contar histórias enquanto eu dormia. Um futuro rei que não confia em druidas, num local onde os druidas estão entretecidos na estrutura das coisas. Magia ou superstição? Feitiços ou embustes? Não tenho capacidade para deslindar isto. Transmitirei tudo a Illann e, através dele, a Archu. E enquanto eles apreciam a coisa, vou continuar a escutar.


Capítulo 13

LIOBHAN

Percebo que anseio pela Ilha dos Cisnes, onde ninguém perde tempo com coisas estúpidas. Continuo a tentar com as criadas. Durante algum tempo, enquanto elas ainda me consideram uma novidade com o meu cabelo ruivo comprido e a minha vida excitante (pelo menos para elas) na estrada, parece que estou a fazer alguns progressos. Mas a tagarelice delas é trivial e cansativa e não consigo de todo orientá-la para qualquer direção útil. Antes, sentia-me irrequieta. Agora sinto-me como uma explosão prestes a deflagrar. Brocc anda ocupado a aprender segredos dos druidas, vai todos os dias aos Nemetons. Dau soube qualquer coisa sobre o príncipe e os seus planos para o futuro. Eu não fiz absolutamente nada. Bem, quase nada. Dancei duas vezes com Garbh, nas noites em que as duas bandas tocaram juntas, mas o meio de uma multidão de dançarinos a saltar e a rodopiar não é o melhor sítio para coligir informações úteis e até agora não houve oportunidade de conversar com o homem durante o dia. Rodan não gostaria disso. Nem parece aprovar que Garbh tenha tempo livre para dançar, apesar de o outro guarda-costas estar mesmo ao lado dele. De ambas as vezes, ficou a olhar para nós, carrancudo, até a dança terminar. Eu pensava que ele teria melhores coisas em que pensar, estando tão perto de se tornar rei.

Surge então outra oportunidade. Tenho dois vestidos comigo, o prático que usei no trajeto para Breifne, com a saia cortada para poder vestir calças por baixo, e o de lã castanho-avermelhado com o vestido-avental bordado que guardo para as nossas apresentações musicais. Ambos precisam de ser limpos: ou uma lavagem cuidadosa ou pelo menos uma passagem com esponja e escova para tirar o máximo da sujidade. Nos dormitórios não existe forma de fazer isso como deve ser, por isso, uma manhã, vou até ao anexo construído em pedra onde uma equipa de lavadeiras passa os dias a esfregar, torcer e lavar a roupa suja da casa. Nas traseiras deste sítio há cordas esticadas, suspensas em varas de aveleira, e, em dias bons, estão engalanadas com tudo, desde roupa de cama a camisas finas de cambraia. Nos dias chuvosos, e mesmo no verão há muitos, as roupas pingam lá dentro diante de uma lareira aberta. A água é transportada dentro e fora em baldes, enchidos no poço no canto do pátio.

Observo as mulheres com as suas saias apanhadas, a levar dois baldes cheios cada uma para dentro do anexo, e percebo que isto não é mau substituto para o treino de combate.

— Bom dia — digo, aproximando-me da entrada, com o meu vestido castanho-avermelhado no braço e um monte de coisas mais pequenas na minha mão livre. — Posso por favor lavar aqui as minhas coisas? Não me importo de carregar água em troca, ou ajudar a torcer, sou bastante forte. E, além disso, se alguém souber como lavar esta túnica bordada sem a tinta manchar, agradeceria alguns conselhos.

Uma das mulheres endireita-se, lançando-me um olhar de alto a baixo. Percebo que está se calhar a decidir se sou de facto forte. Sou mais alta e mais larga do que a maior de elas todas e penteei o cabelo ao estilo da Ilha dos Cisnes, tranças apertadas presas num nó na nuca.

— Seríamos estúpidas se recusássemos essa sugestão — responde a mulher. — Mas não tenho a certeza de quanto tempo aguentas nos baldes. É trabalho pesado. Leva tempo a adquirir a força necessária.

— Não me importo de experimentar. A propósito, chamo-me Ciara. Já me devem ter visto a cantar e a tocar com os outros músicos.

Elas apresentam-se. A que falou primeiro é Dana. As outras são Maeve, Banva, Grainne e mais algumas. Dana diz a Maeve para se sentar e descansar e eu começo nos baldes com Grainne, enquanto as outras mexem coisas num grande tanque, esfregam roupas numa tábua ou cuidam da lareira.

Trabalho no duro, não para me insinuar, mas porque gosto de testar o meu corpo e certificar-me que ainda é forte. Além disso, se há um trabalho a fazer, por que não fazê-lo? Depois de um longo período nos baldes, trato de mexer a roupa durante algum tempo, é uma tarefa que envolve muito calor, mesmo ao lado da lareira com o vapor no rosto, e a seguir Dana manda-me lá para fora sentar um pouco. Vem sentar-se ao meu lado. O ar fresco parece mágico; inspiro fundo. Uma das mulheres traz-me uma caneca de água.

— Banva está a lavar a tua túnica bordada e o vestido — diz Dana. — Não faças essa cara, as tuas coisas estão nas melhores mãos. Banva trata de todas as vestes delicadas, tem o seu sabão especial próprio e uma escovinha que o irmão fez para ela. E vai pendurá-lo da forma certa para secar depressa.

— Obrigada. Só tenho esse vestido bom. Suponho que não esteja seco hoje à noite.

— A menos que queiras que fique estragado por o passares com ferro muito quente — intervém Banva, aparecendo à porta. — Não podes pedir alguma coisa emprestada para vestir hoje à noite?

— Só se houver alguém do meu tamanho com um vestido para emprestar. Um vestido que seja mais adequado do que o que tenho vestido. Este não só é demasiado modesto, como ainda por cima está mais sujo do que o bom.

Agora estão todas interessadas. Parece que caí nas suas boas graças por mostrar que consigo trabalhar tão duro quanto elas, não que me interessasse fazer aquilo o dia todo. Dana diz a todas que podem sentar-se durante algum tempo e manda duas das raparigas mais jovens buscar comida à cozinha.

— Ninguém aqui é tão alta como tu, Ciara — diz Grainne. — E nenhuma de nós tem uma coisa tão boa como aquela túnica. É linda.

— E a Máire? — pergunta Banva. — Sabem, a ama. Ela tem duas daquelas camisas com fitas no debrum, acho que te iam servir. Podíamos perguntar-lhe. E se não ficar muito bem, podes usar um xaile por cima.

— Dizes que nós podíamos perguntar-lhe. — Dana parece trocista. — Nós quem, exatamente? — Vira-se para mim. — Máire não está nos seus melhores dias neste momento. É provável que esteja meio a dormir ou então dá-te uma resposta brusca.

— Eu peço-lhe. É justo, visto que sou eu que quero a camisa. — Será a mesma Máire que tem a cargo a menina que fugiu para cima do carvalho naquele dia? Avistei a pequena Aislinn ao jantar uma ou duas vezes, mas entretanto não a tenho visto. E prometi-lhe uma lição de flauta. — Acho que sei uma maneira de transformar isto numa troca, não um favor. Mas vou precisar de uma saia também e não creio que Máire seja tão alta como eu.

— As saias dela iam chegar-te aos joelhos — diz Grainne. — Tens pais altos, é?

— O meu pai era uma espécie de gigante, sim.

— Tenho uma ideia — retorque Banva. — Desde que uma de nós tenha uma saia que te sirva na cintura, posso coser-lhe uma guarnição que a desça até aos tornozelos. Temos um saco de restos na arca ali, coisas que sobraram de remendos ou de roupas que as pessoas puseram de parte. Ias ficar espantada se visses o que se deita fora. Bastante boas, a maior parte. Consigo fazer-te uma coisa bonita, Ciara.

— E consegues a tempo de eu usar hoje à noite? — Parece-me muita costura. De facto, é quase como tentar fazer uma bolsinha de seda a partir de uma orelha de porca. Tento e não consigo imaginar o resultado.

— Banva faz muitos trabalhos delicados para as damas finas — explica Dana, retorcendo a boca numa careta. — É um crime que se queira também que ela carregue baldes e torça lençóis. Mas lá está. Disse o que pensava quando não deveria uma ou duas vezes e foi o que arranjou.

— Chiu! — sibilam as outras e Dana obedece, mas a expressão no seu rosto é bem elucidativa. Se eu estava à espera que as lavadeiras fossem acobardadas e servis, estava enganada.

Estou prestes a pressioná-las para obter mais pormenores, quando as raparigas voltam com uma bandeja de pão e carne de carneiro e um jarro de cerveja e a conversa termina. A refeição é meticulosamente dividida entre as trabalhadoras. Tento recusar o meu quinhão, mas depressa se torna claro que a reação correta é comer com prazer.

— Obrigada — digo, quando acabamos. — Devia talvez ir falar com Máire, pedir-lhe uma camisa. Onde a posso encontrar?

— A esta hora do dia poderá estar na horta. Sabes onde está aquele grande carvalho? Fica em frente, com o seu pequeno muro em volta. E algumas macieiras.

— Acho que sei onde é. — Mantenho o meu tom de voz vago. Com certeza que não vou admitir que trepei ao carvalho, onde se tem uma bela visão da horta. — Obrigada. Volto mais tarde para ver como o vestido castanho-avermelhado está a secar. Banva, tens a certeza que tens tempo para trabalhar na saia?

— Arranjarei tempo. As outras ajudam-me. É melhor provares uma das nossas antes de te ires embora, ou ainda perco horas numa coisa que depois não te serve. Dana, és a mais alta. Dá-lhe a tua para ela provar.

Vou buscar uma flauta e enfio-a no cinto, antes de ir procurar Máire. Espero que ela seja uma pessoa com quem possa falar com facilidade, como Dana e as suas companheiras esforçadas, mas desconfio que seja mais como as criadas tolas. Por acaso, Aislinn encontra-me primeiro. Está outra vez sozinha, mesmo do lado de fora do muro baixo da horta, agachada a espreitar para alguma coisa nas ervas altas. A sua criatura empalhada está sentada com as costas encostadas à parede e uma mão-cheia de pétalas de flores no que se poderia considerar o seu regaço.

— Bom dia, Aislinn.

Ela ergue-se como uma mola e rodopia, parecendo um coelho encurralado.

— Trouxe a flauta — digo baixinho. — Está tudo bem?

Aislinn dobra-se e agarra no seu brinquedo, espalhando as pétalas. Aperta-o contra o peito. Tem os olhos postos na flauta quando a tiro do meu cinto.

— Podia dar-te a lição agora, se quiseres. Mas primeiro preciso de falar com Máire.

— Não! — É dito de forma abafada, mas veemente. — Ela não me deixa! De qualquer forma, está a dormir. Podemos ir para a grande árvore?

De pé, agiganto-me por cima dela, o que torna a conversa difícil. Agacho-me.

— A tua amiguinha estava a ter um miminho especial? — pergunto, tentando adivinhar a brincadeira. — Parecia feliz ali.

Aislinn acena com a cabeça, séria como um homem de leis.

— Estava a comer sopa de pétalas — responde. — Não perguntes a Máire. Por favor. Ela vai dizer que não. E vai zangar-se se a acordares.

— Aislinn, sabes o que é uma aposta?

Ela abana a cabeça.

Procuro palavras simples.

— Bem, tu achas que Máire vai ficar zangada e eu acho que não. Tu achas que ela vai dizer que não e eu acho que ela vai dizer que sim. Uma aposta significa que eu prometo fazer uma coisa por ti se tu tiveres razão e tu prometes fazer uma coisa por mim se eu tiver razão.

Ela acena outra vez com a cabeça, olhos arregalados de coruja.

— Fazemos uma aposta?

— Se quiseres. Mas ela vai dizer que não e vai ficar zangada e eu não gosto quando ela está zangada.

Espero não me ter enganado.

— Máire está ali dentro? — Aponto para a horta por cima do muro.

— Hum. A dormir.

— Muito bem. Fazemos o seguinte: entramos ali dentro como ratinhos, sem fazer barulho para não a acordarmos. Sentamo-nos onde ela te disse para sentar e acordamo-la com muita suavidade, para ela pensar que acordou sozinha. E visto que tu estás onde devias estar, não vai ficar zangada.

Aislinn pondera aquilo.

— E a aposta?

— Se eu tiver razão, tens de aprender quatro notas na flauta. É o suficiente para tocar uma melodia.

— E se tiver eu razão? — sussurra ela.

— Então escolhes uma coisa que queiras que eu faça e eu faço-a. Só que se Máire ficar zangada e disser que não, não podemos tocar flauta e não podemos subir à árvore. Teremos de esperar para o fazer noutro dia. Além disso, de qualquer maneira, eu ia dar-te uma lição, mesmo sem aposta. Por isso, escolhes se calhar outra coisa. Podia ensinar-te a equilibrares-te em cima das mãos.

— Está bem. — Aponta para o muro. — O portão fica para aquele lado.

— Passos silenciosos. Como ratinhos, lembras-te?

Ela avança em bicos dos pés. Como um rato muitíssimo grande, sigo-a.

Máire está deitada em cima de um cobertor na erva, à sombra de uma macieira. Está de facto a dormir profundamente, com uma cesta de trabalho ao lado. Tenho tempo de avançar, sentar-me num banco e assegurar-me que Aislinn e o seu brinquedo estão instalados num canto do cobertor antes de proferir alguma palavra. Verifico o que a ama tem vestido: uma saia cinzenta simples, uma túnica a condizer por cima e, por baixo da túnica, uma camisa de cambraia fina, com guarnição de fitas vermelhas e azuis. Ocorre-me que seria muito mais fácil pedir emprestada uma das camisas de Brocc e encobrir alguma deficiência com um xaile bem atado. Ainda podia usar a saia que me ofereceram, para Banva não ficar ofendida.

Estou a tentar descobrir como acordar Máire, quando Aislinn é sacudida por um ataque de espirros e a ama é arrancada ao seu sono. Máire senta-se, alisa o cabelo para trás, ajusta as roupas. Depois vê-me.

— O que estás a fazer aqui? — inquire.

— Andava à tua procura — respondo, a pensar como o seu tom de voz pode ser assustador até para uma criança mais velha. — Mas estavas a descansar, por isso tive uma pequena conversa com Aislinn enquanto esperava.

— Aislinn? — Há uma ameaça velada na voz de Máire. — Saíste da horta?

— Aislinn tem estado aqui comigo — redarguo com rapidez. — Posso apresentar-me? Sou Ciara, um dos músicos. Espero que tenhas tempo para falar comigo.

Máire franze o sobrolho.

— Sobre o quê?

Explico a questão da camisa.

— Acho que Dana e as outras tinham razão; as tuas camisas podem servir-me. E elas mencionaram que tens duas dessas com as fitas.

— Por que daria uma roupa boa a... a uma música itinerante?

Inspiro fundo, compassadamente.

— Dar não, emprestar.

— Vais suá-la toda. Ou rasgar as costuras. — Passa os olhos pela metade superior do meu corpo. — Uma rapariga grande como tu.

— Eu estava a pensar numa troca.

— Queres dizer que vais pagar-me?

Gosto cada vez menos dela quando abre a boca.

— É mais uma troca. Se me emprestares uma das tuas camisas até que as minhas roupas boas estejam secas, eu cuido de Aislinn durante uma ou duas horas esta tarde. Prometi ensiná-la a tocar flauta.

A expressão do rosto de Máire mostra-me que acha a ideia ridícula.

— Flauta?

— Sei tocar muito bem. Ouviste-me, ao serão. E significa que podes ter algum tempo livre para ti. Garanto que recebes a tua camisa limpa e sem estragos.

Ela quer dizer que sim, percebo-o. Tenho de reconhecer que hesita um pouco. Ao concordar, estará sem dúvida a infringir regras.

— Tens de te manter longe de vista — diz —, ou poderei arranjar problemas.

— Faremos isso, não faremos, Aislinn?

Aislinn acena com a cabeça. As suas faces estão rosadas. A mão que aperta a criatura relaxou um pouco.

— E nada de familiaridades com a criança — diz-me Máire, agora com severidade. — É filha da realeza, embora às vezes seja difícil percebê-lo nela. E tu és uma...

— Música itinerante. — A minha mente trabalha a toda a velocidade. Filha da realeza? Que realeza?

— Por isso tratas a criança com respeito o tempo todo. Entendido?

— Oh, sim — respondo. Pobre Aislinn. Não tenho a certeza se os seus guardiões entendem o significado da palavra respeito.

— Muito bem. Trago-te a camisa depois da refeição do meio-dia e podes levar a criança nessa altura. Aislinn, não contas uma palavra acerca disto. A ninguém.

Aislinn acena com a cabeça.

— Em voz alta! — respinga a ama. Apetece-me bater-lhe.

— Não conto — sussurra Aislinn. — Prometo.

Archu está nas cavalariças a falar com Illann, ou melhor, Eoan o ferrador. Dau também lá está, a fazer qualquer coisa na bancada de trabalho. Illann acena na minha direção. Dau ignora-me. Há outros homens ali perto, ocupados com tarefas várias. Não é o momento nem o local para qualquer tipo de conversa secreta.

— Oh — digo, a fingir surpresa. — Estás aí, tio Art. Queria falar contigo. Mas estou a ver que estás ocupado. Talvez mais tarde. — Dou meia-volta e afasto-me, a tentar parecer natural.

Ele vem ter à nossa sala de ensaios pouco tempo depois.

— Desculpa — digo em voz baixa, embora Archu tenha fechado a porta atrás de si. — Reparaste numa menina na casa, ou na horta? Mais ou menos desta altura, com cabelo castanho ondulado? Tem sempre um brinquedo com ela, uma espécie de animal.

— Não posso dizer que tenha reparado — responde Archu. — Mas há por aqui bastantes crianças. Por que perguntas? Está perdida?

Conto-lhe de forma o mais concisa possível a questão de Aislinn e as lições de flauta e o problema da camisa.

— Máire disse que ela é filha da realeza. Antes de eu passar algum tempo com a menina, talvez devesse saber quem são os pais.

— Ah. — O rosto de Archu franze-se um pouco. — Posso arriscar um palpite, embora tenha ouvido dizer que a criança foi mantida longe dos olhares do público e não soubesse como se chamava. Creio que a tua Aislinn possa ser a irmã de Rodan. Nasceram com muitos anos de diferença. Complicações na altura do nascimento da menina levaram a uma doença grave da mãe e, por fim, à morte da rainha. Apesar de eu ter ouvido uma teoria diferente: que o facto de a rainha não ter conseguido gerar outro rapaz lhe provocou uma espécie de declínio. Pareces espantada, Ciara. Por que é tão difícil de aceitar?

— Porque... bem, porque a ama dela é uma tirana e preguiçosa também e Aislinn parece intimidada e medrosa. Apesar de ainda existirem vestígios de uma menininha corajosa, lá bem no fundo. Com certeza que alguém lhe podia dar um pouco de afeto.

— Esperar-se-ia que sim. — Archu está a fitar-me com uma expressão que não consigo interpretar. — Mas é melhor que não sejas tu. Não te podes dar ao luxo de te envolveres.

— Prometi que tomava conta dela esta tarde. Não posso quebrar uma promessa feita a uma criança.

— Surpreendes-me outra vez. Muito bem, cumpre a tua promessa. Mas tem cuidado. Que o menor número possível de pessoas te vejam com a menina.

— Não posso esconder o som de uma flauta.

— É verdade. Mas ninguém precisa saber quem está a receber a lição, desde que a tragas para aqui e tranques a porta. Por acaso a minha velha flauta está ali na prateleira. Podes usá-la. É mais fácil ensinar se tiveres dois instrumentos com o mesmo tom.

— Obrigada, tio Art. Lamento não ter descoberto ainda nada de útil. Continuo a tentar.

— Vou ser franco — diz Archu. — A falta de progressos está a preocupar-me. Donal parece estar sempre prestes a descobrir qualquer coisa, mas nada acontece. Há quatro possíveis pretendentes ao trono, mas três podem ser descartados como improváveis ou pouco adequados. E, até agora, Tassach não tomou nenhuma iniciativa. Brondus não acredita que o faça agora, tão tarde. Mesmo assim, existe inquietação entre os conselheiros do regente. Pergunto a mim mesmo se alguém estará a maquinar algum tipo de conspiração.

— Se não recuperarmos a harpa — replico —, as pessoas poderão não aceitar nenhum pretendente, por mais promissor que seja. O que aconteceria então?

— Suponho que Cathra continuaria como regente enquanto resolviam as coisas. Mas tens razão; a ausência da harpa poderá tornar quase impossível fazer uma escolha. Breifne poderia sucumbir a um longo período de agitação. A agitação leva a enfraquecimento. O enfraquecimento é um convite para que os vizinhos se apoderem de terras, levem gado, talvez até iniciem uma guerra. Terás ouvido falar de uma praga de corvos. Ou aliás, coisas que podem ou não ser corvos, o mesmo tipo de criatura que picou sobre o nosso Nessan na estrada da floresta e quase o fez cair e ao cavalo pelo penhasco abaixo. Não vou dar palpites sobre o que são ou por que razão se encontram por estes lados, mas não há dúvida que as gentes de Cathra estão nervosas e com razão. Esse género de coisa pode provocar graves problemas. Se essas criaturas se espalharem além fronteiras e se acusarem Cathra de não as controlar, isso poderá desencadear um conflito sério. Pode ter ou não a ver com a harpa, claro. Mas parece, segundo uma coisa que o nosso amigo nas cavalariças ouviu, que a presença das criaturas poderia quebrar a confiança de longa data entre os druidas e as autoridades seculares. Cathra quererá ver o novo rei coroado na presença dos druidas, como é habitual, e que a harpa seja tocada para assinalar a sua aceitação pelo povo de Breifne. Será um sinal poderoso para as pessoas de que tudo ficará bem, mesmo que ainda existam problemas para ultrapassar.

Sinto uma simpatia súbita por Lorde Cathra. E se ele tivesse sido feliz a cuidar das suas terras e a viver na sua casa rodeado pelas suas gentes? E se tivesse detestado ter de abandonar essa vida quando o velho rei morreu?

— Há quanto tempo Cathra é regente? — pergunto.

— Há seis anos, mais ou menos.

— Então o pai de Aislinn deve ter morrido quando ela era apenas um bebé.

— Deve ter sido isso, sim.

Isso explica um pouco o comportamento de Aislinn. A criança cresceu como órfã e não vejo sinais de que alguém se tenha preocupado muito com ela. Porém, é uma menininha boa. E inteligente também.

— Ciara. É melhor que te mantenhas afastada de Aislinn e da sua ama. Não é provável que a criança tenha qualquer informação útil para nós e a ama vai achar esquisito se demonstrares muito interesse.

— Sim, tio Art. Além da lição de flauta hoje. Concordaste com isso.

— Não me digas que existe um coração mole sob esse exterior impressionante. — Não está a sorrir.

— Nada disso — respondo. — Só um forte sentimento de justiça.

Um espião deve ser bom a descobrir segredos e a evitar chamar a atenção. Até agora, não mostrei muito talento para a primeira coisa. Estou a ficar melhor na segunda.

Máire encontra-se comigo na horta depois da refeição do meio-dia. Traz a camisa com ela, dobrada. A seu lado está uma Aislinn silenciosa, com o seu brinquedo e com uma nódoa negra nova em volta do olho esquerdo.

— O que aconteceu? — Falo sem pensar.

— Tropeçou e caiu — diz Máire. — Vê se cuidas dela. Ela está sempre a arranjar desculpas para escapar e meter-se em problemas.

Os olhos castanhos solenes de Aislinn fitam os meus. Há uma história triste atrás daquele olhar; sei um pouco daquela história agora, mas quero saber o resto. Que Archu e as suas ordens se lixem!

— Muito obrigada pela camisa. Cuido bem dela, prometo.

— Não saias do quintal. Se chover, podem ir para ali. — Máire aponta para um pequeno edifício, que talvez guarde utensílios para trabalhar a terra. — Venho buscá-la a meio da tarde.

Vai-se embora e eu agacho-me e sussurro para Aislinn:

— Não podemos tocar flauta aqui. Precisamos de um sítio mais secreto.

— A árvore grande! — Os olhos tristes iluminam-se.

Abano a cabeça.

— Não. Precisas das duas mãos para a flauta e não quero que nenhuma de nós caia. Além disso, as pessoas ouvir-nos-iam e quereriam investigar.

— Oh. Onde então?

— Ah, ah! Tenho um sítio especial onde podemos tocar tanto quanto quisermos. Mas temos de ser outra vez ratinhos quando formos para lá. Ou talvez martas, alguma coisa rápida e silenciosa que possa atravessar a floresta sem ser detetada por corujas ou lobos ou algo do género.

Aislinn assente. Adoro a forma como o seu rosto ganha vida quando se esquece de ter medo.

— Vamos lá, então. Fica perto das cavalariças. Se virmos alguém, teremos de nos esconder. — Levo um dedo aos lábios, silenciosas como ratos, e ela faz o mesmo.

Não estando acostumada a crianças, não sabia muito bem como me preparar para a visita dela. Coloquei as duas flautas, a minha e a de Archu, em cima de um banco, com um pano macio por baixo. Trouxe também a minha flauta mais pequena, a de som mais agudo que uso às vezes para as jigas. E consegui alguns bolos de mel e queijo na cozinha, onde há uma ou duas pessoas que adoram ouvir-me cantar. Temos sempre um jarro de água e canecas na sala onde praticamos, visto que cantar e tocar deixam as pessoas com sede. Quanto à questão de a ensinar a fazer o pino, isso terá de esperar para outra altura e um espaço maior.

Aislinn é boa a correr e ainda melhor a esconder-se. Talvez faça muito essas coisas, a tentar fugir à guarda de Máire. Depressa chegamos à sala. Há um ou dois homens na extremidade mais distante do pátio das cavalariças; viajantes a entregar os seus cavalos aos palafreneiros, creio. Lá dentro, com a porta trancada atrás de nós, Aislinn começa a descontrair-se, embora qualquer som mais alto lá fora, um homem a chamar outro, um cavalo a relinchar quando passa, a faça estremecer.

Os seus dedos mal alcançam o buraco mais baixo na flauta de Archu, mas empenha-se mais do que eu esperava. Aprende com rapidez que soprar com demasiada força produz um som insuportavelmente estridente e que soprar muito fraco resulta numa nota mais baixa ou não produz qualquer som. Aprendemos quatro notas e praticamos o uso correto da língua para um início vivo. Eu exemplifico; Aislinn imita. Tem bom ouvido e boa concentração. Enquanto tocamos, o brinquedo fica sentado no banco a seu lado, de costas para a parede, os olhos de lã a olhar em frente. A criatura tem uma expressão perdida, espelhando o aspecto que a sua dona muitas vezes tem. Talvez a boca triste tenha ficado assim com a idade e o descaimento natural; o enchimento não está como era.

Obrigo Aislinn a levantar-se e a andar de vez em quando, para ajudar na concentração; eu faço o mesmo. Praticamos ritmos a bater palmas e a bater os pés. E, passado algum tempo, quando ela aprendeu a usar os dedos para uma quinta nota, dando-lhe maior campo de ação para uma melodia, faço uma pausa e vou buscar a comida e a bebida.

— Tocar música dá-me sempre fome — digo. É uma simples verdade.

Aislinn divide o seu bolo de mel em pequenas porções. Pousa duas em cima do banco em frente da sua criatura e mordisca delicadamente o que resta.

— A tua amiguinha aí tem nome? — pergunto.

— É segredo. — A voz é um murmúrio.

— Oh. Desculpa.

— A ti posso dizer. É Cliodhna. Como uma deusa, numa história.

— É um nome grandioso. — Fico a pensar quem terá arranjado tempo para contar histórias a esta criança solitária. Talvez não esteja desprovida de amigos.

— Ela guarda-me. À noite, quando estou a dormir. E durante o dia, quando... Mantém-me segura. Tenta manter-me.

Mas nem sempre consegue, penso. Cuidado com as tuas perguntas, Liobhan.

— Há quanto tempo tens Cliodhna, Aislinn?

— Recebi-a quando era pequena. Wolfie fê-la.

— Quem é Wolfie? — Imagino uma ama anterior, alguém bondoso e reconfortante com um manancial de histórias e rimas; talvez fosse com ela que Aislinn ganhou o seu amor pela música.

Mas Aislinn não responde e, quando olho para ela, está outra vez curvada, a comida esquecida, os olhos cheios de sombras.

— Também é segredo?

Passado muito tempo, ela solta um suspiro e murmura:

— Wolfie foi-se embora.

Volta a agarrar a criatura contra o peito, passando-lhe os braços em volta como se fosse um filho querido. Talvez Wolfie tenha morrido ou sido mandada embora. Uma velha ama substituída por uma serva mais jovem e mais cruel? Lorde Cathra não parece um homem injusto, apenas um pouco sobrecarregado. Mas, por outro lado, se calhar um regente não se preocupa com o bem-estar de uma criança da realeza. Não se tiver seis anos e for do sexo feminino.

Seria errado intrometer-me. Mas tenho de fazer uma pergunta.

— Aislinn?

— Hum?

— O teu rosto parece ferido. Anda alguém a magoar-te?

Ela abana a cabeça. Está a olhar para o chão; o faiscar de prazer que vi antes apagou-se.

— Sou boa a guardar segredos. — Não consigo ficar calada. — Prometo que não conto a ninguém o nome de Cliodhna. Se alguma vez quiseres falar-me dessas pisaduras ou de outra coisa qualquer, podes fazê-lo. — Peço silenciosamente desculpa a Archu. Zangada comigo, a missão não está acima de tudo?, levanto-me e inicio uma limpeza desnecessária dos pratos e das canecas.

Um som minúsculo chega-me aos ouvidos. Quando me viro, vejo que Aislinn está a chorar. Mesmo a chorar, não com lágrimas suaves, mas com os ombros a tremer e o rosto enterrado fundo no corpo esfarrapado de Cliodhna para abafar os soluços. Agacho-me à frente dela, sem lhe tocar.

— Sinto muito que estejas tão triste. — Falo o mais baixinho possível. — Lamento se te perturbei. Queres o meu lenço? — Tiro-o da minha bolsa e estendo-lho. — É um limpo.

— Quero Wolfie. — As palavras são quase estranguladas pelos soluços. — Mas ele foi-se embora.

Então não era uma ama. Um serviçal que foi bondoso com ela? Uma criança mais velha que vivia ali? Não me atrevo a perguntar se Wolfie morreu. Em vez disso, sento-me no chão ao lado dela e deixo-a chorar, a desejar poder fazer mais para ajudar. Dali a algum tempo, as lágrimas param. Ela assoa o nariz.

— Podemos subir à árvore grande? — pergunta a tremer. — Não para tocar flauta, só para ver... — As palavras esfumam-se.

— Não quero aborrecer Máire, Aislinn. É melhor não treparmos à árvore hoje.

Silêncio. Depois, num sussurro:

— Posso mostrar-te uma coisa?

— Sim, claro. Está aqui?

Ela abana a cabeça.

— Está na árvore.

— Mas eu disse...

— Não lá em cima de tudo. Só um pouco, num buraco. E podemos ser outra vez ratinhos, a ir até lá.

Não consigo dizer que não.

— Está bem. Mas não durante muito tempo e depois temos de voltar à horta e esperar por Máire. Quando lá chegarmos, ensino-te uma canção.

Um sorriso aguado ilumina-lhe as feições.

— Que canção?

— Que tal uma canção de embalar para pôr Cliodhna a dormir?

— Isso seria bom.

— E leva isto. — Estendo-lhe a flauta pequena. — Só emprestada. Não preciso dela nos próximos dias. Isso significa que podes praticar o que aprendeste.

Durante um instante, os olhos brilham. Depois, da mesma forma rápida, a luz esvai-se deles.

— Não posso — diz. — Máire zanga-se se fizer barulho.

Reprimo a minha verdadeira opinião sobre o assunto.

— De qualquer maneira, leva-a; enfia-a no teu cinto. Vou pedir muito gentilmente a Máire se podes praticar um pouco, talvez cá fora na horta. — Embora desta vez não faça ideia do que possa oferecer a Máire em troca.

Quando saímos, há mais pessoas por perto: acabou de chegar um novo grupo de cavaleiros e os palafreneiros estão a levar cavalos para as cavalariças.

— Desta vez, nada de correr — murmuro. — Vamos andar rápido e em silêncio, com as cabeças erguidas, como se tivéssemos todo o direito de estar aqui.

— Como princesas.

— Como guerreiras.

— Como princesas guerreiras.

— Exato. Vamos lá.

O buraco fica bastante alto no carvalho, embora não tão alto quanto subimos da última vez. Espreitando por entre os ramos, consigo ver, para lá da muralha, os bosques que albergam os Nemetons e a leste, ao longe, as colinas arborizadas cujas encostas atravessámos quando viemos para aqui. Sinto uma súbita saudade de casa, não da Ilha dos Cisnes, mas da minha verdadeira casa e da presença reconfortante da minha família. Ponho-a com firmeza de lado.

— Senta-te ali no ramo — diz Aislinn, assumindo o comando. Passa-me a sua criatura, depois levanta-se, equilibrando-se com perícia, e estende a mão para o buraco, puxando uma trouxa embrulhada em pano, junto com uma chuvarada de folhas, galhos e penas. — Isto é a minha caixa de tesouros. Ninguém sabe que está aqui.

— Não direi a ninguém. Prometo.

— Na primavera passada, havia aqui uma família de esquilos. Tive de ficar longe até os bebés crescerem. Agora já se foram embora. Guardo aqui as minhas coisas especiais.

Tira o pano, destapa um baú miniatura de carvalho, ergue a tampa e mostra-me os seus tesouros, um a um. Há penas de oito ou nove tipos de pássaros, identifica-os a todos, e várias pedras com formatos ou desenhos interessantes.

— E estes. — Aislinn mostra três coisas não identificáveis. Galhos? Cerdas?

— O que são?

De repente, fica outra vez triste.

— São da minha espinhos. Olho-brilhante.

— A tua... oh. Queres dizer um ouriço-cacheiro? Tens um domesticado?

— Encontrei-a na horta. Tinha um pé magoado. Wolfie mostrou-me como pôr unguento e ligá-lo. Ela melhorou um pouco. Mas depois morreu.

— Sinto muito. Enterraste Olho-brilhante na horta?

Aislinn abana a cabeça.

— Wolfie enterrou-a nos bosques. Disse que ela preferiria isso. Alguns dos espinhos caíram quando ela estava doente. — Volta a colocá-los na caixa.

— O que é aquilo? — Avistei outra coisa no pequeno baú, uma coisa com um brilho opaco e um formato em espiral.

— Um dragão. Como numa história.

Uma fivela de cinto. Precisa de uma boa limpeza, mas um exame rápido mostra-me que é de prata e, com toda a probabilidade, de valor considerável. Tem a forma de um dragão enrolado. Não é a insígnia de Tassach?

— Onde arranjaste isto, Aislinn? Já a tens há muito tempo?

Tassach visita a corte de tempos a tempos e traz sem dúvida com ele vários servidores. Trata-se se calhar de um caso simples de alguém ter perdido a fivela e Aislinn a ter encontrado algures na casa ou na horta. Não deve fazer ideia do valor que tem. Um dragão de prata seria uma coisa empolgante de encontrar para qualquer criança, sobretudo se a sua vida fosse bastante triste e solitária.

— Foi um rapaz que me deu — responde ela, fechando a caixa e voltando a embrulhá-la. — Era um segredo. Pu-la no cesto de Olho-brilhante, por baixo da palha. Pensei que pudesse ser mágica. Mas ela morreu na mesma.

Lágrimas repentinas fazem-me arder os olhos. Ordeno a mim mesma com severidade para não as deixar cair. O que sou afinal, uma guerreira da Ilha dos Cisnes ou alguma tola sentimental?

— Oh. Então isso foi quando Wolfie cá estava?

— Eu era pequena — diz Aislinn em tom factual. — Pensei que a magia era real.

É a coisa mais triste que já ouvi. Enquanto ela volta a colocar com cuidado a caixa no buraco, esforço-me por encontrar as palavras certas.

— Aislinn?

— Hum?

— É real. A magia é real. Pode não aparecer como tu queres, ou quando a queres, porque é complicada e imprevisível e... difícil. E às vezes é difícil acreditar que é possível. Mas e todas essas histórias antigas? E as canções que cantamos todas as noites? Estão cheias de magia.

— Máire diz que são inventadas.

Maldita Máire e quem deixou esta criança entregue aos cuidados de tal imbecil.

— Algumas são inventadas, sim. O meu... o meu amigo, o que toca harpa, inventa versos a toda a hora. Mas há sempre alguma coisa de verdadeiro neles e às vezes são as partes mágicas que são verdadeiras.

Ela fita-me de rosto sério, olhos cheios de dúvida.

— A música é magia. As histórias são magia. E... — Não posso contar-lhe que o oculto desempenhou um papel importante nas vidas dos meus pais, para não falar de várias outras pessoas ligadas à nossa família. Se não fossem as ações de certas gentes do Outro Mundo, eu não teria dois irmãos, mas apenas um. Mas essa história não pertence a Ciara. — Aparecerá no teu caminho, Aislinn. Talvez só quando fores muito mais velha, mas acontecerá. Espera só e prepara-te.

Falo, mas detesto-me por fazer parecer que é fácil e inevitável. Por transmitir o que poderá vir a ser uma falsa esperança. O que Aislinn precisa é de ajuda prática, imediata, e eu não posso dar-lha. Nem posso oferecer uma amizade duradoura: depois do solstício de verão, não serei mais do que uma recordação. E ela continuará à mercê de pessoas que parecem não se importar nada com as suas necessidades.


Capítulo 14

BROCC

Entro numa rotina fixa, tomo o pequeno-almoço cedo e depois parto para os Nemetons. Os guardas do portão já não me intimam, dão-me os bons-dias e deixam-me passar. Sigo o muro até ao local onde o caminho que se ramifica conduz à sombra sarapintada dos bosques. Quem ou o que habita o Portão de Danu reconhece-me e à minha harpa e deixa-nos passar. Sinto-me honrado e surpreendido por ter conquistado tanto a confiança dos druidas no espaço de oito ou nove dias. Não a sua confiança total, claro, não posso esperar isso.

De manhã, passo tempo com os noviços, a tocar, a cantar e a trocar histórias, ou ajudo na horta. Na refeição do meio-dia, que é em geral rica em legumes dessa mesma horta, tenho oportunidade de observar quase toda a comunidade dos druidas. Alguns estão em retiro, a passar um período sozinhos em oração e contemplação antes de um evento significativo como transitar de um nível de estudo para o seguinte ou participação num ritual. Contei vinte e nove homens à mesa, mas disseram-me que há trinta e nove no total, incluindo os noviços. Quando me vê, o irmão Marcán faz-me um aceno solene de cabeça. Claro que sabe qual o meu propósito aqui, mas não me pode oferecer ajuda notória: passar tempo com o irmão mais sénior pareceria estranho para os restantes irmãos. O irmão Farannán, o bardo-mor, não está especialmente disposto a ser amigável, embora Faelan mo tenha apresentado logo no início. Farannán tem qualquer coisa de falcão, vigilante, feroz, embora se comporte com a mesma calma grave que os outros. Pressinto uma animosidade bem encoberta entre ele e o druida-chefe, embora não se troquem palavras combativas. Está tudo nos olhares, na postura, nos silêncios. Claro que Farannán sabe da harpa e Marcán deve ter-lhe dito por que razão aqui estou. Gostaria de poder falar com o bardo-mor em particular. Quero ver a caverna onde guardavam a harpa. Mas Farannán não faz qualquer tentativa para ajudar. Nunca me encontro em posição de lhe fazer uma pergunta sem que os outros ouçam.

Estou bem ciente de que o tempo passa. E, no entanto, adoro os dias neste lugar de paz, música e camaradagem. É fácil ver-me como um dos irmãos; encontraria propósito e segurança nesta vida de ritual, contemplação e, às vezes, robusta discussão. Espanta-me que o debate se possa tornar tão acalorado sobre um ponto obscuro de filosofia ou interpretação de uma fábula antiga. O mestre do saber e tradições, Odhar, é um homem muito velho, minúsculo e enrugado, com uma inteligência viva e olhos que não perdem absolutamente nada. A relação de afeto entre ele e Faelan é óbvia. É evidente que o harpista e jardineiro autodepreciativo é um dos favoritos aqui.

Na minha terra não tenho um amigo íntimo. Em Faelan reconheço alguém que podia ser esse amigo, se as circunstâncias fossem diferentes. Também gosto dos outros: o ruivo Ross, o alto Sioda e Flann, que tem sempre uma piada preparada. Partilhamos melodias compostas por nós e ensino-os a tocar algumas jigas e danças animadas. Às vezes, dançamos. Escolhemos esses momentos com cuidado.

Após a refeição do meio-dia, Ross, Sioda e Flann vão para outro sítio para o estudo formal das tradições. Como pessoa de fora, não posso assistir. Se Faelan estiver ocupado, encontro trabalho para as minhas mãos a lavar roupas ou pratos, a varrer o chão, a ajudar na preparação de pergaminho, pós para tinta, penas para escrever. Alimento galinhas, patos e gansos. Ajudo a construir um muro de pedra solta. Estou contente com tudo o que aprendi com o meu pai. Não me ofereço para ajudar na despensa, embora pudesse. Revelar o que a minha mãe me ensinou poderia levantar suspeitas de que não sou quem finjo ser.

O ritual iminente é mencionado com frequência, mas na minha presença os homens mais velhos não entram em pormenores e os noviços nunca assistiram a uma coroação. Sei que o ritual terá lugar logo depois do amanhecer no dia do solstício de verão, numa zona aberta entre as muralhas da fortaleza e este trecho dos bosques. Os noviços terão autorização para participar na cerimónia e ajudarão a preparar o local do ritual nos dias anteriores. Estão entusiasmados com isso, o que me entristece. Os limites à sua liberdade devem ser difíceis de suportar. Não são apenas as restrições à saída dos Nemetons. É não poder falar sobre as suas vidas antes de terem escolhido este caminho: família, lar, amigos, todos os laços que ajudam a transformar um homem naquilo que é. Mal entra na irmandade, um druida deixa de falar dessas coisas. As regras dizem que é uma pessoa nova, que leva uma vida nova. E no mundo exterior já não é mencionado pelos que o conheceram e amaram. É como se tivesse partido para sempre. Isso parece-me particularmente cruel. Desconfio que as famílias falam do seu ente perdido em privado. Com certeza que sussurram o nome dele e partilham o seu orgulho e a sua tristeza e perguntam a si mesmas se ele se lembra delas com o mesmo amor que ainda sentem por ele.

Chega uma tarde em que Faelan está livre porque o irmão Odhar está cansado e precisa de uma sesta em vez da discussão sobre tradições que tinham planeado os dois. Durante algum tempo, Faelan e eu tocamos as nossas harpas juntos. Somos ambos mais capazes do que os outros noviços, e estando eles noutro sítio nos seus estudos, apreciamos desafiar as técnicas e ideias um do outro. Estou prestes a sugerir outra peça, mas Faelan pousa a sua harpa, levanta-se e espreguiça-se.

— Está um dia bonito — diz. — Podíamos ir dar uma volta. Levo-te à outra ponta dos bosques, mostro-te uma vista espetacular.

Ponho de lado o meu instrumento e sigo-o para fora da gruta. O dia está quente. O sol incide por entre as árvores e ilumina o caminho à nossa frente. O trilho que o meu companheiro escolhe é um dos que me disseram que me está proibido, mas não o menciono. Caminho ao lado de Faelan, em silêncio, a ouvir os gritos dos pássaros e a pensar que aquilo parece uma oportunidade, mas não tenho a certeza para quê.

É um caminho longo. Emergimos dos bosques no cimo de uma elevação, com vista para pastagens e afloramentos rochosos e, ao fundo da colina à nossa frente, um lago tão perfeitamente redondo que se assemelha a um espelho. Nele está refletido o azul do céu de verão e uma mão-cheia de nuvens. Flores silvestres crescem nas orlas dos campos, junto aos muros de pedra solta. Há ovelhas e cabras a pastar, ou reunidas à sombra das árvores. Casas de agricultores salpicam a paisagem.

Há um banco de madeira perto de nós. Faelan e eu sentamo-nos. Durante algum tempo, apreciamos a vista em silêncio.

— Trouxeste-me para um sítio onde eu não deveria estar — digo por fim. Duvido muito que esteja a tentar arranjar-me problemas. Duvido também que tenha feito isto por engano. O homem é honrado e inteligente.

— Hum, hum. E eu vou fazer-te uma pergunta que não devo fazer.

De súbito, fico em alerta máximo. O meu novo amigo adivinhou que tenho um objetivo secreto aqui?

— Diz então — respondo.

— Estava a pensar se terás ouvido alguma coisa a respeito de uma mulher sábia, uma contadora de histórias que vive na colina a leste da torre. A casa dela é na floresta, mas não distante da estrada. Sabendo como adoras contos e canções, pensei que talvez tivesses ouvido falar dela ou até ido procurá-la.

Não é a pergunta que eu esperava. Estou prestes a responder que não quando me recordo do que Archu nos contou sobre Dau.

— Ouvi dizer qualquer coisa sobre um homem que foi atacado nessa estrada por um corvo gigante. Foi atirado do cavalo e feriu-se. Uma mulher local ajudou-o. Calculo que não viva ali muita gente, por isso talvez essa mulher fosse a tua contadora de histórias. Mas não tenho a certeza. Não a encontrámos quando viemos para cá.

— Mas ela ainda está lá, na floresta? Viva e de boa saúde?

— Se é a mesma mulher, sim, creio que sim. — Por que estará Faelan tão interessado nela? A mulher será parente dele? Sua mãe? Avó? — Mas foi só uma referência de passagem. Queres que vá verificar?

Faelan está a sorrir, mas parece perturbado.

— É melhor não. Era uma amiga, antes de eu entrar para a ordem. Tranquilizar-me-ia saber que ela e... saber que está bem. Um corvo gigante. Isso parece muito estranho.

— Não viram essas criaturas aqui? Fala-se delas na região; são uma fonte de preocupação para os agricultores.

— Estamos bem protegidos aqui — diz Faelan.

Contra corvos gigantes, talvez, penso. Mas não contra pessoas que roubariam a coisa mais preciosa nos Nemetons mesmo nas vossas barbas.

— Tenho uma pergunta para ti — digo. — Se calhar uma pergunta que não devia fazer e não relacionada com os corvos. Se não estiveres autorizado a responder, diz-me.

— Isso parece misterioso. — Alguns passarinhos minúsculos desceram dos carvalhos e estão a saltitar aos pés de Faelan, à procura de insetos. Um deles salta para o sapato dele, fazendo-o sorrir.

— Estou interessado no ritual da coroação. Sei que, como estranho, com toda a probabilidade não poderia assistir à cerimónia e ouvir o bardo-mor a tocar a harpa. Mas adoraria conhecer o conto antigo subjacente a essa tradição e por que se manteve tão importante. Estou ciente que muito do saber druídico é secreto.

— Ah. Esse conto, meu amigo, chegou-me através da contadora de histórias muito antes de eu decidir entrar para a ordem e sinto-me feliz por o partilhar. Faz parte da história de Breifne, uma parte importante, mas creio que as pessoas vulgares quase o esqueceram. A coroação de reis não acontece com muita frequência.

O olhar de Faelan percorre a paisagem tranquila diante de nós. Os passarinhos continuam com a sua tarefa aos pés dele. A imobilidade de Faelan é tal que não sentem medo.

— Há muito, muito tempo, num tempo antes da história, antes de a primeira tribo de humanos pisar as belas costas de Erin — começa, entrando no ritmo cadenciado da narrativa de histórias —, esta terra era habitada pelos Tuatha Dé Danann, isto é, o povo da deusa Danu. Essa raça, por vezes chamada Povo Encantado, era um povo nobre e mágico. Viviam em paz com árvores e regatos e com todas as criaturas: as que desfrutavam da liberdade do ar; as que corriam, pulavam ou rastejavam na terra; as que nadavam ou mergulhavam na água; as que se enterravam no fundo do solo. Nesses tempos antigos, havia também outras raças de gentes misteriosas que habitavam as florestas, as cavernas, as ilhas dos lagos. Todos viviam em harmonia. Durante mais anos do que qualquer pessoa possa contar, esta terra foi pacífica e serena. E muito mais tempo poderia ter permanecido assim, se não fossem os Milesianos que, deslocados das suas antigas casas, velejaram à procura de nova habitação e vieram ter à costa ocidental de Erin. Os Milesianos eram um povo humano; enfureciam-se com rapidez e brigavam até entre si, sempre a querer mais do que tinham. O Povo Encantado bateu em retirada para as suas habitações escondidas; já não andava livremente pela terra. Observou as gentes humanas a avançar por Erin afora, a construir habitações, a fazer muros para manter criaturas lá dentro para as poder engordar e depois comer, a represar ribeiros para os seus próprios fins, a derrubar árvores por causa da madeira sem se preocupar nem um pouco com os pequenos seres que aí se abrigavam, ou com a sabedoria armazenada por um carvalho ou um freixo em todos os anos do seu crescimento. Oh, gentes irrefletidas, de vida curta!

Era uma narrativa pouco vulgar, cativante e forte. Pensada para os ouvidos de druidas, desconfiava eu, não para os de pessoas comuns, que poderiam ficar perturbadas ao ouvir contar a história como se quem falava pertencesse ao Povo Encantado.

— Algumas centenas de anos depois de os Milesianos terem desembarcado em Erin, quando os reis humanos tinham estabelecido territórios nestas costas e havia povoados humanos por todo o lado, havia uma rainha do Povo Encantado chamada Béibhinn, que significa dama branca. Ora algumas das suas gentes, furiosas com as ações destruidoras dos Milesianos, queriam uma guerra, usando todos os poderes mágicos à sua disposição, e tinham muitos. Mas, ao contrário de outras rainhas antes dela, Béibhinn foi contra essa ideia. Pois tinha visto que iam coroar um novo rei jovem como governante de Breifne no reino humano e parecia-lhe que chegara a altura de constituir um acordo sensato e pacífico. Béibhinn queria acima de tudo evitar o horror da guerra que, afinal, não constituía solução para nada. Consultou os seus sábios e estes concordaram que, para estabelecer uma trégua duradoura com os Milesianos, solicitariam um conselho com o futuro rei, no qual ofereceriam um penhor significativo de confiança. Mas o que deveria ser? O que era suficientemente precioso, o que continha poder, o que continha beleza, sabedoria e verdade suficientes para manter em harmonia duas raças tão diferentes durante mais do que uma mera centena de anos ou isso?

Um arrepio percorre-me, o toque de alguma coisa mais antiga do que o tempo.

— Havia à guarda do povo de Béibhinn uma harpa de notáveis qualidades — continua Faelan. — Essa harpa pertencera a Eriu, uma rainha dos Tuatha Dé, uma de três irmãs de tempos antigos. Esta bela terra recebeu o seu nome. A harpa era um presente de um grande bardo, em troca desta utilização do nome de Eriu. Era, de facto, um instrumento feito pelos Milesianos, mas desde que Eriu a guardava, essa harpa desenvolvera um poder que ultrapassava qualquer coisa que o mais hábil artesão humano conseguiria fazer. Nas mãos do executante certo, na altura certa, o seu som ecoaria com tal poder e beleza que até o mais desconfiado dos ouvintes saberia que falava a verdade. Essa harpa era o símbolo de paz de que Béibhinn necessitava. Assim convocou-se o conselho. Neste lugar havia, e há, portais entre o mundo do Povo Encantado e os reinos dos humanos. Foi através de uma dessas passagens ocultas que Béibhinn veio ao encontro do rei humano no campo cheio de erva que ficava entre a habitação do rei e a floresta. O novo rei, embora jovem, falou com sabedoria e de forma moderada e escutou tudo o que Béibhinn tinha para lhe dizer. Depois a rainha do Povo Encantado presenteou o rei de Breifne com esse presente maravilhoso: a harpa dos seus antepassados e dos dele, pois embora Eriu fosse a antepassada de Béibhinn, a harpa tinha sido criada por Amergin, um bardo humano. Foi acordado entre os dois líderes que a harpa seria guardada longe de olhares públicos, mas que sempre que um novo rei fosse coroado nesta região seria tocada no ritual, que acontecia sempre no dia do solstício de verão. O instrumento seria doravante conhecido como a Harpa dos Reis. A oferta foi feita e recebida para selar o acordo solene de que não haveria nenhum conflito entre o Povo Encantado e os humanos no mundo de Breifne por um período de cinquenta vezes cinquenta anos. Se, em qualquer altura, houvesse agitação, o assunto seria resolvido com um conselho, não com atos de agressão. No dia desse primeiro conselho entre rei e rainha, um bardo-mor dos druidas foi convidado para tocar a Harpa dos Reis para as gentes reunidas das duas raças e falou-se da música que gerou com admiração e reverência muito depois das últimas notas se terem extinguido. A harpa foi levada para o bosque dos druidas e aí guardada em segurança com encantamentos mágicos. Como ficaste a saber, a Harpa dos Reis ainda é tocada em todos os rituais de coroação. Espera-se que quando as pessoas ouvem aquele som extraordinário se recordem da aliança entre o Povo Encantado e os humanos e como é importante manter essa fé. É, ou devia ser, uma das responsabilidades mais significativas de qualquer rei de Breifne.

Faelan emudece. A história terminou.

— Uma bela história, muito bem contada — comento.

— Para recordar épocas passadas boas e justas — diz, mas a expressão tranquila desapareceu do seu rosto. — Uma promessa de futuros tempos de paz.

— Mas...? — arrisco.

Faelan suspira.

— O mundo muda. As pessoas não praticam os costumes antigos nas suas vidas diárias como outrora faziam. Estão a perder o respeito pelo mundo natural; não entendem a importância da história. Essa é uma das razões por que escolhi entrar para a ordem, Donal. Como druida, posso ajudar a fortalecer a crença das pessoas; através da música e dos contos, posso ajudá-las a compreender a antiga sabedoria e como é importante para a nossa existência. — Há agora um brilho nos seus olhos. A sua forma de narrar histórias é tão extraordinária como a sua música. É um homem que poderia exercer grande influência, se lhe fosse dada essa oportunidade.

— Como podes fazer isso se as regras da ordem te mantêm afastado do mundo lá fora? — Mal as palavras me saem da boca, desejo não as ter dito. — Sinto muito. Não me cabe a mim contestar a ordem. Estou grato por me ter sido concedida entrada na vossa comunidade durante estes poucos dias. Não quero tecer críticas. — Mas essa última parte é uma mentira. As regras são importantes, para manter ordeira uma comunidade, para providenciar segurança e proteção. Mas as regras dos Nemetons parecem-me demasiado restritivas. Sob certos aspectos, cruéis.

— Tenho de ser paciente. As oportunidades surgirão quando... se... concluir o noviciado com êxito. Quem sabe poderei abandonar este lugar e tornar-me um desses irmãos solitários e errantes, parte eremita e parte menestrel. Uma vida não muito diferente da tua, meu amigo. — O sorriso de Faelan é caloroso agora. O sol colora com um toque de dourado o seu cabelo castanho e ilumina as suas feições simples.

— Paciente de facto — comento. — Que idade terás quando terminares o noviciado?

— Serei uma barba grisalha de vinte e sete anos. Não interpretes mal o que quero dizer, Donal. Adoro a vida dos Nemetons. É um lugar de profunda paz. Um lugar onde um homem pode abrir a sua mente às vozes dos deuses. Um refúgio onde um estudioso pode estudar e um músico cantar e tocar quanto lhe apetecer. Acho que as regras são rígidas? Sei que são. Considero-as demasiado rígidas? Às vezes. Vejo as saudades de casa nos olhos dos jovens noviços e compadeço-me deles. Mudaria as coisas se pudesse? Permitir-lhes-ia visitas de vez em quando, enviá-los-ia para a comunidade mais cedo no período do noviciado? Talvez. Mas a ordem existe em Breifne há muito tempo e eu estou a fazer o noviciado há menos de três anos. Entre outras qualidades, praticamos a humildade. — Levanta-se; os passarinhos voam para os ramos do carvalho. — Agora é melhor regressarmos.

Estamos quase a chegar ao povoado dos druidas quando faço a pergunta.

— Já alguma vez a ouviste ser tocada, Faelan? A Harpa dos Reis?

— Uma nota ou duas, às vezes, se estou na gruta adjacente quando Farannán está a cuidar do instrumento. O som é... não é como descrito na história. Creio que só por ocasião de uma coroação se ouve a verdadeira magia da harpa. Ouvi dizer que é excecional.

— Suponho que vos deixarão sair para o ritual no dia do solstício de verão. Quero dizer, os noviços.

— Estás a fazer-nos parecer uma horda de animais selvagens mantidos em cativeiro, Donal! Sim, teremos oportunidade de ver o novo rei coroado e de ouvir a harpa em todo o seu esplendor. Devias lá estar também. Seria uma coisa para contares um dia aos teus filhos. Uma coisa sobre a qual poderias compor uma canção.

Mas tu nunca terás filhos, penso. E imaginar isso é um pouco triste, porque com certeza que este homem daria um bom pai.


Capítulo 15

LIOBHAN

Archu disse-me para não me envolver com Aislinn. Uma lição de flauta porque prometi, depois afastar-me, foi o que ele disse. Mas não posso deixar as coisas só por uma lição. Gastaria tão pouco tempo se me sentasse e tocasse algumas notas e batesse palmas para demonstrar alguns ritmos, brincasse com a adorada Cliodhna de Aislinn e visse um sorriso surgir no rosto da criança. Não me esqueço da missão. Sei que o tempo está a passar muito depressa. Posso fazer duas coisas ao mesmo tempo: animar Aislinn e descobrir por que razão a ama é tão irritadiça e estranha. As pessoas não ficam assim sem um motivo. Devo investigar tudo o que se possa relacionar com a harpa, e se Máire cuida da irmã do herdeiro, então está perto da família real.

Faz tempo que devolvi a camisa de Máire com os meus agradecimentos. Não preciso de mais favores. Mas procuro-a e encontro-a na horta com Aislinn. Aislinn corre para me cumprimentar com um abraço. Máire ainda está com pior aspecto do que antes, muito branca com círculos escuros em volta dos olhos. Está sempre a esfregar as mãos, como se a repetição do movimento a pudesse acalmar. Não gosto da maneira como me fita; não gosto da forma como me fala. Detesto a sua crueldade com Aislinn. Mas pergunto-me qual será a sua história.

— Posso levar Aislinn para um passeio? — pergunto no meu tom mais educado. — Não vamos longe. Talvez até às cavalariças e depois voltamos. Poderemos parar na sala de ensaio para tocar flauta durante algum tempo. Podias descansar ou fazer outras coisas.

Ela hesita. Está ansiosa por ter tempo para si, mas sabe que é contra as regras.

— Por favor, Máire? — É evidente na voz de Aislinn que está à espera de uma recusa.

— Não choramingues! — respinga Máire. — Faço o melhor possível! — Aislinn esconde o rosto na minha saia. Consigo, com dificuldade, calar-me e esperar. Esforço-me por manter a expressão calma. — Muito bem — resmunga a ama, como se fosse ela que me está a fazer um favor. — Trá-la antes da refeição do meio-dia. Aislinn, não te metas em sarilhos. Nada de subir às árvores. Nada de te esconderes onde não te encontremos. Entendido?

— Hum. — Mal se ouve.

Então, de repente, Máire leva uma mão à boca, levanta-se de um salto e afasta-se aos tropeções para um canto atrás de uns arbustos de groselhas pretas. Ouço sons de vómito.

— Espera aqui — peço a Aislinn.

Aproximo-me de Máire, agarro-lhe o cabelo, apoio-a enquanto ela se engasga e arqueja. Continua a vomitar até não restar nada para deitar fora senão bílis aquosa. Procuro um lenço no meu bolso e dou-lho para ela limpar a boca.

Mal se controla, respinga:

— Estou bem! Bem! Vai-te embora.

— Não me pareces bem. Comeste alguma coisa que te possa ter feito mal ao estômago? Tiveste uma dor de cabeça, sentiste-te muito quente? — interrogo enquanto estou a pensar nas várias possibilidades, a perguntar-me se a despensa da casa real estará bem abastecida.

— Estou bem. A sério. — Agora está menos zangada. — Preciso só de me deitar uns instantes. Isto passa. Passa sempre.

Ocorre-me outra pergunta, mas não a faço.

— Vê lá se descansas — digo-lhe, a falar como a filha de curandeira que sou. — E bebe muita água. Tens a certeza que não precisas de ajuda para voltares para dentro?

Ela abana a cabeça sem me fitar nos olhos. Levo Aislinn. Vamos direitas à árvore, Máire já entrou dentro de casa quando lá chegamos, e subimos ao nosso poleiro.

— Pobre Máire — observo, a pensar se o meu pressentimento a respeito da ama estará certo. — Ela fica muitas vezes doente?

— Todos os dias — responde Aislinn. — Sobretudo de manhã.

— E também se cansa muito?

— Hum. Ela estava bem quando começou a cuidar de mim. Costumava brincar comigo.

— Há quanto tempo está na corte, Aislinn?

— Muito tempo.

Isso poderá significar qualquer coisa. Acredito que Aislinn é jovem de mais para ser capaz de me dizer em dias ou semanas ou estações.

— Máire tem um marido? — pergunto. — Tem filhos?

Aislinn fita-me como se a pergunta fosse ridícula.

— Não, pateta! Claro que não.

Trepamos algum tempo e depois vamos às cavalariças, onde Aislinn me mostra o seu pónei, um pequeno cavalo cinzento simpático. Dau, silencioso e servil, vai buscar umas cenouras para que a princesa de Breifne possa dar um petisco ao seu animal. Ela agradece-lhe e quando ele não responde, pergunta-me:

— Por que não diz nada?

— Ele chama-se Nessan e não consegue falar. Mas se pudesse, dir-te-ia uma coisa simpática.

Aislinn decide ser afoita.

— Ciara está a ensinar-me a tocar flauta — diz a Dau. — Já consigo tocar uma melodia. Queres ouvir?

Percebo que ele preferiria desaparecer, mas visto que há um ou dois moços de estrebaria por perto, não é fácil fazê-lo. Assim, acena gravemente com a cabeça. Aislinn e eu vamos buscar uma flauta à sala de ensaio. Estou à espera que Dau tenha desaparecido quando voltamos, mas não: ainda está à espera na baia do pónei. O velho cão que está muitas vezes nas cavalariças juntou-se a ele. Um dos outros homens lança, de forma amigável:

— Arranjaste uma admiradora, Nessan?

Abstenho-me de fazer um gesto grosseiro, visto que há uma criança presente. Dau ignora a observação.

Aislinn toca a sua melodia. Engana-se a colocar os dedos e desiste a meio, com ar de quem vai chorar.

— Lembras-te o que ensaiámos? — Agacho-me ao lado dela. — Inspirações profundas e calmas. Ombros direitos. Pensa a melodia na tua cabeça. Os teus dedos sabem onde ir. Agora tenta de novo.

Desta vez é perfeito. Quando chega ao fim, Aislinn faz uma pequena vénia e eu bato palmas. Na outra ponta das cavalariças, os trabalhadores também aplaudem. A melhor recompensa de Aislinn é o sorriso no rosto de Dau. Não dura senão um instante, mas é genuíno. Aislinn vê-o e esboça um grande sorriso em resposta. Dau inclina de novo a cabeça e depois volta ao seu trabalho. O cão segue-o, próximo como uma sombra.

De volta à sala de ensaio, Aislinn diz:

— Aquele homem deve estar triste.

— Referes-te a Nessan? Porquê?

— Eu estaria triste se não conseguisse falar. Seria difícil fazer amigos.

— Suponho que seja difícil. Mas acho que ele é bom no que faz, por isso os outros trabalhadores são amáveis com ele.

— Devias ensiná-lo a tocar flauta — diz Aislinn. — Assim, mesmo que não conseguisse falar, podia tocar músicas. Então talvez fosse feliz.

Não sei se rir se chorar.

— Não creio que o meu tio Art me deixasse fazer isso. Mas é uma boa sugestão. Tens um bom coração, Aislinn. Agora vamos aprender uma nova melodia, sim?

Brocc chega um pouco mais cedo e juntamo-nos na nossa sala de ensaio antes da ceia, como de costume. Conta-me a mim e a Archu como correu o dia nos Nemetons. Hoje ficou a saber a história antiga sobre a Harpa dos Reis. Eu não sabia que o ritual se baseava de forma tão forte no elo entre os humanos e o Outro Mundo. Não tenho ouvido nenhuma das pessoas aqui falar do Povo Encantado, nem de rainhas de tempos antigos, nem do poder da magia. Nem quando estão a falar sobre o ritual do solstício de verão. O máximo que dizem é que trazem a harpa e que o bardo-mor a toca e que depois o novo rei é aceite por aclamação geral. Por isso, talvez este amigo druida de Brocc tenha razão. Talvez as pessoas tenham esquecido como tudo começou. E talvez já não acreditem no Povo Encantado. À exceção dos druidas, claro. Os irmãos devem lembrar-se e acreditar nisso.

Temos a porta fechada e estamos a tocar música baixinho para disfarçar o som das nossas vozes. Archu está a começar a contar-me e a Brocc qualquer coisa sobre Tassach quando um homem começa a gritar lá fora. Com as portadas fechadas, não consigo entender as palavras, mas o homem está furioso. Qualquer coisa a ver com um cavalo? Uma ferradura? Levanto-me e avanço para a porta. Archu estende a mão para me impedir e abana a cabeça. Agora vários homens estão a gritar obscenidades lá fora. Archu abre um pouco as portadas. Conseguimos ouvir com mais clareza, embora eu não consiga ver grande coisa. Há um homem de costas para mim, as mãos na cintura; é ele que grita mais. Dois outros encontram-se perto, contribuindo com uma ou outra imprecação, mas também a rir-se. O alvo do seu escárnio não se vê nem se ouve.

— Nunca devia ter confiado isto a um idiota como tu! O meu cavalo vai ficar coxo, seu estúpido desmiolado! O que em nome dos deuses está um bronco como tu a fazer nas cavalariças reais? Quem te contratou? Quem te deixou entrar?

Silêncio. Olho para Brocc; ele olha para mim. Estou em pulgas para sair porta fora e lançar algumas palavras bem escolhidas, seguidas por uma estalada certeira na cara do homem. Nenhum de nós se mexe. Deve ser Dau lá fora. Mas se Archu não vai salvá-lo, nós também não podemos.

— Fala, idiota! Por que não me respondes?

Outro silêncio, desta vez mais curto.

— O que raio significa essa brincadeira? És um arremedo de ferrador, é o que és! Disse-te para ferrares o meu cavalo, não é esse o teu trabalho? Como ousas negligenciar as minhas ordens? Agora descobre-me lá alguém que ponha essas ferraduras e despacha-te! Não tenho tempo a perder. É uma égua valiosa que tens aí e se causaste algum dano irreparável, vais pagar caro por isso! Não sabes quem sou?

— Senhor... — o dono da voz não está a tentar reprimir a sua hilaridade — ... o homem não consegue falar. É isso que está a tentar mostrar-te. É mudo.

— Patife! Escumalha!

O som de um golpe, seguido por um segundo; mais imprecações. Archu põe a mão no ferrolho da porta. Leva um dedo aos lábios, a indicar silêncio, e depois faz um gesto para mostrar que devemos ficar onde estamos. Oh, quero tanto sair e acabar com aquilo! Mas Ciara não o faria. Por isso contenho-me.

Archu abre um pouco a porta e sai para o pátio, a perguntar em tom amigável se há alguma coisa que possa fazer para ajudar. Deixa a porta entreaberta e consigo ver o que se passa.

Têm Dau encurralado contra uma parede, ao lado das portas da cavalariça. São três, um ainda a gritar uma invetiva de injúrias, os outros a rir-se. Quando Archu atravessa o pátio, sem pressa, o homem zangado dá um soco na mandíbula de Dau. Dau cambaleia. O seu rosto apresenta marcas de mais do que um golpe. Praguejo entredentes e Brocc, atrás de mim, sussurra:

— Chiu!

— Há por aqui algum problema? — Archu está calmo.

Desta vez o agressor ouve-o, dá meia-volta e ergue um punho cerrado para atacar de novo, fazendo pontaria de forma tão descontrolada que tenho a certeza que acabou de perceber que Archu se encontra ali. O meu coração executa uma manobra estranha no peito e Brocc inspira fundo. O homem furioso é Rodan, herdeiro do trono de Breifne. E, enquanto observamos, a grande mão de Archu sobe, aperta-se à volta do pulso do príncipe e aguenta-o.

Brocc murmura uma imprecação. Eu sustenho a respiração. Dau endireitou-se e está a olhar para nós. Já o vi de rosto lívido e espancado antes, mas isto supera aquela noite no Celeiro. Ele consegue ver-me, tenho a certeza. Faço-lhe um aceno de respeito. Se eu estivesse no lugar dele, já estaria a ripostar. Não conseguiria conter-me. Quanto a ficar em silêncio, estou duplamente satisfeita por não me ter sido dada aquela tarefa específica. Enquanto os olhos dos seus atacantes estão pousados em Archu, Dau ergue uma mão cerrada e leva-a ao coração durante um instante. É como um guerreiro agradece a um camarada.

— O que pensas que estás a fazer? Larga-me! Não sabes...

— As minhas desculpas, senhor. — Archu não larga o pulso do príncipe. — Ouvi gritos. Pensei que estivesses em dificuldades. Mas vejo que não estás a ser atacado. O erro foi meu. — Lança uma olhadela a Dau. — Estás ferido, jovem?

Dau está agora a olhar para o chão, com os ombros curvados.

— O homem não é bom da cabeça — intervém um dos outros homens. Reconheço-os como os amigos de Rodan, Cruinn e Coll. — Não vais conseguir nada dele.

— Larga-me já ou mando-te espancar! — Rodan esqueceu Dau; a sua ira está toda canalizada para Archu. — Ninguém põe as mãos no príncipe de Breifne, labrego! Que te interessa isto, aliás? És um desses músicos itinerantes, não és? Por que estás aqui?

Archu solta-o.

— A ensaiar para a atuação desta noite, meu senhor. Tentamos encontrar um local convenientemente afastado da casa, para o barulho não incomodar as pessoas. Não pude deixar de ouvir o desentendimento aqui fora. Ah, lá está um dos teus guardas.

Não é Garbh, mas o outro, Buach. Vem a correr. Atrás dele vem Brondus. Rodan está a respirar com dificuldade, como se tivesse estado envolvido numa luta a sério, não uma demonstração unilateral de brutalidade. Buach pega no braço do príncipe. Já vi esse tipo de restrição antes. Parece uma coisa suave, mas é quase impossível de se libertar. O guarda murmura qualquer coisa ao ouvido do príncipe. Brondus lança um olhar interrogador a Archu.

— Despeço-me então, meu senhor. Nenhuma ofensa intencional, asseguro-te.

Archu executa uma vénia obsequiosa e depois afasta-se com passo moderado na nossa direção. Ninguém tenta impedi-lo. Mal Archu regressa à sala e fecha a porta, não conseguimos ouvir mais nada da conversa. Através da abertura nas portadas, vejo Brondus pousar uma mão no ombro de Rodan. Buach solta o príncipe. Cruinn e Coll saem com rapidez do pátio da cavalariça. Brondus diz qualquer coisa a Dau e Dau entra a coxear na cavalariça. Ocorre-me que os guarda-costas do príncipe podem ser contratados não só para o proteger de qualquer ataque, mas também para o controlar quando ele perde as estribeiras.

— Comecem outra vez a tocar — murmura Archu, afastando-se da janela. — Devíamos ficar aqui até se irem todos embora.

Brocc senta-se, pega na harpa e inicia a introdução de O Salto de Artagan, embora conheçamos tão bem a peça que quase não precisamos de a ensaiar. Archu acompanha-o com o bodhrán, mantendo o som abafado. Mas eu hesito, ainda a espreitar por entre as portadas. Ali fico tempo suficiente para ver Illann a atravessar o pátio a passos largos, talvez estivesse na forja, e o início de uma conversa em que faz uma série de gestos e Brondus escuta e Rodan tem um ar cada vez mais embaraçado. Buach ainda lá está, agora de vigia. Dau não reaparece.

— Ciara — diz Archu, ainda a tocar. — Precisamos da parte da flauta.

Depois de eu ter começado a tocar, ele diz a coberto da voz aguda da flauta:

— Se descobrir o que se passou ali, dir-vos-ei. Uma coisa ficámos a saber e não é muito agradável. Guardem as vossas opiniões, vocês os dois. Sabem por que estamos aqui. Sabem para que fomos contratados. Concentrem-se nisso. E na música.

Acelera o ritmo, fazendo-me trabalhar a sério. Sabe que por mais ridiculamente rápido que toque eu me sentirei obrigada a acompanhar. Brocc também; mas ele consegue tocar qualquer coisa. Se não amasse tanto o meu irmão, poderia ter ciúmes.

Quanto a Dau, creio que tenho muitos ciúmes dele, embora esteja contente por não estar no seu lugar. Recordando-me dele junto à parede, pálido e a tremer enquanto os golpes lhe choviam em cima, desconfio que o arrogante filho de chefe de clã possa ser exímio como espião. Quanto às cenouras e ao pónei e àquele momento de bondade, não sei o que pensar disso.


Capítulo 16

DAU

O futuro rei de Breifne causa-me algum estrago com os seus punhos. É um teste difícil, ficar ali parado e deixá-lo agredir-me a soco quando eu podia acabar com ele rapidamente, não é grande lutador, apenas um fanfarrão. Pensava ter eliminado uma certa recordação para sempre. Mas enquanto Rodan grita e me bate, o tempo desenrola-se e os meus irmãos estão a levar-me para a cave onde guardamos a fruta e os legumes e a atirar-me de um para o outro até que perco o controlo dos meus intestinos. Deixam-me a chorar, a tremer, caído em fedor e vergonha. Tiveram o cuidado de assegurar que as contusões estão escondidas sob a roupa. Não que isso interesse. Sabem que não direi nada. As ameaças que me fizeram garantem isso. Mais tarde, o meu pai bate-me por ter sujado as roupas. Aquele dia há muito passado rasteja para fora do seu esconderijo enquanto Rodan grita injúrias e me soqueia e os seus amigos ficam a ver, a sorrir.

Como se eu aparasse o casco de um cavalo de forma que o estropiasse. Como se pusesse uma ferradura num cavalo quando tudo o que vi me indicava que a égua devia andar sem ferradura para a pata dianteira direita poder sarar. Como se eu não esperasse para consultar Illann se não me sentisse à vontade para realizar o trabalho de forma segura. Estou prestes a gritar. Ou isso, ou chorar. Depois uma porta abre-se, Archu sai e vejo Liobhan atrás dele. Faz um aceno com a cabeça, como se para me dizer: Bom trabalho. Seja qual for a opinião que tenho sobre ela, aquele reconhecimento é suficiente para me acalmar.

Mal Brondus assume o comando da situação, entro na cavalariça e descubro um sítio perto da baia da égua, um local onde posso ver e ouvir, mas não ser visto. Illann traz Brondus e o príncipe para dentro. Brondus parece sério e decidido; Rodan tem ar de uma criança birrenta. O guarda-costas segue-os, uma presença silenciosa. Onde estava quando o homem que devia vigiar me atacava?

— Mestre Eoan — diz Brondus —, explica, por favor, o estado da égua e por que razão o teu assistente se recusou a ferrá-la.

Quando o príncipe tenta interromper, acrescenta, ainda cortês:

— Senhor, se permites, preciso de ouvir primeiro o relato de Eoan. Depois poderás dizer-me o que te deixou tão insatisfeito.

— Esta égua foi mal ferrada no passado, senhor Brondus. — Illann também mantém um tom de voz muito educado. — Vê aqui, a pata dianteira direita... — Avança, ergue a pata para Brondus poder ver bem o casco; o facto de ela o deixar fazer aquilo sem qualquer tentativa de escoucinhar mostra bem o excelente temperamento da égua ou o jeito que Illann tem para lidar com cavalos em geral, ou ambas as coisas. — Quando o príncipe Rodan a trouxe esta manhã, expliquei que o casco estava gasto de forma irregular por causa de ferraduras mal colocadas e disse-lhe que retiraríamos as ferraduras velhas e apararíamos os cascos, mas não lhe poríamos outras ferraduras hoje. Se o fizéssemos, arriscaríamos aleijá-la para sempre. O príncipe Rodan não ficou contente com isso. Sei que quer montá-la amanhã. Mas eu não o faria. Ele foi-se embora e eu tive de fazer umas ferraduras para outro grupo, lá na forja. Por isso dei a Nessan a tarefa de tirar as ferraduras antigas e aparar os cascos. O que ele fez, de forma muito capaz. O que ela precisa agora é de andar sem ferraduras até que os cascos se endireitem. Fazia-lhe bem passar algum tempo no pasto e fazer só exercício leve. Uma bela rapariga. — Dá uma pequena palmada no pescoço da égua e depois sai da baia.

Brondus olha para Rodan, oferecendo-lhe a oportunidade de defender a sua causa. Rodan franze o sobrolho. Imagino-o como rei e fico contente por não viver em Breifne.

— A égua é minha — diz e percebo que está a tentar manter a voz calma, embora esteja a respirar com dificuldade. — Sou o príncipe de Breifne. Este homem é um ferrador e nem um dos nossos. Está a ser pago para realizar um trabalho e devia fazê-lo. Se lhe ordeno que ponha ferraduras no meu cavalo, ele põe ferraduras no meu cavalo. E fá-lo ele. Não quero que um pateta qualquer ponha as mãos nos meus valiosos animais...

— Como disse anteriormente, senhor — Illann fala baixinho —, o meu assistente fez um excelente trabalho. É evidente que confias na tua gente. Talvez pudesses pedir a um dos ferradores da corte para vir examinar as patas da égua? Não me importo de aceitar a opinião dele sobre o trabalho do meu assistente. Por acaso, consultei Motcha depois de teres ido embora esta manhã, para ter a certeza que não devia pôr as ferraduras na égua. Ele concordou comigo.

Rodan não pode fazer mais nada. Diz mais umas fanfarronadas e depois emudece. Chegam a acordo sem qualquer necessidade de chamar Motcha ou outro ferrador da corte. A égua vai descansar até que Eoan ache que está pronta para ser outra vez ferrada. As cavalariças de Lorde Cathra não têm falta de boas montadas; o príncipe só tem de falar com o chefe das cavalariças, lembra Brondus. O que me parece uma coisa que Rodan já deve com certeza saber, visto que tem dezoito anos e, tanto quanto sei, viveu aqui toda a sua vida. Talvez, quando perde as estribeiras, se recuse a ouvir a voz da razão.

Quando já se foram embora, Illann dá-me a tarefa de levar a égua lá para fora para a pastagem. É evidente que o animal tem amigos entre os outros cavalos que estão no campo e, quando libertada, afasta-se sem olhar para trás, sem dúvida aliviada por não ter as suas ferraduras mal feitas. Fico ali um tempo, a inspirar fundo. O céu está cinzento e alguns pássaros voam para o trecho da floresta onde vivem os druidas. Espero que não sejam corvos. Pelo menos, não aquelas criaturas-corvo que assustaram a minha égua e quase me atiraram pela ribanceira abaixo para a minha morte. Maldito lugar! Espero que os dias que faltam passem depressa e a missão acabe. Illann contou-me que Brocc está a passar os dias com os druidas. Talvez ele encontre aí a resposta. Aqui fora, em paz, com os cavalos tranquilos, os pássaros a chamar lá em cima e o ar fresco e agradável, quase podia desejar ser eu o bardo e ele o guerreiro. Mas claro que ele precisa de ser ambas as coisas. Ocorre-me um pensamento louco, uma visão em que eu toco ou canto com os músicos. Ponho-o de lado. Eles fazem aquilo desde crianças. É por isso que são tão bons nisso. E eu já fui um tolo hoje e ontem e no dia anterior. Representar este papel não me agrada nada. Não posso aprofundar a minha ideia disparatada. Embora, caso me surpreenda a descobrir talento para a música, pudesse muito bem ser útil.

No fim do nosso longo dia de trabalho, os palafreneiros, ferradores e moços de estrebaria estão todos suados e sujos. Alguém traz baldes de água quente para tomarmos banho. São deixados numa ponta da cavalariça, junto com algumas bacias pouco fundas. Uma grande melhoria em relação à habitual água fria da bomba. Illann e eu partilhamos um balde e uma bacia.

Illann lava-se primeiro. Enquanto ele se seca, eu esfrego a sujidade do meu corpo. Nunca pensei ficar tão contente com um pedaço de sabão áspero. Estremeço quando a escova dura roça num ponto dorido. Não são só as contusões de hoje. O meu pé esquerdo dói no sítio onde um garanhão nervoso o pisou e as minhas mãos têm queimaduras de trabalhar na forja, embora hoje só tenha ferrado a frio. Um ou outro descuido com as ferramentas do ofício também deixou as suas marcas. Suponho que seja uma coisa boa: os estragos tornar-me-ão mais convincente como assistente de ferrador. Recordo-me de Brigid dizer: Não tenhas uma postura tão direita, Nessan. Deixa cair os ombros. E não me fites nos olhos. Agora és um servo, não um senhor.

— Pelas bragas de Morrigan — observa Illann com suavidade. — Tens aí umas mossas, não tens? Fazia-te jeito um unguento a sério. Há aí muito linimento para cavalo. Um pouco vai impedir-te de ficar emperrado. Algumas dessas pisaduras estão com mau aspecto.

Não posso falar, visto que os restantes trabalhadores não se encontram longe, também a lavar-se. Seco-me e visto-me. Envergo a minha camisa extra e depois lavo a suja de hoje na água do banho e penduro-a para secar. A seguir vamos para o nosso dormitório improvisado. Enquanto aplico linimento de cavalo em várias partes do meu corpo, conversamos num sussurro.

— Tens de manter a cabeça baixa depois disto — diz Illann. — Trato eu da preciosa égua se chegarmos a esse ponto. Não quero dar ao homem mais razões de queixa, sejam ou não razoáveis. Poderá ser melhor se ele não te vir à ceia esta noite. Eu trago-te alguma comida.

Estou a achar difícil ouvir e entender. Verdade seja dita que a minha mente ainda está a baralhar passado e presente de forma perturbadora e o linimento não está a ajudar muito com as dores. Por que sou tão fraco? Por que não consigo largar a criança espancada e ser o guerreiro que deveria ser? Uma imagem surge sem ser convidada: eu deitado sossegado na palha aqui, enquanto Illann e os outros estão no grande salão a cear, e figuras a sair do escuro para me agarrar e levar e fazer coisas indescritíveis. Não sei se são Rodan e os seus amigalhaços ou os meus irmãos e não faz qualquer diferença.

— Nessan. — O sussurro de Illann é mais forte do que antes. — Toma. — Coloca-me um cobertor em volta dos ombros. — Senta-te. Não tenhas pressa. Quero saber o que ele te disse. Tudo o que conseguires recordar.

E quando não digo nada, porque não posso, ainda não, ele acrescenta:

— Vai ajudar.

Abano a cabeça. Não vai ajudar. A única coisa que ajuda é esmagar as recordações para ficarem o mais pequenas possível e trancá-las no seu canto escuro.

Illann senta-se ao meu lado. A maior parte dos outros já saíram do celeiro; um ou dois palafreneiros estão a examinar outra vez os animais. Um cão ladra lá fora no pátio. Pergunto-me o que andará a fazer a outra equipa. Suponho que será outra noite de música para eles. Ouvi-os a ensaiar. Rodan a gritar injúrias vis. Risos de troça. E no meio daquilo tudo, a voz doce da harpa, o bater constante do tamborim. A flauta também, por breves instantes. Mas não a ouvi cantar.

— Nessan?

Lambo os lábios. Será que consigo falar? Regressarei à Ilha dos Cisnes mudo e sem préstimo?

— Nunca o vi sozinho. — Até este sussurro rouco exige algum esforço. — Sempre um guarda-costas, um dos dois. E muitas vezes os amigos também. Embora deva ter fugido do guarda quando decidiu discutir comigo. Tinha estado a beber. Cheirei-o no seu hálito.

Vem aí alguém; ouço o som suave de passos no chão de terra e emudeço. Ficamos onde estamos, sentados lado a lado na enxerga.

É um dos palafreneiros, Loman. Para à entrada da baia.

— Ouvi dizer que o rapaz levou uma tareia — diz. — Ele está bem?

— Vai recuperar. Obrigado por perguntares. — Illann tem prática nestas coisas. Consegue parecer amistoso, ao mesmo tempo que diz o mínimo possível.

— Ótimo — retorque Loman, sem se afastar.

Pelo canto do olho, vejo que ele ainda está a examinar-me. Devo ter uma triste figura. Caramba, como detesto isto!

— Não vão querer ficar de mal com uma certa pessoa — sugere Loman, surpreendendo-me. — Mantenham-se longe dele, é o meu conselho. — Olha por cima do ombro, como se se recordasse, tarde de mais, que se o ouvirem dizer aquilo vai arranjar problemas.

— Hum. — Illann levanta-se, como se fosse a algum lado.

— Fizeste bem com a égua — diz Loman. — Não gosto de ver um bom cavalo maltratado.

Parece que a história se espalhou. Mas ele está a ir longe de mais. Um palafreneiro não critica o príncipe herdeiro. Sobretudo não em frente de quase desconhecidos.

— Ele anda muito irritadiço hoje em dia — continua Loman, baixando a voz. — Diz-se que tem medo do que está para vir. Que nunca o quis. Por isso reage com fúria. O problema é se está alguém no seu caminho.

Por Morrigan, será verdade? Rodan tem medo de se tornar rei? Olho para o chão, evitando o olhar de Loman. O homem precisa de calar a boca. Illann anda pela baia, a arrumar coisas. O silêncio torna-se embaraçoso. Levanto-me, cambaleio e volto a cair na enxerga de palha, a tossir. Este estratagema funciona, mas não como eu pretendia. Loman vai buscar uma bebida que promete me vai aliviar as dores. Illann deixa-o ir.

— Mudei de ideias — segreda Illann. — Vens à ceia comigo. E trabalhas comigo na forja amanhã.

Levanto-me outra vez, endireito os ombros, ponho de lado as dores. Sinto-me tonto; o colapso não foi fingido. Fito Illann nos olhos e aceno com a cabeça a concordar. Serei um homem. Um homem da Ilha dos Cisnes. Não serei vítima de um louco bem-nascido.

Loman traz a bebida, que cheira a uma erva pungente que não sei como se chama. Liobhan saberia o que é. Bebo, não sem tremor. Vamos cear. Bocejo durante toda a refeição, mais sonolento a cada momento que passa. Mal regressamos às cavalariças, deito-me na palha e puxo o cobertor por cima de mim.

Illann não se instala para dormir. Fica junto à bancada perto da nossa baia, a afiar a ferramenta de aparar os cascos à luz da lamparina. A vigiar. Penso na Ilha dos Cisnes e no elo entre camaradas. Adormeço com a imagem de Liobhan na minha cabeça. Liobhan parada à porta, a olhar enquanto Rodan me bate.


Capítulo 17

BROCC

Desde que Faelan me contou a história da Harpa dos Reis, não tenho pensado em quase mais nada. Isto parece um quebra-cabeças com muitas peças, um quebra-cabeças que consigo resolver desde que consiga encaixar essas peças da forma correta. Há a mulher na floresta, a contadora de histórias que ajudou Dau, uma pessoa que era amiga de Faelan quando ele era novo. Houve a menção aos portais para o Outro Mundo na história. Visto que a rainha Béibhinn se encontrou com o rei humano na sua corte, isso não sugere que existe uma porta de entrada muito perto daqui? A curta distância? A floresta na colina, poiso dessas estranhas criaturas semelhantes a corvos, parece o local mais provável para isso. E é aí que vive a contadora de histórias.

Serei corajoso o suficiente para ir à procura? O meu coração a palpitar sugere que não. Quero ir. Pressinto que encontrarei respostas, embora não saiba se serão as que Archu precisa. O Povo Encantado recuperaria a sua harpa se acreditasse que a humanidade tinha esquecido o verdadeiro propósito do ritual? Com que intenção? Significaria o fim do pacto antigo entre o reino humano e o Outro Mundo? E quais seriam as consequências para Breifne? As criaturas-corvo não parecem fazer parte do mundo natural, mas serem sim presenças malignas feitas aparecer por magia. A sua chegada poderia indicar uma época em que poderes ocultos estão em conflito com a espécie humana? Talvez seja já tarde de mais para reverter isto. A não ser que a harpa possa ser recuperada. Tenho de ir. Tenho de ir à floresta e descobrir o que essa contadora de histórias sabe.

Surge uma oportunidade. Archu foi falar com um homem que conhece e que vive perto da propriedade de Tassach, alguém que lhe poderá fornecer informações privilegiadas. Partiu a noite passada antes da ceia e poderá não regressar senão amanhã, por isso combinou que a outra banda tocasse. Eu disse a Faelan que não irei hoje aos Nemetons. Mas não contei o meu plano a Liobhan. Não posso. Ela ia querer que eu esperasse pela aprovação de Archu. Ou ia insistir em vir comigo. Isso não vai acontecer. Irei sozinho. Voltarei à hora da ceia. Liobhan vai pensar que estou nos Nemetons como de costume. Terei tempo de confessar quando voltar em segurança. Ou não, se não conseguir descobrir nada útil. É um bom plano. Quem me dera estar mais calmo.

É cedo; quase ninguém se mexe. Vou buscar o pequeno saco de provisões que preparei e desço até ao portão. Os guardas da noite cansados desejam-me bom dia quando me deixam sair. Liobhan ainda estará a dormir. Illann e Dau não precisam de saber nada disto.

A caminhada é boa. Tal como Liobhan, tenho sentido a falta do treino diário na Ilha dos Cisnes e é gratificante andar com passo rápido. Há tempo para fazer isto antes do anoitecer, mas só se mantiver este ritmo de passada e evitar distrações. Não tenho a certeza onde vive a mulher, embora o que ouvi dizer sobre o ataque que atrasou Illann e Dau sugira que há um trilho para casa dela. Talvez exista algum sinal subtil, qualquer coisa que nos escapou quando viemos a cavalo para aqui. Não palavras escritas em madeira ou rabiscadas em pedra, mas símbolos, para o sítio ser encontrado apenas pelos que sabem o que procuram. Penas talvez. Ervas atadas. Pedras brancas pequenas numa pilha organizada.

Tenho o hábito, quando caminho, de cantar as canções que conheço ou inventar novas à medida que vou andando. Se o caminho é fácil e tenho bastante tempo, canto em voz alta. Se é íngreme e difícil, ou se tenho pressa, faço-o apenas na minha cabeça. Agora, quando chego ao local onde a estrada começa a subir, vejo que sou incapaz de cantarolar alguns compassos. O meu coração bate num galope. Sinto-me um pouco enjoado. Tolo Brocc. Imaginas que se deres algum passo em falso aparecerá uma caterva de pessoas misteriosas e te arrastará para o Outro Mundo? Imaginas que os pais que te abandonaram quando eras bebé têm algum interesse no homem em que te tornaste?

Respira, Brocc. Imagina que Liobhan caminha a teu lado, uma guerreira tanto em corpo como em espírito. Imagina que Galen está do teu outro lado. Caminhar com ele é saber que nada te poderá fazer mal. És um guerreiro da Ilha dos Cisnes. Estás numa missão. Não deixes que nada te desvie desse propósito.

O trilho fica mais nivelado. Paro para respirar e olho para os terrenos lá em baixo. À distância fica a corte de Cathra na sua colina suave, com a torre e a muralha em volta. Ao lado ficam os bosques que abrigam os Nemetons. Vistos daqui, parecem pequenos. Vejo uma manta de retalhos de campos murados, vacas e ovelhas a pastar, algumas matas. O caminho em frente está orlado de árvores e, quando avanço, passo através de sol e sombra, sol e sombra. Agora a vista aparece apenas de vez em quando; a ribanceira íngreme até ao vale é habitada por espinheiros e zimbros, surgindo aqui e ali uma árvore mais alta, ao passo que, para cima, o monte é densamente arborizado, com carvalhos e freixos bem altos, um emaranhado de vegetação rasteira por baixo e nem um caminho à vista. Um texugo, raposa ou ouriço-cacheiro sem dúvida que poderia andar por aqui. Procuro sinais.

Um uivo melancólico ecoa algures perto. É uma hora estranha do dia para as corujas estarem acordadas. Viro a cabeça, esperando vislumbrar o pássaro. Quando a torno a virar, há um cão no trilho, uma grande criatura peluda com olhos cor de âmbar. Uma fêmea; talvez arraçada de lobo. O animal fita-me como se tentasse transmitir alguma mensagem. Quase espero que fale com voz humana. Mas não emite nenhum som, vira-se apenas e avança pelo caminho à minha frente. Depois lança uma olhadela para trás para ver se a estou a seguir. A mensagem é clara. Segue-me.

Bastante mais à frente, a cadela sai do caminho principal, subindo uma ladeira íngreme. Há um trilho mais pequeno. Eu poderia tê-lo encontrado sozinho, mas parece que alguém não confiava que o fizesse. Esta criatura está aqui porque alguém sabia que eu vinha. Isso provoca-me uma sensação de formigueiro no corpo. Não tenho a certeza se é excitação ou medo.

Ao cimo do trilho há uma casa. A casa da contadora de histórias sem dúvida, pois está enfeitada com objetos estranhos e atrai-me como água límpida atrai um homem sedento. Passarinhos minúsculos observam-me do telhado de colmo, trocando comentários gorjeados. A cadela aproxima-se da porta e empurra-a com o focinho para a abrir. Uma mulher aparece na entrada. Tem o cabelo comprido de um branco puro, o rosto notavelmente sem rugas. Há nela uma sensação de paz que me tranquiliza. O seu olhar é muito direto.

— Obrigada, Storm — diz baixinho, fazendo um gesto para a cadela passar por ela e entrar. — Bem-vindo — diz depois para mim.

— Saudações — respondo. Por alguma razão, a minha voz treme. — Chamo-me B... Donal. — Parece errado mentir-lhe. — Procuro uma contadora de histórias. Disseram-me que vivia para estes lados. És tu, senhora?

— Poderás conseguir arrancar-me uma história — responde ela, com um pequeno sorriso estranho. — No mínimo, posso oferecer-te água para beber e algo para comer. Vieste a andar desde o povoado? É um longo caminho.

— Agradeço a ajuda da tua cadela. Ela conduziu-me ao trilho certo.

— Entra, então. Senta-te e descansa os pés. Quanto a Storm, o trabalho dela é esse: escolher o trilho certo e assegurar-se que as pessoas não se perdem pelo caminho.

— No entanto, quando vim a cavalgar na outra direção, não vi nem Storm nem o caminho para esta casinha.

— Sei que as revelações chegam quando é a altura certa — diz a mulher.

Não tenho a certeza do que quer dizer; estamos a entrar numa esfera para lá do que é vulgar. Tenho de manter as minhas faculdades mentais.

Ela atarefa-se a preparar uma refeição simples e, quando está pronta, senta-se à mesa à minha frente. Storm finge dormir. Um dos olhos não está completamente fechado; vigia-me.

— Come — pede a mulher. — Estás cansado e ainda há algum caminho a percorrer.

Por que diz aquilo? Depois de ouvir a história, só preciso de regressar à corte. Mas é verdade, é um longo caminho e tenho de me assegurar que volto antes do anoitecer. Aceno com a cabeça e atiro-me à comida que é simples e boa, temperada com ervas. Faz-me lembrar a minha casa. Penso no pai a cavar a sua horta e na mãe a cortar tomilho ou salsa com a precisão de uma mulher sábia e o seu tipo de ferocidade. Penso nalgumas outras coisas que a mãe faz, não só consertar ossos partidos, preparar bebidas curativas e ajudar a dar à luz novos bebés, mas também dar bons conselhos, por vezes baseados em augúrios ou adivinhação. Faelan chamou a esta pessoa mulher sábia e contadora de histórias. Talvez não seja assim tão surpreendente que pareça preparada para a minha visita.

— Posso saber qual é o teu nome? — pergunto.

— E eu posso saber qual é o teu?

Criei uma armadilha para mim.

— Sou conhecido pelo nome que te disse, senhora. Donal.

— Ah. Então serei conhecida pelo nome que me deste. Senhora. Somos cautelosos, nós os dois. Tão cautelosos como se falássemos com pessoas misteriosas, cujos verdadeiros nomes têm muito poder.

Sorrio, apesar do meu constrangimento, recordando vários contos em que adivinhar o verdadeiro nome de um ser feérico permite que um homem ou mulher se livre de sarilhos.

— Não pretendo ser desrespeitoso. Estou limitado por uma promessa.

— Ah. Então vamos tentar outra pergunta. Quem te falou de mim? Quem te mandou cá?

Isto parece seguro. Faelan não disse nada sobre guardar segredo da sua amizade com a contadora de histórias.

— Um druida. Eu sou músico: harpista e cantor itinerante e criador de canções. Estou de visita à corte do regente. Tenho passado algum tempo nos Nemetons, a partilhar contos e músicas com alguns dos irmãos. Um noviço chamado Faelan mencionou-te. Contou-me uma história sobre a harpa ritual usada quando um novo rei de Breifne é coroado. A história das suas origens. Ele mencionou que ouviu a história pela primeira vez quando a contaste.

Ela espera, a expressão calma, mas atenta.

— Eu sabia que vivias aqui em cima algures. Pensei que poderia encontrar o caminho, de uma forma ou de outra. Não estava a contar com Storm.

Ela desvia o olhar. Há qualquer coisa nova na sua expressão.

— Faelan está bem? — pergunta. — Está satisfeito com a sua escolha?

O seu tom de voz mostra-me que foram bons amigos; que pensa nele e que sente a falta dele.

— De entrar na ordem? Sim, creio que está satisfeito. Só o conheço há pouco tempo, mas acredito que a vida de erudição, oração e ritual combina bem com ele. Parece ser muito respeitado, quer pelos noviços mais novos que ajuda e ensina, quer pelos seus superiores.

O sorriso da mulher é caloroso.

— Sem dúvida que ele apreciou a oportunidade de trabalhar contigo — diz. — Ele adora a sua música. Costumava visitar-me com frequência e, quando trazia a sua harpa, tocava e cantava para mim. Faelan mostrava um talento raro, mesmo quando menino. E um entendimento muito além da sua idade.

Aceno com a cabeça. Ocorre-me que a vida dela deve ser bastante solitária, embora possa ser por opção. O que aconteceu com Storm faz-me pensar se a casa só é vista por pessoas de fora quando a contadora de histórias quer uma visita. Deve estar triste por Faelan já não a visitar.

— Não trouxe a minha harpa — digo —, mas conheço algumas belas canções. Se quiseres, cantarei para ti.

Ela sorri.

— Como posso recusar tal oferta, jovem? Podes não ser Faelan, mas possuis a mesma bondade. Acaba a tua comida e depois entreténs-me um pouco.

Quando acabo de comer, pergunto:

— Existe algum tipo específico de canção de que gostes? As minhas criações recentemente têm tendência para ser algo melancólicas. Mas sei canções alegres, canções divertidas, o que preferires.

— Uma canção sobre um viajante que entra na floresta.

Um calafrio de mal-estar percorre-me de novo.

— Tenho uma, mas ainda não está terminada. Não é apropriada para ser apresentada no salão de Lorde Cathra; não consegui dar um fim feliz aos versos.

— Gostaria de a ouvir. Uma pena que não tenhas a tua harpa contigo.

Enquanto canto, ouço na minha cabeça a voz da minha irmã e um rufar que poderá ser fornecido por Archu, suave mas ameaçador. Parece-me, que, enquanto canto, o dia fica mais escuro do lado de fora das portadas da pequena casa, embora saiba que não pode ser assim tão tarde.

A contadora de histórias escuta, concentrada, sem se mexer. Storm está deitada no chão, ainda a observar-me com um olho. De vez em quando, a sua cauda estremece.


Um homem entrou pela floresta adentro

Logo ao amanhecer, quando tudo estava envolto em sono

Os pássaros estavam quedos, as criaturas a repousar

Uma única coruja piava no cimo do carvalho.


Sentiu a quietude infiltrar-se nos seus ossos

E, com ela, recordações de uma casa distante

Um lugar de paz e segurança, amor e luz

Para onde não podia regressar, por mais que se esforçasse.


Chegou por fim a uma clareira secreta

Onde a luz do Sol através das folhas criava manchas de sombra

E aí ficou um tempo a descansar

E a tentar expulsar a tristeza do seu peito.


Adormeceu, talvez, ou sonhou acordado

Os bosques, as criaturas eram mais do que pareciam

Tudo estava animado de magia. As folhas eram joias

E estranhos seres alados banhavam-se em lagos da floresta.


Uma coruja clamou e ele entendeu o seu piar

«Saudações! Não passes adiante!

O que procuras, meu filho? A Terra do Fogo?

A Terra da Esperança? A Terra do teu Maior Desejo?»


Paro.

— Tinha um fim em mente para os versos — explico. — O viajante perceberia que levava a sua casa com ele para onde quer que fosse, através das recordações das pessoas e dos lugares que amara. E continuaria a viajar com nova esperança para o futuro. Mas sempre que tentava criar a parte seguinte, esta tornava-se sombria e desesperada. A melodia é boa, creio.

— É melhor dares-lhe algum tempo — diz a mulher. — Põe os versos de lado um tempo, volta a eles mais tarde. Imagino que não te faltem ideias. A tua voz é notável, Donal. Quem me dera ouvir-te tocar.

— Se eu ficasse mais tempo nesta região, traria a minha harpa e tocaria para ti. Mas nós partimos depois do solstício de verão. Fomos contratados para entreter a corte enquanto as visitas lá estão.

— Nós? — pergunta ela.

— Eu e dois colegas músicos. Viajamos por aí, oferecemos os nossos serviços onde quer que os queiram.

— Hum, hum.

Por que razão sinto que ela percebe quem sou? Até a cadela tem aquela expressão de entendida nos seus olhos cor de âmbar. Terei deixado escapar alguma coisa sem perceber? Ou estará a utilizar os seus instintos de mulher sábia, como faz a minha mãe quando avalia o valor e intenções de alguém? Gostaria de lhe contar a verdade. Pressinto que é de confiança. Mas estou em missão e a missão tem regras.

— Na história que Faelan me contou — digo —, a rainha do Povo Encantado sai para negociar com o rei de Breifne. Passa através de um Portal entre o Outro Mundo e o mundo dos humanos.

A contadora de histórias não faz qualquer comentário, espera apenas que eu continue.

— Pensei que esta floresta poderia ser o tipo de lugar onde se pudessem encontrar esses portais. Sobretudo porque fica tão perto da corte. — Não lhe posso dizer que há portais nos bosques perto da minha casa em Dalriada, ou que sei que humanos passaram por eles e regressaram não muito bem como eram antes. Quando fui entregue aos pais que me criaram, devo ter sido trazido para o mundo humano através desse tipo de Portal. Mas esse bebé era Brocc, não o harpista Donal e eu não falo sobre as minhas origens, mesmo quando não estou a fingir ser outra pessoa. — O que achas?

— Parece-me muito provável — responde a contadora de histórias. — Estavas a planear procurar um deles? Uma busca perigosa, mesmo que saibas o caminho.

— Sou um bardo. Conheço muitas canções e histórias antigas. Entendo a necessidade de precaução. Mas...

— Mas algumas indicações poderiam ajudar? Achas que eu posso conhecer um lugar desses?

— Se eu quisesse encontrar um Portal, perguntaria a uma mulher sábia.

Ela sorri.

— Não a um druida, Donal?

Retribuo o sorriso.

— Os druidas fazem muitas perguntas. Descobri que estão menos interessados em responder. Pensei que poderia procurar as minhas respostas.

A contadora de histórias lança-me um olhar franco.

— A escolha é tua, jovem, não minha. Posso sugerir um caminho. Storm pode pôr-te no trilho certo, embora não possa ir até ao fim contigo.

Sinto um formigueiro na pele.

— Que caminho? — E estou prestes a dizer que tenho de voltar à corte antes do anoitecer, mas não digo nada.

— Um caminho no qual tens de ter o máximo cuidado, se queres regressar com o teu juízo intacto. Deixa-me mostrar-te.

Leva-me para fora da casa em direção à floresta. Storm caminha ao lado dela, calma e serena. Isso tranquiliza-me. A mulher é amiga de Faelan, em quem confio. Os meus instintos dizem-me que não me quer fazer mal. Por que me conduziria a uma armadilha? Sê corajoso, Brocc, digo para comigo. És um homem da Ilha dos Cisnes.

Não andámos assim tanto quando a mulher para. A cadela fica quieta, sem necessidade de qualquer ordem.

— Não vou mais longe do que isto — diz a mulher. — Tenho de apanhar ervas, preparar comida, cuidar da horta.

O caminho à minha frente é quase indiscernível; seria muito fácil perdermo-nos.

— Volta comigo, se for essa a tua escolha. Ou continua.

— Não entendo. Não sei para onde devo ir. As árvores crescem muito densas aqui; o caminho não é claro.

— Ah, meu belo cantor. O caminho é alguma vez claro?

Penso em Faelan, no seu olhar franco, nas suas maneiras firmes, na sua calma profunda e na sua bondade. Penso na minha irmã, cujo ser inteiro está focado no objetivo de se tornar uma guerreira da Ilha dos Cisnes. Penso em Dau no pátio das cavalariças, aguentando a sua humilhação num silêncio estoico.

— Para algumas pessoas, acredito que seja.

— E para outras, a vida continua cheia de perguntas. Dá meia-volta, se quiseres. Ou continua a andar e talvez encontres respostas.

Espreito adiante, por entre as árvores, a tentar convencer-me que existe um caminho.

— Não posso avançar às cegas num lugar como este. As pessoas esperam-me, lá na corte. Quanto tempo dura esta viagem?

— Tudo depende do viajante — retorque a contadora de histórias. — Quanto ao que procuras, isso também é diferente para todos os homens ou mulheres que entram nestes bosques. Uma coisa posso prometer. No trabalho deste dia haverá uma bela canção nova em perspetiva.

Não acrescenta: Para que lado vais? Ambos sabemos que um herói não recua quando confrontado com um desafio.

— Continuarei — digo, esperando que a cadela fique comigo mais algum tempo.

Mas a contadora de histórias profere o nome da cadela baixinho e no espaço de algumas inspirações, as duas desaparecem, caminhando com passos suaves de volta à pequena casa. Estou sozinho na floresta e o caminho à minha frente está cheio de sombras.

Ando durante o que me parece muito tempo. Esta parte da floresta tem muitos carvalhos altos, tornando difícil avaliar a posição do sol, mas creio que já passou a hora da refeição do meio-dia. Chego a uma pequena clareira, onde um dos muitos regatos da floresta corre para um lago redondo e a luz do Sol incide, entre os gigantes da floresta em redor. Sento-me a descansar e tiro as provisões que trouxe. Pergunto agora a mim mesmo o que raio me passou pela cabeça para vir até aqui. Falar com a contadora de histórias foi uma coisa. Entrar na floresta sem nenhuma ideia clara do que procurava... Isso não foi a atitude de um homem da Ilha dos Cisnes, ou de um espião inexperiente. Não se estivesse no seu juízo perfeito. Se encontrar alguém aqui, é mais provável que seja um rapaz com um rebanho de porcos à procura de comida do que alguém do Povo Encantado com a Harpa dos Reis. Cometi um erro, um erro grave. E agora mal tenho tempo para voltar antes de escurecer. Vou voltar por onde vim, mal termine a refeição. Marquei o caminho com ervas atadas e outros sinais semelhantes; deverei conseguir encontrá-lo.

Obrigo-me a comer, embora tenha pouco apetite para a comida. Penso numa coisa que a velha disse lá para o fim. Continua a andar e talvez encontres respostas. Não pode saber que estou à procura da harpa. Por isso, talvez queira dizer respostas para outras perguntas, as que me atormentam desde que tive idade suficiente para perceber que não era como Galen e Liobhan. Irmão deles, mas não irmão deles. Percebeu, só de olhar para mim, ou por me ouvir cantar, que não sou humano? As pessoas vulgares aceitam-me. Mas uma mulher sábia poderá ver a diferença.

Continuo a andar. Para afastar o medo, canto enquanto caminho: uma canção alegre sobre animais. Os pássaros comentam lá do alto, os seus piares algo irónicos. É o melhor que sabes fazer, desconhecido? Se queres avançar, terás de nos dar alguma coisa mais interessante! Gorjeiam melodiosamente como se para exemplificar. Durante algum tempo, continuo a andar em silêncio. É verdade: as suas canções são mais maravilhosas do que qualquer coisa que eu tenha para oferecer. O dia está a passar. Estou a perder o meu tempo. Estou a pôr em risco a missão.

Chego a outra clareira e vejo um pequeno montículo de seixos brancos, cuidadosamente empilhados. Alguém está a pregar partidas. Ou a tentar guiar-me. Mas não é grande pista, porque os calhaus estão colocados no sítio onde este caminho, se se pode chamar caminho, se ramifica em dois. Os dois atravessam a clareira e entram na floresta. Um deles penso que segue de modo geral para nordeste; o outro, para leste. Além disso parecem mais ou menos idênticos e as pedras não favorecem nem um nem outro. Talvez isto signifique: Desiste da busca infrutífera e vai para casa.

Há um regato ali perto; vou encher o meu odre antes de iniciar a viagem de regresso. Os pássaros estão agora calados. Fartos de me provocarem com a minha imperfeição. Sinto-me zangado: zangado por estar a ser avaliado, zangado por não ter conseguido encontrar o que procurava, zangado com os meus pensamentos agitados que não me deixaram caminhar e apreciar a beleza desta floresta, a luz oblíqua, o verde-vibrante dos troncos forrados de musgo, a delicadeza dos minúsculos fetos encaracolados, a surpresa doce de inesperadas flores na sombra. Durante um momento, sinto-me tão furioso que me apetece partir alguma coisa. Ou talvez seja eu que me estou a partir. Caio de joelhos ao lado do regato, com a cabeça nas mãos. O que é isto? O que se passa comigo?

Uma voz ergue-se algures ali perto, a cantar. Desta vez não é um pássaro; uma mulher. Não é o tom forte de Liobhan, mas mais agudo, mais suave, mais delicado. Está a cantar a melodia pateta que acabei de cantar, com todos os animais da floresta, esquilo, marta, raposa, texugo, etc., a reunir-se para uma dança na noite do solstício de verão. A ideia é fantasista; se isso de facto acontecesse, haveria com certeza um banho de sangue. Mas numa canção ou conto, tudo é possível.

Ela, quem quer que seja, canta o primeiro dístico, o primeiro refrão, o primeiro verso do próximo dístico. Depois vacila, como se não se conseguisse lembrar do que vem a seguir. Não consigo perceber onde está. Não se vê ninguém de nenhum lado da clareira, porém a voz soa como se estivesse perto. Uma voz adorável; quero ouvir mais.

Ela canta o verso outra vez, como se isso a pudesse recordar do próximo:

— O esquilo desceu com a sua cauda tão fina...

Mas para de novo, por isso forneço o verso seguinte, fazendo o possível por combinar a minha voz com a dela:

— O seu toucado era feito de rosas silvestres.

Ouço uma explosão de riso deliciado e, sem perder tempo, ela intervém com o refrão Tique-tique, tique-tique. Já estou de pé agora, a olhar em volta, mas ainda não consigo perceber de que direção vem o som.

— A seguir veio o sapo com o seu casaco verde — canta a mulher invisível e para outra vez.

— O príncipe mais belo que já se viu.

Ela quer que isto seja um dueto. Ótimo, vai dar-me tempo para a encontrar antes do fim da canção. Vou para aquele lado, entre os azevinhos de folhas brilhantes? Ou para ali, onde jaz o tronco enorme de um carvalho caído, envolvido com suavidade em fetos e trepadeiras?

— Tique-tique, tique-tique, ah-ah! — cantamos juntos.

Silêncio. Já se foi embora? Ou é a minha vez de iniciar um verso? Decido-me pelo caminho marcado pelo carvalho caído e, enquanto canto, avanço em silêncio.

— A coruja usava um vestido branco como a neve...

— Tecido de teias de aranha e luar pálido — retorque ela e creio que a sua voz está mais perto agora. — Tique-tique, tique-tique, ah-ah! — Um instante de pausa. — O texugo usava uma capa preta — canta ela então. Não é um verso da versão que conheço.

— Com bordado de pérolas nas costas — improviso, a adorar o jogo de pensamento rápido. — Tique-tique, tique-tique, ah-ah! — Imagino um pequeno rufar de tamborim entre os versos e quase penso ouvir alguém a batê-lo, de algum sítio escondido nos arbustos. Passei pelo carvalho caído, seguindo a voz bela por um trilho que serpenteia entre as árvores. Ah! Uma ideia. — A serpente brilhava de renda prateada — canto.

A resposta é rápida, a voz a transbordar de gargalhadas reprimidas:

— Dançava e cantava com graça sinuosa — responde a mulher quase de imediato. Eu pensava que era rápido neste jogo, que é como um jogo que eu costumava fazer com Liobhan quando nos preparávamos para as nossas apresentações. Mas esta pessoa é célere como um relâmpago. — Tique-tique, tique-tique, ah-ah!

Durante um momento, a minha mente fica em branco e não consigo pensar num verso novo. No silêncio, surge aquela pequena batida e, ao mesmo tempo, um rufar de tamborim mais profundo e mais lento, dando-me tempo para refletir. Sinto um silêncio estranho, como se a floresta estivesse à espera da minha resposta. A canção tem, de alguma forma, de chegar ao fim, se não quisermos ficar aqui a inventar rimas até esgotarmos os animais. Ou o fôlego. De qualquer maneira, estou a chegar ao fim deste trilho. Um afloramento rochoso ergue-se à minha frente, impedindo qualquer avanço. A sua superfície está rachada e gasta e muitas plantas ali crescem, pequenas árvores tenazes com as suas raízes enterradas em fendas; musgos e trepadeiras agarrados à pedra. Quando lá chegar, tenho com certeza de voltar para trás. Mas aquela voz! Como poderei afastar-me?

Pensa rápido, Brocc. A floresta está à espera. Ela está à espera da minha resposta. A batida continua, algures lá à frente. O rufar forte chama.

— Por último, veio a rainha das fadas — canto, esperando que isto não infrinja as regras, sejam elas quais forem. Na antiga canção original, a dança é apenas para criaturas.

— Trajada com um vestido verde-floresta — vem a resposta. — Tique-tique, tique-tique, ah-ah!

Continuo a andar e quando o silêncio se prolonga, ofereço outro verso:

— O cabelo era da cor do sol sobre o trigo — canto.

Nenhuma resposta. Estou na parede de pedra. Quando pouso a mão sobre ela, sinto o rufar do tamborim, como se viesse lá de dentro, o coração latejante de algum grande ser de rocha. Por que a mulher não canta de novo? Perdi-a? Tenho de completar o dístico.

— Avançava pela erva com pés calçados de ouro. — Quando canto com Liobhan, as nossas vozes complementam-se na perfeição. A nossa ligação cresceu connosco a vida inteira e permite-nos oferecer uma apresentação homogénea. Mas cantar com esta mulher desconhecida é diferente. É como se as nossas duas vozes pertencessem à mesma pessoa.

Volta, anseio. Não me deixes. Durante um instante, fecho os olhos, chocado com a intensidade dos meus sentimentos; é como se tivesse entrado numa história grandiosa de amor e perda. Abro os olhos e pestanejo, incrédulo. Estava enganado em relação a esta parede de pedra. Não se alonga sem interrupção até onde a vista alcança. Existe um caminho estreito, visível apenas de muito perto; uma fenda na rocha através da qual uma pessoa poderia passar. De dento daquela abertura vem a voz dela de novo, fraca e doce:

— Tique-tique, tique-tique, ah-ah!

O alívio inunda-me. Avanço. Embora não seja um homem de constituição forte, só consigo caber na passagem estreita se tirar o saco das costas e o agarrar contra o meu peito. Ouço os dois tambores juntos: a batida leve, o baque sombrio e profundo. Ela estará à espera que eu continue a cantar? Talvez, se não cantar, chegue ao fim e me encontre sozinho nestes bosques.


Dancem, meus pequenos, gritou a fadinha,

Amanhã é o solstício de verão!


A passagem curva-se para um lado, para o outro. Endireita-se. Adiante, vejo terreno aberto, sol sobre a erva, flores a desabrochar.

— Tique-tique, tique-tique, ah-ah! — canta alguém quando saio para campo aberto.

Estou de facto num relvado, com o sol no rosto e flores abundantes a erguer as suas cabeças como se achassem que sou um fenómeno para ser observado e admirado. Há também muita gente a fitar-me. Gente estranha. Gente misteriosa como as dos contos antigos, algumas assemelhando-se a pequenos homens e mulheres humanos, outras mais parecidas com animais, outras algo no meio. Se eu achava que uma mulher bela estava a cantar comigo, enganava-me; essa pessoa não está à vista, apenas estes bichos raros. A praguejar comigo, dou meia-volta, a pensar em fugir enquanto posso. Vou deixar todo este episódio infeliz para trás. Ainda há tempo para regressar à corte antes do anoitecer, se correr.

Mas a passagem entre as rochas desapareceu. A parede maciça de pedra ergue-se diante de mim, estendendo-se pela floresta, para a esquerda e para a direita. É alta de mais para a trepar e demasiado íngreme até para cabras de montanha. Lá em cima, um pássaro solitário grasna. Talvez seja um corvo; talvez outra coisa qualquer.

Caí no truque mais antigo conhecido, um estratagema que cantei numa centena de canções e contei numa centena de histórias. Entrei de bom grado no Outro Mundo e agora não há saída.


Capítulo 18

LIOBHAN

Brocc está atrasado a voltar dos Nemetons. Encontramo-nos sempre na sala de ensaio, nós os três, para aquecermos com uma ou duas canções antes de irmos para o grande salão. Pensei que ele estaria aqui, apesar de não irmos entreter os convidados hoje. Talvez se tenha envolvido nalguma discussão esotérica com o seu amigo druida. Isso não me surpreenderia. Mas gostava que se despachasse, sobretudo com Archu fora.

As pessoas estão a começar a ir para a torre para a refeição da noite. Vejo-as ir, a minha inquietação a aumentar. Depois desço em direção ao posto da guarda junto ao portão principal. Nesta altura do ano ainda está claro; ainda não acenderam as tochas. Com certeza que Brocc já virá a caminho.

Não fui muito longe quando encontro três guardas que vêm ao contrário, a rir e a brincar depois do seu longo dia de trabalho, talvez na expectativa de um jarro de cerveja e uma refeição substancial.

— Vais para o lado errado, Ciara — diz um deles alegremente. Nesta altura, a maior parte das pessoas vulgares da corte já me conhece das apresentações da noite. — Estava a contar ouvir uma ou duas canções daqui a bocado.

— Acompanhamos-te de volta — oferece um dos outros. — Guarda de honra pessoal.

— Obrigada. — Consigo esboçar um sorriso. — Não vou cantar esta noite; é a vez dos outros músicos. Mas será que viram Donal, o harpista? Está muito atrasado no regresso dos Nemetons.

— Não te posso ajudar, lamento — responde o primeiro homem. — Não o vi hoje.

— Eu vi-o — diz o terceiro homem. — Não agora, mas esta manhã muito cedo, antes de vocês os dois entrarem de serviço. Só que não ia para os Nemetons. Foi na outra direção, em direção aos montes.

— Oh. Obrigada. — Disfarço a minha consternação com outro sorriso e obrigo-me a voltar a passo moderado, acompanhada pelos três homens, embora tudo em mim sejam campainhas de alarme. Por que partiria Brocc sozinho?

Mal chegamos à torre, despeço-me dos meus companheiros, com a desculpa de que preciso de mudar de roupa antes da ceia. Corro para a sala de ensaio para verificar se Brocc deixou algumas pistas sobre o seu paradeiro. A harpa está no canto. Não me recordo se ali estava antes. Poderia ter regressado e ter passado despercebido pelos guardas? Não é nada provável; pelo menos um deles o teria visto. De qualquer modo, teria ido à minha procura, sabendo que eu estaria preocupada se ele se atrasasse. Mas se a harpa está aqui, isso não significa que ele contava estar de volta antes do anoitecer? Ele e aquela harpa são quase inseparáveis.

Vamos ao que é mais importante. Tenho de aparecer à ceia. Se Archu, Brocc e eu estivermos ausentes, mesmo numa noite em que não devemos atuar, as pessoas repararão e farão perguntas. E talvez eu consiga arranjar uma desculpa para falar com Illann, embora ele e Dau nem sempre comam no salão.

Não há necessidade de mudar de roupa. Tenho vestida a minha camisa e a saia que Banva alterou para se ajustar à minha altura, uma veste atraente de um verde-escuro com uma barra de três tiras estreitas, vermelho-escuras em cima, amarelo-dourado no meio e azul no fundo. Banva deve ter levado horas a criar isto, pois as costuras estão bem cosidas e um olhar mais atento à barra revela uma série de pequenos desenhos bordados a seda: uma harpa, uma flauta, um tambor, uma figura a dançar. Quando perguntei às mulheres, disseram-me que todas tinham contribuído com o seu toque pessoal. A minha proposta de lhes pagar pelo seu trabalho foi recusada com sorrisos.

— Foi um prazer fazer isto para ti, Ciara — disse Dana. — A expressão do teu rosto é recompensa suficiente. Todas desejamos poder viver a tua vida: viagens e emoções e música bela. Desta forma, um pouco de nós viajará contigo.

Relembro isto enquanto espero mais um pouco, por mais tarde que seja. Espero que Brocc apareça, mas não vem. E agora há qualquer coisa a acontecer lá fora: ouço vozes, passos, portas a abrir-se de rompante. O que será?

Saio da sala de ensaio e depois encolho-me de volta à porta, para não ser derrubada por um fluxo repentino de homens, todos a dirigir-se para as cavalariças. As pessoas trazem lanternas, há cães, vejo o chefe das cavalariças a dar ordens aos palafreneiros e agora, entre os homens que se juntam no pátio, vejo Dau a conduzir um cavalo cá para fora e a segurá-lo enquanto alguém monta. E vejo Cathra e o príncipe, com Garbh de serviço.

Um grupo montado reúne-se com celeridade. São os homens de armas do regente e todos carregam um número impressionante de armas. Conto quinze homens. Se estão dispostos a correr o risco de sair com os cavalos à noite, o que despoletou isto deve ser sério. Parece que alguns dos homens que trabalham nas cavalariças também vão. E ali... não, não pode ser. Mas é. Illann encontra-se entre eles, montado e pronto para cavalgar.

Alguém pede silêncio. Os cavaleiros viram as cabeças na direção do local onde Cathra e o príncipe se encontram à luz das tochas. Estou à espera que o regente faça um discurso ou dê ordens, mas é Rodan que dá um passo em frente.

— Homens de Breifne! — exclama em tom vibrante. — Bravos guerreiros! Partem esta noite contra um inimigo desconhecido. O portador destas más notícias arriscou a vida para as trazer até nós. Que possam comportar-se com tanta bravura como ele o fez. Perseguiremos os responsáveis por este ato perverso! A nossa vingança será rápida e mortífera! Dizimaremos esta escumalha da face da nossa bela terra. Agiremos com a maior rapidez e propósito. Com esta ação mostraremos aos nossos inimigos uma ira que eles temerão por longos anos vindoiros. Pois como começarmos, assim continuaremos! Vão agora com a minha bênção e que os deuses cavalguem convosco!

É um discurso arrebatador. Se eu não soubesse como o príncipe se comporta quando está furioso, ficaria muito impressionada. Os homens aclamam. Há aqui agora muito mais pessoas, famílias que vieram ver os pais ou irmãos ou maridos partir, membros curiosos da casa real atraídos pela agitação. Depois daquelas palavras de motivação, estava à espera que Rodan cavalgasse à cabeça do grupo. Mas parece que vai ficar em casa.

Os homens avançam em direção aos portões principais. Preciso de saber o que se passa. A quem posso perguntar? A multidão está a dispersar-se, algumas pessoas ainda estão nas cavalariças, entrevejo a cabeça loira de Dau um instante, mas a maioria vai para a torre, pois o que quer que tenha despoletado isto deve ter perturbado a refeição da noite. Olho em volta e avisto Banva, sozinha.

— Banva! — Saio e fecho a porta. — Posso ir contigo?

— Claro. — Parece que esteve a chorar.

— Estás bem?

— Ótima. — Tira um lenço e assoa o nariz. — Osgar, o meu marido, vai com os outros. Tenho orgulho dele, tenho sempre, sempre que se coloca em perigo. Mas é cada vez mais difícil mostrar uma cara corajosa. Sobretudo agora... — A mão desce e pousa de forma protetora na barriga.

— Estás à espera de um filho? Que notícia maravilhosa! É o primeiro?

Ela assente.

— Estou sempre a pensar: e se Osgar não voltar? Ele é corajoso, é um bom combatente, mas... eles nem sabem quem é responsável por isto. Não sabem nada acerca do inimigo. E partir a cavalo à noite... Bem, não me cabe a mim questionar a decisão. Mas quero que o meu homem volte em segurança. Quero que o meu filho tenha um pai. Osgar será um pai maravilhoso.

— Tenho estado ali na sala de ensaio. Não sabia nada disto até o pátio das cavalariças ficar cheio de homens e o príncipe fazer o seu discurso. Ele disse qualquer coisa sobre um mensageiro arriscar a vida para trazer notícias. Que notícias? Onde vão e porquê?

— Um homem entrou agora mesmo no salão, por isso todos vimos. Era um dos nossos homens de armas. Seis deles foram enviados a uma propriedade de um chefe de clã, a noroeste daqui. Escoltavam um homem de leis. Tinha qualquer coisa a ver com gado que tinha sido roubado, atravessado a fronteira e alguns dos animais tinham sido deixados nos campos quase mortos. Lorde Cathra queria que isso fosse resolvido lá, não aqui. Osgar disse que seria por causa de todas as pessoas que estão de visita à corte para a coroação. Enfim, parecia ser uma coisa que não podia esperar. Pensávamos que eles estariam de volta por esta altura, mas só chegou esse homem. O cavalo vinha esgotado e ele tinha sido ferido. Sangue por todo o lado. E... — Banva para de andar; estamos a meio caminho da torre e a maioria das pessoas vai à nossa frente.

— E?

Ela baixa a voz.

— Foi horrível. Não ouvi tudo... ele tossia e arquejava e pensei que ia cair morto ali mesmo no salão, mas queria proferir as palavras. Os restantes foram mortos. Rasgados em pedaços, disse ele. Até o homem de leis. Vinham a cavalgar pela floresta, de regresso a casa, quando foram atacados de repente. Mortos por nada. O nosso homem explicou ao regente onde tinha acontecido o ataque, mais ou menos, e depois desmaiou. Levaram-no para ser observado pelo físico de Lorde Cathra. Depois disseram aos nossos homens para se aprontarem e partirem de imediato, apesar de já ser noite. Parece mau, Ciara. Há pessoas de luto aqui esta noite. E gente com medo do que poderá acontecer.

— Sinto muito. — É inadequado, eu sei. Ela vai ficar preocupada com o marido todos os instantes a partir de agora até que ele chegue a casa em segurança. Rasgados em pedaços. Parece muito esquisito. Uma disputa sobre gado e fronteiras pode levar a um conflito armado se não for resolvida com rapidez e sensatez. Mas, ao que parece, essa questão tinha sido resolvida antes de isto acontecer... não atacaram os homens do regente no seu regresso a casa? Por que fariam isso e de forma tão selvática?

Banva ergue uma mão para limpar as faces. Preciso de mudar de assunto. Por acaso tenho outra coisa para lhe perguntar antes de chegarmos à torre.

— Banva? Tenho uma pergunta delicada para te fazer.

— Hum-hum?

— Sabes a Máire, a mulher que me emprestou a camisa naquele dia? Estava aqui a pensar... desde que me contaste a tua boa notícia... Máire tem um namorado aqui na corte?

Banva arqueia os lábios.

— Um namorado? Tem o que se poderia chamar um amante. Embora duvide que muito amor entre naquilo.

— Então poderá estar grávida? Estava a pensar por que estaria tantas vezes cansada e maldisposta. Depois vi-a a vomitar na horta. E acho que isso acontece com muita regularidade. Não tenho nada a ver com isso, eu sei, mas sinto pena da mulher.

— Ela é que escolheu, a tola. — Há um laivo de pena nas palavras duras de Banva. — Suponho que será mandada embora mal se note. Há uma certa pessoa muito bem-nascida, saberás a quem me refiro, que não quererá o resultado das suas ações em exibição na praça pública. Sobretudo não numa altura como esta. Quando ela se for embora, ele procurará outra mulher para lhe aquecer a cama e satisfazer as necessidades e ser saco de pancada quando estiver com uma das suas fúrias. Se me perguntas, Máire estará melhor longe deste lugar, mesmo como mãe não casada.

— Estás a referir-te ao príncipe Rodan?

Falo num sussurro. Banva acena com a cabeça; não está preparada para proferir o nome em voz alta. Não é surpresa nenhuma confirmar que Máire estar grávida. Choca-me que Rodan seja o pai. Mas quanto mais penso nisso, mais fácil é imaginar o príncipe como causa não só da exaustão e mau humor de Máire, mas também das contusões de Aislinn. Percebo como poderia ser: a criança a ir à procura de Máire e a incomodá-los aos dois; Rodan a perder a paciência como aconteceu naquele dia com Dau e a bater na irmãzinha. Não admira que Aislinn tenha tanto medo. O que, em nome dos deuses, será que o futuro daquela criança lhe reserva?

— Não fui eu que te contei — diz Banva. — Mas ele precisará de fazer alguma coisa muito em breve. Ou será o regente a fazê-lo.

— Não direi uma palavra. — Não é verdade. Terei de transmitir isto a Archu, apesar de não ter nada a ver com a harpa. Penso naqueles homens a aclamar depois do discurso de Rodan e na sua prontidão em cavalgar ao encontro do perigo por ele. Penso em Aislinn com os seus olhos cheios de sombras e as suas palavras tristes. E depois recordo-me que Brocc não chegou e que nem Archu nem Illann estão aqui. Se ele não regressar amanhã de manhã, terei de ir atrás dele sozinha.

Hora da ceia. A conversa é toda sobre um assunto e o ambiente é tenso. A outra banda está a tocar. Reparo, distraída, que são bastante bons, sobretudo o gaiteiro. Vejo Dau sentado entre os moços de estrebaria, uma ilha de um homem só, com a conversa a fluir à sua volta. Recordo-me de ele me dizer que eu devia seguir a vida de um menestrel ambulante. Talvez eu esteja a provar que ele tem razão. Não só não estou a contribuir em nada para a caça à harpa, mas se Brocc está preparado para infringir as regras e partir sozinho sem dizer nada a ninguém, também não estamos a trabalhar como uma equipa deveria trabalhar. Por esta altura, devíamos ter começado a juntar as peças do quebra-cabeças, ver as coisas a encaixar-se. Espero que Archu volte com alguma coisa útil.

Não consigo comer mais nada. Deixo metade da refeição no prato e levanto-me, pedindo desculpa. Tenho a cabeça às voltas e estou a começar a sentir-me doente de ansiedade. Isto não é característico de Brocc. Poderá partir num impulso, mas não ficaria fora muito tempo. Não quereria abandonar a equipa. Algo se passa.

Calculo que não haja dança esta noite, mas imagino que a maior parte das pessoas ficará no salão algum tempo, as pessoas gostam de ficar juntas em períodos difíceis. E há cerveja à discrição. Reparei nos serviçais na mesa real a encher várias vezes a taça de Rodan. O príncipe está a dissertar, batendo com o punho com tanta força na mesa que as travessas e taças saltam e chocalham. Trata-se de livrar Breifne da ameaça, impor a lei aos reinos vizinhos e não permitir que a superstição governe o povo e uma série de outras coisas. Parece veemente e cada vez mais furioso, embora ninguém conteste os seus argumentos. O regente, os conselheiros e os convidados ilustres estão sentados em silêncio, aceitando o discurso inflamado.

Posso esgueirar-me agora e ir dar uma olhadela aos alojamentos dos homens. Dessa forma, saberei se Brocc levou as botas pesadas e a capa. Ele e Archu têm enxergas perto da porta, para poderem deitar-se depois de uma apresentação tardia sem perturbar as pessoas que precisam de acordar de madrugada. Os homens dormem num dos anexos maiores, com a entrada muito próxima da torre principal. Farei isto com rapidez e em silêncio, tal como Eabha nos ensinou na Ilha dos Cisnes.

Ainda não está escuro lá fora, mas há uma tocha a arder por cima da entrada para o edifício. Esta saia não é a peça ideal para não dar nas vistas com uma parede de taipa e barro em pano de fundo. Mas não há ninguém por ali; o pátio está vazio de homens e animais. Tenho apenas de me mover com rapidez e ter uma desculpa preparada se por acaso for vista.

Avanço colada à parede, entro pela porta aberta. Está escuro lá dentro, a única luz é a de uma lamparina em cima de uma arca ao fundo da comprida câmara de dormir. Mantenho-me de um dos lados da porta, verificando se todas as camas estão vazias; certificando-me que não está ninguém sentado nalgum canto. Tudo bem por enquanto. Agacho-me junto à enxerga de Brocc, a segunda a contar da porta, à direita, e verifico a prateleira baixa sob a cama. Todas as enxergas têm uma destas prateleiras. Algumas contêm pertences bem arrumados, roupas dobradas com cuidado, objetos em capas protetoras. Outras são uma confusão de coisas arrumadas à pressa. A capa de Brocc está pendurada do seu gancho na parede; não a levou. Mas as botas desapareceram. Por isso, uma caminhada demorada, talvez em terreno acidentado, o que combina com uma ida à floresta. Precisaria da capa depois de o sol se pôr. Por isso tencionava voltar a tempo da ceia. Os seus objetos pessoais parecem estar todos ali: os sapatos mais leves, as roupas boas que veste à noite, um pente, um ou dois lenços. Debaixo da pilha de roupas, a faca, uma versão maior do que a minha: a única arma que lhe permitiram trazer. Sinto um calafrio. Se ia aos Nemetons, posso entender por que razão não levou uma arma. Mas se partiu nalguma missão...

— E o que estás aqui a fazer, rapariga grande? — A voz arrastada vem de trás de mim. Ponho-me de pé de um salto e rodopio. O futuro rei de Breifne está parado à porta, a expressão tão zombeteira como a voz. A luz tremeluzente da tocha projeta a sua sombra na câmara comprida, transformando o homem em monstro. — Podia tentar adivinhar. Mas vais dizer-me, não vais, querida?

O meu coração bate com força. Como não o ouvi entrar? Uma resposta brusca sobe-me aos lábios e, com dificuldade, engulo-a. Ciara. Sou Ciara. E este homem é o herdeiro do trono.

— Estou à procura de uma flauta, senhor. — A minha tentativa para falar num tom dócil não parece convencer Rodan. Aproxima-se. Estou entre a enxerga de Brocc e a de Archu. Fugir sem tocar no príncipe exigiria ou trepar ou saltar por cima de uma das camas. Duvido que Ciara fizesse qualquer das duas coisas. — Donal levou-a emprestada e eu preciso dela para ensaiar.

— Uma flauta, hum? — Rodan está agora mesmo à minha frente, muito mais perto do que a vulgar cortesia exige. — Não é muito convincente. Sabes o que acho que estavas a fazer?

Onde estão os guarda-costas? Neste momento, poderia ser útil ter testemunhas. Como sou Ciara, olho para o chão e não digo nada.

— Acho que andavas a revistar as coisas de toda a gente, à procura de valores para enfiares nos bolsos. Tenho razão? Sim? Sim? — Faz-me recuar contra a parede e depois apoia as mãos nela de ambos os lados do meu rosto. — Bem, o que devo fazer então? — O seu tom é um murmúrio devasso, asquerosamente íntimo. Arrepia-me a pele. Talvez este idiota pense que as mulheres gostam deste tipo de coisa. — Deverei contar a Lorde Cathra que estavas a roubar? Deverei levar-te à presença de um homem de leis?

Pelos deuses, estou em pulgas para lhe causar algum mal.

— Não estava a roubar! — sibilo. — Disse-te a verdade! Deixa-me ir embora, estás a assustar-me!

— Quê, uma coisa grande como tu, assustada? Nunca. Mas talvez sejas mais gentil do que pareces. Vejamos...

A mão direita dele desce para me afagar o peito, através do tecido da parte superior da minha roupa. Raios partam o homem! O que devo fazer agora? Com certeza que Archu não está à espera que eu deixe esta criatura fazer o que lhe apetece comigo, só para não atrair atenções indevidas.

— Não! — exclamo com firmeza e afasto a mão de Rodan com uma sapatada. — Estava a dizer a verdade e não sou o tipo de mulher que pareces pensar que sou.

O rosto de Rodan ensombra-se. Depois, com rapidez espantosa, agarra-me ambos os pulsos e empurra-me outra vez contra a parede.

— Vamos fazer um pequeno acordo, então. Eu não digo a ninguém o que vi e tu ficas calada enquanto eu...

Não pensou muito bem naquilo. Espero, a cabeça virada com determinação para um dos lados e os dentes cerrados. É melhor ele não tentar enfiar-me a língua na boca. O príncipe de Breifne comprime-se contra mim, a respirar com força. Está a mexer o corpo de uma forma que não permite interpretações erradas. Em breve chega a um ponto em que precisa das mãos livres para puxar as calças para baixo. Mal me liberta os pulsos, coloco-lhe as palmas das mãos no peito e empurro com força.

Estou a contar que a queda no chão de terra o deixe sem fôlego, dando-me tempo suficiente para fugir. Mas não. Quando cai, a cabeça bate na estrutura de madeira da enxerga de Archu. O baque é chocante. O silêncio absoluto que se segue é pior. Rodan jaz deitado de borco no chão, imóvel à luz tremeluzente da tocha. Matei-o. Matei o futuro rei de Breifne.

Fico ali parada boquiaberta uns instantes. Depois o meu treino impõe-se. Ajoelho-me junto dele e pouso os dedos no pescoço para ver se há sinal de vida. Não consigo ver se ele está a respirar. Mas... sim, sinto o pulsar débil do sangue, e quando ponho a mão perto da sua boca... sim, creio que há um fluxo de ar. Um rápido exame à cabeça não mostra sangramento visível, nenhum ferimento aberto, embora a luz não seja suficientemente boa para eu ter a certeza. Talvez, graças aos deuses, o príncipe acabe apenas com uma dor de cabeça e autoestima machucada.

Podia deixá-lo onde está e fugir. Mas sou filha de uma curandeira e já vi o que pancadas na cabeça podem fazer. Se não for buscar ajuda, um homem pode morrer. Se esse homem é ou não uma pessoa admirável não interessa e o seu estatuto como príncipe herdeiro de Breifne também não. As implicações para o meu futuro não podem ser consideradas, por mais significativas que sejam. Corro para o posto da guarda mais próximo.

Mal desembucho os factos essenciais, o príncipe está ferido, está inconsciente, está nos alojamentos dos homens, tudo começa a mover-se com rapidez. Dois guardas trazem uma maca e içam-no para ela. Aparece um físico da corte e realiza os mesmos exames que eu realizei. Os guardas levam Rodan para a torre, ele agora já está a gemer, a voltar à consciência. Há representantes oficiais no pátio, a falar em sussurros e com ar sombrio. Reuniu-se uma grande assistência, pessoas que saíram do grande salão devido à enorme agitação e atividade, embora agora não haja muito para ver.

— Tu! Jovem! — É um dos conselheiros da corte, não Brondus, mas um homem de ombros largos e barba negra. — Comunicaste este ataque ao príncipe Rodan?

De repente estou cercada de pessoas com aspecto importante, como se pensassem que eu pudesse fugir.

— Sim, senhor. Encontrava-me nos alojamentos dos homens quando aconteceu. — Há agora mais tochas acesas; consigo ver com clareza a expressão do conselheiro e não é encorajadora. — Ele...

Ele ergue uma mão para me calar.

— Espera. Estavas nos alojamentos dos homens? Porquê? O que estavas a fazer? — O tom sugere que sou culpada antes de proferir uma palavra de explicação.

A multidão silenciou, na expectativa de um bom entretenimento.

Inspiro fundo.

— Estava à procura de uma coisa. Uma flauta.

As sobrancelhas do conselheiro erguem-se de incredulidade.

— Uma flauta — repete.

— Sou um dos músicos, senhor. Tinha emprestado a flauta a Donal, outro músico da nossa banda, e precisava dela. Pensei...

— Chega! Acho difícil acreditar que me faças perder tempo com tal disparate, rapariga. Não percebeste que o príncipe Rodan está gravemente ferido?

Consigo sentir a ânsia da multidão; querem mais. Não vou dar-lhes.

— Sei que o príncipe bateu com a cabeça, senhor. Como te disse, estava presente na altura. Estou pronta a fornecer uma explicação completa. Era o que estava a tentar fazer. — Cerro os punhos para me impedir de dar uma bofetada no rosto do homem.

— Bateste no príncipe? — As palavras do conselheiro são como o toque a finados de algum sino horrível.

— Não, senhor. Eu... eu empurrei-o. Mas apenas porque ele me assalt...

— É suficiente por agora — diz o conselheiro, interrompendo-me. — Seria pouco justo ouvir a tua versão dos acontecimentos enquanto o príncipe não está capaz de fornecer a dele. Por isso esperaremos. Talvez algum tempo; o estado do príncipe Rodan não é bom. Ficas detida esta noite. Admitiste um papel no que lhe provocou a lesão, isso pode levar a acusações muito graves. Se o príncipe estiver bem para prestar testemunho, comparecerás perante um conselho amanhã.

Maldição! Nem Archu, nem Brocc, nem Illann e não faço ideia qual deverá ser o meu próximo passo. Dois guardas avançam e pegam-me nos braços, um de cada lado. Eu podia dar conta de ambos se quisesse e do desgraçado do conselheiro também. Mas não da multidão inteira de curiosos, muitos dos quais são guardas. Tento pensar no que Archu aconselharia em circunstâncias tão improváveis. A primeira coisa seria não lixar o meu disfarce.

— Levem-na para as celas de detenção — ordena o conselheiro aos guardas. — Deixem-na usar a privada e arranjem-lhe um ou dois cobertores. Vão. Os restantes... — o seu olhar varre a assistência variada. — Se estão preocupados com o príncipe, saibam que está a receber os melhores cuidados possíveis. Não lhe serão de grande utilidade se ficarem aí a mexericar. Desapareçam, todos vocês!

Estou deitada acordada no escuro, a fitar a minúscula janela gradeada. As celas não ficam na torre, mas numa construção de pedra no lado norte. Sabendo como são em geral as celas, esta nem é demasiado má. Tem uma cama de tábua dura e não está às escuras, visto que aquela pequena janela deixa entrar o luar fraco. Deram-me dois cobertores e um jarro de água. Não vou dormir; a minha mente gira em círculos inúteis. Como fui tão estúpida para me meter nesta alhada? Comprometi a missão. Consegui atrair tanta atenção para mim como qualquer músico visitante conseguiria. É tudo culpa de Brocc por desaparecer daquela maneira. Se não fosse ele, não me teria aproximado dos aposentos dos homens. Mas, para sermos justos, é sobretudo culpa de Rodan por ser um porco nojento que pensa que está autorizado a agarrar o que quiser, quando lhe apetecer. Como pode um homem fazer um discurso vibrante e no momento seguinte agir como um completo labrego?

Tenho de arranjar um plano. Um passo de cada vez. Talvez Archu regresse cedo o suficiente para me apoiar nesse conselho, ou pelo menos para me dar alguns conselhos antes. Talvez Brocc apareça à hora do pequeno-almoço, a dizer que andou de mais e depois teve de dormir num palheiro. Talvez apareça com a Harpa dos Reis nos braços a dizer: Surpresa! E talvez as galinhas tenham dentes.

E se Rodan morrer durante a noite? Agrilhoar-me-ão e atirar-me-ão para alguma prisão para sempre? E se Rodan morrer mesmo, isso significa que a nossa missão já não existe? Oh, deuses, estou tão cansada.

Ouve-se um arranhar na pequena janela, lá no alto da parede. Imobilizo-me. O som surge de novo.

— Ciara! — A voz é um murmúrio, mas reconheço-a. Dau.

Ponho-me de pé na enxerga, com cuidado não vá decidir partir-se e espreito por entre as barras. Dau deve estar também de pé em cima de qualquer coisa, porque está a olhar para mim.

— O que estás a fazer? — sussurro. — E se alguém te vê? Ou te ouve?

— Isto fica longe de tudo. Não há ninguém por aqui. O que em nome dos deuses aconteceu? Um dos moços da estrebaria disse que o príncipe ficou inconsciente e que tu e ele estavam juntos nos alojamentos dos homens.

Sinto um calor subir-me às faces, mais fúria do que constrangimento.

— Seria isso que diriam! — respingo.

— Chiu, baixa a voz. Então é mentira?

— Não, é um facto. Eu estava lá à procura de pistas. Brocc esteve fora o dia todo e ainda não voltou e não foi aos Nemetons. Alguém o viu a caminhar para a floresta. Devia ter regressado antes do anoitecer. — Oh, deuses, agora estou a derramar lágrimas. Estou a transformar-me em Ciara. — Eu queria verificar as coisas dele, ver se percebia onde teria ido.

— E percebeste?

— Não, porque Rodan me descobriu lá e me acusou de roubar. Depois empurrou-me contra a parede e disse que não me denunciava desde que eu lhe desse o que ele queria.

Silêncio durante alguns momentos.

— Então deste-lhe uma pancada e puseste-o inconsciente — diz Dau.

— Empurrei-o; ele caiu. Calculei mal e ele bateu com a cabeça ao cair. — Estou a tremer, mesmo sem querer. — Durante um bocado, pensei que estava morto. Mas não estava, por isso fui buscar ajuda. Nem me deixaram acabar de explicar. Tenho de comparecer perante um conselho amanhã de manhã.

Silêncio.

— Se me vais dizer que arruinei a missão, não te dês a esse trabalho. Compreendo isso sem qualquer ajuda.

— Ele não vai ser grande rei, pois não? — observa Dau passado algum tempo.

— Não é mau nos discursos. As pessoas ouvem e aplaudem. Talvez quando um rei tem o dom de despertar as emoções do povo, este não se importe com o que ele faz na sua vida privada.

— Ouvi dizer que ele não quer ser rei. Que está aterrorizado com a ideia. Talvez os discursos arrebatados o ajudem a encobrir isso.

Sei que não devo perguntar quem lhe passou aquela informação surpreendente.

— Dau, o que foi aquela confusão toda, notícias sobre um ataque, gente a partir a cavalo numa precipitação? Por que foi Illann?

— O homem que sobreviveu para trazer a notícia estava a falar de demónios-corvo, embora estivesse exausto depois da cavalgada e a sangrar e o que ele dizia não fazia muito sentido. Parecia muito a coisa que picou sobre mim quando vínhamos para aqui. E o mesmo tipo de criatura de que os agricultores se têm queixado, só que agora, ao invés de roubarem cordeiros, deram cabo de cinco dos homens de Cathra. E feriram vários cavalos. O sobrevivente veio montado no seu cavalo, mas os outros foram abandonados. Estão com esperança de encontrar os animais. Requisitaram os serviços de Illann por causa do seu talento para tratar cavalos. Ele não podia dizer que não.

— Mas... pelo que Rodan disse, lá no pátio, parecia que o responsável era um inimigo humano, talvez o chefe de clã que governa essa parte de Breifne. Não mencionou essas coisas-corvo. Embora tivesse dito qualquer coisa sobre superstição. Talvez pense que não são reais.

— Os ferimentos do homem eram sem dúvida autênticos. Também acho um pouco difícil acreditar em demónios-corvo. Tem de haver outra explicação.

Ficamos ali em silêncio algum tempo. Agora que Dau aqui está, não me sinto tão desventurada. Mas o peso total do que aconteceu está a fazer mossa e há ainda a questão de Brocc. Não esperava estar a conversar com Dau sobre nada disto. Não é uma pessoa que eu escolhesse como confidente. Mas, neste preciso momento, parece-me um amigo.

— Correste um risco ao vir ter comigo — digo.

— Embarcaste nesta missão à espera que não fosse arriscada?

— Não estou a brincar, Dau. Não podes ter a certeza que ninguém te viu a vir para cá. Posso imaginar alguém a trazer isso à baila nesse conselho. Iam distorcer tudo para mostrar que me basta dobrar o dedinho para fazer com que os homens venham a correr e considerar isso como indicação de que estou pronta a entregar-me a quem pedir, por mais improvável que essa pessoa seja.

Uma pausa.

— Obrigado pelo voto de confiança — diz ele.

— Não queria dizer isso. Mas eles fariam isso. Dau, o que faço se eles decidirem que eu estava a tentar matá-lo?

— Não estás a pensar direito, Liobhan. Tanto Cathra como Brondus sabem por que estás aqui. E imagino que tenham uma ideia razoável de que tipo de pessoa é o príncipe.

— Hum. Mas ele é o príncipe. Será rei em breve. Aquele outro conselheiro, o que não me deixou contar a minha história, falou comigo como se eu fosse pior do que a terra debaixo da sua bota. E toda a gente estava a apreciar aquilo. Oh, sim, havia uma grande assistência. — Limpo os olhos na minha manga. — Acho que não sou feita para isto. Adoro lutar. Mas não posso lutar aqui. Parece que não consigo fazer nada sem causar problemas.

— Uma pena que estejas trancada. Podíamos ter um combate sem armas neste preciso momento. Não tínhamos um repto, o melhor de três? — Parece que está a sorrir.

— Uma maneira certa de ter metade da casa real a bater à porta a perguntar o que estamos a fazer e a tirar conclusões erradas. Ainda bem que não posso aceitar essa tua proposta.

— Sentes-te melhor? — Agora Dau está hesitante. — Vou-me embora se quiseres.

— Podes ficar um bocado. — Sinto-me de facto melhor. Até pensar no outro problema. — Dau?

— Hum?

— Estou preocupada com Brocc. Muito preocupada. Não faço ideia por que razão partiria assim, sem me dizer.

— Será que os druidas sabem aonde ele ia?

— Talvez. Mas não posso perguntar-lhes.

— Eu é que não posso perguntar-lhes. Não pode esperar até Archu regressar? Ou Illann?

— Não sei se pode. Isto não é nada característico dele. Por que iria para a floresta?

— À procura de uma pista? A seguir uma indicação? A fazer alguma coisa que sabe que não aprovarias?

Fecho os olhos com força na escuridão, a desejar não ter ouvido aquilo. A desejar que não combinasse com o medo que me aperta o estômago.

— Podia ser. Mas durante a noite, sem dizer nada a ninguém?

— Ele não disse nada que pudesse sugerir o que anda a fazer? Há muito tempo que vai aos Nemetons. Nenhuma informação para Archu? Nada que pareça ter dado que pensar a Brocc?

— Brocc está sempre a pensar. — Imagino o meu irmão a trabalhar num poema enquanto caminha, ou a afinar a harpa, a cabeça escura dobrada sobre as cordas, ou nos campos a olhar para o longe. — Tem a cabeça cheia de histórias. Mesmo quando está a lutar, há alguma grandiosa história de valentia a inventar-se na sua mente.

Desta vez, o silêncio prolonga-se por mais tempo, até que pergunto:

— Dau? Ainda estás acordado?

— Como estou precariamente em cima de uns caixotes velhos e de um balde virado ao contrário, a resposta é mesmo sim. Liobhan, há uma contadora de histórias que vive perto do Caminho dos Corvos. Ajudou-me depois de eu ter sido atirado do cavalo na viagem. Ela era... esquisita. Muito esquisita. Parecia saber coisas sem que lhas dissessem. E visto que sabia histórias, pensei...

Sinto-me mal. Ele tem razão, tenho a certeza. É para onde Brocc deve ter ido. Na minha cabeça está a história da Harpa dos Reis, contada por Faelan a Brocc e que mais tarde me foi transmitida e a Archu. Essa história fala de portais para o Outro Mundo, possivelmente situados não muito longe daqui. Se a harpa estava protegida por magia druídica, então um druida podia anular o encantamento e levá-la por alguma razão muito sua. Considerámos essa possibilidade, ou que um druida podia ter tirado a harpa dos Nemetons por ordem de alguém com motivos políticos. Não considerámos que um ser do Outro Mundo pudesse ter levado o instrumento. Essa gente é perita em feitiços e encantamentos. E uma das regras para visitar o Outro Mundo é não levar ferro connosco, porque é um veneno para o povo feérico.

— Oh, merda — digo.

— Que eloquência — observa Dau.

— Conta-me mais do que te aconteceu lá em cima. Archu não nos contou grande coisa.

— A maior parte guardei para mim; parecia estranho de mais para contar. Um pássaro passou por mim, a voar muito perto. Um dos corvos gigantes de que falam as pessoas. A égua atirou-me ao chão e fiquei ferido. A égua fugiu; Illann teve de ir atrás dela. A velha levou-me para casa dela. Deu-me uma poção que me pôs a dormir. Havia uma cadela... — A voz dele perde-se.

— Conta-me mais — sussurro. — O que estavas a dizer antes, sobre ela saber coisas que não deveria saber?

— Quando Illann regressou na manhã seguinte, só lhe contei que ela me tinha dado uma bebida e uma cama para passar a noite. Só que... bem, houve mais coisas. Os sonhos mais estranhos que já tive. O lugar era esquisito. Ossos e penas e coisas penduradas por todo o lado. E... a sensação de que ela me conhecia. Que sabia tudo sobre mim. — Inspira de forma audível. — Quando acordei na manhã seguinte, a dor tinha desaparecido. Como se não tivesse caído do cavalo nem me tivesse machucado. Não consegui entender nada.

— Quem me dera ter sabido disso antes. Ir até lá é o tipo de coisa que Brocc faria. Só que já deveria ter regressado a não ser que... — Não consigo dizê-lo. A não ser que tenha querido encontrar um Portal para o Outro Mundo. Dau rir-se-ia de mim com desdém.

— A casa não é visível da estrada — diz ele. — Talvez Brocc não a tenha visto. Eu não teria encontrado o sítio, nem a mulher, se a cadela dela não tivesse vindo buscar-me, mais ou menos.

O tom de voz dele muda, suaviza-se, quando fala da cadela. Uma fenda na sua armadura?

— Que género de cadela? — pergunto.

— O que interessa?

— Poderá interessar se eu tiver de ir procurar o meu irmão.

— Maldição, Liobhan, estás louca?

— Chiu. Fala baixo.

— É como um lobo. Grande, peluda, cinzenta. Com olhos cor de âmbar. Chama-se Storm. Liobhan, não podes ir atrás dele.

— É meu irmão. Posso fazer o que quiser.

— Esqueces o facto menor de que estás na prisão, à espera de comparecer perante um conselho. Não podes fazer nada a esse respeito. Archu poderá ter regressado quando o conselho terminar. Brocc também, com alguma sorte. Mesmo que não tenham e mesmo que o conselho dê em nada, precisas de ficar aqui e desempenhar o teu papel. Ou já te esqueceste da missão?

O desejo de lhe bater é forte. Tal como a sensação de que poderei chorar outra vez e humilhar-me. Não parece seguro falar, por isso calo-me.

— Imagina só que Archu volta e descobre que tanto tu como Brocc desapareceram. Isso a acrescentar ao facto de quase teres matado o herdeiro do trono. Embora pudesse desejar que tivesses feito um trabalho mais cuidadoso.

— Não brinques com isso! — O meu sussurro é furioso. — De qualquer modo, foste tu que me falaste da contadora de histórias. O que esperavas que fizesse? Que dissesse: Oh, obrigada, agora está tudo bem? Há mais coisas envolvidas nisto do que sabes, Dau. Um perigo que ultrapassa esta corte e este rei.

— E isso significa o quê, exatamente?

Apetece-me contar a alguém por que é tão essencial encontrar depressa o meu irmão; contar alguma coisa da nossa verdadeira história e por que razão Brocc ficará em perigo se encontrar um desses portais. Mas não posso contar a Dau. Foi amigo esta noite e eu estou espantada e grata por isso. Mas está pronto para zombar do que não tem a ver com a sua visão de como o mundo deve ser. Uma noite na casa de uma mulher sábia não terá modificado tanto as suas ideias que aceite o misterioso e o oculto.

— Há razões. Que têm a ver com o passado. Não é uma coisa que te possa contar.

Dau não diz nada durante muito tempo. Depois sussurra:

— Tenho de ir embora. — Mas não se move. — Espero que o conselho corra bem para ti. Mantém a cabeça erguida. Diz a verdade. Não mostres que estás furiosa.

— Finjo que sou um homem de leis — digo eu. — Vou tentar, mesmo que me apeteça muito esmurrar o rosto de uma certa pessoa.

— Espero que Archu regresse antes de o conselho começar. Caso contrário, sê forte e não te esqueças que és Ciara. Nem por um instante. Liobhan...

— Não o digas. Não vou fazer promessas nenhumas a respeito de Brocc nem de nada. Tenta ter abertura de espírito em relação a isto. Agora é melhor ires embora. E... obrigada.

Dau sussurra qualquer coisa que não percebo e vai-se embora.

Ser músico pode ser útil. A maioria dos guardas conhece-me. A maioria cantou os refrões ou dançou os compassos animados de O Salto de Artagan quando tocámos para a casa real. Essa ligação dá-me direito a um pequeno-almoço excelente trazido à porta numa bandeja e comido não na minha cela, mas lá fora, a conversar com o homem de serviço. Fico a saber que Rodan sobreviveu à noite e que o interrogatório acontecerá mal tudo esteja pronto. Explico que depois de ter dormido com as roupas vestidas preciso de me lavar e trocar de roupa antes da audiência, mas que as minhas coisas estão nos aposentos das mulheres. E que também preciso de usar a privada.

Os meus guardas infringem de novo as regras. Tenho a certeza que deviam manter-me trancada. Mas um deles escolta-me até aos aposentos das mulheres e espera enquanto entro e mudo de roupa. Enquanto visto roupa interior lavada, o meu vestido simples e um xaile, recebo alguns olhares estranhos de outras mulheres que passam. Uma ou duas murmuram bom-dia. Visto meias lavadas e calço os meus sapatos de caminhar. Algumas das outras mulheres foram buscar uma bacia de água para lavagens, por isso salpico a cara e as mãos. Escovo e entranço o meu cabelo. Preparo uma pequena bolsa com coisas que poderão ser úteis se tiver oportunidade de ir atrás de Brocc e enfio-a por baixo da enxerga. Gostava de deixar uma mensagem na sala de ensaio para Archu, mas, se me mantiverem presa, ele logo saberá e, se não o fizerem, Dau dir-lhe-á onde fui e porquê.

Está um dia perfeito para caminhadas, bom e fresco com uma brisa suave. Lá fora, há orvalho na erva. Espero não passar este lindo dia trancada por causa de uma coisa de que não tive culpa, enquanto Brocc continua perdido e com toda a probabilidade metido em apuros. Espero que Archu não fique desiludido comigo quando voltar. Um guerreiro da Ilha dos Cisnes não diz A culpa não foi minha ou Não consegui evitar. Um guerreiro da Ilha dos Cisnes acerta à primeira.

O meu guarda leva-me outra vez para a prisão, espera enquanto uso a privada ao lado e depois abre a porta da cela para eu poder entrar.

— Virão buscar-te quando for a altura — diz. — Situação chata.

Concordo com ele, mas não o digo, aceno a cabeça e olho para o chão.

— Estarei aqui fora. Não vou trancar a porta. Imagino que não estejas a planear fugir.

Podia rir-me daquilo. Ele é grande e robusto, mas eu conseguia derrubá-lo com facilidade. Gostaria de o fazer, apesar de ele ter sido tão simpático. Gostava de correr para o carvalho, trepar e... o quê? Voar como um pássaro? O problema é demasiado complicado para uma solução como aquela, mesmo supondo que eu conseguia fazer magia.

Esperamos muito tempo, o guarda no corredor e eu sentada na cama de tábuas, a tentar não pensar no que o meu irmão poderá andar a fazer lá em cima na floresta. Por fim chega outro guarda e diz:

— Segue-me, por favor. Pede-se a tua presença na câmara de conselho de Lorde Cathra.

Seguimos pelo labirinto de passagens na torre até à mesma câmara onde Archu, Brocc e eu nos encontrámos com Lorde Cathra logo depois da nossa chegada à corte. O regente não está lá, nem Brondus. Ao invés, o conselheiro de barba escura da noite passada encontra-se atrás da mesa comprida com as mãos apoiadas nela. Mal entro, fixa os olhos em mim. Há um escriba sentado numa secretária a um canto. A sala está cheia de tapeçarias penduradas e há uma pequena lareira, mas sem lume. Velas em suportes trabalhados ardem nas duas extremidades da mesa.

Tendo cumprido a sua tarefa de me entregar ao meu destino, seja ele qual for, o guarda sai da sala. Fico ali, de costas e ombros direitos, à espera.

O conselheiro não se mexe. O seu olhar não vacila.

Não mostres que estás furiosa.

— Posso falar, por favor?

Ele fita-me durante mais algum tempo.

— O conselho não está reunido neste momento, rapariga.

Inspiro fundo.

— Queria perguntar pelo príncipe Rodan. Como está esta manhã?

— O príncipe está a recuperar, graças aos cuidados peritos do físico real. Devias ficar contente. O castigo por morte ilícita é muito grave.

Conto até cinco antes de falar.

— Sim, estava à espera disso. Portanto, de que estou a ser acusada? A noite passada não me deram oportunidade de me explicar.

A boca do conselheiro aperta-se mais.

— Serás acusada de ataque à pessoa do príncipe, provocando ferimento significativo. Também de invasão de propriedade alheia com intenção de roubar.

— Isso é ridículo! Não fiz nada do género! — As palavras saíram antes de as conseguir conter; palavras que Ciara não proferiria. A minha voz ecoa pela câmara, intrépida e acusadora. — Perdão — acrescento num tom mais baixo, detestando-me por isso.

— O homem de leis de Lorde Cathra não tem igual — diz o conselheiro. — Isto será decidido com justiça. Farias bem em controlar o teu temperamento quando estivermos reunidos, jovem. Tais explosões só acrescentam peso ao argumento de que és impetuosa e, portanto, suscetível de cometeres atos repentinos de violência.

Inclino a cabeça, com esperança de parecer contrita. Penso em perguntar se podem esperar até que o meu tio regresse à corte, mas não o faço.

— Posso sentar-me, por favor? Sinto-me muito fraca.

Ele acena com uma mão para o banco, com ar irritado. Furioso, desconfio, não só por causa do que acredita que eu fiz, mas também porque o príncipe se meteu em dificuldades tão perto da sua coroação. A prerrogativa descontraída com que Rodan me tratou, a somar ao meu novo conhecimento da situação difícil de Máire, sugere que não foi com toda a probabilidade o único episódio do género. É possível que o regente e os seus conselheiros estejam fartos de resolver coisas que ele aprontou. Mas isso não é desculpa para este homem tentar intimidar-me. Se eu de facto fosse Ciara, estaria a tremer. Assim, estou encharcada em suor nervoso e a desejar estar noutro sítio qualquer. Sento-me no banco, com os ombros caídos, olhos fixos no tampo da mesa, e tento fazer o que Brocc poderia fazer nas mesmas circunstâncias, que é inventar músicas na minha cabeça. Qualquer coisa que Aislinn seja capaz de tocar com as notas que aprendeu até agora, talvez uma melodia alternada que possamos tocar juntas as duas... Oh, deuses, por que não se despacham? Quando acaba isto?

Por fim, a porta abre-se e entra um serviçal, seguido por Lorde Cathra e Brondus. A seguir Rodan, com ar muito branco, com Garbh ao lado, a segurar no braço do príncipe para o apoiar. Pergunto a mim mesma se Rodan terá aprendido a lição e aceitará a verdade. Pergunto-me se a sua dor de cabeça será forte o suficiente para o manter sossegado desta vez. Depois olha para mim e vejo a fúria nos seus olhos. Garbh ajuda-o a sentar-se na ponta da mesa comprida e posiciona-se atrás dele.

Os últimos a entrar são uma pessoa com uma comprida veste castanha que presumo ser o homem de leis e um guarda, que fecha a porta e se posta diante dela. Eu levanto-me outra vez.

— Senta-te — diz Brondus, mas eu espero que todos se sentem à mesa antes de o fazer. — Pronto, senhor?

— Com certeza, comecemos. — O regente está com ar de quem não dormiu. Pensei que ele parecia cansado e sobrecarregado da primeira vez que o vimos nesta mesma câmara e agora está com pior aspecto. — Queres explicar o assunto desta audiência, mestre Niall?

Quando o homem de leis se levanta, absorvo o facto de ninguém se ter dirigido a mim pelo meu nome; nem o Barba-Negra me disse como se chamava. Desconfio que é uma tática pensada para fazer com que uma pessoa acusada se sinta desprezível. Será que, apesar de tanto Cathra como Brondus saberem qual o meu verdadeiro objetivo na corte, acreditam também que feri deliberadamente o herdeiro do trono?

— Jovem, o príncipe sofreu um ferimento grave a noite passada — diz mestre Niall. — Como eras a única pessoa presente quando isso aconteceu, este inquérito é necessário para avaliar as circunstâncias e determinar que acusações, se as houver, deverão ser feitas.

Ah. Então o Barba-Negra estava enganado. As acusações ainda não foram decididas.

— Entendo, mestre Niall. E sinto-me contente por ter oportunidade de explicar o meu lado da história, visto que fui impedida de...

— Basta! — ladra o Barba-Negra. Não te pediram que falasses.

Controlo a minha respiração; ordeno ao meu coração para bater mais devagar. Cerro os punhos e depois descontrai-os. Não peço desculpa.

— Ouviremos primeiro a declaração do príncipe — diz calmamente o homem de leis —, visto que o seu estado de saúde precário poderá significar que queira deixar-nos mais cedo. Farás isso então agora, príncipe Rodan? Podes permanecer sentado.

Gostaria de olhar para Rodan enquanto ele fala. Gostaria que ele soubesse que não tenho medo. Mas Dau tem razão; se quiser que me libertem, tenho de ser Ciara enquanto aqui estou e Ciara não desafiaria de forma alguma o sacana.

— Tinha saído para apanhar ar fresco — explica Rodan. Parece demasiado calmo. Alguém lhe deu bons conselhos. — A porta para os aposentos dos homens estava aberta e avistei esta rapariga lá dentro a vasculhar os pertences das pessoas. Sabia quem era. Toda a gente sabe. Ela é... dá nas vistas. E não é membro desta casa real, o que tornou o facto de ali estar ainda mais suspeito. Pedi-lhe que se explicasse. Em vez de me responder, virou-se contra mim numa fúria, a sibilar e a cuspir.

O maldito safado mentiroso! Aposto que passou a noite toda a embelezar a sua história. Ou alguém a maquinou com ele. Lanço uma olhadela a Garbh, mas tem o rosto impassível, a fitar a parede oposta. Qualquer vestígio de pena que eu possa ter sentido por causa da cabeça dorida de Rodan desapareceu. Cerro os dentes para me manter quieta.

— Tentei deter a rapariga. Ela fez-me desequilibrar e cair. Não me lembro de nada depois disso, mas parece que bati com a cabeça no suporte de madeira de uma enxerga e fiquei inconsciente. — Uma pausa; talvez esteja a olhar para mim, mas não olho para ele. — Podia ter morrido — acrescenta Rodan.

Um apelo à compaixão. De mim, não vai receber nenhuma. A sua história é risível. Mas quando olho para mestre Niall, a expressão do seu rosto é sombria. Combina com o olhar carrancudo do Barba-Negra. Cathra parece só cansado; Brondus tem uma pequena ruga entre as sobrancelhas que poderá significar qualquer coisa.

— Ouçamos a tua versão dos acontecimentos, Ciara. — Parece que, como conselheiro sénior, Brondus tem autoridade para ajudar o homem de leis. Fico agradecida; de todos eles, Brondus parece ser o que me levará com mais probabilidade a sério. Além disso, sabe por que razão estou na corte. — Infelizmente não pudemos adiar esta audiência até que o teu tio pudesse estar presente. Suponho que regressará à corte hoje, mais tarde.

Como sabe isso? Archu disse-lhe que ia procurar informações na comunidade de Tassach?

— Creio que sim, senhor Brondus. Posso falar agora?

— Prossegue.

Ciente do escriba preparado com a pena na mão para anotar todas as palavras que eu proferir, penso na coragem de Dau durante a surra no pátio das cavalariças e ergo o queixo.

— A noite passada, depois de terminar a ceia, fui aos aposentos dos homens procurar uma flauta que tinha emprestado a Donal, o nosso harpista. Temos uma nova peça para aprender, que Donal escreveu, e queremos tê-la pronta da próxima vez que tocarmos para os convidados de Lorde Cathra. Estava à procura na prateleira de Donal quando o príncipe Rodan entrou. — A próxima parte é mais difícil; não posso olhar nem para mestre Niall nem para o Barba-Negra quando a disser. Pouso os olhos numa tapeçaria atrás de Lorde Cathra: uma imagem de nobres a cavalgar, com falcões nos punhos e três cães brancos a correr ao lado dos cavalos. — O príncipe acusou-me de roubar, isso é verdade. Disse-lhe o que acabei de vos dizer, sobre a flauta, e ele não acreditou em mim. Ele... ele disse que faria queixa de mim às autoridades a não ser que eu lhe desse o que ele queria. Parece que o príncipe Rodan acredita que se pode aproveitar de uma mulher de origem humilde em tais circunstâncias.

— Ela está a mentir! — grita Rodan, tão alto que toda a gente se sobressalta. Faz um gesto na minha direção, com o punho cerrado. Calmo uma ova. Garbh pousa uma mão no ombro do príncipe.

— Continua, Ciara — diz Brondus, como se nada tivesse acontecido.

— Eu disse que não, mas o príncipe não aceitava. Ele... ele encostou-me à parede e começou a... a tentar abusar de mim. Eu só queria que ele parasse com aquilo. Quando consegui soltar as mãos, empurrei-o com toda a força que consegui. Ele caiu para trás e bateu com a cabeça. Verifiquei que estava a respirar e fui buscar ajuda. Estou a dizer a verdade. — Está feito. Inspiro fundo e solto o ar devagar.

— Uma flauta — diz o Barba-Negra. — Isso é uma desculpa esfarrapada. Com certeza que uma banda de músicos itinerantes possui mais do que uma flauta. E por que não podias pedir a esse Donal para devolver a tua? — É um argumento válido.

— Precisava de uma flauta específica, senhor... perdão. — Lanço uma olhadela a Brondus e depois ao Barba-Negra. — Não me disseram o nome deste conselheiro. — Nem, ao que parece, lhe disseram o meu. Abstenho-me de proferir as palavras. Ocorre-me que sou mais parecida com a minha mãe do que pensava.

— Chama-se senhor Bress.

— Precisava de uma flauta maior, senhor Bress, porque se adequava à peça em questão. Donal escreveu a música para ser cantada num tom que é muito baixo para o meu instrumento habitual. Compreende, nesta canção em particular eu canto os versos e Donal toca a harpa e nos refrões toco a flauta. Uma harpa pode ser afinada para um tom mais alto ou mais baixo; uma flauta não. Quanto a Donal, não o vi no salão e não queria causar confusão a tentar encontrá-lo enquanto as pessoas ainda estavam a comer.

— Causaste muito mais confusão por teres ido onde não devias ter ido.

— Lamento isso, senhor Bress. E lamento o facto de o príncipe se ter magoado. Mas o relato dele sobre o que sucedeu não está correto. O meu está. — Não é estritamente verdade, mas é verdade da forma que importa aqui.

— Tenho uma pergunta para ti, Ciara — diz mestre Niall. — Como uma mulher jovem, uma música por vocação, tem força para se defender das atenções de um homem adulto? Não só força para se libertar, mas também para empurrar o príncipe com força suficiente para o pôr inconsciente?

Oh, deuses.

— Tal como o príncipe Rodan explicou, mestre Niall, ele desequilibrou-se. Foi uma infelicidade ter batido com a cabeça quando caiu. Além disso... saio ao meu pai. Ele... ele era um homem muito alto e bastante forte. — Tenho as palmas das mãos peganhentas. Estive quase, quase a esquecer que o pai de Ciara já morreu.

— Diz-me — pede Bress e sei que se eu fosse culpada me encolheria sob o olhar dele —, por que devemos acreditar na palavra de um músico ambulante, um visitante temporário na nossa corte e, além disso, uma mulher jovem, e não numa declaração do príncipe herdeiro de Breifne?

Não consigo evitar. Devolvo aquele olhar, não como Ciara, mas como Liobhan, futura guerreira da Ilha dos Cisnes e filha de pais que lhe ensinaram coragem, honestidade e justiça.

— Porque estou a dizer a verdade e o príncipe não está — declaro com a cabeça erguida. — Não posso dizer as coisas de forma mais simples.

Um momento de silêncio; há uma tensão estranha na câmara e creio que vem do regente que mal disse uma palavra.

— Como se chama essa peça que o teu amigo escreveu para entreter as gentes? — O tom de mestre Niall é descontraído. A pergunta é tudo menos isso.

— O Caminho dos Corvos. — Parece tão bom como qualquer outra coisa.

— Canta-nos parte da melodia.

Conto em silêncio até cinco.

— É nova e ainda não decorei a letra, mas a melodia é assim. — Felizmente sei muitas canções. Escolho uma de memória, uma coisa que tenho a certeza ainda não cantámos aqui e trauteio entredentes um verso e um refrão, lembrando-me de manter o tom baixo.

— Mestre Niall. — Cathra fala por fim. — Não é necessário pôr esta jovem à prova dessa maneira. — Agora olha para mim. Deuses, parece esgotado, como se o seu fardo fosse quase impossível de aguentar. — Obrigado, Ciara. Como não houve testemunhas do que sucedeu, temos de tomar uma decisão baseados na tua palavra contra a do príncipe Rodan. — Lança uma olhadela ao homem de leis, que acena com a cabeça a concordar. — Rodan, tendo em conta o teu ferimento, não te pediremos para esperar aqui por uma decisão. Deves retirar-te para os teus aposentos e descansar. Ciara, esperarás na antecâmara.

— Guardada, espero eu — rosna Rodan. — Não deixem a megera à solta, ou ficaremos todos em risco.

Segue-se um curto silêncio; ninguém parece muito preparado para contestar abertamente o príncipe, embora, aos meus ouvidos, as suas expressões pareçam muito inapropriadas para uma audiência formal.

Mestre Niall levanta-se.

— Serás informado do resultado, senhor, mal se tome uma decisão. Descansa bem.

Garbh leva Rodan lá para fora. Sinto-me descontrair quando a porta se fecha atrás deles. Nunca mais quero ver o príncipe. Bem desejava poder dizer a estes homens poderosos como ele provocou e bateu num moço de estrebaria mudo. Gostaria de lhes poder contar como engravidou uma ama e parece ter tratado quer a ama quer a sua irmãzinha sem cuidado nenhum pelo seu bem-estar. Mas não posso. Não aqui e, se calhar, em sítio nenhum. Não foi para isso que viemos para Breifne.

Saio para a antecâmara, onde não fico surpreendida por encontrar outro guarda junto à porta. Sento-me e espero. Penso em Brocc e se já terá ido para um lugar onde não conseguirei alcançá-lo. Apetece-me chorar, mas não choro. Tenho de ser forte. O que Dau disse na nossa estranha conversa noturna? Mantém a cabeça erguida. Diz a verdade. Não mostres que estás furiosa. Até agora, saí-me bastante bem. Disse a verdade sobre as partes que contam. Consegui não gritar com Rodan. Defendi-me.

A espera parece longa. Pergunto a mim mesma se Archu já terá chegado e se lhe contaram onde estou. Se calhar não; teria vindo direto para aqui à minha procura. Penso outra vez em Dau e como me ajudou falar com ele, apesar de não haver muita coisa que ele pudesse fazer. Estou a rever a opinião que tenho sobre o homem. Há muito mais nele do que gosta de mostrar.

Estou a começar a pensar que os homens poderosos ficarão ali fechados o dia inteiro, não me dando tempo para ir à casa da contadora de histórias, quando a porta se abre e Brondus sai sozinho. Levanto-me; ele faz-me sinal para me sentar outra vez e depois diz ao guarda para esperar lá fora e fechar a porta para a antecâmara. Brondus senta-se ao meu lado.

— Colocaste-nos numa posição delicada, Ciara — diz.

Eu não digo nada. Ele está diferente agora; fala em voz baixa e de forma informal, como se com um amigo. Espero poder confiar nele.

— Isto ter acontecido tão perto do ritual da coroação é lamentável — continua Brondus. — A casa está cheia de convidados. Uma perturbação que envolva o príncipe, seguida por um processo legal, seja qual for o resultado, vai pôr as pessoas a falar e talvez dê azo a... mal-estar. Desconfiança. Estamos neste momento a lidar com uma grande crise, uma coisa de que suponho não te tenhas dado conta ontem à noite. Um ataque a alguns quilómetros daqui, com vários dos nossos homens mortos. Tivemos de reunir uma força à pressa e mandá-la avançar de imediato, à noite, para responder a isso. Ainda aguardamos o seu regresso. Entretanto, Lorde Cathra quer que a tua situação seja resolvida rápida e discretamente. Não queremos que as pessoas comecem a falar em maus presságios.

Aceno com a cabeça. Há uma mensagem implícita nas palavras dele e tem a ver com a harpa que desapareceu e com Rodan. Se o comportamento do príncipe for de algum modo suspeito, as pessoas podem começar a sussurrar que não é talhado para ser rei de Breifne. E com o solstício de verão cada vez mais próximo e a harpa ainda desaparecida, é isso que Cathra e os seus conselheiros não querem.

— Calculo por que motivo estavas nos alojamentos dos homens e o regente também, imagino. Mas não podemos partilhar essa informação com mestre Niall nem Bress, nenhum dos quais conhece a verdadeira razão para estares aqui. Assim como assim, temos uma opção. Se te soltarmos e te envolveres outra vez com o príncipe Rodan, os resultados podem ser muito maus para ele. Tenho a certeza que percebes isso.

Estamos a contornar a verdade.

— Os resultados podem também ser maus para mim — digo.

— Lorde Cathra está ansioso para manter o príncipe longe de problemas até ao solstício de verão — retorque Brondus. — Também está interessado em ver o teu... grupo... completar a sua tarefa a tempo. E imagino que isso exija todos vocês.

— Sim.

— Mestre Niall está preparado para declarar que o que sucedeu foi um acidente e que não será feita nenhuma acusação formal. Lorde Cathra pediu que apresentes uma desculpa formal ao príncipe. Arranjaremos uma altura e um local para isso. Além disso, de agora em diante ficarás sob a supervisão do teu tio e tens de prometer que não te envolverás em mais nada deste género enquanto aqui estiveres. Mestre Niall escreverá um registo completo da discussão e será guardado a sete chaves.

Respira, digo para comigo, mal conseguindo acreditar. Terminou. Estás livre.

— Uma desculpa formal — repito, a tentar imaginar-me a proferir essas palavras na presença de Rodan. — Achas que será suficiente para o príncipe? Ele estava furioso. Suficientemente furioso para magoar alguém.

Brondus lança-me um olhar muito direto.

— Cinjamo-nos aos factos, Ciara. Foi o príncipe Rodan que ficou ferido.

Ocorre-me que tenho informações suficientes, a provocação e espancamento de Dau, a gravidez de Máire, as suas contusões e as de Aislinn, para lançar muitas dúvidas sobre o carácter do futuro rei de Breifne, caso decida partilhar o que sei com os visitantes da corte. Os discursos emocionantes do príncipe e as suas maneiras afáveis em público são apenas um aspecto da sua personalidade. E há ainda o que Dau me contou sobre Rodan temer talvez o que está para vir. Mas não contarei nada disso, por mais tentadora que seja a perspetiva neste preciso momento. Estou aqui para ajudar o regente a pôr Rodan no trono.

— Não posso estar sob a supervisão do tio Art dia e noite — comento.

— Vou deixar que o teu tio resolva esses pormenores. Falarei com ele mal regresse. Entretanto, um dos nossos guardas vai escoltar-te até àquela sala onde ensaiam e aconselho-te a lá ficar até que o teu tio possa ir ter contigo. Afasta-te do príncipe. És uma mulher de alguma inteligência. Deves conseguir fazer isso. Se deixares que isto aconteça de novo, não teremos outra opção senão pôr-te na prisão ou mandar-te embora.

Quero dizer-lhe como isto é injusto. Mas creio que não preciso de o fazer. Brondus também é inteligente. Não se trata de garantir que se faça justiça. Trata-se de garantir que o temperamento volátil do príncipe não o faça perder o trono.

— Sim, senhor Brondus — digo, submissa, porque o que importa agora é sair daqui e ir procurar Brocc antes que Archu me possa impedir.

— Obrigado. Vou pedir-te agora que voltes à câmara do conselho e ponhas a tua marca no documento.

O escriba tem estado atarefado. Quando entro, pousa a pena no suporte, tapa o tinteiro e salpica areia por cima do documento para secar a tinta. Leva a folha de pergaminho para a grande mesa e coloca-a à frente de mestre Niall, que leva o seu tempo a lê-la.

— Muito bem — diz por fim. — Traz a pena e a tinta. — Assina. Vira o documento para mim. — Põe a tua marca aqui — continua, apontando.

— Não assino sem ler o documento — replico baixinho. — Só um instante.

Examino a folha que descreve a situação como Brondus sugeriu. Um acidente; nenhuma acusação; nenhum castigo. Um pedido de desculpas formal. A parte de me manter afastada de Rodan não está lá, é claro. Não estava à espera disso. Quando já li até ao fim, pego na pena e assino, não com um X ou uma impressão do polegar como é evidente que o homem de leis está à espera, mas com o meu nome. Sinto um forte desejo de escrever Liobhan de Winterfalls. De dizer o que penso. Ver a verdade proclamada e feita verdadeira justiça. Em vez disso, escrevo Ciara, filha de Íomhar, que é o nome que Brigid escolheu para o meu pai imaginário.

Há espaço para mais uma assinatura e presumo que será a de Rodan. Pergunto a mim mesma como vão fazer com que ele concorde. Dizendo-lhe que sabem que estava a mentir? Talvez o príncipe entenda o argumento sobre não atrair o tipo errado de atenção tão perto da data da coroação.

— Muito bem — diz mestre Niall. — Podes ir. Sei que o senhor Brondus estabeleceu algumas regras para ti. Estás a ser libertada sob estrita condição de permanecer dentro das muralhas do castelo e não te aproximares do príncipe Rodan. Ele estará presente para ouvir o teu pedido de desculpas, é claro, e durante o entretenimento da noite no salão, mas como estarás sob a supervisão do teu tio nessas ocasiões, não vejo aí qualquer dificuldade. Temos a tua palavra de que aceitarás isto?

— Outra coisa. — Cathra olha para mim quando fala e os seus olhos estão tão perturbados que sinto uma pontada de pena do homem. — Não falarás deste assunto. Não poderá haver mexericos. Nenhuma palavra sobre alguma coisa errada. Está tudo resolvido, nenhuma acusação, o príncipe recuperou, terminou. O teu tio será informado, é claro, mas nenhum de vocês deve fazer circular boatos.

— Entendo e farei como desejas, senhor. — Não gosto de lhe mentir. Não espalhar mexericos, tudo bem. Mas ficar dentro das muralhas do castelo? Isso não vai acontecer.


Capítulo 19

BROCC

Acordo tarde, quando o sol já vai alto. Onde estou? O que aconteceu? Olho para cima, não para um telhado de madeira, mas para um dossel verde e frondoso, estendido por cima de vimes dobrados. A cama onde estou deitado é estreita. A colcha parece ser feita de penugem de cisne, entretecida destramente com fios compridos de lã.

— Bebe — diz uma vozinha ao meu ouvido, fazendo-me soerguer de forma abrupta. — É seguro — acrescenta a pequena personagem que está sentada na almofada ao meu lado, as mãos a segurar um recipiente de vidro. — Água do regato; a tua espécie pode beber sem problema.

Estou a sonhar. A criatura é uma coisa parecida com um ouriço-cacheiro, mas os olhos são demasiado grandes e as mãos são mais semelhantes a mãos humanas em miniatura. Pego na taça, a murmurar agradecimentos, e começo a relembrar o dia de ontem. Não um sonho, mas bizarra realidade.

Caminhei pela floresta, depois de ter falado com a contadora de histórias. Cantei, uma mulher invisível cantou e passei através da parede e vi-me diante não da mulher bela que esperava mas de um grupo variado de gente misteriosa, alguns parecendo animais da floresta, outros mais humanos e muitos entre as duas coisas. Havia talvez uns trinta e, mal apareci, começaram a crivar-me de perguntas. As pessoas dizem que sou um cantor de alguma eloquência. Confrontado com aquilo, perdi a voz.

— Saudações, bardo. — Um dos seres mais altos deu um passo em frente. Era do tamanho de um rapaz de uns doze anos, com pelo avermelhado-brilhante por todo o corpo, uma cauda espessa e um rosto que tinha características quer de criatura quer de homem jovem. — Era uma linda canção. Não era? — Um coro de aprovação, com grasnidos, latidos e pios aclamou as palavras. — Tens um espírito rápido — continuou o Rapaz Raposa. — A rainha gosta disso.

Não vi rainha nenhuma, a não ser que fosse o ser parecido com uma coruja, ou o que tinha asas dobradas e olhos como os de uma cobra e cabelo prateado cintilante a cair-lhe pelos ombros. Ou talvez a rainha fosse uma das criaturas de aspecto mais humano. Eu ainda estava a esforçar-me por proferir algumas palavras. Por que o Rapaz Raposa me chamou bardo? Foi apenas porque cantei quando vinha para aqui, ou sabiam de mim antes de eu vir? Pigarreei e consegui fazer uma vénia respeitosa.

— É uma honra conhecê-los a todos. — Saiu-me como um coaxar nervoso. — Houve restolhar e guinchar no círculo de gente, talvez aprovação, talvez divertimento. — Sei como é raro admitirem a minha espécie no vosso domínio.

— Que espécie é essa? — perguntou um deles.

E um dos outros sibilou:

— Chiu!

— Esperamos pela rainha — disse o Rapaz Raposa. — Vem, deixa-nos oferecer-te um refresco, o nosso vinho de bagas, os nossos melhores queijos, comida de rei.

— Obrigado, mas não. Tenho o meu odre; beberei dele. E se tiver fome, comerei a comida que trouxe comigo.

— Ooh — exclamou um deles com a voz a subir e a descer, como se estivesse divertido.

— Sou um bardo. Os contos fazem-me ter cautela.

— Então — interveio um ser minúsculo com olhos protuberantes, uma coisa que parecia estar a meia altura de uma árvore, agarrado ao tronco —, não comes a nossa comida nem bebes a nossa bebida. Mas passas pela nossa porta sem um único olhar para trás. Muita cautela, de facto.

Era uma observação justa.

— Vim de minha livre vontade, isso é verdade. E espero partir da mesma forma. É melhor não partilhar da vossa comida, por mais deliciosa que pareça. — Hesitei, sem ter a certeza do que dizer. — A vossa rainha... está perto? Foi a voz dela que ouvi cantar?

— Demasiadas perguntas — retorquiu o Rapaz Raposa.

— Estava com esperança que a rainha me pudesse conceder uma audiência. Há um assunto que queria discutir com ela. É... urgente.

— Ooh! Urgente! — repetiu um deles em tom trocista. Os outros trinaram e murmuraram e chiaram por toda a clareira.

— A rainha concede audiências quando estiver preparada. Espera por ela. — O Rapaz Raposa não falou em voz alta, mas os seres calaram-se na mesma. Reconheci nele o equivalente neste reino ao senhor Brondus: um guardião da paz; um defensor da ordem. Talvez fosse o braço-direito da rainha.

E depois, sem alarde nem espalhafato, ela apareceu entre nós.

— Obrigada, Rowan — disse. — Calma, todos. Vamos dar as boas-vindas ao nosso novo amigo com rostos alegres e palavras calmantes, não uma investida de perguntas.

Era a cantora. A voz era inconfundível. Não era a criatura grandiosa e imponente que se poderia esperar de uma rainha das fadas. Parecia o tipo de rapariga que eu poderia encontrar num baile da aldeia lá em casa e com quem sonhar casar um dia. Deitado aqui neste pequeno abrigo estranho, a ouvir o canto dos pássaros lá fora, aquela primeira visão que tive dela ainda está muito clara na minha mente. Em altura, não me chegava ao ombro e a sua figura era esbelta, mas torneada. A pele era creme e rosada e fresca como pétalas de flores. Tinha uma cabeça de caracóis castanhos, apanhados atrás com uma fita azul-celeste. Os olhos eram grandes, cinzentos e diretos. Sorriu-me e não duvidei que as suas boas-vindas fossem genuínas. Não vinha vestida com roupas de rainha, mas com um vestido simples e prático do mesmo azul da fita e de corte modesto. Parecia ter mais ou menos a minha idade. Esta rainha das fadas não parecia nada feérica, ou, pelo menos, não mais do que eu.

— Obrigado, senhora. Chamo-me... chamo-me Brocc. Sou músico.

— Sabíamos isso ainda antes de ouvirmos a tua voz nos bosques ainda agora. Temos seguido o teu percurso, Brocc. Não fiques tão assustado, não podes achar que a espionagem seja realizada só pelos humanos.

Fiquei sem voz. Tinham seguido a minha viagem? Porquê? Estaria a dizer que sabia qual o propósito da nossa vinda para Breifne? Com certeza que nem uma rainha das fadas podia ter espiões na Ilha dos Cisnes.

— Chamo-me Eirne — disse ela. O tom mudara; era a voz de uma líder. — Reino nesta terra desde as montanhas do oeste até à floresta do leste e desde o lago brilhante que tem o meu nome até às terras bravias do sul. O meu reino fica além, ao lado, por baixo e por cima do dos humanos. Mas há entradas. E, por vezes, uma pessoa como tu entra. Seja por acidente ou de propósito, quem sabe? A seu tempo, talvez me digas.

— A seu tempo... sim, mas não tenho muito tempo. A minha irmã estará à espera que regresse antes do anoitecer. — Eu devia ter dito «a minha colega música». Devia ter-lhe dito que me chamava Donal. Mas parecia errado mentir-lhe. Parecia que, ao mentir, perderia qualquer hipótese de conquistar a sua confiança.

A rainha não pareceu muito interessada em Liobhan.

— Rowan, ofereceste de comer e beber ao nosso convidado?

Rowan era o Rapaz Raposa.

— Feito e recusado, minha senhora. O nosso convidado ouviu muitas histórias.

Eirne riu-se entredentes.

— Nunca se pode ouvir demasiadas histórias. As histórias são como bolos de mel. Mal provamos um, queremos outro e outro e sempre mais. E depois de contarmos uma história, queremos contá-la outra vez, de forma diferente. Fazer um poema dela, ou uma canção. Não concordas, Brocc?

— Falando como músico, com certeza que concordaria. Embora seja obrigado a dizer-te que nem toda a gente pensa da mesma forma. Quanto aos refrescos, é melhor que beba do meu odre de água e coma apenas o que trouxe comigo. — Não lhe disse que as minhas provisões estavam quase a acabar. — Não posso ficar aqui muito tempo.

Outro coro de murmúrios e comentários trinados irrompeu entre a assistência. Eirne lançou um olhar ao seu povo e depois gesticulou com uma mão graciosa:

— Vão!

Eles dispersaram-se, desaparecendo com rapidez nos bosques ou nas fendas da parede de rocha. Rowan deixou-se ficar para trás, a olhar da rainha para mim e para ela outra vez.

— Podes deixar-nos, Rowan — disse Eirne, não de forma desagradável. — Estarei em segurança. Se estás preocupado, espera ali debaixo do carvalho, onde nos podes ver. Caso o menestrel decida atacar-me, conseguirás ouvir os meus gritos a pedir ajuda.

Rowan retrocedeu, parecendo tudo menos satisfeito. Pareceu-me que era seu guarda e protetor tanto como conselheiro e senti uma certa pena dele. O que era eu senão um desconhecido, a intrometer-me onde não pertencia?

Eirne sentou-se no tronco coberto de musgo de uma árvore caída e deu uma palmadinha no espaço a seu lado. Eu sentei-me, outra vez mudo. A minha cabeça estava cheia de perguntas. Seria fácil confiar nela. Tudo nela parecia doce e natural. No meu mundo, ia querê-la como amiga. Mas este era o mundo dela. Podia parecer uma donzela doce de aldeia, mas era feérica e rainha. Isso tornava-a perigosa.

— Por que viajaste até aqui, bardo?

Eu gostava de poder dizer logo a verdade: que a Harpa dos Reis tinha desaparecido e que eu estava a pensar se ela ou o seu povo estariam envolvidos nesse desaparecimento. Mas isso quebraria a regra mais essencial da missão.

— Ouvi uma história; um dos druidas contou-ma. Sobre a Harpa dos Reis, que será tocada quando o novo rei de Breifne for coroado no solstício de verão. A história de como a harpa chegou às mãos dos humanos, como penhor de uma promessa de paz entre o teu povo e a humanidade, há muito, muito tempo.

— Conheço a história — replicou Eirne. — A promessa permitiu que o meu povo pudesse habitar em segurança esta terra adorável, sem interferência dos humanos. As nossas fronteiras deviam ser respeitadas; as nossas árvores podiam crescer sem ser perturbadas; não fariam represas nem pontes nos nossos cursos de água sem autorização. Pareces surpreendido, Brocc. Para conseguir isso, o povo humano só precisa de observar os rituais adequados ou invocar os espíritos certos. Além de, claro, cultivar sabiamente as suas colheitas, tratar dos seus animais com sensatez e exercer um certo grau de tolerância quando o nosso povo precisa de se aventurar no seu mundo. Infelizmente, parece que o acordo antigo está a diluir-se da memória dos líderes de Breifne e, assim, das mentes das pessoas vulgares. Tocar a Harpa dos Reis era um símbolo poderoso da longa cooperação entre as duas raças. Mas receio que o seu significado já não seja entendido.

— E, no entanto, continuam com a tradição. O ritual; a música. Alguns ainda entendem.

— Druidas. — Eirne parecia pouco inclinada a confiar nos irmãos. — A influência deles está a diminuir.

— E outras pessoas. — Não tinha a certeza se devia mencionar a contadora de histórias.

— Ah. Falaste com a senhora Juniper.

Era o nome de uma mulher sábia, como o da minha mãe: senhora Blackthorn, curandeira, herbalista, solucionadora de problemas.

— Sim, procurei-a. Pensei que ela pudesse saber dos portais que são mencionados na história. Pensei... pensei que pudesse encontrar aqui respostas.

Ficámos sentados em silêncio algum tempo.

— Respostas para quê, Brocc?

— Para perguntas sobre a Harpa dos Reis e a música que toca no solstício de verão — disse eu. — Talvez também para perguntas sobre mim. — Pronto, dissera-o e não havia como voltar atrás.

— Ah — retorquiu Eirne, rápida a entender. — Procuras respostas sobre quem és. Ou melhor, o que és.

Quando eu não disse nada, ela continuou:

— Quando conheceres melhor o meu povo, talvez estejas preparado para fazer essas perguntas, as que são tão dolorosas de trazer à luz do dia. Eu também tenho essas perguntas, Brocc. Pois sou da mesma espécie do que tu. Nem de uma raça nem da outra.

Fiquei a olhar para ela, chocado. Estaria mesmo a dizer que era de sangue misto, parte feérica, parte humana? Como podia tal pessoa ascender a rainha do Outro Mundo?

— Estás espantado com isso. Talvez um dia te conte a minha história e tu me contes a tua. Mas nós temos assuntos mais urgentes que conversar. Trabalho a fazer. Trabalho que é essencial tanto no teu mundo como no meu.

— Nós? — repeti. — Tu e eu? Mas...

— Mas não podes ficar? Mesmo que a tua presença e a tarefa que gostaria que realizasses para mim seja vital para a sobrevivência do meu povo? Mesmo que, com o tempo, a sua realização te dê as respostas que procuras?

— Não sei o que queres dizer. E... é verdade, estão à minha espera antes do anoitecer, hoje. Eu esperava... — Não pude continuar. Tinha sido egoísta e estúpido por pensar que podia entrar aqui, obter respostas sobre a harpa e voltar a sair. Nos contos, o povo do Outro Mundo nunca dava coisas de graça. Todas as ofertas tinham o seu preço e isso incluía a oferta de informações. — Qual é a tarefa de que falavas? Por que é tão importante? — Eu, a prestar um serviço essencial ao Povo Encantado? Parecia muito improvável.

— Quero uma canção tua — declarou Eirne. — Uma canção que não podemos escrever, visto que já não temos um bardo entre nós. Uma canção para a paz. Uma canção que capte o espírito do nosso povo, cada vez mais reduzido. Uma canção que toque o coração mais empedernido e traga compreensão à mente mais tapada. Uma canção que fale da beleza de Breifne, tanto no teu mundo como no meu e do elo entre a terra e as pessoas. Penso que consegues fazê-lo.

Talvez eu devesse ter previsto aquilo, visto que a minha música é a melhor prenda que tenho para oferecer. Mas hesitei antes de responder.

— É uma honra, minha senhora.

— Estamos sozinhos, Brocc. Por favor, chama-me Eirne.

— Está bem, Eirne. Essa canção não pode ser criada à pressa. Não pode nem deve. E não tenho aqui a minha harpa.

— Existe aqui um instrumento antigo que podes usar. Quanto ao tempo que poderá levar, tu é que és o bardo, não eu. Tem de ser feita com todo o teu talento, Brocc. Para apreender o espírito do meu povo, vais precisar de o conhecer melhor. De andar entre ele; de conversar com ele; escutar as suas histórias.

— Eu... eu entendo isso. Mas, tal como disse, esperam-me na corte. Hoje, antes do anoitecer. Quanto mais tempo estiver fora, mais preocupação haverá com a minha segurança. É possível que alguém venha à minha procura. — Era fácil imaginar Liobhan a partir atrás de mim sem ligar à opinião de Archu, mal soubesse que eu não tinha estado nos Nemetons. Se eu concordasse com o que Eirne pedia, poderia sacrificar não só o meu futuro na Ilha dos Cisnes mas também o da minha irmã.

— Só os que queremos admitir podem passar através do nosso Portal — disse Eirne. — São tempos perigosos.

— Foi a música que me abriu a tua porta? Ou a tua gente tem estado a observar-me desde... desde que parti para Breifne?

Embora Eirne tenha sorrido com aquelas palavras, os seus olhos estavam cobertos de sombras.

— A música abre portas, sim; mas apenas se os que vivem atrás dessas portas quiserem visitantes. Quanto a observar-te, a minha gente trouxe-me notícias de um bardo com uma voz rara e dedos ágeis na harpa, uma pessoa cujos talentos sugeriam sangue feérico, embora não vivesse no nosso mundo. Quando te ouvi cantar do lado de fora da parede, percebi que eras quem precisávamos. Esta canção deve constituir uma ponte entre o Povo Encantado e o povo humano. Deve falar a ambos. Deve recordar a todos que em épocas de dificuldades sobreviveremos apenas se confiarmos e nos respeitarmos um ao outro. — Pôs a mão no meu braço, virando aqueles olhos luminosos para mim. As minhas faces estavam quentes. — Ajuda-nos, Brocc — disse com suavidade. — Ajuda-nos, por favor.

— Fico até amanhã. Escutarei o teu povo, se é isso que desejas. Mas a canção... — Já naquele momento conseguia ouvir a melodia na minha cabeça. O rufar do tambor estava no meu sangue, forte e seguro. Desejei ter ali Liobhan para me ajudar; uma canção como aquela, heroica e vibrante, seria mais adequada para a voz dela do que para a minha. — Farei o que puder até lá.

Eirne levantou-se de um salto e bateu palmas.

— Oh, obrigada! Deixa-me convocar o meu povo.

Atirou a cabeça para trás e soltou um grito alto e ululante. Provocou-me arrepios na coluna. Dali a um instante, os outros estavam connosco, a mesma equipa de antes com talvez mais um ou dois acrescentos: vi um ser tipo falcão e outro com asas grossas como um morcego. Instalaram-se à nossa volta, deitados nas rochas, sentados nas forquilhas das árvores, aninhados em buracos. Pássaros minúsculos voaram para os ramos por cima de nós e juntaram-se numa fileira ordenada. Rowan ocupou um lugar perto de Eirne. Deixa-me convocar o meu povo. Seria que aquelas cerca de trinta criaturas variadas eram todo o Povo Encantado que restava nesta floresta?

— O bardo fará uma canção para nós — anunciou Eirne. Isto foi recebido com guinchos, sussurros e alarido. Um ou dois pequenos seres deram saltos de excitação. — Em troca, temos de aprontar uma casa para ele e ir buscar comida e bebida lá de fora. Não podemos ter o nosso bardo a desmaiar de fome. Rowan, providencias para que os pequeninos façam isso. Devem ter um cuidado especial.

— Sim, minha senhora.

— Brocc é muito inteligente com os seus versos; nada está fora do seu alcance. E prometeu ouvir-vos e andar convosco e escutar o que têm para contar. Mas não poderá pôr todas as histórias na sua canção. Apenas o que é mais importante para nós, para o nosso clã, para o futuro.

Conversas abafadas encheram a clareira enquanto eles falavam uns com os outros. O único que não participou foi Rowan, que continuou de guarda, de rosto solene. Muito em breve, a discussão terminou e um ser que era parte mulher, parte coruja, deu um passo em frente.

— Sou a sábia da rainha. — A voz possuía a sua música ensombrada. — Chamo-me Nightshade. Tem havido longos períodos tristes. Tempos de desânimo. Tempos de medo e angústia. Talvez conheças as criaturas a que alguns chamam o Povo Corvo.

— Conheço sim. A gente de Breifne, os humanos, receiam-nos. Tem havido histórias sobre cordeiros levados, outros animais mortos de forma selvática. E homens e mulheres atacados. Existe alguma discussão sobre o que é o Povo Corvo e como se poderá lidar com ele da melhor forma.

— Constituem um perigo para todos — afirmou Nightshade em tom grave. — Estás talvez a pensar por que razão o povo de Eirne é tão pouco numeroso.

— Poucos, poucos — veio o eco pesaroso dos seres reunidos.

— Os nossos números diminuem com rapidez, bardo. Com tanta rapidez que se não encontrarmos respostas muito em breve, desapareceremos todos em menos tempo do que uma vida humana. E sem nós Breifne nunca será a mesma. Somos os guardiões das árvores, dos regatos, das rochas, colinas e cavernas, dos lugares profundos e altos. Sem nós, esta bela terra perderá a sua magia.

Quereria dizer que o Povo Corvo estava a matar o povo de Eirne? A tentar afastá-los? Lembrei-me de uma coisa que Dau transmitira a Archu. Uma conversa ouvida nas cavalariças. Rodan a dissertar sobre derrubar os bosques numa tentativa para livrar Breifne da ameaça. A ideia tinha-me chocado profundamente, mesmo antes de saber que o Povo Encantado vivia de facto neste lugar.

— E assim — continuou Nightshade — a canção que fizeres para nós será a canção mais importante que já compuseste, bardo. Será para cantarmos quando o Povo Corvo gritar na floresta. Será para cantarmos quando marcharmos para a batalha e quando cairmos diante dos bicos perfurantes e garras lacerantes. Será para cantarmos aos nossos filhos, por poucos que sejam, para que mantenham viva a esperança mesmo nos períodos mais sombrios. E será a nossa mensagem para os humanos, de que devemos permanecer fortes juntos.

Fez-se silêncio então, um silêncio profundo. Tal tarefa não podia ser completada num dia e uma noite. Se prosseguisse com aquilo, estaria a comprometer-me a ficar no Outro Mundo durante muito mais tempo. E se eu estivesse ainda atrás da parede no dia do solstício de verão?

Um sussurro quebrou o silêncio; o povo de Eirne estava a ficar preocupado. Receavam que eu abjurasse a minha oferta e estragasse os seus planos. O que pretendiam para esta canção? Aquilo parecia mais monumental do que produzir uma cançoneta empolgante para dar ânimo às gentes.

— Uma grande tarefa — disse Eirne baixinho. — Consegues cumpri-la?

— Consigo. — Como poderia responder de outra forma, quando esta gente tinha demonstrado tanta fé em mim? Escreveria a canção. Daria o meu melhor. Não dormiria, trabalharia o mais rápido possível, esperaria que isto não levasse tanto tempo como receava que pudesse levar.

— Estamos muito satisfeitos. — Eirne pousou a mão no meu ombro; senti o toque através do meu corpo e não sabia se era magia ou alguma coisa muito mais vulgar. — Trata de organizar as coisas, Rowan. Quero que o nosso bardo fique instalado com todo o conforto. E os restantes, falem com ele à vez e contem-lhe as vossas histórias. Trabalhará melhor se não estiver sobrecarregado de visitas. Nightshade, levas a nossa harpa para a casinha de Brocc? Para conseguir fazer isto a tempo, ele tem de começar já.

Agora, à luz do dia, sento-me na minha enxerga, com cuidado para não desalojar o pequeno ser cheio de espinhos ao meu lado. Pego na taça que me oferece e bebo. Ontem trouxeram-me comida que disseram vir do mundo humano e eu comi porque não conseguia escrever versos de estômago vazio. Sentei-me aqui nesta pequena cabana durante horas e ouvi as gentes de Eirne, uma atrás da outra, a contar-me histórias sobre a beleza da floresta, o perigo do lobo ou da águia ou do corvo, a alegria das primeiras flores da primavera, as asas brilhantes das borboletas ou o nascimento de um filhote da sua espécie; há muito tempo que tal coisa não acontecia, disseram-me. Forneceram-me penas e tinta e folhas de casca de salgueiro para escrever. Quando o tinteiro estava quase vazio, um ser tipo esquilo trouxe novo suprimento, dentro de metade de uma casca de ovo. Escutei e recordei e escrevi até os meus olhos não conseguirem ficar abertos e as palavras e as notas redemoinharem numa confusão na página à minha frente. Despedi-me do meu último visitante e deitei-me na enxerga, a pensar descansar durante uma ou duas horas e acordar revigorado. Mas é evidente agora que o meu corpo traiçoeiro não o quis e o povo de Eirne não me acordou. Dormi o resto da noite e, parece, uma boa parte da manhã. O sol brilha para lá da minha janela e perdi um tempo precioso.

— A água para te lavares está ali junto à porta — diz o ser cheio de espinhos. — A comida em cima da mesinha. Vinda do teu mundo. Segura. Borboleta-Traça e Pequeno-Capuz foram buscá-la.

Deuses, sinto-me como se pudesse deitar-me e dormir durante o resto do dia. Em vez disso, estico os membros e ponho-me de pé com uma chiadeira.

— Obrigado. Posso saber como te chamas?

— Sou Casaco-de-Cardo.

Quando cambaleio até à mesa onde estive a trabalhar a noite passada, o ser acrescenta:

— Lavar primeiro. Comida a seguir. Só então escreves música.

— Mas...? — Mas o quê? Casaco-de-Cardo tem razão, não posso fazer o trabalho perfeito que Eirne quer se estiver a morrer de fome. E se vou ficar nesta casa minúscula e dormir nesta cama, não posso recusar manter-me limpo. — Claro. Obrigado.

Logo estou pronto para começar outra vez a trabalhar. A harpa que me trouxeram, embora antiga e simples, está bem afinada. É mais leve do que a minha, mas serve-me bem. Também atrai assistência. Quando acabei de aquecer com O Salto de Artagan, um grupo de pequenos seres está amontoado à entrada da cabana, e mais a espreitar pelas janelas minúsculas. Sob o seu escrutínio, experimento a melodia em que estive a trabalhar, uma melodia grandiosa e solene para combinar com a gravidade da canção de que precisam. O meu público observa e ouve como se hipnotizado; como se a música fosse mágica. Acho isto triste. Eirne disse que não têm bardo, mas ela tem uma voz bela e com certeza que deve haver outros cantores entre eles. Se houver tempo, poderei oferecer algumas cantigas para entretenimento e encorajá-los a cantar. Não há nada como fazer música juntos para animar as gentes.

A dada altura da manhã, sentado na minha casinha a debater-me com os versos, um guincho alto estilhaça o sossego. O som é bruscamente interrompido. Deixo cair a pena, estendo a mão para uma faca que não está no meu cinto, olho em volta à procura de uma arma e não encontro nada. Não importa. Sou um guerreiro da Ilha dos Cisnes. Os pequenos seres desapareceram da minha janela e da entrada aberta; ouço-os a correr. Lá em cima há um bater de asas pesadas.

Saio pela porta com cuidado. Não se vê ninguém. Pego num pau de aspecto útil, pesado o suficiente para fazer mossa, leve o suficiente para rodar com uma mão e dirijo-me para o local de reunião habitual do povo de Eirne. E aí está Rowan com o seu pau sólido na mão e a sua faca no cinto. Vejo o suficiente da arma para adivinhar que é feita de osso.

— O que aconteceu? — pergunto, quando ele me faz sinal para o seguir por um caminho estreito entre silvados. — É o Povo Corvo?

— Levaram Borboleta-Traça e Pequeno-Capuz. Vens ajudar? — Lança uma olhadela ao pau que trago.

— Se puder. Quantos são?

— Desconhecido. O fogo mantém-nos afastados. Mas não podemos fazer fogo aqui, onde as árvores crescem muito juntas. Nós temos de confrontá-los em campo aberto.

Nós. Estará a referir-se a nós os dois contra um número desconhecido de maléficas criaturas aladas?

— Mas...

— A nossa magia é inútil contra eles. Fogo. Coragem. E qualquer coisa que possas sugerir, bardo. Avante.

Os arbustos densos dão lugar a erva e rochas; uma clareira abre-se diante de nós e no centro jaz uma pequena forma ensanguentada. Não se mexe. Faço menção de correr para a frente, mas Rowan impede-me.

— Não — sussurra. — Uma armadilha.

— Mas ainda pode estar vivo. — Sou filho de uma curandeira. Podia salvá-lo.

Rowan faz um gesto furioso. Não. Espera.

Vejo-os. Estão empoleirados num carvalho do outro lado da clareira, quatro, não, cinco seres de asas escuras que se assemelham de alguma maneira a corvos, embora nenhum corvo tenha tido olhos tão estranhos ou garras tão disformes. Não são pássaros, com certeza, mas sim algum ser que usa o disfarce de corvo por cima do seu verdadeiro eu. Um deles ergue as asas, voa através da clareira e pousa algures por cima de nós. Será que nos viram?

— Fogo.

Rowan articula a palavra sem emitir um som. E vejo-a: uma fila de gente com tochas, a sair detrás de uma formação rochosa e a avançar para a clareira. Eirne lidera, com a cabeça erguida, o tição a arder bem firme. Nightshade segue-a e depois da sábia vêm os outros, mesmo os mais pequenos. Por todos os deuses! Ato de extrema bravura ou tolo sacrifício, não sei o que seja, só que tenho de os ajudar. Rowan deve ter a intenção de que eu e ele, de alguma maneira, empurremos o Povo Corvo para aquelas chamas. Não é uma estratégia sólida. Seremos ambos mortos antes de darmos dez passos para fora do nosso abrigo, e se o Povo Corvo ainda tem cativa uma das criaturas de Eirne, ela também morrerá. Eu podia lutar e cair como um guerreiro da Ilha dos Cisnes. Mas sou guerreiro e bardo. E a minha arma mais poderosa é a minha voz.

Fica aí, gesticulo para Rowan. Saio do abrigo, inspiro fundo e canto. A canção não tem palavras; é uma coisa gemente e temível. Nunca fiz estes sons antes. O seu poder lateja através de mim, a sua força irrompe de mim, o seu terror preenche o espaço à minha volta, fazendo tremer as folhas. Uma nuvem cobre o sol. Uma rajada de vento, frio como a morte, passa pela clareira.

Eirne e o seu povo ficam onde estavam, as tochas erguidas bem alto, uma barreira de chamas. Por cima de mim, o Povo Corvo remexe-se nos seus poleiros, a grasnar de forma estranha. Um deles voa na minha direção. Mantenho-me firme; habita-me algum tipo de loucura e não me baixo nem quando ele voa tão perto que a sua asa me roça a face. Durante um instante fito-o nos olhos e o que aí vejo não é loucura, não é desafio, mas puro terror. Rowan está ao meu lado agora, a brandir a sua faca de osso. Todo guerreiro. A criatura cai e contorce-se no chão; Rowan aplica um golpe eficiente com o seu pau e ela morre. Outro pássaro pica sobre nós, o seu bico letal apontado direito a ele. Ele não consegue alcançar a sua faca a tempo. Golpeio com o meu pau e o pássaro grita e depois sobe em espiral para fora do nosso alcance, a voar de esguelha. Ouço-o desabar nos silvados numa ponta da clareira.

Ainda canto. Canto como nunca cantei antes, uma torrente de música terrível a jorrar das minhas entranhas, do meu peito e da minha garganta, uma magia que não sabia que possuía em mim.

— Anda — diz Rowan. — Caminha em direção ao fogo e chama-os para virem atrás de ti.

Por todos os deuses! Faço o que ele diz, avançando com passos comedidos como se numa procissão ritual. Transformo a minha canção num apelo.

— Venham! Sigam-me! Sigam-me até ao fogo! — Rowan caminha a meu lado, com a faca pálida preparada, arriscando a vida para me manter seguro.

Seguem-me. Mesmo com dois deles mortos ou moribundos e a muralha de chamas em frente, erguem-se das árvores e voam por cima de mim, as asas a abanarem devagar como se, eles também, fizessem parte de uma cerimónia solene.

— Sigam-me até às chamas! — Caminho em direção a Eirne, em direção a Nightshade, em direção aos restantes ali com os olhos fixos nas criaturas que se aproximam e os pés plantados com firmeza na sua terra antiga. Não posso duvidar. Tenho de me manter firme.

Continuo até Rowan e eu estarmos a duas passadas das tochas. Ouço as asas por cima de nós, sinto o movimento do ar, mas o Povo Corvo está silencioso agora. Continuo a cantar enquanto eles giram, à espera. À espera diante do que receiam. Presos ali, contra a sua vontade, ou com certeza voariam para longe do perigo. Presos pela canção. Está na altura de mudar a música.

Tenho um pau. E ali no chão diante de mim está uma rocha. Bato nela com o meu pau, criando um ritmo de marcha. Canto uma nova canção, que fala em voar livremente, em voar alto por cima da floresta, em passar por cima de rios e lagos e mares revoltos. Uma canção de liberdade. Ordeno-lhes que vão. Enquanto canto, ao meu tambor improvisado juntam-se outros; os que não têm tochas estão a bater palmas ou a bater com pedras a compasso e outros batem com os pés.

Acontece de repente. O bater lento de asas que os manteve em cima de nós adquire a força de um propósito. No espaço de algumas inspirações, o Povo Corvo vai-se, contornando as chamas e depois erguendo-se alto por cima das copas das árvores. O rufar cessa. Nightshade corre para a frente e dobra-se por cima da pequena figura que jaz na clareira. Deixo-me cair no chão, sabendo que as coisas nunca mais serão as mesmas. A minha garganta arde. Deuses, acabei mesmo de fazer aquilo?

Eirne tem lágrimas a escorrer-lhe pelas faces. Passa a tocha a Rowan e ajoelha-se para me passar o braço pelos ombros.

— Meu bardo — diz e beija-me na testa. — Obrigada. Oh, obrigada.

Não creio que consiga falar. Mas tenho de o fazer porque agora Nightshade, com a ajuda de um ser de constituição robusta que se parece com uma rocha que ganhou vida, está a erguer o corpo de um pequenino e a levá-lo para Eirne.

— Lamento ter chegado demasiado tarde para ajudar — murmuro com rouquidão. — O outro que eles apanharam, sobreviveu?

O povo de Eirne está a apagar as tochas.

— Procuraremos Borboleta-Traça — afirma Nightshade. — Mas devias regressar, bardo. Estás mais cansado do que imaginas. Travaste uma grande batalha por nós.

— Eu não. Nós. Todos nós. — Olho para Rowan, para Eirne, para Nightshade, para o ser rocha, para o pobre Pequeno-Capuz morto e toda a equipa variada. — Juntos somos fortes.

E embora neste preciso momento sinta as pernas bambas e a cabeça me doa e o meu coração esteja cheio de confusão, sei que isso é verdade. Enquanto caminho, trémulo, de volta ao local de reunião, rodeado por seres desejosos de me apoiar, sei que posso fazer a canção agora e fazê-la bem. Posso dar-lhe poder. Posso dar-lhe verdade. Posso dar-lhe sabedoria. Que possa alcançar a magia de que o povo de Eirne precisa. Ajudei a expulsar os seus opressores por agora, mas o Povo Corvo voltará. Disso não tenho a menor dúvida.


Capítulo 20

DAU

Dez dias até ao solstício de verão. Está tudo sossegado nas cavalariças. O grupo que partiu a noite passada ainda não voltou e o ambiente entre os trabalhadores é sombrio. Toda a gente faz o seu trabalho e não fala muito. Acabo de varrer e procuro outras tarefas. Liobhan estará no seu conselho neste preciso momento. Estou preocupado com ela, não posso negar. Será a versão dela contra a de Rodan. Ele é o príncipe herdeiro. Ela é um músico itinerante; não pertence à corte. Já vi muita justiça virada do avesso para saber que é pouco provável que a audiência tenha um resultado justo. O rosto que Liobhan precisa mostrar a esses conselheiros e homens de leis é o de uma mulher vulgar em circunstâncias assustadoras. Devia ficar intimidada com os homens e as suas perguntas difíceis. Devia estar um pouco receosa, mas determinada a contar a verdade. Duvido muito que Liobhan alguma vez tenha tido medo. Mas sabe fingi-lo bem; naquela noite no Celeiro, durante alguns instantes, convenceu-me.

Preciso de andar. Há dois cavalos que precisam de passar tempo no pasto, por isso faço sinal ao chefe das cavalariças a indicar que os vou levar lá para fora e instalá-los. Detesto estar ocioso e tenho deitado a mão ao que quer que precise ser feito, desde que o trabalho para Illann seja concluído primeiro.

Desta vez é uma desculpa. Preciso de pensar sem ser interrompido. O velho cão, Bryn, já está lá fora no pasto. Quando solto os cavalos, ele corre para mim e depois espera aos meus pés. Os cavalos, libertos, afastam-se devagar pelo campo que desce com suavidade da torre até à muralha. Aí, um carvalho alto ergue-se entre um conjunto de árvores mais pequenas. Há uma faixa de bosques do outro lado da muralha. Aí ficam os misteriosos Nemetons, onde Brocc parece ter passado muito tempo a aprender quase nada. Será que existe uma conspiração entre os druidas, uma coisa que ninguém revelou ao regente? Isso poderá fazer com que omitam informações essenciais? Talvez o complô, se é que existe, comece ao mais alto nível. O druida-chefe. Ou aquele outro, o bardo-mor. Homens que sabem, oficialmente, que a harpa desapareceu. Ora isso seria um jogo muito perigoso e, não sabendo quase nada sobre druidas, não tenho a menor ideia por que o fariam.

Caminho até ao ponto mais alto no campo onde há um banco para me sentar. Bryn instala-se perto de mim. Executo um exercício que me ajudou no passado, endireitando as costas, fechando os olhos, iniciando um ritmo de respiração para desacelerar a mente e o corpo. É uma das incontáveis coisas que Garalt me ensinou, o meu mentor, o homem que me ajudou a sair do desespero. Todos os dias que mostro boa cara ao mundo, sempre que sou forte, penso nele. Foi-se; mas quando as sombras me oprimem, ainda caminha ao meu lado.

O cão está deitado aos meus pés. A sua presença quente é reconfortante. Posso olhar para o futuro com olhos límpidos. Posso esquecer o príncipe e as suas ações a noite passada; posso esquecer que Liobhan derramou lágrimas a coberto da escuridão; posso pôr de lado, por agora, como estou furioso por me sentir impotente. Anseio mostrar ao miserável Rodan o que penso dele, príncipe herdeiro ou não. Gostaria de poder estar presente na audiência de Liobhan e dizer a verdade em nome de uma colega guerreira. Quero agir, ser útil. E com útil não quero dizer exercer os meus talentos a aparar cascos, a pôr ferraduras e a limpar excremento de cavalo.

Bryn mexe-se. Ergue a cabeça e olha para mim. Baixo-me e acaricio-o e, com um suspiro, ele volta a dormir. Fecho outra vez os olhos; o sol é quente no meu rosto. Sou um guerreiro da Ilha dos Cisnes. Não sou a criança que receava respirar, para evitar que o inferno lhe caísse em cima. Não sou impotente. É verdade que não posso fazer nada contra Rodan, por mais que o seu comportamento estúpido me enoje e por mais que as suas mentiras me ofendam. Mas posso ser útil e sê-lo-ei. Porque se ouve o som de passos. É Liobhan, que vem lá de cima, da torre. Não há guardas à vista. Vem sozinha.

Bryn levantou-se, alerta, de olhos postos nela. Faço um gesto: Senta.

O cão senta-se; espera. Liobhan tem um saco pendurado ao ombro, a capa por cima do outro, os sapatos fortes calçados. O cabelo está puxado para trás, como se estivesse preparada para lutar. O que está a fazer? E a audiência?

Não posso falar com ela; poderá não haver mais ninguém à vista, mas há uma quantidade de cantos e recantos de onde poderíamos ser ouvidos, caso alguém ande por ali a rondar. Liobhan olha para um lado, depois para outro, ao aproximar-se. Eu murmuro:

— Amiga, Bryn — percebendo que ela pode usar o cão como desculpa para se demorar por uns instantes a meu lado. O que ela faz, pousando o saco no chão.

— O que aconteceu? — sussurro, sem olhar para ela.

Liobhan agacha-se para fazer uma festa a Bryn. Tem a faca no cinto.

— Estão a tratar a coisa como se tivesse sido um acidente. Tenho de apresentar um pedido de desculpas formal a Rodan. E ordenaram-me que me mantenha afastada do seu caminho. Brondus falou comigo em particular. Não querem que isto seja tema de mexericos antes do dia do solstício de verão.

— Um pedido de desculpas formal. — Mantenho os olhos no cão, a tentar não mexer muito os lábios. — Vai ser divertido.

— Hum. Illann ainda não voltou? E os outros?

— Nada.

— Dau — murmura ela. — Dava-me jeito uma ajuda.

— A fazer o quê?

— A sair daqui. Sem ser vista. Tenho de ir atrás de Brocc.

Por Dagda, ela vai mesmo fazê-lo. E eu sou o único outro membro da equipa aqui. Há várias coisas que eu podia dizer, nenhuma das quais ela acharia útil. Concentro-me no desafio imediato.

— Sair daqui como?

Ela faz uma careta.

— Subo à árvore. — Meneia a cabeça para indicar o carvalho gigante. — Passo por cima da muralha. Atravesso a planície, subo a colina ali e sigo o caminho da floresta até encontrar a casa dessa contadora de histórias. Sem ser vista em nenhum momento. Estava com esperança que me ajudasses na parte da muralha.

— És louca — sussurro.

— Louca não. Apenas preocupada com o meu irmão. Dau, preciso de ir. Ajudas-me?

Como plano, deixa muito a desejar. Mas ela vai fazê-lo, com ou sem a minha ajuda. Está tão preocupada com o irmão que está preparada para arriscar tudo. Pelas bragas de Morrigan! Se eu tivesse hipótese de me livrar de qualquer dos meus irmãos, aproveitá-la-ia de braços abertos. Espero nunca mais os ver na vida.

— O que queres que faça? — pergunto.

— Vem comigo até ao carvalho grande e eu mostro-te. É melhor se não formos juntos.

Espero enquanto ela caminha com descontração pelo campo e desaparece na sombra das árvores. Pergunto a mim mesmo por que não disse apenas que não. Depois sigo-a, com Bryn a arrastar-se atrás de mim.

O carvalho é uma coisa imponente. Liobhan aponta para um ramo de bom tamanho que se projeta em direção à muralha, cerca de metro e oitenta acima das pontas afiadas das estacas. Ela assegura-se que o saco está bem preso nas costas e depois começa a trepar. Sigo-a, com a voz do bom senso a gritar na minha cabeça. Isto é uma loucura. Isto infringe todas as regras. Após uma difícil escalada, chegamos ao sítio.

— Irei o mais longe possível neste ramo. Depois salto e aterro com o pé direito naquele sítio ali — diz Liobhan, apontando para um local onde uma das estacas tem uma ponta partida. — E depois salto outra vez e aterro no grande olmo do outro lado.

Só um louco, ou talvez um guerreiro da Ilha dos Cisnes, tentaria fazer isto. O menor erro de cálculo pode ter como consequência ficar empalada nas estacas. Pode cair entre a árvore e a muralha no outro lado. É uma grande queda. Não digo nada disto. Liobhan não é estúpida. Terá avaliado todos os riscos.

— Espero que tenhas pensado em como voltar a entrar. Não podes fazer isto ao contrário. — Lá em cima não me dou ao trabalho de sussurrar, mas mantenho a voz baixa na mesma.

— Brocc pode convencer os guardas a deixar-nos passar. Deve-me isso.

— E como devo ajudar?

— Preciso que segures as minhas coisas enquanto eu salto e depois as ates e mas atires. Além disso, se alguma coisa correr mal, podes ir buscar ajuda. E como és mudo, não te podem pressionar para te explicares, o que dá jeito. Dau?

— Hum?

— Se não faço isto agora, vou perder a coragem. — Está a agarrar-se a um pequeno ramo lateral e a desapertar a capa com a outra mão. — Vou atirar isto para cima da muralha. Dessa forma, é menos provável que dilacere o pé se falhar o sítio certo.

Liobhan passa-me o saco dela. Desaperta a saia e deixa-a cair.

— Vê lá se me atiras isto por cima do muro, ou ainda me prendem outra vez por me exibir em público. — Não há qualquer vestígio de tremor na sua voz. Esta mulher não tem medo de nada. Ainda acho que é um pouco desmiolada. Mas gostaria de ter a coragem dela.

Ponho o saco ao ombro.

— E a capa?

— Puxo-a do outro lado se conseguir. Se não conseguir, deixa-a ficar. Pode ser que ninguém repare nela até regressarmos.

Pega na capa e avança devagar pelo ramo. Este dobra-se sob o seu peso, mais do que é ideal. O salto ainda é possível, mas mais difícil. E mais perigoso. Consigo ver o olmo que ela quer, uma enorme árvore antiga no outro lado. Se conseguir executar o salto na perfeição, há um bom sítio para aterrar. Liobhan lança a capa; aterra em cima da muralha, exatamente onde ela a quer.

— Ainda bem — resmunga. — Muito bem, vamos lá fazer isto.

— Liobhan?

— Que é? — Está ali preparada para o voo, o corpo tenso de expectativa e bem equilibrado. A voz é firme como uma rocha.

— Espero que o encontres. Espero que voltes em segurança. Quanto tempo espero antes de começar a preocupar-me?

— Preciso de tempo para chegar à casa da contadora de histórias antes que alguém pense em ir à minha procura. Isso é importante, Dau. Quando Illann e Archu voltarem, diz-lhes onde fui e porquê. Certifica-te que eles entendem que Brocc estava a seguir uma pista.

— Não foi isso que perguntei.

Ela vira a cabeça para olhar para mim.

— Não sei até onde terei de ir. Gostaria de dizer que regressamos à hora da ceia, visto que tenho de fazer esse pedido de desculpas ao príncipe desprezível. Não queremos que Cathra pense que fugi para evitar isso.

Ainda não respondeu à minha pergunta, mas não insisto, porque ela se virou outra vez e percebo que está a calcular o salto. Sustenho a respiração quando ela ressalta no ramo algumas vezes, a treinar; depois prepara-se e salta.

É magnífica. O pé direito cai no local que ela quer e lança-se de novo, com os braços abertos para se equilibrar, na direção do olmo antigo. Observando-a, penso nalguma guerreira mítica dos tempos antigos, o tipo de herói que aparece nas canções que ela e Brocc cantam. Toda ela é graciosidade e força, toda ela propósito e coragem. Vejo-a procurar apoios no olmo, vacilar, firmar-se. Durante um instante, não se mexe, só se agarra, de costas para mim. Depois desloca os pés para uma posição mais segura e vira a cabeça, agarrando-se a um ramo com uma mão. Olha para mim, com um grande sorriso no rosto. Há um sorriso de resposta no meu; não consigo evitá-lo. Liobhan gesticula e recordo-me dos seus pertences. Ato a saia em volta do saco e executo um lançamento deliberado. A trouxa é demasiado leve para a alcançar no olmo, mas passa pela muralha antes de cair longe de vista. Espero que tenha aterrado algures onde ela possa ir buscá-la.

Apetece-me gritar, Boa viagem, ou Espero que o encontres. Mas ela já desceu da árvore e desapareceu da minha vista e tenho de voltar às cavalariças na esperança de que ninguém me tenha visto. Desço do carvalho. Bryn espera ao fundo.

— Bom rapaz — sussurro, coçando-o atrás da orelha. — Mas não faças amizade comigo. Isso só poderá terminar em tristeza.

Volto pelo campo de pastagem com o cão ao meu lado. Tento parecer que estou a trabalhar. E considero o seguinte: se me tivesse encontrado numa situação destas antes de termos saído da Ilha dos Cisnes, ou mesmo algum tempo depois, teria ficado satisfeito se a escapadela fizesse com que Liobhan perdesse o seu lugar na ilha. Poderia até ter alterado um pouco a história para fazer com que a responsabilidade dela fosse maior e a minha menor. Embora, para ser sincero, com toda a probabilidade teria recusado ajudá-la. Agora só consigo pensar que ela é muito destemida e capaz. Já não penso nela como rival, como alguém que devo desacreditar, como alguém indigno de conquistar um lugar na ilha. Louca, impulsiva, por vezes temerária, sim, é tudo isso. Mas a partir de agora é minha igual, minha camarada, minha amiga.


Capítulo 21

BROCC

O ser rocha, que se chama Verdadeiro, traz Pequeno-Capuz da clareira aninhado nos braços e pousa-o numa rocha lisa na zona das reuniões. O minúsculo corpo parece uma boneca partida. Borboleta-Traça, encontrado nas profundezas dos silvados e preso à vida por um fio, é passado a um ser que percebo ser um curandeiro e levado com rapidez para receber cuidados.

Eirne lava o sangue do corpo de Pequeno-Capuz e depois envolve-o numa mortalha de seda. É de um esplendoroso verde-brilhante, a cor da floresta. A garganta dói-me. A cabeça dói-me. Mas quando o pequenino está pronto, os ferimentos piores escondidos sob o lençol enrolado, canto uma canção de embalar, e se a minha voz é rouca e desigual, ninguém parece importar-se. Enquanto canto, o povo de Eirne avança um a um e coloca pétalas, pedrinhas ou penas na rocha ao lado do corpo. Depois ficamos ali em silêncio algum tempo. A luz mostra-me que é quase meio-dia.

— Estás cansado, Brocc — diz Eirne. — Vai para a tua casinha e descansa um pouco. Nós levamos-te comida e bebida.

Há uma pergunta que tenho de fazer, mas não aqui, com a gente de Eirne a chorar, a abraçar-se uns aos outros e a estender dedos suaves para tocar na forma imóvel e morta. Por isso, aceno com a cabeça e afasto-me para a minha pequena cabana. Não me deito na enxerga. Não consigo descansar. Lutei, cantei, salvei uma vítima, ajudei a proteger o clã e aprendi uma coisa. Há em mim um poder que não conhecia. Toda a minha vida, ou desde que soube que era diferente do meu irmão e irmã, desejei não ter o sangue de duas raças nas veias. Por vezes, amaldiçoei os pais que me trouxeram ao mundo e depois me abandonaram. Desejei ser como Galen e Liobhan, solidamente humano. Hoje aprendi que sou muito diferente e como essa diferença poderá mudar não apenas a minha vida mas as vidas de muitos outros. Se a minha música pode conter até o maléfico Povo Corvo, então possuo uma arma que é poderosa e perigosa. Quando cantava, vi medo nos olhos estranhos dessas criaturas. Eu também tenho medo.

— Brocc? Posso entrar?

Sobressalto-me e saio do meu devaneio. Eirne encontra-se à minha porta e a seu lado estão Casaco-de-Cardo e outro pequeno ser, com uma bandeja entre os dois. Agradeço-lhes e os pequenos vão-se embora, mas Eirne entra e senta-se na beira da minha cama. Poderei ter acabado de fazer uma coisa notável, mas agora sinto-me embaraçado na sua presença. Deixo escapar a pergunta que me tem perturbado.

— Eirne... Pequeno-Capuz e Borboleta-Traça foram atacados quando iam buscar comida para mim? — Faço um gesto para o pão e o queijo, a fruta seca, a taça de água fresca na bandeja. Colocaram uma flor ao lado do prato, pequena e perfeita.

— Não há razão nas ações do Povo Corvo — responde ela. — Não assumas essa responsabilidade, Brocc. Lutaste com denodo, tal como Rowan. Quanto à canção... — A testa enruga-se; os seus olhos adoráveis parecem distantes. — Não conheço as tuas origens. Não sei de onde veio esse dom. Mas é de facto raro. Pensei que nos podias ajudar, mas nunca sonhei...

— Nightshade disse que o Povo Corvo podia acabar com o teu povo no tempo de uma vida humana, se não for travado. No meu mundo, diz-se que parece que eles não estão nesta região há muito tempo. As pessoas discutem o que são e como lidar com eles. Podes dizer-me mais alguma coisa? De onde vêm? Há quanto tempo atormentam o teu povo?

— Não posso dizer-te muito mais do que Nightshade disse. O Povo Corvo... vieram no inverno passado. Espalharam-se depressa; os meus espiões no reino humano relatam a sua presença em muitas zonas de Breifne. São criaturas agitadas, movendo-se de um lugar para outro, nunca ficando muito tempo. Não existe qualquer padrão discernível nos seus ataques. No meu reino, assombram os confins da floresta, não em grande quantidade, mas sempre com más intenções. Nesse breve período perdemos muita da nossa gente, Brocc. Muitos. E já éramos poucos antes. Parecem insensíveis à nossa magia. E não queimaremos as nossas árvores antigas para os afastar.

— Há pouco, quando eu estava perto... tinha pensado que eles eram criaturas malignas, maléficas e cruéis. Mas a expressão nos olhos deles... Pareciam... perdidos. Confundidos. Será possível que sejam vítimas de alguma magia negra? Uma maldição?

— Não sei dizer. Os seus atos destrutivos não têm objetivo aparente. Matam, de forma horrível. Mas não por comida... os corpos partidos das suas vítimas são sempre largados para alguém os encontrar. Atacam alguns viajantes na estrada e deixam outros passar. Não são pássaros do teu mundo, nem seres deste mundo. São... outra coisa qualquer. O que torna ainda mais notável o facto de teres conseguido expulsá-los. És de facto uma coisa rara, meu bardo. Gostaria de saber o quê.

Não respondo. Isto é terreno perigoso.

— Respondes-me a uma pergunta, Brocc?

— Que pergunta?

— Quem eram os teus pais?

Engulo em seco.

— Os meus pais são o homem e mulher bondosos e sábios que me criaram. Não é uma coisa de que fale. A ninguém.

— Acho que agora deves fazê-lo. Quem te dotou desse dom notável senão a tua mãe que te deu à luz? Ou o pai cujo sangue corre nas tuas veias? Um deles era do Povo Encantado. Os humanos não possuem tal magia.

Não digo nada.

— Não gostariam de saber que o seu filho foi criado com bondade e se transformou num belo homem? Não gostariam de ouvir essa voz incomparável ou ver esses dedos arrancar sonhos da harpa?

— Duvido. — A minha voz está dura de crítica; não consigo evitá-lo. — Abandonaram-me para ser criado por outros. Além disso, não sei quem eram. Ou são, se ainda existirem.

Eirne segura a minha mão direita entre as suas. O seu toque é tão suave que acalma a coisa selvagem e furiosa que despertou em mim.

— Mas, querido — diz —, sabes o que eram.

Aceno com a cabeça, infeliz.

— Quando os meus pais acharam que tinha idade suficiente para entender, explicaram-me. Como é uma mulher sábia, a minha mãe fez disso uma história. Transformou este vestígio do Outro Mundo em mim numa bênção, não numa maldição. Disse-me que era amado tão ternamente como o meu irmão e irmã humanos. O meu pai disse-me que era filho dele tanto como eles eram. Naquela idade, aceitei-o sem questionar. E sempre soube que era uma coisa secreta, embora não me lembre de eles mo dizerem.

— Uma história — devaneia Eirne. — Deixado no degrau da porta numa noite fria de inverno? Encontrado entre uma ninhada de filhotes de texugo? Posto a vogar pelo rio abaixo num cesto de vime?

Sorrio, mesmo sem querer.

— Nada disso. Embora tudo isso desse uma bela canção.

— Então o quê?

— Fui-lhes entregue por... por alguém que eles conheciam. Um homem do teu povo.

Eirne medita naquilo. Ainda não largou a minha mão.

— Talvez o teu verdadeiro pai?

— Não. Não era uma pessoa que lhes fosse mentir. São velhos e verdadeiros amigos. Estava a fazer um favor a alguém; alguém que não podia ficar comigo. Talvez eu fosse uma vergonha, nascido fora do casamento e de sangue misto. Ele levou-me para um lugar onde sabia que eu seria amado e desejado e eles foram meus pais desse dia em diante. Isto apesar do facto de terem um filho que ainda não tinha dois anos e estarem à espera de outra criança dali a três voltas da lua. São pessoas incríveis. — Não quero saber quem eram os meus pais biológicos. Quando me abandonaram, encontrei a melhor família que qualquer criança poderia desejar. Mas sabe bem ter contado a história.

— Quando sentires dúvidas — diz Eirne com suavidade —, pensa no que fizeste hoje. Um homem vulgar não teria conseguido aquilo. Pensa na canção que escreverás para nós, uma canção de esperança e fé. Essa canção pode mudar o futuro de Breifne. Os que te fizeram deram-te magia, Brocc. Os que te criaram ensinaram-te sabedoria e bom senso. Deves pensar bem deles todos.


Capítulo 22

LIOBHAN

Estou do outro lado da muralha, recuperei as minhas coisas, estou a caminho. Agradeço a todos os deuses o treino de Archu. Se não fosse isso, teria com toda a probabilidade calculado mal o salto e tido uma morte espetacularmente sangrenta na muralha ou caído mal e aterrado numa pilha de ramos, folhas e ossos partidos. Ainda bem que Dau estava pronto a ajudar, não só agora mas também a noite passada. É a segunda vez que me surpreende.

O treino ministrado por Eabha também é útil. Há gente na estrada, uma pequena carroça com sacas de alguma coisa, um pastor com um rebanho de ovelhas, outras pessoas a andar. Isso significa que me escondo nos arbustos, ou me esgueiro por trás de muros de pedra solta na esperança de que o gado não me denuncie, ou espero até que o caminho esteja livre. Tenho outra vez a saia vestida e um lenço atado por cima do cabelo. Tenho esperança de que assim não dê tanto nas vistas.

Há um problema. Depois da subida ao carvalho, do salto heroico e da descida desajeitada pelo olmo, o meu tornozelo direito dói. Consigo andar, mas sei que o tornozelo precisa de descansar, não ser forçado. Ouço a voz da minha mãe na cabeça, a sugerir que da próxima vez que saia para uma aventura deva levar um potinho do seu unguento especial e um suprimento de tiras de linho fortes. Tarde de mais para isso. Resolverei o problema quando voltar.

Uma ou duas vezes, quando subo a colina em direção à floresta, tropeço numa pedra e a dor faz-me praguejar. Penso em Dau a ter de ficar em silêncio aquele tempo todo. Depois penso em Brocc e os meus pensamentos ensombram-se. Consigo contar nos dedos de uma mão as vezes que me falou de como foi entregue aos nossos pais, quem o trouxe e o que isso pode significar. Poderá até sobrar-me um dedo ou dois. Ele não quer saber de nada disso. E por que quereria? Teve os melhores pais que alguém podia ter. E é fácil para ele passar por um homem vulgar que por acaso tem um talento extraordinário para a música. Calculo que tenha apenas uma ou duas gotas de sangue feérico, não mais. Mas agora aqui está, a ir ter com a contadora de histórias e depois, muito provavelmente, a continuar à procura de portais para o Outro Mundo. É pedir para arranjar problemas, mesmo que o palpite dele esteja certo e tenham a Harpa dos Reis por lá. E se encontrar os pais originais e eles acharem que têm o direito de ficar lá com ele? E se se envolver nalgum tipo de jogo de poder entre o Povo Encantado? Creio que nenhuma missão vale esse género de risco.

Estou no sítio onde a estrada se aplana e o meu tornozelo não está com bom aspecto. O dia está perfeito para caminhadas, em geral bom, não muito quente, com um chuvisco ocasional. Muitos pássaros voam lá em cima, entrando e saindo da floresta. Mais do que eu esperava e têm um aspecto estranho. Grandes. Escuros. Espero que não sejam os demónios-corvo de que as pessoas falam.

É uma estirada até à casa da contadora de histórias e quase não reparo no pequeno trilho que sobe a colina para lá chegar. Sem a descrição de Dau, se calhar passava por ele. Quando chego ao fim daquela subida, a sentir-me mais como uma velhinha a chiar do que uma guerreira treinada, o meu tornozelo protesta ferozmente e sei que vou precisar de descansar um pouco.

Nenhum sinal de Brocc na pequena casa. Há um cão deitado em frente da porta, com a cauda a bater para cima e para baixo, o que depreendo significar que está de bom humor. Também não há sinal da contadora de histórias. Tentei imaginar essa pessoa, mas só vejo a minha mãe. Gostaria desta casa com os seus objetos mágicos pendurados do telhado, a árvore a arquear-se sobre ela como proteção e o regato a correr não muito longe. Fico ali com o tornozelo a arder, a olhar para o sítio e a sentir um pouco de saudades de casa.

Aproximo-me devagar, a murmurar palavras tranquilizadoras para o cão, que mantém os olhos fixos em mim. Baixa o focinho para o apoiar entre as patas da frente. Parece que não me considera uma ameaça. Chego aos degraus que conduzem à porta e sento-me no segundo. E agora?

— Ah — diz alguém. — Outra visita. Como dizem, não há duas sem três? Estavas à minha procura?

Tento levantar-me e depois, quando o tornozelo me provoca um aguilhão de dor pela perna acima, volto a afundar-me.

— Com muita pressa, estavas?

Não há dúvida que é a contadora de histórias. É mais velha do que a minha mãe, mas os seus modos são muito semelhantes e também o seu olhar avaliador. Aproximou-se pelo lado da casa com pezinhos de lã.

— Dei um salto e caí mal. Depois andei em cima do tornozelo magoado. Devia ter tido mais juízo. — Estou a falar com ela como se a conhecesse; falta de educação. Embora sinta que a conheço mesmo. — Chamo-me Ciara. Estou à procura do meu... do meu amigo. Penso que tenha passado por aqui, na esperança de te encontrar. Talvez ontem. Viste-o?

— Comer. Beber. Uma faixa para esse tornozelo. Depois falamos. Consegues entrar? Deixa-me ajudar-te.

Uso o ombro dela para me apoiar quando subo os restantes degraus e entro na pequena casa. A cadela chega-se para o lado a pedido dela. Como Dau disse que se chamava? Shadow?

A mulher examina o meu tornozelo com cuidado, aplica um unguento e depois uma faixa apertada de tiras de linho. Sabe o que está a fazer; vou conseguir continuar. E parece que é o que vou fazer, visto que é evidente que o meu irmão não está aqui. Nem penso na longa caminhada de regresso à corte. Tento uma ou duas vezes fazer perguntas sobre Brocc, Donal, mas ela pede silêncio, dizendo-me que espere. Continuo à espera enquanto ela vai buscar canecas, aquece água ao lume e prepara uma infusão. Põe uma porção generosa de mel na minha caneca.

— Lavanda e camomila — diz. — Reparadoras as duas. O mel dar-te-á força e adoçará o teu humor. Disseste que estavas à procura de alguém?

— Do meu amigo. Donal. Creio que veio até cá à tua procura. Isto é, se és a contadora de histórias. Ele devia ter voltado a noite passada à hora da ceia.

— Voltado para onde?

— Para a corte do regente, onde estamos. — Ela parece esperar mais alguma coisa. — Fomos contratados até ao solstício de verão, para tocar música para os convidados.

— Ah. E não podem tocar sem esse membro específico da banda.

— Podemos, mas não tão bem. Donal passou por aqui? Viste-o?

— Seria um jovem muito alto com cabelo dourado, que se assemelha de alguma maneira a um príncipe de uma história heroica? Ou seria um jovem não tão alto com pele pálida e caracóis escuros e um olhar perturbado? Um homem com uma voz particularmente bela?

As lágrimas assomam-me aos olhos.

— O segundo. Tinha algumas perguntas sobre a Harpa dos Reis. — Parece seguro dizer aquilo, já que Brocc deve ter perguntado. O príncipe heroico deve ser Dau, que esta mulher conheceu depois de ele ter caído do cavalo. Não vou contar-lhe a descrição dela. — Preciso de o encontrar muito depressa. Estou muito preocupada com ele.

— Esse amigo não é um homem adulto e, além disso, um guerreiro? Não é capaz de dar um passeio pelos bosques sem uma guardiã a correr para o salvar? O menestrel que me visitou seria capaz de combater ouriços-cacheiros, corujas e ratos usando apenas o poder da sua voz.

Sinto que começo a ficar irritada e tento controlar-me.

— É importante que o encontre depressa. Não porque receie ataques de exércitos de ouriços-cacheiros ou de qualquer coisa com maior probabilidade de ferir Donal.

— Então porquê, Ciara? — A voz da mulher é agora baixa. Está sentada à minha frente do outro lado da mesa, com a sua caneca entre as mãos. As mãos dela são como as da minha mãe, com cicatrizes e desgastadas por anos a cortar e a preparar infusões e, por vezes, a queimar-se. Quando me ligou o tornozelo, o toque das suas mãos era suave. — Vamos, podes dizer-me.

Não consigo fitá-la nos olhos.

— Porque receio que ele possa entrar num lugar do qual não consiga regressar. — Pronto, já disse. Ela que entenda o que quiser. — E quanto mais cedo eu descobrir o... o ponto de passagem, mais hipóteses tenho de o deter.

— E se ele já se foi?

— Então vou lá buscá-lo de volta. — Endireito-me e forço-me a olhar para ela. Concentro-me. — Mas para o fazer preciso de saber quando ele cá veio, o que disse e que caminho poderá ter seguido.

Quando ela não responde e continua apenas a olhar para mim, acrescento:

— Por favor.

— Não tenho a certeza se me contaste a verdade.

— Estou limitada por uma promessa. Contei-te o máximo de verdade que posso. Ajudas-me? Ajudas-nos?

— Preocupas-te muito com esse jovem, o teu companheiro menestrel. É o teu namorado, Ciara?

— Não. E isso não é mentira, por isso agora faço-te uma pergunta. Tu e ele falaram da Harpa dos Reis?

— Falámos. Ele queria direções e eu dei-lhas. Continuou para outro sítio. Em direção ao ponto de passagem que mencionaste. Storm conduziu-o. — Faz um aceno de cabeça para a cadela, que está deitada em frente à lareira, a ressonar baixinho. — Receio que tenhas uma longa viagem pela frente, jovem.

Levanto-me, experimentando o tornozelo. Com dificuldade, volto a calçar o sapato.

— Tenho de ir. Obrigada pela tua gentileza. Espero um dia poder retribuir. Se me mostrares que caminho...

— Storm leva-te. — A contadora de histórias estala os dedos e, dentro de poucos instantes, Storm está acordada e de pé junto à porta, pronta para partir. — A cadela confiou logo em ti. Isso raramente sucede. És filha de uma mulher sábia? Neta?

Não consigo deixar de sorrir.

— Filha — respondo-lhe. — Ela é muito parecida contigo. Embora muito menos paciente com visitas irritantes.

— Quando a vires, diz-lhe que gosto da coragem da filha e do seu cabelo brilhante. Gosto da franqueza da filha e da maneira como se esforça por refrear o seu temperamento. Transmite os cumprimentos respeitosos de outra da sua espécie. Chamo-me Juniper.

— Dir-lhe-ei. Poderei não a ver senão daqui a algum tempo, mas não me esquecerei.

— Ótimo. Uma sugestão... deixa essa faca comigo. Para onde vais é melhor não levares ferro.

Pelas bragas de Morrigan. Espero não encontrar aquelas coisas-corvo no caminho. Tiro a faca do cinto e pouso-a, embainhada, em cima da mesa.

— Venho buscá-la no regresso — digo, fazendo o possível por parecer confiante. — E... se vier alguém à nossa procura, talvez seja melhor não lhe contar para onde fomos. Não é uma tolice tão grande como parece.

— Vai então. Storm, leva-a à margem.

Saio pela porta e desço os degraus e ela ainda não disse se vai contar ou não. Espero que esse lugar não fique muito longe. Espero que não esteja cercado por guardas esquisitos. As histórias e canções antigas explodem em grande número na minha mente enquanto sigo Storm para a floresta: besouros gigantes com carapaças armadas; seres fantasmagóricos com espadas compridas feitas de um metal cintilante e misterioso; criaturas esqueléticas com dedos ossudos que podem entrar no peito de uma pessoa e arrancar-lhe o coração. Guerreiros feéricos que lutam enchendo de terror os espíritos dos seus adversários. Não vou pensar nisso. Recordarei que Juniper me achou corajosa. Recordarei o poder de uma canção. Pensarei no momento em que voei por cima da muralha, fazendo sorrir até Dau. Serei um guerreiro da Ilha dos Cisnes, o melhor dos melhores. Encontrarei o meu irmão e trá-lo-ei para casa.


Capítulo 23

DAU

Não retornei há muito tempo às cavalariças quando os homens que saíram a noite passada regressam. Ou melhor, alguns deles regressam; houve mais mortes. Illann está bem tal como o resto dos palafreneiros e moços de estrebaria que foram com eles, mas o grupo trouxe para casa não só os corpos dos que foram mortos no ataque anterior mas também os de dois dos seus camaradas. Fosse o que fosse que Rodan pretendia que eles fizessem, a coisa não correu como planeado.

Temos de cuidar de muitos cavalos exaustos e feridos. Ponho-me a trabalhar e vou ouvindo fragmentos de conversas sobre o que aconteceu, mas não o suficiente para que a coisa faça sentido. Alguns destes cavalos saíram com aquele primeiro grupo de homens, os que foram quase todos mortos. Os animais têm ferimentos que parecem marcas de garras, só que muito piores dos que uma águia poderia infligir. A carne em volta dessas marcas está inchada e vermelha e as hipóteses de conseguirmos que as feridas sarem não me agradam. Limpo a égua que me deram para tratar, certifico-me que bebe, aplico uma loção que o chefe das cavalariças me dá. Não posso falar com o animal, mas tento transmitir uma mensagem com as minhas mãos. Acalma-te. Estás em segurança agora. Calma, amiga.

Trato de outro cavalo e de um outro a seguir. Penso com frequência em Liobhan. O que estaria a pensar, partindo assim com o que sucedeu a noite passada ainda em suspenso? Por que não pôde esperar pela aprovação de Archu? E se andar por aquela floresta o dia inteiro e não encontrar o irmão? E por que razão, em nome dos deuses, não podia explicar qual era o problema?

Depois Illann chega-se a mim, com um aspecto esgotado e velho.

— Termina o que estás a fazer e depois vem até à sala de ensaio — murmura. — Certifica-te que não te veem entrar.

Archu voltou. Não é preciso ser um génio para adivinhar por que razão infringiu as regras da missão e nos chamou aos dois. A primeira pergunta que faz é a mais óbvia, por isso conto-lhe o máximo que posso, começando com o facto de o príncipe ter tentado abusar de Liobhan, depois uma rápida explicação sobre a audiência desta manhã e terminando com a questão de Liobhan ter ido à procura de Brocc. Não lhe conto que ela saltou por cima da muralha, nem que a ajudei. Digo-lhes que Brocc estava a seguir uma dica sobre a Harpa dos Reis. Archu ouve-me até ao fim, mantendo um ritmo constante no bodhrán para disfarçar as nossas vozes. Visto que estou a falar num murmúrio, usa as pontas dos dedos, não a baqueta.

— Já fui informado sobre o episódio entre Ciara e o príncipe — diz, quando termino. — Parece que o regente a deixou safar-se, embora um pedido de desculpas público vá ser um teste para ela. Será embaraçoso se ela não tiver regressado à hora da ceia, visto que é quando Cathra o quer. Se esta casa real não tivesse acabado de perder uma quantidade de bons homens, diria que é uma sorte que o outro problema tenha surgido para distrair as pessoas da nossa dificuldade.

— O que aconteceu? — Lanço uma olhadela a Illann.

— Depende a quem perguntas. — Illann está com um ar sombrio. — Aquelas feridas nos cavalos não foram feitas com armas humanas. Foram as criaturas-corvo, sem dúvida. Recuperámos primeiro os animais feridos. Alguns de nós ficaram com eles, enquanto os combatentes continuavam. Creio que o mestre-de-armas de Cathra tinha recebido instruções para confrontar o chefe de clã local sobre o ataque e exigir respostas. Ninguém o mencionou, mas é bem sabido que o príncipe Rodan desconfia de qualquer menção ao oculto, qualquer ideia de que algum poder que não o estritamente humano possa estar em jogo. Dera instruções com base no pressuposto de que esse chefe de clã era responsável pela matança dos nossos homens. Manteve essa posição, mesmo depois do sobrevivente falar de um ataque de pássaros.

Não sei o que dizer. O oculto. Era isso que Liobhan estava a sugerir. Tenho a certeza que é o tipo de coisa em que a contadora de histórias acredita, com as suas frases estranhas que sugeriam que sabia do meu passado. Não ficaria surpreendido se Brocc, com as suas canções e histórias de magia e as suas visitas aos druidas, estivesse a agir na crença de que a harpa tinha sido levada como por encanto, se não por pássaros sobrenaturais, então por elfos ou cluricauns. Mas Illann, uma das pessoas mais terra-a-terra que conheço, dar crédito a tal ideia louca?

— E como esse chefe de clã reagiu à visita noturna e às acusações que a acompanharam? — Archu parece notavelmente calmo.

— Não ficou contente. Não o testemunhei, visto que fiquei com os cavalos. Mas houve um confronto aos portões e mais homens foram mortos. Uma tolice. Entrar nas propriedades de alguém à noite, armado até aos dentes e a fazer acusações loucas dificilmente promoverá elos de cooperação. Deviam ter enviado um mensageiro a esse sujeito depois do ataque dos corvos, a pedir ajuda. Não que pudessem; cinco dos seis estavam mortos e o sobrevivente não pode ser criticado por decidir voltar para aqui.

— E Cathra aprovou o envio dessa força — reflete Archu. — Isso surpreende-me. O regente pode ter os seus problemas neste momento, mas pareceu-me bastante comedido. Brondus com certeza que teria aconselhado cautela.

Ficamos todos em silêncio durante algum tempo.

— Rodan em breve será rei — digo. — E Rodan prefere ações rápidas e decisivas. Não tem medo de usar a força, seja para reclamar desforra por um ataque antes de se dar ao trabalho de confirmar os factos, seja para se aproveitar de uma mulher. Foi ele que fez um discurso empolgante antes de o segundo grupo partir. Estava repleto de apelos à vingança. Ele sabe como estimular as pessoas. — Estão ambos a olhar para mim com atenção. — Desconfio que o futuro rei só ouve os conselheiros quando eles por acaso concordam com ele — acrescento. — Cathra é regente até ao solstício de verão. Mas penso que Rodan já se está a ver como líder. E se é verdade que a responsabilidade o amedronta, talvez seja assim que lida com o medo.

Illann não diz nada. Archu, ainda a tamborilar com suavidade, faz um aceno de cabeça.

— Não nos podemos preocupar com isso — retruca. — O tempo urge; temos de nos concentrar na tarefa entre mãos.

— Surgiu alguma coisa na tua viagem? — pergunta Illann.

— Podemos excluir Tassach. Está feliz nas suas propriedades. Tem uma mulher de quem gosta e um par de filhos jovens. É um criador de cavalos interessado e bem-sucedido, muito amado pelo seu povo. Fez saber, em particular, que não tem qualquer intenção de contestar o trono. Algumas pessoas têm dito que é uma pena; nesse aspecto, é um pretendente muito mais forte do que Rodan, mesmo que a ligação à linhagem real seja mais fraca. Mas parece que foi exercida alguma pressão e Tassach não vai fazer nada.

Trocamos olhares; a baqueta de Archu bate um ritmo diferente no tamborim. Talvez estejamos todos a pensar a mesma coisa: com um homem com o carácter de Rodan no trono, esperam-se tempos turbulentos para Breifne.

— Nesses períodos de agitação — murmura Archu — tudo pode acontecer. Mas o destino de Breifne não é da nossa conta. A nossa missão dura até ao solstício de verão, não mais tempo. Pediram-nos para executar uma tarefa específica. Ou a cumprimos a tempo ou não. Em qualquer dos casos, partimos da corte logo depois do solstício de verão. Esperemos que a ausência prolongada de Donal signifique que ficou a saber do paradeiro da harpa. Mas creio que não podemos esperar pelo seu regresso, nem pelo de Ciara, para descobrir isso. Quero-a aqui para fazer o seu pedido de desculpas. Penso que tenho um trabalho para ti, Nessan.

— Por acaso — diz Illann — há um cavalo que tem de ser devolvido a uma das quintas a leste daqui, não muito longe do sítio onde a estrada sobe a colina em direção à floresta. Podes cavalgar o animal até lá; faço-te passar pelo guarda no portão. As pessoas estão à espera do cavalo hoje. — Lança uma olhadela a Archu. — Isso ia pôr Nessan bem adiantado no caminho.

— Ótimo — comenta Archu. — Mal devolvas o cavalo, vai atrás de Donal e Ciara, mas vai depressa. Se Donal estiver metido em apuros, ajuda Ciara a libertá-lo. Se não houver rasto dele, traz Ciara e regressa o mais rápido possível. É melhor partires mal possas. Leva comida e água e a tua arma.

O que posso dizer? Ele acabou de me dar autorização para fazer o que quero fazer. Embora eu não vá mencionar a Liobhan que recebi ordens para a ir buscar. Isso fá-la parecer uma bezerra teimosa que se atolou num lodaçal.

Desta vez, tudo corre de acordo com o plano. Aprecio a cavalgada até à quinta; entrego o cavalo sem problemas. A minha capacidade para me explicar por gestos e grunhidos está a melhorar. Estou a subir a colina e na estrada da floresta antes de pensar que terei de visitar outra vez a contadora de histórias. Se quiser encontrar Liobhan, terei de falar com a mulher. A ideia provoca-me arrepios nos ossos.

Mas a missão vem primeiro. E isto faz parte da missão, porque Archu e Illann me mandaram fazê-lo. Esqueçam pássaros assustadores, sonhos esquisitos, desconhecidos que sabem mais do que deviam. Vou até lá, bato à porta da mulher e faço um pedido simples de orientações. Com sorte, a velhota nem se vai lembrar de mim. Os velhos são esquecidos.

Algum tempo depois, mas não muito porque mantenho um ritmo de passada excelente, estou a subir o caminho para a pequena casa e lá está a cadela, Storm, parada no caminho, com os olhos fixos em mim. Não rosna, não revira o lábio, examina-me apenas como se para determinar de que sou feito. Se eu pudesse falar, dir-lhe-ia que é uma boa menina.

A porta abre-se com um rangido. Não levanto os olhos. Sinto a presença da contadora de histórias. É melhor que não tente dar-me hoje uma das suas poções. Storm está a lamber-me a mão. Não consigo muito bem encontrar as palavras que planeei.

— Primeiro o poeta, em segundo lugar a guerreira e em terceiro o príncipe formoso. — A velha parece divertida. — Um conto dos tempos antigos, mesmo à minha porta. O que fiz para merecer isto?

Se aprendi alguma coisa nesta missão, foi a aguentar a troça das outras pessoas. Quem me dera ter tido a mesma força quando era pequeno. Príncipe formoso? Ah!

Coço Storm atrás das orelhas e depois encaro a velha. Mostro-lhe três dedos, para poeta, guerreira e príncipe. Tiro o príncipe e deixo dois: Brocc e Liobhan. Aponto em várias direções. Ergo as sobrancelhas numa pergunta.

A mulher fixa-me com o seu olhar penetrante. Gostaria que ela parasse com esses jogos. Por que tudo tem de ser tão críptico, embrulhado nos gestos e linguagem dessas histórias antigas que ela mencionou? Quero indicações simples sobre direções, só isso.

— Para onde os teus amigos vão nem o mais heroico dos príncipes pode ir. Não se quiser regressar no seu juízo perfeito. Regressa, Nessan. Não pertences a este lugar.

Ah, sim, ela sabe o meu nome, embora eu nunca tivesse ficado a saber o dela. Tento mostrar Por favor, com a mão no coração. Tento mostrar que receio pelos outros. E que tenho pressa.

— Disparate — diz a velhota. — O poeta seguiu esse caminho de sua livre vontade. A mulher é uma guerreira. É forte e sábia. Tu, por outro lado, não fazes ideia nenhuma, ou não terias vindo com armas de ferro.

De que está ela a falar? Não faz sentido. O que deveria ter trazido comigo, uma moca de madeira? Um bordão incómodo? Além disso, Liobhan tinha uma faca. Não consigo pensar numa forma de indicar isso por sinais.

— A tua amiga percebeu a sensatez de deixar a arma dela à minha guarda antes de continuar. Podes fazer o mesmo com a tua.

Como sabe ela o que estou a pensar? Detesto isso. Além disso, é um conselho estúpido. Está à espera que eu embarque numa missão de resgate na floresta sem meios de me defender ou aos outros além dos punhos? Faço um gesto cortante de recusa.

— Oh, credo. — Olha para mim como uma ama olharia para uma criança recalcitrante. — Nessan, o que te iria mesmo demarcar como tolo seria ires para a floresta com a tua faca no cinto. Se fizeres isso, com toda a certeza não a encontrarás. Nem o que foi antes.

Não posso perder mais tempo. Preciso de continuar. Brocc partiu ontem de manhã. Pode ter percorrido um longo caminho. Tenho de aceitar que o que esta mulher sabe é essencial para o encontrar. Não me dirá até que desista da faca. É evidente nos seus olhos.

— Guardo-a em segurança com a outra, até regressares.

Tiro a faca do cinto e pouso-a no degrau. O olhar da velha ainda me fixa, a avaliar-me. Avancei depressa de mais, com fúria de mais. Por esta altura, já devia saber. Recuo, sem saber muito bem como pedir desculpa. A situação é injusta. Brocc e Liobhan infringiram as regras e tornaram as coisas difíceis para todos. Estou aqui porque Archu me enviou à procura deles. Pergunto-me se a mulher os interrogou desta forma, ou se sorriu e os deixou passar. Estou espantado por Liobhan ter entregue a sua faca. Afinal, o que é isso de levar ferro?

— Quando eras pequeno — diz a velha —, ninguém te contou histórias?

O que tem isso a ver com alguma coisa? Por que pergunta?

— Não? — O seu tom de voz é mais suave. Arrancar-me-ia os meus segredos mais sombrios, se pudesse.

Histórias naquela casa? Dificilmente. Se houve algumas, foram as que os meus irmãos contavam à noite, no escuro, a tentar que eu molhasse a cama de terror. Abano a cabeça.

— Uma pena. Se tivessem contado, entenderias melhor. Vai então e encontra os teus amigos, se conseguires. A mulher não partiu há muito tempo. Mas tens de usar os miolos, jovem. Não será uma busca vulgar. A tua melhor ferramenta poderá ser a paciência e creio que tens um pouco falta dela.

Falta de paciência, eu? Quando fiquei ali a levar murros e não tomei medidas para retaliar?

— Não enviarei Storm contigo, embora ache que gostas de cães. — Está a tentar ser gentil agora, percebo-o na sua voz. Não sabe de nada. Nada. — Vai por ali. Existe um caminho através dos bosques; durante alguma distância, conseguirás seguir o rasto de Ciara. Ela usa sapatos pesados e uma saia comprida. E está a coxear. Quando o caminho se dividir em dois, segue para a direita. Mantém os olhos abertos. Mantém os ouvidos abertos. Mantém um espírito aberto, Nessan. Não descartes o que possa parecer impossível a princípio. Vai lá. Guardo as duas facas em segurança, a tua e a dela.

Inclino a cabeça e faço o gesto de obrigado. Pelo menos, já me disse qual o caminho a seguir. Se o tivesse dito logo, tinha-nos poupado uma data de tempo.

Algum tempo depois, ainda estou a seguir um trilho quase impercetível através da floresta, a pensar no que deverei procurar após encontrar essa bifurcação na estrada. Uma casa? Um povoado? Há sinais de que Liobhan veio por aqui, por isso parece que a velha estava a dizer a verdade... tive as minhas dúvidas. Sinto-me nu sem a minha arma, mal preparado para lidar com qualquer tipo de ataque. Isso é uma tolice; posso lutar desarmado. Venci quase todos os combates que travei na Ilha dos Cisnes e derrubei os meus adversários sem recorrer a métodos dissimulados. Mas aqui, hoje, sinto uma perturbação que pouco deve à lógica. Estou sempre à procura das coisas-corvo. Não consigo evitar. Este sítio é esquisito. Parece irreal e estranho. Poderei ir cair numa armadilha. Respira, Dau. Fixa os olhos no objetivo em frente. Não penses no passado.

Chego ao local onde um trilho se ramifica em dois. Sigo o da direita conforme as instruções. Continuo a andar. Não há sinal de ninguém; os únicos sons são os meus passos e o sussurro do vento nas folhas. O caminho serpenteia e endireita-se, sobe e desce e sigo-o o melhor que posso. Ainda estou furioso e agora estou também cansado. Já não consigo encontrar o rasto de Liobhan, embora, nos sítios onde a terra é mole, haja perturbações no caminho, quase como se alguém com uma vassoura tivesse limpo os sinais de que ela passou por ali. Mas isso é um disparate. Estou a imaginar coisas. Tenho de parar para descansar.

Bebo do meu odre. Forço-me a engolir uma tira de carne de carneiro seca. Fico sentado debaixo das árvores durante um tempo, obrigando-me a respirar devagar. O meu corpo está tenso; alguma coisa me domina, fúria, frustração ou desapontamento comigo. Levanto-me, arrumo as minhas coisas e volto ao caminho. Ou tento. Mas o caminho desapareceu. Como pode ser? Não era largo, mas era suficientemente claro, dirigindo-se para leste entre duas jovens faias. Vi-o com os meus olhos. Alguém está a pregar partidas? Ou a minha mente está confusa? Não consumi nenhuma das poções da mulher. Não desta vez.

Muito bem: tenho de encontrar o caminho pelo sol e pelas sombras. Estava a seguir para leste. Caminharei para leste, então, e espero que o trilho siga a direito.

É um longo caminho. É tão longo que tenho a certeza que me enganei. Não dei com o caminho certo. Mal terei tempo de voltar para a corte antes do escurecer, mesmo que encontre em breve Liobhan e Brocc e nenhum deles esteja ferido. Maldita contadora de histórias! Apesar de toda a conversa de Liobhan sobre as mulheres-sábias merecerem respeito, acho que esta velhota em particular não é senão uma metediça cruel. E tem a minha faca. Isso deixa-me mais irritado do que tudo. Como se atreve!

Na margem de um regato que não posso atravessar sem ensopar as botas, paro. O terreno à minha frente parece mudar o tempo todo. Vejo um punhado de azevinhos ou uma formação rochosa que parece um sapo e quando chego ao que deveria esse ponto, encontro-me num matagal de salgueiros jovens, ou a abrir caminho por terreno aberto salpicado de seixos. Ouço corvos agora, os seus gritos ásperos e zombeteiros. Repito para comigo que sou um guerreiro da Ilha dos Cisnes, engenhoso, corajoso e forte. Sou melhor do que os outros instruendos, já o provei. Fui escolhido para esta missão. Confiaram em mim. Consigo fazer isto. Mas o tempo todo uma nuvem insinua-se na minha mente, trazendo imagens do Dau aos cinco anos de idade, do Dau aos nove anos e oh, deuses! Dau aos treze anos, quando os irmãos desistiram de tentar partir-lhe o corpo e lhe partiram antes o coração. Aos treze anos aprendi a odiar. E agora odeio. Odeio o meu falhanço. Odeio a minha amargura. Odeio a minha fraqueza. Odeio ainda poder magoar-me. Esforcei-me tanto para me tornar forte. Esforcei-me tanto para chegar à Ilha dos Cisnes. E sim, consigo vencer Hrothgar e Cianan e Yann, consigo derrotar Brocc, embora não consiga mover-me com a graciosidade fluida que tantas vezes o leva a escapar ao controlo de um homem mais forte. Consigo derrotar Liobhan. Às vezes. Por que tenho medo destes corvos? Por que tenho medo da contadora de histórias, uma velha de cabelo branco? Sou um homem de dezoito anos e um guerreiro. Por que ainda me enche de pavor a ideia de ir a casa?

Está na altura de desistir. Tenho de voltar para a corte e dizer a Illann e Archu que falhei. Podia vaguear por aqui até ao cair da noite e não encontrar nada.

Não me mexo. Fico ali na margem, a ver a água límpida correr-me aos pés. O leito do riacho é todo ele pedras redondas, tantas tonalidades de cinzento e castanho, preto e branco, tantos padrões, todos eles diferentes. Uma pessoa fantasista poderia pensar que esses padrões continham uma mensagem de algum tipo. A água gastou as pedras, alisou-as. Peixes minúsculos nadam por ali, setas escuras através da água rumorejante. Enquanto os observo, um som inesperado chega-me aos ouvidos. Música. Está alguém a tocar flauta e é uma melodia que reconheço, uma jiga muito rápida que Liobhan toca muitas vezes no fim do entretimento do serão. Ecoa pela floresta, alta, doce e genuína e tocada de forma tão rápida que o músico só pode ser Liobhan. Encontrei-a.

Já não preciso de um caminho; sigo a música. Atravesso o regato e continuo a andar de botas molhadas, dirigindo-me para uma zona mais densamente arborizada. Abro caminho através da vegetação rasteira e emirjo frente a um vasto afloramento rochoso, quase como uma parede. Parece contínuo em todas as direções. Sem cordas não há hipótese de o escalar. Caminho ao longo da parede em direção ao som. Mas a flauta silencia. Detenho-me. Talvez ela esteja só a fazer uma pausa para respirar. Espero que ela lá esteja. Espero encontrá-la. O silêncio prolonga-se. Até os pássaros se calaram.

Liobhan começa a cantar. A voz eleva-se, forte e veemente no silêncio, a cantar a canção sobre os amantes separados pelo tempo e pelo destino, apesar da promessa de nunca se abandonarem. Sempre me pareceu uma tolice lamecha. Agora a canção provoca-me arrepios na pele e anima-me o coração. Sigo o som ao longo da parede de rocha até chegar a uma pequena clareira. Aí, sentada de pernas cruzadas numa pedra lisa junto à parede, está Liobhan. O saco, a capa, o odre e a flauta encontram-se a seu lado, além de um embrulho que pode ter contido comida.

Olha para mim, de olhos arregalados de surpresa, mas não para de cantar. Quando eu começo a falar, com certeza que é seguro usar a minha voz aqui, sem qualquer sinal de mais ninguém por perto, ela leva um dedo aos lábios, pedindo silêncio. Mas ela não se cala; continua a cantar. Aproximo-me, tiro a minha bolsa, apercebendo-me de como as minhas botas estão de facto molhadas ao andar. Por que será que Liobhan está a fazer isto? Poderá a música estar a mascarar outro som, alguma coisa que ela não quer que se ouça? O borrifar de uma queda-d'água, o grasnar de gansos ou a conversa preguiçosa de ovelhas podem ser usados de forma semelhante.

Tento usar gestos: Tu, vens comigo? De volta por ali? Liobhan faz uma carranca, ao mesmo tempo que canta docemente o verso Irei contigo para onde quer que vás. Se eu achava que ela ficaria satisfeita por me ver, estava enganado. Nada de príncipe formoso.

Ela termina a canção, pega na flauta e lança-se logo noutra melodia, uma mais lenta desta vez. Parece exausta. O rosto está branco e a crispação sombria das suas feições mostra-me que seja o que for que está a fazer não é nenhum interlúdio agradável na caminhada do dia, mas algum tipo de batalha. Ou um desafio que tem de cumprir. Mas porquê? Que possível propósito poderá haver nisto? Estou tão longe de compreender tudo aquilo, que não consigo pensar em nenhuma forma de ajudar. Estendo a minha capa, sento-me nela e bebo do meu odre. Penso em tirar as botas, mas decido que isso não seria seguro até saber o que se está a passar. Preferia não lutar contra inimigos ou regressar à corte de pés descalços.

Ficamos ali sentados muito tempo. Muito tempo mesmo. Liobhan toca uma canção, uma melodia na flauta, outra canção, outra melodia na flauta. Por vezes, para para beber um gole de água. Volto ao regato e encho o odre dela, deixando o meu ao seu alcance. Gostaria que ela parasse tempo suficiente para explicar o que, em nome dos deuses, está a fazer. Continuará até desmaiar de exaustão? A voz dela é bela; forte e poderosa. Agora está a começar a falhar. Pressinto um laivo áspero nos tons sedosos e um arquejar na sua respiração. Quando faz uma pausa para beber, murmuro:

— Liobhan. Não podes continuar.

Estou à espera de um gesto brusco, ou um abanar de cabeça, ou de ser ignorado. Mas ela surpreende-me. Estende a flauta, como se sugerisse que eu assuma o trabalho dela. Sabe que eu não sei tocar.

— Não zombes! — As palavras saem antes de eu as poder conter.

Liobhan aponta para a parede de rocha.

— Precisamos de continuar — diz, com voz rouca e cansada. — A chave é a música. É a forma de entrar. — Pergunto a mim mesmo se poderá desmaiar; tem esse aspecto. Liobhan. A guerreira. A destemida. — Está nos contos, Dau. Ajuda. Por favor.

Abro a boca e começo a cantar. Já ouvi canções suficientes para saber uma ou duas bastante bem, embora não me lembre de todos os versos, por isso há uma certa quantidade de lá-lá-lás. A minha voz não é a voz de um músico. Não é a voz de uma pessoa que goste de cantar enquanto desempenha as suas tarefas diárias. É um arremedo de voz, negligenciada e esquecida. Mas agora é útil e por isso canto uma canção que ouvi Liobhan cantar antes, sobre um barco que viaja por mares traiçoeiros e a tripulação encontra vários monstros marinhos e outros fenómenos estranhos. Os meus tons ásperos são mais adequados para este tipo de canção do que, digamos, uma balada de amor e dor. Evito olhar para Liobhan. Posso imaginar a expressão do seu rosto: escárnio ou piedade, não sei qual será pior. Pelo canto do olho, vejo-a levantar-se e espreguiçar-se, beber um grande gole do odre e depois aproximar-se da parede de rocha e passar as mãos por ela como se à procura de alguma coisa. Termino a canção e inicio logo outra, a de uma mulher que levanta a saia para provocar um homem e o homem que fica chocado quando descobre o que ela é de facto por baixo da roupa. A letra desta canção não é tão difícil de recordar. Quando estamos sentados num salão e não podemos falar, aprendemos a usar os ouvidos. Era muitas vezes a música que me impedia de me afundar num lodaçal de pensamentos negros.

Levanto a cabeça. Liobhan está a olhar para mim. Não há nem escárnio nem piedade no seu rosto, apenas um sorriso do que parece ser genuíno prazer.

— Sabes cantar — articula com os lábios.

Eu encolho os ombros. Talvez, um pouco. Embora o som rouco da minha voz sirva apenas para me lembrar como a dela é bonita. E a de Brocc, claro. Ele canta como um homem de outro mundo.

Chego ao fim de um verso e Liobhan coloca um dedo nos lábios. Chiu. Está muito quieta. Pigarreia, inspira fundo e começa a cantar. É outra vez aquela canção lamentosa sobre os amantes separados. Embora a sua voz esteja fraca, chega quase até ao fim.

— Não posso ir contigo para onde quer que tu vás. E não posso ficar a teu lado na alegria e na adversidade — canta ela e depois silencia, à espera.

E de algum lugar, não sei dizer de onde, vem o som de outra voz, a completar o verso:

— Mas estarei a teu lado, embora longe da tua vista. Amar-te-ei e proteger-te-ei até nos encontrarmos na luz.

Brocc. É a voz dele. Não há com certeza outra igual. Mas onde está? Há apenas a parede de rocha e a floresta que se estende e agora silêncio.

— Onde... — começo, mas Liobhan manda-me calar outra vez.

— Espera — sussurra.

Atrás dela surge uma fenda na parede de rocha. Por Dagda, aquela coisa toda vai cair e esmagar-nos! Mas não. Nada de detritos a rolar, nada de barulho de derrocada, mas... uma coisa impossível. Há agora uma abertura clara de alto a baixo, apenas com largura suficiente para uma pessoa com os ombros largos de Liobhan passar. E isso, sem sombra de dúvida, é o que ela pretende fazer. É arriscado, uma tolice, uma loucura, contra todas as regras. É como uma coisa saída de uma daquelas canções sobre gigantes e monstros. Isto não pode ser real. Devo estar a sonhar. Mas não, está aqui, bem diante dos meus olhos, e enquanto estou ali de boca aberta, Liobhan pega no seu saco e no seu odre e avança para a abertura. Dali a um instante, terá desaparecido.

Abro a boca para dizer Não, mas fecho-a outra vez sem proferir a palavra. Brocc está ali dentro, onde quer que ali dentro seja. Ouvimo-lo. Ela veio à procura do irmão. E eu fui enviado para trazer os dois de volta. Agarro nas minhas coisas e vou atrás dela.

Liobhan para.

— Não, Dau — diz sem se virar. — Estou preparada para arriscar a minha segurança, mas não a tua. Além disso, alguém precisa de poder regressar e explicar, se... Podes ficar aqui e esperar por nós? Talvez precise de ajuda para levar Brocc de volta à corte. Entenderei se não quiseres. Fui eu que me meti nisto e compete-me a mim sair desta embrulhada.

Antes de eu poder dizer uma palavra, desaparece através da fenda nas rochas e, um instante depois, esta fecha-se atrás dela, deixando uma superfície intacta. Já não ouço música. Nem uma só nota.


Capítulo 24

BROCC

Tem sido um dia estranhíssimo: triste, assustador, exigente, surpreendente. Sinto-me como um pano velho que foi batido nas pedras, mergulhado no regato e torcido até quase falecer. Mas depois de Eirne me deixar, resisto à vontade de me deitar na enxerga e deixar a minha mente vogar. A canção que ela quer de mim não se escreverá sozinha. Fiz uma promessa e tenho de a cumprir.

Trabalho durante algum tempo, arrancando melodias à velha harpa, experimentado frases, murmurando excertos de versos que nunca são os certos. Visitas há poucas. O povo de Eirne está sossegado depois da morte do seu pequeno. Creio que não me contarão mais histórias hoje. Um silêncio cai sobre os caminhos e a clareira, sobre o lago e os riachos. O tempo passa; tenho uma boa parte da letra na minha página de casca de salgueiro, quando o silêncio é interrompido. Um pássaro minúsculo pousa no peitoril da janela, vira a cabeça para um lado e chilreia para mim como se fizesse uma pergunta. Não muito tempo depois, ouço alguém a tocar flauta. Largo a pena e levanto-me de um salto. Sei que é Liobhan. Mais ninguém conseguia tocar O Salto de Artagan àquela velocidade ridícula. Está aqui! Veio à minha procura! Tenho estado tão absorvido na minha tarefa e tão chocado e entristecido com o que sucedeu antes, que mal tive tempo para pensar no que poderia estar a acontecer na corte.

Saio porta fora e esbarro com Eirne, quase a fazendo voar. Agarro-a pelos braços para a firmar e depois solto-a logo.

— Desculpa... muita desculpa... é a minha irmã a tocar! Deve estar aqui, perto...

— Ouço a melodia. A tua irmã também tem estado a cantar à porta do nosso Portal. É uma bela música.

— Não a deixes entrar! Quero dizer... Eirne... senhora... poderá ser melhor se a minha irmã não entrar no teu reino. Mas preciso de a ver. Falar com ela. Explicar... — A última coisa que quero é atrair Liobhan para o perigo. Mas tenho de lhe contar o que se passa.

— Ela veio buscar-te. Levar-te antes de a canção estar pronta. Por que outra razão faria essa viagem?

A flauta emudeceu. Há silêncio durante algum tempo e depois ouço outra pessoa a cantar, um homem. Não é a voz de um músico. Está a cantar uma canção da minha autoria. O que é isto?

— Segue-me — diz Eirne.

Enquanto avanço com ela pelo caminho até ao local das reuniões, o cantor invisível faz seguir a sua primeira canção de outra, aquela canção pateta sobre um monstro com um vestido. Poderá ser Dau? Quando ele termina, Liobhan começa a cantar. Quando Eirne e eu emergimos na zona aberta, onde a gente dela ainda está sentada ou de pé ao redor, sob as árvores, a melodia triste de O Adeus flutua por cima da parede. Lanço uma olhadela a Eirne. Anteriormente, parecia severa. Mas seja lá o que for que transparece agora no meu rosto, comove-a, pois estende uma mão para me roçar a face, quase como uma amante poderia fazer.

— Espera — ofega.

Liobhan é uma pessoa forte; uma das mais fortes que conheço. Mas está cansada. Está a inspirar com mais frequência do que faz em geral e o tom da sua voz não é o seu normal, forte e fulgurante. Quero acompanhá-la, para a ajudar na canção. Calculo o que ela está a fazer. Ambos conhecemos contos em que os humanos são admitidos no Outro Mundo através do poder de uma canção. Até há um sobre o tipo de jogo de rimas que Eirne e eu fizemos quando eu entrei aqui. Há outro em que gente pequena como Borboleta-Traça e Pequeno-Capuz não consegue recordar-se como termina uma canção e um pastor, ouvindo-os, fornece o último verso, conquistando assim o presente surpresa de uma flauta mágica.

Sei o que estou a ouvir. Estou a ouvir a voz de alguém que nunca, mas nunca desistirá. Estou a ouvir alguém que continuará até sucumbir de exaustão. Na sua voz, estou a ouvir a vontade inquebrantável de um guerreiro da Ilha dos Cisnes. Liobhan está aqui por sua escolha e seja o que for que tenha planeado, não me cabe a mim dizer-lhe que não o pode fazer. Quando ela se aproxima dos compassos finais da canção e faz uma pausa para respirar, elevo a minha voz e termino os versos: Mas estarei a teu lado, embora longe da tua vista. Amar-te-ei e proteger-te-ei até nos encontrarmos na luz.

Um suspiro coletivo ergue-se entre o povo de Eirne, em volta da clareira. Muitos enxugam lágrimas. Liobhan não podia saber como a canção era apropriada para este dia, quando perderam um dos seus.

— O que queres que faça, Brocc? — pergunta Eirne. — Prometeste ficar até terminares a canção. Não te mandarei para ali, pois vejo no teu rosto que esta irmã exerce grande poder sobre ti. Se a deixar entrar, ela vai ajudar-nos ou vai estorvar? Intrometer-se-á no plano? O futuro de Breifne depende disto. De ti. Da canção.

— Tenho de falar com ela. Mas ela tem de ter liberdade para sair daqui. — Percebo como isto soa; Rowan parece que ficaria encantado por me ver também partir. — Quer dizer, solicito respeitosamente que a deixes partir, mal eu tenha tempo para conversar com ela. E... enquanto a minha irmã aqui estiver, gostaria de receber mais explicações sobre o que pretendes para esta canção. Como pode mudar o curso das coisas em Breifne. Isso seria... útil. Para ela e também para mim.

— Ela sabe guardar segredo? São assuntos do maior sigilo, Brocc. Assuntos que não partilhamos com a espécie humana.

— A minha irmã pode ser humana — respondo —, mas é filha de uma mulher sábia. O nosso pai é um homem de grande coração. Ambos respeitam o teu povo e compreendem-no, na medida possível para os humanos. Claro que ela sabe guardar segredo. Se queres que ela prometa, tens de lhe pedir a ela, não a mim.

— Verdadeiro! — chama Eirne e o ser rocha dá um passo em frente, rangendo quando se move. — Abre a abertura.

Em poucos instantes, parece-me, a parede abre e fecha de novo e Liobhan está ali entre o Povo Encantado, saco às costas, capa sobre o braço, de cabeça erguida, embora o rosto esteja pálido de exaustão e o cabelo se escape da trança numa centena de fios impetuosos.

— Não foi a minha melhor atuação — diz com um sorriso retorcido. Não vem a correr abraçar-me. Está em modo Ilha dos Cisnes, interiorizando todos os pormenores sem parecer mover o olhar.

— Senhora, esta é a minha irmã. — Hesito, não sabendo que nome dar-lhe.

— Chamo-me Liobhan. — A voz da minha irmã é firme. O choque de se achar neste mundo feérico não fez mossa na sua coragem. — Mas como menestrel aqui em Breifne, respondo pelo nome de Ciara.

— Então, bem-vinda ao meu reino, Ciara. — Eirne, de pé, não chega ao ombro de Liobhan. Mas os seus modos tornam claro quem detém a autoridade aqui. — Sou Eirne, rainha do Povo Encantado em Breifne. O teu irmão é um músico raro. Está encarregue de uma tarefa para mim; uma tarefa cuja gravidade e importância são incomensuráveis. Para cumprir esta tarefa, Brocc precisará de ficar connosco algum tempo. — Quando Liobhan faz menção de protestar, Eirne ergue uma mão para a calar. — Espera. Ainda faltam alguns dias para o solstício de verão. Tempo suficiente para agir com sensatez, de forma comedida, com todos a desempenharem o seu papel. Rowan, levaremos os nossos convidados para o pavilhão; gostaria de ter uma conversa privada com eles. Nightshade, vens connosco também? — Vira-se para os outros. — Não mais canções agora, meu povo. Mas alegrem-se, meus queridos. Amanhã Brocc cantará e tocará para vocês e seremos felizes de novo.

— Mas... — começa Liobhan e depois interrompe-se.

Enquanto seguimos Eirne por um caminho estreito sob salgueiros, a minha irmã vira o seu semblante severo para mim. Não precisa de falar em voz alta para eu entender a mensagem. O que em nome de todos os deuses estás a fazer? Não sabes os problemas que causaste? E a missão? Sou um cobarde; desvio o olhar.

Mais abaixo, o caminho serpenteia entre arbustos algo semelhantes a azevinho, com folhas de bordos afiados, mas estão cobertos por pequenas flores de cinco pétalas de um azul muito brilhante e mais pássaros minúsculos saltitam de galho em galho. Tentilhões? Não, não podem ser. As suas penas são tão brilhantes como joias.

Rowan caminha ao lado da rainha. Liobhan e eu seguimo-los e Nightshade vem em último lugar. Vamos calados, absortos nos nossos pensamentos.

No fim deste trilho, encontra-se um delicado pavilhão feito a partir de um entrançado de salgueiros retorcidos. A hera trepou por ele acima, as suas folhas formam um dossel verde-luxuriante e os musgos insinuam-se pelas paredes. Dentro desta estrutura está uma mesa tipo pedestal e, em cima dessa mesa, uma taça larga e rasa. Ao lado, estão dispostos um jarro de água e uma vela, que já foi acesa.

Eirne não entra; ao invés, senta-se nos degraus que levam ao pavilhão e faz sinal para Liobhan e eu nos sentarmos ao seu lado. Nightshade fica para trás; Rowan assume uma postura de guarda.

— Tenho de te perguntar primeiro, Ciara, o que te trouxe aqui. Responde com sagacidade.

— Estou aqui porque estava preocupada com o meu irmão. Pensei que a contadora de histórias, a senhora Juniper, pudesse saber onde ele tinha ido.

Os passarinhos estão a voar para dentro e fora da hera, a apanhar insetos. Percebo onde já vi criaturas como aquelas antes. Estavam na casa da mulher sábia. E... estavam nos Nemetons. Um deles pousou no pé de Faelan. Isso provoca-me uma sensação estranha.

— E ela sabia? — pergunta Eirne a Liobhan.

— Tinha-o visto. Sem me dizer grande coisa, orientou-me para o caminho certo.

— E tu sabias como ser admitida no meu reino. Isso surpreendeu-me. Tu e o teu irmão não são da mesma espécie.

— Somos ambos músicos — responde Liobhan com ferro na voz. — Ambos crescemos na casa de uma mulher sábia. Ambos conhecemos contos antigos.

— Isso inclui a história da Harpa dos Reis, Ciara?

Liobhan fica de súbito tensa.

— Ouvi a história, sim.

Lança-me uma olhadela, com as sobrancelhas erguidas. Não consigo pensar em nenhuma maneira de lhe dizer que não contei a Eirne que a harpa está desaparecida, ou que acho que Eirne sabe de qualquer maneira do facto. Talvez também que esteve envolvida em fazê-la desaparecer como por encanto dos Nemetons. Abano um pouco a cabeça, na esperança de que Liobhan o assuma como aviso.

— Enfrento sérios problemas, Ciara — diz Eirne. — O meu povo é escasso e eu não tenho herdeiro. Se eu desaparecesse, não creio que o meu clã sobrevivesse muito tempo. Perdemos um dos nossos hoje, para o Povo Corvo, e se não fossem os notáveis talentos do teu irmão, mais teriam perecido.

— O Povo Corvo — murmura Liobhan. — Então atacam até aqui, no Outro Mundo?

— Encontraste-os? — pergunta Eirne.

— Não frente a frente. Mas houve um ataque aos homens do regente, não na torre, mas para norte, ainda a noite passada. Parecia que os responsáveis poderiam ser as coisas-corvo. Têm muito medo deles. Penso que as pessoas têm mais pavor de um inimigo quando não o conseguem compreender. Uma praga de corvos vulgares, isso achariam muito mais fácil de resolver. — Hesita. — Existe alguma relutância em reconhecer que essas coisas poderão ser sobrenaturais. O que é estranho, considerando que existe uma comunidade de druidas mesmo ao lado da corte de Breifne. Mas, por outro lado, os irmãos não saem com muita frequência. As pessoas vulgares não os veem.

— A tua espécie esqueceu os costumes antigos — diz Eirne. — Esqueceram a importância dos contos, a sabedoria do passado, a força que emana das árvores, pedras e regatos, o vínculo entre um mundo e o outro. É nestas épocas de desconfiança e perturbação que forças negras como essas surgem para ensombrar o nosso mundo.

— É muito severo incluir toda a humanidade nessa afirmação — retorque Liobhan. — Brocc e eu fomos educados a respeitar todas essas coisas que mencionas, tal como muitos outros. A nossa comunidade é muitas vezes visitada por druidas errantes, a quem apraz contar uma ou duas histórias. Em Breifne é diferente, eu sei. O que torna surpreendente que este ritual do solstício de verão ainda seja considerado tão importante. Quero dizer, aquele onde a harpa é tocada para reconhecer o novo rei.

Não é subtil, mas inteligente na mesma... fez divergir rapidamente a conversa para o que precisa de saber.

— Antes de dizer mais alguma coisa — diz Eirne e ouço uma nova nota na sua voz —, devo explicar que certas leis antigas governam as minhas escolhas e as minhas ações neste assunto, tal como em todos os assuntos que exigem que me envolva, eu ou o meu povo, no mundo humano. Visto que são bardos e visto que ouviram a história da Harpa dos Reis, entenderão o que quero dizer. Não posso intervir nos assuntos do povo humano, mesmo que o curso desses assuntos flua contra o meu povo. Não posso entrar no vosso mundo e ordenar que esses assuntos tomem uma determinada direção. Se eu tivesse vivido há cem, duzentos anos, Breifne poderia ter tido um rei ou rainha humanos com quem eu pudesse abertamente falar. Poderíamos ter-nos encontrado em conselho como Béibhinn fez com o monarca humano do seu tempo. Isto não é possível quando os humanos de Breifne, incluindo os seus líderes, não nos respeitam. De facto, muitos duvidam da nossa existência. Os druidas desempenharam outrora um papel muito mais importante; quando aconselhavam um rei, este prestava atenção à sua sabedoria. Mas essa confiança está bastante enfraquecida agora e receio que avancemos para tempos muito sombrios.

Liobhan está sentada muito quieta, com as mãos apertadas com força em volta dos joelhos. Eu estou cheio de expectativa, quase incapaz de respirar. Eirne parece à beira de alguma revelação, talvez a que eu procurava quando vim para aqui. Estou tentado a fazer uma pergunta direta sobre a Harpa dos Reis. Não é que já não tenha infringido as regras da missão de mais de uma maneira. Mas não faço a pergunta: Foi por isso que a harpa foi levada? Se Eirne não pode intervir nos assuntos humanos, não pode ser responsável por isso. Calo-me e espero.

— Assim — continua Eirne — receio pelo futuro. Vejo uma possível solução, que exige um alto grau de confiança, uma solução que eu e o meu povo não podemos realizar sozinhos. Vejo-te a ti, Brocc, e a ti, Ciara, e talvez outros que vieram para Breifne convosco, como instrumentos para fazer o bem. Não posso agir nisto; posso apenas agitar um pouco o pote. O empurrão é importante na direção certa. Mas vocês são desse mundo humano e podem agir. Para o fazer, para alcançar o fim certo, têm de depositar a vossa confiança nos deuses antigos. E têm de confiar em mim.

— Como podes saber quem veio para Breifne connosco? Como podes saber que somos de confiança quando somos mais ou menos desconhecidos para ti? — Liobhan empurra o cabelo da testa; o gesto é irritado. — E se querias cooperação, por que me mantiveste do outro lado da parede durante tanto tempo?

— Tudo no momento certo. — Eirne está calma. — Vieste para Breifne com um objetivo que ia além da música, sim? Vejo em ti, Ciara, algo mais do que um bardo; em Brocc também há um espírito guerreiro.

— Estamos vinculados a uma promessa. — Liobhan está a fazer o possível por controlar a sua fúria. — Não te podemos contar tudo. Falaste de conselhos como meio de resolver dificuldades. Mas mesmo num conselho acho que as pessoas não dizem tudo.

— Exato. — Eirne sorri. — Tal como eu devo fazer. Mas não estou a pedir confiança cega. Quanto à cooperação, Brocc já concordou em fornecer o que eu preciso dele. Uma canção. Escrevê-la-á e cantá-la-á. É tudo o que preciso.

— Tenho de regressar à corte esta noite — explica Liobhan. — À hora da ceia. Acredita em mim, há uma boa razão para isso. E Brocc... sugeriste que ele ia ficar aqui outra noite, talvez mais tempo. Isso pode criar-nos problemas. Problemas sérios. — Olha para o céu por cima das copas das árvores, a tentar calcular se já é muito tarde. — O que devo fazer por ti?

— De ti, Ciara, não exijo uma canção. Preciso de um aliado na corte de Breifne. Uma pessoa de coração valente e raciocínio rápido. Uma pessoa que coloque o futuro desta bela terra acima de tudo o resto. Uma pessoa que escolha sempre o caminho da sabedoria e da justiça. Tinhas razão ao questionar a minha escolha. Ao pedir-te para fazeres isto, deposito grande confiança numa pessoa que conheço apenas dos relatos de outras.

— Que outras? — inquire Liobhan, não parecendo nada feliz.

— Temos observadores em muitos sítios. Pessoas insignificantes, mas sábias. Na sua maioria, sábias. Ocasionalmente, decidem lançar mãos à obra sozinhas. Mas não falaremos disso.

— Já temos uma tarefa na corte. Uma tarefa que tem de ser completada antes do solstício de verão. E se isso entrar em conflito com a tua tarefa? — pergunta Liobhan.

— Então suponho que escolhemos o caminho da sabedoria e da justiça — digo eu, um pouco embaraçado com os modos da minha irmã, embora seja o que esperaria dela.

— Preciso de mais do que isto — declara Liobhan. — Guarda informação se quiseres, mas tal como não posso ser um bardo sem uma canção para cantar ou uma dança para tocar, não posso ser esse aliado, um... um combatente, um guerreiro... se só tenho... filosofia. Preciso pelo menos de ter alguma ideia do que queres que faça. Uma ideia prática.

Eirne levanta-se; nós fazemos o mesmo. Rowan e Nightshade não proferiram palavra, mas quando Eirne nos conduz para dentro do pequeno pavilhão, eles seguem-nos. Nightshade faz-me sinal e a Liobhan para nos posicionarmos ao lado da rainha, no pedestal. Rowan fica à parte, onde nos pode observar e ao caminho lá fora.

— Meus amigos — diz a rainha —, temos de confiar nos deuses e ter um coração valente. E sim, temos de agir com celeridade. A minha tarefa também tem de ser completada antes do solstício de verão. Quanto a um conflito entre as duas tarefas, temos de ter esperança que possa ser resolvido. Para isso, será necessária sabedoria e justiça. E força de vontade. Grande força.

Eirne vira os seus olhos cinzentos cintilantes para os meus; o seu olhar provoca-me um arrepio. Não é medo, ou não propriamente; é a sensação de que alguma coisa imensa está em jogo: vidas, reinos, gerações vindouras. Como poderia ter imaginado que Eirne era como uma rapariga de aldeia que eu pudesse conhecer num baile? Ela vira-se para Liobhan e Liobhan devolve com firmeza o olhar, com força em todo o seu ser.

— Mostras-nos? — pede a minha irmã.

O recipiente raso que está em cima do pedestal é uma taça de divinação. A nossa mãe usa uma muito semelhante, embora a dela seja de barro vulgar e esta seja esculpida nalguma substância delicada, tremeluzente, talvez osso ou concha.

— Para isto, devem manter o silêncio — explica Eirne. — Guardem as perguntas para quando tiver terminado. Embora possa ser mais sensato não perguntar. Em vez disso, reservem um tempo para considerar o que viram e encontrar as vossas respostas. Recordem-se, não falem ou arriscam-se a quebrar o meu transe e perderemos a imagem.

Pega no jarro e despeja a água e não é apenas a minha imaginação que faz aparecer como por encanto uma fumaça ou névoa que se ergue da taça e depois se dissipa na quietude do pequeno abrigo. Liobhan está tão imóvel que poderia ter parado de respirar. O meu coração bate com força; não tenho a certeza do que espero. Uma imagem da harpa, talvez? Uma pista para o seu paradeiro?

Eirne fecha os olhos. Abranda a respiração. Ergue as mãos graciosas por cima da taça e traça desenhos no ar. Logo cores e formas começam a dançar na água, imagens não criadas pelo tremeluzir da vela nem pela luz do Sol acima das árvores, mas puxadas das profundezas. Que bela canção isto daria! Mas nunca a escreveria. Isto é profundo e místico e com certeza secreto.

— Olhem agora — murmura Nightshade.

Eu olho. O que vejo gela-me até aos ossos. Liobhan emite um pequeno som de choque e consternação que sufoca de imediato.

A água mostra Breifne em confusão. Vemos um caos de sangue e fogo e coisas outrora belas partidas sem hipótese de reparação. Um rei observa, um rei que é Rodan, embora mais velho, de cabelos grisalhos, as feições enrugadas, o corpo maltratado por uma vida de excessos. O local adorável onde nos encontramos agora é uma terra deserta. Não resta nem uma única árvore grande. Deslizamentos de terras arruinaram a encosta e a estrada da floresta já não existe. A cena na água muda e muda de novo e todas as imagens novas me ferem mais profundamente o coração. Pessoas espancadas e expulsas das suas casas. Homens enviados para a guerra contra um reino vizinho, alguns a morrer no campo, outros a cambalear para casa, feridos e desesperados, para enfrentar a ira de um rei a quem faltou coragem para ficar ao lado deles na batalha. Casas a arder. Animais famintos, negligenciados, esquecidos. Crianças aterrorizadas, espancadas, a chorar. Onde está o povo de Eirne nesta visão? Afugentado? Destruído? Ou escondido, à espera que o tempo das trevas termine?

A água treme e aquieta-se e a visão desaparece. O que está Eirne a dizer-nos? Que se Rodan for coroado rei, a terra de Breifne será lançada no caos? Liobhan e eu estamos aqui para encontrar a harpa, para a devolver, para este homem poder de facto tornar-se rei. Porquê mostrar-nos este mau presságio de desastre quando não temos poder para fazer nada?

A minha irmã e eu trocamos um olhar. Ela está pálida, chocada; imagino que estou com o mesmo aspecto. Como podemos levar esta mensagem para Archu?

A água estremece de novo; Eirne solta um longo suspiro. Nightshade aproxima-se para poder ver também a superfície refletora. Até Rowan se acerca agora.

Eirne mexe as mãos por cima da taça mais uma vez e a água ilumina-se, como se com o toque do sol do meio-dia, embora aqui a luz esteja mesclada. O reino de Breifne aparece numa série de imagens como anteriormente. Mas agora tudo está como devia ser. Os campos são verdes, os muros de pedra solta estão em bom estado de conservação, o gado e as ovelhas saudáveis e contentes. As pessoas cuidam da lavoura e do gado, guiam carroças pelas estradas, parando para conversar com os vizinhos. Vejo um grupo de velhotes sentados num banco à sombra de um carvalho e um druida com a sua veste, apoiado no seu bordão, a conversar com eles. Na colina, as grandes árvores desta floresta erguem-se fortes e orgulhosas e em volta delas as mais jovens esticam os seus galhos e exibem os seus trajes de verão numa miríade de tonalidades de verde. Os pássaros cantam; os insetos zumbem; nas margens dos regatos, as rãs coaxam as suas canções; e os peixes nadam em água tão límpida que se consegue ver os padrões nas pedras lisas em baixo. Quem poderia duvidar que o povo de Eirne ainda está vivo e bem num lugar tão adorável?

A torre real ergue-se orgulhosa na sua colina baixa e dentro da sua muralha protetora as pessoas dedicam-se às suas tarefas muito como fazem agora. Há guardas de serviço ao portão. Um palafreneiro conduz os cavalos para um campo de pastagem. Da forja vem o bater rítmico de um martelo no ferro. As mulheres estendem lençóis nos arbustos para secarem. Três homens vestidos como eruditos encontram-se no pátio junto à entrada principal para a torre, embrenhados em profunda discussão. Um cão corre por ali, com duas crianças risonhas ao lado. E ah!, ali está por fim o rei. Encontra-se numa janela alta na torre, a olhar para o seu reino. Não lhe conseguimos ver o rosto. Podia ser Rodan, este homem tem uma altura semelhante, embora seja de constituição mais esbelta. O cabelo é do mesmo castanho do do príncipe, mas usado mais comprido. Nenhum fio grisalho nestas madeixas onduladas. Estas imagens mostrarão uma época anterior às outras? Ou é um homem diferente? É Rodan como deveria ser? Como poderia ser, com a orientação certa?

Na visão, para lá da janela da torre, o sol sai de detrás de uma nuvem e durante um instante o rei é uma silhueta escura rodeada por luz dourada. O momento passa. É um homem vulgar outra vez, com os problemas e responsabilidades de um homem. Suspira, endireita os ombros e depois, surpreendendo-me, chama um nome e ergue uma mão para acenar. Lá de baixo, uma voz de criança responde. Papá, olha! Curly consegue agarrar a bola! O rei ri. E a imagem desaparece. Enquanto se vai desvanecendo, ouço música fraca. Não da floresta próxima. Não da pequena cabana onde deixei a harpa emprestada. De outro sítio; talvez daquele futuro belo que a taça de divinação revelou. É apenas um fragmento, um trecho de melodia, uma breve catadupa de notas. Mas é a coisa mais linda que já ouvi.

Eirne demora um pouco a voltar a si e, quando abre os olhos, parece atordoada. Nenhum de nós fala. Rowan avança com um banquinho e ajuda-a a sentar-se. Nightshade traz uma caneca de água e coloca-a na sua mão.

Olho para Liobhan. Ela olha para mim. Não podemos perguntar o que significou. Não podemos perguntar qual era o verdadeiro futuro, se isso de facto pode ser determinado. Não podemos perguntar se ambos os homens eram Rodan, ou se um era outro pretendente ao trono que ainda não conhecemos. Não podemos fazer perguntas sobre a harpa. Pelo menos, não diretamente.

— Senhora, posso falar? — pergunta Liobhan quando Eirne já beberricou a sua água, se espreguiçou e parece mais ela.

— Fala com sensatez, guerreira, ou não fales — adverte Nightshade.

— Fala, se quiseres. — Eirne parece exausta.

Sinto uma estranha onda de ternura. Gostaria de poder erguê-la nos meus braços. Gostaria de poder deitá-la para descansar e depois sentar-me à sua cabeceira e cantar-lhe uma canção de embalar. Tolo Brocc.

— O que precisamos para garantir o futuro pode ser reconquistado a tempo? Se assim for, podes dizer-nos como isso pode ser conseguido? — Liobhan escolheu as suas palavras com cuidado. Ninguém imaginaria que é conhecida por uma tendência para falar antes de pensar.

— Espero que sim — responde Eirne. — Quanto ao como, sim, posso dizer-vos. Mas há um preço e é possível que consideres esse preço demasiado elevado.

— Estamos aqui com um objetivo — retorque Liobhan. Ouço a veemência na sua voz. Eu devia falar. Devia ajudá-la. Mas alguma coisa me impede. — Um objetivo honrado, que devia ser para o bem de ambos os reinos de Breifne, o da espécie humana e o do teu povo, senhora. Podia dizer que nenhum preço seria demasiado elevado. Mas isso seria a afirmação de um tolo. Além disso, não penso que definas um preço para lá do nosso alcance, visto que sabes, creio, que não te desejamos senão bem. Quem não quereria ver esse belo futuro para Breifne?

— Antes de isto terminar — diz Eirne — poderás descobrir a resposta para essa pergunta. — Levanta-se, sai do pavilhão e olha para o céu por cima do dossel da floresta. — O tempo passa. Espera-te uma longa caminhada de regresso a casa. Voltaremos ao local das reuniões e explicarei o que desejo que faças. Venham, sigam-me.


Capítulo 25

LIOBHAN

Estamos de volta à zona descoberta, onde as gentes estranhamente variadas nos aguardam. Seja o que for que Eirne vá definir para nós, quer fazê-lo diante de testemunhas. Gostaria que ela se despachasse. O dia está a passar. Preciso de levar Brocc de volta à corte e depois tenho de fazer aquele miserável pedido de desculpas. Tenho de treinar primeiro, descobrir as palavras perfeitas, para não ceder ao impulso de praguejar e esmurrar o príncipe na cara.

O dia está a ficar cada vez mais bizarro. Como Rodan, esta rainha é boa a fazer discursos empolgantes, mas não muito forte em estratégia. Eu devia estar preocupada com aquela visão de um futuro sombrio e estou, lá no fundo. A imagem na taça de divinação era feia. Era horrível. Mas não era real e a outra também não. A divinação não nos mostra o que irá acontecer. Apenas o que poderá acontecer. O reino de Breifne deve ser capaz de se livrar de problemas sem alguns músicos itinerantes se meterem. Estamos empenhados na missão que viemos aqui executar. Não podemos fazer o que Eirne quer, se entrar em conflito com isso.

— Meu povo! — Eirne dirige-se à multidão variada e eles emudecem. — O futuro de Breifne está em jogo, tanto para a espécie humana como para o Povo Encantado. Aqui neste reino enfrentamos trevas que mal entendemos. Sozinhos não podemos continuar por muito tempo a lutar contra essa ameaça. Para a vencer, precisamos da ajuda dos humanos.

Diz-nos onde está a harpa, apetece-me gritar. A este ritmo, regressarei à corte ao luar.

— Sabemos como Brocc canta tão docemente. Vimos que a sua voz incomparável pode ser uma arma poderosa. Creio que o nosso bardo descende do Amergin. Brocc, prometeste-nos um tipo raro de canção e sei que a criarás bem. Ciara, demonstraste notável coragem. Procuraste com bravura o teu irmão, mesmo até à nossa parede. O nosso reino não te amedronta como faz a tantos humanos que se perdem aqui por acaso. Confio que executarás as tarefas que te dou com essa mesma força de propósito.

Tenho de presumir que Eirne sabe onde está a harpa e que está à espera que tenhamos cumprido essas tarefas para nos dizer. Não percebo por que razão não o faz já. Mas isso é consistente com o costume do Povo Encantado de nunca dar nada em troca de nada. Com o dia do solstício de verão quase a chegar, isto poderá significar fracasso para a nossa missão.

— Nightshade — diz Eirne —, passa por favor a Liobhan as suas instruções.

A sábia puxa um pequeno rolo das dobras da sua veste volumosa e passa-mo. Desenrolo-o e leio o respetivo conteúdo. Não é nada do que eu estava à espera. Não há nada heroico. De facto, parece desprovido de sentido. Dança três vezes com um homem que não gosta de dançar. Faz uma boneca de tecido emprestado e deixa que os olhos dessa boneca vejam o futuro de Breifne. O que pode isto significar? Costurar não é o meu forte, nunca foi e sei o suficiente para perceber que não posso pedir ajuda a ninguém. O que é uma pena, visto que Banva faria uma boneca perfeita no tempo que me levava a fazer uma carga de lavagem de roupa em troca. O que está esta rainha a tentar fazer, transformar-me numa coisa que nunca fui e não tenho intenção de me tornar? Ajuda a construir uma pequena casa de areia ou terra e depois vê a água levá-la. Isto é estúpido.

Brocc também recebeu um rolo. Mas levou apenas um instante a ler o dele. Fica a meu lado, sem dizer uma palavra.

— Não entendo o propósito destas tarefas. — Preciso de todos os meus poderes de autocontrolo para continuar cortês. — Mas se são essenciais, farei o possível por as cumprir. São... nada do que esperava.

— Quando as tiveres completado, entenderás o seu propósito — retorque Eirne. — Agora deverias ir embora. Rowan trata de te fazer passar pela parede. Talvez o teu amigo já não esteja à espera. Tinha um ar abatido.

Aquilo chama por fim a atenção de Brocc. Olha para mim de sobrancelhas erguidas. Esqueci-me de Dau. Ele se calhar já desistiu e regressou. Não pronunciarei o nome dele, não aqui. Não tem interesse envolvê-lo nisto, seja lá o que for.

— Obrigada, senhora. — Controlo o meu temperamento. — O que acontece quando tivermos completado as nossas tarefas?

— Voltas aqui para buscar o teu irmão. Na véspera do dia do solstício de verão vem cantar junto ao nosso Portal outra vez e serás admitida. Ser-te-ão dados os meios para alcançares o teu propósito e poderás regressar à corte.

— Espera um pouco... O que disseste? Na véspera do dia do solstício de verão? Será muito tarde! — É tudo um truque... não vai dar-nos a harpa, tudo o que quer é manter Brocc...

— Liobhan. — Brocc estende-me o seu pequeno rolo de pergaminho. Só há duas coisas na sua lista:


Completa a grandiosa canção de que necessitamos e canta-a.

Fica connosco e toca para nós até à véspera do solstício de verão.


Levanto a cabeça e vejo nos olhos do meu irmão que ele quer ficar tanto quanto quer partir. Está dividido entre as duas coisas e não admira, pois este lugar e o seu povo estranho fazem parte da sua herança; o Outro Mundo está-lhe no sangue. Não quero deixá-lo aqui. Eirne já o considera como seu; percebo-o nos seus olhos. Se ele ficar com ela até à véspera do solstício de verão, mudará. Não terá outra opção senão partilhar da comida e bebida deles e eles conseguirão exercer a sua magia nele.

— Não há problema — diz Brocc. Estou a imaginar aquele tremor na voz dele? — Liobhan, não há problema, a sério. Fiz uma promessa. Poderei criar melhor esta canção se trabalhar aqui sem ser perturbado. Por favor, vai embora e deixa-me. Estarei em segurança aqui.

— Mais uma coisa antes de partires — prossegue a rainha das fadas. — O que acontece neste reino é secreto. Essa regra é para proteção do meu povo. Os humanos raramente são admitidos aqui, mas alguns entram por engano por uma ou outra porta e alguns intrometer-se-iam se pudessem. Não falarás disto a ninguém, Ciara. Inventa uma história para explicar a tua ausência e a de Brocc; tenho a certeza que tens aptidões para isso. Nem ao teu fiel amigo aí fora deves contar a verdade completa. Sai, explica-te em termos que um homem ou mulher vulgar possa entender, com isso quero dizer uma pessoa que não seja filha de uma mulher sábia, uma pessoa que não foi criada para cantar, tocar e fazer versos, uma pessoa que não seja druida, nem sábio, nem curandeiro. Volta para a corte e completa estas tarefas. E na véspera do dia do solstício de verão volta ao Portal sozinha, preparada para cantar. Nem uma palavra, recorda-te. A autodisciplina faz parte do código de um guerreiro, não faz?

Eirne vira-se para Rowan.

— Escolta Liobhan através da passagem. — Pega no braço de Brocc, encostando-se nele. Vejo o rubor que sobe às faces do meu irmão e não gosto. Vai perder-se aqui. — Vem, meu bardo — continua a rainha. — Despeçam-se. Estou cansada. — Mas antes de Brocc poder dizer uma palavra, afasta-se com ele.

Rowan caminha a meu lado até à estreita passagem entre as rochas. Eu deveria ir enquanto está aberta, mas hesito.

— Rowan, o meu irmão estará seguro aqui? Pelo menos até à véspera do solstício de verão?

— Seguro? — repete ele. — Nenhum de nós está seguro enquanto o Povo Corvo ensombrar os céus. Não posso fazer promessas. Mas mantê-lo-ei o mais seguro possível.

— Então, de um guerreiro para outro, agradeço-te. E despeço-me até à véspera do solstício de verão. — Dagda nos salve, faltam menos de dez dias.

— Até à véspera do solstício de verão. Passa agora.

Avanço para a fenda nas rochas e saio do reino de Eirne para o meu mundo. E se o meu coração não está partido, pode dizer-se que está pisado e amassado como uma ameixa que caiu da árvore para o chão duro.

Dau ainda ali está. Não tinha percebido que precisava tanto disso. Os sentimentos inundam-me: alívio, exaustão, tristeza e uma ou duas gotas de puro pânico, porque o que, em nome dos deuses, vou dizer a Archu? Se o meu irmão mais velho, Galen, aqui estivesse, ou o meu pai, lançar-me-ia nos braços deles e choraria, ou rosnaria alguns palavrões, ou ambas as coisas. De qualquer modo, estou a chorar, não consigo evitar. Maldição!

— Obrigada por teres esperado — tartamudeio, limpando a cara na manga. Pelos deuses, estou cansada.

Dau põe um odre na minha mão direita, um lenço limpo na esquerda e depois recua e fica à espera, sem dizer nada. Nem fazendo as perguntas óbvias: Onde foste? Não o encontraste?

Bebo, limpo o nariz e sinto-me um pouco melhor.

— Obrigada — digo, afundando-me nas rochas. Não posso descansar durante muito tempo; temos de voltar. Por que estou tão cansada? E agora sinto a dor aguda no meu tornozelo, uma coisa que consegui esquecer enquanto estive naquele lugar. Foi um dia longo, muito longo, e ainda não terminou.

Tenho de dar alguma explicação a Dau. O que lhe posso contar da verdade sem quebrar a minha promessa a Eirne? A primeira coisa que me sai da boca é:

— Estarias preparado para dançar comigo três vezes antes do solstício de verão?

Dau fita-me como se eu tivesse enlouquecido, o que não é surpreendente.

— Isso não levantaria suspeitas? Visto que a cantora e o rapaz dos cavalos devem agir como se não se conhecessem?

— Diz só que sim ou que não. Três noites, três danças, entre hoje e a véspera do solstício de verão. Descobrirei uma maneira de não parecer suspeito.

Um longo silêncio.

— Um guerreiro deve ser arrojado e decidido — diz Dau. — Digo que sim. Aviso-te que poderei pisar-te os pés. Não é a minha ocupação favorita.

Passado um bocado, pergunta:

— Podes contar-me o que se passa?

— Devíamos começar a andar. Não quero ficar nesta floresta nem mais um instante do que é necessário.

Partimos, lado a lado onde o caminho permite. Tento não coxear. Esforço-me por encontrar as palavras certas. Tudo o que me vem à cabeça parece uma loucura completa.

Por fim, é Dau que inicia a conversa.

— Encontraste o teu irmão? — pergunta.

— Sim, encontrei-o e ele está bem. Mas não pode voltar, ainda não. Dau, tanto eu como Brocc estamos vinculados a promessas de não contar a ninguém o que aconteceu ali. Terás visto... não podes ter deixado de reparar que há qualquer coisa invulgar em tudo isto.

— Depois de esperar tanto tempo naquele lugar, eu estava a começar a pensar que tinha sonhado tudo, começando por me teres pedido para te ajudar a saltar por cima da muralha. O dia inteiro foi, como disseste, invulgar.

Ocorre-me um pensamento desagradável.

— Maldição! — murmuro.

— Maldição o quê?

— Sem Brocc não tenho plano nenhum para voltar a entrar. Os guardas estão habituados a deixá-lo passar pelo portão.

— Ah — retorque Dau. — Tenho uma solução para esse problema. Não vais gostar muito, mas deve funcionar. E liga bem com a questão da dança.

— É melhor dizeres-me. Se envolve falar, serei eu a fazê-lo.

— Tenho uma boa razão para estar fora das muralhas. Saí com um cavalo e entreguei-o numa quinta, tal como me disseram para fazer. Podia ter tido outros assuntos a tratar para Illann aqui em cima algures. Ninguém precisa saber que Archu me mandou procurar-te.

— E?

Estou distraída com o facto de o caminho ser muito mais fácil de ver agora que estamos a regressar, como se alguém, de propósito, me tivesse dificultado o acesso ao Portal para o reino de Eirne. Depois fizeram-me cantar durante horas até ficar rouca antes de me deixarem entrar. Acrescentemos a isso as tarefas, que parecem não ter qualquer propósito, e parece que Eirne não nos dará a harpa, se é que a tem, até à véspera do solstício de verão. Isso dá-nos tempo para a entregar antes do ritual, mas apenas à justa. Como posso explicar isto a Dau sem lhe contar tudo? Ele está a sair-se muitíssimo bem a não me fazer uma centena de perguntas. No seu lugar, eu estaria menos controlada, sobretudo depois da longa espera solitária.

— Dau?

— Hum? — Inclina-se para apanhar um pequeno ramo que caiu no trilho e afastá-lo do caminho.

— A missão. Penso que seremos capazes de recuperar o que precisamos a tempo. Talvez mesmo à justa. No dia anterior, muito provavelmente. Mas há algumas coisas que preciso fazer primeiro e algumas vão parecer muito esquisitas. — Isto é como andar em cima de papa. Papa que poderá explodir se não tiver cuidado.

— Estranho? Queres dizer, como saltos perigosos e desaparecimentos repentinos? E quase arranjar problemas sérios para outras pessoas?

— Não, quero dizer coisas que em geral não faria. Fazer bolos de lama, por exemplo. Aquela questão de dançar que mencionei. E coser.

— Coser. — O tom factual de Dau sugere total descrença.

— Quem achas que remenda a minha roupa enquanto andamos na estrada? Não Archu, garanto-te.

— Estou a sonhar. Não há outra explicação para isto. Liobhan, Archu vai pedir que eu relate o que acabou de acontecer. Illann também. O que lhes digo?

— Deixas-me falar primeiro, se for possível. Digo-lhes mais ou menos o que te disse a ti: que Brocc ainda não pode voltar, que está a seguir uma boa pista e que parece que essa pista nos vai conseguir o que viemos aqui fazer. Que esperamos ter a coisa que precisamos a tempo. Mas que, para que isso aconteça, toda a gente precisa de confiar que Brocc e eu vamos completar a missão. É uma coisa que mais ninguém pode fazer. Ele encontra-se num sítio onde muito poucas pessoas são admitidas. Quase nenhumas. E... as pessoas achariam difícil acreditar nalguns aspectos disto tudo. Sobretudo pessoas que não foram criadas a ouvir contos antigos.

Continuamos a andar e Dau não diz nada durante algum tempo. Em breve regressaremos à estrada e poderá haver pessoas por perto e ele será o Nessan mudo outra vez. No fundo da minha mente estão as duas cenas que Eirne nos mostrou na taça de divinação e o receio de que, completando esta missão, possamos estar a condenar este reino a um futuro sombrio. Se ao menos eu soubesse o que aquilo significava. Se ao menos eu soubesse se o rei no futuro pacífico era Rodan, um Rodan notavelmente modificado, ou outra pessoa. Acima de tudo, é isto que gostaria de poder contar aos outros.

— Deixei a minha faca com a contadora de histórias — digo. — Precisamos de parar em casa dela.

— A minha também. A harpa... está nesse sítio que mencionaste? O sítio do outro lado daquela parede de rocha?

— Não sei. E essa é a verdade. Quando Archu me fizer essa pergunta, responderei da mesma maneira.

— Mas há alguém nesse lugar que te pode dizer onde está? Ou dizer a Brocc?

— Mais ou menos.

— E tens de fazer umas coisas estranhas, como coser, antes de eles fazerem isso.

Não enunciou a frase como uma pergunta, por isso não respondo.

— Liobhan. — Dau para de andar. — Tens de perceber que isso parece uma loucura. Archu nunca vai concordar com isso e Illann também não. Temos apenas uns dias antes do solstício de verão. E tanta coisa depende disto. O teu futuro. O futuro de Brocc. E o meu. Estás a pedir a Archu que renuncie ao controlo da missão. Estás à espera que confiemos em ti, quando nem podes dizer onde está o teu irmão nem o que ele está a fazer.

Mordo a língua para evitar um comentário inútil.

— Se o povo de Breifne rejeitar Rodan no ritual — continua Dau, dizendo-me o que já sei —, e foi isso que nos disseram que decerto sucederá se a harpa não for apresentada a tempo, o reino poderá entrar em caos. Não parece existir outro pretendente que esteja disposto e seja elegível e, mesmo que houvesse, sem a harpa com toda a probabilidade seria também rejeitado. Se Cathra estivesse preparado para manter a regência durante mais uns anos, até o herdeiro crescer um pouco, já o teria anunciado há muito tempo e nós não estaríamos aqui. Imaginas quais serão as nossas oportunidades futuras na Ilha dos Cisnes, se todos concordarmos com a tua ideia maluca e isso atirar Breifne para um longo período de instabilidade, talvez até guerra? A nossa missão seria falada na Ilha dos Cisnes como a mais desastrosa de sempre.

Conto silenciosamente até cinco.

— Terminaste? — pergunto. — Devíamos continuar a andar. Por mais desequilibrada que seja, acredito que sou capaz de andar e falar ao mesmo tempo. — De facto, o tornozelo está a doer-me muito, mas não vou contar-lhe isso.

Dau não responde.

— Sei disso tudo, Dau — digo eu. — Estou a pedir-te que confies em mim. Me ajudes a convencer Archu que não perdi o juízo. Ajudaste-me esta manhã. Ajudaste-me a fazer uma coisa que infringiu todas as regras e não hesitaste. Bem, não por muito tempo. O que é diferente agora?

— Nada. Mas surpreendeste-me. Estava convencido que conquistar um lugar na Ilha dos Cisnes significava tanto para ti como significa para mim. Parece que me enganei. A primeira impressão que tive de ti estava afinal certa. Estás só... a divertir-te. Se te importasses mesmo, não sonharias em arriscar assim a missão.

Agora fui eu que parei de andar. E já não me sinto cansada. Em vez disso, estou a arder de fúria.

— Divertir-me? Que parvoíce absoluta! O que achas que andei a fazer hoje, a vaguear pela floresta só para passar o tempo? Sentada a cantar durante horas porque não tinha mais nada para fazer? Devia deixar o meu irmão desaparecer e continuar a fazer outra coisa qualquer? Era isso que farias se o teu irmão se evaporasse?

Uma expressão estranha surge no rosto de Dau. Os seus olhos ficam duros como pedra, a boca aperta-se, sombria. Quem me dera não ter falado.

— Era exatamente o que faria — diz. — E fá-lo-ia a sorrir.

Deuses. Estou a ver como Dau seria numa luta de morte e aquilo assusta-me e faz desaparecer a fúria.

— Brocc e eu somos muito chegados — digo-lhe. — Não é só o meu irmão, é o meu companheiro de armas, tal como tu. Vim atrás dele porque era a coisa correta a fazer. Tinha uma ideia de onde poderia ter ido e porquê. Já expliquei por que razão não te posso contar mais nada, pelo menos não até ao solstício de verão. Quanto à Ilha dos Cisnes, estás enganado a meu respeito. Quero ser um deles desde os meus cinco anos e... — Não, não lhe vou dizer que conheci Cionnaola quando era pequena. Não lhe vou dizer que essa menina desejou poder usar o cabelo em tranças compridas e tatuar o rosto com desenhos espiralados, para não falar em possuir uma grande faca afiada com um cabo de osso esculpido. — E ouvi falar pela primeira vez dos guerreiros. Isto é a coisa certa para a missão. Se me ajudares, se confiares em mim, se me apoiares quando eu tiver de explicar a Archu, podemos fazê-lo a tempo. E se não estou a explicar de forma tão completa ou tão clara como deveria, é em parte porque... — baixo a voz para um murmúrio — ... mesmo aqui, pode haver gente a ouvir.

— Gente.

— Gente, como nos contos. Vamos, já não falta muito para a casa da senhora Juniper. Se tivermos sorte, ela poderá dar-nos de comer. Não me lembro quando comi pela última vez.


Capítulo 26

DAU

Estamos de volta à casa da contadora de histórias. O meu comportamento deixou um pouco a desejar da última vez que aqui estive, mas não sei como pedir desculpa, por isso fico sentado em silêncio e escuto. Estamos à mesa dela, a comer uma refeição que tinha pronta para nós, apesar de não poder ter sabido quando ou se chegaríamos ali. É óbvio que Liobhan está de melhores relações com esta mulher do que eu. Espero que uma delas diga alguma coisa que me ajude a entender o que, em nome dos deuses, se está a passar.

Mas elas estão a ser cautelosas. Liobhan diz à mulher, parece que se chama Juniper, que Brocc ficou para trás com uma gente que conheceu e que pode estar a tocar alguma música. Isso poderá significar que essa gente tem mesmo a Harpa dos Reis? Não posso perguntar. Sinto-me como se estivesse numa teia peganhenta, onde todos os caminhos são estreitos, traiçoeiros e imprevisíveis. Uma pessoa podia usar toda a sua força e toda a sua inteligência e acabar apanhada na mesma, incapaz de avançar ou recuar. Não posso perguntar, não posso perceber, não posso falar... Apetece-me praguejar, gritar e bater em alguém. Apetece-me bocejar, deitar a cabeça em cima da mesa e dormir. Apetece-me passar um cobertor por cima da cabeça, enrolar-me numa bola e fazer com que o pesadelo se vá. Apetece-me...

Qualquer coisa toca na minha perna, suave e quente. Olho para baixo e lá está a cadela, Storm, a descansar o focinho e a fitar-me com olhos calmos como Bryn costuma fazer. Afago-lhe as orelhas sedosas e respiro devagar. Saí da desgraçada floresta. Encontrei Liobhan. Tenho forma de voltar a entrar na fortaleza. Nem preciso de explicar a Archu, além dos simples factos, visto que só fiz o que ele me disse para fazer. Liobhan que o tente convencer a não fazer nada entre hoje e a véspera do solstício de verão. É isso que ela quer. Por que protestei? Por que lhe chamei louca? Seja o que for, isso não é. Se está a escolher esta opção, deve ter um plano e se calhar vai mesmo funcionar, apesar de parecer bizarro. Esta mulher é forte. E gosta de ganhar.

O pelo de Storm é macio nos meus dedos. A sua respiração é lenta e regular. Os olhos fecham-se em fendas, como se fosse dormir sentada. Oh, é bom.

— Ela confia em ti — comenta Liobhan.

— Estas coisas são mais simples para os cães — diz a velha.

— Gostaria que o meu discernimento fosse assim tão infalível — retorque Liobhan, surpreendendo-me. — Às vezes, é difícil fazer a escolha certa. Podemos seguir por um caminho, muito convencidos de que é o caminho que queremos, e depois, de repente, tudo se vira de pernas para o ar e, embora tivéssemos a certeza de que sabíamos sempre o que era certo e o que era errado, começamos a duvidar.

A contadora de histórias fita-a durante algum tempo sem falar. Depois diz:

— Ciara, vais saber sempre distinguir o certo do errado. Eu saberia disso mesmo que não soubesse que és filha de uma mulher sábia. Não há lugar para dúvidas nesta tarefa que estás a empreender, guerreira. E tu. — Vira-se para me fitar e eu sinto que me endireito, embora a minha mão ainda esteja pousada em Storm, como se ela fosse uma âncora. — Confia nela. Confiem um no outro.

— Eu confio nele. — Agora Liobhan está a olhar para mim e, se está a mentir, está a desempenhar um excelente trabalho. Os olhos estão límpidos e a voz é firme. — O facto de nos irritarmos um ao outro com frequência não faz diferença. Resta saber se essa confiança funciona nos dois sentidos.

Maldição ter de ficar em silêncio! Como deixo aquilo sem resposta? Já perdi as estribeiras com ela e disse uma data de coisas de que não me orgulho. Mas Dau é assim, não é? É o rapaz que pensava que podia juntar os pedaços partidos de si e fazer um homem. É o homem que não sabe como ser amigo, nem companheiro, ou fazer alguma coisa exceto lutar. É o rapaz que nem conseguiu manter o seu cão em segurança. Que não conseguiu proteger a única coisa que alguma vez amou. Baixo os olhos para Storm e não digo nada. Se conquistar um lugar na Ilha dos Cisnes, será porque o mereço. Porque trabalhei duro para isso. Porque trabalhei para transformar o rapaz fraco num homem forte. O problema é que esse rapaz nunca de facto desapareceu.

A refeição terminou; Liobhan está a ajudar a levantar a mesa.

— Senhora Juniper? — interroga. — Tenho um pedido estranho.

— Nada é muito estranho para mim — responde a velha. — Pede lá.

— Tens algum pedaço de pano velho que possa levar emprestado? Preciso de fazer uma coisa quando voltar à corte.

A senhora Juniper lança-lhe um dos seus olhares avaliadores.

— Emprestado? Se estás a planear cortá-lo, não vou receber de volta o que te emprestei, mas sim uma coisa diferente.

Liobhan pensa um pouco, a raspar distraidamente os pratos para um balde. Pergunto-me se a senhora Juniper cria galinhas. Se assim for, elas estão silenciosas.

— Se eu levar um pano velho de que não precises e cortar alguns pedaços para fazer uma coisa pequena e depois te devolver o resto do pano, isso conta como dar ou emprestar? Levar ou pedir emprestado? Poderei não ser capaz de trazer o que fiz. Penso que isso irá para outra pessoa. Alguém que precisa mais.

A senhora Juniper considera aquilo como se fizesse perfeito sentido.

— Na minha opinião, poderá ser corretamente interpretado como ambas as coisas — retorque. — Deixa-me ver o que consigo encontrar.

Em breve, temos as coisas arrumadas e estamos prontos para continuar. Agacho-me para me despedir de Storm. Não me importo com quem me vê apoiar a face contra a cabeça dela e, durante um instante, fecho os olhos.

— Então deixaste o bardo para trás — diz Juniper baixinho.

— Por agora — responde Liobhan.

— E a guerreira continua. Cumpre o teu propósito, Ciara. Vais precisar de toda a tua considerável força antes de isto estar terminado.

Há qualquer coisa na particularidade daquele silêncio que me impede de erguer a cabeça. Acaricio as orelhas de Storm uma última vez e depois levanto-me.

— E tu — diz Juniper, aproximando-se para pousar as mãos nos meus ombros. Não quero que me toque. Não quero o seu olhar perscrutador. — O que és? — pergunta. — Herói, bardo, guerreiro? Ou algo diferente? Tens ainda de encontrar a resposta, Nessan. Tens ainda de montar o quebra-cabeças de ti.

Mesmo que as regras me permitissem falar, não teria uma palavra a dizer.

— Podes confiar nela — afirma outra vez a mulher sábia, lançando uma olhadela a Liobhan, que nos virou costas e finge verificar o conteúdo do seu saco. — Ela segue um caminho claro. Por vezes, errará. É humana, tal como tu. Vão então. Espero-te na véspera do solstício de verão, Ciara, com o que restar do meu pano.

É noite quando chegamos à corte. Expliquei a Liobhan o que devia dizer aos guardas no portão e ela odeia-o, mas usa-o na mesma: diz-lhes que saiu na carroça de alguém antes e que me encontrou por acaso lá na quinta e que fomos passear juntos e perdemos a noção do tempo. Os guardas riem-se muito e deixam-nos entrar dizendo-nos que estamos atrasados para a ceia e sorriem quando nos perguntam se gostámos do nosso passeio. Mesmo à luz das tochas, vejo as faces de Liobhan a arder. Mas a explicação permite-nos entrar e não causa mal nenhum. As mentiras são muito mais credíveis do que o que realmente aconteceu.

É apenas quando vamos procurar Archu que me lembro que Liobhan devia apresentar um pedido de desculpas a Rodan, com certeza depois da ceia. Se constar que ela e eu passámos um dia juntos, quando devíamos estar os dois a trabalhar, e chegámos tarde, isso não vai melhorar a opinião geral das pessoas sobre ambos.

Archu está nas cavalariças com Illann. O lugar está vazio, à exceção dos cavalos.

— Sala de ensaio — diz Archu, olhando para Liobhan. — Já.

Quando faço menção de ir com eles, ele acrescenta:

— Tu não.

Vejo-os a ir. Se ela fez uma promessa, não lhe poderá contar mais do que me contou a mim e não é provável que Archu aceite isso. Gostaria de lá estar para apresentar a minha visão das coisas. Podia pelo menos dizer-lhe que as intenções de Liobhan são boas.

— Conta-me a versão curta — pede Illann. — Depois precisas de ir cear e cama. Pareces morto de cansaço.

— Segui o rasto de Ciara na floresta, a partir da casa daquela velha. Encontrei-a sentada em frente a uma parede de pedra, a cantar e a tocar a flauta. Ela estava exausta; estava a fazer aquilo há algum tempo, na esperança que Donal viesse ter com ela. Passado um bocado, ouvimos a voz dele. Parecia que ele se encontrava do outro lado da parede, mas não encontrávamos passagem. E então... — Como posso tornar a próxima parte plausível sem contar mentiras?

Illann lança-me um olhar de soslaio. Estamos de pé junto à bancada de trabalho na semiobscuridade e ele está a fingir examinar um pedaço de arnês, para o caso de alguém entrar de repente.

— Então o quê?

— Afinal havia uma abertura na parede. Ciara disse-me para esperar. Passou e a porta, ou lá o que era, fechou-se atrás dela.

Illann não se ri nem fica zangado, nem me ordena que lhe conte a verdadeira verdade. Espera apenas.

Conto-lhe o resto: eu esperei, ela saiu, regressámos. Ela disse que tinha visto Brocc e que íamos conseguir recuperar a harpa se fizéssemos o que ela nos dissesse. O que significava deixar tudo até ao último momento.

— Sei que parece esquisito — digo-lhe. — Sei que é difícil de engolir. Mas acredito nela. — Aquelas palavras tinham mesmo saído da minha boca?

Illann responde com um grunhido. Um homem da Ilha dos Cisnes é difícil de surpreender e bom a esconder o que sente.

— Lava-te depressa e depois vai ver se ainda resta alguma ceia — diz. — Se apareceres, é menos provável que as pessoas reparem que há alguma coisa fora do normal.

O dia estranho é coroado com a noite mais estranha desde que cá estamos. Nós os quatro vamos cear separados. Não estamos tão atrasados que as pessoas reparem. Isso é muito estranho. Fomos lentos no caminho de regresso; o tornozelo de Liobhan estava a incomodá-la. Depois houve aquela paragem na casa da senhora Juniper. Pelas minhas contas, a ceia devia ter acabado há muito tempo e toda agente devia estar a dormir quando chegássemos. Mas não; a sala de jantar está cheia e a refeição ainda está nas mesas. Sento-me no meu lugar habitual, entre os palafreneiros e varredores dos pátios. Illann não se encontra muito longe, ao lado do chefe das cavalariças. Liobhan arranjou o cabelo e trocou de roupa e agora está com um grupo de mulheres que parecem conhecê-la. Archu tem um lugar convenientemente próximo da mesa de honra, onde Cathra e os seus conselheiros desfrutam de vista para todo o salão. Há lá umas caras novas, incluindo um homem que ouço alguém dizer ser Lorde Tassach. É jovem, trinta no máximo, de ombros largos e formoso, com caracóis louros. Quanto a Rodan, não mostra sinais de estar mais moderado depois do seu assalto a Liobhan e respetivas consequências. Mas está a observá-la. Está de olho nela desde que ela entrou e ainda está a olhar quando ela sorri para uma das outras mulheres e se ri de um comentário. Parece uma criatura a espreitar a sua presa, à espera do momento certo. Se tiver oportunidade, tenho de a avisar. O sacana. Gostaria de lhe dar a surra que merece. E aposto que Liobhan está a pensar o mesmo.

Comemos. O ambiente no salão é de tristeza, inquietação; com tantos homens perdidos naquela expedição infeliz a noite passada, toda a gente está imersa em pensamentos. Mesmo assim há música, providenciada pelo grupo que atua quando o nosso não está disponível. Mas não; nosso não. Nunca vou de facto fazer parte daquela equipa. A minha atuação algo tensa em frente da parede serviu o seu propósito, mas quando Liobhan me chamou cantor, estava a forçar a definição. Consigo lembrar-me bastante bem de melodias e letras. Mas é preciso mais do que isso. É preciso uma voz que compila as pessoas a ouvir, uma voz que comova o coração e o espírito. São precisas mãos que possam arrancar magia de um instrumento. Como Brocc. E como Liobhan também, mas a voz dela é diferente. Quando Brocc canta, transporta-nos para outro lugar. Faz-nos sair de nós mesmos. Quando Liobhan canta, estou sempre ciente que é ela. Permaneço no aqui e agora, a apreciar o calor e força da sua voz. Adoro ouvi-la.

Quando vai Cathra solicitar esse pedido de desculpas? Será embaraçoso, mesmo que ele espere até algumas pessoas se terem ido embora. Liobhan está a conseguir parecer despreocupada, mas aposto que tem o estômago às voltas. Na mesa de honra, há um curioso constrangimento entre o regente e Tassach, que estão sentados lado a lado. Mal trocam uma palavra. Talvez se tenham desentendido em relação a alguma coisa. Rodan não fala com ninguém. Buach está de guarda atrás da cadeira dele, mas é ignorado. O príncipe parece ter a sua nuvem de tempestade por cima, que lhe escurece os olhos, o faz retesar a boca, entortar as sobrancelhas numa carranca. Subtil é que o homem não é.

Pergunto-me que papel desempenhará Cathra quando Rodan se tornar rei. Poderá perder o título e estatuto de regente, mas manter a maior parte das responsabilidades. Alguém terá de o fazer e é evidente que o príncipe herdeiro não possui o carácter necessário. Se eu fosse Cathra, ou Brondus, ou alguém com autoridade aqui, ia assegurar-me que aquele idiota se tornava rei apenas de nome. Ia governá-lo como se ele fosse uma criança intratável.

Os meus colegas de trabalho lançam algumas piadas bem-humoradas sobre o tempo que levei a entregar o cavalo, mas ainda não souberam que Liobhan e eu voltámos juntos, por isso um sorriso e um encolher de ombros são resposta suficiente. Os palafreneiros e moços de estrebaria trabalham muito. Presumem apenas que eu apreciei a incumbência e levei o meu tempo a voltar para casa. Amanhã vão implicar comigo por causa da companhia feminina e ficarei contente por não ter de responder.

Agora é Tassach que está a olhar para Liobhan. Ela está a beber cerveja, a conversar com as amigas e, ao que parece, desconhecedora do interesse dele. Será que ele foi informado do incidente da noite passada e do pedido de desculpas que ela tem de fazer? O homem de pé atrás de Tassach que, pela roupa, parece ser um conselheiro e não um guarda-costas inclina-se para lhe falar e agora estão os dois a observá-la. Não gosto disto. Desconfiam que ela possa ser mais do que parece? Se vamos seguir o plano de Liobhan e formos desmascarados como espiões, isso não deixará Brocc e a verdade sobre a harpa fechados naquele local lá na floresta? Isto se o pouco que ela me contou não for um monte de disparates. Pergunto a mim mesmo onde estará Brocc agora e o que estará a fazer. Gostaria de saber se Archu ficou zangado com Liobhan. Saiu de onde estava anteriormente e não o consigo avistar.

Os pratos são levados. Chegam novos jarros de cerveja. É neste ponto que há em geral dança, mas, em vez disso, Lorde Cathra levanta-se, enquanto o mordomo-mor da casa real faz sinal a pedir silêncio. O regente dá as boas-vindas a Tassach e à sua família. Fala de forma simples mas solene sobre as mortes de vários dos seus homens de armas a noite passada e deseja que os feridos recuperem bem. Reconhece a coragem e lealdade dos seus guerreiros e expressa compaixão para com os seus entes queridos, sem dar nenhuns pormenores sobre o que de facto se passou. Poderá não ser vibrante e arrebatador como o discurso que Rodan fez antes de eles partirem, mas é muito mais impressionante. Estou com esperança de que Cathra se tenha esquecido do pedido de desculpas de Liobhan, mas parece que não. Faz um aceno de cabeça para Brondus e depois senta-se, enquanto Brondus se levanta para se dirigir à multidão reunida.

— Alguns de vós poderão não saber que o príncipe Rodan se feriu num acidente infeliz ontem. Está agora recuperado, pelo que, tenho a certeza, todos se sentirão tão agradecidos como eu. — Brondus vira-se para acenar e sorrir para o príncipe carrancudo. — O assunto foi investigado e determinou-se que o que sucedeu foi um acidente. No entanto, um membro desta casa, um membro visitante, foi indiretamente responsável pelo percalço do príncipe e o conselho solicitou que ela apresentasse um pedido formal de desculpas. Sublinho que foi um ferimento acidental e que mal este pedido de desculpas seja feito e aceite, o assunto ficará encerrado. Ciara, queres avançar?

Liobhan faz o que lhe pedem. Aprendi a percebê-la melhor desde que partimos da Ilha dos Cisnes. Ela está cansada e perturbada depois do que aconteceu na floresta e está furiosa com a injustiça e a humilhação, mas está numa missão e não vai estragar tudo por uma questão de orgulho pessoal. Agora Archu aproxima-se até ficar ao lado dela, num espaço que as pessoas deixaram diante da mesa de honra, a cerca de quatro passadas do príncipe e dos outros. A expressão de Rodan só pode ser descrita como feroz.

— Devo começar, senhor Brondus? — Liobhan mantém a cabeça erguida. Está pálida como o luar e com aquela pele branca a contrastar o seu cabelo é uma chama desafiadora. Espero que esta versão de Ciara seja convincente para a multidão. O que vejo ali é uma guerreira.

— Por favor, Ciara.

— Gostaria de dizer que lamento muito o que aconteceu a noite passada depois da ceia. Sinto muito se as minhas ações provocaram de alguma forma o ferimento do príncipe Rodan. Não tinha qualquer intenção de lhe causar mal.

Essa parte, dirige a um ponto entre Cathra e Brondus. A declaração foi cuidadosamente elaborada e não vai ser suficiente para o príncipe. O problema é aquela palavra se. A expressão de Rodan sugere que gostaria de saltar por cima da mesa e causar-lhe mal. Não que fosse longe se o tentasse. Ela defender-se-á se tiver de o fazer. E tem o instrutor sénior de combate da Ilha dos Cisnes mesmo ao lado dela.

O príncipe abre a boca, mas Liobhan ainda não terminou. Fala muito depressa, antes de ele poder falar:

— Meu senhor príncipe, sinto mesmo muito. Espero que consigas perdoar-me.

Ah, aí está. Um verdadeiro pedido de desculpas, embora ela não esteja a falar a sério, mas desta vez consegue expressar o medo e hesitação de Ciara e, quando termina, inclina a cabeça num aparente ato de contrição. É uma boa representação.

Faz-se silêncio. Liobhan mantém os olhos no chão. Observo o príncipe. Observo as pessoas de nascimento nobre sentadas perto dele. Estamos todos à espera que ele aceite o pedido de desculpas; tenho a certeza que lhe atribuíram palavras para dizer. Mas ele está furioso de mais para as proferir. Já vi que género de homem é. Deve estar a pensar que isto tudo é injusto, que é tudo culpa daquela mulher e que ela não devia safar-se, que um homem da sua posição, quase um rei, não devia estar sujeito a tal flagrante injustiça, etc., etc. Não se levanta. Fulmina Liobhan com o olhar, mas ela não olha para ele.

O regente inclina-se, sussurra qualquer coisa ao ouvido do príncipe. O guarda-costas, Buach, aproxima-se mais e pousa uma mão no ombro de Rodan. Rodan pigarreia. Profere uma palavra, só uma. A sua voz está tão tensa de fúria que a palavra poderia ser qualquer coisa, mas talvez tenha dito, Aceito.

— Obrigado, senhor. — Brondus é rápido a presumir isso mesmo. — Este assunto está concluído então. Ciara, senhor Art, podem regressar aos vossos lugares. Não haverá mais discussão; terminou. Isto aplica-se a todos os membros desta casa, a pedido de Lorde Cathra. Não deverá tornar-se tema de mexericos. Obrigado pela vossa atenção.

Antes de o conselheiro acabar de falar, Rodan já se levantou do seu lugar e avançou a passos largos para a porta mais próxima, com o guarda logo atrás. Os que se encontram na mesa de honra estão habituados aos costumes da corte; nenhum deles vira a cabeça para olhar. Nenhum deles ergue uma sobrancelha ou permite que surja algum sorriso sardónico.

Liobhan volta para junto das suas amigas. Archu desaparece entre a multidão. Eu bebo a minha cerveja e tenho pensamentos sombrios sobre o futuro de Breifne.

Brondus está outra vez a falar:

— Foi um dia difícil para muitos de vós. Alguns quererão retirar-se mais cedo; outros poderão sentir-se mais felizes com companhia durante mais algum tempo. Lorde Cathra concordou que deveríamos ter um pouco mais de música para os que desejem ouvi-la. Talvez também um pouco de dança. Amanhã sepultaremos os nossos corajosos homens. Esta noite recordaremos as suas vidas, não com lágrimas mas com celebração.

Dança. Bizarro. Se eu morrer na batalha, duvido que queira um monte de pessoas a pular todas contentes sobre o meu túmulo, por assim dizer. Mas quando a banda começa a tocar uma melodia animada, é evidente que muitas destas pessoas querem pôr de lado as coisas más e divertir-se durante algum tempo. Recordo que tenho de dançar três vezes com Liobhan antes do solstício de verão, o que será mais ou menos de três em três noites. Nem o meu corpo nem a minha mente estão com disposição para danças e ela tem o tornozelo ligado. Mas um guerreiro da Ilha dos Cisnes tem de estar pronto para tudo. E tenho mesmo de estar pronto, porque, quando as pessoas se levantam, procuram pares e começam a encher o espaço livre entre as mesas, avisto Rodan a regressar por aquela porta e a avançar direito a Liobhan. Seja o que for que está a planear, não se pode permitir que aconteça.

Consigo lá chegar antes dele. Faço uma vénia desajeitada e estendo a mão para ela. Não lhe posso fazer nenhum tipo de aviso, mas o rosto dela mostra-me que vê o príncipe a aproximar-se atrás de mim. Liobhan levanta-se, pega na minha mão e avança para a zona da dança comigo. Formamos logo um grupo com três outros pares. Nem Rodan irromperia através dos dançarinos e faria uma cena, pois não?

Enquanto rodamos e trocamos de par, depois voltamos a rodar e fazemos o diagrama do oito, tento ver onde está o homem. Ah; não muito longe, à margem, a olhar para nós. Buach está a seu lado, com toda a probabilidade com instruções para o manter longe de problemas. Por Dagda, o que é Rodan, um futuro rei ou um fedelho mimado que grita e esbraceja quando não consegue o que quer?

— Podias pelo menos fingir que estás a gostar disto — murmura Liobhan. — Tens dois tornozelos bons para dançar.

Afixo um sorriso no rosto e faço-a girar debaixo do meu braço.

— Disseste que poderias pisar-me os pés — lembra-me ela. — Parece que mentiste.

Sou mudo; não posso proferir uma palavra. Pego nas mãos dela e ergo-as para formar um arco através do qual os outros dançarinos podem passar, aos pares. O nosso arco é o mais alto da pista de dança.

— Então — diz Liobhan — sei que te chamas Nessan. Eu chamo-me Ciara. — Há outros pares muito próximos; ela está a desempenhar o seu papel. — Ouvi dizer que és muito bom com cavalos.

Quando tenho uma mão livre, faço um gesto para indicar que não consigo falar. Depois, tento designar uma pergunta. Aponto para ela, depois para a banda e depois ergo as sobrancelhas. Já vejo Archu; está sentado perto dos músicos.

— Esta noite não — retorque Liobhan. — O nosso harpista está ausente durante alguns dias. Juntaremos forças com a outra banda; talvez ensaiemos juntos amanhã.

Consigo acenar com a cabeça e depois os passos de dança tornam-se mais complicados e concentro-me para os acompanhar. Fico, no entanto, de olho no miserável Rodan, que não se mexeu, embora agora não tenha apenas o seu guarda-costas ao lado mas também um dos guardas de Cathra. Se disseram ao príncipe como se comportar esta noite, ele não estava a ouvir.

Outra pessoa reparou nele: Archu. Nós estamos presos no sítio onde estamos devido à natureza desta dança; temos de ficar com o nosso grupo de quatro pares. Para voltar para o seu lugar junto das amigas, Liobhan terá de passar perto do príncipe. Não a quero perto de um homem com aquela expressão no rosto. Não que ela não conseguisse derrubá-lo com uma mão atada atrás das costas. Mas Ciara não pode fazer isso.

A dança termina com um ziguezaguear final dos quatro pares. Com os meus olhos, faço saber a Liobhan para onde vamos; ela responde com um aceno mínimo de cabeça. Vamos direitos a Archu e ela senta-se ao lado dele. Eu desapareço na multidão. Assim, dancei uma vez com ela. Não lhe pisei os pés. Se não fosse por causa daquele idiota, quase poderia ter-me divertido. Nunca pensei dizer uma coisa destas. O dia longo e estranho deve ter-me perturbado o juízo.

O que acontece a seguir surpreende-me de verdade. Estou a tentar manter-me nas sombras. Não dançarei com mais ninguém, por que o faria?, embora uma das criadas se aproxime de mim com um pedido risonho quando a música começa de novo. As amigas dela devem tê-la empurrado. Por que alguém quereria dançar com um moço de estrebaria mudo? Abano a cabeça, tento parecer envergonhado, recuo para mais longe. A rapariga vai-se embora. Mas Liobhan continua a dançar, com o tornozelo dorido ou não. Um par atrás do outro vem pedir-lhe para dançar, todos eles rápidos o suficiente para não darem oportunidade a Rodan de se aproximar. Primeiro é o conselheiro de Tassach, o homem que estava atrás dele na mesa. Depois o guarda-costas que não está de serviço, Garbh, que já dançou antes com Liobhan. O príncipe não parece nada satisfeito com aquilo, sobretudo porque Liobhan está agora com um ar bastante feliz, talvez satisfeita por ter um par que é suficientemente alto para ela. Um dos guardas do portão convida-a a seguir e depois um dos homens de armas.

Será algum tipo de conspiração? Será uma mensagem para o príncipe, não com palavras, mas ações, de que os que conhecem Ciara acreditariam na sua palavra e não na de Rodan, embora seja o futuro rei? Brondus fez muito bem quando lhes disse para não haver mexericos. A história deve ter-se espalhado na mesma, com toda a probabilidade com muitas variantes. As criadas da casa são tão invisíveis como os moços de estrebaria. As pessoas ouvem coisas. Só espero que os homens que foram corajosos o suficiente para convidar Liobhan esta noite não sejam castigados por isso.

— Rapariga bonita aquela — comenta um dos meus colegas de trabalho, observando enquanto Liobhan e o seu homem de armas juntam as mãos e rodopiam, a sorrir.

Emito um grunhido de concordância, a pensar como vai ela sair daqui em segurança e voltar para os alojamentos das mulheres. E como vai sobreviver aos dias até à véspera do solstício de verão. Precisa de um guarda-costas.

A dança termina. O par de Liobhan acompanha-a até ao seu lugar junto de Archu. Os nobres estão a sair da mesa de honra, a desejar boa-noite uns aos outros, a aceitar as suas capas das mãos dos criados e a sair. Rodan não vai. Ainda está ali no meio, a discutir com os guarda-costas, ao que parece. Lorde Cathra aproxima-se deles. Atrás dele está um homem vestido com as vestes castanhas de um homem de leis. Não ouço nada do que eles dizem e não posso fixá-los muito sem chamar a atenção. Mas o príncipe capitula. Deixa que o escoltem para fora do salão e, espero, até aos seus aposentos. Illann avisa-me, com um sacão de cabeça, que está na altura de irmos dormir também. Presumo que Archu acompanhe Liobhan até aos aposentos das mulheres. Quanto ao dia de amanhã e ao dia seguinte e a todos os dias até à véspera do solstício de verão, duvido da sua capacidade de se manter afastada de problemas. Portou-se bem esta noite. Quanto a esses homens que se levantaram para a apoiar, foi um belo gesto. Mas só poderá causar mais dificuldades. Este príncipe pode perder as estribeiras com uma ninharia. Pode ficar consumido de fúria por causa de uma coisa de nada. Não ficará pior quando vir a sua gente começar a virar-se contra ele? Nunca será capaz de entender que tudo isto é obra sua.

Quando Illann e eu voltamos para as cavalariças, recordo um jovem cão de caça, talvez com um ano, que chegou ao salão do meu pai com um chefe de clã que estava de visita. A criatura atirava-se, rosnava e espumava contra todos os outros cães do sítio, até a minha Snow, que era a mais calma e gentil das criaturas. O sujeito castigava o cão com socos, com puxões bruscos da corrente que o prendia, com palavras proferidas com crueldade. O cão tinha medo. Estava sempre aterrorizado, sem saber o que iria acontecer a seguir, sem saber por que estava a ser maltratado, não compreendendo o que tinha feito de errado.

Tanto quanto sei, ninguém anda a bater no príncipe de Breifne. Não ousariam. Talvez Rodan seja apenas naturalmente estúpido, colérico e mal-educado. Mas pergunto a mim mesmo se o que Loman disse nas cavalariças estaria correto. As súbitas explosões do príncipe, a sua surdez aos bons conselhos, as suas decisões loucas poderão todas ter uma causa: medo da tarefa que tem pela frente, uma tarefa que, lá no fundo, sabe que não tem capacidade para desempenhar. Rodan morre de medo de se tornar rei.


Capítulo 27

LIOBHAN

Durmo mal, por mais cansada que esteja. Brocc, a rainha das fadas, o Outro Mundo, a harpa, é tudo demasiado. Depois há Rodan e o que aconteceu a noite passada. Instiguei qualquer coisa e isso põe-me nervosa.

Pensava que podíamos realizar esta missão. Pensava que tínhamos em nós o que era necessário. Agora estou a começar a duvidar e isso não é bom.

Quando vejo Archu avançar na minha direção depois do pequeno-almoço, o meu coração afunda-se. Está com ar invulgarmente sombrio. Contei-lhe o essencial da questão do que aconteceu na floresta mal Dau e eu voltámos. Por esta altura, já deve ter dado as más notícias ao regente. Ele espera até que as minhas companheiras saiam da mesa e depois senta-se ao meu lado.

— Temos uma reunião com Lorde Cathra e os seus conselheiros. Chamar-nos-ão quando estiverem prontos. O irmão Marcán e o irmão Farannán, o bardo-mor, também estarão presentes.

— Temos — repito, a sentir-me entorpecida. — Depois do episódio da noite passada, estou surpreendida por algum deles me querer ver durante mais tempo do que é necessário.

— Quando falei com o regente a noite passada, só lhe dei uma explicação muito breve sobre o que aconteceu. — Está a falar muito baixinho; aqui e ali, as pessoas que servem à mesa ainda estão a tirar canecas e pratos. — Se tentar repetir a história invulgar que me contaste, poderei não acertar nos pormenores.

Que parvoíce completa! Claro que ele não iria dizer nada mal. Isto é um castigo por ter partido sozinha. Ou talvez seja um teste.

— Lembras-te do último conselho a que fui contigo? Quando eles agiram como se eu não existisse?

Archu esboça um sorriso glacial.

— Desta vez estarão muito conscientes da tua presença. A história é estranha. É melhor que não a recebam em segunda mão. A presença dos druidas poderá ajudar-te; podem achar a tua história mais fácil de aceitar do que Cathra ou os seus conselheiros. Mas vão pressionar-te para revelares mais coisas. Não os podes censurar por isso. Há tanta coisa que depende disto.

Isso significa que o Archu reconhece o envolvimento de algo misterioso? Não lhe disse que tinha ido ao Outro Mundo. Não lhe disse nada sobre uma rainha das fadas e uma legião de seres com aspecto esquisito. Não lhe disse por que estavam a reter Brocc nem por que razão eu receava por ele. Dau terá dito alguma coisa a Illann? Pensei que mantivesse a sua palavra.

— Terão perguntas — digo. — Mais do que tu. E eu não poderei responder à maioria. Não porque não saiba as respostas, mas porque fiz uma promessa de não falar de... certos assuntos. — E percebo, quando digo isto, que esse é o tipo de equilíbrio na corda bamba que um espião deve conseguir manter com perícia e confiança. Pergunto-me se a inquietação constante que nos embrulha o estômago é uma coisa a que nos acostumemos.

— Diz a verdade até onde possas — retorque Archu. — Se tens de guardar partes para ti, então fá-lo. Não deixes que os druidas te levem a revelar o que deve ser mantido em segredo. Não percas o sangue-frio. Se ficares encravada, responde como Ciara responderia, de repente envergonhada e sem palavras, esmagada pela presença de tantos homens poderosos. — A minha expressão deve ser incrível, pois traz-lhe um breve sorriso ao rosto. — Agora vai e mantém-te ocupada durante algum tempo, mas não te afastes. Quando chegar a hora, alguém irá buscar-te.

Antes de ontem, poderia ter utilizado o tempo para praticar a flauta. Mas com as tarefas estúpidas que tenho de realizar, não me posso dar ao luxo de perder um instante. Tenho o pano emprestado e tenho uma agulha e linha, mas não sei cortar os pedaços para fazer uma boneca, nem como montá-los. E não devia ter roupas de algum tipo? Vou precisar de um tipo diferente de pano para isso. Penso no animal de brinquedo tão amado de Aislinn. Vou precisar de lã para bordar as feições.

Parece tudo tão errado. Uma audiência ontem, um conselho hoje, um espião não deve chamar a atenção para si e eu estou a fazer isso. As minhas hipóteses de ficar na Ilha dos Cisnes estão a reduzir-se a nada. E se eu voltar à porta de Eirne e esta não se abrir? E se me deixarem entrar e depois se rirem na minha cara? Harpa, que harpa?

Preciso de uma dose de simples bom senso e sei onde a posso conseguir, bem como ajuda prática. Dirijo-me à zona das lavagens, onde Dana e Grainne estão a torcer coisas e duas das outras mulheres estão a estender roupas por cima dos arbustos para secar ao sol. Banva está na mesa lá dentro, ocupada com a sua agulha.

— Ciara! Bem-vinda! — O sorriso de Dana é caloroso. — Apetece-te carregar um ou dois baldes?

— Agora não posso, mas prometo ajudar mais tarde. Estou à espera de ser chamada para um... uma reunião. Preciso de conselhos. Conselhos de costura.

Dana sacode a cabeça na direção de Banva.

— Sabes a quem pedir. Estás a planear fazer tu a tua saia da próxima vez, é?

— Nada disso. Preciso de fazer uma boneca.

Aquilo silencia-as, mas não por muito tempo.

— Não para o teu filho, presumo — diz Grainne —, a não ser que as coisas entre ti e aquele lindo moço de estrebaria tenham avançado mais depressa do que deveriam.

Não é que enrubesço? As minhas faces estão quentes.

— Para uma amiga — replico.

— Traz cá o teu pano — pede Banva. — Ajudo-te a cortar.

É complicado explicar que tenho de fazer tudo sozinha, mas digo-lhe que é um desafio pessoal, quero fazer uma coisa que nunca tentei antes. Afinal o pano que Juniper me deu não é de facto apropriado. Banva diz que será muito difícil bordá-lo, mas pode ser usado para a roupa. O que significa que esta boneca vai ser vestida de um cinzento-azulado apagado, mas não importa. Tudo o que preciso é de uma cabeça com olhos, para poder ver o futuro de Breifne. Pelas bragas de Morrigan! Nem sei o que isso significa. Uma boneca a adivinhar o futuro? Sinto uma pontada de saudades de casa e fico surpreendida. A minha mãe entenderia o que é isto tudo. É perita a resolver quebra-cabeças. E conhece a magia do lar. Os meus instintos dizem-me que isto é as duas coisas.

Banva orienta-me na organização do trabalho: tamanho, proporções, lã não cardada para o enchimento, roupas simples, lã de bordar para o cabelo; e mostra-me, com um bocado de carvão num pedaço de casca de bétula, que forma as peças precisam de ter. Cabeça e corpo numa só. Braços e pernas feitos em separado e cosidos depois, o que significa que a boneca pode ser colocada em diferentes posições. Confirma se sou competente nos pontos de costura básica e empresta-me uma faca especial para cortar o pano com precisão e uma vara com marcações para garantir que tudo se vai encaixar. Também uma prancha muito usada em cima da qual trabalhar, para não estragar o tampo da mesa. É tudo mais complicado do que eu esperava e pergunto a mim mesma outra vez quem será Wolfie, criador da adorada criatura de Aislinn.

O tecido que Banva me dá para o corpo é um linho creme de boa qualidade, que ela diz ter sobrado da túnica de uma dama. Corto-o com cuidado, segundo as instruções, visto que a tira de pano tem apenas tamanho suficiente para uma boneca de proporções modestas. Quando acabo de cortar a última peça, chega um serviçal com uma mensagem de Archu. Tenho de ir com ele à torre, já.

Banva descobre um cesto, mete lá o meu trabalho e promete guardá-lo em segurança até eu voltar. Ela e as outras encontrarão lã de bordar para as feições e o cabelo e desenharão alguns modelos para a roupa.

— Mas não cortem nada nem cosam — aviso-a. — Isto tem de ser tudo obra minha.

— Cabelo de que cor? — pergunta Grainne com um sorriso. — Dourado como o do rapaz mudo? Ruivo como o teu? Ou de um castanho vulgar?

Faço-lhe uma careta e sigo atrás do mensageiro. Enquanto caminhamos, imagino a reunião. Cathra. Brondus. O hostil e desagradável Bress. E dois druidas seniores. Isto pode correr muito, muito mal. Recordo-me das palavras de Dau: Mantém a cabeça erguida. Diz a verdade. Não mostres que estás furiosa. É um bom conselho. O problema é que não posso contar toda a verdade e não é provável que a minha meia história vaga inspire confiança. Posso pelo menos garantir que não minto. Endireito os ombros, ergo o queixo e inspiro fundo algumas vezes para me acalmar. Sou uma guerreira da Ilha dos Cisnes. Consigo fazer isto.

A reunião começa mal. Chego tarde porque, no caminho, vejo Aislinn sentada do lado de fora da horta com as costas apoiadas no muro de pedra solta e os braços em volta de Cliodhna. Está sozinha. A forma como está arqueada mostra-me que há qualquer coisa errada. Ela ouve os nossos passos e ergue a cabeça, o rosto acabrunhado.

— Para — digo ao mensageiro. — Espera, por favor. Não demoro muito.

Ele protesta, mas eu já estou a avançar para a criança. Agacho-me ao lado dela e, um instante depois, ela atira-se nos meus braços. Todo o seu corpo é sacudido por soluços. Como posso dizer o que planeava dizer, que voltarei mais tarde e que faremos alguma coisa juntas?

— O que se passa, Aislinn?

Está demasiado perturbada para conseguir falar como deve ser. Qualquer coisa a ver com a flauta. E qualquer coisa sobre querer ir ficar com alguém e que não pode ir por causa de Wolfie. Está tudo baralhado e não posso pressioná-la para explicar melhor.

— Onde estavas? — lamenta-se. — Procurei por ti o dia todo e não estavas em sítio nenhum!

O mensageiro está a franzir o sobrolho. Tenho de ir.

— Às vezes estou ocupada — explico a Aislinn. — E agora também não posso ficar. Mas mais tarde conto-te o meu projeto secreto.

Isto funciona como eu tinha esperança que funcionasse. Aislinn senta-se para trás e esfrega as faces.

— Que projeto secreto?

Baixo a voz para um sussurro.

— Segredo para toda a gente, Aislinn. Nem uma palavra a ninguém. Consegues fazer isso?

Ela acena, solene, com a cabeça, as faces ainda molhadas.

— Tenho de ir — digo, lançando uma olhadela ao mensageiro que parece a um passo de me agarrar e arrastar até à torre. — Há pessoas à minha espera. Mas procuro-te depois e conto-te tudo.

— Não vás! Por favor! — Parece assustada. Como posso afastar-me?

— Senhora Ciara — diz o serviçal, a tentar controlar-se —, vamos chegar atrasados.

— Onde está Máire? — pergunto à criança. — Quem está a tomar conta de ti?

— Ninguém. Máire está doente. Tem uma grande pisadura e um lábio cortado. Está sempre a chorar.

— Senhora Ciara!

— Digo-te uma coisa — sussurro. — Depois da minha reunião, venho buscar-te. Podias esperar por mim aqui ou no teu lugar especial lá em cima na árvore.

Aislinn assente, muda.

— E enquanto esperas, pensa na melhor cor de cabelo para uma boneca.

— Está bem.

Levanta-se e sem proferir outra palavra precipita-se a correr pela ladeira relvada em direção ao grande carvalho, ainda a agarrar o seu brinquedo. Eu gaguejo um pedido de desculpas ao meu acompanhante, mas ele não liga, avança a passos largos, de rosto sombrio. O que é justo, visto que se calhar lhe arranjei problemas, tal como para mim também.

Na câmara do conselho estão à nossa espera. Lorde Cathra está impassível; o senhor Brondus acena-me num cumprimento cortês; Bress parece tão frio como sempre, possivelmente mais; o irmão Marcán não me dispensa um olhar. O bardo-mor é mais novo do que Marcán; talvez da mesma idade que Archu. Reparo nas suas mãos belas de dedos compridos antes de atentar na sua expressão sombria. Quem me dera estar mais calma. Mas estou cansada, estou zangada, estou preocupada e tenho absoluta certeza que tudo isso transparece no meu rosto. Archu, que é o único que está de pé, faz-me sinal para avançar. Ensaio uma vénia na direção de Lorde Cathra.

— As minhas desculpas por chegar tarde, senhor. — Não é difícil encontrar a voz de Ciara, um pouco mais aguda que o meu tom natural e muito mais hesitante. — Havia uma criança em dificuldades e parei para ajudar.

Ninguém pergunta que criança, nem que dificuldade. São homens importantes. As crianças não lhes interessam. Gostaria de poder falar enquanto tenho essa oportunidade. Gostaria de poder perguntar ao regente por que razão a filha do falecido rei é uma alminha tão infeliz e por que, em Breifne inteira, não conseguem encontrar uma ou duas pessoas simpáticas para tomar conta dela. Mas não é por isso que aqui estou.

— Então, jovem — diz Bress —, parece que te meteste outra vez em apuros e apenas um dia depois da última vez que aqui estiveste.

Estará a fazer tudo para me chatear?

— Não acredito que esteja metida em apuros esta manhã, senhor Bress. Estive fora da corte um tempo ontem, é verdade. Mas essa ausência esteve relacionada com... — Lanço uma olhadela a Lorde Cathra.

— Podes falar abertamente — intervém Brondus. — Todos aqui sabem da verdadeira razão da tua presença na corte. — Acena para o druida mais jovem. — O irmão Farannán, o bardo-mor, está connosco hoje. Chegámos ao ponto, creio, em que precisamos da sua orientação.

— Obrigada, senhor Brondus. Depreendo que devo fornecer uma explicação sobre o sítio onde estive e o que andei a fazer.

— O teu tio disse-nos que estavas relutante em fornecer-lhe pormenores — diz Bress. — Recordo-te que durante a tua estada aqui estás ao serviço de Lorde Cathra. Resta-nos muito pouco tempo até ao solstício de verão e parece que não houve nenhum progresso na missão que a vossa equipa assumiu, exceto descartar algumas das possibilidades. Parecem ter perdido um dos vossos membros pelo caminho. Dizer que o regente está descontente seria subestimar a importância disto tudo. Estamos alarmados. — O seu olhar move-se entre mim e Archu. Não gosto disso. Se alguém errou, não foi o nosso chefe de missão. — Não temos a certeza se entendes a gravidade da situação. Lorde Cathra tem de conhecer a verdade. Toda a verdade.

Sei o que gostaria de dizer. Mas não posso dizê-lo. Se quero um lugar na Ilha dos Cisnes e se não quero que nada interfira com o regresso de Brocc e com recuperar a desgraçada harpa, tenho de avançar não com botas de guerreiro mas com delicados escarpins de dança.

— Relembrarás que o meu tio não estava presente na audiência ontem de manhã, pois se encontrava longe da corte. Ainda estava ausente quando a audiência terminou. Fui para a nossa sala de ensaio junto às cavalariças, pois o senhor Brondus pensou ser melhor que me mantivesse fora do caminho de toda a gente durante algum tempo. Mas... descobri que o nosso harpista, Donal, não passara a noite nos Nemetons, mas viajara noutra direção. Donal mencionara que ia seguir uma pista, qualquer coisa a ver com um conto antigo que poderia fornecer algumas pistas. Eu estava preocupada com a sua segurança e tinha uma ideia de onde ele poderia ter ido.

— E onde era? — Bress é rápido como um raio.

Existe uma regra para espiões: se tens de contar uma mentira, aproxima-a o mais possível da verdade. Assim, é mais provável que as pessoas acreditem em ti.

— Pela estrada da colina para a floresta.

Segue-se um silêncio. Parece repleto de coisas não proferidas.

— Não vive lá ninguém — diz Brondus.

Lanço uma olhadela a Archu. Se mencionar a senhora Juniper, o regente enviará guardas armados para a interrogar? Queimará a sua pequena casa?

— Isso não é exato. — O irmão Farannán tem uma voz bela, profunda e sombria. — Há a herborista. A mulher sábia. O irmão Faelan fala dos contos que ela costumava contar-lhe antes de ele entrar para a ordem.

Em cima da mesa, as mãos de Lorde Cathra apertam-se com força. O seu olhar desvia-se para Farannán e depois aparta-se com rapidez. Parece que o bardo-mor ultrapassou de alguma forma os limites.

— Posso falar, senhor? — pergunta Archu.

— Se tens alguma coisa útil a acrescentar. — Cathra está de facto descontente; a voz é fria.

— Ouvi da parte de outros viajantes, um ferrador e o seu assistente, que foram ajudados por essa pessoa quando o rapaz foi atirado do cavalo não muito longe da casa da mulher sábia. Ela cuidou dos ferimentos dele e abrigou-o durante a noite. Se Donal estava à procura de um conto em particular, parece um lugar provável para começar, visto que parece que essa mulher é uma contadora de histórias.

O irmão Marcán sorri. Não é o sorriso de um homem feliz. Recordo-me que a Harpa dos Reis desapareceu enquanto estava à guarda dos druidas. Como seu líder, poderá ser considerado responsável.

— Visto que o vosso harpista tem visitado os Nemetons quase diariamente — diz —, com certeza que esse seria o local ideal para começar. O que pode uma curandeira local saber que seja desconhecido de toda uma comunidade de irmãos instruídos como os nossos?

Tenho uma resposta para aquilo. Reescrevo-a na minha cabeça antes de falar.

— Sei muito pouco sobre druidas, irmão Marcán. Sei que a maior parte do saber que memorizam é secreto. Uma curandeira local, como lhe chamas, terá fontes diferentes. Os contos passavam de mãe para filha. Contos de... lugares invulgares. Contos que viram crescer tantas variantes ao longo dos anos que uma mulher sábia poderá conhecer uma delas e um druida poderá conhecer outra e a única coisa que têm em comum poderá ser...

— Uma harpa? — A voz de Farannán é suave como uma pena a flutuar.

Uma harpa, penso. Ou uma promessa de paz. Ou ambas. E aposto que sabes muito mais sobre isto do que estás preparado para dizer.

— Então — intervém Bress — saíste da corte e foste até à floresta à procura do teu colega músico. Não vou perguntar quem te deixou sair pelo portão, esse assunto pode ser resolvido depois. Onde foste então e o que fizeste?

Agora a parte difícil.

— Passei pela casa da contadora de histórias e caminhei alguma distância pela floresta. Pensei que podia encontrar Donal na companhia de alguma gente isolada que poderia ter alguma informação útil para ele. Passado algum tempo, encontrei-o de facto, são e salvo.

— Espera — diz Bress. — Gente? Que gente?

Conto silenciosamente até cinco.

— Devo dizer, antes de prosseguir, que estou vinculada a uma promessa solene de não falar sobre certos assuntos, embora depois do solstício de verão possa ter liberdade de explicar. Posso apenas dizer-vos que nos disseram, a mim e a Donal, que a harpa pode ser encontrada e devolvida a tempo. Mas apenas à justa. Donal não regressará à corte senão na véspera do solstício de verão.

A reunião tranquila explode em caos. Eu não estou a gritar e Archu também não: mas quase todos os outros estão. Lorde Cathra aponta um dedo ao irmão Marcán e berra:

— Vejo que estás implicado nisto! Percebi-o desde o princípio!

Bress lança-me insultos e também a Archu que, parece, é culpado do facto de eu ser jovem e estúpida e não se poder confiar em mim. E mulher. O irmão Farannán levanta-se e dirige-se para a porta.

Brondus ergue ambas as mãos.

— Senhores, irmãos, parem, imploro-vos. O nosso problema não será resolvido desta forma. Sentem-se de novo, por favor. Senhor? Irmão Farannán? Obrigado. A senhora Ciara não tem culpa que nos encontremos nesta situação difícil. Posso mesmo relembrar-vos que ela acabou de nos dizer que tudo poderá estar bem? É uma boa notícia.

— O que eu entendo — diz o regente — é que contratei esta equipa para encontrar o instrumento com rapidez e discrição e que, seja lá o que for que Ciara nos possa ter dito, não forneceu nenhuma prova de progressos e o senhor Art também não. Há muito pouco tempo. Qual é a probabilidade de a harpa voltar às nossas mãos no dia do solstício de verão?

— Não estou a mentir, senhor. — Não consigo evitar que o meu tom de voz seja gelado. — Se eu contasse falsidades sobre uma coisa tão importante terias justificação para duvidar de mim. Vim na equipa que contrataste. Estou a fazer o meu trabalho. Se queres a harpa de volta a tempo, terás de confiar em mim, a menos que outra pessoa esteja em posição de a encontrar para ti nos próximos dias. Acredita, por favor, que se te der mais pormenores nos negarão a oportunidade de trazer o instrumento de volta.

Farannán está a fitar-me com atenção.

— Como, pergunto — murmura —, quem tem a harpa pode saber se quebras essa promessa de silêncio?

— Saberão.

Ele é o bardo-mor dos druidas. Deve fazer ideia de que tipo de gente me exigiria uma promessa dessas. Ergo bem alto a cabeça e fito-o a direito nos olhos. Com certeza que ele adivinha a verdade, ou parte dela. Não pode pressionar-me mais sem arriscar a harpa. Mas... e se o Farannán está envolvido nisto? Por Dagda. Por que o bardo-mor quereria que a harpa desaparecesse? Para impedir Rodan de se tornar rei? Mas não havendo harpa isso significa que nenhum rei será aceite. Não havendo harpa, significa que Breifne mergulhará na discórdia. Na melhor das hipóteses, significa que a regência se arrastará, obviamente com Cathra infeliz e reticente e Rodan em nenhum estado apropriado para esperar com calma que chegue a sua hora. Com certeza que os druidas não podem ter feito isto. Deve ter sido o povo de Eirne. Ela disse que não podia agir no mundo humano, apenas dar um empurrão nas coisas. Não tenho a certeza de como poderia ter organizado o desaparecimento da harpa sem infringir essa regra. Mas parece que tem gente fora da floresta. Os espiões que mencionou. O povo dela não se encontra todo atrás daquela parede. Talvez tivesse surgido uma oportunidade e eles aproveitaram-na.

Agora está a cumprir as regras e a usar os humanos para fazer o trabalho dela no mundo exterior. Os humanos, neste caso, sou eu e Brocc. Ela não confia nestes homens de poder, sinto uma certa compreensão por essa atitude, e a lei antiga significa que não pode vir até cá dizer-lhes como quer que as coisas mudem. Por isso está a atrasar o retorno da harpa até ao último momento para os impedir de se intrometerem. Para os impedir de atrapalhar o que quer que deseja que aconteça no solstício de verão. Não estou a ver o que possa sobrevir, exceto o ritual acontecer como planeado e Rodan tornar-se rei. O que significaria que completávamos a nossa missão com êxito. Mas ela deve ter outra coisa qualquer em mente, ou tudo isto é inútil.

— Ciara?

Parece que não ouvi uma pergunta. Não me importo. Tenho as minhas perguntas.

— Irmão Farannán, há uma coisa que eu não entendo. Sei que Donal teve o privilégio de poder entrar nos Nemetons para trabalhar com alguns dos vossos jovens músicos. Mas... se tanto tu como o irmão Marcán sabiam do verdadeiro motivo da sua presença, por que não facilitaram que ele falasse com alguns dos druidas seniores? Ou obtivesse respostas sobre as questões práticas da harpa? Ainda não sabemos como foi levada. Podias ter mostrado a Donal o local onde a guardavam, na tua qualidade de bardo-mor. Com certeza que teria sido possível fazê-lo sem provocar as suspeitas dos teus irmãos. — Estão todos a mostrar graus variados de horror quando me fitam, por isso continuo muito depressa antes que alguém me possa calar. — Se este assunto é tão vital, por que ninguém está preparado para falar? A minha recusa em contar-vos algumas coisas é vista como uma afronta. Contudo, toda a gente parece aceitar que vocês façam tal e qual a mesma coisa.

Ninguém fala. As palavras de Dau ecoam na minha mente. Mantém a cabeça erguida. Diz a verdade.

— O meu silêncio pode trazer a harpa de volta — digo. — Qual é o propósito do vosso silêncio?

Farannán submete-me a um longo olhar. Não faço ideia do que está a pensar. A câmara está repleta de tensão, mas ainda ninguém fala.

— Disseste-nos que tinhas feito uma promessa de não revelar certos assuntos — diz por fim o bardo-mor. O seu tom é, de modo louvável, equilibrado. — Poder-se-ia dizer que a minha promessa foi a mesma. Os votos que fazemos quando entramos na ordem incluem certas restrições. O que podemos dizer; onde podemos ir; que informação podemos partilhar e com quem. Pensas bem, para uma mulher. Tenho a certeza que consegues juntar as peças deste quebra-cabeças sem a minha ajuda.

— Tempo, tempo — murmura Lorde Cathra. — Não há tempo! Se não agirmos antes da véspera do solstício de verão e nos virmos sem a harpa, o que fazemos? Estão à espera que eu enfrente uma grande multidão, com o herdeiro do trono ao lado, e explique cortesmente que o ritual não pode prosseguir?

Os homens poderosos olham uns para os outros como se perguntassem a si mesmos quem irá proferir uma solução menos ridícula do que a minha.

— Não, senhor — afirma Brondus. — Mas seria sensato prepararmo-nos para essa eventualidade, ao mesmo tempo que continuamos a ter esperança que as coisas se resolvam como Ciara sugeriu. Se a memória não me falha, a Harpa dos Reis não é um instrumento de formato impressionante. Com o devido respeito aos nossos irmãos aqui presentes, não poderíamos certificar-nos que temos preparada uma harpa de aspecto semelhante? Passaram-se vinte e cinco anos desde a última vez que este ritual aconteceu. A maioria dos presentes na cerimónia nunca terá visto a Harpa dos Reis e os que a viram poderão não se lembrar bem do seu aspecto. — Lança-me uma olhadela. — A harpa de Donal tem um bom som e é mais ou menos do mesmo tamanho. Pode ser usada, se nenhum dos druidas estiver disposto a fornecer um instrumento. — Basearias este ritual solene numa falsidade — diz o irmão Marcán. O seu tom de voz é incrédulo.

— Ou isso ou encontra-se uma desculpa para atrasar um ano a cerimónia — retorque Brondus. — Todos sabemos que algumas pessoas não ficariam muito satisfeitas com isso. E teríamos o mesmo problema no próximo solstício de verão, se a harpa não for encontrada até lá.

Lorde Cathra pousa a cabeça entre as mãos. Os dois druidas conferenciam num sussurro. Archu olha para mim, com uma sobrancelha erguida. Eu não vou dizer nada. Vou voltar lá cima na véspera do solstício de verão, com ou sem permissão. Vou trazer o meu irmão para casa. Podem trancar-me e deitar fora a chave; descobrirei uma maneira de o fazer. Se os meus instintos estão certos, traremos a Harpa dos Reis connosco. E se falei de mais, disse qual era a minha opinião de uma forma que Ciara não diria, tanto pior. Estava na altura de alguém os chamar à razão.

— Senhor? — Brondus pousa a mão no braço do regente. A gentileza daquele gesto tranquiliza-me.

Lorde Cathra ergue a cabeça.

— Não atrasarei isto mais um ano. Seria visto como um sinal de fraqueza. E se Tassach interpretasse isso como um convite para reclamar afinal o trono? Fiz uma promessa ao rei Aengus no seu leito de morte e honrarei essa promessa. O seu filho terá o trono de Breifne.

A vibrante declaração é recebida com um estranho silêncio, durante o qual ninguém olha para ninguém. As pessoas, cheias de tacto, não mencionam que o filho em questão é incapaz de governar o seu comportamento, quanto mais um reino. Mas é mais do que isso. O que me está a passar ao lado?

— Um nobre sentimento, senhor — murmura Bress. — Se bem que não em conformidade com o contexto legal que se aplica à seleção de reis. Ainda assim, Tassach podia ter apresentado a sua pretensão ao trono este ano e optou por não o fazer.

— Se quisesse o trono — intervém Brondus —, teria agido há três anos, quando as circunstâncias colocaram o príncipe Rodan como o próximo herdeiro da linhagem de Aengus. E a reivindicação de Tassach teria sido forte. As suas qualidades como líder eram, e ainda são, inegáveis. O seu apoio consistente ao rei Aengus; a governação sensata e cuidadosa do seu território; o facto de que estava em posição de assumir de imediato a coroa, ao passo que Rodan tinha na altura apenas quinze anos. Mas tornou claro na altura que não estava interessado e isso não mudou.

Estou a manter-me calada agora, a fazer o possível por não dar nas vistas. Ao meu lado, Archu está muito quieto. Sei que está a escutar com tanta atenção como eu. Será que estes homens esqueceram que estamos aqui?

— Tassach nunca quis a coroa para si — observa o irmão Marcán. — Está a jogar um jogo muito mais longo.

— Sei bem disso — diz Cathra, que recuperou a compostura e olha agora a direito para o druida-chefe. — Está a fazer pressão, de novo, para levar a criança como filha adotiva para a sua casa. Amas, tutores, tudo o que ela precisar, incluindo uma mãe adotiva na pessoa de Lady Eithne e, claro, esses dois rapazes que estão convenientemente perto em idade da filha de Aengus. Tassach diz companheiros de brincadeira. Mas Tassach pensa numa futura mulher para o seu filho mais velho, com o tempo uma ninhada de filhos e uma nova linha de sucessão que misture o sangue de Aengus com o seu. E o que representaria isso senão o enfraquecimento da linhagem de Aengus? O que seria senão uma traição à minha promessa solene de ver um filho do nosso falecido rei coroado em seu lugar e, a seu tempo, os seus filhos a sucederem-lhe? Não podemos aceitar isto. Não podemos permiti-lo. Rodan tem de ser coroado este solstício de verão. Não tolerarei atrasos.

Quando a câmara se enche de novo de vozes, penso naquela conversa estranha com Aislinn. Uma situação de adoção, devia ser disso que ela estava a falar por entre soluços. Estava tudo baralhado, mas tenho a certeza que ela disse qualquer coisa sobre ir embora e sobre o tio Tassach e Wolfie e que não queria ir. Mas não deveria ficar encantada por sair deste sítio e tornar-se filha adotiva na casa do tio Tassach, com amas, tutores e outras crianças da sua idade? Sem Máire? Sem Rodan? Eu teria pensado que ela ficaria muito contente com essa perspetiva. Embora pareça que o regente, que deve fazer as vezes de pai tanto para ela como para Rodan, não está a tencionar deixar partir esta valiosa carta de jogo. Maldição, quem gostaria de ser uma menina numa casa real?

Enquanto eles discutem entre si, tento entender uma coisa que Brondus disse. Que Tassach teve oportunidade de reivindicar o trono há três anos e optou por não o fazer, por isso Cathra teve de continuar como regente até Rodan completar dezoito anos. Mas o velho rei, Aengus, morreu há seis anos, não foi? Aislinn nunca conheceu o pai. O trono teria sido contestado no primeiro solstício após a morte de Aengus. Segundo a lei dos reis, qualquer homem com mais de dezoito anos e qualquer vestígio de sangue real seria elegível para reivindicar o trono. A escolha seria feita pelos nobres de Breifne reunidos e, presumo, selada no ritual do solstício de verão. Parece que ninguém fez qualquer reivindicação forte na altura da morte de Aengus; talvez não houvesse pretendentes. Assim, Cathra avançou como regente. Rodan, o filho único do falecido rei, teria sido um rapaz de doze anos. Alguém contestou a regência três anos depois disso e, se não foi Tassach, então quem? Ninguém disse uma palavra sobre isto. Talvez Archu saiba. Não que isso interesse agora. Parece que o único homem que quer o trabalho é Rodan.

Após um debate considerável, durante o qual mantenho a boca fechada, Lorde Cathra pede a Archu que dê a harpa de Donal aos druidas, para ser colocada num sítio seguro até ao solstício de verão e apresentada apenas se a Harpa dos Reis não for devolvida a tempo. Os druidas organizarão todos os aspectos do ritual, incluindo a música e a movimentação fora e dentro do recinto da cerimónia, por isso ter uma harpa substituta parece bastante apropriado, embora eu não consiga deixar de me perguntar se eles conseguirão perdê-la também. O meu irmão nunca me perdoaria. Archu compromete-se a entregar o instrumento ao irmão Farannán antes de este voltar para os Nemetons e o bardo-mor promete que será devolvido ao seu proprietário depois do ritual. Parece tudo muito irreal; o tempo passa e fazem-se planos e eu nem consigo imaginar uma cena do ritual. Mas vai acontecer, está mais próximo e preciso de completar as estúpidas tarefas para Eirne ou perderei o controlo das coisas.

— Ciara — diz Brondus, sobressaltando-me. — Não vemos outra opção senão confiar na tua palavra e seguir o teu plano, tal como é. Faz o possível por evitar problemas entre hoje e a véspera do solstício de verão. Quando fores outra vez à floresta, não deves ir sozinha. Providenciaremos uma escolta. Pelo menos dois guardas. Temos de garantir que voltas com rapidez e em segurança à corte.

— Mas... — protesto.

— Não é assim que trabalhamos, senhor Brondus. — A voz de Archu é a de um líder; não dá azo a discussão. — Tomarei as providências necessárias para a segurança da minha equipa. E, claro, o transporte seguro da harpa, caso a tenham com eles. Seremos discretos.

A forma como Cathra e os seus conselheiros me fitam sugere que duvidam da minha capacidade para cumprir isso, mas nenhum deles se opõe.

— Falarei mais tarde com o senhor Brondus sobre o portão — continua Archu. — Precisaremos de organizar a saída de Ciara sem dar nas vistas e depois a entrada dos dois, com o instrumento. Se tens um homem de confiança que possa estar de guarda ao portão nesse dia, seria útil.

Brondus acena com a cabeça a confirmar.

— É desnecessário dizer — diz Archu — que tanto Ciara como eu guardaremos o que ouvimos aqui só para nós. E agradecemos a vossa cooperação.

Os grandes homens estão surpreendidos; Archu tornou claro que controlamos a operação e que o fizemos desde o início. Não estão habituados a isso. Quando saímos, sinto um prazer descabido. Mas, lá por dentro, estou muito tensa a pensar em todas as coisas que podem correr mal e em tudo o que está dependente de mim.

— Inspira fundo — murmura Archu quando saímos para o pátio. — Um passo de cada vez. Foco na missão. E, pelo amor dos deuses, se há mais alguma coisa que me possas dizer em qualquer momento, por favor fá-lo. Vamos para a sala de ensaio agora. Tenho de ir buscar a harpa para o irmão Farannán. E depois disso preciso de falar contigo em particular.

Espero na sala de ensaio, a fazer exercícios na flauta e a falhar a acalmar os meus pensamentos acelerados, até que Archu regressa, depois de entregar a harpa de Brocc ao bardo-mor. Espero que Aislinn já não esteja à minha espera lá em cima no carvalho; passou algum tempo.

— Bem — diz o nosso líder de missão, sentando-se no banco e olhando para mim. — Aquele discurso não foi o que eu esperaria de Ciara. Duvido que ela desafiasse o regente, o druida-chefe e o bardo-mor, todos ao mesmo tempo. Como líder da missão, peço-te que expliques a tua decisão de o fazer, sem me consultares primeiro.

— Todos esses homens sabem que não sou Ciara. Não havia guardas presentes, mais ninguém me podia ter ouvido.

— Não é assim que fazemos este jogo. Estás no teu papel do princípio ao fim, a não ser que eu te dê permissão para fazeres o contrário. Numa casa segura, por exemplo, um lugar como a quinta de Oschu e Maen, podemos todos relaxar a nossa guarda durante algum tempo. Mas apenas quando eu o digo.

Não consigo pedir desculpa, apesar de respeitar a opinião de Archu.

— Não esqueci a regra. Assumi um risco controlado.

— Pareceu-me mais uma questão de deixar os teus sentimentos serem mais fortes do que o teu bom senso — observa Archu.

— Sim, estava furiosa. Frustrada. E preocupada com... o membro da nossa equipa. Se está em segurança, se consigo trazê-lo de volta a tempo. Se nos confiarão a harpa. Não consigo deixar de pensar que todos eles, o regente, os druidas, todos os homens influentes, sabem mais do que estão preparados para dizer. Sinto que falta uma peça do quebra-cabeças, não a harpa em si, mas outra coisa.

Archu esboça um sorriso, apesar de parecer agora abatido e exausto. Aquilo assusta-me. No conselho, ele estava com o aspecto que tem na ilha, todo ele autoconfiança e autocontrolo.

— É estranho dizeres isso — murmura. — Não és tu que possuis uma peça do quebra-cabeças e optas por não a revelar?

— Isso é diferente. Estou vinculada a uma promessa solene. Se a quebro, toda a missão se desfaz e B... Donal ficará em sério risco.

— Risco de quê?

— Não te posso dizer. Quem me dera poder. — Apetece-me dizer-lhe que me sinto sozinha e incompetente. Durante um instante, apetece-me ser Ciara, que podia atirar os braços em volta do pescoço do tio Art e ser consolada.

— Não estás sozinha — retorque Archu, lendo-me, ao que parece, os pensamentos sem nenhuma dificuldade. — Ainda tens aqui três de nós, eu e os nossos colegas lá na cavalariça. Estou a pensar que como tu e Nessan foram vistos a dançar juntos e vai saber-se que regressaram juntos já tarde, ele poderá muito bem ser a tua escolta na véspera do solstício de verão. Vocês os dois devem conseguir lidar com a maioria das situações sozinhos. E ele encontra-se em posição de levar cavalos sem atrair atenções indevidas. Aquilo foi... muito interessante. A dança, quero dizer.

— Para mim, foi uma completa surpresa. Não sabia que tinha tantos amigos na casa, ou que estariam preparados para me apoiar de forma tão pública. Lamento que tenha acontecido. Não quero ser responsável se alguém arranjar problemas. Mas ao mesmo tempo não lamento.

— Hum. Talvez seja melhor eu não fazer nenhum comentário. — Está a sorrir, só um pouco.

— Tio Art?

— Sim?

— O que queriam eles dizer sobre estarem à espera que Tassach reivindicasse o trono há três anos, antes de Rodan ser maior de idade? Pelos meus cálculos, isso foi três anos depois da morte do velho rei. Não deve ter sido por Cathra querer abdicar da regência. Deixou bem claro que tinha prometido ao rei Aengus que o trono iria para o herdeiro de sangue mais próximo, isto é, o filho de Aengus. Sempre que parecia que íamos falar daquilo, eu sentia um frio na sala, como se todos de repente se tornassem inimigos.

— Ouvi um ou dois boatos enquanto estive fora — diz Archu. — Que o rei poderia ter tido uma ligação com outra mulher que não a esposa; que poderia haver um filho dessa união. Mas a implicação era que esse filho não podia ser considerado para o trono de Breifne. Por que razão, não sei.

— Porque é uma rapariga? Estás a referir-te a Aislinn?

— Aislinn é filha legítima de Aengus e da sua rainha. Irmã de Rodan. É isso que a torna tão valiosa para o futuro, pobre criança. Não pode ser rainha de direito próprio. Mas a lei permite que um filho ilegítimo reivindique o trono. Não investiguei mais; presumo que o filho em questão seja mais novo do que Rodan e que só poderia ser considerado quando se aproximasse dos dezoito anos, altura em que o seu meio-irmão já estaria estabelecido como rei.

— Supondo sempre que trazemos a harpa de volta a tempo.

— Supondo sempre isso. — Archu lança-me um olhar muito direto. — Aconteça o que acontecer, não percas de vista a missão para a qual fomos contratados. Tens um forte sentido de justiça, apesar dos teus ocasionais truques sujos no campo de combate. Aplaudo isso. Mas Cathra contratou-nos para um trabalho e é esse trabalho que faremos, mesmo que alguns aspectos nos desagradem. É uma coisa a que todos têm de se habituar se continuarem. Entendes-me?

— Sim. Mas é difícil. — Seria difícil mesmo se eu não tivesse visto a visão na taça de divinação. Quem me dera poder contar-lhe isso.

Archu fita as mãos, evitando agora os meus olhos.

— O nosso trabalho é, por natureza, difícil. Isso nunca muda. É exigente, é violento, é perigoso, pode conduzir-nos à beira do desespero. E pode levar-nos aos píncaros quando alguma coisa corre bem e temos a sensação de que toda a equipa está a trabalhar como se fosse uma só pessoa. Às vezes, temos de fazer escolhas que não faríamos se fôssemos indivíduos vulgares e não guerreiros da Ilha dos Cisnes. Às vezes, temos de correr riscos e, por vezes, eles não compensam. Assumiste um grande risco com esta ida à floresta e a opção de deixar Donal para trás. Isso dá-me voltas ao estômago, Ciara. E se o perdemos? Um instruendo de apenas dezoito anos, na sua primeira missão? Como justifico isso a Cionnaola? Aos teus pais? Como lido com isso na minha cabeça?

Ficamos sentados em silêncio, enquanto do outro lado da janela fechada passam cavalos, alguém faz tilintar baldes e o dia avança.

— Habituamo-nos a isso — prossegue Archu, endireitando-se, relaxando os ombros, parecendo mais ele. — Não fica mais fácil. Mas aprendemos a continuar a fazê-lo. Não é uma coisa para que te possamos treinar, embora o procuremos ao longo do percurso. Precisas de força. Também precisas de resiliência, como num instrumento criado para a perfeição, seja ele harpa ou lâmina.

— E resistência — digo eu.

— Isso também. Mas temos de aprender a dobrar-nos com o vento; a árvore mais forte pode ser arrancada pelas raízes pelos vendavais de inverno.

— Numa corte como esta, é mais provável que a árvore seja enfraquecida por térmitas ou doença do que caia por vontade própria. Ou seja derrubada pela queda da que está ao lado. — Ótimo, consegui fazê-lo sorrir outra vez.

— Se estiveres presente noutro conselho, vê lá se não partilhas essa ideia específica com os homens influentes desta corte. Agora tenho de ir. Vê se acatas o conselho de Brondus, Ciara. Esforça-te muito para que não reparem em ti.

— Vou tentar. Mas tenho certas tarefas para cumprir, como já expliquei. Vou tentar fazê-las sem dar nas vistas.

— Se precisares de ajuda, pede-me. Se estiveres com problemas, pede-me.

— E se não puder pedir, porque tenho de fazer tudo sozinha?

Ele olha para mim com uma expressão que o tio Art poderia oferecer a Ciara em tais circunstâncias. Nunca vi aquela suavidade nos seus olhos e talvez nunca mais a veja. É uma dádiva. Naquele momento, faz-me lembrar o meu pai.

— Então estaremos os dois a correr um risco — diz ele.


Capítulo 28

DAU

Vou acompanhar Liobhan de volta à floresta na véspera do solstício de verão. Não que Archu mo tenha dito. Ouço tudo em segunda ou terceira mão, se tiver sorte. Não posso falar em segurança com Liobhan. Não há qualquer hipótese de um encontro rápido nalgum canto isolado do jardim ou na sala de ensaio à noite. Ela está ou ocupada ou fora de alcance algures. Illann contou-me que houve um conselho difícil. Não sei o que aconteceu aí, mas até ele anda tenso, por isso não pode ser coisa boa. Nas raras ocasiões em que avisto Liobhan, sobretudo à hora das refeições e sempre na companhia de outros, ela tem uma expressão absorta, como se os seus pensamentos estivessem muito longe. Sei bem onde. À noite, é a outra banda que trata do entretenimento musical. Ainda não dançámos outra vez.

Tento não contar os dias. Tento não medir as horas entre a madrugada e o crepúsculo; tento bloquear o avanço inexorável do solstício de verão e do ritual. Tento acreditar que Liobhan tem razão quanto à questão de trazer a harpa de volta. Tento não cismar na possibilidade de poder perder o meu lugar na Ilha dos Cisnes por causa disto. Estou espantado por Archu estar preparado não só para alinhar no plano de Liobhan, mas também para ajudar. Daí eu ir ser a escolta dela e termos cavalos que vamos levar connosco para podermos chegar lá e voltar o mais rápido possível.

A casa real fervilha agora de preparativos para o ritual. Pensei que se ia realizar nos Nemetons, visto que a Harpa dos Reis está, ou devia estar, lá guardada e os druidas estão encarregues do lado cerimonial das coisas. Mas estou enganado. Illann manda-me ajudar a carregar coisas para o local do ritual, para ficar tudo preparado com muita antecedência. Acontece que a coroação de um novo rei é uma dessas raras ocasiões em que os portões para o domínio real ficam abertos durante um dia, há nisso algum tipo de significado simbólico. O ritual não se realiza nos Nemetons e não se realiza no recinto da fortaleza real. O lugar escolhido fica entre os dois, o que, sem dúvida, também é simbólico. Sob a direção do mordomo-mor de Cathra, o nosso pequeno exército de trabalhadores segue um trilho em redor da base da muralha, passa o local onde se ramifica num caminho lateral, conduzindo aos Nemetons através dos bosques. Um pouco mais adiante, chegamos a uma zona circular, parcialmente limpa, em forma de taça rasa, onde uma grande multidão de espectadores poderá sentar-se ou ficar de pé nas bordas e ver o ritual desenrolar-se no terreno plano no centro. Nós, servos, temos de arrancar as ervas daninhas, cortar e varrer a erva, colocar bancos, pendurar faixas decorativas nas árvores, construir uma plataforma no centro e por aí adiante.

A operação está menos do que bem organizada. O que devia levar um dia de trabalho no máximo, com tanta gente, é provável que se estenda a dois ou três se não adotarem uma abordagem mais ordenada. Estou em pulgas para assumir o comando. Sei como a equipa devia ser destacada. Mas não posso fazer nada. Mantenho-me em silêncio, vergo os ombros, completo uma tarefa de cada vez. Deuses, quem me dera que o solstício de verão já tivesse passado e estivéssemos na estrada de volta à Ilha dos Cisnes. Estou tão farto disto. Tão farto de ser fraco. Tão cansado de engolir as palavras. Esta missão enche-me de recordações odiadas. Apetece-me reagir, lutar, gritar tão alto que todo o lugar vibre com o som. A Ilha dos Cisnes permite-me fazer as coisas que não podia fazer quando era criança. Aqui, sou outra vez essa criança, impotente e calada.

Trabalho com perseverança. Penso em Brocc, naquele lugar atrás da parede de rocha, incapaz de voltar para aqui. Tento não pensar em palavras como feérico, Outro Mundo, magia. Tais ideias são ridículas. Não dá para acreditar que as pessoas ainda acreditem que sejam verdade. Sinto respeito por Liobhan e Brocc. São os dois corajosos e fortes. São capazes tanto como guerreiros como músicos. Mas isto... fica aquém da minha compreensão. Não posso acreditar. No entanto, não consigo encontrar outra explicação, a não ser que a Ilha dos Cisnes tenha uma organização rival: uma base secreta escondida na floresta perto do Caminho dos Corvos, albergando outra comunidade de pessoas com o seu plano para a Harpa dos Reis. É quase tão difícil de acreditar como a ideia de que fadas ou duendes roubaram a harpa.

— Aquele é o druida-chefe, o irmão Marcán — diz um dos meus colegas de trabalho, um palafreneiro que se chama Finn. Indica um homem de comprido cabelo branco e uma veste pálida um pouco manchada de erva na bainha. Pela forma como as pessoas mostram deferência pelo irmão Marcán, é óbvio que é um líder respeitado. — Conheço um daqueles rapazes — continua Finn. — O ruivo. É da minha aldeia. Os sujeitos de vestes azuis são todos noviços.

O druida de cabelo ruivo lança-nos uma olhadela, fita Finn e depois desvia com rapidez o olhar.

— Vai conversar com ele se quiseres — diz outro dos trabalhadores do nosso grupo. — Não os deixam sair muitas vezes.

— É contra as regras — retorque Finn. — Não podem confraternizar connosco, pessoas vulgares. Quando fazem os seus votos, põem de lado a sua vida passada como se nunca tivesse existido. Estou surpreendido por ver noviços aqui fora. Talvez afrouxem as regras para ocasiões especiais.

O noviço de cabelo ruivo não voltou a olhar na nossa direção. Ele e os outros jovens druidas estão a usar paus e cordel para medir a plataforma que acabámos de montar. Um deles espera que o sol surja de trás de uma nuvem e depois examina as sombras nas tábuas e faz marcas com um pedaço de carvão. Esta plataforma é onde a Harpa dos Reis será colocada para um druida a tocar no momento crucial. Foi o que nos disseram quando a construímos. Ser aceite como rei mediante a força de uma música parece primitivo e tolo. Um governante não devia ser escolhido por causa do seu potencial para governar bem e com sabedoria? Deviam considerar as suas qualidades pessoais em vez de confiar num costume antigo. Esta gente não percebe que os tempos mudam? Deixam de reconhecer isso e acabam com um rei como Rodan. Talvez ele seja o que eles merecem.

Há aqui agora mais druidas e estamos a ser empurrados do centro da zona ritual. Um noviço jovem e alto com cabelo castanho até aos ombros e um ar sério está a conversar com o líder de cabelo branco. Examinam a plataforma e olham para as sombras. Depois o homem mais novo tenta colocar um banquinho em várias posições e o irmão Marcán fá-lo sentar no banco e imitar uma pessoa a tocar harpa. Vejo a tensão nos ombros do jovem druida. Não está à vontade com todo aquele processo, mas não tem outra opção senão alinhar com aquilo. Os restantes noviços recuaram e estão a fingir ocupar-se com uma ou outra coisa. É uma pequena cena esquisita. Pode significar alguma coisa, ou não. Há qualquer coisa no homem mais jovem que atrai de facto a atenção.

— Nessan — diz Finn —, vem cá.

O nosso próximo trabalho envolve escadas e árvores e pendurar as faixas. Consigo que se perceba que não tenho medo das alturas e acabo no cimo da escada mais comprida a dar nós. Útil, visto que quando tenho um momento para olhar, tenho uma excelente visão de toda a zona ritual. E consigo ver a muralha até ao local onde Liobhan executou o seu notável salto. O que é aquele ponto vermelho, lá em cima num ramo alto?

— Toma, agarra isto — pede Finn, passando-me a ponta de uma corda, tem a tarefa de subir e descer para me passar coisas. — Mal esteja amarrada, movemos a escada para ali.

Maldição. Semicerro os olhos na direção do grande carvalho. Está alguém lá em cima? Um espião, não nosso, mas de outra pessoa qualquer? Com tantas visitas importantes na corte, é provável que haja alguns. Pode até ser que saibam de nós e da nossa missão. Embora, nesse caso, esperaram demasiado tempo para agir.

Ah! Lá está outra vez. Um faiscar de vermelho e agora um breve relance de um rosto. Não o de Liobhan; o rosto de uma criança. Desaparece com rapidez. Mas o cabelo ruivo era de certeza de Liobhan; quem mais estaria lá em cima? Mesmo agora, com a permissão de Archu para avançar com o plano, está a correr riscos desnecessários. Aquilo é muito estúpido. Mas não: não me disse que ia fazer algumas coisas estranhas, como coser e dançar comigo? Talvez trepar a árvores seja uma dessas coisas.

Movemos a escada de sítio e subo outra vez. Os meus colegas de trabalho preparam outra faixa para pendurar, esta mostrando uma árvore com um fundo pálido e símbolos druídicos em volta, uma linguagem que não entendo. Atiro a ponta da minha corda por cima de um ramo, amarro bem a coisa, não posso deixar que a faixa se solte e aterre na cabeça do príncipe Rodan a meio do ritual, e os outros ajudam-me a içar a faixa. É pesada; quatro deles seguram-na enquanto eu ajusto as fixações para garantir que fica direita sem torções nem emaranhados mesmo que haja vento. Estou a atar o último nó quando ouço vozes alteradas no recinto do ritual. Uma delas é a de Rodan.

— Por que está ele aqui? — inquire.

Não me posso dar ao luxo de parecer muito interessado. Desço com cuidado a escada. Além de Finn, que a aguenta para eu não cair, todos os meus colegas de trabalho estão a olhar para o príncipe. Encontra-se à entrada do recinto do ritual, as mãos na cintura e tem os olhos postos nos druidas. Estes ainda estão agrupados em volta da plataforma, parece que organizar bem as coisas para o ritual leva bastante tempo. Rodan tem Buach atrás dele e um dos amigos ao lado e quase parece que se estão a preparar para uma briga. Com certeza que ele não pode estar a desafiar o druida-chefe. As pessoas olham espantadas. O guarda-costas inclina-se, diz qualquer coisa a Rodan, põe-lhe uma mão no braço como se para lhe garantir que está tudo bem. Rodan sacode-o com alguma violência.

— Não me toques!

O príncipe avança. Os noviços de vestes azuis, quatro deles, ficaram muito quietos e o irmão Marcán também. Parecem figuras numa pintura. Os rostos estão virados para Rodan.

— Pelas bragas de Dagda — murmura Finn entredentes. — Alguém está ansioso por uma briga.

E vejo uma coisa curiosa. O noviço alto de cabelo castanho, o que estava a fingir tocar uma harpa, levanta-se quando Rodan se aproxima. Parece imperturbado, embora seja evidente agora que a fúria do príncipe não é contra o druida sénior, mas contra este homem muito mais novo. O noviço cumprimenta com um sorriso caloroso o príncipe que avança furioso. Faz uma vénia e depois endireita-se. Não consigo perceber as suas palavras, mas calculo que esteja a expressar uma saudação cortês.

Outra confusão à entrada e aparecem Lorde Cathra e o senhor Brondus, a caminhar muito mais depressa do que é habitual. Vem outro druida com eles, um homem de cabelo escuro vestido com uma veste creme como a de Marcán. A atenção de Rodan é desviada; ele hesita. Depois, sem que ninguém pareça dar ordens, Brondus está ao lado do príncipe a conduzi-lo com cortesia em direção ao outro lado do círculo. Vejo todos os noviços a sair com rapidez do recinto do ritual, acompanhados pelo druida de cabelo escuro. Mesmo antes de desaparecerem de vista, esse homem vira-se por um instante e dirige um olhar fulminante a Cathra. Depois desaparecem. Tudo isto aconteceu com notável rapidez. Estamos todos ali de boca aberta, a observar. Brondus, junto com o príncipe de rosto vermelho e o guarda-costas, está apenas a alguns passos de distância. Rodan parou de gritar agora que o objeto da sua fúria desapareceu, mas não é sensato o suficiente para calar a boca.

— Por que teve autorização para vir aqui? Não tem papel nenhum a desempenhar nisto!

— Senhor — murmura Brondus —, discutiremos isto quando voltarmos à torre. Demasiados ouvidos. — Lança um olhar na nossa direção.

Rodan continua a dizer fanfarronadas sobre conluios e segredos e não lhe contarem a verdade, enquanto Brondus e o regente tentam calá-lo e acalmá-lo. Quanto a nós, subalternos, continuamos a mover a escada, a desenrolar outra faixa, a fazer o possível por parecer que não conseguimos ouvir nada. Mas os meus pensamentos rodopiam. Porque naquele momento em que Rodan e o noviço alto se enfrentaram, naquele momento em que um sorriu e o outro fez uma carranca, em que um fez uma vénia cortês e o outro ergueu o queixo e mostrou um olhar furioso, vi a semelhança entre eles. Não importa que um irradie paz e luz e o outro seja só tempestade e fúria. Não importa que um tenha uma constituição esbelta e um ar erudito e o outro seja mais atarracado e musculoso. Naquele momento, vi que podiam ser irmãos.


Capítulo 29

LIOBHAN

Estou no carvalho com Aislinn e há qualquer coisa interessante a acontecer mais ao longe, depois da muralha, numa zona descoberta entre a fortaleza e a orla da floresta. Qualquer coisa com faixas. Qualquer coisa que envolve escadas e cordas e uma data de pessoas a trabalhar, incluindo uma com cabelo dourado-brilhante, espero que o moço de estrebaria mudo não se mostre muito competente.

— Já está acabado? — pergunta Aislinn. — Posso ver?

Volto a minha atenção para o saco que trouxe comigo. O boneco levou mais tempo a fazer do que eu contava, pois Aislinn tem ideias muito firmes de qual deve ser o seu aspecto. Até agora, não consegui obedecer às instruções de Archu para ficar longe dela; ela precisa de uma amiga. Mas o boneco está quase pronto agora. Abro o saco e tiro-o.

— Todo pronto, à exceção do cabelo. O que achas?

Aislinn está dividida. Quer pegar na minha criação de aspecto bastante estranho, é evidente, mas não quer pousar Cliodhna.

— Posso segurar em Cliodhna por um instante? Ou ela não gostaria?

Aislinn passa o brinquedo sem dizer uma palavra e eu dou-lhe o boneco. Insistiu que devia ser um menino, que a roupa devia ser uma veste comprida e que eu devia fazer o cinto com um fio entrançado. Queria ajudar nisso e tive de dizer que não. Fiz a cara com olhos castanhos como ela pediu e a boca que ela pediu: a sorrir um pouco, mas não demasiado. Com a cor azul-acinzentada da roupa, o boneco tem um ar ligeiramente druídico.

— Está bonito. — Aislinn inspeciona todos os aspectos do meu trabalho. Estou quase à espera que teça comentários sobre a irregularidade dos meus pontos, mas parece que vão ao encontro dos seus padrões exigentes. — Podes fazer o cabelo hoje?

— Tenho lã castanha. Mas preciso de perceber como a coso de forma firme. Para ele não ficar careca quando subir às árvores e correr por aí contigo.

— Posso ver a lã?

Procuro a meada e passo-lha. Enquanto ela a põe na cabeça do boneco para verificar se fica perfeito, a minha atenção é atraída de novo para a atividade naquela zona onde vi Dau e os outros. Há druidas ali em baixo, misturados com as pessoas vulgares. Isso não infringe as regras? Pensei que apenas os irmãos mais velhos tivessem permissão para sair dos Nemetons. Brocc disse que os noviços vestem de azul. Acho que é o irmão Marcán ali em baixo e tem vários homens vestidos de azul à sua volta, bem como um ou dois de verde. Devem ser preparativos para o ritual. É interessante que o façam fora da muralha.

Aislinn viu o que eu estou a ver. Agora o seu olhar está fixo nas figuras distantes. Todo o seu corpo está tenso.

— Presumo que seja ali que o teu irmão vai ser coroado — digo. — Estão a preparar tudo. Faixas e isso. — Aquela plataforma deve ser para os músicos druidas. E a Harpa dos Reis. Sinto-me de súbito maldisposta. — Aislinn?

Nenhuma resposta. Está a observar a zona do ritual com tanta atenção que não me ouviu. Espero um pouco e quando ela não se mexe, começo a ficar preocupada.

— Queres outra lição de flauta? Talvez hoje, mais tarde?

Oh. Agora ela está triste de novo, os ombros descaídos, a cabeça baixa. Murmura qualquer coisa, mas não consigo perceber as palavras.

— O que foi?

— Não me deixam praticar mais. Máire disse que faz muito barulho e ele disse que é ina... ina... qualquer coisa.

— Inapropriado?

— Ele disse que as senhoras não tocam flauta.

— Quem é ele?

— O meu... o meu irmão. — A voz diminuiu para quase nada. Eu devia ter cuidado para não falar de forma tão feroz, mesmo que seja isso que sinto. — Ele disse que se me ouvisse tocar outra vez, partia-a. A flauta.

— Referes-te ao príncipe Rodan?

Aislinn assente, muda.

— Aislinn, o teu irmão é indelicado contigo? Zanga-se?

Ela desce pela árvore sem dizer uma palavra. Sigo-a com mais lentidão, a amaldiçoar-me por a pressionar de mais. Mesmo que ela tivesse respondido que sim, o que podia fazer? Esta coisa toda está a transformar-se num desastre. O solstício de verão está tão, tão próximo e sinto que estamos todos a oscilar à beira da catástrofe.

Aislinn não fugiu de mim. Está na parte oca mais abaixo na árvore e, quando lá chego, já está a guardar a sua caixa especial.

— Toma — diz e estende-me uma madeixa grossa de cabelo ondulado de um castanho de carvalho.

Ao princípio não entendo. Depois olho para ela com mais atenção e vejo as pontas irregulares onde ela acabou de cortar o cabelo, mesmo à frente. Não há forma de esconder isto de Máire. Aislinn tem uma faca na sua caixa especial? Ainda estou a tentar encontrar palavras, quando alguém chama lá de baixo.

— Aislinn, onde estás? — Não é a voz de Máire, mas o tom límpido de uma criança.

— É Brion! — exclama Aislinn. De repente, os olhos estão brilhantes e há um sorriso no seu rosto. É como se o sol tivesse assomado de trás de nuvens sombrias. — Tenho de ir! — Enfia o boneco e a madeixa de cabelo nas minhas mãos, agarra Cliodhna e desaparece pela árvore abaixo.

Estou atordoada com a mudança nela. Não faço ideia de quem seja Brion, mas a sua chegada trouxe de volta a Aislinn feliz daquela tarde a tocar flauta. Devia ficar onde estou; Brondus disse-me para não dar nas vistas. Mas tenho de ver isto.

Guardo o boneco no saco. Enrolo a madeixa de cabelo e ato-a com alguma da lã para bordar. Tenho uma sensação estranhíssima em relação a isto, uma sensação que não tem nada a ver com lógica ou senso comum. Sei apenas que tenho de usar o cabelo de Aislinn para o boneco, mesmo que isso cause problemas, tanto para mim como para ela.

Quando chego ao nível do solo, ela e o seu companheiro estão sentados lado a lado no muro de pedra solta em volta do campo de pastagem dos cavalos, a conversar de uma maneira que sugere que se conhecem bem. Brion é um rapaz uns anos mais velho do que Aislinn, de cabelo claro e vestido como filho de um nobre. Não estão sozinhos no campo; um pouco mais adiante, na subida, pastam três cavalos com muito bom aspecto e, ao lado, encontram-se Lorde Tassach, uma mulher que penso seja a sua esposa e o seu conselheiro, Padraig, um dos homens que dançou comigo na noite do meu pedido de desculpas. Lanço outra vez uma olhadela a Brion e percebo que deve ser filho de Tassach. E há outro miúdo, mais novo, sentado de pernas cruzadas ao pé do muro; não o tinha visto antes.

Eles viram-me e não posso evitar uma breve conversa quando passo.

— Bom dia, senhora Ciara.

— Bom dia, senhor Padraig. Estava a fazer companhia a Aislinn.

Padraig sorri. É bastante novo para conselheiro, não deve ter mais do que uns vinte e cinco anos e os seus modos são corteses, tal como foram quando dançámos.

— Com tua licença, apresentar-te-ei a Lorde Tassach e Lady Eithne.

Não pergunto por que gostaria de fazer tal coisa. Tassach oferece um sorriso desarmante. Lady Eithne olha-me de cima a baixo.

Padraig apresenta-me, eu faço uma reverência e Tassach diz-me para não fazer tanta cerimónia.

— Considero isto uma agradável evasão — explica. — Aqui nos campos não sou chefe de clã. Sou pai de Brion e Tadhg, sou um agricultor que adora cavalos, sou o amigo de Padraig. Ficarias surpreendida se soubesses como dou valor a isso, senhora Ciara.

Está a falar a sério; percebê-lo-ia na sua voz, mesmo que ainda não soubesse que é um homem de família, sem nenhum desejo de se tornar rei por direito próprio.

— Não estou muito surpreendida, Lorde Tassach. Imagino que a chefia de um clã acarrete responsabilidades, bem como privilégios.

Ele arregala um pouco os olhos.

— É bem verdade. Qual gostarias de dominar, o primeiro ou o último?

Sobressalto-me com a pergunta e, por um instante, esqueço quem deveria ser.

— O que é isto, um teste? — pergunto.

— Por que te faria um teste? — O tom de Tassach é suave.

— Não posso imaginar, senhor. Mas de facto creio que o equilíbrio entre responsabilidades e privilégios dependeria muito do carácter e capacidades de cada chefe de clã. Avaliá-los corretamente e lidar com eles de forma adequada seria desempenhar bem o papel. Seria o mesmo, suponho, para qualquer líder. Uma abadessa. Um chefe de druidas. Um bispo. Um rei. — Cerro os punhos e ordeno a mim mesma que pare de falar. Ciara teria corado com a primeira pergunta e professado ignorância sobre o assunto.

Tassach e a mulher entreolham-se. Desconfiarão do meu propósito na corte? Saberão alguma coisa sobre a harpa? Será mentira Tassach não querer ser rei e está na realidade a planear fazer uma reivindicação no último momento?

Tassach faz um aceno de cabeça para Padraig, que vai sentar-se no muro junto das crianças.

— A jovem Aislinn fala bem de ti — diz o chefe de clã. — Creio que tens sido amiga dela.

É a abertura que eu queria, uma oportunidade para falar a alguém do comportamento de Rodan, da situação de Máire e do facto de Aislinn ser negligenciada, se calhar maltratada. Mas não conheço estas pessoas. Não sei o que querem. E sou apenas um músico itinerante.

— Não vou ficar aqui muito tempo; só até ao solstício de verão. Aislinn parece muito sozinha. Tocámos música juntas, um pouco, e fizemos algumas brincadeiras. Gostaria de ter mais tempo para passar com ela. — Não posso mencionar o acordo de adoção, visto que soube disso por Cathra. Mas posso transmitir o que Aislinn me contou. — Ela mencionou qualquer coisa sobre ir viver contigo.

Tassach e a mulher entreolham-se de novo.

— Esse era o nosso plano — diz Lady Eithne. — Um acordo de adoção, visto Aislinn ter perdido os dois progenitores. Vês como os três se dão bem juntos. — As crianças estão sentadas na erva agora, de costas para o muro, e Padraig está perto. Cliodhna está sentada entre Aislinn e Brion, a fitar o campo com os seus olhos de lã de aspecto estranhamente real. Percorre-me um arrepio. — Infelizmente — continua Eithne — até ao momento, Lorde Cathra recusou considerar essa ideia. Depois há a Aislinn. Adoraríamos tê-la em Glendarragh e tenho a certeza que ela seria feliz aí, mas qualquer sugestão de que podia vir para nossa casa por um longo período provoca uma torrente de lágrimas. Mesmo assim, continuaremos a tentar.

— Talvez ela fale contigo, Ciara — sugere Tassach. — Já ouvimos falar muito dos teus dotes na flauta e no canto e de como sobes bem às árvores. Quase tão bem como eu, creio que foi o que ela disse. Confia em ti.

— Ajudar-vos-ia se pudesse. Mas... a minha posição é embaraçosa. Ofendi o príncipe; isso é mais ou menos do conhecimento público. E disseram-me para me manter longe das pessoas. Isso incluiria Aislinn, imagino.

Tassach olha apenas para mim, as sobrancelhas erguidas.

— Não sei por que ela não quereria ir para tua casa e não lhe posso perguntar isso. Mas sei que está muitas vezes triste ou assustada. E sozinha. Penso que uma menina, mesmo numa casa nobre, pode... passar despercebida. Ser quase esquecida. E penso que uma criança dessas, pequena e temerosa, possa ser vítima de... dos que a negligenciariam e dos que a magoariam.

— Continua — pede Tassach baixinho.

— Aislinn tenta ser corajosa, mas às vezes não consegue. Há certos assuntos de que não fala, porque lhe ordenaram que não o fizesse, ou talvez a tenham ameaçado com castigos se o fizesse. Ela... ela deu-me de facto o nome de uma certa pessoa que tem sido desagradável com ela e tem... tem talvez agido de forma inapropriada em relação à ama. Mas... senhor, não posso transmitir esse nome sem arranjar problemas muito sérios. Além disso, sei que Aislinn o mencionou em segredo, na expectativa de eu o guardasse para mim. Quero ajudá-la. Mas só lhe consegui oferecer a minha amizade e mesmo isso já lhe criou dificuldades.

— Ela tocou-nos uma melodia na flauta — diz Tassach com um sorriso. — O meus rapazes perguntaram-lhe se tu os podias ensinar também e Aislinn disse-lhes que era muito difícil de aprender e que tu só ensinavas meninas.

Retribuo o sorriso.

— Voltaremos à estrada depois do solstício de verão, por isso não terei tempo de ensinar ninguém. Mas fico feliz por Aislinn ter retirado algum prazer das lições. É só uma questão de a ver como uma pessoa real, uma criança que em breve crescerá e viverá a sua vida, e garantir que possa estar em segurança, ser feliz e capaz de aprender enquanto cresce. Não deve ser assim tão difícil. — Deuses, tornei a fazê-lo. Esqueci-me que sou Ciara.

— Muito bem dito — retorque Tassach. — Uma pena que vás partir tão cedo. A criança precisa de amigos e protetores. Pessoas que a ajudem a aprender e pessoas que lhe deem segurança.

Quero muito mais do que isso para ela. Quero que ela seja capaz de viver a sua vida segundo as suas regras. Ter liberdade para casar ou não, como ela quiser. Cavalgar, lutar, velejar em barcos e ter aventuras. Ler e escrever, cantar e passear nos bosques. Sonhar. Voar.

— Sim, senhor — replico, lançando outra olhadela às crianças.

Com a ajuda de Aislinn, Cliodhna está a dar instruções balançando os braços e acenando com a cabeça. Brion, o irmão mais novo, e um Padraig com ar duvidosamente sério estão a obedecer. Estão a acrescentar pedras, uma de cada vez, a uma estrutura pequena e algo instável. Quando desaba e cai, Cliodhna leva as mãos de pano aos olhos bordados, de horror. Os rapazes explodem a rir. Aislinn gosta desta família. Confia neles. Por que tem tanta relutância em sair da corte quando Tassach lhe pode oferecer uma casa, educação, outras crianças para brincar e, acima de tudo, segurança? O que a pode estar a reter aqui?

— Espero que o regente possa ser persuadido a mudar de opinião — digo. — Com licença, tenho de ir.

Faço outra reverência desajeitada, aceno a Aislinn e depois parto o mais rápido possível. Estou a começar a ter uma sensação estranha e não gosto dela. Tassach e Rodan podem ser parentes, mas este homem não é como Rodan. Tassach é inteligente, é subtil, é observador. Se ele ou a mulher suspeitam que não sou o que pareço ser, arranjo um problema sério e para a missão também. Tenho de me esforçar mais por ser invisível. Só faltam alguns dias para me pôr a caminho e ir buscar o meu irmão. Apenas alguns dias e tudo isto terminará.


Capítulo 30

BROCC

Escrevo, canto, toco, durmo. Os pequenos trazem-me comida e bebida e consumo-a. Perdi a noção do tempo. Os dias e as noites passam e não sei quanto tempo falta até à véspera do solstício de verão, apenas que está mais próxima.

Estou a cumprir as minhas tarefas. A grandiosa canção que Eirne precisa para o seu povo está quase pronta. Cantei-lhe algumas partes, na privacidade da minha pequena casa, e ela parece bastante satisfeita. Há ainda algum trabalho a fazer na parte da harpa, para garantir que complementa na perfeição tanto a melodia como a letra. Este lugar é lindo. É pacífico. Os dias estão cheios de sol e canções de pássaros, da luz sarapintada das clareiras na floresta e do suave murmurar dos regatos. As noites são silenciosas, as únicas vozes as de corujas e outros pássaros noturnos a tratarem dos seus assuntos. Mas sempre, sempre na minha cabeça ouço o crocitar estridente do Povo Corvo e o movimento lento das suas asas e vejo um pequenino corpo partido numa poça de sangue. Os grandes braços de Verdadeiro a embalar o pequenino; o povo de Eirne a chorar. E eu, a cantar ou a entoar ou fosse lá o que fosse, libertando qualquer coisa dentro de mim que tinha estado escondida desde o dia em que nasci. Fosse o que fosse, assusta-me. Não quero fazê-lo outra vez. Mas se Eirne disse a verdade, talvez tenha. Para mim, talvez seja isso que significa ser um guerreiro.

Penso muitas vezes em Liobhan. A minha irmã inabalável. Que mulher humana de seu juízo perfeito iria querer um irmão com tal magia louca a agitar-se dentro dele? Quando confrontei o Povo Corvo, aquela parte de mim atravessou a parte humana como um incêndio através de um campo cheio de lenha seca. Foi uma força consumidora. Como posso viver a minha vida no mundo humano se aquilo pode explodir a qualquer momento? Talvez o meu sangue feérico me permita cantar um pouco melhor, tocar com um pouco mais de destreza, captar o ouvido da assistência com um pouco mais de facilidade. Ainda poderia ser um bardo nesse mundo. Mas como poderei casar, ser pai, assumir a responsabilidade de uma família? Como posso viver a vida de um homem quando tenho esta coisa dentro de mim? Como posso voltar para casa?

Ouço a voz de Liobhan na minha cabeça, clara como o dia. Mas não vamos para casa. Vamos voltar para a Ilha dos Cisnes. Não podes ter-te esquecido.

Ainda bem que ela não está aqui. Porque quero ir para casa. Quero ir para casa, para Winterfalls, para a minha mãe e o meu pai e Galen, para os lugares familiares, para Dalriada, onde há um rei que compreende o oculto e que governa com princípios de sabedoria e justiça. Um rei que pratica a misericórdia. O meu coração anseia por ir para casa. Mas não posso ir. Não só por causa de Liobhan e da missão e da Ilha dos Cisnes. Mas porque Eirne precisa de mim. O povo dela precisa de mim. Se a entendi corretamente, a sua sobrevivência depende desta canção.

Trabalho o dia todo e noite dentro. Os passarinhos visitam-me enquanto o Sol brilha, formando uma fila direita no peitoril da janela, a observar e escutar. Há uma pergunta que lhes faria, se soubesse falar a linguagem deles, de chilreios e gorjeios. Estavam nos Nemetons com Faelan e o irmão Odhar, o mestre do saber e tradições. Estavam na casinha da senhora Juniper. E estão aqui. Se pudessem comunicar com os humanos, ou com outros no reino de Eirne, estas pequenas criaturas rápidas dariam excelentes mensageiros.

Tenho outra pergunta também e é para Eirne. Uma pergunta delicada relacionada com uma coisa que ela disse quando Liobhan aqui estava. Ela disse que os seus espiões lançavam por vezes mãos à obra sozinhos. Querendo se calhar dizer que sabia que empreendiam ações diretas para alterar o curso dos acontecimentos no mundo humano, apesar de as leis antigas o proibirem. Se esses espiões fossem muito pequenos e se conseguissem voar... É uma teoria rebuscada. Como ergueriam uma harpa, mesmo que houvesse uma centena deles?

Uma batida suave na minha porta. O brilho de uma vela, vislumbrada através das portadas abertas.

— Brocc? Estás acordado?

Eirne está aqui. Não há tempo para saltar da cama, vestir à pressa as roupas, tornar-me apresentável para receber uma rainha.

— Meio acordado — respondo, enquanto me sento e ajusto o cobertor para cobrir a minha nudez. — Não preparado para visitas. Mas entra se o desejas.

— Desejo, meu bardo.

A sua veste de dormir é de um branco reluzente; reflete o luar nas suas dobras suaves. O cabelo está liberto da sua fita e cai-lhe sobre os ombros numa torrente escura. Um tremor percorre-me o corpo. Não sei o que é predominante, o desejo, a apreensão ou o frio. Esta cabana é muito pequena. Eirne pousa a sua vela acesa no seu suporte em cima da minha mesa de trabalho. Aproxima-se da minha enxerga e senta-se na beira. Oh, tão perto. Fito-a nos olhos e sinto uma onda quente de sangue no meu rosto. Com o passar do tempo, ficámos mais chegados. Acostumámo-nos a dar as mãos, a andar ou sentar com os braços dados, a passar tempo juntos, eu a trabalhar na minha canção, Eirne a observar. Trocámos até um ou dois beijos hesitantes. Mas isto...

— Vim sem aviso prévio — diz ela. O seu olhar viaja para o cobertor, que eu agarro de forma desajeitada, para que não revele partes do meu corpo que é melhor manter escondidas, sobretudo neste momento. — Deves estar com frio, meu amigo. Preferias envergar algumas peças de roupa? Eu podia virar as costas.

O seu tom é alegre. Uma covinha travessa apareceu-lhe no canto da boca. Penso numa maneira de me aquecer que não exige peças de roupa. Mas não a sugiro, por muito que queira.

— Poderá ser mais sensato — digo, sem me mexer.

— Ou eu podia dar-te isto. — Eirne tira o xaile leve que está a usar por cima da veste de dormir.

O tecido é como uma tira de nuvem macia, de um cinzento-pérola à luz das velas, com um brilho como que de estrelas meio escondidas. Inclina-se para mim, estendendo os braços para o pousar em volta dos meus ombros. Sustenho a respiração com a proximidade dela, o aroma doce, o calor do seu corpo. Embora esteja sentado muito quieto, o meu coração pula como o mais ágil dos dançarinos. A música neste momento seria O Salto de Artagan.

— Obrigado — sussurro. O xaile não pesa quase nada, mas sinto o seu calor através de todo o meu corpo. — Não é... talvez... sensato para ti estar aqui à noite, sozinha comigo.

Eirne sorri. Pega-me na mão; segura-a no seu colo. Oh, deuses, quem me dera que os homens fossem feitos de forma diferente. A minha masculinidade perfila-se; com ou sem cobertor, ela deve com certeza ver o estado em que estou.

— Só queria desejar-te boa noite — diz. — Não vou abusar da tua hospitalidade, bardo.

— Não é... é só que...

Eirne leva a minha mão aos seus lábios.

— Querido Brocc. Não te pressionaria para agires contra a tua vontade. Isso só poderia terminar em tristeza e confusão. Mas quando estiveres pronto... se desejares... então talvez...

Retiro a minha mão. Este ato simples é notavelmente difícil; vejo a consternação nos seus olhos e odeio-me. Mas não posso deixar que isto aconteça. Não posso dar um passo que seria tão... irrevogável.

— Senhora — digo —, se fosse apenas uma questão de desejar, diria que sim com prazer. Mas não posso considerar isto, esta noite ou outra noite qualquer. A véspera do solstício de verão está quase aí. — Eirne não diz nada. Está a desviar os olhos de mim agora, os braços apertados em volta de si como se as minhas palavras a tivessem magoado. Agora não é a rainha do Povo Encantado, mas a rapariga da aldeia da minha imaginação e está ferida com a minha recusa. — Se eu fizesse isto, se eu...

— Continua. — O seu tom é frio. O humor brincalhão de quando chegou desapareceu.

— Talvez eu não seja feito como os outros homens — prossigo. — Não consigo envolver-me num... num namorico, uma coisa de curta duração, doce enquanto dura, logo terminada, facilmente esquecida.

Eirne levanta-se; pega na sua vela; avança para a porta. Vira-se e fita-me nos olhos e, embora a sua expressão seja a de uma rapariga ferida, a força por baixo é inegável; é mulher e rainha.

— Oh, Brocc — diz baixinho. — Nem eu.

A porta abre-se e fecha-se e ela desaparece.


Capítulo 31

DAU

Um dos guarda-costas de Rodan, Garbh, saiu da corte, abruptamente, sem despedidas nem explicações. O que se diz nas cavalariças é que perdeu o seu lugar porque dançou com Liobhan depois do pedido de desculpas público. Esta noite, no grande salão, Rodan tem a assisti-lo Buach e um novo homem. O novo é outro homem grande. Parece um lutador. E vigilante, como um guarda pessoal deveria ser. Liobhan e eu estamos a dançar juntos, a segunda das nossas três vezes, e vejo-o e a Rodan a olhar na nossa direção e depois a trocar algumas palavras.

É uma dança lenta. A melodia é doce e triste. Liobhan tem as suas mãos nos meus ombros; as minhas estão na cintura dela. Ela tem o cabelo apanhado de lado, mas solto nas costas. O ruivo-vivo é suavizado para dourado à luz de muitas velas dispostas em volta do salão. Entendo por que razão as pessoas olham para ela. Só desejava que Rodan não olhasse. Ainda o está a fazer, o queixo apoiado na mão.

— Para de olhar — sibila Liobhan. — Para de fazeres um ar feroz.

Não posso responder. Mas preciso mesmo de falar com ela. Não tive oportunidade de contar a ninguém o que observei antes no recinto do ritual e calculo que, mesmo nesta fase, possa ter alguma importância. Desvio o olhar da mesa de honra e volto a fitar o meu par. A música sobe e desce de tom. Viramo-nos e separamo-nos e juntamo-nos de novo. Enquanto rodamos com as duas mãos juntas, Liobhan lança-me um sorriso rápido. Há afeto nos seus olhos. O que sinto, abala-me. É como abrir uma porta proibida.

— O que se passa? — murmura ela.

Abano a cabeça, evitando-lhe agora o olhar. Um instante de loucura. Foi o que foi. Ela é minha rival. Minha camarada. Por vezes, a minha parceira de aventuras. Não pode haver mais do que isso. Não com Liobhan nem com ninguém. Aprendi a gozar com esses assuntos, a luxúria da carne, os jogos que os homens e mulheres jogam, para ser aceite como um homem entre homens. Mas no futuro que planeio para mim não há lugar para esse tipo de coisas. A porta proibida tem de permanecer fechada. Fechada e aferrolhada para sempre. Aprendi cedo a lição. Abrir o coração é convidar ao sofrimento. É perdermo-nos. Além disso, a Ilha dos Cisnes tem regras rígidas em relação a tais questões.

Liobhan está a franzir o sobrolho. Afixo uma expressão impassível enquanto executamos um conjunto complicado de passos, um rodopio, uma vénia e reverência e, depois, quando a música vai terminar, voltamos para os lugares perto da banda, de braço dado. Asseguro-me que ela arranja um lugar junto de Archu antes de me afastar. Poderá haver agora boatos a circular, que a menestrel gosta do moço de estrebaria mudo, ou ao contrário, mas não darei a Rodan mais motivos para nos incomodar. Se não fosse Liobhan dizer que tinha de dançar comigo três vezes antes do solstício de verão, tinha-me mantido longe. Não gosto de dançar, nunca gostei.

Saio do salão cedo, enquanto a banda ainda está a tocar. O meu humor ensombrou-se e não sou boa companhia. Quando me aproximo do pátio das cavalariças, ouço passos atrás de mim. Três homens a seguir-me. Não de botas; de sapatos macios. Se estão a tentar ser dissimulados, não são nada bons nisso. Se fossem moços de estrebaria atrás de mim, estariam a usar botas. E viriam a falar, a trocar piadas, talvez a chamar-me para esperar por eles.

Pode ser alguma coisa. Pode não ser nada. O que faço, viro-me ou continuo a andar? Nessan continuaria a andar. Nessan não estaria à espera de um ataque repentino. Nem estaria preparado para ele, se isso acontecesse. Mas eu estarei.

Chego à entrada das cavalariças antes de eles falarem.

— Pensas que és um belo homem, não é, rapaz dos cavalos?

— Merda de cavalo, é mais isso. Quer aproveitar as suas hipóteses de saltar para cima das saias daquela cantora.

— Ela? Não é provável. Embora ela seja um bocado meretriz, foi o que ouvi dizer. Não demora a oferecer-se.

— Uma rapariga grande, aquela. De mão-cheia.

— Duas mãos-cheias, queres dizer.

Gargalhadas roucas. Estão perto agora. A três passadas de distância, calculo. O sangue ferve-me. Sinto uma fúria desproporcionada. Não são senão tolos um pouco bêbados. Os amigos de Rodan. Mas não, penso, o homem. A sua voz teria sido a mais alta.

— Eu não me importava de lhe saltar para cima — diz um deles. — Fazia-a dançar para mim. Ela ficava animada.

— Então e tu, estúpido? Onde a tiveste? No celeiro, no esterco? Ela mostrou-te as maminhas? Aposto que cantou alto quando lhe enfiaste os dedos sujos na...

Estou no celeiro com os meus irmãos. Tenho sete anos. Com dez e doze anos, eles parecem grandes como monstros. «Mistela de porco! Comedor de estrume! Verme! Pequeno poio rançoso! Vamos lá então, briga connosco! Vamos ver que género de homem és, seu pedaço abjeto de merda!» Primeiro as palavras, as palavras feias e ofensivas. Depois os golpes. Seria mais fácil não ripostar, sabendo que não posso vencer. Mas luto; pontapeio e arranho e debato-me até a dor ser demasiado forte e me enrolar a soluçar. Provo que é verdade. Aos sete anos, sou fraco, impotente, inútil e, por fim, estou misericordiosamente sozinho com as minhas lágrimas.

Viro-me. Inspiro. Arrasto os pensamentos para este momento, esta época. Uma tocha arde não muito longe, iluminando o pátio das cavalariças, pintando os rostos dos meus algozes de um vermelho-rosado. Os amigos de Rodan, Cruinn e Coll. E um homem maior: o novo guarda-costas do príncipe. Imagino-os a arder. Imagino-os a gritar. Eu não grito. Não profiro uma palavra. Deixo que os meus olhos falem por mim.

— Ooh, cuidado — brada um deles, a fingir terror. — O rapaz dos cavalos está zangado!

— Queres briga? — desafia outro. — Vamos, mostra-nos o que vales! Luta comigo, vamos lá, luta comigo!

Como seria fácil derrubá-los, um, dois, três, e depois limpar a poeira e afastar-me. Como seria fácil matá-los. Quero lutar. Preciso de lutar. Ergo os punhos como Nessan poderia fazer, a deslocar o meu peso de um pé para outro, a preparar-me. Chega de fingimento. Quero ser um homem.

Há surpresa nos seus rostos estúpidos. Estavam à espera que eu desse meia-volta e fugisse. Talvez o plano fosse seguir-me e dar-me uma surra, como os meus irmãos teriam feito. Oh, sim, sou perito em brutamontes. Pergunto-me se Rodan os enviou nesta missão, sabendo que com o solstício de verão tão próximo não pode arriscar meter-se em confusões.

Eles estão a arregaçar as mangas, a pôr-se em posição, prontos para lançar um ataque de três contra um. Cruinn parece ser o mais forte e mais em forma. É provável que o homem grande consiga desferir um murro pesado, mas será mais lento de pés. Coll é mais pequeno e mais leve. Está sempre a olhar de mim para os seus companheiros, à procura de algum tipo de orientação, talvez uma ordem para atacar. Homem Forte. Homem Grande, Homem Pequeno. O Homem Grande tem uma faca escondida; a tocha acesa no pátio das cavalariças capta o seu brilho. Deram-lhes ordens para me matar? O Homem Forte tem uma adaga no cinto, enfiada numa bainha decorada. Parece o género de pessoa que poderia usá-la. Faço um gesto. Venham lá então!

— O que é isto?

A voz é de Illann. Lanço uma olhadela para o lado e vejo-o com um grupo de outros trabalhadores, regressando da ceia. Motcha, o ferrador da corte, encontra-se entre eles. Os meus atacantes baixam os punhos. Nunca me senti tão desapontado em toda a minha vida. Não quero ser socorrido. Quero lutar e quero vencer.

— Parece um bocado desigual — diz Illann, enquanto se forma um círculo de palafreneiros e moços de estrebaria, por isso é impossível para qualquer de nós fazer uma retirada silenciosa. — Três contra um e esse um é um rapaz sem voz?

— Não precisa de voz para lutar — assinala alguém entre a multidão.

Illann está ali muito direito, de braços cruzados, a avaliar com calma a situação. O que espera que eu faça? O que quer que eu faça? Por cima do ombro dele, atrás da multidão, vejo Archu e Liobhan lado a lado, em silêncio. O caminho a seguir torna-se claro, se Illann me deixar segui-lo. Sou Nessan. Não tenho voz. Se nunca aprendi a lutar, é o tipo de luta entre rapazes, atrás do celeiro, nenhuma técnica propriamente dita, apenas força bruta e alguns truques, nada demasiado inteligente. E não um contra três, porque, embora Dau possa fazer isso e vencer, Nessan teria dificuldade. Ergo o meu primeiro dedo e depois aponto para mim. Eu. Ergo o mesmo dedo na minha outra mão e depois aponto para o Homem Forte. Eu contra ele. Os mesmos gestos para o Homem Grande. Depois eu contra ele. E o Homem Pequeno. No fim, luto contra ele.

— Ah — diz Illann. — Um de cada vez. Isso assim é mais justo. Tens a certeza, rapaz?

Talvez eu devesse fingir terror. Mas neste momento isso ultrapassa os meus poderes de fingimento. Além disso, fui eu que me meti nisto e estou contente por Illann me ter oferecido uma saída que não envolve uma retirada humilhante. Aceno com vigor.

— O que acham, rapazes?

Illann olha em volta do círculo e um coro de vozes grita «Sim!» e «Luta!». É bizarro. Illann é um homem da Ilha dos Cisnes. Devia estar camuflado.

— Duas moedas no moço de estrebaria para vencer os três combates! — grita Archu.

Há muita gritaria, incluindo ofertas de quatro ou cinco moedas de cobre para eu perder. Enquanto eles estão a discutir quais são as regras e a fazer apostas, concentro-me e preparo o corpo. Não olho para ninguém senão para o Homem Forte, o meu primeiro adversário. E quando o barulho diminui e Illann, que assumiu o papel de regulador do combate, grita «Prontos? Lutem!», estou de facto preparado. A multidão decidiu que o primeiro a deitar o seu adversário ao chão e a mantê-lo aí até contarem até três vence. Ninguém menciona armas escondidas e a sua possível utilização. Assume-se que toda a gente lutará com lealdade.

Deixo o Homem Forte acertar o primeiro soco. Grunho e cambaleio quando o seu punho se esmaga no meu ombro, provocando o murmúrio da multidão. Bizarramente, parece que a maioria gostaria de me ver ganhar pelo menos um dos combates, embora pareça que as apostas pendem muito mais para o outro lado. Recupero o equilíbrio e carrego a direito sobre o meu adversário com a cabeça baixa, como um touro enraivecido. Ele é lento a esquivar-se e o meu movimento deixa-o sem fôlego. Giro sobre os calcanhares, de forma desajeitada. O Homem Forte ainda está dobrado em dois, a arquejar. Pontapeio-lhe as pernas, fazendo parecer que é mais sorte rara do que habilidade. Ele cai. Os espectadores batem palmas e aclamam, mesmo os que apostaram contra mim. Illann conta até três e depois declara-me vencedor do primeiro combate. Estendo uma mão para ajudar o Homem Forte a levantar-se, à maneira da Ilha dos Cisnes, mas ele faz uma carranca e murmura.

— Guarda as tuas mãos sujas para ti, rapaz dos cavalos.

A seguir é o Homem Grande. Antes de nos enfrentarmos, alguém dá-me um odre com água e eu bebo um pouco, não muito. Liobhan e Archu têm as cabeças muito juntas e sussurram. Se calhar estão a discutir a minha lamentável falta de subtileza e que outro treino eu deveria completar quando regressarmos à Ilha dos Cisnes. Ou estão a pensar por que, em nome dos deuses, estou aqui a lutar em frente de uma assistência quando devia passar despercebido nas cavalariças. É difícil dar mais nas vistas. Espero que ninguém conte a Liobhan como a luta começou.

O Homem Grande avalia-me. Sou tão alto como ele, mas muito mais magro. Ele vai pensar que me pode agarrar fisicamente e atirar ao chão, se calhar de cabeça, uma técnica a ser empregue apenas numa verdadeira situação de combate, visto que há boas hipóteses de partirmos o pescoço do adversário. O Homem Grande ou é estúpido ou temerário. Ou está a agir sob as ordens adivinhem lá de quem.

O Homem Grande e eu andamos à volta um do outro. Eu respiro com dificuldade para ele pensar que estou cansado do primeiro combate. Murmura para mim o tipo de asneiradas porcas com que me provocaram antes. Eu observo e espero pelo momento certo.

Ah! Ele está prestes a agachar-se, agarrar, içar. Salto para cima dele como se fosse uma criança excitada, os meus braços apertados em volta do seu pescoço, as minhas pernas em volta da cintura, os meus dentes na sua orelha. O Homem Grande guincha. Eu cuspo sangue. Ele vacila; eu aguento-me, uma criança gigante agarrada que ele não consegue desalojar. Cai. Eu caio com ele, certificando-me que aterro em cima dele. Rolamos e lutamos, mas no chão o peso dele é uma desvantagem; sou de longe mais ágil. Lembro-me de misturar nesta exibição sons roufenhos, como um homem mudo poderia fazer em esforço físico: grunhidos e gemidos e coisas do género. Quando consegue respirar, o Homem Grande pragueja de forma pitoresca. Vou levar alguns destes palavrões para a Ilha dos Cisnes.

— Vamos, rapaz da estrebaria! — grita alguém. — Vamos, rapaz!

Não sou o único a ter suportado as exigências irracionais de Rodan no que diz respeito aos seus cavalos, nem a ter sido insultado ou intimidado pelos seus amigalhaços. Espero que o apoio dos moços de estrebaria não lhes crie problemas mais tarde. Mas se eu vencer os três adversários — e agora, quando aplico um forte golpe de cotovelo e depois empurro o Homem Grande e me sento em cima dele, estou a dois terços do caminho de lá chegar —, talvez a história deste episódio seja suprimida, para salvar de embaraços os amigos de Rodan.

— Segundo combate para Nessan — diz Illann quando o Homem Grande se levanta, a bufar de irritação, e se afasta a coxear para as sombras que o encobrem, ao fundo. — Onde está o próximo homem?

O Homem Pequeno adianta-se e ergue os punhos. Sou mais alto do que ele e mais largo de ombros. Ele não tem aspecto de lutador. Mas as aparências podem enganar. Pergunto a mim mesmo se um golpe rápido e um bom murro forte serão suficientes para o fazer cair e se isso mostraria que eu sei o que estou a fazer.

— Prontos? Lutem!

Lanço um soco; ele esquiva-se. É rápido e não está com tanto medo como poderia estar. Eu recuo um pouco, a pensar que truques terá na manga. O Homem Forte está à frente da multidão agora; já recuperou o fôlego e está a incentivar o amigo.

— Vamos, Coll! Tu consegues!

Rodamos. Ele golpeia com o punho direito; eu dou um soco de volta, fazendo incidir o meu golpe no ponto sensível entre o ombro e o pescoço. Disfarço aquela precisão, esquivando-me para trás como se assustado, enquanto Coll cambaleia e se firma. Está à espera de alguma coisa, percebo-o no seu rosto. Mas o quê? Podia carregar sobre ele, como fiz com o Homem Forte. Era mais do que provável que cairia logo. O moço de estrebaria mudo podia ter só dois ou três golpes. Mas não carrego. Parece errado. Em vez disso, bloqueio o próximo golpe e depois agarro-lhe o braço direito, a pensar em prendê-lo contra mim antes de dar o soco que o enviará para o chão. Mas quando as minhas mãos lhe envolvem o braço, ele estende a mão atrás de si e, quando a mão esquerda surge de novo à vista, há uma faca nela.

Oh, tolo Coll. O meu pé calçado com a bota sobe, estabelecendo contacto com o pulso dele, e fazendo a faca rodopiar no ar e voar por cima dos espectadores. Há uma exclamação abafada universal. Ao fundo da multidão, uma mão ergue-se e apanha a arma voadora com precisão.

— Ai — diz Liobhan. — É afiada.

Afiada e quase no meu pescoço, ou coração, ou alguma outra parte do meu corpo. Coll está a agarrar o pulso ferido com a outra mão e a praguejar. Parece que esqueceu que está a meio de uma luta. Quem me dera poder fazer um comentário vigoroso. Em vez disso, deixo os meus punhos falarem. Um soco bruto de baixo para cima no maxilar. Ele cai. Talvez se magoe e talvez não. Não vejo e não quero saber. Agora que terminou, é melhor desaparecer antes que as pessoas comecem a fazer perguntas embaraçosas. Espero ter parecido desajeitado o suficiente para ser convincente. Imagino que Archu não quisesse que eu fosse morto para manter o disfarce. O facto de Liobhan ter apanhado de forma tão extraordinária a faca garantiu que toda a gente viu o objeto. O Homem Pequeno vai ter de dar algumas explicações. E possivelmente ela também.


Capítulo 32

LIOBHAN

Pelas bragas de Morrigan! Pensava que era eu que criava problemas. Mas o que faz Dau senão envolver-se numa rixa não com um, mas com três dos amigalhaços de Rodan? Archu e eu deparámo-nos com aquela cena a caminho da sala de ensaio, onde estávamos a planear conversar. Os amigos de Rodan estão a provocar Dau, a desafiá-lo a lutar. Espero que Illann, também de regresso da ceia, leve rapidamente o seu assistente mudo para longe do perigo. Espero que Archu continue a andar, ignorando o que se está a passar. Em vez disso, Illann começa a organizar a luta, enquanto Archu aceita apostas. É tão louco que mal parece real. Observo, a pensar que isto nos vai de certeza denunciar.

Mas Dau desempenha o seu papel na perfeição, derrotando os adversários com rapidez e perícia e conseguindo parecer desajeitado e desastrado. O terceiro homem é um trapaceiro. O homem grande passa-lhe uma arma. Dau está preparado para surpresas. Envia a coisa a rodopiar pelo ar na nossa direção. Seria melhor deixar a coisa voar por mim, mesmo que depois apunhale algum espectador inocente. Mas não consigo aguentar. Apanho-a e entrego-a a Archu. Que outra pessoa relate isto às autoridades se quiser.

Talvez as surpresas venham em grupos de três. Dau volta para as cavalariças rodeado por novos admiradores, poderão ter perdido as apostas, mas não escondem o prazer de um dos da sua laia ter triunfado sobre os amigos desagradáveis do príncipe. Mas Illann vem à sala de ensaio comigo e com Archu, esgueirando-se enquanto as pessoas estão distraídas com outras coisas. Quanto aos três homens, fugiram antes que alguém os pudesse acusar de trapaça.

— Não sei como aquilo começou — diz Archu em voz baixa, quando nós os três estamos lá dentro em segurança, com a porta e as portadas fechadas. — Tinha sido melhor não ter acontecido, mas sou obrigado a admitir que apreciei a coisa toda. E ganhei vinte moedas de cobre.

— O rapaz não gostou de alguns comentários que fizeram sobre Ciara — explica Illann. — Podia ter sido melhor se ele se tivesse esquivado para o celeiro e arriscado levar uma surra, mas, pelos deuses, foi uma exibição inteligente. Muito divertida.

— Quanto a ti... — Archu desvia a sua atenção para mim — ... suspeito que aquela pega heroica me salvou de um ferimento grave. E constitui uma bela história para as pessoas comentarem por aí. Pensei que te tinham dito para não dares nas vistas.

— Eu estava contigo, voltávamos da ceia! Tenho culpa se alguém está envolvido numa rixa no meio do pátio das cavalariças?

— Baixa a voz — pede Archu. — Vamos lá ver essa mão.

— É só um arranhão. Tenho ligaduras e unguento lá nos alojamentos das mulheres. Eu trato disto.

— Pelo menos enrola alguma coisa em volta. Toma. — Passa-me um lenço.

— Quem é aquele homem grande, o que estava a guardar Rodan? Nunca o vi antes.

— Não ouviste dizer que Garbh foi mandado embora? Dispensado do serviço ao príncipe?

— Não por minha causa?

— Suspeito que por causa de ti. Porque teve a ousadia de se levantar e ir dançar contigo, logo depois de teres pedido desculpa ao príncipe. Perdeu o seu lugar na manhã seguinte, arrumou as coisas e partiu no mesmo dia.

— Oh. — Parece que levei um soco na barriga. Não tive tempo de fazer amizade com Garbh, mas era um homem simpático a fazer um trabalho ingrato. Tinha sempre um sorriso e tratava-me com respeito. — Espero que encontre outro lugar.

— Depois de ser expulso da corte, isso poderá ser difícil. — Archu deixa o silêncio prolongar-se enquanto eu me sinto cada vez mais culpada. — Enviámos-lhe uma mensagem — diz depois. — Não diretamente. Demos a entender que se estava à procura desse tipo de trabalho, poderia aparecer num certo estabelecimento mais a norte e falar com uma pessoa cujo nome lhe demos. Pode ser que vejas o homem outra vez no futuro, quem sabe? Alguma novidade a relatar, Ciara?

Transmito a conversa que tive com Tassach e a sua família. Embora não queira, confesso que quase lhes disse que Rodan ameaçara, senão mesmo maltratara, Aislinn.

— Não mencionei o nome dele. Sei o que disseste. Mas aquela criança está em perigo e ninguém aqui parece preparado para fazer alguma coisa a esse respeito. Tassach e a mulher são boas pessoas.

— Não é da nossa conta. Não é a nossa tarefa. Tal como disse antes.

— Mas é tão errado. — Entra em conflito com os princípios em que se baseia a Ilha dos Cisnes, um dos quais é a justiça.

— Não podes travar todas as batalhas do mundo — comenta Illann baixinho. — Todos aprendemos isso com o tempo. Mas é difícil.

— Mantém a cabeça baixa — diz Archu. — Deixa que essas pessoas resolvam os seus problemas. Não te metas em porblemas até à véspera do solstício de verão. Estamos a seguir a tua liderança nisto, não te esqueças. Como líder, tens de te manter focada na missão ou a coisa toda desmorona-se.

Falo através de dentes cerrados:

— Sim, tio Art.

Archu não me disse o que fazer se essas pessoas me procurarem, em vez de ser ao contrário. Passo um dia mais ou menos longe de vista, primeiro a ajudar Dana e a sua equipa, embora o meu tornozelo impeça que carregue baldes durante muito tempo, e depois fechada na sala de ensaio, que agora tem um espaço vazio no sítio onde costumava estar a harpa de Brocc. O que acontece se não conseguirmos a Harpa dos Reis e o bardo-mor tiver de tocar este instrumento? Talvez nada. Talvez toda a gente seja enganada pela harpa substituta. Mas acho que não. Gostaria que Eirne tivesse sido mais clara em relação ao que quer que nós façamos. Suponho que a harpa, a verdadeira, terá de ser entregue ao bardo-mor na noite antes do ritual, visto que este, ao que parece, acontece logo de manhãzinha. Por isso tenho de ir ao Portal buscar Brocc e a harpa e regressar à corte com tempo suficiente para que isso aconteça. Tudo sem que ninguém veja o que andamos a fazer. A véspera do solstício de verão vai ser um dia atarefado.

Coso o cabelo de Aislinn no boneco. Não posso fazê-lo enquanto estou com a equipa de Dana, porque não quero que se espalhe um boato sobre de quem é o cabelo e com certeza que elas perguntavam. Por isso faço-o na manhã seguinte, na horta, onde a luz é boa. Coser com cabelo verdadeiro não é uma coisa que queira fazer outra vez, o cabelo está sempre a deslizar e é impossível ficar perfeito. Acabo por conseguir terminar a tarefa, embora o bonequinho tenha um ar assimétrico. Estou a rematar a linha quando Aislinn aparece debaixo do carvalho e sobe a correr o outeiro com Brion e o seu irmão mais novo, Tadhg, atrás dela. Tem as faces rosadas de correr e um grande sorriso no rosto. Cliodhna vem debaixo do braço.

— Está pronto? Posso pegar nele? — Entrega Cliodhna a Tadhg e eu passo-lhe a minha criação. Aislinn é meiga. Passa um dedo pelo cabelo do boneco, toca na sua boca meio sorridente, ajusta o cinto de cordel. Senta-o direito nos seus braços, virado para fora, e vira-se para fitar a descida do outeiro. — Estás seguro aqui — murmura. — Sim, estás. Ali está o grande carvalho, vês? Podemos subir lá cima quando quisermos e mostro-te as minhas coisas especiais.

Brion e Tadhg devem fazer parte dos poucos que sabem da caixa de tesouros, ou não diria isto à frente deles. Penso outra vez naquela fivela de cinto em forma de dragão. Foi um rapaz que me deu, foi o que disse quando ma mostrou. É fácil adivinhar quem poderia ter sido. Ainda bem que Aislinn gosta destes rapazes. Caso Tassach consiga o que quer a longo prazo, ela casará um dia com um deles.

— Onde está a espada dele? — pergunta Tadhg, a olhar para o boneco.

— Não precisa de uma espada. — Aislinn é firme.

— O cabelo está um bocado esquisito — observa Tadhg. — Onde tu... oh. — Lança uma olhadela a Aislinn, cujo cabelo apresenta um corte visível por cima da sobrancelha direita.

— É o primeiro boneco que faço — explico aos rapazes. — Fiz o melhor que consegui.

Brion franze a testa para o irmão mais novo.

— Ele não é esquisito, Tadhg. É diferente. Quero dizer, o cabelo e as roupas. Isso faz dele o único do seu género.

— Especial — concorda Aislinn, a sorrir para Brion.

— Especial — repete Tadhg, parecendo pensativo. — Como um grande herói. Devíamos levá-lo numa aventura.

— Uma expedição — diz Brion. — Um teste por terra e fogo, ar e água.

Não sei quem tem andado a contar aos meninos as suas histórias antes de adormecerem, mas parece que são boas.

— Ele ainda não pertence a Aislinn — sou obrigada a dizer. — Tenho de o levar e mostrar a alguém primeiro. — Vejo os seus rostos desanimados. — Mas — acrescento — podem brincar com ele um bocado e ele voltará para Aislinn dentro de poucos dias. Ele poderá fazer uma expedição sem ficar demasiado sujo? Considerem-no um desafio. — Digo isto para Brion, que tem idade suficiente para perceber a piada.

— Claro — retruca ele, a sorrir, e depois assume o comando como o futuro chefe de clã que é. — Venham todos. Ali em baixo junto ao lago dos patos é que é. Cliodhna pode fazer as partes com lama e ele pode dar-lhe instruções.

Não tenho outra opção senão ir com eles, não só para garantir a sua segurança, mas também para poder levar o boneco quando a brincadeira terminar. Não há sinal dos pais, nem de Padraig, nem de uma ama. Talvez considerem que Brion, que calculo terá cerca de dez anos, tem idade suficiente para ser responsável.

Para lá do campo de pastagem dos cavalos, passando por cima de um muro de pedra solta, há um recinto mais pequeno onde andam patos e galinhas. Os seus alojamentos noturnos são numa casinha ao cimo deste espaço e no fundo fica o lago, alimentado por um regato que nasce da mesma nascente que reabastece os poços da casa real. O lago está debruado de juncos; pedras lisas foram colocadas aqui e ali e hoje, com o sol a brilhar, há libelinhas a voar por cima da água e passarinhos minúsculos, como os que estavam em casa da senhora Juniper, caçam insetos nas ervas. Aqueles passarinhos. Estão em todo o lado.

As crianças começam o jogo. Colocam o boneco numa rocha, apoiado para se aguentar sentado. Cliodhna, ajudada por Aislinn e Tadhg, avança pela expedição, conseguindo ficar molhada e enlameada enquanto supera vários obstáculos. Estão tão entretidos e felizes que não profiro uma palavra de protesto. Brion conta uma história enquanto os mais novos chapinham na água, traçam desenhos na lama e atiram Cliodhna de um para o outro por cima de um conjunto de juncos. Percebo que estou com esperança que ninguém venha à procura deles e não porque isso me poderia causar problemas. Neste momento, estes filhos da realeza e da nobreza são tal e qual como eu e Brocc e Galen quando éramos crianças. Brocc seria o que contava a história e Galen e eu estaríamos a correr o risco de partir braços ou pernas ou bater com a cabeça ao trepar ou baloiçar ou travar combates a fingir. De repente, tenho lágrimas nos olhos. Pestanejo com força e esforço-me por as reter; não quero que ninguém me veja chorar.

Neste entretanto, o boneco com o cabelo torto tem estado sentado na sua pedra, imóvel. A observar. Oh, deuses. A observar o futuro de Breifne com os seus olhos bordados. A observar, como uma coisa criada a partir de lã, linha e cabelo pode observar, se foi feita com uma pitada de magia. Porque estas crianças são, ou podem ser, o futuro de Breifne. Rodan poderá não se casar. Poderá não ter filhos. Poderá não reinar durante muito tempo. Poderá morrer jovem. O futuro de Breifne, depois de Rodan, poderá ser o Bom Rei Brion e a Sábia Rainha Aislinn.

Concluí parte de uma tarefa para Eirne e agora tenho de passar para a parte seguinte.

— Quem consegue fazer a melhor casa de lama? — grito. — Um, dois, três, comecem!

Tendo lançado o desafio, sou obrigada a tentar fazê-la. Começamos todos a apanhar lama e a construir uma casa na beira do lago. Em breve, o boneco é a única coisa limpa; Aislinn e eu içamos as saias, mas as nossas mãos estão escuras de lama e os sapatos de toda a gente estão cheios dela. Tadhg tem uma grande mancha no rosto. Cliodhna vai precisar também de um banho; não foi feita para aventuras ao ar livre, embora eu tenha a certeza que ela e Aislinn já tiveram muitas juntas.

Tento recordar-me das palavras exatas de Eirne. Ajuda a construir uma pequena casa de areia ou terra e depois vê a água levá-la. Estará certo? Assim, teria de ser construída mesmo ao lado do fluxo de água que sai do lago e que desce pela colina e por baixo do muro através de um engenhoso canal de drenagem revestido de pedra que gostaria que o meu pai pudesse ver, visto que tais coisas lhe interessam. É melhor eu deitar fora o que fiz e começar de novo aí. Mas...

Lá está Aislinn, a trabalhar com rapidez, a construir não só uma casa como também um recinto amuralhado. Encontrou um local plano junto a esse fluxo de água. O solo aí está suficientemente molhado para poder ser moldado com facilidade. O muro traseiro do recinto é uma rocha; os outros três serão terra empilhada. Aproximo-me para a ajudar a construí-los. Os rapazes estão ambos atarefados a trabalhar. Quando acabamos de construir os três muros, Aislinn senta-se sobre os calcanhares e acena com a cabeça a aprovar. Depois começa a apanhar galhos e folhas e a organizá-los dentro do recinto. Ajudo-a também nessa tarefa. Quando a folhagem está disposta a seu contento, Aislinn vai buscar o boneco e coloca-o lá dentro, onde fica quase invisível entre as ramagens.

Brion e Tadhg pararam de trabalhar nas suas casas e estão a observá-la.

— Tens de o manter limpo, Aislinn — avisa Brion. — Foi o que a senhora Ciara disse.

— Está tudo bem — murmuro, não querendo interromper o que Aislinn está a fazer.

Ela foi buscar Cliodhna e colocou-a numa posição sentada do lado de fora do muro do pequeno recinto. Move a cabeça e os braços do brinquedo como estava a fazer naquele dia em que vi Padriag a brincar com as crianças. Agora Aislinn faz a voz de Cliodhna.

— Wolfie! Wolfie, onde estás? — chama Cliodhna, levantando-se.

— Chiu! — Aislinn é outra vez ela mesma. Pega em Cliodhna e fita-a nos olhos. — Sabes que não podes falar com Wolfie. Ele foi-se embora. Não dizemos o nome dele, Cliodhna.

Cliodhna põe as mãos sobre os olhos e depois senta-se devagar.

— Ele está ali — diz em tom lastimoso. — Está ali mesmo, eu sei. Está ali do outro lado do muro. Wolfie!

— Chiu! — Aislinn abraça Cliodhna no peito e baixa a cabeça. — Sabes que Wolfie não pode sair. Não o deixam. Nunca.

Olho para o pequeno muro. Os galhos e folhas, tantos que poderia ser uma minúscula floresta ali dentro. Misericórdia de Danu! Como pude demorar tanto a perceber!

— Aislinn? — Mantenho a voz baixa, mas ela sobressalta-se, virando-se tão depressa que quase derruba a sua criação. — Posso perguntar-te uma coisa?

Ela acena com a cabeça.

Tenho de ser rápida, antes de os rapazes interromperem.

— Aislinn, Wolfie é um druida?

— Não deveria falar dele.

— Está bem, não faço perguntas sobre ele. Mas... este boneco... é um druida, não é? Um noviço de veste azul?

— Hum.

— Gosto da floresta que fizeste. É onde ele vive, não é? Do outro lado do muro. Deve ser feliz lá. — Brion está a levantar-se, prestes a vir inspecionar o trabalho de Aislinn. Fito-o nos olhos, abano ao de leve a cabeça e ele senta-se outra vez.

— Ele sente-se sozinho. Tem saudades dela. — Aislinn mostra Cliodhna.

— Isso é fácil de resolver — digo, odiando as minhas palavras mentirosas. No mundo real, onde os brinquedos são substituídos por homens e mulheres, os problemas não são resolvidos de forma tão rápida. — Cliodhna está numa missão. E é muito forte. Pode partir o muro e deixá-lo sair.

— Mas ela não tem autorização para ir para lá.

— Porque é uma rapariga?

— Ela é uma rapariga. E ele não pode sair.

— Por que não, Aislinn? — Estou a tentar avançar com cuidado. É provável que os rapazes relatem esta conversa aos pais, ou a outra pessoa. Como poderiam saber que isso pode causar problemas tanto a Aislinn como a mim?

— São as regras. Ele não pode voltar.

— Voltar onde? — murmuro.

— Voltar a casa. — Enxuga uma lágrima do olho. — Voltar a casa para Cliodhna.

— Ela é a namorada dele?

— Não, tonta! É a irmã dele.

Fui reduzida ao silêncio. Agora com certeza que Aislinn se afastou do que pensei ser a sua história e está a inventar isto. Um irmão que se tornou druida? Estará a falar do filho ilegítimo que Archu mencionou? Ele não seria jovem de mais?

Aislinn está a chorar. Deuses, odeio isto! Nenhuma criança devia ser sobrecarregada com tanta tristeza. E nenhuma criança deveria enfrentar o futuro que ela enfrentará se for obrigada a viver na casa de Rodan.

— Posso falar com Cliodhna?

Ela passa-me a criatura. Sento Cliodhna no meu joelho e fito-a nos olhos.

— Agora ouve, Cliodhna — digo, já sem me importar com quem me ouve, porque estou furiosa, estou tão furiosa que podia defrontar todos eles, o regente, o druida-chefe, o bardo-mor e o Rodan miserável. — Sei que existem regras. Mas às vezes as regras estão erradas. Às vezes as regras tornam as pessoas infelizes, ou solitárias, ou preocupadas. E quando isso acontece, temos de quebrar essas regras. Tens de derrubar o muro.

— Podemos ver? — Tadhg está ao meu lado agora, e embora Brion não se tenha mexido, está a absorver tudo.

— A sério? — faço Cliodhna dizer. — Posso libertá-lo?

— Se ele quiser sair, sim. Derruba o muro. Dá-lhe uma opção.

Passo Cliodhna de volta a Aislinn. Há um silêncio, como se uma grande inspiração de ar. Uma brisa da floresta despenteia-me o cabelo. Ouço o gotejar da água nas pedras; vejo as asas transparentes das libelinhas, de uma beleza cintilante à luz do Sol. De repente a brincadeira parece solene e antiga e a decisão de Cliodhna, apesar de ser uma boneca empalhada, de grande importância. Não posso fazer aquela escolha; só Aislinn o pode fazer.

Ela fica imóvel durante uns momentos, com lágrimas a brilhar nas faces. Depois estende a mão e empurra Cliodhna com força para dentro do muro de terra. Este esfarela-se e cai e Wolfie fica livre.

— Sai, Wolfie — diz ela. — Vem para casa. — Olha para mim, na expectativa.

— Posso movê-lo?

Aislinn acena com a cabeça. Tadhg sentou-se de pernas cruzadas, absorvido pelo drama. Lanço uma olhadela a Brion e sorrio, agradecendo-lhe sem palavras por saber quando não intervir. É um esplêndido jovem em potência.

Faço Wolfie sair do seu lugar de reclusão. Ele faz uma vénia para Cliodhna.

— Saudações — diz. A minha tentativa de recriar a sua voz faz as três crianças rir.

— Ele devia dar-lhe um abraço — sugere Brion.

Aislinn e eu fazemos os brinquedos abraçar-se.

— Ela devia dizer Bem-vindo a casa — propõe Tadhg.

— Bem-vindo a casa, Wolfie — diz Aislinn, mas a alegria momentânea desapareceu da sua voz. Poderá ainda não ter sete anos, mas sabe a diferença entre representação e realidade.

A lista. As tarefas. Isto é suficiente ou devo certificar-me melhor? Ainda tenho Wolfie na mão.

— Por favor, apresenta-me aos teus amigos — faço-o dizer a Cliodhna. — Que belos jovens são.

Aislinn apresenta os rapazes, solene; ensinaram-lhe alguns modos da corte.

— Este é Brion, filho de Tassach. É muito bom cavaleiro e... um dia será chefe de clã. Chefe do clã de Glendarragh. E este é Tadhg, filho de Tassach. Tem cabelo encaracolado e gosta de fazer jogos. Rapazes, este é Wolfie. Ele... — Silencia. Estende a mão para Wolfie. Eu seguro-o durante mais um momento. Imagino que os seus olhos bordados podem ver e asseguro-me que a sua cabeça está virada para todas as crianças à vez.

Há mais uma coisa a fazer. Passo Wolfie a Aislinn.

— Agora que ele está livre — digo, a tentar tornar isto convincente —, devíamos deixar ir a casa com a água. Para ele não poder mais ser fechado lá dentro. — Oh, mentiras, mentiras e mais mentiras. Mas não consigo pensar noutra forma de completar a tarefa de Eirne.

— Eu faço isso! — Tadhg está a sorrir. — Posso? — Está a olhar para mim.

— Pergunta a Aislinn.

— Hum — diz Aislinn, apertando tanto Wolfie como Cliodhna. Está muito solene.

Ambos os rapazes entram no lago, de qualquer forma já estão ensopados, e fazem ondas com as mãos. O pequeno recinto fechado depressa se desmorona e cai e o minúsculo bosque desintegra-se, desaparecendo a flutuar pelo regato e por baixo do muro para o verdadeiro bosque, onde druidas verdadeiros vivem atrás da sua barreira invisível e o verdadeiro Wolfie caminha entre eles. Um irmão. Um irmão de Aislinn. Um irmão de Rodan. Um homem que poderia ter sido rei.


Capítulo 33

DAU

Afinal o druida que se parece tanto com Rodan é mesmo seu irmão, ou melhor, meio-irmão. Liobhan juntou as peças depois de falar com a criança, a irmã de Rodan. O homem é filho ilegítimo do falecido rei, mais velho do que Rodan quase três anos. O facto de ter nascido fora do casamento não o torna inelegível para o trono. Mas foi descartado, porque, não muito antes de fazer dezoito anos, este irmão decidiu que preferia ser druida do que rei de Breifne.

Illann e eu temos uma conversa sussurrada sobre o assunto na privacidade da nossa baia, quando não há ninguém por perto.

— Por que não contou o regente a Archu desde o princípio que havia outro filho? — pergunto eu.

— Archu sabia que havia um filho ilegítimo e que não era pretendente ao trono, mas não por que motivo — responde Illann. — É verdade que descobriu isso através das suas fontes de informação, não por Cathra nem pelos seus conselheiros. Por que não falam sobre esta pessoa? Porque mal um homem entra nos Nemetons desaparece da vida normal. Ninguém no exterior menciona o seu nome. É quase como se tivesse morrido. Pior, talvez, já que as pessoas podem chorar os mortos, pronunciar os seus nomes, contar as suas histórias. Creio que esta ordem de druidas é bastante rigorosa. Foi preciso uma criança para que o homem fosse real outra vez. Mas não pode ser rei agora. Pode ser perfeito para o trabalho, mas isso não interessa. Fez a sua opção e não há como voltar atrás. — Faz uma pausa, a pensar. — Estranhamente, o ritual da coroação, incluindo os preparativos, parece ser a única altura em que todos os druidas saem do seu santuário. Daí teres visto os dois irmãos juntos, talvez a primeira vez que se encontraram desde há alguns anos.

Há alguma atividade na outra ponta das cavalariças e a nossa conversa tem de acabar. Partimos em direções diferentes. Illann tem trabalho na forja e eu ainda sou responsável por um par de cavalos muito doentes que sofreram ferimentos na noite em que Rodan enviou um grupo de homens numa missão que se revelou desastrosa. Há aqui outros trabalhadores que sabem muito mais do que eu sobre tratamento de cavalos, incluindo Illann. Mas o chefe das cavalariças reparou que os animais ficam mais calmos quando eu estou perto, por isso pediu-me para cuidar destes dois, sob a supervisão de Illann. Os grandes rasgões infligidos pelas garras daquelas coisas têm mau aspecto, estão cheios de humores feios. Esforço-me por os manter limpos. Aplico cataplasmas. Uso mãos suaves para acalmar as criaturas e, visto que não posso falar, sussurro entredentes para elas. Bryon descansa na palha, perto, para me poder ver, mas a uma distância discreta dos cascos dos cavalos. Persuado um dos animais a comer uma farelada quente; o outro não quer comer. É nestas alturas que gostaria que houvesse de facto magia, para poder encontrar uma cura para esta criatura que vai morrer porque alguém foi suficientemente estúpido para a enviar e ao seu cavaleiro numa aventura mal planeada, com base numa suposição desinformada em vez de em factos. Será que o rei Rodan vai continuar a fazer esse tipo de coisa até que os seus vizinhos se tornem todos seus inimigos e perca todos os seus homens bons? Isso faz-me desejar que o irmão druida pudesse ser rei em seu lugar. Não sei nada sobre o homem, exceto que me deu a impressão de ser calmo e controlado e ter um sorriso cativante. Poderia haver qualquer coisa sob essa fachada: um tirano, um conspirador, um tolo estúpido como Rodan. Talvez mal saísse dos Nemetons se tornasse um monstro. O meu irmão Seanan era perito em afixar um sorriso sempre que explicava aos nossos pais por que eu me metera outra vez em sarilhos. Era um mentiroso convincente quando éramos crianças e calculo que ainda seja. Ensinou a Ruarc os mesmos truques. Os dois juntos, maiores, mais fortes, mais velhos, eram sempre mais credíveis do que eu. Tinham sempre uma explicação na ponta da língua para os meus cortes e pisaduras, as minhas roupas ensopadas, o facto de chegar a casa tarde e gelado de frio. Quando mataram Snow diante dos meus olhos, quando a retalharam devagar e em pedaços, tinham uma história e, nessa história, a culpa era minha. Num frenesim de mau génio, eu arrancara a faca a Seanan e brandira-a com ímpeto e fizera essa coisa horrível à minha cadela. As minhas roupas estavam cobertas de sangue, o fluido vital de Snow, quando a embalara nesses momentos finais de agonia. Prova de culpa. Acreditavam sempre em Seanan e não em mim.

— Nessan?

Sobressalto-me violentamente. Liobhan está ali, à entrada da minha baia, a fitar-me com ar estranho. Luto com a minha mente para voltar ao momento presente. Não posso acreditar que voltei a pensar naquele dia. Devia estar enterrado.

— Não há ninguém por aqui — murmura Liobhan. — Ouvi dizer que tratavas desses dois. — Faz um gesto para os cavalos. — Trouxe-te isto. — É o pequeno pote de barro com o unguento, a mistura especial da mãe, a curandeira. — É seguro para cavalos. — Quando pego no potinho, ela aproxima-se, espreitando para as marcas de garras. — Maldição — resmunga. — Uma pena que não possas pedir à senhora Juniper para vir examinar isso. Já experimentaste ficária no cataplasma? Poderá ser tarde de mais para isso, mas vale a pena tentar.

— O que é isso? — sussurro.

— Eu arranjo-te um pouco.

— Não devias manter-te longe de vista?

— Levo só um instante. Há alguma perto daquele lago dos patos.

Antes de eu poder dizer outra palavra, desaparece. E ainda bem, porque se ouve o som de vozes masculinas no pátio das cavalariças. Reconheço uma delas em particular. Vêm para aqui. O que faço agora? Agacho-me e escondo-me, esperando que Rodan não me veja? Isso poderia tornar-se embaraçoso se ele gritar por ajuda e depois descobrir que estive ali o tempo todo e o ignorei. Mas se quiser um cavalo preparado para montar, sou a última pessoa que vai querer que o prepare. Avalio aquilo tudo e decido ficar onde estou, à vista. Espero que Liobhan não marche por ali adentro com o seu molho de ficária.

Rodan vem com os seus dois amigos e o seu novo guarda-costas. Não chamam por palafreneiros nem moços de estrebaria. Estão invulgarmente calados enquanto selam os seus cavalos. Coll prepara o cavalo de Rodan e depois o seu. Ninguém olhou na minha direção. Continuo a tratar dos meus dois cavalos, certificando-me que um ou outro se encontra entre mim e o grupo. Uso as capacidades que aprendi na Ilha dos Cisnes para os observar. Rodan anda de um lado para o outro, impaciente para se ir embora. Não consigo ouvir bem, mas está a dizer qualquer coisa sobre precisar de partir, ação decisiva e ir e vir depressa. Na palha aos meus pés, Bryn solta um pequeno gemido e agacho-me para o tranquilizar. Quando me levanto de novo, o guarda-costas está a olhar para mim. Toca no braço de Rodan; aponta.

E agora? Vêm os quatro dar-me uma surra desta vez? A véspera do solstício de verão está próxima. Tenho de conseguir montar. Tenho de ser capaz de apoiar Liobhan no que ela fizer. Não me posso dar ao luxo de arranjar problemas. Desvio o olhar; tiro um pouco de unguento do potinho e espalho-o com muita suavidade na zona inflamada. Obrigo-me a respirar devagar. Ao mesmo tempo, o meu corpo retesa-se, pronto para a ação.

— Ora, ora. Quem temos nós aqui? — Rodan aproximou-se sozinho; acena a afastar os outros com alguma impaciência. — Tu e eu temos assuntos pendentes, débil mental. Sai daí. Vamos, mexe-te.

Deixo cair os ombros, afasto-me dele, ergo o potinho de unguento e faço um gesto para a ferida do cavalo. Ele abre a boca para me mandar sair outra vez e depois imobiliza-se, o olhar no corte lívido no ombro do animal e na pele inchada e descolorada em volta. O príncipe fica branco, de um branco doentio. Põe as mãos diante do rosto, com as palmas para fora, como se para se esquivar a algum horror. Murmura um palavrão e recua.

— Estamos prontos! — exclama um dos outros.

É evidente que é a primeira vez que Rodan vê a obra do Povo Corvo. Depois de enviar aquele segundo grupo, não se deu ao trabalho de examinar os animais feridos. Se calhar nem se deu ao trabalho de olhar para os corpos dos homens que enviou para a morte. Por que não estou surpreendido?

Os quatro homens, com os seus cavalos, encontram-se na porta aberta. Três deles estão armados com espadas e facas, um com um arco e aljava. E levam o que parecem ser tochas para queimar. Aqui na corte, a meio do dia.

— Só até à casa da velha — diz Rodan a montar o seu cavalo. — A vegetação rasteira é densa aí; deve pegar depressa.

— Mas e... — protesta o Homem Grande, se calhar de forma imprudente.

— Mudança de planos. O fogo expulsá-los-á; meter-lhes-á medo. É só disso que precisamos.

Montam e afastam-se na direção dos portões. Por Dagda! E agora? Não vou entrar em pânico. Sou um homem da Ilha dos Cisnes. Ponho a tampa no potinho de unguento e arrumo-o. Pouso uma mão nos dois cavalos, à vez, desculpando-me por os deixar com o meu trabalho inacabado. Olho de novo em volta; ninguém à vista. Dirijo-me para a porta das traseiras e atravesso o campo em direção ao lago dos patos, a tentar não correr. A senhora Juniper. A cadela, Storm. Brocc e o que quer que exista atrás daquela parede. A Harpa dos Reis. Por causa daquele tolo Rodan, estão todos em perigo.

Liobhan tirou os sapatos e está enfiada até aos tornozelos no lago, com um molho de folhame de aspecto pouco promissor na mão. Olha para a minha cara e sai de lá num instante.

— O que é?

Deuses, a necessidade de manter a minha voz num sussurro, a cautela, mesmo quando não há um momento a perder, está a começar a enlouquecer-me. No menor número de palavras possível, contou-lhe o que aconteceu.

— Onde está Archu? — pergunta Liobhan, largando as suas ervas e enfiando os pés outra vez nos sapatos.

— Não faço ideia. E Illann está a meio de um trabalho de ferragem de cavalos, na forja. Não posso ir lá a correr pedir ajuda.

Liobhan pragueja entredentes.

— Tenho de os deter — murmura. — Eles não podem fazer isso. — Começa a avançar a passos largos em direção às cavalariças, movendo-se como uma fúria vingativa.

— Liobhan. Espera. O que vais fazer, entrar por ali adentro e confrontar Cathra? Depois de tudo o que aconteceu? Isto pode ter a aprovação do conselho.

— Então pego num cavalo e vou atrás dele. Um fogo, ali em cima? Não podemos permitir que aconteça. — Há uma expressão nos seus olhos que me assusta.

— Para. Só por um instante. Por favor.

Estamos junto ao muro de pedra solta que separa esta zona do campo de pastagem dos cavalos. Totalmente visíveis, os dois, para qualquer pessoa que possa estar a olhar para aqui.

— Não podes ir — digo. — Vais atrair atenções, vais arranjar problemas, vais se calhar destruir não só o teu disfarce mas também o nosso. Vais desentender-te com Archu e perder o teu lugar na Ilha dos Cisnes.

— Não me importo! — Está tão tensa como a corda de um arco; a voz é um rosnado.

— Ouve lá, está bem? Tu não podes ir, mas eu posso. No mínimo, posso avisar a senhora Juniper. E se conseguir detê-los, fá-lo-ei.

Continuamos a andar. Os lábios de Liobhan estão comprimidos. Os punhos cerrados com força. Aquelas lágrimas que lhe cintilam nos olhos não terão hipótese de cair. Chegamos às cavalariças e paramos na porta das traseiras.

— Não consegues lá chegar antes deles — sussurra ela. — É impossível.

— Vamos ver.

Há um vislumbre de plano na minha cabeça; poderia funcionar. Arranco um chapéu de um prego, uma coisa disforme de feltro que um dos palafreneiros deixou ali. Enfio-o por cima das orelhas. Não é grande disfarce.

— O que faço?

— Procura Archu. Conta-lhe discretamente o que se passa. Espera que ele tenha algum plano de reserva que possa sugerir. Uma coisa percebi: Rodan tem pavor do Povo Corvo, ou do que ele pode fazer. O seu desejo de ser um herói não vai durar muito se eles lá estiverem em cima e a sentir-se combativos.

— E, no entanto, ele acha que vai expulsá-los de lá sozinho. Se estragares esse plano, vais direito para o topo da lista dele.

— Que lista?

— De pessoas que ele despreza.

— Ele já está no topo da minha — sussurro. — É melhor pôr-me a caminho. — Vou levar o cavalo que Illann costuma montar; é firme e está habituado a mim. E sabe saltar.

Liobhan murmura outro palavrão e depois acrescenta:

— Vai com cuidado, joga pelo seguro.

Posso apenas fazer uma careta em resposta. Não há nada de seguro nisto. Só espero conseguir fazê-lo.

Os portões ainda estão abertos e os guardas ficam satisfeitos quando faço um gesto vago na direção de uma quinta ali perto. De qualquer forma, estão com ar nervoso. Não podem ter deixado de reparar nas armas que Rodan e o seu grupo levavam, mas ele é o príncipe, por isso tiveram de o deixar passar.

Consigo vê-lo e aos amigos na estrada lá à frente. Mas não vou por essa estrada; ainda não pelo menos. Desvio-me para o trilho de uma quinta antes de eles pensarem em olhar para trás. Atravesso alguns campos, fazendo Blaze saltar os muros de pedra solta, o que ele faz com facilidade. Contornamos várias casas de quinta e chapinhamos por alguns regatos. Tenho de passar à frente. Bastante à frente, para que o homem com o arco não me possa abater antes de eu fazer o que preciso de fazer. Pelas bragas de Morrison, o que estará Rodan a pensar? Como persuadiu os outros a alinhar nisto?

Há um ribeiro que corre entre margens altas, com uma ponte de tábuas demasiado estreita para um cavalo. Recuamos e depois galopamos em frente e atravessamos o curso de água com um salto. Uma ligeira elevação; um maciço de arbustos. Obrigo Blaze a seguir a passo, para o deixar recuperar o fôlego. Estamos parcialmente escondidos aqui. Olho para a estrada e ah!, já estamos à frente agora, embora os cavaleiros mantenham um ritmo estugado. Não muito mais à frente e empregarei o que espero ser a minha arma secreta.

Passo pelas traseiras de um celeiro; esta quinta é aquela onde entreguei um cavalo no dia em que segui Liobhan para a floresta. Há trabalhadores por ali. Um sai do celeiro quando passo e estaca, de olhos arregalados. Faço-lhe um aceno de cabeça amigável e depois, antes que ele me possa questionar, desapareço. Desço um caminho estreito entre campos bem cuidados, onde pastam ovelhas e árvores de fruto providenciam sombra para os animais e cobertura parcial para Blaze e para mim. Aqui fica o sítio onde a estrada principal se curva para contornar um pequeno outeiro mal situado e durante um tempo não nos verão. Profiro um pedido de desculpas silencioso ao agricultor quando abro o portão para o campo dele e entro, a desejar ter Bryn comigo, o cão não conseguiria aguentar o trajeto, mas seria útil agora enquanto eu e Blaze tentamos reunir um grande rebanho de ovelhas. Os animais não estão contentes com esta incursão e, embora Blaze seja um ótimo cavalo, não é um trabalho que já tenha feito. Não posso usar a minha voz; tenho de confiar na minha ligação com um animal que nunca montei senão hoje. Demasiado devagar para meu gosto, levamos as ovelhas para a estrada, até que o campo fica vazio à exceção de uma ovelhinha sensata que permanece em silêncio à sombra de uma das árvores. Desmonto, fecho o portão, volto a montar. Com alguma dificuldade, abrimos caminho por entre a turba cada vez mais agitada de ovelhas. Mal o conseguimos, carrego nos calcanhares, e quando gritos irrompem atrás de nós, Blaze dispara pela estrada em direção à floresta.

Detesto pressionar de mais um bom cavalo, mas não tenho outra opção. A primeira parte, em terreno plano, fazemos depressa e com facilidade. Mal o caminho começa a subir a colina, é mais difícil para Blaze, mas é uma criatura forte e bem treinada e percebe o que eu quero. Devia parar e descansá-lo. Mas não posso. Já conheço o suficiente de Rodan para saber que ele vai forçar o seu cavalo e esperar que os restantes o acompanhem. Talvez eu não consiga impedir o fogo. Mas pelo menos posso levar a velha para local seguro.

Estou a cavalgar de dentes cerrados com tanta força que a cabeça me dói. Tenho os ouvidos cheios de zumbidos, dos cascos do cavalo no chão, da minha respiração ofegante, do bufar e resfolegar de Blaze. Não consigo focar a mente em nada, são só pensamentos a girar. Tenho razões para agir por conta própria? Isto é uma crise que o justifique? E, caso contrário, significa que vou ser expulso da Ilha dos Cisnes? Destruí o meu futuro por causa de uma velhota que tem ossos a baloiçar à porta de casa? Alguém me pode obrigar a voltar para casa? Preferia arder até morrer do que voltar. Cortava a minha garganta.

No local em que o terreno fica mais íngreme e o trilho serpenteia pela encosta, concedo a Blaze um breve descanso. Estamos a aproximar-nos do local onde a coisa-corvo me atacou e fui atirado do cavalo. Quase na casa da senhora Juniper. Quando desmonto e escuto, não consigo ouvir cascos de cavalos. Por agora, ultrapassei o grupo de Rodan. Gostaria de acreditar que pensaram melhor na sua missão louca. Mesmo assim preciso de avisar a senhora Juniper. Mas Blaze está exausto. Illann não vai ficar satisfeito.

Espero que a respiração do cavalo estabilize. Não me preparei para isto, não como deve ser. Não pensei bem nisto. Se eles incendiarem o bosque, como salvo a mulher? O trilho por onde vim ficará intransitável. E o outro caminho é demasiado longo: dá a volta toda à colina, afastando-se da corte, e depois desce até à estrada baixa com os seus regatos e vaus. Se o incêndio se alastrar, poderá matar-nos antes de chegarmos a esse trilho.

Quando me aproximo da pequena casa da senhora Juniper, percebo que cometi um erro ainda mais fundamental. A não ser que fale alto, não tenho forma de lhe explicar. Isto é complicado de mais para ser transmitido por gestos.

Estou a erguer uma mão para lhe bater à porta, quando me cheira a fumo. Fizeram-no. Não aqui, mas algures naquela primeira faixa de floresta. O vento vem de sul; o fogo virá direito a nós. Decido num instante:

— Senhora Juniper! Estás aí? Abre a porta!

E quando não há resposta imediata:

— Senhora Juniper! Fogo!

Ela aparece do lado da casa, com um balde na mão e a cadela junto aos calcanhares. Olha para Blaze, que prendi junto aos degraus. Olha para mim. Não parece surpreendida nem assustada.

— Ah — diz. — Então consegues falar. Sim, sinto o cheiro do fumo. A que distância está?

Explico em voz baixa, lançando uma olhadela à estrada, caso eles decidam vir mesmo até cá acima.

— Não está longe. E o vento vai enviá-lo nesta direção. Não é por acaso. Estás em perigo, senhora Juniper. — Por que está tão calma? Não acreditará em mim? Está só ali a ouvir-me, sem fazer nada. — Posso levar-te para um local seguro — esclareço —, mas precisamos de ir já.

Faz-se silêncio. Estarei a ouvir crepitar, ou será apenas a minha imaginação?

— Não é suficiente — retorque a mulher sábia. — Ou é? Tirar-me daqui.

E claro que não é. Há Brocc. Há aquela gente que vive atrás da parede, seja lá quem for. Há a floresta antiga cheia de pássaros e outras criaturas. Como poderei enfrentar Liobhan se não tentar parar isto? O que em nome dos deuses estava a pensar, correndo para aqui sozinho sem pelo menos uma velha saca para bater nas chamas?

— Lá para dentro — diz a senhora Juniper, pousando o balde e abrindo a porta de casa. — E vamos ser rápidos.

Uma vez lá dentro, percebo que estava enganado numa coisa. Não terei de fazer isto sozinho. A velha está a assumir o comando.

— Vai buscar aquele pote, o de vidro azul. Sim. Pega numa pitada do pó e põe-no nesta tábua. Corta isto. A faca está ali. Cornizo. Funcho. Ficária. E um pouco disto; prende a respiração enquanto cortas.

Está louca. Está a pôr-me a preparar uma poção enquanto o fogo corre na direção da casa e mal temos tempo para fugir antes que sejamos queimados. Em parte estou a pensar nisso e em parte estou a cortar, a fazer o que me diz, porque a senhora Juniper está tão calma e serena que tenho de acreditar que conhece uma maneira de resolver isto. Enquanto sigo as suas instruções, ela está junto à lareira, a transferir brasas incandescentes para um pequeno braseiro, a acrescentar paus, a soprar para garantir que se mantém aceso. Pousa-o e aproxima-se.

— Acabaste? Ótimo. Isto precisa de ser rápido. Combatemos fogo com fogo. Pedimos a compreensão dos deuses. Perdão pelos nossos erros. Pedimos a sua atenção. — Verifica o meu trabalho, acena a aprovar e depois pega na mistura de ervas a atira-a para o braseiro. O cheiro é quase excessivo. — Leva-o lá para fora para mim, Nessan. Coloca-o ali, diante da porta da frente. Passa o teu cavalo para o lado norte da casa e ata-o. Deixa-lhe um balde de água. Storm! Vai com ele.

— Mas...

— Não faças perguntas. Leva-o e depois volta. Preciso da tua ajuda.

Faço o que me diz para fazer. Blaze está com medo. O ar está cheio de fumo e está a tornar-se mais difícil respirar. Apetece-me fugir. Quero colocar a senhora Juniper no cavalo, montar atrás dela e sair a cavalgar pela estrada enquanto pudemos. Só que não haveria tempo. O fumo está a engrossar e é difícil ver a mais do que seis ou sete passos de distância. Aquela estrada seria uma armadilha mortal.

Junto ao braseiro, a senhora Juniper está sentada de pernas cruzadas no chão, com as costas muito direitas, de olhos fechados. Está a murmurar qualquer coisa numa língua que não entendo. Talvez esteja a rezar. A pedir aos deuses para nos salvar. Lá em cima no telhado da casa só resta um dos passarinhos minúsculos. Quando me aproximo, ele abre as asas e voa para a floresta.

Nunca atribuí grande importância às orações. Tempos houve, há muito, em que supliquei aos deuses que me protegessem dos meus irmãos, lhes implorei que me levassem para algum sítio seguro, fiz promessas loucas sobre o que faria se ao menos eles me levassem. Esses deuses, se é que existiam, foram surdos à minha voz. Talvez achassem que eu era fraco. Talvez quisessem que eu me defendesse sozinho. Não interromperei as orações da senhora Juniper. Mas farei outras coisas enquanto ela está ocupada.

Ela tem três baldes. Encho-os no regato que passa pela casa. Encontro sacas num anexo e trago-as. Vou a correr buscar uma vassoura. Ela ainda lá está, agora já não a entoar, mas também não se mexe. O fio de fumaça que sai do braseiro ergue-se ao encontro da cortina de fumo espessa por cima de nós. Os pássaros gritam os seus avisos.

Dou a volta à casa, esvaziando os baldes nas paredes. Volto a enchê-los e esvazio-os de novo, ensopando a madeira, afastando qualquer coisa que seja combustível. Haverá tempo para desviar o regato? Escavar uma vala, colocar pedras, canalizá-lo para mais perto da casa? Os ramos partem-se e caem com um som que parece a morte. Uma rajada de vento quente atinge a minha cara e pequenas brasas brilhantes dançam no ar sufocante. Mais água. Encho os baldes, corro com eles para a casa, esvazio a minha carga em volta da senhora Juniper, com cuidado para não apagar o braseiro. Ela abre os olhos. Durante um momento, estão desfocados, vagos, como se ela estivesse num sonho. Depois olha além de mim, para a floresta cheia de fumo, e levanta-se.

— Continua, Nessan — diz e pega numa saca. — Qual é o pior sítio?

Combatemos o monstro juntos, mulher velha e homem jovem. Ouço Blaze a relinchar de terror. Espero que a corda que o ata se aguente; se fugir não terá a menor hipótese. Carrego água, atiro-a para o caminho do fogo, corro a buscar mais. Juniper bate no chão fumegante com a sua saca, a boca fechada sombriamente, os olhos agora ferozes de determinação. Ouve-se um som atroador, a voz da chama faminta. Mais ramos a quebrar-se; um vento que traz uma onda de calor. E agora lá está Storm, firme ao lado da sua dona, a ladrar um desafio ao perigo que se aproxima. Se tivesse palavras, seriam: Afasta-te! Como te atreves a tocar-lhe?

Durante um momento, a mulher sábia vacila. Não ouço o que ela diz à cadela; o barulho do fogo é agora demasiado alto. Mas pousa a saca durante um instante, ajoelha-se e beija Storm na testa. Depois levanta-se e aponta para as traseiras da casa onde Blaze está preso, longe da vista. Mas Storm não quer ir. A senhora Juniper pega na saca e volta outra vez a bater nos tições. A cadela corre de um lado para o outro atrás dela, a ganir.

Água. Mais água. Os meus ombros doem, o meu pescoço dói, os meus braços não conseguem levantar outro balde. Mas levantam, uma e outra vez. A saca da senhora Juniper pegou fogo. Ela atira-a para o chão, pisa-a, pega noutra. Mergulha-a no meu balde e depois usa-a outra vez, molhada, para bater na orla rastejante do fogo. Coisas caem das árvores por cima de nós, coisas mortas, coisas moribundas. Os meus olhos ardem; estou meio cego com o fumo. Sinto a pele retesada e dorida. Tenho medo.

Há agora uma escuridão estranha. A senhora Juniper parou de bater nas chamas. Deixou cair a saca e está de pé com os braços muito abertos e os olhos fechados, como se à espera de morrer. Continuo a lutar. Desculpa, Liobhan, penso, enquanto agito a saca. Aquela terceira dança não vai acontecer. Os braços fortes dela podiam ser-nos úteis aqui, a ajudar-nos. Mas estou contente por ela não estar aqui.

Storm avista qualquer coisa lá nos bosques. Não consigo ver o que é, mas, antes que eu a possa agarrar, corre na sua direção, não para longe do fogo, mas direita a ele. Um grito irrompe de mim:

— Nãããão!

E largo a correr atrás dela, não para as chamas, mas através de ervas, galhos e arbustos em combustão, a correr por entre fumo em deslocação, em desespero para não perder de vista a cadela aterrorizada. Não pode morrer, não morrerá, não desta vez. Salvá-la-ei. Não falharei. Salvá-la-ei mesmo que isso me mate. Corro, corro, tropeço e caio, levanto-me e corro de novo.

— Storm! Espera!

Deslizo por uma ladeira abaixo, vejo as chamas entre as árvores, vejo um grande ramo a cair num sem-número de faíscas brilhantes. Detritos por todo o lado, combustível para o monstro. Lá está a cadela, no chão, talvez ferida. Não grites, Dau, ou ela foge outra vez. Obrigo-me a avançar devagar; com um olho no fogo, agacho-me ao lado dela. Engancho a mão na sua coleira e respiro de novo. Digo em voz suave:

— Storm. Está tudo bem. Vamos.

Ela está a farejar qualquer coisa ali na vegetação rasteira. Um pássaro morto? Não, é outra coisa. Um brinquedo de criança? Uma boneca?

— Vamos, Storm.

Ela resiste à pressão na coleira. Estendo a mão para o que quer que aquilo seja, visto que ela não o larga. A coisa contorce-se e depois fica quieta. Não é um brinquedo. Faço deslizar uma mão por baixo e levanto-a, desajeitadamente. Tenho de manter o controlo de Storm. Mas quase a largo porque a coisa na minha mão e no meu braço é... Não sei o que é. Está viva e não é um animal e não é um bebé, é...

O fogo está a vir. Volto para a casa, segurando a coisa no meu braço esquerdo, agarrando a coleira de Storm com a minha mão direita. O calor vem atrás de mim; o monstro ruge. E está quase escuro. A coisa que seguro solta um guincho de terror e sinto mãos minúsculas a agarrar-me a camisa. Pensei muitas vezes em morrer. Pensei em todo o tipo de formas como isso me poderia acontecer. Nunca nem nos meus sonhos mais loucos podia ter imaginado isto. Se conseguisse acreditar em orações, rezaria. Posso apenas esperar que não doa muito. Nem consigo rezar para que Storm sobreviva. É tal e qual como da última vez. Não consigo salvá-la. Vamos morrer todos.

Saio a cambalear de entre as árvores com as botas a fumegar. A senhora Juniper está a olhar para o céu, o céu tão escuro que poderia ser noite. Largo a coleira de Storm e ela corre para a sua dona como qualquer cão vulgar, saltando para lamber o rosto da contadora de histórias. O martelar do meu coração percorre-me o corpo todo. Pelo menos trouxe-a para casa, penso. A pequena coisa nos meus braços agarra-se a mim, enterrando a cabeça no meu peito. Sinto-a a tremer e aperto-a mais.

— Está tudo bem — murmuro. — Vais ficar bem.

Há um novo som, um novo troar. O ar quente fica de repente gélido. E as lágrimas no meu rosto unem-se às primeiras gotas frias de chuva.


Capítulo 34

BROCC

Houve um incêndio, não há muito tempo. Sentimos o cheiro do fumo. Vimo-lo erguer-se no céu algures para sul, não muito longe. Os pássaros voaram para aqui, as suas vozes estridentes de avisos. Vi Eirne nos bosques, com um desses minúsculos passarinhos no ombro. Enquanto os observava, ela pegou nele com o dedo e falou com ele, mas não ouvi as palavras. Estou convencido que aquelas criaturas são mensageiros entre mundos.

Depois do fogo veio chuva, não um aguaceiro leve de verão, mas uma chuvada torrencial gelada e forte que durou bastante tempo. O povo de Eirne observou-a, a murmurar. Quando terminou, Nightshade disse que não era, seguramente, uma tempestade vulgar. Que eram tempos estranhos.

O incêndio apagou-se, cremos. O fumo desapareceu. Mas haverá cheias. Espero que isso não impeça Liobhan de me vir buscar.

Volto para a minha casinha. Continuo a trabalhar até que os meus dedos já não conseguem nem tanger a harpa nem segurar a pena. A chuva abrandou para um chuvisco constante. Vou até à porta, a pensar que devia esticar as pernas e respirar um pouco de ar fresco. Mas paro com a porta aberta apenas uma fresta. Ali, debaixo das árvores, estão dois dos pequenos de Eirne, os que me trouxeram comida esta manhã. Sempre me perguntei como seres que mal me chegam ao joelho conseguem transportar o jarro e bandeja com as minhas provisões todo o caminho desde o mundo humano. Aquele fardo parece demasiado pesado para gente tão delicada carregar muito longe. Agora percebo. Um deles segura um jarro miniatura, um recipiente que só poderia levar um gole ou dois de líquido. O outro traz uma bandeja não maior do que a palma da minha mão, onde se encontra um minúsculo pedaço de pão, uma fatia de queijo que caberia num dedal e uma maçã do tamanho de uma amora. A alguns passos da minha porta, pousam o jarro e a bandeja e um deles passa-lhes uma mão por cima, a sussurrar. Num piscar de olhos, as coisas ficam do tamanho certo para um homem como eu.

Talvez este feitiço fosse secreto; talvez não fosse para eu ver. Não pergunto, embora ache que os pequeninos me viram a observar. Abro mais a porta, faço um aceno de agradecimento e baixo-me para pegar no jarro e na bandeja, com cuidado para não entornar. Quando volto para dentro, estou a pensar muito. Um feitiço para tornar as coisas pequenas, para serem transportadas com mais facilidade. Um feitiço em sentido inverso para as tornar outra vez grandes. Um encantamento não lançado por um druida nem por uma mulher sábia ou uma rainha das fadas, mas pelos mais pequeninos do reino de Eirne, os que poderíamos pensar serem os menos poderosos. Acredito ter resposta para a pergunta que tem atormentado os homens poderosos de Breifne e também a nossa equipa. Creio que sei como a Harpa dos Reis foi levada dos Nemetons.

Casaco-de-Cardo está desaparecida. Rowan chama-me para ajudar a procurá-la. Mas os regatos da floresta transformaram-se em torrentes descontroladas; os lagos invadiram as margens e espalharam-se por baixo das árvores. Não há vestígios da pequenina. Ninguém sabe para onde foi nem por quê. Ninguém menciona o Povo-Corvo e também não vemos sinal dele, mas na minha cabeça está aquele primeiro vislumbre de Pequeno-Capuz deitado no seu sangue e as formas negras empoleiradas nos ramos em cima. Tinha pensado em tocar música mais tarde, para animar o povo de Eirne. Mas não terei coragem para isso esta noite.

As minhas botas encontram-se junto à porta, todas molhadas. A minha capa pinga no seu cabide. Trouxeram-me um pequeno fogão esquisito. Está agachado no canto, o seu brilho mais sinistro do que encorajador, embora aqueça de facto a cabana. Não quero investigar como funciona; parece uma criatura estranha, parte sapo, parte besouro, com olhos ardentes e goela escancarada e não precisa de atenção. Estou sentado na minha enxerga com o cobertor em volta e tento não pensar em Casaco-de-Cardo lá fora sozinho. Ao invés, penso em Eirne. Terminarei a canção que ela pediu; cantá-la-ei. Onde e quando isso deverá acontecer não me disse. E não posso perguntar-lho. Há agora algum constrangimento entre nós. Entendi mal as suas intenções a noite passada, acho eu, e as minhas palavras feriram-na. O que quer de mim? O que posso oferecer, quando tenho de partir do mundo dela no solstício de verão?

Claro que o sei. Ela disse-o. Mas pensei que eram apenas palavras, um discurso grandioso do tipo que Rodan adota, belas declarações de coragem e esperança, talvez com pouca substância. Ela quer que eu a ajude. Quer que fique ao seu lado e lute para manter o seu povo em segurança. Quer que eu combata o Povo-Corvo, se não com uma espada, então com a minha música. Eu, Brocc, filho de uma curandeira local e de um mestre colmeiro, transformado em herói de proporções míticas, um conto notável. Ela quer que eu fique.


Capítulo 35

DAU

Sob a chuva forte, passo o meu estranho fardo à senhora Juniper. Desamarro Blaze e levo-o para se abrigar num anexo atrás da casa. Esfrego-o todo e certifico-me que tem água. De volta à casa, a velha está sentada perto da lareira. Envolveu a criatura numa veste qualquer antiga e embala-a nos braços. Dá-me instruções e eu sigo-as, contente por ter alguma coisa que afaste a tempestade que se está a formar dentro de mim, algo que não preciso nem quero. Seco a cadela com um pano velho. Não parece afetada pela sua aventura, embora as patas estejam doridas. A senhora Juniper passa-me unguento; esfrego-o nas almofadinhas das patas, conforme as instruções. Elogio a cadela pela sua coragem e espero que ela entenda.

Atiço o lume na lareira e ponho água a aquecer. A senhora Juniper, segurando a criatura nos braços, procura uma cesta pequena, forra-a com um pedaço de pele de ovelha e depois instala aí a coisa, perto da lareira, mas não demasiado próximo. Fico a olhar, dividido entre o fascínio e a descrença. Isto parece um sonho estranho. Mas as queimaduras nas minhas mãos, os estragos nas minhas botas, o cheiro do fumo que se agarra às minhas roupas e o martelar da chuva no telhado dizem-me que é real, aconteceu e esta criatura que não devia existir está aqui mesmo na casa connosco. Parece-se um pouco com um ouriço-cacheiro. Mas tem mãos como as de uma criança humana e o seu rosto é uma mistura indescritível. Do lado esquerdo tem queimaduras, e quando a senhora Juniper toca no sítio com dedos suaves, a criatura solta um queixume.

Não consigo pensar em que perguntas fazer. Por fim, tudo o que digo é:

— O que posso fazer para ajudar?

— Unguento, o mesmo que para Storm. Ligadura. Água. Depois ter esperança.

Aponta; vou buscar o que ela precisa. A criatura está agora a chorar, de dor. Seguro-a enquanto a senhora Juniper aplica o unguento e passa a faixa em volta do seu corpo. É tão pequeno e frágil que tenho receio de o partir. Quando o ser está bem enfaixado e instalado na cesta, a mulher sábia dá-lhe três gotas de alguma coisa de uma garrafa verde e ele adormece. Estou sentado no chão ao lado da cesta. Storm aproxima-se. Sinto o seu calor contra mim.

A senhora Juniper tira a chaleira do lume e começa a preparar uma infusão.

— Mantiveste a cabeça fria hoje — diz. — És mais do que o homem que pensava que fosses, Nessan. Muito mais.

Não é preciso mais do que aquelas palavras, palavras simples. Apenas essas e a forma adormecida da cadela ao meu lado e a respiração lenta e pequenina da criatura enfaixada. Uma tempestade de choro apodera-se de mim, fazendo-me dobrar em dois. As minhas mãos erguem-se para escudar o rosto. Os meus olhos estão fechados com força, mas veem tudo, todos os momentos de dor, todos os momentos de fracasso, todos os golpes, todas as vezes que me mostraram que eu era fraco e inútil e deveria ter sido estrangulado à nascença. Não consigo parar. Choro com a recordação de Snow como cachorrinha, aninhada nos meus braços e a alegria profunda daquele primeiro dia. Choro com a recordação do seu último dia. Os braços de Ruarc em volta do meu peito como uma banda de ferro e a faca de Seanan e Snow a ganir, a ganir. Ponho a cabeça para baixo, nos joelhos, mas na minha mente o som terrível continua sem parar.

Storm acorda, mexe-se. Sinto o roçar da sua língua na minha face a secar-me as lágrimas.

— Chora se quiseres. — A senhora Juniper coloca uma taça da sua infusão ao meu lado na lareira. — E bebe um pouco disto, se puderes. Dar-te-á ânimo.

Deuses, o que pensará de mim? Inspiro fundo algumas vezes, de forma entrecortada e soluçante. Depois faço o que me diz. O que quer que esteja na infusão, é uma bênção para a minha garganta ressequida.

— Desculpa — tartamudeio. — Sinto muito. Devia ir embora, partir, o fogo, os homens... — Limpo o rosto na manga. Tento levantar-me.

— Fica aí, Nessan. — A voz da velha é suave. — Fica à nossa lareira. Poderás contar-nos uma história, quando estiveres preparado.

Sei o que ela quer e não consigo fazê-lo.

— Não conto a minha história. — Deuses, por que estas lágrimas não param? — Para lá destas paredes não posso falar, senhora Juniper.

— Usaste a tua voz para nos avisares do fogo.

Não tenho resposta para aquilo.

— E podes usá-la outra vez, visto que estamos dentro destas paredes e não há ninguém para te ouvir senão eu e Storm e esta pequenina, que não vai acordar tão depressa. Penso que há uma história que precisas de contar, Nessan. E agora é boa altura. Talvez quando terminares eu te conte uma história em troca.

Fico em silêncio. Ela quer a minha história, embora como saiba que tenho uma seja um mistério. Talvez ela consiga mesmo ler os meus pensamentos.

— Penso que talvez tenhas tido um cão. Um cão que amavas ternamente como eu amo a minha companheira. Vejo como Storm confia em ti. Arriscaste a tua vida para a salvar. Esse tipo de ação não surge do nada. Conta-me uma história sobre a tua cadela. Quando choraste, foi por ela?

— Não falo dessas coisas. Com ninguém.

— Talvez não. Mas podes contar uma história. Uma história sobre um menino e uma cadela. Se era uma boa cadela, talvez mereça que se conte a sua história.

Sinto novo fluxo de lágrimas. Afasto-as à pressa.

— Era uma vez um menino. Um menino que nunca devia ter nascido. Foi o que a família disse, o pai, os irmãos. A mãe morreu quando o deu à luz. Nunca lhe perdoaram por isso. — Deitar as palavras cá para fora é como lutar com um inimigo invisível, algo que me pode atacar de todos os lados ao mesmo tempo. Mas na minha mente está a voz de Garalt, firme e calma. Um passo de cada vez, Dau. Consegues fazer isto. — O menino tentou crescer forte. Fez o melhor que pôde. Era filho de um chefe de clã e não lhe negaram lições, treino... Mas os irmãos eram mais velhos, mais fortes, melhores a contar mentiras. Ele... ele começou a esperar os golpes. Aprendeu que merecia ser magoado, abandonado, alvo de piadas abjetas. Aprendeu que se houvesse problemas, a culpa era sempre sua. Os irmãos eram engenhosos nos seus jogos cruéis. Se fizesse um amigo, como um novo preceptor jovem que veio trabalhar com os rapazes, então esse amigo logo teria a sua mente envenenada contra o rapaz mais novo, ou perderia o seu cargo e seria mandado embora. — Não me consigo lembrar do nome daquele preceptor, mas era gentil. Compreendeu que eu não era estúpido nem malvado nem louco, estava apenas aterrorizado. Penso que percebeu os truques de Seanan e a obediência inabalável de Ruarc à vontade do nosso irmão mais velho. E então, de um dia para o outro, aquele homem bondoso foi-se embora.

Agora a parte mais difícil. Não consigo deitar as palavras cá para fora.

— Conta a Storm — diz a senhora Juniper. — É uma boa ouvinte.

— Quando aquele menino tinha onze anos ele... Houve uma cadela das cavalariças que teve cachorrinhos e um amigo bondoso deu-lhe um só para ele. Os irmãos eram jovens agora, o mais velho tinha dezasseis anos e estava a aprender a ser chefe de clã, o outro catorze e queria fazer tudo o que o irmão mais velho fazia. Assim o menino era deixado em paz e sozinho com mais frequência e esse tempo precioso passava-o com a sua cadela. Chamava-se... chamava-se Snow. De um branco puro, com olhos azuis. Considerada por alguns como uma aberração, ou com toda a probabilidade teria arranjado casa noutro sítio, como acontecera com os seus irmãos de ninhada; era uma linhagem de bons cães de caça. Ele guardava-a no celeiro. Não ousava levá-la para dentro de casa, embora outros cães aí andassem livremente. Teve-a durante dois anos inteiros. O seu amigo bondoso, que trabalhava nas cavalariças, ajudava-o a cuidar de Snow e a garantir que ela não ficava sozinha à noite. Este amigo mostrou ao rapaz como treinar a cadela. Ela era esperta e bonita. Ensinou-o que ele não era estúpido. Que podia ser amado e podia, por sua vez, amar. E esse amigo bondoso começou a ensinar outras coisas ao rapaz. Como fortalecer o corpo. Como usar a sua força para se proteger. Como lutar. — Olho para Storm, cuja cabeça está agora no meu joelho. Lanço uma olhadela à cesta com o seu pequeno ocupante peculiar.

— Mas aconteceu alguma coisa — comenta a senhora Juniper. — Alguma coisa que é difícil de contar, hum?

Engulo em seco e endireito os ombros. Ordeno ao inimigo invisível que recue.

— Eles sabiam que ela lá estava, claro — obrigo-me a dizer. — Esperaram. Durante dois anos inteiros esperaram, até que o rapaz quase acreditou estar seguro. Quase acreditou que com o seu amigo bondoso e a sua amada Snow e as coisas novas que estava a aprender se tornara forte o suficiente e os horrores tinham terminado. Só tinha de se manter fora do alcance do pai e evitar ficar sozinho com os irmãos e crescer um pouco mais e poderia sobreviver e tornar-se um homem e senhor de si. Então veio um... então chegou um dia. Um dia em que o seu amigo estava fora. Um dia em que entrou no sítio onde guardavam Snow e aí encontrou os irmãos. Um dia em que aprendeu que até o amor mais verdadeiro de todo o mundo de nada serve, se não somos fortes o suficiente. — Pestanejo algumas vezes e tento falar com voz firme. — O irmão do meio agarrou-o. O irmão mais velho matou Snow. Lentamente. Com uma faca. Obrigaram-no a assistir. Ela gritou que ele a salvasse, uivou que ele a ajudasse e ele mordeu e pontapeou e lutou e não conseguiu alcançá-la. Quando tudo terminou, o segundo irmão largou-o e ele sentou-se na palha com Snow nos braços, ficou ali sentado enquanto o sangue dela lhe empapava as roupas, cobria as mãos e se misturava com as suas lágrimas. Os irmãos disseram ao pai que o rapaz a matara numa onda de fúria porque ela não obedecia a uma ordem. O rapaz não chorou quando o espancaram. Traíra aquela que amava. Parecia um castigo menos que suficiente.

— Oh, Nessan — diz a mulher sábia. Levanta-se e começa, em silêncio, a preparar comida para nós. — E contudo — acrescenta, passado algum tempo — ele continuou, não foi? Apesar disso, continuou e tornou-se um homem. Como aconteceu isso?

— O amigo dele foi mandado embora da casa do chefe de clã. O rapaz fugiu. Juntou-se a esse amigo bondoso a trabalhar noutro sítio e a sua família não fez grande esforço para o trazer de volta, embora soubessem onde estava. O rapaz tornou-se forte. Adquiriu experiência com armas. Aprendeu que podia ser um guerreiro. Aprendeu... aprendeu a não entregar outra vez o seu coração. De qualquer forma, era agora uma pobre coisa partida. Quem o quereria?

A senhora Juniper ergue uma mão para limpar a face. Não diz mais nada até que a refeição está pronta em cima da mesa.

— Devias comer.

— Devia ir embora — digo eu, levantando-me. Não creio que Rodan e os seus homens venham aqui agora. Com a chuva ainda a cair, com certeza regressaram à corte há muito tempo. Espero que a estrada não esteja inundada. — Trouxe um cavalo sem pedir permissão. — Sento-me à mesa, a pensar se conseguirei comer depois disto. Sinto-me esquisito. Não acreditara que conseguisse contar a história a alguém. Sobretudo a uma pessoa como a senhora Juniper. — Não era a história de Nessan — digo agora. — Nessan não consegue falar.

— A história está segura comigo. Verás que as mulheres-sábias são boas a guardar segredos. Come, por favor. Com essa cavalgada pela frente e sabe-se lá as complicações que terás de enfrentar no teu destino, precisas de alguma coisa no estômago.

Obedeço. A comida é uma espécie de papa temperada com ervas. É quente, simples e nutritiva, e quando termino, sinto-me de algum modo melhor, embora esteja cansado e o meu rosto arda. Ela vê-me a tocar-lhe.

— Queimado. Não com gravidade, só um pouco chamuscado. Devia aplicar-te unguento antes de partires.

— Senhora Juniper?

— Sim, Nessan? — Foi buscar outra vez o unguento, o mesmo que usou na estranha e pequena criatura.

— Aquela... coisa. — Lanço uma olhadela à cesta. — O que é? O que farás com ela?

— Cuidarei dela o tempo que for preciso. A sua gente virá e levá-la-á para casa. Talvez em breve, talvez mais tarde. Depende da chuva. O caminho entre lá e aqui pode estar inundado durante algum tempo.

Não sei bem o que posso perguntar. Ainda estou a achar difícil acreditar que a criatura existe, mas vi-a com os meus olhos. Toquei nela. Peguei-lhe e senti-a a agarrar-me, com força, como se eu fosse o seu salvador. Embora tenha sido Storm que a salvou.

— Aquele lugar para lá da parede existe? O lugar onde Li... para onde Ciara foi?

— Acredito que foi de lá que a pequenina veio.

— Como a gente dela vai saber que está aqui?

— Temos as nossas maneiras de passar mensagens. Agora, Nessan, estou a confiar em ti como confiaste em mim. Não fales disto quando regressares à corte. Nem todos lá são amigos da minha espécie.

De facto. Não lhe digo que foi o futuro rei de Breifne que ateou o fogo que quase a matou, ou pelo menos ordenou que fosse ateado. Não lhe digo que suspeito que ele não tinha qualquer plano para a avisar com antecedência. Mas talvez devesse.

— Nem são amigos dos que habitam para lá da parede — continua a senhora Juniper. — É uma época de desconfiança. Uma época em que é necessária uma mudança, Nessan, se não queremos que Breifne inteira caia no caos.

Terreno perigoso.

— Disseste que me contarias tu uma história? — pergunto, mudando de assunto.

— Manterei essa promessa. Mas não agora, creio. O fogo terminou. A chuva está a abrandar. Tens razão, está na altura de regressares. Deixa-me tratar da tua cara e das mãos e depois deves partir. Cavalga com cuidado; não quero que te aconteça nada. Salvaste três vidas hoje, não só a de Storm e da pequenina, mas também a minha. Aquele rapaz cresceu e tornou-se um bom homem. Um homem forte e bondoso como o seu mentor.

— Eu disse...

— Disseste que não era a história de Nessan e isso, penso, é verdade. A minha avaliação do homem dessa história mantém-se inalterada.

Fico quieto enquanto ela espalha unguento no meu rosto e nas mãos e me diz para procurar algo semelhante na corte e continuar a aplicar duas vezes por dia. Enche o meu odre e embrulha um pouco de comida para eu levar. Até arranja alguma aveia para Blaze. Fiquei surpreendido com o anexo onde ele está abrigado, um sítio de tamanho razoável onde é evidente que já se guardaram cavalos.

— O fogo — obrigo-me a dizer, não querendo contar-lhe, mas sabendo que devo. — Foi ateado pelo príncipe de Breifne e um grupo de amigos. Queriam expulsar essas coisas-corvo. Não foi bem pensado. Partiram sozinhos. Acho que não disseram a ninguém ou teriam sido impedidos. Pensei que devia contar-te. Eles sabiam que vivias aqui em cima. Devem ter sabido que estarias em perigo. Só que... o príncipe tem muito medo de qualquer coisa... — Lanço uma olhadela à criatura na sua cesta. Faz pequenos ruídos fanhosos enquanto dorme. — Qualquer coisa misteriosa. Se fez isto uma vez, poderá fazê-lo de novo. Estás vulnerável aqui sozinha.

Ela sorri, sem dizer nada. Percebo que há alguma coisa de que não me apercebi, uma coisa tão importante que não posso imaginar por que razão não pensei nisso antes. O braseiro; as ervas; a oração silenciosa. A sua calma notável diante da morte iminente. A súbita carga de água violenta num dia em que não se esperava chuva. Não posso acreditar que ela tenha feito aquilo com magia. Não posso acreditar que falou com deuses ou com espíritos ou com alguma entidade só conhecida de mulheres-sábias e fez aquilo acontecer.

— Acho que o príncipe Rodan não é o único que receia o misterioso — observa a senhora Juniper. — Mas estás a aprender, Nessan. Não sou nenhuma feiticeira, acredita em mim. Um pouco de magia do lar, só isso. Tivemos sorte hoje. Sorte com o tempo. Sorte com a presença de espírito que te trouxe aqui a tempo de ajudares. Sorte, talvez, na minha escolha de ervas ou na minha escolha de palavras ou na gratidão do Outro Mundo por um deles ter sido arrancado à morte. Quem sabe? Eu estou viva e tu estás vivo e a pequenina recuperará e ficará bem outra vez. A minha casa ainda está de pé, embora receie que as casas altas de muitas criaturas tenham caído hoje. Quanto ao príncipe Rodan... lembra-me, da próxima vez que te vir, para te contar uma história de dois irmãos.


Capítulo 36

LIOBHAN

Faltam dois dias para a véspera do solstício de verão e o sol voltou por fim. Deve estar tudo molhado na floresta. Ir até ao Portal de Eirne e voltar vai ser muito mais lento. Mas ainda possível. Tem de ser.

Dau e eu temos ordens para não darmos nas vistas e mantermo-nos longe do caminho de uma certa pessoa. Dau também está agora em apuros. Não falei com ele sozinha, por isso não conheço a história toda, mas sei que ele regressou naquele dia com queimaduras no rosto e nas mãos. Sei que a senhora Juniper e a cadela sobreviveram ao fogo, graças à chegada da tempestade repentina. As pessoas ainda falam da carga de água e algumas usam palavras como misteriosa. Dau não regressou só queimado e exausto. Parecia mudado. Como se tivesse visto alguma coisa demasiado horrível para expressar por palavras.

Illann ficou descontente por causa do cavalo, embora estivesse bem, apenas cansado. Archu ficou descontente por não ter sido consultado primeiro, numa altura em que devíamos estar todos a seguir o meu plano e a manter-nos afastados de problemas até à véspera do solstício de verão. Dau teve sorte quando voltou. Nessa altura, o regente enviara uma série de homens para controlar o fogo e eles ficaram todos ensopados quando a chuva chegou e, na confusão do regresso à corte, Dau juntou-se ao grupo deles e passou despercebido, tendo o príncipe e os amigos já regressado. Depois havia cavalos que precisavam de cuidados e o mudo Nessan começou a trabalhar com o resto dos moços de estrebaria e foi tudo.

Acho que o príncipe também está em apuros. Cathra não pode ter ficado contente com todo aquele episódio. Uma tentativa para expulsar o Povo Corvo, andam a dizer. Um pouco como tentar esmagar uma mosca com uma acha de guerra. Tudo o que o príncipe fez foi chamar a atenção das pessoas, outra vez, para os seus defeitos de carácter e isso não é bom estando o ritual tão próximo. Desde então, Rodan tem estado sossegado. Não houve mais discursos empolgantes. Nada de mais coisas vibrantes sobre acabar com a ameaça e avançar para melhores tempos. Diz-se que ele voltou abalado pelo que aconteceu lá em cima. Quanto a Cathra, está com um aspecto horrível. Tenho pena dele. Se fosse a ele, ia para casa mal Rodan fosse coroado. Mas o regente é o tipo de homem que cumpre o seu dever. Com toda a probabilidade, vai ficar e tentar manter as coisas num rumo constante. Desejo-lhe sorte.

Dois dias. O meu tornozelo ainda dói. Passo tempo com as lavadeiras, mas não posso estar de serviço ao balde. Esfrego nódoas, penduro coisas a secar, varro o chão. Detesto a sensação de nervosismo no meu estômago, a que me acompanhará até que termine o solstício de verão. Quando trabalho muito, acalma-se um pouco. Dana e a sua equipa são boas para mim. Estão demasiado ocupadas para ficar tristes e animam-me com as suas piadas. O marido de Banva voltou em segurança daquela missão noturna. Eu detestaria ser um homem de armas a trabalhar sob a liderança de Rodan.

No dia antes da véspera do solstício de verão, Archu chama-nos para uma conversa. Todos nós, incluindo Illann e Dau. A regra sobre nenhum contacto entre as equipas já foi infringida tantas vezes que talvez já não exista.

Archu tamborila com os dedos; eu cantarolo entredentes de vez em quando. O canto vazio onde devia estar a harpa de Brocc lembra-me de como esta missão é perigosa. Tanta coisa depende do ritual e do nosso regresso a tempo. Ainda não sei como e quando as duas harpas serão trocadas. O irmão Farannán quererá que a Harpa dos Reis esteja de volta à sua caverna amanhã à noite, pronta para ser levada para o recinto do ritual na manhã seguinte. Suponho que devolverão a harpa de Brocc mais tarde, discretamente.

Não disse a Archu que estou muito preocupada. Não posso. Tenho muita esperança que Brocc esteja bem. Que Eirne e os outros não o tenham mudado. Que ele saia e ajude a devolver a harpa aos Nemetons e, quando tudo terminar, volte para a Ilha dos Cisnes connosco e seja outra vez o seu velho eu. Mas tenho medo. Ele está naquele sítio há demasiado tempo.

— São tempos de inquietação para estas pessoas mesmo sem a nossa missão — diz Archu. — O regente está enervado; depreendo que discutiu com o irmão Marcán esta manhã por causa da aventura disparatada que provocou o incêndio na floresta. Lorde Cathra tomou o partido de Rodan, insistindo que as ações do príncipe mostraram que ele faria tudo, até arriscar a sua vida, para manter o seu povo a salvo. O irmão Marcán levantou algumas dúvidas. Mesmo no seio daquele círculo restrito há desacordo sobre esse assunto. Mas isso é irrelevante para a nossa tarefa. — Baixa a voz para um simples murmúrio. — Nessan, é bem possível que te tenham visto, ou a soltares as ovelhas na estrada ou mais tarde, lá em cima na colina. Não acredito que te tenham reconhecido. Podes ficar contente com isso. Já te dei a minha opinião sobre esse episódio; não é preciso dizer mais nada.

Pergunto a mim mesma quem falou daquela discussão a Archu. As possibilidades são muito limitadas; tem de ser alguém que ou estava presente quando o regente e o irmão Marcán conversavam, ou em posição de os conseguir ouvir. Suspeito de Brondus. Não pergunto.

— Quanto a amanhã de manhã — diz Illann. — Vão esperar até depois do pequeno-almoço para partirem. — Abro a boca para protestar e depois fecho-a de novo. — Isso atrairá menos atenção do que uma partida ao amanhecer. Vou ter três cavalos preparados. Se fizerem perguntas, Nessan está a fazer um trabalho para mim, a levar um cavalo a um agricultor. Tu, Ciara, vais só pelo passeio. Sobem até lá a um ritmo constante, para que ninguém os veja a puxarem pelas vossas montadas. Diz-nos outra vez a que distância fica esse lugar e quando podemos esperar-vos de volta.

— Fica no fundo da floresta, a nordeste da casa da mulher sábia. Não consigo dizer-te em quilómetros. O caminho até lá é... complicado. É provável que esteja pior depois das chuvas. Quanto a quando poderemos regressar, isso depende de todo o tipo de coisas. Coisas que não posso controlar. Parte do caminho é feita a pé. Mas espero que possamos trazer a harpa de volta antes do cair da noite, mesmo que seja só para não termos de cavalgar no escuro.

— Os guardas do portão serão escolhidos com cuidado, tanto para a vossa partida como para o regresso — explica Archu. — Quando voltarem, Nessan leva os cavalos para as cavalariças. Ciara e Donal trazem-me logo a harpa, para aqui. Esperemos que o instrumento não seja demasiado fácil de identificar, ou poderá haver problemas.

— Não creio que muita gente a tenha visto — respondo. — Isto é, além dos druidas.

— Tenham cuidado. Tu e Nessan devem levar armas. Discretamente.

Não é altura de iniciar uma conversa sobre ferro e o Outro Mundo. A senhora Juniper pode cuidar da minha faca, como fez da última vez. Gostaria de ter tempo para falar com ela como deve ser. Creio que deve ser uma espécie de vigilante, embora viva a certa distância daquela parede. Acredito que é uma pessoa que auxilia a movimentação entre mundos; que ajuda a avaliar quando se pode deixar alguém passar. Talvez muito mais. Gostava de saber o que aconteceu a Dau lá em cima. Gostava de saber o que lhe pôs aquela expressão no rosto. Está sentado mesmo ao meu lado e não proferiu uma palavra. Não creio que consiga fazer-lhe perguntas sobre isso, mesmo quando estivermos sozinhos.

— Arrumem os vossos alforges esta noite — diz Illann. — Deixem-nos aqui. Certifiquem-se que têm tudo o que precisam e contem também com Donal. Se o percurso é assim tão longo, vão precisar de forragem para os cavalos bem como provisões para vocês. — Está a franzir o sobrolho. — Se houver inundações, será mais lento. Talvez muito mais lento. — Lança uma olhadela a Archu.

— Não corram riscos tolos — diz o nosso chefe de missão. — Não queremos que vocês ou os animais fiquem para lá à noite com pernas partidas ou cabeças partidas, ou afogados num lodaçal. Usem o vosso bom senso. Desde que a harpa cá esteja para o ritual, terão feito o vosso trabalho.

— Sim, tio Art.

Por que me sinto mentirosa? Eirne disse que precisava de uma pessoa que escolhesse sempre o caminho da sabedoria e da justiça. É o tipo de pessoa que tenho tentado ser desde que tenho idade suficiente para saber o que isso significa. É quem quero ser. Se completarmos a missão para a qual Cathra nos contratou, então provarei que não sou essa pessoa. Pôr Rodan no trono não tem nada a ver com sabedoria e justiça.

Mas se agir como Eirne deseja, deixarei Archu ficar mal. Deixarei ficar mal a minha equipa. Deixarei ficar mal a Ilha dos Cisnes.


Capítulo 37

BROCC

Não posso deixar as coisas como estão entre mim e Eirne. Tenho de falar com ela francamente, como faria com Liobhan. Mas ela não é Liobhan, é o seu próprio eu misterioso e maravilhoso e, cada vez mais, sinto que não consigo ter um discurso coerente quando estamos sozinhos juntos. Ao invés, coro, gaguejo e comporto-me como um miúdo de catorze anos que não tem coragem suficiente para convidar uma menina bonita para dançar.

Completei a canção grandiosa que Eirne pediu, embora não saiba quando e como será cantada. Estará à espera que eu a execute perante a corte de Breifne? Seria uma oferenda muito surpreendente de um grupo de músicos itinerantes cujo repertório habitual é tão diferente. Tenho de lhe perguntar. E tenho de explicar por que a perturbei na outra noite; por que pareci repeli-la. Não sei como começar.

Controlo-me. Visto a minha capa, pois o dia ficou fresco. Talvez a encontre no pavilhão, à procura de respostas na sua taça de divinação. Ou a caminhar pelos bosques, acompanhada por passarinhos. Ou em conselho com Nightshade e Rowan. Espero encontrá-la sozinha.

Antes de poder levar a mão à porta, alguém bate ao de leve, a pedir para entrar. Quando a abro, lá está Eirne, como se convocada pelos meus pensamentos.

— Posso entrar? — O sorriso dela é doce e franco; não parece uma rainha. Uma rajada húmida segue-a para dentro da minha pequena casa. Ela traz uma capa com capuz para se proteger da frialdade. — Vai estar bom amanhã — diz e fecha a porta.

Pego na sua capa molhada e penduro-a num prego. Dispo a minha capa e ponho-a de lado.

— Senta-te, por favor. Estou contente por estares aqui. Eu... — As palavras somem-se. Tento de novo. — O tempo anda a pregar-me partidas. Quando é a véspera do solstício de verão? Amanhã? No dia a seguir?

— Neste reino, não contamos os dias como as pessoas fazem no mundo humano. Mas sim, dormirás mais uma noite debaixo deste teto antes de a tua irmã te vir buscar.

Pigarreio e começo de novo.

— Penso que te ofendi na outra noite. Eu... afastei-te. Se ficaste magoada, sinto muito.

Eirne fita as mãos, entrelaçadas no joelho. Está a usar um vestido muito simples, verde como pinheiros de inverno. O cabelo está apanhado numa trança que lhe cai pelas costas, atada com uma fita verde. Fiquei acordado nesta pequena habitação, com saudades de casa. Preocupei-me com Liobhan. Senti a falta da minha família; senti-me à deriva e confuso. No entanto, quando olho para Eirne, o meu coração dói por ter de a deixar tão breve. E o povo dela, Rowan, Nightshade, Verdadeiro e os pequeninos? E o Povo Corvo? Como posso ir embora? Há outra pergunta que devia fazer e percebo que não consigo. Seja qual for a resposta, parece uma desgraça.

— Cantas para mim, bardo? — A voz de Eirne é como a primeira flor da primavera, delicada, hesitante.

— Claro, se o desejares.

Eirne levanta-se.

— Rowan disse que deixou aqui hidromel. Onde estão as tuas taças? Ah, aqui.

Imagino que o pequeno fogão fica mais brilhante quando Eirne passa por ele? O frasco de hidromel está em cima da minha mesa de trabalho, ainda rolhado, com duas taças ao lado. Ela enche-as e passa-me uma. Senta-se na cama e dá uma palmadinha no espaço a seu lado.

— Vem sentar-te mais perto. Estás a tremer. E diz-me o que te pôs essa sombra nos olhos. Não fiquemos constrangidos; vamos ser honestos um com o outro. Não estou a brincar contigo, Brocc. Não sou uma dessas rainhas dos contos antigos, que atraem infelizes mortais com os seus encantos e depois os tratam como brinquedos que provocam e atormentam. O que eu quero é muito mais simples do que isso.

Sentados ali perto um do outro, a beberricar o nosso hidromel, a minha mente acalma-se. Todo o dia os meus pensamentos andaram às voltas, devoraram-se uns aos outros. Agora, aquietam-se; sinto-me, de forma alarmante, como uma página em branco à espera que lhe escrevam em cima.

— Brocc?

A voz de Eirne é mel e especiarias. Segura a taça na sua mão esquerda e pousa a direita no meu joelho. Pretende reconfortar-me, talvez. O efeito é um pouco diferente.

— Dizes para não ficarmos constrangidos. Mas eu estou constrangido, Eirne. O que queres não é simples. És uma rainha com um plano grandioso para mudar o teu mundo. Pedes-me que faça parte desse plano. Que seja um herói. Pedes-me que deixe para trás tudo o que me é familiar e amado.

— Essa parte talvez seja menos simples. Mas esta parte — mexe os dedos com suavidade — é tão simples como a mudança do inverno para a primavera. Ou assim sou levada a crer.

— Eirne... — Os dedos dela tornam difícil concentrar-me. O que quer dizer com Assim sou levada a crer? Estará a dizer-me que ela, também, não conhece as relações entre homem e mulher? O meu conhecimento vem todo de canções e contos, ou das coisas que o meu pai e o meu irmão, Galen, me explicaram. — Em todas as histórias que conheço, quando alguém da minha espécie se deita com alguém da tua espécie, a coisa termina em desastre. — Um instante depois, percebo a falha no que disse.

— Devo recordar-te as tuas origens? Penso que não. Mas não conheces a minha história. É breve; tenho escassas recordações do tempo antes de me trazerem para aqui.

Sobressalto-me e fico reduzido ao silêncio. Ela contou-me que era da mesma espécie do que eu, uma mistura, com o sangue de duas raças a correr-lhe nas veias. Eu fiz várias suposições e parece que estava enganado.

— Conta-me, por favor. — Pouso a minha taça e pego na sua mão entre as minhas.

— Brinquei contigo certa vez — diz Eirne. — Sugeri que podias ter sido criado por texugos ou enviado rio abaixo numa cesta de vime. Eu fui criada por humanos, como sua filha. Até aos cinco anos tive uma mãe e um pai, uma irmã e um irmão, um gato e um cão e uma casa na orla da floresta. Não sabia que o meu pai não era o meu verdadeiro pai, embora reparasse que era mais severo comigo do que com os filhos mais velhos. Era razoavelmente feliz. Mas inquieta; sempre a querer deambular para os bosques, mais longe do que nos era permitido. Sempre a querer falar com os esquilos, coelhos e martas. A querer fazer amizade com os pássaros, para eles se empoleirarem nos meus ombros e nas minhas mãos e chilrearem as suas mensagens. O meu pai zangava-se quando me ouvia cantar para eles, falar com eles. O pior castigo para mim era ficar confinada dentro de casa com as portadas fechadas. Quase tão mau como proibirem-me de cantar. Sempre adorei cantar. Quando vieste para aqui, quando cantámos verso por verso daquela cançoneta sobre os animais, senti um prazer indescritível. Era como se tivesse encontrado uma parte de mim que faltava: a minha segunda voz.

— Eu senti o mesmo.

— Quando tinha cinco anos, um homem saiu da floresta para me vir buscar. Um homem que não se parecia nada com o pai que eu conhecia, pois era alto, magro e pálido e usava um grande manto escuro que se movia como fumaça ao vento. Era o meu pai; o meu pai do Outro Mundo, que viera levar-me para casa. Pagou ao meu pai humano em ouro. Recordo o que ele disse. Neste mundo, ela será a mulher de um agricultor, a alimentar porcos e galinhas e a dar à luz um bebé por ano até morrer disso. No meu mundo, ela será uma rainha. A minha mãe implorou de joelhos, agarrada ao manto rodopiante, mas era como se ela não existisse. O meu irmão e a minha irmã, comprimidos de olhos arregalados num canto, não disseram nada. E assim fui trazida para este mundo. O meu verdadeiro pai não me criou. Deixou-me e não sei onde está, ou se ainda vive. Fui criada por gente gentil como conheceste aqui, gente de todas as formas e tamanhos. Aos cinco anos, arrancada a tudo o que me era familiar, descobri que era a sua rainha. Da melhor maneira possível, ensinaram-me o que eu precisava de saber. É boa gente. Mas não são da minha espécie, Brocc, e nunca serão. Sinto-me sozinha. A minha parte humana anseia por... pelo que tu me poderias dar, se estivesses disposto. E não me refiro apenas aos prazeres da carne, embora pense que apreciaríamos descobri-los juntos. Quero um companheiro, um amigo, um... não consigo encontrar as palavras.

— Disseste-o antes. A parte que te falta. — O meu coração ressoa com um ritmo forte. Não uma marcha para a guerra; não um aviso de pânico; não uma retirada. Um reconhecimento. Uma música de regresso a casa. — Entendo isso muito bem.

— Mas... Brocc... não quero que faças nada contra vontade. Não vou implorar, não usarei encantamentos nem feitiços, não coagirei, ameaçarei ou empregarei truques como o Povo Encantado muitas vezes faz para alcançar um determinado fim. Seja pela causa maior da paz e entendimento, ou pela menor dos nossos sentimentos, tens de fazer a tua opção livre. Quando terminar o dia do solstício de verão, se quiseres, podes sair a cavalo de Breifne e nunca mais me ver.

Estou a transbordar de sentimentos. O desejo é apenas uma parte. Ia perguntar-lhe do dia do solstício de verão, da canção, da harpa e como tudo se deverá encaixar. Mas neste preciso momento a minha cabeça e o meu coração não conseguem aguentar mais nada. Ela dir-nos-á amanhã, quando Liobhan chegar. Disse que o faria.

— Devíamos esperar — digo, levando-lhe a mão aos lábios. Ela cheira a rosas e a mel. Uma madeixa do cabelo soltou-se e roça na minha face. Mal consigo respirar. Mas não é o momento de me perder. — Deitarmo-nos juntos... explorar esses prazeres... Devíamos esperar até que a canção do teu povo seja cantada e a tarefa esteja concluída. Mas pediste-me que cantasse para ti. Ainda queres que o faça e que gostarias que eu cantasse?

— Uma canção de embalar — diz Eirne com um sorriso que mostra as suas covinhas. — Não para um bebé; uma canção de embalar para uma mulher adulta.

Solto-lhe a mão, levanto-me e preparo-me com a harpa no joelho, a uma distância segura. Eirne, ainda a sorrir, deita-se na minha cama, a cabeça na almofada como se devesse estar ali e observa-me.


As frondes do salgueiro agitam-se, a brisa é quente, o rio cintila de luz

Os teus dedos são tão suaves, entrelaçados nos meus pela noite dentro.

Do lado de fora da nossa janela, flores tenras fecham as suas pétalas

Tu és uma flor muito mais doce do que a rosa vermelha perfumada.


— És bom nisto — murmura Eirne. — Continua, meu bardo.

— É bastante sentimental. — Estou já a pensar em formas de melhorar aquele poema. Mas agora não é boa altura.


Dentro do círculo dos meus braços descansa tranquila e à vontade

Põe de lado preocupações e dores e acolhe pensamentos de alegria e paz.

Que a música soe, tão doce e pura como a canção da pomba ou da cotovia

Oh, que possamos ter visões brilhantes para nos confortar no escuro.


— Devia haver mais uma estrofe — observa Eirne. — E, nessa estrofe, o que canta a canção de embalar e a que a escuta deviam deitar-se juntos, pois embora a brisa seja quente na canção, está frio nesta pequena casa. Mas suponho que não podemos fazer isso. Temos de mostrar autodomínio, como aconselhaste. E há um tipo especial de prazer na expectativa de coisas boas que virão.

Um tom rosado aquece-lhe as faces pálidas. Os seus olhos estão alegres, a dançar com a luz. Seria tão fácil pousar a harpa, juntar-me a ela ali na cama, embora seja bastante estreita para dois, e transformar em realidade as palavras da canção. Mas não o farei. A canção não é para hoje. É para a esperança de amanhã e de todos os amanhãs que virão.


Enlaçados como árvore e trepadeira, tocamo-nos e separamos e tocamos de novo

Os nossos corpos conhecem esta linguagem como conhecem a chuva suave

A brisa subtil, a folha que nasce, a luz dourada do amanhecer.

Amamos, descansamos, acordamos e avançamos para uma nova manhã brilhante.


Capítulo 38

DAU

Véspera do solstício de verão. Não tão cedo quanto eu teria desejado. Illann foi buscar os cavalos e Liobhan foi à privada. Archu e eu estamos na sala de ensaio.

— Ciara está nervosa esta manhã — murmura Archu. — Espero que fique mais calma mal saiam daqui. Lembra-lhe para comer e beber uma ou duas vezes durante o dia, está bem? E cuida dos dois no caminho de regresso. Quem sabe em que estado Donal estará. Tens de ser a cabeça fria da equipa. E se isso significar tomar alguma decisão final, fá-lo. Só os deuses sabem por que concordei com isto.

— Farei o melhor possível.

Quando saio da sala de ensaio, venho bem ciente da confiança que ele depositou em mim e do que isso poderá significar para o meu futuro. Mas uma decisão final? Sobre a Harpa dos Reis? Considero-me física e mentalmente capaz, bem controlado, competente, corajoso. A maioria das vezes. Depois do tempo que passei com a senhora Juniper, tive de rever um pouco essa opinião. Mas uma coisa sei: esforcei-me muito para me transformar no homem que sou. Isso não significa que consiga lidar com isto. Não sei nada sobre o que existe atrás daquela parede na floresta. Não sei nada de música e magia e jogos de poder executados por druidas e reis. Tudo o que posso fazer é tentar manter os meus camaradas a salvo. E ter esperança de que, juntos, os três possamos fazer bem as coisas.

Cobrimos a primeira parte do trajeto, até à casa da senhora Juniper, a um bom ritmo. Puxo o cavalo sobressalente; Liobhan cavalga ao meu lado. Não posso falar, visto que há outras pessoas na estrada. Além disso, o queixo cerrado dela e os olhos ferozes mostram-me que não está com disposição para conversas.

Ao aproximar-nos do trilho para a casa da contadora de histórias, passamos por faixas de terra chamuscada e enegrecida, atravessada por árvores caídas. Aqui e ali jazem os tristes restos carbonizados de alguma criatura. A loucura de Rodan. Graças aos deuses pela chuva que salvou a casa da senhora Juniper e tudo o que fica além dela.

No local onde o trilho se ramifica, Liobhan desmonta. Lanço-lhe uma olhadela, sem ter a certeza se vamos descansar os cavalos e nós durante algum tempo, o que faria sentido, ou se vamos deixar as nossas facas.

— Desmonta — diz ela. — Ficas aqui com os cavalos e esperas por mim. Vou deixar as minhas armas.

Talvez eu devesse ter contado com aquilo. Mas não estava à espera. Liobhan conduz o cavalo pelo trilho íngreme e depois prende-o em frente da casa; eu sigo-a com os outros dois animais. Nenhum sinal da senhora Juniper nem da cadela. Nenhuma fumaça a sair da chaminé nem nenhuma luz lá dentro.

Não posso continuar mais tempo em silêncio, embora mantenha a voz baixa:

— Precisas de parar um pouco. Comer e beber. Deixar os cavalos descansar. E depois continuar. Não sozinha, mas nós os dois.

Ela cruza os braços e lança-me um olhar fulminante, como se estivesse a pensar em derrubar-me para não precisar de perder tempo a discutir.

— Primeiro, não é seguro para os cavalos, sobretudo se estiver inundado. Segundo, se descansarem como deve ser agora, vão levar-nos com mais rapidez mais tarde. Terceiro e mais importante: prometi que iria sozinha desta vez. Nenhum amigo à espera do outro lado da parede. Nenhum amigo à vista, ou poderão não deixar Brocc sair.

Engulo um ou dois palavrões.

— Eu devia fazer pelo menos uma parte do caminho. Faz sentido ter os cavalos o mais perto possível. E se Brocc não conseguir andar? Estás a planear carregar com ele e com a harpa?

— Queres ajudar-me ou não? Devíamos ser uma equipa, não é?

— Uma equipa trabalha como um todo. Os membros ouvem-se uns aos outros.

— Tu não me estás a ouvir!

— E tu não estás a ouvir o bom senso. Liobhan, não podes ir sozinha. Além disso, a senhora Juniper não está aqui. Os cavalos vão ficar com frio e eu também. Estou aqui para te ajudar, por isso usa-me, pelo amor dos deuses!

Ela fita-me. A sua expressão mudou.

— Não posso. Ela disse vem sozinha. Não posso arriscar cometer algum erro, ou ela poderá não o deixar sair.

— Ela?

— Não posso falar sobre isto. Se eu disser uma palavra a mais, ela saberá. Tenho de ir, Dau. Podes tirar o alforge, por favor? Tenho os dedos com cãibras.

Oh, deuses. É mais difícil lidar com esta Liobhan mais suave do que com a Liobhan furiosa. Tiro a bolsa da sela e passo-lha. Não pergunto o que tem dentro. Tudo parte da sua estranha missão, sem dúvida. Com toda a probabilidade nunca vou saber a história completa.

— Detesto isto — digo-lhe. — Detesto não poder ajudar.

— Precisarei de ti mais tarde. E ajuda saber que estás à espera. Talvez a senhora Juniper tenha deixado a porta destrancada. Podias acender a lareira. Vou-me embora.

— Tem cuidado — peço. Ela conseguirá mesmo fazer isto sozinha? Não faz muito tempo que andava a mancar por causa daquele tornozelo e já cavalgamos bastante. Mas é Liobhan e se alguém está talhado para ser um guerreio da Ilha dos Cisnes é ela. — Está atenta.

— Tu também — retorque ela e afasta-se. — Espero não ter de cantar desta vez.

Quase desapareceu entre as árvores quando algo me ocorre. Não quero gritar por ela. Não quero que ela me dê uma descasca. Mas se eu não falar e afinal tiver razão, ela mata-me.

— Liobhan!

— Que é? — rosna de costas voltadas.

— Não disseste que tínhamos de dançar juntos três vezes? Antes do solstício de verão?

Um silêncio pesado, durante o qual ela não se mexe. Depois:

— Oh, merda — exclama de forma expressiva e volta atrás. Deixa cair a bolsa no chão e estende os braços, ali mesmo no trilho lamacento, à porta da casa de portadas fechadas. — Rápido, então.

Detesto dançar. Detesto dançar ainda mais quando não há música e o meu par está a tremer de tensão acumulada e parece que haverá qualquer consequência terrível se não fizermos isto de forma convincente. Pego nas mãos de Liobhan.

— Que tipo de dança é?

— Uma dança lenta. É tudo o que vou conseguir. Um, dois, três, quatro — murmura para indicar o ritmo. Viramo-nos, separamo-nos e movemo-nos juntos, soltamos as mãos e dançamos à volta um do outro. — É isso. — Cantarola um trecho de melodia. — O mesmo outra vez. Sim. Agora faz-me rodar por baixo do teu braço, sim, está bom. E talvez mais uma vez até ao fim, só para termos a certeza.

Certeza de quê? Apenas os cavalos nos veem e duvido que isto signifique muito para eles. Só que... agora ouço música e não é Liobhan a cantar. O som vem da floresta, uma música alta e delicada tocada num instrumento cuja natureza não consigo adivinhar. A melodia põe-me os pés a mexer quase sem querer. E acontece uma coisa notável: sinto Liobhan descontrair-se, a tensão a sair-lhe do corpo como uma sombra a partir quando o sol surge. Até consegue esboçar um sorriso. Repetimos os mesmos passos outra vez, mas a dança é muito diferente. As mãos dela estão quentes, segura-me com firmeza, os nosso corpos movem-se juntos com naturalidade. Quando ela está contente, eu consigo ser quase gracioso.

Chegamos ao fim; fazemos uma vénia e reverência da forma habitual. A estranha melodia chilreia até uma nota mais alta e depois desfaz-se em nada.

— O que em nome dos deuses foi aquilo? Ou não deveria perguntar?

Ela ainda está perto de mim. O cabelo está bem preso, o seu estilo de combate, mas anda a cavalgar há um tempo e há madeixas que se soltaram e baloiçam por cima do seu rosto. Ergo a mão para as afastar dos seus olhos. Um arrepio percorre-me. Ainda bem que Liobhan não o consegue sentir.

— Uma convocatória — diz ela. Os olhos estão brilhantes agora, cheios de esperança. Parece... resoluta. — Sabem que estou aqui. É melhor ir andando. Dau... obrigada. Acho que acabaste de salvar a missão. — Pega na minha mão, leva-a à sua face durante um instante e depois pega na sua bolsa e afasta-se. Observo-a até que ela desaparece de vista.

— Já vi muitas coisas no meu tempo e muito pouco me surpreende. — A voz atrás de mim não é a de um cavalo. Viro-me e vejo a senhora Juniper em frente da sua porta com Storm ao lado. — Mas isto, não estava mesmo à espera disto. É melhor entrares, Nessan. Ou será Dau? Trata dos cavalos primeiro. Depois, estou a dever-te uma história.

Faço o que me diz, instalando confortavelmente os cavalos no anexo, verificando comida e água, indo buscar uma carga de lenha para a lareira quando volto. Limpo os pés, com lama do quintal, e depois entro. Enquanto empilho os troncos cortados perto da lareira, espreito para a pequena cesta. O cobertor está puxado para trás, mas não está lá ninguém. Qualquer coisa corre debaixo da mesa e depois fica quieta. Um par de olhos redondos reflete a luz da lareira, a espreitar para mim. Fico com os pelos da nuca em pé.

— Ela chama-se Casaco-de-Cardo — diz a senhora Juniper, com tanta calma como se estivesse a falar de assuntos normais. — Está a recuperar bem, apesar de tudo. Como estão essas tuas queimaduras, Nessan?

Mostro-lhas. Ela parece satisfeita por eu não as ter negligenciado.

— Ótimo. Agora senta-te. A tua companheira pode não se preocupar com necessidades como comida e bebida, mas tu tens muito tempo. Conto que se passem algumas horas antes de a vermos de novo. Deixa-me dar-te de comer e, se insistires em trabalhar, arranjo-te algumas tarefas para te manter ocupado até que ela regresse. Mas por agora senta-te e descansa as pernas. Surpreendeste-me hoje. — Está atarefada com a chaleira e canecas e ervas; a casa cheira a menta e alguma coisa mais forte que não sei como se chama.

— Surpreendi-te como?

— Não esperava ver-te a dançar. Tu e a tua amiga.

— Suponho que possa parecer esquisito. — Confio nela, bastante. Confio nela apesar de ter deixado escapar o meu nome verdadeiro. Mas não posso falar sobre a missão e não posso transmitir o que Liobhan disse sobre aquele lugar. Não que ela tivesse dito grande coisa. — Foi uma coisa que ela me disse que tinha de ser feita. Antes de ela voltar à floresta.

Juniper sorri.

— Ah. Uma tarefa. Eu entendo tarefas.

Não tenho a certeza do que ela está a sugerir. Relembro a mudança em Liobhan quando ouviu a estranha música da floresta. Relembro o momento em que lhe toquei no rosto. Relembro a expressão dos olhos dela. Seria melhor esquecer. Afago a cabeça de Storm e fito o lume. Não olho para a criatura debaixo da mesa, mas sei que ela está a olhar para mim.

— Vais querer regressar à corte para o ritual de amanhã — observa Juniper. — Um novo rei que vai ser coroado. Uma nova era para Breifne.

Não consigo evitar a careta que me contorce a boca. Depois do fogo, ela deve saber o que penso do único candidato ao trono.

— Tu e o príncipe são da mesma idade, diria — diz Juniper. — Põe de lado o episódio do fogo. Conta-me o que observaste nele.

— Sou um humilde ajudante de ferrador. Ele é filho de um rei.

— És um homem. Ele é um homem. Responde com honestidade. Sou boa a guardar segredos.

— Ele é descuidado com os seus cavalos e grosseiro com os indivíduos que acredita serem seus inferiores. Enfurece-se rapidamente com ninharias. Age por impulso, sem pensar bem nas coisas. Sabe fazer discursos empolgantes. Consegue que os homens o sigam. Alguns homens. Com a sua falta de discernimento, isso pode ser perigoso. Tem sido.

— Continua.

— Não parece adequado para o papel que o aguarda. Não parece pronto para assumir tanto poder. Eu esperaria que um príncipe real fosse educado de uma forma que o preparasse melhor.

— Ah. Mas Rodan não era o irmão inteligente. Defendia-se a montar, caçar e outros desportos, embora não se destacasse em nenhum deles. Mas achava o estudo difícil. Não se contentava com nada por muito tempo. A palavra escrita era enigmática para ele e não tinha interesse em histórias. Claro que um rei tem pessoas para o ajudarem nessas coisas: homens de leis, conselheiros, escribas e afins. Mas não fazem sentido se ele não escutar os seus conselhos. Para Rodan, essa era a parte mais difícil de entender.

Solto uma exclamação rápida.

— Como sabes isso tudo? Eras ama ou algo do género?

Ela atira a cabeça para trás e desata à gargalhada, sobressaltando-me e à cadela e fazendo a coisa debaixo da mesa tremer.

— Eu, uma ama? — resmunga. — Dificilmente. Assustaria a criança mais corajosa, Nessan. Mas tinha amigos na corte. Um em particular, que ficava sempre contente por escapar durante algum tempo e ouvir as minhas histórias. Um amigo com quem partilhei muita sabedoria. Fiz o melhor que pude por ele. Enfrentou uma escolha muito difícil; precisou de toda a força que tinha.

— Senhora Juniper. Ouvi dizer... sei que quando é preciso um novo rei de Breifne qualquer homem de dezoito ou mais anos que tenha sangue real pode ser pretendente ao trono.

— Assim é, Nessan.

— Houve um... um boato, uma coisa que ouvi por acaso, a sugerir que o antigo rei tinha outro filho. Um filho que por alguma razão não era elegível como pretendente ao trono. Sei que existe uma filha mais nova. Mas disseste Rodan não era o irmão inteligente. Podes falar-me do irmão inteligente?

— Ah — diz a senhora Juniper, recostando-se para trás na cadeira. — Está na altura da história. Serve a infusão, está bem, Nessan? Suponho que deva usar esse nome e não o outro.

— O outro nome não é para Breifne.

— Hum. Respeitarei isso. Serve uma taça muito pequena para Casaco-de-Cardo, pousa-a com cuidado no chão e dá-lhe um pouco de pão e queijo, está bem? É seguro para ela comer a nossa comida, mas não deve comer muito.

Obedeço a estas instruções, a pensar se Casaco-de-Cardo enterrará os seus dentes na minha mão quando eu pousar a caneca e o prato aos pés. Mas ela não morde. Pouco depois, ouço o som de mastigação lá de baixo, mas não olho.

— Obrigada — agradece a contadora de histórias. — E enche a minha taça, por favor. Serve-te de comida. Bem. Era uma vez um rei. Vamos chamar-lhe Aengus. Era um bom rei; não um grande rei, pois não era nenhum líder visionário, mas era uma época de paz e governava bastante bem o seu povo. Casou com a filha de um príncipe de Connacht e eram felizes juntos, à exceção de uma coisa: a mulher, Dáire, não conseguia levar uma gravidez até ao fim. Com o passar do tempo, as pessoas começaram a duvidar que o casal real conseguisse produzir uma criança saudável. Falava-se de a união estar amaldiçoada, só rumores, mas a coisa espalhou-se. Se não houvesse filhos, o reino passaria para um dos parentes mais distantes e o sangue da linhagem de Aengus dissolver-se-ia. Assim se acreditava. Quando já estavam casados há três anos e depois da perda de mais um bebé, a rainha Dáire ficou tão perturbada de corpo e espírito que se fechou e afastou por uns tempos, recusando-se a ver qualquer pessoa, à exceção do físico e criadas pessoais. Até o marido foi impedido de entrar nos seus aposentos. Talvez não fosse surpreendente que Aengus, que padecia do seu sofrimento, quem pode dizer que os homens não sentem profundamente esse tipo de perdas?, se tenha consolado nos braços de outra mulher. Era uma senhora jovem e bem-nascida, irmã de um dos conselheiros do rei, que estava na corte a passar o verão. O namorico foi discreto. Alguns até disseram que toda a coisa tinha sido planeada para dar ao rei o herdeiro que a mulher não conseguia produzir. Poderá ser.

Juniper para para beber. Eu estou embrenhado na história; sinto-me como se estivéssemos no limiar de qualquer coisa importante.

— Acontece que a jovem voltou para casa com o bebé do rei na barriga, e quando a criança, um rapaz, nasceu de boa saúde, Aengus reconheceu publicamente que era o pai e ofereceu uma substancial reparação à família da mulher. Quando o rapaz fez cinco anos, foi enviado para a casa real como filho adotivo de Aengus e da sua rainha. E lá ficou até... bem, isso fica para mais tarde. Pois, para grande surpresa de todos, a rainha Dáire tinha por essa altura produzido um filho: Rodan. Era três anos mais novo do que o seu meio-irmão, e embora tivessem uma certa semelhança física, em carácter tornaram-se jovens muito diferentes, um pensativo, estudioso e bondoso e o outro... resumiste a sua personalidade de forma precisa. Para ajudante de ferrador, és um pensador arguto, Nessan. E bem-falante para um rapaz que, presumo, teve pouca educação formal.

Não vou morder o isco.

— Obrigado — respondo.

Juniper sorri e continua.

— Os dois rapazes cresceram juntos, embora nunca fossem chegados; tinham poucos interesses em comum. Quando um tinha quinze anos e o outro doze, a rainha surpreendeu outra vez toda a gente dando à luz outra criança, embora por essa altura já tivesse alguma idade. Calculo que Aengus tivesse preferido outro filho. Mas uma filha é útil à sua maneira; pode garantir uma aliança através do casamento. Sem dúvida que o rei e os seus conselheiros começaram a planear com quem casaria mal a pobre criança nasceu. Infelizmente, a rainha ficou muito enfraquecida depois daquele nascimento e morreu numa volta da lua. Aengus não sobreviveu muito tempo à mulher; sucumbiu a uma sezão de inverno e Cathra assumiu o papel de regente. Na tristeza que se seguiu, um raio de esperança iluminava o futuro do seu povo: a sucessão parecia assegurada. O filho mais velho era um bom jovem, sábio para a idade, muito apreciado e respeitado por pessoas de todo o tipo. Era também forte de espírito e forjara laços estreitos com a comunidade dos druidas devido ao seu amor pelo saber e pela música. No geral, era um candidato excecional ao trono e teria idade para o reivindicar dentro de três anos após a morte de Aengus.

Silencia; os seus olhos assumem um olhar distante.

— Como se chamava esse jovem excecional? — pergunto. Sei quem é; vi-o, naquele dia, quando estava empoleirado numa escada a amarrar nós.

— Faelan. — O seu tom de voz é suave. — Era um bom amigo. Sinto a falta dele. Teria sido um bom rei. Mas escolheu um caminho diferente.

— Recusou o trono para se tornar druida?

Ela lança-me um olhar severo.

— Nem todos os homens anseiam pelo poder, Nessan. Nem todos os homens se sentem obrigados a seguir os desejos do pai. Faelan pode, com o tempo, tornar-se um género diferente de líder.

— Chefe dos druidas?

— Quase pareces desdenhoso. Essa pessoa pode ter uma influência duradoura numa comunidade. Pode representar uma grande força para o bem. Um rei sábio ouve o seu druida-chefe. Faelan, acredito, pode progredir entre os irmãos; ouvi dizer que depositam grande esperança nele. Mas não é um homem ambicioso. Seja o que for que alcance, isso acontecerá por causa das suas qualidades naturais.

— A história parece inacabada — comento quando ela se cala. — Esta história intrigante de dois irmãos tem um fim feliz?

— A história tem muitos fins possíveis. Talvez tu ou os teus amigos me possam dizer o que acontece a seguir.

— Eu não posso, senhora Juniper.

— Não podes ou não queres fazê-lo?

Não respondo de imediato. Um druida não pode tornar-se rei. As regras que regem as suas vidas de reclusão tornam isso impossível. Supondo que Liobhan e Brocc saem daquele lugar com a Harpa dos Reis e supondo que a devolvemos ao bardo-mor sem maiores complicações, não vejo outra conclusão para isto a não ser a coroação de Rodan como rei de Breifne. Completar com êxito a missão vai parecer um fracasso.

— Não posso — digo. — Não porque não confie em ti, senhora Juniper, mas porque realmente não sei.


Capítulo 39

LIOBHAN

Quando chego à parede, as minhas botas estão ensopadas e as minhas calças molhadas até ao joelho. Tenho a saia pendurada num ombro e o saco no outro. Não estou na melhor das disposições. Demorei muito mais do que queria, apesar de não ter parado para comer a comida que Archu insistiu que eu trouxesse. O sol já passou do seu ponto médio e o meu tornozelo lateja. E agora, depois de me ter, prestavelmente, guiado com música, o povo de Eirne silenciou. É tal e qual como da última vez. A parede, eu ali do lado de fora e nem um ser vivo à vista. Exceto insetos que picam. Parece que vou ter mesmo de cantar.

Não é preciso ser alta. Sabem que estou aqui. Devem saber, ou por que razão aquela estranha melodia teria parado mal avistei a parede? Preciso mesmo de beber água antes de começar. Os meus dedos doem. Se Dau aqui estivesse, pedia-lhe para desenrolhar o odre para mim. Pedia-lhe sem vergonha nenhuma. Assim, faço-o eu, de forma desajeitada, derramando água na minha túnica. Obrigo-me a beber. Depois começo. Ninguém que me ouvisse acreditaria que as pessoas me pagam para cantar e tocar. Ninguém acreditaria que a assistência aplaude os meus esforços. Pareço fraca, triste e trémula. Não pareço nada um guerreiro da Ilha dos Cisnes. Assim não vai dar. Quem iria deixar entrar uma criatura tão patética? Por que alguém confiaria a Harpa dos Reis a um espécime tão miserável?

Pronto. Vou experimentar uma marcha, uma das peças que as pessoas na Ilha dos Cisnes adoram. Pelo menos, irá dar-me coragem.


Às armas! Às armas! Estamos prontos para a luta!

Guerreiros de Erin, ergam o estandarte!

Manejem a vossa lâmina com honra, «Avante!» o vosso grito

Para a frente agora para a vitória, conquistamos ou morremos!


Quem se importa de parecer estúpido? Quem se importa se a canção parece idiota quando o futuro do nosso irmão depende de a cantarmos? Canto os versos todos e mais alguns que invento ali mesmo. Canto o refrão Às armas!, e assim por diante, depois de cada estrofe. Ando enquanto canto.

Quando interpreto isto na Ilha dos Cisnes, toda a assistência se junta ao refrão depois da segunda estrofe, com o acompanhamento de bater ensurdecedor de pés e de punhos e, às vezes, precariamente, de canecas de cerveja nas mesas. Parece que o povo de Eirne não adora esta canção como os meus camaradas. Não há qualquer sinal de vozes, exceto a minha. Nenhuma abertura de Portal. Nada. À exceção do sol, que parece ter avançado bastante mesmo durante uma só canção. Fitando as sombras das árvores, a pensar no meu irmão, esqueço-me de cantar. E se Eirne nunca pretendeu cumprir a sua palavra? E se não faz tenção de o deixar partir?

Há mais uma coisa que posso experimentar. Enfiado no fundo do meu saco está o boneco, Wolfie, com a sua veste de druida, com cabelo que denota o seu sangue real. Espero ter autorização para o levar de volta para Aislinn. É a parte mais intrigante de todo este mistério.

— Fiz tudo o que me pediste — digo, sem levantar a voz. Ergo Wolfie. — Completei as minhas tarefas. Por favor, deixa-me atravessar a parede. O tempo está a passar muito depressa. — Está a passar a uma velocidade pouco natural. Estará alguém a pregar-me partidas? Há muitas histórias de humanos que se escapam do Outro Mundo e descobrem que se passaram cem anos no espaço do que parecia ser um único dia. — Temos de voltar à corte.

Nenhuma resposta. Adorava atirar algumas pedras de bom tamanho à maldita parede e berrar o meu repertório inteiro de palavrões. Gostaria de gritar e arrancar cabelos. Mas ficar furiosa seria inútil. Assim espero, a tentar pensar em Brocc. Imagino-o a inventar uma canção sobre esta experiência. Se calhar fazia a mulher esperar junto à parede até congelar ou virar pedra ou alguma coisa ainda mais esquisita. Ficaria assim durante todas as estações e as pessoas viriam de muito longe para admirar o fenómeno. Quanto ao irmão por quem ela se sacrificara, permaneceria para sempre no reino das fadas, a divertir-se e a dançar, e esqueceria que tinha tido uma irmã.

Espero e espero um pouco mais. Ainda há tempo para regressar com luz do dia, desde que Eirne não nos atrase por muito tempo. Mexo os pés, passo os braços em volta do corpo, considero se fazer talvez muito barulho poderá ser útil. As minhas roupas molhadas estão a fazer-me tremer. Com o frio e o meu tornozelo, não vai ser muito divertido regressar. Gostaria de ter deixado Dau vir comigo. Mas não podia. Não me posso dar ao luxo de fazer nada errado. Fiz alguma coisa errada? Esqueci-me de mais alguma coisa? Por que não abrem a porta?

— Entra — diz alguém.

Um raio de Sol incide no Portal, revelando uma figura com um manto, a fazer-me sinal para avançar. É o ser coruja, Nightshade. Enfio Wolfie no saco. Profiro uma oração silenciosa, não sei bem a quem. Sigo a minha guia através do Portal, para o Outro Mundo.

É como da última vez, só que mais estranho. Embora seja dia, há lanternas penduradas das árvores a toda a volta e a clareira está repleta de uma luz estranha. As formas brilhantes sugerem criaturas, contudo nenhuma se parece com alguma coisa do meu mundo. Há gente misteriosa por todo o lado. Nightshade conduz-me ao trono de salgueiro entrançado onde está sentada a rainha Eirne. A veste da rainha parece conter luar nas suas dobras. Por cima usa uma capa de um azul suave e escuro. Tem o cabelo penteado ao alto e decorado com fitas brilhantes. Então é uma ocasião formal.

A seus pés, o meu irmão está sentado com uma harpa no joelho. Olha para mim e sorri, mas os seus olhos estão tristes. Apetece-me correr para ele e abraçá-lo e depois tirá-lo dali o mais depressa possível. Mas tenho de fazer isto segundo as regras. As regras de Eirne. Estou diante da rainha com as minhas calças ensopadas, com o cabelo no rosto e tento adivinhar o que ela dirá.

— Bem-vinda, guerreira. Uma viagem longa e fria para ti. Completaste as tuas tarefas?

— Sim, senhora. — É um esforço para ser respeitosa. Estou cansada e dorida e não quero estar aqui. — Ajudei a construir uma pequena casa de lama e deixei que a água a levasse. Fiz um boneco com tecidos emprestados — puxo Wolfie do saco e mostro-lhe — e ele olhou para o futuro de Breifne. — Espero que seja o futuro de Breifne, espero mesmo. Quanto tempo terá o povo de esperar e que estragos fará Rodan entretanto? — E dancei três vezes com um homem que detesta dançar.

— Fizeste bem — diz Eirne. — E o nosso bardo também. Em breve deverás regressar ao teu mundo. Mas primeiro alguma música. Não a canção que Brocc tem estado a fazer para nós; isso será a seu tempo. O meu povo pediu para ouvir a canção que Brocc cantou quando se aproximou da nossa porta. Uma canção para fazer as pessoas sorrir. Bardo, cantas? — Quando olha para o meu irmão, a expressão dela muda. Aquele olhar é caloroso, doce e honesto e nem um pouco majestoso. Qual das duas é a verdadeira Eirne?

Brocc sempre conseguiu prender a sua assistência, desde os primeiros acordes da melodia, e desta vez não é diferente. Nunca o ouvi tocar de forma tão bela, todas as notas nítidas e claras, de modo que até um ouvido não treinado pode entender a complexidade da música. Mas a canção parece continuar indefinidamente. Ele parece cansado e a caminhada pela floresta inundada não é fácil. Não percas a paciência, digo para comigo, descerrando os punhos. Precisamos de ir andando. Precisamos de regressar à corte.

Nightshade olha para mim. Percebo que tenho estado a bater com o pé e não por causa da música. Oh, deuses, esta canção é interminável. Não me interessa que seja bela, não me interessa que a voz do meu irmão seja encantadora, não me interessa que os pequeninos a adorem, não me interessa que Eirne tenha se calhar pedido isto em troca de nos deixar partir. Quero só que acabe.

— Desculpa — sussurro. É difícil ficar quieta. Estou preocupada com Brocc, mesmo quando ele canta e toca com vontade, perícia e doçura. Estou preocupada com o que acontecerá se alguém nos avistar no caminho de regresso e nos fizer perguntas embaraçosas. Eirne ainda nem nos deu a harpa. E se isto for tudo um truque e ela não a tiver?

A canção acaba por fim e o povo da floresta oferece a Brocc uma salva de palmas retumbantes.

— Maravilhoso, meu bardo — diz a rainha das fadas. — E agora uma dança. Vamos terminar isto num registo alegre!

Engulo palavras furiosas. Quanto tempo vai ela continuar com isto? Planeia esperar até que o Sol se ponha para termos de atravessar lodaçais e regatos na semiobscuridade?

Brocc parece calmo. Mexe um pouco a harpa no joelho, descontrai os ombros e depois, com um olhar de soslaio na minha direção, lança-se no Salto de Artagan. Tenho uma flauta no meu saco. Pensei que poderia precisar dela como aconteceu da última vez. Não me apetece tocar para estas gentes. Mas as notas da jiga rápida soam como nunca soaram antes, preenchendo o espaço sob as árvores antigas com um deslumbrante festival de som e o rosto de Brocc assume uma expressão que é ao mesmo tempo divertimento e admiração e, mesmo sem querer, puxo a minha flauta e junto-me a ele. A assistência está a dançar, a pular, num ou dois casos, a voar. A rainha está quieta, de olhos pousados no seu bardo. Sou levada pelo som da harpa, vibrante e adorável, cheia de prazer e diversão, uma música que é intemporal na sua celebração da vida. Creio que toco bem. Penso que é a minha melhor interpretação, apesar de tudo. Mas Brocc... Enquanto os seus dedos dançam pelas cordas, percebo, com um pressentimento profundo, que o instrumento antigo e pouco apelativo que ele está a tocar deve ser a Harpa dos Reis.

Tocamos a jiga da nossa forma habitual, acelerando a cada estrofe. Alguém na assistência está a providenciar o rufar do tambor, embora não consiga ver quem é. Os dançarinos acompanham-nos, a girar, a saltar, a rodopiar. Brocc e eu olhamos um para o outro quando nos aproximamos do fim, para o fim ser perfeito. É um um dois três, um dois três, para! O tambor invisível acompanha o nosso fim disciplinado. Sorrio para o meu irmão; ele retribui o sorriso. Durante um momento, esqueço tudo menos a música e sinto-me profundamente contente.

Eirne levanta-se, erguendo uma mão para silenciar a multidão exuberante.

— Despeçam-se agora — diz-lhes. — O nosso bardo e a sua irmã vão regressar ao seu mundo.

Depois ainda se perde mais tempo quando todos eles, todo o povo de Eirne avança e inclina a cabeça para Brocc, ou beija-o na face, ou lhe pega na mão e profere um adeus grasnado, chilreado, piado ou murmurado. Rowan, o guarda, faz uma vénia respeitosa, Nightshade dá um aperto de mão solene. Eu guardo a minha flauta. Aperto o saco. Espero. Espero mais um pouco.

Por fim, Eirne dispensa a sua gente com um aceno de mão. Em poucos momentos, o local de reunião fica vazio, excetuando ela, Rowan e nós os dois. Até Nightshade se foi embora.

— Coloca a harpa na sua bolsa, Brocc — pede a rainha. — Trata-a com respeito; carrega o peso de muitos anos e a sabedoria de muitas gerações. — Vira-se para mim. — Se a escolha fosse tua, o que farias com este tesouro precioso? Como a outorgarias? Fala com o coração, com verdade.

Estou a tremer outra vez.

— Podes confiar em nós para tomarmos uma decisão baseada na sabedoria e na justiça, senhora. — Sei agora qual deve ser a decisão. Não tenho a certeza se Brocc concordará comigo e, quanto a Dau, prevejo uma batalha de vontades. — A nossa decisão respeitará o passado e mostrará fé no futuro. — Não lhe perguntarei quem levou a harpa dos Nemetons. Basta que o instrumento tenha vindo para aqui e que ela confie em nós para o levarmos de volta a tempo.

— És filha de pais sábios. Não esperava menos de ti. Como te disse, as leis antigas do meu povo limitam a minha capacidade para intervir nos assuntos da espécie humana. Mas quando existe necessidade, posso trabalhar através de certos homens e mulheres, pessoas fortes em sabedoria, coragem e discernimento. E existe uma magia superior; um poder que vem da terra que pisamos, do oceano e da floresta, da caverna mais funda até aos altos caminhos do sol e da lua. Quando o caminho à tua frente parecer escuro e difícil, quando não conseguires encontrar o caminho certo, recorre a esse poder para te guiar, pois dentro de todos nós, mesmo os mais pequenos, existe uma centelha desse grande fogo. Adeus agora. Desejo-vos uma viagem segura. Ver-vos-ei de novo em breve.

Estou a abrir a boca para me despedir dela quando tudo começa a rodopiar à nossa volta. Cambaleio e tento equilibrar-me. O que...? Quando as árvores e a erva e o céu recuperam o seu alinhamento normal, Brocc e eu estamos sozinhos. E encontramo-nos do outro lado da parede.


Capítulo 40

DAU

Esperei e tornei a esperar. O dia passou e a noite caiu. A Lua nasceu e viaja pelo céu. E eles continuam a não chegar. Receio alguma desgraça. Um acidente terrível. Um ataque. Ou talvez Liobhan ainda esteja junto àquela parede, a cantar sozinha pela noite dentro. Talvez Brocc nunca fosse regressar daquele lugar.

A senhora Juniper tranquiliza-me. Dá-me taça atrás de taça da sua infusão. Convence-me a falar com Casaco-de-Cardo, que fala a nossa língua, mas numa vozinha estridente. Acho que estou a enlouquecer. A senhora Juniper diz-me para me deitar e descansar, mas não consigo. A minha cabeça chocalha de pensamentos desordenados. A harpa. A missão. Brocc. Liobhan. Devia ter ido com ela. Devia ter recusado que ela fosse sozinha. O que estava a pensar? Casaco-de-Cardo aproxima-se de mim, dá-me uma palmadinha suave na perna com os seus pequenos dedos afiados. Storm pousa a sua cabeça no meu joelho. Mas não consigo acalmar-me. Talvez devesse voltar à corte, acordar Archu, dar-lhe a má notícia. Talvez devesse ir à floresta tentar encontrá-los. Se um deles morrer por lá à espera de ajuda, nunca me perdoarei.

Por fim, ouço passos lá fora e eles aparecem à porta. Brocc parece a morte e Liobhan não está muito melhor. Julgo que conseguiremos chegar à corte ao amanhecer, mas à justa. Eles têm a harpa, num tipo de bolsa simples. Liobhan jura que é a verdadeira. Conseguiram. A missão que tantas vezes pareceu uma causa perdida está quase cumprida. Mal consigo acreditar.

A senhora Juniper fá-los sentar. Obriga-os a comer e a beber. Liga o tornozelo de Liobhan, visto que é evidente que ela tem dores. Brocc está estranhamente calmo. Não os importuno com perguntas. O que interessa agora é levar a harpa de volta a tempo.

Liobhan está a dizer qualquer coisa confusa sobre que horas são e como o resto do dia e da noite passou tão depressa e Brocc retorque com qualquer coisa também estranha sobre estar tudo planeado para regressarmos na altura certa. Não faz sentido nenhum, por isso saio, vou aprontar os cavalos e conduzo-os para a parte da frente da casa. A senhora Juniper devolve-nos as nossas armas. Agradeço-lhe, recordando a primeira vez que ela me fez um favor e como fui malcriado. Ficou acordada a noite toda para me fazer companhia e se calhar também para me impedir de empreender alguma ação tola.

— És um bom homem, Nessan — diz baixinho. — Vão com cuidado. Vigia os teus amigos.

Brocc insiste em levar a harpa amarrada às costas. Liobhan oferece-se para a levar, mas ele resiste a todos os seus argumentos, dizendo que recebeu instruções: deve seguir o seu caminho e levar a Harpa dos Reis. Não pergunto quem lhes deu a harpa, como a conseguiram, como têm a certeza que é a harpa certa. Não pergunto por que se atrasaram tanto. Temos tempo de levar a harpa para a corte, penso, mas não há grande margem para erros.

Brocc parece num mundo diferente do meu e de Liobhan. Parece que mal vê o que está à sua frente. Pergunto-me se adormecerá montado no cavalo.

— Liobhan — digo, quando já vamos a caminho. — Temos de nos manter acordados.

— Podíamos cantar — sugere ela. — Como uma canção de marcha, só que para cavalgar.

— Ou contar histórias — diz Brocc, o que prova que pelo menos está a ouvir.

— Dau — continua Liobhan —, recordas-te daquela canção que cantaste junto à parede, quando eu estava cansada de mais para prosseguir? Vamos cantar isso.

Inicia a canção sobre o pescador e a mulher foca e, passado um bocado, Brocc junta-se a ela, baixinho. Já é difícil andar a cavalo à noite, quanto mais cantar ao mesmo tempo, mas faço o que posso. Quando chegamos ao fim, Liobhan diz:

— Nada mal. Cantamos outra? — Lança uma olhadela ao céu. Já estará a clarear?

— Não — respondo. — Vou contar-vos uma história. Foi a senhora Juniper que ma contou. Precisam de a ouvir antes de chegarmos à corte.

Relato o conto do rei com dois filhos: o irmão inteligente e o não tão inteligente. Quando profiro o nome Faelan, Brocc faz o cavalo parar abruptamente, obrigando-me e a Liobhan a fazer a mesma coisa.

— Faelan — exclama Brocc. — Devia ter adivinhado. Têm feições semelhantes. Faelan nasceu para ser druida. É muito sensato para a sua idade. Um homem tranquilo e pensativo. Convém-lhe muito mais a vida que escolheu.

— Mas com certeza que daria um rei muito melhor do que o irmão — intervém Liobhan.

— Ele fez a sua escolha. Não deve ter sido fácil — diz Brocc.

— Aislinn andava a sugerir isso há algum tempo — retorque Liobhan. — Proibiram-na de falar do assunto, mas descaiu-se quando estava a brincar com os filhos de Tassach. Eu devia ter percebido antes o que a perturbava tanto. Chama-lhe Wolfie e ainda sente muitíssimo a sua falta. Cuidado aqui; a superfície está irregular e há água.

— Brocc — arrisco —, os druidas libertariam Faelan para assumir o trono? Só está na ordem há poucos anos. O druida-chefe deve saber que Rodan será muito inadequado. Não poderiam contornar as regras por ele?

— Quando um homem entra na ordem — responde Brocc —, põe de lado a sua antiga vida. Foi o que me disseram nos Nemetons. Quase como uma serpente a largar a sua pele. O passado desapareceu; é como se nunca tivesse existido. Aquela ordem é muito rigorosa. Duvido que considerassem a possibilidade de contornar as regras.

— É duro — comento, a desejar que algo do género pudesse ser aplicado ao meu passado.

— E se ele mais tarde atingir alguma posição sénior e tiver de sair para conferenciar com líderes seculares? — pergunta Liobhan. — Algumas pessoas recordar-se-iam dele de uma época anterior. E a família? Se se encontrarem, deverão ignorar-se?

— Nessa altura, calculo que ele esteja tão impregnado em sabedoria que lidaria com a situação de forma muito capaz. Seria cortês, mas desligado.

Continuamos a cavalgar durante algum tempo sem falar. Devíamos parar para descansarmos e para descansar os cavalos. Se Brocc desmontar, terá dificuldade em montar outra vez. Quero levar a harpa por ele, o rosto dele está a acusar o esforço, mas tenho a certeza que recusará qualquer oferta. Há quanto tempo Liobhan não dorme? Talvez eu devesse forçar uma paragem. Mas o céu está a mudar, a madrugada vai chegar e temos de continuar.

— Liobhan — digo.

— O que é?

— Sabes o que quero perguntar.

— O que estou a planear fazer quando lá chegarmos, sim? E não queres apenas dizer Que caminho deveremos usar para chegar ao recinto do ritual? ou Como entregamos a harpa sem darem por isso?

Há um certo nervosismo na sua voz. Está quase a perder aquele autocontrolo de ferro. Há qualquer coisa muito estranha na forma como o tempo passa e isso é suficiente para perturbar até a pessoa mais calma.

— Ajudará conhecer o plano, se houver algum — digo. — Pelos meus cálculos, chegaremos um pouco antes do amanhecer. Archu estará a ver se chegamos mesmo até ao último instante. Vai posicionar-se atrás da multidão, perto da entrada, para poder ver-nos chegar, além de seguir o ritual. Não podemos passar despercebidos com três cavalos e a harpa, para não falar da nossa falta de vestuário adequado para a ocasião.

— Infelizmente, o plano não inclui tomar um banho quente, escovar o cabelo e vestirmo-nos como cortesãos antes de entrarmos. — Liobhan parece irritada, mesmo segundo os seus padrões. — Archu falará com os guardas. Ou pedirá a Brondus para o fazer. Não estava a planear fazer uma grande entrada. Faremos a última parte a pé.

Olho para o céu pela centésima vez. É difícil não acreditar que a lua se está a mover mais depressa do que o habitual. Quando levanto a cabeça, ouve-se um som sibilante, acompanhado por um cheiro fedorento. Liobhan grita. Baixo a cabeça, agarrando a crina do cavalo quando ele se assusta. Desta vez, não cairei. As coisas-corvo estão à nossa volta, seis, sete ou mais, a girar e a picar, todas elas bicos e garras. Liobhan está a tentar puxar a sua faca, a esforçar-se por controlar o cavalo. Brocc desmontou, o tolo... o que está a fazer? A égua dele está a puxar as rédeas que ele segura na mão, a cabeça a girar de um lado para o outro quando as coisas-corvo atacam. Obrigo o meu cavalo a não me atirar ao chão; está bem seguro. Puxo a adaga que recebi de Illann.

— Liobhan! — grito. — Aguenta firme! Tens a tua faca? — Qualquer arma é melhor do que nenhuma. Solto uma imprecação quando uma das criaturas passa perto do meu rosto. São misteriosamente rápidas para coisas de aspecto tão sólido. O que em nome de todos os infernos são as miseráveis coisas?

— Aproximem-se mais! — berra Liobhan. — Protejam a harpa!

Estes cavalos não estão treinados para batalhas. Deuses, daria tudo por um bordão ou uma lança, para poder golpear de uma certa distância. Liobhan e eu rodeamos Brocc, a brandir as nossas lâminas o melhor que conseguimos para manter as criaturas afastadas. Ele encontra-se ao lado da sua égua, a harpa na bolsa ainda atada às costas. Nem está a tentar lutar. Liobhan consegue dar um bom golpe; uma das coisas-corvo cai a guinchar no chão. Outra mergulha na sua direção. Ela puxa o cavalo para o lado. Não com rapidez suficiente; uma linha de sangue surge-lhe na face.

— Malditas! — berra. — Criaturas nojentas, apodreçam no inferno!

Golpeio com a adaga, uma boa lâmina, e outra delas esmaga-se no solo.

— Brocc! — grito. — Volta a montar! Leva a harpa e vai, nós cobrimos-te!

Por um instante, antes do próximo ataque, o luar mostra o rosto dele virado para mim. É como uma máscara, distante, estranho. Depois deixa cair as rédeas da égua e ela afasta-se. Duas das criaturas voam atrás dela, a gralhar uma canção de morte.

— O que...! — O protesto chocado de Liobhan termina numa exclamação de dor. Foi atingida de novo, desta vez no ombro. A faca cai-lhe da mão.

— Brocc! Puxa da tua arma! Ajuda-nos! Queres matar-nos a todos? — Lanço o meu cavalo para a frente, golpeando com a adaga enquanto avanço, para um lado, para o outro. Estamos tão perto do fim, à beira de cumprirmos a missão. Raios partam se vou deixar que estas coisas nos detenham. Raios partam se as vou deixar matar os meus camaradas. — Liobhan! Toma! — Assumo um risco. Não há outra opção. Largo as rédeas, uso os joelhos para controlar o animal, tiro a minha faca pequena e atiro-lha. Sei que ela a apanhará, com o ombro ferido ou não, e assim acontece. Vejo um faiscar de dentes brancos ao luar e depois ela está a brandir a arma com a mão esquerda, a segurar as rédeas à volta do pulso direito, com uma careta de dor. Outro pássaro abatido. E um ferido, mas ainda a tentar voar, a cambalear por baixo das patas dos cavalos, a fazê-los dançar de terror. — Brocc! Ajuda-nos!

Ao luar, no caos desta estranha batalha, Brocc começa a cantar. A sua voz provoca calafrios. A canção não tem palavras, mas fala de desgraça e sombras, de perda, fracasso e tristeza, de um futuro sem esperança. A canção é como uma maldição sombria e desperta todas as recordações más que tenho dentro de mim. A música ergue-se no ar noturno. As lágrimas brotam-me dos olhos. Até a lua poderá chorar com uma canção destas. Liobhan ainda está a lutar; esfaqueia, golpeia e vira a sua montada para enfrentar cada novo atacante. E é ela que está ferida.

— Dau! — grita. — Rápido!

Pestanejo e saio do meu transe. As coisas-corvo estão a ficar mais lentas; estão confundidas, tal como eu. Há um círculo vazio em volta de Brocc, como se nenhuma quisesse aproximar-se enquanto ele canta esta horrível música. Quantas das miseráveis criaturas restam? Inspiro fundo, trémulo, e depois abro a boca e solto um grito de desafio. Nunca tal som me escapou dos lábios; nele estão contidos anos de dor. A minha arma está pronta: que venham.

Empalo a primeira que me ataca. Decapito a segunda. Liobhan dá cabo da última. Faz-se de repente silêncio, à exceção do som da nossa respiração, do relinchar angustiado dos cavalos e do grito de uma ave noturna solitária por cima de nós. Acabou. Acabou, não por causa da bravura de Liobhan ou da minha tenacidade, mas por causa de Brocc. Não sei o que foi aquilo que ele fez e não quero saber. Nunca mais quero ouvir aquela música.

— Liobhan. Estás ferida. Deixa-me ver.

— É só um arranhão. Não te preocupes, não há tempo.

— O tempo não interessará se sangrares até à morte antes de lá chegarmos. Mostra-me.

Tem um golpe fundo no ombro. Há muito sangue, mas Liobhan dá-me instruções, com muita calma tendo em conta as circunstâncias, para lhe pôr um pano por cima e atar com firmeza. Finjo que ela não é uma mulher enquanto faço isto. Tenho cuidado onde ponho as mãos. Quando a faixa está apertada, estou contente por ela ser filha de uma curandeira e lembrar-se de trazer estas coisas; Liobhan diz:

— Obrigada, bom trabalho. Brocc, montas atrás de mim. Vamos continuar. — Nem uma palavra sobre o que o irmão acabou de fazer; nem uma palavra de censura sobre o cavalo. Nenhum comentário sobre as coisas-corvo.

— O teu rosto também está a sangrar — digo. É difícil perceber ao luar, mas creio que ela está pálida. Brocc devia vir no meu cavalo. Faria mais sentido. Mas não o digo.

— Deixa sangrar. — Limpa o rosto na manga, transformando o fio de sangue numa mancha. — Temos de ir. Ajuda Brocc, está bem?

Quando ela está outra vez montada, ajudo Brocc a sentar-se atrás dela. Quero dizer mais alguma coisa, mas não consigo encontrar as palavras. Qualquer coisa sobre a coragem dela e que é uma boa líder. Avisto qualquer coisa no chão perto do meu pé.

— A tua faca — digo, passando-lha.

— E a tua. — Tira-a do cinto e põe-na na minha mão. — Formamos uma equipa bastante boa, de vez em quando.

Consigo esboçar um sorriso.

— Vamos terminar isto, então. Brocc, vê se consegues ver a tua égua pelo caminho. — Não tenho muita esperança de que tenha conseguido sobreviver contra aquelas coisas. Ainda assim, não ouvimos nenhuns gritos. Talvez volte à cavalariça. Se eu fosse homem de rezas, rezaria a pedir isso. Nenhuma criatura merece tal fim.

— Certo. — A voz de Liobhan é decidida. — Vamos andando. E recordem-se que prometemos agir num espírito de sabedoria e justiça. Paramos antes de nos encontrarmos à vista dos postos da guarda.

Enquanto seguimos em frente, pergunto a mim mesmo do que ela estará a falar. Não me recordo de fazer quaisquer promessas sobre sabedoria e justiça. Soa tudo muito bem, mas que opção temos, de facto? Temos de completar a missão para a qual fomos contratados: devolver a harpa a tempo do ritual e garantir que o irmão não-tão-inteligente é coroado rei.


Capítulo 41

LIOBHAN

—Para aqui. — Puxo as rédeas do cavalo. O sol ainda não apareceu, mas o amanhecer está próximo. Chegámos a tempo. O meu coração bate com força, mas a minha mente está tranquila. Sei o que tenho de fazer. — Dau, não lhes podemos dar a harpa. Não podemos deixar Rodan ser rei. Leva os cavalos para as cavalariças. Se vires Archu, diz-lhes que fracassámos. Abanar a cabeça será suficiente.

Dau fita-me, inexpressivo, durante um ou dois momentos.

— E tu o que vais fazer?

Não está zangado. É pior do que isso. Parece que foi traído. A Ilha dos Cisnes é tudo para ele e isto significa que nós os três perdemos a nossa hipótese de ficar. Isso faz-me doer o coração. Mas não posso fazer uma coisa que sei, lá no fundo, ser errada. Eirne disse que havia uma magia superior e talvez isto faça parte dela.

— Agir com sabedoria e justiça, espero. Deixar a harpa sob as árvores, perto da entrada para os Nemetons. Deixar o destino tomar a decisão.

Dau não se mexe.

— O que deverei dizer a Archu? Queres que minta e lhe diga que não encontrámos a harpa, quando a trouxemos a tempo? Depois de tudo por que passaste, estás a lixar a missão? Estás a sangrar, estás exausta, com toda a probabilidade nem consegues pensar direito. E estás à espera que eu te ajude.

Obrigo-me a contar até cinco. O céu está a clarear. Ouço um toque de trombetas.

— Se lhes dermos a harpa agora — digo —, estamos a jogar fora o futuro deste reino. Se preferires, serei eu a dizer a Archu e Brocc pode levar a harpa. Podes ficar aqui com os cavalos até estar tudo terminado. Só não te metas no nosso caminho, Dau. Não quereria ferir-te. — Tenho a mão no punho da faca.

— Temos de ir. — Brocc desmonta, desajeitado com a harpa. Não vimos sinal da sua égua no caminho de volta, morta ou viva. — Temos tempo à justa. Creio que ela queria assim. Penso que ela planeou que chegássemos aqui neste momento. Liobhan, temos de ir.

— Dau — peço. — Confia em mim. Assim é melhor. Sabes isso, lá no fundo do teu coração. — Não quero lutar com ele, mas fá-lo-ei se tiver de ser. Só que isso levaria tempo e não há tempo. Fito-o nos olhos. — És um bom homem — continuo. — Farás o que está certo. Vamos guardar a nossa luta para mais tarde.

Dau não fala. Desmonta, pega nas rédeas de Brocc e afasta-se, de rosto empedernido, conduzindo os cavalos em direção à fortaleza. Os portões estão abertos. Há faixas a esvoaçar por cima da muralha e junto à entrada. Há menos pessoas por ali do que eu esperava, o que significa que o ritual deve estar quase a começar. Fico de repente com frio. Estou aterrorizada com a decisão que tomei. Como pude obrigar Dau a fazer tal escolha? E se isto correr muitíssimo mal?

— Rápido — diz Brocc. — Mas com cuidado; não podemos ser vistos com a harpa.

Escondemo-nos atrás de arbustos e muros de pedra solta, abrimos caminho sob as árvores e por cima de pequenos regatos e por qualquer sítio onde possamos evitar os olhos dos guardas. Quando conseguimos, corremos. Mal nos aproximamos da muralha, seguimos pela vegetação rasteira na orla da floresta, perto dos Nemetons. Um coro de pássaros anuncia o amanhecer.

Brocc ficou para trás.

— O que estás a fazer? — respingo. — Despacha-te! — Viro-me e vejo-o a debater-se com a bolsa protetora da harpa, a tentar desapertar os cordões.

— Devia estar cá fora — diz ele. — Pronta para tocar. Pronta para soar.

— Dá cá, deixa-me ver. — A minha mão direita dói; o meu ombro e braço latejam. Puxo da minha pequena faca e corto os cordões, depois puxo a cobertura da harpa. É tão simples e desenxabida como sempre. Mas quando pego nela, sinto uma estranha vibração, como se estivesse silenciosamente a tocar uma música própria. Há alguma magia na coisa e assusta-me. — Pega nela — digo, devolvendo-a ao meu irmão. — Bem, onde fica esse portão?

Mas Brocc não está a seguir para o caminho lateral. Está a encaminhar-se ao longo da muralha para o recinto do ritual. Tínhamos um plano. Quando voltávamos, concordámos em deixar a harpa no Portão de Danu. O facto de irmos no mesmo cavalo, permitiu-nos resolver isso em sussurros, sem incluir Dau.

— Brocc! O que estás a fazer? — Corro para o apanhar.

— Assim é melhor — sussurra ele, continuando a avançar. — Confia em mim.

Mas antes de chegarmos à entrada, antes de alguém nos ver, o meu irmão faz-me um gesto para avançar sem ele. Sai do caminho; fica imóvel sob um carvalho alto, com a harpa nas mãos. Faz o gesto de novo: Vai, vai!

Não posso discutir; está tudo em silêncio no recinto do ritual e qualquer coisa que eu diga será ouvida. Caminho o mais silenciosamente possível. A zona do ritual está apinhada de pessoas. Alguém canta. E lá está Archu à entrada, a observar-me com uma pergunta nos olhos. Não sou tão guerreira como pensava. Apetece-me chorar. Encolho os ombros, abro as mãos, representando confusão. Archu está muito controlado. Há um lampejar mínimo de expressão quando se vira e faz sinal a alguém que não vemos. Brondus, com toda a probabilidade. Para nós, o ajuste de contas virá mais tarde.

Fico ao lado de Archu a ver o ritual desenrolar-se, o coração a martelar como um tambor. Talvez isto afinal prossiga sem problemas. Rodan é o filho legítimo do rei Aengus. Talvez estas pessoas não se importem que ele seja o irmão não-tão-inteligente, o irmão menos-que-bondoso, o irmão que se calhar está aterrorizado com a perspetiva de responsabilidades muito além da sua capacidade para as atender. É filho de um rei, por isso pode ser rei, é o que as pessoas devem pensar. Estas pessoas não viram a visão na taça de divinação de Eirne. Não podem saber o que poderá aí vir.

Ser alta tem as suas vantagens. Consigo ver por cima das cabeças das pessoas entre nós e o espaço do ritual. Os druidas estão de pé num semicírculo e Farannán está a entoar um cântico. A sua voz é forte e vibrante; a língua é-me desconhecida.

Uma procissão avança. Brondus primeiro, com ar sombrio. Depois o regente, envergando um traje de um vermelho-escuro e atrás dele Rodan. O príncipe parece atordoado e pouco à vontade nas suas vestes debruadas a ouro. Talvez não esteja habituado a levantar-se tão cedo. Não há sinal de triunfo ali, nenhum sorriso aberto, nenhum olhar para os amigos, que devem estar entre a multidão. Tendo em conta a história que Dau nos contou, o relato de Juniper sobre a juventude dos dois irmãos, quase sinto pena de Rodan. Poderá ser que o seu comportamento imbecil, a sua crueldade, a sua falta de discernimento, derivem todos do terror do que está para vir?

Os convidados ilustres estão perto da frente: nobres e chefes de clã, Tassach entre eles com Lady Eithne e os dois filhos. O cântico do bardo terminou. Todos os druidas em conjunto cantam uma bênção ritual na nossa língua. Os versos falam de um novo dia: não apenas este dia em que o sol agora nasce, mas um novo amanhecer para Breifne e para o seu povo com a coroação de um novo rei. Paz para a terra. Paz para o povo. Que haja paz para todos os seres vivos.

Quando tocará Farannán a harpa? Tenho o corpo todo tenso. O instrumento de Brocc está à vista de todos, na plataforma, ao lado de um banquinho onde o bardo-mor se sentará. Pelo menos, ninguém gritou: Essa não é a Harpa dos Reis!; ou algo do género. Não sei o que esperar. Talvez Brocc esteja a fazer o que eu ia fazer, a deixar a verdadeira harpa ali perto dos Nemetons e a confiar nos deuses. Mas ele disse Assim é melhor. O que é melhor?

Alguém acotovela para se postar ao meu lado. Empurro para trás até ver quem é. Dau está com ar sombrio. Tem um corte na cabeça a condizer com o meu. Mas ninguém está a olhar para nós. Lorde Cathra, com o irmão Marcán de um lado e o bardo-mor do outro, está a falar no tom ressonante de uma cerimónia grandiosa.

— Apresento-vos Rodan, filho de Aengus! Neste solstício de verão, reivindica o trono de Breifne!

Aplausos. Um ou dois gritos, as palavras pouco claras.

— Príncipe Rodan. — É o druida-chefe que fala agora. — Conduzirás esta bela terra a tempos de prosperidade e paz e governarás no espírito dos teus antecessores, com sabedoria, coragem e verdade?

Sinto Dau retesar-se à minha esquerda; à minha direita, Archu emite um pequeno som, talvez um suspiro. Não pode haver uma única alma presente que acredite que Rodan consiga fazer isso, mesmo que quisesse. A não ser uma pessoa que nunca tenha conhecido o homem.

— Juro-o. — A voz de Rodan é pouco firme. Parece tão nervoso como um menino a quem pediram para recitar a lição perante um professor exigente.

— Respeitarás as tradições dos nossos antepassados e serás firme contra os nossos inimigos?

— Sim.

Os druidas começam outra vez a cantar. O bardo-mor caminha lentamente até à plataforma e senta-se no banquinho. Os druidas estão a cantar as belezas de Breifne, os seus lagos cintilantes, as suas colinas arborizadas, as suas encantadoras clareiras, os seus tranquilos campos de pastagem. Não há qualquer menção ao povo de Eirne.

— Irmão Farannán — pede Lorde Cathra —, tocas?

Farannán ergue a harpa para o joelho; ajusta a alça. Endireita os ombros. Inspira fundo e depois expira. Fecha os olhos. Os dedos passam pelas cordas.

A harpa está em silêncio. Não sai nenhum som, nem uma única nota. Farannán abre os olhos, pestaneja, tenta de novo. Nada. A harpa está muda.

Um lento murmúrio de choque ergue-se da multidão. Estou paralisada. Mal consigo respirar. De todas as coisas que esperava, isto nunca sonhei. Aquela ali é a harpa de Brocc, um instrumento vulgar que tem sido tocado em salões e estalagens de estrada e em festivais de aldeia. Não há magia naquela harpa. Mas... Eirne disse: Existe uma magia superior.

O bardo-mor retira as mãos das cordas. Levanta-se e pousa o instrumento. A multidão fica calada durante mais uns momentos e depois, antes de ele ou Cathra poderem dizer uma palavra, os gritos começam:

— Ele não pode ser rei!

— Os deuses falaram!

E uma série de coisas muito piores. Rodan parece atordoado, como bem deveria. Cathra parece um velho, o rosto macilento de choque. Farannán fita o regente, como se dissesse: Este problema é teu, não meu. Trata tu disto.

E então, e então... Com todos os olhos postos no drama que se desenrola lá em baixo, talvez ninguém tenha visto Brocc entrar. Eu não vi. Mas lá está ele, não muito longe de mim, com a Harpa dos Reis nas mãos. Senta-se num banco que alguém vagou e começa a tocar.

O som ecoa, adorável, poderoso, tal como quando ele tocou para o povo de Eirne atrás da parede. Os gritos morrem. A multidão vira-se. Brocc ergue a voz numa canção. Chefes de clã e nobres, druidas e realeza, pessoas vulgares como nós, todos se sentam de novo e escutam. Todos os rostos estão iluminados de admiração. Brocc é um músico muito bom e a sua voz é uma maravilha. Todos os que o ouviram no grande salão sabem disso. Mas agora é como se os deuses falassem através dele. Se existe uma magia superior, é isto.

A canção fala do antigo pacto entre a humanidade e o Povo Encantado. Fala de tempos de turbulência e de tempos de paz e da importância da compreensão. Poderei ser a única pessoa a ouvir que sabe que aquela peça é da autoria de Brocc, porque soa como uma coisa muito antiga. O meu irmão domina a multidão arrebatada; é como se as pessoas mal ousassem respirar, para não perturbar a música. Mas, a certa altura, ouve-se uma exclamação abafada coletiva quando um raio estreito de Sol incide por entre as nuvens e ilumina apenas um homem. Não o cantor com a sua harpa. Não Rodan, o príncipe de Breifne. O feixe de luz toca num jovem druida alto com uma veste azul, um homem de cabelo castanho ondulado como o de Aislinn, como o de Rodan. Um homem que se mantém muito quieto, a fitar Brocc com olhos firmes.

A música chega ao fim. Brocc retira as mãos das cordas. A multidão agita-se. E Archu diz por entredentes: Ciara. Toca na faca que tem no cinto, apenas um instante.

Aproximo-me de Brocc; Archu assume uma posição do outro lado. Tudo pode acontecer agora. As pessoas estão a gritar de novo, mas desta vez bradam:

— Ele é o verdadeiro rei!

— Os deuses escolheram!

E por aí adiante. Mas há outras vozes, menos ruidosas, a perguntar por que razão Brocc tinha a Harpa dos Reis e como os dois instrumentos poderiam ter sido confundidos. Isto continua durante algum tempo, a coisa a tornar-se cada vez mais barulhenta, até que Brondus se faz ouvir a apelar à calma:

— Calados! Fiquem nos vossos lugares! Esperem por Lorde Cathra.

O irmão Marcán discute de forma intensa e murmurada com o regente. O barulho diminuiu um pouco, mas o círculo está cheio de vozes iradas, não seria preciso muito para isto ficar feio. Archu e eu ficamos onde estamos, a proteger Brocc. Estamos a receber alguns olhares esquisitos, o que não é surpreendente.

— Senhores, senhoras, honrados irmãos, distintos convidados! — O regente fala, a voz áspera de choque. — Queiram por favor continuar sentados e nos vossos lugares até que possamos resolver isto. — Olha na nossa direção. — Senhor Donal! Traz por favor a harpa para o irmão Farannán.

As pessoas calaram-se agora e ouvem com atenção. Cathra é se calhar sensato por as deixar ficar em vez de resolver isto à porta fechada. A luz misteriosa ainda incide sobre Faelan. Se eu tivesse dúvidas sobre quem ele era, já não as tenho, porque Aislinn se destaca de quem devia estar a vigiá-la, precipita-se pela zona aberta e atira-se para ele, a gritar Wolfie! Faelan apanha-a e abraça-a. A luz incide sobre os dois.

Brocc desce e encaminha-se para o regente. Archu e eu não podemos ir com ele, por isso temos de ter esperança que ele justifique de forma convincente por que tinha a Harpa dos Reis e por que resolveu tocá-la. Que é o que o irmão Farannán lhe pergunta com a voz gelada de um homem que está mais do que furioso.

— Deve ter havido um erro, irmão Farannán. Sinto muito. — Brocc é dissimulado. — A minha harpa estava nos Nemetons e é muito parecida com esta. Imagino que quem organizou as coisas aqui esta manhã levou a minha por engano. Quanto à harpa que acabei de tocar, encontrei-a nas ervas altas junto ao Portão de Danu. Trouxe-a comigo para o ritual, não quis deixá-la lá. Mas... senti-me compelido a tocá-la e a cantar.

— Compelido.

Farannán é frio. Por que está tão zangado? A harpa voltou, tornou claros os seus desejos e Brocc forneceu uma explicação boa para a confusão, por isso mais ninguém precisa de saber que estava desaparecida há tanto tempo. Vejo a expressão no rosto de Faelan; vejo os olhares que se trocam entre Cathra e Marcán e Farannán e começo a entender. A um só lhe interessa que um filho do rei Aengus seja coroado. Outro libertaria Faelan, com alguma relutância, se isso pudesse ser feito. E outro ficaria amargurado e desolado se o seu excecional noviço se perdesse para a ordem. Mas isso é irrelevante se Faelan não puder sair da irmandade.

— Os deuses podem falar através de instrumentos inesperados, irmão Farannán — diz Brondus. — Quem poderá duvidar do poder e verdade do que acabámos de ouvir e ver? — As nuvens movem-se e a estranha luz desaparece. Faelan ajoelhou-se ao nível de Aislinn e tem um braço passado pelos ombros dela. Ela sussurra-lhe ao ouvido; ele acena com a cabeça e sorri. E onde está Rodan? Não está a olhar para eles. Não está a olhar para ninguém. Está branco e em choque, como alguém que viu um fantasma. Como se preferisse estar em qualquer sítio menos ali. — E o irmão Faelan não é filho do falecido rei?

— É um assunto complexo. Uma questão de saber e tradições. — É Farannán que fala.

— Parece-me bastante simples! — grita alguém mais ousado. — Aquele druida é o irmão, não é, o que não reivindicou o trono da última vez? É ele que os deuses querem. É claro como água. Uma criança entenderia.

Segue-se um coro de concordância. Faelan está de pé agora. Aislinn agarra-lhe a mão. Parece pronta a lutar com unhas e dentes contra qualquer pessoa que ameace levá-lo de novo. Faelan está a olhar para Rodan. Mas Rodan não retribui o olhar.

— Não é assim tão fácil. — É o irmão Marcán que fala. — Faelan está prestes a entrar na segunda fase do seu noviciado. Estudou e rezou connosco nestes últimos três anos. Sabem que quando um homem entra na ordem, deixa a sua vida antiga para sempre. Este homem pode ser filho da linhagem real, mas não pode ser rei.

— Faelan está destinado a uma vida espiritual — diz o bardo-mor, os olhos escuros ferozes a perscrutar a assistência. — Progredirá muito na nossa congregação. A sua vocação é superior.

— Vamos, povo de Breifne — pede Lorde Cathra. — Abandonem este local. O ritual terminou; não poderá haver outro até passar novo ano.

Ninguém pediu a opinião de Faelan, o que me parece um pouco injusto. Suponho que não queira ser rei, mais do que há três anos, mas nestas circunstâncias podiam dar-lhe a oportunidade de falar. Podiam fazer a mesma coisa com Rodan, embora espere que não o façam. As pessoas arrastam os pés e conversam num murmúrio. Ninguém se vai embora. Ninguém aceita que aquilo termine ali.

— Senhor — diz Brondus em tom contrito —, não poderíamos confirmar se a tradição proíbe de forma explícita um druida noviço de deixar a ordem para assumir uma posição secular, seja como pastor, ferreiro ou rei? Nestas circunstâncias tão extraordinárias, não poderá existir alguma cláusula especial?

— Claro que não... — explode Farannán, mas a voz baixa de Faelan silencia-o com rapidez.

— Com todo o respeito, irmão Farannán, se alguém sabe de tal cláusula será o erudito irmão Odhar, o nosso erudito mestre das tradições. Acredita que não tenho a ambição de me tornar rei de Breifne. Estou satisfeito entre os meus irmãos, a servir os deuses o melhor que sei e posso. Mas... — Faelan olha para baixo. Poderá estar a olhar para a Harpa dos Reis, que Brocc pousou na erva antes de recuar. Poderá estar a olhar para a criança que lhe agarra a mão como se fosse uma tábua de salvação.

— Onde está o irmão Odhar? — pergunta Marcán em tom cansado.

Há uma certa agitação entre os irmãos e uma figura minúscula e mirrada com veste branca avança. Está apoiado num bordão de vidoeiro e parece ter uns cem anos. Apesar disso, os seus olhos são alegres e o sorriso aberto.

— Notável — diz numa voz cheia de bom humor. — Extraordinário. E que confusão com a harpa! Mas tudo pelo melhor, suponho. Quanto à questão dos votos dos druidas e quando podem ou não ser infringidos, existe de facto uma secção obscura do saber, muitas vezes esquecida, que se refere ao noviciado. Um homem pode pedir para sair por causa de uma doença grave na família ou uma questão amorosa, embora sejam raras, sendo as nossas vidas o que são, ou por causa de uma crise de fé. Sair porque os deuses escolheram um homem para o trono, isso não teria precedentes, creio, embora quem sabe que estranhos acontecimentos poderão ter ocorrido em tempos que já lá vão?

— Uma secção obscura — repete Farannán. Ainda está a ferver de fúria, embora o tente esconder. Imagino que Faelan seja o seu aluno de elite, talvez também seu amigo, o jovem que ele escolheu para assumir um dia o seu lugar como bardo-mor. Isto se Marcán não conduzir Faelan à posição de druida-chefe. A ideia de que nenhuma das duas coisas possa acontecer é um golpe para ambos, embora Marcán, pressinto, esteja mais disposto a transigir. — Com certeza que não somos obrigados a conformar-nos com isso, irmão Odhar?

— Talvez o irmão Odhar nos possa dizer que cláusula é essa — diz Faelan. Sorri para o velho. — Se bem o conheço, terá perfeita lembrança sobre qualquer parte do conjunto do saber e responderá às nossas perguntas.

— Ah — retorque o mestre das tradições. — Sim, dir-vos-ei. Se um irmão deseja sair antes de completar os seus primeiros três anos e se as suas razões não são consideradas frívolas, pode fazê-lo. Agradecer-lhe-ão o seu serviço e despedir-se-ão dele com boa vontade. Depois dos três primeiros anos, espera-se que permaneça na ordem durante toda a sua vida. Um homem que saia nessa fase tardia, e já aconteceu, sai com uma sombra sobre si. Faelan ainda não completou os seus três anos, embora esse dia esteja próximo.

Creio ouvir o venerável irmão Farannán praguejar entredentes. Além disso, a multidão está em silêncio. Os pássaros ainda cantam nas árvores por cima de nós. O Sol ainda brilha. Estou a suster a respiração, à espera que alguém fale, a perguntar a mim mesma quem será esse alguém.

— Irmão — diz Rodan, dando um passo em frente. Não dispensa um olhar para o regente, nem para os druidas, nem para ninguém senão Faelan. — Este era para ser o meu dia, mas parece que os deuses pensaram o contrário. Se ficares com a coroa, renuncio aqui e agora à minha pretensão ao trono.

Se eu já não estivesse suficientemente pasmada, ele surpreende-me ainda mais ao baixar um joelho e inclinar a cabeça. É a primeira vez que o vejo agir como um príncipe.

— Levanta-te, irmão. — Faelan parece chocado. — Por favor. Fica a saber que se isto tiver de acontecer, haverá um lugar para ti ao meu lado, sempre. — Estende uma mão e ajuda Rodan a levantar-se. Durante um momento, fitam-se nos olhos e depois recuam os dois. — Senhores — continua Faelan. — Irmãos. Povo de Breifne. Mal sei o que dizer, salvo que se for chamado a fazer isto e parece que possa ser essa a vontade dos deuses, então servirei como vosso rei com todo o meu coração. Agirei sempre num espírito de sabedoria e justiça.

A multidão começa outra vez a gritar: «Salve o nosso verdadeiro rei!», «Os deuses escolheram!», «Coroem-no agora!» e assim por diante. Com a tal regra sobre os três anos e faltando um ano inteiro para outro solstício de verão, sei o que faria a seguir se fosse Cathra.

— Povo de Breifne! — Parece que o regente tomou uma decisão. Se disser que não, penso que haverá sangue derramado à porta dos Nemetons. — Os deuses perdoar-nos-ão se o ritual for atrasado cerca de uma hora... Talvez o irmão Odhar possa descobrir outra passagem obscura da tradição que permita isso. — Ninguém se atreve a rir, embora veja um ou dois sorrisos entre os druidas. — Por favor, regressem para dentro das muralhas e descansem um pouco. Providenciaremos comida. Tenho de consultar todas as partes envolvidas. Se estivermos de acordo, voltaremos aqui antes de o sol chegar ao seu ponto médio. Agradeço-vos a vossa paciência. São sem dúvida tempos notáveis.

— Fui chamado para uma reunião urgente com o regente. — Archu reuniu toda a equipa na sala de ensaio. — A primeira pergunta que será feita é se Faelan teve alguma coisa a ver com o desaparecimento e reaparecimento oportuno da harpa. Ou se isto é algum tipo de conspiração dos druidas. Contem-me a versão curta da história.

— A harpa estava na posse dos seus guardiões originais, ou antes, dos seus descendentes. — Brocc fala com confiança tranquila. — Devolveram-na depois de nos mostrarem visões do futuro, uma boa, outra má. Acreditamos que a altura da sua devolução foi calculada com cuidado para garantir que as coisas corriam como correram esta manhã. O irmão Faelan não tem nada a ver com isto.

— A missão era clara. — A voz de Archu é fria como geada de inverno. — Encontrar a harpa e devolvê-la, para ser usada no ritual.

— Foi o que nós fizemos — replico eu. — Mais ou menos. — A desaprovação de Archu fere como um punho duro no queixo.

— Sabes que não é isso que quero dizer, Ciara.

— Não a culpes a ela — retorque Brocc. — Isto foi obra minha e só minha. Recebi instruções de... do povo atrás da parede. Para escrever uma canção. Para trazer a harpa de volta. Para esperar até que os deuses mostrassem a sua vontade. Para tocar e cantar. Não sabia qual seria o resultado.

— E quando a tua harpa ficou em silêncio para o bardo-mor?

— Não posso explicar isso, a não ser dizer que os deuses falam de formas estranhas.

Archu suspira.

— E o irmão Faelan? Como posso assegurar ao regente que não estava envolvido?

— Faelan escolheu a vida espiritual em vez do trono há três anos. Se vier a ser rei agora, é porque acredita que os deuses o chamaram. Lorde Cathra sabe disso.

— Tenho a certeza que Faelan preferiria que nada disto tivesse acontecido — digo. — Mas será um bom rei. Um rei que respeitará o tratado antigo entre os humanos de Breifne e... os outros.

— E o druida-chefe? O bardo-mor? Poderá algum deles ter tido algum papel nisto?

— Não imagino que algum deles quisesse que Faelan abandonasse a ordem.

— Tinham grandes esperanças para ele na sua comunidade — acrescenta Brocc. — Isso era evidente, desde aquela primeira vez que visitei os druidas. Ficarão tristes por o deixar ir. Em particular o irmão Farannán. Não vejo razão para terem estado envolvidos no desaparecimento da harpa.

— Mas alguém a levou dos Nemetons — diz Archu. — Quem? Vão fazer-me essa pergunta.

— Foi removida por precaução até chegar a altura certa — retorque Brocc. — Por magia. Não magia druídica. É melhor se ninguém souber dos pormenores. Houve pássaros envolvidos.

— Tio Art. — Tenho de o dizer. — Eu não sabia o que Donal ia fazer. Mas não ia devolver a harpa. Ia deixá-la junto ao portão para os Nemetons. No interesse da sabedoria e da justiça, não podia participar na colocação de Rodan no trono de Breifne. — E se isso me fizer perder o meu lugar na Ilha dos Cisnes, que assim seja, penso, mas não o digo.

Archu murmura uma imprecação. Vira-se para Dau, que não disse uma palavra.

— Alguma coisa a acrescentar? Concordaste com este plano para deixar a harpa nos bosques e deixar o destino seguir o seu curso?

Passa-se um longo, longo momento antes de Dau falar.

— Agimos como uma equipa.

— Não tenho a certeza se estou satisfeito com essa resposta. Trato de vocês todos mais tarde. Tenho de ir a essa reunião. Um aviso. A missão não está terminada até que estejamos a salvo longe daqui. Não abandonem o vosso disfarce. Agora digam-me, quem vos infligiu esses ferimentos? — Olha de Dau para mim.

— Não foram feitos por mão humana — respondo.

— E a égua? — pergunta Illann. — A que chegou às cavalariças esta manhã de olhos arregalados e exausta? Com sela e freio, sem cavaleiro à vista?

Dau e Brocc falam ao mesmo tempo.

— Está ferida?

— Sã e salva! Graças aos deuses!

— Fomos atacados na estrada — explico. — Tal como aconteceu, Donal não teve outra opção senão deixar ir a égua. Os atacantes eram... misteriosos. Lutar contra eles não foi fácil. Não há necessidade de fornecer os pormenores a Lorde Cathra.

— Hum, hum. — Illann lança uma olhadela a Archu. — A égua recuperará. Mas ainda bem que não vamos trabalhar nestas cavalariças depois desta noite. Um episódio como este tem tendência para destruir a confiança.

— Sinto muito — diz Brocc.

Archu fala com aspereza.

— Ciara, Donal, precisam de dormir. Eoan vai trazer-vos comida e bebida. É melhor não darem nas vistas durante algum tempo. Ainda há roupa de cama aqui. Vão lavar-se à bomba e depois voltem de imediato. Limpem esses cortes antes de dormir. Nessan, também estás a precisar de descansar.

Ir dormir e arriscarmo-nos a perder a coroação de Faelan? Ele deve estar a brincar. Mas ninguém diz isso. Ficamos ali enquanto Archu sai para a sua reunião, seguido por Illann em busca de provisões.

— Eles ainda não tomaram uma decisão — observa Dau depois de a porta se fechar. — Podem andar a discutir isto até acabar o dia do solstício de verão. E então? Ninguém vai aceitar Rodan depois do que sucedeu. E, de qualquer modo, ele excluiu-se, mais ou menos. Foi uma surpresa. Mas, pensando bem, talvez não.

— Rodan tem pavor do misterioso — digo eu. — Aquela luz estranha, o som da harpa, além de ter de lidar com o Povo Corvo... Pode estar tão aliviado como desapontado com tudo isto. Quanto aos druidas, se disserem que não a Faelan para rei, estariam a negar a vontade dos deuses. Não creio que possam recusar isso. Além disso, com o tempo perceberão que ter um homem como Faelan no trono é vantajoso para eles. Ele entende a maneira de viver dos druidas. Valoriza as coisas antigas.

— A luz dourada, o som da harpa... foram provocados pelo povo que vive atrás dessa parede? — Dau está invulgarmente hesitante. — Pela ela a que te tens referido?

Deixo Brocc responder a isso.

— Duvido — diz ele —, embora suponha que a gente dela está a observar e continuará a observar até que isto esteja concluído. Nas mãos certas, na altura certa, a Harpa dos Reis tem o seu poder.

— Quando estivermos longe daqui, contamos-te mais da história — acrescento, através de um súbito bocejo. — Aos outros também. Agora não é a altura certa. Só espero que lhes tenhamos dado o suficiente.

Illann traz comida e bebida e mais um cobertor. Lavamo-nos na bomba, uma experiência revigorante, mas não o suficiente para me impedir de bocejar, e depois comemos. Ainda nenhuma notícia de Archu. E não muito barulho lá fora, mesmo agora. Se forem realizar o ritual antes do meio do dia, ouviremos as trombetas, não é?

— Acho que me vou deitar um pouco — digo aos outros. — Não me deixem adormecer. Quero ver isto até ao fim.

Vozes excitadas, aplausos distantes, sons de comemoração. Onde estou? Quanto tempo estive a dormir?

— Acordada por fim — comenta alguém em tom seco.

Quando me esforço por voltar à consciência, oh, deuses, é aquele dia, constato sobressaltada que a almofada confortável onde a minha cabeça esteve a descansar é o colo de alguém. Tento sentar-me. O meu corpo protesta.

— Aahh! — A minha cabeça está aturdida. Devo ter dormido horas. — Por que não me...

— Devagar — aconselha a minha almofada.

A voz é de Dau. Ignoro o seu conselho, rolo para longe, viro-me e vejo Brocc enrolado num cobertor, imóvel. Dau está sentado, as costas encostadas à parede, as pernas esticadas.

— Por que não me acordaste? Quanto tempo estive a dormir?

— Algum tempo — responde Dau, descontraindo os ombros. — Não sei quanto. Eu também estava a dormitar. Não queria acordar-te. És muito menos assustadora quando estás a dormir profundamente.

— O ritual, a coroação, precisamos de...

Brocc mexe-se.

— Chiu — sibila Dau. — Ele precisa de dormir, mesmo que tu não precises. Archu meteu a cabeça na porta não há muito tempo e disse que temos de ficar aqui. Vamos partir amanhã logo de manhã como planeado. Quer-nos a todos o mais descansados possível. Interpreta isso como quiseres.

Maldição! Parece que afinal perdi a coroação de Faelan. Se ficarmos aqui metidos, não vou ter oportunidade de me despedir de Dana e das outras, nem de dizer adeus a Aislinn.

— Então acabou. — Devia sentir-me triunfante. A missão foi cumprida. Mas não consigo sentir grande coisa. — Faelan é rei.

— Por esta altura, imagino que sim. Archu estava com ar mais contente. Não que ele revele muita coisa.

— Estive a dormir em cima de ti o tempo todo?

— A maior parte.

— Não deves ter descansado muito.

— Estava bastante confortável. Há ali mais comida, se tiveres fome. Ele quer que não demos nas vistas. Uma ida rápida à privada foi aprovada. Mais tarde, podes ir buscar as tuas coisas aos alojamentos das mulheres.

— Hum. — Vou até à janela e espreito por entre as portadas. Há uma pequena fogueira no pátio das cavalariças. Palafreneiros e outros ajudantes variados encontram-se em volta dela com canecas de cerveja na mão. — O sol já está baixo. Estivemos a dormir o dia todo!

— Pode ser. Tinhas muito que recuperar. Vamos comer qualquer coisa, está bem?

Atiramo-nos à comida, que é boa. Não acredito que já tenha fome outra vez, tudo o que fiz foi dormir, mas ainda bem que pomos de lado uma porção para Brocc, porque devoramos o resto entre nós.

— Dau?

— Hum?

— Onde achas que isto nos deixa? Ficamos ou partimos?

— Na Ilha dos Cisnes? Não sei. Conseguimos trazer a harpa de volta a tempo; a missão era essa. Podia escrever uma lista das boas qualidades que exibimos.

— E eu podia escrever outra lista com as vezes que infringimos as regras, dissemos mentiras, assumimos riscos descabidos, colocámo-nos uns aos outros em perigo, falámos de forma precipitada.

— Vistos de fora — diz Dau —, somos instruendos na nossa primeira missão. Ignorámos as regras e fizemos o trabalho à nossa maneira. E o resultado não foi o que o regente pretendia, embora eu ache que a maioria das pessoas concordaria que isto é melhor. Mesmo que a missão seja considerada um êxito, estou à espera que Archu nos diga para arrumar as nossas coisas e ir para casa. Poderá ter parecido trabalho de equipa. Mas não foi. Archu e Illann fazem parte da equipa. No fim, excluímo-los do plano.

— Achas mesmo que nos vão mandar para casa. — É como um peso de chumbo na minha barriga. Ele tem razão, sem dúvida. Foi por isso que Archu nos deixou dormir durante as comemorações: para refletirmos no que fizemos e percebermos que obter um resultado não é suficiente, se não o fizermos da maneira correta. Quando parecia que me estava a deixar avançar com o meu plano louco, estava a dar-me corda suficiente para me enforcar e os outros comigo. — Sinto muito. Fui eu que infringi a maioria das regras. Convenci-te a alinhar nisto. Se fores mandado para casa, a culpa será mais minha do que tua. Deuses, nunca pensei dizer tal coisa.

— Não vou para casa — retorque Dau. — Mais depressa seria um pedinte na estrada.

Não nos pedem para tocar música depois da ceia. A harpa de Brocc está arrumada, pronta para a viagem, junto com o resto dos nossos pertences. Consigo ir buscar as minhas coisas aos alojamentos das mulheres sem falar com ninguém. Estou triste por não ver Aislinn outra vez. Na volta, deixo a minha trouxa aos pés do grande carvalho e trepo, com o tornozelo dorido e tudo, até ao seu sítio especial. Wolfie não cabe na caixa, por isso deixo-o sentado em cima; dentro do buraco deve ficar em segurança até Aislinn lá voltar de novo. Ela nunca saberá que, enquanto estava comigo, o seu boneco druida viajou até ao Outro Mundo e voltou, com uma madeixa do seu cabelo. Algum dia contarei à minha mãe este exemplo de magia do lar.


Capítulo 42

DAU

Com ordens para manter o nosso disfarce até nos ser dito o contrário, saímos da corte de Breifne nas nossas duas equipas: os músicos primeiro, o ferrador e o seu assistente não muito depois. Muitas pessoas partem esta manhã e os guardas mal nos lançam uma olhadela. Não há despedidas nem agradecimentos da parte de Lorde Cathra, embora Archu deixe escapar que recebeu o pagamento prometido. Deve levar consigo muita prata. Também não há agradecimentos por serviços prestados nas cavalariças. Illann recebe um breve aceno de cabeça do chefe das cavalariças e eu bem poderia lá não estar pois ninguém me diz nada. Não importa. A verdade é que estou contente por sair deste sítio. Só um membro da casa real sentirá a minha falta, Bryn, o cão da cavalariça. Não posso usar palavras para me despedir dele, porque há pessoas em volta, mas agacho-me e coço-o atrás das orelhas. Ele lambe-me o rosto. Tento comunicar em silêncio que foi bom ter um amigo neste sítio. Ele depressa me esquecerá.

O plano é as nossas duas equipas juntarem-se mais tarde, com certeza na casa segura de Oschu, onde trocaremos de cavalos. Faremos os cinco o resto do caminho juntos. Calculo que Archu nos interrogue a propósito do nosso desempenho mal passemos todos uma noite no mesmo lugar. Enquanto cavalgo, tento classificar-nos aos três. Tento ver através dos olhos de Archu, avaliar o que fizemos bem por oposição às nossas falhas de discernimento e ao nosso menosprezo voluntário do facto de ele ser o líder da missão. Tento contrabalançar o fim triunfal da missão com a forma excêntrica como o alcançámos. Penso em ir para casa e as sombras escurecem-me a mente.

Illann nunca é muito falador quando cavalga e ainda menos quando o seu companheiro não pode responder. Isso significa que sou deixado com as minhas recordações e os meus medos. Dou por mim a desejar que fôssemos todos juntos agora. Brocc estava invulgarmente calado antes de partirmos, talvez ainda cansado. Esteve agitado durante a noite. Acordei algumas vezes e vi-o de pé junto à janela com o seu cobertor pelos ombros, a fitar o vazio. Talvez estivesse também a contemplar um futuro sem a Ilha dos Cisnes. Ainda assim, com pais como os seus, terá sempre procura como músico. Eu? Talvez me possa empregar como moço de estrebaria. Algures longe, longe de casa.

Estamos a cavalgar pela floresta, na primeira parte do Caminho dos Corvos. Dou por mim a olhar para cima, meio à espera que aquelas coisas se precipitem das árvores e me rasguem com as suas garras. Deuses, foi estranho a forma como Brocc usou a sua voz como arma. O que dirá Archu quando lhe contarmos a história completa? Contar-lhe-emos? Ouviremos todos o que aconteceu a Brocc e a Liobhan por trás da parede misteriosa? Maldição, se alguém me tivesse dito antes de partir da Ilha dos Cisnes que esta missão conteria tais ocorrências bizarras, teria rido da ideia. Mesmo agora, mal consigo entender. Como aceitam Brocc e Liobhan estes fenómenos misteriosos com tanta facilidade?

Aproximamo-nos do trilho que conduz à casa da senhora Juniper e detemo-nos abruptamente. À nossa frente, no ponto em que o caminho se ramifica, encontram-se Archu, Brocc e Liobhan. Brocc desmontou e está a desfazer o seu alforge. Os outros ainda estão em cima dos cavalos, o que significa que o caminho está bloqueado para qualquer outro viajante que possa querer passar. Há algum tipo de discussão a acontecer.

— Avança — diz Illann. Aproximamo-nos até ficarmos atrás dos outros e paramos de novo.

Brocc discute com Archu. Liobhan está em silêncio, o rosto pálido como o linho, o queixo apertado. Fita o irmão como se não pudesse acreditar no que está a ouvir.

— O que queres dizer com isso de não vires connosco? — Archu, por norma imperturbável, esforça-se por manter a voz calma.

— Fiz uma promessa. — Brocc enrolou os seus pertences numa trouxa; ata-a. Tem a harpa às costas. — Não posso ir com vocês. Continuem. Esqueçam-me.

— Dá-nos um momento. — Liobhan desmonta tão depressa que arrisca magoar outra vez o tornozelo. Passa as rédeas a Archu e marcha para Brocc. Estou à espera que ela lhe dê uma estalada na face e lhe diga para parar de ser estúpido, mas não: não lhe toca, fica ali só a olhar para ele. — O que é isto? — A voz treme. — Que promessa? Terminámos as tarefas, fizemos tudo o que ela pediu! Ela não pode obrigar-te a voltar! — Percebo como está a esforçar-se por se controlar. Percebo como quer soltar um grito de fúria ou desfazer-se em lágrimas. Se antes pensava que ela era forte, agora vejo-o em toda a sua plenitude.

Brocc fita a irmã a direito nos olhos. A sua expressão faz-me suster a respiração.

— Esta é a minha escolha, Liobhan. Ela precisa de mim. O povo dela precisa de mim. Prometi.

Lança uma olhadela para o trilho que leva à casa da senhora Juniper. Há alguém lá em cima. Não a velha nem a cadela. Uma mulher muito mais jovem, espantosamente bonita, vestida com modéstia, ali parada no caminho. À espera. Atrás dela, outras figuras, todas com capas e capuzes. Parecem muito estranhas. Algumas são muito pequenas, do tamanho de crianças, mas não crianças. Gente pequena como Casaso-de-Cardo.

— Quebra essa miserável promessa — pede Liobhan. — Volta connosco, se não para a Ilha dos Cisnes, então para casa, para Winterfalls. Não pertences ali com essa gente, Brocc. És um de nós.

— Talvez sim, talvez não — retorque Brocc. Põe-lhe as mãos nos ombros e beija-a na face. Vejo então que a face dele está molhada de lágrimas. — Desta forma descobrirei. Tenho trabalho a fazer ali. Um caminho que devo seguir.

Liobhan olha para o trilho, na direção da gente que espera. A jovem oferece-lhe um sorriso doce; inclina a cabeça num cumprimento.

— Quem são estas pessoas? — Archu mostra-se severo. — Neste momento estás sob a minha liderança e eu, por minha vez, tenho responsabilidades perante os anciãos da Ilha dos Cisnes. Terei de prestar contas da tua ausência. Poderias pelo menos ter a cortesia de me oferecer uma explicação.

— Não posso — diz Brocc. — Tenho de ir agora. Ciara conhece a história. Sinto muito desapontar-te. — Olha de Archu para mim, para Illann. — A todos vocês. E desejo-vos felicidades para o futuro. Mas não posso ir convosco e não posso demorar mais tempo.

Um soluço de Liobhan; leva a mão à boca para o abafar. Brocc envolve-a nos seus braços; abraça-a durante um momento. Quando ele recua, ela pergunta:

— Quanto tempo? Quando virás para casa?

Brocc não responde. Vira-se e sobe o caminho.

— Brocc — sussurra Liobhan. — Não vás, por favor.

Mas Brocc continua a andar, sem prestar atenção. Até eu tenho lágrimas nos olhos.

Em pouco tempo, alcança o grupo de boas-vindas. Viram-se todos ao mesmo tempo e encaminham-se para a floresta. Todos se perdem em breve na sombra das árvores. Liobhan cobre o rosto com as mãos. Fica ali na estrada, sem se mexer. É nesse momento que ouvimos viajantes a chegar atrás de nós, muito provavelmente outros visitantes a caminho de casa vindos da corte.

— Nessan, ajuda-a a montar — diz Archu. — Continuamos juntos.

Desmonto e dou ordem ao meu cavalo para esperar. Quando toco no ombro de Liobhan, ela sobressalta-se como um animal assustado.

— Vamos continuar. Deixa-me ajudar-te.

É um facto que está muito chocada pois aceita a minha ajuda para voltar a montar, pega nas rédeas sem protestar, segue Archu quando ele parte. Não olha para trás. Não diz outra palavra. Archu acelera quando nos afastamos da modesta habitação da senhora Juniper, onde estaria, pergunto-me, e, a seu tempo, da floresta com as suas miseráveis coisas-corvo e os seus outros habitantes peculiares. Brocc foi para um lugar cheio de seres que não são nem homem nem animal, mas uma estranha mistura como Casaco-de-Cardo? Talvez isto seja tudo um sonho, sei como são os sonhos, e eu acorde na sala de ensaio com Liobhan adormecida no meu joelho. Talvez acorde e tenha outra vez seis anos e... Não, não seguirei por esse caminho. De vez em quando lanço uma olhadela a Liobhan, mas ela olha em frente. Nada de lágrimas agora. O seu rosto é o de um guerreiro talhado em pedra, sombrio e retesado. Daria tudo para a ver sorrir. Ou para a ouvir respingar quando a aborreço. Ou para vê-la estender a mão e convidar-me a juntar-me a ela nalgum ato de coragem louca. Penso em respostas para as inevitáveis perguntas de Archu: como avaliarias o desempenho da tua companheira nesta missão? O que fez ela bem? Onde errou? Como podia ter feito melhor? Mas não consigo pensar da forma que ele sem dúvida pensará. Se fosse eu a decidir, não lhe podia recusar um lugar na Ilha dos Cisnes.


Capítulo 43

LIOBHAN

Só há uma maneira de poder continuar e é pôr em prática o meu treino de guerreira. Bloqueio o que acabou de suceder e continuo a cavalgar sem falar. Quando paramos para descansar os cavalos, respondo às perguntas com sim ou não. Faço o que é necessário, como e bebo quando os outros o fazem, asseguro-me que estou pronta para partir quando chega a altura.

Archu e Illann não disseram nada sobre o que aconteceu com Brocc. Os três homens agem com cautela comigo, como se pensassem que eu poderia ou sucumbir ou fugir sozinha atrás do meu irmão, como fiz anteriormente.

Tenho de os ignorar. Se alguém for compreensivo comigo, poderei ir-me abaixo. Não posso deixar que isso aconteça. Sou forte. Vou continuar assim, custe o que custar.

Há uma noite numa estalagem de estrada. Archu oferece música em troca de comida e abrigo. Não me pergunta se estou pronta para atuar, diz-me apenas que o vamos fazer.

— Se preferires, podemos ficar-nos pela flauta e pelo tamborim — diz. Não diz: se achas que cantar te lembra demasiado o que perdeste. Não diz: se pensas que poderás chorar. Mas é isso que quer dizer.

— Posso cantar umas canções — respondo-lhe. — Escolhe. O que funcionar melhor sem a harpa.

Conseguimos chegar ao fim da apresentação. Não derramo lágrimas. Não me engasgo com as palavras. Consigo tocar O Salto de Artagan apesar de ter de tocar a melodia inteira sozinha. Archu não faz concessões à velocidade. A multidão parece satisfeita. Na manhã seguinte continuamos a cavalgar.

A paragem seguinte é na casa segura, de Oschu e Maen e do seu filho. Archu diz-nos que ficaremos duas noites. Na primeira noite, depois da ceia, a família sai para ir a algum sítio e a nossa equipa reúne-se à lareira.

— Ouvirei a história agora — diz Archu. — Deixem-me dizer, antes de começarem, que sinto a perda de Brocc e como isto deve ser difícil para ti, Liobhan. Serei eu que terei de prestar contas a Cionnaola pelo que sucedeu, por isso qualquer coisa que me possas dizer e que ajude a entender o sentido disto tudo será bem-vinda.

— Não sei a história toda. Há partes que só Brocc poderia contar. Mas dir-te-ei o que puder. — Preciso de fazer isto. Preciso de acabar com isto. — Posso fazer uma pergunta primeiro?

— Diz.

— Por que aceitaste tão depressa que ele nos ia deixar? Pensaste em tentar detê-lo? Ir atrás dele, talvez, ou esperar um pouco?

— E tu? — pergunta Archu.

— Sabia que não valia a pena.

— Comigo foi a mesma coisa. Vi a expressão do rosto dele. Não pude deixar de reparar na natureza daqueles seres que estavam à espera dele. Quando partiste para o ir buscar, percebi mais ou menos onde terias ido.

Talvez eu pareça chocada, porque ele acrescenta:

— Não te esqueças que Cionnaola conhecia os teus pais antes de teres nascido. A capacidade musical foi apenas um dos fatores que levámos em consideração quando escolhemos a equipa para esta missão.

— Estás a dizer que calculaste nessa altura que isto poderia envolver o feérico?

— Considerámos essa possibilidade. Pensámos que tu e o teu irmão poderiam estar mais bem preparados para lidar com isso do que a maioria. Conta-nos a história, Liobhan. Ouviremos a tua história primeiro e depois a de Dau.

Dau parece estar a explodir de perguntas. Gostaria que ele não tivesse sabido que os nossos pais são velhos amigos de Cionnaola. Mas neste momento talvez isso não importe muito.

— Muito bem, vou contar-te.

Relato as coisas da forma mais concisa possível. Brocc em busca de uma história ouvida de um druida. A senhora Juniper. O facto de eu ter seguido Brocc, Dau ter-me seguido a mim, a minha estranha visita ao Outro Mundo. As coisas-corvo, a rainha das fadas, a ligação entre ela e o meu irmão. A visão dos dois futuros. As tarefas. Quase perco o controlo quando lhes estou a contar como Eirne prometeu que Brocc podia voltar comigo na véspera do solstício de verão. Ela fraseou essa promessa com cuidado; nunca disse: ele pode voltar para o teu mundo para sempre.

— Leva o tempo que for preciso — diz Archu. Dau levanta-se, serve-me uma caneca de hidromel e coloca-a ao meu lado na mesa. Às vezes, pode ser bastante atencioso.

Falo-lhes de Aislinn e do boneco e como ela representou a história de Wolfie e da irmã. Explico que a forma como o boneco foi feito fazia que a sua criação fosse um poderoso ato de magia do lar.

— E a dança? — pergunta Dau com alguma insegurança.

— Precisávamos de trabalhar como uma equipa. A dança ajudou-nos a confiar um no outro. — Penso que a dança foi um pouco mais do que isso, mas não vou dizê-lo.

Falo do meu regresso ao mundo de Eirne e como ela confiou que agíssemos com sabedoria e justiça. Menciono a alusão de Eirne de que alguma da sua gente podia ter lançado mãos à obra sozinha e que acreditei que ela estava a dizer que eles tinham levado a harpa. Embora isso infringisse a regra de o Povo Encantado não intervir em questões humanas, deu-lhe os meios para assegurar um futuro melhor para Breifne. Relato o nosso regresso a cavalo, o ataque das coisas-corvo e Brocc a cantar. Chego ao ponto em que desmontamos não muito longe da fortaleza com a harpa na nossa posse e o Sol prestes a nascer, tendo a última parte da noite passado com misteriosa velocidade.

— E depois tu, por tua vez, resolveste lançar mãos à obra sozinha. — O tom de Archu não me diz nada.

Dau começa a falar, mas levanto uma mão para o impedir.

— Espera. Archu, depois do que tinha visto e ouvido, não podia entregar a Harpa dos Reis e ver Rodan ser coroado. Nessa altura já sabia de Faelan, quem era e que escolhera a ordem em vez do trono há três anos. Acreditava, como tu, que o facto de ser druida o impedia de reivindicar o trono. Pensei que ao deixar a harpa no Portão de Danu estaríamos a passar isto para as mãos dos deuses. Pensei que era isso que Eirne queria dizer quando nos disse para seguir o caminho da sabedoria e da justiça. Não fazia ideia do que Brocc ia fazer.

— Arriscado — comenta Illann.

— Acreditei que esse risco era melhor do que o risco de permitir que Rodan se tornasse rei de Breifne.

— Ouviremos agora a tua história — diz Archu a Dau.

Dau conta-a de forma clara e simples. Ele, pelo menos, não tem de falar do Outro Mundo. Não se queixa da exigência de ser mudo. Cinge-se aos factos. Passa por cima dos pormenores precisos de como eu saí da fortaleza na manhã em que fui atrás de Brocc, diz apenas que me ajudou. Minimiza o seu papel na luta contra as coisas-corvo. Não menciona que cantou em frente da parede para me dar algum descanso. Estou impressionada. Mesmo que nos tenhamos saído mal, mesmo que sejamos mandados para casa, ele pode manter a cabeça erguida. Isto tudo mudou-o para melhor. Esta estranha aventura arrancou-lhe aquele manto de desprezo e indiferença.

— Diz-me — pede Archu —, depois de desempenhares o teu papel tão bem durante tanto tempo, o que te levou a desafiar os três amigos de Rodan? Se falamos de risco, esse foi grande.

— Estava furioso. Eles estavam a insultar Liobhan. Estava farto.

Dau tem os cotovelos nos joelhos e os dedos entrelaçados. Fita o chão. Por isso não vê que Archu e Illann estão a sorrir.

— Também tenho uma pergunta — intervenho. — Por que agiram os dois daquela maneira nessa noite? Nada em sintonia com os vossos papéis na missão. Não quero dizer que não apreciei aquele espetáculo. Exceto quando pensei que aquele homem pequeno ia espetar uma faca em Dau.

Archu e Illann riem-se. Dau soergue-se, sobressaltado.

— Gosto de uma boa luta — responde Archu. — Já era tempo de esses imbecis aprenderem uma lição. Teria sido diferente se Rodan lá estivesse... teríamos de parar com aquilo. Mas assim pareceu natural entrar no espírito da coisa.

— O melhor momento da missão — comenta Illann. — Pelos deuses, és um lutador inteligente, Dau. E Liobhan foi rápida como um raio. Não que eu recomende apanhar facas como forma regular de exercício. Uma pessoa tem tendência para perder dedos.

Espero que eles passem disto para o que Dau e eu queremos ouvir: a avaliação do nosso desempenho e o veredicto. Com certeza que Archu não nos vai fazer esperar até regressarmos à Ilha dos Cisnes para nos dizer. Ou vai? Talvez tenha de conferenciar com os outros instrutores. Ou com todos os anciãos. Isso poderá significar uma longa, longa espera.

— É tarde — diz ele agora, levantando-se e estendendo as mãos para o lume. — Estamos todos cansados. Um dia de descanso amanhã. Falaremos de novo à noite. Boa-noite.

Murmuramos as boas-noites e dirigimo-nos para os nossos locais de dormida. Eu estou numa enxerga num canto da cozinha. Os homens estão numa zona comum na outra ponta da casa. Pergunto-me quantas pessoas da Ilha dos Cisnes param aqui a caminho de várias missões. Os nossos anfitriões devem ter ouvido muitas histórias que não podem partilhar. Fico deitada a pensar como o dia de amanhã me parecerá longo. Ficarei furiosa se Archu não fizer a avaliação antes de partirmos daqui. Isto exercita tanto a minha mente que mal penso em Brocc. Mesmo antes de adormecer, já muito tarde, o luar entra pela janela, pálido e puro, e o meu irmão regressa aos meus pensamentos. Espero que estejas feliz, penso. Espero que tenhas feito a escolha certa. E espero algum dia cantar contigo outra vez.

O dia chega. O meu tornozelo está melhor. Os arranhões infligidos pelo Povo Corvo não são tão fundos como aquelas feridas que vi nos cavalos lá na corte e penso que sararão. Maen põe-lhes unguento e uma ligadura limpa no ferimento do ombro.

Depois do pequeno-almoço, ajudo o jovem da casa a escavar uma vala de drenagem. Corto lenha. Lavo e espremo algumas peças de roupa e penduro-as para secar ao sol. Vou dar um longo passeio pelos campos. Visito as cavalariças. Está lá a trabalhar um homem de constituição robusta já velhote. Conversamos sobre isto e aquilo e não lhe pergunto se era um guerreiro da Ilha dos Cisnes, embora ele tenha uma interessante tatuagem facial que me faz lembrar uma águia. Ele deseja-me boa viagem; agradeço-lhe o tempo que me dispensou e o cuidado dedicado aos cavalos.

Há uma refeição do meio-dia em que Dau e eu estamos ambos calados. Archu sugere que descansemos. Murmuramos uma resposta. Quando a refeição termina, vou andar outra vez e sigo o curso de um regato, sem ter a certeza para onde vou ou porquê, mas precisando de continuar a andar para não pensar muito. Disseram-nos para nos mantermos dentro dos limites da quinta e é isso que faço; há marcas claras com a forma de pedras caiadas de branco. Levanto a saia e tento fazer o pino e andar em cima das mãos durante um bocado, só para saber que ainda o consigo fazer.

Num canto distante da quinta, sento-me sob um salgueiro gracioso. Durante um bocado, observo os desenhos da água, as ondulações, redemoinhos e partes estranhamente paradas. Passam patos a nadar; há insetos a pairar por ali; os peixes precipitam-se, com medo dos pássaros que mergulham. Aquela ideia faz-me tremer. Penso em Brocc naquele lugar, inacessível, e pergunto a mim mesma se Eirne está a contar que ele lute contra aquelas criaturas dia após dia. O que ele fez foi extraordinário. Será que Eirne compreende como aquilo lhe custou? Perceberá que um homem não pode gastar assim as suas forças, repetidas vezes, sem degenerar para uma sombra do que foi? Amá-lo-á o suficiente para evitar isso? Ou protegerá o seu povo custe o que custar?

Uma tosse cortês. Quase dou um salto com o susto.

— Merda! Não apareças assim sorrateira!

— Baixaste a guarda. Devias estar sempre alerta.

— Obrigada, era mesmo isso que precisava ouvir.

Um silêncio. Depois:

— Vou-me embora — diz ele e vira-se.

— Dau! Fica, por favor. Ia apreciar a companhia.

Ele vem sentar-se ao meu lado, com os joelhos dobrados, as costas direitas. Demonstrando, talvez, a postura ideal para se manter alerta. Observamos o regato a correr. Passam nuvens pequenas. A minha mente regressa a Brocc e, de repente, o que aconteceu atinge-me como um murro no estômago. Ele foi-se. O meu irmão não vai voltar. Escolheu despedir-se, deixar-me, aos nossos pais e a Galen. Escolheu aquele mundo e poderei nunca mais ouvir a sua voz.

— Chora se quiseres. — A voz de Dau é calma.

Já estou a chorar. Não há maneira de conter as lágrimas. Soluço como uma criança, recordando os bons tempos: quando Brocc e eu nos apoiávamos um ao outro; quando cantávamos, tocávamos e fazíamos versos; quando treinávamos as lutas. Ponho as mãos na cara. Maldição! O que sou, um bebé?

Quando o pior já passou, Dau coloca um lenço limpo na minha mão. Como parece ter sempre um lenço com ele? Enxugo o rosto. Espero que Dau não diga nada. Não pode compreender. Odeia os irmãos.

— Deve ter sido difícil — diz ele. — Sei como eram chegados.

— Não quero falar disso — balbucio. Já é horrível saber que terei de contar à família.

— Que tal uma aposta? — pergunta Dau, ainda a olhar para a água.

— Quê?

— Archu vai dar-nos a notícia esta noite, não é? Se vamos ficar ou não? Vamos apostar nisso. Ficamos ambos, partimos ambos ou fica um dos dois?

A mudança abrupta de assunto é tão bem-vinda como uma bebida fresca depois de um combate difícil com bastões.

— Estou com um pouco de falta de fundos — digo.

— O que se aposta não interessa. Uma moedinha de cobre? Aposto que ele te escolhe para ficar e a mim para partir.

Fito-o espantada.

— Por que em nome dos deuses pensarias isso?

— Tu assumes riscos, mostras capacidade de liderança, apegas-te com firmeza àquilo em que acreditas. És corajosa.

— Essas mesmas ações podiam ser descritas como tolas, loucas e casmurras. De facto, foram descritas dessa forma. Talvez não a parte da casmurrice.

— Mesmo assim. O que achas que ele vai decidir?

— O contrário. Tu ficas e eu sou mandada para casa.

— Estás a dizer isso só para me fazeres sentir melhor.

— Uma treta, Dau. Se tenho alguma boa qualidade é a honestidade. Tu mantiveste o teu papel em condições extremas. Mostraste grande discernimento, inteligência e excelentes capacidades físicas. E... e confiaste em nós, em mim e em Brocc, apesar da situação ter sido desconcertante para ti. Não podias saber que nós... que a forma como fomos criados significava que tínhamos mais facilidade em entender tais coisas. Por outro lado, mostraste ser digno de confiança.

Um longo silêncio desta vez.

— Obrigado — agradece Dau. — Gostava que fosses tu a fazer a avaliação.

— Mas depois ia mandar-me embora, o que seria um comportamento estranho, mesmo para mim.

Ele sorri.

— Uma moedinha de cobre, então? Está combinado?

— Está combinado. Talvez devêssemos regressar.

Mas não voltamos, não logo. Ficamos ali sentados na margem mais um tempo, a descansar as costas no salgueiro. O dia aquece e a dada altura dormito um pouco. Quando desperto, levantamo-nos e caminhamos de volta em silêncio, à vontade na companhia um do outro.

Archu faz as perguntas habituais, as que lança depois de todos os combates. A mais difícil esta noite é identificar os pontos fracos e erros do adversário. Nas atuais circunstâncias, parece errado fazê-lo. Mas faz parte do treino da Ilha dos Cisnes, por isso exponho-as.

— Dau demorou tempo a confiar em nós. Estava ressentido com o papel que lhe fora atribuído e, por vezes, deixava-o transparecer.

— E?

— É isso. Já te disse o que ele fez bem. Fez a maior parte das coisas muito bem.

— Foi melhor do que tu? Melhor do que o teu irmão?

— Diferente. Não podes avaliar-nos um contra o outro; tínhamos os nossos papéis a desempenhar. A missão precisava de todos nós.

— Hum, hum. Dau, vamos ouvir o que Liobhan fez errado. Fizeste-nos um relato surpreendentemente positivo dos pontos fortes dela.

— Ela tem tendência para dizer o que pensa; isso pode dar problemas. Gosta de correr riscos. Às vezes esses riscos são... demasiado arriscados. Para algumas pessoas, poderão parecer tolos. Se a estivesse a treinar para a sua próxima missão, pedia-lhe que trabalhasse o seu autocontrolo.

— Que parte desta missão te deu mais satisfação? — Esta pergunta surpreendente é de Illann.

Dau fita-me nos olhos e ambos sorrimos. Nenhum de nós vai mencionar aquela escapadela pela muralha.

— Para ser sincero — responde ele —, passei a maior parte da nossa estada em Breifne a sentir tudo menos satisfação. Fiquei contente quando Liobhan tirou Brocc daquele lugar. E fiquei contente quando a harpa acabou nas mãos certas.

— E tu, Liobhan?

— Trabalhar em equipa. Melhorámos nesse ponto. Íamos aprendendo à medida que o tempo passava. Só que... sem Brocc não somos muito uma equipa. Lamento. — Pigarreio, a desejar que a minha voz fosse mais firme. — Gostava que ele pudesse estar aqui para te dar as respostas dele. Gostava de poder dizer-te como ele foi forte. Como é forte. Gostava de poder... Gostava de poder parar de pensar que a culpa é minha. O que lhe aconteceu. Ele sabia como eu queria que a missão fosse um êxito.

Há um silêncio e depois Archu pergunta:

— De quem foi a decisão de ele ficar naquele lugar? Tua? Da rainha das fadas? Ou de Brocc? Ele é um homem independente, Liobhan. Desde o princípio.

Claro que ele tem razão. Talvez com o tempo o sentimento de culpa abrande e eu seja capaz de aceitar o que aconteceu. Gostaria de saber quanto tempo Brocc tem de ficar no Outro Mundo. Uma temporada, um ano, cem anos, para sempre? Já ouvi demasiadas histórias.

— Vais querer ir a casa, a Winterfalls — diz Archu.

O meu coração afunda ainda mais.

— Quero dizer, para dares a notícia à tua família. Não será tarefa fácil. Enviaremos alguém contigo.

Estou dividida entre rir e chorar. As minhas entranhas são uma confusão de sentimentos desnorteados.

— Diz-nos, por favor. — É Dau que intervém para pôr fim à tortura. — Liobhan e eu vamos continuar o nosso treino na Ilha dos Cisnes?

Archu e Illann entreolham-se. Estão tão solenes como homens de leis a pronunciar uma sentença. Tenho os punhos cerrados com tanta força que dói. Não consigo olhar para Dau.

— O que achas, Illann? — pergunta Archu. — Ficamos com eles?

— Acho que podíamos.

Oh, deuses! Será que estão mesmo a dizer que sim?

— O que não consigo entender — diz Archu e agora está a sorrir — é por que razão algum dos dois pensou que vos diríamos que não depois disto. Façam o resto do treino sem grandes confusões e estarão os dois no topo da nossa lista. O vosso desempenho nesta missão só fortaleceu as vossas hipóteses.

Faço uma coisa que até há pouco tempo teria sido impensável: dou um salto, lanço os braços para Dau e agarro-me a ele enquanto rio e choro ao mesmo tempo. Ainda mais impensável é que ele me abraça também. Quando consigo falar outra vez de forma coerente, solto-o e viro-me para Archu. Está com um ar muitíssimo divertido. Illann está na outra ponta da mesa a servir hidromel para todos.

— Mas correr riscos tolos... seguir o nosso caminho... desobedecer a instruções... criticar o druida-chefe numa reunião de chefias...

— Infringir as regras — acrescenta Dau. — Chamar a atenção para mim. Não conseguir ouvir nada com a mínima utilidade. E mais outras coisas que não vou mencionar. Isso tudo não prevalece sobre o notável êxito da missão?

— Tomem. — Illann traz o hidromel. — O que estão a tentar fazer, a dissuadir-nos de vos aceitar?

— Claro que não. — Ainda não consigo acreditar nisto. — Mas... estou chocada. Um guerreiro da Ilha dos Cisnes não devia obedecer às ordens do líder e cingir-se ao plano da missão?

Archu pigarreia e lança outra vez uma olhadela a Illann. É evidente que estamos a providenciar um bom entretenimento.

— As missões variam, Liobhan. Precisamos de uma equipa unida, isso é certo. Precisamos que a nossa gente confie uns nos outros sem reservas. Mas a Ilha dos Cisnes valoriza as capacidades particulares de cada guerreiro. Precisamos de pessoas que consigam pensar por si. Pessoas que se possam tornar líderes com um estalar de dedos, se a situação o exigir. Gostamos de raciocínio rápido e boa imaginação. Valorizamos as pessoas que correm riscos, desde que o risco seja justificado. Mesmo que não seja justificado até o correrem. Diria que vocês os dois estão talhados para o trabalho, mesmo diferentes como são. Assegurem-se apenas que estão preparados para um treino duro mal regressemos. Sair-se bem numa missão não vos dá o direito de descansar a partir daí. Além disso, há outros candidatos no vosso grupo que estão mesmo atrás de vocês.

— Obrigada. Eu... eu não tenho mais nada a dizer.

— Deve ser a primeira vez — diz Dau. — Também vos agradeço. Uma pausa. — Mencionaste que Liobhan fará uma viagem até casa para dar a notícia à família. Poderei ter permissão para a acompanhar?

Archu lança-lhe um longo olhar duro. Outro homem poderia esmorecer sob tal escrutínio. Dau retribui o olhar, inflexível. O que raio lhe teria passado pela cabeça para sugerir aquilo?

— Pensarei no assunto — responde Archu. — Suponho que isso deixaria os dois em plano de igualdade em termos do treino. Veremos.

Penso em Brocc. Devia estar aqui a beber hidromel connosco, a rir-se, talvez a cantar. A ser informado de que desempenhara com brilhantismo o seu papel na missão. Se ele não se tivesse desviado do plano, teríamos fracassado. Foi o mais corajoso de todos. Penso em contar aos meus pais e como seria muito mais fácil se tivesse um amigo comigo.

— Posso ir sozinha — afirmo. — Por que deveria alguém perder dias e dias de treino?

— Para garantir que voltas — diz Dau.


Capítulo 44

BROCC

Estamos aqui. Estamos em casa. Casa tem agora um significado diferente. Poderei compor uma canção sobre isso. Mas não ainda. Não hoje.

O povo de Eirne está jubilante. Comemoram a coroação de um novo rei; preveem melhores tempos, tempos de verdadeiro entendimento. E alegram-se com o meu regresso, pois quando Eirne está feliz, eles também estão. Embora não tenham mencionado o Povo Corvo, sei que veem em mim um guerreiro que banirá o flagelo que paira sobre eles.

Querem música, dança e festejos. Mas Eirne percebe o que me custou dizer adeus e diz-lhes:

— Mais tarde. Mais tarde o nosso bardo tocará para vocês e encheremos a floresta de sons alegres.

Por agora, estou deitado em silêncio na minha pequena casa, enquanto os pássaros cantam do lado de fora das portadas. A minha harpa está silenciosa no canto, à espera dos meus dedos. Não soou para Farannán. Isso foi um grande mistério. Maravilhas visitaram esse dia.

Antes de sair por aquela porta, antes de mergulhar na minha nova vida, antes de pôr as mãos nas cordas do meu instrumento ou erguer a minha voz numa canção, seja para entreter os meus amigos ou travar guerra contra os seus inimigos, tenho de fazer as pazes com aqueles que deixei para trás. Vê-los-ei de novo? Voltarei algum dia e estarei tão mudado que já não me reconhecerão?

— Mãe — sussurro. — Pai. Amo-vos e sinto muito. Galen, olha por eles. Apoia-os. — Talvez seja uma oração. Talvez de alguma forma misteriosa me ouçam e entendam.

Depois há Liobhan. Queria ter tido mais tempo para me despedir. Queria ter acalmado os medos dela. Queria tê-la visto sorrir. Queria ter-lhe dito que sentirei muitas saudades da sua voz, que teve sempre o poder de me tocar o coração e animar-me. A música dela fazia-me mais forte. Ela fazia-me mais forte.

Havia tantas coisas que queria dizer, uma infinidade delas.

Talvez, afinal, cante agora. Não com a harpa. Não com voz forte, pois não quero assistência. Mas baixinho, como se a minha irmã estivesse tão perto que eu pudesse fitá-la e encontrar o seu olhar franco; estender o braço e pegar-lhe na mão. Se fechar os olhos, talvez ouça a voz dela, a cantar com a minha.


Não posso ir contigo para onde quer que tu vás,

E não posso ficar a teu lado na alegria e na adversidade,

Mas estarei junto de ti, embora longe da tua vista,

Amar-te-ei e proteger-te-ei até nos encontrarmos na luz.

 

 

                                                                  Juliet Marillier

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades