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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A HECATOMBE - P.2 / Laura Gallego García
A HECATOMBE - P.2 / Laura Gallego García

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Memórias de Idhún

Volume V / Segunda Parte

A HECATOMBE

 

Voltou à realidade ao ver que Ogadrak iniciava uma manobra de descida e que os outros dragões o seguiam. Hesitou por um momento, mas depois recordou-se de que provavelmente o presidente da câmara de Rhyrr não tinha tido tempo de avisar Haai-Sil do que se avizinhava. Talvez fosse tarde demais, mas, de qualquer forma, tinham de fazer alguma coisa.

Foi difícil encontrar um lugar onde aterrar, dado que o escarpado terreno de Haai-Sil, com as altas formações rochosas em forma de agulha, não tinha muito espaço livre. Por fim, a frota encontrou uma pequena clareira nos arredores da cidade. Quando Kimara desceu de um salto da sua fêmea de dragão, os outros pilotos já se tinham reunido em volta de um grupo de celestes que viera recebê-los. Kimara reconheceu Zaisei entre eles. Perguntou-se o que faria ela em Haai-Sil, e então recordou que a Mãe Venerável tinha estado em Rhyrr há apenas uns dias. Zaisei também a viu.

- Kimara! - exclamou. - O que é que se passa a norte? Que tornado é este que se aproxima?

A semi-yan abanou a cabeça.

- Não sei, mas arrasou Rhyrr e destruiu mais de metade da nossa frota. Parámos porque temos de renovar a magia dos dragões e para vos avisar, mas dentro de poucas horas prosseguiremos viagem para Awinor e aconselhamo-vos a fazerem o mesmo e a evacuar a população o quanto antes.

Zaisei empalideceu.

- Mas não podemos ir embora! Os pássaros...

- Levem-nos convosco - resolveu Kimara. - Usem-nos como montada para sair daqui. Se se apressarem, talvez o furacão não vos alcance.

- Mas e os ninhos, os ovos, as crias...? - perguntou Zaisei, angustiada. Kimara abanou a cabeça. Os celestes do grupo calaram-se, pálidos, com os olhos muito abertos e uma clara expressão de receio nos seus rostos, habitualmente felizes. Era óbvio que tinham captado os sentimentos de terror e impotência que se albergavam nos corações dos pilotos.

Era já noite cerrada quando Jack e Shail regressaram ao Oráculo. Alexander seguia-os, ainda aturdido, a tremer debaixo da capa de peles que lhe tinham arranjado. Ao vê-lo à luz da tarde tinham descoberto que a sua longa estada no reino gelado de Nanhai o fizera perder dois dedos da mão esquerda. Ele, contudo, não parecia afectado por este facto; pelos vistos, ao vê-los congelados, limitara-se a cortá-los com a sua própria espada. Na opinião de Shail, se os gigantes não o tivessem encontrado, Alexander não teria sobrevivido. Agora ia atrás dos amigos, avançando tropegamente sobre a neve, sem saber ainda muito bem o que estava a acontecer.

Nas ruínas do Oráculo, reinavam a calma e o silêncio. Já tinham todos ido dormir, salvo Ymur, que se acomodara junto à fogueira e lia atentamente um livro. Junto dele havia um cestinho velho cheio de volumes e papéis antigos, que, decerto, tencionava estudar a seguir.

Shail deixou-se cair junto à fogueira e pôs as mãos perto do fogo para as aquecer. Jack ajudou Alexander a sentar-se.

- Oh, são vocês - disse Ymur, distraído. - Voltaram tão rápido?

- Rápido? - repetiu Shail, quase a rir-se. - Ymur, é tardíssimo. Daqui a nada amanhece. " O gigante mostrou-se desconcertado.

- A sério? O tempo passou a voar. - Lançou um olhar examinador a Alexander. -

É este o homem-animal? - perguntou com curiosidade. Visto de perto, parece apenas um homem. Um homem tremendamente sujo e desgrenhado, mas um homem.

- É o príncipe Alsan de Vanissar - respondeu Jack, muito sério. - Está a passar por um mau momento, mas depressa recuperará.

Ymur retribuiu-lhe um olhar pensativo.

- Algo terrível deve ter-lhe acontecido para agir daquela maneira, rapaz-dragão; e, se assim for, não se trata de algo de que possa recuperar rapidamente.

- Mas ele vai conseguir - insistiu Jack, obstinado. - Conheço-o bem, é forte. Vai recuperar.

Ymur encolheu os ombros.

- Se tu o dizes... mas até os homens mais fortes são vulneráveis às feridas do espírito.

Jack não respondeu.

- Não sobrou nada da ceia? - atalhou então Shail, para aliviar a tensão. - Estou a morrer de fome.

- Sobrou alguma carne, mas, se é assim tão tarde como vocês dizem, de certeza que está fria.

Fez-se silêncio enquanto Shail agarrava no cesto da comida e a repartia entre os três. Ymur tinha razão: tinha ficado fria. No entanto, não demoraram a espetá-la nos paus para voltar a passá-la sobre a fogueira.

Enquanto comia, Jack olhou de soslaio para os livros. Eram quase todos de tamanho humano.

- Alguma coisa interessante? - perguntou.

- Já que falas no assunto, sim.

- Os registos do abade?

- Não, mas pode ser igualmente revelador.

Rebuscou entre os livros e tirou um caderno velho. Susteve-o entre o polegar e o indicador, com cuidado, para não o rasgar.

- Isto é o diário da Sala dos Ouvintes. Estava entre os livros que recuperei nos primeiros dias após a destruição do Oráculo.

Jack ergueu-se.

- Diário? Queres dizer que estão aí as profecias?

- Não, de todo. De facto, cada Oráculo tem um Livro da Voz dos Deuses, que contém todas as profecias escutadas na Sala dos Ouvintes, mas o nosso perdeu-se há muito tempo e não consegui encontrá-lo. Isto é algo mais banal. É um registo da Sala dos Ouvintes, que os noviços encarregados de dar assistência à sala e aos ouvintes que trabalham nela costumam actualizar diariamente. Em geral, não se anota nada de interessante nesses diários, só as datas em que se limpa a sala, as horas dos turnos dos ouvintes, os momentos em que estes parecem escutar alguma coisa significativa... enfim, todo o tipo de ocorrências. Na altura não me despertou a atenção, mas esta noite lembrei-me dele e pensei que, se aconteceu algo importante na noite em que o feiticeiro entrou à socapa na sala, devia estar escrito aqui.

- E está? - inquiriu Shail, com o coração apertado. Ymur assentiu.

- Está. Como eu suspeitava, o noviço não tinha a menor ideia do nome do feiticeiro, de modo que lhe chama "o feiticeiro visitante". Lê tu, por favor; como tens os dedos mais pequenos, consegues virar as páginas com mais facilidade.

Shail procurou cuidadosamente a data que o gigante lhe indicou e leu:

- "Esta noite, um feiticeiro visitante entrou na Sala dos Ouvintes durante o turno da irmã Manua. Esteve lá durante bastante tempo, pelo que supomos que Manua terá adormecido, não atendendo às suas obrigações. Quando foi à sala, encontrou o feiticeiro muito assustado, a balbuciar blasfémias sobre o sétimo deus (que os Seis perdoem a sua ímpia arrogância). Parecia realmente muito assustado, mas, mesmo assim, os irmãos e irmãs tiverem de o arrastar para fora da sala, porque não queria sair. Deu-lhe um ataque ou algo parecido. Neste momento está na enfermaria com febre muito alta. As irmãs sacerdotisas da deusa Wina estão a cuidar dele."

- O que já vos contei - indicou Ymur.

- O que é isso dos turnos? - perguntou Shail, interessado.

- Os turnos dos ouvintes. Costuma haver dois em cada Oráculo, mais os que estão em fase de formação, noviços que se preparam para ser ouvintes e que por vezes acompanham os dois primeiros ou que os substituem se estes estiverem indispostos. Cada ouvinte tinha dois turnos de um quarto de jornada. Assim, desde o amanhecer até ao meio-dia estava Deimar; entre o meio-dia e o entardecer, Manua. Do entardecer à meia-noite, Deimar de novo; e entre a meia-noite e o amanhecer, Manua outra vez. Fazia-se assim para que houvesse sempre alguém na Sala dos Ouvintes, para o caso de os deuses nos enviarem alguma mensagem. Não me surpreende que o feiticeiro tivesse escolhido o turno de Manua para entrar na sala. A essas horas, os noviços que cuidavam da Sala dos Ouvintes deviam estar a dormir, como o resto dos sacerdotes e sacerdotisas.

- Mas tudo isso não nos traz nada de novo - murmurou Jack.

- Não - admitiu o gigante. - No entanto, tive um palpite e continuei a ler. E descobri que esse feiticeiro voltou a entrar na Sala dos Ouvintes dias mais tarde. Lê essa parte, Shail. Sete dias depois.

Shail leu:

- "O feiticeiro visitante voltou a entrar na Sala dos Ouvintes, de novo durante o turno da irmã Manua. Não sabemos muito bem o que aconteceu, dado que era a hora de descanso dos noviços da sala, mas fomos para lá assim que ouvimos o grito. Ao entrar na sala, vimos o feiticeiro com um punhal ensanguentado entre as mãos e a túnica rasgada e cheia de sangue. A irmã Manua estava com ele, pelo que pensámos que tinha tentado feri-la, mas depois vimos que ela só estava muito assustada e que o ferido era ele. Contudo, a irmã Manua jurou que não o tinha atacado; que ele se ferira a si mesmo. Voltámos a tirá-lo da sala, e desta vez deixou-se levar facilmente. Além disso, saiu pelo seu próprio pé, pelo que a ferida não deve ser muito grave. Ouvimos dizer que os irmãos sacerdotes o levaram outra vez para a enfermaria, mas que, num instante de desatenção das sacerdotisas, desapareceu. Ainda andam à procura dele."

Ymur assentiu.

- Nunca mais se voltou a ver o feiticeiro no Oráculo. Jack cerrou os dentes.

- Agora tenho a certeza de que era Ashran - murmurou. Ymur riu sem alegria.

- De modo que o humano que queria saber coisas sobre o sétimo deus, aquele que entrou na Sala dos Ouvintes... era o que viria a ser Ashran, o Necrorrumte, aquele que entregou Idhún aos sheks...

- Era muito mais do que Ashran - disse Jack. - Creio que o que se passou foi o seguinte: o sétimo deus falou a Ashran na Sala dos Ouvintes. Disse-lhe o que devia fazer, por isso ele saiu tão assustado. Mas tomou a sua decisão... talvez porque sabia que valia a pena. Dias depois regressou à Sala dos Ouvintes e acabou com a própria vida com aquele punhal. Não sei se cortou as veias ou se enterrou o punhal no peito, mas fê-lo.

- E como é que a sacerdotisa que estava presente o permitiu? - inquiriu Shail, perplexo.

- Talvez ela tivesse entrado mais tarde. Até é bem possível que da primeira vez não tivesse adormecido por acaso. Se eu fosse um feiticeiro e quisesse entrar nalgum sítio, não ficaria à espera de que, por casualidade, a pessoa que devia estar lá dentro adormecesse e não estivesse no seu posto. Aplicava-lhe eu mesmo um feitiço de sono.

- Certo, não me tinha ocorrido isso - assentiu Shail. - Então adormeceu-a da primeira vez e assim encontrou a sala vazia. E da segunda vez deve ter feito algo parecido. Provavelmente, ela acordou quando Ashran ainda estava na sala e, ao regressar a correr...

- Viu-o, e foi então que gritou, o que alertou os noviços.

- Espera - cortou Ymur. - Disseste antes que "acabou com a própria vida"? Estás a querer dizer que "tentou", não?

- Não, quero dizer que o fez- Tinha de morrer para que o sétimo deus entrasse dentro de si, por isso imolou-se. Quando a essência do Sétimo possuiu o seu corpo, por assim dizer, ele voltou à vida. Creio que mesmo assim continuava a ser Ashran, de alguma maneira; tal como, pelo que sei, a essência do Sétimo está agora no interior da feiticeira Gerde e ela continua a ser Gerde.

Ymur meneou a cabeça, franzindo o sobrolho.

- Dizem que foste criado noutro mundo, rapaz-dragão. Talvez por isso não compreendas que é blasfémia insinuar que o sétimo deus, que os Seis nos protejam da sua maldade e do seu veneno, possa falar-nos através dos nossos próprios Oráculos.

- Oh, mas fá-lo - riu-se Jack, com alguma ironia. - Então, como explicas que a segunda profecia, escutada no Oráculo de Gantadd, da qual Ha-Din e Gaedalu guardam registo, inclua um shek na guerra contra Ashran? Será que os Seis considerariam sequer a ideia de que pudesse ser nosso aliado?

- Claro que não - replicou Ymur, perplexo. - A que shek te referes?

- A alguém que conheces - respondeu Shail, com um sorriso sereno. Kirtash, o jovem que estava comigo quando nos conhecemos. Suponho que em Nanhai não se tenha ouvido falar muito dele, porque essa terra sempre permaneceu alheia ao que sucedia no resto do continente, mas Kirtash, o filho de Ashran, é tão shek como Jack é dragão.

- E é vosso aliado? Então, como é possível que o Sétimo pronunciasse uma profecia na qual um shek ajudaria a derrotar Ashran... quer dizer, ele mesmo?

- Porque não podia lutar contra a primeira profecia - respondeu Jack -, de modo que procurou miná-la de dentro. A ideia era que ter Kirtash como nosso aliado nos debilitaria, quebraria a nossa união... e era uma boa ideia, pois, de contrário, quando Victoria e eu descobríssemos quem éramos e aprendêssemos a usar o nosso poder, Kirtash já não poderia derrotar-nos... Por esse e por outros motivos, num dado momento, Kirtash deixaria de ser útil a Ashran na sua luta contra nós. Mas, se estivesse do nosso lado, provocaria confusão, dúvidas, mal-estar... e muitos problemas; e, de facto, assim foi. Numa determinada altura da guerra, Kirtash seria mais perigoso para nós como aliado do que como inimigo. Foi isso que Ashran viu e que nós não soubemos entender, achando que com ele do nosso lado teríamos mais possibilidades de ganhar. Na realidade, foi a sua presença no nosso grupo que fez com que a Resistência se separasse e foi isso que quase me afastou de Victoria para sempre.

- Mas no final venceram Ashran - disse Shail, recordando como os tinha encontrado aos três perto da Torre de Drackwen. - Os três juntos.

- Sim, vencemos. Graças a uma série de acasos, na verdade, mas também por termos superado

todas as dificuldades que essa aliança nos causou, o que só nos fortaleceu e fez com que ficássemos os três mais unidos.

Ymur enterrou o rosto entre as mãos, confuso.

- Ando há séculos a estudar as antigas escrituras acerca dos deuses disse -, mas nunca tinha ouvido algo tão descabido.

- Isso agora pouco importa - disse Jack, com um sorriso cansado. A questão é que no fim vencemos, mas não sei se serviu de alguma coisa. Por isso estou aqui, para o averiguar. Quem dera - suspirou - que o ouvinte que viu Ashran na sala tivesse sido Deimar. Pelo que sabemos dele, esteve no Oráculo de Awa, portanto presumo que durante todo este tempo continuou junto de Ha-Din. Se ele tivesse tido ocasião de lhe contar o que sabia do "feiticeiro visitante" que aqui esteve, decerto teríamos relacionado as coisas muito antes.

- O que me leva a perguntar-me porque é que Manua não disse nada - assinalou Shail. - Será que morreu no ataque contra o Oráculo?

Ymur abanou a cabeça, procurando voltar a concentrar-se.

- Há mais coisas interessantes no diário. Cerca de um ano depois da partida do feiticeiro, pronunciou-se a primeira profecia. Os noviços anotaram o dia em que os ouvintes, primeiro Deimar e depois Manua, anunciaram que os deuses convocavam os Veneráveis para lhes transmitir uma mensagem. No plenilúnio seguinte de Érea, a data estabelecida para que os deuses falassem, chegaram a Nanhai o Venerável Ha-Din e a Venerável Gaedalu. Cada um deles trazia consigo um dos seus ouvintes. O abade Yskar escolheu Manua, pelo que sabemos que ela continuava ainda no Oráculo.

- Então escutou a profecia - disse Jack. - Há alguma razão em especial para o abade ter escolhido Manua, em vez de Deimar? Tem a ver com os turnos?

- Não creio. Suponho que seria mais uma questão de representação: de Gantadd vieram duas sacerdotisas das Três Luas, do Oráculo de Raden, dois sacerdotes dos Três Sóis. Como o abade Yskar era também um sacerdote dos Três Sóis, a sexta pessoa devia ser uma sacerdotisa das Três Luas.

- E depois? - indagou Shail. - O que fez depois?

- Acho que se foi embora - respondeu Ymur -, porque dias depois uma das ouvintes em formação teve de a substituir. O diário não explica porquê. Simplesmente anota que a irmã Ygrin se encarregaria dos seus turnos. E foi assim até que os sheks nos atacaram e destruíram o Oráculo. Ygrin morreu naquele dia, como todos os outros, excepto Deimar e eu.

- Ou seja, Manua pode estar viva - resumiu Jack, pensativo. - Nesse caso, talvez saiba mais coisas. Se chegou a tempo de ver algo importante, provavelmente até descobriu mais acerca do pacto de Ashran e do Sétimo.

- Se assim fosse, teria dito a alguém - objectou Shail.

- E quem teria acreditado nela?

Shail ficou em silêncio, compreendendo que tinha razão. Naquele momento começou a nevar suavemente. Jack deu uma olhadela ao céu.

- Acho que é hora de nos recolhermos - disse.

- Sim - concordou Shail, olhando para Alexander que dormitava junto à fogueira envolto em peles. - Temos de o levar para dentro - comentou.

Ymur guardou os livros no cesto.

- Eu faço-o, se quiserem. Mas alguém tem de me trazer os livros.

- Eu levo-os - disse Jack, e dispôs-se a levantar o cestinho. Observou-o de perto, com curiosidade. - De onde tiraste isto? - perguntou.

- Encontrei-o entre as ruínas. Uso-o para transportar os livros porque alguns são tão pequenos que me escapam por entre os dedos.

- Parece um berço.

- É um berço. Havia um bebé no Oráculo. Sei disso porque houve uma altura em que o ouvia chorar à noite. Presumo que o berço fosse dele, embora, por sorte, o bebé não estivesse nele quando o encontrei. Talvez tivesse sido levado para longe daqui antes de nos terem atacado.

Jack ergueu a cabeça e olhou para ele, pálido. Outra peça do quebra-cabeças encaixava no seu lugar. E de que maneira.

As três luas brilhavam intensamente no céu quando os pássaros de Haai-Sil levantaram voo. Sobre eles ia a totalidade da população celeste da cidade. À cabeça, com os governantes da cidade, voavam Gaedalu e as suas sacerdotisas. Na retaguarda, os nove dragões artificiais protegiam os celestes e resguardavam-nos do vento.

O pássaro de Zaisei, contudo, não voava com os das outras sacerdotisas. Atrasara-se um pouco para escoltar o seu pai, que ia montado no pássaro de outro celeste e chorava em silêncio, destroçado. Tiveram de o obrigar a abandonar uma parte dos seus pássaros, os que ainda não sabiam voar e as fêmeas que não quiseram abandonar os seus ovos. O furacão arrasaria os ninhos e levá-los-ia a todos.

Pouco antes de partirem tinham tentado obrigar Do-Yin a acompanhá-los, mas ele resistira veementemente. Ninguém estivera disposto a fazê-lo abandonar a cidade à força, porque o compreendiam demasiado bem e porque os celestes eram incapazes de fazer mal a alguém. Então chegara Rando, o piloto dos Novos Dragões, que o pôs inconsciente com um só golpe, sem o menor escrúpulo. Todos os celestes tinham ficado pálidos e mudos de horror, mas Zaisei agradecera-lhe.

Quando Do-Yin recobrou a consciência, voava já no dorso de um haai, amparado por um jovem celeste. Não tinha tido mais forças para resistir, no entanto, continuava a querer voltar. O celeste que segurava Do-Yin tinha os olhos húmidos: também estava a sofrer, não só por ter de deixar para trás o seu lar, mas sobretudo porque sentia no seu próprio coração a dor intensa do criador, para quem abandonar os ovos e as crias significava quase abandonar os seus próprios filhos. Zaisei estivera disposta a carregar ela mesma a dor do seu pai, mas não era suficientemente forte para o reter se ele procurasse resistir novamente.

O vento soprava cada vez mais intenso e puxava-os para trás. Os haai davam às asas com todas as suas forças, mas mal conseguiam avançar. Felizmente, o furacão que os perseguia não era muito veloz. com um pouco de sorte, chegariam às montanhas antes de os alcançar.

Na retaguarda, Kimara mordia os lábios, nervosa. Os dragões conseguiam voar mais depressa, mas iam devagar para cobrir a retaguarda dos pássaros dos celestes. Na realidade, tinha sido ideia de Rando, o que surpreendera a semi-yan. Não obstante, se parasse para pensar, não era assim tão estranho. As gentes de Haai-Sil não tinham culpa do que estava a acontecer, não se tinham arriscado e davam valor às suas vidas. O próprio Rando não ficava assustado com o facto de se arriscar para proteger aquelas pessoas... nem, diga-se de passagem, arriscar as vidas dos outros pilotos, pensou Kimara, aborrecida. No entanto, não pôde evitar recordar que Rando tinha razão numa coisa: os pilotos de dragões eram guerreiros e tinham-se alistado no grupo porque estavam dispostos a correr riscos, porque não se importavam com as consequências. Assim, era lógico que fossem eles os encarregados de proteger os que tinham alguma coisa a perder.

Afastou aqueles pensamentos da sua mente quando uma veloz sombra escura se atravessou à sua frente. Pestanejou e olhou melhor. A sombra voltou a passar: era um dos dragões. Ogadrak, mais precisamente.

- O que é que lhe deu agora? - perguntou-se a jovem, exasperada.

O dragão de Rando dava voltas em torno dela para chamar a sua atenção. Kimara olhou para ele, perguntando-se o que estaria a tentar dizer-lhe, quando de repente o perdeu de vista. Espreitou pela escotilha dianteira e pelas laterais, mas não o viu. Supôs então que o teria na cauda.

Outro dos dragões colocou-se à frente dela e lançou uma labareda de advertência. Intrigada, Kimara perguntou-se o que estaria a acontecer... e subitamente entendeu, horrorizada, que Rando tinha dado meia-volta e se dirigia para o furacão.

- Ah, por todos os deuses, já estou farta! - explodiu. - Que o tornado o engula de vez!

Porém, após um breve momento de hesitação, fez Ayakestra virar... não para seguir Rando, mas apenas para ver que raio pretendia.

Quando a fêmea de dragão se colocou por fim orientada para norte, Kimara descobriu que Rando não tinha ido tão longe como pensava. O seu dragão parara perto dali e, suspenso no ar, observava, como outros três ou quatro, o que se sucedia no horizonte.

Kimara ficou sem fôlego.

O imponente tornado que assolara Kazlunn, Nangal e parte de Celestia parara agora e girava tão lentamente que até parecia fazê-lo de propósito. Ficara de um estranho tom violeta e o seu cone estreitara-se tanto que já mal existia no lugar onde devia tocar o chão. As nuvens que cobriam o céu acima dele continuavam densas e pesadas, mas também tinham mudado de cor, tornando-se mais claras.

O tornado continuou a dançar por instantes sobre Celestia, com um ritmo pausado, quase fúnebre... e então o seu cone enrolou-se em si mesmo pela última vez e desvaneceu-se.

Todos os pilotos contiveram a respiração.

Momentos depois, respiraram aliviados. Finalmente aquele terrível furacão acalmara.

Haai-Sil estava a salvo.

Kimara contemplou os dragões a fazer piruetas de alegria e sorriu. Mas dentro de si não deixava de se interrogar, inquieta: "Para onde foi?"

Duvidava que algo assim pudesse desaparecer, sem mais nem menos.

Levantou a cabeça para olhar através do vidro da escotilha superior... e viu-o.

Sobre eles tinha-se formado uma vasta e densa camada de nuvens de um fantástico tom púrpura. E aquela massa nebulosa girava lentamente sobre si mesma, como um enorme remoinho. Estava suficientemente alto para não atingir as coisas ao nível do chão, mas, ainda assim, era assustador.

"Vai ficar ali, por agora", compreendeu Kimara.

Fez a sua fêmea de dragão dar meia-volta e prosseguiu caminho em direcção a sul, afastando-se daquilo o mais possível. Um a um, os dragões do seu grupo foram-na seguindo.

Muito depois, quando já avistavam ao longe as suaves dunas do deserto de Kash-Tar, começaram a relaxar um pouco. Mas ainda persistia um vestígio de terror nos seus corações e o que tinham vivido naqueles dias povoaria os seus piores pesadelos para o resto das suas vidas.

As montanhas exteriores do Anel de Gelo estavam perfuradas por centenas de enormes cavernas, ligadas entre si por túneis escuros e labirínticos. Eram um bom esconderijo, como os Novos Dragões haviam descoberto há algum tempo. Só que eles não tinham passado dos níveis superficiais do emaranhado de galerias. Mais abaixo, nas próprias entranhas da montanha, as cavernas eram ainda maiores, mais escuras e agradavelmente frescas.

A maior parte dos sheks que sobrevivera à batalha de Awa tinha-se escondido ali. Estavam acostumados a viver em túneis; durante gerações, a sua espécie habitara o lúgubre Umadhun. No entanto, aquele desterro tinha um sabor terrivelmente amargo, pois recordava-lhes uma derrota anterior, milénios antes. Na altura tinham sido vencidos pelos dragões e, curiosamente, muitos deles evocavam aqueles tempos com nostalgia. É que, por muito que odiassem os dragões, respeitavam-nos e podiam aceitar que os seus inimigos ancestrais os derrotassem numa batalha. Mas serem batidos pelos sangues-quentes... aquilo era uma humilhação que as serpentes aladas jamais esqueceriam.

Aquele que mais se atormentava com isso era Eissesh, que havia sido um dos grandes líderes dos sheks. Por ele, teria saído imediatamente do seu esconderijo e enfrentado os sangues-quentes e os seus aberrantes dragões de madeira, até os matar a todos e cobrir Nandelt na íntegra com uma camada de gelo. Mas a lógica dizia-lhe que não era prudente.

Entretanto, a sua gente, sheks, szish e aliados, aguardavam nas cavernas e lambiam as suas feridas.

As de Eissesh eram particularmente graves. A onda de fogo que cobrira o céu atingira-o em cheio, e só se salvara porque naquele momento estava perto do rio. Precipitara-se sobre a água, caindo das alturas como uma acha acesa, e conseguira salvar-se.

Contudo, o seu estado era lastimável. Ainda não sabia como fora capaz de se arrastar até às montanhas e encontrar um túnel por onde deslizar até às entranhas da terra. Tinha encontrado uma caverna profunda e, depois de enviar um sinal telepático à sua gente, enroscara-se e mergulhara num sono curativo.

Pouco a pouco, outros sheks e o que restava de alguns clãs de homens-serpentes tinham atendido à sua chamada. No entanto, não o tinham incomodado. Limitaram-se a instalar-se nas cavernas e nos túneis mais próximos e a reorganizar-se sem ele. Apenas o interrompiam quando se tratava de um assunto muito urgente ou importante.

Entretanto, Eissesh continuava a descansar. Não possuía a magia propriamente dita, mas estava a dedicar todo o seu poder mental à reconstrução lenta dos seus tecidos. Contudo, nunca voltaria a ser o mesmo. E era bem possível que não sobrevivesse ao processo.

Naquele dia, a sua concentração viu-se interrompida por um tímido aviso telepático. Eissesh abriu um canal superficial para ver do que se tratava, mas não repreendeu o shek que o chamara. Sabia que ninguém o incomodaria sem uma boa razão.

- Chegaram dois feiticeiros sangues-quentes - foi informado.

Eissesh aguardou, sem dizer palavra. Os feiticeiros eram muito valiosos num mundo que estava a ficar sem magia, mas aquilo não justificava a interrupção, pelo que deduziu que havia mais alguma coisa.

- Um deles é a feérica que estava com Asfvran. A que está a reunir um pequeno exército de szish em A is Lithban.

Não acrescentou mais nada, mas Eissesh entendeu. Naqueles longos meses, só tinham interrompido o seu transe outras duas vezes: quando Sussh, governador de Kash-Tar, lhe comunicara as baixas detectadas na rede dos sheks e que ninguém podia assegurar com certeza se Ziessel e os seus estavam vivos; e quando um shek lhe dissera que tinham chegado szish vindos de Alis Lithban, falando de uma fada que concedia o dom da magia. Aquela informação, sim, era tremendamente interessante, por isso Eissesh enviara-o para averiguar o que estava a acontecer. Ainda não tinha recebido resposta, mas sabia que o shek estava vivo, pelo que era evidente que os sangues-quentes não o tinham abatido. Em contrapartida, também significava que não descobrira nada em concreto ou que o que sabia não era importante o suficiente para o perturbar outra vez.

Porém, uma parte da consciência de Eissesh estivera a reflectir sobre aquela notícia.

Conhecia Gerde; sabia que Ashran lhe confiara tarefas importantes no passado e que se tinha tornado no seu braço direito após a traição de Kirtash. Também sabia que o próprio Kirtash a tinha matado, informação que pelos vistos era falsa, pois, segundo o que lhe comunicavam agora, a fada que estava a reunir os szish nos bosques do Oeste só podia ser ela.

Além disso, tinha conhecimento de que o último unicórnio se debatia entre a vida e a morte na Torre de Kazlunn, gravemente ferido após a batalha contra Ashran. Eissesh não conseguia imaginar que tipo de ferida podia manter um unicórnio naquele estado durante tanto tempo, embora aquela rapariga não fosse totalmente um unicórnio. Porém, quando lhe falaram da fada que concedia o dom da magia, relacionou logo as coisas.

Tinha enviado o shek para investigar, mas depois não voltara a pensar nisso.

E agora Gerde estava ali.

Se não fosse por aquela questão da magia, Eissesh não se teria dado ao trabalho de a receber. Mas a ideia de que aquela feérica pudesse ter o corno do último unicórnio intrigava-o, assim como o facto de ainda não ter regressado o shek que enviara para falar com ela.

- Manda-a entrar - disse.

Instantes depois, duas figuras entraram na caverna. Eram ridiculamente pequenas perante a grande serpente alada, que jazia num canto, enroscada, coberta de geada. A sua pele escamosa continuava negra e a sua asa esquerda não era mais do que um monte de rasgões. Além disso, tinha perdido um olho.

Mesmo assim, o humano não pôde evitar sentir-se intimidado. Gerde, em contrapartida, limitou-se a dirigir ao shek um longo olhar pensativo.

- Lamento ver-te neste estado, grande Eissesh - disse.

A serpente mexeu um pouco a cabeça e abriu lentamente o olho que lhe restava. Uma fina chuva de cristais de gelo desprendeu-se da sua pele.

- Ninguém o lamenta mais do que eu - concordou. Os dois feiticeiros tiveram de se concentrar para captar os seus pensamentos, que soavam fracos e distantes num recanto das suas mentes. - Gerde, não é?

- Vejo que te lembras do meu nome.

- Não costumo esquecer nomes, nem sequer os dos sangues-quentes. Quem é o tipo que te acompanha?

- Chama-se Yaren e é um dos dois feiticeiros consagrados por Lunnaris até à data.

É um indivíduo curioso. Lunnaris entregou-lhe uma magia... poderíamos dizer, corrompida. Não se recorda dela com carinho.

- Não é de admirar - disse Eissesh. - Pelo que posso perceber, tu estás a usar o seu corno com mais eficácia. Quantos feiticeiros já consagraste entre os szish?

- Dezassete. Em breve, haverá mais feiticeiros entre nós do que em toda a Ordem Mágica.

- Surpreende-me que te achasses no direito de levar a cabo semelhante tarefa sem consultar os sheks.

O sorriso de Gerde esfumou-se.

- Vejo que o teu mensageiro não te informou - comentou.

- Não - respondeu o shek. - Presumo que não encontrou motivos para me incomodar. Noutros tempos, feérica, ter um bom grupo de feiticeiros nos clãs szish teria sido de grande ajuda. Hoje em dia, não nos serve de grande coisa. Perdemos tanto terreno que demoraríamos anos a reconquistar Idhún. E enquanto isso eles continuam a construir dragões.

As suas últimas palavras foram apenas um sussurro, mas tanto Yaren como Gerde captaram o ódio intenso que emanava delas. Gerde sorriu para si. Era bem sabido que não havia shek que detestasse mais os dragões artificiais do que Eissesh.

- Compreendo as tuas dúvidas - disse Gerde. - Mas a verdade é que dentro de pouco tempo não haverá em Idhún grande coisa para reconquistar.

Eissesh não respondeu. Tinha fechado o olho outra vez.

- Aqui estão em perigo - prosseguiu ela. - Os deuses dos sangues-quentes nunca aceitaram a derrota dos seus dragões, por isso estão a vir para Idhún para lutar contra nós. Um deles anda perto.

Eissesh abriu o olho outra vez.

- Estas a falar de deuses, feérica? O que sabes tu dos deuses?

Gerde respondeu-lhe com uma longa gargalhada. Então avançou até se encontrar mesmo à sua frente. Se estivesse em melhores condições, Eissesh tê-la-ia devolvido ao seu lugar com um golpe da cauda, mas, como não era esse o caso, limitou-se a aguardar.

Ambos, a fada e a serpente alada, fitaram-se longamente.

- Que sei eu dos deuses? - repetiu Gerde, com um sorriso esquivo. Mais do que desejaria, Eissesh.

O shek susteve o seu olhar... e viu nos seus olhos algo sombrio e poderoso, tanto que o fez tremer de puro terror. Procurou dominar-se. Não estava assim tão fraco que pudesse sentir-se intimidado por uma simples feiticeira sangue-quente.

Gerde afastou-se dele. Eissesh fechou o olho, extenuado.

- Tenho um plano - disse ela. - Vai levar algum tempo e não dispomos de muito, mas, se correr bem, pode salvar-nos a todos. Se fores inteligente, Eissesh, e consta-me que és, vais estar preparado e aparecerás com a tua gente ao meu sinal.

Eissesh não respondeu. Ainda estava a tentar encontrar uma explicação lógica para o medo que se apoderara do seu frio coração. Abriu o olho, sobressaltado, quando sentiu que Gerde fazia deslizar a palma da mão sobre a sua pele queimada. Nunca um sangue-quente se atrevera a tocá-lo. Todos estremeciam de terror quando o tinham por perto. Porém, naquele instante era ele quem não conseguia mexer-se.

E que um poder começou a percorrê-lo por dentro, uma energia fria e obscura, mas ao mesmo tempo estranhamente viva; uma energia que regenerou a sua pele em questão de minutos e voltou a fazer crescer a sua asa destroçada.

Quando Gerde se afastou dele, Eissesh estava quase curado. Ergueu a cabeça e fitou-a, sem dizer palavra.

- O olho não to vou devolver - disse Gerde, muito séria. - Quero que te lembres desta conversa e que recordes que te salvei a vida. Se te curasse por completo, arranjarias maneira de esquecer que o deves a uma sangue-quente.

Eissesh abriu a boca lentamente.

- Quem és tu? - indagou.

- Sou Gerde - limitou-se ela a responder. - Lembra-te das minhas palavras, Eissesh. Estejam atentos e permaneçam escondidos até que chegue a altura. E não os enfrentem. Não conseguirão vencê-los.

O shek semicerrou as pálpebras.

- Já percebi.

- Tenho de ir - disse então Gerde, e um ligeiro timbre de inquietação vibrou por um instante na sua voz. - Ele está a aproximar-se.

Eissesh não lhe perguntou a quem se referia. No preciso instante em que os dois feiticeiros abandonavam a caverna, chegou-lhe o aviso de que havia um violento terramoto nas montanhas do Leste.

 

       O SÍMBOLO DOS SONHOS IMPOSSÍVEIS

Bhízuko Ishikawa tinha os cotovelos pousados sobre o peitoril da varanda do seu apartamento em Takanawa. Uma Lua crescente brilhava sobre Tóquio, desafiando a camada de luz artificial sob a qual os humanos insistiam em ocultar a visão das estrelas. Aquela enorme cidade que se estendia aos seus pés atraía-a de alguma forma, e Shizuko perguntou-se como era possível que encontrasse algo belo num mundo cuja única Lua era tão pálida e anódina, um mundo cujas maravilhas estavam a ser sistematicamente arrasadas, corrompidas, sepultadas sob um manto de cimento e aço.

Talvez porque há sempre algo de belo e fascinante no mais puro dos horrores.

"Excepto em mim", pensou. "Não há nada belo em mim."

Ergueu a mão e contemplou-a, pensativa. Era um apêndice mesmo feio. Útil para algumas coisas, mas repulsivo, com aquelas cinco coisas que se mexiam tanto. Como tantas outras vezes, tocou na cara e no cabelo. O seu cabelo era a única coisa que lhe agradava naquela pequena cabeça arredondada. Ao longe, o cabelo humano parecia uma massa informe e pegajosa, mas o seu revelara-se suave e brilhante. Shizuko cuidava dele com esmero para manter a sua beleza. Além disso, quanto mais ocultasse aquela pele mole, pálida e quente, melhor.

Enterrou a mão na sua mata de cabelo. Isso reconfortou-a um pouco.

Estava a sentir-se tonta de novo. O seu corpo estava quente outra vez. Outra vez! Shizuko tomava frequentemente banhos de gelo para o manter fresco, mas aquele horrível corpo humano insistia em recuperar a sua repulsiva tepidez. Certa vez adoecera, e isso tinha sido pior, porque o seu corpo ficara ainda mais quente. Era o que os humanos chamavam febre. Todos à sua volta insistiam em que não era bom, não era saudável, que procurasse arrefecer o seu corpo. Sangues-quentes. Não podiam entendê-la. Ninguém podia entendê-la.

Percebeu uma presença nas suas costas. Não tinha feito nenhum ruído, mas Shizuko soube que estava lá.

- Tens muita coragem para voltar aqui - pensou, sem se voltar.

- Tinha de arriscar - respondeu ele, e a sua voz telepática chegou a todos os recantos do nível mais superficial da sua mente, aquele que utilizava para se comunicar numa conversa com um estranho.

- Por que razão? - indagou ela.

- Por muitas razões - respondeu ele.

Colocou-se ao seu lado, mas mantendo a distância, respeitando o seu espaço e a sua privacidade. Shizuko agradeceu-lhe, no seu íntimo. Os humanos tendiam a aproximar-se demasiado uns dos outros, demasiado para o seu gosto; até mesmo ali, no Japão, onde as relações entre pessoas costumavam ser tão formais e polidas. Shizuko não entendia como era possível que os humanos necessitassem tanto do calor de outros humanos. Não estavam já os seus corpos suficientemente quentes? Para que precisavam de aquecer mais?

O corpo da pessoa que estava ao seu lado também era quente. Mas não tanto como os outros. Shizuko conseguia captar a suave frescura que emanava dele e que era até certo ponto agradável... para um corpo humano, claro.

- Não te sentes bem nesse corpo - comentou ele.

Shizuko semicerrou os olhos, sem compreender porque é que lhe estava a falar com as cordas vocais, tendo a possibilidade de o fazer com a mente, uma forma de comunicação mais completa, porque com ela podia transmitir não só ideias, mas também imagens, recordações e sensações... tantas coisas para as quais as palavras eram por vezes limitadas e pouco precisas, razão por que os telepatas mais poderosos achavam a linguagem oral tão pobre e tosca.

Contudo, teve de se acostumar a utilizar as cordas vocais, pelo que respondeu, em voz alta:

- Quem poderia sentir-se bem num corpo assim?

- Eu próprio - respondeu ele -, embora nem sempre. Por vezes necessito de mudar de forma para não me sentir asfixiado, portanto posso entender aquilo por que estás a passar.

- Não podes entender - respondeu ela, e a sua voz soou fria e desprovida de sentimentos, não porque não os tivesse, mas sim porque ainda não aprendera a impregnar as suas palavras com eles, a modular o tom de voz para transmitir emoções. - Não sou como tu, Kirtash.

Ele sorriu. Da primeira vez em que conversaram, na noite anterior, ela não o chamara pelo nome, apesar de o conhecer muito bem. De outro mundo, outros tempos. De um passado melhor para todos.

- Mas somos parecidos, em certa medida.

Shizuko olhou novamente para as suas mãos, desolada.

- Passaram muitas luas e ainda não entendo bem o que me aconteceu - disse. - Porque é que estou assim? O que é suposto eu fazer?

- Foi por isso que vim - respondeu o jovem. - Enviaram-me para vos pôr em contacto com Idhún, com o resto da nossa gente. Há planos que têm de ser concretizados, e tu e os teus fazem parte desses planos.

- E enviaram-te a ti? És um traidor, Kirtash. Sei o que aconteceu na noite do Triplo Plenilúnio. Mereces morrer por tudo o que fizeste contra nós.

- No entanto, não levantaste a mão contra mim... Ziessel.

Ela tremeu. De medo, de raiva... Christian não deu por isso. O seu belo rosto oriental continuava pálido e frio como a mais fina porcelana. A shek que habitava no interior daquele corpo ainda não sabia como reflectir as suas emoções num semblante humano.

- Não utilizes essa expressão - advertiu-o. - E não me chames por esse nome. Há muito que já não sou esse ser.

- Possuis a alma e a consciência de Ziessel, a serpente alada - prosseguiu Christian, implacável. - Ziessel, a bela, a rainha dos sheks. Mas perdeste o teu verdadeiro corpo, não foi? Estás presa num corpo humano que achas opressivo e maçador.

Assim, por muito que me desprezes por ser um traidor, não enviarás a tua gente contra mim. Não o farás, porque sou o único que pode explicar-te o que te está a acontecer.

Shizuko fechou os olhos. Quisera fechar a sua mente às palavras dele, mas era difícil, porque estas entravam nela através dos seus ouvidos e não dos seus pensamentos.

No passado, os sheks não tinham sabido como aceitar a existência de Kirtash, um híbrido de shek e humano, o símbolo do pacto entre o rei dos sheks e o feiticeiro sangue-quente que lhes permitira regressar. Uns tinham-no considerado uma repugnante aberração, um humano que pensava como um shek; outros tinham-no achado interessante e outros ainda valorizaram o sacrifício da serpente que tinha de lidar com as limitações de um corpo humano para assegurar a sobrevivência da espécie. Porém, todos, sem excepção, compreendiam que a criação do híbrido era necessária para evitar o cumprimento da profecia dos Oráculos. E, enquanto Kirtash esteve a cumprir o seu dever no outro mundo, os sheks respeitaram-no e admiraram a sua existência e o seu trabalho.

Ziessel também tivera uma missão. E levara-a a cabo, com diligência, com eficácia. Até que a Resistência regressara a Idhún e as coisas começaram a complicar-se. Ainda recordava como tinham perdido Nurgon, como os renegados haviam ressuscitado a fortaleza, como os sheks tinham lutado com todas as suas forças para a esmagar de uma vez por todas. E tinham tido a vitória ao alcance da mão. Como é que se dera aquela reviravolta?

Ela sabia. Sabia que Zeshak, o seu antecessor, sucumbira ao ódio e permitira ao dragão regressar na noite do Triplo Plenilúnio. Isso havia sido determinante.

Também sabia que os sangues-quentes venceram em Awa porque uma feiticeira se sacrificara para realizar um feitiço de fogo que acabara por ser fatal para as serpentes aladas. Felizmente para os sheks, não existiam muitas possibilidades de que isso voltasse a acontecer. Os heróis, aqueles capazes de se sacrificarem pela colectividade, eram escassos. Entre os sangues-quentes, havia um punhado de heróis e uma grande maioria de gente normal. O que também era uma sorte para os sangues-quentes: se todos estivessem dispostos a sacrificar-se por toda a gente, as raças dos sangues - quentes ter-se-iam extinguido há muito. Por vezes não era uma questão de valentia ou de cobardia, mas sim de parar ou não para pensar nas consequências do que se fazia. Se a feiticeira tivesse reflectido sobre todas as coisas que podiam sair mal naquele feitiço, provavelmente não teria dado a sua vida para o levar a cabo. Um shek teria parado para pensar. Um shek teria escolhido a opção mais lógica. E muitas das vezes os heroísmos não eram a opção mais lógica, mas sim a acção mais desesperada. Por isso poucos heróis chegavam a velhos. Por isso havia uma linha tão ténue entre o heroísmo e a loucura.

Fora pedido a Ziessel que se sacrificasse pelos outros, que se atrevesse a atravessar a Porta para outro mundo a fim de que a sua gente pudesse segui-la. E ela fizera-o, apesar de a lógica lhe dizer que era impossível, apesar de ela não ser nenhuma heroína. Fizera-o porque era o seu dever. Porque para isso era a rainha dos sheks.

Para as serpentes aladas, o seu soberano não era quem ostentava mais poder, mas sim aquele que se responsabilizava por todos os outros. Por esta razão, Zeshak tivera de entregar os seus próprios filhos para a experiência de necromancia de Ashran. Por esta razão, Ziessel, a sua sucessora, entregara o seu próprio corpo para pôr o seu povo a salvo.

E de que servira?

Shizuko dirigiu a Kirtash um olhar repleto de cólera fria. Kirtash trabalhara bem durante algum tempo, mas depois traíra-os. Depois viera a notícia de que tinha matado o dragão da profecia, e os sheks chegaram a pensar que tudo havia sido uma hábil manobra por parte do híbrido para atacar a Resistência a partir de dentro. Mas o dragão tinha regressado. Kirtash enganara-os a todos, ajudando os sangues-quentes a derrotar Ashran e deitando tudo a perder. Não podia confiar nele.

Por um momento, foi de novo Ziessel, a rainha, a que devia tomar decisões e executar o traidor em nome de todos os sheks, e esteve tentada a cumprir a sentença. Mas suportava há bastante tempo a dor que aquele corpo humano lhe provocava, a angústia de se saber presa, a repulsa implícita que pressentia nos outros sheks do seu grupo, que não podiam dissimular o muito que os repugnava o aspecto da sua rainha. Sofrera aquele tormento durante demasiado tempo e sofrera-o sozinha.

- Tu consegues transformar-te sem problemas - disse-lhe. - O teu corpo de shek é belo e lembro-me de me ter perguntado uma vez porque não o utilizavas sempre que podias. Porque é que não sou capaz de me transformar como tu? O que tenho de fazer?

Christian observou-a por instantes antes de falar. Ele gostava de ser o que era, mas para Ziessel aquilo constituía uma tragédia. Jamais seria capaz de se adaptar àquele corpo humano. Jamais voltaria a ser a de antes. Mas como explicar-lhe?

- Eu sou um híbrido - disse-lhe com calma. - A minha alma é a fusão de duas essências: um espírito humano e um espírito shek. Cada uma dessas essências molda o meu corpo a seu bel-prazer, segundo as suas necessidades. Por isso posso transformar-me; porque, para cada uma das minhas essências, existe um corpo.

Shizuko inclinou a cabeça. Isso queria dizer que o entendia e que continuava a ouvi-lo. Era um gesto shek.

- O que aconteceu quando atravessaste a Porta para a Terra? - prosseguiu ele. - Deixa-me adivinhar: o teu corpo desapareceu, desintegrou-se. Não é como se tivesse simplesmente morrido, porque, nesse caso, a tua alma teria sabido que fora libertada. Não, a tua alma ficou sem corpo de repente e procurou desesperadamente outro corpo onde se introduzir.

Mas aqui não existiam sheks, Ziessel, e as serpentes e demais répteis que habitam este mundo são criaturas demasiado simples para o espírito de um shek. Os seres

mais complexos da Terra são os humanos: tinhas de encarnar num deles.

Muitos corpos humanos pequenos puxaram então por ti: corpos de criaturas não nascidas, criaturas que aguardavam uma alma ou que já a tinham, mas ainda não a tinham

assimilado. Mas tu não estavas disposta a encarnar num bebé humano por nascer, a nascer do ventre de uma mulher humana, a ser tão pequena, tão débil e indefesa durante

vários anos. Assim, a tua alma viu-se atraída por outro corpo: um corpo humano, sim, mas adulto; um corpo jovem e feminino, como o teu corpo de shek. Foi o melhor que encontraste.

- Já pressupunha tudo isso - respondeu ela. - O teu espírito de shek também foi introduzido num corpo humano. Os corpos do dragão e do unicórnio também desapareceram quando eles atravessaram a Porta e, por isso, tiveram de reencarnar em bebés humanos por nascer. Calculo que eles não se tenham importado. Pelo que percebi, eram criaturas muito jovens. Em que é que me diferencio deles... de ti?

Christian reflectiu por um momento antes de responder:

- Shizuko Ishikawa tinha dado entrada no hospital depois de um violento acidente de automóvel. Estava na unidade de cuidados intensivos quando faleceu.

Esteve clinicamente morta durante sete minutos. Depois, os monitores voltaram a registar actividade cerebral. Uma intensíssima actividade cerebral, para sermos mais exactos.

Ela ergueu a cabeça e olhou para ele. Christian soube que o compreendera, mas prosseguiu:

- Nesses sete minutos, houve um intercâmbio de almas. Shizuko morreu; a sua alma abandonou o seu corpo. Se tivesses demorado um pouco mais, provavelmente o teu espírito não teria podido introduzir-se nele: seria demasiado tarde. Mas o corpo ainda estava quente, os danos não eram irreversíveis. O espírito do shek introduziu-se naquele corpo humano... e ficou preso nele.

- Tu e eu não somos iguais, Ziessel. Eu tenho uma alma humana. Tu não. Eu tenho duas essências, portanto posso ter dois corpos. Tu tens uma só essência, por isso só podes habitar um corpo, ainda que esse corpo não seja o teu. -Lamento.

Shizuko sentiu as pernas tremerem e um horrível vazio no estômago. Agarrou-se à balaustrada, com força. Se fosse uma serpente, ter-se-ia enroscado para ocultar a cabeça entre os seus anéis.

- Shizuko Ishikawa já não existe, Ziessel. Deixou de existir nessa mesma tarde, quando a sua alma abandonou o seu corpo. Até mesmo os seus conhecimentos, as suas lembranças... tudo isso se foi com ela.

- Assim, quando acordaste dentro daquele corpo, tiveste de aprender tudo o que ela sabia. Ensinaram-te a caminhar como uma humana, a falar o seu idioma, a ler...

Como tinhas sofrido um acidente, todos acharam que a tua perda de memória se deveu ao choque. E a realidade é que não tardaste a aprender a comportares-te como a

verdadeira Shizuko. Soubeste tudo sobre ela sondando as mentes dos seus familiares e conhecidos. Reconstruíste a vida e a personalidade de Shizuko através da imagem

que as outras pessoas tinham dela. Esforçaste-te por aprender tudo o que ela sabia para ocupar o seu lugar no mundo, o lugar que ela tinha abandonado. Era a única coisa que podias fazer, porque a tua identidade como Ziessel não tinha nenhum sentido neste mundo, nesse corpo.

Mesmo assim, não conseguiste enganar toda a gente. Como o pai de Shizuko, não foi? Nunca acreditou completamente que tu fosses a filha que sobrevivera milagrosamente

ao acidente. Teve uma morte rápida, discreta e indolor... os humanos não viram nada de estranho nela, mas era óbvio que tinha a marca de um shek. - Sorriu.

Ela mal o ouvia. Christian olhou para ela com gravidade.

- Agora tens uma nova identidade - disse-lhe suavemente. - Uma identidade que te pode ser mais útil neste mundo do que um corpo de shek. Arranjaste maneira de não deitar tudo a perder, para tirar partido da situação. Estás a entrar no jogo da sociedade humana e estás a jogar para ganhar desde o início. És muito útil à tua gente, Ziessel. Muito mais do que os sheks que permanecem escondidos em Hocaido, porque a sua simples presença alertaria todo o planeta da vossa chegada.

A jovem recompôs-se. Ergueu a cabeça e dirigiu-lhe um olhar frio.

- Quem és tu para me dar lições sobre como ser útil à minha gente? Christian devolveu-lhe um sorriso tranquilo.

- Sou Kirtash, o traidor - respondeu. - Eu sei. Mas também sou um shek, um shek capaz de atravessar a Porta de um lado para o outro sem chamar a atenção neste mundo de humanos... e por essa razão alguém pensou que ainda podia ser útil aos sheks. E não me pareceu boa ideia contrariá-lo.

Shizuko recordou a voz que se dirigira a ela após a derrota de Ashran, aquela voz que estava muito acima de qualquer shek. A voz à qual não se atrevera a pôr nome e para a qual "Ashran" não era a palavra adequada, apesar de ter estado contida nele.

- Falaste com ele? - indagou. Christian abanou a cabeça.

- Agora é "ela". Aconteceu-lhe algo muito curioso, algo que em parte me ajudou a compreender o que te aconteceu a ti.

- Também está preso num corpo humano?

- Feérico, para ser mais preciso. Um corpo que estava morto, mas que voltou à vida para receber a sua essência. A diferença é que, ao voltar à vida, o corpo recuperou ao mesmo tempo a alma feérica que contivera. Sabes porquê?

Shizuko negou com a cabeça.

- Porque o nosso deus não precisa de corpos, mas sim de identidades. Por isso não tem nome. O seu nome é sempre o da identidade que assumir em cada momento. Agora, o sétimo deus chama-se Gerde e é uma feiticeira feérica. Tal como antes foi Ashran, um feiticeiro humano.

- Nesse caso, não pode ser o nosso deus - objectou Shizuko. - Poderia ter obtido uma identidade shek ou uma identidade szish. Porque escolhe sempre os sangues-quentes?

- Tenho uma teoria sobre isso, mas ainda não tive oportunidade de a comprovar. No entanto, que se trata do sétimo deus, ou da sétima deusa, é algo de que neste momento não tenho a menor dúvida. Vê.

Ofereceu-lhe parte das suas lembranças recentes, deixando-as flutuar ao nível mais superficial da sua consciência, para que ela as captasse com clareza. Não viu nenhum inconveniente em mostrar a sua conversa com Gerde, apesar de esta deixar tão patente a sua superioridade sobre ele e a sua forma de o manipular a seu bel-prazer como se fosse um boneco de trapos. Ziessel conhecia o poder do híbrido que, embora limitado, era superior ao de qualquer feérico, ao de qualquer feiticeiro. E foi o facto de reviver o terror que Gerde inspirava agora nele que fez a rainha dos sheks pensar que o que dizia poderia ser verdade.

- Ela quer falar contigo - concluiu ele. - Enviou-vos tão depressa para a Terra que não teve tempo de te ensinar a forma de abrir uma Porta interdimensional, mas tu, como a nova rainha dos sheks, deverias poder fazê-lo com relativa facilidade. Por isso nenhum dos sheks voltou nem mandou qualquer sinal.

- Esperávamos que a nossa gente se pusesse em contacto connosco, que enviasse alguém...

- Ela enviou-me a mim - respondeu Christian. - É verdade que demorou um pouco a fazê-lo, mas esteve bastante ocupada. Irá contar-to ela mesma, creio. No entanto,

não tem interesse em que vocês regressem e também não está preparada para vir à Terra nem disposta a utilizar-me constantemente como moço de recados.

- Então, o que é suposto fazermos? - inquiriu ela, interessada. Christian sorriu.

As horas passavam lentamente em Limbhad.

Victoria sabia que aquelas horas se tornavam em noites e dias porque o relógio assim o indicava. Se assim não fosse, ter-lhe-ia parecido que o tempo se limitava a passar.

Na época da Resistência, Victoria seguira um ritmo de vida determinado pelo seu horário escolar, pelos dias e noites de Madrid, e visitar Limbhad frequentemente não a transtornava. Agora que se via obrigada a estar quase sempre ali, compreendia o que teria sido para Jack passar meses inteiros encerrado na Casa na Fronteira e porque é que a abandonara mal tivera oportunidade. Para tentar seguir um horário racional, Victoria visitava de vez em quando o apartamento de Christian em Nova Iorque e fazia por se acostumar ao tempo de lá; mas isso não a consolava, já que o shek quase nunca estava em casa e cada vez passava menos tempo em Limbhad.

Victoria sabia que ele estava em Tóquio. Não tinham voltado a falar de Shizuko desde que Christian lhe confessara que já sabia quem ela era, e Victoria não fizera perguntas. No início, tudo indicava que ele não se encontrava em perigo imediato, pelo que a jovem considerou não ter motivos para o interrogar sobre o que estava lá a fazer. Se Christian não lhe falava sobre isso, era porque muito provavelmente se tratava de um assunto pessoal.

Assim, para matar o tempo, dedicava-se a investigar na biblioteca de Limbhad. Encontrara num livro uma lenda sobre a origem dos unicórnios e gostara tanto dela que a lia frequentemente, por isso sabia-a quase de cor. Nesse aspecto, Christian tinha razão: Victoria lembrava-se de ter lido aquele fragmento há algum tempo, mal lhe tendo prestado atenção. Agora, contudo, aquela história tocava-a no seu íntimo e consolava-a bastante.

"Dizem os sábios", rezava o texto, "que no começo dos tempos os deuses criaram o mundo e depois abandonaram-no à sua sorte, dado que, concluída a tarefa da criação, não consideravam que tivessem nenhuma outra responsabilidade para com Idhún e as suas criaturas. Mas depressa o mundo começou a secar. As plantas cresciam menos vigorosas, as correntes dos mares tornaram-se indolentes, o ar tornou-se seco e estático, a luz dos sóis e das estrelas enfraqueceu, as montanhas envelheceram e desgastaram-se e até o fogo crepitava sem vontade, pálido e frio. Como tudo parecia estar a perder a força, os mortais rezaram aos deuses nos seus templos e suplicaram que regressassem para renovar a energia do mundo.

Mas os deuses não regressaram, e Idhún continuou a agonizar pouco a pouco.

Muito tempo depois, os Oráculos falaram e disseram que os deuses não voltariam, mas que enviariam um mensageiro para que curasse os males do mundo em seu lugar. Os sacerdotes transmitiram a boa-nova ao resto dos mortais e todos aguardaram com impaciência a chegada do emissário dos deuses. Imaginavam um herói poderoso, forte e valente, e cada raça imaginava que teria as suas próprias feições. Esperaram-no nos templos e nos palácios e prepararam grandes eventos para o agraciar. Contudo, o mensageiro não chegou.

Um dia apareceu nos bosques do Oeste uma estranha criatura. As fadas repararam na sua presença e fizeram diversos comentários, pois nunca tinham visto nada semelhante.

A criatura possuía uma bekza delicada e selvagem e parecia ter sido criada com a luz da lua maior. Na sua testa brilhava um longo corno em espiral. Por esta razão chamaram-lhe unicórnio.

A criatura prosseguiu a sua longa viagem para norte. As fadas acompanharam-na até à orla do bosque, mas, quando o unicórnio deixou a floresta para trás, elas abandonaram-no porque já se tinham cansado dele. De modo que o unicórnio continuou a sua marcha sozinho.

Assim, chegou ao monte Lunn, que na altura tinha outro nome, e com muita dificuldade trepou até ao cume. Uma vez ali, levantou a cabeça e ergueu o seu longo corno para o céu. E esperou.

Quando os sóis chegaram ao seu zénite, as luas subiram do horizonte ao seu encontro. E os seis astros entrelaçaram-se numa conjunção que desenhou um hexágono nos céus de Idhún.

Então, das alturas desceu um raio que caiu directamente sobre o corno da criatura, que fincou as patas e o suportou com determinação. Os deuses estiveram durante muito tempo a entregar o seu poder ao unicórnio, mas ninguém deu por isso, porque se encontravam todos nos templos e nos palácios, aguardando o mensageiro que não chegava.

Quando tudo acabou, o unicórnio desceu da montanha e pôs-se novamente a caminho, em direcção a norte: mas desta vez ninguém conseguiu vê-lo. Assim, continuou a viajar, errante; atravessou as planícies e chegou ao mar. Ali, numa povoação no alto das falésias, vivia um ancião chamado Pildar, que foi o primeiro a receber o dom do unicórnio, o dom da magia. Esse local foi designado por Kazlunn, o Berço da Magia, tendo sido ali que, tempos depois, se erigiu a primeira tone da Ordem Mágica.

Depressa houve mais pessoas agraciadas com o dom. Também houve mais unicórnios e, pouco a pouco, a energia voltou a circular no mundo e Idhún fortaleceu-se. Os unicórnios povoaram o mundo e outorgaram a aíguns escolhidos o poder para o renovar, alterá-lo e aperfeiçoá-lo, poder semelhante ao dos deuses, mas em muito menor escala. Contudo, os sacerdotes nunca perdoaram ao unicórnio que não se tivesse mostrado a ninguém da sua classe e, por esta razão, os feiticeiros e os sacerdotes estiveram sempre em confronto e as Igrejas desconfiam do poder entregue pelos unicórnios."

Victoria gostava daquela lenda porque dava um sentido à sua condição de unicórnio e porque relatava a origem da sua espécie. Mas também lhe colocava questões sérias, dúvidas que antes não havia formulado, porque na altura não sabia tanto como no presente. Em primeiro lugar, o texto dava a entender que, sem os unicórnios, Idhún morreria irremediavelmente. Mas também dizia que os mortais tinham suplicado aos deuses que estes regressassem para renovar a energia do mundo.

Os deuses não tinham voltado a Idhún nessa época, e Victoria perguntava-se se não o haviam feito porque sabiam que a sua presença não só recarregaria o planeta de energia, como também o transtornaria tanto que alteraria por completo o seu aspecto externo.

"Mas é assim que se criam os mundos", disse ela para si certa vez. "Os começos são sempre violentos. Vulcões, maremotos, sismos, dilúvios... há que golpear com força um mundo para o fazer despertar, para conseguir fazer brotar a centelha da vida."

A criação e a destruição, compreendeu então, eram uma só coisa. Os mesmos deuses que tinham criado um mundo podiam destruí-lo. Os mesmos deuses que o tinham deixado morrer podiam devolvê-lo à vida, E o processo seria trágico e violento. Mas, quando os deuses se retirassem, se não tivessem destruído tudo, deixariam o mundo tão carregado de energia que a vida cresceria de novo com mais força.

"Ou é nisso que quero crer", pensara Victoria.

Havia outra coisa que lhe despertava a atenção naquela lenda: o facto de não mencionar os dragões nem os sheks. Quando se apercebera disso, uma emoção cálida embargara-a por dentro. "Nós, os unicórnios, somos mais velhos", reflectira. "A magia é mais antiga do que o ódio entre os sheks e os dragões. Quando o primeiro unicórnio pisou o mundo, os dragões, os guerreiros dos deuses, ainda não tinham sido criados." Queria isso dizer que a guerra entre os deuses começara depois? Franzira o sobrolho. Lembrava-se de que Jack lhe dera a entender uma vez que a luta entre os Seis e o Sétimo se iniciara há muito, que remontava mesmo a um mundo anterior a Idhún. Recordara a si mesma que tinha de lhe perguntar quando voltasse a vê-lo.

Havia muitas coisas naquela lenda que não encaixavam naquilo que Shail e Alexander lhe tinham ensinado acerca do passado de Idhún. Intuindo que podia ter descoberto algo importante, continuara a investigar.

Encontrou a resposta a algumas das suas perguntas num volume antiquíssimo que datava dos tempos da Terceira Era. Tratava-se de um livro que relatava a história de Idhún. Pela forma como estava contada, parecia destinada à educação de crianças e jovens. Victoria ficou aliviada por o conteúdo ser tão claro e esquemático que lhe permitiu detectar com maior facilidade o que não encaixava. Numa das suas páginas dizia:

"A nossa história, começa com a chegada do primeiro unicórnio, com a chegada da magia.

Antes da magia as seis raças rezavam aos deuses, mas estes viviam longe de nós. Por isso enviaram os unicórnios e foi então que começou a Primeira Era.

A Primeira Era é a Era da Magia. Durou mais de quinze mil anos. Durante todo esse tempo nós, os feiticeiros, aprendemos a controlar o nosso poder e a pô-lo ao serviço do mundo. Edificaram-se as três torres de feitiçaria. Também chegaram ao mundo os filhos do Sétimo, e os deuses enviaram os dragões para os combater. Nós lutámos contra as serpentes, mas alguns feiticeiros mudaram de lado. Um deles foi Talmannon.

A Segunda Era é a Era Negra. Durou quase mil anos. Nesse período, Talmannon estendeu o seu império por Idhún, e todos os feiticeiros lhe obedeciam. Na época, por causa de Shiskatchegg, todos os feiticeiros serviram o sétimo deus. Até que Ayshel, a Donzela de Awa, venceu Talmannon e os dragões derrotaram os sheks e expulsaram-nos de Idhún.

A Terceira Era é a Era da Contemplação a que estamos a viver nos dias que decorrem. Actualmente, Idhún pertence aos filhos dos Seis e os seus sacerdotes governam o mundo. E, como todos nós, os feiticeiros, servimos o Sétimo em tempos passados, vimo-nos condenados ao exílio. Já não há lugar para nós em Idhún. A bênção do unicórnio é agora o nosso estigma. Mas um dia voltaremos a atravessar a Porta interdimensional e regressaremos ao nosso lar, banhado pela luz dos três sóis..."

Victoria fechou o livro, pensativa. Sabia que a Terceira Era tinha terminado há muitos séculos, com o descrédito das Igrejas e o regresso dos feiticeiros. Sabia que Idhún estava a viver entretanto a Quarta Era, a Era dos Arquifeiticeiros, que acabaria, talvez, com a morte de Qaydar ou com a morte do último unicórnio do mundo. Mas não foi isso que a deixou preocupada.

Aquela era uma versão diferente. Tanto Shail como Alexander lhe tinham ensinado que a Era Negra e a Era da Magia eram a mesma coisa. Ou seja, que chamavam ao longo período anterior aos unicórnios a Primeira Era e que a chegada dos unicórnios e da magia terminara com o império de Talmannon, e tudo isso formava a Segunda Era.

"Mas não foi assim", compreendeu. "com a chegada do primeiro unicórnio não se iniciou a Segunda Era, mas sim a Primeira. Estamos a falar de quinze mil anos de história que passaram em branco... ou que foram incorporados na chamada Era Negra. O que significa isto?"

Tirando o facto de os sacerdotes contarem uma versão da história que demonizava a magia desde os seus próprios primórdios, significava que muitas coisas importantes tinham ocorrido naquela época. Quinze mil anos. Quinze mil anos e, apesar disso, quando se referia a magia e os unicórnios quase sempre se reportava à Era Negra, nunca ao que tinha acontecido antes. E era relevante, concluiu, porque fora nesses longos milénios que começara e se desenvolvera a guerra entre os dragões e os sheks. Antes de Talmannon, dado que, após a sua derrota, os sheks foram expulsos para Umadhun e se iniciou uma longa trégua.

"Os sheks e os dragões combateram durante gerações inteiras. E os szish lutaram às ordens dos sheks desde sempre. Porém, quando Ashran obteve o poder em Idhún, quase todos os sangues-quentes tinham já esquecido os sangues-frios", pensou Victoria, recordando que Shail, quando lhes falara dos sheks, os apresentara como criaturas míticas... e que nem sequer soubera da existência dos szish até que estes invadiram Idhún no dia da conjunção astral.

"Esqueceram-nos a todos", disse Victoria para si. "Durante quinze mil anos decorreu uma longuíssima guerra e os feiticeiros combateram ao lado dos dragões... no entanto, os idhunitas quase nunca retrocedem para antes de Talmannon e da Era Negra. Para eles, a Era da Magia não existe ou é a própria Era Negra que procuraram esquecer."

E era aquela a chave. Victoria suspeitou que o que se estava a passar em Idhún naquele momento tinha começado a forjar-se naquela Primeira Era, a Era da Magia. A chegada dos Filhos do Sétimo (chegada? De onde vinham? Porque é que tinham aparecido em Idhún?), a resposta dos dragões (foram criados na altura? Para responder à invasão shek?), o desenvolvimento da magia. Toda uma longa história esquecida, da qual, contudo, os unicórnios tinham sido testemunhas, porque os unicórnios já existiam.

Victoria desconfiou que aquilo podia ser importante. Continuou a remexer na biblioteca, estudando velhos volumes e documentos, em busca de mais pistas, mas não encontrou nada que lançasse um pouco mais de luz sobre aquele período esquecido da história idhunita.

Todavia, chegou uma altura em que nem sequer as velhas lendas conseguiam distraí-la da sua solidão. Já não estava à vontade em Limbhad, porque lhe recordava Jack, de quem sentia muitas saudades; e também não se sentia bem no apartamento de Christian, porque ele não se encontrava lá. Porém, passou a dormir ali, no sofá, quase todas as noites. Por vezes, ao acordar no dia seguinte, descobria que Christian passara por casa, talvez por pouco tempo, umas horas; mas não a acordara e, de qualquer forma, decerto partira antes do amanhecer. No entanto, não era algo que sucedesse com frequência: Christian costumava estar fora dia e noite.

Quando se encontrava em casa, mostrava-se distante e reservado, tratando-a com uma cortesia fria que a feria profundamente. Victoria suspeitava que outra mulher ocupava os sonhos e o coração de Christian e, embora pudesse compreendê-lo e aceitá-lo, doía-lhe o facto de ele não ser sincero com ela.

Uma noite, estava ela sentada em frente à lareira, revendo sem muito interesse um dos livros da biblioteca de Limbhad, Christian voltou a casa. Cumprimentou-a com naturalidade, como se a tivesse visto no dia anterior. Victoria fechou o livro e seguiu-o até ao quarto. Aproximou-se dele, junto à janela.

- Incomoda-te que esteja aqui? - perguntou-lhe, sem rodeios.

- Sabes que não, Victoria - respondeu o shek.

- Não, não sei - replicou ela. - Já há algum tempo que andas muito estranho e distante... mais do que o costume, quero dizer. Sei que estás a pensar nela, em Shizuko.

Não quero prender-te, Christian, por isso, se não queres estar comigo, simplesmente diz-mo.

- Claro que quero estar contigo, Victoria. Se assim não fosse, não te deixaria ficar na minha casa.

Victoria desviou o olhar.

- Mas estás tão frio... Eu sei que depois da batalha contra Ashran passámos muito tempo separados e que muitas coisas podem ter mudado. Se deixaste de gostar de mim...

Interrompeu-se, porque ele lhe pegara no queixo para a fazer erguer a cabeça.

- Gostar de ti? Claro que gosto. Sempre gostei de ti, desde a primeira vez em que te olhei nos olhos, e isso na altura em que eras quase uma criança. Achas que não te desejo? Pois estás muito enganada, Victoria. Só que há coisas mais importantes, por isso, neste momento, o que eu sinto, quero ou desejo, guardo-o para mim.

Victoria ficou calada, confusa. Christian sorriu ao ver que corara.

- Só te estava a dar espaço - disse. - Como tu mesma disseste, passámos muito tempo separados. Durante todo esse período, Jack esteve ao teu lado.

- Mas isso nunca te impediu - objectou ela. - Nunca te importou que Jack e eu estivéssemos juntos ou, pelo menos, era o que dizias.

- E não me importa. Mas não se trata de mim agora, mas sim de ti. É verdade que nos distanciámos e que durante esse tempo todo estreitaste a tua relação com Jack. Por isso presumi que precisavas de tempo para te habituares à ideia de eu estar perto de novo e de Jack não se encontrar contigo. Além disso, ainda estás em convalescença e sei que continuo a intimidar-te um pouco. De maneira que não quis oprimir-te com a minha presença.

Victoria olhou para ele sem poder acreditar no que estava a ouvir.

- Era por esse motivo que me deixavas sozinha?

- Não era só isso. Tinhas a opção de vir aqui quando quisesses. Mas, sinceramente, Victoria, odeio ver-te dormir no sofá - acrescentou, muito sério. - Ter-te-ia obrigado a aceitar a cama que te ofereci uma vez, se não soubesse que te incomoda a ideia de dormir no meu quarto. E, como já te disse, não queria pressionar-te.

Victoria baixou a cabeça, confusa. Sentiu a presença de Christian atrás de si, os seus braços a enlaçar a sua cintura, e ouviu a sua voz a sussurrar-lhe ao ouvido:

- Dizes-me que estou distante, mas no fundo tens medo de que te toque, não é?

- Tenho medo do que provocas dentro de mim - respondeu ela em voz baixa. - É algo muito intenso, sabes? Receio perder o controlo.

- Eu já te disse uma vez que continuaria a controlar-me pelos dois. Não é o que tenho feito?

- Interpretei-te mal - murmurou Victoria. - Lamento.

- Não, eu é que devia ter reparado que o teu coração já andava a gritar por mim - respondeu ele. - Que já te acostumaste à mudança e não precisas mais de estar sozinha. Foi falha minha. Ultimamente, tenho tido muitas coisas em que pensar.

Abraçou-a com mais força. Victoria fechou os olhos e lançou a cabeça para trás para a apoiar no seu ombro.

- Eu reparei - disse, com voz apagada.

- É por causa de Shizuko, não é? - perguntou Christian. - Sentes-te ameaçada?

- Não sou ninguém para te pedir explicações, Christian. Pelo menos, não enquanto eu também continuar a amar outra pessoa.

Fez-se um breve silêncio.

- Preciso de estar com ela - disse ele então. - Para procurar compreender quem sou... e porque é que sou assim. Às vezes sinto que só ela tem as respostas para as perguntas que nunca me atrevi a formular.

- Está bem. Mas...

- Mas isso não implica que os meus sentimentos por ti tenham mudado por pouco que seja.

Puxou-a e fê-la dar meia-volta para olhar para ela no rosto.

- Diz-me, porque é que tens medo? - perguntou-lhe com suavidade. A jovem fechou os olhos e deixou que ele lhe acariciasse a face. Suspirou quando os seus dedos desceram até ao pescoço.

- Precisamente por isto - respondeu em voz baixa. - Pelo que sinto. Talvez por ter repetido tantas vezes a mim mesma que não deveria amar-te. Desde aquela primeira vez - acrescentou, abrindo os olhos para o fitar - em que devias ter-me matado e não foste capaz. Quando me estendeste a mão. Suponho que é também por todos eles, por Jack, por Alexander, por Shail... e por todos os que esperam que me eu comporte de outra maneira. Todos aqueles que ficariam horrorizados ao saber que o último unicórnio se apaixonou por Kirtash, um shek, o filho de Ashran...

- Importunaram-te muito com isso, não foi? - perguntou ele com alguma doçura.

- Não me interessa o que dizem. Eu sei o que sinto por ti e isso não vai mudar.

É só que quando estou contigo sinto que os estou a decepcionar a todos... a trair

as esperanças que depositaram em mim. No entanto...

- No entanto, amas-me - sorriu Christian. - Sim. Sei exactamente como te sentes. Mas esses são os motivos deles, não os teus. Por uma vez, Victoria, faz o que desejas e não o que todos esperam de ti. Deixa que seja o teu coração a guiar os teus actos.

Aproximou-se mais dela, e Victoria só teve tempo de sentir que o seu coração começava a bater desenfreadamente antes que ele a beijasse, com um beijo lento, intenso. Quando os seus lábios se separaram, Christian não se afastou muito. Ficaram por um momento assim, muito juntos, tão próximos que Victoria podia sentir a respiração

dele sobre o seu cabelo. Os braços do shek rodearam a cintura da rapariga, com suavidade. ;

- Era isto que querias? - perguntou Christian, baixinho.

- Sim - sussurrou Victoria, ainda sem fôlego.

- Que bom - assentiu Christian. - Porque também é o que eu queria. Beijou-a de novo. Victoria suspirou e abraçou-o, gemendo quando os lábios dele deslizaram até ao seu pescoço, quando os seus dedos lhe percorreram as costas.

- É o que queres? - repetiu Christian suavemente, quase com doçura. Os seus lábios roçavam a sua pele, muito perto do lóbulo da sua orelha.

Victoria tremia. Não fora isso que pretendera ao aproximar-se dele naquela noite. Ter-se-ia contentado com uma conversa sincera, com uma mostra de carinho, com que Christian lhe permitisse participar de novo na sua vida, como antes... antes de ele ter visto Shizuko pela primeira vez em Cinza. Mas, agora que ele lhe estava a oferecer muito mais, depois daquele período de doloroso distanciamento, Victoria não se sentia capaz de o repelir. A sua alma bebia da sua presença, ávida. Sentia tanto desejo de se entregar a ele que lhe custava pensar com clareza ou muito simplesmente pensar.

- Sim - conseguiu murmurar, com um suspiro -, e... se isso é o que tu também queres... beija-me outra vez, por favor. Não deixes de me beijar. Não te separes de mim esta noite.

Christian tinha-se acomodado na varanda, sentado sobre o peitoril, com os braços cruzados à frente do peito. Continuava a ser noite na cidade de Nova Iorque: uma noite escura, sem estrelas, turvada pela poluição. O shek contemplava as luzes que se moviam como formigas aos seus pés, vinte pisos mais abaixo, mas mal as via. Os seus pensamentos estavam noutro lugar.

Atrás dele, a janela estava parcialmente aberta e a brisa nocturna movia a cortina com suavidade. Do outro lado, Victoria dormia profundamente, com o seu longo cabelo espalhado pelos lençóis, que delineavam o contorno do seu corpo. Christian voltou-se para olhar para ela dali. Ficou assim durante algum tempo, mergulhado em profundas reflexões, até que sentiu uma chamada na sua mente.

Sabia que era Ziessel, ou Shizuko, ou fosse lá qual fosse o nome para designar alguém com um corpo e uma identidade humanas e uma alma de shek. Abriu-lhe apenas um canal superficial da sua consciência. Estava demasiado perto do seu usshak para se sentir à vontade, mas aquela varanda continuava a ser terreno neutro. Permitiu-lhe que iniciasse conversa com ele.

- Estávamos à tua espera esta manhã - disse ela.

- Eu sei. Tive assuntos a tratar - respondeu Christian.

- Oh, referes-te a ela - compreendeu Shizuko.

Christian praguejou para com os seus botões, já arrependido de ter iniciado a conversa. Era óbvio que os seus sentimentos a esse respeito impregnavam todos os níveis da sua consciência, embora procurasse ocultá-los.

- Sempre quis perguntar-te por ela. A rapariga que estava contigo em Ginza. É o unicórnio de que tanto se falou, não é verdade! A criatura por quem nos traíste.

- Sim - disse Christian simplesmente, disposto a rematar a conversa. Mas Shizuko continuou a falar na sua mente.

- Valeu a pena? - perguntou.

Christian deu por si a duvidar. Procurou rectificar aquela primeira reacção, mas a shek já a tinha captado.

- Ficaste obcecado pelo unicórnio mal a olhaste nos olhos pela primeira vez, não foi? - sorriu. - Desde então não deixaste de pensar nela. Seguiste-a, deste tudo para a conseguir.

- Isso não é verdade. Ela não é propriedade minha.

- Mas não desististe enquanto não te entregou tudo. O seu amor, a sua lealdade, a sua vida, a sua magia, o seu corpo e a sua alma. Venceste a última barreira, deixou de ter medo de ti. Superou todos os preconceitos que os sangues-quentes inculcaram na sua mente. Já não resta nenhuma possibilidade de te virar as costas para cair nos braços do dragão. Não tem mais motivos para te rejeitar. E não tentes negá-lo no teu íntimo, porque foi essa a tua intenção desde o início, desde o primeiro olhar que trocaram. Não te censuro. É o que contam dos unicórnios: os sangues-quentes que viam um ficavam loucos por eles. Perseguiam-nos durante toda a vida, por vezes deixando tudo para voltar a ver uma dessas criaturas. Não ficavam satisfeitos enquanto não conseguiam o que queriam deles, o que não costumava acontecer. Mas tu conseguiste, conquistaste um unicórnio. Serias invejado por qualquer feiticeiro.

Christian fechou os olhos.

- Não tenho de estar a falar disto contigo - disse, cortante.

- Mas queres fazê-lo. É por isso que estás aí fora, a observá-la à distância, contemplando como dorme indefesa na tua cama, crédula, segura do seu amor por ti. Pobre rapariga. Reparaste nela porque era um unicórnio e vai ser precisamente a sua essência de unicórnio o que te irá afastar dela. E tu? julgavas que a amavas, porém, agora que conseguiste que ela caísse nos teus braços, sem dúvidas nem reservas... agora que é inteiramente tua, sentes-te como se estivesses a acordar de um sonho e perguntas-te se não foi a loucura do unicórnio.

Christian inclinou a cabeça, zangado.

- O que te faz pensar que me conheces o suficiente para saber o que sinto?

- É o que se dizia quando nos traíste. Não o terias feito por uma humana vulgar, e essa rapariga também não era uma shek. O que tem um unicórnio a ver contigo? Viste um quando eras criança e andaste à procura dele desde então. Mas, sabes, os sangues-quentes que procuram um unicórnio não devem encontrá-lo, porque é o símbolo dos sonhos impossíveis. E os sonhos impossíveis não se devem cumprir, senão... a vida daquele que os cumpre fica vazia e sem sentido.

Christian sorriu e abanou a cabeça.

- Quem me dera que fosse tudo assim tão simples - disse.

- Talvez seja - respondeu Shizuko.

Reinou um longo silêncio entre os dois. A voz telepática de Shizuko não tornou a falar, mas Christian sabia que ela continuava presente na sua mente.

- Tenho de ir - disse então Christian. - Preciso de tempo para pensar.

- Nós continuamos a trabalhar - respondeu Shizuko. - Como te disse, estava à tua espera esta manhã.

- Está bem - assentiu Christian.

A shek retirou-se da sua mente. Christian aguardou um pouco e, após um breve instante de hesitação, pôs-se de pé e desapareceu dali.

Victoria acordou quase ao fim da manhã, quando os ruídos da cidade inundavam o quarto e a luz do sol entrava a jorros pela janela. A primeira coisa em que pensou foi que não estava em Limbhad, dado que era de dia. Depois apercebeu-se de que também não se encontrava no sofá do apartamento de Christian; e, quando os seus olhos se acostumaram à luz e conseguiu olhar à sua volta, descobriu que se encontrava no quarto do shek, na sua cama. A primeira reacção que teve foi fazer por se levantar, mas não o fez. Encolheu-se sobre si mesma e tapou-se ainda mais com os lençóis, ruborizada. Então percebeu que estava sozinha no quarto e suspeitou que também na casa. Christian tinha ido embora.

Suspirou e fechou os olhos. "Vai voltar", disse para si.

Ficou mais um pouco na cama, a pensar, recordando e assimilando muitas coisas. Sorriu, ainda corada. Então soergueu-se e procurou a sua roupa com o olhar, mas não a encontrou. No entanto, em cima da cadeira estava uma das camisas de Christian. Levantou-se e estendeu uma mão para pegar nela.

Momentos depois saía do quarto, descalça, vestida com a camisa negra do shek. Ficava-lhe grande; as mangas tapavam-lhe as palmas das mãos e a parte de baixo chegava-lhe aos joelhos. Contudo, a sua roupa também não estava na sala, pelo que encolheu os ombros e se dirigiu à cozinha.

Estava a abrir os armários à procura do café quando chegou Christian.

Victoria voltou-se para ele e brindou-o com um sorriso caloroso... mas a expressão congelou-se-lhe quando não viu vestígios de carinho no rosto do shek, que a cumprimentava com a sua habitual frieza. A rapariga engoliu em seco e disse:

- bom dia... estava à procura do café - acrescentou, como se tivesse de se justificar.

Christian abanou a cabeça.

- Não o vais encontrar. Não tomo café, nem chá, nem nada que possa influir no meu sistema nervoso: substâncias sedativas e excitantes.

- Está bem... não sabia - murmurou ela, sem saber mais o que dizer. Ficaram em silêncio.

- O preto fica-te bem - disse ele por fim. Victoria olhou para as mangas da camisa.

- Sim... lamento, é que não encontrava a minha roupa - desculpou-se, corando.

Christian inclinou a cabeça.

- Guardei-a no armário ontem à noite - disse. - Justamente para que pudesses encontrá-la facilmente.

- Não me passou pela cabeça - confessou Victoria. - Bem, se esperares um pouco, devolvo-te já a camisa...

- Não há pressa - tranquilizou-a ele. - Fica-te bem - repetiu, com um sorriso.

Victoria bebeu daquele sorriso como se fosse um riacho em pleno deserto. Compreendeu que tinha acontecido algo que lhe escapava, mas que mudara algumas coisas da noite para a manhã. Desta vez decidiu não se calar.

- Christian, o que se passa? - perguntou, preocupada. - Estás zangado comigo?

Ele fitou-a. Victoria detectou no seu olhar o que lhe pareceu ser pena. Ele aproximou-se dela para lhe tomar as mãos e sorriu-lhe.

- A culpa não é tua - disse-lhe. - Que isso nunca te passe pela cabeça, estás a ouvir?

- Christian, o que estás a tentar dizer-me?

Mas ele abanou a cabeça como se acabasse de despertar de um sonho.

- Não é nada - disse, e sorriu-lhe de novo, desta vez com os olhos cheios de carinho. - vou buscar-te um café.

- Não é preciso - respondeu ela rapidamente. - A sério, posso passar sem ele.

Christian assentiu. Victoria ergueu a mão, que continuava presa à dele, e beijou-lhe os dedos com ternura. Christian observou-a com gravidade enquanto ela lhe manifestava o seu afecto daquela forma tão simples e espontânea.

- Tenho de ir - afirmou então em voz baixa. - Tenho coisas para fazer.

- Em Tóquio?

- Não exactamente; em Hocaido.

- com os sheks? Posso ir contigo?

- Está muito frio em Hocaido, mesmo nesta época do ano, Victoria.

- É-me indiferente. Tu sabes que te quero ajudar.

- Então fica aqui. Não sei como irão reagir os outros sheks se te virem; lembra-te de que foste uma das causadoras da derrota de Ashran.

Os olhos de Victoria relampejaram de fúria.

- Ashran arrancou-me o corno. Tinha o direito de me defender. Além disso, tu também estavas lá.

- Sim, mas de mim ainda precisam. Por favor, Victoria, deixa-me manter-te afastada de tudo isto.

Victoria mordeu os lábios, indecisa.

- Voltarei depressa, a sério - sorriu o shek. Ela ergueu os olhos para ele.

- Sabes que não te quero prender, mas...

Não acabou a frase. Christian acariciou-lhe o cabelo.

- Eu sei. Obrigado por estares aqui comigo, por me teres acompanhado à Terra. Embora não to tenha dito até agora, embora não to demonstre, significa muito para mim.

Victoria enterrou o rosto no peito dele e rodeou a sua cintura com os braços. Não falou, e Christian também não acrescentou mais nada.

Havia algo na neve que a acalmava e consolava. Tão branca, tão pura... tão fria.

Shizuko fechou os olhos e inspirou profundamente. O ar gelado inundou-lhe os pulmões e fê-la sentir-se melhor.

Encontrava-se no alpendre de um pequeno refugio florestal nas imediações de uma das serras do interior de Hocaido. Estava frio, muito frio, pelo que era pouco provável que os incomodassem. De qualquer modo, os sheks costumavam estar atentos e vigiavam o caminho que levava até ali.

Por enquanto, Shizuko e os seus estavam sozinhos, podendo trabalhar sem que ninguém os interrompesse. Esse era um dos motivos por que tinham escolhido aquele lugar.

O segundo era que não ficava demasiado longe de Wakkanai, o extremo mais meridional do Japão, em cujas costas se tinham ocultado os sheks durante todo aquele tempo.

Mas o terceiro e mais importante motivo eram as fontes termais.

As nascentes de água quente, a que os japoneses chamavam onsen, abundavam naquela zona da ilha. Havia-as de todos os tamanhos, mais acessíveis ou mais recônditas, isoladas ou agrupadas. Aquela, em concreto, tinha o tamanho adequado para o que pretendiam, nem muito grande nem muito pequena, e era redonda, quase perfeitamente redonda. Shizuko apoiou-se num dos postes de madeira do alpendre e contemplou o vapor que emergia da água. À volta da nascente tinham traçado um hexágono de poder, rodeado de símbolos em idhunaico arcano dos quais a shek não conseguia gostar, dado que era uma linguagem dos sangues-quentes. Porém, não tinham outra. Os feiticeiros szish não haviam tido uma cultura própria nem desenvolvido uma organização tão importante como a Ordem Mágica dos sangues-quentes. O longo exílio dos sangues-frios em Umadhun afastara-os dos dons dos unicórnios e o saber que pudessem ter acumulado em eras passadas tinha-se perdido.

Ergueu a cabeça ao ver um shek deslizar sobre a neve, em direcção ao poço. O seu coração estremecia de nostalgia sempre que contemplava uma daquelas criaturas, mas os seus olhos não o deixavam transparecer, nem os seus pensamentos. Não era à toa, pois continuava a ser a rainha dos sheks e tinha de se mostrar forte e segura de si, mesmo dentro daquele ridículo corpo humano.

Contemplou, pensativa, como o shek soltava a sua respiração sobre a água quente e conseguia arrefecê-la até cobrir a superfície com uma fina camada de gelo. No entanto, depressa o gelo se partia e desfazia.

Andavam há vários dias a fazer aquilo. Na realidade, não pretendiam congelar a nascente. Aquela água procedia das entranhas do planeta Terra e pô-la em contacto com o gelo de um shek de Idhún era apenas parte do feitiço que estavam a tentar realizar.

Shizuko sentiu subitamente uma presença junto de si.

- Demoraste - disse-lhe.

- Nem todo o meu tempo te pertence - respondeu ele.

Shizuko não respondeu. Christian avançou para a nascente e pôs-se a trabalhar.

Atravessou o hexágono de poder e procurou transmitir-lhe parte da sua magia. Também ele andava a repetir aquele procedimento nos últimos dias. Talvez qualquer outro feiticeiro tivesse conseguido resultados muito antes, mas isso não o preocupava. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, o tecido entre ambos os mundos se debilitaria o bastante para que eles pudessem criar o que pretendiam.

Uma janela entre dois mundos.

Aquela, pelo menos, era a ideia de Gerde. Na época de Ashran, Christian atravessava a Porta de um mundo para o outro à vontade, sem problema nenhum. No entanto, perdia-se muito tempo naquelas deslocações, para não falar do facto de Christian não estar tão disponível como antes e Gerde precisar de que Shizuko ficasse na Terra. Além disso, as Portas interdimensionais abriam-se e fechavam-se, mas não permaneciam estáveis. O que Gerde pretendia era criar uma brecha que, embora não se pudesse atravessar, servisse de comunicação entre um lado e o outro, uma janela através da qual pudesse controlar o que as suas criaturas faziam sem necessidade de ter Christian, ou a própria Shizuko, a transitar de um mundo para o outro.

Observou Christian, pensativa. O jovem continuava a trabalhar no hexágono que rodeava a nascente, debaixo do frio intenso e sob o olhar atento do outro shek, que o contemplava com um desprezo mal dissimulado. Aquele era Kirtash, o híbrido, o traidor. Shizuko perguntou-se porque estaria agora com eles. Ele devia saber que, mal cumprisse a sua tarefa, o matariam, a não ser que Gerde ordenasse o contrário (se é que ela era realmente a sétima deusa. Shizuko ainda tinha dúvidas a esse respeito; se acedera a levar a cabo aquele plano, era mais por curiosidade do que por se sentir de facto obrigada a fazê-lo). E, se o sabia, porque é que corria o risco?

Shizuko não podia deixar de admitir que aquele rapaz a intrigava. Gostava de o ter por perto, porque era muito semelhante a ela, a única pessoa do seu meio que podia compreendê-la. Em contrapartida, a sua presença inspirava-lhe temor e repulsa. Não só porque via nele um reflexo do que ela mesma chegara a ser, mas também porque dentro dele havia algo que Shizuko achava estranho e diferente, e que não lhe agradava.

Christian regressou da nascente para voltar para junto dela.

- Quanto tempo mais vamos ter de esperar? - perguntou Shizuko. Christian encolheu os ombros.

- Não sei, mas já não deve faltar muito.

O outro shek olhou fixamente para eles na margem da nascente. O vapor embaciava a sua imagem, mas ambos captaram muito bem o sentido daquele olhar.

- Não lhes agrada verem-nos juntos - comentou Shizuko, sem receio de que o outro shek captasse os seus pensamentos, uma vez que a conversa entre Christian e ela era privada.

- É normal - sorriu ele. - Mas acho que entendem.

- Sim - assentiu ela. - E por isso têm medo.

Christian voltou-se para Shizuko, com uma expressão impenetrável. Os dois fitaram-se demoradamente. Junto à nascente, o shek sibilou, aborrecido, e perdeu-se pelos caminhos estreitos do bosque coberto de neve.

Quando Christian voltou, a altas horas da madrugada, Victoria estava na sua cama, profundamente adormecida. Porém, não se tinha metido entre os lençóis. Continuava vestida e tinha-se tapado com a manta que já era dela. O jovem ficou a olhá-la, em silêncio. Aparentemente, Victoria pressentiu aquele olhar, dado que abriu os olhos e lhe sorriu ainda entre as brumas do sonho.

- Olá - sussurrou. - Que horas são?

- Muito tarde, suponho - respondeu ele, no mesmo tom de voz. Estiveste à minha espera o dia todo?

Victoria assentiu, ainda a sorrir. Christian percebeu que se sentia tão feliz por estar junto dele que não se importava de o ter esperado tanto tempo.

- Trouxe-te um presente - disse-lhe.

O sorriso de Victoria rasgou-se. Christian acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira e estendeu-lhe um objecto, que Victoria agarrou entre as suas mãos como se fosse o tesouro mais valioso do mundo.

- É um livro...

- Não exactamente. Abre-o.

Victoria obedeceu, descobrindo então que as páginas estavam em branco. Olhou para ele com mais atenção. Na realidade era um caderno, embora tivesse muitas páginas e a capa fosse dura, imitando o estilo dos livros antigos.

- Sei que gostas de escrever - disse Christian. - Costumavas ter um diário quando vivias com a tua avó.

Victoria perguntou-se como é que ele o sabia. Nunca o tinha contado a ninguém. Então lembrou-se da época em que o shek andara a espiá-la na sombra. Ficou a pensar em quantas coisas mais teria descoberto na altura e recordou-se da pasta que permanecia no estúdio e que ainda não se atrevera a abrir.

- Trouxe-to porque pensei que sentias falta disso. Refiro-me a escrever. Podes continuar o teu diário neste caderno ou podes usá-lo para contar tudo o que nos aconteceu, tanto na Terra como em Idhún. O que achares melhor.

Victoria estreitou o caderno contra o peito. Christian podia ter-lhe oferecido qualquer outra coisa e, se lhe tivesse perguntado antes, provavelmente ela nem se teria lembrado daquilo. Contudo, agora que o tinha nas mãos, sentia que na verdade não havia outro presente que pudesse apreciar mais. Pensou, por um momento, que Christian não costumava dar-lhe o que queria; mas sim o que precisava.

- Muito obrigada - respondeu. - Acho que o vou usar para pôr por escrito todas as nossas aventuras. Para futuras gerações - riu-se -, mas, sobretudo, para que eu não o esqueça. Vai ser bom para ordenar as minhas ideias. Se puser por escrito tudo o que aprendi em todo este tempo, pode ser que até lhe encontre algum sentido - brincou.

Christian sorriu.

- Fico contente por teres gostado.

Olhou para ela enquanto pousava o caderno sobre a mesinha. Afastou-lhe o cabelo da cara para a ver melhor. Ao sentir o seu contacto, Victoria ergueu os olhos para ele, com o coração a bater com força.

- É tarde - disse o shek passado um pouco. - E eu não tinha intenção de te acordar. Continua a dormir...

- Se vais estar aqui, prefiro ficar acordada - respondeu ela com rapidez. - É que, se adormecer, quando acordar não estarás comigo e não sei quando vou voltar a ver-te.

- Eu ia dormir. Tu podes ficar acordada, se quiseres. Ela olhou para ele, desarmada.

- Ah... nesse caso...

- Dorme. vou ficar contigo esta noite.

Victoria deitou-se de novo, um pouco renitente. Christian deitou-se ao seu lado e rodeou-lhe a cintura com os braços. Victoria sentiu-o atrás de si, tão próximo que notava a sua respiração na nuca. Respirou fundo, desfrutando do momento.

- Boa noite - disse em voz baixa.

- Boa noite, linda - respondeu ele.

Quando acordou, acabava de amanhecer e Christian se já tinha ido embora. No entanto, ela percebeu algo da sua essência no quarto. Apalpou a almofada, ao seu lado, e sorriu ao compreender que acabava de ir. Tinha realmente passado a noite junto dela.

Soergueu-se, meditabunda. Não entendia o que estava a acontecer e não sabia se a relação entre eles ia bem ou se arrefecera. Depois dos momentos íntimos que tinham partilhado há duas noites, Victoria supusera que estavam mais unidos do que nunca. Mas Christian continuava a comportar-se com ela de forma um tanto indiferente e passava a maior parte do tempo no Japão, com Shizuko.

Victoria não era ingénua a ponto de não perceber que Shizuko era importante para ele, mas não queria tirar conclusões precipitadas. Ela mesma amava Jack intensamente e isso não significava que não sentisse nada por Christian. E vice-versa.

Abanou a cabeça, procurando afastar aqueles pensamentos da mente.

Dirigiu-se à cozinha para preparar o pequeno-almoço. Quando foi à despensa à procura de alguma coisa para comer, descobriu algo que não estava ali no dia anterior: dois frascos, um de cacau e outro de café. Além disso, tratava-se das marcas que ela costumava tomar quando vivia com a avó. "Como os conseguiu?", perguntou-se, perplexa. "E, mais ainda... como soube?"

Sorrindo, espreguiçou-se para acordar e preparou um pouco de café com leite e uma torrada. Depois moveu o sofá para o colocar junto à janela, deixou o pequeno-almoço numa bandeja ali perto e foi buscar o diário que Christian lhe oferecera e uma esferográfica ao estúdio. Acomodou-se no sofá, abriu o caderno, ficou um momento pensativa e começou a escrever.

 

             O ÚLTIMO VISIONÁRIO

A caravana deslizava indolentemente pelas areias de Kash-Tar, sob o calor abrasador dos três sóis. Os carros, puxados por torkas, enormes lagartos do deserto, avançavam

com lentidão. Os torkas, preguiçosos por natureza, não tinham pressa, e os seus amos não os fustigavam. Eram condutores experientes e sabiam que, se os fizessem correr, acabariam por parar, exaustos, fechariam os olhos e não haveria quem pudesse pô-los em marcha novamente. As viagens das caravanas eram morosas e exasperantes; mas o torka era o melhor animal de tracção que tinham em Kash-Tar: forte, dócil e resistente. Os mercadores veteranos costumavam dizer que os torkas eram um presente de Aldun para que os yan aprendessem através deles a paciência que o seu deus não lhes outorgara ao criá-los.

Por fim, avistaram ao longe a silhueta das árvores do oásis. Os torkas aceleraram a marcha sem necessidade de serem fustigados: sabiam que, quando chegassem, poderiam deixar-se cair à sombra, fechar os olhos e dormir durante muito, muito tempo.

Contudo, nenhum dos torkas se atreveu a adiantar-se ao carro que guiava a caravana. Sabiam muito bem o que aconteceria se o fizessem.

Nos limites do oásis, esperava-os um grupo de homens-serpentes armados. Um controlo de rotina. Como os mercadores passavam por eles há anos, já estavam habituados. Embora se soubesse que as terras do Norte se tinham libertado do jugo das serpentes, em Kash-Tar tudo continuava mais ou menos como sempre.

Mais ou menos.

O guia parou o carro junto àquele que parecia ser o capitão da patrulha. O lagarto deixou escapar um agudo som gutural, frustrado, mas parou, obediente.

- Sssaudaçõesss, mercador - disse o capitão.

- Saudações - respondeu ele.

Sabia o que lhe iam perguntar, por isso tinha as respostas preparadas. Porém, também sabia que não devia dá-las todas ao mesmo tempo, tendo de responder às perguntas uma a uma. Os szish tinham adoptado o hábito de não deixar os yan falar durante muito tempo seguido, porque não os entendiam. Os habitantes do deserto costumavam falar com tal rapidez que não separavam as palavras. Assim, o melhor que se podia fazer era formular perguntas às quais pudessem dar respostas curtas e simples. A rotina repetiu-se, uma vez mais.

- Nome.

- Kit-BakdeNin.

- Origem.

- Lumbak.

- Dessstino.

- Dyan.

- Mercadoria.

-TelasdospovosnómadaseartesanatolimyatiparaCelestia.Missangas ecoisasdogénero.

- Que tipo de "coisssasss do género"? - indagou o szish, franzindo o sobrolho.

A voz do mercador yan ficava sufocada pelo pano que cobria o seu rosto, e só os seus olhos, avermelhados e ardentes como carvões em brasa, podiam dar-lhe uma pista acerca do seu estado de espírito. E aqueles olhos cravavam-se nele com um descaramento que o deveriam ter feito suspeitar. Porém, o capitão szish nunca simpatizara com os yan, os sangues mais quentes de todas as raças sangues-quentes. E tinha ouvido falar de Kit-Bak de Nin, um respeitado mercador que nunca dera problemas às serpentes.

Contudo...

- Coisasdemulheres - respondeu velozmente o yan. - Adornos simplesebaratos.Paraocabelo.ospulsoseostornozelos.Nadaimportante.

- Então por que razão te dásss ao trabalho de osss negociar? - indagou o capitão.

Outro dos torkas lançou um queixume lastimoso. Os preliminares estavam a prolongar-se demasiado.

-Sãobaratos.Emuitasmulheresacham-nosbonitos.Mulheresquenão podemcomprarasjóiasdeRaheld.

O szish observou-o com alguma desconfiança. O yan devolveu-lhe um olhar sereno.

- bom - assentiu por fim. - Podem ficar até ao primeiro amanhecer. Voltou-se e fez sinal aos guardas para que abrissem o portão. Os dois contemplaram, em silêncio, a caravana que se punha lentamente em marcha até alcançar a muralha.

- Acomodem-ssse como puderem - disse o homem-serpente. - Não há muito essspaço em volta da lagoa. Temosss já outra caravana a dessscansssar no oásssisss...

Interrompeu-se, porque teve a sensação, completamente irracional, de que o mercador sorria de forma sinistra sob o lenço que tapava o seu rosto.

- Eusei - limitou-se a dizer.

E, veloz como um relâmpago, introduziu as mãos dentro da sua roupa folgada e extraiu dois enormes machados de debaixo da capa. com um movimento rápido e enérgico, enquanto lançava o grito de guerra dos yan, deixou cair os machados sobre o corpo do capitão, traçando um enorme e sangrento X no seu peito. O szish caiu para trás, morto antes de tocar o chão, e o yan, saltando do assento de forma impressionante, caiu no meio da patrulha dos homens-serpentes. Junto dele apareceram vários outros guerreiros, emergindo dos carros da caravana, empunhando diferentes armas e proferindo gritos selvagens.

- Rebeldesss! Rebeldesss! - alertaram os szish.

Apressaram-se a defender-se e em breve os limites do oásis se tornaram num campo de batalha. Mas não havia quem parasse o yan dos dois machados. Rodava sobre si mesmo como um raio infernal, descarregando as armas, massacrando os oponentes, tingindo de vermelho as areias do deserto. Um dos szish foi suficientemente hábil para retroceder quando o chefe yan saltou sobre ele e o impulso do salto lhe deixou a descoberto os braços morenos, tatuados com espirais vermelhas. O homem-serpente conhecia aquela marca.

- Gossser! - exclamou, com uma nota de terror reverencial na voz. Aquela palavra foi a última que pronunciou.

Mais szish tinham aparecido para apoiar os seus companheiros, mas os yan eram imparáveis e os dois machados de Goser, o seu mortífero líder, dançavam tingidos do frio sangue de serpente.

Contudo, subitamente, a temperatura do ambiente pareceu descer um pouco, e uma sombra cobriu os combatentes.

- Shek! - gritou Goser num tom potente.

Os yan pegaram nas suas bestas e apontaram-nas para a grande serpente alada que os sobrevoava. Sabiam que aquelas armas eram ridículas para lutar contra os sheks, mas Goser não se amedrontou. com um novo grito de guerra, lançou no ar um dos seus machados, com toda a força de que foi capaz. A arma deu duas voltas sobre si mesma e chegou a alcançar uma das asas da serpente, produzindo nela um pequeno rasgão. Esta guinchou, mais de fúria do que de dor, e desceu a pique sobre ele.

O machado caiu de novo no chão, enterrando-se na areia, perto de Goser. Mas ele não lhe prestou atenção. Já erguia o seu outro machado com ambas as mãos e aguardava o shek, que descia por entre uma chuva de flechas com a boca aberta, mostrando as presas.

Quando chegou suficientemente perto, Goser lançou o machado; desta vez alcançou o escorregadio corpo da serpente, que tornou a emitir um guincho de surpresa e voltou a subir. com um movimento ágil desfez-se do machado, que ficara cravado nas suas escamas, sem chegar a causar-lhe verdadeiras lesões. Goser dedicou-lhe um grito de desafio, mas a sua gente já se tinha abrigado debaixo dos carros, disparando dali. Não tinham a menor intenção de imitar a coragem suicida do seu líder, e ele também não estava à espera disso. Os yan eram uma raça que sabia cuidar melhor de si mesma do que dos outros.

O shek deu duas voltas sobre eles, mas não desceu. Os yan aguardaram, inquietos. Goser gritou-lhe outra vez, mas a serpente não lhe prestou atenção.

Algo se aproximava vindo de norte, nove sombras que voavam na direcção deles. Os yan olharam uns para os outros: se fossem mais sheks, estavam perdidos.

O shek deixou escapar um novo guincho, um guincho que lhes gelou o sangue nas veias, porque estava impregnado de um ódio obscuro e insondável e, ao mesmo tempo, de uma alegria selvagem. Esquecendo-se dos yan rebeldes, lançou-se de cabeça para as nove figuras que se aproximavam, vindas do horizonte.

Goser recuperou os seus dois machados e observou a cena com interesse. De seguida, montou de um salto um dos torkas, cortou as cilhas com uma machadada e esporeou-o com violência. O animal, sobressaltado, saiu a correr.

Momentos depois, o líder dos rebeldes yan contemplava uma cena assustadora.

Nove dragões acossavam o shek, atacando-o por todos os lados, fustigando-o com fogo, garras e dentes. A criatura devia dar meia-volta e escapar, porque não tinha a mínima hipótese de sair dali viva. E até parecia que se esforçava por fugir da batalha; mas algo a impelia a ondular o seu longuíssimo corpo e a acometer contra os dragões, uma vez e outra, com um entusiasmo sinistro. Montado no torka, que se deitara na areia e já tinha fechado os olhos a dormitar, Goser contemplou a absurda e trágica morte do shek, mas não a lamentou. Na realidade, os seus olhos de fogo estavam fixos nos dragões, contemplando-os com fervor e emoção. O dragão negro que fazia piruetas impossíveis; a fêmea de dragão vermelha que combatia com ferocidade; os dois dragões alaranjados que pareciam gémeos e lutavam a par; um bonito dragão de tons ocres, pequeno, mas rápido, que voava como uma flecha em volta do shek. Havia mais, mas Goser deixou de os enumerar. Eram todos tão belos... eram perfeitos.

Quando o cadáver do shek caiu estrepitosamente no chão, levantando uma nuvem de areia, Goser não se mexeu, embora o torka tivesse aberto os olhos, sobressaltado. Os dragões prosseguiram o seu voo, mas começavam a descer, e Goser concluiu que pousariam no oásis. Esporeou o torka, que se negou a mexer-se. O líder yan não se rendeu. Voltou a cravar os calcanhares nos flancos do animal, emitindo o seu potente grito de guerra, e o lagarto saiu disparado, morto de medo.

O oásis era deles. Os yan saquearam a caravana que descansava ali e apropriaram-se das armas que transportava, fabricadas em Nandelt, que já não chegariam às mãos da gente de Sussh, o shek que governava Kash-Tar. Goser, contudo, não participou na divisão do saque. Não pensava desfazer-se dos seus machados e, além disso, a caravana já não lhe interessava. A única coisa verdadeiramente importante eram os nove dragões que tinham pousado junto à lagoa.

Não se surpreendeu ao ver sair deles nove pessoas, o feitiço ilusório a desvanecer-se e os dragões a recuperarem o seu verdadeiro aspecto: máquinas de madeira construídas pelos humanos. Tinha ouvido falar dos dragões artificiais e dos rumores de que os homens de Nandelt enviariam algumas dessas máquinas para ajudar os rebeldes de Kash-Tar. Porém, não conseguiu evitar que a decepção se apoderasse do seu coração. Por um momento, chegara a sonhar que eram verdadeiros e que os Senhores de Awinor haviam regressado.

Goser limitou-se a observar os recém-chegados de longe, até que alguém reparou na sua presença. Era um humano alto e robusto, com uma longa barba castanha. Dirigiu-se a ele, e Goser abandonou a sombra das árvores para ir ao seu encontro. Supunha que aquele humano seria o líder da expedição. Goser era bastante alto para um yan, gente geralmente de baixa estatura. Mesmo assim, aquele humano era mais alto do que ele pelo menos duas cabeças. Porém, agora que estavam frente a frente, ninguém saberia dizer qual dos dois era mais impressionante: se o imponente semibárbaro, de barba entrançada e olhos bicolores, ou o rebelde yan, com os seus dois machados cruzados às costas e os braços à frente do peito, mostrando uma pele coberta de tatuagens vermelhas. Goser cravou o seu olhar de fogo no estrangeiro.

- Olá - cumprimentou este, com um sorriso rasgado. - Creio que nos perdemos. Vamos em direcção a Bombak, Bumbak ou algo parecido. Coçou a cabeça com ar desconcertado. - O deserto é todo igual. Enfim, parece que vos livrámos de apuros! Só espero que não haja mais serpentes por aqui. Não é que não nos apeteça um pouco de acção, mas estamos ligeiramente cansados... e os dragões perderam muita magia. Este sítio veio mesmo a calhar. A propósito, chamo-me Rando.

- EusouGoser.OSolQueQueimaasSerpentes.

Rando pestanejou, desorientado.

- Desculpa? Não percebi, falas demasiado depressa. E tens um nome muito comprido!

Alguém o afastou com impaciência.

- Sai daqui, antes que digas algo que nos ponha em trabalhos. Coser deparou-se com uns bonitos olhos avermelhados, semelhantes

aos olhos de um yan, mas de um tom mais apagado.

- SaudaçõesGoser - disse ela. - Seprocurasolíderdanossafrota, escusasdefalarcomele.OmeunomeéKimara,asemi-yan.

Goser assentiu.

-AQueViuaLuznaEscuridão.Ouvifalardeti.Mestiça.Dizemquetefoiconcedidoodomdamagia.ComohámuitotempoqueninguémtevêemKash-Tar,constaquetinhasabandonadooteupovo.

Kimara cerrou os punhos.

- Nuncavosabandonei - replicou. - FuiparaNandeltparaaprender ausaromeupoder.

- Eaprendeste?

-Nãomuito.Ométododeensinodoshumanospareceu-medemasiadolento.Demodoquemecanseiedecidiregressar.Osdragõesquevêmcomigo lutarãopelaliberdadedeKash-Tar.

Goser sorriu.

-Aquinãotefaltaráacçãosemi-yan.Viesteaolugarcerto.Esbem-vindaentrenós.

Lentamente, retirou o pano da cara e mostrou as suas feições, um rosto emoldurado por uma emaranhada cabeleira de tranças negras. Kimara já tinha reparado nos seus braços tatuados, mas não estava à espera de que as suas faces e testa também ostentassem três cintilantes espirais vermelhas, o desenho dos três sóis de Idhún. E, entre elas, os seus grandes olhos avermelhados brilhavam com o poder do fogo do deserto.

Kimara, impressionada, descobriu também o seu rosto. Os dois fitaram-se longamente.

- Bem-vindaacasa.Kimara - disse Goser.

Naquela tarde, Ydeon recebeu visitas. Na realidade, como não estava à espera de ninguém, não saiu para as receber nem as ouviu chegar, até que alguém lhe chamou a atenção à entrada da sua forja, gritando para se fazer ouvir por cima do barulho do martelo. O gigante voltou-se, intrigado. Eram três humanos: conhecia um, os outros dois, não.

- Boa tarde! - saudou Shail, sorrindo. - Vim cumprir a minha promessa.

Ydeon deixou o martelo e coçou a cabeça.

- De que promessa...? - começou, mas emudeceu de repente ao reparar no rapaz que tinha entrado com o feiticeiro e que olhava à sua volta com curiosidade.

Shail apontou para ele com um gesto pomposo:

- Eis Jack, também conhecido como Yandrak. O último dragão.

O jovem e o gigante estudaram-se. Ultimamente, poucas pessoas conseguiam intimidar Jack, contudo, Ydeon inspirava nele um profundo respeito, mesmo antes de o conhecer, desde que Christian lhe falara dele. Aquele era o forjador de armas míticas, o criador de Domivat, a espada de fogo. Há muito tempo, na sala de armas de Limbhad, reparara naquela espada. Tinham-lhe dito que era perigosa, mas isso só fizera com que a desejasse ainda mais. Nem lhe passara pela cabeça que um dia iria conhecer a pessoa que a tinha forjado.

Shail dissera-lhe pelo caminho que Ydeon expressara o seu desejo de conhecer o jovem. Assim, Jack sentiu que estava a viver um momento importante, solene. Susteve com determinação o olhar inquiridor do gigante, até que este comentou:

- Pensava que os dragões tinham três olhos.

Jack não soube bem como reagir àquela afirmação. Presumiu que se tratava de uma mostra do sentido de humor peculiar dos gigantes.

- Foste tu que forjaste Domivat - disse-lhe. Ydeon assentiu.

- Há muito tempo. Na altura, nem sequer tinhas nascido. No entanto, essa espada foi forjada para ti.

Jack ficou confuso.

- Como pôde ser forjada para mim, se ainda não tinha nascido? Ydeon riu entre dentes.

- Pega nela - pediu-lhe.

Jack extraiu Domivat da bainha. Os três observaram, maravilhados, as chamas que lambiam o seu fio.

- É linda! - opinou Ydeon; todos perceberam claramente o tremor da sua voz e viram as lágrimas nos seus olhos avermelhados.

Jack estendeu-lhe a espada, solícito.

- Queres pegar nela?

Ydeon retrocedeu, abanando a cabeça.

- Ninguém no mundo pode empunhá-la, a não ser tu. Nem mesmo eu.

- Então, como conseguiste forjá-la? - perguntou Jack, desconcertado.

- É uma longa história.

- Nesse caso - interveio Shail -, agradecia que a contasses quando estivermos aconchegados junto ao fogo, se não for incómodo.

- Há muito tempo - começou o gigante, enquanto os três visitantes sorviam com cuidado a sopa quente das suas tigelas - há dois séculos, talvez três, um dragão veio visitar-me. Era demasiado grande para chegar ao fundo da minha caverna, de modo que ficou nos túneis exteriores e me chamou de lá.

" Como é óbvio, eu nunca tinha visto um dragão, porque os dragões não costumavam sobrevoar Nanhai. A primeira coisa que me passou pela cabeça ao vê-lo foi que se tinha perdido. Então ele perguntou-me se eu era Ydeon, o forjador de espadas. Respondi-lhe que sim. Disse-me que eu tinha de lhe forjar uma espada e... quem se atreve a contradizer um dragão?

- Nem mesmo um gigante? - perguntou Jack, sorrindo.

- Nem mesmo um gigante, rapaz. "Senhor", disse-lhe, "como te vou forjar uma espada? com todo o respeito... como vais empunhá-la?" O dragão afirmou então que a espada não estava destinada a ser empunhada por ele. "No futuro", revelou, "nascerá um menino humano que possuirá o poder do dragão. Está destinado a fazer grandes feitos, mas nessa altura já não existirei e ninguém da minha estirpe será capaz de o ajudar. Essa espada é para ele. Será a espada a guiá-lo no seu caminho e a ajudá-lo na sua missão com a força de todos os dragões que vivem hoje no mundo."

" Como compreendem, pareceu-me não ser possível satisfazer a sua encomenda. Os meus trabalhos eram apreciados em todo o continente, mas nunca me tinha passado pela cabeça que um dia faria algo digno dos próprios dragões. Mesmo assim, perguntei-lhe como deveria forjar essa espada tão singular, já que, para ser mágica, íamos precisar de um feiticeiro que lhe outorgasse o seu poder. "Não será necessário", foi a resposta. "Então, quem a dotará do poder de que falas?", questionei. "Eu mesmo", retorquiu ele.

" Érea esteve cheia duas vezes antes de eu terminar a espada. Forjei-a com o material com que fabricava todas as espadas mágicas. Adornei o seu punho com figuras de dragões, utilizando para os olhos rubis das cavernas mais profundas. A espada era do tamanho adequado a um humano, pelo que passei muitos dias e muitas noites inclinado perto do fogo, a traçar todos os pormenores do molde, com bastante paciência e infinito cuidado. Foi a única altura em que lamentei ser um gigante, pois os meus dedos eram demasiado grandes para modelar àquela escala tudo o que tinha em mente.

" Durante todo esse tempo, o dragão esteve a dormir numa das cavernas grandes da cordilheira. Não me apressou em nenhum momento, nem veio ter comigo para me perguntar quando a teria terminada nem para supervisionar o meu trabalho. Quando finalmente acabei a espada, fui vê-lo.

" Limitou-se a abrir um olho e a olhar para mim com curiosidade. "Tens a espada?", perguntou. "Sim, senhor", respondi. "E a bainha?", indagou. Confessei que ainda não a tinha feito. "Antes assim", respondeu, "porque tem de ser uma bainha especial, que suporte qualquer tipo de fogo. Que não queime ao toque mesmo depois de ter sido deixada durante dias e dias entre as chamas."

" Aquilo não era assim tão simples. Consultei outros gigantes, por todo o Nanhai, mas ninguém tinha ouvido falar de um material semelhante. Foram necessários muitos meses de intenso trabalho a experimentar diferentes ligas até que, por fim, demos com a fórmula adequada. Se me pedissem para voltar a fundir algo semelhante, não saberia fazê-lo. Julgo que Karevan me inspirou naquele dia, uma vez que a bainha, ao arrefecer, não tornou a aquecer.

" Fui ter novamente com o dragão e apresentei-lhe o meu trabalho. Abriu os olhos. "Magnífico", disse. "Dá-ma." Estendi-lhe a espada e ele susteve-a entre as garras, com o fio virado para cima. Pediu que me afastasse e, de seguida, exalou o seu fogo sobre o fio, protegendo o punho para não o fundir. Continuou a submetê-la implacavelmente ao seu fogo, durante toda a noite... e quando por fim, extenuado, apagou a sua chama... a espada já não era uma espada normal. Tinha o halo das espadas míticas.

" "Agora já não podes pegar nela", avisou-me. "Se tentares, arderás como uma acha. Por isso precisávamos da bainha ignífuga." Perguntei-lhe então se ia pôr um nome à espada. É costume as melhores espadas terem um e disse-lho, porque não tinha muita certeza de que os dragões estivessem ao corrente desta questão. A criatura ficou a olhar para a espada durante bastante tempo e depois comunicou-me que se chamaria Domivat.

" "Domivat?", repeti. "O que significa?" "Nada em particular", respondeu ele. "Então, que tipo de nome é esse?", perguntei eu. O dragão ficou a olhar para mim e depois disse, mostrando todos os seus dentes num sorriso mordaz: "Domivat sou eu. É o meu nome."

Jack lançou uma exclamação sufocada e contemplou a sua espada com um novo respeito. Ydeon sorriu e prosseguiu:

- "Esta espada tem o meu fogo", acrescentou o dragão. "Quando eu morrer, terá parte do meu espírito. Por isso, de certa forma, esta espada é parte de mim, diria mesmo que sou eu." Reflecti sobre o que me disse durante um bom bocado e depois perguntei-lhe qual era o sentido de forjar uma espada que ninguém podia empunhar. "Como te disse, um dia chegará alguém que poderá empunhá-la, porque esta espada foi forjada para ele", respondeu o dragão. "Até lá, tens de a deixar solta por aí. Entrega-a aos homens de Nandelt e eles que façam com ela o que quiserem: que a levem daqui para ali, que a guardem como lhes parecer melhor... não importa, porque, mais cedo ou mais tarde, a espada encontrará o seu dono." Doeu-me a ideia de abandonar aquela magnífica espada à sua sorte, de não voltar a vê-la nunca mais. Mas o dragão prometeu-me que um dia a espada regressaria a mim, por intermédio daquele que estava destinado a brandi-la. "Quando chegar esse momento", disse-me, "quero que lhe transmitas uma mensagem da minha parte."

Jack ergueu-se, atento, com o coração a bater descompassadamente. Ydeon cravou nele um olhar carregado de gravidade.

- Esta é a mensagem que me deu para ti: "A nossa estirpe vive através de ti, Yandrak. E isso quer dizer que não morremos e que não morreremos enquanto houver um

só dragão a sulcar os céus de Idhún. Mas estás condenado a travar a última guerra por todos nós; depende de ti escolher as batalhas correctas. Não tenhas medo, não duvides. Há algo ainda mais poderoso do que o instinto, que é o coração. É aí que está a nossa força. Usa-a bem e serás livre. E contigo, todos nós."

Ydeon calou-se. Jack não disse nada. Contemplava as chamas com uma expressão pétrea e um estranho brilho no olhar.

- Não entendi as suas palavras - prosseguiu o gigante -, mas fez-me repeti-las até se assegurar de que as tinha memorizado. Não as esqueci.

Jack levantou-se bruscamente e saiu da sala. Todos puderam ver que tinha os olhos húmidos.

- O que é que ele tem?

Shail meneou a cabeça e sorriu.

- Acho que no fundo não tinha uma boa imagem dos dragões - disse -, apesar de ser um deles, e isso era algo que lhe estava a fazer muito mal. Devolveste-lhe a fé na sua raça. Agradeço-te por isso.

- Mas como sabia? - perguntou então, do fundo da sala, uma voz rouca. - Como sabia esse dragão tudo o que ia acontecer?

Voltaram-se ambos, um pouco surpreendidos. Era Alexander quem acabara de falar. Tinha saído do seu mutismo habitual para olhar para o gigante com um semblante sério.

- Não sei - respondeu Ydeon. - E o certo é que durante muito tempo duvidei das suas palavras, sobretudo quando perdi a espada de vista. Pensei que tinha sido destruída...

- Ainda me lembro da cara que Jack fez quando viu Domivat pela primeira vez - disse Alexander, pensativo. - Nunca imaginei que tivesse estado à espera dele desde sempre; embora isso seja, no fim de contas, o que costuma acontecer com quase todas as armas míticas.

Shail olhou fixamente para ele.

- E tu? - perguntou-lhe. - Estás bem?

Alexander desviou o olhar, mas depois ergueu novamente a cabeça e voltou-se para o gigante.

- Poderá uma espada forjada para lutar pela justiça ser empunhada por alguém ignóbil... por um criminoso, talvez? - indagou.

- Depende da espada.

Obedecendo a um impulso, Alexander levantou-se de rompante e desembainhou Sumlaris. Os olhos de Ydeon brilharam com interesse.

- Também forjaste Sumlaris? - perguntou Shail.

- Não - respondeu ele, examinando-a mais de perto. - Esta não é minha. Mas reconheço-lhe a origem. Mestre Galdis de Namre. Costumava forjar espadas para os cavaleiros de Nurgon há cem anos. Boas espadas, sem dúvida. Era tão considerado que até conseguiu impingir-lhes algumas espadas mágicas, apesar de os cavaleiros não serem amigos de utilizar objectos encantados. Mas o próprio Galdis tinha sido cavaleiro... Ah, mas esta espada não libertou ainda todo o seu poder - acrescentou de repente, estudando o seu fio com ar de especialista. - Está meio adormecida.

- O que quer isso dizer? - perguntou Alexander.

- Quer dizer que também tu estás meio adormecido, ou, sendo mais específico, que ainda não te tornaste completamente o bom cavaleiro que podes vir a ser. Quer dizer que tens de desenvolver todas as qualidades que a própria espada considera imprescindíveis para que te convertas no seu dono perfeito. Mas tens essas qualidades e a espada sabe-o; caso contrário, há muito que terias notado que não és do seu agrado.

Alexander tornou a sentar-se, impressionado, e contemplou o fio da sua espada em silêncio. Shail ficou a olhar para ele por um momento e de seguida voltou-se de novo para Ydeon.

- Agora é a minha vez - disse, sorrindo. - Também preciso de uma consulta.

- Sobre a tua perna? O feiticeiro assentiu.

- Há uns dias que me está a dar problemas. Parece-me que a minha magia não basta para a manter no sítio.

Ydeon examinou a perna artificial que Shail lhe mostrava, franzindo o sobrolho.

- Talvez a tua magia varie - supôs.

- E o que é que isso significa?

- Que a própria perna se cansa de estar viva. A magia dos feiticeiros não é estável, porque é uma magia emprestada, não nasceram com ela.

Por isso, quando a usam muito, cansam-se e precisam de repousar até se retemperarem. O poder de um feiticeiro não é inesgotável.

" Isso não é problemático no caso das espadas míticas, porque geralmente elas passam muito tempo adormecidas; todo o tempo em que o seu dono não as está a empunhar, para sermos mais exactos. O tempo em que permanecem na bainha.

" Já a tua perna não se pode dar a esse luxo. Se o fizer, desprende-se do resto do corpo.

- Sim, isso eu sei - assentiu Shail. - É por isso que uso o medalhão de pedra minca.

- Mas se bem te lembras tu próprio referiste que às vezes este tipo de amuletos falha.

É esse o motivo. Tu estás a usar a tua magia permanentemente, até mesmo quando

dormes, e isso esgota-te, embora não te apercebas. Assim, a pedra minca, que acumula parte da tua energia mágica para usares quando não estás consciente, obtém cada

vez menos poder. Estás a esgotar-te, Shail.

O feiticeiro deixou-se cair sobre o banco, aturdido.

- Então o que posso fazer? - murmurou. Ydeon abanou a cabeça.

- Podes obter outra fonte de poder. Ou podes dotar a tua perna de uma energia maior e inesgotável, superior à que ela pode conseguir da tua própria magia. Já falámos disto uma vez e acho que não te esqueceste.

- Não - reconheceu Shail em voz baixa.

- Pensa nisso - concluiu o gigante.

- Não tenho muito tempo para pensar - respondeu o feiticeiro -, pois amanhã partiremos ao primeiro amanhecer. Na realidade, estamos apenas de passagem.

Tencionavam falar com Gaedalu, em Celestia ou em Gantadd, onde quer que se encontrasse, e com Ha-Din, em Awa. Ambos tinham estado presentes na Primeira Profecia e conhecido Manua, a ouvinte do Grande Oráculo. Talvez pudessem dar-lhes uma pista sobre o seu paradeiro.

- Bem - disse Ydeon. - Então, tens toda a noite para pensar nisso.

- Não leves isso tão à letra - disse Alexander.

Jack não respondeu. Continuava a olhar para o brilho irisado da caldeira de lava, com uma expressão séria.

Era bastante tarde e os três tinham-se acomodado nas respectivas enxergas, na sala principal, onde Ydeon lhes tinha cedido espaço para passar a noite. Tinham-se envolvido em peles e apagado as tochas, de modo que só o suave brilho do poço de lava iluminava a divisão. Porém, nenhum deles conseguia dormir.

- O facto de os dragões terem previsto tudo isto e preparado uma espada para ti não significa que sejas obrigado a vingá-los ou qualquer coisa do género - prosseguiu Alexander. - Não creio que Domivat quisesse descarregar essa responsabilidade sobre os teus ombros.

- Mas, indirectamente, fê-lo - replicou Jack. - Não sei se é suposto vingá-los ou não, mas eles querem que faça alguma coisa. E um dragão capaz de prever tudo o que ia acontecer, um dragão que sabia que a sua raça ia ser exterminada dois séculos antes de isso suceder, devia saber também o que aconteceria quando acabássemos com Ashran. Então, porque não disse nada a esse respeito; porque não tentou impedir tudo o que aconteceu? E mais importante ainda... como sabia?

- Estive a pensar nisso - disse Shail a meia-voz. - Esta manhã, Ydeon comentou algo muito estranho quando te viu, Jack. Lembras-te? "Pensava que os dragões tinham três olhos."

- Sim - assentiu o jovem. - Mas não sei a que propósito disse isso.

- Bem, a verdade é que me fez lembrar uma lenda antiga sobre dragões que talvez o explique. Conta que uma vez existiu um dragão que se apaixonou pelas luas.

- Pelas luas? Shail assentiu.

- Dizem que passava as noites em claro, a olhar para as luas, e por isso dormia durante o dia. Os dragões são criaturas diurnas, pelo que o seu comportamento não deixava de chamar a atenção entre os seus, e depressa correu o rumor de que estava louco.

" No entanto, aquele dragão não se importava com o que os outros diziam. Continuava a levantar os olhos para o céu estrelado, noite após noite, bebendo da luz das

luas, aprendendo as suas formas e os seus matizes... e, assim, em breve começou a questionar-se. Perguntava-se se era verdade que os deuses viviam nas luas e porque o fariam; e por que razão os dragões e as outras criaturas habitavam em Idhún em vez de lá em cima, se algum dia a sua raça poderia voar até Érea para se juntar a eles. " Formulou aquelas mesmas perguntas a outros membros do seu clã, mas nenhum dragão lhe deu uma resposta satisfatória. Os dragões estavam em Idhún para cuidar das seis raças e lutar contra a sétima, mas ninguém sabia se os deuses regressariam algum dia para os ajudar ou se deviam ser eles a ir ao seu encontro... Assim, uma noite, uma noite em que as três luas brilhavam cheias e estavam mais belas do que nunca, o dragão decidiu que ele próprio iria perguntar aos deuses se tudo aquilo tinha um sentido.

" De modo que levantou voo, elevando-se em direcção às luas. Voou durante toda a noite. Subiu e subiu tudo o que pôde, até que o primeiro amanhecer o surpreendeu e esbateu os contornos das luas no céu até as tornar invisíveis. Mas o dragão não desistiu e continuou a elevar-se, com uma fé inabalável.

" Os deuses viram-no chegar e tentaram travá-lo, tornando a sua viagem cada vez mais penosa. Primeiro atacaram-no com frio, depois deixaram-no quase sem ar... mas o dragão continuava a subir, e a subir, e, quando a noite tornou a cobrir o mundo com o seu manto, as luas estavam muito mais próximas e pareciam muito maiores.

" Porém, chegou uma altura em que o dragão não pôde mais. Exausto, fechou os olhos e começou a cair.

" Em Érea, os deuses discutiam se deviam premiá-lo pela sua perseverança ou castigá-lo pela sua ousadia. "As duas coisas", disse Irial, com um sorriso enigmático.

" Quando o dragão abriu os olhos, jazia sobre o chão de Idhún, ileso. Os deuses tinham-lhe salvado a vida. No entanto, haviam alterado algo nele: já não tinha dois olhos, mas sim três, como as três luas que tanto amara. Os deuses abriram um terceiro olho na sua testa, por cima dos outros dois, para com ele ver coisas que tinham acontecido, coisas que estavam a acontecer e coisas que iriam acontecer.

" Regressou a Awinor e narrou a sua aventura; quando os dragões viram o terceiro olho e ouviram a sua história, acreditaram logo que aquilo era obra dos deuses. Passou então a ser visto como um sábio e as suas palavras foram ouvidas e tidas em grande consideração. Não obstante, ele não via o terceiro olho como um dom, porque não podia controlar as coisas que via e, pior de tudo, não podia mudá-las. Desta forma, como se limitava a ver, chamaram-lhe o Visionário.

" E conta a lenda que, no dia da sua morte, eclodiram os ovos de um casal de dragões e um dos recém-nascidos tinha um terceiro olho no meio da testa. E assim houve sempre um Visionário entre os dragões, pois, quando morria um, nascia o seguinte, continuando a estirpe de dragões sábios que regeu os destinos de Awinor desde então. Porém, nunca ninguém, excepto os outros dragões, viu um desses Visionários; eles preferiam permanecer nas suas cavernas, na escuridão, com os três olhos fechados, contemplando as imagens que a sua estranha percepção criava na sua mente... e procurando a maneira de mudar o destino.

- Caramba - conseguiu dizer Jack, após um longo, longo silêncio. Queres dizer que esse dragão... Domivat... podia ser o Visionário?

- Tudo aponta que sim; e isso quer dizer que essa lenda é muito mais do que uma lenda.

- O Visionário - murmurou Alexander, impressionado. - Se for verdade, já sabia que a sua raça se ia extinguir...

- Mas não pôde fazer nada, excepto ajudar a criar uma espada - suspirou Shail.

256

- Eu diria que isso já foi muito - opinou Alexander -, dado que essa espada salvou a vida a Jack mais de uma vez.

- Estava a pensar que - disse Jack de repente -, se morreu no dia da conjunção astral, como todos os outros dragões, nesse momento pode ter nascido o Visionário seguinte. Pode ter sido um dos meus irmãos. Posso ter sido eu - acrescentou, perplexo.

- Mas não és tu - respondeu Shail. - Só tens dois olhos, de modo que infelizmente parece que a estirpe dos Visionários morreu com o último deles.

- Ou pode ser que não tenha morrido de todo - murmurou Jack, contemplando a sua espada mítica, que dormia na bainha.

Assher acordou sobressaltado. Tinha tido um pesadelo, embora naquele momento os pormenores fossem confusos. Respirou fundo e decidiu sair para apanhar um pouco de ar.

Passou por entre os corpos adormecidos dos szish com os quais partilhava a tenda, tentando não os acordar. Foi lá para fora e parou por um instante sob o céu iluminado pelas três luas. Depois, começou a andar.

Era um simples passeio; pensava dar uma volta e regressar à tenda, mas os seus passos levaram-no até perto da árvore de Gerde.

No primeiro dia, os szish tinham oferecido uma tenda à fada. Mas Gerde olhara para ela com apreensão. Assher ouvira dizer que, ao vê-la, ela afirmara que ocupara um habitáculo como aquele durante uns tempos e não sentia o menor desejo de repetir a experiência. De modo que tinha feito crescer uma árvore.

No início, os homens-serpentes ficaram desorientados. Não conseguiam imaginar como era possível que alguém se sentisse mais confortável numa árvore do que numa tenda. Mas aquela árvore criou raízes e cresceu, formando entre os seus ramos e num vão do seu tronco amplos espaços quentes e acolhedores.

Gerde instalara-se lá. O tronco da árvore era quase tão largo como uma casa; as suas raízes estendiam-se por uma vasta área e constava que emergiam da terra para capturar os intrusos. Os seus ramos, longos e frondosos, formavam um véu vegetal que tapava a habitação quase por completo.

Assher deteve-se a uma distância prudente da árvore e olhou para ela, ainda maravilhado com a obra da fada.

Julgava que ela estava a dormir num dos recantos vegetais daquela casa viva, pelo que se sobressaltou quando sentiu junto de si um perfume floral e ouviu a voz da fada no seu ouvido.

- Não conseguias dormir? Assher tremeu dos pés à cabeça.

- Não, senhora. Lamento ter-te incomodado; já me ia embora.

- Não incomodas - sorriu ela. - Eu também não conseguia dormir. O jovem szish voltou-se para a olhar. Ao luar pareceu-lhe ainda mais bela. No entanto, o seu sorriso era estranho e o seu olhar tinha um travo de amargura.

- Estava a... a admirar a tua casa, senhora. É uma árvore magnífica.

- A sério? - ronronou ela. - Estou muito orgulhosa dela, mas espero poder abandoná-la em breve. Seria bom sinal.

Assher ficou sem resposta. Não tinha percebido o que Gerde queria dizer, mas não lho demonstrou, com medo de parecer estúpido.

- Mas os dias passam - suspirou a fada -, e o sinal de que estamos à espera não chega.

- Que tipo sinal? - atreveu-se ele a perguntar.

- Uma mensagem - foi a resposta. - Uma mensagem que nos confirme que há uma saída. Se nos fecharem essa saída, minha jovem serpente, o único remédio que teremos será dar meia-volta e lutar. E eles não terão tanta piedade como os dragões.

Assher olhou para ela, atónito. Nunca tinha ouvido dizer que os dragões, os seus ancestrais inimigos, fossem benevolentes. Gerde apercebeu-se do espanto dele e explicou:

- Os dragões expulsaram todas as serpentes de Idhún. Mataram muitas, é certo, e os szish foram os que mais sofreram. Mas a raça shek sobreviveu, porque os dragões resistiram ao ódio e limitaram-se a desterrá-la. Não a exterminaram.

Ashran, sim, fê-lo. Aniquilou todos os dragões, sem piedade. Talvez pensasse que com isso os nossos inimigos se dariam por vencidos e reconheceriam por fim o nosso direito a existir em Idhún. Mas para eles tinha deixado de ser um jogo, Assher.

Assher escutava com atenção, assimilando só metade. Gerde olhou para ele e sorriu.

- Sabias que Ashran teve nas suas mãos a vida do último dragão e que o deixou escapar?

Outra revelação surpreendente.

- Era um sangue-quente - disse, desdenhoso. - Não podia esperar-se outra coisa dele.

O sorriso de Gerde rasgou-se.

- Tinha medo, Assher. No início, acreditou que matando-os a todos daria por terminado esse jogo sangrento. Mas houve um que sobreviveu, apenas um; e os Seis esforçaram-se muito por o manter vivo. Ashran temeu que, se o matasse, os Seis se enfurecessem e interviessem pessoalmente. Julgou que, mantendo Yandrak vivo, lhes fazia crer que o jogo não tinha acabado. Que, enquanto um só dragão permanecesse vivo no mundo, os deuses considerariam que ainda tinham alguma hipótese de vencer.

Lamentavelmente, os Seis fizeram bem em apostar naquele dragão, que acabou por ser a perdição de Ashran. E os deuses não esperaram pelo fim do jogo. Ainda há sheks no mundo, ainda resta um dragão. Mas isso já não lhes importa. Detectaram o inimigo e vieram buscá-lo. Não tardarão a encontrá-lo.

" Nunca brinques com os deuses criadores, Assher. Não sabem perder.

Assher não fez comentários. Por instantes acreditou que ela estava a perder o juízo, mas afastou aqueles pensamentos da sua mente.

Permaneceram em silêncio até que Gerde se virou com brusquidão e olhou fixamente para ele.

- Assher - disse-lhe, com doçura. - O meu eleito. Amas-me? O rapaz ficou com a boca seca.

- Eu... - Engoliu em seco, com esforço.

- Podes ser franco, minha jovem serpente. Não espero menos de ti.

- Eu... eu... - tartamudeou Assher. - Pe-perdoa-me o atrevimento, senhora, mas... sim, amo-te.

Quando o disse sentiu-se muito melhor; mas foi imediatamente invadido pelo pânico ao ver troça ou desprezo nos olhos dela. Não se atreveu a levantar a cabeça, até que ouviu Gerde rir com suavidade.

- Assim está bem, Assher. Mas, diz-me... até que ponto me amas? Morrerias por mim?

O coração do szish acelerou. Ergueu a cabeça e fitou-a, extasiado.

- Sim, minha senhora. Eu... fá-lo-ia sem hesitar.

Ela sorriu e afagou-lhe o rosto, com uma certa ternura. Assher desejou beijá-la, mas não se atreveu. Gerde dissera que ele era demasiado jovem para ela e não queria fazer algo que pudesse aborrecê-la, afastando da sua mente a ideia de o aceitar posteriormente, quando fosse mais velho.

- Oxalá não tenha de chegar a isso - disse a fada. - Mas a hora chega para todos. E, sabes, eu não devia estar viva. Se estou aqui agora, é porque me foi concedida uma segunda oportunidade. Mas é uma vida emprestada, Assher, e mais cedo ou mais tarde terei de a devolver. Mesmo assim, será que há alguém suficientemente louco ou destemido para morrer por mim?

- Há quem te ame o suficiente - sussurrou o szish. - E é uma grande honra para mim ser essa pessoa, minha senhora.

Gerde sorriu.

- Vês? É por isso que és o meu eleito.

Aproximou-se mais dele e depositou-lhe um suave beijo nos lábios; foi muito ao de leve, mas o coração de Assher esteve prestes a sair-lhe do peito.

De súbito, o encanto foi quebrado. Gerde afastou-se dele e ergueu a cabeça, interessada, como se tivesse ouvido algo. Lentamente, a sua boca curvou-se num suave sorriso. Os seus olhos brilharam.

- O que se passa, minha...? - começou Assher, mas calou-se ao ver uma sombra que se aproximava rapidamente deles. Gerde voltou-se para ele, radiante de alegria.

- Tu também reparaste! - exclamou.

- Está a começar - assentiu ele.

Assher fez com que o que estava a sentir não se reflectisse no seu rosto. Detestava aquele humano de aspecto sinistro. Não era segredo nenhum que passava muitas noites na árvore de Gerde.

- Está a começar - concordou ela. - Parece que, afinal de contas, Kirtash continua a ser útil.

Desta vez, Assher não conseguiu evitar torcer o nariz. Quando era criança, sentira uma admiração mal disfarçada por Kirtash, o filho de Ashran. Um humano, era certo, mas mais poderoso e letal do que qualquer szish. Depois, Kirtash atraiçoara-os... não sem antes, dizia-se, ter seduzido Gerde ou ter sido seduzido por ela; os rumores eram díspares nesta questão. A ideia de que Kirtash pudesse continuar em contacto com Gerde revolvia-lhe o estômago de raiva e ciúmes. É que aquele Yaren não era grande coisa, mas Kirtash...

"Nada disso importa", disse Assher para si, enquanto via como Yaren e Gerde entravam juntos na árvore. "Eu sou o seu eleito. Só eu."

Abandonaram a caverna de Ydeon no dia seguinte, às primeiras horas da manhã. Shail não se atreveu a pedir ao gigante que lhe tirasse a perna outra vez, pelo que a arrastava com dificuldade, e a sua magia continuava a enfraquecer pouco a pouco. Sabia que chegaria uma altura em que teria de experimentar o que Ydeon sugerira, propondo a Jack que lançasse o seu bafo de dragão sobre a perna artificial. Mas ainda não o fizera, entre outras coisas porque, depois de conhecer a origem de Domivat e a mensagem do último Visionário, o rapaz estava sério e pensativo e Shail não queria incomodá-lo. Além disso, tinha visto Jack transformado em dragão e, embora não quisesse admiti-lo, o certo era que a lembrança da poderosa criatura ainda o intimidava.

Puseram-se a caminho, pensativos e em silêncio; aguardava-os uma longa viagem até Gantadd.

Quando Jack propôs que montassem no seu dorso para irem mais depressa, tanto ShaU como Alexander hesitaram. Mas ambos já tinham viajado em cima dos haai, que pareciam mais delicados e instáveis do que o grande dragão, pelo que acabaram por aceder.

Naquele dia avançaram bastante, mas ao entardecer caiu uma tempestade de neve que os obrigou a refugiarem-se nas montanhas. Como no dia seguinte não havia amainado, só lhes restou prosseguir a pé.

Os dias seguintes decorreram de forma parecida. Tiveram de avançar a pé de cada vez que rebentava um temporal que os impedia de viajar pelo ar. Contudo, quando finalmente passaram as montanhas do Leste e alcançaram o caminho da costa, com o mar à esquerda e as montanhas à direita, as tempestades amainaram e puderam voar mais vezes.

A viagem estava a fazer bem a Alexander. Ver Jack vivo e em pleno uso dos seus poderes de dragão devolvera a esperança ao seu coração. O plenilúnio de Ilea surpreendeu-os a meio da viagem, mas a lua verde, embora operasse algumas alterações na sua fisionomia e no seu carácter, não o transformou por completo. Alexander não sabia o que faria da próxima vez que Érea estivesse cheia, mas já não parecia importar-se tanto. Tendo Jack por perto, toda a gente estaria a salvo. Nem mesmo o animal que habitava no seu interior seria capaz de vencer o dragão.

Alexander sentia muito respeito pelo dragão. Da última vez que vira Yandrak, este não era mais do que uma cria recém-saída do ovo. E, embora tivesse contemplado o dragão dourado que Tanawe criara para defender a fortaleza de Nurgon, tempos antes, não era o mesmo. Aquele era Jack. Yandrak. O seu Yandrak. Aquela era a criatura que resgatara no dia da conjunção astral, que tinha crescido, tornando-se um jovem dragão soberbo e poderoso. Viajar no seu dorso era uma experiência única, que lhe assegurava que não tinha fracassado na sua missão. Aquele dragão podia voar porque ele o salvara um dia. Obrigava-se a pensar nisso frequentemente; era uma ideia que o reconfortava face ao sentimento de culpa e às más recordações.

Contudo, um dia aconteceu algo que o fez reconsiderar a opinião que tinha dos dragões.

Tinham encontrado refúgio numa enorme fenda de uma parede rochosa. Como todas as noites, envolveram-se nas suas capas de peles para dormir, em torno dos restos de uma fogueira acendida com o fogo de Jack. De madrugada, porém, foram acordados por um estrondo que parecia vir das entranhas da terra, como um horrível gemido procedente de mil gargantas de pedra. Os três levantaram-se, sobressaltados.

- O que foi isto? - perguntou Alexander.

Ninguém teve oportunidade de responder. De repente, o chão começou a tremer, as paredes da caverna estremeceram e desprenderam-se alguns fragmentos de rocha do tecto.

- Temos de sair daqui! - gritou Jack.

Apressaram-se a recolher as suas coisas e a arrastar-se para fora da caverna. Mal tinham acabado de o fazer, quando uma enorme estalactite caiu ruidosamente atrás deles.

Correram fazendo apelo a todas as suas forças, afastando-se da caverna. O chão retumbava aos seus pés, o que fez com que Shail perdesse o equilíbrio e caísse ao chão. Jack deteve-se, indeciso.

- O que está a acontecer? - perguntou Alexander.

- É Karevan! - gritou Shail. - Karevan está aqui!

Jack semicerrou os olhos. Não tinha testemunhado ainda o que a passagem do deus dos gigantes pelo mundo provocava. Não tivera oportunidade e, além disso, depois de ter enfrentado Yohavir, considerara que já vira o suficiente. Mas voltou-se e olhou para cima, procurando manter-se firme enquanto a terra tremia violentamente sob os seus pés. Viu a cordilheira a sacudir-se e a tremer, e os grandes blocos de pedra a soltar-se e a rolar pela vertente da montanha, com um barulho ensurdecedor. Quando uma das pedras caiu perto deles, desfazendo-se em mil pedaços, Jack não pensou mais. Transformou-se em dragão e, batendo as asas com suavidade para manter o equilíbrio, gritou:

- Vamos, subam para o meu dorso!

Os dois humanos obedeceram-lhe. Jack tomou balanço e elevou-se no ar. Teve de evitar outra rocha que caía. Quando já estava a uma distância considerável do chão, ouviu-se um barulho atroador, como se o mundo se tivesse partido em dois. Shail gritou:

- Cuidado, cuidado! Atrás de ti!

Jack voltou-se e viu, horrorizado, que um novo movimento sísmico tinha provocado uma enorme avalancha de neve que descia troando pela montanha. Bateu as asas com todas as suas forças para se afastar dali, mas continuava a estar demasiado perto da cordilheira. Ouviu então Shail pronunciar a fórmula de um feitiço e sentiu-se subitamente projectado para a frente. Quando recuperou a sua velocidade normal, já estavam longe da montanha, sobrevoando o mar.

Pousaram um pouco mais longe, sobre as falésias.

Shail estava com mau aspecto. Parecia esgotado e segurava o sítio onde a sua perna artificial se unia ao resto do corpo, dando mostras de estar a sofrer. Jack e Alexander olharam para ele, preocupados.

- Estou bem - murmurou o feiticeiro, com um débil sorriso. - Só preciso de recuperar as forças. Quando o meu nível de magia subir um pouco mais, a perna voltará a estabilizar.

Jack também estava cansado, pelo que decidiram permanecer ali. No entanto, quando a maré subiu e as ondas começaram a salpicar a parte superior da falésia, compreenderam que teriam de se afastar do mar e voltar a procurar refugio na cordilheira. Felizmente, as montanhas mais próximas pareciam estáveis.

- Karevan move-se muito lentamente - disse Shail. - Por enquanto, estamos a salvo.

Acenderam uma fogueira ao abrigo de uma parede rochosa e sentaram se a descansar. Passaram algum tempo a falar de deuses, do que cada um tinha visto e vivido, e do que poderiam fazer caso aquelas titânicas forças da natureza decidissem reunir-se todas no mesmo lugar, perguntando-se se havia alguma maneira de o evitar. Jack disse que tinha um plano, mas não quis partilhá-lo com os amigos. De qualquer forma, estavam demasiado cansados para discutir.

- Eu fico de vigia - ofereceu-se Jack, ao ver Shail bocejar. - Não creio que consiga dormir esta noite e, seja como for, não falta muito para o primeiro amanhecer.

Ninguém o contradisse.

Pouco depois, Shail tornou a acordar por causa da perna artificial. Sufocando um gemido, soergueu-se e levantou a túnica para a ver. Mas não chegou a completar o gesto.

Reparou que Jack não estava.

Alexander dormia profundamente, mas o jovem dragão tinha-se esfumado. Inquieto, Shail perguntou-se se aquilo tinha alguma coisa a ver com o plano do qual não lhes queria falar. Acordou Alexander e pô-lo a par da situação. Sem uma palavra, os dois abandonaram o acampamento e foram à procura de Jack.

Alcançaram-no mais adiante. O rapaz estava semioculto atrás de um penhasco, observando o que se passava mais à frente, ao luar. Os dois juntaram-se a ele.

- O que se passa? - perguntou Alexander em voz baixa.

- Serpentes - respondeu ele no mesmo tom.

Havia algo de sinistro na forma como pronunciou aquela palavra, uma espécie de anseio obscuro, uma intenção letal. Shail olhou para ele, inquieto, mas Alexander colocou-se junto dele para espiar atrás da rocha.

Tratava-se de um grupo de szish, com sete elementos, que saía precipitadamente de uma abertura na montanha. Uma entrada para um refugio secreto, compreenderam os três de imediato.

- Vai ser uma luta difícil, mas vamos ser bem sucedidos - sussurrou Alexander. - Assim poderemos verificar se aquela caverna conduz ao lugar onde Eissesh e os seus se escondem.

- Parece-te prudente? - perguntou Shail por sua vez. - Basta um escapar para dar o alarme.

Jack não os ouvia. Estava a fixar um desfiladeiro que se abria um pouco adiante e penetrava na cordilheira. O seu rosto tinha adquirido uma expressão sombria e ameaçadora, e os seus olhos brilhavam de forma estranha na penumbra.

- Há um shek - informou-os. Os dois ficaram paralisados.

- Tens a certeza?

- Sim - respondeu Jack, com uma alegria selvagem. - Cheiro-o.

- Cheira- o? - repetiu Shail.

- Então é melhor voltarmos para trás - murmurou Alexander.

- Não - opôs-se Jack. - Eu vou lutar. Tenho de lutar.

Antes que algum dos dois conseguisse impedi-lo, o jovem deslizou para longe deles, como uma sombra entre as rochas. Contornou os szish, avançando sem se deixar ver em direcção ao desfiladeiro.

- Jack! - chamou-o Shail, num sussurro.

As sete cabeças de ofídio voltaram-se para eles. Alexander praguejou baixinho.

- Usa a tua magia, feiticeiro - grunhiu, desembainhando Sumlaris. Temos trabalho.

com um grito, saiu de detrás da rocha. Shail preparou um feitiço defensivo.

Instantes mais tarde, ambos lutavam contra os homens-serpentes, perguntando-se onde diabo se teria metido Jack.

O dragão tinha alcançado o desfiladeiro e embrenhava-se nele. As paredes estavam impregnadas do cheiro da serpente, e Jack compreendeu que a criatura não tivera outro remédio a não ser rasar aquelas rochas, dado que a passagem não era suficientemente larga para que pudesse mover-se à vontade. Pelo mesmo motivo, Jack decidiu não se transformar por enquanto. Continuou a saltar, de penhasco em penhasco, procurando o shek, cego pelo seu instinto, ignorando o barulho que, atrás de si, o entrechocar das espadas produzia.

Alexander ergueu Sumlaris, lançou um golpe lateral, depois fez uma finta e golpeou de cima a baixo. O fio da sua espada fendeu a carne de um dos szish. Ao seu lado, Shail gritou a fórmula de um feitiço; fez-se logo notar um clarão, um horripilante cheiro a queimado e um cicio aterrorizado. Alexander não permitiu que isso o distraísse. Ouviu atrás de si os passos de outro inimigo e agachou-se a tempo de evitar que a lança do szish se cravasse nas suas costas. Deu meia-volta e, apoiando-se no chão com a palma da mão esquerda, lançou a perna direita para o fazer tropeçar e cair, mas o homem-serpente saltou e esquivou-se. Alexander já tinha recuperado o equilíbrio e brandia a sua espada. Ambas as armas chocaram.

Outro szish atacou-o por trás. Alexander soube, nesse preciso instante, que não teria tempo de se virar. Mas o golpe não chegou a ser desferido. Quando Alexander enterrou Sumlaris no peito do primeiro agressor e se voltou, verificou que o segundo ficara petrificado, com o rosto congelado para sempre num macabro esgar de surpresa.

- Às vezes metes medo, Shail - disse ao companheiro.

Mas Shail não estava em condições de lhe responder. A perna tinha-lhe falhado e estava agachado no chão, segurando-a com uma expressão de intensa dor. Ainda restavam três szish na liça, o feitiço de protecção que os retinha já não funcionava e Shail não podia defender-se.

com um grito selvagem, Alexander correu a dar cobertura ao feiticeiro. Pôs-se à sua frente e ergueu Sumlaris ao alto, para logo a descarregar com todas as suas forças contra o chão. A rocha tremeu por um momento e, de seguida,- abriu-se uma fenda profunda aos pés do dono da espada mítica, fenda essa que avançou na direcção dos seus inimigos. Os szish retrocederam, receosos.

Então, toda a montanha retumbou.

Shail ergueu a cabeça com esforço.

- Foste tu que fizeste isso? - conseguiu perguntar.

Como se de uma resposta se tratasse, a rocha voltou a sacudir e o tremor foi tão intenso que caíram todos no chão. Antes que pudessem levantar-se, o terramoto teve uma nova réplica; desta vez várias rochas de tamanho considerável desprenderam-se da cordilheira e precipitaram-se na direcção deles, rolando.

- Cuidado! - gritou Alexander, puxando Shail para o pôr de pé. Um enorme pedregulho caiu perigosamente perto deles, desfazendo-se em pedaços. Os dois cobriram a cara com um braço.

- Temos de sair daqui! - urgiu Shail. - Onde está Jack?

Olharam em volta. Não havia nem rasto do dragão. Os três szish tinham corrido em busca de refúgio. Quando a montanha estremeceu de novo, tornou-se bem claro que não era por causa de Sumlaris.

- Maldição, está a mover-se mais depressa - murmurou Shail. - Alcançou-nos.

- Jaaaaaaack! - gritou Alexander, a plenos pulmões.

A única resposta que obteve foi o surdo retumbar das entranhas da rocha, que anunciava a chegada do deus Karevan.

- Temos de ir - sussurrou Shail, puxando Alexander.

- Mas não podemos ir embora sem ele!

- É um dragão, sabe cuidar de si. Pode voar e esquivar-se das rochas que caem, mas nós não... Temos de sair daqui.

Uma nova avalancha de neve e rochas ajudou Alexander a decidir-se. Os dois correram em direcção ao mar, deixando a montanha para trás, enquanto os blocos de pedra continuavam a cair à sua volta e o chão tremia debaixo dos seus pés, dificultando-lhes a ruga. Quando Alexander tropeçou e caiu, arrastando Shail consigo, uma nova sacudidela rasgou a rocha que pisavam, abrindo um profundo abismo aos seus pés. Shail gritou, prestes a perder o equilíbrio e a precipitar-se para o fundo. Alexander agarrou-o pela túnica e puxou-o.

Por fim, quando já acreditavam que não iam conseguir escapar dali com vida, Jack chegou a voar, por entre a chuva de pedras e de neve. Trazia algo entre as garras, algo que parecia um shek tremendamente mole e esquálido, mas Alexander não conseguiu ver bem. Quando o dragão pousou junto deles e puderam subir para o seu dorso, o jovem percebeu que o que Jack sustinha era uma pele de serpente.

Não teve oportunidade de lhe fazer perguntas a esse respeito. Pouco depois, o dragão voava em direcção ao mar, deixando para trás Karevan e tudo o que a sua presença acarretava.

Não pararam até verem as montanhas a abrir-se para dar lugar ao grande vale de Nandelt. Shail respirou fundo ao ver as terras de cultivo, os bosques ao pé das montanhas e o brilho prateado que, um pouco mais ao fundo, denunciava a presença do rio Estehin. Encontravam-se em Nanetten, reino de comerciantes... Nanetten, a terra que o vira nascer.

Os três sóis iam já altos quando Jack decidiu pousar. Fê-lo num local afastado, numa clareira que avistou num bosquezinho, para não chamar a atenção. Quando os dois humanos desceram do seu dorso, Jack inclinou a cabeça para contemplar o seu trofeu. A pele da serpente era enorme, compridíssima. Intimidava até mesmo sem um shek dentro dela.

Shail deixou-se cair no chão, exausto, mas Alexander olhou para o dragão com curiosidade.

- Foste tu que fizeste isso? Esfolaste o shek?

- Não - respondeu Jack; parecia frustrado. - Não havia nenhum shek, era só um invólucro.

- Então porque a trouxeste? - indagou Shail, confuso.

O dragão dirigiu-lhes um sorriso sinistro, mostrando todos os dentes.

- Para a desfazer.

Os dois contemplaram, entre perplexos e inquietos, como o dragão se dedicava à sua tarefa com obscuro prazer. Mordeu, rasgou e queimou a pele até que ficou quase irreconhecível. Quando acabou, deixou-se cair sobre ela e apoiou a cabeça nas garras. O brilho dos seus olhos tinha-se apagado. Olhou para os amigos com um ar infeliz.

- Entendem agora?

- Não - responderam eles, atónitos.

O dragão suspirou e, lentamente, transformou-se de novo em humano, jack, o rapaz, ficou sentado sobre os restos da pele de shek, cansado e meditabundo.

- É o instinto - explicou-lhes. - Não consigo evitá-lo. Preciso de matar serpentes e é difícil... tão difícil lutar contra este impulso...

- Porque é que tens de lutar contra ele? - perguntou Alexander. Jack olhou para ele.

- Tu, melhor do que ninguém, devias saber a resposta - censurou-o. Alexander sentiu o golpe, mas não disse nada.

- E se eu não quiser lutar contra os sheks? - prosseguiu Jack. - E se eu quiser saber porque são meus inimigos? Por que razão temos de lutar, geração após geração, através dos séculos? Porque é que temos de nos matar uns aos outros? Por um capricho dos deuses?

Shail começou a entender.

- Queres dizer que te sentes obrigado a matar sheks? Mesmo que não queiras?

Jack assentiu.

- Sou o último da minha espécie. Não tenho qualquer hipótese de ganhar uma guerra contra os sheks, porém, se viesse um exército de serpentes, lançar-me-ia de cabeça para lutar contra elas até à morte. O instinto deixa-me louco de ódio, ignorando se dou ou não valor à minha vida, se deixo para trás os meus amigos ou se algures me espera a mulher que amo. O instinto só quer saber de sangue e guerras, de um ódio ancestral que os deuses inculcaram em nós, nos nossos genes, e que é tão nosso como o fogo nos dragões ou o veneno nos sheks. Se o que se escondia naquele desfiladeiro fosse um shek e não a pele que um deles abandonou ali, neste momento vocês estariam mortos. Eu estaria tão ocupado a lutar contra ele que nem me daria ao trabalho de regressar para vos ir buscar. E não posso fazer nada, entendem? Nada, salvo perguntar aos deuses que sentido tem tudo isto e, entretanto, procurar aprender a controlar o meu ódio fazendo uma espécie de aliança com um meio-shek.

Alexander deixou-se cair contra uma árvore, pálido. Shail fitou-o, com os olhos muito abertos.

- Mas deve haver uma boa razão - conseguiu dizer Alexander. - Os deuses têm os seus motivos para agir assim.

Jack riu, sarcástico.

- A sério? Pois olha que não os partilharam comigo nem com nenhum dragão ou shek desde que o mundo é mundo.

- Como é que sabes? Não falaste com os dragões. Eles deviam saber porque é que lutavam: o Sétimo e as suas criaturas são perversos e merecem ser destruídos. E se os deuses inculcaram nos dragões um ódio inato foi para que jamais esquecessem o seu trabalho sagrado; para que dragões jovens e sonhadores como tu cumprissem a sua obrigação ao invés de se aliarem ao inimigo.

Foi a vez de Jack empalidecer.

- Não acredito que me estás a dizer essas coisas - murmurou. - Tu, não.

- Porquê? Por acaso contradizem o que te ensinei até agora? Jack ficou calado por um momento.

- Não - respondeu com frieza. - Não, é verdade. Tens razão, tu não mudaste. Continuas a pensar como sempre. Quem mudou fui eu... porque já não penso como tu.

Trocaram um olhar tenso. Shail interveio:

- Já chega, os dois. Estamos cansados e nervosos; é melhor pararem com isso antes que digam algo de que possam vir a arrepender-se.

Ambos anuíram, por um lado de má vontade, por outro aliviados. Mas Jack sentiu que algo se quebrara entre os dois, que o tempo e as circunstâncias tinham aberto uma profunda brecha que talvez os separasse para sempre.

Uma confortável sensação de alegria invadiu Zaisei quando contemplou a grande cúpula do Oráculo de Gantadd.

Não quisera pensar nisso, mas o certo é que sentira muitas saudades daquele lugar, que era para ela como um segundo lar.

As outras sacerdotisas experimentavam sentimentos semelhantes. Durante o domínio shek, o Oráculo de Gantadd tornara-se o único lugar seguro em todo o Idhún. A fortaleza de Nurgon, a Torre de Kazlunn, os outros Oráculos... até mesmo o bosque de Awa esteve prestes a sucumbir ao gelo dos sheks. No entanto, não tinham tocado no Oráculo de Gantadd. Nunca.

Como tal, algumas das sacerdotisas mais jovens não tinham conhecido outra coisa. E algumas das mais velhas acostumaram-se a viver de costas para o mundo, encerradas no Oráculo, não querendo voltar a sair dele.

Gaedalu, porém, não se deteve a contemplar as suaves cúpulas do Oráculo. Quando Zaisei dispensou os haai e se voltou para ela, descobriu que a Mãe Venerável passava já pelo enorme portão do edifício, que se tinha aberto para ela.

A jovem celeste soergueu a túnica e correu atrás da varu. Todavia, quando chegou ao átrio do Oráculo, já a tinha perdido de vista.

Suspirou, voltando-se para o grupo de sacerdotisas que pareciam completamente desconcertadas.

- A Mãe não se encontra bem - anunciou. - Regressem aos vossos aposentos e desfaçam as malas. Reunir-nos-emos na sala de jantar ao primeiro entardecer.

Esperava que fosse tempo suficiente para se pôr a par das novidades e, ao mesmo tempo, averiguar o que se passava com Gaedalu.

A caminho dos seus aposentos, deparou-se com uma porta fechada. Tentou abri-la, sem sucesso, e olhou para ela desorientada. Aquela porta dava para um corredor de uso comum. Costumava estar sempre aberta.

- Não se pode entrar - disse então uma voz aguda de uma das salas contíguas.

Zaisei voltou-se, intrigada. A porta para aquela sala estava aberta. Possuía uma ampla janela sobranceira à falésia e junto a esta havia um divã, no qual as sacerdotisas, especialmente as da deusa Neliam, costumavam sentar-se para contemplar o mar. Ajudava-as a meditar.

Uma delas ocupava o divã naquele preciso momento, mas a sua atitude parecia mais de aborrecimento do que de contemplação. Tinha deixado cair a cabeça sobre os braços, que permaneciam apoiados no parapeito da janela, e os pés estavam em cima do divã. Zaisei sorriu. Era-lhe permitido aquele comportamento porque a sacerdotisa não tinha mais de sete anos.

- Olá, Ankira - cumprimentou. - Tiveste saudades nossas?

Ela voltou para a celeste o seu rosto moreno e dirigiu-lhe um sorriso iluminado pelos dentes branquíssimos.

- Muitas - afirmou. - Não tive nada para fazer neste tempo todo. Zaisei percorreu a distância que a separava da menina e sentou-se junto dela no divã. Acariciou-lhe o longo cabelo, branco com madeixas vermelhas. Ankira era uma limyati; pertencia a uma tribo arcaica de humanos das margens do deserto de Kash-Tar, gente livre e independente que não se podia encerrar num Oráculo, pelo que quase não havia sacerdotes limyati. Aquela menina era uma excepção.

Zaisei voltou a observar a entrada da sala, o corredor que se abria mais à frente, com a porta fechada.

- Não se pode entrar - repetiu Ankira ao reparar no seu olhar. A irmã Karale tomou essa decisão pouco depois de vocês partirem.

- É a primeira vez na história dos Oráculos que aquela porta permanece fechada - disse a celeste, pensativa. - Não sei o que significa. Talvez não devêssemos virar as costas aos deuses. Talvez devêssemos voltar a abri-la.

De repente, o rosto da menina transformou-se, assumindo uma máscara do mais profundo e absoluto terror. Agarrou-se à túnica de Zaisei e sacudiu-a desesperadamente.

- Não abras aquela porta! - guinchou. - Nunca abras aquela porta! Estás a ouvir?

Chorava e tremia violentamente. Zaisei sentiu-se atingida pela força do seu horror, um horror tão intenso que a fez gemer de medo também. Quase esquecera o dia em que a tiraram da Sala dos Ouvintes, com os olhos esbugalhados de terror, gritando a plenos pulmões e esperneando furiosamente. Durante algum tempo, julgaram que tinha perdido o juízo. Era incapaz de dormir à noite e chorava muitas vezes, gemendo baixinho e sussurrando: "Não quero voltar a entrar, não quero voltar a entrar, não me deixem sozinha com eles..." Mas Ankira recuperara... até certo ponto. Zaisei sentira o seu pavor, da mesma forma que percebia todos os outros sentimentos. Assim, quando as irmãs comentavam em voz baixa que a menina tivera sorte, pois não ficara surda como a irmã Eline nem perdera o juízo como a irmã Ludalu, Zaisei meneava a cabeça e pensava que não estava assim tão certa da sorte de Ankira.

Agora, meses depois, continuava a pensar o mesmo. O medo instalara-se no coração daquela criança e não voltaria a abandoná-lo. Embora as sacerdotisas mais velhas pensassem que com o tempo se acalmaria, Zaisei sabia que não era assim e que o Oráculo tinha perdido a ouvinte mais promissora que alguma vez tivera.

Acariciou o cabelo da menina, procurando acalmá-la.

- Não vou abrir a porta - disse-lhe em voz baixa. - Não te preocupes. Ankira ergueu para ela a sua carinha banhada em lágrimas.

- Prometes-me que não me vais obrigar a entrar de novo?

- Não vou obrigar-te a entrar. Quem te disse tal barbaridade?

- Algumas irmãs. Dizem que, quando as vozes falarem mais baixo, poderei entrar na sala outra vez e perceber o que elas querem. Como a irmã Eline ficou surda e a irmã Ludalu não está bem da cabeça, dizem que só eu o posso fazer.

- E as vozes não se calaram? Ankira abanou a cabeça.

- Soam cada vez mais fortes, tanto que já não se entende o que dizem. Por isso fecharam a porta. E taparam a porta da Sala dos Ouvintes com muitos colchões de penas, para não se ouvir tanto. Ou pelo menos é o que dizem. Não me atrevi a aproximar-me.

Zaisei não disse nada. Recordou as notícias que Shail lhe tinha enviado sobre Karevan, bem como a aterradora visão do tornado sobre Celestia, e estremeceu. Ankira observou-a, pensativa.

- Tu não tens curiosidade - notou. - Nunca me perguntaste o que dizem as vozes.

- Não tenho a certeza de querer sabê-lo, Ankira - confessou ela.

- Seja como for, é indiferente, porque ninguém acreditou em mim. A irmã Karale leu as minhas notas e quis rasgá-las, pois achou que estavam erradas, mas eu escondi-as. Queres vê-las?

- Achas que é uma boa ideia?

- Não olhei para elas desde que as escrevi. Mas não foi preciso, porque as vozes ecoam na minha cabeça. - Bateu na testa com mais força do que a necessária; Zaisei pegou-lhe pelos pulsos para evitar que se magoasse. Talvez até não seja assim tão horrível, se calhar o que está escrito não mete tanto medo. Mas é que...

A sombra de horror voltou a cobrir-lhe o rosto, e os reflexos do seu medo sacudiram de novo o coração de Zaisei. Abraçou-a com força.

- Não é preciso falares disso, se não quiseres.

- Há muito tempo que não desabafo com ninguém - disse Ankira. Duas lágrimas escaparam dos seus olhos e rolaram pelas suas faces. - Não consigo esquecê-lo. E tu sabes sempre como me sinto, por isso tenho a certeza de que vais acreditar em mim quando vires.

- É verdade - sorriu Zaisei. - Sei que tens muito medo. Nada que possa provocar um temor assim pode ser encarado de ânimo leve.

Ankira sorriu por seu turno. Depois olhou em volta, para se assegurar de que ninguém a via, e tirou um papel amarrotado da sua túnica. Estava dobrado várias vezes e a menina desdobrou-o e alisou-o, tomando muito cuidado para não ver as letras.

- Toma - sussurrou. - Mas não o leias em voz alta.

Deitou-se em cima do divã, de barriga para baixo, tapando os olhos com as mãos. Zaisei hesitou por um instante, mas finalmente virou a folha e começou a ler. A cada linha, o terror que Ankira lhe transmitira aumentou, alimentado pelo seu próprio medo:

"Nãopodesesconder-teliwnãopodesescapardetritodesperdíciocomoteatrevesaestaraquilix.olixolixovamosdestruirtevamosdstruirteVAMOSDESTRUIR-TEVAMOSDESTRUIR-TEVAMOSDESTRLIR-TE."

Naquela noite, Gaedalu não se apresentou na sala de jantar e Zaisei foi vê-la depois da ceia. Encontrou-a a experimentar o atavio habitual dos varu, aquelas correias que cingiam os seus corpos quando nadavam debaixo de água, e isso surpreendeu-a.

- Mãe, vais para o mar? A estas horas?

- Não, Zaisei - sorriu ela. - Estava só a preparar-me.

- Preparar-te para quê?

- Amanhã, ao primeiro amanhecer, partirei em direcção a Dagledu.

- A Dagledu? - repetiu Zaisei, consternada. - Mas se acabaste de chegar!

Gaedalu respondeu com um gesto de impaciência.

- O Oráculo não é mais do que uma escala na minha viagem, filha. A minha meta é a capital do Reino Oceânico. Contudo, os assuntos que me conduzem até lá são pessoais, pelo que não tens de me acompanhar, se não quiseres. De facto, preferiria que ficasses aqui. No Oráculo estarão seguras.

- Mãe, não entendo nada - murmurou ela, perplexa. - Passaste tanto tempo longe de casa. O Oráculo está a teu cargo e nem cumprimentaste as sacerdotisas residentes no teu regresso. Além disso, estão a acontecer coisas muito estranhas: a Sala dos Ouvintes foi encerrada e as sacerdotisas que trabalhavam nela estão num estado lamentável. A surdez da irmã Eline parece ser irreversível e a irmã Ludalu continua transtornada.

É incapaz de dizer algo coerente. As sacerdotisas cuidam dela, mas não me parece que vá recuperar o juízo. Parece muito infeliz. Mas quem me preocupa mais é a pequena Ankira. Está aterrorizada e...

- Ocupar-me-ei de tudo isso no meu regresso, Zaisei - cortou a Venerável. - O que tenho entre mãos é de suma importância, e quanto antes terminar a minha tarefa, melhor.

- De suma importância? O que pode haver de mais importante do que a segurança de uma criança?

As suas palavras soaram um pouco duras e Zaisei arrependeu-se de imediato de as ter pronunciado, porque o estado de ânimo de Gaedalu mudou subitamente. A celeste pressentiu o ódio e a ira no coração da Mãe Venerável, mas, sobretudo, uma dor profunda e inconsolável.

- O que pode haver de mais importante? - repetiu Gaedalu. - A segurança de todas as crianças do mundo. Não pude proteger a minha filha, e o mínimo que posso fazer é procurar proteger as filhas de todas as outras. Sobretudo agora que sei como evitar que outras mães sofram o mesmo que eu e que outras filhas fiquem órfãs de mãe... como aconteceu contigo.

- O que têm a minha mãe e a tua filha a ver com tudo isto? - indagou Zaisei, confusa.

Gaedalu brindou-a com o seu característico riso gutural, mas desta vez ele soou amargo.

- A minha filha Deeva foi assassinada, Zaisei - revelou-lhe. - A minha filha está morta.

A celeste arregalou os olhos, horrorizada, e levou as mãos ao peito com um suspiro.

- Sinto muito, Mãe Venerável - murmurou. - Não sabia. Gaedalu olhou para ela com ternura.

- Volta para o teu quarto e descansa, Zaisei - disse. - Dagkdu não é longe; depressa regressarei ao Oráculo e ter-me -ao de novo entre vós.

A celeste abanou a cabeça.

- Não, Venerável. Se tiveres de ir, irei contigo.

- Não confias em mim?

- Temo por ti, Mãe. Capto muita dor e cólera no teu coração e quero fazer tudo o que for possível para evitar que esses sentimentos se voltem contra ti e te prejudiquem.

Gaedalu dirigiu-lhe um olhar triste.

- Creio já ser tarde para isso.

Zaisei quase não dormiu naquela noite. Receava que Gaedalu partisse sem a avisar. Porém, antes do primeiro amanhecer, ouviu suaves pancadas na porta e soergueu-se, sobressaltada.

- Estou pronta, Zaisei - disse a Mãe na sua mente.

A celeste respirou fundo e olhou pela janela. O mar estava calmo e as três luas brilhavam suavemente no firmamento. Não havia vestígios do primeiro amanhecer.

"Tão cedo?", perguntou-se, um pouco surpreendida.

Gaedalu captou aquele pensamento.

- É verdade, é muito cedo e deves querer descansar. Continua a dormir, filha. Vemo-nos no meu regresso.

- Não, Mãe! - exclamou Zaisei, levantando-se de rompante. - Espera por mim no molhe. Desço já.

Tinha-se esquecido de que Gaedalu tinha de aproveitar a maré-alta. Apressou-se a vestir-se e a encher a sua bolsa com as coisas básicas e uma túnica limpa. com um suspiro, abandonou o quarto. Sabia que a viagem a Dagledu ia ser bastante incómoda para ela, e todo o seu corpo suplicava que regressasse à cama por que tanto ansiara nos últimos meses. Mas a jovem não fez caso.

Em silêncio, percorreu os corredores vazios do Oráculo. Ouviu Ankira gemer em sonhos, quando passou diante dos quartos das noviças, e hesitou por instantes, mas finalmente estugou o passo.

Gaedalu já se encontrava no molhe quando ela chegou. O Oráculo dispunha de uma pequena cápsula de navegação puxada por lamus, pequenos mamíferos marinhos de grandes olhos amendoados, pelagem esverdeada, focinho pontiagudo e barbatanas compridas, que acudiam sempre à chamada telepática dos varu. Gaedalu estava na água a alimentar cinco lamus que gorgolejavam à sua volta, entusiasmados. Enquanto os animais devoravam as guloseimas, Gaedalu foi-os enganchando um a um aos arneses da cápsula que ainda repousava em terra firme.

- Pega na bolsa e sobe para o bote - disse Gaedalu, sem deixar de acariciar os lamus.

Zaisei viu uma bolsa impermeável sobre o molhe. Pô-la juntamente com as suas coisas no interior da cápsula. Gaedalu voltou-se para ela. O lamu mais próximo apanhou o último peixe que ela lhe oferecia com um movimento que fez com que o bote bamboleasse um pouco.

- Estás pronta?

Zaisei subiu pela pequena escada lateral para alcançar a escotilha que se abria no alto da cápsula. Deslizou até ao interior e fechou a porta por cima de si. Depois espreitou pelo vidro de uma das janelinhas e fez um sinal de assentimento a Gaedalu.

A varu afundou-se em silêncio na água. De seguida, os cinco lamus puxaram em simultâneo e a cápsula, com uma sacudidela, caiu à água.

Pouco depois, guiados por Gaedalu, que nadava à cabeça, os lamus sulcavam velozmente a superfície do oceano, arrastando o veículo atrás de si, enquanto as três luas os observavam de um céu pejado de estrelas.

 

           O CORAÇÃO DA SERPENTE

Victoria tinha regressado ao apartamento de Christian porque estava cansada da noite de Limbhad e porque sabia que os seus olhos agradeceriam trabalhar à luz do dia. Pegara nalguns livros da biblioteca, aqueles que lhe tinham parecido mais interessantes, e pusera-os numa mochila, disposta a prosseguir com a sua investigação num ambiente mais agradável.

No entanto, o apartamento continuava vazio e frio... e, quando Victoria verificou que Christian continuava sem aparecer na sua própria casa, um sopro gelado fez estremecer o seu coração.

Tentou não pensar nisso. Pousou em cima de uma mesinha os livros e o diário que ele lhe oferecera; descobriu que se tinha esquecido da esferográfica e entrou no estúdio com o intuito de procurar uma. Parou perto da secretária. Perguntou-se se não seria melhor trabalhar naquela sala, mas descartou a ideia. Por alguma razão, sentia que aquele estúdio, o lugar onde Christian tinha composto as suas canções, mas também onde tinha reunido informações sobre todas as suas vítimas, era um espaço privado, quase sagrado, ainda mais do que o seu próprio quarto.

Inspirou fundo. Apesar da intimidade que haviam partilhado dias antes, o shek mostrava-se tão frio e distante como se mal a conhecesse... como se já não sentisse nada por ela. Victoria abanou a cabeça. Sabia que havia algo secreto e misterioso que unia Christian e a mulher de Tóquio, e conhecia-o suficientemente bem para compreender que se sentia fascinado por ela. Na realidade, não era isso que a preocupava, mas sim a possibilidade de que ele tivesse decidido abandoná-la... e, sobretudo, que tivesse estado a brincar com ela. Sabia que os sentimentos dele haviam sido sinceros algum tempo atrás, mas... o que deveria pensar agora? O que podia esperar de alguém que a levava para a sua cama e logo de seguida se esquecia dela? No fundo, Victoria temia que, após a sua longa doença, Christian tivesse perdido o interesse por ela, tratando-a como se fosse uma humana vulgar... tal como ela, durante algum tempo, chegara a pensar que era. E Victoria podia admitir que os sentimentos dele pudessem ter esfriado, podia aceitar que estivesse com outra mulher... mas não suportava a ideia de que o que tinham partilhado noites atrás pudesse ter sido um simples jogo para ele, um entretenimento, algo que se utiliza para passar o tempo e depois se esquece a um canto.

Decidiu não pensar mais nisso. Pegou na esferográfica e dispôs-se a sair do estúdio, quando o seu olhar pousou numa imagem familiar.

Todos os CDs de Christian estavam perfeitamente catalogados numa estante que cobria quase metade da parede. Só havia um fora do sítio, e a imagem da capa evocou na mente de Victoria as lembranças de tempos passados: tempos dos quais, descobriu naquele instante, sentia profundas saudades.

Não pôde evitar pegar no disco de Chris Tara com delicadeza, quase como se se tratasse de uma relíquia. Respirou fundo e sentiu que precisava de voltar a ouvir aquelas canções que a tinham feito entrar em sintonia com a alma de Christian de forma tão perfeita, mesmo sem conhecer a sua identidade. Necessitava de voltar a vibrar com "Beyond" e tornar a acreditar que existia uma ligação milagrosa entre dois estranhos, uma ponte entre duas ilhas distantes. Tirou o CD da caixa e inseriu-o na aparelhagem de som.

De imediato, as notas sugestivas e envolventes da primeira canção inundaram a sala. Victoria não demorou a relembrá-la, apesar de não a ouvir há muito tempo.

Aquele tema era "Cold", o que dera a conhecer Chris Tara, o primeiro que passara nas estações de rádio e o primeiro que Victoria ouvira. Naquela altura, a letra, longe de lhe parecer arrogante ou provocatória, inspirara nela uma intensa curiosidade pela pessoa que a compusera, um fascínio que a levara a escutar aquela canção uma vez e outra, tentando ler nas entrelinhas, procurando alcançar algo que parecia tão frio e distante como a própria Lua. Naquela época permitira-se sonhar com a Lua, suspirar por algo inalcançável. Mas agora, ao tornar ouvir a letra de "Cold", pareceu-lhe tão dolorosamente real, tão íntima e ao mesmo tempo tão intangível, que fechou os olhos e chorou, enquanto aquelas notas, aquelas letras, se cravavam mais e mais fundo no seu coração, recordando-lhe, de novo, a verdadeira essência da pessoa que amava.

 

You think were not só different at ali Human body, human souís but under your skin your heatt s beating warm and under my skin theres nothing more than something cola.

Só dorit foliou me,

dorít reach me,

dorít trust me,

dorít,

unless you have a dark soul

unless you want to be alone.

You think were not

só distant at aU

I read your mina, you listen to my words

but within your eyes

theres a spark of emotion

and within my eyes

theres a breath ofcold,

Só dorít foliow me

dorít reach me,

dorít trust me,

dorit,

uníess you have a dark soul

unless you want to be alone.

Cause youre só human

só obviously human...

you can feel love, anger or pain

but emotion flames worít light

in a kingdom of ice

in the heart of a snake.

 

Pensas que não somos assim tão diferentes. Corpo humano, almas humanas; mas debaixo da tua pele bate um coração quente e sob a minha pele não há nada mais do que algo frio. Então não me sigas, não me alcances, não confies em mim, não o faças, a não ser que tenhas uma alma negra, a não ser que queiras ficar sozinha. Pensas que não estamos assim tão distantes. Leio a tua mente, tu ouves as minhas palavras, mas nos teus olhos há uma centelha de emoção e nos meus olhos há um sopro de frio. Então não me sigas, não me alcances, não confies em mim, não o faças a não ser que tenhas uma alma negra a não ser que queiras ficar sozinha. Porque és tão humana, tão obviamente humana... tu podes sentir amor, ira ou dor, mas as chamas da emoção não irão pegar num reino de gelo, no coração de uma serpente.

Victoria apoiou-se na parede e mordeu o lábio inferior até o fazer sangrar. Sabia que aquela letra correspondia a uma etapa anterior, a um período em que Christian ainda não sentia nada por ela ou, se sentia, não o tinha admitido ainda. Mas, ao mesmo tempo, reflectia com tanta perfeição a atitude de Christian naqueles dias que Victoria não pôde deixar de se interrogar, uma vez mais, se os sheks podiam de facto amar alguém; se Christian, agora que obtivera tudo o que ela lhe podia entregar, lhe viraria as costas e a abandonaria; se tudo aquilo não fora mais do que uma ilusão.

"Não", disse para si. Nem mesmo ele podia ser assim tão vil para a usar daquela maneira. Deixou que as notas do tema seguinte fluíssem pela casa, respirou fundo e regressou à sala: tinha de continuar a trabalhar.

- A sério que gostas deste lugar? - perguntou ela. - Eu acho-o feio e deprimente.

-Só à primeira vista - respondeu ele. - Também tem coisas bonitas.

- As coisas que os humanos ainda não conseguiram corromper. Não devem ser muitas.

- Também sabem criar bekza, ainda que te custe a acreditar nisso. Mesmo assim, com humanos ou sem eles, este mundo é enorme e está cheio de coisas novas e estranhas. Coisas que quero aprender e entender.

- Mas não tem magia.

- Em breve, Idhún também não terá. Nessa altura, todos sentiremos a falta dos unicórnios.

- Os unicórnios... que traidores. Voltaram-se contra nós quando supostamente não deviam intervir. Também eu gostaria que as coisas tivessem sido de outra maneira, no que diz respeito a eles.

- A profecia obrigou-os a tomar parte em tudo isto.

- Não devia ter sido assim. Não nos podem culpar de tudo o que aconteceu no dia da conjunção astral. Os sangues-quentes não jogam limpo, os seus deuses são uns aldrabões.

Christian não respondeu.

Estavam de novo no apartamento de Shizuko em Takanawa. Tinham-se sentado no terraço e contemplavam o estranho mundo que se abria diante deles, a noite de Tóquio que lançava no firmamento uma miríade de luzes coloridas. Nenhum dos dois falava, não com as cordas vocais. Há algum tempo que tinham deixado de comunicar entre si como os humanos. Haviam estabelecido um vínculo mental estreito, privado, e costumavam passar horas e horas a conversar. Tinham tantas coisas em comum.

- Não sei se quero voltar - disse então Shizuko.

- Porquê? Pensava que odiavas isto.

- Não quero voltar a Idhún com este corpo. Tal como sou agora, este mundo é o único lugar onde poderei estar.

- Quando te acostumares, não é assim tão mau - opinou Christian. Este mundo, o corpo humano... nós, sheks, somos criaturas adaptáveis, sobrevivemos onde outras espécies não conseguiriam. E nisso que reside grande parte da nossa força.

- Mesmo assim, não conseguirei acostumar-me. Sou demasiado shek para me sentir confortável aqui.

- Sei o que queres dizer. Eu também sou demasiado shek para me sentir bem entre os humanos, para poder apreciar o mundo do seu ponto de vista. Por outro lado, também sou demasiado humano para ser plenamente aceite pelos sheks.

- Não te estejas a lamentar. Se tivesses cumprido o teu dever, continuarias a fazer parte do nosso mundo - censurou-o ela.

Christian esboçou um sorriso.

- Não me estou a lamentar. As coisas são como são; eu sabia quais eram as consequências e assumi o risco. Não me arrependo de nada do que fiz.

- Não acredito que não sintas a nossa falta. Se eu fico angustiada só por a rede telepática que formámos aqui ser tão reduzida comparada com a rede que há em Idhún... como seria quebrar os laços com toda a raça shek? Nem quero imaginar!

- Foi muito duro - reconheceu Christian. - Sobretudo no início. A minha parte shek enfraqueceu tanto que me

tornei muito mais humano.

- Que horror - comentou Shizuko, com sinceridade. - Não me parece que os sangues-quentes aos quais te aliaste tenham plena consciência do sacrifício que fizeste

por eles... por ela.

Christian não respondeu. Nunca respondia quando Shizuko mencionava Victoria, pelo que a shek mudou de assunto.

- Oiha para tudo isto - disse, passeando o olhar pela paisagem da grande cidade. - Quando regressaste da tua primeira viagem à Terra e informaste Ashran do que tinhas encontrado, não quis acreditar. Um mundo dominado por humanos! Parecia-me demasiado insólito para ser verdade.

- É porque quase não tiveram concorrência. Mas sabias que, num passado remoto, este mundo também foi governado por grandes seres de sangue frio?

- Ah, sim, U alguma coisa sobre isso. Extinguiram-se.

- Uma vez, num museu, vi o esqueleto de um deles. Fez-me lembrar um dragão... em certos aspectos.

- Em mais do que pensas. Também eks se extinguiram - respondeu ela, com uma nota de humor sinistro.

Christian sorriu.

- Aígo matou os grandes sáurios da Terra. Mas, se continuassem vivos, talvez tivessem evoluído... talvez fossem inteligentes, mais do que os humanos. E mais poderosos. Os humanos não sabem a sorte que tiveram.

- Já é hora de este planeta voltar a pertencer aos sangues-frios - opinou Shizuko. - É bem evidente que os humanos não são a raça mais adequada para governar um

mundo. Não são suficientemente espertos nem sabem cuidar bem dele. Alimentam-se do seu planeta, mas não dão nada em troca. São uma praga.

- Essa é outra das chaves do seu sucesso neste mundo.

- Deve ser. A sua inteligência é superior à dos restantes seres do seu planeta, mas ainda assim continuam a ser demasiado estúpidos. Nem sequer têm magia ou um poder especial, salvo a mania de querer mudar tudo, de querer transformar tudo. E os seus corpos... - Acrescentou, após uma pausa: - Soo tão pouco aptos para a sobrevivência.

- Pois - concordou Christian. - Soo pequenos...

- Fracos... - acrescentou Shizuko. - Tão...

- Frágeis - pensaram os dois ao mesmo tempo.

As suas mentes harmonizaram-se por um instante, concentradas na mesma ideia. Olharam-se. Foi um olhar demorado, intenso, em que os seus pensamentos se entrelaçaram, até que ele rompeu o contacto e cada um voltou a refugiar-se na sua própria mente. O peito de Shizuko estremeceu de forma imperceptível.

- És interessante - disse a Christian.

Do ponto de vista de um shek, aquilo era um cumprimento.

Quando Christian regressou a casa, Victoria estava sentada no sofá a escrever no caderno que ele lhe oferecera. Ouvia-se uma música familiar vinda do estúdio, e Christian inclinou a cabeça para a ouvir.

- Há muito tempo que não ouvia esta canção - comentou.

- É "Beyond"- disse ela, sorrindo. - A minha canção favorita. Christian não respondeu. Deu meia-volta para se dirigir para o seu quarto, mas Victoria deteve-o.

- Espera, Christian - disse, muito séria. - Acho que temos de falar. Christian hesitou um pouco, mas depois assentiu.

- Sim - disse com suavidade. - Temos de falar.

Momentos depois estavam sentados no sofá; Victoria olhava para o chão e Christian fixava a lareira, mas nenhum dos dois tinha vontade de começar a conversa.

- Quero falar-te - começou por fim Victoria, quebrando o silêncio do que aconteceu na outra noite.

Christian arqueou uma sobrancelha.

- Porquê? Pareceu-me que tinhas gostado. Victoria semicerrou os olhos.

- Como podes ser assim? - recriminou-o, magoada. - Sabes muito bem que não é isso o que tenho para te dizer. Há uns meses, na Torre de Kazlunn... disseste-me que estavas à espera de que te convidasse para passares a noite comigo. Disseste-me... - a voz tremeu-lhe, mas recompôs-se -, disseste-me que não me irias partir o coração. Que eu não te era indiferente.

- Sim, lembro-me disso.

- Por acaso mentiste?

- Não. Disse-te a verdade, Victoria. Não me és indiferente.

- Então porque te comportas como se o fosse? Qual é a desculpa desta vez?

Christian não disse nada.

- As coisas mudaram assim tanto? - prosseguiu ela em voz baixa. O que há entre nós arrefeceu assim tanto depois da minha... doença? Olha... posso entender que já não me ames como antes, mas... não sei... podias ter tido a delicadeza de me avisar antes da outra noite. Sobretudo se tencionavas romper comigo a seguir.

Christian olhou para ela, muito sério.

- O que te faz pensar que quero romper contigo?

- Tudo, Christian. A forma como me tratas, a forma como me ignoraras. Eu sabia que o meu regresso à Terra ia ser estranho e que não ias estar constantemente comigo, e também não queria isso, mas é que isto... isto... isto é demais. Voltei à Terra para estar contigo. Deixei Jack para trás para estar contigo. Mas, se não queres estar comigo, então diz-mo claramente, e voltarei a Idhún, para junto de Jack... que, sim, sente saudades minhas de certeza.

- Já falámos sobre isto. Se não quisesse estar contigo...

- Não me deixarias estar em tua casa, eu sei. Mas também sei que, se quisesses estar comigo... estarias comigo. E não é o caso. Não te peço que fiques ao meu lado o tempo todo, nem que abandones o que quer que seja que estás a fazer, mas diz-me... diz-me o que se está a passar. Preciso de saber o que te vai na cabeça, embora seja apenas para saber com o que posso contar, o que posso esperar de ti.

Christian cravou nela um olhar gélido.

- Está bem, o que queres saber?

Victoria, apanhada de surpresa, demorou uns segundos a reagir. Quis perguntar-lhe o que realmente lhe corroía a alma, ou seja, se ele ainda sentia algo por ela; mas temia a resposta e ouviu-se a si mesma a murmurar:

- Dizes que foste sempre sincero comigo. Eu também fui sincera contigo; nunca te escondi o que sinto por Jack. Compreendo que a tua vida privada é privada, mas se existe outra pessoa... especial na tua vida... algo que não seja esporádico, quero dizer... que possa afectar a tua relação comigo...

Calou-se, confusa.

- Estás a perguntar-me por Shizuko, se mantenho uma relação com ela? Porque precisas que to diga? Tu sabes que sim.

Victoria engoliu em seco, temendo o que podia vir a seguir.

- bom - disse, recompondo-se. - Está bem. Sim, acho que o sabia. Respirou fundo várias vezes e depois atreveu-se a fazer-lhe a pergunta cuja resposta era tão vital para ela:

- E em relação a nós? Isso significa que vai tudo continuar na mesma... ou que já não queres continuar comigo?

Fez-se um longo, longo silêncio, que oprimiu o coração de Victoria até o fazer sangrar e que foi para ela mais esclarecedor do que qualquer palavra que ele pudesse ter pronunciado.

- Bem - disse por fim, desolada. - Não é preciso responderes. Já vi que não. Não te preocupes: volto para Limbhad esta noite e amanhã regressarei a Idhún. Não faz sentido continuar aqui.

- Victoria, não é preciso...

- Sim, é. - Ergueu a cabeça para o fitar. - Tenho vindo a notar que não me tratas da mesma maneira, e não tem nada a ver com Shizuko. Posso entender e aceitar que não queiras continuar comigo, e não vou prender-te ao meu lado à força... mas, se tencionavas acabar com esta relação... podias tê-lo feito de outra maneira... antes do que houve na outra noite. Para mim foi importante, mas, se não significou nada para ti, preferiria que me tivesses poupado. Não voltaste a tocar-me desde então... como queres que me sinta? Se já não me queres e, além disso, estás com Shizuko, não precisavas...

- Espera - cortou ele; agarrou-a pelos pulsos e obrigou-a a olhá-lo nos olhos. - Espera, o que disseste?

- Vais obrigar-me a repetir? - ripostou ela, tensa.

- É impressão minha ou - disse Christian, devagar - pensas que cheguei com Shizuko ao mesmo grau de intimidade física que contigo.

É isso que pensas?

- E não é?

- Não, não é. - Parecia até zangado. - Victoria, não lhe toquei. Pela sombra do Sétimo, nem sequer a beijei.

Victoria olhou para ele fixamente; havia raiva no seu olhar. A relação de Christian com Shizuko não a magoava tanto como o facto de que ele mentisse a esse respeito.

- Então porque te sentes tão culpado que até te custa olhar-me de frente?

Aquela pergunta foi para Christian como um balde de água fria. Soltou Victoria e deixou-se cair contra as costas do sofá, aturdido.

- Não estamos a falar do mesmo - compreendeu. - Estamos a falar em línguas diferentes. Mas numa coisa tens razão - acrescentou, dirigindo-lhe um olhar intenso. - Devo-te uma explicação.

Victoria devolveu-lhe o olhar e inspirou fundo para se acalmar. Acomodou-se no sofá, indicando que estava disposta a ouvir.

- Embora pareça humana - começou ele -, Shizuko é uma shek. É Ziessel, a rainha dos sheks. - Victoria arregalou os olhos, surpreendida, mas não disse nada; Christian prosseguiu. - Viu-se presa num corpo humano quando atravessou a Porta... um corpo que acabava de morrer. Shizuko, ou Ziessel, como queiramos chamar-lhe, parece humana, mas não é. Não tem uma alma humana, como nós os dois ou como Jack. O seu espírito, a sua consciência... são os de uma shek.

Victoria abriu a boca para dizer alguma coisa, mas pensou melhor e manteve-se em silêncio.

- Odeia o seu corpo humano. - Continuou Christian. - A simples ideia de ter intimidade física com outro corpo humano é para ela repugnante. Talvez, com o tempo, se acostume ao seu novo aspecto e mude de ideias... ou não.

Seja como for, não é esse o principal motivo de eu não lhe ter tocado. Acho-a atraente, é um facto, mas há coisas nela que me despertam mais a atenção. Muito mais do que o seu corpo. Como, por exemplo, a sua mente.

- A sua mente? - repetiu Victoria.

- Para um shek, o factor mental é bem mais importante do que o físico. Se dois sheks sentem atracção um pelo outro, não perdem tempo com outras coisas; primeiro exploram as suas mentes. E falam. Falam muito, durante horas, sem necessidade de se tocarem, pois aquilo que procuram é outro tipo de intimidade. Assim, o vínculo telepático vai-se tornando cada vez mais estreito, vão-se introduzindo na mente um do outro pouco a pouco...

- Estou a perceber - assentiu Victoria. - E é isso que estás a fazer com Shizuko.

- Nunca tinha tido uma relação com uma shek - confessou ele. - É... diferente. E uma parte de mim ansiava por esse tipo de comunhão com alguém. Percebes?

- Sim - sussurrou ela. - A minha mente não é a de um shek, portanto não podes estabelecer esse vínculo telepático comigo.

Christian sorriu.

- Não podia, mas arranjei maneira de fazer algo parecido. Sabes como? Victoria sabia. Ergueu a mão para olbar para o anel que usava.

- Exacto - assentiu o shek. - Disse-te muitas vezes que não me importa que estejas com Jack, e é verdade. Porque estou unido a ti mesmo à distância.

Victoria baixou a cabeça. Estava confusa, e Christian reparou.

- Creio que não me conheces tanto como pensas - disse-lhe com suavidade. - As relações físicas não me interessam muito, confesso; normalmente tenho coisas mais importantes para fazer, coisas mais interessantes em que pensar. Nisso não deixei de ser um shek, suponho. Embora tenha um corpo humano, não sou tão apaixonado como a maioria dos jovens humanos da minha idade. Essa necessidade de contacto físico com outra pessoa... às vezes sinto-a, mas com pouca frequência. É verdade que tu e eu passámos bastante tempo separados; mas agora estamos juntos, por isso, se quisesse passar a noite com alguém, por que razão necessitaria de procurar outra pessoa?

- Não era assim tão estranho que tivesses deixado de te interessar por mim... como me deste a entender. E já te disse que o compreendo e que posso aceitá-lo. Mas preciso de saber com o que posso contar. E o que esperas de mim. Pela forma como me trataste nos últimos dias, diria que não me queres mais ao teu lado.

Christian reflectiu sobre as suas palavras.

- É porque não sei como tratar-te. Tens razão, sinto-me mal quando olho para ti. Como não dou grande importância às relações físicas, sei que não me sentiria culpado se estivesse com outra mulher. Mas o caso mudaria de figura se nutrisse algo especial por ela. Sentiria que te estava a trair. E julgo que é isso o que me está a acontecer.

Victoria entendeu.

- Christian, estás a apaixonar-te! Outra vez! O shek meneou a cabeça, perplexo.

- É provável. Ou talvez a minha alma de shek apenas ansiasse há muito poder ter intimidade com outro shek. Pode ser que seja apenas saudades daquilo que perdi, ou

que nunca tive. Na melhor das hipóteses, Shizuko atrai-me porque é muito parecida comigo. Ainda é cedo para saber. Além disso, o facto de me sentir culpado em relação a ti significa, suponho, que ainda és importante para mim, de modo que não estou preparado para te deixar ir. Não sei o que realmente quero, Victoria, o que não é algo que me aconteça muitas vezes. Por isso estou bastante confuso e não sei como agir contigo. Desculpa.

Victoria respirou fundo. Agora compreendia a perspectiva de Christian. Não tinha tocado em Shizuko, não partilhara o seu corpo com ela, mas, do seu ponto de vista, estava a fazer algo pior: estava a partilhar a sua mente com a shek e, de alguma maneira, também o seu coração.

- bom... tenho de reconhecer que essa questão me é familiar - disse Victoria, sorrindo. - É provável que acabes por te decidir por uma das duas, ou talvez te aconteça

o mesmo que no meu caso: que a ames sem deixar de sentir algo especial por mim. Então... - hesitou. - Enfim, enquanto continuares a amar-me, estarei aqui para ti, mas era justo que me dedicasses o mesmo tempo que a ela. Ao menos isso - concluiu, com um sorriso.

Christian sorriu por sua vez.

- Seja como for - prosseguiu Victoria -, quando souberes, não deixes de mo dizer.

- Quando souber o quê?

- Se ainda sou importante para ti. Se o que te afastou de mim é esse sentimento de culpa ou se o que há entre nós realmente esmoreceu. Da minha parte, sabes que não. Agora é a tua vez de falar. Se precisas de tempo...

- Talvez precise de um pouco mais de tempo - disse Christian após uma pausa.

- E vais tê-lo - prometeu ela, conciliadora. - vou esperar que tomes uma decisão e irei aceitá-la, seja ela qual for. Mas, por favor, sê sempre sincero comigo. E se algum dia deixar de ser especial para ti, simplesmente diz-mo... mas não me uses - pediu-lhe, com alguma amargura.

Christian dirigiu-lhe um olhar demorado.

- Se te interessa saber - disse em voz baixa -, foi diferente, sim. Victoria ergueu a cabeça.

- Desculpa?

- É o que te estavas a perguntar, não é? Se para mim não és mais do que uma mulher humana com quem mantenho uma relação física, dado que não posso estabelecer um vínculo telepático contigo como faria com uma shek.

- Ah...

- E tenho de te dizer que não. Para mim também foi especial o que se passou na outra noite. E queria que o soubesses.

Victoria não aguentou mais. Lançou-se nos seus braços, enterrou a cara no seu ombro e desatou a chorar suavemente. Christian abraçou-a.

- Era isso que eu precisava de ouvir - soluçou ela.

- Não to disse por precisares de o ouvir. Disse-te porque é a verdade. Pouco a pouco, ela foi-se acalmando. Christian acariciou-lhe o cabelo, pensativo; de repente ergueu-se, alerta.

- O que foi? - perguntou Victoria, inquieta.

Christian não respondeu. Afastou-se dela com delicadeza, levantou-se e saiu para o terraço. Victoria ficou no sofá à sua espera, até que ele regressou muito sério.

- Tenho de voltar ao Japão. Parece que há alterações no nosso projecto.

- Projecto?

- Gerde quer estabelecer uma comunicação entre Idhún e a Terra. Para poder falar com Ziessel sem necessidade de atravessar a Porta interdimensional constantemente. Era isso que estávamos a fazer.

Victoria inclinou a cabeça.

- Estou a ver.

- Tenho de ir, mas já sabes que volto. Sabes... que volto sempre. Victoria sorriu, mas não disse nada. Pouco depois, o shek tinha-se ido embora.

A água agitava-se e estremecia, e a sua superfície adquiria por momentos um curioso brilho azulado, metálico. Shizuko observou-a, pensativa.

- Ainda não estabilizou - disse Akshass.

- Talvez precise de mais tempo - respondeu Shizuko. - Ou de mais da magia de Kirtash.

- Porque é que temos de depender da magia de um meio-shek?

Shizuko tardou a responder. Akshass era um shek jovem, mas promissor. Estava ao seu lado desde o início, desde a guerra em Dingra contra os cavaleiros de Nurgon.

Tinham lutado juntos no bosque de Awa. A shek sabia que Akshass criara ilusões a seu respeito e que não tinha perdido a esperança de voltar a vê-la no corpo de Ziessel, a Bela. Talvez fosse por isso que não suportava Kirtash. O filho de Ashran não só deitara por terra aquelas esperanças com a sua explicação sobre o que tinha acontecido à rainha dos sheks, como também passava cada vez mais tempo com ela, a sós. Além disso, Akshass não esquecia o que já era sabido: o shek que habitava em Kirtash era filho de Zeshak, o predecessor de Ziessel. Zeshak, que, segundo se dizia, também tivera interesse em Ziessel no passado.

Shizuko sorriu para consigo. Sim, era verdade que Zeshak a pretendera. Mas na altura ela não estava interessada em estabelecer um vínculo tão forte com ninguém. Era jovem e tinha muito em que pensar. Zeshak entendera e não insistira.

De certa forma, era irónico que estivesse agora a desenvolver com Kirtash uma relação que não tivera com o pai dele.

Mas as circunstâncias haviam mudado muito. Se alguma vez se sentira tentada a aceitar Zeshak ou Akshass, era óbvio que tais projectos se tinham desvanecido. Não porque não continuasse a possuir a poderosa mente de uma shek, mas, acima de tudo, por ter ficado presa num corpo humano para sempre.

- A técnica de comunicação interdimensional pertence ao terreno da magia - recordou-lhe. -Ele é o único feiticeiro entre nós e possui o poder de abrir portais. Por enquanto, precisamos dele.

- Pelos vistos, dentro em breve isso deixará de acontecer - observou Akshass.

Shizuko não respondeu. Pressentiu a chegada do híbrido antes de qualquer outro shek.

O vínculo telepático entre eles tinha chegado a esse grau de intimidade. Contudo, não se mexeu nem deu a entender que o tinha detectado, até que ele se colocou ao seu lado.

- Chamaram-me? - perguntou, e a sua pergunta chegou à mente de todos os sheks.

- Olha ali - respondeu Shizuko, voltando para a nascente os seus belos olhos orientais.

- O tecido entre as dimensões está a enfraquecer - concluiu Christian após um exame rápido.

- Consegues estabilizá-lo?

- Posso tentar.

Acocorou-se junto à nascente e passou a mão sobre a superfície da água, sem chegar a tocar-lhe. Um brilho prateado cintilou nas ondas, apagou-se e tornou a iluminar as águas. Christian tentou de novo, concentrando-se intensamente.

Apenas uns instantes mais tarde, a superfície do onsen tremeu ligeiramente e de seguida solidificou-se.

Shizuko e os sheks inclinaram-se para a frente, com curiosidade. A camada superficial da nascente transformara-se num espelho de gelo.

Christian levantou-se com a agilidade felina que lhe era característica. Olhou para Shizuko.

- Chama-a - convidou-a, falando-lhe em privado. - Deseja voltar a contactar contigo.

Ela meneou a cabeça.

- Nunca contactou comigo.

- Contactou, sim. Mas na altura não se chamava Gerde. Na realidade nem sequer tinha nome. Agora são duas consciências unidas numa só, sob uma mesma identidade.

- Farei por me lembrar. Mas é difícil imaginá-lo. Presumo que possui as memórias de Gerde, a feérica, somadas às da Voz... que terá vivido muitas vidas, talvez dezenas, das quais conserva inúmeras recordações. Não sei como se pode conjugar todo esse conhecimento numa só pessoa. Talvez isso a tenha tornado instável.

- Ou talvez lhe tenha dado uma visão mais alargada do mundo. O que te posso assegurar é que, em muitos aspectos, continua a ser Gerde.

Shizuko riu interiormente ao perceber o desagrado de Christian, mas o seu rosto continuou impassível, tal como estivera ao longo de toda a conversa.

Inclinou-se junto à nascente e aproximou-se da superfície lisa. A camada de gelo, pura como o cristal, devolveu-lhe o seu próprio reflexo. A sua alma de shek estremeceu de dor ao ver de novo o rosto humano, mas recompôs-se e concentrou-se profundamente. Lançou os tentáculos da sua percepção através do espelho e aguardou que houvesse retorno do outro lado.

Devagar, bem devagar, a sua imagem reflectida foi-se transformando. De repente reparou que a superfície gelada do ansen lhe mostrava o rosto de uma fada que lhe sorria animadamente.

- Saudações, Gerde - disse Shizuko; se estava surpreendida, não o demonstrou.

- Saudações, Ziessel - respondeu ela. Desta vez, Shizuko franziu ligeiramente o sobrolho, desconcertada. Nada na sua aparência externa denunciava a alma de shek que pulsava nela e Christian não tivera ocasião de o revelar a Gerde. Como soubera?

- Mudaste muito desde a última vez que te vi. Que surpresa! - prosseguiu Gerde; reparou então em Christian, ao seu lado. - E Kirtash cumprimentou-o, olhando para ambos. - Que casal encantador - comentou.

Um dos sheks ciciou baixinho com alguma irritação. Shizuko não precisou de olhar para saber que se tratava de Akshass.

- Kirtash disse-nos que tinhas informações importantes para nos transmitir - disse a rainha dos sheks. - Perdemos muitos dias com a criação desta janela interdimensional para nos comunicarmos com Idhún... contigo, por isso espero que o que tens para dizer seja de facto relevante. E que depois nos ponhas em contacto com Eissesh ou com Sussh, para voltar a juntar todos os sheks na mesma rede telepática.

Gerde riu-se despreocupadamente.

- Não precisas de Eissesh nem de Sussh, Ziessel. Tu és a senhora de todos os sheks.

- Por isso mesmo devo comunicar a todos que estou viva - replicou ela, gélida.

- Também eu tenho coisas a comunicar-te. Mas só falarei contigo. Ninguém mais deve estar presente.

Shizuko ia responder que não tinha motivos para mandar a sua gente embora dali: se o que tinha para lhe contar era assim tão importante, todos os sheks deviam sabê-lo. Porém, algo no olhar de Gerde, o olhar que lhe dirigia a partir de uma dimensão distante, inspirou-lhe um súbito terror e fê-la estremecer até à mais íntima fibra do seu ser.

Assim, não se atreveu a contradizê-la.

Rapidamente, pediu aos outros que a deixassem a sós com Gerde. Um pouco contrariadas, uma a uma as serpentes deram meia-volta e rastejaram sobre a neve, em direcção à vegetação, desaparecendo no bosque. Christian dirigiu-se para o refugio, sem dizer palavra. Sabia o que Gerde ia contar à rainha dos sheks. Outrora, só Zeshak, o seu antecessor, soubera que Ashran era o sétimo deus.

Percebeu a chamada de Shizuko a nível privado.

- Aonde vais? - perguntou-lhe.

- Cumpri a missão de que me encarregaram - respondeu ele, sem se voltar nem parar. - Não tenho mais nada a fazer aqui.

- Talvez tenhas - respondeu ela.

- Se assim for, chama-me - respondeu Christian. - Virei ter contigo.

Quando regressou ao seu apartamento, Victoria não se encontrava lá.

Era noite e o andar estava silencioso, frio e escuro. Christian deu por si a sentir a falta da presença luminosa da rapariga e por instantes receou que ela tivesse partido para Idhún. Depois lembrou-se de que não o poderia fazer sem ele e calculou que estaria em Limbhad. Encolheu os ombros, decidindo que iria vê-la mais tarde.

Tinha acabado de acender a lareira quando a porta da rua se abriu. Christian ergueu-se de rompante, alerta, antes de detectar a presença de Victoria. A jovem ia a passar na porta da sala quando o viu; ficou ali sem se decidir a entrar. Os dois fitaram-se demoradamente.

- Fui dar um passeio - disse ela, quebrando o silêncio. - Encontrei as chaves numa gaveta. Presumo que não costumas usá-las, portanto espero que não te importes que as tenha...

- Não - cortou ele com suavidade. - Não me importo.

- Ia-me embora para Limbhad - prosseguiu Victoria -, mas tinhas dito que havia alterações no projecto e... enfim, estava um pouco preocupada, de modo que fiquei aqui à tua espera. Mas como não deixava de pensar em muitas coisas... saí para espairecer.

- Não tens de me dar explicações, Victoria. Está tudo bem.

- E tu? Estás bem?

- Sim. - Sentou-se no sofá e contemplou as chamas, pensativo. - Finalmente contactámos com Idhún. Gerde já tem a ligação que queria com os sheks da Terra.

- Foi o que imaginei - assentiu Victoria, sentando-se ao seu lado, após uma breve hesitação. - Por isso estava preocupada. Se já fizeste o que Gerde queria, talvez não precise mais de ti, então...

- Eu sei. Mas aqui na Terra estou longe do seu alcance, e Shizuko não me prejudicaria sem uma boa razão. Além disso, embora os outros sheks não simpatizem comigo, agora é ela quem manda.

- Até que ponto? Isto é, se ela tomasse uma decisão que não lhes agradasse, aceitavam-na sem mais nem menos se não houvesse uma razão lógica? Afinal de contas, ela é rainha: não pode tomar decisões importantes baseando-se apenas em motivos pessoais.

Christian olhou para ela, sorrindo.

- É curioso - disse. - Ontem mesmo falava-te das diferenças entre o pensamento humano e o pensamento shek... no entanto, pelo que parece, conheces-nos bem melhor do que pensas.

Victoria ficou calada, sem saber se aquilo era uma censura ou um elogio.

- Estive a pensar - prosseguiu ele - em tudo o que aconteceu entre nós ultimamente. Sei que tenho andado frio contigo. Em parte devia-se a Shizuko, mas não só a ela. É que, depois de tudo o que passámos juntos, sentia que havia algo que ainda queria partilhar contigo, um grau de intimidade que tu e eu nunca poderíamos alcançar.

E isso frustrava-me. com Shizuko tenho essa possibilidade, e julgo que isso me fez reconsiderar muitas coisas. Como, por exemplo, até que ponto sentia algo por ti ou estava enfeitiçado pela luz do unicórnio. Sabes do que estou a falar, não sabes?

Victoria assentiu, recordando Yaren, o semifeiticeiro que procurara o unicórnio durante toda a sua vida e que, quando por fim obtivera o que queria, não fora o que esperava.

- Sentiste-te assim depois do que houve na outra noite? - murmurou.

- Em parte. Não, não faças essa cara, já te disse que foi especial para mim e não te menti. Mas não pude evitar perguntar-me o que aconteceria agora, se isto era tudo, se não podíamos chegar mais longe. Tanto o vínculo físico como o sentimental são importantes, Victoria, mas eu sou um shek: necessito de um vínculo mental para fortalecer uma relação, algo que a mera intimidade física não pode dar-me.

No entanto, depois de ter falado contigo ontem, de pôr as cartas em cima da mesa... lembrei-me de que talvez não seja completamente impossível. Afinal, não és apenas humana. És um unicórnio.

- De que estás a falar, Christian? Perdi-me.

- Estou a falar das diferenças entre uma relação física e uma relação mental. Sabes qual é o grau máximo de intimidade que um casal shek pode atingir? Os humanos partilham os seus corpos. Os sheks... fundem as suas mentes.

Victoria ficou petrificada.

- Referes-te a entrar na mente de outrem? Mas isso já tu fazes muitas vezes, não? Quando lês os seus pensamentos, por exemplo.

- vou explicar-te de outra maneira. A mente de uma pessoa é como a sua casa. Há casas maiores ou mais pequenas, casas acolhedoras ou sinistras, casas simples ou labirínticas. A diferença entre a mente de um humano e a de um shek é equivalente à diferença entre uma cabana e um castelo.

- Estou a perceber - assentiu Victoria.

- Quando olho para alguém nos olhos para ler a sua mente, na realidade é como se olhasse para o interior da sua casa através das janelas. Quando quero destruir uma mente, envio parte da minha percepção para atacar as colunas que sustentam a sua casa. Mas fundir duas mentes é algo diferente. Seria como se abandonasse a minha casa para percorrer a tua e tu saísses da tua para visitar a minha. Durante esse período, cada um de nós não estaria em si próprio. Deixaria para trás a sua mente, abandonada e vulnerável. Assim, é algo perigoso, mas também uma demonstração da mais absoluta confiança, pois, quando percorres a casa de outra pessoa, tens de o fazer com a convicção de que a tua está em boas mãos. Não é algo que se possa fazer de ânimo leve. Os sheks chegam a esse grau de intimidade pouquíssimas vezes na sua vida. As vezes, uma só; por vezes, nenhuma.

Victoria respirou fundo, procurando organizar as ideias.

- E isso é o que não podes fazer comigo - resumiu.

- Isso é o que eu pensava que não podia fazer contigo - rectificou Christian. - Mas a verdade é que nem tentámos.

Olhava para ela seriamente e com uma intensidade que fez lembrar a Victoria os primeiros tempos da sua relação, quando se viam em segredo, quando era um amor proibido. O coração começou a bater mais depressa.

- Estás a dizer-me... que queres fundir a tua mente com a minha? -Sim.

Victoria não soube o que dizer. De momento, procurava compreender as implicações do que Christian lhe estava a propor.

Por um lado, a ideia de entrar na mente do shek, tão impenetrável e ao mesmo tempo tão enigmática, seduzia-a até limites insuspeitos, tal como saber que ele conheceria até os seus mais íntimos segredos. Aquilo derrubaria por fim o muro de gelo que por vezes se erguia entre os dois e ajudaria Victoria a compreender melhor o jovem por quem se apaixonara.

Por outro lado, tal como o descrevera, o shek tinha razão: a fusão das mentes era algo muito íntimo... demasiado, talvez. Afinal, o que seria Christian sem o seu mistério? E será que não havia coisas que ela queria guardar para si? Até que ponto podia esquecer-se de si mesma por amor?

- Antes de me responderes - prosseguiu ele -, quero que tenhas em conta três pontos importantes. Primeiro, certas coisas na minha mente não são agradáveis, por isso não vais gostar delas.

Victoria desviou o olhar, perturbada. Sabia a que se referia.

- Supostamente deverei conseguir viver com isso - respondeu, após uma pausa. - Sei quem és e o que fizeste. Soube-o desde o primeiro momento, por isso, se de facto te amo tanto como julgo, por muito que me doa o que vir na tua mente, os meus sentimentos por ti não deverão mudar.

Christian sorriu.

- Segundo - prosseguiu -, é preciso no mínimo uma mente shek. Ou seja, teoricamente é algo que podes fazer comigo, mas nunca com Jack.

Victoria abriu a boca para dizer algo, mas não o fez.

- Sabes porque é que estou a falar nisso, não sabes? Desde o início esforçaste-te muito em dar-nos a mesma coisa aos dois, mas, se fundirmos as nossas mentes, teremos alcançado um grau de união que jamais poderás ter com Jack. Tens de ter isso em conta.

Victoria reflectiu. Depois, o seu rosto iluminou-se com um sorriso rasgado.

- Mas isso também não é um impedimento - afirmou -, porque Jack e eu fundimos os nossos espíritos há muito tempo.

Desta vez, foi a vez de Christian ficar surpreendido.

- Fizeram o quê?

- Ele não se lembra, o que não me admira. Eu só o soube recentemente. Sabes, quando Yandrak e Lunnaris foram enviados para a Terra através da Porta, houve uma altura em que os seus espíritos se cruzaram... e por um momento foram um. Depois separaram-se e reencarnaram. Tomei consciência disso quando julguei que Jack tinha morrido. Foi como se me tivessem arrancado uma parte de mim e, nesse preciso instante... a minha alma soube porquê.

Christian abanou a cabeça, perplexo.

- Por isso é que têm uma conexão espiritual tão grande! Uma conexão que se foi tornando mais forte à medida que Yandrak e Lunnaris iam despertando dentro de vocês.

Victoria assentiu.

- Assim, se a fusão mental proporciona de facto uma união tão íntima, não me importaria de o fazer contigo. Embora a ideia de deixar de ser eu me assuste um pouco.

- Na realidade, não deixas de ser tu - tranquilizou-a ele. - Mas, sim, é verdade que deixas para trás algo muito importante. Por isso há que pensar bem.

- E tu, pensaste bem? - perguntou-lhe ela, com curiosidade. - Ontem dizias-me que não sabias se querias continuar comigo e hoje propões-me isto... Não te entendo.

- Tenho andado a pensar. Só que julgava que não era possível, por isso nem me passou pela cabeça tentar pô-lo em prática. Lembras-te do que te disse sobre a cabana e o castelo? Se fundisse a minha mente com a de uma humana, sentir-me-ia muito apertado - disse, sorrindo. - Mas tu és algo mais. A tua consciência é, em parte, a de um unicórnio. Não creio que seja a mesma coisa. Não pode ser a mesma coisa.

- E se não correr bem? - perguntou Victoria. - E se depois te sentires decepcionado?

- Não sei - murmurou Christian. - A sério que não sei. Permaneceram em silêncio por um instante, navegando num mar de incerteza.

- Talvez - aventurou ela então - o que importa não seja o que vais encontrar na minha mente, mas sim o facto de eu ser suficientemente importante para ti para quereres tentar. Não achas?

O shek assentiu.

- Se te servir de consolo - disse em voz baixa -, também vais ser a minha primeira vez. Nunca fundi a minha mente com a de ninguém.

A jovem ergueu a cabeça, surpreendida. Christian fitava-a, muito sério, e Victoria susteve o seu olhar, enquanto o coração lhe batia com tanta força que ameaçava sair-lhe do peito.

- Christian - sussurrou, comovida, abanando a cabeça. - Como é possível? Às vezes dizes-me estas coisas... trazes-me a tua casa, propões-me que una a minha mente à tua... e outras vezes deixas-me sozinha durante dias para rondar uma shek e duvidar dos teus sentimentos por mim. Não há quem te entenda.

- Sou um ser complexo - replicou ele, imperturbável. - Mas o que tens de saber para já é que nunca te minto. E quando te digo uma coisa é porque a sinto realmente. E isso leva-me ao terceiro ponto.

- De que se trata?

- Do que comentei antes. Fundir as mentes implica ter uma confiança total na outra pessoa, por isso, diz-me: confias em mim?

Fitaram-se longa e intensamente.

- E tu? - perguntou Victoria, sorrindo, sem responder à pergunta. Confias em mim?

- Cegamente - respondeu Christian sem duvidar. - E por vezes penso que gostaria de poder dar-te motivos para que tu sintas o mesmo. Para que confies em mim da mesma forma que confias em Jack. Mas sei que não te tratei como ele. E sei que...

- Eu sei... - cortou ela. - Que não devia confiar em ti. Mas confio, Christian. De verdade.

Ele sorriu. Acariciou-lhe a face com suavidade. Era o primeiro gesto terno dele desde há muito, e o coração de Victoria bebeu avidamente daquela sensação.

- É por isso - murmurou Christian - que me custa tanto imaginar sequer a possibilidade de te deixar partir.

- Se não queres deixar-me partir, então não deixes, Christian. com Shizuko ou sem ela, continuarei aqui enquanto o desejares. Só não quero que me retenhas quando já não significar nada para ti.

- Continuas a ser importante para mim - assegurou-lhe Christian. Caso contrário, não te estaria a pedir que fundisses a tua mente com a minha. De qualquer forma, não quero pressionar-te. Deves precisar de tempo para pensar...

- Já pensei - atalhou ela. Olhou-o nos olhos. - Sim, quero fazê-lo. Por uma vez, Christian pareceu ficar sem palavras.

- Mas há uma coisa que me preocupa - indicou Victoria. - Terás acesso a todos os meus sentimentos e memórias, e eu... há uma parte que prefiro que não conheças, porque é privada. Não por mim, mas porque essas lembranças não são só minhas.

- Jack - adivinhou ele.

- Achas mal que imponha restrições? - perguntou ela, inquieta.

- Não. Pelo que sei até é habitual. Normalmente, pede-se ao outro que respeite as divisões da casa que correspondem a uma relação anterior. A razão, explicaste-a muito bem: essas lembranças não pertencem somente a ti. Não te preocupes; não tenho interesse nenhum em saber os pormenores da tua relação com Jack: isso é algo que só diz respeito a vocês os dois.

- Está bem - assentiu Victoria; aproximou-se um pouco mais dele, com alguma timidez. - Então, não preciso de pensar mais. A resposta é sim.

Tentou relaxar, mas era difícil. O coração continuava a bater descompassadamente e a sua respiração estava agitada e irregular, como se tivesse estado a correr. Apesar de tudo, não se mexeu. Não afastou o olhar dos olhos de Christian, os olhos azuis de Christian, que se cravavam bem no fundo da sua alma como um punhal de gelo, como da primeira vez que ele olhara para ela.

- Calma - sussurrou ele de um recanto da sua mente. - Não tenhas medo.

Victoria estendeu as mãos, procurando as dele. Encontrou-as e estreitou-as com força, enquanto o seu olhar continuava cravado no de Christian, sem se afastar dele nem por um instante.

- O que tenho de fazer? - pensou.

- Continua a olhar-me nos olhos e procura ver para além deles. Estou a criar uma ponte. Encontra-a e ousa atravessá-la.

Victoria engoliu em seco. Sentia que os fios da consciência de Christian teciam uma rede cada vez mais cerrada em torno da sua própria mente, enquanto ela permanecia onde estava. Concentrou-se nos olhos de Christian e deixou que o seu olhar a fizesse estremecer toda, como acontecera no passado. Se o shek estava nervoso, claramente não o dava a entender, pois continuava a mostrar-se frio e sereno, como sempre. Na realidade, essa era uma das coisas de que mais gostava nele.

Subitamente, as íris de gelo de Christian tornaram-se algo mais. Victoria começou a ver nelas formas que se moviam como fantasmas do outro lado. Fascinada, continuou a olhar. As figuras moviam-se e então começaram a girar, e Victoria sentiu que alguma coisa a puxava, como se a sugasse para ele. Deixou escapar uma exclamação alarmada e quis resistir, mas depois lembrou-se porque é que estavam a fazer aquilo e as palavras de Christian voltaram a ressoar na sua mente:

- Encontra a ponte e ousa atravessá-la.

Victoria respirou fundo e deixou-se levar. Então tudo à sua volta começou a girar.

Encontrou-se de repente num espaço escuro. Olhou em redor, assustada, mas a escuridão era só aparente. Rapidamente, tudo se foi aclarando à sua volta.

Sentiu-se constrangida com o que viu. Encontrava-se num mundo cheio de imagens, de sons, de palavras... diversificado, rico, enorme e, apesar de tudo, cuidadosamente ordenado. Victoria ficou onde estava, maravilhada. Fixou a sua atenção na imagem mais próxima e puxou-a, e saiu um fragmento de memória completo. Viu-se a si mesma a falar com Christian, mas do ponto de vista dele. Aquilo era estranho.

Ambos estavam no apartamento dele, sentados no sofá. Victoria vestia a mesma roupa, pelo que deduziu que era uma lembrança imediatamente anterior. Chegou-lhe o som da sua própria voz: "Supostamente devia conseguir viver com isso. Sei quem és e o que fizeste." Sorriu para si.

Compreendeu que estava no nível superficial da consciência de Christian, por isso procurou mover-se naquele espaço. Bastou-lhe apenas desejá-lo para o conseguir.

Durante algum tempo, não saberia dizer quanto, vagueou pela mente de Christian e entendeu o que ele tinha querido dizer ao compará-la a um castelo. Não eram só recordações que armazenava ali, mas também ideias, pensamentos, raciocínios... alguns tão complexos que Victoria tinha dificuldade em segui-los. Estava tudo tão ordenado que à partida parecia simples movimentar-se por ali; todavia, era tão vasto que dava a sensação de não terminar nunca.

Deparou por casualidade com algumas lembranças e pensamentos acerca de Shizuko e decidiu não lhes tocar; Christian não lhe pedira que não o fizesse, mas preferiu respeitar a sua privacidade, da mesma forma que ele ia respeitar a dela.

Encontrou também recordações relativas a Ashran. Aquele homem inspirava em Victoria um intenso terror, mas descobriu que tinha sido importante para Christian e que este o respeitara até ao fim.

Encontrou pensamentos e recordações referentes à etapa que passara na Terra. Viu os idhunitas exilados morrer, um após outro, sob o seu olhar de shek, e sentiu um arrepio, não tanto pelas suas mortes, mas pela indiferença com que estavam arquivadas na memória de Christian. Dedicou um pensamento a cada um deles, vítimas de uma guerra absurda, mas foi incapaz de sentir ódio, rancor ou até repulsa pela pessoa que os matara. Perguntou-se se, caso fosse completamente humana, teria odiado Christian por tudo aquilo. Não tinha como saber.

Num nível mais profundo, encontrou os momentos dedicados a ela.

Reviver aquelas sensações na perspectiva dele e conhecer os pensamentos que lhe dedicara, bem como a opinião que Christian tinha dela, emocionou-a e fê-la sentir-se muito melhor. Depois viu-se a si mesma mais jovem, quase uma criança, presa entre o fio de Haiass e o tronco de uma árvore; era a primeira vez que se tinham olhado nos olhos. Surpreendeu-se ao ver a expressão que o seu próprio rosto assumira: sim, reflectia medo; mas também um fascínio profundo, e havia um brilho de emoção intensa no fundo do seu olhar.

Suspeitava-o, mas nunca tivera a certeza. Agora, a evidência atingia-a como um raio.

Naquela noite, quando ele lhe estendera a mão, quando lhe dissera "vem comigo..." ela já estava apaixonada. Podia negá-lo a si mesma na altura, mas a forma como olhava para o shek traía o sentimento que o seu coração albergava.

Aquela recordação era clara e vívida, o que indicava que Christian a evocara muitas vezes e que a guardava como um tesouro num recanto da sua mente.

Se estivesse unida ao seu corpo naquele preciso instante, teria corado.

Continuou a percorrer aquela secção, envolvida pelos pensamentos e sentimentos de Christian em relação a ela. Era uma emoção agradável, mas não tão quente quanto Victoria imaginara. Até ali, num nível profundo da sua consciência, a lógica implacável do shek tentava explicar e racionalizar tudo o que sentia. Assim, o seu amor por Victoria não era ardente nem apaixonado, mas, em contrapartida, possuía bases firmes e sólidas. Christian tinha razões para a amar; procurara-as durante anos, encontrara-as e deixara que os seus sentimentos crescessem sobre aquela lógica. Se alguém lhe perguntasse porque é que fazia as coisas que fazia, conseguiria encontrar uma explicação, e isso reforçava os seus actos e reafirmava as suas crenças.

Victoria continuou a avançar e deixou aquela zona para trás, com algum pesar. Logo de seguida estava tudo o que se relacionava com Jack, e era um ódio tão obscuro, tão sinistro que a jovem sentiu um arrepio de terror. Porém, aquele ódio estava rodeado de fortes raciocínios lógicos que repetiam uma e outra vez os motivos por que não devia atacar Jack. Victoria observou, maravilhada, como a mente do shek lutava para manter o instinto prisioneiro, para acorrentá-lo à sua consciência, para ter poder sobre ele. Mas o instinto lutava contra aquelas correntes e ameaçava toldar a sua mente. Victoria afastou-se dali, triste.

Num nível ainda mais profundo, encontrou imagens de uma mulher sem rosto e sem nome. Soube que era a mãe de Christian e entendeu que a questão não era ele não se lembrar dos pormenores, pois, de uma maneira ou de outra, fica tudo na mente, sendo o facto de não conseguirmos aceder a essas recordações aquilo que nos faz esquecer. No caso de Christian, as recordações simplesmente não existiam. O rosto da sua mãe tinha sido apagado. Por mais que se esforçasse, não conseguiria recordá-lo.

Continuou a deambular por ali, perdida na complexa rede de níveis de consciência do shek. Aprendeu muito sobre ele e sobre os sheks em geral, através das lembranças do tempo que Christian passara com eles. Compreendeu algumas coisas que considerava um mistério e verificou, com alegria, que ao fazê-lo o fascínio que sentia por Christian não diminuía; pelo contrário, continuava a admirá-lo intensamente e, à medida que o conhecia melhor, amava-o mais ainda.

Perguntou-se então o que é que o shek estaria a encontrar na sua mente e, por um momento, teve medo de que ele não visse nada de grandioso nem de belo nela, mas sim... algo simples e pequeno, como uma cabana, como ele dizia. Perante aquele pensamento, algo a puxou e ela percebeu que, se desejasse regressar, fá-lo-ia de imediato. Assim, esforçou-se por pensar noutra coisa e continuou a percorrer as galerias da consciência de Christian, perdendo-se no enorme emaranhado da sua mente.

Christian, por seu turno, não se estava a mover. Tinha ficado exactamente no mesmo lugar.

Tinha examinado outras vezes a mente de Victoria, intuíra o que podia encontrar ali, mas as suas suposições não tinham nada a ver com a realidade.

Sempre lhe parecera que a consciência da rapariga era simples, clara, porque era fácil ver tudo o que pensava. Agora que estava dentro dela, apercebia-se de que era muito mais complexa do que imaginara. O que acontecia, simplesmente, era que os níveis da sua mente eram tão luminosos e transparentes que podia vê-los todos em simultâneo. Assim, se a mente humana era uma cabana e a de um shek, um castelo, a mente de Victoria era como um belíssimo palácio de cristal, muito pequeno em comparação com a mente dele, mas puro e diáfano. E todos os recantos da sua consciência mostravam um delicado emaranhado de pensamentos, subtil como o luar, brilhante como uma gema irisada.

Christian dedicou bastante tempo a contemplar a mente de Victoria a partir dali. Sem ter de se deslocar, era capaz de alcançar os diversos níveis da sua consciência, admirando as filigranas que as suas ideias, as suas lembranças e os seus sonhos formavam. Tinha medo de se intrometer nos níveis mais profundos: temia estragar alguma coisa. Finalmente, a sua curiosidade foi mais forte e a sua consciência percorreu a mente de Victoria com cuidado. Aproximou-se dos seus pensamentos, dos seus anseios mais secretos, das suas recordações mais preciosas. Descobriu a Victoria oculta, a rapariga que habitava num recanto da sua própria consciência, um lugar não impregnado pelo amor que sentia por Jack e por Christian. Um lugar só para ela.

Ali, Christian encontrou Victoria, simples e pura, unicamente ela mesma; e gostou.

Porém, saiu logo de lá. Não queria perturbar aquele lugar secreto, que lhe pertencia apenas a ela, com a sua presença. Evitando cautelosamente as zonas por onde vagueavam pensamentos e sentimentos dedicados a Jack, Christian continuou a explorar a mente da rapariga, admirando os arcos cristalinos que sustinham a sua consciência. Então entendeu porque é que lhe parecia tão belo.

A mente de Victoria era delicada e transparente, como o cristal... como o gelo.

Pouco a pouco, ambos regressaram aos seus corpos... às respectivas mentes. Permaneceram bastante tempo em silêncio, digerindo tudo o que tinham experimentado, acostumando-se de novo a ser eles mesmos. Victoria apoiou a cabeça no peito de Christian, com um breve soluço de emoção. Ele rodeou-a com os braços, fechou os olhos e pousou os lábios sobre o seu cabelo.

Nenhum dos dois falou. Estavam demasiado extasiados; aquele momento era demasiado mágico para o estragar com palavras.

"Se assim for, chama-me", dissera o shek. "Virei ter contigo."

Shizuko chamara-o, mas no fundo do coração duvidava que ele lhe respondesse. Tinha cumprido o que se esperava dele e devia calcular que estava em perigo. Era lógico que se refugiasse no seu usshak e não voltasse a sair dali, pelo menos até que estivessem tão ocupados com outras coisas que se esquecessem dele.

Essa era a conduta mais lógica, mais racional. Se ele agisse assim, Shizuko entenderia.

Porém, algo nela estremecia de angústia perante a possibilidade de não voltar a vê-lo.

Por isso, quando Christian apareceu de novo na varanda do seu apartamento, Shizuko sentiu-se aliviada, embora não o demonstrasse.

- Uma vez mais, fazes-te de difícil - comentou com suavidade ao vê-lo. Estava deitada na cama, a tentar dormir em vão, quando a presença do híbrido no terraço reclamara a sua atenção. Vestira um roupão de seda azul, uma das poucas coisas que conservava da verdadeira Shizuko, porque o tacto suave e leve daquela peça era agradável, e saíra para se encontrar com ele.

Christian não se moveu. Estava apoiado no parapeito, sereno e frio, como de costume.

- Estive ocupado - disse.

- E corres outra vez um grande risco. Tens consciência disso, não tens?

- Sim. Mas disse que viria se me chamasses e costumo cumprir a minha palavra.

- Estás curioso?

- Em parte. Marcaste o encontro aqui, o que significa que não me vais matar. Estou a partir do princípio de que uma execução costuma ser feita diante de testemunhas.

- Não te vou matar para já - respondeu Shizuko. - Na realidade, espero não ter de o fazer.

- Isso significa que Gerde quer mais alguma coisa de mim. Também espero que o que me vais pedir não te obrigue a matar-me. Não só por mim, mas também por ti. Se eu me negasse, irias enfrentar um dilema interessante.

- Achas?

- Escolher entre o que queres fazer e o que deves fazer. Entre os sentimentos e a razão. Oh, sei do que estou a falar. É algo que pode mudar a tua vida, porque, uma vez decidido, já não há volta a dar.

- Talvez. Mas não quero ter de chegar a isso. Tudo depende de ti.

- É bem provável Embora o facto de admitires essa possibilidade signifique que a tua vontade deixou de te pertencer, E isso quer dizer que já sabes que o que te contei acerca de Gerde é verdade.

- Sim - respondeu Shizuko, e aquele pensamento estava mais marcado de temor e de respeito

reverencial do que de afirmação. - Mas como é possível?

Christian inclinou a cabeça.

- Ando há já algum tempo a procurar compreender as razões dos deuses, mas ainda não sei ao certo a que estão a brincar, nem que sentido tem a guerra que andam a travar desde o início dos tempos e que envolveu tantas criaturas ao longo dos séculos. A única coisa que sei é que o Sétimo não é como os Seis. Porque o Sétimo adopta identidades mortais e os Seis não. Não sei o que isso significa.

- Significa que o Sétimo está muito mais próximo das suas criaturas do que qualquer outro deus...

- Para o bem ou para o mal - pensaram os dois ao mesmo tempo. Ficaram por um momento em silêncio, enquanto desenredavam os seus pensamentos enlaçados, com suavidade.

- O que foi que Gerde te pediu? - indagou então Christian.

- Nada que não possas cumprir, ou pelo menos é o que penso. O que me faz crer que não te quer perder. E isso significa que talvez tenhas uma opor tunidade de regressar para junto de nós. Apesar da desgraça que causaste aos sheks, se ela me der motivos para te perdoar, poderei fazê-lo em nome de todos os sheks.

Christian deixou que fluísse até ela um breve pensamento de cepticismo amargo.

- Perdemos um mundo por tua causa - disse Shizuko. - Mas, se nos ajudares a conquistar outro, talvez fiquem perdoadas as ofensas antigas.

- Perdoadas - repetiu Christian. - Não esquecidas.

- Tem de se começar por algum lado. Não obstante, o que te pediu é coisa pouca, de modo que imagino que com o tempo terás de realizar tarefas mais importantes. De momento, só tens de me trazer a rapariga.

- Victoria? Lamento, não posso.

- Ela sabia que dirias isso - comentou Shizuko; não havia rancor nem amargura nas suas palavras. - Pediu-me que especificasse que não lhe quer fazer mal, só quer vê-la. Disse-me que te prometesse que não lhe acontecerá nada. A única coisa que tens de fazer é conduzi-la à janela interdimensional para que Gerde a veja. Estando em Idhún, não pode tocar-lhe, e eu irei encarregar-me de que nenhum shek íhe faça mal, dado que é tão importante para ti. Depois, poderás levá-la de volta para o teu usshak.

- A minha resposta continua a ser não. E não é porque não confie em ti. Não confio é nela.

- Se te recusares, Kirtash, teremos de te matar. E não quero que isso aconteça.

- Não te posso fazer a vontade. Fitaram-se longa e dolorosamente.

- É uma conduta irracional, Kirtash - censurou-o ela. - Sabes perfeitamente o motivo de Gerde querer vê-la. Se te recusares a mostrar-lha, estarás a confirmar as suas suspeitas. Ou seja, de qualquer das formas, estás a dizer a Gerde o que ela quer saber.

- Eu sei. É precisamente por isso que não posso íevar Victoria até ela. Shizuko não respondeu. Os dois permaneceram em silêncio durante

bastante tempo, um silêncio negro e cheio de incerteza, até que ela disse:

- Depois de amanhã, ao amanhecer, encontra-te comigo junto à janela interdimensional. Traz a rapariga. Se não a trouxeres... é melhor não voltares. Para o teu bem.

Christian não disse nada.

- Talvez não seja eu quem se encontra perante um dilema - fez-lhe notar Shizuko, calmamente. - Tu é que tens de perceber até que ponto queres voltar a ser um de nós. E o shek que habita em ti, e que eu vejo debaixo desse frágil disfarce humano, deseja regressar à rede, deseja-o com toda a sua alma. Assim, tens de decidir a quem preferes ser leal. Embora, no fundo do teu coração... saibas.

Christian dirigiu-lhe um olhar demorado.

- Vemo-nos dentro de dois dias - disse apenas. - Em Hocoido. Depois desapareceu na noite, apenas uma sombra subtil recortada contra as luzes de Tóquio; e Shizuko ficou sozinha no terraço, enquanto a brisa revolvia o seu cabelo e arrefecia agradavelmente a sua pele humana. No entanto, ela envolveu-se mais no seu roupão, inquieta. Por uma vez, o calor era reconfortante.

Encontrou Victoria sentada no sofá a ler umas folhas, alheada. Tinha esquecido em cima da mesinha uma sanduíche meio comida. Quando a sombra de Christian lhe tapou a luz, Victoria ergueu a cabeça, sobressaltada.

- Não te tinha ouvido chegar - sorriu.

Os dois trocaram um olhar cheio de entendimento e cumplicidade. Sentiam-se mais unidos do que nunca e gostavam daquela sensação.

Christian sentou-se ao seu lado e indicou a pasta que descansava sobre os seus joelhos.

- Vejo que finalmente te decidiste - comentou. O rosto de Victoria ensombrou-se.

- Depois de tudo o que aprendi sobre ti, não gostava de pensar no pouco que sabia acerca de mim mesma. Além disso, tu conhecias toda esta informação. Podia ter-me deparado com ela a qualquer momento, enquanto explorava a tua mente. Se isso não aconteceu, foi porque a tua mente é demasiado grande para eu a conhecer na totalidade em tão pouco tempo - acrescentou, com um sorriso e um ligeiro rubor nas faces. Mas podia ter sabido de tudo isto por casualidade, por isso não fazia sentido continuar a virar-lhe as costas.

- Sei do que é que tinhas medo - disse Christian com doçura. - É parte da tua história como humana. E há algum tempo que já não desejas ser humana.

Victoria abanou a cabeça.

- Estive fraca; passei muito mal. E demasiado recente para o ter esquecido ou para querer voltar a passar por isso.

- No entanto, é o nosso corpo humano que nos permite estar juntos... amar-nos. Não sei se devias rejeitar essa parte humana assim de ânimo leve.

- A sério? - Victoria sorriu sem alegria. - Não foi há tanto tempo assim que todos pensámos que tinha ficado completamente humana. Ainda me lembro da decepção nos teus olhos e nos de Jack. A minha parte humana não te agrada, Christian. Na realidade, se fosse apenas humana, não teríamos podido partilhar o que tu e eu partilhámos ontem à noite. Teríamos mantido uma relação física que, por muito importante que pudesse ser para mim, não seria suficiente para ti. Estou enganada?

- Não. Mas não és só humana, Victoria, e a chave está aí. A verdade é que nem sequer eras só humana quando eras um bebé.

Victoria entendeu porque é que ele o afirmava. Baixou os olhos para as folhas que tinha estado a ler.

- Foi por isso? - perguntou em voz baixa. - Foi por isso que eu sobrevivi ao acidente e os meus pais não?

Christian assentiu.

Quer quisesse quer não, Victoria sentiu um nó na garganta. O certo era que aquela história a comovera profundamente. Embora não soubesse ainda como é que Christian arranjara maneira de descobrir tudo aquilo, de repente compreendeu que não se importava.

Ali, nas folhas que aquela pasta continha, o shek anotara os pormenores da sua origem, pormenores que Allegra não chegara a contar-lhe. Victoria soube então que,

embora tivesse nascido em Espanha, as suas raízes estavam noutro lugar. Os seus pais, Germán e Miranda, haviam emigrado da Argentina pouco antes de ela vir ao mundo.

Tinham procurado ganhar a vida no país que os acolhera, um pouco a contragosto, com o trabalho dele como pedreiro e o dela como empregada de mesa numcafé. Quando Victoria nasceu, Miranda tivera de abandonar o seu trabalho e a família passara necessidades. Contudo, apenas uns meses mais tarde, tudo terminara em tragédia, com um brutal acidente rodoviário. Os pais de Victoria tiveram morte instantânea, mas ela não sofrera um único arranhão.

- Porque não me levaram de volta para a Argentina? - murmurou Victoria. - Os meus pais não tinham lá família?

- Também eu me fiz essa pergunta - respondeu Christian. - Pelos vistos, a família da tua mãe não aprovava a relação dela com o teu pai. Partiram para Espanha com o intuito de começar uma vida nova juntos e cortaram os laços com os seus pais. Talvez os retomassem com o tempo... se tivessem tido oportunidade. Nem chegaram a contar-lhes do bebé, de modo que as autoridades espanholas não souberam bem o que fazer contigo. Os teus avós não sabiam que existias.

- E acabei num orfanato - disse ela, um pouco perplexa.

- Acabaste em casa de Aile Alhenai, uma das mais poderosas feiticeiras de Idhún. Encontrou-te em Madrid, mas julgo que te teria encontrado de qualquer forma, mesmo que te tivesses escondido no lugar mais remoto do mundo.

- Encontrou-me antes de ti - observou Victoria, erguendo os seus grandes olhos para ele. - E tu sabias quem ela era antes de eu saber. Pareces saber sempre tudo.

- Tudo, não. Mas muitas coisas, sim. Descobri quem ela era e perdoei-lhe a vida porque te protegia. E esse foi um grave erro da minha parte.

Victoria olhou para ele, perplexa.

- Estás a dizer que devias ter matado a minha avó nessa altura?

- Quatrocentos e vinte e sete sheks - declarou Christian. Victoria emudeceu.

Qaydar e Allegra tinham matado quatrocentos e vinte e sete sheks na batalha de Awa. com um único feitiço combinado, aproveitando-se do ponto fraco das serpentes

aladas: o fogo.

- Cumpri o meu dever - acrescentou Christian. - com eficácia e exactidão, durante cinco anos. Depois comecei a falhar. Jurei a mim mesmo que te protegeria, mas por vezes penso que deveria ter matado todos os outros. O dragão que acabou com o império dos sheks. O feiticeiro que liderou o ataque à Torre de Drackwen. O guerreiro que reconquistou Nurgon. A feiticeira que acabou com quatrocentos e vinte e sete dos meus. Matei todos os renegados, menos quatro, e cada um deles, à sua maneira, foi fatal para os sheks.

- Se te tivesse acompanhado naquela altura - murmurou Victoria -, quando me estendeste a mão... ter-nos-íamos poupado a tudo isto.

Christian ficou em silêncio durante algum tempo. Depois afirmou:

- Não tenho a certeza disso. Ou será que não acreditas que Jack lutaria para te recuperar?

Victoria não se manifestou. Christian olhou para ela intensamente.

- No entanto, deste-me a mão naquela noite - disse com suavidade. Muitas vezes perguntei-me porquê, mas ontem, enquanto percorria a tua mente, soube.

- O que é que soubeste?

- Que tu e eu somos em parte feitos do mesmo. Os unicórnios, Victoria, não são inimigos dos sheks. Nunca foram. Uma vez disse-te que tu e eu não éramos assim tão diferentes, mas até ontem não sabia até que ponto tinha razão.

- O que queres dizer com isso? - perguntou Victoria, cada vez mais intrigada.

Mas Christian limitou-se a olhar para ela, sorrindo enigmaticamente.

- Gelo e cristal - foi a única coisa que proferiu.

 

                 A IRA DE NELIAM

Porto Esmeralda encontrava-se sobre uma altíssima falésia, protegida por uma enorme muralha que a separava do mar; uma muralha que lembrou a Jack uma mandíbula de longas e afiadas presas. Tal devia-se às suas grandes torres cónicas, cujo topo eram pequenas plataformas que pareciam lugares estratégicos para observar o mar.

Mais tarde, veio a saber que no alto de cada uma das torres se situava um grande corno que costumava soar quando a maré subia e descia. Os encarregados de perscrutar dali o horizonte e de fazer soar o corno, mesmo com nevoeiro, vento ou chuva, recebiam o nome de vigilantes das marés.

Jack planou por um instante sobre Porto Esmeralda, admirando a impressionante cascata que o rio Adir formava ao cair a pique do alto da falésia, por uma comporta aberta na muralha.

- Pousa nos arredores da cidade! - gritou-lhe Shail. - Estás a chamar demasiado a atenção!

- Porque é que se chama Porto Esmeralda? - perguntou Jack por sua vez, intrigado. - Onde estão os barcos?

Pela forma como fora construída, dava a sensação de que a cidade se defendia do mar com unhas e dentes, em vez de se abrir a ele. Aos seus ouvidos chegou o riso alegre de Shail.

- Mostro-te quando descermos - respondeu-lhe.

Pousaram junto ao rio, longe das muralhas. Jack transformou-se logo em humano, dado que, não muito longe dali, havia um caminho que levava directamente às portas da cidade. Também Alexander queria passar despercebido. Colocou uma capa sobre os ombros e cobriu a cabeça com um capuz. E assim precavidos, dirigiram-se para a cidade.

As portas de Porto Esmeralda estavam abertas de par em par, embora quem pretendesse entrar na cidade, quer fosse de carroça, a cavalo ou a pé, tivesse de dizer o seu nome e o motivo da visita aos guardas que aí se encontravam. Porém, enquanto estavam na fila, Jack verificou que muitas das pessoas entravam sem cumprir aquela formalidade; pelos vistos, eram quase todas habitantes de Porto Esmeralda ou então costumavam visitá-la com frequência, pois os guardas já as conheciam. Estava a tentar imaginar o que é que Shail pensara dizer e como deviam agir no caso de os guardas reconhecerem Alexander, quando um deles os saudou entusiasticamente.

- Eh! - exclamou. - Há quanto tempo não te via, Fesbak! Perante a sua surpresa, Shail respondeu:

- O mesmo digo eu, Estrik! Vejo que continuas na porta!

- Já viste?! - brincou o guarda. - Mas não perdi a esperança de que me deixem entrar um dia destes.

Shail riu, de bom humor. Jack olhou para ele, perplexo.

- Como é que te chamou?

- Fesbak. É o nome da minha família. Como somos muitos irmãos, quem nos conhece tem problemas para recordar os nomes de todos, por isso chamam-nos assim.

- Família? - repetiu Jack. - Queres dizer que vivem aqui?

- Somos daqui - corrigiu Shail. - O meu pai, a minha mãe e os meus irmãos e irmãs. Para não falar dos meus tios, primos... Se a cidade não fosse tão grande, metade dos seus habitantes teriam parentesco connosco.

Jack sorriu, ainda um pouco surpreendido. Nunca lhe ocorrera que Shail pudesse ter família... mas, se parasse para pensar no assunto, a verdade é que nunca lhe fizera perguntas a esse respeito.

Aproximaram-se dos guardas, mas Estrik não mostrou muito interesse em saber quem eram os acompanhantes de Shail nem qual o motivo que os trazia à cidade. Em vez disso ficou na conversa com Shail acerca do que tinha acontecido em Nandelt nos últimos anos. Presumiu que o feiticeiro tivesse permanecido na Torre de Kazlunn desde o dia da conjunção astral, como a maioria dos feiticeiros de Idhún. Shail não o desmentiu.

- Fico contente por ver que sobreviveste ao ataque dos sheks - comentou Estrik. - E nota-se que a clausura te fez muitíssimo bem. Ainda pareces um garoto, mesmo tendo passado quase vinte anos desde a última vez que te vi.

- Coisas de feiticeiros - respondeu Shail, evasivo. - Feitiços rejuvenescedores e essas coisas.

- Imagino quando a tua mãe te vir... E nem vais reconhecer os teus irmãos, especialmente os mais novos.

O sorriso de Shail morreu. Jack calculava como se sentia. Para ele só tinham passado sete anos desde que viajara para a Terra pela primeira vez. Sete anos que correspondiam a quase duas décadas em Idhún. Não tinha visto a sua família durante todo esse período. Os mais novos já deviam ser homens. Eram agora mais velhos do que ele.

- Vamos - apressou-o Alexander, empurrando-o suavemente. - Há fila.

Shail despediu-se de Estrik e avançou, ainda um tanto aturdido.

Instantes depois, os três atravessavam o arco de entrada da cidade e perdiam-se nas suas ruelas labirínticas.

Por dentro, Porto Esmeralda continuava a não dar a sensação de ser uma cidade marítima. As ruas eram pequenas e estreitas e as casas muito baixas, de dois andares no máximo. A sombra da muralha cobria tudo, como que para proteger os seus habitantes dos perigos do oceano.

Percorreram as ruas, envoltos numa névoa húmida e pegajosa. O som dos cornos enchia-lhes os ouvidos como um lamento lúgubre. Tudo isso, aliado ao facto de a cidade parecer estar deserta, contribuía para lhe dar um certo aspecto fantasmagórico.

- Onde está toda a gente? - perguntou Jack.

- No porto - respondeu Shai. - Está maré baixa, mas a subir. Logo irão regressar os barcos.

- O porto! - repetiu o rapaz, baralhado. - E pode saber-se onde é que o escondem? Ainda não vi um único barco!

Shail sorriu, apontando para uma arcada baixa ao fundo de uma rua sem saída. Jack já tinha reparado naqueles arcos, decorados com motivos marinhos,-que cobriam escadas descendentes. Lembravam-lhe as estações de metro da Terra, mas calculou que ali conduziam a caves ou porões.

- Debaixo da terra? Têm um porto subterrâneo?

- Quase. Mostro-te mais tarde, se quiseres. Agora é melhor procurarmos um sítio onde nos alojarmos.

Pouco depois chegavam a uma casa de dois andares, um pouco maior do que as outras. Tinha duas partes: um edifício estreito que se abria para a rua através de uma enorme porta larga em forma de arco, que conduzia a uma loja, e outro mais espaçoso, geminado com o primeiro, que parecia um armazém.

Foram recebidos por uma mulher de uns quarenta anos, enérgica e calorosa, de sorriso rasgado e alegres olhos castanhos. Jack sentiu que lhe era familiar.

- Bem-vindos ao nosso armazém de produtos trazidos de todo o Idhún!

- saudou-os. - Em que posso ajudar-vos?

Shail ficou a olhar para ela, com um brilho de emoção contida nos olhos.

- Mãe? - conseguiu dizer.

Mas a mulher olhou para ele sem o reconhecer.

- De certeza que, se tivesse um filho tão jeitoso como tu, lembrar-me-ia - brincou. - De quem andas à procura, feiticeiro?

Shail recompôs-se e olhou melhor para ela.

- Inisha! Como... quero dizer... passou tanto tempo! Estás diferente. Pareces-te muito com a nossa mãe.

Ela observou-o com atenção.

- Bendita Irial - sussurrou. - Shail?

Correu ao seu encontro e os dois abraçaram-se com carinho. Inisha afastou-se do irmão para tornar a olhar para ele.

- Mas... onde estiveste este tempo todo? E o que foi que fizeste? Tu e eu tínhamos quase a mesma idade!

Shail mostrou-se um pouco envergonhado.

- Lamento. Coisas da magia - mentiu.

A irmã voltou a abraçá-lo, desta vez com mais energia.

- Passou tanto tempo...! Tens ideia de tudo o que aconteceu por aqui? Mas não fiques à porta. Tu e os teus amigos são bem-vindos.

Jack dirigiu-lhe um sorriso rasgado. Em contrapartida, Alexander permaneceu imóvel, com uma expressão séria e sombria no rosto. Shail reparou e percebeu que se estava a lembrar do seu próprio irmão, morto na batalha de Awa. Felizmente, Inisha continuava a falar sem parar, pelo que depressa distraiu Alexander dos seus tristes pensamentos.

Alcançaram o porto de Dagledu ao entardecer.

A viagem não fora demorada, mas Zaisei achou-a demasiado longa. Passara as primeiras horas no interior da cápsula a dormir, envolta na capa, embalada pelas ondas; nem mesmo os ocasionais gorjeios dos lamus que puxavam o veículo tinham conseguido despertá-la da sua profunda sonolência. Só uma sacudidela da cápsula, provocada pela ondulação, a arrancou do sono. Ao acordar, a jovem verificou que o pequeno bote balançava mais do que o normal. Tentando manter o equilíbrio, pôs-se de pé e abriu a escotilha para espreitar lá para fora.

Foi recebida por um dia luminoso, uma extensão infinita de mar azul e um salpico de água em plena cara. Lançou uma exclamação de surpresa. Um dos lamus voltou-se para ela e deixou escapar um som parecido com uma gargalhada. Zaisei sorriu.

Contudo, sentiu-se inquieta. De dia, a imensidão do oceano deixava ainda mais patente a fragilidade do seu pequeno bote e, além disso, havia um pouco de ondulação embora não soprasse nem uma ponta de vento. Procurou Gaedalu com o olhar e viu-a, nadando à frente dos lamus que a seguiam com devoção, apenas uma forma prateada sob as ondas. Zaisei quis chamá-la, mas percebeu que ela não a ouviria. De qualquer forma, ter verificado que continuava ali bastou para ficar um pouco mais tranquila. Tornou a fechar a escotilha e procurou acomodar-se no interior da cápsula.

Descobriu então que o movimento do veículo fizera tombar a bolsa impermeável de Gaedalu e que esta se abrira. Dela espreitava o canto de um livro antigo que Zaisei reconheceu de imediato: era o volume retirado da biblioteca de Rhyrr.

Pegou nele para o confirmar. Descobriu a marca do pássaro na lombada, característica dos encadernadores da biblioteca celeste. Não restavam dúvidas: a Mãe não trouxera aquele livro por engano ou por descuido.

Intrigada, Zaisei abriu-o em busca da informação que Gaedalu considerava tão importante. Verificou que era um livro de história antigo. A varu deixara uma marca entre duas páginas, e Zaisei leu com curiosidade o que havia nelas.

Não lhe pareceu assim tão interessante. O autor não mencionava os sheks, como pensara; naquele capítulo eram comentados diversos fenómenos atmosféricos invulgares. Os parágrafos assinalados por Gaedalu falavam da Pedra de Érea, uma rocha que tinha caído do céu, muitos milénios antes, depois de as luas terem escurecido durante vários dias. O livro afirmava que vários mitos de diferentes raças corroboravam aquela história, mas que, apesar disso, nunca ninguém tinha encontrado a rocha cósmica.

"Se existiu de facto essa grande Pedra de Érea", acrescentava, "o mais provável é que esta tenha caído no mar."

Zaisei fechou o livro com brusquidão.

Demorou um pouco a assimilar a sua descoberta. Quereria aquilo dizer que Gaedalu se dirigia ao Reino Oceânico em busca da Pedra de Érea, a rocha que caíra do céu em tempos remotos? Seria possível que os varu soubessem onde se encontrava e que o autor do livro não tivesse consciência disso? Mas que importância tinha aquela Pedra de Érea e qual era a sua relação com os sheks?

Continuou a examinar o livro, mas não encontrou nada interessante. Finalmente, devolveu-o à bolsa de Gaedalu e, sem ter o que fazer, recostou-se nas tábuas e esperou.

Declinava já o segundo dos sóis quando os lamus moderaram a velocidade. Zaisei apercebeu-se e tomou a espreitar pela escotilha.

Então viu o porto ao longe: um enorme poste que se erguia em direcção às alturas, rematado por uma vasta plataforma circular. Esta estava demasiado elevada para que pudessem alcançá-la; Zaisei sabia que a sua localização se devia ao facto de muitos barcos chegarem com a maré alta. Contudo, o enorme mastro tinha outra plataforma, situada abaixo do nível do mar, que submergia com a maré baixa. Zaisei calculou que não tardaria a tornar-se visível.

De facto, quando alcançaram o altíssimo poste, o nível do mar tinha descido ligeiramente, deixando antever a plataforma mais baixa entre as ondas. com curiosidade, Zaisei contemplou Gaedalu, com a cabeça fora de água, a atar a cápsula à balaustrada da plataforma. Os lamus apinhavam-se em torno dela, deixando escapar gritinhos excitados. A varu remexeu na bolsa que levava pendurada no cinto e tirou peixes para todos. Depois soltou-os, um a um. Reteve o último entre os seus braços por um momento. A criatura olhou para ela, com os olhos bem abertos, como se estivesse a ouvi-la com atenção. Depois, submergiu rapidamente.

- Virão buscar-nos em breve - disse Gaedalu.

Ajudou Zaisei a sair da cápsula e a subir para a plataforma do porto. Juntas tiraram a pouca bagagem que tinham trazido. Estavam a acabar quando Zaisei avistou bolhas na água, perto delas. Pouco depois, três varu emergiam das ondas.

- Bem VÍndas - saudou um deles. - Mãe Venerável, é uma honra. Gaedalu inclinou a cabeça.

- É um prazer para mim estar de volta a casa. Lamento ter vindo sem avisar. Espero que haja alojamento para a minha acompanhante.

- A Casa de Hóspedes está vazia neste momento. O velho Bluganu não tem muito que fazer.

Zaisei observava os outros dois varu, que tinham tornado a submergir e apareciam agora com algo semelhante a uma bolha gigantesca. No interior havia espaço para duas pessoas. Empurraram-na para a beira da plataforma e puseram-na à frente de Gaedalu. A Mãe molhou as mãos na água e introduziu-as na bolha, atravessando-a facilmente, sem a fazer rebentar; então afastou as mãos, como quem abre uma cortina, e manteve-as assim, formando uma abertura na parede da bolha.

- Entra - disse a Zaisei.

Ela hesitou por um instante, mas depois pegou nos sacos e introduziu-se na bolha. Quando Gaedalu retirou as mãos, a esfera voltou a fechar-se. Ao ver-se confinada, Zaisei sentiu um breve acesso de vertigem, mas, como a bolha balançava agradavelmente e os varu se mantinham serenos, a celeste acabou por se acalmar.

- Cuidaremos do bote até à vossa partida - disse um dos varu. Zaisei assentiu, sem dizer palavra.

Gaedalu foi a primeira a submergir. Os outros dois varu seguiram-na, rebocando atrás de si a bolha de Zaisei. O terceiro ficou na plataforma, com a cápsula.

A jovem celeste aninhou-se no fundo da bolha, enquanto esta submergia mais e mais nas profundezas. Procurou dominar o medo. Embora tivesse consciência de que era um transporte seguro, não conseguia evitar sentir-se inquieta. A voz telepática de um dos varu encheu a sua mente.

- Vão doer-te um pouco os ouvidos - disse-lhe. - É norma

Mas, se te doerem muito, faz-nos sinal para irmos mais devagar.

Zaisei assentiu.

Pouco depois chegaram a Dagledu, a capital do Reino Oceânico. De cima era difícil vê-la, porque os edifícios estavam cobertos de algas e corais, parecendo fazer parte do leito marinho. Não havia ruas propriamente ditas; não era necessário, dado que os varu nadavam entre as casas sem pôr os pés no chão. Os edifícios não tinham portas, mas sim janelas, e estavam construídos em várias alturas, rematados por pequenos telhados recobertos com algas de cores variadas; também os peixes, que vagueavam de um lado para o outro, sozinhos ou em grupo, apresentavam tal gama de formas e tonalidades que tornavam Dagledu uma explosão de vida. Zaisei perguntou-se como era possível que naquele mundo frio e silencioso pudesse existir tanta beleza.

- É bonito, não é? - perguntou-lhe Gaedalu, que nadava junto dela. Zaisei não conseguia falar, mas pensou que sim. Gaedalu captou aquele pensamento e sorriu.

- Tinha algum receio de que o ataque shek de há dois anos tivesse causado danos graves. - disse. - Mas as minhas suspeitas confirmaram-se. Algo os fez retirar-se, algo que não tinham previsto. Algo que encontraram aqui em baixo e. que lhes desagradou bastante.

Gaedalu não acrescentou mais nada, nem foi preciso. Zaisei já tinha encaixado todas as peças.

Os irmãos foram regressando a casa à hora da ceia. Por essa altura, já alguns sabiam que Shail estava lá. Chegaram a ser sete na sala, contando com eles, e Jack descobriu que ainda faltava gente quando Shail perguntou:

- Onde estão os outros? Arsha, Inko, Gaben e Fada? E o papá e a mamã?

- Inko e Fada formaram as suas famílias e já não vivem cá em casa informou Inisha. - Mas pedi que os avisassem, para passarem por cá com as crianças logo que possam. Gaben... juntou-se ao exército dos rebeldes quando as serpentes nos invadiram e nunca mais voltou.

Shail baixou a cabeça, com o coração apertado.

- Sempre foi muito impulsivo.

- Sim - assentiu Inisha, pesarosa. - Quanto a Arsha e à nossa mãe, devem estar a chegar. Foram ao porto supervisionar os carregamentos dos barcos que vão zarpar

amanhã. A mamã leva muito a sério o controlo das mercadorias.

Shail sorriu por sua vez.

- E o que é que o papá diz sobre isso? Fez-se um pesado silêncio.

- O papá não diz nada - respondeu então um dos irmãos, em voz baixa. - O mar levou-o há doze anos.

Shail empalideceu e engoliu em seco. Tinha um nó na garganta.

- Não sabia de nada.

Naquele momento chegaram Arsha e a mãe de Shail. Houve um certo rebuliço, muitas explicações, beijos e abraços... e lágrimas nos olhos da mulher quando estreitou contra o peito o filho que julgava perdido.

Mais tarde, diante de um prato de sopa, a família pôs a conversa em dia. Havia muito para contar.

Jack ouvia sem intervir, com uma inveja saudável. Não tivera irmãos, e Ashran e os seus tinham-se encarregado de que também já não tivesse pais.

A família de Shail era simpática e agradável, como ele. Ficou a saber que não eram pescadores, mas sim comerciantes. O armazém dos Fesbak acumulava objectos trazidos de todo o Idhún: cestaria de Shur-Ikail, cerâmica de Vanissar, tecidos de Celestia, ervas e plantas de Awa, artefactos de Raheld, armas de Dingra... Comerciavam com o Reino Oceânico por mar e com o resto do continente por terra. Eram uma família próspera que, sem nadar na abundância, vivia bem e tinha desenvolvido a sua actividade sem grandes problemas durante o império de Ashran. Juntos, tomavam conta de todo o negócio, repartindo-o por secções. A mãe de Shail insistia em supervisionar pessoalmente os envios por via marítima. O mar havia sido sempre a grande paixão do pai de Shail, de quem se dizia que fora feito humano por engano dos deuses, pois deveria ter nascido varu; e, por alguma razão, a mãe sentia que devia substituí-lo.

Shail tinha-se separado da família depois de um unicórnio lhe entregar a magia, era apenas uma criança. Fora enviado para a Torre de Kazlunn.

Porém, ao vê-los juntos em volta da mesa, falando de tudo o que acontecera durante a sua ausência, não pareceu a Jack que aquilo tivesse significado um verdadeiro distanciamento. Apesar de não se verem há tanto tempo.

Sorriu quando alguém perguntou a Shail se já tinha parceira e ele corou ligeiramente. As irmãs não descansaram enquanto ele não lhes falou de Zaisei e mostraram-se surpreendidas ao saber que era uma celeste. Contudo, insistiram logo em conhecê-la.

Jack pensou em Victoria.

Pensava nela muitas vezes, nomeadamente à noite. Durante o dia, mantinha-se ocupado para se distrair, acima de tudo porque sentia imensas saudades dela. Mas de noite,

pouco antes de dormir, quando o silêncio se fechava sobre ele, a memória fazia-o passar maus bocados.

Voltou à realidade quando Alexander lhe deu uma cotovelada. Então apercebeu-se de que todos estavam a olhar para ele.

- Perdão - desculpou-se. - O que estavam a dizer?

- Que vamos ao Oráculo de Gantadd para ver Zaisei e a Mãe Venerável - disse Shail. - A minha mãe disse que amanhã de manhã vai zarpar um dos seus barcos em direcção ao Reino Oceânico e que podemos partir nele. Disse-lhe que temos outro meio de transporte... mas ainda não sabemos se nos vais acompanhar. Ontem falavas em voltar a Awa.

- Sim - assentiu Jack. - Preciso de consultar uma coisa no Oráculo, em qualquer Oráculo. O Oráculo de Awa está mais próximo do que o de Gantadd. Além disso, quero falar com o Venerável Ha-Din.

- Mas eu não vou voltar a Awa - interveio Alexander com brusquidão; todos olharam para ele um pouco surpreendidos pela sua dureza. - Esse lugar não me traz boas recordações - justificou-se.

- Eu quero ir a Gantadd - suspirou Shail. - Não vejo Zaisei há muito tempo. Pelo que me contaram, escapou por pouco do tomado de Celestia. Preciso de saber se está bem.

Jack olhou alternadamente para um e para outro.

- Ouçam - disse -, apanhem o barco para o Reino Oceânico. Eu vou ao Oráculo de Awa, faço o que tiver de fazer e depois vou ter convosco a Gantadd.

"Apesar de irmos chegar quase em simultâneo", disse para si, suspirando. Podia levá-los aos dois sobre o seu dorso até Awa e de seguida voarem todos juntos até Gantadd que demorariam o mesmo. Mas não tinha vontade de discutir com Alexander e era claro que não ia conseguir convencê-lo a regressar ao bosque onde matara o próprio irmão.

Shail também pareceu entender, porque assentiu.

Mais tarde, apareceram Inko e Fada com as respectivas famílias. Shail adorou voltar a vê-los e conhecer os seus sobrinhos, e a casa depressa se encheu de risos infantis. Jack divertiu-se a brincar com as crianças. Era um alívio que ninguém soubesse da sua condição, que o tratassem como a outro qualquer, em vez de o encararem como um dragão. A questão não era que ele não gostasse de ser um dragão. Mas humanos havia muitos, em todo o lado, ao passo que ele era o único dragão no mundo.

Depois de cear, aconchegados à lareira, Jack pensou que parecia mentira que aquele pequeno oásis de paz existisse no meio de um mundo sacudido por deuses furiosos.

Olhou de soslaio para Sulia, a mais jovem dos irmãos de Shail, sentada nos joelhos do seu prometido, que fora convidado para a ceia. Os dois contemplavam o fogo, a cabeça dela repousava no ombro dele, e pareciam serenos e felizes. Jack teve de reprimir o impulso de rodear com os braços a cintura de uma Victoria inexistente, que imaginava junto a si, no seu colo, como Sulia. Procurou não pensar nisso. Sabia que podia regressar à Torre de Kazlunn quando quisesse e pedir aos feiticeiros que lhe abrissem uma Porta interdimensional. Eles fá-lo-iam se lhes prometesse que traria Victoria de volta. Fariam qualquer coisa para recuperar o último unicórnio.

Jack tinha consciência de que, se fosse para a Terra ter com ela e com Christian, não voltariam nunca. Por isso, queria fazer todos os possíveis por ajudá-los antes de partir, por encontrar uma solução para o problema dos deuses, se é que a havia. Depois, sim, ia deixá-los... para poder viver uma noite de paz como aquela, com Victoria sentada nos seus joelhos, os dois a desfrutarem da presença um do outro, confortados pelo calor da lareira.

"Não é um pensamento muito próprio de um guerreiro", disse para si, um pouco abatido.

Mas o certo era que ultimamente andava deprimido. Podia lutar contra inimigos físicos; até teria feito o esforço de prosseguir, sozinho, a guerra ancestral dos dragões contra toda a raça shek. Contudo, não podia fazer nada contra os deuses. Era uma luta absurda e sem sentido, e Jack estivera demasiado próximo de perder tudo o que era importante para querer arriscar de novo.

As crianças começaram a bocejar, por isso os pais decidiram que já era hora de irem para casa. Rezaram todos juntos uma oração a duas das deusas do panteão: Mal, mãe dos humanos, e Neliam, senhora do mar, que regia as vidas de muitos deles. Jack juntou-se à prece, embora no fundo pensasse que, como as coisas estavam, o melhor que podiam fazer não era pedir protecção aos deuses, mas sim rezar para que não reparassem neles.

A mãe cabeceava na sua poltrona. Arsha acordou-a para a levar para a cama, mas ela pediu a Shail que fosse ele a acompanhá-la. O jovem sorriu e acedeu de imediato.

Encontravam-se já a despedir-se à porta do quarto de Valia, quando ela o reteve.

- Notei que estás a coxear um pouco - disse-lhe. - O que te aconteceu?

Shail desviou o olhar, incomodado.

- Não é nada. Foi um pequeno acidente.

- Deve ser bem mais grave do que me estás a fazer crer, visto estares a esforçar-te tanto para o esconder.

Shail hesitou por um momento até que finalmente suspirou. Levantou a túnica e de seguida arregaçou as calças. A mãe lançou uma exclamação de surpresa ao ver, à luz da candeia, a brilhante perna metálica.

- Shail! O que... o que é isso?

- Uma perna artificial. Perdi a minha num ataque shek - resumiu. Mas agora estou bem, de modo que não vale a pena preocupar-se com isso.

Valia olhou para ele com gravidade, duvidando do que dizia, mas não o confrontou.

Gerde já não lhe prestava atenção.

Passava os dias encerrada na sua árvore, inclinada sobre uma vasilha com água que lhe mostrava imagens, imagens que lhe falavam.

Assher sabia-o, porque o enviavam até lá de vez em quando para dar recados e transmitir mensagens. Mas Gerde mal lhe ligava. Nem sequer reagiu quando chegaram os mensageiros enviados a Kash-Tar com a resposta de Sussh: que, até os rebeldes serem completamente esmagados, não tencionava sair dali, muito menos para lidar com uma feiticeira sangue-quente.

Assher julgava que Gerde se enfureceria ao escutar algo assim, mas ela limitou-se a rir.

- O velho Sussh continua agarrado ao passado - comentou, sem lhe dar importância.

- Talvez devesses ir falar com ele, tal como fizeste com Eissesh - sugeriu Yaren, que estava sentado num canto.

Mas Gerde abanou a cabeça.

- Eissesh já o pôs ao corrente. Mais cedo ou mais tarde, virá ter connosco, quando as coisas piorarem. E talvez seja preferível: provavelmente está melhor no deserto a perseguir os yan. Pelo menos assim não incomoda.

Voltou a inclinar a cabeça sobre a tigela de água e Yaren remexeu-se, incomodado. Gerde notou.

- Achas que passo demasiado tempo a olhar para o outro mundo?

- Talvez não fosse má ideia olhar para este de vez em quando - murmurou o feiticeiro.

- Este mundo é o passado, Yaren. O outro mundo é o futuro. Tão grande... com tantas possibilidades...

Yaren desviou o olhar.

- Além disso - acrescentou Gerde -, há nele algo que te interessa.

- A sério? De que se trata?

- Lunnaris - disse ela. - Lunnaris está lá.

O rosto sombrio do feiticeiro contraiu-se num esgar de ódio. Os seus dedos fecharam-se sobre o tapete que cobria o chão, apertando-o com raiva, como se fosse um pescoço branco de unicórnio.

- Não te preocupes, vou arranjar maneira de ta trazerem de volta. E provável que a tenham levado para lá para a curar ou para a proteger, ou ambas as coisas. Não tardarei a descobrir o que quero saber acerca dela.

- E depois vais deixar-me matá-la? - perguntou Yaren, ansioso.

- Ainda não. Enquanto Kirtash continuar a ser-nos útil, o unicórnio tem de permanecer vivo. Se o matarmos, Kirtash abandonar-nos-á definitivamente.

- É assim tão importante? - perguntou Yaren, franzindo o sobrolho. Pensava que já tinha cumprido a missão da qual foi incumbido.

- É verdade. Mas ainda faltam muitas outras. Depende dele levá-las a cabo ou não. E ele sabe que lhe convém continuar a ser útil - sorriu.

Ambos repararam então em Assher, que continuava de pé junto à entrada.

- O que se passa? - perguntou Gerde.

Assher mostrou-se inquieto. Não tinha entendido grande coisa da conversa entre Yaren e a fada, dado que se travara em idhunaico comum, língua que, embora tivesse começado a aprender, ainda não dominava. Engoliu em seco.

- O que devo dizer ao mensageiro? Enviamo-lo de volta a Sussh? Gerde reflectiu.

- Não; que descanse. Será Sussh a contactar connosco dentro em breve. Obrigada, Assher. - Sorriu-lhe.

Assher retirou-se, com o coração apertado; o mestre Isskez estava à sua espera.

Gerde deixara de lhe ensinar magia pessoalmente, e isso punha-o de mau humor. Mas a fada não lhe tinha dito em nenhum momento que já não era o seu eleito.

Agarrava-se a essa esperança.

Contudo, naquela noite, houve movimento no acampamento.

Assher apercebeu-se, por isso custou-lhe muito prestar atenção às lições do seu mestre. Pelo canto do olho viu o grupo que se tinha reunido por ordem de Gerde. Não eram muitos, mas Yaren, o sinistro feiticeiro, o do sorriso retorcido e olhar sombrio, iria com eles.

Só isso já significava que a missão era importante. Gerde gostava de manter Yaren ao seu lado, portanto não o enviaria para longe sem uma boa razão.

E de facto, pela forma como se tinham apetrechado, era evidente que iam para bem longe. Talvez a Kash-Tar, para falar com Sussh, ou em direcção a norte, para falar com Eissesh. Assher apurou o ouvido, tentando ouvir de onde se encontrava o que Gerde estava a dizer ao grupo reunido ao seu redor. Mas a voz de Isskez continuava a cravar-se na sua mente, impedindo-o de ouvir fosse o que fosse.

Finalmente, o grupo partiu a coberto da noite. Por essa altura, já Isskez o tinha repreendido várias vezes pela falta de atenção.

Ninguém soube dizer-lhe, nem naquela noite nem nos dias posteriores, para onde tinha ido aquela patrulha. E Gerde não o chegou a mencionar, como se não fosse importante ou como se o tivesse esquecido.

Acordaram muito cedo, não tinham ainda nascido os sóis. A maré ia voltar a subir com o primeiro amanhecer, por isso os barcos deviam zarpar nessa altura. Shail e Alexander aprontaram-se rapidamente para partir; e, embora não fossem viajar com eles, Jack e Valia levantaram-se para se despedirem.

Desceram ao porto por um dos acessos que Shail lhes mostrara quando tinham chegado à cidade. Após bastante tempo a descer por uma longa e estreita escadaria, desembocaram num imenso emaranhado de cavernas naturais. Os barcos flutuavam mansamente sobre parcos palmos de água, nos largos canais que percorriam as cavernas. Eram embarcações cobertas, em forma de amêndoa. Jack não viu velas em lado nenhum, por isso perguntou-se como se moviam. Shail apercebeu-se do seu interesse e acompanhou-o até ao molhe mais próximo.

- Olha - disse-lhe, apontando para a água.

Jack viu que algo nadava em torno do barco. Algo muito grande e com três tentáculos compridíssimos.

- É um tektek - explicou Shail. - Todos os nossos barcos têm um tanque para um tektek no porão: é o nosso... o nosso motor, por assim dizer. Expulsa um grande jorro de água que o impulsiona para a frente e o faz mover-se, empurrando assim o barco.

- Ah, move-se como os polvos - entendeu Jack.

- Polvos? - repetiu Shail, franzindo o sobrolho. Jack descreveu-os, e o feiticeiro lembrou-se de ter visto um ou outro na Terra. - Mas o tektek é diferente - disse. - É completamente plano e tem uma cabeça em forma de flecha. Além disso, de certeza que nunca viste um polvo com quatro bocas - acrescentou, sorrindo.

Jack estremeceu.

- Não gostaria de me encontrar com um bicho assim num dia de praia - comentou.

- Em geral são bastante pacíficos. Além disso, os tekteks dos barcos estão domesticados. E há sempre um varu em cada barco para o dirigir e controlar.

Mesmo assim, Jack afastou-se da borda, um pouco apreensivo.

Apressaram-se a alcançar os outros, que continuavam a andar. Ao fundo do molhe, Jack viu uma enorme abertura que mostrava um pedaço de céu nocturno cujo horizonte começava a clarear.

- Aquilo dá para a falésia - explicou Valia. - Se te aproximasses agora que a maré está alta, podias molhar os pés na água. Mas daqui a umas horas, quando as águas tiverem baixado, não consegues olhar para baixo sem sentir vertigens.

Jack nunca sentia vertigens, mas não lho disse. De qualquer das formas, compreendia bem o que Valia queria dizer. Tinha visto o movimento das marés na Torre de Kazlunn. Sabia que as águas podiam alcançar a base da torre e, horas depois, retirar-se para deixar atrás se si um enorme precipício de vinte ou trinta metros de altura.

Continuaram a percorrer o porto, e jack não tardou a perceber como funcionava. As cavernas percorriam todo o subsolo da cidade e era ali que guardavam os navios. Por debaixo da muralha, na parede da falésia, os habitantes de Porto Esmeralda tinham aberto enormes comportas através das quais os barcos saíam para o mar, sulcando os canais subterrâneos. Mas só o podiam fazer quando a maré subia o suficiente para alcançar o nível do porto. A maré baixa revelava um precipício tão imponente que os barcos não tinham como ultrapassá-lo.

Reuniram-se com o capitão pouco depois. Chamava-se Raktar e era um indivíduo moreno e curtido, não muito alto, mas cujo olhar sereno impunha respeito. Não viu nenhum inconveniente em aceitar Shail e Alexander a bordo e menos ainda ao saber que eram um feiticeiro e um guerreiro.

- Toda a protecção é pouca - disse-lhes. - A gente de Glasdur, o Pálido, anda há muito tempo sem dar sinais de vida. Presumimos que vá atacar antes do próximo plenilúnio de Ayea. Em contrapartida, o Lua Vermelha de Gaeru fez um grande saque há três dias. Ainda devem estar a festejar.

- Perdão? - perguntou Jack, desorientado.

- Piratas - traduziu Valia. - Andam há séculos a sabotar os barcos mercantes. Ainda não conseguimos livrar-nos deles e não creio que o consigamos. Conhecem o mar tão bem como nós.

- Ou até melhor - observou Shail. - Os piratas de Tares são na sua maioria semivaru. Muitos destes mestiços precisam de humedecer a pele com frequência, mas não possuem as guelras dos varu, portanto não conseguem respirar debaixo de água. Por esta razão, há milénios que os semivaru se apropriaram das ilhas de Tares e Riv-Arneth; mas, enquanto os rivarnianos são pescadores, os semivaru de Tares tornaram-se piratas. E não roubam para enriquecer, nem sequer para sobreviver. Estão convencidos de que, se as profundezas dos oceanos pertencem aos varu e a terra firme aos "peles-secas", como costumam chamar-nos, a superfície do mar é terreno dos semivaru. Assim, fustigam os barcos mercantes, tolerando apenas os pequenos pescadores. A guerra aberta entre Tares e as cidades marítimas de Nanetten é uma questão que vem de longe. No entanto, nunca se converteu num conflito cruel. Os piratas de Tares são uns ladrões e uns desavergonhados, mas gostam demasiado da vida para levar a sério o que quer que seja, incluindo as suas próprias reivindicações. Contentaram-se em ser uma dor de cabeça permanente para o comércio marítimo.

- Estou a perceber - assentiu Jack.

- As proezas de Glasdur, o Pálido, já corriam de boca em boca quando eu era garoto - comentou Shail. - Mas nunca ouvi falar de Gaeru.

- É uma rapariga muito chata - grunhiu Raktar. - E descarada como poucas. No ano passado saquearam um carregamento que transportava algas balu...

- As algas balu são muito apreciadas pelos celestes e semicelestes, especialmente os que vivem em Nandelt - explicou Valia. - Além de as acharem um manjar delicioso, dizem que libertam um aroma que relaxa os humanos. Por isso, muitos dos celestes que convivem com outras raças ficam mais descansados se tiverem um saquinho de algas balu na sua despensa. Acreditam que os ajuda a evitar conflitos desnecessários.

- vou lembrar-me disso - sorriu Shail, pensando em Zaisei.

- O caso - prosseguiu Raktar - é que Gaeru e a tripulação do seu barco, o Lua Vermelha, atacaram o barco mercante e, pelos vistos, sofreram uma decepção ao ver as algas balu. Curiosamente, os celestes comem-nas mas os varu não gostam delas. Então, Gaeru disse que os peles-secas não tinham por que roubar comida do mar, pois as algas eram para os peixes, e queimou todo o carregamento na coberta do barco saqueado. Sabia perfeitamente o que ia acontecer, claro. Os vapores das algas deixaram os membros da tripulação tão atordoados que estiveram a rir sem parar e a cantar canções absurdas durante uma semana, como se estivessem permanentemente bêbados. Os mais sensíveis caíram a dormir como pedras e demoraram vários dias a acordar. De resto, além de deixarem o barco à deriva, os piratas não lhes fizeram mais nada. Parece que ficaram a rir da brincadeira, mas a coisa não teve graça. Os marinheiros tiveram sorte por a maré não ter rebentado o navio contra as falésias.

- Que sentido de humor tão estranho - comentou Jack, perplexo.

- Disseste bem - disse Shail. - Para eles não é mais do que um jogo, mas o que os piratas acham divertido pode ser uma catástrofe para outros.

Alexander continuava sem falar. Jack notava-o estranhamente silencioso já desde a tarde anterior, mas o seu rosto tornara-se ainda mais sério ao contemplar os barcos de perto. O rapaz compreendeu que o amigo não confiava no mar; talvez nunca tivesse navegado.

- Olha - disse-lhe em voz baixa. - Se não te sentes bem em relação ao barco, posso levar-vos a voar até Gantadd. Posso aproveitar para falar com Gaedalu e depois dirigir-me a Awa. Não há problema.

- Isso implicaria fazer um desvio desnecessário, Jack - recusou ele. Não, vamos seguir o plano estabelecido. Mas agradeço-te.

A despedida foi breve: Jack sabia que voltaria a vê-los daí a poucos dias. Porém, a mãe de Shail parecia renitente em deixá-lo partir.

- Desta vez volto logo, mãe. Não pretendia ter passado este tempo todo longe de casa. E só que... bom, pareceu-me que não tinha sido tanto. Em todos os sentidos.

- Não me dês explicações - resmungou ela. - Corre, sobe para o barco, senão vais fazer com que o capitão Raktar perca a maré.

Pouco depois, Jack e a mãe de Shail contemplavam o barco a deslizar pelo canal e finalmente a cair à água com um suave chapinhar.

De seguida regressaram juntos a casa. Jack ficou para tomar o pequeno-almoço com a família de Shail e acompanhou Sulia ao mercado, para a ajudar a carregar as cestas. A meio da manhã, anunciou que estava pronto para partir e despediu-se de todos.

Custou-lhe bastante abandonar a casa dos Fesbak e deixar para trás Porto Esmeralda. Em contrapartida, apetecia-lhe voltar a voar.

Pretendia transformar-se quando estivesse a uma distância prudente da cidade; mas tinha acabado de atravessar a ponte quando ouviu ao longe os cornos dos vigilantes das marés. Deteve-se, confuso. Se bem percebera, os cornos só soavam ao amanhecer e ao entardecer, com as mudanças das marés. E já era quase meio-dia.

O som dos cornos sugeria urgência, evocando em Jack, sem ele saber porquê, algum tipo de perigo. Transformou-se em dragão, sem se importar que o vissem, e levantou voo. Ao sobrevoar Porto Esmeralda, descobriu que o alerta dos cornos tinha mergulhado a cidade no caos. Toda a gente deixava o que estava a fazer e corria precipitadamente para casa. Alguns tinham já conseguido reunir a família e abriam caminho, como podiam, em direcção à porta norte da cidade, evitando o rio e afastando-se da muralha da falésia. Enquanto isso, os cornos continuavam a soar.

O perigo vinha do mar. Jack bateu as asas e elevou-se um pouco mais para contemplar o oceano. Então descobriu o que significava o alarido dos cornos e porque é que toda a gente parecia estar tão assustada.

O mar tinha-se retirado, provocando a maré baixa mais brutal que as costas de Nanetten viam em muitos séculos, descobrindo o leito oceânico até vinte metros mar adentro. Ao longe, no horizonte, erguia-se a crista de uma onda, sombria e ameaçadora. Uma onda que se aproximava irremediavelmente da costa e que ameaçava arrasar Porto Esmeralda.

- Neliam - murmurou Jack, com um sorriso amargo. - Bem-vinda a Idhún.

Deu duas voltas sobre a cidade até que encontrou uma praça suficientemente grande que, além disso, estava vazia por se situar ao pé da muralha.

Pousou e voltou a recuperar o seu corpo humano. De seguida correu na direcção da casa dos Fesbak, para se assegurar de que estavam bem.

Encontrou Inisha na loja, a fechar portas e janelas apressadamente. No chão encontrava-se uma bolsa que tinha começado a encher de víveres e diversos objectos que ela considerava importantes.

- Jack! - exclamou ao vê-lo. - O que estás aqui a fazer? Não tinhas ido embora?

- Voltei ao ouvir os cornos. Sabes o que é?

- Dizem que é uma onda gigante. Fecharam as comportas do porto para proteger os barcos e estão a evacuar a cidade. É provável que a falésia e a muralha travem um pouco a investida das águas, mas não podemos ter a certeza. Se alcançar a bacia do rio haverá uma grande subida, e aí não se tratará apenas do mar.

- Estou a ver. E a tua mãe e os teus irmãos? Estão todos bem?

- Já se foram todos. Eu fiquei um pouco para trás porque...

- Não precisas de me explicar nada. Tens é de te ir embora daqui imediatamente. Se demorares, é bem provável que depois não consigas partir.

Teve de tornar a insistir, dado que Inisha resistia a deixar a loja.

- E tu? O que vais fazer?

- vou acompanhar-te até à saída da cidade e depois irei procurar Shail e Alexander.

Inisha lançou uma exclamação sufocada.

- Estão no alto mar! A onda deve tê-los atingido. Mas como vais alcançá-los? Não pode sair nenhum barco do porto agora!

- Não tenho tempo para entrar em pormenores; confia em mim, está bem? E diz à tua mãe que farei todos os possíveis por salvar Shail.

Mais tarde, quando se elevou sobre a cidade, era já um magnífico dragão, cujas escamas cintilavam sob os sóis como ouro polido. Bateu as asas energicamente e mergulhou no céu idhunita, em direcção ao maremoto que ameaçava abater-se sobre Porto Esmeralda. Subiu tanto quanto pôde, e dali viu, pouco depois, como a gigantesca onda atingia a costa com toda a fúria das profundezas oceânicas, transpondo a muralha e invadindo as ruas da cidade. A água varreu as carroças e os postos do mercado e precipitou-se, bramindo, pelos acessos que desciam até ao porto, destruindo telhados e levando pela frente arcos, portas e janelas. Felizmente, a maioria dos habitantes havia já abandonado a cidade.

Os sobreviventes da Ira de Neliam, como foi designada a catástrofe daí em diante, jamais esqueceriam que deviam a sua vida ao aviso precoce dos vigilantes das marés, cujos cornos não pararam de soar nem por um momento até a onda os engolir.

Alexander estava colado a uma das escotilhas. O seu rosto exibia um tom esverdeado suspeito.

- Acho que o teu amigo não está muito bem - disse o capitão Raktar a Shail, com uma piscadela de olho.

Shail sorriu.

- É a primeira vez que navega - disse. - Já lhe passa. Interrompeu-o um barulho desagradável que indicava que Alexander acabava de lançar ao mar todo o seu pequeno-almoço. O sorriso de Shail rasgou-se.

- Devias mostrar um pouco mais de compaixão, rapaz - censurou-o Raktar.

- É bem feito por não querer acompanhar Jack ao bosque de Awa comentou Shail com indiferença. - Ter-se-ia poupado a tudo isto.

Isso fê-lo recordar que o haviam deixado sozinho. Noutros tempos, tal situação teria deixado Shail ansioso. Mas após tê-lo visto transformado em dragão, após ter testemunhado com os seus próprios olhos o que Jack era capaz de fazer, tinha a impressão de que não valia a pena. A época em que Shail e Alexander eram os mais velhos e tinham de cuidar de Jack e de Victoria ficara para trás. Como as coisas estavam, era bem provável que tivessem de ser os mais jovens a protegê-los a eles.

- Aleeeeeeerta! - gritou então o vigia da proa.

Não havia mastro onde pudesse trepar, como nos barcos antigos da Terra, mas tinha um enorme periscópio através do qual esquadrinhava o horizonte em todas as direcções.

- Aleeeeeeeerta! - repetiu o vigia. - Aleeeeerta, piratas à vista! Todos os marinheiros se precipitaram na coberta superior.

- Aleeva, faz com que acelere! - gritou Raktar à varu que controlava o tektek do porão.

Aleeva passou a correr por eles e desapareceu escada abaixo. Shail observou, preocupado, como os marinheiros abriam as escotilhas laterais e tiravam delas arpões de flechas de fogo. Depressa iriam pedir-lhe que usasse a magia para defender o barco e ele não poderia recusar-se. Mas, de cada vez que utilizava a magia, a sua perna artificial ressentia-se.

E não podia contar com Alexander. Este continuava encostado à escotilha tão enjoado que não era capaz de se ter de pé.

De repente, um grito de auxílio telepático encheu as mentes de todos. Enquanto alguns dos marinheiros, seguidos por Shail, desciam ao porão para ver o que se passava, o barco abrandava a velocidade até que por fim parou. Quando chegaram ao compartimento do tektek, já iam à deriva.

Aleeva estava num canto, metida na água até à cintura, assustada, mas aparentemente bem. Porém, as correias que seguravam o tektek encontravam-se cortadas; ainda conseguiram ver os longos tentáculos do animal a desaparecer pelo orifício de saída do jorro de água. Junto à abertura estava também aquele que o tinha deixado escapar: parecia humano, mas tinha as mãos e os pés espalmados, como os varu, a pele completamente lisa e pálida, e o nariz achatado. Trazia as típicas correias varu e sorria-lhes presunçosamente.

- Boa tarde, peles-secas - cumprimentou.

Os marinheiros atiraram-se a ele. Logo de seguida, saíram do interior do tanque mais quatro piratas. Estavam armados com garrotes, arpões e facas; rapidamente, iniciou-se uma escaramuça pontuada por gritos de fúria. Shail ficou no alto das escadas, hesitante. Então reparou em Aleeva, que continuava encolhida no seu canto.

- Vamos, anda! - chamou-a, estendendo-lhe a mão.

A varu reagiu e correu para ele. Porém, quando já subia pela escada, algo se enrolou em torno do seu tornozelo, fazendo-a cair. Era o chicote de um dos piratas. Aleeva lançou um agudo grito telepático e procurou desprender-se. O pirata puxou-a.

- Solta-a! - gritou Shail.

- Porquê? - troçou o pirata. - Os varu gostam da água! Se a levares para cima vai ficar ressequida.

Aleeva gritou de novo, mas desta vez de dor.

- Solta-a! - repetiu Shail, fazendo agora acompanhar a sua ordem de um feitiço de ataque cujo raio mordeu o braço do pirata e o obrigou a soltar o chicote.

- Isso não vale, feiticeiro! - gritou-lhes o semivaru enquanto desapareciam em direcção à coberta superior.

- Aleeeeerta! - gritou de novo o vigia.

Lá em cima, tinha-se iniciado uma batalha encarniçada. Os marinheiros, colados às escotilhas, disparavam flechas de fogo contra o barco dos piratas. Alexander saiu ao caminho de Shail. Ainda não estava com boa cara.

- Estão a atacar-nos! - disse.

- Sim, já tinha reparado.

- Mas como vou lutar se o chão não pára de se mexer?

Shail ia responder, mas não teve tempo. Raktar agarrou-o pela túnica e puxou-o para uma das escotilhas laterais.

- Faz alguma coisa, feiticeiro! - gritou. - Temo-los em cima!

Shail assomou ao exterior e viu o barco dos piratas. Era mais pequeno do que o de Raktar e aparentava ter sido construído com desperdícios. Porém, todo ele parecia uma verdadeira criatura marinha vinda das profundezas. Os semivaru tinham decorado o casco com diferentes tipos de conchas e algas. Se o barco submergisse nas ondas naquele instante, Shail não estranharia nem um pouco.

- É o Onda Sangrenta - sussurrou Raktar ao ouvido de Shail. O barco de Glasdur, o Pálido.

Shail sentiu o estômago contrair-se. O barco estava já muito próximo, e pôde ver claramente como alguns dos piratas se lançavam das escotilhas para o mar e nadavam na sua direcção. Se os marinheiros do porão perdessem a luta, seria bastante fácil a vaga seguinte entrar.

Não obstante, esforçou-se por recordar o feitiço que tinha em mente. Murmurou a fórmula e, nesse preciso momento, uma das flechas de fogo disparadas pela gente de Raktar aumentou várias vezes de tamanho. A impressionante seta foi cravar-se, ruidosamente, no casco do Onda Sangrenta. Esgotado, Shail fechou os olhos, recompondo-se da dor aguda na perna. Ouviu os gritos alarmados dos piratas e, apesar de tudo, sorriu.

- Raktar! - Uma voz potente vinda do barco dos piratas fez-se ouvir de repente. - Maldito velhaco! Agora andas com feiticeiros no teu barco? Isso não é jogar limpo!

Alguém deu um altifalante ao capitão, que o levou aos lábios e vociferou:

- E desde quando sabotar o porão do tektek é limpo, Glasdur? Não me fales de jogo limpo, velho canalha! E não te atrevas a aproximar-te do meu barco, senão...!

Ouviu-se uma gargalhada gutural característica dos varu.

- É tarde demais, pele-seca! Tarde demais!

- Isto está a mexer... a mexer demasiado... - murmurou então Alexander.

Shail apercebeu-se, subitamente, de que tinha razão. O barco bamboleava com demasiada violência.

- A onda! - gritou então o vigia, aterrado. - A onda gigante! Está a vir para cá!

Raktar alcançou-o com duas passadas, afastou-o com um empurrão e olhou pelo periscópio. Quando o largou estava branco como a cera.

- O que se passa? - indagou Shail, preocupado.

O capitão não respondeu. Saiu a correr e Shail seguiu-o. Viu-o subir pela escada que levava à coberta exterior. Alcançou-o quando ele já se encontrava de cócoras sobre o tecto do barco, desafiando o vento, a contemplar o horizonte com ar grave.

- O que...?

- Olha para aquilo, feiticeiro - interrompeu-o Raktar -, e jura-me que não foste tu que o fizeste com a tua magia.

Shail olhou na direcção indicada e sentiu que lhe arrancavam as tripas.

Atrás do barco dos piratas, erguia-se uma onda gigantesca, tão alta que a sua crista pairava sobre eles, roçando os dois sóis gémeos. Convulsionava-se como se tivesse vida própria, lambendo cada pedacinho de céu que alcançava, dirigindo-se para eles lenta mas inevitavelmente, uma grande massa de água de um azul tão profundo como o mais fundo dos abismos oceânicos.

- Não fui eu que o fiz - conseguiu dizer Shail com um fio de voz. O que não é bom sinal. É que, se fosse obra minha, saberia como a parar, o que não é o caso.

Raktar olhou para ele, horrorizado.

- Sagrada Neliam - murmurou.

- Sim... suspeito que tens razão - disse Shail, desanimado. O capitão pôs-se de pé e vociferou:

- Glasdur, olha para trás de ti! Sai daí antes que o mar te engula!

- Ah! Ah! Ah! Não me vais enganar com um truque tão..! - A resposta do semivaru ficou sufocada por um grito de terror. O Onda Sangrenta era arrastado para o interior de uma onda ainda mais mortífera e aterradora do que o lendário barco dos piratas.

Mais cabeças assomaram pela escotilha do barco de Raktar, entre elas a de Alexander. Aturdidos, os marinheiros viram como o navio de Glasdur escalava a onda, arrastado pela sua força letal, no meio dos gritos aterrorizados dos seus tripulantes.

Pouco depois, o dragão descia a pique sobre a coberta do barco de Raktar. Mas era demasiado tarde, porque a onda já se abatia sobre eles, e os dois barcos, bem como o dragão, foram arrastados pelas águas.

- Deviam ter-me avisado - disse Zaisei, exasperada.

O velho Bluganu dirigiu-lhe um olhar de pesar, mas não respondeu.

- A Mãe Venerável está à minha responsabilidade - insistiu Zaisei.

- Desculpa-me que discorde, mas... ela não tem idade suficiente para saber o que está a fazer? - contestou o varu.

Zaisei corou ligeiramente, compreendendo a posição de Bluganu. Gaedalu não só era a poderosa Mãe Venerável da Igreja das Três Luas, como também tinha idade suficiente para ser sua avó.

- A Mãe Venerável tem agido de forma estranha ultimamente - confiou ao varu. - Há poucç tempo soube da morte da filha, e receio que isso a tenha transtornado. O seu coração alberga sentimentos negros; por isso devo acompanhá-la e vigiá-la para que não prejudique ninguém nem faça mal a si mesma.

Bluganu assentiu.

- Compreendo - disse. - Mas não te posso acompanhar ao lugar onde a Mãe foi.

Zaisei respirou fundo. Captava um temor supersticioso nos sentimentos do ancião e percebeu que não devia pressioná-lo. No entanto, tratava-se de Gaedalu; se aquele lugar era perigoso...

- Diz-me, onde foi? Tem a ver com a Pedra de Érea, a rocha que caiu do céu?

Bluganu dirigiu-lhe um olhar pleno de incerteza.

- Não sei nada sobre isso. Desde tempos remotos que lhe chamam Rocha Maldita.

- Maldita? Porquê?

- Não sei dizer-te, sacerdotisa. Mas tem alguma coisa que deixa as criaturas do mar loucas; até os animais mais pacíficos se tornam agressivos. Entre os varu, só

os jovens se atrevem a aproximar-se dali. Mais cedo ou mais tarde acabam por sentir curiosidade e aproximam-se da Rocha Maldita, mas acredita que ninguém que tenha

lá estado sentiu vontade de voltar uma segunda vez.

- E permitiste que Gaedalu fosse lá sozinha?

- Não foi sozinha: duas jovens sentinelas escoltaram-na. Seja como for, eu não podia tê-la impedido. Sou apenas o encarregado da Casa de Hóspedes, kmbras-te?

Zaisei percebeu tristeza e alguma amargura nas suas palavras, e sorriu lhe com simpatia.

- Talvez para os varu isso não signifique muito - disse-lhe suavemente. - Mas neste preciso momento a minha vida está nas tuas mãos. Se não fosse pelo teu trabalho,

os habitantes da superfície não sobreviveriam a uma visita ao Reino Oceânico.

Não o estava a dizer apenas para o consolar; cada uma das suas palavras era estritamente verdadeira. A Casa de Hóspedes era o único edifício de Dagledu que podia ser habitado por gente da superfície. Fora construído com base numa enorme bolha, semelhante às que os varu utilizavam para transportar os peles-secas desde o porto. Em torno da bolha tinham erigido paredes de coral e tinham-na coberto com algas para tapar o tecto. O interior era constituído por uma única divisão, suficientemente grande para que o visitante se sentisse confortável. Havia quatro liteiras, dois baús para que os visitantes guardassem os seus pertences, uma mesa com vários assentos e uma pequena casa de banho separada do resto por painéis de coral. Contudo, a bolha estava hermeticamente fechada. Tinha de ser assim, pois uma brecha faria com que o interior ficasse inundado de água. Bluganu devia velar não só pelo bem-estar dos seus convidados, como também pela segurança do habitáculo.

- Por favor - suplicou Zaisei. - Preciso de lá ir. Se me tivesses dito que a Mãe tinha ido visitar uns parentes, não me passaria pela cabeça incomodar-te. Mas o que ela está a fazer não é normal e, se está a arriscar a sua vida ou a de outros por ódio ou por vingança, tenho de tentar impedi-la. Peço-te: se não me vais acompanhar, pelo menos encontra-me alguém que não se importe de o fazer.

Bluganu suspirou.

- Está bem - disse. - Eu acompanho-te. Aguarda um momento. Dirigiu-se com os passos trôpegos de quem não está acostumado a caminhar em chão firme à bolha de transporte, onde tinham trazido Zaisei do porto, e que agora repousava no interior do habitáculo, junto à entrada. Bluganu abriu

a cápsula de transporte com as mãos e convidou Zaisei a entrar com um gesto. Ela obedeceu e a bolha fechou-se atrás de si. Bluganu empurrou-a suavemente até que a tirou da casa. Zaisei reprimiu uma exclamação ao ver-se a flutuar à deriva entre os edifícios da cidade e voltou-se para ver Bluganu atravessar com elegância a frágil superfície da bolha da Casa de Hóspedes, sem a romper. Pouco depois, o varu rebocava a cápsula de ar de Zaisei através de Dagledu, movendo lentamente os seus pés espalmados para avançar no meio líquido.

- Vai ser uma viagem longa - disse-lhe.

- Não me importo - respondeu Zaisei, mas a sua voz ficou sufocada no interior da bolha.

Bluganu não disse mais nada. Continuou a empurrar a cápsula de ar através da cidade, e Zaisei esqueceu por instantes a sua preocupação com Gaedalu para admirar o sossegado mundo dos varu.

A cidade fervilhava de actividade, mas era uma actividade lenta, silenciosa, como tudo naquele refugio submarino. Os varu nadavam de um lado para o outro, sem pressa, mas sem parar. Alguns olharam para eles com curiosidade, mas nenhum fez menção de se aproximar.

Contudo, o que mais chamou a atenção de Zaisei foram os cachos de bolhas.

Tinha visto alguns na cidade e supôs que os varu deixavam ali as cápsulas de propósito, para quando precisassem delas. Porém, ao sair de Dagledu, passaram por cima de um enorme leito de bolhas, que cobriam o fundo marinho até onde a vista alcançava.

- É aqui que vocês as guardam? - perguntou Zaisei, elevando a voz. Bluganu não a ouviu, mas viu a curiosidade estampada no seu rosto.

- Um campo de marpalsas - explicou. -É um tipo de planta submarina que produz bolhas de ar. Estas bolhas não são vulgares, pois estão cobertas por uma substância

que nasce da própria planta e que as torna flexíveis e ao mesmo tempo resistentes. Se não fosse pelas marpalsas, os peks-secas nunca teriam podido visitar o Reino

Oceânico. E também não existiria a Casa de Hóspedes. A sua bolha foi produzida por uma planta excepcionalmente grande. Nunca voltámos a ver nada parecido, mas cultivamos marpalsas há séculos e cada vez conseguimos bolhas maiores. com o tempo esperamos obter exemplares de tamanho considerável, o suficiente para poder criar mais espaços de ar para os peles-secas.

Zaisei contemplou impressionada os cachos de bolhas que se estendiam aos seus pés. Tentou ver as plantas, mas não conseguiu: as bolhas, apinhadas umas junto às outras, cobriam tudo e só permitiam ver de forma distorcida o que estava por baixo. Sentiu-se muito pequena e frágil, perdida no fundo daquele mundo azul, milenar, e aninhou-se na sua bolha de ar, enquanto o velho varu a empurrava com lentidão através das profundezas.

Jack abriu os olhos pouco a pouco. A primeira coisa que sentiu foi que estava molhado. A segunda, o cheiro a mar e a salitre. Por último, que lhe doíam os ossos todos.

Tentou erguer-se. Estava com uma terrível enxaqueca e abanou a cabeça para acordar; mas só conseguiu que lhe doesse mais.

Olhou à volta. Estava numa grande caverna, húmida e desconfortável, que se abria sobre um imenso mar azul. Junto a ele estavam Shail, Alexander, o capitão Raktar e outras pessoas que não conhecia. Alexander estava acordado com uma manta por cima dos ombros, que não parecia muito mais seca do que a sua própria roupa, e as costas apoiadas na parede. Shail estava a dormir ou inconsciente. E o capitão falava em voz baixa com dois homens que Jack presumiu fazerem parte da sua tripulação. Olhou para Alexander, que estava com mau aspecto.

- Onde estamos? O que aconteceu?

- Não te lembras?

- Se me lembrasse, não te perguntava. Alexander suspirou.

- Fomos atingidos por uma onda gigante. O nosso barco virou, mas tu conseguiste levantar voo e depois voltaste a descer à nossa procura. Pelos vistos, encontraste o barco, enganchaste-o nas garras e puxaste-o para cima para o manter à superfície.

Jack estava impressionado.

- Eu fiz isso?

- Deve ter sido um grande esforço para ti, porque ao fim de algum tempo caíste ao mar. Mas mantiveste o barco a flutuar e isso salvou muitas vidas. Os piratas encarregaram-se de nos recolher. Agora estamos nos seus domínios.

- Os piratas! - Jack começava a lembrar-se. - Referes-te ao outro barco que estava junto ao vosso?

Alexander assentiu.

- São semivaru. O barco deles também virou, mas a maioria conseguiu sobreviver. Embora muitos não consigam respirar debaixo de água, são excelentes nadadores e o mar não os assusta. Podiam ter-nos abandonado à nossa sorte, mas pelos vistos simpatizaram contigo. É a vantagem que tem ser um dragão - acrescentou com um sorriso feroz.

- Pelos visto - murmurou Jack, ainda desorientado. - Mas imagino a decepção deles ao encontrar um rapaz humano quando procuravam o magnífico Yandrak. - Sorriu.

- Nem por sombras. Glasdur é um tipo inteligente e está bem informado. Acho que já te topou.

Assaltado por uma súbita suspeita, Jack levou a mão às costas. Não encontrou o que procurava.

- Domivat! - exclamou, com uma nota de pânico na voz. - Perdi Domivat?

Alexander abanou a cabeça.

- Quando te encontraram a flutuar no mar, agarrado a uma tábua, ainda a tinhas. Surpreende-me que não te tenhas afundado com ela.

Jack reparou que o amigo também não tinha Sumlaris.

- São piratas - recordou Alexander ao captar o seu olhar. - O que estavas à espera?

- vou recuperá-las - decidiu Jack, levantando-se de rompante. Saiu da caverna. Foi recebido por uma baforada de ar marítimo, mas isso não o fez sentir-se melhor; pelo contrário, a sua inquietação aumentou.

Olhou em volta para se orientar. Descobriu que estava numa ilha de rocha negra. Os elementos tinham-na feito alta e acidentada, com montes de penhascos, recifes, reentrâncias e um sem-número de cavernas. As que estavam no alto pareciam habitadas. Estavam interligadas por escadas de corda e pontes de madeira, todas elas cobertas de algas, o que indicava que ficavam submersas quando a maré subia. Nas reentrâncias mais largas repousavam diferentes tipos de barcos. Eram semelhantes aos que Jack tinha visto em Porto Esmeralda, mas muito mais precários, com algas a crescer nos seus cascos e montes de pequenos crustáceos agarrados a eles. A maioria estava completamente destruída, e Jack recordou que a onda que os tinha varrido no mar tinha forçosamente de ter alcançado aquela pequena ilha também.

Um pouco mais acima ouviam-se exclamações, risos e barulho de objectos a entrechocarem. Jack deduziu que alguém estava a repartir um saque. Calculou que só isso poderia fazer com que os piratas se esquecessem tão rapidamente de ter sofrido a ira da deusa Neliam.

Não se enganou. Depois de trepar por uma escada de corda, húmida e escorregadia, até um nível superior, Jack entrou na caverna onde havia um grupo de pessoas reunidas em volta de um monte de objectos, alguns bastante estragados, que haviam sido empilhados de qualquer maneira, sem a menor consideração. Jack detectou imediatamente a bainha de Domivat a sobressair entre a sucata.

- Boa tarde - cumprimentou o rapaz.

Os piratas voltaram-se para olhar para ele. Jack nunca tinha visto um semivaru e observou-os com curiosidade. Eram todos parecidos, mas ao mesmo tempo diferentes. As mãos e os pés espalmados pareciam ser uma característica comum a todos eles. No entanto, alguns tinham olhos humanos; outros, olhos de varu. Uns tinham a pele coberta de escamas; outros só em parte, e outros ainda apresentavam uma pele fina e esbranquiçada, como se nunca tivessem apanhado sol. Alguns tinham cabelo e outros uma mata vermelha, azul ou verde, que mais parecia um tufo de algas marinhas do que verdadeiro cabelo humano. E uns tantos apresentavam aberturas compridas de ambos os lados da cabeça, atrás das orelhas; porém, aquelas aberturas não estavam completamente abertas. Jack presumiu que seriam vestígios das guelras dos varu e concluiu que os semivaru não conseguiam respirar debaixo de água. Se tivessem guelras perfeitas, viveriam nas cidades submarinas, compreendeu, e não na superfície.

- Um pele-seca que acordou! - riu um deles.

Tinha uma voz estranha, gutural, borbulhante, como se falasse do fundo de um barril de água.

- Vim buscar a minha espada - disse Jack calmamente, apontando a bainha de Domivat. - E a de um amigo meu. Obrigado por as terem guardado.

Todos os semivaru desataram a rir, como se aquilo fosse uma piada muito engraçada.

Apenas um não se ria, além de Jack. Era uma figura pequena e subtil que estava de cócoras em cima do monte de trastes. Observava Jack com um ligeiro sorriso nos lábios.

- Tirámos-te do mar, pele-seca - disse; tinha a voz profunda dos semivaru, mas com um timbre indubitavelmente feminino. - Devias estar agradecido e ceder-nos as espadas... não sei, como gesto de boa vontade. Não te parece?

Os piratas voltaram a rir-se.

- Lamentavelmente, não posso ceder a minha espada com tanta facilidade - respondeu Jack.

A pirata pôs-se de pé e olhou para ele de cima do monte do saque. Era pequena, mas o seu rosto miúdo mostrava uma determinação de ferro e os seus olhos de varu, enormes e aquosos, observavam-no com um brilho astuto. Tinha a pele de um tom azul-desmaiado, mais pálido do que a pele de um celeste. Uma camada de escamas cobria-lhe as pernas até aos joelhos e da parte exterior do músculo até às ancas. As escamas também cobriam os seus braços até aos ombros; mas o resto da pele era lisa. Da sua cabeça pendiam melenas de cabelo azulado, semelhantes a folhas de algas molhadas que se lhe colavam ao pescoço. Tinha-se enfeitado com diversos colares de conchas e corais. Vestia restos de roupa humana que obtivera sem dúvida nas suas pilhagens e que rasgara e remendara para a tornar mais adequada ao que ela queria: um adorno que a cobrisse minimamente quando estava fora da água e que lhe permitisse uma total liberdade de movimentos ao nadar.

- A sério? - sorriu a semivaru. - Pois está-me a parecer que já a cedeste.

Jack ponderou as alternativas. Os piratas tinham-nos salvado e o rapaz não queria voltar-se contra eles. Mas tinha de recuperar Domivat. Observou, impotente, como a pirata estendia uma mão espalmada para agarrar a bainha da espada de fogo e a puxava até a tirar do monte. Então teve uma ideia.

- Muito bem - disse, cruzando os braços. - Dado que gostas tanto da minha espada, então fica com ela. Mas se queres usá-la terás de a tirar da bainha, o que não me parece que seja uma boa ideia. Não é uma espada que possa ser manejada por qualquer um. Vais ter problemas se tentares brandi-la.

A pirata estava a admirar a qualidade do punho de Domivat, mas voltou para ele o seu olhar oceânico.

- O quê estás a insinuar? Que não posso lutar com uma espada como esta porque sou uma pirata? Porque sou uma mestiça? Ou porque sou uma mulher?

- Nenhuma das três coisas. É porque não és eu.

Os piratas apuparam-no. Jack levantou a voz para acrescentar:

- Mas vamos fazer um trato. Se não tiveres problemas em desembainhá-la, podes ficar com as duas espadas. Em contrapartida, se não o conseguires, também não vale a pena ficares com elas, não achas? A verdade é que não perdes nada se fores bem sucedida.

A semivaru hesitou. Suspeitava que havia uma armadilha por detrás das palavras de Jack, mas, como era orgulhosa e a tinham desafiado, não queria voltar atrás.

- Cuidado - avisou Jack ao ver que ia fechar a mão sobre o punho de Domivat. - Podes magoar-te, estou a falar a sério.

Ela lançou uma gargalhada desdenhosa. Agarrou o punho da espada... e soltou-o de imediato com um grito de dor. Deixou cair Domivat e desceu do monte de um salto, para ir mergulhar a palma da mão numa poça de água.

- Eu disse-te - sorriu Jack.

Ela olhou para a mão, a tremer. Felizmente, a humidade da pele impedira que o fogo de Domivat a fizesse arder, mas as chagas que este lhe tinha provocado eram dolorosas.

Os piratas já não pareciam tão amistosos. Agruparam-se em volta de Jack com ar ameaçador. Alguns sacaram das armas e Jack recuou um passo. Sabia que podia transformar-se em dragão ou que, se chamasse Domivat, esta se materializaria na sua mão, mas não queria tornar-se notado.

- Esperem! - ordenou então a semivaru.

Tinha voltado a subir para o alto do saque, embora ainda segurasse a mão magoada. Olhava para Jack com um brilho divertido no olhar.

- Venceste-me, pele-seca - disse. - Deixei-me levar pela minha vaidade, quando o que deveria ter feito era não tocar na espada e vendê-la ao primeiro incauto. Mas aceitei o teu desafio e agora as espadas pertencem-te.

Ouviram-se protestos, mas a pirata calou-os com um gesto. Inclinou-se para Jack, ficando tão perto dele que o jovem conseguiu ver as gotas de água que salpicavam a sua pele. Sentiu algo frio e cortante debaixo do queixo. Não precisou de ver o que era para saber que se tratava do fio de uma faca.

- Mas não vou permitir que me enganes de novo - disse ela em voz baixa, com um sorriso feroz.

Antes que Jack pudesse responder, uma voz potente ecoou pela caverna.

- Gaeru! O que estás a fazer ao nosso convidado? Estás a tentar matá-lo, seduzi-lo ou simplesmente intimidá-lo?

Alguém abriu passagem entre os piratas. Era um semivaru gigantesco, de pele branca como o leite e uma enorme barriga. Tinha o cabelo negro preso atrás da cabeça, o que deixava ver as guelras imperfeitas no seu pescoço.

- É meu convidado, Glasdur - contestou Gaeru, mal-humorada; mas retirou a faca. - Lembra-te de que estamos longe de Tares e que esta continua a ser a minha ilha. Porque tinhas de os trazer? Até agora havia conseguido que este pedregulho fosse uma base completamente secreta. E tu vens e trazes-me uma tripulação inteira de humanos!

Glasdur desatou a rir, o que fez tremer a sua enorme papada.

- Menina má, menina má! - ralhou-lhe. - Estes não são uns convidados quaisquer. Além disso, que diabos! Aquela onda gigante surpreendeu-nos a todos. Não tens coração?

- Tenho um coração molhado - respondeu ela. - Demasiado húmido para os peles-secas, especialmente para aqueles que têm um coração de chamas - acrescentou, com sorriso astuto.

Atirou-lhe algo que Jack apanhou no ar. Era Domivat.

- É toda tua, humano - sorriu. - Ganhaste a aposta. A outra espada não está comigo. Ofereci-a ao grande Glasdur, o Pálido, aqui presente. Pede-lha a ele.

O sorriso de Glasdur desapareceu.

- O quê? Como? Apostaste a minha espada com este pele-seca? O que é que tínhamos dito acerca dos despojos alheios, miúda?

- com todo o respeito, a espada não é tua - interveio Jack, com suavidade. - A espada pertence ao meu amigo Alexander, que continua vivo, com os outros. Presumo que não me vais obrigar a reclamá-la pela força acrescentou, muito sério.

Os piratas grunhiram baixinho; mas o olhar de Jack estava cravado em Glasdur, que o susteve, sem pestanejar, até que rebentou às gargalhadas.

- Gosto deste garoto! - exclamou, dando-lhe uma palmada nas costas que o deixou sem fôlego. - Mas estou a ressequir e, quando seco, não fico com humor para falar de coisas sérias. Acompanha-me, pele-seca; vamos tomar um banho, está bem?

Jack não soube o que dizer. Mas, quando o pirata deu meia-volta e se perdeu na penumbra da caverna, Gaeru deu-lhe um empurrão para que o seguisse.

- Repartam o que resta, rapazes - disse à sua gente. - Mas guardem-me alguma coisa bonita, ha? Depois volto para a vir buscar.

Ambos acompanharam Glasdur por um túnel a descer, iluminado por manchas de fungos fluorescentes que cresciam em lugares estratégicos. Era um lugar húmido e frio; Jack achou-o desagradável, mas os semivaru pareciam gostar.

Chegaram a uma caverna maior, em cujo fundo havia uma poça de água. Glasdur deslizou para dentro dela, com um suspiro de felicidade.

- Aaaah, isto é outra coisa - disse. - Está à vontade, pele-seca. Há lugar para todos.

Jack declinou o convite, mas sentou-se numa rocha húmida, à beira da água.

- Gaeru, vai buscar os líderes dos peles-secas - disse Glasdur. - Raktar, o feiticeiro que vinha com eles no barco, se é que está vivo, e o amigo do rapaz, o da espada interessante. Temos muito que falar.

Ela inclinou a cabeça e desapareceu na escuridão.

Noutros tempos, Jack ter-se-ia sentido intimidado ao ficar a sós com o enorme pirata, num lugar estreito demais para o caso de ter de se transformar. Mas as coisas

tinham mudado muito. Jack não conseguia ter medo de Glasdur, o Pálido, o terror dos mares idhunitas, por muito que devesse.

- Não ligues a Gaeru - confiou-lhe o semivaru. - Promete, vejo que sim, e vai no bom caminho para se tornar uma grande pirata. Mas quer ir demasiado depressa e é tão jovem e bonita que receia que não a levem a sério. Por isso pavoneia-se tanto.

- Tem estilo - opinou Jack.

- Sim, acho que sim. Mas falta-lhe sabedoria. Não é uma boa ideia enfrentar um dragão, pois não?

Jack inclinou a cabeça.

- Ela não tinha como o saber. Segundo me constou, nem lá estava quando aconteceu.

- Não. Também não lho disse, como pudeste reparar. E ao exigires a devolução das espadas diante de toda a minha gente, puseste-me em cheque. E que, como é óbvio, não posso contrariar um dragão, pois não? Mas tu não queres que se saiba que és um dragão. Estiveste prestes a denunciar-te sozinho.

Sabes, salvámo-vos a vida porque fiquei curioso. Mas talvez tenha sido um erro. É que Gaeru tem razão: esta é a sua ilha e até hoje não vinha marcada nos mapas dos peles-secas. Agora, Raktar e os seus conhecem-na, pelo que terei de os matar. No entanto, tenho as minhas suspeitas de que tu irias tentar impedir-me e... enfim.

Ou nos matas a nós ou matamos-te a ti, e o que queres que te diga... Fiz muitas barbaridades ao longo da minha vida, mas acabar com o último dragão de Idhún nunca fez parte dos meus planos.

- Estou a ver - assentiu Jack. - Para te ser sincero, estou mais preocupado com Shail e Alexander, porque são meus amigos. Mas o capitão Raktar é amigo de Shail. Isto é, um amigo de um amigo meu. E suponho que Alexander também quereria ficar para trás a defendê-lo, o que me compromete. Nós os três só queremos prosseguir a nossa viagem para Gantadd; quanto antes, melhor. Por isso, espero que possamos chegar a um acordo.

Naquele instante entraram Raktar, Shail e Alexander, seguidos de Gaeru. Jack notou que tinha ligado a mão.

- Raktar, meu amigo! - cumprimentou-o o pirata efusivamente. - Porque não vens para a água e tomamos banho juntos?

- Não sou teu amigo - grunhiu o humano, mostrando-lhe os dentes. Se nos vais matar, fá-lo depressa e acaba com isto de uma vez.

- Devia matar-vos, é verdade - assentiu Glasdur, pensativo. - Hoje não conseguimos um grande saque, sabes? Decepcionaste-me.

- Ainda por cima estás a insinuar que tenho a culpa disso? Não sejas arrogante! Só nos capturaste por causa da onda gigante!

- Eh, eh, não vás tão depressa. A onda atingiu-nos a todos, mas vocês não teriam sobrevivido se não vos tivéssemos tirado da água.

- Tirar-nos da água? Foi o dragão que nos salvou!

- O dragão também estava meio morto quando o resgatámos. Ou será que os dragões conseguem respirar debaixo de água?

- Não te gabes de coisas que não consegues fazer, Glasdur. Se meteres a cabeça debaixo de água afogas-te, tal como eu.

O pirata lançou-se sobre ele com um grito de fúria e um violento salpico. Alexander interpôs-se entre ambos, separando-os muito a custo.

- Parem, os dois - ordenou. - Creio que estamos todos com o mesmo problema. Encontramo-nos aqui presos, sem barcos, e ainda não sabemos o que provocou a onda gigante.

- Rebentou contra a costa de Nanetten - disse Jack a meia-voz. - Eu vi. Arrasou Porto Esmeralda, mas felizmente não chegou a avançar terra adentro. As muralhas e a falésia travaram-na.

Raktar e Shail escutavam-no com atenção. Jack apercebeu-se do seu olhar e acrescentou:

- A onda varreu as casas mais próximas do mar e fez subir o rio, mas a maior parte da população já tinha deixado a cidade. Os vigilantes das marés foram bastante eficientes.

- Como pôde chegar a Porto Esmeralda antes de chegar aos nossos barcos, que estavam em alto-mar? - perguntou-se Glasdur, desconcertado.

- Porque a onda tinha duas vertentes. Quando um barco atravessa a água, a sua passagem gera ondulação de ambos os lados, à direita e à esquerda. O que vi do ar foi algo semelhante. Algo que avançava através do mar, provocando duas gigantescas vagas; uma foi rebentar contra a costa e a outra avançou para este. Foi essa que nos apanhou.

Glasdur deixou-se cair de novo na água. Parecia perplexo.

- E que tipo de criatura marinha provocaria algo assim? Viste-a, dragão?

- Não, não vi. E não creio que haja alguém capaz de a ver. Julgo que é uma espécie de força invisível cuja simples presença faz com que os elementos se alterem.

Tenho visto coisas semelhantes. Algo está a destruir as montanhas de Nanhai e um enorme

tornado arrasou Kazlunn e Celestia nos últimos dias. Mas até agora não tinha

visto nada parecido no mar.

- E porque é que estão a acontecer estas coisas? É obra dos sheks ou de algum imitador de Ashran? Se esse maldito feiticeiro foi capaz de mover os astros...

- Não - cortou Jack. - Creio que é algo maior e mais poderoso. E o pior de tudo é que não sabemos como o impedir.

- Impedir?! - exclamou então Gaeru. - Queres dizer que ainda anda por aí?

- Dirige-se para sul - disse Jack. - Está a avançar muito lentamente, mas nos próximos dias as ondas que provoca irão atingir as costas de Derbhad.

- As falésias protegerão os bosques das fadas - disse Raktar - e, seja como for, a maioria vive no interior. O que pode estar em perigo são as terras baixas dos ganti.

- E as cidades submarinas - disse Glasdur, pensativo. - Não sei como é que isto vai afectar o Reino Oceânico, mas não deve ser nada bom.

- E o Oráculo - acrescentou Shail. - Zaisei - disse apenas, olhando para os seus amigos.

Jack assumiu o controlo da situação.

- Então o trato é o seguinte: devolve-nos a espada de Alexander e deixa-nos ir a nós os três - disse ao pirata. - Se sairmos já, alcançaremos o nosso destino antes de Nel... a onda chegar - corrigiu-se. - Como vamos a voar, não há perigo que nos afecte. Iremos a Gantadd, daremos o alerta e enviaremos alguém ao Reino Oceânico. Além disso, deixa partir o capitão e a sua tripulação. Tens de convir que isto é bem mais grave do que as vossas quezílias habituais. Se os humanos vos ajudarem a reconstruir os barcos, vocês recuperarão a vossa frota e eles poderão regressar a casa para verificar se as famílias estão bem. Depois do sucedido em Porto Esmeralda, não creio que alguém tenha vontade de sair para caçar piratas, de modo que Gaeru e os seus estarão relativamente seguros.

- Parece-me razoável - assentiu Glasdur, cofiando o queixo.

- Bem - disse Jack, levantando-se -, então não há mais nada para falar. Vamos embora: espera-nos uma longa viagem.

 

               O JULGAMENTO DOS SHEKS

A claridade da aurora começava já a tingir a neve quando o rosto de Gerde se mostrou na água do onsen. Em volta dela, Shizuko e sete sheks aguardavam pacientemente.

- Talvez não venha - disse Shizuko, com voz neutra. Gerde esboçou um sorriso misterioso.

- Oh, virá - disse. - Acredito que virá.

No seu íntimo, Shizuko desejava que tivesse razão.

Por isso, quando a sombra do híbrido se projectou sobre o manto de neve e o viram aproximar-se, com o seu andar sereno habitual, a rainha dos sheks sorriu para si.

Contudo, o seu sorriso desvaneceu-se quase de imediato ao verificar que estava sozinho. Os sheks viram-no apresentar-se diante deles e levantar a cabeça, com calma, mas desafiador.

- Aqui estou - disse.

- Estou a ver - respondeu Shizuko. - Onde está a rapariga?

- Não vem.

A conversa decorria tranquila e fluida e, apesar de tudo, tremendamente vazia. É que, ao mesmo tempo que falavam com as suas cordas vocais, os seus pensamentos entrelaçavam-se com rapidez através de um canal privado.

- O que estás a fazer?

- Disse-te que tinhas um dilema, Shizuko. Presumo que tiveste tempo suficiente para pensar nele.

- Estás a pôr-me à prova? Queres que tenha de decidir entre rebelar-me ou ver-me obrigada a matar-te?

- Não é assim tão estranho; já enfrentei uma vez uma escolha semelhante.

- Para ti foi mais fácil Não és completamente shek.

- Sou completamente shek. E, embora seja também humano, fiz parte da rede telepática, por isso sei o que significa ser um de vós. Não minimizes as coisas.

- Basta! - A voz de Gerde chegou-lhes zangada, vinda da imagem do tanque. - Kirtash, constou-me que Ziessel te pediu que trouxesses o unicórnio contigo.

Christian avançou até ficar junto ao onsen. Dirigiu a Gerde um olhar inescrutável.

- Pediu-me, sim - respondeu, com calma. - Mas creio que Victoria não tem vontade de voltar a ver-te, tendo em conta que ainda tens em teu poder algo que lhe pertence - observou.

- Sei muito bem porque não a trouxeste - sorriu a fada. - Era tudo o que precisava de saber.

- Então, já tens a informação que querias. Não era necessário trazer Victoria, vês?

- Talvez não, mas Ziessel pediu-te... ordenou-te que o fizesses. Não foi? Christian sorriu para consigo. Gerde não podia exibir demasiada

autoridade diante dos outros sheks sem revelar a sua verdadeira essência. Mas estava a obrigar Shizuko a exercer a sua. Alguns já duvidavam de que uma shek encerrada num corpo humano pudesse ser uma boa líder para eles. O próprio Christian era um traidor que não só tinha deixado de ser útil, como ainda por cima continuava a desafiar a autoridade dos sheks. Shizuko devia castigá-lo por isso. Se não o fizesse, os sheks poderiam obrigá-la a escolher alguém que a substituísse como soberano dos sheks. Alguém que, além de matar Christian sem hesitar, poderia destituí-la a ela. Para não falar do que Gerde lhe faria se voltassem a encontrar-se.

- Porque é que voltaste? - gemeu Shizuko na sua mente, angustiada. Christian detectou uma preocupação genuína e sentiu-se comovido.

- Vim buscar-te - limitou-se a dizer. - Mas para isso preciso de saber se vens comigo.

Os olhos rasgados de Shizuko abriram-se desmesuradamente, reflectindo uma surpresa que o seu rosto frio não costumava mostrar.

- Isso não é justo - replicou ela. - Se não és capaz de tomar uma decisão, assume-o, em vez de me pores a mim contra a parede. Sei que queres que te traia para poderes regressar para junto do teu unicórnio com a consciência tranquila, mas não vou fazer o teu jogo, porque não tenho nada a ver com isso.

- Talvez tenhas razão. Mas isso não anula o facto de que, mais cedo ou mais tarde, serias confrontada com esta situação.

- É verdade, ordenei-te que me trouxesses a rapariga e desobedeceste-me - disse ela em voz alta, respondendo à pergunta de Gerde. - Mas já agora gostava de saber porque é que regressaste. Sabias que te mataríamos se te negasses a satisfazer o meu pedido. E, se desejas voltar a ser considerado um de nós, não devias contrariar-me. Sobretudo, tendo em conta que jurei não fazer mal à rapariga.

Christian retribuiu-lhe um olhar demorado.

- Ela é um assunto pessoal - disse. - Pertence ao meu usshak. Se realmente me consideram um shek, deviam respeitar isto. E se pensam que não sou um de vós, então não tenho motivos para obedecer a Ziessel. E muito menos a Gerde.

- Mas não podemos esquecer quem ela é - disse então Gerde, com um sorriso doce. - Se ainda consegue entregar a magia, continua a ser perigosa: lembra-te de que, juntamente com o dragão... e contigo, matou Ashran. Não creio que devamos deixar passar isto. Se é inofensiva, não vale a pena pensar mais nela. Agora, o que é suposto pensarmos se te recusas a trazê-la? Dois dos assassinos de Ashran permanecem juntos. Como vamos ter a certeza de que não estão a conspirar contra nós?

- Gerde, tu sabes que quero protegê-la - disse Christian. - Não tenho nenhuma intenção de a obrigar a lutar de novo.

- Oh, continuas interessado nela - ronronou a fada. - É curioso que alguém que se preze de ser um shek oculte no seu usshak uma criatura meio-humana, meio-unicórnio.

Se és um shek... não deverias ter outro tipo de interesses? Uma shek, por exemplo?

Os pensamentos de Christian e de Shizuko entrelaçaram-se rapidamente, concluindo o mesmo: "Ela sabe."

Christian detectou um ligeiro rasto de dor na mente de Shizuko e soube que Gerde tinha conseguido semear a dúvida no seu coração.

Os outros sheks sibilaram baixinho, desaprovando as palavras de Gerde. Tinham captado a insinuação. Sabiam que nenhuma shek manteria uma relação com um híbrido, mas o certo era que Ziessel tinha um corpo humano. E viam-nos aos dois juntos muitas vezes.

Por um lado, só a simples a ideia repugnava-os. Por outro, se Christian preferia Victoria a Ziessel, a rainha dos sheks, não devia ter tanta essência de shek como dizia, portanto, eles não tinham motivos para o respeitar, nem ao seu usshalt.

- As preferências de Kirtash não vêm ao caso - disse Shizuko com frieza. - Dada a sua natureza, duvido muito que tenha escolha.

Akshass semicerrou os olhos, irritado. Sabia perfeitamente que estava a mentir. Sabia que na realidade tinha escolha, que a rainha dos sheks poderia acolhê-lo ao seu lado. Mas ele insistia em proteger aquela jovem, uma inimiga, e isso só podia acarretar a morte.

O shek ergueu-se sobre os seus anéis, cansado de ser um mero observador, e interveio na conversa; e a sua voz telepática soou nas mentes de todos.

- Sim, vêm ao caso, Ziessel - disse. - Talvez o teu lamentável acidente te tenha, feito sentir uma certa simpatia pelo híbrido, simpatia que te impede de analisar a situação com frieza. Mas o certo é que a sangue-quente tem razão. Demos ao híbrido uma segunda oportunidade que não merecia e agora ele discute com a sua rainha um pedido que me parece razoável Ainda não nos esclareceu se o unicórnio conserva o seu poder, o que, tendo em conta a sua renitência, em falar do assunto, parece ser o caso. Ao proteger a assassina de Ashran, desobedecendo ao desejo da sua rainha, o híbrido não demonstra arrependimento, antes pelo contrário; para mim é óbvio que continua a ser um traidor e a minha paciência já se esgotou. Não vejo porque é que perdemos tempo a decidir se deve continuar vivo ou não.

Os outros sheks ciciaram, mostrando a sua aprovação. Gerde sorriu.

- Então, essas são as minhas opções? - perguntou Christian em voz alta. - Trazer-vos Victoria ou ser executado como traidor?

- Não se trata disso, Kirtash - respondeu Shizuko. - Estás a ser julgado por delitos passados, delitos contra toda a raça shek. Devias ter sido condenado por eles há muito, no entanto, foste poupado... com a condição de voltares a ser útil aos teus. À tua rainha... ao teu deus. Se não aproveitas esta oportunidade, só nos resta continuar a considerar-te um traidor e um inimigo perigoso.

Christian e Shizuko fitaram-se. Sabendo-se em perigo, Christian fechara hermeticamente a sua mente para evitar qualquer possível ataque telepático. Porém, o canal privado que tinha criado para Shizuko continuava aberto. Ela apercebeu-se desta circunstância.

- Não devias fazer isto - disse-lhe.

- Discordo - replicou ele. - Se acreditas que mereço morrer, então mata-me tu mesma.

- Penso que mereces morrer - respondeu ela. - Mas não quero matar-te, portanto não me obrigues a fazê-lo.

- Então, não me obrigues a escolher entre ú e Victoria. Lamento dizê-lo, mas poderias sair a perder.

- Não tanto como pensas. Se de facto a preferes a ela, então isso significa que não és suficientemente shek para me merecer.

- Não vou entregar-me assim, sem mais nem menos - disse Christian, com suavidade, mas com firmeza. - Aquele que quiser executar-me, terá de me enfrentar primeiro.

Akshass semicerrou os olhos.

- Estás a sugerir um combate mental?

- Há coisas na minha mente que considero demasiado valiosas para as arriscar desse modo - respondeu Christian. - Não; estou a referir-me a um combate corpo a corpo.

Os sheks ciciaram, zangados. Não tinham por costume lutar corpo a corpo; só o faziam quando estavam realmente furiosos ou quando combatiam inimigos que não possuíam uma mente adequada ao confronto mental.

- Achas adequado, ZiesseU - perguntou Akshass a Shizuko. Ela demorou um pouco a responder.

- Compreendo que o híbrido queira lutar pela sua vida - disse -, só que é desnecessário. Mesmo que consiga derrotar-te, terá de lutar contra outro que pretenda

executá-lo. Acabará por morrer seja como for. Todavia, se deseja morrer a lutar, não vejo razão para lho negar.

- Assim seja - disse então Akshass. - Lutarei contra ti num combate corpo a corpo.

- Obrigado - respondeu Christian, e transformou-se lentamente em shek.

Quando abriu as asas, desenrolou os anéis e lançou a cabeça para trás, com um silvo de satisfação, estava plenamente consciente do olhar ansioso que Shizuko lhe dirigia. Nunca se tinha mostrado como shek diante dela, porque sabia que a magoava que lhe recordassem que ela nunca mais poderia recuperar o seu verdadeiro corpo. Mas naquele momento não conseguiu evitar dirigir-lhe um olhar penetrante. Shizuko captou imediatamente o seu significado: era irónico que o acusasse de não ser completamente shek, quando, ao contrário dela, possuía alma e corpo de shek.

- Podias desaparecer, ir embora daqui - disse a Christian em privado. Porque vais lutar? Porque não te foste embora ainda?

- Porque estou à tua espera - respondeu ele.

- Achas mesmo que vou abandonar tudo... para ir contigo?

- Sentes alguma coisa por mim. Náo tentes negar.

- Não estou a negar. Mas isso não chega, Kirtash. Ele dirigiu-lhe um olhar profundo.

- Não confias em mim?

- Como queres que confie em ti?

Christian sibilou. "Victoria sim, confia em mim", disse para consigo. Recordou a si mesmo que a sua relação com ela já durava há quase dois anos. Em contrapartida, Shizuko e ele estavam apenas a começar a conhecer-se: era normal que Shizuko pusesse objecções à ideia de tomar o partido dele. Mas Victoria tinha-lhe dado a mão da primeira vez que lhe pedira que o acompanhasse. Mesmo quando eram inimigos, quando ela não tinha motivos para confiar nele... mesmo nessa altura, Victoria teria deixado tudo para o seguir. "Isso não chega", dissera Shizuko. E, embora Christian entendesse a posição da shek e não pudesse censurá-la, também não conseguiu evitar pensar que para Victoria teria chegado.

Claro que Victoria não era uma shek. A racionalidade de Shizuko impedia-a de colocar os seus sentimentos acima do que era lógico e razoável. Christian compreendia-o. Tinha seguido um impulso da primeira vez que perdoara a vida a Victoria, mas depois disso demorara dois anos a decidir que abandonaria tudo por ela. Victoria, em contrapartida, não pensara duas vezes. Ter-lhe-ia dado a mão na altura porque era um unicórnio... ou porque era humana?

E se Shizuko tivesse mais tempo para reflectir? Se Gerde não estivesse a obrigá-la a decidir entre os seus sentimentos e o seu dever para com os outros sheks?

- Se tivéssemos mais tempo - disse-lhe então -, talvez o nosso vínculo acabasse por se

tornar mais sólido. Mas Gerde não permitirá que isso aconteça. Vais deixá-la

levar a dela avante?

Shizuko não respondeu. Fechou-lhe a sua mente, e Christian entendeu que lhe estava a dar liberdade para fazer o que achasse conveniente. Porém, ele continuou à espera.

Akshass lançou-se para trás e mostrou-lhe as presas. Christian fez o mesmo.

Os outros sheks retrocederem para lhes dar espaço. Shizuko colocou-se atrás do onsen e reparou então na imagem de Gerde, que continuava a observar tudo com interesse.

- Porque estás a fazer isto? - perguntou-lhe em voz baixa, consciente de que tinha sido a fada quem precipitara aquela situação.

- Espera e verás - sorriu ela.

Observaram Christian e Akshass a agitar as asas lentamente, a posicionar os seus longos corpos de serpente e a sibilar baixinho, mostrando as presas um ao outro. Aquela troca prévia de ameaças durou apenas dois minutos. Em seguida, Akshass lançou a cabeça para a frente, num movimento ágil, que Christian conseguiu evitar muito a custo. Bateu as asas até se elevar um pouco no ar e, dali, atacou o adversário. Logo a seguir, os dois estavam enredados num combate mortal, procurando morder ou estrangular o outro. Mas era difícil, porque os longos corpos dos sheks, muito úteis para imobilizar criaturas grandes, como os dragões, se mostravam ineficazes na hora de envolver o corpo de outra serpente. Além disso, o veneno dos sheks só era perigoso para eles em grandes doses. De modo que uma mordidela, que para outra criatura seria letal, para um shek era apenas dolorosa. Podiam estar horas a lutar sem que houvesse um vencedor.

Shizuko fitava-os, aparentemente impávida, embora por dentro se encontrasse perante um dilema. Sabia porque é que Christian estava a fazer aquilo. Era a sua forma de desafiar Gerde. Demonstrava-lhe que não tinha poder sobre ele, pelo menos no que se referia a Victoria. Porém, não pôde deixar de se perguntar se teria conseguido contrariá-la da mesma maneira se estivesse realmente diante dela e não a milhares de mundos de distância.

Mas havia outra razão, e era a própria Shizuko. Christian estava a pedir-lhe que se envolvesse, que decidisse o que era mais importante para ela: se o seu dever como rainha dos sheks ou a relação que tinha iniciado com ele. E não o fazia apenas por ela. Se Shizuko o rejeitasse agora, ele não teria de escolher entre ela e o unicórnio.

Shizuko jamais lhe pedira que escolhesse uma das duas. Mas agora Gerde tinha-os colocado em cheque a ambos, dado que já não era uma questão sentimental, mas sim de lealdade. Protegendo Victoria, Christian não estava simplesmente a contrariar Shizuko, mas também a ignorar o pedido da rainha dos sheks. Estava a demonstrar, uma vez mais, que não era um deles.

O que Shizuko não conseguia entender era a razão por que Gerde pusera Christian naquela situação. Se pretendesse matá-lo, já o teria feito há muito tempo.

Diante dela, os dois sheks continuavam a combater. Um furioso golpe de cauda fez retumbar o chão, perto da nascente, e Shizuko recordou, de novo, quão frágil era o seu corpo humano, que podia ser destruído com tanta facilidade. Recuou um pouco mais.

Nenhum dos dois parecia estar em vantagem. Christian conseguira imobilizar uma das asas de Akshass, que movia a outra enquanto procurava cravar as presas no pescoço do seu adversário. Christian apertou mais a asa de Akshass, até a fazer estalar; mas o shek, com um guincho de fúria e de dor, conseguiu enterrar as presas no corpo anelado do híbrido.

- Chega! - disse então uma voz. - Podem parar com isso!

Embora o ruído abafasse o som das palavras, a mente de Christian captou-as com clareza, porque tinha pressentido a sua presença. Deixou que fluíssem na mente de todos os sheks, e Akshass, desorientado, soltou a presa. Christian também afrouxou a pressão que exercia na asa do opositor.

A batalha cessou.

Os olhos dos sheks cravaram-se, cintilantes, na pessoa que acabava de chegar. O rosto de Shizuko permaneceu impenetrável, e Gerde sorriu.

Christian fechou os olhos por um instante. Não precisava de se voltar para saber quem acabava de se colocar ao seu lado, aparentemente sem medo de Akshass ou dos outros sheks. Os dois combatentes desenredaram os seus corpos e separaram-se, e Christian recuperou o aspecto humano. As feridas recebidas no seu corpo de shek manifestavam-se também naquele corpo, pelo que cambaleou momentaneamente, acometido de uma súbita fraqueza. De imediato, alguém veio em seu auxílio, amparando-o para que não caísse

ao chão. O simples contacto com ela fez com que a uma energia curativa fluísse através do corpo dele, docemente, curando as suas feridas pouco a pouco. Christian

ficou contente por ela estar ali, mas, por outro lado, lamentou-o.

- Como são previsíveis - riu-se Gerde, encantada.

Victoria ergueu a cabeça ao ouvir a sua voz e procurou-a com o olhar. Descobriu a imagem na superfície gelada do onsen e mostrou-se um pouco confusa. Reagiu de imediato e respondeu:

- Sim, estou aqui. Já me podes ver. Não era isso que querias? O sorriso de Gerde rasgou-se.

- Sim - disse. - Era exactamente isso o que eu queria.

Os sheks observaram Victoria com curiosidade, e ela suportou aquele exame sem mexer um músculo. Então voltou-se para Shizuko.

- Ziessel, rainha dos sheks - disse. - Saúdo-te e peço-te que perdoes Kirtash. Tenho a certeza de que ele não queria ofender-te. A culpa é minha; atrasei-me um pouco.

Shizuko esboçou um sorriso.

- És corajosa, miúda - disse. - Sabes perfeitamente que Kirtash não tinha a menor intenção de te trazer consigo hoje. E tens consciência de que sei disso.

- É bem provável - assentiu ela. - Mas isso não muda o facto de que lhe tinhas pedido que me trouxesse diante de ti, e fê-lo. Porque vim por ele.

Pronunciou as últimas palavras em voz alta, sem hesitar, com total convicção. Os sheks semicerraram os olhos e fitaram-na em silêncio.

- O que estás a fazer, Victoria? - perguntou Christian na sua mente.

- A livrar-te das embrulhadas em que te metes... mais uma vez - respondeu ela. - A ver se aprendes de uma vez por todas a contar comigo.

Christian sorriu.

- Se pretendes salvar a vida do híbrido, não é boa ideia recordares-nos a relação dele contigo - disse Akshass. - Não podemos esquecer que tu és Lunnaris, o último unicórnio. A assassina de Ashran.

- Sou Lunnaris - assentiu ela -, o último unicórnio, por obra e graça de Ashran, que exterminou todos os da minha raça num só dia. Ashran, que enviou vários assassinos para me matar quando estava no exílio. Ashran, que me torturou para me arrebatar a magia quando me teve nas suas garras. Ashran, que ameaçou matar quem me é querido e, finalmente, me amputou o corno. Qualquer um de vós tê-lo-ia matado por muito menos, de modo que não me parece que tenham o direito de me recriminar por isso.

O sorriso de Christian rasgou-se. Cruzou os braços e deixou a situação nas mãos de Victoria.

- Sim, não há dúvida de que tinhas contas a ajustar com ele - disse Gerde, com um sorriso maldoso.

- Contas que não foram ainda devidamente saldadas - replicou Victoria. - Como compensação pelos agravos recebidos e como gesto de boa vontade, seria uma delicadeza da tua parte que me devolvesses o que é meu. Isto é, o meu corno. O corno que Ashran me arrancou e que, misteriosamente, foi parar às tuas mãos. A fada desatou a rir.

- Estás um pouco agressiva, Lunnaris. Talvez não te convenha muito desafiares-me. Lembra-te de que o corno não é a única coisa tua que tenho - acrescentou, lançando um olhar significativo a Christian. O shek, ainda de braços cruzados, inclinou a cabeça, mas não se mexeu.

- Christian não te pertence, bruxa - atirou-lhe Victoria. - Nunca te pertenceu, nem a ti nem a ninguém.

- A sério? - riu Gerde. - Tenho poder para o magoar, como bem sabes. Só por isso devias mostrar-me um pouco mais de respeito.

- Chega - interveio Akshass. - Não me interessam as disputas das mulheres sangues-quentes. Afinal, em que ponto nos encontramos?

- Isso cabe-me a mim decidir - disse Shizuko; os seus olhos mostraram-se mais duros e frios do que o habitual. - Bem, aceito a palavra de Kirtash de que Lunnaris não vai regressar à luta, embora mostre animosidade em relação a Gerde. Podem partir os dois, se quiserem. Não voltem a atravessar-se no nosso caminho e nós não vos perseguiremos. Em contrapartida, e para romper os vínculos de Kirtash com a rede dos sheks, exijo que nos devolva algo que nos pertence. Exijo Shiskatchegg, o Olho da Serpente.

Christian ficou petrificado. Victoria vacilou pela primeira vez e escondeu atrás das costas a mão onde usava o anel.

- Shiskatchegg foi-me entregue a mim - replicou Christian com suavidade -, porque era o único shek que podia usá-lo.

- Mas já não és o único - observou Shizuko, erguendo as mãos e agitando os dedos diante dele. - Antes, não fazia sentido reclamá-lo, mas agora o que não tem lógica é que semelhante jóia esteja nas mãos de um traidor, quando a rainha dos sheks tem mãos humanas onde pode brilhar.

- Shizuko, não me podes fazer isto - disse-lhe ele.

- Estou a dar-te uma oportunidade de saíres disto com vida, a ti e ao teu unicórnio - replicou ela, irritada. - Estou a negociar. A cólera dos sheks irá aplacar-se se nos devolveres o anel.

- Isto foi tudo ideia de Gerde, não foi?

- O que é que isso importa?

Christian não replicou, indeciso. Victoria colou-se mais a ele.

- O pedido de Ziesseí parece-me razoável - disse um dos sheks, e os outros ciciaram, mostrando a sua aprovação.

- Parece-me que é atua última oportunidade de seres perdoado, híbrido comentou Akshass.

Victoria avançou um passo, mas Christian segurou-a pelo braço.

- Entreguei o anel a Lunnaris para poder manter um vínculo mental com ela - disse com serenidade.

Os sheks sibilaram baixinho.

- Por acaso esse vínculo é mais importante para ti do que o pedido da rainha dos sheks? - perguntou Akshass. - Mais importante do que poderes voltar a ser aceite entre nós?

Christian e Shizuko fitaram-se demoradamente. Victoria permanecia junto dele, em silêncio. Calculava o que Christian estava a sofrer, porque tempos antes também ela tivera de escolher. A relação que mantinham significava muito para ambos, mas Shizuko oferecia-lhe a possibilidade de regressar para junto dos sheks. Até... poderia vir a ser para ele uma companheira mais adequada do que a própria Victoria?

Christian continuava com o olhar cravado em Shizuko.

- Pedes-me que renuncie ao meu vínculo com Victoria - disse-lhe. - Mas tu não estarias disposta a sacrificar o teu vínculo com os outros sheks.

- Não o reduzas a uma questão sentimental, Kirtash - respondeu ela.

- É uma questão sentimental. Se assim não fosse, ter-me-ias matado assim que deixei de vos ser útil.

- Responde, híbrido - insistiu Akshass. - Para ti é mais importante o teu vínculo com Lunnaris do que regressar à rede dos sheks?

Christian sentiu que Victoria lhe pegava na mão para chamar a sua atenção, e voltou-se para ela. "Faz o que tiveres de fazer", dizia-lhe a jovem com o olhar. Christian soube que, se a abandonasse naquele preciso momento, ela não o censuraria. E não teve mais dúvidas.

- Sim - limitou-se a dizer.

- Então, acabou-se a conversa - disse Akshass.

- Sim - anuiu Shizuko. - Acabou-se a conversa.

- Lamento - disse-lhe Christian.

- Não lamentes. Se fosses um shek de verdade, terias ficado comigo. De modo que, afinal de contas, era ela quem tinha razão: não és mais do que um meio-shek traidor.

É melhor que morras.

- Talvez. Mas importo-me contigo. Embora te custe a crer.

Shizuko compreendeu que aquelas eram as suas últimas palavras apenas uma fracção de segundo antes de os dois se desvanecerem no ar. Não teve tempo de dar o alarme. Quando quis fazê-lo, Christian e Victoria já tinham partido.

Os sheks não perderam tempo a enfurecer-se nem a lamentar-se.

- Como é possível? - perguntou um deles.

- Combinou a magia com o poder do shek - respondeu Shizuko. - Assim, conseguiu transportar-se para o seu usshak.

Akshass estava a lamber as feridas, mas ergueu a cabeça para olhar para ela, afirmando:

- Tu sabes onde é o seu usshak. Podemos ir atrás dele. -Não.

- Porque não? Não me digas que ainda achas que devemos respeitá-lo.

- Não. Só que o seu usshak é muito longe daqui. Quando chegarmos, já terão ido para outro lugar. Um lugar onde nenhum de nós pode entrar. Nessa altura, o vínculo mental ter-se-á rompido completamente. Não conseguiremos alcançá-los.

- Nesse caso, podiam ter ido em qualquer momento - disse um dos sheks.

- De que é que estavam à espera!

- De mim - respondeu Shizuko. Mas não deu mais explicações.

Christian e Victoria deixaram-se cair em cima do sofá; ela lançou-se nos seus braços, a tremer.

- O que fof que fizeste? - gemeu. - Podem seguir-te até aqui! Já não respeitarão este sítio!

- Vamos para Limbhad daqui a pouco - prometeu-lhe Christian. Assim que se desvanecer o meu vínculo telepático com Shizuko.

Victoria deixou que a sua magia penetrasse de novo nele, para o curar completamente.

- Christian, lamento - murmurou, após um instante de silêncio. Ele encolheu os ombros.

- Estou bem. Seja como for, já o previa. Ela sentia mesmo alguma coisa por mim, mas nunca chegou a esquecer, nem por um segundo, que sou em parte humano.

Victoria abraçou-o com mais força.

- Negaste-lhe tantas coisas... uma atrás da outra... por mim.

- Na realidade estava a negá-las a Gerde. Shizuko nunca me exigiu nada que tivesse a ver contigo. Mas Gerde obrigou-a a isso.

- É cruel - opinou Victoria. - Não entendo o que quer.

- Eu sim: quer que regresse a Idhún, para junto dela. Aceitei a sua missão porque me permitiria voltar à Terra de forma rápida e sem problemas. Ajudei os sheks porque, aliando-me a eles, este planeta seria um lugar seguro para nós. Mas agora que cumpri o que se esperava de mim, Gerde reclamava-me de novo em Idhún. A verdade é que eu não pretendia voltar, por isso a única forma que tinha de conseguir que regressasse era tornando-me inimigo de Shizuko e dos seus, destruindo este refugio seguro.

- Mas podes esconder-te em Limbhad. Lá ela não te pode alcançar.

- Não poderei esconder-me para sempre. Além disso, estamos aqui há várias semanas e Jack ainda não veio. Mais cedo ou mais tarde, vais querer regressar a Idhún para o ir buscar.

- Mas tu não tens de vir comigo! - replicou ela energicamente. - Podes esperar-nos aqui...

- Não, Victoria. Neste momento, Idhún é um lugar muito perigoso para ti, por vários motivos. Se tiveres de voltar, quero acompanhar-te.

Victoria abanou a cabeça.

- Devias deixar de te preocupar tanto comigo - opinou. - Isso só te causa problemas.

Christian olhou para ela e sorriu.

- Não estás a ver, pois não? - perguntou-lhe com suavidade. - Se te acontecesse alguma coisa, eu perderia tudo. Porque és tudo o que me resta.

Victoria engoliu em seco.

- Isso não é verdade - disse. - Ter-te-ias a ti mesmo...

- Da mesma forma que tu te tinhas a ti mesma quando acreditaste que havias perdido Jack? - contra-atacou ele.

Victoria ficou em silêncio.

- Confesso que tive medo - prosseguiu Christian. - Tive medo de te perder, e, quando conheci Shizuko... senti que me era dada uma nova oportunidade de recuperar o meu lugar. Não foi a primeira vez que aconteceu. Ashran já me tinha oferecido a possibilidade de regressar para junto da minha gente, em troca de matar Jack. E recusei-me... embora depois as coisas se tenham alterado. Mas a minha intenção foi sempre respeitar a vida de Jack.

- Eu sei - assentiu ela.

- Devia ter aprendido a lição na altura. Os sheks podem dar-me muitas oportunidades, mas, mais cedo ou mais tarde, irão pedir-me que renuncie a ti, de uma forma ou de outra. É é algo que não lhes posso conceder... nem mesmo por Shizuko.

- Creio que era isso que Gerde queria que admitisses hoje - disse Victoria em voz baixa. - Diante de todos e diante da própria Shizuko. Fechou-te as portas, Christian.

Porque havias de voltar para junto dela... se ela mesma te arrebata a hipótese de voltar a estar vinculado aos sheks?

- Porque só ela pode voltar a abrir-me a porta que agora fechou, Victoria. Mas essa não é a única razão, nem a mais importante.

Victoria fitou-o, intrigada, mas ele não deu mais explicações. Esperou por ele enquanto fazia a mala; não demorou muito, porque só ia levar o imprescindível.

- Podemos ir - anunciou por fim. - Acabei de desfazer o que persistia da consciência de Shizuko na minha mente.

Parecia triste. Victoria abraçou-o com todas as suas forças, para o consolar. Christian correspondeu ao seu abraço e contemplou mais uma vez o seu apartamento, antes de o abandonar, talvez para sempre.

Apareceram de novo em Limbhad. Por um lado, Victoria estava contente por estar de volta. Por outro, sabia que sentiria falta do apartamento de Christian em Nova Iorque.

A jovem foi à biblioteca e pediu à Alma que lhe mostrasse Jack. Lembrava-se dele muitas vezes, mas costumava resistir à tentação de o observar através da Alma. Contudo, daquela vez fê-lo porque se sentia inquieta. Christian tinha razão: Jack já devia ter regressado à Terra.

Sentiu-se mais tranquila ao verificar que estava bem. Viu-o transformado em dragão, sobrevoando o mar. Shail e Alexander viajavam no seu dorso, e Victoria sorriu. Parecia que Jack estava a aproveitar o tempo. Tinha-se juntado a Shail e encontrara Alexander. Ficou contente por voltar a vê-los e perguntou-se se Shail e Alexander estariam dispostos a voltar à Terra com Jack.

Foi estranho pensar naqueles três jovens, a alma da Resistência, que estavam agora em Idhún, enquanto que Limbhad, o seu quartel-general, ficava agora a cargo dela... e de Christian, o seu inimigo.

Saiu da biblioteca e procurou-o por toda a casa. Encontrou-o num dos quartos mais afastados; o que tinha sido seu no breve período que permanecera em Limbhad antes de atravessar a Porta interdimensional com destino a Idhún. Estava a guardar as suas coisas no armário. Victoria contemplou-o em silêncio, até que ele parou e olhou para ela, com seriedade.

- Está tudo bem?

- Sim, por enquanto - assentiu ela. - Jack está bem, e Idhún ainda não voou em pedaços, por isso creio que podemos dar-lhe um pouco mais de tempo... esperá-lo um pouco mais.

Christian assentiu.

- Está bem - disse. - vou esperar aqui, contigo, até que Jack chegue ou até que decidas regressar a Idhún para o ir buscar.

- E se decidir regressar, não me vais impedir? O shek abanou a cabeça.

- Enfrentaste Gerde, Victoria. Deste-lhe a cara, a ela e a um grupo de sheks que tinham motivos para te matar. Isso quer dizer que já recuperaste completamente. Não me agrada a ideia de voltares a Idhún, mas não posso obrigar-te a permanecer aqui. Se se der o caso de quereres regressar, respeitarei a tua decisão e abrir-te-ei a Porta.

- Obrigada - sorriu ela.

Fitaram-se demoradamente. Victoria teve então consciência, pela primeira vez, de que estavam juntos e sozinhos em Limbhad. E de que ele já lhe prestava toda a sua atenção. A ideia fez o seu coração bater mais depressa.

- E agora? - murmurou.

Christian tomou o seu rosto com as mãos e olhou-a nos olhos.

- Agora? - repetiu. - Agora pretendo recuperar todo o tempo perdido, se me deixares - disse, e beijou-a com suavidade.

Naquela tarde, quando Shizuko chegou a casa, a primeira coisa que fez foi tirar um quadro de uma das divisões e pendurar um espelho no seu lugar.

Não era um espelho qualquer. Era feito de cristal de gelo, o mesmo gelo do onsen onde o rosto de Gerde se manifestara. Assim, a janela interdimensional deixara de se encontrar em Hocaido, para surgir no pequeno espelho arredondado... na própria casa de Shizuko, em Takanawa.

Aquele apartamento era o seu usshak. A verdadeira Shizuko tinha vivido com os pais em Osaka, mas ela tinha-se mudado para Tóquio, não só porque ali era mais fácil fazer avançar as coisas, mas também porque necessitava de independência, privacidade e intimidade. Porque, como todos os sheks, precisava de um refugio seguro que fosse só dela.

Aquilo não deixava de ser irónico. Fiel ao espírito do usshak, Shizuko nunca permitira a Christian passar da varanda. Em contrapartida, pendurava aquele espelho numa das divisões mais recônditas da casa.

Afastou-se um pouco da parede e contemplou a sua própria imagem reflectida. Perguntou-se se algum dia chegaria a acostumar-se a ela.

Pouco a pouco, o rosto de Gerde foi ocupando o seu lugar na superfície lisa do espelho.

- Funciona - comentou Shizuko com ar inexpressivo.

- Tinhas dúvidas? - sorriu ela.

Shizuko não respondeu. Apesar de o seu rosto não manifestar qualquer emoção, Gerde adivinhou-lhe os pensamentos.

- Ficou interessado por aquele unicórnio desde o primeiro momento disse. - Não tem nada a ver contigo.

Shizuko sentiu-se irritada, mas não o deixou transparecer.

- Sabias o que ia acontecer, não sabias?

- Sim, sabia. Não é a primeira vez que Kirtash se recusa a trair Victoria. E não é a primeira vez que ela aparece a correr para o salvar. Só se consegue lidar com Kirtash se o que lhe for pedido não prejudicar Victoria. Caso contrário, não há nada a fazer com ele.

- Então, que sentido tinha toda aquela, farsa?

- Obrigar Kirtash a cortar relações convosco. Agora só lhe resta uma hipótese, que é regressar a Idhún, porque na Terra não se sentirá bem nem seguro. Assim, terá de voltar para junto de mim. E vai trazer Victoria consigo.

- Havia outras maneiras de o fazer - disse Shizuko, tensa.

- Não, não havia. Não enquanto continuasses a protegê-lo, fazendo-o crer que tem uma saída.

Shizuko calou-se, pensativa.

- Fizeste bem - disse então. - Estava a cometer um erro ao confiar nele.

- Não és a primeira que comete esse erro, acredita em mim - assegurou-lhe Gerde. - Nem serás a última.

A shek semicerrou os olhos e mudou de assunto:

- Agora já sabes gue o unicórnio recuperou o seu poder. Era assim tão importante essa informação?

- Eu tinha as minhas suspeitas. Desde que me contaste que Kirtash a tinha levado consigo para Terra. Se ela fosse uma simples humana, duvido que se tivesse dado ao trabalho de a afastar de mim.

- Então, se sabias, porque precisavas de o comprovar com os teus próprios olhos?

- Porque quero que eles saibam que eu sei. Isso vai obrigar Kirtash a regressar para junto de mim e, dado que o último dragão, ao que parece, continua em Idhún, Victoria acabará por voltar também com ele.

- Tens planos para ela?

- Talvez - sorriu Gerde -, embora para já a única coisa que me interessa é que, quase com toda a certeza, recuperou a sua capacidade de entregar a magia. E por isso quero que volte a Idhún. Não quero que haja na Terra uma só pessoa capaz de conceder a magia...

- Além de ti. - compreendeu Shizuko. - Então é verdade que tens um corno de unicórnio?

- Sim. E será de muita utilidade no futuro. Num mundo sem feiticeiros, como a Terra, aquele que conseguir ressuscitar a magia terá a chave para tomar conta do planeta.

- Não será assim tão simpks - opinou Shizuko. - A maior parte dos humanos deste mundo já não acredita na magia e desconfiará dela e de quem a fizer ressurgir. Além disso, não estão muito abertos a lidar com outras espécies. Dominam pela força tudo o que não é humano, e, estando em causa uma espécie inteligente, ou bem que se esforçam por se convencer de que não o é ou combatem-na com ferocidade, vendo-a como uma ameaça. Não concebem a ideia de que haja outras criaturas racionais e, muito menos, que exista uma espécie que os supere em inteligência e complexidade. Para não falar do facto de que quase todas as sociedades deste planeta serem patriarcais. Há pouquíssimas mulheres no poder, mesmo nos países onde são mais valorizadas. É estranho, mas estes humanos têm a particularidade de pensar que a mente feminina é menos capaz do que a masculina.

Gerde achou a ideia bastante divertida.

- A sério? Isto promete ser muito interessante.

- Interessante? Eu considero-o antes absurdo.

- Então pensas que, por ser mulher, de uma raça não humana, e por possuir poderes mágicos, não serei bem tratada na Terra. - Gerde sorriu.

- Há mais uma coisa. Neste mundo há serpentes: criaturas simples e irracionais, nada comparado aos sheks ou aos szish, que em várias tradições religiosas são a encarnação do mal. Embora seja apenas por motivos religiosos, os meus não serão bem vistos aqui. Esta perspectiva vai demorar bastante a mudar. A Terra é um mundo muito povoado... excessivamente povoado, diria eu.

Gerde inclinou a cabeça, pensativa.

- É por isso que Kirtash era tão útil - comentou. - Aprendeu rapidamente como funcionava a Terra e até conseguiu um certo poder aí, pelo que percebi.

Shizuko não permitiu que aquele comentário a incomodasse.

- Ele passou anos aqui. Eu não tive tanto tempo - recordou-lhe.

- Nem temos mais - disse Gerde; Shizuko percebeu uma fugaz sombra de medo no seu olhar, mas foi tão breve que pensou que tinha sido imaginação sua. - A emigração vai ter de começar antes do que pensava.

-Já tinha pensado nisso - respondeu Shizuko. - Comprei diversos terrenos na Mongólia: é um lugar grande, frio e suficientemente despovoado para não chamarmos a atenção, pelo menos no início. Um lugar indicado para sheks e para szish... mas não para uma fada - acrescentou, olhando-a apreensiva.

Gerde assentiu.

- Eu sei - disse. - Já estive na Terra e sei que essas cidades não me fazem bem.

- Pelo que sei, a raça feérica viveu na Terra há muito tempo - disse Shizuko.

- Os humanos exterminaram-na quando destruíram a maior parte dos seus grandes bosques. É característico dos sangues-quentes matarem-se uns aos outros, mas estes humanos em concreto são uma raça cruel, soberba, egoísta e perigosa.

- Bem, vou ter de correr o risco. Seja como for, tenho tudo previsto. Se me acontecer alguma coisa, haverá quem ocupe o meu lugar. Assim, o legado do Sétimo não se perderá e vocês não estarão sozinhos num mundo estranho.

Shizuko olhou fixamente para ela. Gerde deixou que uma ideia flutuasse nos seus pensamentos superficiais para que ela a captasse.

- Estou a ver - disse. - E porque não escolher um shek? Porque é que o nosso deus procura sempre identidades tão...?

Não concluiu a pergunta, mas Gerde entendeu o que queria dizer. Riu com gosto.

- Há várias razões - disse. - Uma delas é que, enquanto os Seis vigiarem Idhún, a essência do Sétimo estará mais segura numa identidade mais modesta: um shek chama muito a atenção. Contudo, às vezes os deuses descobrem-no... como aconteceu com Ashran antes da conjunção astral.

Além disso, o espírito de um shek é algo tremendamente poderoso. Poderia conviver com o de um humano com algum sucesso, como já vimos. Mas não com o de um deus.

Uma entidade divina não pode partilhar um mesmo corpo com a alma de um shek: são ambos demasiado grandes. Precisa de algo mais pequeno, mais humilde; caso contrário, a fusão entre ambas as essências não seria completamente perfeita e daria problemas.

- Há precedentes, não é?

- Sim - suspirou Gerde. - Ao longo dos séculos, o Sétimo foi procurando voltar ao mundo através de recipientes mortais. E acredita em mim: onde se sentiu mais à vontade foi no interior de feiticeiros sangues-quentes. Por estranho que te pareça.

- Não é assim tão estranho, se tivermos em conta que não há muitos feiticeiros entre os szish.

- Certo. No entanto, agora que podemos alterar essa circunstância, começo a pensar que talvez não seja assim tão boa ideia. É que no futuro, quando iniciarmos a conquista da Terra...

Foi interrompida por um apito agudo proveniente do pulso de Shizuko. Ela desligou o alarme do relógio, com calma.

- O que é isso?

- Um artefacto que serve para avisar que chegou a hora.

- A hora de quê?

- Qualquer hora. Custa-me muito adaptar-me aos horários rígidos destes humanos, por isso tenho de ser lembrada de que o tempo passa demasiado depressa. São oito; tenho de me ir preparar. Tenho uma reunião importante.

Gerde sorriu.

- Fico contente por ver que superaste o que aconteceu com Kirtash, Ziessel.

- Não havia nada para superar. Não passa de um humano a brincar aos sheks.

Gerde não respondeu. Despediu-se dela, mas, quando a sua imagem já se desvanecia no espelho, Shizuko voltou a chamá-la.

- Estou curiosa - disse-lhe. - Porque te referes ao Sétimo como se fosse outra pessoa?

A fada dirigiu-lhe um sorriso encantador.

- Porque, embora seja agora a sétima deusa, no fundo nunca deixei de ser Gerde.

- Como chegámos a isto? - perguntou-se Victoria em voz alta. Estava com Christian; jaziam ambos na cama dele, nos braços um do outro. Mas a pergunta de Victoria não se referia apenas àquele momento. Tinha estado a olhar para Christian na penumbra, memorizando todos os traços do seu rosto, desfrutando da sua presença, daquele tempo que era só deles. E não conseguira evitar recordar os tempos em que tinham sido inimigos.

Christian não respondeu. Limitou-se a voltar a cabeça para ela e a dirigir-lhe um olhar insondável.

- Lembras-te de quando me perseguiste no metro? - insistiu Victoria.

- Parece ter passado uma eternidade desde então.

Christian abriu finalmente os lábios.

- Sim, lembro-me.

Victoria apoiou a cabeça no peito dele, com um suspiro profundo.

- Naquela noite tive pesadelos - confiou-lhe, - Na altura nem me passaria pela cabeça que anos mais tarde íamos estar assim, tu e eu. Se parares para pensar... é estranho. Se mo tivessem dito na altura, não acreditaria. Ter-me-ia parecido uma ideia horrível e absurda.

Christian sorriu.

- Mas não foi assim tão mau, pois não? Victoria corou até à raiz do cabelo.

- Não me estava a referir a isso - protestou. - Estava a querer dizer que às vezes penso que não sou a mesma pessoa. Que devo ter mudado muito, ou foste tu que mudaste, ou de facto há coisas que não são o que parecem...

- Eu sei - tranquilizou-a ele. - Só estava a meter-me contigo. Gosto de te fazer corar.

- Eras perverso. - Sorriu ela. - Esta noite é impossível manter uma conversa séria contigo.

- E capaz - Christian espreguiçou-se como um gato; Victoria sentiu, de repente, que nunca o tinha visto tão relaxado. - Isso deve-se a estar cansado. Tenho a sensação de que passei muito tempo sob pressão e que, por uma vez na vida, me sinto seguro e a salvo, sem tarefas importantes em aberto. É uma impressão agradável. Victoria sorriu outra vez.

- É parte da magia de Limbhad - disse.

Christian deixou deslizar a mão sobre a sua cabeça para lhe acariciar o cabelo. Tinha fechado os olhos de novo. Victoria aproximou-se mais dele e rodeou-lhe a cintura com o braço.

- Queres falar de coisas sérias? - perguntou então o shek, com suavidade.

- Gosto de conversar contigo. E ultimamente temos falado tão pouco...

- Não temos passado muito tempo juntos, é verdade. Sei que, ao vires comigo para a Terra, deixaste Jack para trás, e isso foi duro para ti. Devia ter-te compensado como deve ser.

- Não importa - disse ela, acreditando no que dizia. - Entendo como te sentias.

- Presumo que o entendes melhor do que ninguém. - Christian sorriu.

- Mas podias não o ter feito. Podia ter regressado a casa um dia e descobrir que tinhas partido, para junto de Jack.

- Ter-te-ias importado muito?

- Se fosse para sempre, sim.

- Mas nunca tive intenção de te abandonar. Também eu cheguei a pensar que te irias embora para sempre com Shizuko.

- Trazias Shiskatchegg no dedo. Tinhas acesso ao meu usshak. Julgavas mesmo que não te queria ao meu lado?

Victoria não disse nada.

- No entanto - prosseguiu Christian -, devia ter-te contado o que se passava, desde o início. Creio que tinha medo de descobrir que já não sentia o mesmo por ti.

É um contra-senso, não é? Temia que já não fosse o mesmo e que isso me obrigasse a expulsar-te da minha vida... e temia-o, porque no fundo não queria que fosses embora, o que, implicitamente, quer dizer que nunca deixei de te amar. É absurdo, mas às vezes o coração tem uma lógica estranha.

Victoria reflectiu sobre o raciocínio do shek.

- Tu tens uma vantagem - disse. - Sabes tudo o que penso, sempre. Se eu deixasse de te amar, saberias. Mas eu não tenho como saber.

- Se algum dia deixar de te amar, digo-te. Ela abraçou-o com mais força.

- Oxalá esse dia nunca chegue - sussurrou.

Ele olhou para ela em silêncio e deslizou a ponta do dedo pela sua face, percorrendo os seus contornos.

- Não quero que as coisas mudem entre nós - disse Victoria. - Por muito só que me tenha sentido nos últimos dias, não teria sido capaz de te virar as costas e ir embora com Jack... para sempre.

- No entanto, se o tivesses feito, eu respeitaria a tua decisão. Quero que tenhas isto em conta de futuro.

- Respeitas os meus desejos e decisões, excepto quando me põem em perigo. Creio que temos de falar sobre isso, nós os dois - sorriu. - Se te achas no direito de te pôr em perigo por mim, devias deixar que eu fizesse o mesmo.

- Certo. Suponho que se deve ao facto de seres a primeira pessoa que conheço que me importa realmente, por isso desejo proteger-te. Sei que às vezes posso ser irritante.

Victoria sorriu, mas não disse nada. Ficaram em silêncio por um momento, até que ela perguntou:

- O que vamos fazer no futuro? O que vai acontecer se os deuses destruírem Idhún e os sheks dominarem a Terra? Para onde iremos, tu e eu... e Jack?

- Não sei, Victoria. Foi por isso que Jack quis ficar em Idhún: para descobrir se havia alguma maneira de salvar o planeta. E que eu vim à Terra: para procurar assegurar o nosso futuro aqui. Mas agora que, definitivamente, sou um traidor, parece-me que não podemos esperar a benevolência dos sheks.

- Podemos lutar contra eles. Esta manhã só contei sete.

- Ultrapassam os trinta - sorriu Christian. - E em breve serão muito mais. Sabes porque é que Gerde estava tão interessada em contactar com Shizuko? Está a organizar uma grande migração. Está a preparar-se para enviar todos os sheks e szish para a Terra, para os salvar da ira dos Seis.

Victoria engoliu em seco.

- Já calculava - murmurou. - Isso quer dizer, então, que não pretende lutar contra os Seis, não é?

- Não sei. É provável que esteja apenas a pôr a sua gente a salvo antes da batalha final. Ou talvez esteja realmente a fugir. No entanto... é estranho que ela considere mais simples conquistar um novo mundo do que enfrentar os Seis, sobretudo tendo em conta que eles ficaram sem dragões, ao passo que ela ainda mantém metade da raça shek.

Victoria sentiu um nó desagradável no estômago. Afastou-se ligeiramente de Christian e virou-lhe as costas, encolhendo-se sobre si mesma. Ele observou-a por um momento antes de dizer:

- Achas que os Seis não fizeram o suficiente pelos teus?

- Não consigo deixar de sentir inveja - sussurrou. - Tenho a sensação de que a tua deusa se preocupa mais com a sua gente do que as nossas próprias divindades, os supostos deuses da luz. Se se supõe que a sétima divindade é a encarnação do mal, então porque são os nossos deuses os destruidores? Porque não salvaram os dragões e os unicórnios do extermínio?

Christian deslizou um dedo pelas costas nuas dela, fazendo-a estremecer.

- Os dragões foram criados para lutar, tal como os sheks - recordou-lhe.

- Presumo que eram carne para canhão. E Gerde está tão interessada em manter os sheks vivos porque tem um corpo mortal que quer proteger.

- Mas os unicórnios não tinham nada a ver com tudo isto. As lendas dizem que somos mais velhos que os sheks e os dragões. Que a magia é anterior à guerra de deuses.

Christian mostrou-se subitamente interessado.

- A sério? Explica lá isso.

Victoria sorriu, com alguma amargura.

- Ter-te-ia contado antes se tivesses estado por perto para ouvir comentou.

Christian encolheu os ombros, mas não retorquiu. Limitou-se a ficar à espera. com um suspiro, Victoria aninhou-se de novo ao seu lado e relatou-lhe a lenda sobre a origem dos unicórnios e a outra versão da história de Idhún, aquela que convertia a mítica Primeira Era em algo tão importante quanto injustamente esquecido.

Christian franziu o sobrolho, pensativo. Parecia mergulhado em profundas reflexões e Victoria não quis incomodá-lo. Fechou os olhos e ficou junto dele, em silêncio, a ouvir as batidas do seu coração, lentas e regulares.

De repente, o shek ergueu-se, sobressaltando-a.

- O que se passa?

- Tenho de investigar isso. Imagina que até é verdade. Que os unicórnios são anteriores aos dragões e aos sheks, à guerra de deuses. Isso... isso explicaria muitas coisas. Gelo e cristal, lembras-te? Tu e eu não somos assim tão diferentes.

- Não estou a perceber onde queres chegar.

Christian levantou-se da cama, meio vestido, e foi buscar o resto da sua roupa. Victoria observou-o, com o coração apertado. Ele reparou no seu olhar e sorriu-lhe.

- É o que acontece quereres falar de coisas sérias.

- Estou profundamente arrependida de ter iniciado esta conversa reconheceu ela. - Não podíamos esquecer esta história e voltar atrás? Espera... aonde vais?

- À biblioteca - disse ele antes de sair do quarto.

Victoria lamentou que o momento tivesse passado, mas acabou por sacudir a cabeça, sorrindo, e levantou-se também.

A noite estava agradavelmente fresca e Shizuko, contemplando a Lua terrestre, concluiu que o céu onde se embalava poderia até ser belo... se se vissem mais estrelas.

Decidiu-se por fim a entrar. Estava demasiado calor ali para o seu gosto e, ainda por cima, não era o tipo de calor provocado pelo clima, mas sim o calor humano que lhe era tão desagradável. Além disso, estava há demasiado tempo na varanda e tinha muito que fazer.

Juntou-se de novo à festa. Os humanos, vestidos com trajes elegantes, conversavam uns com os outros em pequenos grupos, rindo, bebendo e comendo canapés servidos por empregados impecavelmente vestidos, que andavam por toda a sala como sombras. Shizuko dirigiu sorrisos frios a todos os que procuraram aproximar-se dela; até cumprimentou um conhecido, enquanto percorria a sala, aparentemente errática, mas sabendo muito bem para onde ia.

Esperava há algum tempo que surgisse o momento e o lugar ideais, e aquela festa de beneficência na embaixada da Coreia do Sul enquadrava-se perfeitamente no que pretendia. Não lhe fora difícil obter um convite, dado que mantinha os contactos da verdadeira Shizuko Ishikawa e, além disso, também mexera uns cordelinhos.

Por fim encontrou o que procurava. Apesar de os humanos lhe parecerem todos iguais, tinha optima memória, como qualquer shek, e vira aquele rosto diversas vezes em fotografias e na televisão. Aproximou-se dele de forma casual.

Depois, limitou-se a ficar por ali. Assim que os seus olhares acabaram por se cruzar, lançou um gancho telepático.

Durou um instante. Em seguida, Shizuko dirigiu-se de novo à varanda.

Encontravam-se ali dois homens a conversar. Bastou um olhar de Shizuko, a mulher com alma de serpente, para que se sentissem terrivelmente desconfortáveis e voltassem a entrar, deixando-a sozinha.

Então fechou os olhos. Não teve de se concentrar muito.

- Anda - ordenou.

E esperou.

Pouco depois tinha-o ali, ao seu lado. Nunca iria saber que não saíra para a varanda por vontade própria. Iniciaram uma conversa formal. Os seus olhos tornaram a encontrar-se.

A conversa morreu-lhe nos lábios. E ele, suspenso no enigmático olhar daqueles olhos, não teve consciência de que ela explorava a sua mente, manipulando os fios do seu pensamento e da sua vontade.

Quando o primeiro-ministro japonês voltou a integrar-se na festa, houve quem o achasse um pouco pálido e ausente, mas depressa pareceu recuperar.

Enquanto isso, na varanda, à luz da Lua pálida, Shizuko sorria.

Victoria não tinha noção de quanto tempo passaram na biblioteca. Era provável que tivessem sido vários dias, pois interromperam muitas vezes o trabalho para comer e também foram vencidos pelo sono em diversas ocasiões. Mas a jovem não se importava. Nunca tinha passado tanto tempo com Christian, convivendo juntos, e era agradável, mais ainda do que estar com Jack. Isto devia-se, compreendeu ao reflectir sobre o assunto, ao facto de os momentos que passava com Christian serem escassos e efémeros: nunca sabia quando voltaria a desaparecer nem quando regressaria, por isso Victoria aprendera a desfrutar ao máximo da sua presença e a aproveitar cada instante. E, apesar de ele passar o tempo quase todo na biblioteca, examinando os velhos volumes que ali se guardavam, tinha sempre um bocadinho para Victoria quando dava por concluída a sua jornada de trabalho. A maior parte das vezes limitavam-se a falar; Victoria apercebeu-se de que ele preferia uma longa conversa a qualquer coisa que implicasse intimidade física, porém, também encontraram tempo para isso. Foram dias muito especiais para os dois, no entanto, havia duas coisas que ensombravam a felicidade de Victoria.

Uma delas era, obviamente, Jack. A jovem tinha adquirido o hábito de o ver, através da Alma, todos os dias antes de se deitar. Por enquanto estava bem, mas não parecia ter intenção de regressar em breve, e Victoria não conseguia evitar sentir-se preocupada.

A outra era a obsessão de Christian pela informação que parecia estar oculta algures naquela biblioteca. Victoria não sabia o que procurava especificamente e a resposta dele ("informação sobre os unicórnios") parecia-lhe demasiado vaga e geral. Suspeitava que ele tinha uma teoria que não queria partilhar com ela, talvez por ainda não a ter confirmado, talvez por não querer preocupá-la.

Um dia, Christian encontrou um velho livro numa das estantes. Victoria viu-o a olhar fixamente e sorriu.

- Escusas de perder tempo, as páginas estão em branco.

- Não foi o interior que me despertou a atenção, mas sim a capa. Olha.

Estendeu-lho, e a jovem examinou-o com curiosidade.

- É o símbolo do sol. Uma espiral. O que tem de especial?

- Nunca tinha visto este símbolo sozinho. Normalmente são três espirais dispostas em forma de triângulo, não uma. Porque iria o autor representar um só sol?

- Estamos em Limbhad - recordou-lhe ela. - Talvez as pessoas que habitaram aqui há séculos tenham ficado curiosas com o Sol da Terra. Talvez este livro tenha sido destinado a ser uma espécie de diário das suas experiências num novo mundo.

- Faz sentido - assentiu Christian. - Mas não vejo por que razão tinham de ocultar essa informação e, além disso, pressinto neste símbolo algo antigo e poderoso. Não creio que faça referência a um sol, muito menos ao Sol da Terra.

Victoria cravou o olhar na espiral, intrigada. Por momentos teve a sensação de que aquele símbolo rodava sobre si mesmo e fechou os olhos, atordoada. Quando tornou a abri-los, viu os olhos de Christian fixos nela.

- O que é? - perguntou, inquieta.

- O teu corno - disse Christian.

Victoria percebeu. Apalpou a testa. Embora não conseguisse vê-lo, sabia o que Christian estava a observar: um ponto brilhante, como uma estrela. Por algum motivo, a sua luz tinha-se acendido novamente.

- Não é um sol - disse então Victoria. - E um corno de unicórnio. Uma espiral. - Olhou para o livro, incrédula. - Mas, se é um livro sobre unicórnios, porque está em branco?

- Não está em branco. Está à espera de ser lido pela pessoa certa e, se tem a ver com os unicórnios, é provável que sejas tu essa pessoa.

- Mas o que esperas encontrar aqui? Porque tens tanta certeza de que está relacionado com os unicórnios e de que é importante? Mais ainda: se era disto que andavas à procura, como sabias que estava aqui?

Christian abanou a cabeça.

- A magia é mais antiga, disseste tu. Os unicórnios são anteriores aos sheks e aos dragões. Isso quer dizer, Victoria, que, quando se iniciou a guerra dos deuses, os unicórnios estavam lá. Portanto, deviam saber o que aconteceu. Sendo assim, os unicórnios tinham as respostas para as perguntas que estamos a colocar agora. Os unicórnios possuíam a chave para entender o que está a acontecer e, se existe uma maneira de evitar tudo isto, sabiam qual era.

- Isso já me tinha ocorrido - admitiu Victoria. - Mas, se é esse o caso, porque nunca disseram nada?

- Pensa nisso. A sua própria natureza obrigava-os a permanecer ocultos. Se chegaram alguma vez a contar ao mundo o que sabiam, devem tê-lo feito através de um mortal... que, consequentemente, foi convertido em feiticeiro ou semifeiticeiro. Achas mesmo que as Igrejas iriam escutar as palavras de um feiticeiro sobre a guerra dos deuses?

- Não - reconheceu ela. - Em matéria divina, os sacerdotes só ouvem a voz dos Oráculos.

- Qualquer versão diferente da oficial teria sido considerada blasfema e, portanto, destruída. Se de facto os unicórnios quiseram contar a história do mundo à sua maneira e o fizeram através dos feiticeiros, essa história teria de ser guardada no único lugar onde as Igrejas não chegavam, um refugio para os feiticeiros que fugiram da repressão religiosa durante a Era da Contemplação: Limbhad. Percebeste agora?

- Então, acreditas realmente que os unicórnios procuraram comunicar-se com os mortais?

- Andam a fazê-lo há milénios, Victoria - respondeu Christian com um sorriso calmo. - Os unicórnios sentem-se atraídos pelos mortais, por isso entregam-lhes os seus dons. É algo inato neles, tal como o ódio é inato nos sheks e dragões, duas raças criadas para lutar.

- E porque não o contaram aos sheks e aos dragões?

- Fizeram-no à sua maneira: concedendo a magia indistintamente num e noutro lado. E se há menos feiticeiros entre os szish, não é porque os unicórnios os tenham menosprezado, mas porque nós perdemos uma batalha importante e fomos desterrados para longe de Idhún, para um lugar onde os unicórnios não podiam chegar. Provavelmente tentaram revelar os seus conhecimentos aos sheks e aos dragões, mas eles, cegos pelo ódio, que deve ter sido bem mais intenso e violento no início dos tempos, não os ouviram. Ou talvez estivessem demasiado envolvidos na guerra para entender tudo o que os unicórnios lhes queriam contar. Não sei, estou a fazer conjecturas. Se tiver razão, as respostas estão nesse livro.

- E como vamos lê-lo? - perguntou Victoria, preocupada. Christian sorriu.

- Tu deves saber. És um unicórnio, não é?

Victoria não soube o que dizer. Voltou a abrir o livro e folheou as páginas, um pouco perdida. Então recordou o que sentira ao olhar fixamente para o símbolo da capa e tornou a fechá-lo e a repetir o gesto.

De novo lhe pareceu que a espiral começava a rodar lentamente sobre si mesma, mas, em vez de afastar os olhos, concentrou-se mais nela. Quase conseguiu perceber que a luz da sua testa se tornava mais intensa. Sentiu que Christian olhava para ela, contendo a respiração, mas tentou que isso não a distraísse.

A espiral começou a girar mais depressa...

O livro abriu-se de repente e as páginas foram agitadas por um vento invisível. Victoria deixou-o cair com uma exclamação de surpresa; o volume aterrou na lajes do chão e ficou aberto, com as folhas ainda a tremer, como que sacudidas por uma brisa fantasmagórica. Victoria sentiu que os braços de Christian a seguravam. Ergueu a cabeça...

Então viu algo assombroso.

A Alma tinha reagido. Sobre a mesa da biblioteca aparecera a esfera de luz que costumava manifestar-se quando chamavam o espírito de Limbhad. Só que, desta vez, nenhum dos dois o tinha chamado.

Algo parecido a um feixe luminoso emergiu do livro e foi encontrar-se directamente com a esfera da Alma, que estremeceu e começou a rodar vertiginosamente.

Victoria continuava amparada nos braços de Christian e os dois contemplaram, impressionados, como as imagens começavam a definir-se no interior da esfera até formar uma paisagem que ambos conheciam muito bem.

Era Idhún; mas um Idhún mais selvagem, de uma beleza misteriosa e antiga, tão transbordante de magia e esplendor que Victoria sentiu o coração apertado ao vê-lo. Estavam a contemplar Idhún nos alvores da Primeira Era, aquela época mítica quase esquecida. No céu brilhava um Triplo Plenilúnio, lindíssimo e radioso, e o luar banhava magnificamente a superfície daquele mundo primitivo. Viram-se de repente na clareira de um bosque transbordante de vida. com uma emoção profunda, Victoria viu um unicórnio a sair de entre a vegetação. E depois outro. E outro. E outro...

No entanto, não era a eles que os unicórnios tinham ido receber. Na realidade, nem os viam, pois não estavam lá realmente.

Erguiam a cabeça para o céu, para as luas. E, como se os seus longos cornos perolinos lhes assinalassem o que deviam ver, Christian e Victoria olharam também para cima.

- Olha para Érea - disse Christian num sussurro; mas Victoria já tinha reparado nela.

A lua prateada estava velada naquela noite, rodeada de um halo de trevas. Algo estava a acontecer. Victoria percebeu a inquietação dos unicórnios, o medo estampado nos seus lindos olhos plenos de luz. Mas as belas criaturas não se mexeram.

Passou muito tempo: horas, talvez. Os unicórnios continuavam a olhar para o véu de escuridão que cobria Érea, e Christian e Victoria também não se atreveram a mover-se, porque sabiam que algo estava prestes a acontecer.

E aconteceu. De repente, um ruído horrível rasgou o céu, como um furioso trovão, como o grito de fúria de um milhão de gargantas. Então algo atravessou o firmamento, algo que pareceu emergir directamente do centro do triângulo formado pelas três luas, e caiu com um assobio arrepiante, deixando atrás de si um rasto brilhante.

Então, os unicórnios desataram a correr. Abandonaram a clareira, leves como borboletas, e perderam-se no bosque.

- Temos de os seguir! - disse Victoria e, quase sem dar por isso, transformou-se também em unicórnio e seguiu-os a correr.

Christian foi atrás dela, mas foi-lhe difícil acompanhá-la, dado que, embora fosse ágil e rápido, os unicórnios pareciam mover-se como raios de lua pelo bosque. Pareciam todos iguais à distância, mas ele soube logo distinguir Victoria. O instinto dizia-lho, ou talvez o coração. Fosse como fosse, sabia que não a perderia de vista.

A manada saiu do bosque e parou no alto de uma falésia. Os pequenos cascos fendidos dos unicórnios travaram mesmo na beira, tão perto do abismo que soltaram algumas pedras, fazendo-as precipitar-se no mar que bramia mais abaixo. Christian aproximou-se deles e aguardou, expectante. Sentiu que algo muito suave o tocava e, de imediato, uma doce corrente de energia inundou-o por dentro. Baixou a cabeça e viu que um unicórnio esfregava o focinho contra o seu braço, com ternura. Era Victoria.

Christian reparou que o corno dela tinha crescido consideravelmente. Não era tão comprido como os dos outros unicórnios, mas tinha recuperado, não havia dúvida. Perguntou-se, contudo, se aquilo era parte do sonho da Alma ou se realmente o corno de Victoria já estava assim. Disse a si mesmo que tinham de o comprovar quando acordassem.

Os unicórnios não mexiam um só músculo, porém, havia no ar uma agitação palpável.

O objecto que caía do céu continuava a sua descida imparável, formando um arco de fogo no céu... até que, por fim, se despenhou ruidosamente no mar. O choque provocou uma onda brutal que atingiu a falésia e salpicou os unicórnios. Christian viu que se entreolhavam com um brilho de entendimento nos olhos. O que teriam percebido? O que significava a queda daquele cometa sobre Idhún?

Algo quente lançou-se nos seus braços e Christian descobriu que era Victoria, que recuperara a sua forma humana. Quis dizer-lhe algo, mas não teve oportunidade, porque tudo voltou a girar à volta deles...

Então surgiram noutro lugar, noutro tempo, mas ainda em Idhún, ainda no passado. Estavam na orla de um bosque, ocultos entre a floresta, e encontravam-se também ali os unicórnios. Desta vez era dia; os três sóis cintilavam no firmamento, como jóias incrustadas num vasto tapete violáceo. Para lá da última fila de árvores havia casas, umas pequenas e frágeis cabanas, e em volta delas havia humanos.

Aparentemente eram iguais aos actuais humanos de Idhún, mas a sua forma de vida parecia bem mais precária. Demorariam milénios a dar forma aos reinos de Nandelt, à impressionante arquitectura dos seus castelos, à planificação das suas grandes cidades, às grandes torres de feitiçaria que um dia governariam o mundo. Todavia, eram humanos.

Ocultos na vegetação, os unicórnios olhavam para eles com um brilho de nostalgia no olhar.

Foi então que se deu o ataque.

Um grupo de homens-serpentes surgiu do outro lado da aldeia e arremeteu contra tudo o que se mexia. com uma fúria e uma crueldade sem limites, massacraram os humanos, atingindo-os brutalmente com pedras e garrotes, e continuando a golpear até mesmo quando a vítima já não se mexia. Victoria escondeu a cabeça no ombro de Christian. Tinha visto muitas coisas, mas nada comparável àquela carnificina. Os gritos dos humanos, homens, mulheres e crianças, continuaram a ressoar nos seus ouvidos e alojaram-se no seu coração, de onde não voltariam a sair jamais.

Christian contemplava a cena com um semblante impenetrável. Continuou a olhar mesmo depois de já não restar nenhum humano vivo e de os szish começarem a derrubar as casas, pedra por pedra, retirando-se de seguida, sem levar nada da aldeia: nem comida nem bens. Tinham-na destruído pelo simples prazer de a destruir.

Só então Christian se pronunciou.

- Os szish não são assim - disse.

Victoria ergueu a cabeça para olhar para ele.

- Christian - sussurrou. - Porquê? Mas ele não respondeu.

Um a um, os unicórnios deram meia-volta e embrenharam-se de novo no bosque. E Victoria percebeu a sua tristeza. Não havia medo nem ira neles. Só tristeza, uma tristeza resignada, como se estivessem à espera daquilo.

- O que está a acontecer? - perguntou-se Victoria. Christian meneou a cabeça.

- Os szish não são assim - repetiu.

Encontraram-se de novo na biblioteca de Limbhad. Victoria continuava nos braços de Christian, a tremer, quando a esfera da Alma se desvaneceu e o livro dos unicórnios se fechou de repente.

Os dois quedaram-se em silêncio durante bastante tempo. Victoria olhou para Christian, mas ele continuava a reflectir, sem que nenhuma emoção assomasse ao seu rosto.

- Tem algum significado para ti? - perguntou-lhe.

Christian voltou à realidade, olhando para ela como se acabasse de se aperceber da sua presença.

- Talvez - disse, lentamente. - Mas não tenho a certeza.

- Presumo que não vais partilhar as tuas teorias comigo. O shek negou com a cabeça.

- Seria prematuro. Primeiro tenho de averiguar... tenho de averiguar...

- O quê?

Christian cravou o seu olhar nela. Os seus olhos azuis pareciam mais frios do que nunca.

- vou voltar a Idhún - disse-lhe, muito sério. - Para junto de Gerde.

 

                 A LENDA DE UNO

Uma ligeira sacudidela arrancou Zaisei da sua sonolência. Estavam a viajar há muito tempo e o ar da bolha começava a ser difícil de respirar, pelo que não tinha conseguido evitar adormecer. Felizmente, Bluganu já se tinha apercebido disso. Acabava de lhe trazer uma nova bolha de marpalsa e empurrava-a contra a de Zaisei, com suavidade.

-Junta-as - disse-lhe o varu.

Zaisei não estava bem, mas procurou abrir a sua bolha no ponto onde se unia com a outra. De imediato, as duas bolhas tornaram-se uma só e Zaisei respirou fundo. Pouco a pouco, foram-se-lhe aclarando as ideias.

Sentiu então que uma estranha inquietação se apoderava do seu coração. Olhou para o velho Bluganu, que deslizava novamente debaixo da água, empurrando a bolha, e notou que também ele não parecia sentir-se à vontade, se bem que não de forma tão intensa quanto Zaisei. Compreendeu que aquela agitação não era transmitida pelo ancião varu, mas por algo no ambiente que ambos pressentiam.

- Isto não me agrada - murmurou, mas Bluganu não a ouviu.

À medida que avançavam, a sensação tornava-se cada vez mais intensa. Zaisei esteve a ponto de pedir a Bluganu que desse meia-volta e a levasse de regresso a Dagledu, mas lembrou-se de que iam ao encontro da Mãe Venerável e que ela podia muito bem encontrar-se no próprio centro da perturbação.

Depressa se arrependeu da sua decisão. Os movimentos de Bluganu debaixo de água tornaram-se mais desajeitados e pesados: era óbvio que lhe custava continuar a avançar porque não desejava fazê-lo. E o mal - estar que preocupara Zaisei continuava a angustiá-la cada vez mais. Demorou um pouco a entender a causa. Era como se estivesse perto de alguém que acumulava no seu coração tanto ódio, maldade e rancor que lhe era difícil suportá-lo. Nunca experimentara nada igual, embora não há muito tempo tivesse conhecido alguém cujos sentimentos negativos a afectaram quase da mesma maneira: Victoria, durante o período em que acreditara ter perdido Jack para sempre.

Quando se aproximaram mais, Zaisei rectificou aquela primeira impressão. Não tinha nada a ver com Victoria. O que quer que estivesse a emitir aquela onda de maus sentimentos era imensamente maior do que uma jovem, embora essa jovem fosse também um unicórnio. Quando as formas irregulares da Rocha Maldita apareceram diante deles, Zaisei conteve-se para não gritar.

Na realidade não era uma rocha, mas sim duas. Enormes, ciclópicas, aquelas duas pedras negras e irregulares jaziam semienterradas no fundo do oceano, mas nenhuma criatura viva se havia desenvolvido sobre elas. A rocha continuava tão despida como quando caíra ao mar vários milénios antes. Só uma figura se atrevia a desafiar a maldade que emanava dela: provida de uma faca afiada, a Venerável Gaedalu nadava por entre as saliências da Pedra de Érea, enterrando a lâmina nela e arrancando pequenos pedaços de rocha que ia guardando numa bolsa presa à sua correia. Os seus acompanhantes tinham ficado a uma distância prudente e observavam-na, nervosos, sem ousarem aproximar-se, mas também sem se decidirem a abandoná-la.

Zaisei quis pôr-se de pé no interior da bolha, mas o horror que aquela rocha lhe provocava era tão intenso que caiu de novo; enterrou a cabeça entre os braços e gritou.

Gritou e gritou, de forma semelhante à dos ouvintes ao escutar directamente a voz dos deuses. Parecia-lhe que gritando expulsava a maldade do seu próprio coração, por isso fazia-o, perante o pânico do velho Bluganu que não sabia o que fazer.

Os outros varu aperceberam-se da sua presença e foram ao seu encontro. Mas Zaisei continuava enroscada, mergulhada no horror do caos e do ódio mais absolutos; algo dificilmente tolerável para um varu ou para um humano e perfeitamente insuportável para qualquer celeste.

Gaedalu apressou-se a aproximar-se; todavia, Zaisei nem reparou. Aquela garra negra continuava a oprimir a sua alma, tal como oprimia as dos varu que, nervosos, rodearam a bolha. A diferença era que eles não se ressentiam como Zaisei, que estava horrivelmente consciente dela. De modo que continuava a gritar e a espernear, lutando por se livrar da maldade que o seu espírito captava; e os varu, temendo que acabasse por romper a bolha, apressaram-se a empurrá-la para longe dali.

Gaedalu seguiu-os, preocupada com o estado de Zaisei.

Os fragmentos que tinha arrancado da Pedra de Érea, a Rocha Maldita, continuavam na sua bolsa bem guardados.

As ruínas da Torre de Awinor dominavam o horizonte e Kimara contemplou-as, nostálgica. Da última vez que estivera ali, fora com Jack e Victoria. Tinham enfrentado um shek e Kimara por pouco não sobrevivera. Victoria salvara-lhe a vida, concedendo-lhe entretanto a magia. Lembrou-se deles e desejou que estivessem bem.

Estava sentada sobre uma rocha, a afiar a sua adaga, enquanto, à sua volta, o acampamento dos rebeldes exibia a sua actividade frenética e desordenada habitual. Contudo, apesar da forma precipitada como pareciam fazer tudo, encontravam-se a viver um momento de paz. Ali, naquela base, sentiam-se a salvo. Estava nas montanhas que separavam o deserto de Awinor, a terra dos dragões. Nem os yan nem os sheks se atreviam a ir mais a sul. Os yan, porque tinham venerado os dragões, o que fazia de Awinor território sagrado. Os sheks, porque respeitavam o enorme cemitério em que se tinha tornado a terra dos seus inimigos ancestrais ou talvez porque temiam que os seus espíritos se vingassem deles. Esta era, aliás, a crença mais arreigada entre os yan, mas Kimara sabia que as serpentes aladas não eram supersticiosas; assim, para ela, a explicação era que a visão dos restos dos seus inimigos lhes causava uma profunda tristeza e isso perturbava-as e irritava-as o suficiente para chegarem à conclusão de que não era bom passar por ali.

Goser, o líder dos rebeldes, era um yan, portanto não ousava penetrar em Awinor; mas também era inteligente e sabia que aquele era um lugar privilegiado.

Tinha declarado que Awinor começava no primeiro esqueleto de dragão, que jazia perto de uma colina próxima, um pouco mais a sul. Os seus seguidores tinham-se mostrado reticentes no início, mas acabaram por aceitá-lo como uma regra. Isso deixava-lhes uma vasta franja de terreno montanhoso nos limites de Awinor, suficientemente próxima para que os sheks não os incomodassem e suficientemente distante para que os rebeldes mais escrupulosos ficassem tranquilos.

Agora estavam ainda mais sossegados, porque nos arredores do acampamento repousavam nove dragões artificiais. Os rebeldes tinham-nos visto voar e sabiam que pareciam reais. O facto de aqueles dragões terem ido parar tão perto de Awinor só podia ser considerado um bom sinal.

Kimara suspirou interiormente. Gostava dos dragões artificiais, embora não os adorasse como Kestra. Mas isso era normal: Kestra não tinha visto nenhum dragão de verdade; Kimara voara no dorso de um.

Do seu posto, viu as sentinelas fazerem parar um indivíduo esfarrapado que acabava de chegar a correr por entre os penhascos. Aparentemente, trazia más notícias, porque houve um ligeiro rebuliço no acampamento. Kimara esperou, pensando que estava bem onde estava. Não queria interferir com a autoridade de Goser, que era o verdadeiro líder do grupo. Os Novos Dragões estavam ali apenas como apoio.

Olhou para Rando, que até há instantes tinha estado a jogar ao kam com um grupo de yan. O kam, um jogo de azar em que se lançavam pequenas pedras pintadas, era muito apreciado pela gente do deserto e parecia ser o que mais agradara ao semibárbaro naquele lugar. O certo é que perdia muitas vezes, mas nunca se chateava com isso. Desatava a rir, de bom humor, e tanto lhe fazia ganhar como a sorte não lhe sorrir. O grupo de jogadores de kam dispersara; tinham-se reunido todos em volta do recém-chegado e escutavam as suas novas com gravidade.

Kimara continuou à espera. Ao fim de algum tempo, quando todos voltaram ao que estavam a fazer e o mensageiro estava já a ser atendido, a semi-yan viu um vulto trepar pelos penhascos, na sua direcção. Assim que a alcançou, Kimara viu que se tratava de Goser. Saudou-o, com um sorriso, e ele sentou-se ao seu lado. Por um momento, nenhum dos dois falou.

- Másnotícias? - perguntou ela.

- Muitomás - sussurrou Goser. - Nincaiu.

Kimara semicerrou os olhos. Nin era a "outra base" dos rebeldes. O grupo de Goser actuava sempre a partir das montanhas, mas na cidade de Nin tinham simpatizantes, gente que se encarregava de lhes fazer chegar informações importantes e, o que era ainda mais crucial, víveres, água e diversos utensílios básicos. Até ao momento, Nin conseguira evitar os frequentes registos dos szish. Mas, se estes se tinham decidido lançar um ataque directo contra a cidade, isso só podia significar que a paciência de Sussh se estava a esgotar.

E os sheks eram criaturas muito, muito pacientes.

- Encontramo-nosnumasituaçãodelicada - murmurou Kimara, falando depressa sem dar por isso. - Oquepensasfazeragora?

- Reconquistaracidade.

- Nãoestásemposiçãodefazeralgoassim,Goser - replicou ela. Mesmoquearecuperasses... comoiriasmantê-la?Asserpentespoderiamvoltaratomá-laquandoquisessem.Nãotensgentesuficienteparaadefender.

- Temosdragões. Kimara não respondeu.

- Parajá - acrescentou Goser - vamosaproximar-nosparavero queaconteceu.

- Podeserumaarmadilha.

- Sim - assentiu Goser. - Maspensoirdequalquerforma.

- Euacompanho-te - decidiu Kimara.

Goser sorriu-lhe por detrás do lenço que cobria parte do seu rosto. Kimara susteve o olhar dos seus profundos olhos incandescentes.

- Essaéatuaadaga? - perguntou então o yan. Tomou a mão de Kimara e ergueu-a para observar o punhal de perto. – Nãoparecegrandecoisa - comentou. - Vouconseguir-teumamelhor.Hápoucocapturámosumacaravana quevinhadeNandeltequetraziaboasarmas.

- Agradeço-te - respondeu Kimara.

Goser dirigiu-lhe um novo olhar. Não tinha retirado a mão e Kimara não conseguiu perceber se aquilo lhe agradava ou se preferia que se afastasse.

Já tinha reparado que Goser estava interessado nela. Não sabia bem se era a sério ou por mera diversão, mas para já não estava preocupada com isso, pois primeiro tinha de averiguar o que ela própria sentia. O líder dos rebeldes não lhe desagradava, mas também não tinha a certeza se a atraía o suficiente.

- QuandovaispartirparaNin?

- Assimqueestivermosprontos.

- Osegundosoljáseestáapôr - observou ela. - Pensasirdenoite? Goser dirigiu-lhe um dos seus longos sorrisos.

- Paraquêesperar?

Kimara retribuiu o sorriso. Gostava daquela atitude, tão diferente da de Qaydar, e da de Jack nos últimos tempos. Goser soltou-lhe a mão e levantou-se. Dali, lançou o grito de guerra dos yan e todo o acampamento fez coro com ele.

Os olhos de Kimara voltaram-se involuntariamente para Rando, que também rinha levantado os olhos para eles, como os restantes rebeldes. Pareceu-lhe que sorria ou talvez fosse imaginação sua.

Por alguma razão, isso aborreceu-a.

Era noite quando avistaram por fim as cúpulas do Oráculo; Jack estava exausto e faminto.

Não tinham parado nem um só instante durante toda a viagem. Não havia tempo a perder, porque estavam em jogo muitas vidas. No dia anterior tinham sobrevoado uma estranha perturbação no mar, uma gigantesca ondulação que parecia ir avançando lentamente para sul, lançando enormes ondas à sua direita e à sua esquerda, como Jack relatara a Glasdur. Shail pedira-lhe que descesse para a ver de perto e Jack fizera-o, aproximando-se tanto quanto possível.

Mas não havia nada a mover-se debaixo das águas. O que se deslocava era o próprio oceano.

Jack apressara-se a levantar o voo e a subir tanto quanto podia. Aquela presença tinha-o deixado nervoso e tentara disfarçar; mas de seguida apercebera-se de que o silêncio de Shail e Alexander se devia a estarem a tremer de puro terror.

Felizmente, a deusa Neliam, se é que se tratava dela, avançava bastante devagar. Acabaram por ultrapassá-la e, quando alcançaram o Oráculo, tinham-na deixado para trás.

- Finalmente! - exclamou Shail.

Jack não disse nada. Não tinha forças. Sabia que o pior estava para vir: tinham de proteger o Oráculo e enviar mensageiros ao Reino Oceânico e às terras dos ganti, tudo isso antes de Neliam chegar. Não podiam descansar, embora ele desse tudo por uma boa sesta.

Deu duas voltas sobre o Oráculo, procurando um sítio onde pousar; quando por fim encontrou um espaço suficientemente amplo, não longe da entrada do templo, desceu, aliviado.

A aterragem foi um pouco brusca. Shail e Alexander tiveram de se agarrar com força ao dragão para não caírem. Jack tombou no chão e fechou os olhos por um momento.

- Não adormeças! - ralhou-lhe Shail, descendo do seu dorso de um salto. Jack grunhiu, mas fez um esforço e ergueu a cabeça.

Quando viu que ambos estavam já em terra, transformou-se em humano. Isso não o fez sentir-se melhor: doíam-lhe os ossos todos.

Correram para a entrada do Oráculo, mas, antes que alcançassem o pórtico, foram interpelados por um grupo de sacerdotisas. Dirigia-as uma fada que envergava a túnica das devotas ao culto da deusa Wina.

- Saudações! - disse. - Sou a irmã Karale, regente do Oráculo na ausência da Mãe Venerável. Vimos um dragão sobrevoar o nosso tecto. Por acaso...?

- Não importa como chegámos - cortou Alexander - e não há tempo para explicações. Tenho a certeza de que vais desculpar a minha brusquidão e a minha falta de modos assim que ouvires as nossas notícias.

Relatou-lhe o que tinham visto no mar, apenas cedendo a palavra a Jack para que ele falasse do desastre de Porto Esmeralda.

- A onda está a dirigir-se para cá - concluiu Alexander. - Têm de evacuar o Oráculo o quanto antes e enviar mensageiros às terras baixas. Em relação às cidades submarinas, terá de ser um varu a descer até Dagledu, mas o dragão poderá levá-lo até à sua superfície em pouco tempo. Se a Mãe Venerável...

- A Mãe Venerável não se encontra aqui - interrompeu Karale, pálida. - Partiu há vários dias para o Reino Oceânico.

- E a irmã Zaisei? - interveio Shail com uma nota de pânico na sua voz.

- A irmã Zaisei foi com ela, feiticeiro. Mas passem à ala de hóspedes; não faz sentido que continuemos a discutir aqui um assunto desta gravidade.

Não discutiram muito, na realidade. Apenas uns instantes depois, Jack voltava a levantar voo em direcção ao Reino Oceânico. Levava no seu dorso a irmã Eblu, uma sacerdotisa de Neliam. Eblu não acatou a tarefa com muito entusiasmo: o enorme dragão aterrorizava-a e, além disso, a ideia de voar no ar, um elemento tão diferente do seu, não melhorava a situação. Mas era a única que podia fazê-lo, dado que nenhuma das outras três sacerdotisas varu do Oráculo estava disponível: a Mãe Gaedalu encontrava-se em Dagledu; Ludalu, a ouvinte, não estava no seu juízo perfeito; e a terceira, a irmã Valeedu, era demasiado idosa e não se lhe podia pedir algo assim.

Jack prometeu a Eblu que voaria bem baixo, para que se sentisse mais próxima da água. Eblu aceitou: tinha família em Glesu e temia por eles.

Karale, por sua vez, mandou chamar Igara, uma jovem sacerdotisa humana que honrava a deusa Irial. Era uma rapariga decidida e audaz, e os visitantes depressa souberam que se tratava da mensageira do Oráculo. O paske mais veloz dos estábulos era o seu. Igara aceitou sem hesitar a missão de percorrer as povoações costeiras dos ganti para os avisar da calamidade que se avizinhava. Pouco depois, o seu paske corria a toda a velocidade em direcção à ponte sobre o rio Mailar, que unia a península onde se situava o Oráculo ao resto do continente.

Enquanto isso, Shail e Alexander discutiam acaloradamente sobre como salvar as sacerdotisas. Nos estábulos não havia paskes para todas e não teriam tempo de fazer duas viagens que as deixassem suficientemente longe, terra adentro.

- Eu posso tentar proteger o Oráculo com a minha magia - disse então Shail.

Alexander olhou para ele.

- Achas prudente?

- Não vou sair daqui até que Jack regresse com Zaisei. vou tentar formar um globo de protecção em torno de uma sala suficientemente grande. com sorte, a onda poderá passar-nos por cima, mas não nos fará mal.

- E vais conseguir resistir?

- Se tiver de resistir, resisto - disse o feiticeiro, decidido. - Leva as sacerdotisas que te for possível. Leva as crianças nos paskes e, se houver espaço, as idosas e as grávidas, se é que há alguma. Eu farei o possível por proteger as outras.

Alexander podia ter discutido. Podia ter-lhe dito que não queria deixá-lo para trás. Mas era um líder e sabia que em momentos de crise há que tomar decisões rápidas.

- Está bem - assentiu.

Muitas idosas não quiseram partir. Preferiram ceder o seu lugar às mais jovens, porque, segundo disseram, já tinham vivido bastante. Alexander não insistiu. As idosas que optaram por ficar, ficaram. As que decidiram partir, partiram. Não havia tempo para discutir.

Momentos mais tarde, uma dúzia de paskes partia em direcção à ponte do Mailar. Seguiam a mesma rota que Igara tomara, mas eles continuariam para noroeste, afastando-se do mar e dos rios, enquanto a jovem mensageira havia prosseguido para sul. Alexander ia à frente, acicatando a sua montada e procurando não prestar atenção aos gemidos de uma das meninas, uma limyati, que não parava de soluçar:

- Vem aí, vem aí, vem aí...!

Ninguém teve coragem para a fazer calar-se.

A irmã Karale fechou a porta do Oráculo, como se isso pudesse proteger de todo o mal as sacerdotisas que haviam ficado. Também ela não quisera ir. Ergueu a cabeça para Shail.

- Bem, feiticeiro - disse. - Estamos nas tuas mãos.

Shail assentiu. Sabia o que tinha de fazer. O feitiço era simples, mas devia imprimir-lhe muita força se queria que resistisse ao embate da grande onda. Em condições normais, isto já seria difícil; estando a sua magia nos mínimos, como agora, era quase impossível.

Mas era a única hipótese das sacerdotisas do Oráculo e, além disso, não queria deixar Zaisei para trás.

Percorreu o edifício com a irmã Karale, à procura do lugar mais apropriado. Deteve-se diante de uma porta selada.

- O que há aqui atrás?

- A Sala dos Ouvintes - explicou a fada, sacudindo os caracóis esverdeados, semelhantes a rebentos de folhas tenras. - Fechámo-la há algum tempo porque...

- Eu sei - interrompeu Shail. - É um lugar transbordante de energia, mas compreendo que possa ser perigoso entrar. Mesmo assim, gostaria de ver as salas contíguas. Talvez o conjuro possa beneficiar dessa energia, apesar de não o realizarmos na sala em si.

Escolheu por fim um quarto que estava pegado à Sala dos Ouvintes. Uma das paredes fora tapada com colchões e tapetes grossos, sem dúvida para que as vozes atroadoras que provinham da sala ao lado não se fizessem ouvir tanto. As outras encontravam-se forradas com estantes repletas de manuscritos.

- As notas dos ouvintes - sussurrou Karale.

Shail não perguntou se estavam ali incluídas as profecias ou se eram apenas anotações soltas. A sala emitia uma leve vibração que só Shail, como feiticeiro, conseguia captar.

- Vamos ficar aqui - disse.

No entanto, não permitiu que as sacerdotisas entrassem logo. Como tal, todas elas reuniram-se nas salas cujas janelas se abriam para o mar e contemplaram o horizonte, com o coração apertado. Nada parecia ameaçá-las, de momento, e algumas delas começaram a alimentar a esperança de que fosse um falso alarme.

Entretanto, Shail trabalhava na sala que ia servir de refúgio. Traçou símbolos arcanos nas paredes, no chão e no tecto, e desenhou sobre as lajes um hexágono tão grande quanto as dimensões do quarto lhe permitiram. Depois, pacientemente, começou a pintar figuras de protecção por todo o seu perímetro.

Quando os varu chegaram a Dagledu, Zaisei já se sentia um pouco melhor. Por isso não tardou a aperceber-se de que um enorme desassossego se apoderava dos corações de Gaedalu e dos seus acompanhantes.

- O que... se passa? - murmurou, mas ninguém a ouviu. Ergueu-se um pouco na sua bolha e olhou em redor.

A cidade parecia tomada pelo caos. Os habitantes fugiam das suas casas e nadavam, com todas as suas forças, numa direcção. Gaedalu e Bluganu entreolharam-se, preocupados. Zaisei bateu na bolha, com suavidade, e a Mãe Venerável voltou-se para ela.

- Algo se aproxima, - disse. - Os varu estão a dirigir-se aos refúgios dispostos por debaixo do leito do mar.

- Refúgios? - pensou ela.

- O cemitério de enkoras. A enkora desenvolve ao longo da vida uma enorme concha que enterra na areia antes de morrer. Os varu primitivos utilizavam essas conchas como casas, até que começaram a construir os seus próprios edifícios. Cada cidade varu foi erigidaperto de um cemitério de enkoras. Quando o mar se agita ou somos vítimas de algum tipo de ataque, os varu refugiam-se nas conchas enterradas debaixo da areia. Mas tu, filha, não respiras na água; não tens qualquer hipótese. A corrente romperá a tua bolha e afogar-te-ás.

- Eu kvo-a à superfície, Mãe Venerável - disse Bluganu. - Irei assegurar-me de que regressa ao Oráculo sã e salva.

Gaedalu reflectiu.

- Não - disse por fim. - Sou eu quem deve cuidar dela. Vão vocês para os refúgios.

Os varu entreolharam-se.

- Podem não akançar o Oráculo a tempo... E é provável que o Oráculo também acabe por ser atingido...

- É por isso que tenho de voltar - concluiu Gaedalu.

Zaisei estava demasiado atordoada para entender bem o que estava a acontecer. Conseguiu apenas perceber que os varu se afastavam delas e que Gaedalu começava a empurrar a sua bolha em direcção à superfície.

A subida pareceu eterna. Quando já viam ao longe o brilho das três luas, uma sombra passou por cima delas e foi ao seu encontro.

- Eblu! - exclamou Gaedalu.

Zaisei não a tinha reconhecido sem a sua túnica de sacerdotisa; além disso, não esperava encontrá-la ali.

- Mãe... Zaisei - disse ela, aliviada. - Ainda bem que estão a salvo. Dizem que vem...

- Uma grande onda; sim, eu sei - disse Gaedalu. - Os guardiães avisaram-nos.

Já deram o alerta a todas as cidades e os habitantes foram procurar abrigo nos refúgios.

Eblu mostrou-se mais aliviada.

- Viemos para vos kvar de volta ao Oráculo. O dragão espera-nos lá em cima, no porto.

- Dragão? - repetiu Gaedalu.

- Jack! - exclamou Zaisei; perguntou-se se Shail estaria com ele. De seguida concluiu que, se fosse esse o caso, Eblu tê-lo-ia mencionado.

- Depressa, depressa - disse a varu, ajudando Gaedalu a empurrar a bolha de Zaisei.

Pouco depois chegaram à superfície. Eblu e Gaedalu abriram a bolha por cima, como se fosse um ovo, e ajudaram Zaisei a sair. Molhou-se dos pés à cabeça, mas não se importou.

Jack sobrevoava-as, impaciente.

- Já estou a ver a onda! - exclamou. - Dirige-se para cá!

As duas varu seguraram em Zaisei, que abria e fechava a boca, porque tinha acabado de engolir água de mar; Jack voltou a passar sobre elas e estendeu-lhes uma garra. Eblu, decidida, agarrou-se a ela.

Instantes depois, as três voavam no dorso do dragão, de regresso ao Oráculo.

- Já se vê a crista da onda - informou Karale.

Shail ergueu a cabeça e olhou para ela, com a testa coberta de suor.

- Irmã - confessou -, não sei se o feitiço vai resistir. Para sua surpresa, a feérica sorriu.

- Já imaginava, feiticeiro. Se o teu feitiço nos garantisse segurança, não terias pedido ao teu amigo que levasse as crianças.

Shail sorriu por sua vez.

- Quem me dera que as coisas fossem de outra maneira - disse. Gostava de te poder dizer que sou capaz de vos proteger a todas. Mas só posso afirmar que vou tentar.

- Isso basta-nos - tranquilizou-o ela. - Ficaste aqui, podendo sair a voar com o teu amigo dragão. Não podemos pedir-te mais.

O feiticeiro abanou a cabeça.

- Chama as sacerdotisas - disse. - Tragam água e provisões. Se o mar derrubar o tecto sobre as nossas cabeças, teremos de ser capazes de resistir até que nos resgatem.

A irmã Karale assentiu.

Pouco depois, um numeroso grupo de sacerdotisas entrou na sala. Shail praguejou no seu íntimo: não imaginara que fossem tantas. Recordou então que Idhún tinha atravessado uma longa época de terror sob o reinado de Ashran. Era lógico que muitos pais tivessem enviado as suas filhas para o Oráculo, a fim de as proteger. Obrigou-se a si mesmo a sorrir.

- Vamos ficar um pouco apertados aqui dentro. Espero que não vos incomode.

As sacerdotisas não comentaram. Estavam pálidas e assustadas. Obedecendo ao sinal de Shail, agruparam-se no hexágono que ele tinha pintado no chão. O feiticeiro estava a começar a pensar que havia espaço para todos quando uma enorme figura se inclinou para passar pelo umbral da porta. Shail ficou lívido.

- Irmãs - disse Karale -, arranjem espaço para a irmã Ylar.

com um pouco de esforço e boa vontade, as sacerdotisas encontraram lugar para a giganta. Para tal uma sacerdotisa yan, pequena e magra, e outra celeste, leve como os da sua raça, tiveram de subir para os ombros de Ylar.

- Bem - disse Shail -, vamos fazer uma prova. Fiquem quietas, por favor.

Ergueu as mãos e concentrou-se na barreira protectora. Um fino feixe de luz dourada emergiu do hexágono, rodeando-os. Fechou-se sobre eles, mas deparou com a cabeça da giganta.

- Não há problema - murmurou Shail. - vou fazê-lo mais alto. Tentou de novo, mas também não funcionou. Uma das sacerdotisas

tinha posto o pé fora do hexágono.

Fez uma terceira tentativa de erguer a barreira. Desta vez, cobriu-os por completo. Shail assegurou-se de que não tinha fissuras e então desfê-la.

- Vamos esperar até ao último momento - avisou. - Quanto mais tempo permanecer activa, mais depressa se debilitará.

- E como saberemos qual é o último momento?

Shail sorriu.

- Saberemos.

Jack avistou a cúpula do Oráculo no alto da falésia.

- Mais depressa, mais depressa, dragão! - apressou-o Gaedalu.

Mas Jack olhou para trás, por cima do ombro. A onda estava mesmo atrás deles. Bateu as asas para se elevar mais no ar.

- O que estás a fazer? - gritou Zaisei. - Temos de descer!

- É tarde demais! - respondeu ele. - Não se trata apenas de alcançar o Oráculo: temos de entrar e localizar o sítio onde Shail está a efectuar o conjuro de protecção. Mesmo que chegássemos a tempo, ele podia desconcentrar-se e falhar a sua magia. O melhor que temos a fazer é aguardar que a onda passe e depois descer para os resgatar assim que pudermos.

- Mas eu não posso ficar aqui! - gritou Zaisei. Jack voltou a cabeça para ela.

- Ouve-me! - gritou-lhe. - Só consigo levar três pessoas no máximo! Não posso salvar mais ninguém! E, se te ponho em perigo, Shail nunca me perdoará. Confia nele! Neste momento, a sua magia será mais eficaz do que as minhas asas ou o meu fogo.

Não lhe disse que a magia de Shail estava a falhar por causa da perna artificial, mas não foi preciso. Zaisei percebeu no seu coração que tinha dúvidas e que temia pelo seu amigo mais do que dava a entender.

Gaedalu não se manifestou. Tinha voltado a cabeça para contemplar a enorme onda e agora olhava de novo para o Oráculo. A sua mente repetia um único pensamento obsessivo:

- Minhas filhas... minhas filhas... minhas filhas...

Aquele pensamento ganhou a intensidade de um grito quando a onda rebentou contra as falésias de Gantadd e arrasou o Oráculo, aos seus pés.

Houve um estrondo pavoroso. O Oráculo inteiro tremeu. As sacerdotisas gritaram.

- Ergue a barreira, feiticeiro! - bradou uma delas. Shail negou com a cabeça.

- O tecto e as paredes estão protegidos por símbolos arcanos. Vão resistir.

O tecto estalou por cima deles de maneira sinistra. As sacerdotisas encostaram-se umas às outras, mortas de medo. A porta também emitiu um barulho arrepiante, como se estivesse prestes a rebentar. Mas resistiu e nem uma só gota de água passou pelas suas frinchas.

Então, uma enorme fenda atravessou o tecto de um lado ao outro. Este pareceu abaular-se por cima das suas cabeças.

- Agora - disse Shail, e levantou a barreira.

Todas se encolheram sobre si mesmas, procurando fazer-se mais pequenas.

Finalmente o tecto abriu-se e uma enorme tromba-d água caiu sobre elas. Muitas gritaram de medo, mas a água não lhes tocou.

Shail mal se atrevia a olhar. Fora da barreira, as águas tinham inundado por completo a sala. Faziam um remoinho em volta deles, furiosas, pressionando a barreira mágica, empurrando com tanta força que o feiticeiro achou que não aguentaria. Sobretudo porque a perna tornava a doer-lhe indescritivelmente.

A porta caiu por fim e uma nova torrente inundou a divisão e embateu na magia de Shail, que deixou escapar um grito. Sentiu que enfraquecia e soube que não conseguiria aguentar por muito mais tempo, se a perna artificial continuasse a absorver parte do seu poder. Tinha de empregar toda a sua magia naquele feitiço de protecção. Meias medidas não serviam.

Cerrou os dentes.

- Ylar! - chamou.

A giganta arrepiou-se. Shail estendeu a perna e pô-la à frente dela.

Não era um espectáculo agradável. O corpo de Shail, privado da magia básica de que necessitava para manter o membro artificial, rejeitava-o. A união com o metal já não era limpa; a carne estava inchada e sangrava, como se aquela perna fosse formada por um milhar de lascas metálicas profundamente enterradas no coto. Houve murmúrios entre as sacerdotisas, mas o feiticeiro calou-as com uma só palavra:

- Arranca-ma.

- O que... o que estás a dizer? - murmurou Karale, lívida.

- Arranca-me a perna, Ylar - gritou Shail -, ou morreremos todos! Os gigantes tinham fama de ser um povo prático. Ylar agarrou a perna

metálica com ambas as mãos e puxou-a com todas as suas forças. Shail uivou de dor. A barreira mágica vacilou.

- Tens a certeza de que...? - começou Karale. Shail gritou:

- Puxa, Ylar!

A giganta voltou a puxar. Karale agarrou-se a Shail pela cintura e puxou na direcção contrária. O feiticeiro deixou escapar um novo grito...

Ylar conseguiu desprender a perna artificial. Shail sentiu como se parte da sua magia lhe fosse devolvida. Isso serviu para acalmar um pouco da sua dor... mas não totalmente.

Lutou por se manter consciente. A barreira fortaleceu-se, o que lhe deu ânimo.

Momentos depois, momentos que foram eternos, o nível das águas desceu.

A onda retirava.

Shail respirou fundo.

Depois caiu entre as sacerdotisas, inconsciente.

Os restos do tecto, que tinham caído sobre a cúpula mágica, desmoronaram-se sobre eles. Ylar susteve o pedaço maior, e as sacerdotisas refugiaram-se debaixo dos seus poderosos ombros protectores. Contudo, algo libertou a giganta da sua pesada carga: umas grandes garras de dragão, que afastavam com afã os escombros que tinham caído sobre eles. As sacerdotisas lançaram exclamações de alegria ao ver Jack e os seus acompanhantes. Mas, por cima delas, ouviu-se o grito de horror de Zaisei, ao ver Shail jazendo no chão molhado, pálido e coberto de sangue.

As três luas iam já altas quando o grupo regressou ao acampamento. Talvez tivessem desejado uma chegada mais discreta, mas não foi possível; o feiticeiro levava um fardo entre os braços e o fardo chorava com toda a força dos seus pulmões. Depressa, todos os szish estavam de pé.

Assher correu para fora da tenda antes que o seu mestre conseguisse detê-lo. Quando chegou à árvore de Gerde, deparou-se com uma cena estranha, terna e sinistra ao mesmo tempo.

Yaren inclinava-se diante de Gerde e estendia-lhe o fardo chorão, envolto em mantas quentes. Os szish, amontoados em volta deles, viram como Gerde tomava o bebé entre os braços e olhava para ele com um ligeiro sorriso nos lábios. Contudo, o seu sorriso congelou-se-lhe no rosto. Os szish entreolharam-se, inquietos.

- Shur-ikaili - disse Yaren, num sussurro. - Como ordenaste.

- Estou a ver. - Parecia zangada e divertida ao mesmo tempo. - Fizeste de propósito, Yaren? Trouxeste-me uma menina.

Yaren olhou para ela, perplexo.

- Eu... não reparei, senhora. Perdoa-me o estúpido erro. Irei devolvê-la e...

- Não - cortou ela; sorria novamente. - Uma menina... sim, porque não? - Deixou escapar uma breve gargalhada. - Mas não reparaste? perguntou a Yaren. - Não me digas que não a mudaste durante toda a viagem? Oh, pobrezinha. Por isso é que cheira tão mal. Conheço o cheiro dos bárbaros e, embora seja desagradável, não costuma chegar a este extremo.

Embalou a bebé e o choro cessou. Gerde sorriu, satisfeita. Ergueu a cabeça e viu Assher, que contemplava a cena em silêncio. Chamou-o para junto de si.

- Olha - convidou-o, mostrando-lhe a menina. - Não é linda?

Assher nunca tinha visto nada tão feio na sua vida. Uma carinha redonda, sem escamas, vermelha do choro. Uma única mecha de cabelo loiro a cair na sua testa. Uns bracinhos que se agitavam no ar, braços de pele pálida, com listas pardas.

Um bebé humano, da raça shur-ikaili, os bárbaros das pradarias.

- Não é linda? - repetiu Gerde. - Vai ser mais quando a tiver arranjado um pouco. - Calou-se por um instante e fitou-a com os olhos brilhantes. - Vou-lhe chamar Saissh - acrescentou.

Os szish olharam uns para os outros, inquietos. "Saissh" era a palavra que as serpentes utilizavam para se referir ao número sete.

Não havia no Oráculo um só sítio seco, pelo que todas as sacerdotisas despiram as suas capas e formaram com elas um leito improvisado para o feiticeiro. Zaisei estreitava-o nos braços, com os olhos cheios de lágrimas, enquanto as sacerdotisas de Wina, cujos conhecimentos médicos superavam os de todas as outras, lavavam e ligavam a ferida.

- Vai ficar bem - assegurou Karale a Zaisei. - Só precisa de descansar. Zaisei sabia que mentia, porque estava preocupada demais para quem estava a tratar de uma ferida ligeira. Sabia que Shail podia morrer esvaído em sangue.

Jack, de pé junto deles, contemplava o rosto do feiticeiro com seriedade.

- Posso tentar cauterizar a ferida - disse. - com Domivat.

Como elas não entenderam o que queria dizer, Jack tirou a espada da bainha.

- Essa coisa é perigosa, Yandrak - criticou Gaedalu. - Pode fazer com que o feiticeiro arda como uma tocha.

Mas Zaisei ergueu a cabeça, decidida.

- Fá-lo, Jack.

As curandeiras olharam umas para as outras. Pareceram estar de acordo, porque retiraram o pano, empapado em sangue, com que estavam a tentar estancar a hemorragia.

Todas as sacerdotisas olharam para o outro lado, excepto Zaisei, que manteve os olhos abertos, transbordantes de lágrimas.

Jack passou o fio de Domivat ao de leve pelo coto sangrento de Shail. Ouviu-se um silvo e um forte cheiro a carne queimada inundou a sala. Apressaram-se a molhar a ferida com água, para que não ardesse.

- Ainda bem que está inconsciente - murmurou Jack, impressionado. Zaisei abraçou Shail e enterrou a cabeça no seu ombro, soluçando.

- Agora, sim - disse Karale -, deve descansar e recuperar forças.

- Mas onde? - perguntou outra das sacerdotisas. - O Oráculo está destruído...

Jack não lhes prestava atenção. Reparara que Domivat vibrava de forma estranha. Voltou a cabeça para a única parede da sala que não tinha sido arrasada pela água.

- O que há ali atrás?

- A Sala dos Ouvintes - respondeu Gaedalu.

- Tenho de entrar - disse ele subitamente.

- Há muito que ninguém entra ali - respondeu a Mãe. - É perigoso.

Jack não respondeu. Gaedalu punha-o de mau humor e não sabia porquê. Havia algo nela que lhe era desagradável. Mais do que da última vez em que se tinham visto.

- Não quero saber - disse, embainhando a espada. - vou entrar. Não o disse para a aborrecer. De facto, sentia que algo o chamava; além disso, ao descer sobre o Oráculo, tinha visto que a onda não havia destruído a cúpula daquela sala, que só apresentava uma brecha superficial. E, por acréscimo,

há algum tempo que estava interessado na Sala dos Ouvintes. Essa era a razão por que tivera tanto interesse em viajar até ao Oráculo: se as vozes dos deuses se ouviam naquela sala, Jack tencionava ouvi-las.

Zaisei ergueu a cabeça para ele.

- Não me vou afastar - tranquilizou-a. - Estarei aqui ao lado. Uma das sacerdotisas, a mulher yan, apressou-se a dizer:

-Masasvozesqueseouvemnãosãoboasparaninguém.Podesficarsurdo ouperderojuízo.

- Vou correr o risco - disse Jack.

"Tenho de saber", pensou para si mesmo, "o que estão os deuses a dizer. Tenho de saber o que pretendem."

Ninguém procurou travá-lo quando saiu da sala e, evitando poças e escombros, aproximou-se da porta da Sala dos Ouvintes. As águas tinham arrastado os colchões que cobriam a entrada e um ruído surdo, como o retumbar de um trovão, ouvia-se do outro lado. Jack respirou fundo e abriu a porta.

No início não ouviu nada, salvo um profundo silêncio. Inclinou a cabeça, desconcertado, procurando sinais das vozes atroadoras que faziam as pessoas enlouquecer. Nas suas costas, Domivat pesava tanto que parecia ter-se tornado de chumbo. E continuava a vibrar, de um modo que Jack não era capaz de definir, porque aquela vibração não parecia soar nos seus ouvidos, mas sim no seu coração.

De qualquer forma, algo estranho estava a acontecer.

Ergueu a cabeça. A enorme cúpula da Sala dos Ouvintes apresentava uma longa brecha provocada pela pressão da água, mas, ainda assim, continuava a ser imponente. Era de um material que tinha um certo tom metálico, mas a sua cor era de um violáceo escuro e profundo. Jack teve a sensação de que sobre ele não havia tecto e que aquele violeta continuava por cima da sua cabeça indefinidamente, até chegar ao infinito. Aquele tecto não parecia ser sólido, mas era. Se olhasse fixamente para ele, também não aparentava ser etéreo. A textura daquele material fluía, como se fosse líquido... ou talvez se tratasse unicamente de uma ilusão óptica.

Jack abanou a cabeça e olhou à volta. Em contraste com o tecto, as paredes eram decepcionantes, despidas, sem janelas nem adornos. As lajes do chão também eram brancas e lisas. Só a iluminação, suaves luzes irisadas, animava um pouco a sala. De resto, não havia ali nada para onde olhar e Jack compreendeu que era intencional. Os ouvintes não deviam ter distracções.

Havia seis escrivaninhas, cada uma junto a uma parede. Jack perguntou-se se em algum momento da sua história os Oráculos tinham chegado a dispor de seis ouvintes. Talvez fossem previsões muito optimistas porque, pelo que ele sabia, em cada Oráculo não costumava haver mais de quatro.

Perguntou-se porque é que lhes chamariam "ouvintes". Era uma definição demasiado simplista, porque quase todas as pessoas conseguiam "ouvir"; mas não era assim tão fácil "escutar", que era o que eles faziam. Talvez em tempos remotos se acreditasse que havia pessoas que nasciam com o dom de "ouvir" a mensagem divina. Mas Jack tinha a impressão de que a voz dos deuses, captada e amplificada por aquela enorme cúpula, devia soar igual a toda a gente. Só que algumas pessoas sabiam "escutar".

Ergueu a cabeça, intrigado. Seria uma questão de prestar atenção? Procurou concentrar-se; fechou os olhos e apurou o ouvido.

E, sim, ali estava. Um murmúrio quase inaudível, um eco tão distante que não entendia as palavras que o formavam. Era aquilo as vozes ensurdecedoras dos deuses? Jack sentiu-se um pouco desiludido... até que se apercebeu de que o que estava a ouvir era a vibração da sua espada, Domivat.

Abriu os olhos e desembainhou-a, surpreendido. A chama de Domivat iluminou-lhe o rosto. Parecia arder com mais força do que nunca.

- O que...? - murmurou o jovem, perplexo.

Por um momento, o fogo da espada foi tão intenso que o ofuscou. Girou a cabeça bruscamente e fechou os olhos; lançou uma exclamação de surpresa quando notou que o punho também ardia e soltou-a, sobressaltado, recuando um passo. Mas escorregou numa poça e caiu para trás. Felizmente, a queda não foi grande. Jack ficou sentado no chão, olhando para Domivat, que continuava em chamas, tingindo de negro as lajes brancas.

Pareceu-lhe então que outro som abafava a estranha vibração da espada. Jack prestou atenção. Soava fraco e distante, mas foi-se tornando cada vez mais intenso, até que o rapaz captou uma espécie de riso, um riso seco e profundo, com um certo tom sarcástico.

Não parecia um riso divino, mas nunca se sabia.

- Olá? - atreveu-se a perguntar, inseguro.

O riso cessou. Jack susteve a respiração e ouviu então uma voz, uma voz poderosa, que poderia ter feito com que os mais nobres reis se prostrassem diante de quem a proferia, se não fosse pelo seu tom descontraído:

- Olá, Yandrak.

Jack olhou em redor, mas não viu ninguém. Então levantou a cabeça e distinguiu algo mais acima, uma forma que parecia fundir-se naquela cúpula fluida ou talvez emanar dela.

- Quem és tu?

A figura começou a definir-se cada vez mais e Jack sentiu que algo lhe apertava o peito. Era um dragão.

- Creio que já sabes a resposta - disse o dragão. - Recuso-me a acreditar que depois de tanto tempo a carregar-me às costas ainda não me conheças.

Desceu até pousar no chão, diante dele. Jack olhou para o dragão, maravilhado. Não parecia consistente, mas antes uma imagem etérea, uma sombra do que tinha sido.

Também não era um dragão muito grande, pelo menos não tanto como alguns dos esqueletos que tinha visto há tempos em Awinor. Pareceu-lhe que era vermelho, mas logo rectificou aquela impressão. As suas escamas tinham um tom mais escuro, uma espécie de grená intenso, como a cor do vinho velho.

Mas o que mais se destacava nele era o seu terceiro olho, que o observava, divertido, por cima dos outros dois.

- Domivat - disse o rapaz, com respeito. Quis levantar-se, mas não foi capaz.

O dragão riu de novo e uma espiral de fumo escapou de entre as suas mandíbulas.

- Não propriamente. Há muito que estou morto, embora parte de mim habite nessa espada que usas. De modo que por esta altura já não sei se sou uma espada ou o fantasma de um dragão, ou ambas as coisas, ou nenhuma.

Jack abriu a boca, mas não disse nada. Queria perguntar-lhe tantas coisas que não sabia por onde começar. Domivat apercebeu-se.

- Para começar - disse -, não, não tenho por hábito manifestar-me desta forma; aliás, nunca o tinha feito. Não é assim tão simples. Mas este lugar... - Olhou à volta, maravilhado. - Este lugar está impregnado da essência dos deuses. E agora mais do que nunca. Os deuses são as forças que movem este mundo: todas as alterações, todas as transformações, ocorrem graças a eles ou à energia que emana deles. Se havia algo capaz de me despertar, era isto, e não acontecerá muitas vezes, se é que vai voltar a acontecer. Por isso vamos aproveitar o tempo.

Jack assentiu, ainda sem fala.

- Hoje em dia - disse Domivat -, a raça dos dragões está extinta. Tu és o último e pode ser que os teus filhos, se os tiveres, herdem algo do dragão que há em ti. Mas isso não basta para fazer com que povoemos Idhún de novo, Yandrak.

- Eu sei. Sabes de alguma forma de mudar isso? Domivat negou com a cabeça.

- Não há como reverter a situação. Mas não tenhas pena. Sempre soube que isso aconteceria, e mais: sempre desejei que acontecesse. Nós fomos criados para lutar, e um mundo perfeito não precisa de soldados. Por muito que me doa admiti-lo, nem os dragões nem os sheks deveriam ter alguma vez existido. A guerra podia ter-se prolongado até ao final dos tempos, mas uma das duas raças extinguiu-se primeiro. E, acredita em mim, não invejo os que ficaram. É que agora nós, dragões, descansamos em paz, enquanto os sheks terão de continuar a viver com um ódio insatisfeito para sempre.

- Nunca tinha visto as coisas desse prisma - admitiu Jack, impressionado. - Seja como for, os deuses de Idhún são muito cruéis.

- Não são cruéis - respondeu o dragão. - São apenas deuses.

- Eles estão aqui agora. Andam à procura do Sétimo e, quando o encontrarem, irão destruí-lo. Isto não seria mau, se não fosse por entretanto nos estarem a destruir a nós. Os sheks consideram que o mais sensato é fugir. Na realidade, parece-me que já estão a tratar disso. Mas o que diriam os dragões?

Domivat ficou pensativo. Ou, pelo menos, assim pareceu a Jack, porque fechou o seu terceiro olho. Quando o abriu de novo, disse:

- Suponho que ficaríamos a salvar o mundo e morreríamos com ele. Uma opção muito nobre, mas pouco prática.

- Só isso? - perguntou Jack, decepcionado. Os três olhos do dragão brilharam, divertidos.

- Achas que os dragões podem resolver uma disputa que nem os próprios deuses souberam solucionar?

- Mas como é possível que lutem? - perguntou Jack por sua vez. - Não é suposto serem seres superiores?

- O caos está na própria origem do Universo, Yandrak. Até mesmo a vida traz consigo a morte e a destruição. Ainda não te deparaste com a deusa Wina, pois não?

- Não... - respondeu Jack, e acrescentou para si: "E espero não o fazer nunca."

Domivat riu.

- Pois vais entender quando isso acontecer. Jack calou-se, confuso.

- Conheces os mitos idhunitas acerca da origem de tudo?

- Vagamente. Só sei que os Seis criaram as raças de Idhún e que tudo o que há no mundo está associado ao elemento do deus que o criou.

- Mais ou menos. Mas eu estava a referir-me ao que aconteceu antes disso: à origem de tudo. À lenda de Uno.

- Não - admitiu Jack. - Não a conheço. É importante?

- Não passa de uma lenda. - Domivat sorriu, com amabilidade. - Mas não se trata da forma e sim do conteúdo. Trata-se da ideia que está subjacente, por detrás da máscara do mito. Queres ouvi-la?

Como resposta, Jack cruzou as pernas, procurando uma posição mais confortável. Sentia-se muito bem e desejava prolongar aquela conversa o quanto fosse possível.

- As lendas mais antigas falam de uma entidade a que se chamou Um. Não me perguntes porquê - acrescentou, com um sorriso rasgado. - Bem, diz-se que Um era apenas uma consciência, um pensamento. Não tinha corpo, nem existia em nenhum lugar físico, dado que na altura a matéria como tal

ainda não tinha sido criada. Habitava no Vazio, convencido de que era Único. Convencido de que não existia mais nada, além dele.

" Por esse motivo, dedicava-se a meditar e a traçar planos, como um arquitecto que projecta uma grande cidade, até ao mais ínfimo pormenor. Se esse arquitecto fosse Um, provavelmente teria planos para miríades de grandes cidades. Um estava toda a eternidade a traçar planos.

" Até que se encontrou com Ema.

" Aliás, foi ela que o encontrou a ele, porque Ema era uma entidade activa. Nunca tinha traçado planos, nunca tinha idealizado um mundo. Ela queria apenas fazer coisas, de modo que se deslocava pelo Vazio, esbanjando energia, movendo-se sem parar, sem se perguntar de onde vinha nem para onde ia. Queria fazer algo, mas não sabia o que fazer. Também ela pensava que era Única.

" Como podes imaginar, o choque entre ambos foi brutal.

- Porquê? - perguntou Jack. - Pareciam destinados a forjar uma aliança perfeita.

- Achas? Quando alguém se julga Único durante milhares de milhões de anos, não concebe a ideia de que exista Outro, Portanto, não sente a sua falta.

" Assim, o início de tudo nasceu do caos. De uma disputa cósmica... porque Um e Ema quiseram destruir-se mutuamente mal se encontraram.

" O resultado não foi o que eles esperavam. Lançaram-se um contra o outro, mas, dado que não tinham corpo, as duas essências acabaram por se fundir numa só. Em Uno.

" Julgo que foi então que nasceram em simultâneo o amor e o ódio. Creio que ambas as entidades descobriram a maravilha da União no meio do seu desejo de destruição mútua. E foi uma União completa e perfeita, porque, nesse preciso momento, Um e Ema deixaram de existir. A Energia e a Vontade de Ema impregnaram o Pensamento de Um. Portanto, Uno queria fazer algo. E sabia o que queria fazer e como fazê-lo.

" Enquanto as essências de Um e Ema se fundiam lentamente em Uno, o resultado da União percorreu o Vazio como um enorme cúmulo incandescente, girando sobre si mesmo, num frenesi cósmico do qual se foram, pouco a pouco, desprendendo fragmentos que se espalharam por todo o lado, dando origem ao Universo. Alguns fragmentos solidificaram, outros não. Fosse como fosse, tinha nascido a matéria.

"O Big Bang", pensou Jack, com um sorriso.

- Mas a história não acaba aí - disse o dragão. - Porque a existência de Uno, como tal, foi bastante breve em comparação com a dos seus antecessores. Uma vez terminada a União, o que resultou dela explodiu em miríades de fragmentos que foram lançados para o Universo. Poderíamos dizer que eram os filhos de Um e Ema, os filhos de Uno, talvez. Entidades imateriais, com as ideias e os planos de Um e a energia e a vontade de Ema.

- Deuses - entendeu Jack.

- Deuses - assentiu Domivat. - Um sem-número deles, mais ou menos poderosos, todos procedentes da mesma fonte, mas cada um deles com uma identidade diferente. A maior parte encontrou mundos para habitar, pedaços de rocha a flutuar no espaço. A alguns desses mundos chegou um deus, a outros, vários. A outros, nenhum, e esses permaneceram mundos mortos.

Jack perguntou-se quantos deuses teriam chegado à Terra. Não tinha como saber, dado que em cada cultura havia uma concepção diferente e, afinal de contas, as grandes religiões monoteístas não tinham sido as primeiras. Abanou a cabeça e concluiu que, se os humanos terrestres ainda não estavam de acordo nessa questão, não ia ser ele resolvê-la sozinho.

- E havia uma infinidade de projectos a levar a cabo - prosseguiu Domivat. - Os deuses tinham por onde escolher, sem dúvida. E tinham o poder de tornar esses projectos em realidade. Cada mundo vivo não é mais do que a materialização de um desses projectos. É provável que haja vários mundos com o mesmo projecto ou talvez cada um seja diferente. Ou ainda que os deuses tenham alterado esses projectos iniciais e criado outros novos.

- O que foi feito de Um e Ema? - indagou Jack. - E Uno?

- Deixaram de existir. Ou, melhor dizendo, poderia dizer-se que existem em cada um dos deuses que povoam os mundos vivos.

Jack reflectiu por um momento. Depois disse:

- Disseste uma coisa que me despertou a atenção. Um era uma entidade masculina e Ema uma entidade feminina? Pode existir o conceito de sexo em algo que não tem corpo?

- Há deuses e deusas, e supostamente são imateriais - observou Domivat. - Não sei. Talvez o masculino e o feminino não estejam só vinculados ao corpo, mas também ao espírito, à essência. Conheci dragões machos que se sentiam fêmeas, e vice-versa.

" Ou talvez não e falamos de deuses e deusas porque precisamos de os imaginar como nós. Necessitamos de saber se falamos Dele ou Dela, sem nos apercebermos de que isso nega a outra possibilidade. A possibilidade de que sejam ambas as coisas ou nenhuma.

- Ou nenhuma - assentiu Jack. - O Sétimo não faz distinções, por exemplo. É-lhe indiferente ocupar um corpo masculino ou feminino. Neste momento é a Sétima. - Sorriu.

- O Sétimo é um ente estranho - assentiu Domivat. - Pessoalmente, acredito que temos três deuses e três deusas em Idhún. A tradição é muito clara a esse respeito. Talvez porque no início ocuparam, respectivamente, corpos masculinos e femininos.

- Alguma vez usaram realmente corpos materiais? - perguntou Jack, interessado.

- Para criar os moldes de todas as coisas, especialmente as mais pequenas. Os deuses são forças poderosas. Não conseguem fazer filigranas. Para estabelecer as bases da criação, para modelar cada ser, necessitavam de corpos mais pequenos.

- Como um pintor que utiliza um pincel muito fino para pintar os pormenores mais pequenos de um quadro - assentiu Jack -, porque os seus próprios dedos são demasiado grossos.

- Mas acho que não lhes agrada verem-se encerrados na matéria, porque não voltaram a fazer nada parecido, que se saiba, e mesmo agora deslocam-se por Idhún sem corpos materiais, ainda que arrisquem destruir tudo à sua passagem.

- E foram corpos masculinos e femininos.

- É o que parece, segundo as lendas. Talvez isso os ajudasse a definir-se, embora fosse apenas por comodidade. Sinceramente, não creio que dessem demasiada importância a isso.

" Em contrapartida, a história de Um e Ema não é tão clara. Algumas lendas falam de Um como "Ela" e de Ema como "Ele". De modo que talvez fossem um ente masculino e um feminino; mas não sabemos bem qual era qual. No que todas as tradições coincidem é que Uno era "Isso". Uma mistura de ambas as coisas.

" Mas o Sétimo, ou a Sétima, não é apenas um ente estranho pela curiosa indefinição em relação à sua manifestação material. É-o porque todas as lendas são muito claras a respeito de uma coisa: foram seis os deuses que chegaram a Umadhun e depois a Idhún. Seis, não sete.

- É o que dizem. Mas sempre me perguntei se essa não seria a versão dos sangues-quentes, que procuraram sempre negar a existência do sétimo deus.

O dragão riu.

- Conheces Umadhun, falas do sétimo deus, utilizas o termo sangue-quente e duvidas das histórias sagradas acerca dos Seis - observou. Mais que um dragão, pareces um pouco shek.

Jack desviou o olhar, incomodado.

- Aprendi coisas com eles. Afinal de contas, os sheks eram os únicos que estavam cá para responder às minhas perguntas.

Os três olhos de Domivat, negros como o azeviche, brilharam perigosamente.

- Cuidado, jovem híbrido - repreendeu-o. - Está bem que aproveites a tua parte humana para fazer coisas que, como dragão, estariam fora do teu alcance. Mas não esqueças nunca que o fogo corre nas tuas veias. Se o fizeres, estarás perdido.

- Estás a insinuar que devia retomar a luta contra os sheks, abandonar-me a um ódio cego e sem sentido? - protestou Jack, irritado.

- Ah, mas foram o ódio, o caos e a destruição que deram origem a tudo o que existe.

- Não estou de acordo. É o amor que cria a vida. O ódio só a destrói. Além disso, tu próprio disseste que num mundo perfeito não existiriam soldados.

- Será um contra-senso? É aí que quero chegar, Yandrak. Essa é a raiz do problema.... porque o próprio caos que criou o Universo destruiu Umadhun. E o amor que cria a vida por pouco não destruiu o último unicórnio, a expressão última da magia, da energia criadora dos deuses. Morrer por amor. Viver para odiar. Devia ser um paradoxo, mas não é.

- É o mesmo - compreendeu Jack. - Uno.

- Exacto. Vida e morte, ordem e caos, luz e escuridão, amor e ódio. O problema, Yandrak... é que o Sétimo foi apenas morte e caos, escuridão e ódio.

- Não acredito nisso. O Sétimo criou os sheks e os sheks não são perversos. Ou pelo menos não todos. São frios e impiedosos às vezes, mas não são maus. Por muito que nos tenham feito acreditar no contrário.

- Aí reside o problema. Esse é o enigma dos deuses de Idhún, a origem da guerra e de ambas as espécies. E parte do paradoxo.

" Umadhun não é o nosso mundo. Nunca foi. Nós, os dragões, somos filhos de Idhún... tal como os sheks.

- No entanto, desterraram-nos para Umadhun.

- Sim, e não nos perdoaram. Detestam esse mundo porque não tem nada a ver com eles. Contudo, também não são completamente idhunitas. Consegues perceber porquê?

- Porque foram seis os deuses primitivos. Porque o Sétimo não participou na criação de Idhún.

- É o que parece: os Seis são os deuses criadores e isso significa que o Sétimo é um deus destruidor.

" Quanto aos sheks... não pertencem a Umadhun, mas, apesar de terem nascido em Idhún, também não fazem parte deste lugar. Nós, os dragões, respeitávamo-los. Porém, não podíamos deixar de os odiar. De modo que os mandámos para longe, para outro mundo. Pode parecer cruel, contudo, durante o período em que estiveram desterrados, houve paz em Idhún. Uma paz relativa, quero dizer. As outras raças continuavam com as suas quezílias de sempre. Mas a grande guerra entre sheks e dragões extinguiu-se numa longa trégua.

- Os sheks dizem que vocês massacraram os szish - recordou Jack. E que durante essa trégua de que falas havia dragões que iam a Umadhun matar sheks.

- Hum, sim. É difícil reprimir o ódio, sobretudo quando se é jovem suspirou Domivat. - Decidiu-se que o desterro era castigo suficiente, que não devíamos aproveitar-nos da fraqueza do inimigo para o destruir por completo... embora, se o tivéssemos feito, a guerra terminasse para nós, definitivamente. E foi essa a opção dos sheks. Por isso, eles sobrevivem como raça e nós não. Sempre foram mais inteligentes. - Suspirou de novo.

" Muitos dragões não suportaram a ideia de deixar escapar os sheks. Vingaram-se nos szish. Não porque fossem mais fracos, mas sim porque não eram tão importantes. Até mesmo os sheks davam mais valor à vida de um dragão do que à de um szish, e estes não eram o inimigo que tínhamos decidido respeitar. Eram apenas...

- Sangue-frio - disse Jack com um fio de voz. - Sei que é difícil lutar contra o ódio. Os sheks dizem que não se deve reprimi-lo, mas sim procurar controlá-lo. Eu sou jovem e estou a conseguir - disse com um orgulho mal disfarçado.

- Tu és em parte humano. A verdade é que nós, dragões, teríamos preferido que o último da nossa espécie fosse um dragão puro, mas essa alma humana salvou-te a vida muitas vezes. No fundo, és tão impetuoso quanto a maioria dos jovens dragões que conheci. Se não fosses também humano, terias sucumbido ao ódio, como todos os outros. De facto, lembro-me de que uma vez estiveste prestes a descarregar sobre uma cria de shek. Na altura, Haiass travou-me. Caso contrário, teríamos matado a cria, tu e eu. Que bela maneira de controlar o ódio. - Jack corou de vergonha. - Nós, os dragões, andamos há milénios a tentar controlar ou reprimir o ódio, tal como os sheks. Não é assim tão simples. Mas tu tens também uma alma humana e os humanos não odeiam os sheks por natureza. Embora se empenhem em acreditar que sim.

- Houve uma shek que controlou o seu ódio - murmurou Jack. Salvou-me a vida. Ajudou-me.

- Era a isso que me referia ao dizer que a tua alma humana te salvou mais do que uma vez. Cheiras menos a dragão do que qualquer outro dragão. Respeito todos os sheks, em especial aqueles que lutam contra o seu ódio, mas sei o que são, porque nisso nós somos iguais. Se fosses simplesmente um dragão, ela não teria suportado. Teria acabado por te matar, embora não o quisesse.

- Odiava outra pessoa. Um deus.

- Odiava o seu próprio deus - assentiu Domivat. - E viu-se obrigada a pactuar com um dragão. Pobre criatura, como deve ter sofrido.

Jack não respondeu. Permaneceu em silêncio por algum tempo, recordando Sheziss.

- Mas agora tu tens a oportunidade. Tu e o outro híbrido, o que empunha Haiass. Pela primeira vez, existe a possibilidade de uma aliança. E talvez entre os dois... entre os três... consigam compreender o enigma da nossa existência, algo que esteve vedado a sheks e dragões porque o ódio jamais nos permitiu entender-nos.

- Sheziss disse que os dragões sentiam prazer em matar sheks. Que se abandonavam ao instinto.

Domivat riu-se.

- Disse-te isso? Eles também sentem prazer em matar dragões. É parte da nossa maldição. Sentimos prazer matando-nos uns aos outros, embora nos horrorize. Não conseguimos

evitá-lo.

" E, sim, somos mais irreflectidos do que os sheks, mas também não é para tanto. Seja como for, ao longo dos séculos temos procurado mil e uma desculpas para fazer o que fazíamos, porque não nos agradava fazê-lo sem motivo. Os sheks diziam que nós éramos cruéis e assim justificavam o seu ódio. Nós afirmávamos que eles não tinham sentimentos e assim defendíamos o nosso. Para eles, nós sentíamos prazer em odiar e isso parecia-lhes atroz. Para nós, era-lhes indiferente e considerávamos isso monstruoso. Suponho que ambos os lados exageravam, para se sentirem melhor.

- Creio que sim - murmurou Jack. Domivat olhou-o demoradamente.

- Mas isso já não tem tanta importância - disse -, porque a guerra entre nós acabou. Perdemos, de modo que os deuses vão deixar de jogar para intervir na luta de uma vez por todas.

- Se perdemos, não deviam aceitá-lo?

- E deixar Idhún nas mãos da Sétima e dos seus sheks? Não é como se fosse uma disputa entre os Seis, Yandrak. Este mundo é seu. Ela é uma intrusa. Não podem render-se, porque isso implicaria ficarem sem mundo. Poderiam criar outro, é certo, mas já o fizeram uma vez, já deixaram Umadhun para trás e não vão abandonar Idhún, pelo menos enquanto estiver mais ou menos intacto.

- E por que razão não arranjam para a Sétima um lugar no panteão?

- Por que razão Um e Ema decidiram destruir-se mutuamente? Não temos como o saber, mas está na natureza de todas as coisas. Talvez eles tenham razões para odiar a Sétima. As suas criaturas fizeram coisas terríveis quando chegaram a Idhún.

- Segundo a versão de quem? Domivat semicerrou os olhos.

- Segundo a versão dos unicórnios. Disseram que as serpentes eram a encarnação do mal, do caos, do ódio e da escuridão.

- Caramba - disse Jack. - Não esperava isso dos unicórnios. Pensava que eram imparciais.

- São imparciais. Por isso mesmo sei que diziam a verdade.

- Mas Victoria... - começou Jack. - O último unicórnio ama um shek. É a sua parte humana que se sente atraída pela escuridão?

Domivat sorriu.

- Os unicórnios disseram que as serpentes eram a encarnação do mal, do caos, do ódio e da escuridão - repetiu. - Mas nunca declararam que deviam ser destruídas por isso. Suponho que acreditavam que no mundo deve haver de tudo. Presumo que eles compreendiam melhor do que ninguém a essência de Uno.

- Os unicórnios - murmurou Jack - são difíceis de entender.

- Não tanto como pensas - respondeu Domivat, com um brilho sonhador no olhar. - Não tanto como pensas.

Fez-se um novo silêncio, que Jack rompeu ao fim de uns instantes.

- Então, o que tenho de fazer?

- O que achares conveniente. Já és grandinho para tomar as tuas próprias decisões.

Jack ficou de boca aberta.

- Não posso dizer-te o que tens de fazer - disse o dragão, com um bocejo. - Limitei-me a contar-te o que sei.

- Tudo o que sabes? As lendas também dizem que consegues ver o futuro. E verdade? Sabes o que vai acontecer?

- Não vejo tudo. Se assim fosse, teria enlouquecido. Só vejo algumas coisas. Coisas boas e coisas más. Mas o que eu vejo é apenas um fragmento da realidade e isso não é suficiente para pôr em causa todo o futuro. Pensava que estavas escaldado em relação às profecias.

Jack assentiu energicamente, dando-lhe razão. Então apercebeu-se de que a imagem de Domivat se tornava mais difusa.

- O que se passa?

- Estou a perder as forças. A deusa está a afastar-se e a energia que esta sala recolhe já não é tão intensa. Tenho de me despedir, Yandrak, mas antes tenho de te dizer duas coisas. A primeira... não me prives do prazer de um combate contra Haiass de vez em quando. Por favor.

Jack olhou para ele, surpreendido. Já tinha reparado que Domivat sabia o nome da espada de gelo, mas não o do shek que a empunhava.

- Sentes prazer em lutar contra ela?

- Oh, sim - disse ele deliciado. - Há muito tempo que morri como dragão, mas uma parte de mim continua a viver nessa espada. Creio tê-la contagiado com parte do meu ódio. E adoro atingir uma espada com alma de shek. Quase tanto como provar o sangue de shek - acrescentou, e Jack teria jurado que estava quase a babar-se.

- Bem - disse o rapaz, algo incomodado -, é provável que tenha de lutar contra mais sheks no futuro, mas agora costumo usar o meu corpo de dragão quando o faço e jurei a mim mesmo não voltar a ferir Kirtash, que é o shek contra o qual costumo brandir-te. Lamento.

- Por isso limito-me a pedir-te que me uses contra Haiass. Tem algo do espírito de um shek, também. Uma vez parti-a - acrescentou, e os seus três olhos cintilaram de júbilo -, mas não nego que fiquei contente quando voltei a enfrentá-la. Assim terei ocasião de a partir mais vezes.

- Isso se ela não te partir a ti - contrapôs Jack. - Verei o que posso fazer. E que mais querias dizer-me?

Domivat olhou para ele, muito sério. Jack sentiu-se inquieto.

- Que já não tenho forças para te proteger - disse o dragão. - Portanto... corre.

A imagem desvaneceu-se de repente. A chama da espada perdeu a intensidade, ficando apenas um ligeiro brilho apagado.

Toda a sala pareceu ruir sobre Jack. O murmúrio distante que ouvira ao entrar transformou-se, subitamente, numa cacofonia de vozes atroadoras que o atingiram como uma avalancha. Jack mal teve tempo de embainhar a espada e dar meia-volta, tapando os ouvidos e vociferando de dor. Mas as vozes enchiam a sua cabeça, ameaçando fazê-la rebentar. Jack caiu de joelhos no chão, a escassos passos da porta, e retorceu-se sobre as lajes molhadas, gritando, em plena agonia.

Sussh, governador de Kash-Tar, o shek que ainda regia os destinos das gentes do deserto, estava a dormitar quando recebeu a notícia. Acordou de imediato, embora parecesse continuar completamente adormecido. Mas uma parte da sua

mente estava receptiva à mensagem do outro shek.

- Os rebeldes destruíram Nin - disse-lhe.

Sussh entreabriu os olhos, surpreendido. A mensagem telepática do shek ia para além do conceito "destruir". Trazia implícitos todos os pormenores:

a cidade fora totalmente arrasada, não restara pedra sobre pedra, todos tinham morrido. Sangues-quentes, sangues-frios, era indiferente. Todos mortos.

- Usaram fogo - disse o shek.

Tinham carbonizado tudo. O fogo era o maior inimigo dos sheks, violento e imprevisível. E tinham-no usado contra eles. - Julgamos que foram os dragões. Não resta ninguém com vida para contar.

- Dragões - repetiu Sussh. - Os sangues-quentes continuam a imitar os dragões com aquelas desagradáveis máquinas. E são tão sanguinários como eles foram.

- Não ganhavam nada destruindo a cidade - opinou o shek. - Nada, salvo assegurasse de que não voltávamos a conquistar. Os sangues-quentes são orgulhosos e vingativos.

Preferem ver algo morto do que nas mãos dos seus inimigos. Aprenderam isso com os seus deuses - acrescentou, com ironia.

- Bem - disse Sussh. - Então, há que acabar com eles antes que continuem a destruir tudo. Regressa, Zakiash. Vamos organizar um ataque à base rebelde.

- Mas escondem-se nos confins de Awinor.

- Cansei-me de ter consideração por eles. Se esta é a maneira como os sangues-quentes honram a memória dos dragões... construindo máquinas de matar semelhantes a eles... nós também não temos motivos para os respeitar.

Kimara inclinou-se sobre a areia, com a cabeça baixa. Teoricamente, era para procurar pistas, mas a verdade é que não se sentia capaz de continuar a olhar.

A areia por debaixo dos seus pés tinha-se fundido, cristalizada pelo calor que tivera de suportar. Era uma visão estranha e assustadora, mas era melhor do que ver os restos carbonizados de Nin.

Tudo destruído. Todos mortos.

Sentiu um vazio no estômago e pestanejou para conter as lágrimas. Ouvia os gritos e as imprecações dos seus companheiros, lamentos que o vento levava, porque não restava em Nin ninguém que pudesse escutá-los.

Uma mão pousou no o seu ombro, sobressaltando-a.

- Sinto muito - disse a voz de Rando, estranhamente rouca. - Chegámos tarde.

Kimara assentiu. Os seus olhos arderam com fúria.

- Nunca mais - jurou. - Aquela maldita serpente não voltará a atormentar o meu povo. vou matá-lo com as minhas próprias mãos.

- Serpente? - repetiu Rando em voz baixa. - Achas que os sheks estão por detrás de tudo isto?

- E quem se não eles? Por acaso não viste o que tinha ficado para trás a ir embora?

Rando não respondeu de imediato. Passeou o olhar pelas ruínas negras de Nin, pelos corpos carbonizados, restos irreconhecíveis que pareciam ter sido submetidos ao fogo de um dos sóis. O vento trazia consigo um aroma a fumo e cinza, a carne queimada, a morte e tormento.

- São sheks - raciocinou o semibárbaro. - Não gostam do fogo.

- Bem, é evidente que decidiram atacar-nos com as nossas próprias armas - disse Kimara, impaciente.

Rando encolheu os ombros.

- Se tu o dizes...

Kimara ergueu-se e virou-lhe as costas, um pouco aborrecida.

- Não espero que o entendas. Afinal de contas, tu não és daqui. Rando ficou a olhar para ela e depois deixou escapar uma gargalhada.

- Sim, deve ser isso. O calor do deserto torna-me insensível à desgraça alheia.

Kimara não conseguiu perceber se estava a falar a sério ou a troçar dela. Afastou-se do semibárbaro, com grandes passadas, para se juntar a Goser. Os olhos dele estavam mais brilhantes do que o habitual.

- Umdiaaziago - sussurrou a jovem.

- OúltimodiaaziagodeKash-Tar - jurou Goser.

Voltou-se para os outros e chamou-lhes a atenção com um grito de guerra.

- Susshpagaráporisto! - gritou. - Vamosmataratéaúltimaserpente destaterraeKash-Tarvoltaráaserlivre!

Todos responderam com ferozes gritos de raiva e de ódio.

- Vingança! - gritou Goser, erguendo no ar um dos seus machados. MorteatodasasserpentesemnomedeAldun!

- EmnomedeAldun! - entoaram os rebeldes. - Morteatodasasserpentes! Kimara gritou com eles. Mas Rando limitou-se a observá-los, com os braços cruzados sobre o peito e a dúvida a latejar no seu olhar bicolor.

Finalmente, fez-se silêncio. As vozes tinham-se tornado um sussurro confuso e, quando se calaram completamente, apenas se ouviu uma última palavra, como um leve sopro de brisa: "...destruir-te".

Jack desfrutou do silêncio por um instante e então apercebeu-se de que havia algo mais, algo que enchia o seu coração de uma ternura indescritível. Percebeu uns braços que o embalavam, umas mãos que acariciavam o seu rosto, uns dedos que se enredavam no seu cabelo. O seu coração iluminou-se de repente.

Abriu os olhos, com esforço. E ali estava o olhar dela, que não se afastava dele. Tinha de ser um sonho.

- Victoria? - disse, a custo.

A jovem abraçou-o com força e Jack lutou por acordar. Respondeu ao seu abraço, ainda aturdido.

- Victoria... como...? O que estás a fazer aqui?

Talvez tivesse sido tudo um sonho, ou um pesadelo, e ainda se encontrassem na Torre de Kazlunn ou, melhor ainda, em Limbhad. Olhou à volta e à luz pálida da manhã viu uma sala húmida, com o tecto semidestruído e as paredes cheias de frestas. O chão ainda estava inundado de água.

Continuava no Oráculo.

- Estivemos à tua espera na Terra - disse-lhe ela ao ouvido; Jack percebeu a emoção que impregnava cada uma das suas palavras. - Mas não voltavas e eu receava que te tivesse acontecido alguma coisa de mal... Vi através da Alma que estavas com problemas... e voltei para te buscar. Jack, como é que te ocorreu entrar aí dentro?

Jack começou a pensar com clareza. Soergueu-se.

- E Domivat? - perguntou.

- Tinha-la nas costas. Tirei-te a bainha para ficares mais confortável.

- Domivat... Victoria, não imaginas as coisas que aprendi ali. Viste-me através da Alma? Viste...?

- Vi que falavas sozinho, Jack. Receei que a voz dos deuses te tivesse feito perder o juízo.

Jack calou-se, confuso. Victoria tomou o seu rosto entre as mãos e olhou-o profundamente. Depois, depositou um suave beijo sobre os lábios dele. Jack respondeu instantaneamente, esquecendo-se de Domivat, dos deuses e das histórias sobre a criação.

Abraçou-a com força.

- Tive saudades tuas - disse-lhe, sem conseguir evitar sorrir. - Fico contente por teres voltado, mas, por outro lado, as coisas aqui não melhoraram. Os deuses continuam a ser um perigo e, se a sua presença te continuar a afectar, como canalizadora que és, não estás segura aqui.

- Sim, mas não me importa. Não posso continuar a ver como arriscas a vida repetidamente e ficar a olhar, sem fazer nada.

- É isso o que os unicórnios fazem: ficar a olhar sem fazer nada. Victoria abanou a cabeça com energia.

- É provável - disse -, mas eu sou mais do que um unicórnio - recordou-lhe.

Jack sorriu.

- Shail vai ficar muito contente por te ver - disse, e então recordou que o feiticeiro tinha perdido a sua perna artificial de uma forma muito desagradável. Victoria leu a incerteza no seu olhar.

- Já estive com ele - tranquilizou-o. - Ele é outro dos motivos por que voltei. Acabei de lhe curar a ferida, mas está muito fraco. E quanto àquela perna...

Jack meneou a cabeça.

- Foi ideia de Ydeon e é mais do que óbvio que não devia ter-lhe ligado.

- Talvez não tenha sido assim tão má ideia, Jack. Vi aquilo, mas não é apenas uma coisa. Está parcialmente viva. Agora está tão fraca como Shail, mas creio que ambos formam já parte do mesmo ser. Parece-me... Hesitou um pouco e depois disse: - Parece-me que posso ajudá-los a ambos. É o mínimo que posso fazer por ele - acrescentou.

Jack olhou para ela, apreensivo, mas não disse nada. Procurou levantar-se, apoiando-se no ombro dela.

- Há muito para fazer - disse. - Tenho de voltar para junto de Shail e averiguar se Alexander conseguiu pôr as crianças a salvo. E depois há que voltar a reunir as pessoas importantes de Idhún. Não podem continuar a ignorar o que está a acontecer. Talvez todos juntos consigamos encontrar uma solução. Claro que - acrescentou de repente, olhando para Victoria com carinho - talvez isso possa esperar um pouco. Temos de celebrar este reencontro, não achas? - acrescentou, piscando-lhe um olho com malícia.

Victoria sorriu e respondeu-lhe com um beijo. Jack lembrou-se então de Christian.

- Onde deixaste o shek? - perguntou-lhe, brincalhão. - Achas que me vai atravessar com um dos seus olhares gélidos se te monopolizar um pouco?

Victoria ficou séria de repente.

- Voltámos juntos a Idhún, mas não ficou comigo - disse. - Jack, Christian voltou para junto de Gerde.

 

                                                                                Laura Gallego García  

 

                      

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