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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A HERANÇA DE ANA BOLENA / Philippa Gregory
A HERANÇA DE ANA BOLENA / Philippa Gregory

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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O dia está quente, o vento sopra sobre as planícies e os pântanos trazendo o fedor da peste. Com um tempo como este, se o meu marido ainda estivesse comigo, não estaríamos encurralados num lugar, a observar um amanhecer pesado como chumbo e um pôr do Sol de um vermelho carregado; estaríamos a viajar com a corte do rei, em progresso pelos bosques e pelas terras baixas de Hampshire e Sussex, as mais belas e mais ricas regiões rurais de toda a Inglaterra, cavalgando bem alto pelas estradas acidentadas e procurando o primeiro vislumbre do mar. Sairíamos para caçar todas as manhãs, almoçaríamos sob a abóbada espessa das árvores, ao meio-dia, e dançaríamos no grande salão de uma qualquer casa de campo, à noite, sob a luz amarelada das tochas tremeluzentes. Éramos íntimos das mais importantes famílias da terra, éramos os favoritos do Rei, parentes da Rainha. Éramos amados; éramos os Bolena, a mais bonita e mais sofisticada família da corte. Ninguém conhecia Jorge sem o desejar, ninguém conseguia resistir a Ana, todos me cortejavam como um passaporte para a atenção deles. Jorge era deslumbrante, tinha cabelo escuro, olhos escuros e era bonito, sempre montado nos mais belos cavalos, permanentemente ao lado da rainha. Ana estava no auge da sua beleza e inteligência, tão atraente como o mel escuro. E eu ia para todo o lado com eles.
Os dois costumavam montar juntos, correndo, lado a lado, como amantes, e eu conseguia ouvir os seus risos por cima do ruído dos cascos, enquanto passavam velozmente. Por vezes, quando os via juntos, tão ricos, tão jovens, tão belos, não sabia de qual dos dois mais gostava.
Toda a corte estava fascinada com os dois, aqueles olhares escuros e namoradeiros dos Bolena, o seu elevado padrão de vida: tão jogadores, tão amantes do risco; ambos tão fervorosos pela sua Reforma da Igreja, tão rápidos e inteligentes na argumentação, tão ousados nas suas leituras e ideias. Desde o rei à criada da cozinha, não havia uma única pessoa que não estivesse deslumbrada com aquele par. Ainda agora, três anos depois, não consigo acreditar que nunca mais os voltaremos a ver. Com certeza, um par tão jovem, tão radiante de vida, não pode simplesmente morrer. Na minha mente, no meu coração, eles continuam a cavalgar juntos, ainda jovens, ainda belos. E porque não haveria eu de desejar apaixonadamente que isto fosse verdade? Ainda só passaram três anos desde que os vi pela última vez; três anos, dois meses e nove dias, desde que os seus dedos desatentos tocaram os meus, e que ele sorriu e disse: “Bom dia, esposa, tenho de ir-me embora. Hoje, tenho tudo para fazer”. Era uma manhã de Maio e estávamos a preparar-nos para o torneio. Eu sabia que ele e a irmã estavam com problemas, mas não sabia o quanto.

 

 


 

 


Todos os dias nesta minha nova vida, caminho até à encruzilhada da aldeia, onde existe um sujo marco quilométrico da estrada para Londres. Destacando-se entre a lama e os líquenes, a inscrição diz: “Londres, 193 quilómetros”. É tão longe, fica a uma distância tão grande. Todos os dias, me inclino e lhe toco, como num talismã, e depois volto novamente para a casa do meu pai, que agora me parece tão pequena, a mim, que vivi nos maiores palácios do rei. Vivo da caridade do meu irmão, da boa-vontade da mulher dele, que não se preocupa nada comigo, de uma pensão de Thomas Cromwell, o agiota arrivista que é o novo grande amigo do rei. Sou uma vizinha pobre que vive à sombra da grande casa que em tempos foi minha, uma casa dos Bolena, uma das nossas muitas casas. Vivo tranquila e modestamente, como uma viúva sem casa própria e que nenhum homem deseja.

E isto porque sou uma viúva sem casa própria que nenhum homem deseja.

Uma mulher de quase trinta anos, com o rosto marcado pela desilusão, mãe de um filho ausente, uma viúva sem perspectivas de voltar a casar, a única

sobrevivente de uma família caída em desgraça, herdeira do escândalo.

Sonho que um dia esta sorte mude. Verei um mensageiro, vestido com a libré dos Howard, cavalgar por esta mesma estrada, trazendo uma carta para mim, uma carta do Duque de Norfolk, chamando-me novamente para a corte, dizendo-me que voltou a haver trabalho para mim: uma rainha para servir, segredos para murmurar, conspirações a planear, a interminável vida de duplicidade de uma cortesã, em que ele é perito, e eu sou a sua melhor discípula. Sonho que o mundo volte a mudar, que fique às avessas, de modo que fiquemos, de novo, no topo, e que eu recupere a minha posição. Salvei o Duque uma vez, quando nos encontrávamos no maior dos perigos, e em contrapartida, ele salvou-me a mim.

O nosso maior desgosto foi não termos podido salvar os dois, aqueles que agora cavalgam, se riem e dançam apenas nos meus sonhos. Toco mais uma vez no marco quilométrico, e imagino que amanhã vá chegar o mensageiro. Estender-me-á um papel, selado com o brasão dos Howard, profundo e brilhante, no lacre vermelho.

- Uma mensagem para Jane Bolena, Viscondessa de Rochford - dirá ele, olhando para a minha túnica simples, para a sujidade na bainha do meu vestido e as minhas mãos manchadas da poeira do marco quilométrico da estrada para Londres.

- Eu recebo-a - direi. - Sou a própria. Há uma eternidade que estou à espera - e recebê-la-ei nas minhas mãos sujas: a minha herança.

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Ana, Duquesa de Clèves, Duren, Clèves, Julho de 1539

Quase não me atrevo a respirar. Estou imóvel como uma pedra, com um sorriso rasgado no rosto, os olhos bem abertos, fixando ousadamente o artista, parecendo, espero, fiável, o meu olhar franco indicando honestidade, mas não imodéstia. As minhas jóias emprestadas foram o melhor que a minha mãe conseguiu arranjar, destinadas a mostrar a um observador mais crítico que não somos nenhuns indigentes, apesar de o meu irmão não ir oferecer nenhum dote para pagar a um marido. O Rei terá de me escolher pelo meu aspecto agradável e

pelas minhas ligações políticas. Não tenho mais nada para oferecer. Mas ele tem de me escolher. Estou absolutamente determinada a que ele me escolha. Para mim, sair daqui é tudo.

Do outro lado da sala, não olhando propositadamente para o meu retrato, que ganha vida sob os movimentos rápidos e largos do lápis, está a minha irmã, à espera da sua vez. Deus me perdoe, mas eu rezo para que o rei não a escolha a ela. Está tão ansiosa quanto eu por uma oportunidade para abandonar Clèves, e para ascender a uma tamanha grandeza como a do trono da Inglaterra; mas ela não precisa tanto disso como eu. Nenhuma rapariga no mundo precisa disso tanto como eu.

Não que eu vá proferir sequer uma palavra contra o meu irmão, nem agora nem nos anos que virão. Nunca direi nada contra ele. É um filho modelo para a minha mãe, e um digno sucessor do Ducado de Clèves. Nos últimos meses da infeliz vida do meu pai, quando ele estava claramente tão insano como qualquer louco, foi o meu irmão que o obrigou a regressar, à força, ao quarto, trancando a porta do lado de fora, e que anunciou publicamente que ele tinha uma febre. Foi o meu irmão que proibiu a minha mãe de chamar os médicos ou até mesmo os pregadores para expulsarem os demónios que ocupavam o cérebro delirante do meu pobre pai. Foi o meu irmão, astuto - com a astúcia de um boi, lenta e maldosa - que afirmou que era preferível alegarmos que o meu pai era um 8

alcoólico do que permitir que a mancha da loucura diminuísse a reputação da nossa família. Não abriremos caminho no mundo se houver uma suspeita em relação ao nosso sangue. Mas se difamarmos o nosso próprio pai, se lhe chamarmos bêbedo, tendo-lhe negado a ajuda de que necessitava tão desesperadamente, então, ainda poderemos ascender. Deste modo, farei um bom casamento. Desta forma, a minha irmã irá fazer um bom casamento. Assim, o meu irmão poderá fazer um bom casamento e o futuro da nossa casa ficará assegurado, ainda que o meu pai tenha combatido os seus demónios sozinho, e sem ajuda.

Isto tudo enquanto ouvia o meu pai chorar, na porta do seu quarto, prometendo que se iria comportar, e perguntado se o podíamos deixar sair.

Ouvindo o meu irmão responder, tão decidida e firmemente, que ele não podia sair, questionei-me se, na verdade, não estaríamos a proceder muito mal, e se o

meu irmão já não estaria tão louco quanto o meu pai, bem como a minha mãe, e se a única pessoa sã nesta casa não seria eu, uma vez que apenas eu estava boquiaberta de pavor pelo que estávamos a fazer. Mas também não revelei a ninguém esse pensamento.

Desde a minha mais tenra infância servi sob a disciplina do meu irmão. Ele sempre esteve destinado a ser duque destas terras abrigadas entre os rios Mosela e Reno. Um património suficientemente reduzido; mas tão bem localizado que todos os poderes da Europa procuram a nossa amizade: a França, os Habsburgo espanhóis e austríacos, o Sacro-Imperador Romano, o próprio papa, e agora Henrique da Inglaterra. Clèves é o buraco da fechadura para o centro da Europa, e o Duque de Clèves é a chave. Não é de admirar que o meu irmão se considere tão importante, tem razão em atribuir-se tamanha importância; só eu, por vezes, me pergunto se ele não será, na realidade, um principelho insignificante, sentado abaixo dos superiores, no grandioso banquete da Cristandade. Mas não digo a ninguém que penso deste modo, nem sequer à minha irmã Amélia. Não confio em ninguém com muita facilidade.

Ele dirige a minha mãe pelo direito da grandeza da sua posição no mundo, e ela é o seu primeiro-ministro, o mordomo, o papa. Com a bênção dela, o meu irmão dá ordens à minha irmã e a mim, porque ele é o filho e herdeiro, e nós somos fardos. Ele é um homem jovem com um futuro de poder e de oportunidades e nós somos mulheres jovens destinadas a sermos mulheres e mães, na melhor das hipóteses; ou solteironas-parasitas na pior. A minha irmã mais velha, Sybilla, já fugiu; saiu de casa, assim que pôde, mal o casamento dela pôde ser arranjado, agora está livre da tirania da 9


atenção fraternal. Eu tenho de ser a próxima. A seguir, tenho de ser eu. Tenho de ser libertada. Não podem ser tão despropositadamente cruéis comigo ao ponto de mandarem Amélia no meu lugar. A oportunidade dela surgirá, o momento dela chegará. Mas eu sou a irmã seguinte na linha, tenho de ser eu. Não consigo imaginar sequer porque propuseram a Amélia, a não ser que fosse para me assustar, de modo a que me tornasse mais subserviente. Se era esse o objectivo, funcionou. Estou aterrorizada por poder ser substituída por uma rapariga mais nova, e o meu irmão deixou escapá-lo. Na verdade, ele ignora os seus melhores

interesses, para me atormentar.

O meu irmão é um duque sem importância, em todos os sentidos do termo.

Quando o meu pai morreu, ainda a pedir, sussurrando, que alguém lhe abrisse a porta, o meu irmão assumiu as funções dele, mas nunca as conseguiu exercer plenamente. O meu pai era um homem com mais mundo, estivera nas cortes da França e da Espanha, viajara pela Europa. O meu irmão, tendo ficado em casa como ficara, pensa que o mundo não lhe pode mostrar nada mais importante do que o seu próprio ducado. Está convencido de que não existe nenhum livro mais importante do que a Bíblia, nenhuma igreja melhor do que aquela que tem as paredes despidas, nenhum guia melhor do que a sua própria consciência. Com apenas uma pequena casa para governar, as suas ordens incidem pesadamente num número bastante diminuto de criados. Com apenas uma pequena herança, está alerta para as necessidades da sua própria dignidade, e eu, que não tenho dignidade, sinto todo o peso da dele. Quando está embriagado ou feliz, chamame o mais rebelde dos seus súbditos e faz-me festas com uma mão pesada. Quando se encontra sóbrio ou irritado, acusa-me de ser uma rapariga que não sabe qual é o seu lugar e ameaça trancar-me no meu quarto.

Isto não é uma ameaça vã em Clèves actualmente. Este é o homem que trancou o próprio pai. Julgo que é bastante capaz de me aprisionar. E se eu gritasse atrás da porta, alguém me deixaria sair?

O mestre Holbein indica-me com um aceno brusco de cabeça que posso abandonar o meu lugar e que a minha irmã pode ocupá-lo. Não sou autorizada a olhar para o meu retrato. Nenhuma de nós pode ver o que ele manda para a Inglaterra, para o rei. Não está aqui para nos embelezar, nem para nos retratar como beldades. Está aqui para esboçar uma representação o mais exacta possível de que o seu génio é capaz, para que o Rei da Inglaterra possa ver qual de 10

nós prefere, como se fôssemos éguas da Flandres que vão ser enviadas para o garanhão inglês, para procriação.

O mestre Holbein, que se recosta na cadeira quando a minha irmã se aproxima apressadamente, pega numa folha nova de papel, analisa a ponta do seu lápis de pastel. O mestre Holbein já nos viu a todas, às candidatas ao lugar de rainha da Inglaterra. Pintou Christina de Milão e Louise de Guise, Marie de Vendôme e

Anne de Guise. Por isso, não sou a primeira jovem cujo nariz ele mediu com o lápis na mão do seu braço estendido e com um olho fechado. Tanto quanto sei, haverá outra rapariga depois da minha irmã Amélia. Ele pode fazer uma curta paragem na França, na sua viagem de regresso à Inglaterra, para olhar, de semblante carregado, para outra rapariga de sorriso afectado, capturar o seu semblante e delinear os seus defeitos. Não tenho de me sentir diminuída, como uma peça de fustão aberta para que o seu padrão possa ser apreciado, por este processo.

- Não gostais de ser retratada? Sois tímida? - perguntou-me ele rudemente, ao ver o meu rosto desvanecer-se, quando me olhou como a um pedaço de carne num escorredor da louça de um cozinheiro.

Não lhe revelei o que sentia. Não há necessidade nenhuma de oferecer informações a um espião.

- Quero casar-me com ele - foi tudo o que disse. Ele ergueu uma sobrancelha.

- Eu só pinto os retratos - observou ele. - Mais vale anunciardes o vosso desejo aos enviados dele, os embaixadores Nicholas Wotton e Richard Beard.

Não vos adianta nada dizermo a mim.

Sentei-me no banco junto da janela, cheia de calor, dentro das minhas melhores roupas, constringida por um peitilho tão apertado que haviam sido necessárias duas criadas a puxar os atilhos para o conseguir prender, e terei de ser libertada quando o retrato estiver terminado. Vejo Amélia inclinar a cabeça para um lado, envaidecer-se e sorrir, atiradiça, para o mestre Holbein. Peço a Deus que ele não goste dela. Peço a Deus que ele não a pinte como ela é, mais roliça, mais bonita do que eu. Para ela não é verdadeiramente importante se vai ou não para a Inglaterra. Oh! Seria um triunfo para ela, um salto, passar de filha mais nova de um pobre ducado a rainha da Inglaterra, um voo que a ergueria, bem como à nossa família e a toda a nação de Clèves. Mas ela não precisa de escapar como eu preciso. Para ela não se trata de uma questão de necessidade, como é para mim. Quase posso dizer: de desespero.

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Concordei não olhar para o retrato do mestre Holbein e, por isso, não olho.

Uma coisa é certa para mim: se dou a minha palavra em relação a algo, mantenho-a, apesar de ser apenas uma menina. Em alternativa, olho para fora da janela, para o pátio do nosso castelo. As trombetas de caça soam na floresta, lá fora, o grande portão com barras abre-se, oscilando, os caçadores entram, com o meu irmão à frente. Ele ergue os olhos para a janela e vê-me, antes de eu me conseguir baixar e recuar. Percebo logo que o irritei. Irá pensar que eu não devia estar à janela, onde posso ser vista por qualquer pessoa que se encontre no pátio do castelo. Apesar de me ter afastado demasiado depressa para que ele pudesse ver-me com algum detalhe, tenho a certeza de que sabe que tenho o peitilho bastante apertado e que o decote quadrado do meu vestido é acentuado, ainda que um véu de musselina me tape até ao queixo. Estremeço com o olhar carrancudo que ele lançou para a janela. Agora está descontente comigo, mas não o dirá. Não se queixará do vestido que eu posso explicar, queixar-se-á de outro aspecto qualquer, mas ainda não posso saber do que será. O que posso ter como certo é que nalgum momento, hoje ou amanhã, a minha mãe vai chamar-me ao seu quarto, e ele estará de pé, atrás da cadeira dela, ou de costas voltadas, ou apenas a passar pela porta, como se não tivesse nada que ver com ele, como se lhe fosse bastante indiferente, e ela dir-me-á, num tom de profunda desaprovação:

- Ana, soube que vós... - e será algo que aconteceu vários dias antes, que eu já esqueci, mas de que ele terá tomado conhecimento e guardado até essa altura, para eu ser apanhada em falta, e talvez até mesmo castigada, e ele não dirá uma palavra sobre ter-me visto, sentada junto da janela, bonita, que é a minha verdadeira ofensa contra ele.

Quando eu era uma menininha, o meu pai costumava chamar-me a sua falke, o seu falcão branco, o seu falcão-gerifalte, uma ave de rapina das neves frias do Norte. Quando me via com os meus livros ou com a minha costura, ria-se e dizia: “Oh, meu falcãozinho, estais em clausura? Vinde e eu libertar-vos-ei!” e nem sequer a minha mãe me podia impedir de correr da sala de aulas para junto dele.

Agora gostava, gostava tanto agora, que ele me pudesse voltar a chamar.

Sei que a minha mãe pensa que eu sou uma tonta, e que o meu irmão pensa pior; mas se eu fosse rainha da Inglaterra, o Rei podia confiar-me a minha posição, não aderiria a modas francesas nem a danças italianas. Poderiam confiar em mim, o Rei poderia confiar-me a sua honra. Sei o quão importante é a honra

de um homem, e

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desejo apenas ser uma boa rapariga, uma boa rainha. Mas também acredito que, por muito severo que seja o Rei da Inglaterra, ser-me- ia permitido sentar no banco junto da janela do meu próprio castelo. O que quer que digam de Henrique da Inglaterra, creio que mo diria sinceramente, se eu o tivesse ofendido, e não ordenaria à minha mãe que me espancasse por qualquer outro motivo.

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Catarina Howard, Norfolk House, Lambeth, Julho de 1539

Vamos lá ver, o que é que eu tenho?

Tenho uma pequena corrente de ouro que herdei da minha mãe, há muito falecida, e que guardo na minha caixa de jóias, lamentavelmente vazia, à excepção desta única corrente; mas estou certa de que terei mais. Possuo três vestidos, um deles, novo. Tenho renda francesa que me foi enviada pelo meu pai, de Calais. Tenho meia dúzia de fitas minhas. E, mais do que qualquer outra coisa, tenho-me a mim. Tenho-me a mim, gloriosa! Hoje faço catorze anos, imaginem! Catorze! Catorze anos, jovem, nascida no seio da nobreza, embora, tragicamente, não seja rica, mas apaixonada, maravilhosamente apaixonada. A minha avó, a Duquesa, oferecer-me-á um presente pelo meu aniversário, sei que o fará. Sou a favorita dela e ela gosta que eu me apresente bem. Talvez seda para um vestido, talvez dinheiro para eu comprar renda. As minhas amigas, dos aposentos das criadas, irão organizar uma festa em minha honra, esta noite, à hora em que seria suposto estarmos a dormir; os rapazes baterão à porta, produzindo o sinal secreto, e nós correremos para os deixar entrar e eu gritarei

“Oh, não!” como se quisesse que só estivessem presentes raparigas, como se não estivesse apaixonada, loucamente apaixonada, por Francis Dereham. Como se não tivesse passado o dia inteiro apenas a desejar que chegasse esta noite, em que o vou ver. Vê-lo-ei dentro de cinco horas. Não! Acabei de olhar para o precioso relógio francês da minha avó. Quatro horas e quarenta e oito minutos.

Quarenta e sete minutos.

Quarenta e seis. Estou verdadeiramente espantada pela forma como lhe sou

dedicada, que me leva a fixar um relógio, contando os segundos que faltam até estarmos juntos. Este deve ser o mais apaixonado dos amores, o mais dedicado, e eu devo ser uma rapariga de uma sensibilidade extraordinariamente invulgar para experimentar um sentimento tão profundo.

Quarenta e cinco; mas é terrivelmente aborrecido, limitar-me a esperar, agora.

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É evidente que não lhe revelei os meus sentimentos. Morreria de embaraço, se eu própria tivesse de lho dizer. De qualquer forma, penso que posso morrer, morrer de amor por ele. Não divulguei a ninguém, à excepção da minha querida amiga Agnes Restwold, e obriguei-a a jurar segredo sob pena de morte, sob pena de uma morte como traidora. Ela afirma que, mesmo que fosse enforcada, arrastada e esquartejada, nunca revelaria a ninguém o facto de eu estar apaixonada. Diz que mais depressa pousaria a cabeça no cepo, como a minha prima, a Rainha Ana, do que trairia os meus segredos. Alega que nem que a estirassem, no potro, falaria. Também contei a Margaret Morton e ela diz que nem a própria morte a faria falar, nem que a dependurassem sobre o fosso dos ursos. Defende que poderiam queimá-la na fogueira e nem assim ela falaria. Isto é bom, porque significa que uma delas lho dirá, seguramente, antes de ele entrar na sala esta noite, e assim irá saber que gosto dele.

Já o conheço há vários meses, metade de uma vida. A princípio, limitava-me a olhá-lo, mas agora ele sorri e cumprimenta-me. Uma vez chamou-me pelo meu nome. Vem, com todos os jovens da corte, visitar-nos nos nossos aposentos, e julga estar apaixonado por Joan Bulmer, que tem olhos de sapo e para quem, se não fosse tão dada nos seus favores, nenhum homem olharia duas vezes. Mas ela é livre, muito livre, na verdade; e, por isso, é para mim que ele não olha duas vezes. Não é justo. É tão injusto. Ela é quase dez anos mais velha do que eu e é casada, e por isso sabe como seduzir um homem, enquanto eu ainda tenho muito que aprender. Dereham também tem mais de vinte anos. Todos me vêem como uma criança; mas eu não sou uma criança, e irei mostrar-lhes. Tenho catorze anos, estou pronta para o amor. Estou pronta para ter um amante, e estou tão apaixonada por Francis Dereham que morrerei se não o vir já. Quatro horas e quarenta minutos.

Mas agora, a partir de hoje, tudo tem de ser diferente. Agora que tenho catorze anos, de certeza que tudo vai mudar. Tem de ser, sei-o. Usarei o meu toucado francês novo e direi a Francis Dereham que tenho catorze anos e ele ver-me-á como sou verdadeiramente: já uma mulher, uma mulher com alguma experiência, uma mulher crescida; e depois veremos quanto tempo fica com aquela cara de sapo quando pode atravessar a sala e deitar-se na minha cama.

Ele não é o meu primeiro amor, é verdade; mas nunca senti nada semelhante por Henry Manox e, se ele afirma que senti, é um Instrumento de tortura medieval que consistia numa estrutura onde se procedia ao estiramento do corpo. (N. da T.)

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mentiroso. Henry Manox estava bastante bem para mim quando eu era apenas uma rapariga que vivia no campo, uma criança, na realidade, que aprendia a tocar espineta e sem saber nada de beijos e carícias. Ora, quando ele me beijou a primeira vez, eu nem sequer gostei muito, e supliquei-lhe que parasse, e quando ele pôs a mão pela minha saia acima, fiquei tão chocada que gritei alto e chorei.

Tinha apenas onze anos, não se podia esperar que conhecesse os prazeres de uma mulher. Mas agora sei tudo acerca desse assunto. Três anos nos aposentos das criadas ensinaram-me todas as pequenas artimanhas e jogos que precisava de conhecer. Sei o que um homem quer, e sei como o seduzir, e também sei quando parar.

A minha reputação é o meu dote - a minha avó, aquela gata velha e azeda, chamaria a atenção para o facto de eu não ter mais nenhum - e ninguém jamais dirá que Catarina Howard não sabe o que lhe é devido e à sua família. Agora sou uma mulher, não sou uma criança. Henry Madox queria ser meu amante quando eu era uma criança e vivia no campo, quando eu não sabia praticamente nada, quando nunca vira ninguém, ou de qualquer forma, ninguém relevante. Eu também teria permitido que me possuísse, depois de ele me ter chantageado e perseguido ao longo de várias semanas, mas, no final, foi ele quem se deteve, com receio de ser apanhado. As pessoas teriam ficado a pensar mal de nós, uma vez que ele tinha mais de vinte anos e eu onze. íamos esperar até eu ter treze.

Mas agora vivo em Norfolk House, em Lambeth, já não estou enterrada em Sussex, e o próprio Rei pode passar a cavalo à minha porta num dia qualquer, o arcebispo é o nosso vizinho do lado, o meu tio Thomas Howard, o Duque de

Norfolk, visita-nos com o seu longo séquito e, uma vez, lembrou-se do meu nome. Já estou muito para além de Henry Manox neste momento. Já não sou uma rapariga do campo que pode ser obrigada a beijá-lo e forçada a fazer mais do que isso, agora ascendi bastante mais alto, para me sujeitar a essas coisas. Sei o que acontece num quarto de dormir, sou uma rapariga Howard, tenho um futuro maravilhoso à minha frente.

Só que - e isto é uma tragédia tão grande que realmente não sei como suportá-

la - embora tenha idade para frequentar a corte, e como rapariga Howard, o meu lugar natural fosse nos aposentos na rainha, não há rainha! É um desastre para mim. Não há mesmo rainha, a Rainha Jane morreu depois de dar à luz o seu bebé, o que a mim, na verdade, me parece pura preguiça, e por isso, na corte, não precisam de damas de companhia. Esta situação representa o maior dos azares para mim, creio que jamais alguma rapariga foi tão azarada como eu: fazer catorze anos em Londres, no preciso

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momento em que a rainha tem de morrer, e toda a corte mergulha no luto por vários anos. Por vezes, sinto que o mundo inteiro conspira contra mim, como se as pessoas quisessem que eu vivesse e morresse como uma velha solteirona.

De que vale ser bonita, se nenhum nobre me vai conhecer um dia? Como é que alguém pode perceber quão encantadora posso ser, se ninguém sequer me vê? Se não fosse pelo meu amor, o meu doce e belo amor, Francis, Francis, Francis, eu desesperaria completamente e lançar-me-ia ao Tamisa antes de envelhecer, um dia que fosse.

Mas, graças a Deus, pelo menos tenho Francis para me dar esperança, e o mundo para seduzir. E Deus, se Ele sabe verdadeiramente tudo, só me pode ter feito tão atraente para que eu tivesse um grande futuro. Deve ter um plano para mim? Com catorze anos e perfeita? Seguramente que ele, na Sua sabedoria, não me vai desperdiçar aqui em Lambeth?

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Jane Bolena, Blickling Hall, Norfolk, Novembro de 1539

Chegou por fim, à medida que os dias se vão tornando mais escuros e eu começo a temer mais um Inverno no campo: a carta que eu queria. Sinto-me

como se tivesse estado à espera dela toda a vida. A minha vida pode começar de novo. Posso regressar à luz das velas de qualidade, ao calor das brasas do carvão do mar, a um círculo de amigos e rivais, à música e boa comida e às danças. Sou chamada à corte, graças a Deus, e irei servir a nova rainha. O Duque, meu patrono e meu mentor, conseguiu-me, mais uma vez, um lugar nos aposentos da rainha. Servirei a nova rainha da Inglaterra. Servirei a Rainha Ana da Inglaterra.

O nome soa como um toque de alarme: Rainha Ana, outra vez uma Rainha Ana. Seguramente, os conselheiros que aconselharam o casamento devem ter tido um momento em que ouviram as palavras Rainha Ana e sentiram um arrepio de terror? Será que se recordam de quão azarada foi a primeira Ana para todos nós? A infelicidade que trouxe ao Rei, a ruína da família dela, e a minha própria perda? A minha perda intolerável? Mas não, vejo que uma rainha morta é esquecida com celeridade. Quando esta nova Rainha Ana chegar, a outra Rainha Ana, minha irmã, minha amiga adorada, minha atormentadora, não será mais do que uma ténue recordação - a minha recordação. Por vezes, sinto que sou a única no mundo que se recorda. Por vezes parece-me que sou a única no mundo que observa e se questiona, a única amaldiçoada com a memória.

Continuo a sonhar com ela frequentemente. Sonho que ela é outra vez jovem e que se ri, sem se preocupar com nada que não seja o seu próprio divertimento, usando o toucado puxado para trás, afastado do rosto, para mostrar o seu cabelo escuro, as suas mangas elegantemente longas, com estilo, o seu sotaque, sempre tão exageradamente francês. O “B” de pérolas que trazia ao pescoço, proclamando que a Rainha da Inglaterra é uma Bolena, tal como eu. Sonho que nos encontramos num jardim cheio de sol, que Jorge está feliz, que tenho a mão no braço dele, e Ana está a sorrir para ambos.

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Sonho que todos vamos ser mais ricos do que qualquer pessoa alguma vez poderia imaginar, teremos casas, castelos e terras. Abadias serão demolidas para obtermos pedra para construirmos as nossas casas, crucifixos serão fundidos para serem transformados nas nossas jóias. Retiraremos peixe dos lagos da abadia, os nossos cães de caça vaguearão por todas as terras da igreja. Abades e priores abandonarão as suas casas em nosso favor, os próprios altares perderão a sua santidade e honrar-nos-ão a nós. O país será remodelado à imagem da nossa glória, do nosso enriquecimento e divertimento. Acordo sempre nesse momento, acordo e deixo-me ficar deitada, a tremer. É um sonho tão glorioso; mas acordo

bastante gelada de pavor.

Agora chega de sonhar! Mais uma vez irei estar na corte. Mais uma vez, irei ser amiga íntima da Rainha, uma companhia constante nos seus aposentos. Verei tudo, saberei tudo. Estarei, de novo, mesmo no centro da vida, serei a nova dama de companhia da Rainha Ana, servindo-a com tanta lealdade e tão bem como servi as outras três rainhas do rei Henrique. Se puder ascender e voltar a casar sem recear os fantasmas, então, fá-lo-ei.

E servirei os meus parentes, o meu tio por casamento, o Duque de Norfolk, Thomas Howard, o homem mais importante na Inglaterra, a seguir ao próprio Rei. Um soldado, conhecido pela rapidez das suas marchas e a crueldade abrupta dos seus ataques. Um cortesão, que nunca se deixa vergar por nenhum vento, mas que serve sempre fielmente o seu rei, a sua própria família e os seus próprios interesses. Um nobre com tanto sangue real na família que a sua reivindicação do trono seria tão válida como a de qualquer Tudor. É meu parente, meu patrono e meu senhor. Salvou-me de uma morte por traição uma vez, disseme o que deveria fazer e como fazê-lo. Levou-me quando hesitei e conduziu-me para longe da sombra da Torre, para um lugar seguro. Desde então, jurei-lhe lealdade para a vida inteira. Ele sabe que sou sua. Mais uma vez, tem trabalho para mim, e eu honrarei a minha dívida para com ele.

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Ana, Cidade de Clèves, Novembro de 1539

Consegui! Vou sê-lo! Irei ser Rainha da Inglaterra. Abandonei a minha peia, como um falcão livre, e irei voar para longe. Amélia levou o lenço aos olhos porque está constipada e está a tentar fazer de conta que chora pelas notícias da minha partida. É uma mentirosa. Não vai ficar nada triste por me ver ir embora.

A vida dela como a única duquesa que fica em Clèves será bastante melhor do que como minha irmã mais nova. E quando eu estiver casada - e que casamento!

- as hipóteses de ela conseguir uma boa aliança melhoram bastante. A minha mãe também não está com um ar feliz, mas a ansiedade dela é autêntica. Há vários meses que anda tensa. Gostava de poder pensar que é por me ir perder, mas não é. Está terrivelmente preocupada com a despesa que esta viagem e os vestidos para o meu casamento implicam para o tesouro do meu irmão. Ela é chanceler do Tesouro, assim como governanta do meu irmão. Mesmo com a Inglaterra a renunciar à exigência do dote, este casamento custa ao país mais do

que a minha mãe deseja pagar.

- Mesmo que os trombeteiros toquem de graça, têm de ser alimentados - diz ela irritada, como se os trombeteiros fossem um capricho exótico e dispendioso em que eu, na minha vaidade, tivesse insistido, e não um empréstimo da minha irmã Sybilla, que me escreveu, com toda a franqueza, que não é nada bom para a sua imagem, na Saxónia, se eu partir para ir ter com um dos maiores reis da Europa numa simples carruagem com dois guardas.

O meu irmão diz muito pouco. Este é um grande triunfo para ele e um grande passo no mundo para o seu ducado. Faz parte de uma liga com outros príncipes protestantes e duques da Alemanha e esperam que este casamento convença a Inglaterra a aderir à sua aliança. Se todos os poderes protestantes da Europa estivessem unidos, poderiam atacar a França ou os territórios dos Habsburgo e espalhar a palavra da Reforma. Poderiam chegar até à própria Roma e refrear o poder do papa na sua própria cidade. Quem sabe que 20

glória poderá advir para Deus, se pelo menos eu conseguir ser uma boa mulher para um marido que nunca foi satisfeito?

- Tendes de cumprir o vosso dever para com Deus, quando servirdes o vosso marido - diz-me o meu irmão num tom pomposo.

Espero para ver o que ele quer dizer exactamente com aquelas palavras.

- Ele adopta a religião das esposas - diz ele. - Quando estava casado com uma princesa da Espanha, foi nomeado Defensor da Fé pelo próprio papa. Quando se casou com Lady Ana Bolena, ela afastou-o da superstição para a luz da Reforma.

Com a Rainha Jane, tor-nou-se novamente católico e, se ela não tivesse morrido, de certeza que se teria reconciliado com o papa. Agora, embora não esteja em bons termos com o papa, o seu país é praticamente católico. Tornar-se-ia Católico Romano, de novo, num instante. Mas se o orientardes, como deveis fazer, declarar-se-á um rei e um líder protestante e unir-se-á a nós.

- Tentarei fazer o meu melhor - disse eu, insegura. - Mas só tenho vinte e quatro anos. Ele é um homem de quarenta e oito e é rei desde jovem. Pode não me dar ouvidos.

- Eu sei que cumprireis o vosso dever - o meu irmão tenta reconfortar-se, mas quando se aproxima o momento de eu partir, torna-se cada vez mais duvidoso.

- Não temeis pela segurança dela? - ouço a minha mãe murmurar-lhe quando ele se senta, ao final do dia, a beber o seu vinho e a olhar fixamente para a lareira como se quisesse prever o futuro sem mim.

- Se ela se comportar, estará em segurança. Mas Deus sabe que ele é um rei que já percebeu que pode fazer o que quiser nas suas próprias terras.

- Quereis dizer, às mulheres dele? - pergunta ela num murmúrio.

Ele encolhe os ombros, pouco à vontade.

- Ela nunca lhe daria motivos para desconfiar dela.

- Ela tem de ser avisada. Ele deterá o poder de vida ou de morte sobre ela.

Poderá fazer com ela o que lhe aprouver. Controlá-la-á totalmente.

Eu estou escondida na sombra, ao fundo da sala, e esta observação reveladora do meu irmão faz-me sorrir. A partir daquela frase, percebo finalmente o que anda a preocupá-lo há todos estes meses. Vai sentir a minha falta. Vai sentir a minha falta como um senhor sente a falta de um cão preguiçoso quando, por fim, o afoga, num acesso de mau-humor. Está tão habituado a pressionar-me, 21

A apontar-me erros e a perturbar-me diariamente numa dezena de pequenas formas, que agora, quando pensa que outro homem me irá dar ordens, isso atormenta-o. Se alguma vez me tivesse amado, chamaria a isto ciúme; e seria fácil de compreender. Mas não é amor o que ele sente por mim. É mais como um ressentimento constante, que se tornou de tal modo um hábito para ele que o facto de me remover, como um dente que dói, não lhe traz qualquer alívio.

- Pelo menos ela ser-nos-á de alguma utilidade na Inglaterra - diz ele mesquinhamente. - Ela aqui é abaixo de inútil. Tem de o convencer a adoptar a religião reformada. Tem de fazer com que ele se declare luterano. Desde que ela não estrague tudo.

- Como é que ela poderia estragar tudo? - responde a minha mãe. - Ela só tem

de ter um filho dele. Para isso, não é preciso muito. A saúde dela é boa e as regras regulares, e com vinte e quatro anos, está numa boa idade para ter um filho - fica a pensar por um instante. - Ele vai desejá-la - afirma ela com sinceridade. - É bem feita e comporta-se bem, tenho tratado disso. Ele é um homem dado à luxúria e a apaixonar-se à primeira vista. Provavelmente, desfrutará de um grande prazer carnal com ela, nem que seja por ela ser uma novidade para ele, e virgem.

O meu irmão salta da cadeira.

- Que vergonha! - diz ele, com as bochechas a arder por mais do que o calor da lareira. Todos param de falar ao ouvi-lo levantar a voz, depois, voltam-se muito depressa, tentando não ficar a olhar. Se o mau humor dele aumentar, é melhor eu desaparecer.

- Filho, não estou a dizer nada de mal - diz a mãe, célere a aplacá-lo. - Só queria dizer que é provável que ela cumpra o seu dever de lhe agradar...

- Não suporto a ideia de ela... - interrompe-se. - Não tenho estômago para isso! Ela não deve andar atrás dele! - sussurra ele. - Tendes de lho dizer. Não deve fazer nada que não seja digno de uma donzela. Não deve fazer nada de lascivo. Tendes de avisá-la de que ela tem de ser a minha irmã, vossa filha, antes de ser uma esposa. Deve comportar-se com frieza, com dignidade. Não deve ser a prostituta dele, não deve representar o papel de uma desavergonhada e ambiciosa...

- Não, não - diz a minha mãe docemente. - Não, claro que não. Ela não é assim, William, meu senhor, querido filho. Sabeis que ela recebeu uma educação severa, no temor a Deus e no respeito pelos seus superiores.

- Bem, dizei-lho novamente - grita ele. Nada o acalmará, seria melhor que eu partisse. Ele ficaria fora de si? se soubesse que o vi 22

neste estado. Ponho a mão atrás de mim e sinto o calor reconfortante da tapeçaria espessa que cobre a parede posterior. Tacteio ao longo dela, o meu vestido escuro é quase invisível nas sombras da sala.

- Eu vi-a, quando aquele pintor esteve cá - diz ele, numa voz grossa. -

Aperaltando-se com a sua vaidade, expondo-se. Com o vestido muito... muito...

apertado. Os seios... à mostra... tentando parecer desejável. Ela é capaz de cometer pecados, Mãe. Está disposta a... está disposta a... O temperamento dela está naturalmente repleto de... - ele não é capaz de o dizer.

- Não, não - diz a mãe gentilmente. - Ela só quer ser-nos útil.

- ... luxúria.

A palavra fica destacada, cai no silêncio da sala como se pudesse pertencer a alguém, como se pudesse pertencer ao meu irmão e não a mim.

Agora estou à entrada da porta, a minha mão levanta lentamente o trinco, o meu outro dedo abafa o ruído deste. Três das mulheres da corte levantam-se casualmente e ficam de pé, à minha frente, ocultando a minha saída daqueles dois que se encontram junto da lareira. As portas abrem-se de par em par nas suas dobradiças bem oleadas e não produzem qualquer som. A corrente de ar fria faz tremeluzir as velas junto da lareira, mas o meu irmão e a minha mãe estão virados um para o outro, absortos no horror daquela palavra, e não se voltam.

- Estais seguro? - ouço-a perguntar-lhe.

Fecho a porta antes de o ouvir responder, e dirijo-me apressada e silenciosamente para os nossos aposentos, onde as criadas estão sentadas, junto da lareira, com a minha irmã, a jogar às cartas. Recolhem-nas apressadamente da mesa quando abro a porta de rompante e entro e riem-se quando vêem que sou eu, aliviadas por não terem sido apanhadas a jogar: um prazer proibido às solteironas, nas terras do meu irmão.

- Vou deitar-me, estou com dores de cabeça, não quero ser incomodada - digo abruptamente.

Amélia assente com um sinal da cabeça.

- Podeis tentar - diz astutamente. - O que haveis feito desta vez?

- Nada - respondo. - Como sempre, nada.

Dirijo-me apressadamente para os aposentos privados e atiro as roupas para cima da arca que se encontra aos pés da cama, salto para a cama, de combinação,

fechando as cortinas em volta, puxando os cobertores para cima. Tremo sob a frieza do linho, e aguardo a ordem que sei que irá chegar.

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Passados apenas alguns instantes, Amélia abre a porta.

- Deveis dirigir-vos aos aposentos da vossa mãe diz triunfantemente.

- Dizei-lhe que estou doente. Devíeis ter-lhe dito que me havia deitado.

- Eu disse. Ela disse que tendes de vos levantar, vestir uma capa e ir. O que haveis feito desta vez?

Eu franzo o sobrolho ao seu rosto radiante.

- Nada. Como sempre. Não fiz nada - retiro a minha capa do cabide atrás da porta e aperto as fitas, do queixo até aos joelhos.

- Haveis-lhe respondido? - pergunta Amélia alegremente. - Porque discutis sempre com ele?

Saio sem lhe responder, atravesso a sala em silêncio e desço as escadas até aos aposentos da minha mãe, na mesma torre, mas no andar inferior ao nosso.

A princípio, ela parece estar sozinha na sala, mas depois vejo a porta semifechada para os aposentos privados e não preciso de o ouvir nem de o ver.

Simplesmente sei que ele lá está, a observar.

Ela está de costas para mim, quando entro no quarto, e quando se vira, vejo que tem a vara de vidoeiro na mão e o rosto grave.

- Eu não fiz nada - digo de imediato.

Ela suspira, irritada.

- Filha, isso são modos de se entrar numa sala?

Eu baixo a cabeça.

- Senhora, minha Mãe - digo em voz baixa.

- Estou descontente convosco - diz ela.

Levanto os olhos.

- Lamento. De que forma vos ofendi?

- Haveis sido chamada a cumprir um dever sagrado, tendes de conduzir o vosso marido para a Igreja Reformada.

Eu anuo.

- Haveis sido chamada para uma posição de grande honra e grande dignidade, e tendes de forjar o vosso comportamento para o merecerdes.

Indiscutível. Baixo mais uma vez a cabeça.

- Tendes um espírito insubmisso - continua ela.

De facto, é verdade.

- Faltam-vos os traços apropriados de uma mulher: submissão, obediência, amor ao dever.

É novamente verdade.

- E temo que exista uma veia de luxúria em vós - diz ela muito baixo.

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- Mãe, não existe - respondo, tão baixo como ela. - Isso não é verdade.

- Tendes sim. O Rei da Inglaterra não tolerará uma esposa libertina. A Rainha da Inglaterra tem de ser uma mulher sem uma mancha no seu carácter. Tem de estar acima de qualquer censura.

- Senhora minha Mãe, eu...

- Ana, pensai nisto! - diz ela, e por uma vez ouço-lhe realmente um tom de franqueza na voz. - Pensai nisto! Ele mandou executar Lady Ana Bolena por infidelidade, acusando-a de pecar com metade da corte, encontrando-se o próprio irmão entre os seus amantes. Fez dela Rainha e depois retirou-lhe o título, sem motivos ou provas, para além da sua própria vontade. Acusou-a de incesto, bruxaria, dos mais sórdidos crimes. É um homem bastante ansioso em relação à sua reputação, terrivelmente ansioso. A próxima Rainha da Inglaterra nunca poderá ser objecto de dúvidas. Não podemos garantir a vossa segurança, se houver uma palavra pronunciada contra vós.

- Minha senhora...

- Beijai a vara - diz ela antes de eu poder reclamar.

Levo os lábios à vara enquanto ela a estende na minha direcção. Atrás da porta dos aposentos privados, consigo ouvi-lo suspirar ao de leve, muito levemente.

- Agarrai as costas da cadeira - ordena-me ela.

Eu inclino-me e seguro ambos os lados da cadeira. Delicadamente, como uma dama que ergue um lenço de mão, ela segura a bainha da minha capa, e levanta-a até à altura da anca, e em seguida, a camisa de dormir. As minhas nádegas estão nuas, se o meu irmão decidir espreitar pela porta entreaberta, consegue ver-me, exposta como uma rapariga num bordel. Ouve-se o assobio da vara pelo ar e depois a chicotada súbita de dor nas minhas coxas. Grito alto, e mordo os lábios.

Estou desesperada por saber quantos golpes vou ter de sofrer. Cerro os dentes e espero pelo próximo. O assobio do ar e depois o golpe de dor, como um corte de espada num duelo desonrado. Dois. O som do golpe seguinte surge demasiado depressa para que eu me consiga preparar e grito mais uma vez, as minhas lágrimas tornando-se subitamente quentes e céleres como sangue.

- Levantai-vos, Ana - diz ela friamente, e puxa a minha camisa e a capa para baixo.

As lágrimas escorrem-me pelo rosto. Consigo ouvir-me soluçar como uma criança.

- Ide para o vosso quarto e lede a Bíblia - diz ela. - Pensai especialmente no vosso chamamento real. A mulher de César, Ana. A mulher de César.

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Tenho de lhe fazer uma vénia. O movimento desajeitado provoca-me uma onda de dor e solto um queixume semelhante ao de um cachorrinho chicoteado.

Dirijo-me à porta e abro-a. O vente afasta a porta das minhas mãos e, com a corrente de ar, a porta interior para os aposentos privados abre-se completamente sem aviso Na sombra está o meu irmão, de rosto tenso, como se fosse ele quem estivesse a ser chicoteado com o vidoeiro, os lábios cerrados com firmeza, como se para se impedir de gritar. Por um momento horrível, os nossos olhos cruzam-se e ele olha para mim, com o rosto cheio de uma necessidade desesperada. Eu baixo o olhar, volto-lhe as costas, como se não o tivesse visto, como se fosse cega a ele. Seja o que for que ele queira de mim, sei que não quero ouvi-lo. Saio da sala com um passo pouco firme, a camisa de dormir a colar-se-me ao sangue que tenho na parte de trás das coxas. Estou desesperada por me afastar dos dois.

Catarina, Norfolk House, Lambeth, Novembro de 1539

- Chamar-vos-ei esposa.

- Chamar-vos-ei marido.

Está tão escuro que não consigo vê-lo sorrir: mas sinto a curva dos seus lábios enquanto ele me volta a beijar.

- Comprar-vos-ei um anel e podereis usá-lo na corrente que trazeis ao pescoço e mantê-lo escondido.

- Dar-vos-ei um gorro de veludo bordado a pérolas.

Ele ri-se.

- Por amor de Deus, calai-vos e deixai-nos dormir! - alguém diz irritado, do outro lado do dormitório. Talvez seja Joan Nulmer, sentindo a falta desses mesmos beijos que agora eu tenho nos lábios, nas minhas pálpebras, nas minhas orelhas, no meu pescoço, nos meus seios, em todas as partes do meu corpo. Ela deverá sentir falta do amante que costumava ser seu, e agora é meu.

- Deverei ir ter com ela e dar-lhe um beijo de boas-noites? - murmura ele.

- Chiu - reprovo-o, e interrompo a sua resposta com a minha própria boca.

Estamos naqueles momentos sonolentos que se seguem a fazer amor, com os lençóis embrulhados à nossa volta, as roupas e os lençóis todos misturados, o odor do seu cabelo, do seu corpo, do seu suor por todo o meu corpo. Francis Dereham é meu, como jurei que seria.

- Sabeis que se prometermos casar-nos diante Deus e, se eu vos oferecer um anel, é um casamento tão válido como se fosse celebrado na igreja? - pergunta ele com ar sério.

Estou a adormecer. A mão dele acaricia o meu ventre, sinto-me despertar, suspiro e abro as pernas para convidar o seu toque quente mais uma vez.

- Sim - digo, pretendendo consentir no seu toque.

Ele percebe mal, é sempre muito sério.

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- Então, vamos fazê-lo? Vamos casar-nos em segredo e ficar juntos para sempre, e quando eu tiver feito a minha fortuna, podemos contar a toda a gente, e viver juntos como marido e mulher?

- Sim, sim - começo a gemer ligeiramente de prazer, não penso em mais nada além do movimento dos seus dedos conhecedores. - Oh, sim.

De manhã, ele tem de pegar nas roupas e de sair a correr, antes de a criada da senhora minha avó entrar com muita confusão e cerimónia para destrancar a porta para o nosso quarto de dormir. Ele sai rapidamente, poucos momentos antes de ouvirmos os passos pesados dela nas escadas; mas Edward Waldgrave demora demasiado e tem de se esconder debaixo da cama de Mary e esperar que os lençóis que chegam até ao chão o escondam.

- Estais muito bem-disposta, esta manhã - diz a Sr. Franks desconfiada, enquanto abafamos as nossas gargalhadas. - “Quem ri de manhã, chora de tarde”.

- Isso é uma superstição pagã - diz Mary Lascelles, que é sempre tão séria. - E

estas raparigas não têm qualquer motivo para se rirem, se analisarem as suas consciências.

Pomos o ar mais sombrio de que somos capazes, e seguimo-la pelas escadas abaixo, até à capela, para ouvir a missa. Francis está na capela, de joelhos, tão belo como um anjo. Olha para o lado oposto, para mim, e o meu coração dá um salto. É tão maravilhoso que ele esteja apaixonado por mim.

Quando o serviço religioso termina e todos se apressam a sair para irem tomar o pequeno-almoço, detenho-me junto do banco para apertar as fitas do meu sapato e vejo que ele voltou a ajoelhar-se, como se mergulhado em profunda oração. O padre apaga as velas devagar, reúne os seus pertences, caminha pela nave lateral e ficamos sozinhos.

Francis vem ter comigo ao outro lado e estende a mão para mim. É um momento extraordinariamente solene, tão válido como uma representação.

Gostava de nos poder ver, especialmente o meu rosto grave.

- Catarina, quereis casar-vos comigo?

Sinto-me tão crescida. Sou eu quem está a fazer isto, a assumir o controlo do meu próprio destino. E não foi a minha avó que me arranjou este casamento, nem o meu pai. Ninguém jamais se preocupou comigo, esqueceram-se de mim, metida nesta casa. Mas eu escolhi o meu próprio marido, farei a minha própria fortuna. Sou como a minha prima Maria Bolena, que se casou em segredo com 28

um homem de quem ninguém gostava, e depois ficou com toda a herança dos Bolena.

- Sim - respondo. - Quero - sou como a minha prima, a Rainha Ana, que tinha como objectivo o casamento mais importante do reino, quando ninguém acreditava que poderia ser concretizado. - Sim, quero - respondo.

Não sei ao certo o que ele quer dizer com casar. Penso que quer dizer que terei um anel para usar num fio, que posso mostrá-lo às outras raparigas, e que ficaremos prometidos um ao outro. Mas, para minha surpresa, ele conduz-me ao longo da nave até ao altar. Por momentos, hesito, não sei o que ele pretende fazer, e não sou uma grande entusiasta das orações. Iremos atrasar-nos para o

pequeno- -almoço, se não nos apressarmos e eu gosto do pão quando ainda está quente, acabado de sair do forno. Mas depois percebo que estamos a encenar o nosso casamento. Quem me dera ter escolhido o meu melhor vestido esta manhã, mas agora é demasiado tarde.

- Eu, Francis Dereham, recebo-vos, a vós, Catarina Howard, como minha esposa legítima - diz ele com firmeza.

Eu sorrio-lhe. Se, pelo menos, tivesse posto o meu melhor toucado, estaria perfeitamente feliz.

- Agora, vós deveis repeti-lo - pede-me ele.

- Eu, Catarina Howard, recebo-vos, a vós, Francis Dereham como meu legítimo esposo - repito obedientemente.

Ele inclina-se e beija-me. Sinto os meus joelhos fraquejar quando ele me toca, tudo o que desejo é que este beijo dure para sempre. De imediato, começo a pensar que, se nos escapulíssemos para o banco com costas altas da minha avó, podíamos ir um pouco mais longe do que isto. Mas ele pára.

- Compreendeis que agora somos casados? - pretende ele a confirmar.

- Este foi o nosso casamento?

- Sim.

Eu rio-me.

- Mas eu só tenho catorze anos.

- Isso é indiferente, haveis dado a vossa palavra diante de Deus - muito seriamente, leva a mão ao bolso do casaco e retira uma bolsa. - Aí dentro estão cem libras - diz ele num tom solene. - Vou entregar-vos esse valor para que o guardeis, e no Ano Novo, irei para a Irlanda e farei a minha fortuna, para poder regressar a casa e reclamar-vos abertamente como minha noiva.

A bolsa é pesada, ele economizou uma fortuna para nós. Isto é tão emocionante.

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- Devo guardar o dinheiro?

- Sim, como minha boa esposa.

Isto é tão encantador que eu abano ligeiramente a bolsa e ouço as moedas tilintar. Posso colocá-la na minha caixa de jóias vazia.

- Irei ser tão boa esposa para vós! Ficareis tão surpreendido!

- Sim. Como vos disse. Este é um casamento real aos olhos de Deus. Agora somos marido e mulher.

- Oh, sim. E quando tiverdes feito a vossa fortuna, podemos casar mesmo, não podemos? Com um vestido novo e tudo?

Ele franze a sobrancelha por momentos.

- Não compreendeis? - diz. - Sei que sois jovem, Catarina, mas tendes de compreender isto. Agora estamos casados. É legal e vinculativo. Não podemos voltar a casar-nos. Já está. Acabámos de fazê-lo. Um casamento entre duas pessoas diante de Deus é um casamento tão vinculativo como uma cerimónia onde se assina um contrato. Agora sois minha esposa. Estamos casados aos olhos de Deus e da lei terrena. Se alguém vos perguntar, vós sois minha mulher, minha esposa legítima. Compreendeis?

- Claro que sim - respondo apressadamente. Não quero parecer estúpida. -

Claro que compreendo. Só estou a dizer que gostaria de ter um vestido novo, quando contarmos a toda a gente.

Ele ri-se como se eu tivesse dito algo engraçado e envolve-me novamente com os seus braços, beija-me a base da garganta e encosta o nariz ao meu pescoço

- Vou comprar-vos um vestido de seda azul, Sr. Dereham - promete-me.

Fecho os olhos de prazer.

- Verde - digo. - Verde Tudor. O Rei gosta mais de verde.

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Jane Bolena, Palácio de Greenwich, Dezembro de 1539

Graças a Deus que estou aqui, em Greenwich, o mais bonito dos palácios do Rei, de volta ao lugar ao qual pertenço, nos aposentos da Rainha. A última vez que cá estive, cuidava de Jane Seymour, enquanto ela ardia de febre, perguntando por Henrique, que nunca apareceu; mas agora as salas foram pintadas de fresco, eu fui novamente chamada e ela está esquecida. Só eu sobrevivi. Sobrevivi à queda da Rainha Catarina, à desgraça da Rainha Ana e à morte da Rainha Jane. É um milagre para mim ter sobrevivido, mas aqui estou eu, de volta à corte, uma das poucas favorecidas, das muito poucas que mereceram essa honra. Servirei a nova Rainha como servi as suas predecessoras, com amor e lealdade e com um olho nas minhas oportunidades. Voltarei a entrar e a sair dos melhores aposentos dos melhores palácios da terra como se fossem a minha casa. Estou mais uma vez no lugar onde nasci e fui educada para estar.

Por vezes, até me consigo esquecer de tudo o que aconteceu.

Por vezes, esqueço que sou uma viúva de trinta anos, com um filho muito longe de mim. Penso que sou novamente uma mulher jovem com um marido que adoro, e tudo para esperar. Fui trazida de volta ao centro exacto do meu mundo.

Quase poderia dizer que renasci.

O Rei planeou um casamento pelo Natal e as damas da Rainha foram reunidas para as festividades. Graças ao meu senhor, o Duque, sou uma delas, tendo voltado para junto das amigas e rivais que conheço desde a infância. Algumas delas recebem-me com um sorriso irónico e um cumprimento com as costas da mão, algumas delas olham de soslaio para mim. Não é que gostassem assim tanto de Ana - não é o caso - mas ficaram muito assustadas com a queda dela e lembram-se de que só eu escapei, é como magia eu ter escapado, fá-las benzerem-se e sussurrarem rumores antigos contra mim.

Bessie Blount, a antiga amante do Rei, agora casada, muito acima da sua condição, com Lorde Clinton, cumprimenta-me com 31

bastante simpatia. Não a via desde a morte do filho, Henry Fitzroy, que o Rei fez duque, Duque de Richmond, só por ser um bastardo real, e quando eu digo o quanto lamento a perda que sofreu, palavras superficiais de educação, ela agarra subitamente a minha mão e olha-me com o rosto pálido e questionador, como se perguntando, sem palavras, se eu sei como ele morreu? Poderei contar-lhe como ele morreu?

Sorrio friamente e solto os seus dedos do meu pulso. Não lhe posso dizer, porque, na verdade, não sei, e se soubesse não lhe diria.

- Lamento muito a perda do vosso filho - digo novamente.

É provável que ela nunca venha a saber porque é que ele morreu ou como.

Mas o mesmo acontece a outros milhares de pessoas. Milhares de mães viram os seus filhos marcharem para proteger os templos, os lugares sagrados, as estátuas ao longo da estrada, os mosteiros e as igrejas, e milhares de filhos nunca regressaram a casa. O Rei decidirá o que é fé e o que é heresia, não cabe ao povo dizê-lo. Neste novo e perigoso mundo, nem sequer cabe à igreja dizê-lo. O Rei irá decidir quem viverá e quem morrerá, ele agora detém o poder de Deus. Se Bessie quer saber realmente quem matou o filho, mais valia perguntar ao Rei, o pai dele; mas ela conhece Henrique demasiado bem para o fazer.

As outras mulheres viram Bessie cumprimentar-me e aproximam-se: das famílias Seymour, Percy, Culpepper, Neville. Todas as grandes famílias do país conseguiram introduzir as suas filhas na área restrita dos aposentos da Rainha.

Alguma delas sabem muito pouco a meu respeito e outras suspeitam o pior. Não me importa. Já enfrentei coisas piores do que a malícia de mulheres invejosas, e, de qualquer modo, sou parente da maioria delas, e rival de todas. Se alguém me quiser arranjar problemas, é bom que se lembre de que estou sob a protecção do meu senhor, o Duque, e só Thomas Cromwell é mais poderoso do que nós.

A que receio, a que verdadeiramente não quero encontrar é Catarina Carey, a filha de Maria Bolena, a minha cunhada mesquinha. Catarina é uma criança, uma criança de quinze anos, não deveria ter medo dela, mas - para dizer a verdade - a mãe é uma mulher formidável e nunca foi grande admiradora minha.

O meu senhor, o Duque, conseguiu um lugar na corte para Catarina e ordenou à mãe que a mandasse para a sede de todo o poder, a fonte de toda a riqueza e Maria, a relutante, obedeceu. Posso imaginar com que reticência comprou à filha os vestidos, lhe penteou o cabelo e lhe ensinou a fazer vénias e a dançar. Maria

viu a família ascender até ao

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céu com base na beleza e inteligência da irmã e do irmão, e depois viu os seus corpos em pedaços dentro de caixões minúsculos. Ana foi decapitada, o seu corpo depositado num caixão, a sua cabeça num cesto. Jorge, o meu Jorge...

Não suporto pensar nisso.

Talvez seja suficiente dizer que Maria me culpa por todo o seu sofrimento e perda, atribui-me a culpa de ter perdido o irmão e a irmã, e nunca pensa no seu próprio papel em toda a nossa tragédia. Culpa-me como se eu tivesse podido salvá-los, como se eu não tivesse feito tudo o que estava ao meu alcance até àquele preciso dia, o último, no cadafalso, quando, por fim, não havia nada que alguém pudesse fazer.

E está errada em culpar-me. Mary Norris perdeu o pai, Henry, no mesmo dia e pelo mesmo motivo e cumprimenta-me respeitosamente e com um sorriso. Não tem quaisquer ressentimentos contra mim. Foi-lhe devidamente ensinado, pela mãe, que o fogo do descontentamento do Rei pode queimar qualquer pessoa, não vale de nada culpar os sobreviventes que escaparam a tempo.

Catarina Carey é uma dama de quinze anos, partilhará os aposentos com outras raparigas jovens, com a minha prima e a dela, Catarina Howard, Anne Bassett, Mary Norris, com outras damas ambiciosas que não sabem nada e que esperam tudo. Orientá-las-ei e aconselhá-las-ei como uma mulher que já serviu rainhas. Catarina Carey não vai andar a contar segredinhos às amigas acerca dos tempos que passou com a sua tia Ana na Torre, os acordos de última hora, as promessas feitas junto ao cadafalso, a suspensão da execução da pena que foi prometida e que, no entanto, nunca chegou. Não lhe dirá que todos deixámos Ana ser levada para o cepo - a sua virtuosa mãe, tão culpada como qualquer outro. Foi educada como uma Carey, mas é uma Bolena, uma bastarda do Rei e uma Howard da cabeça aos pés: saberá manter a boca fechada.

Na ausência da nova Rainha, temos de nos instalar nos novos aposentos sem ela. Temos de esperar. As condições meteorológicas têm sido adversas para ela iniciar a sua viagem e ela progride lentamente de Clèves para Calais. Agora estão convencidos de que ela não chegará a tempo de um casamento no dia de Natal. Se eu fosse sua conselheira, ter-lhe-ia dito que enfrentasse o perigo,

qualquer perigo, e que viesse de barco. É uma longa viagem, eu sei, e o Canal da Mancha, no Inverno, é um lugar perigoso, mas uma noiva não se deve atrasar para o seu dia de casamento; e este Rei não gosta de esperar por nada. Não é um homem que possa ser contrariado.

Na verdade, ele não é o príncipe que foi em tempos. Quando eu cheguei à corte, pela primeira vez, e ele era o marido jovem de 33

uma bela esposa, era um príncipe dourado. Diziam que era o mais belo príncipe da Cristandade e isso não era por adulação. Maria Bolena estava apaixonada por ele, Ana estava apaixonada por ele, eu estava apaixonada por ele. Não havia uma única rapariga na corte, nem uma rapariga no país, que lhe conseguisse resistir.

Depois ele voltou-se contra a sua mulher, a Rainha Catarina, uma mulher bondosa, e Ana ensinou-o a ser cruel. A corte dela, a sua corte inteligente e eternamente cruel, perseguiu a Rainha, empurrando-a para uma miséria obstinada, ensinou o Rei a dançar ao ritmo da nossa música herética. Enganámo-lo, convencendo-o de que a Rainha lhe mentira, depois levámo-lo a pensar que Wolsey o havia traído. Mas depois a sua mente desconfiada, foçando como um porco, começou a escapar ao nosso controlo. Começou a desconfiar também de nós. Cromwell convenceu-o de que Ana o traíra, os Seymour fizeram-no acreditar que todos estávamos envolvidos na conspiração. No final, o Rei perdeu algo bastante mais importante do que uma esposa, ou até duas esposas; perdeu a capacidade de confiar. Ensinámo-lo a suspeitar, e o resplendor dourado que existia no rapazinho tornou-se baço no homem. Agora, rodeado de pessoas que o receiam, tornou-se um tiranete. Tornou-se um perigo, como um urso que foi provocado até ao limite. O Rei disse à Princesa Maria que a teria matado se ela o desafiasse, e depois declarou-a bastarda, e afirmou que deixara de ser princesa.

À Princesa Isabel, a nossa Princesa Bolena, a minha sobrinha, declarou-a ilegítima e a governanta dela afirma que a criança nem sequer tem roupas decentes.

E por fim, esta história de Henry Fitzroy, o próprio filho do Rei: num dia ia ser legitimado e proclamado Príncipe de Gales, no outro, morre de uma doença misteriosa e o meu senhor recebe ordens para o enterrar à meia-noite? Os seus retratos foram destruídos, e qualquer menção a ele foi interdita? Que tipo de homem é capaz de ver o próprio filho morrer e ser enterrado, sem pronunciar uma única palavra? Que tipo de pai é capaz de dizer às suas duas filhas pequenas

que não são suas? Que tipo de homem consegue mandar os amigos e a mulher para o cadafalso e dançar, quando as mortes deles lhe são comunicadas? Que tipo de homem é este, a quem concedemos o poder absoluto sobre as nossas vidas e as nossas almas?

E talvez ainda pior do que tudo isto: os padres bondosos enforcados nos barrotes das suas próprias igrejas, homens devotos caminhando para a fogueira para serem queimados, de olhos baixos, os seus pensamentos no céu, os levantamentos a Norte e a Este, e o Rei a jurar que os rebeldes podiam confiar nele, que seguiria os seus

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conselhos, e depois a traição terrível que levou os tolos que confiaram nele para a forca, aos milhares, em todo o país, que transformou o meu senhor, o Lorde Norfolk, no carniceiro dos seus compatriotas. Este Rei matou milhares de pessoas, este Rei continua a matar milhares de pessoas entre o seu próprio povo.

O mundo, fora da Inglaterra, afirma que ele enlouqueceu e aguarda a nossa revolta. Mas, como cães assustados no fosso do urso, não nos atrevemos a fazer mais do que observá-lo e rosnar.

Ele agora está feliz, de qualquer forma, apesar de a nova Rainha ainda não ter chegado. Ainda terei de lhe ser apresentada, mas dizem-me que me cumprimentará, bem como a todas as damas de companhia dela, gentilmente.

Está a jantar quando me escapulo para os seus aposentos, para ver o retrato da nova Rainha, que ele guarda na sua sala de audiências. A sala está vazia, o retrato está num cavalete iluminado por grandes velas quadradas. Ela é uma rapariga com um ar doce, devo admiti-lo. Tem um rosto honesto, um olhar sincero, nuns olhos encantadores. Percebo imediatamente do que ele gosta nela.

Ela não tem encanto; não existe sensualidade no seu rosto. Não tem um ar atrevido, perigoso, nem pecador. Não tem qualquer verniz, não possui nenhuma sofisticação. Parece mais nova do que os seus vinte e quatro anos, poderia mesmo dizer que, aos meus olhos, tem um ar demasiado simples. Ela não será uma Rainha como Ana; isso é certo. Esta não é uma mulher que vá virar a corte e o país do avesso, para os fazer dançar ao ritmo de uma nova música. Esta não é uma mulher que vá deixar os homens meios loucos de desejo e exigir que eles escrevam poemas de amor. E, é claro, é exactamente isso que ele pretende agora

- nunca mais amar uma mulher como Ana.

Ana arruinou-lhe a capacidade de aceitar um desafio, talvez para sempre.

Acendeu uma fogueira sob a sua corte e, no fim, tudo ardeu. Ele é como um homem cujas próprias sobrancelhas ficaram chamuscadas, e eu sou a mulher cuja casa se transformou em cinzas. Nunca mais vai querer voltar a casar-se com uma amante desejável. Eu nunca mais quero voltar a sentir o cheiro a fumo. Ele quer uma mulher ao seu lado que seja firme como um boi no arado, e depois pode procurar os namoriscos, o perigo e o encanto noutro lugar qualquer.

“Um belo retrato”, diz um homem atrás de mim e eu viro-me para ver o cabelo escuro e comprido, o rosto pálido do meu tio, Thomas Howard, o Duque de Norfolk, o homem mais importante do reino a seguir ao próprio Rei.

Faço-lhe uma vénia profunda.

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- De facto é, senhor - digo.

Ele acena, os seus olhos escuros imóveis.

- Credes que o retrato é fiel ao original?

- Em breve saberemos, senhor.

- Podeis agradecer-me por vos ter conseguido um lugar nos aposentos dela -

afirma ele casualmente. - Foi obra minha. Encarreguei-me pessoalmente do assunto.

- Estou-vos imensamente agradecida. Fico em dívida para convosco para o resto da minha vida. Sabeis, só tendes de me dizer o que quer que pretendais.

Ele assente com a cabeça. Nunca me manifestou a sua gentileza, excepto uma vez, fez-me um enorme favor: puxou-me para fora da fogueira que incendiou a corte. É um homem duro, parco em palavras. Dizem que só amou realmente uma mulher, Catarina de Aragão, e que a deixou ser empurrada para a pobreza, menosprezo e morte, para colocar a sua própria sobrinha no lugar dela. Por isso, de qualquer modo, os seus afectos têm pouco valor.

- Ireis dizer-me como correm as coisas nos aposentos dela - diz ele, acenando para o retrato. - Como sempre haveis feito - estende-me o braço, está a conceder-me a honra de me conduzir até ao jantar. Eu faço mais uma vénia, ele aprecia que lhe mostrem deferência, e pouso a minha mão ao de leve no seu braço. -

Quererei saber se ela agrada ao Rei, se ficou grávida, com quem fala, como se comporta, e se traz alguns padres luteranos. Esse tipo de coisas. Vós sabeis.

Eu sei. Caminhamos juntos até à porta.

- Prevejo que ela vá tentar influenciá-lo, no que concerne a religião - diz ele. -

Não podemos admiti-lo. Não podemos permitir que ele se aproxime ainda mais da Reforma; o país não o tolerará. Tendes de prestar atenção aos livros dela e de ver se está a ler escritos proibidos. E observai as damas dela, para ver se nos andam a espiar, se enviam comunicados para Cléves. Se alguma delas manifestar algum tipo de heresia, quero saber de imediato. Sabeis o que tendes de fazer.

Eu sei. Não existe um único membro desta família amplamente espalhada que não conheça as suas tarefas. Todos trabalhamos para manter o poder e a riqueza dos Howard e estamos unidos.

Consigo ouvir o bramido da corte em festa, vindo do salão, enquanto nos dirigimos para lá, criados com enormes jarros de vinho e travessas de carne, marcham em fila, para servir as centenas de pessoas que jantam todos os dias com o Rei. Na galeria superior, estão as pessoas que vieram assistir, para ver o grande monstro que

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é o círculo mais alto da corte, a mais alta nobreza, uma besta com uma centena de bocas e um milhão de esquemas, e duzentos olhos que observam o Rei enquanto única fonte de riqueza, de todo o poder e de todos os favores.

- Ireis ver como está mudado - diz o Duque muito baixinho, com a boca encostada ao meu ouvido. - Todos consideramos que é difícil agradar-lhe.

Penso no menino mimado que, num instante, podia ser distraído com uma piada, uma aposta ou um desafio.

- Ele sempre foi muito inconstante.

- Mas agora está pior do que isso - diz o meu senhor. - O estado de espírito dele muda inesperadamente, é violento; censura Cromwell de forma violenta e bate-lhe na cara, pode mudar de temperamento numa questão de momentos.

Pode ter um acesso de fúria que lhe deixa o rosto escarlate. Algo que lhe agrada de manhã pode irritá-lo à hora de jantar. Deveis ter cuidado.

Assinto.

- Agora servem-no com um joelho em terra - reparo no novo estilo.

Ele dá uma gargalhada.

- E tratam-no por “Majestade” - diz ele. - “Vossa Graça” era suficiente para os Plantageneta, mas não para este Rei. Tem de ser “Majestade” como se fosse um deus.

- E as pessoas fazem isso? - pergunto curiosa. - Prestam-lhe essa honra extrema?

- Vós própria ireis fazê-lo - diz-me ele. - Se o desejar, Henrique será como um deus, não há ninguém que se atreva a negar-lho.

- Os lordes? - pergunto, pensando no orgulho dos grandes homens do reino que saudavam o pai deste homem como um semelhante e cuja lealdade lhe valeu o seu trono.

- Ides ver - afirma o meu senhor ameaçadoramente. - Alteraram as leis relativas a actos de traição de tal forma que o próprio acto de pensar em oposição é um crime capital. Ninguém se atreve a discutir com ele, seguir-se-ia a batida na porta à meia-noite e uma viagem até à Torre para um interrogatório e a nossa mulher ficaria viúva sem sequer existir um julgamento.

Olho para a mesa superior onde o Rei está, um volume maciço que se alarga para todos os lados, sentado no seu trono. Está a atafulhar a boca com comida enquanto falamos, com ambas as mãos erguidas ao nível do rosto, é mais gordo do que qualquer homem que eu já vi em toda a minha vida, os seus ombros volumosos, o pescoço semelhante ao de um boi, as suas feições dissolvendo-se na

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cuba em forma de lua cheia que é a sua face, os seus dedos parecem pudins inchados.

- Meu Deus, ele inchou como um monstro! - exclamo. - O que lhe aconteceu?

Está doente? Não o teria reconhecido. Deus sabe que ele já não é o príncipe que era.

- Ele é um perigo - diz o meu tio, a sua voz não é mais do que um murmúrio. -

Para ele mesmo, com as suas indulgências, e para os outros, com o temperamento. Tende cuidado.

Estou mais abalada do que aparento, quando me aproximo da mesa das damas da Rainha. Elas arranjam espaço para eu me sentar e saúdam-me pelo meu nome, muitas delas chamam-me prima. Sinto os pequenos olhos de porco do Rei pousados em mim e faço-lhe uma profunda vénia antes de me sentar no banco.

Mais ninguém presta atenção ao animal em que o príncipe se tornou, é como um conto de fadas e todas ficámos cegas por um feitiço, para não vermos a ruína daquele homem que se transformou num porco.

Sento-me para jantar e sirvo-me da travessa comum, o melhor vinho é servido na minha caneca. Olho em volta da corte. Esta é a minha casa. Conheço a maior parte destas pessoas de toda a vida e, graças ao cuidado do Duque em casar todas as filhas dos Howard com quem mais lhe convém, sou parente da maioria delas.

Como a maior parte delas, servi uma rainha a seguir à outra. Como a maioria delas, segui a minha ama real no que respeita ao estilo dos toucados: toucado triangular, toucado francês, toucado inglês; e no tipo de fé: papista, reformista, católica inglesa. Gaguejei em espanhol e conversei em francês, permaneci num silêncio reflexivo, costurei camisas para os pobres. Não há muita coisa acerca das rainhas da Inglaterra que eu não saiba, que eu não tenha visto. E em breve verei a próxima e saberei tudo sobre ela: os seus segredos, as suas esperanças, e os seus erros. Observá-la-ei e farei os meus próprios relatos ao meu senhor, o Duque. E talvez, mesmo numa corte cada vez mais receosa, dominada por um Rei que se está a tornar um tirano, mesmo sem o meu marido, e mesmo sem Ana, aprenderei a ser feliz outra vez.

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Catarina, Norfolk House, Lambeth, Dezembro de 1539

E o que irei receber pelo Natal? Sei que vou ter uma bolsa bordada, da minha

amiga Agnes Restwold, uma página manuscrita de um livro de orações, de Mary Lascelles (estou tão entusiasmada com esta perspectiva que quase não consigo respirar) e dois lenços da minha avó. Até aqui, tudo bastante aborrecido. Mas o meu querido Francis vai oferecer-me uma camisa de dormir bordada, do melhor linho, e eu teci para ele, com as minhas próprias mãos, e levou-me vários dias, uma braçadeira com as minhas cores preferidas. Estou muito satisfeita por ele me amar tanto, e é claro que também o amo, mas ele não me comprou um anel como tinha prometido, e mantém o plano de ir para a Irlanda fazer a sua fortuna no próximo mês, e então eu ficarei aqui sozinha, e qual é a necessidade?

A corte está em Greenwich para passar o Natal, tinha esperança de que viesse para Whitehall e assim, pelo menos, poderia ter ido ver o rei a jantar. O meu tio, o Duque, está lá, mas não nos chama; e apesar de a minha avó ter participado no jantar, não me levou com ela. Por vezes, penso que nunca me irá acontecer nada.

Não acontecerá mesmo nada e eu viverei e morrerei como uma solteirona, ao serviço da minha avó. Vou fazer quinze anos, no meu próximo aniversário, e é evidente que ninguém parou para pensar no meu futuro. Quem é que se preocupa comigo? A minha mãe está morta e o meu pai, praticamente, nem se lembra do meu nome. É muito triste. Mary Lumleigh vai casar-se no próximo ano, estão a elaborar o contrato neste momento, ela dá-se grandes ares de importância e tratame com condescendência, como se eu quisesse saber dela e do seu prometido borbulhento. Eu não quereria um noivo daqueles, nem que me fosse proposto acompanhado de uma fortuna, e foi o que lhe disse, discutimos e, assim, a gola de renda que ela me ia oferecer pelo Natal vai ser dada a outra pessoa, e eu também não quero saber disso para nada.

A rainha já devia ter chegado a Londres, mas tem sido tão estupidamente lenta que se atrasou, por isso, todas as minhas esperanças 39

de uma entrada dela em grande, em Londres, e de um casamento maravilhoso também foram adiadas. É como se o próprio destino se conjugasse para me fazer infeliz. Estou condenada. Tudo o que quero é dançar um bocadinho! Qualquer pessoa pensaria que uma rapariga de quase quinze anos, ou de qualquer forma, que vai fazer quinze anos no próximo ano, poderia ir dançar uma vez, antes de morrer!

É claro que vamos ter bailes aqui pelo Natal, mas não é a isso que me refiro.

Qual é o prazer de dançar, quando todos os que nos vêem nos viram todos os dias no ano anterior? Qual é o prazer de uma festa, quando todos os rapazes que se encontram na sala nos são tão familiares como as tapeçarias das paredes?

Qual é a alegria de ter os olhos de um homem sobre nós quando ele é o nosso homem, o nosso próprio marido, e se deita na nossa cama quer nós dancemos bem, quer não? Experimento uma volta especial e uma vénia que tenho andado a praticar e não me serve de nada. Ninguém parece reparar em mim, à excepção da minha avó, que vê tudo, e ela chamame para fora da fila, coloca o dedo sob o meu queixo e diz:

- Filha, não tendes de dar tantas voltas como uma pega italiana. De qualquer modo, todos vos estamos a observar - pelo que devo perceber que não devia dançar como uma dama, uma dama jovem e elegante, com algum estilo; mas como uma criança.

Faço uma vénia e não digo nada. Não vale a pena discutir com a senhora minha avó, ela tem tão mau humor que pode mandar-me sair da sala num instante, se eu tentar sequer abrir a boca. Estou realmente convencida de que sou tratada com muita crueldade.

- E que história é essa que ouvi a vosso respeito com o jovem Senhor Dereham? - pergunta ela de repente. - Pensei que já vos havia avisado uma vez.

- Não sei o que haveis ouvido, avó - digo eu inteligentemente. Espertinha de mais para ela, pois dá-me uma palmada na mão com o leque.

- Não vos esqueçais de quem sois, Catarina Floward - diz ela rispidamente. -

Quando o vosso tio vos mandar chamar para servirdes a Rainha, parto do princípio que não querereis recusar por causa de um namorisco de adolescente?

- Servir a Rainha? - abordo imediatamente o ponto mais importante.

- Talvez - diz ela num tom exasperante. - Talvez ela necessite de uma dama de companhia, se a rapariga tiver recebido uma boa educação e se não for considerada uma grande prostituta.

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Não consigo falar, estou tão desesperada.

- Avó, eu...

- Não faz mal - diz ela e faz-me um sinal com a mão, indicando-me que me volte a juntar às dançarinas. Eu agarro-lhe a manga e suplico-lhe que me conte mais; mas ela ri-se e manda-me ir dançar. Enquanto me observa, salto como uma pequena boneca de madeira, sou tão correcta nos passos e tão educada no meu porte, que seria de pensar que trazia uma coroa na cabeça. Danço como uma freira, danço como uma vestal, e quando levanto os olhos para ver se ela está impressionada com a minha modéstia, ela está a rir-se para mim.

Por isso, nessa noite, quando Francis aparece à porta do meu quarto, vou ter com ele à soleira.

- Não podeis entrar - digo eu sem rodeios. - A senhora minha avó sabe tudo a nosso respeito. Avisou-me para ter cuidado com a minha reputação.

Ele parece chocado.

- Mas, meu amor...

- Não posso correr esse risco - insisto. - Ela sabe muito mais do que pensávamos. Sabe Deus o que ela sabe ou quem lhe contou.

- Não nos negaríamos um ao outro - diz ele.

- Não - respondo insegura.

- Se ela vos perguntar, tendes de lhe dizer que somos casados aos olhos de Deus.

- Sim, mas...

- E eu, agora, venho ter convosco como vosso marido.

- Não podeis - nada neste mundo me vai impedir de ser a nova dama de companhia da nova Rainha. Nem sequer o meu amor eterno por Francis.

Ele põe a mão em volta da minha cintura e mordisca-me na nuca.

- Daqui a alguns dias, vou para a Irlanda - sussurra ele ternamente. - Não me ireis mandar embora de coração partido.

Reflito. Seria muito triste se o coração dele se partisse, mas tenho de ser dama de companhia da nova Rainha, não há nada mais importante do que isso.

- Eu não quero que o vosso coração se parta - digo. - Mas tenho de conseguir um lugar nos aposentos da Rainha e quem sabe o que poderá acontecer?

Ele solta-me abruptamente.

- Oh, então pensais que ides para a corte? - pergunta irritado. - E namoriscar com algum grande senhor? Ou um dos vossos primos 41

nobres ou outra pessoa qualquer? Um Culpepper ou um Mowbray ou um Neville ou outro qualquer?

- Não sei - digo. É realmente maravilhoso quão digna posso ser. Seria de pensar que eu era a minha avó. - Agora, não posso discutir os meus planos convosco.

- Kitty! - grita ele, está dividido entre a raiva e o desejo. - Sois minha mulher, sois a minha mulher prometida! Sois a minha amada!

- Tenho de pedir-vos que vos retireis - digo eu num tom imponente, fecho-lhe a porta na cara, corro e atiro-me para cima da minha cama com um grande salto.

- Que se passa agora? - pergunta Agnes. Do outro lado do dormitório, puxaram as cortinas em redor da cama, um rapaz e uma rapariga devassa estão a fazer amor, consigo ouvir uma respiração ofegante e suspiros.

- Não podeis fazer pouco barulho? - grito para o fundo do longo quarto. - É

realmente chocante. É ofensivo para uma jovem donzela como eu. É chocante.

Não devia, de facto, ser permitido.

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Ana, Calais, Dezembro de 1539

Em toda esta longa viagem comecei a aprender como irei ser quando for rainha. As damas inglesas que o meu senhor, o rei, mandou para me fazerem companhia falaram em inglês comigo todos os dias, e Lorde Southampton tem estado do meu lado em todas as cidades em que entrámos, orientou-me e conduziu-me do modo mais prestável. São um povo extremamente formal e digno, tudo tem de ser feito de memória, de acordo com as regras, e estou a aprender a ocultar o meu entusiasmo perante as saudações, a música e as multidões que, em todo o lado, vêm para a ma para me ver. Não quero parecer a irmã de um Duque insignificante que veio do campo, quero ser como uma rainha, uma verdadeira Rainha da Inglaterra.

Em todas as cidades fui alvo de uma recepção por parte de pessoas que se aglomeravam nas ruas, chamando o meu nome e trazendo-me ramos de flores e presentes. A maioria das cidades oferece-me um penhor de lealdade e dá-me uma bolsa de ouro ou alguma jóia valiosa. Mas a minha chegada à minha primeira cidade inglesa, o porto de Calais, está a relativizar tudo o que se verificou antes. É um poderoso castelo inglês, com uma grande cidade muralhada em redor, construída para suportar qualquer ataque da França, o inimigo, mesmo do outro lado das portas fortemente vigiadas. Entramos pela porta sul, que dá para a estrada em direcção ao reino da França, e somos saudados por um nobre inglês, Lorde Lisle, e dezenas de cavalheiros e nobres, vestidos com opulência, com um pequeno exército de homens vestidos com uma libré vermelha e azul.

Dou graças a Deus por me ter enviado Lorde Lisle para que fosse meu amigo e conselheiro nestes dias difíceis, porque ele é um homem gentil, que tem algumas semelhanças com o meu pai. Sem ele, ficaria muda de terror, assim como com o meu parco domínio do inglês. Está vestido com a opulência de um rei, e há tantos nobres ingleses junto dele que são como um mar de peles e veludos

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. Mas ele pega na minha mão fria na sua mão grande e quente e sorri para mim, dizendo: “CouragePosso não saber o que quer dizer a palavra até perguntar ao meu intérprete, mas sei reconhecer um amigo quando o vejo, e consigo esboçar um pequeno sorriso pálido e depois ele enfia a minha mão debaixo do seu braço

e conduz-me pela ampla rua abaixo, até ao porto. Os sinos repicam uma saudação à minha chegada, e todas as esposas e filhos de mercadores se colocam ao longo das ruas para me deitarem uma olhadela, os aprendizes e criados gritam: “Ana de Clèves, hurra!”, quando eu vou a passar.

No porto, estão dois navios enormes, o do próprio rei, um denominado Sweepstake, que significa algo que tem que ver com jogo, e outro que foi baptizado Lion, ambos com estandartes desfraldados e tocando as trombetas, quando me vêem aproximar. Foram enviados da Inglaterra para me levarem ao rei, e com eles vem uma enorme frota para me escoltar. Os artilheiros disparam salvas de tiros, ouve-se o bramido do canhão, e toda a cidade fica mergulhada em fumo e ruído, mas isto é um grande cumprimento e eu sorrio e tento não me retrair com o barulho. Avançamos para Staple Hall onde o mayor da cidade e os mercadores me saúdam com longos discursos e duas bolsas de ouro e Lady Lisle, que está aqui para me cumprimentar com o marido, apresenta-me as minhas damas de companhia.

Todas me acompanham até à casa do rei, Chequer, e eu fico de pé enquanto uma a seguir à outra se aproxima, diz o seu nome, apresenta os seus cumprimentos e faz a sua vénia ou a sua reverência. Estou tão cansada e tão deslumbrada por todo este dia que sinto os meus joelhos começarem a enfraquecer, mas ainda assim eles avançam, um depois do outro. Lady Lisle está de pé, atrás de mim, pronuncia cada um dos nomes ao meu ouvido e fala-me um pouco acerca delas, mas eu não consigo perceber o que diz e, além disso, existem demasiados estranhos para eu conseguir absorver tudo. É uma multidão entontecedora; mas todos sorriem gentilmente para mim, e todos se inclinam respeitosamente em vénias. Devia estar feliz por ter tanta atenção e não me sentir esmagada por ela, eu sei.

Assim que a última dama, empregada, criada e pajem acabam de fazer a última vénia, e eu posso ir embora sem receio de ofender alguém, digo que gostaria de ir para os meus aposentos privados antes de jantarmos, e o meu intérprete diz-lhes; mas continuo a não conseguir estar em paz. Mal entramos nos meus aposentos privados, existem mais rostos estranhos que aguardam para serem

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apresentados como criados e membros dos meus aposentos privados. Estou tão

exausta com todas estas apresentações que digo que gostaria de ir para o meu quarto de dormir, mas nem sequer lá consigo ficar sozinha. Lady Lisle entra, juntamente com outras criadas e damas de companhia para se certificarem de que tenho tudo de que preciso. Uma dezena delas entra e dá palmadas na cama, endireita as cortinas e fica por ali, olhando para mim. Em desespero absoluto, digo que quero rezar e entro no pequeno quarto de vestir ao lado do quarto de dormir e fecho a porta nos seus rostos prestáveis.

Consigo ouvi-las à espera, do lado de fora, como uma audiência que aguarda que um bobo apareça, faça malabarismos e truques: um pouco baralhadas pela demora, mas suficientemente bem-humoradas. Encosto-me à porta e levo as costas da mão à testa. Sinto frio e, no entanto, estou a transpirar, como se estivesse com febre. Tenho de fazer isto. Sei que consigo fazê-lo, sei que posso ser Rainha da Inglaterra, e também uma boa Rainha. Aprenderei a língua deles; já consigo perceber a maior parte do que me dizem, ainda que gagueje quando tento falar. Aprenderei todos estes nomes novos, a respectiva posição e o modo correcto de me dirigir a eles, para não ter de estar sempre como uma pequena boneca com um marionetista ao meu lado, dizendo-me o que fazer. Assim que chegar à Inglaterra, tratarei de encomendar roupas novas. As minhas damas e eu, com as nossas roupas germânicas, parecemos pequenos patos gordos, ao lado destes cisnes ingleses. Andam semidespi-das com pouco mais do que um toucado na cabeça, andam de um lado para o outro com vestidos leves, enquanto nós estamos presas ao fustão, como se fôssemos um embrulho grumoso.

Aprenderei a ser elegante, aprenderei a ser agradável, irei aprender a ser uma rainha. Seguramente aprenderei a receber centenas de pessoas sem suar de medo.

Apercebo-me agora de que elas devem considerar o meu comportamento muito estranho. Primeiro, digo que me quero vestir para jantar, e depois entro num quarto que não é maior do que um armário, e faço-as esperar do lado de fora. Irei parecer ridiculamente devota ou, pior, saberão que sou penosamente tímida. Assim que tomo consciência deste pormenor, fico paralisada dentro do pequeno quarto. Sinto-me uma enorme pateta nascida no campo. Quase não sei como arranjar coragem para sair.

Fico a ouvir atrás da porta. Está tudo muito silencioso do lado de fora, talvez se tenham cansado de esperar por mim. Talvez todas tenham ido mudar de roupa mais uma vez. Hesitando, entreabro a porta e olho lá para fora.

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Só resta uma dama no quarto, sentada junto da janela, olhando calmamente lá para baixo, para o pátio, observando. Ao ouvir o ranger detractor da porta, ergue os olhos e o seu rosto é gentil e interessado.

- Lady Ana? - diz, e põe-se de pé, fazendo-me uma vénia.

- Eu...

- Sou Jane Bolena - diz ela, adivinhando acertadamente que não consigo lembrar-me de um único nome da confusão dessa manhã. - Sou uma das vossas damas de companhia.

Quando ela diz o nome, fico totalmente baralhada. Deve ser parente de Ana Bolena; mas o que está a fazer nos meus aposentos? Seguramente não pode ser minha dama de companhia. Com certeza deveria estar no exílio, ou caída em desgraça.

Olho em volta à procura de alguém que possa traduzir o que dizemos, e ela sorri e abana a cabeça. Aponta para si mesma e diz: “Jane Bolena”, e depois diz, muito devagar e com firmeza: “Irei ser vossa amiga.”

E eu compreendo-a. O seu sorriso é caloroso e o seu rosto sincero. Percebo que me está a dizer que vai ser minha amiga; e a ideia de ter uma amiga em quem possa confiar neste mar de gente nova e de rostos novos provoca-me um nó na garganta e pestanejo para reprimir as lágrimas, estendo-lhe a mão para a cumprimentar, como se fosse uma simples mulher do campo no mercado.

- Bolena? - balbucio.

- Sim - responde ela, segurando a minha mão na sua, que está gelada. - E sei tudo acerca de quão assustador é ser Rainha da Inglaterra. Quem poderia saber melhor do que eu como é difícil? Serei vossa amiga - repete ela. - Podeis confiar em mim - sacode a minha mão com uma mão calorosa, eu acredito nela, e ambas sorrimos.

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Jane Bolena, Calais, Dezembro de 1539

Ela nunca lhe agradará, pobre rapariga, nunca na vida, nunca em mil anos.

Estou espantada por os embaixadores dele não o terem avisado, têm estado a pensar apenas em criar uma liga contra a França e a Espanha, uma liga protestante contra os reis católicos, e não pensaram nos gostos do Rei Henrique.

Não há nada que ela possa fazer para se tornar o tipo de mulher que lhe agrada. A preferência dele vai para mulheres de inteligência célere, requintadas e sorridentes com um ar de quem promete tudo. Até Jane Seymour, ainda que fosse calada e obediente, irradiava um calor dócil que indiciava prazer sensual.

Mas esta é como uma criança, desajeitada como uma criança, com um olhar sincero de uma criança e um sorriso aberto e gentil. Parece entusiasmada quando alguém lhe faz uma vénia, e a primeira vez que viu os navios no porto parecia que ia começar a bater palmas. Quando está cansada ou confusa, empalidece como uma criança amuada e parece que vai começar a chorar. O nariz dela fica vermelho quando está ansiosa, como uma camponesa que está constipada. Se não fosse tão trágico, seria a maior das comédias, esta rapariga acanhada a calçar os sapatos com saltos de diamante de Ana Bolena. O que lhes passou pela cabeça para imaginarem que alguma vez ela conseguia ascender a tal posição?

Mas a sua própria falta de à-vontade dá-me informações vitais acerca dela.

Posso ser sua amiga, a sua grande amiga e aliada. Ela precisará de uma amiga, pobre rapariga perdida, necessitará de uma amiga que saiba movimentar-se numa corte como a nossa. Posso ensinar-lhe tudo o que ela precisará de saber, ensinar-lhe as competências que tem de adquirir. E quem poderia saber melhor do que eu, que tenho estado no centro da maior corte que a Inglaterra alguma vez teve, e que a vi a arder? Quem melhor do que eu para manter uma rainha em segurança, eu que vi uma destruir-se a si mesma e levar a sua família consigo? Prometi ser amiga desta nova rainha e posso honrar essa promessa. Ela é jovem, tem apenas vinte

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quatro anos, mas crescerá. É ignorante, mas pode ser ensinada. É inexperiente, mas a vida corrigi-lo-á. Posso fazer muito por esta jovem singular, e será um verdadeiro prazer e uma oportunidade ser sua guia e mentora. Catarina, Norfolk House, Lambeth, Dezembro de 1539

O meu tio vem visitar a minha avó e tenho de estar pronta para o caso de ele me mandar chamar. Todos sabemos o que está para acontecer, mas eu estou tão

entusiasmada como se estivesse à espera de uma grande surpresa. Pratiquei os meus passos em direcção a ele e a minha reverência. Treinei o meu olhar de espanto e o meu sorriso encantado perante as maravilhosas notícias. Gosto de estar preparada, gosto de ensaiar, e pedi a Agnes e a Joan que representassem o papel do meu tio, até os meus passos, a minha reverência e o meu grito de alegria de aristocrata serem perfeitos.

O quarto das criadas está farto de mim, farto como se se tivessem empanturrado com maçãs verdes, mas eu digo-lhes que é só uma questão de tempo, sou uma Howard, é claro que vou ser chamada para a corte, é claro que irei servir a rainha e, infelizmente, é claro que elas ficarão para trás; que pena.

Dizem que terei de aprender alemão, e que não vai haver danças. Sei que isto é mentira. Ela viverá como uma rainha e, se for aborrecida, eu brilharei muito mais, em comparação com ela. Dizem que se sabe que ela viverá em reclusão, e que os Holandeses não comem carne, apenas manteiga e queijo, o dia inteiro. Sei que isso é mentira - por que outro motivo teriam sido pintados de fresco os aposentos da rainha em Hampton Court, se não fosse para ela manter uma corte e receber convidados? Dizem que todas as damas de companhia dela já foram nomeadas e metade delas já partiu ao encontro dela em Calais. O meu tio vem dizer-me que eu perdi a minha oportunidade.

Esta parte acaba por me assustar. Sei que as sobrinhas do rei, Lady Margaret Douglas e a Marquesa de Dorset, concordaram ser as principais damas de companhia dela e receio que seja demasiado tarde para mim.

- Não - digo a Mary Lascelles - ele não pode vir cá dizer-me que tenho de ficar aqui. Não pode estar a vir cá para me dizer que é demasiado tarde, que já não há nenhum lugar para mim.

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- E se o fizer, então, isso será uma lição para vós - diz ela firmemente. - Que vos sirva de lição para que corrijais o vosso comportamento. Não mereceis ir para a corte de uma rainha com um comportamento tão leviano como o que haveis mantido com Francis Dereham. Nenhuma dama verdadeira deveria admitir-vos nos seus aposentos, quando vos haveis comportado como uma prostituta com um homem desses.

Estas palavras são tão desagradáveis que eu solto um leve suspiro e sinto as lágrimas aflorarem-me os olhos.

- Agora, não choreis - diz ela aborrecida. - Não choreis, Catarina. Só ireis fazer com que os vossos olhos fiquem vermelhos.

Imediatamente, tapo o nariz para conter as lágrimas.

- Mas se ele me disser que tenho de ficar aqui sem fazer nada, morro! - digo numa voz pastosa. - Vou fazer quinze anos no ano que vem, e depois farei dezoito, e depois terei dezanove e a seguir vinte, serei demasiado velha para me casar e morrerei aqui, a servir a minha avó, sem nunca ter ido a lado nenhum, sem nunca ter visto nada e sem nunca ter dançado na corte.

- Oh, que disparate! - exclama ela irritada. - Alguma vez conseguis pensar noutra coisa que não seja a vossa vaidade, Catarina? Além disso, algumas pessoas seriam capazes de pensar que já haveis feito bastante para uma donzela de catorze anos.

- Dada - digo, ainda com o dedo a tapar o nariz. Tiro-o e pressiono os meus dedos frios contra as bochechas. - Não fiz nada.

- Claro, ireis servir a rainha - diz ela desdenhosamente. - Não é provável que o vosso tio vá perder um lugar desses para um membro da família, por muito mal que vos tenhais comportado.

- As raparigas dizem...

- As raparigas têm inveja de vós, porque ides para a corte, tonta. Se ficásseis aqui, andariam de volta de vós com uma simpatia fingida.

O que ela acaba de dizer é tão verdade que até eu o consigo perceber.

- Oh, sim.

- Então, lavai novamente o rosto e vinde para os aposentos da Milady. O vosso tio estará aqui a qualquer momento.

Eu caminho o mais rápido possível, detendo-me apenas para dizer a Agnes, a Joan e a Margaret que sei muito bem que vou para a corte e que nunca acreditei

no seu despeito, nem por um único momento, quando as ouço gritar:

- Catarina! Catarina! Ele chegou! - e corro para a sala de estar da minha senhora e ali está ele, o meu tio, de pé, diante da lareira, a aquecer as costas.

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Seria necessário mais do que uma lareira para transmitir algum calor a este homem. A minha avó diz que ele é o martelo do rei; sempre que há trabalho duro ou sujo para fazer, é o meu tio quem lidera o exército inglês para bater o inimigo e o levar à submissão. Quando o Norte se rebelou para defender a religião antiga, há apenas dois anos, quando eu era ainda uma menina, foi o meu tio quem levou bom senso aos rebeldes. Prometeu-lhes perdão e depois enganou-os, levando-os para o cadafalso. Salvaguardou o trono do rei, poupou-lhe o incómodo de ter de travar as suas próprias batalhas e reprimiu uma grande rebelião. A minha avó diz que ele não conhece outro argumento para além das ciladas. Afirma que ele mandou enforcar milhares de pessoas, apesar de, no seu íntimo, concordar com a causa delas. A sua própria fé não o deteve. Nada o deterá. Consigo ver na sua face que é um homem duro, um homem que não se deixa amolecer facilmente; mas veio ver-me e mostrar-lhe-ei que tipo de sobrinha ele tem.

Baixo-me numa reverência, tal como praticámos vezes sem conta nos aposentos das criadas, inclinando-me ligeiramente para a frente, para que o meu senhor possa vislumbrar a curva tentadora dos meus seios, comprimidos no decote do meu vestido. Devagar, ergo os olhos para o seu rosto antes de me levantar, para que ele me veja quase de joelhos diante de si, concedendo-lhe um momento para pensar no prazer do que eu poderia estar a oferecer-lhe ali em baixo, com o meu pequeno nariz quase encostado às suas calças.

- Senhor, meu tio - suspiro ao levantar-me, como se estivesse a murmurar-lhe ao ouvido na cama. - Um muito bom dia, senhor.

- Valha-me Deus - diz ele bruscamente, e a minha avó pronuncia uma expressão de divertimento.

- Ela é uma... uma mais-valia para vós, senhora - diz ele, enquanto eu me levanto sem hesitar e fico de pé à frente dele. Entrelaço as mãos atrás das costas para expor o máximo que posso os meus seios, e arqueio as costas para que ele

possa admirar a elegância da minha cintura. Com os olhos modestamente baixos, podia passar por uma colegial, se não fosse pelo impulso do meu corpo e pelo pequeno sorriso semidisfarçado.

- Ela é uma Howard da cabeça aos pés - diz a minha avó, que não tem uma grande opinião das raparigas Howard, conhecidas como somos pela nossa beleza e insolência.

- Eu estava à espera de encontrar uma criança - diz ele como se estivesse muito satisfeito por me ter encontrado tão adulta.

- Uma criança muito conhecedora - ela lança-me um olhar duro para me lembrar que ninguém quer saber o que aprendi

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enquanto me encontrava sob os seus cuidados. Arregalo inocentemente os olhos.

Tinha sete anos, quando vi pela primeira vez uma criada deitar-se com um pajem, tinha onze quando Henry Manox me agarrou pela primeira vez. Em que é que ela pensou que eu me iria tornar?

- Ela vai dar-se muito bem - disse ele, depois de se ter concedido um tempo para se recompor. - Catarina, sabeis dançar, cantar, tocar alaúde e tudo o resto?

- Sim, meu senhor.

- Ler, escrever, em inglês e francês e latim?

Lanço um olhar angustiado à minha avó. Sou tremendamente estúpida, e todos o sabem. Sou tão estúpida que nem sequer sei se devia mentir acerca do assunto ou não.

- Para que é que ela precisa de saber isso? - pergunta ela. - A rainha só fala holandês, não é?

Ele abana a cabeça.

- Alemão. Mas o rei gosta de mulheres com estudos.

A duquesa sorri.

- Em tempos, gostou - diz ela. - A rapariga Seymour não era uma grande filósofa. Creio que ele perdeu o gosto pelas discussões com as esposas. Vós apreciais uma mulher com estudos?

Ele resfolega ligeiramente ao ouvir a pergunta. O mundo inteiro sabe que ele e a mulher estão separados há vários anos, por se odiarem tanto.

- De qualquer modo, o que é mais importante é que ela agrade à rainha e à corte - decide o meu tio. - Catarina, ireis para a corte e sereis uma das damas de companhia da nova rainha.

Eu sorrio-lhe.

- Estais feliz por irdes?

- Sim, senhor meu tio. Estou-vos muito grata - lembro-me de acrescentar.

- Haveis sido colocada numa posição tão importante para serdes uma mais-valia para a família - afirma ele solenemente. - Aqui a vossa avó diz-me que sois uma boa menina e que sabeis como vos comportar. Certificai-vos de que isso é verdade e não nos desiludais.

Eu anuo. Não me atrevo a olhar para a minha avó, que sabia tudo acerca de Henry Manox, que me apanhou uma vez no salão do andar de cima com Francis, com a mão na abertura frontal das calças dele e a marca da sua mordidela no meu pescoço, me chamou prostituta em potência e me disse que eu era uma pega estúpida, que me deu uma bofetada que me deixou a cabeça a andar à roda e voltou a ameaçar-me em relação a ele no Natal.

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- Haverá homens jovens que vos poderão dar atenção - avisa-me o meu tio, como se eu nunca tivesse conhecido um homem jovem antes. Lanço um olhar à minha avó, mas ela sorri brandamente. - Lembrai-vos de que nada é mais importante do que a vossa reputação. A vossa honra deve ser imaculada. Se ouvir quaisquer boatos impróprios a vosso respeito... e eu quero dizer quaisquer boatos, e podeis ter a certeza de que tenho conhecimento de tudo... retirar-vos-ei imediatamente da corte e mandar-vos-ei, nem sequer para aqui, mas de volta

para casa da vossa madrasta, no campo, em Horsham. Onde vos deixarei ficar para sempre. Compreendeis?

- Sim, senhor meu tio - o que sai num murmúrio aterrorizado. - Prometo.

- Ver-vos-ei na corte quase todos os dias - diz ele. Quase começo a desejar não ir. - E, de vez em quando, mandar-vos-ei chamar, para que venhais aos meus aposentos e me conteis como vos estais a dar com a rainha, e por aí adiante.

Sereis discreta e não alimentareis boatos. Mantereis os vossos olhos abertos e a boca fechada. Recebereis conselhos da vossa parente, Jane Bolena, que também está nos aposentos da rainha. Envidareis esforços para vos tornardes próxima da rainha, deveis ser a amiga dela. Do favor dos príncipes vem a riqueza. Nunca o esqueçais. Isto pode ser o princípio da vossa ascensão, Catarina.

- Sim, senhor meu tio.

- E mais uma coisa - diz ele em tom de aviso.

- Sim, tio?

- Modéstia, Catarina. É a maior virtude de uma mulher.

Baixo-me numa reverência, de cabeça baixa, tão modesta como uma freira.

Um riso trocista da minha avó diz-me que ela não está convencida. Mas quando levanto os olhos, o meu tio está a sorrir.

- Convincente. Podeis ir - diz ele.

Volto a fazer uma reverência e saio da sala antes de ele poder dizer algo pior.

Tenho ansiado por ir para a corte por causa das danças e dos jovens e ele fá-lo soar como se estivesse a entrar ao serviço como criada.

- O que é que ele disse? O que é que ele disse? - estão todas à espera no grande salão, desesperadas por saberem as novidades.

- Vou para a corte! - gabo-me. - E vou ter vestidos novos, toucados novos, ele diz que serei a rapariga mais bonita nos aposentos da rainha, e haverá danças todas as noites e atrevo-me a dizer que nunca mais voltarei a ver nenhuma de vós.

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Ana, Calais, Dezembro de 1539

As condições meteorológicas para atravessar o mar Inglês são, graças a Deus, finalmente adequadas, após vários dias de atraso. Esperava receber uma carta de casa antes de largarmos, mas ainda que tivéssemos de esperar interminavelmente que viesse bom tempo para fazermos a travessia, ninguém me escreveu.

Esperava que, pelo menos, a minha mãe me escrevesse; mesmo que não sinta saudades minhas, pensei que me pudesse ter enviado algumas palavras para me aconselhar. Pensei que Amélia já pudesse estar à espera de fazer uma viagem à Inglaterra e que me escrevesse uma carta com saudações fraternais. Quase podia ter-me rido de mim mesma esta noite, por pensar como devo estar abatida, se já desejo receber uma carta de Amélia.

A única que estava certa de que receberia era a do meu irmão. Tinha a certeza de que iria receber uma carta dele. Ele nunca mais foi igual comigo, nunca mais, durante os longos preparativos da minha partida, e separámo-nos do mesmo modo que havíamos vivido todas as nossas vidas: pela minha parte, com um temor ressentido do seu poder, pela dele, com uma irritação à qual não consegue dar voz. Pensei que me pudesse escrever para me designar assuntos a tratar na corte inglesa; seguramente deveria estar a representar o meu país e os nossos interesses? Mas há todos os lordes da família Clèves que me acompanham na minha viagem, não tenho dúvidas de que falou com eles ou que lhes escreveu.

Deve ter decidido que eu não sou competente para tratar dos assuntos dele.

De qualquer modo, pensei que era certo que me iria escrever para me indicar regras de conduta. Afinal, passou a vida a dominar-me, não pensei que fosse desistir assim de mim. Mas parece que estou livre dele. Em vez de estar satisfeita por isso, sinto-me desconfortável. É estranho deixar a minha família e que nenhum deles me envie sequer uma mensagem a desejar-me boa viagem.

Devemos largar amanhã, de manhã cedo, para apanharmos a maré e eu aguardo nos meus aposentos da casa do rei, “The 54 51

Chequer”, que Lorde Lisle venha ter comigo, quando ouço algo que me parece uma discussão, lá fora, na sala de audiências. Por sorte, a minha tradutora de Clèves, Lotte, está comigo e, a um aceno meu, atravessa silenciosamente o

quarto, dirigindo-se para a porta e ouve o rápido discurso em inglês. A sua expressão é intensa, franze o sobrolho e depois, quando ouve passos a aproximarem-se, corre precipitadamente de volta para o quarto e senta-se ao meu lado.

Lorde Lisle faz uma vénia quando entra no quarto, mas tem o rosto enrubescido. Alisa o seu justilho de veludo, como se para se compor.

- Perdoai-me, Lady Ana - diz. - A casa está virada do avesso com os preparativos. Virei buscar-vos dentro de uma hora.

Ela sussurra-me a tradução das palavras dele e eu faço uma vénia e sorrio. Ele olha de relance para a porta.

- Ela ouviu-nos? - pergunta ele subitamente a Lotte, e ela volta-se para mim para me ver assentir com a cabeça. Ele aproxima-se.

- O Secretário Thomas Cromwell é da vossa religião - afirma em voz baixa.

Lotte murmura as palavras em alemão ao meu ouvido para que eu possa compreendê-lo. - Protegeu erradamente algumas centenas de luteranos nesta cidade que se encontra sob o meu comando.

Percebo as palavras, é evidente, mas não o seu significado.

- São hereges - diz ele. - Negam a autoridade do rei, enquanto líder espiritual, e negam o milagre sagrado do sacrifício de Jesus Cristo e que o seu vinho se transforma em sangue. Esta é a crença da Igreja da Inglaterra. Negá-la é uma heresia punida com a morte.

Pouso a mão ao de leve no braço de Lotte. Sei que estes são temas extremamente perigosos, mas não sei o que devo dizer.

- O próprio Secretário Cromwell pode ser acusado de heresia, se o rei souber que ele deu abrigo a estes homens - afirma Lorde Lisle. - Estava a dizer ao filho dele, Gregory, que estes homens deviam ser acusados, seja quem for que os protege. Estava a avisá-lo de que não posso olhar para o lado, estava a avisá-lo de que os bons ingleses pensam como eu, que Deus não admitirá que trocem dele.

- Não sei nada acerca dessas questões inglesas - digo cuidadosamente. - Só

desejo ser orientada pelo meu marido - penso por instantes no meu irmão, que me incumbiu de afastar o meu marido destas superstições papistas e de o conduzir no sentido da claridade da Reforma. Penso que vou ter de o desapontar novamente.

Lorde Lisle assente com a cabeça, faz uma vénia e dá um passo atrás.

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- Perdoai-me - diz ele. - Não vos devia ter incomodado com estes assuntos. Só queria deixar claro que não concordo com a protecção de Thomas Cromwell a estas pessoas e que sou totalmente leal ao rei e à sua igreja.

Eu anuo, o que mais posso dizer ou fazer? E ele sai do quarto. Volto-me para Lotte.

- Não é exactamente assim - diz ela muito baixinho. - Ele acusou de facto o Senhor Cromwell de proteger os Luteranos, mas o filho, Gregoiy Cromwell, acusou-o de ser papista em segredo, e afirmou que ele iria ser vigiado. Estavam a ameaçar-se um ao outro.

- O que é que ele espera que eu faça? - pergunto eu baralhada. - Não deve estar a pensar que eu posso tomar decisões nessa matéria?

Ela parece perturbada.

- Talvez que faleis com o rei? Que o influencieis?

- Lorde Lisle disseme praticamente que, aos seus olhos, eu própria sou uma herege. Eu nego que o vinho se transforme em sangue. Qualquer pessoa com um pouco de bom senso deve saber que tal não pode acontecer.

- Eles executam realmente os hereges na Inglaterra? - pergunta a mulher nervosamente.

Eu assinto.

- Como?

- Queimam-nos na fogueira.

Perante a sua expressão horrorizada preparo-me para lhe explicar que o rei tem conhecimento da minha fé e pensa-se que se vai aliar ao meu irmão protestante e à sua liga de duques protestantes; mas ouve-se um grito junto da porta e os barcos estão prontos para partir.

- Vinde - digo com um ímpeto súbito de valentia simulada. - Vamos embora, de qualquer modo, sejam quais forem os perigos. Nada pode ser pior do que Clèves.

Largar de um porto inglês num navio inglês dá-me a sensação de estar a começar uma vida nova. A maioria das minhas acompanhantes de Clèves irão deixar-me em breve, por isso, há mais despedidas, e em seguida embarco no navio e partimos, as barcaças a remos rebocam o navio para fora do porto, eles içam as velas que apanham o vento e começam a ranger, o navio ergue-se como se fosse levantar voo, e agora, neste momento, sinto verdadeiramente que sou uma rainha que se dirige para o seu país, como uma rainha de uma história.

Dirijo-me à proa e olho para o lado, para a água em movimento, na crista de ondas brancas num mar negro, e pergunto-me quando verei a minha nova casa, o meu reino, a minha Inglaterra. À minha volta existem outras pequenas luzes nos barcos que navegam connosco. É uma frota de navios, cinquenta grandes embarcações, a frota da rainha, e eu começo a aperceber-me da riqueza e do poder do meu novo país.

Devemos navegar o dia inteiro, dizem que o mar está calmo, mas as ondas parecem-me muito altas e perigosas. Os navios pequenos trepam um muro de água e depois mergulham no intervalo entre as ondas. Por vezes, perdemos totalmente de vista os outros navios que fazem parte da frota. As velas ondeiam e rangem como se fossem rasgar-se, e os marinheiros ingleses puxam as cordas com força e movem-se rapidamente pelo convés, como loucos blasfemos. Vejo o dia começar a clarear, um sol cinzento sobre um mar cinzento, e sinto a imensidade da água à minha volta e até sob mim, depois vou descansar para o meu camarote. Algumas das damas estão enjoadas, mas eu sinto-me bem. Lady Lisle faz-me companhia a maior parte do dia, bem como algumas das outras, Jane Bolena entre elas. Terei de aprender os nomes de todas as outras. O dia passa devagar, subo ao convés, mas tudo o que posso ver são os navios em nosso redor, quase até onde a minha vista alcança, encontra-se a frota inglesa, fazendo-

me companhia. Devia sentir-me orgulhosa por esta atenção me ser dispensada, mas mais do que qualquer coisa, sinto-me desconfortável por ser o centro e a causa de tanto esforço e actividade. Todos os marinheiros do navio retiram os seus bonés e fazem uma vénia, sempre que eu saio do camarote, e duas das damas têm sempre de me escoltar, mesmo que seja só até à proa do navio. Após algum tempo, sinto-me tão em evidência, tão incansável, que me obrigo a ficar sentada, sem me mexer no meu camarote e observo as ondas a subir e a descer através da pequenina janela, em vez de incomodar todos, ao passear pelo navio.

A primeira visão que tenho da Inglaterra é uma sombra escura em mares que escurecem. Está a ficar tarde, na altura que entramos num minúsculo porto, mas apesar de estar escuro e a chover, sou saudada por pessoas ainda mais importantes. Levam-me para descansar no castelo, e para comer, e estão lá centenas, verdadeiramente centenas, de pessoas que vêm beijar a minha mão e dar-me as boas-vindas ao meu novo país. No meio da confusão, conheço 57

lordes e as respectivas damas, um bispo, o guardião do castelo, algumas outras damas que irão prestar serviços nos meus aposentos, outras damas que serão minhas damas de companhia. Torna-se evidente que nunca mais poderei ficar só, por um minuto que seja, na minha vida.

Mal acabamos de comer, devemos todos prosseguir viagem, existe um plano estrito que indica onde vamos ficar e onde vamos comer, mas perguntam-me, de um modo muito cortês, se já estou preparada para fazer a viagem naquele momento. Percebo rapidamente que aquilo não significa, na verdade, que me perguntam se quero partir. Significa que o plano diz que devemos prosseguir viagem, e esperam que eu indique a minha concordância.

Por isso, ainda que seja final de tarde e que eu esteja tão cansada que pagaria uma fortuna para ficar aqui a descansar, subo para a liteira que o meu irmão equipou para mim, de modo tão contrariado, os lordes e as damas montam nos seus cavalos e avançamos ruidosamente ao longo das estradas, no escuro, com soldados à frente e atrás de nós, como se fôssemos um exército invasor, e eu relembro a mim mesma que agora sou uma rainha, e se é assim que as rainhas viajam e que são servidas, então, tenho de me habituar a isso, e não ansiar por uma cama tranquila e uma refeição sem uma audiência a observar cada um dos meus movimentos.

Nessa noite ficamos no castelo de Dover, chegando depois de escurecer. No dia seguinte, estou tão cansada que quase não me consigo levantar, mas há meia dúzia de criadas que seguram na minha combinação, no meu vestido, na minha escova de cabelo e no meu toucado, e damas de companhia de pé atrás delas, e damas de companhia atrás delas, e chega uma mensagem do Duque de Suffolk, a perguntar se gostaria de viajar até à Cantuária, uma vez que já quebrei o meu jejum e disse as minhas orações? Pela mensagem, percebo que está ansioso por partir e que pensa que eu deveria apressar-me a dizer as minhas orações e a comer, por isso, digo que ficaria encantada, e que eu própria estou cheia de vontade de seguir viagem.

O que afirmo é claramente mentira, uma vez que tem estado a chover a noite inteira e agora chove ainda mais, e começa a cair granizo. Mas todos preferem acreditar que estou ansiosa por ver o rei, e as minhas damas agasalham-me o melhor que podem e, em seguida, caminhamos penosamente para fora do pátio com um vento forte a soprar, e partimos pela estrada a que chamam Watling Street, em direcção à cidade da Cantuária.

O próprio arcebispo, Thomas Cranmer, um homem afável com um sorriso gentil, cumprimenta-me na estrada fora da cidade, e cavalga ao lado da minha liteira enquanto percorremos os últimos quilómetros. Olho lá para fora, por entre a chuva torrencial; esta era a grande estrada dos peregrinos para os fiéis que se dirigiam ao túmulo de São Tomás Becket na catedral. Avisto a agulha da igreja, muito antes de conseguir sequer ver as muralhas da cidade, é uma construção tão alta e bonita, e a luz captura-a por entre nuvens escuras, como se Deus estivesse a tocar no lugar sagrado. A estrada aqui é pavimentada e algumas casas, ao longo da mesma, foram construídas para alojar os peregrinos, que costumavam afluir de toda a Europa para rezar neste templo tão belo. Em tempos, este era um dos grandes lugares sagrados do mundo - há apenas alguns anos.

Tudo está mudado agora. Está tão transformado como se tivessem demolido a igreja. A minha mãe avisou-me para não fazer observações a respeito do que ouvíramos acerca das grandes alterações do rei, nem em relação ao que eu visse

- por muito chocante que fosse. Os próprios comissários do rei foram ao templo do grande santo e retiraram o tesouro que havia sido oferecido ao templo.

Entraram na cripta e profanaram o próprio caixão que continha o corpo do santo.

Diz-se que retiraram o seu corpo martirizado e que o atiraram para a pilha de estrume, do lado de fora das muralhas da cidade, de tão determinados que estavam em destruir este lugar sagrado.

O meu irmão diria que é bom que os Ingleses tenham voltado as costas à superstição e às práticas papistas, mas ele não vê que as casas para os peregrinos foram substituídas por prostíbulos e estalagens e que existem pedintes sem lugar para onde ir, ao longo das estradas que vão para a Cantuária. O meu irmão não sabe que metade das casas da Cantuária eram hospitais para os pobres e enfermos e que a igreja pagava para que os peregrinos sem meios lá fossem internados e tratados até recuperarem a saúde e que as freiras e os monges passavam as suas vidas a servir os pobres. Agora, os nossos soldados têm de abrir caminho, aos empurrões, por entre uma multidão de pessoas que procuram o refúgio sagrado que lhes foi prometido: mas tudo desapareceu. Tenho cuidado para não dizer nada enquanto a nossa cavalgada passa por portões enormes e o arcebispo desmonta do seu cavalo para me dar as boas-vindas a uma bonita casa que foi claramente uma abadia, talvez há apenas alguns meses. Olho em volta enquanto entramos num belo salão onde os viajantes teriam sido recebidos livremente, e onde os monges teriam jantado. Sei que o meu irmão deseja que eu afaste ainda mais este país da superstição e do papado, mas não viu o que aqui foi destruído, em nome da Reforma.

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As janelas, que antes possuíam vitrais coloridos onde se exibiam histórias magníficas, foram quebradas de um modo tào descuidado que a pedra está partida e o rendilhado da alvenaria está todo esmagado. Se um rapaz mal comportado tivesse feito uma coisa destas às janelas, teria sido chicoteado. Lá em cima, no tecto abobadado, havia pequenos anjos e, creio, um friso de santos, que foram destruídos com um martelo por um louco que não tinha gosto por nada. Eu sei que é um disparate sofrer por coisas de pedra; mas os homens que fizeram esta obra de Deus não a fizeram de modo piedoso. Podiam ter derrubado as estátuas e arranjado as paredes a seguir. Mas, em vez disso, limitaram-se a cortar-lhes as cabeças, deixando os pequenos corpos dos anjos sem cabeça.

Como isto serve a vontade de Deus, não posso saber.

Sou uma filha de Clèves e nós voltámo-nos contra o papado e com razão; mas nunca tinha visto este tipo de estupidez antes. Não posso perceber porque é que os homens considerariam que um mundo em que algo belo é destruído e em que algo partido é deixado no seu lugar seria melhor. Depois, levam-me para os meus aposentos, que é óbvio que em tempos pertenceram ao prior. Foram

rebocados e pintados de novo e ainda cheiram a cal. E aqui começo a compreender o verdadeiro motivo da Reforma neste país. Este esplêndido edifício, e as terras em que se encontra, as grandes quintas que lhe pagam rendas e os rebanhos de ovelhas que produzem a sua lã, todos pertenceram, outrora, à igreja e ao papa. A igreja era a maior proprietária de terras da Inglaterra. Agora, toda essa riqueza é propriedade do rei. Pela primeira vez, percebo que não se trata apenas de uma questão de veneração de Deus. Aqui também existe a ganância do homem.

Talvez exista igualmente a vaidade. Porque Thomas Becket foi um santo que desafiou um rei da Inglaterra tirano. O seu corpo permaneceu na cripta desta gigantesca catedral, num túmulo revestido de ouro e jóias, e o próprio rei - que ordenou a demolição deste templo - costumava vir aqui rezar para pedir ajuda.

Mas agora o rei não precisa de ajuda nenhuma, e os rebeldes não são considerados neste país, a riqueza e a beleza têm de pertencer inteiramente ao rei. O meu irmão diria que este é um aspecto positivo e que um país não pode ter dois chefes.

Estou exausta, a mudar de vestido para ir jantar, quando ouço outro bramido de armas e, apesar de estar escuro como breu e de ser quase meia-noite, Jane Bolena entra a sorrir para me dizer que estão centenas de pessoas no grande salão para me darem as boas-vindas à Cantuária.

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- Muitos cavalheiros? - pergunto-lhe no meu inglês afectado.

Ela sorri logo, sabe que receio uma longa fila de apresentações.

- Só vos querem ver - diz ela claramente, apontando para os olhos.

- Só tendes de acenar - exemplifica um aceno e eu rio-me da mascarada que representamos uma para a outra enquanto aprendo a língua dela.

Aponto para a janela.

- São terras férteis - digo.

Ela assente.

- São terras da abadia, terras de Deus.

- E agora são do rei?

Ela esboça um sorriso irónico.

- O rei é agora o chefe da igreja, compreendeis? Toda a riqueza - ela hesita - a riqueza espiritual da igreja é agora propriedade dele.

- E o povo está satisfeito? - pergunto. Sinto-me tão frustrada por não conseguir falar fluentemente. - Os padres maus foram embora?

Ela olha de relance para a porta como se quisesse certificar-se de que ninguém pode ouvir a nossa conversa.

- O povo não está satisfeito - diz ela. - O povo adorava os templos e os santos, não sabem porque é que as velas estão a ser retiradas. Não sabem porque é que não podem rezar para pedir ajuda. Mas não deveis falar disto a ninguém, além de mim. A vontade do rei é que a igreja seja destruída.

Assinto com a cabeça.

- Ele é protestante? - pergunto.

O seu sorriso rápido faz-lhe brilhar os olhos.

- Oh, não! - diz ela. - Ele é o que quiser ser. Destruiu a igreja para poder casar-se com a minha cunhada; ela acreditava na igreja reformada e o rei acreditava com ela. Depois, destruiu-a. Quase transformou a igreja de novo em católica, a missa foi praticamente recuperada na totalidade - mas ele nunca devolverá a riqueza. Quem sabe o que ele irá fazer a seguir? Em que é que ele irá acreditar a seguir?

Compreendo apenas uma parte disto tudo e por isso viro-me de costas para ela e olho para o lado de fora da janela, para a chuva torrencial e para a escuridão semelhante a breu. A ideia de um rei que pode determinar, não só a vida que o seu povo leva, mas até a natureza do Deus que venera, faz-me tremer. Este é um rei que demoliu o templo de um dos maiores santos da Cristandade, este é

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um rei que transformou os maiores mosteiros deste país em casas privadas. O

meu irmão estava bastante errado em ordenar-me que conduzisse este rei para ideias aceitadas. Este é um rei que fará o que lhe aprouver, e atrevo-me a afirmar que ninguém o deterá nem demoverá.

- Devíamos ir jantar - diz-me gentilmente Jane Bolena. - Não faleis destes assuntos com ninguém.

- Sim - digo, e com ela a apenas um passo de distância atrás de mim, abro a porta dos meus aposentos privados para as multidões de pessoas que esperam por mim na sala de audiências, e encaro o mar de rostos sorridentes desconhecidos, mais uma vez.

Estou tão encantada por estar abrigada da chuva e da escuridão que bebo um grande copo de vinho e como com vontade, apesar de estar sentada sozinha sob um dossel e de ser servida por homens que se ajoelham para me oferecer pratos.

Estão centenas de pessoas a jantar no salão e centenas mais que espreitam pelas janelas e portas para me ver, como se eu fosse uma espécie de animal estranho.

Irei habituar-me a isto, sei que terei de o fazer; e habituar-me-ei. Não faz sentido ser rainha da Inglaterra e ficar envergonhada diante dos criados. Esta abadia roubada nem sequer é um dos grandes palácios do reino e, no entanto, nunca vi um lugar tão rico em dourado, pinturas e tapeçarias. Pergunto ao arcebispo se este é o seu palácio e ele sorri e diz que a sua casa fica perto. Este é um país de tantas riquezas que é quase inimaginável.

Não vou para a minha cama até às primeiras horas da madrugada e depois levantamo-nos de novo, cedo, para seguirmos viagem. Mas por muito cedo que partamos, demoraremos uma eternidade a sair, porque todos os dias há mais pessoas que vêm connosco. O arcebispo e todo o seu séquito, de facto centenas de pessoas, viajam agora comigo, e neste dia juntam-se a nós mais lordes de relevo, que me escoltam até Rochester. As pessoas ladeiam as ruas para me saudarem e, a todos os sítios onde vou, sorrio e aceno.

Gostava de me poder lembrar dos nomes de todos, mas sempre que paramos em qualquer lugar, um homem faustosamente vestido aproxima-se, faz-me uma vénia, e Lady Lisle ou Lady Southampton, ou uma das outras damas, murmura qualquer coisa ao meu ouvido, eu sorrio e estendo a minha mão, e tento fixar um

novo conjunto de nomes. E de qualquer forma, são todos muito parecidos: todos vestidos com veludo luxuoso e trazendo correntes de ouro, com pérolas ou jóias nos chapéus. E há dezenas deles, centenas, metade da Inglaterra veio apresentar-me os seus cumprimentos, e eu já não consigo distinguir um homem do outro.

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Jantamos num grande salão com muita cerimónia e Lady Browne, que vai ser a responsável pelas minhas aias de companhia, é-me apresentada. Ela indica-me as minhas aias pelo nome e eu sorrio para a interminável fila de Catarinas, Marias, Isabéis, Anas, Bessies e Madges, todas atrevidas e bonitas, sob minúsculos toucados que revelam o seu cabelo de um modo que o meu irmão apelidaria de imodesto, todas elas elegantes nos seus chinelinhos, e todas me olham fixamente como se eu fosse um falcão branco selvagem pousado num galinheiro. Lady Browne, em particular, olha- -me fixamente, deixando-me atrapalhada, e eu chamo Lotte e peço- -lhe que diga a Lady Browne, em inglês, que espero que, quando chegarmos a Londres, me aconselhe como me devo vestir, de acordo com os costumes ingleses. Quando ela transmite a minha mensagem, Lady Browne cora, vira-se e não volta a olhar-me fixamente, e eu receio que ela estivesse de facto a pensar que as minhas roupas são muito estranhas e que eu sou feia.

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Jane Bolena, Rochester, Dezembro de 1539

- Aconselhai-a acerca do modo como se veste - pronuncia Lady Browne ao meu ouvido com voz sibilante, como se fosse culpa minha que a nova rainha da Inglaterra pareça tão exótica. - Jane Bolena, dizei-me! Ela não poderia ter mudado de roupa em Calais?

- Quem poderia tê-la aconselhado? - pergunto sensatamente. - Afinal, todas as damas dela se vestem da mesma maneira.

- Lorde Lisle podia tê-la aconselhado. Poderia ter-lhe dito que não poderia vir para a Inglaterra vestida como um frade de fustão. Como é se pode esperar que eu consiga manter as damas de companhia dela na ordem, quando se riem dela às gargalhadas? Quase tive de dar uma bofetada a Catarina Howard. Aquela

criança está há um dia ao serviço real e já começou a imitar a maneira de andar da rainha e, o que é pior, imita-a na perfeição.

- As damas de companhia são sempre travessas. Vós ireis colocá-las na ordem.

- Não há tempo para costureiras até ela chegar a Londres. Terá de prosseguir tal como começou, mesmo que pareça um embrulho. O que está ela a fazer agora?

- Está a descansar - digo eu com prudência. - Pensei deixá-la em paz por alguns momentos.

- Ela vai ser rainha da Inglaterra - atira sua senhoria. - Não é uma vida pacífica para nenhuma mulher.

Eu não digo nada.

- Deveríamos dizer alguma coisa ao rei? Deverei falar com o meu marido? -

pergunta-me Lady Browne, em voz muito baixa. - Não deveríamos dizer ao Secretário Cromwell que temos... reservas? Ireis dizer alguma coisa ao Duque?

Penso rapidamente. Juro que não vou ser a primeira a falar contra esta rainha.

- Talvez vós devêsseis falar com Sir Anthony - digo. - Em privado, como mulher dele.

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- Devo dizer-lhe que estamos de acordo? Com certeza, o meu senhor Southampton percebe que ela não é adequada para ser rainha. Tem tanta falta de encanto! E é praticamente muda!

- Eu não tenho opinião própria - digo muito depressa.

Ela ri-se de imediato.

- Oh, Jane Bolena, vós tendes sempre uma opinião; não há muita coisa que

vos escape.

- Talvez. Mas se o rei a escolheu porque ela traz consigo a aliança protestante, se o meu senhor Cromwell a escolheu porque isso nos torna seguros em relação à Espanha e à França, então, talvez o facto de o toucado dela ser do tamanho de uma casa não seja importante para ele. Ela pode sempre mudar de toucado. E eu não quereria ser a pessoa a sugerir ao rei que a mulher a quem ele se prometeu solene e vitaliciamente não é adequada para ser rainha.

As minhas palavras fazem com que se detenha.

- Pensais que seria errado da minha parte criticá-la?

Penso na rapariga de rosto pálido que espreitou para fora do quarto de vestir, em Calais, demasiado tímida e assustada para se sentar num quarto com a sua própria corte, e descubro que quero protegê-la desta falta de amabilidade.

- Bem, eu não tenho críticas para lhe fazer - digo. - Sou dama de companhia dela. Posso aconselhá-la relativamente aos vestidos e ao cabelo, se ela mo pedir; mas não terei uma palavra a dizer contra ela.

- Ou, de qualquer forma, por enquanto - corrige-me Lady Browne friamente. -

Até encontrardes nisso uma vantagem para vós.

Deixo passar aquele comentário, porque, assim que vou para responder, a porta abre-se e o guarda anuncia:

- Menina Catarina Carey, a dama de companhia da rainha.

É ela. A minha sobrinha. Tenho de encarar a criança por fim. Encontro um sorriso e estendo-lhe a minha mão.

- Pequena Catarina! - exclamo. - Como haveis crescido!

Ela segurame nas mãos mas não levanta o rosto para me dar um beijo na cara.

Olha para mim em silêncio, como se estivesse a avaliar-me. A última vez que a vi foi quando ela estava de pé, atrás da tia, Ana, no cadafalso, e lhe segurou na capa, enquanto a rainha pousava a cabeça no cepo. A última vez que ela me viu foi do lado de fora da sala do tribunal, quando chamaram o meu nome para que entrasse para dar o meu testemunho. Recordo-me agora de como ela olhou para

mim nessa altura: com curiosidade. Olhava para mim com tanta curiosidade, como se nunca tivesse visto uma mulher como eu antes.

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- Tendes frio? Como foi a vossa viagem? Quereis beber um pouco de vinho? -

puxo-a para perto da lareira e ela segue-me, mas não com muito entusiasmo. -

Esta é Lady Browne - digo. A vénia que ela faz está bem feita, ela tem alguma graciosidade. Foi bem ensinada.

- E como está a vossa mãe? E o vosso pai?

- Estão bem - a sua voz é clara com apenas vestígios do campo na fala. - A minha mãe enviou-vos uma carta.

Tira-a do bolso e entrega-ma. Eu levo-a para mais perto da luz da grande vela quadrada que utilizamos na casa real e quebro o selo de lacre.

Jane,

Assim começa Maria Bolena, sem uma palavra sobre o meu título, como se eu não tivesse o mesmo apelido que ela no meu nome, como se eu não fosse Lady Rochford enquanto ela é quem vive em Rochford Hall. Como se ela não tivesse a minha herança e a minha casa enquanto eu tenho a dela, que é nada. Há muito tempo, preferi o amor do meu marido à vaidade e perigos da corte, e talvez todos tivéssemos sido mais felizes, se vós e a minha irmã tivésseis feito o mesmo -

Deus tenha piedade da sua alma. Não tenho qualquer desejo de voltar à corte, mas desejo-vos, e à nova Rainha Ana, melhor sorte do que à anterior, e espero que a vossa ambição vos traga a felicidade que procurais, e não o que alguns possam pensar que mereceis.

O meu tio solicitou a presença da minha filha Catarina na corte e, em obediência a ele, ela chegará para passar o Ano Novo. Dei-lhe instruções no sentido de que obedeça apenas ao rei e ao tio, que seja guiada apenas pelos meus conselhos e pela sua própria boa consciência. Disselhe que, no final, vós não haveis sido amiga da minha irmã nem do meu irmão e aconselhei-a a tratar-vos com o respeito que mereceis.

Maria Stafford

Fico a tremer quando acabo de ler este bilhete e volto a lê-lo como se, da segunda vez, pudesse ser diferente. O respeito que mereço? O respeito que mereço? O que é que fiz, além de mentir e enganar para salvar aqueles dois até ao último minuto, e depois, o que fiz, senão proteger a família do desastre que eles fizeram cair

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sobre nós? Que mais poderia fazer? O que deveria ter feito de modo diferente?

Obedeci ao Duque, o meu tio, como era meu dever, fiz o que ele me mandou, e o que recebo em troca é isto: o facto de ser a sua parente fiel e de ser honrada enquanto tal.

Quem é ela para me dizer que sou uma mulher que poderia ter sido uma boa esposa? Eu amava o meu marido com cada milímetro da minha alma e ser, e teria sido tudo para ele se não fossem ela e a irmã e a rede que criaram para ele, uma rede que ele não conseguia quebrar e que eu não consegui quebrar por ele.

Não estaria ele vivo hoje, se não se tivesse afundado com a desgraça da irmã?

Não seria hoje o meu marido e o pai do nosso filho se não tivesse sido acusado e decapitado juntamente com Ana? E o que fez Maria para o salvar? O que é que ela alguma vez fez, senão procurar os seus benefícios?

Podia gritar de pura raiva e desespero por ela ter desencadeado novamente estas ideias na minha cabeça. O facto de ela duvidar do meu amor por Jorge, de ela me censurar! Estou sem palavras diante da malícia da carta dela, da acusação velada. O que mais poderia eu ter feito? Quero gritar-lhe na cara. Estáveis lá, também não haveis sido a salvadora de Jorge e Ana. Que mais podia qualquer uma de nós ter feito?

Mas ela sempre foi assim, ela e a irmã; sempre encontraram uma maneira de me fazerem sentir que sabiam mais, percebiam mais e analisavam melhor. Desde que me casei com Jorge, tive consciência de que as irmãs eram consideradas jovens mais requintadas do que eu: uma foi amante do rei e depois a outra. Uma delas acabou por ser mulher do rei e rainha da Inglaterra. Nasceram para serem grandes! As irmãs Bolena! E eu era apenas uma cunhada. Bem, que seja. Não cheguei onde estou hoje, não prestei o meu testemunho e fiz um juramento para ser repreendida por uma mulher que fugiu diante do primeiro sinal de perigo e

que se casou com um homem para se esconder no campo e rezar orações protestantes para que viessem melhores tempos.

Catarina, a filha dela, olha para mim com curiosidade.

- Ela mostrou-vos isto? - pergunto, com a voz a tremer. Lady Brown olha para mim, avidamente inquisitiva.

- Não - responde Catarina.

Deito a carta na lareira, como se fossem provas contra mim. As três vemo-la arder até se transformar em cinzas cinzentas.

- Responderei mais tarde - digo. - Não era nada de importante. Agora vou ver se já prepararam o vosso quarto.

É uma desculpa para me afastar das duas e das cinzas macias do bilhete que arde na lareira. Saio apressadamente e chamo as criadas 67

, repreendendo-as pela sua distracção, e depois dirijo-me tranquilamente para o meu quarto e encosto a minha testa quente ao vidro frio e espesso. Vou ignorar esta calúnia, ignorarei este insulto, ignorarei esta inimizade. Seja qual for o seu motivo. Vivo no centro da corte. Sirvo o meu rei e a minha família. A seu tempo, todos me reconhecerão como a melhor da família, a rapariga Bolena que serviu o rei e a família até ao fim, nunca se retraindo, nunca hesitando, mesmo que o rei se tenha tornado gordo e perigoso, e que toda a família esteja morta à excepção de mim.

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Catarina, Rochester, Noite de Ano Novo, 1539

Agora vamos ver, o que tenho? O que tenho agora que sou praticamente uma dama adulta na corte?

Tenho três vestidos novos, o que é bom, mas não é um guarda-roupa lá muito variado para uma rapariga que espera ser muito observada e comentada. Tenho três novos toucados a condizer, que são muito bonitos, mas nenhum deles é

enfeitado com mais nada para além de renda dourada, e posso ver que muitas das damas da corte têm pérolas e até pedras preciosas nos seus. Tenho umas luvas de qualidade e uma capa nova, um regalo e duas golas de renda, mas não posso dizer que sou excessivamente mimada na minha escolha ou quantidade de roupas. E de que vale estar na corte, se não tenho uma grande quantidade de roupas bonitas para vestir?

Diante de todas as minhas grandes expectativas em relação à vida na corte, não está a revelar-se muito divertido. Descemos de barco desde Gravesend com o pior dos tempos que jamais vi, chuvas torrenciais e um vento terrível, por isso, o meu toucado ficou todo torto e o cabelo todo despenteado, a minha capa nova de veludo molhou-se e tenho a certeza de que vai ficar toda manchada. A futura rainha cumprimentou-nos com um rosto tão pálido como o de um peixe. Podem dizer que ela está cansada, mas parece estar apenas espantada com tudo, como uma campónia que veio à cidade pela primeira vez, olha aterrada para as coisas mais comuns. Quando as pessoas lhe gritam vivas, sorri e acena como uma criança numa feira itinerante, mas quando lhe é solicitado que cumprimente um lorde que tenha chegado à sua corte, olha permanentemente em redor, à procura de uma das suas companheiras de Clèves e sussurra-lhes na estúpida língua delas, estende a mão como se estivesse a servir um pedaço de carne e não diz uma palavra em inglês.

Quando lhe fui apresentada, praticamente não olhou para mim, olhou para todas nós, as raparigas novas, como se não soubesse o que fazíamos nos aposentos dela, nem o que deveria fazer connosco.

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. Pensei que, pelo menos, poderia ter-nos feito perguntas sobre músicas, e eu canto uma música na perfeição e estava pronta a cantá-la, mas, absurdamente, ela disse que tinha de rezar, saiu e fechou-se no quarto de vestir. A minha prima, Jane Bolena diz que ela o faz quando deseja ficar sozinha, e que isso é um sinal, não de devoção, mas da sua timidez, e que devemos ser gentis e alegres com ela, e que em breve aprenderá a nossa língua e será menos simplória.

Eu própria não consigo imaginá-lo. Ela usa uma combinação por baixo do vestido que quase lhe chega ao pescoço. Usa um toucado que deve pesar uma tonelada, enfiado na cabeça. Tem os ombros largos e as suas ancas podem ser de qualquer tamanho, por baixo daquele vestido que parece uma taça de pudim.

Lorde Southampton parece ter gostado bastante dela, mas talvez esteja apenas aliviado por a viagem ir terminar em breve e por ver a sua tarefa concluída. Os embaixadores ingleses que estiveram com ela em Clèves falam com ela na sua língua e, então, ela desfaz-se em sorrisos e conversa com eles como um patinho a grasnar. Lady Lisle parece gostar dela. Jane Bolena está muitas vezes ao lado dela. Mas eu receio que esta não vá ser uma corte muito alegre para mim, e de que serve uma corte, se não for alegre, com danças e namoriscos? Na verdade, de que lhe serve ser uma rainha jovem, se não vai ser alegre, fútil e tonta? Jane Bolena, Rochester; Véspera de Ano Novo, 1539

Vai haver uma luta de touros com cães a seguir ao jantar e Lady Ana é levada até à janela que dá para o pátio, para poder ter a melhor vista. Assim que ela aparece à janela, ergue-se um viva dos homens que se encontram no pátio, lá em baixo, apesar de estarem a trazer os cães para fora e é raro os homens comuns interromperem as suas apostas num momento desses. Ela sorri e acena-lhes. Está sempre muito à vontade com as pessoas comuns, e eles gostam dela por isso. Em todos os lugares onde estivemos, ao longo da estrada, ela tinha um sorriso para as pessoas que vinham para a rua para a ver, e atira beijos às crianças pequenas que lhe lançam ramos de flores para a liteira. Todos estão surpreendidos com isto. Desde Catarina de Aragão que não tínhamos uma rainha tão sorridente e agradável para as gentes comuns, e desde Catarina de Aragão que a Inglaterra não aprecia a novidade de uma princesa estrangeira. Não há dúvida de que, a seu tempo, esta também aprenderá a estar à vontade com a corte.

Estou de pé, ao lado dela, de um dos lados e uma das suas amigas alemãs do outro lado para poder traduzir-lhe o que está a ser dito. Lorde Lisle está lá, é claro, bem como o Arcebispo Cranmer. Ele esforça-se por ser agradável, é evidente. Ela pode ser uma candidata de Cromwell, e assim uma mais valia para o seu rival; mas o seu maior receio deve ter sido que o rei trouxesse uma princesa papista, e este arcebispo reformador veria a sua igreja regressar novamente às práticas antigas.

Algumas das pessoas da corte estão junto da janela para observar a luta, outras trocam mexericos tranquilamente ao fundo da sala. Não consigo ouvir com exactidão o que estão a dizer, mas penso que há mais pessoas, além de Lady Browne, que pensam que Lady Ana não é adequada para a posição que foi chamada a exercer. Avaliam-na severamente pela sua timidez e pela sua incapacidade de falar a língua. Culpam-na pelas suas roupas e riem-se dela por não ser capaz de dançar, cantar ou tocar alaúde. É uma corte cruel,

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devotada à frivolidade, e ela é uma rapariga fácil de utilizar como alvo de sarcasmo. Se isto continuar, o que irá acontecer? Ela e o rei estão praticamente casados. Nada pode impedir o casamento. Ele não a pode mandar de volta para casa, em desgraça, pois não? Pelo crime de usar um toucado pesado? Nem mesmo o rei pode fazê-lo, com certeza. Nem mesmo este rei pode fazê-lo. Faria cair o tratado de Cromwell, faria cair o próprio Cromwell, deixaria a Inglaterra sem aliados, enfrentando a França e a Espanha sem qualquer aliança protestante a proteger-nos. O rei nunca correria esse risco, tenho a certeza. Mas não consigo imaginar o que irá acontecer.

Lá em baixo, no pátio, estão a preparar-se para soltarem o touro, o seu tratador solta a corda do anel que ele tem preso no nariz, sai da frente, salta por cima das tábuas e os homens que têm estado sentados nos bancos de madeira põem-se de pé e começam a gritar as suas apostas. O touro é um animal enorme, com ombros pesados e uma cabeça espessa e feia. Vira-se de um lado para o outro, vislumbrando os cães pelo canto do olho e depois pelo outro. Nenhum dos cães está muito ansioso por ser o primeiro a correr na direcção dele, receiam-no, o seu poder e a sua força.

Sinto alguma dificuldade em respirar. Já não assistia a uma luta de touros com cães desde a última vez que havia estado na corte, esquecera-me do entusiasmo selvagem de observar os latidos dos cães e o grande animal que irão derrubar. É

raro ver-se um touro tão grande como este, com o focinho cheio de cicatrizes de lutas anteriores, os cornos muito pouco aparados. Os cães deixam-se ficar para trás e ladram, agudamente, num latido persistente que tem subjacente o emocionante timbre do medo. Ele vira-se de um para o outro, ameaçando-os com um movimento circular dos seus cornos, e eles formam um círculo em volta dele.

Um corre na direcção dele, e logo o touro dá uma volta; parece impossível um animal daquele porte conseguir mover-se tão rapidamente, a cabeça dele desce quase até ao chão e ouve-se um grito semelhante ao de um humano, vindo do cão, quando os cornos ferem o seu corpo, os seus ossos estão seguramente partidos. Cai e não consegue arrastar-se para longe, gane como um bebé, o touro está inclinado sobre ele, com a cabeça baixa, e arremete com a parte lateral do seu grande corno no cão que gane.

Apercebo-me de que estou a gritar, ainda que não possa dizer se por causa do cão ou do touro. Há sangue nas pedras do chão, mas o ataque do touro deixou-o desprotegido em relação aos outros cães, e outro vem a correr na sua direcção e morde-lhe a orelha. Ele volta-se, mas de imediato outro se agarra à sua garganta e mantém-se

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nessa posição por alguns instantes, os seus dentes brancos expostos e a brilhar à luz das tochas, enquanto o touro muge pela primeira vez e o bramido que produz faz com que todas as aias gritem e eu entre elas, e todos agora se aproximam das janelas para ver, enquanto o touro roda a cabeça, os cães retrocedem e um deles uiva de raiva.

Percebo que estou a tremer, a gritar aos cães para que avancem! Continuem!

Quero ver mais, quero ver tudo; e Lady Ana, ao meu lado, está a rir-se, está entusiasmada, aponta para o touro, para a sua orelha que sangra, e eu aceno e digo:

- Ele vai ficar tão furioso! De certeza que os vai matar!

E depois, subitamente, um homem encorpado, que não sei quem é, um estranho cheirando a suor, vinho e cavalos, coloca-se à nossa frente, no vão de janela onde nos encontramos, empurra-me rudemente, e diz a Lady Ana:

- Trago-vos cumprimentos do Rei da Inglaterra - e beija-a na boca.

De imediato, viro-me e grito pelos guardas. É um homem velho, de quase cinquenta anos, gordo, com idade para ser pai dela. Ela pensa logo que ele é um bêbado qualquer que conseguiu forçar a entrada nos seus aposentos. Já cumprimentou uma centena de homens, mil homens, com um sorriso e uma mão estendida e agora este homem, com uma capa jaspeada e um capuz cobrindo-lhe a cabeça, avizinha-se dela, aproxima o rosto do dela e encosta a boca toda besuntada de saliva à dela.

A seguir, refreio o meu grito de alarme, vejo a sua altura, e observo os homens que o acompanham com capas semelhantes, e reconheço logo o rei. Ao mesmo tempo, como por milagre, de repente, ele já não parece velho, gordo e desagradável. Mal sei que é o rei, vejo o príncipe que sempre vi, aquele que diziam ser o mais belo príncipe de toda a Cristandade, aquele por quem eu

própria estava apaixonada. Este é Henrique, Rei da Inglaterra, um dos homens mais poderosos no mundo inteiro, o dançarino, músico, desportista, o cavaleiro da corte, o amante. Este é o ídolo da corte inglesa, tão grande como o touro no pátio lá em baixo, tão perigoso como um touro quando ferido, tão capaz de se voltar contra quem o desafie e de matar.

Não faço uma vénia porque ele está disfarçado. Aprendi com a própria Catarina de Aragão que nunca devemos reconhecê-lo quando está disfarçado, ele adora tirar o disfarce e esperar que todos exclamem que não faziam a mínima ideia de quem era o belo estranho, que o admirem pela pessoa que é, sem saberem que ele era o nosso maravilhoso e jovem rei.

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E assim, uma vez que não posso avisar Lady Ana, a cena na nossa galeria torna-se uma luta que iguala a que decorre, de forma sangrenta, no pátio por baixo de nós. Ela afasta-o, com duas mãos firmes encostadas ao seu peito gordo, e a sua face, por vezes tão apática e fleumática, está a arder de tão ruborizada. É

uma mulher modesta, uma rapariga intocada, e está horrorizada por este homem ter surgido assim e a ter insultado. Esfrega as costas da mão na cara para apagar o sabor dos lábios dele. Depois, de uma forma arrepiante, volta a cabeça e cospe a saliva dele da boca. Diz qualquer coisa em alemão que não precisa de ser traduzida, é evidente que se trata de um palavrão contra este plebeu que se atreveu a tocar-lhe, a lançar o seu hálito a vinho no seu rosto.

Ele tropeça para trás, ele, o grande rei, quase cai para trás com o desprezo dela. Nunca na sua vida uma mulher o afastou, nunca na sua vida ele viu uma expressão no rosto de uma mulher que não fosse desejo e incentivo. Está espantado. Na face ruborizada e no seu olhar brilhante e ofendido, ele vê a primeira opinião completamente honesta em relação à sua pessoa que alguma vez viu. Num repente terrível, ofuscante, vê-se a si mesmo como realmente é: um homem velho, que há muito passou do seu auge, que já não é bonito, que já não é desejável, um homem que qualquer mulher jovem empurraria para longe de si, por não suportar o seu cheiro, por não aguentar ser tocada por ele.

Ele cambaleia para trás como se atingido, no rosto e no coração, por um golpe mortal. Nunca o vi assim. Quase consigo adivinhar os pensamentos que o

assolam por trás daquela face perplexa, flácida. A súbita percepção de que não é atraente, a consciência de que não é desejável, que está velho e doente e de que um dia morrerá. Já não é o mais belo príncipe da Cristandade, é um velho tonto que pensou que podia vestir uma capa, pôr um capuz e sair a cavalo ao encontro de uma rapariga de vinte e quatro anos, e que ela admiraria este estranho bem-parecido e que se apaixonaria pelo rei.

Está terrivelmente chocado, e agora tem um ar tolo e confuso como um avô perturbado. Lady Ana é magnífica, encontra-se de pé, e está furiosa, é poderosa, ergue-se com toda a sua dignidade e lança-lhe um olhar que o expulsa da sua corte como um homem que ninguém quereria conhecer.

- Deixai-me - diz ela, no seu inglês com um sotaque profundo, e vira-lhe as costas como se fosse repeli-lo novamente.

Olha em volta da sala, à procura de um guarda que detenha aquele intruso e repara, pela primeira vez, que ninguém, se aproxima para a salvar, todos estamos horrorizados, ninguém sabe o que

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pode dizer ou fazer para ultrapassar aquele momento: Lady Ana está indignada, o rei humilhado aos seus próprios olhos, desafiado diante de todos nós. A verdade sobre a idade e a decadência do rei torna-se, de súbito, dolorosa, imperdoavelmente evidente. Lorde Southampton aproxima-se, mas não encontra palavras; Lady Lisle olha para mim e eu vejo o meu choque espelhado no seu rosto. É um momento de um embaraço tão intenso que todos nós - que somos aduladores habilidosos, cortesãos, mentirosos - ficamos sem palavras. O mundo que andamos a construir há trinta anos, em volta de um príncipe que não tem idade, que é eternamente belo, irresistivelmente desejável, foi destruído à nossa volta - e por uma mulher que nenhum de nós respeita.

Ele fica sem fala, quase tropeça ao sair, a sua perna que tresanda cedendo sob o seu peso, e Catarina Howard, aquela rapariguinha tão, tão esperta, sustém a respiração num murmúrio de admiração absoluta e diz-lhe:

- Oh, perdoai-me, senhor! Mas eu própria também acabei de chegar à corte, sou uma estranha como vós. Posso perguntar-vos... quem sois? Como vos chamais?

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Catarina, Rochester, Véspera de Ano Novo, 1539

Eu sou a única pessoa que o vê entrar. Não gosto das lutas de touros com cães ou ursos, ou de galos, nem de nada do género, para mim são totalmente sórdidas

- e por isso estou de pé, um pouco afastada da janela. E na verdade estou a olhar ao meu redor, estou a olhar para um jovem que já vira antes, um homem tão bonito com um sorriso atrevido, quando vejo os seis entrar, homens velhos, devem ter todos pelo menos trinta anos, com o grande e velho rei à frente, e todos usam o mesmo tipo de capa, como se estivessem mascarados, por isso, calculo logo que deve ser ele, e que tenha vindo disfarçado como um cavaleiro errante, que velho pateta, e que irá cumprimentá-la e ela fingirá que não o reconhece, e depois haverá danças. A sério, estou encantada por o ver, porque me dá a certeza de que haverá danças e, por isso, pergunto-me como posso incentivar o bonito jovem que está perto de mim a dançar.

Quando ele a beija tudo corre terrivelmente mal. Consigo ver logo que ela não faz a mínima ideia de quem ele é... alguém a deveria ter avisado. Ela pensa que ele é apenas um velho bêbado que entrou aos ziguezagues para a beijar por causa de alguma aposta, e é óbvio que está chocada, e é claro que ele é bastante repelente, porque quando traja uma capa barata e não está rodeado pela corte mais importante do mundo, não tem nada ar de rei. Na verdade, quando traz uma capa barata e está com os seus companheiros, também pobremente vestidos, parece um mercador plebeu, com uma passada bamboleante e um nariz vermelho, que aprecia um copo de vinho e espera ir para a corte e ver os seus superiores. Aparenta ser o tipo de homem em que o meu tio não repararia, mesmo que ele chamasse por si na rua. Um homem velho e gordo, um idoso vulgar, como um criador de ovelhas embriagado num dia de mercado. O seu rosto está extraordinariamente inchado, como um enorme prato redondo de banha, o cabelo escasseia e está grisalho, está monstruosamente obeso, e tem um ferimento antigo numa perna que o faz coxear tanto que, ao andar, 76 51

oscila como um marinheiro. Sem a coroa, não é bonito, parece o avô gordo de qualquer um de nós.

Ele recua, ela mantém-se na sua posição digna, esfregando a boca para

dissipar o odor do hálito dele, e depois - é tão horrível que eu quase poderia gritar de choque - volta a cabeça e cospe o sabor dele.

- Deixai-me - diz ela e volta-se novamente para ele.

Instala-se um silêncio profundo, terrível, ninguém diz uma palavra, e de repente, eu percebo, como se a minha avó estivesse ao meu lado a dizer-me o que devo fazer. Nem sequer estou a pensar nas danças e no jovem, desta vez nem sequer estou a pensar em mim mesma, e isso quase nunca acontece. Penso apenas, num repente, que, se fingir não o conhecer, ele pode continuar a não se conhecer, e toda esta mascarada lamentável deste homem pateta e a sua flagrante vaidade não cairão sobre as nossas cabeças. Sinto apenas pena dele, para dizer a verdade. Penso que posso poupar-lhe este tremendo embaraço de se inclinar sobre uma mulher e de ela o sacudir como um cão velho e malcheiroso. Se alguém tivesse dito alguma coisa, eu teria ficado calada. Mas ninguém diz nada e o silêncio prolonga-se, de modo insuportável, e ele cambaleia para trás, quase cai para trás, em cima de mim, e o seu rosto está todo enrugado e confuso e eu sinto pena dele, pobre velho tonto humilhado, e digo, como num arrulho:

- Oh, perdoai-me, senhor! Mas eu própria acabei de chegar à corte, sou uma estranha como vós.

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Jane Bolena, Rochester, Véspera de Ano Novo, 1539

Lady Browne está a ordenar às damas que se vão deitar num brado, como se fosse a Alabardeira da Guarda. Elas estão muito excitadas e Catarina Howard entre elas é o centro de tudo, tão rebelde como qualquer uma delas, uma verdadeira Rainha de Maio. O modo como falou com o Rei, como ergueu os olhos para ele sob as suas pestanas, como lhe suplicou, enquanto belo estranho, recém-chegado à corte, que convidasse Lady Ana para dançar, está a ser imitado e repetido até ficarem embriagadas com as próprias gargalhadas.

Lady Browne não se está a rir, o seu rosto parece um trovão, por isso, eu empurro as raparigas para a cama e digo-lhes que são todas muito tontas e que seria melhor que imitassem a sua senhora, Lady Ana, e mostrassem uma dignidade adequada, do que copiarem o comportamento libertino e atrevido de Catarina Howard. Elas deitam-se nas suas camas aos pares, como anjos bonitos, nós apagamos a vela, deixamo-las às escuras e trancamos a porta. Praticamente

ainda não virámos as costas e começamos a ouvi-las sussurrar, mas nenhum poder à face da terra consegue fazer com que as raparigas se comportem; e nós nem sequer tentamos.

- Estais preocupada, Lady Browne? - pergunto com consideração.

Ela hesita, anseia confiar em alguém, e eu estou ali, ao lado dela, e sei ser discreta.

- Isto foi muito mau - diz ela com ar pesado. - Oh, tudo acabou por se passar de forma agradável, com as danças e as cantigas e Lady Ana recuperou bastante depressa, assim que tudo lhe foi explicado; mas isto foi muito, muito mau.

- O rei? - sugiro.

Ela assente e cerra os lábios como se quisesse impedir-se de dizer mais alguma coisa.

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- Estou cansada - digo. - Vamos beber um copo de cerveja morna juntas antes de nos deitarmos? Sir Anthony fica cá esta noite, não fica?

- Deus sabe que demorará várias horas a vir ter comigo aos meus aposentos -

diz ela irreflectidamente. - Duvido que qualquer um dos que faça parte do círculo do rei durma esta noite.

- Oh? - digo eu. Sigo à frente até à sala de audiências. As outras damas foram-se deitar, a lareira está acesa com chamas muito reduzidas, mas existe um jarro de cerveja preparado ao lado da lareira e meia dúzia de canecas de estanho.

Sirvo uma bebida para as duas. - Há algum problema?

Ela senta-se na cadeira e inclina-se para a frente para sussurrar.

- O meu senhor, meu marido, disseme que o rei jura que não vai casar-se com ela.

- Não!

- Sim. Sim. Ele jura. Diz que não pode gostar dela.

Ela bebe um gole prolongado da cerveja e olha para mim por cima da caneca.

- Lady Browne, deveis ter percebido mal...

- Ouvi-o da boca do meu marido, esta mesma noite. O rei agarrou-o pelo colarinho, quase pela garganta, assim que nos retirámos, e disse que, no momento em que viu Lady Ana, foi atingido por uma grande consternação, e que não viu nela nada do que lhe havia sido relatado.

- Ele disse isso?

- Literalmente.

- Mas ele parecia tão feliz quando saímos?

- Estava tão contente quanto Catarina Howard ignorava verdadeiramente a sua identidade. Ele é um noivo tão feliz quanto ela é uma criança inocente. Aqui somos todos actores, mas o rei não irá representar o papel de um noivo apaixonado.

- Tem de o fazer, estão noivos e o contrato foi assinado.

- Ele diz que não gosta dela. Não pode gostar dela, diz ele, e culpa os homens que lhe arranjaram este casamento.

Tenho de levar estas notícias ao Duque, ele tem de ser avisado antes de o rei voltar para Londres.

- Culpa os homens que negociaram o casamento?

- E os que a trouxeram com eles. Está furioso.

- E irá culpar Thomas Cromwell - prevejo em voz baixa.

- É verdade.

- O que acontecerá a Lady Ana? Com certeza, ele não pode recusá-la.

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- Fala-se em impedimento - diz ela. - E é por isso que nem Sir Anthony nem nenhum dos outros dormirão esta noite. Os lordes de Clèves deviam ter trazido uma cópia de um acordo que afirmasse que um contrato prévio, antigo, de casamento, havia sido retirado. Uma vez que não o têm, talvez haja bases para alegar que o casamento não pode ir para a frente, não é válido.

- Outra vez, não - digo eu, sem reflectir por um instante. - Não a mesma objecção que usou contra a Rainha Catarina! Todos vamos parecer idiotas!

Ela assente.

- Sim, é a mesma. Mas, para ela, mais vale que esse impedimento seja declarado agora e que ela seja enviada de volta a casa em segurança, do que ficar aqui e casar-se com um inimigo. Conheceis o rei, ele nunca lhe perdoará por ter cuspido o beijo dele.

Não digo nada. Aquelas são especulações perigosas.

- O irmão dela deve ser louco - digo. - Ela percorreu um longo caminho se ele não garantiu a segurança dela.

- Não gostava nada de estar no lugar dela esta noite - diz Lady Browne. -

Sabeis que nunca pensei que ela fosse agradar ao rei, e disse-o ao meu marido.

Mas ele sabia mais do que eu, a aliança com Clèves era vital, disseme ele, temos de estar protegidos da França e da Espanha, temos de estar protegidos dos poderes papistas. Há papistas que marchariam contra nós a partir de qualquer canto da Europa, há Papistas que seriam capazes de matar o rei na sua própria cama, aqui na Inglaterra. Temos de reforçar os Reformistas. O irmão dela é um líder dos duques e príncipes protestantes, é aí que está o nosso futuro. Eu digo:

- Sim, meu senhor; mas o rei não vai gostar dela. Escrevei o que vos digo: ele não vai gostar dela - e depois o rei entra, todo preparado para lhe fazer a corte, e ela afasta-o com um encontrão, como se ele fosse um mercador embriagado.

- Ele não estava com um ar muito aristocrático naquele momento - não direi mais do que esta opinião cautelosa.

- Não estava realmente com um ar muito majestoso, nessa altura - diz ela, tão

cautelosa quanto eu. Entre nós permanece o facto indizível de o nosso belo príncipe se ter transformado num homem grosseiro e feio, um homem velho e feio; e pela primeira vez, todos nós vimos isso.

- Tenho de ir para a minha cama - diz ela, pousando a caneca. Não suporta sequer pensar no assunto.

- Eu também.

Deixo-a ir para o quarto dela e espero até ouvir a porta fechar-se, depois dirijo-me silenciosamente ao grande salão onde, bebendo bastante, e claramente quase morto de embriaguez, se encontra um homem vestido com a libré dos Howard. Chamo-o com o dedo e ele levanta-se em silêncio e afasta-se dos outros.

- Ide ter com o meu senhor, o Duque - digo-lhe baixinho, com a boca encostada ao seu ouvido. - Ide já e chegai junto dele antes de ele falar com o rei.

Ele anui, compreende logo.

- Dizei-lhe, e apenas a ele, que o rei não gosta de Lady Ana, que irá tentar declarar que o contrato de casamento é inválido, que está a culpar os que arranjaram este casamento, e irá culpar qualquer pessoa que insista nele.

O homem acena novamente. Eu reflicto intensamente, para o caso de haver alguma coisa que devesse acrescentar.

- É tudo.

Não preciso de relembrar a um dos homens mais competentes e com menos escrúpulos da Inglaterra que o nosso rival, Thomas Cromwell, foi o arquitecto e a inspiração desta união. Que esta é a nossa grande oportunidade de fazer cair Cromwell, tal como derrubámos Wolsey antes dele. Que, se Cromwell cair, então, o rei necessitará de um conselheiro e quem melhor do que o seu comandante-supremo? Norfolk.

- Ide já, e chegai junto do Duque antes de ele falar com o rei - digo novamente. - O nosso senhor não se deve encontrar com o rei sem estar prevenido.

O homem faz uma vénia, sai imediatamente da sala, sem se despedir dos seus companheiros de bebida. Pela sua passada célere é evidente que está completamente sóbrio.

Eu vou para o meu quarto. A minha companheira de cama dessa noite, uma das outras damas de companhia, já está a dormir, com o braço estendido no meu lado da cama. Gentilmente, levanto-o e deslizo para dentro dos lençóis mornos.

Não adormeço logo, fico deitada em silêncio e ouço a respiração dela ao meu lado. Estou a pensar naquela pobre mulher jovem, Lady Ana, na inocência do seu rosto e na franqueza do seu olhar. Pergunto-me se é possível que Lady Browne tenha razão e se esta mulher pode estar em perigo simplesmente por ser a esposa que o rei não deseja.

Seguramente que não. De certeza que Lady Browne está a exagerar. Esta jovem mulher é filha de um duque alemão, tem um irmão poderoso que a protegerá. O rei precisa da aliança dela. Mas depois 81

lembro-me de que este irmão a deixou vir para a Inglaterra sem a única folha de papel que garantiria o seu casamento, e questiono-me acerca do motivo pelo qual ele foi tão descuidado em relação a ela, ao ponto de a mandar para tão longe, para um fosso de ursos destes, sem um protector.

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Ana, Dia de Ano Novo, na estrada para Dartford, 1540

Nada poderia ser pior, sinto-me tão idiota. Estou tão contente por estar a viajar hoje, desconfortavelmente sentada na liteira bamboleante, mas, pelo menos, sozinha. Pelo menos, não tenho de enfrentar nenhum rosto compadecido, risinhos à socapa, todos zumbindo com o desastre do meu primeiro encontro com o rei.

Mas na verdade, que culpa tenho eu? Ele tem o meu retrato, O próprio Hans Holbein humilhou-me com o seu olhar fixo e sério, para que o rei tivesse o meu retrato para escrutinar, criticar e estudar, ele tem uma boa ideia sobre quem sou.

Mas eu não tenho nenhum retrato dele, excepto a imagem que tenho na minha cabeça e que toda a gente tem: a do jovem príncipe que chegou ao trono como um jovem maravilhoso de dezoito anos, o mais belo príncipe do mundo. Sabia

muito bem que ele agora tem praticamente cinquenta anos. Sabia que não ia casar-me com nenhum rapaz bonito, nem sequer com um príncipe bem-parecido.

Sabia que ia casar com um rei no seu apogeu, sabia até que era um homem que começava a envelhecer. Mas não sabia como ele era. Não tinha visto nenhum retrato dele para o avaliar. E não estava à espera... daquilo.

Não é que ele seja assim tão mau, talvez. Consigo ver o homem que foi em tempos. Tem ombros largos, o que é atraente num homem em qualquer idade.

Ainda monta a cavalo, disseram-me, continua a caçar, excepto quando uma ferida qualquer que tem na perna começa a doer-lhe, continua activo. Ele próprio dirige o seu país, não entregou o poder a conselheiros mais vigorosos, está na posse de todas as suas faculdades, até onde podemos avaliar. Mas tem olhos pequenos, de porco, e uma boca reduzida e estragada, numa cara que parece uma lua cheia, inchada devido à gordura. Deve ter os dentes em muito mau estado, porque o seu hálito é nauseabundo. Quando me agarrou e me beijou, o fedor que emanava era verdadeiramente terrível. Quando se afastou de mim, parecia uma criança mimada, pronta a começar a chorar. Mas, tenho de ser 83

sincera, foi um mau momento para ambos. Atrevo-me a dizer que, quando o repeli, eu própria também não estava no meu melhor.

Juro por Deus que desejava não ter cuspido.

Isto é um mau começo. Um início desagradável e indigno. A sério, ele não devia ter-se aproximado de mim sem eu estar preparada e sem aviso. É muito fácil para eles dizerem-me agora que ela adora disfarces e mascarar-se, fingindo ser um plebeu, para que as pessoas possam descobrir, encantadas, que é ele.

Nunca me tinham dito isto. Pelo contrário, todos os dias me têm metido na cabeça que a corte inglesa é formal, que as coisas têm de ser feitas de uma certa forma, que eu tenho de aprender as ordens de precedência, que nunca devo cometer o erro de chamar um membro mais novo de uma família para junto de mim, antes de convidar um membro sénior, que, para os ingleses, estas coisas são mais importantes do que a própria vida. Todos os dias antes de partir de Clèves, a minha mãe lembrou-me que a rainha da Inglaterra tem de estar acima de qualquer censura, tem de ser uma mulher de uma dignidade real e de uma frieza absolutas, nunca deve ser familiar, nunca deve ser superficial, nunca amigável em excesso. Dizia-me diariamente que a vida de uma rainha da

Inglaterra depende da sua reputação imaculada. Ameaçou-me com o mesmo destino de Ana Bolena, se fosse dissoluta, calorosa e ardente como ela.

Por isso, como é que eu iria sonhar sequer que um velho gordo e bêbado se aproximaria de mim e me beijaria? Como é que alguma vez poderia imaginar que devo deixar um homem velho e feio beijar-me, sem me ser apresentado ou sem aviso?

Ainda assim, juro por Deus que desejava não ter cuspido o seu sabor horrível.

De qualquer forma, talvez não tenha sido tão mau. Esta manhã, ele enviou-me um presente, uma oferta de peles de zibelina, muito dispendiosas e de muito grande qualidade. A pequena Catarina Howard, que é tão querida que confundiu o rei com um estranho e o cumprimentou amigavelmente, recebeu um broche de ouro dele. Sir Anthony Browne trouxe os presentes esta manhã com um bonito discurso, e disseme que o rei foi à frente para preparar o nosso encontro oficial, que decorrerá num local chamado Blakheath, fora da cidade de Londres. As minhas damas dizem que até lá não haverá surpresas, por isso, tenho de me manter atenta. Dizem que mascarar-se é a brincadeira preferida do rei e que, depois de estarmos casados, tenho de estar preparada para que ele apareça com uma barba postiça ou um grande chapéu e que me convide para dançar, e todas nós faremos de conta que não o reconhecemos. Eu sorrio e 84

A digo: “Que encantador!”, ainda que, na realidade, esteja a pensar: “Que estranho e que infantilidade, e a sério, que grande vaidade da parte dele, que vaidade tão disparatada esperar que as pessoas se apaixonem por ele à primeira vista, enquanto plebeu, quando tem o aspecto que tem neste momento. Talvez quando era jovem e bonito pudesse andar por aí disfarçado e as pessoas o cumprimentassem pela sua boa aparência e pelo seu encanto; mas seguramente, há já muitos anos, muitos mesmo, que as pessoas só devem fingir admirá-lo?

Mas não verbalizo os meus pensamentos. Mais vale não dizer nada agora, depois de já ter estragado a brincadeira uma vez.

A rapariga que salvou o dia ao cumprimentá-lo tão educadamente, a pequena Catarina Howard, é uma das minhas damas de companhia. Chamo-a para junto de mim na azáfama da partida desta manhã, e agradeço-lho, da melhor forma que sou capaz em inglês, pela sua ajuda.

Ela afunda-se numa pequena reverência e fala comigo num inglês apressado.

- Ela diz que está encantada por vos servir - diz-me a minha tradutora, Lotte. -

E que nunca tinha estado na corte, por isso, também não reconheceu o rei.

- Então, porque é ela falou com um estranho que tinha vindo sem ser convidado? - pergunto, baralhada. - Com certeza, deveria tê-lo ignorado? Um homem tão rude, a entrar aos empurrões?

Lotte converte as minhas palavras em inglês, e eu vejo a rapariga olhar para mim como se houvesse mais a dividir-nos do que apenas a língua, como se estivéssemos em mundos diferentes, como se eu tivesse vindo das Rússias, onde só conviveria com os ursos.

- Was? - pergunto em alemão. Estendo as mãos para ela e ergo as sobrancelhas. - O quê?

Ela aproxima-se um pouco mais, murmura ao ouvido de Lotte, sem nunca desviar os olhos do meu rosto. É tão bonita, como uma boneca, e tão sincera, que eu não consigo deixar de sorrir.

Lotte vira-se para mim, está quase a rir-se às gargalhadas.

- Ela diz que é claro que sabia que era o rei. Que outra pessoa conseguiria entrar na sala e passar pelos guardas? Que outra pessoa é tão alta e gorda? Mas o jogo da corte é fingir não o reconhecer, e dirigir-se a ele apenas porque ele é um estranho tão bem-parecido. Ela diz que pode ter apenas catorze anos, e que a avó diz que é uma pateta; mas já sabe que todos os homens na Inglaterra adoram ser admirados, na verdade, quanto mais velhos ficam, mais vaidosos se tornam, e de certeza que os homens não devem ser muito diferentes em Clèves.

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Rio-me para ela e para mim mesma.

- Pois não - respondo. - Dizei-lhe que os homens não são muito diferentes em Clèves, mas que esta mulher de Clèves é evidentemente uma tonta e que, de futuro, me deixarei guiar por ela, apesar de ter apenas catorze anos, seja o que

for que a avó lhe chame.

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Catarina, Dartford, 2 de Janeiro de 1540

Terror absoluto! Oh, Deus! Horror para além dos meus piores temores!

Morrerei por causa disto, sei-o. O meu tio veio, de Greenwich até aqui, especialmente para falar comigo, e mandou-me chamar à sua presença. Que raio poderá querer comigo? Tenho a certeza de que a minha conversa com o rei lhe chegou aos ouvidos e que tem a pior das opiniões a esse respeito, que me mandará para casa da minha avó por comportamento indigno. Irei morrer. Se me mandar para Lambeth, morro de humilhação. Mas se me mandar de volta para Horsham, ficarei contente por morrer de aborrecimento. Atirar-me-ei para o...

seja qual for o nome do rio que passa ali - o rio Horsh, o rio Sham - o lago dos patos, se for preciso, e afogar-me-ei, e eles lamentarão quando eu tiver morrido afogada e ficarem sem mim.

Deve ter sido assim que tudo aconteceu com a minha prima, a Rainha Ana, quando soube que deveria comparecer na sua presença, acusada de adultério, e quando percebeu que ele não iria ficar do lado dela. Deve ter ficado terrivelmente assustada, doente de pavor, mas eu tenho a certeza de que não ficou pior do que eu estou agora. Podia morrer de terror. Posso mesmo morrer de pavor antes sequer de falar com ele.

Tenho de ir falar com ele nos aposentos da minha senhora, a Lady Rochford, a desonra é obviamente tão grande que tem de ser mantida entre nós, os Howard, e quando lá entrar, ela está no banco junto da janela, por isso, suponho que foi ela quem lhe contou tudo. Quando sorri para mim, franzo as sobrancelhas na direcção dela, por ser uma velha traça mexeriqueira e faço-lhe uma cara horrível, para que ela saiba a quem atribuo a minha perdição.

- Senhor, meu tio, suplico-vos que não me mandeis para Horsham - digo no instante que passo a porta.

Ele olha para mim de sobrolho franzido.

- E um bom dia também para vós, minha sobrinha - diz gelidamente.

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Eu baixo-me numa reverência, quase caio de joelhos.

- Por favor, meu senhor, também não me mandeis de volta para Lambeth -

digo. - Suplico-vos. Lady Ana não está descontente comigo, riu-se quando lhe contei... - interrompo-me. Percebo, demasiado tarde, que relatar ao meu tio que disse à mulher prometida ao rei que, apesar de ele ser gordo e velho, é também insuportavelmente vaidoso, talvez não seja o mais inteligente a fazer. - Eu não lhe disse nada - corrijo-me. - Mas ela está satisfeita comigo e diz que seguirá os meus conselhos, mesmo que a minha avó pense que sou uma pateta.

A sua súbita gargalhada irónica avisa-me de que ele concorda com o veredicto da minha avó.

- Bem, não propriamente os meus conselhos; mas ela está satisfeita comigo, assim como o rei, porque me mandou um broche de ouro. Oh, por favor, tio se me deixardes ficar, nunca voltarei a falar abertamente, nem sequer respirarei!

Por favor, suplico-vos. Estou completamente inocente de tudo.

Ele ri-se novamente.

- É verdade - digo. - Por favor, tio, não me volteis o rosto, por favor, confiai em mim. Serei uma boa menina, farei com vos orgulheis de mim, tentarei ser uma perfeita...

- Oh, silêncio, estou satisfeito convosco - diz ele.

- Farei qualquer coisa...

- Eu disse que estou satisfeito convosco.

Eu olho para cima.

- Estais?

- Parece que vos haveis comportado maravilhosamente. O rei dançou convosco?

- Sim.

- E falou convosco?

- Sim.

- E pareceu muito impressionado convosco?

Tenho de pensar por um minuto. Não teria dito que ele ficara exactamente

“impressionado”. Ele não se comportou como um homem jovem cujos olhos descaem dos meus olhos para espreitar para os meus seios enquanto está a falar comigo, ou que cora quando lhe sorrio. E, além disso, o rei quase caiu para trás, em cima de mim, quando Lady Ana o repeliu. Ainda estava muito chocado.

Teria falado com qualquer pessoa para ocultar a sua mágoa e embaraço.

- Ele realmente falou comigo - repito sem saber o que fazer.

- Estou muito satisfeito por ele vos ter honrado com as atenções 88

dele - diz o meu tio. Fala devagar como se fosse um professor da escola primária, e eu devesse estar a compreender alguma coisa.

- Oh.

- Muito satisfeito.

Olho de relance para o outro lado, para Lady Rochford, para ver se isto faz algum sentido para ela. Ela dirige-me um leve sorriso e um aceno com a cabeça.

- Ele mandou-me um broche - relembro-lhe.

Ele lança-me um olhar severo.

- Valioso?

Eu faço beicinho.

- Nada que se compare com as zibelinas que mandou para Lady Ana.

- Calculei que não. Mas era de ouro?

- Sim, e bonito.

Ele volta-se para Lady Rochford.

- É?

- Sim - responde ela. Trocam um leve sorriso, como se se compreendessem muito bem.

- Se Sua Majestade vos honrar falando novamente convosco, envidareis todos os esforços para serdes encantadora e agradável.

- Sim, senhor meu tio.

- Dessas pequenas atenções flúem grandes favores. O rei não está satisfeito com Lady Ana.

- Ele mandou-lhe peles de zibelina - relembro-lhe. - De muito boa qualidade.

- Eu sei. Mas isso não é o mais importante.

Para mim, parece ser, mas de modo inteligente, não o corrijo, em vez disso, fico parada e aguardo.

- Ele irá ver-vos diariamente - diz o meu tio. - E vós podeis continuar a agradar-lhe. Então, talvez, ele vos mande peles de zibelina. Compreendeis?

Aquela parte, acerca da zibelina, compreendo.

- Sim.

- Por isso, se quereis receber presentes, e ter a minha aprovação, fareis o vosso melhor para vos comportardes de modo encantador e agradável com o rei. Lady Rochford aconselhar-vos-á.

Ela acena com a cabeça na minha direcção.

- Lady Rochford é uma cortesã muito competente e inteligente - prossegue o meu tio. - Deve haver muito poucas pessoas que viram mais deste rei ao longo da vida dele. Lady Rochford dir-vos-á como devereis avançar. É a nossa esperança e intenção que o rei vos favoreça, que ele, em resumo, se apaixone por

vós.

- Por mim?

Ambos assentem. Será que enlouqueceram? Ele é um velho, já deve ter desistido de todas as ideias de amor há muitos anos. Tem uma filha, a Princesa Maria, bastante mais velha do que eu, quase com idade para ser minha mãe. É

feio, tem os dentes podres e a perna manca fá-lo bambolear-se como um ganso velho e gordo. Um homem daqueles já deve ter desistido de qualquer ideia de amor há muitos anos. Deve pensar em mim como uma neta, mas não de outra forma.

- Mas ele vai casar-se com Lady Ana - saliento.

- Mesmo assim.

- Ele é demasiado velho para se apaixonar.

O meu tio lança-me um olhar tão carrancudo que eu dou um guincho de terror.

- Que tonta - diz ele brevemente.

Hesito por um momento. Será que falam mesmo a sério, quando dizem que querem que este rei velho seja meu amante? Devo dizer alguma coisa acerca da minha virgindade e da minha reputação imaculada, que em Lambeth pareciam ser tão importantes?

- E a minha reputação? - murmuro.

Mais uma vez, o meu tio ri-se.

- Isso não tem importância - diz ele.

Eu olho para Lady Rochford, que deveria ser responsável por mim numa corte lasciva e observar o meu comportamento, protegendo a minha preciosa honra.

- Posso explicar-vos tudo mais tarde - diz ela.

Percebo que não devo dizer nada.

- Sim, meu senhor - digo com muita doçura.

- Sois uma menina bonita - diz ele. - Dei dinheiro a Lady Rochford para que encomendeis um vestido novo.

- Oh, obrigada!

Ele sorri do meu entusiasmo repentino. Volta-se para Lady Rochford.

- E vou deixar um criado convosco. Pode servir-vos e fazer recados. Parece que pode vir a valer a pena manter um homem junto de vós. Quem teria imaginado? De qualquer forma, mantende-me informado do decorrer das coisas por aqui.

Ela ergue-se da cadeira e faz uma vénia. Ele sai sem dizer uma palavra.

Ficamos as duas sozinhas.

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- O que é que ele quer? - pergunto, completamente desconcertada.

Ela olha para mim como se me estivesse a tirar as medidas para um vestido novo. Observa-me da cabeça aos pés.

- Por enquanto, não interessa - diz gentilmente. - Ele está satisfeito convosco, isso é o mais importante.

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Ana, Blackheath, 3 de Janeiro de 1540

Este é o dia mais feliz da minha vida, porque hoje apaixonei-me. Apaixonei-me, não como uma rapariga tonta se apaixona, porque um rapaz lhe chama a atenção ou lhe conta uma história disparatada. Estou apaixonada e este amor vai durar para sempre. Estou apaixonada pela Inglaterra neste dia, e a consciencialização desse facto fez deste o dia mais feliz da minha vida. Neste dia, percebi que vou ser rainha deste país, deste país rico e belo. Tenho andado a viajar através dele como uma tonta, de olhos fechados - com toda a franqueza, uma parte do tempo, tenho andado a atravessá-lo no escuro e com o pior dos climas que poderia imaginar - mas hoje está um dia claro e soalheiro e o céu está

tão azul, azul como os ovos de pata, o ar está fresco e luminoso, tão emocionante e frio como o vinho branco. Hoje, sinto-me o gerifalte que o meu pai me costumava chamar, sinto-me como se estivesse a cavalgar lá em cima nos ventos frios, olhando para baixo, para este belíssimo país que será meu. Cavalgamos de Dartford para Blackheath, há geada branca e brilhante na estrada, ao longo de todo o caminho, e depois chegamos ao parque, todas as damas da minha corte me são apresentadas, todas vestidas com roupas tão bonitas, tão calorosas e amigáveis nos seus cumprimentos. Ao todo, vou ter cerca de setenta damas de companhia, as sobrinhas e primas do rei entre elas, e todas me saúdam hoje como amigas novas. Trago as minhas melhores roupas, e sei que estou com bom aspecto, penso que até o meu irmão ficaria orgulhoso de mim neste dia.

Construíram uma cidade com tendas de tecido de ouro, bandeiras coloridas e brilhantes a esvoaçar, protegidas pelos Alabardeiros da Guarda do rei, homens tão altos e belos que são uma lenda na Inglaterra. Enquanto esperamos pelo rei, entramos, bebemos um copo com vinho e aquecemo-nos nas braseiras, estão a queimar carvão marinho por minha causa, apenas o melhor, visto eu ir ser um membro da família real da Inglaterra. Os solos estão cobertos de ricas carpetes e as tendas decoradas com tapeçarias e

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sedas, para aquecerem os espaços. A seguir, quando dizem que está na hora, e todos sorriem e conversam e estão quase tão entusiasmados como eu, monto no meu cavalo e saio para ir ao encontro dele. Saio repleta de esperança. Talvez, neste encontro cerimonial, possa apreciá-lo e ele a mim.

As árvores são altas e os seus negros ramos despidos estendem-se contra o céu como fios escuros numa tapeçaria azul. O parque estende-se por vários quilómetros, tão verde e fresco, rejubilando com a geada que derrete, o sol está a brilhar com uma luz amarelo-pálida, a arder quase branco no céu. Por todo o lado, restringidas por cordas alegremente coloridas, estão as pessoas de Londres sorrindo, acenando para mim e pedindo bênçãos em meu nome, e pela primeira vez na minha vida, não sou Ana - a filha do meio de Cléves: menos bonita do que Sybilla, menos encantadora do que Amélia - mas aqui sou Lady Ana, a única Ana. Acolheram-me nos seus corações. Todas aquelas gentes estranhas, ricas, encantadoras, excêntricas me dão as boas-vindas, como se quisessem uma boa rainha, uma rainha honesta, e acreditam, e eu sei, que posso ser esse tipo de rainha para eles.

Sei muito bem que não sou uma rapariga inglesa como a falecida Rainha Jane, que Deus tenha a sua alma. Mas depois de ter visto a corte e as grandes famílias da Inglaterra penso que deve ser bom eu não ser uma rapariga inglesa. Até eu consigo ver que a família Seymour se encontra numa posição favorecida nas atenções do rei, e que facilmente se podem tornar superpoderosos. Estão por todo o lado, estes Seymour, bonitos e presumidos, sempre enfatizando que o seu descendente é o único filho e herdeiro do trono. Se eu fosse o rei e esta fosse a minha corte, teria muito cuidado com eles. Se lhes for permitido dirigir o jovem príncipe, dominá-lo por causa do seu parentesco com a sua mãe, então, o equilíbrio desta corte será todo atirado para as mãos deles. Pelo que posso ver, o rei não tem cuidado com quem escolhe para seus favoritos. Posso ter metade da idade dele, mas sei suficientemente bem que o favor de um governante tem de ser medido. Vivi a minha vida com o desfavor do filho favorito e sei o quão venenoso pode ser um capricho num governante. Este rei é caprichoso; mas talvez eu possa tornar esta corte mais equilibrada, talvez eu possa dar ao filho dele uma madrasta ponderada que consiga manter os aduladores e os cortesãos a uma distância segura do rapazinho.

Sei que as filhas foram afastadas dele. Pobres raparigas, espero tanto ser de alguma utilidade para a pequena Isabel, que nunca conheceu a mãe e que passou a vida sob a sombra da desonra.

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Talvez possa trazê-la para a corte, mantê-la perto de mim e reconciliá-la com o pai. E a Princesa Maria deve sentir-se sozinha, sem a mãe e sabendo-se muito longe das boas graças do pai. Posso ser simpática para ela, posso fazer com que ultrapasse o receio que tem do rei e trazê-la para a corte como minha parente, ela não precisa de me chamar “madrasta”, mas talvez possa ser como uma boa irmã para ela. Pelo menos, para os filhos do rei, posso ser uma grande força do bem. E

se formos abençoados, se eu for abençoada, e se tivermos um filho nosso, então, talvez eu dê um pequeno príncipe à Inglaterra, um jovem divino que possa ajudar a sarar as divisões neste país.

Ouve-se um murmúrio de entusiasmo da multidão e eu vejo todas as suas cabeças voltarem-se para o lado oposto ao meu e de novo na minha direcção. O

rei aproxima-se de nós, e todos os meus temores em relação a ele desaparecem num instante. Agora ele não finge ser um homem comum, não esconde a sua majestade no disfarce de um velho tonto e vulgar, hoje, está vestido como um rei

e monta como um rei, com um casaco bordado com diamantes, com um colar de diamantes em volta dos ombros, um chapéu de veludo na cabeça, bordado com pérolas, e no melhor cavalo que creio alguma vez ter visto. É magnífico, parece um deus sob a luz brilhante do Inverno, o seu cavalo curveteando na sua própria terra, carregado de jóias, rodeado pela guarda real com as trombetas a soarem alto. Sorri quando se aproxima de mim e nos cumprimentamos, e as pessoas dão vivas por nos verem juntos.

- Dou-vos as boas-vindas à Inglaterra - diz ele suficientemente devagar para que eu perceba, e eu respondo cuidadosamente em inglês:

- Meu senhor, estou muito contente por estar aqui, e tentarei ser uma boa esposa para vós.

Penso que serei feliz, penso que é possível. Aquele primeiro erro embaraçoso pode ser esquecido e deixado para trás. Iremos ficar casados durante anos, seremos felizes todas as nossas vidas. Daqui a dez anos, quem se recordará de um pequeno incidente como aquele?

Depois, o meu coche chega e eu sigo pelo meio do parque até ao palácio de Greenwich, que fica junto ao rio, e todas as barcaças estão decoradas com cores, com bandeiras desfraldadas e os cidadãos de Londres envergam as suas melhores roupas. Têm músicos na água e estão a tocar uma nova música chamada “Merry Anna”, escrita para mim, e há pajens nos barcos para celebrarem a minha chegada, todos sorriem e acenam para mim; por isso eu sorrio-lhes e aceno-lhes em resposta.

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O nosso cortejo chega ao amplo acesso de Greenwich e eu percebo novamente que país é este, esta minha nova pátria. Porque Greenwich não é, de modo algum, um castelo, não se encontra fortificado por receio de um inimigo que possa chegar, é um palácio construído para um país em paz, um grande, rico e belo palácio, tão requintado como qualquer outro na França. Fica em frente ao rio e é o mais bonito edifício de pedra e de precioso vidro veneziano que alguma vez vi na minha vida. O rei vê a minha face maravilhada e traz o cavalo para o lado do meu coche, inclinando-se para me dizer que este é apenas um dos seus muitos palácios, mas que é o seu favorito e que, com o tempo, à medida que

formos viajando pelo país, verei outros, e que espera que eu seja feliz com todos eles.

Levam-me para os aposentos da rainha para descansar, e por uma vez não me quero esconder nos aposentos privados, mas, pelo contrário, estou contente de estar aqui com as minhas damas à minha volta, nos meus aposentos privados, e muitas outras à espera, na grande sala de audiências, do lado de fora. Entro no quarto de vestir privado e mudo para o meu vestido de tafetá, que ornamentaram com as zibelinas que o rei me ofereceu no Ano Novo. Penso que nunca tive uma fortuna tão grande em cima de mim. Sigo à frente das minhas damas até lá em baixo, para jantar, sentindo-me como se já fosse uma rainha e, na entrada para a grande sala de jantar, o rei leva-me pela mão e conduz-me em volta das mesas, onde todos fazem vénias e reverências e nós sorrimos e acenamos, de mãos dadas, como se já fôssemos marido e mulher.

Começo a reconhecer as pessoas, e a saber os seus nomes sem lhos perguntar, por isso, agora a corte não é um enevoado tão hostil. Vejo Lorde Southampton, que parece cansado e perturbado, bem pode estar, pelo trabalho que teve em trazer-me até aqui. O seu sorriso é forçado e, estranhamente, o seu cumprimento é frio. Desvia o olhar do rei como se houvesse algum problema latente, e eu recordo-me da minha resolução de ser uma rainha justa nesta corte que é comandada pelo capricho. Talvez venha a saber o que preocupa Lorde Southampton, talvez possa ajudá-lo.

O principal conselheiro do rei, Thomas Cromwell, faz-me uma vénia e eu reconheço-o, da descrição que a minha mãe me fez, como o homem que, mais do que qualquer outro, procurou uma aliança connosco e com os duques protestantes da Alemanha. Teria esperado que ele me cumprimentasse de um modo mais caloroso, uma vez que o meu casamento é o triunfo dos seus planos, mas ele mantém-se calado e sóbrio e o rei conduz-me para além dele apenas com uma breve palavra.

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O Arcebispo Cranmer também vai jantar connosco, e eu reconheço Lorde Lisle e a sua esposa. Também ele tem um ar cansado e circunspecto, e eu recordo os seus receios, em Calais, das divisões no reino. Sorrio-lhe calorosamente. Sei

que existe trabalho para eu fazer neste país. Se conseguir salvar um herege das fogueiras, então, terei sido uma boa rainha e tenho a certeza de que posso usar a minha influência para fazer este país alcançar a paz.

Começo a sentir que tenho amigos na Inglaterra, e quando olho para baixo, para o salão, e vejo as minhas damas, Jane Bolena, a gentil Lady Browne, a sobrinha do rei, Lady Margaret Douglas e a pequena Catarina Howard entre elas, começo a sentir que esta pode ser, de verdade, a minha nova casa, e que o rei é, de facto, meu marido, que os seus amigos e os seus filhos serão a minha família, e que serei feliz aqui.

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Catarina, Palácio de Greenwich, 3 de Janeiro de 1540

Tal como sempre sonhei, vai haver danças, depois do jantar, na bela sala repleta dos homens mais bonitos do mundo. E melhor do que os meus maiores sonhos, tenho um vestido novo e, espetado no meu vestido, tão óbvio e visível quanto possível, está o meu broche de ouro que me foi oferecido pelo próprio rei da Inglaterra. Estou constantemente a tocar-lhe, quase como se estivesse a apontar para ele e a dizer às pessoas:

- O que pensais disto? Nada mau praticamente para o meu primeiro dia na corte.

O rei está no seu trono com um ar poderoso e paternalista, e Lady Ana está tão bela quanto consegue (apesar daquele vestido horrível) ao lado dele. Mais valia ela ter atirado as zibelinas ao Tamisa do que tê-las mandado coser àquela tenda de tafetá. Estou tão consternada com aquelas peles praticamente desperdiçadas que, por momentos, isso quase esmorece o meu prazer.

Mas quando olho em volta da sala - não de forma impúdica, olho simplesmente ao meu redor como se não estivesse à procura de nada em particular - e vejo primeiro um rapaz jovem, bem-parecido, e depois outro, na verdade, meia dúzia que gostaria bastante de conhecer melhor. Alguns deles estão sentados juntos a uma mesa, é a mesa dos pajens, e cada um deles é filho de uma boa família, ricos de pleno direito, e ocupam uma posição elevada nos favores de um lorde. Dereham, o pobre Dereham, seria um plebeu para eles, Henry Manox seria o seu criado. Estes vão ser os meus novos pretendentes.

Quase não consigo afastar os meus olhos de nenhum deles. Capto um olhar de

dois deles na minha direcção e reconheço aquela sensação de excitação e de prazer que me diz que estou a ser observada, que sou desejada, que o meu nome será mencionado, que me vai ser entregue um bilhete, que toda a aventura divertida dos namoriscos e da sedução vai começar de novo. Um rapaz irá perguntar o meu nome e enviar-me uma mensagem. Eu aceitarei encontrar-me com ele, haverá uma troca de olhares e

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palavras tontas acerca das danças, de desporto e do jantar. Haverá um beijo, seguir-se-á outro, depois devagar, deliciosamente, acontecerá uma sedução e eu conhecerei outro toque, os beijos deliciosos de outro rapaz, e voltarei a apaixonar-me completamente.

O jantar está delicioso mas eu quase não toco na comida porque, na corte, há sempre alguém a observar-nos, e eu não quero parecer gulosa. A nossa mesa está virada para a parte da frente do salão, por isso, é natural que eu olhe para cima para ver o rei a jantar. Nas suas roupas luxuosas e com o seu enorme colar de ouro, poderia ser confundido com um dos retratos antigos que estão por cima de um altar; refiro-me a um retrato de Deus. Tem um ar tão grandioso e imponente e está tão carregado de ouro e jóias, que cintila como uma velha montanha do tesouro. Existe um pano de ouro espalhado sobre a sua grande cadeira, com cortinas bordadas dependuradas de cada um dos lados, e cada prato é-lhe servido por um criado de joelhos. Até o criado que lhe oferece uma taça de ouro para ele mergulhar os dedos e limpar as mãos o faz sobre um joelho dobrado. Está lá outro criado para lhe entregar o pano de linho. Inclinam igualmente as cabeças quando se ajoelham diante dele, como se ele fosse de uma importância de tal forma sobrenatural que não pudessem olhá-lo nos olhos.

Por isso, quando ele ergue os olhos e me vê a observá-lo, não sei se devo desviar o olhar, ou fazer uma reverência, ou o que fazer. Estou tão baralhada com isto que lhe dirijo um pequeno sorriso, desvio os olhos e depois volto a olhá-lo, para ver se ele ainda me está a observar, e está. Depois penso que isso seria exactamente o que eu faria se estivesse a tentar atrair um rapaz, e essa ideia faz-me corar e baixar os olhos para o meu prato, e sinto-me muito tonta. Depois, quando ergo os olhos, sob as minhas pestanas, para ver se ele ainda está a olhar para mim, ele está a olhar para a outra extremidade do salão e é evidente que praticamente nem reparou em mim.

Contudo, o olhar escuro e penetrante do meu tio está fixado em mim, e eu tenho medo de que ele franza as sobrancelhas; talvez eu devesse ter feito uma vénia ao rei quando o vi olhar para mim a primeira vez. Mas o Duque limita-se a dirigir-me um pequeno aceno de aprovação e fala com um homem sentado à sua direita. Um homem sem interesse para mim, deve ter cento e noventa e dois anos, mais dia, menos dia.

Estou realmente admirada com o facto de esta corte ser tão velha e de o rei ser quase um ancião. Sempre tive a impressão de que era uma corte de pessoas jovens, bonitas e alegres; não tantos

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homens tão velhos. Juro que não pode haver um amigo do rei que tenha um dia a menos que quarenta anos. O seu grande amigo Charles Brandon, de quem se diz que é um herói do glamour e do encanto, é absolutamente velho, na sua senilidade dos cinquenta. A senhora minha avó fala sobre o rei como se ele fosse o príncipe que ela conheceu quando era uma menina, e é claro que foi por esse motivo que eu fiquei com uma ideia absolutamente errada. Ela é uma senhora com tanta idade que se esquece que passaram muitos anos. Provavelmente pensa que ainda são todos jovens. Quando fala sobre a rainha, refere-se sempre à Rainha Catarina de Aragão, não à Rainha Jane nem sequer a Lady Ana Bolena.

Ignora simplesmente todas as rainhas que vieram depois de Catarina. Na verdade, a minha avó ficou tão assustada pela queda da sobrinha Ana Bolena que nunca fala dela, excepto como um aviso terrível para raparigas malcomportadas como eu.

Não foi sempre assim. Consigo recordar-me de chegar pela primeira vez à casa da minha avó, em Horsham, e de duas em duas frases ela dizia, “a minha sobrinha, a rainha” e todas as cartas para Londres lhe pediam um favor ou uma contribuição, um lugar para um criado, ou as sobras de um mosteiro, pedia-lhe que expulsasse um padre ou que deitasse abaixo um convento. Depois, Ana teve uma menina, e ela dizia muito “a nossa bebé, a Princesa Isabel” e as esperanças de que o próximo bebé fosse um rapaz. Todos me prometiam que eu teria um lugar na corte, na casa da minha prima, eu iria ser parente da rainha da Inglaterra, que sabia onde eu poderia procurar um marido. Outra prima Howard, Maria, estava casada com o filho bastardo do rei, Henry Fitzroy, e um primo estava destinado para a Princesa Maria. Éramos de tal forma casados com os Tudor que nós próprios iríamos ser nobres. Mas depois, lentamente, como um

Inverno a chegar, quando ainda não se nota o frio, começou a falar-se menos dela e havia menos certezas em relação à sua corte. Depois, um dia, a minha avó chamou todos os criados da casa para o grande salão e disse abruptamente que Ana Bolena (referiu-se a ela nesses termos, sem título, definitivamente sem parentesco), Ana Bolena se havia desonrado, a ela e à família, e traíra o rei e que o nome dela e do irmão nunca mais voltariam a ser mencionados.

É claro que ficámos todos desesperados por saber o que acontecera, mas tínhamos de esperar pelos boatos dos criados. Só quando as notícias chegaram finalmente de Londres é que eu pude saber o que a minha prima, a Rainha Ana, tinha feito. A minha criada disseme, consigo ouvi-la agora a dizermo, que Lady Ana havia sido acusada de crimes terríveis, adultério com muitos homens, com o 99

irmão entre eles, bruxaria, traição, enfeitiçar o rei, uma torrente de horrores de entre os quais apenas um se destacava para mim, uma rapariguinha chocada: o facto de o acusador ser o tio dela, o meu tio Norfolk. O ter sido ele a presidir ao tribunal, a pronunciar a sentença de morte dela e de o filho dele, o meu belo primo, ter ido para a Torre, como um homem poderia ir a uma feira, vestido com as suas melhores roupas, para ver o primo ser decapitado.

Pensei que o meu tio devia ser um homem tão temível que poderia ter um pacto com o diabo; mas posso-me rir desses temores infantis, agora que sou a favorita dele, que ocupo uma posição tão alta nos favores dele, que ordenou a Jane Bolena, Lady Rochford, que me conceda uma atenção particular, e deu-lhe dinheiro para me comprar um vestido. Obviamente, ficou bastante encantado comigo, sou a rapariga Howard de quem ele gosta mais de entre aquelas que colocou na corte, e pensa que eu farei avançar os interesses da família conseguindo um casamento com um nobre, tornando-me amiga da rainha, ou encantando o rei. Pensava que ele era um homem de uma crueldade diabólica, mas agora considero-o um tio bondoso.

Vai haver uma representação com máscaras a seguir ao jantar, e palhaçadas com muita piada com o bobo do rei, e depois vai haver cantigas que são quase insuportavelmente aborrecidas. O rei é um grande músico, ouvi dizer, e por isso, na maior parte das noites, teremos de suportar ouvir uma das suas músicas. Vão ouvir-se muitos tra-la-las e todos estarão a ouvir com muita atenção e aplaudirão ruidosamente no fim. Creio que Lady Ana não tem melhor opinião a respeito dos

entretenimentos do que eu, mas comete o erro de olhar em seu redor com um ar muito vago, como se estivesse a desejar, em silêncio, estar em qualquer outro lugar. Vejo o rei olhar de relance para ela, e depois desviar os olhos, como se estivesse irritado com a sua desatenção. Tomo o cuidado de entrelaçar as mãos sob o queixo e de sorrir com os olhos semicerrados, como se praticamente não conseguisse suportar a alegria do momento. Que sorte! Por acaso, ele olha na minha direcção e pensa claramente que a sua música me arrebatou. Dirige-me um sorriso rasgado de aprovação e eu retribuo-lho, baixando os olhos para o chão, como se receasse olhar para ele por demasiado tempo.

- Muito bem - diz Lady Rochford, e eu dirijo-lhe um pequeno sorriso de triunfo. Adoro, adoro, adoro a vida na corte. Juro que me vai dar completamente a volta à cabeça.

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Jane Bolena, Palácio de Greenwich, 3 de Janeiro de 1540

- Meu senhor Duque - digo eu, baixando-me bastante numa vénia.

Estamos nos apartamentos dos Howard, no Palácio de Greenwich, uma série de bonitas divisões que se abrem, uma a seguir à outra, quase tão espaçosas e belas como os aposentos da própria rainha. Fiquei lá uma vez com Jorge, quando tínhamos acabado de nos casar, e recordo-me da vista para o rio, e da luz ao amanhecer quando acordei, tão apaixonada, e ouvi o som dos cisnes a voar por cima das nossas cabeças, descendo o rio com as suas asas enormes a ranger.

- Ah, Lady Rochford - diz o meu senhor, o Duque, com uma expressão amigável no seu rosto enrugado. - Preciso de vós.

Eu aguardo.

- Sois amiga de Lady Ana, sois próximas?

- Dentro do possível - digo eu cautelosamente. - Ela ainda fala pouco inglês, mas eu fiz um grande esforço para conversar com ela e creio que gosta de mim.

- Ela confiaria em vós?

- Falaria primeiro com as suas companheiras de Clèves, julgo eu. Mas por

vezes faz-me perguntas sobre a Inglaterra. Estou convencida de que confia em mim.

Ele volta-se para a janela e martela com a unha do polegar nos dentes amarelos. O seu rosto macilento apresenta as rugas de quem está em reflexão.

- Há uma dificuldade - diz ele devagar.

Eu espero.

- Tal como haveis ouvido, mandaram-na realmente sem documentos adequados - afirma. - Foi prometida, quando criança, a Francis da Lorena, e o rei precisa de ver que esse noivado foi cancelado e posto de parte, antes de a situação avançar.

- Ela não é livre para se casar? - pergunto, perplexa. - Quando os contratos já foram assinados e ela percorreu todo este caminho e 101

foi recebida pelo rei como sua noiva? Quando a Cidade de Londres a recebeu com a sua nova rainha?

- É possível - diz ele evasivo.

É absolutamente impossível, mas não me cabe a mim dizê-lo.

- Quem é que diz que ela pode não ser livre para se casar?

- O rei receia avançar. A consciência dele não está tranquila.

Detenho-me, não consigo pensar suficientemente rápido para extrair algum sentido daquelas palavras. Este é um rei que se casou com a mulher do irmão, e depois a repudiou alegando que o casamento de toda uma vida era inválido. Este é um rei que colocou a cabeça de Ana Bolena no cepo, por uma questão da sua própria opinião, sob orientação exclusiva de Deus. Claramente, este não é um rei que se deixasse dissuadir de se casar com uma mulher, só porque um embaixador alemão não estava na posse de um documento para lhe entregar. Depois, recordo-me do momento em que ela o repeliu, e do rosto dele, enquanto se afastava dela, em Rochester.

- Então é verdade. Ele não gosta dela. Não consegue perdoar-lhe pela forma como ela o tratou em Rochester. Vai descobrir uma forma de se livrar deste casamento. Alegará, mais uma vez, que existia um contrato anterior - um olhar de relance para o rosto sombrio do Duque diz-me que acertei e eu quase seria capaz de me rir bem alto desta nova reviravolta na representação que é a comédia do Rei Henrique. - Ele não gosta dela e vai mandá-la de volta para casa.

- Se ela confessasse que já havia sido prometida anteriormente, poderia regressar a casa, sem qualquer desonra, e o rei ficaria livre - afirma o Duque em voz baixa.

- Mas ela gosta dele - digo eu. - De qualquer forma, ela gosta dele o suficiente.

E não pode voltar para casa outra vez. Nenhuma mulher com algum bom senso voltaria atrás. Regressar para ser um artigo menosprezado em Clèves, quando poderia ser rainha da Inglaterra? Ela nunca o quereria. Quem se casaria com ela, se ele a rejeitar? Quem poderia casar-se com ela, se ele declarar que ela já havia sido prometida a outro? A vida dela estará terminada.

- Ela poderia livrar-se do pré-contrato - diz ele com razoabili-dade.

- E existe um pré-contrato?

Ele encolhe os ombros.

- Quase de certeza que não.

Reflicto durante alguns instantes.

- Então, como é que ela pode libertar-se de algo que não existe?

Ele sorri.

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- Isso é um assunto para os alemães. Ela pode ser mandada de volta para casa contra a sua vontade, se não colaborar.

- Nem mesmo o rei a pode raptar e mandá-la para fora do reino.

- Se ela pudesse ser levada a dizer que existia um contrato anterior - a voz dele é como um rumor de seda. - Se saísse da própria boca dela que não é livre para se casar...

Eu assinto. Começo a perceber o favor que pretende que eu lhe faça.

- O rei ficaria extremamente grato ao homem que lhe pudesse dizer que tinha conseguido obter uma confissão dela. E a mulher que lhe trouxesse essa confissão ocuparia uma posição bastante elevada nos seus favores. E nos meus.

- Estou às vossas ordens - digo para me conceder algum tempo para pensar. -

Mas não consigo fazer com que ela minta. Se ela sabe que é livre para se casar, seria louca em afirmar o contrário. E se eu alegar que ela disse o contrário, a ela, basta-lhe negá-lo. Depois, é a palavra dela contra a minha e voltamos novamente à verdade - faço uma pausa enquanto um receio me ocorre. - Meu senhor, presumo que não exista a possibilidade de ela ser alvo de uma acusação?

- Que tipo de acusação?

- De algum crime? - digo nervosamente.

- Referis-vos à possibilidade de ela ser acusada de traição?

Anuo. Eu própria não direi essa palavra. Quem me dera nunca mais voltar a ouvir essa palavra. Conduz ao Relvado da Torre e ao cepo do carrasco. Levou-me o amor da minha vida. Acabou definitivamente com a vida que tínhamos.

- Como é que poderia ser traição? - pergunta-me ele, como se não vivêssemos num mundo perigoso onde tudo pode ser traição.

- A lei mudou tanto. Ser inocente já não constitui qualquer defesa.

Ele abana a cabeça abruptamente.

- De qualquer modo, não há possibilidade de ele a acusar. O rei da França está a receber o Sacro-Imperador Romano em Paris, neste preciso momento. Podem estar a planear um ataque conjunto contra nós, no preciso momento em que falamos. Não podemos fazer nada que possa irritar Clèves. Temos de ter uma aliança com os príncipes protestantes ou corremos o risco de ficarmos sozinhos para fazer frente à Espanha e à França, que se uniram contra nós. Se os papista

ingleses se revoltarem outra vez, como fizeram antes, estaremos perdidos. Ela tem de confessar que estava prometida a

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outro homem e voltar para casa de livre vontade, para nós libertarmos a rapariga, mas mantermos a aliança. Ou se alguém conseguisse levá-la a fazer uma confissão, isso já seria bastante bom. Mas se ela continuar a dizer que está livre para se casar e se insistir no casamento, então o rei terá de o fazer. Não podemos ofender o irmão dela.

- Quer isso agrade ao rei, quer não?

- Ainda que ele o deteste, ainda que ele deteste o homem que o arquitectou, e ainda que ele a deteste a ela.

Detenho-me por um momento.

- Se ele a detesta e mesmo assim se casa com ela, encontrará uma forma de se livrar dela mais tarde - penso eu em voz alta.

O Duque não diz nada, mas as suas pestanas cobrem-lhe os olhos escuros.

- Oh, quem pode predizer o futuro?

- Ela correrá o maior dos perigos, em cada dia da sua vida - prevejo. - Se o rei se quiser livrar dela, em breve pensará que é vontade de Deus que ele se livre dela.

- Essa é, em geral, a forma como a vontade de Deus parece manifestar-se - diz o Duque com um sorriso cruel.

- Então, vai descobrir que ela cometeu um crime qualquer - digo. Não pronunciarei a palavra traição.

- Se a apreciásseis minimamente, convencê-la-íeis a partir agora - diz o Duque em voz baixa.

Regresso devagar aos aposentos da rainha. Ela não irá ser aconselhada por mim, em detrimento dos seus embaixadores; e eu não sou livre de lhe dizer o que

penso verdadeiramente. Mas se fosse amiga sincera dela, ter-lhe-ia dito que Henrique não é um homem a aceitar como marido, quando já nos odeia antes do dia do casamento. A sua malícia para com as mulheres que o contrariam é fatal.

E quem poderia sabê-lo melhor do que eu?

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Ana, Palácio de Greenwich, 3 de Janeiro de 1540

A dama de companhia, Jane Bolena, parece perturbada e eu digo-lhe que se pode sentar ao meu lado e pergunto-lhe, em inglês, se se sente bem.

Ela pede à minha tradutora que se aproxime e que se sente junto de nós, e ela diz que está preocupada com um assunto um pouco delicado.

Julgo que deve ser algo relacionado com a precedência no casamento, estão tão ansiosos em relação à ordem do serviço e às jóias que toda a gente deve usar.

Eu assinto como se se tratasse de um assunto sério e pergunto-lhe como posso ajudá-la.

- Pelo contrário, eu é que estou ansiosa por vos poder ajudar - diz ela falando baixinho para Lotte. Ela traduz-me o que ela diz, eu assinto. - Ouvi dizer que os vossos embaixadores se esqueceram de trazer o contrato que vos liberta de um noivado anterior.

- O quê? - eu falo tão vincadamente que ela adivinha o significado da palavra alemã, e anui, com um rosto tão grave quanto o meu.

- Então, eles não vos disseram?

Eu abano a cabeça.

- Nada - digo em inglês. - Não me dizem nada.

- Sendo assim, estou muito contente por falar convosco antes de serdes mal aconselhada - diz ela rapidamente e eu aguardo, enquanto as palavras estão a ser traduzidas. Ela inclina-se para a frente e pega-me nas mãos. As dela estão mornas, o seu rosto sério. - Quando vos fizerem perguntas acerca de um noivado anterior, tendes de lhes dizer que foi anulado, e que haveis visto o documento -

diz ela com sinceridade. - Se vos perguntarem por que razão o vosso irmão não o

enviou, podeis dizer que não sabeis, que não era vossa responsabilidade trazer os documentos... como de facto não era.

Eu fico sem fôlego; algo na intensidade dela me faz sentir receosa. Não consigo imaginar por que motivo o meu irmão seria 105

tão negligente em relação ao meu casamento, depois recordo-me do seu ressentimento constante para comigo. Traiu o seu próprio plano por maldade; no último momento não suportou deixar-me ir tranquilamente para longe dele.

- Vejo que estais chocada - diz ela. - Minha caríssima Lady Ana, considerai-vos avisada, e nunca permitais que eles pensem por um momento que esse documento não existe, que ainda permaneceis vinculada a um noivado anterior.

Tendes de dizer uma mentira forte e convincente. Tendes de lhes dizer que haveis visto os documentos e que o vosso noivado anterior está definitivamente anulado.

- Mas foi - digo lentamente. Repito em inglês para ela não confundir. - Eu vi o documento. Não é mentira. Sou livre para me casar.

- Tendes a certeza? - pergunta ela com ar sério. - Estas coisas podem ser feitas sem que uma rapariga saiba os planos que estão a ser elaborados. Ninguém vos culparia se não tivésseis a certeza. Podeis dizer-me. Confiai em mim. Dizei-me a verdade.

- Foi cancelado - digo novamente. - Eu sei que foi cancelado. O noivado foi um plano do meu pai; mas não do meu irmão. Quando o meu pai estava doente e depois morreu, o meu irmão passou a governar e cancelou o noivado.

- Então, porque não tendes o documento?

- O meu irmão - começo eu. - O tonto do meu irmão... O meu irmão não se preocupa com o meu bem-estar - traduz rapidamente Lotte. - O meu pai morreu há tão pouco tempo e a minha mãe está tão desolada, havia muita coisa para ele fazer. O meu irmão tem o documento na nossa sala de arquivos. Eu própria o vi; mas ele deve ter-se esquecido de o enviar. Havia tantos assuntos a tratar.

- Se tendes alguma dúvida, tendes de dizer-me - avisa-me ela. E eu posso

aconselhar-vos sobre qual seria a melhor atitude a tomar. Podeis ver, pelo facto de ter vindo ter convosco e de vos aconselhar, que vos sou absolutamente leal.

Mas se houver alguma hipótese de o vosso irmão não ter o documento, tendes de mo dizer, Lady Ana, dizei-mo para vossa própria segurança, e eu planearei convosco qual será a melhor forma de proceder.

Abano a cabeça.

- Agradeço-vos pela vossa preocupação comigo, mas não é necessário. Eu própria vi os documentos, assim como os meus embaixadores - digo. - Não há qualquer impedimento, eu sei que sou livre para me casar com o Rei.

Ela assente com a cabeça, como se estivesse à espera de mais alguma coisa.

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!A

- Estou tão contente.

- E eu quero casar-me com o Rei.

- Se desejásseis evitar o casamento, agora que o haveis visto, poderíeis fazê-lo

- diz ela muito baixinho. - Esta é a vossa oportunidade de escapar. Se não haveis gostado dele, podeis voltar para casa em segurança, sem que qualquer palavra possa ser proferida contra vós. Eu podia ajudar-vos. Poderia dizer-lhes que me havíeis dito que não tendes a certeza, que podeis estar vinculada a um contrato anterior.

Eu afasto as mãos das dela.

- Eu não quero fugir - digo simplesmente. - Esta é uma grande honra para mim e para o meu país; e uma grande alegria para mim.

Jane Bolena fica com um ar céptico.

- Sinceramente - digo. - Eu desejo ser Rainha da Inglaterra, estou a começar a gostar deste país e quero fazer a minha vida aqui.

- A sério?

- Sim, pela minha honra - hesito e depois revelo-lhe o motivo principal. - Eu não era muito feliz em casa - admito. - Não era muito respeitada, nem bem tratada. Aqui posso ser alguém, posso fazer o bem. Em casa, nunca serei mais do que uma irmã indesejada.

Ela assente. Muitas mulheres sabem o que significa estar no meio do caminho enquanto os grandes assuntos dos homens avançam sem elas.

- Eu quero ter uma oportunidade - digo. - Quero ter oportunidade de ser a mulher que posso ser. Não uma criatura do meu irmão, não a filha da minha mãe.

Quero ficar aqui e tornar-me eu mesma. Quero ser uma mulher livre.

Ela permanece em silêncio por um momento, fico surpreendida pela profundidade do meu próprio sentimento.

- Quero ser uma mulher de pleno direito - digo.

- Uma Rainha não é livre - observa ela.

- É melhor do que uma irmã indesejada de um Duque.

- Muito bem - diz ela calmamente.

- Suponho que o Rei deve estar irritado com os meus embaixadores, por eles se terem esquecido dos documentos? - pergunto.

- Tenho a certeza de que está - responde ela, olhando pelo canto do olho. -

Mas eles darão a palavra de que estais livre para vos casardes e eu tenho a certeza de que tudo avançará.

- Há alguma possibilidade de o casamento ser adiado? - estou surpreendida com os meus próprios sentimentos. Tenho uma forte convicção de que posso fazer muito por este país, que posso ser uma boa Rainha aqui. Quero começar já.

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- Não - diz ela. - Os embaixadores e o conselho do Rei resolverão o assunto.

Tenho a certeza.

Faço uma pausa.

- Ele quer mesmo casar-se comigo?

Ela sorri para mim e afaga-me a mão.

- É claro que quer. Isto é apenas uma pequena dificuldade. Os embaixadores tratarão de apresentar o documento e o casamento irá para a frente. Desde que tenhais a certeza de que o documento lá está?

- Está lá - digo eu, e estou a dizer exclusivamente a verdade. - Posso jurá-lo.

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Catarina, Palácio de Greenwich, 6 de Janeiro de 1540

Vou ajudar a Rainha a vestir-se para o casamento e tenho de me levantar extremamente cedo para preparar tudo, preferia não ter de acordar cedo, mas é tão agradável ter sido escolhida de entre as outras raparigas que dormem até tão tarde e são tão preguiçosas. Realmente, é muito indelicado da parte delas ficarem deitadas até tão tarde, quando algumas de nós já estão a pé e a trabalhar para Lady Ana. Sinceramente, todas à excepção de mim são muito preguiçosas.

Estendo o vestido dela enquanto ela se lava no quarto de vestir. Catarina Carey ajuda-me a abrir a saia e os saiotes em cima da arca fechada enquanto Mary Norris vai buscar as jóias dela. A saia é enorme, como um enorme pião, preferia morrer a casar-me com um vestido destes; a maior beldade do mundo não conseguiria deixar de parecer um pudim, bamboleando-se à espera de ser comido. Quase não vale a pena ser Rainha se se tem de andar por aí como uma tenda, penso eu. O tecido é extremamente fino - tecido de ouro - e é pesado, coberto das mais maravilhosas pérolas, e ela tem um diadema para usar. Mary pô-la em frente ao espelho e, se não estivesse aqui mais ninguém, eu experimentá-lo-ia, mas, apesar de ser tão cedo, já cá estão meia dúzia de nós, criados, criadas e damas de companhia, e por isso tenho de a polir e de a pousar.

É de talha muito fina, ela trouxe-a de Cléves disseme que é suposto que as extremidades pontiagudas sejam rosmaninho, que a sua própria irmã o usou como ervas frescas, no cabelo, no dia do seu casamento. Eu digo-lhe que parece uma coroa de espinhos e a dama que é secretária dela lança-me um olhar penetrante e não traduz a minha observação. É-me igual, sinceramente.

Ela vai levar o cabelo solto e, quando sai da casa de banho, senta-se diante do espelho de prata, e Catarina escova-lhe o cabelo com movimentos longos e suaves, como faria a uma cauda de um cavalo. Ela tem o cabelo louro, para ser franca tem o cabelo bastante dourado, e, embrulhada num lençol de banho e a brilhar do banho,

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está com bom aspecto, esta manhã. Está um pouco pálida, mas sorri para todas nós, e parece bastante feliz. Se eu estivesse no lugar dela, estaria a dançar de alegria por ir ser Rainha da Inglaterra. Mas suponho que ela não é do tipo de dançar.

Lá vai ela para o casamento e todas nós ficamos para trás, na estrita ordem de importância, o que significa que eu fico tão para trás que praticamente não vale a pena aqui estar, ninguém me vai conseguir ver, apesar de estar a usar o meu vestido novo debruado a fio de prata, a peça de roupa mais valiosa que alguma vez tive. É de um azul-acinzentado muito claro, e combina com os meus olhos.

Nunca estive melhor; mas não é o meu casamento e ninguém me presta qualquer atenção.

O Arcebispo Cranmer é quem os vai casar: monótono, monótono, monótono como uma abelha velha. Pergunta-lhes se existe algum motivo que impeça a união, e se nós, congregação, temos conhecimento de algum impedimento e todos respondemos alegremente: “Não, não temos”, e suponho que sou a única pateta a perguntar-me o que aconteceria se alguém dissesse: “Interrompei o casamento, porque o Rei já teve três mulheres e nenhuma delas morreu de velhice!”, mas é claro que ninguém o faz.

Se ela tivesse algum bom senso, deveria estar assustada. Não é um número nada animador. É claro que ele é um grande homem, e a sua vontade é a vontade de Deus, é evidente; mas ele teve três mulheres e todas elas estão mortas. Não é uma grande perspectiva para uma noiva, quando penso nisso. Mas não me parece que ela pense dessa forma. Provavelmente, ninguém pensa assim, a não ser que sejam tão estúpidos quanto eu.

Estão casados e saem para ouvir a Missa no quarto privado do rei e os restantes de nós esperamos sem nada para fazer, o que é, concluo, uma das principais actividades da corte. Há um jovem muito bem parecido cujo nome,

por acaso, é John Beresby e que consegue passar por entre as pessoas para ficar de pé atrás de mim.

- Estou ofuscado - diz ele.

- Não sei com quê - digo eu descaradamente. - O dia ainda mal nasceu, é tão cedo.

- Não pelo sol, mas pela luz grandiosa da vossa beleza.

- Oh, por isso - digo e lanço-lhe um pequeno sorriso.

- Sois nova na corte?

- Sim, sou Catarina Howard.

- Eu sou John Beresby.

- Eu sei.

- Sabeis? Haveis perguntado a alguém como me chamo?

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- De forma alguma - digo. Mas é mentira. Reparei nele naquele primeiro dia em Rochester, e perguntei a Lady Rochford quem ele era.

- Haveis perguntado por mim - diz ele encantado.

- Não vos envaideçais - digo eu esmagadoramente.

- Dizei-me que, pelo menos, posso dançar convosco, mais tarde, na festa de casamento.

- Talvez - digo.

- Vou considerar isso uma promessa - murmura ele, e depois a porta abre-se e o rei sai com Lady Ana e todos nos baixamos numa vénia, porque agora ela é Rainha, além de ser uma mulher casada, e eu não consigo deixar de pensar que,

apesar de ser muito bom para ela, teria sido muito melhor se tivesse usado um vestido com uma cauda comprida.

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Ana, Palácio de Greenwich, 6 de Janeiro de 1540

Então, está feito. Sou Rainha da Inglaterra. Sou uma esposa. Estou sentada à direita do meu marido, o Rei, na festa do casamento e sorrio para o fundo do salão, para que todos, as minhas damas, os lordes nas suas mesas, os plebeus na galeria, todos possam ver que estou feliz por ser a rainha deles e que serei uma boa rainha e uma esposa alegre.

O Arcebispo Cranmer realizou o serviço de acordo com os rituais da Santa Igreja Católica da Inglaterra, por isso, sinto-me um pouco desconfortável na minha consciência. Isto não aproxima mais o país da religião reformada como eu prometi ao meu irmão e à minha mãe que faria. O meu conselheiro, o Conde Overstein, está de pé, ao meu lado, e quando há um intervalo no jantar, comento com ele, em voz baixa, que espero que ele e os lordes de Clèves não fiquem desiludidos por eu não ter sido capaz de conduzir o Rei para a Reforma.

Ele afirma que me vai ser permitido praticar a minha fé, conforme eu entender, em privado, mas o Rei não quer ser incomodado com questões de teologia, no dia do seu casamento. Afirma que o Rei parece firme na sua intenção de manter a igreja que criou, que é a Católica, mas nega a liderança do papa. O Rei opõe-se tanto aos Reformistas quanto aos fervorosos Papistas.

- Mas, com certeza, podiam ter encontrado um formato de texto que se adequasse a ambos? - observo. - O meu irmão estava ansioso para que eu apoiasse a Reforma da Igreja na Inglaterra.

Ele faz uma careta.

- A Reforma da Igreja não foi feita da forma que a imaginámos - diz ele, e pela linha cerrada da sua boca, depreendo que não quer dizer mais anda.

- Mas é evidente que parece ter sido um processo proveitoso - observo, hesitante, pensando nas grandes casas em que ficámos alojados, à vinda de Deal, e que haviam sido claramente mosteiros, ou abadias, nos jardins de plantas medicinais em volta deles a serem

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escavados para plantar flores, nas quintas que davam alimento aos pobres, mas que agora estavam a ser convertidas em parques para caça.

- Quando estávamos na nossa terra, pensámos que fosse um processo divino -

comenta ele, brevemente. - Não nos apercebemos de que estava banhado de sangue.

- Não consigo perceber como é que demolir os templos onde as pessoas simples gostavam de dizer as suas orações os possa levar mais perto de Deus -

digo. - E onde está a vantagem de os proibir de acender velas em memória dos seus entes queridos?

- Um lucro terreno, assim como espiritual - diz ele. - Os dízimos da igreja não deixaram de ser cobrados, só que agora são pagos ao Rei. Mas não nos cabe a nós tecer observações a respeito do modo como a Inglaterra escolhe dizer as suas orações.

- O meu irmão...

- O vosso irmão teria feito melhor em ter mais cuidado com a forma como mantém os registos - diz ele, subitamente irritado.

- O quê?

- Ele devia ter enviado a carta que vos libertava da vossa promessa de casamento com o filho do Duque de Lorena.

- Mas isso não era assim tão importante, pois não? - pergunto. - O Rei não me falou no assunto.

- Tivemos de jurar que tínhamos conhecimento da existência desse documento, e depois tivemos de jurar que iria ser enviado, num prazo de três meses, e a seguir fomos obrigados a jurar que nós próprios ficaríamos reféns até à chegada do documento. Se o vosso irmão não o encontrar e o enviar, sabe Deus o que nos vai acontecer.

Eu fico aterrada.

- Não vos podem manter reféns por causa do registo do meu irmão? Não podem pensar seriamente que havia um impedimento?

Ele abana a cabeça.

- Eles sabem perfeitamente que sois livre para vos casardes e que o casamento é válido. Mas por algum motivo que apenas eles conhecem, escolheram lançar uma suspeita sobre todo este assunto, e o erro do vosso irmão em deixar que viéssemos sem o trazer, permitiu essa suspeita. E fomos cruelmente envergonhados.

Eu baixo os olhos. O ressentimento do meu irmão em relação a mim vai contra os seus próprios interesses, vai contra os interesses do seu próprio país, vai mesmo contra os interesses da sua própria religião. Consigo sentir o meu mau humor a aumentar perante a ideia de ele colocar em perigo o meu casamento por puro ciúme e despeito. É tão idiota, é um idiota tão cruel.

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- Ele é descuidado - é tudo o que digo; mas ouço a minha voz tremer.

- Este não é um Rei com quem se possa ser descuidado - avisa o conde.

Eu assinto, estou muito ciente do Rei, sentado em silêncio à minha esquerda.

Ele não percebe alemão, mas eu não quero que olhe para mim e que me veja com qualquer outra expressão que não seja a de felicidade.

- Tenho a certeza de que ficarei muito satisfeita - digo, sorrindo, e o conde faz uma vénia e retira-se para o seu lugar.

Os entretenimentos terminaram e o arcebispo ergue-se do seu lugar à mesa. Os meus conselheiros prepararam-me para este momento e, quando o Rei se põe de pé, sei que também tenho de me levantar. Seguimos ambos o meu senhor, Cranmer, até à grande sala do Rei e ficamos à porta, enquanto o arcebispo caminha pela divisão, abanando o incensário e salpicando a cama com água benta. Isto é realmente muito supersticioso e estranho. Não sei o que a minha mãe diria; mas sei que não apreciaria.

Depois, o arcebispo fecha os olhos e começa a rezar. Ao meu lado, o Conde Overstein sussurra uma tradução rápida.

- Ele está a rezar para que os dois possais dormir bem e para que não sejais perturbados por sonhos demoníacos.

Asseguro-me de que a minha expressão é de interesse e de devoção. Mas quase não consigo manter um rosto sério. São estas as pessoas que fecharam templos para impedir as pessoas de rezar pedindo milagres e, no entanto, aqui, no palácio, têm de rezar para pedir protecção contra sonhos com demónios? Que sentido se pode extrair disto?

- Ele está a a rezar para que vós não sofrais de infertilidade, nem o rei de impotência, reza para que os poderes de Satã não façam o rei perder a sua virilidade e a vós, a vossa feminilidade.

- Ámen - digo eu prontamente, como se alguém pudesse acreditar neste disparate. Depois volto-me para as minhas damas e elas escoltam-me para fora do quarto até aos meus próprios aposentos, onde vestirei a minha camisa de noite.

Quando volto, o Rei está de pé, com a corte ao lado da grande cama, e o arcebispo ainda está a rezar. O Rei está de camisa de dormir com uma capa enorme e bonita, debruada a pele, por cima dos ombros. Despiu os calções e eu consigo ver a ligadura volumosa na sua perna, no sítio onde tem uma ferida aberta. A ligadura

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está limpa e é nova, graças a Deus, mas, mesmo assim, o cheiro da ferida infiltra-se no quarto de dormir e mistura-se, de modo repugnante, com o do incenso. As orações parecem ter continuado enquanto ambos trocávamos de roupa. Realmente, seria de pensar que, nessa altura, já estaríamos protegidos de sonhos demoníacos e da impotência. As minhas damas aproximam-se e retiram-me a capa dos ombros. Estou vestida apenas com a camisa de noite diante da corte inteira e estou tão mortificada e embaraçada que quase podia desejar estar novamente em Clèves.

Lady Rochford levanta rapidamente os cobertores da cama para me proteger dos olhares inquisitivos e eu deslizo para dentro deles e sento-me com as costas

apoiadas nas almofadas. Do outro lado da cama, um jovem, Thomas Culpepper, ajoelha-se para que Henrique se apoie no seu ombro e outro homem segura no cotovelo do Rei para o empurrar para cima. O Rei Henrique resmunga como um cavalo cansado, um velhote, enquanto sobe para a cama. A cama afunda-se com o seu peso e eu tenho de fazer um movimento sinuoso e deselegante e de me segurar à beira da cama, para não rebolar para cima dele.

O arcebispo ergue as mãos acima da cabeça para uma bênção final e eu olho em frente. A face sorridente de Catarina Howard capta a minha atenção, tem as mãos unidas, encostadas aos lábios como se rezasse devotamente, mas é óbvio que está a fazer um esforço para não se rir. Finjo não a ter visto, com medo de que ela também me faça rir, e quando o arcebispo termina as suas orações, digo:

- Ámen.

Nessa altura, todos vão embora, graças a Deus. Não é feita nenhuma sugestão de que deveriam assistir à consumação do casamento, mas eu sei que terão de ver os lençóis na manhã seguinte e de saber que foi consumado. Esta é a natureza do casamento real. Essa, e o facto de casar com um homem que tem idade suficiente para ser meu pai, e que praticamente não conheço.

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Jane Bolena, Palácio de Greenwich, 6 de Janeiro de 1540

Sou uma das últimas a sair e fecho tranquilamente a porta a mais um dos casamentos do Rei, que vi progredir desde a corte até ao leito nupcial. Algumas, como aquela tonta da Catarina Howard, pensariam que é aqui que a história termina, que esta é a conclusão de tudo. Eu sei mais do que isso. Aqui é onde a história de uma Rainha começa.

Antes desta noite há contratos e promessas e, por vezes, esperanças e sonhos; raramente há amor. Depois desta noite existe a realidade de duas pessoas que resolvem as suas vidas em conjunto. Para alguns, é uma negociação que não tem hipóteses de ser feita; o meu próprio tio está casado com uma mulher que não tolera; neste momento, vivem separados. Henry Percy casou-se com uma herdeira, mas nunca se conseguiu libertar do seu amor por Ana Bolena. Thomas Wyatt odeia a mulher com um sentimento de vingança, desde que se apaixonou por Ana, quando ela era uma menina e nunca ultrapassou essa paixão. O meu próprio marido... mas não vou pensar no meu marido agora. Deixai-me lembrar-

me de que o amava, que teria morrido de amor por ele - independentemente do que ele pensava de mim, quando nos deitaram juntos pela primeira vez.

Independentemente da pessoa em quem pensava, quando tinha de praticar o acto comigo. Deus lhe perdoe poi me ter nos braços e pensar nela. Deus me perdoe por sabê-lo e permitir que isso me assombrasse. No final, Deus me perdoe por ter a minha cabeça e o meu coração de tal forma transtornados, ao ponto de não haver nada de que gostasse mais do que estar nos braços dele e imaginá-lo com outra mulher - os ciúmes e o desejo fizeram-me descer tão baixo, que esse era o meu prazer, um prazer pecaminoso e cruel, sentir as mãos dele no meu corpo e pensar nele acariciá-la.

Não se limita a uma questão de quatro pernas nuas numa cama e de o acto ser consumado. Ela terá de aprender a obedecer-lhe Não nas coisas grandiosas, qualquer mulher pode fingir um pouco

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Mas nos milhares de compromissos triviais que fazem parte do dia-a-dia de uma esposa. As mil vezes por dia em que temos de morder o lábio, de baixar a cabeça e não discutir em público, nem em privado, nem sequer no recôndito tranquilo do nosso próprio cérebro. Se o nosso marido é rei, então, tudo isto se torna ainda mais importante. Se o nosso marido é o Rei Henrique, é uma decisão de vida ou de morte.

Todos tentam esquecer que Henrique é um homem impiedoso. O próprio Henrique tenta fazer-nos esquecer disso. Quando é encantador ou quando está disposto a agradar-nos, gostamos de nos esquecer que estamos a lidar com um urso selvagem. Este não é um homem cujo temperamento seja afável. Não se trata de um homem cujo estado de espírito seja constantemente doce. Não é um homem que consiga gerir os seus sentimentos, não consegue ser estável de um dia para o outro. Vi este homem amar três mulheres com uma paixão absoluta.

Vi-o jurar a cada uma delas fidelidade eterna e imutável. Vi-o justar sob a divisa:

“Sir Coração Leal”. E vi-o mandar duas para a morte, e tomar conhecimento da morte da terceira com uma compostura tranquila.

É bom que a rapariga lhe dê prazer esta noite, e é bom que lhe obedeça amanhã, que lhe dê um filho num período de um ano, senão, nem sequer eu lhe auguro um grande futuro.

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Ana, Palácio de Greenwich, 6 de Janeiro de 1540

Um a um, todos abandonam o quarto e nós somos deixados à luz das velas e num silêncio embaraçoso. Eu não digo nada. Não me cabe a mim falar. Recordo-me do aviso da minha mãe de que, o que quer que acontecesse na Inglaterra, eu nunca, nunca deveria dar ao Rei motivos para pensar que sou lasciva. Ele escolheu-me porque tem fé no carácter das mulheres de Clèves. Comprou para si mesmo uma virgem erasmista, de boas maneiras, com autodomínio e extremamente disciplinada e é isso que eu tenho de ser. A minha mãe não afirma directamente que desiludir o rei me poderia custar a vida, porque o destino de Ana Bolena nunca foi mencionado em Clèves, desde o dia em que o contrato para me casar com um assassino de esposas foi assinado. Desde que estou prometida, é como se a Rainha Ana tivesse sido levada para o céu no mais profundo silêncio. Sou avisada, constantemente avisada, de que o Rei da Inglaterra não tolerará a leveza de comportamento na sua mulher, mas ninguém me disse nunca que ele me poderia fazer o mesmo que fez a Ana Bolena.

Ninguém me avisou de que, também eu, poderia ser forçada a pousar a cabeça no cepo, para ser decapitada por culpas imaginárias.

O Rei, meu marido, deitado na cama ao meu lado, suspira pesadamente, como se estivesse cansado e, por um momento, penso que talvez ele adormeça e este dia esgotante e assustador termine e eu possa acordar amanhã como uma mulher casada e começar a minha nova vida como Rainha da Inglaterra. Por um momento, atrevo-me a esperar que os meus deveres para hoje estejam cumpridos.

Permaneço deitada, como o meu irmão gostaria que eu fizesse, como uma boneca de pano paralisada. O meu irmão tinha horror ao meu corpo: horror e fascínio. Mandava-me usar golas altas, roupas grossas, toucados pesados, botas grandes, para que tudo o que ele pudesse ver de mim, tudo o que qualquer pessoa pudesse ver de mim, fosse a minha cara ensombrada e as minhas mãos, 118

pulsos até aos dedos. Se ele me pudesse ter colocado em reclusão, como o imperador otomano com as suas mulheres encarceradas, estou convencida de que o teria feito. Até o meu olhar era demasiado indiscreto para ele, preferia que

eu não olhasse directamente para ele; se pudesse, obrigava-me a usar um véu.

E contudo, andava sempre a espiar-me. Quer eu me encontrasse nos aposentos da minha mãe, a costurar sob a supervisão dela, ou no pátio, a observar os cavalos, erguia os olhos e via-o a olhar-me fixamente com aquele ar de irritação e... não sei o quê... desejo? Não era luxúria. Ele nunca me quis como um homem quer uma mulher; é óbvio que tenho consciência disso. Mas queria-me como se me quisesse dominar completamente. Como se desejasse engolir-me, para que eu não o perturbasse mais.

Quando éramos crianças, ele costumava atormentar-nos às três: a Sybilla, a Amélia e a mim. Sybilla, que era três anos mais velha do que ele, conseguia correr suficientemente depressa para lhe escapar, Amélia desmanchava-se nas lágrimas fáceis do bebé da família; eu era a única que me opunha a ele. Não lhe batia quando ele me beliscava ou me puxava os cabelos. Não o atacava violentamente quando ele me encurralava no pátio dos estábulos ou num canto escuro. Limitava-me a cerrar os dentes e, quando ele me magoava, não chorava.

Nem sequer quando ele me apertava os finos pulsos de menina, nem quando ele me fez sangrar ao atirar-me uma pedra à cabeça. Nunca chorei, nunca lhe supliquei que parasse. Aprendi a usar o silêncio e a resistência como as minhas maiores armas contra ele. A sua ameaça e o seu poder eram magoar-me. O meu poder era atrever-me a agir, como se ele não fosse capaz de o fazer. Aprendi que conseguiria suportar qualquer coisa que um rapaz me pudesse fazer. Mais tarde, aprendi que poderia sobreviver a qualquer coisa que um homem me pudesse fazer. Posteriormente, percebi que ele era um tirano e continuava a não me assustar. Aprendi o poder da sobrevivência.

Quando era mais velha e observava a gentileza e a forma como dava ordens a Amélia e o seu respeito amável pela minha mãe, compreendi que a minha teimosia, a minha obstinação, tinham criado os problemas constantes entre nós.

Ele dominou o meu pai, encarcerou-o no seu próprio quarto de dormir, usurpou-o. Fez tudo isto com a bênção da minha mãe e com uma sensação orgulhosa da sua própria integridade. Aliou-se ao marido de Sybilla, dois principelhos ambiciosos juntos e, por isso, continua a dar ordens a Sybilla, mesmo depois do seu casamento. Ele e a minha mãe forjaram para si próprios uma parceria poderosa, um par que

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governa Juliers-Clèves. Controlam Amélia; mas eu não podia ser dominada nem ser tratada com condescendência. Não aceitaria ser tratada como uma criança nem que me dessem ordens. Para ele, tornei-me um prurido que ele tinha de eliminar. Se eu tivesse chorado, ou suplicado, se eu tivesse desabado como uma menina ou me tivesse agarrado a ele como uma mulher, ele poderia ter-me perdoado, adoptado, colocado sob a sua protecção e tomado conta de mim. Teria sido a sua predilecta, tal como Amélia: a querida dele, a irmã que ele protege e mantém em segurança.

Mas na altura que percebi tudo isto era demasiado tarde. Ele estava preso à sua irritação frustrada comigo e eu aprendera a alegria de sobreviver obstinadamente, apesar de todas as contrariedades, e a seguir o meu próprio caminho. Ele tentou fazer de mim uma escrava, mas tudo o que conseguiu foi ensinar-me a ansiar por ser livre. Eu desejava ter a minha liberdade como as outras raparigas desejam o casamento. Eu sonhava com a liberdade, enquanto as outras raparigas sonham com um amante.

Este casamento é a minha forma de lhe escapar. Como Rainha da Inglaterra, dirijo uma fortuna muito maior do que a dele, governo um país muito maior do que Clèves, infinitamente mais povoado e poderoso. Conhecerei o Rei da França como um igual, sou madrasta de uma neta da Espanha, o meu nome será pronunciado nas cortes da Europa e, se eu tiver um filho, será irmão do Rei da Inglaterra e talvez até Rei, ele mesmo. Este casamento é a minha vitória e a minha liberdade. Mas enquanto Henrique se vira pesadamente na cama e suspira novamente como um homem velho e cansado, não como um noivo, sei, como sempre soube, que troquei um homem difícil por outro. Terei de aprender como evadir-me da raiva deste novo homem, e como sobreviver-lhe.

- Estais cansada? - pergunta ele.

Percebo a palavra cansada. Assinto, e digo.

- Um pouco.

- Deus me ajude neste assunto mal gerido - diz ele.

- Não percebo? Perdoai-me?

Ele encolhe os ombros, percebo que não está a falar comigo, está a queixar-se de algo só pelo prazer de resmungar em voz alta, tal como o meu pai costumava

fazer antes de os seus murmúrios de mau humor se transformarem em loucura. O

desrespeito desta comparação faz-me sorrir e mordo o lábio para disfarçar o meu divertimento.

- Sim - diz ele azedamente. - Bem vos podeis rir.

- Desejais vinho? - pergunto com cuidado.

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Ele abana a cabeça. Levanta o lençol e o cheiro repugnante dele cobre-me.

Como um homem que aprecia o que comprou no mercado, segura na bainha da minha camisa de noite, puxa-a para cima, ergue-a acima da minha cintura e dos meus seios e deixa-a assim, para que fique enrolada em volta do meu pescoço.

Tenho medo de parecer estúpida, como um burguês com um lenço muito apertado sob o queixo. As minhas bochechas estão a escaldar com a vergonha de ele estar a olhar fixamente para o meu corpo despido. Ele não se preocupa com o meu desconforto.

Baixa a mão e abruptamente aperta-me os seios, desliza a mão áspera até ao meu ventre, belisca a gordura. Eu permaneço totalmente imóvel para que ele não pense que sou desavergonhada. Não é difícil ficar paralisada de terror. Sabe Deus porque é que alguém se sentiria excitada sob um tratamento daqueles. Já acariciei o meu cavalo com mais afecto do que este tacteio frio. Ele ergue-se na cama com um resmungo de esforço e separa as minhas pernas com uma mão pesada. Obedeço-lhe sem emitir um som. É essencial que ele saiba que sou obediente, mas não ardente. Ele sobe para cima de mim e afunda-se entre as minhas pernas. Está a exercer todo o seu peso com os cotovelos apoiados de cada um dos lados da minha cabeça e com os joelhos, mas ainda assim, o seu ventre, enorme e flácido, exerce pressão sobre mim, sufoca-me. A gordura do seu peito está a pesar na minha cara. Sou uma mulher bem constituída, mas sinto-me uma anã debaixo dele. Temo que, se ele exercer ainda mais peso, não vou ser capaz de respirar, é bastante insuportável. A sua respiração ofegante na minha face é nauseabunda, por causa dos seus dentes podres, mantenho a cabeça rígida para me impedir de lhe virar a cara. Apercebo-me de que me falta o ar, ao tentar não inalar o fedor que ele emana.

Ele põe a mão entre nós e agarra o seu membro. Já os vi fazerem-no aos

cavalos nos estábulos e sei bastante bem o que está a acontecer com aqueles movimentos intensos e desajeitados. Consigo virar a cara para respirar, e preparo-me para a dor. Ele solta um resmungo de frustração e eu consigo sentir a sua mão a movimentar-se, mas continua a não acontecer nada. Ele bate repetidamente na minha perna com a mão que se move, mas é tudo. Eu deixo-me ficar muito quieta, não sei o que ele quer fazer, nem o que espera de mim. O

garanhão, em Duren, tornava-se rígido e erguia-se. O Rei parecia estar a enfraquecer.

- Meu senhor? - sussurro.

Ele atira-se para o lado e resmunga uma palavra que eu não conheço. A sua cabeça está enterrada na almofada ricamente

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bordada, continua com a cara voltada para baixo. Não sei se ele terminou ou se está apenas a começar. Ele vira a cabeça para mim. O seu rosto está muito vermelho e a transpirar.

- Ana... - começa.

Ao pronunciar aquele nome fatal, ele fica paralisado e emudece. Percebo que ele disse o nome dela, a primeira Ana que amou, que ainda pensa nela, a amante que o levou à loucura e que ele matou por ressentimento e ciúmes.

- Eu sou Ana de Clèves - digo-lhe.

- Eu sei - diz ele brevemente. - Que idiota.

Com um grande movimento que me tira todos os cobertores, ele volta-se e fica de costas viradas para mim. O ar que emana da cama é azedo e tem um cheiro horrível. É o cheiro da ferida na perna dele, é o odor de carne podre, é o cheiro dele. Permanecerá nos meus lençóis para sempre, até a morte nos separar, mais vale eu habituar-me a ele.

Fico muito quieta. Pousar a mão no ombro dele seria, penso, um comportamento promíscuo, e por isso, é melhor eu não o fazer, ainda que eu

sinta pena por ele estar cansado e se sentir assombrado pela outra Ana, esta noite. Terei de aprender a não me importar com o cheiro e com a sensação de estar a ser esmagada. Terei de cumprir o meu dever.

Fico deitada às escuras e olho para cima, para o rico dossel da cama que tenho sobre mim. À luz fraca, que se torna mais escura, à medida que cada vela quadrada, uma a uma, derrete e se apaga, consigo ver o brilho do fio de ouro e as cores ricas das sedas. Ele é um homem velho, um pobre homem idoso, com quarenta e oito anos, e foi um dia longo e esgotante para ambos. Ouço-o suspirar mais uma vez e depois o suspiro transforma-se num ressonar profundo e bor-bulhante. Quando tenho a certeza de que adormeceu, pouso a mão ao de leve no seu ombro, no sítio onde o espesso linho ensopado da sua camisa de noite tapa o seu volume corpulento coberto de suor. Lamento que ele tenha falhado esta noite, e se ele tivesse ficado acordado, e se falássemos a mesma língua e pudéssemos dizer um ao outro a verdade, eu ter-lhe-ia dito que, apesar de não existir desejo entre nós, espero ser uma boa mulher para ele e uma boa Rainha para a Inglaterra. Que sinto pena dele na sua idade avançada e no seu cansaço, e que não tenho dúvidas de que, quando ele tiver repousado e estiver menos cansado, poderemos conceber uma criança, o filho que ambos desejamos tanto.

Pobre homem velho e doente, teria dado tudo para lhe poder dizer que não se preocupasse, que tudo irá correr bem, que não quero um príncipe jovem e bonito, que serei gentil com ele.

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Catarina, Palácio de Greenwich, 7 de Janeiro de 1540

O rei já tinha saído antes de chegarmos ao quarto, no dia a seguir ao casamento. Por isso, não consegui ver o Rei da Inglaterra, de camisa de dormir, na manhã do seu casamento, apesar de o desejar. As criadas entraram com a cerveja dela, lenha para a lareira e água para ela se lavar, e esperámos até sermos chamadas para a ajudar a vestir-se. Estava sentada na cama com a sua touca de dormir e uma trança simples que lhe caía pelas costas abaixo, sem um único cabelo fora do lugar. Não parecia uma rapariga que tinha tido uma noite animada. Tinha exactamente o mesmo aspecto de quando a deitámos na cama, na noite anterior. Estava bastante calma e bonita, daquela forma semelhante a uma vaca, suficientemente agradável com toda a gente, não pedindo nenhuns favores especiais e não se queixando de nada. Eu estava ao lado da cama e, uma vez que ninguém estava a reparar em mim, levantei uma ponta do lençol e dei uma

olhadela rápida.

Não vi nada. Foi exactamente assim. Nem uma coisinha, sequer. Falando como uma rapariga que teve de passar clandestinamente um lençol debaixo de uma bomba e de o lavar rapidamente, dormir sobre ele húmido, mais do que uma vez, sei quando um homem e uma donzela usaram uma cama para mais do que dormir. Não esta cama. Eu apostaria a minha preciosa reputação no facto de o Rei não a ter possuído e de ela não ter sangrado. Apostaria a fortuna dos Howard em como eles adormeceram mal os deixámos, quando os pusemos na cama, lado a lado, como um par de pequenas bonecas. O lençol de baixo nem sequer estava amarrotado, quanto mais manchado. Seria capaz de apostar a Abadia de Westminster em como não aconteceu nada entre eles.

Sei quem quereria saber de imediato, a Lady Bisbilhoteira, é claro. Fiz uma vénia e saí do quarto como se fosse fazer um recado e encontrei-a, acabada de sair dos seus próprios aposentos. Assim que viu o meu rosto, agarrou-me as mãos e puxou-me para dentro do seu quarto.

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- Aposto uma fortuna convosco em como ele não a possuiu - digo triunfantemente, sem uma palavra de explicação.

Um aspecto que aprecio em Lady Rochford é que ela sabe sempre do que estou a falar. Nunca tenho de lhe explicar nada.

- Os lençóis - digo. - Não existe nem uma marca neles, nem sequer estão amarrotados.

- Ninguém os mudou?

Eu abano a cabeça.

- Eu fui a primeira a entrar, a seguir às criadas.

Ela abre o armário junto da cama, tira um real e entrega-mo.

- Isso é muito bom - diz ela. - Vós e eu, ambas, devemos ser sempre as

primeiras a saber de tudo.

Eu sorrio, mas estou a pensar nalgumas fitas que irei comprar com o real para enfeitar o meu vestido novo e talvez umas luvas novas.

- Não o digais a mais ninguém - avisa-me ela.

- Oh? - protesto eu.

- Não - diz ela. - O conhecimento é sempre precioso, Catarina. Se sabeis algo que mais ninguém sabe, então, tendes um segredo. Se sabeis algo que todos sabem, então, não sois melhor do que eles.

- Posso, pelo menos, contar a Anne Bassett?

- Dir-vos-ei quando podereis contar-lhe - diz ela. - Talvez amanhã. Agora, voltai para junto da Rainha. Irei ter convosco daqui a um minuto.

Eu faço o que ela me diz, e quando vou a sair, vejo que ela está a escrever um bilhete. Deve estar a escrever ao meu tio para lhe dizer que estou convencida de que o Rei não manteve relações sexuais com a mulher. Espero que ela lhe diga que fui eu quem teve esta ideia em primeiro lugar e não ela. Depois, posso receber outro real. Começo a perceber o que ele quer dizer com grandes lugares que trazem grandes favores. Só estou ao serviço da corte há alguns dias e já estou dois reais mais rica. Dai-me um mês e farei uma fortuna.

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Jane Bolena, Palácio de Whitehall, Janeiro de 1540

Mudámo-nos para o Palácio de Whitehall, onde o casamento vai ser celebrado com um torneio que vai durar uma semana, e depois o último dos visitantes voltará para Clèves e todos nos instalaremos nas nossas novas vidas, com uma nova Rainha Ana. Ela nunca viu nada à escala deste torneio, e é bastante enternecedora no seu entusiasmo.

- Lady Jane, onde me sento? - pergunta-me ela. - E como? Como?

Eu sorrio para o seu rosto animado.

- Vós sentais-vos aqui - digo eu, mostrando-lhe o camarote da rainha. - E os cavaleiros entrarão na arena, e os arautos anunciá-los-ão. Por vezes, contarão uma história. Por vezes, recitarão um poema acerca das suas vestimentas. Depois combatem, ou em cima do cavalo, correndo ao longo destas divisórias, ou corpo a corpo, com as espadas, no chão - penso em como explicar-lhe.

Nunca sei o quanto ela percebe agora, está a aprender a falar tão depressa.

- É o maior torneio que o Rei planeou em muitos anos - digo eu. - Vai durar uma semana. Haverá dias de celebrações com bonitos fatos e todos em Londres virão para ver as mascaradas e as batalhas. A corte está na linha da frente, é óbvio, mas atrás deles estarão os nobres e os grandes cidadãos de Londres, e atrás deles, os plebeus entrarão aos milhares. É uma grande celebração para o país inteiro.

- Eu sento-me aqui? - diz ela apontando para o trono.

Fico a olhá-la enquanto ocupa o seu lugar. É claro que, para mim, este camarote está repleto de fantasmas. O lugar agora é dela; mas era da Rainha Jane antes dela, e da Rainha Ana, antes disso, e quando eu era jovem, quando ainda não me tinha casado, quando era apenas uma rapariga cheia de ilusões, ambições e completamente apaixonada, servi a Rainha Catarina, que se sentou naquela precisa cadeira, sob o seu próprio dossel, que o Rei ordenou que 125

fosse costurado com pequenos Cs e Hs, simbolizando Catarina e Henrique, e ele próprio havia cavalgado sob o nome “Sir Coração Leal”.

- Isto novo é? - pergunta ela, dando palmadas nas cortinas que estão dependuradas em volta do camarote real.

- Não - digo eu, forçada pelas minhas memórias a dizer a verdade. - Estas são as cortinas que eles sempre usaram. Vede, podeis ver - viro a cortina do avesso e ela pode ver o local onde estavam as iniciais. Cortaram o bordado, da parte da frente das cortinas, mas deixaram as costuras antigas atrás. Pode-se ver claramente o C e o H, entrelaçados com nós de amantes. Sobreposto, ao lado de cada H, está H&A. É como convocar um fantasma, ver as iniciais dela aqui novamente. Estas foram as cortinas que a protegeram a cabeça dela, do sol, naquele torneio do Primeiro de Maio em que fazia tanto calor, e todos sabíamos

que o rei estava zangado, e que estava apaixonado por Jane Seymour, mas nenhuma de nós sabia o que iria acontecer a seguir.

Recordo-me de Ana se inclinar sobre a parte da frente do camarote e deixar cair o lenço de mão para um dos participantes nas justas, lançando um sorriso pelo canto da boca para o rei, para ver se ele estava com ciúmes. Lembro-me do olhar frio no seu rosto, de ela ter empalidecido e voltado a sentar-se. Ele já tinha o mandado de detenção dela no gibão, nessa altura, nesse preciso momento; mas não disse nada. Estava a planear mandá-la para a morte, mas permaneceu sentado ao lado dela a maior parte do dia. Ela riu-se e conversou como se estivesse a distribuir os seus favores. Sorriu-lhe e namoriscou e não fazia ideia de que ele já havia decidido que ela teria de morrer. Como pode ter-lhe feito algo semelhante? Como foi capaz? Como conseguiu ficar sentado ao lado dela, com a sua nova amante de pé, a sorrir, atrás dos dois, e saber que dali a alguns dias Ana estaria morta? Morta, e morto o meu marido ao mesmo tempo que ela, o meu marido a morrer por ela, o meu marido, a morrer de amor por ela. Deus me perdoe pelos meus ciúmes. Deus lhe perdoe pelos pecados dela.

Sentada no seu lugar, com as suas iniciais a surgirem como uma mancha negra na parte inferior oculta das suas cortinas, estremeço, como se alguém tivesse pousado um dedo frio no meu pescoço. Se existe algum lugar assombrado, é este. Estas cortinas foram cosidas e recosidas com as iniciais de três raparigas bonitas condenadas. Será que as costureiras da corte vão rasgar outro A, dentro de alguns anos? Será que este camarote vai albergar outro fantasma? Virá outra rainha a seguir a esta nova Ana?

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- O quê? - pergunta-me ela, a rapariga nova que não sabe nada.

Aponto para os pontos novos.

- C: Catarina de Aragão - digo simplesmente. - A: Ana Bolena, J: Jane Seymour - viro a cortina do lado direito para que ela possa ver as suas próprias iniciais destacando-se orgulhosamente e novas, no lado direito do tecido. - E

agora, Ana de Clèves.

Ela olha para mim com o seu olhar fixo e pela primeira vez penso que, talvez

tenha subestimado esta rapariga. Talvez ela não seja uma tonta. Talvez por trás daquele rosto honesto esteja uma inteligência perspicaz. Por ela não conseguir falar a minha língua, falei com ela como se fosse uma criança e considerei que tivesse a inteligência de uma criança. Mas ela não se deixa assustar por estes fantasmas... nem sequer se deixa assombrar por eles, como eu.

Encolhe os ombros.

- Rainhas anteriores - diz. - Agora: Ana de Clèves.

Ou isto é uma atitude de grande coragem, ou o estoicismo dos muito estúpidos.

- Não tendes medo? - pergunto muito baixo.

Ela compreende as palavras, sei que sim. Posso vê-lo na sua calma e no súbito inclinar atento da sua cabeça. Ela olha para mim directamente.

- Não tenho medo de nada - diz com firmeza. - Nunca tenho medo.

Por um momento, quero avisá-la. Ela não é a única rapariga corajosa a sentar-se neste camarote, a ser honrada como rainha e depois a acabar a sua vida sem o título, enfrentando a morte sozinha. Catarina de Aragão tinha a coragem de um cruzado, Ana a ousadia de uma prostituta. O rei transformou-as em nada.

- Tendes de ter cuidado - digo eu.

- Não medo de nada tenho - diz ela mais uma vez. - Nunca ter medo.

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Ana, Palácio de Whitehall, Janeiro de 1540

Fiquei deslumbrada com a beleza do Palácio de Greenwich, mas estou absolutamente abalada com Whitehall. Mais como uma aldeia construída fora de muros do que um palácio, é constituído por mil salões e casas, jardins e pátios, nos quais apenas os nascidos e educados no seio da nobreza parecem saber encontrar o caminho. Tem sido a casa dos reis da Inglaterra desde sempre, e todos os grandes lordes e respectivas famílias mandam construir as suas próprias casas dentro da meia dúzia de acres do palácio, que cresce desordenadamente.

Todos conhecem uma passagem secreta, todos conhecem um caminho mais rápido, todos sabem onde fica uma porta que é deixada convenientemente aberta para as ruas, e um percurso rápido para descer até a um cais do rio, onde se pode apanhar um barco. Todos menos eu e os meus embaixadores de Clèves, que se sentem perdidos nesta coelheira, doze vezes por dia, e que se sentem cada vez mais estúpidos e mais camponeses no estrangeiro.

Para lá dos portões do palácio está a cidade de Londres, uma das mais sobrecarregadas, barulhentas e populosas cidades do mundo. Logo de madrugada, consigo ouvir os pregões dos vendedores de rua, mesmo nos meus aposentos que ficam escondidos lá bem no fundo do palácio. À medida que o dia avança, o ruído e bulício aumenta, até parecer que não existe nenhum lugar no mundo que possa estar em paz. Existe um fluxo constante de pessoas que passam pelos portões do palácio com artigos para vender e pechinchas e, pelo que Lady Jane me diz, um fluxo contínuo de petições ao rei. Esta é a verdadeira sede do Conselho Privado; o Parlamento reúne-se ali mesmo, ao fundo da rua, no Palácio de Westminster. A Torre de Londres, o grande íman fortificado de todo o poder do rei, fica rio abaixo. Se vou fazer deste grande reino a minha casa, terei de aprender o meu caminho neste palácio, e depois conhecer os caminhos em volta de Londres. Não vale a pena esconder-me no meu quarto de vestir, esmagada pelo ruído e o bulí-

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, tenho de sair para o palácio e de deixar que as pessoas - que chegam em multidões, de manhã até à noite - olhem para mim.

O meu enteado, o Príncipe Eduardo, está de visita à corte, pode assistir ao torneio amanhã. Só lhe é permitido vir à corte raramente, por receio de que apanhe uma infecção, e nunca no Verão, por medo da peste. O pai venera o rapaz, pela sua pequena cabeça loira, tenho a certeza; mas também porque ele é o único rapaz, o único herdeiro Tudor. Um único rapaz é algo tão precioso.

Todas as esperanças desta nova linhagem estão depositadas no pequeno Eduardo.

É uma sorte ele ser uma criança tão forte e saudável. Tem um cabelo do louro mais claro que existe, e um sorriso que nos faz querer pegar nele e abraçá-lo.

Mas ele é muito independente e ficaria extremamente ofendido se eu fosse esmagá-lo de beijos. Por isso, quando vamos ao quarto dele, tenho o cuidado de me sentar ao seu lado e de o deixar trazer-me os brinquedos, um a um, e de pôr

cada um deles na minha mão, com grande prazer e interesse.

- Glish - diz ele. - Maow - e eu nunca consigo apanhar a sua mãozinha gorda e depositar-lhe um beijo na palma morna, ainda que ele levante o olhar para mim com uns olhos tão escuros e redondos como um caramelo e com um sorriso tão doce.

Gostaria de poder ficar no quarto dos brinquedos dele o dia inteiro. É-lhe indiferente que eu não consiga falar inglês, francês ou latim. Entrega-me uma cabeça esculpida em madeira e diz solenemente “boneco”, e eu respondo,

“boneco” e depois ele apanha outra coisa qualquer. Nenhum de nós precisa de utilizar muito a língua, nem de muita inteligência, para passarmos uma hora juntos.

Quando são horas de ele ir comer, deixa que eu lhe pegue ao colo e o sente na sua cadeirinha, e que me sente ao lado dele enquanto ele é servido, com toda a honra e respeito que o pai exige. Servem este rapazinho de joelho dobrado, e ele senta-se e serve-se da sua parte de qualquer um dos doze pratos ricos como se já fosse rei.

Eu não digo nada por enquanto, porque são os meus primeiros dias como sua madrasta; mas depois de estar aqui há mais tempo, talvez depois da minha coroação no próximo mês, perguntarei ao meu senhor, o rei, se o rapaz não pode ter um pouco mais de liberdade para correr e brincar, e uma dieta mais saudável.

Talvez o possamos visitar com mais frequência na sua casa, mesmo que ele não possa vir à corte. Talvez seja autorizada a visitá-lo mais vezes. Eu penso nele, pobre rapaz, sem uma mãe para cuidar dele, e que talvez me seja permitido educá-lo, e vê-lo crescer para se transformar

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um homem, um bom homem para ser o Rei Eduardo para a Inglaterra. E depois podia rir-me de mim mesma pelo egoísmo da tarefa. É evidente que quero ser uma boa madrasta e rainha para ele, mas mais do que qualquer outra coisa, desejo cuidar dele como mãe. Quero ver o seu rosto iluminar-se quando eu entro numa sala, não apenas durante estes dias escassos, mas todos os dias. Quero ouvi-lo dizer “Ranha”, que é a única forma que tem de pronunciar a palavra

“Rainha Ana”. Quero ensinar-lhe as suas orações, o abe-cedário e a ter boas maneiras. Quero que seja meu. Não só porque ele não tem mãe; mas porque eu

não tenho filhos e quero alguém para amar.

Este não é o meu único enteado, é claro. Mas Lady Isabel não está autorizada a vir à corte. Tem de ficar no Palácio de Hatfield, a alguma distância de Londres, e o rei não a reconhece senão como sua bastarda, filha de Lady Ana Bolena; e há quem diga que ela nem isso é, mas filha de outro homem. Lady Jane Rochford -

que sabe tudo - mostrou-me um retrato de Isabel e apontou para o cabelo dela, que é vermelho como o carvão em brasa, e sorriu como se dissesse que não podia haver muitas dúvidas de que ela é filha do rei. Mas o Rei Henrique arrogou-se o direito de decidir quais são as crianças que reconhece, e Lady Isabel será educada longe da corte, como uma bastarda real e casar-se-á com um nobre inferior, quando atingir a idade. A não ser que eu consiga falar com ele primeiro. Talvez, quando já estivermos casados há algum tempo, talvez eu lhe consiga dar um segundo filho, talvez, então, ele seja mais gentil com a rapariguinha que necessita da atenção dele.

Por outro lado, a Princesa Maria está agora autorizada a vir à corte, ainda que Lady Rochford me diga que há muitos anos que se encontra desfavorecida, desde que a sua mãe desafiou o rei. A recusa da Rainha Catarina em se separar de Henrique implicou que ele renegasse o casamento e a filha de ambos. Tenho de tentar não pensar o pior dele por causa disto. Já foi há muito tempo, e eu não sou pessoa para o julgar. Mas impor a uma criança a frieza merecida pela mãe, parece-me cruel. Tal como o meu irmão fez comigo, para me culpar pelo amor que o meu pai sentia por mim. É claro que a Princesa Maria já não é nenhuma criança. É uma mulher jovem e está pronta para se casar. Até se falou em que poderia casar-se com o meu irmão, pobrezinha. Penso que a saúde dela é fraca, não tem estado suficientemente bem para vir à corte e encontrar-se comigo aqui, embora Lady Rochford diga que ela está bastante bem, mas que está a tentar evitar a corte, porque o Rei tem um novo noivado em mente para ela.

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Não posso culpá-la por isso, ela esteve para ser prometida ao meu irmão William, em tempos, e depois a um príncipe da França, a seguir a um príncipe Habsburgo. É natural que o casamento dela seja tema de debates constantes até ela ficar noiva. O que é mais estranho é o facto de ninguém poder saber o que vai obter quando a adquirirem. Não se pode adivinhar qual é a sua genealogia,

uma vez que o pai a renegou uma vez, e agora voltou a reconhecê-la, mas pode renegá-la novamente a qualquer momento, uma vez que nada tem mais influência nele do que a sua própria opinião, que ele afirma ser a vontade de Deus.

Quando eu tiver mais poder e influência com o meu senhor, o Rei, falarei com ele sobre decidir a posição da Princesa Maria de uma vez por todas. Não é justo para ela, não saber se é princesa ou plebeia, e ela nunca poderá casar com nenhum homem importante enquanto a sua posição for tão instável. Atrevo-me a dizer que o rei não pensou no assunto do ponto de vista dela. E não houve ninguém que a defendesse. Seria seguramente a atitude certa a tomar, como mulher dele, ajudá-lo a ver as necessidades das suas filhas, assim como as exigências da sua própria dignidade.

A Princesa Maria é uma papista muito determinada; e eu fui educada num país que rejeita os abusos dos Papistas e que reivindica uma igreja mais pura.

Podemos ser inimigas em relação à doutrina e ainda assim tornarmo-nos amigas.

Mais do que qualquer outra coisa, quero ser uma boa Rainha para a Inglaterra, e uma boa amiga para ela e, seguramente, ela compreende isso. Apesar de tudo o que disseram de Catarina de Aragão, todos sabem que ela foi uma boa Rainha e uma boa mãe. Tudo o que quero fazer é seguir o exemplo dela; a filha pode até gostar dessa intenção.

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Catarina, Palácio de Whitehall, Janeiro de 1540

Fui chamada à corte para ensaiar uma mascarada, uma encenação, para a abertura do torneio. O Rei vai entrar disfarçado como cavaleiro vindo do mar, e nós devemos ser ondas, peixes, ou algo semelhante, no seu séquito e dançar para a rainha e a corte. O compositor dele tem a partitura da música e nós vamos ser seis. Julgo que representamos as musas, mas não tenho a certeza. Agora que penso nisso, nem sequer sei o que é uma musa. Mas espero que seja o tipo de coisa que tenha um fato feito com as mais belas sedas.

Anne Bassett é outra das dançarinas, assim como Alison, Jane, Mary, Catarina Carey e eu. De nós as seis, provavelmente, Anne é a mais bonita, tem um cabelo muito louro e enormes olhos azuis, e conhece aquele truque, que eu tenho de aprender, de baixar os olhos e de os levantar outra vez, como se tivesse ouvido

algo extraordinariamente interessante e indecente. Se lhe disserem o preço de um metro de tecido, ela baixa os olhos e volta a erguê-los, como se lhe tivessem murmurado que a amam. Mas só se alguém estiver a observá-la, é claro. Se estivermos sozinhas, ela não se dá ao trabalho de o fazer. Torna-a, de facto, mais atraente, quando ela se esforça bastante. A seguir a ela, tenho a certeza de que sou a mais bonita. Ela é filha de Lorde e de Lady Lisle e uma das grandes favoritas do Rei, que se deixa impressionar muito por este truque de baixar e erguer o olhar e prometeu dar-lhe um cavalo, que me parece uma recompensa bastante boa para quem não faz mais do que pestanejar. Na verdade, pode-se conseguir fazer fortuna na corte, se se souber como.

Entro na sala a correr, porque estou atrasada e lá está o próprio Rei, com dois ou três dos seus maiores amigos, Charles Brandon, Sir Thomas Wyatt e o jovem Thomas Culpepper, de pé, com os músicos, e com a partitura na mão.

Baixo-me numa vénia de imediato, e vejo que Anne Basset está lá, à frente, com um ar bastante sério, e com ela estão quatro das 132

outras, aperaltando-se como um ninho de cisnes novos e esperando captar as atenções do Rei.

Mas é quando me vê que o Rei sorri. Sorri mesmo. Volta-se e diz: “Ah, a minha amiguinha de Rochester”.

Volto a baixar-me numa vénia e ergo-me, inclinada para a frente, para que os homens possam ter uma boa visão do contorno da minha garganta e dos meus seios e, suspiro: “Vossa Graça!”, suspiro como se quase não conseguisse falar de tanto desejo.

Posso perceber que todos eles apreciam esta atitude e Thomas Culpepper, que tem os mais brilhantes olhos azuis, dirige-me uma piscadela de olhos travessa como de um Howard para outro.

- Não me haveis reconhecido mesmo em Rochester, querida? - pergunta o Rei.

E atravessa a sala, coloca um dedo sob o meu queixo e levanta o meu rosto para si, como se eu fosse uma criança, o que não me agrada muito; mas obrigo-me a permanecer imóvel e a dizer:

- De verdade, senhor, não reconheci. No entanto, se fosse agora, reconheceria.

- E como me reconheceríeis desta vez? - diz ele indulgentemente, como um pai gentil no Natal.

Bem, esta pergunta deixou-me sem resposta, porque eu não sei. Não tenho nada para dizer, estava simplesmente a ser agradável. Tenho de dizer alguma coisa; mas nada me ocorre. Por isso, ergo os olhos para ele, como se a minha cabeça estivesse plena de confissões, mas não me atrevo a dizer nada, e para meu enorme prazer, consigo sentir um certo calor nas bochechas e sei que estou a corar.

Estou a corar apenas por vaidade, é claro, e pelo prazer de ser alvo das atenções do próprio rei em frente daquela pega da Anne Bassett, mas também pelo desconforto de não ter nada para dizer e nenhuma ideia na cabeça; mas ele vê o rubor e confunde-o com modéstia, e enfia de imediato a minha mão debaixo do seu braço e leva-me para longe dos outros. Eu mantenho os olhos baixos, nem sequer devolvo o piscar de olhos ao Senhor Culpepper.

- Calma, filha - diz ele muito gentilmente. - Pobre menina, não queria embaraçar-vos.

- Demasiado gentil - é tudo o que consigo murmurar. Posso ver Anne Basset a olhar para nós como se me quisesse matar. - Sou tão tímida.

- Minha querida filha - diz ele mais calorosamente.

- Foi quando me haveis perguntado...

- Quando vos perguntei o quê?

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Eu suspiro. Se ele não fosse rei, saberia melhor como fazer as coisas. Mas ele é o rei, e isso faz-me sentir insegura. Além disso, é um homem com idade suficiente para ser meu avô, parece-me bastante indecente namoriscar com ele.

Depois levanto os olhos para ele e sei que tenho razão. Ele tem aquele olhar no rosto. O olhar que tantos homens têm quando olham para mim. Como se

quisessem engolir-me, capturar-me, e engolir-me de um fôlego.

- Quando me haveis perguntado se vos reconheceria da próxima vez - digo eu numa voz fina, de menina pequena. - Porque eu reconheceria.

- Como reconheceríeis? - ele inclina-se para me ouvir, e eu percebo, de repente, numa onda de entusiasmo que não importa que ele seja rei. Ele é doce comigo, como o mordomo da minha avó. Tem exactamente o mesmo olhar doce, de carinho extremado, no rosto. Juro que o reconheço. E devia reconhecer; vi-o com bastante frequência. É aquele olhar estúpido, húmido, que os homens velhos fazem, quando me vêem, na verdade, é bastante indecente. É o modo como os homens velhos olham para as mulheres com idade para serem suas filhas e se imaginam tão jovens como os seus filhos. É o ar dos homens mais velhos quando desejam uma mulher com idade para ser sua filha, e sabem que não o deviam fazer.

- Porque vós sois tão bonito - digo, olhando directamente para ele, correndo o risco e avaliando o que acontece a seguir. - Sois o homem mais bonito da corte, vossa Graça.

Ele fica imóvel, quase como um homem que, de súbito, ouve uma música bela. Como um homem enfeitiçado.

- Pensais que sou o homem mais bonito da corte? - pergunta ele incrédulo. -

Querida filha, tenho idade suficiente para ser vosso pai.

Mais para ser meu avô, para dizer a verdade, mas eu ergo os olhos para olhar para ele.

- Tendes? - digo eu numa voz esganiçada, como se não soubesse que ele tem quase cinquenta anos e eu ainda não tenho quinze. - Mas eu não gosto de rapazes. Parecem sempre tão patetas.

- Incomodam-vos? - pergunta ele de imediato.

- Oh, não - digo eu. - Não tenho nada que ver com eles. Mas preferiria passear e conversar com um homem que sabe algo acerca do mundo. Que me pudesse aconselhar. Alguém em quem eu possa confiar.

- E passeareis e conversareis comigo nesta mesma tarde - promete ele. - E ireis

contar-me todas as vossas pequenas preocupações.

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E se alguém vos tiver incomodado, alguém, por muito importante que seja: responderá perante mim pelos seus actos.

Eu mergulho numa vénia. Estou tão perto dele que quase roço nas suas calças com a minha cabeça inclinada. Se isso não lhe provocar um leve arrepio, então, ficarei muito surpreendida. Levanto os olhos para ele e sorrio-lhe, abanando ligeiramente com a cabeça como se estivesse maravilhada. Penso para mim mesma que isto é tremendamente bom.

- Sinto-me muito honrada - sussurro.

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Ana, Palácio de Whitehall, II de Janeiro de 1540

Hoje é um dia maravilhoso, sinto que sou verdadeiramente rainha. Estou sentada no camarote real, no meu próprio camarote, o da rainha, na casa perto das muralhas recentemente construída, em Whitehall, e na arena de torneios, lá em baixo, está metade da nobreza da Inglaterra, com alguns dos maiores nobres da França e da Espanha, que também vieram para mostrar a sua coragem e procurar o meu favor.

Sim, o meu favor, porque apesar de no interior ainda ser Ana de Clèves, que não era muito considerada, ou sequer a mais bonita, nem a mais doce das raparigas Clèves, no exterior, agora sou Rainha da Inglaterra e é espantoso verificar como me tornei muito mais alta e mais bonita, desde que tenho uma coroa na cabeça.

O vestido novo contribui bastante para aumentar a minha autoconfiança. Foi feito ao estilo inglês e, apesar de me sentir perigosamente despida com um vestido de decote acentuado e sem uma gola de musselina que me chegue ao queixo, por fim, estou mais parecida com as outras damas e menos com uma recém-chegada à corte. Trago mesmo um toucado ao estilo francês, ainda que o tenha puxado para a frente para esconder o cabelo. Parece-me muito leve e tenho de me lembrar de não mexer muito a cabeça e rio-me pela sensação de liberdade.

Não quero parecer demasiado mudada, demasiado solta no meu comportamento.

A minha mãe ficaria terrivelmente chocada com a minha aparência, não quero desapontá-la, nem ao meu país.

Já tenho homens a pedir o meu favor e para cavalgarem nas minhas liças, fazendo vénias e sorrindo-me com um calor especial nos olhos. Com um cuidado meticuloso, conservo a minha dignidade e concedo o meu favor apenas àqueles que já têm a consideração do rei, ou àqueles em quem ele apostou. Lady Rochford é uma conselheira segura nestas matérias, ela manter-me-á longe do perigo de ofender alguém, e do perigo ainda maior de provocar um escândalo.

Nunca me esqueço de que uma rainha da Inglaterra tem 136

de estar acima de qualquer murmúrio de namoriscos. Nunca deixo de me lembrar de que foi num torneio, como este, que um jovem, e depois outro, usaram o lenço de mão da Rainha e esse dia terminou com a detenção de ambos por adultério, e o dia feliz dela acabou no cepo.

Esta corte não tem memória disso; apesar de os homens que forneceram as provas e que pronunciaram a sentença de morte dela estarem aqui hoje, sob o sol brilhante, sorrindo e gritando ordens para a arena de justas, e de aqueles que sobreviveram, como Thomas Wyatt, sorrirem para mim, como se não tivessem visto três outras mulheres no lugar onde me encontro sentada.


A arena está revestida com painéis pintados e marcada com estacas pintadas com as faixas verdes e brancas dos Tudor, estandartes a esvoaçar em cada mastro. Estão aqui milhares de pessoas, todas com os seus melhores trajos e à procura de entretenimento. O lugar é barulhento com pessoas a apregoar as suas mercadorias, as vendedeiras de flores a anunciar os seus preços, e o tilintar das moedas, à medida que o dinheiro das apostas muda de mãos. Os cidadãos saúdam-me sempre que olho na direcção deles, e as suas mulheres e filhas acenam com os seus lenços e chamam:

- Boa Rainha Ana!

Para mim quando ergo a mão para agradecer a atenção deles. Os homens lançam os seus chapéus ao ar e bradam o meu nome, e há um fluxo constante de nobres e de aristocratas que se dirigem ao camarote real para fazerem vénias sobre a minha mão e apresentarem as suas damas, que vieram a Londres especialmente para o torneio.

A arena exala um cheiro doce oriundo dos milhares de ramos de flores e da areia fresca acabada de humedecer, e quando os cavalos entram a galope, escorregam, detêm-se e empinam-se, dando pontapés no ar e espalhando um pó dourado. Os cavaleiros estão gloriosos na sua armadura, cada peça polida até brilhar como prata e a maioria delas foi maravilhosamente gravada e embutida com metais ricos. Os seus porta-estandartes transportam bandeiras de sedas brilhantes bordadas com divisas especiais. Há muitos que vêm como cavaleiros misteriosos, com as viseiras descidas e nomes estranhos e românticos gritados como o desafio, alguns deles fazem-se acompanhar de um bardo que conta a sua histórica trágica através de poesia, ou canta a sua canção, antes das justas. Eu receava que este fosse ser um dia de combates e que eu não fosse compreender o se que estava a passar, mas é tão agradável como uma representação, ver os belos cavalos entrarem nas liças, os belos homens cheios de orgulho, e as multidões a darem-lhes vivas.

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Antes de começarem, dão uma volta à arena e há uma encenação para lhes dar as boas-vindas. O próprio rei é o centro da representação, vestido como um cavaleiro de Jerusalém e as damas da minha corte estão no séquito dele, vestidas com fatos e sentadas numa grande carruagem que entra puxada por cavalos, cobertos com muitos metros de seda azul. Representam o mar, posso adivinhá-lo, mas o que é suposto que as damas sejam ultrapassa-me. Pelo sorriso cintilante da pequena Catarina Howard, enquanto fica de pé, na frente, e uma mão erguida para proteger os olhos claros, penso que ela deve ser a sereia de vigia, ou algo dessa natureza, talvez uma sereia. Ela está certamente envolta em tecidos de musselina branca para poder representar a espuma do mar, e deixou-os escorregar acidentalmente, para que um ombro encantador fique à mostra, como se estivesse a emergir nua do mar.

Quando eu dominar um pouco melhor a língua, falarei com ela sobre como deve ter cuidado com a sua reputação e modéstia. Não tem mãe, que morreu quando ela era pequena, e o pai é um perdulário negligente que vive no estrangeiro, em Calais. Foi educada por uma avó, mãe da sua madrasta, pelo que Jane me contou, por isso, talvez não tenha tido ninguém que a avisasse de que o rei presta imensa atenção a qualquer tipo de comportamento impróprio. O

vestido que traz hoje talvez seja aceitável, visto ela fazer parte da encenação;

mas a forma como ele descai para mostrar as suas costas esguias, eu sei que é muito errado.

As damas dançam na arena e depois fazem vénias e escoltam o rei até ao meu camarote, ele vem sentar-se ao meu lado. Eu sorrio e dou-lhe a minha mão, é como se fizéssemos parte do espectáculo, e a multidão grita o seu prazer de o ver a beijar a minha mão. O meu papel é sorrir com muita doçura, fazer-lhe uma vénia e recebê-lo na sua enorme cadeira recentemente reforçada, que se encontra numa posição destacada em relação à minha. Lady Jane vela para que lhe sirvam uma caneca de vinho e algumas frutas cristalizadas, e faz-me um sinal com a cabeça para que eu ocupe o meu lugar ao lado dele.

As damas retiram-se enquanto meia dúzia de cavaleiros, todos de armadura escura e com uma bandeira azul-marinha, entram a cavalo, por isso, imagino que sejam a maré de Neptuno ou algo de semelhante. Sinto-me muito ignorante por não captar todo o significado do que se passa, mas também não é muito importante, porque, quando eles cavalgarem em volta da arena, os arautos gritarem os seus títulos e as multidões bradarem a sua aprovação, o torneio terá início.

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As multidões estão amontoadas nos vários degraus das bancadas e os mais pobres estão entalados nos espaços intermédios. Sempre que um cavaleiro aparece para me apresentar as suas armas, ouve-se um sonoro grito de aprovação da multidão que berra “Ana! Ana de Clèves!” vezes sem conta. Eu ponho-me de pé e sorrio e aceno em agradecimento, não consigo imaginar o que terei feito para merecer uma tal aclamação pública, mas é tão maravilhoso saber que as pessoas da Inglaterra gostam de mim, de uma forma tão natural e espontânea como eu comecei a gostar delas. O rei ergue-se ao meu lado e pega-me na mão diante de todos eles.

- Muito bem - diz ele brevemente para mim, e depois sai do camarote. Eu olho para Lady Bolena, para saber se devo acompanhá-lo. Ela abana a cabeça.

- Ele tem de ir falar com os cavaleiros - diz ela. - E com as raparigas, claro.

Vós deveis ficar aqui.

Ocupo o meu lugar e vejo que o rei apareceu no seu camarote real em frente ao meu. Acena para mim e eu aceno-lhe. Senta-se, e eu sento-me, alguns momentos a seguir a ele.

- Já sois adorada! - diz-me Lorde Lisle baixinho, em inglês, e eu percebo o que ele diz.

- Porquê?

Ele sorri.

- Porque sois jovem - ele faz uma pausa para que eu assinta, indicando ter compreendido. - Querem que tenhais um filho. Porque vós sois tão bonita e porque lhes sorris e acenais. Eles querem uma rainha bonita e feliz que lhes dê um filho.

Eu encolho ligeiramente os ombros pelos modos simples desta gente tão complicada. Se a única coisa que desejam é que eu seja feliz, isso é fácil. Nunca fui tão feliz em toda a minha vida. Nunca estive tão longe da desaprovação da minha mãe, nem das fúrias do meu irmão. Sou uma mulher de pleno direito, com a minha própria casa, os meus próprios amigos. Sou rainha de um grande país que julgo irá tornar-se ainda mais próspero e ambicioso. O rei é o mestre caprichoso de uma corte nervosa, até eu consigo ver isso; mas, talvez, também aí eu consiga fazer a diferença. Posso dar a esta corte a estabilidade de que ela necessita, até posso ser capaz de aconselhar o rei a ter mais paciência. Consigo ver a minha vida aqui, consigo imaginar-me como rainha. Sei que consigo fazê-

lo. Sorrio para Lorde Lisle, que tem estado afastado de mim ao longo dos últimos dias e que não tem tido o mesmo comportamento gentil que o caracteriza.

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- Obrigada - digo. - Espero que sim.

Ele assente.

- Estais bem? - pergunto, pouco à vontade. - Estais feliz?

Ele parece surpreendido com a minha pergunta.

- Hum, sim. Sim, Vossa Graça.

Eu reflicto, procurando a palavra de que preciso.

- Não tem problemas?

Por um momento vejo-o, o medo que lhe atravessa o rosto, o pensamento instantâneo de confiar em mim. Depois desaparece.

- Não tenho problema nenhum, Vossa Graça.

Vejo os olhos dele vaguearem pela arena dos torneios até ao outro lado, onde o rei se encontra sentado. Lorde Thomas Cromwell está ao lado dele, murmurando-lhe ao ouvido. Sei que numa corte existem sempre facções, o favor de um rei vai e vem. Talvez Lorde Lisle tenha ofendido o rei de algum modo.

- Sei que sois um bom amigo - digo

Ele assente.

- Deus vos guarde, Vossa Graça, seja o que for que aconteça a seguir - diz ele e afasta-se da minha cadeira para ficar de pé, ao fundo do camarote.

Vejo o rei levantar-se e dirigir-se à parte da frente do seu camarote. Um pajem mantém-no firme na sua perna coxa. Ele descalça a sua enorme luva de couro, de cano comprido e segura-a por cima da cabeça. As pessoas entre a multidão emudecem, de olhos cravados naquilo, no seu maior rei, o homem que fez de si mesmo rei, imperador e papa. Depois, inteligentemente, quando todas as atenções estavam centradas em si, faz-me uma vénia e um aceno com a luva. A multidão berra a sua aprovação. Cabe-me a mim dar início ao torneio.

Ergo-me da minha grande cadeira com o dossel dourado sobre a cabeça. De cada um dos lados do camarote, as cortinas ondeiam com as cores dos Tudor, verde e branco, as minhas iniciais estão em toda a parte, o meu brasão está em todo o lado. As iniciais de todas as outras rainhas estão no verso das cortinas e não se vêem. A julgar por hoje, só houve uma única rainha: eu. A corte, as pessoas, o rei, todos conspiram para esquecer as outras e eu não me vou lembrar delas. Este torneio é para mim como se eu fosse a primeiríssima das rainhas de

Henrique.

Levanto a mão e toda a arena fica silenciosa. Deixo cair a minha luva e, de cada uma das linhas das justas, os cavalos inclinam-se para a frente quando as esporas lhes entram no dorso. Os dois cavaleiros saem disparados em direcção um ao outro, o da

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esquerda, Lorde Richman, baixa a sua lança um pouco mais tarde, e a sua pontaria é certeira. Com um baque tremendo, como um machado que desce sobre uma árvore, a lança apanha o adversário no centro da sua couraça e o homem berra ruidosamente, é atirado para trás com violência, caindo do cavalo.

Lorde Richman cavalga até ao fim da linha e o seu escudeiro segura-lhe no cavalo enquanto sua senhoria empurra a viseira escura para trás e olha para o adversário, caído na areia.

Entre as minhas damas, Lady Lisle solta um pequeno grito e põe-se de pé.

Vacilante, o jovem levanta-se, com as pernas cambaleantes.

- Ele está ferido? - pergunto em voz baixa a Lady Rochford.

Ela observa atentamente.

- Pode estar - diz ela, com um tom encantado e exultante na voz. - É um desporto violento. Ele conhece os riscos.

- Há algum... - não sei a palavra inglesa para médico.

- Ele está a andar - comenta ela. - Não está ferido.

Tiram-lhe o elmo, ele está branco como um lençol, pobre jovem. O seu cabelo castanho encaracolado está escuro, por se encontrar encharcado em suor, e colado ao rosto pálido.

- Thomas Culpepper - diz-me Lady Rochford. - É meu parente afastado. É um rapaz tão bonito - ela dirige-me um sorriso matreiro. - Lady Lisle tinha-lhe oferecido o seu favor, ele tem uma fama terrível com as mulheres.

Eu sorrio para ele enquanto ele dá algumas passadas hesitantes para se aproximar do camarote da rainha e me faz uma vénia. O seu escudeiro tem uma mão no cotovelo dele para o ajudar a levantar-se da vénia.

- Pobre rapaz - digo. - Pobre rapaz.

- Sinto-me honrado por cair ao vosso serviço - diz ele. As suas palavras são obscurecidas pela ferida que tem na boca. É um jovem devastadoramente belo, até eu, educada pela mais estrita das mães, sinto um súbito desejo de o tirar da arena e de lhe dar um banho.

- Com a vossa permissão, voltarei a justar por vós - diz ele. - Talvez amanhã, se for capaz de montar.

- Sim, mas tende cuidado.

Ele dirige-me o mais triste dos sorrisos, faz uma vénia e afasta-se para o lado.

Sai a coxear da arena e o vencedor desta primeira justa dá uma volta a meio galope em volta do anel exterior, com a lança erguida, agradecendo as ovações da assistência que ganhou as apostas que depositou nele. Eu olho para trás, para as minhas damas, e Lady

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Lisle está a olhar para o jovem como se o adorasse e Catarina Howard, com uma capa por cima do seu fato, está a observá-lo do fundo do camarote.

-Já chega - digo eu. Tenho de aprender a controlar as minhas damas. Elas têm de se comportar de um modo que a minha mãe aprovaria. A rainha da Inglaterra e as suas damas devem estar acima de qualquer suspeita. Com certeza, não deveríamos estar as três a pasmar para um jovem bonito. - Catarina, ide vestir-vos imediatamente. Lady Lisle, onde está sua senhoria, o vosso marido?

Ambas anuem, e Catarina sai agitada. Eu sento-me no meu trono enquanto outro campeão e o seu desafiador entram a cavalo no rinque. Desta vez, o poema é muito longo e em latim, e a minha mão desliza até ao meu bolso onde uma carta emite um certo rumor. É de Isabel, a princesa de seis anos. Li-a e reli-a tantas vezes que sei que consegui captar o que ela queria dizer, de verdade, quase sei cada palavra de cor. Prometeu-me respeitar-me como rainha, bem como sua

total obediência a mim enquanto sua mãe. Quase tive vontade de chorar por ela, pobre rapariguinha, criando aquelas grandes frases solenes e depois copiando-as repetidamente até a sua caligrafia ser tão regular como a de qualquer escrivão real. É evidente que ela espera vir para a corte e, de facto, penso verdadeiramente que ela pode ser autorizada a vir para os meus aposentos. Tenho damas de companhia que não são muito mais velhas do que ela e seria um prazer tão grande tê-la comigo. Além disso, ela vive praticamente sozinha, na sua nova casa, com a governanta e a ama. Com certeza, o rei preferiria que ela estivesse perto de nós, que fosse supervisionada por mim?

Ouve-se um toque de trombetas e eu levanto os olhos para ver os cavaleiros afastarem-se para um dos lados e saudarem, enquanto o rei atravessa a arena a coxear até à frente do meu camarote. Os pajens surgem para abrirem as portas para que ele possa subir os degraus. Ele tem de ser apoiado por um jovem de cada lado. Sei o suficiente acerca dele, para saber que isto, diante de uma multidão que o observa, o vai deixar de mau-humor. Ele sente-se humilhado e constrangido e o seu primeiro desejo será humilhar outra pessoa qualquer. Eu ponho-me de pé e faço uma vénia para o cumprimentar. Nunca sei se devo estender-lhe a minha mão ou inclinar-me, no caso de ele me querer beijar. Hoje, diante de toda a corte que me preza, ele puxa-me para si e beija-me na boca, e todos aplaudem. É inteligente em fazê-lo; tem sempre um gesto para agradar à multidão.

Senta-se na cadeira e eu fico de pé, junto dele.

- Culpepper apanhou uma valente pancada - diz ele.

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Eu não percebo muito bem o que ele quer dizer, por isso não digo nada.

Instala-se um silêncio incómodo e claramente é a minha vez de falar. Tenho de me esforçar bastante para encontrar alguma coisa para dizer, assim como as palavras correctas em inglês. Finalmente encontro:

- Gostais de participar em torneios? - pergunto.

O semblante carregado com que ele me olhou é bastante aterrorizador, o seu sobrolho de tal forma franzido que quase lhe cobre os seus minúsculos olhos

furiosos. É óbvio que disse algo muito errado e que o ofendi profundamente.

Engasgo-me, não sei o que disse que possa ser tão ofensivo.

- Perdoai-me, desculpai... - gaguejo.

- Se eu gosto de participar em torneios? - repete ele amargamente. - Sim, de facto, gosto, gostaria de participar em torneios, se não fosse aleijado e não tivesse dores numa ferida que nunca sara, que me envenena todos os dias, e que irá ser a minha morte. Provavelmente, numa questão de meses. Isso faz com que seja uma agonia andar, uma agonia estar em pé e uma agonia montar a cavalo, mas nenhum louco pensa nisso.

Lady Lisle aproxima-se.

- Senhor, Vossa Graça, o que a rainha queria dizer era, se vós gostais de assistir aos torneios? - diz ela muito depressa. - Ela não quis ofender-vos, Vossa Graça. Está a aprender a nossa língua com uma velocidade notável, mas não pode evitar cometer alguns pequenos erros.

- Ela não consegue evitar ser aborrecida como um cepo - grita ele para ela. A saliva da sua boca escancarada salpica-lhe a cara, mas ela nem se retrai.

Firmemente, mergulha numa reverência e mantém-se baixada.

Ele olha-a da cabeça aos pés, mas não lhe diz para se levantar. Deixa-a no seu desconforto e vira-se para mim.

- Gosto de assistir aos torneios porque é a única coisa que me resta fazer - diz amargamente. - Vós não sabeis nada; mas eu fui o maior campeão. Eu derrotava todos os novatos. Não uma vez, mas sempre. Combatia disfarçado para que ninguém me fizesse favores, e mesmo quando eles se esforçavam o mais que podiam, eu conseguia derrotá-los. Eu era o maior campeão da Inglaterra.

Ninguém me conseguia derrotar, eu cavalgava o dia inteiro, quebrava dezenas de lanças. Compreendeis isto, sua bronca?

Ainda abalada, assinto, apesar de, para dizer a verdade, ele falar tão depressa e com tanta fúria que eu quase não consigo perceber o que ele diz. Tento sorrir, mas os meus lábios estão a tremer.

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- Ninguém me conseguia derrotar - insiste ele. - Nunca. Nem um único cavaleiro. Eu era o maior justador da Inglaterra, talvez do mundo. Era invencível e conseguia montar o dia inteiro e dançar toda a noite, e estar a pé no dia seguinte, de madrugada, para ir caçar. Não sabeis nada. Nada. Se eu gosto de participar em torneios? - valha-me Deus, eu era o coração da Cavalaria! Era o favorito das multidões, era o alvo da admiração de cada torneio! Não havia ninguém como eu! Eu fui o maior cavaleiro desde aqueles da Távola Redonda!

Eu era uma lenda!

- Ninguém que vos tenha visto o poderia esquecer! - diz Lady Lisle docemente, levantando a cabeça. - Sois o maior rei que alguma vez entrou numa arena. Mesmo agora, nunca vi ninguém que se vos comparasse. Não há par.

Nenhum deles, nos nossos dias, pode igualar-vos.

- Hmm - diz ele irritado, e emudece.

Instala-se um silêncio logo e incómodo e não está ninguém na arena de torneios para nos distrair, todos esperam para me ver dizer algo agradável ao meu marido, que está sentado em silêncio, olhando ameaçadoramente para as ervas do chão.

- Oh, levantai-vos - diz ele irritado para Lady Lisle. - Os vossos joelhos de velha ficarão bloqueados se permaneceis nessa posição muito tempo.

- Tenho carta - digo eu, baixinho, tentando mudar de assunto para algo que lhe seja menos controverso.

Ele vira-se e olha para mim, tenta sorrir, mas posso ver que está irritado comigo, com a minha pronúncia, com a reduzida fluência.

- Tendes carta - repete ele, imitando-me com um tom irritante.

- Da Princesa Isabel - digo.

- Lady - responde ele. - Lady Isabel.

Eu hesito.

- Lady Isabel - digo obedientemente. Tiro do bolso a minha carta preciosa e mostro-lha. - Ela pode vir para cá? Pode vir viver comigo?

Ele arranca-me a carta da mão, e eu tenho de me impedir de lha arrancar de volta. Quero guardá-la. É a primeira carta que recebo da minha enteada. Ele revira os olhos para olhar para ela e depois estala os dedos para o pajem que lhe entrega os óculos. Ele põe-nos para ler, mas protege o rosto da multidão para que os plebeus não saibam que o rei da Inglaterra está a perder a visão dos seus olhos estrábicos. Lê a carta rapidamente, depois entrega-a, juntamente com os óculos, ao pajem.

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- É minha carta - digo baixinho.

- Eu respondo por vós.

- Ela pode vir ter comigo?

- Não.

- Vossa Graça, por favor?

- Não.

Eu hesito, mas a minha natureza teimosa, adquirida sob o pulso firme do meu irmão, uma criança mal-humorada e mimada como este rei, instiga-me a continuar.

- Porque não? - pergunto. - Ela escreve-me, pede-mo, gostava de a ver. Então, porque não?

Ele põe-se de pé e inclina-se sobre as costas da cadeira para olhar para baixo, para mim.

- Ela tinha uma mãe tão diferente de vós, em todos os aspectos, que não deveria procurar a vossa companhia - diz ele redondamente. - Se ela tivesse conhecido a mãe, nunca pediria para vos ver. E é isso que lhe vou dizer - depois

levanta-se e desce as escadas a bater com os pés, saindo do meu camarote e atravessando a arena para se dirigir ao seu.

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Jane Bolena, Palácio de Whitehall, Fevereiro de 1540

Tenho estado à espera desta convocatória para ir conferenciar com o meu senhor, o Duque, a qualquer momento, durante o torneio, mas ele não me mandou chamar. Talvez também ele se recorde do torneio no Primeiro de Maio, de quando ela deixou cair o lenço e dos risos dos amigos. Talvez até ele seja incapaz de ouvir o som das trombetas sem pensar no rosto pálido e desesperado dela, naquela manhã quente do dia 1 de Maio. Ele espera até o torneio ter terminado e a vida no Palácio de Whitehall ter voltado à normalidade e, aí, pede-me que me dirija aos seus aposentos.

Este é um palácio para conspirar, todos os corredores se entrelaçam uns nos outros, todos os pátios têm um pequeno jardim no meio, onde nos podemos encontrar, casualmente, todos os apartamentos têm, pelo menos, duas entradas.

Nem sequer eu conheço todas as passagens secretas dos quartos para portões escondidos junto ao rio. Nem Ana conhecia, nem o meu marido, Jorge.

O Duque ordena-me que me dirija aos seus aposentos de modo sigiloso, a seguir ao jantar e, assim, eu esgueiro-me do salão de jantar e percorro o longo caminho em volta, para o caso de alguém me estar a observar, antes de entrar nos seus aposentos sem bater, em silêncio.

Ele está sentado junto da lareira. Vejo, pelo criado que levanta a mesa, que jantou sozinho e imagino que comeu melhor do que nós, que jantámos no salão.

As cozinhas ficam tão longe do salão de jantar neste palácio antiquado que a comida está sempre fria. Todos os que têm os aposentos privados dão ordens para que a sua comida seja confeccionada nos seus próprios aposentos. O Duque tem os melhores aposentos aqui, como em quase todo o lado. Só Cromwell possui melhores aposentos do que o chefe da nossa casa. Os Howard sempre foram a primeira das famílias, mesmo quando não é uma das suas descendentes que ocupa o trono. Há sempre trabalho sujo a fazer, e essa é a nossa especialidade. O Duque faz sinal ao criado para que saia e oferece-me um copo de vinho.

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- Podeis sentar-vos - diz ele.

Sei, pela honra que me concede, que o trabalho que tem para mim será confidencial e talvez perigoso. Sento-me e bebo um gole de vinho.

- E como estão as coisas nos aposentos da rainha? - pergunta ele num tom agradável.

- Bastante bem - respondo. - Ela está a aprender mais da nossa língua, todos os dias e já percebe quase tudo, creio eu. Algumas das outras pessoas subestimam a compreensão dela. Deviam ter cuidado.

- Percebo o aviso - ele acena com a cabeça. - E quanto ao seu feitio?

- É agradável - digo eu. - Não mostra sinais de ter saudades do seu país, na verdade, parece ter um grande afecto e interesse pela Inglaterra. É uma boa ama para as jovens damas, observa-as e tem consideração por elas. É bastante exigente; mantém uma boa ordem nos seus aposentos. É praticante, mas não demasiado religiosa.

- Reza como uma protestante?

- Não, ela segue a ordem religiosa do Rei - digo eu. - Nisso, é meticulosa.

Ele assente.

- Não deseja regressar a Clèves?

- Não, pelo menos nunca o manifestou.

- Que estranho.

Ele espera. É assim que procede. Permanece em silêncio até nos sentirmos obrigadas a tecer comentários.

- Creio que existe uma má relação entre ela e o irmão - comento, por fim. - E

creio que a Rainha Ana era amada pelo pai, que tinha problemas com álcool, no fim da vida. Parece que o irmão ocupou o lugar e a autoridade dele.

Ele assente.

- Então, não há hipóteses de ela querer renunciar ao trono e voltar para casa?

Abano a cabeça.

- Nunca. Ela adora ser rainha e tem a fantasia de ser uma mãe para os filhos do rei. Teria o Príncipe Eduardo ao seu lado, se pudesse, e ficou amargamente desiludida por não poder ver a Prima... Lady Isabel. Espera ter filhos seus e reunir os enteados ao seu redor. Está a planear a vida aqui, o futuro. Não irá partir de boa vontade, se é isso que tendes em mente.

Ele estende as mãos.

- Não tenho nada em mente - mente ele.

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Espero que ele me diga o que pretende a seguir.

- E a rapariga - diz ele. - A nossa jovem Catarina. O rei afeiçoou-se bastante a ela, não foi?

- Muito mesmo - concordo. - Ela é esperta e lida com ele como uma mulher com o dobro da idade que tem. É bastante sabida. Aparenta ser completamente doce e muito inocente e, no entanto, apresenta-se como uma prostituta de Smithfield.

- Isso é realmente encantador. É ambiciosa?

- Não, apenas gananciosa.

- Ela não tem noção de que, até agora, o Rei se casou com as damas de companhia da rainha?

- Ela é uma tonta - digo eu brevemente. - Tem jeito para namoriscos porque essa é a sua maior diversão, mas tem a mesma capacidade de planear que um cão de colo.

- Porquê? - por momentos, ele parece divertido.

- Ela não pensa no futuro, não se consegue imaginar além da próxima pantomina. Recorrerá a truques para obter compensações, mas não sonha que pode aprender a caçar e obter o primeiro prémio.

- Que interessante - ele expõe os seus dentes amarelos num sorriso. - Sois sempre interessante, Jane Bolena. Então: em relação ao rei e à rainha. Escolto-o até ao quarto dela, de duas em duas noites. Sabeis se ele já conseguiu consumar o acto?

- Todos temos a certeza de que não - digo eu. Baixo a minha voz, ainda que saiba que me encontro em segurança nestes aposentos. -Julgo que ele é impotente.

- Porque pensais assim?

Encolho os ombros.

- Era o que acontecia nos últimos meses com Ana. Todas o sabíamos.

Ele solta uma breve gargalhada.

- Agora sabemo-lo.

Foi Jorge, o meu Jorge, que contou ao mundo que o rei era impotente, quando estava a ser julgado, com risco da sua própria vida. Típico de Jorge, sem mais nada a perder, dizer o indizível, a única informação que deveria ter mantido em segredo: foi ousado, mesmo quando se encontrava junto dos degraus do cadafalso.

O Duque mantém-se em silêncio, por momentos.

- Ele dá-lhe sinais de estar insatisfeito? Ela sabe que não o satisfaz?

- Ele é suficientemente cortês, mas frio. É como se nem sequer pensasse nela com prazer. Como se não conseguisse retirar prazer de nada.

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- Credes que ele seria capaz de o fazer com outra pessoa?

- Ele está velho - começo; mas o olhar fugaz do velho duque recorda-me que ele também já não é propriamente um adolescente. - Isso não devia impedi-lo de o fazer, é evidente. Mas ele sofre com as dores na perna e creio que ultimamente se agravaram. O que é certo é que ela cheira cada vez pior e ele coxeia cada vez mais.

- Estou a ver.

- E sofre de prisão de ventre.

Ele faz uma careta.

- Como todos sabemos - os últimos movimentos dos intestinos do rei são motivo de preocupação constante da corte, no seu próprio interesse, bem como no do rei; quando está com esses problemas, o seu mau humor acentua-se.

- E ela não faz nada para o provocar.

- Ela desincentiva-o?

- Não propriamente, mas calculo que ela não faça nada para o ajudar.

- Ela é louca? Se pretende ficar casada, tudo depende de conseguir ter um filho dele.

Eu hesito.

- Creio que ela foi aconselhada a não parecer demasiado libertina ou promíscua - apercebo-me de um certo gorgolejar de riso na minha voz. - Penso que a mãe e o irmão dela são muito estritos. Foi educada com muita severidade.

A sua grande preocupação parece ser não dar ao rei motivos para ele se queixar de ela ser ardente ou fogosa.

Ele dá uma gargalhada.

- O que é que eles pensam? Que enviam um bloco de gelo a um rei como este

e que ele lhes vai ficar muito grato? - depois torna-se mais sóbrio. - Então, acreditais que ela ainda é virgem? Que ele não conseguiu fazer nada?

- Sim, senhor, penso que ainda é.

- Calculo que ela deva estar ansiosa em relação a estes assuntos?

Eu bebo um gole de vinho.

- Tanto quanto sei, ela não confidenciou nada a ninguém. É claro que pode falar com as suas compatriotas na sua língua, mas não são íntimas, não andam aos segredinhos. Talvez ela esteja envergonhada. Talvez seja discreta. Penso que ela mantém a incapacidade do rei como um segredo entre eles.

- O que é louvável - diz ele secamente. - Invulgar numa mulher. Credes que ela falaria convosco?

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- Poderia falar. O que quereis que ela diga?

Ele detém-se.

- A aliança com Clèves pode já não ser tão importante - diz ele. - A amizade entre a França e a Espanha está a enfraquecer. Quem sabe? Pode estar a cair neste preciso momento. Por isso, se eles não forem aliados, deixamos de precisar da amizade dos luteranos da Alemanha contra os papistas unidos da França e da Espanha - faz uma pausa. - Eu próprio irei à França, sob as ordens do rei, à corte do Rei Francisco para saber qual o nível da sua amizade com a Espanha. Se o Rei Francisco me disser que não tem qualquer apreço pela Espanha, porque está farto deles e da sua perfídia, então, poderá optar por se aliar à Inglaterra contra eles. Nesse caso, não necessitaríamos da amizade de Clèves, nem de uma rainha de Clèves no trono - interrompe-se para dar mais ênfase. - Nesse caso, estaríamos melhor com um trono vazio. Estaríamos bem melhor se o nosso rei estivesse livre para se casar com uma princesa francesa.

A minha cabeça anda às voltas, como acontece com frequência quando falo com o Duque.

- Meu senhor, estais a afirmar que o rei pode estabelecer uma aliança com a França agora, e que, por isso, já não precisa do irmão da Rainha Ana como aliado?

- Exactamente. Ele não só não precisa dele, como a amizade de Clèves se pode tornar embaraçosa. Se a França e a Espanha não estiverem a armar-se contra nós, não precisamos de Clèves, não queremos ficar amarrados aos Protestantes. Podíamos aliar-nos à França ou à Espanha. Podíamos voltar a aliar-nos aos grandes jogadores. Poderíamos até reconciliar-nos com o papa. Se Deus estivesse do nosso lado, poderíamos conseguir que o rei fosse perdoado, restaurar a religião antiga e colocar novamente a Igreja da Inglaterra sob o domínio do papa. Qualquer coisa, como sucede sempre, com o rei Henrique, é possível. Em todo o Conselho Privado só existe um homem que pensa que o Duque William se revelaria um grande trunfo, e esse homem pode estar prestes a cair.

Eu fico sem fôlego.

- Thomas Cromwell está prestes a cair?

Ele detém-se.

- A mais importante missão diplomática, a de descobrir as tendências da França, foi confiada a mim, e não a Thomas Cromwell. As ideias do rei, de que a Reforma da igreja foi demasiado longe, são partilhadas comigo, não com Thomas Cromwell. Thomas Cromwell concebeu a aliança com Clèves. Foi ele quem fez o casamento com Clèves. Acontece que já não precisamos da aliança e que

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o casamento não foi consumado. Acontece que o rei não aprecia a égua de Clèves. (que significa portanto, minha cara Lady Rochford), podemos dispensar a égua, o casamento, a aliança e o corrector: Thomas Cromwell.

- E vós tornais-vos conselheiro do rei?

- Talvez.

- Aconselhá-lo-íeis a estabelecer uma aliança com a França?

- Se Deus quiser.

- E, por falar em Deus, ele reconciliar-se-ia com a igreja?

- Com a Santa Igreja Romana - corrige-me ele. - Se Deus quiser, poderemos vê-la ser restaurada para nós. Há muito que queria que fosse restaurada, e metade do país partilha o meu desejo.

- Então, a rainha luterana vai deixar de o ser?

- Exactamente. Vai deixar de o ser. Está no meu caminho.

- E vós tendes outra candidata?

Ele sorri para mim.

- Talvez. Talvez o próprio rei já tenha escolhido outra candidata. Pode ser que os seus afectos se tenham reacendido e que a consciência siga o mesmo caminho.

- A pequena Catarina Howard.

Ele sorri.

Digo abertamente o que penso.

- E o que vai acontecer à jovem Rainha Ana?

Instala-se um silêncio prolongado.

- Como é que eu posso saber? - diz ele. - Talvez ela aceite um divórcio, talvez tenha de morrer. Tudo o que sei é: ela está no meu caminho e terá de se afastar.

Eu hesito.

- Ela não tem amigos neste país e a maior parte dos seus compatriotas já regressou a casa. Não tem apoio, nem é aconselhada pela mãe, nem pelo irmão.

Corre perigo de vida?

Ele encolhe os ombros.

- Só se for culpada de traição.

- E como é que poderia ser? Não fala inglês, não conhece ninguém além das pessoas que lhe apresentaram. Como é que poderia conspirar contra o rei?

- Ainda não sei - ele sorri para mim. - É provável que um dia vos pergunte como é que ela cometeu traição. Talvez vós vos apresenteis diante de um tribunal e apresenteis provas da culpa dela.

- Não - digo eu por entre lábios frios.

- Já o haveis feito antes - atormenta-me ele.

- Não quero ouvir essas coisas.

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Catarina, Palácio de Whitehall, Fevereiro de 1540

Estou a escovar o cabelo comprido e louro da rainha, que está sentada diante do espelho prateado. Ela olha para o seu reflexo, mas os seus olhos estão sem expressão, ela não se está a ver. Imaginem! Ter um espelho tão maravilhoso como aquele, que lhe devolve um reflexo perfeito, e não olha para a sua imagem! Eu passei a vida a tentar obter uma imagem de mim mesma em tabuleiros de prata e em pedaços de espelho, inclusive inclinando-me sobre o poço de Horsham, e aqui está ela, diante de um espelho perfeitamente concebido e não está arrebatada. Ela é realmente muito peculiar. Atrás dela, admiro o movimento da manga do meu vestido enquanto as minhas mãos se deslocam para cima e para baixo, inclino-me ligeiramente para ver o meu próprio rosto e inclino a cabeça para um dos lados, para ver a luz incidir na minha bochecha, a seguir, inclino-a para o outro lado. Tento esboçar um pequeno sorriso, depois levanto as sobrancelhas como se estivesse surpreendida.

Olho para baixo e apercebo-me de que ela me está a observar, por isso, rio-me e ela sorri.

- Sois uma menina bonita, Catarina Howard - diz ela.

Eu pestanejo perante a nossa imagem reflectida.

- Obrigada.

- Eu não sou - diz ela.

Um dos aspectos mais estranhos, por não saber falar correctamente, é ela fazer estas afirmações terrivelmente categóricas e nós nem sabemos muito bem como responder. É claro que ela não é tão bonita como eu, mas, por outro lado, tem um cabelo maravilhoso, espesso e brilhante, e uma face agradável e bondosa, uma pele clara e uns olhos verdadeiramente bonitos. E devia lembrar-se de que quase ninguém na corte é tão bonita quanto eu, por isso não tem de se autocensurar por isso.

Ela não é nada charmosa, mas isso deve-se, em parte, a ser tão rígida. Não sabe dançar, não sabe cantar, não é capaz de conversar.

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Estamos a ensinar-lhe a jogar às cartas e a fazer tudo o resto, como dançar, música e a cantar, actividades das quais não sabe absolutamente nada; mas entretanto é assustadoramente aborrecida. E esta não é uma corte em que a bondade aborrecida sirva para alguma coisa. Na verdade, não serve mesmo para nada.

- Tendes um cabelo bonito - digo eu num tom prestável.

Ela aponta para o toucado que está em cima da mesa à frente dela, que é muito grande e pesado.

- Não é bom - diz ela.

- Não - concordo com ela. - Muito mau. Usar o meu? - uma das coisas mesmo engraçadas em falar com ela, é que começamos a falar como ela. Eu faço-o com as outras damas quando é suposto estarmos a dormir, à noite. - Vós dormir agora

- digo às escuras e todas rimos às gargalhadas.

Ela fica satisfeita com a proposta.

- O vosso toucado? Sim.

Eu retiro-lhe os alfinetes e levanto-o da cabeça. Olho brevemente para a

minha imagem no espelho quando tiro o toucado e o cabelo me cai pelos ombros. Recordo o meu querido Francis Dereham, que adorava tirar-me o toucado e esfregar a cara no meu cabelo solto. Ao ver-me fazê-lo diante de um bom espelho com uma imagem real, pela primeira vez na minha vida, percebo quão desejável eu era para ele. Realmente, não posso culpar o rei por me olhar da forma que faz, não posso culpar John Beresby ou o novo pajem que está com Lorde Seymour. Thomas Culpepper também não conseguia desviar os olhos de mim durante o jantar, a noite passada. A sério, estou extraordinariamente bela, desde que vim para a corte, e todos os dias pareço estar mais bonita.

Gentilmente, estendo-lhe o toucado e, quando ela o põe, coloco-me atrás dela para lhe apanhar o cabelo, enquanto ela põe o toucado na cabeça.

Melhora tremendamente a aparência dela; até ela consegue vê-lo. Sem a pesada moldura quadrada do seu toucado alemão, pousado como um telhado na cabeça, a sua face torna-se logo mais redonda e bonita.

Mas depois ela puxa o meu bonito toucado para a frente, para que lhe cubra praticamente as sobrancelhas, tal como usou o seu novo toucado francês no torneio. Fica com um ar bastante ridículo. Eu solto uma interjeição irritada, e empurro-o de forma que fique bastante descaído na sua cabeça, e depois puxo-lhe algumas madeixas de cabelo para a frente, para que se veja como é louro, espesso e brilhante.

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Lamentavelmente, ela abana a cabeça e volta a puxar o toucado para a frente, prendendo o cabelo lá dentro, para que não fique à vista.

- É melhor assim - diz ela.

- Mas não fica tão bonito, não tão bonito! Tendes de o usar puxado para trás.

Para trás! - exclamo.

Ela sorri por eu ter subido o tom de voz.

- Demasiado francês - é tudo o que diz.

Com a sua resposta, faz-me emudecer. Suponho que esteja certa. A última coisa que qualquer rainha da Inglaterra se pode atrever a parecer é demasiado francesa. Os franceses são a última palavra no que toca a imodéstia e a imoralidade e uma rainha inglesa anterior, educada na França, quintessencialmente francesa, foi a minha prima Ana Bolena, que trouxe o toucado francês para a Inglaterra e só o tirou para pousar a cabeça no cepo. A Rainha Jane usou o toucado inglês num triunfo de modéstia. É semelhante ao toucado alemão, bastante pavoroso, apenas um pouco mais leve e ligeiramente curvado, e é o que a maioria das damas usa agora. Eu não: eu uso o toucado francês e o mais para trás que me atrevo, e fica-me bem, assim como ficaria bem à rainha.

- Haveilo usado no torneio e ninguém morreu - insisto com ela. - Sois a rainha. Fazei o que vos aprouver.

Ela anui.

- Talvez - diz ela. - O rei gosta disso?

Bem, sim, ele gosta deste toucado, mas apenas porque eu estou debaixo dele.

Ele é um velho tão senil, que creio que gostaria de mim, mesmo que eu estivesse com um chapéu de bobo na cabeça e dançasse como um bobo, abanando uma bexiga de um porco com guizos.

- Ele gosta bastante - digo eu despreocupadamente.

- Ele gosta da Rainha Jane? - pergunta ela.

- Sim. Gostava. E ela usava um toucado horrível, como o vosso.

- Ele ia à cama dela?

Valha-me Deus, não sei onde isto vai parar, mas quem me dera que Lady Rochford estivesse aqui.

- Não sei, nessa altura eu não estava na corte - respondo. - Sinceramente, eu vivia com a minha avó. Era só uma menina. Podeis perguntar a Lady Rochford, ou a qualquer uma das damas. Perguntai a Lady Rochford.

- Ele dá-me um beijo de boas-noites - diz ela subitamente.

- Isso é bom - digo eu debilmente.

- Dá-me um beijo de bons-dias.

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- Oh.

- É tudo.

Eu olho em volta do quarto de vestir vazio. Normalmente, deveria lá estar uma dezena de criadas, não sei onde podem estar todas. Por vezes, desaparecem, não há nada de tão indolente como as raparigas, a sério. Posso perceber porque é que irrito tanto toda a gente. Mas agora preciso mesmo de ajuda com esta confissão embaraçosa e não está aqui ninguém.

- Oh - digo debilmente.

- Só isso: beijo, boa noite, e depois beijo, bom dia.

Eu anuo. Onde estão as pegas indolentes?

- Mais nada - diz ela, como se eu fosse tão estúpida que não tivesse percebido a revelação desastrosa que me está a fazer.

Volto a assentir. Rezo a Deus para que alguém entre. Alguém. Até ficaria contente por ver Anne Bassett, neste preciso momento.

- Ele não consegue fazer mais nada - diz ela sem rodeios.

Vejo um tom escuro invadir-lhe o rosto, a pobre está a corar de embaraço.

Deixo logo de me sentir pouco à vontade e fico com muita pena dela; sinceramente, é tão mau para ela fazer-me esta revelação como para mim ouvi-la. Na verdade deve ser pior para ela, uma vez que tem de me dizer que o marido não a deseja, e não sabe o que fazer acerca disso. E é uma mulher muito tímida, muito modesta; e Deus sabe que eu não.

Os olhos enchem-se de lágrimas, à medida que as bochechas enrubescem.

Pobrezinha, penso eu. Coitada, pobrezinha! Imaginem, ter um homem velho e feio como marido e ele não ser capaz de concretizar o acto. Como poderia ser mais repugnante? Graças a Deus que eu sou livre para escolher os meus próprios amantes e Francis era tão jovem e de pele luzidia como uma serpente, e mantinha-me acordada a noite inteira, com o seu desejo imparável. Mas ela está empatada com um homem velho e doente e terá de descobrir uma forma de o ajudar.

- Vós beijai-lo? - pergunto.

- Não - diz ela brevemente.

- Ou... - imito um movimento oscilante com a mão direita ligeiramente fechada ao nível da anca; ela sabe bastante bem o que eu quero dizer.

- Não! - exclama ela, bastante chocada. - Deus me livre, não.

- Bem, tendes de o fazer - digo-lhe com franqueza. - E permiti que ele vos veja, deixai as velas acesas. Saí da cama e despi-vos - faço um pequeno gesto para indicar como ela deve deixar a camisa deslizar-lhe dos ombros, escorregar-lhe pelos seios abaixo. Viro-lhe

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as costas e olho por cima do ombro com um leve sorriso, devagar, inclino-me para ela, ainda a sorrir por cima do ombro. Nenhum homem consegue resistir a isso, eu sei.

- Parai - diz ela. - Não é bom.

- Muito bom - digo eu firmemente. - Tendes de o fazer. Tendes de ter um bebé.

Ela vira o rosto de um lado para o outro, como um pobre animal encurralado.

- Tenho de ter um bebé - repete ela.

Eu mostro-lhe como deve abrir a camisa, levo a mão dos seios até à púbis.

Fecho os olhos e suspiro como se estivesse a sentir um prazer tremendo.

- Assim, fazei-o. Deixai-o ver.

Ela olha para mim com o seu rosto grave e sério.

- Não posso - diz ela baixinho. - Catarina, eu não sou capaz de fazer nada disso.

- Porque não? Se isso iria ajudar? Se ajudasse o rei?

- Demasiado francês - diz ela tristemente. - Demasiado francês.

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Ana, Hampton Court, Março de 1540

Esta grande corte encontra-se em progresso, do palácio de Whitehall para outra das casas do rei, denominada Hampton Court. Ninguém ma descreveu, mas eu espero ver uma casa de quinta de grandes dimensões, no campo. Na verdade, estou à espera de uma casa mais pequena onde possamos viver de modo mais simples. O Palácio de Whitehall é como uma pequena cidade dentro da cidade de Londres e, duas vezes por dia, pelo menos, se eu não fosse guiada pelas minhas damas, perder-me-ia. O ruído é constante, há pessoas a entrar e a sair, a fazer acordos, a discutir, músicos a praticar, mercadores a oferecer os seus artigos, até vendedores ambulantes vêm vender coisas às criadas. É como uma vila cheia de pessoas que não têm um trabalho verdadeiro, além de fazer intrigas, espalhar rumores e provocar problemas.

Todas as grandes tapeçarias, carpetes, instrumentos musicais, tesouros, baixela, vidros e camas estão embalados na fila de carroças, no dia da nossa partida, como se uma cidade inteira se estivesse a mudar. Todos os cavalos estão selados, e os falcões instalados nas suas carroças especiais, pousados nos seus pilares, com divisórias de verga entre eles, as cabeças tapadas volteando incessantemente de um lado para o outro, e as bonitas penas no topo do caparão abanam como o penacho de um cavaleiro num torneio. Observo-os e penso que sou tão cega e impotente quanto eles. Ambos nascemos para sermos livres, para irmos onde nos aprouvesse, e aqui estamos os dois, cativos da vontade do rei, aguardando as ordens dele.

Os cães são chicoteados pelos caçadores para entrarem, andam aos trambolhões pelos pátios, latindo e tropeçando de excitação. Todas as grandes famílias embalam os seus bens, ordenam aos criados que lhes preparem os cavalos e o comboio da bagagem e seguimos em procissão, de manhã cedo,

como um pequeno exército, para cavalgarmos pelos portões de Whitehall e ao longo do rio, até Hampton Court.

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Por uma vez, Deus seja louvado, o rei está feliz, de bom-humor. Diz que irá cavalgar comigo e as minhas damas e que me pode falar sobre a paisagem enquanto avançamos. Não terei de ir numa liteira, como aconteceu quando cheguei à Inglaterra; agora estou autorizada a montar e tenho um vestido novo para este efeito, com uma saia comprida e pregueada, que cai de ambos os lados da sela. Não sou uma boa cavaleira, porque nunca me ensinaram devidamente. O

meu irmão só deixava que eu e Amélia montássemos os cavalos mais seguros do seu pequeno estábulo, mas o rei foi gentil comigo e deu-me um cavalo só meu, uma égua dócil, com um passo estável. Quando lhe toco com o calcanhar, ela começa a andar a meio galope, mas quando o receio me faz dar um puxão nas rédeas, ela volta ao passo delicado. Adoro-a por ser tão obediente, porque ela ajuda-me a disfarçar o meu medo, nesta corte temerária.

É uma corte que aprecia bastante sair para cavalgar, caçar e andar a galope. Eu pareceria uma tonta, se não fosse a pequena Catarina Howard, que só monta um pouco melhor do que eu, e assim, com ela a fazer-me companhia, o rei avança lentamente entre as duas, e diz-nos, a ambas, para esticarmos as rédeas e para nos sentarmos com as costas rectas, elogia a nossa coragem e os nossos progressos.

É tão simpático e agradável que eu deixo de recear que me considere uma cobarde e começo a cavalgar com mais confiança, a olhar em meu redor e a divertir-me.

Saímos da cidade por estradas serpenteantes, tão estreitas que só podem passar duas pessoas de cada vez, e todos os habitantes da cidade se inclinam para fora das janelas para nos verem passar, as crianças gritando e correndo ao lado do séquito. Nas estradas mais largas ocupamos os dois lados e os vendedores do mercado que ficam na secção central, gritam bênçãos e retiram as boinas, à medida que passamos. O lugar está pleno de vida, uma cacofonia de ruídos de pessoas que anunciam os seus artigos e o troar ensurdecedor das rodas das carroças nas pedras da calçada. A cidade tresanda com o seu odor particular a

estrume dos milhares de animais mantidos nas áleas, os restos dos talhos e dos peixeiros, o fedor das tanoarias, e a acumulação constante de fumo. De vez em quando, surge uma casa grande, no meio daquela miséria, indiferente aos pedintes às suas portas. Muros altos protegem-na das ruas e eu consigo ver apenas os topos das copas de árvores enormes nos jardins cercados. Os nobres de Londres constroem as suas grandes casas ao lado de casebres e alugam as entradas aos vendedores ambulantes.

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É tudo tão ruidoso e confuso que me deixa tonta e fico satisfeita por avançar pelos grandes portões e encontrar-me fora da muralha da cidade.

O rei mostra-me os antigos fossos que foram escavados no passado para defender Londres dos invasores.

- Agora, não vêm homens? - pergunto.

- Não se pode confiar em nenhum homem - diz ele com um ar sinistro. - Os homens viriam do Norte e de Leste, se ainda não tivessem sentido o peso da minha raiva; e os Escoceses viriam, se pensassem que podiam fazê-lo. Mas o meu sobrinho, o Rei James, receia-me, como devia, e a populaça do Yorkshire aprendeu uma lição que nunca esquecerá. Metade dela está de luto pela outra metade que está morta.

Eu não digo mais nada, com medo de acabar com o seu bom humor, o cavalo de Catarina tropeça, ela suspira e segura-se às crinas do cavalo e o rei ri-se dela e chama-lhe cobarde. A conversa entre eles deixa-me à vontade para olhar ao meu redor.

Para além das muralhas da cidade existem casas grandes afastadas da estrada, com pequenos jardins à frente ou reduzidos campos de plantação muito próximos. Todos têm um porco no campo, e algumas pessoas têm vacas ou cabras, assim como galinhas, nos jardins. É uma zona rural rica, posso vê-lo nos rostos das pessoas, que têm bochechas redondas e brilhantes e sorrisos de quem está bem alimentado. A mais um quilómetro e meio da cidade, entramos numa zona de campos abertos, pequenas sebes e quintas esplêndidas e, por vezes, pequenas aldeias e lugarejos. Em todos os cruzamentos houve um templo que foi destruído, às vezes uma estátua da mãe de Cristo ergue-se, com a cabeça casualmente decapitada e um ramo de flores, ainda frescas, aos pés; nem todos

os ingleses estão convencidos das mudanças na lei. Nalgumas aldeias, um pequeno mosteiro ou abadia está a ser remodelado ou demolido. É extraordinário observar as mudanças que este rei introduziu no rosto deste país, numa questão de anos. É como se os carvalhos tivessem sido banidos de repente e todas as árvores grandes e protectoras tivessem sido selvaticamente derrubadas da noite para o dia. O rei arrancou o coração a este país e é demasiado cedo para verificarmos como irá sobreviver e respirar sem os templos sagrados e a vida santa que sempre o nortearam.

O rei interrompe a conversa com Catarina Howard e diz-me:

- Eu tenho um grande país.

Não sou idiota ao ponto de comentar que ele destruiu ou roubou um dos seus maiores tesouros.

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- Boas quintas - digo eu - e... - interrompo-me por não saber a palavra em inglês para animais. Aponto para eles.

- Ovelhas - diz ele. - Esta é a riqueza deste país. Fornecemos lã para o mundo inteiro. Não há um único casaco confeccionado em toda a Cristandade que não seja com lã inglesa.

Aquilo não é totalmente verdade, porque, em Clèves, tosquiamos as nossas ovelhas e tecemos a nossa lã, mas eu sei que o comércio de lã inglesa é muito significativo, e além disso, não quero corrigi-lo.

- A avó tem o seu próprio rebanho em South Downs - lança Catarina. - E a carne é tão boa, senhor. Vou pedir-lhe que vos envie alguma.

- Pedis, menina bonita? - pergunta-lhe ele. - E ireis cozinhá-la para mim?

Ela ri-se.

- Podia tentar, senhor.

- Agora, confessai, não sabeis fazer nem carne assada nem um molho. Duvido que alguma vez tenhais estado sequer dentro de uma cozinha.

- Se desejardes que cozinhe para vós, Vossa Graça, então, eu aprenderei - diz ela. - Mas admito que comeríeis melhor se fossem os vossos cozinheiros a fazê-

lo.

- Também estou convencido de que sim - diz ele. - E uma menina bonita como vós não precisa de cozinhar. Tenho a certeza de que tendes outras formas de encantar o vosso marido.

A fala deles é demasiado rápida para eu conseguir compreender, mas estou feliz por o meu marido estar alegre e por Catarina saber lidar com ele. Conversa com ele como uma menina e ele considera-a divertida, como um velho poderia acarinhar a sua neta preferida.

Deixo-os conversar, e continuo a olhar à minha volta. A nossa estrada segue agora junto ao rio largo, que flui velozmente e que está repleto de barqueiros, barcaças das famílias nobres, botes, barcas comerciais que viajam carregadas para Londres, e pescadores com canas de pesca que procuram os peixes de qualidade do rio. Os campos pantanosos, ainda inundados das cheias do Inverno, estão luxuriantes e reluzentes com poças de águas paradas. Uma magnífica garça-real levanta voo devagar de um lago, quando vamos a passar, bate as suas asas enormes e voa para Oeste diante de nós, recolhendo as suas longas pernas.

- Hampton Court é uma casa pequena? - pergunto.

O rei espora o cavalo para que este avance para falar comigo.

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- É uma grande casa - diz ele. - A casa mais bela do mundo.

Duvido muito que o rei francês, que construiu Fontainebleu, ou os mouros que construíram o Alhambra concordassem, mas uma vez que não vi nenhum destes palácios, não vou corrigi-lo.

- Fostes vós quem o mandou construir, Vossa Graça? - pergunto.

Mal acabo de falar, percebo, mais uma vez, que disse algo que não deveria ter dito. Pensei que iria incentivá-lo a falar-me do projecto e da construção do palácio; mas a expressão dele, que era tão sorridente e bela, ensombra-se de repente. A pequena Catarina responde muito depressa:

- Foi construído para o rei - diz ela. - Por um conselheiro que revelou ser um falso conselheiro. A única coisa de valor que fez foi construir um palácio adequado a Sua Majestade. Ou, pelo menos, foi o que a minha avó me contou.

O rosto dele ilumina-se, ri-se sonoramente.

- O que dizeis é realmente verdade, Menina Howard, ainda que devêsseis ser uma criança, na altura que Wolsey me traiu. Ele era um falso conselheiro e a casa que mandou construir e que me ofereceu é excelente - vira-se para mim. -

Agora é minha - diz, menos calorosamente. - É só isso que tendes de saber. E é a mais esplêndida casa do mundo.

Eu assinto e cavalgo para a frente. Quantos homens ofenderam este rei, nos longos anos do seu reinado? Ele deixa-se ficar para trás por um momento e fala com o seu estribeiro-mor que cavalga ao lado do jovem Thomas Culpepper, conversando e rindo.

Os cavaleiros à nossa frente saem da estrada e eu vejo o enorme portão diante de nós. Estou espantada com a imagem. É de verdade um palácio tremendo, com belos tijolos escarlate, o mais dispendioso de todos os materiais de construção, com arcos e ângulos de pedra branca brilhante. Não fazia ideia de que era tão grande e magnífico. Passamos a cavalo pelo enorme portão de pedra e descemos a estrada serpenteante até ao edifício, sob o portão de entrada, e os cascos dos nossos cavalos soam como trovões nas pedras da calçada dos grandes pátios interiores. Lá dentro, existe um vasto pátio, e os criados, que entram e saem da casa, abrem de par em par as enormes portas duplas para que eu possa ver o salão interior. Formam em linha, como uma guarda de honra, vestidos com as librés da casa real dos Tudor, consoante as suas categorias, fila após fila de homens e mulheres dedicados ao nosso serviço. Esta é uma casa para centenas de pessoas, um lugar imponente, construído para o prazer da corte. Mais uma vez, estou maravilhada, a riqueza deste país é demasiada para mim.

- O que aconteceu ao homem que fez esta casa? - pergunto a Catarina, enquanto desmontamos dos cavalos no amplo pátio, entre o ruído da corte, as

gaivotas a gritar no rio atrás da casa, as gralhas crocitando nos torreões. - O que aconteceu ao conselheiro que ofendeu o rei?

- Era o Cardeal Wolsey - diz ela em voz baixa. - Foi considerado culpado de actos contra o rei e morreu.

- Ele também morreu? - pergunto. Descubro que não me atrevo a perguntar qual foi o golpe que fez tombar o mentor desta casa real.

- Sim, morreu e caiu em desgraça - diz ela brevemente. - O rei virou-se contra ele. Sabei que, por vezes, ele fá-lo.

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Jane Bolena, Hampton Court, Março de 1540

Estou de volta aos meus antigos aposentos de Hampton Court e, por vezes, quando subo dos jardins até aos apartamentos da rainha, é como se o tempo tivesse parado e eu ainda fosse uma noiva com tudo para esperar, como se a minha cunhada estivesse no trono da Inglaterra, à espera do seu primeiro filho, o meu marido acabasse de receber o título de Lorde Rochford, e o meu sobrinho fosse ser o próximo rei da Inglaterra.

Às vezes, quando me detenho junto de uma janela de vidros apainelados e olho lá para baixo, para o jardim, penso que quase consigo ver Ana e Jorge a passear pelos caminhos de gravilha, o braço dela metido no dele e as cabeças unidas. Penso que poderia vê-los mais uma vez, como costumava vê-los constantemente nessa época, os pequenos gestos de afecto, a mão dele no fundo das costas dela, a cabeça dela pousada no ombro dele. Quando ela estava grávida costumava apoiar-se nele para obter algum conforto e ele era sempre meigo com ela, a irmã que poderia trazer no ventre o futuro rei da Inglaterra. Mas quando eu estava enorme, de tão grávida, durante os últimos meses que passámos juntos, ele nunca me pegou na mão nem sentiu qualquer compaixão pela minha fadiga.

Nunca pousou a mão no meu ventre inchado para sentir o bebé mexer-se, nunca enfiou o meu braço no seu, nem me incentivou a apoiar-me nele. Houve tanta coisa que nunca fizemos juntos e de que agora sinto falta. Eu não lamentaria mais a perda dele, se tivéssemos sido um casal feliz. Havia tanta coisa por dizer e por terminar entre nós dois; e nunca será dito nem terminado. Quando ele morreu, eu mandei o filho dele para longe. Está a ser criado por amigos dos Howard e vai ingressar na igreja. Não tenho ambições para ele. Perdi a grande

herança dos Bolena que estava a acumular para ele, e o nome da família já não tem qualquer crédito; apenas vergonha. Quando perdi os dois, Ana e Jorge, perdi tudo.

O meu senhor, o Duque de Norfolk, regressou da sua missão à França e encerrou-se com o rei durante horas a fio. Está nas 163

maiores graças do rei, qualquer pessoa pode perceber que lhe trouxe, de Paris, boas notícias. Se eu não conseguisse ver a ascensão da nossa família na arrogância dos nossos homens, no crescente ar presunçoso de autoridade do nosso aliado, o Arcebispo Gardiner, no surgimento dos rosários e crucifixos nos cintos e nas gargantas, vê-la-ia no declínio do partidário da Reforma: o mau-humor mal disfarçado de Thomas Cromwell, a prudência silenciosa do Arcebispo Cranmer, a forma como procuram falar com o rei e não conseguem uma entrevista com ele. Se eu li os sinais correctamente, então, o nosso partido, os Howard e os Papistas, estão novamente a ascender. Temos a nossa fé, temos as nossas tradições, e temos a rapariga que captou as atenções do rei. Thomas Crowell sugou a igreja até ao tutano, não tem mais riquezas para oferecer ao rei, e a sua rapariga, a rainha, pode até aprender inglês, mas não a namoriscar. Se eu fosse um cortesão indeciso, arranjaria maneira de me tornar amigo do Duque de Norfolk e de me passar para o seu lado.

Ele chamame aos seus aposentos. Vou ter com ele, percorrendo os corredores familiares, o odor a lavanda e a rosmaninho em volta dos meus pés, pelas ervas que foram espalhadas no chão, a luz vinda do rio a entrar pelas grandes janelas à minha frente, e parece que os fantasmas deles vão a correr diante de mim, descendo pela galeria apainelada, como se a saia dela tivesse acabado de desaparecer do meu campo de visão, ao dobrar a esquina, como se ainda conseguisse ouvir o riso descontraído do meu marido no ar iluminado pelo sol.

Se eu andasse um pouco mais depressa, conseguiria apanhá-los - e assim, mesmo agora, continua a ser tudo como sempre foi. Sempre senti que, se conseguisse andar um pouco mais depressa, apanhá-los-ia, e ficaria a saber os segredos que partilhavam.

Apresso-me, contra a minha vontade, mas quando contorno a esquina, o corredor apainelado está vazio, a não ser pelos guardas dos Howard, que estão à porta e que não viram quaisquer fantasmas. Perdi-os, aos dois, como sempre

aconteceu. São demasiado rápidos para mim, depois de mortos, tal como o eram em vida. Nunca esperavam por mim, nunca me quiseram ter junto deles. Os guardas batem à porta e abrem-na para mim, e eu entro.

- Como está a rainha? - pergunta o Duque abruptamente da sua cadeira atrás de uma mesa, e eu tenho de lembrar-me de que se refere a uma rainha nova e não à nossa adorada e exasperante Ana.

- Está de bom humor e com muito bom aspecto - digo. Mas ela nunca será a beleza que a nossa menina era.

- Ele já a possuiu?

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Isto é ordinário, mas eu presumo que ele está cansado da viagem e que não tem tempo para cortesias.

- Não. Tanto quanto sei, continua a não ser capaz.

Há uma longa pausa enquanto ele se levanta da cadeira e se dirige à janela para olhar lá para fora. Penso nas outras vezes em que esteve nesta mesma posição antes, quando me fazia perguntas acerca de Ana e Jorge, quando olhava lá para fora da janela para os ver descer pelos caminhos de gravilha até ao rio.

Pergunto-me se ainda consegue vê-los, mesmo agora, como eu. Na altura, perguntou-me se eu a invejava, se estaria preparada para agir contra ela. Disseme que talvez pudesse salvar o meu marido colocando-a em risco. Perguntou-me se eu amava Jorge mais do que a ela. Perguntou-me se eu me importaria muito que ela morresse.

A pergunta que me faz a seguir interrompe as memórias que eu desejaria poder esquecer.

- Pensais que lhe poderiam ter... - faz uma pausa. - Lançado mau-olhado?

Mau-olhado? Mal consigo acreditar no que estou a ouvir. Estará o Duque a sugerir seriamente que o rei é impotente com a mulher como resultado de uma praga, um feitiço ou que lhe tenham lançado mau-olhado? É claro que a lei

terrena diz que a impotência num homem saudável só pode ser provocada pela acção de uma bruxa; mas na vida real toda a gente sabe que a doença ou a velhice podem enfraquecer um homem, e o rei está grosseiramente obeso, quase paralisado de dores e doente como um cão, tanto no corpo como na alma. Mau-olhado? A última vez que o rei alegou ser vítima de mau-olhado, a mulher que acusou foi a minha cunhada, Ana, que foi levada para o cadafalso, culpada de bruxaria, tendo como provas a impotência do rei com ela e a luxúria dela com outros homens.

- Não podeis pensar que a rainha... - interrompo-me. - Ninguém poderia pensar que esta rainha... que mais uma rainha... - a sugestão é tão absurda e tão carregada de perigo que eu nem sequer consigo traduzi-la por palavras. - O país não suportaria... ninguém acreditaria nisso... outra vez, não... - emudeço. - Ele não pode continuar a fazer isto...

- Eu não estou a pensar em nada. Mas se ele é impotente, então, alguém deve estar a lançar-lhe mau-olhado. Quem poderia ser, senão ela?

Permaneço em silêncio. Se o Duque está a recolher provas de que ela está a lançar mau-olhado ao marido, então, ela é uma mulher morta.

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- Neste momento, ele não sente nenhum desejo pela rainha - começo. - Mas, com certeza, não é nada mais grave do que isso? O desejo pode surgir. Afinal de contas, ele já não é um homem jovem, não é um homem que esteja em boas condições de saúde.

Ele assente. Estou a tentar avaliar o que pretende ouvir.

- E ele sente desejo por outras - prossigo.

- Ah, isto prova a acusação - diz ele astuciosamente. - Pode acontecer terem-lhe lançado mau-olhado apenas quando se deita com a rainha, para não conseguir ser potente com ela, para não conseguir dar à Inglaterra um filho e herdeiro.

- Se o dizeis - concordo. Não vale a pena dizer que é bastante mais provável

que, visto ele ser velho e estar frequentemente doente, não sinta o desejo que costumava sentir; e que apenas uma prostitutazinha como Catarina Howard, com os seus truques e encanto, consiga excitá-lo.

- Então, quem poderia lançar-lhe mau-olhado?

Encolho os ombros. Seja quem for que eu nomeie, deve despedir-se, porque se for acusado da prática de bruxaria contra o rei, está morto. Não há provas de inocência e nenhuma alegação de não ser culpado; ao abrigo das novas leis, qualquer tentativa de traição é um crime tão grave como o próprio acto. O Rei Henrique aprovou uma lei contra o facto de as pessoas pensarem, e as pessoas não se atrevem a pensar que ele está errado.

- Não sei quem faria tamanha maldade - digo eu com firmeza. - Não consigo imaginar.

- A rainha recebe luteranos?

- Não, nunca - é verdade, ela tem todos os cuidados para respeitar os costumes e segue a missa, de acordo com as regras do Arcebispo Cranmer, como se fosse mais uma Jane Seymour, nascida para servir.

- Recebe papistas?

Fico aterrada com esta pergunta. Ela é uma rapariga de Clèves, o coração da Reforma. Foi educada para encarar os Papistas como Satã na terra.

- É claro que não! Nasceu e foi criada como protestante, foi trazida para aqui pelos protestantes, como iria receber papistas?

- Lady Lisle é íntima dela?

O olhar fugaz que lanço ao rosto dele revela-lhe o meu choque.

- Temos de estar prontos, temos de estar preparados. Os nossos inimigos estão por todo o lado - avisa-me ele.

- O próprio rei nomeou Lady Lisle para os aposentos dela e Anne Basset, a filha, é uma das suas favoritas - digo eu. - Não tenho

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quaisquer provas contra Lady Lisle - porque não há nenhumas, e nunca poderia haver.

- Ou Lady Southampton?

- Lady Southampton? - pergunto eu, incrédula.

- Sim.

- Também não sei nada contra Lady Southampton - digo.

Ele anui. Ambos sabemos que as provas, especialmente de bruxaria e de maus-olhados, não são difíceis de engendrar. É um murmúrio, e depois uma acusação. E depois um chorrilho de mentiras, a seguir, um julgamento espectáculo e, em seguida, uma sentença. Já foi posto em prática antes para livrar o rei de uma mulher que ele não desejava, uma mulher que pôde ser mandada para o cadafalso sem que a família mexesse um dedo para a salvar.

Ele acena com a cabeça, e eu aguardo longos momentos num silêncio apavorado, pensando que ele pode ordenar-me que forje provas que levarão à morte de uma mulher inocente, pensando no que posso dizer, se ele me fizer um pedido de tal modo terrível. Esperando conseguir encontrar coragem de o recusar, sabendo que não o farei. Mas ele não diz nada, por isso, eu faço-lhe uma vénia e dirijo-me para a porta; talvez ele não tenha mais nada para me dizer.

- Ele irá arranjar provas de uma conspiração - prevê ele, no momento em que pouso a mão no trinco de bronze.

- Vós sabeis que ele vai arranjar provas contra ela.

Eu fico imediatamente paralisada.

- Deus a ajude.

- Ele irá arranjar provas de que, ou os Papistas, ou os Luteranos, colocaram uma bruxa na sua casa para o tornar impotente.

Eu tento manter um rosto sem expressão; mas isto representa uma desgraça

tão grande para a rainha, talvez um tamanho perigo para mim, que consigo sentir o meu pânico crescer ao ouvir as palavras calmas do meu tio.

- É melhor para nós que ele designe alguns luteranos como traidores -

relembra-me ele. - E não o nosso partido.

- Sim - concordo eu.

- Ou, se ele não pretender que ela morra, obterá um divórcio com base no facto de ela ter um pré-contrato de noivado, e se isso falhar, conseguirá o divórcio com base no facto de não sentir desejo por ela e, por isso, não consentiu no casamento.

- Ele disse: “Sim” diante de várias testemunhas - murmuro. - Todos estávamos lá.

- No seu íntimo, não consentiu - diz-me ele.

- Oh - faço uma pausa. - Ele agora diz isso?

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- Sim. Mas se ela negar que existia um contrato anterior de noivado, ele ainda pode alegar que não pode consumar o casamento por ter sido alvo de bruxaria por parte dos seus inimigos.

- Estes papistas? - pergunto eu.

- Papistas como o amigo dela, Lorde Lisle.

Eu fico sem ar.

- Ele seria acusado?

- É possível.

- Ou luteranos? - sussurro.

- Luteranos como Thomas Cromwell.

A minha face revela-lhe o meu choque.

- Ele agora é luterano?

Ele sorri.

- O rei acreditará no que desejar - diz ele maliciosamente. - Deus orientá-lo-á na sua sabedoria.

- Mas quem é que ele pensa que o tornou impotente? Quem é a bruxa?

Esta é a pergunta mais importante a fazer, sobretudo para uma mulher. É

sempre o aspecto mais importante para uma mulher saber. Quem irá ser acusada de ser bruxa?

- Tendes um gato? - pergunta ele, sorrindo.

Começo a sentir-me gelar de terror, como se o meu cérebro se tivesse transformado em neve.

- Eu? - repito. - Eu?

O Duque ri-se.

- Oh, não fiqueis assim, Lady Rochford. Ninguém vos irá acusar enquanto estiverdes sob a minha protecção. Além disso, não tendes nenhum gato, pois não? Nenhum familiar escondido? Nenhumas bonecas de cera? Não frequentais o sabá à meia-noite?

- Não brinqueis - digo eu insegura. - Não tem piada nenhuma.

Ele torna-se imediatamente sério.

- Tendes razão. Pois não. Então, quem é a bruxa que está a tornar o rei impotente?

- Não sei. Nenhuma das damas de companhia dela. Nenhuma de nós.

- Poderá ser a própria rainha? - sugere ele baixinho.

- O irmão defendê-la-ia - digo eu muito depressa em voz alta. - Mesmo que

não preciseis da aliança com ele, mesmo que tenhais regressado da França com a promessa da amizade deles, seguramente, não podeis correr o risco de tê-lo como inimigo? Ele poderia colocar a liga protestante contra nós.

Ele encolhe os ombros.

168


- Penso que ireis descobrir que ele não a pode defender. E eu garanti realmente a amizade da França, seja o que for que aconteça a seguir.

- Dou-vos os parabéns. Mas a rainha é irmã do Duque de Clèves. Não pode ser acusada de bruxaria, estrangulada por um ferreiro da aldeia e enterrada numa encruzilhada com uma estaca a atravessar-lhe o coração.

Ele abre as mãos como se não tivesse nada que ver com estas decisões.

- Não sei. Limito-me a servir Sua Majestade. Teremos de ver. Mas devíeis observá-la atentamente.

- Devo observar se ela pratica bruxaria? - mal consigo disfarçar a incredulidade na minha voz.

- Deveis procurar provas - diz ele. - Se o rei quer provas de alguma coisa, então, nós, os Howard, iremos dar-lhas - detém-se. - Não é verdade?

Fico em silêncio.

- Como sempre fizemos - ele espera pelo meu assentimento. - Não é verdade?

- Sim, meu senhor.

169

Catarina, Hampton Court, Março de 1540

Thomas Culpepper, o meu parente, ao serviço do rei e caído nas suas graças por nenhuma outra razão além do seu lindo rosto e os seus olhos azuis intensos, é um vigarista e uma pessoa que não cumpre as promessas que faz e eu não me

vou encontrar mais com ele.

Vi-o pela primeira vez há alguns anos, quando ele foi visitar a minha avó a Horsham e ela entusiasmou-se muito com ele e jurou que ele havia de chegar longe. Atrevo-me a dizer que, nessa altura, ele nem me viu, apesar de agora jurar que eu sou a donzela mais bonita de Horsham e que sempre fui a sua favorita. É

verdade que eu o vi. Estava apaixonada por Henry Manox nesses tempos, o plebeu; mas não podia deixar de reparar em Thomas Culpepper. Penso que mesmo que estivesse prometida ao homem mais importante da terra, repararia em Thomas Culpepper. Qualquer uma repararia. Metade das damas da corte está loucamente apaixonada por ele.

Ele tem cabelo escuro encaracolado e olhos muito azuis, e quando se ri, a sua voz quebra com as suas gargalhadas, de um modo tão engraçado que me dá vontade de rir, só de o ouvir. É o homem mais bonito da corte, sem dúvida. O rei adora-o porque é inteligente, alegre, um magnífico dançarino, um grande caçador e tão valente como um cavaleiro num torneio de justas. O rei man-tém-no ao seu lado, dia e noite, e chama-lhe o seu menino bonito e o seu pequeno cavaleiro. Ele dorme no quarto do rei para o servir durante a noite e tem umas mãos tão gentis que o rei prefere que seja ele a mudar o penso da sua ferida na perna do que qualquer boticário ou enfermeira.

Já todas as raparigas perceberam o quanto gosto dele e juram que nos devíamos casar, apesar de sermos primos, mas ele não tem dinheiro em seu nome e eu não tenho dote, e assim de que nos serviria? Mas se eu tivesse de escolher um homem no mundo inteiro para me casar, seria ele. Tem o sorriso mais malicioso que alguma

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A Herança ‘Boíena vez vi na vida e, quando olha para mim, é como se me estivesse a despir e a acariciar-me o corpo inteiro.

Graças a Deus que agora sou dama de companhia da rainha e que, sendo ela uma rainha tão modesta e severa, não vai acontecer nada disso, ainda que, se ele tivesse vindo ao meu dormitório em Lambe th, juro que teria vindo para a minha cama e que teria sido calorosamente recebido. Teria devolvido o meu belo Francis a Joan Bulmer, se alguma vez tivesse uma hipótese com um rapaz como Tom Culpepper.

Ele está de volta à corte depois de descansar, em casa, dos ferimentos do torneio. Apanhou um valente golpe mas diz que é muito jovem, e que os ossos novos remendam depressa. É verdade, ele é jovem e tão cheio de vida como uma lebre, saltando sem motivo num campo, na Primavera. Basta olhar para ele para ver a alegria a atravessar-lhe as veias. É como Mercúrio, como um vento de Primavera a soprar. Estou contente que ele tenha voltado para a corte, até na Quaresma dá mais alegria a este lugar. Mas ainda esta manhã me fez esperar uma hora por ele no jardim da rainha, quando eu deveria estar nos aposentos dela, e quando chegou, atrasado, disse que não podia ficar e que tinha de ir a correr servir o rei.

Não admito ser tratada assim e vou mostrar-lho. Não volto a esperar por ele, não aceitarei encontrar-me com ele, da próxima vez que mo pedir. Terá de me pedir mais do que uma vez, juro-o. Desistirei de namoriscar, por estarmos na Quaresma, e será bem feito para ele. Na verdade, talvez me torne sensata e séria e nunca mais namore com ninguém.

Lady Rochford pergunta-me porque estou de tão mau-humor, quando entramos para jantar e eu juro-lhe que estou tão contente quanto o dia é longo.

- Então, sorride - diz ela, como se não acreditasse em mim. - Porque o meu senhor, o Duque, voltou da França e irá procurar-vos.

Eu ergo logo o queixo e esboço um sorriso para ela, bastante deslumbrante, como se ela tivesse acabado de dizer algo com muita graça. Dou até uma pequena gargalhada, o meu riso da corte: “ha, ha, ha”, com muita leveza e elegância, como ouvi as damas fazerem. Ela acena ligeiramente com a cabeça.

- Está melhor - diz ela.

- Afinal, o que foi o Duque fazer à França? - pergunto eu.

- Estais a interessar-vos pelos assuntos do mundo? - pergunta ela perplexa.

- Não sou completamente idiota - digo eu.

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- O vosso tio é um homem importante nos favores do rei. Foi à França assegurar a amizade do rei francês, para que o nosso país não tenha de enfrentar o perigo do Santo Pa..., quer dizer, do papa, do imperador e do rei da França, numa aliança contra nós.

Eu sorrio por a própria Jane Bolena quase ter dito “Santo Padre”, que já não podemos dizer.

- Oh, eu sei disso - digo eu inteligentemente. - Porque querem pôr o Cardeal Pole no nosso trono.

Ela abana a cabeça.

- Não faleis nisso - avisa-me.

- Mas eles querem - insisto eu. - E é por isso que a sua mãe e todos os Pole estão na Torre. Porque o Cardeal poderia chamar todos os papistas da Inglaterra para se revoltarem contra o rei, tal como fizeram antes.

- Eles não voltarão a revoltar-se contra o rei - diz ela secamente.

- Porque agora sabem que estão errados?

- Porque a maior parte deles está morta - diz ela rispidamente. - E isso também foi obra do vosso tio.

172

Ana, Hampton Court, Março de 1540

Foi-me dito que a corte cumpriria o período da Quaresma com grande solenidade. Foi-me garantido que não comeríamos quaisquer carnes vermelhas.

Esperava jantar peixe durante estes quarenta dias, mas descubro, na primeira noite, ao jantar, que as consciências inglesas são condescendentes. O rei é sensível às suas próprias necessidades. Apesar do jejum da Quaresma, existe uma variedade enorme de pratos que entra no salão, trazida em travessas erguidas bem acima das cabeças dos criados que se dirigem primeiro à mesa real, e o rei e eu servimo-nos de um pouco de cada um, como é costume, e mandamos o resto para os nossos amigos e favoritos em volta do salão.

Certifico-me de os enviar para a mesa das minhas damas de companhia e para as

grandes damas da corte. Não cometo erros em relação a este assunto e nunca envio o meu prato preferido a nenhum homem. Não se trata de educação inútil, o rei está a observar-me. Cada palavra que eu proferir ao jantar, tudo o que eu fizer, os seus olhos pequenos e brilhantes, quase escondidos atrás das suas bochechas gordas, seguem, como se me quisesse apanhar em falso.

Para minha surpresa, é servido frango, em tartes, e de fricassé, assado com ervas, de fazer crescer água na boca, trinchado do osso; mas neste período da Quaresma não se chama carne. Para os fins do jejum da Quaresma, o rei decidiu que o frango conta como peixe. Também são servidas todas as aves de caça (que também não são carne, segundo Deus e o rei) maravilhosamente apresentadas, envoltas umas nas outras, para adquirirem sabor e tenrura. Existem pratos ricos de ovos (que não são carne), e há realmente peixe: truta dos lagos e fantásticos pratos de peixe do Tamisa e do mar, trazidos pelos pescadores, que entram pelo mar dentro para alimentar esta corte insaciável. Há lagostas de água doce e tartes de mira-sol com minúsculas e saborosas cabeças de espadilha a espreitar pela massa estaladiça. E há pratos excelentes de legumes da Primavera que raramente são servidos na corte, e eu estou satisfeita por os ter no meu 173

prato esta estação. Agora vou passar a comer comidas mais leves, e qualquer coisa que aprecie em particular ser-me-á levada, mais tarde, para um jantar privado aos meus aposentos. Nunca na minha vida me foram servidos alimentos tão bons nem tão ricos. A minha criada de Clèves teve de apertar menos o peitilho do meu vestido e houve muitos comentários maliciosos acerca de eu ter engordado e de estar radiante, como se para sugerir que é um bebé que me está a fazer engordar. Não posso contradizê-las sem me expor, e ao meu marido, o rei, a comentários bem piores, por isso, tive de sorrir e ouvi-las contar piadas, como se eu fosse uma mulher casada, que dorme com o marido e que espera engravidar; e não uma virgem que não foi tocada pelo marido.

A pequena Catarina Howard entrou e disse que eram todas ridículas, que fora a manteiga inglesa de qualidade que me fizera ganhar algum peso e que elas eram cegas se não viam como me ficava bem. Eu fiquei-lhe tão grata. Ela é tontinha e frívola, mas tem a esperteza de uma rapariga estúpida, uma vez que, como qualquer rapariga estúpida, só pensa numa coisa, e assim tornou-se uma grande especialista no assunto. E qual é a única coisa em que ela pensa? Todo o tempo, todos os momentos de todos os dias, Catarina Howard só pensa em

Catarina Howard. Se conseguirmos captar a atenção dela por alguns momentos, ela consegue ser uma boa conselheira, com a experiência que tem, mas não é capaz de pensar em nada que saia fora dessa minúscula esfera. Na verdade, é uma tontinha, mas uma tonta amorosa e bonita, e é, de longe, mais esperta do que algumas mulheres que pensam que sabem um pouco de tudo.

Abdicamos de outros prazeres durante o período da Quaresma. Não há entretenimentos alegres na corte, ainda que haja leituras de textos sagrados, a seguir ao jantar, e cantos de salmos. Não há mascaradas, pantominas, nem justas, como é evidente. Sinto-me bastante aliviada por isso, porque o melhor de tudo é que não há hipótese de o rei entrar disfarçado. A recordação do nosso primeiro encontro desastroso perdura em mim, e eu receio que também perdure nele. Não foi o facto de não o ter reconhecido que foi ofensivo; foi o facto óbvio de, à primeira vista, o ter achado absolutamente repelente. Nunca mais, desde esse dia, por palavras, actos, ou até olhares, eu lhe dei a entender que o considero tão desagradável: gordo, muito velho, e o fedor que emana dá-me voltas ao estômago. Mas, por muito que eu sustenha a respiração e sorria, é demasiado tarde para reparar a situação. O meu rosto, quando ele me tentou beijar, disselhe tudo naquele momento. A forma como o rechacei, como 174

cuspi o sabor dele da minha boca! Continuo a vergar a cabeça e a corar do terrível embaraço! Tudo isto lhe deixou uma impressão que nenhumas boas maneiras posteriores poderão apagar. Ele viu a verdade da minha opinião acerca dele num vislumbre fugaz, e - o que é pior - viu-se a si próprio, através dos meus olhos: gordo, velho, nojento. Por vezes, temo que a sua vaidade nunca recupere deste golpe. E, uma vez que a sua vaidade foi afectada, penso que a potência desapareceu com ela. Tenho a certeza de que a sua virilidade foi destruída quando eu cuspi para o chão, e não há nada que eu possa fazer para reverter a situação.

E essa é uma das outras coisas de que desistimos durante a Quaresma. Graças a Deus. Desejarei ansiosamente a chegada deste período todos os anos. Por vários dias abençoados de jejum e quarenta noites maravilhosas, todos os anos da minha vida de casada, haverá quarenta noites em que o rei não virá ao meu quarto, em que eu não sorrirei quando ele entra, e em que não me tentarei compor de forma a que seja fácil para ele elevar o seu volume gigantesco acima de mim, e em que não vou tentar demonstrar a minha vontade, mas não luxúria,

numa cama que tresanda à ferida putrefacta da sua perna, meio às escuras, com um homem que não é capaz de desempenhar a sua tarefa.

O fardo deste tormento insultuoso, noite após noite, deixa-me totalmente derrotada, está a pôr-me de rastos. Acordo todas as manhãs desesperada; sinto-me humilhada, apesar de o falhanço ser todo dele. Fico deitada acordada durante a noite e ouço-o libertar gases intestinais e gemer com dores no seu ventre inchado e desejo estar longe, praticamente em qualquer parte que não seja naquela cama. Ficarei tão contente por ser poupada, durante estes quarenta dias, da tortura terrível das suas tentativas e falhanços, de ficar acordada e de saber que na noite seguinte ele tentará de novo, mas que continuará a não conseguir, e que cada vez que falha me culpa um pouco mais e gosta de mim ainda menos.

Pelo menos, podemos ter este período em que nos é concedido um pouco de paz. Não tenho de me preocupar com o modo de o poder ajudar. Ele não tem de se esforçar em cima de mim como um enorme javali agitado. Não terá de vir ao meu quarto, posso dormir em lençóis que cheiram a lavanda e não a pus.

Mas eu sei que este período chegará ao fim. A Páscoa virá com as suas celebrações; a minha coroação, que estava planeada para Fevereiro e que foi adiada para a nossa grande entrada em Londres, terá agora lugar em Maio. Devo encarar este tempo como um descanso bem-vindo da presença do meu marido, mas tenho de o usar

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para me certificar de que, quando ele voltar aos meus aposentos, conseguiremos dar-nos melhor. Tenho de encontrar uma forma de o ajudar a vir para a minha cama, e de o ajudar a consumar o acto.

Thomas Cromwell deve ser o homem que me pode ajudar. Os conselhos de Catarina Howard são o que poderia esperar dela: as competências de sedução de uma menina malcomportada. Nem me atrevo a imaginar como se deve ter comportado antes de entrar ao meu serviço. Quando eu própria estiver um pouco mais calma, terei de falar com ela. Uma rapariga - uma criança - como ela, não devia saber como deixar escorregar uma camisa de noite e sorrir por cima de um ombro nu. Deve ter sido muito mal-educada e muito mal aconselhada. As damas da minha corte têm de estar acima de qualquer crítica, tal como eu. Terei de lhe dizer que, sejam quais forem os truques de sedução que conheça, tem de deixar

de os usar. E não mos pode ensinar. Não posso ter uma sombra de suspeição sobre o meu comportamento. Uma rainha morreu neste país por muito menos.

Espero que o jantar termine, que o rei saia do seu lugar e que passeie por entre as mesas, cumprimentando homens e mulheres enquanto passa. Esta noite, está afável, a perna deve doer-lhe menos. Com frequência, é difícil adivinhar o que o ataca, porque ele fica de mau-humor por motivos tão diferentes, e se eu perguntar pelo motivo errado, isso também o pode ofender.

Quando o vejo afastar-se, olho para o fundo do corredor e fixo os olhos em Thomas Cromwell. Chamo-o com o dedo e ele vem ter comigo, levanto-me, aceito o seu braço e permito que me leve para fora da mesa de jantar, para junto de uma janela que dá para o rio, como se estivéssemos a admirar a vista e a noite gélida com uma dúzia de estrelas cintilantes.

- Preciso de ajuda, Senhor Secretário - digo.

- Tudo - diz ele. Está a sorrir, mas o seu rosto está tenso.

- Não consigo satisfazer o rei - digo nas palavras que ensaiei. - Ajudai-me.

De imediato, ele fica com um ar bastante enjoado e pouco à vontade. Olha em seu redor como se fosse gritar para pedir ajuda para si próprio. Tenho vergonha de estar a falar deste modo com um homem, mas preciso de obter bons conselhos em algum lado. Não posso confiar nas minhas damas de companhia, e falar com os meus conselheiros de Clèves, até mesmo com Lotte, seria alertar a minha mãe e o meu irmão, de quem eles são criados. Mas este não é um verdadeiro casamento, este não é um casamento em actos, assim como em palavras. E se não é um casamento, então, falhei no 176

meu dever para com o rei, para com o povo da Inglaterra e para comigo mesma.

Tenho de fazer deste casamento um casamento autêntico. Tenho de o fazer. E se este homem me puder dizer o que está errado, então tem de o fazer.

- Isso são... assuntos privados - diz ele, com a mão a cobrir parte da boca, como se a impedir as palavras de saírem. Está a puxar o lábio.

- Não. Isto tem que ver com o rei - digo eu. - Com a Inglaterra. Dever, não é

privado.

- Devíeis ser aconselhada pelas vossas mulheres, pela vossa governanta das criadas.

- Vós haveis feito o casamento - digo, procurando as palavras. - Ajudai-me a torná-lo verdadeiro.

- Eu não sou responsável...

- Sede meu amigo.

Ele olha em volta como se quisesse fugir, mas eu não o vou libertar.

- Ainda estamos no princípio.

Eu abano a cabeça.

- Cinquenta e dois dias - quem contou os dias com mais cuidado do que eu?

- Ele explicou porque não lhe agradais? - pergunta ele subitamente. O inglês é demasiado rápido para mim, e eu não compreendo as palavras.

- Explicar?

Cromwell faz um pequeno ruído de irritação pela minha estupidez e olha em volta, como se fosse chamar um dos meus compatriotas para traduzir. Depois, hesita ao lembrar-se de que isto tem de ser um segredo absoluto.

- Que se passa convosco? - diz ele muito simplesmente e muito baixinho, com a boca encostada ao meu ouvido.

Eu percebo que estou com uma expressão perplexa, e volto-me rapidamente para a janela, antes que a corte consiga perceber o meu choque e perturbação.

- Sou eu? - pergunto. - Ele diz que sou eu?

Os olhos escuros dele estão angustiados. Ele não é capaz de responder por vergonha; e é assim que eu fico a saber. Não é uma questão de o rei estar velho, cansado ou doente. A questão é que ele não gosta de mim, que não me deseja, talvez até eu o repugne. E eu adivinho, pela careta crítica e preocupada dele, que

o rei já falou da sua repulsa com este homenzinho desagradável.

- Ele disse-vos que me odiava? - sai disparado da minha boca.

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A sua cara agonizante diz-me que “sim”, o rei disse a este homem que não se consegue obrigar a ser meu amante. Talvez o rei tenha dito a outras pessoas, talvez a todos os seus amigos. Talvez todo este tempo a corte se tenha estado a rir atrás das suas mãos pálidas da rapariga feia de Clèves que veio casar-se com o rei e que ele considera repelente.

A humilhação desta notícia faz-me estremecer e voltar as costas a Cromwell, e não vejo a sua vénia e a sua retirada apressada, enquanto ele se precipita para se afastar de mim, da mesma forma que se evitaria uma pessoa com um azar contagioso.

Passo o resto da noite aturdida de tristeza, não consigo transformar a minha vergonha em palavras. Se não tivesse recebido ensinamentos tão rígidos na corte do meu irmão, em Clèves, teria fugido para o meu quarto e chorado até adormecer. Mas aprendi, há muito tempo, a ser teimosa, há muito que aprendi a ser forte, já enfrentei antes a aversão perigosa de um governante poderoso e sobrevivi.

Consigo controlar-me com firmeza. Não me deixo abater, nem deixo o meu sorriso agradável desvanecer-se do meu rosto. Quando são horas de as minhas damas se retirarem, faço uma vénia ao rei, o meu marido, sem deixar transparecer, por um único momento, a angústia por ele me achar tão repugnante que nem sequer é capaz de me fazer o que os homens conseguem fazer aos animais do campo.

- Boa noite, Vossa Graça - digo.

- Boa noite, querida - diz ele com uma ternura tão espontânea que, por instantes, quero agarrar-me a ele, como o meu único amigo nesta corte, e falar-lhe do meu medo e infelicidade. Mas ele já está a olhar para além de mim, para longe de mim. O seu olhar repousa indolentemente nas minhas damas e Catarina Howard dá um passo em frente e faz-lhe uma vénia, depois, eu saio à frente

delas.

Não digo nada enquanto me retiram lentamente o colar de ouro, os braceletes, os anéis, o toucado, as mangas, o peitilho, as duas saias, o enchimento, os saiotes e a combinação. Não digo nada, quando me enfiam a camisa de noite pela cabeça, eu me sento diante do espelho e me escovam o cabelo, fazem duas tranças e prendem a touca de dormir com ganchos na minha cabeça. Não digo nada, quando Lady Rochford se detém e me pergunta gentilmente se preciso de alguma coisa, se há algo que possa fazer por mim, se estou tranquila, esta noite.

O meu padre entra, eu e as damas ajoelhamo-nos em conjunto para dizermos as orações antes de nos deitarmos, e os meus

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pensanentos agitam-se ao ritmo das palavras que me são familiares, e não consigo deixar de me lembrar que causo repugnância ao meu marido, e que isso acontece desde o primeiro dia em que nos vimos.

E depois recordo-me novamente. Daquele primeiro momento em Rochester, quando ele entrou, todo pomposo, na sua vaidade, e com um ar tão vulgar, excepcional apenas no facto de ter subido os degraus para se aproximar de mim, como um mercador embriagado poderia ter feito. Mas aquele não era um velho bêbedo de uma cidade rural, aquele era o rei da Inglaterra, a fazer de conta que era um cavaleiro errante e eu humilhei-o diante da corte inteira, e penso que ele nunca me irá perdoar.

A sua repugnância por mim nasceu nesse momento, juro-o. A única forma que ele tem de suportar essa memória é dizer, como uma criança magoada:

- Bem, eu também não gosto dela.

Ele lembra-se de eu o ter rechaçado e de me ter recusado a beijá-lo e agora repele-me e recusa-se a beijar-me. Encontrou uma forma de restabelecer o equilíbrio, afirmando que eu é que não sou desejável. O rei da Inglaterra, especialmente este rei, não pode ser visto como indesejável, sobretudo para si próprio.

O padre termina as orações e eu ponho-me de pé, enquanto as damas saem em grupo do quarto, de cabeças baixas, tão doces como pequenos anjos, com as suas

toucas de dormir. Deixo-as sair. Não peço a ninguém que fique comigo, apesar de saber que não vou conseguir dormir esta noite. Tornei-me objecto de repugnância, tal como era em Clèves. Tornei-me um objecto de repulsa para o meu próprio marido e não consigo ver como iremos reconciliar-nos e fazer um filho, quando ele não suporta tocar-me. Tornei-me um objecto de aversão para o rei da Inglaterra e ele é um homem de poder absoluto e nenhuma paciência.

Não estou a chorar pelo insulto à minha beleza, porque agora tenho uma preocupação bastante maior. Se sou um objecto de aversão para o rei da Inglaterra e ele é um homem de poder absoluto e nenhuma paciência, o que me pode acontecer? Este é um homem que matou uma mulher que amava, com uma crueldade estudada, a segunda que adorou, mandou-a executar com uma espada francesa; e a terceira, que lhe tinha dado um filho, deixou morrer por falta de cuidados. O que me pode fazer a mim?

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Jane Bolena, Hampton Court, Março de 1540

Que ela não está feliz, é uma certeza, mas ela é uma jovem discreta, bastante inteligente para a idade, e não se deixa levar a fazer confidências. Tenho sido o mais gentil e simpática que posso, mas não quero que ela sinta que estou a sondá-la para meu próprio interesse; e não quero que se sinta pior do que já se deve sentir. De certeza que se deve sentir muito desamparada e estranha, num país onde começa apenas a aprender a língua e onde o marido demonstra um alívio tão notório quando pode evitá-la, e dedica uma atenção tão ostensiva a outra rapariga.

Depois, de manhã, a seguir à missa, vem ter comigo enquanto as raparigas se arranjam antes do pequeno-almoço.

- Lady Rochford, quando é que as princesas virão para a corte?

Eu hesito.

- A Princesa Maria - relembro-lhe. - Mas Isabel é apenas Lady Isabel.

Ela solta uma interjeição.

- Sim. Exacto. A Princesa Maria e Lady Isabel.

- Normalmente vêm à corte na Páscoa - digo num tom prestável. - E nessa altura poderão ver o irmão e cumprimentar-vos. Ficámos surpreendidas por elas não vos terem saudado na vossa entrada em Londres - interrompo-me. Estou a falar demasiado depressa para ela. Consigo vê-la franzir as sobrancelhas enquanto se esforça por seguir o que digo. - Peço desculpa - digo eu mais pausadamente. - As princesas devem vir à corte para vos conhecerem. Devem cumprimentar a madrasta. Deviam ter-vos saudado em Londres. Normalmente vêm à corte pela Páscoa.

Ela assente.

- Então, posso convidá-las?

Eu hesito. Claro que pode; mas o rei não irá gostar de ela se arrogar o poder desta maneira. No entanto, o meu senhor, o Duque não terá qualquer objecção a que haja problemas entre os dois, e não me cabe a mim avisá-la.

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- Podeis convidá-las - digo eu.

Ela acena com a cabeça para mim.

- Por favor, escrevei.

Eu dirijo-me à mesa e puxo a minúscula caixa de escrita para mim. As penas já estão afiadas, a tinta no pequeno tinteiro, a areia na peneira para espalhar a tinta húmida, e existe uma barra de lacre. Adoro o luxo da corte, adoro pegar na pena e numa folha de papel e aguardar as instruções da rainha.

- Escrevei à Princesa Maria que eu ficarei muito contente de a ver na corte pela Páscoa e que será recebida como convidada nos meus aposentos - diz ela. -

É assim que se deve dizer?

- Sim - digo eu, escrevendo rapidamente.

- E escrevei à governanta de Lady Isabel e dizei que terei todo o prazer em recebê-la, a ela também, na corte.

O meu coração bate um pouco mais depressa, como acontece nas lutas de ursos com cães. Ela irá ter problemas, se enviar estas cartas. Elas são um desafio total ao poder absoluto que é Henrique. Ninguém faz convites nesta casa para além dele próprio.

- Podeis enviá-los por mim? - pede ela.

Eu fico praticamente sem fôlego.

- Posso - digo. - Se o desejardes.

Ela estende a mão.

- Dai-mas - diz ela. - Vou mostrá-las ao rei.

- Oh.

Ela volta-se para disfarçar um pequeno sorriso.

- Lady Rochford, nunca faria nada contra a vontade do rei.

- Tendes o direito de terdes as damas que quiserdes na vossa corte - relembro-lhe. - É vosso direito, enquanto rainha. A Rainha Catarina insistiu sempre em ser ela a escolher as damas para os seus aposentos. Ana Bolena também.

- Elas são filhas dele - diz ela. - Por isso, antes de as convidar, vou perguntar-lhe.

Eu faço uma vénia, ela deixa-me sem palavras.

- Desejais mais alguma coisa? - pergunto-lhe.

- Podeis ir - diz ela amavelmente, e eu saio do quarto. Tenho plena consciência de que ela me enganou, levando-me a dar-lhe conselhos errados, e que o sabia o tempo todo. Tenho de me lembrar de que ela é bastante mais astuta do que alguma de nós alguma vez imaginou.

Um pajem vestido com a libré dos Norfolk está parado do lado de fora dos aposentos da rainha. Entrega-me um bilhete dobrado e eu dirijo-me para um dos vãos das janelas. Lá fora, o jardim.

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balamceia-se sob o peso dos lírios amarelos da Quaresma, narcisos e, num castanheiro que está coberto de lenhosos rebentos cada vez maiores, há um melro a cantar. Por fim, a Primavera está a chegar, a primeira Primavera da Rainha na Inglaterra. Os dias de Verão, de piqueniques, justas, caçadas, viagens de lazer, passeios de barco no rio e a deslocação de Verão irão começar de novo.

Talvez o rei aprenda a tolerá-la, talvez ela encontre uma forma de lhe agradar. Eu verei tudo. Estarei nos aposentos dela, onde é o meu lugar. Recosto-me nos caixotões polidos para ler o meu bilhete. Não está assinado, como todos os bilhetes do Duque.

O rei ficará com a rainha apenas até ao momento em que a França se debater com a Espanha. Está acordado. O tempo dela junto de nós pode ser medido em dias. Observai-a. Recolhei provas contra ela. Destruí este bilhete.

Olho em volta, à procura do rapaz. Está encostado a uma parede e a lançar despreocupadamente uma moeda ao ar, apanhando-a com a face voltada para cima e depois com a coroa. Chamo-o para junto de mim.

- Dizei ao vosso senhor que ela quer as princesas na corte - digo baixinho ao ouvido dele. - É tudo.

182

Catarina, Hampton Court, Março de 1540

O rei está muito zangado esta noite, ao jantar, posso dizê-lo pela forma como conduz a rainha para o interior do salão e nem sequer olha para mim pelo canto do olho, como faz normalmente. Tenho pena, porque trago um vestido novo (mais um!) num amarelo-creme, e é apanhado sob o peito para que os meus seios sejam salientados da forma mais arrebatadora e descarada. Mas é uma perda de tempo e de esforço, tentar agradar a um homem. Quando estamos no nosso melhor, a mente dele está em qualquer outra parte, ou quando concorda encontrar-se connosco, tem de se ir embora para um lugar qualquer, sem sequer dar uma desculpa decente. Esta noite, o rei está tão irritado com a rainha que praticamente não olha para mim e eu desperdicei o meu vestido novo para nada.

Por outro lado, está um jovem bastante delicioso sentado à mesa dos Seymour, que está claramente a apreciar o vestido e respectivos conteúdos; mas eu já não tenho tempo para jovens, uma vez que jurei dedicar-me a uma vida de

abnegação, a partir desta Quaresma. Vejo Tom Culpepper tentar captar o meu olhar, mas nem sequer olho para ele. Não lhe perdoarei facilmente por ter prometido encontrar-se comigo e depois não aparecer. Provavelmente, viverei e morrerei como uma solteirona e a culpa será dele.

Porque é que o rei está zangado, e o que é que ela fez, não saberei até ao final do jantar, quando me dirijo até à mesa superior para lhe levar um lenço que ela bordara para oferecer ao rei. É uma nova moda e muito elegante. Não há dúvida de que ela sabe costurar. Se um homem avaliasse a mulher pelas suas capacidades na costura, ela seria a favorita dele. Mas ela nem sequer lho chega a oferecer, porque quando eu chego junto dela, ele vira-se repentinamente para ela e diz:

- Iremos ter uma corte alegre na Páscoa.

Mais valia ela ter dito, “sim”, e deixar o assunto por aí. Mas ela responde: 183


- Fico satisfeita. Gostava que Lady Isabel e a Princesa Maria viessem para a corte.

Ele fica com um ar furioso, e eu vejo as mãos dela entrelaçarem-se na mesa à sua frente.

- Lady Isabel, não - diz ele rudemente. - Não devíeis desejar a companhia dela, nem ela a vossa.

Ele está a falar demasiado depressa para ela e eu vejo-a franzir a testa, perplexa, mas compreende o suficiente para perceber que ele está a dizer que não.

- A Princesa Maria - diz ela em voz baixa. - Ela é minha enteada.

Eu quase não consigo respirar, estou tão espantada por ela se atrever a responder. Imaginem tê-lo a vociferar com ela daquela maneira e ela a manter a sua posição!

- Não posso imaginar porque quereríeis chamar uma papista daquelas para a corte - diz ele gelidamente. - Ela não é defensora da vossa fé.

- Eu madrasta dela sou - diz ela simplesmente. - Eu oriento-a.

Ele solta uma gargalhada aguda e ruidosa e eu tenho medo dele, mesmo que ela não tenha.

- Ela é praticamente da vossa idade - diz ele indelicadamente. - Não me parece que ela procure alguns cuidados maternais de alguém como vós. Ela nasceu de uma das maiores princesas da Cristandade, e quando eu as separei, elas desafiaram-me, em vez de se juntarem por amor. Credes que precisará de uma rapariga da mesma idade para tomar conta dela? Quando ela e a mãe preferiram deixar a morte separá-las, a negarem a sua fé? Julgais que ela agora quererá uma mãe que nem sequer sabe falar inglês? Ela pode falar convosco em latim, grego, espanhol, francês ou inglês, mas não em alemão. E vós, o que tendes? Oh, sim, apenas o alto germânico.

Sei que deveria ter dito alguma coisa para dissipar o seu mau humor, mas ele está tão cheio de rancor e tão agressivo que me assusta. Não sou capaz de dizer nada. Fico ali como uma tonta e pergunto-me onde é que ela vai buscar as forças para não desmaiar ali na cadeira.

O rosto dela está escarlate de embaraço, da gola do vestido até ao pesado toucado, consigo ver o rubor sob a sua camisa de musselina, sob o colar de ouro e a gargantilha. É aflitivo ver o pouco à-vontade dela diante da raiva dele e eu fico à espera de a ver desfazer-se em lágrimas e sair a correr da sala. Mas ela não o faz.

- Eu aprendo inglês - diz ela com uma dignidade tranquila. - Sempre. E eu a madrasta dela sou.

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O rei levanta-se da mesa tão depressa que a sua pesada cadeira dourada arranha o chão e quase cai para trás. Ele tem de se segurar na mesa. O seu rosto está vermelho e uma veia lateja-lhe nas têmporas. Estou quase morta de pavor só de olhar para ele, mas ela continua sentada, com as mãos unidas na mesa, à sua

frente. Ela é como um pequeno bloco de madeira, rígida de medo, mas sem se mover, sem desmoronar. Ele olha intensamente para ela, para a assustar, de modo a que se mantenha calada; mas ela fala.

- Cumprirei o meu dever. Para com os nossos filhos, e para convosco. Perdoai-me, se vos ofendo.

- Convidai-a - vocifera-lhe ele e afasta-se, batendo com os pés, desde a mesa superior até à porta atrás do trono que conduz aos seus aposentos privados. É

raro ele utilizar esta porta, por isso, não está lá ninguém para lha abrir e tem de ser ele próprio a fazê-lo, e depois desaparece, e todos ficamos estupefactos.

Ela olha para mim e eu vejo que a sua quietude não é de calma, está paralisada de terror. Agora ele saiu e a corte levanta-se apressadamente para fazer uma vénia à porta fechada com estrondo, e ficamos sozinhos.

- A rainha tem direito a convidar as damas para os seus aposentos - diz ela insegura.

- Ganhastes - digo eu, sem acreditar.

- Eu cumprirei o meu dever - repete ela.

- Ganhastes - repito, incrédula. - Ele disse: “Convidai-a”.

- É o que está certo - diz ela. - Eu cumpro o meu dever, pela Inglaterra.

Cumprirei o meu dever para com ele.

185

Ana, Hampton Court, Março de 1540

Estou à espera, nos meus aposentos em Hampton Court, do meu novo embaixador que chegou tarde, ontem à noite e que me vem ver esta manhã.

Pensei que o rei quereria falar com ele antes de mim, mas ainda não há planos para uma saudação real.

- Está correcto? - pergunto a Lady Rochford.

Ela parece não ter a certeza.

- Normalmente, os embaixadores são alvo de uma recepção especial para os apresentar à corte e a todo o Conselho do rei - diz ela. Abre as mãos como se para dizer que não sabe porque é que o embaixador de Clèves vai ser tratado de modo diferente. - Estamos na Quaresma - sugere ela. - Ele não devia ter vindo na Quaresma, mas sim na Páscoa.

Viro-me para a janela para que ela não possa ver a irritação na minha face. Ele devia ter viajado comigo, e ter vindo para a Inglaterra quando eu vim. Assim, eu teria um representante junto do rei, desde que pus um pé na Inglaterra, e que me teria acompanhado. Os condes Overstein e Olisleger foram as minhas escoltas, mas sabia que me deixariam e que voltariam para casa, e não tinham experiência em cortes estrangeiras. Eu devia ter tido um embaixador ao meu lado desde o primeiro dia. Se ele estivesse comigo em Rochester, quando insultei o rei no nosso primeiro encontro... Mas lamentar não serve de nada. Talvez agora que ele cá está, possa encontrar um modo de me ajudar.

Batem à porta e os dois guardas abrem-na.

- Herr Doktor Cari Harst - anuncia o guarda, esforçando-se para pronunciar o título, e o embaixador de Clèves entra na sala, olha em volta, à minha procura, e dobra-se numa vénia. Todas as damas da corte fazem uma reverência ao mesmo tempo que o observam de cima a baixo e reparam, numa brisa de sussurros críticos, no ar coçado do colarinho do seu casaco de veludo e nos tacões gastos das suas botas. Até a pena no seu chapéu aparenta ter sofrido uma viagem difícil desde Clèves. Sinto-me corar de vergonha

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por este homem ir representar o meu país perante a mais frívola e rica corte da Cristandade. Irá ser alvo de troças, e eu também.

- Herr Doktor - digo e estendo a mão para que ele a beije.

Posso ver que ele fica surpreendido com o meu vestido elegante, o meu toucado inglês impecavelmente assente sobre o meu cabelo, os ricos anéis nos meus dedos e as correntes de ouro na minha cintura. Ele beija-me a mão e diz em alemão:

- Tenho toda a honra em apresentar-me a vós, Vossa Graça. Sou o vosso embaixador.

Valha-me Deus, ele mais parece um pobre secretário. Assinto.

- Haveis quebrado o jejum? - pergunto.

Ele faz uma expressão um pouco embaraçada.

-Eu... hum...hum... não propriamente...

- Não haveis comido?

- Não consegui encontrar o salão, Vossa Graça. Lamento. O palácio é muito grande e os meus aposentos são afastados do edifício principal, e não havia ninguém...

Instalaram-no algures a meio caminho dos estábulos.

- Não haveis perguntado a ninguém? Há milhares de criados!

- Eu não falo inglês.

Fico verdadeiramente chocada.

- Não falais inglês? Como ireis conduzir os interesses do nosso país? Ninguém aqui fala alemão.

- O vosso irmão, o Duque pensou que os conselheiros e o rei falassem alemão?

- Ela sabe muito bem que não.

- E pensou que eu aprenderia inglês. Eu já sei falar latim - diz ele na defensiva.

Eu quase podia chorar, estou tão desapontada.

- Tendes de tomar o pequeno-almoço - digo, tentando recompor-me. Volto-me para Catarina Howard que, como de costume, se deixou ficar ao meu lado tentado ouvir a conversa. Até aqui, pode ouvir a nossa conversa à vontade. Se sabe o suficiente de alemão para espiar, então, pode traduzir para este embaixador inútil. - Menina Howard, podeis pedir a uma das criadas que traga pão e queijo para o embaixador? Ele ainda não quebrou o jejum, e um pouco de

cerveja fraca.

Quando ela sai, viro-me para ele.

- Trazeis algumas cartas para mim, de casa?

- Sim - diz ele. - Trago instruções do vosso irmão, a vossa mãe manda-vos o seu amor maternal e espera que honreis a vossa casa e que não vos tenhais esquecido da sua disciplina amorosa.

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Eu assinto. Preferiria que ela me tivesse enviado um embaixador competente que também pudesse honrar a minha casa, em vez desta bênção pouco amigável, mas recebo o maço de cartas que ele me estende, ele senta-se para tomar o pequeno-almoço numa das extremidades da mesa e eu leio as minhas cartas na outra.

Primeiro leio a carta de Amélia. Ela começa por uma lista de cumprimentos que lhe foram prestados e por dizer como está feliz com a sua nova corte em Clèves. Agrada-lhe que os nossos aposentos sejam só dela. Conta-me dos seus vestidos novos, dos que eram meus, mas que foram adaptados para que ela os usasse. Irão fazer parte do seu enxoval, porque se vai casar. Solto um pequeno suspiro ao ler esta parte e Lady Rochford diz gentilmente:

- Espero que não sejam más notícias, Vossa Graça?

- A minha irmã vai casar-se.

- Oh, que bom. Um bom casamento?

Não é nada, comparado com a minha boa fortuna, é claro. Eu devia estar a rir-me da escala reduzida do triunfo de Amélia. Mas tenho de fechar os olhos para refrear as lágrimas antes de poder responder:

- Vai casar-se com o irmão do meu cunhado. A minha irmã mais velha, Sybilla, já é casada com o Duque da Saxónia, e ela vai para a corte deles, para casar-se com o irmão mais novo dele - e assim vão tornar-se uma pequena

família feliz e vivendo muito próximos, penso amargamente. Então, estão todos juntos: mãe, irmão, duas irmãs e os respectivos maridos, e só eu fui mandada para longe, à espera de cartas que não me trazem qualquer alegria, mas que, pelo contrário, intensificam a minha sensação de exclusão e da aspereza que o meu irmão me dedicou toda a vida.

- Então, não é um casamento como o vosso.

- Não há outro casamento como o meu - digo. - Mas ela irá gostar de viver com a minha irmã, e o meu irmão gosta de ter os outros por perto.

- Para ela não haverá zibelinas - observa Catarina Howard, e faz-me sorrir da sua ambição vergonhosamente desmedida.

- Não, e é evidente que isso é o principal - sorrio-lhe. - Nada é mais importante do que as zibelinas.

Pouso a carta de Amélia, não consigo obrigar-me a ler as suas previsões confiantes dos Natais em família, das reuniões para as caçadas, no Verão, da celebração dos aniversários e da educação dos filhos, os primos da Saxónia todos juntos no mesmo infantário feliz.

Em alternativa, abro a carta da minha mãe. Se estivesse à espera de encontrar algum conforto ficaria desiludida. Ela falou com o 188

Conde Olisleger e está muito ansiosa. Ele disselhe que eu tenho andado a dançar com homens que não o meu marido, que usei um vestido sem gola de musselina até às orelhas. Soube que deixei de usar os vestidos de Clèves e que uso o toucado inglês. Relembra-me que o rei se casou comigo porque queria uma noiva protestante, com um comportamento impecável e que é um homem de temperamento ciumento e difícil. Perguntou-me se quero entrar a dançar no Inferno, e recordou-me que não existe pecado maior do que a luxúria numa mulher jovem.

Pouso a carta e dirijo-me à janela para olhar para o belo jardim de Hampton Court, as áleas ornadas perto do palácio e os caminhos, que descem até ao rio, com o cais e as barcaças reais a oscilarem nas suas amarrações. Há cortesãos a passear com o rei no jardim, vestidos tão luxuosamente como se fossem

participar num torneio. O rei, a cabeça mais alta do seu séquito, e encorpado como um touro, traz uma capa de tecido de ouro e uma boina de veludo que cintila, mesmo à distância, com diamantes. Inclina-se sobre o ombro de Thomas Culpepper, que está vestido com uma capa do verde-escuro mais glorioso e presa ao ombro com um alfinete de peito com um diamante que brilha, mesmo ao longe. Clèves, com o seu uniforme de fustão e pano fino, parece estar muito longe. Nunca serei capaz de explicar à minha mãe que não me pavoneio com roupas inglesas por vaidade, mas apenas para não parecer mais desprezível e repelente do que já sou. Se o rei me repudiar, sabe Deus que não será pela maneira como me visto. Será porque lhe causo aversão, e é o que parece acontecer, quer eu use o toucado como a minha avó, quer o faça como a pequena e bonita Catarina Howard. Não há nada que eu possa fazer para agradar ao rei; mas a minha mãe podia poupar-se ao trabalho de me advertir de que a minha vida depende de lhe agradar. Eu já o sei. E não é possível. De qualquer forma, eu não consigo fazê-lo.

O embaixador acabou de comer. Eu volto à mesa e digo-lhe que pode permanecer sentado enquanto leio a minha última carta, a do meu irmão.

Irmã, começa ele. Fiquei seriamente preocupado com os relatos dos condes Overstein e Olisleger relativamente à forma como fostes recebida e ao comportamento da corte do vosso novo marido, o Rei Henrique da Inglaterra. A vossa mãe tratará das questões de vestuário e decoro, eu posso apenas suplicar-vos que lhe deis ouvidos e que não vos permitais deixar-vos levar por comportamentos que só podem ser embaraçosos para nós, e que vos envergonham. A vossa

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tendência para a vaidade e mau comportamento são conhecidos de todos nós; mas esperávamos que permanecesse um segredo de família. Suplicamo-vos que vos corrijais, sobretudo agora que tendes os olhos do mundo postos em vós.

Salto as duas páginas seguintes, que não passam de uma lista das vezes em que o desapontei no passado e de avisos de que um passo em falso na corte inglesa poderia acarretar as mais graves consequências. Quem poderia sabê-lo melhor do que eu?

Depois, continuo a ler.

Esta carta serve para apresentar o embaixador que irã representar o nosso país perante o Rei Hemique e o seu conselho. Deveis prestar-lhe toda a assistência.

Espero que trabalheis em conjunto com ele para aumentar as nossas esperanças nesta aliança que até agora nos tem desiludido. Na verdade, o Rei da Inglaterra parece pensar que fez de Clèves um vassalo e agora aguarda a nossa aliança contra o Imperador, com quem não temos qualquer problema e com quem não é provável que estabeleçamos uma aliança, seja para fazer o obséquio ao vosso marido, seja a vós.

Soube que um oficial inglês, o Duque de Norfolk, realizou uma visita à corte francesa e não tenho quaisquer dúvidas de que a Inglaterra se está a aproximar da França. Foi exactamente para impedir este tipo de situações que fostes enviada para a Inglaterra, fã estais a desapontar o vosso país, Clèves, a vossa mãe, e a mim. O embaixador deverá aconselhar-vos sobre qual a melhor forma de cumprirdes o vosso dever e a não o esquecerdes nos prazeres da carne.

Forneci-lhe transporte até à Inglaterra e um criado para o servir.; mas tendes de lhe pagar directamente. Pressuponho, do que ouço sobre as vossas jóias, roupas novas e outras extravagâncias ímpias, incluindo, disseram-me, zibelinas valiosas, que podeis muito bem suportá-lo. Seguramente, faríeis melhor em gastar a vossa fortuna recente no futuro do vosso país do que em artigos de vaidade pessoal e adorno, que só podem atrair o desprezo. Só porque haveis ascendido a uma posição elevada, isso não significa que possais negligenciar a vossa consciência como haveis feito no passado. Peço-vos encarecidamente que corrijais o vosso comportamento, Irmã. Como chefe da vossa casa, aconselho-vos a abjurar a vaidade e a luxúria.

Confiando que esta carta vos vá encontrar de boa saúde no momento em que a escrevo, espero certamente que vos vá encontrar 190

de boa saúde espiritual, Irmã. A luxúria não é uma substituta válida de uma boa consciência, como descobrireis, se fordes poupada e chegardes a envelhecer. É o que vos deseja o vosso irmão William Pouso a carta e olho para o embaixador.

- Dizei-me, pelo menos, que já haveis realizado este trabalho antes, que já

haveis sido embaixador noutra corte.

O meu medo é que ele seja um qualquer pregador luterano que o meu irmão decidiu empregar.

- Servi o vosso pai na corte de Toledo e de Madrid - responde o Dr. Harst com alguma dignidade. - Mas nunca às minhas próprias custas.

- A situação financeira do meu irmão está um pouco complicada - digo. - Pelo menos aqui, podeis viver de graça na corte.

Ele assente.

- Ele informou-me de que vós me pagaríeis o salário.

Eu abano a cabeça.

- Eu, não. O rei dá-me a minha corte, as minhas damas de companhia e as minhas roupas, mas até agora, não me deu qualquer dinheiro. Essa pode ser uma das questões que podeis colocar-lhe.

- Mas como Rainha da Inglaterra coroada...

- Sou casada com o rei, mas não sou rainha coroada - digo. - Em vez da minha coroação, em Fevereiro, recebi uma saudação formal em Londres, e agora espero ser coroada depois da Páscoa. Ainda não me foram pagos os meus rendimentos de rainha. Não tenho dinheiro.

Ele fica com um ar ligeiramente ansioso.

- Presumo que não haja dificuldades? A coroação irá ter lugar?

- Bem, deveis ter trazido os documentos que o rei exige?

- Que documentos?

Posso sentir o meu mau humor a aumentar.

- Os documentos que provam que o meu noivado anterior foi anulado. O rei pediu-os, os condes Overstein e Olisleger juraram que iriam enviá-los. Juraram pela sua honra. Tendes de os ter.

O seu rosto estava chocado.

- Eu não tenho nada! Ninguém me disse nada acerca desses papéis!

Estou a gaguejar na minha própria língua, de tão furiosa.

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- Mas não há nada mais importante! O meu casamento foi adiado porque se receava a existência de um contrato anterior. Os emissários de Clèves juraram que iriam enviar as provas, assim que chegassem a casa. Tiveram de se oferecer como reféns. Devem ter-vos dito. Tendes de os ter! Eles ofereceram-se como garantia!

- A mim, não me disseram nada - repete ele. - E o Duque, o vosso irmão, insistiu para que eu atrasasse a minha viagem para me encontrar com eles.

Poderão ter-se esquecido de algo de semelhante?

Ao ouvir a menção ao meu irmão, a fúria é exteriorizada.

- Não - digo, aborrecida. - O meu irmão concordou com este casamento, mas não me ajuda. Parece não se preocupar com o meu embaraço. Às vezes, temo que ele me tenha enviado para este país só para me humilhar.

Ele fica chocado.

- Mas porquê? Como é que pode ser?

Eu retraio-me diante da indiscrição dele.

- Oh, quem sabe? Há coisas que acontecem entre as crianças, no quarto de brincar, e que nunca se esquecem ou que nunca são perdoadas. Tendes de lhe escrever imediatamente e de lhe dizer que eu preciso de ter as provas de que o meu noivado anterior foi anulado. Tendes de convencê-lo a enviá-las. Dizei-lhe que, sem elas, não posso fazer nada, não posso ter qualquer influência sobre o rei. Dizei-lhe que, sem elas, pareceremos culpados de fazer jogo duplo. O rei poderia suspeitar de nós, e teria razões para o fazer. Perguntai ao meu irmão se pretende que o meu casamento seja posto em causa? Se quer que eu seja enviada

de volta a casa em desgraça? Se quer que este casamento seja anulado? Se deseja que eu seja coroada rainha? Porque, por cada dia que adiamos, damos ao rei mais motivos para suspeitar.

- O rei nunca... - começa ele. - Todos devem saber...

- O rei satisfará os seus desejos - digo eu ferozmente. - Essa é a primeira coisa que tendes de aprender nesta corte. O rei é rei, e chefe da igreja; é um tirano que não responde perante ninguém. Ele dirige os corpos dos homens e as suas almas.

Ele fala por Deus, neste país. Ele próprio acredita conhecer a vontade de Deus, que Deus fala directamente através de si, que é Deus na terra. Fará exactamente o que desejar e decidirá se está certo ou se está errado, e depois dirá que é a vontade de Deus. Dizei ao meu irmão que ele me está a pôr numa situação de verdadeiro perigo e desconforto, se me falhar neste pequeno ponto. Ele tem de enviar os documentos, ou eu temo pela minha sorte.

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Catarina, Hampton Court, Março de 1540

Manhã do dia de Páscoa e para mim é uma Páscoa feliz. Detesto tanto a Quaresma - para que raio tenho eu de fazer penitência, ou de me arrepender?

Praticamente de nada. Mas este ano ainda odiei mais a Quaresma por ter implicado que não haveria bailes na corte, nem música, à excepção dos mais aborrecidos hinos e salmos; e o pior de tudo é que não houve mascaradas nem representações. Mas na Páscoa iremos finalmente divertir-nos. A Princesa Maria deve vir para a corte, estamos todos desesperados por saber se gosta da nova madrasta. Já nos rimos antecipadamente desse encontro, uma vez que a rainha tenta ser mãe de uma filha apenas um ano mais nova do que ela, tenta falar com ela em alemão, tenta orientá-la para a religião reformada. Irá ser tão interessante como assistir a uma representação. Dizem que a Princesa Maria é muito séria, triste e piedosa; enquanto a rainha é descontraída e alegre nos seus aposentos, nasceu e foi educada como luterana ou erasmista ou uma dessas coisas, de qualquer modo, defende a igreja reformada. Por isso, andamos todas em bicos de pés para obtermos uma boa vista da janela, quando a Princesa Maria sobe a cavalo o caminho que conduz à entrada do Palácio, e todas nos retiramos apressadamente como um bando de galinhas frenéticas para chegarmos aos aposentos da rainha, antes de a Princesa Maria ser conduzida pelas escadas acima. Atiramo-nos para cima das cadeiras espalhadas pela sala e tentamos dar o

ar de que estamos a costurar tranquilamente e a ouvir um sermão, e a rainha diz:

- Marotas! - com um sorriso e depois ouve-se uma batida na porta, a princesa entra, e, que surpresa, traz consigo Lady Isabel, pela mão.

Todas nos pomos de pé e nos baixamos numa reverência muito cuidada, temos de nos baixar bastante diante da Princesa Maria para indicar o nosso respeito por uma princesa de sangue real, e de nos levantar antes de que Lady Isabel julgue que é para ela, uma vez que não passa de uma bastarda do rei, e talvez nem sequer seja filha dele.

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Mas eu dirijo-lhe um sorriso e ponho-lhe a língua de fora, quando ela passa por mim, porque ela é apenas uma menininha, pobre bonequinha, com apenas seis anos, e além disso, é minha prima, mas com o cabelo mais aflitivo que se possa imaginar, ruivo, cor de cenoura. Eu morreria, se tivesse o cabelo daquela cor, mas é o cabelo do pai e deve ser útil tê-lo, quando se é uma criança com paternidade duvidosa.

A rainha ergue-se para cumprimentar as duas enteadas e dá a cada uma um beijo nas duas bochechas, em seguida, leva-as para os seus aposentos privados e fecha a porta a todas nós, como se quisesse ficar sozinha com elas, em vez de se divertir connosco. Assim, temos de esperar do lado de fora, sem música, sem vinho e sem entretenimentos, e o pior de tudo, sem fazermos ideia do que esse está a passar atrás da porta fechada. Eu dou alguns passos em direcção aos aposentos privados; mas Lady Rochford faz-me uma careta, indicando-me que me afaste, e eu ergo as sobrancelhas e pergunto:

- O que foi? - como se não fizesse ideia de que ela está a tentar impedir-me de escutar atrás da porta.

De qualquer modo, passados alguns minutos, todas conseguimos ouvir a gargalhada e o tagarelar de Lady Isabel, e meia hora depois abrem a porta e saem, Isabel de mão dada com a rainha e a Princesa Maria, que estava com um ar tão rígido e triste quando entrou, está a sorrir, bastante corada e bonita. A rainha apresenta-nos pelos nomes, uma a seguir à outra, e a Princesa Maria sorri graciosamente para cada uma de nós, sabendo que metade do nosso grupo é sua inimiga jurada, e depois, por fim, pede que tragam refrescos e a rainha envia uma mensagem ao rei para lhe dizer que as filhas chegaram à corte e que se

encontram nos seus aposentos.

Agora, as coisas melhoram ainda mais, porque o que acontece a seguir é que o próprio rei é anunciado e todos os homens entram com ele, eu afundo-me numa reverência, mas ele passa por mim, sem sequer me olhar uma segunda vez, para cumprimentar as filhas.

Ele gosta muito delas, traz algumas ameixas secas no bolso para a pequena Lady Isabel e dirige-se à Princesa Maria com amabilidade e doçura. Senta-se ao lado da rainha e ela pousa a sua mão sobre a dele, sussurra-lhe ao ouvido, e é evidente que são uma pequena família feliz que seria muito encantadora se ele fosse um avô idoso e sábio com as suas três netas bonitas em seu redor, como quase se poderia pensar que fosse o caso.

Sinto-me um pouco amarga e irritada com tudo isto, uma vez que ninguém me está a prestar a mínima atenção, e então Thomas 194

Culpepper - a quem não perdoei nem por um momento - aproxima-se de mim e beija-me a mão, dizendo:

- Prima.

- Oh, Senhor Culpepper - exclamo, como se surpreendida de o ver. - Estais cá?

- Onde mais poderia estar? Há alguma rapariga mais bonita nesta sala?

- Tenho a certeza de que não sei - digo. - A Princesa Maria é uma jovem bonita.

Ele faz uma careta.

- Refiro-me a uma rapariga que consiga virar o coração de um homem do avesso.

- Não conheço nenhuma rapariga dessas para vós, uma vez que não conheço nenhuma rapariga que vos consiga fazer chegar a horas a um encontro - digo eu agressivamente.

- Não acredito que possais estar zangada comigo - diz ele, como se estivesse muito espantado. - Não uma rapariga como vós, que pode ter qualquer homem que queira com um estalar de dedos. Não podeis estar zangada com alguém tão insignificante como eu, quando me ordenam que vá para longe de vós, ainda que o meu coração se partisse, só com a ideia de vos deixar.

Eu dou uma pequena gargalhada, e tapo a boca com a mão, quando a rainha olha para nós de relance.

- O vosso coração nunca se partiu - digo. - Vós não tendes coração.

- Partiu - insiste ele. - Partiu-se em dois. Mas o que é que eu podia fazer? O rei solicitou os meus serviços, mas o meu coração ficou convosco. Tive de partir o coração e de cumprir o meu dever, e agora vós continuais a não me perdoar.

- Não vos perdoo porque não acredito numa palavra do que dizeis - respondo alegremente. Olho para a rainha e vejo que o rei agora nos está a observar.

Cuidadosamente, volto a cabeça a Thomas Culpepper e afasto-me ligeiramente.

Não me vai servir de nada mostrar-me demasiado envolvida com ele. Espreito por debaixo das pestanas e, de facto, o rei está a olhar para mim. Chamame para perto de si com um sinal do dedo, eu ignoro Thomas Culpepper e subo para junto da cadeira real.

- Vossa Graça?

- Estava a dizer que devíamos ter danças. Quereis fazer par com a Princesa Maria? A Rainha diz-me que sois a melhor das dançarinas dela.

Então e agora, quem é que salta como um italiano? Coro de 195

prazer e de desejo, de todo o coração, que a minha avó me pudesse ver agora, a ouvir o próprio rei a pedir-me que dance, por recomendação da rainha.

- Com certeza, Vossa Graça - faço uma bonita vénia; e também baixo modestamente os olhos, visto estarem todos a observar-me, e estendo a mão à Princesa Maria. Bem, tarefa árdua, ela não salta propriamente de felicidade para a agarrar, e caminha até ao meio da sala para formar a primeira linha da dança comigo, como se não se sentisse muito honrada com a parceira. Eu atiro a cabeça

ligeiramente para trás perante a sua expressão séria e chamo outras raparigas, que formam uma fila atrás de nós. Os músicos tocam um acorde e nós começamos a dançar.

E quem teria imaginado? Ela dança bastante bem. Move-se com graciosidade e mantém a cabeça bem erguida. Os seus pés deslocam-se rapidamente enquanto executa os passos, foi muito bem ensinada. Eu abano um pouco as ancas, só para me certificar de que o Rei, e todos os homens na sala, não apartam os olhos de mim, mas para ser sincera, tenho a certeza de que metade deles está a observar a princesa, cuja cor aumenta, à medida que vai dançando e que sorri na altura em que executamos a parte da corrente e de conduzir o parceiro sob um arco. Tento mostrar-me modestamente agradada com o sucesso da minha parceira, mas tenho medo de parecer estar a chupar limões. Não posso servir para realçar o desempenho de outra pessoa, não consigo. Não está na minha natureza, simplesmente não aspiro a ficar em segundo lugar.

Assim, terminamos com uma vénia e o rei põe-se de pé e grita “Bravo, Bravo.” que em latim ou em alemão ou noutra língua qualquer significa hurra, e eu sorrio e tento parecer satisfeita enquanto ele vem ter connosco, leva a princesa pela mão e a beija em ambas as bochechas, dizendo-lhe que está encantado com ela.

Eu deixo-me ficar para trás, tão discreta como uma pequena flor, mas tão verde de inveja como uma erva, por todos os elogios estarem a ser derramados sobre aquela criatura apagada; mas depois ele vira-se para mim e inclina-se para me sussurrar ao ouvido.

- E vós, minha querida, dançais como um anjinho. Qualquer um que fosse vosso par pareceria melhor, só por estar ao vosso lado. Credes que alguma vez ireis dançar para mim? Apenas vós, para meu deleite?

E eu, levantando os olhos para ele, pestanejando como se estivesse maravilhada com o que vejo, digo:

- Oh, Vossa Graça! Eu iria esquecer-me dos passos se fosse dançar para vós.

Teria de ser conduzida, durante toda a dança. Teríeis de me conduzir para onde quer que quisésseis ir.

Então, ele diz:

- Que queridinha, eu sei para onde vos conduziria, se pudesse.

Oh, ai sim? Penso. Bem, seu velho safado. Não tem forças sequer para cumprir com a própria mulher e, no entanto, segreda-me ao ouvido.

O rei afasta-se e leva a Princesa Maria de novo para junto da rainha, os músicos tocam um acorde e os jovens da corte avançam para perto das suas parceiras. Sinto uma mão pegar na minha e viro-me, de olhos baixos, como se tivesse vergonha por ter sido convidada.

- Não precisais de vos esforçar a esse ponto - diz friamente o meu tio Norfolk.

- Quero falar convosco.

Bastante chocada por não ser o belo e jovem Thomas Culpepper, permito que me leve para um dos lados da sala e lá está Lady Rochford, como se à espera, é claro que está à espera, eu estou entre os dois e o meu coração cai-me até junto dos meus minúsculos sapatos de dança, tenho a certeza, tenho a certeza absoluta de que ele me vai mandar de volta para casa por namoriscar com o rei.

- O que pensais? - pergunta ele a Lady Rochford por cima da minha cabeça.

- Tio, eu estou inocente - digo, mas ninguém me presta a mínima atenção.

- É possível - diz ela.

- Eu diria, certo - contesta ele.

Ambos olham para mim como se eu fosse um cisne novo prestes a ser trinchado.

- Catarina, captastes a atenção do rei - diz o meu tio.

- Eu não fiz nada - guincho eu. - Tio, juro que estou inocente - suspiro levemente quando me ouço. Estou a pensar em Ana Bolena, que lhe disse estas mesmas palavras e não encontrou qualquer misericórdia. - Por favor... -

murmuro. - Por favor, suplico-vos... A sério que não fiz nada...

- Falai baixo - diz Lady Rochford, olhando em volta, mas ninguém nos está a prestar atenção, de qualquer forma, ninguém me vai chamar.

- Haveis captado as atenções dele, agora tendes de lhe conquistar o coração -

continua ele, como se eu não tivesse dito nada. - Portastes-vos muito bem até aqui, mas ele é um homem de uma certa idade e não quer uma pegazinha em cima do joelho; ele gosta

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de se apaixonar, prefere a perseguição à captura. Ele gosta de pensar que está a cortejar uma rapariga de reputação imaculada.

- E eu sou! A sério, eu sou! Imaculada!

- Tendes de o seduzir e de o fazer aproximar-se e, contudo, retroceder sempre.

Eu aguardo, não faço ideia do que ele pretende de mim.

- Resumindo, ele não se deve limitar a desejar-vos, tem de se apaixonar por vós.

- Mas porquê? - pergunto. - Para me arranjar um bom marido?

O meu tio inclina-se para a frente, com a boca encostada ao meu ouvido.

- Ouvi, sua pateta. Para que faça de vós sua esposa, a sua própria esposa, a próxima Rainha da Inglaterra.

A minha exclamação de surpresa é silenciada por Lady Rochford, que me belisca rispidamente as costas da mão.

- Ai!

- Ouvi o vosso tio - diz ela. - E baixai a voz.

- Mas ele está casado com a rainha - murmuro.

- Mesmo assim, pode apaixonar-se por vós - diz o meu tio. - Já aconteceram coisas mais estranhas. E ele tem de saber que sois uma virgem intocada, uma pequena rosa, que sois suficientemente bem comportada para serdes rainha da Inglaterra.

Eu olho, de relance, para trás, para a mulher que já é rainha da Inglaterra. Ela

sorri para Lady Isabel, que está a saltar e a dançar ao som da música. O rei bate com o seu pé enorme, acompanhando o ritmo, até a Princesa Maria parece estar feliz.

- Talvez não aconteça este ano, talvez não seja no próximo - diz o meu tio. -

Mas tendes de manter o rei interessado e de o seduzir para um amor honrado.

Ana Bolena seduziu-o e repeliu-o, e fez com que ele continuasse interessado durante seis anos, e começou quando ele estava apaixonado pela mulher. Esta não é uma tarefa de um dia, é uma obra-prima, será a tarefa da vossa vida. Não deveis transmitir-lhe a mais ínfima ideia de que ele poderia fazer de vós amante.

Ele tem de vos respeitar, Catarina, como se fosses uma donzela só para casar.

Conseguis fazê-lo?

- Não sei - digo. - Ele é rei. Não conhece os pensamentos de toda a gente, de qualquer forma? Deus não lhos revela?

- Deus nos valha, a rapariga é uma idiota - murmura o meu tio. - Catarina, ele é um homem como qualquer outro, só que agora, com a idade, está mais desconfiado e vingativo do que a maioria. Teve uma vida mais fácil do que a maior parte, nunca fez nada. Foi alvo de gentilezas em todos os lugares onde foi, ninguém lhe disse

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“não” desde que se livrou de Catarina de Aragão. Está habituado a fazer o que quer em tudo. Este é o homem que tereis de encantar, o homem que foi educado para ser mimado. Tendes de lhe fazer pensar que sois especial, ele está rodeado de mulheres que fingem adorá-lo. Tendes de fazer algo especial. Tendes de fazer com que se sinta excitado e, ainda assim, evitar que vos toque. É isto que vos estou a pedir. Podeis ter vestidos novos e a ajuda de Lady Rochford, mas é isto que quero. Conseguis fazê-lo?

- Posso tentar - digo, com dúvidas. - Mas o que é que acontece a seguir?

Quando ele estiver apaixonado e excitado, mas confiante? O que acontece então?

Não lhe posso dizer que espero ser rainha enquanto sirvo a rainha.

- Isso deixais por minha conta - diz ele. - Fazei a vossa parte e eu farei a minha. Mas tendes de fazer a vossa parte. Tal como sois: mas um pouco mais, de um modo um pouco mais caloroso. Quero que façais com que se aproxime.

Hesito. Desejo responder que sim, anseio pelos presentes que receberei e por todas as atenções que me prodigarão, se se souber que captei as atenções do rei.

Mas Ana Bolena, a minha prima, a sobrinha deste homem, também deve ter sentido o mesmo. Ele pode ter-lhe dado exactamente os mesmos conselhos, e viu-se o resultado. Não sei que papel ele desempenhou em ajudá-la a chegar ao trono, nem se ajudou a levá-la para o cadafalso. Não sei se ele se preocupará mais comigo do que se preocupou com ela.

- E se eu não conseguir? - pergunto. - E se alguma coisa correr mal?

Ele sorri para mim.

- Estais a dizer-me que duvidais, por um momento, serdes capaz de fazer um homem apaixonar-se por vós?

Eu tento manter uma expressão séria; mas a minha própria vaidade é demasiada para mim e eu devolvo-lhe o sorriso.

- Nem por isso - digo.

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Jane Bolena, Hampton Court, Março de 1540

Estamos a cavalgar em direcção a Londres, para o Palácio de Westminster, para a abertura do Parlamento. Mas esta cavalgada de volta a Londres não é igual a quando partimos. Algo aconteceu. Sinto-me como um cão de caça velho, o líder da matilha, que consegue levantar a cabeça grisalha e farejar a mudança no vento. Quando saímos a cavalo, o rei ia entre a rainha e a jovem Catarina Howard, e qualquer pessoa que olhasse para eles tê-lo-ia visto a distribuir sorrisos entre a mulher e a amiga, a sua aia favorita: Catarina Howard. Agora, para mim, talvez apenas para mim, esta cena é bastante diferente. Mais uma vez, o rei cavalga entre a rainha e a sua pequena favorita, mas desta vez a cabeça dele está voltada, o tempo todo, para a sua esquerda. É como se o seu rosto redondo tivesse girado no pescoço carnudo e tivesse emperrado. Catarina prende as atenções dele como uma efémera prende as da gorda e boquiaberta carpa. O rei revira os olhos para Catarina Howard como se não conseguisse apartá-los dela; e nem a rainha, à direita dele, nem a Princesa Maria, do outro lado dela, conseguem desviar-lhe a atenção, não são capazes de o distrair, não conseguem fazer mais do que fornecer um escudo de protecção à sua paixão.

Já vi isto antes - meu Deus - tantas vezes. Estou na corte de Henrique desde que era uma donzela e Henrique um rapazinho, e conheço-o: um rapaz apaixonado, um homem apaixonado, e agora um velho tonto apaixonado. Vi-o correr atrás de Bessie Blount, de Maria Bolena, depois atrás da irmã dela, Ana, de Madge Shelton, Jane Seymour, Anne Basset, e agora esta: esta miúda bonita.

Sei como Henrique fica quando está perdido de amores: um touro, pronto a deixar-se levar pelo nariz. É neste ponto que se encontra agora. Se nós, os Howard, o queremos, temo-lo. Foi apanhado.

A rainha puxa as rédeas para se deixar ficar para trás e falar comigo, deixando Catarina Howard, Catarina Carey, a Princesa

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Maria e o rei montar juntos à nossa frente. Eles quase não viram as cabeças para ver que ela já não está lá. Ela está a tornar-se um zero, uma pessoa insignificante.

- O rei gosta de Catarina Howard - comenta ela comigo.

- E de Lady Anne Basset - digo eu comedidamente. - Os jovens deixam-no alegre. Creio que também vos agrada a companhia da Princesa Maria.

- Não - diz ela concisamente, não há forma de desviar o assunto. - Ele gosta de Catarina.

- Não mais do que de qualquer outra - insisto. - Mary Norris é uma favorita.

- Lady Rochford, sede minha amiga: que devo fazer? - pergunta-me ela simplesmente.

- Fazer? Vossa Graça?

- Se ele tem uma menina... - ela interrompe-se para encontrar a palavra certa.

- Uma prostituta.

- Uma amante - corrijo-a rapidamente. - Prostituta é uma palavra muito feia, Vossa Graça.

Ela ergue as sobrancelhas.

- Ai, sim? Amante.

- Se ele arranjar uma amante, não deveis dar importância ao assunto.

Ela assente.

- Foi isso que a Rainha Jane fez?

- Sim, é verdade, Vossa Graça. Ela não dava importância.

Ela emudece por segundos.

- E não a consideravam uma tonta, por agir dessa forma?

- Consideravam-na majestosa - respondo. - Uma rainha não se queixa do seu marido, o rei.

- Era isso que a Rainha Ana fazia?

Hesito.

- Não. A Rainha Ana ficava muito zangada, fazia muito barulho. - Deus nos livre de alguma vez voltarmos a viver uma tempestade como aquela que rebentou no dia em que Ana encontrou Jane Seymour a contorcer-se e a rir-se no colo do rei. - Depois, o rei zangou-se com ela. E...

- E?

- É perigoso irritar o rei. Mesmo quando se é rainha.

Ela fica silenciosa ao ouvir aquilo, não levou muito tempo a aprender que a corte é um lugar perigoso para os incautos.

- Quem era a amante do rei na altura? Quando a Rainha Ana fez esse barulho todo?

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É bastante estranho estar a contar uma coisa destas à nova esposa do rei.

- Ele andava a cortejar Lady Jane Seymour, que se tornou rainha.

Ela assente. Aprendi que quando ela parece mais apática e estúpida é quando reflecte mais intensamente.

- E a Rainha Catarina de Aragão? Ela protestava?

Agora estou a pisar terreno mais firme.

- Ela não se queixou uma única vez ao rei. Recebia-o sempre com um sorriso, fosse o que fosse que tivesse ouvido, independentemente do que temesse.

Sempre foi uma mulher e uma rainha muito delicada.

- Mas ele arranjou uma amante? A mesma coisa? Com uma rainha dessas ao lado? Ela, uma princesa com quem se tinha casado por amor?

- Sim.

- E essa amante era Lady Ana Bolena?

Eu anuo.

- Uma dama de companhia? A dama de companhia da própria rainha?

Eu volto a confirmar com um aceno de cabeça pelo sentido impiedoso do seu raciocínio.

- Então, as duas rainhas dele eram damas de companhia da Rainha Catarina?

Ele vê-as nos aposentos da rainha? Ele conhece-as lá?

- É verdade - digo.

- Ele encontra-se com elas debaixo dos olhos da rainha. Dança com elas nos aposentos dela. E combinam encontrar-se mais tarde?

Não posso negá-lo.

- Hum, sim.

Ela olha em frente, para onde Catarina Howard segue, a cavalo, ao lado do rei e observa-a enquanto ele se inclina e pousa a mão na dela, como se para corrigir

a forma como ela segura nas rédeas. Catarina ergue os olhos para ele como se o toque dele fosse uma honra que ela quase não consegue suportar. Ela inclina-se ligeiramente na direcção dele, ansiosa, ambos conseguimos ouvir a sua pequena risada ofegante.

- Assim - diz ela terminantemente.

Não consigo pensar em nada para dizer.

- Estou a ver - diz a rainha. - Agora compreendo. E uma mulher inteligente não diz nada?

- Não diz nada - hesito. - Não podeis impedi-lo, Vossa Graça. Seja o que for que venha dali.

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Ela verga a cabeça e, para minha surpresa, vejo uma lágrima cair na maçaneta da sua sela e ela tapa-a rapidamente com o dedo coberto pela luva.

- É verdade, não posso fazer nada - murmura.

Estamos instalados nos nossos apartamentos em Westminster há apenas alguns dias quando sou chamada aos aposentos do meu parente, o Duque de Norfolk.

Vou lá ao meio-dia, antes de almoçarmos, e encontro-o a andar de um lado para o outro, não com a postura contida que lhe é habitual. É tão pouco comum vê-lo perturbado que fico imediatamente alerta para o perigo. Não entro na sala, deixo-me ficar junto da parede, como se tivesse aberto a porta errada na Torre e desse por mim entre os leões do rei. Fico perto da porta e a minha mão repousa na maçaneta.

- Senhor?

- Já sabeis? Sabíeis? Que Cromwell vai ser conde? Um maldito conde?

- Vai?

- Não acabei de o dizer? Conde de Essex. Conde da estuporada Essex! O que

pensais disto, minha senhora?

- Não penso nada, senhor.

- Eles consumaram o casamento?

- Não!

- Jurais? Tendes a certeza? Devem tê-lo feito. Finalmente ele conseguiu levantá-la e está a pagar à sua alcoviteira. Deve estar contente com Cromwell por algum motivo!

- Tenho a certeza absoluta. Sei que não o fizeram. E ela está infeliz, sabe que ele se sente atraído por Catarina, e está ansiosa em relação a isso. Falou comigo do assunto.

- Mas ele está a recompensar o ministro que lhe entregou a rainha. Deve estar contente com o casamento, algo lhe deve ter agradado. Deve ter sabido de alguma coisa, deve estar a afastar-se de nós por algum motivo. Está a recompensar Cromwell, e Cromwell trouxe-lhe a rainha.

- Juro-vos, meu senhor, não vos escondi nada. O rei tem visitado a cama dela quase todas as noites, desde o final da Quaresma, mas não tem corrido melhor do que antes. Os lençóis estão imaculados, o cabelo dela continua entrançado, a touca de dormir dela no devido lugar, todas as manhãs. Às vezes, ela chora, durante o dia, quando pensa que ninguém está a ver. Ela não é uma mulher bem-amada, é uma rapariga magoada. Juro que ela ainda é virgem.

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O Duque volta-se contra mim com o seu ataque de fúria.

- Então, porque faria de Cromwell conde de Essex?

- Deve ser por qualquer outro motivo.

- Que outro motivo? Este é o grande triunfo de Cromwell, esta aliança com os Duques Protestantes e o rei, esta aliança contra a França e a Espanha, selada por

este casamento com a rapariga da Flandres. Tenho uma aliança com o rei da França ao meu alcance. Enchi a cabeça do rei de suspeitas contra Cromwell.

Lorde Lisle disselhe que Cromwell favorece os Reformistas, que escondeu hereges em Calais. O pregador preferido de Cromwell vai ser acusado de heresia. Cada vez há mais acusações contra ele e, então, ele recebe um Condado.

Porque é que isso aconteceu? O Condado é a recompensa dele. Porque é que o rei o recompensaria, se não está satisfeito com ele?

Encolho os ombros.

- Senhor, meu tio. Como posso saber?

- Porque estais aqui para saber! - grita-me ele. - Fostes trazida, sois mantida, vestida e alimentada na corte para saberdes tudo, e para que mo conteis! Se não souberdes nada, de que vale estardes aqui? Para que serviu salvar-vos do cadafalso?

Sinto o meu rosto tornar-se rígido com medo da sua raiva.

- Sei o que se passa nos aposentos da rainha - digo suavemente. - Não posso saber o que acontece no Conselho Privado.

- Atreveis-vos a dizer que eu deveria saber? Que sou negligente?

Em silêncio, abano a cabeça.

- Como é que alguém pode saber o que o rei pensa, quando ele tem o seu próprio conselho e recompensa o homem cuja face tem andado a esbofetear em público, nos últimos três meses? Como é que alguém pode saber o que está a acontecer, quando é atribuída a Cromwell a culpa pelo pior casamento que o rei fez e agora vai pavonear-se entre nós como conde, como maldito conde da estuporada-de-um-raio Essex?

Apercebo-me de que estou comprimida contra a parede e sinto o toque sedoso da tapeçaria sob as minhas mãos abertas. Posso sentir o tecido a humedecer com os meus suores frios.

- Como é que alguém pode saber o que raio se passa na cabeça do rei, quando ele, por vezes, é astuto como um corvo, e outras, tão louco como uma lebre?

Abano a cabeça em silêncio. O facto de, num fôlego, ele pronunciar o nome do rei e a palavra loucura é o mesmo que cometer um acto de traição. Não o repetirei, nem sequer aqui, que estou segura, nos aposentos dos Howard.

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- De qualquer forma, tendes a certeza de que ele ainda gosta de Catarina? -

pergunta o Duque, mais calmo.

- Ardentemente. Não tenho qualquer dúvida.

- Bem, dizei-lhe que o mantenha perto, mas a uma certa distância. Não ganhamos nada, se ela se tornar prostituta dele, e se se mantiver casado com a rainha.

- Não pode haver qualquer dúvida...

- Eu duvido de tudo - diz ele terminantemente. - E se ele se deitar com ela e depois com a rainha e ela engravidar, e se ele agradecer a Cromwell por mais uma criança na sua creche, estaremos arruinados, juntamente com a pegazinha.

- Ele não irá deitar-se com a rainha - digo eu, voltando à minha única certeza.

- Vós não sabeis nada - diz ele rudemente. - A única coisa que sabeis é o que pode ser entrevisto através dos buracos das fechaduras das portas e dos boatos nos aposentos privados, das varrede-las dos quartos e dos restos da cozinha.

Sabeis tudo o que pode ser encontrado no lado sujo da vida, não sabeis nada de política. Eu digo-vos, ele está a recompensar Cromwell com um cargo muito acima daquele com que sonhou por lhe ter trazido a rainha de Clèves; e os vossos planos e os meus planos caíram por terra. E vós sois uma idiota.

Não há nada que eu possa dizer, por isso, espero que ele me diga que saia, mas ele vira-se para a janela e detém-se, olhando lá para fora, roendo a unha do polegar. Passado algum tempo, um pajem entra para lhe dizer que o chamam à Casa dos Lordes, e ele sai, sem me dizer uma palavra. Faço uma vénia, mas não me parece que me tenha sequer visto.

Depois de ele sair, eu também devia fazê-lo, mas não me vou embora. Ando

em volta da sala. Quando fica tranquila e não há ninguém à porta, puxo a cadeira para trás. Depois, sento-me atrás da mesa dele, na sua enorme cadeira gravada com o brasão dos Howard, duro e desconfortável, atrás da minha cabeça.

Pergunto-me como teria sido se Jorge tivesse sobrevivido e o tio morrido, e se Jorge fosse o homem mais importante desta família e eu me pudesse ter sentado aqui, ao lado dele, de pleno direito. Podíamos ter cadeiras iguais, nesta mesa enorme, e maquinado os nossos planos, os nossos esquemas. Podíamos ter construído uma casa grande, nossa, e criado nela os nossos filhos. Teríamos sido irmão e cunhada da rainha, os nossos filhos seriam primos do próximo rei. Jorge teria sido certamente duque, e eu duquesa. Teríamos sido ricos, a família mais importante do reino. Poderíamos ter envelhecido juntos, 205

ele ter-me ia valorizado pelos meus conselhos e a minha forte lealdade, eu tê-lo-ia amado pela sua paixão, a sua beleza e inteligência. Ele ter-se-ia voltado para mim, no final, ele voltar-se-ia, com certeza, para mim. Ter-se-ia cansado de Ana e do seu temperamento. Teria aprendido que um amor estável, fiel, o amor de uma esposa é o melhor.

Mas Jorge morreu, bem como Ana, ambos morreram antes de poderem aprender a dar-me valor. E tudo o que resta dos três de nós sou eu, a única sobrevivente, ansiando pela herança dos Bolena, empoleirando-me na cadeira dos Howard, sonhando que eles ainda estão vivos e que existe grandeza diante de nós, em vez de solidão, velhice, conspirações insignificantes, desgraça e morte.

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Catarina, Palácio de Westminster, Abril de 1540

Estou a caminho dos aposentos da rainha, mesmo antes de jantar, quando sinto uma mão leve na minha manga. Penso logo que deve ser John Beresby ou Tom Culpepper e volto-me, com uma gargalhada, para lhe dizer que me solte, quando vejo que é o rei, e baixo-me repentinamente numa vénia.

Ele diz:

- Então, conheceis-me - e eu vejo que ele traz um grande chapéu e uma capa enorme e julga estar bastante irreconhecível. Não digo: “Sois o homem mais

gordo da corte, claro que vos reconheço. Deveis ser o único homem que tem um metro e oitenta de altura e mais de um metro e vinte de diâmetro. Sois o único homem que tresanda como carne rançosa.” Digo:

- Vossa Graça, oh, Vossa Graça, penso que vos reconheceria em qualquer altura, em qualquer lugar.

Ele dá um passo em frente, saindo da sombra, e não está mais ninguém com ele, o que é extraordinário. Normalmente, leva meia dúzia de homens consigo, onde quer que esteja. O que quer que esteja a fazer.

- Como me reconheceis? - pergunta ele.

Agora tenho um pequeno truque que consiste em, de cada vez que ele fala comigo deste modo, imaginar que é Thomas Culpepper, o absolutamente delicioso Thomas Culpepper, e penso como lhe poderia responder para o deixar encantado, e sorrio como se fosse para Thomas, digo as palavras que utilizaria com ele, para falar com o rei. Por isso, digo descontraidamente:

- Vossa Graça, não me atrevo a dizer-vos - pensando: “Thomas, não me atrevo a dizer-vos.”

E ele diz:

- Dizei-me.

E eu digo:

- Não posso.

E ele diz:

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- Dizei-me, bela Catarina.

Isto podia durar o dia inteiro, por isso mudo a melodia e digo.

- Tenho tanta vergonha.

E ele responde:

- Não tendes de vos sentir envergonhada, querida. Dizei-me como me reconheceis.

E eu digo, pensando em Thomas:

- É um cheiro, Vossa Graça. É um cheiro como perfume, um cheiro divinal que eu adoro, como uma flor, como jasmim ou rosas. E depois existe um odor mais intenso, como o do suor de um bom cavalo quando está quente por ter andado a caçar, depois há um cheiro como o de couro, e depois uma espécie de cheiro acre a mar.

- Eu cheiro assim? - pergunta ele, há um deslumbramento na sua voz, e eu apercebo-me, com algum choque, que é evidente que acertei em cheio, porque, na verdade, ele cheira a pus da sua perna, pobre homem, e muitas vezes a gases intestinais, por sofrer tanto de obstipação, e o seu fedor acompanha-o para todo o lado, por isso, ele tem de trazer sempre consigo uma caixa com ervas aromáticas para não o sentir no seu próprio nariz, mas deve saber que, para toda a gente, cheira a podre.

- Para mim, cheirais - digo eu fielmente, pensando muito em Thomas Culpepper e no cheiro a lavado do seu cabelo castanho encaracolado. - Há um odor a jasmim, suor, couro e sal - baixo os olhos e passo a língua pelos lábios, apenas levemente, nada de obsceno. - Reconheço-vos sempre por esse odor.

Ele pega-me na mão e puxa-me para si.

- Minha querida donzela - suspira. - Oh, meu Deus, doce donzela.

Eu arfo ligeiramente como se estivesse com medo, mas ergo os olhos para ele, como se fosse ser beijada. Isto é mesmo muito indecente. Ele é horrivelmente parecido com o criado da minha avó em Horsham - muito velho. Com idade suficiente quase para ser meu avô, a boca dele está a tremer e os olhos húmidos.

Admiro-o porque ele é o rei, é claro. É o homem mais importante do mundo e eu amo-o como o meu rei. E o meu tio deixou bem claro que há vestidos novos implicados, se eu conseguir levá-lo. Mas não é muito agradável quando ele me coloca o braço em volta da cintura e encosta os lábios molhados ao meu pescoço, consigo sentir a sua saliva fria na pele.

- Querida donzela - repete ele, e encosta o nariz no meu pescoço para me dar um beijo húmido, que é como estar a ser sugada por um peixe.

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- Vossa Graça - digo sem fôlego. - Tendes de me largar.

- Nunca vos largarei!

- Vossa Graça, eu sou uma donzela!

Aquelas palavras funcionam maravilhosamente, ele solta-me um pouco, eu posso recuar e, apesar de ele me agarrar nas duas mãos, pelo menos, não o tenho a respirar em cima do meu decote.

- Sois uma donzela doce, Catarina.

- Sou uma donzela séria, senhor - digo eu, sem fôlego.

Ele segurame as mãos com força e puxa-me para si.

- Se eu fosse um homem livre, seríeis minha esposa? - pergunta ele simplesmente.

Fico tão surpreendida com a velocidade dos acontecimentos, que não consigo dizer uma palavra. Limito-me a olhar para ele como se fosse uma ordenhadeira e tão estúpida como uma vaca leiteira.

- Vossa esposa? Vossa esposa, senhor?

- O meu casamento não é autêntico - diz ele muito depressa, puxando-me sempre para mais perto de si, a sua mão deslizando novamente em volta da minha cintura. Penso que as palavras são apenas para me encandear enquanto me empurra para um canto e me enfia uma mão pela saia acima, por isso, eu continuo a fugir e ele a falar. - O meu casamento não é válido. Por vários motivos. A minha mulher tinha um contrato anterior de noivado e não estava livre para se casar. A minha consciência avisou-me disto e, pela minha alma, não me posso deitar com ela numa união sagrada. No fundo do coração, sei que ela é

mulher de outro homem.

- E? - ele não deve estar a imaginar que eu sou tão estúpida ao ponto de acreditar naquilo, nem por um único momento.

- Eu sei-o, a minha consciência avisou-me. Deus fala comigo. Sei-o.

- Ai fala? Convosco?

- Sim - diz ele firmemente. - E por isso não dei o consentimento total para o meu casamento. Deus conhecia as minhas dúvidas nessa altura; e eu não me deitei com ela. Por isso, o casamento não é um casamento, e em breve estarei livre.

Então, ele considera-me mesmo suficientemente estúpida, porque se enganou a si próprio. Valha-me Deus, o que os homens fazem ao cérebro quando o seu membro está erecto. É verdadeiramente espantoso.

- Mas, o que lhe vai acontecer? - pergunto.

- O quê? - a sua mão, que trepa pelo meu peitilho até aos meus seios, detém-se com aquele pensamento.

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- O que vai acontecer à rainha? - pergunto. - Se deixar de ser rainha?

- Como é que eu posso saber? - diz ele, como se não tivesse nada que ver com ele. - Ela não deveria ter vindo para a Inglaterra, se não estava livre para se casar.

É uma quebradora de promessas. Pode voltar para casa.

Não me parece que ela vá querer voltar para casa, não para aquele irmão dela, ela afeiçoou-se aos filhos do rei e à Inglaterra. Mas a mão dele puxa insistentemente a minha cintura e está a virar-me para que fique de frente para ele.

- Catarina - diz ele, com desejo. - Dizei-me que posso pensar em vós? Ou existe um outro jovem? Sois uma mulher jovem, rodeada de tentação numa corte

lasciva, uma corte de mente devassa, uma corte sensual, com muitos rapazes maus, de pensamentos obscenos, suponho que um deles deve ser alvo dos vossos afectos? Que vos tenha prometido algum presente em troca de um beijo?

- Não - digo. - Já vos disse, Não gosto de rapazes. São todos muito patetas.

- Não gostais de rapazes?

- Nada.

- Então, de que gostais? - pergunta ele. A sua voz é cadenciada com a admiração por si mesmo. Ele sabe a resposta desta cantiga.

- Não me atrevo a dizer - a mão dele sobe outra vez da minha cintura, não tarda nada, estará a acariciar-me o seio. Oh, Thomas Culpepper, Deus sabe como desejava que fosseis vós.

- Dizei-me - diz ele. - Oh, contai-me, bela Catarina, e eu dar-vos-ei um presente por serdes uma rapariga séria.

Eu respiro um pouco para o lado, para inspirar ar puro.

- Gosto de vós - digo simplesmente, e uma mão segura dá uma palmada no meu seio e a outra puxa-me para si e a sua boca desce sobre a minha, toda molhada e a sugar-me, e é realmente muito horrível, mas, por outro lado, tenho de imaginar que presente irei receber por ser uma rapariga séria.

Ele oferece-me as propriedades de dois assassinos condenados: ou seja, duas casas, alguns bens e algum dinheiro. Não posso acreditar. Que irei ter casas, duas casas, terra e dinheiro meu!

Nunca tive tanta riqueza na minha vida, e nunca um presente que fosse tão fácil de ganhar. Tenho de admitir: foi ganho com facilidade. Não é agradável seduzir um homem que tem idade para ser meu pai, quase suficientemente velho para ser meu avô. Não é

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agradável ter a mão gorda dele a esfregar-me os seios e a sua boca malcheirosa por toda a minha cara. Mas tenho de me lembrar de que ele é o rei, e é um

homem velho e simpático, e um velho doce e ternurento, e a maior parte das vezes posso fechar os olhos e fingir que estou com outra pessoa. Por outro lado, não é muito bonito ficar com os pertences de homens que estão mortos, mas quando o comento com Lady Rochford, ela relembra-me que todos recebemos bens de homens que já morreram, de uma forma ou de outra, tudo é ou roubado ou herdado, e uma mulher que espera ascender no mundo não se pode dar ao luxo de ser esquisita.

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Ana, Palácio de Westminster, Abril de 1540

Pensei que ia ser coroada como parte das celebrações do Primeiro de Maio, mas estamos a menos de um mês e ninguém mandou fazer quaisquer vestidos, nem planeou a ordem da coroação, por isso, começo a pensar que não vai ser neste Primeiro de Maio, não pode ser. Na falta de um conselheiro melhor, espero até a Princesa Maria e eu caminharmos de volta da Capela da Nossa Senhora para o palácio, e pergunto-lhe o que pensa. Tenho vindo a gostar cada vez mais dela e a confiar na sua opinião. Mas também, por ter sido a filha e depois exilada desta corte, sabe melhor do que a maior parte de nós o que significa viver aqui e, no entanto, ter-se consciência de que se é uma estranha.

Ao ouvir a simples palavra “coroação” ela lança-me um olhar fugaz tão preocupado que eu não sou capaz de dar nem mais um passo. Fico paralisada no lugar e grito:

- Oh, o que sabeis?

- Querida Ana, não choreis - diz ela muito depressa. - Perdão. Rainha Ana.

- Não estou a chorar - mostro-lhe o meu rosto chocado. - Não estou.

Olhamos logo as duas em nosso redor, para ver se alguém nos está a observar.

É assim que as coisas são na corte, temos de estar sempre a olhar por cima do ombro, à procura dos espiões; a verdade é contada através de sussurros. Ela aproxima-se de mim e eu pego-lhe na mão, prendo-a debaixo do meu braço e começamos a caminhar juntas.

- Não pode ser neste Primeiro de Maio porque teríamos de já ter tudo planeado e pronto nesta altura, se ele vos fosse coroar - diz ela.

- Eu própria pensei isso na Quaresma. Mas não é assim tão mau. Não quer dizer nada. A Rainha Jane também não foi coroada. Ele tê-la-ia coroado, se ela tivesse sobrevivido, depois de lhe ter dado um herdeiro. Ele vai ficar à espera que lhe digais que esperais

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um filho dele. Estará à espera que tenhais uma criança e depois haverá o baptismo e a vossa coroação virá a seguir.

Eu coro intensamente e não digo nada. Ela olha para o meu rosto e espera até termos acabado de subir as escadas, passando pela minha sala de audiências, pelos meus aposentos privados e até termos chegado ao meu pequeno quarto de retiro onde ninguém entra sem ser convidado. Fecho a porta nas faces curiosas das minhas damas de companhia e ficamos sozinhas.

- Há algum problema? - pergunta ela com um tacto cuidadoso.

- Não da minha parte.

Ela assente, mas nenhuma de nós quer dizer mais nada. Ambas somos virgens de vinte e poucos anos, com idade para sermos consideradas solteironas, receosas do mistério do desejo masculino, tementes do poder do rei, ambas vivendo no limiar da aceitação dele.

- Sabeis, detesto o Primeiro de Maio - diz ela subitamente.

- Pensei que fosse um dos dias de celebrações mais importantes do ano inteiro?

- Sim, mas é uma celebração selvagem, pagã: não é cristã.

Isto faz parte da sua superstição papista e estou prestes a rir-me, por instantes, mas o ar grave na sua expressão impede-me de o fazer.

- É só para celebrar a chegada da Primavera - digo eu. - Não há mal nenhum nisso.

- É altura de pôr de parte as coisas velhas e adoptar as novas - diz ela. - É essa a tradição. E o rei respeita-a integralmente, como um selvagem. Num torneio de

um Primeiro de Maio ele cavalgou com uma mensagem de amor para Ana Bolena no seu estandarte, e depois trocou a minha mãe por Lady Ana num Primeiro de Maio. Menos de cinco anos mais tarde, foi a vez dela: Lady Ana era a nova Rainha das Justas, com os seus defensores combatendo em sua honra diante do camarote real. Mas os cavaleiros foram detidos nessa tarde e o rei afastou-se dela a cavalo sem sequer se despedir, e esse foi o fim de Lady Ana, e a última vez que ela o viu.

- Ele não lhe disse adeus? - por um qualquer motivo, esta parece-me ser a pior parte. Nunca ninguém me contara isto.

Ela abana a cabeça.

- Ele nunca diz adeus. Quando o seu favor deixa de existir, ele desaparece rapidamente. Também nunca se despediu da minha mãe, partiu a cavalo e ela teve de mandar os criados desejarem-lhe

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boa viagem. Nunca lhe disse que não iria voltar. Limitou-se a sair a cavalo um dia, e nunca regressou. Nunca disse adeus a Lady Ana. Montou no seu cavalo e partiu, no dia do torneio do Primeiro de Maio, depois mandou os seus homens prendê-la. Na verdade, ele nem sequer disse adeus a Lady Jane, que morreu ao dar-lhe um filho. Ele sabia que ela estava a lutar pela sua vida, mas não foi ter com ela. Deixou-a morrer sozinha. Tem um coração duro, mas não um rosto duro; não suporta ver mulheres chorar, não suporta dizer adeus. Para ele, é mais fácil voltar o coração, e a face, e depois simplesmente vai embora.

Eu estremeço ligeiramente e dirijo-me à janela para verificar se ainda estão fechadas, tenho de me impedir de fechar as portadas, para que a luz forte não entre. Há um vento frio que sopra do rio, quase consigo senti-lo a arrepiar-me enquanto permaneço aqui de pé. Quero sair para a sala de audiências e rodear-me das minhas meninas tontas, de um pajem a tocar alaúde, e de mulheres a rirem-se. Quero o conforto dos aposentos da rainha à minha volta, ainda que saiba que outras três mulheres necessitaram do conforto delas antes, e estão todas mortas.

- Se ele se voltar contra mim, como se voltou contra Lady Ana, não receberei nenhum aviso - digo em voz baixa. - Ninguém nesta corte é minha amiga, ninguém sequer me avisou de que o perigo se aproximava.

A Princesa Maria não tenta reconfortar-me.

- É possível, tal como aconteceu com Lady Ana, num dia de sol, num torneio, que os soldados venham e que não haja modo de escapar?

O seu rosto está pálido. Ela assente.

- Ele mandou o Duque de Norfolk falar comigo, para exigir a minha obediência. O bondoso Duque, que me conhecia desde menina e que serviu lealmente a minha mãe, com amor, disseme na cara que, se fosse meu pai, me dependuraria pelos calcanhares e abriria a minha cabeça em duas, batendo com ela contra uma parede - diz ela. - Um homem que eu conhecia desde a infância, um homem que sabia que eu era uma princesa de sangue, que amou a minha mãe como o seu mais leal servidor. Veio com a boa vontade do meu pai, sob as suas ordens, e estava pronto a levar-me para a Torre. O rei mandou o seu carrasco ter comigo e autorizou-o a fazer o que lhe aprouvesse.

Eu aperto na mão uma tapeçaria valiosíssima, como se o seu toque me pudesse confortar.

- Mas eu não cometi qualquer ofensa - diz ela. - Não fiz nada.

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- E eu também não tinha feito - responde ela. - Nem a minha mãe. Nem a Rainha Jane. Talvez até Lady Ana estivesse inocente. Todas vimos o amor do rei transformar-se em desprezo.

- E eu nunca o tive - digo eu baixinho para mim mesma, na minha língua. - Se ele foi capaz de abandonar a esposa de dezasseis anos, uma mulher que ele amara, com que prontidão, com que facilidade, poderia livrar-se de mim, uma mulher de quem ele nunca gostou?

Ela olha para mim.

- O que vai ser de vós?

Sei que a minha face está sem expressão.

- Não sei - digo com sinceridade. - Não sei. Se o rei se aliar à França e ficar com Catarina Howard como amante, suponho que me mandará de volta para casa.

- Se não fizer pior - diz ela muito devagar.

Eu faço um sorriso triste.

- Não sei o que poderia ser pior do que a minha casa.

- A Torre - diz ela simplesmente. - A Torre seria pior. E depois o cadafalso.

O silêncio que se segue a estas palavras parece durar bastante tempo. Sem falar, levanto-me da minha cadeira e dirijo-me à porta que leva às minhas salas públicas e a princesa recua para me deixar passar à frente. Atravessamos o quarto de retiro em silêncio, ambas assombradas pelos nossos próprios pensamentos, e passamos pela pequena porta dos meus aposentos para uma grande azáfama. Os criados correm das galerias para os aposentos transportando artigos. Está a ser posta uma mesa de jantar na minha sala de audiências com a baixela de ouro e prata do tesouro real.

- O que está a acontecer agora? - pergunto, perplexa.

- Sua Majestade, o rei, anunciou que iria jantar nos vossos aposentos - Lady Rochford aproxima-se apressadamente para mo dizer e faz uma vénia.

- Óptimo - tento mostrar que estou satisfeita, mas ainda me sinto apavorada com a ideia do ódio do rei, da Torre e do cadafalso. - Tenho toda a honra em receber Sua Graça para os meus aposentos.

- Nos meus aposentos - corrige-me a Princesa Maria em voz baixa.

- Nos meus aposentos - repito.

- Ireis trocar de vestido para o jantar?

- Sim - vejo que as minhas damas de companhia já vestiram as suas melhores roupas, o toucado de Catarina oward está tão recuado na sua cabeça, que mais valia não usar nenhum, e está carregada

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de correntes de ouro com pingentes de pequenas pérolas. Tem diamantes a bailarem-lhe nas orelhas, pérolas enroladas em volta do pescoço. Deve ter recebido algum dinheiro de algum lado. Nunca a vi usar mais do que uma pequena corrente fina de ouro. Ela vê-me olhar para ela, faz-me uma vénia e dá uma volta para eu poder admirar o efeito do seu vestido novo de seda cor-derosa com um saiote cor-de-rosa escuro.

- É bonito - digo. - É novo?

- Sim - responde ela, e os seus olhos desviam-se como uma criança que tivesse sido apanhada a roubar e eu percebo imediatamente que todo aquele requinte veio do rei.

- Quereis que vos vá ajudar a vestir? - pergunta ela, quase como quem pede desculpa.

Eu assinto e ela e duas outras damas de companhia seguem-me até aos meus aposentos privados interiores. O meu vestido para o jantar já está pousado e Catarina corre para a arca para retirar a minha roupa interior.

- Tão bonitas - diz, em tom de aprovação, endireitando o bordado branco sobre o branco das minhas combinações.

Eu visto a combinação e sento-me em frente ao espelho para que Catarina me possa escovar o cabelo. O toque dela é suave enquanto levanta e torce o meu cabelo numa rede incrustada a ouro, e só discordamos quando ela põe o meu toucado bastante recuado na minha cabeça. Eu endireito-o e ela ri-se para mim.

Vejo os nossos rostos lado a lado no espelho, e os olhos dela cruzam-se com os meus, tão inocentes como os de uma criança, sem qualquer sombra de engano.

Eu volto-me e falo para as outras raparigas.

- Deixai-nos - digo.

Dos olhares que trocam quando saem, vejo que os seus luxos recentes são do conhecimento geral, todos sabem de onde vêm aquelas pérolas, e esperam que uma tempestade de ciúmes se abata sobre a pequena cabeça de Catarina Howard.

- O rei gosta de vós - digo-lhe sem rodeios.

O sorriso desvaneceu-se no seu olhar. Ela passa o peso de um pé metido num chinelo cor-de-rosa para outro.

- Vossa Graça... - murmura ela.

- Ele não gosta de mim - digo eu. Sei que estou a ser demasiado directa, mas não tenho palavras para encobrir esta verdade como uma mentirosa mulher inglesa.

O rubor sobe-lhe do decote acentuado do vestido até lhe fazer escaldar as faces.

- Vossa Graça...

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- Desejai-lo? - pergunto. Não tenho palavras para disfarçar a pergunta numa conversa prolongada.

- Não! - diz ela imediatamente, mas depois baixa a cabeça. - Ele é o rei... e o meu tio diz, na verdade, o meu tio ordenou-me...

- Não sois livre? - sugiro.

Os seus olhos cinzentos encontram os meus.

- Sou uma rapariga - diz ela. - Sou apenas uma jovem, não sou livre.

- Podeis recusar fazer o que eles querem?

- Não.

Instala-se um silêncio entre nós, enquanto ambas compreendemos a simples verdade que está a ser pronunciada. Somos duas mulheres que reconhecemos que não podemos controlar o mundo. Somos jogadoras neste jogo, mas não escolhemos os nossos movimentos. Os homens jogar-nos-ão consoante os seus próprios desejos. Só nos resta tentar sobreviver a seja o que for que aconteça a seguir.

- O que me vai acontecer, se o rei vos quiser para esposa? - sei, assim que as palavras saem desajeitadamente da minha boca, que esta é a pergunta central e impronunciável.

Ela encolhe os ombros.

- Não sei. Não creio que alguém saiba.

- Ele mandar-me-ia matar? - murmuro.

Para meu horror, ela não estremece de terror nem solta uma exclamação de recusa. Olha para mim firmemente.

- Não sei o que ele irá fazer - diz ela outra vez. - Vossa Graça, eu não sei o que ele pretende nem o que pode fazer. Não conheço a lei. Não sei o que ele é capaz de fazer.

- Irá ordenar-vos que fiqueis ao lado dele - digo, entre lábios gelados. - Isso, eu vejo. Esposa ou prostituta. Mas vai mandar-me para a Torre? Vai mandar matar-me?

- Não sei - diz ela. Parece uma criança assustada. - Não posso dizer. Ninguém me diz nada, excepto que tenho de lhe agradar. E eu tenho de o fazer.

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Jane Bolena, Palácio de Westminster, Maio de 1540

A rainha está no camarote real, bem alto, acima da arena de torneios, e ainda que esteja pálida de ansiedade, comporta-se como uma verdadeira rainha. Tem um sorriso para as centenas de londrinos que acorreram em massa ao palácio para ver a família real e os nobres, as batalhas simuladas, o aparato e as justas.

Haverá seis desafiadores e seis defensores e eles dão a volta à arena com os seus séquitos, escudos e estandartes e as trombetas gritam mais alto do que a fanfarra e a multidão brada as suas apostas. É como um sonho, com o ruído, o calor e o brilho do sol a incidir na areia dourada da arena.

Se eu me deixar ficar de pé, ao fundo do camarote real, e semi-cerrar os olhos, hoje consigo ver fantasmas. Consigo ver a Rainha Catarina inclinar-se para a frente e a acenar com a mão para o seu jovem marido, consigo até ver o escudo

dele com o lema: Sir Coração Leal.

Sir Coração Leal! Eu rir-me-ia, se o coração instável do rei não tivesse significado a morte de tantas pessoas. Leal apenas aos seus desejos é o que o coração do rei é, e neste dia, neste Primeiro de Maio, mudou mais uma vez, como o vento da Primavera, e sopra noutra direcção.

Afasto-me para um dos lados e um raio de sol que espreita por uma frincha do toldo encandeia-me e, por instantes, vejo Ana na parte da frente do camarote, a minha Ana, Ana Bolena com a sua cabeça atirada para trás, rindo-se, e a linha branca da sua garganta à vista. Foi um Primeiro de Maio quente nesse ano, o último ano de Ana, e ela culpou o sol, quando suava de medo. Sabia que se encontrava numa situação difícil, mas não fazia ideia do perigo que corria. Como poderia ter sabido? Nenhum de nós sabia. Nenhum de nós sonhava que ele iria pousar aquele pescoço longo e encantador num cepo de madeira e contratar um espadachim francês para o cortar. Como é que alguém poderia sonhar que um homem faria algo de semelhante a uma mulher que adorara? Ele 218

acabou com a fé do seu reino para a poder ter. Por que motivo teria acabado com ela?

Se soubéssemos... mas não serve de nada dizer: se soubéssemos.

Talvez tivéssemos fugido. Eu, Jorge, o meu marido, Ana, a irmã dele, e Isabel, a filha dela. Talvez pudéssemos ter fugido e escapado a este terror, esta ambição e a este desejo por esta vida que é a corte inglesa. Mas nós não fugimos. Ficámos sentados como lebres, acobardando-nos na relva comprida ouvindo os cães de caça, esperando que a caçada nos passasse ao lado; mas, nesse mesmo dia, os soldados vieram buscar o meu marido e a minha adorada cunhada Ana. E eu? Eu permaneci sentada, em silêncio, e deixei-os ir, e nunca disse uma palavra para os salvar.

Mas esta nova rainha não é nenhuma tonta. Nós tínhamos medo, os três, mas não sabíamos o quão receosos deveríamos estar. Mas Ana de Clèves sabe. Falou com o seu embaixador e sabe que não vai haver coroação. Falou com a Princesa Maria e sabe que o rei pode destruir uma rainha inocente mandando-a para longe da corte, para um castelo onde o frio e a humidade a matarão, se o veneno não resultar. Ela até falou com a pequena Catarina Howard e agora sabe que o rei

está apaixonado. Sabe que deve ter pela frente, pelo menos, a vergonha e o divórcio, senão for a execução, na pior das hipóteses.

No entanto, ali está ela, no camarote real, de cabeça bem erguida, deixando cair o lenço de mão para indicar o início de um ataque, sorrindo para o vencedor, com a sua delicadeza natural, inclinando-se para a frente, para colocar a coroa de folhas de louro no elmo dele, para lhe oferecer a bolsa de ouro do prémio. Pálida sob o seu toucado modesto e feio, cumprindo o seu dever como Rainha das Justas, tal como cumpriu a sua obrigação todos os dias desde que pôs um pé neste país. Deve ter dores de barriga de tanto medo, mas as suas mãos, na parte da frente do camarote, estão gentilmente entrelaçadas e nem sequer tremem.

Quando o rei a cumprimenta, ela levanta-se da cadeira e faz-lhe uma vénia respeitosa, quando a multidão chama o nome dela, volta-se, sorri e ergue a mão, quando uma mulher inferior gritaria por ajuda. Mantém absolutamente a compostura.

- Ela sabe? - pergunta uma voz, baixinho, ao meu ouvido, e eu volto-me para o Duque de Norfolk. - É possível que ela saiba?

- Ela sabe tudo excepto o que vai ser dela - digo.

- Não pode saber. Não pode ter percebido. Deve ser demasiado estúpida para perceber o que lhe vai acontecer?

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- Ela não é estúpida - respondo. - É incrivelmente corajosa. Sabe tudo. Tem mais coragem do que pensamos.

- Vai precisar dela - comenta ele, desagradavelmente. - Vou levar Catarina para longe da corte.

- Ides afastá-la do rei?

- Sim.

- Isso não é um risco? Ireis privar o rei da rapariga da sua eleição?

Ele abana a cabeça. Não pode esconder o seu triunfo.

- O próprio rei disseme para a tirar da corte. Casará com Catarina, assim que se livrar de Ana. É ele quem quer que Catarina seja levada para longe. Quer que ela esteja longe da corte para não ficar exposta aos boatos enquanto ele acaba com esta falsa rainha - ele refreia um sorriso, quase se ri. - Não quer que haja nem sinais de boatos ligados ao nome imaculado de Catarina.

- A falsa rainha? - destaco o estranho título novo.

- Ela não era livre para se casar. O casamento nunca foi válido, nunca foi consumado. Deus guiou a consciência dele e ele não cumpriu os seus votos.

Deus impediu-o de consumar o casamento. O casamento é falso. A rainha é falsa. Trata-se provavelmente de traição, prestar uma declaração falsa ao rei.

Pestanejo. É o direito do rei, enquanto representante de Deus na terra, decidir relativamente a essas questões, mas por vezes nós, mortais, somos um pouco lentos a acompanhar as mudanças caprichosas de Deus.

- Está tudo acabado para ela? - faço um pequeno gesto para apontar para a rapariga que se encontra na parte da frente do camarote real e que se põe de pé, nesse momento, para receber a saudação do campeão, ergue a mão e sorri para a multidão que grita o seu nome.

- Ela está acabada - diz o Duque.

- Acabada?

- Acabada.

Eu assinto. Suponho que isto significa que vão matá-la.

220

Ana, Palácio de Westminster, Junho de 1540

O meu irmão enviou finalmente os documentos que provam que, de facto, nunca fui casada antes de vir para a Inglaterra, que o meu casamento com o rei foi o meu primeiro casamento, e que é válido, como eu sei, como toda a gente sabe. Os documentos chegaram por mensageiro hoje, mas o meu embaixador

não os pode apresentar. O Conselho Privado do rei está praticamente em reunião constante, e nós não conseguimos descobrir o que estão a discutir. Depois de terem insistido em ver este documento, agora nem se dão ao trabalho de olhar para ele; e eu não posso adivinhar o que significa esta nova indiferença.

Sabe Deus o que estão a planear fazer comigo, o meu horror é que me acusem de algo vergonhoso, que eu morra nesta terra distante e que a minha mãe acredite que a filha morreu como uma prostituta.

Sei que algo muito grave está a ser planeado por causa do perigo que atingiu os meus amigos. Lorde Lisle, que me recebeu tão gentilmente em Calais, quando fiquei retida pelas tempestades de Inverno, foi detido, e ninguém me sabe dizer de que é acusado. A mulher dele desapareceu dos meus aposentos, sem dizer adeus. Não me veio pedir que intercedesse por ele. Isto deve significar que ele deve morrer sem ser julgado - valha-me Deus, talvez já esteja morto - ou que ela sabe que eu não tenho qualquer influência junto do rei. De uma maneira ou de outra, isto é um desastre para ele e para mim. Ninguém me sabe dizer onde Lady Lisle está escondida e, na verdade, tenho medo de perguntar. Se o marido dela foi acusado de traição, então, qualquer sugestão de que era meu amigo, funcionará contra mim.

A filha deles, Anne Bassett, continua ao meu serviço, mas alega estar doente e foi levada para a cama. Eu queria ir vê-la, mas Lady Rochford diz que é mais seguro para a rapariga se a deixarmos estar sozinha. Assim, a porta do quarto dela está trancada e as portadas fechadas. Se ela representa perigo para mim ou eu para ela, não me atrevo a perguntar.

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Mandei chamar Thomas Cromwell que, pelo menos, é abençoado com o favor do rei, desde que foi nomeado conde de Essex, há apenas algumas semanas. Pelo menos, Thomas Cromwell deve continuar a ser meu amigo, enquanto as mulheres sussurram com as mãos à frente da boca e todos na corte estão preparados para o desastre. Mas o meu lorde Cromwell, até agora, não me enviou nenhuma resposta. Seguramente alguém terá de me dizer o que está a acontecer.

Gostava que estivéssemos novamente em Hampton Court. Hoje está calor, e

eu sinto-me encarcerada, como um falcão numa gaiola cheia, um falcão branco, que não pertence a este mundo: uma ave tão branca como as neves de Inverno e nascida para ser livre nos lugares frios e selvagens. Podia desejar estar de novo em Calais, ou até em Dover, quando a estrada à minha frente conduzia a Londres e ao meu futuro como rainha da Inglaterra, e eu estava cheia de esperança. Podia desejar estar em qualquer outra parte que não fosse aqui, olhando pelas minúsculas janelas apaineladas para um céu azul brilhante, perguntando-me porque é que o meu amigo Lorde Lisle está na Torre de Londres, e porque é que o meu apoiante Thomas Cromwell não responde ao meu pedido urgente de que viesse imediatamente ter comigo. Com certeza, ele pode vir dizer-me porque é que o conselho tem estado a reunir-se praticamente em segredo durante vários dias. Certamente virá dizer-me porque é que Lady Lisle desapareceu e porque é que o marido está detido. Seguramente ele virá em breve.

A porta abre-se e eu sobressalto-me, esperando que seja ele; mas não é Cromwell, nem o seu enviado, mas a pequena Catarina Howard, com uma expressão sombria no rosto e trágica nos olhos. Traz uma capa de viagem no braço e assim que a vejo sinto uma onda de náusea, por puro terror. A pequena Catarina foi detida, também ela foi acusada de um crime qualquer. Rapidamente aproximo-me dela e pego-lhe nas mãos.

- Catarina? O que foi? Qual é a acusação?

- Estou segura - arfa ela. - Está tudo bem. Não corro perigo. Só tenho de ir para casa da minha avó, durante algum tempo.

- Mas porquê? O que dizem que fizestes?

O seu pequeno rosto contorce-se de preocupação.

- Já não posso ser vossa dama de companhia.

- Não podeis?

- Não. Vim despedir-me.

- O que haveis feito? - grito em voz alta. Com certeza, esta rapariga, que não passa muito de uma criança, não pode ter

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cometido nenhum crime. A pior coisa de que Catarina Howard é capaz é de vaidade e namoriscar, e esta não é uma corte que castigue esse tipo de pecados. -

Não permitirei que vos levem. Defender-vos-ei. Sei que sois uma boa menina. O

que dizem contra vós?

- Eu não fiz nada - diz ela. - Mas eles dizem-me que é melhor para mim ficar longe da corte enquanto tudo estiver a acontecer.

- Tudo o quê? Oh, Catarina, dizei-me rápido, o que sabeis?

Ela faz-me um sinal e eu inclino-me para que ela me possa segredar ao ouvido.

- Ana, Vossa Graça quero dizer, querida rainha. Thomas Cromwell foi detido por traição.

- Traição? Cromwell?

- Chiu. Sim.

- O que é que ele fez?

- Conspirou com Lorde Lisle e os Papistas para lançarem um feitiço ao rei.

A minha mente dá voltas, não compreendo totalmente o que ela está a dizer.

- Um quê? O que é isso?

- Thomas Cromwell lançou um feitiço - diz ela.

Quando ela vê que eu não estou a compreender a palavra, segura gentilmente no meu rosto e puxa-o para baixo para poder murmurar novamente ao meu ouvido.

- Thomas Cromwell contratou uma bruxa - diz ela devagar, sem qualquer inflexão. - Thomas Cromwell contratou uma bruxa para destruir Sua Majestade, o rei.

Inclina-se para trás para ver se desta vez compreendi e o horror estampado na minha cara diz-lhe que sim.

- Eles têm a certeza?

Ela assente.

- Quem é a bruxa? - suspiro. - O que é que ela fez?

- Lançou um feitiço ao rei para que ele ficasse impotente - diz ela. - Ela rogou uma praga ao rei para que ele não possa ter um filho convosco.

- Quem é a bruxa? - pergunto. - Quem é a bruxa de Thomas Cromwell? Quem tirou a virilidade ao rei? Quem dizem que é? - o pequeno rosto de Catarina está contraído de medo.

- Ana, Vossa Graça, minha querida rainha, e se disserem que sois vós?

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Vivo praticamente retirada do mundo, saindo dos meus aposentos apenas para jantar diante da corte, altura em que procuro parecer serena, ou, melhor ainda, inocente. Estão a interrogar Thomas Cromwell e as detenções prosseguem, outros homens foram acusados de traição contra o rei, acusados de contratarem uma bruxa para acabar com a sua virilidade. Há uma rede de conspiradores que está a ser revelada. Dizem que Lorde Lisle foi o centro, em Calais, ajudou os Papistas e a família Pole, que há muito pretendia recapturar o trono aos Tudor. O

seu comandante delegado na fortaleza fugiu para Roma para servir o Cardeal Pole, o que prova a sua culpa. Afirmam que Lorde Lisle e o seu partido trabalharam com uma bruxa, de modo a certificarem-se de que o rei não teria um casamento frutífero comigo, que não conceberia outro herdeiro para a sua religião reformada. Mas, ao mesmo tempo, diz-se que Thomas Cromwell estava a ajudar os Luteranos, os Reformistas, os Evangélicos. Alegam que ele me trouxe para me casar com o rei e que ordenou a uma bruxa que fizesse o rei perder a virilidade para poder colocar a sua própria linhagem no trono. Mas quem é a bruxa? Pergunta a corte a si mesma. Quem é a bruxa que era amiga de Lorde Lisle e que foi trazida para a Inglaterra por Thomas Cromwell? Quem é a bruxa? Qual é a mulher indicada por estes dois pesadelos do mal? Perguntai outra vez, quem foi a mulher que foi trazida para a Inglaterra por Thomas Cromwell; e que é amiga de Lorde Lisle?

Claramente, só existe uma mulher.

Só uma mulher, trazida para a Inglaterra por Thomas Cromwell, amiga de Lorde Lisle, acabando com a virilidade do rei, de forma a torná-lo impotente na noite do seu casamento e em todas as outras que se seguiram.

Ainda ninguém disse o nome da bruxa, estão a recolher provas.

A partida da Princesa Maria foi-me comunicada e só tenho um momento para estar com ela, enquanto aguardamos que tragam os cavalos dos estábulos.

- Sabeis que estou inocente de qualquer acto criminoso - digo-lhe, a coberto do ruído dos criados, que correm de um lado para o outro e dos guardas que chamam os cavalos.

- O que quer que ouçais no futuro a meu respeito, por favor acreditai em mim: estou inocente.

- Claro - diz ela num tom uniforme. Não olha para mim. É filha de Henrique, experimentou um longo ensinamento para aprender a não deixar transparecer o que sente. - Rezarei por vós todos os dias. Rezarei para que todos vejam a vossa inocência, tal como eu.

- Estou certa de que Lorde Lisle também está inocente - digo.

- Sem qualquer dúvida - responde ela, do mesmo modo ibrupto.

- Eu posso salvá-lo? Vós podeis?

- Não.

- Princesa Maria, pela vossa fé, não se pode fazer nada?

Ela arrisca-se a olhar-me de lado.

- Querida Ana, nada. Não há nada a fazer, excepto manter a :alma e rezar por tempos melhores.

- Dizeis-me uma coisa?

Ela olha em volta e vê que os seus cavalos ainda não chegam. Pega-me no

braço e caminhamos um pouco em direcção ao )átrio dos estábulos, como se estivéssemos a tentar perceber quanto tempo iriam demorar.

- O que quereis saber?

- Quem é a família Pole? E porque é que o rei teme os Papistas, quando os derrotou há tanto tempo?

- Os Pole são a família Plantageneta, da Casa de York, alguns diriam que são os verdadeiros herdeiros do trono da Inglaterra - diz ela. - Lady Margaret Pole era a mais fiel amiga da minha mãe, foi uma mãe para mim, é totalmente leal ao trono. O rei tem-na na Torre, agora, com toda a família dela que conseguiu capturar. São acusados de traição, mas toda a gente sabe que não cometeram nenhum crime, além do facto de serem de sangue Plantageneta. O rei tem tanto receio de perder o trono que julgo que não permitirá que esta família sobreviva.

Os dois netos de Lady Margaret, dois rapazinhos, também estão na Torre. Não os vão deixar vivos. A ela, à minha querida Lady Margaret, não lhe vai ser permitido viver. Outros membros da família estão no exílio, nunca podem vir a casa.

- São papistas? - pergunto.

- Sim - responde ela em voz baixa. - São. Um deles, Reginald, é cardeal.

Algumas pessoas diriam que eles são os verdadeiros reis e seguem a fé autêntica da Inglaterra. Mas isso seria traição e seriam condenados à morte, só por o afirmarem.

- E porque é que o rei teme assim tanto os Papistas? Pensei que a Inglaterra estava convertida à fé reformada? Pensei que os Papistas tinham sido derrotados?

A Princesa Maria abana a cabeça.

- Não. Estou convencida de que menos de metade das pessoas receberam bem as mudanças e muitos desejam repor as práticas antigas. Quando o rei negou a autoridade do papa e destruiu os mosteiros, houve uma grande revolta de homens no Norte do país,

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determinados a defender a igreja e os templos sagrados. Chamaram-lhe Peregrinagem da Graça e marcharam sob o estandarte das cinco chagas de Jesus Cristo. O rei mandou o homem mais implacável do reino para os combater, à frente do exército, e tinha tanto receio deles que pediu uma conferência, falou com palavras doces, e prometeu-lhes o perdão e um Parlamento.

- E quem é que ele era? - eu já sei.

- Thomas Howard, Duque de Norfolk.

- E o perdão?

- Assim que o exército dispersou, ele mandou decapitar os líderes e enforcar os seguidores - ela fala com tão pouca inflexão como se estivesse a queixar-se de que a carruagem da bagagem está mal acondicionada. - Ele prometeu um parlamento e um perdão, dando a palavra sagrada do rei. Também deu a sua própria palavra, pela sua honra. Não significava nada.

- Foram derrotados?

- Bem, ele mandou enforcar vários monges nas traves dos telhados das próprias abadias - diz ela amargamente. - Por isso, esses não voltarão a desafiá-

lo. Mas não, acredito que a verdadeira fé nunca será derrotada.

Ela volta-nos para que caminhemos de novo em direcção à porta. Sorri e acena com a cabeça para alguém que lhe deseja “boa viagem”, mas eu não posso sorrir.

- O rei tem medo do seu próprio povo - diz ela. - Ele teme os rivais. Até de mim ele tem medo. É meu pai e, no entanto, por vezes, penso que está meio louco de desconfiança. Qualquer receio que sinta, por muito idiota, é real para ele. Se ele sequer sonhar que Lorde Lisle o traiu, então, Lorde Lisle é um homem morto. Se alguém sugerir que os seus problemas convosco são parte de uma conspiração, vós correreis o mais sério dos perigos. Se podeis fugir, devíeis fazê-lo. Ele não consegue distinguir o medo da verdade. Não consegue ver a diferença entre os pesadelos e a realidade.

- Eu sou Rainha da Inglaterra - digo eu. - Não me podem acusar de bruxaria.

Ela vira-se para me olhar nos olhos pela primeira vez.

- Isso não vos vai salvar - diz ela. - Não salvou Ana Bolena. Eles acusaram-na de bruxaria, arranjaram as provas e consideraram-na culpada. Ela era tão rainha quanto vós - de repente, começa a rir-se, como se eu tivesse dito alguma coisa engraçada, e eu vejo que algumas das minhas damas saíram do salão e estão a observar-nos. Eu também me rio, mas tenho a certeza de que qualquer pessoa poderia ter ouvido o medo na minha voz. Ela pega-me no braço. -

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Se alguém me perguntar sobre o que estávamos a falar quando saímos e voltámos a subir as escadas, direi que me estava a queixar de que iria chegar tarde e tinha medo de me cansar.

- Sim - concordo, mas estou tão assustada que tremo como se estivesse arrepiada de frio. - Direi que estáveis a ver quando estariam prontos.

A Princesa Maria aperta-me o braço.

- O meu pai alterou as leis deste país - diz ela. - Agora, o simples acto de pensar mal do rei é considerado um crime de traição, punível com a morte. Não tendes de dizer nada, não tendes de fazer nada. Os vossos pensamentos secretos agora são traição.

- Eu sou rainha - insisto obstinadamente.

- Ouvi - diz ela, sem rodeios. - Ele também modificou o processamento da justiça. Não tendes de ser condenada por um tribunal. Podeis ser condenada à morte através de uma Bill of Attainder. Não é preciso mais nada para além da ordem do rei, apoiada pelo seu parlamento. E eles nunca se recusam a apoiá-lo.

Rainha ou pedinte, se o rei quiser que morrais, agora só tem de o ordenar. Ele nem sequer tem de assinar o mandado para uma execução, basta-lhe usar um selo.

Apercebo-me de que estou a segurar o meu maxilar para impedir que os meus dentes batam uns nos outros.

- O que credes que eu devia fazer?

- Escapai - diz ela. - Fugi antes de ele chegar a vós.

Depois de ela ter partido sinto que a minha última amiga abandonou a corte.

Volto aos meus aposentos e as minhas damas preparam uma mesa para jogarem às cartas. Deixo-as começar a jogar, depois, chamo o meu embaixador e levo-o para um vão de janela onde não podem ouvir o que dizemos, para lhe perguntar se alguém o questionou a meu respeito. Ele responde que não, afirma ser ignorado por toda a gente, isolado, como se estivesse contaminado com a peste.

Pergunto-lhe se pode alugar ou comprar dois cavalos velozes e mantê-los fora do castelo, no caso de eu precisar deles de repente. Diz-me que não tem dinheiro para alugar nem comprar cavalos, e que, de qualquer modo, o rei mantém guardas às minhas portas, de noite e de dia. Os homens que pensei lá estarem para me manterem em segurança, para abrirem as portas para a minha sala Bill of Attainder. acto legislativo passando julgamento de alta traição que implica a extinção dos direitos civis dos condenados à pena capital. (N. da T.) 227

de audiências, para anunciarem os meus convidados, são agora meus carcereiros.

Tenho muito medo. Tento rezar, mas até as palavras das orações são uma armadilha. Não posso aparentar estar a tornar-me papista, uma papista como agora dizem que Lorde Lisle é; e todavia também não posso dar mostras de ter mantido a religião do meu irmão; os Luteranos são suspeitos de fazerem parte da conspiração de Cromwell para arruinar o rei.

Quando vejo o rei, tento parecer agradável e calma à frente dele. Não me atrevo a desafiá-lo, nem sequer a reclamar a minha inocência. O mais assustador disto tudo é o seu comportamento comigo, que agora é caloroso e amigável, como se fôssemos conhecidos, prestes a separarem-se após uma breve viagem em conjunto. Comporta-se como se o tempo que passámos juntos tivesse sido um interlúdio prazenteiro que agora se aproxima naturalmente do fim.

Ele não se vai despedir de mim, sei-o. A Princesa Maria avisou-me de que seria assim. Não vale a pena eu estar à espera do momento em que ele me diga que vou ser acusada. Sei que uma destas noites, quando me levantar da mesa de jantar, lhe fizer uma vénia e ele me beijar a mão daquele modo tão cortês, será a última vez que o verei. Posso sair do salão com as minhas damas atrás de mim para entrar nos meus aposentos e encontrá-los cheios de soldados e as minhas roupas já emaladas, as minhas jóias devolvidas ao Tesouro. É uma viagem curta,

do Palácio de Westminster até à Torre, levar-me-ão pelo rio, no escuro, e eu passarei pelo portão que dá para o curso de água, e partirei, para sempre, através do cepo de madeira no Relvado da Torre.

O embaixador escreveu ao meu irmão para lhe dizer que estou desesperadamente assustada; mas não espero ter resposta. William não se importará de me saber doente de medo e, na altura que tomarem conhecimento das acusações contra mim, será demasiado tarde para me salvarem. E talvez William nem sequer optasse por me salvar. Permitiu que este perigo se instalasse, devia odiar-me mais do que eu alguma vez imaginei.

Se alguém me vai salvar, terei de ser eu, eu própria. Mas como é que uma mulher se pode salvar da acusação de bruxaria? Se Henrique anunciar ao mundo que é impotente porque eu lhe tirei a virilidade, como poderei provar o contrário? Se ele disser ao mundo que consegue deitar-se com Catarina Howard, mas não comigo, então, o seu caso está provado e a minha negação é apenas mais uma afirmação da minha astúcia satânica. Uma mulher não consegue provar a sua inocência quando um homem presta testemunho contra ela. Se Henrique pretende que eu seja estrangulada como bruxa, então, nada pode salvar-me. Ele alegou que Lady Ana Bolena era bruxa e ela morreu por causa disso. Nunca lhe disse adeus, e amara-a com paixão. Simplesmente vieram buscá-la, um dia, e levaram-na. Agora estou à espera, que eles me venham buscar a mim.

229

Jane Bolena, Palácio de Westminster, Junho de 1540

Um bilhete deixado cair no meu colo por um dos criados que serviam o jantar enquanto se inclinava para levantar a travessa da carne, pede-me que vá imediatamente ter com o meu senhor, e assim que o jantar está terminado, faço o que me ordenam. Actualmente, a rainha vai directamente para os seus aposentos a seguir ao jantar, não irá reparar na minha ausência, entre a confusão agitada das damas que ainda permanecem nos seus apartamentos quase vazios. Catarina Howard não está na corte, regressou à casa da avó, em Lambeth. Lady Lisle encontra-se em prisão domiciliária pelos graves crimes do marido, dizem que está bastante perturbada com o desgosto e o medo. Sabe que ele irá morrer. Lady Rutland está calada e recolhe-se nos seus aposentos à noite, também deve sentir receio; mas eu não sei de que poderá ser acusada. Anne Bassett foi para casa de

um primo, alegando estar doente, Catarina Carey foi chamada pela mãe, Maria.

Pede permissão para que Catarina volte para casa, por não se encontrar muito bem de saúde. Podia rir-me da desculpa evidente. Maria Bolena sempre foi muito habilidosa em manter-se, a si e aos seus, longe de problemas. Uma pena que não tenha feito o mesmo em relação ao irmão. Mary Norris tem de ajudar a mãe no campo nalgumas tarefas especiais. A viúva de Henry Norris viu o cadafalso, a última vez que o rei conspirou contra a sua mulher. Não quererá ver a filha subir os degraus que o marido pisou.

Todas nos mantemos recatadas nas nossas conversas e recolhidas nos nossos comportamentos. Os maus momentos regressaram mais uma vez à corte do rei Henrique, e todos sentem medo, todos estão sob suspeita. É como viver num pesadelo, todos os homens, todas as mulheres sabem que cada palavra que disserem, cada gesto que efectuem, pode ser usado como prova contra eles. Um inimigo pode transformar uma indiscrição num crime, um amigo pode trocar uma confidência por uma garantia de segurança. Somos uma corte de cobardes e de coscuvilheiros. Já ninguém caminha, andamos nas pontas dos pés, já ninguém sequer respira, sustemos a

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respiração. O rei passou a desconfiar dos amigos e ninguém pode ter a certeza de estar em segurança.

Esgueiro-me até aos aposentos do meu senhor, o Duque, pelas sombras, abro a porta e entro, em silêncio. O meu senhor, o Duque, está de pé junto da janela, com as portadas abertas para deixar entrar o ar morno da noite, as chamas das velas na sua secretária tremeluzem com a corrente de ar. Ele levanta os olhos e sorri, quando entro na sala, quase poderia pensar que ele gosta de mim.

- Ah, Jane, minha sobrinha. A rainha vai para Richmond com uma corte muito reduzida; quero que vá com ela.

- Richmond? - ouço a minha própria voz tremer e respiro fundo. Isto significa detenção domiciliária enquanto investigam as alegações contra ela. Mas porque me estão a ordenar que vá com ela? Também vou ser acusada?

- Sim. Ireis lá ficar com ela e tereis atenção a quem entra e sai, e a tudo o que ela disser. Em particular, deveis estar alerta em relação ao Embaixador Harst.

Estamos convencidos de que ele não pode fazer nada, mas ser-me-ia útil que vos

certificásseis de que ela não tem planos para fugir, que não envia mensagens, esse tipo de coisas.

- Por favor... - interrompo-me, a minha voz saiu fraca. Sei que esta não é a forma de lidar com ele.

- Sim? - ele continua a sorrir, mas os seus olhos escuros estão atentos.

- Não a posso impedir de fugir. Sou uma mulher, sozinha.

Ele abana a cabeça.

- Os portos vão ser fechados a partir desta noite. O embaixador dela descobriu que não há um único cavalo que possa ser comprado ou alugado em toda a Inglaterra. Os próprios estábulos dela foram barrados. Os aposentos dela fechados. Ela não vai poder fugir nem pedir ajuda. Todos os que estão ao serviço dela são como carcereiros. Só tendes de a vigiar.

- Por favor, deixai-me ir e servir Catarina - respiro fundo antes de o dizer. -

Ela necessitará de conselhos, para poder ser uma boa rainha.

O Duque faz uma pausa para pensar.

- Ela irá ser - diz ela. - É uma idiota, aquela rapariga. Mas junto da avó não lhe pode acontecer mal nenhum.

Ele tamborila com a unha no dente, reflectindo.

- Ela terá de aprender a ser rainha - digo eu.

Ele hesita. Os dois conhecemos rainhas da Inglaterra que eram, de verdade, rainhas. A pequena Catarina não está preparada para lhes chegar aos sapatos, muito menos caminhar neles, nem vários anos de treino a tornariam majestosa.

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- Não, não tem - responde ele. - O rei já não quer uma grande rainha ao seu lado. Quer uma menina para mimar, uma rapariguinha, uma égua de criação

jovem para receber a sua semente. Catarina só tem de ser obediente.

- Então, permiti que diga a verdade: não quero ir para Richmond com a Rainha Ana. Não quero servir de testemunha contra esta rainha.

Os seus olhos escuros e penetrantes olham rapidamente para mim.

- Testemunha de quê? - pergunta ele.

Estou demasiado cansada para discutir com ele.

- Testemunha do que quer que seja que queirais que eu veja - digo. - O que quer que o rei queira que eu diga. Não o quero dizer. Não quero prestar testemunho contra ela.

- E porque não? - pergunta ele, como se não soubesse a resposta.

- Estou farta de julgamentos - digo honestamente. - Tenho medo dos desejos do rei, agora. Não sei o que ele quer. Não sei até onde ele será capaz de ir. Não quero servir de testemunha no julgamento de uma rainha - nunca mais.

- Lamento - diz ele sem remorsos. - Mas precisamos de alguém que jure que manteve uma conversa com a rainha na qual a rainha deixou claro que era uma virgem intocada, absolutamente intocada e, além disso, ignorava quaisquer actos que possam decorrer entre um homem e uma mulher.

- Ela deitou-se com ele na mesma cama, noite após noite - digo eu impaciente.

- Todos os levámos até à cama na primeira noite. Vós estáveis lá, o Arcebispo da Cantuária estava lá. Ela foi educada para conceber um filho e um herdeiro, casou-se com esse único objectivo. Era difícil que ignorasse os actos entre um homem e uma mulher. Nenhuma mulher no mundo suportou tantas tentativas infrutíferas.

- É por isso que precisamos de uma dama de reputação irrepreensível para o jurar - diz ele calmamente. - Uma mentira tão improvável requer uma testemunha plausível: vós.

- Qualquer uma das outras pode fazê-lo por vós - reclamo. - Uma vez que essa conversa nunca teve lugar, visto ser uma conversa impossível, seguramente não importa quem afirme que aconteceu?

- Gostaria de incluir o vosso nome como testemunha - diz o Duque. - O rei ficaria satisfeito por ver o vosso serviço. Seria bom para nós.

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- É para provar que ela é bruxa? - pergunto sem rodeios. Estou demasiado cansada do meu trabalho e enjoada comigo mesma para recorrer a rodeios com o meu duque tio esta noite. - É realmente para provar que ela é uma bruxa e para a condenar à morte?

Ele ergue-se em toda a sua estatura e baixa os olhos para mim.

- Não nos cabe a nós prever o que os comissários do rei poderão descobrir -

diz ele. - Irão recolher provas, e proferirão o veredicto. Tudo o que tereis de fornecer será uma declaração sob juramento, jurada pela vossa fé diante de Deus.

- Não quero ficar com a morte dela na minha consciência - posso ouvir o desespero na minha voz. - Por favor. Deixai que seja outra pessoa a prestar esse juramento. Não quero ir com ela para Richmond e depois jurar uma mentira contra ela. Não quero ficar a ver enquanto a levam para a Torre. Não quero que ela morra com base no meu testemunho falso. Fui amiga dela, não quero ser sua assassina.

Ele aguarda em silêncio até a torrente de recusas terminar, depois olha para mim e sorri novamente, mas não há qualquer calor no seu rosto.

- Com certeza - diz ele. - Jurareis apenas a declaração que prepararmos para vós, e os vossos superiores decidirão o que irá acontecer à rainha. Manter-me-eis informado de quem ela vê e o que faz da forma habitual, um dos meus homens acompanhar-vos-á até Richmond. Observá-la-eis atentamente. Ela não pode fugir. E quando tudo tiver terminado, sereis dama de companhia de Catarina.

Tereis o vosso lugar na corte, sereis dama de companhia da nova rainha da Inglaterra. Essa vai ser a vossa recompensa. Ireis ser a principal dama da corte da nova rainha. Prometo-vos. Sereis a chefe dos aposentos privados dela.

Ele julga que me comprou com esta promessa mas eu estou farta desta vida.

- Não posso continuar a fazer isto - digo simplesmente. Estou a pensar em Ana

Bolena, no meu marido, e nos dois a irem para a Torre com todas as provas contra eles, sem que nenhuma delas fosse verdadeira. Estou a pensar neles os dois, a caminharem para a morte sabendo que a sua família tinha prestado testemunho contra eles, e que foi o tio quem ditou a sentença de morte. Estou a pensar neles, que confiavam em mim, à espera que eu fosse apresentar provas em defesa deles, confiantes no meu amor por eles, seguros de que eu iria salvá-

los. - Eu não posso continuar a fazer isto.

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- Espero bem que não - diz ele com um ar majestoso. - Queira Deus que nunca o volteis a fazer. Na minha sobrinha Catarina, o rei encontrou finalmente uma esposa verdadeira e honrada. Ela é uma rosa sem espinhos.

- Uma quê?

- Uma rosa sem espinhos - repete o Duque. Mantém o rosto impecavelmente sério. - É isso que devemos chamar-lhe. É isso que ele quer que lhe chamemos.

234

Catarina, Norfolk House, Lambeth, Junho de 1540

Agora, vejamos, o que é que eu tenho? Tenho as casas dos assassinos que foram o primeiro presente do rei, bem como as suas terras. Tenho as jóias que ganhei por um apertão fugaz na galeria silenciosa. Tenho meia dúzia de vestidos, pagos pelo meu tio, a maioria deles novos, e toucados a condizer. Tenho um quarto de dormir só para mim na casa da minha avó e também a minha própria sala de audiências, e algumas criadas, mas ainda não tenho damas de companhia.

Compro vestidos quase todos os dias, os mercadores atravessam o rio com rolos de seda, como se eu fosse uma costureira por minha conta. Fazem-me as provas dos vestidos e murmuram, com as bocas cheias de alfinetes, que eu sou a mais bonita e mais elegante rapariga que alguma vez tiveram de vestir com um peitilho demasiado apertado. Baixam-se até ao chão para fazer a bainha do meu vestido e afirmam que nunca viram uma rapariga tão bonita, uma verdadeira rainha entre as raparigas.

Adoro isto. Se fosse mais razoável, ou uma alma mais séria, sei que estaria

preocupada ao lembrar-me da minha pobre senhora, a rainha, e do que lhe poderá acontecer, e a ideia desagradável de que em breve me irei casar com um homem que enterrou três mulheres e que talvez vá sepultar a quarta, e que tem idade suficiente para ser meu avô, além de cheirar muito mal... mas não me posso deixar afectar por estas preocupações. As outras mulheres fizeram o que tinham de fazer, as suas vidas terminaram conforme Deus e o rei desejaram; não tem realmente nada que ver comigo. Nem a minha prima Ana Bolena significará nada para mim. Não pensarei nela, nem no nosso tio a empurrá-la para o trono e depois para o cadafalso. Ela tinha os seus vestidos, a sua corte e as suas jóias.

Teve o seu tempo para ser a mais importante mulher da corte, teve o seu tempo para ser a favorita da família e o orgulho de todos nós; e agora eu terei o meu.

Terei o meu tempo. Serei alegre. Estou tão sedenta quanto ela, da cor e da riqueza, dos diamantes e da sedução, dos cavalos e dos 235

bailes. Quero a minha vida, quero o melhor, o melhor de tudo; e por sorte, e por um capricho do rei (que Deus o preserve), irei ter o melhor do melhor. Tinha esperanças de captar as atenções de um dos grandes senhores da corte, de ser escolhida para fazer parte da sua família e de ser entregue em casamento a um nobre jovem que pudesse ascender através da corte. Isso era o máximo a que aspirava. Mas, em vez disso, tudo vai ser diferente. Muito melhor. O próprio rei viu-me, o rei da Inglaterra deseja-me, o homem que é Deus na terra, que é o pai do seu povo, que é a lei e a palavra, deseja-me. Fui escolhida pelo próprio representante de Deus na Terra. Ninguém se pode meter no seu caminho nem se atreve a contrariá-lo. Não se trata de um homem qualquer que me viu e me desejou, nem sequer de um mortal. Trata-se de um semideus que reparou em mim. Deseja-me e o meu tio diz-me que é meu dever e minha honra aceitar a proposta dele. Irei ser rainha da Inglaterra - imaginem só! Eu irei ser rainha da Inglaterra. Depois, veremos o que eu, a pequena Kitty Howard, poderei contar como meus pertences!

Na verdade, sinto-me dividida entre o terror e a excitação, com a ideia de ser sua consorte e sua rainha, a mulher mais importante da Inglaterra. Sinto uma pontada de vaidade por ele me desejar, esforço-me por pensar nisso, e ignoro a minha sensação de desilusão por, apesar de ser praticamente Deus, ser apenas um homem como outro qualquer, e um homem muito velho que é praticamente impotente, um velho que nem sequer consegue fazer o que é normal numa

latrina, e eu tenho de o seduzir como faria a qualquer homem que, na sua luxúria e vaidade, me desejasse. Se ele me der o que eu quero, terá os meus favores, não posso ser mais franca do que isto. Quase me rio de mim mesma, por conceder ao homem mais importante do mundo os meus pequenos favores. Mas se ele os quiser, e se pagar um preço tão alto para os ter, então, eu estou no mercado, como qualquer vendedor agressivo: a vender-me a mim mesma.

A minha avó, a Duquesa, diz-me que sou a menina inteligente dela e que trarei riqueza e grandeza para a nossa família. Ser rainha é um triunfo que está para além dos nossos sonhos mais ambiciosos, mas existe uma esperança ainda maior.

Se eu conceber uma criança e der à luz um rapaz, a nossa família ascenderá tão alto como os Seymour. E se o rapaz dos Seymour, o Príncipe Eduardo, morresse (Deus impeça que tal aconteça, claro), mas se ele morresse, o meu filho seria o próximo rei da Inglaterra e nós, os Howard, seríamos parentes do rei. Então, seríamos a família real, ou o equivalente, e a família mais importante da Inglaterra, e todos teriam de


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me dar graças pela sua boa fortuna. O meu tio Norfolk dobraria o joelho diante de mim e suplicaria o meu patrocínio. Quando penso nisto, rio-me e não posso continuar a sonhar acordada, por puro deleite.

Sinto uma pena imensa da minha senhora, a Rainha Ana. Gostava de ter permanecido como sua dama de companhia e de a ver ficar feliz. Mas o que não pode ser, não pode ser, e eu seria muito tonta se lamentasse a minha boa sorte.

Ela é como aqueles pobres homens que foram executados, só para que eu pudesse ficar com as suas terras, ou as pobres freiras que foram expulsas das suas casas, para que todos pudéssemos ficar mais ricos. Essas pessoas têm de sofrer para nosso benefício. Aprendi que o mundo é mesmo assim. E não é culpa minha que o mundo seja um sítio difícil para os outros. Espero que ela encontre a felicidade, como eu encontrei. Talvez ela volte para casa, para junto do irmão, seja lá onde isso fica. Pobre querida. Talvez se case com o homem a quem estava prometida para casar. O meu tio disseme que ela procedeu muito mal em vir para a Inglaterra quando sabia que estava destinada a casar-se com outro homem. Isto é algo bastante chocante e eu estou surpreendida com ela. Sempre me pareceu uma jovem bem comportada, não posso acreditar que ela possa ter feito algo tão errado. É claro que quando o meu tio fala de um noivado anterior, não posso deixar de pensar no meu pobre, querido Francis Dereham. Nunca mencionei as

promessas que trocámos, e na realidade, penso ser melhor esquecer, pura e simplesmente, tudo isso, e fingir que nunca aconteceu. Nem sempre é fácil ser uma mulher jovem neste mundo que está cheio de tentações, e eu não critico a Rainha Ana por ter estado prometida a outro homem e depois casar-se com o rei.

Eu própria não o faria, é evidente, mas uma vez que Francis Dereham e eu não éramos propriamente casados, nem sequer estávamos exactamente prometidos, não penso nisso. Não tinha um vestido como devia ser, por isso, é claro que não foi um casamento verdadeiro nem os votos foram vinculativos. Tudo o que fizemos foi uma fantasia de crianças e trocar alguns beijos inocentes. Não foi mais do que isso, na realidade. Mas podia ter-lhe acontecido qualquer coisa pior do que ser mandada de volta para casa com o seu primeiro amor. Eu própria sempre pensarei em Francis com afecto. O nosso primeiro amor é sempre muito doce, provavelmente mais doce do que um marido muito velho. Quando for rainha farei algo muito simpático por Francis.

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Ana, Palácio de Westminster, 10 de Junho de 1540

Querido Deus, salvai-me, querido Deus, salvai-me, prenderam Thomas Cromwell. Thomas Cromwell, o homem que foi responsável por me trazer para a Inglaterra, foi detido, e acusado de traição. Traição! Foi o servidor do rei, foi o seu cão. É tão capaz de cometer um acto de traição como os cães de caça do rei.

É claro que o homem não é nenhum traidor. É evidente que foi detido como castigo por ter arranjado o meu casamento. Esta acusação leva-o facilmente ao cadafalso e ao machado do executor. Se ele vai para a Torre, então, não haverá qualquer dúvida de que eu irei a seguir.

O primeiro homem a dar-me as boas-vindas em Calais, o meu caríssimo Lorde Lisle, foi acusado de traição e também de ser um papista secreto, de ter participado numa conspiração papista. Dizem que me deu as boas-vindas como rainha porque sabia que eu impediria o rei de conceber um filho. Foi detido e acusado de traição por uma conspiração que me designa como um dos elementos. Não lhe serve de defesa o facto de estar inocente. Não lhe serve de defesa o facto de a conspiração ser absurda. Nas caves da Torre existem divisões terríveis onde homens implacáveis realizam tarefas cruéis. Um homem dirá qualquer coisa depois de ser torturado por um deles. O corpo humano não consegue resistir à dor que eles são capazes de infligir. O rei permite que os prisioneiros sejam estirados, as pernas separadas do corpo, os braços dos

ombros. Uma barbaridade destas é novidade neste país; mas agora é permitida, à medida que o rei se vai tornando um monstro. Lorde Lisle é de boa ascendência, de modos discretos, não consegue tolerar a dor, seguramente vai dizer-lhes o que eles quiserem, seja lá o que for. Depois, será levado para o cepo como um traidor que confessou o seu crime, e quem sabe o que o terão feito confessar a meu respeito?

A rede está a apertar-se à minha volta. Está tão perto agora que quase lhe consigo ver os fios. Se Lorde Lisle disser que sabia que eu iria tornar o rei impotente, sou uma mulher morta. Se Thomas Cromwell admitir que sabia que eu estava prometida e que me casei

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com o rei quando não estava livre para o fazer, sou uma mulher morta. Eles têm o meu amigo Lorde Lisle, têm o meu aliado Thomas Cromwell. Irão torturá-los até conseguirem as provas de que precisam, e depois virão buscar-me. Em toda a Inglaterra só existe um homem que me pode ajudar. Não tenho muita esperança, mas não tenho mais nenhum amigo. Mando chamar o meu embaixador, Cari Harst.

Está um dia quente e as janelas estão todas abertas para que entre algum ar vindo do jardim. Do lado de fora, consigo ouvir o som da corte a passear de barco no rio. Estão a tocar alaúde e a cantar e eu consigo ouvir os risos. Mesmo a esta distância, consigo ouvir o som agudo de uma alegria forçada. O quarto está frio e escuro, mas ambos transpiramos.

- Arranjei cavalos - diz ele na nossa língua, num sussurro. - Tive de percorrer a cidade toda para os encontrar e acabei por comprá-los a uns mercadores hanseáticos. Pedi dinheiro emprestado para a viagem. Penso que devemos partir imediatamente.

- Não posso ir agora - digo. - Ele vai mandar-me para Richmond. Partiremos de lá. Será mais fácil escapar de lá.

Ele concorda com a cabeça.

- O que dizem de Cromwell? - pergunta.

- É bárbaro. Eles são uns selvagens. Ele entrou no Conselho Privado sem fazer

ideia de que havia algum problema. Os seus antigos amigos e companheiros da nobreza retiraram-lhe os distintivos de serviço, a Ordem da Jarreteira.

Debicaram-no como os corvos debicam um coelho morto. Foi levado entre guardas como um criminoso. Nem sequer vai ser submetido a julgamento, não precisam de chamar nenhumas testemunhas, não têm de provar nenhuma acusação. Vai ser decapitado de acordo com uma Bill of Attainder, só necessita da palavra do rei.

- É possível que o rei não diga essa palavra? Não lhe irá conceder um indulto?

Fez dele Conde há algumas semanas como sinal do seu apreço.

- Foi tudo a fingir, não passava de uma falsidade. O rei demonstrou-lhe o seu apreço para que o seu ódio agora seja mais sentido. Cromwell suplicará por misericórdia, seguro de que obterá o perdão, mas não irá obtê-lo. É certo que enfrentará a morte como traidor.

- O rei despediu-se dele? - pergunto, como se fosse uma pergunta ocasional.

- Não - responde o embaixador. - Não houve nenhum sinal de aviso para o homem. Separaram-se como num dia normal, sem

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quaisquer palavras especiais. Cromwell compareceu na reunião do Conselho como se não estivesse a acontecer nada fora do comum. Pensou que fora chamado para dirigir a reunião como Secretário de Estado, na sua pompa e poder, e depois, em instantes, deu por si detido e com os seus antigos inimigos a rirem-se dele.

- O rei não lhe disse adeus - digo eu numa espécie de horror silencioso. - É

como elas dizem. O rei nunca diz adeus.

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Jane Bolena, Palácio de Westminster, 24 de Junho de 1540

Estamos sentadas nos aposentos da rainha, em silêncio, a costurar camisas para os pobres. Catarina Howard não está no seu lugar, tem estado com a avó,

em Norfolk House, Lambe th, toda esta semana. O rei visita-a quase todas as noites, leva o jantar consigo como se fosse um homem comum, não um rei.

Atravessa o rio na barcaça real, movida a remos, e fá-lo às claras, não se preocupa em ocultar a sua identidade.

Toda a cidade está a fervilhar com a ideia de que, decorridos apenas seis meses do casamento, o rei encontrou uma amante na rapariga Howard. Os extraordinariamente ignorantes alegam que, uma vez que o rei tem uma amante, a rainha deve estar grávida, e que tudo está bem neste mundo abençoado: um filho e herdeiro Tudor no ventre da rainha e o rei a divertir-se por sua conta noutro lugar qualquer, como sempre faz. Aqueles de entre nós que sabemos mais do que isso, nem nos damos ao trabalho de corrigir os que não sabem nada.

Sabemos que Catarina Howard é protegida como uma virgem vestal agora, dos fracos poderes sedutores do rei. Sabemos que a rainha continua intocada. O que não sabemos, o que não podemos saber, é o que vai acontecer.

Na ausência do rei, a corte tornou-se desgovernada e, quando a Rainha Ana e nós, as damas, vamos jantar, o trono está vazio à cabeça da sala e não há ninguém para dar ordens. O salão está ávido, como uma colmeia atarefada, fervilhando de boatos e rumores. Todos querem estar do lado vencedor, mas ninguém sabe qual deles irá ser. Existem vazios nas mesas superiores porque algumas das famílias deixaram completamente a corte, por medo, ou por desagrado pelo novo terror. Qualquer pessoa que se saiba que tenha simpatias Papistas está em perigo, e fugiu para as suas propriedades rurais. Qualquer pessoa que seja a favor da Reforma teme que o rei se tenha revoltado contra ela, visto ter novamente como favorita uma rapariga Howard, e Stephen Gardiner a compor as orações, que são tal e qual eram quando vieram de Roma, e o 241

Arcebispo Cranmer, reformista, está bastante fora de moda. Para trás, na corte, ficaram os oportunistas e os imprudentes. É como se todo o mundo estivesse a ser desvendado com a revelação da ordem. A rainha empurra a comida em volta do prato com o garfo de ouro, a cabeça o mais vergada possível, de modo a evitar os olhares vivos e curiosos das pessoas que vieram ver uma rainha abandonada no seu trono, sozinha no seu palácio, e que vêm às centenas para a ver, ávidos por verem uma rainha na sua última noite na corte, talvez na sua última noite à face da terra.

Regressamos aos nossos aposentos assim que a mesa é levantada, não há entretenimentos para o rei, a seguir ao jantar, porque ele nunca cá está. É quase como se não houvesse rei, e na sua ausência, não houvesse rainha e nenhuma corte. Tudo mudou, ou aguarda temerosamente mais mudanças. Ninguém sabe o que irá acontecer, e todos estão alerta para qualquer sinal de perigo.

E fala-se, permanentemente, de mais detenções. Hoje, ouvi dizer que Lorde Hungerford tinha sido levado para a Torre, e quando me contaram os crimes que cometera foi como se tivesse passado do sol do meio dia para uma casa de gelo.

É acusado de comportamento antinatural, como o meu marido foi: sodomia com outro homem. É acusado de abusar da filha, tal como o meu irmão Jorge foi acusado da prática de incesto com a irmã, Ana. É acusado de traição e de prever a morte do rei, tal como Jorge e Ana, que foram acusados em conjunto. Talvez a mulher dele seja convidada a testemunhar contra ele, tal como me pediram que fizesse. Estremeço ao pensar nisto, leva-me toda a minha força de vontade de permanecer quieta nos aposentos da rainha e a fazer os pontos direitos nas bainhas. Consigo ouvir um martelar nos meus ouvidos, consigo sentir o sangue a aquecer-me as bochechas, como se tivesse adoecido e estivesse com febre. Está a acontecer outra vez, o Rei Henrique está a voltar-se novamente contra os seus amigos.

Isto é uma sangria, uma série de acusações contra aqueles que o rei quer longe da sua vista. A última vez que Henrique procurou a vingança, os dias longos que o seu ódio durou levaram o meu marido, outros quatro homens e a rainha da Inglaterra. Quem pode duvidar de que Henrique está prestes a fazê-lo mais uma vez? Mas quem pode saber quem ele irá levar?

O único som que se ouve nos aposentos da rainha é o leve tamborilar de uma dezena de agulhas a perfurar um tecido áspero, e um sussurro do fio a ser puxado. Todos os risos, a música e os jogos que costumavam encher a sala abobadada foram silenciados. Nenhuma de nós se atreve a falar. A rainha sempre foi

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cautelosa, reservada no que dizia. Agora, nestes dias de receio, é mais do que discreta, está absolutamente apática, num estado de terror silencioso.

Já antes vi uma rainha que temia pela sua vida; sei o que é estar na corte de

uma rainha quando todos esperamos que algo aconteça. Sei como as damas da rainha espreitam furtivamente, quando, no fundo dos seus corações, sabem que a rainha irá ser levada, e quem sabe onde mais poderão cair as culpas?

Há várias cadeiras vazias nos aposentos da rainha. Catarina Howard foi embora, e as salas são um lugar muito mais silencioso e aborrecido sem ela.

Lady Lisle está parcialmente escondida, parcialmente à procura das poucas amigas que se atrevem a reconhecê-la, doente de tanto chorar. Lady Southampton deu uma desculpa para se ausentar. Creio que receia que o seu marido seja apanhado na armadilha que está a ser montada para capturar a rainha. Southampton era outro dos amigos da rainha quando ela chegou à Inglaterra. Anne Bassett conseguiu ficar doente desde a detenção do pai e agora foi para casa de uma parente. Catarina Carey foi levada da corte, sem uma palavra de aviso, pela mãe, que sabe tudo acerca de quedas de rainhas. Mary Norris foi chamada pela mãe para quem estes eventos também são demasiado familiares. Todos os que prometeram à rainha a sua amizade interminável e eterna estão agora aterrorizados de que ela o alegue e que a acompanhem na queda. Todas as damas receiam poder ser apanhadas na armadilha que está a ser aprimorada para capturar a rainha.

Todas nós, ou seja, à excepção daquelas que já sabem que não são vítimas, mas a própria armadilha. Os agentes do rei na corte da rainha são Lady Rutland, Catherine Edgecombe, e eu. Quando ela for detida, as três iremos testemunhar contra ela. Deste modo, estaremos seguras. Pelo menos, nós as três ficaremos em segurança.

Ainda não me disseram que provas tenho de apresentar, apenas que me vai ser pedido que preste juramento relativamente a uma declaração escrita. Não estou preocupada. Pedi ao Duque, o meu tio, se me podia dispensar da tarefa e ele disse que, pelo contrário, eu deveria ficar contente por o próprio rei depositar a sua fé em mim, mais uma vez. Penso que não posso fazer nem dizer mais nada.

Cederei a estes tempos, deixar-me-ei ir como um pedaço de madeira a flutuar na maré dos caprichos do rei. Tentarei manter a minha cabeça à tona da água e ter pena dos que se afogarem ao meu lado. E, se for honesta, posso manter a cabeça à tona, empurrando outros para o fundo, e roubando o ar que lhes restava. Num naufrágio, é cada um por si.

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Ouve-se uma batida estrondosa na porta e uma rapariga grita. Todas nos pomos de pé num salto, certas de que os soldados estão à porta, estamos à espera da notícia de que vamos ser detidas. Olho muito depressa para a rainha e ela está branca, mais branca do que o sal, nunca vi uma mulher empalidecer tanto, a não ser depois de morta. Os seus lábios estão realmente roxos de medo.

A porta abre-se. É o meu tio, o Duque de Norfolk, com um rosto longo e cadavérico, com o seu chapéu preto na cabeça como um juiz de enforcamentos.

- Vossa Graça - diz ele, entra e faz uma vénia.

Ela vacila como uma bétula prateada. Eu ponho-me ao lado dela e seguro-lhe no braço para a ajudar a equilibrar-se. Sinto-a estremecer ao sentir o meu toque, e percebo que ela pensa que estou a detê-la, segurando-a enquanto o meu tio pronuncia a sentença.

- Está tudo bem - murmuro; mas é claro que não sei se está tudo bem. Tanto quanto sei, existem meia dúzia de membros da guarda real de pé, fora do nosso campo de visão, no corredor.

Ela mantém a cabeça bem erguida e põe-se de pé.

- Boa noite - diz ela com a sua pronúncia engraçada. - Meu senhor, Duque.

- Venho da parte do Conselho Privado - diz ele, tão suave como seda fúnebre.

- Lamento informar-vos de que a peste invadiu a cidade.

Ela franze levemente a sobrancelha, tentando seguir as palavras, não são o que estava à espera. As damas ficam agitadas, todas sabemos que não há peste nenhuma.

- O rei está preocupado com a vossa segurança - diz ele devagar. - Pede-vos que vos mudeis para o Palácio de Richmond.

Sinto-a oscilar.

- E ele também vem?

- Não.

Assim todos saberão que ela foi mandada embora. Se houvesse peste na cidade, o Rei Henrique seria a última pessoa que andaria a subir e a descer o Tamisa de barco, a tocar o seu alaúde e a cantarolar uma nova canção de amor até ao ferry para transporte de cavalos de Lambeth. Se a doença andasse nos nevoeiros da noite, subindo das águas do rio em turbilhão, então Henrique teria partido para New Forest, ou para Essex. Ele tem pavor absoluto da doença. O

príncipe seria enviado para Gales, o rei já teria partido há muito tempo.

Por isso, qualquer pessoa que conheça o rei saberá que esta notícia da peste é uma mentira, e que a verdade deve ser que este

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é o início do ordálio da Rainha. Primeiro, exílio da corte, durante o inquérito, depois uma acusação, depois uma audição em tribunal, a seguir o julgamento, a sentença e a morte. Foi assim para a Rainha Catarina, para a Rainha Ana Bolena, e assim será para a Rainha Ana de Clèves.

- Irei vê-lo antes de partir? - pergunta ela, pobrezinha, com a voz a tremer.

- Sua Graça pediu-me que viesse dizer-vos para partirdes amanhã, de manhã cedo. Ele irá visitar-vos, sem dúvida, no Palácio de Richmond.

Ela cambaleia e as pernas cedem sob si; se eu não estivesse a segurá-la, ela cairia. O Duque faz-me um sinal com a cabeça, como se a encomendar um trabalho bem feito, depois retrocede, faz uma vénia e retira-se da sala como se não fosse a Morte em pessoa, que veio buscar a sua noiva.

Eu sento a rainha na sua cadeira e peço a uma das raparigas que vá buscar um copo com água, e outra que vá a correr à adega buscar um copo com brandy.

Quando regressam, faço-a beber de um copo e, a seguir, do outro, e ela levanta a cabeça e olha para mim.

- Preciso de falar com o meu embaixador - diz ela rouca.

Eu assinto, ela pode falar com ele, se assim o desejar; mas não haverá nada que ele possa fazer para a salvar. Mando um dos pajens procurar o Dr. Harst.

Deve estar a jantar no salão, ele consegue sempre encontrar lugar, em todas as

refeições, numa das mesas dos fundos. O Duque de Clèves não lhe pagou o suficiente para que montasse a sua própria casa, como um verdadeiro embaixador; o pobre homem tem de tirar o que pode da mesa real, como um rato.

Ele entra a correr, e retrai-se quando a vê, sentada na cadeira, dobrada sobre si mesma, como se tivesse sido esfaqueada no coração.

- Deixai-nos - diz ele.

Eu desloco-me até ao fundo da sala, mas não saio logo. Fico de pé, como se estivesse a guardar a porta, impedindo que outras pessoas entrem. Não me atrevo a deixá-la sozinha, mesmo que não compreenda o que estão a dizer. Não posso correr o risco de ela lhe entregar as jóias e de os dois se escapulirem pela porta privada dela para o jardim e para o caminho que vai até ao rio, apesar de saber que há sentinelas nos cais.

Eles sussurram na sua língua e eu vejo-o abanar a cabeça. Ela está a chorar, tentando dizer-lhe algo, ele dá-lhe palmadinhas na mão, e no cotovelo, e faz tudo excepto fazer-lhe festas na cabeça,

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como um chicoteador faria para tranquilizar uma cabra agitada. Encosto-me à porta. Este não é um homem que possa derrubar os nossos planos. Este homem não vai salvá-la; não temos de o recear. Este homem continuará a estar desesperadamente preocupado com o que poderá fazer para a salvar enquanto ela estiver a subir para o cadafalso. Se ela estiver a contar com ele para a ajudar, então, já está praticamente morta.

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Ana, Palácio de Richmond, Julho de 1540

Penso que a espera é o pior; e agora esperar é tudo o que faço. Esperar para ouvir a acusação que vão montar contra mim, esperar pela minha detenção, e dar voltas à cabeça para procurar uma defesa que possa apresentar. Eu e o Dr. Harst concordamos que tenho de sair do país, mesmo que isso implique perder o direito ao trono, ainda que signifique que vou quebrar o contrato de casamento e destruir a aliança com Clèves. Mesmo que o resultado seja a Inglaterra unir-se à

França numa guerra contra a Espanha. Para meu horror, a minha incapacidade de ser bem-sucedida neste país pode significar que a Inglaterra é livre de entrar em guerra na Europa. A única coisa que esperava trazer a este país era paz e segurança, mas o meu falhanço com o rei podem levá-los à guerra. E eu não posso impedi-lo.

O Dr. Flarst está convencido de que é certo que o meu amigo Lorde Lisle e o meu patrocinador Thomas Cromwell irão morrer, e que, a seguir, serei eu. Não há nada que eu possa fazer agora para salvar a Inglaterra desta explosão de tirania. Tudo o que posso fazer por mim mesma é tentar salvar a minha própria pele. Não há forma de prever a acusação e nenhum modo de me proteger dela.

Não será proferida qualquer acusação formal em tribunal, não haverá juizes e nenhum júri. Não terei hipótese alguma de me defender de seja qual for a acusação que inventaram. Lorde Lisle e Lorde Cromwell morrerão sob uma Bill of Attainder, basta a assinatura do rei. Este, que acredita ser guiado por Deus, tornou-se um Deus detendo o poder absoluto sobre a vida e a morte. Não há dúvidas de que também está a planear a minha morte.

Flesito, como uma louca, aguardo durante alguns dias, esperando que não seja tão mau quanto parece. Acredito que o rei pode ser bem aconselhado por homens que conseguem ver a razão. Rezo para que Deus possa falar com ele, com palavras de bom senso e que não lhe assegure que os seus próprios desejos deveriam ser primordiais. Espero poder receber notícias da minha mãe dizendo-me

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o que devo fazer. Inclusive, espero, contra todas as probabilidades, que chegue uma mensagem do meu irmão dizendo que não vai permitir que me julguem, que irá impedir a minha execução e que vai enviar uma escolta para me levar para casa. Depois, no próprio dia em que o Dr. Harst afirmou que viria ter comigo trazendo seis cavalos e que eu deveria estar pronta para partir, aparece, sem cavalos, com uma expressão muito grave no rosto, e diz-me que os portos estão fechados. O rei não deixa ninguém entrar nem sair do país. Nenhum navio está autorizado a navegar. Mesmo que conseguíssemos chegar à costa - e fugir seria uma confissão de culpa - não poderíamos largar. Estou encarcerada no meu novo país. Não tenho forma de chegar a casa.

Como uma tonta, pensei que a dificuldade seria passar pelos guardas que se

encontram à minha porta, conseguir cavalos, escapar do palácio sem que ninguém lançasse o alarme e partisse atrás de nós. Mas não, o rei é omnisciente, como o Deus que julga ser. Escapar do palácio já teria sido bastante difícil, mas agora não podemos embarcar num navio para regressar a casa. Estou abandonada nesta ilha. O rei mantém-me cativa.

O Dr. Harst pensa que isto significa que me virão buscar esta semana. O rei fechou o país inteiro para me poder julgar, considerar culpada, e decapitar, antes de toda a minha família sequer ter notícias da minha detenção. Ninguém na Europa pode protestar ou gritar a vergonha! Ninguém na Europa terá sequer conhecimento, até tudo estar terminado e eu estar morta. Acredito que esta é a verdade. Tem de ser dentro de alguns dias, talvez até amanhã.

Não consigo dormir. Passo a noite à janela à espera de ver a primeira luz do dia. Estou convencida de que esta vai ser a minha última noite à face da terra e lamento, mais do que qualquer outra coisa, ter desperdiçado a minha vida. Passei todo o meu tempo a obedecer ao meu pai e depois ao meu irmão, malbaratei os últimos meses a tentar agradar ao rei, não valorizei a pequena chama que sou eu, eu unicamente. Em vez disso, subjuguei a minha vontade e pensamentos aos dos homens que dirigem o meu destino. Se tivesse sido o falcão-gerifalte que o meu pai me chamava, teria voado bem alto e feito o ninho em lugares solitários e frios, e ter-me-ia deixado levar pelo vento livre. Mas pelo contrário, fui como um pássaro numa gaiola, sempre preso e por vezes encapuçado. Nunca livre e, de vez em quando, cego.

Se sobreviver a esta noite, a esta semana, tentarei ser fiel a mim mesma no futuro. Se Deus me poupar, tentarei honrá-lo sendo eu mesma; não sendo a irmã ou a filha ou a esposa. Esta é uma

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promessa fácil de fazer, porque não penso ir ser obrigada a cumpri-la. Não me parece que Deus me vá salvar, não penso que Henrique me vá poupar. Não creio que vá ter alguma vida para além da próxima semana.

À medida que vai fazendo dia e que a luz se vai tornando dourada com o sol da manhã de Verão, deixo-me ficar no meu lugar junto da janela. Trazem-me uma caneca de cerveja sem álcool e uma fatia de pão com manteiga, enquanto observo o rio e procuro o esvoaçar do estandarte, o mergulhar e ondear regular

dos remos da barcaça real que me levará à Torre. Qualquer rufar de um tambor, espalhando-se pela água para manter o ritmo dos remadores, e consigo ouvir o meu coração ecoar as suas batidas nos meus ouvidos, convencida de que são eles, que me vieram buscar hoje. O que é engraçado é que, quando finalmente chegam, apenas a meio da tarde, não se trata de tropas, mas de um único homem, Richard Beard, que chega sem avisar, num pequeno bote, quando passeio no jardim, com as mãos frias dentro dos bolsos e me sinto desajeitada por causa do medo. Ele encontra-me no meu jardim privado quando estou a passear entre as roseiras, inclinando a cabeça para baixo para os botões, mas sem conseguir sentir o cheiro das flores completamente abertas. Ao longe, devo-lhe parecer uma mulher feliz, uma rainha jovem num jardim de rosas. Só quando se aproxima, consegue ver a palidez no meu rosto sem expressão.

- Vossa Graça - diz e faz uma vénia, como se para uma rainha.

Eu aceno com a cabeça.

- Trago uma carta do rei - entrega-me a carta. Eu aceito-a, mas não quebro o lacre. - O que diz? - pergunto.

Ele não finge que se trata de um assunto privado.

- É para vos dizer que, após meses de dúvidas, o rei decidiu analisar o seu casamento convosco. Ele teme que não seja válido porque vós já havíeis assinado um outro contrato de casamento. Vai ser realizado um interrogatório.

- Ele afirma que não estamos casados? - pergunto.

- Ele teme que vós não éreis casada - corrige-me ele gentilmente.

Eu abano a cabeça.

- Não compreendo - digo estupidamente. - Não compreendo.

Então, todos aparecem: metade do Conselho Privado chega com o seu séquito e criados, todos vêm dizer-me que tenho de concordar com um interrogatório. Eu não concordo. Não vou concordar.

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. Todos devem passar a noite aqui comigo no Palácio de Richmond. Não vou jantar com eles. Não vou concordar. Nunca concordarei.

De manhã, dizem-me que três das minhas damas vão ser convocadas para comparecer no interrogatório. Recusam-se a dizer-me sobre que assuntos vão ser interrogadas, nem sequer me dizem quem irá ser obrigada a ir e a testemunhar contra mim. Peço-lhes cópias dos documentos que irão constituir as provas apresentadas no interrogatório e eles recusam deixar-me ver o que quer que seja.

O Dr. Harst queixa-se deste tratamento, e escreve ao meu irmão; mas sabemos que as cartas nunca passarão até ser demasiado tarde, os portos continuam selados e não há quaisquer notícias a saírem da Inglaterra. Estamos sozinhos, eu estou sozinha. O Dr. Harst diz-me que, antes do seu julgamento, houve uma investigação da conduta de Ana Bolena. Uma investigação: tal como irão fazer em relação à minha conduta. As damas de companhia dela foram interrogadas relativamente ao que ela teria dito e feito, tal como as minhas irão ser. As provas dessa investigação foram utilizadas contra ela no julgamento. A sentença foi proferida contra ela, e o rei casou-se com Jane Seymour, a sua dama de companhia, um mês depois. Nem sequer me vão fazer um julgamento, será concretizado com a assinatura do rei: nada mais. Será que vou mesmo morrer para que o Rei possa casar-se com a pequena Catarina Howard? Será realmente possível que eu vá morrer para que este velho possa casar-se com uma rapariga com quem se poderia deitar por pouco mais do que o preço de um vestido?

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Jane Bolena, Palácio de Westminster, 7 de Julho de 1540

Entramos na cidade de Londres na barcaça real, vindos de Richmond, tudo está muito bem arranjado para nós, o rei não se poupa a esforços para se assegurar de que desfrutamos de todo o conforto. Somos três, Lady Rutland, Catherine Edgecombe e eu: três pequenos Judas que vieram cumprir o seu dever.

A acompanharmos, como escolta, está Lorde Southampton, que deve sentir que tem algo a conquistar junto do rei, uma vez que deu as boas vindas a Inglaterra a Ana de Clèves e afirmou que ela era bonita, alegre e magnífica. Com ele estão Lorde Audley e o Duque de Suffolk, ansiosos por desempenhar os seus papéis e por captar as simpatias. Irão apresentar as suas provas contra ela no inquérito, depois de termos apresentado as nossas.

Catherine Edgecombe está nervosa, diz que não sabe o que deve dizer, receia

que um dos homens da igreja a contra-interrogue, e que a leve a dizer coisas erradas, céus, até a verdade pode escapar se ela for atormentada - que terrível isso seria! Mas eu estou tão à vontade como uma velha e amarga peixeira a amanhar cavalas.

- Nem sequer os ireis ver - prevejo. - Não ireis ser contra-inter- rogada. Quem precisaria de contestar as vossas mentiras? Ninguém está interessado na verdade, ninguém precisa de falar em defesa dela. Imagino que nem sequer tereis de falar.

Tudo estará preparado para nós, só teremos de assinar.

- Mas e se ele disser... e se lhe chamarem... - interrompe-se e olha para o rio.

Tem demasiado medo para sequer pronunciar a palavra “bruxa”,

- Porque é que precisaríeis sequer de a ler? - pergunto. - Que interesse tem o que está escrito acima da vossa assinatura? Haveis concordado em assinar, não foi? Haveis concordado em a ler.

Ela acena com a cabeça.

- Mas não gostaria que lhe fizessem mal por causa do meu testemunho - diz ela, a parvinha.

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Eu ergo as sobrancelhas, mas não digo nada. Não preciso de o fazer. Todas sabemos que partimos na barcaça do rei, num maravilhoso dia de Verão, para nos deixarmos levar, impelidas pelos remadores, rio acima, para destruir uma mulher jovem que não fez nada de errado.

- Haveis apenas assinado alguma coisa? Quando vós? Antes? - pergunta ela, hesitante.

- Não - digo. Tenho um sabor salgado a bílis na boca, tão forte que desejo cuspi-lo para o lado, para a água verde e veloz. - Não. Não foi assim tão bem feito, para Ana e para o meu marido. Vedes como estamos a progredir nestas cerimónias? Nessa altura, tive de comparecer em tribunal diante de todos eles, de jurar sobre a Bíblia e de prestar o meu testemunho. Tive de enfrentar o tribunal e de dizer o que tinha a dizer contra o meu próprio marido e a irmã. Tive de o

encarar e de o dizer.

Ela estremece ligeiramente.

- Isso deve ter sido terrível.

- Foi - digo eu brevemente.

- Deveis ter temido o pior.

- Sabia que a minha vida seria poupada - digo cruamente. - E imagino que seja por isso que vos encontrais hoje aqui, como eu, como Lady Rutland. Se Ana de Clèves for considerada culpada e morrer, então, pelo menos, nós não morreremos com ela.

- Mas o que irão dizer que ela fez? - pergunta Catarina.

- Oh, iremos ser nós a dizer - solto uma gargalhada áspera. - Seremos nós quem a acusará. Seremos nós quem irá fazer a acusação e prestar juramento do nosso testemunho. Iremos ser nós quem dirá o que ela fez. Eles limitarse-ão a afirmar que ela terá de morrer por o ter feito. E, muito em breve, iremos descobrir o crime que ela cometeu.

Graças a Deus, graças a Deus, não tenho de assinar nada que a culpe da impotência do rei. Não tenho de prestar testemunho de que ela lhe lançou um feitiço ou que o enfeitiçou, ou que se deitou com meia dúzia de homens, ou que deu à luz um monstro, em segredo. Desta vez, não tenho de dizer nada disso.

Todas temos de assinar a mesma declaração escrita, onde apenas se afirma que ela nos disse que se deitou com ele todas as noites como donzela e que acordou todas as manhãs como donzela, e que, do que nos contara, era óbvio que era tão tonta que nunca se apercebeu de que havia algo de errado nisso. Alegadamente, aconselhámo-la no sentido de

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que, o ser uma esposa exigia mais do que um mero beijo de boas-noites, e uma bênção de manhã, é suposto que nós lhe tenhamos dito que, assim, não conseguiria ter um filho; e que ela respondeu que estava contente por não saber mais do que aquilo. Supostamente, esta conversa terá tido lugar no quarto dela, entre as quatro de nós, 57conduzida num inglês fluente, sem um momento de

hesitação..

Procuro o Duque antes de a barcaça nos levar de volta a Richmond.

- Eles têm noção de que ela não fala assim? - pergunto. - De que a conversa que todas jurámos ter tido lugar nunca poderia ter acontecido? Qualquer pessoa que tenha estado nos aposentos da rainha perceberia logo que se trata de uma mentira. Na vida real, confundimo-nos com as poucas palavras que ela conhece, e repetimos as coisas dúzias de vezes antes de todas nos fazermos entender. E

qualquer pessoa que a conheça sabe que em circunstância alguma ela falaria neste assunto estando nós todas juntas. Ela é demasiado tímida.

- Não faz mal - diz ele com um ar grandioso. - Eles precisavam de uma declaração onde se afirme que ela é virgem, como sempre foi. Mais nada.

- Pela primeira vez em várias semanas, penso que talvez a possam poupar. -

Ele vai apenas repudiá-la? - pergunto. Mal me atrevo a ter esperanças. - Ele não a vai acusar de o ter tornado impotente?

- Ele vai livrar-se dela - diz ele. - Se tendes um mínimo de estima por ela e se ela vos pedir conselho, dizei-lhe que o liberte. Se ela tornar as coisas difíceis para o lado dele, ele irá conseguir livrar-se dela, até pelo cadafalso, se for necessário. A vossa declaração de hoje também poderá servir para a apresentar como a mais falsa e maliciosa bruxa.

Eu fico com falta de ar.

- Como é que eu a incriminei como bruxa?

- Escrevestes que ela sabe que ele é impotente, e mesmo nos seus aposentos, com as outras damas, fingiu não saber nada acerca do que acontece entre um homem e a sua esposa. Como vós mesma dizeis, quem poderia acreditar na alegação dela? Quem é que alguma vez fala desse modo? Que mulher que é levada para a cama do rei sabe tão pouco? Que mulher no mundo pode ser tão ignorante? É evidente que ela tem de estar a mentir, portanto, é evidente que está a ocultar uma conspiração. É óbvio que é uma bruxa.

- Mas... mas... Pensei que esta declaração seria para mostrar que ela é inocente. - gaguejo. - Que é uma virgem e que não sabe nada desses assuntos?

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- Exactamente - diz ele. O Duque permite-se esboçar um leve sorriso cruel. -

Aí reside a beleza de tudo isto. Vós três, todas damas bastante consideradas da corte dela, apresentaram uma declaração juramentada que a revela como sendo tão inocente como a Virgem Maria, ou profundamente maléfica como a bruxa Elécates. Pode ser interpretada nos dois sentidos, tal como o rei pretende. Haveis trabalhado bem, Jane Bolena. Estou satisfeito convosco.

Eu dirijo-me à barcaça sem dizer palavra; não há nada que eu possa dizer. Ele já me tinha orientado antes e talvez eu devesse ter dado ouvidos ao meu marido, Jorge, e não ao seu tio. Se Jorge estivesse aqui, agora, comigo, talvez me aconselhasse a ir ter discretamente com a rainha e a dizer-lhe que fugisse. Talvez ele afirmasse que o amor e a lealdade são mais importantes do que conseguirmos ascender na corte. Ele poderia ter dito que é mais importante manter a fé daqueles que amamos, do que agradar ao rei. Mas Jorge não está aqui comigo neste momento. Agora, jamais poderá voltar a dizer-me que acredita no amor.

Tenho de viver sem ele; para o resto da minha vida terei de viver sem ele.

Regressamos a Richmond. A maré está a nosso favor e eu gostaria que a barcaça pudesse avançar mais devagar e que não nos conduzisse apressadamente para casa, para o palácio, onde ela vai estar à janela, procurando a barcaça, com um ar tão pálido.

- O que fomos fazer? - pergunta Catherine Edgecombe em tom de lamento.

Está a olhar para as bonitas torres do Palácio de Richmond, sabendo que teremos de enfrentar a Rainha Ana, que o seu olhar franco passará de umas para as outras, e que ela saberá que estivemos ausentes o dia inteiro, na nossa excursão a Londres, para prestar testemunho contra ela.

- Fizemos o que tínhamos de fazer. Podemos ter-lhe salvo a vida - digo teimosamente.

- Como salvastes a da vossa cunhada? Como haveis salvado a do vosso marido? - pergunta-me ela, num tom penetrante, de malícia.

Eu viro-lhe a cara.

- Nunca falo disso - digo. - Nunca penso nisso sequer.

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Ana, Palácio de Richmond, 8 de Julho de 1540

É o segundo dia do inquérito para concluir se o meu casamento com o rei é legal ou não. Se eu não estivesse com um estado de espírito tão baixo, rir-me-ia deles todos, sentados numa convocação solene, para examinar as provas que eles próprios fabricaram. Todos devemos saber qual vai ser o resultado. O rei não convocou os homens da igreja, a quem paga os salários e que servem a igreja dele, que são tudo o que resta, agora que os fiéis estão dependurados em cadafalsos a toda a volta das muralhas de York, para que eles lhe digam que a única coisa que o inspira é o desejo sexual por um rosto bonito, e que ele deveria pôr-se de joelhos, pedindo perdão pelos seus pecados e admitir o seu casamento comigo. Farão a vontade ao seu mestre e proferirão um veredicto onde afirmarão que eu já estava prometida a outra pessoa anteriormente, que nunca estive livre para me casar, que, por isso, o nosso casamento está anulado. Não me posso esquecer de que isto representa uma forma de eu escapar, poderia ter sido muito pior. Se ele tivesse decidido repudiar-me por comportamento impróprio, continuariam a ter de ouvir testemunhos, continuariam a encontrar provas contra mim.

Vejo uma barcaça sem estandartes a aproximar-se do grande cais e o mensageiro do rei, Richard Beard, salta para a margem, antes sequer de as cordas serem amarradas. Sobe ligeiramente o caminho do cais, olha para o palácio e vê-me. Levanta a mão e atravessa bruscamente o relvado em direcção a mim. É um homem ocupado, tem de se apressar. Devagar, vou ao encontro dele.

Sei que isto representa o fim das minhas esperanças de ser uma boa rainha para este país, uma boa madrasta para os meus enteados, uma boa esposa para um mau marido.

Em silêncio, estendo a mão para receber a carta que ele me traz. Calado, ele entrega-ma. Este é o fim da minha juventude. Este é o fim das minhas ambições.

É o fim do meu sonho. O fim do meu reino. Talvez o fim da minha vida.

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Jane Bolena, Palácio de Richmond, 8 de Julho de 1540

Quem poderia imaginar que fosse ser tão difícil para ela? Tem estado a chorar como uma rapariga que tem o coração destroçado, o inútil do seu embaixador dá-lhe palmadinhas nas mãos e murmura-lhe em alemão como uma galinha velha de penas escuras, aquele patetinha do Richard Beard, mantendo toda a sua dignidade, mas com ar de colegial, agonizantemente embaraçado. Começam a falar no terraço, onde Richard Beard lhe entrega a carta, depois levam-na para o quarto, quando as pernas cedem sob o seu peso, a seguir, mandam-me chamar, quando ela começa a chorar desalmadamente num ataque de histeria.

Lavo-lhe a cara com água de rosas, e dou-lhe um copo com brandy para ela dar um golo. Isso acalma-a por momentos e ela ergue os olhos para mim, os seus tão raiados de vermelho como os de um pequeno coelho branco.

- Ele renega o casamento - diz ela destroçada. - Oh, Jane, ele renega-me.

Mandou o próprio mestre Holbein pintar o meu retrato, escolheu-me, pediu-me que viesse, mandou os conselheiros irem ao meu encontro, trouxe-me para a sua corte. Perdoou o dote, casou-se comigo, dormiu comigo e agora renega-me.

- O que é que ele pretende que façais? - pergunto com urgência. Quero saber se atrás de Richard Beard virá uma guarda de soldados, se a vão levar esta noite.

- Ele quer que eu concorde com o veredicto - diz ela. - Prometeu-me um... -

desata a chorar ao pronunciar a palavra “acordo”. São palavras difíceis para uma jovem esposa ouvir. - Prometeu-me condições justas, se eu não causar problemas.

Eu olho para o embaixador, que fica inchado como um galispo, ao ouvir o insulto, e depois olho para Richard Beard.

- O que aconselharíeis à rainha? - pergunta-me Beard. Ele não é nenhum idiota, sabe quem paga a minha renda. Eu cantarei a melodia de Henrique, disso ele pode ter a certeza.

- Vossa Graça - digo gentilmente. - Não há nada que possa 256 21

ser feito, a não ser aceitar a vontade do rei e a decisão do seu conselho.

Ela olha para mim, confiante.

- Como é que eu posso? - pergunta. - Ele quer que eu diga que já era casada antes de se casar com ele, por isso, nós não somos casados. Isso é mentira.

- Vossa Graça - inclino-me bastante na direcção dela e sussurro-lhe ao ouvido, para que só ela possa ouvir. - As provas contra a Rainha Ana Bolena passaram de um inquérito, tal como este, para a sala do tribunal e depois para o cadafalso.

As provas contra a Rainha Catarina de Aragão passaram de um inquérito, semelhante a este, demoraram seis anos a serem ouvidas, e no final ela ficou sozinha e sem dinheiro, morrendo exilada dos amigos e da filha. O rei é um inimigo implacável. Se ele vos ofereceu quaisquer condições, quaisquer que elas sejam, devíeis aceitá-las.

- Mas...

- Se não o libertardes, ele livrar-se-á de vós, de qualquer forma.

- Como pode fazê-lo? - pergunta ela.

Eu olho para ela.

- Vós sabeis.

Ela desafia-me a dizê-lo.

- O que é que ele fará?

- Matar-vos-á - digo eu simplesmente.

Richard Beard afasta-se para poder negar ter ouvido estas palavras. O

embaixador olha-me fixamente, sem compreender.

- Sabei-lo - digo eu.

Em silêncio, ela assente.

- Quem é vosso amigo na Inglaterra? - pergunto-lhe. - Quem vos defenderá?

Reparo que a sua fúria desaparece.

- Não tenho nenhum.

- Conseguis fazer chegar uma mensagem ao vosso irmão? Ele salvar-vos-á? -

eu sei que não.

- Eu estou inocente - murmura ela.

- Mesmo assim.

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Catarina, Norfolk House, Lambeth, 9 de Julho de 1540

Não consigo, não posso acreditar: mas é verdade. A minha avó acabou de me dizer, e acabou de saber pelo meu tio Norfolk, e ele estava lá, por isso sabe.

Fizeram-no. Analisaram as provas e anunciaram que o casamento do rei com a Rainha Ana de Clèves nunca foi válido e ambos estão livres para se casarem com outras pessoas, como se nunca tivessem sido casados um com o outro.

Estou espantada. Toda aquela cerimónia, e o vestido, as magníficas jóias e presentes, e nós a segurarmos na cauda e o pequeno-almoço de casamento e o arcebispo... nada disso conta. Como pode ser? As zibelinas! Também não contam. É isto que significa ser rei. Acorda uma manhã e decide que se vai casar e fá-lo. Depois, acorda na manhã seguinte e decide que não gosta dela, e voilá!

(isto é francês, significa algo como: fantástico, vejam só!), voilá! Ele não é casado. O seu casamento nunca foi válido e agora eles devem ser vistos como irmão e irmã. Irmãos!

Só um rei podia fazer uma coisa destas. Se fosse feito por uma pessoa comum, considerá-la-iam louca. Mas uma vez que ele é rei, ninguém pode afirmar que é loucura, e nem sequer a rainha (ou o que quer que ela seja agora) pode afirmar que é loucura. Todos dizemos: “Oh, sim, Sua Majestade”, ele vem jantar com a minha avó e comigo esta noite, vai pedir-me em casamento e eu direi: “Oh, sim, Sua Majestade, muito obrigada”, e nunca, nunca direi que isto é uma loucura, e que é obra de um louco, que o próprio mundo enlouqueceu por não se voltar contra ele.

Porque eu não sou louca. Posso ser muito estúpida, e muito ignorante (ainda que esteja a aprender francês, voilá!), mas, pelo menos, não penso que, se comparecer diante de um arcebispo e disser “Sim, aceito”, depois, seis meses mais tarde, isso não vale nada. Mas percebo que vivo num mundo que é dirigido por um louco e governado pelos seus caprichos. Por outro lado, ele é o rei e o

chefe da igreja, e Deus fala directamente com ele, por isso, se lhe diz que algo é de certa forma, quem lhe vai dizer que não?

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Eu não, de modo algum. Tenho as minhas ideias (por muito estúpidas que me garantam que elas sejam), posso ter as minhas ideias estúpidas numa - o que é que ela disse? - “cabeça que só tem capacidade para uma ideia sem sentido de cada vez”, mas sei que o rei está louco, e que o mundo ensandeceu. A rainha agora vai ser irmã dele, e eu sua esposa e a nova rainha. Vou ser rainha da Inglaterra. Eu, Catarina Howard, vou casar-me com o rei da Inglaterra e ser a sua rainha. Voilá, mesmo.

Não posso acreditar que seja verdade. E, gostava que alguém tivesse pensado nisto: que vantagem real é que eu tenho nisto? Porque agora é no que estou a pensar. O que o impediria de acordar uma manhã e dizer que, também eu, já havia sido prometida antes a outra pessoa e que o nosso casamento real não é válido? Ou que sou infiel, e que mais valia mandar-me decapitar? O que o impediria de se encantar com uma estúpida e bonita donzela de entre as minhas damas de companhia, e de me repudiar por causa dela?

Exactamente! Não me parece que alguém se tenha lembrado disto, excepto eu.

Exactamente. Nada pode impedi-lo. E as pessoas (como a minha avó, que são tão pródigas em insultos e palmadas), que afirmam ser uma honra tremenda e um passo excelente para uma parvinha como eu, podiam bem pensar que uma tonta pode ser elevada, mas também derrubada; e quem me irá agarrar nessa altura?

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Ana, Palácio de Richmond, 12 de Julho de 1540

Escrevi para dizer que estou de acordo com as conclusões do inquérito, e todos o testemunharam, um a seguir ao outro, os grandes homens que vieram aqui debater comigo, as damas a quem chamava amigas quando era rainha da Inglaterra e elas estavam desesperadas para servir na minha corte. Admiti a existência de um contrato nupcial anterior, e o facto de não ser livre para me casar, chegando mesmo a pedir desculpa.

Esta é uma noite sombria para mim na Inglaterra. A noite mais escura que alguma vez encarei. Não vou ser rainha. Posso permanecer na Inglaterra com o favor pouco fiável do rei, enquanto ele se casa com a menina que era minha dama de companhia, ou posso voltar para casa, sem dinheiro, para viver com o meu irmão, cujo desdém e negligência me trouxeram até aqui. Sinto-me muito só esta noite.

Este é o mais belo palácio do reino, com vista para o rio e com o seu próprio parque enorme. Foi construído pelo pai do rei como um grande palácio exibicionista, numa região calma e bonita. Este lugar maravilhoso vai ser parte do pagamento que o rei oferece para se ver livre de mim. E deverei ficar com a herança dos Bolena, a sua casa de família: o belo castelo de Hever. Ninguém, além de mim, parece considerar isto divertido: que Henrique me pretenda subornar com a casa de infância da outra Rainha Ana, que só é sua porque ele a mandou decapitar. Por outro lado, receberei uma pensão generosa. Serei a primeira-dama do reino, em segundo lugar relativamente apenas à nova rainha, e considerada irmã do rei. Todos seremos amigos. Que felizes iremos ser.

Não sei como irei viver aqui. Para dizer a verdade, não consigo imaginar como irá ser a minha vida depois desta noite, desta noite escura. Não posso voltar para casa, para junto do meu irmão, seria envergonhada como um cão chicoteado, se regressasse a casa para junto dele e lhe dissesse que o rei da Inglaterra me repudiara, recorrendo a arcebispos para obter a sua libertação, preferindo uma

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menina bonita, a minha própria dama de companhia, a mim. Não posso retornar a casa e contar isto. Não posso ir para casa e encarar esta vergonha. O que me diriam, como viveria, como um artigo danificado, na corte do meu irmão, não consigo imaginar. Não é possível.

Por isso, terei de ficar aqui. Não há refúgio para mim em nenhuma outra parte.

Não posso ir para a França, nem para a Espanha, nem sequer para uma casa minha, algures na Alemanha. Não tenho dinheiro para comprar essa casa e, se abandonar a Inglaterra, deixarei de receber a minha pensão avultada, não me pagarão quaisquer rendas. As minhas terras serão dadas a outra pessoa qualquer.

O rei insiste para que eu viva da sua generosidade neste reino. Também não posso ter esperanças de conseguir outro marido que me ofereça uma casa.

Nenhum homem se casará comigo sabendo que me deitei debaixo dos pesados esforços do rei, noite após noite, e que ele não foi capaz de o consumar. Nenhum homem me considerará desejável, sabendo que a virilidade do rei se extinguiu ao ver-me. O rei confessou aos amigos que se sentiu repugnado com a minha barriga gorda, os meus seios descaídos e o meu cheiro. Sentime absolutamente envergonhada com estas palavras. Além disso, visto todos os homens da igreja na Inglaterra terem concordado que eu estava destinada a casar-me com o filho do duque da Lorena, isso constituirá um obstáculo a qualquer casamento que eu possa desejar no futuro. Terei de enfrentar uma vida de solteira, sem um amante, um marido ou um companheiro. Terei de encarar uma vida solitária, sem família.

Nunca terei filhos meus, nunca terei um filho para me suceder, nunca terei a minha própria filha para amar. Terei de ser uma freira sem um convento, uma viúva sem memórias, uma esposa de seis meses, virgem. Terei de encarar a vida no exílio. Nunca mais voltarei a ver a minha mãe.

Esta é uma sentença dura para mim. Sou uma mulher jovem de apenas vinte e cinco anos. Não fiz nada de errado. E, ainda assim, ficarei sozinha para sempre: indesejável, sozinha e no exílio. Na verdade, quando um rei acredita que é um deus e segue os seus próprios desejos, o sofrimento cai sobre os outros.

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Catarina, Norfolk House, Lambeth, 12 de Julho de 1540

Está feito. Demorou ao todo seis dias. O rei livrou-se da sua rainha, da sua rainha com quem se casara legalmente, para agora poder casar-se comigo. A minha avó afirma que eu deveria preparar-me para ocupar a posição mais importante do país e pensar que damas irei escolher para me servirem, e quem irei favorecer com lugares e salários à minha disposição. Claramente, os meus parentes Howard têm de estar em primeiro lugar. O meu tio diz que eu tenho de me lembrar de seguir os seus conselhos em tudo e não ser uma pega estúpida como a minha prima Ana. E não me posso esquecer do que lhe aconteceu! Como se houvesse alguma hipótese de eu me esquecer.

Olhei pelo canto do olho, sob as pestanas, para o rei, e sorri-lhe, fiz vénias inclinando-me para a frente, para que ele pudesse ver os meus seios, e usei o meu toucado puxado para trás, para ele poder observar o meu rosto. Agora, tudo avançou mais depressa do que eu poderia ter imaginado, tudo está a acontecer demasiado depressa. Tudo está a acontecer, quer eu queira, quer não.

Vou casar-me com o Rei Henrique da Inglaterra. A Rainha Ana foi repudiada.

Ninguém a pode salvar, nada pode deter o rei, nada pode salvar-me - oh, eu não devia ter dito isto. Deveria ter dito: nada pode impedir a minha felicidade. Foi isso que quis dizer. Nada pode impedir a minha felicidade. Ele chamame a sua rosa. Diz que sou a sua rosa sem espinhos. Sempre que o diz, penso que é o tipo de nome carinhoso que um homem pode chamar à sua filha. Não é algo que se chame a uma amante. Não é, de todo, um nome que se ponha a uma amante.

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Ana, Palácio de Richmond, 13 de Julho de 1540

E assim, acabou. Inacreditavelmente, acabou. Escrevi o meu nome no acordo que afirma que existia um contrato pré-nupcial e que eu não estava livre para me casar. Concordei que o meu casamento deveria ser anulado e, de repente, ele deixou de existir. Assim. É o que significa ser casada com a voz de Deus quando Ele se pronuncia contra nós. Deus avisou Henrique de que eu já havia sido prometida em casamento antes. Henrique avisou o seu Conselho. Depois, o casamento deixou de o ser, ainda que ele tenha jurado ser meu marido e ter vindo para a minha cama e tentado - e como tentou! - consumar o casamento. Mas acontece que Deus estava a impedir que fosse bem sucedido (não se tratava de bruxaria, mas da mão de Deus), e assim, Henrique afirma que a situação não pode continuar.

Escrevo ao meu irmão, a conselho do rei, e digo-lhe que já não sou casada e que consenti com a alteração do meu estado. Depois, o rei não fica satisfeito com a minha carta e ordena-me que a reescreva. Se ele quiser, escrevê-la-ei uma dúzia de vezes. Se o meu irmão me tivesse protegido como deveria ter feito, como o meu pai teria querido que ele fizesse, isto nunca poderia ter acontecido.

Mas ele é um homem rancoroso e um parente pobre, é um mau irmão para mim; e eu estou desprotegida desde a morte do meu pai. A ambição do meu irmão fê-

lo usar-me, o seu desdém permitiu que eu caísse. Ele não teria entregado o seu cavalo a um comprador como Henrique da Inglaterra, para ser destruído de tal forma.

O rei ordenou-me que lhe devolvesse a aliança de casamento. Obedeço-lhe nisto, como em tudo o resto. Escrevo uma carta para a acompanhar. Digo-lhe que ali tem a aliança que me ofereceu e que espero que ele a mande desfazer em pedaços, porque é algo que não tem qualquer valor ou força. Ele nem vai

perceber a minha raiva e desilusão nestas palavras, porque não me conhece, nem pensa em mim. Mas eu estou zangada e desiludida e ele pode ficar com a sua aliança de casamento, os seus votos de casamento, e com 263

a sua crença de que Deus fala com ele, porque todos fazem parte do mesmo: uma quimera, algo que não tem força nem valor.

E assim, acabou.

E assim tudo começa para a pequena Catarina Howard.

Desejo-lhe que seja feliz com ele. Desejo que ele seja feliz com ela. Seria difícil imaginar um casamento mais mal combinado, mais mal concebido e que começasse de pior forma. Não consigo sentir inveja dela. Do fundo do coração, mesmo esta noite, quando tenho tantos motivos de queixa, quando tenho tanto de que a acusar: mesmo agora, não a invejo. Posso apenas recear por ela, pobre menina, pobre menina tonta.

Posso ter ficado sozinha, sem amigos, diante da indiferença do rei, mas Deus sabe que o mesmo será verdade para ela. Eu era pobre e humilde quando ele me escolheu, e o mesmo acontece com ela. Eu fazia parte de uma facção desta corte (apesar de não saber) e o mesmo é ainda mais verdadeiro em relação a ela.

Quando outra menina bonita surgir na corte e captar as atenções dele, como é que ela vai fazer com que ele se mantenha do lado dela? (E ela pode ter a certeza de que as meninas bonitas serão enviadas às dezenas). Quando a saúde do rei lhe falhar e ele não conseguir engravidá-la, irá dizer-lhe que são as falhas de um homem idoso, e pedir-lhe perdão? Não, não o fará. E quando a culpar, quem irá defendê-la? Quando Lady Rochford lhe perguntar, a quem poderá ela recorrer como amigos? O que irá responder? Quem será a amiga e protectora de Catarina Howard, quando o rei se voltar contra ela?

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Rainha Catarina, Palácio de Oatlands, 28 de Julho de 1540

Bem, devo dizer que é muito bonito casar, mas eu não tive direito nem a metade das celebrações que ela teve. Não houve uma grande recepção para mim em Greenwich, e nenhum passeio num belo cavalo, nem fui cumprimentada por

ele, escoltado por todos os nobres da Inglaterra. Também não houve nenhuma viagem em barcaças, rio abaixo, enquanto a City de Londres enlouquecia de felicidade, por isso, aqueles que pensam que casar com um rei é um momento de grande alegria deviam reparar no meu casamento, que foi - para ser muito directa

- uma coisa secreta. Pronto! Já disse, e qualquer pessoa que pense de forma diferente não pode ter estado aqui. E, na verdade, isso representaria a maior parte das pessoas do mundo - porque não esteve lá praticamente ninguém.

Disse a Lady Rochford no dia anterior:

- Por favor, procurai saber junto do criado de quarto ou do Lorde Chamberlain ou de alguém o que devemos fazer. Onde devo ficar, e o que devo dizer e fazer -

queria ensaiar. Gosto de ensaiar, se vou aparecer diante das pessoas e se todos vão estar a observar- -me. Devia ter ficado alerta com a resposta dela.

- Não há muita coisa para ensaiar - respondeu ela severamente. - Pelo menos, o vosso noivo já está bem ensaiado. Tereis apenas de repetir os votos. E

praticamente não haverá muita gente a assistir.

E como ela tinha razão! Estava lá o bispo de Londres a celebrar a cerimónia (muito obrigada, eu nem sequer tenho direito a um arcebispo verdadeiro), estava o rei, que nem sequer tinha vestido um colete especial, trazia um casaco velho -

isso não é quase um insulto? - estava eu, com o vestido mais bonito que consegui arranjar; mas o que é que podia ter feito em pouco mais de quinze dias? E nem sequer tinha uma coroa para pôr na cabeça!

Ele ofereceu-me algumas jóias muito boas, mandei logo chamar o ourives para as avaliar e, de facto, são muito boas, ainda que algumas delas, sei-o, tenham sido trazidas por Catarina de Aragão, de 265

Espanha, e quem quer jóias que pertenceram a uma amiga da nossa avó? Não tenho dúvidas de que, a seguir, virão zibelinas, tão boas como as da Rainha Ana, e já ordenei às costureiras que me fizessem vestido novos, irei receber presentes de todas as partes do mundo, assim que todos saibam, assim que todos sejam informados.

Mas não se pode dizer que tenha sido um casamento grandioso como eu esperava, e nem sequer se aproximou do dela. Pensei que o teríamos de planear

durante meses, que haveria cortejos e a minha entrada majestosa em Londres, devia ter passado a minha primeira noite na Torre e seguido depois para a Abadia de Westminster por ruas cobertas de tecido de ouro, com pessoas a cantarem canções sobre mim. “Bela Catarina”, pensei que cantariam “Rosa da Inglaterra”.

Mas não, em vez disso, estava lá apenas um bispo, o rei, e eu, num vestido deslumbrante de seda verde-escura, que muda de cor quando eu me mexo, e com um toucado novo, e pelo menos com as pérolas dele, estavam lá o meu tio e a minha avó como testemunhas, e dois homens da corte dele, e depois fomos jantar; e depois... E depois! É inacreditável! Só se fala na decapitação de Thomas Cromwell.

Num pequeno-almoço de casamento! É isso que uma noiva deseja ouvir no dia do seu casamento? Não me fazem brindes nem discursos, e praticamente nenhuma celebração. Ninguém me cumprimenta, não há danças nem namoriscos, nem elogios. Não conseguem falar de outra coisa que não seja Thomas Cromwell, porque ele foi decapitado hoje. No dia do meu casamento! É

assim que o rei celebra o seu casamento? Com a morte do seu principal conselheiro e melhor amigo? Não é um presente muito agradável para uma mulher no dia do seu casamento, pois não? Não é que eu seja, seja lá como ela se chama, a da Bíblia, que desejava receber a cabeça de alguém como presente de casamento. Tudo o que queria como presente de casamento eram zibelinas, não as notícias de que o conselheiro do rei foi decapitado, pedindo clemência.

Mas é só do que as pessoas mais velhas falam, ninguém quer saber como me sinto, estão absolutamente encantados com isso, claro, e por isso, falam por cima da minha cabeça, como se eu fosse uma criança e não a nova Rainha da Inglaterra, mencionam uma aliança com a França e que o Rei Francisco nos vai ajudar com o Papa. E ninguém me pede a minha opinião.

O rei aperta-me a mão debaixo da protecção da mesa, inclina-se para mim e sussurra:

- Mal posso esperar por esta noite, minha rosa, minha jóia mais preciosa - o que não é lá muito inspirador, quando penso que 266 21

Thomas Culpepper teve de o ajudar a subir para a sua cadeira, e não há dúvidas

de que terá de ajudá-lo a subir para a minha cama.

Resumindo, sou a mulher mais feliz do mundo, graça a Deus. Mas esta noite estou um pouco descontente.

E não me encontro no meu estado de espírito normal. A esta hora da noite, quando estava nos aposentos da rainha, todas nos estaríamos a aprontar para jantar no salão e a entreolharmo-nos umas às outras e com provocações acerca de quem tinha penteado muito bem o cabelo, ou quem estava muito bem vestida.

Alguém me acusaria sempre de tentar atrair um rapaz ou outro e eu coraria sempre e diria “Não! De forma alguma!” como se estivesse chocada só de pensar nisso. E a rainha sairia do quarto e rir-se-ia para todas nós e depois conduzir-nos-ia até ao salão e tudo seria muito divertido. Lá, durante metade do tempo, haveria um jovem com os olhos cravados em mim, nas últimas semanas tinha sido Thomas Culpepper quem estava sempre a sorrir para mim, e todas as raparigas em meu redor me dariam cotoveladas e me diriam para defender a minha honra. E claro que ele agora nem sequer olha para mim, é óbvio que não há qualquer divertimento para uma rainha, seria de pensar que eu tenho a idade do meu marido.

Era mais do que alegre; era movimentado e divertido e jovem. Havia sempre uma multidão de nós, todas juntas, todas felizes e a partilhar uma piada. E se a piada se tornasse um pouco azeda de vez em quando, com a inveja ou a malícia, haveria sempre outra pessoa a quem nos poderíamos queixar, e um pequeno grupo a formar, e uma pequena discussão a decorrer. Gosto de fazer parte de um grupo de raparigas, gosto dos aposentos das damas, gosto de ser uma das damas de companhia da rainha e de todas estarmos juntas.

É muito bonito ser rainha da Inglaterra, mas ainda não tenho uma corte. Não tenho amigas. Parece que sou só eu, e estas pessoas de idade: a Avó, o meu tio, o rei e os seus homens do Conselho Privado. Os jovens ao serviço do rei agora já nem sequer me sorriem, seria de pensar que nem sequer gostam de mim. Thomas Culpepper baixa a cabeça sempre que me aproximo dele e nem me olha nos olhos. E as pessoas mais velhas falam entre elas de coisas que interessam a pessoas velhas: do tempo, do fim trágico de Thomas Cromwell, das suas propriedades e dos seus bens, do estado da igreja e do perigo dos Papistas e dos hereges, o risco dos homens do Norte que continuam a ansiar pelos seus mosteiros. E eu fico para aqui como uma filha bem comportada, na verdade, como uma neta bem comportada, e é tudo o que posso fazer para não bocejar.

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Volto a cabeça para um dos lados, para dar a impressão que estou a ouvir o meu tio, e depois viro-a para o outro, para o rei. Não ouço nenhum dos dois, para ser sincera. É só conversa e mais conversa por cima da minha cabeça, e não há músicos, nem danças, nem nada para me divertir, excepto a conversa do meu marido, e que noiva alguma vez desejou algo de semelhante?

Depois Henrique diz, muito suave e doce, que são horas de nos retirarmos, e graças a Deus, Lady Rochford entra e leva-me para longe dos restantes, traz uma camisa de noite nova e bonita para mim, com uma capa a condizer, para vestir por cima, e eu dispo o meu vestido no quarto de vestir da própria rainha, porque agora sou rainha.

- Deus vos proteja, Vossa Graça - diz ela. - Mas haveis realmente ascendido muito.

- É verdade, Lady Rochford - digo eu, muito solenemente. - E irei manter-vos perto de mim para me aconselhardes e ajudardes no futuro, como haveis feito no passado.

- O vosso tio ordenou-me que fizesse isso mesmo - diz ela. - Irei ser a chefe dos vossos aposentos privados.

- Eu nomearei as minhas próprias damas - digo eu, com muita arrogância.

- Não, não o ireis fazer - diz ela num tom amável. - O vosso tio já procedeu às nomeações principais.

Certifico-me de que a porta está fechada por trás dela.

- Como está a rainha? - pergunto-lhe. - Acabais de chegar de Richmond, não acabais?

- Não lhe chameis rainha - interrompe-me ela logo. - Vós sois a rainha agora.

Eu deixo escapar uma interjeição de censura, pela minha própria estupidez.

- Esqueci-me. Como é que ela está, de qualquer modo?

- Estava muito triste, quando me vim embora - diz ela. - Não me parece que seja por o ter perdido. Mas por nos ter perdido a todas. Ela apreciava a vida de rainha da Inglaterra, gostava dos aposentos e de estar connosco, e de tudo o que estava envolvido.

- Eu também gostava - digo eu, melancólica. - Também sinto saudades. Lady Rochford, credes que ela me culpa muito? Ela disse alguma coisa contra mim?

Lady Rochford aperta-me a camisa de noite no pescoço. Tem pérolas bordadas nos atilhos, é uma camisa encantadora, confortar-me-á na minha noite de núpcias, saber que estou a usar uma camisa que custa uma pequena fortuna em pérolas.

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- Ela não vos culpa - diz ela gentilmente. - Tonta. Todos sabem que isto não foi obra vossa... só que sois jovem e bonita e ninguém pode culpar-vos por isso.

Nem sequer ela. Ela sabe que não haveis planeado a queda e a infelicidade dela, e que muito menos haveis sido responsável pela morte de Thomas Cromwell.

Todos sabem que não haveis tido importância nenhuma em tudo isto.

- Eu sou rainha - digo, bastante irritada. - Gostava de pensar que sou mais importante do que qualquer outra pessoa.

- Sois a quinta rainha - relembra ela, sem se deixar afectar pela minha irritação. - E, para ser sincera, não houve nenhuma que merecesse o nome de rainha desde a primeira.

- Bem, agora eu sou a rainha - digo decidida. - E isso é a única coisa que importa.

- A rainha do dia - diz ela, passando para trás de mim, para abrir a pequena cauda da minha camisa de noite. Também ela está coberta de pequenas pérolas, é a camisa mais bonita. - Uma rainha efémera, Deus abençoe a vossa pequena majestade.

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Jane Bolena, Palácio de Oatlands, 30 de Julho de 1540

O rei, depois de ter conseguido a sua rosa sem espinhos, está decidido a mantê-la por perto. Metade da corte não sabe ainda que o casamento já se realizou, tendo ficado para trás, em Westminster, longe de tudo o que se está a passar aqui. Este é o novo círculo privado do rei, a sua nova esposa, a família dela e apenas os amigos e conselheiros em que mais confia; e eu estou entre eles.

Mais uma vez dei provas da minha lealdade, mais uma vez fui a pessoa de confiança que contará tudo. Posso voltar a ser, de novo, colocada nos aposentos da rainha, entrar na parte mais secreta do seu coração, posso ser lá colocada, podem confiar em mim para voltar a trair. Fui amiga de confiança da Rainha Catarina, da Rainha Ana, da Rainha Jane e depois, da Rainha Ana; e vi-as, a todas, perderem a sua posição ou morrer, enquanto estive ao seu serviço. Se fosse uma mulher supersticiosa considerar-me-ia um vento pestilento que espalha a morte com calor, com afecto, como o sopro de um murmúrio.

Mas como não sou supersticiosa, não fico preocupada a pensar no papel que desempenhei nestas mortes, coisas vergonhosas e desgraças. Cumpri o meu dever para com o rei e para com a minha família. Cumpri o meu dever, mesmo que isso me tenha custado tudo; o meu único amor verdadeiro e a minha honra.

Porquê, o meu próprio marido... mas não adianta pensar em Jorge, esta noite.

Ele iria ficar contente, de qualquer forma: mais uma rapariga Howard no trono da Inglaterra, uma Bolena no lugar mais importante. Ele era o mais ambicioso de nós todos. Seria o primeiro a dizer que vale a pena mentir para se conseguir um lugar na corte, para se fazer parte do círculo mais favorecido pelo rei. Ele seria o primeiro a compreender que há ocasiões em que a verdade é um luxo que os cortesãos conseguem suportar.

Penso que ficaria surpreendido por ver até onde é que o rei foi capaz de ir, com a facilidade com que ele passa do poder para um grande poder e daí, para o poder absoluto. Jorge não era nenhum

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idiota; parece-me que, se estivesse aqui agora, nos estaria a avisar de que o rei, sem qualquer freio para a sua vontade, não é um grande rei (como nós lhe asseguramos), mas um monstro. Penso que Jorge, quando morreu, já sabia que o

rei se tinha alargado até aos limites da tirania e que ainda havia de ir mais longe.

Como parece ser agora o padrão para os casamentos do rei, este está a ser seguido por uma série de execuções. O rei está a acertar as contas com os seus velhos inimigos e com aqueles que defendiam a esposa anterior. A morte do Conde de Hungerford e do seu tolo adivinho parecem afastar os rumores de bruxaria. Ele foi acusado de toda a espécie de necromancia e actos sexuais selvagens. Alguns papistas vão morrer devido ao papel que desempenharam na conspiração de Lisle, e o tutor da Princesa Maria é um deles. Isso irá entristecê-

la e também lhe vai servir de aviso. A amizade de Ana de Clèves não lhe deu protecção; está outra vez sem amigos, está de novo em perigo. Todos os papistas e simpatizantes dos Papistas estão em perigo. Ela devia ter cuidado. Os Howard estão de volta ao poder e apoiam o rei e a Igreja da Inglaterra por essa ordem. Os Howard estão de volta ao poder e o rei anda a desfazer-se dos seus velhos inimigos para mostrar a sua felicidade com a nova rapariga Howard. Também mandou matar um punhado de luteranos; um aviso para Ana de Clèves e para aqueles que achavam que ela o conduziria à Reforma. Quando ela, esta noite, se ajoelhar ao lado da sua cama, no Palácio de Richmond, vai perceber que escapou por um fio de cabelo. Ele vai fazer com que ela viva o resto da sua vida com medo.

Reparo que Catarina se ajoelha para rezar, mas não fecha os olhos, era capaz de jurar que nem sequer uma Avé-Maria diz. Junta os seus longos dedos brancos, ajoelha-se e sustém a respiração, mas Deus não está no seu pensamento. Aliás, não tem nenhum pensamento de qualquer espécie, era capaz de apostar. Nunca se passa grande coisa naquela linda cabeça. Se ela estiver a rezar por alguma coisa, só pode ser por martas zibelinas, como as que a Rainha Ana recebeu no seu noivado.

É claro que ela é nova de mais para ser uma boa rainha. É demasiado jovem para ser mais do que uma rapariga tonta. Não sabe o que é ter caridade para com os pobres, não sabe nada sobre os deveres do seu alto cargo, não faz ideia de como gerir uma casa deste tamanho, já para não falar da maneira como se governa um país. Quando me lembro de que a Rainha Catarina foi nomeada Regente e governou a Inglaterra, quase me rio às gargalhadas. Esta criança não seria sequer capaz de controlar um cachorro. Mas ela é 271

agradável e simpática para com o rei. O Duque, tio dela, treinou-a bem, no que diz respeito a obediência e educação e é tarefa minha vigiar o resto. Dança muito bem, para o rei, e senta-se calmamente ao lado dele enquanto ele conversa com homens com idade para serem seus avôs. Sorri quando ele se dirige a ela e deixa-o beliscar-lhe uma bochecha ou abraçá-la pela cintura, sem fazer cara feia. Na outra noite, ao jantar, ele não conseguia tirar as mãos dos seios dela e ela corou, mas não o repeliu, quando ele a apalpou diante de toda a gente. Foi educada numa escola dura, a Duquesa é conhecida por ter mão firme sobre as suas raparigas. O Duque deve tê-la ameaçado com o machado, se ela não obedecesse ao rei em pensamento, palavras ou actos. E, para lhe fazer justiça, ela é uma coisinha amorosa, de qualquer forma, fica feliz com os presentes do rei e está contente por ser rainha. É-lhe fácil ser bonita e agradável para ele. Ele não pede muito mais. Não quer uma mulher de grande inteligência e com grandes propósitos morais, como a Rainha Catarina. Nem uma mulher com uma esperteza ardente como Ana. Ele só quer gozar do seu corpo elegante e fazer-lhe um filho.

Ainda bem que a corte não está cá, durante estes primeiros dias do casamento deles. A família dela, e aqueles que tiram proveito deste casamento, podem fingir que não o vêem a agarrá-la pelos cantos, a pequena mão dela presa na dele, o sorriso determinado dela quando ele coxeia por causa da sua perna doente, a forma como cora, embaraçada, quando a mão dele vagueia pelo meio das suas pernas, por baixo da mesa do jantar. Qualquer pessoa que não tire qualquer proveito deste estranho matrimónio iria achar perturbador, ver uma criança tão bonita a ser servida numa bandeja a um homem tão velho. Qualquer pessoa que falasse com honestidade poderia considerar isto como uma espécie de violação.

Por isso, é uma sorte que não esteja aqui ninguém que alguma vez pudesse falar com honestidade.

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Clèves, Palácio de Richmond, 6 de Agosto de 1540

Ele deve vir visitar-me à hora do almoço. Porquê, não consigo imaginar. O

camareiro da casa real veio cá ontem e avisou o meu despenseiro de que o rei teria o prazer de almoçar comigo hoje. Perguntei às damas que ainda estão comigo se alguma tinha tido notícias da corte e uma disse que tinha ouvido dizer

que o rei estava no Palácio de Oatlands, praticamente só, caçando para afastar da sua mente a terrível traição de Thomas Cromwell. Uma delas perguntou-me se eu achava que o rei vinha pedir-me perdão e para voltar para ele.

- E isso é possível? - perguntei-lhe eu.

- E se ele se tivesse enganado? Se o inquérito estivesse errado? - perguntou ela

- Por que outra razão viria ele visitar-vos, tão pouco tempo depois do fim do casamento? Se ele ainda quer terminar o casamento, porque viria almoçar convosco?

Vou até lá fora, aos belos jardins, caminhar um pouco e a minha mente fervilha de pensamentos. Não me parece possível que ele me queira aceitar de novo, mas, no meu espírito, não há qualquer dúvida de que, se ele mudou de ideias, me pode ter de volta, com a mesma facilidade com que me pôde afastar.

Não sei bem se haveria possibilidade de me recusar a voltar para ele. Gostaria de regressar à corte e de voltar a ocupar a minha posição, obviamente. Mas, ser uma mulher solteira traz consigo uma liberdade que eu poderia aprender a apreciar. Nunca antes, em toda a minha vida, fui Ana de Clèves; apenas Ana, não uma irmã, uma filha, uma esposa, só Ana: fazendo o que me apetece. Fiz uma promessa de que, se fosse poupada à morte, iria viver a minha vida, a minha própria vida, não uma vida comandada por outras pessoas. Mandei fazer vestidos em cores que julgo que me ficam bem, sem ter de observar o código de modéstia do meu irmão ou a moda seguida na corte. Mando preparar o meu almoço à hora e com a comida que eu quero; não tenho de estar sentada diante de duzentas pessoas que observam todos os meus gestos. Quando me 273

apetece sair a cavalo, posso ir até onde quero e à velocidade que escolho, sem ter de ter em consideração os temores do meu irmão ou o espírito de competição do meu marido. Se mando chamar os músicos, à noite, posso dançar com as minhas damas ou ouvi-las cantar, sem termos de seguir sempre os gostos do rei. Não temos de nos mostrar maravilhadas com as suas composições. Posso rezar a um Deus da minha própria religião, com as palavras que eu escolho. Posso ser eu própria, posso ser: eu.

Pensei que o meu coração iria bater mais depressa perante a possibilidade de voltar a ser rainha. Teria a hipótese de cumprir o meu dever para com este país,

para com o seu povo, para com as crianças que eu acabei por amar e, talvez, até conseguisse ganhar a aprovação da minha mãe e corresponder às ambições do meu irmão. Mas descubro, quase para meu próprio divertimento, à medida que analiso os meus pensamentos - por fim tenho privacidade e paz para analisar os meus pensamentos - que esta situação pode ser melhor: ser uma mulher solteira, com um bom rendimento, vivendo num dos melhores palácios da Inglaterra, em vez de ser uma das aterrorizadas rainhas de Henrique.

A guarda real chega em primeiro lugar, e depois, os seus companheiros, belos e demasiado bem vestidos, como é habitual. A seguir vem ele, um pouco desajeitado, mancando ligeiramente por causa da sua perna ferida. Faço uma profunda vénia e, quando me levanto, consigo sentir o cheiro horrível da sua ferida. Nunca mais terei de acordar com aquele cheiro entranhado nos meus lençóis, penso eu, enquanto dou um passo em frente e ele me beija na testa.

Ele olha-me de cima abaixo, com o à-vontade de um homem que aprecia um cavalo. Lembro-me de que ele tinha dito à corte que eu cheirava mal, e sinto-me corar.

- Estais com bom aspecto - diz ele, como se tivesse inveja. Consigo detectar o ressentimento, por trás do elogio. Ele esperava que eu estivesse a definhar por causa de um amor não correspondido, tenho a certeza.

- Estou bem - digo eu calmamente. - Fico feliz de vos ver.

Ele sorri com a minha afirmação.

- Devíeis saber que eu nunca seria capaz de vos tratar de forma injusta - diz ele, satisfeito ao pensar na sua própria generosidade. - Se vos comportardes como uma boa irmã para mim, vereis que serei bondoso para convosco.

Eu aceno com a cabeça e faço uma vénia.

- Há algo de diferente em vós - ele senta-se numa cadeira e indica-me que me posso sentar na cadeira mais baixa, junto dele. Eu 274 21

sento-me e aliso a saia bordada do vestido azul, por cima dos joelhos. - Dizei-me. Eu consigo avaliar uma mulher apenas pelo seu ar; percebo que há qualquer

coisa de diferente em vós. O que é?

- Um novo toucado? - sugiro eu.

Ele concorda com a cabeça.

- Fica-vos bem. Fica-vos muito bem.

Eu não digo nada. É um toucado de corte francês. Se ele está a viver com a rapariga Floward, deve estar acostumado ao peso e à loucura da moda. Em todo o caso, agora já não uso a coroa, posso usar o que me apetece. É engraçado, se estivesse com vontade de me rir, que ele goste mais de me ver vestida de acordo com o meu gosto pessoal, do que quando eu tentava agradar-lhe. Mas aquilo que ele aprecia numa mulher, não é o que gostaria de encontrar numa esposa.

Catarina Howard é capaz de vir a descobrir isso.

- Tenho novidades - ele olha em volta, para a minha reduzida corte, com os seus companheiros, por ali, de pé. - Deixai-nos.

Eles saem, o mais lentamente possível. Estão todos ansiosos por saber o que vai acontecer a seguir. Estou certa de que não vai ser um convite para voltar para ele. Estou segura de que não vai ser isso; no entanto, estou quase sem respiração, para saber o que é.

- Tenho notícias que vos poderão aborrecer - diz ele para me preparar. Penso imediatamente que a minha mãe morreu, lá longe, sem que eu tenha tido hipótese de lhe explicar porque a desiludi.

- Não precisais de chorar - disse ele rapidamente.

Ponho a mão na boca e mordo os nós dos dedos.

- Não estou a chorar - digo com firmeza.

- Ainda bem - diz ele - e, além do mais, já deveríeis saber que isto iria acontecer.

- Não o esperava - digo infantilmente - Não contava que fosse tão depressa.

Eles não deviam ter-me mandado chamar, se sabiam que ela estava assim tão doente?

- Bem, é o meu dever.

- O vosso dever? - desejo tanto saber se a minha mãe falou em mim nos seus últimos dias, que mal ouço o que ele diz.

- Casei-me - diz ele. - Estou casado. Achei que vos devia dizer em primeiro lugar, antes que o ouçais por algum mexerico.

- Pensei que se tratava da minha mãe.

- Da vossa mãe? Não. Porque deveria ser algo que ver com a vossa mãe?

Porque me deveria eu incomodar com a vossa mãe? Tem que ver comigo.

- Haveis dito que se tratavam de más notícias.

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- O que poderia ser pior para vós do que saber que me casei com outra mulher?

Oh, milhares de coisas, milhares de coisas, penso eu, mas não o digo em voz alta. O alívio, por saber que a minha mãe está viva, atravessa-me a toda a velocidade, e tenho de me agarrar aos braços da cadeira para me acalmar e para exibir o ar grave e aturdido que ele esperava ver em mim.

- Casado - digo apenas.

- Sim - diz ele -, lamento a vossa perda.

Então, já está tudo terminado. Ele não vai voltar para mim. Nunca mais serei rainha da Inglaterra. Não poderei tomar conta da pequena Isabel, não poderei amar o Príncipe Eduardo, não poderei fazer a vontade à minha mãe. Acabou tudo, de verdade. Falhei com o que me mandaram fazer e lamento-o. Mas, Deus do céu, estou livre dele, nunca mais terei de estar na cama dele. Está, de facto, tudo completamente acabado e sem remédio. Tenho de manter os olhos baixos e o rosto calmo, para que ele não veja o meu ar de felicidade por esta liberdade.

- Com uma dama da mais nobre casa - diz ele -, da Casa de Norfolk.

- Catarina Floward? - pergunto, antes que a sua gabarolice o torne ainda mais ridículo do que eu já o considero.

- Sim - diz ele.

- Desejo-vos muitas felicidades - digo eu com firmeza. - Ela é... - nesse preciso e terrível momento, não consigo encontrar a palavra inglesa. Quero dizer

‘encantadora’ mas não consigo lembrar-me da palavra. - Jovem - termino desajeitadamente.

Ele lança-me um rápido olhar duro.

- Isso não me coloca nenhuma objecção - diz ele.

- Não, de maneira nenhuma - digo muito depressa. - Eu queria dizer, encantadora.

Ele fica mais contente.

- Ela é encantadora - concorda ele, sorrindo. - Sei que gostáveis dela, quando vivia nos vossos aposentos.

- Gostava, sim - digo eu. - Ela era sempre uma companhia agradável. É uma rapariga amorosa - quase digo “criança”, mas consigo emendar a tempo.

Ele concorda.

- Ela é a minha rosa - diz ele. Para meu horror, os olhos do velho tirano enchem-se de lágrimas sentimentais, fica corado. - Ela é a minha rosa sem espinhos - diz pesadamente. - Sinto que finalmente a encontrei, a mulher por quem esperei toda a minha vida.

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Mantenho-me em silêncio. A ideia é tão bizarra que não encontro palavras, inglesas ou alemãs, para lhe responder. Tem estado à espera, a vida toda? Bom, não tem esperado muito pacientemente. Durante a sua longa vigília, despachou três esposas, não, quatro, contando comigo. E Catarina Howard está muito longe

de ser uma rosa sem espinhos. Ela é, quando muito, uma pequena margarida; simpática, com um ar doce, mas vulgar. Deve ser a plebeia mais vulgar que alguma vez se sentou no trono de uma mulher superior.

- Espero que sejais muito felizes - volto a dizer.

Ele inclina-se para mim.

- E parece-me que vamos ter um filho - sussurra ele. - Não digais nada. Ainda está muito no começo. Mas ela é tão jovem e vem de uma família fértil. Ela diz que está convencida de que é assim.

Eu aceno com a cabeça. Ele está a fazer-me confidências, a mim, que fui comprada e metida na cama dele, que tive de suportar o seu esforço inútil em cima de mim, empurrando o seu corpo contra o meu, acariciando o meu ventre e mexendo nos meus seios e isso repugna-me tanto que quase não consigo felicitá-

lo por ter conseguido com uma menina, aquilo que não foi capaz de fazer comigo.

- Então, agora vamos almoçar - diz ele, libertando-me do meu embaraço.

Levantamo-nos e ele pega na minha mão, como se ainda estivéssemos casados, e conduz-me até ao salão principal do palácio de Richmond, o palácio preferido pelo pai dele, recém-construído, e que é agora meu. Ele senta-se sozinho, num trono colocado a um nível mais alto do que todas as outras pessoas e eu sou levada para um lugar, não ao lado dele... como sucedia quando era rainha... mas a uma pequena distância, cá em baixo, no salão, como se para lembrar ao mundo que tudo mudou e que eu nunca mais me voltarei a sentar ao seu lado, como rainha.

Eu não preciso que mo recordem. Já o sei.

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Catarina, Hampton Court, Agosto de 1540

Então, vamos lá a ver, o que é que eu tenho?

Tenho oito vestidos novos já prontos e outros quarenta (Quarenta! Nem eu mesma consigo acreditar!), a serem feitos e estou muito aborrecida com as costureiras por demorarem tanto tempo a fazê-los, uma vez que a minha ideia é

usar, todos os dias da minha vida, um vestido diferente para o jantar, a partir de agora e até ao dia em que morrer, e mudar de vestido três vezes ao dia. Isso significa três vestidos por dia, centenas num ano e, já que poderei viver até aos cinquenta anos, isso vai dar... bem, não sou capaz de fazer as contas, mas vão ser muitos, de certeza. Centenas.

Tenho um colar de diamantes, com braceletes, de ouro e diamantes, a condizer, bem como um par de brincos.

Tenho peles de marta-zibelina, como ela teve de presente, e as minhas são melhores do que as dela: mais espessas e com um pêlo mais brilhante. Perguntei a Lady Rochford e ela confirmou que estas são, sem dúvida, melhores do que as dela. Isso é menos um problema para resolver.

Tenho a minha própria barca (imaginem só!), a minha barca, com o meu lema gravado. Sim, também tenho um lema, que é: “Nenhum outro desejo a não ser o dele”, inventado pelo meu tio e que a minha avó considerou muito vulgar; mas o rei gosta e diz que é exactamente o que tinha pensado. Eu não o percebi muito bem, a princípio, mas significa que eu não tenho outros desejos que não sejam os dele - quer dizer, os do rei. Quando acabei por compreender o que significava, percebi logo porque é que qualquer homem apreciaria este lema, desde que fosse suficientemente tolo para acreditar que alguém seja capaz de devotar por completo o corpo e a alma a outra pessoa.

Tenho os meus próprios aposentos, aqui, em Hampton Court, e são os aposentos da rainha! Inacreditável! Os próprios aposentos onde eu costumava trabalhar como dama de companhia são agora

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os meus aposentos e tenho pessoas a servirem-me. A cama onde eu costumava ajudar a rainha a deitar-se e onde a acordava, pela manhã, é agora a minha enorme cama. E quando a corte realiza torneios, as cortinas que eram dela e que protegiam o camarote real, são agora as minhas cortinas e estão bordadas com um H e um C, exactamente como antes foram bordadas para ela, com um H e um A. De qualquer maneira, já encomendei umas novas. Parece que estou a usar os sapatos de um morto e não vejo porque deva aceitar uma coisa dessas. Henrique diz que eu sou extravagante como um gatinho e que aquelas cortinas têm sido usadas no camarote da rainha desde o tempo da sua primeira esposa e eu digo

que é precisamente por isso que as quero mudar. Portanto, voilá Vou ter cortinas novas, também.

Tenho uma corte de damas escolhidas por mim: bem, algumas sou eu quem escolhe. De qualquer forma, tenho uma corte de damas da minha família. A mais importante é a protegida do rei, Lady Margaret Douglas, praticamente uma princesa, ao meu serviço! Não é que ela faça grande coisa, devo dizer. Qualquer pessoa diria que eu não sou a rainha, pela maneira como me olha, de nariz empinado. Depois, tenho uma mão-cheia de duquesas, a minha madrasta e as minhas duas irmãs são minhas damas de companhia, bem como dezenas de outras mulheres da família Howard que o meu tio colocou à minha volta. Não fazia ideia de que tinha tantas primas. As restantes são a minha antiga companheira de quarto e as minhas amigas dos tempos de Norfolk House, que apareceram aos montes para comer da minha tigela, agora que a minha porção é bastante generosa, e que se preocupam muito comigo, quando antes não me ligavam nenhuma. Mas eu avisei-as de que podem ser minhas amigas, mas devem lembrar-se de que eu sou a rainha e tenho que manter a minha dignidade.

Tenho dois cães de colo a quem dei, por brincadeira, os nomes de Henry e Francis - referindo-me, com isso, aos meus namorados dos tempos de Lambeth, Henry Mannox e Francis Dereham. Quando lhes escolhi os nomes, Agnes e Joan desataram às gargalhadas. Elas estavam comigo em Norfolk House e sabiam perfeitamente em quem eu estava a pensar. Mesmo agora, todas as vezes que eu chamo os dois cães para junto de mim, rimo-nos as três bem alto, ao pensar naqueles dois rapazes, correndo atrás de mim, em volta da Norfolk House, e que agora sou a rainha da Inglaterra. O que devem aqueles homens pensar, quando se lembram de que enfiaram as mãos por baixo das minhas saias e pelo meu peitilho abaixo! É demasiado escandaloso para me atrever a recordar tal 279

coisa. Acho que se devem fartar de rir; é isso que eu faço, só de pensar.

Tenho um estábulo cheio com os meus próprios cavalos e uma égua favorita, que se chama Bessy. Ela é muito meiga e mansa e o rapazinho mais adorável dos estábulos mantém-na exercitada, para que ela não engorde ou fique com manhas.

Ele chama-se Johnny e cora como uma pequena papoila, quando me vê. E

quando o deixo ajudar-me a descer do cavalo, pouso a mãos nos ombros dele e posso observar o seu rosto a arder.

Se eu fosse uma rapariga pateta e oca, (como o meu tio persiste em considerar-me) o que, graças a Deus, não sou, ficaria com a cabeça completamente virada, com a adulação de toda a corte, desde o Johnny, nos estábulos, até ao Bispo Gardiner.

Todos me dizem que sou a melhor esposa que Henrique já teve: e o mais espantoso de tudo é que isto é quase uma verdade. Todos me dizem que sou a mais bela rainha do mundo - e, se calhar, também é verdade - embora não haja grandes reacções, quando olho para o resto da Cristandade. Todos me dizem que o rei nunca amou ninguém tanto como me ama a mim; isto é verdade, porque ele próprio o diz. Todos dizem que a corte inteira está apaixonada por mim e é certamente verdade, porque onde quer que eu ande, surge uma chuvada de bilhetinhos de amor, pedidos e promessas. Os jovens nobres que eu costumava observar, quando era apenas uma dama de companhia, à espera de encontros e namoriscos, fazem agora parte da minha própria corte; têm de me adorar à distância, o que constitui, de facto, a maior das alegrias. Thomas Culpepper é-me enviado pelo próprio Rei, de manhã e ao final da tarde, para trocarmos cumprimentos e eu sei, sei apenas, que ele me adora. Eu provoco-o e rio-me dele e vejo que os seus olhos me seguem e é tudo muito divertido. Onde quer que eu vá, sou acompanhada pelos mais belos jovens do país que fazem torneios para que eu me divirta, dançam comigo, disfarçam-se para me entreter, caçam comigo, andam comigo de barco, passeiam ao meu lado, fazem jogos e praticam desportos para que eu os possa apreciar, que fazem tudo, menos sentar-se de cócoras a pedir o meu favor. E o Rei, Deus o abençoe, diz-me “Ide, bela donzela, ide dançar!” e fica sentado a observar-me enquanto um belo - oh, tão belo -

jovem, um atrás do outro, dança comigo e o Rei sorri, sorri como um bondoso tio velho. E quando eu volto e me sento ao seu lado, murmura:

- Bela rapariga, a mais bela da corte, todos vos desejam; mas vós sois minha.

É como nos meus sonhos. Nunca fui tão feliz na minha vida. Não imaginava que poderia ser tão feliz. É como se fosse a infância que eu nunca tive, estar rodeada de belos companheiros, os meus velhos amigos dos tempos de Lambeth, cheios de dinheiro para gastar, um círculo de homens jovens, ansiosos pela minha atenção e completamente protegida por um homem meigo e carinhoso, mais parecido com um pai bondoso, que não permite que ninguém me diga uma palavra maldosa e que planeia divertimentos e presentes para me oferecer, todos os dias da minha vida. Devo ser a rapariga mais feliz da Inglaterra. Eu digo isto ao Rei e ele sorri e acaricia-me o queixo, dizendo que eu mereço porque, sem

dúvida, sou a melhor rapariga da Inglaterra.

E é verdade, eu mereço estas mordomias, não sou preguiçosa; tenho os meus deveres a cumprir e faço-o o melhor que sei. Todo o trabalho de organizar os aposentos da rainha, deixo-o para outras pessoas, é claro, o meu camareiro-mor trata de todos os pedidos de ajuda, dos assuntos de justiça e das petições - eu não devo ser incomodada com esses assuntos e, em todo o caso, nunca sei o que devo fazer. Lady Rochford é a responsável pela gestão dos meus aposentos e deve certificar-se de que tudo corre tão bem como no tempo da rainha Ana; mas o atendimento ao Rei cai todo sobre mim. Ele está velho e o seu apetite, no quarto de cama, é forte, mas a execução não lhe é fácil, devido à idade e porque está muito gordo. Tenho de usar todos os meus pequenos truques para o ajudar na tarefa, pobrezinho. Deixo que ele me observe, quando dispo a minha camisa de dormir, e verifico se as velas continuam acesas. Suspiro ao seu ouvido, como se estivesse a desmaiar de desejo, uma coisa em que todos os homens gostam de acreditar. Sussurro-lhe ao ouvido, dizendo que os outros homens da corte não valem nada, comparados com ele, que desprezo as suas faces jovens e tontas e os seus fúteis desejos, que quero um homem, um homem a sério... Quando bebe de mais ou está demasiado cansado para se deitar em cima de mim, até faço um truque que o meu muito querido Francis me ensinou, e sento-me, a cavalo, em cima dele. Ele adora isso, antes, só as prostitutas o faziam com ele, pois é um prazer proibido, parece-me que Deus não o autoriza, por qualquer razão. Por isso, delira, quando a sua bela esposa, com o cabelo solto pelos ombros, se senta em cima dele e o atormenta como uma prostituta de Smithfield. Não me queixo por ter de o fazer, na verdade até é bem mais agradável para mim do que ficar esmagada debaixo dele, a sentir o cheiro do seu bafo e o da sua perna apodrecida que me deixam enjoada, enquanto tenho de gemer, fingindo que sinto prazer.

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Mas nem tudo é divertimento. Ser a mulher de um rei não significa apenas dançar e ir a festas no jardim das roseiras. Trabalho tanto como uma leiteira, mas trabalho de noite, em segredo, e ninguém se pode aperceber do quanto isso me custa. Ninguém pode saber que me repugna tanto que quase vomito, ninguém pode perceber que quase me parte o coração ver que as coisas que aprendi a fazer por amor são agora usadas para excitar um homem que faria bem melhor se fosse rezar as suas orações e dormir. Ninguém sabe o que me custa ganhar as

minhas zibelinas e as minhas pérolas. E eu não lhes posso contar, nunca. Uma coisa dessas não se pode dizer. É um segredo enorme, profundo.

Quando, por fim, consegue acabar e começa a ressonar, é - estranhamente - o único momento do dia em que me sinto infeliz com a minha grande sorte. Nessas alturas, com frequência, levanto-me, sinto-me inquieta e não consigo estar parada. Será que vou ter de passar todas as noites da minha vida de mulher a seduzir um homem com idade para ser meu pai? Que quase podia ser meu avô?

Tenho apenas quinze anos e nunca mais vou saborear um doce beijo de uma boca limpa, ou sentir a suavidade de uma pele jovem ou um peito forte e musculado, inclinado sobre mim? Será que terei de passar o resto da minha vida subindo e descendo em cima de uma coisa inútil e murcha, gritando, com fingido prazer, enquanto aquilo se agita lenta e flacidamente sob mim? Quando ele liberta gases intestinais, durante o sono, uma enorme trombeta real a acrescentar aos miasmas debaixo dos lençóis, levanto-me, de mau humor, e vou para o meu quarto.

E, como sempre, tal qual um anjo bom, Lady Rochford está lá, à minha espera. Ela compreende o que se passa, sabe o que eu tenho de fazer e como, em algumas noites, isso me deixa irritada e magoada. Tem sempre uma chávena de hidromel quente e alguns bolinhos, preparados para mim, senta-me numa cadeira perto da lareira, coloca a chávena quente na minha mão e escova lentamente o meu cabelo, com meiguice, até que a raiva me passa e fico novamente calma.

- Quando tiverdes um filho, ficareis livre dele - murmura ela, tão baixinho que eu quase não a ouço. - Quando tiverdes a certeza de que estais grávida, ele deixar-vos-á em paz. Mais alarmes falsos, não. Quando lhe disserdes que estais grávida, tendes de ter a certeza, e depois tereis quase um ano de sossego. E

depois de terdes um segundo filho, o vosso lugar ficará assegurado e podereis fazer o que vos apetecer, pois ele não irá saber, nem se irá importar.

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- Nunca mais voltarei a ter prazer - disse eu tristemente - a minha vida já acabou, mesmo antes de ter começado. E eu só tenho quinze anos e já estou cansada de tudo.

As mãos dela acariciam os meus ombros.

- Oh, haveis de o ter - disse ela com segurança. - A vida é longa e, se uma mulher sobreviver, poderá ter os seus prazeres, de uma maneira ou de outra.

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Jane Bolena, Palácio de Windsor, Outubro de 1540

Supervisionar estes aposentos privados não é tarefa fácil, devo dizer. Sob as minhas ordens, tenho raparigas que, em qualquer cidade decente, seriam chicoteadas em público, amarradas a uma carroça, como prostitutas. As amigas de Lambeth escolhidas por Catarina são sem dúvida das pegas mais desaustinadas que alguma vez vieram de uma casa nobre, onde a dona da casa não se preocupava nada em metê-las na ordem.

Catarina insistiu que as suas amigas dos velhos tempos fossem convidadas para os seus aposentos privados e eu não posso recusar, sobretudo porque as damas mais velhas do seu séquito não são companhia para ela; têm, na sua maioria, idade suficiente para serem mães dela e foram lá introduzidas pelo seu tio. Ela precisa de amigas da mesma idade, mas estas companhias que ela escolheu não são raparigas de boas famílias a quem se possa dar ordens, são mulheres, mulheres fáceis, as primeiras a deixá-la andar à solta e que lhe dão os piores exemplos. E vão continuar a ter este comportamento libertino, se puderem, mesmo dentro dos aposentos reais. Não têm nada que ver com as regras impostas pela Rainha Ana e, dentro de pouco tempo, todos irão reparar nisso. Não consigo imaginar o que passa pela cabeça do Senhor Duque, e o Rei vai permitir à sua noiva-criança tudo o que ela quiser. Mas os aposentos de uma rainha deveriam ser o mais requintado e mais elegante lugar do país, não um pátio de recreio para raparigas mal-educadas.

A amizade que ela tem por Katherine Tylney e Margaret Molton, ainda posso entender, embora sejam ambas bastante grosseiras e obscenas; e Agnes Restwold era, nitidamente, uma confidente dos velhos tempos. Mas não acredito que ela tenha querido Joan Bulmer ao seu serviço. Nunca mencionou o seu nome uma única vez; mas a mulher escreveu uma carta secreta, parece que abandonou o marido e, através da lisonja, lá conseguiu introduzir-se aqui e Catarina tem um coração demasiado bom, ou demasiado receio dos segredos que a mulher possa revelar, para se opor à sua presença.


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E o que é que isso significa? Que ela permite que uma mulher faça parte do seu séquito, que entre nos seus aposentos privados, o lugar mais importante do país, porque pode contar segredos sobre a infância de Catarina? O que poderá ter acontecido na infância da rapariga, para que ela não se arrisque a que se fale no assunto? E poderemos confiar que Joan Bulmer se vai manter calada? Na corte?

Numa corte como esta? Onde todos os mexericos estão sempre relacionados com a própria Rainha? Como posso eu manter a ordem nestes aposentos, quando uma das raparigas, pelo menos, tem um segredo tão poderoso pendente sobre a Rainha, que até lhe garantiu o direito a ser admitida?

São estas as suas amigas e companheiras e não há, na verdade, maneira de as tornar melhores: mas eu tinha esperança de que as damas mais velhas que foram designadas para o seu serviço pudessem dar um tom mais digno e fazer frente ao caos infantil que Catarina aprecia. A dama mais nobre do séquito é Lady Margaret Douglas que só tem vinte e um anos, e até é sobrinha do Rei, mas ela quase nunca está aqui. Desaparece, simplesmente, dos aposentos da rainha durante horas a fio, e a sua grande amiga Mary, Duquesa de Richmond, que foi casada com Henry Fitzroy, vai com ela. Sabe Deus para onde. Diz-se que são grandes poetisas e grandes leitoras, o que, sem dúvida, é um aspecto positivo em seu favor. Mas com quem estarão elas a ler e a fazer rimas, durante todo o dia? E

porque será que eu nunca as consigo encontrar? As restantes damas da Rainha são todas mulheres da família Howard: a irmã mais velha da Rainha, a tia dela, a nora da sua avó, mãe da madrasta dela, uma rede de parentes Howard, incluindo Catarina Carey, que voltou a aparecer rapidamente, para beneficiar da subida da rapariga Howard. São mulheres que apenas se preocupam com as suas ambições pessoais e nada fazem para me ajudar a gerir os aposentos da rainha, para que estes, pelo menos, aparentem ser aquilo que deveriam ser.

Mas as coisas não são como deviam ser. Tenho a certeza de que Lady Margaret se anda a encontrar com alguém; ela é uma tonta, e uma tonta apaixonada. Já uma vez enganou o seu real tio e foi castigada por causa de uma paixoneta que poderia ter sido bem pior. Quase se casou com Thomas Howard, um parente nosso. Ele morreu na Torre por ter tentado casar-se com uma Tudor, e ela foi enviada para o convento de Syon, até que pediu perdão ao rei e prometeu que só se casaria com quem o Rei lhe ordenasse. Mas agora anda a escapar-se dos aposentos da rainha a meio da manhã e só regressa, a correr, à hora de ir jantar connosco, a endireitar o

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toucado e cheia de risinhos. Eu digo a Catarina que devia vigiar as suas damas e que se devia certificar de que as suas condutas se adequam a uma casa real, mas ela própria anda a caçar, a dançar e a namoriscar com os jovens rapazes da corte e o seu comportamento é tão rebelde como o de qualquer outra, pior do que o da maioria delas.

Talvez eu esteja demasiado ansiosa. É possível que o Rei, na verdade, lhe perdoe seja o que for, uma vez que, neste Verão, se tem mostrado como um adolescente completamente apaixonado. Levou-a a todas as suas casas preferidas, na viagem de Verão, e tem conseguido ir à caça com ela, todos os dias, levanta-se de madrugada, almoça, ao meio-dia, em tendas montadas nos bosques, à tarde, vai andar de barco no rio, fica a tarde inteira a vê-la atirar ao alvo ou a jogar num torneio de ténis, a fazer apostas sobre os jovens que fazem torneios de perícia a cavalo, tentando acertar com as suas lanças num escudo fixo e, depois, ainda participa num jantar tardio e numa longa noite de diversões.

A seguir, leva-a para a cama e, pobre velhote, lá tem de estar a pé, de madrugada, no dia seguinte. Sorri-lhe, enquanto ela rodopia, ri e é abraçada pelos mais belos homens da sua corte. Tem-se arrastado atrás dela, sempre com um sorriso, sempre encantado com ela, mancando, cheio de dores e fartando-se de comer ao almoço, embora sofra de uma enorme prisão de ventre. Mas hoje ele não vem jantar e dizem que está com um pouco de febre. Atrever-me-ia a pensar que está à beira de um colapso, por exaustão. Tem vivido estes últimos meses como um noivo jovem, embora tenha idade para ser avô. Catarina nem hesita e vai almoçar sozinha, de braço dado com Agnes, com Lady Margaret a chegar, mesmo a tempo de seguir atrás dela; mas reparo que o Senhor Duque não está presente. Está a fazer companhia ao rei. Ele, pelo menos, deve estar preocupado com a saúde do Rei. Não haverá qualquer vantagem para nós, se o rei ficar doente sem que Catarina esteja grávida.

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Catarina, Hampton Court, Outubro de 1540

O Rei não me quer ver, até parece que o ofendi, o que é tremendamente injusto pois tenho sido uma esposa absolutamente encantadora durante meses a fio, sem parar, dois meses, pelo menos, e nunca pronunciei uma palavra de discordância, embora Deus saiba que tenho razões suficientes para me queixar.

Sei muito bem que ele tem de vir ao meu quarto, à noite, e eu suporto-o sem um lamento, até sorrio, como se o desejasse; mas, é mesmo necessário que ele fique comigo? Toda a noite? E é mesmo inevitável que ele cheire tão mal? Não é só o fedor da perna dele, ele parece a trombeta de um arauto num torneio e, embora isso me dê vontade de rir, é realmente uma coisa nojenta. De manhã, abro as janelas de par em par para me livrar do cheiro dele, mas o odor fica entranhado na roupa da minha cama e nos cortinados. Quase não o consigo suportar. Há ocasiões em que me parece que não vou conseguir aguentar nem mais um dia.

Mas nunca me queixei dele e ele não se pode queixar de mim. Então, porque será que não me quer ver? Dizem que está com febre e que não quer que eu o veja enquanto está doente. Mas não posso deixar de temer que já se tenha cansado de mim. E se já estiver cansado de mim, vai sem dúvida dizer que eu já fui casada com outra pessoa qualquer e o meu casamento será invalidado. Sinto-me bastante desanimada com isto e, embora Agnes e Margaret me digam que ele nunca se vai cansar de mim, que me adora e que qualquer pessoa o pode perceber, elas não estavam cá quando ele repudiou a Rainha Ana e tudo foi feito tão fácil e discretamente que mal nos apercebemos do que estava a acontecer.

Ela, certamente, não sabia o que se estava a passar. Elas não percebem como é fácil para o Rei livrar-se de uma das suas rainhas.

Todas as manhãs envio uma mensagem para os aposentos dele e sempre me respondem que ele está a recuperar; e então, temo muito que ele esteja a morrer, o que não seria de admirar, uma vez que é terrivelmente velho. E se ele morrer, o que me vai

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acontecer? E poderei ficar com as jóias e os vestidos? E continuo a ser rainha, mesmo que ele morra? Por isso, espero até ao fim do almoço e faço sinal ao mais importante dos favoritos do Rei, Thomas Culpepper, para que suba até à mesa principal, e ele vem imediatamente para o meu lado, tão deferente e gracioso, e digo-lhe muito séria:

- Podeis sentar-vos, Master Culpepper - ele senta-se num banco, junto de mim e eu pergunto: - Por favor, dizei-me a verdade, como está o Rei?

Ele olha para mim com os seus honestos olhos azuis, é tremendamente belo, tenho de admiti-lo, e responde:

- O Rei está com febre, Vossa Graça, mas é apenas do cansaço, não é por causa da ferida da perna. Não precisais de temer por ele. Ele ficaria pesaroso se vos causasse qualquer preocupação. Só tem a temperatura alta e está esgotado, mais nada.

É uma resposta tão bondosa que me sinto comovida.

- Tenho estado preocupada - digo um pouco chorosa. - Tenho estado muito ansiosa por causa dele.

- Não precisais de estar - diz ele gentilmente. - Eu dir-vos-ia se houvesse alguma coisa de errado. Dentro de dias já estará a pé e recuperado. Prometo-vos.

- A minha situação...

- A vossa situação é impossível - disse ele subitamente. - Vós deveríeis estar a namorar com o vosso primeiro namorado, não a tentar governar uma corte nem a ajustar a vossa vida para agradar a um homem com a idade do vosso avô.

Isto é tão inesperado vindo de Thomas Culpepper, o cortesão perfeito, que eu deixo escapar um pequeno murmúrio de surpresa e cometo o erro de dizer a verdade, como ele o fizera.

- Na verdade, a culpa é minha. Eu queria ser rainha.

- Antes de saberdes o que isso significa.

- Sim.

Instala-se um grande silêncio. Reparo subitamente que estamos diante da corte inteira e que todos estão a olhar para nós.

- Não posso conversar convosco deste modo - digo pouco à vontade. - Todos me observam.

- Farei tudo o que for necessário por vós - diz ele baixinho - e o maior serviço que vos posso prestar neste momento é afastar-me imediatamente de vós. Não quero dar azo a que haja mexericos.

- Amanhã irei passear nos jardins, às dez horas - digo eu. - Podíeis vir ter

comigo. Nos meus jardins privativos.

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- Dez - diz ele, fazendo uma profunda vénia e regressando à sua mesa. Eu viro-me e converso com Lady Margaret, como se nada de especial tivesse acontecido.

Ela dirige-me um pequeno sorriso.

- Ele é um belo jovem - diz ela. - Mas nada que se compare com o vosso irmão Carlos.

Eu olho para o fundo do salão onde Carlos está a almoçar com os seus amigos.

Nunca pensei nele como bonito, mas também, quase nunca o via, antes de vir para a corte. Ele foi mandado para longe, para ser educado, quando era ainda um rapazinho e depois eu fui mandada para casa da minha avó-madrasta.

- Que coisa tão estranha para se dizer - reparo eu. - Não acredito que gosteis de Carlos.

- Deus meu, não! - diz ela, corando até ficar escarlate. - Toda a gente sabe que eu não posso sequer pensar num homem. Perguntai a quem quiserdes! O Rei não o iria permitir.

- Vós gostais dele! - digo eu encantada. - Lady Margaret, sua dissimulada!

Estais apaixonada pelo meu irmão.

Ela esconde o rosto nas mãos e olha para mim por entre os dedos.

- Não deveis dizer nada a ninguém - pede-me ela.

- Oh, está bem. Mas ele já vos prometeu casamento?

Ela acena com a cabeça, envergonhada.

- Estamos tão apaixonados. Tenho esperança de que possais interceder em nosso favor, junto do rei? Ele é tão severo! Mas nós estamos tão apaixonados.

Eu sorrio para o fundo do salão, para o meu irmão.

- Bem, eu acho que é maravilhoso - digo bondosamente. Gosto de ser simpática para com a sobrinha do Rei. - E que belo casamento poderemos planear.

289

Ana, Palácio de Richmond, Outubro de 1540

Recebo uma carta do meu irmão, uma carta completamente louca que me aborrece e me irrita. Queixa-se do rei, em termos bastante impróprios e ordena-me que regresse a casa, que insistia no meu casamento ou, então, nunca mais me considera sua irmã. Não me dá nenhum conselho sobre como insistir no meu casamento, e é óbvio que nem sequer sabe que o rei já voltou a casar-se, nem me oferece qualquer ajuda, no caso de eu querer voltar para casa. Presumo que ele sabia perfeitamente, ao propor-me estas duas hipóteses impossíveis, que a única opção que me resta é de não voltar a ser, nunca mais, sua irmã.

Não se perde grande coisa! Quando me deixou aqui, sem notícias, ofereceu-me um embaixador que não recebia um vintém, não enviou as provas adequadas de que eu tinha renunciado à promessa de casamento com o herdeiro da Lorena; nessa altura não foi um bom irmão para mim. Não está a ser um bom irmão agora. Pior ainda, quando faz com que o Duque de Norfolk e metade do Conselho Privado se dirijam furiosos e com grande alarido até Richmond, depois de, é óbvio, terem apanhado a carta dele, praticamente no momento em que ela lhe saiu das mãos, de a terem copiado, traduzido e lido, antes de ela chegar até mim. E agora querem saber se eu acredito que o meu irmão vai incitar o Sacro Imperador Romano a entrar em guerra contra a Inglaterra e contra Henrique, por minha causa?

O mais calmamente que me é possível, demonstro-lhes que não é provável que o Sacro-Imperador de Roma entre em guerra a pedido do meu irmão e que (enfatizo essa parte) não vou pedir ao meu irmão que declare guerra por minha causa.

- Aviso o Rei de que não posso dar ordens ao meu irmão - digo, falando lenta e directamente para o Duque de Norfolk. - William fará o que lhe apetecer. Não aceita os meus conselhos.

Ele parece duvidar. Dirijo-me a Richard Beard e falo em alemão.

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- Por favor, explicai a Sua Graça que, se eu pudesse obrigar o meu irmão a obedecer-me, lhe teria dito para enviar o documento que provava que o noivado com o herdeiro da Lorena tinha sido renunciado - digo eu Ele volta-se e traduz e os olhos negros do Duque brilham com o meu erro.

- O problema, é que não foi renunciado - recorda-me ele.

Eu concordo com a cabeça.

- Tinha-me esquecido - digo simplesmente.

Ele lança-me um sorriso glacial.

- Eu sei que não podeis dar ordens ao vosso irmão - diz ele.

Volto a dirigir-me a Richard Beard.

- Por favor, explicai a Sua Graça que esta carta do meu irmão prova que eu, realmente, honrei o Rei, uma vez que torna claro que o meu irmão tem tão pouca confiança em mim que me ameaça de ser afastada, para sempre, da minha família.

Richard Beard traduz e o frio sorriso do duque torna-se ligeiramente maior.

- Aquilo que ele pensa e aquilo que faz, a sua fanfarronice e a forma como me ameaça, não são, naturalmente, opções minhas - concluo.

Graças a Deus, eles podem formar o Conselho do Rei, mas não partilham dos seus infundados temores, não vêem conspirações onde elas não existem -

excepto quando lhes interessa, obviamente. Só quando se querem ver livres de um inimigo, como Thomas Cromwell, ou de um rival, como o pobre Lorde Lisle, é que exageram os temores do Rei e fazem-no acreditar que o perigo é real. O Rei vive num perpétuo terror de uma conspiração ou de outra e o

conselho joga com os medos dele, como um mestre que afina o seu alaúde.

Desde que eu não constitua uma ameaça ou seja uma rival para qualquer um deles, não irão precisar de acicatar os temores reais contra mim. Deste modo, a frágil trégua entre o Rei e eu não se quebra por causa do discurso destemperado do meu irmão. Pergunto-me se ele terá perdido alguns minutos a pensar se a sua carta me poderia pôr em risco. Pior ainda, fico a pensar, para me colocar em tão grande perigo, se ele não o teria feito intencionalmente.

- Pensais que o vosso irmão poderá vir a causar-nos problemas? - pergunta-me Norfolk directamente.

Respondo-lhe em alemão.

- Não por minha causa, Senhor. Ele não faria nada por mim. Nunca fez nada em meu benefício, a não ser deixar-me partir.

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Poderá usar-me como desculpa, mas eu não sou a sua verdadeira causa. E

mesmo que tivesse intenção de criar problemas, duvido muito que o Sacro-Imperador Romano queira entrar em guerra contra o rei da Inglaterra por causa de uma quarta esposa, quando o rei já se casou com a quinta.

Richard Beard traduz o que eu disse e, tanto ele como Norfolk tentam disfarçar a vontade de rir.

- Tenho a vossa palavra, então - diz o Duque rapidamente.

Assinto.

- Tendes. E eu nunca falto à minha palavra. Não causarei qualquer problema ao Rei. Desejo viver aqui sozinha, em paz.

Ele olha em volta, sabe apreciar um belo edifício. Ele próprio construiu a sua grande casa e mandou deitar abaixo algumas belas abadias.

- Sois feliz aqui?

- Sou - digo, e digo a verdade. - Sinto-me feliz, aqui.

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Jane, Hampton Court, Outubro de 1540

Eu devia ter avisado Lady Margaret Douglas para não se meter com um homem que, de certeza, lhe iria causar problemas, mas andei tão absorvida a tentar manter Catarina Howard na linha, durante os seus primeiros tempos de casada, que me esqueci de vigiar as damas, como devia ter feito. Para além do mais, Lady Margaret é sobrinha do Rei, filha da sua irmã. Quem havia de desconfiar que o seu olhar duro e desconfiado iria recair sobre ela? Nos primeiros dias do casamento dele? Quando nos dizia a todos que, pela primeira vez na vida, tinha encontrado a felicidade? Porque haveria eu de pensar que, naquelas semanas de lua-de-mel, ele andava a planear a detenção da sua própria sobrinha?

Porque Henrique é assim - só por isso. Porque eu já estou nesta corte há tempo suficiente para saber que as coisas que ele pode deixar passar quando anda a cortejar uma mulher, vão ser analisadas, a partir do momento em que a consegue conquistar. Nada distrai o Rei dos seus terrores e suspeições por muito tempo.

Mal se levantou e recuperou da febre, começou a examinar a corte, para ver quem se tinha comportado indevidamente durante a sua ausência. Eu andava tão aflita para que ele não desconfiasse da rainha e das suas amigas tolas, que me esqueci de vigiar as damas. Em todo o caso, Lady Margaret Douglas nunca me teria dado ouvidos, pois é absolutamente desprovida de bom senso. Todos os Tudor fazem o que o coração lhes ordena e só depois é que pensam nas consequências, tal como fez a mãe dela, a Rainha Margaret da Escócia, que se apaixonou por um homem que não tinha nada que o recomendasse, e agora, a filha tinha feito o mesmo. Há poucos anos, Lady Margaret casou-se em segredo com Thomas Howard, um parente meu, e apenas teve o prazer da sua companhia durante alguns dias, até o Rei os descobrir e enviar o jovem para a Torre, por causa da sua impertinência. Morreu ao fim de poucos meses e ela caiu em desgraça. É evidente. Evidente! Onde é que está a surpresa? Não se pode aceitar que a sobrinha do Rei

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se case com quem lhe apetecer e que a sua fantasia recaia sobre um Howard!

Não se pode admitir que uma das mais importantes famílias de Inglaterra, próximas do trono por direito próprio, se aproximem ainda mais dele, só porque

uma rapariga aprecia uns olhos escuros, um sorriso agradável e uma certa - visão despreocupada da vida. O Rei jurou que lhe ia ensinar o respeito que a sua posição merece e, durante vários meses, ela foi uma viúva com o coração destroçado.

Bem, agora já está recomposto.

Eu sabia que se passava qualquer coisa e, em poucas semanas, todos ficaram a saber. Quando o Rei ficou de cama por causa da febre, o jovem casal não fez qualquer esforço para esconder o seu romance. Qualquer pessoa com dois olhos na cara podia ver que a sobrinha do rei estava completamente apaixonada pelo irmão da Rainha, Carlos.

Outro Howard, claro, e um favorito: membro do Conselho Privado e com uma elevada posição dentro da sua família. Que teria ele esperado ganhar com semelhante noivado? Os Howard são ambiciosos, mas até ele devia ter pensado que estava a tentar chegar demasiado alto. Santo Deus, será que ele esperava poder alcançar a Escócia através desta rapariga? Já se estaria a ver como rei-consorte? E ela? Como é que não foi capaz de ver o perigo que corria? O que é que se passa com estes Howard que parecem funcionar como imanes para os Tudor?

Poder-se-ia pensar que há qualquer tipo de alquimia, como uma compota que atrai as vespas.

Mas eu devia tê-la avisado de que seria descoberta. Era mais que certo. Nós vivemos numa casa com paredes de vidro, como se os venezianos sopradores de vidro de Murano nos tivessem inventado um tormento especial. Nesta corte não há segredo que se possa manter, não há uma cortina que possa esconder nem uma parede que não seja transparente. Tudo acaba por ser descoberto. Mais cedo ou mais tarde, todos ficam a saber de tudo. E mal se sabe, tudo se estilhaça em mil pedaços.

Fui ao encontro do Senhor Duque e encontrei a sua barca pronta para partir e ele mesmo, no convés.

- Posso falar convosco?

- Problemas? - perguntou ele. - Tenho de apanhar a maré.

- Trata-se de Lady Margaret Douglas - disse eu rapidamente. - Ela está apaixonada por Carlos Howard.

- Eu sei - diz ele. - Eles casaram-se?

Olho para ele chocada.

- Ele é um homem morto, se o fizeram.

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Imaginar o irmão da rainha, o seu próprio sobrinho, morto por traição, não o perturba. Mas também já tinha tido de enfrentar essa hipótese anteriormente.

- A não ser que o Rei, no seu bom humor de lua-de-mel, decida perdoar o amor dos jovens.

- É possível - concordo.

- E se Catarina lhe apresentasse o problema?

- Até agora nunca lhe recusou nada; mas ela só lhe pediu jóias e laços - digo eu. - Será boa ideia que ela lhe peça autorização para um membro da família dela se casar com um da dele? Ele não irá desconfiar?

- Desconfiar de quê? - pergunta ele suavemente.

Olho em volta. Os barqueiros estão demasiado longe para ouvir, os criados trazem todos a libré dos Norfolk. Mesmo assim, aproximo-me um pouco mais.

- O Rei irá suspeitar que nós planeamos tirar-lhe o trono - digo eu. - Vede o que sucedeu a Henry Fitzroy, quando se casou com a nossa Mary. Olhai para o que aconteceu com o nosso Thomas Howard, quando se casou com Lady Margaret. Quando estes casamentos Tudor-Howard se realizam, há sempre uma morte a seguir.

- Mas se ele estivesse bem-disposto... - começa a dizer o Duque.

- Vós haveis planeado isto - acabo por perceber.

Ele sorri.

- Não, mas posso ver as vantagens, se isso acontecer. Nós possuímos uma parte tão grande do Norte da Inglaterra que seria um enorme prazer ver um Howard no trono da Escócia - diz ele. - Um Howard, herdeiro do trono escocês, um neto Howard no trono inglês. Vale a pena arriscar, não vos parece? Vale a pena apostar, e ver se a nossa menina consegue manobrar as coisas?

Fico sem palavras, com a ambição dele.

- O Rei vai perceber o objectivo - o meu medo acaba por me obrigar a dizer, com relutância. - Ele está apaixonado, mas não está cego de amor. E ele é um inimigo muito perigoso, senhor. Vós bem o sabeis. E ainda se torna pior quando pensa que a sua herança está a ser ameaçada.

O Duque concorda.

- Felizmente temos outros Howard, se o nosso querido Carlos nos for tirado; e Lady Margaret é uma tontinha que pode ser encerrada na Abadia de Syon por mais um ano ou dois. No pior dos casos, não perderemos grande coisa.

- Catarina deverá tentar salvá-los? - pergunto.

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- Sim, vale a pena tentar - diz ele despreocupadamente. - É uma jogada muito alta, mas o prémio também é grande - e sobe a prancha que o leva à barca. Eu fico a vê-los soltar as cordas e a barca começa a balouçar na corrente. Os remos dos remadores estão voltados para o ar, como lanças e, à voz de comando, são baixados majestosamente para dentro da água verde. O estandarte dos Norfolk agita-se na popa e a barcaça salta para a frente, à medida que os remos mordem a água. Em pouco tempo, o Duque desaparece. Catarina, Outubro de 1540

Como uma tonta, estou no jardim privado às nove e meia. Não posso confiar a ninguém o segredo de que me vou encontrar com Thomas Culpepper, por isso, mando-as para os meus aposentos, à minha frente, mal ouço o relógio bater as dez. Um minuto depois de elas se terem ido embora, abre-se a porta no muro e ele entra.

Caminha como um jovem. Não arrasta a sua perna gorda, como o Rei.

Caminha nas pontas dos pés, como um bailarino, como se estivesse preparado para correr ou para lutar a qualquer momento. Apercebo-me de que estou a sorrir em silêncio e ele dirige-se a mim, olha-me, sem dizer nada. Ficamos a olhar um para o outro durante bastante tempo e, pela primeira vez, não fico a pensar no que devo dizer, nem sequer no meu aspecto. Apenas absorvo a visão que tenho dele.

- Thomas - digo eu, e o seu nome é tão doce que a minha voz sai como se estivesse a sonhar.

- Vossa Graça - responde ele.

Suavemente, pega na minha mão e leva-a aos lábios. No último momento, quando os seus lábios tocam os meus dedos, olha para mim com aqueles penetrantes olhos azuis e eu sinto os joelhos ficarem sem força, apenas com aquele ligeiro toque.

- Sentis-vos bem? - pergunta ele.

- Sim - digo eu. - Oh, sim. E vós?

Ele acena com a cabeça. Ficamos de pé, como se a música da dança tivesse acabado de terminar, de frente um para o outro, olhando-nos nos olhos.

- E o Rei? - pergunto. Por momentos, tinha-me esquecido completamente dele.

- Está melhor, esta manhã - diz ele. - O médico veio vê-lo, a noite passada, deu-lhe um purgante e ele teve bastantes cólicas, durante algumas horas, mas agora conseguiu esvaziar os intestinos e sente-se melhor por isso.

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Eu viro a cabeça para o outro lado, só de pensar no assunto, e Thomas dá uma pequena gargalhada.

- Perdoai-me. Estou demasiado habituado; todos nós, nos seus aposentos, estamos habituados a falar com grandes detalhes acerca da saúde dele. Eu não queria...

- Não - digo eu. - Eu também tenho de saber tudo.

- Penso que é natural, quando se chega a uma idade destas...

- A minha avó é da idade dele e não passa a vida a falar de purgantes, nem cheira a fossa.

Ele volta a rir-se.

- Bem, juro que se passar dos quarenta anos, me afogo - diz ele. - Não suporto a ideia de ficar velho e de sofrer de flatulência.

É a minha vez de rir, ao imaginar este jovem radiante, velho e com flatulência.

- Ficareis tão gordo como o Rei - prevejo eu - e estareis rodeado de netos que vos adoram e com uma velha esposa.

- Oh, não tenho intenção de me casar.

- Não?

- Não o consigo imaginar.

- Mas porque não?

Ele olha fixamente para mim.

- Estou completamente apaixonado. Demasiado apaixonado. Só consigo pensar numa mulher, e ela não é livre.

Quase não consigo respirar.

- Só numa? E ela sabe?

Ele sorri-me.

- Não sei. Credes que lhe devo dizer?

A porta por trás de mim abre-se e aparece Lady Rochford.

- Vossa Graça?

- Está aqui Thomas Culpepper que me veio dizer que o Rei foi purgado e que já está melhor - digo alegremente, com uma voz aguda e alta. Volto-me de novo para ele, mas não me atrevo a olhá-lo nos olhos. - Podereis perguntar a Sua Graça se posso ir visitá-lo hoje?

Ele faz uma vénia, sem olhar para mim.

- Perguntarei imediatamente - diz ele, abandonando depressa o jardim.

- O que sabeis sobre Lady Margaret e o vosso irmão Carlos? - pergunta Jane.

- Nada - minto logo.

- Ela pediu-vos para falar com o Rei em seu favor?

- Sim.

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- Ides fazê-lo?

- Sim. Espero que ele fique contente.

Ela abana a cabeça.

- Tende cuidado com a forma como o fazeis - avisa ela. - Pode ser que ele não fique contente.

- Porque não haveria ele de ficar contente? - pergunto. - Eu considero maravilhoso. Ela é tão bonita, e uma Tudor! É um grande partido para o meu irmão!

Lady Rochford olha para mim.

- O Rei também pode pensar que é um bom partido para o vosso irmão - diz ela. - Mas pode julgá-lo bom de mais. Podereis ter de usar todo o vosso poder de sedução e todas as vossas tácticas para o persuadir a permitir que eles se casem.

Se quereis salvar o vosso irmão e favorecer a vossa família, faríeis bem em lidar com ele do modo que sempre haveis feito. Devereis escolher bem a ocasião e ser

muito persuasiva.

Eu faço cara de zangada.

- Eu consigo fazê-lo - digo confiante. - Dir-lhe-ei que é meu desejo que eles sejam felizes e ele conceder-me-á esse desejo. Voilá

- Voilá Talvez - diz ela com azedume, a gata velha.

Mas depois, tudo corre mal. Penso em falar com o Rei quando o vir, nessa noite, e Lady Margaret concorda em ir depois de mim, para lhe pedir perdão. Na verdade, estávamos as duas muito entusiasmadas, confiantes em que tudo iria correr bem. Mas, antes do jantar, Thomas Culpepper vem aos meus aposentos com uma mensagem, dizendo que o Rei se encontrará comigo na manhã seguinte. Eu concordo e vou para o jantar - porque haveria de me preocupar? O

Rei já faltou tantas vezes ao jantar que não me parece que tenha importância. De certeza que ele não vai desaparecer à pressa. Mas, pobre de mim! Tem importância, porque enquanto eu estou a jantar e, na realidade, a dançar, alguém despeja veneno nos ouvidos do Rei sobre a sua sobrinha e até sobre mim, e a maneira como são geridos os meus aposentos e, voilá 299

Jane, Outubro de 1540

O Rei entra intempestivamente nos aposentos dela, faz um gesto com a cabeça para nós as três, damas de companhia, e diz: “Lá para fora”, como se fôssemos cães a quem dava uma ordem. Corremos para fora da sala como cães chicoteados e ficamos perto da porta, meia aberta, a ouvir o ruído aterrorizante da fúria real.

O Rei, que se levantou da cama apenas há meio-dia, sabe de tudo e está muito aborrecido.

Talvez Lady Margaret tenha pensado que Catarina intercedesse por eles antes de serem apanhados e esperado que ela pudesse ser suficientemente persuasiva.

Talvez os dois amantes tenham pensado que o Rei, recém-saído da sua cama de doente, mergulhando de novo nos seus prazeres conjugais, pudesse ser condescendente com outros amantes, para com outros amantes Howard. Estão tristemente enganados. O Rei expressa a sua opinião em poucas palavras, vai direito ao assunto e abandona o quarto com grandes passadas. Catarina corre atrás dele, branca como a renda da sua camisa, coberta de lágrimas e diz que o

rei está a ver estratagemas, conspirações e falta de castidade numa corte criada por ele e que a culpa a ela.

- Que posso eu fazer? - pergunta ela. - Ele pergunta-me se não sou capaz de controlar as minhas damas. Como é que eu sei qual a forma de controlar as minhas damas? Como é que posso dar ordens à sua própria sobrinha? Ela é filha da rainha da Escócia, pertence à família real e é seis anos mais velha do que eu.

Porque haveria de me dar ouvidos? Que posso eu fazer? Ele diz que a vai castigar, que os dois vão ter de enfrentar o seu grande descontentamento. Que posso fazer?

- Nada - digo simplesmente - não podeis fazer nada para a salvar. O que pode ser mais fácil de perceber do que isto?

- Não posso deixar que o meu próprio irmão seja levado para a Torre!

Ela diz estas coisas, sem pensar, à mulher, eu, que viu o seu próprio marido ser levado para a Torre.

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- Já assisti a coisas piores - digo secamente.

- Oh, naquela altura, sim - ela agita a mão, como se aquilo não tivesse tido importância, e vinte diamantes faíscam com a luz e fazem desaparecer os fantasmas deles: Ana e Jorge, levados para a Torre, sem que alguém dissesse uma palavra para os salvar. - Isso já não importa! Mas aquilo que se passa agora?

Estamos a falar de Lady Margaret, que é minha amiga, e de Carlos, meu irmão.

Eles estão a contar comigo para os salvar.

- Se admitirdes, apenas, que sabíeis que eles andavam juntos, é bem provável que sejais mandada para a Torre, juntamente com eles - avisei-a. - Ele é contra, e vós faríeis melhor em fingir que não sabíeis de nada. Porque não sois capaz de entender isto? Como é que Lady Margaret pode ser tão tola? A protegida do Rei não pode oferecer os seus favores como lhe apetecer. E a mulher do Rei não pode enfiar o seu irmão na cama de um membro da realeza. Todos sabemos isso.

Foi uma jogada, uma jogada alta e temerária que deu mau resultado. Lady Margaret deve estar louca para arriscar a vida por uma coisa destas. E vós teríeis

de estar louca para condescender com isto.

- Mas, se ela está apaixonada?

- E vale a pena morrer por amor?

Isto põe fim à sua balada romântica. Encolhe ligeiramente os ombros.

- Não, nunca. É claro que não. Mas o Rei não pode mandar cortar-lhe a cabeça por se ter apaixonado por um homem de uma família importante e por se casar com ele?

- Não - digo friamente -, vai mandar decapitar o amante dela; por isso, é melhor que digais adeus ao vosso irmão e que vos certifiqueis de que nunca mais voltais a falar com ele, a não ser que queirais que o Rei pense que fazeis parte de um plano para o fazer suplantar pelos Howard.

Ela fica completamente branca, ao ouvir isto.

- Ele nunca seria capaz de me mandar para a Torre - murmura. - Estais sempre a pensar na mesma coisa. Não falais de outra coisa. Só aconteceu uma vez, com uma das suas esposas. Nunca mais voltará a acontecer. Ele adorame.

- Ele ama a sobrinha e, no entanto, vai mandá-la para Syon, para que fique lá presa e infeliz, e vai mandar o marido dela para a Torre e para a morte - prevejo eu. - O Rei pode amar-vos, mas detesta pensar que os outros fazem o que lhes apraz. O rei pode amar-vos, mas quer que sejais uma pequena rainha de gelo. Se houver qualquer falta de castidade nos vossos aposentos, irá culpar-vos 301

e castigar-vos-á por isso. O Rei pode amar-vos, mas preferiria ver-vos morta aos seus pés a permitir que apareça uma nova família real, rival. Lembrai-vos da família Pole... aprisionada na Torre para toda a vida. Pensai em Lady Margaret Pole, anos e anos ali metida, inocente como uma santa e, no entanto, condenada a prisão perpétua. Gostaríeis de ver os Howard seguir o mesmo caminho?

- Para mim, isto é um pesadelo! - exclama ela; pobrezinha, pálida e carregada de diamantes. - É o meu próprio irmão. Eu sou a rainha. Tenho de ser capaz de o salvar. Ele não fez nada mais do que apaixonar-se. Vou falar com o meu tio sobre

o assunto. Ele vai salvar Carlos.

- O vosso tio não está na corte - digo com brusquidão. - Surpreendentemente, foi para Kenninghall. Não o conseguireis contactar a tempo.

- Que sabe ele deste assunto?

- Nada - digo eu. - Ireis perceber que ele não sabe de nada. Ireis ver que, se o Rei lho perguntar, ficará completamente chocado por tal suspeita. Tereis de desistir de salvar o vosso irmão. Não o podeis salvar. Se o Rei lhe voltou a cara, Carlos é um homem morto. Eu sei. Melhor que qualquer outra pessoa no mundo: sei que é assim.

- Vós não haveis deixado o vosso marido ir para a morte sem o defenderdes.

Não haveis permitido que o Rei ordenasse a morte dele, sem terdes rogado para que ele o perdoasse! - afirma ela sem saber de nada, sem saber mesmo de nada.

Eu não lhe digo: “Oh, mas foi isso que eu fiz. Estava com tanto medo, nessa altura. Temia tanto por mim”. Não lhe respondo: “Oh, foi exactamente isso que eu fiz, e por razões bem mais obscuras que vós nunca sereis capaz de imaginar”.

Em vez disso, respondo-lhe:

- Não importa o que eu fiz. Tereis de vos despedir do vosso irmão e ter esperança de que alguma coisa distraia o rei de proferir uma sentença de morte.

Se isso não acontecer, só podereis recordá-lo nas vossas orações.

- E de que serve isso? - pergunta ela, hereticamente. - Se Deus está sempre do lado do Rei? Se a vontade do Rei é a vontade de Deus? De que serve rezar a Deus, se o Rei é Deus, na Inglaterra?

- Calai-vos - digo imediatamente. - Tereis de aprender a viver sem o vosso irmão. Do mesmo modo que eu tive de aprender a viver sem a minha cunhada, sem o meu marido. O Rei voltou-lhes o rosto e Jorge foi levado para a Torre e saiu de lá sem cabeça. E eu tive de aprender a suportar isso. Como vós tereis de fazer.

- Não está certo - diz ela com rebeldia.

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Eu agarro-lhe os pulsos e seguro-os com firmeza, como faria com uma criada que está prestes a ser esbofeteada pela sua estupidez.

- Aprendei uma coisa - digo com frieza. - É a vontade do Rei. E não há nenhum homem que seja suficientemente forte para lhe fazer frente. Nem mesmo o vosso tio, o arcebispo, nem mesmo o próprio papa. O rei fará o que lhe aprouver. A vossa tarefa é assegurar-vos de que ele nunca vos voltará o rosto, nem a nós.

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Ana, Palácio de Richmond, Novembro de 1540

Então, tenho de ir para a corte para as comemorações do Natal. Ele mantém a sua palavra de que eu estou em segundo lugar, logo a seguir à pequena Kitty Howard, (tenho de me habituar a dizer, Rainha Catarina, antes de lá chegar).

Recebi hoje uma carta do camareiro-mor, solicitando a minha presença e dizendo que ficarei alojada nos aposentos da rainha. Sem dúvida, terei o melhor quarto e a Princesa Maria, o outro, e vou ter de me habituar a ver a Kitty Howard (Rainha Catarina) a dormir na minha cama, a mudar de roupa nos meus aposentos e a receber as minhas visitas sentada na minha cadeira.

Se tem de ser assim, terá de ser feito com elegância. E eu não tenho outra escolha.

Tenho a certeza de que Kitty Howard vai fazer o seu papel. Já deve estar a ensaiar neste momento, se bem a conheço. Ela gosta de ensaiar os seus movimentos e sorrisos. Imagino que já tenha preparado um sorriso especial para me receber, e eu também tenho de ser simpática.

Tenho de comprar presentes. O Rei adora presentes e, é claro, a pequena Kitty Howard (Rainha Catarina) é uma autêntica pega. Se levar presentes requintados, posso apresentar-me com confiança. E bem preciso dela. Já fui duquesa e rainha da Inglaterra, mas, agora, sou uma espécie de princesa. Tenho de ter a coragem de me apresentar como eu mesma, Ana de Clèves, e de entrar na corte, e na minha nova posição, com elegância. É Natal, o meu primeiro Natal passado na Inglaterra. Dá-me vontade de rir pensar que eu esperava festejar o Natal no meio de uma corte alegre, celebrando a época, e, de facto, assim será. Pensava que

seria rainha nessa corte; mas, segundo parece, serei apenas uma convidada especial. É assim a vida. São coisas que acontecem, na vida de uma mulher. Não tenho qualquer culpa disso e, no entanto, não me encontro na posição para a qual fui chamada. Não tenho qualquer culpa, mas fui destronada. O que tenho a fazer, se for capaz disso, é tentar ser uma digna princesa da Inglaterra, o país do qual, antes, esperava ser uma rainha digna.

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Jane Bolena, Hampton Court, Natal de 1540

O rei voltou-se contra a família da sua esposa, contra a sua própria sobrinha, e ninguém diz uma palavra, todos mantêm a cabeça baixa, esperando que este problema não se volte contra eles. Carlos Howard, avisado a tempo por alguém mais corajoso do que nós, desapareceu rio abaixo num pequeno barco de pesca, conseguiu arranjar passagem num barco costeiro e viajou para a França. Vai juntar-se ao número crescente de exilados que não podem viver na Inglaterra de Henrique; papistas, reformistas, homens e mulheres apanhados nas novas leis da traição, homens e mulheres, cujo crime não é mais do que ser parente de alguém que o Rei considera traidor. À medida que o seu número vai aumentando, mais o rei se torna desconfiado e medroso. O seu próprio pai tomou a Inglaterra com um punhado de homens pouco leais que se tinham exilado por causa do Rei Ricardo. Ele sabe, melhor do que ninguém, que a tirania é detestada e que um número elevado de exilados e pretendentes pode fazê-lo cair do trono.

Por isso, Carlos está em segurança, lá longe, na França, à espera que o Rei morra. De certa forma, a sua vida é melhor do que a nossa. Está exilado da sua terra e da sua família, mas está livre; nós estamos cá, mas mal nos atrevemos a respirar. Lady Margaret voltou para a sua antiga prisão, na Abadia de Syon.

Chorou amargamente quando soube que o Rei a ia voltar a encarcerar. Diz que apenas tem três salas por onde pode andar e uma pequena vista, ao canto, para o rio. Alega que só tem vinte anos e que os dias se arrastam para ela. Os dias passam muito devagar e as noites parecem não ter fim. Diz que tudo o que queria era que a deixassem amar um homem bom, poder casar-se com ele e ser feliz.

Todos sabemos que o Rei nunca o permitirá. A felicidade tornou-se o bem mais escasso do reino, neste Inverno. Ninguém poderá ser feliz, a não ser ele.

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Catarina, Hampton Court, Natal de 1540

Então, vejamos, o que é que eu possuo agora?

Tenho a herança Seymour, sim, na totalidade. Todos os castelos e casas senhoriais que tinham sido dadas a Jane Seymour e que me foram, agora, oferecidas. Imaginam como os Seymour devem estar furiosos? Num momento, são os maiores proprietários da Inglaterra, no seguinte, apareço eu e, todas as terras de Jane passam a ser minhas.

Possuo a maior parte das terras que pertenciam a Thomas Cromwell, agora executado por traição, e que não deixa pena nenhuma, porque não era boa rês, segundo me diz o meu tio. Também me diz que, apesar de ser um plebeu, Thomas Cromwell mantinha as suas terras em muito bom estado e, assim, posso contar que delas me venha um bom rendimento. Para mim! Um bom rendimento! Como se eu alguma vez tivesse sabido para que serve um arado!

Agora até tenho rendeiros, imaginem só!

Vou receber as terras de Lorde Hungerford, que foi condenado por bruxaria e sodomia, bem como as terras de Lorde Hugh, o abade de Reading. Como é normal, com o rei, não é muito agradável possuir terras que pertenciam a pessoas que estão mortas, e saber que algumas morreram para me favorecer. Mas como disse Lady Rochford, e não o esqueci (embora algumas pessoas digam que nada fica na minha cabeça por mais de um segundo), tudo o que recebemos vem de pessoas mortas, por isso não vale a pena ser esquisito.

Isto é, de facto, verdade, mas não consigo deixar de pensar que ela, pelo menos, parece ser capaz de herdar os bens de homens mortos com muita alegria.

Tenho a certeza de que, se eu ficasse viúva, estaria muito mais triste e pensativa do que ela, mas ela quase nem fala no marido. Nem uma vez, sequer. Quando lhe pergunto “Não vos incomoda estar nos meus aposentos, que eram os da vossa cunhada?”, ela olha para mim, quase como se estivesse zangada, e só diz “Calai-vos”. E julgam que eu vou andar por aí,

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pela corte, a tagarelar, dizendo que sou a segunda Howard a usar a coroa? É

claro que não. Mas pensava que uma viúva iria gostar que alguém tivesse um pensamento de carinho para com aqueles que perdeu. Principalmente se isso fosse feito com sensibilidade, como eu o faço.

Mas no meu caso, é claro que, se ficasse viúva, tudo seria completamente diferente. Ninguém poderia esperar que eu ficasse muito triste, já que o meu marido é muito mais velho do que eu, e é muito natural que morra dentro de pouco tempo. Aí, serei livre para refazer a minha vida. É óbvio que eu nunca seria incorrecta ao ponto de fazer comentários sobre esse assunto, pois uma das coisas que eu aprendi mais depressa na corte foi que o rei não aprecia que lhe mostrem um retrato fiel de si mesmo: embora exija que o retrato dos outros corresponda à realidade, como no caso da pobre Rainha Ana. Ele não quer que lhe recordem que está velho, nem que lhe digam que tem um ar cansado, que coxeia mais ou que a sua ferida tresanda. Uma parte da minha tarefa, como sua esposa, é fingir que ele tem a mesma idade que eu, e que só não se levanta para dançar connosco porque prefere ficar sentado a observar-me. Eu nunca, jamais, farei seja o que for, por palavras ou por actos, que possa sugerir que tenho a noção de que ele tem idade para ser meu pai, ainda para mais, um pai diminuído fisicamente, gordo, fraco, que sofre de prisão de ventre e que está velho.

E não tenho culpa de que a filha dele seja mais velha, mais severa e mais bem educada do que eu. Ela chegou à corte, para passar as festividades do Natal, como um velho fantasma, fazendo com que toda a gente se lembrasse da mãe.

Eu nem sequer me queixo, mas também não é preciso. Só a sua presença ao meu lado, tão séria, tão adulta, como se pudesse ser mais a minha mãe do que eu alguma vez poderia ser a dela, já é suficiente para o irritar. E ele descarrega em cima dela a sua irritação, agrada-me dizer. Até um gato se riria. Não preciso de fazer nada. Ela fá-lo sentir-se velho, e eu faço-o sentir-se jovem. Por isso, detesta-a e adorame.

E ainda que seja certo que ele vai morrer dentro de pouco tempo: eu ficaria muito triste por ele, se isso acontecesse daqui a pouco, digamos, daqui a um ano.

Mas quando isso acontecer, daqui a um ano, que seja, eu seria rainha regente e ficaria a tomar conta do meu enteado, o Príncipe Eduardo, o que, creio eu, seria bastante divertido. Ser rainha regente ia ser a melhor coisa do mundo. Porque iria ter todos os prazeres e a riqueza de uma rainha, sem ter de me preocupar com um rei velho. Na verdade, toda a gente iria ter de se preocupar comigo e a piada maior seria se, daqui a

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cinquenta anos, eu obrigasse todos eles a comportarem-se como se eu não estivesse velha e cansada mas, pelo contrário, continuasse a estar bela, todas as

manhãs, como estou agora.

Pensar na morte dele é algo que nunca menciono, nem mesmo nas minhas orações, uma vez que, espantosamente, é considerado traição, sugerir sequer, que o Rei pode morrer. Ele não é ridículo? Imaginem, tornar ilegal afirmar algo que é uma verdade evidente! Em todo o caso, eu não me arrisco no que diz respeito a traição e, por isso, nunca desejo a sua morte, nem sequer rezo para que tal aconteça. Mas, às vezes, quando estou a dançar com Thomas Culpepper, com a mão dele pousada na minha cintura e com a sua respiração quente no meu pescoço, penso que, se o Rei morresse, eu poderia ter um marido jovem, poderia voltar a sentir o toque de um homem novo, o cheiro de um suor jovem na minha cama, a sensação de um corpo jovem e forte, o encanto de um beijo dado por uma boca sã.

Por vezes, quando Thomas me agarra, num movimento da dança, e o sinto apertar a minha cintura, fico cheia de desejo de que me toque. Sempre que sinto isso, digo-lhe num sussurro que estou cansada, afasto-me dele, ignoro a suave pressão dos seus dedos e vou-me sentar junto do Rei. Lady Margaret está presa em Syon por amar um homem. Não vale a pena pensar assim. Não traz grande felicidade pensar dessa maneira.

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Jane Bolena, Hampton Court, Natal de 1540

Este vai ser o Natal de Catarina, o mais feliz que já teve. A sua casa está toda reformada, à sua volta, é servida pelas mais importantes damas do reino e é amiga das piores raparigas que alguma vez entraram num dormitório. Tem terras suas, de pleno direito, rendeiros aos milhares, possui jóias que fariam inveja aos Mouros, e agora tem de ter o Natal mais feliz da sua vida, e nós recebemos ordens para que assim seja.

O rei está mais descansado e com mais ânimo, entusiasmado com a expectativa de umas celebrações deslumbrantes, para poder mostrar ao mundo que é o ardente esposo de uma jovem e bela mulher. O breve escândalo do caso amoroso da sua sobrinha já foi esquecido, ela está encerrada na Abadia de Syon e o seu amante fugiu. Kitty Howard culpou toda a gente, menos a si mesma, pela lassidão dos seus aposentos, e tudo foi perdoado. Nada irá estragar estas primeiras comemorações natalícias aos recém-casados.

Mas, mesmo assim, o belo rosto mostra um pouco de mau-humor. A Princesa Maria vem à corte, como lhe foi pedido, e dobra o joelho diante da sua nova madrasta, mas não mostra sequer um sorriso. Nitidamente, ela não se deixa impressionar por uma rapariga nove anos mais jovem do que ela e não consegue forçar a sua boca a articular a palavra “Mãe” diante de uma rapariga tonta e fútil, quando esse adorado título pertenceu, em tempos, à melhor rainha da Europa. A Princesa Maria, que sempre mostrou ter uma grande capacidade para os estudos, muito séria, uma filha da igreja, uma descendente da Espanha, não consegue suportar uma rapariga mais nova do que ela, empoleirada no trono da sua mãe, sempre pronta para saltar de lá e ir dançar com quem a convide. A Princesa Maria conheceu Kitty Howard na Primavera passada, quando ela era ainda a mais oca e tola rapariga ao serviço da rainha. Como é que se pode acreditar que aquela pequena amostra de gente seja agora a rainha? Se fosse a Festa da Confusão, a princesa Maria ainda se riria, mas

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esta versão fictícia de realeza não dá vontade de rir, quando se repete todos os dias. Disto, não se ri.

A corte vai ficando mais alegre, como dizem alguns, ou mais selvagem, como dizem outros. O que eu digo é que, se colocarem uma louca no comando da sua própria casa e lhe disserem que faça o que lhe aprouver, todos irão assistir a uma explosão de namoriscos, adultérios, atitudes afectadas, mau comportamento, bebedeiras, desonestidade e luxúria. E é o que estamos a ver. A Princesa Maria passa pelo meio de nós como uma mulher de juízo passaria por um mercado de doidas. Não vê nada que lhe possa agradar.

O beicinho diz ao Rei que a sua noiva-criança não está contente e, por isso, ele leva a filha para um lado e diz-lhe que preste atenção ao modo como faz as coisas, se quiser ter lugar na corte. A Princesa Maria, que já aguentou coisas piores, morde a língua e espera pela altura certa. Não diz nada contra a rainha-menina, apenas a observa, da mesma forma que uma jovem inteligente observaria um regato sujo e sussurrante. Há qualquer coisa no olhar duro de Maria que faz com que Catarina pareça tão insubstancial como um pequeno fantasma risonho.

A pequena Kitty Howard, lamentavelmente, não é capaz de melhorar, como resultado da sua alta posição. Mas ninguém, a não ser o marido que a adora,

alguma vez pensou que tal aconteceria. O tio dela, o Duque, mantém-na debaixo de olho, no que diz respeito à sua conduta em público, mas declina em mim a responsabilidade de observar a sua vida privada. Mais do que uma vez, chamou-a aos seus aposentos, para lhe passar um tremendo sermão sobre o decoro e o comportamento que são esperados de uma rainha. Ela desata num choro arrependido, que lhe é bastante comum. E ele, aliviado porque - ao contrário de Ana - ela não discute com ele nem lhe atira à cara a sua própria conduta, não lhe cita as maneiras consideradas elegantes na corte francesa nem se ri na cara dele, considera que o assunto ficou resolvido. Mas logo na semana a seguir, há uma grande confusão nos aposentos da rainha, com os jovens fidalgos a perseguirem as raparigas pelos quartos todos, incluindo o dela, a baterem-lhes com as almofadas, e com a Rainha no meio da luta, aos gritos e aos saltos em cima da cama, atribuindo a classificação daquele torneio de almofadas. E assim, o que é que se pode fazer?

Não há poder na terra que transforme Catarina Howard numa mulher sensata, porque não há nela material que se possa trabalhar. Ela tem uma completa falta de educação, de formação e até de bom-senso. Só Deus sabe o que a Duquesa pensava que andava a fazer

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com a gente jovem da sua casa. Mandou Catarina para as lições de música -

durante as quais foi seduzida pelo professor - mas nunca a ensinou a ler ou a escrever, ou a fazer contas. A pequena não fala línguas estrangeiras, não é capaz de ler uma partitura - apesar das tentativas de Henry Manox -, canta com uma voz fininha, dança como uma prostituta, está a aprender a montar a cavalo. E que mais? Não, nada mais. É tudo.

É suficientemente inteligente para agradar a um homem, e algumas das suas aventuras nocturnas, em Norfolk House, ensinaram-lhe uma mão-cheia de truques, próprios de uma prostituta. Graças a Deus que ela se dedica a tentar satisfazer o Rei, e parece que o consegue, mais do que seria de esperar. Ele meteu na cabeça que ela é uma rapariga perfeita. Aos seus olhos, ela é a filha que nunca amou, a noiva virgem que o seu irmão possuiu em primeiro lugar, a esposa em quem ele nunca confiou. Para um homem que tem duas filhas, e que se casou e foi para a cama com quatro mulheres, é óbvio que ainda conserva muitos sonhos por cumprir. Catarina está destinada a ser aquela que o fará, finalmente, feliz e ele faz tudo para se convencer a si mesmo de que ela é a

pessoa que o pode conseguir.

O Duque chamame à sua presença todas as semanas, não deixa nada ao acaso com esta rapariga Howard, depois de ter perdido o controlo com as outras duas Bolena anteriores.

- Ela tem-se comportado dignamente? - pergunta logo.

- Eu aceno com a cabeça.

- Ela é um bocado rebelde, quando está com as outras raparigas dos seus aposentos, mas não diz nada, nem faz nada a que se pudesse realmente objectar em público.

Ele dá uma fungadela.

- Não importa - objecto eu. - Há alguma coisa a que o rei possa objectar?

Calo-me... quem sabe a que coisas pode o Rei objectar?

- Ela não fez nada que possa desonrar a sua pessoa ou a sua alta posição - digo cautelosamente.

Ele lança-me um olhar furioso por debaixo das suas sobrancelhas ameaçadoras.

- Não me venhais com meias palavras - disse friamente. - Não vos mantenho aqui para me virdes com enigmas. Ela anda a fazer alguma coisa que me possa trazer cuidados?

- Ela tem uma paixoneta por um jovem dos aposentos do rei - digo eu. - Não aconteceu nada, para além de andarem a fazer olhinhos de carneiro mal morto um ao outro.

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Ele franze a testa.

- O rei já reparou?

- Não. Trata-se de Thomas Culpepper, um dos seus favoritos. O rei não vê nada por causa da amizade que tem a ambos. Manda-os dançar juntos e diz que fazem um par perfeito.

- Já reparei - concorda ele, acenando com a cabeça. - Já era de prever. Vigiai-a, e certificai-vos de que ela nunca fica a sós com ele. Mas uma rapariga de quinze anos vai, de certeza, apaixonar-se, e não vai ser por um marido de quarenta e oito. Vai ter de a vigiar durante muitos anos. Mais alguma coisa?

Hesito.

- Ela é gananciosa - digo com franqueza. - Todas as vezes que o Rei vem almoçar com ela, pede-lhe alguma coisa. Ele detesta isso. Todos sabem que ele detesta essas coisas. Não o detesta em relação a ela, por enquanto. Mas durante quanto tempo é que ela vai continuar a pedir-lhe um lugar para este ou para aquele primo, para este ou aquele amigo? Ou a pedir prendas?

Ele acena em concordância e toma nota no papel que tem à sua frente.

- Concordo - diz ele. - Ela deverá conseguir que William seja nomeado embaixador na França e depois dir-lhe-ei que não peça mais nada. Mais alguma coisa?

- As raparigas que ela levou para os seus aposentos - digo. - As raparigas de Norfolk House e de Horsham.

- Sim?

- Elas não a respeitam - digo cruamente. - E eu não consigo pô-las na ordem.

São raparigas patetas, há sempre um namorisco a acontecer com um jovem ou com outro, há sempre uma que se tenta escapar cá para fora ou que o tenta levar lá para dentro às escondidas.

- Levá-lo lá para dentro às escondidas? - pergunta ele, subitamente alarmado.

- Sim - respondo. - Não há perigo para a reputação da Rainha, uma vez que o Rei dorme sempre na cama dela. Mas, suponhamos que um dia ele está cansado, ou doente, e deixa de vir uma noite e os inimigos dela descobrem que há um jovem que anda a subir às escondidas pelas escadas de serviço? Quem é que vai dizer que ele vai ter com a Agnes Restwold e não com a própria rainha?

- Ela tem os seus inimigos - diz ele pensativo. - Não há um único reformista ou luterano no reino que não a queira ver cair em desgraça. Eles já andam a murmurar contra ela.

- Deveis saber mais do que eu.

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- E há todos os nossos inimigos. Todas as famílias da Inglaterra ficariam contentes com a sua queda e de nos verem arrastados para o fundo, junto com ela. Sempre foi assim. Eu teria dado tudo para ver Jane Seymour envergonhada por um escândalo. O rei sempre encheu a sua casa com os amigos das suas esposas. Neste momento estamos em ascensão e os nossos inimigos começam a reunir-se.

- Se não insistíssemos em querer tudo...

- Eu hei-de conseguir ser governador do condado do Norte, custe o que custar

- resmungou ele com irritação.

- Sim, mas, e depois disso?

- Não entendeis? - volta-se ele subitamente contra mim. - O rei é um homem de favoritos e de adversários. Quando tinha uma esposa espanhola, entrámos em guerra contra a França. Quando se casou com uma Bolena, destruiu os mosteiros e o papa foi junto. Quando se casou com uma Seymour, nós, os Howard, tivemos de andar por aí a esgravatar as migalhas, por baixo da mesa. Quando se casou com a mulher de Clèves, ficámos todos escravizados por Thomas Cromwell, que conseguiu o acordo. Agora é a nossa vez, de novo. A nossa rapariga está no trono da Inglaterra e tudo que conseguirmos levar, está aí à nossa disposição.

- Mas, e se todos se tornarem nossos inimigos? - sugiro. - Se a nossa ambição nos tornar inimigos de toda a gente?

Ele exibe os seus dentes amarelos num sorriso.

- Todos são sempre nossos inimigos - diz ele. - Mas, de momento, estamos nós a ganhar.

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Ana, Hampton Court, Natal de 1540

“Se tem de ser feito, que seja feito com elegância.” Este tornou-se o meu lema e, enquanto a barcaça sobe o rio desde Richmond, com os homens nos botes e os pescadores nos seus pequenos barquinhos de pesca a tirarem os barretes quando vêem o meu estandarte e a gritarem: “Deus abençoe a Rainha Ana!” e, às vezes, outras saudações menos delicadas, como “Eu teria ficado convosco, queridinha!”

ou “Experimentai um homem do Tamisa, não quereis?”, e pior do que isso; eu sorrio, e repito para mim mesma. “Se tem de ser feito, que seja feito com elegância.”

O rei não é capaz de se comportar com elegância: o seu egoísmo e loucura, neste assunto, são demasiado evidentes para que todos o possam ver. Os embaixadores da Espanha e da França devem ter-se rido até ficarem com dores de barriga por causa do excesso da sua tola vaidade. Da pequena Kitty Howard (a Rainha Catarina, tenho de, e vou lembrar-me de lhe chamar Rainha) não se pode esperar que se comporte com elegância. É o mesmo que pedir a um cãozinho que se comporte dignamente. Se ele não a puser de lado, dentro de um ano, se ela não morrer de parto, então, talvez possa aprender a comportar-se como uma rainha... talvez. Mas, neste momento, não sabe. Na verdade, ela nem sequer era uma boa dama de companhia: já nessa altura as suas maneiras não eram dignas para viver nos aposentos da rainha: como é que alguma vez vai ser digna de ocupar o trono?

Sou eu quem tem de mostrar um pouco de elegância, se não quisermos, os três, passar a ser o alvo da chacota do país inteiro. Vou ter de entrar nos meus antigos aposentos nestas circunstâncias: no meu palácio preferido, mas como uma convidada de honra. Terei de dobrar o joelho diante da rapariga que se senta na minha cadeira, tenho de me dirigir a ela como Rainha Catarina, sem me rir ou chorar. Terei de ser, como disse o Rei, a irmã dele ou a sua amiga mais querida.

Mas que isto não me protege de ser presa ou acusada, conforme os caprichos do Rei, é tão claro para mim como para qualquer 314

outra pessoa. Ele mandou prender a sua própria sobrinha e enterrou-a na velha Abadia de Syon. É óbvio que ser parente do Rei não confere imunidade contra o

medo, ser amigo do Rei não dá segurança; como o que sucedeu com o homem que construiu este mesmo palácio, Thomas Wolseley, o poderia demonstrar. Mas eu, transportada calmamente de barco, rio acima, vestida com as minhas melhores roupas, com um ar cem vezes mais feliz e com melhor aspecto desde que o meu casamento foi recusado, com o coração a latejar nos ouvidos, talvez consiga sobreviver a estes tempos perigosos, suportar esta arriscada proximidade e talvez possa construir uma nova vida como mulher solteira, no reino de Henrique, o que não me seria nitidamente possível, se fosse sua esposa.

É estranha esta viagem, na minha própria barca, com o estandarte de Clèves sobre a minha cabeça. Viajando sozinha, sem que a corte me siga nas suas próprias barcaças e sem que haja uma grande recepção à minha espera. Isto faz-me lembrar, lembra-mo todos os dias, que o Rei fez, de facto, o que lhe apeteceu

- e ainda me custa a acreditar que tenha sido possível. Eu era a sua esposa e agora sou a sua irmã. Haverá algum Rei em toda a Cristandade que possa operar uma transmutação igual a esta? Eu era a rainha da Inglaterra e agora há outra rainha, ela era minha dama de companhia e, agora, eu vou ser uma das dela. Isto é como a Pedra Filosofal que transforma qualquer metal em ouro, num piscar de olhos. O Rei fez aquilo que mil alquimistas não são capazes de fazer: transformar um metal pobre em ouro, transformou Catarina Howard, a mais básica das damas de companhia, numa rainha dourada.

Estamos a chegar a terra. Os remadores movem os remos de modo ordenado e encostam-nos ao ombro, de maneira a que fiquem erguidos, formando alas, como se fosse uma avenida que eu tenho de atravessar para sair da barca e que vai desde a minha cadeira, à popa, onde viajei quentinha, embrulhada em peles, até ao sítio onde os pajens e os criados correm pela prancha de desembarque, para formarem uma guarda de honra, do lado de fora.

E, afinal, há uma homenagem! O Duque de Norfolk, em pessoa, está na margem, para me receber, com mais dois ou três que fazem parte do Conselho Privado, na sua maioria, reparo, familiares ou aliados dos Howard. É uma honra, esta recepção, e vejo pelo seu sorriso que ele está tão divertido quanto eu.

Como eu tinha previsto, os Howard estão em toda a parte; quando chegarmos ao Verão, o reino estará desequilibrado. O Duque não é homem que deixe escapar uma oportunidade, irá procurar tirar vantagem, como faria qualquer veterano endurecido pelas

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batalhas. Agora, ocupa os lugares de topo e em breve irá ganhar a guerra. Nessa altura, veremos quanto tempo vai demorar até que surjam refregas do lado dos Seymour, dos Percy, entre os Parr, os Culpepper e os Neville, entre os clérigos da igreja reformista que andam à volta de Cranmer, e que estavam habituados a ter poder, influência e riqueza e que não vão tolerar durante muito tempo o facto de terem sido excluídos.

Ajudam-me a desembarcar e o Duque faz-me uma vénia e diz:

- Bem-vinda a Hampton Court, Vossa Graça! - como se eu ainda fosse rainha.

- Agradeço-vos - digo eu. - Estou feliz por me encontrar aqui.

Ambos sabemos que é verdade, pois, Deus sabe, que houve uma altura, várias alturas, em que eu pensei que nunca mais voltaria a ver Hampton Court. O

portão do rio da Torre de Londres, por onde fazem passar os traidores, durante a noite... sim. Mas Hampton Court, para passar as festas do Natal? Não.

- Deveis ter sentido frio, durante a viagem - notou ele.

Tomo o seu braço e caminhamos juntos pelo grande caminho que vai do rio até à frente do palácio, como se fôssemos amigos dedicados.

- O frio não me incomoda - digo eu.

- A Rainha Catarina está à vossa espera, nos seus aposentos.

- Sua Majestade é muito generosa - digo eu. Pronto, já está. Disse as palavras.

Chamei ‘Sua Majestade’ à mais tola de todas as minhas damas de companhia, como se ela fosse uma deusa; e à frente do tio dela.

- A Rainha está ansiosa por vos ver - diz ele. - Todos sentimos a vossa falta.

Sorrio e olho para o chão. Não é por modéstia, é só para evitar rir-me às gargalhadas. Este homem sentiu tanto a minha falta que andou a reunir provas de que eu conseguira, através de bruxaria, fazer com que o Rei ficasse impotente, uma acusação que me teria levado ao cadafalso, antes que alguém me pudesse salvar.

Ergo os olhos.

- Fico-vos muito grata pela vossa amizade - digo secamente.

Entramos pela porta do jardim e encontro alguns pajens e jovens fidalgos que faziam parte da minha casa real, passeando ociosamente por ali, entre a porta e os aposentos da rainha, para me fazerem uma vénia e me cumprimentarem. Fico mais comovida do que aquilo que me atrevo a mostrar, mas quando um dos jovens pajens corre para mim, se ajoelha e me beija a mão, tenho de engolir as lágrimas e manter a cabeça erguida. Fui a senhora deles durante 316 tão pouco tempo, pouco mais que seis meses, que é comovente pensar que ainda gostam de mim, mesmo havendo outra rapariga a viver nos meus aposentos e ao serviço de quem estão agora.

O Duque faz uma cara feia, mas não diz nada. Sou demasiado cautelosa para fazer comentários e, por isso, comportamo-nos os dois como se todas aquelas pessoas nas escadas e nos salões, as suas bênçãos sussurradas, fossem algo absolutamente normal. Ele vai à frente, dirigindo-se aos aposentos da rainha, e os soldados, de guarda às portas duplas, abrem-nas de par em par, ao seu aceno e à sua ordem “Sua Graça, a Duquesa de Clèves”, e eu entro.

O trono está vazio. Esta é a minha primeira sensação perplexa e quase penso, num momento de insanidade, que tudo não passou de uma piada, uma das célebres piadas inglesas e que o Duque se vai virar para mim e dizer, “É claro que sois a rainha, tomai de novo o vosso lugar!” e que nos vamos rir os dois e tudo voltará a ser como era.

Mas depois reparo que o trono está vazio porque a Rainha está sentada no chão, a brincar com uma bola de lã e um gatinho, e que as suas damas se estão a levantar, muito dignas e fazendo uma vénia, pondo um cuidado imaculado no grau de profundidade da dita vénia, devida a um membro da realeza, mas apenas uma realeza inferior. Por fim, aquela criança, Kitty Howard, levanta os olhos, vê-me, grita “Vossa Graça!” e corre para mim.

Um olhar do tio dela diz-me que não seria aconselhável qualquer manifestação de intimidade ou de afecto. E lá me baixo eu, numa vénia tão profunda como a que faria ao próprio Rei.

- Rainha Catarina - digo com firmeza.

O meu tom acalma-a e a minha vénia fá-la recordar que temos de representar este papel diante de muitos espiões e, por isso, refreia a sua corrida, faz-me uma pequena vénia, dizendo baixinho, “Duquesa”.

Levanto-me. Gostaria tanto de lhe poder dizer que está tudo bem, que podemos continuar a ser como éramos antes, uma espécie de irmãs, de amigas, mas temos de esperar até a porta da sala se fechar. Tem de ser um segredo.

- Sinto-me honrada com o vosso convite, Vossa Graça - digo solenemente. - E

estou muito feliz por poder partilhar as comemorações do Natal convosco e com o vosso esposo, Sua Majestade o Rei, que Deus o abençoe.

Ela solta uma pequena risada e depois, quando olho sugestivamente para ela, olha para o tio e responde:

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- Estamos encantados por vos receber aqui na nossa corte. O meu marido, o Rei, abraça-vos afectuosamente como sua irmã, e eu também.

Então, caminha na minha direcção, é óbvio que lhe tinham dito para o fazer, mas esqueceu-se de tudo no momento em que me viu, e oferece-me a sua real face para eu beijar.

O Duque observa a cena e anuncia:

- Sua Majestade, o Rei, diz-me que jantará aqui convosco, senhoras, esta noite.

- Então, temos de o receber como deve ser - diz Catarina. Vira-se para Lady Rochford e diz: - A Duquesa e eu ficaremos nos meus aposentos privados, enquanto a sala é preparada para o jantar. Ficaremos a sós.

E depois vai direita aos meus - seus - aposentos privados, como se lhe tivessem pertencido toda a vida, e eu dou por mim a seguir atrás dela.

Mal a porta se fecha, vira-se para mim.

- Parece-me que correu tudo bem, não correu? - pergunta ela. - A vossa vénia foi encantadora, obrigada.

Sorrio.

- Creio que foi tudo muito bem - digo.

- Sentai-vos, sentai-vos - convida ela. - Podeis sentar-vos na vossa cadeira, sentir-vos-eis mais em casa.

Reflito.

- Não - digo eu. - Isso não seria correcto. Vós sentais-vos na cadeira e eu sento-me junto de vós. Para o caso de alguém entrar.

- E que mal tem, se entrarem?

- Vamos estar sempre a ser vigiadas - digo eu, escolhendo as palavras. - Vós estareis sempre a ser observada. Tendes de ter cuidado. A toda a hora.

Ela abana a cabeça.

- Vós não sabeis como ele é para comigo - assegura ela. - Nunca o haveis visto deste modo. Posso pedir-lhe o que me apetecer, posso ter tudo o que quiser. Seja o que for que eu queira, neste mundo, posso pedir-lhe e tê-lo-ei. Ele permite-me tudo e perdoa-me tudo.

- Óptimo - digo, sorrindo-lhe.

Mas a sua pequena carinha não está feliz como quando brincava com o gatinho.

- Eu sei que é bom - diz hesitante. - Eu devia ser a mulher mais feliz do mundo. Como Jane Seymour, recordais-vos? O seu lema era “A mais feliz de todas”.

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- Tereis de vos acostumar com a vida de esposa e de rainha da Inglaterra - digo

com firmeza. Não me apetece, realmente, escutar os lamentos de Catarina Howard.

- Fá-lo-ei - diz com honestidade. É tão infantil que só pensa em agradar a quem lhe prega um raspanete. - Eu tento, a sério, Vossa Graça..., hum, Ana.

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Jane Bolena, Hampton Court, Ano Novo de 1541

Esta é uma corte com duas rainhas: nunca se viu antes uma coisa destas.

Aqueles que tinham servido a Rainha Ana, a que agora é duquesa, ficaram contentes por a ver outra vez e felizes por a poderem servir. O carinho com que foi recebida surpreendeu toda a gente, até a mim. Mas ela sempre teve um encanto que fazia com que os seus empregados se sentissem felizes por fazer qualquer coisa, por mais pequena que fosse, por ela, estava sempre pronta a agradecer-lhes e era rápida na recompensa. A Senhora Kitty, por outro lado, é muito rápida a dar ordens e a queixar-se, e tem uma lista interminável de exigências. Em resumo, pusemos uma criança a tomar conta de um infantário e ela está a transformar em inimigos as suas pequenas companheiras de brincadeira, à mesma velocidade com que lhes garante favores.

A corte ficou feliz por ver a Rainha Ana no seu antigo lugar e escandalizada, mas fascinada, por a ver dançar alegremente com a Rainha Catarina, por andarem a passear de braço dado, por saírem juntas a cavalo para ir à caça e por jantarem juntas com o marido de ambas. O Rei sorria-lhes como se fossem duas das suas filhas preferidas, estava tão indulgente, era perfeitamente visível a sua satisfação com esta resolução. A duquesa que tinha sido rainha tinha preparado a sua actuação com bastante habilidade: tinha trazido presentes valiosos para os recém-casados: uma parelha de belos cavalos, ajaezados de veludo púrpura; um presente digno de um rei. Ela tem, como se pode ver, modos requintados, próprios de uma rainha. Mesmo sob a pressão de ser a esposa anterior, nas primeiras celebrações natalícias da corte da nova esposa, Ana de Clèves é um modelo de tacto e elegância. Nenhuma mulher no mundo poderia desempenhar esse papel com mais discrição. E ainda se torna mais notável pelo facto de ser a única mulher na história da humanidade a passar por uma situação destas. Outras mulheres, no passado, ou se afastaram, ou foram forçadas a fazê-lo: por exemplo, a própria primeira rainha desta corte - mas nenhuma se afastou graciosamente

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para o lado, como se se tratasse de um movimento coreografado de uma representação teatral, para ir desempenhar o seu papel noutro local.

Mais do que um homem diz que, se o rei não estivesse tão completamente enfeitiçado por uma criança precoce, se estaria já a arrepender da escolha que fez, ao colocar uma rapariga pateta no lugar da sua inteligente e encantadora esposa. E mais do que uma pessoa predizia que ela estaria bem casada antes que passasse um ano; pois quem poderia resistir a uma mulher que podia passar de rainha a vulgar cidadão e continuar a comportar-se como se a grandeza estivesse no seu íntimo?

Eu não era uma delas, porque consigo ir mais longe. Ela assinou um acordo no qual admite que estava legalmente comprometida com outro homem. O seu casamento com o Rei não foi validado, e o mesmo sucederia se se casasse com outro homem qualquer. Ele amarrou-a ao celibato até que o filho do Duque da Lorena deixe de viver. O Rei amaldiçoou-a com o celibato e com a infertilidade e não me parece que tenha sequer pensado nesse assunto. Mas ela não é tonta.

Deve ter pensado nisso, e deve ter considerado que valia a pena aceitar esse acordo. E, nesse caso, ela é a mulher mais estranha que já apareceu na corte. É

uma mulher simpática e graciosa, com vinte e cinco anos, com uma fortuna pessoal considerável, uma reputação sem mácula, nos seus anos férteis e está decidida a nunca mais se casar. Que estranha rainha que esta me saiu, a de Clèves!

Ela está com bom aspecto. Agora podemos ver que a falta de beleza do seu rosto e a palidez das suas faces, quando era rainha, eram apenas provocadas pela ansiedade de ser a quarta esposa. Depois de a quinta ter tomado o seu lugar, podemos ver a jovem mulher desabrochar, liberta do perigo do privilégio. Tem usado o tempo do exílio a aperfeiçoar-se. O seu domínio da língua é muito maior e a sua voz, agora que já não precisa de lutar para encontrar as palavras, é suave e clara. Está mais alegre, pois já consegue perceber um comentário jocoso e já tem o coração mais leve. Aprendeu a jogar às cartas e a dançar. Conseguiu ultrapassar a severidade luterana de Clèves, tanto no comportamento como na aparência. A sua forma de vestir está irreconhecível! Quando penso na forma como chegou à corte, vestida como uma campesina alemã, coberta por camada sobre camada de um tecido grosso, com um toucado que lhe comprimia a cabeça e com o corpo amarrado como um barril de pólvora e a vejo agora, esta beleza

completamente vestida à moda, reconheço nela uma mulher que aproveitou a sua liberdade para se reinventar. Passeia a cavalo com o Rei e conversam com seriedade

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e interesse sobre as cortes da Europa e sobre o que o futuro poderá trazer à Inglaterra, e diverte-se com Catarina, como qualquer rapariguinha despreocupada. Joga cartas com os cortesãos e dança com a Rainha. Ela é, na corte, a única amiga sincera da Princesa Maria e costumam ler e rezar juntas, em privado, todas as manhãs. É a única defensora de Lady Isabel, mantém uma comovente correspondência com a sua antiga enteada e foi-lhe concedido o estatuto de guardiã e tia adorada. É uma visita regular do berçário do Príncipe Eduardo e a sua pequena face fica radiante, quando a vê. Em suma, Ana de Clèves comporta-se, em todos os aspectos, como uma bela e altamente considerada irmã do rei se deveria comportar: e todos se vêem obrigados a reconhecer que ela desempenha bem o seu papel. De facto, muitas pessoas consideram que ela devia ser a rainha - mas isso não é mais do que um inútil lamento. De qualquer forma, estamos todos muito contentes por os nossos depoimentos não a terem mandado para o cadafalso; embora todos os que a louvam agora fossem capazes de ter prestado depoimento diante do Rei, contra ela, se isso lhes tivesse sido pedido; como o foi a mim.

O Duque chamame aos seus aposentos, na Véspera de Ano Novo, como se devêssemos queimar o passado e tomar novas resoluções para o futuro. Começa por falar sobre a Rainha Ana e a forma agradável com que ela se comporta na corte. Pergunta-me como se está a comportar Catarina Carey, a minha sobrinha, filha de Maria, como dama de companhia da prima.

- Cumpre as suas obrigações - digo em poucas palavras. - A mãe educou-a bem, não me dá muito trabalho.

Ele permite-se um grande sorriso.

- E vós e Maria Bolena nunca haveis sido grandes amigas.

- Conhecemo-nos bem uma à outra - digo sobre a minha própria cunhada.

- É óbvio que ela ficou com a herança dos Bolena - diz ele como para mo recordar, como se eu alguma vez esquecesse. - Não conseguimos salvar tudo.

Aceno com a cabeça. Rochford Hall, a minha casa, ficou para os pais de Jorge, com a morte dele, e daí passou para Maria. Deviam ter-ma deixado, ele devia ter-ma deixado: mas não. Tive de enfrentar todo o perigo e o horror de tudo o que foi necessário fazer e acabei por ficar apenas com o meu título e com a minha pensão.

- E a pequena Catarina Carey? Será que é mais uma rainha em potência? -

pergunta ele só para me arreliar. - Será que a devemos 322

A preparar para seduzir o Príncipe Eduardo? Credes que a poderemos enfiar na cama de um rei?

- Parece-me que ireis perceber que a mãe dela já proibiu uma coisa dessas -

digo friamente. - Ela vai querer um bom casamento e uma vida tranquila para a filha. Já teve a sua conta, na corte.

Ele ri-se e muda de assunto.

- Então, como vai o nosso passaporte para a grandeza, a nossa Rainha Catarina?

- Está bastante feliz.

- Sinceramente, não me interessa saber se ela está ou não feliz. Ela já mostra alguns sinais de estar grávida?

- Não, nenhum - digo eu.

- Como foi que ela se pôde enganar antes, no primeiro mês de casada? Encher-nos a todos de esperança?

- Ela mal sabe fazer contas - digo irritada - e não tem noção da importância que isso tem. Agora eu passei a vigiar as suas regras, não voltará a haver engano.

Ele ergue uma sobrancelha e olha para mim.

- Será que o Rei ainda é capaz? - pergunta baixinho.

Eu não tenho necessidade de olhar para a porta, sei que é seguro, ou não estaríamos a ter esta conversa perigosa.

- Ele consegue chegar ao fim, mas tem de se esforçar muito e fica exausto.

- Então, ela é fértil? - pergunta ele.

- Ela tem regras regulares. E parece-me saudável e forte.

- Se ela não engravidar, ele irá procurar um motivo - avisa-me ele, como se houvesse alguma coisa que eu pudesse fazer em relação aos caprichos de um rei.

- Se, o mais tardar, na Páscoa, ela não estiver grávida, ele irá começar a perguntar porquê. Encolho os ombros.

- Estas coisas, por vezes, demoram o seu tempo.

- A última esposa que levou o seu tempo, morreu no cadafalso - diz ele cruamente.

- Não precisais de mo recordar - disparo irritada. - Recordo tudo o que aconteceu, o que ela fez, o que tentou fazer, e o preço que pagou. E depois, o preço que tivemos de pagar. E o preço que eu tive de pagar.

A minha explosão chocou-o. E fiquei chocada comigo mesma. Tinha prometido a mim própria que nunca me iria queixar. Fiz o melhor que pude. E

assim, à maneira deles, fizeram o mesmo.

- O que eu quero dizer é apenas que devemos evitar que a questão se coloque no espírito dele - diz ele para me acalmar.

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Seria nitidamente melhor para nós todos, para a família, Jane, para os Howard, se Catarina concebesse uma criança, antes de ele começar a pensar no assunto.

Antes que qualquer dúvida surja no seu espírito. Esse seria o caminho mais seguro para nós.

- Tijolos sem palha - digo friamente. Ainda estou irritada. - Se o Rei não tem potência para lhe fazer um filho, que podemos nós fazer? Ele é um homem velho, um homem doente. Nunca foi um homem muito fértil e a potência que ele

possa ter deve estar afectada pela sua perna doente e pelos seus intestinos obstipados. Que é que algum de nós pode fazer?

- Podemos dar-lhe uma ajuda - sugere ele.

- Que mais é que podemos fazer? - pergunto-lhe. - A nossa pequena já pratica todos os truques que uma prostituta de Smithfield poderia utilizar com ele. Ela esforça-se com ele, como se ele fosse um marinheiro bêbedo que vai a um bordel. Ela faz tudo o que uma mulher pode fazer, e a única coisa que ele consegue fazer é ficar deitado de barriga para o ar, a gemer “Oh, Catarina, oh, minha rosa”. Já não lhe resta qualquer vigor. Não me admira nada que ele não consiga produzir qualquer criança. Que podemos nós fazer?

- Podemos contratar alguém - diz ele, dissimulado como uma alcoviteira.

- O quê?

- Podemos arranjar algum vigor - sugere ele.

- Que quereis dizer?

- Quero dizer que, se houvesse algum jovem, talvez alguém que nós conheçamos e em quem possamos confiar, que ficasse feliz com um romance discreto, poderíamos permitir-lhe que se encontrasse com ela, poderíamos encorajá-la a ser bondosa com ele, poderiam dar algum prazer um ao outro, e nós poderíamos conseguir uma criança para colocar no berço Tudor, e ninguém ficaria a saber de nada.

Estou horrorizada.

- Não seríeis capaz de voltar a fazer uma coisa dessas - digo, sem rodeios.

O seu rosto fica gelado como o Inverno.

- Eu nunca fiz uma coisa dessas - pronuncia ele cuidadosamente. - Eu, não.

- É o mesmo que colocar a cabeça dela no cepo.

- Não, se for feito com cuidado.

- Ela nunca mais estaria em segurança.

- Se fosse cuidadosamente guiada e acompanhada. Se vós estivésseis sempre com ela, em todos os passos, se estivésseis preparada 324

para jurar pela honra dela. Quem iria duvidar de vós; quem tem sido uma testemunha fiável para o Rei, tantas vezes?

- Precisamente. Eu sempre servi de testemunha do Rei - digo, com a garganta seca pelo medo. - Eu presto declarações para dar trabalho ao carrasco. Estou sempre do lado vencedor. Nunca prestei declarações a favor da defesa.

- Sempre haveis prestado declarações para favorecer o nosso lado - corrige-me ele - e continuaríeis a estar do lado dos vencedores, em segurança. E seríeis parente do próximo rei da Inglaterra. Um rapaz Howard-Tudor.

- Mas, e o homem? - estou quase a arquejar, com medo. - Não há ninguém em quem possamos confiar com um segredo destes.

Ele acena com a cabeça.

- Ah, sim, o homem. Penso que nos deveríamos certificar de que ele desaparece, quando tiver cumprido com a sua tarefa, não concordais? Um acidente qualquer, uma luta com espadas? Ou atacado por ladrões? Ele teria certamente de desaparecer. Nunca poderíamos arriscar-nos a outro... - cala-se, à procura da palavra - escândalo.

Fecho os olhos só de pensar no assunto. Por instantes, apesar da escuridão dos meus olhos fechados, vejo o rosto do meu marido, virado para mim, com uma expressão quase de incredulidade ao ver-me entrar no tribunal e ocupar o meu lugar diante do painel de juizes. Um momento de esperança, enquanto acreditava que eu tinha vindo para o defender. E depois, lentamente, o horror a cair sobre ele, com aquilo que eu disse.

Abano a cabeça.

- São pensamentos terríveis - digo eu. - E pensamentos terríveis, para que os partilheis comigo. Nós, que já assistimos e fizemos coisas tão horrorosas... -

calo-me. Não consigo falar, aterrorizada com o que ele me quer levar a fazer.

- É precisamente porque já haveis visto o horror de perto, sem pestanejar, que estou a falar convosco - diz ele, e, pela primeira vez nessa noite, há um pouco de ternura na sua voz, quase me parece detectar algum afecto. - Em quem poderia eu confiar, mais do que em vós, quando se trata das minhas ambições para a nossa família? A vossa coragem e habilidade conduziram-nos até aqui. Não tenho qualquer dúvida de que nos levareis em frente. Deveis conhecer algum jovem que fique contente por ter a sua oportunidade junto da Rainha. Um jovem que pudesse, facilmente, encontrar-se com ela, um rapaz dispensável, que não viesse a fazer muita falta, mais tarde. Talvez um dos favoritos do Rei, dos que ele encoraja a andar de volta dela.

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Quase gaguejo com medo.

- Não estais a compreender - digo. - Por favor, Senhor, escutai-me. Vós não percebeis. O que eu fiz naquela altura... Afastei da minha mente... nunca falo nesse assunto, nunca penso nisso. Se alguém me obriga a pensar naquilo, enlouqueço, eu amava Jorge... De verdade, não me obrigueis a pensar nisso, não mo façais recordar.

Ele levanta-se. Dá a volta à mesa e pousa as mãos nos meus ombros. Seria quase um gesto suave, se eu não tivesse a sensação de que ele me está a segurar contra a sua cadeira.

- Sereis vós a decidir, minha querida Lady Jane. Deveis pensar nestes assuntos e dir-me-eis o que pensais, depois de reflectir. Confio plenamente em vós. Estou certo de que ireis querer fazer o que for melhor para a nossa família. Acredito que fareis sempre o que for melhor para vós mesma. Ana, Richmond, Fevereiro de 1541

Já estou em casa, e sinto um alívio tão grande por estar aqui que era capaz de me rir de mim mesma, por parecer uma solteirona enfadonha, a fugir da sociedade. Mas não é só o prazer de voltar para casa, para os meus aposentos, para a paisagem da minha janela, para a minha cozinheira - é o prazer de me escapar da corte, aquela corte de trevas. Meu bom Deus, que lugar mais

venenoso estão a criar para si mesmos. Não sei como alguém suporta viver ali. O

humor do Rei está mais imprevisível do que nunca. Num momento é carinhoso com Kitty Howard, acaricia-a com tanta luxúria diante de toda a gente que ela fica corada de vergonha e ele desata a rir-se do embaraço dela; meia hora mais tarde, desata aos gritos com um dos seus conselheiros, atira o chapéu para o chão, desanca um dos pajens ou então fica em silêncio, alheado de tudo, cheio de ódio e desconfiança, percorrendo tudo com os olhos, à procura de alguém a quem possa culpar pela sua infelicidade. O seu temperamento, sempre desculpado, transformou-se num perigo. Ele não se consegue controlar, não é capaz de controlar os seus próprios medos. Vê conspirações em todo o lado e assassinos em cada esquina. A corte está a começar a habituar-se a distraí-lo e a confundi-lo, todos receiam as suas mudanças súbitas do bom humor para a escuridão.

Catarina corre para junto dele quando ele a chama e escapa-se quando ele está de mau humor, como se fosse um dos seus belos galgos; mas esta tensão vai deixar-lhe marcas, ao fim de algum tempo. E ela rodeou-se das mais tolas e ordinárias raparigas que alguma vez foram aceites na casa de um nobre. Vestem-se de uma maneira incrivelmente ostentosa, com o máximo possível de pele à mostra e usam todas as jóias que conseguem adquirir, têm péssimos modos. São relativamente sóbrias, enquanto o Rei está acordado e na corte, desfilam diante dele e fazem-lhe vénias, como se ele fosse um ídolo sentado; mas mal ele se vai embora, ficam loucas como colegiais. Kitty não faz nada para as controlar, para dizer a verdade, quando as portas dos seus aposentos se fecham, ela passa a ser a 327

chefe de equipa. Há pajens e jovens cortesãos a entrar e a sair dos aposentos dela, todo o dia, músicos a tocar, há jogos a dinheiro, bebidas, namoros. Ela mesma, pouco mais é do que uma criança e dá-lhe grande prazer participar numa luta com água, com um vestido caríssimo, e depois trocar de roupa. Mas as pessoas que estão à sua volta são mais velhas e menos inocentes, e a corte está a tornar-se permissiva, talvez pior do que isso. Há sempre uma grande agitação para fingir que tudo decorre com decoro, quando alguém entra a correr e avisa que vem aí o Rei, o que Kitty adora, como adolescente que é; mas esta é agora uma corte sem disciplina. E está a transformar-se numa corte imoral.

É difícil prever o que irá acontecer. Ela disse que estava grávida, no primeiro mês de casada; mas estava enganada, parece não ter noção da gravidade de um

engano destes e, a partir dessa altura, não tem havido qualquer esperança de que isso aconteça. Quando me vim embora, a ferida na perna do Rei estava a causar-lhe dores terríveis e ele ficou outra vez de cama, sem querer ver ninguém. Ela disseme que pensa que ele não é capaz de lhe dar um filho, pois com ela, como já acontecia de facto comigo, ele é impotente. Contou-me que utiliza muitos truques com ele, que ele sente algum prazer e que ela lhe afirma que ele é potente e forte, mas que, na verdade, raramente consegue realizar o acto.

- Fingimos - disseme ela com tristeza. - Eu suspiro e gemo e digo que está a ser muito bom para mim, e ele tenta penetrar-me. Mas, para dizer a verdade, ele nem se consegue mexer, é uma representação patética, aquilo que ele faz, nada que se pareça com a realidade.

Eu disselhe que não devia falar comigo sobre este assunto, mas ela perguntou-me quem é que a poderia aconselhar. Eu abanei a cabeça.

- Não podeis confiar em ninguém - disse eu. - Ter-me-iam mandado enforcar por bruxaria, se eu tivesse dito metade daquilo que me haveis dito. Se disserdes que o Rei é impotente ou que ele vai morrer, isso é traição, Kitty. A sentença para a traição é a morte. Não deveis falar, nunca, com ninguém, sobre estas coisas e se alguém me perguntar se haveis falado comigo, terei de mentir por vós e dizer que não o haveis feito.

O seu pequeno rosto ficou ainda mais pálido.

- Mas, então, o que devo fazer? - perguntou-me ela. - Se não posso pedir ajuda, e se não sei o que devo fazer? Se até é crime contar a alguém o que corre mal? Que posso fazer? A quem me posso dirigir?


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Não lhe dei uma resposta, porque não tinha resposta para lhe dar. Quando tive de enfrentar o mesmo problema e corri o mesmo perigo, não encontrei ninguém que me quisesse ajudar.

Pobre criança, talvez o senhor, o Duque tenha um plano para ela, pode ser que Lady Rochford saiba o que pode ser feito. Mas quando o Rei se cansar dela - e ele vai cansar-se dela, porque o que pode ela fazer para lhe provocar amor

eterno? - quando estiver cansado dela, sem que ela lhe tenha dado um filho, por que razão haveria de ficar com ela? E se a ideia dele for livrar-se dela, será que lhe vai oferecer um acordo generoso, como fez comigo, dado que eu era uma duquesa com amigos poderosos e que ela é apenas uma rapariguinha meia estouvada, sem qualquer importância e sem ter quem a defenda? Ou será que vai encontrar uma maneira mais fácil, rápida e barata de se livrar dela?

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Catarina, Hampton Court, Março de 1541

Vamos lá ver, que é que eu tenho?

Os meus vestidos de Inverno estão todos prontos, embora tenha alguns de Primavera a fazer, mas não me vão servir de nada, porque está a chegar a Quaresma e eu não os posso usar.

Tenho os presentes de Natal e de Ano Novo que o Rei me deu, quer dizer, entre outras coisas de que já me esqueci ou que já dei às minhas companheiras, tenho dois pingentes com vinte e seis diamantes lapidados e vinte e sete diamantes normais, tão pesados que quase não consigo manter a cabeça erguida quando os ponho ao pescoço. Tenho uma fiada de pérolas, com duzentas pérolas tão grandes que parecem morangos. Tenho o lindíssimo cavalo que me deu a minha querida Ana. Agora trato-a por Ana e ela ainda me trata por Kitty, quando estamos a sós. Mas as jóias não importam, porque também elas têm de ser postas de parte durante a Quaresma.

Tenho um coro com cantores novos e músicos, mas eles não podem tocar música alegre por causa da Quaresma. Também não posso comer nada que preste, por causa da Quaresma. Não posso jogar às cartas ou ir à caça, não posso dançar ou participar nos jogos, está demasiado frio para ir até ao rio e, mesmo que não estivesse, estamos na Quaresma. Nem sequer posso contar anedotas às minhas damas ou andar a correr pelos quartos à apanhada, jogar às bolas ou com raquetes, porque estamos na enfadonha, monótona Quaresma.

E o Rei, por qualquer razão, está a fazer com que a Quaresma comece mais cedo, este ano. Apenas por mau humor, recolheu-se aos seus aposentos desde Fevereiro e agora nem sequer de lá sai para jantar, nunca me quer ver, nunca é bondoso para comigo, não me dá nada nem me chama Rosa bela, desde o último dia de Natal. Dizem que está doente, mas, uma vez que ele sempre mancou,

sofre constantemente de obstipação e que a perna dele está permanentemente infectada por causa da ferida, não vejo que diferença é que isso pode fazer. E

para além do mais, está sempre tão zangado com toda a gente, não há nada que lhe agrade. Parece que mandou

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fechar a corte e toda a gente anda nas pontas dos pés, como se tivessem medo de respirar. Na verdade, metade das famílias já regressou às suas casas, uma vez que o Rei não está aqui, e não há qualquer assunto para o Conselho Privado resolver; e o rei não quer receber ninguém, por isso, muitos dos jovens foram-se embora, e não se passa nada de divertido.

- Ele está com saudades da Rainha Ana - diz a Agnes Restwold, que é uma gata venenosa.

- Não está nada - digo logo - Porque haveria de estar? Ele afastou-a por sua própria escolha.

- Está, pois - insiste ela. - Quereis a prova? Mal ela se foi embora, ele ficou calado, depois ficou doente e agora, reparai, retirou-se da corte para pensar no que pode fazer e na forma como a pode trazer de volta.

- É mentira - digo eu. É terrível que me digam uma coisa destas. Quem, melhor do que eu, sabe que se pode amar uma pessoa e depois, ao acordar, já não querer saber dela para nada? Pensava que só eu era assim, eu e o meu coração frívolo, como diz a minha avó. Mas, e se o Rei também tiver um coração frívolo? E se ele pensou, como eu, na verdade, pensei, como todos obviamente pensaram, que ela nunca esteve com melhor aspecto, que nunca apareceu tão bonita. Tudo nela, que lhe dava um ar tão estrangeirado e estúpido, se suavizou, de certa forma, e ela ficou, não sei como dizer, graciosa. Ela parecia uma rainha a sério e eu, como sempre, apenas a mais bonita rapariga na sala. Mas não sou mais do que isso. Nunca sou mais do que isso. Que vai acontecer se ele agora quiser uma mulher graciosa?

- Agnes, fazeis mal em abusar da vossa longa amizade com Sua Graça para a aborrecer - diz Lady Rochford. Adoro a maneira como ela consegue dizer coisas como estas. As suas palavras parecem tiradas de uma peça de teatro e o tom que usa faz lembrar uma chuvada de Fevereiro a cair pelo nosso pescoço abaixo. -

Não passa de um comentário maldoso acerca da saúde do rei, pela qual devíamos

estar a rezar.

- Eu rezo - digo imediatamente, pois toda a gente diz que quando vou para a capela passo o tempo todo a esticar o pescoço e a olhar por cima do camarote real, para ver os jovens cortesãos. A maior parte das vezes, Thomas Culpepper olha para cima e sorri-me. O sorriso dele é a melhor coisa que acontece na igreja, ilumina a capela como se tivesse havido um milagre. - Eu rezo, a sério. E

quando começar a Quaresma, sabe Deus, não vou ter mais nada para fazer, a não ser rezar.

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Lady Rochford concorda, com a cabeça.

- Na verdade, vamos todas rezar pela saúde do Rei.

- Mas porquê? Ele está assim tão doente? - pergunto-lhe muito baixinho, para que Agnes e as outras não possam ouvir. Às vezes, chego mesmo a desejar nunca ter permitido que elas tivessem vindo, todas, para junto de mim. Eram suficientemente boas para companheiras de quarto, em Lambeth, mas realmente, não me parece que se comportem sempre como damas da corte de uma rainha.

Tenho a certeza de que a Rainha Ana nunca teve um grupo de damas tão turbulentas como as minhas. As damas dela eram, de longe, mais bem comportadas. Nunca nos atreveríamos a falar com ela, da forma como as minhas damas falam comigo.

- A ferida da perna dele voltou a fechar - diz Lady Rochford. - Certamente, deveis ter ouvido quando o médico explicou?

- Não percebi - digo eu. - Comecei a ouvir; mas depois, não percebi. Deixei de prestar atenção às palavras dele.

Ela franziu o sobrolho.

- Há alguns anos o Rei sofreu um ferimento muito grave, na perna - diz ela. -

A ferida nunca mais sarou. Sabeis isso, pelo menos.

- Sim - digo amuada -, toda a gente sabe disso.

- A ferida infectou e tem de ser drenada. Todos os dias tem de ser drenado o pus que se forma na carne.

- Eu sei - digo -, não me faleis nisso.

- Bom, a ferida voltou a fechar - diz ela.

- Isso é bom, não é? Já sarou? Ela está melhor.

- A ferida fecha-se na parte de cima, mas continua infectada por baixo - diz ela. - O veneno não consegue sair e espalha-se pela sua barriga, indo até ao coração.

- Não! - digo chocada.

- Da última vez que isso aconteceu, pensávamos que o íamos perder - diz ela de um modo muito misterioso. - O rosto dele ficou negro, como o de um cadáver envenenado e ele ficou para ali deitado, como morto, até que lhe abriram a ferida e drenaram o veneno.

- Como é que a abrem? - pergunto eu. - Sabeis, isto é mesmo nojento.

- Cortam-na e mantêm-na aberta - diz ela. - Fazem com que fique aberta com pequenas lâminas de ouro. Empurram essas lâminas para dentro da ferida para a manter assim, ou então ela volta a fechar. Ele tem de suportar constantemente a dor provocada por uma ferida aberta e os médicos vão ter de fazer isso mais vezes. Fazer um golpe na perna e depois, cortar mais um bocado.

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- Nessa altura ele vai ficar outra vez bom? - pergunto alegremente. Na verdade, o que eu queria era que ela parasse de me falar sobre aqueles assuntos.

- Não - diz ela. - Ele continuará a ser como era, coxo e cheio de dores, e sempre a ser envenenado pela ferida. A dor fá-lo ficar zangado e, pior do que isso, fá-lo sentir-se velho e cansado. O facto de coxear significa que já não pode ser o homem que era. Vós haveilo ajudado a sentir-se jovem, outra vez, mas a ferida recorda-lhe que é um homem velho.

- Não acredito que ele tenha pensado que ainda era jovem. Não é possível que se considere novo e bonito. Nem mesmo ele poderia ter pensado numa coisa dessas.

Ela olha para mim com um ar sério.

- Ah, Catarina, a sério que ele achou que era jovem e que estava apaixonado.

E deve ser convencido a continuar a pensar dessa maneira.

- Mas o que é que eu posso fazer? - sinto que estou a ficar triste. - Não consigo meter as ideias na cabeça dele. Além disso, ele não vem para a minha cama enquanto está doente.

- Tereis de ir ter com ele - diz ela. - Ide ter com ele e deveis fazer qualquer coisa que o faça voltar a sentir-se jovem e apaixonado. Fazei com que se sinta como um homem jovem, cheio de paixão.

Franzo o sobrolho.

- Não sei como.

- O que faríeis se ele fosse um homem jovem?

- Poderia dizer-lhe que um dos jovens cortesãos está apaixonado por mim -

digo eu. - Podia fazer com que sentisse ciúmes. Há cá muitos homens novos -

estou a pensar em Thomas Culpepper - que sei que realmente poderia desejar.

- Nunca - diz ela muito depressa. - Nunca façais uma coisa dessas. Sabeis como é perigoso fazê-lo.

- Sim, mas vós haveis dito...

- Não sois capaz de pensar numa maneira de o fazer sentir de novo apaixonado, sem que isso coloque a vossa cabeça no cepo? - pergunta ela irritada.

- Por favor! - digo eu. - Só pensei ...

- Pensai outra vez - diz ela com pouca delicadeza.

Eu não respondo. Não estou a pensar, estou deliberadamente calada para lhe mostrar que foi incorrecta comigo e que eu não o vou admitir.

- Dizei-lhe que tendes receio de que ele queira voltar para a Duquesa de Clèves - diz ela.

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Isto é tão surpreendente que me esqueço do amuo e olho para ela com ar de espanto.

- Mas isso é precisamente o que Agnes me estava a dizer e vós haveis-lhe dito que não me devia importunar.

- Exactamente - diz ela. - É por isso que é uma mentira tão inteligente. Porque é quase verdade. Metade da corte anda a dizer isso às escondidas, mas Agnes disse o mesmo na vossa cara. Se alguma vez pensásseis, por um segundo, noutra coisa que não seja o vosso aspecto e as vossas jóias, ficaríeis de facto ansiosa e preocupada. E melhor ainda, se fordes junto dele e vos mostrardes ansiosa e preocupada, ele irá pensar que há duas mulheres que têm andado a competir por causa dele, e voltará a sentir-se cheio de confiança, quanto ao seu encanto pessoal. Se o fizerdes como deve ser, é possível que ele regresse à vossa cama antes da Quaresma.

Hesito.

- Eu quero que ele seja feliz, claro - digo cuidadosamente. - Mas se ele não vier para a minha cama antes da Quaresma, não me faz grande diferença.

- Faz diferença. Não estamos a falar do vosso prazer, nem sequer do dele - diz ela com gravidade. - Ele tem de vos fazer um filho. Pareceis esquecer constantemente que o importante não é dançar, não é a música, nem sequer as jóias e as terras. Não conseguireis manter o vosso lugar de rainha só por ser a mulher que ele ama, só o mantereis se fordes a mãe do filho dele. Até que lhe deis um filho, não me parece que ele pense sequer em vos coroar.

- Tenho de ser coroada - protesto eu.

- Nesse caso, tereis de o levar para a vossa cama e fazer com que ele vos dê um filho - diz ela. - Qualquer outra coisa é demasiado perigosa, só de pensar.

- Eu vou - digo eu. Suspiro, com um enorme e cansado suspiro exagerado, para que ela veja que não fico assustada com as suas ameaças, e que, em vez disso, vou cumprir o meu dever, mesmo sem vontade. - Vou ter com ele e vou dizer que me sinto infeliz.

Por sorte, quando chego aos aposentos dele, a sala de audiências exterior está invulgarmente vazia, o que indica que muitas pessoas já voltaram para casa.

Assim, Thomas Culpepper está praticamente sozinho, a jogar aos dados, a mão direita contra a esquerda, sentado junto da janela.

- Estais a ganhar? - pergunto-lhe, tentando falar naturalmente.

Ele põe-se de pé num salto, quando me vê, e faz-me uma vénia.

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- Eu ganho sempre, Vossa Graça - diz ele. O seu sorriso faz-me parar o coração. É verdade, faz mesmo, quando ele abana a cabeça daquela maneira e sorri, posso ouvir o meu coração a fazer: bum-bum.

- O mérito não é grande, já que estais a jogar sozinho - digo em voz alta. Para mim mesmo digo: e não tem piada nenhuma.

- Eu ganho às cartas e aos dados, mas no amor, não tenho sorte nenhuma - diz ele muito baixinho.

Olho para trás de mim. Katherine Tyney parou para conversar com um familiar do Duque de Hertford e não está a ouvir, desta vez. Catarina Carey encontra-se a uma distância discreta, a olhar para fora da janela.

- Estais apaixonado? - pergunto.

- Deveis saber - diz ele num murmúrio.

Quase não me atrevo a pensar. Deve estar a referir-se a mim, deve estar quase

a declarar-me o seu amor. Mas parece-me que, se ele se estiver a referir a outra pessoa qualquer, morro. Não suporto pensar que ele possa desejar outra pessoa.

Mas mantenho uma voz alegre.

- Porque haveria eu de saber?

- Deveis saber quem é a pessoa que eu amo - diz ele. - Vós, entre todas as pessoas do mundo.

Esta conversa é tão deliciosa que até sinto os dedos dos pés a curvar, dentro dos meus sapatos novos. Sinto calor, tenho a certeza de que devo estar a corar e que ele o vai perceber.

- Devo?

- O Rei vai receber-vos agora - diz o idiota do doutor Butt e eu dou um salto e afasto-me de Thomas Culpepper, pois tinha-me esquecido completamente de que estava ali para visitar o Rei e fazer com que ele me volte a amar.

- É só um minuto - digo por cima do ombro.

Thomas dá uma pequena risada e eu tenho de tapar a boca com a mão para evitar rir também.

- Não, deveis ir - recorda-me ele muito calmamente. - Não podeis fazer esperar o Rei. Estarei aqui, quando saírdes.

- É claro que vou imediatamente - digo, recordando que devo aparentar preocupação por o Rei me ter negligenciado, afasto-me dele a toda a pressa e corro para o quarto do Rei. Ele está deitado na cama, como um grande navio parado numa doca seca, com a perna levantada para o ar, pousada sobre almofadões bordados e o rosto enorme e redondo, muito pálido e sofredor; caminho lentamente para junto do grande leito e tento parecer desesperada pelo seu amor.

335

Jane Bolena, Hampton Court, Março de 1541

O Rei está a resvalar para uma espécie de melancolia, insiste em estar só,

afastado de todos, como um velho cão moribundo, e as tentativas de Catarina para o fazer voltar para ela estão condenadas à partida, uma vez que ela não é capaz de manter o interesse noutra pessoa que não seja ela, por mais do que meio dia. Ela voltou a ir aos aposentos dele mas, desta vez, ele nem sequer a deixou entrar e, em vez de se mostrar preocupada, sacudiu a sua bela cabecinha e disse que, se ele não a queria deixar entrar, não o voltaria a ir visitar.

Mas deixou-se ficar por ali tempo suficiente para se encontrar com Thomas Culpepper e ele levou-a a passear pelo jardim. Mandei Catarina Carey atrás dela, com um xaile e outra rapariga bem comportada, para lhes dar uma aparência de decoro, mas, pela forma como a rainha lhe agarrava no braço, conversando e rindo, qualquer pessoa podia ver que se sentia feliz na companhia dele e que se esquecera completamente do marido, deitado em silêncio num quarto escurecido.

O meu amo, o Duque, lança-me um longo e duro olhar durante o jantar, mas não diz nada e eu percebo que ele espera que eu faça com que a nossa cadelinha seja acasalada e que fique prenhe. Um filho iria tirar o Rei da sua melancolia e asseguraria a coroa para a família Howard, para sempre. Temos de o fazer, desta vez. Temos de o conseguir. Nenhuma outra família no mundo teve estas duas oportunidades para alcançar um prémio tão valioso. Não podemos falhar duas vezes.

Na sua birra, Catarina manda chamar os músicos para os aposentos das damas e dança com elas, e com as pessoas que fazem parte do seu séquito. Mas não está a ser muito divertido e duas das raparigas mais atrevidas, Joan e Agnes, vão até ao fundo do salão de jantar e convidam alguns dos homens da corte. Quando as vejo fazer isso, envio um pajem a Thomas Culpepper, para ver se ele é louco ao ponto de vir. É.

336


Reparo no rosto dela quando ele entra na sala, no rosado das suas faces e na maneira rápida como ela começa a falar com a pequena Catarina Carey, que está ao seu lado. E fácil de ver que ela está completamente fascinada por ele e, por momentos, lembro-me de que ela não é apenas um peão no nosso jogo, mas uma rapariga, uma menina, e que se está a apaixonar pela primeira vez na vida. Ver a

pequena Kitty Howard sem saber o que fazer, a gaguejar, corando como uma rosa, pensando noutra pessoa e completamente diferente, é ver uma rapariga transformar-se em mulher. Seria muito enternecedor, se ela não fosse a Rainha da Inglaterra e uma Howard, com trabalho para fazer.

Thomas Culpepper junta-se ao grupo dos dançarinos e coloca-se de forma a ficar como par da Rainha, quando os pares trocam de parceiro. Ela olha para o chão para esconder o sorriso de prazer e para fingir modéstia, mas quando a dança os aproxima e ela agarra na mão dele, os olhos dela erguem-se para ele e ficam a olhar um para o outro cheios de paixão.

Olho em volta, mais ninguém parece ter notado e, de facto, metade das damas de companhia da Rainha está a fazer olhinhos a um jovem ou outro. Olho para o outro lado, para Lady Rutland, ergo as sobrancelhas, ela acena com a cabeça e vai ter com a Rainha, dizendo-lhe qualquer coisa ao ouvido. Catarina amua como uma criança desiludida e depois vira-se para os músicos:

- Esta vai ser a última dança - diz, com ar de enfado.

Mas depois volta-se e a sua mão dirige-se, quase sem querer, para Thomas Culpepper.

337

Catarina, Hampton Court, Março de 1541

Vejo-o todos os dias e cada dia somos um pouco mais ousados um com o outro. O Rei ainda não saiu dos seus aposentos e o seu círculo de clínicos e médicos, de homens velhos que o aconselham, quase nunca vem aos meus aposentos, por isso é como se tivéssemos uns dias livres - só gente jovem, reunida. A corte anda calma, sem bailes ou divertimentos e agora, que estamos na Quaresma, já nem sequer posso organizar danças em privado nos meus aposentos. Não podemos caçar, andar de barco no rio, fazer jogos nem nada que seja divertido. Mas podemos passear nos jardins ou junto ao rio, depois da missa, e quando vou passear, Thomas Culpepper passeia comigo e eu prefiro passear com ele do que dançar, com as minhas mais belas roupas, com um príncipe.

- Sentis frio? - diz ele.

É difícil, uma vez que estou embrulhada nas minhas peles, mas olho para ele e

digo:

- Um pouco.

- Deixai que eu aqueça a vossa mão - diz ele, enfiando a minha mão debaixo do seu braço, para ela ficar encostada ao casaco dele. Apetece-me tanto abrir a parte da frente do casaco dele e pôr ambas as mãos lá dentro. A barriga dele deve ser lisa e dura, penso eu. O peito dele deve estar coberto com pelos fininhos. Não sei, é tão emocionante que eu nem sei. Conheço o cheiro dele, pelo menos, já o consigo reconhecer. Tem um cheiro quente, como as velas de boa qualidade. E

queima-me.

- Está melhor assim? - pergunta ele, apertando a minha mão contra o seu corpo.

- Muito melhor - digo eu.

Vamos caminhando ao longo da margem do rio e um barqueiro passa e grita qualquer coisa para ambos. Com apenas algumas damas e cortesãos à nossa frente e atrás de nós, ninguém percebe que sou a Rainha.

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- Gostaria que fôssemos apenas um rapaz e uma rapariga que passeiam juntos.

- Gostaríeis de não ser rainha?

- Não, gosto de ser rainha... e, obviamente, amo Sua Majestade, o Rei, de alma e coração... mas se fôssemos apenas uma rapariga e um rapaz, poderíamos ir a uma pensão jantar e dançar, e seria divertido.

- Se fôssemos uma rapariga e um rapaz, levar-vos-ia a uma casa especial que eu conheço - diz ele.

- Levaríeis? Porquê? - quase consigo ouvir a pequena gargalhada extasiada no meio da minha voz, mas não o consigo evitar.

- Tem uma sala de jantar privada e uma cozinheira muito boa. Oferecer-vos-ia

o melhor dos jantares e, depois, far-vos-ia a corte - diz ele.

Solto um pequeno suspiro de choque fingido.

- Senhor Culpepper!

- Não iria parar até vos roubar um beijo - diz ele sem vergonha. - E depois continuaria por aí fora.

- A minha avó puxar-vos-ia as orelhas - ameaço-o.

- Teria valido a pena - ele sorri e sinto o meu coração a bater depressa.

Apetece-me rir alto, só pela alegria que ele me transmite.

- Talvez eu correspondesse ao beijo - digo num murmúrio.

- Tenho a certeza absoluta de que o faríeis - diz ele, ignorando o meu suspiro deliciado. - Nunca beijei uma rapariga na minha vida sem que ela me tivesse correspondido. Estou seguro de que me iríeis beijar, e creio que iríeis dizer “Oh, Thomas!”

- Então, estais muito seguro de vós mesmo, de facto, Senhor Culpepper.

- Chamai-me Thomas.

- Não!

- Chamai-me Thomas, quando estivermos a sós, como agora.

- Oh, Thomas!

- Aí está, já o haveis dito, e ainda nem sequer vos beijei.

- Não deveis falar-me em beijos quando houver pessoas por perto.

- Eu sei. Nunca permitiria que ficásseis em perigo. Tomarei conta de vós como se da minha própria vida se tratasse.

- O Rei sabe de tudo - aviso-o. - Tudo o que dizemos, talvez até aquilo que pensamos. Tem espiões por todo o lado e até sabe o que se passa no próprio coração das pessoas.

- O meu amor está escondido lá bem no fundo - diz ele.

- O vosso amor? - quase fico sem ar, ao ouvir isto.

339


- O meu amor - ele repete.

Lady Rochford aparece ao meu lado.

- Temos de ir para dentro - diz ela. - Vai chover.

Thomas Culpepper volta-se imediatamente e conduz-me em direcção ao palácio.

- Eu não quero ir para dentro - digo com teimosia.

- Ide, dizei que quereis mudar de roupa e depois escapais-vos pelas escadas que vão dos vossos aposentos para o jardim e eu esperarei por vós na entrada -

diz ele muito baixinho.

- Da última vez que combinámos, não haveis aparecido.

Ele dá uma pequena risada.

- Deveis perdoar-me por isso, já foi há alguns meses. Desta vez, irei ter convosco, sem falta. Há uma coisa muito especial que quero fazer.

- E o que é?

- Quero ver se consigo fazer-vos dizer “Oh Thomas”, outra vez.

340

Ana, Palácio de Richmond, Março de 1541

O embaixador Harst veio trazer-me novas da corte. Colocou um rapaz como criado nos aposentos do rei e ele diz que os médicos estão ao lado do Rei todos os dias, lutando por manter a ferida aberta, para que o veneno possa ser drenado

da perna dele. Estão a colocar pequenas placas de ouro na ferida, para que ela não feche, e voltam a coser as bordas com fio, mexendo na carne viva do pobre homem, como se estivessem a fazer um pudim.

- Ele deve estar a sofrer muito - digo eu.

O doutor Harst concorda.

- E está desesperado - diz ele. - Começa a pensar que nunca mais vai recuperar, acha que o seu tempo chegou ao fim e está morto de medo, por deixar o Príncipe Eduardo sem um guardião de confiança. Receia a morte e o Conselho Privado está a pensar que vai ser preciso criar uma Regência.

- E a quem vai ele confiar a guarda do Príncipe, enquanto ele for menor de idade?

- O Rei não confia em ninguém, e os familiares do Príncipe, os Seymour, são inimigos declarados da família da Rainha, os Howard. Não há qualquer dúvida de que vão dividir o país entre eles. A paz dos Tudor vai acabar como começou, com uma guerra pelo reino, entre as famílias mais importantes. O Rei também teme pela fé do povo. Eles, os Howard, estão determinados a trazer de volta a antiga religião e a entregar, de novo, o país a Roma; mas Cranmer tem a igreja a apoiá-lo e irá lutar pela Reforma.

Mordisco o dedo, enquanto penso.

- O Rei ainda pensa que há uma conspiração para o tirar do trono?

- Há notícias de uma nova sublevação no Norte, em defesa da antiga religião.

O rei receia que os homens peguem em armas outra vez, que o movimento se espalhe e acredita que os Papistas andam por todo o lado a incitar à revolta contra ele.

- Nada disto me coloca em perigo? Ele não se vai voltar contra mim, pois não?

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O seu rosto cansado enruga-se, com uma expressão preocupada.

- É possível que o faça. Ele também tem medo dos Luteranos.

- Mas toda a gente sabe que eu sou um membro praticante da igreja do Rei! -

protesto eu. - Faço tudo para mostrar que estou de acordo com as instruções do Rei.

- Haveis sido trazida para cá como princesa protestante - diz ele. - E o homem que vos trouxe pagou com a própria vida. Tenho bastante receio.

- Que podemos fazer? - pergunto.

- Vou manter a vigilância sobre o Rei - diz ele. - Enquanto ele estiver a actuar contra os Papistas, estamos relativamente em segurança, mas se ele se voltar contra os Reformistas, temos de nos certificar de que arranjaremos maneira de voltar para casa, se for necessário.

Sinto um ligeiro arrepio, ao pensar na louca tirania do meu irmão, por oposição à louca tirania deste rei.

- Eu não tenho casa lá.

- E podereis não ter casa cá.

- O Rei prometeu-me que estaria em segurança aqui - digo.

- Ele também vos prometeu o trono - diz o embaixador com ar sério. - E quem é que está lá sentada, agora?

- Não lhe invejo a sorte - digo, pensando no marido dela, a remoer os seus pecados, preso numa cama por uma ferida infectada, a contar os inimigos, procurando alguém a quem atribuir as culpas, enquanto arde de febre e o seu sentido de injustiça cresce até raiar a loucura.

- Atrevo-me a pensar que não há uma única mulher no mundo que a inveje -

responde o Embaixador.

342

Jane Bolena, Hampton Court, Abril de 1541

- O que foi que realmente aconteceu a Ana Bolena? - a rainha-criança horroriza-me ao fazer esta pergunta, enquanto regressamos da missa, uma manhã de Abril. O Rei, como de costume, esteve ausente do camarote real e, pela primeira vez, ela não passou o tempo todo a espreitar por cima do rebordo, à procura de Thomas Culpepper. Até fechou os olhos durante as orações, como se estivesse mesmo a rezar, e tinha um ar pensativo. E agora isto.

- Ela foi acusada de traição - digo friamente. - De certeza que o sabeis.

- Sim, mas porquê? Porquê, exactamente? O que aconteceu?

- Deveríeis perguntar à vossa avó, ou ao Duque - digo eu.

- Vós não estáveis presente?

Se eu não estava presente? Não estive presente durante todos os agonizantes segundos que aquilo durou?

- Sim, eu estava na corte - digo eu.

- E não vos recordais?

Como se tudo estivesse gravado na minha pele, com uma faca

- Oh, lembro-me, sim. Mas não gosto de falar disso. Porque quereis saber o que aconteceu no passado? Já não significa nada, agora.

- Mas não é como se fosse segredo? - pressionou ela. - Não é nada de que vos possais envergonhar, pois não?

Eu tento engolir, mas tenho a garganta seca.

- Não, nada. Mas fiquei sem a minha cunhada, sem o meu marido, e a família perdeu o seu bom nome.

- Porque é que executaram o vosso marido?

- Ele foi acusado de traição, juntamente com ela e os outros homens.

- Pensava que os outros homens tinham sido acusados de adultério?

- É a mesma coisa - digo, tensa. - Se a Rainha tiver um amante, isso é considerado traição ao Rei. Não estais a perceber? E agora, podemos falar de outra coisa qualquer?

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- Nesse caso, porque executaram eles o irmão dela, o vosso marido?

Cerro os dentes.

- Eles foram acusados de serem amantes - digo, horrorizada. - Percebeis agora por que razão eu não gosto de falar nesse assunto? Porque é que ninguém quer falar sobre isso? Portanto, podemos parar de falar nesse assunto?

Ela nem sequer se apercebe do tom que emprego, de tão chocada que fica.

- Acusaram-na de ser amante do irmão? - pergunta ela. - Como é que puderam pensar que ela seria capaz de fazer uma coisa dessas? Como é que arranjaram provas de uma coisa assim?

- Espiões e mentirosos - digo com amargura. - Deveis estar prevenida. Não deveis confiar naquelas raparigas estúpidas que haveis reunido à vossa volta.

- Quem foi que os acusou? - pergunta ela, ainda perplexa. - Quem é que foi capaz de prestar juramento sobre uma coisa dessas?

- Não sei - digo eu, desesperada para me afastar dela, da sua busca determinada por aquelas verdades antigas. - Já foi há muito tempo e não consigo lembra-me e, se me lembrasse, não iria falar sobre isso.

Afasto-me dela, ignorando o protocolo real, não consigo suportar a suspeita que lhe começa a surgir no rosto.

- Quem poderia saber? - repete ela.

Mas eu já tinha ido embora.

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Catarina, Hampton Court, Abril de 1541

Estou muito mais tranquila com tudo o que tenho aprendido, e teria sido bom se me tivesse lembrado de perguntar há mais tempo. Sempre tinha acreditado que a minha prima, a Rainha Ana, tinha sido apanhada com um amante e que tinha sido decapitada por causa disso. Agora, descubro que foi muito mais complicado do que isso, que ela estava no centro de uma conspiração traiçoeira e que isso aconteceu há demasiado tempo, para eu poder entender. Estava com medo de que eu e ela estivéssemos a fazer o mesmo percurso para o mesmo destino, receava ter herdado as suas fraquezas. Mas afinal, havia uma grande conspiração e até Lady Rochford e o marido estavam envolvidos nela, de uma forma qualquer. Deve ter sido por causa da religião, digo eu, uma vez que Ana era uma sacramentista furiosa, acho eu, enquanto que agora, qualquer pessoa com um mínimo de bom senso é a favor dos costumes antigos. Por isso, desde que seja esperta e discreta, creio que poderei, pelo menos, ser amiga de Thomas Culpepper, posso vê-lo com frequência, ele pode ser o meu companheiro e a pessoa que me dá conforto e ninguém vai precisar de saber ou pensar seja o que for sobre o assunto. E enquanto ele for um leal servidor do Rei e eu for uma boa esposa para o Rei, nenhum mal há-de vir ao mundo.

Com astúcia, chamo a minha prima Catarina Carey para junto de mim e digo-lhe que traga fios de seda para bordar e para os colocar por cores, como se estivesse a pensar costurar qualquer coisa. Se ela estivesse há mais tempo na corte, perceberia imediatamente que era uma artimanha, pois, desde que me tornei rainha, nunca mais toquei numa agulha, mas ela traz um banco e senta-se aos meus pés, põe seda cor-de-rosa ao lado de outras, e ficamos as duas a olhar para elas.

- A vossa mãe alguma vez vos contou o que aconteceu à irmã dela, a Rainha Ana? - pergunto-lhe em voz baixa.

Ela olha para mim. Tem olhos castanhos, não tão escuros como o tom dos Bolena.

345


- Oh, eu estava presente - diz simplesmente.

- Estáveis lá? - exclamo eu. - Mas eu não sabia de nada disso.

Ela sorri.

- Ainda éreis uma criança, aos cuidados da vossa avó, não é verdade? Nós somos quase da mesma idade, mas eu vivia na corte. A minha mãe era dama de companhia da irmã, Ana Bolena, e eu era aia de companhia.

- E então, o que aconteceu? - estava quase a engasgar-me de curiosidade. -

Lady Rochford nunca mais me conta a história, e fica muito zangada quando lhe pergunto.

- É uma história terrível e não merece ser contada - diz ela.

- Vós também, não. Exijo que me digais Catarina. Ela também era minha tia, sabeis? Tenho o direito de saber.

- Oh, está bem, eu conto-vos. Mas não é uma história agradável. A Rainha foi acusada de adultério com o seu próprio irmão, o meu tio. - Catarina fala calmamente, como se aquilo fosse algo que acontece todos os dias. - E também com outros homens. Foi declarada culpada, ele foi considerado culpado, bem como os outros homens. A Rainha e o seu irmão Jorge foram condenados à morte. Eu fui com ela para a Torre. Fui sua aia, enquanto esteve na Torre. Eu estava com ela, quando a vieram buscar e ela se foi embora, para morrer.

Olho para aquela rapariga, esta prima minha, da minha idade, da minha própria família.

- Vós haveis estado na Torre? - murmuro.

Ela concorda com a cabeça.

- Logo que tudo acabou, o meu padrasto foi-me buscar e levou-me embora -

diz ela. - A minha mãe jurou que nunca mais voltaríamos para a corte - sorri e encolhe os ombros - mas aqui estou eu - diz ela alegremente. - Como diz o meu padrasto, para que outro sítio é que uma rapariga pode ir?

- Vós haveis estado na Torre? - não conseguia libertar-me daquele pensamento.

- Ouvi-os a construir o cadafalso para ela - diz com ar sério. - Rezei com ela e estava com ela quando saiu pela última vez. Foi terrível. Foi verdadeiramente terrível. Não gosto de pensar nisso, nem mesmo agora - vira o rosto para o outro lado e fecha os olhos por um instante. - Foi terrível - repete. - É uma maneira terrível de morrer.

- Ela era culpada de traição - murmuro eu.

- Ela foi considerada culpada pelo tribunal do Rei, o que julga as traições -

corrige-me ela, mas eu não consigo perceber a diferença.

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- Então, ela era culpada.

Ela volta a olhar para mim.

- Bom, de qualquer forma, já foi há muito tempo, e sendo culpada ou não, a verdade é que foi executada por ordem do Rei, não renegou a sua fé, e agora está morta.

- Nesse caso, ela devia ser culpada de traição. O Rei não iria executar uma mulher inocente.

Ela inclina a cabeça para esconder o rosto.

- Como haveis dito, o rei não é capaz de cometer um erro.

- Credes que ela estava inocente? - digo num sussurro.

- Sei que ela não era bruxa, sei que não era culpada de traição, tenho a certeza de que estava inocente no caso de adultério com todos aqueles homens - diz ela com firmeza. - Mas não discuto com o Rei. Sua Graça deve saber mais do que eu.

- Ela estava com muito medo? - digo num murmúrio.

- Estava.

Parece que não há mais nada para dizer. Lady Rochford entra na sala e apercebe-se de nós as duas, com as cabeças muito próximas.

- O que estais a fazer Catarina? - pergunta irritada.

Catarina levanta os olhos.

- A escolher linhas de seda para bordar para Sua Graça - diz ela.

Lady Rochford lança-me um longo e duro olhar. Sabe que não e provável que eu vá começar a costurar, quando não está ninguém a ver.

- Colocai-as cuidadosamente na caixa, quando tiverdes terminado - diz ela, voltando a sair.

- Mas ela não foi acusada - digo baixinho, acenando para a porta por onde sua senhoria tinha saído. - a vossa mãe também não foi. Só Jorge.

- A minha mãe tinha vindo há pouco tempo para a corte - Catarina começa a juntar os fios de seda - e era uma antiga favorita do Rei. Lady Rochford não foi acusada porque foi ela que apresentou as provas contra o marido e a Rainha. Não a podiam acusar, era a principal testemunha deles.

- O quê? - fico tão espantada que solto um pequeno grito e Catarina olha para a porta, atrás de nós, como se tivesse medo que alguém nos estivesse a ouvir. -

Ela traiu o próprio marido e a cunhada?

Ela acena que sim.

- Já foi há muito tempo - repete. - A minha mãe diz que não vale a pena pensar em contas antigas e coisas mal feitas, no passado.

347


- Mas, como é que Lady Rochford pode merecer tanta confiança do meu tio?

Se traiu o seu próprio marido e a sua rainha?

A minha prima Catarina levanta-se do chão e coloca as sedas na caixa, como

lhe tinham ordenado.

- A minha mãe disseme para não confiar em ninguém, na corte - observa ela. -

E ela disse, especialmente em Lady Rochford.

Tudo isto me deixa algo em que pensar. Não consigo imaginar como as coisas se passaram, há tanto tempo atrás. Não consigo imaginar como seria o Rei, quando era jovem, um homem jovem e saudável, talvez tão bonito e desejável como Thomas Culpepper é agora. E como tudo deve ter sido para a Rainha Ana, minha prima, admirada como eu sou, rodeada de cortesãos, como eu, confiando em Jane Bolena, exactamente como eu confio.

Não consigo perceber o significado disto tudo. Não sei que significado possa ter para mim. Como diz Catarina, já foi há muito tempo, e todos estão diferentes, agora. Não me posso deixar atemorizar por estas velhas histórias tristes. Ana Bolena é, há tanto tempo, um segredo vergonhoso da nossa família, que quase já não importa saber se ela era culpada ou inocente, uma vez que, no fim, acabou por morrer como traidora. Certamente, isso não tem qualquer importância para mim. Não é como se eu tivesse de seguir as suas pisadas, como se existisse uma herança Bolena em relação ao cadafalso e como se eu tivesse de ser a sua herdeira. Nada disto me faz qualquer diferença. Não me parece que tenha alguma coisa para aprender com ela.

Sou rainha, agora; terei de viver a minha vida como me apetecer. Terei se resolver os problemas com o Rei da melhor maneira, que não é marido nenhum.

Há mais de um mês que quase não sai do quarto e não me deixa entrar, mesmo quando eu lá vou para o visitar. E como nunca me recebe, nunca está contente comigo e há meses que não recebo nada dele: nem sequer um berloque. É tão deselegante da parte dele e tão egoísta que eu acho que ele merecia que eu me apaixonasse por outro homem.

Eu não faria isso, nem arranjaria um amante, por nada deste mundo. Mas, sem dúvida, a culpa seria dele, se eu fizesse algo de semelhante. Ela é um mau marido para mim, e é tudo muito bonito, toda a gente me pergunta se estou de boa saúde e se já há alguns sinais de vir aí um herdeiro, mas se ele não me deixa entrar no seu quarto, como é que eu vou ficar grávida?

Esta noite, estou decidida a ser uma boa esposa e vou tentar mais uma vez e enviei o meu pajem a pedir para ser autorizada a jantar com o Rei nos aposentos

dele. Thomas Culpepper manda-me 348

uma mensagem a dizer que o Rei está um pouco melhor hoje, e mais animado.

Levantou-se da cama e sentou-se junto da janela para ouvir os pássaros no jardim. Thomas veio aos meus aposentos para me dizer que quando o Rei estava a olhar pela janela me viu brincar com o meu cãozinho e que tinha sorrido ao ver-me.

- Sorriu? - pergunto. Eu tinha vestido um dos meus vestidos novos, num rosa muito pálido, para celebrar o fim da Quaresma, finalmente, e tinha posto as minhas pérolas do Natal. Para ser franca, devia estar com um ar encantador, quando brincava no jardim. Se ao menos tivesse percebido que ele estava a olhar! - E vós, haveis-me visto?

Ele vira a cabeça para o outro lado, como se não se atrevesse a confessar,

- Se eu fosse o Rei, teria corrido pelas escadas abaixo para estar perto de vós, com dores ou sem elas. Se eu fosse o vosso marido, acho que nunca vos deixaria fugir da minha vista.

Duas das minhas aias de companhia entraram e olharam para nós com curiosidade. Bem sei que estamos virados um para o outro, quase como se nos estivéssemos a beijar.

- Dizei a Sua Majestade que irei jantar com ele esta noite, se ele o permitir, e que farei tudo para o animar - digo bem alto e Thomas faz uma vénia e vai embora.

- Animá-lo? - troça Agnes. - Como? Aplicando-lhe mais um clister?

Todas começam a rir como se tivessem dito uma grande piada.

- Vou tentar animá-lo, se ele não estiver decidido a sentir-se infeliz - digo eu. -

E tende cuidado com as vossas maneiras.

Ninguém pode dizer que eu não cumpro todos os deveres de esposa, mesmo quando eles são desagradáveis. E, pelo menos, vou ver o Thomas esta noite, pois é ele que me vem buscar e trazer dos aposentos do Rei, por isso, vamos estar

juntos por alguns minutos. Se nos conseguirmos esconder num sítio qualquer onde ninguém nos veja, ele vai beijar-me, sei que vai, e eu derreto-me como açúcar ao lume, só de pensar nisso.

349

Jane Bolena, Hampton Court, Abril de 1541

- Muito bem - diz-me o tio Howard. - A ferida do rei não está melhor mas, pelo menos, ele voltou a receber a Rainha. Ele esteve na cama dela?

- Na noite passada. Ela teve de fazer o trabalho do homem, sentou-se em cima dele, sobre ele, teve de fazer tudo e não gosta nada disso.

- Não importa. Desde que haja resultados. E ele gosta?

- De certeza. Qual é o homem que não gosta?

Ele concorda com um sorriso maldoso.

- E ela desempenhou o papel que haveis inventado na perfeição? Ficou convencido de que quando se retira da corte ela fica com o coração despedaçado com a ausência dele e de que está sempre com medo que ele volte para a outra mulher, a de Clèves?

- Penso que sim.

Ele dá uma pequena gargalhada.

- Jane, minha Jane, que maravilhoso Duque vós daríeis. Devíeis ter sido chefe da nossa casa, que pena serdes mulher. Os vossos talentos estão todos retorcidos e esmagados dentro da vossa bússola de mulher. Se tivésseis um reino para defender, teríeis sido um grande homem.

Não consigo evitar um sorriso. Percorri um longo, longo caminho desde a minha desgraça e agora, o chefe da família diz-me que eu deveria ter sido um duque igual a ele.

- Tenho um pedido a fazer - digo, enquanto estou nas suas boas graças.

- Ah, sim?

Eu teria dito “o que quiserdes”.

- Eu sei que não me podeis dar um ducado - digo eu.

- Sois Lady Rochford - recorda-me ele. - A nossa luta para manter o vosso título foi bem sucedida e tendes essa parte da vossa herança Bolena, embora tenhamos perdido tudo o resto.

350


Eu não comento que o título não me adianta de grande coisa, uma vez que a mansão que tem o meu nome está ocupada pela irmã do meu marido e pelos seus filhos, em vez de ser por mim.

- Estava a pensar que poderia procurar um outro título - sugiro.

- Que título?

- Pensei que talvez pudesse casar-me outra vez - digo confiante. - Não para deixar esta família, mas para conseguir uma aliança, para nós, com outra família importante. Para aumentar a nossa grandeza e as nossas relações, para aumentar a minha fortuna pessoal e para ter um título mais importante - faço uma pausa. -

Por nós, meu senhor. Para nos fazer subir a todos. Vós gostais de colocar as mulheres da família em posições que lhe são vantajosas e eu gostaria de casar outra vez.

Ele volta-se para a janela e, por isso, não lhe consigo ver o rosto. Fica calado durante bastante tempo e quando se volta de novo para mim, não há nada para ver; a sua expressão é como um retrato, parada e sem revelar seja o que for.

- Já tendes algum homem em vista? - pergunta ele. - Um favorito?

Abano a cabeça.

- Não me atreveria a fazer isso - digo com astúcia. - Apenas vos apresentei esta sugestão para que possais pensar no tipo de aliança que nos pode convir: a

nós, os Oward.

- E que posição vos conviria? - pergunta ele sibilinamente.

- Gostaria de ser duquesa - digo com honestidade. - Gostaria de poder usar arminho. Gostaria de ser chamada de Vossa Graça. E gostaria que me fossem atribuídas terras, mesmo minhas, não em nome do meu marido.

- E por que razão deveríamos ter em consideração uma aliança desse género, para vós? - pergunta-me ele, como se já soubesse a resposta.

- Porque eu vou ser parente do próximo rei da Inglaterra - digo num murmúrio.

- De uma forma ou de outra? - pergunta ele, pensando no Rei doente, deitado de barriga para o ar e na nossa rapariguinha esforçando-se ao máximo, em cima dele.

- De uma forma ou de outra - respondo, pensando no jovem Culpepper a tentar, aos poucos, encontrar o caminho para a cama da rainha e a pensar que está apenas a seguir os seus desejos, não sabendo que está a cumprir o nosso plano.

- Vou pensar no assunto - diz ele.

351


- Eu gostaria de voltar a casar-me - repito. - Gostaria de ter um homem na minha cama.

- Sentis desejo? - pergunta ele quase como se estivesse surpreendido por saber que eu não sou uma espécie de cobra com sangue frio.

- Como qualquer mulher - digo eu. - Gostaria de ter um marido e de ter outro filho.

- Mas, ao contrário da maioria das mulheres, vós só aceitareis um marido se ele for um duque - diz ele com um ligeiro sorriso - e, presumivelmente, se for

rico.

Devolvo-lhe o sorriso.

- Bem, é verdade, meu senhor - digo. - Não sou louca para me casar por amor, como algumas pessoas que nós conhecemos.

352

Ana de Clèves, Palácio de Richmond, Abril de 1541

O interesse e, para dizer a verdade, um pouco de vaidade, fez-me ir para a corte no Natal, e parece-me que foi uma atitude prudente estar lá, para recordar ao Rei a sua promessa de que eu vou ser tratada como sua irmã. Mas o medo trouxe-me depressa de volta a casa, para Richmond. Muito tempo depois de as celebrações e dos presentes estarem esquecidos, o medo mantém-se. O Rei estava feliz no Natal, mas ficou de mau humor na Quaresma e eu fiquei contente por estar aqui, feliz por a corte se ter esquecido de mim. Resolvi não passar a Páscoa na corte; nem irei com eles na viagem de Verão. Tenho medo do Rei, vejo nele a tirania do meu irmão e a loucura do meu pai. Quando olho para aqueles olhos faiscantes e desconfiados, tenho a sensação de que já os vi antes.

Ele não é um homem em quem se possa confiar e parece-me que o resto da corte vai acabar por perceber que o seu menino bonito se transformou num homem forte, e que agora está, lentamente, a ficar incontrolável.

O Rei diz mal dos Reformistas, dos Protestantes e dos Luteranos e tanto a minha consciência como o meu sentido de segurança me incentivam a frequentar a igreja antiga e a observar os antigos costumes. A fé da Princesa Maria é um exemplo para mim, mas mesmo sem ela, eu estaria a dobrar o joelho aos sacramentos e a acreditar que o vinho é o sangue e que o pão é a carne. É

demasiado perigoso pensar de outro modo, na Inglaterra de Henrique, nem mesmo os pensamentos estão em segurança.

Por que razão é que ele, que fez sempre o que lhe aprouve, servindo-se do seu poder e da sua prosperidade, olha em volta como um animal selvagem, à procura de pessoas a quem possa ameaçar? Se ele não fosse rei, as pessoas diriam que deve ser um louco que se casa com uma mulher jovem e que, meses depois do casamento, anda à procura

de mártires para mandar queimar. Um homem que escolheu o próprio dia do

seu casamento para mandar executar o seu maior am igo e conselheiro. Este é um homem louco e perigoso e, aos poucos, toda a gente começa a percebê-lo.

353


Meteu na cabeça que há uma conspiração de Reformistas e Protestantes para o derrubar. O Duque de Norfolk e o Arcebispo Gardiner estão determinados a que a igreja se mantenha como está, desapossada da sua riqueza, mas basicamente católica. Querem que a Reforma congele no ponto em que está. A pequena Kitty não pode dizer nada para os contrariar pois, para dizer a verdade, ela não sabe nada, duvido até que saiba que orações existem no seu livro. Obedecendo às indicações deles, o Rei ordenou aos bispos, e até aos párocos, que perseguissem os homens e as mulheres, em todas as igrejas da Inglaterra, que não mostrassem o devido respeito pelo elevar da hóstia, que os acusassem de heresia e que os mandassem queimar.

O mercado de carniceiros de Smithfield transformou-se num local tanto para carcaças humanas como para as de animais, tornou-se o grande centro onde se queimam os mártires e há sempre molhos de lenha prontos para os homens e mulheres que os clérigos de Henrique conseguem encontrar, para lhe fazer a vontade. Ainda não lhe chamam Inquisição, mas é uma Inquisição. A gente nova, pessoas ignorantes, pessoas estúpidas e ainda alguns, poucos, que acreditam sinceramente na sua fé, são interrogados e contra-interrogados sobre pontos pouco importantes da teologia, até se contradizerem com o medo e a confusão, e então são declarados culpados; depois, o Rei, o homem que deveria ser como um pai para todo o seu povo, ordena que sejam arrastados e queimados até à morte.

As pessoas ainda falam da morte de Robert Barnes, que perguntou ao próprio xerife que o estava a amarrar à pira de lenha, qual era a razão para a sua morte?

O xerife não sabia e não foi capaz de lhe dizer de que crime era acusado. Nem sequer a multidão que assistia foi capaz de o fazer. O próprio Barnes não sabia, quando acenderam as chamas em volta dos seus pés. Ele nunca tinha feito nada contra a lei, não tinha dito nada contra a igreja, estava inocente de qualquer crime. Como podem estas coisas acontecer? Como é que um rei, que em tempos

foi o mais belo de toda a Cristandade, o Defensor da Fé, a luz da sua nação, se pode ter transformado num - será que me atrevo a dizer a palavra - monstro destes?

Arrepia-me só de pensar, como se tivesse frio, mesmo aqui nos meus aposentos privados aquecidos de Richmond. Como foi que o Rei se tornou tão rancoroso, apesar da sua felicidade? Como é que pode ser tão cruel para o seu povo? Como é que se torna tão caprichoso e cheio de súbitas raivas? Como é que alguém se arrisca a viver na corte?

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Jane Bolena, Hampton Court, Abril de 1541

Já temos o nosso candidato aos favores da Rainha e eu não tive de fazer quase nada para apressar o namoro. Sem mais ajudas do que o desejo de uma rapariga, ela apaixonou-se completamente por Thomas Culpepper e, por aquilo que vejo, ele por ela. A perna do Rei está a provocar-lhe menos dores e ele tem estado a sair dos seus aposentos desde a Páscoa e a corte voltou outra vez ao normal; mas, mesmo assim, há ainda muitas oportunidades para o jovem par se encontrar e, na verdade, o rei empurra-os um para o outro, dizendo a Culpepper que dance com a Rainha, ou aconselhando-a nas apostas que faz, quando Culpepper está a dar as cartas. O Rei adora Culpepper, é o seu camareiro preferido, e leva-o para todo o lado, deliciado com o seu encanto, a sua inteligência e o seu bom aspecto.

Sempre que visita a Rainha, Culpepper vem no seu séquito e o rei gosta de ver os dois jovens juntos. Se não estivesse cego pela sua monstruosa vaidade, iria perceber que os está atirar para os braços um do outro; em vez disso, considera que os três fazem um bom trio e afirma que Culpepper lhe faz recordar a sua própria juventude.

A rainha-menina e o rapazinho-cortesão jogam em par, com o Rei a observar as cartas de ambos como um pai indulgente que tem dois belos filhos, quando o Duque de Norfolk atravessa a sala para falar comigo.

- Ele já voltou ao quarto dela? Ela está a ir para a cama com o Rei, como é o seu dever?

- Sim - digo quase sem mover os lábios, com o rosto voltado para o belo par e o seu amoroso pai. - Mas quanto ao resultado, ninguém sabe.

Ele concorda.

- E Culpepper quer estar com ela?

Eu sorrio e olho para ele.

- Como podeis ver, ela está a morrer por ele e ele deseja-a.

Volta a acenar.

355


- Foi o que me pareceu. E ele é um grande favorito do Rei, o que é uma vantagem para nós. O Rei gosta de a ver dançar com os seus favoritos. E ele é um safado sem consciência, o que também é bom para nós. Achais que ele é suficientemente atrevido para se arriscar?

Fico por minutos a apreciar a forma como ele consegue conspirar, apenas com os olhos pousados na sua vítima e qualquer pessoa iria pensar que ele não está a falar de nada, a não ser do tempo.

- Parece-me que ele está apaixonado por ela, acho que ele era capaz de arriscar a vida por ela, neste momento.

- Que doçura - diz ele com azedume. - Teremos de o observar. Ele é temperamental. Houve um incidente qualquer, não houve? Ele violou a mulher de um guarda de caça, não foi?

Sacudo a cabeça e viro-me para o outro lado.

- Nunca ouvi falar disso.

Ele oferece-me o braço e, juntos, descemos a galeria.

- Violou-a e matou o marido, quando ele a tentou defender. O Rei garantiu-lhe o perdão pelas duas ofensas.

Já estou velha de mais para ficar chocada.

- Grande favorito, na verdade - digo secamente. - Que mais é que o Rei seria capaz de lhe perdoar?

- Mas por que havia Catarina de engraçar com ele, de entre os outros todos?

Ele não tem qualquer mérito, a não ser a sua juventude, o seu bom ar e a arrogância.

Rio-me.

- Para uma rapariga, casada com um homem feio, com idade suficiente para ser seu avô, é capaz de ser suficiente.

- Bom, ela pode ficar com ele, se quiser, e eu também posso procurar outro jovem para atravessar no caminho dela. Já tenho debaixo de olho um antigo favorito dela, que acabou de regressar da Irlanda, e que ainda continua apaixonado por ela. Podereis encorajá-la, talvez quanto estivermos em viagem?

Nessa altura ela estará a ser menos vigiada e, se ficasse grávida neste Verão, poderia ser coroada antes do Natal. Sentir-me-ia mais seguro, se ela já tivesse a coroa na cabeça e uma criança no ventre, especialmente se o Rei adoecer outra vez. O médico diz que os intestinos dele estão de novo a ficar presos.

- Eu posso ajudar os dois - digo eu. - Posso facilitar de eles se encontrarem, mas é difícil fazer mais do que isso.

Ele sorri.

Culpepper é tão canalha e ela é tão namoradeira que eu duvido que preciseis de fazer qualquer coisa mais, minha cara Lady Rochford.

356


Ele está tão simpático e tão despreocupado que me atrevo a pousar a mão no seu braço, enquanto ele vai andando em direcção ao círculo interior.

- E os meus assuntos pessoais? - recordo-lhe.

O sorriso dele não se altera nem um milímetro.

- Ah, as vossas esperanças de arranjar um casamento - diz ele. -

Efectivamente, já tenho qualquer coisa em vista. Dir-vos-ei mais tarde.

- Quem é ele? - pergunto eu. É uma parvoíce, mas percebo que sustive a respiração, como uma rapariguinha. Se eu me casasse em breve, não seria impossível ter outro filho. Se eu conseguisse casar-me com um homem importante, poderia criar as bases de uma grande família, mandar construir uma casa grande, juntar uma fortuna para deixar aos meus próprios herdeiros. Seria capaz de fazer as coisas bem melhor do que os Bolena. Veria a minha família ascender. Poderia deixar uma fortuna, e a vergonha e a desgraça do meu primeiro casamento ficariam esquecidas, com o esplendor do segundo.

- Tereis de ser paciente - diz ele. - Tratemos de resolver este assunto de Catarina, primeiro.

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Catarina, Hampton Court, Abril de 1541

Estamos na Primavera. Nunca reparei tanto numa estação em toda a minha vida; mas este ano o sol está tão brilhante e o canto dos pássaros ecoa tão alto que acordo ao romper do dia e fico deitada, sentindo cada milímetro da minha pele como seda, com os lábios húmidos e o coração a bater acelerado de desejo.

Rio-me sem motivo, apetece-me dar pequenos presentes às minhas damas para as fazer felizes, sinto vontade de dançar, apetece-me correr pelas largas avenidas do jardim, andar à roda quando chego lá ao fundo, cair na relva e sentir o tímido aroma das prímulas. Gostaria de andar a cavalo durante todo o dia, dançar toda a noite e gastar toda a fortuna do Rei ao jogo. Estou sempre cheia de apetite, experimento todos os pratos que vêm para a mesa real e depois mando os melhores, os melhores de todos, para uma mesa ou para outra; mas nunca, nunca, para a dele.

Tenho um segredo, um segredo tão grande que há dias em que quase não consigo respirar, pelo modo como ele queima a minha língua, tal é a vontade de o contar a toda a gente. Em alguns dias, é como uma espécie de cócegas, que me dão vontade de rir. Todos os dias, todas as noites e todos os dias sinto o quente e insistente pulsar do desejo.

Há uma pessoa que sabe, apenas uma. Ele olha para mim, durante a missa, quando espreito por cima do balcão do camarote da rainha e o vejo lá em baixo.

Devagar, muito devagar, a sua cabeça vai rodando, como se conseguisse sentir o meu olhar posto nele, olha para cima, sorri-me com aquele sorriso, aquele que começa nos seus olhos negros e que depois passa para a sua boca, que apetece beijar e depois pisca-me rápida e descaradamente o olho. Porque ele conhece o segredo.

Quando andamos a cavalo, o cavalo dele fica ao lado do meu, durante a caçada, e a sua mão nua toca na minha luva e até parece que o seu toque me escalda. Nem sequer me atrevo a olhar para ele, nessas alturas, e ele não faz mais do que isso; um toque muito

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suave, só para dizer que conhece o meu segredo: ele também conhece o segredo.

Quando estamos a dançar e os movimentos da dança nos aproximam, de mão dada e, de acordo com as regras da dança, deveríamos olhar fixamente um para o outro enquanto giramos, baixamos os olhos ou olhamos para outro lado, simulando indiferença. Porque não nos atrevemos a ficar demasiado próximos, não me atrevo a deixar o meu rosto demasiado perto do dele, não me atrevo a olhar para os seus olhos negros, para aquela boca ardente, para a tentação do seu sorriso.

Quando ele me beija a mão, antes de abandonar os meus aposentos, não toca os meus dedos com os lábios, respira sobre eles. É uma sensação extraordinária, arrebatadora. A única coisa que consigo sentir é o calor da sua respiração. Ao segurar-me ao de leve na mão, ele deve sentir a agitação dos meus dedos, semelhante a um doce prado sacudido pela brisa, só ao mais ligeiro toque.

E qual é este segredo que me faz acordar de madrugada e me mantém a vibrar como uma lebre, até ao anoitecer, quando os meus dedos tremem com o calor da sua respiração? É um segredo tão grande que nem para mim mesma o nomeio. É

um segredo. É segredo. Aperto-o contra mim na escuridão da noite, quando Henrique finalmente adormece, e consigo arranjar um espacinho da cama que não esteja aquecido pelo seu corpo enorme nem invadido pelo cheiro horrível da sua ferida e então, formo as palavras na minha mente, mas nem sequer as pronuncio: “Tenho um segredo”.

Puxo para baixo o meu travesseiro, encosto-o a mim, afasto um caracol de cabelo do rosto, pouso a face no travesseiro, fico pronta para dormir e fecho os

olhos: “Tenho um segredo”.

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Ana de Clèves, Palácio de Richmond, Maio de 1541

O meu embaixador, o Dr. Harst, traz-me as mais chocantes e tristes notícias que, penso eu, alguma vez poderei receber. À medida que me ia contando, comecei a tremer, só de ouvir aquelas palavras. Como é que o Rei foi capaz de fazer uma coisa destas? Como é que algum homem poderia fazer algo de semelhante?

O Rei mandou executar Margaret Pole, a Condessa de Salisbury. O rei ordenou a morte de uma inocente, uma mulher com quase setenta anos, sem qualquer razão. No mínimo, se teve uma razão, foi aquela que tem comandado tantas das suas acções: nenhuma, a não ser o seu rancor insano.

Meu bom Deus, ele está a transformar-se num homem aterrorizador. Na minha pequena corte, aqui em Richmond, aperto a minha capa em volta de mim, digo às minhas companheiras que não precisam de vir comigo e que eu e o embaixador vamos dar um passeio pelo jardim. Quero ter a certeza de que ninguém se apercebe do medo espelhado no meu rosto. Agora, fico com a certeza de que tive muita sorte, ao escapar por tão pouco, por ter escapado tão bem. Graças a Deus, na sua misericórdia, por me ter poupado. Havia todos os motivos para temer o Rei e para o ver como um louco assassino. Todos me tinham avisado e, apesar de ter medo, não me tinha apercebido de como ele podia ser maldoso. Esta perversidade, esta maldade insana contra uma mulher com idade suficiente para ser sua mãe e que foi a mais importante dama de companhia da sua avó, a mais querida amiga da sua esposa, madrinha da sua própria filha, uma santa mulher, inocente de qualquer crime - isto prova-me, de uma vez por todos, que ele é um homem muitíssimo perigoso.

Mandar uma mulher, de quase setenta anos, ser arrastada para fora da cama e decapitada - sem qualquer motivo! Nenhum motivo, a não ser destroçar o filho dela, a sua família e todos os que lhes querem bem. Este rei é um monstro, apesar de todos os doces sorrisos que dedica à sua pequena noiva, da sua actual bondade e generosidade para comigo, é bom que eu não esqueça: Henrique da 360

A Inglaterra é um monstro e um tirano, e ninguém está seguro no seu reino. Não pode haver segurança num país, quando um homem destes ocupa o trono. Deve ser louco, para se comportar deste modo. É a única justificação. Ele deve ser louco, e eu estou a viver num país governado por um rei louco, dependendo a minha segurança da sua boa vontade.

O Dr. Harst apressa o passo para se manter ao meu lado, caminhamos por ali fora como se pudéssemos fugir a pé deste reino.

- Estais preocupada - diz ele.

- Quem não ficaria? - olho em volta, estamos a falar em alemão e ninguém nos consegue entender, o meu pajem, ficou lá para trás. - Por que razão é que o Rei mandou executar Lady Pole nesta altura? Há anos que a mantém presa na Torre.

Dificilmente poderia estar a conspirar contra ele. Há anos que não recebe ninguém, a não ser os carcereiros; ele já mandou matar metade da família dela e os restantes foram metidos na Torre.

- Ele não pensa que ela estava a conspirar - diz ele calmamente. - Mas esta nova sublevação no Norte quer restaurar a religião antiga e estão a exigir que a família Pole ocupe o trono. Eles são papistas fiéis e muito estimados, são do Norte, são considerados como a família real de York, seguem a antiga fé. O Rei não vai tolerar qualquer rival. Mesmo um rival inocente.

Estremeço.

- Nesse caso, porque é que ele não ordena uma missão contra o Norte? -

pergunto. - Ele podia comandar um exército para desbaratar os rebeldes. Para que serve decapitar uma velha senhora, em Londres?

- Dizem que ele a odeia desde que ela tomou partido pela Rainha Catarina de Aragão, contra ele - diz ele em voz baixa. - Quando ele era jovem, admirava-a e respeitava-a, pois ela era a última princesa plantageneta, com muito mais sangue real do que ele. Mas quando ele afastou a Rainha, Lady Pole tomou o partido dela e prestou declarações em seu favor.

- Isso já foi há muitos anos.

- Ele não se esquece de um inimigo.

- Por que razão não luta contra os rebeldes, como já fez anteriormente?

Ele baixa a voz.

- Dizem que tem medo. Como aconteceu da outra vez, quando enviou o Duque Thomas Howard. Ele não irá pessoalmente.

Alargo o passo e o embaixador acompanha-me, o meu pajem fica ainda mais para trás.

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- Nunca estarei realmente em segurança - digo, quase para mim mesma. - Não enquanto ele for vivo.

Ele concorda com a cabeça.

- Não podeis confiar na palavra dele - diz ele imediatamente. - E se o ofenderdes, ele nunca o esquecerá.

- Pensais que tudo isto - o meu gesto envolve o belo parque, o rio, o palácio maravilhoso -, tudo isto não passa de um engodo? Algo para me manter calada, para manter o meu irmão sossegado, enquanto o Rei tenta fazer um filho a Catarina? E que quando ela der à luz e ele a coroar rainha, quando tiver a certeza de que o facto está consumado, me vai mandar prender por traição ou heresia, ou outra ofensa qualquer que se lembre de inventar, e que me pode também mandar matar?

O embaixador fica branco de medo com a minha sugestão.

- Só Deus sabe quanto eu rezo para que isso não aconteça. Mas não podemos ter a certeza - diz ele. - Na altura, pensei que ele queria um acordo definitivo e uma amizade definitiva convosco. Mas não temos meio de saber. Com este rei, ninguém consegue saber nada. Pode, de facto, ter pensado em amizade, naquela época, mas amanhã, é capaz de já ter mudado de ideias. É o que todos dizem dele. Que é temível e nada fiável, nunca sabem quem ele vai considerar como inimigo. Não podemos confiar nele.

- Ele é um pesadelo! - exclamo. - É capaz de fazer tudo o que lhe apetece, é capaz de fazer qualquer coisa que queira. É um perigo. É um terror.

O sóbrio embaixador não me corrige o exagero.

Concorda de um modo arrepiante.

- Ele é um terror - diz ele. - Este homem é o terror do seu povo. Graças a Deus que estais longe dele. Que Deus ajude a sua jovem esposa.

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Jane Bolena, Hampton Court, Junho de 1541

Apesar de parecer mais velho e cansado, o Rei, pelo menos, regressou à corte e vive mais uma vez como um rei, e não como um enfermo. O seu temperamento é o terror dos seus criados e as suas fúrias conseguem abalar a corte. O veneno que tem na perna e nos intestinos espalha-se por ele todo. O seu Conselho Privado anda sempre com medo de o ofender, pois, de manhã, diz uma coisa e, à noite, já é um defensor apaixonado da opinião contrária. Age como se já se não lembrasse do que fez de manhã e ninguém se atreve a recordar-lho. Quem quer que seja que discorde dele é desleal, e a acusação de traição paira no ar, como o cheiro da sua ferida. Esta já era uma corte de habituais vira-casacas, mas eu nunca tinha visto homens a mudarem de opinião com tanta velocidade. O Rei contradiz-se diariamente e eles concordam logo com ele, pense ele o que pensar.

A sua ordem de execução da Condessa de Salisbury abalou-nos a todos, mesmo àqueles mais empedernidos. Todas a conhecíamos, todas sentíamos orgulho em ser sua amiga quando ela era a melhor amiga e aliada da Rainha Catarina, para além de ser a última descendente da nossa família real de York.

Foi bastante fácil esquecê-la quando ela caiu em desgraça e ficou fora de vista, no campo. Foi mais difícil ignorar a sua presença silenciosa quando estava na Torre, e toda gente sabia que ela não tinha aposentos em condições, passando frio e fome, sofrendo com a sorte da sua família, pois até os seus pequenos netos desapareceram na Torre e nunca mais voltarão a sair de lá. Tornou-se insuportável quando o Rei a ataca sem aviso, a manda arrastar para fora da cama, para ser assassinada no cepo.

Dizem que ela fugiu ao carrasco, não fez um discurso dignificante e que se lançou aos pés dele. Não confessou nada, apenas insistiu na sua inocência. Caiu

no cadafalso e fugiu de gatas, e o carrasco teve de andar a correr atrás dela, dando-lhe golpes no pescoço, com o machado. Faz-me estremecer, ouvir uma coisa destas, fico

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doente até à alma, com a narrativa. Ela fugiu, de gatas, do mesmo cepo da vergonha que tinham lá colocado para Ana. Quantas cabeças de mulher é que ele lá vai colocar? Quem será a próxima?

Catarina consegue entender-se com este novo e irritante Henrique, melhor do que se poderia supor. Ela não tem qualquer interesse pela religião ou pelo poder e, por isso, ele não lhe fala da sua política e ela não sabe que as decisões matutinas dele já são completamente diferentes ao cair da noite. Por não ter qualquer ideia dentro da cabeça, ela nunca discute com ele. Ele trata-a como um animal de estimação, um cãozinho de colo, presente quando ele lhe quer fazer festas e enxotado quando o aborrece. Ela reage bem a esta situação e tem o bom senso de esconder os seus sentimentos por Culpepper sob um véu de esposa devotada. Além disso, que dono iria perguntar ao seu cãozinho de colo se sonha com uma vida melhor?

Ele agarra-a em frente da corte inteira, não sente qualquer embaraço pela maneira como a trata. Quando estão a jantar, diante de toda a gente, ele é capaz de se esticar todo para lhe apertar um seio, e fica a vê-la corar. Pede-lhe um beijo e, quando ela lhe oferece a face, ele suga-lhe a boca e podemos ver a sua mão dissimulada a acariciar o traseiro dela. Ela nunca se afasta dele, nunca dá um passo para trás. Quando olho com atenção consigo reparar que ela fica tensa, quando ele lhe toca; mas nunca faz nada que o possa enraivecer. Para uma rapariguinha de quinze anos, ela até se porta muito bem. Para uma rapariga completamente apaixonada por outro homem, porta-se muitíssimo bem.

Sejam quais forem os momentos que ela consegue roubar para estar com Culpepper, entre o jantar e o baile, à meia-noite está sempre na sua cama, com a belíssima camisa de noite meia desapertada, com a touca branca de dormir, que faz com que os seus olhos pareçam grandes e cheios de luz: um anjo ensonado, esperando pelo Rei. Se ele demora em vir para a cama dela, por vezes adormece.

Dorme como uma criança, tem o hábito de esfregar o rosto no travesseiro, antes de pousar a cabeça, é muito enternecedor. Ele vem de camisa de dormir, com o espesso roupão por cima dos ombros largos e a perna doente amarrada com uma

enorme ligadura, mas com a mancha do pus a aparecer sob o tecido branco. Na maior parte das noites, Thomas Culpepper vem ao lado dele, a pesada mão real pousada no ombro do rapaz, para se apoiar. Culpepper e Catarina não trocam sequer um olhar, quando ele vem trazer o velho esposo à cama dela. Ele fixa o olhar na cabeceira da cama, por trás dela, onde estão gravadas as iniciais do Rei, entrelaçadas

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com as dela, e ela baixa os olhos para os lençóis bordados a seda. Ele retira a capa dos gordos ombros do Rei, enquanto um criado de quarto levanta os lençóis. Dois pajens ajudam o Rei a subir para a cama e mantêm-no seguro, enquanto ele se tenta equilibrar em cima da perna saudável. O fedor da ferida supurada enche o quarto de dormir, mas Catarina nem pestaneja. O seu sorriso é firme e acolhedor e nem o grunhido do Rei, quando se deita na cama e eles lhe colocam cuidadosamente as pernas debaixo das cobertas, consegue abalar a sua compostura. Saímos todos, andando reverentemente de costas, e só quando acabamos por fechar a porta, deixando-os a sós, é que olho para Culpepper e vejo que o seu rosto está completamente franzido num esgar.

- Vós desejai-la - digo-lhe baixinho.

Ele olha para mim com a negação pronta nos lábios, mas depois encolhe os ombros e não diz nada.

- Ela deseja-vos - informo eu.

Ele agarra-me imediatamente pelo cotovelo e puxa-me, de maneira a ficarmos no vão da janela, quase embrulhados na espessa cortina.

- Ela diz-vos isso? Ela disse-o assim, com todas as letras?

- É verdade.

- Quando foi que ela vos disse tal coisa? O que foi que ela disse?

- Ela sai do quarto de cama quando o rei adormece, na maior parte das noites.

Eu tiro-lhe a touca, escovo-lhe o cabelo, por vezes está quase a chorar.

- Ele magoa-a? - pergunta ele chocado.

- Não - digo eu. - Ela chora de desejo. Noite após noite, ela esforça-se em cima dele, para lhe provocar prazer, mas o mais que pode fazer por si própria é ir ficando cada vez mais tensa, como a corda de um arco prestes a disparar.

O rosto dele é um autêntico quadro e, se eu não estivesse a cumprir o meu trabalho para com o meu senhor, o Duque, não conseguiria suster o riso.

- Ela chora de desejo?

- Até seria capaz de gritar - digo eu. - Algumas noites, dou-lhe um pó que faz dormir, outras vezes, bebe vinho quente com especiarias. Mas mesmo assim, em algumas noites, não consegue dormir durante horas. Anda pelo quarto a puxar as fitas da camisa e a dizer que está a arder.

- Ele sai sempre do quarto, depois de o Rei adormecer?

- Se voltardes daqui a uma hora, ela deverá estar a sair, nessa altura - sussurro-lhe.

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Ele hesita, por momentos.

- Não me atrevo - diz ele.

- Poderíeis ir ter com ela - tento-o eu - quando sai da cama dele sem satisfazer os seus desejos, sem mais ninguém no seu espírito, a não ser vós.

O seu rosto é o espelho do desejo.

- Ela quer-vos - recordo-lhe -, eu escovo-lhe o cabelo e ela deixa cair a cabeça para trás, murmurando: “Oh, Thomas”.

- Ela murmura o meu nome?

- Está louca por vós.

- Se eu fosse apanhado com ela, seria a morte dela e a minha - diz ele.

- Poderíeis apenas vir conversar com ela - digo eu -, acalmá-la. Seria um serviço que prestaríeis ao rei, mantê-la calma. Durante quanto tempo é que ela vai conseguir continuar assim? Com o rei a agarrá-la por aí, todas as noites, a despi-la, passando os olhos e depois as mãos por todo o seu corpo, tocando cada milímetro sem, no entanto, lhe dar um momento de alívio? Ela está muito tensa, digo-vos, senhor Culpepper, tensa como uma corda de alaúde demasiado esticada.

Ele engole em seco, ao imaginar a cena.

- Se eu pudesse apenas falar com ela...

- Voltai dentro de uma hora e eu deixar-vos-ei entrar - digo eu, quase a faltar-me o ar, como a ele. - Podereis conversar com ela nos seus aposentos privados, pois o Rei estará a dormir no quarto. Eu posso ficar aqui convosco, o tempo todo. Que queixa é que alguém poderá apresentar, se eu cá estiver, junto de vós, o tempo todo?

Estranhamente, ele não fica mais tranquilo com a minha amizade, afasta-se e olha para mim desconfiado.

- Porque haveríeis vós de me prestar tal serviço? - pergunta ele. - Que lucrais com isso?

- Eu sirvo a Rainha - digo rapidamente. - Faço tudo pela Rainha. Ela deseja a vossa amizade, quer ver-vos. A única coisa que eu estou a fazer é a garantir a segurança dela.

Ele deve estar louco de paixão para pensar que alguém consegue conferir segurança ao encontro deles.

- Daqui a uma hora - diz ele.

Fico à espera junto da lareira, enquanto o lume vai morrendo. Estou a fazer o que o Duque mandou, mas a minha mente está sempre a desviar-se para o meu marido, para Jorge e para Ana. Ele costumava ficar à espera que ela saísse da cama do Rei, como eu faço agora, como Culpepper vai fazer. Abano a cabeça, já tinha

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jurado que nunca mais iria pensar neles, tinha prometido a mim mesma afastar de vez qualquer pensamento sobre eles. Quase enlouqueci de tanto pensar neles, antes; agora, que já desapareceram, não tenho necessidade de me continuar a atormentar por sua causa.

Passado pouco tempo, a porta do quarto abre-se e Catarina sai. Há olheiras negras por baixo dos seus olhos e tem o rosto pálido.

- Lady Rochford - diz ela num sussurro quando me vê. - Haveis preparado o meu vinho?

Sou chamada de volta ao presente.

- Está pronto.

Sento-a na cadeira que está mais perto do fogo.

Ela coloca os pés em cima do guarda-fogo. Estremece.

- Ele dá-me nojo - diz ela inconsequentemente. - Meu Deus, tenho nojo de mim mesma.

- É o vosso dever.

- Não o consigo fazer - diz ela. Fecha os olhos e inclina a cabeça para trás.

Uma lágrima escapa-se das suas pálpebras fechadas e corre-lhe pela face pálida.

- Nem sequer pelas jóias. Não posso continuar a fazer isto.

Calo-me por momentos e depois sussurro-lhe:

- Ireis ter uma visita, esta noite.

Fica imediatamente alerta.

- Quem?

- Alguém que gostareis de receber - digo eu. - Alguém que haveis desejado durante meses, talvez até, anos. Quem é a pessoa que mais gostaríeis de ver?

A cor inundou-lhe as faces.

- Não podeis estar a falar ... - começa ela. - Ele vem aí?

- Thomas Culpepper.

Ela dá um pequeno suspiro, ao ouvir o nome dele, e levanta-se de um salto.

- Tenho de me vestir - diz ela. - Tendes de me pentear o cabelo.

- Não podeis - digo eu. - Deixai-me fechar a porta do quarto à chave.

- E fechar o rei lá dentro?

- É melhor isso, do que ele acorde e saia cá para fora. Poderemos sempre inventar uma desculpa.

- Quero o meu perfume.

- Deixai isso.

- Não o posso receber assim.

- Devo impedi-lo de entrar e dizer-lhe que se vá outra vez embora?

- Não!

Há uma ligeira batida na porta, tão suave que eu não a teria ouvido se não tivesse ouvidos de espia.

- Aí está ele.

- Não o deixeis entrar! - ela pousa a mão no meu braço. - É perigoso de mais.

Meu Deus, não quero que ele corra perigo.

- Ele quer apenas conversar - sossego-a. - Não pode haver mal nisso - sem ruído abro-lhe a porta. - Está tudo bem - digo para a sentinela. - O rei mandou chamar o senhor Culpepper.

Abro completamente a porta e Culpepper entra na sala.

Junto da lareira, Catarina levanta-se. O brilho do fogo ilumina o seu rosto e dá um tom dourado ao seu roupão. O cabelo, caído sobre a face, brilha com a luz e

os seus lábios entreabrem-se para murmurar o nome dele, fica corada. As fitas do roupão tremem sobre a sua garganta devido à pulsação agitada.

Culpepper dirige-se a ela como um homem que faz parte de um sonho.

Estende-lhe uma mão, ela agarra-a ele toca-lhe imediatamente na face com a outra mão. Segura -lhe no cabelo, a sua outra mão procura às cegas a cintura dela e aproximam-se um do outro, como se há meses estivessem a esperar pela oportunidade de se tocarem daquela maneira; e a verdade é que estiveram. As mãos dela dirigem-se para os ombros dele, ele puxa-a para si, sem dizerem uma palavra, ela oferece-lhe a boca e ele inclina a cabeça e aceita-a.

Dou a volta à chave, na porta exterior, para que a sentinela não possa entrar.

Depois volto para a porta do quarto, e fico lá encostada, atenta a qualquer ruído do Rei. Consigo ouvir o ruído forte da sua respiração e um grande arroto. À luz da lareira, Thomas Culpepper faz deslizar a mão pelo decote da camisa dela e reparo que a cabeça dela se inclina para trás, sem resistência, enquanto ele lhe toca nos seios; ela deixa-se acariciar e passa os dedos pelo cabelo castanho encaracolado dele, puxando o rosto dele contra o seu pescoço nu.

Não consigo afastar os olhos. É como eu sempre imaginei, quando pensava em Jorge e nela. Um prazer afiado como uma faca, um desejo doloroso. Ele senta-se na cadeira de costas altas e atrai-a para si. Pouco mais vejo do que as costas da cadeira e as suas silhuetas: escuras, contra a luz do fogo. Parece um bailado de desejo, em que ele lhe segura nas ancas e a faz sentar-se ao seu colo.

Reparo que ela lhe toca nos calções, enquanto ele puxa as fitas da 368

parte da frente da camisa dela. Estão quase a fazê-lo, comigo a observar. Não têm qualquer pudor; comigo, ali na mesma sala e com o marido dela do outro lado da porta; estão tão ansiosos e cheios de desejo que estão prestes a fazê-lo, ali, naquele momento, à minha frente.

Mal me atrevo a respirar; tenho de ver tudo. A respiração pesada do rei adormecido é equivalente ao calmo ofegar deles, movem-se ao mesmo tempo e depois vejo o brilho da sua coxa branca, quando ele lhe puxa a camisa para o lado; ouço-o gemer e percebo que ela se sentou sobre ele e que o recebeu. Ouço um pequeno suspiro de desejo, meu, excitada com o prazer roubado. A cadeira estala quando ela se agarra às costas e se move para trás e para a frente, em cima

dele; a respiração dela está a tornar-se mais rápida, ele penetra-a com força, ouço-a começar a gemer, à medida que o seu prazer aumenta e fico com medo de que acordem o Rei. Mas nada os faria parar agora, nem que ele acordasse e desatasse aos gritos, nem que quisesse abrir a porta ou viesse cá para fora; estão ligados pelo prazer, não se conseguem libertar. Sinto as minhas próprias pernas ceder e deixo-me escorregar até ao chão, fico de joelhos a observá-los, mas só consigo ver o rosto cheio de desejo de Jorge. Até que, subitamente, ela solta um gemido e deixa cair a cabeça sobre o ombro dele; na mesma altura, ele geme, agarra-a e depois, ambos param.

Parece que passa muito tempo até que ela solta um pequeno murmúrio e se move. Ele solta-a e ela levanta-se na cadeira, deixando a camisa de dormir descer e sorri-lhe, enquanto se encaminha para junto da lareira. Ele ergue-se da cadeira, amarra as fitas da sua roupa e depois estende os braços para ela, enlaça-a pelas costas e esfrega o nariz no pescoço e no cabelo dela. Como uma joven-zinha apaixonada pela primeira vez, ela volta-se nos braços dele e oferece-lhe a boca, beija-o, como se o adorasse, beija-o, como se aquele amor pudesse durar para sempre.

De manhã, vou ter com o meu senhor, o Duque. A corte está a preparar-se para ir caçar e a Rainha está a ser ajudada a subir para a sela por um dos amigos do Rei. O próprio Rei, montado no seu cavalo, está de bom humor, ri-se da nova brida do cavalo de Culpepper, de couro vermelho, e chama os seus cães. O

Duque não vai cavalgar hoje, está de pé, na entrada, observando os cavalos e os cães, ao ar fresco da manhã. Paro junto dele, quando me dirijo para o meu cavalo.

-Já aconteceu - digo eu. - A noite passada.

369


Ele acena com a cabeça, como se eu lhe estivesse a dizer quanto era a conta do ferreiro.

- Culpepper? - diz ele.

- Sim.

- E ela irá recebê-lo de novo?

- Todas as vezes que puder. Está apaixonada.

- Deveis mantê-la discreta - diz ele. - E avisai-me, no momento em que ela ficar grávida.

Concordo com a cabeça.

- E o meu assunto? - pergunto corajosamente.

- O vosso assunto? - repete ele, fingindo ter-se esquecido.

- O meu casamento... - digo eu. - Eu... eu preciso de me casar.

Ele ergue as sobrancelhas.

- É melhor estar casada do que a arder de desejo, minha cara Lady Rochford?

- pergunta ele. - Mas o vosso casamento com Jorge não evitou que isso acontecesse.

- A culpa não foi minha - digo muito depressa. - Foi por causa dela.

Ele sorri, não tem necessidade de perguntar de quem era a sombra que pairava sobre o meu casamento e que provocou o fogo que nos queimou a todos.

- Que notícias tendes sobre o meu casamento? - insisto eu.

- Estou a enviar cartas, neste momento - diz ele. - Quando me disserdes que a Rainha está grávida, confirmo esse assunto.

- E o cavalheiro? - pergunto com ansiedade. - Quem é?

- Monsignorle Comtek - pergunta ele. - Esperai e vereis, minha cara Lady Rochford. Mas deveis acreditar em mim: ele é saudável, jovem, belo e - deixai-me pensar - a não mais do que três, talvez quatro, passos do trono da França.

Será que isso vos satisfaz?

- Completamente - quase não consigo falar de emoção. - Não vos desiludirei, meu senhor.

370

Ana de Clèves, Palácio de Richmond, Junho de 1541

Recebi uma carta do camareiro-mor a convidar-me para acompanhar a viagem da corte, neste Verão. O rei deve ir para as suas terras do Norte, as que, recentemente, se revoltaram contra ele, devido ao ataque que fez à antiga religião. Ele vai lá para castigar e para recompensar, enviou o carrasco à frente e vai a seguir, em segurança, na retaguarda. Fico muito tempo sentada com a carta na mão.

Estou a tentar pesar os perigos. Se estiver na corte, com o Rei, se ele apreciar a minha companhia e me tiver no seu favor, então, garanto a minha segurança por mais um ano, talvez. Mas, por outro lado, os homens de rosto duro que fazem parte da sua corte irão reparar que ele voltou a gostar de mim e vão engendrar maneiras de me afastar dele. O tio de Catarina, o Duque de Norfolk, irá ficar ansioso para manter a sobrinha como favorita e não vai gostar das comparações que possam ser feitas entre ela e eu. De certeza que ele guardou os documentos que provam que eu fiz parte de uma conspiração papista que pretendia destruir o Rei. Pode até ter arranjado provas de coisas piores: adultério, bruxaria, heresia ou traição: quem sabe que testemunhos, solenemente ajuramentados, terá ele recolhido quando pensaram que me iriam condenar à morte? Não os deve ter deitado fora quando o Rei se divorciou de mim. De certeza que ainda os tem. Irá guardá-los para sempre, para o caso de um dia se querer ver livre de mim.

Mas, se eu não for; não estarei lá para me defender. Se alguém disser alguma coisa contra mim, se me ligarem aos conspiradores do Norte ou à pobre Margaret Pole, a Condessa, ao infeliz Thomas Cromwell, ou a alguma coisa que o meu irmão possa ter feito ou dito, não haverá ninguém para falar em minha defesa.

Guardo a carta no bolso do vestido e vou até à janela para olhar para os botões das macieiras que se agitam nos pomares, para lá dos jardins. Gosto desta região, gosto de ser dona de mim mesma, de estar no comando do meu próprio destino.

Só a ideia de ir para

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o fosso de ursos que é a corte inglesa e de ter de enfrentar o velho terror

monstruoso que é o Rei, já é demasiado para mim. Parece-me, e queira Deus que eu esteja certa, que vou correr o risco e que não irei em viagem com o Rei. Vou ficar aqui e correr o risco de que possam dizer mal de mim. Qualquer coisa é melhor do que viajar com ele, ver aqueles olhos de leitão a olharem para mim e acabar por perceber que, por causa de uma qualquer atitude - que eu nem sequer tenha a noção de ter tomado -, despertei a sua inimizade e, por isso, fiquei em perigo.

Ele é um perigo, é um perigo, um perigo para todas as pessoas que estiverem perto dele. Vou ficar em Richmond e esperar que o perigo que Henrique constitui me passe ao lado e que possa continuar a viver aqui, em paz e segurança.

Ficarei livre da manada assustada que constitui a corte, estarei só, como um gerifalte pairando solitário no silêncio dos céus. Tenho motivos para ter receio, mas não vou viver cheia de medo. Vou arriscar. Vou ter este Verão para mim mesma. Jane Bolena, Hampton Court, Julho de 1541

O Duque veio visitar a sobrinha, antes do início da viagem de Verão, e percebe rapidamente que não poderia ter escolhido pior altura. Os aposentos da Rainha estão num caos. Nem os criados mais experimentados, a irmã da Rainha ou a sua madrasta conseguem que as ordens dela façam sentido, pois Catarina jura que não partirá sem os seus vestidos novos, depois, lembra-se de que já os mandou embalar e seguir à frente, exige ver a sua caixa das jóias, acusa uma criada de lhe ter roubado um anel de prata, mas depois volta a encontrá-lo, quase rompe em pranto com a dúvida de levar, ou não, as suas martas-zibelinas para York e, por fim, atira-se para cima da cama, com o rosto escondido, jurando que não vai, uma vez que o Rei não lhe presta quase atenção nenhuma e não sabe que graça poderá ter a ida para York, quando a sua vida quase não vale a pena ser vivida.

- Que diabo se passa aqui? - pergunta-me o Duque com ar zangado, como se a culpa fosse minha.

- Tem sido assim durante todo o dia - digo cansada. - Mas ontem ainda foi pior.

- Por que razão é que as criadas dela não tomam conta deste assunto?

- Porque ela está sempre a interrompê-las, quer uma coisa, depois outra. Já por duas vezes que terminámos de embalar e de amarrar a sua mala com os vestidos,

pronta para levar para a carroça. A encarregada do guarda-roupa não tem culpa, é Catarina quem tira outra vez tudo cá para fora, à procura de um par de luvas sem as quais acha que não pode passar.

- É impossível que os aposentos da Rainha possam estar numa desordem destas - exclama ele e, pela primeira vez, vejo-o realmente perturbado. - Estes são os aposentos da Rainha - repete ele. - Deveriam ser aprazíveis. Ela deve viver com dignidade. A Rainha Catarina...

- Ela nasceu e foi criada como Rainha, mas estes são os aposentos de uma rapariguinha - digo eu. - E de uma rapariguinha 373

mimada e egoísta. Ela não se comporta como uma Rainha, comporta-se como uma menina. E se lhe apetecer virar tudo de pernas para o ar por causa de uma fita, ela fá-lo, e ninguém é capaz de lhe dizer para se portar como deve ser.

- Vós devíeis fazer isso.

Ergo as sobrancelhas.

- Vossa Graça, ela é a Rainha. Vós haveis transformado esta criança em Rainha da Inglaterra. Entre a educação que recebeu na vossa casa e a indulgência do Rei, ninguém lhe ensinou a ter qualquer espécie de bom senso. Vou esperar que ela saia para ir jantar e então mandarei colocar as coisas nos devidos lugares e amanhã, já tudo estará esquecido e ela partirá em viagem, tudo o que ela precisar estará embalado e, se ela se esquecer de alguma coisa, poderá comprar tudo novo.

Ele encolhe os ombros e vira-se para sair da sala.

- De qualquer modo, é convosco que queria falar - diz ele. - Vinde para o salão. Não consigo suportar o barulho destas mulheres.

Pega-me na mão e leva-me para fora da sala. A sentinela está de pé, a um dos lados da porta, e nós afastamo-nos para ele não ouvir.

- Pelo menos, ela é discreta com Culpepper - diz cruamente. - Ninguém faz a mínima ideia de nada. Quantas vezes é que ele já se deitou com ela?

- Meia dúzia de vezes - digo eu. - E estou feliz por não haver conversas sobre ela, na corte. Mas aqui nos seus aposentos, pelo menos duas das suas damas sabem que ela o ama. Está sempre à espera de o ver, quando sai, e o seu rosto ilumina-se quando isso acontece. A semana passada, desapareceu pelo menos uma vez. Mas o Rei vem para o quarto dela todas as noites, e durante o dia há sempre alguém com ela. Ninguém pode provar nada contra eles.

- Tereis de arranjar forma de eles se encontrarem, durante a viagem - diz ele. -

Ao viajar de uma casa para outra, tem de haver oportunidade. Não é bom para nós que eles se encontrem apenas algumas vezes. Precisamos de um filho desta rapariga e ela terá de ser acasalada até estar prenhe.

Ergo as sobrancelhas perante a grosseria dele, mas aceno com a cabeça, concordando.

- Eu vou ajudá-la - digo eu. - Ela não tem jeito nenhum para fazer planos.

- Deixai-a fazer planos como uma cadela com cio - diz ele. - Desde que ele se deite com ela.

374


- E o meu assunto? - recordo-lhe. - Haveis dito que já havíeis pensado num marido para mim.

Ele sorriu.

- Escrevi ao conde francês. Que tal vos parece serdes senhora condessa?

- Oh - suspiro eu. - E ele já respondeu?

- Ele mostrou interesse. Teremos de pensar no vosso dote e num acordo para os vossos filhos. Mas posso prometer-vos que, se conseguirdes que aquela rapariga fique grávida até ao fim do Verão, beijarei a vossa mão de condessa, no Inverno.

Estou quase com falta de ar, de tanta ansiedade.

- E ele ainda é jovem?

- Tem mais ou menos a vossa idade e uma sólida fortuna. Mas não vai exigir que vivais na França, já lhe perguntei. Não se importa que fiqueis como dama de companhia da rainha, só quer que tenhais uma casa na França e outra na Inglaterra.

- Ele tem um castelo?

- Tem mesmo um palácio.

-Já alguma vez me encontrei com ele?Já o conheço? Oh, quem é ele?

Ele dá-me uma palmadinha na mão.

- Deveis ser paciente, minha mais útil de todas as raparigas Bolena. Fazei o vosso trabalho e tereis a recompensa. Nós temos um acordo, não é verdade?

- Sim - digo eu. - E eu cumprirei a minha parte do acordo.

Olho para ele à espera.

- E eu a minha, obviamente.

375

Catarina, Castelo de Lincoln, Agosto de 1541

Estava com medo de que fosse tudo muito aborrecido, andar a viajar pelo país enquanto as pessoas se viram para nos ver e nos oferecem Provas de Lealdade em cada esquina de mercado e o Rei se senta, com toda a pompa, em todas as câmaras municipais do país. E eu tenho de cerrar os dentes para evitar bocejar enquanto os gordos vereadores, com os seus trajes de cerimónia, se dirigem a ele em latim - suponho, pelo menos, que é latim - Thomas é bastante mauzinho e jura que é etíope, porque nos perdemos e estamos na África - mas na verdade, até tem sido bastante divertido. Os discursos são realmente muito monótonos, mas mal acabam, há uma representação ou um baile, qualquer divertimento, um piquenique, ou outra coisa parecida e torna-se muito mais divertido ser uma rainha em viagem do que ser rainha na corte, porque ao fim de poucos dias, mudamo-nos para outro castelo ou casa e não tenho tempo para me aborrecer.

Aqui, em Lincoln, o Rei ordenou-me e às minhas damas que nos vestíssemos de verde Lincoln, e quando entrámos na cidade, quase parecia a cena de uma representação. O próprio Rei estava vestido de verde-escuro, tinha um arco e uma aljava com setas dependurados no ombro e trazia um alegre chapéu adornado com uma pluma.

- Ele é o Robin dos Bosques ou a Floresta de Sherwood? - murmurou Thomas Culpepper ao meu ouvido e eu tive de tapar a boca com as luvas, para disfarçar o riso.

Para onde quer que nós vamos, lá está Tom Culpepper, a chamar a minha atenção e a fazer-me rir, por isso, mesmo o mais enfadonho juramento de fidelidade passa num instante, quando o sinto olhar para mim. E o Rei está muito melhor, tanto de saúde como de feitio, o que é um alívio para todos nós. Ficou muito irritado com a rebelião no Norte, mas parece que ela já foi dominada e, é claro, mandou decapitar a Condessa de Salisbury, algo que me preocupou muito, na altura, mas agora, todas as pessoas maldosas foram derrotadas ou mortas, e nós podemos dormir sem problemas, nas nossas camas, segundo ele diz. Ele fez uma aliança com o imperador, contra o rei da França, que nos irá proteger da França, diz-me ele - eles agora são nossos inimigos, voilá - e isso também é bom.

Eu não devia desperdiçar o meu tempo a lamentar a condessa porque, afinal, ela já era muito velha, tão velha como a minha avó. Mas o melhor de tudo é que, quando chegarmos a York, nos vamos encontrar com a corte escocesa e com o sobrinho do Rei, o Rei James da Escócia. O Rei está ansioso para que isso aconteça, e eu também estou, porque vai haver um grande encontro dos dois países e justas e torneios, e os cavaleiros ingleses de certeza que vão ganhar, pois temos os homens mais valentes e os melhores lutadores. Tom Culpepper vai usar a sua nova cota de armas e eu serei a rainha do torneio, no meu camarote com as cortinas novas, e quase não consigo esperar para ver.

Já treinei tudo. Já desci as escadas que conduzem ao camarote, e aprendi a olhar em volta, a sorrir. Já treinei o modo de me sentar no camarote e a fazer uma graciosa cara de rainha, a que eu porei, quando as pessoas me aplaudirem. E

também treinei a maneira como me devo inclinar, por cima do camarote, para entregar os prémios.

- Já agora, poderíeis também aprender a respirar - diz-me rudemente Joan

Bulmer.

- Gosto de fazer bem as coisas - digo eu. - Todos irão estar a olhar para mim.

Gosto de fazer tudo como deve ser.

Vão estar mais de cem cavaleiros ingleses no torneio e creio que todos eles me pediram para levar um favor meu. Thomas Culpepper aproveitou a oportunidade de vir à minha sala de visitas do Castelo de Lincoln para se ajoelhar diante de mim e perguntar se poderia ser o meu cavaleiro.

- Foi o Rei que vos ordenou que mo pedísseis? - pergunto eu, sabendo perfeitamente que não.

Ele tem a delicadeza de olhar para baixo, como se estivesse envergonhado.

- É uma decisão minha, vinda do meu coração - diz ele.

- Não sois sempre assim tão humilde - digo eu. Estou a pensar num beijo muito longo e nas suas mãos a agarrarem as minhas nádegas como se me quisesse erguer para me pousar em cima do seu membro, ali mesmo, naquele momento, em plena galeria, antes de partirmos de Hampton Court.

Ele ergue os olhos para mim, um olhar rápido e carregado, e eu percebo que ele está a pensar no mesmo.

377


- Por vezes, atrevo-me a ter esperança.

- Portais-vos realmente como um homem esperançado - digo eu.

Ele dá uma pequena gargalhada e baixa a cabeça. Encosto as luvas à minha boca, para as morder e evitar rir-me alto.

- Eu sei quem é a minha ama e a minha Rainha - diz ele com ar sério. - O meu coração começa a bater mais depressa quando ela passa por mim.

- Oh, Thomas - murmuro.

Isto é tão delicioso que eu gostaria que continuasse durante todo o dia. Uma das minhas damas vem em direcção a nós, e parece-me que nos vai interromper, mas Lady Rochford diz-lhe qualquer coisa e ela distrai-se e pára.

- Tenho de andar sempre para a frente - digo eu. - Nunca posso deter-me pelo tempo que gostaria.

- Eu sei - diz ele, e por baixo do tom suave e cortejador, há um lamento sincero. Consigo ouvi-lo. - Eu sei. Mas tenho de estar convosco esta noite, de vos tocar.

Não me atrevo, de facto, a responder a uma coisa daquelas, é demasiado emocionante e, embora haja apenas algumas damas de companhia à nossa volta, percebo que o meu desejo por ele deve estar a incendiar o meu rosto.

- Perguntai a Jane Bolena - digo num murmúrio. - Ela encontrará uma forma.

Em voz alta, digo-lhe: - De qualquer modo, não vos posso dar o meu favor. Terei de perguntar ao Rei quem é o favorito dele.

- Podeis ficar com o vosso favor se me dirigirdes um sorriso, quando eu sair para o torneio - diz ele. - Dizem que os escoceses são lutadores formidáveis, homens grandes com cavalos fortes. Dizei que ficareis a observar-me, com esperança de que eu não caia sob uma lança escocesa.

Isto é tão pungente que fico quase a chorar.

- Eu observo-vos sempre. Vós sabeis que o faço. Sempre estive atenta às vossas lutas e sempre rezei pela vossa segurança.

- E eu olho para vós - diz ele tão baixinho que quase não o consigo ouvir. -

Olho para vós com um desejo tão grande, Catarina, meu amor.

Reparo que estão todas a olhar para mim. Levanto-me, um pouco desequilibrada, e ele faz o mesmo.

- Podeis ir andar a cavalo comigo, amanhã - digo, como se não me importasse muito que ele fosse ou não. - Vamos caçar de manhã, antes da missa.

378


Ele faz uma vénia e afasta-se, de costas, mas quando se vira, eu dou um pequeno grito de espanto, pois ali, na entrada, tal e qual um fantasma, tão parecido com um fantasma que, por segundos, quase penso que é um fantasma, está Francis Dereham. O meu Francis, o meu primeiro amor, que aparece à minha porta com uma elegante capa, um bom casaco e um belo chapéu, como se estivesse muito bem na vida, e belo como era naqueles tempos em que brincávamos aos maridos e às esposas, na minha cama, em Lambeth.

- Senhor Dereham - digo em voz alta, para que ele não se engane e perceba que já não nos podemos tratar pelo primeiro nome.

Ele percebe perfeitamente, uma vez que apoia um joelho no chão.

- Vossa Graça - diz ele. Tem uma carta na mão e entrega-ma. - A vossa respeitável avó, a Duquesa, pede-me que venha ter convosco para vos entregar esta carta.

Faço um sinal ao meu pajem para que Francis veja que eu nem sequer dou três passos para ir recolher as minhas próprias cartas. O rapaz pega nela das mãos de Francis e entrega-ma, pois sou demasiado importante para me inclinar. Sem olhar para ele, consigo aperceber-me de Thomas Culpepper, rígido como uma garça, parado ali a olhar para Francis.

Abro a carta da Duquesa. É um monte de garatujas, pois ela mal sabe escrever e, como eu mal sei ler, somos óptimas correspondentes. Olho em volta à procura de Lady Rochford e ela vem imediatamente para o meu lado.

- O que é que ela diz? - passo-lhe a carta.

Ela lê-a rapidamente e, dado que estou a observar o rosto dela e não a folha, reparo na expressão que atravessa os seus olhos. É como se ela estivesse a jogar às cartas e tivesse acabado de ver que uma boa sequência tinha ido parar às mãos do seu parceiro, quase parece divertida.

- Ela escreve para vos relembrar deste cavalheiro, Francis Dereham, que serviu na sua casa quando vós vivíeis lá.

Sou obrigada a admirar a máscara do seu rosto, absolutamente inexpressiva,

dado que ela sabia o que Francis representava para mim e eu para ele, pois eu tinha-lhe contado tudo sobre ele, quando era apenas uma aia e ela uma bastante mais importante dama de companhia da Rainha Ana. E agora que penso no assunto, e uma vez que metade das minhas damas de companhia também eram minhas amigas e companheiras daqueles tempos, todas sabem que Francis e 379

eu, falando um com o outro com tanta cortesia, costumávamos dormir nus, na mesma cama, todas as noites em que ele conseguia entrar furtivamente nos aposentos das raparigas. Mary Tylney dá uma risadinha abafada e eu lanço-lhe um olhar duro que lhe diz que deve manter aquela estúpida boca bem fechada.

Joan Bulmer, que andou com ele antes de mim, está completamente transfigurada.

- Oh, sim - digo eu, apanhando a deixa de Lady Rochford e volto-me para Francis a sorrir, como se fôssemos antigos conhecidos. Consigo aperceber-me dos olhos de Thomas Culpepper a dardejar sobre mim e sobre as outras pessoas à nossa volta e parece-me bem que vou ter de lhe explicar tudo mais tarde, e que ele não vai gostar nada.

- Ela recomenda-o para o vosso serviço e pede-vos para o aceitardes como vosso secretário particular.

- Sim - digo eu, não consigo pensar no que fazer. - Certamente.

Viro-me para Francis.

- A Senhora Minha Avó recomenda-vos - digo eu. Na realidade não percebo que interesse é que ela possa ter em o colocar dentro da minha casa. E não entendo por que motivo o quer pôr numa posição tão próxima de mim, quando foi ela mesma que me puxou as orelhas e me chamou prostituta lasciva, por o ter deixado entrar no quarto quando ainda era pouco mais do que uma menina que vivia na sua casa. - Deveis-lhe isso.

- Sim, fico em dívida para com ela.

Inclino-me para Lady Rochford.

- Nomeai-o - diz ela rapidamente ao meu ouvido. - A vossa avó diz-vos que o

façais.

- Nesse caso, para satisfazer a vontade da minha avó, fico feliz por vos poder dar as boas-vindas à minha corte - concluo.

Ele levanta-se. É um homem tão bonito. Na verdade, não consigo culpar-me por o ter amado quando era uma menina. Ele vira a cabeça e sorri-me, como se agora se sentisse envergonhado na minha presença.

- Agradeço-vos, Vossa Graça - diz ele. - Servir-vos-ei fielmente. De alma e coração.

Dou-lhe a mão a beijar e, quando ele se aproxima, consigo sentir o cheiro da sua pele, aquele familiar cheiro sensual que, em tempos, conhecia tão bem. Era o cheiro do meu primeiro amado, aquele que representava tudo para mim. A razão pela qual eu escondia a sua camisa debaixo do meu travesseiro, para poder enterrar nela o meu rosto quando me deitava, para sonhar com ele. Naquela altura

380

ra, adorava Francis Dereham e só gostaria que Deus não me tivesse obrigado a encontrá-lo outra vez, agora.

Ele inclina-se sobre a minha mão e o toque dos seus lábios na ponta dos meus dedos é tão suave e tão avassalador como o era, lembro-me bem, na minha boca.

Inclino-me para a frente.

- Tereis de ser muito discreto, ao trabalhardes para mim - digo eu. - Agora sou a rainha e não pode haver motivo para que falem de mim, quer sobre o momento presente, quer sobre o passado.

- Estou ao vosso lado, de alma e coração - diz ele, e sinto nele aquela desleal, comprometedora e irresistível chamazinha de desejo. Ele ainda me ama, ainda me deve amar, pois se não fosse assim, por que razão quereria ficar ao meu serviço? E, embora nos tenhamos afastado como inimigos, ainda recordo o seu toque e a enorme excitação dos seus beijos arrebatadores, o roçar das suas coxas nuas entre as minhas, da primeira vez que veio para a minha cama e da insistente pressão do seu desejo, a que eu nunca resistia.

- Tende cautela com as palavras que disserdes - digo eu, e ele sorri, como se soubesse tão bem quanto eu, aquilo em que estou a pensar.

- Tende cautela com o que recordais - diz ele.

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Jane Bolena, Castelo de Pontefract, Agosto de 1541

Os dois jovens, e mais alguns, todos com boas razões para acreditarem que são os favoritos da Rainha, andam todo o dia em volta dela e a corte anda em grande tensão, como uma casa de prostitutas antes de uma rixa. A Rainha, entusiasmada com a atenção que recebe de todos os lados, nas caçadas, ao pequeno-almoço, nas representações, parece uma criança que ficou acordada até muito tarde: febril de tanta agitação. Por um lado, tem Thomas Culpepper, a segurar-lhe na mão quando desmonta do cavalo, sempre ao seu lado quando há danças, murmurando-lhe ao ouvido quando ela está a jogar às cartas, o primeiro a cumprimentá-la pela manhã e o último a deixar os aposentos dela, à noite. Do outro, tem o jovem Dereham, nomeado para estar às suas ordens, sentado ao seu lado direito na sua pequena secretária, como se ela alguma vez ditasse alguma carta para alguém, e que está continuamente a sussurrar-lhe qualquer coisa, aproximando-se dela para lhe dar conselhos, sempre presente onde não faz falta nenhuma. E depois, quantos mais? Uma dúzia? Vinte? Nem mesmo Ana Bolena, nos seus tempos de maior capricho, tinha tantos jovens a cirandar à sua volta, como cães esfomeados à porta do talho. Mas Ana, apesar de gostar muito de namoriscar, nunca deu a ideia de ser uma rapariga que oferecesse os seus favores a troco de um sorriso, ou que se deixasse seduzir por uma canção, um poema ou uma palavra. A corte inteira começa a ver que a alegria da Rainha, que tornou o Rei tão feliz, não é a alegria de uma rapariga inocente que ele tão piamente acredita que o adora só a ele, é a alegria de uma aventureira ambiciosa que só se sente bem constantemente rodeada de atenção masculina.

É claro que acabam por surgir problemas, quase que há uma bulha. Um dos homens mais velhos da corte diz a Dereham que ele se devia ter levantado da mesa de jantar e ter ido embora, uma vez que não faz parte do conselho da Rainha e só eles podem ficar, para beberem o seu vinho. Dereham, que tem a língua solta, responde que já fazia parte do conselho da Rainha muito antes de nós a

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conhecermos e que continuará a ser seu amigo, até muito depois de nós todos sermos dispensados. Obviamente: confusão e uma luta. O receio é que isso possa chegar aos ouvidos do Rei e, assim, Dereham é chamado aos aposentos da rainha e ela recebe-o, comigo presente.

- Não posso aceitar que venhais causar problemas dentro da minha casa - diz-lhe ela com dureza.

Ele faz uma vénia mas os seus olhos estão brilhantes de confiança.

- Não tinha intenção de criar confusão, sou vosso: de alma e coração.

- Fica-vos muito bem dizer essas coisas - diz ela irritada. - Mas eu não quero que as pessoas comecem a perguntar o que é que fui para vós, e vós para mim.

- Estávamos apaixonados - diz ele, com segurança.

- Isso nunca poderá ser dito - interrompo eu. - Ela é a Rainha. A sua vida passada deve ser considerada como não tendo existido.

Ele olha para ela, ignorando-me.

- Nunca o negarei.

- Acabou - diz ela com determinação e eu sinto-me orgulhosa dela. - E não admitirei conversinhas sobre o passado, Francis. Não me posso dar ao luxo de que as pessoas falem sobre mim. Terei de vos mandar embora, se não conseguirdes ficar calado.

Ele fica calado por alguns momentos.

- Nós éramos marido e mulher, diante de Deus - diz ele calmamente. - Não o podeis negar.

Ela faz um pequeno gesto com a mão.

- Não sei - diz ela desanimada. - De qualquer forma, agora já acabou. Só podereis ter lugar na corte, se nunca falardes nesse assunto. Não é verdade Lady

Rochford?

- Conseguireis manter a boca fechada? - pergunto eu. - Esquecei essa palermice do ‘nunca o negarei’. Podeis ficar, se mantiverdes a boca fechada. Se vos portardes como um gabarola, tereis de ir embora.

Ele olha para mim sem qualquer simpatia, não há qualquer afinidade entre nós.

- Eu consigo manter a minha boca fechada - diz ele.

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Ana, Palácio de Richmond, Setembro de 1541

Tem sido um Verão agradável para mim, o primeiro na Inglaterra como mulher livre. As quintas que pertencem ao palácio estão a produzir bem, e eu fui passear a cavalo e vi que as searas estão a ficar maduras e que, nos pomares, as árvores estão a ficar carregadas de fruta. É uma região rica, já construímos grandes medas de feno, para alimentar os animais durante o Inverno e nos celeiros, dizem-me, iremos amontoar grandes quantidades de trigo, que irá para o moleiro, para fazer farinha. Se o país fosse governado por um homem que quisesse paz, e que dividisse a riqueza, seria uma terra pacífica e próspera.

O ódio que o Rei sente, tanto pelos Papistas como pelos Protestantes, azeda a vida deste país. Na igreja, quando erguem a Hóstia consagrada, até as crianças mais pequenas são ensinadas a manter os olhos postos nela, inclinam a cabeça e benzem-se maquinalmente, e são ameaçadas pelos pais de que, se não fizerem o que o Rei ordena, serão levadas para longe e queimadas. Não há qualquer tipo de conhecimento sobre a santidade do acto entre as pessoas pobres, apenas sabem que agora é essa a vontade do Rei e que devem erguer ou baixar a cabeça e benzer-se, exactamente como antes tinham de ouvir a missa em inglês, não em latim, que havia uma Bíblia colocada na igreja para que todos lessem, e que agora ela voltou a ser retirada. O Rei dirige a igreja do mesmo modo que cobra impostos cada vez mais injustos: porque pode, porque ninguém se pode atrever a tentar impedi-lo, porque agora até é considerado traição perguntar-lhe porquê.

Há rumores abafados de que a revolta do Norte foi comandada por homens valentes, homens corajosos que acreditavam que podiam lutar pelo seu Deus, contra o seu rei. Mas os homens velhos da pequena cidade dizem que eles agora

estão todos mortos e que a viagem do Rei, este ano, em direcção ao Norte, tem como objectivo passar por cima dos túmulos deles e insultar as suas viúvas.

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Eu não interfiro em nada do que as pessoas possam dizer. Se alguma coisa que possa ser considerada traição chega aos meus ouvidos, afasto-me rapidamente e tenho o cuidado de dizer a uma das minhas damas, ou a alguém da minha casa, que ouvi qualquer coisa, mas que não percebi nada do que foi dito. Escondo-me atrás da minha estupidez. Espero que seja essa a minha salvação. Faço uma cara de sonsa que não entende nada, e espero que a minha reputação de fealdade e de falta de interesse por tudo me salve. Em geral, as pessoas não dizem nada à minha frente, mas tratam-me com uma espécie de bondade confusa, como se eu tivesse sobrevivido a uma doença terrível e devesse ser tratada com cuidado. De certo modo, foi isso que aconteceu. Fui a primeira mulher a sobreviver ao casamento com o Rei. É um feito mais notável do que sobreviver à peste. A peste entra por uma cidade dentro e, num Verão dos piores, nas áreas mais pobres, talvez morra uma, em cada dez mulheres. Mas, de entre as quatro esposas do Rei, apenas uma conseguiu emergir com a sua saúde e a sua fortuna intactas: eu. Mas, durante quanto tempo mais?

O espião do Dr. Harst conta que a saúde do Rei está bastante melhor e que o seu mau humor se dissipou, com a viagem pelo Norte. O homem não recebeu ordens para acompanhar a corte, ficou para trás para limpar os aposentos do Rei, na doce calma do palácio de Hampton Court. Por isso, não consigo saber como está a decorrer a viagem. Recebi uma breve carta de Lady Rochford, que me diz que o Rei está melhor de saúde e que ele e Catarina estão felizes. Se aquela pobre criança não conceber um filho em breve, não me parece que vá continuar a sentir-se feliz por muito mais tempo.

Também escrevo à Princesa Maria. Ela está bastante aliviada por a hipótese do seu casamento com um príncipe francês ter sido completamente posta de lado, uma vez que a Espanha e a França vão entrar em guerra e que o Rei Henrique se vai aliar à Espanha. O maior receio dele é uma invasão dos Franceses e uma parte dos odiados impostos está a ser gasta na construção de fortes, ao longo da costa sul. Segundo o ponto de vista da Princesa Maria, só uma coisa importa: é que, tendo o seu pai ideias de se aliar à Espanha, ela não se veja obrigada a casar

com um príncipe francês. Ela tem tanta consideração pela sua mãe espanhola, que eu julgo que ela preferiria viver e morrer virgem do que casar com um francês. Ela tem esperança de que o Rei me autorize a visitá-la, antes do Outono.

Quando o Rei regressar da viagem, vou escrever-lhe e perguntar-lhe se posso convidar a Princesa Maria a ficar comigo. Gostaria de passar 385


algum tempo com ela. Ela ri-se de mim e diz que somos as solteironas reais, e somos mesmo. Duas mulheres que não servem para nada. Ninguém sabe se eu sou duquesa, rainha ou outra coisa qualquer. Ninguém sabe se ela é uma princesa ou uma bastarda. As solteironas reais. O que irá ser de nós, pergunto-me.

Catarina, King’s Manor, York, Setembro de 1541

Bem, é como se eu o tivesse podido prever, um grande desapontamento. O Rei James da Escócia não vem, e já não vai haver torneios nem cortes rivais, e eu sou apenas a rainha da pequena corte inglesa e não acontece nada de especial.

Não irei ver o meu querido Thomas competir no torneio e ele não me vai ver no camarote real, com as minhas cortinas novas. O Rei jura que James tem demasiado medo para aparecer tão ao sul da fronteira e, se isso for verdade, então só pode significar que ele não confia na palavra honrada do próprio Rei, que lhe prometeu uma trégua. E, embora ninguém se atreva a dizê-lo, ele tem bastante razão para ser cauteloso. Porque o Rei prometeu tréguas aos chefes da revolta do Norte, bem como a sua amizade e todo o tipo de mudanças que eles pretendiam, jurando-o sob a sua palavra de rei; e depois, quando confiaram nele, apanhou-os e mandou-os enforcar. As suas cabeças ainda estão espetadas nas muralhas e, devo dizer, é algo muito desagradável. Eu comento com Henrique que talvez James tenha receio de também ser enforcado e ele desata a rir e diz-me que eu sou uma gatinha esperta e que James bem pode ter medo. Mas na verdade, não me parece muito bom que as pessoas não possam confiar em nós.

Se James tivesse podido confiar na palavra do rei, teria vindo e todos nos teríamos divertido bastante.

Esta casa também é muito boa, recém-construída para nós, mas não consigo deixar de reparar que foi uma bela abadia, antes de se tornar na Mansão do Rei, e atrevo-me a pensar que, uma vez que os habitantes de York são grandes simpatizantes da antiga fé (se é que não são mesmo papistas, em segredo), se

devem ressentir bastante por nos verem a dançar nos lugares onde os monges costumavam rezar. É claro que eu não digo nada disto, não sou completamente idiota. Mas posso imaginar como me sentiria, se tivesse vindo aqui, em busca de ajuda e oração, e encontrasse o lugar completamente mudado com um rei gordo e ganancioso, sentado lá no meio.

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Em todo o caso, o mais importante é que o Rei esteja feliz, e até eu, embora possa parecer estranho, não estou tão preocupada como seria natural, por não poder assistir ao torneio. Estou um pouco desapontada com a ausência de belos homens escoceses e por estar tão longe dos ourives de Londres; mas não me posso preocupar muito com essas coisas. Surpreendentemente, isso até nem me parece assim tão importante. Porque estou apaixonada. Pela primeira vez na minha vida, apaixonei-me, total e completamente, e eu mesma tenho dificuldade em acreditar numa coisa destas.

Thomas Culpepper é o meu amado, é ele que o meu coração deseja, o único homem a quem amei, o único que sempre amarei. Pertenço-lhe e ele pertence-me, de alma e coração. Todas as queixas que eu tinha, por ter de me deitar com um homem com idade para ser meu pai, estão esquecidas. Cumpro a minha obrigação para com o Rei como se fosse uma espécie de imposto, uma multa que tenho de pagar: e então, na altura em que ele adormece, fico livre para me encontrar com o meu amado. Ainda melhor do que isso, e muito menos arriscado, é quando o Rei está tão cansado por causa das celebrações desta viagem que, por diversas vezes, nem sequer vem ao meu quarto. Espero até a corte ficar sossegada e então, Lady Rochford desce as escadas às escondidas, ou abre a porta lateral, destranca uma porta secreta que dá para a galeria e lá aparece o meu Thomas, para podermos ter o nosso momento juntos.

Temos de ser cautelosos, temos de ter muito cuidado, como se as nossas vidas dependessem disso. Mas, de cada vez que mudamos para um sítio diferente, Lady Rochford descobre uma passagem privada para os meus aposentos e diz a Thomas o que deve fazer. Sem falhar, ele vem ter comigo, ama-me tanto como eu o amo a ele. Vamos para o meu quarto e Lady Rochford fica a guardar a porta, por nós, e fico nos braços dele toda a noite, beijando-nos e sussurrando, a fazer juras de amor que durarão para sempre. De madrugada, ela arranha

levemente a porta, eu levanto-me, beijamo-nos e ele desaparece, como se fosse um fantasma. Ninguém o vê. Ninguém o vê entrar, ninguém o vê sair, é um segredo maravilhoso.

É óbvio que as raparigas falam, esta corte não obedece muito às regras. Não acredito que elas se atrevessem a dizer tais coisas e a fazer escândalo, se a Rainha Ana ainda estivesse no trono. Mas porque sou eu e, na sua maior parte, são mais velhas do que eu e muitas vieram dos velhos tempos de Lambeth, não me têm qualquer respeito, riem-se de mim e gozam comigo acerca de Francis Dereham. E tenho medo que elas comecem a reparar na hora a que me vou deitar, que notem que a minha única companhia é Lady 388

Rochford, que a porta do meu quarto está fechada à chave e que ninguém lá pode entrar.

- Elas não sabem de nada - tranquiliza-me ela. - E, de qualquer forma, não iriam contar a ninguém.

- Elas não deviam sequer tagarelar - digo eu. - Podeis dizer-lhes para manterem as suas línguas afastadas dos meus assuntos?

- Como é que o posso fazer, quando vós mesma vos rides com Mary Tylney, por causa de Francis Dereham?

- Bem, mas nunca me rio de Thomas - digo eu. - Nunca menciono o nome dele. Nem sequer pronuncio o nome dele na confissão. Nem sequer pronuncio o seu nome para mim mesma.

- Fazeis bem - diz ela. - Deveis manter tudo em segredo. Em completo segredo.

Ela está a escovar-me o cabelo, faz uma pequena pausa e olha para mim, no espelho.

- Quando devem vir as vossas regras? - pergunta ela.

-Já não me lembro. Nunca tomo nota. Devia ter sido na semana passada? De qualquer forma, não apareceram.

Há uma espécie de alarme feliz no meu rosto.

- Não vieram?

- Não. Escovai atrás, Jane, o Thomas gosta do cabelo macio, atrás.

A mão dela move-se, mas não o faz com grande cuidado.

- Sentis-vos um pouco mal-disposta? - pergunta ela. - Os vossos seios estão a ficar maiores?

- Não - digo eu. Então compreendo o que ela está a pensar. - Oh! Estais a pensar que eu posso estar grávida?

- Sim - murmura ela. - Queira Deus!

- Mas isso seria horrível! - exclamo eu. - Porque, não vedes? Não pensais?

Lady Rochford, pode não ser filho do Rei!

Ela pousa a escova e abana a cabeça.

- É a vontade de Deus - diz ela lentamente, como se quisesse que eu aprendesse alguma coisa. - Se estais casada com o Rei e concebeis uma criança, é porque essa é a vontade de Deus. Deus quer que o Rei tenha um filho.

Portanto, é filho do Rei; no que vos diz respeito, é filho do próprio Rei; seja o que for que se tenha passado entre vós e outro homem.

Fico um pouco confusa com o que ela diz.

- Mas, e se for filho de Thomas?

Tenho imediatamente uma visão do filhinho de Thomas, um diabrete de cabelos castanhos e olhos azuis, como o pai, um rapazinho forte, filho de um pai jovem.

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Ela olha para a minha cara e apercebe-se do que estou a pensar.

- Vós sois a Rainha - diz ela com firmeza. - Qualquer filho que tenhais, será filho do Rei, como Deus deseja. Não podeis pensar, nem por um momento, que possa ser de outra maneira.

- Mas...

- Não - diz ela. - E devíeis contar ao Rei que estais com esperança de estardes grávida dum filho seu.

- Não é cedo de mais?

- Nunca é demasiado cedo para lhe dar um motivo de esperança - diz ela. - A última coisa que queremos é que ele se sinta descontente.

- Vou dizer-lhe - digo eu. - Ele vem ao meu quarto, esta noite. Tereis de ir buscar Thomas mais tarde. E depois também lhe digo.

- Não - diz ela. - Não direis nada a Thomas Culpepper.

- Mas, eu quero fazê-lo.

- Iria estragar tudo - diz ela, falando muito depressa, persuasiva. - Se ele desconfiar que estais grávida, não se deitará convosco. Vai achar-vos repugnante.

Ele quer uma amante, não uma mãe para os seus filhos. Não deveis dizer nada a Thomas Culpepper, mas podeis dar esperanças ao Rei. É assim que deveis proceder.

- Ele iria ficar contente...

- Não - ela sacode a cabeça. - Ele seria bondoso, tenho a certeza, mas não regressaria mais à vossa cama. Iria arranjar uma amante. Já o tenho visto a conversar com Catarina Carey. Ele iria arranjar uma amante até que o vosso tempo de gravidez chegasse ao fim.

- Eu não suportaria uma coisa dessas!

- Então, não lhe digais nada. Dizei ao Rei que estais esperançada, mas não deveis dizer nada a Thomas Culpepper.

- Obrigada, Lady Rochford - digo humildemente. Se não fossem os conselhos

dela, não saberia o que devia fazer.

Nessa noite, o Rei vem ter comigo e os criados ajudam-no a deitar-se na minha cama. Eu deixo-me estar junto da lareira enquanto eles se esforçam por o erguer e deixam-no bem embrulhado, com os lençóis presos debaixo do queixo, como se fosse um bebé enorme.

- Esposo - digo docemente.

- Vinde para a cama, minha Rosa - diz ele. - O Henrique quer a sua Rosa.

Cerro os dentes com força com a estupidez de ele se chamar a si mesmo, Henrique.

- Gostaria de vos dizer uma coisa - digo eu. - Tenho notícias felizes.

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Ele ergue-se, de maneira a que a sua cabeça, com o barrete de dormir todo torto, se possa levantar um pouco.

- Sim?

- O meu período não veio - digo-lhe. - Posso estar à espera de um filho.

- Oh, Rosa! Minha mais querida Rosa!

- Ainda é muito cedo - aviso-o. - Mas eu pensei que gostaríeis de o saber imediatamente.

- Mais do que qualquer outra coisa! - assegura ele. - Minha adorada, logo que me digais que é verdade, coroar-vos-ei rainha.

- Mas Eduardo continuará a ser vosso herdeiro? - pergunto eu.

- Sim, sim, mas seria um peso enorme que tiraria do meu pensamento, se soubesse que Eduardo tinha um irmão. Uma família não pode sentir-se segura se tiver só um filho: uma dinastia precisa de ter rapazes. Há um pequeno acidente e tudo acaba; mas se tivermos dois rapazes, podemos estar seguros.

- E eu vou ter uma coroação grandiosa - digo especificamente, pensando na coroa e nas jóias, no vestido e nas celebrações, nos milhares de pessoas que vão lá estar para me aclamar, a nova Rainha da Inglaterra.

- Ireis ter a coroação mais grandiosa a que a Inglaterra já assistiu, uma vez que sois a mais grandiosa das rainhas - promete-me ele. - Logo que regressemos a Londres, determinarei um dia de festejos nacionais em vossa honra.

- Oh? - isto parece-me fantástico, um dia para festejar a minha existência!

Kitty Howard: voilá, de facto! - Um dia inteiro, em minha honra?

- Um dia em que toda a gente terá de ir à igreja e rezar orações de agradecimento a Deus, por Ele vos ter trazido até mim.

Só igreja, afinal. Faço um ligeiro sorriso de desapontamento.

- E o Master ofthe Revels irá preparar uma grande festa e várias celebrações na corte - diz ele -, e toda a gente vos oferecerá presentes.

Fico radiante.

- Isso parece-me maravilhoso - digo toda contente.

- Vós sois a minha mais doce Rosa - diz ele. - A minha rosa sem espinhos.

Vinde para a cama, para junto de mim, Catarina.

Master ofthe Revels era um oficial da corte que, a partir da época Tudor e até ao Licensing Act de 1737, supervisionava a produção e o financiamento dos, por vezes, elaborados entretenimentos da corte. Mais tarde, tornou-se a entidade que concedia as licenças a teatros e a companhias de teatro e o censor das peças representadas em público. (N. da T.)

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- Sim.

Faço tudo para não pensar no meu Thomas enquanto me dirijo para a figura inchada que está deitada na enorme cama. Coloco um enorme sorriso de

felicidade no rosto e fecho os olhos, para não ter de olhar para ele. Não consigo evitar o seu cheiro, nem a sensação física que ele me provoca, mas posso certificar-me de que não vou, de maneira nenhuma, pensar nele, enquanto faço o que tenho de fazer. E depois, vou ficar deitada ao seu lado e esperar que os pequenos suspiros de satisfação se transformem em roncos sonoros, quando ele adormecer.

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Jane Bolena, Ampthill, Outubro de 1541

O período dela apareceu, mais ou menos com uma semana de atraso; mas eu não perdi a esperança. Só o poder pensar nessa possibilidade tinha sido suficiente para deixar o Rei mais apaixonado do que nunca e ela tinha concordado, pelo menos que, embora o Sol se levante e brilhe apenas para Thomas Culpepper, ele não tem de estar a par de todos estes pequenos segredos.

Ela portou-se muito bem com as pessoas que conheceu nesta viagem; mesmo quando estava aborrecida e distraída, manteve um sorriso simpático no rosto e aprendeu a seguir um pouco atrás do Rei e a manter uma aparência de obediência recatada. Ela serve-o, na cama, como uma prostituta remunerada, senta-se junto dele ao jantar, e nunca mostra, através de uma alteração de expressão, que ele soltou gases intestinais ou que arrotou. É uma rapariga estúpida e egoísta, mas, com o tempo, pode vir a ser uma boa rainha. Se ela conceber uma criança e der um filho à Inglaterra, pode ser que viva o suficiente para aprender a ser uma rainha admirada.

De qualquer modo, o Rei está louco por ela. A sua indulgência torna a nossa tarefa de fazer com que Culpepper entre e saia do quarto dela muito mais fácil.

Tivemos uma noite complicada em Pontefract, quando ele enviou Sir Anthony Denny aos aposentos dela, sem avisar, e ela estava lá fechada à chave com Culpepper. Denny experimentou abrir a porta e foi-se embora, sem dizer uma palavra. Numa outra noite, ele agitou-se na cama, enquanto eles estavam a tratar dos seus assuntos, e ela teve de voltar a correr para junto do velho Rei, ainda coberta de suor e molhada pelos beijos. Se o ar não estivesse carregado com o fedor dos seus gases intestinais, de certeza que teria notado o odor da luxúria.

Em Grafton Regis, os amantes fizeram amor na latrina - ele subiu sorrateiramente as escadas que conduzem à sala com muros de pedra que fica por cima do fosso e ela disse às suas damas que estava muito mal-disposta, e

passou lá a tarde, freneticamente montada nele, enquanto nós todas preparávamos bebidas com leite, mel e vinho.

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Se não fosse tão perigoso, teria sido cómico. Mas, da maneira que as coisas são, ainda fico com falta de ar quando percebo que estão juntos.

Eu nunca me rio. Penso no meu marido e na irmã dele, e o mais leve sorriso morre na minha boca. Penso nele, a prometer-lhe que seria o seu protector, em qualquer adversidade. Penso nela, desesperada por ter um filho, sabendo que Henrique não lhe poderia dar nenhum. Imagino o pecaminoso pacto que devem ter feito. Depois, com um pequeno gemido, convenço-me de que tudo isso foi apenas inventado pelos meus medos, pela minha fantasia e que, de facto, nunca aconteceu. O pior, no facto de ambos estarem mortos, é que eu nunca chegarei a saber o que realmente sucedeu. A única forma que arranjei para, ao longo destes anos, suportar a ideia daquilo que eles fizeram e do papel que eu desempenhei, foi afastar de mim esses pensamentos. Nunca penso no assunto, não falo sobre ele e ninguém fala nisso, perto de mim. É como se eles nunca tivessem existido.

É a única maneira de eu conseguir aguentar uma coisa destas: eu estar viva e eles mortos; fingir que eles nunca existiram.

- Então, quando a Rainha Ana Bolena foi acusada de traição, o que eles queriam mesmo dizer era adultério? - pergunta-me Catarina.

Esta pergunta, tão directa ao ponto principal do meu próprio pensamento, é como uma punhalada.

- Que quereis dizer com isso? - pergunto-lhe.

Estamos a dirigir-nos, a cavalo, de Collyweston para Ampthill, numa manhã luminosa e fria de Outubro. O Rei segue mais lá para a frente, a galopar com os jovens da sua corte, convencido de que está a ganhar a corrida, enquanto eles refreiam os cavalos, para ficarem para trás, e Thomas Culpepper é um deles.

Catarina vai seguindo a passo, na sua égua cinzenta, e eu vou ao lado dela, num dos cavalos de caça dos Howard. Todas as outras pessoas se deixaram ficar para trás para poderem coscuvilhar e não há ninguém por perto que me possa proteger da curiosidade dela.

- Haveis dito anteriormente que ela, e os outros homens, tinham sido acusados

de adultério - continua ela.

- Isso já foi há alguns meses.

- Eu sei, mas tenho pensado no assunto.

- Levais muito tempo a pensar - digo com maldade.

- Eu sei que sim - diz ela sem se aborrecer. - E tenho estado a pensar que acusaram a minha prima, Ana Bolena, de traição, só porque foi infiel ao Rei, e cortaram-lhe a cabeça - ela olha em volta. - E tenho estado a pensar que me encontro na mesma situação -

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diz ela. - E que, se eles descobrissem - iriam dizer que sou infiel ao Rei. É

possível que também considerem isto traição.

- É por isso que nunca falamos sobre esse assunto - digo eu. - É por isso que temos cuidado. Estais lembrada? Desde o princípio que vos avisei para terdes cuidado.

- Mas por que motivo me haveis ajudado a encontrar-me com Thomas?

Sabendo, como sabeis, o tipo de perigo que isso representa? Depois de a vossa própria cunhada ter sido morta, exactamente pela mesma razão?

Não sei o que lhe responder. Nunca pensei que ela me fizesse esta pergunta.

Mas a estupidez dela é tão grande que, por vezes, vai direita ao mais óbvio. Eu viro a cabeça, como se estivesse a olhar, por cima dos campos gelados, para o lugar onde o rio, inchado pelas recentes chuvadas, brilha como uma espada, uma espada francesa.

- Porque me haveis pedido que vos ajudasse - digo eu. - Sou vossa amiga.

- Haveis ajudado Ana Bolena?

- Não! - exclamei. - Ela nunca teria a minha ajuda!

- Não éreis amiga dela?

- Eu era a sua cunhada.

- E ela não gostava de vós?


- Duvido que ela alguma vez tenha reparado em mim, do princípio até ao fim.

Ela nem sequer me via.

Isto não consegue travar as suas especulações, como era minha intenção, só lhe dá mais ânimo. Quase consigo ouvir o lento movimento dos seus pensamentos.

- Ela não gostava de vós? - pergunta ela. - Ela, o marido e a irmã dela, estavam sempre juntos. Mas deixavam-vos de parte.

Dou uma risada, mas não me sai muito bem.

- Parece que falais de crianças, no pátio do recreio.

Ela concorda com a cabeça.

- É precisamente isso que se passa numa corte real. E vós haveis odiado todos por não vos deixarem participar?

- Eu era uma Bolena - digo eu. - Era tão Bolena quanto eles. Era Bolena por casamento, o tio deles, o Duque, é meu tio. Os meus interesses são os da família, como eram os deles.

- E agora, só restais vós e Maria - diz ela. - Mas Maria é uma Stafford e nunca vem à corte. Vós sois a última das Bolena.

- Pois sou - digo eu. Penso na terrível tristeza de ser a última pessoa da família, como se tudo o que era maravilhoso tivesse morrido e desaparecido e nunca mais possa voltar a aparecer.

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- Nesse caso, porque haveis deposto contra eles? - pergunta ela.

Fico tão chocada pela sua acusação directa, que mal consigo falar. Olho para

ela.

- Quem vos falou sobre esse assunto? Porque quereis falar dessas coisas?

- Foi Catarina Carey quem me contou - diz ela, como se fosse irrelevante que as duas raparigas, pouco mais do que crianças, pudessem trocar, naturalmente, confidências sobre traição, incesto e morte. - Ela disse que vós haveis prestado testemunho contra o vosso marido e a irmã dele. Haveis testemunhado para que pudesse ser provado que eles eram amantes e traidores.

- Eu não fiz isso - digo num murmúrio. - Não fiz. Não consigo suportar que ela mencione aquilo, nunca penso no assunto. E não quero pensar nisso hoje. -

Não foi bem assim - digo eu. - Vós não entendeis porque sois ainda uma menina.

Éreis ainda uma criança, quando isso aconteceu. Eu tentei salvá-lo, e a ela também. Foi um grande plano, imaginado pelo vosso tio. Falhou, mas devia ter resultado. Eu pensava que o salvaria, se testemunhasse, mas correu tudo mal.

- Foi assim que as coisas se passaram?

- Foi de partir o coração! - grito, na minha dor. - Eu tentei salvá-lo, eu amava-o, seria capaz de fazer tudo por ele.

O seu pequeno e belo rosto está repleto de comiseração.

- Queríeis salvá-lo?

Limpo as lágrimas dos olhos com as costas da minha luva.

- Eu teria morrido por ele - digo eu. - Pensava que o salvaria. Eu ia salvá-lo.

Teria feito qualquer coisa para o salvar.

- Então, porque é que tudo correu mal? - sussurra ela.

- O vosso tio e eu pensávamos que, se eles admitissem ser culpados, ela seria obrigada a divorciar-se e seria mandada para longe, para um convento.

Acreditávamos que a ele retirariam o título e as honrarias, e que seria banido. Os homens que foram acusados, em conjunto com ela, não eram culpados de nada, toda a gente sabia disso. Eram os amigos de Jorge e cortesãos dela, não seus amantes. Pensávamos que iriam ser todos perdoados, como aconteceu com Thomas Wyatt.

- Então, o que aconteceu?

Parece um sonho, este recontar da história. É o sonho que me assalta com frequência, que me acorda a meio da noite, como se fosse uma doença, que me obriga a levantar da cama e a caminhar, caminhar, no quarto escuro, até que a primeira luz parda aparece no céu e eu compreendo que o meu suplício terminou.

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- Eles negaram a sua culpa. Isto não fazia parte do plano. Deviam ter confessado, mas negaram tudo, a não ser que tinham dito algumas palavras contra o Rei. Jorge tinha dito que o Rei era impotente - mesmo neste belo dia de Outono, cinco anos depois do julgamento, ainda baixo a voz e olho em volta, para me certificar de que ninguém está a ouvir. - A sua coragem enganou-os, negaram a culpa e não pediram perdão. Eu mantive-me fiel ao plano, como o vosso tio me tinha dito para fazer. Consegui salvar o título, as terras, salvei a herança dos Bolena, salvei a fortuna deles.

Ela continua à espera. Não percebe que é este o fim da história. Foi este o meu principal papel e o meu triunfo: ter conseguido salvar o título e as terras. Ela parece intrigada.

- Fiz o que tinha de fazer para salvar a herança dos Bolena - repito. - O meu sogro, o pai de Jorge e de Ana, tinha conseguido amealhar uma fortuna ao longo da sua vida, e Jorge tinha-a aumentado. Os bens de Ana faziam parte dela. Eu salvei essa fortuna. Consegui manter Rochford Hall na família e consegui ficar com o título. Ainda sou Lady Rochford.

- Vós haveis conseguido salvar a herança, mas eles não a herdaram - diz Catarina, sem perceber. - O vosso marido morreu e deve ter percebido que estáveis a prestar testemunho contra ele. Deve ter percebido que, enquanto ele se estava a apresentar como inocente, vós o estáveis a acusar. Vós fostes a testemunha da sua acusação - ela vai pensando lentamente, di-lo devagar, lentamente pronuncia o pior de tudo. - Ele deve ter compreendido que o haveis deixado ir para a morte para poderdes ficar com o título e as terras, mesmo que o tenhais matado, para que isso pudesse acontecer.

Eu estava capaz de a insultar por afirmar algo de semelhante, por ter dado nome ao meu pesadelo. Esfrego o rosto com as costas da luva como se, dessa forma, conseguisse eliminar o meu semblante carregado.

- Não! Isso não! Isso não! Ele não pode ter pensado assim - digo com desespero. - Ele sabia que eu o amava, que estava a tentar salvá-lo. Quando foi para a morte, deve ter compreendido que eu estava de joelhos, diante do Rei, pedindo-lhe que poupasse o meu marido. Quando ela foi levada para a morte, ela deve ter sabido que até ao último momento eu estive diante do Rei, a pedir-lhe que a perdoasse.

Ela concorda com a cabeça.

- Bom, espero que nunca venha a ser necessário que presteis juramento para me tentar salvar a mim - diz ela.

É uma infeliz tentativa de fazer humor; não me merece sequer um sorriso.

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- Foi o fim da minha vida - limito-me a dizer. - Não foi apenas o fim da vida deles, foi uma morte, para mim.

Continuamos a cavalgar em silêncio, por algum tempo, e depois, duas ou três das amigas de Catarina obrigam os cavalos a andar para a frente para ficarem ao lado dela e começam a conversar acerca de Ampthill, do acolhimento que, de certeza, vamos receber e querem saber se ela já desistiu de usar o seu vestido amarelo e se o vai dar a Katherine Tylney. Ao fim de pouco tempo já há confusão porque Catarina tinha-o prometido a Joan, mas Margaret insiste que deve ser para ela.

- Podem ficar ambas sossegadas - determino eu, arrastando-me de volta ao presente - porque a Rainha não usou esse vestido mais do que três vezes e ele vai continuar no guarda-roupa dela, para ser usado mais vezes.

- Não me importo - diz Catarina. - Posso sempre mandar fazer outro.

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Ana, Palácio de Richmond, Novembro de 1541

Na igreja, entro, benzo-me, faço uma vénia diante do altar e tomo o meu lugar no meu banco com paredes altas. Graças a Deus que ninguém me consegue ver aqui: a porta alta, fecha-se atrás de mim, as paredes garantem a minha privacidade e mesmo a parte da frente do banco tem um painel de grade, para eu poder ver, sem ser observada. Apenas o padre, se estiver lá em cima, nos bancos do coro, pode olhar para baixo, para mim. Se eu afastar os olhos da Hóstia, se me esquecer de me benzer na altura certa, se o fizer com a mão errada ou na direcção errada, não serei acusada de heresia. Há milhares de pessoas que controlam todos os seus movimentos, porque não têm a privacidade que eu tenho. Há centenas que vão morrer, porque se enganaram.

Eu levanto-me, inclino-me, ajoelho-me e sento-me, de acordo com a ordem do serviço religioso; mas hoje, não consigo tirar grande prazer da liturgia. Esta é a liturgia ordenada por Henrique e em cada uma das frases que ecoam eu reconheço o poder de Henrique; não o poder de Deus. No passado, reconhecia Deus em muitos lugares; nas pequenas capelas Luteranas da minha terra, na grande e imponente força da Catedral de S. Paulo, em Londres e no silêncio da capela real de Hampton Court, onde uma vez me ajoelhei junto da Princesa Maria e senti a paz divina descer em nossa volta; mas parece que o Rei destruiu a sua igreja, para mim e para tantos outros. Agora, encontro-me com Deus em silêncio: quando caminho pelo parque ou junto ao rio, quando ouço o chamado de um melro, ao meio-dia, quando vejo um bando de gansos voando em formação, lá no alto, quando o falcoeiro solta uma ave e a vejo subir até lá cima e ficar a pairar no ar. Deus já não me fala quando Henrique o autoriza, nas palavras que Henrique escolhe. Estou a esconder-me do Rei e sou surda ao seu Deus.

Estamos de joelhos, a rezar pela saúde e pela segurança da família real quando, para minha surpresa, percebo que há uma nova oração inserida sem aviso, no meio das palavras habituais. Sem

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mostrar o mínimo embaraço, o padre pede à minha corte, às minhas damas e a mim própria, que demos graças pela esposa do rei, Catarina.

- Damos -vos graças, oh Senhor, por após tantos estranhos acidentes que

caíram sobre os casamentos do Rei, Vós terdes querido dar-lhe uma esposa tão de acordo com os desejos dele, com aquela que agora tem.

Não consigo evitá-lo, a minha cabeça ergue-se da reverente submissão e encontro o olhar surpreso do padre de Richmond. Ele está a ler a celebração da esposa do Rei a partir de um documento oficial que lhe ordenaram que lesse, como lhe poderiam ter ordenado que lesse uma lei. Henrique, na sua loucura, ordenou a todas as igrejas da Inglaterra que agradecessem a Deus por, depois de tantos “estranhos acidentes” surgidos nos seus anteriores casamentos, ter agora uma esposa que está de acordo com os seus desejos. Sinto-me tão ultrajada com aquela linguagem, pela sensação que aquilo provoca e pelo facto de ter de estar de joelhos a ouvir um insulto destes, que quase me ponho de pé, como protesto.

Imediatamente, há uma mão insistente que agarra a parte de trás do meu vestido e me puxa para baixo; eu desequilibro-me um pouco e fico novamente de joelhos. Lotte, a minha tradutora, faz-me um ligeiro sorriso, junta as mãos numa imagem de devoção e fecha os olhos. O gesto dela acalma-me. Isto é um insulto, muitíssimo grosseiro e insensato; mas reagir-lhe, significa colocar-me em perigo.

Se o Rei exige que me ponha de joelhos e me considere perante o reino como um acidente estranho, não me cabe a mim mostrar que o nosso casamento não foi nenhum acidente, mas antes um contrato muito bem planeado e muito pensado, e que ele o quebrou pela simples e suficiente razão de preferir outra pessoa. Não me compete evidenciar que, dado que o nosso casamento foi real e válido, ele agora é um adúltero ou um bígamo, vivendo em pecado com uma segunda esposa. Não é a mim que compete mostrar que, se a pequena Kitty Howard, uma criança fútil e pouco educada, é a única mulher que ele encontrou que corresponde aos seus desejos, então ou ela deve ser a melhor actriz que já viveu, ou ele deve ser o louco mais bem enganado que alguma vez se casou com uma rapariga, suficientemente jovem para poder ser sua filha.

Henrique está completamente louco, cegamente apaixonado por uma menina, como um velho senil, e acabou de ordenar a todo o país que agradeça a Deus pelo seu desvario. Nas igrejas lá para cima e lá para o fundo do país, as pessoas devem estar a morder os lábios para não se rirem, os homens honestos devem estar a

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amaldiçoar a sorte que os empurra para esta igreja de Henrique, onde um tal

disparate está incluído nas orações.

- Ámen - digo eu em voz bem alta e, quando nos erguemos para receber a bênção, exibo ao padre uma face serena e devota. Enquanto saímos da igreja, só consigo pensar na pobre Princesa Maria, em Hunsden, e em como ela deve ter ficado engasgada de indignação com este insulto à sua mãe, com a blasfémia de ter de rezar por Kitty Howard e com a idiotice do seu pai. Queira Deus que ela tenha o bom senso de não dizer nada. Parece que, seja o que for que o rei queira fazer, ninguém pode dizer nada.

Na terça-feira, uma das minhas damas que estava a olhar pela janela, anuncia:

- O embaixador vem a correr pelo jardim acima, vem de um barco que está no rio. Que poderá ter acontecido?

Levanto-me. O Dr. Harst nunca me visita sem me avisar antes. Deve ter acontecido alguma coisa na corte. Os meus primeiros pensamentos vão para Isabel ou para Maria, receio que alguma coisa lhes possa ter acontecido. Se ao menos Maria não tivesse sido levada pelo pai a desafiá-lo!...

- Ficai aqui - digo logo às minhas companheiras, lanço um xaile sobre os ombros e desço as escadas para o receber.

Ele está a entrar no salão, quando chego ao fundo das escadas e imediatamente, percebo que aconteceu algo de grave.

- Que se passa? - pergunto-lhe em alemão.

Ele abana a cabeça e tenho de esperar até os criados terem acabado de andar para cá e para lá, servindo-lhe vinho e biscoitos, e de eu os ter mandado sair todos da sala.

- O que aconteceu?

- Vim imediatamente, sem saber toda a história, porque queria que ficásseis de sobreaviso - diz ele.

- De sobreaviso em relação a quê? Não há nada com a Princesa Maria, pois não?

- Não. É com a Rainha.

- Ela está grávida? - digo eu, escondendo a minha imediata ansiedade pela rapariga.

Ele abana a cabeça.

- Não sei bem. Mas não está autorizada a sair dos seus aposentos, desde ontem. E o Rei não a quer receber.

- Ela está doente? Ele tem pavor de poder apanhar a peste.

- Não. Não foram chamados quaisquer médicos.

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- Não foi acusada de conspirar contra ele, pois não? - nomeio o maior dos temores.

- Vou contar-vos tudo o que sei e que foi conseguido através do criado que temos nos aposentos do Rei. O Rei e a Rainha assistiram à missa, no domingo, e o padre deu as graças pelo casamento do rei, como sabeis.

- Eu sei.

- No domingo à noite, o Rei estava muito calado e jantou sozinho, como se estivesse de novo a ser atacado pela sua velha doença. Não foi aos aposentos dela. Na segunda-feira, fechou-se nos seus aposentos e a Rainha foi fechada nos dela. Hoje, o Arcebispo Cranmer foi lá para falar com ela, e saiu em silêncio.

Olho para ele.

- Ela foi fechada lá dentro?

Ele acena com a cabeça, sem dizer nada.

- Que pensais que isso significa?

- Penso que a Rainha foi acusada. Mas ainda não conseguimos saber qual foi a

acusação. O que teremos de ter em consideração é se ela vos poderá implicar.

- A mim?

- Se ela for acusada de participar numa conspiração papista ou de ter levado o Rei à impotência através de feitiçaria, as pessoas irão lembrar-se de que vós haveis sido acusada de fazer parte de uma conspiração papista e de que ele era impotente convosco. Lembrar-se-ão de que sois amiga dela, que haveis dançado com ela na corte, no Natal, e que ele ficou doente na Quaresma, logo a seguir a terdes partido. As pessoas poderão pensar que vós, ambas, haveis conspirado contra ele.

Estendo as mãos como se o quisesse fazer parar.

- Não, não.

- Eu sei que não é verdade, mas deveríamos pensar no pior que poderá ser dito e tentar estar preparados para essa possibilidade. Quereis que escreva ao vosso irmão?

- Ele não me ajudará - digo tristemente. - Estou só.

- Nesse caso, devemos estar preparados - diz ele. - Tendes bons cavalos nos vossos estábulos?

Aceno em concordância.

- Então, deveis dar-me algum dinheiro e eu arranjarei outros cavalos que ficarão preparados ao longo de toda a estrada até Dover - diz ele com firmeza. -

No momento em que eu achar que a situação se está a voltar contra nós, vós e eu, abandonaremos o país.

402


- Ele vai mandar fechar os portos - aviso-o. - Foi o que aconteceu da última vez.

- Não nos deixaremos enganar outra vez. Vou alugar um barco de pesca que

ficará à nossa disposição - diz ele. - Agora, já sabemos o que ele é capaz de fazer. Sabemos até que ponto ele pode chegar. Fugiremos, antes mesmo de eles decidirem prender-vos.

Olho para a porta.

- De certeza que há pessoas ao meu serviço que vão perceber que me haveis avisado - digo eu. - Da mesma forma que nós temos um homem dentro do serviço dele, ele deve ter aqui um espião. Eu estou a ser vigiada.

- Eu sei quem é o homem - diz o Dr. Harst com calmo prazer - e ele vai relatar a minha visita de hoje, mas não dirá mais nada. Agora, trabalha para mim. Penso que estamos em segurança.

- Seguros como ratos debaixo do cadafalso - digo amargamente.

Ele concorda.

- Desde que o machado caia sobre outras pessoas.

Estremeço.

- E quem é que merece uma coisa dessas? Eu não, mas a pequena Kitty Howard também não! O que fizemos nós, a não ser casar com quem nos mandaram?

- Desde que possais escapar a isto, a minha função será cumprida - diz ele. - A Rainha terá de recorrer aos seus próprios amigos, para lhes pedir ajuda.

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Catarina, Hampton Court, Novembro de 1541

Vamos lá a ver então, o que é que eu tenho agora?

Surpresa, surpresa! Não tenho amigos e pensava que tinha dezenas deles.

Não tenho namorados, e achava que tinha montes deles.

Nem sequer tenho família, pelo que parece, foram-se todos embora.

Não tenho marido, uma vez que ele não me quer ver, e nem sequer tenho um confessor, dado que o próprio Arcebispo passou a ser meu inquisidor.

São todos tão maus para mim e é tudo tão injusto, não sei o que fazer ou dizer.

Eles vieram ter comigo quando eu estava a dançar com as minhas damas, e disseram-me que, de acordo com as ordens do Rei, eu não podia sair dos meus aposentos.

Por alguns momentos - sou tão tola, a minha avó tinha razão, quando dizia que nunca existiu uma pessoa mais tola do que eu - pensei que se tratava de uma farsa e que iria aparecer alguém disfarçado para me capturar, e que depois apareceria outra pessoa mascarada que me salvaria, que iria haver um torneio ou uma batalha a fingir, no rio, ou qualquer outra coisa divertida. No domingo, o país inteiro tinha rezado várias orações para agradecer a Deus por minha causa e, por esse motivo, eu estava à espera de qualquer tipo de comemoração, no dia seguinte. Assim, fiquei à espera, no meu quarto, fechada à chave, ansiosa pela chegada de um cavaleiro errante, talvez até de alguém que trepasse até à minha janela, de um cerco fingido, de ver um grupo de cavaleiros a entrar pelo jardim e disse às minhas damas:

- Aqui está uma ideia engraçada, espero eu!

Mas esperámos dentro do meu quarto durante todo o dia e, embora eu me tenha apressado a mudar de roupa para estar preparada, não apareceu ninguém e não houve música, nem nada. E depois apareceu o Arcebispo Cranmer e disse que o tempo das danças já tinha acabado.

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Oh, ele consegue ser tão antipático! Tem um ar tão sério, como se houvesse algo de muito errado. E depois faz-me perguntas sobre Francis Dereham! E logo sobre Francis Dereham, que apenas está ao meu serviço devido ao pedido da minha própria, respeitável avó! Como se fosse culpa minha! E tudo isto, porque um patético linguarudo foi contar ao Arcebispo que tinha havido um namorico em Lambeth, como se alguém precisasse de se incomodar com isso agora! E

devo dizer que, se fosse Arcebispo, tentaria fazer melhor do que dar ouvidos a mexericos.

Por isso, digo que tudo aquilo é uma grande mentira, e que se eu puder falar com o Rei, não terei qualquer dificuldade em convencê-lo de que não deve ouvir mais nenhuma palavra contra mim. É então que o meu senhor Cranmer me prega um valente susto, ao dizer com uma voz horrorosa:

- Essa, Minha Senhora, é a razão pela qual não podereis encontrar-vos com o Sua Graça enquanto o vosso nome não estiver totalmente limpo. Examinaremos todas as circunstâncias até termos escalpelizado completamente qualquer boato sobre vós.

Bom, nem respondo, porque sei que o meu nome não pode ser completamente escalpelizado, ou qualquer coisa parecida; mas tudo aquilo, em Lambeth, não passou de um caso entre uma rapariguinha e um rapaz e, agora, que estou casada com o Rei, será que alguém se vai, realmente, preocupar com o que aconteceu há tanto tempo? Porquê? Já foi há séculos atrás, já se passaram dois anos! Quem é que agora se importa se foi assim ou não?

Talvez já esteja tudo resolvido, amanhã de manhã. O Rei tem uns caprichos esquisitos, de vez em quando, resolve implicar com um homem ou com outro e manda cortar-lhes a cabeça. Embirrou com a pobre Rainha Ana de Clèves e, no fim, ela acabou por ficar com o Palácio de Richmond e tornou-se a sua irmã mais querida. Assim, vamos deitar-nos bastante animadas e pergunto a Lady Rochford o que é que ela pensa. Ela fica com um ar muito estranho e diz-me que talvez eu consiga escapar àquilo tudo, se tiver coragem e se negar tudo. Isto não é um grande conforto, vindo de uma pessoa que viu o marido ir para a forca, apesar de ter negado tudo. Mas não lhe digo isso, com medo de que ela se zangue.

Katherine Tylney dorme comigo e ri-se, quando entra para a cama, dizendo que aposta que eu preferiria que ela fosse Thomas Culpepper. Não lhe respondo, porque é mesmo isso que eu queria. Gostaria tanto que fosse assim, que me apetece chorar por causa dele. Muito tempo depois, quando ela já está a ressonar, ainda estou acordada e penso que gostaria que tudo tivesse sido diferente na 405

minha vida, que Tom tivesse aparecido na minha casa de Lambeth e tivesse talvez, lutado com Francis, que o tivesse, talvez, matado e que depois me tivesse levado com ele e se tivesse casado comigo. Se ele me tivesse ido buscar nessa

altura, eu nunca teria sido rainha e nunca teria tido o meu colar de diamantes lapidados. Mas teria podido dormir toda a noite nos seus braços e, por vezes, parece-me que essa teria sido uma melhor escolha. Esta noite parece-me, seguramente, uma escolha melhor.

Durmo tão mal que acordo de madrugada e fico ali deitada no meio do silêncio, com a luz pálida que entra pelas portadas das janelas e penso que seria capaz de dar todas as minhas jóias, só para poder ver Thomas Culpepper e ouvir o seu riso. Daria toda a minha fortuna, para poder estar nos seus braços. Queira Deus que ele saiba que eu estou presa no meu quarto e não pense que me quero afastar dele. Seria demasiado horrível se, quando eu sair daqui, percebesse que ele tinha ficado ofendido com o meu afastamento e tivesse começado a namorar outra pessoa qualquer. Eu morreria, se ele se apaixonasse por outra rapariga.

Penso sinceramente que o meu coração iria ficar despedaçado.

Eu enviava-lhe uma mensagem, se me atrevesse, mas ninguém tem autorização para sair dos meus aposentos e não me arrisco a confiá-la a uma das criadas. Elas trazem-me o pequeno-almoço ao quarto, nem sequer me deixam sair para comer. Não posso ir sequer à capela, vem aí um confessor para rezarmos, antes de o Arcebispo vir falar novamente comigo. Realmente começo a pensar que isto não está certo e que, se calhar, devia protestar. Eu sou a Rainha da Inglaterra, não posso ficar presa nos meus aposentos como se fosse uma menina mal comportada. Já sou adulta, sou uma senhora, uma Floward. Sou a esposa do Rei. Quem é que eles pensam que eu sou? Afinal, sou Rainha da Inglaterra. Parece-me que tenho de conversar com o Arcebispo e dizer-lhe que não me pode tratar desta maneira. Fico a pensar neste assunto até ficar bastante indignada e decido que vou insistir com o Arcebispo para que me trate com o devido respeito.

Mas, afinal, ele não aparece! Passamos a manhã sentadas por ali, a tentar costurar algumas coisas, com o objectivo de parecermos seriamente ocupadas, para o caso de a porta se abrir e de o senhor Arcebispo entrar por ali dentro.

Mas, nada! Só ao fim da tarde, e que tarde mais aborrecida, é que a porta se abre e ele entra, o seu rosto bondoso bastante grave.

As minhas damas levantam-se alvoroçadas como se fossem um bando de inocentes borboletas, aprisionadas juntamente com uma 406

lesma bolorenta. Eu deixo-me ficar sentada, afinal sou a Rainha. Só gostaria de ter o ar da Rainha Ana, quando a vieram buscar. Ela tinha mesmo ar de inocente, via-se que estava a ser acusada injustamente. Agora estou arrependida por ter assinado um papel para servir de testemunha contra ela. Compreendo agora como é desagradável que desconfiem de nós. Mas como é que eu podia saber que me encontraria um dia na mesma situação?

Ele caminha até mim, como se lamentasse imenso qualquer coisa. Faz um ar triste, como se estivesse a lutar contra um pensamento que lhe passa pela mente.

Por momentos, fico com a certeza que ele me vai pedir desculpa por me ter tratado tão mal no dia anterior, que me vai pedir perdão e libertar-me.

- Vossa Graça - diz ele com grande calma. - Foi com grande pesar que descobri que haveis aceitado esse homem, Francis Dereham, para o serviço da vossa casa.

Por alguns instantes, fico tão espantada que nem sei o que dizer. Toda a gente sabe disso. Meu Deus, Francis já causou problemas suficientes na corte para que todos saibam disso. Não se pode dizer que ele tem sido discreto. Como é que o Arcebispo pode ter descoberto? É o mesmo que dizer que tinha descoberto Hull!

- Bem, sim - digo eu -, como toda a gente sabe.

Lá olha ele de novo para o chão e junta as mãos sobre o ventre, coberto pela sotaina.

- Sabemos que haveis tido relações com Dereham quando vivíeis em casa da vossa avó - diz ele. - Ele já confessou.

Oh, que idiota! Agora não posso negar nada. Porque havia ele de dizer uma coisa destas? Porque tinha de se comportar como um gabarola sem freio?

- O que havemos nós de supor, a não ser que haveis colocado o vosso amante numa posição próxima de vós, com objectivos pouco recomendáveis? - pergunta ele. - Num posto em que o possais ver todos os dias? De maneira que ele possa vir ter convosco sem que as vossas damas estejam presentes? Mesmo sem ser anunciado?

- Bem, não deveis supor coisa nenhuma - digo bastante zangada. - E, em todo caso, ele não é meu amante. Onde está o Rei? Quero ir falar com ele.

- Vós éreis amante de Dereham, em Lambeth, já não éreis uma virgem quando vos casastes com o Rei, e fostes amante dele, depois do casamento - diz ele. -

Sois uma adúltera.

- Não! - volto a dizer. A verdade está toda emaranhada por uma mentira e, para além do mais, não sei o que eles sabem, ao 407

certo. Se ao menos Francis tivesse nascido com o bom senso de se manter calado. - Onde está o Rei? Insisto em falar com ele.

- Foi o próprio Rei que me ordenou que vos questionasse sobre a vossa conduta - diz ele. - Não o podereis ver, enquanto não tiverdes respondido às minhas perguntas, até que o vosso nome esteja livre de qualquer mácula.

- Eu quero vê-lo! - ponho-me em pé de um salto. - Não me ireis manter afastada do meu marido. Tem forçosamente de ser contra a lei.

- Ele foi-se embora, de qualquer forma.

- Embora? - por instantes parece que o chão abanou sob os meus pés rápidos, como se estivesse a dançar em cima de uma barcaça. - Foi-se embora? Para onde é que ele foi? Não pode ter ido. Nós vamos ficar aqui até partirmos para Whitehall, para passar o Natal. Não há mais nenhum lugar para onde ir, ele não me ia deixar ficar aqui. Para onde é que ele foi?

- Foi para o Palácio de Oatlands.

- Oatlands?

Foi a casa onde nos casámos. Ele nunca iria para lá sem mim.

- Isso é mentira! Quando é que ele foi? Isso não pode ser verdade?

- Tive de lhe contar, foi o momento mais triste da minha vida, que vós havíeis sido amante de Dereham e que temia que ainda continuásseis a ser - diz Cranmer. - Deus sabe como eu gostaria de o ter poupado a essas notícias. Ele chorou imenso, temi que perdesse o juízo com a dor, penso que lhe haveis despedaçado o coração. Partiu imediatamente para Oatlands, levando apenas

algum pessoal da sua casa. Não quer ver ninguém; haveis partido o seu coração e haveis-vos arruinado.

- Santo Deus, não - digo debilmente. - Oh, Santo Deus, não - isto é mesmo muito mau mas, se levou Thomas Culpepper com ele, pelo menos o meu amor está a salvo e não suspeitam de nós. - Ele vai sentir-se muito só, sem mim - digo eu, na esperança de que o Arcebispo diga o nome dos companheiros do Rei.

- É provável que enlouqueça de desgosto - diz ele imediatamente.

- Oh, meu Deus.

Bem, o que posso eu dizer? O Rei já era completamente doido antes de tudo isto, e se quiserem ser justos, não me podem culpar por isso.

- Sim, de facto - diz ele. A única coisa que podeis fazer agora é confessar.

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- Mas eu não fiz nada! - exclamo.

- Haveis trazido Dereham para a vossa casa.

- A pedido da minha avó. E ele nunca esteve a sós comigo, nem na mão me tocou, sequer - retiro um pouco de força da minha verdadeira inocência. -

Arcebispo, haveis procedido muito mal ao incomodar o Rei. Vós não sabeis como ele fica, quando está maldisposto.

- A única coisa que podeis fazer é confessar. A única coisa que podeis fazer é confessar.

A situação está a ficar tão parecida com a visão de uma pobre alma que se arrasta para Smithfield, carregando um molho de lenha, para ser queimado até à morte, que me calo e solto uma risadinha, de puro terror.

- Sinceramente, Arcebispo, eu não fiz nada! E confesso-me todos os dias, sabeis que sim, e nunca fiz nada disso.

- Estais a rir-vos? - diz ele horrorizado.

- Oh, é apenas por causa do choque! - digo com impaciência. - Tendes de me deixar ir a Oatlands, Arcebispo. Decididamente, tendes de o fazer. Tenho de falar com o Rei, para lhe explicar.

- Não, tendes de o explicar a mim, minha filha - diz ele com sinceridade. -

Tendes de me contar o que haveis feito em Lambeth, e o que haveis feito posteriormente. Tereis de fazer uma confissão completa e honesta e, talvez então, eu vos possa salvar do cadafalso.

- Do cadafalso? - pronuncio a palavra com um grito, como se nunca a tivesse ouvido antes. - Que quereis dizer com isso do cadafalso?

- Se haveis traído o Rei, estamos perante um acto de traição - diz ele lenta e claramente, como se eu fosse uma criança. - O castigo para a traição é a morte.

Deveis saber que é assim.

- Mas eu não o traí - desato a tagarelar. - O cadafalso! Eu posso jurar sobre a Bíblia. Juro pela minha vida. Nunca cometi qualquer traição, nunca fiz nada de mal! Podeis perguntar a quem quiserdes! Perguntai a quem quiserdes! Sou uma boa rapariga, sabeis que sou, o Rei diz que eu sou a sua Rosa, a sua Rosa sem espinhos. Não tenho qualquer outro desejo a não ser o dele...

Estou tão preocupada com a minha inocência em relação a Dereham que me esqueci completamente de Thomas Culpepper. Mas não faz qualquer diferença, porque o Arcebispo diz muito depressa:

- De facto, tereis de jurar sobre a Bíblia, diante de todos nós. E por isso, deveis certificar-vos de que não há sequer uma palavra 409

que seja mentira. Então, agora dizei-me o que aconteceu entre vós e esse jovem, em Lambeth. E lembrai-vos de que Deus ouve todas as palavras que disserdes e, para além do mais, já temos a confissão dele, ele contou-nos tudo.

- O que foi que ele confessou? - pergunto com esperteza.

- Não vos interessa. Dizei-me vós. Que haveis feito?

- Eu era muito jovem - digo eu. Dou-lhe uma rápida olhadela para avaliar se ele estará disposto a ter pena de mim. E está! Está mesmo! Os seus olhos estão realmente cheios de lágrimas. É um sinal tão positivo que começo a sentir-me muito mais confiante. - Eu era muito nova e todas as raparigas que viviam nos aposentos das damas eram muito mal comportadas, creio eu. Não eram boas amigas nem boas conselheiras.

Ele acena com a cabeça

- Elas permitiam que os rapazes da casa viessem ter com elas?

- Sim. E o Francis vinha à noite, para namorar uma outra rapariga; mas depois, apaixonou-se por mim - faço uma pausa. - Ela não era nada bonita, comparada comigo e eu ainda nem sequer tinha os meus belos vestidos, nessa altura.

O arcebispo suspira, por qualquer razão.

- Isso é vaidade. Deveis confessar o vosso pecado com o rapaz.

- E estou! Estou a confessar! Ele era muito insistente. Continuou a insistir.

Jurou que estava apaixonado por mim, e eu acreditei nele. Eu era ainda muito jovem. Ele prometeu-me casamento; pensei que já éramos casados. Ele insistiu.

- Ele foi para a vossa cama?

Gostaria de dizer que não, mas aquele idiota do Dereham já tinha, provavelmente, contado tudo. A única solução que me resta é tentar fazer com que aquilo pareça um pouco melhor.

- Foi. Eu não o convidei, mas ele teimou. Forçou-me.

- Ele violou-vos?

- Sim, praticamente.

- Não haveis gritado? Se estáveis no quarto com todas as outras jovens? Elas teriam ouvido.

- Eu deixei-o fazer o que ele queria. Mas eu não queria.

- Portanto, ele deitou-se convosco.

- Sim. Mas nunca esteve nu.

- Ele ficou completamente vestido?

- Quero dizer, nunca ficou nu, a não ser quando puxou os calções para baixo.

Então, sim, ficou.

- Ficou, o quê?

410


- Ficou nu, nessa altura - até para mim isto soa a fraca desculpa.

- E ele tirou-vos a virgindade.

Não vejo maneira de evitar a pergunta.

- - Ele foi vosso amante.

- Não me parece...

Ele levanta-se, como se estivesse para ir embora.

- Isto não vos ajuda nada. Não vos posso salvar se me mentirdes.

Tenho tanto medo que ele se vá embora que dou um grito e corro atrás dele, agarrando-o por um braço.

- Por favor, Arcebispo. Eu vou contar-vos. Só que estou tão envergonhada, lamento tanto...

Agora, estou a soluçar, ele tem um ar tão duro e, se não ficar do meu lado, como é que eu vou explicar isto tudo ao Rei? E tenho muito medo do Arcebispo, mas estou completamente aterrorizada com o Rei.

- Dizei-me. Haveis-vos deitado com ele. Haveis procedido com ele como marido e mulher.

- Sim - digo, levada pela honestidade. - Sim, é verdade.

Ele retira a minha mão do braço dele, como se eu tivesse alguma infecção de pele e não me quisesse tocar. Como se eu fosse uma leprosa. Eu, que apenas dois dias antes era tão preciosa, que o país inteiro tinha dado graças a Deus por o Rei me ter encontrado! Não é possível. Não é possível que tudo tenha corrido mal, tão depressa.

- Terei em consideração a vossa confissão - diz ele. - Levá-la- ei diante de Deus, em oração. Tenho de informar o Rei. Ele decidirá que acusações tereis de enfrentar.

- Não podemos apenas esquecer que isso aconteceu? - murmuro eu, torcendo as mãos, sentindo o peso dos anéis nos meus dedos. - Já foi há tanto tempo. Já passaram anos. Já ninguém se consegue lembrar. O Rei não precisa de saber, vós mesmo haveis dito que isso lhe irá destroçar o coração. Dizei-lhe apenas que vos haveis enganado e que nada aconteceu. Não poderá ficar tudo como estava?

Ele olha para mim como se eu estivesse completamente louca.

- Rainha Catarina - diz ele com suavidade. - Vós haveis traído o Rei da Inglaterra. O castigo é a morte. Não sois capaz de o entender?

- Mas isso foi muito antes de me casar com ele - digo chorosa. - Não foi nenhuma traição ao Rei. Eu nem sequer o conhecia. O Rei irá, certamente, perdoar-me pelos meus erros de menina - consigo aperceber-me dos soluços que me sobem na garganta e não sou

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capaz de os dominar. - De certeza que ele não me vai julgar cruelmente pelos meus erros de infância, quando não era mais do que uma rapariguinha mal aconselhada? - engulo em seco. - Tenho a certeza de que Sua Graça vai ser bondoso comigo. Ele amava-me e eu fi-lo tão feliz. Ele agradeceu a Deus por me ter encontrado e isto, isto, não significa nada - as lágrimas correm-me pelo rosto, não estou a fingir que lamento, estou completamente aterrada por estar nesta situação, por ter de enfrentar este homem horroroso, tendo de me desdobrar em mentiras, para que as coisas não pareçam tão más. - Por favor, senhor, perdoai-me, por favor. Por favor, dizei ao Rei que eu não fiz nada de importante.

Ele afasta-se de mim.

- Acalmai-vos. Acalmai-vos. Não falaremos mais no assunto, por agora.

- Dizei que me perdoais, dizei que o Rei me vai perdoar.

- Tenho esperança de que o faça, espero que seja capaz. Espero que possais ser salva.

Agarro-me a ele, soluçando descontroladamente.

- Não podereis partir sem me dizer que serei salva.

Ele arrasta-se em direcção à porta, embora eu continue pendurada nele, como uma criança chorosa.

- Minha senhora, deveis acalmar-vos.

- Como é que posso ficar calma, se me dizeis que o Rei está zangado comigo?

Quando me dizeis que o castigo é a morte? Como é que posso ficar calma?

Como é que posso ficar calma? Tenho apenas quinze anos, não posso ser acusada, não posso...

- Deixai-me ir, Vossa Graça, este vosso comportamento é inadequado.

- Não partireis sem me abençoar.

Ele dá um puxão, para se afastar de mim e depois faz rapidamente o sinal da cruz, no ar, por cima da minha cabeça.

- Pronto. Já está, in nomine... filii... Pronto, acalmai-vos agora.

Deixo-me cair no chão a soluçar, mas ouço a porta fechar-se atrás dele e, mesmo assim, quando ele já lá não está para ver, não consigo parar de chorar.

Quando as portas se abrem e as minhas damas entram, continuo a chorar. Mesmo quando elas ficam todas em volta de mim, fazendo-me festas na cabeça, não me levanto nem me animo. Tenho tanto medo, tanto medo.

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Jane Bolena, Hampton Court, Novembro de 1541

O diabo do arcebispo aterrorizou a rapariga de tal modo que quase lhe tirou o juízo e, agora, ela não sabe se deve mentir ou confessar. O meu senhor, o Duque, acompanhou-o noutra visita e, enquanto tentam tirar a Rainha da cama, ele pára junto de mim.

- Ela vai confessar, em relação a Culpepper? - sussurra ele tão baixinho, que tenho de me inclinar para ele, para o conseguir ouvir.

- Se vós permitirdes que o Arcebispo a interrogue desta forma, ela acabará por confessar tudo - aviso-o num rápido murmúrio. - Não consigo mantê-la calma.

Ele atormenta-a, dando-lhe esperança, e depois ameaça-a com a maldição. Ela não passa de uma rapariga tola e ele parece estar decidido a quebrá-la. Vai levá-

la à loucura, se continuar a ameaçá-la.

Ele dá uma pequena risada, quase um grunhido.

- Ela fazia bem se pedisse a Deus para ficar louca, secalhar é a única coisa que a pode salvar - diz ele. - Santo Deus. Duas sobrinhas como rainhas da Inglaterra e ambas acabam no cadafalso!

- O que a poderia salvar?

- Não a podem executar, se ela estiver louca - diz ele, distraidamente. - Uma pessoa não pode ser julgada por traição, se estiver louca. Teriam de a mandar para longe, para um convento. Meu Deus, aquilo são os gritos dela?

Os gritos fantasmagóricos de Kitty Howard, pedindo para ser perdoada, ecoam pelos seus aposentos, enquanto as mulheres tentam trazê-la para a sala, para se encontrar com o Arcebispo.

- Que ireis vós fazer? - pergunto-lhe. - Isto não pode continuar.

- Vou tentar ficar longe disto - diz ele friamente. - Esperava que ela estivesse no seu juízo perfeito, hoje. Pretendia aconselhá-la a considerar-se culpada em relação a Dereham e negar tudo com Culpepper, uma vez que ela não fez nada mais do que casar-se, tendo já um pré-contrato de casamento, como aconteceu com Ana de Clèves. Ela poderia safar-se, desse modo. Mas, como as coisas estão, ela vai matar-se, antes de o carrasco a apanhar.

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- Manter-vos longe? - pergunto. - E eu?

O rosto dele parece uma rocha.

- Vós, o quê?

- Eu aceito o conde francês - digo-lhe rapidamente. - Seja qual for o contrato.

Viverei com ele, na França, durante alguns anos, onde ele quiser. Ficarei afastada enquanto o rei recuperar desta crise, não posso voltar para o exílio, não posso voltar para Blicking. Não suporto aquilo. Não quero passar outra vez pela mesma situação. Na verdade, não consigo. Aceito o conde francês, mesmo sem um bom acordo. Mesmo que ele seja velho e feio, nem que seja deformado.

Aceitarei o conde francês.

Ele desata a rir alto, às gargalhadas, rugindo como um urso numa luta, berrando mesmo em frente da minha cara. Eu retraio-me; mas o seu divertimento é genuíno. Nestes terríveis aposentos, repletos dos gritos das mulheres que pedem a Catarina para se recompor, do seu pranto agudo, do arcebispo a rezar, tentando fazer-se ouvir por cima do ruído, o Duque manifesta sonoramente a sua alegria.

- Um conde francês! - berra ele. - Um conde francês! Estais louca? Será que haveis ficado tão doida como a minha sobrinha?

- O quê? - pergunto bastante desconcertada. - De que vos estais a rir? Calai-vos, meu senhor. Calai-vos. Não há nada para rir.

- Nada para rir? - ele não se consegue conter. - O conde francês nunca existiu.

Nunca poderia ter existido um conde francês. Nunca poderia existir um conde francês, um conde inglês ou um barão inglês. Nunca poderia haver nenhum fidalgo espanhol ou um príncipe italiano. Nenhum homem no mundo vos aceitaria. Sois assim tão idiota que não percebais uma coisa dessas?

- Mas vós haveis dito...

- Eu disse o que foi preciso para vos manter a trabalhar para mim, da mesma forma que vós seríeis capaz de dizer fosse o que fosse para defender a vossa causa. Mas nunca, na verdade, pensei, que acreditáveis em mim. Não sabeis o

que os homens pensam de vós?

Sinto as pernas começarem a tremer, é tudo como da outra vez, quando percebi que teria de os trair. Quando percebi que teria de esconder a minha falsidade de mim mesma.

- Não sei - digo eu. - Não quero saber.

As mãos dele pousam com força nos meus ombros e ele arrasta-me até um dos valiosos espelhos com moldura dourada, da Rainha. Na suave imagem prateada vejo os meus olhos esbugalhados a olhar para mim, e o rosto dele, duro como o rosto da própria Morte.

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- Olhai - diz ele. - Olhai para vós mesma para ficardes a saber o que sois: uma mentirosa, uma esposa falsa. Não há um único homem no mundo que quisesse casar-se convosco. Sois conhecida na Europa inteira como a mulher que enviou o seu próprio marido e a cunhada para o carrasco. Sois conhecida em todas as cortes da Europa como uma mulher tão vil que até mandou o marido para a forca... - dá-me um abanão. - Para ser cortado ainda vivo, com os calções ensopados de urina - volta a sacudir-me - para ser aberto, desde o pénis até à garganta, para ficar a ver que lhe tiravam fora os intestinos, o fígado e as miudezas e que as exibiam à sua frente, para ficar a esvair-se em sangue, até à morte, enquanto queimavam o seu fígado, o coração, os intestinos e os pulmões, diante dos seus olhos - volta a sacudir-me - e para ser, finalmente, cortado às postas, como um animal num talho, a cabeça, os braços e as pernas.

- Não foi isso que lhe fizeram - murmuro eu, mas os meus lábios quase não se movem, no reflexo do espelho.

- Não, mas não foi graças a vós - diz ele. - E isso o que as pessoas recordam.

O Rei, o seu pior inimigo, poupou-o à tortura para a qual vós o havíeis enviado.

O rei permitiu que ele fosse decapitado, mas vós haveis feito com que ele fosse eviscerado. Vós, no banco das testemunhas, a jurar que ele e Ana tinham sido amantes, que ele tinha copulado com a sua própria irmã, que ele era um sodomita, um homossexual, com metade da corte, jurando que todos eles tinham planeado a morte do Rei, com total desprezo pela vida dele, mandando-o para

uma morte que não se deseja nem a um cão.

- Era o vosso plano - no espelho, o meu rosto está esverdeado de enjoo, ao ouvir finalmente a verdade a ser proferida em voz alta. Os meus olhos escuros saem fora das órbitas, com aquele horror. - Era um plano vosso. Não o meu. Não aceito as culpas por isso. Haveis dito que os iríamos salvar. Que eles seriam perdoados, se déssemos o nosso testemunho e se eles se considerassem culpados.

- Vós sabíeis que era mentira - abana-me como um terrier abanaria um rato. -

Vós sabíeis, sua mentirosa. Nunca fostes prestar declarações para o salvar.

Haveis prestado juramento para salvar o vosso título e a vossa fortuna, haveis-lhe chamado a vossa miserável, pequena herança, a herança dos Bolena. Sabíeis muito bem que se prestásseis juramento contra o vosso próprio marido, o Rei vos deixaria ficar com o título e com as terras. Era apenas isso que vos importava.

Era a única coisa que vos preocupava. Haveis mandado aquele rapaz e aquela beleza, a irmã dele, para a forca, para poderdes salvar a vossa pele de cobarde e o vosso miserável título. Julgais

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que algum homem vos confiaria outra vez algum título? Credes que algum homem se arriscaria a chamar-vos esposa? Depois daquilo?

- Eu ia salvá-lo - arreganho os dentes para nós os dois, no espelho. - Eu acusei-o para que ele pudesse confessar e ser perdoado. Eu tê-lo-ia salvo.

- Sois uma assassina, pior do que o Rei - diz ele brutalmente, atirando-me para um lado. Eu choco com a parede e agarro-me à tapeçaria para me segurar. -

Haveis testemunhado contra a vossa própria cunhada e o vosso marido, haveis permanecido junto do leito de morte de Jane Seymour, haveis testemunhado contra Ana de Clèves e gostaríeis que ela tivesse sido decapitada e, agora, ireis ver mais uma prima vossa ir para a forca e estou confiantemente à espera de que testemunheis contra ela.

- Eu amava-o - digo com teimosia, abordando a única coisa que não suporto ouvir. - Não podeis negar que eu amava Jorge. Amava-o de todo o coração.

- Então sois pior que uma mentirosa e uma falsa amiga - diz ele com frieza. -

Porque o vosso amor fez com que o homem que amáveis fosse conduzido a uma morte atroz. O vosso amor é pior do que ódio. Dezenas de pessoas odiavam

Jorge Bolena, mas foi a vossa palavra de amor que o conduziu à morte. Não sois capaz de ver a maldade que há em vós?

- Se ele tivesse ficado do meu lado, se se tivesse unido a mim, eu tê-lo-ia salvado - grito no meio da minha dor. - Se ele me tivesse amado como a amava a ela, se me tivesse deixado fazer parte da sua vida, se eu lhe tivesse sido tão querida como ela era...

- Ele nunca teria ficado do vosso lado - diz ele com desprezo, como se tivesse veneno na voz. - Ele nunca vos teria amado. O vosso pai comprou-o para vós, e pagou uma fortuna, mas ninguém, nem nenhuma fortuna, vos poderiam fazer amada. Jorge sentia desprezo por vós, e Ana e Maria riam-se de vós. Foi por isso que os haveis acusado, nada nessa fantasiosa mentira de auto sacrifício tem um fio de verdade. Vós haveilos acusado porque, se não podíeis ter Jorge, preferíeis vê-lo morto do que a amar a irmã.

- Ela meteu-se entre nós - digo ofegante.

- Os cães dele estavam entre vós - diz ele sem rodeios. - Os seus cavalos. Ele adorava os cavalos que tinha nos estábulos, amava os falcões que tinha nas gaiolas, mais do que vos amava a vós. E vós teríeis sido capaz de matar cada um deles: cavalos, cães e falcões, por puro ciúme. Sois uma mulher má, Jane, e eu usei-vos como poderia ter usado um pedaço de lixo. Mas agora não tenho mais nada que ver com aquela rapariga tola nem convosco. Podeis 416

aconselhá-la para que se defenda o melhor que puder. Podeis testemunhar a favor dela, podeis testemunhar contra ela. Não quero saber de ambas para nada.

Seguro-me à parede e chego-me para a frente para o olhar nos olhos.

- Vós não me tratareis desse modo - digo eu. - Eu não sou um pedaço de lixo, sou vossa aliada. Se vos virardes contra mim, ireis arrepender-vos. Eu sei todos os segredos. Sei o suficiente para a mandar para a forca e o suficiente para vos mandar a vós para lá, também. Destrui-la-ei, e vós ireis junto - estou a arquejar, vermelha de raiva. - Farei com que ela vá para o cadafalso com todos os Floward. Mesmo que, desta vez, eu também morra!

Ele continua a rir-se, mas agora está calado, já lhe passou a raiva.

- Ela é uma causa perdida - diz ele. - O Rei não quer mais nada com ela. Eu não quero mais nada com ela. Posso salvar-me, e é o que vou fazer. Vós caireis com a prostituta. Não conseguireis escapar pela segunda vez.

- Contarei ao Arcebispo tudo sobre Culpepper - ameaço. - Dir-lhe-ei que era vossa intenção que eles se tornassem amantes. Que me haveis dito para os juntar.

- Podeis dizer o que vos aprouver - responde ele, à vontade. - Não tereis qualquer prova. Houve apenas uma pessoa que foi vista a levar mensagens lá para dentro e a deixá-lo entrar nos aposentos dela. E essa pessoa sois vós. Tudo o que disserdes para me incriminar apontará para a vossa culpa. Ides morrer por causa disso e Deus sabe que não me faz a mínima diferença.

Começo a gritar, berro, deixo-me cair de joelhos e agarro-o pelas pernas.

- Não digais uma coisa dessas, eu servi-vos, há anos que vos sirvo, fui a vossa mais fiel serva e não tive praticamente qualquer recompensa. Levai-me daqui para fora e ela que morra, Culpepper pode morrer, mas eu ficarei em segurança, junto de vós.

Devagar, ele inclina-se para a frente e solta as minhas mãos, como se eu fosse uma espécie de erva daninha que se tivesse enroscado desagradavelmente em volta das suas pernas.

- Não, não - diz ele, como se tivesse perdido todo o interesse na conversa. -

Não. Ela já não pode salvar-se e eu não levantaria um dedo para vos salvar. O

mundo tornar-se-á um lugar bem melhor depois da vossa morte, Jane Bolena.

Ninguém sentirá a vossa falta.

- Eu sou vossa - olho para cima, para ele, mas não me atrevo a agarrá-lo outra vez. E assim, ele afasta-se de mim e bate na porta 417

que dá para o mundo exterior, onde as sentinelas, que costumavam estar do lado de fora para impedir qualquer pessoa de entrar, nos mantêm agora enclausuradas.

- Eu pertenço-vos - grito eu. - De alma e coração. Eu amo-vos.

- Eu não vos quero - responde ele. - Ninguém vos quer. E o último homem a quem haveis prometido amar morreu por causa do vosso testemunho. Sois uma

coisa má, Jane Bolena, o carrasco bem pode acabar aquilo que o Diabo começou, que a mim não faz qualquer diferença - detém-se, com a mão na porta, enquanto um pensamento lhe atravessa a mente. - Sou capaz de apostar que sereis decapitada no Relvado da Torre, o lugar onde mataram Ana - diz ele. - Isso é que é ironia. Apostaria que ela e o irmão já se estão a rir, no Inferno, à vossa espera.

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Ana, Palácio de Richmond, Novembro de 1541

Levaram Kitty Howard para o Palácio de Syon e está lá como prisioneira, apenas com algumas das suas damas. Prenderam dois rapazes da casa da avó dela e vão ser torturados até confessarem o que sabem, e depois voltarão ser torturados até que digam o que querem que eles digam. As suas damas de confiança também foram levadas para a Torre, para serem interrogadas. Lady Jane Bolena foi levada para a Torre, não sei sob que acusação. Sua Graça, o Rei, regressou da sua meditação no Palácio de Oatlands e voltou para Hampton Court. Dizem que anda muito calado, muito pesaroso, mas que não está zangado.

Temos de agradecer a Deus por ele não estar zangado. Se ele não se deixar levar por uma das suas raivas vingativas, pode ser que caia em autocomiseração e a mande banir da corte. Dizem que vai anular o casamento com a Rainha, com base na sua abominável conduta - são exactamente as palavras que ele pronunciou diante do Parlamento. Queira Deus que eles concordem com ele, que considerem que ela não tem perfil para ser rainha, para que a pobre criança possa ser libertada e para que os amigos dela possam voltar para casa.

Ela poderia ir para a França, seria uma delícia para aquela corte, que iria considerar a sua vaidade e a sua beleza um prazer para os olhos. Ou talvez pudessem convencê-la a ir viver para o campo, como eu, e a considerar-se mais uma irmã do Rei. Ela até poderia vir viver comigo e poderíamos ser amigas, como éramos no tempo em que eu era a rainha que ele não queria, e ela a donzela que ele desejava. Ela podia ser mandada para uma dezena de lugares diferentes onde não pudesse fazer qualquer mal ao Rei e onde a sua tontice pudesse fazer rir as pessoas, e onde pudesse crescer e transformar-se numa mulher sensata. Não deve haver ninguém que considere que ela deva ser executada. Ela, simplesmente, é demasiado jovem para ser executada. Não se trata de uma Ana Bolena que montou estratagemas e planeou o modo de chegar ao trono, ao longo de seis anos de luta, e que acabou por ser derrotada pela sua

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própria ambição. É uma rapariga que não tem mais juízo do que um dos seus gatinhos. Ninguém pode ser tão cruel ao ponto de enviar uma criança como esta para o cepo. Graças a Deus que o rei ficou triste e não zangado. Queira Deus que o Parlamento lhe recorde que o casamento pode ser anulado e rogo aos céus que o Arcebispo Cranmer se dê por satisfeito com a desgraça da Rainha, causada pelos seus amores de infância e não comece a investigar as suas loucuras depois de casada.

Não sei o que se passa na corte, nestes dias, mas estive com ela no Natal e no Ano Novo e, nessa altura, pareceu-me que ela estava pronta para ter um amante e desesperada por amor. E como é que poderia ter controlo sobre si mesma? É

uma rapariga que se está a transformar em mulher e que tem por marido um homem suficientemente velho para ser seu pai, um homem doente, impotente, talvez até louco. Mesmo uma rapariga sensata, nessas circunstâncias, seria capaz de se virar para um dos homens jovens que se juntam à sua volta, à procura de amizade e algum conforto. E Catarina está longe de ser sensata.

O Dr. Harst vem a cavalo, desde Londres, para me visitar e, mal chega, manda embora todas as minhas damas, para podermos falar a sós. Pela sua atitude, percebo que há notícias graves, da corte.

- Quais são as notícias sobre a Rainha? - pergunto-lhe mal elas vão embora e nós ficamos sentados, lado a lado, como conspiradores, à lareira.

- Ela ainda está a ser interrogada - diz ele. - Se houver mais qualquer coisa para descobrir, eles vão conseguir saber. Ela é mantida fechada nos seus aposentos de Syon e não tem permissão para falar com ninguém. Nem sequer a autorizam a passear cá fora, no jardim. O tio abandonou-a e ela não tem amigos.

Quatro das suas damas estão lá fechadas, juntamente com ela, e partiriam imediatamente, se pudessem. Os seus amigos mais chegados estão presos e a ser interrogados na Torre. Dizem que ela está sempre a chorar e a pedir que a perdoem. Está demasiado preocupada para comer ou dormir. Parece que se quer matar à fome.

- Que Deus a ajude, pobrezinha da Kitty - digo eu. - Que Deus a ajude. Mas certamente já têm motivos para a anulação do casamento dela com o Rei? Será que é suficiente para ele divorciar-se dela e deixá-la ir-se embora?

- Não, agora andam à procura de provas de coisas piores - diz ele imediatamente.

Ficamos ambos calados. Ambos sabemos o que ele quer dizer com isso e, os dois tememos que haja coisas piores para descobrir.

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- Vim ter convosco por causa de algo ainda mais grave do que isto - diz ele.

- Santo Deus o que pode haver de pior?

- Ouvi dizer que o Rei está a pensar voltar a receber-vos como esposa.

Por momentos fico tão perplexa que não consigo dizer nada, depois agarro os braços trabalhados da cadeira até que as pontas dos meus dedos ficam brancas.

- Não podeis estar a falar a sério.

- Estou. O Rei Francisco da França gostaria que os dois se voltassem a casar e que o vosso irmão e o Rei se juntassem a ele numa guerra contra a Espanha.

- O Rei quer outra aliança com o meu irmão?

- Contra a Espanha.

- Eles podem fazer isso sem mim! Podem fazer uma aliança sem mim!

- O Rei da França quer ver-vos reconduzida e o rei quer libertar-se das recordações de Catarina. Ficará tudo como antes. É como se nada disto tivesse existido. Como se vós tivésseis acabado de chegar à Inglaterra e tudo se possa passar como estava planeado.

- Ele pode ser Henrique da Inglaterra; mas nem mesmo ele consegue fazer com que o relógio ande para trás! - digo bem alto, enquanto me levanto e começo a andar de um lado da sala para o outro. - Eu não o farei. Não me arrisco. Ela manda-me matar ao fim de um ano. Ele é o assassino das suas mulheres. Arranja uma mulher e destrói-a. Transformou-se num hábito. Será a

minha morte!

- Se ele negociasse honradamente convosco...

- Já escapei dele uma vez, sou a única mulher dele que saiu viva do casamento! Não posso voltar atrás e colocar a cabeça no cepo.

- Fui informado de que vos ofereceriam garantias...

- Estamos a falar de Henrique da Inglaterra - argumento com o Dr. Harst. -

Um homem que provocou a morte das suas três esposas e que agora está a preparar o cadafalso para a quarta! Não há argumentos que me possam oferecer confiança. Se me colocardes na cama dele, sou uma mulher morta.

- Ele vai divorciar-se da Rainha Catarina, tenho a certeza disso. Foi o que expôs ao Parlamento. Eles sabem que ela não era virgem, quando se casou com ele. As notícias sobre o comportamento escandaloso dela foram dadas aos embaixadores, para eles as anunciarem nas cortes europeias. Ela é nomeada em público como prostituta. Ele vai afastá-la. Não a vai mandar matar.

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- Como podeis estar tão certo disso?

- Não há razão para ele a mandar matar - diz ele com suavidade. - Estais muito agitada, não estais a pensar com clareza. Ela casou-se com ele usando de falsos estratagemas, o que é pecado, e ela agiu mal. Ele já tomou esse facto público.

Mas, uma vez que ainda não eram casados, ela não o enganou, ele não tem motivos para fazer mais nada, a não ser deixá-la partir.

- Então por que anda ele à procura de mais provas contra ela? - pergunto-lhe. -

Se já tem provas suficientes para a designar como prostituta e se já tem provas que cheguem para a fazer passar pela vergonha e para se divorciar dela? Para que precisa ele de mais provas?

- Para castigar os homens - responde ele.

Os nossos olhos encontram-se, nenhum de nós sabe aquilo em que nos

atrevemos a acreditar.

- Tenho medo dele - digo num lamento.

- E deveis ter, ele é um rei temível. Mas ele divorciou-se de vós e manteve a palavra dele para convosco. Fez convosco um acordo justo e tem-vos deixado em paz e prosperidade. É possível que se divorcie dela e lhe ofereça um acordo financeiro, talvez seja esta a sua forma de resolver as coisas, agora. Então, poderá querer casar-se novamente convosco.

- Não posso - digo calmamente. - Acreditai em mim, Dr. Harst, mesmo que tenhais razão e ele trate Catarina com compreensão, até com generosidade, eu não me atreveria a casar-me com ele. Não consigo suportar a ideia de estar de novo casada com ele. Ainda agradeço a Deus, todos os dias, de joelhos, pela sorte de ter conseguido escapar, da última vez. Quando os conselheiros vos perguntarem, ou o meu irmão vos perguntar, ou se o embaixador francês vos perguntar, deveis dizer que eu decidi ficar solteira, e que acredito que estou impedida de me casar, devido ao pré-contrato, como disse o próprio Rei.

Exactamente como ele disse: não sou livre, para me poder casar. Deveis persuadi-los de que isso não pode ser feito. Juro-vos que não consigo. Não vou voltar a pousar a minha cabeça no cepo, à espera de ouvir o assobio do machado cair.

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Catarina, Abadia de Syon, Novembro de 1541

Vamos lá ver, então, o que é que eu tenho agora?

Tenho de dizer que as coisas não me estão a correr nada bem.

Tenho seis toucados franceses debruados a ouro. Tenho seis pares de camisas, seis saiotes lisos, seis vestidos, em azul-marinho, preto, verde-escuro e cinzento.

Não tenho jóias nem tenho brinquedos. Nem sequer tenho aqui o meu gatinho.

Tudo o que o Rei me ofereceu foi retirado dos meus aposentos por Sir Thomas Seymour - um Seymour! A levar os pertences dos Howard! Pensem no que isso nos vai custar a aceitar! - tudo, para ser devolvido ao Rei. Assim, de acordo com a situação, todas as coisas que eu mencionei antes nunca chegaram a ser realmente minhas. Eram empréstimos, nunca foram presentes.

Tenho três salas, com tapeçarias de muito fraca qualidade. As minhas criadas vivem num quarto e eu vivo nos outros dois com a minha meia-irmã Isabel, Lady Baynton, e duas outras damas. Nenhuma delas fala comigo, ressentidas com a situação em que se vêem envolvidas, por causa das minhas maldades e Isabel foi instruída para me fazer compreender a gravidade do meu pecado.

Tenho de dizer que não é uma companhia muito agradável, num espaço tão reduzido. O meu confessor está sempre pronto a ser chamado, no caso de eu ser tão louca a ponto de me querer enforcar, confessando-lhe aquilo que neguei aos outros todos e, duas vezes por dia, Isabel ralha comigo, como se eu fosse criada dela. Tenho alguns livros de orações e uma Bíblia. Tenho algumas coisas para costurar, camisas para os pobres; mas, a sério, penso que agora já devem ter camisas que cheguem, não? Não tenho pajens nem cortesãos, bobos, músicos ou cantores. Até os meus cãezinhos foram levados embora e sei que eles vão ficar tristes e deixar de comer, longe de mim.

Os meus amigos foram-se todos embora. O meu tio desapareceu como a neblina da manhã e dizem-me que a maior parte das pessoas da minha casa, Lady Rochford e Francis Dereham, Katherine

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Tylney e Joan Bulmer, Margaret Morton e Agnes Restwold, estão na Torre, a ser interrogadas.

Mas pior do que isso tudo, soube hoje que também levaram Thomas Culpepper para a Torre. O meu pobre e belo Thomas! Só de o imaginar a ser preso por um qualquer guarda horrível, já é um horror, mas, pensar que ele está a ser interrogado, faz-me cair de joelhos, pouso o rosto no tecido áspero da minha cama e desato a chorar. Se ao menos tivéssemos fugido, quando percebemos que estávamos apaixonados. Se ao menos ele me tivesse aparecido antes de eu ter ido para a corte, em Lambeth, quando eu era ainda uma menina. Se eu ao menos lhe pudesse ter dito que lhe pertencia, só a ele, quando cheguei à corte, antes de tudo isto ter começado a correr mal.

- Quereis que chame o vosso confessor? - diz friamente Lady Baynton, quando me encontra a chorar. Devem-lhe ter ordenado que dissesse isso, estão mortos para que eu vá abaixo e lhes conte tudo.

- Não - digo-lhe imediatamente. - Não tenho nada para confessar.

E o que é mais horrível é que estes foram os quartos onde esteve presa Lady Margaret Douglas, sozinha, em silêncio, pelo crime de se ter apaixonado.

Imaginem! Ela esteve aqui, como eu, vagueando de uma sala para outra, para trás e para a frente, presa, por gostar de um homem, sem saber do que poderia ser acusada, sem saber qual seria a sentença, quando iria ser executada. Ficou aqui sozinha, caída em desgraça, durante treze meses, na esperança de que o Rei a perdoasse, sem saber o que iria acontecer. Ela foi embora há apenas alguns dias, para que eu pudesse vir para cá - não posso acreditar nisto! - e levaram-na para Kenninghall, onde vai continuar presa até que o Rei a perdoe - se é que alguma vez a vai perdoar.

Penso nela, uma jovem apenas um pouco mais velha do que eu, fechada e só, tal como eu, presa pelo crime de amar um homem que também a amava, e agora, lamento não ter ido ter com o Rei para lhe implorar, de joelhos, que fosse misericordioso com ela. Mas como é que eu havia de adivinhar que um dia me viria a encontrar na mesma situação? Precisamente nos mesmos aposentos?

Suspeita de ser uma jovem apaixonada, exactamente como ela? Quem me dera ter-lhe dito que ela era apenas uma jovem, tonta, talvez, e que deveria ser aconselhada; não presa e castigada. Mas eu não disse uma palavra a favor dela, nem em defesa da pobre Margaret Pole, nem por todos os homens e mulheres de Smithfield. Não disse nada em defesa dos homens do Norte que pegaram em armas contra ele.

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Não pronunciei uma única palavra a favor de Thomas Cromwell e casei-me no dia em que ele morreu, sem lhe dedicar, sequer, um minuto de piedade. Não fiz nada para defender a filha do rei, a princesa Maria, e o que ainda é pior, queixei-me dela. Nem sequer disse uma palavra em defesa da minha própria ama e rainha, Ana, a quem eu adorava. Prometi-lhe lealdade e amizade e, no entanto, quando eles me pediram, assinei um papel contra ela, sem sequer me preocupar em lê-lo. E agora, não há ninguém que se ponha de joelhos e peça perdão por mim.

Obviamente, não sei o que está a acontecer. Se prenderam Henry Mannox juntamente com Francis Dereham, então, ele vai dizer tudo o que eles quiserem ouvir. Não ficámos muito amigos quando nos separámos, e ele não gosta nada de Francis. Vai dizer-lhes que ele e eu fomos amantes, e é mais que certo que vai contar que eu o troquei por Francis Dereham. O meu nome ficará bastante

enxovalhado e a minha avó vai ficar furiosa.

Suponho que irão perguntar às raparigas de Lambeth tudo a meu respeito, Agnes Restwold e Joan Bulmer não são minhas verdadeiras amigas, lá no seu íntimo. Gostavam muito de mim quando eu era a rainha e podia oferecer prendas, mas não me irão defender nem mentir por minha causa. E se eles conseguirem desencantar meia dúzia das outras, afundadas nas pobres vidas que devem estar a viver, essas serão capazes de dizer seja o que for, a troco de uma viagem até Londres. Se perguntarem a Katherine Tylney alguma coisa sobre Francis, ela vai contar-lhes tudo, não tenho qualquer dúvida. Todas as raparigas de Norfolk House sabem que Francis me considerava sua esposa e que eu agia de acordo com essa designação. Sabem que ele se deitava comigo, como se fôssemos marido e mulher, e eu não sabia - para ser honesta - se éramos realmente casados ou não. Nunca pensei muito a sério nesse assunto. Katherine Tylney não vai demorar muito a contar-lhes tudo o que se passava em Lambeth; só espero que não lhe façam perguntas sobre Lincoln, Pontefract ou FIull. Se ela lhes começa a dizer alguma coisa sobre as noites em que eu desapareci do meu quarto, isso irá conduzi-los na direcção de Thomas. Oh, Deus, se ao menos eu nunca o tivesse conhecido. Ele agora estaria a salvo, e eu também.

Se falarem com Margaret Morton, ela dirá que tivemos uma discussão, uma vez que ela tentou abrir a porta do meu quarto e a encontrou fechada à chave. Eu tinha lá Thomas, o meu querido Thomas, comigo na cama, e tive de atravessar o quarto a correr e gritar com as duas, para que mostrassem um pouco mais de respeito, enquanto segurava a porta meia fechada, para o manter fora de 425

vista. Elas riram-se descaradamente, pois sabiam que havia alguém lá dentro.

Oh, meu Deus, se eu ao menos não tivesse discutido com elas. Se as tivesse mimado com subornos e vestidos, talvez fossem agora capazes de mentir, por minha causa.

E agora, que penso nisso, Margaret estava do lado de fora, na sala de visitas, quando Thomas ficou comigo, nos meus aposentos privados, um dia, em Hampton Court. Passámos a tarde toda junto à lareira, aos beijos e a acariciar-nos, rindo dos cortesãos que estavam ali mesmo, do outro lado da porta. Na altura, ri-me da proximidade do perigo; agora, belisco a palma das mãos até a pele ficar vermelha e inchada, só de pensar em como fui estúpida. Mas, mesmo

agora, não o lamento. Mesmo que tivesse de morrer por causa dessa tarde, nunca me iria arrepender de ter sentido a boca dele na minha e das suas carícias. Graças a Deus que vivemos, pelo menos, isso. Nunca poderia desejar que não tivesse acontecido.

Vão trazer-me um novo tabuleiro com comida, dentro de pouco tempo. Nem lhe vou tocar. Não consigo comer, não consigo dormir, não consigo fazer nada, a não ser andar de um lado para o outro, nestas duas salas a pensar que Lady Margaret Douglas também andou por aqui, cheia de saudades do homem que amava. E ela não tinha metade dos amigos a dizer mal dela diante do mundo inteiro. Não teve cada um dos inimigos dos Howard a tentar virar o rei contra ela. Ela é a mulher mais infeliz que eu conheço, mas ainda assim com sorte, se comparada comigo.

Sei que Lady Rochford vai continuar a ser minha amiga, sei que vai. Ela sabe o que Thomas significa para mim e o que significo para ele. Ela vai manter a cabeça fria, já esteve em perigo antes, sabe como deve responder às perguntas. É

uma mulher mais velha, uma pessoa com experiência. Antes de nos separarmos, disseme: “negai tudo”, e é o que vou fazer. Ela sabe o que deve ser feito. Sei que ela se vai manter a salvo e salvar-me, juntamente consigo.

Ela sabe de tudo, é claro, o que é o pior. Sabe quando me apaixonei pelo Thomas e de tudo o que teve de fazer para nos proporcionar aqueles encontros secretos, das cartas e das vezes em que conseguimos roubar um bocadinho para estarmos juntos. Por minha causa, ela escondia-o atrás das tapeçarias que estavam penduradas nas paredes e, uma vez, escondeu-o na escuridão dum vão das escadas, em York. Ela conseguia levar-me até ele, às escondidas através de tortuosos corredores de casas desconhecidas. Ele tinha o seu próprio quarto, em Pontefract, e encontrámo-nos lá, depois de uma caçada. Ela dizia-me onde nos poderíamos encontrar e, uma noite em que o próprio Rei tentou abrir a porta de fora, com ideias de vir

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para a minha cama, ela manteve a calma e gritou-lhe que eu estava doente e a dormir, e mandou-o embora. Ela foi capaz de fazer isso! Mandou embora o rei da Inglaterra e nem por um segundo lhe tremeu a voz. Tem tanta coragem, não vai ficar para aí a chorar e a confessar. Atrevo-me a dizer que, mesmo que a torturem no potro, ela vai ficar apenas a olhar para eles com aquele rosto frio e

não vai dizer nada. Não tenho receio de que ela possa dizer alguma coisa. Confio nela, vai negar tudo o que perguntarem. Sei que posso confiar nela, para me defender.

No entanto... no entanto, e estou sempre a pensar nisso, ela não conseguiu salvar o marido quando ele foi acusado. Nunca quer falar sobre ele e isso também me faz pensar. Sempre pensei que era pela enorme tristeza que sentia, por causa dele, mas agora começo a imaginar se não haveria qualquer coisa pior do que isso. Catarina Carey tinha a certeza de que ela não tinha testemunhado a favor deles, mas contra eles. Como é que isso foi possível? E ela disse que tinha salvo a sua herança, não a eles. E contudo, como é que eles puderam morrer e ela conseguiu sair de cena, completamente livre, se não tivesse feito qualquer tipo de acordo com o Rei? Se foi capaz de trair uma rainha - para mais, cunhada dela, e condenar o próprio marido - por que razão me haveria de salvar?

Oh, sou assaltada por estes pensamentos de medo devido à situação em que me encontro, que não é nada fácil. Sei disso. A pobre Margaret Douglas deve ter ficado quase louca, a andar de uma sala para a outra, sem saber o que lhe iria acontecer. Imaginem o que deve ser passar aqui um ano, andando de um lado para o outro, sem saber se vamos ser libertadas. Não consigo suportar a espera mas, pelo menos, e ao contrário dela, tenho a certeza de que serei libertada dentro de pouco tempo. Estou certa de que tudo vai acabar bem mas, na verdade, preocupo-me com algumas coisas, com tudo, de facto. E uma dessas coisas com que me preocupo é tentar perceber como é que Ana Bolena foi morta, Jorge Bolena foi morto e Jane, a mulher dele, escapou? E como é que ninguém, alguma vez, disse fosse o que fosse acerca disso? E como é que ela conseguiu salvar a herança dele, mas o seu testemunho não o conseguiu salvar a ele?

Tenho de parar com isto, pois já começo a pensar que se ela testemunhar a meu favor, isso pode levar-me ao mesmo sítio que Ana Bolena, o que é ridículo, uma vez que Lady Ana era adúltera, bruxa, e foi culpada de traição. E tudo o que eu fiz foi ter ido um pouco longe de mais com Henry Manox e Francis Dereham, quando era miúda. E desde essa altura, ninguém sabe o que eu fiz e negarei tudo.

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Santo Deus, se levarem Thomas para ser interrogado, sei que ele vai mentir

para me proteger, mas se o torturarem no potro...

Isto não resolve nada. Só imaginar Thomas no potro, faz-me gritar como um urso numa luta, indefeso diante dos cães. Thomas a sofrer! Thomas a gritar, como eu estou a gritar agora! Mas não quero pensar nisso. Não pode acontecer.

Ele é o mais querido do Rei, é assim que o Rei o designa: o rapaz adorado. O Rei nunca seria capaz de fazer Thomas sofrer, nem a mim. Não tem razões para suspeitar dele. E até me atrevo a dizer que, se ele soubesse que Thomas me ama e eu o amo a ele, iria compreender. Quando amamos uma pessoa, compreendemos o que ela sente. Até é capaz de se rir e dizer que, depois de o nosso casamento estar terminado, poderemos casar-nos. Pode, inclusivamente, conceder-nos a sua bênção. Ele costuma perdoar as pessoas, especialmente os seus favoritos. Não é bem como se eu fosse Margaret Douglas, e me tivesse casado sem a sua autorização. Não se trata de eu o ter desafiado. Nunca faria algo de semelhante.

Meu Deus, ela deve ter pensado que iria morrer aqui. Só passaram alguns dias e já tenho vontade de gravar o meu nome nas paredes de pedra. Os quartos dão para os grandes jardins e consigo ver a luz do sol sobre a relva amarelada. Isto era uma abadia e as freiras que viviam aqui eram o orgulho da Inglaterra, pela severidade da ordem a que pertenciam e pela beleza dos seus cantos. Pelo menos, é o que diz Lady Bryant. Mas o rei expulsou as freiras e apoderou-se do edifício, por isso, agora, é como estar a viver dentro de uma igreja e eu juro que este lugar está assombrado pela tristeza delas. Não é um lugar próprio para mim, de maneira nenhuma. Afinal eu sou Rainha da Inglaterra e, mesmo que já não seja Rainha da Inglaterra, sou Catarina Howard, uma das mais importantes famílias do reino. Ser um Howard significa ser um dos mais importantes, apesar de tudo.

Mas vamos lá a ver, tenho de encontrar uma forma de me animar. Portanto, vejamos: o que é que eu tenho? Seis vestidos, o que não é muito, e de cores muito monótonas, cores de velha. Duas salas para uso próprio e um pequeno séquito para me servir. Portanto, estou numa situação um pouco melhor do que quando era apenas a pequena menina Catarina Howard e vivia em Lambeth.

Tenho um homem que me ama e a quem eu amo de todo o coração, tenho muito boas hipóteses de ser libertada e de poder casar-me com ele, creio eu. Tenho uma amiga fiel em Lady Rochford, que vai prestar testemunho a meu favor, Tom seria capaz de morrer para me salvar, por isso, o que tenho a fazer quando o Arcebispo voltar

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é continuar a confessar o que se passou com Francis Dereham e Henry Manox e não dizer uma palavra acerca de Tom. Sou capaz de o fazer. Mesmo uma tonta como eu é capaz de o fazer. E depois tudo vai acabar bem e, da próxima vez que for contar os meus pertences, já terei novamente muitas coisas bonitas. Não tenho qualquer dúvida. Não tenho mesmo dúvida nenhuma.

Mas durante todo o tempo em que me tento convencer de que vai ser assim, as lágrimas continuam a cair-me dos olhos e não consigo parar de soluçar. Não consigo parar de chorar, mesmo sabendo que me encontro numa situação muito favorável. De facto, a minha situação é bastante boa, sempre tive bastante sorte; só não consigo parar de chorar.

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Jane Bolena, Torre de Londres, Novembro de 1541

Estou tão aterrorizada que me parece que vou ficar realmente louca.

Continuam a fazer-me perguntas sobre Catarina e aquele idiota do Dereham e, no princípio, pensei que poderia negar tudo. Eu não estava lá, em Lambeth, na época em que eles eram amantes, e é óbvio que nunca foram amantes depois disso. Eu pude dizer-lhes tudo o que sabia, de consciência tranquila. Mas quando ouvi o som daquele enorme portão de madeira a fechar-se nas minhas costas e a sombra da Torre caiu friamente sobre mim, senti um pavor que nunca tinha experimentado.

Os fantasmas que me têm assombrado desde aquele dia de Maio irão apossar-se de mim agora. Estou no mesmo lugar que eles pisaram, sinto o gelo das mesmas paredes, enfrento o mesmo terror, estou a viver as suas mortes.

Meu Deus, deve ter sido assim com ele, com Jorge, o meu adorado Jorge. Ele deve ter ouvido aquele portão bater, deve ter reparado no vulto de pedra da Torre erguendo-se, ocultando o céu, deve ter percebido que os seus amigos e inimigos estavam algures, dentro destes muros, a mentir desalmadamente para se salvarem e o condenarem. E agora, estou eu aqui, a andar pelos sítios onde ele andou, compreendo o que ele sentiu, e sinto o que é o medo, da mesma forma que ele deve ter sentido.

Se Cranmer e os seus inquisidores não andarem à procura de mais nada, para

além da vida de Catarina quando era ainda jovem, antes de vir para a corte, já devem ter matéria suficiente para a destruir; de que mais precisam eles, para além disso? Se se ficarem pelos romances dela com o Manox e o Dereham, então, não precisam de nada mais de mim. Eu nem sequer a conhecia, nessa altura. Não tem nada que ver comigo. Por isso, não devia ter nada a temer. Mas, se é esse o caso, então porque estou eu aqui?

A sala é muito estreita, o chão é empedrado e as paredes de pedra estão cheias de humidade. As paredes estão cobertas de iniciais gravadas por pessoas que estiveram presas aqui antes de mim.

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Não vou procurar por um JB, Jorge Bolena; creio que enlouqueceria, se encontrasse o nome dele. Vou sentar-me, muito tranquila, junto da janela, a olhar lá para baixo, para o pátio. Não vou examinar as paredes à procura do nome dele, percorrendo com os dedos a pedra fria até encontrar a palavra ‘Bolena’, e tocar o local onde ele a gravou. Vou ficar aqui calmamente sentada a olhar lá para fora, pela janela.

Não, isto não é um bom sinal. As janelas dão para o Relvado da Torre, a minha cela está voltada para o local onde Ana foi decapitada por causa do meu testemunho. Não consigo olhar para aquele lugar, não consigo suportar o verde-vivo da relva - deve estar muito mais verde do que seria normal para o Outono.

Se eu olhar para o relvado, perco, de certeza, o juízo. Ela deve ter sentido o mesmo, enquanto estava à espera e devia saber que eu sabia o suficiente para que ela fosse decapitada. E deve ter compreendido que eu preferia que ela fosse decapitada. Devia ter consciência do quanto me atormentara, das provocações que me fizera e de quanto se rira de mim, até eu ficar fora de mim com os ciúmes. Deve ter pensado até onde eu seria capaz de ir para satisfazer a minha raiva maldosa, seria eu capaz de lhe provocar a morte? E então, ficou a saber.

Soube que eu tinha testemunhado contra os dois, que eu tinha falado com uma voz alta e firme e que os tinha condenado sem remorsos. Bem, agora sinto remorsos, Deus sabe que é verdade.

Sinto-me como se me tivesse andado a esconder da verdade durante todos estes anos, e foi preciso que aquele homem cruel, o Duque de Norfolk, me mostrasse tudo, com toda a clareza, e foi necessário ver estas paredes frias, para que tudo se tornasse real para mim. Eu sentia ciúmes de Ana, do seu amor por

Jorge e da devoção que ele lhe tinha e, quando fui servir de testemunha, não os acusei de factos que tivesse a certeza de serem verdadeiros, mas daquilo que mais os poderia prejudicar. Deus me perdoe. Via a ternura, o carinho e a bondade que ele tinha pela irmã e transformei isso em algo sujo, obscuro e maligno, só porque não conseguia suportar que ele não fosse carinhoso, solícito e bondoso para comigo. Levei-o à morte, só para o castigar por me ter negligenciado. E

agora, como numa antiga peça de teatro em que os deuses se enfurecem, continuo a ser negligenciada. Nunca estive tão só. Cometi o maior pecado que uma esposa pode cometer e, mesmo assim, continuo a não sentir qualquer satisfação.

O Duque retirou-se para o campo, nem eu nem Catarina o voltaremos a ver.

Conheço-o suficientemente bem para saber que a sua única preocupação será proteger a sua velha pele e a sua adorada

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fortuna. E o Rei precisa de um Howard para marchar, combater e executar em seu nome. O Rei pode odiá-lo por causa deste segundo adultério, mas não vai cair na asneira de perder um comandante e uma esposa. A avó de Catarina, a Duquesa, arrisca-se a perder a vida, por causa disto. Se conseguirem provar que ela sabia que Catarina, quando estava ao seu cuidado, pouco mais era do que uma prostituta, de certeza que a vão acusar de traição: por não ter avisado o Rei.

Se bem a conheço, deve estar a destruir documentos, a obrigar os criados a jurar segredo, a despedir antigos rendeiros e a limpar a sua casa. É capaz de conseguir esconder o suficiente para se poder salvar.

Mas, e eu?

O meu percurso é claro. Não vou dizer nada sobre Thomas Culpepper e o que posso dizer sobre Francis Dereham é que ele se tornou secretário da Rainha a pedido da avó dela e que, à minha frente, nada se passou entre eles. Se descobrirem qualquer coisa sobre Thomas Culpepper (e se procurarem só mais um pouquinho, de certeza que vão descobrir tudo sobre ele) então, vão perceber tudo. E se eles descobrirem tudo, direi que ela se deitou com ele em Hampton Court, da primeira vez que o rei ficou doente, durante todo o percurso da viagem de Verão, quando ela pensou que estava grávida, até ao dia em que todos nos tivemos de nos pôr de joelhos a agradecer a Deus por ela existir. Direi que, desde aquele primeiro dia, soube que ela era uma prostituta, mas que era ela quem me

dava as ordens, que o Duque me mandava fazer aquelas coisas e que eu não tinha liberdade para fazer o que considerava correcto.

É isto o que vou dizer. Ela morrerá por causa disso, o Duque também pode morrer pelo mesmo motivo, mas eu não.

É apenas isto que tenho de ter em consideração.

O meu quarto está virado para Leste, o sol ergue-se às seis da manhã e eu estou sempre acordada para o ver surgir. A Torre projecta uma longa sombra por sobre o verde vivo do relvado onde ela morreu, como se estivesse a apontar um dedo negro para a minha janela. Se começar a pensar em Ana, na sua beleza, no seu encanto, na sua inteligência e na sua sagacidade, julgo que enlouqueço. Ela esteve nestas salas, desceu por estas escadas, dirigiu-se para aquele espaço relvado (que eu poderia ver, se me aproximasse da janela; mas nunca me chego à janela) e pousou a cabeça no cepo, morrendo com coragem, sabendo que tinha sido traída por todos aqueles que haviam beneficiado com a sua ascensão.

Sabendo que o irmão e os amigos dele, todo o pequeno círculo que gostava tanto dela, haviam morrido no dia anterior, sabendo que tinha sido eu 432

quem prestara o testemunho fatal, que fora o seu tio quem decretara a sentença de morte e que o Rei rejubilara diante de tal decisão. Não posso pensar nessas coisas. Tenho de me poupar e não pensar mais no assunto.

Meu Deus, ela sabia que eu a tinha traído. Santo Deus, ele morreu no cadafalso, como traidor, sabendo que eu o tinha traído. Não deve ter percebido que eu o fazia por amor. Isso é o pior de tudo. Ele nunca chegará a saber que era por amor. Foi uma atitude tão maldosa, um gesto tão ditado pelo ódio, que ele nunca poderia ter chegado a compreender que eu o amava e não conseguia suportar que ele olhasse para outra mulher. Quanto mais para Ana. Quanto mais saber o que ele significava para ela.

Sento-me virada para a parede. Não consigo olhar lá para fora, não me atrevo a decifrar os escritos nas paredes da cela, com receio de encontrar as iniciais dele. Sento-me e pouso as mãos no regaço. Para alguém que me esteja a observar, tenho um ar calmo. Sou uma mulher inocente. Estou tão inocente e digna como, bem - digamos - Lady Margaret Pole, que também foi decapitada em frente à minha janela. Eu também nunca disse uma palavra para a defender.

Santo Deus, como é que eu ainda consigo respirar o ar que circula neste lugar?

Consigo ouvir o arrastar de muitos pés nas escadas. De quantas pessoas crêem eles que precisam? A chave roda na fechadura e a porta abre-se. Começo a ficar irritada com a lentidão. Será que eles pensam que me conseguem assustar com esta cena ameaçadora? Depois, entram. Dois homens e os guardas. Reconheço Sir Thomas Wriothsley, mas não sei quem é o escrivão. Fazem um grande rebuliço a preparar uma mesa e a colocar uma cadeira para mim. Deixo-me ficar de pé, tentando parecer despreocupada, com as mãos entrelaçadas. Então, apercebo-me de que estou a torcer as mãos, e obrigo-me a permanecer imóvel.

- Queremos fazer-vos perguntas sobre o comportamento da Rainha, em Lambeth, quando era solteira - diz ele. Acena com a cabeça para o escrivão, para lhe indicar que deve escrever.

- Eu não sei nada sobre esse assunto - digo eu. - Como podereis ver pelos vossos próprios registos, nessa altura eu estava na província, em Blicking Hall, ao serviço da Rainha Ana, a quem prestei bons e honrados serviços. Eu não conhecia Catarina Howard, até ela ficar ao serviço da Rainha Ana.

O escrivão faz uma marca, uma só. Consigo vê-la. É um visto. Isto significa que sabiam o que eu ia dizer e não é nada que valha a pena escrever. Eles prepararam-se para esta entrevista, não devo

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confiar em nada do que disserem. Sabem o que querem dizer e o que querem que eu responda. Tenho de estar preparada. Tenho de estar armada contra eles. Quem me dera poder pensar com clareza, gostaria que os meus pensamentos não estivessem numa agitação tão grande. Tenho de ficar calma e de ser esperta.

- Quando a Rainha aceitou Francis Dereham como seu secretário, sabíeis que ele era um seu velho amigo e anterior amante?

- Não, eu não sabia nada sobre a sua vida passada - digo eu.

O escrivão coloca um visto. Também isto era esperado.

- Quando a Rainha vos pediu para levar Thomas Culpepper aos seus aposentos, sabíeis quais eram as suas intenções?

Fico estarrecida. Como é que passamos, num salto, de Francis Dereham para Thomas Culpepper? Como é que eles sabem de Thomas Culpepper? O que é que sabem sobre ele? O que será que ele lhes terá dito? Será que está a ser torturado no potro, a vomitar de dor e a dizer a verdade devido ao sofrimento?

- Ela nunca mo pediu - digo eu.

Desta vez, o escrivão anota um travessão.

- Nós já sabemos que ela vos pediu para o irdes buscar, e sabemos que ele veio. Então, para salvar a vossa vida, podereis dizer-nos o que se passou ente Thomas Culpepper e Catarina Howard?

A pena do escrivão está suspensa, consigo pressentir as palavras na minha boca seca. Acabou tudo. Ela está perdida, ele é um homem morto e eu estou à beira de uma traição: de novo.

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Ana, Palácio de Richmond, Dezembro de 1541

A Duquesa Viúva de Norfolk foi interrogada, no seu leito de doente, acerca do comportamento da bisneta. Vai ser julgada por ter permitido que a rapariga se casasse com o Rei, sem o ter avisado que ela já não era virgem. Isto, agora, é considerado traição. Vai ser acusada de traição porque a bisneta teve um amante.

Se for considerada culpada, haverá mais uma cabeça de uma velha dama no cepo de Henrique.

Dereham foi acusado, juntamente com Culpepper, de traição presuntiva. O

motivo é ambos terem mantido relações sexuais com a Rainha. Dereham foi acusado, ainda que não haja provas contra ele, e a maior parte das pessoas acredita que ele se deitou com ela muito antes de ela ser Rainha, antes até de eu ter sido rainha. Mesmo assim, isto deve ser considerado traição. O Rei decidiu que Catarina Howard deve ser apelidada de ‘prostituta vulgar’. - Oh Kitty, como é que alguém pode falar assim de vós! Os dois homens admitiram ser culpados de traição presuntiva, esperançados num perdão. Ambos negam ter-se deitado com a Rainha. O juiz deles - embora possa parecer incrível para toda a gente, menos para um súbdito do Rei Henrique - é o Duque de Norfolk, que sabe mais sobre o assunto do que qualquer um deles. Sua Graça, o Duque, regressou da província para ouvir os testemunhos de que a sua sobrinha Catarina tinha

prometido casar-se com Dereham, que o tinha deixado entrar no seu quarto e na sua cama. Ouviu dizer que Dereham tinha vindo para a corte dela quando já era rainha e isso, aparentemente, é suficiente para considerar o jovem casal culpado.

Por que outro motivo, perguntam os inquisidores indignados, teria Dereham vindo trabalhar para a Rainha, se não fosse para a seduzir? A ideia de que ele teria tido esperanças de tirar proveito do sucesso dela, como fizeram todos os outros, incluindo o tio, nem sequer foi mencionada.

Culpepper começou por negar, mas depois de as damas da Rainha terem prestado depoimento, entre elas Lady Rochford,

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percebeu que não tinha salvação e, agora, considera-se culpado. Os dois rapazes vão ser semienforcados, os seus ventres vão ser abertos, as suas vísceras serão tiradas para fora e depois serão cortados em pedaços, enquanto sangram até à morte, pelo crime de amarem a bela jovem que se casou com o Rei.

Isto ensombra antecipadamente o futuro de Catarina. Eu bem o sei, e ponho-me de joelhos todos os dias, rezando por ela. Se os homens acusados de a amar vão ser mortos do modo mais cruel que a Inglaterra conseguiu inventar, então, as hipóteses de ela ser perdoada e libertada são, de facto, muito ténues. Receio que ela venha a passar o resto da sua vida na Torre. Meu Deus, ela tem apenas quinze anos, nesta altura. Será que eles não percebem que, há dois anos, ela era demasiado jovem para poder avaliar a situação? Será possível que o seu próprio tio não tenha pensado que não é provável que uma rapariguinha de treze anos seja capaz de resistir à tentação, quando está continuamente a ser incentivada a tornar realidade todos os seus caprichos? Nem sequer me dou ao trabalho de avaliar o que Henrique terá pensado, Henrique é louco. Não pensou em mais nada, a não ser no prazer que iria ter com ela e na sua própria credulidade de que ela o adorava. É por isto que ela vai ter de pagar: por ter defraudado os sonhos visionários de um louco. Como eu fiz.

Quando me afastei dele enojada, em Rochester, ele passou a detestar-me por causa disso, e castigou-me o mais depressa que pôde, dizendo que eu era feia e gorda, que tinha os seios descaídos e uma grande barriga: disse que eu não era virgem, que sofria de flatulência: que eu, de facto, cheirava muito mal. No momento em que Kitty preferiu um homem jovem e belo, ao corpo dele, inchado e putrefacto, ele chamou-lhe escandalosa e prostituta. Castigou-me com a

vergonha e o exílio da corte, e depois divertiu-se a exibir a sua generosidade.

Não me parece que ela vá escapar assim com tanta facilidade.

Estou de joelhos no genuflexório dos meus aposentos privados quando ouço a porta abrir silenciosamente nas minhas costas. Tenho tanto medo da minha própria sombra, nestes tempos perigosos, que me viro imediatamente para olhar.

É Lotte, a minha dama e secretária, e o seu rosto está pálido.

- O que se passa?

Levanto-me imediatamente, aos tropeções, porque o meu calcanhar fica preso na bainha do vestido, quase caio e tenho de me agarrar ao pequeno altar para me segurar. A cruz abana e cai ao chão.

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- Prenderam a vossa criada Francês, e também levaram Richard Taverner.

Fico ofegante de terror e depois espero até conseguir estabilizar a respiração.

Ela pensa que o meu rosto inexpressivo significa que não compreendo e repete, em alemão, a terrível notícia que acabou de me transmitir:

- Prenderam a vossa criada Francês, e também levaram Richard Taverner.

- Acusados de quê? - digo num murmúrio.

- Não querem dizer. Os inquisidores já estão cá dentro de casa. Vamos todos ser interrogados.

- Eles devem ter dito alguma coisa.

- Apenas que todos vão ser interrogados. Até vós.

Fico gelada de medo.

- Depressa - digo eu -, ide imediatamente aos estábulos e pedi a um rapaz que apanhe um barco que desça o rio até Londres, para ir ter com o Dr. Harst. Deve dizer-lhe que me encontro em grande perigo. Ide imediatamente. Ide pelas

escadas do jardim e certificai-vos de que ninguém vos vê.

Ela acena com a cabeça e começa a dirigir-se para a pequena porta privada que dá para o jardim, quando a outra porta que dá para a minha sala de audiências é aberta e cinco homens entram.

- Parai imediatamente - ordena um deles, ao ver a porta aberta. Lotte pára e nem sequer olha para mim.

- Estava apenas a dirigir-me ao jardim - diz ela em inglês. - Preciso de apanhar ar. Não me sinto bem.

- Vós estais presa - responde ele.

Dou um passo em frente.

- Por que razão? De que é que ela é acusada?

O homem mais velho, um que eu não conheço, aproxima-se de mim e faz uma ligeira vénia.

- Lady Ana - diz ele. - Circulam em Londres notícias de que tem havido alguns delitos na vossa casa. O Rei ordenou-me que investigássemos. Qualquer pessoa que tente esconder alguma coisa ou se recuse a colaborar com a investigação será considerado um inimigo do Rei e acusado de traição.

- Somos todos leais súbditos do nosso senhor, o Rei - digo imediatamente.

Consigo detectar o medo na minha voz. De certeza que ele também consegue. -

Não há qualquer delito na minha casa, estou inocente de qualquer crime.

Ele concorda. Kitty Howard deve ter dito o mesmo; bem como Culpepper e Dereham.

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- Estes são tempos difíceis e temos de arrancar o pecado pela raiz - diz ele apenas. - Se vos aprouver, podereis ficar nesta sala, com esta dama como companhia, se o desejardes, enquanto interrogamos os vossos criados. Depois,

viremos falar convosco.

- O meu embaixador deveria ser informado - digo eu. - Não aceito ser tratada como um mulher comum. O meu embaixador terá de ser informado do vosso inquérito.

Ele sorri.

- Ele está a ser interrogado em sua casa, neste preciso momento - diz ele. - Ou melhor, deveria ter dito, na estalagem onde ele está a viver. Se eu não soubesse que ele era o embaixador de um grande duque, tê-lo-ia confundido com um comerciante mal sucedido. Ele não vive com muitos luxos, pois não?

Coro de embaraço. Mais uma vez, por culpa das atitudes do meu irmão. O Dr.

Harst nunca recebeu um ordenado decente e nunca dispôs de um alojamento condigno. Agora, estou a ser criticada pela mesquinhez do meu irmão.

- Podeis interrogar quem vos aprouver - digo o mais corajosamente que consigo - não tenho nada a esconder. Vivo como o Rei me ordenou, quando assinámos o nosso acordo. Vivo sozinha, não recebo mais visitas do que aquilo que é normal e adequado, as minhas rendas foram recebidas e as minhas contas estão pagas. Pelo que sei, os meus criados são sóbrios e disciplinados, frequentamos a igreja e rezamos de acordo com as regras ditadas pelo Rei.

- Nesse caso, não tendes nada a recear - diz ele. Olha para a minha cara pálida e sorri. - Por favor, não tenhais receio. Só os culpados devem mostrar que têm medo.

Abro os lábios numa espécie de sorriso e dirijo-me à minha cadeira para me sentar. Os seus olhos viram-se para o crucifixo caído e para a toalha que está a escorregar do genuflexório e ergue uma sobrancelha, chocado.

- Haveis atirado ao chão a cruz de Nosso Senhor? - murmura ele horrorizado.

- Houve um acidente - até para mim, a desculpa soa fraca. - Apanhai-o, Lotte.

Ele troca um olhar com os outros homens, insinuando que isto é uma evidência que devem anotar; a seguir, sai da sala.

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Catarina, Palácio de Syon, Natal de 1541

Vejamos, o que tenho eu agora?

Ainda tenho os meus seis vestidos e os seis toucados. Tenho dois quartos com vista para o jardim que vai até ao rio, lá ao fundo, e onde posso agora passear, se quiser; mas não quero, pois está um frio tremendo e sempre a chover. Tenho um bonito fogão de sala de pedra e uma quantidade apreciável de lenha, trazida para aqui por minha causa, uma vez que as paredes são frias e, quando o vento sopra de Leste, fica tudo muito húmido. Tenho pena das freiras que tiveram de passar aqui toda a sua vida e peço a Deus para que seja libertada dentro de pouco tempo. Tenho uma cópia da Bíblia e um livro de orações. Tenho um crucifixo (muito simples, sem qualquer jóia) e um genuflexório. Tenho a assistência relutante de algumas aias para me ajudarem a vestir, para além de Lady Baynton, e outras duas mais, para me fazerem companhia, durante a tarde. Nenhuma delas se sente muito alegre.

E parece-me que é tudo o que tenho, neste momento.

O que torna tudo ainda pior é que estamos no Natal, e eu gosto tanto do Natal.

No ano passado dancei com a Rainha Ana, na corte, e Henrique sorria para mim, eu usava os meus pingentes de diamante, com vinte e seis diamantes lapidados, e o meu colar de pérolas, e a Rainha Ana ofereceu-me o meu cavalo, ajaezado de veludo violeta. Dancei com Thomas, todas as noites, e Henrique dizia que éramos o par mais belo do mundo. Thomas pegou-me na mão, à meia-noite, na véspera de Natal e, quando me deu um beijo na face, murmurou-me ao ouvido:

“Sois bela”.

Ainda o consigo ouvir, ainda ouço o seu murmúrio: “Sois bela”. Agora, está morto, separaram-lhe aquela magnífica cabeça do corpo, e eu até posso ainda ser bonita, mas não tenho sequer um espelho para me poder confortar com isso.

Pode parecer estúpido dizer algo de semelhante, mas, mais do que qualquer outra coisa, estou absolutamente espantada pela forma como tudo pôde mudar tanto, em tão pouco tempo. A festa

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de Natal, em que eu era recém-casada e a mais bela rainha do mundo foi apenas o ano passado, por esta altura, apenas o ano passado e agora, aqui estou eu, na

pior situação em que alguma vez me encontrei e, talvez, a pior em que alguém se possa encontrar. Parece-me que agora estou a aprender bastante com a sabedoria que vem do sofrimento. Tenho sido uma rapariga muito tola, mas agora já sou uma mulher. Na verdade, acho que seria uma mulher boa, se tivesse a oportunidade de voltar a ser rainha. Penso, deveras, que seria uma boa rainha, desta vez. E, visto que o meu amado Thomas morreu, creio que iria ser fiel ao Rei.

Quando penso em Thomas, a morrer por minha causa, quase não consigo suportar. Quando penso que ele já cá não está, que desapareceu, não consigo compreender. Antes, nunca pensava na morte, não me tinha apercebido de que é algo assim tão, tão definitivo. Não posso acreditar que nunca mais o vou ver neste mundo. Isto quase me faz acreditar que o céu existe e tenho esperança de o voltar a encontrar lá, e de nos voltarmos a apaixonar; só que, dessa vez, eu não estarei casada.

Tenho a certeza de que, quando me libertarem, todos vão perceber que, agora, sou uma pessoa muito melhor. Não fui julgada, como o pobre Thomas, nem torturada, como ele. Mas, mesmo assim, tenho sofrido bastante, à minha maneira tonta. Tenho sofrido ao pensar nele, no amor que sentíamos e que lhe custou a vida. Tenho sofrido ao pensar nele a tentar manter o nosso segredo e temendo por mim. E tenho saudades dele. Ainda continuo apaixonada por ele, mesmo que ele já não esteja neste mundo e já não possa estar apaixonado por mim. Continuo a amá-lo, mesmo que ele tenha desaparecido, e sinto a sua falta, como qualquer mulher sentiria a falta do seu amado, durante os primeiros meses de namoro.

Continuo à espera de o ver, mas depois lembro-me de que nunca mais o verei.

Isto é mais doloroso do que aquilo que eu julgava possível.

De qualquer forma, o único aspecto positivo de tudo isto é que já não há mais ninguém que possa testemunhar contra mim, uma vez que Thomas e Francis estão mortos. Eles eram os únicos que sabiam o que aconteceu e agora já não podem testemunhar contra mim. Isto deve querer dizer que me vão libertar.

Talvez me libertem no Ano Novo e eu tenha de ir viver para um lugar terrivelmente aborrecido. Ou talvez o Rei me perdoe, agora que Thomas está morto, e me deixe ser uma das suas irmãs, como a Rainha Ana, e que então possa, pelo menos, ir à corte passar o Verão e os festejos do Natal. É possível que no próximo Natal eu já esteja outra vez

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feliz. Pode ser que receba presentes maravilhosos no próximo ano, e que, ao olhar para trás, para este horrível Natal, me possa rir de mim mesma, por ter sido tão tola ao ponto de pensar que a minha vida tinha acabado.

Os dias são terrivelmente longos, mesmo que amanheça tão tarde e escureça tão cedo. Estou contente por me estar a tornar mais nobre através do sofrimento pois, de outra forma, tudo seria uma enorme perda de tempo. Estou a desperdiçar a minha juventude neste lugar horrível. No meu próximo aniversário faço dezasseis anos, serei praticamente uma mulher velha. É chocante, ter de esperar semana após semana num lugar destes, enquanto a minha juventude se vai gastando. Tenho mantido um pequeno registo dos dias, na parede junto da janela e, quando olho para as marcas que lá raspei, parece que nunca mais vão ter fim.

Por vezes, deixo escapar um dia e não o registo, para que o tempo não me pareça tão longo. Mas isso dá origem a uma contagem errada, o que é uma maçada. É

tão estúpido não ser capaz de, pelo menos, manter uma contagem exacta dos dias. Mas também não tenho bem a certeza de que queira realmente saber. E se ele me mantiver aqui durante anos? Não, isso não pode acontecer. Espero que o Rei passe o Natal em Whitehall e que, depois do Dia de Reis, me mande libertar.

Mas eu nem sequer sei quando isso vai ser, pois acabei por baralhar toda a minha contagem. Por vezes penso que a minha avó tinha razão e que eu sou uma idiota, o que é muito desencorajador.

Tenho receio de que o Rei ainda esteja muito desagradado comigo, embora tenha a certeza de que ele não me vai culpar de tudo, como o arcebispo Cranmer parece fazer. Mas quando me encontrar com ele, estou convencida de que me vai perdoar. Ele é como o velho mordomo da Duquesa, que nos dizia que todos iríamos ser castigados por termos andado aos saltos no feno, ou por termos quebrado os ramos das macieiras; dava umas palmadas num ou dois dos rapazes e, quando chegava a minha vez, eu olhava para ele com os olhos cheios de lágrimas, ele dava-me uma palmadinha na cara e dizia-me para não chorar e que tudo tinha sido culpa das crianças mais velhas. Espero que o Rei faça como ele, quando eu me encontrar, de verdade, com ele. Não é óbvio que isso aconteça, uma vez que ele sabe tudo, e também sabe que eu era uma rapariga tonta, e sempre muito fácil de levar pelas más companhias? E também vai, com certeza, perceber, na sua sabedoria, que me apaixonei e que não fui capaz de lutar contra isso? Uma pessoa da idade dele deve compreender que uma rapariga, ao apaixonar-se, pode

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esquecer aquilo que é certo e o que é errado? Uma rapariga pode apaixonar-se e não pensar em mais nada, a não ser na próxima vez que se vai encontrar com o namorado. E agora, que o pobre Thomas me foi roubado e que nunca mais o voltarei a ver, já devo ter sido, com certeza, suficientemente castigada?

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Jane Bolena, Torre de Londres, Janeiro de 1542

E assim, continuamos à espera.

O Rei deve estar inclinado a perdoar àquela prostituta da Rainha dele, já que está à espera há tanto tempo. E, se ele lhe perdoar, também me perdoa a mim, e eu escapo ao machado, mais uma vez.

Ah, ah! Em que anedota se transformou a minha vida, ter vindo parar aqui à Torre onde o meu marido esteve preso, aguardando o destino que ele teve, quando me podia ter afastado da corte e daquela vida, quando poderia ter ficado a viver em segurança e com conforto, em Norfolk. Já tinha escapado uma vez, tinha conseguido salvar o meu título e a minha pensão. Para que voltei eu para lá, a correr?

Na verdade, pensei que o conseguiria libertar. Acreditei que, se confessasse tudo, a favor dele, iriam perceber que ela era uma bruxa, como eles diziam, uma adúltera, como a denominavam, e iriam perceber que ele tinha sido enlaçado e escravizado e que então o libertariam, para poder ficar comigo; eu tê-lo-ia levado embora comigo, para a nossa casa, para Rochford Hall, faria com que ele recuperasse a saúde, e poderíamos ter tido os nossos filhos e ter sido felizes.

Era esse o meu plano e o que devia ter acontecido. Pensei mesmo que ela iria para o cepo e que ele iria ser poupado. Pensei que ia ver aquele seu pescoço maravilhoso partido em dois, mas que iria salvar o meu marido e que o teria, finalmente, na minha cama. Convenci-me de que o poderia confortar por a ter perdido e que ele iria acabar por reconhecer que não tinha perdido grande coisa.

Não foi bem o que aconteceu.

Não, não foi bem assim.

Por vezes, suponho que pensei que ela ia ser morta e que essa seria a paga por

ter sido a cadela maldosa que era, que ele também ia morrer, mas por culpa dela, e que ele iria compreender, quando

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estivesse no cadafalso, que a deveria ter abandonado e ter-me amado, a mim.

Que eu sempre tinha sido uma boa esposa e que ela sempre havia sido uma má irmã. Creio que julguei que, se era necessário que ele subisse ao cadafalso para compreender a amiga falsa que ela havia sido, então, valia a pena. Nunca pensei realmente que ambos morressem e que eu nunca mais os poderia ver. Na verdade, nunca acreditei que ambos pudessem desaparecer assim da minha vida, desta vida, e que eu nunca mais os fosse ver. Como é que se pode conceber algo de semelhante? Que iria surgir um dia em que eles já não poderiam entrar pela porta dentro, a caminhar de braço dado, rindo-se de uma piada, o toucado dela à altura da cabeça dele, com o seu cabelo escuro e encaracolado, a mão dela pousada no braço dele, ambos seguros, ambos belos e nobres. O par mais inteligente, mais glamoroso e elegante da corte. Que mulher, casada com ele, não iria, ao olhar para ela, desejar logo que estivessem ambos mortos, em vez de andarem a passear eternamente, de braço dado, seguros da sua beleza e cheios de orgulho?

Meu Deus, espero que a Primavera venha cedo, este ano; as tardes escuras são com um pesadelo que nunca mais tem fim, neste quarto pequeno. Está escuro até às seis da manhã e, às três da tarde, já fica escuro outra vez. Por vezes, os guardas esquecem-se de substituir as velas e tenho de me sentar junto da lareira para ter luz. Estou sempre com frio. Se a Primavera vier cedo e eu conseguir ver a luz do dia a subir, dourada, pelo parapeito de pedra da janela, isso significará que consegui sobreviver a estes dias escuros e terei a certeza de que vou sobreviver para poder apreciar muitos outros. Pelas minhas contas - e quem conhece o Rei melhor do que eu? - se não a tiver mandado decapitar até à Páscoa, nunca mais o mandará fazer.

Se ele não a mandar decapitar até à Páscoa, eu vou escapar, pois, por que razão haveria ele de a poupar e mandar-me matar a mim, se fui acusada juntamente com ela? Se ela tiver juízo e negar tudo, poderá sobreviver. Espero que alguém se tenha lembrado de lhe dizer que, se negar tudo acerca de Culpepper, mas disser que, aos olhos de Deus, se sentia casada com Dereham, poderá ficar viva. Se admitir ser esposa de Dereham, então não terá enganado o Rei, apenas Dereham; e, uma vez que a cabeça dele já está espetada na Ponte de

Londres, não estará em posição de se poder queixar. Dá-me vontade de rir, pensar numa escapadela tão óbvia para ela, mas se ninguém lho disser, poderá morrer, por falta de esperteza.

Santo Deus, porque havia eu, que era irmã de Ana Bolena, de me meter numa conspiração com uma desmiolada, como esta prostituta da Catarina?

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Fiz mal em confiar no Duque de Norfolk, pensava que estávamos a trabalhar em conjunto, confiei que ele me arranjaria um marido e que eu iria conseguir um bom partido. Agora sei que não se pode confiar nele. Devia ter percebido isso antes. Ele usou-me para manter Catarina sob controlo, e depois voltou a usar-me para a colocar no caminho de Culpepper. E agora, foi para o campo e a sua própria madrasta, o filho dela e a mulher dele estão aqui, algures, na Torre, e vão todos morrer pelo papel que desempenharam ao enganar o Rei, e ele não vai mexer um dedo para os salvar. Ele não vai mexer um dedo para salvar a própria madrasta, não vai dar um passo para tentar salvar a sua jovem sobrinha; e Deus sabe que ele não vai mover uma palha para me salvar a mim.

Se eu conseguir sobreviver a isto, se eu for poupada, hei-de encontrar alguma forma de o acusar de traição e hei-de vê-lo limitado a uma cela, vivendo num terror diário, a ouvir o ruído dos homens que erguem o cadafalso debaixo da sua janela, à espera que o guardião da Torre venha ter com ele para lhe dizer que amanhã foi o dia escolhido, que é amanhã que vai morrer. Se eu conseguir ultrapassar tudo isto, hei-de fazê-lo pagar por tudo o que me disse, pelo que me chamou, pelo que lhes fez. Irá sofrer, neste quarto pequenino, aquilo que agora eu estou a sofrer.

Quando penso no que me aconteceu, quase fico louca de terror O meu único conforto, a minha única esperança é saber que, se enlouquecer de medo, eles não me vão poder executar. Um louco não pode ser decapitado. Era capaz de me rir, se não tivesse receio de que o som do meu riso se possa ouvir, do lado de lá dos muros. Um doido não pode ser executado, portanto, no final de contas, se tudo correr pelo pior, vou escapar ao cepo em que Catarina vai morrer. Vou fingir que estou louca e eles vão mandar-me para Blicking, com uma pessoa a tomar conta de mim, e aos poucos, irei recuperando o juízo.

Nalguns dias, faço-me um bocadinho desvairada, para eles pensarem que tenho tendência para isso. Por vezes desato a gritar que está a chover e faço com que me encontrem a soluçar, só porque as telhas, do lado de fora da minha janela, estão a brilhar por causa da humidade. Nalgumas noites começo a gritar, dizendo que a Lua me está a sussurrar, desejando-me sonhos felizes. Para dizer a verdade, até eu própria fico assustada. Alguns dias, quando não estou a fingir que estou louca, começo a pensar que devo ser doida, que devo ter sido louca, completamente insana, talvez desde a infância. Doida, por me ter casado com Jorge, que nunca me amou, doida, por o ter amado e odiado com tal paixão, por ter testemunhado

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contra ele, infinitamente louca por o ter amado com tamanha paixão que fui capaz de o enviar para o cadafalso...

Parar, tenho de parar. Não posso pensar nisto, neste momento. Não quero ver isto à minha frente. Tenho de me comportar como se estivesse louca. Não me posso deixar enlouquecer. Tenho de fingir a loucura, não senti-la. Tenho de me lembrar de que tudo o que poderia ter feito por Jorge foi feito. Tudo o mais que alguém possa dizer contra esse facto, é mentira. Eu fui uma esposa boa e leal e fiz tudo para tentar salvar o meu marido e a minha cunhada. E também tentei salvar Catarina. Não me podem atribuir as culpas se os três eram tão cruéis uns quanto os outros. Na verdade, deviam era ter pena de mim, por ter tido tão pouca sorte na vida.

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Ana, Palácio de Richmond, Fevereiro de 1542

Estou sentada numa cadeira, na minha sala, com as mãos pousadas no regaço e três senhores do Conselho Privado à minha frente, com rostos graves.

Mandaram finalmente chamar o Dr. Harst, portanto, este deve ser o momento do julgamento, depois de semanas a interrogarem o meu pessoal, a verificarem as contas da casa e até a conversarem com os rapazes que trabalham nos estábulos, para saberem onde vou, quando saio a cavalo, e quem costuma ir comigo.

Estiveram nitidamente a tentar saber se eu tenho encontros secretos mas, se desconfiam que estou envolvida numa conspiração com o imperador, com a Espanha, a França ou com o papa, ainda não consegui perceber. São capazes de

suspeitar que eu tenha arranjado um amante, podem acusar-me de pertencer a um grupo de bruxas. Perguntaram a toda a gente onde tenho ido e quem me visita com regularidade. As pessoas que privam comigo, são o ponto principal do inquérito deles, mas não consigo saber de que suspeitam.

Uma vez que estou inocente em relação a conspirações, luxúria ou bruxaria, deveria ser capaz de manter a cabeça erguida e declarar que tenho a consciência tranquila, mas há uma rapariga bem mais nova do que eu a ser julgada, em risco de vida, e há homens e mulheres, de uma pureza absoluta, que morreram queimados neste país, apenas por discordarem do Rei sobre a elevação da Hóstia. A inocência já não é suficiente.

Mesmo assim, mantenho a cabeça erguida, pois sei que, quando um poder muito mais forte se volta contra mim, seja ele o do meu irmão, com a sua desenfreada crueldade, ou o do Rei da Inglaterra, na sua louca vaidade, é sempre melhor manter a cabeça erguida, ter coragem e esperar que possa surgir o pior. O

Dr. Harst, pelo contrário, está a transpirar, a sua testa está coberta de gotículas e, de vez em quando, limpa o rosto com um lenço todo sujo.

- Houve uma alegação - diz Wriothsley pomposamente.

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Olho para ele com frieza. Nunca gostei dele, nem ele de mim, mas por Deus, ele está ao serviço de Henrique. Seja o que for que Henrique queira, este homem vai-lhe entregar o serviço, com uma capa de legalidade. Vamos ver o que quer Henrique, desta vez.

- O Rei ouviu dizer que haveis dado à luz uma criança - diz ele. - Disseram-nos que haveis tido um rapaz, neste Verão, e que tinha sido escondido pelos vossos confederados.

O queixo do Dr. Harst caiu-lhe quase até ao peito.

- Que brincadeira é esta? - pergunta ele.

Mantenho o meu rosto completamente sereno.

- É mentira - digo eu. - Não estive com qualquer homem desde que me separei de Sua Graça, o Rei. E como vós mesmo haveis comprovado: não tive relações sexuais com ele. O próprio Rei jurou que eu era virgem, nessa altura, e continuo a sê-lo. Podeis perguntar às minhas aias e comprovar que não dei à luz qualquer criança.

- Já interrogámos as vossas aias - responde ele, vê-se que se está divertir com a situação. - Questionámos todas elas e recebemos respostas muito diferentes.

Tendes alguns inimigos, dentro da vossa casa.

- Lamento sabê-lo - digo eu. - E sou culpada por não ter sido mais severa com elas. Por vezes as aias mentem. Mas essa é a minha única culpa.

- Elas contaram-nos coisas piores - diz ele.

O Dr. Harst fica completamente escarlate, está a ter dificuldade em respirar.

Deve estar a perguntar-se, tal como eu, o que poderá ser pior do que um parto secreto. Se estes são os preparativos para um julgamento fictício e uma acusação de traição, então o caso, contra mim, está a ser cuidadosamente construído.

Duvido que me possa defender de testemunhos ajuramentados e de um recém-nascido de outra pessoa qualquer.

- O que poderia ser pior? - pergunto.

- Diz-se que não houve qualquer criança, mas que haveis fingido dar à luz uma criança, um rapaz, e que haveis confirmado aos vossos confederados que ele é filho do Rei e o herdeiro do trono da Inglaterra. Que planeais, com o apoio de alguns papistas traidores, colocá-lo no trono da Inglaterra e usurpar o lugar dos Tudor. Que resposta tendes para isto, Senhora?

A minha garganta está completamente seca, não consigo encontrar as palavras certas, procuro uma resposta persuasiva, mas não me ocorre nada. Se quiserem, podem prender-me imediatamente, apenas com base nesta acusação. Se tiverem uma testemunha

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que diga que eu fingi que tinha tido um filho e que afirmei que ele era filho do Rei, então vão conseguir provar que sou culpada de traição e irei juntar-me a Catarina, em Syon, e morreremos ambas, duas infelizes rainhas, no mesmo

cadafalso.

- Digo que não é verdade - respondo simplesmente. - Seja quem for que vos tenha dito isso, é um mentiroso e uma testemunha falsa. Não sei nada sobre qualquer conspiração contra o Rei e nunca faria parte de qualquer acção contra ele. Sou sua irmã e uma fiel súbdita, como ele me pediu que fosse.

- Negais que tendes cavalos preparados para vos levarem para a França? - diz ele num ataque súbito.

- Nego - digo eu.

Mal as palavras me saem da boca, percebo que foi um erro, pois eles já sabem que temos cavalos à nossa espera.

Sir Thomas sorri, percebe que já me apanhou.

- Negais? - volta a perguntar-me.

- Eles estão à minha espera - diz o Dr. Harst com voz trémula. - Eu tenho dívidas, como sabeis, envergonho-me de o dizer, mas tenho muitas dívidas.

Pensei que, se os meus credores se tornassem demasiado insistentes, poderia ir rapidamente a Clèves, falar com o meu amo e pedir-lhe mais dinheiro. Tenho mantido os cavalos preparados, para o caso de os credores quererem vir atrás de mim.

Olho para ele absolutamente incrédula. Ele faz-me uma vénia.

- Peço-vos perdão, Lady Ana. Devia ter-vos informado. Mas sentia-me tão envergonhado.

Sir Thomas olha para os outros dois conselheiros e eles acenam-lhe com a cabeça. É uma explicação, mesmo que não seja a que eles teriam preferido.

- Portanto - diz ele com brusquidão. - As vossas duas criadas que inventaram esta história contra vós foram presas por calúnia e serão levadas para a Torre. O

Rei está determinado a que a vossa reputação não sofra qualquer mácula.

A mudança é quase forte de mais para mim. Parece que vou ficar livre de qualquer suspeita e penso imediatamente que se trata de um truque.

- Fico muito grata a Sua Majestade pela sua fraternal preocupação - digo com cuidado. - Considero-me a sua súbdita mais fiel.

Ele acena com a cabeça.

- Ainda bem. Vamos embora, agora. O Conselho vai querer saber que o vosso nome foi ilibado.

- Ides partir? - pergunto.

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Sei perfeitamente que eles estão à espera de me apanhar num momento de alívio. Não sabem o quanto estou assustada. Não me parece provável que consiga alguma vez festejar o facto de ter escapado, porque nunca vou acreditar nisso.

Como se estivesse a sonhar, levanto-me da cadeira e acompanho-o para fora da sala, descemos a escadaria que conduz à porta principal onde o seu séquito o espera, a cavalo, com o estandarte real à frente.

- Espero que o Rei esteja bem - digo eu.

- O seu coração está despedaçado - diz Sir Thomas com franqueza. - É um assunto muito triste, muito grave, de facto. A perna tem-lhe provocado muitas dores e o comportamento de Catarina Howard causou-lhe uma grande infelicidade. Toda a corte está de luto nesta época de Natal, quase como se ela tivesse morrido.

- Ela vai ser libertada? - pergunto eu.

Ele lança-me um rápido olhar desconfiado.

- O que pensais?

Abano a cabeça, não sou louca para lhe dizer o que penso, especialmente agora, quando eu mesma acabei de ser julgada.

Se alguma vez pudesse dizer a verdade, diria que há vários meses que estou convencida de que o Rei perdeu o juízo e que ninguém tem coragem de o desafiar. Ele tanto pode libertá-la e aceitá-la de novo como sua esposa ou considerá-la sua irmã, como mandá-la decapitar, depende da sua disposição. Ele seria capaz de me chamar outra vez para reassumir o nosso casamento ou mandar-me decapitar por traição. Ele é um louco monstruoso e parece que ninguém percebe isso, para além de mim.

- O Rei será o juiz - diz ele, confirmando os meus pensamentos silenciosos. -

Só ele é guiado por Deus.

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Jane Bolena, Torre de Londres, Fevereiro de 1542

Rio-me, dou saltos, por vezes olho pela janela e converso com as gaivotas.

Não vai haver qualquer julgamento, qualquer interrogatório, qualquer hipótese de ilibar o meu nome, portanto não há qualquer vantagem em manter-me no meu perfeito juízo. Eles não se atrevem a colocar a idiota da Catarina diante do tribunal, ou ela recusou-se a ir, não sei qual das duas hipóteses, também não quero saber. Só sei aquilo que me dizem. Falam muito alto comigo, como se eu fosse surda ou velha, e não louca. Disseram-me que o parlamento tinha aprovado uma Bill of Attainder contra Catarina e contra mim, por traição e conspiração.

Fomos julgadas e consideradas culpadas, sem juiz, jurados ou defesa. É a justiça de Henrique. Faço um ar pateta, dou risadas, canto uma pequena canção e pergunto quando é que vamos caçar. Agora, já não deve faltar muito tempo.

Penso que daqui a alguns dias irão buscar Catarina a Syon para a decapitar.

Enviam-me o próprio médico do Rei, o Dr. Butt, para me observar. Ele vem todos os dias e senta-se numa cadeira, no meio do quarto, e fica a observar-me por debaixo das suas espessas sobrancelhas, como se eu fosse um animal selvagem. Ele tem de decidir se estou louca. Isso faz-me rir às gargalhadas, sem precisar de fingir. Se este médico soubesse avaliar se alguém está louco, teria mandado encarcerar o Rei há seis anos, antes de ele ter assassinado o meu marido. Faço uma vénia ao bondoso doutor, danço à sua volta e rio-me dele, quando quer saber o meu nome e me faz perguntas sobre a minha família. Sou absolutamente convincente, posso aperceber-me disso pelo seu olhar compungido. Sem dúvida, terá de dizer ao Rei que eu perdi completamente o juízo e que vão ter de me libertar.

Ouçam! Ouçam! Eu consigo ouvir! O barulho de serras e mar, castelos.

Espreito pela janela e bato palmas, como se estivesse encantada por ver os trabalhadores montar o cadafalso; o cadafalso de Catarina. Vão cortar-lhe a cabeça debaixo da minha janela. Se conseguir

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, poderei ver tudo. Vou ter a melhor vista. Quando ela estiver morta, vão mandar-me embora, provavelmente para junto da minha família, em Blicking, e depois, posso ir calmamente ficando sã outra vez, em segredo. Não vou ter pressa, não quero que ninguém faça perguntas sobre mim. Vou continuar a dançar durante um ano ou dois, a cantar canções e a conversar com as nuvens e, ao fim desse tempo, quando o novo rei, o Rei Eduardo, estiver no trono e as velhas dívidas estiverem esquecidas, voltarei para a corte, para servir a nova rainha, o melhor que puder.

Oh! Uma prancha de madeira caiu com estrondo e um rapaz leva um bofetão por ser descuidado. Vou colocar uma almofada no banco da janela e vou ficar a vê-los durante todo o dia, é tão divertido como assistir a uma encenação na corte, observá-los a tirar medidas, a serrar e a construir. Tanta confusão para construir um palco como este, quando o espectáculo só vai demorar alguns minutos!

Quando me trazem o jantar, começo a bater palmas e a apontar para lá, e os guardas abanam a cabeça, pousam os pratos e vão embora em silêncio. Catarina, Abadia de Syon, Fevereiro de 1542

É uma manhã como qualquer outra, calma, sem nada para fazer, sem ter nada para me entreter, não há divertimentos nem tenho companhia. Estou tão aborrecida com tudo e comigo mesma que, quando ouço o ruído de passos no caminho que fica do lado de fora da minha janela, fico completamente entusiasmada por pensar que vai acontecer alguma coisa - nem me preocupa saber o quê. Corro, como uma criança, para a janela alta, olho lá para fora e vejo uma escolta real formar-se ao longo do caminho que liga o jardim ao rio. Vieram numa barcaça e trazem o estandarte do meu tio, o Duque, os homens usam a libré da casa dele e lá está ele, com o ar poderoso e mal-humorado de sempre, à frente deles, juntamente com meia dúzia de outros, do Conselho Privado.

Até que enfim! Até que enfim! Sinto-me tão aliviada que quase começo a chorar, ao vê-los. É o meu tio que me vem ter comigo! O meu tio veio ter comigo para me dizer o que devo fazer. Por fim vou ser libertada. Ele veio

finalmente ter comigo e eu vou ficar livre. Sou capaz de imaginar que o meu tio me vai levar para uma das suas casas no campo, o que não será muito divertido; mas é melhor do que ficar aqui. Ou talvez eu tenha de ir para longe; França, talvez. França seria óptimo, o único problema é que não sei falar francês, pelo menos sei dizer ‘Voilà’, mas, de certeza, a maioria deles fala inglês. E se não fala, pode sempre aprender.

As portas abrem-se e o chefe da minha casa entra. Os seus olhos estão cheios de lágrimas.

- Minha Senhora - diz ele. - Vieram buscar-vos.

- Eu sei! - respondo toda contente. - E também não precisais de embalar os meus vestidos, pois não me faz diferença nenhuma se não os tornar a ver, vou mandar fazer uns novos. Para onde vou?

A porta abre-se um pouco mais e aparece o meu próprio tio, com ar compenetrado, como é próprio da situação, pois esta, obviamente, vai ser uma cena plena de solenidade.

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- Vossa Graça! - digo eu.

Mal consigo evitar piscar-lhe o olho. Então, conseguimos ultrapassar a situação, não é verdade? E lá vamos nós outra vez. Ele com ar grave, e eu à espera de ordens. Ele deve ter algum plano para me fazer regressar ao trono e ser perdoada, dentro de um mês. Eu pensava que com um problema grave e que ele me tinha abandonado; mas, aqui está ele e, para onde quer que ele vá, a prosperidade segue-o. Olho bem para a cara dele, quando me levanto de uma pequena vénia, sorrindo, e reparo que ele apresenta um ar demasiado solene e, por isso, assumo também um ar sério. Baixo os olhos e fico com um ar maravilhosamente arrependido. Estou bastante pálida, por estar sempre dentro de casa, e estou convencida de que, com os olhos pousados no chão e os meus lábios a fazerem um ligeiro beicinho, devo ter um ar perfeitamente santificado.

- Vossa Graça - digo num tom ligeiramente pesaroso.

- Trago notícias sobre a vossa sentença - diz ele.

Aguardo.

- O Parlamento do Rei reuniu-se e aprovou uma Bill of Attainder.

Se eu soubesse o que aquilo queria dizer, saberia melhor como responder. Mas neste caso, considero ser melhor abrir apenas um pouco mais os olhos e fazer um ar simpático. Suponho que uma Bill of Attainder seja assim uma espécie de perdão oficial.

- O Rei deu o seu assentimento.

- Sim, sim, e então? O que é que isso significa para mim?

- Ireis ser levada para a Torre e sereis executada em privado, no Relvado da Torre, logo que seja possível. As vossas terras e tudo o que vos pertence reverterão a favor da Coroa.

A sério que não faço ideia do que é que ele está a falar. Para além do mais, e graças à má protecção que prestou à minha fortuna real, agora já não tenho terras nem nada que me pertença para poder mencionar. Não me esqueci de Thomas Seymour, a tirar-me as minhas jóias, como se elas ainda pertencessem à irmã dele.

Ele parece um pouco surpreendido com o meu silêncio.

- Haveis compreendido?

Não digo nada, mas continuo com ar de santa.

- Catarina! Haveis compreendido?

- Eu não sei o que quer dizer proscrita - confesso. Soa-me a um pedaço de carne que está estragada.

Ele olha para mim como se eu fosse meia imbecil.

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- Suspensão de direitos civis - corrige-me ele. - Não é proscrita. Sem direitos civis.

Encolho os ombros. Que importa como é que se diz? Quer dizer que vou voltar para a corte?

- Significa que o Parlamento vos condenou à morte e que o Rei deu o seu consentimento - diz ele calmamente. - Tudo será feito sem haver julgamento.

Haveis sido condenada à morte, Catarina. Sereis decapitada no Relvado, na Torre.

- Morte?

- Sim.

- Eu?

- Sim.

Olho para ele. Deve ter um plano.

- Que devo fazer? - pergunto-lhe num murmúrio.

- Tereis de reconhecer os vossos pecados e pedir perdão - diz ele prontamente.

Sinto-me tão aliviada que quase começo a chorar. É claro que me vão perdoar, se eu disser que estou arrependida.

- O que devo dizer? - pergunto-lhe. - Dizei-me, exactamente, o que devo dizer.

Ele apresenta uma folha de papel enrolada, que retira do bolso do casaco. Ele tem sempre um plano. Deus o abençoe, ele sempre tem um plano. Eu desenrolo a folha e olho para o meu tio. O texto é terrivelmente longo. Ele faz-me sinal com a cabeça. Aparentemente, tenho de o ler até ao fim. Começo a ler em voz alta.

No primeiro parágrafo, sou eu, a reconhecer o meu enorme crime contra o Rei, contra o Deus Supremo e contra toda a nação inglesa, o que me parece um verdadeiro exagero, uma vez que não fiz mais do que aquilo que fazem centenas de raparigas, todos os dias, especialmente se estiverem casadas com homens velhos e desagradáveis; e, no meu caso, fui tratada de um modo muito injusto.

Apesar disso, continuo a ler as palavras que estão no papel e o Duque acena com a cabeça, e os conselheiros fazem o mesmo, portanto, é óbvio que estou a dizer tudo muito bem, e todos estão contentes comigo, o que é sempre bom. Depois, digo que imploro a Sua Majestade que não impute o meu crime aos meus parentes e à minha família, mas que estenda a sua infinita misericórdia e benevolência sobre eles, de modo a que não tenham de sofrer pelos meus erros.

No original, trocadilho entre “attainted” (proscrito) e “attainder” (suspensão dos direitos civis). (N. da T.)

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Lanço um duro olhar ao meu tio, pois torna-se evidente para mim quem é que está a tentar assegurar que não vai ser incomodado por causa dos meus problemas. A sua expressão é completamente inocente. A seguir, peço ao Rei que ofereça os meus vestidos às minhas aias, depois da minha morte, dado que não possuo mais nada para lhes oferecer. Isto é tão triste que tenho dificuldade em ler aquilo em voz alta. Imaginem só! Eu, com tudo aquilo que já tive, sem ter nada para dar! Imaginem a minha situação, a desfazer-me dos meus vestidos, porque nunca mais os vou usar! E como é ridículo pensar que eu me vou preocupar com o que vai acontecer àqueles seis miseráveis vestidos, às seis camisas, aos saiotes a aos seis toucados franceses, que nem uma jóias têm, para mais, das cores mais horrorosas que consigo imaginar. Até os podem queimar na fogueira, que a mim não faz diferença nenhuma.

Mas, apesar daquela história dos vestidos e do facto de o meu tio estar a tentar salvar a pele, na altura em que acabo de ler o discurso, estou a chorar de tristeza e todos os conselheiros ficam com ar de sofrimento; é uma cena pungente que eles poderão relatar ao Rei, e não tenho a menor dúvida de que ele vai ficar comovido ao imaginar-me a pedir perdão pelas outras pessoas e a desfazer-me do meu pequeno guarda-roupa. É tão triste que até me faz chorar; e sei perfeitamente que é tudo de faz-de-conta, como se passa com a eterna mania que o Rei tem de se disfarçar. Se eu acreditasse que era tudo verdade, ficaria completamente destroçada.

O meu tio acena com a cabeça. Já fiz o que ele queria e agora é a vez de ele convencer o Rei de que estou completamente arrependida e preparada para

morrer. Isso deve ser o máximo que se pode pedir, creio eu. Vão todos embora pelo mesmo caminho que percorreram ao chegar, e eu tenho de ficar ali sentada na minha única cadeira, com o meu vestido horroroso, à espera que eles regressem, para me dizerem que, uma vez que estou assim tão arrependida, tudo me foi perdoado.

Desta vez, estou à espera da barcaça e estou de pé, junto da janela, desde muito cedo. Normalmente, já que não tenho motivos para me levantar cedo e não tenho nada para fazer, tento dormir toda a manhã, desde a hora do pequeno-almoço até à hora do almoço, mas hoje, tenho a certeza de que eles vão aparecer com o perdão real, e quero estar com muito bom aspecto. Mal surge a luz do dia, toco a sineta para chamar a minha criada, para ela tirar todas as minhas roupas do armário. Humm, que grande escolha que tenho à 456

minha frente! Um vestido preto, outro azul-escuro, quase preto, um outro verde-escuro, que é quase preto, um castanho, um outro cinzento e, para o caso de ser necessário, mais um vestido preto. Assim, que irei vestir? Mas será que tenho escolha? Decido-me pelo vestido preto, mas uso-o com umas mangas em verde-escuro e com o toucado verde-escuro, o que, para aqueles que se preocupam com coisas dessas, simbolizará o meu arrependimento e o meu amor pelo verde Tudor. Para além do mais, dão aos meus olhos um tom verde lindíssimo, o que é sempre bom.

Não faço ideia de como se vão desenrolar os acontecimentos e prefiro estar sempre preparada para estas cerimónias. O chefe da minha casa costumava dizer-me sempre em que sítio me devia colocar e como me devia comportar, e eu gosto de treinar estas coisas. É o que dá ter sido rainha muito jovem, sem ter sido realmente preparada para isso. Mas, tanto quanto sei, nenhuma rainha foi perdoada depois de ter sido acusada de adultério e traição, e de tudo o mais, portanto, acho que teremos de ir improvisando, à medida que a situação for evoluindo. De qualquer forma, o lobo velho do meu tio, sem dúvida me irá guiar durante todo o processo.

Às nove da manhã, já estou vestida e à espera, mas não aparece ninguém.

Assisto à missa e tomo o pequeno-almoço num silêncio amuado, e continua a não acontecer nada. Mas então, pouco antes do meio-dia, ouço o bem-vindo som de passos sobre as pedras do caminho e corro para a janela; consigo ver o chapéu

quadrado do meu tio a abanar, os bastões nas mãos dos outros conselheiros, o estandarte real à frente deles, e corro de novo para a minha cadeira, sento-me com os pés juntos, as mãos pousadas no regaço, olhos postos no chão, e faço um ar de grande arrependimento.

Abrem-se as portas duplas e entram todos, vestidos com as suas melhores roupas. Levanto-me e faço uma vénia diante do meu tio, uma vez que ele é o chefe da nossa casa, mas ele já não me cumprimente como Rainha. Mantenho-me de pé e fico à espera. Surpreende-me o facto de ele não exibir um ar mais aliviado, agora que tudo terminou.

- Viemos buscar-vos para vos conduzir para a Torre - diz ele.

Concordo, acenando com a cabeça. Tinha pensado que iríamos para Kenninghall mas talvez ainda seja melhor assim, o Rei usa muitas vezes a Torre como sua residência de Londres, se calhar vou encontrar-me com ele, lá.

- Como quiserdes, Senhor Duque - digo docemente.

Ele parece um pouco surpreendido com o meu tom reservado. Tenho de me esforçar bastante para não me rir.

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- Catarina, ides ser executada - diz ele. - Ireis para a Torre, acusada de serdes uma traidora.

- Traidora? - repito.

- Eu disse-vos isso, da última vez - diz ele com impaciência. - Haveis sido condenada sem direito a julgamento. Eu disse-vos. Não foi preciso levar-vos a julgamento, vós haveis entendido. Haveis confessado os vossos pecados. Essa confissão foi considerada uma prova contra vós. Agora, chegou a hora da sentença.

- Eu confessei para poder ser absolvida - afirmo eu.

Ele olha para mim bastante irritado.

- Mas não fostes perdoada - diz ele. - Só faltava decidir a sentença.

- E? - digo com alguma insolência.

Ele respira fundo, como se precisasse de controlar a sua irritação.

- Sua Graça concordou com a vossa condenação à morte.

- Ele vai perdoar-me quando eu chegar à Torre? - sugiro eu.

Para aumentar a minha crescente ansiedade, ele abana a cabeça.

- Por amor de Deus, rapariga, como podeis ser tão idiota? Não podeis ter essa esperança. Não há razões para isso. Logo da primeira vez que ficou a saber o que havíeis feito, pegou na espada e disse que ele mesmo vos mataria. Acabou, Catarina. Deveis preparar-vos para a morte.

- Isso não pode acontecer - digo eu. - Só tenho quinze anos. Ninguém me pode condenar à morte quando eu tenho apenas quinze anos.

- Eles podem - diz ele friamente. - Acreditai em mim, e é o que vão fazer.

- O Rei impedi-los-á.

- É esta a sua vontade.

- Vós podeis impedi-los.

Os olhos dele são tão frios como os de um peixe pousado numa pedra de mármore.

- Não o farei.

- Então, deve haver alguém que o possa fazer!

Ele vira a cabeça.

- Levai-a - diz ele.

Meia dúzia de homens entra na sala, em formação, a guarda real que costumava desfilar de uma forma tão bonita, em minha homenagem.

- Eu não vou - digo eu. Agora, estou realmente com medo. Invisto-me da minha autoridade para lhes gritar. - Não irei. Não me podeis obrigar.

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Eles hesitam por alguns momentos e olham para o meu tio. Ele faz um pequeno gesto cortante com a mão.

- Levai-a - volta a dizer.

Volto-me e corro para o meu quarto, tento fechar a porta atrás de mim, mas isso só os atrasa por alguns segundos, pois conseguem segurá-la antes que feche e chegam rapidamente junto de mim. Consigo agarrar um dos postes da cama e aperto os dedos com firmeza em volta dele.

- Não vou! - grito. - Não podeis obrigar-me. Não podeis tocar-me! Sou a Rainha da Inglaterra! Ninguém me pode tocar!

Um dos homens agarra-me pela cintura. O outro aproxima-se e solta as minhas mãos; mal tenho as mãos livres, esbofeteio o primeiro com toda a força e ele solta-me, mas há um terceiro que me agarra de novo e, desta vez, o segundo prende-me as mãos e assim, embora eu continue a lutar, ele prende-as atrás das minhas costas e ouço uma das mangas rasgar-se.

- Soltai-me! - grito eu. - Não me podeis prender. Sou Catarina, a Rainha da Inglaterra. Não me podeis tocar, a minha pessoa é sagrada. Soltai-me!

O meu tio está junto da porta. O seu rosto está sombrio como o do Diabo. Ele faz um gesto para um dos homens perto de mim e ele inclina-se e agarra os meus pés. Tento dar-lhe pontapés, mas ele agarra em mim como se eu fosse um pequeno potro aos coices e os três avançam aos tropeções para fora do quarto, levando-me presa no meio deles. As minhas damas estão desfeitas em pranto, o chefe da minha casa está branco de terror.

- Não deixeis que me levem! - grito. Ele abana a cabeça sem dizer uma palavra. Reparo que está agarrado à porta para se conseguir manter de pé. -

Ajudai-me! - grito-lhe. - Mandai chamar... - nessa altura calo-me, pois não há ninguém que eles possam chamar.

O meu tio, meu guardião e meu mentor, está ali, de pé, e tudo está a ser feito por ordens suas. A minha avó, as minhas irmãs e a minha madrasta estão todas presas, o resto da família tenta desesperadamente sugerir que mal me conhecia.

Não há ninguém que me possa defender e nunca ninguém me amou, a não ser Francis Dereham e Thomas Culpepper, e esses estão mortos.

- Eu não posso ir para a Torre! - agora já estou a soluçar e sinto dificuldade em respirar devido aos solavancos provocados pelas suas passadas, enquanto me levam pendurada no meio deles, como se fosse um saco. - Não me leveis para a Torre, imploro-vos. Levai-me ao Rei, deixai-me falar com ele. Por favor. Se for isso o que ele decidir, irei então para a Torre e aceitarei calmamente a morte, 459

mas agora, ainda não estou preparada. Só tenho quinze anos. Ainda não posso morrer.

Eles não dizem nada, apenas sobem pela prancha de embarque da barcaça; eu dou um pequeno esticão, pensando poder atirar-me à água e escapar-me, mas eles têm umas mãos enormes e seguram-me com firmeza. Atiram-me para o estrado, na parte de trás da barcaça, e quase se sentam em cima de mim, para me manterem quieta. Seguram-me nos braços e nas pernas e eu desato a chorar, pedindo-lhes que me levem até junto do Rei, mas eles olham para o outro lado, para o rio, como se fossem surdos.

O meu tio e os outros conselheiros embarcam, com ar de quem vai para o seu próprio funeral.

- Senhor Duque, escutai-me! - grito eu, mas ele abana a cabeça e dirige-se para a parte da frente do barco, onde não me possa ouvir nem ver.

Estou tão cheia de medo que não consigo parar de chorar, as lágrimas correm-me pela cara abaixo, o meu nariz está a pingar e este bruto prende-me as mãos e nem sequer consigo limpar a cara. Sinto frio, no sítio por onde as lágrimas passam, no meu rosto, sinto na boca o detestável sabor do ranho e eles nem sequer me deixam assoar o nariz.

- Por favor - peço-lhes. - Por favor - mas ninguém me presta atenção.

A barca desce velozmente o rio, eles apanharam a hora exacta da maré e os

remadores movem os remos na horizontal, à flor da água, de modo a conseguirem passar pelo melhor lado da corrente, quando chegamos a Tower Bridge. Olho para cima, quem me dera não o ter feito, e vejo imediatamente duas novas cabeças, as duas cabeças recém-cortadas: as de Tom Culpepper e de Francis Dereham, como gárgulas macias e húmidas, com os olhos arregalados e os dentes à mostra, uma gaivota a tentar desesperadamente segurar-se ao cabelo negro de Dereham. Espetaram as cabeças deles nos postes, junto dos horríveis restos apodrecidos de tantas outras pessoas, e os pássaros irão bicar-lhes os olhos e a língua e enfiar os seus afiados bicos nas orelhas deles, para lhes arrancarem o cérebro.

- Por favor - digo num sussurro. Já nem sei o que lhes quero pedir. Só espero que isto tudo acabe. Só não quero que isto esteja a acontecer. - Por favor, meu bons senhores... por favor.

Entramos pelo portão que dá directamente para o rio. Ele sobe silenciosamente, mal os guardas nos vêem chegar; os remadores recolhem os remos e o nosso barco desliza até à doca, por baixo da 460

negra sombra das muralhas. O governador da Torre, Sir Edmund Walsingham, está de pé, junto aos degraus, à espera de me poder cumprimentar, como se eu estivesse a chegar para ocupar os aposentos reais, como se eu ainda fosse a Rainha, e uma nova e bela rainha, por sinal. A ponte levadiça bate na água, atrás de nós, quando as correntes a fazem descer, e os guardas tiram-me para fora da barcaça, agarram-me ambos os braços e levam-me em peso pelas escadas acima, com os meus pés a tropeçar.

- Bom dia, Lady Catarina - diz ele, educado, como sempre.

Mas eu não digo nada, porque não consigo parar de soluçar, pequenos soluços que vão e vêm, de cada vez que respiro. Olho para trás, e lá está o meu tio, de pé, dentro da barcaça, à espera de me ver desaparecer. Ele vai sair pelo portão do rio com a velocidade de uma canoa apanhada no meio dos rápidos, mal a sua tarefa esteja cumprida. Deve estar desesperado para que a sombra da Torre lhe não caia em cima. Deve ir a correr de volta, para junto do Rei, para lhe assegurar que a família Howard desistiu de vez da sua menina mal comportada. Sou eu quem vai pagar o preço da ambição dos Howard, não é ele.

Eu grito - Tio! - mas ele apenas faz um gesto com a mão, como quem diz -

Levem-na embora - e é o que eles fazem. Levam-me pelas escadas acima, passamos pela Torre Branca e pelo relvado. Os trabalhadores estão a construir uma plataforma em cima do relvado, um pequeno palco de madeira, a cerca de um metro de altura do chão e com degraus largos que conduzem lá para cima. Os outros estão a vedar as passagens com cancelas. Os homens que caminham ao meu lado começam a andar um pouco mais depressa e olham para o outro lado, e esta atitude dá-me a certeza absoluta de que aquele é o meu cadafalso, e que a vedação se destina a suster a multidão que vier ver-me morrer.

- Quantas pessoas virão? - pergunto, com os pequenos soluços a dificultar-me a respiração.

- Algumas centenas - diz o guarda, pouco à vontade. - Não será aberto ao público. Só para as pessoas da corte. É um favor que vos fazem. São ordens do próprio Rei.

Digo que sim, com a cabeça, mas não me parece que seja assim um grande favor. Lá adiante, a porta da torre abre-se para passarmos e subo as escadas de pedra com um homem que vai ligeiramente à minha frente, a puxar-me pelas estreitas escadas acima, e outro atrás de mim, a empurrar-me.

- Eu consigo andar sozinha - digo eu, e eles soltam-me os braços mas mantêm-se perto de mim. O meu quarto fica no primeiro

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andar e a grande janela envidraçada dá para o relvado. Há uma lareira acesa, um banco junto da lareira, uma mesa com uma Bíblia e, por trás, uma cama.

Os homens soltam-me e ficam junto da porta. O governador da Torre e eu olhamos um para o outro.

- Ireis precisar de alguma coisa? - pergunta ele.

Eu rio-me alto daquela pergunta tão ridícula.

- De quê, por exemplo? - pergunto eu.

Ele encolhe os ombros.

- De qualquer coisa especial, para comer, ou de conforto espiritual?

Abano a cabeça. Já nem sei, sequer, se Deus existe, pois se Henrique é um ser especial aos olhos de Deus e se conhece a vontade Dele, então suponho que Deus quer que eu morra, mas em privado, como um especial favor.

- Gostava que me trouxessem o cepo - digo eu.

- O cepo, Minha Senhora?

- Sim, o cepo do carrasco. Podem trazê-lo para aqui, para o meu quarto?

- Se assim o desejais... mas... para que o quereis?

- Para treinar - digo com impaciência.

Dirijo-me à janela e olho lá para baixo. O relvado vai ficar cheio de pessoas que sentiam orgulho em fazer parte da minha corte, pessoas que estavam desesperadas por ser minhas amigas. Agora estarão ali, para me ver morrer. Já que vou ter de o fazer, será melhor que o faça como deve ser.

Ele engole em seco. É óbvio que não percebe o que quero dizer, é um homem de idade, irá morrer na sua cama, com os amigos a assistirem ao seu último suspiro. Mas eu vou estar a ser observada por centenas de olhares críticos. Quero fazer tudo com elegância, já que tem de ser assim.

- Vou dizer-lhes que o tragam imediatamente - diz ele. - E desejais receber agora o vosso confessor?

Concordo. Apesar de que, se Deus já sabe tudo e já decidiu que eu sou tão má que devo morrer antes de fazer dezasseis anos, não se torna fácil perceber para que serve a confissão.

Ele faz uma vénia e sai do quarto. Os soldados fazem uma vénia e fecham a porta. A chave roda na fechadura com um grande estalido. Eu vou até à janela e olho para os trabalhadores e para o cadafalso, lá em baixo. Parece que vão acabar o trabalho esta noite. Talvez amanhã já esteja tudo pronto.

462

Jane Bolena, Torre de Londres, 13 de Fevereiro de 1542

Ela vai ser decapitada hoje e a multidão já começa a juntar-se no Relvado. Ao olhar pela janela, consigo ver muitos rostos conhecidos. São amigas e rivais de há muitos, muitos anos, fomos crianças ao mesmo tempo, quando Henrique VII já estava no trono, e algumas de nós estivemos juntas na corte, como aias da Rainha Catarina de Aragão. Eu aceno-lhes efusivamente e algumas reparam em mim, apontam e ficam a olhar, espantadas.

E lá vem o cepo, agora! Devem-no ter tido escondido noutro lado qualquer, dois dos trabalhadores erguem-no para cima do cadafalso e espalham serrim em volta. É para aparar o sangue dela. Por baixo do cadafalso está um cesto cheio de palha para lhe aparar a cabeça. Sei isto tudo porque já o presenciei antes, mais do que uma vez. Henrique é um rei que tem dado bastante trabalho ao carrasco, ultimamente, com uma grande frequência. Eu estava presente quando Ana Bolena foi decapitada, vi-a subir os pequenos degraus para o cadafalso, vi-a ficar de pé diante da multidão, a confessar os seus pecados e a rezar pela sua alma.

Ela ficou a olhar, por cima das nossas cabeças, para o portão da Torre, como se estivesse à espera do perdão que lhe tinha sido prometido. O perdão não chegou e ela teve de se ajoelhar e pousar a cabeça no cepo, estendendo depois os braços, em sinal de que a espada já podia descer. Já tentei muitas vezes imaginar o que deve ser, esticarmos assim os braços, como se estivéssemos a voar, e ouvir logo a seguir aquele assobio, sentir os cabelos da nuca a levantar com o vento provocado pela deslocação da lâmina pelo ar e depois...

Bem, não vai demorar muito até Catarina ficar a saber como é. A porta atrás de mim abre-se e um padre entra no quarto, com um ar muito sério, paramentado, segurando uma Bíblia e um livro de orações contra o peito.

- Minha filha - diz ele. - Estais preparada para a hora da vossa morte?

463


Eu começo a rir alto e aquilo tem um ar tão convincente de loucura, que continuo a rir. Não consigo dizer-lhe que está enganado, que não posso ser condenada à morte porque estou louca e digo muito alto: “Olá! Olá! Olá!”

Ele suspira e ajoelha-se no chão diante de mim, junta as mãos e fecha os

olhos. Eu afasto-me dele e vou para o outro lado da sala, repetindo: “Olá!”. Mas ele começa a rezar as orações da confissão e da penitência e não me presta qualquer atenção. Algum idiota lhe deve ter dito que me deve preparar para a morte e estou a ver que tenho que participar na cena, pois é difícil discutir com ele. Imagino que alguém há-de aparecer no último momento, para comutar a pena para prisão.

- Olá! - volto a dizer, trepando para o parapeito da janela.

A multidão agita-se e todos esticam o pescoço para olhar para a porta que fica na base da torre. Ponho-me em bicos de pés e encosto a cara ao vidro frio para conseguir descobrir para onde é que eles estão a olhar. É ela: a pequena Kitty Howard que se dirige, a cambalear, para o cadafalso. Parece que as pernas dela acabaram por ceder e está a ser levada por um guarda e por uma aia, e quase têm de a arrastar pelos degraus. Nessa altura, os seus pequenos pés indecisos começam a desviar-se e eles têm de a carregar em peso e de a empurrar para cima do estrado. Rio-me daquela incongruência, mas depois fico horrorizada comigo mesma, por me estar a rir daquela rapariga, quase uma criança, que vai a caminho da morte. Mas percebo que isso me dá um ar de louca e recomeço a rir, para que o padre, que está a rezar pela minha alma no quarto ao lado, possa observar.

Parece que ela desmaiou, estão a dar-lhe palmadas na cara e a beliscar-lhe as bochechas, pobrezinha. Caminha aos tropeções até à parte da frente do estrado, agarra-se ao corrimão e tenta falar. Não consigo ouvir o que ela diz e duvido que alguém consiga. Posso ver-lhe os lábios e parece que está a dizer: “Por favor”.

Ela cai para trás, eles seguram-na e obrigam-na a ajoelhar-se diante do cepo, ela agarra-se a ele, como se ele a pudesse salvar. Mesmo daqui, consigo perceber que está a chorar. Depois, com suavidade, exactamente como fazia quando se ia deitar, como se fosse uma menina que se prepara para dormir, com a mão, afasta um caracol de cabelo loiro da face e pousa a cabeça na madeira macia. Vira a pequena cabecita e encosta a face à madeira. Devagarinho - como se desejasse não ter de o fazer - estende as mãos trémulas, o carrasco está com pressa e o seu machado flameja no ar como um raio numa tempestade.

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Eu grito ao ver a grande golfada de sangue e o modo como a cabeça dela salta pelo estrado fora. O padre, atrás de mim, fica calado e lembro-me de que não posso esquecer-me do meu papel por um minuto que seja e, por isso, digo bem alto:

- Kitty, sois vós? Sois vós, Kitty? Isto é uma brincadeira?

- Pobre mulher - diz o padre, erguendo-se. - Dai-me um sinal de que haveis confessado os vossos pecados e de que morreis na fé, pobre espírito errante.

Eu salto para baixo do parapeito da janela, pois ouço o ranger da chave na fechadura, são eles que vêm aí, para me levar para casa. Vão levar-me lá para fora pela porta das traseiras, despacham-me rapidamente pelo portão do rio e depois, creio eu, metem-me numa barcaça não identificada até Greenwich e, a seguir, levam-me, provavelmente de barco, para Norwich.

- São horas de partir - digo alegremente.

- Que Deus a abençoe e lhe perdoe - diz o padre, estendendo-me a Bíblia para eu beijar.

- São horas de ir embora - volto a dizer. Beijo o livro, já que ele parece ter pressa de que eu o faça e rio-me do seu rosto triste.

Os guardas colocam-se junto de mim, um de cada lado, e descemos rapidamente as escadas. Mas, quando estou a contar que virem em direcção à parte de trás da Torre, eles dirigem-me para a entrada principal, a que dá para o Relvado. Detenho-me imediatamente, não quero ver o corpo de Catarina Howard ser embrulhado como uma trouxa de roupa velha, mas lembro-me de que tenho de parecer louca até ao último momento em que eles me ponham no barco, tenho de parecer tão doida que não possa ser executada.

- Rápido! Rápido! - digo eu. - Toca a andar, toca a andar!

Em resposta, os guardas seguram-me nos braços e a porta abre-se. A corte continua reunida, quase como se estivessem à espera de outro espectáculo, no palco manchado de sangue. Não me agrada nada que me levem pelo meio deles e que tenha de passar por entre as pessoas que se sentiam honradas por me conhecerem. Na fila da frente vejo um parente meu, o Conde de Surrey, a olhar um bocado enjoado para o serrim ensopado com o sangue da prima, rindo-se,

para disfarçar. Eu também me rio e olho para um guarda e para o outro.

- Toca a andar! Toca a andar!

Eles fazem uma cara feia como se não gostassem do que têm de fazer e apertam-me os braços com mais força, caminhando na direcção do cadafalso.

Hesito.

- Eu, não - digo.

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- Vamos lá, Lady Rochford - diz o homem à minha direita. - Vamos subir os degraus.

- Não! - digo eu. Finco os calcanhares no chão, mas eles são mais fortes do que eu. Fazem-me andar para a frente.

- Vamos lá, isso, linda menina.

- Vós não me podeis executar - digo eu. - Sou louca. Não podeis matar uma mulher louca.

- Podemos - diz o homem.

Torço-me toda, para lhes escapar e quando me obrigam a subir as escadas, finco o meu pé contra o primeiro degrau e faço força para trás e eles têm de lutar comigo para me obrigarem a subir o degrau.

- Não podeis - digo eu. - Eu sou louca. Os médicos dizem que eu estou louca.

O Rei mandou os seus próprios médicos, todos os dias, para verificarem que eu estava louca.

- Ele mudou a lei, não foi? - diz um dos guardas. Há outro homem que se junta a eles e que me empurra pelas costas. A força das suas mãos fortes nas minhas costas atira-me pelas escadas acima, para cima do palco. Estão a levantar o corpo embrulhado de Catarina, na parte da frente do palco e a sua cabeça está dentro do cesto, com o seu belo cabelo castanho-dourado a cair pelos lados.

- Eu não! - insisto. - Sou louca.

- Ele alterou a lei - grita-me o guarda, para se fazer ouvir por cima dos risos da multidão que se tinha divertido bastante com aquela luta para me obrigarem a subir as escadas. - Mudou a lei para que ninguém acusado de traição, louco ou não, possa escapar de ser decapitado.

- O médico, o médico do Rei, diz que eu sou louca.

- Não faz diferença, ides morrer na mesma.

Eles seguram-me, na parte da frente do estrado. Eu olho para aqueles rostos risonhos e ávidos. Nunca ninguém gostou de mim naquela corte, ninguém vai verter uma lágrima por minha causa. Ninguém protestará contra esta nova injustiça.

- Não estou louca - digo muito alto. - Mas estou completamente inocente.

Gente boa, peço-vos que imploreis misericórdia ao Rei. Eu não fiz nada de errado a não ser uma coisa terrível, uma coisa horrível. E fui recompensada por isso, vós sabeis que fui recompensada pelo que fiz. Ninguém me censurou por isso, mas foi a pior coisa que uma esposa pode fazer... - ouve-se um rufar de tambores que abafa tudo menos o meu grito. - Estou arrependida, estou arrependida do que fiz...

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Arrastam-me para longe do corrimão da parte da frente do estrado e obrigam-me a ajoelhar no serrim manchado. Obrigam-me a pousar as mãos no cepo que ainda está molhado do sangue dela. Quando olho para as minhas mãos, reparo que estão vermelhas, cobertas de sangue, como se eu fosse uma assassina.

- Eu estou inocente - grito. - Estou inocente de tudo. Sempre estive inocente de tudo. A única coisa que fiz, o meu único pecado, foi contra Jorge, por amor a Jorge, Jorge, o meu marido, Deus me perdoe por isso... quero confessar...

- Quando contar até três - diz o guarda. - Um... dois... três.

467

Cinco anos depois Ana, Castelo de Hever, Janeiro de 1547

Então, ele está morto, por fim, o marido que me renegou, o homem que não cumpriu a promessa que fez na sua juventude, o Rei que se transformou num tirano, o sábio que ficou louco, o rapaz amoroso que se transformou num monstro. Foi apenas a morte dele que salvou a vida da sua última esposa, Catarina, já que ela estava para ser presa por traição e heresia; mas a morte, que havia sido a aliada dele, a sua sócia e companheira durante tanto tempo, veio finalmente buscá-lo.

O Duque de Norfolk ainda teve mais sorte do que a Rainha, ao escapar também. Estava na Torre, à espera de ser executado, com a sentença já assinada pelo Rei, com a execução marcada para o dia seguinte. Iam decapitá-lo no mesmo lugar onde tinham matado as suas duas sobrinhas, mas na noite anterior à sua execução, a morte veio, em primeiro lugar, ter com o seu amo, o Rei.

Quantas pessoas mandou o Rei matar? Podemos começar a fazer as contas, agora que a morte acabou com a sua vontade assassina. Milhares. Nunca se fizeram as contas. Por todo este país, aqueles que morreram queimados na fogueira por heresia, no meio da praça do mercado, os que foram enforcados por traição. Milhares e milhares de homens e mulheres cujo único crime foi discordarem dele. Papistas, que se mantiveram fiéis à religião dos seus pais, reformadores que defendiam os novos caminhos. A pequena Kitty Howard, entre os mortos, e cujo único crime foi amar um rapaz da sua idade e não um homem com idade para ser seu pai, que estava a apodrecer da perna para cima. É este o homem que consideram como um grande rei, o melhor rei que alguma vez tivemos na Inglaterra. Será que isto não nos ensina a ver que não deveríamos ter um rei? Que o povo devia ser livre? Que um tirano continua a ser um tirano, mesmo que tenha um rosto bonito debaixo de uma coroa?

Penso na herança dos Bolena, que tanto significava para Lady Rochford. No fim, ela acabou por ser a herdeira. Herdou a morte da 468

cunhada, do marido, a herança dele, e a de Kitty acabou por ser a morte no cadafalso, exactamente como a deles. Eu também tenho uma parte da herança dos Bolena, este pequeno e belo castelo na região de Kent, uma das minhas casas preferidas.

Assim, acabou tudo. Vou vestir-me de luto, por causa do Rei, e depois irei assistir à coroação do Príncipe. Transformei-me naquilo que prometi a mim mesma ser, se conseguisse escapar ao machado de Henrique. Prometi a mim mesma que viveria a minha própria vida, de acordo com os meus princípios, que desempenharia o meu papel no mundo como uma mulher com direitos próprios; e consegui.

Agora sou uma mulher livre, livre dele e, finalmente, livre do medo. Se ouvir bater à porta durante a noite, não terei de saltar da cama com o coração acelerado, a pensar que a minha sorte se esgotou e que ele mandou os soldados para me levarem. Se um desconhecido aparecer na minha casa não vou suspeitar que se trata de um espião. Se alguém me pedir notícias da corte, não irei temer que se trate de uma armadilha.

Hei-de ter um gato, sem ter medo que me chamem bruxa, vou poder dançar sem receio de que me chamem prostituta. Posso passear com o meu cavalo e hei-de ir para onde me aprouver. Hei-de andar por aí a pairar como um gerifalte. Vou viver a minha vida e fazer as coisas de que gosto. Serei uma mulher livre.

E já não é pouco, para uma mulher: liberdade.

 

 

                                                   Philippa Gregory         

 

 

 

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