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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A HERANÇA DE HASTUR - P.2 / Marion Zimmer Bradley
A HERANÇA DE HASTUR - P.2 / Marion Zimmer Bradley

                                                                                                                                                  

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A HERANÇA DE HASTUR

Segunda Parte

 

Capítulo Quatorze

(Narrativa de Lew Alton)

Uma nevasca se abateu sobre as Hellers durante três dias. No quarto dia despertei para o sol, os picos por trás do Castelo Aldaran brilhando sob o seu fardo de neve. Vesti-me e desci para os jardins por trás do castelo, parei na beira de um terraço, contemplando o espaço-porto lá embaixo, onde enormes máquinas já se movimentavam, tão pequenas àquela distância quanto insetos rastejando, a fim de remover as pesadas camadas de neve. Não era de admirar que os terráqueos não quisessem transferir sua base principal para cá.

Contudo, ao contrário do que acontecia em Thendara, aqui o espaço-porto e o castelo pareciam formar um todo harmonioso, não gigantes em conflito, preparando-se para a batalha.

- Acordou cedo, primo - disse uma voz suave, atrás de mim.

Virei-me para deparar com Marjorie Scott, envolta por um manto com capuz, a pele emoldurando seu rosto. Fiz uma reverência formal.

- Damisela.

Ela sorriu e estendeu-me a mão.

- Gosto de levantar cedo quando o sol está brilhando. Ficou muito escuro durante a tempestade.

Enquanto descíamos pelos terraços, ela segurou minha mão fria e a puxou para debaixo de seu manto. Tive de dizer a mim mesmo que essa liberdade não insinuava o que significaria nas terras baixas, era apenas um gesto inocente e despreocupado. Era difícil lembrar isso com minha mão entre seus seios quentes. Mas ela era uma tele-pata, não podia deixar de saber.

Caminhando pela trilha, ela me apontou as resistentes flores de inverno, as hastes já se projetando através da neve, em busca do sol, e as árvores frutíferas abrigadas, os galhos vergando ao peso das frutas de inverno. Chegamos a um terraço com parapeito de mármore, por onde caía uma cachoeira, engrossada pela tempestade, perdendo-se no vale.

- Este córrego leva as águas dos picos mais altos para Caer Donn. É a água que eles bebem. A represa mais acima, que forma esta cachoeira, serve para gerar energia para as luzes, aqui e no espaço-porto.

- É mesmo, damisela? Não temos nada parecido em Thendara. Era difícil concentrar minha atenção no regato. Subitamente,

ela se virou para me fitar, ágil como um gato, os olhos faiscando como ouro. Suas faces estavam coradas, e ela largou minha mão de uma forma brusca, dizendo com voz tensa, que mal escondia a raiva:

- Perdoe-me, Dom Lewis. Presumi por nosso parentesco.

Ela começou a se afastar. Minha mão exposta ao frio de novo, senti o coração ainda mais gelado, por sua súbita ira. Sem pensar, inclinei-me e segurei-a pelo pulso.

- Dama, como pude ofendê-la? Por favor, não vá!

Ela ficou absolutamente imóvel por um momento, o pulso em minha mão, antes de murmurar:

- Todos os homens das terras baixas são tão estranhos e formais? Não estou acostumada a ser chamada de damisela, exceto pelos servos. Não gosta de mim... Lew?

Nossas mãos ainda se tocavam. Ela ficou vermelha de repente e tentou retirar o pulso dos meus dedos. Apertei-os, dizendo:

- Eu temia ser queimado... muito perto do fogo. Sou um ignorante dos costumes das montanhas. Como devo tratá-la, prima?

- Uma mulher das terras baixas seria considerada muito ousada se o chamasse pelo primeiro nome, Lew?

- Marjorie... - murmurei, acariciando o nome com a língua. -Marjorie...

Seus dedos pequenos pareciam frágeis e animados, como algum animalzinho trêmulo que viera a mim em busca de refúgio. Nunca, nem mesmo em Arilinn, eu conhecera tanto calor humano, tamanha aceitação. Ela disse que minhas mãos estavam frias e tornou a agasalhá-las sob seu manto. Tudo o que me dizia parecia maravilhoso. Eu sabia alguma coisa sobre geradores de energia elétrica - nas colinas Kilghard, enormes moinhos captavam a força dos ventos -, mas sua voz tornava tudo novo para mim, e fingi menos conhecimento do que tinha, enquanto ela continuava a falar.

- Houve um tempo, Lew, em que geradores acionados por matriz proporcionavam luzes ao castelo. Essa técnica se perdeu.

- É conhecida em Arilinn - informei -, mas raramente a usamos; o custo é elevado, em termos humanos, e sempre há algum perigo.

Mesmo assim, pensei, nas montanhas eles devem precisar de mais energia, contra um clima mais brutal. Era bastante fácil renunciar a um luxo, mas aqui podia fazer a diferença entre a vida civilizada e uma terrível luta pela sobrevivência.

- Aprendeu a usar uma matriz, Marjorie?

- Só um pouco. Kermiac é muito velho para nos mostrar as técnicas. Thyra é mais forte do que eu, porque consegue se ligar com Kadarin, mas não por muito tempo. Não conhecemos as técnicas de efetuar ligações.

- É muito simples. - Hesitei um pouco, porque não me agradava a perspectiva de trabalhar em círculos ligados fora da segurança do campo de força de uma Torre. - Marjorie, quem é Kadarin? De onde ele veio?

- Não sei mais do que ele disse a você. Sei que viajou por vários mundos. Há ocasiões em que fala como se fosse mais velho do que meu tutor, mas não parece ter mais idade do que Thyra. Nem mesmo ela sabe mais do que eu, apesar de estarem juntos há muito tempo. Ele é um homem estranho, Lew, mas eu o amo, e quero que você também o ame.

Eu simpatizara com Kadarin, sentindo a sinceridade por trás de sua intensidade irada. Era um homem que conhecia a vida sem ilusões, sem as mentiras e as concessões com que eu vivera durante tanto tempo. Fazia dias que eu não o via; ele deixara o castelo antes da nevasca, em alguma missão inexplicada. Olhei o sol, cada vez mais forte.

- A manhã está linda. Alguém nos espera?

- Costumam me esperar para o desjejum, mas Thyra gosta de. dormir até tarde, e ninguém vai se importar se eu não aparecer.-Ela me fitou, timidamente, antes de acrescentar: - Prefiro ficar com você.

Experimentei uma alegria profunda.

- Quem precisa de desjejum?

- Podemos descer até Caer Donn e comer alguma coisa num estande. Não será uma comida tão boa quanto a que temos à mesa de meu tutor...

Ela seguiu na frente por um caminho transversal, descendo por um lance de degraus íngremes, com uma cobertura para proteção dos respingos da cachoeira. A cobertura evitara a formação de gelo nos degraus. O barulho da cachoeira era tão grande que nem tentamos conversar, deixando que as mãos dadas falassem por nós. Finalmente chegamos a um terraço inferior, de onde partia uma encosta suave até a cidade. Olhei para cima e comentei:

- Não me agrada a perspectiva de ter de subir todos esses degraus.

- Podemos dar a volta e subir pelo caminho dos cavalos, por onde você veio com sua escolta. Há também um teleférico no outro lado da cachoeira; os terráqueos o construíram para nós, com correntes e roldanas, em troca do uso de nossa energia.

Assim que passamos pelos portões da cidade, Marjorie me levou para um estande de comida. Comemos pão fresco e bebemos sidra quente temperada. Refleti sobre o que ela dissera de matrizes gerando energia. É verdade, haviam sido usadas no passado, e também abusadas, e por isso era agora ilegal construí-las. A maioria fora destruída, embora nem todas. Se Kadarin queria tentar recuperar alguma, não havia limite, pelo menos em teoria, ao que poderia fazer.

Se ele não tivesse medo dos riscos, é claro. O medo, no entanto, parecia não existir naquela personalidade curiosa e enigmática. Mas a prudência normal?

- Está perdido em algum lugar outra vez, Lew. O que é agora?

- Se Kadarin quer fazer essas coisas, deve conhecer uma matriz capaz de proporcionar esse tipo de poder. Qual e onde?

- Só posso lhe dizer que é uma matriz que não aparece nos monitores das Torres. Era usada no passado pelo povo da forja para extrair seus metais do solo. Depois, ficou guardada em Aldaran por séculos, até que um dos pupilos de Kermiac, treinado por ele, usou-a para romper o sítio do Castelo Storn.

Não pude evitar um assovio. A matriz fora proibida como arma havia séculos. A Aliança não fora celebrada para nos impedir o acesso a brinquedos simples como as pistolas de raios dos terráqueos, mas sim contra as armas terríveis criadas em nossa Era do Caos. Também não me sentia feliz com a perspectiva de tentar sintonizar um grupo de telepatas inexperientes para uma matriz realmente grande. Algumas podiam ser controladas e usadas com segurança e facilidade. Outras tinham histórias sinistras, e o nome de Sharra, Deusa do povo da forja, estava ligado nas histórias antigas a mais de uma matriz. Talvez fosse possível - ou não - controlar aquela.

- Você está com medo? - perguntou Marjorie, incrédula.

- Claro que estou. Pensei que a maioria dos talismãs do culto de Sharra tivesse sido destruída antes do tempo de Regis IV. Sei que algumas foram destruídas.

- Essa foi escondida pelo povo da forja e devolvida para seu culto depois do sítio de Storn. - Ela contraiu os lábios. - Não tenho paciência com esse tipo de superstição.

- Ainda assim, uma matriz não é brinquedo para ignorantes. -Estendi a mão, a palma virada para cima, mostrando a cicatriz branca, do tamanho de uma moeda, a costura enrugada subindo para o pulso. - Em meu primeiro ano de treinamento em Arilinn, perdi o controle por uma fração de segundo. Três de nós tiveram queimaduras assim. Não estou brincando quando falo em riscos.

Por um momento, o rosto de Marjorie se contraiu, enquanto a ponta do dedo encostava na cicatriz, com extrema delicadeza. Depois, ela empinou o queixo, com uma expressão decidida, e disse:

- De qualquer forma, o que uma mente humana pode construir, outra mente humana pode dominar. E uma matriz não tem qualquer proveito para ninguém, se fica num altar para ser cultuada por pessoas ignorantes. - Ela empurrou para o lado as sobras do pão. - Agora, vou lhe mostrar a cidade.

Nossas mãos tornaram a se encontrar, num impulso irresistível, enquanto andávamos pelas ruas, lado a lado. Caer Donn era uma linda cidade. Mesmo agora, quando se encontra sob toneladas de escombros, e talvez eu nunca mais volte para lá, ainda sobressai em minha memória como uma cidade num sonho, uma cidade que por algum tempo/oi de fato um sonho. Um sonho que partilhamos.

As casas eram construídas ao longo de ruas largas e praças espaçosas, cada uma com árvores frutíferas e uma estufa de telhado de vidro para a cultura de legumes e ervas, que raramente eram encontrados nas colinas, por causa da reduzida duração da estação de cultivo e do sol fraco. Havia coletores solares nos telhados para captar e focalizar os raios do sol de inverno para as hortas interiores.

- Essas estufas funcionam até mesmo no inverno?

- Funcionam, graças a uma invenção terráquea, prismas para concentrar e refletir mais luz do sol da neve.

Pensei na escuridão em Armida durante o inverno. Havia tanta coisa que podíamos aprender com os terráqueos!

- Cada vez que vejo o que os terráqueos têm feito em Caer Donn, eu me orgulho de ser terráquea - comentou Marjorie. - Imagino que Thendara é ainda mais avançada.

Sacudi a cabeça.

- Você ficaria desapontada. Uma parte é toda terráquea, outra parte é toda darkovana. Caer Donn... Caer Donn é como você, Marjorie, o melhor de cada mundo, fundindo-se num todo único e harmonioso...

Era isso o que nosso mundo podia ser. E deveria ser. Era esse o sonho de Beltran. Senti nesse momento, as mãos entrelaçadas com as de Marjorie, numa intimidade mais profunda do que um beijo, que arriscaria qualquer coisa para converter esse sonho em realidade, semeá-lo por todo Darkover.

Fiz um comentário sobre como me sentia enquanto subíamos. Optáramos pelo caminho mais longo, relutantes em encerrar aquele interlúdio mágico. Deveríamos ter sabido então que nada jamais se poderia comparar àquela manhã, quando partilhamos um sonho, e o vimos reluzente e novo, belo demais para ser real.

- Sinto como se estivesse drogado com kirian! Ela riu, um som inebriante.

- Mas a flor de kireseth não mais desabrocha nestas colinas, Lew. É tudo real. Ou pode se tornar.

Ainda naquele dia, mais tarde, comecei o que prometera. Kadarin não voltara, mas nós nos reunimos na pequena sala de estar.

Eu me sentia nervoso, um tanto relutante. Era sempre angustiante trabalhar com um grupo estranho de telepatas. Mesmo em Arilinn, quando o círculo mudava cada ano, havia a mesma tensão ansiosa. Eu me sentia nu, com os nervos à flor da pele. Quanto eles sabiam? Que habilidades e potenciais se encontravam ocultos naqueles estranhos? Duas mulheres, um homem e um menino. Não era um círculo grande, mas o suficiente para me fazer estremecer por dentro.

Cada um tinha uma matriz. O que não chegou a me surpreender, já que a tradição dizia que as pedras de matriz haviam sido encontradas pela primeira vez naquelas montanhas. Nenhum deles tinha sua matriz salvaguardada de uma maneira que eu pudesse considerar apropriada. O que também não me surpreendeu. Em Arilinn, éramos muito rigorosos com os costumes antigos. Como a maioria dos técnicos treinados, eu guardava a minha embrulhada em seda, dentro de uma pequena bolsa de couro, pendurada no pescoço por uma tira, a fim de evitar qualquer ressonância por um estímulo acidental.

A de Beltran era protegida por um pedaço de couro macio e guardada no bolso. A de Marjorie estava enrolada em seda e metida dentro do vestido, entre os seios, onde minha mão estivera! A de Rafe era pequena e ainda escura; ele a levava numa pequena bolsa de pano, pendurada no pescoço. Thyra guardava a sua num medalhão de cobre, o que considerei criminosamente perigoso. Talvez meu primeiro ato devesse ser o de lhes ensinar a guardar direito a matriz.

Olhei para as pedras azuis brilhando em suas mãos. A de Marjorie era a mais brilhante, com uma intensa luminosidade interior, desmentindo a sua declaração de modéstia de que Thyra era a tele-pata mais forte. Mas a de Thyra também possuía um brilho enorme. Meus nervos comichavam. É muito difícil trabalhar com um "telepata selvagem", alguém que aprendeu sozinho, pelo método das tentativas. Numa Torre, o contato poderia ser efetuado primeiro por uma Guardiã, não a leronis muito bem resguardada do tempo de meu pai, mas uma mulher altamente treinada, com sua força protegida e disciplinada. Não tínhamos nenhuma ali. Cabia a mim tomar a iniciativa.

Era mais difícil do que tirar minhas roupas diante de tal assembléia, mas eu tinha de conseguir de alguma forma. Suspirei e fitei um a um.

- Presumo que todos vocês sabem que não existe nada de mágico numa matriz - declarei. - É apenas um cristal que pode promover ressonâncias e amplificar as correntes de energia do cérebro.

- Sei disso - respondeu Thyra, com um desdém divertido. -Mas não esperava que alguém treinado pelo Comyn também soubesse.

Tentei disciplinar o ímpeto espontâneo de raiva. Ela pretendia tornar tudo tão difícil para mim quanto pudesse?

- Foi a primeira coisa que me ensinaram em Arilinn, parenta. Fico contente que você já saiba.

Concentrei-me em Rafe. Era o mais jovem e o que deveria ter desaprendido menos.

- Quantos anos você tem, irmãozinho?

- Treze neste inverno, parente.

Franzi um pouco o rosto. Não tinha qualquer experiência com crianças - quinze é a idade mínima para as Torres -, mas tentaria. Havia luz em sua matriz, o que significava que ele a sintonizara de alguma forma.

- Pode controlá-la?

Não dispúnhamos de nenhum dos materiais normais de teste; eu teria de improvisar. Fiz um breve contato. A lareira. Faça a chama subir duas vezes e depois definhar.

A pedra refletiu o brilho azul em suas feições infantis quando ele se inclinou, a testa se franzindo no esforço da concentração. A luz aumentou; a chama na lareira se elevou, desceu, tornou a subir, foi-se apagando, apagando...

- Tome cuidado, não a deixe morrer por completo - falei. - Está frio aqui.

Pelo menos ele podia receber meus pensamentos; embora o teste fosse elementar, qualificava-o para integrar o círculo. Rafe levantou os olhos, satisfeito consigo mesmo, e sorriu.

Os olhos de Marjorie encontraram-se com os meus. Apressei-me em virar o rosto. Nunca é fácil fazer contato com uma mulher por quem você se sente atraído. Eu aprendera em Arilinn a considerar isso como um fato incontestável, pois o trabalho psíquico consumia toda a energia física e nervosa disponível. Mas Marjorie não aprendera esse fato, e me senti inibido. O pensamento de tentar explicar a ela me deixou aflito. Na segurança e tranqüilidade de Arilinn, com nove ou dez séculos de tradição, era fácil manter uma isenção fria e objetiva. Aqui, teríamos de criar outros meios de nos proteger.

Os olhos de Thyra eram frios, com um brilho divertido. Ela sabia. Se estivera trabalhando com Kadarin, sem dúvida já descobrira. Eu não gostava dela e sentia que Thyra também não gostava de mim, mas até agora, pelo menos, podíamos entrar em contato com isenção; sua presença física não me embaraçava. Onde, trabalhando sozinha, ela aprendera aquela precisão fria e meticulosa? Eu me sentia contente ou triste por Marjorie não demonstrar a mesma frieza?

- O que você pode fazer, Beltran? - perguntei.

- Truques de criança - respondeu ele. - Pouco talento, ainda menos habilidade. A mesma coisa que Rafe fez com o fogo.

Ele repetiu, mais devagar, com um pouco mais de controle. Projetou-se para uma vela apagada, numa mesa no lado e dobrou-a com uma intensa concentração. Uma chama tênue saltou da lareira para a ponta da vela, que se acendeu. Uma brincadeira de criança, é claro, um dos testes mais simples que usávamos em Arilinn.

- Pode provocar o fogo sem a matriz? - indaguei.

- Nesta área, é um perigo grande demais atear fogo em qualquer coisa. Prefiro aprender a extinguir fogo. Os seus telepatas de Torre fazem isso, talvez num incêndio na floresta?

- Não, mas às vezes chamamos nuvens e criamos chuva. O fogo é um elemento perigoso demais, exceto em brincadeiras de criança, como estas. Pode invocar a luz superior?

Ele sacudiu a cabeça, sem compreender. Estendi a mão e focalizei a matriz. Uma pequena chama verde tremeluziu e aumentou na palma da minha mão. Thyra também estendeu a mão; uma luz branca e fria expandiu-se, pálida em torno de seus dedos, iluminando a sala, projetando-se como um raio.

- Muito bom - comentei. - Mas deve aprender a controlá-la. A luz mais brilhante ou mais forte nem sempre é a melhor. Marjorie?

Ela se inclinou sobre o brilho azul de sua matriz. Diante de seu rosto, flutuando no ar, apareceu uma pequena bola de fogo azul-branca, que pouco a pouco foi-se tornando maior, depois flutuou para cada um de nós. Rafe só conseguiu produzir algumas centelhas de luz; quando tentou moldá-las ou movê-las, elas desapareceram. Beltran não foi capaz de fazer qualquer luz. Eu também não esperava. O fogo, o elemento mais fácil de invocar, era também o mais difícil de controlar.

- Experimentem isto.

A sala estava bastante úmida; condensei a umidade do ar numa pequena fonte de gotas de água, cada uma chiando no fogo por um instante, antes de se desvanecer. As mulheres conseguiram fazê-lo com facilidade; Rafe dominou a técnica sem maiores dificuldades. Precisava de prática, mas possuía um excelente potencial. Beltran fez uma careta.

- Eu lhe disse que tinha pouco talento e menos habilidade.

- Há algumas coisas que posso lhe ensinar mesmo sem talento, parente - assegurei. - Nem todos os mecânicos são telepatas naturais. Pode ler pensamentos?

- Só um pouco. Acima de tudo, sinto emoções.

O que não era nada bom. Se ele não pudesse ligar sua mente com as nossas, de pouco adiantaria no círculo da matriz. Havia outras coisas que poderia fazer, mas seríamos muito poucos para um círculo, exceto para as matrizes menores.

Projetei-me para entrar em contato com sua mente. Às vezes um telepata que nunca aprendeu a técnica de contato pode ser mostrado, quando tudo mais falha. Como muitos que crescem com um mínimo de laran, destreinados, ele erguera defesas contra o uso de seu dom. Foi cooperativo, deixando-me tentar várias vezes a derrubada da barreira, e ambos estávamos pálidos e suando com o esforço quando finalmente desisti. Usara nele uma força maior do que a que empregara com Regis, mas em vão.

- Não adianta - acabei dizendo. - Se insistirmos, poderemos matar a nós dois. Lamento muito, Beltran. Eu lhe ensinarei o que pode fazer fora do círculo, mas sem um telepata catalisador isso é o máximo a que você pode chegar.

Ele baixou os olhos, consternado, mas agüentou melhor do que eu esperava.

- Portanto, as mulheres e as crianças podem conseguir onde eu fracasso. Se você fez o melhor de que é capaz, o que eu posso dizer?

Ao contrário, era fácil fazer contato com Rafe. Não erguera defesas fortes, e concluí, pela facilidade e confiança com que entrou em contato comigo, que devia ter tido uma infância feliz e confiante, sem medos angustiantes. Thyra sentiu o que fizéramos; projetou-se e fez a abertura telepática, que é o equivalente a uma mão estendida ao longo de um abismo. Entrou em contato no instante seguinte, sem hesitação, e...

Um animal selvagem, escuro, sinuoso, rondando por uma selva inexplorada. Um cheiro de almíscar... garras em minha garganta...

Era essa a sua idéia de uma brincadeira? Rompi o contato que desabrochava e declarei, em voz tensa:

- Isso não é um jogo, Thyra. Espero que nunca descubra isso pelo caminho mais difícil.

Ela parecia aturdida. Portanto, fora inconsciente. Apenas estava na imagem interior que ela projetara. Eu teria de aprender a conviver com isso. Não tinha a menor idéia da maneira como ela me percebia. É uma coisa que nunca se pode saber. Claro que você tenta, a princípio. Uma jovem no meu círculo em Arilinn dissera simplesmente que eu parecia "firme". Outra tentou explicar, confusa, como me "sentia" em sua mente e acabou dizendo que eu tinha o cheiro de couro de sela. Afinal, trata-se de uma tentativa de traduzir em palavras o que não tem nada a ver com idéias verbais.

Projetei-me para Marjorie, e a senti no círculo rudimentar... um turbilhão de flocos de neve dourados caindo, o farfalhar de seda, como sua mão em meu rosto. Nem precisava olhar para ela. Rompi o contato experimental a quatro e disse:

- É isso, basicamente. Temos de aprender a harmonizar as ressonâncias.

- Se é tão simples assim, por que nunca conseguimos antes? -indagou Thyra.

Tentei explicar que a arte de fazer um vínculo com mais de uma mente ao mesmo tempo, com mais de uma matriz, era a mais difícil das habilidades básicas ensinadas em Arilinn. Senti que ela se projetava, baixei minhas barreiras e permiti que fizesse contato de novo. Outra vez a besta sinistra, a sensação de garras... Rafe ofegou, soltou um grito de dor, e me apressei em romper o contato de Thyra.

- Só depois que você souber como, Thyra - disse a ela. - Tentarei lhe ensinar, mas você precisa aprender a harmonizar as ressonâncias antes de se projetar. Prometa que nunca tentará por conta própria, Thyra, e eu prometo que lhe ensinarei. Combinado?

Ela prometeu, bastante abalada com o fracasso. Eu me sentia deprimido. Éramos apenas quatro, e Rafe não passava de uma criança. Beltran era incapaz de entrar em contato, e Kadarin ainda figurava como um elemento desconhecido. Não era suficiente para os planos de Beltran. Nem de longe.

Precisávamos de um telepata catalisador. Caso contrário, aquilo era o máximo a que poderíamos chegar.

As tentativas de Rafe de reduzir o fogo e nossas experiências com as gotas de água haviam feito a lareira fumegar; Marjorie começou a tossir. Qualquer um de nós poderia dissipar a fumaça, mas acolhi satisfeito a oportunidade de deixar a sala e sugeri:

- Vamos para o jardim.

O sol da tarde era brilhante, derretendo a neve. As plantas que naquela manhã mesmo esticavam suas hastes pela camada de neve já desabrochavam.

- Kermiac ficará muito zangado se destruirmos algumas de suas flores? - indaguei.

- Flores? Claro que não. Pode colher as que precisar. Mas o que fará com elas?

- As flores oferecem o teste ideal, constituem o material prático - expliquei. - Seria perigoso experimentar com tecido mais vivo; com flores, pode-se aprender um controle muito delicado, e elas vivem por tão pouco tempo que não há uma interferência maior com o equilíbrio da natureza. Vou dar um exemplo.

Com a matriz na mão, focalizei minha atenção num botão já todo formado, mas que ainda não desabrochara, e exerci a mais tênue das pressões mentais. Lentamente, enquanto eu prendia a respiração, o botão desabrochou, projetando seus finos estames. As pétalas se desdobraram, uma a uma, até que a flor se mostrou em todo o seu esplendor diante de nós. Marjorie deixou escapar um murmúrio suave de excitamento e surpresa.

- Mas você não a destruiu!

- De certa forma, destruí, sim; o botão não estava ainda amadurecido de todo, e agora talvez nunca fique o suficiente para ser polinizado. Não tentei; amadurecer uma planta assim exige um profundo controle intercelular. Apenas manipulei as pétalas.

Fiz contato com Marjorie. Tente comigo. Primeiro, procure ver fundo na estrutura celular da flor, para determinar a forma exata de cada camada de pétalas...                                                        

Na primeira vez, ela perdeu o controle, e as pétalas se desmancharam numa massa amorfa e sem cor. Mas conseguiu na segunda vez, quase com a mesma perfeição da minha demonstração. Thyra também dominou a habilidade, sem muita dificuldade. Rafe fez algumas tentativas antes de conseguir. Beltran teve de fazer o maior esforço para alcançar o controle delicado que exigia, mas acabou obtendo êxito. Talvez ele pudesse ser um monitor psíquico. Não-telepatas eram às vezes excelentes monitores.

Vi Thyra junto da cachoeira, olhando para sua matriz. Não falei com ela, curioso em descobrir o que poderia fazer sem ajuda. Já estava ficando tarde - passáramos um tempo considerável com as flores - e o crepúsculo se adensava, as luzes se acendiam aqui e ali na cidade lá embaixo. Thyra mantinha-se tão imóvel que mal parecia respirar. Subitamente, a torrente impetuosa e espumante ao seu lado pareceu congelar-se, detida em pleno ar, apenas uma ou outra das gotas mais distantes flutuou para baixo. O resto parou por completo, como se o próprio tempo e movimento houvessem cessado. E depois, deliberadamente, a água começou a subir pela encosta.

Lá embaixo, uma depois da outra, as luzes de Caer Donn piscaram e apagaram. Rafe soltou uma exclamação de espanto; e no silêncio fantástico, o som me trouxe de volta à realidade. Gritei em tom ríspido:

- Thyra!

Ela estremeceu, sua concentração rompida, e toda a água despencou, com um estrondo. Thyra virou-se para mim, furiosa. Pus a mão em seu ombro, afastei-a da beira e levei-a para um ponto em que poderíamos conversar acima do barulho da cachoeira.

- Quem lhe deu permissão para interferir...!

Reprimi minha explosão de raiva. Assumira a responsabilidade por todos eles agora, e a capacidade de Thyra de me enfurecer era uma coisa que precisava aprender a controlar.

- Desculpe, Thyra. Nunca lhe disseram que isso é perigoso?

- O perigo, sempre o perigo! É tão covarde assim, Lew? Sacudi a cabeça.

- Já passei do ponto em que preciso demonstrar minha coragem, criança. - Thyra era mais velha do que eu, mas falei como se fosse uma criança impetuosa e imprudente. - Foi uma exibição impressionante, mas há maneiras mais sábias de demonstrar sua habilidade.

Apontei para a cidade lá embaixo e acrescentei:

- Veja o que você fez. Apagou as luzes. As equipes de manutenção precisarão de algum tempo para restaurar os cabos de transmissão de energia. Foi uma coisa insensata e tola. Segundo, é um absurdo interferir nas forças da natureza sem grande necessidade, sem que haja um bom motivo. Lembre-se de que a chuva em um lugar, mesmo para apagar um incêndio na floresta, pode acarretar uma seca em outro lugar, com a perturbação do equilíbrio da natureza. Até que possa julgar em termos planetários, Thyra, não queira interferir numa força natural, e nunca, mas nunca mesmo, apenas por seu orgulho! Lembre-se de que pedi permissão a Beltran até mesmo para destruir umas poucas flores!

Ela baixou os olhos. As faces estavam vermelhas, como uma menina repreendida por alguma travessura. Lamentei a necessidade de fixar a lei de uma maneira tão rude, mas o incidente me deixara profundamente perturbado, despertando muitas apreensões. Os telepatas destreinados eram perigosos! Até que ponto eu podia confiar em qualquer um deles?

Marjorie se aproximou; percebi que ela partilhava a humilhação de Thyra, mas não fez qualquer protesto. Virei-me e passei o braço em torno de sua cintura, um gesto que nos proclamaria como amantes nas terras baixas. Thyra exibiu um sorriso sardônico por trás de sua atitude de submissão, mas disse apenas:

- Estamos todos às suas ordens, Dom Lewis.

- Não tenho o menor desejo de dar ordens, prima - respondi. - Acontece apenas que seu tutor não teria muitos motivos para gostar de mim se eu ignorasse as regras de segurança mais simples no treinamento.

- Deixe-o em paz, Thyra! - explodiu Marjorie. - Ele sabe o que está fazendo! Lew, mostre sua mão a ela!

Ela pegou minha mão, virou-a, mostrou a cicatriz esbranquiçada na palma.

- Ele aprendeu a seguir as regras e aprendeu pela dor! Você quer aprender assim?

Thyra teve um arrepio visível e desviou os olhos da cicatriz, como se a nauseasse. Eu jamais poderia imaginar que ela fosse tão melindrosa. Ficou abalada e murmurou:

- Nunca pensei... não sabia. Farei tudo o que você disser, Lew. Perdoe-me.

- Não há nada a perdoar, parenta. - Pus minha mão livre em seu pulso. - Aprenda que a cautela deve acompanhar a habilidade, e um dia será uma leronis muito forte.

Ela sorriu à palavra, que literalmente significava feiticeira.

- Uma técnica de matriz, se preferir assim. Talvez algum dia haja novas palavras para novas habilidades. Ficamos muito ocupados nas Torres em dominar as habilidades para pensar nas palavras que devem designá-las, Thyra. Chame como quiser.

Um tênue nevoeiro começava a descer dos picos por trás do castelo. Marjorie estremeceu em seu vestido leve, e Thyra propôs:

- É melhor entrarmos, pois daqui a pouco estará escuro.

Depois de lançar um olhar desolado para a cidade às escuras lá embaixo, ela se encaminhou apressada para o castelo. Marjorie e eu fomos andando de braços dados, com Rafe logo atrás.

- Por que precisamos do tipo de controle que praticamos com as flores, Lew?

- Se alguém no círculo ficar tão envolvido no que estiver fazendo a ponto de se esquecer de respirar, o monitor de fora tem de fazer com que recomece a respirar, sem lhe fazer mal. Um empático bem treinado pode deter a hemorragia até mesmo de uma artéria, ou curar ferimentos. - Toquei em minha cicatriz. - Isto teria sido muito pior se a Guardiã do círculo não interferisse, evitando uma lesão maior.

Janna Lindir fora Guardiã em Arilinn por dois dos três anos que eu passara ali. Aos dezessete anos, eu me apaixonara por ela. Nunca a tocara, nem sequer beijara as pontas de seus dedos. Claro que não.

Olhei para Marjorie. Não. Não. Nunca amei antes, nunca... As outras mulheres que conheci nada representaram para mim...

Ela me fitou e sussurrou, meio rindo:

- Já amou tantas assim?

- Nunca desse jeito. Juro...

Inesperadamente, Marjorie me enlaçou e comprimiu seu corpo contra o meu.

- Eu amo você - murmurou ela, para se afastar no instante seguinte e partir em disparada pelo caminho para o castelo.

Thyra sorriu para mim, sugestiva, quando entramos, mas não me importei. Era preciso aprender a aceitar esse tipo de coisa. Ela se virou para a janela e olhou pela escuridão e pelo nevoeiro. Ainda nos mantínhamos tão próximos que pude acompanhar seus pensamentos. Kadarin, onde ele está? Como se saiu em sua missão? Comecei a uni-los de novo, o contato delicado de Marjorie, Rafe alerta e ágil, como algum pequeno animal arisco, Thyra com a estranha sensação de uma besta sinistra à espreita.

Kadarin. O círculo interligado formou-se, e para minha surpresa e momentânea consternação descobri que Thyra se encontrava no centro, reunindo-nos em torno de sua mente. Mas ela parecia trabalhar com tanta segurança e habilidade que a deixei ocupar esse lugar. E, de repente, vi Kadarin, ouvi sua voz, no meio de uma frase:

- ...recusa então, Dama Storn?

Podíamos até ver a sala em que ele se encontrava, de pé, uma sala de arcadas altas, as janelas com vidro azul, de uma antiguidade quase inacreditável. Diante de seus olhos se postava uma mulher alta e idosa, empertigada em orgulho, com olhos cinza e cabelos brancos. Ela parecia profundamente transtornada.

- Recusar, dom? Não tenho autoridade para dar ou recusar. A matriz de Sharra foi entregue à guarda do povo da forja, depois do sítio de Storn. Fora tirada deles sem autorização, gerações atrás, e agora se acha segura em sua guarda, não na minha. Cabe a eles decidir.

A exasperação de Kadarin foi sentida por todos nós - a velha dama teimosa e supersticiosa! - quando ele disse:

- É Kermiac de Aldaran quem me exorta a lembrar-lhe que tirou a matriz de Sharra de Aldaran sem permissão...

- Não reconheço o direito dele.

- Desideria, não vamos mais discutir. Kermiac enviou-me para levar a matriz de Sharra de volta a Aldaran; Aldaran é senhor feudal de Storn, e ponto final.

- Kermiac não sabe o que eu sei, senhor. A matriz de Sharra está bem onde se encontra; deixe-a lá. Não existem hoje Guardiãs bastante poderosas para controlá-la. Eu mesma só pude invocá-la com a ajuda de uma centena do povo da forja. Seria um erro de minha parte privá-los de sua deusa. Eu lhe peço que diga a Kermiac que, pelo meu melhor julgamento, no qual ele sempre confiou, a matriz de Sharra deve continuar onde está.

- Estou cansado dessa conversa supersticiosa sobre deusas e talismãs, dama. Uma matriz é uma máquina, não mais do que isso.

- Acha mesmo? Era o que eu também pensava quando era jovem. Sabia mais da arte de uma matriz aos quinze anos do que você sabe agora. Sei também qual é de fato a sua idade.

Senti Kadarin se encolher, sob o olhar firme e profundo da mulher, que acrescentou:

- Além do mais, eu conheço essa matriz, você não. Aceite o meu conselho. Não poderia manipulá-la. Nem Kermiac. Nem mesmo eu, na minha idade. Deixe-a como está! Não a desperte! Se não gosta da conversa de deusa, chame-a de uma força basicamente além do controle humano nos dias de hoje, uma força maligna.

Kadarin pôs-se a andar de um lado para outro, e eu o acompanhei, partilhando sua inquietação.

- Dama, uma matriz não pode ser pior ou melhor do que a mente do homem que a manipula. Acha então que sou maligno?

Ela descartou o comentário com um gesto impaciente.

- Acho que é honesto, mas não vai acreditar que há alguns poderes tão fortes, tão além do propósito humano comum, que distorcem todas as coisas para o mal. Ou para o mal em termos humanos comuns, pelo menos. E o que você pode saber a respeito? Deixe como está, Kadarin.

- Não posso. Não há outra força bastante poderosa para meus propósitos, que são honestos. Providenciei todas as salvaguardas, e tenho um círculo pronto à minha disposição.

- Quer dizer que não tenciona usar sozinho a matriz de Sharra ou apenas com a mulher Darriell?

- Não sou tão imprudente assim. Já lhe disse que providenciei as salvaguardas. Recrutei um telepata do Comyn para me ajudar. Ele é cauteloso e hábil, foi treinado em Arilinn.

A mulher permaneceu em silêncio por um longo momento, antes de murmurar:

- Arilinn... Sei como as pessoas eram treinadas em Arilinn. Não acreditava que esse conhecimento ainda sobrevivesse. Neste caso, deve ser seguro. Mas deve me prometer, Kadarin, que deixará tudo nas mãos dele, confiará em seu julgamento em todas as coisas, e lhe entregarei a matriz.

- Prometo.

O contato era tão profundo que até pareceu que fui eu mesmo, Lew Alton, quem se inclinou diante da idosa Guardiã, sentindo seus olhos cinza a esquadrinharem minha própria alma, não a de Kadarin.

É pela lembrança desse momento que sou capaz de jurar, mesmo depois de todo o pesadelo que veio depois, que Kadarin era honesto, não tinha intenções malignas...

- Que assim seja, Kadarin. Eu lhe confiarei a matriz. - Os olhos cinza de Desideria tornaram a se encontrar com os dele. - Mas devo lhe advertir, Robert Kadarin, ou como quer que se chame agora: tome cuidado! Se você tem qualquer falha, será exposta brutalmente; se procura apenas o poder, converterá seus propósitos em ruínas que nem sequer pode imaginar; e se atear o fogo de forma irresponsável, acabará se virando contra você, destruindo-o e a tudo o que ama! Sei disso tudo, Kadarin! Já estive na chama de Sharra, e embora tenha saído sem me queimar, não fiquei imune às cicatrizes. Há muito que renunciei a meu poder, pois estou velha, mas uma coisa ainda posso dizer... tome muito cuidado!

E, subitamente, a identidade entrou em turbilhão, dissolveu-se. Thyra suspirou, o círculo se desfez, como filamentos de uma teia de aranha se desmanchando, e olhamos uns para os outros, atordoados, na sala escurecendo. Thyra se achava pálida de exaustão, e senti as mãos de Marjorie tremerem nas minhas.

- Já chega - declarei com firmeza.

Sabia que até ser determinado quem ocuparia a posição central, até termos certeza de quem exerceria a liderança, era minha responsabilidade salvaguardar a todos. Gesticulei para que os outros se separassem, até fisicamente, a fim de romper os últimos fios do contato. Soltei as mãos de Marjorie com pesar e acrescentei:

- Já chega. Todos precisamos descansar e comer. Devem aprender a nunca exigir demais de seu vigor físico. - Meu tom era incisivo, didático, a fim de atenuar o contato e a preocupação emocional. - A autodisciplina é tão importante quanto o talento, e muito mais importante do que a habilidade.

Mas eu não me sentia tão desligado quanto parecia, e desconfiei de que os outros sabiam disso.

Três dias depois, durante o jantar no grande salão iluminado, falei com Kermiac sobre minha missão original. Beltran pensava que eu virara as costas por completo ao Comyn. Era verdade que eu não mais me sentia obrigado a cumprir a vontade de meu pai. Ele mentira para mim, me usara de uma forma terrível. Kadarin falara da Aliança como apenas mais uma trama do Comyn para desarmar Darkover, para manter intacto o controle do Conselho. Agora, eu especulava como meu idoso parente se sentia em relação a isso. Ele reinara por muitos anos nas montanhas, com os terráqueos sempre dispostos a ajudá-lo. Era de esperar que percebesse as coisas de uma maneira diferente da dos lordes do Comyn. Eu já ouvira o lado deles, mas nunca tivera uma oportunidade de conhecer a outra posição.

Quando falei sobre a apreensão de Hastur com as violações da Aliança e disse que fora enviado para descobrir a verdade, ele acenou com a cabeça, franziu o rosto e pensou por um longo momento, antes de falar:

- Danvan Hastur e eu já trocamos palavras irritadas a respeito disso antes. Duvido que possamos alguma dia concordar. Tenho o maior respeito por esse homem: lá embaixo, entre as Cidades Secas e os terráqueos, sua vida não é um mar de rosas, e até que ele tem se saído bem, tendo em vista as circunstâncias. Mas suas opções não são as minhas, e felizmente não estou obrigado por juramento a acatá-las. Pessoalmente, creio que a Aliança já sobreviveu além de sua utilidade, se é que teve alguma, do que não tenho mais certeza.

Eu sabia que ele se sentia assim, mas ainda fiquei chocado. Desde a infância, fora condicionado a pensar na Aliança como o primeiro código de ética de homens civilizados.

- Pense um pouco - continuou Kermiac. - Compreende que somos parte de uma grande civilização galática? Os dias em que qualquer planeta podia viver no isolamento acabaram para sempre. As espadas e os escudos pertencem a esse tempo, e devemos abandoná-los junto com o passado. Pode entender que somos um anacronismo?

- Não, senhor, não posso. Não sei muita coisa sobre qualquer outro mundo.

- E também não sabe muita coisa sobre este, ao que parece. Quero lhe perguntar uma coisa, Lew: quando aprendeu o uso de armas?

- Aos sete ou oito anos.

Eu sempre me orgulhara de não precisar temer qualquer espadachim nos Domínios... ou fora deles.

- Eu também, Lew. E quando passei a governar, no lugar de meu pai, presumi que teria guardas me acompanhando por toda parte, a não ser para o leito nupcial. Na metade de minha vida, compreendi que vivia dentro de um passado morto, desaparecido há séculos. Mandei meus guardas de volta para suas fazendas, exceto por uns poucos velhos, que não tinham outras habilidades, nem meios de subsistência. Permiti que continuassem a circular por aqui, parecendo importantes, mais pelo bem deles do que pelo meu. Apesar disso, aqui estou, tranqüilo e livre, em minha própria casa, meu regime incontestado.

Eu me sentia horrorizado.

- À mercê de qualquer descontente... Kermiac deu de ombros.

- Estou vivo e bem. De um modo geral, aqueles que devem fidelidade a Aldaran me querem aqui. Se não quisessem, eu os persuadiria pacificamente ou sairia de cena e deixaria que tentassem governar melhor. Acredita mesmo que Hastur só mantém a autoridade sobre os Domínios porque conta com uma guarda pessoal maior e melhor do que a de seus rivais?

- Claro que não. Nunca soube que ele tivesse sido desafiado para valer.

- É essa a situação. Meu povo se sente tão satisfeito com meu regime que não preciso de nenhum exército particular para o impor.

- Ainda assim... algum descontente, algum louco...

- Algumas pessoas escorregam numa escada quebrada, algumas são atingidas por um raio, algumas são pisoteadas por um cavalo assustado, algumas comem um cogumelo venenoso que a cozinheira julgava ser bom...   Lew, cada pessoa viva só está separada da morte por uma linha tênue. Isso é tão verdadeiro na sua idade quanto na minha. Se eu reprimir uma rebelião com homens armados, isso prova que sou melhor ou apenas que sou o único que pode pagar melhores espadachins ou fabricar armas mais eficientes? O longo reinado da Aliança significou apenas que se espera que cada homem resolva suas divergências pela espada, em vez de usar o cérebro ou a justiça de sua causa.

- Mesmo assim, manteve a paz nos Domínios por gerações.

- Bobagem! - exclamou o velho. - Vocês têm paz nos Domínios porque, de um modo geral, a maioria das pessoas sente-se contente em obedecer à lei do Comyn, e não mais resolve qualquer divergência pela espada. Sua famosa Guarda do Castelo não passa de uma força policial que tira os bêbados das ruas. Não a estou insultando, pois acho que é assim que deve ser. Quando foi a última vez que você desembainhou sua espada a sério, filho?

Tive de parar para pensar.

- Há quatro anos, bandidos das colinas Kilghard invadiram Armida, roubando cavalos. Nós os perseguimos ao longo das colinas e enforcamos alguns.

- Quando foi a última vez que travou um duelo?

- Nunca travei nenhum.

- E a última vez que empunhou a espada foi contra ladrões de cavalos. Não houve rebeliões, guerras, ataques de não-humanos?

- Não em meu tempo.

Comecei a perceber aonde ele queria chegar.

- Portanto, por que arriscar homens que respeitam as leis, homens bons e fiéis, contra ladrões de cavalos, bandidos, uma ralé que não tem qualquer direito à proteção concedida a homens de honra? Por que não desenvolver uma proteção realmente eficaz contra os fora-da-lei, e deixar que seus filhos aprendam algo mais útil do que as artes da espada? Sou um homem pacífico, e creio que Beltran não terá qualquer motivo para se impor a meu povo pela força armada. A lei nas Hellers determina que nenhum homem propenso a violar a paz pode possuir qualquer arma, nem mesmo uma espada. Há leis até sobre o comprimento da lâmina do canivete que ele pode ter. Quanto aos homens que cumprem minhas leis, eles podem ter qualquer arma que conseguirem obter. Um homem honesto é menos ameaça para o nosso mundo com uma pistola de nervos terráquea do que um fora-da-lei com a faca de trinchar da minha cozinheira ou com o martelo do pedreiro. Não acredito em comparar homens de bem com bandidos, ambos com as mesmas armas. Quando abandonei os contos de fadas, deixei de acreditar que um homem honesto sempre será um espadachim melhor do que um ladrão de cavalos ou um assaltante. A Aliança, que permite armas brancas ilimitadas e treinamento em seu uso tanto para os homens de bem quanto para os criminosos, apenas significou que os honestos se devem esforçar dia e noite para se tornar mais fortes do que os bandidos brutais.

Havia alguma verdade no que ele dizia. Agora que meu pai ficara entrevado, Dyan era sem dúvida o melhor espadachim dos Domínios. Isso significava que, se Dyan travasse um duelo e vencesse, sua causa era justa? Se os ladrões de cavalos fossem melhores espadachins do que nossos homens em Armida, teriam direito a nossos cavalos? Mas havia também falhas em sua lógica. Talvez não existisse a lógica impecável em parte alguma.

- É verdade o que diz, Tio, pelo menos até certo ponto. Mas desde a Era do Caos sabemos que um homem injusto pode causar grandes danos se dispuser de uma arma poderosa. Com a Aliança, usando apenas as armas que lhe são permitidas, ele só pode causar danos limitados.

Kermiac balançou a cabeça, reconhecendo a verdade do que eu dissera.

- Tem razão. Mas se as armas são proscritas, não demora muito para que só os bandidos consigam obtê-las... e eles sempre dão um jeito. Foi assim que morreu o herdeiro do velho Hastur. A Aliança só é viável enquanto todos estiverem dispostos a cumpri-la. No mundo de hoje, com Darkover à beira de se tornar parte do Império, é inviável. Absolutamente inviável. E se você tenta impor uma lei inviável e fracassa, estimula outros homens a violarem as leis. Não tenho amor a gestos ir úteis, por isso só exijo o cumprimento das leis que posso impor. Desconfio de que a única solução é a que Hastur, ao mesmo tempo que defende a Aliança, tenta estabelecer nos Domínios: tornar a terra tão segura que nenhum homem precise de se defender a sério e deixar as armas virarem brinquedos de honra e símbolos de virilidade.

Apreensivo, toquei o cabo da espada que usara em todos os dias de minha vida adulta. Kermiac afagou meu pulso, afetuoso.

- Não se preocupe, sobrinho. O mundo continuará como tem de ser, não como você ou eu possamos desejar. Deixe os problemas de amanhã para os homens de amanhã resolverem. Deixarei a Beltran o melhor mundo que eu puder, mas, se ele quiser um mundo melhor, sempre poderá se empenhar para consegui-lo. Eu gostaria de pensar que algum dia Beltran e o herdeiro de Hastur poderão sentar juntos para construir um mundo melhor, em vez de destilar veneno um contra o outro, entre Thendara e Caer Donn. E gostaria de pensar também que, quando esse dia chegar, você estará presente para ajudar, quer esteja atrás de Beltran ou do jovem Hastur. É importante apenas que você esteja presente.

Ele pegou uma noz e a rachou com os dentes fortes. Perguntei-me o que ele sabia dos planos de Beltran, quanto do que dissera era franco, quanto se destinava aos ouvidos de Hastur. Começava a amar o velho, mas a apreensão ainda me atormentava. A maior parte da multidão ao jantar já se dispersara. Thyra e Marjorie conversavam com Beltran e Rafe, perto de uma janela. Kermiac percebeu a direção do meu olhar e riu.

- Não continue sentado aqui entre os velhos, sobrinho. Pode ir ao encontro dos jovens.

- Só mais uma coisa. Beltran as chama de irmãs-de-adoção; elas também são suas parentes?

- Thyra e Marguerida? É uma história estranha. Há muitos anos, quando ainda me permitia tais absurdos, tive um guarda em minha casa chamado Zeb Scott, um terráqueo. Dei-lhe Felicia Darriell para esposa... Essa história comprida vai aborrecê-lo, Lew?

- De jeito nenhum.

Eu me sentia ansioso em descobrir tudo o que pudesse sobre os pais de Marjorie.

- A família Darriell é muito antiga nestas colinas. O último deles, o velho Rakhal... o verdadeiro nome de Rafe é Rakhal, mas meus terráqueos acham muito difícil pronunciá-lo... o velho Rakhal Darriell vivia como um eremita, meio louco e meio bêbado, na mansão da família, que estava quase em ruínas já naquele tempo. E, de vez em quando, enlouquecido pelo vinho ou nas ocasiões em que soprava o Vento Fantasma... a kireseth ainda cresce em alguns dos vales mais distantes... ele vagueava inconsciente pela floresta. Contava estranhas histórias depois, de mulheres perdidas na floresta, dançando nuas ao vento, tomando-o em seus braços... histórias que qualquer louco poderia inventar. Mas há muito e muito tempo atrás, o velho Rakhal, pelo que dizem, apareceu no Castelo Storn com uma menina no colo, dizendo que a encontrara nua, na neve, em sua porta. Declarou que era sua filha com uma mulher do povo da floresta, largada ali para morrer por sua família. A dama de Storn acolheu-a, independentemente do que a criança era, humana ou filha do povo da floresta, já que o velho Rakhal não tinha condições de cuidar dela. Criou-a junto com suas próprias filhas. E muitos anos mais tarde, quando casei com Lauretta Storn-Lanart, Felicia Darriell, como era chamada, veio junto para Aldaran, como dama de companhia. A criança mais velha de Felicia, Thyra, pode muito bem ser minha filha. Quando Lauretta se encontrava pesada com criança, foi Felicia, por desejo dela, que levei para minha cama. A primeira criança de Lauretta nasceu morta, e ela adotou Thyra como filha de criação. Sempre a tratei como irmã de Beltran, embora nada seja certo. Mais tarde, Felicia casou com Zeb Scott, e suas duas crianças seguintes, Rafe e Marguerida, são meio-terráqueas e não pertencem à sua família, sobrinho. Mas é bem possível que Thyra seja sua prima.

Depois de uma pausa, ele acrescentou, pensativo:

- A história do velho Rakhal talvez seja verdadeira. Felicia era uma mulher diferente, com olhos muito estranhos. Sempre achei que tudo não passava de invenção de bêbado. Mas tendo conhecido Felicia...

Kermiac se calou, perdido era recordações do passado distante. Olhei para Marjorie. Também nunca acreditara em tais histórias, mas aqueles olhos... Kermiac soltou uma risada e me dispensou:

- Sobrinho, já que seus olhos e seu coração estão lá com Marguerida, leve logo o resto de você também!

Thyra olhava a tempestade com a maior intensidade; pude sentir os tentáculos inquisitivos de seu pensamento e compreendi que ela esquadrinhava a crescente escuridão à procura do amante. Thyra, eu podia muito bem acreditar, não era completamente humana.

Mas Marjorie? Ela estendeu as mãos para mim, peguei-as com uma das minhas e passei o outro braço por sua cintura. Beltran anunciou, juntando-se a nós:

- Ele chegará em breve, Lew. O que faremos então?

- O plano é seu, e não tenho a menor dúvida de que Kadarin é bastante telepata para se integrar num círculo. Você sabe o que queremos fazer, embora haja limites ao que se pode realizar com um grupo desse tamanho. Há com certeza algumas tecnologias que podemos demonstrar. Como a da construção de estradas, por exemplo. Isso deve convencer os terráqueos a nos levar a sério. A de aeronaves impulsionadas por matriz pode ser mais difícil. Talvez haja registros a respeito em Arilinn. Mas não será rápido, nem fácil.

- Você ainda acha que não tenho competência para participar de um círculo de matriz.

- Não é uma questão de competência. Você não é capaz. Sinto muito, Beltran. Alguns poderes ainda podem se desenvolver, mas sem um catalisador...

Ele contraiu os lábios, e por um momento sua expressão foi terrível. Depois, Beltran riu.

- Talvez algum dia possamos persuadir o jovem em Syrtis a se juntar a nós, já que ele não ama o Comyn, como você disse.

Não houvera qualquer som que eu pudesse ouvir, mas Thyra afastou-se da janela e saiu ao salão. Voltou poucos momentos depois com Kadarin. Ele trazia nos braços um fardo comprido e gesticulou para dispensar os servos que se ofereceram para pegá-lo.

Kermiac levantara-se para deixar a mesa; esperou Kadarin na beira da plataforma, enquanto as outras pessoas no salão se retiravam. Kadarin disse:

- Eu a tenho, parente, embora precisasse insistir muito com a velha dama. Desideria lhe envia seus cumprimentos.

Ele fez uma careta irônica, e Kermiac comentou, com um sorriso desolado:

- Desideria sempre foi teimosa. Não precisou usar uma persuasão mais forte?

Havia sarcasmo no sorriso de Kadarin.

- Conhece Dama Storn melhor do que eu. Acha mesmo que teria adiantado? Ainda bem que não houve necessidade. Tenho pouco talento para pressionar mulheres.

Kermiac estendeu a mão para pegar o fardo, mas Kadarin balançou a cabeça.

- Não. Assumi o compromisso, e devo mantê-lo, parente, de entregar a pedra somente nas mãos do telepata de Arilinn e me deixar guiar por seu julgamento.

Kermiac acenou com a cabeça.

- É uma sábia decisão de Desideria. Pois então, Bob, honre seu compromisso.

Kadarin pôs o embrulho num banco e começou a remover o traje externo, coberto de neve.

- Você parece ter saído do pior tempo nas Hellers, Bob - comentei. - Estava tão ruim assim?

Ele confirmou com um aceno de cabeça.

- Eu não queria me demorar ou ser detido pela tempestade no meio do caminho, carregando isto. - Kadarin apontou para o embrulho, pegou a bebida quente que Marjorie lhe trouxera e tomou-a, sedento. - O inverno chegou mais cedo, e já se aproxima outra tempestade de grandes proporções. O que vocês fizeram durante a minha ausência?

Thyra fitou-o nos olhos, e senti, como um pequeno choque palpável, o contato rápido e o vínculo, quando ele se integrou no círculo. Era mais fácil do que longas explicações. Kadarin largou a caneca vazia e murmurou:

- Bom trabalho, crianças.

- Nada foi feito por enquanto, apenas começamos - ressaltei. Thyra se ajoelhou para desamarrar os cordões do embrulho.

Kadarin segurou-a pelo pulso, dizendo:

- Não faça isso. Assumi um compromisso. Pegue a pedra, Lew.

- Já sabemos, pois ouvimos a conversa - informou Thyra, impaciente.

- Se ouviram, acha que minha palavra nada vale, ave selvagem?

A mão que mantinha a dela imóvel era enorme, castanha. Como os Ardais e Aillards, ele tinha seis dedos na mão. Eu podia acreditar sem a menor dificuldade que Kadarin também tinha sangue não-humano. Thyra sorriu, e ele a puxou para seu peito, enquanto me dizia:

- Cabe a você pegar a pedra, Lew.

Ajoelhei-me e comecei a abrir o fardo. Era mais longo do que meu braço, estreito, com várias camadas de lona grossa, cada uma presa por tiras. Marjorie e Beltran se adiantaram para olhar por cima de meu ombro, enquanto eu desfazia os nós. A última camada do embrulho era de seda crua, sem cor definida, como o material isolante de uma matriz. Quando finalmente a desenrolei, vi que era uma espada ornamental ou cerimonial, forjada em prata pura. Experimentei um arrepio atávico nas extremidades da espinha. Nunca antes vira aquilo, mas sabia o que era.

Minhas mãos quase se recusaram a pegá-la, embora aquele objeto de beleza do povo da forja tivesse sido feito para defender e proteger. Logo me forcei à sanidade. Seria tão supersticioso quanto Thyra me julgava? Envolvi o cabo com a mão, sentindo a pulsação interior. Avaliei a espada com as duas mãos e torci o cabo com força.

Saiu em minha mão. Lá dentro estava a matriz propriamente dita, uma enorme pedra azul, com um intenso brilho interior, as chamas se enroscando. Apesar de treinado, senti a cabeça girar, a visão se turvar.

Ouvi Thyra soltar um ofego alto. Beltran virou-se apressado. Se eu, que passara três temporadas em Arilinn, precisava fazer um tremendo esforço para manter o controle, podia imaginar o que causara nele. Tratei de acomodá-la na seda e levantei-a entre os dedos, cauteloso. Sentia uma imensa relutância em olhar, mesmo que apenas por um instante, para aquelas intermináveis profundezas vivas. Mas acabei baixando os olhos para a pedra. O espaço se distorceu, me dilacerou. Por um momento, senti que caía, contemplei o rosto de uma jovem emoldurada em chamas, vermelhas, laranja e escarlates. Era um rosto que eu conhecia de algum lugar... Desideria! A velha que eu vira na mente de Kadarin! Mas logo o rosto mudou, se desvaneceu, não era mais uma mulher, mas sim uma forma imensa de fogo, com os contornos de uma mulher, acorrentada em ouro, elevando-se, flamejando, golpeando, paredes desmoronando como poeira... Envolvi a pedra com a seda e indaguei:

- Vocês sabem o que é isto?

Foi Kadarin quem respondeu:

- Era usada no passado pelo povo da forja para extrair metais do solo.

- Não tenho tanta certeza assim. Algumas das matrizes de Sharra eram usadas dessa maneira. Outras eram... menos inocentes. Não sei se esta é uma matriz monitorada.

- Tanto melhor. Não queremos olhos do Comyn espionando o que fazemos.

- Mas isso significa que é essencialmente incontrolável - expliquei. - Uma matriz monitorada tem um fator de segurança: se escapa ao controle, o monitor assume e rompe o círculo. É por isso que ainda tenho uma mão direita.

Mostrei a cicatriz. Kadarin titubeou um pouco e perguntou:

- Está com medo?

- De que isto aconteça outra vez? Não. Sei que precauções adotar. Mas desta matriz? Sim, tenho medo.

- Vocês do Comyn são covardes supersticiosos! Durante toda a minha vida ouvi falar dos poderes dos telepatas e dos mecânicos treinados em Arilinn. Agora você está com medo...

A ira me invadiu. Do Comyn? E covarde? Parecia que a raiva pulsava, vibrava dentro de mim, subindo pelo braço, a partir da matriz na mão. Enfiei-a de volta na espada e fechei-a com o cabo. Thyra disse:

- Nada se pode ganhar com insultos. Lew, isto pode ser usado para realizar os planos de Beltran?

Eu experimentava um desejo incompreensível de pegar a espada outra vez. A matriz parecia me chamar, exigir que eu a tirasse, a dominasse... Era quase uma ânsia sensual. Poderia ser realmente perigosa? Embrulhei a espada com as lonas e pensei por um momento na indagação de Thyra, antes de responder:

- Com um círculo bem treinado, no qual eu pudesse confiar, creio que sim, provavelmente. Um círculo de Torre é em geral integrado por sete ou oito mecânicos e por uma Guardiã, e raramente manipulamos mais do que matrizes do quarto ou do quinto nível. Sei que esta é mais forte do que isso. E não temos nenhuma Guardiã treinada.

- Thyra pode fazer esse trabalho - sugeriu Kadarin.

Considerei por um momento. Era verdade que ela atraíra a todos, assumindo a posição central com rapidez e precisão. Mas acabei sacudindo a cabeça.

- Não vou arriscar. Ela operou sem controle por tempo demais. Aprendeu sozinha, e seu treinamento pode desmoronar sob pressão.

Pensei na besta à espreita que sentira quando o círculo se formara. Percebi os olhos de Thyra fixados em mim, experimentei profundo constrangimento, mas fora disciplinado a manter honestidade absoluta dentro de um círculo. Não é possível esconder-se um do outro, a tentativa redunda em desastre.

- Posso controlar Thyra - afirmou Kadarin.

- Sinto muito, Bob. Isso não é uma solução. Ela própria deve estar no controle ou será morta... e não é uma maneira muito agradável de morrer. Eu mesmo poderia controlá-la, mas a essência de uma Guardiã é efetuar o controle. Confio nos poderes de Thyra, Bob, mas não em seu julgamento sob pressão. Se vou trabalhar com ela, devo ter total confiança. E não posso ter. Não enquanto Guardiã. Acho que Marjorie pode fazer isso... se quiser.

Kadarin olhou para Marjorie com um estranho sorriso irônico e comentou:

- Você está racionalizando, Lew. Pensa que não sei que se apaixonou por ela, e por isso quer que Marjorie assuma essa posição de honra?

- Você está louco! - protestei. - É verdade, estou apaixonado por ela. Mas é evidente que você nada sabe sobre círculos de matriz. Acha que eu quero que ela seja Guardiã neste círculo? Não sabe que isso tornará impossível que eu a toque? Enquanto Marjorie estiver atuando como Guardiã, nenhum de nós poderá tocá-la, muito menos eu, porque a amo e desejo. Não sabia disso?

Removi meus dedos lentamente dos dedos de Marjorie. Senti a mão fria e solitária.

- Superstição do Comyn - declarou Beltran, desdenhoso -, bobagem sobre virgens e pureza! Acredita realmente nesses absurdos?

- Não tem nada que ver com acreditar - respondi. - O fato é que as Guardiãs não precisam mais ser virgens resguardadas hoje em dia. Mas, enquanto trabalham nos círculos, devem permanecer absolutamente castas. É um problema físico, relacionado com as correntes nervosas. Não é mais superstição do que as coisas que todas as parteiras sabem; por exemplo, que uma mulher grávida não deve andar a cavalo muito depressa ou por muito tempo nem usar rendas apertadas. E mesmo com todas as precauções, ainda é perigoso. Extremamente perigoso. Se acha que eu quero que Marjorie seja nossa Guardiã, então é mais ignorante do que pensei!

Kadarin me fitava com firmeza, e compreendi que ele avaliava a situação.

- Acredito em você - disse ele finalmente. - Mas acha que Marjorie pode fazer o trabalho?

Acenei com a cabeça, desejando poder mentir, acabar logo com aquilo. A vida amorosa de um telepata é sempre muito complicada. E Marjorie e eu acabáramos de descobrir um ao outro. Tivéramos tão pouco, tão pouco...

- Ela pode, se quiser. Mas precisa consentir. Nenhuma mulher relutante pode ser feita Guardiã. É um peso grande demais para suportar, exceto por livre e espontânea vontade.

Kadarin olhou para nós dois e disse:

- Portanto, tudo depende de Marjorie. O que tem a dizer, Margie? Vai ser Guardiã para nós?

Ela me fitou, mordeu o lábio e estendeu-me as mãos.

- Lew, não sei...

Marjorie sentia medo, o que não era de admirar. E nesse momento, como um sonho mágico, compulsivo, recordei a manhã em que passeáramos juntos por Caer Donn e partilháramos nossos sonhos para este mundo. Não valia um pouco de perigo, uma pequena espera para a nossa felicidade? Um mundo em que não precisaríamos sentir vergonha - ao contrário, teríamos orgulho -de nossa dupla herança, darkovana e terráquea? Senti que Marjorie captava esse sonho, pois sem dizer nada retirou a mão da minha, e nos separamos. A partir daquele momento e até que o nosso trabalho fosse concluído, o círculo se dissolvendo, Marjorie permaneceria inviolada, apartada, sozinha. A Guardiã.

Não havia necessidade de palavras, mas Marjorie falou as palavras simples, como se fosse um juramento selado no fogo:

- Concordo. Se você me ajudar, farei tudo o que puder.

Capítulo Quinze

A tempestade persistira por dez dias, descendo das Hellers pelas Colinas Kilghard e se abatendo sobre Thendara com fúria quase incessante. Agora, o tempo era claro e bom, mas Regis cavalgava de cabeça baixa, ignorando o dia bonito.

Sentia que fracassara, assumira um compromisso, mas nada conseguira fazer. Agora, estava sendo despachado para Neskaya, sob os cuidados de Gabriel, como uma criança doente com uma babá! Mas ergueu a cabeça, surpreso, quando fizeram a curva que descia para o vale, na direção de Syrtis.

- Por que estamos pegando esta estrada?

- Tenho um recado para Dom Felix - explicou Gabriel. - Os poucos quilômetros extras vão cansá-lo? Posso mandar a escolta acompanhá-lo até Edelweiss...

A solicitude de Gabriel o deixou irritado. Como se alguns quilômetros a mais pudessem fazer alguma diferença! Foi o que ele disse, contrariado.

Sua égua preta, de andar seguro, desceu firme pelo caminho. Embora tivesse negado para Gabriel, ele se sentia doente e fraco, como estivera durante a maior parte do tempo desde o colapso nos aposentos de Kennard. Por um ou dois dias, em delírio, drogado, ele não tivera a menor noção do que estava acontecendo; e mesmo agora, muito do que recordava dos últimos dias não passava de ilusão. Danilo estava presente, gritando, em protesto frenético, sendo contido à força, com medo, angustiado. Parecia que Lew também aparecia, às vezes, fitando-o com frieza, rigor e irritação, formulando sempre a mesma indagação: O que você tem medo de saber? Ele sabia, porque lhe haviam dito depois, que por um ou dois estivera tão perigosamente doente que o avô não saíra de seu lado. Uma ocasião, ao despertar, entre os intervalos doentios de alucinações fragmentadas, vira o rosto do avô e indagara:

- Por que não está no Conselho?

Ao que o avô respondera, com veemência:

- Que se dane o Conselho!

Ou teria sido outro sonho? Sabia que em uma ocasião Dyan entrara no quarto. Regis escondera o rosto nas cobertas, recusara-se a lhe falar, embora Dyan se mostrasse muito gentil. Ou isso também fora um sonho? E depois, pelo que pareceram anos, ele estivera nas linhas de fogo em Armida, quando haviam convivido dia e noite com o terror; durante o dia, o árduo trabalho físico mantinha o medo a distância, mas à noite ele despertava, chorando e soluçando... Nessa noite, o avô lhe contara, seus gritos inconscientes se tornaram tão apavorados, tão insistentes, que Kennard Alton, ele próprio gravemente enfermo, fora ao seu quarto e ali permanecera até de manhã, tentando acalmá-lo com um contato mental. Mas ele continuara a clamar por Lew, e Kennard não conseguira entrar em contato.

Regis, envergonhado de seu comportamento infantil, concordara finalmente em ir para Neskaya. A memória indistinta e os pensamentos-imagens constrangiam-no, e não tentara distinguir a verdade das fantasias drogadas. Mesmo assim, sabia que pelo menos uma vez Lew estivera com ele, embalando-o em seus braços, como a criança assustada que fora de fato naquele momento. Quando ele disse isso a Kennard, o velho balançara a cabeça, muito sério, e dissera:

- É bem provável. Talvez você tenha se extraviado no tempo; ou talvez Lew sentiu, do lugar em que se encontra, que você precisava dele, e procurou-o, como um telepata é capaz. Nunca pensei que vocês dois fossem tão ligados.

Regis sentia-se desamparado, vulnerável, por isso, assim que se recuperara o suficiente para viajar, concordara em ir para a Torre de Neskaya. Seria insuportável continuar a viver assim... A voz de Gabriel despertou-o agora de seus devaneios, ao dizer, em consternação:

- Olhe ali! O que terá acontecido? Dom Felix...

O velho subia pelo vale, montado no cavalo preto de Danilo, o castrado criado em Armida, que era o único animal de qualidade em Syrtis. Aproximava-se no que era, para um homem de sua idade, uma velocidade vertiginosa. Por alguns minutos, parecia que ele galoparia até esbarrar no grupo no caminho, mas poucos passos antes puxou as rédeas do cavalo, que parou no mesmo instante, resfolegando. Dom Felix olhou furioso para Regis.

- Onde está meu filho? O que vocês, ladrões assassinos, fizeram com ele?

A fúria e o desespero do velho foram como um golpe físico. Regis balbuciou, confuso:

- Seu filho? Danilo, senhor? Por que pergunta a mim?

- O que vocês, tiranos abomináveis, fizeram com ele? Como ousam vir à minha terra, depois de me roubar o filho mais...

Regis tentou interrompê-lo e conter a torrente de palavras.

- Não estou entendendo, Dom Felix. Separei-me de Danilo há alguns dias, em seu pomar. Não o vi desde então; estive doente...

A lembrança do sonho drogado atormentou-o, Danilo sendo manietado à força, apavorado, angustiado...

- Mentiroso! - gritou Dom Felix, o rosto vermelho e contraído em raiva e desespero. - Quem, além de vocês...

- Já chega, senhor - interveio Gabriel, com firme autoridade. -Ninguém fala assim ao herdeiro de Hastur. Eu lhe dou minha palavra...

- A palavra de um Hastur não vale nada! Eu ouso falar contra esses tiranos sórdidos! Levaram meu filho para seu...

Ele lançou para Regis uma palavra terrível; comparada a ela, "catamita" parecia um cumprimento cortês. Regis empalideceu diante da fúria do velho.

- Dom Felix... se quiser me escutar...

- Escutá-lo? Meu filho o escutou, senhor, ouviu suas palavras bonitas!

Dois guardas se adiantaram, pegaram as rédeas do cavalo do velho enfurecido e tentaram imobilizá-lo.

- Larguem-no - disse Gabriel calmamente. - Dom Felix, nada sabemos sobre seu filho. Vim lhe trazer uma mensagem de Kennard Alton a respeito dele. Posso transmiti-la?

Dom Felix se aquietou, com um esforço que deixou seus olhos esbugalhados.

- Pode falar, Capitão Lanart, e que os Deuses o tratem como o Comyn tratou meu filho.

- Que os Deuses me tratem assim e mais ainda, se eu ou algum dos meus fizer qualquer mal a seu filho - declarou Gabriel. - Ouça agora a mensagem de Kennard, Lorde Alton, Comandante da Guarda: "Diga a Dom Felix de Syrtis que chegou a meu conhecimento que um grave erro de justiça foi cometido na Guarda este ano, do qual seu filho, Danilo-Felix, cadete, pode ter sido vítima inocente; e peça a ele que envie seu filho Danilo-Felix a Thendara, sob qualquer escolta de sua escolha, a fim de se apresentar como testemunha numa ampla investigação contra homens em altas posições, até mesmo dentro do Comyn, que podem ter abusado de seus poderes". Gabriel fez uma pausa, depois acrescentou:

- Também fui autorizado a lhe dizer, Dom Felix, que daqui a dez dias, depois de escoltar meu cunhado, que se encontra neste momento com saúde precária, até a Torre de Neskaya, devo voltar aqui e escoltar seu filho para Thendara. Poderá acompanhá-lo, como seu protetor, ou designar qualquer guardião ou parente de sua escolha. Kennard Alton será pessoalmente responsável pela segurança e honra de seu filho.

Dom Felix disse, a voz trêmula:

- Nunca tive qualquer motivo para duvidar da honra e da boa vontade de Lorde Alton. Quer dizer que Danilo não está em Thendara?

Um dos guardas, um veterano grisalho, interveio:

- Já me conhece, senhor. Servi com Rafael na guerra, há dezesseis anos. Fiquei de olho em Dani, por respeito a seu irmão. Dou minha palavra, senhor, de que Dani não se encontra lá, com ou sem a conivência do Comyn.

O rosto do velho empalideceu pouco a pouco para a tonalidade normal.

- Então Danilo não fugiu para encontrá-lo, Lorde Regis?

- Por minha honra, senhor, juro que não sei de seu paradeiro. Eu o vi pela última vez quando nos despedimos no pomar. E agora conte como ele foi embora. Não deixou nenhuma mensagem?

O rosto do velho estava branco agora.

- Não vi nada. Dani saiu para caçar. Eu não me sentia bem, tive de permanecer na cama. Disse a ele que estava com vontade de comer alguma ave no jantar, que os Deuses me perdoem por isso. Ele pegou um falcão e saiu para caçar, como um filho bom e obediente...

A voz do velho falhou. Ele teve de fazer um esforço para se controlar, e acrescentou:

- Foi ficando tarde, e ele não voltava. Comecei a especular se seu cavalo não teria machucado uma perna, ou se ele não se metera em alguma aventura de rapaz. Foi então que o velho Marius e o pessoal da cozinha entraram correndo em meu quarto e disseram que o viram encontrar-se com um grupo de cavaleiros no caminho, ser arrancado de sua sela e levado à força...

Gabriel parecia perplexo e consternado.

- Por minha honra, senhor, nenhum de nós teve qualquer participação ou conhecimento desse seqüestro. Quando aconteceu? Ontem? Anteontem?

- Anteontem, Capitão. Perdi os sentidos ao ouvir a notícia. Mas assim que meus velhos ossos se recuperaram um pouco, peguei o cavalo e parti... à procura de meu filho...

A voz tornou a definhar. Regis adiantou-se em seu cavalo e pôs a mão no braço de Dom Felix.

- Tio - disse ele, num súbito impulso, usando a mesma palavra com que tratara Kennard Alton -, é pai de meu amigo; também merece de mim o dever de um filho. Gabriel, leve a Guarda para procurar, interrogue as testemunhas.

Ele tornou a se virar para Dom Felix e murmurou gentilmente:

- Juro que farei tudo o que puder para trazer Danilo de volta, são e salvo. Mas não tem condições de cavalgar. Venha comigo.

Pegando as rédeas do cavalo preto, Regis conduziu Dom Felix para o pátio calçado com pedras. Desmontou, ajudou Dom Felix a descer e guiou seus passos trôpegos. Levou-o para o salão, dizendo ao velho servo meio cego que encontrou ali:

- Seu amo está doente. Vá lhe buscar um pouco de vinho. Depois que o vinho chegou e Dom Felix bebeu um pouco, Regis sentou ao seu lado, perto da lareira fria.

- Lorde Regis, seu perdão...

- Não há necessidade, senhor. Foi submetido a uma terrível provação.

- Rafael...

- Senhor, assim como meu pai tinha o maior apreço por seu filho mais velho, eu lhe garanto que a segurança e a honra de Danilo são tão importantes para mim como se fossem minhas. - Ele levantou os olhos quando os guardas entraram na casa. - Descobriu alguma coisa, Gabriel?

- Revistamos o local em que ele foi capturado. Havia sinais de muitos cavalos, e ele os enfrentou com sua adaga.

- Saindo para caçar com um falcão, ele não levava outra arma.

- A adaga ficou para trás.

Gabriel entregou a arma a Dom Felix. Ele a examinou e viu o emblema de Hastur.

- Dom Regis...

- Fizemos um juramento - disse Regis, tirando de sua própria bainha a adaga de Danilo - e trocamos nossas lâminas como símbolo.

Ele pegou a adaga com o brasão de Hastur e acrescentou:

- Vou levá-la para devolver a Dani. Descobriram mais alguma coisa, Gabriel?

Um dos guardas disse:

- Encontrei isto no chão, rasgado durante a luta. Ele deve ter resistido bravamente, para um jovem enfrentando vários homens.

Era um manto comprido e grosso, de cor parda, preso com tiras e fivelas de couro. Estava todo cortado. Dom Felix examinou-o por um momento, antes de dizer:

- Esse tipo de manto não é mais usado nos Domínios, desde que nasci, mas creio que ainda os usam nas Hellers. E é forrado com pele de um animal que só existe nas montanhas; veio de algum lugar além do rio. Os bandidos das montanhas usam mantos assim. Mas por que Dani? Não somos bastante ricos para pagar um resgate, nem bastante importantes para que ele seja um refém valioso.

Regis refletiu, sombrio, que os homens de Dyan vinham das Hellers. Em voz alta, porém, disse apenas:

- Os homens das montanhas trabalham para quem lhes paga bem. Por acaso tem inimigos, Dom Felix?

- Não. Há quinze anos que vivo em paz, cuidando da minha propriedade. - O velho parecia atordoado. Olhou Regis. - Meu lorde, se está doente...

- Não importa. Dom Felix, eu lhe prometo, pelo juramento que nenhum Hastur pode quebrar, que encontrarei o responsável e trarei Dani de volta, nem que precise arriscar minha própria vida.

Ele pôs a mão sobre a do velho por um momento, depois se empertigou.

- Um dos guardas permanecerá aqui, para tomar conta da propriedade, na ausência de seu filho. Gabriel, volte com a escolta para Thendara e conte o que aconteceu a Kennard Alton. E mostre-lhe este manto; talvez ele saiba de que lugar das Hellers veio.

- Regis, tenho ordens para levá-lo a Neskaya.

- No momento oportuno. Isto precisa ser resolvido primeiro. Você é um Hastur, Gabriel, quanto menos não seja pelo direito de casamento, e seus filhos são herdeiros de Hastur. A honra de Hastur é a sua honra também, e Danilo é meu homem por juramento.

O cunhado fitou-o com evidente hesitação. Havia boas coisas em ser herdeiro de um Domínio, concluiu Regis, como ter suas ordens obedecidas sem serem questionadas. Ele acrescentou, impaciente:

- Ficarei aqui, para fazer companhia ao pai de meu amigo ou esperarei em Edelweiss.

- Não pode ficar aqui desprotegido - declarou Gabriel finalmente. - Ao contrário de Dani, você é bastante rico para um resgate e importante o suficiente para ser mantido como refém.

Ele era bem próximo do Comyn para se sentir indeciso e sugeriu:

- Talvez seja melhor eu mandar um guarda escoltá-lo até Edelweiss.

Regis protestou, irritado:

- Não sou mais uma criança! Preciso de uma babá correndo em meus calcanhares para percorrer cinco quilômetros?

Os próprios filhos mais velhos de Gabriel começavam a se aborrecer com a necessidade de serem vigiados dia e noite.

- Olhe para mim, Regis. Você foi entregue aos meus cuidados. Dê sua palavra de honra de que seguirá direto para Edelweiss, sem se desviar da estrada, a menos que encontre homens armados, e poderá viajar sozinho.

Regis prometeu, despediu-se de Dom Felix e partiu. A caminho de Edelweiss, ele pensou, um pouco triunfante, que fora mais esperto do que Gabriel. Um oficial mais experiente talvez lhe permitisse viajar sozinho para Edelweiss, com a promessa de que seguiria direto para lá... mas também exigiria que Regis prometesse que não deixaria Edelweiss sem permissão!

O sentimento de triunfo foi de curta duração. O conhecimento do que devia fazer o atormentava. Precisava descobrir para onde - e como - Danilo fora levado. E só havia um meio de fazer isso: com a matriz. Ele nunca tocara à pedra desde a malfadada experiência com kirian. Ainda se encontrava na bolsa isolante pendurada em seu pescoço. A lembrança daquele sofrimento dilacerante quando olhara a matriz de Lew ainda era viva nele, e sentia intenso medo.

Surpreendentemente, para aqueles tempos pacíficos, os portões de Edelweiss estavam fechados e trancados. Regis se perguntou que alarme teria levado a isso. Por sorte, a maioria dos servos de Javanne conhecia sua voz. Não demorou muito para que Javanne descesse correndo da casa, uma serva bufando em sua esteira.

- Regis! Recebemos a informação de que homens armados haviam sido vistos nas colinas! Onde está Gabriel?

Ele pegou as mãos da irmã.

- Gabriel está bem, a caminho de Thendara. E a informação é verdadeira, pois homens armados estiveram em Syrtis. Mas não creio que seja alguma rixa particular, nem uma guerra, irmã.

- Ainda me lembro muito bem do dia em que o pai partiu para a guerra - comentou ela, a voz trêmula. - Era uma criança na ocasião, e você nem tinha nascido. E depois veio a notícia de que ele morrera, com muitos de seus homens, e o choque matou a mãe...

Os dois filhos mais velhos de Javanne se aproximaram correndo, Rafael e Gabriel, de nove e sete anos de idade, cabelos escuros, meninos bem desenvolvidos. Estacaram ao deparar com Regis, e Rafael disse:

- Pensei que você estava doente e ia para Neskaya. O que veio fazer aqui, parente?

- A mãe disse que haveria guerra - acrescentou Gabriel. - Vai haver mesmo uma guerra, Regis?

- Não, até onde eu sei, não há nenhuma guerra nem aqui, nem em qualquer outro lugar, e vocês devem agradecer por isso. E agora voltem para casa, pois preciso conversar com sua mãe.

- Posso montar Melisande até o estábulo? - pediu Gabriel. Regis pôs o menino na sela e subiu para a casa com Javanne.

- Você esteve doente e emagreceu um pouco - comentou Javanne. - Recebi um aviso do avô de que ia para Neskaya. Por que veio para cá?

Ele olhou o céu escurecendo.

- Contarei tudo mais tarde, irmã, depois que os meninos forem para a cama e pudermos conversar em particular. Passei o dia inteiro viajando; deixe-me primeiro descansar e pensar um pouco. Saberá de tudo depois.

Sozinho, Regis passou um longo tempo andando de um lado para outro de seu quarto, tentando tomar coragem para o que sabia que tinha de fazer.

Tocou a pequena bolsa em seu pescoço, começou a abri-la, mas logo a largou. Ainda não.

Encontrou Javanne diante do fogo, na pequena sala de estar; ela acabara de amamentar a menor das gêmeas e se aprontava para o jantar.

- Leve a criança para seu quarto, Shani - disse ela à babá -, e avise às mulheres que não devo ser incomodada por qualquer motivo. Meu irmão e eu jantaremos em particular.

- Su serva, domna - respondeu a mulher, pegando o bebê e se retirando.

A própria Javanne serviu Regis.

- Agora me conte, irmão: o que aconteceu?

- Homens armados levaram Danilo Syrtis de sua casa.

Ela ficou perplexa.

- Por quê? E por que você deveria se perturbar tanto com isso?

- Ele é meu escudeiro, e fizemos o juramento de bredin. Talvez já uma vingança particular. É isso o que preciso descobrir.

Regis apresentou uma versão resumida do incidente no corpo de cadetes, nos termos que julgava apropriados para os ouvidos de uma mulher. A irmã se mostrou nauseada e chocada.

- Já ouvi falar das... preferências de Dyan. Quem não ouviu? Houve um tempo em que se falou que ele deveria casar comigo. Fiquei contente quando Dyan recusou, embora é claro que não me ofereceram nenhuma opção na questão. Ele me parece um homem sinistro, até mesmo cruel, mas nunca imaginei que fosse também um criminoso. Ele é Comyn, e obrigado por juramento a não interferir na integridade de uma mente. Acha que ele seqüestrou Dani, para silenciá-lo?

- Não posso acusá-lo sem provas - disse Regis. - Você passou algum tempo numa Torre, Javanne. Qual é o seu grau de treinamento?

- Passei uma temporada lá. Posso usar uma matriz, mas disseram que não tenho muito talento, e o avô insistiu em que eu deveria casar jovem.

Regis pegou sua própria matriz.

- Pode me ensinar como usá-la?

- Posso, sim. Não é necessária muita habilidade para isso. Mas não seria tão seguro quanto em Neskaya, e você ainda não se recuperou de todo. Prefiro não fazê-lo.

- Preciso saber agora, imediatamente, o que aconteceu com Danilo. É a honra da nossa família que está em jogo, irmã.

Ele explicou a situação. Javanne ficou em silêncio, girando um garfo no prato, e só falou depois de um longo momento:

- Espere um instante.

Ela se virou, mexendo na gola do vestido. Quando tornou a fitar Regis, tinha algo embrulhado em seda nas mãos. Falou devagar, as feições ainda franzidas em preocupação:

- Nunca vi Danilo. Mas quando era pequena, e o velho Dom Felix era o mestre falcoeiro, conheci Dom Rafael muito bem; ele era o escudeiro do pai, e os dois seguiam juntos para toda parte. Ele me chamava de nomes carinhosos, me punha em sua sela, me levava para passear... Fui apaixonada por ele, como qualquer menina reage a um homem bonito que a trata com atenção e gentileza. Ainda não tinha dez anos, mas quando veio a notícia de que Rafael morrera, acho que chorei mais por ele do que pelo pai. Lembro que uma ocasião lhe perguntei por que não tinha uma esposa. Ele me deu um beijo no rosto e disse que estava esperando que eu crescesse para ser sua mulher.

Javanne tinha as faces vermelhas, os olhos distantes. Acabou suspirando e perguntou:

- Tem alguma coisa de Danilo, Regis?

Ele estendeu a adaga com o brasão de Hastur, explicando: -Juramos por esta adaga. Foi derrubada de sua mão quando o capturaram.

- Então deve ressonar para ele.

Com a adaga em sua palma, Javanne descobriu a matriz. Regis desviou os olhos, mas não antes de ter um vislumbre de um ofuscante clarão azul, que fez seu corpo estremecer. A irmã manteve-se em silêncio por um momento, antes de dizer, numa voz distante:

- É isso mesmo, no caminho na colina, quatro homens... mantos estranhos... um emblema, duas águias... arrancaram sua adaga... Regis! Ele foi levado num helicóptero terráqueo!

Ela ergueu os olhos da matriz e fitou-o espantada. Regis experimentou a sensação de que um punho apertava seu coração.

- Não foi para Thendara, pois os terráqueos ali não teriam qualquer proveito com ele. Aldaran?

A voz de Javanne tremia agora:

- Exatamente. O emblema de Aldaran é uma águia... dobrada... e não teriam qualquer dificuldade para tomar emprestada uma aeronave terráquea... o avô já fez isso aqui, num caso de urgência. Mas por quê?

A resposta era óbvia. Danilo era um telepata catalisador. Houvera um tempo em que Kermiac de Aldaran treinava Guardiãs em suas montanhas, e sem dúvida tinha muitas maneiras para aproveitar um catalisador. Regis murmurou:

- Danilo já suportou mais do que qualquer telepata destreinado pode agüentar. Se aplicarem mais pressão ou coação, sua mente pode se desintegrar. Devo levá-lo de volta a Thendara. Não posso deixá-lo lá, desprotegido. A culpa é minha.

Angustiado, lutando contra um medo terrível, ele ergueu a cabeça.

- Preciso salvá-lo. Prestei um juramento. Javanne, você tem de me ajudar a sintonizar cora a matriz. Não tenho tempo para ir a Neskaya.

- Não há outro meio, Regis?

- Absolutamente nenhum. O avô, Kennard, o Conselho... Dani nada representa para eles. Se fosse Dyan, eles poderiam se empenhar. Se os homens de Aldaran me seqüestrassem, eles enviariam um exército no mesmo instante. Mas Danilo? O que você acha?

- Aquele herdeiro nedestro de Kennard... ele foi enviado a Aldaran e é parente deles. Não posso deixar de me perguntar se ele não tem alguma participação nessa história.

- Lew? Ele jamais faria tal coisa! Javanne se mostrou cética.

- A seus olhos, ele não pode fazer nada errado. Quando menino, era apaixonado por Lew, como eu fui por Dom Rafael. Mas eu não tenho uma paixão de criança para me cegar sobre o que ele é. Kennard obrigou o Conselho a aceitá-lo com manobras escusas.

- Você não tem o direito de dizer isso, Javanne. Ele faz parte do Comyn, foi treinado numa Torre.

Ela se recusou a discutir.

- Seja como for, posso entender por que você acha que deve ir. Mas não tem nenhum treinamento, e é muito perigoso. Há mesmo necessidade de tanta pressa?

Javanne fitou o irmão nos olhos e acrescentou, depois de um instante:

- Como você quiser. Mostre-me sua matriz.

Os dentes cerrados, Regis desembrulhou a pedra. Prendeu a respiração, atônito: uma tênue luz brilhava nas profundezas da matriz. Javanne balançou a cabeça.

- Isso significa que posso ajudá-lo a sintonizar. Sem essa luz, você não estaria pronto. Permanecerei em contato com você. Não vai adiantar muito, mas se você... sair e não conseguir voltar a seu corpo, talvez eu possa alcançá-lo.

Ela respirou fundo. Um instante depois, Regis sentiu seu contato. A irmã não se mexera, mantinha a cabeça inclinada sobre a pedra azul. Só dava para ele ver os cabelos escuros repartidos, mas Regis teve a sensação de que ela se abaixava em sua direção, uma garota magricela, ainda muito mais alta do que o irmão caçula. Javanne levantou-o, como se ele fosse um bebê, e ajeitou-o em seu quadril, sustentando-o com o braço. Havia anos que Regis não se lembrava disso, como a irmã o segurava quando era pequeno. Ela andou de um lado para outro, pelo grande salão com o teto alto em arcadas, as janelas azuis, cantando para ele, em voz baixa e rouca... Regis sacudiu a cabeça para se livrar da ilusão. Javanne ainda se encontrava ali, com a cabeça inclinada sobre a matriz, adulta outra vez, mas seu contato mental persistia, íntimo, protetor. Por um momento, ele sentiu vontade de chorar, de se agarrar à irmã, como fazia naquele tempo. Javanne murmurou:

- Olhe para a matriz. Não tenha medo. Essa não foi sintonizada para mais ninguém. A minha o incomoda porque você está em descompasso com ela. Olhe para a sua, concentre seus pensamentos nela, não se mexa até ver as luzes despertarem no interior...

Ele tentou deliberadamente relaxar; percebeu que contraía cada músculo contra a dor recordada. Acabou olhando para a pedra, experimentou apenas um choque mínimo de percepção. Alguma coisa dentro da pedra faiscou, muito fraca. Regis concentrou os pensamentos e projetou-os... mais e mais fundo, pelo interior da pedra. Algo se agitou, tremeu, irrompeu numa centelha viva. E depois foi como se soprasse numa brasa na lareira: a centelha era um fogo azul brilhante, em movimento, pulsando com o ritmo de seu sangue. O excitamento percorreu seu corpo, uma emoção quase sexual.

- Já chega! - exclamou Javanne. - Desvie os olhos depressa ou ficará aprisionado!

Não, ainda não... Relutante, ele tirou os olhos da pedra. A irmã acrescentou:

- Comece devagar. Olhe apenas por uns poucos minutos de cada vez, até poder dominá-la ou será dominado pela pedra. A lição mais importante é a de que você deve sempre controlar, nunca se deixar controlar.

Regis lançou um último olhar, tornou a embrulhar a matriz, com um estranho senso de pesar, e sentiu a retirada do contato/abraço de Javanne.

- Você pode fazer o que quiser com a pedra, Regis, mas não será muita coisa, antes de receber o treinamento necessário. Tome cuidado. Ainda não está imune à doença do limiar, que pode voltar. Uns poucos dias fariam tanta diferença? Neskaya fica a pouco mais de um dia de viagem.

- Não sei como explicar, mas sinto que cada momento é importante. Tenho medo, Javanne, medo por Danilo, medo por todos nós. Devo partir agora, esta noite. Pode me arrumar algumas roupas velhas de montaria de Gabriel, Javanne? As minhas atrairão atenção demais nas montanhas. E pode pedir às suas mulheres que me providenciem comida para alguns dias? Quero evitar as aldeias próximas, onde posso ser reconhecido.

- Cuidarei de tudo pessoalmente; não quero que as mulheres saibam e comentem.

Ela o deixou com seu jantar negligenciado e foi procurar as roupas. Regis não tinha fome, mas mesmo assim comeu uma fatia de ave assada e um pão. Ao voltar, Javanne trazia seus alforjes e uma roupa velha de Gabriel. Retirou-se para que ele trocasse de roupa ao lado do fogo, depois levou-o pelo corredor até a cozinha deserta. Os servos há muito tinham ido para a cama. Javanne arrumou um pacote com carne seca, pão duro, bolachas e frutas secas. Guardou um pequeno equipamento de cozinhar num alforje, informando que Gabriel sempre o levava em suas expedições de caça. Regis observava-a em silêncio, sentindo-se mais ligado àquela irmã tão pouco conhecida do que em qualquer outra ocasião anterior, desde os seis anos de idade, quando ela saíra de casa para casar. Ele desejou ser ainda bastante jovem para se agarrar na saia de Javanne, como fizera naquela ocasião. Um medo gelado o dominou, e ele pensou: antes de partir para o perigo, um herdeiro do Comyn deve deixar seu herdeiro. Recusara-se até a pensar nisso, como Dyan também recusara, não querendo ser apenas mais um elo na corrente, o filho de seu pai, o pai de seus filhos. Alguma coisa em seu íntimo se rebelava, com a maior intensidade, pelo que devia fazer. Por que se incomodar? Se não voltasse, daria no mesmo, um dos filhos de Javanne seria designado como seu herdeiro... Não podia fazer nada, dizer nada... Ele suspirou. Era muito tarde para isso, já fora longe demais.

- Só mais uma coisa, irmã. Vou para um lugar de onde talvez nunca volte. Você sabe o que isso significa. Deve me dar um de seus filhos, Javanne, para meu herdeiro.

Ela empalideceu e soltou um grito baixo e angustiado. Regis sentiu seu desespero, mas não desviou os olhos, até que a irmã murmurou, a voz trêmula:

- Não há outro jeito? Ele tentou gracejar:

- Não tenho tempo de fazer um herdeiro pela forma habitual, irmã, mesmo que conseguisse arrumar uma mulher para me ajudar em tão curto prazo.

O riso de Javanne foi quase histérico, e cortado no meio, deixando um silêncio total. Regis percebeu a lenta aceitação aflorando em seus olhos. Soubera desde o início que ela concordaria. Javanne era uma Hastur, de uma família mais antiga do que a realeza. Por necessidade, casara-se com um homem de posição inferior à sua, já que não havia nenhum igual, e passara a amar o marido profundamente, mas seu dever com os Hasturs vinha em primeiro lugar. Ela disse apenas, num fio de voz:

- O que direi a Gabriel?

- Ele soube desde que a tomou como esposa que este dia poderia chegar. Eu podia muito bem ter morrido antes de alcançar a maioridade.

- Está certo, mas você mesmo terá de escolher.

Ela seguiu na frente para o quarto em que os três filhos dormiam, em camas lado a lado. À luz de vela, Regis estudou seus rostos, um a um. Rafael, franzino e moreno, os cachos bem curtos espalhando-se desgrenhados sobre o travesseiro; Gabriel, forte e trigueiro, já mais alto do que o irmão. Mikhail, com quatro anos, ainda era muito pequeno, mais louro do que os outros, as faces rosadas emolduradas pelos cabelos quase prateados. O avô devia parecer assim quando era pequeno, pensou Regis. Sentia-se estranhamente frio e despojado. Javanne dera ao clã três filhos e duas filhas. Talvez ele nunca tivesse um filho seu. Estremeceu pelas implicações do que estava fazendo e baixou a cabeça, balbuciando uma prece a que não estava acostumado:

- Cassilda, abençoada Mãe dos Domínios, ajude-me a escolher com sabedoria...

Regis deslocou-se em silêncio de uma cama para outra. Rafael era o mais parecido com ele, pensou. Depois, num impulso irresistível, ele se inclinou sobre Mikhail e levantou o menino adormecido.

- Este é meu filho, Javanne.

Ela acenou com a cabeça, mas havia fúria em seus olhos.

- E se você não voltar, ele será o Hastur de Hastur; mas se você voltar, o que vai acontecer? Ele se tornará um parente pobre aos pés de Hastur?

Regis disse, em voz baixa:

- Se eu não voltar, ele será nedestro, irmã. Não assumirei com você o compromisso de nunca tomar uma esposa, mesmo em troca dessa dádiva extraordinária. Mas juro o seguinte: ele só ficará em segundo para o meu primeiro filho legítimo. Meu segundo filho será o terceiro, depois dele, e prestarei o juramento de que nenhum outro herdeiro nedestro jamais tomará seu lugar. Isso a satisfaz, breda?

Mikhail abriu os olhos, olhou ao redor, sonolento, mas viu a mãe e não chorou. Javanne acariciou a cabeça loura.

- Isso me satisfaz, irmão.

Segurando o menino meio desajeitado, em braços sem prática, Regis deixou o quarto em que seus irmãos dormiam.

- Traga testemunhas - disse ele. - Devo partir logo. Você sabe que isso é irrevogável, Javanne, que a partir do momento em que eu fizer o juramento ele não será mais seu, passará a ser meu, e deve ser sacramentado meu herdeiro. Deverá enviá-lo para o avô em Thendara.

Ela balançou a cabeça. A garganta se agitou quando engoliu em seco, mas não protestou.

- Desça para a capela, Regis. Levarei as testemunhas.

Era uma câmara antiga nas profundezas da casa, as quatro formas divinas pintadas toscamente nas paredes, luzes ardendo diante delas. Regis ficou com Mikhail no colo, deixando que o menino sonolento torcesse um botão de sua túnica, até que as testemunhas chegaram, quatro homens e duas mulheres idosos da casa. Uma das mulheres fora a babá de Javanne na infância, e de Regis também.

Ele tomou posição no altar, solene, sempre com Mikhail no colo.

- Juro diante de Aldones, Senhor da Luz e meu divino antepassado, que Hastur de Hasturs é esta criança, por uma linhagem de sangue ininterrupta, conhecida para mim em autêntica descendência. E na falta de qualquer herdeiro de meu corpo, eu, Regis-Rafael Felix Alar Hastur y Elhalyn, escolho-o e o indico como meu herdeiro nedestro, e juro que mais ninguém, salvo meu filho primogênito em casamento genuíno, contestará seu direito à minha casa ou herança. Declaro que meu filho não será mais chamado Mikhail Regis Lanart-Hastur, mas...

Ele fez uma pausa, hesitando entre os antigos nomes do Comyn, procurando novos nomes apropriados, que confirmariam o ritual. Não havia tempo para pesquisar a lista de nomes honrados. Portanto, celebraria a necessidade desesperada que o levara a tomar aquela atitude, e acrescentou:

- Ele será chamado Danilo Lanart Hastur, e assim manterei diante de toda e qualquer contestação, diante de meu pai antes de mim, e dos filhos que me seguirão, diante de meus ancestrais e de minha posteridade. E jamais renunciarei a essa concessão enquanto viver, e nunca seja negada por qualquer dos herdeiros do meu corpo.

Ele inclinou a cabeça e beijou os lábios infantis de seu filho. Estava feito. Era um estranho início. Regis especulou qual seria o fim. Fitou a velha babá.

- Mãe-de-adoção, entrego meu filho a seus cuidados. Quando as estradas estiverem seguras, deve levá-lo a Lorde Hastur em Thendara e providenciar para que ele receba o Sinal do Comyn.

Javanne derramava lágrimas silenciosas, mas limitou-se a dizer:

- Deixe-me beijá-lo mais uma vez.

Depois, ela permitiu que a velha babá levasse o menino. Regis acompanhou-os com os olhos. Seu filho. Era um estranho sentimento. Especulou se o menino tinha laran ou o desconhecido dom de Hastur; e especulou se algum dia saberia, se tornaria a ver aquela criança.

- Devo partir agora - disse ele à irmã. - Mande trazer meu cavalo e ordene que alguém abra os portões sem barulho.

Enquanto esperavam juntos, ao lado do portão, Regis disse:

- Se eu não voltar...

- Não diga um presságio de mau agouro!

- Javanne, você tem o. dom de Hastur?

- Não sei. Ninguém sabe, até que desperta naquele que o possui. Sempre pensamos que você não tinha laran...

Ele acenou com a cabeça, sombrio. Crescera com isso, e até agora ainda era uma ferida dolorosa demais para se tocar. A irmã acrescentou:

- Um dia virá em que você deve procurar o avô, que o possui para despertar em seu herdeiro, e pedir pelo dom. Então, e só então, saberá o que é. Eu mesma não sei. Mas se você tivesse morrido antes de ser declarado um homem, ou antes de ter um filho, seria despertado em mim, para que eu o passasse, antes de minha morte, para um de meus filhos.

E isso ainda pode acontecer, pensou Regis. Ele ouviu o barulho suave dos cascos do cavalo no escuro. Preparou-se para montar. Virou-se e abraçou Javanne por um instante. Ela estava chorando. Regis piscou para conter as lágrimas em seus próprios olhos e sussurrou:

- Seja boa com meu filho, querida.

O que mais ele podia dizer? Javanne beijou-o e murmurou:

- Diga que você voltará, irmão. Não fale qualquer outra coisa.

Sem esperar mais alguma palavra, ela se desvencilhou do abraço e voltou correndo para a casa escura.

Os portões de Edelweiss fecharam-se por trás dele. Regis estava sozinho. A noite era escura, o nevoeiro espesso. Ele ajustou o manto na garganta, tocando a pequena bolsa em que guardava a matriz. Mesmo sobre a camada isolante, podia senti-la, embora nenhum outro fosse capaz, uma pequena coisa viva, vibrando... Encontrava-se sozinho com a pedra, sob o pequeno chifre de lua, baixando por trás das -colinas distantes. Muito em breve até mesmo essa claridade mínima desapareceria.

Ele respirou fundo, murmurou palavras de estímulo para o cavalo, ergueu a cabeça e seguiu para o norte, na primeira etapa de sua viagem rumo ao desconhecido.

Capítulo Dezesseis

(Narrativa de Lew Alton)

Até o dia em que eu morrer, tenho certeza de que lembrarei em sonhos aqueles primeiros dias alegres em Aldaran.

Nos meus sonhos, tudo o que veio depois foi apagado, e recordo apenas aquela época em que estávamos todos juntos, e eu era feliz, muito feliz, pela primeira e última vez em minha vida. Nesses sonhos, Thyra aparece em toda a sua estranha e selvagem beleza, como era naquele tempo, terna, dócil e afetuosa. Beltran também comparece, com seu fogo e com o entusiasmo pela esperança que contagiara a todos nós, meu amigo, quase meu irmão. Kadarin surge sempre sorrindo nos meus sonhos, gentil, um rochedo de fortaleza, sustentando a todos nós quando fraquejávamos. E Rafe, o filho que nunca terei, sempre ao meu lado, os olhos levantados para os meus.

E Marjorie.

Marjorie está sempre comigo nesses sonhos. Mas não há nada que eu possa dizer a respeito de Marjorie. Apenas que estávamos juntos, apaixonados, e o medo ainda era apenas uma sombra mínima, como um sopro gelado de uma geleira distante. Claro que eu a queria, e me ressentia de não poder tocá-la, nem mesmo da maneira mais casual. Mas não era tão ruim quanto eu temera. O trabalho psíquico consome tanta energia e força que não resta muita coisa. Permanecíamos juntos em cada momento de vigília, e isso era suficiente. Quase suficiente. E podíamos esperar o resto.

Eu queria uma equipe bem treinada, por isso trabalhava com eles dia a dia, tentando moldar a todos nós num círculo operacional, capaz de atuar com perfeita sintonia. Por enquanto, ainda trabalhávamos com nossas matrizes pequenas; antes de nos reunir para invocar o poder da grande, devíamos estar absolutamente sintonizados, sem fraquezas ocultas. Eu me sentiria mais seguro com um círculo de seis ou oito pessoas, como em Arilinn. Cinco é um círculo pequeno, mesmo com Beltran operando por fora, como monitor psíquico. Mas Thyra e Kadarin eram mais fortes do que a maioria das pessoas em Arilinn - sabia que ambos eram mais fortes do que eu, embora minha habilidade e treinamento fossem superiores -, e Marjorie possuía um talento fantástico. Mesmo em Arilinn, ela seria escolhida desde o primeiro dia como uma Guardiã em potencial.

Uma profunda afeição, até mesmo amor, aflorara entre todos nós, com a gradativa fusão de nossas mentes. Era sempre assim, no desenvolvimento de um círculo. Era uma intimidade mais íntima que a da família, maior que a do amor sexual. Era uma espécie de fusão, como se todos nos integrássemos uns nos outros, cada um contribuindo com algo especial, individual e único, e de certa forma todos juntos nos tornávamos mais do que a soma de cada um.

Mas os outros começavam a se mostrar impacientes. Foi Thyra quem finalmente expressou o que todos queriam saber:

- Quando começaremos a trabalhar com a matriz de Sharra? Já estamos mais do que prontos.

Mas eu ainda tinha algumas reservas.

- Esperava encontrar outros para trabalhar conosco; não tenho certeza se podemos operar sozinhos uma matriz do nono nível.

- O que é uma matriz do nono nível? - indagou Rafe.

- De modo geral - respondi secamente -, trata-se de uma matriz que não é segura para se operar com menos de nove pessoas. E isso com uma Guardiã competente, com um treinamento completo.

- Eu disse que deveríamos ter escolhido Thyra - lembrou Kadarin.

- Não vou discutir sobre isso. Thyra é uma telepata muito forte, uma excelente técnica e mecânica. Mas não é uma Guardiã.

- Em que exatamente uma Guardiã é diferente de qualquer outro telepata? - perguntou Thyra.

Fiz um esforço para traduzir em palavras que ela pudesse compreender:

- Uma Guardiã é o controle central no círculo; todos já viram isso. É ela que mantém as forças unidas. Sabem o que são energônios?

Só Rafe se arriscou a especular:

- São aquelas pequenas coisas ondulantes que não consigo ver direito quando olho para a matriz?

Na verdade, era uma excelente resposta.

- É um nome puramente teórico para uma coisa que ninguém tem certeza se de fato existe. Já foi aventado que a parte do cérebro que controla as forças psíquicas emite certo tipo de vibração, que chamamos de energônios. Podemos descrever o que fazem, embora não os possamos descrever. Quando direcionados e focalizados por meio de uma matriz... como eu demonstrei... são bastante ampliados, com a matriz atuando como um transformador. São os energônios amplificados que transformam a energia. Num círculo de matriz, é a Guardiã que recebe o fluxo de energônios de todos os membros do círculo e os une num único feixe focalizado, que passa pela matriz grande.

- Por que são sempre as mulheres que assumem a função de Guardiãs?

- Não necessariamente. Já houve homens que foram poderosos Guardiões, e outros que assumem temporariamente as funções de uma Guardiã. Eu mesmo já fiz isso. Mas as mulheres têm fluxos de energônios mais positivos, começam a gerá-los mais cedo e os mantêm por mais tempo.

- Explicou por que uma Guardiã tem de ser casta, mas ainda não compreendo - comentou Marjorie.

Kadarin interveio:

- Isso não passa de sandice supersticiosa. Não há nada para compreender; é pura bobagem.

- No passado, quando se faziam enormes telas de matriz, as sintéticas, as Guardiãs eram virgens, treinadas desde o início da infância e condicionadas por meios que vocês nem são capazes de imaginar. Sabem como é ligado um círculo de matriz. - Olhei para cada um, saboreando a intimidade. - Naquele tempo, uma Guardiã tinha de aprender a ser parte integrante do círculo e ao mesmo tempo se manter completamente apartada.

- Eu diria que elas enlouqueciam - comentou Marjorie.

- Isso acontecia com muitas. Mesmo agora, a maioria das mulheres que atuam cotio Guardiãs acaba desistindo depois de um ou dois anos. É um trabalho muito difícil e frustrante. As Guardiãs nas Torres não são mais obrigadas a serem virgens, mas devem permanecer castas enquanto ocupam a posição.

- Parece-me um absurdo - declarou Thyra.

- Mas não é, nem um pouco. A Guardiã absorve e canaliza a energia de todos. Ninguém que já manipulou esses fluxos de alta energia deseja correr qualquer risco de sofrer um curto-circuito em seu próprio corpo. Seria como se postar no caminho de um raio. Tornei a mostrar minha cicatriz, antes de acrescentar:

- Um refluxo de três segundos fez isso comigo. Lembrem-se disso. Existem no corpo agrupamentos de fibras nervosas que controlam os fluxos de energia. O problema é que esses agrupamentos transmitem dois tipos de energia: os fluxos psíquicos, os energônios que levam a força ao cérebro, e também as mensagens e as energias sexuais. É por isso que. alguns telepatas sofrem a doença do limiar na adolescência; são os dois tipos de energia, a sexual e o laran, despertando ao mesmo tempo. Se não são controlados direito, pode ocorrer uma sobrecarga, às vezes fatal, porque cada tipo estimula o outro, criando-se uma reação em cadeia.

Beltran indagou:

- É por isso que...

Acenei com a cabeça, já sabendo o que ele ia perguntar.

- Sempre que há uma drenagem de energônios, como no trabalho de matriz concentrado, ocorre alguma sobrecarga nervosa. Suas energias são exauridas... já notaram como todos temos comido?... e as energias sexuais também são reduzidas. O maior efeito colateral para os homens é a impotência temporária.

Fiz uma pausa e repeti, oferecendo um sorriso tranqüilizador a Beltran:

- Impotência temporária. Não é preciso se preocupar, mas leva algum tempo para se acostumar. Por falar nisso, se algum de vocês descobrir que não consegue comer, avise imediatamente, para ser monitorado. Pode ser um sinal prévio de que seus fluxos de energia estão desordenados.

- Monitoração... não é isso o que tem me ensinado a fazer? -indagou Beltran.

Acenei com a cabeça em confirmação.

- Exatamente. Mesmo que você não possa se ligar no círculo, ainda podemos aproveitá-lo como monitor psíquico.

Eu sabia que Beltran ainda se ressentia por isso. Ele já conhecia o bastante, àquela altura, para saber que era, em geral, um trabalho realizado pelos mais jovens e menos hábeis. O pior era que, se ele não parasse de projetar esse ressentimento, não poderíamos sequer mantê-lo perto do círculo. Nem mesmo como um monitor psíquico. Há poucas coisas que podem perturbar um círculo mais depressa do que ressentimentos descontrolados. Tratei de acrescentar:

- Em certo sentido, a Guardiã e o monitor psíquico são as duas extremidades de um círculo... e quase com a mesma importância. -Era a pura verdade. - Muitas vezes, a vida de uma Guardiã fica nas mãos do monitor, porque ela não tem energia a desperdiçar no cuidado com o próprio corpo.

Beltran sorriu, pesaroso, mas pelo menos sorriu.

- Portanto, Marjorie é a cabeça, e eu sou o rabo da vaca!

- Não é assim, Beltran. Ela se encontra no topo da escada, e você é a base que a mantém firme. É a linha vital. - Lembrei de repente que nos desviáramos bastante do assunto. - Seja como for, se os canais nervosos da Guardiã não estiverem completamente desobstruídos, ela queimará como uma tocha. Portanto, enquanto os canais estiverem sendo usados para transmitir essas tremendas cargas de energia, não podem ser utilizados como veículos para qualquer outro tipo de energia. E só a castidade total pode manter os canais abertos.

- Posso agora sentir os canais em todos os momentos - comentou Marjorie. - Mesmo quando não estou trabalhando com as matrizes. Até quando durmo.

- Isso é ótimo.

Significava que ela já passara a operar como uma Guardiã. Beltran fitou-a, com os olhos semicerrados, e disse:

- Quase posso vê-los.

- O que também é ótimo - declarei. - Chegará um momento em que você poderá sentir a energia fluir pela sala... ou a um quilômetro de distância... e determinar os refluxos e desvios de energia em qualquer um de nós.

Mudei de assunto, deliberadamente, e perguntei:

- O que queremos fazer precisamente com a matriz de Sharra, Beltran?

- Conhece meus planos.

- Claro que conheço, mas o que você quer fazer primeiro} Sei que no final você quer provar que uma matriz desse tamanho pode impulsionar uma nave estelar...

- E pode? - indagou Marjorie.

- Uma matriz desse tamanho, amor, pode desviar uma das luas menores de sua órbita, se fôssemos bastante insanos para tentar. Destruiria Darkover, é claro. Talvez seja possível impulsionar uma nave estelar, mas não podemos começar por aí. Entre outros motivos, porque ainda não temos uma nave estelar. Precisamos de um projeto menor para experimentar, para aprender a direcionar e focalizar a força. Como é uma força acionada pelo fogo, também precisamos de um lugar para trabalhar em que, se perdêssemos o controle por alguns segundos, não queimaríamos milhares de quilômetros de floresta.

Vi Beltran estremecer. Ele também era criado nas montanhas, e partilhava com todos os darkovanos o medo de incêndio na floresta.

- O pai possui quatro aeronaves terráqueas, dois aviões pequenos e dois helicópteros. Um dos helicópteros está longe daqui, nas terras baixas, mas o outro não seria adequado para a experiência?

Pensei por um momento.

- O combustível explosivo deve ser removido primeiro, a fim de não queimar, se algo sair errado. Resolvido esse problema, um helicóptero pode ser o ideal, com os rotores ligados, pronto para alçar vôo. É uma questão de desenvolver o controle e a precisão. Você não poria o nosso Rafe para montar seu mais veloz cavalo de corrida, não é mesmo?

Rafe interveio, hesitante:

- Lew, você disse que precisamos de outros telepatas. Lorde Kermiac... ele não treinou mecânicos de matriz antes de qualquer de nós nascer? Por que ele não trabalha conosco?

Era verdade. Ele treinara Desideria, e tão bem que ela podia usar a matriz de Sharra...

- E ela a usava sozinha - lembrou Kadarin, captando meus pensamentos. - Então por que o preocupa o fato de sermos tão poucos?

- O problema é que ela não a usava sozinha - ressaltei. - Contava com cinqüenta a cem crentes focalizando suas emoções puras na pedra. Mais do que isso, ela não tentava controlá-la ou focalizá-la. Em vez disso, usou-a como uma arma,, deixou que a pedra a usasse.

Senti um súbito calafrio de medo, como se todos os cabelos de meu corpo ficassem arrepiados. Tratei de cortar o pensamento. Era treinado numa Torre. Não tinha a menor disposição para manipular uma matriz em busca de poder. Prestara um juramento.

- Quanto a Kermiac - acrescentei -, ele já é velho, passou da idade em que podia controlar uma matriz. Eu não correria esse risco, Rafe.

Beltran ficou furioso.

- Pode ter peio menos a cortesia de falar com ele!

O que parecia bastante justo, quando avaliei a experiência que ele devia possuir contra sua idade e fraqueza.

- Está certo, fale com ele, se assim deseja. Mas não o pressione. Deixe que Kermiac tome sua própria decisão.

- Ele não vai aceitar - informou Marjorie, corando quando todos nos viramos para fitá-la. - Achei que era meu dever, como Guardiã, conversar com ele. Lorde Kermiac lembrou que nem mesmo quis me ensinar. Disse que um círculo era apenas tão forte quanto o mais fraco de seus integrantes, e que sua presença arriscaria nossas vidas.

Senti-me ao mesmo tempo desapontado e aliviado. Desapontado porque apreciaria a oportunidade de me unir a ele nesse vínculo especial que só acontece com membros de um círculo, de me sentir de fato seu parente. Aliviado porque era verdade o que ele dissera a Marjorie, e todos sabíamos disso. Thyra insistiu, rebelde:

- Será que ele não compreende quanto precisamos de sua ajuda? Não vale a pena algum risco?

Eu poderia assumir os riscos para nós, mas não para ele. Em Arilinn, recomendavam o gradativo abandono do trabalho depois da meia-idade, à medida que a vitalidade diminuía.

- Sempre Arilinn - disse Thyra, impaciente, como se eu tivesse falado em voz alta. - Eles treinam as pessoas para serem covardes?

Virei-me para ela, contendo a súbita ira interior que Thyra despertava em mim com a maior facilidade. Fazendo um esforço para que Marjorie e os outros não fossem apanhados no turbilhão de emoção entre Thyra e mim, tratei de responder:

- Há uma coisa que nos ensinam, Thyra, e é sermos honestos com nós mesmos, e uns com os outros.

Estendi a mão em sua direção. Se ela fosse treinada em Arilinn, já saberia que a ira era com bastante freqüência um disfarce para emoções menos permissíveis.

- Está disposto a ser honesta comigo?

Relutante, ela pegou minha mão estendida entre as suas. Empenhei em baixar as barreiras, em vez de erguer barricadas contra ela. Thyra tremia, e eu sabia que aquela era uma experiência nova e angustiante para ela, que nenhum homem, à exceção de Kadarin, seu amante por muito tempo, jamais atiçara seus sentidos. Por um momento, pensei que ela ia chorar. Seria melhor se o fizesse, mas Thy-ra mordeu o lábio e fitou-me com uma expressão de desafio, enquanto sussurrava:

- Não faça...

Rompi o contato trêmulo, sabendo que não podia forçar Thyra, como teria de fazer em Arilinn, a ir até o fundo e confrontar o que se recusava a perceber. Não podia fazer isso. Não diante de Marjorie.

Não era covardia, disse a mim mesmo, com veemência. Éramos todos parentes. Simplesmente não havia necessidade. Apressei-me em mudar de assunto.

- Podemos tentar sintonizar a matriz de Sharra amanhã, se vocês quiserem. Já explicou a seu pai, Beltran, que vamos precisar de um local isolado para trabalhar? Deve também pedir permissão para usarmos o helicóptero.

- Falarei com ele esta noite, ao jantar - prometeu Beltran.

Depois do jantar, quando nos reunimos na pequena sala íntima, que convertêramos em base de operações, ele nos avisou que a permissão fora concedida e que poderíamos usar a antiga pista de pouso. Conversamos pouco nessa noite, cada um absorvido em seus pensamentos. Refleti que fora sem dúvida aflitivo para Kadarin me entregar a matriz. Desde o início, ele pensara que teria o comando-total do projeto, junto com Beltran, e que eu seria apenas um ajudante, emprestando minha habilidade, mas sem impor decisões. Era bem provável que Beltran ainda se ressentisse de eu ter assumido um papel preponderante, e sua incapacidade para participar do círculo devia ser a dose mais amarga que já engolira.

Marjorie mantinha-se um pouco apartada dos demais; o isolamento desolador de uma Guardiã já a dominara, forçando-a a se afastar dos outros. Odiei a mim mesmo por tê-la condenado a isso. Com uma parte de meu ser, queria acabar com tudo aquilo, tomá-la em meus braços. Talvez Kadarin estivesse certo, talvez a castidade de uma Guardiã fosse uma das superstições mais estúpidas do Comyn, e Marjorie e eu passávamos por aquele inferno sem necessidade.

Deixei-me sair de foco, tentando ver à frente, divisar o dia em que estaríamos livres para amar um ao outro. E por mais estranho que pudesse parecer, embora minha vida fosse aqui, e sentisse que renunciara por completo a toda e qualquer fidelidade ao Comyn, ainda tentei me ver transmitindo a notícia a meu pai.

Retornei à percepção normal e constatei que Rafe dormia junto à lareira. Alguém deveria acordá-lo, mandá-lo para a cama. Aquele trabalho seria extenuante demais para um menino de sua idade? Ele deveria estar distraindo-se com matrizes do tamanho de um botão, não trabalhando a sério num círculo como aquele!

Meus olhos persistiram por mais tempo, com uma cruel inveja, em Kadarin e Thyra, lado a lado, olhando para o fogo. Não havia qualquer proibição entre os dois; mesmo separados, tinham um ao outro. Vi os olhos de Marjorie a nos contemplar, com a mesma tristeza remota. Isso, pelo menos, podíamos partilhar... e por enquanto era tudo o que podíamos partilhar.

Virei a mão e olhei com pesar desligado para a marca tatuada era meu pulso direito, o sinal do Comyn. O sinal de que eu era o herdeiro com laran de um Domínio. Meu pai jurara por mim, antes que a marca fosse feita, pelos serviços ao Comyn, pela lealdade a meu povo.

Olhei para a cicatriz de meu primeiro ano em Arilinn. Doía sempre que eu fazia um trabalho de matriz como aquele; doía agora. Isso, não a tatuagem do meu Domínio, era o verdadeiro sinal de minha lealdade a Darkover. E agora eu me empenhava por um grande renascimento do conhecimento e sabedoria, para beneficiar todo o nosso mundo. Violava a lei de Arilinn ao trabalhar com telepatas destreinados, com matrizes que não eram monitoradas. Violava a letra da lei, talvez, mas para restaurar seu espírito por todo Darkover!

Quando Rafe e as mulheres se retiraram, bocejando de cansaço, detive Kadarin por um momento.

- Preciso saber uma coisa. Você e Thyra são casados? Ele sacudiu a cabeça.

- Companheiros livres, talvez. Nunca pensamos em cerimônias formais. Se ela quisesse, eu estaria disposto, mas já conheci muitos costumes matrimoniais, em muitos mundos, para me importar com qualquer um. Por quê?

- Num círculo de Torre, isso não deveria acontecer; aqui, precisa ser levado em consideração. Há alguma possibilidade de que ela possa estar esperando uma criança?

Ele alteou uma sobrancelha. Eu sabia que essa pergunta era uma intromissão indesculpável, mas era necessário saber. Ele acabou respondendo:

- Duvido. Tenho viajado por tantos mundos e me exposto a tantas coisas... Sou mais velho do que pareço, mas nunca tive nenhum filho. Provavelmente não posso. Assim, receio que, se Thyra quiser uma criança, terá de procurar outro para ser o pai. Não quer ser voluntário?

Ele concluiu com uma gargalhada. Considerei a pergunta afrontosa demais para sequer pensar a respeito.

- Apenas achei que devia avisá-lo de que o trabalho no círculo de matriz podia ser perigoso se houvesse alguma possibilidade de gravidez. Não tanto por ela, mas sim pela criança. Já houve tragédias terríveis, e me senti na obrigação de alertá-lo.

- Creio que faria melhor se avisasse a ela, mas agradeço a delicadeza.

Ele me ofereceu uma expressão estranha e indecifrável, antes de se afastar. Bom, eu cumprira meu dever ao perguntar, e se o problema o afligia, ele teria de absorvê-lo e aceitá-lo, assim como eu absorvia minha frustração por Marjorie e aceitava a maneira como a presença física de Thyra me perturbava. Meus sonhos naquela noite foram desconcertantes. Thyra e Marjorie se fundiam numa única mulher, de tal forma que várias e várias vezes vi uma no sonho, só para descobrir de repente que era a outra. Deveria ter reconhecido isso como um sinal de perigo, mas só compreendi quando já era tarde demais.

O dia seguinte amanheceu cinzento, as nuvens baixas. Especulei se teríamos de esperar até a primavera para qualquer trabalho realmente eficaz. Talvez fosse melhor, pois nos daria tempo para uma sintonia maior, talvez para encontrar outros que se integrassem no círculo. Beltran e Kadarin ficariam impacientes. Ora, teriam de controlar a impaciência.

Marjorie parecia fria e apreensiva; eu também me sentia assim. Uns poucos flocos de neve isolados caíam, mas eu não podia apresentar a neve como uma desculpa para adiar a experiência. Até mesmo a animação constante de Thyra arrefecera.

Desenrolei a espada em que a matriz estava guardada. O povo da forja devia ter feito isso; não pude deixar de me perguntar se eles sabiam de fato o que estavam fazendo. Havia tradições antigas sobre matrizes assim, instaladas em armas. Vinham da Era do Caos, quando se conhecia tudo o que era possível conhecer sobre as matrizes, pelo que se dizia, e nosso mundo quase foi destruído em conseqüência. Eu disse a Beltran:

- É muito perigoso sintonizar uma matriz desse tamanho sem um objetivo definido. Deve ser sempre controlada ou acabará por nos controlar.

- Fala da matriz como se fosse uma coisa viva - comentou Kadarin.

- Não tenho certeza se não é mesmo. - Apontei o helicóptero, parado a uns trinta metros de distância, na beira da pista de pouso deserta, a neve começando a se acumular nos rotores. - O que estou querendo dizer é o seguinte: não podemos simplesmente sintonizar a matriz, ordenar "voa", e ficar parados aqui, observando o aparelho decolar. Precisamos saber como o mecanismo funciona, a fim de determinar com precisão que forças devemos exercer e em que direções. Minha sugestão é que comecemos por nos concentrar em acionar o mecanismo dos rotores, até alcançar velocidade suficiente para a decolagem. Não precisamos de uma matriz tão grande para isso, nem de cinco trabalhadores. Eu poderia fazer só com isto.

Fiz uma pausa, encostando a mão na bolsa pendurada no pescoço que continha minha matriz, antes de continuar:

- Mas devemos aprender a direcionar as forças com precisão. Descobriremos assim como elevar o helicóptero; e como não queremos que caia e se arrebente, vamos nos limitar a girar os rotores até que suba alguns centímetros e depois diminuiremos a velocidade pouco a pouco, para que torne a pousar. Mais tarde, podemos tentar o controle de seu vôo. - Virei-me para Beltran. - Isso servirá como demonstração para os terráqueos de que a energia psíquica tem usos materiais, a fim de que eles nos ajudem a desenvolver um meio de aproveitá-la como um propulsor estelar?

Foi Kadarin quem respondeu:

- Claro que sim, se bem conheço os terráqueos! Marjorie verificou as mãos enluvadas de Rafe.

- Já estão bastante aquecidas? - Ele retirou as mãos, indignado, e Marjorie acrescentou, em advertência: - Não seja tolo! O tremor de frio consome bastante energia, e vai precisar de toda a que possui para se concentrar!

Fiquei satisfeito por constatar que ela tinha uma boa noção da situação. Meu próprio calafrio era mental, não físico. Coloquei Beltran a alguma distância do círculo. Sabia que o fato de que Rafe, com doze anos, podia ser um dos integrantes e ele não era uma pílula amarga para engolir e lamentava muito, mas a primeira necessidade do trabalho de matriz era conhecer e aceitar durante todo o tempo as próprias limitações. Se Beltran não era capaz, não podia participar de um círculo.

Não havia, na verdade, necessidade de um círculo físico, mas mantive todos bem próximos para que a energia magnética de nossos corpos pudesse sobrepor-se e reforçar o vínculo crescente.

Sabia que aquilo era uma loucura, uma Guardiã só com um mínimo de treinamento, um monitor psíquico só com um mínimo de treinamento... uma matriz ilegal, que não era monitorada... e, no entanto, pensava nos pioneiros dos primeiros dias de nosso mundo, os primeiros que controlaram matrizes. Colonos terráqueos? Era o que Kadarin pensava. Antes que as Torres fossem construídas, antes que o uso fosse protegido pelo ritual e pela superstição. E cabia a nós reconstituir seus passos!

Separei o cabo da lâmina e retirei a matriz. Ainda não se encontrava ativada, mas ao contato a cicatriz antiga em minha mão se contraiu, com uma pontada de dor. Marjorie deslocou-se com uma serena segurança para o centro do círculo. Parou de frente para mim e pôs uma das mãos na pedra azul... um vórtice procurando atrair-me para suas profundezas, um redemoinho... Fechei os olhos, procurando o contato com Marjorie, controlei-me ao me ligar à sua força suave e fria. Senti que Thyra assumia seu lugar, depois de Kadarin; a sensação de um fardo quase insuportável diminuiu com sua força, como se ele transferisse um grande peso para seus ombros. Rafe entrou no círculo como uma coisinha pequena e agitada se aninhando em nós.

Experimentei a insólita sensação de que a força fluía da pedra para o círculo. Era como estar ligado a uma potente bateria, vibrando em todos nós, no corpo e no cérebro. O que era errado, muito errado. Podia ser revigorante, mas eu sabia que não devíamos sucumbir a isso, por um instante sequer. Com alívio, senti que Marjorie assumia o controle, e com um esforço determinado direcionava o fluxo de força, focalizando-o para fora, por seu intermédio.

Por um momento, ela foi envolta por chamas transparentes e tremeluzentes, e de repente assumiu a aparência de outra mulher... dourada, em correntes, ajoelhada, como o povo da forja representava sua deusa... Eu sabia que se tratava de uma ilusão, mas parecia que Marjorie ou a enorme forma de fogo que assomava ao redor, sobre e através dela projetava-se para longe, pegava os rotores do helicóptero e girava-os, como uma criança gira um cata-vento de papel. Com meus ouvidos físicos, escutei o zumbido quando começaram a girar, lentamente a princípio, sob uma força controladora, e depois com um rugido cada vez mais rápido, um rangido estridente carregado pelas correntes de ar que criava. E, devagar, o enorme aparelho foi subindo, pairando a um ou dois palmos acima do solo...

Fazendo força para partir...

Fique onde está! Eu direcionava a força para o exterior, à medida que Marjorie a formava e moldava; podia sentir os outros se comprimirem contra mim, embora fisicamente nenhum de nós se tocasse. Enquanto eu tremia, sentindo o vasto fluxo daquela força combinada, vi numa sucessão de intensos lampejos a grande forma de fogo que contemplara antes, que era Marjorie e ao mesmo tempo não era Marjorie, um jato de força tremendo, uma mulher nua, alta como o céu, os cabelos desgrenhados, e cada fio separado era uma flama... e senti uma raiva estranha aflorar e sair de mim. Pegue o helicóptero, parado ali, inútil, a poucos centímetros do chão, arremesse-o pelo céu, alto, muito alto, lance-o como um míssil contra as torres do Castelo Aldaran, queimando, destruindo, explodindo os muros como se fossem feitos de areia, espalhando uma chuva de fogo sobre o vale, incendiando Caer Donn, arrasando a base terráquea... Lutei contra essas imagens de fogo e destruição, como um cavaleiro luta contra seu cavalo rebelde. Muito forte. Muito forte. Senti um cheiro estranho, uma besta selvagem rondava pela selva de meus impulsos, raiva, desejo, uma constelação de emoções desvairadas, um pequeno animal arisco subindo por uma árvore em terror... a estridência dos rotores, um grito, um rugido ensurdecedor...

Pouco a pouco, o ruído foi decrescendo para um zumbido, um tênue murmúrio, e depois o silêncio. O helicóptero parou de vibrar, ficou imóvel. Marjorie, ainda tremeluzindo com débeis chamas do fogo invisível, mantinha-se tranqüila, sorria distraída. Senti-a projetar-se e romper o contato, os outros se retiraram também, um a um, e voltamos a nos isolar. Marjorie retirou a mão da matriz, e me descobri sozinho, com frio, lutando contra espasmos de desejo, uma violência intensa turbilhonando em meu cérebro, fora de controle, o coração disparado, o sangue latejando na cabeça, a visão turva...

Beltran tocou de leve meu ombro; senti o tumulto se desvanecer, e com um tremor de dor consegui retirar minha percepção. Apressei-me em cobrir a matriz e levei a mão dolorida à testa. Saiu molhada.

- Pelos infernos de Zandru! - sussurrei.

Nunca, em nenhum momento dos três anos que passara em Arilinn, eu jamais conhecera tanta força. Kadarin, olhando para o helicóptero, pensativo, comentou:

- Poderíamos ter feito qualquer coisa com o aparelho.

- Exceto talvez controlá-lo.

- Mas a força existe, e quando aprendermos a controlá-la... - declarou Beltran. - Uma espaçonave. Qualquer coisa.

Rafe tocou de leve o pulso de Marjorie.

- Por um momento, pensei que você estivesse pegando fogo. Isso foi real, Lew?

Eu não tinha certeza se fora apenas uma ilusão, a maneira como gerações e gerações do povo da forja imaginaram sua deusa, a força que trazia metal das profundezas do solo para suas fogueiras e forjas. Ou seria alguma força objetiva daquele estranho outro mundo, para o qual o telepata vai quando deixa seu corpo físico?

- Não sei, Rafe - respondi. - Qual foi a sua sensação, Marjorie?

- Vi o fogo. Pude até senti-lo, pelo menos um pouco, só que não me queimou. Mas senti que se perdesse o controle, mesmo que por um instante sequer, iria me queimar por dentro e... e assumir o comando, eu seria o fogo, para me projetar e... destruir tudo. Não estou explicando direito...

Então não fora apenas eu. Ela também sentira a ira mortífera, a ânsia de destruição. Eu ainda lutava contra os efeitos físicos posteriores, o leve tremor da adrenalina consumida. Se essas emoções tivessem de fato aflorado dentro de mim, eu não seria capacitado para aquele trabalho. Mas me examinando agora, com a disciplina adquirida no treinamento na Torre, não encontrei qualquer vestígio dessa emoção.

O que me inquietou. Se minhas emoções ocultas - uma raiva que eu não conhecia, o desejo reprimido por uma das mulheres, a hostilidade secreta contra um dos outros - se projetassem de minha mente para me consumir, então era um sinal de que eu perdera, sob pressão, a disciplina imposta na Torre. Mas tais emoções, sendo minhas, eu podia controlar. Se não eram minhas, se vinham de outra parte para nos dominar, todos corríamos perigo.

- Estou mais perturbado do que nunca com essa matriz - declarei. - A força existe, não se pode negar, mas tem sido usada como uma arma...

- E quer nos destruir - interveio Rafe, inesperadamente -, como a espada no conto de fadas; quando era empunhada, nunca voltava à bainha enquanto não tivesse sua quota de sangue.

- Muitos desses contos de fadas baseiam-se em histórias truncadas da Era do Caos - expliquei, muito sério. - Talvez Rafe esteja certo, e a matriz queira sangue e destruição.

Com uma expressão pensativa, Thyra indagou:

- Não é o que todos os homens querem, pelo menos um pouco? A história nos diz que sim. E isso se aplica tanto aos darkovanos quanto aos terráqueos.

Kadarin soltou uma risada.

- Você foi criado no Comyn, Lew, e por isso o perdoarei por ser supersticioso. - Ele passou por meus ombros e deu-me um abraço afetuoso. - Tenho mais fé na mente humana do que nas superstições do povo da forja.

Ainda nos encontrávamos ligados; senti outra vez a força que levantara um enorme peso de meus ombros. Deixei-me apoiar nele. Kadarin provavelmente tinha razão. Minha mente se povoara desde a infância com os velhos deuses e poderes. A ciência da mecânica da matriz fora formulada para nos livrar de tudo isso. Eu era um técnico competente; por que permitia que a imaginação prevalecesse?

- Vamos tentar de novo - acrescentou Kadarin. - Agora que sabemos que podemos controlá-la, é tudo uma questão de aprender como.

- Cabe sempre à Guardiã decidir isso - ressaltei. Perturbava-me que Marjorie ainda acatasse o meu comando.

Era natural, já que eu a treinara, mas ela devia aprender que a iniciativa lhe pertencia, que devia liderar, não obedecer.

Marjorie estendeu a mão para mim, formando a linha de força primária. Um a um, ela nos reuniu no círculo, cada um se ajustando em seu lugar, como se fôssemos batedores num campo de batalha. Desta vez senti que ela fazia contato também com Beltran, e o situava, a fim de que ele pudesse manter um vínculo logo além do círculo. Foi mais fácil transmitir a força agora... fogo acorrentado, eletricidade armazenada numa bateria, um cavalo de corrida sob controle... Vi o fogo se elevar em torno de Marjorie, mas desta vez pude perceber através das chamas. Não era genuíno, apenas uma maneira de visualizar uma força que não tinha realidade física.

Permanecemos ligados, mantendo em suspenso a força em vibração. Se os terráqueos não quiserem dar-nos o que precisamos e merecemos, podemos forçá-los; não precisamos ter suas bombas e raios. Eles pensam que somos bárbaros, armados com espadas e forcados?

Era claro agora: à medida que a forma de fogo se formava, eu podia ver uma mulher, uma deusa alta como o céu, vestida de chamas, projetando-se irrequieta para atacar.

...fogo chovendo sobre Caer Donn, destruindo a cidade, só deixando escombros, naves estelares caindo do céu como cometas...

Com toda a firmeza, Marjorie procurou o controle, como um desses cavaleiros nos espetáculos de equitação que controla quatro cavalos ao mesmo tempo, trazendo-nos de volta ao aeroporto físico. Tremeluzia ao nosso redor, mas estava ali. Os rotores do helicóptero recomeçaram a zumbir, a girar com o maior estrépito.

Precisamos de mais poder, mais força. Por um momento, vi com absoluta nitidez o rosto de meu pai, senti a forte linha de contato. Ele despertara meu dom; nunca estivéramos completamente fora de contato. Percebi o espanto, o medo que ele experimentou ao contato da matriz, quando foi atraído... E ele logo desapareceu. Nunca estivera ali. Depois, senti Thyra se projetar, com um contato firme, e atrair Kermiac para o círculo, como se estivesse fisicamente presente. Por um instante, o círculo expandiu-se com a força de Kermiac, ardendo com grande intensidade, e o helicóptero se ergueu do solo sem a menor dificuldade, pairou ali, os rotores girando com vigor. Vi, senti Kermiac entrar em colapso e se retirar. As linhas de força se tornaram irregulares... Kadarin e eu nos unimos, sustentando Marjorie, enquanto ela controlava as forças oscilantes, baixando, baixando... O helicóptero bateu no solo, com toda a força, e o barulho rompeu o vínculo. Uma dor imensa me dominou. Marjorie arriou, soluçando. Beltran agarrara Thyra pelos ombros e sacudia-a como um cachorro sacode um roedor. Estendeu o braço para trás e deu-lhe um tapa na cara. Senti - todos sentimos - a dor lancinante do golpe.

- Sua cadela insidiosa! Sua diaba! - berrou Beltran. - Como teve coragem, como ousou...

Kadarin segurou-o e afastou-o de Thyra pela força. Beltran continuou a se debater. Um terror frio me invadiu, e me projetei para Kermiac. Tio, eles o mataram? Depois de um momento, trêmulo de alívio, senti sua presença, um fio de vida, fraco, em colapso, mas ainda vivo. Vivo, graças a Deus!

Kadarin ainda continha Beltran, impedindo-o de agredir Thyra; acabou por derrubá-lo no chão, com a maior violência, e disse, furioso:

- Encoste a mão nela outra vez, Beltran, e juro que o matarei com minhas próprias mãos!

Ele mal parecia humano naquele momento. Marjorie chorava, tremia tanto que temi que pudesse cair desfalecida. Tratei de ampará-la. Thyra levou a mão ao rosto machucado e declarou, tentando assumir um ar de desafio:

- Tanta confusão por nada! Ele é mais forte do que qualquer um de nós!

Meu medo por Kermiac se transformara em raiva quase tão grande quanto a de Beltran. Como Thyra ousava fazer uma coisa dessas contra a vontade dele e contra o julgamento de Marjorie? Eu sabia que não podia confiar nela, uma cadela astuta e traiçoeira! Virei-me para ela, ainda amparando Marjorie com um dos braços; Thyra recuou, como se tivesse recebido um golpe. Isso me fez recuperar o controle dos sentidos. Bater numa mulher? Devagar, baixando a cabeça, cobri a matriz. Aquela raiva era nossa; e era tão perigosa quanto o que Thyra fizera.

Marjorie podia agora se manter de pé sozinha. Pus a matriz em sua mão e me aproximei de Thyra.

- Não vou machucá-la, criança. Mas o que deu em você para fazer uma coisa assim?

Uma das leis mais fortes de todos os telepatas era a de nunca se impor à vontade ou ao julgamento de outro. O desafio desapareceu do rosto de Thyra. Ela tateou com as pontas dos dedos a parte do rosto em que Beltran a esbofeteara.

- Juro que não sei, Lew - respondeu ela, quase num sussurro. - Senti que precisávamos de alguém, e no passado essa matriz conheceu os Aldarans, queria Kermiac... não, isso não faz sentido, não é mesmo? E senti que podia e devia, porque Marjorie não queria... Não pude me conter, observei-me a fazer e tive medo...

Ela começou a chorar, desamparada. Adiantei-me e tomei-a em meus braços, apertando-a contra mim, seu rosto molhado no meu ombro. Senti uma profunda ternura. Todos nos mostráramos impotentes diante daquela força. Minha própria emoção deveria ter-me alertado, mas me encontrava muito aflito para perceber o sinal de alarme. A sensação do corpo quente de Thyra em meus braços deveria ter-me alertado também, àquela altura, mas deixei-a continuar assim, soluçando, por mais um ou dois minutos, antes de afagar seus ombros ternamente, enxugar suas lágrimas e virar-me para ajudar Beltran a se levantar. Ele ficou de pé, massageando o quadril. Soltei um suspiro e comentei:

- Sei como se sente, Beltran. Foi uma coisa perigosa para se fazer. Mas você também errou, ao perder o controle. Um técnico de matriz deve se controlar em todas as circunstâncias.

O desafio e o arrependimento entraram em conflito no rosto de Beltran. Ele procurou palavras adequadas. Eu deveria ter esperado que Beltran falasse - era responsável por todo aquele círculo -, mas me sentia fraco e cansado demais para ter paciência. Em vez de esperar, declarei bruscamente:

- É melhor verificar se o helicóptero sofreu algum dano ao cair.

- De dez centímetros de altura?

O tom de Beltran era desdenhoso agora. Isso também me perturbou, mas a exaustão era grande demais para me importar.

- Como achar melhor. O aparelho é seu. Se é esse o resultado de tê-lo no círculo, cuidarei para que fique bem afastado da próxima vez.

Virei-lhe as costas. Marjorie apoiava-se em Rafe. Parara de chorar, mas tinha os olhos e o nariz vermelhos. Por mais absurdo que possa parecer, amei-a ainda mais do que antes assim. Ela disse, a voz fraca e trêmula:

- Estou bem agora, Lew. Juro.

Baixei os olhos para o chão. Estava coberto por mais de dois dedos de neve. Sempre se perdia a noção do tempo dentro de uma matriz. Nevava cada vez mais forte, o céu escurecia. O tremor de minhas mãos foi um alerta, e declarei:

- Todos precisamos de comida e repouso. Corra na frente, Rafe, e peça aos criados que aprontem uma refeição.

Ouvi uma barulho familiar por cima e levantei os olhos. O outro helicóptero deu uma volta e começou a descer. Beltran se afastava em sua direção. Ainda pensei em chamá-lo.... ele também se encontrava esgotado, precisava de comida e sono. Nesse momento, porém, meu único pensamento foi o de deixá-lo sofrer um colapso. Seria bom para ele aprender que aquilo não era uma brincadeira! E fomos embora, ele ficou para trás.

Eu teria de apresentar um pedido de desculpas a Kermiac. Não importava que tivesse sido feito contra as minhas ordens. Era eu que operava a matriz. E fora eu quem treinara aquele círculo. Portanto, era responsável por tudo o que acontecia.

Tudo mesmo.

Tudo. Aldones, Senhor da Luz... tudo: Ruína e morte, uma cidade em chamas e caos, Marjorie...

Tratei de me desvencilhar do turbilhão de angústia e sofrimento, olhando para o caminho sereno, o céu escuro, a neve caindo gentilmente. Nada daquilo era real. Não passava de alucinação. Misericordiosa Avarra, se depois de três anos em Arilinn alguma matriz ainda podia levar-me a alucinações, estava numa situação crítica!

Os servos de Kermiac haviam preparado uma esplêndida refeição para nós, embora eu sentisse tanta fome que comeria apenas pão e leite com o mesmo apetite. Enquanto comia, a fraqueza foi diminuindo, mas a culpa vaga e indefinida persistiu. Marjorie. Ela fora queimada pelo fogo? Continuava a ter vontade de tocá-la, certificar-me de que ainda estava ali, viva, ilesa. Thyra comeu com as lágrimas escorrendo pelas faces, a equimose aos poucos inchando e escurecendo, até que ficou com o olho fechado. Beltran não apareceu, e imaginei que ele se encontrava com Kermiac. Mas não me importava com ele. Um tanto constrangida, Marjorie empurrou para o lado seu terceiro prato cheio de comida, murmurando:

- Sinto-me envergonhada de ser tão gulosa!

Fiz menção de tranqüilizá-la, mas Kadarin se antecipou:

- Coma, criança, coma. Seus nervos estão exaustos, precisa da energia. Qual é o problema, Rafe? - O menino, inquieto, empurrava a comida de um lado para outro do prato. - Não comeu nada.

- Não posso, Bob. Minha cabeça dói. Não consigo engolir. Se tentar comer qualquer coisa, acho que vomitarei.

Kadarin fitou-me nos olhos e murmurou:

- Cuidarei dele. Sei o que fazer. Já passei por isso, quando tinha a sua idade.

Ele pegou Rafe no colo e carregou-o para fora da sala, como se fosse um bebê. Thyra se levantou e foi atrás. A sós com Marjorie, eu lhe disse:

- Você também deve descansar, depois de tudo o que aconteceu.

Ela respondeu num fio de voz:

- Tenho medo de ficar sozinha. Não me deixe, Lew.

Eu não tencionava mesmo deixá-la, enquanto não tivesse certeza de que estaria sã e salva. Uma Guardiã em treinamento passa por tensões que nenhum mecânico de matriz sofre, e eu me sentia responsável por Marjorie. Embora os distúrbios emocionais fossem bastante comuns quando as matrizes maiores eram sintonizadas pela primeira vez, explosões tão terríveis quanto a que ocorrera entre Beltran e Thyra não eram normais. Ainda bem. Não era de admirar que todos nós estivéssemos abalados.

Eu nunca vira antes o quarto de Marjorie. Era no alto de uma pequena torre, isolado, o acesso por uma escada em espiral, um quarto em forma de cunha, com enormes janelas. Com o tempo claro, devia oferecer uma vista espetacular das montanhas. Agora, estava escuro, a neve batia contra a janela, o vento zunia. Marjorie tirou as botas e foi ajoelhar-se junto da janela, olhando a tempestade.

- Foi uma sorte termos voltado a tempo. Há ocasiões em que a neve se acumula tão depressa que a pessoa pode se perder a cem passos de sua própria porta. Lew, Rafe vai ficar bom?

- Claro que vai. É apenas estresse, talvez um toque da doença do limiar. O acesso de Beltran agravou o problema, mas não vai durar muito.

A partir do momento em que um telepata adquiria pleno controle de sua matriz - e para fazer isso precisava dominar os canais nervosos -, as recorrências da doença do limiar não eram graves. Era provável que Rafe estivesse sentindo-se muito mal, mas não ia durar. Marjorie encostou-se na janela, pressionando a têmpora contra o vidro frio.

- Minha cabeça dói.

- Beltran é um desgraçado! - exclamei, com uma violência que me surpreendeu.

- A culpa foi de Thyra, Lew, não dele.

- O que Thyra fez é responsabilidade de Thyra, mas Beltran também deve assumir a responsabilidade por perder o controle.

Minha mente voltou àquele estranho intervalo dentro da matriz

- e eu não tinha como saber se fora por alguns segundos ou horas

- quando sentira a presença de meu pai. Ocorreu-me especular se em qualquer das Torres, Hali, Arilinn ou Neskaya, haviam sentido o despertar daquela imensa matriz. Meu pai era um telepata extraordinário; servira em Arilinn sob a última das Guardiãs ao estilo antigo. Ele devia ter sentido o despertar de Sharra.

Saberia o que estávamos fazendo? Como se acompanhasse meus pensamentos, Marjorie perguntou:

- Lew, como é seu pai? Meu tutor sempre falou bem dele.

- Não quero falar de meu pai, Marjorie.

Mas minhas barreiras haviam sido rompidas, e aquela furiosa despedida aflorou em minha mente, com a mesma amargura. Ele se dispôs a me matar, afim de impor o que queria. Não se importava comigo mais do que... Marjorie interrompeu meus pensamentos, em voz baixa:

- Está enganado, Lew. Seu pai o amava. E continua a amá-lo. Não, não estou lendo seus pensamentos. Você... irradiava. E uma pessoa afetuosa, gentil. Para ser assim, deve ter sido amado. Muito amado.

Baixei a cabeça. Era verdade. Durante todos aqueles anos eu me sentira seguro no amor de meu pai, a tal ponto que ele nunca poderia sobreviver a uma mentira. Não para mim. Fôramos completamente abertos um para o outro. Mas, de certa forma, isso tornava tudo pior, ele me amar, e ainda assim me arriscar de uma forma tão impiedosa... Marjorie sussurrou:

- Conheço você, Lew. Não seria capaz de continuar a viver... o que poderia ser sem laran? Sem o pleno potencial de seu dom? Ele sabia que sua vida não valeria a pena sem isso. Cego, surdo, entrevado... e por isso ele assumiu o risco. Para se tornar o que ele sabia que você era.

Encostei a cabeça nos joelhos dela, cego de tanta dor. Marjorie me devolvera uma coisa que eu nunca soubera que havia perdido; restaurara a segurança do amor de meu pai. Não podia levantar a cabeça, não podia deixá-la ver meu rosto contorcido, perceber que eu chorava como uma criança. Mesmo assim, ela sabia. Suponho que essa foi a minha forma de ter um acesso. Thyra desobedecia a ordens, Rafe tinha a doença do limiar, Kadarin e Beltran se agrediam... e eu desatava a chorar como uma criança...

Depois de algum tempo, peguei a mão de Marjorie e beijei os dedos esguios. Ela parecia exausta, e murmurei:

- Você também precisa descansar, querida.

Sentia-me orgulhoso da habilidade com que ela assumira o controle. Marjorie foi recostar-se em seus travesseiros. Inclinei-me, como teria feito em Arilinn, e passei as pontas dos dedos de leve ao longo de seu corpo. Sem tocá-la, é claro, apenas sentindo os fluxos de energia, monitorando os centros nervosos. Ela ficou quieta, sorrindo ao contato que não era um contato. Senti que ainda se encontrava exaurida, a energia esgotada, mas tal estado não se prolongaria por muito tempo. Os canais estavam desobstruídos. Experimentei uma intensa satisfação por ela ter passado por aquele início difícil tão bem, tão ilesa.

Naquele momento, eu não sofria ativamente porque Marjorie me era proibida, até mesmo um simples beijo seria inconcebível. Sentia-me remotamente consciente de sua presença, mas sem qualquer elemento sexual. Era apenas um amor intenso, como eu jamais conhecera antes por qualquer pessoa viva. E não precisava falar a respeito. Sabia que ela o partilhava.

Se não pudesse fazer contato com a mente de Marjorie, acho que eu acabaria enlouquecendo de tanto desejá-la, de precisar dela com todos os meus nervos. Mas tínhamos aquele contato, e era suficiente. Quase suficiente, e ainda contávamos com a promessa do resto.

Eu já sabia a resposta, mas queria dizer as palavras em voz alta.

- Quando isso acabar, Marjorie, você quer casar comigo?

Ela respondeu com uma simplicidade que me deixou comovido:

- Quero, sim. Mas o Comyn vai lhe dar permissão?

- Não pedirei. A esta altura, talvez o Comyn já tenha aprendido que não tem o direito de se intrometer na vida de todo mundo!

- Eu não gostaria de criar problemas para você, Lew. O casamento não significa tanto assim para mim.

- Mas significa para mim Acha que eu quero que os nossos filhos sejam bastardos? Quero que me sucedam em Armida, sem a luta que meu pai teve para me fazer seu herdeiro...

A risada de Marjorie foi adorável, mas ela logo voltou a ficar séria.

- Lew, Lew, não estou rindo de você, querido. Fico muito feliz por saber que significa tanto para você... não apenas me querer, mas se preocupar com tudo o que virá depois, nossos filhos, os filhos de nossos filhos, uma família a continuar pelo futuro. Minha resposta é sim, Lew. Quero ter seus filhos, e só lamento que tenhamos de esperar algum tempo para isso. Claro que casarei com você, se me quiser; no Comyn, se eles aceitarem; caso contrário, de qualquer maneira que pudermos, de qualquer maneira que você escolher.

Por um instante, num contato leve como uma pluma, ela encostou os lábios no dorso de minha mão.

Meu coração transbordava a tal ponto que não pude mais agüentar. Já desejara mulheres antes, mas nunca com aquela plenitude, muito além de qualquer desejo momentâneo, prolongando-se pelo futuro, por nossas vidas inteiras. O tempo tornou a sair de foco... e me descobri ajoelhado ao lado da cama de uma menina, talvez com cinco ou seis anos, o rosto no formato do coração, enormes olhos dourados, da mesma cor que os de Marjorie... e senti um estranho espanto, uma dor na mão direita, consternado, dilacerado pela angústia...

- O que é, Lew? - sussurrou Marjorie.

- Um lampejo de precognição - respondi, voltando ao presente, abalado. - Vi... vi uma menina. Com os seus olhos.

Mas por que eu me sentira tão aturdido, tão agoniado? Tentei ver de novo, mas aqueles lampejos afloravam espontaneamente, nunca podiam ser invocados. Senti os pensamentos de Marjorie, que transbordavam de alegria: Tudo vai acabar bem então. Ficaremos juntos, como desejamos, veremos essa criança. Suas pálpebras se fecharam, na exaustão, e, ajoelhado ali, tornei a contemplar seu rosto. Ela pensou, sonolenta: Devemos ter um menino primeiro. Compreendi que ela vira o rosto da criança em minha mente. Marjorie sorriu de pura felicidade, os olhos fechados, sua mão apertou a minha.

- Não me deixe - murmurou ela, meio adormecida.

- Nunca. Durma agora, minha amada.

Estendi-me ao seu lado, segurando seus dedos, meu amor a envolvendo no sono. Depois de um momento, também adormeci, na mais profunda felicidade que já conhecera.

Ou que jamais conheceria.

Estava escuro quando acordei, a neve ainda batia contra as janelas. Kadarin se encontrava de pé ao lado da cama, segurando uma luz. Marjorie continuava num sono profundo. Seu olhar para ela era de extrema ternura, o que me fez gostar dele como nada mais poderia fazer.

E depois, por um instante, senti seu rosto se contrair, se contorcer em raiva... E a expressão logo desapareceu, Kadarin murmurou:

- Beltran pediu que você descesse. Deixe Margie dormir, se quiser. Ela está muito cansada.

Saí da cama. Ela se agitou, deixou escapar um breve ruído de protesto... Tive a impressão de que murmurara meu nome. Cobri-a gentilmente com um xale, peguei as botas na mão e deixei o quarto sem fazer barulho, sentindo que ela resvalava de volta ao sono profundo.

- Como está Rafe?

- Muito bem. Dei-lhe algumas gotas de kirian, obriguei-o a beber leite quente com mel e deixei-o adormecido. - Kadarin exibia um sorriso triste e terno. - Procurei você em toda parte. Depois de todas as suas advertências, nunca imaginei... foi Thyra quem sugeriu que você podia estar com Marjorie. - Ele soltou uma risada. - Mas não esperava encontrá-lo na sua cama!

- Posso lhe assegurar...

- Em nome de todos os deuses obscenos das Cidades Secas, Lew, acha que isso tem alguma importância para mim? - Ele soltou outra risada. - E se quer saber, acredito que você é mesmo escrupuloso, continua de mãos e pés atados às suas superstições idiotas! Acho que você está exigindo demais da natureza humana... eu mesmo não confiaria em mim para deitar com uma mulher amada sem tocá-la... mas, se você gosta da auto-tortura, a escolha é sua. Como disse aquele homem das Cidades Secas a uma cralmac...

E ele se lançou ao relato de uma história longa, engraçada e muito obscena, que afastou minha mente da situação embaraçosa, como nada mais poderia fazer. Nem uma única palavra era apropriada para se repetir em companhia polida, mas era exatamente o que o momento exigia. Quando chegamos à pequena sala, com a lareira acesa, Kadarin indagou:

- Ouviu o helicóptero que pousou esta tarde?

Eu ainda ria das aventuras do morador das Cidades Secas, do espaçonauta e dos três não-humanos; a súbita solenidade em sua voz me trouxe de volta ao normal, com um sobressalto.

- Claro que sim. O que tem isso a ver comigo?

- Trouxe um hóspede especial. Beltran acha que você deve falar com ele. Disse-nos que se trata de um telepata catalisador, sem qualquer motivo para amar o Comyn, e Beltran enviou alguns homens para persuadi-lo...

Sentado num dos bancos de pedra perto do fogo, os cabelos escuros desgrenhados, com muito frio e furioso, deparei com Danilo Syrtis. Beltran disse:

- Talvez você possa explicar que não tencionamos lhe causar mal algum, que ele não é um prisioneiro, mas sim um hóspede de honra.

Danilo tentava ostentar uma atitude de desafio, mas sua voz tremia, apesar de todo o esforço:

- Vocês me trouxeram para cá à força, com homens armados, e meu pai ficará doente de pavor! É assim que os homens das montanhas tratam seus hóspedes, sequestrando-os em infernais máquinas terráqueas?

Não parecia mais velho do que Rafe.

- Danilo... - murmurei.

Ele ficou boquiaberto e levantou-se de um pulo.

- Disseram-me que você estava aqui, mas pensei que era apenas mais uma mentira. - O rosto infantil se endureceu. - Foi por ordem sua que me seqüestraram? Por quanto tempo mais o Comyn vai me perseguir?

Sacudi a cabeça.

- Não foi uma ordem minha nem do Comyn. Até este momento, eu não tinha a menor idéia do seu paradeiro.

Danilo virou-se para Beltran, num triunfo infantil. Sua voz, ainda trêmula, soou estridente:

- Eu sabia que você mentia quando disse que Lew Alton ordenou que me trouxessem para cá...

Virei-me para Beltran, e disse, com raiva genuína:

- Eu lhe disse que Danilo podia ser persuadido a se juntar a nós! Considerou isso como una autorização para seqüestrá-lo? - Estendi as mãos para o menino. - Perdoe-me, Dani. É verdade que falei de você e seu laran; sugeri que um dia poderiam procurá-lo e convencê-lo a se juntar ao que estamos fazendo.

Senti suas mãos geladas, de tanto medo, e me apressei em acrescentar:

- Não tenha medo. Juro por minha honra que ninguém lhe fará mal.

- Não tenho medo desta ralé - declarou ele, desdenhoso.

Vi Beltran estremecer. Ora, se ele queria comportar-se como algum Brynat Scarface ou Cyrillon des Trailles, devia esperar ser chamado por nomes descorteses! Danilo acrescentou, a voz ainda tremendo:

- Meu pai é velho e fraco. Já sofreu com a minha desgraça. E agora me perder de novo... ele vai com certeza se lamentar até a morte!

Eu disse a Beltran:

- Seu tolo! Envie uma mensagem agora mesmo, pelo sistema de comunicações dos terráqueos, se for preciso, avisando que Danilo continua vivo e bem, e que alguém deve comunicar à sua família que está aqui, como um hóspede de honra! Quer ter um amigo e aliado ou um inimigo mortal?

Beltran teve a graça de parecer envergonhado.

- Não dei ordens para machucar ou assustar, nem a ele, nem a seu pai. Alguém o tratou com violência, meu rapaz?

- Não foi um convite polido, com toda a certeza, Lorde Aldaran. Tem o hábito de desarmar seus hóspedes de honra?

Tornei a interferir:

- Envie logo a mensagem, Beltran, e deixem-me conversar com ele a sós.

Beltran se retirou, e fui atiçar o fogo, dando tempo a Danilo para recuperar o controle. Só depois de algum tempo é que indaguei:

- Diga-me a verdade, Danilo: você foi maltratado?

- Não, embora eles também não se mostrassem gentis. Viajamos por terra durante alguns dias, e depois embarcamos na máqui-na-do-céu. Não sei o seu nome...

O helicóptero. Eu o vira pousar. Sabia que deveria ter seguido Beltran. Se estivesse presente quando Danilo chegara... Ora, já estava feito.

- Um helicóptero é mais seguro na travessia dos picos e correntes de ar das Hellers do que qualquer avião, Danilo. Ficou muito assustado?

- Só um pouco, quando fomos obrigados a descer por causa do mau tempo. Acima de tudo, temi por meu pai.

- Ele vai receber a mensagem em breve. Já comeu alguma coisa?

- Ofereceram-me comida assim que desembarcamos.

Ele não disse que se sentia muito abalado e assustado para comer, mas foi o que presumi. Chamei um servo e ordenei:

- Peça a meu tio para me dispensar de sua mesa e avise que Lorde Beltran explicará tudo. Depois, mande trazerem comida para cá. - Tornei a me virar para Danilo. - Sou seu inimigo, Dani?

- Capitão, eu...

- Já deixei a Guarda. Não sou mais capitão. Para meu espanto, ele comentou:

- É uma pena. Era o único oficial de que todos gostavam. Não, Lew, você não é meu inimigo, e sempre pensei que seu pai fosse meu amigo. Foi Lorde Dyan... sabe o que aconteceu?

- Mais ou menos. Independentemente do que possa ter sido desta vez, sei muito bem que quando você sacou a adaga ele já fizera bastante provocação para uma dúzia de duelos em qualquer outro lugar. Não precisa me contar os detalhes desagradáveis. Conheço Dyan.

- Mas por que o Comandante...

- Eles foram crianças juntos. Aos olhos dele, Dyan não pode fazer nada errado. Não o defendo, mas você nunca fez alguma coisa que julgava errada só para proteger um amigo?

- Você fez, Lew?

Eu ainda tentava pensar numa resposta quando o jantar chegou. Servi Dani, mas descobri que não estava com fome, e fiquei mordiscando uma fruta, enquanto ele satisfazia seu apetite. Especulei se lhe haviam dado qualquer coisa para comer desde a sua captura. Claro que sim. Acontecia apenas que os rapazes de sua idade viviam famintos, e isso era tudo.

Enquanto ele dormia, preocupei-me com o que Marjorie pensaria ao despertar e se descobrir sozinha. Rafe já se recuperara ou eu deveria ir verificar pessoalmente? Kermiac sofrera efeitos perniciosos duradouros da precipitação de Thyra? Não aprovava o que Beltran fizera, mas compreendia por que ele se sentira tentado. Precisávamos tanto de alguém como Danilo que isso até me assustava.

Servi um copo de vinho a Danilo quando ele acabou de comer. Limitou-se a prová-lo, por cortesia, mas pelo menos agora se mostrava disposto outra vez a ser cortês. Tomei um gole do meu vinho e larguei o copo.

- Danilo, você sabe que tem laran. Também possui um dos mais raros e preciosos dons do Comyn, um dom que todos julgavam extinto. Se o Conselho do Comyn souber, fará todas as correções pela atitude estúpida e cruel de Dyan. Vão lhe oferecer qualquer coisa que quiser, até mesmo um lugar no Conselho do Comyn, o casamento com alguém como Linnell Aillard... basta você dizer para conseguir. Compareceu àquela reunião com os terráqueos. Está interessado no poder desse tipo? Se estiver, eles lhe vão oferecê-lo com a maior ansiedade. É isso o que você quer?

- Não sei. Nunca pensei a respeito. Depois do período no corpo de cadetes, esperava viver tranqüilo em casa, cuidando de meu pai, enquanto ele vivesse.

- E depois?

- Também não havia pensado sobre isso. Creio que imaginava que já seria adulto quando o momento chegasse, e saberia então o que queria.

Não pude conter um sorriso irônico. Aos quinze anos, eu também tinha certeza de que quando chegasse aos vinte minha vida já teria sido delineada em padrões simples.

- Não é assim que acontece quando se tem laran, Danilo. Entre outras coisas, você precisa de treinamento. Um telepata destreinado é uma ameaça a si mesmo e a todos os outros ao redor.

Ele fez uma careta de repulsa.

- Jamais desejei ser um técnico de matriz.

- Provavelmente não. É preciso ter certo temperamento. - Não podia imaginar Danilo numa Torre; eu, por outro lado, jamais quisera qualquer outra coisa. E ainda não queria. - Mesmo assim, deve aprender a controlar o que você é e os dons que possui. Muitos tele-patas destreinados acabam loucos.

- Neste caso, quer eu esteja ou não interessado no Conselho do Comyn, que opção me resta? O treinamento não pertence exclusivamente ao Comyn, por intermédio das Torres? E podem me treinar para fazer o que quiserem.

- Isso é verdade nos Domínios. Ali, eles atraem todos os telepatas para seu serviço. Mas você ainda tem uma opção.

Passei a falar sobre o plano de Beltran e sobre o trabalho que iniciáramos. Ele escutou sem comentários até que acabei, e só então comentou:

- Portanto, parece que minha opção é aceitar subornos pelo uso de meu laran do Comyn... ou de Aldaran.

- Eu não poria nesses termos. Estamos convidando-o a se juntar a nós por sua livre e espontânea vontade. Se conseguirmos o que queremos, o Comyn não terá mais o poder de exigir que todos os telepatas fiquem a seu serviço ou se tornem presas da loucura. E seria o fim desse tipo de sede de poder que o deixou à mercê de um homem como Dyan.

Danilo ficou pensando a respeito, tomou outro gole de vinho e fez uma careta infantil.

- Parece que algo assim sempre vai acontecer a pessoas como eu, como nós. Alguém sempre vai nos subornar para usarmos os nossos dons em seu benefício, não no nosso.

Ele parecia muito jovem, muito amargo.

- Não é bem assim. Alguns podem ter uma opção agora. Depois que nos tornarmos parte legítima do Império Terráqueo...

- Nesse caso, Lew, imagino que o Império encontrará algum meio de nos usar. O Comyn comete erros, mas não sabe mais sobre nós e nosso mundo do que os terráqueos jamais conseguirão saber?

- Não sei. Está disposto a deixar que eles permaneçam no poder, controlando nossas vidas, pondo corruptos como Dyan no comando...

- Claro que não. Ninguém poderia querer isso. Mas se pessoas como você e eu... disse que eu poderia ter um lugar no Conselho, se quisesse... se pessoas como você e eu estivessem no Conselho, os pervertidos como Dyan não poderiam fazer o que bem quisessem, não é mesmo? Seu pai é um homem de bem, mas, como você mesmo disse, para ele Dyan não pode fazer nada errado. Mas quando você sentar no Conselho, não vai se sentir assim, não é mesmo?

- O que eu quero é não ser obrigado a participar do Conselho, - respondi, com uma violência que não dava para disfarçar -, nem ter de fazer todas as outras coisas que o Comyn deseja de mim!

- Se homens de bem como você não querem se incomodar, Lew, então quem resta, exceto os maus, que nem deveriam participar das decisões?

Havia alguma verdade nas palavras de Danilo, mas insisti, veemente:

- Tenho outras habilidades, e acho que posso servir melhor a meu povo por outros meios. É o que estou tentando fazer agora, em benefício de todos os habitantes de Darkover. Não tento destruir o Comyn, Dani, apenas oferecer às pessoas mais de uma opção. Não acha que é uma ambição que vale a pena? Ele parecia desamparado.

- Não tenho condições de julgar. Ainda nem me acostumei a pensar em mim mesmo como um telepata. Não sei o que devo fazer.

Ele me fitou com aquele seu olhar estranho e confiante, que me fazia pensar, de certa forma, em meu irmão Marius. Se Marius estivesse agora em minha presença, dotado de laran, eu tentaria persuadi-lo a encarar Sharra? Senti um calafrio me percorrer a espinha e estremeci, embora a sala estivesse quente.

- Mas pode confiar em mim, Dani?

- Eu bem que gostaria. Você nunca mentiu para mim, nunca tentou me prejudicar. Mas creio que não confiaria em nenhum dos Aldarans.

- Sua mente ainda é povoada pelos demônios da infância? Pensa que todos eles são renegados perversos só porque mantêm uma antiga divergência política com o Comyn? Você tem razões também para desconfiar do Comyn, Danilo.

- É verdade. Mas como posso confiar num homem que começa por me seqüestrar e deixar meu pai apavorado? Se ele me procurasse, explicasse o que desejava, e que você e ele juntos achavam que meu dom poderia ser útil, e depois pedisse a meu pai permissão para que eu o acompanhasse...

Dani tinha toda a razão. O que dera em Beltran para fazer uma coisa assim?

- Se ele tivesse me consultado, Dani, seria exatamente isso o que eu o aconselharia a fazer.

- Sei disso. Você é você. Mas, se Beltran não é o tipo de homem que age assim, como posso confiar nele?

- Ele é meu parente - murmurei, desolado. - O que espera que eu diga? Acho que a ansiedade prevaleceu sobre a razão de Beltran. E ele não o machucou, não é?

Dani ficou furioso.

- Está falando da mesma forma que disse que seu pai se comporta em relação a Lorde Dyan!

Não era a mesma coisa, eu sabia, mas não podia esperar que Danilo entendesse.

- Não pode examinar a situação além dos aspectos pessoais,

Dani? Beltran errou, mas o que tentamos fazer é tão grande que talvez deixe as pessoas cegas para as questões menores. Pense no que ele planeja e perdoe-o. Ou prefere esperar... - Falei em tom incisivo, com alguma malícia, para que ele percebesse como sua posição parecia cínica. - ...que o Comyn apresente uma oferta melhor?

Ele corou, espicaçado até as profundezas. Eu não subestimara nem sua inteligência, nem sua sensibilidade. Ainda era um garoto, mas se tornaria um homem que valeria a pena conhecer, com a maior integridade e honra. Torci com todo o meu coração para que ele aceitasse ser nosso aliado.

- Precisamos de você, Danilo. O Comyn o expulsou em desgraça, injustamente. Que lealdade você lhe deve?

- Ao Comyn, nenhuma. Mas assumi um compromisso, empenhei meus serviços. Mesmo que eu quisesse fazer o que me pede, Lew... e não tenho certeza se sou capaz... não estaria livre.

- Como assim?

O rosto de Danilo manteve-se impassível, mas pude sentir a emoção por trás de suas palavras:

- Regis Hastur me procurou em Syrtis. Ele não sabia como ou por que, mas tinha certeza de que eu fora vítima de uma injustiça e se comprometeu a repará-la.

- Estamos tentando reparar muitas injustiças, Dani, não apenas o seu caso.

- É possível. Mas nós dois prestamos um juramento, e empenhei minha espada e meus serviços por Regis. Sou o escudeiro dele, Lew. Portanto, se você quer minha ajuda, deve pedir o consentimento de Regis. Se ele permitir, então o ajudarei. Caso contrário, terei de cumprir meu juramento.

Fitei aquele rosto jovem e solene e compreendi que não havia mais nada que eu pudesse dizer para persuadi-lo. Senti uma raiva irracional de Regis por me frustrar nesse caso. Por um momento, tive de resistir a uma forte tentação. Podia fazer com que ele visse as coisas pelo meu ângulo...

Tratei de recuar, horrorizado e envergonhado por meus pensamentos. O primeiro compromisso que assumira em Arilinn fora o seguinte: nunca, mas nunca mesmo, me impor à vontade ou à consciência de outra pessoa, nem sequer para o seu próprio bem. Podia tentar persuadir. Podia suplicar. Podia usar a razão, a emoção, a lógica, a retórica. Podia até procurar Regis, pedir seu consentimento; ele também tinha motivos para se sentir descontente, para se rebelar contra a corrupção no Comyn. Além disso, porém, eu não podia ir. Em hipótese alguma. O mero fato de ter pensado a respeito já me deixava repugnado.

- Posso pedir a Regis que concorde com a sua ajuda, Dani. Ele é meu amigo também. Mas nunca o forçarei. Não sou Dyan Ardais.

Isso o fez sorrir.

- Nunca pensei que você fosse igual a Dyan, Lew. E, se Regis me der permissão, confiarei nele e em você. Mas até esse momento, Dom Lewis... - Ele usou o meu título formalmente, embora até então o tratamento fosse informal. - ...tenho sua autorização para partir, voltar à casa de meu pai?

Gesticulei para a neve, uma torrente branca fustigando as janelas, fragmentos de granizo caindo pela chaminé.

- Com este tempo, meu rapaz? Deixe-me pelo menos oferecer a hospitalidade do teto de meu parente, até que o tempo melhore. Quando isso acontecer, terá uma escolta e companhia para deixar as montanhas. Não pode esperar que eu permita que parta a esmo pelas montanhas, à noite, em pleno inverno, com uma tempestade assim, não é mesmo?

Tornei a chamar um servo e ordenei que providenciasse aposentos apropriados para um hóspede, perto dos meus próprios aposentos. Antes de Danilo se retirar, dei-lhe um abraço de parente, que ele retribuiu com uma cordialidade infantil que me fez sentir melhor.

Mas ainda me sentia profundamente perturbado. E pretendia ter uma conversinha com Beltran antes de dormir!

Capítulo Dezessete

Regis cavalgava devagar, a cabeça baixa contra o vento forte. Disse a si mesmo que, se algum dia conseguisse sair daquelas montanhas, nunca mais qualquer outro lugar de Darkover lhe pareceria frio.

Poucos dias antes, parara numa aldeia e trocara sua égua por um dos pequenos e resistentes pôneis das montanhas. Sentia um pesar desesperado pela necessidade - a égua preta fora um presente de Kennard, e ele a amava -, mas aquele animal atraía menos atenção e tinha passos mais seguros nas trilhas perigosas. A pobre Melisande com certeza já teria morrido de frio ou quebrado uma perna nos caminhos íngremes.

A viagem fora um pesadelo interminável: um terreno cheio de penhascos e desconhecido, um frio intenso, abrigando-se à noite em estábulos ou cabanas de pastores abandonados, ou encolhendo-se sob o manto e sob um cobertor contra um paredão rochoso, aninhando-se no corpo do pônei. Tentava em geral evitar que alguém o visse, mas a intervalos de poucos dias parava numa aldeia, a fim de comprar comida e ração para o pônei. Despertava pouca curiosidade; concluíra que a vida nas montanhas devia ser tão difícil que as pessoas não tinham tempo para se mostrar curiosas por viajantes.

Em alguma ocasiões, quando temia ter-se perdido, tirava a matriz da bolsa e tentava, numa furiosa concentração, fixar sua atenção em Danilo. A matriz agia como um daqueles instrumentos terráqueos sobre os quais Kennard outrora lhe falara, orientando-se na direção de Danilo e de Aldaran, com insistente pressão subliminar.

A essa altura, ele já se sentia entorpecido pelo medo, e só a determinação o impelia para a frente, assim como a lembrança do compromisso que assumira com o pai de Danilo. Mas havia momentos em que viajava por um sonho escuro, perdendo a noção de Danilo e dos caminhos que percorria. Imagens turbilhonavam em sua mente, que parecia absorver as cenas e os pensamentos das aldeias por que passava. A perspectiva de olhar de novo para a matriz deixava-o tão nauseado que já não tinha mais coragem de pegá-la. A doença do limiar outra vez. Javanne o advertira. Nas últimas aldeias, ele se limitara a perguntar o caminho para Aldaran.

Durante toda a manhã subira por uma longa encosta, que fora devastada por um incêndio há não muito tempo. Podia ver quilômetros de terreno ainda enegrecido, tocos se projetando sem folhas das ravinas. Em seu estado de hipersensibilidade, o cheiro de madeira queimada, cinzas e fuligem, que se elevava cada vez que o pônei descia um casco, trazia de volta o último verão que passara em Armida e seu primeiro serviço nas linhas de fogo, a noite em que o incêndio chegara tão perto do castelo que alguns prédios mais distantes haviam sido destruídos pelas chamas.

Naquela noite, ele e Lew comeram da mesma tigela, porque os suprimento se tornavam cada vez mais escassos. Quando se deitaram, foram invadidos pelo cheiro de cinzas e de madeira queimada. Perto da meia-noite, alguma coisa o despertara, e vira Lew sentado, olhando para o clarão vermelho do incêndio.

E Regis soubera que Lew estava com medo. Entrara em contato com a mente de Lew e sentira: o medo, a dor das queimaduras, tudo. Podia sentir como se fosse em sua própria mente. E o medo de Lew doía tanto que Regis não fora capaz de suportar. Teria feito qualquer coisa para confortar Lew, para afastar sua mente da dor e do medo. Fora demais. Regis não conseguira se fechar, não conseguira suportar.

Mas esquecera. Obrigara-se a esquecer, até agora. Bloqueara a memória, até que mais tarde, ainda naquele ano, ao ser testado por laran em Nevarsin, nem se lembrara de outra coisa que não o incêndio.

E fora por isso, Regis compreendeu, que Lew se surpreendera quando lhe dissera que não tinha laran...

O pônei das montanhas cambaleou e acabou caindo. Regis se levantou, abalado mas ileso, pegou as rédeas e exortou o animal a se levantar também, gentilmente. Passou a mão pelas pernas do pônei. Não havia ossos fraturados, mas o animal se encolheu quando tocou no jarrete direito posterior. Estava mancando, e Regis compreendeu que não poderia suportar O seu peso, pelo menos por algum tempo. Puxou-o pela trilha, atravessando o desfiladeiro. A descida era ainda mais íngreme, o chão escuro e lamacento, onde as chuvas recentes haviam encharcado os remanescentes do incêndio. O fedor em suas narinas era pior do que nunca, estimulando outra vez as lembranças do incêndio anterior e do medo partilhado. Regis não parava de indagar a si mesmo por que esquecera, por que se obrigara a esquecer.

O sol se achava oculto por trás de densas nuvens. Uns poucos flocos de neve começaram a cair, não muito intensos, mas incessantes, enquanto ele descia para o vale. Calculou que devia ser mais ou menos meio-dia. Sentia um pouco de fome, mas não o suficiente para parar e procurar alguma coisa em sua mochila.

Não comera muito ultimamente. Os aldeões haviam se mostrado generosos, muitas vezes se recusando a aceitar pagamento pela comida, que era saborosa, mas estranha. Às vezes lhe provocava náusea, por isso relutava em acionar esse reflexo de novo, ao mastigar e engolir alguma coisa. A fome era menos dolorosa.

Depois de algum tempo, Regis tirou um pouco de cereais da mochila para o pônei. A trilha agora era bastante usada; devia haver outra aldeia nas proximidades. Mas o silêncio era desconcertante. Nenhum cachorro latia, não se ouviam os gritos de aves ou bestas selvagens. Não havia outro som além de seus próprios passos e do ritmo irregular do pônei manco. E, muito acima, o uivo interminável do vento, passando pelos troncos secos da floresta morta.

Era solidão demais. Até mesmo a presença de um ou dois homens numa escolta seria bem-vinda agora, vozes comentando os pequenos riscos da trilha. Regis recordou as ocasiões em que circulara a cavalo, com Lew, pelas colinas em torno de Armida, caçando ou inspecionando os homens que cuidavam dos cavalos nas terras altas. E de repente, como se o pensamento atiçasse sua mente, o rosto de Lew surgiu à sua frente, iluminado por uma claridade intensa... não um incêndio na floresta desta vez! Parecia arder num enorme clarão azul, que distorcia o espaço, dilacerava as entranhas - o clarão de uma matriz! O chão se sacudia e se inclinava sob seus pés, e por um momento, enquanto largava as rédeas e levava as mãos aos olhos atormentados, viu uma forma imensa se delinear na parte interna das pálpebras, dentro de seu próprio cérebro.

...uma mulher, uma deusa dourada, vestida de chamas, uma coroa flamejante, em correntes de ouro, ardendo, reluzindo, consumindo...

E, depois, Regis perdeu a consciência. O pônei das montanhas deu a volta com todo o cuidado, focinhando inquieto seu cavaleiro desfalecido.

Foi o focinho do pônei que o despertou, algum tempo mais tarde. O céu escurecia, e nevava tanto que, ao se levantar, os músculos rígidos, uma cascata de neve se desprendeu de seu corpo. Um cheiro enjoativo indicava que vomitara enquanto estava desmaiado. Pelos infernos de Zandru, o que me aconteceu?

Tirou o cantil do alforje, limpou a boca e bebeu um pouco, mas ainda se sentia nauseado demais para engolir muito.

Nevava tanto agora que ele concluiu que precisava encontrar um abrigo sem demora. Fora treinado em Nevarsin a procurar abrigo nos lugares mais improváveis, até mesmo algumas moitas rasteiras serviriam, mas num caminho como aquele, tão usado, devia haver cabanas, estábulos, proteções mais adequadas nas proximidades. Não se enganara. Algumas dezenas de metros adiante, os contornos de um grande estábulo de pedra formavam um quadrado escuro contra o branco turbilhonante. As pedras se achavam enegrecidas pelo incêndio que devastara a região, uma parte do telhado ruíra, mas alguém substituíra a porta por algumas tábuas pregadas. O gelo e a neve da tempestade anterior se acumulavam na entrada, mas Regis sabia que nas montanhas as portas nunca eram trancadas, por causa de emergências assim. Depois de muito esforço, ele conseguiu abrir um espaço, por onde se esgueirou, puxando o pônei, para uma escuridão sinistra e malcheirosa. A estrutura era usada outrora como estábulo e depósito de forragem, e ainda havia alguns fardos esquecidos junto das paredes, com as marcas de roedores. O frio era intenso, mas pelo menos se livrara do vento. Tirou a sela do pônei, alimentou-o e prendeu-o com uma boa folga da corda no fundo do estábulo. Depois, juntou um pouco da palha, estendeu seus cobertores por cima, deitou e mergulhou no sono... ou na inconsciência.

Aquele sono prolongado foi mais como um choque ou uma animação suspensa, em vez de um sono normal. Regis não podia saber que era a reação mental e física de um telepata em crise. Pareceu apenas que vagueara por eternidades - com toda a certeza por dias - em pesadelos inquietantes. Às vezes tinha a impressão de que saía de seu corpo dolorido e errava por um espaço cinzento e informe, gritando impotente, pois sabia que não tinha voz. Uma ou outra vez, aflorando a uma vaga semi-consciência, descobriu o rosto molhado e compreendeu que chorara no sono. O tempo desaparecia. Embrenhava-se pelo que sabia ser, vagamente, o passado ou o futuro: ora no dormitório em Nevarsin, onde a lembrança do frio, da solidão e da frustração o mantinha apartado, assustado, sem amigos; ora ao lado do fogo em Armida, depois se inclinando, junto com Lew e uma moça loura desconhecida, sobre a cama de uma criança aparentemente agonizante; e de novo caminhando por densas florestas, enquanto seres estranhos, de olhos vermelhos, espiavam atrás das árvores.

E se descobriu mais uma vez empenhado numa luta com facas, numa platibanda estreita, os seres de olhos vermelhos atacando-o, tentando jogá-lo lá de cima. Sentou na Câmara do Conselho e ouviu as argumentações dos terráqueos; na sala da Guarda do Castelo Comyn viu a espada de Danilo ser partida, com aquele som terrível de vidro estilhaçado. Contemplava com um senso de tragédia angustiante duas crianças pequenas, pálidas e sem vida, estendidas lado a lado, em seus caixões, mortas pela traição, tão pequenas, tão pequenas, e compreendeu que eram suas. Outra vez se encontrou na armaria, entorpecido e envergonhado, enquanto as mãos de Dyan percorriam seu corpo dolorido. No instante seguinte, Danilo e ele estavam parados na fonte da praça central em Thendara, só que Danilo era mais alto e barbudo, os dois bebiam de canecas de madeira e riam muito, enquanto moças jogavam grinaldas do festival das janelas por cima.

Não demorou muito para que ele passasse a filtrar essas percepções casuais de uma maneira mais crítica. Viu Lew e Danilo de pé junto de uma lareira, numa sala com um mosaico de aves brancas no chão, conversando muito compenetrados, e sentiu um ciúme insano. E depois parecia que Kennard gritava seu nome, nos espaços cinzentos, e pôde avistá-lo flutuando na semi-escuridão. Só que Kennard não era mais um entrevado, mas jovem e empertigado, e risonho como Regis mal podia recordar. Chamava-o com um crescente senso de urgência: Regis, Regis, onde você está? Não se esconda de mim! Precisamos encontrá-lo! Regis só foi capaz de deduzir que deixara a Guarda sem permissão, e o Comandante queria que fosse trazido de volta, a fim de sofrer a punição merecida. Sabia que podia tornar-se invisível ali, naqueles espaços cinzentos, e foi o que fez, correndo da voz, a toda velocidade, por uma planície cinzenta e informe, embora a essa altura tivesse plena consciência de que continuava deitado, semi-inconsciente, no estábulo-celeiro abandonado. E depois divisou Dyan nos espaços cinzentos, só que Dyan como um jovem de sua idade. De alguma forma, percebeu que naquele mundo cinzento, onde os corpos não vinham, apenas as mentes, cada pessoa aparecia como se via em sua própria mente. Assim, é claro que Kennard parecia jovem e saudável. Dyan dizia: Não posso descobri-lo, Kennard. Ele não está em parte alguma do mundo superior. Regis sentiu que ria por dentro e dizia: Estou aqui, mas não deixarei que me vejam. Kennard e Dyan ficaram juntos, de mãos dadas, e Regis sabia que o procuravam, com uma atenção redobrada. Os rostos e os corpos sumiram, eles se tornaram apenas olhos na planície cinzenta, procurando, procurando. Regis compreendeu que deveria deixar o mundo cinzento ou o encontrariam agora. Para onde podia ir? Não queria voltar! Avistou Danilo a distância, e os dois retornaram ao alojamento escuro - naquela noite! -, e ele se inclinava para o amigo, tocava-o, solícito, ansioso. E depois o sussurro tenso e terrível, o choque mais mental do que físico, ao ser empurrado: Chegue perto de mim outra vez, seu ombredin asqueroso, e torcerei seu pescoço...

Mas eu apenas tentava fazer contato, só queria ajudá-lo! Não é verdade? Não é verdade? E com um sobressalto ofegante Regis sentou no estábulo, plenamente desperto, olhando para a tênue claridade que entrava pelo telhado quebrado. Tremia da cabeça aos pés, o corpo doía como se tivesse levado uma surra. Estava totalmente consciente, porém, a mente lúcida. No outro lado do estábulo, o pônei batia com as patas no chão, irrequieto. Regis se levantou, devagar, especulando por quanto tempo permanecera ali.

Tempo demais. O pônei comera toda a forragem remanescente e escavara o solo, até onde podia, à procura de farelos.

Regis foi até a porta improvisada e abriu-a. Há muito que parara de nevar. O sol surgira, e a neve derretida do telhado escorria em filetes. Regis sentia uma sede imensa, mas como todos os cavaleiros pensou primeiro no pônei. Levou-o para fora e soltou-o; depois de um momento, o animal seguiu decidido para o fundo da construção. Regis acompanhou-o, e ali encontrou um poço, coberto contra a neve, com uma roldana ainda em funcionamento, um balde vazando. Deu água ao pônei, e só depois é que bebeu. Tremendo, tirou as roupas. Sentiu-se grato pelo rigorosa disciplina de Nevarsin, que agora lhe permitia se lavar com a água gelada do poço. As roupas rescendiam a suor e vômito; pegou uma muda limpa na mochila. Ainda tremendo, mas já se sentindo muito melhor, sentou ao lado do poço e comeu algumas frutas secas. Por mais frio que estivesse ali fora, o interior do prédio parecia impregnado de seus pesadelos, ressoando com as vozes que ouvira no delírio, se é que tudo fora mesmo um delírio. E o que mais podia ter sido?

Movimentando-se com lentidão, até ter certeza de que podia confiar em seu corpo, tornou a selar o pônei e recolheu seus pertences. Devia estar aproximando-se agora das terras de Aldaran, e não havia tempo a perder.

A neve abafara o cheiro de incêndio na floresta, o que o deixou satisfeito. Fazia apenas uma ou duas horas que viajava quando ouviu o barulho de cavalos se aproximando. Afastou-se para o lado do caminho, a fim de deixá-los passar. Em vez disso, eles o confrontaram, bloqueando a passagem, exigindo que dissesse seu nome e o que fazia ali.

- Sou Regis-Rafael Hastur, e estou a caminho do Castelo Aldaran.

- E eu sou o Legado Terráqueo de Port Chicago - disse o líder, um homem das montanhas, grande e moreno, numa voz afetada, zombando do sotaque casta de Regis. - Quem quer que você seja, vai mesmo para Aldaran, e mais depressa do que imagina.

Era mesmo mais perto do que Regis calculara; ao alcançar a crista da colina seguinte, ele avistou o castelo e mais além a cidade de Caer Donn, os prédios brancos terráqueos.

Agora que se encontrava à vista de Aldaran, seus antigos temores ressurgiram. Nenhum homem sabia - ou se alguém sabia, era o segredo mais bem guardado de Darkover - por que Aldaran fora exilado dos Sete Domínios.

Ora, eles não podiam ser tão ruins assim, refletiu Regis. Kennard casara com uma mulher do clã. E se outrora pertenciam aos Sete Domínios, deviam descender também da linhagem sagrada de Hastur e Cassilda. E por que um Hastur deveria sentir medo de gente de sua espécie? Ele se fez essa pergunta ao se aproximar dos enormes portões. Mesmo assim, ainda sentia medo.

Homens das montanhas, usando túnicas de couro de corte estranho, pegaram os cavalos. Um dos guardas levou Regis a uma sala, onde conversou por algum tempo com outro guarda, antes de anunciar:

- Vamos levá-lo a Lorde Aldaran. Mas se você não for quem alega, é melhor planejar o resto do dia na prisão. O velho lorde está doente, e não nos agrada a idéia de incomodá-lo com um impostor.

Conduziram-no por longos corredores e escadas de pedra, até parar diante de uma porta grande. Dava para ouvir vozes lá dentro, uma baixa e indistinta, a outra áspera, obviamente de um velho, num protesto irado:

- Pelos infernos de Zandru! Kirian na minha idade! Como se eu fosse um colegial... ora, está bem, está bem! Mas o que vocês estão fazendo é perigoso, se pode ter efeitos secundários como este, e quero saber mais... muito mais... antes de deixar que continuem!

Os guardas trocaram olhares por cima da cabeça de Regis; um deles bateu de leve na porta, e alguém deu a ordem para entrar.

Era uma câmara de pedra, grande, em arcadas, cinzenta com a claridade exterior. Na outra extremidade, um velho magro estava estendido numa cama alta, apoiado em muitos travesseiros. Lançou-lhes um olhar irado.

- Mas o que foi agora? O que aconteceu?

- Um intruso em nossas terras, Lorde Aldaran, talvez um espião dos Domínios.

- Ora, ele não passa de um menino! - exclamou o velho. - Venha até aqui, criança.

Os guardas empurraram Regis para a frente, e o velho focalizou-o, os olhos aguçados como os de um falcão. Depois ele sorriu, um sorriso divertido.

- Essa não! Nem preciso perguntar seu nome! Acho que nenhum homem jamais exibiu tanto sua linhagem no rosto! Você pode ser o filho de Rafael. Mas pensei que seu herdeiro ainda se encontrava numa sala de aula. Quem é você então, algum nedestro, ou talvez um bastardo do velho Danvan?

Regis ergueu o queixo.

- Sou Regis-Rafael Hastur de Hastur!

- Em nome de todos os infernos, o que veio fazer aqui, esgueirando-se pela fronteira, sozinho? O herdeiro de Hastur deveria ter chegado aos portões com uma escolta apropriada e pedido para me falar. Nunca me recusei a receber qualquer um que para cá venha em paz! Acha que isto ainda é uma fortaleza de bandidos?

Regis ficou constrangido, ainda mais porque sabia que o velho tinha razão.

- Meu lorde, pensei que podia haver uma guerra sem o meu conhecimento. Se há paz entre nós, o que fez com meu homem jurado?

- Eu, jovem Hastur? Não conheço nenhum homem seu. Quem é ele?

- Meu escudeiro e amigo, Danilo Syrtis. Foi seqüestrado por homens armados, nas colinas próximas de sua casa, por homens que exibiam o seu brasão, meu lorde.

Aldaran franziu o rosto. Olhou para o homem alto e magro, em roupas terráqueas, parado perto da cabeceira da cama.

- Bob, sabe alguma coisa a respeito? Você geralmente está a par das ações de Beltran. O que ele andou fazendo enquanto eu permanecia deitado aqui, doente?

O homem virou-se para Regis e disse:

- Danilo Syrtis está aqui e ileso, jovem Hastur. Os homens de Beltran apenas exageraram em suas ordens; foram instruídos a convidá-lo a vir até aqui, com toda a cortesia. E contávamos com a informação de que ele não sentia qualquer motivo para amar o Comyn; como poderíamos saber que ele era o seu homem jurado?

Regis sentiu um desdém silencioso. E por que deveríamos nos importar com isso? Mas as palavras de Kadarin eram polidas:

- Ele está ileso, é um hóspede de honra.

- Terei uma conversa com Beltran - declarou Kermiac de Aldaran. - Não é a primeira vez que seu entusiasmo o leva longe demais. Lamento muito, jovem Hastur. Não sabia que tínhamos um homem seu aqui. Kadarin, leve-o para seu amigo.

Era tão simples assim? Regis sentiu uma vaga apreensão.

- Não há necessidade de pressa - disse Kadarin. - Lew Alton conversou com o jovem Syrtis por horas, ontem à noite. Tenho certeza de que ele sabe agora que não é um prisioneiro. Não gostaria de falar primeiro com seu parente, Lorde Regis?

- Lew ainda está aqui? Claro que eu gostaria de vê-lo! Kermiac olhou para os trajes sujos da viagem de Regis e disse:

- Foi uma longa jornada para um rapaz da sua idade. Deve estar exausto. Permita-nos que o levemos antes a aposentos de hóspede, ofereçamos-lhe um banho, uma refeição...

As duas ofertas eram muito atraentes, mas Regis sacudiu a cabeça.

- Para ser sincero, não preciso de nada neste momento, pois ainda estou profundamente preocupado com meu amigo.

- Como quiser, meu rapaz. - Ele estendeu a mão encarquilhada, parecendo ter dificuldade para movimentá-la como desejava. - Ora, não vou chamar um rapaz de sua idade de lorde qualquer coisa! Isso é a metade do que está errado em nosso mundo!

Regis inclinou-se sobre a mão estendida, como teria feito cora o avô.

- Se o julguei mal, Lorde Aldaran, imploro o seu perdão. A ansiedade por Danilo é a minha desculpa.

- Acho que nós de Aldaran também lhe devemos desculpas, meu rapaz. Bob, mande Beltran vir falar comigo... imediatamente!

- Tio, ele está muito ocupado com...

- Não interessa se ele está ocupado ou não! Traga-o agora! E depressa! - Ele soltou a mão de Regis e acrescentou: - Tornarei a vê-lo em breve, meu rapaz. É meu hóspede, permaneça aqui em paz, seja bem-vindo.

Dispensado da presença de Aldaran, Kadarin o conduzindo pelos corredores do castelo, Regis sentiu-se mais confuso do que nunca. O que estava acontecendo ali? Fazia calor dentro do castelo, e ele desejou ter tirado seu manto de viagem; e de repente foi dominado pelo cansaço e fome. Não comia uma refeição quente nem dormi' numa cama por mais dias do que podia calcular, e durante a doença perdera por completo a contagem. Kadarin encaminhou-se pai uma sala pequena, informando:

- Creio que Lew está aqui com Beltran.

Regis piscou os olhos, atônito, ao ver, no primeiro momento, apenas o fogo aceso na lareira, o chão com o mosaico das aves brancas! Fantasias afloraram em sua cabeça. Danilo não se encontrava ali, como no sonho, mas Lew estava de pé diante do fogo, de costas para Regis. Olhava para uma mulher que tinha uma pequena harpa apoiada nos joelhos. Ela tocava e cantava. Regis já ouvira a canção em Nevarsin; era muito antiga, tinha uma dúzia de nomes e de melodias:

Como surgiu o sangue em sua mão direita,

Conte, irmão, conte, É o sangue do velho lobo cinzento, Que de trás de uma árvore espreitava.

A canção foi interrompida no meio de um acorde; Lew virou-se, deparou com Regis e demonstrou todo o seu espanto.

- Regis! - Ele se adiantou apressado para a porta. - O que está fazendo aqui?

Lew estendeu os braços, deu um abraço forte, segurou-o pelos ombros e acrescentou, incisivo:

- Se isso é mais uma das idéias de Beltran...

Regis empertigou-se. Tinha vontade de arriar nos braços de Lew, apoiar-se nele, dar vazão à fadiga e ao medo... mas não na presença daqueles estranhos.

- Vim até aqui à procura de Danilo. Javanne viu em seu cristal que ele fora levado por homens de Aldaran. Você teve alguma participação nisso?

- De jeito nenhum! - protestou Lew. - Quem você pensa que eu sou? Foi um equívoco, posso lhe assegurar, apenas um equívoco. Venha sentar, Regis. Parece cansado e doente. Bob, se ele foi maltratado, vou querer a cabeça de alguém por isso!

- Não foi, não - garantiu Kadarin. - Lorde Kermiac recebeu-o como um hóspede, e mandou-o ao seu encontro imediatamente.

Regis deixou que Lew o conduzisse para o banco ao lado do fogo. A mulher recomeçou a tocar a harpa, em acordes suaves. Outra mulher, esta muito jovem, com longos cabelos vermelhos, um rosto bonito e remoto, veio pegar seu manto, fitando-o nos olhos, com a maior ousadia. Nenhuma moça dos Domínios olharia para ele assim! Regis teve a constrangedora impressão de que ela sabia o que ele pensava e achava muito engraçado. Lew disse os nomes das mulheres, mas Regis não estava em condições de prestar atenção. Foi também apresentado a Beltran de Aldaran, que deixou a sala no instante seguinte. Regis desejou que os outros também se retirassem. Lew sentou ao seu lado e perguntou:

- Como decidiu fazer essa longa viagem sozinho? Apenas por Danilo?

- Fizemos um juramento, somos bredin - respondeu Regis. -Ele está mesmo ileso, e não é um prisioneiro?

- Danilo foi acomodado no luxo, é um hóspede de honra. Você poderá vê-lo no momento em que quiser.

- Não consigo entender, Lew. Você veio para cá numa missão do Comyn, mas o descubro envolvido nos assuntos deles. O que aconteceu?

Assim que suas mãos se tocaram, eles entraram em contato, e Regis descobriu-se a especular: Lew se tornem um traidor do Comyn? Em resposta, Lew disse calmamente:

- Não sou um traidor. Mas passei a acreditar que o serviço ao Comyn e o serviço a Darkover talvez não sejam a mesma coisa.

A mulher voltou a cantar, baixinho:

Nenhum logo espreita a esta hora,

Conte, irmão, conte! É o sangue de meu outro irmão, Que conosco sentava à mesa.

 

Como pôde lutar contra seu sangue,

Conte, irmão, conte,

Os filhos de seu pai, os filhos de sua mãe,

Que em paz aqui habitavam com você.

Lew ainda falava, pela canção:

- O Comyn tem sido injusto com uma freqüência grande demais. Danilo foi descartado como se fosse lixo, apenas porque ofendeu um homem iníquo e corrompido, que nunca deveria exercer qualquer poder. Danilo é um telepata catalisador. Sugeri que o trouxessem para cá... não tinha idéia de que o fariam pela força... e recrutassem seus serviços para uma lealdade maior. Achei que ele poderia servir a todo o nosso mundo, não apenas a um bando de aristocratas, doentios e loucos pelo poder, empenhados em se manter no comando a qualquer custo...

Os acordes tristes da harpa eram suaves, a voz da mulher, muito doce:

Ao banquete sentamos, lutamos de brincadeira,

Irmã, assim eu juro; Uma ira assassina me dominou a mão, E matei, para minha vergonha eterna.

- Mas já chega de conversa - declarou Lew. - Você está cansado da viagem, ansioso por Dani, e precisa repousar um pouco. Assim que se recuperar, quero informá-lo de tudo o que estamos fazendo aqui. Saberá então por que as pessoas leais a Darkover podem servir melhor a todos nós se desafiarem os poderes do Comyn.

Regis sentiu a sinceridade de Lew através do contato em sua mão, mas havia também alguma hesitação. Ele estendeu a mão pelo braço de Lew para tocar a tatuagem.

- Você também não tem certeza absoluta disso, Lew. Prestou um juramento, assumiu um compromisso com o Comyn.

Lew retirou a mão e comentou, amargurado:

- Juramento? Não, promessas foram feitas em meu nome, quando tinha cinco anos de idade. Mas conversaremos a respeito em outra ocasião. Se imaginou que Danilo era um prisioneiro, vai ficar mais tranqüilo ao encontrá-lo nos melhores aposentos de hóspedes, os únicos, eu acho, dignos de acolher um Hastur. Se ele é seu homem jurado, devem partilhar os mesmos aposentos.

Ele se virou, apresentando suas desculpas às mulheres. Em seu estado de extrema sensibilidade, Regis pôde sentir as emoções delas também: ressentimento intenso da mais velha, a cantora. A mais jovem parecia só prestar atenção a Lew. Regis não queria ser parte daqueles problemas complexos. Por isso, ficou contente quando saíram só os dois para o corredor.

- O que há com você, Regis? Está doente!

Regis tentou - mas sabia que não teria êxito - cortar o contato por completo. Tinha certeza de que Lew ficaria extremamente preocupado se lhe dissesse que sofrera um ataque da doença do limiar durante a viagem. Até mesmo Javanne tratara a questão como algo muito sério. Por algum motivo, ele queria evitar o assunto, e disse:

- Apenas me sinto exausto. Não estou acostumado a viajar pelas montanhas, e posso ter pego um resfriado.

Ele resistiu à solicitude de Lew. Podia sentir a ansiedade do parente a seu respeito, e isso o deixou irritado, por alguma razão desconhecida. Não era mais uma criança! Sentiu a perplexidade cora que Lew se retirou.

Ao chegarem à porta dupla toda lavrada, Lew parou, franzindo o rosto para o guarda postado ali.

- Está vigiando um hóspede, senhor?

- É mais uma proteção, Dom Lewis. Lorde Beltran ordenou que me mantivesse aqui para impedir que alguém o perturbe. Nem todos são cordiais com as pessoas das terras baixas. - O guarda empurrou a porta. - Nem mesmo está trancada.

Lew entrou na frente e chamou:

- Danilo!

Regis, seguindo-o, correu os olhos pelo ambiente luxuoso e antiquado. Danilo veio de outro cômodo e estacou abruptamente. Regis sentiu um imenso alívio. Não conseguia falar. Lew sorriu.

- Como pode ver - comentou ele -, Dani está vivo, bem e ileso. Danilo sacudiu a cabeça, num gesto agressivo.

- Mandou que o capturassem também?

- Você é desconfiado demais, Dani - protestou Lew. - Pergunte a ele. Mandarei servos para cuidarem de vocês.

Ele tocou de leve o braço de Regis.

- Minha palavra de honra de que nada será feito contra a vontade de vocês, e poderão partir assim que estiverem em condições de viajar.

Uma pausa, e ele acrescentou, antes de sair e fechar a porta:

- Cuide bem dele, Dani.

Capítulo Dezoito

(Narrativa de Lew Alton)

Quando voltei à sala, Thyra ainda tocava a harpa, e percebi que me ausentara por bem pouco tempo; e ela continuava a cantar a balada do proscrito enlouquecido.

E quando voltará outra vez para mim,

Conte, irmão, conte?

Quando o sol e a lua nascerem juntos no oeste,

E isso jamais acontecerá.

Devia ser uma canção muito antiga, e de outro mundo, pensei, pois falava de uma lua, em vez de quatro! Beltran já retornara, e olhava o fogo, parecendo furioso e distante. Devia ter recebido a censura que merecia de Kermiac. Antes disso, a doença do velho nos impedira de lhe contar o que Beltran fizera. Senti-me angustiado porque Beltran também o estava... não podia evitar, pois gostava dele, compreendia o que o impelira às ordens precipitadas. Mas o que ele fizera com Danilo era imperdoável, e ainda me deixava irritado.

E ele sabia disso. Sua voz, quando se virou para mim, era truculenta:

- Agora que já levou a criança para a cama...

- Não zombe do rapaz, primo. Ele é jovem, mas foi bastante homem para cruzar as Hellers sozinho. Eu não faria isso.

- Já ouvi tudo isso de meu pai. Ele só tinha elogios pela coragem e boas maneiras do rapaz. Não preciso ouvir de você também.

Ele tornou a me virar as costas. Não senti pena de Beltran naquele momento. Com sua ação, ele poderia ter-nos privado da amizade e ajuda de Danilo; e essa ajuda, como eu podia compreender agora, era a única coisa capaz de salvar o círculo. Se o laran de Beltran pudesse ser plenamente aberto, se com a ajuda de Danilo pudéssemos encontrar e despertar mais alguns telepatas latentes, havia uma possibilidade, por menor que fosse, de controlarmos de alguma forma a matriz de Sharra. Sem isso, parecia algo impossível. Marjorie sorriu e comentou:

- Seu amigo não falou comigo, nem mesmo olhou para mim, mas mesmo assim eu gostaria de conhecê-lo.

- É um homem das terras baixas, amor, e acharia uma grosseria olhar para uma donzela. Mas ele é meu grande amigo.

Os lábios de Kadarin se contraíram numa expressão irônica.

- Mas não foi por você que ele atravessou as montanhas, e sim pelo jovem Syrtis.

- Vim para cá por minha livre e espontânea vontade, e Regis sabia disso. - Soltei uma risada divertida. - Pelos meus antepassados provavelmente inexistentes, Bob, acha que estou com ciúme? Não sou amante de rapazes, mas Regis foi entregue aos meus cuidados quando era pequeno, e me é mais caro do que meu próprio irmão.

Marjorie sorriu o seu sorriso irresistível e murmurou:

- Então eu também o amarei.

Thyra levantou os olhos e escarneceu, em meio aos acordes da harpa:

- Não se esqueça de que é uma Guardiã, Marjorie! Se um homem a tocar, vai desaparecer em fumaça ou qualquer coisa assim!

Um tremor gelado me sacudiu de repente. Marjorie, ardendo nas chamas de Sharra... Dei um passo na direção da lareira, arranquei a harpa das mãos de Thyra e depois me controlei, o corpo rígido. O que estivera prestes a fazer? Jogar a harpa para o outro lado da sala? Quebrá-la naquele rosto zombeteiro? Devagar, determinado, forçando os músculos contraídos a relaxarem, baixei a harpa e larguei-a no banco.

- Breda - murmurei, usando a palavra para irmã, não a comum, mas a íntima, que podia também significar querida -, tal zombaria é indigna de você. Se eu julgasse possível ou se a tivesse treinado desde o início, não acha que a escolheria, em vez de Marjorie? Não acha que eu teria preferido que Marjorie permanecesse livre?

Passei o braço por seus ombros. Por um momento, ela manteve uma atitude de desafio, fitando-me com fúria.

- Teria realmente confiado em mim para manter sua regra da castidade?

Fiquei chocado demais para responder de imediato. Só depois de algum tempo é que consegui falar:

- Breda, não é em você que não confio, mas no seu treinamento.

Ela permanecera rígida em meus braços; subitamente, arriou inerte contra meu peito, seus braços me enlaçaram pelo pescoço. Pensei que ela ia chorar. Tratei de acrescentar, ainda tremendo, com aquela mistura de raiva e ternura:

- E não faça gracejos sobre o fogo! Que Evanda tenha misericórdia, Thyra! Você nunca esteve em Arilinn, nunca viu o memorial, mas é uma cantora de baladas; nunca ouviu a história de Marelie Hastur? Não tenho voz para cantar, mas relatarei o que aconteceu, se precisar ser lembrada de que não se pode brincar com essas coisas!

Parei de falar, a voz trêmula. Kadarin interveio, muito calmo:

- Todos vimos Marjorie no fogo, mas foi apenas uma ilusão. Não se machucou, não é mesmo, Margie?

- Não. Nada me aconteceu. Por favor, Lew, pare com isso. Thyra não falava sério.

Marjorie tremia agora. Ansiei em tomá-la nos braços, mantê-la segura. Mas isso a levaria a um perigo maior do que qualquer outra coisa que eu pudesse fazer.

Fora um tolo ao abraçar Thyra.

Ela ainda se comprimia contra mim, quente, íntima, cheia de vitalidade. Tive vontade de empurrá-la para longe com a maior violência, mas ao mesmo tempo eu queria - e ela sabia disso, por Zandru, ela sabia disso! - o que poderia ter como algo normal de qualquer mulher do meu círculo que não fosse uma Guardiã. E que dissiparia a hostilidade e a tensão. Qualquer mulher treinada numa Torre perceberia o estado em que eu me encontrava e se sentiria responsável...

Forcei-me a permanecer calmo, a me desvencilhar dos braços de Thyra. Não era culpa de Thyra, assim como não era de Marjorie. Não era culpa de Thyra que Marjorie, e não ela própria, fosse forçada a se tornar a Guardiã, por falta de outra qualquer. Não era Thyra que me excitava assim. Também não era culpa de Thyra não ter sido treinada nos costumes de um círculo de Torre, onde a intimidade e a percepção são mais profundas do que qualquer laço de sangue, mais profundas do que o amor, em que a necessidade de uma pessoa desperta a responsabilidade das outras.

Eu só podia impor as leis de um círculo de Torre àquele grupo na medida em que fosse necessário para sua própria segurança. Não podia pedir mais do que isso. Seus próprios vínculos eram muito anteriores ao meu advento. Thyra só sentia desprezo por Arilinn. E não era possível se interpor entre Thyra e Kadarin.

Gentilmente, a fim de não magoá-la com uma retirada abrupta, afastei-me dela. Beltran, olhando o fogo como se estivesse hipnotizado pelas chamas, disse em voz baixa:

- Marelie Hastur. Conheço a história. Era uma Guardiã em Arilinn que foi capturada por bandidos das montanhas nas Colinas Kilghard, estuprada e largada para morrer junto aos muros da cidade. Mas por orgulho ou medo da compaixão, ela ocultou o que lhe haviam feito e foi trabalhar nas telas de matriz, apesar da lei das Guardiães... E morreu, um cadáver enegrecido, como se tivesse sido atingida por um raio.

Marjorie estremeceu, e amaldiçoei Beltran. Por que ele tinha de contar essa história na presença de Marjorie? Parecia uma crueldade gratuita, uma atitude insólita da parte de Beltran.

Mas era verdade. E eu estivera prestes a contá-la a Thyra, assim como quase quebrara a harpa em sua cabeça. O que também era uma atitude insólita de minha parte.

Em nome de todos os Deuses, o que estava acontecendo conosco?

- Uma história falsa - protestou Kadarin, em tom ríspido. -Uma fraude para intimidar as Guardiãs, forçá-las a manter a virgindade, um bicho-papão para assustar as crianças!

Estendi a mão com a cicatriz.

- Bob, isto não é uma fraude!

- E também não acredito que tenha qualquer coisa a ver cora sua virgindade. - Ele riu e pôs a mão em meu ombro, num gesto afetuoso. - Você está se entregando a pesadelos, Lew. Para a sua Marelie Hastur, eu cito Cleindori Aillard, parenta de seu próprio pai, que casou e gerou um filho, sem perder nada dos seus poderes como Guardiã. Já esqueceu que eles a mataram por guardar esse segredo? Basta isso para desmentir todas as bobagens supersticiosas sobre castidade.

Vi o rosto de Marjorie perder um pouco da tensão e me senti grato a Kadarin, embora não estivesse totalmente convencido. Trabalhávamos sem as salvaguardas elementares, e eu ainda não estava disposto a ignorar as precauções mais simples e antigas. Kadarin acrescentou:

- Se você e Marjorie se sentem mais seguros continuando apartados até que o trabalho seja concluído, a opção é de vocês. Mas não se deixem arrebatar por pesadelos. Marjorie tem o controle. Eu me sinto seguro com ela.

Ele se inclinou e beijou-a de leve na testa, um beijo sem paixão, mas afetuoso. Passando o outro braço por meus ombros, Kadarin puxou-me, sorrindo. Por um instante, pensei que ia beijar-me também, mas ele soltou uma risada.

- Estamos ambos muito velhos para isso - comentou Kadarin, sem escárnio.

Senti que nos encontrávamos todos unidos outra vez, sem qualquer vestígio da terrível violência e desarmonia que nos separara. Voltei a ter esperança. Thyra perguntou:

- Como está nosso pai, Beltran?

Eu tinha esquecido que Thyra também era filha de Kermiac.

- Muito fraco. Mas não se preocupe, irmãzinha. Ele sobreviverá a todos nós.

- Devo ir ajudá-lo, Beltran? - indaguei. - Tenho uma longa experiência de tratamento de choque por sobrecarga de matriz...

- E eu também tenho, Lew - disse Kadarin gentilmente, soltando-me. - Todo o conhecimento da tecnologia de matriz não está encerrado em Arilinn, bredu. Posso passar melhor sem dormir do que os jovens.

Eu sabia que deveria insistir, mas não tinha ânimo para enfrentar outra zombaria de Thyra sobre Arilinn. E era verdade que Kermiac treinara técnicos de matriz naquelas montanhas antes do nascimento de qualquer um de nós. E meu cansaço me traiu. Balancei um pouco, e Kadarin me amparou.

- Vá descansar, Lew. Olhem, Rafe adormeceu no tapete. Thyra, chame alguém para carregá-lo até sua cama. E todos vocês vão se deitar agora!

- Está bem - disse Beltran. - Amanhã teremos muito trabalho. Já protelamos por tempo demais. Agora que contamos com um tele-pata catalisador...

- Talvez seja preciso muito tempo para persuadi-lo a confiar

em você, Beltran - ressaltei. - E não pode usar a força contra ele. Sabe disso, não é?

Beltran se mostrou furioso.

- Não farei mal a um fio de cabelo daquela preciosa cabeça, parente. Mas é melhor que você seja muito bom na persuasão. Sem a ajuda dele, não sei o que faremos.

Eu também não sabia. Precisávamos muito de Danilo. Deixamos a sala em silêncio, todos bem sóbrios. Eu experimentava uma terrível sensação de peso em meu coração. Thyra acompanhou o corpulento servo que carregava Rafe para a cama. Kadarin e Beltran, eu sabia, iam verificar o estado de Kermiac. Eu deveria partilhar essa vigília. Amava o velho, e era responsável pela falta de controle momentânea que o abatera.

Já ia deixar Marjorie na base da escada para sua torre quando ela segurou minha mão.

- Por favor, Lew, fique comigo. Como fez na outra noite.

Fiz menção de concordar, mas uma coisa me ocorreu de repente.

Não confiava em mim mesmo.

Não sei se era pelo breve e desconcertante contato físico com Thyra ou pelo impacto tremendo da discussão, ou as antigas baladas... mas não confiava em mim mesmo!

Mesmo agora, precisei de toda a minha disciplina, adquirida com tanto esforço, para não tomá-la em meus braços, beijá-la com ardor, carregá-la pela escada até seu quarto, para a cama partilhada castamente...

Parei por aí. Mas mantínhamos um contato profundo; ela vira, sentira, partilhara a percepção. Marjorie corou, mas não desviou os olhos dos meus, e murmurou:

- Você disse que, ao trabalharmos juntos assim, nada de mal poderia me acontecer... que não haveria nenhum risco.

Balancei a cabeça, aturdido.

- Também não compreendo, Marjorie. Em circunstâncias normais, neste estágio... - Soltei uma risada, que nada tinha de divertida. - ...você e eu poderíamos deitar nus, e dormiríamos como irmãos ou bebês desmamados. Por todos os Deuses, pensa que eu não quero?

Agora ela desviou os olhos e sussurrou:

- Kadarin diz que é apenas uma superstição. Eu... eu arriscaria, se você quisesse, Lew. Se você precisa...

Senti-me envergonhado. Era mais disciplinado do que demonstrava agora. Respirei fundo e tirei as mãos do corrimão da escada.

- Não, minha querida. Talvez eu possa descobrir o que está errado... mas preciso ficar sozinho.

Ouvi sua súplica, não em voz alta, mas direto para a minha mente, direto para o meu coração: Não me deixe! Não vá, Lew, não... Rompi o contato bruscamente, cortando-a, excluindo-a. Doeu demais, mas sabia que se permitisse continuar mais um pouco não seria capaz de deixá-la, e sabia como terminaria. E a disciplina de Marjorie prevaleceu. Ela fechou os olhos e respirou fundo. Vi aquela estranha expressão de distância, retraimento e isolamento dominar suas feições. A expressão que Callina exibira na Noite do Festival. O olhar que eu vira tantas vezes em Janna, na minha última temporada em Arilinn. Ela também sabia que eu a amava, que a desejava. Doeu, mas também fiquei aliviado. Marjorie disse calmamente:

- Eu compreendo, Lew. Vá dormir, meu querido.

Ela se virou e começou a subir pela longa escada, e fui embora, meio cego de tanta dor.

Passei pela porta fechada da suíte em que Regis e Danilo haviam sido alojados. Sabia que deveria conversar com Regis. Ele estava doente, exausto. Mas meu próprio sofrimento fez com que me abstivesse. Regis deixara bem claro que não queria a minha atenção. Reunira-se com seu amigo; por que eu deveria incomodá-los agora? Ele dormiria, depois daquela extenuante viagem sozinho pelas Hellers.

Fui para o meu quarto e me joguei na cama, sem me dar o trabalho de tirar as roupas.

Havia algo errado. Profundamente errado.

Sentira uma vez antes uma interrupção como aquela, um vórtice de fúria, desejo, raiva, destruição, absorvendo todos nós. Não deveria ser assim. Não podia ser assim!

Normalmente, o trabalho com a matriz deixava as pessoas esgotadas, nada sobrava para qualquer emoção violenta. Acima de tudo, eu me acostumara ao fato de que nada restava para a sexualidade. Não era o que acontecia agora.

Eu ficara furioso com Thyra a princípio, não excitado. Sentira raiva quando ela escarnecera de Marjorie, mas de repente fora dominado por uma necessidade tão intensa que seria capaz de rasgar suas roupas e possuí-la ali mesmo, diante do fogo!

E Marjorie. Uma Guardiã. Eu não deveria sequer pensar a respeito dela dessa -maneira. Mas pensara. Ainda tremia de desejo. E ela queria que eu fosse para o seu quarto! Estaria chorando agora, sozinha, as lágrimas que fora orgulhosa demais para derramar na minha presença? Eu deveria ter arriscado? A sanidade, a prudência, o longo hábito, tudo me dizia que não; fizera a única coisa segura.

Olhei por um instante para a matriz coberta e senti um frêmito de percepção me percorrer os nervos. Isolada daquele jeito, deveria estar completamente inativa. Afinal, eu fora treinado em Arilinn, e qualquer telepata do primeiro ano aprende a isolar uma matriz. E quando isolo uma, ela permanece isolada! Devia estar sonhando, imaginando coisas. Andava vivendo pelos nervos, que agora se encontravam à flor da pele, hipersensíveis.

Aquela coisa era responsável por todos os nossos problemas. Eu gostaria de jogá-la pela janela; ou, melhor ainda, despachá-la num foguete terráqueo e deixar que exercesse sua iniqüidade sobre a poeira cósmica! Desejei do fundo do coração que Beltran, a matriz de Sharra, Kadarin e a velha Desideria, com toda a sua história do povo da forja, estivessem ardendo juntos, numa de suas próprias forjas.

Ainda concordava com o sonho de Beltran, mas, se interpondo entre nós e a realização desse sonho, surgia o pesadelo devastador de Sharra. Eu sabia, tinha certeza, com as raízes mais profundas do meu ser, de que não podia controlá-la, de que Marjorie não podia controlá-la, de que nada humano jamais conseguiria controlá-la. Despertáramos apenas a superfície da matriz. Se fosse atiçada por completo, talvez nunca mais pudesse ser controlada, e amanhã eu diria isso a Beltran.

Com essa determinação, mergulhei num sono irrequieto.

Por um longo tempo, vagueei em pesadelos confusos pelos corredores do Castelo Comyn; sempre que encontrava alguém, a pessoa tinha o rosto velado ou o desviava em aversão e desdém. Javanne Hastur recusando-se a dançar comigo num baile de crianças. O velho Domenic di Asturien com as sobrancelhas alteadas. Meu pai, projetando-se para mim ao longo de um vasto abismo. Callina Aillard, virando-se e deixando-me sozinho na varanda batida pela chuva. A impressão é de que vagueei por aqueles corredores durante horas, sem que nenhum rosto humano se virasse para mim, em preocupação ou compaixão.

E depois o sonho mudou. Eu me encontrava na varanda da Torre de Arilinn, contemplando o nascer do sol, com Janna Lindir ao meu lado. Fiquei um pouco surpreso ao vê-la. Retornara ao lugar em que fora feliz, em que fora aceito e amado, onde não havia qualquer nuvem em minha mente e coração. Mas pensara que meu círculo fora desfeito, dispersara-se, os outros voltando para suas casas, eu indo para a Guarda, onde me sentira desprezado, Janna casando... não, isso só podia ter sido um pesadelo! Ela se virou e pôs a mão sobre a minha, e experimentei uma profunda felicidade.

Só depois percebi que não era Janna, mas Callina Aillard, murmurando, zombeteira, "Sabe muito bem o que há de errado com você", escarnecendo de mim da barreira segura de sua posição de Guardiã, proibida, intocável... Enlouquecido por meu ímpeto de necessidade e fome, estendi os braços para Callina, arranquei os véus de seu corpo, enquanto ela gritava e se debatia. Obriguei-a a deitar-se, chorando, nas pedras frias, montei por cima, nu, e no meio dos gritos desvairados de terror ela mudou, começou a pegar fogo, a arder, as chamas de Sharra nos engolfando, consumindo-nos num espasmo delirante de desejo e êxtase, terror e agonia...

Despertei sobressaltado, gritando, na mistura de terror e encantamento do sonho. A matriz de Sharra permanecia coberta e inativa. Mas não tive coragem de tornar a fechar os olhos naquela noite.

 

Capítulo Dezenove

Depois que Lew se retirou, fechando a porta, foi Regis quem tomou a iniciativa, adiantando-se lentamente, como se andasse pelo meio da neve, para segurar os ombros de Dani num abraço de parente. Escutou a própria voz, rouca em seus ouvidos:

- Você está são e salvo. Está aqui e seguro.

Ele duvidara da palavra de Lew, embora o amigo nunca lhe tivesse dado qualquer motivo, em toda a sua vida, para duvidar. Que tipo de clima maligno havia ali?

- É verdade, são e salvo - murmurou Danilo, para depois soltar uma exclamação de consternação. - Mas está completamente encharcado, Lorde Regis!

Pela primeira vez, Regis percebeu o calor da lareira, as cortinas que bloqueavam as correntes de ar, depois das lufadas frias dos corredores. O próprio calor provocou um acesso de tremor, mas ele se forçou a perguntar:

- Os guardas... é de fato um prisioneiro aqui?

- Eles montam guarda para me proteger, pelo que dizem. Mas têm se mostrado bastante cordiais. Sente aqui, deixe-me tirar suas botas, pois está enregelado até os ossos!

Regis deixou-se levar para uma cadeira de braços, de um desenho tão antigo que até sentar ele não sabia direito o que era. Os pés saíram dormentes e gelados das botas. Sentia-se quase cansado demais para desatar a túnica; permaneceu arriado na cadeira, os braços pendentes, as pernas estendidas, e só depois de algum tempo, com grande esforço, é que levantou os dedos rígidos para os laços da túnica. Sabia que sua voz soou mais irritada do que pretendia quando protestou:

- Posso cuidar de mim sozinho, Dani. Você é meu escudeiro, não meu valete!

Danilo, ajoelhado diante do fogo, ajeitando as botas de Regis para secar, empertigou-se no mesmo instante, espicaçado, e disse, olhando para o fogo:

- Lorde Regis, sinto-me honrado em servi-lo por qualquer forma que puder.

Através do formalismo das palavras, Regis, outra vez aberto, sentiu algo mais, uma ressonância de desespero sem palavras: Ele não falava sério, ao aceitar meus serviços. Foi... foi apenas uma forma de expiação pelo que seu parente fez comigo...

Sem se deter a pensar, Regis saiu da cadeira e foi ajoelhar-se ao lado de Danilo, diante do fogo. Sua voz tremia, em parte por causa do frio, que ameaçava dilacerá-lo em tremores, em parte pela intensa percepção da mágoa de Danilo.

- Os Deuses são testemunhas de que falei sério! Acontece apenas que... que... - Subitamente, ele compreendeu qual era a coisa certa a dizer. - Lembra-se da repercussão quando esperei que alguém me servisse no alojamento!

Os olhos se encontraram e assim permaneceram. Regis não teve a menor idéia se o pensamento foi seu ou de Danilo: Éramos meninos naquele tempo. E agora... quanto tempo parece ter transcorrido! Mas foi apenas na estação passada! Regis teve a impressão de que olhavam para trás, como homens, ao longo de um profundo abismo da passagem do tempo, para uma infância partilhada. Para onde teria ido?

Com uma sensação de que lutava contra um cansaço insuportável - parecia que sentia esse cansaço por todo o tempo de que podia lembrar -, ele pegou as mãos de Danilo. Eram duras, calosas, reais, a única âncora firme num universo em transformação, em dissolução. Por um instante, ele sentiu que suas mãos passavam pelas de Danilo, como se não fossem sólidas. Piscou com força para focalizar, e avistou uma forma com um halo azul na sua frente. Podia ver através de Danilo agora, contemplar a parede além. Tentando focalizar, contra os pirilampos que enxameavam diante de seus olhos, Regis recordou a advertência de Javanne, resista, mexa-se, fale. Empenhou-se em forçar a voz pela garganta:

- Perdoe-me, Dani. Quem mais deveria me servir, se não meu homem jurado?

E no momento mesmo em que falava, sentiu, espantado, a extensão do alívio de Danilo: Minha família serviu aos Hastur por gerações. Agora também me encontro no lugar a que pertenço.

Não! Não quero ser amo de nenhum homem!

Mas o protesto foi compreendido por ambos, não como uma rejeição pessoal, mas como a própria representação do que eles eram; a prestação do serviço por Danilo era um prazer e um alívio, e Regis sabia que devia não apenas aceitar, mas também aceitar de bom grado.

Mas de repente uma expressão estranha, assustada, estampou-se no rosto de Danilo. Sua boca se mexia, mas Regis não podia mais ouvi-lo, flutuava sem corpo numa escuridão faiscante. A base de seu crânio latejava com uma dor crescente. Ele se ouviu sussurrar:

- Estou... em suas mãos...

E depois o mundo se inclinou de lado, e ele sentiu que arriava nos braços de Danilo. Nunca soube como chegou lá, mas segundos depois, ao que parecia, sentiu uma dor lancinante em todo o seu corpo nu, e descobriu-se imerso até o queixo numa enorme tina com água fervente. Danilo, ajoelhado ao lado, esfregava seus pulsos, com uma ansiedade evidente. Sua cabeça parecia estar rachando, mas podia ver outra vez os objetos sólidos, e seu próprio corpo era tranqüilizadoramente firme. Um servo pairava ao redor, com roupas limpas, tentando atrair a atenção de Danilo pelo tempo suficiente para obter sua aprovação.

Regis permaneceu inerte, observando, fraco demais para fazer outra coisa que não aceitar os cuidados dos dois homens. Notou que Danilo, de uma forma discreta, mantinha seu corpo entre a tina e o servo de Aldaran. Danilo logo dispensou o homem, murmurando baixinho:

- Não tenho confiança suficiente para deixá-lo a sós com qualquer um deles!

A princípio, a água parecera escaldante para seu corpo gelado; agora, ele percebeu que estava apenas morna, já devia ter sido despejada havia algum tempo, tudo indicava que era um banho preparado para Danilo antes de sua chegada. Danilo ainda se inclinava em sua direção, o rosto contraído em preocupação. Regis foi dominado por uma ansiedade tão insuportável que cortou o prazer intenso e sensual da água morna relaxando seu corpo enregelado e rígido - onze noites em viagem, e não se aquecera direito uma única vez! - e tratou de se levantar, saiu da tina e pegou uma toalha para se enrolar. Danilo ajoelhou-se para enxugá-lo, informando:

- Mandei o servo buscar uma curandeira. Deve haver alguém assim por aqui. Regis, nunca vi antes alguém desmaiar desse jeito; seus olhos continuaram abertos, mas não podia me ver, nem ouvir...

- Doença do limiar. - Regis descreveu em poucas palavras o problema. - Sofri alguns ataques antes, mas creio que já passei pelo pior.

Pelo menos é o que espero, ele acrescentou para si mesmo, antes de dizer em voz alta:

- Duvido muito que a curandeira seja capaz de fazer alguma coisa para me ajudar. Dê-me isso. Posso me arrumar sozinho. - Com firmeza, ele tirou a toalha de Danilo. - Vá dizer à mulher que não precisa se incomodar, e descubra se há alguma coisa quente para beber.

Com óbvio ceticismo, Danilo retirou-se. Regis acabou de se enxugar e vestiu as roupas estranhas. As mãos tremiam tanto que teve dificuldade com os laços da túnica. O que há comigo, ele se perguntou, por que não quero a ajuda de Dani para me vestir? Ele olhou para suas mãos, chocado, como se pertencessem a outra pessoa. Eu não queria que ele me tocasse!

Até mesmo para Regis, isso parecia incongruente. Haviam convivido na rude intimidade do alojamento por meses. Haviam sido muito ligados, a ponto de um pensar os pensamentos do outro.

Mas aquilo era diferente.

De uma forma irresistível, sua mente foi atraída para a noite no alojamento em que estendera a mão para Danilo, dominado por um desejo quase frenético de partilhar seu sofrimento, o acesso de aversão e horror com que Danilo o repelira...

E depois, abalado, envergonhado e apavorado, Regis compreendeu o que o impelira àquele contato, e por que de repente se mostrava agora inibido com Danilo. A descoberta deixou-o imóvel, os pés descalços sentindo o frio do chão de ladrilhos, através do tapete de pele de lobo.

Tocá-lo... não para confortar Dani, mas para atender à sua própria necessidade, solidão, desejo...

Ele se movimentou, deliberado, com medo de que a doença do limiar tornasse a dominá-lo se permanecesse imóvel por mais um instante. Ajoelhou-se no tapete, enfiou as meias forradas de pêlo até os joelhos e prendeu as tiras em laços intrincados. Na superfície de sua mente, refletia que as roupas de pêlo eram vitais ali nas montanhas. E proporcionavam uma sensação maravilhosa.

Mas, implacável, a lembrança que reprimira desde os doze anos se abriu como um ferimento sangrando; a lembrança com a qual perdera a consciência na trilha do norte: o rosto de Lew, iluminado pelo fogo, suas barreiras arriadas, no limite da exaustão, dor e medo.

E Regis partilhara tudo com ele, não houvera barreira entre os dois naquele momento. Absolutamente nenhuma. Regis soubera o que Lew queria, mas jamais pediria, era orgulhoso e tímido demais para pedir. Algo que Regis nunca sentira antes, que Lew pensava que ele era muito jovem para sentir ou compreender. Mas Regis soubera e partilhara.

E depois, talvez porque Lew nunca falasse a respeito, Regis sentira-se envergonhado demais para recordar. E nunca mais ousara abrir sua mente de novo. Por quê? Por quê? Por medo, por vergonha? Por... anseio?

Até que Danilo, sem sequer tentar, rompera a barricada.

E agora Regis sabia por que fora Dani quem conseguira rompê-la...

Ele não sabe, pensou Regis, e depois, com um orgulho espartano e desolado: Nunca deve saber.

Levantando, Regis tornou a sentir a dor lancinante na testa. Experimentou um momento terrível de apreensão. Como poderia ocultar? Dani também era um telepata!

Lew dissera que era como viver sem a pele. Pois sua pele fora arrancada, e se sentia duplamente nu. Fazendo um esforço para se controlar, Regis foi para o outro cômodo e verificou que suas botas ainda não haviam secado. Por dentro, sentia-se frio e trêmulo, mas fisicamente estava aquecido e calmo.

Como poderia encarar Lew de novo, sabendo disso? Friamente, Regis disse a si mesmo para não bancar o tolo. Lew sempre soubera. Não era um covarde, não mentia para si mesmo! Lew lembrava, e por isso ficara atônito quando Regis lhe dissera que não tinha laran!

E Lew perguntara por que ele não suportava lembrar...

- Deveria ter ido direto para a cama, e eu lhe serviria o jantar ali - disse Danilo, por trás de Regis.

Assumindo com firmeza o controle de seu rosto, Regis virou-se. Danilo fitava-o com uma preocupação de amigo. Regis refletiu, sobressaltado, que Danilo nada sabia, ignorava a lembrança e a percepção que o haviam invadido nos poucos minutos em que permaneceram apartados. Ele disse em voz alta, tentando imprimir à voz um tom neutro e casual:

- Desmaiei antes de ter visto o resto da suíte. Não tenho a menor idéia de onde vou dormir.

- E eu tive dias sem nada para fazer além de explorar. Venha comigo que lhe mostrarei. Mandei o servo trazer o seu jantar para cá. O que acha de ficar alojado numa suíte real, depois do dormitório dos estudantes em Nevarsin?

Havia espaço suficiente para um regente e toda a sua comitiva naquela suíte de hóspedes: quartos enormes, aposentos para servos em abundância, uma enorme sala, até mesmo uma pequena câmara de audiências, octogonal, com um trono e bancos para os cortesãos. Era mais requintada do que a suíte do seu avô em Thendara. Danilo escolhera o quarto menor e menos requintado, mas ainda assim parecia o cômodo de um favorito real. Havia uma cama imensa sobre urna plataforma, em que caberia, pensou Regis, irreverente, um cidadão das Cidades Secas, com três de suas esposas e seis concubinas. O servo que ele vira antes esquentava os lençóis com uma panela quente de cabo comprido, o fogo estava aceso na lareira. Ele deixou Danilo ajudá-lo a se acomodar na cama e depois ajeitar uma bandeja com comida quente ao seu lado. Danilo dispensou o servo, anunciando em tom solene:

- É privilégio meu servir a meu lorde com minhas próprias mãos.

Regis teve vontade de rir das palavras solenes e formais, mas sabia que um simples sorriso magoaria Danilo. Manteve o controle, até que o servo se retirou, e depois disse:

- Espero que você não use esse tratamento formal de meu lorde durante todo o tempo, bredu.

Os olhos de Danilo demonstraram alívio.

- Só na presença de estranhos, Regis.

Ele levantou as tampas das tigelas de comida fumegante, subiu na cama e serviu a sopa quente de um jarro.

- A comida está boa, Regis. Tive de pedir sidra em vez de vinho no primeiro dia. Mas vejo que trouxeram as duas coisas esta noite, e a sidra está quente.

Regis tomou a sopa e a sidra quente, com o maior apetite; mas, embora fosse a sua primeira refeição quente em dias, encontrou a maior dificuldade para mastigar e engolir.

- E agora me conte como me descobriu aqui, Regis.

A mão de Regis subiu para a matriz na bolsa pendurada no pescoço. Danilo se encolheu.

- Pensei que tais coisas só eram usadas por técnicos, com salvaguardas apropriadas. Não é perigoso?

- Eu não conhecia outro meio para descobri-lo. Danilo fitou-o nos olhos, comovido.

- E assumiu esse risco por mim, bredu?

Regis se retirou deliberado do momento de emoção.

- Não quer ficar com esta última fatia de vitela, Dani? Não sinto fome... Estou aqui e vivo, não é? Mas creio que terei problemas com minha família; escapei de Gabriel e da escolta por um ardil. Deveria estar a caminho da Torre de Neskaya.

A diversão deu certo. Danilo perguntou, com alguma aversão:

- Vai se tornar um técnico de matriz, agora que sabem que possui laran?

- Deus me livre! Mas tenho de aprender a me resguardar. Danilo dera um longo salto mental.

- Foi por isso... por usar a matriz, destreinado... que vem sofrendo a doença do limiar?

- Não sei. É possível. Mas eu não podia fazer outra coisa.

- Eu deveria ter chamado Lew Alton, em vez da curandeira - disse Danilo. - Ele foi treinado numa Torre, saberia o que fazer.

Regis se arrepiou todo. Não queria enfrentar Lew, pelo menos por enquanto. Não antes de ordenar seus pensamentos.

- Não precisa incomodá-lo. Estou bem agora.

- Se você tem certeza... - murmurou Danilo, hesitante. - A essa altura, sem dúvida, ele está na cama com sua namorada, e não agradeceria se alguém o perturbasse, mas mesmo assim...

- Sua namorada?

- A filha-de-adoção de Aldaran. Os guardas se sentem solitários, e não têm outra coisa para fazer senão conversar. Achei que deveria saber de tudo o que pudesse sobre o que está acontecendo aqui. Os guardas dizem que Lew está perdidamente apaixonado por ela, e o velho Kermiac já pensa em arrumar o casamento.

Fazia sentido, pensou Regis. Lew nunca fora feliz nas terras baixas, era um solitário. Seria ótimo se tomasse uma esposa entre seus parentes das montanhas.

- Há vinho, se você quiser - informou Danilo.

Mas Regis sacudiu a cabeça. Poderia dormir melhor se tomasse o vinho, mas não ousava arriscar qualquer coisa que pudesse baixar suas barreiras. Pegou um punhado de nozes açucaradas e começou a comê-las.

- Agora, Dani, quero que me conte tudo o que sabe. O velho Kermiac não sabia por que o trouxeram para cá, e não tive a oportunidade de perguntar a Lew em particular.

Ele especulou de repente qual das mulheres junto da lareira seria a namorada de Lew. A moça de rosto inflexível, com a harpa? Ou a mais jovem, delicada e remota, vestida de azul?

- Mas você já deve saber de tudo, Regis... se não como poderia vir atrás de mim? Tentei... tentei me projetar para você com a mente, mas tive medo. Podia senti-los. E receei que eles usassem isso de alguma forma...

Regis sentiu que Danilo estava quase chorando, enquanto ele acrescentava:

- É terrível! O laran é terrível! Eu não o quero, Regis! Não o quero mesmo!

Sem pensar, Regis estendeu a mão para o pulso do amigo, mas se conteve. Não. De jeito nenhum. Nada de uma desculpa fácil para... tocá-lo. Mantendo a voz neutra, ele comentou:

- Parece que não temos opção, Dani. Veio para nós dois.

- É como... como um raio! Atinge as pessoas que não o querem, atinge-as ao acaso...

A voz de Danilo tremia. Regis se perguntou como alguém podia viver com isso.

- Também não o quero, agora que o tenho. Assim como também não quero ser um herdeiro do Comyn. - Ele suspirou. - Mas não temos opção. Ou, melhor, temos a opção de usá-lo da maneira errada... como Dyan... ou de o aceitarmos como homens, com toda a dignidade. - Regis sabia que não falava apenas do laran agora. - E o laran não pode ser tão terrível assim, pois me ajudou a encontrá-lo.

- E se eu o atraí para um perigo de morte...

-Já chega dessa conversa! - As palavras foram uma brusca censura; Danilo encolheu-se, como se tivesse sido esbofeteado, mas Regis sentiu que não podia suportar outra explosão emocional. -Lorde Kermiac me chamou de hóspede. Entre os habitantes das montanhas, é uma obrigação sagrada. Nenhum dos dois corre qualquer perigo.

- Talvez não do velho Kermiac. Mas Beltran quer usar meu laran para despertar outros telepatas... e o que fará com eles depois de despertá-los? O que quer que seja... - Danilo fitou Regis nos olhos ao sussurrar: - É uma coisa errada. Posso sentir, uma força me procurando, até no sono!

- Lew não participaria de qualquer iniciativa desonrosa, não é mesmo?

- Talvez não, se soubesse. Mas ele guarda um profundo ressentimento contra o Comyn, e assumiu um compromisso com Beltran. Foi o que ele próprio me contou.

Danilo passou a explicar o plano de Beltran para ressuscitar a antiga tecnologia de matriz, levando Darkover de uma cultura não-industrial e não-tecnológica para uma posição de poder no império galático. Enquanto ele falava em viagens pelas estrelas, os olhos de Regis brilharam, na recordação de seus sonhos. E se ele não precisasse abandonar seu mundo e sua herança para sair pelas estrelas, mas ainda pudesse servir ao seu povo, e ainda ser parte integrante de uma vasta cultura galática... parecia bom demais para ser verdade.

- Se tudo isso fosse possível, já teria sido realizado no auge do poder das Torres. Devem ter tentado.

- Não posso saber... - murmurou Danilo humildemente. -Não sou tão instruído quanto você, Regis.

E Regis sabia tão pouco!

- Não vamos tentar adivinhar o que eles estão fazendo. Esperaremos até amanhã e perguntaremos. - Regis bocejou, um gesto deliberado. - Não durmo numa cama há doze noites. Acho que vou experimentar esta.

Danilo já começava a se afastar com as canecas e tigelas; Regis chamou-o de volta.

- Espero que você não tenha a idéia tola de montar guarda enquanto eu durmo, nem de se deitar no chão diante de minha porta.

- Só se você quiser - respondeu Dani.

Mas ele parecia magoado, e Regis compreendeu, com sua nova sensibilidade indesejável, que era esse o desejo de Danilo. A imagem que o atormentara por dias ressurgiu agora, o irmão de Danilo protegendo seu pai com o próprio corpo. Dani estava realmente disposto a morrer por ele? O pensamento chocou-o, e ele disse, em tom um tanto brusco:

- Durma onde quiser, por favor, mas trate de dormir... e isso é uma ordem, Dani.

Ele não esperou para ver que lugar Danilo escolhia. Acomodou-se na cama enorme e mergulhou num poço insondável de sono.

A princípio, a exaustão cobrou seu tributo ao corpo dolorido e as emoções estressantes, sentia-se cansado demais para sonhar. Depois, no entanto, passou a entrar e a sair de sonhos: o som de cascos de cavalos numa estrada, a galope... a sala de treinamento no Castelo Comyn, lutando contra Dyan, armado e vigoroso, Regis mal conseguindo levantar a espada de tanto cansaço... uma imensa forma estranha descendo, tocando o Castelo Aldaran com um dedo de fogo, as chamas elevando-se para o céu. A luz do fogo, Regis viu o rosto de Lew, dominado pelo terror, e se projetou para ele, com sensações e emoções estranhas, até então desconhecidas, mas a essa altura já sabia o que estava fazendo. Agora não era mais uma criança, seu corpo de criança reagindo meio inconsciente às carícias mais inocentes; agora sabia e aceitava tudo, e subitamente tinha Danilo em seus braços, e Danilo se debatia, tentava repeli-lo, em angústia e pavor. Regis, engolfado pela necessidade e por uma crueldade cega, apertava-o com mais e mais força, esforçando-se para mantê-lo ali, subjugá-lo, até que ofegou, gritou "Não! Não!", empurrou-o com toda a força e sentou na cama.

Estava sozinho, o fogo na lareira se reduzira a brasas. Ao pé da enorme cama, como uma sombra escura, Danilo dormia, enrolado num cobertor, de costas para ele. Regis ficou olhando para o jovem adormecido, incapaz de se livrar do horror do sonho, do choque de saber o que tentara fazer.

Não. Não tentara fazer. Desejara fazer. Sonhara em fazer. Havia uma diferença.

Ou não havia, para um telepata?

Uma ocasião, Kennard lhe dissera, muito sério, numa das poucas vezes em que falara de seus anos numa Torre:

- Sou um Alton; minha ira pode matar. Um pensamento assassino é, no meu caso, quase um assassinato. Um pensamento libidinoso é o equivalente psicológico ao estupro.

Regis se perguntou se era responsável até mesmo por seus sonhos. Algum dia ousaria dormir de novo?

Danilo agitou-se no sono, gemendo. Abruptamente, começou a ofegar, gritar e se debater. Murmurou em voz alta "Não! Por favor, não!", e desatou a chorar. Regis olhava horrorizado. Seu próprio sonho perturbara Dani! Dyan fazia contato com ele, mesmo no sono... Não podia permitir que ele continuasse a chorar. Inclinou-se para a frente e disse gentilmente:

- Está tudo bem, Dani. Você estava dormindo.

Ainda meio adormecido, Danilo fez o sinal de salvaguarda das orações dos cristoforos. Devia ser confortador ter sua fé, pensou Regis. Os soluços abafados de Danilo dilaceravam Regis como garras. Não tinha como saber que em outro ponto do castelo, bem distante, Lew Alton também saíra de um pesadelo, tremendo de culpa pelo mais terrível crime que ele podia imaginar; mas Regis se descobriu a especular que forma o pesadelo de Danilo teria assumido. Não se atrevia a perguntar, não se atrevia a arriscar a intimidade de confidencias noturnas. Danilo já controlara seu choro agora, e perguntou:

- Não é... a doença do limiar outra vez?

- Não. Foi apenas um pesadelo. Desculpe tê-lo acordado.

- Este lugar amaldiçoado está cheio de pesadelos... - murmurou Danilo.

Regis sentiu-o projetar-se em busca de conforto, de contato. Mas se absteve. Depois de um longo tempo, ele percebeu que Danilo voltara a dormir. Continuou acordado, olhando para os remanescentes do fogo na lareira. O fogo que fora um devastador incêndio na floresta em sua infância conturbada, que se tornara a enorme presença de chamas. Sharra, das lendas. Em nome de todos os Deuses, o que estavam fazendo aqui em Aldaran? Havia algo fora de controle, perigoso.

O fogo era a resposta, ele sabia, não apenas porque a lembrança de um incêndio na floresta trouxera de volta a memória que sepultara, mas era ainda pior. Lew dera a impressão de que fazia algo perigoso. E tudo aquilo... aquele deslocamento da memória, aqueles pesadelos de crueldade e luxúria... alguma coisa terrível vinha acontecendo ali.

E Regis tinha Danilo para proteger. Viera a Aldaran para isso, e jurou de novo que cumpriria sua promessa.

Oprimido sob, o fardo insuportável do laran, conhecendo a culpa até mesmo por seus sonhos, sufocado ao peso do conhecimento que esquecera, Regis não teve coragem de voltar a dormir. Em vez disso, pensou. O erro fora enviá-lo para Nevarsin, ele sabia. Em

qualquer outro lugar, poderia absorver. Sabia, racionalmente, que tudo o que lhe acontecera, o que estava acontecendo agora, não era suficiente para provocar um sentimento de culpa tão catastrófico, um ódio contra si mesmo tão profundo. Nem sequer se importara quando os outros cadetes pensavam que era o favorito de Dyan.

Mas isso fora antes de saber o que Dyan fizera...

A sombra de Dyan pairava sobre Regis. E com uma intensidade ainda maior sobre Danilo. Regis sabia que não suportaria se Dani passasse a pensar nele como pensava de Dyan... mesmo que Regis pensasse em si mesmo assim...

A mente pressionada a esse ponto, Regis compreendeu de repente que tinha uma opção. Diante do autoconhecimento insuportável, podia repetir o que fizera aos doze anos, e desta vez não haveria mais como romper a barreira. Podia esquecer de novo. Podia cortar o autoconhecimento indesejável e suprimir assim o laran intolerável.

Podia libertar-se de tudo aquilo, e agora ninguém mais conseguiria fazer contato. Ficar livre da herança e da responsabilidade. Se não tivesse laran, não haveria qualquer problema se deixasse o Comyn, saísse pelo Império e nunca mais voltasse. Até providenciara um herdeiro para tomar seu lugar. Já o fizera uma vez. Era possível fazer de novo. Poderia confrontar Danilo pela manhã sem o conhecimento da culpa, sem medo, encontrá-lo em absoluta inocência, como um amigo. Nunca mais precisaria temer que Danilo entrasse em contato com sua mente e descobrisse o que Regis sentia agora e que preferia morrer a revelar.

Fizera uma vez. E nem mesmo Lew fora capaz de romper a barreira.

A tentação era quase irresistível. A boca ressequida, Regis olhou para o amigo adormecido ao pé da cama. Ser livre outra vez, pensou ele, livre de tudo.

Mas aceitara o juramento de Danilo, como um Hastur. Aceitara seus serviços e seu amor.

Não era mais livre. Dissera isso sobre Danilo, e também se aplicava a ele. Não tinham opção, a força surgira neles, e só podiam abusar dela ou usá-la com honra.

Regis não sabia se seria capaz de usá-la com honra, mas tinha certeza de que tentaria. As galinhas não podiam retornar ao ovo.

De qualquer forma, só havia à frente um inferno.

Capítulo Vinte

(Narrativa de Lew Alton)

Pouco depois da aurora, caí num cochilo irrequieto. Algum tempo mais tarde, fui despertado por um estranho clamor, mulheres gritando... não, gemendo, um som que eu só ouvira uma vez antes... na viagem pelas áreas remotas, numa casa em que ocorrera uma morte. Vesti-me apressado e saí para o corredor. Havia muita gente ali, servos correndo de um lado para outro, mas ninguém se dispôs a parar para responder às minhas perguntas. Encontrei Marjorie na base da pequena escada que descia de sua torre. Seu rosto era tão branco quanto o robe que usava.

- O que aconteceu, querida?

- Não sei, mas é o gemido da morte! - Ela estendeu a mão e obrigou uma mulher a parar. - Por que o lamento? O que aconteceu?

A mulher soltou um gemido.

- É o velho lorde, domna Marguerida, seu tutor, ele morreu durante a noite...

Assim que ouvi a notícia, compreendi que já esperava por isso. Fiquei abalado, desesperado. Mesmo em tão pouco tempo, passara a amar meu tio, e além da dor pessoal havia a consternação pelo que isso devia significar. Não apenas para o Domínio de Aldaran, mas também para todo Darkover. Seu reinado fora longo e sábio.

- Thyra... - sussurrou Marjorie. - Evanda tenha piedade de nós! O que ela vai fazer? Como viverá com isso? - Ela me apertou o braço, do pai de Thyra, Lew! Você sabia? Meu pai a assumiu, mas Thyra não era sua filha... e foi por sua culpa, pelo seu erro, que Kermiac morreu!

- Não, a culpa não foi dela - protestei gentilmente. - Foi de Sharra.

Eu já começara a acreditar agora que éramos todos impotentes diante de Sharra. Amanhã - não, hoje, quanto mais cedo, melhor - seria devolvida ao povo da forja. Desideria tinha razão: permanecia segura na guarda do povo da forja, nunca deveria ter saído de lá. Hesitei, pensando no que Beltran diria. Mas Kadarin prometera a Desideria que acataria meu julgamento.

Primeiro, eu devia visitar a câmara mortuária, prestar a última homenagem a meu parente. Gemidos fúnebres vinham lá de dentro, abalando ainda mais os meus nervos já em frangalhos. Marjorie apertava meus dedos em desespero. Ao entrarmos na enorme câmara, ouvi a voz de Thyra, veemente, quase gritando:

- Parem com essa miação paga! Não vou admitir isto aqui!

Umas poucas mulheres interromperam os gemidos; as outras, desoladas, pararam só por um instante, e logo recomeçaram. A voz de Beltran soou como um grito ríspido:

- Você que o matou, Thyra, pode negar a meu pai o respeito devido?

Ela estava parada ao pé da cama, a cabeça inclinada para trás, numa atitude de desafio. Parecia no limite de sua resistência.

- Seu idiota supersticioso! Acredita mesmo que o espírito dele permaneceu aqui, para escutar os uivos sobre seu cadáver? É essa a sua idéia de um som de luto respeitoso?

Beltran disse, a voz um pouco mais gentil:

- Talvez mais respeitoso do que este tipo de briga que estamos tendo, irmã. - Ele parecia como se poderia esperar depois de uma longa noite de vigília e uma morte. Gesticulou para as mulheres. -Saiam, saiam. Terminem o seu lamento em outro lugar. Há muito que já passaram os dias em que as pessoas deviam ficar acordadas uivando para afugentar os demônios que se aproximavam do morto.

Kermiac fora preparado para o funeral, as mãos cruzadas sobre o peito, os olhos fechados. Marjorie fez o sinal cristoforo na testa do velho, depois na sua. Inclinou-se e comprimiu os lábios por um momento contra a testa fria, murmurando:

- Descanse em paz, meu lorde. Santo Portador dos Fardos, dê-nos a força para suportar nossa perda...   .

Ela se afastou e foi para junto de Thyra, que chorava.

- Ele está além de todo perdão ou culpa, querida. Não se atormente assim. Cabe a nós arcar agora com as responsabilidades, pelos vivos. Venha comigo, querida. Vamos sair daqui.

Em soluços, Thyra deixou que a irmã a conduzisse para fora da câmara mortuária. Contemplei o rosto idoso de Kermiac, sereno na morte. Por um momento, tive a impressão de que era meu próprio pai que se encontrava estendido ali. Inclinei-me, beijei a testa fria, como Marjorie fizera, e disse a Beltran:

- Conheci-o por muito pouco tempo. Minha grande perda é não ter vindo para cá antes.

Abracei meu parente, face contra face, sentindo a sua dor se acrescentar à minha. Beltran virou-se, pálido e controlado, enquanto Regis entrava, com Danilo em sua esteira. Regis murmurou uma frase formal de condolências e estendeu a mão. Beltran inclinou-se sobre a mão estendida, mas não disse nada. O pesar ofuscara sua noção de cortesia? Deveria ter dado as boas-vindas a Regis, como seu hóspede; por algum motivo, senti-me apreensivo por causa disso. Danilo fez o sinal cristoforo sobre a testa do velho, como Marjorie, e sussurrou, eu acho, uma de suas orações, depois ofereceu uma reverência formal a Beltran.

Saí atrás dos dois. Regis parecia ter passado a noite em pesadelos, como me acontecera, e erguera todas as suas barreiras contra mim - uma atitude nova, inquietante.

- Ele era seu parente, Lew - disse Regis. - Lamento por seu pesar. E sei que meu avô o respeitava. É conveniente que haja alguém dos Hasturs presente para apresentar nossas condolências. Daqui por diante, as coisas serão diferentes nas montanhas.

Era o que eu também já pensara. A visão de Regis assumindo de uma forma quase automática o seu lugar como representante formal do Comyn era outro fato inquietante. Eu sabia que seu avô aprovaria, mas mesmo assim isso me surpreendeu.

- Ele me disse, Regis, pouco antes de sua morte, que esperava que um dia você e Beltran pudessem sentar juntos e planejar um futuro melhor para o nosso mundo.

Regis deu um sorriso frio.

- Essa função caberá ao Príncipe Derik. Os Hasturs não são mais reis.

Respondi com um sorriso cético.

- Mas continuam a ser os mais próximos do trono. Não tenho a menor dúvida de que Derik o escolherá para seu principal conselheiro, assim como os parentes dele escolheram seu avô para regente.

- Se você gosta de mim, Lew, não me deseje uma coroa - declarou Regis, com um arrepio de repulsa. - Mas já chega de política

por enquanto. Permanecerei para o funeral, é claro; não devo cortesias a Beltran, mas também não insultarei o leito de morte de seu pai.

Se a morte prematura de Kermiac adiava a partida imediata de Regis, devia também, por uma questão de decência, adiar meu ultimato a Beltran. Previa menos problemas, agora que ele tivera um gosto amargo dos perigos inerentes a Sharra. Kadarin podia mostrar-se menos suscetível, mas eu confiava em seu bom senso e na afeição que sentia por todos nós.

E, assim, durante todos aqueles dias de luto pelo velho lorde de Aldaran, nenhum de nós falou sobre Sharra ou sobre os planos de Beltran. À luz do dia, eu podia me resguardar contra a memória e o medo; só voltavam em sonhos apavorantes, que me dilaceravam com garras de tormento...

Os serviços fúnebres chegaram ao fim; os lordes das montanhas, que vieram prestar sua última homenagem ao morto e apresentar sua lealdade a Beltran, foram embora, um a um. Beltran se comportou com solene dignidade, aceitando os protestos de amizade e apoio, mas senti em todos aqueles homens das montanhas a certeza de que uma época terminara para sempre. Beltran também tinha consciência disso, e compreendi que servia para reforçar sua determinação de não seguir em paz o caminho percorrido por seu pai - dependente das realizações do pai e contando com a concordância dos outros apenas por respeito a Kermiac -, mas procurar o seu próprio lugar.

Éramos muito parecidos, e já conheci gêmeos que não tinham tanta semelhança. E, no entanto, éramos também diferentes. Eu não percebera antes que ele tinha também ambições pessoais. Perdera os últimos vestígios de ambição pessoal em Arilinn, ressentira-me das tentativas de meu pai de despertá-la em mim, na Guarda. Sentia-me agora profundamente perturbado. Beltran aceitaria o abandono de seus planos sem protestar? Seria preciso usar toda a minha persuasão, todo o meu tato, para convencê-lo a enveredar por um curso menos perigoso para o nosso mundo. De alguma forma, eu devia deixar bem claro para Beltran que ainda partilhava seus sonhos, que trabalharia por seus objetivos e o ajudaria ao máximo, embora tivesse renunciado de forma irrevogável aos meios que ele e Kadarin haviam escolhido.

Depois que os lordes das montanhas partiram, Beltran pediu cortesmente a Regis e a Danilo que ficassem por mais alguns dias. Eu não esperava que nenhum dos dois concordasse e já me dispunha a tentar persuadi-los; para minha surpresa, no entanto, Regis aceitou o convite. Talvez não fosse tão surpreendente assim. Ele parecia muito doente. Eu deveria ter conversado com ele, tentar descobrir o que o afligia. Mas sempre que procurava uma conversa a sós, Regis me repelia, desviando a conversa para assuntos irrelevantes. Não entendia o motivo. Quando criança, ele me amava; considerava-me um traidor ou seria um problema mais pessoal?

Era esse o estado em que eu me encontrava quando nos reunimos naquela manhã, na pequena sala com lareira em que trabalháramos juntos tantas vezes. Beltran exibia as marcas da tensão e sofrimento, parecia mais velho também, sob o peso da nova responsabilidade. Thyra estava pálida e controlada, mas eu sabia que aquele controle só fora adquirido com muito esforço. Kadarin também - se mostrava desolado. Rafe, embora abalado, sofrera menos; seu pesar era apenas o de uma criança que perdera seu gentil tutor. Era muito jovem para perceber as implicações mais profundas.

Marjorie mantinha uma atitude remota, cada vez mais acentuada nos últimos dias, o isolamento típico de cada Guardiã. Por trás, porém, senti uma inquietação enorme. Beltran era agora o seu tutor. Se ele e eu brigássemos, o futuro para nós não seria dos mais agradáveis.

Eram meus parentes. Juntos, construíramos um lindo sonho. Confrangia-me ser a pessoa que deveria destruí-lo.

Mas, quando Danilo e Regis foram introduzidos na sala, de modo cerimonioso, tornei a experimentar um vislumbre de esperança. Talvez, talvez, se eu os pudesse persuadir a nos ajudar, ainda houvesse um meio de salvar o sonho!

Beltran começou com extrema cortesia, apresentando desculpas formais a Danilo pela maneira como seus homens haviam exorbitado as ordens recebidas. Se as palavras tinham mais diplomacia do que um arrependimento sincero, creio que só o mais forte dos telepatas poderia notar a diferença. Ele concluiu com as seguintes palavras:

- Deixem que o Ilm por que me empenho tanto supere as considerações pessoais. Aproxima-se o dia para Darkover em que os homens das montanhas e dos Domínios deverão esquecer suas divergências antigas e trabalhar juntos pelo bem de nosso mundo.

Não podemos concordar pelo menos, Regis Hastur, que você e eu falemos juntos por um mundo só, um mundo que nossos pais e avôs deveriam ter mantido unido, em vez de separado?

Regis fez uma reverência formal. Observei que ele voltara a usar suas próprias roupas.

- Para o seu bem, Lorde Beltran, eu gostaria de ser mais versado nas artes da diplomacia, a fim de poder representar os Hasturs de uma forma mais adequada. Nas circunstâncias atuais, só posso falar por mim, como um cidadão individual. Espero que a longa paz entre o Comyn e Aldaran possa se prolongar por nossas vidas e muito além.

- E que não seja uma paz sob o domínio dos terráqueos - acrescentou Beltran.

Regis limitou-se a fazer outra reverência e não disse nada. Kadarin interveio, com um sorriso triste:

- Vejo que já é hábil, Lorde Regis, na maior das artes do Comyn, que é a de não dizer nada em palavras agradáveis. Já chega desses floreios. Beltran, conte a eles o que pretende fazer.

Beltran tornou a descrever seus planos para tornar Darkover independente, auto-suficiente, capaz de viajar pelas estrelas. Escutei com toda a atenção, caindo pela última vez sob o encantamento desse sonho. Desejei - e todos os deuses que já existiram sabem quanto desejei - que seus planos pudessem dar certo. E eram viáveis. Se Danilo pudesse ajudar-nos a encontrar telepatas em quantidade suficiente, se os poderes latentes do próprio Beltran pudessem ser despertados... Se, se, se! E, acima de tudo, se tivéssemos outra fonte de poder que não a incontrolável Sharra...

Beltran encerrou o discurso, e compreendi que nossos pensamentos, pelo menos naquele momento, seguiam o mesmo curso:

- Chegamos a um ponto em que estamos dependendo da sua ajuda, Danilo. Você é um telepata catalisador, o mais raro de todos os dons psíquicos, e, se ingressar em nosso serviço, as possibilidades de sucesso serão muito maiores. Não é preciso dizer que será recompensado muito além de seus sonhos. Vai ou não nos ajudar?

Danilo confrontou o sorriso insinuante com o rosto franzido em perplexidade.

- Se o que está fazendo é tão justo e certo, Lorde Aldaran, por que recorreu à violência? Por que não me procurou para explicar tudo e solicitar minha ajuda?

- Ora, não pode me perdoar por isso? - indagou Beltran, num tom jovial.

- Claro que o perdôo, senhor. E até me sinto um pouco grato. Se não fosse assim, eu poderia ser levado a fazer o que me pede, sem pensar direito a respeito. Agora, não tenho tanta certeza. Tive experiências demais com pessoas que falam lindas palavras, mas são capazes de fazer qualquer coisa que considerem justificada para alcançar o que desejam. Se sua causa é tão boa quanto diz, acho que qualquer telepata teria o maior prazer em ajudá-lo. Se isso me for garantido por alguém em quem eu possa confiar, e se meu lorde me conceder permissão... - Ele se virou e fez uma reverência formal para Regis. - ...então me porei à sua disposição. Mas preciso ter plena segurança de que seus motivos e seus métodos são tão bons quanto diz... - Ele fitou Beltran nos olhos, e soltei uma exclamação em voz alta por sua audácia. - ...e não apenas belas palavras para encobrir uma sede de poder e ambição pessoal.

Beltran ficou vermelho como um peru. Não estava acostumado a ser contestado, e receber uma lição de ética daquele rapaz insignificante e miserável era mais do que podia suportar. Pensei por um momento que ele ia agredir Danilo. É bem provável que se tenha lembrado de que Danilo era o único telepata catalisador crescido e com seu dom ativo, pois se controlou, embora desse para perceber os sinais da ira interior, e perguntou:

- Você confiaria no julgamento de Lew Alton?

- Não tenho motivos para não confiar, mas...

Danilo virou-se para Regis. Compreendi que ele chegara ao fim do seu desafio. Regis estava tão assustado quanto Danilo, mas igualmente determinado, e declarou:

- Não confiarei no julgamento de homem nenhum enquanto não ouvir o que ele tem a dizer.

Kadarin interveio bruscamente:

- Vocês dois, ainda jovens, que nada sabem sobre a mecânica de matriz, têm a pretensão de julgar um telepata treinado em Arilinn, sobre questões de sua competência?

Regis lançou-me um olhar suplicante. Depois de uma longa pausa, durante a qual quase pude senti-lo procurando palavras certas, ele disse:

- Julgar sua competência... não. Julgar se eu posso apoiar em sã consciência seus... seus meios e motivos... para isso, só devo confiar no meu próprio julgamento. Escutarei o que ele tem a dizer.

- Pois então diga a eles, Lew - pediu Beltran -, que devemos fazer isso se queremos que Darkover sobreviva como um mundo independente, não como uma colônia escrava do Império!

Todos os olhos fixaram-se em mim. Era o momento da verdade, e um momento de grande tentação. Abri a boca para falar. O futuro de Darkover era uma causa que justificava todas as coisas, e precisávamos de Dani.

Mas eu servia a Darkover ou a meus próprios fins particulares? Diante do rapaz cuja carreira fora arruinada por um abuso do poder, descobri que não podia mentir. Não podia dar a Danilo a garantia que seria necessária para recrutar sua ajuda e, depois, tentar freneticamente encontrar algum meio de converter a mentira em verdade.

- Beltran, seus objetivos são bons, e confio neles - declarei. - Mas não podemos realizá-los com a matriz que temos para trabalhar. Não com Sharra, Beltran. É impossível, absolutamente impossível.

Kadarin virou-se. Eu já testemunhara sua raiva uma vez, dirigida contra Beltran. Agora, concentrou-se em mim, e me atingiu como um golpe físico.

- Mas que loucura é essa, Lew? Você me disse que Sharra possui toda a força de que podemos precisar!

Tentei erguer uma barreira contra a investida e controlar com firmeza minha própria ira. A fúria desencadeada de um Alton pode matar, e aquele homem era meu amigo querido.

- A força, sim, toda a força que poderíamos precisar, para esse trabalho ou qualquer outro. Mas é acima de tudo incontrolável. Tem sido usada como uma arma e agora não tem condições de ser outra coisa que não uma arma. Sharra está... - Hesitei, tentando exprimir minhas vagas impressões. - ...está faminta por poder e destruição.

- As superstições do Comyn outra vez! - explodiu Thyra. -Uma matriz é uma máquina. Nada mais, nada menos.

- A maioria das matrizes, talvez, embora eu comece a pensar que até mesmo em Arilinn sabemos muito pouco sobre elas para usá-las de uma forma tão temerária. Mas essa é mais do que isso.

Hesitei de novo, procurando palavras para um conhecimento, uma experiência, que era basicamente além das palavras.

- Traz para o nosso mundo alguma coisa que não é deste mundo. Pertence a outras dimensões, outros lugares ou espaços. É um portão, e, depois de aberto, será impossível fechá-lo por completo. - Olhei de rosto em rosto. - Não percebem o que está fazendo conosco? Vem despertando a temeridade, o abandono da cautela, uma sede de poder...

Eu mesmo sentira a tentação de mentir para Regis e Danilo, refleti, antes de acrescentar:

- Thyra, você sabe o que fez sob o impulso de Sharra, e agora seu pai-de-adoção está morto. Nunca poderei acreditar que você fez isso por sua própria iniciativa, com plena consciência do seu ato. É muito mais forte do que nós e está nos usando como se fôssemos brinquedos!

- Desideria usou-a sem qualquer desses problemas – lembrou Kadarin.

- Mas usou-a como uma arma e por uma causa justa. Não tinha nenhum desejo de poder pessoal, por isso Sharra não foi capaz de dominá-la e corrompê-la, como tem feito conosco; ela a entregou ao povo da forja, para que ficasse inativa e inofensiva em seus altares.

Beltran indagou, em tom ríspido:

- Está querendo insinuar que corrompeu a mim? Fitei-o nos olhos.

- Isso mesmo. Nem mesmo a morte de seu pai levou-o a ver a luz da razão.

- Você fala como um tolo, Lew - proclamou Kadarin. - Eu não esperava esse tipo de lamúria de sua parte. Se dispomos do poder para proporcionar a Darkover seu lugar no Império, como podemos nos abster de qualquer coisa que devamos fazer?

- Escute, meu amigo, escute! - supliquei. - Não podemos usar a matriz de Sharra para o tipo de força controlada que você deseja demonstrar aos terráqueos. Não pode ser usada para impulsionar uma espaçonave; eu não confiaria nela agora nem mesmo para controlar o helicóptero. É uma arma, apenas uma arma, e não é de armas que precisamos. É de tecnologia.

O sorriso de Kadarin foi ameaçador.

- Mas se uma arma é tudo o que temos, então usaremos essa arma para obter o que queremos dos terráqueos! Depois de mostrar-lhes o que podemos fazer...

Um calafrio me percorreu a espinha. A visão surgiu de novo: chamas se elevando de Caer Donn, a grande forma de fogo se inclinando com um dedo de destruição...

- Não! - insisti, quase gritando. - Não vou mais me envolver nisso!

Levantei-me, corri os olhos pela assembléia e acrescentei, desesperado:

- Não podem perceber como Sharra já nos corrompeu? Foi para a guerra, assassinato, violência, chantagem e ruína que criamos o nosso vínculo, com tanto amor e harmonia? Era esse o seu sonho, Beltran, quando conversamos sobre um mundo melhor?

- Se temos de lutar - respondeu ele, veemente -, será por culpa dos terráqueos, que negam os nossos direitos! Prefiro fazer tudo em paz, mas, se eles nos forçam à luta...

Kadarin se adiantou, pôs as mãos em meus ombros, com uma afeição genuína, e disse:

- Lew, você está sendo tolo e melindroso. Depois que eles souberem o que podemos fazer, tenho certeza de que mais nada será necessário. Mas vai nos proporcionar uma posição de igualdade de poder com os terráqueos por uma vez. Será que não pode entender? Mesmo que nunca mais a usemos, devemos ter a força, apenas para controlar a situação e não sermos forçados à submissão!

Claro que eu compreendia o que ele tentava dizer, mas também podia perceber o erro fatal.

- Bob, não podemos blefar com Sharra. Ela quer ruína e destruição... não consegue sentir isso?

- É como a espada no velho conto de fadas - interveio Rafe. -Lembram o que estava escrito na bainha? "Nunca me saquem se eu não puder beber sangue."

Todos nos viramos para fitá-lo, e ele sorriu nervoso com a nossa atenção.

- Rafe tem razão - apressei-me em declarar. - Não podemos soltar Sharra, a menos que realmente pretendamos usá-la, e nenhum ser humano são faria isso.

- Marjorie, você é Guardiã - disse Kadarin. - Acredita nessas sandices supersticiosas?

Sua voz não era firme, mas ela estendeu as mãos para mim ao dizer:

- Creio que Lew sabe mais sobre matrizes do que qualquer um de nós ou do que todos nós juntos. Você prometeu, Bob, jurou para Desideria que se submeteria ao julgamento de Lew. Não ficarei contra isso.

- Vocês dois têm sangue terráqueo! - interveio Beltran. - Estão do lado deles, contra Darkover?

Fiquei aturdido com a calúnia. Nunca imaginara que Beltran fosse capaz disso. Marjorie explodiu:

- Foi você, você mesmo, quem ressaltou, não faz muito tempo, que todos nós somos terráqueos! Não há nenhum "lado", apenas o bem comum para todos! A mão esquerda decepa a direita?

Senti que Marjorie lutava para manter o controle, e que Kadarin também fazia um esforço para conter sua ira explosiva. Ainda confiava na integridade dele, quando se empenhava para controlar aquela raiva insidiosa, que era a única falha na armadura de sua vontade. A voz de Kadarin soou gentil quando ele falou:

- Lew, sei que há alguma verdade no que diz. Confio em você, bredu. - A palavra me comoveu mais do que eu podia exprimir. -Mas que alternativa temos, meu amigo? Está tentando dizer que devemos renunciar a nossos planos, nossas esperanças, nosso sonho? Era o seu sonho também. Devemos esquecer tudo aquilo em que acreditávamos?

- Que os Deuses nos livrem disso - murmurei, abalado. - Não é o sonho que quero pôr de lado, apenas a participação de Sharra nele.

Fiz uma pausa e formulei um apelo direto para Beltran, que era a pessoa a quem devia convencer:

- Deixe Sharra voltar para a guarda do povo da forja. Eles a mantiveram inofensiva durante todos esses anos. Não, parente, não fale nada, apenas escute. Faça isso, e irei para Arilinn; conversarei com os telepatas em Hali, Neskaya, Corandolis e Dalereuth. Explicarei a todos o que você está fazendo por Darkover, argumentarei por sua causa e a defenderei até mesmo, se for necessário, diante do próprio Conselho do Comyn. Acredita mesmo que é o único homem em Darkover que sofre sob o domínio e controle dos terráqueos? Tenho tanta certeza, quanto a de que me encontro parado aqui, de que eles virão em seu apoio, trabalharão com você com o maior entusiasmo, muito melhor do que eu sozinho sou capaz. E eles têm acesso a todas as matrizes conhecidas e monitoradas em Darkover, dispõem dos registros do que se fazia com elas no passado. Podemos descobrir uma matriz segura para os nossos propósitos. Depois, trabalharei com você pessoalmente, por tanto tempo quanto quiser, para alcançar seus verdadeiros objetivos. Não um blefe com uma arma terrível, mas um esforço total e conjunto de todos, unidos, para recuperar as forças reais de Darkover, algo positivo para oferecer aos terráqueos e ao Império, em troca do que podem nos dar.

Fitei Regis nos olhos, e de repente o tempo voltou a se desfocar. Vi-o num vasto salão, apinhado de homens e mulheres, centenas e centenas, todos os telepatas em Darkover! A imagem logo sumiu, e nós oito estávamos outra vez na pequena sala com lareira. Perguntei a Regis e a Danilo:

- Vocês não cooperariam num plano assim?

Regis, os olhos cintilando de excitamento, respondeu:

- Com todo o meu coração, Lorde Beltran. Tenho certeza de que até mesmo o Conselho do Comyn colocaria todos os telepatas e Torres de Darkover a seu serviço!

Era um sonho muito mais amplo do que aquele que acalentáramos! E tinha de ser! Eu o vira! Beltran também devia deixar-se contagiar!

Ele permaneceu em silêncio por um momento, olhou para todos nós, e senti um frio no coração antes mesmo que começasse a falar. Havia um desdém gelado em sua voz e palavras.

- Seu traidor amaldiçoado! - gritou ele para mim. - Quer me deixar sob o tacão do Comyn? Que eu caia de joelhos diante do Hali'imyn, aceitando como uma dádiva o poder que me pertence por direito? É pior até do que fez meu pai velho e senil, rastejando diante dos terráqueos! Mas sou agora o lorde de Aldaran, e antes mergulharei todo Darkover nos caos vermelho! Nunca! Nunca! Mas nunca mesmo!

A voz se alteou para um grito estridente de raiva.

- Beltran, eu lhe suplico...

- Você suplica, seu mestiço sórdido? Como quer me obrigar a fazer, suplicar, rastejar...

Cerrei os punhos, tremendo com a necessidade de agredi-lo, de arrancar aquele desdém de seu rosto... não. Também não era essa a sua verdadeira personalidade, mas uma influência de Sharra.

- Sinto muito, parente. Você não me deixa alternativa. - Independentemente do que acontecesse depois, a intimidade daquele círculo fora destruída; nada jamais poderia voltar a ser como antes. - Kadarin, você entregou Sharra aos meus cuidados, assumiu o compromisso de respeitar meu julgamento. Antes que seja tarde demais o círculo deve ser rompido, o vínculo dissolvido, a matriz isolada, antes que controle a todos nós.

- Não! - gritou Thyra. - Se você não tem coragem de usá-la, eu o farei!

- Breda...

- Não, Thyra, não - murmurou Marjorie, a voz trêmula. - É o único jeito. Lew tem razão, pode destruir a todos nós. Bob... - Ela fitou Kadarin, as lágrimas transbordando dos olhos dourados. -Você me fez Guardiã. Por essa autoridade, tenho de falar. - Um soluço embargou sua voz. - O vínculo deve ser rompido.

- Não! - protestou Kadarin, ríspido, repelindo as mãos estendidas. - Eu não queria que você fosse a Guardiã; temia justamente isso... que se deixasse influenciar por Lew! O círculo de Sharra deve ser preservado! E sabe que não pode rompê-lo sem o meu consentimento!

Ele a fitava com fúria, e pensei num falcão que observara uma ocasião, pairando sobre sua presa. Beltran postou-se diante de Danilo, fitando-o com arrogância.

- Pergunto pela última vez: vai fazer o que eu peço?

Danilo tremia. Lembrei que ele fora o mais jovem e o mais tímido dos cadetes.

- Não, Lorde Aldaran, não o farei - balbuciou ele.

Beltran virou-se para Regis, e disse, a voz controlada e sombria:

- Regis Hastur, não se encontra agora nos Domínios, mas no baluarte de Aldaran. Veio aqui por sua livre e espontânea vontade, e não partirá enquanto não ordenar a seu acólito que use seus poderes como eu determinar.

- Meu escudeiro é livre para seguir sua vontade e consciência. Ele já recusou; apoio sua decisão. E agora, Lorde Aldaran, solícito respeitosamente sua permissão para ir embora.

Beltran gritou na língua das montanhas. As portas foram abertas, e uma dúzia de guardas entrou. Compreendi, em súbita consternação, que ele devia ter planejado tudo aquilo. Um dos guardas aproximou-se de Regis, que estava desarmado; Danilo sacou sua adaga e interpôs-se entre os dois, mas foi logo desarmado. Os homens de Beltran retiraram os dois da sala.

Marjorie fitou Beltran, numa censura furiosa.

- Não pode fazer isso, Beltran! É traição! Ele era hóspede de nosso pai!

- Mas não é meu hóspede - respondeu Beltran, desdenhoso. -Não tenho paciência com códigos bárbaros, sob a pretensão de honra. Agora, Lew Alton, quero que me diga: vai honrar o compromisso que assumiu conosco?

- Você fala em honra? - As palavras pareciam sair de uma fonte oculta dentro de mim, e cuspi no chão, a seus pés. - Honro meu compromisso com você da mesma maneira como honra a memória de seu pai!

Virei as costas. Em menos de uma hora, estaria em contato com Arilinn, através da matriz, e o Comyn saberia o que Beltran planejava... Esquecera o vínculo forte que ainda persistia entre nós. Kadarin apressou-se em dizer:

- Nada disso! - Ele gesticulou para os guardas. - Levem-no!

Estendi a mão para o cabo da espada... e nada encontrei, é claro. Não use espada na casa de parente. Confiara que estaria seguro na casa de meu primo. Dois guardas agarraram-me e imobilizaram-me. Kadarin se adiantou, estendeu a mão para a minha garganta e abriu os laços da túnica. Ergueu a mão para a bolsa de couro que continha minha matriz pessoal.

Comecei a me debater, num medo extremo. Nunca estivera a mais do que uns poucos centímetros de meu corpo desde que fora sintonizada, quando eu tinha doze anos. Fora alertado para o que significava ser tocada por outra pessoa. Kadarin pegou na bolsa de couro; levantei o joelho para sua virilha. Ele gritou de dor, e senti o choque da agonia em meu próprio corpo; mas o golpe só reforçou a fúria de Kadarin. Ele chamou o resto dos guardas. Foram necessários quatro para me conter, mas logo fui estendido no chão, braços e pernas estendidos e imobilizados. Kadarin ajoelhou-se por cima do meu corpo impotente, os punhos me acertando golpes no rosto. Senti o sangue escorrer do nariz, dos olhos; engasguei com meu próprio sangue, escorrendo pela garganta, de um dente arrancado. Não podia mais ver Marjorie, por causa do sangue em meus olhos, mas ouvi seus gritos, soluços, súplicas. Estariam agredindo-a também?

Kadarin sacou sua adaga. Fitou-me nos olhos, seu rosto cintilando com uma chama maligna.

- Eu deveria cortar sua garganta agora e poupar todos nós de problemas futuros.

Com um movimento rápido, ele cortou a tira que prendia a bolsa de couro, que segurou em seguida, e puxou.

Até o dia de minha morte, jamais esquecerei aquela agonia. Ouvi Marjorie gritar, um brado de dor e terror, senti todo o meu corpo se arquear num espasmo convulsivo, depois arriar inerte. Ouvi minha própria voz, berrando, rouca, senti dedos de aço me comprimirem o coração, senti que me faltava a respiração. Cada nervo do meu corpo sofria um espasmo. Jamais soubera que poderia sobreviver a tanta agonia. Um nevoeiro vermelho toldou o que restava de minha vista, senti que morria e ouvi o grito instintivo e estridente de minha voz:

- Pai! Pai!

E depois mergulhei numa escuridão total, pensando: Isto é a morte.

 

Não sei o que aconteceu nos três dias subseqüentes. Por tudo o que sei, eu estava morto. Sei que foram três dias porque me disseram mais tarde; podiam ter sido trinta segundos ou trinta anos depois que despertei para a percepção meio indistinta de que ainda vivia, mas preferia não estar vivo.

Descobri-me estendido na cama, em meus aposentos no Castelo Aldaran. Sentia-me machucado, doente, cada osso e músculo do corpo tinha uma dor separada. Cambaleei para o banheiro e contemplei meu reflexo no espelho. Pela aparência do rosto, só podia imaginar que meu corpo continuara a lutar por muito tempo depois que eu o deixara.

Havia dois dentes quebrados em minha boca, e doíam demais. Meus olhos se achavam tão doloridos e inchados que mal conseguia abri-los. O rosto fora cortado por alguma coisa dura, talvez os enormes anéis que Kadarin usava. Ficariam cicatrizes.

Pior do que a dor física, que já era intensa, havia uma terrível sensação de vazio. Sombrio, especulei por que não morrera. Alguns telepatas morrem do choque, se são separados à força de suas matrizes pessoais sintonizadas. Eu era apenas um dos desafortunados.

Marjorie. Minha última lembrança era o seu grito. Será que a haviam torturado também?

Se Kadarin a tivesse machucado, eu o mataria...

O pensamento provocou uma angústia insuportável. Ele fora meu amigo - não podia ter sido fingimento, não para um telepata. Sharra o corrompera...

E desejei que ele tivesse cortado minha garganta.

Sharra. Procurei a matriz, mas desaparecera. Senti-me contente por ter-me livrado da pedra amaldiçoada, mas também tive medo. Sharra deixaria que a descartássemos?

Bebi um pouco de água, tentando diminuir a náusea ressequida. Minha mão não parava de tatear pelo lugar no pescoço em que deveria estar a matriz. Não podia pensar direito, a visão era turva, e havia um zumbido constante em meus ouvidos. Era uma surpresa e tanto ter sobrevivido ao choque.

Pouco a pouco, percebi outra coisa. Por mais dolorido que estivesse, não havia sangue no rosto, nem nas roupas. E as roupas não estavam sujas. O que significava que alguém estivera ali, cuidara dos meus ferimentos, vestira-me roupas limpas. Kadarin, quando viera buscar a matriz de Sharra?

Descobri que me repugnava o pensamento de Kadarin aparecendo ali, manipulando meu corpo inconsciente. Cerrei os dentes, constatei que doía demais, fiz um esforço para relaxar. Outra conta a acertar com ele.

Bom, ele já fizera o seu pior, e eu continuava vivo. Verifiquei a porta, cauteloso. Como já desconfiava, fora trancada por fora.

O corpo doía tanto que a perspectiva de um banho quente era tentadora. A possibilidade de ser surpreendido nu e indefeso na banheiro, porém, removia toda a tentação da idéia. Encharquei uma toalha na água quente e lavei o rosto machucado.

Vasculhei os aposentos, mas não encontrei a espada, nem a adaga. Procurei nos alforjes as botas de viagem e constatei que até mesmo a pequena skeandhu que guardava ali sumira da bainha.

Meu rosto se contraiu num sorriso sombrio. Pensavam que haviam me deixado impotente? Ainda contava com o treinamento na Guarda, e Kadarin podia - apenas podia - desprezar-me o suficiente para entrar ali sozinho.

Puxei uma cadeira - ainda não me sentia bastante firme para ficar de pé numa espera que podia prolongar-se por horas - e sentei diante da porta trancada.

Mais cedo ou mais tarde, alguém apareceria... e me encontraria pronto.

Muito tempo passou antes que eu ouvisse um pequeno ranger metálico na porta. Alguém tentava puxar a tranca furtivamente. A porta começou a se abrir para dentro, devagar.

Dei um pulo, agarrei a mão que acabara de se insinuar para dentro, puxei com força... e senti o pulso delicado tarde demais para conter a violência. Marjorie cambaleou para dentro, soltando um grito de surpresa, esbarrando no batente. Larguei seu pulso no mesmo instante, como se estivesse queimando. Ela tropeçou, e tratei de ampará-la.

- Feche a porta, depressa! - sussurrou ela.

- Que os Deuses nos guardem! - balbuciei, horrorizado. – Eu poderia tê-la matado!

- Fico contente que você seja capaz... - Ela prendeu a respiração. - Lew, seu rosto! Oh, Deus...

- Os cuidados afetuosos de meus parentes.

Fechei a porta e empurrei a pesada cadeira para escorá-la.

- Eu supliquei a eles... supliquei... Abracei-a.

- Sei disso, minha querida. Ouvi tudo. Eles a machucaram?

- Não. Nem mesmo Beltran me machucou, embora eu o tivesse arranhado e mordido. - A voz saía em ofegos. - Trouxe sua matriz.

Tome aqui.

Ela me estendeu a pequena bolsa de couro. Guardei-a dentro da túnica, encostada na pele. A impressão foi a de que a visão se desanuviou numa fração de segundo, o zumbido dentro da cabeça cessou. Até o coração passou a bater com mais firmeza. Continuava com todas as dores da terrível surra que levara, mas me sentia vivo outra vez.

- Como a conseguiu?

- Bob me mandou ficar com ela. Disse que eu era Guardiã, a única pessoa que podia ficar com a matriz sem machucá-lo. Afirmou que de outra forma você morreria. Por isso peguei a matriz, Lew, só para salvá-lo. Juro...

- Sei disso. Se outra pessoa que não uma Guardiã guardasse a pedra por muito tempo, minha morte seria inevitável.

Claro que eu não dava a Kadarin o crédito de se preocupar com meu bem-estar. Era mais provável que soubesse o que a manipulação da matriz sintonizada de outra pessoa poderia fazer a ele.

- Onde está a matriz de Sharra?

   - Acho que ficou com Thyra - respondeu Marjorie, em dúvida. - Mas não tenho certeza.

- Como conseguiu entrar aqui, Marjorie? Há guardas me vigiando?

Ela acenou com a cabeça.

- Os guardas me conhecem. Quase todos eram amigos de meu pai e me conhecem desde criança. Confiam em mim... e eu lhes trouxe um vinho drogado. Envergonho-me disso, Lew, mas o que mais eu podia fazer? Mas nós devemos escapar logo, o mais depressa possível. Saberão quando acordarem, e contarão a Beltran...

A voz de Marjorie tremia de medo.

- Ele deve agradecer a você por salvar o que resta de sua honra. - Só depois de um momento é que registrei que ela dissera "nós", e indaguei: - Você irá comigo?

- Tenho de ir. Não ouso ficar, depois do que fiz. Lew, você não me quer? Acha que tive alguma participação... oh, não!

Apertei-a com força.

- Pode duvidar do meu amor? Mas nesta estação, nas montanhas...

- Nasci nas montanhas e já viajei com tempo pior.

- Pois então vamos partir logo, antes que os guardas acordem. O que você lhes deu?

Ela me informou, e balancei a cabeça.

- Não é suficiente. Eles acordarão em uma hora. Mas talvez eu possa fazer melhor agora. - Toquei na matriz. - Vamos embora.

Recolhi às pressas minhas coisas. Percebi que Marjorie vestira-se para o frio, com botas grossas, uma saia de montaria comprida. Olhei pela janela. A noite caía, mas pela misericórdia de algum deus não nevava.

Na semi-escuridão do corredor, dois vultos estavam esparramados no chão, roncando. Abaixei-me para escutar suas respirações. Marjorie balbuciou:

- Não os mate, Lew. Eles não lhe fizeram nenhum mal.

Eu não tinha tanta certeza. Minhas costelas ainda doíam do peso das botas de alguém.

- Posso fazer melhor do que matá-los.

Aninhei a matriz entre as palmas. Num instante, determinado, penetrei nas mentes dos homens drogados. Durmam, ordenei, durmam por muito tempo, um sono profundo, durmam até que o sol nascente os desperte. Marjorie nunca esteve aqui, vocês não tomaram vinho, drogado ou puro.

Os pobres coitados teriam de responder a Beltran por dormir no posto. Mas eu fizera o que podia.

Avancei pelo corredor na ponta dos pés, Marjorie grudada na parede atrás de mim. Diante da grande suíte de hóspedes, havia mais dois guardas drogados; Marjorie fora meticulosa. Inclinei-me para eles e irradiei a mesma mensagem para suas mentes.

Minhas mãos são fortes. Trabalhei mais depressa com as trancas do que Marjorie conseguira. Por um instante, especulei sobre o tipo de hospitalidade que põe uma tranca no lado de fora da porta de um quarto de hóspedes, para qualquer contingência. No momento em que entrei, Danilo se interpôs entre Regis e mim, mas logo me reconheceu e recuou. Regis disse:

- Pensei que o tivessem matado... - Seus olhos fixaram-se em meu rosto. - Parece que tentaram. Como conseguiu escapar?

- Isso não importa agora. Ponham depressa suas roupas de viagem, a menos que gostem tanto de Aldaran que prefiram continuar a desfrutar de sua hospitalidade!

- Tiraram a minha espada e a adaga de Danilo - informou Regis.

Por algum motivo, ele parecia lamentar mais pela perda da adaga. Não havia tempo para especular sobre o motivo. Fui pegar as espadas dos guardas desfalecidos, entreguei uma a Regis, enfiei a outra na minha bainha. Era comprida demais para mim, mas melhor do que nada. Entreguei as adagas a Marjorie e Danilo.

- Já compensei o furto de meu parente - murmurei. - Agora, vamos sair daqui.

- Para onde iremos? Tomei uma decisão rápida.

- Levarei Marjorie para Arilinn. Vocês dois tratem de se afastar bem depressa, para o mais longe possível, antes que seja. dado o alarme.

Regis acenou com a cabeça.

- Seguiremos direto pela estrada para Thendara, e avisaremos ao Comyn.

- Não deveríamos permanecer juntos? - indagou Danilo.

- Não, Dani. Um de nós pode conseguir escapar, se os outros forem   recapturados,   e   o   Comyn   deve   ser   avisado,   independentemente do que venha a acontecer. Há uma matriz sem monitoração e fora de controle sendo usada aqui. Digam a eles, se eu não puder! - Hesitei por um instante. - Regis, não siga direto pela estrada. É suicídio. Será o primeiro lugar em que eles procurarão.

- Nesse caso, talvez eu possa desviar a busca de vocês - sugeriu ele. - De qualquer forma, é você e Marjorie que eles querem. Danilo e eu nada significamos.

Eu não tinha a mesma certeza. Foi só então que percebi o que não deveria ter escapado à minha atenção.

- Não podemos nos separar agora. Não posso enviá-lo pelo caminho do perigo. Você está doente. - Doença do limiar, finalmente compreendi. - Não posso expor o herdeiro de Hastur a tamanho risco.

- Lew, temos de nos separar. - Ele me fitou nos olhos. - Alguém deve passar para avisar ao Comyn.

Era verdade o que ele dizia, e eu sabia.

- Pode agüentar a viagem?

- Cuidarei dele - assegurou Danilo. - De qualquer forma, ele estará mais seguro na estrada do que nas mãos de Beltran, ainda mais depois de você escapar.

O que também era verdade, e eu sabia disso. Danilo separava depressa o conteúdo dos alforjes de Regis, descartando quase tudo.

- Devemos viajar com pouco peso. Ainda resta comida da viagem de Regis para o norte...

Ele dividiu os alimentos, carne e frutas secas, pão duro, em dois pequenos pacotes. Entregou-me o maior e acrescentou:

- Você seguirá pelas estradas secundárias, passando ao largo das aldeias.

Guardei o pacote no bolso interno do manto de montaria e olhei para Marjorie.

- Podemos sair sem sermos vistos?

- É bastante fácil, pois a notícia ainda não chegou aos estábulos. Poderemos também pegar cavalos.

Marjorie conduziu-nos por uma porta lateral, perto dos estábulos. Quase todos os cavalariços dormiam; ela acordou um velho que a conhecia como pupila de Kermiac. Podia ser uma excentricidade da parte de Marjorie partir à noite com alguns dos hóspedes de honra de Beltran, mas não cabia ao velho cavalariço questionar. A maioria já me vira em companhia de Marjorie e ouvira os comentários no castelo sobre os acertos para o casamento. Se ele tomara conhecimento da briga, concluiria que Marjorie e eu fugíamos agora para casar contra a vontade de Beltran. Tenho certeza de que era essa a explicação para a expressão de simpatia que o velho cavalariço nos concedeu. Ele providenciou montadas para todos. Pensei um pouco tarde na escolta do Comyn que me trouxera até aqui.

Podia ordenar que viajassem com Regis e Danilo, para protegê-los Mas isso provocaria uma comoção. Marjorie sussurrou:

- Se eles não souberem para onde você foi, não poderão ser obrigados a contar.

Foi o argumento que me decidiu. Se viajássemos depressa até de manhã, e os guardas de Beltran dormissem por tanto tempo quanto eu determinara, poderíamos nos distanciar além de qualquer possibilidade de perseguição. Levamos os cavalos até os portões, que foram abertos pelo velho cavalariço. Levantei Marjorie para a sela e preparei-me para montar também. Ela olhou para trás com alguma tristeza, mas depois, percebendo que eu a observava, sorriu corajosa e virou o rosto para a estrada.

Virei-me para Regis, apertando-o por um momento num abraço de parente. Algum dia tornaria a vê-lo? Pensava ter voltado as costas ao Comyn, mas o vínculo era mais forte do que imaginara. Pensava em Regis como uma criança, alguém que podia ser facilmente lisonjeado e influenciado. Não. Ele era muito menos assim do que eu. Disse a mim mesmo, com firmeza, para não ser mórbido, beijei-o no rosto e deixei-o partir.

- Que os Deuses o acompanhem, bredu.

Sua mão me segurou o braço por mais um instante, e nessa fração de segundo vi pela última vez o menino assustado que levara para as linhas de fogo; ele também se lembrou, mas a própria memória do medo dominado nos fortalecia. Ainda assim, não podia esquecer que ele fora entregue aos meus cuidados, e murmurei, hesitante:

- Não tenho certeza... Não me agrada a idéia de deixá-lo partir pelo caminho de maior perigo, Regis.

Ele estendeu as mãos para meus antebraços, fitou-me nos olhos e disse com veemência:

- Lew, você também é herdeiro de seu Domínio! E eu já tenho um herdeiro, você não! Se chegar a esse ponto, é melhor que seja eu a morrer do que você!

Fiquei chocado, sem saber o que dizer. Mas as palavras eram verdadeiras. Meu pai estava velho e doente; e Marius, pelo que sabíamos até agora, não tinha laran.

Eu era o último Alton na linhagem masculina. E precisara de Regis para me lembrar disso!

Ali estava um homem de verdade, um Hastur. Inclinei a cabeça em aquiescência, sabendo que nos encontrávamos naquele momento diante de algo mais antigo e mais poderoso do que qualquer dos dois. Regis respirou fundo, retirou as mãos e arrematou:

- Vamos nos encontrar em Thendara, se os Deuses permitirem, primo.

Eu sabia que minha voz tremia quando falei:

- Cuide dele, Dani.

- Com minha própria vida, Dom Lewis - respondeu Danilo.

Os dois montaram. Sem olhar para trás, Regis afastou-se pelo caminho, com Danilo um passo atrás.

Montei também, seguindo pela direção oposta na bifurcação da estrada, Marjorie ao meu lado. Agradeci a todos os deuses de que já ouvira falar, e ao resto que ainda não conhecia, pelo tempo que passara estudando mapas na viagem para o norte. Era uma longa viagem até Arilinn, ao longo de algumas das regiões mais inóspitas de Darkover, e me perguntei se Marjorie seria capaz de suportá-la.

Duas das luas pairavam no céu, violeta-azul, verde-azul, derramando uma suave claridade sobre as colinas cobertas de neve. Viajamos por horas sob aquela luz noturna. Eu tinha plena percepção de Marjorie ao meu lado: sua angústia e tristeza por deixar o lar de sua infância, o desespero que a levara àquela situação. Ela nunca deveria arrepender-se de sua decisão! Assumi o compromisso, por minha vida, de compensá-la por tudo o que perdera.

A verde face de Idriel desapareceu abaixo da crista do desfiladeiro; acima de nós, surgiu um nevoeiro frio, tingido de sangue pela iminência do nascer do sol. Devíamos começar a procurar algum abrigo; tinha certeza de que a caçada seria iniciada logo depois do amanhecer. Mantinha suficiente contato com Marjorie para saber quando seu cansaço se tornou quase insuportável. Mas no momento em que falei a respeito, ela propôs:

- Vamos percorrer pelo menos mais um quilômetro. Na encosta da colina seguinte, longe da estrada, há uma pastagem de verão. As mulheres que cuidam dos animais devem tê-los levado para o vale, e não deve haver ninguém ali.

A cabana se encontrava oculta num bosque de nogueiras. Senti um aperto no coração ao nos aproximarmos, pois podia ouvir o barulho de animais. Ao desmontarmos, avistei uma das mulheres, descalça na neve derretendo, os cabelos compridos emaranhados em torno do rosto, vestindo uma saia de couro. Marjorie, porém, parecia satisfeita.

- Estamos com sorte, Lew. A mãe dela era ligada à minha mãe. - Marjorie chamou baixinho: - Mhari!

A mulher virou-se e seu rosto se iluminou.

- Domna Marguerida!

Ela falou num dialeto antigo demais para que eu pudesse entender; Marjorie respondeu em voz baixa, no mesmo dialeto. Mhari sorriu e levou-nos para a cabana.

Quase todo o interior era ocupado por duas enxergas de palha sujas, sobre as quais dormiam uma mulher mais velha, meia dúzia de crianças pequenas e ainda alguns cachorrinhos. O único móvel era um banco de madeira. Mhari gesticulou para que sentássemos ali e serviu-nos tigelas de um mingau de nozes quente. Marjorie quase arriou no banco; Mhari adiantou-se para tirar suas botas.

- O que ele lhe disse, Marjorie? E o que você disse a ela?

- A verdade. Que, depois de Kermiac me prometer a você em seu leito de morte, você e Beltran brigaram, e por isso estamos fugindo para as terras baixas, onde casaremos. Mhari prometeu que nem ela, nem sua amiga, nem qualquer das crianças dirão uma só palavra sobre a nossa presença aqui.

Marjorie tomou outra colher do mingau. Estava quase cansada demais para levantar a colher até a boca. Senti-me contente por poder tirar a espada e as botas, e mais tarde, quando o aglomerado de bebês e cachorrinhos desocupou as enxergas, deitar-me ali, vestido, ao lado de Marjorie.

- Elas já deveriam ter partido há vários dias - explicou Marjorie -, mas o marido de Caillean não voltou para buscá-las. Ela disse que passarão o dia inteiro fora, com os animais, e poderemos dormir em segurança.

Dali a pouco, o bando de crianças, depois de alimentadas com o resto do mingau, deixou a cabana. Puxei Marjorie para meus braços e descobri que, apesar do barulho das crianças e dos cachorros, ela já pegara num sono profundo. A palha rescendia a cachorros e sujeira, mas eu me sentia muito cansado para ser crítico. Com Marjorie aninhada na curva do meu braço, também adormeci.

A próxima coisa de que tomei conhecimento foi que a tarde chegava ao fim, a cabana se encontrava outra vez cheia de crianças e cachorros. Levantamos e comemos tigelas enormes de uma sopa de legumes, que passara o dia inteiro no fogo. Depois, chegou o momento de calçarmos as botas e partirmos. As mulheres, do alto das encostas, não haviam observado cavaleiros nas proximidades, o que significava que ainda não éramos perseguidos. Marjorie beijou Mhari e a menor das crianças, e avisou-me para não lhes oferecer dinheiro. Mhari e a amiga insistiram para que levássemos um saco de nozes e um pão, alegando que já tinham coisas demais para levar nos animais de carga, ao descer para o vale, onde passariam o inverno. Claro que não acreditei, mas não podíamos recusar.

As duas ou três noites seguintes da viagem foram quase réplicas da primeira. Fomos abençoados com um bom tempo e não houve qualquer sinal de perseguição. Dormíamos durante o dia, escondidos em cabanas de pastores, só que essas abandonadas. Tínhamos comida suficiente, embora quase sempre sentíssemos frio. Marjorie nunca se queixava, mas eu me preocupava demais com ela. Não podia imaginar qualquer mulher que já conhecera suportando uma viagem assim. Mas ela riu quando fiz esse comentário.

- Não sou uma dama mimada das terras baixas, Lew. Estou acostumada ao tempo ruim e posso viajar sempre que for preciso, até mesmo em pleno inverno. Thyra talvez fosse uma companheira melhor, pois sempre fez longas viagens com Bob, em todas as estações...

Marjorie parou de falar e virou o rosto. Mantive-me em silêncio. Sabia quanto ela era ligada à irmã e como se sentia pela separação. Foi a primeira vez que ela falou sobre sua vida no Castelo Aldaran. E também foi a última.

Na quarta ou quinta manhã tivemos de viajar mesmo depois que amanheceu, sem encontrar qualquer abrigo. Estávamos agora na parte mais inóspita das montanhas, e as estradas se reduziam a meras trilhas. Marjorie se encontrava exausta. Eu já pensava em procurar um lugar mais resguardado no meio do bosque, para dormir ali, ao ar livre, quando de repente, ao entrar numa pequena clareira, deparamos com uma sede de fazenda deserta.

Estranhei que alguém pudesse manter uma fazenda naquelas colinas desoladas, mas havia construções rurais e uma pequena casa de pedra, um pátio que outrora fora cercado, um poço com tubulações de madeira ainda derramando água numa gamela de pedra quebrada... tudo abandonado. Receei que a casa tivesse se tornado o abrigo de aves ou morcegos, mas, quando forcei a porta, descobri que era bem resguardada contra o tempo e se achava quase limpa.

O sol estava alto e quente. Enquanto eu tirava as selas dos cavalos, Marjorie removeu o manto e as botas, foi enfiar as mãos na gamela de pedra e disse:

- Já passei da primeira sonolência, e não tiro as roupas desde que partimos. Vou me lavar; creio que me revigorará mais do que dormir.

Ela seguiu as palavras com a ação, tirando a saia de montaria e a túnica forrada de pele, ficando na minha frente apenas de blusa comprida e anágua. Fui para junto dela. A água era gelada, descendo direto de uma fonte mais acima, mas maravilhosamente revigorante. Espantei-me como Marjorie podia ficar descalça nos últimos filetes da neve da noite anterior se derretendo. Ela parecia não sentir tanto frio quanto eu. Sentamos depois ao sol, cada vez mais quente, comendo o último pedaço de pão que Mhari e sua amiga nos deram. Encontrei uma árvore no quintal em que os antigos fazendeiros cultivavam cogumelos, por meio de um complexo sistema de tubos de madeira dirigindo a água para o tronco. Quase todos os cogumelos eram duros e velhos, mas havia uns poucos ainda novos e tenros, e os comemos ao final da refeição, saboreando sua doçura. Marjorie espreguiçou-se um pouco, sonolenta agora.

- Eu gostaria de dormir aqui, Lew, ao sol. Começo a me sentir como uma ave noturna, nunca saindo à luz do dia.

- Mas eu ainda não estou acostumado ao tempo nas montanhas, e muito em breve talvez sejamos obrigados a dormir a céu aberto.

Ela fez uma careta entre irônica e séria.

- Pobre Lew... está com frio? Muito bem, acho que é melhor entrarmos para dormir.

Marjorie recolheu suas roupas e carregou-as para a casa. Estendeu-as sobre uma enxerga abandonada, torcendo o nariz ao cheiro de mofo.

- É melhor que o cheiro de cachorro - comentei.

Ela riu e sentou sobre as roupas. Usava uma blusa de lã que descia até os joelhos, com as mangas compridas; eu já a vira vestida com roupas mais leves em Aldaran, mas havia alguma coisa em nossa presença ali, daquele jeito, que despertou uma percepção que o medo e o cansaço quase tinham sufocado. Durante toda a viagem ela dormira em meus braços, mas sempre em inocência. Talvez porque eu ainda estivesse recuperando-me dos efeitos da surra brutal que levara de Kadarin. Agora, abruptamente, voltei a sentir o excita-mento por sua proximidade física. Ela sentiu - mantínhamos agora um contato ligeiro em todos os momentos - e desviou um pouco o rosto, o rubor subindo pelas faces. Havia uma insinuação de desafio quando disse:

- Mesmo assim, vou soltar os cabelos, escová-los e entrançá-los direito, antes que fiquem emaranhados como os de Mhari, o que me obrigaria a cortá-los.

Ela ergueu os braços, tirou a travessa em forma de borboleta que prendia as trancas na nuca e começou a soltá-las.

Senti o calor do embaraço. Nas terras baixas, uma irmã que já fosse uma mulher não faria isso na presença de um irmão adulto. Eu não vira os cabelos soltos de Linnell desde que éramos crianças, embora naquele tempo a ajudasse a escová-los. Os costumes diferiam tanto assim? Observei-a passar a escova de cabo de marfim pelos longos cabelos acobreados; eram lisos, apenas um pouco ondulados das trancas, e muito finos. O sol que entrava pelas frestas do telhado de madeira parecia inflamá-los ao brilho do precioso metal. Acabei murmurando, em voz rouca:

- Não me provoque, Marjorie. Não tenho certeza se conseguirei resistir.

Ela não levantou os olhos ao sussurrar:

- E por que deveria? Estou aqui.

Estendi a mão, tirei a escova e virei-a para me fitar nos olhos.

- Não posso tomá-la assim, meu amor. Teria de lhe oferecer toda a honra e cerimônia.

- Não pode - disse ela, com a insinuação de um sorriso -, porque eu não mais... - As palavras saíam devagar agora, como se ela tivesse dificuldade para pronunciá-las. - ...não mais reconheço o direito de Beltran de me dar em casamento. Meu pai-de-adoção pretendia me dar a você. Isso é cerimônia suficiente.

Ela fez uma pausa, e depois acrescentou, falando mais depressa agora:

- E não sou uma Guardiã agora! Renunciei a isso, não quero continuar separada de você, e não ficarei!

Marjorie soluçava agora. Larguei a escova e puxei-a para os meus braços, apertando-a com súbita violência.

- Guardiã? Não, não, nunca mais - sussurrei contra sua boca.

- Nunca mais...

O que posso dizer? Estávamos juntos. E apaixonados.

Depois, trancei os cabelos para ela. Parecia quase tão íntimo quanto deitarmos juntos, minhas mãos tremiam ao tocar as mechas sedosas, como acontecera na primeira vez. Não dormimos por um longo tempo.

Era tarde quando acordamos, e nevava bastante. Quando fui selar os cavalos, o vento fustigava a neve pelo pátio. Não podíamos viajar com aquele tempo. Voltei à casa, e Marjorie fitou-me com uma consternação culpada.

- Eu nos atrasei. Desculpe...

- Acho que estamos além de qualquer possibilidade de perseguição agora, preciosa. Não podemos viajar com este tempo. Guardarei os cavalos no estábulos, providenciarei um pouco de forragem.

- Deixe-me ajudar...

- Não saia com esta nevasca, querida. Pode deixar que cuidarei sozinho dos cavalos.

Quando entrei, descobri que Marjorie acendera um fogo na lareira há muito apagada, encontrara uma velha panela de pedra num canto, lavara-a, enchera-a no poço e pusera um pouco de nossa carne seca para esquentar com cogumelos. Censurei-a por ter saído para o pátio - em tempestades como aquela, havia histórias de homens que haviam se perdido e congelado até a morte entre seu próprio estábulo e a porta de casa -, e ela disse timidamente:

- Eu queria que tivéssemos um fogo aceso... e nosso primeiro banquete nupcial.

Abracei-a e murmurei:

- No instante em que a conhecer, meu pai terá o maior prazer em providenciar tudo isso.

- Eu sei, mas preferia que fosse aqui.

O pensamento me esquentou mais do que o fogo.

Comemos o guisado quente ao lado do fogo. Tivemos de partilhar a mesma colher e comer direto da panela. Havia pouca lenha, e o fogo definhou depressa, mas assim que ficou escuro Marjorie sussurrou:

- Nosso primeiro fogo conjugai...

Entendi o que ela queria dizer. Não era a cerimônia formal, di catenas, o requintado banquete nupcial para minha família, sua proclamação diante do Conselho do Comyn, que a tornaria minha esposa. Em toda parte, nas montanhas, onde as cerimônias são poucas e as testemunhas escassas, a partilha deliberada de "uma cama, uma refeição, um fogo" anuncia a situação legal de casamento. Eu sabia por que Marjorie correra o risco de se perder na neve para acender uma fogueira e nos preparar uma refeição. Pelas leis simples das montanhas, estávamos agora casados, não apenas a nossos próprios olhos, mas numa cerimônia que seria aceita por todos.

Senti-me contente por ela ter certeza de mim a ponto de não perguntar. Sentia-me contente pelo fato de o tempo nos obrigar a permanecer ali por mais uma noite. Mas uma coisa me perturbava, e comentei:

- Regis e Danilo estão mais perto de Thendara agora do que nós de Arilinn, se não foram recapturados. Mas nenhum dos dois é um telepata hábil, e duvido que tenham conseguido transmitir uma mensagem. Preciso enviar uma mensagem, para Arilinn ou para meu pai. Já deveria ter feito isso antes.

Marjorie segurou minha mão, enquanto eu pegava a matriz.

- É mesmo seguro, Lew?

- É preciso, amor, quer seja ou não seguro. Deveria tê-lo feito no momento em que recuperei minha matriz. Temos de enfrentar a possibilidade de que eles tentem de novo. Beltran não desistirá de seus objetivos tão depressa, e receio que Kadarin seja inescrupuloso.

Abstive-me de pronunciar em voz alta o nome de Sharra, mas pairava entre nós, e ambos sabíamos disso.

E se eles tentassem de novo, sem o meu conhecimento ou controle, sem Marjorie como Guardiã, o que poderia acontecer? Um incêndio na floresta seria brincadeira de criança em comparação com o risco de despertar aquela coisa sem uma Guardiã treinada! Eu precisava alertar as Torres. Marjorie lembrou, hesitante:

- Estivemos todos em contato. Se você... usar sua matriz... eles não poderão sentir, descobrir onde nos encontramos?

Era uma possibilidade, mas, independentemente do que nos acontecesse, Sharra deveria ser controlada e contida ou nenhum de nós jamais voltaria a ter qualquer segurança. E durante todos aqueles dias eu não sentira qualquer contato, nenhuma mente a nos procurar.

Descobri a matriz. Para minha consternação, experimentei uma pontada de vertigem ao contemplar as profundezas azuis. Era um sinal de perigo. Talvez eu tivesse saído um pouco da sintonia durante os dias em que ficara separado da pedra. Focalizei-a, concentrando-me na delicada tarefa de estabelecer contato outra vez com a pedra-da-estrela; e por várias vezes fui obrigado a desviar os olhos pela dor, a visão turva.

- Pare, Lew, pare... você está cansado demais...

- Não posso.

Se protelasse, perderia o controle da matriz, seria forçado a começar de novo, com outra pedra. Empenhei-me por quase uma hora, lutando contra a incapacidade de focalizar a matriz. Olhei para Marjorie, pesaroso, sabendo que esgotava minhas energias naquele esforço telepático. Amaldiçoei o destino que me fizera um telepata e mecânico de matriz, mas nunca me passou pela cabeça abandonar a luta inacabada.

Se isso tivesse acontecido em Arilinn - algo inconcebível -, eu tomaria kirian, ou alguma das outras drogas que estimulavam os dons psíquicos, e receberia a ajuda de um monitor e de minha Guardiã. Agora, tinha de obter o controle sozinho. Eu mesmo tornara impossível e perigoso que Marjorie me ajudasse.

Ao final, a cabeça latejando, consegui focalizar as luzes na pedra. Num instante, enquanto ainda me restavam forças, projetei-me pelos espaços cinzentos e informes a que chamamos de mundo superior, procurando o ponto de referência luminoso que era o círculo de transmissão de Arilinn.

Localizei-o, por um momento. E foi então que surgiu dentro da pedra uma flama intensa, um fluxo de percepção brutal, um ímpeto de violência familiar... uma mulher, sinistra e vigorosa, empunhando uma chama viva, um grande círculo de rostos irradiando uma vasta emoção...

Ouvi Marjorie ofegar, lutar para romper o contato. Sharra! Sharra! Fomos ligados a ela, estamos sendo absorvidos e atraídos para os fogos da destruição...

- Não! Não! - gritou Marjorie, em voz alta.

Vi as chamas definharem e desaparecerem. Nunca haviam estado ali. Eram reflexos das brasas agonizantes de nosso fogo nupcial ritual; os fantásticos contornos de luz em torno do rosto de Marjorie eram apenas os resquícios da claridade na lareira. Ela sussurrou, tremendo:

- Lew, o que foi isso?

- Você sabe... - Eu ainda hesitava em dizer o nome em voz alta. - Kadarin. E Thyra. Trabalhando diretamente com a espada. Pelos infernos de Zandru, Marjorie, eles estão tentando usá-la à maneira antiga, não com um círculo de telepatas controlado por uma Guardiã, numa rede de energônios ordenada... e mesmo assim é incontrolável, como constatamos... mas com um único telepata focalizando as emoções de um grupo de seguidores destreinados.

- Isso não é perigoso demais?

- Perigoso? A palavra é inadequada! Você atearia um incêndio na floresta para preparar uma refeição? Concentraria as chamas mais fortes para assar suas costeletas ou secar as botas? Eu bem que gostaria de pensar que eles só vão matar a si mesmos!

Andei de um lado para outro, diante do fogo morto, escutando irrequieto o barulho da tempestade lá fora.

- E não posso sequer alertar o pessoal em Arilinn!

- Por que não, Lew?

- Tão perto de... Sharra, minha matriz não vai funcionar. Tentei explicar como Sharra, sem qualquer dúvida, ofuscara todas as matrizes menores.

- Até que ponto esse efeito se estende, Lew?

- Quem pode saber? Talvez pelo planeta inteiro. Nunca trabalhei com algo tão forte. Não há precedentes.

- Mas se alcançasse até Arilinn, os telepatas ali não saberiam que há algo errado?

Animei-me no mesmo instante. Talvez fosse essa a nossa única esperança. Cambaleei de repente, e Marjorie me segurou pelo braço, amparando-me.

- Você está esgotado, Lew. Descanse aqui ao meu lado, querido.

Obedeci, tonto e desesperado. Nem sequer falara de meus outros temores, de que, se usasse minha matriz pessoal, eu, que estivera sintonizado com Sharra, poderia ser atraído de volta a seu vórtice, àquele fogo brutal, àquele canto do inferno... Marjorie sabia, no entanto, sem que eu precisasse dizer, e sussurrou:

- Posso sentir que se projeta para nós... Tem condições de nos levar de volta?

Ela se comprimiu contra mim, em terror; virei-me para enlaçá-la, apertando-a com uma força desvairada, lutando contra um desejo quase incontrolável. E isso me deixou apavorado. Deveria encontrar-me esgotado, exausto, incapaz do menor impulso sexual. O que era frustrante, mas normal, e há muito eu aceitara o fato.

Mas aquele desejo desenfreado - e era pura luxúria, uma coisa animal, sinistra e odiosa, sem qualquer vestígio de amor ou afeto - fazia minha pulsação disparar, deixava-me ofegante no esforço para resistir. Era forte demais; permiti que me envolvesse e dominasse, sentindo o fogo arder em minhas veias, como se um líquido escaldante tivesse substituído o sangue em meu corpo. Comprimi a boca contra a de Marjorie e senti sua débil tentativa de me repelir. E, depois, o fogo engolfou a nós dois.

É a única lembrança que tenho de Marjorie que não é de total alegria. Possuía brutalmente, sem ternura, querendo extinguir o fogo da necessidade que ardia dentro de mim. Ela retribuiu com igual violência, detestando tanto quanto eu, ambos dominados por um desespero incontrolável. Era furioso e animal... não! Animal, não! Os animais se confrontam de uma maneira mais pura, impelidos apenas por sua força vital, sem ter conhecimento daquele tipo de sinistro desejo. Não havia inocência ali, nenhum amor, apenas uma violência bruta, insaciável, um poço sem fundo do inferno. Era o inferno, todo o inferno que jamais conheceríamos. Ouvi Marjorie soluçando, desamparada, e sabia que eu também chorava, de vergonha e ódio. Depois, não conseguimos dormir.

Capítulo Vinte e Um

Nem mesmo em Nevarsin, pensou Regis, nunca nevara tanto, ou com tanta persistência. Seu pônei avançava determinado, seguindo os passos da montaria de Danilo, como os animais das montanhas eram treinados a fazer. A neve voltava a cair.

Não se importaria com nada daquilo, refletiu ele, a viagem, o frio intenso, a falta de sono, se pelo menos pudesse ver direito, ou manter o mundo plano por baixo.

A doença do limiar continuara a dominá-lo, intermitente, mais predominante no decorrer do último dia. Tentava ignorar os olhares ansiosos de Danilo, sua preocupação com ele. Não havia nada que Danilo pudesse fazer para ajudá-lo; portanto; quanto menos falasse a respeito, melhor.

Mas era muito desagradável. O mundo parecia dissolver-se, a intervalos regulares. Não tinha ataques tão violentos quanto o que sofrera em Thendara ou na viagem para o norte, mas tinha a impressão de viver numa amena desorientação crônica durante todo o tempo. Não sabia o que era pior, mas desconfiava de que era a forma que por acaso o dominava na ocasião. Danilo esperou que ele emparelhasse no caminho.

- Já está nevando, e ainda nem chegamos ao meio da tarde. Neste ritmo, levaremos doze dias para alcançar Thendara, e perderemos a longa dianteira com que contávamos.

Quanto mais depressa chegassem a Thendara, melhor. Regis sabia que era preciso dar o aviso, mesmo que Lew e Marjorie fossem recapturados. Até agora, não houvera qualquer sinal de perseguição. Mas Regis também sabia, amaldiçoando sua fraqueza, que não seria capaz de suportar muito mais daquele constante esforço, das longas horas na sela, a vertigem incessante.

No início do dia, haviam passado por uma pequena aldeia, onde compraram comida e rações para os animais. Talvez pudessem arriscar-se a acender uma fogueira naquela noite... se encontrassem um lugar apropriado!

- Qualquer lugar serve, menos um estábulo cheio de feno - concordou Danilo.

Na noite anterior tinham dormido num estábulo, partilhando o calor com diversas vacas e cavalos e muito feno seco. Os animais esquentavam o ambiente para dormir, mas não puderam se arriscar a acender uma fogueira por causa do feno seco. Por isso, comeram apenas tiras de carne curtida e um punhado de nozes.

- Estamos com sorte - disse Danilo, apontando.

A alguma distância da estrada havia um abrigo para viajantes, construído várias gerações antes, quando Aldaran era o sétimo Domínio e aquela estrada era bastante usada, em todas as estações. Todas as estalagens haviam sido abandonadas, mas os abrigos, construídos para se manter de pé por séculos, ainda eram habitáveis, pequenas cabanas de pedra com telheiros anexos para os cavalos, e os confortos mínimos para os viajantes.

Os dois desmontaram e acomodaram os cavalos, mal falando, Regis por cansaço, Danilo por relutância em se intrometer nos pensamentos do amigo. Dani achava que ele estava zangado, Regis sentia; e sabia que deveria dizer que não era isso, apenas exaustão. Mas relutava em demonstrar fraqueza. Era um Hastur: cabia a ele liderar, assumir a responsabilidade. Por isso, ele se exigia ao máximo, implacável, o esforço tornando as palavras poucas e incisivas, a voz ríspida. Agravava a situação saber que, se proporcionasse o menor estímulo, Danilo o serviria por todos os meios, e com o maior prazer. Não queria aproveitar-se do culto ao herói por parte de Danilo.

O Comyn já fizera isso em demasia...

Os cavalos acomodados para a noite, Danilo levou os alforjes para o interior da cabana. Parando na porta, ele comentou:

- Este é um momento interessante, todas as noites, quando vemos o que os anos deixaram de cada lugar que encontramos para dormir.

- É mesmo interessante - disse Regis secamente. - Nunca sabemos o que encontraremos, nem com quem partilharemos nossas camas.

Uma noite haviam dormido no estábulo, porque um enxame dos letais escorpiões-formigas haviam invadido o abrigo.

- É verdade - respondeu Danilo, jovial. - Um escorpião-formiga é uma forma de vida inferior com que não me agrada dormir. Mas parece que temos sorte esta noite.

O interior da cabana era despojado, rescendia a mofo, mas havia uma lareira intacta, dois bancos para sentar e uma resistente prateleira embutida na parede; assim, não precisavam dormir no chão, à mercê de aranhas ou roedores. Danilo largou os alforjes num banco.

- Vi alguns galhos secos perto do estábulo. A neve ainda não os deixou completamente encharcados. Pode não haver o suficiente para manter um fogo durante toda a noite, mas com certeza dá para preparar uma refeição quente.

Regis suspirou.

- Vou ajudá-lo a buscar a lenha.

Ele tornou a abrir a porta, contra o crepúsculo de neve; o mundo girou vertiginoso ao seu redor, e teve de se segurar na porta para não cair.

- Deixe-me sair sozinho, Regis. Você está doente de novo.

- Posso me agüentar.

- Já chega! - Danilo se mostrou subitamente furioso. - Quer parar de fingir, de bancar o herói para mim? O que farei se você cair e não conseguir se levantar de novo? É muito mais fácil arrastar alguns galhos secos do que tentar carregar você ao longo da neve! Fique aqui dentro, está bem?

Fingir. Bancar o herói. Era assim que Danilo encarava a sua tentativa de carregar o próprio peso? Regis murmurou, tenso:

- Não quero tornar as coisas mais difíceis para você. Pode ir.

Danilo fez menção de falar, mas mudou de idéia. Empinou o queixo e saiu para a neve. Regis começou a tirar as coisas dos alforjes, mas sentiu-se tão tonto que teve de sentar num dos bancos de pedra, apoiando-se com as duas mãos.

Era um peso morto para Danilo, pensou ele. Só servia para atrasá-lo. Especulou como Lew estaria saindo-se na viagem pelas montanhas. Esperara desviar a perseguição dele, mas parecia que isso também não dera certo. Sua vontade era encolher-se no banco, deixar-se dominar pelo acesso da doença, mas recordou o conselho de Javanne: trate de se movimentar, resista. Levantou-se com grande esforço, pegou a pederneira e as mechas de feno seco que haviam guardado para acender fogo e ajoelhou-se diante da lareira, limpando os remanescentes da última fogueira de viajantes. Há quantos anos teria sido acesa?

O vento e flocos de neve entraram pela porta aberta; carregando os galhos secos, Danilo cambaleou para dentro, largou a lenha perto da lareira e tornou a sair. Regis separou os galhos mais secos para acender a fogueira, mas não conseguiu manter as mãos bastante firmes para manipular a pequena pederneira mecânica de aço, alimentada com óleo de resina, para assegurar uma chama mais duradoura. Largou o artefato no banco e sentou com a cabeça nas mãos, sentindo-se completamente inútil, até que Danilo, vergado por outra carga de lenha, entrou meio trôpego e fechou a porta com o pé.

- Meu pai diz que isto é uma carga de preguiçoso - comentou ele, jovial -, carregar lenha demais porque você tem preguiça de voltar para buscar outra. Servirá para afugentar o frio por algum tempo. E, de qualquer forma, prefiro sentir frio aqui a sentir calor na suíte real de Aldaran.

Ele foi até o lugar em que Regis armara a lenha e ajoelhou-se para acendê-la com a pederneira.

- Abençoado seja o homem que inventou este aparelho. Ainda bem que você tinha um.

Era parte do equipamento de acampamento de Gabriel que Javanne lhe entregara, junto com as pequenas panelas. Dani olhou para Regis, encolhido e imóvel no banco, tremendo todo.

- Está muito zangado comigo?

Regis limitou-se a sacudir a cabeça. Danilo acrescentou, hesitante:

- Não quero... ofendê-lo. Mas sou seu escudeiro e tenho de fazer o que é melhor para você. Mesmo que nem sempre seja o que você quer.

- Tudo bem, Dani. Eu estava errado, e você tinha toda a razão. Não consegui sequer acender o fogo.

- Não me incomodo de acendê-lo, ainda mais com o seu aparelho. Há água encanada ali, no canto, se não congelou na tubulação. Se isso aconteceu, teremos de derreter a neve. O que vamos cozinhar?

A última coisa com que Regis se importava naquele momento era comida, mas forçou-se a discutir se seria melhor uma sopa de carne seca e favas, ou um mingau de cereais moídos. Quando borbulhava no fogo, Danilo foi sentar ao seu lado.

- Regis, não quero irritá-lo de novo, mas temos de tirar isso de você. Pensa que não percebo a dificuldade com que se mantém na sela?

- O que quer que eu lhe diga, Dani? Estou fazendo o melhor que posso.

- Vem fazendo mais do que pode. - A luz do fogo fazia Danilo parecer muito jovem e perturbado. - Acha que o estou culpando? Mas deve deixar que eu o ajude mais. O que direi em Thendara se o herdeiro de Hastur morrer aos meus cuidados?

- Está exagerando o problema, Dani. Nunca ouvi falar de ninguém que tenha morrido da doença do limiar.

Mas Javanne se mostrara sinceramente assustada...

- Talvez não - disse Danilo, cético -, mas se você não conseguir permanecer sentado em seu cavalo, cair e fraturar o crânio, isso também é fatal. Ou se ficar esgotado e pegar um resfriado fatal. Não esqueça que é o último Hastur.

- Não sou, não - murmurou Regis, ao final de sua resistência. - Não me ouviu contar a Lew? Tenho um herdeiro. Antes de iniciar esta viagem, considerei o fato de que poderia morrer, por isso designei um dos filhos de minha irmã para meu herdeiro. Legalmente.

Danilo se acocorou, aturdido, os olhos arregalados, e seu pensamento foi tão claro quanto se tivesse falado em voz alta: Por minha causa? Regis absteve-se de falar mais alguma coisa a respeito. Não podia encarar a emoção intensa nos olhos de Danilo. Aquele era o momento do perigo, a intimidade compulsória da noite, quando devia erguer todas as barreiras para não revelar o que sentia. Seria fácil demais se agarrar a Danilo em busca de força, aproveitar-se da reação emocional do amigo.

- Mesmo assim, não quero ter sua morte em minha consciência! - protestou Danilo, furioso. - Os Hasturs precisam de você por você mesmo, Regis, não por seu sangue ou por seu herdeiro!

- O que sugere que eu faça?

O próprio Regis não sabia se era uma pergunta honesta ou um desafio sarcástico.

- Não estamos sendo perseguidos. Devemos descansar aqui até que você se recupere.

- Creio que nunca vou me recuperar por completo enquanto não for a uma Torre e aprender a controlar isso.

Laran, um dom? Era mais uma maldição, pensou Regis. Em seu sangue, em seu cérebro. Mas sabia que não era a única coisa que o deixava doente. Era também a constante necessidade de se resguardar contra seus sentimentos, contra pensamentos e desejos que não queria acalentar. E para isso não havia ajuda, concluiu ele. Nem mesmo nas Torres poderiam transformá-lo numa pessoa diferente do que era. Mas podiam ensiná-lo a ocultar, a conviver com o problema. Danilo pôs a mão no ombro de Regis.

- Deve deixar que eu cuide de você. É meu dever. - Uma pausa, e ele acrescentou: - E meu prazer.

Por um esforço que literalmente fez sua cabeça girar, Regis manteve-se imóvel sob o contato. Rígido, recusou o contato oferecido e disse:

- Seu mingau está queimando. Se sente tão ansioso em fazer alguma coisa, cuide do que deve fazer. A coisa é intragável mesmo quando cozida direito.

Danilo empertigou-se como se as palavras fossem um golpe. Foi até o fogo e tirou a panela. Regis não olhou para ele, não se importou por tê-lo magoado. Situava-se além de pensar sobre qualquer coisa, exceto a sua tentativa de não pensar.

Sentia uma intensa raiva de Danilo por forçá-lo àquela confrontação íntima. Recordou de repente a briga que tivera com Danilo no alojamento dos cadetes, uma briga que poderia ter ido muito além de um único golpe, se não fosse pela intervenção de Hjalmar. Queria fustigar Danilo agora, agredi-lo com palavras cruéis. Sentia uma necessidade de aumentar a distância entre os dois, romper aquela insuportável intimidade, impedir que Danilo o fitasse com tanto amor. Se brigassem, talvez não precisasse mais ter uma vigilância constante, com medo de fazer e dizer o que não suportava nem pensar...

Danilo veio com o mingau numa pequena caneca e murmurou, hesitante:

- Acho que não queimou...

- Pare de ser tão atencioso! - exclamou Regis. - Coma o seu mingau e me deixe em paz, não fique me tratando assim! O que devo fazer para você compreender que não o quero, que não preciso de você? Deixe-me em paz!

O rosto de Danilo ficou branco. Ele foi sentar no outro banco, a cabeça inclinada para seu mingau. De costas para Regis, declarou friamente:

- Há mais mingau quando quiser se servir, meu lorde. Regis podia ver com clareza, como se o tempo tivesse saído de foco, o momento no alojamento em que Danilo o repelira com um insulto. Era claro também na mente de Danilo: Ele fez comigo, sabendo, o que eu fiz com ele, sem saber.

Com um esforço consciente, Regis absteve-se de um pedido de desculpa imediato. O cheiro do mingau causou-lhe uma náusea violenta. Foi para a prateleira de pedra, deitou-se ali, envolvendo-se com o manto de montaria, e tentou reprimir os tremores que sacudiam todo o seu corpo. Tinha a impressão de que podia ouvir Danilo chorando, como acontecera tantas vezes no alojamento. Mas Danilo continuava sentado no banco, comendo seu jantar em silêncio. Regis ficou olhando para o fogo, até que começou a aumentar, as chamas se elevando... alucinação. Não era o incêndio na floresta, nem Sharra. Apenas outra alucinação. Perdera o controle psíquico.

Ainda assim, parecia ver o rosto de Lew, bem nítido, à luz do fogo. E se, pensou Regis, no momento em que estendi as mãos e puxei-o para o meu lado, ele tivesse me repelido? E se pensasse que o conforto que eu lhe oferecia era uma coisa muito vergonhosa para suportar ou reconhecer?

Eu era apenas uma criança. Não sabia o que fazia. Ele não era uma criança. E sabia.

Incapaz de suportar esse curso de pensamento, ele deixou que a doença intermitente o dominasse de novo. Foi quase um alívio permitir que o mundo se desvanecesse para o nada. O tempo se dissipou. Ouviu a voz de Danilo depois de um longo momento, só que as palavras não faziam mais sentido; eram apenas vibrações, sons sem qualquer significado ou relevância. Regis sabia, com o último alento de sanidade, que sua única esperança agora de se salvar era gritar, levantar-se, andar, chamar Danilo, agarrar-se a ele, como uma âncora no meio do nada...

Mas não podia. Não podia entregar-se a uma coisa assim; preferia morrer... e ouviu uma vozinha estranha e remota em sua mente dizer: Pois então morra, se é tão importante assim para você. E sentiu algo como um gigantesco balanço arrebatá-lo, levá-lo para o alto, cada vez se embrenhando mais pelo nada a cada respiração, vendo estrelas, átomos, estranhas vibrações, o próprio ritmo do universo... ou seriam as células de seu próprio cérebro vibrando, fora de controle?

Fizera isso a si mesmo, ele sabia. Permitira que acontecesse, covarde demais para enfrentar.

Chame Danilo, disse a voz interior. Ele o ajudará, mesmo agora, se pedir. Mas terá de pedir, pois você mesmo tornou impossível que ele se aproxime sem ser chamado. Chame logo, depressa, enquanto ainda pode.

Não posso...

Regis sentiu que a respiração começava a sair em ofegos, como se pairasse em algum lugar dos espaços distantes, que era agora tudo o que podia ver, a cada respiração retornando por um instante ao corpo se debatendo, cada vez mais fraco, inerte na prateleira. Depressa! Grite agora por socorro, ou vai morrer, aqui e agora, com tanta coisa afazer, só por causa de seu orgulho...

Com o que ainda lhe restava de força, Regis lutou para ter voz suficiente para gritar, chamar bem alto. Mas saiu um mero sussurro abafado:

- Dani... ajude-me...

Tarde demais, pensou ele, sentindo que resvalava para o nada. E se perguntou, com um pesar desesperado, se estava morrendo... porque não suportava ser honesto consigo mesmo, com seu amigo...

Oscilava na escuridão, imóvel, o corpo todo dormente, paralisado. Sentiu Danilo, apenas um tênue nevoeiro azulado através de seus olhos fechados, inclinando-se sobre ele, mexendo nos laços da túnica. Não podia sequer sentir as mãos de Danilo, só sabia que estavam em sua garganta. E Regis, insano: Ele vai me matar?

Sem aviso, seu corpo se convulsionou num espasmo da dor mais terrível que já conhecera. Estava ali outra vez, o rosto de Danilo visível através de um nevoeiro avermelhado, cor de sangue, pairando sobre ele, a mão tocando na matriz pendurada do pescoço de Regis. A voz rouca, Regis balbuciou:

- Não... não de novo...

E sentiu voltar o espasmo que parecia dissolver os ossos. Danilo largou a matriz, como se o tivesse queimado, e a dor infernal diminuiu. Regis permaneceu inerte, ofegando. Tinha a sensação de que caíra no fogo. Danilo balbuciou:

- Perdoe-me... pensei que estivesse morrendo! Não conhecia outro meio de entrar em contato com sua mente...

Com todo o cuidado, sem tocá-la, Danilo tornou a cobrir a matriz. Arriou na plataforma de pedra, ao lado de Regis, como se os joelhos estivessem fracos demais para mantê-lo de pé.

- Regis, Regis, pensei que estivesse morrendo... Regis sussurrou:

- Foi o que eu também pensei.

- Disse a mim mesmo: se deixá-lo morrer por não poder perdoar uma palavra áspera, então seria uma desgraça para meu pai e para todos aqueles que serviram aos Hasturs. Sou um telepata catalisador, tinha de haver algum meio de fazer contato com você... gritei, mas não me ouviu, bati em você, belisquei-o, achei que já tinha morrido, mas ainda podia senti-lo me chamando...

Ele estava totalmente exausto. Regis sussurrou:

- O que você fez? Senti...

- Toquei a matriz... nada mais podia alcançá-lo, e eu tinha tanta certeza de que estava morrendo... - Danilo perdeu o controle de vez e soluçou. - Eu poderia tê-lo matado! Poderia tê-lo matado!

Regis puxou Danilo para baixo e abraçou-o.

- Bredu, não chore... veja, não morri.

Ele se sentiu subitamente inibido outra vez. O rosto de Danilo, molhado de lágrimas, comprimia-se contra sua face. Regis afagou-o, desajeitado.

- Não chore mais.

- Mas eu o magoei tanto... e não suporto magoá-lo!

- Acho que nada mais conseguiria me trazer de volta, bredu. É a minha vida que lhe devo agora.

Ele ainda se sentia tonto e dolorido, na esteira do que sabia agora que só podia ter sido uma convulsão. Mais tarde, descobriria que aquele tratamento heróico, de último recurso, segurar uma matriz, só era usado à beira da morte; quando telepatas mais fortes determinavam que sem isso o sofredor poderia vaguear pelos corredores do próprio cérebro, isolado de todos os estímulos externos, até morrer. Danilo o fizera por puro instinto. Regis recordou agora o que Javanne dissera.

- Tenho de levantar e me movimentar ou pode voltar. Mas você terá de me ajudar, Dani. Estou fraco demais para andar sozinho.

Danilo ajudou-o a ficar de pé. À última claridade do fogo se extinguindo, Regis pôde ver as lágrimas em seu rosto. Ele manteve o braço em torno de Regis, amparando-o.

- Eu nunca deveria ter discutido com você quando estava doente.

- Eu é que provoquei a discussão, Dani. Pode me perdoar?

Regis sabia que fora cruel com Danilo por medo, o medo do que ele próprio era. Talvez Dyan também recorresse à crueldade por medo, e acabasse preferindo a crueldade ao medo - ou à vergonha - de se conhecer tão bem.

O laran era uma coisa terrível. Mas não tinham opção, a não ser a de aceitá-lo com honra.

- Mantive o mingau quente para você - murmurou Danilo timidamente. - Pode tentar comê-lo agora?

Regis pegou a caneca, ardendo em seus dedos. O mero pensamento de comida provocou-lhe náusea, mas engoliu algumas colheres, obediente, e logo descobriu que de fato sentia fome. Continuou a comer e murmurou, depois de algum tempo:

- Não é pior do que as coisas que comíamos na Guarda. Se algum dia se tornar um homem sem mestre, Dani, pode ser contratado como cozinheiro da Guarda.

- Deus me livre de me tornar um homem sem mestre enquanto você viver, Regis.

Pegando a mão de Danilo, Regis apertou-a com força. Sentia-se exaurido e dolorido, mas em paz. Acabou o mingau, e Danilo foi lavar a caneca. Regis tornou a deitar na prateleira. O fogo quase se extinguira por completo, e fazia frio agora. Danilo voltou, estendeu seu manto e seu cobertor ao lado de Regis, sentou e tirou as botas.

- Eu gostaria de saber mais sobre a doença do limiar.

- Fique contente por não saber, pois é um verdadeiro inferno. Espero que você nunca a tenha.

- Já tive. Sei agora o que devo ter sofrido quando comecei... a ler mentes. Não havia ninguém para me explicar o que era, e nunca levei a sério. O problema é que não sei o que fazer com isso. Caso contrário, poderia ajudá-lo. - Ele fitou Regis com alguma hesitação, na semi-escuridão, antes de acrescentar: - Ainda mantemos um ligeiro contato. Deixe-me tentar.

- Faça o que quiser, Dani. Não vou repeli-lo de novo. Apenas tome cuidado. Sua última tentativa foi dolorosa.

- Descobri uma coisa. Pude ver e sentir, e há uma espécie de... energia. Olhe.

Ele se inclinou sobre Regis, passando as pontas dos dedos de leve por cima de seu corpo, sem tocá-lo.

- Posso senti-lo assim, sem tocar você, em determinados pontos e mais forte, em outros sinto que deve ser também, mas não é... Não sei como explicar. Você também sente?

Regis recordou o pouco que a leronis lhe dissera quando o testara, em vão, à procura de laran.

- Há certos... centros de energia no corpo, que despertam com o laran. Todas as pessoas os possuem, mas num telepata são mais fortes e mais... perceptíveis. Se isso é verdade, você também deve tê-los.

Ele se inclinou para Danilo, passando as mãos sobre seu rosto, sentindo um incontestável fluxo de energia.

- É como uma... uma pulsação extra aqui, logo acima de sua testa. - Haviam lhe mostrado um desenho desses centros de energia, mas na ocasião ele não tinha motivos para acreditar que também os possuía. Agora, fez um esforço para recordar, sentindo que devia ser importante. - Há outro na base da garganta.

- Posso ver - murmurou Danilo, tocando de leve, com a ponta do dedo.

O contato não foi doloroso, mas Regis sentiu-o como um tênue choque elétrico. Contudo, assim que passou a ter plena consciência da pulsação, suas percepções se desanuviaram, e a vertigem que o dominava há semanas pareceu dissipar-se, mudar de alguma forma. Sentiu que descobrira algo muito importante, mas não sabia o que era. Danilo continuou, tentando determinar os fluxos de energia com as pontas dos dedos.

- Não preciso tocar você para senti-los. Parece que sei...

- Provavelmente porque você também os tem - disse Regis. -O trabalho com matriz exige treinamento, mas deve ser possível aprender sozinho a controlar o laran ou as técnicas não poderiam ter sido desenvolvidas. A menos que se queira acreditar em todas aquelas histórias antigas sobre deuses e semideuses descendo dos céus para ensinar ao Comyn como usá-las... e eu não acredito.

Estava muito escuro, mas ele podia ver Danilo com nitidez, como se seu corpo fosse delineado pelos fluxos de energia, pálidos e pulsantes. Danilo murmurou:

- Nesse caso, talvez possamos descobrir como evitar que você caia de novo nesse tipo... de crise.

- Parece que estou em suas mãos, Dani. Literalmente. Não sei se eu poderia sobreviver a outro ataque igual. - Ele sabia que fora ressuscitado pelo choque físico que Danilo aplicara ao tocar sua matriz, mas isso o deixara esgotado, perigosamente fraco. - Você já teve a doença do limiar? E conseguiu superá-la?

- Já, sim. Embora, como eu disse, não tivesse a menor idéia do que era. Mas ajudou bastante a descoberta das correntes de energia. Podia fazer com que fluíssem melhor, durante a maior parte do tempo, parecia até que podia usar essa energia. Não estou explicando direito, não é? Não conheço as palavras certas.

Regis deu um sorriso triste.

- Talvez não haja palavras certas.

Ele ficou observando os fluxos de energia no corpo de Danilo e teve a estranha impressão de que, embora ambos estivessem bastante vestidos contra o frio, os dois se encontravam de certa forma nus, só que com um tipo diferente de nudez. Podia também sentir os fluxos de energia em Danilo, pulsando, em movimentos suaves e firmes, as forças vitais. Danilo continuava a procurar os fluxos nele, sem tocá-lo; mesmo assim, o contato que não era um contato tornou a despertar a percepção física. Regis não ouvira Lew explicar que as mesmas correntes transmitiam a força telepática e a energia sexual, mas sentiu o suficiente para se tornar embaraçado. Gentilmente, afastou a mão de Danilo.

- Não - sussurrou ele, não com raiva agora, mas enfrentando com honestidade... não podiam mais mentir um para o outro agora. - Você não vai querer despertar isso, não é mesmo, Dani?

Houve um instante de tempo suspenso, em que Danilo quase parou de respirar. Depois, ele disse, num sussurro abafado:

- Pensei que você não sabia.

- Ou seja, quando me chamou de nomes... estava mais próximo da verdade do que imaginava, Dani. Eu também não sabia na ocasião, mas preferia não... não me aproximar de você como Dyan. Portanto, Dani, tome cuidado.

Ele não tocava Danilo agora, mas ainda assim sentiu as correntes de energia de Danilo mudarem, a pulsação se tornar irregular, como um redemoinho num rio de curso sereno. Não sabia o que isso significava, mas sentiu sem definir por que era importante, que descobrira algo que realmente precisava saber, algo de que dependia a sua própria vida. Danilo balbuciou, a voz rouca:

- Você? Como Dyan? Nunca!

Regis teve de fazer um esforço para manter a voz firme, mas estava agora consciente das correntes de energia. A pulsação firme que acalmara e desanuviara suas percepções começava agora a se tornar irregular, quase um turbilhão. Lutando para não perder o controle, ele respondeu:

- Não por qualquer meio que... que possa deixá-lo com medo. Juro. Mas é verdade. Você me odeia agora, ou me despreza por isso?

A voz de Danilo soou áspera:

- Acha que não posso perceber a diferença? Não direi o seu nome do mesmo jeito...

- Lamento muito desiludi-lo, Dani, mas seria pior mentir para você agora. Foi isso o que saiu errado antes. Achava que eu tentava demais... esconder de você, esconder até de mim mesmo, e foi o que me deixou doente. Conhecia os seus medos; e tem bons motivos para acalentá-los. Tentei com o máximo de empenho evitar que você soubesse: quase morri, para não deixar que pensasse em mim como Dyan. Sei que é um cristoforo, e sei que seus costumes são diferentes.

Ele não podia deixar de saber, depois de três anos em um dos seus mosteiros. E agora Regis sabia o que bloqueara seu laran: as duas coisas ao mesmo tempo, a reação emocional, despertando naquele momento com Lew, e a percepção telepática, o laran. E durante três anos, os anos em que deveria estar despertando e se fortalecendo, cada vez que experimentava qualquer espécie de impulso emocional ou físico, tinha de bloquear de novo; e cada vez que ocorria a menor e mais débil reação telepática, tratara de sufocá-la. Para não despertar outra vez todo o anseio, angústia, memória...

São-Valentim-das-Neves, santo ou não, quase destruíra Regis. Talvez, se fosse menos obediente, menos escrupuloso...

- Mesmo assim, Dani, devo lhe falar a verdade. Lamento se o magoa, mas não posso magoar a mim mesmo outra vez com a mentira. Sou mesmo como Dyan. Agora, pelo menos. Não farei o que Dyan fez, mas me sinto como ele, e acho que você já sabe há algum tempo. Se não pode aceitar isso, não precisa me chamar de lorde, nem de amigo, mas acredite, por favor, que eu próprio não sabia.

- Acontece que sei que você tem sido sincero comigo - balbuciou Danilo. - Eu tentei esconder de você... sentia-me envergonhado... queria morrer por você, o que teria sido mais fácil. Pensa que não posso perceber a diferença?

As lágrimas escorriam pelo rosto de Danilo, enquanto continuava:

- Como Dyan? Você? Dyan, que não se importava comigo, que encontrava prazer em me atormentar, que se alegrava com meu medo e aversão...

Ele respirou fundo, ofegante, como se não houvesse ar suficiente em qualquer parte para encher seus pulmões.

- Enquanto você... ficou assim, dia após dia, torturando-se, deixando-se levar até a beira da morte, só para não me assustar... acha que tenho medo de você? De qualquer coisa que você possa dizer... ou fazer?

As linhas de luz ao seu redor eram muito brilhantes agora, e Regis se perguntou se Danilo, no ímpeto de emoção que envolvia os dois, compreendia de fato o que dizia. Ele estendeu as duas mãos para Danilo e murmurou, gentilmente:

- Parte da doença, eu acho, foi causada por tentar esconder um do outro. Chegamos perto de nos destruir por causa disso. Não precisamos falar a respeito, tentar encontrar as palavras certas. Dani... bredu... quer conversar comigo agora, de um jeito em que não possa haver mal-entendidos?

Danilo hesitou por um momento, e Regis, apavorado com o medo antigo e angustiante de uma rejeição, teve a sensação de que não conseguia respirar. Depois, embora Regis pudesse sentir um último resquício de medo, relutância, vergonha, como se fossem nele próprio, Danilo estendeu suas mãos, guiado por um instinto seguro, e comprimiu as palmas contra as de Regis, sussurrando:

- Claro, bredu.

O contato era mínimo, mas provocou um intenso choque elétrico. Regis sentiu as pulsações de energia arderem nele como raios vivos, por um instante. Depois, sentiu as correntes passando pelos dois, de Danilo para ele, percorrendo todo o seu corpo - os centros na cabeça, na base da garganta, sob o coração, nas profundezas de todo o seu corpo - e voltando a Danilo. Os remoinhos intensos e turvos nas correntes começaram a se desmanchar, a fluir numa pulsação uniforme e rápida. Pela primeira vez em meses, ao que parecia, ele podia ver claramente, sem a doença insidiosa e a vertigem, à medida que os canais de energia se abriam, num circuito completo. Por um momento, essa energia vital partilhada foi tudo o que podiam sentir; sob o alívio, Regis respirou fundo, e parecia a sua primeira respiração pura em muito tempo.

Depois, muito devagar, seus pensamentos começaram a se fundir com os de Danilo. Lúcidos, juntos, como se formassem uma só mente, um único ser, juntando-se em intenso afeto e intimidade.

Era esta a verdadeira necessidade. Entrar em contato com alguém, desta maneira, sentir esta plenitude, esta fusão. Viver sem a sua pele. O laran é isto.

Na paz e conforto daquela fusão mágica, Regis ainda permanecia consciente da tensão e profunda necessidade de seu corpo, mas isso era menos importante. Mas por que qualquer dos dois deve ter medo disso agora?

Era isso, compreendeu Regis, que distorcera suas forças vitais em nós, bloqueando os fluxos de energia, até que quase morrera. A sexualidade era apenas uma parte; o verdadeiro problema era a relutância em encarar e reconhecer o que havia dentro dele. Sabia sem palavras que a desobstrução dos canais o libertara para ser o que era, e o que seria.

Algum dia conheceria a técnica para orientar essas correntes, sem fazê-las fluir por todo o seu corpo. Mas agora era isso o que precisava, e apenas alguém que pudesse aceitá-lo por completo, todo ele, mente, corpo e emoções, poderia proporcionar-lhe. E era uma irmandade mais profunda que a do sangue. Viver sem sua pele.

E de repente ele soube que não precisava ir para uma Torre. O que aprendera agora era um meio mais simples do que lhe teriam ensinado ali. Sabia que podia usar o laran agora, de qualquer forma que precisasse. Podia usar sua matriz sem ficar doente de novo, podia alcançar qualquer pessoa que precisasse alcançar, enviar a mensagem que tinha de transmitir.

Capítulo Vinte e Dois

(Narrativa de Lew Alton)

Pela nona ou décima vez em uma hora, fui na ponta dos pés até a porta, soltei a tranca de couro e espiei lá fora. O mundo exterior era apenas um cinzento escuro e turbilhonante. Tratei de recuar, limpando a neve dos olhos, e depois percebi, na semi-escuridão, que Marjorie acordara. Ela sentou e removeu o resto da neve de meu rosto com seu lenço de seda.

- Ainda é cedo na estação para uma tempestade tão forte.

- Temos um ditado nas montanhas, querido. Não deposite qualquer fé nas profecias de um bêbado, no cachorro de outro homem ou no tempo em qualquer estação.

Uma pausa, e ela acrescentou, fazendo um esforço para traduzir meus pensamentos em palavras:

- Mesmo assim, conheço as montanhas. Há alguma coisa nesta tempestade que me assusta. O vento não assovia como deveria. A neve é úmida demais para esta época. Está errada, de alguma forma. Tempestades, sim, mas não como esta.

- Certa ou errada, eu só gostaria que parasse.

Mas, no momento, estávamos impotentes. Era melhor aproveitarmos o pouco de bom que havia em ficarmos retidos pela neve juntos. Comprimi o rosto contra seus seios, e ela comentou, rindo:

- Você não lamenta nem um pouco estar preso aqui comigo.

- Preferia que estivéssemos em Arilinn. Teríamos ali uma câmara nupcial.

Marjorie me abraçou. Estava tão escuro que não podíamos ver os rostos um do outro, mas não precisávamos de luz. Ela sussurrou:

- Sinto-me feliz com você em qualquer lugar em que estivermos.

Éramos exageradamente gentis um com o outro agora. Eu esperava que viesse um dia em que poderíamos nos abraçar sem medo. Sabia que nunca esqueceria, enquanto vivesse, aquela loucura terrível que nos dominara, nem aquelas horas angustiantes, depois que Marjorie chorara até um sono atordoado e exausto, enquanto eu permanecia acordado, irrequieto, palpitando com o temor de que talvez ela nunca mais pudesse confiar em mim ou me amar.

Esse medo desapareceu poucas horas depois, quando ela abriu os olhos, ainda sombrios e magoados no rosto manchado de lágrimas, e num súbito impulso estendeu os braços para mim, com um carinho que dissipou todas as minhas apreensões. Mas um temor persistiu: aquilo podia nos dominar outra vez? Alguém poderia recuperar a sanidade total depois do contato de Sharra?

Mas, por enquanto, nos livráramos do medo. Mais tarde, Marjorie voltou a dormir; eu esperava que o prolongado repouso a ajudasse a recuperar as forças, depois da extenuante viagem. Continuei a andar de um lado para outro, inquieto, e tornei a observar a tempestade. Sabia que dali a pouco teria de enfrentar o tempo lá fora para dar as últimas rações aos cavalos.

Havia mesmo algo de errado com a tempestade. Fez-me pensar na manobra de Thyra com a cascata. Não, isso era um absurdo. Nenhuma pessoa sã haveria de interferir com o tempo para alcançar um objetivo pessoal.

Mas indaguei a mim mesmo: alguém podia ser são depois de entrar em contato com Sharra?

Não ousava sequer olhar para minha matriz, a fim de verificar o que havia, se é que havia alguma coisa, por trás da força incessante da tempestade. Enquanto Sharra estivesse em ação, tentando atrair-nos de volta, minha matriz era inútil... pior do que inútil, perigosa, mortífera.

Alimentei os cavalos, retornei à cabana para encontrar Marjorie ainda dormindo e ajoelhei-me para acender um fogo com a pouca lenha que ainda nos restava. A comida chegava ao fim, mas uns poucos dias de jejum forçado não nos fariam mal. Pior era a escassez de forragem para os animais. Enquanto punha alguns grãos para cozinhar, a fim de fazer um mingau, especulei se já teria engravidado Marjorie. Esperava que sim, é claro, e depois me controlei com um grunhido de consternação. Por Evanda e Avarra, não, ainda não! A viagem já era bastante difícil para Marjorie nas circunstâncias atuais. Sentia-me dividido. Com um instinto profundo, queria que ela já tivesse no ventre uma criança minha, mas ao mesmo tempo tinha medo do que mais desejava.

Sabia o que fazer, é claro. A abstinência é impossível nos círculos de Torre, exceto para as Guardiãs, e cobra um pesado tributo das pessoas. Contudo, a gravidez é perigosa para as mulheres trabalhando nas redes de transmissão, e não podemos nos arriscar a uma interrupção de seus ciclos. Desconfiava de que Marjorie ficaria chocada e indignada se eu tentasse protegê-la assim. Não gostaria de que ela reagisse de outra forma. Mas o que podíamos fazer? Pelo menos devíamos conversar a respeito, com toda a franqueza, abertamente. De qualquer forma, a decisão seria dela.

Por trás de mim, Marjorie remexeu-se no sono, gritou "Não, Thyra, não...", e sentou, levando as mãos à cabeça, como se estivesse dominada por um terror total. Corri para ela. Marjorie soluçava de pavor, mas depois que a despertei não foi capaz de me contar o que vira ou sonhara.

Thyra estaria fazendo alguma coisa com ela? Eu não duvidava dessa possibilidade, pois agora já não tinha mais qualquer confiança nos escrúpulos de Thyra. Nem nos de Kadarin. Respirei fundo contra a mágoa que isso me causava. Éramos amigos. O que os teria mudado?

Sharra? Se as chamas de Sharra podiam romper a disciplina de anos em Arilinn, o que não fariam com um telepata destreinado? Marjorie perguntou, meio ansiosa:

- Você esteve um pouco apaixonado por Thyra, não é?

- Eu a desejei - respondi, encarando a verdade. - Esse tipo de coisa é inevitável num círculo tão íntimo. Poderia acontecer com qualquer mulher que alcançasse minha mente. Mas ela não queria, e resistiu. Pelo menos eu sabia que podia acontecer. Thyra empenhou-se ao máximo para ignorar.

Quanto dessa batalha consigo mesma a prejudicara e perturbara? Eu teria falhado a Thyra também? Deveria ter-me esforçado mais para ajudá-la a enfrentar, com plena consciência. Deveria ter cuidado para que todos nós fôssemos francos uns com os outros, como meu treinamento exigia, ainda mais por constatar para onde nossas emoções indisciplinadas nos levavam... à raiva, à violência e ao ódio..

Jamais conseguiríamos controlar Sharra. Mas se compreendêssemos mais cedo o que acontecia conosco, eu teria percebido a maneira como éramos desviados, distorcidos.

Falhara com todos, meus parentes, meus amigos, por amá-los demais, por não querer magoá-los com o que eram.

A experiência estava arruinada, por mais nobre que fosse o sonho de Beltran. Agora, qualquer que fosse o custo, a matriz de Sharra devia ser monitorada, e depois destruída. Mas o que aconteceria com as pessoas absorvidas por Sharra?

A neve continuou a cair durante todo o dia e a noite, e ainda persistia quando acordamos na manhã seguinte, empilhando-se alta em torno das construções de pedra. Senti que deveríamos seguir adiante, apesar de tudo, mas seria uma insanidade. Os cavalos nunca conseguiriam avançar pela neve tão alta. Mas se permanecêssemos acuados ali por muito mais tempo, sem rações, eles não seriam mais capazes de viajar.

Deve ter sido na tarde seguinte - os acontecimentos desse período ficaram um tanto toldados em minha mente - que acordei para ouvir Marjorie gritando de medo. A porta foi arrombada para dentro, e Kadarin surgiu, com meia dúzia dos guardas de Beltran por trás.

Peguei minha espada, mas em poucos segundos fui dominado, e com uma horrível sensação de infinita repetição parei de me debater, imobilizado entre os guardas. Marjorie recuara para um canto. Enquanto Kadarin avançava em sua direção, eu disse a mim mesmo que o mataria se a machucasse; mas ele apenas a levantou, gentilmente, e ajeitou seu próprio manto nos ombros dela.

- Criança tola... não sabia que não poderíamos deixar vocês partirem assim? - Kadarin a entregou a dois guardas e acrescentou: - Levem-na para fora. Não a machuquem, tratem-na com toda a gentileza, mas não a deixem escapar ou pagarão com suas cabeças!

- Você faz guerra contra mulheres? Não podemos acertar tudo só nós dois, de homem para homem?

Ele ainda segurava minha espada; deu de ombros e jogou-a para um canto.

- Chega de seus brinquedos das terras baixas. Aprendi há muito tempo a travar minhas batalhas com armas mais formidáveis. Se acha que eu machucaria Marjorie, é mais tolo do que imaginei. Precisamos de vocês dois.

- Como pode pensar que eu voltaria a trabalhar com você? De jeito nenhum! Prefiro morrer primeiro!

- Sei disso - respondeu ele, num tom quase cordial. - Mas não há o menor sentido em seu heroísmo, meu rapaz.

- O que aconteceu? Descobriu que não era capaz de manipular Sharra sozinho? Quanto destruiu antes de chegar a essa conclusão?

- Não tenho de lhe dar satisfações! - exclamou Kadarin, com uma súbita fúria.

Lutei por mais um momento contra os homens que me seguravam, ao mesmo tempo que desfechei uma violenta agressão mental. Sempre me haviam dito que a raiva desenfreada de um Alton pode matar, e fora disciplinado a jamais permitir que minha ira se tornasse totalmente livre. Mas agora...

Desencadeei toda a raiva de que era capaz, visualizando minhas mãos na garganta de Kadarin, a mente irradiando ódio... Senti que ele estremecia sob a investida, vi-o empalidecer, os joelhos vergarem...

- Depressa! - balbuciou ele, a voz estrangulada. - Derrubem-no... sem sentidos...

Um punho acertou em meu queixo, a escuridão invadiu minha mente. Senti que ficava inerte, pendendo entre os guardas. Kadarin se adiantou e passou a me agredir, as mãos cheias de anéis cortando meu rosto, golpe após golpe, até que desfaleci por completo. Depois, percebi que me arrastavam para a tempestade; o granizo frio no rosto me levou a recuperar um pouco os sentidos. O rosto de Kadarin apareceu diante dos meus olhos, numa névoa vermelha.

- Não quero matá-lo, Lew. Venha comigo sem resistir. Com a boca arrebentada e sangrando, consegui balbuciar:

- É melhor me matar... um homem corajoso, que espanca outro... imobilizado por dois guardas... dê-me dois homens para segurar você... e também o deixarei meio morto... desonrado...

- Ora, poupe-me dessa hipocrisia dos Domínios.. Já passei além de toda conversa de honra e desonra há muito tempo. Não tenho qualquer proveito para você morto. Vai comigo de qualquer maneira; portanto, o que escolhe: acompanhar-me quietinho, como o rapaz sensato que sempre foi ou prefere ser carregado, depois que os guardas o surrarem até ficar sem sentidos? Eles também não gostam de bater em homens indefesos. Ou devo imobilizá-lo para tornar tudo mais fácil?

Kadarin estendeu a mão para a matriz em meu pescoço.

Não! Não! Não outra vez! Soltei um grito frenético, que o fez recuar um passo. Depois, calmamente - e nunca houve nada no mundo tão terrível quanto sua voz baixa, até suave - ele disse:

- Não poderia suportar isso de novo, não é? Mas eu o farei, se for preciso. Por que não poupa esse sofrimento a nós dois?

- Melhor... me matar... em vez disso...

Cuspi o sangue que me enchia a boca. Acertou em sua cara. Sem pressa, ele limpou o rosto. Os olhos faiscavam como os de uma ave de rapina, loucos e inumanos.

- Eu esperava que você me poupasse da pior ameaça. Nascar, vá buscar a moça. Arranque sua matriz. Ela a guarda...

Amaldiçoei-o, tornando a fazer força para me desvencilhar dos guardas.

- Seu demônio, enviado do inferno! Faça o que quiser comigo, mas deixe-a em paz!

- Concorda em me acompanhar sem mais resistência?

Lentamente, derrotado, acenei com a cabeça. Ele deu um sorriso presunçoso e triunfante e sacudiu a cabeça para que os homens me levassem. Deixei que me conduzissem sem mais protestos. Se eu, um homem forte, não era capaz de suportar aquele tormento, como podia permitir que o infligissem a Marjorie?

Os homens nos empurraram ao longo da neve ofuscante. A menos de cem metros da casa, além da linha das árvores, a neve cessou, como se uma torneira tivesse sido fechada; a estrada se estendia verdejante à nossa frente. Olhei aturdido, incrédulo. Kadarin balançou a cabeça.

- Thyra sempre quis fazer experiências com tempestades e manteve vocês dois no mesmo lugar, até que pudéssemos alcançá-los.

Meu instinto fora certo. Deveríamos ter seguido adiante. Eu tinha a obrigação de adivinhar o que estava acontecendo. O desespero me dominou. Um helicóptero nos esperava; levantaram-me para um banco, Marjorie para outro. Haviam amarrado os pulsos de Marjorie com seu lenço de seda, mas ela nada mais sofrera, afora isso. Inclinei-me para tocar sua mão. Kadarin se interpôs entre nós e agarrou meu pulso com dedos de aço.

Arranquei a mão bruscamente, como se ele fosse um cadáver gelado. Tentei fitar os olhos de Marjorie. Juntos, poderíamos subjugá-lo...

- Não adianta, Lew. Não posso lutar contra você, continuar a ameaçá-lo, por todo o caminho até Aldaran.

Kadarin falou sem qualquer inflexão. Enfiou a mão no bolso, tirou um pequeno frasco vermelho e destampou-o.

- Beba isto... agora!

- Não...

- Eu mandei beber! E depressa! Se der um jeito para derramar, não terei outro recurso senão tirar suas matrizes, primeiro a de Marjorie, depois a sua. Não ameaçarei de novo.

Contemplando aqueles olhos inumanos - por todos os Deuses, aquele homem fora meu amigo! Será que ele sabia o que se tornara? - compreendi que ambos nos encontrávamos indefesos em suasmãos. Derrotado, levei o frasco aos lábios e engoli o líquido vermelho.

O helicóptero se dissolveu, o mundo inteiro se dissolveu.

E não voltou.

Eu não sabia na ocasião que droga ele me dera. Ainda não sei direito. Também jamais soube quanto me recordo dos dias subseqüentes que não passam de sonho, quanto é resquício de um estranho núcleo de realidade.

Por um longo tempo, a única coisa que pude ver foi fogo. Incêndio na floresta, nas colinas além de Armida; fogo se abatendo sobre Caer Donn; a grande forma de chamas estendendo braços irresistíveis, destruindo as muralhas do Castelo Storn, como se fossem de papel. Fogo ardendo em minhas próprias veias, fervendo meu sangue.

Postei-me uma vez no ponto mais alto do Castelo Aldaran, contemplei uma centena de homens reunidos, e senti o fogo ardendo atrás de mim, envolvendo-me com sua ânsia e terror. Senti as emoções desenfreadas dos homens projetando-se para o lugar em que me encontrava, com a espada de Sharra entre as mãos, alimentando meus nervos com medo, desejo, ganância...

Outra vez um menino apavorado, coloquei-me entre as mãos de meu pai, aguardando dócil o contato que poderia proporcionar minha herança ou a morte. Senti a fúria aflorando em mim, dominando-me, e deixei que o fogo o engolfasse. Ele se elevou em chamas, queimando, queimando...

Vi Regis Hastur, estendido numa pequena cabana escura, em algum ponto do caminho entre Aldaran e Thendara, e compreendi que ele fracassara. Estava morrendo, o corpo sacudido pelas últimas convulsões fatais, incapaz de cruzar o limiar escuro, agonizante, queimando...

Senti Dyan Ardais me agarrar por trás, senti meu braço estalar entre suas mãos, senti pelo contato a combinação de crueldade e luxúria. Virei-me e irradiei ódio e violência contra ele também, e o vi subir sob a chama de meu ódio, queimando, queimando...

Ouvi Marjorie gritar, impotente, e lutei para recuperar a consciência, e me descobri em meu quarto no Castelo Aldaran. Mas estava imobilizado por enormes pesos. Alguém abriu minha boca à força e despejou outra dose da droga vermelha, e logo me perdi outra vez nos sonhos que não eram sonhos.

Descobri-me no alto de um longo lance de escada, descendo e descendo, interminável, para um vasto poço ardente de inferno, e Marjorie se achava diante de mim, com a matriz de Sharra entre as mãos, o rosto branco e vazio, e a matriz em minhas mãos ardia como fogo. Lá embaixo, os rostos de homens, erguidos em minha direção, irradiando ondas sucessivas de emoção pura, por meu intermédio outra vez, de tal forma que eu queimava sem parar num fogo infernal de fúria e desejo, ardendo, ardendo...

Ouvi Thyra gritando "Não, não, não posso, não quero", e um terrível som de choro. Nem mesmo no leito de morte de seu pai ela chorara assim...

E depois, sem transição, Marjorie estava em meus braços, e me lancei sobre ela, como fizera antes. Cobri-a de beijos frenéticos e desesperados; mergulhei agradecido em seu calor, meu corpo e até o sangue nas veias ardendo, ardendo, tentando num único ato atenuar o frenesi de ira e luxúria que me atormentara, impotente, por dias, meses, anos, eternidades... Tentei controlar-me, sentindo que havia alguma dimensão de realidade nisso que não existira na maioria dos outros sonhos ou ilusões. Tentei gritar, estava acontecendo de novo, a coisa que temia e odiava, a coisa que desejava... a coisa que não ousava ver - era responsável, pessoalmente responsável, por toda aquela crueldade e violência! Era meu próprio ódio, jamais reconhecido, jamais admitido, que eles usavam, canalizando por meu intermédio! Era impotente para me controlar agora; um mundo de frenesi me sacudia, dilacerava-me com garras implacáveis. Marjorie chorava, desamparada, desolada, e pude sentir seu medo e angústia, ardendo em mim, ardendo, ardendo... Um raio passou por meu corpo, uma trovoada ressoou dentro e fora, um mundo de luxúria e fúria despejava-se por minha virilha... ardendo, ardendo...

Estava sozinho. Exausto, esgotado, ainda confuso dos sonhos. Estava sozinho. Onde se encontrava Marjorie? Não aqui, graças a todos os Deuses, não aqui, não aqui! Nada daquilo fora real.

A mente e o corpo em paz, adormeci, mas muito longe, na escuridão, alguém chorava...

 

Capítulo Vinte e Três

- Não é a doença do limiar desta vez, bredu - disse Regis, erguendo a cabeça da matriz. - Agora estou fazendo certo, mas não consigo ver coisa alguma além... além da imagem que me surgiu na viagem para o norte. O fogo e a forma dourada. Sharra. Danilo estremeceu.

- Sei disso. Também vi.

- Pelo menos não me deixou sem sentidos desta vez.

Regis cobriu a matriz. Não mais lhe provocava a doença, apenas um senso intenso de percepção aguçada. Deveria ter sido capaz de entrar em contato com Kennard, ou com alguém em Arilinn, mas não havia nada... a não ser a imensa imagem, ardendo, em correntes, que ele sabia ser Sharra.

Não havia como duvidar: alguma coisa terrível estava acontecendo nas montanhas.

- Creio que todos os telepatas em Darkover já devem saber, a esta altura, Regis. Não estão sempre vigilantes a essas coisas nas Torres? Não há necessidade de você se sentir culpado porque não pode fazer tudo sozinho, ainda mais sem treinamento.

- Não me sinto exatamente culpado, mas sim muito preocupado. Tentei também entrar em contato com Lew, mas não consegui.

- Talvez ele esteja são e salvo em Arilinn, por trás de um campo de força.

Regis desejou poder pensar assim. Tinha a mente lúcida, e sabia que a doença não voltaria, mas o reaparecimento da imagem de Sharra o perturbava profundamente. Ouvira histórias de matrizes fora de controle, a maioria da Era do Caos, mas algumas mais recentes. Uma nuvem cobriu o sol, e ele estremeceu de frio.

- Acho que devemos seguir viagem, se você já acabou - sugeriu Danilo.

- Acabei? Nem sequer comecei! - Desconsolado, Regis tornou a guardar a matriz na bolsa. - Vamos continuar, mas deixe-me comer alguma coisa antes.

Ele aceitou o pedaço de carne seca que Danilo estendeu e sentou para mastigá-lo. Os dois se acomodavam lado a lado numa árvore caída, os cavalos pastando ali perto, ao longo da neve derretida.

- Há quanto tempo estamos viajando, Dani? Perdi a contagem durante a doença.

- Seis dias, eu acho. Devemos estar a poucos dias de Thendara. Talvez esta noite alcancemos os arredores das terras de Armida, e posso dar um jeito de avisar meu pai. Lew disse que os homens de Beltran lhe enviariam a mensagem de que eu estava bem, mas não confio nele.

- Meu avô sempre considerou Lorde Kermiac um homem honrado. Beltran é um filho estranho para um homem assim.

- Talvez ele fosse bastante decente até cair sob o domínio de Sharra - comentou Danilo. - Ou talvez Kermiac tenha reinado por tempo demais. Sempre ouvi dizer que a terra que vive por tempo demais sob o regime de velhos torna-se ansiosa para mudanças a qualquer custo.

Regis se perguntou o que aconteceria nos Domínios quando a regência de seu avô terminasse, quando o Príncipe Derik Elhalyn fosse coroado. O povo estaria ansioso por mudança a qualquer custo? Regis recordou a reunião do Conselho do Comyn em que testemunhara, junto com Danilo, a luta pelo poder. Não seriam meros observadores quando Derik assumisse o poder, mas participantes. O poder era sempre maligno, sempre corrompido? Dani disse, como se lesse os pensamentos do amigo:

- Mas Beltran não queria o poder apenas para mudar as coisas; queria um mundo inteiro para se divertir.

Regis surpreendeu-se com a lucidez da análise e pensou outra vez, com satisfação, que, se o destino de Darkover algum dia dependesse dos Hasturs, gostaria de ter alguém como Danilo para ajudá-lo nas decisões. Inclinou-se, apertou com força a mão do amigo e disse apenas:

- Vamos selar os cavalos. Talvez possamos evitar que ele se divirta com o nosso mundo.

Já iam montar quando ouviram um zumbido distante, que logo se transformou num rugido que povoou o céu. Danilo olhou para cima; sem dizerem nada, ele e Regis levaram os cavalos para a cobertura das árvores. Mas o helicóptero passou direto por cima, sem lhes dispensar qualquer atenção.

- Não tem nada a ver conosco - comentou Danilo, depois que o helicóptero sumiu de vista. - Deve ser alguma missão dos terráqueos.

Ele deixou escapar a respiração contida, soltou uma risada e acrescentou, contrafeito:

- Nunca mais ouvirei esse som sem medo!

- De qualquer forma, um dia virá em que teremos de usá-los também. Talvez as terras de Aldaran e os Domínios se compreendessem melhor se a distância entre Thendara e Caer Donn não fosse de dez dias de viagem.

- É possível.

Regis sentiu que Danilo se retraía, e não falou mais nada. Enquanto cavalgavam, ele refletiu que, quer gostasse ou não, os terráqueos ali se encontravam, e nada jamais poderia, voltar a ser como antes. Não era errado o que Beltran queria, pensou Regis. O problema era o meio que ele escolhera para realizar seu sonho. Regis teria optado por um caminho mais seguro.

Ele percebeu de repente, com espanto e repulsa, o rumo pelo qual seus pensamentos enveredavam. O que tinha a ver com tudo aquilo?

Percorrera aquela mesma estrada, vindo de Nevarsin, menos de um ano atrás, acreditando na ocasião que não tinha laran, que era livre para recusar sua herança e sair pelo espaço, seguindo nas naves estelares terráqueas até os confins do Império. Levantou o rosto para contemplar Liriel, de um violeta-claro no céu de meio-dia, e pensou que nenhum darkovano jamais pusera os pés em qualquer de suas luas. O avô assumira o compromisso de ajudá-lo a partir, se Regis ainda quisesse, depois de sua temporada na Guarda. Ele não quebraria sua palavra.

Mais dois anos, concedidos ao corpo de cadetes e ao Comyn. Depois, estaria livre. Contudo, um peso invisível parecia oprimi-lo, mesmo enquanto fazia planos para a liberdade.

Danilo parou seu cavalo subitamente.

- Cavaleiros, Lorde Regis, Na estrada, à nossa frente.

Regis também parou, deixando as rédeas frouxas no pescoço do pônei.

- Devemos sair da estrada?

- Creio que não. Já entramos nos limites dos Domínios, e está seguro aqui, Lorde Regis.

Regis franziu as sobrancelhas ao tom formal, compreendendo de repente seu significado. No isolamento dos últimos dias, sob a tensão intensa, todas as barreiras artificiais haviam caído; eram apenas dois jovens da mesma idade, amigos, bredin. Agora, nos Domínios, outra vez na presença de estranhos, ele era o herdeiro de Hastur, e Danilo, seu escudeiro. Regis sorriu, um pouco pesaroso, aceitando a necessidade de tudo aquilo, e deixou que Danilo se adiantasse alguns passos. Olhando as costas do amigo, ele pensou, com um estranho calafrio, que era a verdade literal, não apenas palavras: Dani morreria em sua defesa.

Era um pensamento assustador, embora não devesse ser tão estranho. Sabia muito bem que qualquer um dos guardas que o escoltavam para um lado e outro, quando era um menino doentio, ou o acompanharam na ida e volta de Nevarsin, prestara muitos juramentos de protegê-lo com sua própria vida. Mas nunca fora completamente real para ele até que Danilo, por sua livre e espontânea vontade, levado pelo amor, assumira esse compromisso. Regis continuou a avançar, com o controle firme que aprendera, mas sentia-se todo arrepiado. Era isso o que significava ser um Hastur?

Podia ver os cavaleiros agora. Os primeiros usavam o uniforme verde e preto que ele próprio vestira no verão passado. A Guarda do Comyn! E um grupo grande de outros homens, sem uniformes. Só que não havia estandartes, não havia formação de desfile. Aquela era uma expedição de guerra. Ou, pelo menos, disposta a lutar!

Os viajantes comuns teriam saído da estrada, - deixando os guardas passarem. Em vez disso, Regis e Danilo seguiram direto para eles, sem diminuir o ritmo. O líder dos guardas na vanguarda - Regis reconheceu-o agora, o jovem oficial Hjalmar - baixou sua lança e ofereceu o desafio formal:

- Quem anda nos Domínios... - Ele fez uma pausa abrupta e esqueceu o resto, para exclamar: - Lorde Regis!

Gabriel Lanart-Hastur adiantou-se apressado, parou seu cavalo ao lado de Regis e lhe estendeu as mãos.

- Louvado seja o Senhor da Luz, você está são e salvo! Javanne se desesperava de medo por você!

Regis compreendeu que Gabriel teria sido culpado por deixá-lo partir sozinho. Devia-lhe uma desculpa. Só que não havia tempo para isso agora. Os cavaleiros os cercaram, e ele notou que havia muitos membros do Conselho do Comyn entre os guardas, além de outros que não reconheceu. À frente, num enorme cavalo cinza, postava-se Dyan Ardais. Seu rosto severo e orgulhoso relaxou um pouco ao ver Regis, e ele disse, em sua voz áspera mas musical:

- Deu um susto e tanto a todos nós, parente. Temíamos que estivesse morto ou prisioneiro em algum lugar das montanhas. - Seus olhos se desviaram para Danilo; o rosto se contraiu, mas a voz se manteve firme quando acrescentou: - Dom Syrtis, a notícia chegou a Thendara, enviada pelos terráqueos, e transmitida a nós... uma mensagem para seu pai, senhor, de que estava vivo e bem.

Danilo inclinou a cabeça e respondeu com um formalismo frio:

- Fico agradecido, Lorde Ardais.

Regis pôde perceber a dificuldade com que as palavras corteses saíam. Olhou para Dyan com alguma curiosidade, surpreso com a imediata comunicação da mensagem tranqüilizadora, perguntando-se por que Dyan não encarregara um subordinado de transmiti-la. Mas logo compreendeu a resposta. Dyan tinha o comando daquela expedição, e consideraria isso como seu dever.

Independentemente de seus defeitos e conflitos pessoais, Regis sabia, a fidelidade de Dyan ao Comyn vinha em primeiro lugar. Qualquer coisa que fizesse era subordinada a isso. Provavelmente nunca ocorrera a Dyan que sua vida particular pudesse afetar o Comyn. Era um pensamento indesejável, e Regis tentou rejeitá-lo, mas persistiu mesmo assim. E ainda mais inquietante era a noção de que, se Danilo fosse um cidadão particular, em vez de um cadete, não teria a menor importância como Dyan o tratasse ou maltratasse. Mas era evidente que Dyan esperava alguma explicação, e Regis disse:

- Danilo e eu fomos mantidos prisioneiros em Aldaran. Dom Lewis Alton nos libertou.

O título formal de Lewis tinha uma estranha ressonância em seus ouvidos. Não se lembrava de tê-lo usado alguma vez antes.

Dyan virou a cabeça, e Regis avistou a liteira entre cavalos no centro da coluna. Seu avô? Viajando naquela estação? Depois, com os sentidos aguçados que começava a aprender a usar, ele soube que era Kennard, antes mesmo que Dyan falasse.

- Seu filho está seguro, Kennard. Um traidor, talvez, mas seguro.

- Ele não é um traidor - protestou Regis. - Também era mantido como prisioneiro. Libertou-nos na ocasião em que fugia.

Ele se absteve de revelar a informação de que Lew fora torturado, mas Kennard soube mesmo assim: Regis ainda não era capaz de erguer barreiras apropriadas. Kennard empurrou para o lado as cortinas de couro da liteira e disse:

- O aviso veio de Arilinn... você sabe o que está acontecendo em Aldaran? O despertar de Sharra?

Regis constatou que Kennard ainda tinha as mãos inchadas, o corpo encurvado.

- Lamento vê-lo doente demais para montar, Tio.

Em sua mente, a angústia mais intensa era a recordação de Kennard durante aqueles anos em Armida, como Regis o vira no mundo cinzento. Alto, empertigado e forte, domando seus próprios cavalos pelo prazer que isso lhe proporcionava, orientando os homens nas linhas de fogo com a sabedoria do melhor dos comandantes e trabalhando tanto quanto qualquer um. Lágrimas não derramadas arderam nos olhos de Regis pelo homem que lhe era mais próximo como um pai. Suas emoções flutuavam quase na superfície nos últimos dias, e queria chorar pelo sofrimento de Kennard. Mas controlou-se e se inclinou de cima do cavalo sobre a mão entrevada do parente.

- Lew e eu nos separamos com palavras ásperas, mas não pude acreditar que ele tivesse se tornado um traidor - disse Kennard. -Não quero a guerra com Lorde Kermiac...

- Lorde Kermiac está morto, Tio. Lew era um hóspede de honra em sua casa. Depois de sua morte, porém, Beltran e Lew brigaram. Lew se recusou...

Cavalgando ao lado da liteira de Kennard, Regis relatou tudo o que sabia sobre Sharra, até o momento em que Lew suplicara a Beltran que renunciasse às suas intenções, prometendo mobilizar a ajuda do Conselho do Comyn... e como Beltran os tratara em seguida. Os olhos de Kennard fecharam-se em angústia quando Regis contou como Kadarin espancara seu filho. Jamais ocorreria a Regis poupá-lo desse sofrimento. Afinal, Kennard também era telepata.

Depois que ele concluiu, revelando como Lew os libertara, com a ajuda de Marjorie, Kennard balançou a cabeça, com uma expressão sombria.

- Esperávamos que Sharra permanecesse inativa para sempre, sob a guarda do povo da forja. Enquanto assim continuasse, não os privaríamos de sua deusa.

- Um sentimentalismo que pode nos custar caro - comentou Dyan. - O garoto parece ter-se comportado com mais coragem do que eu o julgava capaz. Agora, a questão é a seguinte: o que vamos fazer?

- Disse que o aviso veio de Arilinn, Tio. Isso significa que Lew está são e salvo?

- Ele não está em Arilinn, e a Guardiã ali o procurou, mas não conseguiu descobri-lo. Receio que ele tenha sido recapturado. Só temos a informação de que Sharra fora despertada e provocava destruição nas Hellers. Reunimos todos os telepatas que pudemos mobilizar fora das Torres, na esperança de conseguirmos controlá-la de alguma forma. Nada menos poderia me fazer sair agora... - Ele olhou com uma expressão neutra os pés e as mãos entrevados. -Sou treinado numa Torre, e provavelmente sei mais sobre o trabalho com matriz do que qualquer outra pessoa que não esteja numa Torre.

Regis, seguindo ao seu lado, especulou se Kennard seria bastante forte. Teria condições de enfrentar Sharra? Kennard respondeu à pergunta não formulada, dizendo em voz alta:

- Não sei, filho, mas tenho de tentar. Só espero não ter de enfrentar Lew, se ele foi forçado a se submeter a Sharra de novo. Ele é meu filho, e não quero encará-lo como inimigo. - Seu rosto se contraiu em determinação e pesar. - Mas não hesitarei, se for preciso.

E Regis ouviu também o que ele não disse em voz alta: Mesmo que deva matá-lo dessa vez.

Capítulo Vinte c Quatro

(Conclusão da narrativa de Lew Alton)

Até hoje, nunca soube nem fui capaz de adivinhar por quanto tempo fui mantido sob a droga que Kadarin me obrigara a tomar. Não houve momento de transição, nenhum período de foco incompleto. Um dia minha cabeça desanuviou de repente, e me descobri sentado numa cadeira na suíte de hóspedes em Aldaran, calçando as botas. Uma bota se achava no pé, a outra fora, mas não tinha lembrança de ter posto a primeira ou do que fizera antes disso.

Levantei as mãos para o rosto lentamente. A última recordação nítida era a de ter engolido a droga que Kadarin me dera. Depois disso, tudo fora como um sonho, quase lembranças alucinatórias de ódio e desejo, fogo e frenesi. Sabia que algum tempo transcorrera, mas não tinha a menor idéia de quanto. Ao engolir a droga, meu rosto sangrava dos golpes violentos que recebera de Kadarin. Agora, tinha o rosto bastante sensível, com cicatrizes ainda saltadas e doloridas, mas todos os ferimentos já haviam fechado. Uma dor intensa na mão direita, onde tinha a marca da queimadura antiga de matriz do meu primeiro ano em Arilinn, provocou-me um sobressalto e levou-me a virá-la. Fiquei olhando para a palma sem compreender. Durante três anos e mais, fora uma cicatriz branca, do tamanho de uma moeda, um trecho de pele enrugada, de aparência desagradável.

Agora... continuei a olhar, aturdido. A mancha branca desaparecera; ou melhor, fora substituída por uma queimadura em carne viva, vermelha, infeccionada, pela metade da largura de minha mão. E doía demais.

O que eu andara fazendo? No fundo da mente, tinha certeza absoluta de que estivera deitado ali, sofrendo alucinações, durante todo o tempo. Em vez disso, descobria-me agora de pé, meio vestido. Afinal, o que estava acontecendo?

Fui para o banheiro e contemplei o reflexo no espelho grande e rachado.

O rosto que havia ali não era o meu.

Minha mente oscilou por um instante, à beira da loucura. Depois, pouco a pouco, constatei que os olhos, os cabelos, as sobrancelhas familiares e o queixo eram os mesmos. Mas o conjunto do rosto era uma rede assustadora de cicatrizes se cruzando, vergões vermelhos, equimoses arroxeadas. Um lábio fora cortado e já cicatrizara, ficara todo contraído, dando-me uma expressão permanente de sorriso desdenhoso. Havia muitos fios brancos nos cabelos; eu parecia anos mais velho. Especulei de repente, num pânico insano, se me haviam mantido drogado ali por muitos anos, enquanto eu envelhecia...

Tratei de conter o ímpeto de pânico. Usava as mesmas roupas que tinha ao ser capturado. Estavam amarrotadas e sujas, mas não puídas e esfiapadas. Portanto, só estivera inconsciente pelo tempo necessário para que os ferimentos da surra cicatrizassem e para adquirir alguns novos, além daquela horrível queimadura na mão. Afastei-me do espelho, lançando um último olhar pesaroso para a ruína que era meu rosto. Quaisquer que fossem as pretensões de boa aparência que pudesse ter antes, haviam desaparecido para sempre. Muitas das cicatrizes estavam fechadas, o que significava que não ficariam melhor do que agora.

Minha matriz voltara ao saco pendurado no pescoço, embora a tira de couro cortada por Kadarin tivesse sido substituída por um cordão de seda. Tateei para tirá-la. Antes de pegar a pedra, a imagem surgiu, dourada, ardendo... Sharra! Com um estremecimento de horror, larguei a bolsa no mesmo instante.

O que teria acontecido? Onde estava Marjorie?

Ou o pensamento a chamou, ou fora provocado por sua presença iminente. Ouvi de novo o rangido da tranca da porta, e ela entrou, parou de repente, fitando-me com um estranho medo. Meu coração afundou para as solas das botas. Aquele sonho, entre todos os sonhos, fora verdadeiro? Por um momento angustiante, desejei que ambos tivéssemos morrido juntos na floresta. Pior do que a tortura, pior do que a morte, era ver Marjorie me contemplar com medo... E, depois, ela murmurou:

- Graças a Deus! Você despertou desta vez, e me reconhece!

Marjorie correu para meus braços. Apertei-a com força. Minha vontade era nunca mais largá-la. Ela soluçava.

- É você outra vez! Durante todo esse tempo, nunca olhou para mim, nem uma única vez, apenas para a matriz...

Um horror gelado me invadiu. Portanto, alguma coisa acontecera de fato.

- Não me lembro de nada, Marjorie, absolutamente nada, desde o momento em que Kadarin me drogou. Por tudo o que sei, passei o tempo todo neste quarto. O que aconteceu?

Senti que ela tremia.

- Não se lembra de nada? Nem do povo da forja, nem mesmo do incêndio em Caer Donn?

Meus joelhos começaram a vergar; arriei na cama e ouvi minha voz trêmula balbuciar:

- Não me lembro de nada, apenas de sonhos terríveis... - As implicações das palavras de Marjorie me deixaram atordoado. Com um esforço intenso, controlei o tremor interior e consegui sussurrar: - Juro que não me lembro de nada, absolutamente nada. Qualquer coisa que eu possa ter feito... Diga-me, em nome de Zandru, eu a machuquei... maltratei?

Ela tornou a me abraçar e murmurou:

- Você nem sequer olhou para mim. Muito menos me tocou. Foi por isso que eu disse que não podia continuar.

Sua voz definhou. Ela pôs a mão na minha. Soltei um grito de dor, Marjorie retirou a mão no mesmo instante e sussurrou, com ternura:

- Sua pobre mão! - Ela examinou-a atentamente. - Mas está melhor, muito melhor.

Não me agradou pensar no que devia ter ficado, se aquilo era melhor. Não era de admirar que o fogo ardesse em todos os meus pesadelos. Mas como, em nome de todos os demônios de todos os infernos, eu queimara a mão daquele jeito?

Só havia uma explicação. Sharra. De alguma forma, Kadarin me obrigara a voltar ao serviço de Sharra. Mas como, como? Como ele podia usar os conhecimentos de meu cérebro enquanto a mente consciente se mantinha em outro lugar? Eu poderia jurar que era impossível. O trabalho de matriz exige uma concentração deliberada e consciente... Cerrei os punhos. À dor lancinante na palma, tornei a abri-los, devagar.

Ele ousara! Ousara roubar minha mente, minha consciência...

Mas como? Como?

Só havia uma resposta, apenas uma coisa que ele poderia ter feito; usar toda a raiva, ódio e compulsão flutuando livres em minha mente, depois que perdera o controle consciente... e canalizar tudo por intermédio de Sharra! Todo o meu ódio intenso, os frenesis do inconsciente, libertados da disciplina que eu impunha e alimentados por aquela coisa insidiosa.

Kadarin fizera isso comigo, enquanto meu consciente permanecia em suspensão. Em comparação, o crime de Dyan fora uma brincadeira de criança. A ruína do meu rosto, a queimadura na mão, tudo isso nada significava. Ele roubara minha mente consciente, usara meu inconsciente, sem controle, as paixões reprimidas... Era terrível! Perguntei a Marjorie:

- Ele a forçou também a entrar em Sharra? Ela estremeceu.

- Não quero falar sobre isso, Lew - balbuciou, choramingando como um cachorrinho machucado. - Por favor, não... não insista. Vamos apenas... apenas ficar juntos, enquanto podemos.

Puxei-a para a cama, ao meu lado, e aninhei-a no círculo de meus braços. Meus pensamentos eram sombrios. Marjorie acariciou com as pontas dos dedos meus rosto todo arrebentado, e pude sentir seu horror ao contato das cicatrizes. Murmurei, a voz presa na garganta:

- Meu rosto está... repulsivo demais para você?

Ela se inclinou, encostou os lábios nas cicatrizes e murmurou, com a simplicidade que, mais do que qualquer outra coisa, significava Marjorie para mim:

- Você nunca poderia ser horrível para mim, Lew. Só estava pensando na dor que deve ter sentido, meu querido.

- Por sorte, não me lembro de muita coisa.

Por quanto tempo poderíamos continuar assim, antes de ser-mos interrompidos? Eu sabia, sem precisar perguntar, que ambos éramos prisioneiros agora, que não havia esperança de qualquer manobra como a que realizáramos antes. Kadarin, ao que parecia, podia obrigar-nos a fazer qualquer coisa. Absolutamente qualquer coisa!

Apertei-a com força, numa angústia impotente. Creio que foi nesse momento que compreendi, pela primeira vez, o que a impotência significava, o desamparo assustador e total da verdadeira impotência.

Jamais desejara o poder pessoal. Mesmo quando me fora confiado, eu tentara renunciar. E agora não podia sequer proteger aquela jovem, minha esposa, de quaisquer torturas, mentais ou físicas, que Kadarin quisesse infligir-lhe.

Fora submisso durante toda a minha vida, disposto a ser comandado, disposto a disciplinar minha raiva, a aceitar a continência no auge do início da virilidade, curvando a cabeça a qualquer jugo legal que me impunham.

E agora me descobria impotente, de pés e mãos atados. O que haviam feito comigo, poderiam fazer de novo... E agora, quando mais precisava de força, estava de fato impotente...

- Marjorie, querida, prefiro morrer a magoá-la, mas preciso saber o que está acontecendo. - Não perguntei sobre Sharra; seu tremor já era resposta suficiente. - Como ele permitiu que você viesse me ver agora, depois de tanto tempo?

Ela controlou seus soluços para falar:

- Eu disse a Kadarin... e ele sabia que era para valer... que, se não libertasse sua mente e nos deixasse ficar juntos, eu me mataria. Ainda posso fazer isso, e ele não seria capaz de impedir.

Senti um calafrio, que penetrou até os ossos. Marjorie continuou, mantendo a voz suave, e apenas eu, que conhecia a disciplina que a tornara uma Guardiã, podia adivinhar quanto isso lhe custava:

- Ele não pode controlar... a matriz, a coisa, sem a minha participação. E sob o efeito de drogas não posso fazer nada. Kadarin bem que tentou, mas não deu certo. Assim, tenho esse último poder para desafiá-lo. Ele fará quase qualquer coisa para evitar que eu me mate. Sei que já deveria ter feito isso, mas tinha... - A voz tremeu, fora de controle, por um instante. - ...tinha de ver você de novo, quando fosse capaz de me reconhecer, e perguntar...

Eu me sentia mais desesperadamente assustado do que nunca.

- Kadarin sabe que fomos para a cama juntos? Marjorie sacudiu a cabeça.

- Tentei lhe dizer, mas acho que agora ele só escuta o que quer. Ficou completamente louco. De qualquer forma, não faria a menor diferença para ele, pois acha que é apenas uma superstição do Comyn. - Ela mordeu o lábio. - E não pode ser tão perigoso quanto você pensa. Ainda estou viva e bem.

Não muito bem, refleti, observando sua palidez, as tênues linhas azuladas em torno da boca. Viva, sim. Mas por quanto tempo mais seria capaz de suportar? Kadarin a pouparia ou a usaria de forma ainda mais implacável para alcançar seus objetivos - quaisquer que fossem agora, em sua loucura - antes que o corpo frágil de Marjorie cedesse?

Será que ele sabia que a estava matando? Será que se dera o trabalho de providenciar uma monitoração de Marjorie?

- Você falou num incêndio em Caer Donn...?

- Você testemunhou tudo, Lew. Não se lembra de nada?

- Não. Só de fragmentos de sonhos. Pesadelos terríveis. Ela tocou de leve na horrível queimadura em minha mão.

- Foi lá que você sofreu isto. Beltran deu um ultimato. Não foi por sua própria vontade... bem que ele tentou se esquivar... mas acho que também se encontra impotente agora nas mãos de Kadarin. Fez ameaças, e os terráqueos se recusaram a atender. Kadarin levou-nos para a parte mais alta da cidade, de onde se pode avistar tudo ao redor, e... oh, Lew, foi horrível, o fogo atingindo o coração da cidade, as chamas se elevando por toda parte, gritos...

Marjorie se virou, comprimindo o rosto contra um travesseiro, a voz saindo abafada quando acrescentou:

- Não posso... não posso contar. Sharra já é bastante horrível, mas aquele fogo... nunca sonhei, nunca imaginei... E ele disse que na próxima vez seria o espaço-porto e as naves!

Caer Donn. Nossa cidade mágica dos sonhos. A cidade que eu vira transformada por uma síntese da ciência terráquea e dos poderes psíquicos darkovanos. Destruída, incendiada. Em ruínas.

Como nossas vidas, como nossas vidas... E Marjorie e eu éramos responsáveis. Ela soluçava incontrolável agora:

- Eu deveria ter morrido primeiro. E morrerei antes de usar... esse poder de destruição outra vez!

Eu a abraçava desesperado. Podia ver o sinal do Comyn gravado em meu pulso, a poucos centímetros da terrível queimadura. Não havia esperança para mim agora. Era um traidor.

Por um momento, o tempo se confundindo em minha mente, descobri-me ajoelhado diante da Guardiã em Arilinn e ouvi minhas próprias palavras:

- ...juro por minha vida que os poderes que possa alcançar serão usados apenas para o bem de minha casta e de meu povo, nunca por vantagem pessoal ou objetivos particulares...

Eu cometera perjúrio. Usara meus dons e as habilidades adquiridas na Torre para levar a ruína e destruição às pessoas que deveria salvaguardar e proteger, por um duplo juramento, como Comyn e como telepata de uma Torre.

Marjorie e eu mantínhamos um contato profundo. Ela me fitou, os olhos arregalados em horror e protesto, e sussurrou:

- Você não fez isso por sua livre e espontânea vontade. Foi forçado, drogado, torturado...

- Não faz a menor diferença. - Era minha própria raiva, meu próprio ódio, que eles haviam usado. - Nem mesmo para salvar minha vida, nem mesmo para salvar a sua, deveria ter permitido que nos trouxessem de volta. Deveria ter feito com que Kadarin nos matasse.

Não havia nenhuma esperança para qualquer dos dois agora, nenhum meio de escapar. Kadarin podia drogar-me de novo, forçar-me outra vez, e não teria a menor possibilidade de resistir. Meu próprio ódio desconhecido me pusera à sua mercê, e não tinha como fugir a isso.

A não ser pela morte.

Marjorie... Olhei para ela, que se contorcia em angústia. Também não havia escapatória para ela. Deveria ter feito com que Kadarin a matasse depressa, ainda na cabana de pedra. E assim ela morreria limpa, e não daquele jeito, lentamente, obrigada a matar.

Ela tateou na cintura do vestido e tirou uma adaga pequena e afiada, murmurando:

- Esqueceram que eu tenho isto. É bastante afiada, Lew? Acha que pode fazer isso por nós dois?

Foi então que perdi o controle por completo e chorei desesperado, apertando-a em meus braços. Não havia esperança para nenhum dos dois. Eu sabia disso. Mas que terminasse assim, com Marjorie falando calmamente de uma adaga para nos matar, como teria indagado se um bordado tinha as cores certas... isso eu não podia suportar, era além de toda e qualquer capacidade de resistência.

Quando me acalmei um pouco, depois de um longo momento, levantei-me, fui até a porta e disse em voz alta:

- Vamos trancá-la por dentro desta vez. A morte, pelo menos, é um assunto particular.

Puxei a tranca. Não esperava que agüentasse por muito tempo quando viessem nos buscar, mas àquela altura já não faria a menor diferença.

Voltei para a cama e tirei as botas que me descobrira calçando com algum propósito desconhecido. Ajoelhei-me diante de Marjorie e tirei suas sandálias. Também tirei as travessas de seus cabelos e deitei-a na cama.

Pensava ter deixado o Comyn. Agora, no entanto, ia morrer para deixar Darkover nas mãos do Comyn, as únicas mãos que podiam proteger nosso mundo. Puxei Marjorie para os meus braços por um momento.

Estava pronto para morrer. Mas teria coragem para matá-la?

- Você deve - sussurrou Marjorie -, pois sabe o que eles me obrigarão a fazer. E o que os terráqueos farão com todo o nosso povo depois disso.

Ela nunca me parecera tão bonita. Os cabelos cor de chamas caíam pelos ombros, cintilando com a luz. Desatou a chorar. Abracei-a mais uma vez, apertando-a com tanta força que devo tê-la machucado. Ela também me apertou, murmurando:

- É o único jeito, Lew. O único jeito. Mas eu não queria morrer, Lew, queria viver com você, acompanhá-lo para as terras baixas, e desejava... desejava ter seus filhos.

Jamais conheci outro sofrimento na vida que se comparasse àquele momento de agonia, com Marjorie soluçando em meus braços, dizendo que queria ter meus filhos. Senti-me contente porque não viveria por muito tempo para me lembrar da cena; tinha a esperança de que os mortos não recordavam coisa alguma...

Nossas mortes eram tudo o que se interpunha entre o nosso mundo e uma terrível destruição. Peguei a adaga. Encostei o dedo no gume, uma gota de sangue surgiu, e experimentei uma satisfação insana por saber que era tão afiada... Inclinei-me para um último e longo beijo nos lábios de Marjorie.                                   .   -

- Tentarei não... não machucá-la, minha querida... Ela fechou os olhos, sorriu e sussurrou:

- Não tenho medo.

Fiz uma breve pausa, para firmar a mão, a fim de poder desfechar um único golpe, rápido e indolor. Podia ver a pequena veia pulsando na base de sua garganta. Mais uns poucos momentos, e ambos estaríamos em paz. E que Kadarin se danasse...

Um espasmo de horror me convulsionou. Quando estivéssemos mortos, o último resquício de controle desapareceria da matriz. Kadarin morreria, é claro, nas chamas de Sharra. Mas as chamas nunca morreriam. Sharra, desperta e voraz, continuaria a destruir, consumindo nosso povo, nosso mundo, Darkover inteiro...

E por que deveríamos nos importar com isso? Os mortos estão em paz.

E em troca de uma morte indolor para nós, deixaríamos que nosso mundo fosse destruído nas chamas de Sharra?

A adaga caiu de minha mão. Ficou nos lençóis, ao nosso lado, mas para mim se encontrava tão distante como se estivesse numa das luas. Amargurado, lamentei não poder conceder a Marjorie, pelo menos, a graça daquela morte rápida e indolor. Ela já sofrera demais. Era certo que eu continuasse a viver pelo tempo suficiente para expiar minha traição com o sofrimento. Mas era cruel, injusto, fazer com que Marjorie partilhasse esse sofrimento. Contudo, sem o seu treinamento de Guardiã, eu não viveria pelo tempo de que precisava para fazer o que devia. Ela abriu os olhos e insistiu, a voz trêmula:

- Não espere, Lew. Faça agora. Lentamente, balancei a cabeça.

- Não podemos seguir por esse caminho fácil, meu amor. Vamos morrer, sem dúvida. Mas devemos usar nossas mortes. Devemos fechar os portões para Sharra antes de morrer, e destruir a matriz, se for possível. Temos de entrar nela. Não há possibilidade... você sabe que não existe nenhuma... de sobrevivermos a isso. Mas há uma possibilidade de que possamos viver pelo tempo suficiente para bloquear o acesso e salvar nosso mundo da destruição pelo fogo de Sharra.

Ela me fitou em silêncio por um longo momento, os olhos arregalados em choque e temor, antes de murmurar:

- Prefiro morrer.

- Eu também, mas essa saída fácil não é para nós, querida.

Sacrificáramos esse direito. Olhei com anseio para a pequena adaga, com sua lâmina afiada. Marjorie acabou balançando a cabeça em concordância. Pegou a adaga, contemplou-a pesarosa, depois se levantou, foi até a janela e jogou-a pela abertura estreita. Voltou, sentou ao meu lado e disse, fazendo um esforço para firmar a voz:

- Agora não posso perder a coragem de novo. - E depois, os olhos ainda marejados de lágrimas, uma insinuação mínima do riso antigo surgiu em sua voz, quando acrescentou: - Pelo menos passaremos uma noite juntos, numa cama decente.

Uma noite pode durar uma vida inteira?

Talvez. Se você sabe que urna vida inteira é medida por uma única noite. Murmurei, a voz rouca, abraçando-a:

- Não vamos desperdiçar nenhum momento.

Nenhum dos dois tinha força suficiente para muito amor físico. Passamos a maior parte da noite descansando nos braços um do outro, às vezes conversando, com mais freqüência nos acariciando em silêncio. Pelo longo treinamento em disciplinar os pensamentos indesejáveis ou perigosos, fui capaz de eliminar quase por completo as reflexões sobre o que nos aguardava no dia seguinte. Por mais estranho que pudesse parecer, meu pior pesar não era a morte, mas os muitos anos de vida comum e tranqüila que jamais conheceríamos, o conhecimento angustiante de que Marjorie nunca veria as colinas nos arredores de Armida, nunca chegaria ali como minha esposa. Perto do amanhecer, Marjorie chorou um pouco pela criança que não viveria por tempo suficiente para gerar. Ao final, aninhada em meus braços, ela mergulhou num sono irrequieto. Permaneci acordado, pensando em meu pai e no meu filho ainda por nascer, aquela frágil centelha de vida, que mal fora ateada e já estava prestes a se extinguir. Desejei que Marjorie fosse pelo menos poupada desse conhecimento. Não, era certo que alguém chorasse por isso, e não me restavam mais lágrimas.

Outra morte em minha conta...

Finalmente, quando o sol nascente já tingia os picos distantes de escarlate, também dormi. Foi como uma graça derradeira de alguma deusa desconhecida o fato de não ter pesadelos de fogo, apenas trevas misericordiosas, o manto negro de Avarra que encobre nosso sono.

Acordei ainda nos braços de Marjorie. O sol invadira o quarto; os olhos dourados de Marjorie fitavam-me arregalados pelo medo.

- Eles virão nos buscar em breve - murmurou ela. Beijei-a, devagar, determinado, antes de me levantar.

- Assim termina o período de espera.

Fui puxar a tranca da porta. Vesti-me da melhor forma possível, com uma túnica de seda, um gibão de couro e um calção de couro tingido de dourado. Um herdeiro do Comyn não ia ao encontro da morte como um criminoso comum prestes a ser enforcado! Marjorie devia ter sentido a mesma coisa no dia anterior, pois pusera o seu melhor vestido, azul-claro, com bordados de seda, um decote profundo. Em vez das trancas habituais, prendera os cabelos no alto da cabeça com uma fita. Parecia linda e orgulhosa. Guardiã, comynam.

Os servos nos trouxeram o desjejum. Fiquei satisfeito por ela ser capaz de sorrir orgulhosa, agradecendo com sua cortesia normal. Não havia vestígios em seu rosto das lágrimas e do terror de ontem; mantínhamos a cabeça erguida e sorrimos para os olhos um do outro. Nenhum dos dois se atreveu a falar.

Como eu já previra que aconteceria, Kadarin entrou quando partilhávamos em silêncio a última fruta na bandeja. Não sei como meu corpo podia conter tanto ódio. Senti-me fisicamente doente com a ânsia de matá-lo, de sentir os dedos afundando na carne de sua garganta.

E, no entanto - como posso explicar? - nada restava para odiar. Levantei os olhos para fitá-lo apenas uma vez, e logo desviei o rosto. Ele não era mais sequer um homem, mas outra coisa. Um demônio? Sharra se apresentando como um homem? O verdadeiro Kadarin não mais existia. Matá-lo não deteria a coisa que o usava.

Outra conta a acertar com Sharra: aquele homem fora meu amigo. A destruição de Sharra não apenas o mataria, mas também o vingaria.

- Já conseguiu fazer com que ele veja a luz da razão, Marjorie? - indagou Kadarin. - Ou devo drogá-lo de novo?

As pontas dos dedos de Marjorie tocaram-me, fora do campo de visão de Kadarin. Eu sabia que ele não vira, embora antes sempre percebesse.

- Farei o que me pede - declarei.

Não podia chamá-lo de Bob, nem mesmo de Kadarin. Ele se encontrava muito longe do homem que eu conhecera.

Enquanto andávamos pelos corredores, lancei um olhar rápido para Marjorie. Ela estava muito pálida; senti a vida palpitando irrequieta. Sharra a esgotara, drenara suas forças vitais quase a ponto da morte. Mais uma razão para não continuar a viver. Estranho, eu pensava como se tivesse uma opção.

Saímos para o balcão alto de onde se via Caer Donn e o aeroporto terráqueo. Num nível inferior, vi-os reunidos, os rostos que contemplara... no quê? Sonho, pesadelo drogado? Ou essa parte fora real? Tive a impressão de que conhecia os rostos. Alguns esfarrapados, alguns em trajes ricos, alguns instruídos e sofisticados, alguns obtusos e ignorantes, alguns nem mesmo totalmente humanos. Mas, cada um e todos, seus olhos brilhavam com a mesma intensidade vidrada.

Sharra! A ansiedade daquelas pessoas ardia em mim, dilacerava, devastava.

Olhei para Caer Donn. Senti a respiração prender na garganta. Marjorie me dissera, mas não havia palavras que pudessem me preparar para aquele tipo de destruição, ruína, desolação.

Só depois do grande incêndio na floresta que devastara as Colinas Kilghard, nas proximidades de Armida, eu vira algo assim. A cidade se tornara enegrecida; em extensas áreas, não restava pedra sobre pedra. Toda a cidade antiga desaparecera, e os danos haviam se espalhado pela Zona Terráquea.

E eu tivera uma participação naquilo!

Pensava que sabia como as grandes matrizes podiam ser perigosas. Contemplando aquela terra arrasada que fora uma linda cidade, compreendi que jamais soubera de coisa alguma. E todas aquelas mortes eram da minha responsabilidade. Nunca seria capaz de expiar aquele crime. Mas talvez, apenas talvez, pudesse viver pelo tempo suficiente para acabar com a destruição.

Beltran estava nas alturas. Parecia a própria morte. Não vi Rafe em parte alguma. Tinha certeza de que Kadarin não hesitaria agora em destruí-lo, mas esperava, com uma profunda angústia, que o menino estivesse vivo e seguro em outro lugar, bem longe dali. Mas não acalentava nenhuma esperança. Se a matriz de Sharra fosse destruída, não era provável que sobrevivesse qualquer pessoa que se ligara a ela.

Kadarin começou a desembrulhar a espada que continha a matriz de Sharra. Mais além, avistei Thyra, os olhos ardentes fixados nos meus, com um ódio implacável. Eu também a magoara de uma forma insuportável. E, ao contrário de Marjorie, ela nem sequer consentira em sua morte. Eu a amara, e ela nunca saberia.

Kadarin colocou a espada em minha mão. A matriz, vibrando com sua força na junção do cabo e da lâmina, fez minha mão queimada latejar com uma dor que subiu pelo braço e me deixou tonto e nauseado. Mas devia manter um contato físico com a pedra, não apenas mental. Tirei-a da espada e ajeitei-a na mão. Sabia que minha mão nunca mais séria utilizável depois, mas que importância isso tinha? Por que um morto haveria de se preocupar com a mão queimada de seu cadáver? Fora treinado para suportar até mesmo uma dor tão terrível, e não podia durar por muito tempo. Se conseguisse agüentar por um período suficiente para fazer o que precisava...

Sabemos o que você está tentando fazer, Lew. Mantenha-se firme, e o ajudaremos.

Senti todo o meu corpo estremecer. Era a voz de meu pai!

Uma esperança cruel, angustiante. Ele devia estar nas proximidades, caso contrário nunca seria capaz de me alcançar através do tremendo campo de força da matriz de Sharra.

Pai! Pai! Experimentei um enorme ímpeto de gratidão. Mesmo que todos morrêssemos, talvez sua força somada à minha pudesse nos ajudar a viver pelo tempo suficiente para destruir aquela coisa. Entrei em contato com Marjorie através da matriz de Sharra e senti o antigo vínculo ressuscitar: a tremenda força de sustentação de Kadarin, Thyra como uma besta selvagem, trazendo à união garras, selvageria, uma espreita em feroz frenesi. E tudo isso passou, em torrentes, através de mim...

Não era do jeito que tínhamos usado antes o fechado círculo de poder. Quando ergui a matriz desta vez, senti uma poderosa corrente de energia que se avolumava a partir de Kadarin, os vastos fluxos de emoção pura dos homens parados lá embaixo: adoração, raiva, ânsia, ódio, destruição, o selvagem poder do fogo, ardendo, ardendo...

Era o que eu sentira antes, o sonho, o pesadelo.

Marjorie já se encontrava envolta pela auréola de luz. Devagar, à medida que a força aumentava, despejando-se em minha mente através do foco concentrado, depois canalizando por meu intermédio para Marjorie, eu a vi começar a mudar, assumindo força, altura e majestade. A frágil moça de vestido azul foi-se fundindo, momento a momento, na deusa imensa, os braços erguidos para o céu, as chamas tremendo, exultantes, como cabelos esvoaçando, um grande jato de fogo...

Lew, agüente firme por mim. Não posso fazer isso sem a sua cooperação. Vai doer, você sabe que pode matá-lo, mas sabe também quanto depende disso, meu filho...

O contato de meu pai, mais familiar do que sua voz. E quase as mesmas palavras que ele transmitira antes.

Eu sabia muito bem onde me encontrava, no círculo de matriz de Sharra, no alto do Castelo Aldaran, a imensa forma de fogo assomando por cima. Marjorie, sua identidade perdida, dissolveu-se no fogo, ao mesmo tempo que o controlava, como uma dançarina das tochas com as tochas em suas mãos; inclinou-se para encostar um dedo de fogo no antigo espaço-porto. Lá embaixo, houve uma tremenda explosão; uma das espaçonaves estilhaçou como um brinquedo de criança, as chamas se elevando para o céu. Embora eu me encontrasse aqui, todo eu, ainda estava também no quarto de meu pai em Armida, esperando, com um medo terrível... e exultação! Projetei-me para ele, com uma confiança desenfreada e temerária. Continue! Faça logo! Acabe o que começou! Melhor nas suas mãos que nas de Sharra!

Senti nesse momento, o profundo contato Alton focalizado, ardendo vi em mim, espalhando-se por todos os cantos do meu cérebro e ser, enchendo as veias. Era uma agonia que eu jamais conhecera, esse contato intenso, violento, traumático, dilacerante, que parecia abrir até a última fibra do meu cérebro. Só que desta vez eu tinha o controle. Era o foco de toda aquela força, e projetei-a, girando como um laço de aço em minha mão, uma corda de fogo. A mão era calcinada pelas chamas, mas eu mal sentia. Kadarin se encontrava imóvel, arqueado para trás, absorvendo o fluxo de emoções dos homens lá embaixo, transformando-as em energônios, focalizando-as para Sharra, por meu intermédio. Marjorie... Marjorie estava ali, em algum lugar, no meio do fogo, mas eu podia ver seu rosto, confiante, sem medo, rindo. Contemplei-a por um breve instante, desejando angustiado poder tirá-la dali, mesmo que por uma fração de segundo, libertá-la de Sharra, vê-la de novo... mas não havia tempo para isso. Percebi a deusa fazer uma pausa para golpear. Tenho de agir agora, depressa, antes de ser absorvido também no fogo irracional, que anseia por violência e destruição. Fitei por um último momento de angústia e expiação os olhos afetuosos de meu pai.

Firmei-me contra a terrível agonia latejante na mão que segurava a matriz. Só mais um pouco. Só mais um momento, murmurei para a agonia clamorosa, como se fosse uma entidade viva separada, você pode suportar por mais um instante. Focalizei a escuridão profunda e ondulante por trás da forma de fogo, onde surgiam, em vez dos parapeitos e das torres do Castelo Aldaran, trevas desfocadas, um monstruoso portal, um portal de fogo, um portal de poder, onde alguma coisa pairava, oscilando, estufando, como se tentasse romper pela abertura. Reuni todo o poder das mentes focalizadas, todas, sem exceção, a força de meu pai, a minha, a de Kadarin, a de mais de cem fiéis focalizados por trás dele, irradiando suas emoções...

Concentrei todo esse poder, fundindo-o como uma corda de fogo, um cabo de força retorcido. Focalizei tudo na matriz em minha mão. Senti o cheiro de carne queimando, sabia que era minha própria mão, ardendo e escurecendo, enquanto a matriz luzia, flamejava, voraz, um fogo que povoava todos os mundos, o portal entre os mundos, os universos girando e se espatifando...

E destruí o portal, despejando de volta todo o fogo. A forma de fogo se encolheu, morreu, dispersou-se, sumiu. Vi Marjorie cambalear, tombar para a frente; pulei para ampará-la com o braço, ainda segurando a matriz. Ouvi-a gritar, enquanto as chamas voltavam, ardendo em sua própria carne. Peguei seu corpo desfalecendo entre os braços, e com um ímpeto final de força projetei-me entre o espaço, para o mundo cinzento, para outro lugar.

O espaço rodopiou por baixo de mim; o mundo desapareceu. Nos espaços cinzentos e informes não tínhamos corpo, não sentíamos dor. Era isso a morte? O corpo de Marjorie ainda era quente em meus braços, mas ela estava inconsciente. Eu sabia que só poderíamos permanecer entre os mundos por um instante. Todas as forças do equilíbrio me dilaceravam, puxando-me de volta para o holocausto, para a chuva de fogo, para as ruínas do Castelo Aldaran, onde os homens que haviam consumido seus poderes morriam, queimados, enegrecidos, enquanto as chamas se extinguiam. De volta à ruína e morte? Não! Não! Alguma resistência final, uma derradeira vitalidade, algo em mim bradou Não!, e num ímpeto final de poder focalizado, exaurindo-me de forma implacável, projetei-me junto com Marjorie pelos portões fechando, e escapei...

Meus pés bateram no chão. Era a luz do dia, num cômodo com cortinas, iluminado pelo sol; havia uma dor terrível em minha mão, e Marjorie, entre meus braços, gemia baixinho, sem sentidos. A matriz ainda continuava na ruína enegrecida que outrora fora uma mão. Eu sabia onde me encontrava: na sala mais alta da Torre de Arilinn, dentro do campo de força. Uma jovem com a túnica branca de monitora psíquica me observava, os olhos arregalados. Eu a conhecia; ela cumpria o primeiro ano em Arilinn enquanto o meu último terminava. Balbuciei:

- Lori! Depressa, a Guardiã...

Ela desapareceu, e arriei no chão, agradecido, meio inconsciente, ao lado de Marjorie, que não parava de gemer.

Estávamos em Arilinn. Seguros. E vivos!

Nunca fora capaz de me teleportar antes, mas conseguira agora, para salvar Marjorie.

Perdia e recuperava a consciência, como uma cortina cinzenta ondulando. Vi Callina Aillard me contemplando, os olhos cinzentos refletindo angústia e compaixão.

- Agora sou a Guardiã aqui, Lew. Farei o que puder.

A mão isolada pelo véu cinza de seda, ela se inclinou para pegar a matriz e se apressou em jogá-la dentro do campo de um amortecedor. A cessação da vibração por trás da matriz foi um momento de conforto quase celestial, mas também interrompeu o efeito quase anestésico do esforço profundo focalizado. Eu já sentira antes uma dor infernal na mão, mas agora experimentei outra vez a sensação de que era esfolada, mergulhada em chumbo derretido. Não sei como me abstive de gritar.

Arrastei-me para o lado de Marjorie. Ela tinha o rosto contorcido, mas nesse instante se desanuviou, recuperou a serenidade. Desmaiara, e me senti contente por isso. As chamas que haviam queimado minha mão até uma ruína enegrecida tinham atacado por dentro, por intermédio de Marjorie, enquanto o fogo de Sharra recuava pelo portal aberto. Não me permiti pensar no quanto ela devia ter sofrido, no quanto ainda sofreria, se sobrevivesse. Levantei os olhos para Callina com um apelo desesperado, e li o que ela fora muito gentil para não me dizer em palavras.

Ajoelhando-se ao nosso lado, Callina disse, com uma bondade que eu jamais ouvira na voz de qualquer mulher:

- Tentaremos salvá-la para você, Lew.

Mas constatei que as tênues correntes de energia azuladas pulsavam cada vez mais fracas. Ainda ajoelhada, Callina ergueu Marjorie em seus braços e encostou a cabeça em seu peito. As feições de Marjorie se contraíram por um instante na consciência renovada e na dor renovada; e depois seus olhos fixaram-se nos meus, dourados, triunfantes, orgulhosos. Ela sorriu, sussurrou meu nome, repousou a cabeça no peito de Callina, serena, e fechou os olhos. Callina baixou a cabeça, chorando, e seus longos cabelos escuros caíram como um véu de luto pelo rosto imóvel de Marjorie.

Deixei que a consciência resvalasse, deixei que o fogo em minha mão se estendesse por todo o corpo. Talvez eu pudesse morrer também.

Mas não havia sequer esse mínimo de misericórdia em qualquer lugar do universo.

Epílogo

A Câmara de Cristal, no alto do Castelo Comyn, era a mais formal de todas as salas de reunião do Conselho do Comyn. Uma suave luz azul derramava-se pelas paredes; havia raios verdes, vermelhos e violeta, refletidos por toda parte pelos prismas. Era como se reunir no centro de um arco-íris, pensou Regis, especulando se o encontro fora marcado ali em homenagem ao Legado Terráqueo. O Legado, sem dúvida, parecia bastante impressionado. Não eram muitos os terráqueos que conheciam a Câmara de Cristal.

- ...em conclusão, meus lordes, estou pronto para explicar que disposições foram adotadas para se impor a Aliança numa base planetária - disse o Legado.

Regis esperou, enquanto o intérprete repetia suas palavras em casta, em benefício dos membros do Comyn e dos nobres reunidos. Regis, que conhecia o Padrão Terráqueo, ficou pensando no jovem intérprete, Dan Lawton, o meio-darkovano ruivo que conhecera no espaço-porto.

Lawton poderia estar no outro lado, escutando o discurso, em vez de servir como intérprete para os terráqueos. Regis especulou se ele estava arrependido de sua opção. Era fácil adivinhar a resposta: nenhuma opção era totalmente desprovida de arrependimento. Regis pensou na sua.

Ainda havia tempo. O avô o fizera prometer três anos. Mas ele sabia que se esgotara o tempo para suas opções.

Dan Lawton encerrava a tradução do discurso do Legado:

- ...cada pessoa que desembarcar em qualquer Cidade Comercial, quer seja Thendara, Port Chicago ou Caer Donn, quando Caer Donn puder voltar a operar como uma Cidade Comercial, será obrigada a assinar uma declaração formal de que não há contrabando em sua posse e deixar todas as suas armas sob guarda na Zona Terráquea. Além disso, todas as armas trazidas para este planeta, para o uso legal por terráqueos, serão marcadas com uma substância radiativa, impossível de apagar, a fim de que seu paradeiro possa sempre ser determinado.

Regis não pôde deixar de sorrir. Os terráqueos haviam mudado de idéia num instante ao descobrir que a Aliança não se destinava a eliminar as armas terráqueas, mas sim as terríveis e perigosas armas darkovanas. Haviam conhecido as darkovanas na noite em que Caer Donn fora incendiada. Agora, mostravam-se ansiosos em respeitar a Aliança, em troca do compromisso darkovano de fazer a mesma coisa.

Portanto, Kadarin conseguira alguma coisa. E para o Comyn. Que ironia!

Um breve recesso foi determinado depois do discurso do Legado, e Regis, saindo para esticar as pernas no corredor, encontrou-se com Dan Lawton.

- Não o reconheci - disse o jovem terráqueo. - E não sabia que tinha um lugar no Conselho, Lorde Regis.

- Para ser mais preciso, estou antecipando o fato em cerca de meia hora.

- Isso significa que seu avô vai se afastar?

- Não por muitos anos, eu espero.

- Ouvi um rumor... - Lawton hesitou. - Não sei se é conveniente conversar assim, fora dos canais diplomáticos...

Regis soltou uma risada.

- Digamos que ainda falta meia hora para que eu tenha de me enquadrar nos canais diplomáticos. Uma das coisas que espero ver alterada, nas relações entre terráqueos e darkovanos, é essa obrigação de fazer tudo por meio dos canais diplomáticos. É um costume de vocês, não nosso.

- Sou bastante darkovano para me ressentir de vez em quando. Ouvi o rumor de que haveria uma guerra com Aldaran. Há alguma procedência?

- Absolutamente nenhuma, posso garantir, com a maior satisfação. Beltran já tem problemas suficientes. O incêndio de Caer Donn destruiu oitenta anos de lealdade a Aldaran entre os habitantes das montanhas... e oitenta anos de boas relações entre Aldaran e os terráqueos. A última coisa que ele pode querer neste momento é uma guerra com os Domínios.

- Rumor por rumor - disse Lawton. - O homem chamado Kadarin parece ter desaparecido em pleno ar. Foi visto nas Cidades Secas, mas tornou a sumir. Oferecemos um prêmio por sua captura desde que ele deixou o serviço de informações terráqueo, há trinta anos...

Regis piscou os olhos, aturdido. Só vira Kadarin uma vez, mas seria capaz de jurar que o homem não tinha mais de trinta anos.

- Estamos vigiando o espaço-porto, e vamos pegá-lo se ele tentar deixar Darkover. Pessoalmente, gostaria que ele continuasse sumido para sempre. É bem provável que se esconda nas Hellers pelo resto de sua vida natural. Isto é, se é que sua vida tem alguma coisa de natural.

O recesso terminou, e todos começaram a voltar para a Câmara de Cristal. Regis descobriu-se de repente cara a cara com Dyan Ardais, que não se vestia nas cores de seu Domínio, mas sim com o preto do luto ritual.

- Lorde Dyan... não, Lorde Ardais, quero apresentar minhas condolências.

- Não há necessidade, são um desperdício - respondeu Dyan. - Meu pai já não se encontrava em seu juízo perfeito anos antes de você nascer, Regis. Lamentei por ele por tanto tempo que até esqueci o sofrimento. Ele esteve morto durante a metade da minha vida; o sepultamento foi apenas protelado, mais nada.

Ele exibiu um sorriso sombrio por um instante, antes de acrescentar:

- Mas formalidade por formalidade, Lorde Regis. Meus parabéns. - Havia um brilho divertido nos olhos de Dyan. - Mas desconfio de que também são um desperdício. Eu o conheço bastante bem para saber que não sente nenhum prazer em ocupar um lugar no Conselho. Mas é claro que ambos somos muito bem condiciona- dos pelas formalidades do Comyn para dizer isso expressamente.

Dyan fez uma reverência para Regis e entrou na Câmara de Cristal. Talvez aquelas formalidades fossem uma boa coisa, refletiu Regis. Como Dyan e ele poderiam trocar palavras corteses sem isso? Regis sentiu uma profunda tristeza, como se tivesse perdido um amigo sem sequer conhecê-lo.

A Guarda de Honra, comandada hoje por Gabriel Lanart-Hastur, orientava os membros do Comyn para seus lugares; enquanto as portas eram fechadas, o Regente reiniciou a sessão.

- O próximo assunto desta assembléia é determinar certas heranças dentro do Comyn - disse ele. - Lorde Dyan Ardais, adiante-se, por favor.

Dyan, em seu traje de luto, foi-se postar no centro das luzes de arco-íris.

- Pela morte de seu pai, Kyril-Valentine Ardais de Ardais, eu o convoco, Dyan-Gabriel Ardais, a renunciar à posição de herdeiro-regente do Domínio de Ardais e assumir a posição de Lorde Ardais, com guarda e soberania sobre o Domínio de Ardais e de todos os que lhe devem lealdade e fidelidade. Está preparado para assumir a guarda de seu povo?

- Estou preparado.

- Declara solenemente que, ao máximo de seu conhecimento, tem condições de assumir essa responsabilidade? Há algum homem que conteste seu direito a essa guarda solene do povo de seu Domínio, do povo de todos os Domínios, do povo de Darkover?

Quantos podiam de boa fé declarar-se em condições de assumir tamanha responsabilidade? pensou Regis. Dyan deu a resposta apropriada:

- Acatarei a contestação.

Gabriel, como comandante da Guarda de Honra, foi-se colocar ao seu lado, desembainhou a espada de Dyan e gritou:

- Há alguém que conteste a guarda legítima de Dyan-Gabriei, Lorde Ardais?

Houve um longo silêncio. Hipocrisia, pensou Regis. Uma formalidade sem sentido. Só uma vez em vinte anos houvera uma resposta, e mesmo assim nada tinha a ver com as condições para exercer as funções, e sim com uma disputa de herança. Quando fora a última ocasião em que alguém contestara a sério?

- Eu contesto a guarda de Ardais - disse uma voz áspera e estridente, de um velho, partindo das fileiras dos nobre menores.

Dom Felix Syrtis levantou-se e avançou devagar para o meio da Câmara de Cristal. Pegou a espada da mão de Gabriel. A palidez calma de Dyan não se alterou, mas Regis percebeu que sua respiração se acelerava. Gabriel perguntou:

- Sob que alegação, Dom Felix?

Regis olhou ao redor. Como seu escudeiro jurado, Danilo sentava ao seu lado. Danilo não o fitou nos olhos, mas Regis constatou que ele tinha os punhos cerrados. Era o que Danilo temia, se o caso chegasse ao conhecimento de seu pai.

- Contesto a sua competência - disse Dom Felix - sob a alegação de que ele tramou de forma injusta a desgraça e a desonra de meu filho, quando meu filho era um cadete na Guarda do Castelo. Declaro uma rivalidade de sangue e lanço um desafio formal.

Todos permaneceram em silêncio, aturdidos. Regis captou o pensamento desdenhoso de Gabriel Lanart-Hastur, de que, se Dyan tivesse de travar um duelo para cada episódio desse tipo, ficaria lutando ali até o amanhecer do dia seguinte; e, por sorte sua, era o melhor espadachim dos Domínios. Em voz alta, Gabriel disse apenas:

- Ouviu o desafio, Dyan Ardais, e deve aceitá-lo ou recusá-lo. Deseja consultar alguém antes de tomar sua decisão?

- Recuso o desafio - respondeu Dyan, a voz firme.

O desafio não tinha precedentes, mas a recusa era ainda mais surpreendente. Hastur inclinou-se para a frente e disse:

- Deve enunciar seus motivos para recusar um desafio formal, Lorde Dyan.

- Eu o faço sob a alegação de que a contestação é justificada. Murmúrios de surpresa soaram por toda parte. Um lorde do

Comyn não admitia esse tipo de coisa! Todos os presentes, pensou Regis, deviam saber que a acusação era procedente. Mas todos também sabiam que o passo seguinte de Dyan era aceitar o desafio, matar o velho e sair de lá. Mas Dyan fez apenas uma breve pausa, antes de acrescentar:

- A acusação é justa, e não há honra a adquirir com o assassinato legal de um homem idoso. E seria de fato um assassinato. Quer sua causa fosse justa ou injusta, um homem da idade de Dom Felix não teria nenhuma chance razoável de comprová-la diante da minha habilidade como espadachim. E declaro ainda que não cabe a ele me desafiar. O filho por quem Dom Felix lança esse desafio é um homem, não uma criança, e é ele, não seu pai, quem por direito deve me desafiar nesta causa. Ele está disposto a isso?

Dyan virou-se para fitar Danilo, sentado ao lado de Regis, que se ouviu soltar um audível murmúrio de espanto.

Gabriel também parecia abalado, mas, como exigia o protocolo, teve de perguntar:

- Dom Danilo Syrtis, está disposto a desafiar Lorde Dyan Ardais nesta causa?

Dom Felix interveio, a voz áspera:

- Ele vai fazê-lo ou eu o repudiarei!

Gabriel censurou-o gentilmente:

- Seu filho é um homem, Dom Felix, não uma criança sob sua proteção. Ele deve responder por si mesmo.

Danilo adiantou-se até o centro da sala e disse:

- Sou o escudeiro jurado de Lorde Regis Hastur. Meu lorde, tenho sua permissão para lançar o desafio?

Ele estava branco como um lençol. Regis pensou, desesperado, que o tolo não era um adversário à altura para Dyan. Não podia continuar sentado ali, de braços cruzados, e observar Dyan assassiná-lo, a fim de acertar aquele ressentimento de uma vez por todas.

Todo o seu amor por Danilo se rebelava contra essa perspectiva, mas compreendeu que não tinha opção, ao fitar os olhos firmes do amigo. Não podia proteger Dani, por isso respondeu:

- Tem a minha permissão para fazer o que sua honra exigir, parente. Mas não há nenhuma obrigação. Prestou um juramento para meu serviço, e por bei esse serviço tem precedência. Assim, também tem permissão para recusar o desafio, sem qualquer mácula para sua honra.

Regis oferecia a Danilo uma saída honrosa, se ele a quisesse. Não podia, pela imunidade do Comyn, lutar no lugar de Danilo. Mas podia chegar a esse ponto.

Danilo fez uma reverência formal para Regis. Evitou seus olhos. Virou-se para fitar Dyan e declarou:

- Eu o desafio, Lorde Dyan.

Dyan respirou fundo. Estava tão pálido quanto Danilo.

- Aceito o desafio. Mas, por lei, um desafio dessa natureza pode ser resolvido, na opção de quem é desafiado, pela oferta de uma reparação honrosa. Não é assim, Lorde Hastur?

Regis pôde sentir que a confusão do avô era tão grande quanto a sua, enquanto o velho Regente respondia, em voz pausada:

- A lei de fato lhe dá essa opção, Lorde Dyan.

Regis, observando-o atentamente, notou o movimento quase involuntário da mão de Dyan para o cabo da espada. Sempre fora assim que Dyan acertara todos os seus desafios anteriores. Mas ele se conteve, cruzando as mãos à sua frente. Regis pôde sentir, como uma dor amarga, o pesar e a humilhação de Dyan, mas o homem mais velho disse, em voz áspera e firme:

- Nesse caso, Danilo-Felix Syrtis, eu lhe ofereço, diante de seus pares e de meus parentes, um pedido de desculpa público pelo mal que lhe causei, ao tramar de forma injusta e errada sua desgraça, provocando-o deliberadamente a uma violação das regras dos cadetes, por meio do abuso do laran; e lhe ofereço também toda e qualquer reparação honrosa ao meu alcance. Isso resolverá o desafio e a rivalidade de sangue, senhor?

Danilo permaneceu imóvel, como se transformado em pedra. Sua expressão era de espanto total.

Por que Dyan fez isso? especulou Regis. Dyan poderia tê-lo matado, com impunidade, legalmente, e o caso nunca mais poderia ser levantado contra ele.

E, de repente, quer recebesse ou não a resposta do próprio Dyan, ou fosse sua própria intuição, ele compreendeu: todos haviam recebido uma lição do que podia acontecer quando o Comyn abusava de seus poderes. Surgia a discórdia entre os súditos, entre eles próprios, até os filhos se viravam contra os pais. Não era apenas pelos súditos que deviam restaurar a confiança pública na integridade do Comyn. Se os próprios parentes perdiam a fé neles, então perdiam tudo. E nesse momento, quando Dyan fitou-o por um instante, Regis soube o resto, direto da mente de Dyan:

Não tenho filho. Pensei que não importava se deixava ou não um nome desonrado. Meu pai jamais se importou com o que seu filho pudesse pensar dele, e eu não tinha filho com que me preocupar.

Danilo continuava imóvel, e Regis também pôde sentir seus pensamentos, perturbados, indecisos: Há muito tempo que desejo matá-lo. Valeria a pena morrer por isso. Mas prestei um juramento a Regis Hastur, e por seu intermédio assumi um compromisso com o Comyn. Dani respirou fundo e umedeceu os lábios, antes de conseguir falar:

- Aceito suas honrosas reparações, Lorde Dyan. E por mim e por minha casa, declaro que não resta qualquer hostilidade, e o desafio é retirado... - Ele fez uma pausa e se apressou em corrigir: - O desafio foi resolvido.

A palidez de Dyan foi pouco a pouco substituída por um rubor intenso. Ele falou quase ofegante:

- Que reparações me pede, senhor? É necessário explicar aqui, diante de todos os homens, a natureza da injustiça e do pedido de desculpas? É seu direito...

Regis pensou que Dani podia fazê-lo rastejar. Podia obter sua vingança, no final das contas. Mas Danilo disse calmamente:

- Não é necessário, Lorde Ardais. Aceitei suas desculpas; deixo as reparações à sua honra.

Ele se virou e voltou para seu lugar, ao lado de Regis. Suas mãos tremiam. Mais uma vantagem do costume da formalidade, pensou Regis, irônico. Todos sabiam, ou adivinhavam, e talvez a maioria adivinhasse errado. Mas agora não precisaria ser dito expressamente.

Hastur pronunciou as palavras formais que confirmavam a posição legal de Dyan como Lorde Ardais e guardião do Domínio de Ardais, e depois acrescentou:

- É indispensável, Lorde Ardais, que designe um herdeiro. Tem um filho?

Regis pôde sentir, no próprio ar, o pesar de seu avô pela inflexibilidade desse ritual, que devia infligir ainda mais dor a Dyan; e a dor e a angústia de Dyan também se abatiam sobre todos ali que tinham laran.

- O único filho de meu corpo, meu herdeiro legítimo, morreu há quatro anos, numa avalanche em Nevarsin.

- Pelas leis do Comyn - explicou Hastur desnecessariamente -você deve então indicar alguém entre os parentes próximos como seu herdeiro designado. Se mais tarde gerar um filho, essa indicação pode ser alterada.

Regis recordou a longa conversa na taverna e a irreverência de Dyan pela ausência de um herdeiro. Ele não se mostrava irreverente agora. O rosto empalideceu e tornou-se impassível como antes.

- Meu parente mais próximo vive entre os terráqueos. Devo primeiro indagar se ele está disposto a renunciar a essa fidelidade. Daniel Lawton, você é o único da mais velha das filhas nedestro de meu pai, Rayna di Asturien, que casou com o terráqueo David Daniel Lawton. Está disposto a renunciar à cidadania do Império e jurar fidelidade ao Comyn?

Dan Lawton piscou, aturdido. Não respondeu de imediato, mas Regis sentiu - e teve certeza, quando ele falou, um minuto depois -que a hesitação fora apenas uma forma de cortesia.

- Não, Lorde Ardais - disse ele, em casta. - Assumi minha lealdade e não renunciarei a ela. E sei que não gostaria de que eu o fizesse; o homem que é falso com sua primeira fidelidade, também será falso com a segunda.

Dyan fez uma reverência e disse, com um tom de respeito:

- Aceito e aprecio sua decisão, parente. Peço ao Conselho que seja testemunha de que meu parente mais próximo renunciou a toda e qualquer reivindicação.

Houve breves murmúrios de assentimento.

- Nesse caso, passo para a minha escolha privilegiada. - A voz de Dyan era dura e incisiva. - A segunda entre meus parentes próximos era outra filha nedestro de meu pai; a Guardiã de Neskaya confirmou que seu filho possui o dom de Ardais. Sua mãe era Melora Castamir e seu pai Felix-Rafael Syrtis, que é do sangue Alton. Danilo-Felix Syrtis, como tem sangue Comyn e o dom de Ardais, eu o chamo para prestar fidelidade ao Comyn, como herdeiro do Domínio de Ardais; e estou disposto a defender minha escolha contra qualquer homem que queira contestá-la.

Seus olhos correram pela assembléia, com uma expressão de desafio. Foi como uma trovoada! Então era essa a reparação honrosa de Dyan! Regis não soube dizer se o pensamento era seu ou do amigo, enquanto Danilo, atordoado, se aproximava de Dyan.

Regis lembrou como pensara que Dani deveria ocupar um lugar no Conselho do Comyn. Mas assim? Kennard teria arquitetado tudo aquilo? Dyan disse formalmente:

- Aceita a designação, Danilo?

Tremendo todo, Danilo fez um esforço para controlar a voz.

- É... meu dever aceitar, Lorde Ardais.

- Então ajoelhe-se, Danilo, e responda. Jura fidelidade ao Comyn e a este Conselho, e empenhará sua vida para servi-los? Jura que defenderá a honra do Comyn em todas as causas justas, e que se esforçará para reparar as injustas? - A voz de Dyan era forte e musical, mas agora ele hesitou, a voz tremeu um pouco. - Vai me conceder... o dever de um filho... até o momento em que um filho de meu corpo possa substituí-lo?

Regis pensou, sentindo o tormento de Danilo: quem se vingava de quem? Podia notar que Danilo chorava em silêncio, enquanto Dyan continuava, a voz ainda trêmula:

- Jura que será... um filho leal para mim, até o momento em que eu ceder meu Domínio, por causa da idade, de incapacidade ou de enfermidade, e passará a servir como meu regente, perante este Conselho?

Dani permaneceu em silêncio por um instante, e Regis, em contato com ele, compreendeu que tentava firmar a voz. Só depois de algum tempo é que ele sussurrou, quase inaudível:

- Eu juro.

Dyan inclinou-se, levantou-o e declarou, a voz agora firme:

- Que todos sejam testemunhas de que este é meu herdeiro nedestro; ninguém terá precedência sobre ele; e esta decisão... - A voz voltou a tremer. - ...nunca será renunciada por mim ou em meu nome, por qualquer dos meus descendentes.

Rapidamente, com extrema formalidade, ele abraçou Danilo e acrescentou em voz baixa, mas que deu para Regis ouvir:

- Pode voltar por enquanto a seu serviço jurado, meu filho. Só na minha ausência ou doença é que precisa tomar seu lugar em Ardais. Mas deve comparecer a este Conselho, e todos os assuntos aqui discutidos devem ser do seu conhecimento, já que pode precisar assumir meu lugar inesperadamente.

Como se andasse em sonho, Danilo retornou para o lado de Regis. Com um orgulho sereno, sentou em seu lugar. E depois não pôde mais se controlar, pôs os braços na mesa à sua frente, arriou a cabeça e desatou a chorar. Regis estendeu a mão e tocou o braço de Danilo, acima do cotovelo, mas não disse nada, nem o alcançou com seus pensamentos. Algumas coisas eram angustiantes demais até para um irmão jurado. Mas Regis refletiu, com uma estranha aflição, que Dyan os tornara iguais. Dani era herdeiro de um Domínio; não precisava agora ser escudeiro ou vassalo de ninguém, não precisava da proteção de Regis. E ninguém poderia jamais tornar a falar em desgraça ou desonra.

Ele sabia que deveria regozijar-se por Danilo, regozijar-se por si mesmo. Mas o amigo não era mais seu dependente, e isso fazia com que se sentisse inseguro e estranho.

- Regis-Rafael Hastur, herdeiro-regente de Hastur - disse Danvan Hastur.

No choque do ato de Dyan, Regis esquecera por completo que ele também deveria falar perante o Conselho. Danilo ergueu a cabeça, cutucou-o gentilmente e murmurou:

- É você, seu cabeça-dura!

Por um momento, Regis pensou que ia desatar num riso histérico pelo lembrete. Senhor da Luz, não podia fazer isso! Não numa cerimônia formal! Mordeu o lábio com força e evitou os olhos de Danilo, mas ao se levantar e se adiantar não estava mais preocupado com as conseqüências de tudo aquilo no relacionamento entre os dois. Fora um tolo por se afligir.

- Regis-Rafael - disse o avô - juramentos foram feitos em seu nome quando tinha seis meses de idade, como herdeiro designado de Hastur. Agora que alcançou a idade adulta, cabe a você confirmá-los ou rejeitá-los, com pleno conhecimento de tudo o que acarretam. A Guardiã da Torre de Neskaya já proclamou que possui laran completo, e assim é capaz de receber o dom de Hastur na ocasião oportuna. Tem um herdeiro?

Ele hesitou, depois acrescentou gentilmente:

- A lei estipula que até os vinte e quatro anos de idade ninguém precisa repetir os juramentos formais de fidelidade, nem indicar um herdeiro designado. E não pode ser legalmente obrigado a casar até completar essa idade.

- Tenho um herdeiro designado - anunciou Regis.

Ele fez um sinal para Gabriel Lanart-Hastur, que saiu para o corredor e pegou o pequeno Mikhail dos braços da ama. Levou-o até Regis, que pôs o menino no centro das luzes de arco-íris e declarou:

- Sejam todos testemunhas de que este é meu herdeiro nedestro, uma criança de sangue Hastur, do meu conhecimento. Ele é filho de minha irmã Javanne Hastur, que é a filha de minha mãe e de meu pai, e de seu legítimo consorte di catenas, Gabriel Lanart-Hastur. Eu lhe dei o nome de Danilo Lanart Hastur. Por causa de sua tenra idade, não é legal lhe pedir qualquer juramento formal. Perguntarei apenas, como é meu dever: Danilo Lanart Hastur, você será um bom filho para mim?

O menino fora instruído com todo o cuidado para a cerimônia, mas não respondeu de imediato, e Regis se perguntou se ele esquecera. Mas depois de um momento, ele sorriu e disse:

- Sim, eu prometo.

Regis levantou-o e beijou a face rosada; o menino passou os braços pelo pescoço de Regis e beijou-o com o maior entusiasmo. Regis não pôde deixar de sorrir ao devolvê-lo ao pai.

- Gabriel, assume o compromisso de criá-lo como meu filho, e não como seu?

A expressão de Gabriel era solene.

- Juro por minha vida e por minha honra, parente.

- Pois então leve-o e crie-o como convém a um herdeiro de Hastur, e que os Deuses o tratem como você a meu filho.

Ele observou Gabriel se afastar com o menino, pensando que sua vida teria sido muito mais feliz se o avô o entregasse a Kennard para adoção, ou a algum outro parente com filhos e filhas. Regis jurou para si mesmo que não cometeria o mesmo erro com Mikhail.

E, no entanto, sabia que a afeição distante do avô e a disciplina rigorosa em Nevarsin também haviam contribuído para o que se tornara. Kennard gostava de dizer:

- O mundo seguirá como tem de ser, não como você ou eu gostaríamos.

E apesar de todos os esforços de Regis para escapar ao caminho determinado para o herdeiro de Hastur antes mesmo de seu nascimento, o fato é que o conduzira até ali, no momento apropriado. Ele se virou para o Regente, pensando com angústia que não precisava fazer aquilo. Ainda era livre. O avô lhe prometera três anos. Mas depois do que pretendia fazer, nunca mais seria completamente livre.

Ele fitou Danilo nos olhos e sentiu que, de alguma forma, sua expressão firme e afetuosa lhe proporcionava força.

- Estou pronto para repetir meu juramento, Lorde Hastur.

O rosto do velho Hastur se contraiu, tenso de emoção. Regis sentiu seus pensamentos, sem qualquer barreira, mas Hastur declarou, com o controle de cinqüenta anos de vida pública:

- Você alcançou os anos da vida adulta; se é a sua livre opção, ninguém pode lhe negar esse direito.

- É a minha livre opção - afirmou Regis.

Não o seu desejo. Mas sua vontade, sua opção. Seu destino. O velho Regente deixou seu lugar e foi para o centro das luzes prismáticas.

- Ajoelhe-se então, Regis-Rafael.

Regis ajoelhou-se. Sabia que tremia todo.

- Regis-Rafael Hastur, jura fidelidade ao Comyn e a este Conselho, empenhará sua vida para servi-los? Jura...

Ele continuou. Regis ouvira as palavras através de um nevoeiro tremeluzente de angústia: nunca mais seria livre. Nunca mais poderia contemplar as grandes espaçonaves a caminho das estrelas e imaginar que um dia viajaria em alguma para aqueles mundos distantes.

Nunca mais sonhar...

- ...e se empenhará em se um filho leal a mim, até eu ceder meu lugar pela idade, incapacidade ou enfermidade, e passar então a servir como herdeiro-regente, sujeito às decisões deste Conselho?

Regis pensou, por um momento, que desataria a chorar, como acontecera com Danilo. Esperou, recorrendo a todo o seu controle, até poder erguer a cabeça e dizer, em voz retumbante:

- Eu juro por minha vida e honra.

O velho inclinou-se, levantou Regis, abraçou-o e beijou-o nas faces. Suas mãos tremiam de emoção, as lágrimas transbordavam dos olhos, escorriam pelo rosto. E Regis compreendeu que, pela primeira vez em sua vida, o avô via a ele, somente a ele. Nenhum fantasma, nenhuma sombra do filho morto se interpunha entre os dois. Não Rafael. O próprio Regis.

E, de repente, Regis sentiu uma profunda solidão. Desejou que a reunião terminasse logo. Voltou para seu lugar. Danilo respeitou seu silêncio, não disse nada, não olhou para ele. Mas Regis sabia que o amigo se encontrava ali e dissipava, pelo menos um pouco, a fria e trêmula solidão em seu íntimo. Hastur controlara sua emoção e disse agora:

- Kennard, Lorde Alton.

Kennard ainda claudicava bastante, parecia cansado e alquebrado, mas Regis sentiu-se contente por vê-lo de pé outra vez.

- Meus lordes - disse ele -, trago notícias de Arilinn. Foi determinado que a matriz de Sharra não pode ser monitorada nem destruída no momento. Até que chegue um tempo em que haja meios de desativá-la por completo, ficou decidido enviá-la para o mundo exterior, onde não poderá cair nas mãos erradas, nem despertar outra vez, com seus perigos específicos.

- Isso também não é perigoso, Kennard? - indagou Dyan. - Se o poder de Sharra for despertado em outro lugar...

- Depois de longas discussões, concluímos que esse é o curso mais seguro. É nossa opinião que não existem telepatas em qualquer outro lugar do Império que sejam capazes de usá-la. E nas distâncias interestelares, não poderá absorver os pontos ativados nas proximidades de Aldaran, o que é sempre um risco, enquanto permanecer em Darkover. Nem mesmo o povo da forja pode mantê-la inativa agora. Fora do nosso mundo, provavelmente permanecerá adormecida até que se descubra um meio de destruí-la.

- É um risco - insistiu Dyan.

- Tudo é um risco, enquanto uma coisa de tanto poder continuar ativa, em qualquer parte do universo. Só podemos fazer o melhor ao nosso alcance com os instrumentos e técnicas de que dispomos.

- Você vai levá-la pessoalmente para fora do nosso mundo? - perguntou Hastur. - E seu filho? Ele foi responsável, pelo menos em parte, por seu uso...

- Não! - exclamou Danilo, e Regis compreendeu que ele tinha agora tanto direito quanto qualquer outro de falar no Conselho. -Ele se recusou a ter qualquer participação no abuso, e foi torturado ao tentar impedi-lo!

- E arriscou a própria vida - acrescentou Kennard -, esteve perto de perdê-la, para levá-la a Arilinn e romper o círculo de destruição. Se ele e sua esposa não arriscassem suas vidas... e se a moça não se sacrificasse... Sharra ainda estaria em ação nas montanhas, e nenhum de nós se encontraria aqui em paz, neste momento, decidindo quem nos sucederá no Conselho!

Abruptamente, a raiva de Alton foi desencadeada, fustigando a todos.

- Sabem o preço que ele pagou para ajudar o Comyn, que o desprezou e tratou com desdém, e nenhum de vocês, absolutamente nenhum, é capaz de sequer perguntar se ele viverá ou morrerá?

Regis sentiu-se contrafeito pelo desespero de Kennard. Fora despachado para Neskaya, mas sabia que deveria ter encontrado algum meio de enviar uma mensagem.

- Vim pedir permissão para levá-lo à Terra - acrescentou Kennard, em tom ríspido -, onde ele poderá recuperar a saúde, e talvez salvar a sanidade.

- Pelas leis do Comyn, Kennard, você e seu filho não podem partir para o mundo exterior ao mesmo tempo.

Kennard fitou Hastur com desprezo ostensivo.

- As leis do Comyn que se danem! O que ganhei por cumpri-las? De que me valeram os dez anos que passei no Conselho? Tentem me impedir, se puderem. Tenho outro filho, mas não passarei pela mesma história de novo. Aceitaram Lew, e vejam o que lhe aconteceu por isso!

Sem a menor menção de uma retirada formal, ele virou as costas e deixou a Câmara de Cristal.

Regis levantou-se e partiu apressado em seu encalço; sabia que Danilo o seguia. Alcançou Kennard no corredor. Virando-se, ainda hostil, Kennard disse:

- Mas o que...

- Tio, como está Lew? Estive em Neskaya e não pude... não me amaldiçoe junto com os outros, Tio.

- Como podia esperar que ele estivesse? - indagou Kennard, ainda truculento, mas logo seu rosto se desanuviou. - Não muito bem, Regis. Não viu o rosto dele desde que o trouxemos de Arilinn?

- Nem sabia que ele já tinha condições de viajar.

- E não tem. Nós o trouxemos de Arilinn num avião terráqueo. Talvez eles possam salvar sua mão. Ainda não é certo.

- Vão para a Terra?

- Isso mesmo. Partiremos dentro de uma hora. Não tenho tempo para discutir com o Conselho, e não permitirei que Lew seja atormentado.

Por mais furioso que ele parecesse, Regis sabia que era o desespero, não a hostilidade, que tornava áspera a voz de Kennard. Tentou erguer suas defesas contra aquela terrível angústia. Em Neskaya, aprendera as técnicas básicas de excluir o pior; não mais se sentia completamente nu, despojado. Podia enfrentar Dyan agora, e mesmo com Danilo não precisavam baixar suas barreiras, a menos que ambos assim desejassem.

- Tio, Lew e eu somos amigos desde que eu era apenas um menino. Eu... eu gostaria de vê-lo, para me despedir.

Kennard fitou-o com hostilidade por alguns segundos, mas acabou dizendo:

- Pois então venha comigo. Mas não me culpe se ele não quiser falar com você.

A voz de Kennard também não era firme.

Regis não pôde deixar de recordar a última vez em que estivera ali, na sala grande dos aposentos dos Altons, diante de Kennard e de seu avô. E a ocasião anterior. Lew sentava num banco, diante do fogo. Exatamente no mesmo lugar em que se encontrava na noite em que Regis lhe fizera um apelo para despertar seu laran. Kennard perguntou gentilmente:

- Lew, você quer falar com Regis? Ele veio se despedir.

As barreiras de Lew se achavam arriadas, e Regis sentiu o ímpeto de angústia, de rejeição: Não quero falar com ninguém, não quero que ninguém me veja agora. Foi como um golpe, quase fez Regis cambalear. Mas ele respirou fundo e murmurou:

- Bredu...

Lew virou-se, e Regis se arrepiou, quase em horror, pela primeira visão daquele rosto alterado de uma forma hedionda. Lew envelhecera vinte anos nas poucas semanas que haviam transcorrido desde que se separaram. O rosto era uma teia assustadora de cicatrizes. O desespero abrira sulcos profundos, e a expressão nos olhos era de alguém que contemplara horrores além da capacidade de qualquer um suportar. Uma das mãos estava toda enfaixada, apoiada numa tipóia. Ele tentou sorrir, mas foi apenas uma careta.

- Desculpe. Estou sempre esquecendo que tenho uma cara capaz de assustar as criancinhas.

- Mas não sou mais uma criança, Lew. - Regis conseguiu bloquear a angústia e o sofrimento de Lew, e comentou, tão calmamente quanto podia: - Creio que as piores cicatrizes vão sarar.

Lew deu de ombros, como se isso lhe fosse indiferente. Regis ainda o fitava com apreensão; agora que haviam se reunido, não sabia por que viera. Lew parecia ter morrido para todo e qualquer contato humano, e era assim que queria. Qualquer contato mais profundo entre os dois, qualquer tentativa de alcançá-lo com o laran, só serviria para ressuscitar a antiga intimidade, violar o torpor misericordioso e renovar o sofrimento ativo de Lew. Quanto mais depressa ele se despedisse e fosse embora, melhor seria. Regis fez uma reverência formal, decidindo manter o encontro nesses termos.

- Boa viagem, primo, e um retorno seguro.

Ele começou a recuar e esbarrou em Danilo, que segurou seu pulso, abrindo o contato entre os dois. Tão claramente como se Danilo falasse em voz alta, Regis sentiu a veemência de sua aflição:

Não, Regis! Não feche todas as portas, não se afaste dele! Não percebe que ele está morrendo por dentro, isolado de todos que ama? Ele deve saber que você está a par do seu sofrimento, que não quer evitá-lo! Não posso alcançá-lo, mas você pode, porque o ama, e deve, antes que ele tranque a última barreira e exclua todos para sempre. E a sanidade de Lew que está em jogo, talvez sua vida!

Regis se arrepiou de novo. Depois, dividido, agoniado, compreendeu que esse era também um fardo de sua herança: aceitar que nada, absolutamente nada, na mente humana era assustador demais para encarar, que o sofrimento de uma pessoa podia ser partilhado por outra. Ele soubera disso quando era apenas uma criança, antes que seu laran fosse plenamente despertado. Não tivera medo na ocasião, nem se envergonhara, porque não pensava em si mesmo, mas apenas em Lew, porque ele estava amedrontado e desesperado.

Ele largou a mão de Danilo e tornou a dar um passo na direção de Lew. Um dia - o pensamento aflorou de repente em sua mente, ao acaso, e parecia irrelevante -, como sempre acontecera com os homens de sua casta que eram telepatas, ele desceria, com a mulher esperando seu filho, às profundezas da agonia, à beira da morte, e seria capaz de encarar tudo, por amor a ela. E por amor ele podia encarar isto também. Adiantou-se até Lew, que tornara a baixar a cabeça.

- Bredu... - murmurou Regis.

Ele se inclinou para abraçar o parente e deliberadamente se abriu a todo o tormento de Lew, absorvendo o choque total do contato entre os dois.

Dor. Desolação. Culpa. O choque da perda, da mutilação. A lembrança da tortura e do terror. E, acima de tudo, culpa, uma culpa terrível, por estar vivo, quando pessoas que ele amara haviam morrido...

Por um momento, Lew se empenhou para excluir a percepção de Regis, bloqueá-lo também. Depois, respirou fundo, tremendo todo, ergueu o braço ileso e apertou Regis.

...você lembra agora. Eu sei, eu sei, você me ama, e nunca traiu esse amor...

- Adeus, bredu - murmurou ele, numa voz estridente e angustiada, que magoou Regis muito menos do que o formalismo frio anterior. Dando um beijo no rosto de Regis, Lew acrescentou: - Se os Deuses quiserem, voltaremos a nos encontrar. E se isso não acontecer, que os Deuses sempre o acompanhem.

Ele largou Regis, que compreendeu que não podia curá-lo, nem ajudá-lo muito, pelo menos não agora. Ninguém podia. Mas talvez, pensou Regis, talvez ele tivesse aberto uma fresta, o suficiente para fazer Lew lembrar que, além do sofrimento, da culpa, da perda e da desolação, havia também o amor no mundo.

E depois, pelos sonhos e esperanças a que renunciara, ainda vividos em sua mente, Regis ofereceu o único conforto que podia, apresentando-o como um presente diante do amigo:

- Mas você tem outro mundo, Lew. E está livre para conhecer as estrelas.

 

                                                                                Marion Zimmer Bradley  

 

                      

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