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A HERANÇA DE UM CRIME / Rex Stout
A HERANÇA DE UM CRIME / Rex Stout

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A HERANÇA DE UM CRIME

 

Nas histórias policiais de Rex Stout, uma das características marcantes é a sofisticação de seus personagens. A começar pelo protagonista. Do mesmo autor, Um discurso fatal e Um cadáver de luxo, lançados pela Nova Fronteira, já destacavam o herói, Nero Wolfe, como o detetive particular de 150 quilos, que só sai de casa em casos de urgência e não aceita ser importunado em três circunstâncias muito especiais: os horários rígidos dedicados ao cultivo de orquídeas, à degustação de cerveja e a suas requintadas refeições.

A herança de um crime não foge à regra. Dessa vez, o detetive americano se vê às voltas com a morte do milionário Noel Hawthorne, 49 anos, executivo de uma firma com filiais em cada país da Ásia e da Europa, e até na América do Sul. Noel deixa um legado insólito para suas irmãs: uma pêra, um pêssego e uma maçã. Que razões se esconderiam por trás desse gesto? As três irmãs são, cada uma a seu modo, personalidades intrigantes: April é atriz famosa na Broadway. Por ela, “quatro duques, um bando de condes e barões, e dois fabricantes de sabão suicidaram-se”. May nunca se casou e faz o maior sucesso entre a intelectualidade americana. E June, casada com o Secretário de Estado, escreve livros “provocantes”.

É em torno desses personagens que Nero Wolfe, auxiliado por seu assistente Archie Goodwin, exercita mais uma vez sua imaginação, sua malícia e seu humor ferino.

 

Coloquei a edição de 1938-39 do Quem é quem nos Estados Unidos, aberta, sobre a minha escrivaninha, por­que estava se tornando muito penoso segurá-la num dia tão quente.

— Não há muita diferença de idade entre elas — falei alto. — Se não me mentiram, April tem trinta e seis anos, May quarenta e um e June quarenta e seis. Apenas cinco anos. Parece que os pais começaram do meio do calendário e foram andando para trás e também parece que a primeira chamou-se June por ter nascido em junho de 1893. Mas a próxima deve ter sido fruto de um excesso de imaginação. Acredito que vindo da mãe. Apesar do bebê ter nascido em fevereiro, deram-lhe o nome de May...

Não havia nenhum sinal de que Nero Wolfe, recostado em sua cadeira com os olhos cerrados, estivesse me ou­vindo, mas continuei assim mesmo. Naquele dia quente de julho, apesar do excelente almoço que Fritz nos servi­ra, eu não daria um tostão pelo mundo. Minhas férias tinham terminado. As notícias vindas da Europa davam vontade de colocar cartazes a cada dez metros ao longo da costa, com os dizeres: “Praia particular. Proibida a tubarões e estadistas”. Meus braços estavam cheios de curativos nos lugares onde os borrachudos tinham me ata­cado, no Canadá. E o pior de tudo é que Nero Wolfe fizera uma série de despesas absurdas, nossa conta no banco nunca estivera tão baixa, e o negócio de detetive ia de mal a pior. E só para ser espírito de porco, ao invés de ter um mínimo de preocupação, ele parecia ter tomado a atitude de quem acha inútil tentar interferir com as leis da natureza. O que me deixava louco de raiva. Podia ser excêntrico o bastante para pensar em pleitear um emprego público, mas, no meu caso, o que me interessava era que ele me pagasse.

Por isso, continuei a falar. — Tudo depende — afirmei — do que as está preocupando. Deve ser algo bem desa­gradável, ou não viriam todas juntas recorrer a você. A morte do irmão Noel deve tê-las deixado em boa situação financeira. Aqui também há algo sobre ele. — Olhei para o Quem é quem, muito sério. — Tinha quarenta e nove anos, sendo o mais velho, com três anos a mais que June, e era o braço direito do próprio Cullen, na Daniel Cullen & Cia. Chegou a esta posição por esforço próprio: come­çou como mensageiro em 1908 com um salário de doze dólares por semana. Isso tudo saiu no obituário do Times de anteontem. Você leu?

Wolfe continuava imóvel. Fiz uma careta para ele e recomecei:

— Como elas só vão chegar daqui a vinte minutos, ainda há tempo para lhe falar sobre os resultados da minha pesquisa. Há muito mais coisas neste artigo que descobri do que no Quem é quem. Detalhes mais ricos e interessantes. Diz, por exemplo, que May usa meias de algodão desde que os japoneses bombardearam Xangai. Diz que a mãe era uma mulher excepcional porque teve quatro filhos extraordinários. Nunca consegui entender por que, em tais casos, a contribuição do pai é considerada desprezível, mas não há tempo para se discutir isso agora. Estamos falando dos filhos extraordinários.

Virei a página da revista. — Voltemos a Noel, que morreu na terça-feira. Dizem que tinha uma série de bo­tões instalados na mesa que ocupava no suntuoso escri­tório da Daniel Cullen & Cia., em Wall Street, um para cada país da Europa e da Ásia, sem falar na América do Sul. Quando apertava um dos botões, o presidente da­quele país renunciava e lhe telefonava de lá para saber quem seria o próximo. Não se pode negar que isso era algo extraordinário. A filha mais velha, June, nasceu, como já disse, em junho de 1893. Aos vinte anos escreveu um livro sensacional, ousado, chamado Cavalgando em pêlo e um ano depois um outro intitulado As aventuras amorosas de um chapim. Foi então que se casou com um advogado brilhante chamado John Charles Dunn, que atualmente é Secretário de Estado dos Estados Unidos da América. Na semana passada ele mandou uma carta deci­siva para o Japão. A revista diz que a ascensão vertigi­nosa de Dunn deve-se em grande parte à sua extraordiná­ria esposa. De novo a mãe. June é, na verdade, mãe de um rapaz de vinte e quatro anos, Andrew, e de uma ga­rota de vinte e dois, Sara.

Mudei de posição para poder colocar os pés sobre a mesa.

— As duas outras criaturas extraordinárias ainda con­servam o nome Hawthorne. May Hawthorne nunca se casou. Estão pensando em processá-la sob a lei antitruste por monopolizar as células cinzentas do cérebro. Aos vinte e seis anos revolucionou a química coloidal, algo relacionado a bolhas e gotas. É presidenta do Varney College desde 1933 e nesses seis anos aumentou as doa­ções para o fundo da instituição em mais de doze milhões de dólares, o que demonstra que ela passou de coloidal para colossal. Diz aqui que sua capacidade intelectual é algo de extraordinário.

— Enganei-me quando disse que as outras duas ainda se chamam Hawthorne. No caso de April deveria ter dito “outra vez” ao invés de “ainda”. Em 1927, enquanto fazia Londres delirar, ela passou os olhos por sobre a nobreza prostrada aos seus pés e escolheu o Duque de Lozano. Quatro outros duques, um bando de condes e ba­rões e dois fabricantes de sabão suicidaram-se. Três anos depois divorciou-se de Lozano e enquanto fazia Paris de­lirar tornou-se April Hawthorne de novo, tanto para ela quanto para o público. Não há outra atriz, viva ou morta, que tenha interpretado tanto a Julieta de Shakespeare quanto a Nora de Ibsen. Atualmente, está fazendo Nova Iorque delirar pela oitava vez. Posso confirmar isso pes­soalmente, pois há um mês paguei cinco dólares a um cambista para assistir à peça Ovos mexidos. Você deve se lembrar que, na ocasião, tentei convencê-lo a me acom­panhar. Imaginei que, sendo April Hawthorne a rainha consagrada dos palcos americanos, você tinha obrigação de ir vê-la.

Nem um movimento. Nada o motivaria.

— É claro — disse eu com ironia — que é deplorável o fato de essas extraordinárias irmãs Hawthorne terem tão pouca consideração pela sua privacidade a ponto de virem incomodá-lo antes de você terminar de digerir o almoço. Não vem ao caso se algo as está perturbando, ou se o irmão Noel deixou um milhão de dólares para cada uma e querem lhe dar a metade para que você fique de olho no banqueiro delas. Deveria respeitar melhor as re­gras de boas maneiras. Quando June ligou esta manhã, disse-lhe que...

— Archie! — seus olhos se abriram. — Estou can­sado de saber que você está chamando a Sra. Dunn, que nunca lhe foi apresentada, pelo primeiro nome só porque acha que isso me irrita. E está me irritando. Pare. Cale a boca.

— ... Eu disse à Sra. Dunn que era uma invasão into­lerável do seu direito inalienável de ficar sentado aqui em paz, vendo o saldo bancário desaparecer no crepúsculo sombrio da dispersão lenta, mas inevitável, dos seus poderes mentais e contemplando a lamentável ruína do seu instinto de autopreservação...

— Archie! — Golpeou a mesa.

Estava na hora de cair fora, mas fui salvo pela porta que se abriu, dando passagem a Fritz Brenner. Fritz es­tava radiante, e eu podia imaginar por quê. As visitas que viera anunciar deviam tê-lo impressionado bastante como futuros clientes. Os únicos segredos existentes na velha casa de Wolfe na Rua 35, próximo ao rio Hudson, eram os segredos profissionais. Era inevitável que eu, seu secretário, guarda-costas e principal assessor, soubesse que seu fundo bancário estava com os dias contados, mas Fritz Brenner, cozinheiro e criado da casa, e Theodore Horstmann, zelador das famosas e dispendiosas orquídeas que Wolfe criava na estufa sob o telhado, também tinham conhecimento da situação. E era óbvio que Fritz estava radiante porque o trio cuja chegada iria anunciar era o que havia de mais promissor em termos de salário. Anun­ciou-o condignamente. Wolfe pediu-lhe, sem nenhum en­tusiasmo, que o fizesse entrar. Tirei os pés da mesa.

 

Embora as extraordinárias irmãs Hawthorne não fos­sem muito parecidas, ao olhá-las mais atentamente, embora com discrição, enquanto as acomodava nas cadeiras, tive certeza de que eram filhas da mesma admirável mãe. Já tinha visto April no palco; e agora que a via de perto não pude deixar de admitir que, se ela quisesse, poderia fazer o escritório de Wolfe delirar também. Parecia sen­sual, obstinada, bela, irresistível. Quando me agradeceu pela cadeira, decidi que me casaria com ela logo que ti­vesse economizado o suficiente para comprar um par de sapatos novos.

May, a que era gênio e presidenta da faculdade, sur­preendeu-me. Parecia meiga. Mais tarde, ao perceber como sua boca se tornava determinada e sua voz cortante, quando necessário, revisei drasticamente a minha opi­nião, mas por enquanto parecia suave, inofensiva e um pouco mais jovem do que realmente era. June, ou melhor, a Sra. Dunn, era mais magra que as irmãs mais novas, quase esquelética, com cabelos grisalhos e olhos escuros, inquietos e penetrantes — desses olhos que nunca foram saciados e nunca serão. O que tinham em comum era so­bretudo a fronte — larga, bem alta, com as têmporas bem definidas.

June fez as apresentações; primeiro ela própria e as irmãs, e depois os dois homens que as acompanhavam, cujos nomes eram Stauffer e Prescott. Stauffer devia beirar os quarenta; talvez tivesse uns cinco anos a mais do que eu, e teria melhor aparência se não andasse com uma cara tão sisuda. Devia ter algum motivo para ter que manter aquela imagem. O outro, Prescott, tinha uns cinqüenta anos. Era de estatura média, com uma circunfe­rência no centro, dando a impressão de que iria gemer se tivesse que se abaixar para amarrar os sapatos. Nada, é claro, que chegasse perto das grandiosas dimensões de Wolfe. Reconheci-o por um retrato que vi quando foi eleito para um cargo na Ordem dos Advogados. Era Glenn Prescott, da firma de advocacia Dunwoodie, Prescott & Davis. Usava uma gravata e camisa de ótima qualidade e um terno que devia ter custado uns cento e cinqüenta dólares, com uma flor na lapela.

A flor foi motivo de uma pequena divergência logo no começo da reunião. Já desisti de tentar entender se Wolfe faz estas coisas para mostrar que é excêntrico, ou se é apenas curiosidade sua, ou uma tática para poder avaliar as pessoas, ou sei lá o quê. De qualquer jeito, mal tinham acabado de se acomodar, quando ele dirigiu os olhos para Prescott e perguntou delicadamente:

— É uma centáurea?

— Como? — Prescott parecia espantado. — Ah! O senhor se refere à minha lapela. Não sei. Simplesmente entrei no florista e comprei esta flor.

— O senhor usa uma flor sem sequer saber o seu nome?

— Claro, por que não?

Wolfe deu de ombros. — Nunca tinha visto uma cen­táurea dessa cor.

— Não é uma centáurea — disse a Sra. Dunn com impaciência. — A Centáurea cyanus tem uma formação mais...

— Não me referi à Centáurea cyanus, minha senhora. — Wolfe parecia irritado. — Achei que era uma Centáu­rea leucophylla.

— Ah! Esta eu não conheço. De qualquer forma, não é uma Centáurea leuco-coisa nenhuma. É uma Dianthus superbus.

April começou a rir. May sorriu para ela como Einstein teria sorrido para um gatinho. June lançou-lhe aquele olhar e April parou de rir e falou na sua famosa voz ondulante:

— Você ganhou, June. É uma Dianthus superbus. Não me incomoda você ter sempre razão, mas quando algo me parece engraçado tenho que rir. E, se não for inconve­niente perguntar, será que vocês me arrastaram até aqui só para ouvi-los discutir sobre botânica?

— Você não veio arrastada — retrucou a irmã mais velha. — Pelo menos, não por mim.

May parecia contrariada. — Desculpe-nos, Sr. Wolfe. Estamos com os nervos à flor da pele. Gostaríamos de consultá-lo sobre algo bastante sério. — Olhou para mim e sorriu de forma tão meiga que me senti na obrigação de retribuir o sorriso. Então, acrescentou: — Algo extrema­mente confidencial.

— Não se preocupe — Wolfe assegurou-lhe. — O Sr. Goodwin é meu braço direito. Não poderia fazer nada sem ele. A discussão sobre botânica foi culpa minha. Fui eu quem começou. Mas, o que as aflige?

Prescott perguntou hesitante: — Posso explicar?

April, agitando a mão para apagar o fósforo com o qual acendera um cigarro e desviando os olhos para evitar a fumaça, fez que não com a cabeça. — Vai ser bem difícil um homem conseguir explicar alguma coisa, estando nós três presentes.

— Acho — sugeriu May — que seria melhor se June...

A Sra. Dunn disse, de repente: — É o testamento de meu irmão.

Wolfe olhou-a aborrecido. Tinha tanto pavor a brigas por causa de testamentos que certa vez chegou a dizer a um futuro cliente que ele se recusava a participar de um cabo-de-guerra no qual as tripas do defunto serviam de corda. Entretanto, perguntou, sem ser muito rude: — Há algum problema com o testamento?

— Há. — O tom de June era incisivo. — Mas primei­ro gostaria de lhe dizer algo: o senhor é um detetive. Não é de um detetive que precisamos. Fui eu quem teve a idéia de procurá-lo. Não tanto pela sua reputação, mas sim pelo que o senhor fez por uma amiga minha, a Sra. Llewellyn Frost. Na época, chamava-se Glenna McNair. Além disso, já ouvi meu marido falar muito bem do senhor. Concluí que o senhor deve ter resolvido algum problema difícil para o Departamento de Estado.

— Obrigado, mas... — objetou Wolfe — a senhora disse que não precisava de um detetive.

— E não precisamos. Mas necessitamos muito dos ser­viços de um homem capaz, astuto, discreto e inescrupuloso.

— Isso é que é diplomacia — disse April, batendo o cigarro no cinzeiro.

O comentário foi ignorado. Wolfe perguntou:

— Que tipo de serviço?

Descobri o que destoava no rosto de June. Seus olhos eram como os de um falcão, mas o nariz, que deveria ser adunco para combinar com os olhos, era reto e bem-feito. Preferia olhar para April. Mas era June quem falava.

— Um serviço muito especial. Meu marido diz que só um milagre pode resolver, mas ele é um homem muito cauteloso e conservador. O senhor deve estar sabendo que meu irmão morreu na terça-feira, há três dias. O enterro foi ontem à tarde. O Sr. Prescott, advogado de meu irmão, reuniu-nos ontem à noite para ler o testamento. Seu con­teúdo nos deixou chocadas e surpresas — todas nós, sem exceção.

Wolfe murmurou algo que eu sabia ser um sinal de aborrecimento, mas que os outros, que tinham acabado de conhecê-lo, devem ter entendido como uma demonstração de simpatia. Entretanto, acrescentou secamente:

— O choque e a surpresa não teriam acontecido se o imposto sobre os bens herdados fosse de cem por cento.

— Pode ser. O senhor fala como um bolchevista. Mas não foi a decepção de herdeiros esperançosos, e sim algo bem pior que...

— Perdão — interveio May, com calma —, no meu caso foi. Ele tinha me dito que deixaria um milhão de dólares para o fundo de pesquisas.

— Estou apenas querendo dizer — declarou June, im­paciente — que não somos hienas. Não há dúvida de que nenhuma de nós estava contando com uma herança imi­nente de Noel. Sabíamos, é claro, que possuía muitos bens, mas tinha apenas quarenta e nove anos e gozava de ótima saúde. — E, virando-se para Prescott, disse:

— Acho, Glenn, que é melhor você dizer ao Sr. Wolfe quais as cláusulas do testamento.

O advogado limpou a garganta. — É meu dever lem­brá-la, June, de que uma vez que isso se torne público...

— O Sr. Wolfe guardará sigilo. Não é verdade, Sr. Wolfe?

Wolfe assentiu. — Certamente.

— Bem — Prescott pigarreou de novo. Olhou para Wolfe. — O Sr. Hawthorne deixou alguns bens para cria­dos e funcionários, num total de cento e sessenta e quatro mil dólares. Cem mil dólares para cada um dos filhos de sua irmã, a Sra. John Charles Dunn, e uma quantia equi­valente para o fundo de pesquisas de Vamec College. Quinhentos mil para sua esposa; não deixou filhos. Uma maçã para sua irmã June, uma pêra para sua irmã May e um pêssego para sua irmã April. — O advogado parecia constrangido. — O Sr. Hawthorne, que além de cliente era também meu amigo, não era nenhum excêntrico. Havia também uma declaração dizendo que suas irmãs não necessitavam de nada disso, que lhes deixara essa he­rança apenas como testemunho do seu apreço.

— Perfeito. Era esse todo o seu patrimônio? Cerca de um milhão de dólares?

— Não. — Prescott parecia ainda mais constrangido. — O montante líquido será em torno de sete milhões, após a dedução dos impostos. Talvez um pouco menos. Foi deixado para uma mulher chamada Naomi Karn.

— La femme — disse April. Não estava zombando nem querendo ser impertinente, apenas constatando os fatos.

Wolfe soltou um suspiro.

Prescott acrescentou: — O testamento foi redigido por mim de acordo com as instruções do Sr. Hawthorne. Está datado de 7 de março de 1938 e substitui outro, feito três anos antes. Foi guardado numa caixa-forte no escritório da minha firma. Estou mencionando o fato por causa das insinuações feitas ontem pela Sra. Dunn e pela Srta. May de que deveria tê-las notificado do seu con­teúdo na época em que foi redigido. Como é do seu conhecimento, Sr. Wolfe, isso teria sido...

— Bobagem — disse May asperamente. — Você sabe muito bem que estávamos desnorteadas. Estávamos muito ansiosas.

— E ainda estamos. — June lançou um olhar pene­trante sobre Wolfe. — O senhor por favor entenda que minhas irmãs e eu estamos totalmente satisfeitas com as nossas frutas. Não é isso. Mas pense só na repercussão e no escândalo. Não posso nem acreditar. Nenhuma de nós pode. É incrível. Meu irmão ter deixado toda a sua fortu­na, a maior parte, para aquela, aquela...

— Mulher — sugeriu April.

— Está bem. Mulher.

— A fortuna era dele — observou Wolfe. — E pelo visto foi isso o que quis fazer com ela.

— O que quer dizer com isso? — perguntou May.

— Que se é o escândalo e a repercussão que vocês temem, quanto menos se mexer neste assunto, mais facil­mente ele será esquecido.

— Obrigada — disse June sarcasticamente. — Mas isso não resolve nada. A simples publicação do testa­mento já traria conseqüências desagradáveis. Consideran­do que estão em jogo milhões de dólares e a posição de meu marido e das minhas irmãs — meu Deus! O senhor não percebe que somos as famosas irmãs Hawthorne, gos­temos ou não?

— É claro que gostamos — afirmou April. — Ado­ramos.

— Não tire os outros por você, Ape. — June conti­nuou fitando Wolfe. — O senhor pode imaginar o que os jornais vão dizer. Mesmo assim, acho que tem razão. Penso que seria melhor não dizer nem fazer nada, deixar as coisas correrem e ignorá-las. Mas não vai ser possível deixar que as coisas sigam naturalmente. Algo terrível vai acontecer. Daisy vai impugnar o testamento.

Wolfe franziu ainda mais as sobrancelhas. — Daisy?

— Oh, desculpe-me. Como disse minha irmã, estamos com os nervos à flor da pele. A morte de nosso irmão foi um choque terrível. Depois vieram as conseqüências: o funeral de ontem... e agora isto. Daisy é a mulher de meu irmão. Sua viúva. Ela é conhecida como uma figura trágica.

Wolfe assentiu. — A dama de véu.

— Então o senhor conhece a lenda.

— Não é uma lenda — interveio May. — Muito mais do que uma lenda; é um fato.

— Só sei o que é do conhecimento público — disse Wolfe. — Que há uns seis anos, acho eu, Noel Hawthorne estava praticando arco e flecha quando uma das flechas por descuido atingiu o rosto de sua mulher, rasgando-o desde a fronte até o queixo. Antes ela era uma mulher muito bonita. Desde então, nunca mais foi vista sem o véu.

Um pequeno tremor tomou conta de April quando disse: — Foi terrível. Fui vê-la no hospital e até hoje sonho com isso. Era a mulher mais bonita que já vi, fora uma vendedora de cigarros que encontrei num café em Varsóvia.

— Era emocionalmente vazia — afirmou May. — As­sim como eu, mas sem alternativas. Nunca deveria ter se casado com meu irmão nem com homem nenhum.

June balançou a cabeça negativamente. — Estão ambas erradas. Daisy era muito fria para ser de fato bela. As se­mentes da emoção existiam nela, esperando para germi­nar. Só Deus sabe como estão dando frutos neste momen­to. Todas nós ouvimos o tom de vingança que havia em sua voz ontem à noite, e isso é emoção, não é? — Os olhos de June pousaram em Wolfe outra vez. — Ela é im­placável. E vai tornar as coisas tão feias quanto possa. Poderia viver muito bem com a renda de meio milhão de dólares, mas insiste em brigar. O senhor sabe as conse­qüências disso. Serão absolutamente terríveis. Por isso, não podemos deixar as coisas correrem, como o senhor nos aconselhou. Ela odeia os Hawthhorne. Meu marido seria chamado a depor, assim como todas nós.

— Faremos tudo para evitar isso — disse May. Em sua voz e em seus olhos não havia mais nenhum vestígio de doçura.

— Queremos — disse April, ardorosamente —, que­remos que o senhor impeça isso.

— Meu marido me falou muito bem do senhor — afir­mou June, como se isso resolvesse tudo.

— Obrigado — disse Wolfe. Olhou para eles, um por um, inclusive os homens. — O que querem que eu faça? Que eu elimine a Sra. Hawthorne?

— Não — disse June, com determinação. — O senhor não pode fazer nada com ela. O senhor terá que atacar pelo outro lado. A mulher, Naomi Karn. Faça com que ela renuncie à maior parte da herança, ou pelo menos à metade. Se o senhor conseguir isso, deixe o resto por nos­sa conta. Por algum motivo que desconhecemos, Daisy está realmente interessada no dinheiro, embora só Deus saiba o que quer fazer com ele. Pode parecer difícil para o senhor, mas não é impossível. O senhor pode dizer à Srta. Karn que, se não renunciar ao menos à metade, terá que enfrentar uma árdua batalha pela frente, podendo perder bem mais do que isto.

— Qualquer pessoa pode dizer isso a ela, minha se­nhora. — Wolfe dirigiu-se ao advogado: — E legalmente, Sr. Prescott, seria possível a Sra. Hawthorne ganhar a causa?

— Bem — Prescott comprimiu os lábios. — É claro que poderia ganhar a causa. Para começar, sob as leis do direito consuetudinário...

— Não, por favor. Não entre em detalhes técnicos. O que quero saber é se a Sra. Hawthorne poderia invalidar o testamento.

— Não sei. Acho que sim. Tendo em vista a maneira como o testamento está redigido, a lei deixa a questão em aberto. — Prescott parecia novamente constrangido. — O senhor deve perceber que me encontro numa posição irregular. Uma posição que se situa perigosamente nos li­mites da falta de ética. Fui eu quem redigiu o testamento para o Sr. Hawthorne, o qual me instruiu para que o fi­zesse de maneira a evitar quaisquer contestações. Não cabe a mim sugerir meios de atacar o meu próprio do­cumento; pelo contrário, é meu dever defendê-lo. Por ou­tro lado, como amigo — e não como advogado — de todos os membros da família Hawthorne, e por que não dizer, do Sr. Dunn, que ocupa um cargo público de ex­pressão, estou ciente do mal incalculável que resultaria de um julgamento público. Isso, se possível, deve ser evitado a todo custo, e tendo em vista a desagradável atitude ado­tada pela Sra. Hawthorne...

Prescott parou de falar e comprimiu os lábios nova­mente. Então, continuou: — Para ser franco, e confiando na sua discrição, pois estou faltando à ética ao expressar minha opinião, considero esse testamento uma afronta. Disse isso a Noel Hawthorne na época em que o testa­mento foi redigido, mas, como insistiu, não tive outra al­ternativa a não ser seguir suas instruções. Além da injus­tiça feita à Sra. Hawthorne, eu sabia que ele tinha dito à irmã que deixaria um milhão de dólares para o fundo de pesquisas de Varney College, e não dez por cento dessa quantia. Era mais do que injustiça o que estava fazendo, era quase uma desonestidade, e disse isso a ele, mas sem resultado. O que sempre achei e continuo achando é que a Srta. Karn virou-lhe a cabeça.

— Ainda não consigo acreditar nisso. — Era May no­vamente, e sem nenhuma doçura na voz. — Continuo a crer que, se Noel tivesse resolvido não fazer o que prome­tera, teria me avisado.

— Minha cara Srta. Hawthorne. — Prescott virou-se para ela, bastante irritado: — Ontem à noite me dispus a não dar muita importância às suas observações porque sabia que a senhora estava muito tensa devido a um desapontamento grande e inesperado. — Sua voz tremia de indignação. — Mas que a senhora ouse insinuar, aqui na presença de outros, que os termos do testamento de Noel não estão totalmente de acordo com as instruções que recebi — meu Deus, o homem sabia ler, não sabia?...

— Bobagem! — interrompeu May asperamente. — Es­tava apenas expressando minha incredulidade. É mais fá­cil eu duvidar das leis da termodinâmica do que da sua integridade. Talvez vocês dois estivessem hipnotizados. — De repente, sorriu para ele, com tristeza. — Droga! Tudo isso é extremamente doloroso. Por mim, deixaria as coisas andarem, sem nenhuma interferência, mas a teimo­sia de Daisy nos força a tomar uma atitude. Sendo assim, insisto que no acordo com a Srta. Karn seja feito um ajus­te para que a doação para o fundo de pesquisas seja aumentada conforme o que me foi prometido pelo meu ir­mão quando discutiu o assunto comigo.

— Ah! — murmurou Wolfe. Prescott, que ainda man­tinha os lábios apertados, assentiu para Wolfe como se quisesse dizer: “Isso mesmo. Ah!”

June dirigiu-se rispidamente à irmã: — Você só está tornando as coisas mais difíceis, May, ou até mesmo im­possível. De qualquer forma, sei que está blefando. Eu a conheço bem. Você nem sonharia em aumentar esta con­fusão toda. Se o Sr. Wolfe for capaz de convencer aquela mulher, ótimo; gostaria muito que conseguisse o milhão de dólares para o seu fundo de pesquisas, mas o mais im­portante é Daisy, e você sabe disso. Já chegamos a um acordo quanto a esse ponto...

Calou-se ao ouvir a porta da sala abrir-se. Fritz entrou, aproximou-se da escrivaninha de Wolfe e estendeu-lhe uma bandeja com um cartão de visitas. Wolfe pegou o cartão, leu-o e colocou-o com cuidado sob o pesa-papéis, Então, olhou para a Sra. Dunn e disse-lhe:

— É um cartão da Sra. Noel Hawthorne.

Todos se olharam com perplexidade.

— Meu Deus! — exclamou April.

May falou calmamente: — Devíamos tê-la amarrado.

June levantou-se e perguntou: — Onde é que ela está? Vou falar com ela.

— Por favor — disse Wolfe, tentando acalmá-los com um gesto tranqüilizador. — É a mim que ela quer ver. Eu próprio vou falar com ela.

— Mas isso é ridículo. — June continuou de pé. — Ela nos deu até segunda-feira. Prometeu que não faria nada até lá. Deixei meus filhos com ela para ter certeza...

— Onde a senhora os deixou?

— Na casa de meu irmão. Na casa dela. Passamos a noite lá. A casa já não é mais dela, e este é um dos motivos de ela estar agindo assim, pois nos termos da heran­ça a casa pertence agora àquela mulher e não a ela. Mas prometeu que não faria nada...

— Por favor, sente-se, Sra. Dunn. Teria que vê-la de qualquer jeito antes de poder aceitar este caso. Diga à Sra. Hawthorne que pode entrar, Fritz.

— Há um senhor e duas outras senhoras com ela.

— Que entrem todos.

 

Quatro pessoas, sem contar com Fritz, que as conduzia, entraram no escritório. Fritz teve que trazer duas cadeiras da sala da frente.

Gosto de olhar para o rosto das pessoas. Devo reconhe­cer que muitas vezes um olhar já é o suficiente, mas nor­malmente os rostos têm detalhes, de um tipo ou de outro, que vale a pena olhar mais de uma vez. Andrew Dunn da­va a impressão de ser um rapaz forte e simpático, lem­brando muito as fotografias que eu havia visto do seu pai. A irmã, Sara, tinha os mesmos olhos escuros e penetrantes da mãe e a fronte característica dos Hawthorne, mas a boca e o queixo eram algo de novo. A outra era uma loura muito jovem cuja beleza daria para convencer qualquer júri imparcial de que Hollywood não havia monopolizado todas as beldades do país. Soubemos depois que se chamava Celia Fleet e que era secretária de April Hawthorne.

Mas, embora eu goste de olhar para o rosto das pessoas e aqueles três fossem dignos de atenção, meus olhos se detiveram no que eu não podia ver. Segundo se dizia, a flecha atirada por Noel Hawthorne que atingira acidentalmente sua mulher rasgara-lhe o rosto, em diagonal, desde a fronte até o queixo, e o que restara estava ali por detrás do véu — apenas um dos olhos enxergava, segundo diziam — e foi para isso que olhei. Era impossível resis­tir. O véu cinzento estava preso ao chapéu e estendia-se até o queixo, onde uma fita o prendia. Não se via nada, a não ser as orelhas. Ela era de estatura média e possuía um porte que normalmente se consideraria jovem e gra­cioso, só que, tendo em vista o véu e sabendo-se a razão pela qual ele estava ali, tinha-se a sensação de que nada podia ser gracioso. Sentei-me e fiquei a olhá-la, tentando ignorar a tentação de oferecer a alguém dez dólares para que lhe tirasse o véu, mesmo sabendo que depois prova­velmente daria mais dez dólares para quem o colocasse no lugar novamente.

Recusou a cadeira que lhe ofereci. Ficou de pé, rígida. Tive a impressão de que ela não podia enxergar nada, mas é claro que podia. Depois das apresentações, ao sentar-me novamente, percebi que os dedos de April tremiam en­quanto tentava pegar um cigarro. May parecia meiga no­vamente, mas estava tensa. Assim como June, quando disse:

— Minha cara Daisy, isso não era necessário! Fomos totalmente sinceras com você! Dissemos que viríamos consultar o Sr. Nero Wolfe. Você nos deu até segunda-feira. Não havia nenhum motivo para você ter qualquer suspeita... Sara, seu diabinho, o que você está fazendo? Guarde isso!

— Só um instante, mamãe — insistiu Sara. — Não se mexam.

Um clarão ofuscante nos cegou. Houve exclamações por todos os lados, a mais alta e menos gentil da parte de Prescott. Eu, tendo pulado da cadeira, fiquei ali de pé sentindo-me como um idiota.

Sara disse tranqüilamente: — Queria uma de Nero Wolfe sentado à sua escrivaninha. Por favor, desculpe. Me dê aquele negócio, Andy.

— Vá plantar batatas, sua pestinha.

— Sara, sente-se!

— Está bem, mamãe. Já acabei.

Paramos de piscar. Voltei a minha cadeira. Wolfe per­guntou secamente: — A sua filha é fotógrafa profissional, Sra. Dunn?

— Não. Ela é profissional em diabruras. É essa lenda infernal das famosas irmãs Hawthorne. Ela quer que a história continue. Acha que é capaz...

— Não é verdade! Só queria uma foto...

— Por favor! — disse Wolfe com ar carrancudo. Sara sorriu para ele. Wolfe levantou os olhos, em sinal de reprovação. — A senhora não quer se sentar, Sra. Hawthorne?

— Não, obrigada. — Sua voz me deixou arrepiado e me deu vontade de ir lá eu mesmo tirar-lhe o véu. Era es­tridente, e não parecia sair de uma boca humana. O véu virou-se para June.

— Então você considera a minha vinda desnecessária, não é? Isso é muito engraçado. Vocês não deixaram Andrew, Sara e a secretária de April me vigiando para que eu não me metesse?

— Não — declarou June —, nada disso. Pelo amor de Deus, Daisy, seja sensata. Só queríamos...

— Não pretendo ser nem um pouco sensata. Não sou uma imbecil, June. Foi o meu rosto que Noel arruinou, não a minha mente. — Virou-se rápida e inesperadamente para a mais nova das Hawthorne. — A propósito, April, por falar em rostos, sua secretária é muito mais bonita que você. É bem verdade que tem a metade da sua idade. Você é corajosa.

April continuou de cabeça baixa, e não disse nada.

— Você nunca consegue olhar para mim, não é? — O véu emitiu um risinho sinistro e tornou a dirigir-se a June. — Não vim aqui para me meter. Vim aqui porque estou desconfiada, e com razão. Vocês são as irmãs Hawthorne. As famigeradas Hawthorne. Seu irmão também era um Hawthorne. Ele me assegurou várias vezes que eu se­ria tratada com generosidade. Generosidade era a palavra que ele usava. Eu sabia que ele tinha aquela mulher, ele me contou — foi tão sincero quanto vocês. Dava-me por mês mais do que eu precisava, mais do que conseguia gas­tar, para me iludir, parar com as minhas suspeitas. E ago­ra nem minha casa é mais minha!

— Meu Deus, e eu não sei disso? — June levantou a mão e deixou-a cair. — Minha cara Daisy, então eu não sei disso? Será possível que você não acredita que nosso único desejo, nosso único objetivo...

— Não, não posso acreditar. Não acredito em uma pa­lavra do que uma Hawthorne diz. — Aquelas palavras ás­peras agitaram o véu, mas a fita de seda mantinha-o no lugar. — Nem em você, Glenn Prescott. Não confio em você. Em nenhum de vocês. Não acreditava sequer que vocês viriam mesmo ver esse Nero Wolfe, mas de fato vieram.

Virou-se para olhar Wolfe de frente.

— Já ouvi falar do senhor. Conheço um homem para quem o senhor trabalhou, aliás, conhecia-o. Telefonei-lhe hoje para obter informações a seu respeito. Disse-me que poderia confiar totalmente no senhor, mas que, como inimigo, é cruel e perigoso. Disse-me que, se lhe pergun­tasse sem rodeios se o senhor está do meu lado ou não, o senhor não me mentiria. Vim aqui para isso.

— Sente-se, Sra. Hawthorne.

— Não, vim aqui só para perguntar-lhe isso.

— Então, deixe-me responder. — Wolfe foi rude. — Não estou do lado de ninguém. Ainda não. Detesto as disputas pela propriedade de um morto. Entretanto, no momento estou precisando muito de dinheiro. Preciso trabalhar. Se aceitar este caso, estarei me comprometendo a persuadir a Srta. Naomi Karn a renunciar a uma grande parte, tão grande quanto possível, da herança do Sr. Hawthorne em seu favor. Foi isso que estas pessoas me pediram para fazer. A senhora quer que isso seja feito?

— Quero, mas porque tenho direito e não por genero­sidade dela. Por mim, preferia obrigá-la a...

— A senhora preferia brigar. Mas há a possibilidade de que venha a perder e, além disso, se não for possível persuadi-la, ainda resta essa alternativa. A senhora veio me ver porque não confia nestas pessoas, não é verdade?

— É. Meu marido era irmão delas. Glenn Prescott, seu advogado e amigo. Eles tentaram me enganar e me pre­judicar.

— E a senhora suspeita de que vieram aqui para me convidar a participar de uma nova trapaça?

— Isso mesmo.

— Bem, vamos acabar com essa suspeita. Gostaria que a senhora se sentasse. — Wolfe virou-se para mim. — Archie, tome nota e bata à máquina com uma cópia. “De­claro, para os devidos fins, que, em quaisquer negociações que eu possa vir a fazer com referência ao testamento do falecido Noel Hawthorne, considerarei a Sra. Noel Haw­thorne como uma das minhas clientes, e, de boa fé, cuida­rei de seus interesses e levarei ao seu conhecimento qual­quer alteração nos meus compromissos, ponto-e-vírgula; fica combinado que uma parte dos meus honorários será paga por ela.” Espaço para uma testemunha assinar.

Virei-me, ajeitei a máquina e bati rapidamente, entre­gando o original a Wolfe, que o leu, assinou e devolveu para mim, que assinei como testemunha. Dobrei então o papel, colocando-o num envelope que ofereci à Sra. Hawthorne. A mão que o segurou era pálida como a de um cadáver, com veias salientes e dedos longos e finos.

Wolfe perguntou-lhe delicadamente: — A senhora está satisfeita?

Ela não respondeu. Retirou a folha do envelope, desdo­brou-a e leu com a cabeça virada para um lado, utilizan­do, aparentemente, apenas o olho esquerdo por detrás do véu. Enfiou depois o papel para dentro da bolsa, virou-se e caminhou em direção à porta. Levantei-me para abri-la, mas o jovem Dunn tomou-me a dianteira; de qualquer modo, nós dois havíamos nos precipitado. Ela mudou de direção de repente, colocando-se frente a frente com April Hawthorne, próximo o bastante para tocá-la; mas quando levantou a mão foi para segurar a parte inferior do véu.

— Veja, April — ordenou. — Não gostaria que os ou­tros vissem, mas vou mostrar só para você, como um fa­vor, em memória de Leo.

— Não! — gritou April. — Não deixem ela fazer isso!

Houve uma agitação geral. Quase todos se levantaram e vieram correndo. A primeira a chegar foi Celia Fleet. Nunca pensei que os olhos de uma loura pudessem brilhar como os seus, no momento em que ela encarou o véu.

— Se você fizer isso de novo — disse furiosa — arran­co essa coisa de você. Juro que arranco. Experimente só!

Uma voz de homem se intrometeu. — Saia daqui! Saia! — Era o Sr. Stauffer, o sujeito de rosto imperturbável, mas que nesse momento estava descontrolado de raiva. Empurrou Celia Fleet e colocou-se em frente a April, para protegê-la. April estava encolhida na cadeira com o rosto coberto pelas mãos.

O véu emitiu aquele mesmo risinho sinistro, e a viúva de Noel Hawthorne virou-se e dirigiu-se outra vez à porta. Mas novamente, na metade do caminho, parou para dizer algo, desta vez à Sra. Dunn:

— Não precisa mandar os pirralhos me vigiar, June. Vou manter minha palavra. Vocês têm até segunda-feira.

Então, ela se foi. Fritz estava no saguão, preocupado com o grito que ouvira. Fiquei aliviado ao deixar que ele, e não eu, a conduzisse até a porta da frente. Aquele maldito véu me deixara com os nervos à flor da pele. Quando voltei, os ombros de April tremiam convulsivamente; o Sr. Stauffer batia de leve num deles e Celia Fleet no outro. May e June observavam em silêncio. Prescott enxugava o rosto com um lenço. Perguntei se queriam beber um conhaque ou qualquer outra coisa.

— Não, obrigada — disse May sorrindo. — Minha irmã vive em constantes altos e baixos. Duvido que con­seguisse ser uma boa artista se não fosse desse jeito. Pa­rece que os artistas têm que ser assim. Antigamente, costumava-se atribuir isso aos arroubos de genialidade; hoje em dia, dizem que são as glândulas.

April ergueu o rosto, pálido de nojo, e exclamou: — Pare!

— É bom parar mesmo — disse June. — Acho isso totalmente desnecessário, May. — E, dirigindo-se a Wolfe: — O senhor não pode negar que eu tinha razão quando disse que nossa cunhada era implacável.

Wolfe assentiu. — Concordo. Mesmo precisando de di­nheiro, eu não tentaria persuadi-la a desistir de nada. Por falar em dinheiro, tenho uma elevada opinião sobre o va­lor do meu trabalho.

— Sei disso. Seus honorários, se não chegarem a ser exorbitantes, serão pagos.

— Ótimo. Archie, pegue seu caderno. Vejamos. Vocês querem um acordo firmado pela Srta. Karn. Metade dos bens residuais, ou mais, se possível, para a Sra. Hawthorne. Além do meio milhão que ela vai receber?

— Não sei. O que o senhor conseguir.

— E novecentos mil para o fundo de pesquisas de Varney College.

— Certo — disse May, com ênfase.

— Se for possível, é claro — disse June. — Não deixe que minha irmã lhe dê a impressão de que destruirá o acordo se isto não for incluído. Ela está blefando.

May disse calmamente: — Você já se enganou em rela­ção a mim antes, June.

— Talvez, mas não agora. Vamos deixar este assunto para depois, Sr. Wolfe.

— Muito bem. Se for possível, nós o faremos. E a se­nhora e sua irmã? O que querem?

— Nada. Já temos as frutas.

— Perfeito. — Wolfe olhou para May. — Isso é verda­de, Srta. Hawthorne?

— Claro. Não quero nada para mim.

Wolfe olhou para a mais jovem. — E a senhora?

— Como? — perguntou April distraída.

— Estou perguntando se a senhora exige uma parte da herança do seu irmão.

— Não, pelo amor de Deus.

— Não que esse dinheiro não viesse a calhar — disse June. — April vive acima de suas posses e está endivida­da até o pescoço. May lava suas próprias meias. Nunca tem nada, pois dá metade do seu salário para as alunas do Varney que teriam que largar os estudos se ela não as ajudasse. Quanto a mim, tenho dificuldades em pagar a conta do armazém. Meu marido tinha uma boa renda quando trabalhava como advogado, mas o salário de um secretário de Estado é bastante precário.

— Sendo assim, acho que deveríamos tentar persuadir a Srta. Karn...

— Não. Nem tente. Se meu irmão tivesse nos deixado algo, por certo aceitaríamos nossa parte — e acho que todas nós ficamos surpresas por ele não nos ter deixado. Mas não vamos barganhar por isso. Se fosse diretamente com ele, aí sim, mas não com aquela mulher.

— Se eu conseguir, vocês aceitam?

— Não nos tente. O senhor sabe como é. O senhor mesmo está precisando de dinheiro.

— Veremos. E seus filhos?

— Cada um recebeu cem mil.

— Isto é o suficiente?

— Claro que sim. Meu Deus, eles são ricos.

— Há alguma coisa a mais que vocês queiram da Srta. Karn?

— Não.

Wolfe virou-se para o advogado. — E o senhor, Sr. Prescott? Tem algum comentário a fazer?

Prescott balançou a cabeça negativamente. — Nenhum. Sinto-me feliz em ficar o máximo possível fora disto. Fui eu quem redigiu o testamento.

— Pois é. — Wolfe olhou-o com ar aborrecido e diri­giu o mesmo olhar a June. — É tudo, então. Faremos o possível. E a Srta. Karn?

— Sim?

— Quem é ela, o que faz, onde mora?

— Não sei quase nada sobre ela. — June virou-se para o advogado: — Fale você, Glenn.

— Bem — Prescott coçou o nariz. — É uma mulher jovem, de mais ou menos vinte e oito ou vinte e nove anos, presumo...

— Um momento! — Sara Dunn, a profissional em dia­bruras, o interrompera, e aproximava-se da mesa de Wolfe com algo nas mãos.

— Veja, Sr. Wolfe. Veja isto. Trouxe porque achei que poderia ser útil. Ela é a moça que está rindo e o homem ao lado dela é o tio Noel. Posso emprestá-la, se o senhor quiser, mas quero-a de volta.

— Mas como é que você arranjou esta foto? — per­guntou a Sra. Dunn.

— Ah, tirei-a na primavera passada, quando encontrei tio Noel por acaso em frente ao Hartlespoon’s, e vi logo quem podia ser a moça que estava com ele. Não me viram tirá-la. É uma boa foto, e por isto ampliei-a.

— Você... você sabia... — June gaguejava. — Como é que você soube que essa mulher... ?

— Não seja boba, mamãe — disse Sara com compla­cência. — Não nasci surda e já tenho mais de vinte e um anos. Você tinha a minha idade quando escreveu As aven­turas amorosas de um chapim,

— Muito obrigado, Srta. Dunn. — Wolfe colocou a foto sob o pesa-papéis, por cima do cartão de Daisy Hawthorne. — Não vou esquecer de devolvê-la. — E, virando-­se para o advogado: — O que o senhor tem a dizer sobre a Srta. Karn? O senhor a conhece, não é verdade?

— Não muito bem. Quer dizer, estive em contato com ela, por assim dizer, durante seis anos. Era estenógrafa da nossa firma — minha firma.

— É mesmo? Trabalhava diretamente com o senhor?

— Não, não. Temos umas trinta ou mais — o escritó­rio é grande. Trabalhou conosco durante uns dois anos e então tornou-se secretária do sócio minoritário, o Sr. Davis. Foi no escritório dele que o Sr. Hawthorne a conheceu. E foi um pouco depois que... — Prescott parou de falar e mostrou-se constrangido. — Mas isso não vem ao caso. Só queria explicar como foi que a conheci. Dei­xou a firma há cerca de três anos... ah... — aparente­mente por sugestão do Sr. Hawthorne.

— Aparentemente?

— Bem... — Prescott encolheu os ombros. — Por sugestão dele, então. Como ele próprio não se preocupou em manter segredo sobre o fato, não tenho por que ser cauteloso.

— Os Hawthorne — disse May, suave — são muito egocêntricos para andarem às escondidas.

E claro que não estava se escondendo — concordou Wolfe, enquanto olhava para a fotografia sob o pesa-papéis — quando desfilava com ela pela Quinta Avenida.

— Acho que é meu dever avisá-lo — disse Prescott — que o senhor tem uma tarefa difícil pela frente.

— Sei disto. Convencer qualquer pessoa a renunciar a quatro milhões de dólares...

— Eu sei, mas o que quero dizer é que será extrema­mente difícil. — Prescott sacudiu a cabeça com pessimis­mo. — Espero com sinceridade que tenha sucesso, mas pelo que conheço da Srta. Karn... vai ser um osso duro de roer. Pergunte a Stauffer o que ele acha. Foi por este motivo que lhe pedimos que viesse conosco.

— Stauffer?

Do meu lado esquerdo alguém falou: — Sou Osric Stauffer.

Wolfe olhou para o sujeito que se esforçava para man­ter alguma imagem. — Ah! o senhor é... — e deixou a frase inacabada.

Sua expressão parecia um pouco aborrecida quando fa­lou: — Osric Stauffer, da Daniel Cullen & Cia. O depar­tamento de negócios internacionais estava sob a direção do Sr. Hawthorne e eu trabalhava diretamente com ele. Além disto, éramos razoavelmente íntimos.

Então era para a Daniel Cullen & Cia. que tinha de manter aquela imagem. Como estava o tempo todo esvoaçando em torno de April Hawthorne, achei que estava su­blimando uma paixão, mas me enganava redondamente.

— O senhor conhece a Srta. Karn, não é verdade? — perguntou Wolfe.

— Conheço, sim. O Sr. Prescott se referiu a mim por­que estive com ela hoje para lhe falar sobre o testamento. — Seu tom era seco e conciso. — Fui lá a pedido do Sr. Prescott e da Sra. Dunn e, de forma oficiosa, também como representante de minha firma. Coisas desse gênero, como a impugnação de um testamento, seriam extrema­mente indesejáveis em se tratando de um sócio da Cullen.

— Então o senhor esteve com a Srta. Karn esta manhã?

— Estive.

— E o que aconteceu?

— Nada. Não consegui nada. É claro que, na minha posição, já fui encarregado de negociações difíceis e de­licadas, mas nunca topei com alguém tão inflexível quanto a Srta. Karn. Sua posição é a de que seria impróprio e até imoral interferir nos desejos de um morto, conforme ele próprio os expressou, com respeito à doação de seus bens. Sendo assim, recusou-se sequer a discutir o assunto. Disse-lhe que teria que brigar e que poderia perder. Respondeu que tinha um grande respeito pela justiça e que aceitaria de bom grado qualquer decisão tomada por uma corte, se não pudesse apelar para um tribunal superior.

— O senhor fez alguma proposta?

— Não, nada específico. Não cheguei a tanto. Ela es­tava... — Stauffer parecia momentaneamente constran­gido, sem saber como se expressar. — Ela não estava dis­posta a ouvir nada sobre o testamento, que era o objetivo da minha visita. Tentou levar as coisas para um lado mais pessoal.

— O senhor quer dizer que tentou conquistá-lo?

— Oh, não. — Stauffer enrubesceu, olhou involunta­riamente para April Hawthorne e enrubesceu mais ainda. — Não, nada disso, de jeito nenhum. O que quis dizer é que agiu como se minha visita fosse apenas... por ami­zade. É uma mulher bastante inteligente.

— E o senhor acha que ela não se intimidou diante da ameaça de vir a ter que enfrentar um tribunal?

— Tenho certeza que não. Nunca vi uma pessoa menos intimidada.

Wolfe deu um grunhido. Virou-se para June com ar carrancudo.

— Por que — perguntou — me pedem que eu faça uma coisa que já foi tentada e não deu certo?

— Aí é que está — afirmou June. — Foi por isto que viemos procurá-lo. Se uma simples ameaça bastasse, não haveria problemas. Sei que é uma tarefa difícil. É por essa razão que pagaremos seus honorários com prazer, se o senhor tiver êxito.

— É por isto — interveio May — que minha irmã se enganou ao dizer que não precisávamos de um detetive. O senhor terá que encontrar um meio mais eficaz de pres­sionar a Srta. Karn, pois a ameaça de ter que enfrentar um tribunal não foi o bastante.

— Entendo — Wolfe fez uma careta. — Não é à toa que tenho aversão a brigas por causa de testamentos. São sempre brigas muito sujas.

— Esta não é — afirmou June. — Será, se Daisy e aquela mulher forem parar num tribunal, mas de nossa parte, não. O senhor acha sujo tentar evitar um escândalo destes, convencendo aquela mulher de que três ou quatro milhões de dólares da fortuna de nosso irmão é tudo o que ela merece? O problema é que ela é tão sovina e tei­mosa que torna as coisas mais difíceis e dispendiosas...

— E mesmo se a coisa fosse suja — disse May calma­mente — teria que ser feita. Sr. Wolfe, acho que já disse­mos tudo que o senhor precisava saber. O senhor aceita?

Wolfe olhou para o relógio de parede. Senti pena dele. Não gostava desse tipo de trabalho, mas tinha que aceitar. Além disso, não permitia que nada interferisse no seu há­bito de passar quatro horas por dia na estufa sob o telha­do — de nove às onze da manhã e de quatro às seis da tarde. E o relógio marcava cinco para as quatro. Olhou para mim, retribuiu meu sorriso com um ar zangado e tornou a olhar para o relógio.

Levantou-se da cadeira tão abruptamente quanto seu corpo permitia. — Aceito — disse com aspereza. — E agora, se me permitem, tenho um compromisso às quatro horas.

— Eu sei! — exclamou Sara Dunn. — O senhor vai ver as orquídeas. Gostaria muito de ir com o senhor.

— Fica para outra ocasião, Srta. Dunn. Hoje não me sinto disposto. Devo manter contato com a senhora, Sra. Dunn? Ou com o Sr. Prescott?

— Comigo ou com ele. Ou com os dois. — June havia se levantado.

— Com os dois, então. Anote os nomes e os endereços, Archie.

Foi o que fiz. Do escritório e da casa de Prescott, da casa dos Hawthorne, na Rua 67, onde estavam todos ins­talados temporariamente, e, não menos importante, do apartamento da Srta. Karn em Park Avenue. Eles foram se dispersando em direção ao saguão, e deixei que Fritz os acompanhasse. Percebi que Stauffer segurava, solícito, o braço de April Hawthorne. May foi a última a sair, retardando-se para poder dizer a Wolfe algo que não pude escutar. Ouvi a porta da frente se fechar e Fritz passou olhando para a sala enquanto ia em direção à cozinha.

— Ufa! — disse Wolfe.

— Foi um sucesso — concordei. — Mas até que eles não são gananciosos. Vou me casar com April. Aí, depois de um certo tempo, divorcio-me e caso com a secretária loura...

— Basta. Vá para o inferno. Bem, você tem duas horas...

— Certo. — Assumi um ar de falsa alegria. — Deixe que eu diga por você. Tenho que trazer a Srta. Karn aqui às seis horas. Ou alguns minutos antes para não deixá-lo esperando.

Wolfe assentiu. — Digamos, às dez para as seis.

Fazia calor demais para que eu lhe atirasse algo. Limitei-me a emitir um som desrespeitoso, saí, peguei o carro e toquei para Park Avenue.

 

Acho que, ao todo, dos vários contatos, profissionais ou não, que tive com mulheres até hoje, mais de cem foram com dondocas. Estava quase certo de que meu encontro com Naomi Karn naquela tarde acrescentaria mais uma à lista, mas enganei-me. Quando a criada me acompanhou pelo amplo e luxuoso vestíbulo do apartamento no déci­mo segundo andar de Park Avenue, próximo à Rua 74 — onde fui admitido dizendo que vinha da parte do Sr. Prescott — e conduziu-me para uma sala fria e escura, com os móveis revestidos de um tecido frio e leve, e me aproximei o suficiente para olhar bem para a mulher que estava de pé ao lado do piano, vi logo que me enganara. Ela sorriu. Não diria que sorriu para mim; apenas sorriu.

— Sr. Goodwin? Da parte do Sr. Prescott?

— Exatamente.

— Acho que deveria ter me recusado a falar com o senhor. Só que não gosto de fazer essas coisas — é uma atitude tão presunçosa.

— Por que a senhorita deveria se recusar a falar comigo?

— Porque, se foi o Sr. Prescott que o enviou, o senhor deve ter vindo para me fazer ameaças. Não estou certa?

— Ameaças? Por quê?

— Ora, deixe disso. — E sorriu novamente.

Esperei um instante e, quando vi que não se dispunha a acrescentar mais nada, disse-lhe: — Na verdade, não vim a mando do Sr. Prescott, mas sim de Nero Wolfe. Ele foi contratado pelas irmãs de Noel Hawthorne para discutir o testamento dele com a senhorita.

— Nero Wolfe, o detetive?

— Este mesmo.

— Que interessante! Quando virá falar comigo?

— Ele nunca sai para falar com ninguém. Detesta ter que se locomover. Decretou uma lei que proíbe que seus pés o tirem de casa, a não ser em ocasiões excepcionais, e nunca a serviço. Fui contratado para andar por aí convidando as pessoas a irem vê-lo.

Levantou as sobrancelhas. — Quer dizer que o senhor veio aqui para me convidar?

— Exatamente. Não há pressa. São apenas quatro e meia e ele espera encontrá-la às dez para as seis.

Balançou a cabeça negativamente. — É uma pena. Até que seria interessante discutir algo com Nero Wolfe.

— Então, venha.

— Não. — Seu “não” parecia definitivo. Na verdade, parecia mais irrevogável do que qualquer “não” que eu já ouvira.

Olhei para ela. Não tinha nenhum traço de dondoca que eu pudesse ver. Era algo novo para mim. Não era do tipo doméstico nem era bonita. Era mais para morena que para loura, mas ninguém a classificaria como morena. Nenhuma de suas feições tinha algo de excepcional, mas o fato é que nela não se viam as feições, só o todo. Na ver­dade, depois de ter trocado apenas algumas palavras com ela, fiquei meio irritado. Depois de nove anos de expe­riência como detetive, já estava treinado o suficiente para sustentar qualquer tipo de olhar, mas havia algo nos olhos de Naomi Karn, ou por detrás deles, que fazia com que eu os buscasse e evitasse ao mesmo tempo. Não era aquele tipo de olhar provocante e convidativo que a natureza in­ventou para perpetuar as espécies; este eu conheço bem e, quando quero, não caio nele. Era tão feminino quanto esse olhar, era uma mulher deixando que um homem possuísse seus olhos, mas era mais, muito mais — era um desafio de quem não tem medo de nada. Eu sabia que tinha desviado os olhos e sabia que ela percebera e por isso me irritei.

— A verdade é que o tal de Stauffer não soube agir direito. Sei que ele esteve aqui hoje de manhã e lhe disse que, se a senhorita não consentisse em dividir a herança, a Sra. Hawthorne iria impugnar o testamento.

Ela sorriu. — É verdade. Ossie tentou dizer mais ou menos isso.

— Ossie? É um bom nome para ele.

— Também acho. Gostei de saber que pensa o mesmo.

— E penso. Mas Ossie estava querendo enganá-la. A coisa é muito mais grave do que uma questão judicial, e as conseqüências podem ser muito piores.

— É verdade? Que coisa, hem. Que tipo de conse­qüências?

Balancei a cabeça negativamente. — Não sou eu quem deve lhe dizer. Mas este é o lugar mais fresco em que já estive hoje. Se eu quisesse, podia dar-lhe um excelente conselho. O que são essas coisas com quatro pernas? Cadeiras?

Ela esboçou um sorriso. — Por favor, sente-se, Sr....

— Goodwin. Archie.

— Sente-se, por favor. — Ela se moveu. Teria sido um prazer vê-la andar, se eu não estivesse irritado com ela. Não era tão graciosa ou irresistível quanto April Hawthorne, mas tinha a mesma leveza ao andar, e seus movimentos eram ainda mais naturais, sem qualquer artifício. Enquanto apertava um botão, perguntou-me: — O que o senhor gostaria de beber?

— Um copo de leite, obrigado.

Sentei-me numa cadeira que ficava a dois passos da dela. A criada entrou, e foi instruída para trazer um copo de leite e uma garrafa de água mineral. A Srta. Karn re­cusou o cigarro que lhe ofereci, e depois que eu acendi o meu, disse:

— O senhor me deixou assustada, sabe? Terrivelmen­te assustada. — Parecia estar achando graça naquilo tudo. — Será que o leite vai fazer com que o senhor sinta von­tade de me dar aquele conselho?

— Já estou com vontade. — Olhei-a nos olhos e sus­tentei o olhar. — Aconselho-a a não ir ver Nero Wolfe. Sei que estou sendo desleal, mas a traição faz parte da minha personalidade e, além disto, não gostei da maneira como toda essa gente se uniu para atacar a senhorita. Já achava isto, mesmo antes de vir aqui, mas depois de conhecê-la...

— Ficou mais fácil trair.

— Pode ser.

— O senhor é muito gentil. Por que me aconselha a não falar com Nero Wolfe?

— Porque sei que tipo de armadilha está tramando. O que a senhorita deveria fazer era contratar um advogado e deixar que Wolfe se entendesse com ele.

Ela fez uma careta. — Não gosto de advogados. Co­nheço-os muito bem. Trabalhei para uma firma de advo­cacia durante três anos.

— A senhorita terá que contratar um, se o testamento for contestado.

— É verdade. Mas o senhor disse que estou ameaçada por algo bem mais perigoso que uma questão na justiça. A armadilha que Nero Wolfe está armando — como é essa armadilha?

Sorri e balancei a cabeça. A criada trouxe as bebidas, e depois que a água e o gelo foram colocados no copo da. Srta. Karn, tomei um gole de leite. Como estava um tanto gelado, segurei o copo com ambas as mãos, sorri-lhe de novo e disse:

— Aqui está realmente agradável e fresco. Estou me divertindo. A senhorita não está?

— Não — disse ela, e o seu tom tornou-se de súbito surpreendentemente áspero. — Não estou me divertindo nem um pouco. Um grande amigo meu morreu há apenas três dias, o Sr. Noel Hawthorne. Outra pessoa que eu con­siderava meu amigo, até certo ponto — pelo menos não um inimigo — está agindo de maneira abominável. O Sr. Gleen Prescott. Esteve aqui ontem à noite para me infor­mar sobre as cláusulas do testamento, e o modo como se comportou foi imperdoável. Agora está conspirando abertamente com a família Hawthorne contra mim. Mandou aquele tal de Stauffer vir aqui para me ameaçar. Mandou que o senhor viesse aqui com este blablablá idiota sobre armadilhas e traições. Ora! O seu leite está bom?

— Está. Desculpe, mas quero ser mico de circo se a senhorita não está se divertindo. Vamos discutir o assunto a sério?

— Não estou disposta a discutir nada. A única coisa sensata que o senhor disse foi que ninguém soube agir di­reito. Mandar o Ossie vir aqui para me ameaçar! Posso fazê-lo tremer só de olhar para ele. Aliás, não posso fazer isso com o senhor.

— Não, mas quase conseguiu. — Sorri para ela. — E acredita que mais vinte minutos bastarão para que con­siga; foi por isto que me convidou para sentar. Pode ser que esteja certa, mas asseguro-lhe que não sou nenhum Ossie. Na verdade, estou só fazendo hora. Meu chefe me pediu que a levasse até sua casa na Rua 35, às dez para as seis, mas prefiro chegar lá às seis e dez. Ele precisa aprender a só fazer exigências razoáveis. — Olhei para meu relógio: — Temos que sair daqui a pouco. Tive que estacionar depois da Terceira Avenida.

— Eu já disse, Sr. Goodwin, que não estou me diver­tindo nem um pouco. Estou vendo que já acabou de beber o seu leite.

— Estou satisfeito, obrigado. Então não pretende me acompanhar?

— De modo algum.

— E o que vai fazer? Ficar aí parada esperando uma intimação e uma denúncia?

— Não é isto que vou fazer. — Sua voz tornou-se ás­pera novamente. — Vou deixar bem claro: o que me dei­xou ressentida foi a maneira como fizeram as coisas. Sei que não se pode esperar nenhuma atitude racional da Sra. Hawthorne, mas a Sra. Dunn não poderia ter vindo falar comigo, ou pedir que eu fosse vê-la para conversarmos so­bre o assunto? Não poderia ter dito simplesmente que considerava o testamento injusto e que gostaria de propor um acordo? Ou dignar-se a dizer que ela e as irmãs se acham no direito de ter uma parte dos bens do irmão?

— Mas elas não querem nada. Não é nada disso. É Daisy quem está infernizando as coisas.

— Não acredito. Acho que foi Glenn Prescott quem começou tudo e elas o ajudaram a convencer a Sra. Haw­thorne. Acham que o que têm a fazer é me intimidar. Pri­meiro, mandam aquele tal de Stauffer aqui, e então contratam um detetive, Nero Wolfe, que é especialista em pe­gar criminosos. Parece até que eu sou uma assassina. Não vai dar certo. Eles podem estar cobertos de razão ao achar que deveriam receber uma parte da herança de Noel — do Sr. Hawthorne — mas só conseguirão isso agora se for na justiça.

— Está bem — concordei. — Estou do seu lado. To­talmente. São todos uns calhordas, Prescott é um vigarista e Stauffer é um paspalhão. Mas posso lhe fazer uma per­gunta hipotética?

— Não vai ser uma pergunta hipotética que me vai fazer mudar de idéia, Sr. Goodwin.

— Vou perguntar assim mesmo. Vai ser um bom exer­cício para nós e ajudará a passar o tempo. Digamos, claro que só por hipótese, que Nero Wolfe é cruel, inescrupuloso e bastante astuto; que você vai irritá-lo por se recusar a ir lá e discutir o assunto com ele; que ele está doido para prejudicá-la; e então ele tem a brilhante idéia de atacar o testamento, argumentando não que ele é injusto, mas que é falso; que ele é capaz de...

— Então é isto. — A Srta. Karn lançou-me um olhar penetrante. — Quer dizer que é esta a nova ameaça, não é? Não chega a ser melhor que a outra. Não foi o Sr. Prescott quem redigiu o testamento? Não foi com ele que o testamento ficou?

— Claro que foi. Aí é que está. Foi a senhorita quem concluiu que ele está conspirando contra a senhorita, não foi? Como foi ele quem redigiu o testamento, e como o testamento está com ele, a senhorita não vê que ele se encontra numa posição ideal para apoiar o argumento de Wolfe de que houve uma substituição e o testamento é falso?

— Não, ele não faria isso. Ele se comprometeu em re­conhecer o testamento como legítimo.

— Comprometeu-se com quem? Com Wolfe e com os Hawthorne, seus companheiros de trapaça.

— Mas... — Ela ia falar algo mas desistiu. Seus olhos se estreitaram e ela ficou imóvel por um instante. Então disse, devagar: — O Sr. Prescott não faria uma coisa des­sas. Ele é um advogado de alto nível que goza de excelen­te reputação...

— Pelo visto, ele está subindo no seu conceito.

— O conceito que faço dele não vem ao caso. E há outra coisa, se ele tinha a intenção de fazer um jogo sujo desses não precisava ter tanto trabalho. Era só destruir o testamento.

— Mas ele não tinha tal intenção. A hipótese é a de que foi Wolfe quem teve a idéia e a vendeu aos outros. Eu não disse que tudo isto era hipotético?

— Disse. Foi o que o senhor disse. — Seus olhos se estreitaram ainda mais. — É mesmo hipotético? Ou é exa­tamente isso o que Nero Wolfe preparou para mim?

Dei de ombros. — A senhorita terá que perguntar isto a ele, Srta. Karn. Tudo o que sei é que ele quer que a se­nhorita vá até lá e discuta o assunto com ele. Ele se com­prometeu a tentar convencê-la a chegar a algum tipo de acordo. Nunca soube de ninguém que tivesse ganho algo por ter se recusado a falar com Nero Wolfe quando ele quer falar.

Ela me olhou por mais alguns instantes e de repente le­vantou-se, sem se preocupar em pedir licença, e saiu da sala. Também me levantei e caminhei em direção à porta, e lá fiquei de orelha em pé esperando ouvir um telefone­ma ou qualquer outra coisa, mas como o apartamento era bem grande e à prova de som, não pude escutar nada. De­pois de esperar quinze minutos, já estava me preparando para dar uma espiada pelo apartamento quando ouvi pas­sos que me fizeram voltar para o meio da sala a tempo de vê-la entrar. Usava agora um vestido de linho azul, com um lenço também azul, do mesmo tecido, em volta do pescoço e um tipo de chapéu. Disse, apenas a título de informação:

— Estou indo não porque esteja com medo. Se bem que isto não lhe interesse. Sua obrigação era me levar até lá. Vamos embora.

Não havia dúvida de que ela era capaz de pegar as coi­sas no ar com um mínimo de esforço. Já na calçada, descobri como era agradável andar ao seu lado. No pé em que as coisas estavam, podíamos nos considerar quase que como inimigos mortais, mas já que tínhamos que andar juntos ela deixava-se levar, ao invés de resistir. Normal­mente, não é isto o que acontece, pois a maioria das garo­tas ou andam agarradas na gente ou vão nos puxando ou têm que ser puxadas.

Não trocamos nem uma palavra, mesmo depois de já estarmos dentro do carro em direção à casa de Wolfe. Isto era bastante conveniente para mim. A trama que eu arma­ra para que ela concordasse em me acompanhar tinha sido improvisada. Sei que Wolfe não me condecoraria por isso e tinha que inventar um meio de fazer com que ele enten­desse a coisa como uma simples hipótese. Não que ele se importasse em ser chamado de cruel, inescrupuloso ou es­perto, mas certamente não ficaria exultante quando sou­besse que eu tinha insinuado à Srta. Karn que ele era um imbecil. O que tinha a fazer era colocá-la na sala da frente e trocar algumas palavras a sós com ele antes de fazê-la entrar. Teria sido melhor falar com ele na estufa, mas isto estava fora de cogitação, pois quando chegamos eram seis e quinze e ele já deveria estar no escritório nos esperando.

Meu plano foi por água abaixo. Os três carros estacio­nados na frente da casa eram um sinal de concorrência à vista. Abri a porta com a minha chave e ao entrarmos no saguão encontramos Fritz Brenner à nossa espera para nos prevenir de algo.

— Temos companhia?

Ele assentiu. — As senhoras e os cavalheiros que esti­veram aqui esta tarde. Eles voltaram. Chegaram às três para as seis.

— Não diga! — E virando-me para a Srta. Karn: — Isto é inesperado e desagradável. Acho que a senhorita terá que aguardar um pouco. — Fui andando em direção à sala da frente. — Aqui não é tão fresco quanto no seu apartamento...

Quando vi, ela já tinha se precipitado em direção ao escritório e não houve tempo de detê-la. Devia ter ficado de olho, mas como poderia imaginar que iria direto para lá, acertando com a porta por instinto, e que irromperia por ela adentro? Corri ao seu encalço, mas quando consegui chegar ela já estava bem no meio deles. Parei e dei­xei o barco correr.

Estavam todos lá, a gangue toda, com exceção da dama de véu. As irmãs Hawthorne limitaram-se a olhar a intrusa com espanto, mas Sara Dunn não conteve um gritinho e Glenn Prescott e Osric Stauffer soltaram exclamações de surpresa. Sem prestar atenção a nada disso, ela avan­çou determinada em direção à escrivaninha, encarou Wolfe e disse com toda a tranqüilidade:

— O senhor é Nero Wolfe? Sou Naomi Karn. Disse­ram-me que o senhor tinha algo para discutir comigo.

June murmurou: — Meu Deus!

May esticou o pescoço para poder olhá-la melhor.

April riu alto e disse calorosamente: — Bravo! Que caia o pano!

Wolfe tinha os lábios apertados. Antes que pudesse abri-los, a Srta. Karn precipitou-se em direção ao Sr. Prescott, dizendo:

— É verdade que o senhor armou uma trama para que o testamento seja declarado falso? Responda!

O advogado olhou-a boquiaberto. — O que é isso? — gaguejou. — Uma trama... Falsificação... Que raio de...

— Continuo achando que o pano deveria cair — falou April. As duas outras irmãs também diziam algo, e Stauf­fer tentava fazer com que April se calasse, enquanto Pres­cott e a Srta. Karn continuavam num tremendo bate-boca, até que Nero Wolfe gritou a plenos pulmões:

— Já chega! Senhoras e senhores! Meu escritório não é um curral! — Lançou-me um olhar fulminante: — Vá pro inferno, Archie! — E dirigindo-se para o advogado: — Sr. Prescott, peço-lhe desculpas por ter a meu serviço um rapaz de imaginação tão fértil a ponto de ficar inven­tando clichês sobre tramas sinistras e testamentos falsifi­cados... E quanto à Srta. Karn, deve estar se achando muito ousada e corajosa...

— Disso não há dúvida — observou May.

Wolfe ignorou o comentário. — Vamos com calma! Pode-se observar as regras fundamentais de boas maneiras mesmo quando se luta por uma fortuna. E uma jovem de olhos tão inteligentes quanto os seus não deveria deixar-se iludir pelas brincadeiras de mau gosto do Sr. Goodwin. Reconheço que a senhorita deve ter ficado desconcertada, pois esperava ter uma conversa em particular comigo e acabou encontrando quatro pessoas neste escritório. Não foi culpa minha nem deles. Eles não sabiam que a senho­rita viria, nem eu sabia que eles viriam. Vieram sem avi­sar para me informar que a Sra. Noel Hawthorne, logo após ter deixado o meu escritório esta tarde, resolveu contratar um advogado, que já fez um requerimento formal ao Sr. Prescott, pedindo uma cópia do testamento. Como vê, a senhorita não é a única... O que há, Fritz?

Fritz tinha entrado em grande estilo, que foi por água abaixo quando alguém vindo por detrás deu-lhe um esbarrão. Meus olhos se abriram quando vi quem tinha aci­dentalmente esbarrado nele, tentando passar — nosso ve­lho amigo, o Inspetor Cramer, da Delegacia de Homicí­dios. Logo atrás dele vinha aquele baluarte do pessimis­mo, o promotor público Skinner, e mais atrás um homenzinho esquelético de bigode, carregando um chapéu de palha bastante usado. Fritz, nocauteado, vendo que não havia mais o que anunciar, chegou para o lado, tentando não demonstrar sua indignação.

Wolfe cumprimentou-os em voz alta: — Como estão, cavalheiros? Como os senhores podem ver, estou ocupa­do. Se me derem licença...

— Está tudo bem, Sr. Wolfe — disse Skinner com sua voz agourenta, antecipando-se a Cramer. E passando os olhos à sua volta, falou: — Sra. John Charles Dunn? Sou Skinner, o promotor público. Srta. May Hawthorne? Srta. April Hawthorne? Tenho algumas... hã... notícias de­sagradáveis para as senhoras. — Parecia que ele ia fazer um discurso. — Precisava encontrá-las o mais rápido possível...

— Desculpe-me, senhor — Wolfe interrompeu-o brus­camente. — Mas isto é intolerável. Estávamos conversan­do sobre um assunto particular...

— Sinto muito — disse Skinner. — Acredite-me, sinto muito. Não estaríamos nos intrometendo desse jeito se não tivéssemos algo muito urgente a tratar. Gostaríamos de fazer algumas perguntas sobre a morte do Sr. Hawthorne na terça-feira à tarde, na casa de campo da senhora, perto de Nyack, estou certo, Sra. Dunn?

— Está. — June lançou-lhe um olhar penetrante. — O que o senhor... por que o senhor quer nos interrogar sobre isso?

— Porque é nosso dever, embora desagradável. — Skinner olhou-a nos olhos: — Porque estamos diante de provas que nos levam a crer que a morte do seu irmão não foi acidental. Provas de que ele foi assassinado.

Fez-se um silêncio mortal.

Skinner e Cramer olhavam para todos e também os olhei. Eu estava perto o suficiente de April para ouvir o que seus lábios deixaram escapar. — Que caia o pano! — mas ela estava muito atônita para perceber que tinha falado.

 

Wolfe deu um suspiro profundo. Prescott levantou-se, abriu a boca, fechou-a de novo e voltou a sentar. Osric Stauffer emitiu um som que denotava estar chocado e in­dignado e não poder acreditar no que ouvia, mas ninguém prestou atenção.

June, cujos olhos continuavam fixos em Skinner, disse:

— Isto é impossível. — E num tom um pouco mais alto: — Totalmente impossível!

— Gostaria que fosse assim, Sra. Dunn — afirmou Skinner. — Gostaria sinceramente. Ninguém pode avaliar melhor do que eu o que este testamento significa para vo­cês — tanto para o seu marido quanto para suas irmãs — todos os seus aspectos desagradáveis — e foi com a maior relutância — uma relutância quase insuperável que...

— Isto é mentira. — Era a voz de May Hawthorne, mas num tom completamente diferente. Era cortante como um chicote. — Vamos deixar de rodeios, Sr. Skinner. É melhor o senhor parar com essa conversa mole sobre relutância. Conhecemos o cheiro da política de lon­ge. O que isto quer dizer é que o senhor tem carta branca para usar a morte de meu irmão para derrubar o meu cunhado. Talvez o senhor consiga. Vá em frente e tente, mas deixe de hipocrisias.

Skinner ficou a olhá-la esperando que terminasse, e então disse bastante sério: — A senhora está enganada, Srta. Hawthorne. Asseguro-lhe que foi com profunda e verdadeira relutância...

— O senhor nega que de dois meses para cá o seu gru­po vem espalhando calúnias sobre o meu cunhado e sobre as relações dele com o meu irmão?

— Nego. Não pertenço a nenhum grupo, a não ser que a senhorita esteja se referindo ao meu partido político. Tenho ouvido boatos, outras pessoas também têm...

— O senhor nega...

— Chega, May — ordenou June, assumindo o controle da situação. — De que adianta? — Seus olhos fulmina­ram Skinner novamente. — O senhor afirma ter provas de que meu irmão foi assassinado. Que provas são essas?

— Já vou lhe dizer, Sra. Dunn. Mas para saber exata­mente o que essas provas significam, preciso pedir-lhe algumas informações. Foi por isso que...

— Posso fazer uma pergunta? — Era a voz de Glenn Prescott.

— Claro. — Skinner assentiu para seu companheiro de profissão. — Estou contente de que esteja aqui. Não que eu vá dar à Sra. Dunn algum motivo para que ela tenha que consultar um advogado, mas de qualquer jeito estou contente de que esteja aqui.

— Eu também — disse Prescott secamente. — Por uma única razão. Se houve um assassinato, isso ocorreu em Rockland County, não é verdade?

— Sim. — Skinner virou-se de súbito e apontou para o homenzinho esquelético de bigode que ainda mantinha o chapéu entre as mãos. — Este é o Sr. B. A. Regan, pro­motor público de Rockland County. Sr. Regan, o senhor provavelmente já ouviu falar de Glenn Prescott, da Dunwoodie, Prescott e Davis.

— Claro que já — afirmou o Sr. Regan. — É um prazer.

— Igualmente — assentiu Prescott, monossilábico.

— O Sr. Regan veio consultar o meu escritório. Se você preferir que ele próprio fale...

— Não há necessidade. Pode continuar. Mas há um outro aspecto, que apesar de não ser legal, não deixa de ser importante. Você disse ter provas de que Noel Hawthorne foi assassinado na casa de John Charles Dunn, on­de estava hospedado, estando lá o próprio Sr. Dunn. Não teria sido mais natural e adequado que o Sr. Dunn fosse o primeiro a ser avisado? Ao invés de ficar espalhando isto pelos quatro cantos? Sobretudo tendo em vista a po­sição que ele ocupa? Ao invés de vir atrás da Sra. Dunn e entrar aqui deste jeito para jogar isto tudo na cara dela na presença de toda esta gente?

— Não gosto da sua maneira de falar — disse Skinner, contrariado.

— Isto não vem ao caso. O que tem a dizer sobre as minhas perguntas?

— Também não gosto delas. Entretanto, vou respondê-las. Passei uma hora tentando me comunicar com o Sr. Dunn. Como você deve saber, ele está em Washington, apresentando-se diante de uma comissão do Senado. Não consegui entrar em contato com ele. Enquanto isso, soube que a Sra. Dunn e suas irmãs tinham vindo ao escritório de Nero Wolfe. Ninguém mais soube disso. Sou um ini­migo político, e um inimigo bastante implacável do Secretário Dunn e da sua administração, mas daí a ser capaz de fazer um jogo sujo desses? Pelo amor de Deus. Pres­cott. Pode ser que a Srta. May Hawthorne não saiba disto, mas você me conhece. Sua insinuação de que vim até aqui procurar a Sra. Dunn porque estava com receio de enfrentar o próprio Dunn é injustificada e ultrajante. O Sr. Regan veio me procurar com as provas e me pediu que o ajudasse. Para que eu possa interpretá-las com exatidão, é necessário que obtenha algumas informações da Sra. Dunn e, provavelmente, de outras pessoas. Peço a ela e aos outros, se for preciso, que cooperem comigo no cum­primento do meu dever.

Prescott, sem se deixar impressionar, perguntou: — Que provas são essas?

— Não sei. Não posso saber até ter a informação de que necessito. Preciso apenas de alguns fatos. Você acha que eu tentaria enganar alguém com você por perto?

E virando-se para Wolfe: — Se você preferir podemos ir para um outro lugar, talvez...

Wolfe sacudiu a cabeça negativamente. — Seu assunto é mais urgente que o meu. Archie, Fritz, tragam mais cadeiras.

Fritz e eu trouxemos mais algumas da sala da frente. Ofereci uma das cadeiras a Naomi Karn que tinha se eclipsado lá para o fundo da sala, perto da estante. Tive a impressão de que ela ia desmoronar. Os três jovens fo­ram se acomodando; Andrew Dunn sentou-se perto da mãe e os outros ficaram mais atrás. O Inspetor Cramer foi até o saguão e voltou acompanhado de um antigo com­panheiro meu, o Sargento Purley Stebbins, que ignorou o meu cumprimento enquanto pegava uma das cadeiras que eu trouxera e se plantava num dos cantos da minha escri­vaninha com lápis e papel na mão. Infelizmente, ao pas­sar por ele a ponta do meu sapato chocou-se contra a sua canela.

Prescott perguntou a Nero Wolfe. — O seu... — e apontou para mim. — Este homem sabe taquigrafia?

— Sabe. Archie, seu bloco, por favor.

Lancei um olhar malicioso para Purley e apanhei o blo­co a tempo de pegar as primeiras palavras de Skinner.

— Tudo o que desejo, Sra. Dunn, são alguns fatos. E, honestamente, espero tornar as coisas o menos dolorosas possíveis. É verdade que várias pessoas se reuniram na sua casa de campo na terça-feira passada, dia 11 de julho?

— É. — E virando-se para Prescott: — Estou quase concordando com May quando ela disse que isto não pas­sa de uma armadilha política.

— Eu também.

— Sendo assim, devo responder às perguntas desse cavalheiro?

— Deve — disse Prescott com determinação. — Estou aqui e se ele... posso interrompê-la. Tudo está sendo anotado.

— Queria que John estivesse aqui. Gostaria de telefo­nar para ele.

— Duvido que consiga encontrá-lo. Confie em mim, June. E não se esqueça que seu filho está aqui. O que você aconselha, Andy?

O rapaz deu um tapinha no ombro da mãe e disse num tom confiante: — Vá em frente, mamãe. Se ele tentar algum truque...

— Não vou fazer nada disto — disse Skinner brusca­mente. — Por que essas pessoas estavam reunidas lá, Sra. Dunn?

— Para comemorar as nossas bodas de prata. — June fitou-o e disse com voz clara e serena: — Por isto é que meu irmão estava lá. Quero dizer com isso que meu ma­rido e meu irmão já não se falavam há algum tempo. To­dos nós sabíamos do boato que andou correndo por aí sobre um empréstimo à Argentina, e sendo assim eles acharam melhor não fazer muito alarde...

— Isto não é necessário, June — interrompeu Prescott. — Se eu fosse você, deixaria de lado as explicações e me limitaria aos fatos.

— Tem razão — concordou Skinner. — Quem esta­va lá?

— Meu marido. Eu. Nosso filho, Andrew. Minha fi­lha, Sara — não, ela chegou depois, acompanhada do Sr. Prescott. Minha irmã May e minha irmã April. Meu irmão e sua mulher. O Sr. Stauffer, Osric Stauffer. Era uma reu­nião de família, mas como o Sr. Stauffer tinha ido lá para tratar de negócios com o meu irmão, foi convidado a ficar. É tudo.

— Perdão. Eu também estava lá.

June virou-se em direção àquela voz. — Ah! Você tam­bém, Celia. Desculpe-me. A Srta. Celia Fleet, secretária da minha irmã April.

— Isto é tudo, Sra. Dunn?

— Sim.

— E os criados?

— Apenas um homem e uma mulher. Gente do lugar. Ela cozinha e ele faz o serviço pesado. É uma casa mo­desta e vivemos modestamente.

— Qual o nome deles, por favor?

— Eu os conheço — disse o Sr. Regan.

— Ótimo. Agora, Sra. Dunn, vamos ao que se segue. A senhora deve saber que o Dr. Gyger, o médico legista de Rockland County, e o Sr. Bryant, o delegado, foram chamados para este caso e dirigiram-se para lá. Fizeram algumas perguntas e eu li suas anotações. Por volta das quatro horas da tarde, seu irmão pegou uma espingarda e foi para o campo caçar corvos. Isto é verdade?

— Não, ele saiu para caçar um falcão.

— Mas eu soube que ele matou dois corvos.

— Pode ser, mas ele saiu para caçar um falcão. Ouvi quando discutiu sobre isso com meu marido, e sei que saiu com essa intenção.

— Muito bem. Na verdade, ele acabou matando dois corvos. Os tiros foram ouvidos da casa, não foram?

— Sim.

— E seu irmão não voltou. Às quinze para as seis, seu filho, Andrew, e uma jovem — creio que a Srta. Fleet — estavam saindo de um bosque quando tropeçaram no cor­po dele. Metade da cabeça tinha sido despedaçada pela espingarda, que estava do lado dele. Seu filho ficou lá enquanto a Srta. Fleet foi até a casa da senhora, do outro lado do bosque, a mais ou menos quatrocentos metros de distância, para avisar o Sr. Dunn. Ele próprio se encarre­gou de telefonar para New City. O delegado Bryant e seu assistente chegaram ao local às seis e trinta e cinco, e o Dr. Gyger, alguns minutos depois. Como o corpo foi en­contrado no meio de um roseiral, chegaram à conclusão de que Hawthorne ou tinha tropeçado num desses arbustos ou o gatilho da espingarda tinha ficado preso num dos ra­mos, fazendo com que, em ambos os casos, a arma dispa­rasse por descuido.

— Eles concordaram quanto a isso, e o relatório ofi­cial de um coincide com o do outro — interveio o Sr. Regan. — Se não fosse Lon Chambers, o caso estaria encerrado.

— Quem é Lon Chambers? — perguntou Prescott.

Skinner respondeu: — O assistente do delegado. — E virando-se de repente para o filho da Sra. Dunn: — O se­nhor é Andrew Dunn, não é?

O rapaz confirmou.

— Foi o senhor — além da Srta. Fleet — quem desco­briu o corpo de Hawthorne?

— Foi.

— O senhor viu logo que ele estava morto?

— Claro. Não havia dúvida.

— O senhor ficou lá e pediu que a Srta. Fleet fosse até sua casa para avisar seu pai?

— Ela se ofereceu. E foi bastante corajosa. — Havia um misto de agressão e desprezo tanto nos olhos quanto na voz do rapaz. — Já disse tudo isso ao delegado e ao médico legista, e como o senhor próprio já disse, eles têm tudo anotado. O senhor já leu?

— Já. O senhor faz alguma objeção em me contar tudo de novo?

— Não. Pode continuar.

— Obrigado. Antes da Srta. Fleet sair, o senhor tocou no corpo ou na arma ou os tirou do lugar?

— Não. Ela saiu logo depois.

Os olhos de Skinner pousaram na Srta. Fleet. — A se­nhorita chegou a tocar no corpo ou na arma antes de sair?

— Claro que não! — explodiu Celia, demonstrando todo o seu nervosismo.

— E o senhor, Sr. Dunn, tocou ou mexeu no corpo ou na arma depois que a Srta. Fleet saiu?

— Não.

— Quanto tempo o senhor ficou lá sozinho?

— Uns quinze minutos.

— Quem chegou primeiro?

— Meu pai. Ele já tinha telefonado para New City. Stauffer estava com ele. Depois veio Titus Ames, o casei­ro. Ninguém mais veio, até que o delegado chegou.

— O senhor ficou lá o tempo todo, desde a descoberta do corpo até a chegada do delegado?

— Fiquei.

— Com o corpo e a espingarda bem à vista?

— A espingarda não estava à vista. Só a encontrei quando procurei por ela, depois que a Srta. Fleet saiu. — Andy olhou-o com desdém. — Se o senhor está tentando provar que a arma e o corpo ficaram intactos até a chegada do delegado, posso confirmar isto sob juramento. Co­mo advogado, estou a par dos trâmites legais no caso de morte por violência. Estou trabalhando com Dunwoodie, Prescott e Davis.

— Entendo. É sócio da firma?

— Claro que não. Só fui admitido na Ordem dos Ad­vogados há um ano.

— E o senhor poderia repetir sob juramento tudo o que acabou de dizer?

— Sim. Tanto quanto meu pai e os outros.

Os olhos do promotor giraram em tomo da sala. — Sr. Stauffer? O senhor chegou ao local junto com o Sr. Dunn, pai? O senhor confirma...

— Confirmo — respondeu Stauffer secamente. — Tanto o corpo quanto a arma não haviam sido tocados.

— Isto encerra tudo — disse o Sr. Regan, parecendo mais desanimado do que exultante.

Skinner assentiu. — Parece que sim. — Olhou para Prescott e depois para June. — Como a senhora pode ver, Sra. Dunn, eu só estava querendo verificar alguns fatos. O assistente do delegado parece ser um homem curioso e cético. Seus superiores queriam encerrar o caso como uma tragédia acidental, ele não. Devido à sua persistência, fo­ram estabelecidos os seguintes fatos: em primeiro lugar, tanto a coronha quanto o cano da espingarda tinham sido limpos ou esfregados não com uma flanela, como é de costume, mas sim com algo áspero que deixou pequenos arranhões, que só puderam ser vistos através de uma lente de aumento. Em segundo lugar, ao invés de a arma ter várias impressões digitais de Noel Hawthorne, já que ele a carregou durante mais de meia hora, talvez mais, e ati­rou pelo menos duas vezes, foram encontradas apenas três séries de impressões — uma na coronha, outra na culatra e outra no cano. E todas estavam dispostas de uma ma­neira incomum — com os quatro dedos juntos, justapos­tos, sem nenhuma impressão do polegar. As impressões no cano da arma eram ainda mais estranhas, pois estavam de cabeça para baixo como se a pessoa, ao invés de segurar a arma como é de costume, a tivesse usado para dar uma coronhada em alguém.

— Tudo isso não passa de conversa fiada — zombou o jovem Dunn.

— Deixe ele terminar, Andy — advertiu Prescott.

— Vou tentar ser o mais breve possível — continuou Skinner — mas quero deixar bem claro que isto é apenas a marcha inevitável dos acontecimentos sob a orientação da lei. Para terminar com as impressões digitais, todas foram feitas após a arma ter sido esfregada com algo ás­pero. Como a senhora provavelmente deve saber, a arma pertence a Titus Ames, que trabalha para a senhora. Se­gundo ele, a arma nunca tinha sido limpa com outro pano que não a flanela que ele normalmente utiliza, e foi com essa flanela que ele a limpou na terça-feira, quando levou a espingarda para o Sr. Hawthorne, a pedido do Sr. Dunn.

— Quer dizer que você já interrogou Ames — obser­vou Prescott.

— Sem dúvida — respondeu o Sr. Regan.

Skinner continuou, ignorando o comentário. — Mas apesar dessas provas, Chambers, o assistente do delegado, não conseguiu convencer nem o delegado nem o promotor público, o Sr. Regan, que aqui está, da possibilidade de não ter sido um acidente. Na minha opinião, isto demons­tra bem como estavam dispostos a ser condescendentes com o Sr. Dunn, tentando evitar problemas, tendo em vista a posição que ele ocupa. Entretanto, o delegado não impediu que seu assistente continuasse com as investiga­ções. Na quarta-feira, Chambers trouxe a arma para Nova Iorque. Ontem, quinta-feira, nosso laboratório de polícia informou ter encontrado resíduos recentes de sangue, em quantidade suficiente para ser analisado, entre a coronha e o tambor, como também em outras partes da arma. E foi também ontem que Chambers encontrou algo. Há um atalho que atravessa um dos lados do bosque, a nordeste, e que se ramifica para o norte em direção a uma rodovia pública e para o leste em direção à casa. Debaixo de um arbusto perto desse atalho, Chambers descobriu um pu­nhado de capim, todo torcido e despedaçado como se ti­vesse sido usado para esfregar algo que, além disso, o deixara manchado. Ele e o Sr. Regan trouxeram-no esta manhã para Nova Iorque. Há quatro horas atrás, o labo­ratório informou que as manchas encontradas são uma mistura de sangue com o revestimento oleoso da arma e, mais ainda, que certas partículas que tinham sido achadas na arma são provenientes do pólen e da fibra do capim. Convencido, o Sr. Regan veio me consultar. E foi com toda franqueza que me falou do receio que tinha em tomar uma atitude tendo em vista as pessoas envolvidas no caso. Qualquer que seja a opinião da Srta. May Hawthorne, volto a repetir que relutei muito em aceitar as conclusões do Sr. Regan e que relutei ainda mais em ajudá-lo.

— Qual é afinal a conclusão? — perguntou June.

— A mais óbvia e inevitável, Sra. Dunn. A de que seu irmão foi assassinado. — Skinner olhou-a bem nos olhos. — Se a morte dele fosse acidental, se tivesse trope­çado ou o gatilho da arma disparado por causa da roseira, como se supunha antes, fica, vamos dizer assim, difícil explicar as impressões digitais. Um homem não segura uma arma daquele jeito. E tendo em vista as declarações de seu filho e do Sr. Stauffer de que a arma não foi tocada depois que o corpo foi descoberto, não há como, se foi um acidente, explicar o porquê de a arma ter sido limpa, do sangue que havia nela e do punhado de capim. As mesmas objeções seriam feitas a uma teoria de suicí­dio, caso existisse tal suposição. A única hipótese que justifica esses fatos é a de que seu irmão foi assassinado. O assassino atirou nele e, ao invés de utilizar o próprio lenço, se é que tinha um, preferiu usar um punhado de capim para apagar as impressões digitais que deixara. Depois, pegou a mão direita de seu irmão e colocou as impressões digitais dele na arma, mas do lado contrário. Ao sair do bosque, jogou o punhado de capim no meio de uns arbustos. Se ele tivesse feito isto depois de ter al­cançado a encruzilhada ao invés de antes, saberíamos se tinha ido em direção à rodovia ou à casa. Do jeito que fez, pôs tudo a perder, ou porque achava que não haveria suspeita de crime, ou porque era estúpido, ou porque tinha pressa de sair dali com medo de que alguém o encontrasse.

— Não acredito — disse April Hawthorne. — Todos olharam para ela. Seu rosto voltara à cor natural e sua voz tinha readquirido aquele famoso tom ondulante. — Em nenhuma palavra do que foi dito.

Skinner olhou-a bem de frente. — Em que a senhora não acredita, Srta. Hawthorne? Nos fatos ou na interpre­tação deles?

— Simplesmente não acredito que meu irmão tenha sido assassinado. Não acredito que isso esteja acontecen­do com os Hawthorne. Não acredito.

— Nem eu — disse Osric Stauffer com determinação, indo colocar-se atrás dela.

O promotor deu de ombros e dirigiu-se a June: — A senhora acredita, Sra. Dunn? O que eu quero, com toda a honestidade, é que a senhora entenda que as coisas são o que são. É a marcha cruel e inevitável dos fatos, como já disse. Lamento o que está se passando, mas tenho que lidar com isso.

June olhou para ele, sem falar nada, sem fazer um gesto.

— Preste atenção — disse Skinner. — Quero conven­cê-la... quero... terei que ter a sua cooperação nisso tudo... e é preciso que a senhora entenda que as suposi­ções de suas irmãs — que acredito serem também as suas — são totalmente infundadas. Não estou tentando fazer uma jogada política nem difamar ninguém. Presumo que a senhora considere o Sr. Wolfe como um amigo, já que veio consultá-lo. Não se pode negar que ele é um perito em crimes e em provas. — E, girando à sua volta, per­guntou: — Sr. Wolfe, o senhor acha que a morte do Sr. Hawthorne foi acidental?

Wolfe sacudiu a cabeça. — Sou apenas um espectador, Sr. Skinner. Se estou aqui é porque este é o meu escri­tório.

— Mas depois de tudo o que o senhor ouviu, qual é a sua opinião?

— Bem... devo aceitar os seus fatos?

— Claro, são incontestáveis.

— Então são excepcionais. Entretanto, pressupondo que sejam verdadeiros, o Sr. Hawthorne foi assassinado.

Skinner virou-se, mas quando olhou novamente para June encontrou-a de pé, pronta para sair. — O senhor poderá nos encontrar na casa de meu irmão — disse ela. — Vou telefonar para o meu marido de lá. É melhor que venha também, Glenn. Isso significa... eu sei o que isso significa. Vamos ter que enfrentar a situação. — Ela foi saindo: — Venha, Andy, May... April, traga Celia.

Ouviu-se a voz de Wolfe: — Por favor, Sra. Dunn. A senhora quer que eu prossiga com aquele pequeno assunto que estávamos discutindo?

— Acho... — começou Prescott, mas June inter­rompeu-o.

— Sim. Quero. Pode continuar. Vamos, crianças.

 

Wolfe disse: — Chegue mais perto, Srta. Karn, senão vamos ter que gritar. Aquela cadeira vermelha é a mais confortável.

Naomi Karn, sem dizer nada, levantou-se, atravessou a sala em direção à cadeira vermelha, que May Hawthorne acabara de desocupar, e deixou-se afundar. Foi a única que ficou. Skinner e o Sr. Regan tinham saído logo após os Hawthorne, os Dunn e seu séquito. O inspetor Cramer, reparando na jovem que passara despercebida no canto da sala, tinha tentado satisfazer a sua curiosidade fazendo uma pergunta à queima-roupa a Wolfe, que o dis­pensou com um gesto, obrigando-o a sair atrás dos outros.

Wolfe ficou a observá-la com os olhos semicerrados. Depois de alguns segundos, murmurou. — Agora a se­nhorita está em apuros.

Ela ergueu levemente as sobrancelhas e retrucou: — Eu? De jeito nenhum. — Já não estava mais pálida como há uma hora atrás, mas aquele ar de desafio, que me deixara irritado, desaparecera.

— Ah, está sim. Vamos deixar de rodeios, Srta. Karn. A senhorita sabe muito bem que está numa enrascada da­nada. Aqueles policiais vão até sua casa para lhe fazer perguntas intermináveis. E uma delas vai ser sobre o tes­tamento do Sr. Hawthorne. Mesmo que seja uma jogada política, o que parece improvável, eles vão perguntar sobre o testamento pelo menos para manter as aparências. Eles sempre fazem isso. E, então, vão interrogá-la. Espero que o próprio Inspetor Cramer se incumba disso. As armas que o Sr. Cramer utiliza não têm muita capacidade de penetração, mas podem causar muitos estragos. — Wolfe apertou um botão. — A senhorita aceita uma cerveja?

Ela balançou a cabeça.

— Não consigo imaginar nenhuma pergunta que pu­desse me deixar embaraçada.

— Aposto quanto a senhorita quiser que isto não é verdade, Srta. Karn. E quando falo isso, não estou apenas me referindo ao fato de existirem milhares de perguntas que eu próprio teria dificuldade de responder, como qual­quer outro membro da raça humana. Estou me referindo especificamente ao pavor que vi no seu rosto quando o Sr. Skinner anunciou que o Sr. Hawthorne tinha sido assassinado. Aquele ar de segurança e desafio que havia nos seus olhos desapareceu assim — e estalou os dedos. — Aliás, por que a senhorita ainda está aqui?

— Estou aqui porque o senhor me chamou e não pretendo...

— Não, não e não. Já viramos esta página, Srta. Karn. Nós não, o Sr. Skinner a virou. A bomba que ele jogou aqui dentro deu início a um novo capítulo. Como resul­tado, houve uma trégua, talvez temporária mas total, nas hostilidades sobre o testamento; todo mundo tinha es­quecido disso até que eu perguntei à Sra. Dunn se ela queria que eu continuasse. A senhorita não está preocupa­da com o dinheiro, Srta. Karn, mas sim com o assassinato e eu não tenho nada a ver com isto. Por que a senhorita não se levantou e saiu logo depois dos outros? Por que ficou?

Achei que desta vez ele tinha ido longe demais, pois, sem dizer uma palavra, ela se levantou calmamente e foi saindo em direção à porta.

Sem se alterar, Wolfe acrescentou: — Quando a se­nhorita deixar de se preocupar com o assassinato e passar a se preocupar com o dinheiro novamente, avise-me e vol­taremos a falar sobre o assunto.

Sentia-me frustrado. Com todo o tumulto que Skinner causara e depois de todo o trabalho que eu tive para que ela concordasse em me acompanhar, não via nenhum sen­tido para que ele a escorraçasse daquele jeito só para satisfazer o seu ego. Pelo menos, eu não ia compactuar com aquilo indo abrir a porta; fiquei sentado. Mas percebi que ela titubeava, e quando já estava com a mão na maça­neta parou e ficou lá de pé, de costas para nós. Depois de alguns instantes virou-se repentinamente, dirigiu-se com determinação para a cadeira vermelha e sentou-se.

Ela olhou para Wolfe e disse: — Fiquei porque estava lá no canto pensando em algo.

Ele assentiu. — Ah, então foi isso — disse, de forma agradável. — E chegou a alguma conclusão?

— Cheguei. E tomei uma decisão. Ia lhe falar sobre isso, quando o senhor veio com aquela conversa de eu estar em apuros e quase morta de medo. Não estou com medo, Sr. Wolfe. — Seus olhos e sua voz confirmavam isto. — O senhor não vai conseguir me intimidar. A últi­ma vez que fiquei em pânico foi quando engoli uma perereca aos dois anos de idade. Hoje em dia, isso seria impossível, mesmo que eu tivesse assassinado Noel Hawthorne com as minhas próprias mãos.

— Isto é ótimo. Gosto de pessoas corajosas. Qual a decisão que a senhorita tomou?

— Não sei se devo lhe dizer. Não sei se, depois de tudo, não seria melhor brigar do que tentar chegar a um acordo.

— Então a senhorita ainda não tomou uma decisão.

— Já, sim. E acho que... vou mantê-la até o fim. Asseguro-lhe que não fui forçada a tomá-la por medo, mas sim por causa das... das notícias. Sei que agora não estou em apuros, mas sou inteligente o bastante para saber que, tendo toda a gangue dos Hawthorne contra mim, é bem provável que isso venha a acontecer. Com a posição e a influência que eles têm, podem conseguir metade dos bens. Metade do que ficou para mim.

— Entendo. — Wolfe fechou os olhos e após alguns instantes tornou a entreabri-los. — Então foi essa a de­cisão que a senhorita tomou.

— Foi.

— E a senhorita acha que deve mantê-la até o fim.

— Acho.

— É uma pena.

— Por que é uma pena?

— Porque se a senhorita tivesse feito essa proposta, digamos, hoje de manhã ao Sr. Stauffer, é bem provável que ela fosse aceita. Agora, infelizmente, está fora de co­gitação. A senhorita gostaria de ouvir uma contraproposta?

— Qual?

— Cem mil dólares para a senhorita e o resto para meus clientes.

A Srta. Karn foi ficando pequenininha. Não que ela tivesse recuado, ela simplesmente se encolhera toda. Mas isto durou apenas alguns segundos. Pelo visto estava ape­nas preparando o bote, pois de repente ela começou a rir e riu com vontade. Então, parou e disse:

— Isto é realmente muito engraçado.

— Oh, não, não é nem um pouco engraçado.

— É, sim. — E um riso contido tomou conta dela, fa­zendo com que se sacudisse toda. — Ou melhor, é engra­çado porque eu não esperava que Nero Wolfe pudesse se enganar tanto. Não pensei que fosse capaz de cometer um erro tão idiota. O senhor também deve ser idiota o suficiente para pensar que fui eu quem matou Noel Hawthorne. Isto teria sido um truque e tanto, já que passei a tarde toda de terça-feira em Nova Iorque.

— Não sou nenhum idiota, Srta. Karn, e é melhor que a senhorita também não seja.

— Vou tentar. — Ela se levantou e ajeitou o lenço de linho azul no pescoço. — O senhor foi muito generoso me oferecendo cem mil dólares. Deve ser para que eu contrate um bom advogado de defesa, não é? É muita bondade sua, não mereço tanto. Será que eu consigo um táxi por aqui?

— A senhorita já vai?

— Já, preciso ir. A festa estava muito agradável, mas...

— Posso tentar convencer meus clientes a dobrar essa quantia. Duzentos mil dólares. A senhorita poderá me encontrar aqui a qualquer hora. É difícil conseguir um táxi deste lado do rio. O Sr. Goodwin irá acompanhá-la até sua casa. Archie, por favor dê um pulo até a cozinha e diga a Saul que jantaremos quando você voltar.

Olhei-o surpreso. Quer dizer que o filho da mãe já tinha tomado suas providências enquanto eu tinha ido à cidade. Depois de pedir à herdeira que esperasse um ins­tante, deixei-a no saguão e fui até a cozinha onde, é claro, encontrei Saul Panzer jogando baralho com Fred Durkin na mesa onde costumo tomar o café da manhã. Seus olhos cinzentos, os olhos mais perspicazes que já vi na face da terra, olharam-me de modo atento.

— Você está seguindo uma mulher chamada Karn? — perguntei-lhe.

— Estou.

— Ela está indo embora. Vou levá-la para a casa dela na Park Avenue 787, 12 D. É bem provável que ela me peça para saltar antes. Você está de carro? Ótimo. Vou bem devagar pela Rua 34 até a Park e depois para o bairro residencial. E é melhor não chegar muito perto dela. Seu segundo nome é Dalila.

Voltei para o saguão e conduzi a Srta. Karn até o carro. Ela não fez nenhuma questão de conversar enquanto eu ia bem devagar pela Rua 34, até que o cupê de Saul apa­receu no meu espelho retrovisor atrás de dois carros. Fiquei pensando em como o mundo dá voltas. Ao levá-la para a casa de Wolfe tinha sete milhões de dólares senta­dos ao meu lado, e agora ao trazê-la de volta tinha apenas uns míseros cem mil, ou, no máximo, duzentos. Não era de admirar que ela não estivesse nem um pouco disposta a conversar depois de toda aquela deflação. E foi com esforço que conseguiu me agradecer quando a deixei na calçada em frente ao edifício dela. Saul tinha continuado até a esquina e dobrado na Rua 73, tentando encontrar uma vaga. Fingi que estava dando uma olhada no pneu até que ele tornasse a aparecer. Entrei de novo no carro e pisei fundo no acelerador.

Eram oito e meia quando cheguei em casa e fiquei emo­cionado ao ver que Wolfe tinha me esperado para o jan­tar, que era normalmente servido às oito. Estranhei que Fred Durkin ainda estivesse por lá, a um dólar por hora, já que Wolfe não era do tipo de pessoa que fica tomando precauções dispendiosas quando está na lona. Se fosse Saul Panzer ou Orrie Cather, teria jantado conosco, mas como era Fred, acabou comendo na cozinha com Fritz. Fred punha vinagre em tudo e nenhum mortal que fizesse isso jantava na mesa de Wolfe. A última vez que Fred fez isso foi em 1932, quando pediu que trouxessem vinagre e misturou-o ao molho que acompanhava o pombo. Wolfe não disse nada, pois considerava imoral fazer qualquer comentário durante a refeição que pudesse perturbar os processos digestivos de quem quer que fosse, mas na manhã seguinte despediu Fred e ficou sem procurá-lo por mais de um mês.

Depois do jantar, voltamos para o escritório. Wolfe foi se acomodar na escrivaninha com o atlas na mão, e não consegui conter um sorriso irônico quando vi que, ao invés de partir para uma pequena excursão à Mongó­lia, ele estava diante do mapa de Nova Iorque, e, a julgar pela direção dos seus olhos, resolvera tomar um pouco de ar em Rockland County. Eu tinha acabado de pegar um livro para ler em paz, quando o telefone tocou. Atendi na minha extensão e falei:

— Escritório de Nero Wolfe.

Ao ouvir uma voz familiar pronunciar o meu nome, avisei a Nero Wolfe que era Saul Panzer, e, com um sus­piro, ele colocou o atlas sobre a escrivaninha e pegou a outra extensão, enquanto murmurava algo para que eu continuasse a escutar.

— São nove e cinqüenta e seis, senhor. A mulher entrou no edifício, onde Archie a deixou, às oito e qua­torze. Às nove e doze, voltou a sair, pegou um táxi, foi para o Santoretti, um restaurante italiano que fica na Rua 62 Este e entrou. Entrei também, comi espaguete e con­versei em italiano com o garçom. Ela ainda está lá numa mesa com um homem, comendo frango com cogumelos. Ele está sem apetite, mas ela, não. Estão conversando em voz baixa. Estou telefonando de uma drogaria na esquina da Rua 62 com a Segunda Avenida. Se eles se separarem quando saírem de lá, qual dos dois devo seguir?

— Descreva o homem.

— Quarenta ou quarenta e cinco anos, um metro e se­tenta e oito, setenta e oito quilos. Gosta de beber. Terno bem talhado, cinza, de lã leve, chapéu caro, de aba mole, também cinza, de feltro. Barba de um dia. Camisa azul, gravata-borboleta cinza com listras azuis. Queixo qua­drado, boca grande e lábios grossos, nariz comprido e reto, olhos castanhos e inchados, com um tique nervoso, orelhas...

— Isto é o suficiente. Você não o conhece.

— Não, senhor. — Saul sentia-se constrangido quando tinha que dar informações sobre uma pessoa que não constava do fichário enorme e detalhado que ele guardava no cérebro.

— Fred irá encontrá-lo do outro lado da rua do Santoretti logo que possível — disse Wolfe. — Se eles se separarem, deixe o homem por conta dele. Pode ser mais difícil seguir a mulher.

— Sim, senhor, concordo.

Wolfe desligou e fez um sinal para mim. Fui então até a cozinha, onde interrompi Fred no meio de um bocejo que seria capaz de conter um quarto de vinagre. Dei-lhe a descrição do homem e o instruí para que ficasse de olho nele até nova ordem e tentasse descobrir sua identidade. Fui acompanhando aquela massa bruta até a porta, onde parei para tomar um pouco do ar quente de julho. Fiquei lá olhando-o enquanto se afastava rapidamente, quando percebi um táxi que vinha voando em minha direção e que foi parar exatamente na calçada lá embaixo. Uma mulher saltou, pagou o motorista, atravessou a calçada, subiu os sete degraus e sorriu para mim sob a luz que vinha da porta aberta.

— Posso falar com o Sr. Wolfe?

Convidei-a para entrar e a conduzi até o saguão, pedin­do que esperasse um minuto. Fui até o escritório e avisei a Wolfe que a Srta. May Hawthorne gostaria de ter uma audiência com ele.

 

O escritório retomara seu aspecto anterior, com as ca­deiras arrumadas. Como de costume, a vermelha fora co­locada à direita da escrivaninha de Wolfe, voltada para ele, e foi lá que a presidenta de Varney College foi se sentar. Parecia cansada e seus olhos estavam irritados, mas mantinha as costas eretas.

— Vocês devem ter ficado bastante abalados com o que aconteceu aqui esta tarde.

Ela assentiu. — E está sendo bem difícil para nós en­frentar a situação. Principalmente para minha irmã April que vive fingindo que está tudo bem. A arte mascarando a vida. O senhor teve oportunidade de conversar com a Srta. Karn?

— Muito pouco. Ela ficou depois que vocês saíram.

— E chegaram a algum acordo?

— Não. Ela disse que estava disposta a renunciar à metade dos bens, mas eu não aceitei.

— Graças a Deus! — A Srta. Hawthorne parecia aliviada. — Sabendo da reputação que o senhor tem, e depois de conhecê-lo pessoalmente, fiquei com medo que o senhor pudesse tê-la pressionado, nos deixando com­prometidos. Mas o senhor deve ter percebido que a situa­ção agora é outra. Nessas alturas dos acontecimentos, acho totalmente desaconselhável qualquer tipo de entendimento com ela.

— Não há dúvida. Os outros concordam com a senhora?

— Não sei. Mas acho que vão acabar concordando. O problema é o seguinte: era nossa intenção chegar a um acordo o mais breve possível com a Srta. Karn para evitar a confusão que minha cunhada estava disposta a criar. Agora, isto já não importa. Com toda essa investigação criminal em cima de nós, quem é que vai se preocupar com uma briga por causa de uma herança?

Wolfe contraiu os lábios. — Esta é uma maneira de ver as coisas. O Sr. Skinner e os outros acompanharam vocês até em casa, não foi?

— É claro. Minha cunhada convidou-os a entrar, mas seguindo o conselho do Sr. Prescott todos nós, com ex­ceção de Daisy, nos recusamos a falar com eles até que June tivesse telefonado para o marido em Washington. Ele disse a ela para cooperarmos o máximo possível com as autoridades e respondermos a todas as perguntas rele­vantes. Então, eles nos interrogaram e... bem. suponho que foram gentis e atenciosos. Como resultado, parece que todos nós somos suspeitos de assassinato.

— Todos vocês?

— A maioria. Acredito que o senhor esteja bastante familiarizado com esse tipo de pesadelo, mas eu não sou detetive nem tenho tempo de ler histórias policiais nos jornais. Ao que parece, meu irmão morreu... foi assassinado entre quatro e meia e cinco e meia. Titus Ames ouviu um terceiro tiro um pouco antes das cinco horas — dois tiros já haviam sido disparados, o que pode ser con­firmado pelos dois corvos mortos. Quando isso aconte­ceu, minha irmã April estava descansando num dos quar­tos do segundo andar, mas ninguém pode confirmar isto. Minha outra irmã estava pelas redondezas colhendo framboesas e folhas de parreira para decorar a mesa. Eu estava no banheiro lavando as minhas meias.

Pensei comigo mesmo: “ah-ah, quer dizer então que é verdade, ela usa as tais meias!” Enquanto isso, ela continuava:

— Celia, a Srta. Fleet, estava no quarto dela, escre­vendo cartas. É ela quem responde a toda a correspon­dência idiota que minha irmã recebe. A Sra. Ames estava preparando o jantar. Daisy, a mulher de Noel, tinha saído para colher margaridas. John, meu cunhado, estava cor­tando lenha. Aqueles homens chegaram a me perguntar, com toda a gentileza, se eu me lembrava de ter ouvido os golpes do machado enquanto lavava minhas meias. O Sr. Stauffer, que detesto, tinha ido nadar na lagoa. Titus, Ames estava ordenhando as vacas. Andy tinha ido a Nyack comprar sorvete, mas isso não o deixa fora de suspeita, pois a rodovia não fica muito longe do local do crime, é só atravessar um pequeno bosque. Sara e o Sr. Prescott estavam em Nova Iorque e só chegaram lá depois das sete e meia, aproximadamente duas horas depois que o corpo foi encontrado — Sara tinha ido de carro com o Sr. Prescott — mas isso também não quer dizer nada, pois um deles podia perfeitamente ter ido e voltado antes de avião.

Wolfe assentiu com seriedade. — Ou mesmo de planador, saltando do Empire State Building que fica a ape­nas uns cinqüenta ou sessenta metros de lá. Já que é tudo tão fantástico, por que não pensar nesta hipótese?

— Não há nada de fantástico — retrucou a Srta. Hawthorne. — O que aconteceu foi algo terrível e desumano. E eles vão usar isto em proveito deles. Vão explorar a teoria de que meu irmão foi assassinado porque tinha a carreira de John Dunn em suas mãos, e não a deixaria escapar. Eles não podem mexer em tudo, isto é, não podem condenar ninguém por assassinato, mas podem arruinar John e vão fazê-lo...

Ela pressionou a fronte com as mãos e fechou os olhos.

Wolfe murmurou: — Um pouco de conhaque, Archie.

Levantei-me para servi-la, mas ela balançou a cabeça e disse: — Não. — Hesitei. — Não, muito obrigada — ela deixou cair a mão, voltando a olhar para Wolfe.

Esticou as costas e falou: — Sinto muito. Não preten­dia... Só falei isso tudo para mostrar ao senhor por que eu acho que o senhor não deveria continuar tentando che­gar a um acordo com a Srta. Karn. Não estamos mais com medo do escândalo. Não tenho nada contra a Srta. Karn, mas simplesmente não vejo motivo para que ela receba algo que meu irmão não pretendia deixar para ela. Não consigo acreditar que aquele documento ridículo que o Sr. Prescott leu para nós expressasse a vontade de meu irmão. Noel tinha defeitos, muitos até, mas disse-me que doaria um milhão de dólares para o fundo de pes­quisas de Varney, e nada vai conseguir me convencer do contrário.

— A senhora já disse isso esta tarde.

— Estou repetindo.

— Quer dizer que acredita que o Sr. Prescott é um vigarista. Ele redigiu o testamento mas apresenta um outro como autêntico. A senhora acha que ele e a Srta. Karn estariam juntos nisso?

— Não, pelo amor de Deus — disse, arregalando os olhos.

Wolfe parecia aborrecido. — Receio que a senhora não esteja raciocinando muito bem, Srta. Hawthorne. Não é de admirar, depois do choque que levou. A senhora falou que acha... quando seu irmão lhe prometeu que deixaria um milhão para o fundo de pesquisas?

— Ele falou sobre isso umas duas ou três vezes. No inverno passado, há um ano atrás, disse-me que pretendia doar um milhão ao invés de quinhentos mil. E no verão passado, disse que estava tudo acertado.

— No verão de 1938?

— Foi.

— Bem. A senhora disse que está convencida de que seu irmão não a enganou e que cumpriu o prometido. Mas o testamento que o Sr. Prescott apresenta como ver­dadeiro está datado de 7 de março de 1938, e foi depois dessa data que seu irmão lhe contou ter decidido doar-lhe um milhão de dólares ao invés da metade. Sendo assim, a senhora está acusando o Sr. Prescott de fraude.

— De modo algum — retrucou impaciente.— Eu não iria me basear num argumento tão improvável quanto esse. Conheço Glenn Prescott. É um advogado bastante inteligente e capaz que tem aquela dose certa de flexibilidade em relação à ética que é uma necessidade funcional na profissão que exerce, mas ele está longe de ter a ousa­dia e a imaginação de um trapaceiro profissional. Seria mais fácil eu escrever um poema épico do que ele roubar três milhões de dólares, substituindo o testamento do meu irmão por um falso. Não foi o que o senhor quis dizer, quando falou que ele e a Srta. Karn poderiam estar juntos nisso?

— Mais ou menos. Não sei se chegariam a ponto de falsificar assinaturas. A senhora viu o documento?

— Vi.

— Está tudo numa página só?

— Não, em duas.

— Datilografadas, é claro.

— Sim.

Existe alguma cláusula importante na segunda página?

Ela parecia indecisa. — Não sei. Espere um instante. Lembro-me agora. A maior parte do texto datilografado está na primeira página. Havia pouca coisa escrita na segunda página, além das assinaturas do meu irmão e das testemunhas.

— Então não deve ter sido necessário tentar algo tão arriscado quanto falsificar as assinaturas. Mas se a senho­ra acha que Prescott não seria capaz disso, em que a se­nhora se baseia para...

— Já vou chegar lá. Foi por isso que vim até aqui. Acho que o que aconteceu foi o seguinte: Noel realmente pediu que Prescott redigisse o testamento e que o guar­dasse no cofre da firma dele. Mas naquele mesmo dia, ou melhor, um pouco mais tarde, talvez no dia seguinte, subs­tituiu-o por um outro, que ele próprio escreveu sem o conhecimento de Prescott, dispondo da fortuna dele da maneira como ele próprio desejava. Só nos resta saber onde está este último testamento, o único que é válido.

Wolfe murmurou algo. — Acho que antes é preciso responder a uma outra pergunta. Por que seu irmão pe­diria ao Sr. Prescott para redigir um testamento se pre­tendia substituí-lo logo depois? Tanto trabalho à-toa...

May balançou a cabeça negativamente. — Nem tanto, já que não tinha outra saída. Cheguei a esta conclusão pelo que o próprio Sr. Prescott falou. Ontem à noite per­guntamos a ele se a Srta. Karn sabia do testamento e ele disse que sim. Segundo ele, a Srta. Karn tinha visto e lido o testamento um dia após ele ter sido redigido. Ela foi até o escritório de Prescott, a pedido do próprio Noel, que o instruiu para que mostrasse o testamento a ela.

— Entendo — murmurou Wolfe.

— Acho que isto responde à sua pergunta. — Um leve rubor, quase que imperceptível, tomou conta da presiden­ta da faculdade. — Não sei muito sobre sexo, nem sobre como ele afeta as pessoas. Há muito pouca coisa em relação aos homens e às mulheres que eu não entenda ra­zoavelmente bem, mas confesso que em sexo eu sou nula. Não tive essa oportunidade ou talvez a tenha evitado. Tenho minha faculdade, minhas coisas, minha carreira, enfim, eu própria. E é só por meio do raciocínio, e não da emoção, que consigo entender como meu irmão pôde descer a ponto de usar tal artifício. Ele queria manter a promessa que me fez e cumprir suas obrigações para com os outros. Mas tinha que ter a Srta. Karn, e só podia con­servá-la ao seu lado mostrando-lhe que se ele morresse ela seria... recompensada. Admito que não sou capaz de entender o porquê de ele querer a Srta. Karn especifica­mente, e com tanta intensidade, mas existem milhares de especialistas, desde Shakespeare até Faith Baldwin, que sustentam o meu ponto de vista.

Wolfe assentiu. — Não vamos discutir sobre isso. É muito boa a sua teoria. É só sua?

— A idéia foi minha. Minhas irmãs tendem a aceitá-la. O Sr. Prescott veio com o argumento de que Noel não era o tipo de pessoa que usaria um artifício desses, mas acho que no fundo ele concorda comigo. Tenho a impressão de que ele sabe tanto de sexo quanto eu. Ele nunca se casou.

— A senhora está aqui como representante do grupo que me contratou para negociar com a Srta. Karn?

— Estou, isto é, como representante das minhas irmãs, mas não da minha cunhada. Daisy não fala coisa com coisa. A verdade é que estão todas em tal estado, depois de tudo o que aconteceu, que o testamento já não tem mais importância para elas. Para mim, sim. Meu irmão está morto. Nós o enterramos. Ele queria e pretendia que minha faculdade fosse beneficiada com a sua morte, caso isto viesse a acontecer. E vou fazer tudo para satisfazer a vontade dele. Com a aquiescência das minhas irmãs, venho lhe pedir para adiar as negociações com a Srta. Karn...

— Ofereci a ela duzentos mil dólares, sendo o restante dividido entre a Sra. Hawthorne e vocês.

May olhou-o espantada. — E ela aceitou?

— Não, mas pode vir a aceitar... amanhã, quem sabe? Ela está assustada.

— Assustada, por quê?

— Por causa do crime. Uma investigação criminal, Srta. Hawthorne, é um poço de ameaças. Pelo que estou vendo, a senhora não parece ter ficado muito amedron­tada.

— Sou dura na queda. Todas nós somos. Mas, espere um instante. O senhor está querendo dizer que foi a Srta. Karn quem matou Noel? — Ela tornou a olhá-lo espan­tada. — Tenho estado com a cabeça tão no ar que isto nunca me ocorreu.

— Não faço a menor idéia de quem matou seu irmão. Vamos voltar ao testamento. Estava apenas explicando por que a Srta. Karn está assustada. Mesmo que a sua interessante teoria esteja certa, se a Srta. Karn aceitar a minha proposta, vou firmar um acordo com ela, e acon­selho-as que façam o mesmo.

— Ela não vai aceitá-la.

— E se isto vier a acontecer?

— Aí, sim, tomaremos uma atitude. — Ela parecia tão decidida quanto ele. — O motivo que me trouxe até aqui, e que está me tomando um tempo demasiado, foi pedir-lhe que encontre o testamento do meu irmão. O último, o verdadeiro. Se ele tiver deixado alguma coisa para a Srta. Karn, ela tem todo o direito de...

Wolfe balançou a cabeça. — Já estava esperando que a senhora dissesse isto. Não sou nenhum bisbilhoteiro, minha senhora. Não posso fazer esse tipo de serviço.

Isso deu início a uma nova discussão que durou uns quinze minutos e que não levou a lugar nenhum. A posi­ção de Wolfe era a de que seria ridículo para ele fazer um trabalho desses já que não tinha acesso aos inúmeros edifícios, escritórios, residências, quartos e lugares em que Noel pudesse ter guardado o documento, e que seria muito difícil ou quase impossível conseguir tal acesso da Companhia Metropolitana de Seguros, e que se o testa­mento existisse ele seria encontrado mais cedo ou mais tarde pelas pessoas que estivessem investigando os papéis do morto. May argumentava que detetives servem para achar coisas e que ele era um detetive. Acabaram num impasse. Estavam agindo como aquele homem que tentava derrubar um carvalho e, não conse­guindo, desistiu e resmungou: “Você também não vai conseguir me derrubar.” A Srta. Hawthorne não chegou a sair resmungando do escritório, mas via-se pela sua ma­neira de falar e pela sua expressão que não se dera por vencida. Conduzi-a até o saguão e fiquei até contente quando ela aceitou uma carona, pois assim eu poderia tomar um pouco do ar fresco da noite. Ela tirou o chapéu, recostou a cabeça no assento, fechou os olhos e deixou que seus cabelos voassem ao sabor do vento, enquanto íamos pela Quinta Avenida. Ao nos aproximarmos da casa dos Hawthorne, na Rua 67, pus-me a observá-la, sem demonstrar muito a minha curiosidade, ao dirigir-me para a entrada principal. Era uma construção enorme, de qua­tro andares, toda de pedras cinzentas, com grades de ferro nas janelas, que ia acabar no lado leste da Quinta Aveni­da. May agradeceu-me com um sorriso meigo e se despediu.

Ao chegar em casa, fui até a cozinha e peguei um copo de leite, antes de ir para o escritório. Wolfe tinha acabado de beber a segunda garrafa de cerveja. Fiquei lá beberi­cando o meu leite e olhando-o com um ar de aprovação. Como o leite estava um tanto frio demais, fui bebendo aos poucos.

— Pare com este riso idiota! — disse ele, irritado.

— Eu não estou rindo, que diabo! — Sentei-me na beirada de uma cadeira. — Você é realmente incrível. Corta-me o coração ver você fazendo tanto sacrifício só para que Fritz, Theodore e eu não tenhamos um minuto de sossego! O que você acha das famosas irmãs Hawthorne?

Ele grunhiu.

— No que diz respeito ao assassinato — falei — já descobri tudo. Foi Titus Ames quem matou Noel. Como seu sonho era ser mulher para estudar no Varney College, resolveu demonstrar sua lealdade para com a sua futura universidade assassinando Noel para que o fundo de pes­quisas recebesse um milhão de dólares. Agora, May está furiosa porque vai receber apenas um décimo do que lhe foi prometido. Decide, então, vir até aqui com a cabeça cheia de minhocas para lhe vender uma história de fadas sobre um testamento secreto escondido num buraco de árvore, e toda aquela baboseira...

— Ela não me vendeu nada. Vá dormir.

— Você acredita naquela teoria sobre o testamento secreto?

Ele colocou as mãos na beira da mesa, preparando-se para se levantar, mas eu já tinha batido em retirada. Nem olhei para trás enquanto subia os dois lances de es­cada em direção ao meu quarto. Chegando lá, acabei de tomar o meu leite, despi-me revelando as minhas formas sensuais, raspei as pernas, tirei os cílios postiços e entre­guei-me languidamente aos braços de Morfeu. Quando acordei, no dia seguinte, às oito horas da manhã, senti que teria mais um dia de calor pela frente. O ar que en­trava pela janela era insuficiente para encher meus pul­mões. Sendo assim, mantive a temperatura do chuveiro quase fria e, para me vestir, escolhi uma folha de pal­meira. Ao entrar na cozinha, encontrei Fritz ofegante, depois de ter levado o café da manhã para Wolfe, no segundo andar. Fui dando uma olhada no Times, enquan­to ia me dividindo entre a laranjada, os ovos e os pãezinhos que Fritz me servira. Nada indicava que Skinner, Cramer e Cia. tivessem resolvido abrir o bico sobre a morte de Noel. Devem ter ficado com receio das conse­qüências e preferiram não se arriscar. Enchi novamente a xícara de café e, enquanto procurava a seção de espor­tes, o telefone tocou.

Atendi na cozinha mesmo, na extensão de Fritz, e quando ouvi a voz de Fred Durkin sussurrando num tom urgente, a primeira coisa que veio à minha cabeça foi que ele devia ter se metido em alguma enrascada e fora preso novamente.

— Archie!

— Eu mesmo.

— É melhor você vir para cá o mais rápido possível.

Então eu estava certo. Perguntei aborrecido: — Para qual delegacia?

— Não é nada disso. Preste atenção. Venha imediata­mente para cá. O endereço é Rua 11 Oeste, 913. É uma casa velha de pedra. Estou aqui e não deveria estar. Aperte o botão com o nome Dawson e suba dois lances de escada. Abrirei a porta.

— Que diabo de...

— Venha até aqui e você vai ver.

A ligação caiu e eu disse algo bastante significativo. Fritz começou a rir e tentei acertá-lo com um pão que ele acabou pegando e jogando de volta, sem conseguir me atingir. Tive que engolir o café que desceu pelando pela minha garganta. Depois de deixar um recado para Wolfe, passei pelo escritório e por via das dúvidas peguei minha automática, corri até a garagem, entrei no carro e saí voando em direção à cidade.

Pelo menos não tinha havido nenhum tiroteio. Estacio­nei a uns trinta metros do endereço que Fritz me dera, e fui dar numa portaria antiquada, onde apertei o botão sob o nome de Earl Dawson, empurrei a porta quando ouvi o clique e subi os dois lances de uma escadaria es­treita e sombria. No final do corredor, uma porta se abriu bem devagar, permitindo que eu visse o mapa da Irlanda que Fred sempre carregava consigo. Fui andando até lá, dei um empurrão na porta, entrei e tornei a fechá-la.

Fred sussurrou: — Eu não sabia o que fazer.

Dei uma olhada em volta. Era uma sala grande, com tapetes de muito bom gosto no chão encerado, cadeiras confortáveis e assim por diante. Não havia mais ninguém à vista.

— Seu apartamento é excelente! Ficaria melhor se...

— Fique quieto, pediu Fred. — Ele estava indo em direção a um quarto enquanto fazia um sinal com o dedo para que eu o acompanhasse.

— Venha até aqui e dê uma espiada.

Entrei no quarto atrás dele. Ela um aposento menor, também atapetado, com duas cadeiras, uma penteadeira, uma cômoda e uma cama grande e vistosa. Fiquei olhando para o homem que estava lá deitado e cheguei à conclusão que ele correspondia à descrição que Saul fizera do su­jeito que estivera jantando com Naomi Karn no Santoretti, apesar de faltarem alguns detalhes. A camisa azul, a gravata borboleta cinza e o paletó da mesma cor de lã leve estavam lá, mas daí para baixo só se viam suas ceroulas brancas, um par de pernas nuas, meias azuis e ligas. Respirava como um vulcão prestes a explodir.

Fred, olhando-o todo orgulhoso, sussurrou: — Como ele resmungou quando tirei suas calças, desisti.

Assenti. — Não parece muito respeitável. Já descobriu quem é?

— Já, mas há uma certa confusão. Lá embaixo está escrito Dawson e foi para este lugar que me pediu que o trouxesse. Tinha até as chaves, mas este não é seu nome verdadeiro. Ele se chama Eugene Davis e trabalha na firma de advocacia Dunwoodie, Prescott e Davis, que fica no número 40 da Broadway.

 

Olhei bem para Fred. O lado cômico da situação desa­parecera.

— Como chegou a esta conclusão? — perguntei-lhe.

— Eu o revistei. Dê só uma olhada na penteadeira.

Fui pé ante pé até lá para ver o que havia naquela pe­quena pilha de objetos. Entre outras coisas estavam uma carteira de motorista que pertencia a Eugene Davis, um cartão da Ordem dos Advogados do Município de Nova Iorque com o nome de Eugene Davis, da Dunwoodie, Prescott e Davis, um ingresso permanente para a Feira Mundial de Nova Iorque de 1939 com uma fotografia dele. Uma carteira de seguros contra acidentes. Três cartas com o nome de Eugene Davis endereçadas para a firma onde trabalhava. Dois instantâneos de Naomi Karn, um em traje de banho...

Disse a Fred: — Vá até a portaria e fique lá. Se chegar alguém, grite. Vou ver se encontro mais alguma coisa.

Agi com rapidez mas sem que nada me passasse des­percebido. Davis continuava lá, ressonando. Revistei tudo; aquele quarto e mais um outro, o banheiro, a kitchenette, a sala e até os armários. Teria dado pulos de ale­gria se tivesse encontrado o último testamento de Noel Hawthorne, com data posterior a 7 de março de 1938, mas não consegui achar nada. Não havia nada que tivesse relação com testamentos, assassinatos ou com qualquer outra coisa que me interessasse, a não ser oito fotografias de Naomi Karn, de vários tipos e tamanhos, três das quais com a dedicatória “Para Gene”, datadas de 1935 e 1936. Até a geladeira estava vazia. Lancei um último olhar para o membro da Ordem dos Advogados, reuni-me a Fred e o conduzi até o carro. Depois de entrar na Sexta Avenida, parei na calçada à sombra dos edifícios e perguntei-lhe:

— O que aconteceu?

Fred protestou: — Devíamos ter parado num lugar onde pudéssemos ver...

— Ele ainda vai ficar lá por mais algumas horas. Vamos, conte.

— Bem, eu o segui...

— Ele e aquela mulher saíram juntos do Santoretti?

— Saíram, às onze horas. Foram andando em direção à Lexington, e eu os segui a pé, enquanto Saul ia de carro. Ele a colocou num táxi e Saul foi atrás dela. Então, ficou um tempo lá parado olhando para o táxi até perdê-lo de vista, e aí começou a andar para o sul como se ti­vesse se lembrado de que esquecera algo na Flórida. Nunca vi ninguém andar tão depressa. Quase tive que correr. O desgraçado foi a pé até a Rua Oito.

— Vou pedir a ele que não faça mais isso. Como você deve ter sofrido. É melhor você omitir este tipo de coisa. Tenho o coração mole.

— Vá plantar batatas. Ele acabou indo para um lugar que fica na Rua Oito, perto da Seis, um bar-restaurante chamado Wellman’s. Por acaso, conheço um sujeito que trabalha lá. Esperei um pouco do lado de fora e quando entrei vi que Sam — o meu conhecido — estava traba­lhando no bar. Pedi algo para beber e fiquei batendo um papo com ele. O suspeito estava lá enchendo a cara. A cada dez minutos, tornava a encher o copo. Depois de uma hora e meia, Sam começou a olhá-lo aborrecido e então eu lhe perguntei o que sabia dele. A propósito, tive que gastar dois dólares e sessenta centavos do meu bolso.

— Disso eu não tenho dúvidas. Espere até que Wolfe veja as contas. Esta eu não perco.

— Ei, Archie, espere aí...

— Depois a gente fala sobre isso. Agora termine de fazer o relatório para o seu superior.

— É pra rir? Ha! Ha! Ha! Sam disse que o suspeito era um bom cliente, às vezes até bom demais; que se cha­mava Dawson e que morava ali por perto. Disse também que nos dois últimos anos teve que chamar um táxi para levá-lo em casa, pelo menos uma dúzia de vezes. E o homem continuava lá, bebendo. Algum tempo depois, cambaleou em direção a uma mesa, sentou-se e pediu mais um trago. Finalmente, caiu duro. Sam e eu tentamos co­locá-lo de pé, mas ele tinha apagado. Ofereci-me para deixá-lo em casa e Sam achou a idéia excelente e eu tam­bém, até a hora em que tive de carregá-lo escada acima. Ele deve pesar uns noventa quilos ou mais.

— Saul disse que ele devia pesar uns setenta e sete.

— Saul não teve que carregá-lo. Eram cinco e quinze quando consegui chegar lá. Tirei as calças e os sapatos dele e então sentei-me e fiquei pensando se devia ou não tirar você da cama àquela hora. Sei como você se sente até tomar o café da manhã...

— Aí você tirou uma soneca e então me telefonou pe­dindo ajuda, como se...

— Não tirei nenhuma soneca. Só queria que você soubesse...

— Está bem. Já chega. Reconheço que você merece ter o seu dinheiro de volta. Reconheço até que é ótimo você conhecer tantos Sams em tantos bares. Não saia daqui. Já volto.

Fui rapidamente até a esquina, entrei numa cabina te­lefônica e disquei um número. Uma voz familiar atendeu.

— Fritz, aqui é o Archie. Ligue-me com a estufa.

— O Sr. Wolfe não se encontra lá.

Olhei para o relógio e vi que eram dez e cinco. — Do que você está falando? É claro que ele está lá.

— Não, Archie, ele não está. O Sr. Wolfe saiu.

— Você enlouqueceu. Se foi isso o que ele lhe pediu para me dizer... isto não é hora para brincadeiras. Ligue-me com a estufa.

— Mas Archie, estou dizendo a verdade. Ele recebeu um telefonema e saiu. Deixou um recado para você... espere um instante, deixei tudo anotado. Primeiro, que Saul ligou e ele pediu que Orrie o substituísse. Segundo, que, devido à sua ausência, ele teria que pegar um táxi. Terceiro, que você deveria ir no carro maior até a casa do falecido Sr. Hawthorne, na Rua 67.

— Você tem certeza, Fritz?

— Juro por Deus, Archie. Quase caí de costas.

— Aposto que sim.

Desliguei, voltei para o carro e disse a Fred:

— Teve início uma nova era. A Terra mudou de di­reção e está girando ao contrário. O Sr. Wolfe saiu de casa num táxi para trabalhar num caso.

— O quê? Deixe de besteiras.

— É isso mesmo. Como disse Fritz, juro por Deus. Ele saiu mesmo. Sendo assim, se você...

— Mas, Archie. Ele pode ser assassinado ou sei lá...

— E eu não sei disso? Pode deixar comigo. Vá para casa e acabe de tirar a sua soneca. Seu amigo Davis vai ficar lá por mais algumas horas. Se precisarmos de você, eu telefono.

— Mas se o Sr. Wolfe...

— Pode deixar que eu cuido dele.

Ele desceu do carro e ficou lá parado, balançando a cabeça, preocupado, enquanto eu me afastava. Eu não estava preocupado, mas meio estupefato enquanto ia me dirigindo para o lado norte da cidade. Ao chegar à gara­gem, na Décima Primeira Avenida, troquei de carro, dei a volta pela rampa e já na rua tornei a tomar a direção norte. Cheguei à conclusão de que a conta no banco fora a responsável por Wolfe ter quebrado sua lei irrevogável de nunca sair a serviço, mas embora soubesse que isso o estava afetando nunca pensei que chegasse ao desespero total. Senti uma enorme pena dele quando estacionei na Rua 67 e me dirigi para a entrada da construção de pedra dos Hawthorne.

Como não havia nenhum funcionário da Prefeitura a postos e nenhum repórter ou fotógrafo pendurado na ja­nela, concluí que Skinner e Cramer ainda não tinham dado com a língua nos dentes. O mordomo que abriu a porta exalava distinção por todos os poros.

— Bom dia, Jeeves — disse-lhe. — Sou Lord Goodwin. Gostaria de falar com o Sr. Wolfe, se é que ele conseguiu chegar são e salvo até aqui. É um sujeito gordo. Ele está?

— Está, sim senhor. — Ele se afastou, permitindo que eu passasse. — Seu chapéu, senhor. Por aqui, por favor, senhor. — Atravessou o amplo saguão e foi se colocar na entrada de uma sala, afastando-se para que eu passasse. — Irei avisar o Sr. Dunn e o Sr. Wolfe da sua chegada.

Então era por isto que Wolfe estava zanzando como um rouxinol fazendo o ninho. No pé em que as coisas estavam, um Ministro da Fazenda seria mais conveniente do que um Secretário de Estado, mas como não se pode ter tudo na vida... Deixei estes pensamentos de lado e dei uma olhada à minha volta. Apesar do tamanho e da decoração luxuosa que se coadunava perfeitamente com o mordomo, não era o tipo de sala que eu gostaria de ter, caso o meu tio rico viesse a falecer. Havia cadeiras demais e elas davam a impressão de que tinham sido feitas para serem fotografadas e não para que se sentasse nelas. A única coisa de que gostei foi uma estátua de mármore, que ficava num canto, de uma mulher tentando alcançar uma toalha de banho — pelo menos ela tinha um braço estendido como se quisesse pegar algo, e tinha o jeito de quem estava precisando de uma toalha. Cheguei mais perto para apreciá-la e enquanto estava lá entretido senti algo às minhas costas, embora não tivesse ouvido nenhum ruído. Virei-me rapidamente e vi o que tinha causado aquela sensação. A Sra. Hawthorne estava na outra ex­tremidade da sala, me encarando. Isto é, ela estaria me encarando se tivesse um rosto. Ela estava usando um ves­tido cinza que ia até o tornozelo e o mesmo véu cinza. Estava lá parada.

Cheguei à conclusão de que eu era totalmente alérgico àquele maldito véu. Havia algo nele que me dava nos nervos. Fiz menção de dizer “Bom dia, Sra. Hawthorne”, com toda a delicadeza que me é peculiar, mas quando senti que ao invés disto eu iria gritar, preferi ficar calado. Ela também não disse nada. Depois de ter ficado lá du­rante uma hora, que na verdade deve ter sido uns nove segundos, virou-se e desapareceu sem fazer nenhum ruído por detrás das cortinas. Atravessei a sala decidido, como se fosse tomar alguma atitude; acho que se tivesse uma espada à mão, eu a teria enfiado através das cortinas, como Hamlet no terceiro ato. Quando estava quase che­gando lá, uma voz vinda de detrás fez com que eu parasse.

— Oi!

Virei-me rapidamente como se fosse Gary Cooper ro­deado de bandidos, vi quem era e, sentindo-me como um idiota, exclamei furioso:

— Ah, é a senhorita?

Sara Dunn, a profissional em diabruras, aproximou-se.

— Como é mesmo o seu nome? O senhor deve ter vindo até aqui para se encontrar com Nero Wolfe e com papai.

— É o que estou querendo, se viver o bastante para isso.

Ela estava bem na minha frente, fitando-me com os mesmos olhos de águia de sua mãe. — O senhor me faria um favor? Diga a Nero Wolfe que preciso falar com ele antes que ele vá embora. Tem que ser o mais rápido possí­vel e papai não pode saber disso.

— Vou tentar. Não seria melhor a senhorita ir me adiantando por que quer falar com ele?

— Não sei. — Ela parecia indecisa. — Talvez o se­nhor tenha razão. É algo que eu gostaria que ele soubesse.

Ela virou-se ao ouvir um barulho. Era o mordomo que se aproximava.

— Sim, Turner?

— Com licença, Srta. Dunn. Seu pai está esperando o Sr. Goodwin lá em cima.

— Eles podem esperar um instante — disse eu — se a senhorita quiser...

Ela balançou a cabeça negativamente. — Não, seria... diga-lhe apenas o que eu lhe pedi, está bem?

Concordei e saí atrás do mordomo. Fui seguindo-o por uma escadaria em forma de caracol e, quando chegamos lá em cima, ele me conduziu através de um corredor e abriu a segunda porta à direita. Entrei. Este, sim, era o que eu chamaria de um lugar ideal para se passar uma tarde chuvosa, quando se tem dinheiro. Havia estantes cheias de livros, fotografias de cães e cavalos, uma escri­vaninha espaçosa, cadeiras confortáveis e um rádio. Não havia ninguém sentado na escrivaninha. Nero Wolfe es­tava de pé, segurando o dorso de uma cadeira de couro marrom, com as costas voltadas para a janela. A Sra. John Charles Dunn estava sentada na beirada de outra. De pé, entre eles, estava um homem alto, de ombros curvados, em mangas de camisa, de olhos inquietos e pro­fundos e uma cabeleira ondulada e grisalha. Reconheci-o imediatamente, não só pelas fotografias que já tinha visto dele, como também pelo seu hábito de se ver logo livre do paletó e do colete.

Wolfe murmurou algo parecido com um cumprimento. June também murmurou algo e apresentou-me a seu ma­rido. Wolfe disse:

— Sente-se, Archie. O Sr. e a Sra. Dunn já estão a par das suas funções. O que houve com Fred? Ele se meteu em apuros novamente?

— Não, senhor. Não foi bem isto o que aconteceu. • De acordo com as instruções que lhe dei, ele ficou an­dando por aí até sentar-se num bar, onde ficou tomando refrescos até as cinco horas da manhã. Então, um dos fregueses precisou ser levado para casa e Fred o ajudou. Fui encontrá-lo no apartamento do sujeito no endereço que pedi para que Fritz lhe desse, e cheguei lá às nove horas da manhã. O sujeito estava deitado quase em coma alcoólico. Depois de revistar o quarto para ver se não havia nada de errado, saí, telefonei para casa e recebi o seu recado. Fred foi para casa dormir.

— E a identidade dele?

— Já descobrimos, senhor.

— E daí?

Dei de ombros. Já que não havia segredos para o Se­cretário de Estado e sua esposa... — Eugene Davis, da firma de advocacia Dunwoodie, Prescott & Davis.

— Ah!

A Sra. Dunn perguntou surpresa: — Gene Davis?

— A senhora o conhece? — perguntou Wolfe.

— Não muito bem. Faz tempo que não o vejo. — E virando-se para o marido. — Você se lembra dele, John. Eugene Davis, o sócio de Glenn. Acho que a última vez que o vimos foi quando estivemos em Washington.

Dunn assentiu sem muita convicção. — Acho que sei quem é. Um sujeito de nariz comprido, de lábios grossos. Mas será que ele tem alguma relação com esse... será? Eugene Davis?

— Não sei — respondeu Wolfe. — De qualquer jeito, ele está totalmente embriagado e deve ficar nesse estado por mais algum tempo. Mas o que é mesmo que o senhor estava dizendo, Sr. Dunn?

— Ah, sim. — Dunn olhou aborrecido para mim e depois para Wolfe. — Não concordo com a presença deste homem, mas o que eu acho já não tem mais muita importância — falou em tom amargo.

— Não é bem assim — protestou Wolfe. — Já lhe falei sobre o Sr. Goodwin. Sem ele sou como um ouvido sem tímpano. Pode continuar. O senhor disse algo bas­tante comovente, que me agradou muito, pois sou um romântico inveterado. O senhor disse que colocaria seu des­tino em minhas mãos.

— Não vejo nada de comovente nisto. Eu estava ape­nas constatando a realidade.

— Também gosto de realidade.

— Eu, não — resmungou Dunn. — Não desse tipo de realidade. — Virou-se em direção à mulher e, de repente, foi até ela, inclinou-se e beijou-a nos lábios. — June, que­rida — disse. — Nem falei com você direito. June, querida. — Ela o puxou para si para que ele a beijasse novamente e murmurou-lhe algo. Wolfe explicou-me:

— O Sr. Dunn acaba de chegar de Washington. Ele me telefonou do aeroporto.

Dunn endireitou-se e tornou a dirigir-se a Wolfe.

— O senhor já deve ter ouvido falar do que andam espalhando por aí sobre Noel Hawthorne e eu.

Wolfe assentiu. — Ouvi algo a respeito. Costumo jantar uma vez por semana com o redator da Gazette. Sei que a decisão de conceder um empréstimo à Argentina partiu do Departamento de Estado. Que, logo depois que o empréstimo foi divulgado, soube-se que algumas com­panhias controladas pelo grupo Daniel, Cullen & Cia. já tinham conseguido importantes concessões industriais na Argentina. Que Noel Hawthorne tinha recebido informa­ções secretas do senhor, seu cunhado, não só sobre o empréstimo como também sobre os seus termos. Que o senhor, o Secretário de Estado, está sendo acusado de fraude.

— E o senhor acredita nisso?

— Estou completamente por fora disso.

— É uma mentira deslavada. Se o senhor acredita nisso, então não serve para o trabalho que vou lhe propor.

— Não tenho por que acreditar ou não. Não gosto de fechar os olhos para a realidade, mas também não acre­dito em tudo que passa pela minha frente. Como cidadão, aprecio os seus métodos e estou de acordo com a sua orientação política. Sou um detetive profissional, e quan­do aceito um trabalho, dedico-me inteiramente a ele.

— O senhor teve um desempenho brilhante no caso Weltzer.

— Obrigado, senhor. O que o senhor quer que eu faça?

— Quero que o senhor descubra quem matou Noel Hawthorne.

— Perfeito. — Wolfe deu um suspiro. Olhei de sos­laio para June e notei como suas mãos se retorciam no colo enquanto fitava o marido. Dunn, de pé diante de Wolfe, olhava-o contrariado.

— De qualquer jeito, minha carreira está arruinada — afirmou. — A da minha mulher também, pois é tanto minha quanto dela. Provavelmente vou ter que renunciar dentro de um mês. Um dia ainda vou esclarecer como a firma Cullen conseguiu aquela informação. Meu cunhado jurava que não sabia. E vou lutar até o fim dos meus dias para descobrir tudo, apesar das intrigas, das confusões e dos obstáculos. Mas a primeira coisa a fazer é esclarecer esse assassinato. — Dunn cerrou os punhos. — Meu Deus, como é que eu posso renunciar com um fardo destes nos ombros?

Wolfe murmurou: — A Srta. May Hawthorne está in­clinada a acreditar que seus oponentes políticos estão usando deliberadamente a morte de Hawthorne para pre­judicar o senhor.

— Não sei. Não posso fazer tal acusação. Só sei que, se não descobrirem o assassino, nunca vou poder me livrar dessa lama, mesmo depois da minha morte, e não acredito que irão conseguir descobri-lo. Não acredito que consigam. — Os punhos de Dunn fecharam-se novamen­te. — Sei que esse problema com a Argentina me deixou enfraquecido e sei que eles estão prontos para atacar, mas não confio em ninguém. Em ninguém. Mesmo as pessoas que se sentam ao meu lado numa reunião de gabinete dariam tudo para me ver pelas costas. O senhor acha que devo confiar a minha vida — e muito mais do que isso — a um promotor de Rockland County ou a um demagogo de primeira categoria como Bill Skinner? Isso, nunca. Não há ninguém em Washington com quem eu possa contar. E, além disso, as pessoas não gostam de aju­dar um homem que deve cair pela terceira vez, sobretudo quando este homem ocupa uma posição como a minha. Preciso do senhor, Sr. Wolfe. Quero que o senhor des­cubra quem matou Noel Hawthorne.

— Bem. — Wolfe mexeu-se na cadeira. — Eu já tinha aceito o encargo de...

— Sei disso. Mas antes gostaria de lhe dizer algo. Ganho quinze mil dólares por ano e estou tendo dificuldades para sustentar a minha família. Se eu renunciar e voltar a advogar...

Wolfe fez um gesto para que ele deixasse isso de lado. — Se o senhor colocou o seu destino em minhas mãos, também posso fazer o mesmo com relação aos meus ho­norários. O que não posso é me dedicar a duas coisas ao mesmo tempo. Sua esposa, as irmãs dela e a Sra. Hawthorne contrataram-me para resolver o problema do tes­tamento. Elas são minhas clientes. Se eu vier a trabalhar também para o senhor, corro o risco de me ver diante da necessidade desagradável de...

Wolfe deixou a frase em suspenso. Dunn olhou-o fu­rioso. O impasse foi quebrado pela chegada do mordomo.

— O que há? — perguntou Dunn.

— Três cavalheiros desejam vê-lo. O Sr. Skinner, o Sr. Cramer e o Sr. Hombert.

— Peça a eles que esperem. Diga-lhes que... coloque-os naquela sala onde está o piano. Já vou para lá.

O mordomo inclinou-se e saiu. June olhou bem para Wolfe e disse calmamente. — O senhor quer dizer que qualquer um de nós pode ter matado meu irmão?

— Que absurdo! — exclamou Dunn.

— Pode ser absurdo para nós, John, mas não para o Sr. Wolfe. — E virando-se novamente para Wolfe: — Se estamos lhe pedindo para descobrir um assassino é por­que esperamos que o senhor faça exatamente isto, se for possível. O senhor realmente... o senhor acha mesmo que foi um de nós?

— Por enquanto, não acho nada — disse Wolfe im­paciente. — Só quero que vocês entendam uma coisa. Não gosto de nada disto. Eu não gostaria, por exemplo, de vir a ter que acusar a Srta. May Hawthorne de assassinato. Trabalho como detetive para ganhar dinheiro e este caso do testamento me interessa. Seria melhor que eu não me metesse em mais nada, mas minha maldita vaidade me impede. John Charles Dunn chega para mim e coloca o destino dele em minhas mãos. Que raios se pode esperar de um homem vaidoso como eu? — Olhou aborrecido para Dunn. — Estou lhe avisando, senhor, que se eu for atrás desse assassino é bem provável que eu consiga agarrá-lo.

— Assim espero.

— Eu também — disse June. — É o que todos nós queremos.

— A não ser um de vocês — disse Wolfe, inflexível. — Por enquanto, não sei de nada, mas se o Sr. Skinner continua a insistir na teoria de que Hawthorne foi assassi­nado por alguém que estava presente àquela reunião, eu não o censuro. De qualquer jeito, também vou ter que começar por eles. Um de cada vez. Quem está aqui, no momento?

— Minhas irmãs — disse June — ... as crianças, e talvez a Srta. Fleet.

— Vi a Sra. Hawthorne lá embaixo, ou pelo menos alguém que usava um véu — disse eu, interrompendo a Sra. Dunn.

— Já é um bom começo — disse Wolfe. — O senhor se importa em ser o primeiro, Sr. Dunn? Acho que o Sr. Skinner não vai ficar muito aborrecido se esperar mais um pouco. Pelo que soube, o senhor estava cortando lenha. A Srta. May Hawthorne disse que perguntaram a ela se tinha ouvido o barulho do seu machado entre qua­tro e meia e cinco e meia.

— Ela não ouviu — disse Dunn asperamente. — Não sou nenhum robô. Sentei-me num tronco de árvore para descansar. Estava preocupado. Não queria que Noel Haw­thorne estivesse lá, mesmo no dia do nosso aniversário de casamento.

— Não era uma festa muito animada.

— Não, não era.

— Lá pelas quatro horas o senhor e o Sr. Hawthorne discutiram sobre se caçariam um falcão?

— Havia um falcão, voando, lá pelos lados da flo­resta. Ames tinha me dito que no dia anterior o bicho tinha pego uma galinha e eu contei isto a Noel. Ele disse que queria matá-lo. Ele gostava de atirar. Eu não. Pedi então a Ames que lhe emprestasse sua espingarda e Noel lá se foi, carregando a arma. Saí também, mas na direção oposta e fui para trás do galpão, para ver se cortando lenha conseguia espairecer.

— A idéia de caçar o falcão partiu de Hawthorne ou foi o senhor quem a sugeriu para se ver livre do seu cunhado?

— A idéia partiu dele. — Dunn parecia irritado. — Olhe aqui. É melhor o senhor me colocar no fim da lista. ‘ Sei bem do que o senhor é capaz e não pretendo bancar o valentão. Eu não iria contratá-lo se tivesse alguma culpa no cartório.

— Estou apenas fazendo o meu trabalho, Sr. Dunn. Alguém mais ouviu a discussão sobre o falcão?

— Sim, estávamos todos tomando chá no jardim. Pelo menos a maioria.

— Então posso confirmar isso com eles. Mesmo que o senhor estivesse me escondendo algo, acho que eu não seria capaz de descobrir; o senhor deve ter muita expe­riência em interrogatórios. O senhor se lembra de alguma outra coisa que aconteceu naquela tarde que pudesse me ajudar? Qualquer coisa.

— Não. Não lembro de nada no momento.

— O senhor suspeita de alguém?

— Sim, da mulher dele. A viúva.

— É mesmo? — Wolfe parecia surpreso. — O senhor tem algum motivo especial para suspeitar dela?

— Isto não tem nenhum fundamento, John — protes­tou June. — A coitada da Daisy não é flor que se cheire, mas daí a...

— Eu apenas respondi à pergunta dele, meu bem. Ele me perguntou se eu suspeitava de alguém... Não tenho nenhum motivo especial, Sr. Wolfe. Ela é má e detestava o marido. Só isso.

— O senhor não sentiu cheiro de pólvora queimada nas mãos dela ou qualquer coisa deste tipo?

— Não, não. Nada.

— Bem. — Wolfe virou-se. — E quanto à senhora, Sra. Dunn? A senhora tinha ido colher amoras, não é verdade?

— Sim.

— Mais ou menos a que horas?

— Logo depois de Noel ter saído com a arma e do meu marido ter ido cortar lenha. Depois do chá, cada um foi para o seu canto. Quem lhe disse que eu tinha ido colher amoras?

— Sua irmã, May. Amoras silvestres?

— Não, temos uma pequena plantação num canto da horta.

— A senhora ouviu os tiros que mataram os corvos?

— Ouvi. E também ouvi o terceiro tiro, o... o último. Foi bem longe, mas deu para ouvir. Apesar de saber que devia ser Noel tentando pegar o falcão, sempre fico ner­vosa com armas e com o barulho que fazem, não importa qual seja o alvo. Ouvi o terceiro tiro um pouco antes das cinco horas. Parei de colher amoras e fui até a parreira para pegar folhas, e quando voltei para casa eram cinco e dez.

— Pelo que sei, Titus Ames é da mesma opinião — que o terceiro tiro foi dado a essa hora.

June assentiu. — Ele estava no estábulo, tirando leite.

— É, Parece que todos tinham muito o que fazer na­quele dia. Bem, Sra. Dunn, vai adiantar alguma coisa se eu lhe fizer um monte de perguntas?

— Não sei. Só sei que estou totalmente disposta a res­pondê-las.

— A senhora sabe de algo que pudesse me ajudar?

— Não. Sei de muita coisa sobre meu irmão, seu ca­ráter e personalidade, e suas relações conosco e com ou­tras pessoas, mas nada que possa ajudá-lo a encontrar seu assassino.

— Gostaria de conversar sobre isso com a senhora, mas não agora; primeiro preciso interrogar os outros. A propósito, Sr. Dunn, estou querendo mandar uma pessoa até sua casa de campo. Será que o senhor poderia escre­ver um bilhete para Titus Ames pedindo-lhe que deixe essa pessoa dar uma busca por lá e que responda a algu­mas perguntas que por acaso ele precise fazer? O nome dele é Fred Durkin.

— Pode deixar que eu escrevo — ofereceu-se June. — E vou mandar chamar... quem devo chamar primeiro, Sr. Wolfe?

Respondi, intrometendo-me: — A sua filha, Sra. Dunn, se não for incômodo.

— A minha filha? — Ela olhou-me, surpresa. — Ela não estava lá. Ela só chegou bem depois.

— Falaremos primeiro com ela — disse eu com fir­meza.

Ela concordou e juntou-se ao marido e os dois saíram abraçados; ele com a mão no ombro dela e ela acariciando-lhe as costas.

Depois que a porta se fechou, Wolfe perguntou:

— Por que a filha deles?

— Porque ela pediu — respondi-lhe enquanto reme­xia nas gavetas da escrivaninha à procura de lápis e papel para que eu pudesse fazer as minhas anotações. — Ela está querendo ganhar um concurso de fotografia e quer que o modelo seja você.

 

Sara Dunn chegou toda animada, mas teve que se sentar e esperar um pouco enquanto tomávamos algumas provi­dências. Um telefonema para Saul Panzer pedindo-lhe que nos fizesse seu relatório lá logo que possível, outro para Fred Durkin idem e outro para Johnny Keems idem. Um para Fritz, avisando-lhe que não iríamos almoçar em casa. Um pedido para o mordomo, feito por intermédio de uma das criadas, para que trouxesse cerveja. E tempo para que eu relatasse a Wolfe mais detalhadamente o episódio com o Sr. Eugene Davis. Depois disto, Wolfe sentou-se e ficou meditando por alguns instantes, recostado na cadeira. Suspirou e dirigiu-se à primeira vítima.

— O Sr. Goodwin disse-me que a senhorita gostaria de falar comigo.

— E é verdade — respondeu. Era impressionante como seus olhos eram parecidos com os da mãe, enquanto a boca e o queixo não tinham nada dos Hawthorne. — Preciso lhe contar algo.

— Sou todo ouvidos.

— Bem... O senhor já deve saber que na opinião dos meus pais eu não sirvo para nada.

— Não chegamos a discutir sobre isso. A senhorita concorda com eles?

— Ainda não sei. O que acontece comigo é que sou a filha de uma das irmãs Hawthorne. Se elas tivessem tido mais filhas, acredito que seria diferente, mas só ti­veram uma, que sou eu. Fiquei farta disso aos dez anos de idade e criei um complexo de inferioridade em relação aos que me cercavam. Foi terrível. Na faculdade, todos olhavam para mim como se eu fosse um ser de outro pla­neta. Foi então que me revoltei. Larguei a faculdade, fugi de casa e arranjei um emprego que dava para eu me sustentar. Mas como era a filha de uma das irmãs Haw­thorne, tinha que inventar um meio, que não fosse muito caro, de ser excêntrica e audaciosa, e o melhor que con­segui foi uma máquina fotográfica de segunda mão para tirar retratos das pessoas quando elas menos esperavam. Faço isso até hoje. Não é patético? Como o senhor pode ver, não tenho imaginação. As coisas que invento para chamar a atenção acabam sempre sendo ou idiotas ou impraticáveis ou totalmente absurdas. Não tenho nenhu­ma confiança em mim mesma, nem um pouco. Este de­sembaraço todo que o senhor está vendo não passa de um blefe. No fundo, estou tremendo dos pés à cabeça.

— Mas não há por que ficar tremendo. — Wolfe aca­bou de tomar a cerveja e limpou os lábios com um lenço. — A senhorita disse que fugiu de casa?

Ela fez que sim. — Há mais de um ano atrás. Disse à minha mãe... mas isto não vem ao caso. De qualquer maneira, acabei cortando relações com eles, o senhor sabia? Eu tinha que descobrir um meio de fazer algo tão extraordinário que colocaria as irmãs Hawthorne no chi­nelo. Arranjei, então, um emprego de vinte dólares por semana numa loja de cristais antigos na Madison Avenue, e comprei uma máquina fotográfica. Não podia ter sido melhor, o senhor não acha? Cada vez que ia em casa, mesmo que fosse só para passar um fim de semana, eu fazia questão de não dar o braço a torcer. A primeira vez que quase cheguei a fraquejar foi na última segunda-feira, quando mamãe foi até a loja para me pedir que fosse às bodas de prata dela. Eu já tinha escrito para ela dizendo que não iria. No dia seguinte, terça-feira, o Sr. Prescott também foi até lá para tentar me convencer. Continuei recusando, mas quando saí do trabalho, às seis horas, lá estava ele me esperando no carro. Tentei convencê-lo de que não iria, mas foi ele quem acabou me convencendo. E então, quando chegamos lá, soubemos que... o tio Noel estava morto.

Wolfe disse, paciente: — Que coisa mais desagradável! Deve ter sido uma triste recepção para quem volta pela primeira vez à sua casa depois de um ano de ausência. Sinto muito, mas acho que não posso fazer nada quanto a isto. Era só o que a senhorita tinha a me dizer?

— Não. — Seus olhos continuavam fixos nos dele. Não era um olhar perturbador como o de Naomi Karn, mas era tão penetrante que chegava a doer. — Não — disse ela. — Só lhe contei isto tudo porque é preciso que o senhor saiba, caso venha a me ajudar. Eu ia falar hoje de manhã com o Promotor Skinner, mas pensei melhor e achei que seria difícil fazer isso sem ajuda. Tem que ser feito de maneira a convencê-lo, e a todos, de que fui eu quem contou ao tio Noel sobre o empréstimo à Argentina, e de que fui eu quem o matou na terça-feira à tarde.

A pena da minha caneta prendeu, espalhando tinta por toda a parte. — O quê? — perguntou Wolfe. — A senho­rita quer repetir isso, por favor?

— Foi exatamente o que o senhor ouviu — disse Sara calmamente. — Uma noite, acho que em abril, ouvi meu pai conversando sobre o empréstimo com o embaixador da Argentina e resolvi vender essa informação ao tio Noel. Há pouco tempo, tio Noel ameaçou me desmascarar, con­tando a meu pai como ele teve conhecimento do emprés­timo, e então eu o matei.

— Perfeito. E já que foi a senhorita quem realmente o assassinou e, sendo assim, os lábios de seu tio estão se­lados para sempre, por que a senhorita resolveu confessar estes crimes? Porque estão pesando na sua consciência?

— Não. Minha consciência não está nem um pouco pesada. Estou fazendo isso para salvar meu pai da des­graça. E minha mãe também, já que ela tem uma grande parte nisto tudo. Quando cometi os crimes, não parei para pensar nas conseqüências.

— Pois devia ter pensado — disse Wolfe sério. — E a senhorita devia parar também agora para pensar nas conseqüências da sua confissão. Eles não demorariam nem um minuto para desmascará-la. E por um único mo­tivo: como é que estando na Madison Avenue a senhorita conseguiu apertar o gatilho de uma arma em Rockland County? Qual foi a frase que a senhorita usou há poucos instantes? “Idiota, impraticável ou totalmente absurda.” Desta vez a senhorita exagerou. É melhor inventar outra coisa.

— Mas se o senhor me ajudasse, podia dar certo, podia mesmo. Posso dizer que saí da loja...

— Ora, Srta. Dunn, por favor! Estou trabalhando para o seu pai. Será que a senhorita poderia pedir à Srta. May Hawthorne que viesse até aqui?

Foram necessários dez minutos para convencê-la a sair da sala e houve uma hora em que eu quase a peguei no colo e tirei de lá à força. Finalmente, ela se foi.

Wolfe tornou a encher o copo de cerveja e resmungou: — Se forem todos como ela...

— E ela ainda vai dar muito trabalho — disse-lhe, feliz da vida. — Não se esqueça que Skinner e Cramer estão lá embaixo. Quer apostar quanto que antes do dia escurecer ela vai estar atrás das grades e você vai ter que soltá-la? Ela é nossa cliente. Desta vez, pegamos um aba­caxi danado.

Antes de escurecer, quem daria tudo para estar na ca­deia era eu, pois só assim poderia pensar melhor sobre as coisas.

Quando April entrou, parecia estar com dor de cabeça. Vinha acompanhada de um séquito que a seguia como se fossem batedores de um cortejo real, e que era composto de Celia Fleet, de ar cansado, e Osric Stauffer ou Ossie, como Naomi Karn o chamava, que pelo menos esteve em casa o tempo suficiente para trocar de roupa. Sentaram-se em volta de Sua Majestade, sem sequer nos pedirem licença.

A voz ondulante de April já não tinha a mesma inten­sidade do dia anterior. — Não posso falar sobre isso. Simplesmente não posso. Só vim porque minha irmã me obrigou, mas não posso falar porque minha voz não sai. Não sei o que acontece comigo. As outras pessoas con­seguem continuar falando, não importa o que aconteça com elas. Houve algo com a minha garganta.

Celia Fleet sorriu para ela e Stauffer lançou-lhe um sorriso ridículo. Talvez eu tenha feito o mesmo. Quando ela entrou na sala e pressionou os dedos contra as têmpo­ras, como a heroína no final do segundo ato, resolvi desistir de me casar com ela, mas não era tão fácil assim. Ela tinha algo que fazia com que a gente esquecesse que era uma profissional que sabia como conseguir que um milhão de pessoas pagassem quarenta e quatro dólares só para vê-la representando. Não hesitaria em dar minha vida por ela ali mesmo, se no momento eu não estivesse tão ocupado com as minhas anotações.

— A senhorita não vai ter que falar muito — disse Wolfe. — Para dizer a verdade, isto não vai adiantar muita coisa, mas eu tenho que começar por algum lugar. Já não se trata mais do testamento. Sua irmã lhe contou que fui contratado pelo Sr. Dunn para descobrir quem matou Noel Hawthorne?

Stauffer respondeu por ela: — Já — disse secamente. — E espero sinceramente que o senhor o consiga. Mas para que ficar atormentando a Srta. Hawthorne com isto? Ontem à noite aquele maldito inspetor...

— Eu sei — concordou Wolfe. — O Sr. Cramer não tem muito tato. Mas eu não tenho intenção de atormentar ninguém. Talvez nem seja necessário que a Srta. Haw­thorne fale. É verdade, Srta. Fleet, que a senhorita ficou escrevendo cartas na terça-feira à tarde?

Celia assentiu. — A Srta. Hawthorne recebe milhares de cartas. Tento responder a todas. Quando acabamos de tomar o chá, lá pelas quatro e quinze, retirei-me para um canto da sala de estar e fiquei lá sozinha, escrevendo durante mais ou menos uma hora, até que Andy... o Sr. Dunn apareceu.

— É melhor chamá-lo de Andy, já que há um outro Sr. Dunn. E o que a senhorita fez então?

— Andy sugeriu um passeio. Saímos... e fomos an­dando em direção ao bosque...

Celia parecia que tinha um nó na garganta. April então disse: — Eles estão apaixonados. É uma briga de família. Celia e eu queremos que Andy se torne ator, ele nasceu para isto. June e o marido querem que ele seja advogado e político para poder chegar à presidência do país. Meu irmão queria que ele trabalhasse na Cullen... ele sempre quis ter um filho e nunca pôde. Discutimos sobre isso durante o chá. Andy é um péssimo advogado.

— Ficamos algum tempo lá no bosque — disse Celia — e então fomos andando e saímos do outro lado. Não tínhamos visto nada até que tropeçamos no corpo. Quase caí e Andy me segurou...

— Isto não é necessário — interrompeu Wolfe. — O que interessa é que a senhorita estava escrevendo cartas às cinco horas da tarde. — E, virando-se para April: — E a senhorita estava num dos quartos tirando um cochilo.

— Estava. O Sr. Stauffer me chamou para nadar mas eu não estava com vontade. O lago é muito sujo.

— Quer dizer que o senhor foi nadar sozinho — disse Wolfe dirigindo-se a Stauffer.

— Fui. O lago fica na direção oposta ao bosque, no pé da montanha.

Wolfe disfarçou um sorriso. — Aposto que isso é algo que a polícia gostaria de saber. Por favor, não se ofenda. Neste instante eles devem estar sondando qual seria a sua posição na Daniel Cullen e Cia. depois da morte do Sr. Hawthorne: se o senhor vai se tornar o Diretor do Depar­tamento de Negócios Internacionais, ou um dos sócios. É uma boa bolada... Oh, eu não estou perguntando nada, eles é que devem estar.

Stauffer estava tenso. — Isto é realmente...

— Calma, Sr. Stauffer. O que o senhor espera que eles façam quando estão à procura de um assassino? Vocês até que têm sorte. Com a posição que ocupam e o prestígio que têm... Mesmo que o senhor tivesse matado Noel Hawthorne, continuaria a ser tratado com toda a delica­deza até a hora em que o promotor público conseguisse colocá-lo no banco das testemunhas. Se o senhor quiser, pode conduzir a Srta. Hawthorne de volta ao quarto dela. Também não tenho mais nada para lhe perguntar, Srta. Fleet. Se precisar... Pode entrar!

A porta se abriu dando passagem ao mordomo. Ele já começava a mostrar sinais de que não recusaria passar umas boas férias no castelo dos seus ancestrais.

— Dois homens desejam vê-lo, senhor. O Sr. Panzer e o Sr. Keems.

Wolfe pediu que os fizesse entrar.

 

Larguei a caneta sobre a mesa e olhei para ele com re­pugnância. — Pelo amor de Deus — disse, choramingan­do só para irritá-lo. — Você está sendo cruel demais com eles. É desumano. Fico deprimido só de vê-los sofrer deste jeito, contorcendo-se diante dos seus golpes impiedosos. E ainda fica aí dando uma de bonzinho. Nunca o tinha visto em tão boa forma...

— Archie! Cale a boca!

— Mas quem diabo você pensa que é, um repórter intrometido?

— Eu não, e não preciso disto. Só estou tentando pen­sar. Estou tentando pensar sobre essas pessoas, ao mes­mo tempo em que dou uma olhada neles novamente. Eles são muitos. Se algum deles atravessou aquele bosque sem ser visto, pegou a arma de Noel Hawthorne e lhe estourou os miolos, quem vai provar isto e como? — Boa tarde, Saul. Boa tarde, Johnny. Entrem e sentem-se. — Você me acha com cara de índio para ir até lá e ficar andando de quatro, farejando pegadas? E acha que algum membro desta tribo vai nos dizer alguma coisa? — E bufou: — Imagine. Tentando desviar minha atenção para uma briga de família sobre a carreira artística de Andy. — Ameaçou-me depois com um dedo: — E você, trate de me deixar em paz! Se eu ouvir você choramingando mais uma vez, eu. como é que posso pensar se não há nada para ser pensado?

Dei de ombros e disse-lhe: — Então, é melhor voltar para casa e ficar olhando o mapa.

— Concordo plenamente com você.

Ele me deixou de lado e dirigiu-se a Saul. — Orrie con­seguiu entrar em contato com você?

— Sim, senhor. — Saul sempre fingia que não tinha ouvido as nossas discussões. — A Srta. Karn não tinha aparecido até a hora em que Orrie me substituiu, isto é, às nove e vinte. Às nove e vinte e cinco, liguei para o apartamento dela e ela estava lá.

— Você disse a Orrie que era para ligar para cá?

— Sim, senhor.

— Você precisa descansar.

— Dá para agüentar até de noite.

— Você está livre, não, Johnny?

— Estou sim, senhor. Estou sempre livre para o senhor.

Seu tom de quem está sempre pronto a ajudar, como um colegial bem-comportado oferecendo-se para apagar o quadro-negro me deixava doente. Johnny Keems era o tipo de sujeito que se exercita diariamente e que compra chiclete em tudo quanto é máquina automática só para se ver no espelho. Desisti de pedir demissão mais de uma dúzia de vezes só porque sabia que era tudo o que ele mais desejava.

— Tomem nota — disse Wolfe — vocês dois. Dunwoodie, Prescott e Davis, firma de advocacia na Broadway. Sr. Glenn Prescott, Sr. Eugene Davis. Naomi Karn trabalhou lá como estenógrafa em 1934 e, depois de dois anos, tornou-se secretária do Sr. Davis. Mais ou menos um ano depois, abandonou o emprego para se associar ao Sr. Noel Hawthorne, numa firma particular. Vocês dois devem procurar obter tudo o que for possível. Saul é quem vai coordenar e Johnny vai ficar sob as ordens dele, como de costume. Apenas um detalhe: o nome da estenógrafa que fez um trabalho confidencial para o Sr. Prescott no dia 7 de março de 1938. Qualquer contato com essa pessoa deve ser feito com o máximo de cautela. E Johnny, é claro, deverá usar todo o seu charme para interrogar as garotas. — O que foi, Archie?

— Nada. — Eu tinha apenas feito um barulho. Não sei de onde Wolfe havia tirado a idéia de que quando Johnny olhava para uma garota e sorria ela se derretia toda. O fato é que... ora, que diferença isto faz? Ele se casaria com a filha de um batedor de carteiras só por causa do dinheiro dela.

Eles fizeram algumas perguntas, Saul sobretudo, que fo­ram devidamente respondidas. Depois que saíram, Wolfe entrou em transe. Dei de ombros e achei melhor não pro­vocá-lo, pois, como já era uma hora, eu sabia o que ele estava esperando, que não tardou a chegar. O mordomo em pessoa veio trazendo uma bandeja, e uma criada de uniforme que tinha a unha do polegar da mão direita que­brada vinha atrás dele com outra. Vi a unha quando ela quase enfiou o dedo no meu leite. Tinha a intenção de ficar para nos servir, mas Wolfe dispensou-a.

Ele levantou os guardanapos das travessas com uma expressão de otimismo e receio ao mesmo tempo. Quando não conseguiu sentir cheiro de nada, ficou tão desconcer­tado que eu quase cheguei a chorar. Inclinou a travessa e ficou lá, olhando para ela, como se não acreditasse no que estava vendo.

— Isto parece estar delicioso — afirmei, esfregando as mãos de satisfação. — Consome frio com salada Waldorf, chá gelado e estes docinhos folheados...

— Por Deus! — murmurou estupefato.

Num ato de puro egoísmo, fui até lá embaixo e pedi a alguém que me trouxesse algumas costeletas de carneiro e um bule de café.

As bandejas já estavam vazias e Wolfe tomava desola­do o resto do café, que não estava lá dos mais quentes, quando a porta se abriu e o Inspetor Cramer entrou.

— Como vai, senhor? — disse Wolfe secamente. — Estou ocupado.

— Estou vendo. — Cramer foi até uma cadeira e sen­tou-se, pegou um charuto, que enfiou na boca e tornou a tirar. Sua cara de bolacha estava mais vermelha do que de costume, por causa do calor.

Disse, então, como quem não quer nada: — Soube que você está trabalhando para o Sr. Dunn.

Wolfe murmurou algo desagradável.

— Ele almoçou pessimamente — expliquei.

Cramer assentiu. — Eu também. Num balcão de lan­chonete. — Ele olhou para Wolfe, examinando-o. — Vo­cê parece estar se sentindo do mesmo jeito que eu. Detesto essas malditas brigas de grã-finos. Esses políticos nojentos. Para cada lugar que a gente se vira, há sempre uma luz vermelha. Tenho um recado do comissário para você.

Wolfe tornou a resmungar algo.

Cramer colocou o charuto entre os dentes e disse: — Talvez você tenha ouvido falar dele. É o Comissário de Polícia Hombert. Ele quer que fique bem claro para você que nada disto deve se tornar público, até segunda ordem. Disse também que você é inteligente o bastante para saber que neste caso é melhor manter o máximo de discrição, por causa das pessoas envolvidas, e que tem certeza que você não vai se negar a cooperar comigo. Por exemplo, se você me disser o que aquele bando foi fazer no seu es­critório ontem, você já vai estar cooperando comigo.

— Pergunte a eles — sugeriu Wolfe.

— Já perguntei. Eles são realmente extraordinários. Muitos deles são quase tão excêntricos quanto você. Com exceção da Sra. Dunn, que é bastante sensata e do Sr. Prescott, o advogado. Prescott me falou sobre o testamen­to. Pelo que dizem, eles foram lhe pedir que tentasse che­gar a um acordo com a Srta. Karn. Desde quando você está trabalhando como mediador?

Wolfe murmurou: — Continue. Onde você quer chegar?

— Calma! Foi por isto que eles foram até o seu es­critório? Para que você fizesse um acordo com a Srta. Karn?

— Foi.

— Mas a Srta. Karn também não estava lá? A propó­sito, você poderia ter me dito que era ela, quando lhe per­guntei, mas acho que seria esperar demais de você. De qualquer jeito, esse tipo de gente nunca fala mais do que deve, e estão sempre acompanhados de um advogado. O que eles queriam que você fizesse que eles próprios não pudessem fazer?

Wolfe deu de ombros. — Alguém lhes disse que sou um homem capaz, esperto, discreto e inescrupuloso.

— Isto eu mesmo podia ter dito a eles. — Cramer tirou o charuto da boca e ficou a examinar a brasa. — Fiquei tentando descobrir por que eles precisariam de você quan­do já têm um bom advogado. Não dá pra entender. Só se eles suspeitaram de que foi a Srta. Karn quem matou Noel Hawthorne e então lhe pediram para conseguir provas que a incriminassem. Este, sim, seria um bom trabalho para um detetive. Sendo assim, a Srta. Karn concordaria em assinar um acordo, deixando a grana para eles, ou pelo menos uma parte, e você poderia chegar à conclusão de que as provas não eram boas o suficiente para acusá-la de assassinato. Assim, todos ficariam satisfeitos, a não ser Hawthorne, mas ele está morto. O que você acha desta minha hipótese?

— Acho um tanto improvável — ponderou Wolfe. — Se eles achassem que eu seria capaz de me comprometer com um assassino, também devem ter pensado que eu po­deria usar as provas para chantageá-los pelo resto da vida. Além disso, não sabiam que Noel Hawthorne tinha sido assassinado. Você mesmo viu como ficaram chocados quando você lhes contou.

— É, eu vi. Eles ficaram realmente chocados.

— Ficaram mesmo. — Wolfe parecia pensativo. — Quer dizer que você não defende a teoria de que Haw­thorne foi morto porque tinha arruinado a carreira de Dunn com aquele caso do empréstimo à Argentina? Pen­sei que vocês já estivessem com isto tudo preparado e pronto para servir.

— Sou um tira e não um cozinheiro. Se alguma pessoa está usando esse crime para sujar alguém, não tenho nada a ver com isto. Estou aqui para pegar um assassino. E pelo que Dunn me disse, você também.

— Também.

— Então estamos entendidos. Vamos tentar encontrá-lo ou encontrá-la. Vou ser franco com você. Pra mim foi a Srta. Karn. Skinner não precisa saber disto. Ela vai her­dar sete milhões de dólares e muita gente já matou por muito menos do que isso. Como tinha bastante intimidade com Hawthorne, devia saber aonde ele iria naquele dia, e com quem estaria. Pegou então um revólver e foi até lá, de carro, para matá-lo. Sabia que estariam reunidas na­quele lugar várias pessoas que, por um motivo ou por outro, poderiam ser incriminadas. Teve sorte e avistou-o da estrada, nas proximidades do bosque, com uma espin­garda na mão. Foi ao seu encontro e, distraindo-o, levou-o até um dos lados do bosque que não podia ser visto da es­trada. Inventou algo para poder pegar na espingarda e atirou. Nem foi preciso usar a arma que trouxera. Limpou a espingarda com um punhado de capim, colocou-lhe as impressões digitais dele e se mandou.

Wolfe resmungou: — Qualquer pessoa podia ter feito isso.

— Sei. Mas ela não é uma qualquer. Estou entusias­mado com essa hipótese sobre a Srta. Karn, principalmen­te depois de ter falado com ela esta manhã. Sei que não sou tão perspicaz quanto você, mas posso distinguir bem uma onça quando vejo uma. Aquela garota é perigosa, ah isto é. Está nos olhos dela. Aliás, vou lhe dar uma colher de chá, ela não tem nenhum álibi para terça-feira à tarde. Ela acha que tem, mas não vale um tostão furado.

O inspetor continuou a conjeturar. — Agora, suponha o seguinte. Andy Dunn, aquela moça, a Srta. Fleet, o pró­prio Dunn e o tal de Stauffer foram os primeiros a ver o corpo. Vamos dizer que, por mera curiosidade, tenham dado uma olhada pelo local e que um deles tenha encon­trado algo. Um estojo de pó compacto ou um maço de ci­garros ou um lenço ou qualquer outra coisa. Talvez sou­bessem que o objeto encontrado pertencia à Srta. Karn, talvez não. Talvez Stauffer soubesse, já que ele a conhece melhor. Pode ser até que tenham resolvido deixar isso de lado por achar que não deveriam incriminar uma mulher. Aí, o testamento é lido e eles levam aquele tremendo cho­que. A bolada toda, com exceção de uns míseros quinhen­tos mil dólares, iria para a Srta. Karn. Puseram então a cabeça para funcionar, e se você quer saber minha opi­nião, Prescott participou de tudo. Mas como seria arris­cado que ele próprio executasse o plano, foram procurá-lo e lhe mostraram o estojo de pó compacto ou o que quer que fosse. Talvez já soubessem que pertencia a Naomi Karn, ou talvez fosse parte do seu trabalho provar isto. De qualquer jeito, caberia a você pressioná-la.

“E agora que o crime foi descoberto, como é que eles ficam? E você? Mesmo que quisessem, já não poderiam abrir o bico sob pena de ter que admitir que tinham co­nhecimento do crime e das provas. E mesmo que pudessem, não iriam querer, pois, se Naomi Karn fosse julgada e condenada, os bens seriam divididos pelo tribunal; e se ela fosse julgada e absolvida, tudo seria dela e eles fica­riam a ver navios. Você não acha bastante lógico?”

Wolfe assentiu. — Perfeito — afirmou ele. — Meus pa­rabéns! Você não se esqueceu de nada. Você imaginou isto tudo sozinho?

— Foi. E só preciso da sua ajuda. Aqui estou eu e as coisas são assim. Vou lhe fazer uma proposta. Entregue-se e diga a eles para fazerem o mesmo e eu garanto que não vai haver nenhum problema e nenhuma publicidade em torno disso. Pode deixar que eu cuido do Skinner. Como sei que você vai ter que consultá-los primeiro, vou lhe dar um prazo até as nove horas de amanhã.

Wolfe disse num tom bem suave: — É uma pena, mas nunca consigo atender um pedido seu. Passe bem, senhor. Archie...

— Ei, espere aí! — Cramer parecia furioso. — Desta vez você vai se dar mal. Desta vez eu estou por cima. E posso muito bem revelar certas coisas e é isso mesmo que eu vou fazer. Aí você sabe direitinho aonde você vai pa­rar. Vim aqui para lhe fazer uma proposta bastante ra­zoável...

— Você me chamou de tratante e de idiota — inter­rompeu Wolfe. — Passe bem, senhor.

— Dou até amanhã...

— Não me dê nada. Não quero nada de você.

— Seu idiota cabeçudo!

O Inspetor Cramer levantou-se e saiu da sala. Wolfe estremeceu quando ouviu a porta bater.

— É algo triste e ao mesmo tempo engraçado — obser­vei — constatar que quanto mais puras são as nossas in­tenções, mais insultos a gente recebe. Você se lembra de quando...

— Já chega, Archie. Traga a Sra. Hawthorne.

— Mas eu não quero vê-la — resmunguei.

— Eu quero. Traga-a até aqui.

Obedeci. Ao chegar no corredor a criada que vinha bus­car as travessas me informou que os aposentos da Sra. Hawthorne ficavam no andar de cima. Subi as escadas e, seguindo as instruções da criada, bati na primeira porta à direita, mas ninguém respondeu. Normalmente, teria tentado abri-la para dar uma olhada, mas como não estava gostando nem um pouco desta incumbência, resolvi ten­tar a seguinte. Estava trancada. Continuei pelo corredor e fui bater numa outra, de onde se ouvia um murmúrio de vozes, fui convidado a entrar, abri a porta e entrei.

Eu tinha acabado de interromper uma reunião. Todos pararam para me olhar. Andy Dunn e Celia Fleet estavam sentados de mãos dadas num sofá, perto de May Hawthor­ne, que usava um vestido caseiro de um azul desbotado, com uma mecha de cabelo caída sobre o olho direito. Não tenho nem coragem de dizer com o que se parecia. De pé, na frente deles, estava Glenn Prescott, impecável no seu . terno de linho branco, com uma flor amarela na lapela, da qual eu sabia apenas que não era uma Dianthus superbus. Numa cadeira do seu lado direito sentava-se Daisy Hawthorne, com o mesmo vestido e o mesmo véu cinza que estava usando de manhã, quando fez aquela brinca­deira de esconde-esconde na sala de estar.

Inclinei-me com toda a elegância e disse: — Com licen­ça, Sra. Hawthorne. O Sr. Wolfe gostaria de falar com a senhora na biblioteca.

Prescott parecia contrariado. — Eu também gostaria de ter uma conversa com o Sr. Wolfe. O Sr. Dunn me disse que o contratou para...

— Pois não, senhor. Direi a ele que o senhor se encon­tra aqui. Mas no momento ele deseja falar com a Sra. Hawthorne... Vamos?

Ela se levantou e foi andando.

— Está bem — assentiu Prescott. — Vou estar aqui ou lá embaixo na sala de música com o Sr. Dunn.

Abri a porta para que ela passasse e fui seguindo-a até a biblioteca. Ao cumprimentá-la, Wolfe desculpou-se, co­mo sempre, por não conseguir se levantar, enquanto ela se dirigia para a cadeira que Cramer acabara de desocupar. Ela disse com aquela voz estridente, cuja leve dis­torção não poderia ser chamada de um defeito de fala:

— Não sei o que o senhor espera ouvir de mim. O se­nhor acha que tenho algo para lhe dizer?

— Não, Sra. Hawthorne, pode estar certa que não — disse Wolfe com delicadeza. — Duvido que alguma pes­soa nesta casa esteja disposta a me dizer alguma coisa. Es­tou apenas tateando no escuro. Se a senhora não se im­portar de repetir em poucas palavras... — Wolfe franziu o cenho e virou-se. — Entre!

Era o mordomo. — Um homem deseja vê-lo, senhor. Seu nome é Durkin.

— Por favor, peça-lhe que suba imediatamente.

Até que enfim algo de divertido iria acontecer, pois só assim eu poderia esquecer aquele véu. Já fazia mais de três horas que eu telefonara para Fred, pedindo-lhe que viesse o mais rápido possível para a Rua 67. Mas do jeito que as coisas aconteceram acabei me divertindo por outro motivo. Fred entrou apressado e falando alto:

— Estou atrasado, Sr. Wolfe, porque depois que Archie telefonou, fiquei deitado por alguns instantes, tentando colocar as coisas no lugar e também, depois da noite que passei, eu não ia servir para nada, mas agora...

— Você voltou a dormir — disse Wolfe, furioso.

— Foi sim, senhor, e a patroa devia ter me acordado, mas acabou esquecendo. De qualquer jeito, agora estou com a cabeça no lugar e me sinto firme como uma rocha. Como acabei de dizer a Orrie, posso fazer mais...

— Com quem você falou?

— Com Orrie Cather. Disse a ele que posso...

— Onde você falou com ele?

— Lá na esquina, agora mesmo. Eu...

— Em que esquina?

— Aqui em frente. No outro lado da rua. Disse a ele que...

— Cale a boca. — Wolfe olhou para mim e falou as­peramente: — Vá até lá e verifique.

Num pulo, alcancei o corredor, corri escada abaixo e, já na rua, atravessei para o outro lado e virei à esquerda. Lá estava ele na saída de uma passagem entre os edifícios. Fiz um sinal e dobrei a esquina. Esperei e ele veio ao meu encontro.

— Que negócio é esse — perguntei.— de ficar batendo papo com Fred quando você está trabalhando sozinho?

— Não amole — retrucou ele. — Eu não estava baten­do nenhum papo. Ele é que estava. A única coisa que fiz foi mandá-lo embora.

— E o que você está fazendo aqui? Tem algum encon­tro com a governanta?

— Não, chefe. Estou apenas trabalhando. Seu idiota, o que você acha que estou fazendo? Ela está lá dentro.

— Onde?

— Na casa de onde você saiu.

— Você está brincando! Há quanto tempo?

— Ela chegou às duas e vinte e oito. Exatamente há vinte e sete minutos.

— Então, é verdade. Está bem, deixe comigo.

Corri de volta pelo mesmo caminho, toquei a cam­painha e o mordomo abriu a porta. Parei no saguão para pensar e ele ficou lá me olhando até que eu o dispensasse. O problema era que, conhecendo Wolfe como eu conhe­cia, se eu fosse até lá para lhe dizer que Naomi Karn esta­va em algum canto da casa, ele ia logo perguntar onde. Sendo assim, chamei o mordomo de volta e perguntei:

— Poderia me dizer onde se encontra a Srta. Karn? A moça que chegou há uma meia hora atrás?

— Pois não, senhor. Ela se encontra na sala de estar com a Sra. Hawthorne.

Fiquei meio confuso. Resolvi ver para crer e saí em di­reção à sala de estar. Quando entrei, vi logo que não havia por que ficar confuso. Em uma das cadeiras, no fundo da sala, estava Naomi Karn, usando o mesmo vestido azul do dia anterior e, em outra cadeira, bem em frente a ela, estava Daisy Hawthorne. As duas olharam para mim; pelo menos Naomi Karn me olhou, e o véu virou-se na mi­nha direção.

— Desculpe-me — disse e saí. Não havia mais nada para contar a Wolfe, já que fora na presença dele que Daisy tinha sido avisada de que a Srta. Karn queria falar com ela.

Mas, ao abrir a porta da biblioteca, vi que estava re­dondamente enganado. Havia algo que Wolfe precisava saber. Ele estava conversando com Fred, que torcia sem graça o chapéu entre as mãos, enquanto Daisy Hawthorne estava lá sentada no mesmo lugar.

 

É óbvio que me descontrolei todo. No mínimo devo ter ficado lá, de queixo caído, olhando para ela. Só voltei a mim quando ouvi a voz de Wolfe:

— O que há com você? Está tendo um ataque?

Fred Durkin disse que eu tiritava, mas eu apenas falei calmamente:

— O Sr. Brenner gostaria de falar com você em parti­cular. Ele está lá no corredor. — Ele me olhou descon­fiado, levantou aquela massa toda com um grunhido e passou pela porta que eu acabara de abrir. Fechei-a bem e ele me perguntou:

— O que aconteceu?

— Vem alguém aí — sussurrei para ele. — Vamos fin­gir que estamos conversando. — E comecei a murmurar palavras desconexas.

Os passos que eu ouvira eram do Sr. e Sra. John Char­les Dunn. Estavam subindo as escadas e nos viram ao virar o corredor. Dunn perguntou:

— O senhor viu o Prescott, Sr. Wolfe? Ele está aqui e gostaria de lhe falar.

Wolfe respondeu que não, mas que logo ia ter com ele. Dunn assentiu e saiu com a esposa em direção ao outro andar. Assim que eles se foram, voltei a falar direito:

— Naomi Karn está lá embaixo na sala de estar, mas não foi isto que me deixou paralisado. Daisy Hawthorne está lá conversando com ela.

Ele resmungou: — Quer dizer que você me carregou até aqui só para me falar uma besteira dessas? Isto não é hora para brincadeiras idiotas...

— Mas não estou brincando. A viúva de véu está na biblioteca, mas também está lá embaixo batendo papo com Naomi Karn. Acabei de vê-la. Alguém está tentando pregar uma peça. Mas em quem será? Em nós, aqui em cima, ou em Naomi Karn, lá embaixo?

— Você está querendo me dizer que alguém está fan­tasiado de...

— Parece que sim. Essas irmãs Hawthorne são real­mente um número. Mas qual delas é a verdadeira?

— Na sala de estar conversando com a Srta. Karn?

— Isto mesmo.

— E você acabou de vê-la.

— Sim.

— Você falou com Orrie?

— Falei. Ele veio seguindo-a até aqui. Eram duas e vinte e oito quando ela chegou e foi recebida pelo mor­domo.

Ele ficou pensativo por uns instantes e depois disse: — Peça a Fred que venha até aqui.

Quando Fred chegou, Wolfe disse a ele: — Vá até lá e faça o máximo possível para ficar acordado. Não vá perder a carta para o Sr. Ames e não se meta em confu­são. Vou estar aqui ou em casa.

— Sr. Wolfe, sinto muito por...

— Eu também. Pode ir.

Quando Fred se foi, Wolfe olhou para mim e disse: — Vejamos. Não há por que ficar baratinado desse jeito. Eu vou voltar para a minha cadeira e você vai se sentar do outro lado dela. Quando eu lhe pedir para me trazer algu­ma coisa, você passa por ela e levanta aquele maldito véu.

— Eu não quero fazer isto.

— Não o censuro. Por favor, abra a porta.

Esta foi uma das vezes que pensei em pedir demissão no ato, e só não o fiz porque sabia que a primeira pessoa que Wolfe chamaria para me substituir seria Johnny Keems. Não que eu seja um covarde. Certa vez dei um murro numa garota cubana que a deixou fora de si. Ela tinha ido ao escritório de Wolfe com um punhal na meia, com a intenção de enfiá-lo em Nero Wolfe porque ele tinha colocado seu namorado contrabandista atrás das grades. Mas enquanto eu acompanhava Wolfe de volta à biblioteca e, obedecendo às suas instruções, pegava uma cadeira, sentando-me do outro lado de uma das Sras. Hawthorne, fui ficando cada vez mais enjoado.

Entretanto, prossegui com o plano. Pelo menos, tentei. Primeiro, Wolfe lhe fez algumas perguntas às quais ela respondeu secamente. Se é que eu não estava enganado, a voz estridente que não parecia sair de uma boca humana era exatamente a mesma que eu ouvira no escritório de Wolfe no dia anterior. Ou era a própria Daisy ou a melhor imitadora que eu já vira na minha vida; e a primeira idéia que me veio à cabeça foi a de que, apesar de uma grande atriz não ser necessariamente uma boa imitadora, April Hawthorne era considerada como tal. Wolfe tentou des­mascará-la, perguntando-lhe as horas, mas, quando ela olhou para o relógio, repetiu exatamente o mesmo movi­mento com a cabeça que fizera no escritório de Wolfe ao ler o documento que eu lhe entregara.

Wolfe pediu-me então que lhe trouxesse as anotações sobre as outras entrevistas. Levantei-me e, ao passar pela viúva, dei um tropeção. Para não cair, agarrei na parte inferior do véu. Sabia que estava bem firme e que seria necessário um bom puxão, mas já que tinha que ser feito, eu ia fazer um bom trabalho. Não estava preparado, po­rém, para o que aconteceu. Fui atacado por um furacão. Um grito terrível ecoou no ar e trinta gatos selvagens pu­laram no meu rosto, que por sinal não estava protegido por nenhum véu, com todas as garras à mostra. Eu não desisti, e lutaria até a morte se Wolfe não tivesse gritado o meu nome. Quando vi, ela estava a uns trinta metros de distância e nunca consegui entender como foi capaz de dar um pulo daqueles enquanto fazia aquele estrago todo no meu rosto.

— Seu idiota desajeitado — disse Wolfe. — Peça des­culpas.

— Sim senhor. — Olhei para o véu, que continuava in­tacto como se eu nem tivesse encostado nele.

— Eu tropecei. Sinto muito, Sra. Hawthorne.

— A porta — lembrou Wolfe. — Aquele grito deve ter deixado todo mundo alarmado.

Ao chegar até lá, ouvi passos apressados e, ao abri-la, vi Andy Dunn e seu pai correndo assustados e, ao fundo, a blusa branca de Celia Fleet e o vestido azul desbotado de May Hawthorne. Fui logo avisando em voz alta: — Está tudo bem. Não foi nada. Escorreguei e a Sra. Haw­thorne se assustou. Desculpem-me. — Eles iam dizer algo, mas eu os interrompi, fechando a porta quase na cara de­les. Pelo visto, devem ter ficado satisfeitos com a minha explicação, pois não entraram para verificar se tínhamos matado Daisy Hawthorne e se o grito que ouviram não tinha sido o último suspiro dela. Procurei um espelho, mas não vi nenhum. Meu rosto ardia como se alguém tivesse espalhado pólvora nele e acendido um fósforo.

— É melhor você ir até o banheiro e lavar essa sangueira toda — disse Wolfe secamente. — Depois, vá até lá embaixo e pegue as anotações que deixou por lá. Dê uma olhada e veja se não são as que eu quero.

Estava tão irritado que nem consegui falar. Fui até o banheiro que ficava no corredor para ver o que restara do meu rosto. Minha pele acetinada estava em petição de miséria. — Ossos do ofício — murmurei tristemente. — Quero mais é que ele morra. Eu vou é arranjar um empre­go de executivo. — Molhei uma toalha e fui limpando o rosto de leve até que ficasse o mais perfeito possível.

E, pelo que Wolfe tinha me pedido, o que ele queria era que eu fosse até a sala de estar, procurasse a outra Daisy e lhe oferecesse a outra face. Se ele estava pensando que eu ia ficar por aí tirando véus, devia estar com um parafuso a menos, mas na minha opinião isto não seria neces­sário. Não era possível que alguém, mesmo que fosse April Hawthorne, pudesse imitar tão bem a fúria de trinta gatos selvagens; os trinta gatos selvagens tinham ficado era na biblioteca. Eu não tinha tido oportunidade de ob­servar a outra de perto nem de ouvir a voz dela e talvez uma boa olhada e um pequeno bate-papo fossem suficien­tes para desmascará-la. Depois de ter limpado o meu rosto da melhor maneira possível, fui descendo as escadas len­tamente em direção à sala de estar.

Mas já era tarde. Naomi Karn ainda estava lá, sentada na mesma cadeira, mas ao seu lado já não havia mais nin­guém. Quando me aproximei, ela levantou os olhos para mim e eu lhe retribuí o olhar. Estava tão traumatizada pelo que acontecera que para mim ela era tão perigosa quanto um encantador de serpentes num circo.

— Eu precisava falar com a Sra. Hawthorne. A senho­rita sabe para onde ela foi? — perguntei.

A Srta. Karn balançou a cabeça negativamente. — Ela disse que não ia demorar.

— Há quanto tempo ela saiu?

— Há quanto tempo? Há uns dez minutos.

— Só perguntei porque o Sr. Wolfe gostaria de falar com ela depois que vocês terminassem. — Olhei-a nos olhos. — Quando eu disse a Wolfe que a senhorita estava aqui, ele ficou indignado, pois, se a senhorita entrar num acordo com estas pessoas, os nossos honorários irão por água abaixo.

— E quem disse que estou interessada nos seus hono­rários?

— É, acho que não está mesmo. Foi a Sra. Hawthorne quem pediu que a senhorita viesse até aqui ou a senhorita veio por conta própria?

Ela não se preocupou em responder. E disse, furiosa: — Pode dizer ao Sr. Wolfe que a ameaça dele não funcionou. Eu já soube que a oferta ridícula de cem mil dólares que ele me fez não foi autorizada pelos seus clientes. Posso conseguir muito mais do que isso.

— Acho ótimo. De qualquer jeito, não merecemos ne­nhuma remuneração. Sou totalmente contra a taxa cobra­da pelos detetives. Por que a senhorita iria contribuir para a nossa vida mansa? Concordo inteiramente com aquele sujeito que disse: “Milhões para as mulheres mas nem um centavo para os impostos.” Com licença um instante.

Uma idéia luminosa tinha me vindo à cabeça. A mesma cortina pesada de pregas vermelhas, por onde Daisy desa­parecera de manhã, estava lá no meio da parede, a apenas alguns passos de mim. Era só uma tentativa, pois no fundo eu achava meio difícil que ela tivesse usado aquela saída novamente e estivesse lá, escondida, ouvindo tudo; mas, de qualquer jeito, estava curioso para saber o que havia do outro lado. Aproximei-me e afastei a cortina o suficiente para poder dar uma olhada. Quando deparei com o que havia, passei para o outro lado, deixando que ela se fechasse atrás de mim.

Osric Stauffer estava lá, de pé, com as costas voltadas para a parede, fazendo um sinal para que eu ficasse cala­do, e quando o fitei havia o mesmo pedido nos seus olhos.

Dei uma olhada à minha volta. Era um cômodo com uma janela no fundo, do lado esquerdo. Num dos cantos, havia um bar de mais ou menos três metros de compri­mento, e mais atrás algumas prateleiras cobertas de copos e garrafas e um quadro grande de meninas descalças que colhiam uvas. Um tapete no chão completava o ambiente. Ao fundo, do lado direito, havia uma porta, que estava fechada.

Stauffer continuava no mesmo lugar. Como o seu aspec­to não era lá muito ameaçador, não vi por que interferir na sua maneira de passar o tempo. Dei meia-volta e saí, voltando a me defrontar com a Srta. Karn.

— Quando a Sra. Hawthorne voltar — disse a ela — gostaria que a senhorita não se demorasse muito, pois o Sr. Wolfe precisa falar com ela. Por que não vem comigo e fica conversando com o Sr. Wolfe enquanto espera? Ele adoraria bater um papo com a senhorita.

Ela apenas me olhou. — Está bem — dei de ombros —, como achar melhor. Soube que teve uma conversa muito agradável com um amigo meu hoje de manhã. O Inspetor Cramer. Ele esteve com Wolfe e a opinião dele sobre a senhorita e sobre o seu álibi para terça-feira à tarde não é lá das melhores.

Ela se agitou na cadeira. — Acho que nunca vou con­seguir achar graça nas suas piadas.

— Olhe aqui, Srta. Karn — disse encarando-a. — Deixe-me dizer-lhe uma coisa. Até agora não arrisquei nenhum palpite sobre se foi a senhorita ou não quem es­tourou os miolos do Sr. Hawthorne. Se foi a senhorita é melhor ir se preocupando em redigir o próprio testamento ao invés de ficar fazendo essa onda toda. E se não foi, a melhor coisa que tem a fazer é ir correndo até a biblio­teca e recostar a linda cabecinha no ombro de Nero Wolfe. Estou lhe avisando, isto aqui não é nenhuma brincadeira. E alguém vai sair bastante machucado antes que tudo termine.

Deixando aquela advertência no ar para que ela pen­sasse quando lhe fosse conveniente, retirei-me. Enquanto ia andando, cheguei à conclusão de que, se a Daisy da sala de estar era a impostora, ela já tinha tido tempo suficiente para se livrar da fantasia e que, sendo assim, seria inútil ficar espreitando pelos buracos de fechadura. Re­solvi, então, percorrer o campo de batalha antes de retor­nar ao quartel-general. O resultado foi negativo. Deixei as sutilezas de lado e fui entrando nos lugares sem me preocupar em bater na porta. Os outros três aposentos que ficavam no térreo, incluindo a sala de música, esta­vam vazios. Numa sala de estar no andar de cima, a duas portas da biblioteca, dei de cara com Dunn, sua esposa e Prescott, que pelo visto estavam discutindo algum assun­to particular. A suíte da Sra. Hawthorne, no outro andar, também estava vazia. Andy Dunn e Celia Fleet me viram entrar e sair de lá, de um banco que eles ocupavam no corredor. Estavam tão enlevados que nem se importaram com a minha presença; não deviam estar discutindo nada, queriam apenas ficar juntos o suficiente para poderem se tocar. Na sala que ficava do outro lado do corredor, na qual eu tinha encontrado a Daisy da biblioteca quando Wolfe me pedira para chamá-la, encontrei May Hawthorne, deitada com os pés de fora e os olhos fechados. Ela perguntou: — Quem está aí? — sem ao menos se mover ou abrir os olhos, e eu respondi: — Ninguém importante — e tornei a sair.

Ficaram faltando dois. Fui encontrá-los um ao lado do outro no final do corredor. April estava estirada numa chaise-longue, com os braços estendidos por sobre a ca­beça, usando uma roupa verde de seda bem fina que mo­delava as suas formas como se fosse uma segunda pele, e sem nenhum véu. Sara estava sentada numa cadeira perto dela, com um livro aberto entre as mãos. Sara olhou-me. A cabeça de April continuou imóvel mas ela me viu pelo canto dos olhos.

— Não custava nada ter batido antes — disse ela. — Aquele homem quer falar comigo novamente?

— Não, estou só dando uma olhada.

— Graças a Deus! — disse aliviada. — Minha sobri­nha está lendo O pomar das cerejeiras para mim. Sei o texto de cor e salteado. O senhor se importa se ela con­tinuar?

Respondi que não, agradeci e saí. Como eu tinha visto uma escrivaninha na suíte de Daisy Hawthorne, fui até lá, peguei alguns papéis, sentei-me e pus-me a escrever:

A Daisy da sala de estar desapareceu. Disse a Naomi que voltaria logo mas não o fez. Naomi, en­quanto espera que ela volte, zomba de você e diz que não sou nem um pouco engraçado. Stauffer está espreitando atrás de uma cortina a três metros dela, só Deus sabe o porquê. Sara está lendo O pomar das cerejeiras (Tchekhov) para April. Pode ter sido uma das duas. Peço demissão.

Assinei e saí em direção à biblioteca, onde entreguei o bilhete a Wolfe.

— Duvido que seja esta. Foi a única das minhas ano­tações que encontrei na sala de estar.

Enquanto ele lia, fui me sentar numa cadeira, desta vez do outro lado da escrivaninha, o mais longe possível da nossa Daisy. Dei uma olhada para ela, que continuava lá sentada, protegida pelo véu, e desviei os olhos.

Wolfe resmungou algo e devolveu-me o bilhete. — Não há pressa. A Sra. Hawthorne e eu estivemos discutindo sobre o testamento. Ela acha que o testamento expressa a vontade do marido, bem como a intenção que ele tinha de privá-la da parte da fortuna dele que por direito cabe­ria a ela. Ela não ficou nem um pouco surpresa com a atitude do marido, mas sentiu muito o fato de Prescott não tê-la informado sobre o conteúdo do testamento, quando ele foi redigido, apesar de eu já ter dito a ela que, se ele tivesse feito isso, estaria sendo totalmente contrá­rio à ética. Por favor, tome nota disto. Eu perguntei à Sra. Hawthorne se ela negociou ou tentou negociar com a Srta. Karn e ela disse que não e que não o faria. Acho que isso resume a nossa conversa. A senhora está de acordo?

— Sim. — O véu se inclinou ligeiramente para a fren­te e tornou a voltar para o lugar.

Wolfe ficou a olhá-la com os olhos semicerrados. — Bem. O Sr. Dunn já lhe contou que ele me pediu para in­vestigar a morte do marido da senhora?

— Não, mas eu soube pela mulher dele. A minha cunhada, June.

— A senhora falou com a polícia?

O véu tornou a se inclinar. — Sim, ontem à noite. Falei com o promotor público, o Sr. Skinner.

— A senhora está disposta a discutir sobre isso comi­go? O que eu quero dizer, Sra. Hawthorne, é que estou na sua casa, esta é a sua biblioteca e que agradeço à se­nhora por permitir que eu trabalhe aqui. Asseguro-lhe que vou esclarecer tudo o mais rápido possível. Quanto ao almoço... espero não ter que dar mais trabalho à senho­ra. Entretanto, preciso lhe fazer mais algumas perguntas.

— Estou totalmente disposta a respondê-las. Não creio que... acho que não posso ajudar muito as suas investi­gações, embora saiba perfeitamente quem matou meu marido.

— Ah, a senhora sabe?

— Sei, sim. Foi April.

Ela pronunciou “April” de uma maneira toda especial. Qualquer pessoa que a tivesse escutado e que não sou­besse de quem ela estava falando teria achado que April era um cruzamento de barata com cascavel.

— Sou levado a crer — disse Wolfe — que isto aju­daria muito nas minhas investigações. Contanto que a se­nhora tenha algum motivo para fazer esta afirmação.

— E tenho. April está endividada até o pescoço e uma herança viria bem a calhar. Ela pretende casar com Osric Stauffer. Finge que não o leva a sério, mas na verdade está querendo casar com ele. Sabe que está perdendo a beleza e que vai precisar dele. Acha que ele vai substituir o meu marido como sócio da Daniel Cullen & Cia. Ela sempre detestou a influência que Noel tinha sobre Andy. Quer que Andy case com aquela loura sem sal e se torne um ator. Ela sabia que Noel não ia me deixar quase nada e quis me dar mais este desgosto.

Ela parou de falar e Wolfe então perguntou: — Isto é tudo?

— Sim.

— Mas isto não faz sentido, Sra. Hawthorne. Se ela sabia que seu marido não ia deixar quase nada para a se­nhora, também devia saber o que ela iria receber: um pêssego.

— Qual o quê. Noel também os enganou. Ele contou a ela o que faria comigo mas não o que ia fazer com ela.

— A senhora tem provas disto?

— Não preciso de nenhuma prova — disse ela, e seu tom de voz tornou-se ainda mais estridente. — Sei bem o marido que eu tinha.

— A senhora tem alguma prova de que foi April Hawthorne quem matou o irmão?

— Não tenho nenhuma, mas sei que foi ela.

— A senhora deve saber que ela disse que estava num dos quartos lá de cima tirando um cochilo.

— Sei — disse o véu com desdém. — Mas é mentira.

— A senhora a viu saindo da casa ou indo às escon­didas para o bosque?

— Não.

Wolfe suspirou. — Eu esperava que talvez a senhora a tivesse visto. Pelo que eu soube a senhora também esta­va fora colhendo crisântemos.

— Eram margaridas.

— Está bem, margaridas. Ainda não tive oportunidade de ver o mapa do terreno. Do lugar onde a senhora esta­va era possível ver a casa ou o bosque?

— Não era possível ver a casa por causa das árvores que a circundam. Além do bosque rodear toda a monta­nha, há árvores por toda parte. Sendo assim, elas me ocultaram, isto é, ocultaram a casa e também o bosque de mim. Desculpe-me o lapso, mas é que estou acostuma­da a me ver como uma pessoa que precisa estar sempre escondida. — Um dedo fino e longo tocou a extremidade do véu.

— É perfeitamente compreensível. Não acho que seja um lapso. De onde a senhora estava dava para ouvir os três tiros?

— Não sei se daria ou não. O fato é que não ouvi na­da. O primeiro tiro foi dado enquanto estávamos termi­nando de tomar o chá, e chegamos até a comentar sobre isto. Logo depois, saí para colher margaridas e não ouvi mais nada. Quando fico sozinha geralmente me concen­tro em... em mim mesma. O senhor deve compreender isto muito bem. Talvez eu pudesse ouvir os tiros, mas não escutei nada.

— Perfeito. — Wolfe fechou os olhos por um instante, tornando a abri-los logo depois para encarar o véu. — Se eu fosse a senhora — sugeriu ele — pensaria um pouco mais antes de afirmar determinadas coisas das quais não tem provas. Depois que isto for parar nos jornais, vai virar uma sujeira danada.

— Sujeira? — O mesmo risinho terrível fez com que o véu se agitasse. — O senhor está se referindo ao que eu disse sobre April?

— Estou. Se ela cometeu um assassinato, ela provavel­mente irá pagar por isso. Mas por enquanto...

— Mas foi ela. Eu sei que foi ela. Não tenho provas mas existe alguém que tem.

— Verdade? Quem?

— Não sei.

— Onde está esta prova?

— Não sei.

— O que é?

— Sei o que é, mas não adiantaria nada contar para o senhor.

— Quem decide isto sou eu — disse Wolfe secamente. — A senhora contou isto ao Sr. Skinner?

— Não. Também não ia adiantar nada contar para ele. — A voz dela tornou-se ainda mais estridente. — Eles iriam negar tudo. E como eu poderia provar? Eu apenas ouvi e vi.

— Talvez eu consiga provar, Sra. Hawthorne. Deixe-me tentar. O que foi que a senhora viu?

— Uma centáurea. Andy encontrou uma centáurea perto do corpo de Noel. E April estava usando um buquê dessas flores no cinto na hora em que estávamos tomando chá.

 

Wolfe resmungou algo, ajeitou-se melhor na cadeira e ficou calado.

Daisy tornou a falar e sua voz, antes estridente, era agora quase inaudível. Ela murmurou: — Eu não pretendia con­tar nada ao senhor.

— Por que não?

— Porque não vai adiantar nada. Não posso provar e eles vão negar tudo. Se tivesse guardado isso comigo...

— A senhora poderia esperar uma ocasião para tirar proveito disso.

— É, sim. Por que não? — Seu tom de voz tornou a subir, desafiadoramente. — Mesmo que eu não pudesse provar... mas fui idiota o suficiente para deixar isso escapar.

— Agora já é tarde — disse Wolfe num tom afetuoso, quase amigável. — De qualquer jeito, duvido que fosse conseguir alguma coisa. Eles são duros na queda. Quer dizer que April estava usando um buquê de centáureas no cinto na hora em que vocês estavam tomando chá no jar­dim, na terça-feira à tarde.

— Isto mesmo.

— É melhor a senhora me contar tudo. Talvez assim possamos encontrar um meio de obter provas.

— O senhor não vai conseguir. É impossível. Osric Stauffer colheu as flores no jardim e veio oferecê-las a April que as colocou na cintura. Ela estava usando uma blusa verde e calças amarelas. Chegamos até a comentar sobre o azul das centáureas em contraste com as outras cores.

— O Sr. Stauffer ficou com alguma?

— Bem, eu... — Ela pensou melhor. — Não, ele não ficou com nenhuma.

— Será que ele não deu alguma para outra pessoa?

— Não, ele deu todas para April.

— Ela saiu antes da senhora? Ou ainda ficou por lá depois que a senhora saiu?

— Ficou lá. Todos ficaram, exceto Noel e John.

Enquanto ia rabiscando as minhas anotações, não contive um sorriso de satisfação. Até que enfim via Wolfe trabalhando, juntando todas as peças que conseguia en­contrar, com método e paciência. Ele demorou uns vinte minutos fazendo com que ela revivesse tudo o que tinha acontecido durante o chá e mais dez minutos para que se lembrasse do que ocorrera no campo enquanto colhia crisântemos ou margaridas, como fazia tanta questão, o que para mim não tinha a menor importância. Voltara para casa com os braços carregados de flores, mais de uma hora depois, e estava ajeitando-as no jarro quando Celia Fleet entrou assustada perguntando por Dunn. Ela foi discretamente atrás de Celia e pôde ouvir quando Dunn foi avisado do que Andy tinha encontrado na rosei­ra, do outro lado do bosque.

— Eu não estava bisbilhotando — disse, não como quem quisesse se defender, mas apenas a título de infor­mação. — Depois, sim, quando ouvi Andy contando a eles sobre a centáurea. Cheguei até a vê-la.

Wolfe perguntou: — A que horas isso aconteceu?

— Já era tarde, lá pelas onze horas da noite. Já na­quela ocasião... bem, não posso dizer que suspeitava que Noel tinha sido assassinado mas sabia do ressenti­mento que existia entre ele e John por causa daquele em­préstimo à Argentina, como também de outros ressenti­mentos que existiam, e por isto estava curiosa e tinha uma leve suspeita. Sendo assim, depois que o delegado e o mé­dico tinham ido embora, fui para o meu quarto, mas não dormi. Notei que alguns deles não tinham subido e então desci, sem fazer nenhum barulho, e saí pela porta de trás. Era uma noite quente e as janelas estavam todas abertas e eu vi luz na sala de jantar. Enquanto ia me aproximan­do, ouvi alguém conversando em voz baixa e então pude ver que eram John, June e Andy. Andy estava contando a eles sobre a centáurea que tinha encontrado e, enquanto falava, tirou-a do bolso, mostrando-a aos pais. Ele disse que a tinha achado a uns cinco metros do corpo de Noel, pendurada num ramo de roseira e que resolvera pegá-la e colocá-la no bolso. Falou que na hora não lhe passara pela cabeça, mas que depois sim, a possibilidade de que April tivesse ido até lá para ter uma conversa em parti­cular com Noel, tendo perdido uma das flores do buquê que estava usando. Mas é claro, dizia ele, que não tinha sido desse jeito que a flor chegara até lá, pois April dizia ter ficado no quarto descansando. John procurou tranqüi­lizá-lo dizendo que ele tinha razão em achar que não po­dia ter sido April quem perdera a flor, já que ela não tinha estado lá, mas que, de qualquer jeito, foi bom ele ter guardado a flor, evitando assim uma série de proble­mas desagradáveis só porque uma centáurea tinha sido en­contrada num ramo de roseira. Eles estavam conversando como se nada de importante estivesse acontecendo, mas no fundo sabiam. A maneira como falavam e a expressão deles demonstrava que sabiam. Assim como eu. Enquanto eu subia as escadas, a certeza de que April tinha matado Noel foi crescendo dentro de mim.

Wolfe fez que não com o dedo. — A senhora não teve certeza de nada, minha senhora.

— Mas estou lhe dizendo... eu devia esperar por isto... o senhor está do lado deles.

— Bobagem! Não estou do lado de ninguém. Estou apenas caçando um assassino. Admito que a centáurea é uma prova, talvez bastante importante, mas de quê? De que April é culpada? Talvez. Ou de que o assassino ten­tou incriminar April pegando uma centáurea do jardim e colocando-a perto do corpo? Talvez. Um tanto absurdo, mas não deixa de ser engenhoso. A senhora por acaso sabe o que aconteceu com a centáurea?

— Não. Acredito que John a tenha destruído. Eu disse que não podia provar nada. Mas o senhor precisa acredi­tar... o senhor precisa... o senhor assinou aquele papel prometendo cuidar dos meus interesses.

— Eu acredito na senhora. Mas naquele documento eu me comprometi a tratar apenas das negociações referentes ao testamento. Por favor, entenda isto. Há ainda uma pos­sibilidade remota de ter sido a senhora quem matou o seu marido. A senhora poderia muito bem ter sido a autora do truque com a centáurea.

— Agora quem está falando bobagens é o senhor.

— Talvez. Mas era preciso que a senhora soubesse. Qual era o comprimento dos talos no buquê que Stauffer deu a April?

Ele se tornou paciente e metódico outra vez. Enquanto eu ia escutando aquele blablablá e transcrevia as sílabas automaticamente num papel sem pauta que fora o melhor que pude encontrar, cheguei à conclusão de que isto não ia dar em nada. A única coisa aproveitável era a centáu­rea presa na roseira e mesmo assim não era nada de ex­cepcional, já que o jardim estava cheio de arbustos de centáureas, se é que elas nascem em arbustos. Isto sem falar na possibilidade de que Daisy tivesse inventado tudo só para manter o cérebro ocupado. Estava lá absorto nes­ses pensamentos quando o telefone tocou e fui atendê-lo. Era Saul Panzer. Quando acabei de tomar nota do seu relatório breve, porém detalhado, Wolfe já tinha termi­nado a conversa com Daisy e ela estava se levantando para sair.

Abri a porta para ela e voltei à escrivaninha.

— Se quer a minha opinião, teria sido muito melhor para nós ter ficado com o testamento ao invés de ir atrás desse assassino. De tudo...

— Foi Saul quem ligou?

— Sim, senhor.

— E então?

— Ele andou consultando ascensoristas e engraxates. Johnny, depois de gastar quase todo o charme que tinha, conseguiu marcar um jantar com uma moça hoje à noite no Pavilhão Polonês. Isto provavelmente vai doer no seu bolso. Davis é casado e vive com a mulher, pelo menos nas aparências. Ele e Naomi tiveram um caso na época em que ela era secretária dele. O tipo de coisa que May Hawthorne só consegue entender racionalmente. L’amour. Ele foi ficando deprimido e deu para beber. Até agora não descobriram nada de concreto; nada de especial em rela­ção a Prescott, a não ser que vive oferecendo charutos caros às pessoas, é bom pagador e não é nenhum conquistador. Saul está na pista de algo que deve dar resultados. Nada ainda sobre a estenógrafa confidencial que traba­lhou para Prescott em março de 1938.

Wolfe parecia aborrecido. — Detesto desperdiçar Saul. — E deu de ombros. — Mas não há outro jeito. Que ho­ras são?

— Cinco e cinco. Você não gostaria de voltar ao assun­to das duas Daisies?

— Agora não. O Sr. Prescott está querendo falar co­migo. Primeiro, arranje algumas cervejas. Depois, verifi­que se a Srta. Karn ainda está lá e quem está com ela. Aí, então, traga o Sr. Prescott.

Desci rápido pelas escadas para o primeiro andar. Co­mo não havia ninguém no saguão, abri a porta que dava para os fundos da casa e gritei: — Turner! — Logo apa­receu uma criada que me informou que ele estava lá em cima e então eu lhe pedi que arranjasse três garrafas de cerveja para o Sr. Wolfe, na biblioteca. Saí em direção à sala de estar para dar uma olhada em Naomi Karn.

Isto não foi possível. Ela tinha desaparecido. A única pessoa que estava lá era um homem mais ou menos da minha estatura, andando de lá para cá com as mãos enter­radas no bolso. Parei surpreso ao ver quem era. Ele tinha vestido as calças, mas de qualquer jeito eu o reconheci.

— Oi! — disse, cumprimentando-o.

Ele parou de andar e olhou-me intrigado. Antes que ele dissesse uma só palavra eu já sabia do estado em que se encontrava, mais por observação do que por experiên­cia. A gente bebe a noite inteira e, depois de ter apagado, alguém nos leva para casa e nos coloca na cama. Quando a gente volta a si, não se tem a mínima noção do dia do ano, ou de quando o metrô começou a funcionar bem em cima da cabeça da gente ou do número de pessoas que compareceram ao nosso funeral. Mas algo drástico preci­sa ser feito imediatamente e então a gente veste as calças e vai tentando se equilibrar até a rua, entra num canto qual­quer, pede um uísque duplo e bebe de um gole só, derra­mando mais da metade. Já no segundo copo, a gente con­segue derramar bem menos e quando chega o terceiro já deu para parar de tremer e nem uma gota é desperdiçada. Aí, enquanto a gente ainda não é capaz de se localizar no tempo e no espaço, a gente tem a forte impressão de que já está preparado para enfrentar qualquer coisa que deva ser enfrentada e então sai por aí.

— Quem é você? — perguntou, com uma voz de quem parecia que ia desmoronar. — Eu quero falar com Glenn Prescott.

— Pois não — disse, tentando agradá-lo. — Eu sei que o senhor quer falar com ele. Por aqui, por favor.

— Não vou a lugar nenhum. — Ele ficou lá plantado com as mãos enterradas nos bolsos. — Ele pode muito bem vir até aqui. Vá até lá e diga a ele...

— Irei com prazer. Mas esta é uma sala que todos uti­lizam. As pessoas entram aqui a toda hora. Além disto, estas cadeiras não são nem um pouco confortáveis. Não me custa nada levar o Sr. Prescott para onde o senhor quiser, mas, honestamente, acho que seria melhor falar com ele na biblioteca. Venha e veja com seus próprios olhos. Se o senhor não gostar, pode voltar para cá.

— Por mim está bem, mas eu sei que ele não vai gos­tar. — E continuou lá parado. Então, de repente, resmun­gou: — Você não precisa me mostrar onde fica a biblio­teca. Sei muito bem o caminho. — E saiu tão apressado que quase me derrubou ao passar.

Fui subindo as escadas atrás dele e continuei lá, gruda­do nos seus calcanhares, para poder guiá-lo caso se enga­nasse, mas ele foi direto para a porta da biblioteca e a abriu de repente. Entrei atrás dele, fechei a porta e o anunciei a Wolfe.

— O Sr. Eugene Davis.

Davis olhou à sua volta. — Onde está Prescott? — E olhando para Wolfe: — Quem é você? — E para mim: — O que está acontecendo aqui? Você não é o Turner. Eu pedi a Turner que fosse chamar o Prescott.

— Não há problema — disse eu tentando acalmá-lo. — Nós vamos encontrá-lo. Não sou um mordomo, mas sou um detetive. Detetives são melhores que mordomos para encontrar pessoas.

— Mas que raio de...

Ele parou de repente. A impressão que dava era que eu tinha entrado no cérebro dele e ligado algo. Uma espécie de espasmo passou pelo seu rosto, os ombros se contraí­ram, tornaram a relaxar e, quando ele voltou a encarar Wolfe, seus olhos já não tinham mais àquela expressão idiota de quem está disposto a brigar por qualquer coisa. Eram agora olhos inteligentes de quem está atento e pron­to para se defender.

— Ah! — exclamou num tom de voz completamente diferente. — O senhor é Nero Wolfe.

Wolfe assentiu. — Sim, senhor.

— É o senhor quem está ajudando nas investigações para provar que Noel Hawthorne foi assassinado. Ou que não foi. Perfeito. — Ele se virou para me examinar. — Quer dizer que Turner me anunciou ao senhor, ao invés de me anunciar a Prescott. E deve ter lhe dito que eu esta­va bêbado. Mas vim aqui para falar com Prescott. E vou encontrá-lo.

Ele foi saindo, mas Wolfe interrompeu-o. — Um ins­tante, Sr. Dawson.

Ele parou na metade do caminho, ficou lá por uns se­gundos com as costas voltadas para nós e então foi viran­do devagar. — Meu nome é Davis — disse bem explica­do. — Eugene Davis.

— Não na Rua 11. Lá está escrito Earl Dawson. E como o senhor soube que Hawthorne foi assassinado? Foi o Sr. Prescott quem contou para o senhor? Ou a Srta. Karn, quando jantou com ela ontem à noite?

Ele não perdeu o controle. Sabendo o que devia estar sentindo no estômago, nestas alturas dos acontecimentos, cheguei a admirá-lo. Limitou-se a ficar lá de pé, olhando para Wolfe e mordendo o lábio inferior. Afinal, andou calmamente e com passos firmes até uma cadeira, sentou-se e perguntou:

— O que o senhor está querendo?

— Falar com o senhor, Sr. Davis.

— Sobre o quê?

— Sobre esta confusão toda. Sobre o assassinato e so­bre o testamento.

— Não sei de nada disto. Como é que o senhor desco­briu que tenho outro nome na Rua 11?

— O senhor bebeu demais ontem à noite. Um homem que trabalha para mim levou-o para casa e tirou-lhe as cal­ças. Um outro homem que trabalha para mim, o Sr. Goodwin, Archie Goodwin, que aqui está, foi lá hoje de manhã e o identificou pelos documentos que encontrou no seu bolso. Quanto ao seu jantar com a Srta. Karn, ela estava sendo seguida.

— Mas é claro. Eu devia ter imaginado isto. Que idio­tice a minha. Fico admirado de ver como fui idiota, por­que eu podia ser tudo, menos idiota. Quanto à minha ou­tra identidade, alguém mais soube disto? O senhor contou para a polícia?

— Não. Não contei a ninguém. O Sr. e a Sra. Dunn sabem que o senhor foi encontrado bêbado em algum canto, mas não sabem onde, nem que o senhor estava incógnito.

— Isto é verdade?

— Sim, senhor. Não teria nenhum escrúpulo em men­tir para o senhor, mas é a pura verdade.

— Acredito no senhor. — Percebi que suas unhas ti­nham se cravado na palma da mão direita. Ele viu que eu tinha visto, enfiou a mão no bolso do casaco e conti­nuou. — Acho que é presunção minha tentar manter a minha outra identidade em segredo, mas, como eu disse, não sei mais se não vou tornar a agir como um idiota. Não quero que ninguém saiba disto, Sr. Wolfe. Eu me disponho a falar sobre qualquer coisa que o senhor quiser, con­tanto que seja razoável.

Wolfe parecia aborrecido. — Não com uma promessa de sigilo da minha parte. Nem implícita nem explícita. Mas não costumo tornar públicos os assuntos particulares de uma pessoa sem que haja necessidade.

— Se é o máximo que posso conseguir, está bem. O que o senhor quer saber de mim?

— Várias coisas. Primeiro, onde o senhor esteve na terça-feira entre quatro e seis da tarde?

Não houve resposta. Percebi que sua mão se movia den­tro do bolso. Para tornar as coisas mais fáceis, perguntei, intrometendo-me: — O que quer beber?

Ele me olhou e disse, sarcástico: — Que o diabo me carregue! Um uísque, se não for incômodo. E não espalhe por aí.

Disse que não o faria e saí escada abaixo. Fui até o es­conderijo atrás da cortina da sala de estar, onde encontrei quatro marcas de uísque diferentes na prateleira do bar. Alcancei uma delas, preparei um triplo caprichado e vol­tei à biblioteca. Davis não conseguiu impedir que seus dedos tremessem ao pegar o copo. Foram necessários ape­nas dois goles. Num instante, ele colocou o copo em cima da mesa com a mão firme.

Olhou Wolfe nos olhos. — Na terça-feira à tarde, eu estive com a Srta. Karn das três até às sete horas mais ou menos.

— Em que lugar?

— Num carro. Fomos até Connecticut e voltamos. Se a polícia perguntou isto a ela, ela deve ter dito outra coisa. Mas não estou falando com a polícia e sim com o senhor. Se eles me perguntarem, vou dizer a eles aonde fui, mas direi que estava sozinho.

— Vocês pararam para beber ou comer alguma coisa.?

— Não. Ninguém pode confirmar o que estou lhe dizendo.

— Isto não é nada bom. O senhor aceita uma cerveja?

Davis estremeceu: — Não!

— Eu estou com sede. — Wolfe encheu o copo e colo­cou a garrafa em cima da mesa. — Sabe, Sr. Davis, o se­nhor pode se meter em apuros. A polícia ainda não deve ter descoberto o senhor, mas isto é inevitável caso conti­nuem com as investigações. Eles vão saber da sua ligação com a Srta. Karn há muito tempo atrás, e de que quando...

— Isto é uma história antiga. Foi em 1935. Como foi que o senhor soube?

— Tenho meus informantes. Mas a ligação ainda exis­te, não é verdade?

— É claro que não.

— O senhor esteve com a Srta. Karn na terça-feira e também ontem à noite.

— Somos apenas amigos. Sou advogado e ela estava me consultando.

Wolfe sacudiu a cabeça. — Por favor, não perca tempo à toa. Há duas fotografias dela na sua carteira e o Sr. Dawson tem umas oito espalhadas pelo apartamento dele.

Davis ficou rubro de raiva e suas mandíbulas se con­traíram. Lançou um olhar fulminante para mim do qual devia ter se envergonhado, já que eu acabara de salvar a pele dele com um uísque triplo.

— Que diabo! — exclamou. — Se ao menos eu não estivesse com os pés e as mãos atados...

— O senhor voaria em cima do Sr. Goodwin. Sei dis­so. Também sei como o senhor deve ter relutado em admi­tir a sua ligação com a Srta. Karn numa discussão como esta. Neste momento, é uma necessidade vital para o senhor manter a cabeça no lugar e isto se torna difícil quan­do surge um assunto que faz o seu coração bombear um excesso de sangue. Vou tentar facilitar-lhe as coisas, mas é com isso que temos que lidar: o senhor teve uma ligação amorosa com a Srta. Karn. Noel Hawthorne olhou para ela, gostou dela, desejou-a e a teve. É claro que o senhor ficou ressentido. O quanto, eu não sei, mas que ficou, ficou. Entretanto, das duas uma: ou o senhor continuou a ter algum tipo de ligação com ela ou depois de algum tempo reatou a ligação. Qual delas?

Davis não respondeu. Wolfe continuou:

— Não estou pensando no assassinato agora, mas sim no testamento. Onde ele foi redigido? No escritório de Dunwoodie, Prescott e Davis. Onde ficou guardado? Num cofre do escritório. Quem seria a maior beneficiada? A Srta. Karn. Ela sabia disto? Sabia. O Sr. Prescott deixou que ela o lesse logo que acabou de redigi-lo, conforme ins­trução do Sr. Hawthorne. O senhor sabia disto? Não sei. O senhor sabia?

— Não — respondeu Davis secamente. — Não tive nada a ver com isso. Foi Prescott quem redigiu o testa­mento.

— Mas o senhor tem acesso ao cofre?

— Sou um advogado, Sr. Wolfe, e não um bisbi­lhoteiro.

— Mas não era de se esperar que a Srta. Karn contasse isto para o senhor? O senhor não poderia ter sabido desse jeito?

— Poderia, mas ela não o fez. Eu não sabia de nada, de absolutamente nada sobre as cláusulas do testamento até ontem à noite, quando a Srta. Karn me contou. O Sr. Prescott disse que eu sabia?

— Oh, não. Para dizer a verdade, ninguém me disse nada até agora. São todos iguais a você. Fiquei mais de sete horas sentado nesta maldita cadeira e sei apenas um pouco mais do que sabia quando entrei aqui. Não que eu me aborreça pelo fato de cada um de vocês ter algo a es­conder — qualquer pessoa no mundo tem — mas nunca demorei tanto para encontrar o fio da meada. Vamos co­meçar por outro lugar. O senhor disse que é amigo e advo­gado da Srta. Karn e que ela costuma consultá-lo. O se­nhor aconselhou-a a vir hoje até aqui para negociar com a Sra. Hawthorne?

— Não, por quê?

— Porque ela veio até aqui.

— Ela veio?

— Sim.

— Como o senhor sabe? O senhor esteve com ela?

— Eu não, mas o Sr. Goodwin sim. Lá na sala de es­tar. Pensei que talvez...

Ele foi interrompido pela porta que se abriu repentina­mente, dando passagem a Glenn Prescott.

 

Os dois advogados se entreolharam. Prescott, que tinha parado de andar, avançou e disse — Oi, Gene. — Davis limitou-se a fazer um cumprimento com a cabeça. Pude observar a expressão de ambos. Davis demonstrava cau­tela e desprezo, e Prescott, cautela e uma certa ansiedade incontida.

— Relaxe! — disse Davis, autoritário. — E pare de me olhar com essa cara de peixe morto. Estou sóbrio. Estes rapazes aqui acabaram de curar a minha bebedeira. Eles sabem que estive com a Srta. Karn ontem à noite e também sabem que meu nome é Dawson na Rua 11. E acabei tendo que responder a algumas perguntas. Nada de indis­creto. Apenas onde estive na terça-feira à noite e outras coisas assim.

Prescott disse: — Você é um idiota. Foi uma idiotice sua ter vindo até aqui. Você podia ficar fora disto tudo. Não vai dar para segurar isto nem mais por um dia. E quando os jornais começarem a falar sobre o caso, e é óbvio que você vai estar incluído, o que vai ser da Dunwoodie, Prescott & Davis?

— A querida e velha firma — zombou Davis.

— Isso mesmo, Davis. A querida e velha firma. Nós a fizemos, mas ela também nos fez. Você tinha tudo para subir, isto estava em você. E ainda está. Sou um ótimo advogado e não tenho medo de trabalho, mas você é muito mais do que isto. Você está muito além da média, você é do tipo que faz história. E sabe disso bem melhor do que eu. E agora você nem mesmo... você vem até aqui e se mete nessa... Meu Deus!

E virando-se repentinamente para Wolfe: — Estamos nas suas mãos. O que o senhor pretende fazer? Contar tudo para a polícia?

Wolfe sacudiu a cabeça. — Não, senhor. Eu poderia ter feito isso em troca de alguma coisa, mas a polícia não tem nada para me dar. Sente-se, vamos discutir o assunto com calma. Eu tinha acabado de perguntar ao Sr. Davis se ele tinha aconselhado a Srta. Karn a vir até aqui para negociar com a Sra. Hawthorne.

— Se ele fez isso... — disse Prescott admirado. — Por que o senhor perguntou isso a ele?

Davis se antecipou a Wolfe: — Porque ela veio! Ela esteve aqui. — Ele tinha se levantado e foi se colocar frente a frente com o sócio. — E agora quem está lhe per­guntando sou eu. Foi você quem a trouxe até aqui?

— Você está louco, Gene. Pelo amor de Deus, pense um pouco. Estou lhe avisando, isto não é hora...

— Foi você quem a trouxe até aqui!

— Você está louco. Por que eu a traria...

— Eu mesmo descubro — disse Davis, e foi saindo de­cidido porta afora.

Ficamos todos olhando para a porta aberta que ele não se dera ao trabalho de fechar.

Aquele maldito idiota — disse Prescott de repente, e se retirou. Levantei-me da cadeira e perguntei espe­rançoso:

— Você quer que eu vá atrás deles?

— Não, Archie. — Wolfe recostou-se e respirou fun­do. — Não, obrigado. — Ele fechou os olhos. — Não, obrigado.

— Não há de quê — disse-lhe delicadamente e tornei a sentar sem me preocupar em fechar a porta. Isto foi apenas um exemplo a mais do meu autocontrole. Por den­tro, eu estava em tumulto. Conhecia os sinais. Sabia muito bem o que significava aquele jeito dele falar. Era o pri­meiro sintoma de que ele ia ter uma recaída. Se eu não conseguisse animá-lo ou se o assassino não entrasse e con­fessasse dentro de uma hora, era tão certo ele ter uma recaída como dois e dois são quatro. E as coisas se torna­vam ainda mais difíceis pelo fato de não estarmos em casa. Se estivéssemos no escritório eu pelo menos teria a possibilidade de fazer com que ele relaxasse, mas ali, na­quele território desconhecido, eu não estava tão seguro de mim mesmo. Fiquei parado uns dez minutos ou mais, pen­sando no que deveria fazer, e teria ficado muito mais se não ouvisse o barulho de passos que se aproximavam. Era o mordomo.

— Fale — disse eu, displicente.

— Sim, senhor. O Sr. Dunn gostaria de falar com o Sr. Wolfe.

— Preciso de um guindaste — respondi, dispensando-o com um gesto. — Você já fez a sua parte. Vou ver se con­sigo levá-lo até lá.

Ele se foi. Deixei que um minuto se passasse e então perguntei: — Você ouviu isto?

— Ouvi.

— E então?

Não houve resposta. Esperei mais um minuto. — Preste atenção. Você não está na sua casa. Você veio até aqui por sua única e exclusiva vontade. Dunn não tem culpa se isto tudo está virando um pandemônio, a não ser se foi ele próprio quem matou Noel Hawthorne. Ele convidou você e você veio. Ou você vai até lá embaixo e vê o que ele quer ou então vamos para casa morrer de fome.

Ele se agitou na cadeira, abriu os olhos devagar e disse algo em outra língua qualquer de que eu nunca me preo­cupei em saber a tradução, já que a censura não deixaria passar. Levantou-se, saiu andando em direção à porta e eu fui atrás.

Na sala de estar encontramos uma verdadeira conferên­cia. Os delegados eram John Charles Dunn, Glenn Prescott, Osric Stauffer, um homenzinho metido a besta que reconheci como sendo o Tenente Bronson, da polícia, e um sujeito todo aprumado lá de cima dos seus um metro e oitenta e cinco vestidos num terno quente que fazia com que ele parecesse compenetrado e pouco à vontade. De­pois que Dunn fez as apresentações, soubemos que era o Sr. Ritchie, da Companhia de Seguros Cosmopolitana. testamenteiro do patrimônio de Noel Hawthorne.

Dunn também se encarregou de explicar por que havía­mos sido expulsos da biblioteca. A polícia tinha pedido permissão para examinar os documentos particulares de Hawthorne, a maioria dos quais se encontrava num cofre de parede que ficava lá, e a companhia de seguros tinha concordado, contanto que houvesse um funcionário deles presente, que no caso era o Sr. Ritchie. Também era aconselhável que o advogado particular de Hawthorne es­tivesse lá e este, no caso, era o Sr. Prescott. E para prote­ger, se houvesse necessidade, os assuntos confidenciais da Daniel Cullen & Cia., foi solicitada a presença de um dos seus funcionários, que no caso era o Sr. Stauffer.

Enquanto Bronson, Stauffer, Prescott e Ritchie iam su­bindo para abrir o cofre, pensei com os meus botões: “Eles vão é achar o outro testamento e aí a gente vai ter que descobrir esse maldito assassino para poder receber a grana.”

Vi que John Charles Dunn estava perguntando a Wolfe se ele tinha feito algum progresso e que ele estava respon­dendo irritado que não. Já que qualquer tentativa de pro­vocá-lo na frente de Dunn seria totalmente desaconselhável, resolvi tentar outra coisa. Atravessei a sala até onde estavam as cortinas e puxei-as de lado a lado com o intuito de mostrar a Wolfe onde eu tinha encontrado Stauffer de tocaia. Mas se Wolfe estivesse do meu lado teria visto algo de inesperado que ocorreu numa fração de segundo. Ela deve ter me ouvido ou então me avistado pela fresta das cortinas enquanto eu me aproximava. Tudo o que eu pude ver foi a parte de trás do vestido cinza e da cabeça dela, enquanto saía pela porta que ficava no canto direito.

Chamei Wolfe e Dunn: — Venham cá um minuto!

— O que há?

— Venham aqui que eu mostro. — Eles vieram na mi­nha direção enquanto eu mantinha as cortinas abertas. — Sei que ela está na casa dela, mas isto não lhe dá o direito de ficar bisbilhotando. Quando estive aqui sozinho hoje de manhã, a Sra. Hawthorne saiu de repente de detrás des­tas cortinas e depois desapareceu. Este é o esconderijo do qual lhe falei no bilhete que lhe entreguei na hora em que ela estava na biblioteca. E ela estava ali agora mesmo. Quando abri as cortinas, estava batendo em retirada por aquela porta. Não que isso vá solucionar alguma coisa, mas achei que você gostaria de saber.

— Você acabou de vê-la saindo?

— Sim, senhor. O senhor acha que é um hábito dela?

— Não tenho a menor idéia. Como você disse, esta é a sua casa. Já que ela teria toda a liberdade de... o que há, Sr. Dunn?

Dunn parecia estranho. Suas mandíbulas se moviam enquanto seus olhos iam se arregalando, embora ele não os estivesse fixando em nenhum lugar em particular, e muito menos em nós. Murmurou algo incompreensível e olhou ao redor como se esperasse ver alguma coisa. Wolfe tornou a perguntar o que estava acontecendo.

— Foi ali — disse ele apontando para a cadeira onde a outra Daisy tinha se sentado quando a encontrei con­versando com Naomi Karn. — Estávamos exatamente ali.

— Quem esteve ali? Quando foi isso?

— Eu e mais dois homens. Foi quando discutimos o empréstimo à Argentina. Eu tinha vindo de Washington para me encontrar com essas duas pessoas e queria que a reunião fosse mantida em segredo. Noel estava na Europa. Telefonei então para Daisy e ela me disse que não ficaria em casa naquela tarde e que deixaria instruções para que Turner nos deixasse entrar. É inacreditável. Ela não sabia com quem eu ia me encontrar nem o motivo da reunião. Que absurdo!

— Um bisbilhoteiro inveterado não precisa de motivo especial — disse Wolfe secamente.

— Ela ficou lá escondida ouvindo tudo. Só pode ser isso. E então contou para Noel... e ele... — Dunn calou-se de repente. — Não, estou enganado. Agora me lembro. Daria, um dos homens que estavam comigo, che­gou a mencionar estas cortinas e então eu me levantei para abri-las, e dei uma olhada lá dentro. Não havia ninguém. Apesar da pouca claridade, pude ver pela luz que vinha da sala que não havia ninguém.

— Espere um instante — disse a ele. — Gosto dessa idéia. Vamos imaginar o seguinte: ela pode ter entrado por aquela porta depois do senhor ter dado uma olhada aqui para dentro. Melhor ainda, ela poderia simplesmente ter se escondido atrás do bar quando ouviu um de vocês mencionar as cortinas.

— Não há espaço suficiente — objetou Wolfe.

— É claro que há — disse, convencido. — Não julgue os outros por si próprio. Com os diabos, eu caberia lá brincando. Veja só, vou fazer uma demonstração.

Fui andando em direção à entrada do bar.

Mas não houve nenhuma demonstração. Ao entrar, tro­pecei em algo e quase caí. Olhei para ver o que era e um calafrio passou pela minha espinha. Inclinei-me para olhar melhor, mas como a luz era pouca, falei: — Há um interruptor na parede. Acenda a luz.

Dunn foi até lá. Wolfe, preocupado com o meu tom de voz, perguntou ansioso. — O que há com você?

Estava tão apertado que tive que apoiar meus joelhos na prateleira para não me ajoelhar nela. Depois de ficar olhando e sentindo aquela sensação terrível por mais al­guns instantes, levantei-me com dificuldade e disse-lhes: — É Naomi Karn. Morta. Foi estrangulada com o lenço de linho azul que usava em volta da garganta.

 

Wolfe resmungou algo, comprimiu os lábios e olhou para mim furioso como se eu fosse o assassino. John Char­les Dunn demonstrou ter uma enorme presença de espírito. Não desmaiou nem gritou. Sua expressão era um misto de pavor e desolação, mas logo em seguida ele se recuperou, foi até onde eu estava e deu uma olhada. Após alguns ins­tantes, olhou para mim e disse:

— Ela está morta?

— Sim, senhor.

— Você tem certeza?

— Tenho sim, senhor. Ele se apoiou no bar para não cair. Então, foi andando,

mas seus passos já não tinham a mesma firmeza de antes. Passei à sua frente, peguei uma cadeira da sala de estar e coloquei-a atrás dele. Ele se sentou, comprimiu os joe­lhos com os dedos e falou com o olhar perdido: — Isto é o fim de tudo.

Wolfe retrucou, impassível: — Ou o começo. Archie, me dê dois minutos. Dentro de dois minutos, vá até lá em cima e avise o Tenente Bronson.

Lancei um olhar de aprovação para aquelas costas lar­gas que iam se dirigindo para o outro lado das cortinas. Não tinha a menor idéia do que ele iria fazer com os dois minutos, mas as pessoas normais nunca conseguem enten­der o que vai na cabeça de um gênio. Fiquei contando os minutos no relógio. Dunn continuava lá imóvel, com os dedos comprimindo os joelhos e o olhar perdido. Quando já tinham passado dois segundos, disse a ele: — É melhor o senhor vir para cá. O senhor precisa respirar melhor. Venha tomar um pouco de ar.

Não havia ninguém à vista nem no corredor principal, nem nas escadas, nem no corredor do primeiro andar. Abri a porta e entrei. Quatro pares de olhos que estavam concentrados na mesa repleta de papéis se voltaram para mim, surpresos. Eu sabia que o normal numa ocasião des­sas seria chamar o oficial da lei, levá-lo até lá embaixo e mostrar o que havia, deixando que as coisas seguissem o seu rumo, mas como eu estava curioso para saber qual seria a reação deles, disse em alto e bom som:

— Descobrimos algo lá embaixo. No bar que fica atrás da cortina da sala de estar. Naomi Karn está lá no chão, morta. — Como era de se esperar, não aconteceu nada de especial. Stauffer me olhou boquiaberto. Prescott levan­tou a cabeça e demonstrou surpresa. O Sr. Ritchie parecia aborrecido. O Tenente Bronson investiu contra mim: — Morta? Quem é Naomi Karn?

— Uma mulher — respondi. — A que herdou a bolada de Hawthorne. Ela está lá com um lenço apertado no pes­coço e a língua de fora. O Sr. Dunn também está lá. O senhor pode ir tomando as suas providências naquele telefone ali...

Ele começou a dar ordens: — Vocês fiquem aqui vi­giando estes papéis. — E dirigindo-se para mim: — Ve­nha também — e foi saindo porta afora. Saí correndo atrás dele pelas escadas, passando pelo saguão até a sala de estar onde me adiantei para abrir as cortinas enquan­to ia dizendo: — Ali, atrás do bar. — Dunn continuava sentado na mesma cadeira. Bronson espremeu-se para detrás do bar e se inclinou. Logo depois, endireitou-se e disse:

— Vou até a biblioteca telefonar. Gostaria, Sr. Dunn, que o senhor ficasse aqui até que eu voltasse. — Olhou para mim. — O senhor é o Goodwin, assistente de Nero Wolfe.

— Exatamente.

— Onde está Wolfe?

— Ele deve estar lá em cima, acho eu. Pediu-me que o avisasse.

— Ele estava com o senhor quando o senhor encontrou o corpo?

— Estava.

— Isto foi há quanto tempo?

— Até agora? Ah, uns dois ou três minutos.

— Será que o senhor podia ficar na porta da frente en­quanto eu vou até lá em cima?

— Claro, com prazer.

Acompanhei-o até a entrada principal.

Ainda bem que eu tinha o hábito de olhar em todas as direções, pois depois que o primeiro contingente de poli­ciais chegasse tumultuando ainda mais aquela casa enor­me e cheia de gente, e limitando os nossos passos, eu nun­ca conseguiria descobrir o que Nero Wolfe tinha feito com aqueles dois minutos. Mas foi graças a uma leve suspeita que se acendeu no meu íntimo que eu resolvi abrir a porta de entrada para dar uma olhada lá fora e vi que havia algo faltando. Estiquei melhor o pescoço para olhar os carros que estavam estacionados e não tive mais dúvida. O sedan já não estava mais lá, nem onde eu o deixara nem em lugar nenhum. É claro que não podia ter sido Nero Wolfe quem tinha saído dirigindo, pois embora ele conhe­cesse todas as técnicas, sucumbiria de pavor só em pensar nisso. Mas como Naomi Karn não tinha saído da casa, Orrie Cather ainda deveria estar a postos e, sendo assim, Wolfe sabia que teria um motorista à disposição. Meus olhos buscaram a passagem entre os edifícios onde eu tinha encontrado Orrie Cather. Ele já não estava mais lá. Isto confirmava tudo. Se Orrie ainda estivesse lá, estaria de olho na entrada, teria me visto e se deixaria ver.

Fiquei meditando sobre isto e, depois de algum tempo, murmurei comigo mesmo: “As pessoas normais não são capazes de entender o que vai na cabeça de um gênio. Se eu pelo menos tivesse enfiado um pontapé nos fundilhos dele enquanto ele saía por aquelas cortinas...”

Ouvi o barulho de uma sirene e um carro verde veio virando a Rua 67, parou bruscamente no meio-fio e dois homens uniformizados pularam fora e vieram na minha direção. Fui abrindo a porta, que deixara entreaberta, para que eles pudessem entrar.

Foram as seis horas mais monótonas e inúteis que já passei na minha vida. Lá pela meia-noite eu já estava ma­tando cachorro a grito. A cidade inteira e todos os fun­cionários municipais desde o comissário e o promotor pú­blico até o mais baixo escalão acabaram aparecendo por lá só para ver aquelas celebridades de perto. Para qual­quer lugar que a gente se virasse tropeçava no dedão de alguém. Não adiantava nem tentar descobrir alguma pista, pois no meio daquela multidão toda eu tinha tanta possi­bilidade disto quanto um poodle no meio de um bando de perdigueiros. Durante o tempo todo as pessoas vinham de dez em dez minutos me perguntar onde estava Nero Wolfe. Isso foi me deixando tão irritado que acabei tendo que trincar os dentes para não dar um murro num figurão qualquer.

Logo depois que o primeiro pelotão chegou, o Tenente Bronson me chamou na sala de música. Foi uma conversa rápida e insípida; ele estava apenas interessado nos deta­lhes de como o corpo tinha sido encontrado. Fiz um relato completo e preciso. Por mim, preferiria não ter falado nada sobre a mania de Daisy de ficar escutando atrás das portas, já que isso poderia ser usado em nosso proveito, caso fosse necessário. Mas como tinha que explicar o mo­tivo que me levou a olhar atrás do bar, seria muito arris­cado inventar algo, sabendo que Dunn já havia sido inter­rogado e que provavelmente tinha contado como tudo aconteceu. E foi exatamente isso o que fiz. Quando o interrogatório terminou, ele fez questão de me levar até lá em cima e veio com aquelas recomendações para que eu não me ausentasse da casa etc... Para finalizar, ele me fez a mesma pergunta que já tinha feito no começo: “On­de está Nero Wolfe?”

Fui até a biblioteca, mas como lá só estavam o Ritchie, da Companhia de Seguros, sentado com cara de poucos amigos e um detetive que eu não conhecia, resolvi bater em retirada. Prescott vinha apressado pelo corredor e quando me viu se aproximou, deu uma espiada em volta e falou em voz baixa: — Onde está Wolfe?

— Eu não sei. Não adianta me perguntar novamente porque eu não sei.

— Ele deve ter...

— Eu não sei.

— Não precisa falar tão alto. Precisamos manter Gene Davis fora disso. Ninguém o viu, a não ser Wolfe, você e eu. Estou certo de que se Wolfe estivesse aqui eu poderia convencê-lo. Eles não devem saber que Gene esteve aqui. Quando eles perguntarem a você...

— Não há jeito. Ponha a cabeça no lugar. O mordomo abriu a porta para ele.

— Mas eu posso pedir a Turner, posso convencê-lo...

— Não, senhor. Há pelo menos nove coisas que eu es­conderia de um tira e essa não é uma delas. Siga o meu conselho e nunca conspire com um mordomo.

Ele me agarrou pela lapela. — Mas, preste atenção, se eles souberem que Davis esteve aqui, se eles começarem a fazer perguntas sobre ele...

— Não há nada que eu possa fazer. Sinto muito. Não há ninguém no mundo que tenha tanto prazer em escon­der um segredo de um tira quanto eu, mas nesse caso seria procurar encrenca. Posso fazer o seguinte: se eles me perguntarem, eu digo, se não...

Fui interrompido pelo ruído de passos que vinham des­cendo do andar de cima. Era Andy Dunn. Ele nos viu, e veio avisar a Prescott que Dunn pai queria falar com ele no quarto da Sra. Hawthorne. Prescott me lançou um últi­mo olhar, meio zangado, meio esperançoso e eu balancei a cabeça.

— Papai também queria falar com Nero Wolfe. Onde está ele?

Respondi mais uma vez que não sabia, eles saíram e eu fui andando até o final do corredor onde havia um banco. Depois de ficar sentado por alguns instantes, resolvi des­cer até o térreo para ver quem mais tinha chegado, mas desisti no meio do caminho, voltei para a biblioteca e me instalei numa poltrona. Enquanto estava lá, uma criada apareceu oferecendo sanduíches e leite e eu aproveitei para forrar o estômago. Depois disso, a coisa mais excitante que aconteceu foi quando um policial entrou dizen­do que o Sr. Dunn tinha sugerido que todos os presentes fossem tirar as suas impressões digitais, que os outros tinham concordado e que eu teria que ir de qualquer jei­to. Eu tinha acabado de desperdiçar o meu latim tentando convencer o policial de guarda na biblioteca de que era pelo interesse da lei e da ordem que eu precisava usar o telefone e estava bastante irritado. Recusei e disse que mi­nhas impressões digitais estavam num arquivo no centro da cidade, já que eu era um detetive profissional. Ele disse que sabia disso, mas que seria mais conveniente para mim se eu tornasse a tirá-las junto com os outros. Eu disse que o que seria mais conveniente para mim era ir para casa dormir, pois já estava ficando tarde e que seria me­lhor ele esperar sentado. Admito que fui grosseiro, mas eles também foram. Eu só queria telefonar para casa e dizer alô a Fritz.

Fiquei cansado da biblioteca e tornei a sair pelo corre­dor. As crianças estavam lá, Celia e Sara num banco e Andy diante delas, conversando em voz baixa. Quando me viram, pararam de cochichar, mas não me dirigiram a palavra. Não querendo me intrometer em nenhum segre­do infantil, resolvi ir até o andar de cima. A terceira porta à esquerda estava escancarada e ao passar por lá dei uma olhada e vi May e June sentadas lado a lado num sofá, May tinha se trocado, e ao invés do vestido azul desbo­tado estava usando um branco com bolinhas cor-de-rosa. Fui até o final do corredor, onde havia uma janela, e fi­quei lá apreciando a confusão que se formara do lado de fora da casa. Os carros estavam estacionados nos dois lados da rua e para manter o tráfego andando havia poli­ciais por toda a parte. O rádio é realmente um grande veí­culo de comunicação. Fiquei ali observando aquela movi­mentação toda, e de vez em quando me virava ao ouvir passos atrás de mim. Mas nunca aconteceu nada de mais. Ou era um dos hóspedes andando de lá para cá, ou algum policial trazendo um recado lá de baixo.

Entretanto, houve duas ocasiões em que os passos vie­ram na minha direção. A primeira, foi quando Osric Stauffer apareceu. Ele ficou me olhando de uma certa dis­tância e quando viu que eu era a pessoa que ele estava procurando, veio todo faceiro na minha direção. Quando estava bem perto, disse:

— Sei que Nero Wolfe não está por aqui. Se você...

— Eu não sei onde ele está — disse com determinação.

— Foi o que Dunn me disse. Mas se você... na ver­dade, eu estava procurando por você... quando eles me chamaram...

Não diria que naquele momento ele estivesse tentando manter qualquer tipo de imagem. Chegava a dar pena. Não conseguia parar de tremer e sua voz dava a impressão de que precisava ser lubrificada com urgência.

— Você já me encontrou — disse a ele — mas num péssimo humor. Você também não parece estar muito satisfeito.

— É, acho que não. Esta coisa horrível... foi acon­tecer logo aqui... com todos nós presentes.

— Tem razão. Não teria sido tão ruim se não houvesse ninguém na casa além dela.

Minha intenção era deixá-lo ofendido o bastante para que aquela expressão patética desaparecesse do seu olhar, mas ele estava tão preocupado com outras coisas que nem percebeu que eu estava gozando com a cara dele. A única coisa que fez foi se aproximar mais de mim, enquanto murmurava ansioso:

— Você quer ganhar mil dólares?

— Claro que quero. Quem não quer?

— Em troca de nada — disse ele. — De nada mesmo. Eu acabei de ter uma conversa com o Skinner, o promotor público. E é claro que omiti o fato de estar atrás das cor- tinas — você se lembra? — quando você entrou e me viu. Teria sido... teria parecido muito idiota da minha parte. — Ele sorriu do modo mais forçado que já vi na minha vida. — Foi mesmo idiota... foi a coisa mais idiota que eu já fiz até hoje. Eu posso lhe dar... isto é, quando eles perguntarem a você... se você esquecer que me viu lá... Você pode ganhar mil dólares... apenas para me livrar dessa situação embaraçosa... eu não tenho toda essa quantia aqui comigo, mas você tem a minha palavra...

Ele estava exausto. Abri um sorriso e disse: — Non comprenderrr nada...

— Mas escute...

— Nada disso, meu chapa. Se não foi você quem a ma­tou, você estaria pagando demais, e se foi, você é um pão-duro. Mas se isso servir para deixá-lo mais aliviado, eu tenho como norma nunca dar a um tira qualquer coisa que eu possa utilizar mais tarde. Há algumas informações que pretendo guardar pelo menos por enquanto para meu próprio proveito, já que Nero Wolfe não está aqui, e o fato de você ficar se escondendo atrás de bares de casas de família é uma delas.

— Mas você disse por enquanto... eu preciso saber...

— Isso é o máximo que posso fazer por você, e não me ofereça mais um centavo. Mamãe sempre me aconselhou a não aceitar dinheiro de pessoas estranhas.

Mas não havia nada que pudesse convencê-lo, e se John Charles Dunn não aparecesse naquela hora e o levasse para uma das salas não sei como conseguiria me livrar dele. Dunn devia estar querendo saber do encontro que ele tivera com Skinner.

A segunda abordagem ao meu ancoradouro da janela aconteceu logo depois que eu tinha voltado de uma excur­são até a biblioteca para pegar um cinzeiro. E foi por aca­so, pelo menos assim me pareceu. Sara, Celia e Andy esta­vam vindo do andar de baixo quando me viram e Sara disse algo que, pelo visto, deu início a uma discussão. O bate-boca durou alguns minutos e então Andy e Celia en­traram pela mesma porta por onde eu vira May e June conversando e Sara veio direto até onde eu estava.

— Pelo visto, eles ainda não a prenderam — fui dizen­do, enquanto ela se aproximava.

— Claro que não. Por que iriam me prender?

— É bem provável que isso aconteça. Se continuar a confessar crimes e outros tipos de delitos, vai acabar inventando um que eles não vão conseguir provar que não foi cometido pela senhorita.

— O senhor é muito espirituoso... — Ela foi se sen­tar num banco que havia por lá. — Isso... isso tudo está me dando nos nervos. Já não agüento mais. Fico tão exci­tada como se tivesse tomado uma bebida com o estômago vazio. Tenho a impressão de que quando for me deitar, se é que vou me deitar, meu corpo vai estar todo moído e vou ficar lá olhando o teto, me sentindo enjoada a ponto de vomitar, mas neste momento isso me deixa com as per­nas bambas e excita o meu cérebro. Eu tenho um cérebro, sabia?

— Um grilo também tem. A senhorita me faz lembrar um grilo.

— Isso pode vir a me interessar algum dia, mas não agora. Andy estava discordando de mim e é claro que Celia estava do lado dele. Nossa, como eles estão apaixo­nados. Andy disse que a família está em perigo, em grande perigo, e que precisamos nos manter unidos e não confiar em ninguém.

— Quer dizer que a senhorita está querendo confiar em alguém. E este alguém sou eu?

— Não é uma questão de confiar ou não. Eu só estava querendo lhe contar algo que aconteceu comigo esta manhã.

— Mas antes, Srta. Dunn, é preciso que saiba que, de­pois daquela confissão que a senhorita fez, estou suspei­tando de qualquer coisa que diga. Não sei nem se vou me dar ao trabalho de verificar se é verdade ou não.

Ela murmurou algo não muito próprio para uma senho­rita. — Ninguém está lhe pedindo para verificar nada. Só que aconteceu algo que eu quero lhe contar. Contei ao papai e acho que ele nem me ouviu. Contei ao Sr. Prescott e ele disse: “Está bem, está bem”, enquanto me dava tapi­nhas nas costas. Contei a Andy e a Celia e posso jurar que eles acharam que era invenção minha. Por que diabos eu ia inventar que alguém roubou minha máquina fotográ­fica?

— Ah, quer dizer que foi isso.

— Foi e a pessoa também levou dois rolos de filme. Veja bem, nós chegamos a Nova Iorque na quarta-feira de manhã. Como papai tinha que voltar para Washington, as famosas irmãs Hawthorne chegaram à conclusão de que todos nós deveríamos acampar aqui nesta casa até depois do funeral. Tia Daisy concordou. — Ela estremeceu. — Aquele véu também não lhe dá arrepios?

Concordei com ela.

Ela então continuou: — Eu fico arrepiada da cabeça aos pés. Quando chegamos aqui na quarta de manhã fui para o meu quarto na Rua 19 e trouxe de lá uma mala com as minhas roupas. Não tinha levado nada para a casa de campo porque o Sr. Prescott foi me apanhar na loja e depois foi direto para o campo. Quando acabou o en­terro, ele leu o testamento para nós e aí começou essa con­fusão toda. Acabei dormindo aqui de anteontem para on­tem e de ontem para hoje. Fiquei no mesmo quarto que Celia. — Ela apontou para a segunda porta à esquerda. — E hoje de tarde, dei por falta da minha máquina foto­gráfica. Alguém a roubou.

— Ou talvez tenha apenas levado emprestada.

— Não, já perguntei a todo o mundo, inclusive aos criados. Além disso, a pessoa revirou a minha mala e le­vou os dois rolos de filme.

— Talvez tenha sido um dos criados. É claro que não iria admitir isso quando a senhorita perguntou. Não são todas as pessoas que têm a capacidade de fazer confissões como as da senhorita. Ou talvez a tia Daisy. Quem sabe se além de ficar escutando às escondidas ela não é tam­bém uma cleptomaníaca.

— Como é que o senhor sabe que ela vive escutando às escondidas?

— Já tive a oportunidade de vê-la em ação.

— Já? Eu, nunca. Andy disse que, se a minha câmara foi roubada, só pode ter sido por um dos membros da fa­mília, e que o melhor a fazer seria ficar de bico calado quanto a isso.

— Isso faz sentido. Os dois rolos de filme estavam... Ah, temos companhia à vista.

Era um policial, que eu não conhecia, que vinha se aproximando todo circunspecto e com ares de importante.

— Archie Goodwin? O Inspetor Cramer quer falar com o senhor lá embaixo.

 

O cenário escolhido para minha apresentação tinha sido a sala de música. Algumas revistas e livros que estavam em cima de uma mesa grande foram retirados, e lá no fundo estava sentado o Promotor Público Skinner usan­do, como de costume, uma camisa esporte e o cabelo em desalinho. O Inspetor Cramer, de paletó e colete, como sempre, estava ao banco do piano. Numa das cabeceiras da mesa estava o Comissário de Polícia Hombert, pare­cendo cansado e frustrado, e na outra havia um detetive com um bloco na mão. O lugar onde eu me sentaria havia sido preparado de maneira a que todos pudessem ver o meu rosto, e com a luz incidindo direto nos meus olhos.

— Sinto-me bastante honrado com a presença de vocês três — falei, enquanto me sentava.

Cramer não se conteve. — Já chega. Não vamos admi­tir nenhuma brincadeira. E nada de rodeios. Tudo o que queremos são respostas.

— É claro, compreendo perfeitamente — disse chora­mingando —, mas é que eu esperava ser interrogado por um sargento, ou talvez um tenente, mas nunca pelos três mais brilhantes...

— Está bem, Goodwin — interrompeu Skinner. — Você pode recitar esse pedaço para nós em outra ocasião. Onde está Nero Wolfe?

— Não sei. Já falei mais de um milhão de vezes...

— Eu sei. Já nos disseram que ele não está mais nesta casa. Ele saiu logo depois que você encontrou o corpo. Para onde ele foi?

— Pode me revistar.

— Para onde ele disse que iria?

— Ele não disse nada. Se você está atrás de fatos, eu não posso ajudar em nada, mas se quiser uma opinião, posso lhe dar a minha.

— Então fale.

— Acho que ele foi para casa jantar.

— Bobagem. Ele estava aqui trabalhando num caso im­portante, com clientes importantes e um assassinato acon­tece bem no seu nariz. Você não está esperando que eu vá acreditar... nem mesmo Nero Wolfe seria excêntrico o suficiente para...

— Não sei se ele seria excêntrico o suficiente, só sei que estava bastante faminto. Ele almoçou muito mal. — Fiz um gesto com a mão: — Você disse que ele não está em casa. Isto é óbvio. Ele não quer ser perturbado. Você pode usar uma ordem de busca para entrar lá dentro, mas o que você vai escrever nela? Se você andou fazendo per­guntas por aí, deve ter descoberto que ele esteve na biblio­teca, das dez e meia até um pouco antes da hora em que o corpo foi encontrado. Ele não saiu nem por um segundo. Sendo assim, o que você quer com ele?

O Comissário Hombert falou, exaltado: — Uma das coisas que queremos perguntar a ele é onde e quando es­teve com Naomi Karn hoje, e o que foi que eles conver­saram.

— Ele não esteve com ela hoje.

— Queremos saber dos termos do acordo feito com ela em favor dos clientes dele. Queremos ver o acordo.

— Não existe nenhum acordo. Ele não fez acordo nenhum.

— Nessa eu não caio — disse Cramer asperamente. — Se ela não fez nenhum acordo, se não assinou papel ne­nhum, a fortuna de Hawthorne pertencia a ela quando ela morreu, e os clientes de Wolfe vão se dar mal.

— E quem herdar a fortuna dela vai se dar bem. Você já pensou nisso?

Hombert resmungou algo. Cramer me olhou, boquia­berto. Skinner perguntou: — E quem é essa pessoa? Quem vai herdar a fortuna dela?

— Não tenho a mínima idéia.

— Você é bastante desaforado, não é, Goodwin?

— Sou sim, senhor. Fiquei uma fera por ter permane­cido encurralado aqui durante horas. Tanto fazia eu ser o primeiro ou o último a ser interrogado. Mas eu sei por que vocês resolveram fazer isso. Pretendiam jogar as mi­nhas mentiras na minha cara. Vão em frente e experi­mentem.

Mas eles acabaram desperdiçando uma hora com per­guntas que não levavam a nada até chegarem ao ponto que lhes interessava. Onde e quando eu tinha visto Naomi Karn pela primeira vez. Idem em relação a Wolfe. Os pormenores do que tinha acontecido e sobre o que con­versamos quando eu tinha ido apanhá-la no apartamento dela na véspera. Passaram então para a visita dos Haw­thorne e seus auxiliares. O que April tinha dito. O que May tinha dito. O que June tinha dito. Se alguém tinha ameaçado alguém. Depois, a conversa com Naomi Karn quando os outros já se haviam retirado. Tentei cooperar, mas como havia alguns detalhes que, na minha opinião, não deveriam constar das anotações de um detetive, tais como o fato de Naomi Karn chamar o Stauffer de Ossie e de Daisy Hawthorne duvidar da integridade dos nossos clientes, resolvi omiti-los. Outra coisa que esqueci de mencionar foi o caso Davis-Dawson, ocorrido de manhã. Disse apenas que, depois de ter recebido um telefonema de Dunn às nove e meia da manhã, Wolfe tinha vindo para a Rua 67, e eu tinha vindo logo em seguida. Então, puxei um pedaço de papel do meu bolso e o entreguei a Skinner.

— Como achei que uma relação dos acontecimentos iria simplificar as coisas, resolvi datilografar esta enquan­to esperava que vocês se dignassem a me chamar.

Hombert e Cramer se levantaram e foram debruçar-se em cima do promotor público para dar uma olhada na minha relação, enquanto eu ia passando os olhos pela cópia que guardara comigo:

10:45 — Encontro com Wolfe, Dunn e senhora na bi­blioteca.

11:10 — O mordomo veio avisar que Skinner, Cra­mer e Hombert queriam falar com Dunn.

11:30 — Telefonemas para Durkin, Panzer e Keems. Entrevista com Sara Dunn.

12:10 — April, Celia e Stauffer.

12:30 — Os três foram embora. Panzer e Keems en­traram, pegaram as instruções e saíram.

01:10 — Almoço.

02:15 — Cramer entrou.

02:35 — Ele saiu e Daisy H. entrou.

02:40 — Durkin entrou.

02:42 — Saí para falar com Orrie. Tornei a entrar na casa e vi Naomi Karn na sala de estar.

02:50 — Durkin saiu.

03:10 — Fui até lá embaixo, tive uma pequena con­versa com Naomi Karn e voltei à biblioteca.

04:55 — Telefonema de Panzer.

05:00 — Daisy H. saiu.

05:05 — Fui até a sala de estar. Naomi Karn já não estava mais lá, mas sim Eugene Davis. Le­vei-o para a biblioteca.

05:40 — Prescott entrou.

05:45 — Davis e Prescott saíram.

05:55 — O mordomo entrou. Dunn chamou Wolfe à sala de estar. Wolfe e eu fomos até lá.

06:05 — Bronson, Stauffer, Prescott e Ritchie subi­ram, deixando Dunn, Wolfe e eu na sala de estar.

06:11 — Descoberta do corpo.

Estava bastante convincente. Os itens por mim omiti­dos, como, por exemplo, a primeira aparição de Daisy de trás das cortinas, o pedido de Sara para falar com Wolfe, a imitação de Daisy e seu desaparecimento, e o esconderijo de Stauffer, eram coisas que eles provavelmente não iam ter como descobrir.

— Foi uma ótima idéia — disse Skinner. — Muito obrigado. — Quer dizer que ele agora ia bancar o vaselina. — Agora, me fale da conversa de Wolfe com o Sr. e a Sra. Dunn.

Isso deu início a mais uma hora.

Como eu tinha tido tempo bastante para colocar a mi­nha cabeça em ordem, o interrogatório prosseguiu sem muitos desentendimentos. Fora a confissão de Sara, a his­tória de Daisy acerca da centáurea e mais alguns detalhes, dei a eles informações suficientes para mantê-los ocupa­dos pelo menos durante toda a tarde. É claro que houve alguns momentos difíceis, sobretudo quando Skinner su­geriu que eu lhe entregasse as anotações que fizera das entrevistas. Disse a ele que as anotações pertenciam a Nero Wolfe, e que só poderia consegui-la com o próprio Wolfe. Isso deu início a uma pequena discussão; Hombert ficou bastante contrariado, mas as anotações conti­nuaram no meu bolso. Depois disto, eles se acalmaram de novo e, mais tarde, chegaram até a me dar a honra de perguntarem a minha opinião sobre um detalhe técnico. Disseram que a polícia tinha visto o bar apenas com a luz acesa, enquanto eu tinha estado lá quando a única luz vinha da janela do canto e apenas alguns segundos depois que Daisy Hawthorne tinha saído pela porta dos fundos. A Sra. Hawthorne tinha admitido para eles que estivera lá e que eu a vira saindo. Ela também disse que, como não queria aparecer diante dos outros usando aquele véu, entrava sempre no bar por aquela porta para observar os visitantes através das cortinas; e que foi isso o que ela tinha feito quando soube da vinda de Ritchie e Bronson para examinar os documentos particulares de Hawthorne; que tinha ficado lá só por uns instantes, pois teve de es­conder-se à minha aproximação; e que não tinha visto nada atrás do bar. Eles queriam saber se era possível ela não ter visto o corpo com a luz que havia no local àquela hora do dia.

Eu disse que sim, pois havia tão pouca luz que mesmo quando tropecei no corpo eu não tinha sido capaz de dizer quem era.

Eles ficaram divagando por mais alguns instantes, e então Skinner me veio com uma que eu já vinha espe­rando desde a hora da minha entrada na sala. Houve momentos em que isto me vinha na ponta da língua, mas eu achei que não tinha sentido privá-los de ter um pouco de prazer junto com a obrigação. Tive de me controlar para não rir quando Skinner começou a preparar o terre­no para tocar no assunto.

— Um detalhe que está nos preocupando — disse ele da maneira mais casual possível — é ninguém ter ouvido sequer um grito, nem mesmo os criados que ficam no mesmo andar. Além disso, não foi encontrado nenhum sinal de luta. A Srta. Karn parecia ser uma pessoa bas­tante saudável e forte. Mas pelo visto ela não gritou por socorro e não há indícios de que tenha oferecido qualquer tipo de resistência.

— É realmente incrível — concordei. — Não ouvimos nada lá da biblioteca.

— Eu ia perguntar exatamente isso.

— Não. É claro que em casos de estrangulamento sem­pre se acaba descobrindo que a vítima foi primeiro imo­bilizada, por uma pancada, algum tipo de narcótico ou qualquer outro processo. Isto o seu médico legista pode­ria dizer. E, a propósito, lembro-me de algo que esqueci de mencionar. Enquanto Davis estava lá na biblioteca conosco, eu achei que ele estava precisando de um trago e fui até o bar, onde esvaziei quase meio litro de MacNeal Diamond Label num copo.

Cramer me olhou furioso. — Você é pior do que eu pensava. — Hombert bufava de ódio. Skinner disse seca­mente: — Qualquer dia desses, Goodwin, você ainda vai vir com uma sutileza dessas e ela vai voltar direto na sua cara.

— Caramba, isso não foi nada sutil — protestei. — Para dizer a verdade, eu estava realmente preocupado. Aquela contusão na cabeça dela deve ter sido provocada por uma boa pancada. E a única coisa que poderia ter sido usada para derrubá-la com um só golpe era uma das garrafas, principalmente se o assassino veio vindo da sala de estar em direção ao bar. Se foi isso o que ele fez, é claro que deve ter limpado as impressões digitais da garrafa antes de colocá-la no lugar. Mas as minhas impressões também estavam lá, fresquinhas, na garrafa de MacNeal. Será que vocês as achariam? Era isso que estava me deixando afli­to. Como eu não sabia se vocês iriam encontrá-las ou não, resolvi vir direto a vocês para contar exatamente...

— Cale a boca e caia fora! — rosnou Cramer. — Por que, em nome de Deus, quarenta mil pessoas morrem em acidentes de carro e você não é uma delas? Tire-o daqui, Grier. — Ele se dirigia ao policial que tinha me levado até lá e estava sentado perto da porta. — Vá para casa e, se Nero Wolfe estiver lá, diga a ele... Não diga nada a ele. Eu mesmo vou falar com ele. E com você também. É melhor você ficar num lugar onde eu possa encontrá-lo.

— Pode deixar — respondi enquanto me levantava.— Boa noite, cavalheiros, e boa sorte. Vocês podem imaginar como eu devo ter me sentido quando vi que na hora em que estiquei o braço para pegar a garrafa ela estava lá... bem ali no chão... morta... deve ter sido... bem, eu já vou, e desculpem-me se eu os irritei.

Grier me acompanhou até a porta e avisou ao tira de plantão que eu podia sair. Lá fora, outros dois tiras fica­ram olhando eu me afastar. O meio-fio continuava abar­rotado de carros de polícia. Fui até a esquina e fiz sinal para um táxi. Enquanto ia em direção à cidade o moto­rista puxou conversa sobre o assassinato, mas a única coisa que ele conseguiu ouvir de mim foi uma série de grunhidos.

Enfiei a minha chave na fechadura, girei a maçaneta, mas a porta cedeu apenas alguns centímetros. Estava com a corrente. Meti o dedo na campainha. Logo apareceu Fritz com o olho na fresta.

— Ah. é você. Archie? — Ele parecia aliviado. — Você está sozinho?

— Não, tem um bando armado de metralhadoras aqui comigo. Abra a porta!

Foi o que ele fez. Deixei que se encarregasse de fechá-la e fui entrando. O escritório estava às escuras. Entrei na cozinha. A luz estava acesa e ela exalava o mesmo cheiro bom de sempre. Numa das cadeiras estava o jornal fran­cês que Fritz devia estar lendo. Ele veio entrando apressa­do, e eu perguntei:

— A que horas Wolfe chegou?

— Às seis e quarenta. Sobrou um pouco de pato e de bolo de queijo, se o senhor...

— Não, obrigado. Já comi uns sanduíches deliciosos. — Peguei a jarra da geladeira e me servi de um pouco de leite. — A que horas ele foi para a cama?

— Logo depois das onze. Ele disse que estava cansado. Comeu comigo na cozinha, porque não queria que eu acendesse a luz da sala de jantar, já que a polícia estava atrás dele. Ele está correndo algum perigo, Archie? Será que a gente não...

— É claro que ele está correndo perigo. O perigo da gula. Deixe isso para lá. Que diabo é aquilo ali?

Cheguei mais perto para ver: havia um galho de algo que devia medir uns trinta centímetros, cheio de ramifi­cações, de onde saía uma porção de folhas verde-escuras e milhares de espinhos pontiagudos, dentro de um vaso com água em cima da bancada. Fritz disse não saber o que era aquilo; que Fred Durkin tinha trazido aquela coisa e Wolfe a tinha colocado no vaso, recomendando que se deixasse as sementes amadurecerem.

— Ah — disse eu — então deve ser uma pista. Fred é ótimo para encontrar pistas. A que horas Fred chegou?

— Lá pelas dez e meia. Ele trouxe uma porção de pistas numa mala. E Saul chegou um pouco antes e con­versou com o Sr. Wolfe. Johnny também telefonou. — Fritz deu uma olhada para o bloco que deixava ao lado do telefone. — Às dez e quarenta e seis... Olhe, há algo aqui para o senhor. — Ele pegou um pedaço de papel de­baixo do bloco e entregou-o a mim.

Dizia o seguinte:

Archie,

Não estou em casa.

N. W.

Joguei o papel na cesta de lixo e fui para a cama.

No dia seguinte, eu estava quase certo de que recebe­ria uma intimação de Wolfe, mas Fritz passou direto depois de ter levado a bandeja com o café da manhã para ele. Pensei comigo mesmo: “Está bem. Se o paspalhão vai ficar fingindo que hoje é uma manhã de domingo como qualquer outra, eu também posso fazer o mesmo”, e fui me instalar na cozinha para saborear o meu omelete de anchova e mais meia dúzia de fotografias e três páginas repletas de notícias sobre o caso Dunn-Hawthorne-Stauffer-Karn no jornal da manhã. Alguém em Rockland County tinha aberto o bico, e a notícia de que Hawthorne podia ter sido assassinado corria à solta, quer dizer, havia um verdadeiro carnaval.

Se eu tinha algum receio de que Wolfe pudesse ter so­frido uma séria recaída, esse receio desapareceu total­mente quando Orrie Cather e Fred Durkin chegaram, um pouco depois das nove horas, dizendo que tinham sido instruídos a manter contato e aguardar ordens. Senti-me bastante aliviado, mas continuei firme no meu propósito de não restabelecer a comunicação por iniciativa minha. Eu sabia que ele estava lá em cima na estufa porque tinha ouvido o elevador subindo. Resolvi, então, tomar uma atitude. Depois de receber um telefonema do Inspetor Cramer, toquei para a estufa pela linha interna. Wolfe atendeu.

— Bom dia, senhor — disse todo formal. — O ins­petor Cramer, da Seção de Homicídios, acabou de tele­fonar, dizendo que passou a noite toda acordado, que deseja vê-lo e que deve vir até aqui logo depois do meio-dia. Ele está trabalhando num assassinato. Existem dois tipos de detetives que trabalham em homicídios. Um deles corre para o local do crime. O outro corre do local do crime. O Inspetor Cramer pertence ao primeiro tipo.

— Eu disse naquele bilhete que não estava em casa.

— Mas você não pode continuar fora de casa indefi­nidamente. Tem alguma instrução para Fred e Orrie?

— Não. Peça para eles esperarem.

O receptor ficou mudo.

Uma hora depois, exatamente às onze, como era de costume, o elevador desceu e ele foi para o escritório. Esperei até que se acomodasse na poltrona, e então disse:

— Quer dizer que você pretende desafiar todo mundo. Sei que não adianta ficar discutindo sobre isso. Mas foi a atitude mais absurda que eu já presenciei em toda a história da investigação criminal. E isso é tudo. Agora, se quer ouvir o meu relatório...

— Não houve nada de absurdo. Foi a única atitude sensata...

— Você não ia conseguir me convencer disso nem daqui a mil anos. Quer ouvir o meu relatório?

Ele suspirou, recostou-se na poltrona e ficou lá com os olhos semicerrados. Parecia novo em folha e tão envergo­nhado quanto uma donzela. — Vá em frente.

Contei tudo a ele, de memória, já que não tinha feito nenhuma anotação. Levou um bom tempo. Ele não fez nenhuma pergunta e não me interrompeu nem por um instante. Quando terminei, tornou a suspirar, endireitou-se na poltrona e pediu cerveja.

— Não há saída — declarou ele. — Você disse que foi o último a ser chamado? Todos os outros já tinham sido interrogados?

— Acho que sim. Pelo menos a maioria. Acho que todos.

— Não há nenhuma saída. Não para nós. Se a polí­cia agir com tenacidade e perseverança talvez consiga quebrar o círculo, mas eu duvido. Ele está se tornando cada vez mais apertado. Estavam todos lá na casa de campo quando Hawthorne foi assassinado. Estavam todos

lá na casa quando a Srta. Karn morreu. São muitos. Se eu insistisse, poderia chegar à verdade, mas o que é que iria fazer com ela? Será que ia conseguir provar al­guma coisa? Como? Não é isso o que eles estão querendo, nem mesmo o próprio Dunn, apesar de ele achar que sim. E eu também não quero, já que não posso fazer nada com ela. Sobretudo pelo preço que eu teria que pagar. Você acha que eu devo?

— Não, senhor. Mas o senhor teria o que fazer com um pequeno depósito no banco.

— Eu sei disso. Mas a morte da Srta. Karn nos deixou de pés e mãos atados, mesmo em relação ao testamento. Se ela também deixou um testamento... pluft! Não há mais saída.

— Então para quê Fred e Orrie estão lá sentados a oito dólares por hora? Para dar vida ao ambiente?

— Não. Estou esperando até falar com o Sr. Cramer. E outros que devem aparecer antes do fim do dia. Pelo menos dois ou três deles virão me procurar.

— Disso eu tenho certeza — concordei. — Stauffer vai tentar suborná-lo. Daisy vai querer vender-lhe outra centáurea. E é claro que Sara vai querer reaver a máquina fotográfica! Ah, eu não lhe contei. Ela disse que alguém lhe roubou a máquina fotográfica.

— A Srta. Dunn? Quando?

— Ontem à noite, um pouco antes de eu ser chamado. Isto é, foi quando eu soube. Ela deu por falta da máquina ontem à tarde. Dois rolos de filme também tinham desa­parecido da sua mala. Ela disse que tinha perguntado a todos, inclusive aos criados, mas nada feito.

— Os filmes tinham sido expostos?

— Não sei. Não cheguei a perguntar a ela porque fomos interrompidos pelo policial que veio me chamar, a mando de Cramer.

— Traga a Srta. Dunn. Imediatamente.

Olhei-o surpreso. — Mas ela não ofereceu nenhuma recompensa para quem conseguisse recuperá-la.

— Quer fazer o favor de trazê-la até aqui? Essa é a única possibilidade que temos de conseguir fisgar algo. Pode ter sido apenas um dos criados, mas eu duvido, já que os dois rolos de filme também sumiram. Os outros sabem que ela contou isso a você?

— Andy e Celia sabem. Eu não posso telefonar para ela porque os tiras...

— Eu não disse para você telefonar para ela. Eu disse para você ir apanhá-la. Traga-a até aqui!

 

Enquanto eu ia dirigindo para a parte mais alta da cida­de, fui elaborando duas ou três maneiras de tirar aquela profissional em diabruras de lá sem precisar incomodar os policiais ou a família, mas quando entrei na Rua 67 já tinha chegado à conclusão de que a ação direta seria o meio mais rápido e eficaz. O tira que estava na porta para manter os visitantes afastados achou minha presen­ça desnecessária, mas consegui convencê-lo a deixar-me entrar. Apertei a campainha e Turner abriu a porta. Per­guntei pelo Sr. Dunn.

Alguns minutos depois, Dunn apareceu na sala de estar. Parecia que tinha passado uma semana sem dormir e que não dormiria nunca mais. Disse a ele que Nero Wolfe tinha se retirado no dia anterior para poder prosseguir com determinadas atividades sem a interferência da polícia, que estava em casa e continuava trabalhando no caso. O pobre homem estava tão baqueado que não era sequer capaz de fazer uma pergunta decente. Conseguiu apenas balbuciar que não via o que Wolfe poderia fazer, esperava que ele pudesse fazer alguma coisa, mas não sabia como, não havia mais jeito, se Wolfe tinha alguma idéia...

Nunca pensei em me ver um dia dando tapinhas nas costas de John Charles Dunn para levantar-lhe o moral. Mas foi o que fiz, além de passar vinte minutos com ele tentando persuadi-lo de que Nero Wolfe dissiparia as nuvens e o sol tornaria a brilhar. Com isso, eu estava pre­parando terreno para dizer-lhe da necessidade de Sara ir até o escritório de Wolfe, mas quando consegui final­mente falar, ele não quis nem saber por que Wolfe queria falar com ela. Estivera sob tensão durante meses, e agora isso quase tinha acabado com ele. Mandou o mordomo chamá-la, e num segundo ela estava no carro em direção à casa de Wolfe.

Mas, ao chegar lá, passei direto pela casa sem diminuir a marcha e só fui parar a uns dez metros de distância. Sara Dunn olhou para mim.

— O que houve? A casa não fica ali atrás?

— Fica. Mas aquele carro lá em frente pertence ao Inspetor Cramer, e o que os olhos dele não vêem o cora­ção não sente. Vamos esperar aqui até que ele vá embora.

— Ah. Dane-se, de qualquer jeito. Seria simplesmente maravilhoso fazer coisas como estas, se não fosse tão... se não fosse pela minha família.

— Está tudo bem, minha cara. Qualquer dia desses eu a ensino a ser detetive. — Tentei consolá-la, pois seus lábios tremiam e eu não queria que ela chorasse, mas como eles começaram a tremer ainda mais, desisti. Virei-me para poder ficar de olho na porta e depois de uns dez minutos vi Cramer sair e descer as escadas. Liguei o carro, dei a volta no quarteirão, entrei novamente na Rua 35 e estacionei à frente da casa.

Sentei-me meio desinteressado para ouvir o interroga­tório. Não que eu fosse estúpido a ponto de não perceber que, se a máquina e os filmes tinham sido roubados, isso só poderia ter sido feito por alguém cuja intenção era esconder alguma coisa relacionada ao testamento ou ao assassinato. É claro que esta era uma possibilidade. Mas eu estava descrente por dois motivos. Primeiro, pelas con­fissões de Sara de ter traído o pai e assassinado o tio. Segundo, porque, apesar de ela viver no mundo da lua, não era nada idiota. Deve ter imaginado que a investiga­ção sobre o roubo da máquina acabaria expondo um dos membros da família ou alguém ligado a ela. Mas foi só no ano seguinte, quando a levei para assistir a um espe­táculo, que fui descobrir que ela suspeitava o tempo todo de uma pessoa de quem não gostava.

Pelo visto, Wolfe estava levando o roubo a sério. Fez questão de saber de todos os detalhes, se ela tinha certeza de ter deixado a máquina no quarto e os filmes na mala; também se preocupou em saber exatamente como e quan­do ela tinha contado aos outros sobre o roubo, o que eles tinham dito e como reagiram. Ela respondeu a todas as perguntas sem hesitar um instante, a não ser quando ele lhe falou sobre Stauffer. Ela parou um pouco, e então disse que não tinha contado nada para o Stauffer. Wolfe quis saber por quê, e ela respondeu que não acreditaria em uma palavra do que Stauffer lhe dissesse, e assim não adiantaria perguntar nada a ele.

Por quê? Será que ela sabia que Stauffer era um mentiroso?

Não, mas não gostava da boca de Stauffer, ou dos olhos, e não iria confiar nele.

Wolfe parecia surpreso. — Devo supor, Srta. Dunn, que a senhorita acha que foi o Sr. Stauffer quem roubou a sua máquina?

Ela balançou a cabeça. — Não estou esperando que o senhor suponha nada. Para mim detetives não supõem, apenas deduzem.

Wolfe resmungou. — É o que eles fazem quando é possível. Pelo menos tentam. De qualquer jeito, duvido muito que o fato de a senhorita não gostar da boca ou dos olhos do Sr. Stauffer vá servir para incriminá-lo. — Ele olhou para o relógio de parede. Marcava uma e quin­ze. — Bem, vamos tentar outra coisa, rápido, antes do al­moço. A senhorita disse que os dois rolos de filme que estavam na sua mala não tinham sido usados. Se o ladrão estava atrás de um rolo de filme usado, ele pegou os dois rolos que estavam mais à mão, sem ter tempo de verificar se eles tinham sido expostos ou não. Sendo assim, o único filme usado que ele levou foi o que estava na máquina.

Sara tornou a balançar a cabeça. — Ele não levou ne­nhum filme usado. Não havia nenhum na máquina.

Wolfe olhou-a aborrecido. — A senhorita disse que a foto tirada pela senhorita neste escritório à tarde era a última do rolo e o rolo estava na máquina quando a se­nhorita a levou para o quarto.

— Eu sei. Mas o senhor não me deixou terminar. Na sexta-feira à tarde, eu tirei o filme da máquina e o levei a uma loja para que o revelassem. Foi quando eu trouxe os outros dois rolos...

— Maldição! — exclamou Wolfe. — Onde estão elas?

— Onde estão o quê?

— As fotografias.

— Devem estar na loja — disse ela, enquanto remexia na bolsa e puxava um pedaço de papel. — Aqui está o talão. Eles disseram que ficava pronto no dia seguinte... isto é, ontem...

— Pode me dar isso, por favor? — Wolfe estendeu a mão. — Obrigado. Archie, chame Fred e Orrie.

Fui até a cozinha, onde os encontrei palitando os den­tes, depois de terem almoçado, e os acompanhei até o es­critório. Wolfe deu o talão para Orrie e disse:

— Isto é para pegar umas fotos. O endereço está aí. A Srta. Dunn deixou o filme lá na sexta-feira. Leve o carro; quero as fotografias e o filme aqui o mais rápido possível.

— Sim, senhor. — E se foram.

Wolfe se levantou e ficou olhando zangado para Sara. — A senhorita se importaria em tirar o chapéu, Srta. Dunn? Bom, deve ser um chapéu, já que está na sua ca­beça. Obrigado. Minha sala de jantar não é nenhum restaurante.

Pelo que eu saiba, foram raríssimas as ocasiões em que Wolfe permitiu que os negócios interferissem no ritmo das refeições, mas aquele domingo foi uma delas. Quando o melão, as costeletas e os brócolis foram servidos, ele passou a mesma meia hora de sempre se dividindo, calma­mente, entre a refeição e a conversa. Mas na hora da sa­lada, Fred e Orrie chegaram e ficaram esperando no es­critório. E eu tive de rir, primeiro quando Wolfe, que­brando a sua norma de nunca falar de negócios na sala de jantar, mandou Fritz perguntar a Orrie se ele tinha trazido o que lhe pedira, e depois quando preparou o molho da salada em seis minutos ao invés de oito. E se eu tivesse cronometrado o tempo levado para descascar e partir o pêssego, na certa descobriria um novo recorde. Embora seus passos não fossem propriamente ágeis quando ele saiu em direção ao escritório, eles também não iam se arrastando, como de costume.

Ele pegou o envelope com Orrie, pediu a ele e a Fred que esperassem lá fora, sentou-se, espalhou as fotos na mesa e chamou a Srta. Dunn.

— A senhorita vai ter que me ajudar, Srta. Dunn.

Fiz menção de lhe oferecer uma cadeira, mas ela recusou com um gesto e foi se sentar no braço da dele, equilibrando-se com a mão no seu ombro. Ele fez uma careta, mas não se opôs. Juntei-me a eles pelo outro lado, pois as fotos eram tão pequenas — tinham sido tiradas por uma Leitax — que tive que chegar mais perto para poder vê-las.

Eram trinta e seis fotos ao todo, e a maioria delas es­tava muito bem tirada. Wolfe foi separando diversas que nada tinham a ver com Hawthorne, ou Dunn, vivos ou mortos, incluindo nove das dez tiradas por ela segunda à noite na Feira Mundial. As restantes ele ia examinando com sua lente de aumento, enquanto pedia informações a Sara, e escrevia no verso de cada uma o lugar, a data e a hora em que tinham sido tiradas. Finalmente, tornou a colocar trinta fotos e mais os dois rolos no envelope, deixou-o de lado e se concentrou nas seis restantes. Sara cansou de ficar se equilibrando no braço da poltrona e foi se sentar no seu lugar num dos lados da escrivaninha. Com a minha lente a postos, comecei a observar as fotos uma por uma, na ordem em que Wolfe as ia deixando em cima da mesa para pegar outra. Quando acabei de ver as seis, comecei tudo de novo, já que não tinha conseguido descobrir nada demais.

Segundo Sara, a Número Um tinha sido tirada lá pelas nove horas da manhã de quarta-feira. Era May Hawthor­ne mostrando um dos corvos que Noel Hawthorne tinha matado no dia anterior e que Titus Ames acabara de en­contrar no mato; a Sra. Dunn o olhava com curiosidade enquanto April fazia cara de nojo. Sara tinha tirado esta sem eles esperarem. Logo depois, ao ouvir um barulho vindo do terraço, ela se virou e, vendo Daisy lá de pé com o véu, não resistiu. Esta era a Número Dois.

A Número Três tinha sido tirada logo depois das seis horas da tarde de terça-feira, quando Sara ia saindo da loja onde trabalhava e encontrou Glenn Prescott lá fora com o carro, esperando para levá-la para a casa de campo. A Número Quatro tinha sido tirada umas três horas antes na mesma tarde de terça-feira. Sara tinha ido até Park Avenue para entregar um jarro a um cliente que tinha pressa e, como de costume, tinha levado a máquina fotográfica com ela. Foi então que viu, atravessando a calçada, a mesma mulher que, havia alguns meses, entrara no Hartlespoon’s em companhia do Tio Noel. A porta do carro para onde a mulher se dirigia estava sendo aber­ta por um homem, que ela reconheceu como sendo Eugene Davis, o sócio de Glenn Prescott, apesar de não tê-lo visto durante muito tempo. Ela tirou a foto enquanto a mulher se aproximava do carro.

A Número Cinco havia sido tirada na quarta de ma­nhã, um pouco antes da Número Um. Ela tinha ido até o bosque para ver o lugar onde tio Noel tinha se defron­tado com a morte e, ao encontrar o pai, o irmão e Osric Stauffer juntos, resolveu registrar a cena. Os três apare­ciam protestando contra a foto. A Número Seis não pre­cisava de nenhuma explicação. Era a que ela tinha tirado com um flash no escritório de Wolfe na sexta-feira à tarde.

Minhas lentes eram tão boas quanto as de Wolfe, assim como minha capacidade de captar detalhes, mas depois de examinar as fotos pela terceira vez acabei desistindo. Na minha opinião, a única coisa que aquelas fotos provavam era que Sara sabia usar uma Leitax. Fui até minha escrivaninha e me sentei.

Wolfe também já tinha terminado. Ele estava recostado na sua poltrona, com os olhos fechados. Fiquei observan­do-o. Soltava os lábios e depois os comprimia, formando uma linha fina. Fiquei observando-o e tentando descobrir se ele tinha realmente encontrado alguma pista ou se es­tava apenas blefando. Se estava blefando, só podia ser para mim, já que Sara Dunn não sabia o significado da­quele movimento de lábios.

De repente ela perguntou: — E então? O senhor está fazendo alguma dedução?

Ele parou de mexer os lábios. Suas pestanas se levan­taram o suficiente para poder vê-la, e depois de alguns instantes ele balançou a cabeça devagar.

— Não — murmurou — a dedução já terminou. Foi simples. A parte mais difícil...

— Mas o senhor... — Ela ficou rígida, olhando para ele. — O senhor não quer dizer que... aquelas fotos... não é possível...

— As fotos, não. A foto. Só uma delas. A partir dela eu deduzi, entre outras coisas, que se a senhorita voltar para aquela casa é bem provável que seja assassinada. E como nós vamos precisar da senhorita... O que há, Fritz?

Fritz fechou a porta atrás de si, aproximou-se e disse:

— Uma visita, senhor. O Sr. John Charles Dunn. Um cavalheiro e três senhoras o acompanham.

 

Houve um momento de silêncio e então Sara Dunn pu­lou da cadeira e agiu como se fosse um furacão.

Apesar de tudo, ela era jovem e ágil, e a situação pode­ria ficar crítica se suas mãos estivessem livres para con­tinuar com o estrago que Daisy tinha feito no meu rosto no dia anterior, mas elas estavam ocupadas pegando as fotografias. Uma delas segurava o envelope com as trinta fotos e os filmes, e a outra já ia alcançando as seis res­tantes, quando eu consegui agarrá-las. Num gesto rápido e hábil, imobilizei ao mesmo tempo os braços dela e o corpo, da cintura para cima, com o meu braço esquerdo, enquanto com a mão direita tapei-lhe os olhos e o nariz, mantendo a parte de trás de sua cabeça de encontro às minhas costelas. Não dava nem para ela chutar, pois meus joelhos comprimiam as pernas dela contra a escrivaninha.

Wolfe perguntou: — Você a está machucando?

— Sem comentários.

Ele resmungou algo, levantou-se, veio até a escrivani­nha e tirou o envelope da mão dela. Ela não estava segu­rando com muita força por causa da pressão nos braços. Ele então pegou as seis fotos que ela não havia conse­guido alcançar, colocou-as no envelope, foi até o cofre, pôs o envelope numa gaveta e trancou a porta.

Foi andando devagar até a sua poltrona, acomodou-se e disse contrariado: — Não gosto da expressão do seu rosto quando você está fazendo uma coisa destas. Solte-a.

— Ela pode gritar.

— Então espere um instante. — Ele olhou-a bem nos olhos. — A senhorita já fez tudo o que pôde e agora é impossível voltar atrás. Vou terminar com esse assunto o mais rápido possível. Ninguém da sua família, nem seu pai, sua mãe ou seu irmão, vai sofrer coisa alguma com isso, e tampouco a senhorita. Além do mais, a senhorita não deve sair daqui. O fato de o assassino tentar roubar o filme mostra que ele está consciente da asneira que fez. Ele não sabe onde estão as fotografias, e é preciso que continue sem saber, mas sabe que qualquer coisa que tenha sido vista pela sua máquina também foi vista pela senhorita. Ele é um estúpido e um imbecil, mas isso apenas aumenta o risco que a senhorita está correndo. Quero a sua promessa de que não vai sair desta casa, porque senão eu vou ter de dar à polícia uma série de informações que eles não estão preparados para digerir e passar para eles toda a responsabilidade da sua morte. Pode soltá-la, Archie.

Como ela não deixava de ser uma Hawthorne, preferi não me arriscar, e enquanto tirava os braços de volta dela, ia-me afastando. Mas ela me ignorou totalmente. Firmou-se na escrivaninha, respirando para obter o oxi­gênio que lhe faltava, e falou ofegante:

— O senhor disse ele.

Wolfe balançou a cabeça. — A senhorita vai ter de esperar, Srta. Dunn. É um assunto muito delicado. Gos­taria de cumprimentá-la pela atitude que a senhorita tomou, não obrigando o Sr. Goodwin a tapar a sua boca e trancá-la lá em cima. Estou-me guiando pelos seus olhos. A senhorita não deve deixar esta casa nem contar a nin­guém sobre as fotografias...

A porta se abriu de supetão e John Charles Dunn en­trou meio trôpego, com May e June, Celia Fleet e Osric Stauffer logo atrás dele. Ele não chegou a tropeçar, mas esbarrou numa cadeira, parou, firmou-se nela e disse:

— Fiquei cansado de esperar. Todos nós ficamos can­sados de esperar.

Sara olhou para ele e, vendo aquele rosto abatido com os olhos injetados, precipitou-se em sua direção, choran­do: — Papai! Papaizinho!

Ela colocou os braços ao redor do seu pescoço e o beijou. Pelo menos essa atitude da profissional em dia­bruras serviu para aliviar a tensão. Dunn abraçou a filha enquanto tentava se controlar para não chorar. Celia Fleet olhou para eles e mordeu o lábio inferior. Stauffer ficou em volta, com os olhos tão injetados quanto os de Dunn. June sentou-se, pegou um lenço e enxugou duas lágrimas que lhe corriam pelo rosto. May se aproximou decidida até a mesa de Wolfe e disse com desprezo:

— Eu não queria vir até aqui. Só vim porque minha irmã e meu cunhado insistiram. Por que o senhor fugiu? Por medo ou por traição?

— Escute, Srta. Hawthorne — protestou Stauffer —, isso não vai adiantar para nada...

— April foi presa — explodiu June. — Eles a pren­deram.

Enquanto isso, eu tentava ajudar colocando cadeiras aqui e ali. Eles estavam num estado deplorável.

— Ela não foi presa — disse Dunn enquanto afunda­va numa cadeira, sem ver onde estava se sentando. Sem­pre um advogado, mesmo nas horas mais difíceis. — Ela foi chamada a comparecer ao escritório do promotor pú­blico e foi até lá. Mas do jeito que as coisas estão agora...

— Ouça o que eu digo, John — interrompeu May —, antes que se conte qualquer coisa a esse homem, é preciso que ele nos dê uma explicação razoável para...

— Bobagem — disse Stauffer furioso. — Que infer­no! Vocês falam como se pudéssemos escolher...

— Por favor, todos vocês! — Wolfe fez um gesto tran­qüilizador. — Não adianta ficar discutindo desse jeito. A cabeça de vocês não está funcionando direito. — E diri­gindo-se para May: — Pelo visto, Srta. Hawthorne, a senhorita ficou ofendida porque, quando o corpo da Srta. Karn foi encontrado, eu vim para casa para poder pensar melhor, ao invés de ficar lá sentado a noite toda, mor­rendo de fome e olhando para o teto. Pensei que fosse um pouco mais sensata. E respondendo à sua pergunta, não foi nem por medo nem por traição, mas sim por perspi­cácia. Além disso, não sou obrigado a dar conta dos meus atos à senhora. A senhora e os outros me contrataram para negociar com a Srta. Karn, e ela está morta. O Sr. Dunn me contratou para que eu investigasse a morte de Noel Hawthorne. — E dirigindo-se para Dunn. — O senhor quer que eu continue?

— Sim, é claro. — Dunn não parecia muito entusias­mado. — Mas eu não sei o que é que o senhor pode fazer... Prescott está lá com April.

— Vamos esclarecer as coisas — sugeriu Wolfe. — April não está correndo nenhum perigo, a não ser o de ser importunada.

Todos olharam para ele. May perguntou: — Como é que o senhor sabe disso?

— Eu sei muito mais do que isso — assegurou ele. — Mas isso é só o que eu posso lhes oferecer no momento. Aceitem, é bom... Para o senhor, Sr. Dunn, eu tenho uma sugestão a fazer. Ontem, o Sr. Goodwin encontrou a Srta. Karn sentada na sala de estar conversando com April Hawthorne, disfarçada de Daisy Hawthorne.

Dunn assentiu. — Isso era uma das coisas...

— Uma das coisas que o senhor queria falar comigo. É claro. Mas vamos à minha sugestão: o Sr. Goodwin, seguindo um impulso, abriu as cortinas que escondem o bar e encontrou o Sr. Stauffer lá de pé. Ontem à noite Stauffer ofereceu mil dólares a Goodwin para não contar nada à polícia. Goodwin não se deixou subornar, mas também não contou nada à polícia e eu também não men­cionei o fato para o Inspetor Cramer quando ele esteve aqui hoje de manhã. Mas nós podemos forçar Stauffer a nos dar algo em troca. Como ele era o substituto de Hawthorne no departamento de assuntos externos da Daniel Cullen & Cia., devia saber como o empréstimo à Ar­gentina foi descoberto. Se foi conforme o senhor suspei­tava ontem, quando a Sra. Hawthorne foi encontrada...

— O senhor está por fora — interrompeu Stauffer asperamente.

As sobrancelhas de Wolfe se levantaram: — Por fora?

— É. O senhor vai sugerir a Dunn que ele me force a contar a verdade sobre o caso do empréstimo sob a ameaça de contar à polícia que eu estava escondido atrás daquela cortina quando Naomi Karn estava lá. Não é isso?

— Achei que era uma boa idéia.

— Bem, o senhor está atrasado. Enquanto Hawthorne estava vivo era impossível para mim contar isso a Dunn, eu simplesmente não podia, mas contei-lhe hoje de ma­nhã e a Sra. Hawthorne confessou tudo e nós fizemos com que ela assinasse uma declaração. Foi por isso que -ela quis se vingar e foi até a polícia com um monte de mentiras...

— Não sabemos se ela mentiu — objetou May. — Mesmo se ela disse apenas a verdade, isso já é o bastante para duvidar da afirmação de Wolfe de que April não corre perigo.

— Vamos colocar as coisas em ordem, enquanto pros­seguimos — interrompeu Wolfe. — Quer dizer que ficou claro que o senhor não teve nada a ver com o caso do em­préstimo, Sr. Dunn?

— Ficou claro que eu não sou nenhum traidor — disse Dunn com tristeza. — Mas deixei aquela maldita mulher me fazer de tolo. E, de qualquer jeito, com toda essa con­fusão... está tudo terminado...

— Ainda não — declarou Wolfe. — Tudo só vai ter­minar quando eu tiver liquidado com isto. Pode ser até que hoje à noite vocês já possam dormir em paz, ou no máximo amanhã. Mas eu preciso da ajuda de vocês para esclarecer certas coisas... Com licença...

O telefone estava tocando. Atendi, mas ele devia estar tão impaciente que foi logo pegando na extensão dele. — Escritório de Nero Wolfe — falei.

— Saul Panzer, Archie. Três e dezoito. Estou ligan­do da...

A voz de Wolfe interrompeu-o: — Não desligue. — Ele colocou o fone no gancho, levantou-se e disse bruscamen­te: — Sem gravação, Archie — e saiu em direção à porta. Fritz, que estava por lá, sem saber o que fazer, saiu junto com ele. Liguei a extensão na cozinha, coloquei o fone no ouvido e desliguei quando Wolfe começou a falar com Saul.

May Hawthorne disse, sarcástica: — Ele é um charla­tão. Com essa conversa de que vamos dormir esta noite! Estou avisando, alguém precisa fazer alguma coisa! Prescott está lá com April! Ele é um bom advogado, mas não é a pessoa indicada para tratar disso. E Andy é uma crian­ça. Esse Wolfe não faz outra coisa a não ser falar... Ora! Estamos perdidos!

Dunn murmurou sem muita convicção: — Ele disse que April não corre perigo...

— É mentira! — bufou May. — Pelo amor de Deus, se o melhor que a gente pode fazer à beira da calamidade é ficar aqui sentado, ouvindo...

— Cale a boca, May — interrompeu June. — Pare de reclamar. Você sabe muito bem que ou é Nero Wolfe ou nada. O que as outras pessoas nos deram, além das mais sentidas condolências? O que nós temos mais a perder? Pare de atormentar o Dunn. Ele estava à beira de um co­lapso antes de acontecer tudo isso. — Os olhos dela se desviaram da irmã e foram deter-se na filha. Quando ela falou, havia outro tom em sua voz. — Sara, querida. Se você não quiser, não precisa me dizer, mas eu gostaria de saber por que você veio até aqui. Foi o Sr. Wolfe quem a chamou?

— Foi. — Sara estava sentada numa cadeira perto do pai. — Ele queria me perguntar sobre o roubo da minha máquina fotográfica. Eu falei sobre isto ontem com a se­nhora, e à noite contei ao Sr. Goodwin. É claro que a única coisa a dizer ao Sr. Wolfe é que alguém a tinha le­vado e eu não tinha a mínima idéia de quem tinha sido.

Eles então começaram a discutir sobre a máquina. Ti­nha havido dois assassinatos, uma fortuna de milhões de dólares tinha ido por água abaixo, pelo menos no que di­zia respeito a eles, Dunn estava desmoralizado, April estava sendo interrogada como suspeita de assassinato e eles estavam discutindo sobre a máquina. Isso teria sen­tido se ao menos eles tivessem alguma idéia da relação entre a máquina e aquela desgraça toda, mas eu achava que ninguém sabia de nada.

Estavam ainda discutindo quando Wolfe entrou.

Ele afundou na sua poltrona e olhou para cada um de­les. — Agora — disse bruscamente — vamos colocar as coisas em ordem. Em primeiro lugar, a Sra. Hawthorne, querendo se vingar de vocês, acabou se dando mal com aquele caso do empréstimo à Argentina. Uma das coisas que ela deve ter contado à polícia foi o fato de Andy ter achado uma centáurea na roseira e de April estar usando um ramo de centáureas, recebido do Sr. Stauffer, na terça-feira à tarde.

Todos pareciam surpresos. Stauffer não se conteve. — Como é que...

Wolfe fez um gesto para que ele se calasse: — Deixe-me continuar. Não estou tentando confundir vocês. Eu soube dessa história, em primeira mão, ontem, pela pró­pria Sra. Hawthorne. Ela contou isso à polícia?

— Contou — respondeu June.

— E deve também ter contado a cena vista por uma das janelas, terça à noite, quando Andy mostrou a centáurea para a senhora e para o seu marido, dizendo onde ele a tinha encontrado. A polícia interrogou a senhora sobre isso?

— Sim.

— E a senhora admitiu que isso tenha acontecido?

— É claro que não. Não era verdade. Nós negamos tudo.

— Todos os três?

— Sim.

Wolfe resmungou. — Isso não é nada bom. Vocês vão se arrepender disso.

— Arrependermo-nos de quê, se nós apenas...

— Apenas contaram a verdade, Sra. Dunn? Oh, não. Vocês mentiram. Não pense que sou um idiota. Nem pense que o Sr. Cramer o seja. A Sra. Hawthorne não inventou essa história. Na verdade, quem devia ter contado isso a mim era a senhora, já que me contratou para este caso. Ou a senhora me conta a verdade agora, ou então saia deste escritório e não conte mais comigo. Eu não estou sendo prepotente só pelo prazer de ser. É importante, e talvez seja até vital, que eu tenha uma declaração sua, do seu marido e do seu filho, de que uma centáurea foi en­contrada lá, e vocês a viram. E então?

Isso é um truque — exclamou May.

— Caramba! — disse Wolfe fazendo uma careta para ela. — Isso tudo está deixando a senhora embotada. Eu não faço truques com os meus clientes. — E dirigindo-se a June: — E então?

Dunn perguntou: — Essa sua afirmação de que April não está correndo perigo tem algum fundamento?

— Tem. Não posso revelar qual é, mas tem. É melhor o senhor adquirir alguma confiança em mim, senhor, ou então me despedir.

— Está certo. Andy encontrou uma centáurea lá e a mostrou para mim e para minha mulher.

— Foi na terça à tarde, como a Sra. Hawthorne falou?

— Foi.

— E o que o senhor fez com ela?

— Joguei-a na lareira.

— A senhora confirma isso, Sra. Dunn?

Ela hesitou por uns segundos e então disse decidida: — Sim.

— Ótimo. — Wolfe olhou-a aborrecido. — A senhora vai ter de se retratar com a polícia, mas é por sua própria culpa. A senhora me contratou e deveria ter-me consul­tado. Bem, vamos ao próximo item: a sua irmã fantasiada de Sra. Hawthorne. O Sr. Goodwin a viu lá com a Srta. Karn, e ao chegar na biblioteca me viu com a Sra. Haw­thorne. Ele teve certeza de que quem estava na biblioteca era a verdadeira Sra. Hawthorne, quando tentou tirar-lhe o véu. Vocês ouviram o grito. Chegamos à conclusão de que a imitação lá de baixo só podia ser April, a exímia atriz. A Sra. Hawthorne também contou isso para a polícia?

— Contou — respondeu June.

— Como ela soube disso?

— Turner contou a ela. O mordomo. Eu estava por acaso no saguão, quando a Srta. Karn chegou, dizendo que queria falar com a Sra. Hawthorne. Disse a Turner que a levasse até a sala de estar e deixasse o resto por mi­nha conta. Enquanto eu ia subindo as escadas, tive uma idéia. Daisy estava na biblioteca com o senhor. Pensei, então, em pedir a April para pegar um vestido e um véu no quarto de Daisy e ir lá descobrir o que a Srta. Karn tinha a dizer. Fui falar com ela no quarto de May, e elas acharam a idéia ótima. O Sr. Stauffer também estava lá, e ele...

— Eu não — disse Stauffer secamente. — Isto é, eu não aprovei nem um pouco a idéia. Muito pelo contrário. Fui então até o bar, pela porta de trás e fiquei escondido atrás das cortinas para proteger April. Foi quando Goodwin me viu.

— E quanto a Turner? — Wolfe perguntou dirigindo-se a June.

— Não acho que ele tenha suspeitado de nada quando viu April descendo as escadas. Ela estava perfeita. Ela sempre é. Mas soube que havia duas Daisies na hora em que entrou na biblioteca para avisar ao senhor que um dos seus homens tinha chegado. Naquele momento ele não pôde contar para a patroa dele porque não sabia qual das duas era ela, mas contou depois.

— E agora ela contou para a polícia.

— Sim.

— E vocês todos foram interrogados sobre isso.

— Sim.

— E vocês então, com exceção do Sr. Stauffer, conta­ram exatamente o que aconteceu.

— É claro que não. Nós negamos tudo.

— Valha-me Deus! — Wolfe suspirou e comprimiu os lábios. — Vocês negaram tudo?

— Sim.

— April também?

— Sim.

— E por acaso Turner é algum mentiroso?

— Não. Ele pode... nós apenas dissemos... ele pode ter se enganado.

— Que Deus os proteja — disse Wolfe com desgosto. — Só ele pode. Quer dizer que vocês apenas disseram! É um verdadeiro milagre não estarem todos atrás das gra­des. Prescott sabia disso tudo?

— Não. Ninguém mais soube além de April, May e eu... e o Sr. Stauffer. Nem mesmo meu marido, até que contei a ele hoje de manhã. E eu lhe peço, por favor, Sr. Wolfe, que o senhor... que o senhor entenda. Não cos­tumo agir como uma tola, nem nenhuma de nós. Mas isso tudo nos deixou tão chocadas, confusas e impotentes, que todo o bom senso que tínhamos foi por água abaixo. Em relação a mim e ao meu marido isso foi acontecer em meio a uma tensão enorme que já se prolongava por alguns meses... o senhor precisa entender...

Ela não tinha mais o que dizer. Wolfe falou rispidamen­te. — Eu entender não vai adiantar nada para a senhora. Isso a senhora pode conseguir em outro lugar. Conte-me o que a Srta. Karn disse para a sua irmã fantasiada de Sra. Hawthorne.

— Que queria um milhão de dólares.

— A senhora quer dizer que só assinaria um acordo por um milhão de dólares?

— Isso mesmo. Ela disse que a proposta que o senhor tinha feito era ridícula, mas que ela ficaria satisfeita com um milhão. April saiu logo depois que o Sr. Goodwin a viu, porque sabia que ele iria ter com a Daisy na biblioteca. Ela disse à Srta. Karn que ia subir para nos consul­tar, mas foi direto para o quarto de Daisy, para se livrar do vestido e do véu.

— E o senhor, Sr. Stauffer? Quanto tempo o senhor ficou lá atrás das cortinas?

— Fiquei lá por mais alguns instantes porque April poderia voltar. Mas quando o Sr. Goodwin entrou lá e me viu, percebi que ela não voltaria.

— A Srta. Karn estava lá sentada quando o senhor saiu?

— Acho que sim. Eu não cheguei a vê-la.

— Quero que vocês todos me respondam a uma per­gunta — disse Wolfe enquanto olhava para eles. — Quan­do o Sr. Goodwin saiu da sala de estar depois de conver­sar rapidamente com a Srta. Karn, eram três e dez. Algum de vocês chegou a vê-la, ainda com vida, depois disso?

Todos balançaram a cabeça. Dunn disse: — Prescott me disse que Davis contou a ele que a Srta. Karn já não estava mais na sala de estar quando ele entrou lá, um pouco antes das cinco.

— Foi Turner quem acompanhou Davis até a sala de estar?

— Não. Eu li o depoimento de Turner. Davis entrou sozinho na sala de estar, e Turner subiu à procura de Prescott.

— E Davis admitiu isso?

— Ele não admitiu nada. Ninguém conseguiu encon­trá-lo. Pelo menos até hoje de manhã.

— Hum. — Wolfe semicerrou os olhos. — O senhor sabe onde ela está?

— Claro que não. Como é que eu poderia saber?

— Não sei, estou apenas perguntando. Talvez Prescott saiba. Davis saiu ontem da biblioteca feito uma flecha, às quinze para as seis, e Prescott foi atrás dele logo depois. O que o senhor me diz disso?

— Prescott disse que, quando chegou ao saguão, Davis estava abrindo a porta da frente para sair. Ele o chamou, mas Davis se foi sem responder. Turner estava lá e o de­poimento dele confirma isso. Stauffer e eu estávamos na sala de estar com aquele tenente da polícia e o Ritchie da Companhia de Seguros. Eu mesmo ouvi a voz dele cha­mando o Davis, fui até lá e o convidei a ficar conosco. Minutos depois, pedimos a Turner que fosse até a biblio­teca chamar o senhor. — A voz de Dunn estava mais ani­mada e seus olhos se tornaram alertas e brilhantes. Eles se voltaram para Wolfe, como se quisessem sondá-lo e, de repente, Dunn perguntou: — E o que o senhor tem a me dizer sobre Davis?

Wolfe balançou a cabeça. — Nada de mais. Só fiquei curioso. O fato de ele não ser encontrado...

— Não acredito — disse Dunn já exaltado. — Eu ouvi quando o seu assistente lhe contou algo sobre Davis on­tem: ele o encontrara bêbado em algum canto. Se o senhor espera que eu confie no senhor, pode ao menos dar-me uma idéia do que...

— Não, não posso — interrompeu Wolfe. — E, além disso, não ia adiantar nada. Logo que possível, vou dar-lhe algo bem melhor do que uma idéia, e o senhor vai saber quando chegar a hora. — E, dirigindo-se aos outros: — É melhor vocês comerem algo, tirarem os sapatos e descan­sarem um pouco.

— Meu Deus! — exclamou May Hawthorne. — Se o senhor é um impostor, é o melhor que eu já vi. São qua­tro horas e o senhor vai subir para ver as suas orquídeas.

— Exatamente — concordou Wolfe. — E colocar al­gumas coisas no lugar, inclusive a minha cabeça. — Ele se levantou e dirigiu-se a Sara: — A senhorita quer vir comigo, Srta. Dunn? A senhorita disse que gostaria.

 

Quando o Inspetor Cramer chegou, um pouco antes das seis, eu estava na cozinha espremendo limão. Várias coisas tinham acontecido depois que Wolfe tinha subido com Sara, mais ou menos nesta ordem:

Os visitantes tinham saído, tão abatidos quanto tinham entrado, depois de nos informar que haviam abandonado a mansão dos Hawthorne, na Rua 67, e se mudado para um hotel, por causa da intimidade de Daisy com a polícia.

Wolfe tinha telefonado da estufa com algumas instru­ções. A primeira era para que Orrie Cather subisse. Falei com Orrie, e algum tempo depois ele desceu e saiu. A se­gunda, para que Fred Durkin fosse até a casa onde Eugene, Davis era Earl Dawson, na Rua 11, com instruções para que o trouxesse ao escritório. Falei com Fred e o despa­chei. A terceira, para que eu colocasse Raymond Plehn na linha, se possível. Esta eu realmente não entendi. Plehn era o especialista em horticultura da Ditson & Cia., uma das melhores lojas de flores. Fiquei sem entender mais ainda quando ouvi Wolfe pedindo-lhe que viesse até o es­critório o mais rápido possível.

Saul Panzer e Johnny Keems telefonaram e, em ambos os casos, Wolfe me pediu que passasse as ligações direto para a estufa, e não ficasse na linha, e isto significava que não ia adiantar nada eu ficar usando os meus poderes de dissimulação e ia acabar ficando ainda mais irritado por nem saber em benefício de quem deveria utilizá-los.

Outra coisa que me deixou mais irritado foi o fato de eu me haver proposto a descobrir qual o erro nas fotogra­fias de Sara e não conseguir chegar a lugar nenhum. Pe­guei as seis fotos do cofre, fui até a janela e pus-me a examiná-las de encontro a toda aquela claridade com a maior lente disponível, mas foi o mesmo que examinar cartões postais do Grande Canyon. Não encontrei nada lá que pu­desse solucionar um crime. Se havia, eu não era capaz de ver; mas enquanto estava lá, Raymond Plehn chegou. Avi­sei a Wolfe e ele pediu que Fritz o levasse até o elevador, junto com o envelope com as fotografias, a lente de au­mento e aquela coisa trazida por Fred de Rockland County que estava num vaso na cozinha, com a sua sacola cheia de pistas. Fiquei todo animado. Sabia que não era nenhuma artimanha, pois ele não iria chamar Raymond Plehn só para me deixar curioso. Andei de lá para cá no andar inteiro, pensando nisso, mas não me veio nada à cabeça. Eu ainda estava lá, tentando encontrar algo quando ouvi o elevador descer e vi Fritz levando Plehn até a porta. Ele foi até o escritório para me entregar o enve­lope, e tornei a colocá-lo no cofre, sem pensar duas vezes.

Neste ínterim, tinha havido mais dois telefonemas O primeiro tinha sido de John Charles Dunn, do hotel, di­zendo que April havia voltado do escritório do promotor público sã e salva, e que não sofrera nada além de uma dor de cabeça. Que Andy Dunn tinha vindo com ela, mas Prescott não. Prescott ficara com eles durante todo o in­terrogatório, mas depois saíra. Deixara um recado para Dunn: comunicar-se-ia com ele mais tarde. O segundo te­lefonema havia sido de Fred Durkin. Ele tinha tocado o botão com o nome “Dawson” e, não obtendo resposta, pedira ao porteiro para entrar e subira até o apartamento, mas ninguém abrira a porta apesar dos socos e pontapés dados. Estava telefonando de uma loja perto da esquina. Disse a ele que esperasse, liguei para Wolfe pela linha in­terna e ele mandou que Fred não saísse de lá.

Logo depois, quando eu estava na cozinha espremendo limões, Cramer chegou. Fritz levou-o até o escritório e num instante eu já estava lá, oferecendo-lhe um copo de limonada gelada. Ele nem ao menos disse não, apenas res­mungou. Pelo olhar de desprezo que me lançou, parecia que eu o tinha denunciado ao seu superior.

Coloquei os dois copos na minha escrivaninha, sentei-me e falei: — Esse tempo está simplesmente insuportável — e mexi a minha limonada com a colher.

— Vá pro inferno — disse ele. — Eu quero falar é com Wolfe.

— Está bem, meu chapa. Ele deve descer daqui a pou­co. Nada do que você disser a ele vai me fazer mal. Eu pretendo me demitir. Ele está cheio de artimanhas e de mistérios novamente, e já não agüento mais. Sabe como é? Milhares de pessoas telefonando e eu não podendo ouvir porque não consigo ficar impassível. Bolas! O que que ele acha que eu sou? Um escravo? Um reles empregadinho? Como é que estão as possibilidades de emprego na polícia?

— Quer calar a boca?

— Está bem. Você vai ficar surpreso. Eu vou me calar. — E foi o que fiz enquanto tomava a minha limonada. Tinha terminado o primeiro copo e já ia tomar o segundo quando Wolfe entrou. Pelo visto, tinha deixado Sara lá em cima com Theodore Horstmann, pois estava sozinho. Cumprimentou Cramer, sentou-se à sua escrivaninha, pe­diu cerveja e soltou um suspiro.

Olhou o inspetor com os olhos quase fechados. — Algo de novo?

— Não. — O tom de Cramer não era dos mais agra­dáveis. — Tudo velho. — Ele tirou um pedaço de papel do bolso, desdobrou-o, olhou-o rapidamente e o passou para Wolfe por cima da escrivaninha — Dê uma olhada nisso.

Wolfe pegou o papel, leu-o, deixou-o cair na escrivani­nha e tornou a se recostar. E soltando um risinho: — Isso está datado de hoje. Não tem nada de velho.

— Não — concordou Cramer. — Nesse aspecto até que ele é bem novo. Mas o que o tornou necessário foram os seus velhos truques. Você não pode se queixar. Eu lhe fiz uma proposta hoje de manhã, mas você recusou. Está bem. Estou lhe fazendo um favor vindo aqui procurá-lo. Mesmo se eu quisesse evitar isso, não poderia. Todo mun­do, desde o presidente dos Estados Unidos até o pre­sidente do diretório de Varney College, está tentando se intrometer nisso. Juro por Deus. Mas não vim aqui para pedir desculpas. — Ele apontou para o papel em cima da escrivaninha.

— Isso foi idéia de Skinner, mas não me opus. Eu lhe avisei mais de um milhão de vezes que você ia se dar mal, e aí está. Que diabo você pensou, que só por ter clientes importantes, poderosos e influentes, podia depender deles para tirá-lo disso, não importa...

— Não dependo dos meus clientes. Eles é que depen­dem de mim.

— Bem, desta vez eles não tiveram nem um pouco de sorte. Você perdeu a oportunidade de evitar isso hoje de manhã. Você podia ter-me contado a história da centáurea que a Sra. Hawthorne disse que Andy encontrou. Podia ter revelado que April Hawthorne esteve com Naomi Karn disfarçada com um véu. E só para você ver que não tem mais escapatória, nós sabemos que o Goodwin a viu lá e que logo depois viu a Sra. Hawthorne na biblioteca com você. É este tipo de coisa que vamos discutir no escritório do promotor público, e mais algumas. Vamos embora, pegue o seu chapéu. Estou com um carro que não sacoleja muito.

Wolfe olhou-o um tanto surpreso e disse calmamente: — Bobagem. Diga-me o que você realmente está querendo.

— Eu já lhe disse hoje de manhã, e de que adiantou? — Cramer levantou-se. — Vamos, estão esperando por nós no escritório de Skinner.

— Hoje é domingo, Sr. Cramer.

— Exatamente. É eu duvido muito que você consiga sair sob fiança até amanhã. Vou providenciar uma cama que sirva para o seu tamanho.

— Você não vai conseguir. Isso é ridículo.

— É claro que é. Vamos. Posso me cansar de ficar ban­cando o educado.

— Você está falando sério, não está?

— Estou, você sabe.

— Então vou lhe pedir um favor. Preciso de três ou quatro minutos para ditar uma carta. Na sua presença.

Cramer olhou-o intrigado. — Para quem?

— Você vai ver.

Cramer hesitou por alguns instantes, sentou-se e res­mungou: — Pode ditar.

— Seu bloco, Archie — disse Wolfe. — Abri a gaveta e peguei-o. Ele se recostou, fechou os olhos e começou no mesmo tom monótono de sempre:

“A W. B. Oliver, redator da Gazette. Caro Sr. Oliver. O Inspetor Fergus Cramer me levou preso como testemu­nha material no caso Hawthorne-Karn, e eu só devo con­seguir sair sob fiança amanhã. Sendo assim, gostaria de expor o Inspetor e seus superiores ao ridículo, e, feliz­mente, estou em posição de fazê-lo. O senhor sabe quanto vale a minha palavra. Sugiro que o senhor publique estes fatos na sua edição de segunda-feira. Que a minha prisão foi causada por inveja profissional. Que graças à minha conhecida capacidade de interpretar provas, eu descobri a identidade do assassino. Que ainda não estou preparado para revelar essa identidade, com receio de que eles po­nham tudo a perder, prejudicando a armadilha que armei para o criminoso. Que quando chegar a hora — o senhor pode mencionar que será em breve — a prisão será feita por representantes da Gazette, e eles vão entregar o assas­sino à polícia, junto com provas irrefutáveis da sua culpa­bilidade. No máximo até segunda-feira ao meio-dia já devo ter sido liberado sob fiança, e gostaria de convidá-lo para almoçar comigo à 1:30h para que possamos discutir os detalhes, inclusive no que diz respeito à quantia que vocês estarão dispostos a me pagar por este furo. Sem mais, subscrevo-me atenciosamente.” Coloque o meu nome embaixo e certifique-se de que isso vai chegar às mãos do Sr. Oliver antes das dez horas de hoje.

Wolfe levantou-se, resmungando como de costume. — Bem, senhor. Estou pronto.

Cramer continuou imóvel e rosnou: — Isso não vai che­gar às mãos de Oliver. Goodwin vai comigo também.

Wolfe deu de ombros. — Isso só vai servir para atrasar as coisas por vinte e quatro horas. Ele pode publicar na terça ao invés de na segunda.

— Ele não teria coragem. Nem você. Você conhece a lei. Oliver nem sonharia em mexer nisso. Esse caso...

— Ora, qualquer que seja a lei, se entregarmos o as­sassino e as provas, seremos considerados heróis. Vamos, estou pronto.

— Você vai perder a sua licença de detetive.

— O que vou ganhar da Gazette vai ser o suficiente para eu me aposentar.

— Até que ponto isso é um blefe?

— Não há nenhum blefe. Estou dando a minha pala­vra ao Sr. Oliver. Cramer olhou para mim e eu retribuí com um sorriso. Ele lançou um olhar indignado para Wolfe e, de repente, o sangue lhe subiu à cabeça e ele explodiu. Com um salto, golpeou a mesa e gritou para Wolfe: — Sente-se! Seu hipopótamo de uma figa! Sente-se!

O telefone tocou.

Virei-me para atendê-lo e ouvi a voz de Fred Durkin sussurrando num tom urgente:

— Archie? Venha até aqui o mais rápido possível. Es­tou naquele lugar novamente e encontrei o cara quase morto.

— Sinto muito — respondi com gentileza —, mas eu não posso interromper o Sr. Wolfe no momento. Agora ele não vai poder atender, pois está recebendo uma pessoa da polícia. Espere um instante, por favor. — E dirigindo-me a Wolfe, sem afastar muito a boca do fone para que Fred pudesse ouvir também: — É aquele tal de Dawson. Ele já telefonou esta tarde. Conseguiu uma caixa de Cattleya mossiae da Venezuela e está querendo cem dólares pela dúzia. Ele teve uma proposta...

— Não posso sair agora.

— Eu sei que você não pode...

— Mas você sim. Diga a ele que você vai chegar lá num minuto.

Voltei ao telefone: — O Sr. Wolfe disse que vai querê-las se estiverem em boas condições. Eu vou até aí dar uma olhada. Devo chegar dentro de uns quinze minutos.

Desliguei e saí. Uma coisa de que não gostei foi que, se Cramer quisesse, poderia descobrir num segundo de onde tinha vindo o telefonema, mas, por sua expressão, parecia ter outras preocupações.

O carro de Cramer estava estacionado bem atrás do meu. Cumprimentei os dois tiras que estavam lá dentro, entrei no meu e fui-me embora. Eles não deviam ter rece­bido nenhuma instrução para me seguir, mas preferi ter certeza dando uma volta até a Rua 34, onde parei por uns instantes. Como não vi ninguém atrás de mim, segui para o centro da cidade. Era uma tarde de domingo em julho, as ruas estavam praticamente desertas e logo cheguei lá. Estacionei no mesmo lugar do dia anterior, um pouco dis­tante do endereço, fui até a entrada do edifício, apertei o botão com o nome Dawson, empurrei a porta quando ela se abriu e subi os dois lances de escada.

Quando cheguei lá em cima, fui dando de cara com dois sinais de violência. A porta, entreaberta, estava despeda­çada e Fred tinha um dos lados do rosto inchado e um fe­rimento na têmpora direita.

— Ah. Quer dizer que o cadáver era você.

— Não amole. Olhe só para isso. — Entrei atrás dele e fui vendo mais sinais de violência. Havia uma mesa e uma cadeira viradas, tapetes fora do lugar, e Glenn Prescott estava deitado no chão, com os olhos abertos, olhando para nós. Seu rosto estava num estado bem pior que o de Fred e havia sangue por toda parte, sobretudo na gravata, no colarinho e na frente da camisa.

— Ele já voltou a si — disse Fred — mas não quer falar. Limpei um pouco do sangue, mas o nariz continua escorrendo.

Prescott soltou um gemido. — Eu quero falar — res­mungou com dificuldade. — Isto é, se puder. Tenho medo de estar machucado lá por dentro. — Abraçou o estôma­go. — Ele me acertou bem aqui.

Ajoelhei-me ao lado dele para tomar-lhe o pulso, e de­pois comecei a apalpar aqui e ali. Ele se encolhia, recla­mava e gemia, mas eu não consegui encontrar nada de mais. Fred trouxe uma toalha úmida, e limpei um pouco o rosto de Prescott.

Levantei-me. — O senhor não parece muito machuca­do, mas é claro que não tenho certeza. Ele só o acertou com os punhos, não foi?

— Não sei. Ele me acertava, eu me levantava e ele me acertava novamente.

— Quem foi? Davis?

— Eu não vou... — Gemeu outra vez.

— Claro que foi Davis — interrompeu Fred. — Ele deve ter vindo até aqui enquanto eu estava lá na esquina telefonando para você. Eu voltei e fiquei vigiando a entra­da e logo depois esse cara chegou, apertou a campainha e entrou. Após alguns instantes, ouvi ruídos. O porteiro saiu e disse que também tinha ouvido algo. Quando che­guei no final da escada ele estava lá. Pude vê-lo mas não fui rápido o suficiente. Devo ter batido com a cabeça em algum lugar. Quando voltei a mim, estava lá embaixo, no final da escada, e ele tinha ido embora. Subi, arrombei a porta e encontrei esse sujeito estendido no chão.

Olhei em volta, vi um telefone, fui até lá e disquei. Em um segundo Wolfe atendeu.

— Aqui é o Archie. Cramer ainda está aí?

— Sim.

— Posso falar?

— Sim.

— Estou no apartamento de Dawson. Prescott está aqui no chão com alguns ferimentos. Davis deu uns socos nele, atirou Fred escada abaixo e saiu para dar um pas­seio. Fred está aqui.

— Prescott está muito machucado?

— Acho que não.

— Traga-o até aqui.

— E Cramer? O carro dele está aí na frente com dois policiais dentro.

— Está tudo certo. Estamos cooperando com a polícia.

— Ah, que bom!

Desliguei e dirigi-me a Prescott. — O inspetor Cramer está no escritório de Wolfe e quer falar com o senhor. Va­mos colocá-lo de pé e ajudá-lo a descer as escadas.

Ele gemeu. — Mas eu posso estar ferido. Pode ser pe­rigoso...

— Acho que não. Vamos ver se o senhor pode ficar de pé. Ajude aqui, Fred.

Conseguimos levantá-lo sem que nada saísse do lugar. Do jeito que ele gemia, parecia que seria melhor deixá-lo lá, mas quando ficou de pé senti o pulso dele e vi que es­tava tão bom quanto o meu. Sendo assim, fomos levando-o enquanto ele resmungava. Quando chegamos lá embaixo, fizemos com que ele se sentasse num degrau, eu peguei o carro e estacionei em frente ao edifício. Demos um jeito de colocá-lo lá dentro, sentei-me ao volante e pedi a Fred para sentar-se no banco de trás.

Fred ficou lá na calçada balançando a cabeça. — Você não precisa de mim. Eu tenho algo a fazer.

— Eles vão querer interrogar você. Entre.

— Eles podem me interrogar depois. Eu tenho que re­solver um assunto.

Olhei bem para ele. Sua expressão me dizia que não adiantava insistir.

Está bem — disse eu. — Há uma chance em um milhão de você conseguir encontrá-lo lá. Se conseguir, não seja tolo. Lembre-se de que qualquer cidadão que presencie um crime, como por exemplo tentativa de agressão e es­pancamento, pode legalmente efetuar uma prisão. No seu caso, você pode não ter visto muita coisa, mas sentiu bastante.

— Vá plantar batatas — retrucou ele, e saiu pisando firme. Vi que Prescott estava bem acomodado no seu can­to e parti.

Enquanto eu ia dirigindo para a Rua 35, Prescott tocou no meu braço e disse que preferia ir para um hospital. Nem me preocupei em convencê-lo do contrário. Quando chegamos na frente da casa de Wolfe, já encontramos os dois policiais que estavam no carro de Cramer à nossa es­pera. Eles me ajudaram a levar minha carga para dentro, também sem dar muita atenção aos seus gemidos. No sa­guão encontramos Wolfe e Cramer e também o Dr. Vollmer, cujo escritório ficava nas redondezas. Wolfe assumiu o comando e deu as instruções. O médico e um dos policiais subiriam pela escada, enquanto eu e Prescott iríamos de elevador. Deixei-os num dos quartos, que fica­va no mesmo andar do meu, e voltei para o escritório.

Wolfe e Cramer estavam lá sentados. Relatei o que acontecera, embora não houvesse muito o que acrescentar ao que eu já contara a Wolfe pelo telefone. Wolfe ficou calado o tempo todo, mas, pela expressão dos seus olhos, percebi que se controlava para não fazer nenhum comen­tário sobre a atuação de Fred na frente de Cramer. Ele não o perdoava por ter deixado Eugene Davis escapar. Cramer ligou para seu escritório e, pela maneira como falou com um dos seus subordinados, ficou claro que Wolfe tinha lhe contado sobre o caso Davis-Dawson e que todos os policiais disponíveis já estavam à procura do sócio minoritário da querida e velha firma.

Logo que Cramer desligou, a campainha começou a tocar sem parar. Corri até o saguão e, dando de cara com Fritz, disse-lhe que deixasse por minha conta. Quando vi quem era, afastei-me com um sorriso de boas-vindas. O tira que ficara lá fora olhava atento, mas indeciso para os dois estranhos que estavam na sua frente. Bem defronte a mim estava Eugene-Earl-Davis-Dawson, abatido, desgrenhado e sem chapéu. Logo atrás Fred Durkin apontava uma arma para as suas costelas.

— Ora, ora — disse, cumprimentando-o.

Fred, concentrado na sua obrigação, ignorou-me. — Pra dentro — ordenou ele, cutucando-o com o revólver. Fechei a porta e acompanhei-os até o escritório. Fred foi levando-o até a escrivaninha de Wolfe e então guardou a arma no bolso e encarou o seu prisioneiro.

— Vá dar uma voltinha agora — disse ele furioso. — Ou então tente alguma outra gracinha. Tudo o que eu quero saber...

— Já chega, Fred — disse Wolfe asperamente. — On­de você o encontrou?

— No Wellman’s. Uma espelunca que fica na Rua Oito, onde...

— Está bem. Ótimo. Ele está armado?

— Não, senhor.

— Ótimo. Sente-se, Sr. Davis. Parece que...

A porta se abriu, dando passagem ao Dr. Vollmer. Ele viu aquela cena, parou, e então aproximou-se. — Descul­pem, mas tenho que correr. Tenho pacientes me esperan­do. Aquele homem lá em cima vai ficar bom. Ele tem alguns ferimentos, mas não houve nada demais, a não ser com os seus nervos que estão em péssimas condições. É melhor ele tomar um tranqüilizante.

— Obrigado, doutor. Vamos mandar buscar o tranqüi­lizante. Vá correndo ver os seus pacientes. — E dirigindo-se a Davis: — É o Sr. Prescott. Nós o trouxemos para cá. É espantoso que o senhor não o tenha assassinado, real­mente espantoso. — Wolfe olhou para o inspetor. — Acho que agora podemos continuar, Sr. Cramer. Mas seria me­lhor se o Sr. Dunn também estivesse aqui. Junto com os outros. Será que o senhor poderia telefonar para o hotel dele?

 

No quarto de Prescott, um vento quente agitava as corti­nas. O tira de plantão colocou o casaco, enxugou o rosto e o pescoço com um lenço e passou a mão pelos cabelos. Prescott, sentado numa cadeira, gemia.

— Não tenho nada contra falar com Wolfe — disse ele choramingando. — Mas por que ele não pode vir até aqui? Não consigo nem me abaixar para pôr os sapatos.

Depois de tê-lo tirado da cama e de dar um jeito em suas roupas, eu já estava cansado de bancar o engraçadi­nho. Peguei um par de sapatos de dentro do armário, ajoe­lhei-me diante dele, calcei-o, levantei-me e disse:

— Um, dois, três e já. Pelo amor de Deus, o senhor não vai querer que a gente o carregue.

O policial disse, irritado: — Aqui tem elevador, não tem? O que mais o senhor está querendo?

Prescott rangeu os dentes, foi se levantando apoiado nas mãos, enquanto gemia, e deu um passo.

Ao chegar à porta do escritório, estacou, pois não devia estar esperando ver tanta gente. A sala estava cheia, e havia cadeiras por toda parte. Sara Dunn tinha descido da estufa e estava num canto da estante com Andy e Celia. Wolfe sentava-se à escrivaninha, com Cramer e o Promo­tor Público Skinner do outro lado e, entre eles, Eugene Davis. April, May e June estavam entre a escrivaninha e a porta, de costas para nós. Stauffer postara-se numa ca­deira perto de April, na mesma atitude protetora. John Charles Dunn levantou-se em nossa direção e, ao ver o rosto de Prescott, exclamou:

— Glenn! O que aconteceu com você? Meu Deus, o que...

Prescott balançou a cabeça. Duvido que ele tenha se­quer escutado ou visto Dunn. Seus olhos, um dos quais quase não podia enxergar de tão inchado, estavam fixos em Eugene Davis. Ele ficou lá parado, e eu atrás dele. O policial tinha se plantado na porta.

Skinner falou em voz alta: — E então...?

Wolfe disse: — Há uma cadeira para o Sr. Prescott ao seu lado, Archie.

Cutuquei Prescott e ele atravessou a sala e se deixou cair na cadeira. Johnny Keems saiu do meu lugar e foi se sentar perto de Saul Panzer. Ele estava cansado de saber que eu detestava ver alguém sentado na minha cadeira.

May Hawthorne disse com ironia: — Isto é impressio­nante, Sr. Wolfe.

Os olhos de Wolfe dirigiram-se para ela: — A senhora não gosta mesmo de mim, não é, Srta. Hawthorne? Posso compreender. A senhorita é uma realista, e eu, um român­tico. Mas não fiz nada disso para impressionar ninguém. Vou precisar de alguns de vocês e posso até precisar de todos. É o meu trabalho. Estou atrás de um assassino e ele está aqui. E dirigindo-se para o promotor público: — A situação pode-se tornar delicada, Sr. Skinner. Espero que o senhor cumpra a sua parte.

— Conforme o combinado — disse Skinner rispida­mente. — Nunca fui enganado nem pretendo ser.

— Sim, senhor. Conforme o combinado. — Os olhos de Wolfe giraram pela sala e foram se deter no rosto que estava menos apresentável. — Sr. Prescott, como sei que está difícil para o senhor falar, vou tentar falar eu mesmo a maior parte do tempo. Como advogado, o senhor deve saber que não é obrigado a responder a nenhuma pergun­ta, mas desde já vou avisando que serei bastante persisten­te e desagradável. Primeiro, gostaria que o senhor confirmasse alguns fatos. Em março de 1938, a sua secretária particular era uma jovem chamada... como é mesmo o nome dela, Saul?

A voz de Saul veio lá de trás: — Lucille Adams.

— E quando ela morreu?

— Há dois meses atrás, em maio, de tuberculose, na residência dela, que fica no número 2419...

— Obrigado. O senhor confirma isso, Sr. Prescott?

— Ora... sim — murmurou Prescott.

— Foi para a Srta. Adams que o senhor ditou o testa­mento de Noel Hawthorne, seguindo as instruções dele?

— Não me lembro. — Ele já estava falando melhor. — Acho que sim.

— Era ela a sua secretária particular naquela época, responsável por toda a sua correspondência confidencial?

— Sim.

Alguém comentou asperamente: — Se isso é uma piada, não é nem um pouco engraçada. — Era Eugene Davis. — Isto é uma investigação oficial? O promotor público está presente. O senhor pertence à equipe dele, Sr. Wolfe?

— Não, senhor. Eu sou um detetive particular. O se­nhor está sendo representado por algum conselho, Sr. Prescott? Ou gostaria de ser?

— É claro que não.

— O senhor quer que o Sr. Davis atue como seu con­sultor, interferindo na nossa conversa?

— Não.

— Então, vamos adiante. Em relação à rotina adotada no seu escritório. Os blocos utilizados pelas secretárias confidenciais são numerados. Depois que um bloco é to­talmente utilizado e o seu conteúdo já foi transcrito, os blocos são devolvidos e depois destruídos. Isso é verdade, Sr. Prescott?

Prescott se ajeitou com cuidado na cadeira, mas sem gemer. — É — disse ele. — Agora eu gostaria de fazer uma pergunta. Gostaria de saber quem andou investigan­do os assuntos da minha firma e por quê?

— Eu — disse Wolfe num tom um pouco mais enér­gico. — Os meus auxiliares. O Sr. Panzer e o Sr. Keems, logo aí atrás do senhor. Asseguro-lhe que eles não fizeram nada pelo que possam ser processados, e se o senhor continuar a se irritar, vai acabar sentindo-se pior do que já está. É melhor o senhor manter a sua cabeça o mais fria possível.

— Ande logo — exclamou o promotor público. — Não viemos aqui para assistir a uma conferência.

Wolfe nem se deu ao trabalho de olhar para ele. Con­tinuou: — Agora, senhor, se o Sr. Skinner parar de me interromper, vou acabar logo com isso. Foram surgindo, um após o outro, três problemas para que eu resolvesse: o testamento de Noel Hawthorne, o assassinato de Noel Hawthorne e o assassinato de Naomi Karn. Só vou saber se consegui ou não solucionar essas questões se puder ve­rificar a validade das minhas hipóteses, baseadas em informações recebidas. Quero então pedir a vocês, a todos vocês, que ouçam com a maior atenção possível.

“Primeiro. Eugene Davis estava loucamente apaixona­do por Naomi Karn e ficou tão desesperado quando ela o abandonou, por causa de Noel Hawthorne, que começou a beber e a fazer outras coisas idiotas. Isso durou quase três anos. Durante esse tempo, ela deve ter deixado que ele tivesse algumas migalhas, não é verdade, Sr. Davis? Isso ajudaria muito a traçar o perfil dela.”

Todos os olhos se voltaram para Davis. Ele permane­ceu calado. Tentando se controlar, ele olhou para Wolfe. Seus músculos da garganta se contraíram quando engoliu em seco.

Wolfe deu de ombros. — Segundo. Davis sabia muito bem quem era a Srta. Karn: uma mulher ambiciosa, ga­nanciosa e sem escrúpulos. Sabia também que ele nunca teria paz enquanto Hawthorne estivesse vivo e milionário. Conhecia ainda o conteúdo do testamento de Hawthorne, que estava num cofre da sua firma ao qual tinha acesso.

“Terceiro. Com a morte de Lucille Adams, um plano começou a surgir na cabeça dele. Um cérebro privilegiado vê uma oportunidade onde uma pessoa comum nunca a perceberia. De qualquer jeito, ele armou seu plano e ficou esperando a ocasião para executá-lo. Sabia que Hawthor­ne pretendia viajar para Rockland County na terça-feira, e então arranjou um jeito de encontrar-se com a Srta. Karn nesse dia. Ele afirma que foram a Connecticut; só sei que ele ficou ausente o tempo suficiente para ir até Rockland County e voltar. É provável que ele já estivesse com tudo preparado, inclusive com uma arma, mas quan­do ele viu, da estrada, Noel Hawthorne no bosque carre­gando uma espingarda, não pôde perder essa oportunida­de. Estou quase certo de que a Srta. Karn não sabia onde ele estava ou quais eram os seus planos. Ela não precisava saber e ele não queria que ela soubesse.

“Quarto. Na terça à tarde...”

— Espere um instante. — Eugene Davis tinha se decidido a falar. Ele olhava para Wolfe intrigado. — O senhor está querendo dizer que fui eu quem matou Hawthorne?

— Tudo leva a crer, Sr. Davis.

— Então o senhor é um grande idiota. E eu posso pro­cessá-lo por acusar...

— Talvez sim. Ou talvez não. Como advogado, por que o senhor não me deixa continuar até que eu me afunde? Quarto. É bem provável que ele tenha ido então até a firma dele, tirado o testamento de Hawthorne do cofre e datilografado a primeira página de novo — com o mes­mo papel e a mesma máquina — tendo o cuidado de ter­minar de acordo com a continuação da segunda página, onde estavam as assinaturas. Ele nunca teria feito isso sem que Hawthorne estivesse morto, embora pudesse ter pre­parado o outro testamento antes, já que era um trabalho difícil e delicado.

“Quinto. Duvido que a Srta. Karn fosse herdar algu­ma coisa. Não sei o que ele pode ter dado a ela enquanto vivo, mas é bem provável que ela nem constasse do testa­mento. Normalmente não se faz esse tipo de coisa. Mes­mo que estivesse, ela certamente receberia pouco. Então, Davis querendo se certificar de que ela nunca mais se meteria em aventuras com outros milionários, fez-lhe uma proposta. Se ela prometesse ser só dele, ele trocaria a pri­meira página do testamento, e ela herdaria sete milhões de dólares.”

— Glenn Prescott redigiu o testamento — disse May sarcástica.

Wolfe assentiu. — Eu sei. Sexto. Davis tinha calculado o risco. Se existisse uma cópia do testamento, ele sabia onde encontrá-la e poderia destruí-la ou substituir a pri­meira página. Só havia três maneiras de provar que o tes­tamento era falso: por meio do bloco da estenógrafa, o qual, seguindo a rotina, tinha sido destruído pela pró­pria estenógrafa, que estava morta; e por meio de Glenn Prescott, seu sócio, que tinha redigido o testamento. Ele resolveu correr o risco. Era esperto, audacioso e estava de­sesperado a ponto de correr o risco. Conhecia Prescott, sabia que a coisa que ele mais prezava era a reputação e o bem-estar da firma de advocacia. Calculou então: se Prescott pegasse o testamento no cofre e descobrisse que ele tinha sido substituído, ficaria chocado, escandalizado, atordoado. Suspeitaria logo de Davis. Mas ele teria cora­gem de expô-lo?

Davis exclamou: — Meu Deus, o senhor já se afundou há muito tempo.

— E vou ainda mais fundo — disse Wolfe sem se per­turbar. — Davis respondeu a essa pergunta, se Prescott iria expô-lo, com um não. Prescott considerava Davis um advogado fora de série, do tipo que faz história. Ele sabia que a sua obsessão pela Srta. Karn o arruinara. Com Hawthorne morto e a ambição da Srta. Karn satisfeita, graças a Davis, Davis poderia tê-la e voltar a ser o que era, e a firma seria beneficiada. Por outro lado, se Prescott revelasse o ocorrido, mesmo que a culpa de Davis fosse provada legalmente, isso seria um golpe decisivo para o prestígio e a reputação da firma. Dunwoodie é um nome antigo, muito mais do que um nome. Prescott é um advo­gado capaz, mas não chega a ser brilhante e sabe disso. Sem Davis, e com as conseqüências desse escândalo, a fir­ma estaria arruinada.

“Davis imaginou que Prescott reagiria dessa forma e estava certo. Não sei por quanto tempo Prescott ficou nes­se conflito, mas finalmente acabou levando o testamento para a casa dos Hawthorne na quinta-feira, lendo-o do jeito que estava para a família ali reunida. Aí, então, já não tinha mais jeito de voltar atrás. Davis estava salvo pelo menos no que dizia respeito a Prescott. Mas ele se viu diante de um outro perigo. Onde, como e quando isso aconteceu, eu não sei; não tenho nenhuma prova de que Naomi Karn acabou se convencendo de que Davis tinha assassinado Hawthorne. Ela então ameaçou entregá-lo, o que parece pouco provável, ou se recusou a ter qualquer ligação com um criminoso, e isso parece ser mais prová­vel. De qualquer jeito, quando Davis entrou na sala de estar ontem à tarde e viu a Srta. Karn, imobilizou-a com uma pancada, estrangulou-a e a escondeu atrás... Archie!”

Eu já havia pulado da cadeira, mas acabou não sendo necessário. Davis tinha se levantado furioso e Cramer es­tendera o braço para imobilizá-lo, mas isso também não era necessário. Ele gemeu e, sem falar nada, tornou a se sentar como se aquilo tudo fosse demais para ele. Ficou lá sentado, olhando para Wolfe.

Ao invés de se dirigir a ele, Wolfe virou-se para o seu sócio e continuou: — Agora, Sr. Prescott, só depende do senhor. Eu tenho várias provas, mas antes de apresentá-las gostaria de propor-lhe algo. A sua tentativa de salvar sua firma da ruína não deu resultado. O assassinato de Hawthorne e da Srta. Karn já foram o bastante. Se o se­nhor quiser cooperar conosco, essa é a sua última oportu­nidade. — Os olhos de Wolfe foram se deter no Sr. Skinner. — Sr. Skinner, eu disse que tinha provas, e eu as tenho. Mas o Sr. Prescott pode nos ajudar, se quiser. Sugiro que, se ele cooperar depondo contra o assassino, seja liberado da acusação de ter sido cúmplice de uma falsificação.

Skinner resmungou: — Isso cabe a mim decidir.

— Eu sei disso.

— Bem — Skinner parecia cauteloso. — Tudo depen­de do depoimento. — Ele olhou bem para Prescott. — Va­mos fazer o seguinte. Se o senhor me ajudar, eu também posso ajudá-lo. Se não, e já que o senhor foi cúmplice de uma falsificação, só Deus poderá ajudá-lo.

Todos olharam para Prescott. Seu rosto era algo digno de ser visto. Além de estar todo inchado e machucado, o sangue tingia-lhe de vermelho as faces, como se suas veias não conseguissem bombeá-lo de volta. Ele não conseguia olhar para Davis nem podia olhar para Skinner, já que este estava na direção de Davis. Com um olho bom e o outro praticamente fechado, olhou para Wolfe e gaguejou:

— O que... o que o senhor quer que eu diga?

— A verdade, Sr. Prescott. Sobre o testamento, o que...

Davis interrompeu bruscamente. — Não seja idiota, Glenn. Não diga nada.

— Sobre o testamento — repetiu Wolfe. — Davis já está perdido de qualquer jeito. Quanto Hawthorne deixou para a Srta. Karn?

— Ele... eu não posso...

— Diga logo — exclamou Skinner.

Prescott acabou cedendo. — Ele não deixou nada para ela. O nome dela nem constava do testamento.

— Perfeito. E para a esposa dele?

— O restante. Havia... um milhão para cada uma das irmãs dele. Doações para os criados e funcionários, e para o sobrinho e a sobrinha dele — isso não foi alterado. Um milhão para o fundo de pesquisas de Varney College. O restante deveria somar uns dois milhões de dólares.

— Ótimo. Archie, tome nota disso e de tudo o que ele disser. Eu poderia atormentar o senhor com uma série de perguntas, mas prefiro não fazer isso. É melhor que o se­nhor me diga. O senhor é um advogado, e sabe perfeita­mente o que quero. O que o senhor tem a me dizer?

A cor sumia e voltava ao rosto de Prescott. Ele estava esgotado. Mas de repente sua voz tornou-se mais forte: — O que tenho para lhe dizer é que quando estive com a Srta. Karn na quinta-feira, ela confessou que havia sido Davis, e que tinha sido cúmplice dele. Ela disse tudo...

— Você é um covarde e um mentiroso.

Era Eugene Davis que se levantara ameaçadoramente. Cramer estava segurando o braço dele e eu também, porém, mais uma vez, isso não era necessário. Davis, sem fazer nenhum esforço para se soltar, com os olhos cheios de ódio e desprezo, acusava Prescott:

— Foi você quem me jogou nisso! Seu cafajeste! Eu estou arrependido de ter batido em você! De ter tocado em você! Você a matou! E pelo bem da velha Dunwoodie e de todos os que estão lá, eu lhe fiz o favor de arrebentar a sua cara e era só isso que eu ia fazer. Embora o que qui­sesse, mesmo, era ter acabado com a sua vida, mas isso não está em mim. Só consegui arrebentar a sua cara. E você cai na armadilha que esse homem aprontou para você e quer me levar junto! Seu traidor, covarde!

Davis encarou Wolfe. — O senhor é inteligente — dis­se com amargura. — Bastante inteligente. E é claro que o senhor está certo. Foi Prescott. O senhor queria me fazer falar e conseguiu. Ele quis ter Naomi há seis anos atrás, mas ela preferiu a mim. Ele sempre quis tê-la. Ele foi guardando aquilo, e aquela doença foi crescendo dentro dele. Eu sabia que ele nunca tinha parado de querê-la, mas não sabia como isso tinha corroído as entranhas dele, até que Naomi me contou na sexta-feira o que ele tinha feito com o testamento e a proposta que fizera a ela. E ela aceitou. Ela ia casar com ele. O senhor também está certo sobre ela. Era ambiciosa, gananciosa e sem escrúpu­los, mas... bem, ela está morta. Quando ela soube, na sexta-feira, que Hawthorne tinha sido assassinado, teve certeza de que tinha sido Prescott. Para tê-la. E resolveu abandoná-lo. Foi por isso que ele a matou — por isso e por medo de que, se as coisas esquentassem, ela desse com a língua nos dentes.

— Sente-se — ordenou Cramer.

— Espere um instante — disse Skinner, olhando intri­gado para Wolfe. — O senhor disse que tinha provas de que tinha sido Davis.

— Não, senhor. Eu disse que tinha provas. Archie, pegue aquele envelope no cofre.

Passei por entre os convidados, apanhei-o e o entreguei a Wolfe. Ele espalhou as fotos pela mesa, pegou uma e pediu que eu a passasse para Prescott. Obedeci. Eu quase tive que forçá-lo para que ele a segurasse e ele não fez nenhum esforço para olhá-la. Mesmo com o olho bom, não enxergava mais nada à frente.

— Isso que o senhor está vendo — disse Wolfe — é uma fotografia do senhor, que foi tirada às seis horas de terça-feira pela Srta. Dunn, enquanto o senhor a espe­rava na frente da loja onde ela trabalha. A flor que está na sua lapela é uma rosa setígera. Uma rosa silvestre. O senhor se lembrou disso ontem e roubou a máquina foto­gráfica, mas já era tarde. Onde o senhor ia encontrar uma rosa silvestre no centro de Nova Iorque?

Ele parou por um instante, mas Prescott não respondeu nada, pois não tinha a mínima condição de fazê-lo. Ficou lá parado, com um olhar abobalhado.

— O senhor não podia tê-la comprado em Nova Ior­que — continuou Wolfe implacável. — Nenhum florista em Nova Iorque teria uma rosa silvestre. E quando o se­nhor deixou o seu escritório na terça-feira por volta de uma hora da tarde, de acordo com a recepcionista, uma jovem bastante observadora... qual é mesmo o nome dela, Johnny?

— Mabel Shanks — respondeu Johnny num tom mais alto do que o necessário. — Mas ela não era tão jovem assim.

— Bem, isso não vem ao caso. O que o Sr. Prescott es­tava usando na lapela quando ele saiu para almoçar na terça-feira?

— Uma centáurea.

— Exatamente. E foi uma centáurea murcha que Andy foi encontrar não muito longe do corpo de Hawthorne, pendurada numa roseira. Eu tenho duas provas do tipo de roseira que havia por lá: uma fotografia do lugar tirada por Sara Dunn na quarta-feira de manhã, e uma planta num vaso, lá em cima, trazida por um dos meus homens. O que deve ter acontecido é que, antes de o senhor atirar em Hawthorne, enquanto o distraía para poder pegar na arma, o senhor deve ter jogado a sua centáurea fora e colocado uma rosa silvestre na lapela. Ou, o que parece mais provável, o próprio Sr. Hawthorne fez isso quando viu que a sua centáurea estava murcha. Ele colocou a es­pingarda de lado e o senhor teve então a oportunidade que esperava para pegá-la. Depois que ele já estava morto, na sua pressa de fugir dali e voltar para Nova Iorque para garantir o seu álibi com a Srta. Dunn, o senhor se esque­ceu totalmente da rosa, que o senhor continuava usando quando foi buscá-la na loja e ela lhe tirou aquela foto. Foi aquela foto que o traiu...

— Ei!

Cramer deu um salto por cima de Skinner e segurou com ambas as mãos o pescoço de Prescott. Nunca vi uma cena tão lamentável, nem quero tornar a ver. O pobre coi­tado tinha enfiado a fotografia na boca e começou a mas­tigá-la o mais rápido que o seu queixo machucado per­mitia, tentando engoli-la.

— Deixe-o — disse Wolfe com rispidez. — Eu tenho o filme. O senhor pode levá-lo, Sr. Skinner. Por favor, tire-o daqui.

Eu também me sentia mal. Fui acompanhando Prescott com a vista até não poder vê-lo mais e então virei-me para ver como estavam as famosas irmãs Hawthorne. Quem chegasse ali naquele momento teria a impressão de que aquilo ali era uma agência matrimonial, ou algo não tão familiar. Andy e Celia estavam abraçados perto da estan­te. April se entregava ao abraço protetor de Stauffer. John Charles Dunn estava debruçado sobre June, beijando-a, enquanto ela o acariciava.

May levantou os olhos para Wolfe e perguntou: — E o testamento? Se ele destruiu a primeira página, como é que nós vamos poder provar...

Wolfe limitou-se a olhá-la.

A ordem de prisão trazida por Cramer para levar Wolfe como testemunha material está numa das gavetas da mi­nha escrivaninha, onde eu guardo lembranças.

 

                                                                                            Rex Stout  

 

                      

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